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Prelúdio

Mario Costa

Foi numa noite como essa. Sem nuvens no céu, sem muito barulho das ruas, com as famílias
indo dormir cedo e alguns bêbados aleatórios tentando achar o caminho de casa aos
tropeções. Eu era um desses bêbados.

Eu estava sem propósito. Poderia até culpar meus pais, que a falta de amor e acolhimento
infantil me levaram a este ponto, algo a la Freud. mas a verdade era que eu não via mais
sentido em nada. Qual o motivo de me empenhar em algo passageiro? De me esforçar em
semanas na construção de uma obra-prima que logo seria descartada? Que valeria somente
uma exposição e acabou?

Depois de passar por uma crise de criatividade eu decidi ir a um bar pra matar dois coelhos
com uma cajadada só. Iria afogar o desespero que estava sentindo no momento, mas quem
sabe algo ali não me inspirasse também? Era um local que nunca havia estado, mas que havia
ouvido que era frequentado por umas pessoas alternativas e sem muita perspectiva de vida,
que queriam apenas viver o momento dirigindo suas motos pelas estradas da Toscana e
fazendo muito barulho. De início até achei excitante esse comportamento rústico e bruto
desses machos alfas enquanto jogavam dinheiro para as strippers na casa, mas logo perdi o
interesse. O corpo das dançarinas era mais interessante que isso, e olha que tenho preferência
por homem com corpo e jeito de macho.

Como a vida é amarga, decidi por beber alguns Aperol Spritz e, nem sei depois de quantos
copos, percebi que um desses machões estava me observando. Deve ter sido o álcool, mas
meu instinto de sobrevivência estava quase nulo aquele dia e decidi ir até ele e perguntar se
estava querendo algo porque não parava de me olhar. Ele me disse que havia me reconhecido
como um amigo da esplendorosa Sofia Mercantez de Luna e estava surpreso em ver um de
seus “protegidos” em um local como aquele. É certo que Sofia estava sendo uma matrona há
alguns meses, mas protegido não era demais?

Papo vai, papo vem, descobri que o gostosão se chama Ricardo Castello e que já teve um certo
envolvimento amoroso com a Sofia há uns anos. Me contou um pouco das suas aventuras
como motociclista, mas eu já não estava parando em pé pela manguaça e ele se prontificou a
me levar embora. Mas, eu acabei voltando para casa somente depois de algumas semanas.
Naquela noite, ele me levou até um galpão onde guardava sua motocicleta e lá ele me
“abraçou”. Não como um abraço de conforto, desejo ou paixão. Mas, como uma agonia
inebriante. Eu queria me desvencilhar daquela mordida dolorosa, mas era uma dor tão
prazerosa. Não saberia dizer o que separava as duas coisas. Só me deixei levar pela sensação.
Uma sensação de esgotamento.

Eu não pude me aguentar quando ele terminou. Eu apenas caí e não consegui me levantar.
Mas, então ele veio com seu pulso minando sangue e pôs na minha boca. De princípio pensei
“o que esse maluco vai fazer”, mas estava com a mente muito torpe pela bebida e pela
mordida e não fui contra ao que ele fez. Apenas me deixei levar. E quando seu sangue desceu
pela minha boca, o que senti não foi um gosto estranho de ferrugem, mas algo doce e
saboroso. Eu queria mais. Eu queria tudo. Mas, rapidamente ele tirou o pulso da minha boca e
o que restou foi uma ânsia e um incômodo. De princípio incômodo, mas de imediato se
transformou em uma dor latente e intensa.

Meu estômago doía e uma fome como eu nunca havia sentido antes começou a tomar conta
de mim. Nem imaginava como consegui, mas me botei imediatamente de pé buscando sair
daquele local e me alimentar. Pensei em comer um hamburguer, mas não era aquilo. Pensei
em um belo strogonoff, mas também não era aquilo. Então decidi apenas sair e no caminho eu
descobriria o que era. Porém, Ricardo não deixou. Me explicou o que tinha acabado de fazer e
o que era essa fome que eu estava sentindo. Eu fiquei possesso de raiva. Como eu poderia
acreditar naquela sandice sem limites e ele ainda não deixar que eu saísse daquele lugar?
Peguei um cano de ferro que havia ali do lado e fui pra cima dele pra liberar esse ódio. É, foi
uma burrice minha. Ele me quebrou por inteiro, pra resumir essa parte. Me amarrou quase
inconsciente e me deixou. Voltou depois de alguns minutos com alguém, que até hoje não sei
quem era, e me disse que a comida estava servida. A pessoa deu uma risada de nervoso por se
encontrar naquele lugar e ver uma pessoa espancada e amarrada e ele nem se importou com
isso. Foi até mim e me desamarrou. Depois, voltou até a pessoa e fez um leve corte no braço
dela com um canivete. Naquele momento eu soube que era real. Naquele momento eu soube
que a maldição cainita havia caído sobre mim.

Sem me delongar muito, foi um show de horrores. Tanto para aquela pobre alma que se viu
sendo a comida de um neófito recém-criado, quanto para mim que se viu tendo que se
confrontar com o fato de que para viver, a partir daquele momento, eu precisava ser um
assassino. Agora sim que belas palavras, discursos positivos e uma mente coletiva de nada
importavam nesse mundo degradante que vivemos. Eu deveria pensar em mim e somente em
mim se eu quisesse sobreviver.

Passado isso, ele ficou alguns dias comigo para me explicar as regras da noite, me apresentou
a alguns vampiros irmãos, que nos reconhecemos como Brujah, a ralé, me ensinou um pouco
sobre os poderes que agora tinha e simplesmente me abandonou. Não me deu motivos.
Apenas sumiu. Depois de algum tempo as coisas foram se esclarecendo pra mim. Eu era um
caso de vingança. Sofia é uma Toreadora que me queria como seu filho da noite, mas Ricardo
sabendo disso não deixou. Isso porque devido a um desentendimento entre ambos no
passado, que não sei ainda qual é, ela decidiu não se envolver mais com ele e ele não aceitou a
separação. Ele queria infligir a ela a mesma dor da separação que ela havia feito ele sentir. O
problema é que ele continuou sendo um stalker e um incômodo para Sofia, mas isso não vem
ao caso agora.

Quando descobri, isso me revoltou demais. Não por não ter sido abraçado por Sofia, mas por
ter sido abandonado às traças. Se ele havia decidido me criar, então, que cuidasse de mim.
Mas, decidi que ainda não era tempo de agir. Passado alguns anos, me envolvi com um círculo
de Brujah que querem reviver a antiga glória do clã, quando ainda éramos líderes intelectuais e
sábios na antiga Cártago. Entendi que não havia necessidade de ser um assassino de humanos
toda vez que queria me alimentar, mas que poderíamos viver em harmonia e paz. Uma
verdadeira simbiose onde nenhum outro clã realmente pode liderar a não ser nós mesmos,
pois todos são estúpidos e arrogantes por demais. Pode até ser que eu seja arrogante ao dizer
isso, me achando superior aos demais, mas é como as coisas realmente são.
Eu havia me envolvido por demais com a causa, me apoiando cada vez mais nos membros do
círculo intelectual, do qual nos chamamos Vecchia Cartagine, como uma forma de suprir a falta
de apoio e suporte que tive do meu criador quando, do nada, ele novamente aparece. Mas, ele
não estava sozinho. Estava com outro rapaz. Uma outra criança da noite recém-criada, mas
não por vingança dessa vez. Agora ele havia criado uma para ser seu filho. Seu filho querido
que eu jamais seria. Seu protegido. Afinal, eu não sou otário e isso não ficaria impune. Elaborei
um plano e deixei passar alguns dias até que a oportunidade se apresentasse. Quando um
contato meu me informou que o bebezinho do papai foi ar bar sem seu criador, fui lá e
encantei ele com um poder bastante sedutor de Transe. O mandei me esperar em um local
ermo da cidade e, quando ele estava de costas e não me vendo, eu o ataquei.

Como foi prazeroso sugar toda gota de sangue daquele palerma. Mas, o plano ainda não
estava completo. Eu havia me feito discreto e não ser notado enquanto enfeitiçava aquele
garoto. Um pouco antes, também havia deixado Sofia em transe para que ela fosse ao bar e
ficasse conversando durante boa parte da noite com o menino e deixasse um recado em papel
para ele se encontrar com ela no local do crime um pouco tempo depois do que estava
planejando de matá-lo. Através dos meus poderes ainda fascinantes, ainda fiz com que um
membro influente começasse a espalhar boatos e rumores de que naquele local e numa
determinada hora um crime vampírico aconteceria. E quem estava no local quando vários
vampiros curiosos e oficiais da Camarilla chegaram lá? Sim, fiz todos acreditarem que Sofia
tinha feito isso. Afinal, era uma forma aparente de ela também se vingar de um stalker filho da
puta. Coitada, foi levada a julgamento em flagrante e morta a mando do príncipe da cidade,
enquanto Ricardo havia perdido duas vezes na mesma noite.

É claro que isso não pode vazar daqui. E é por isso que seu futuro já foi selado, mon amour.
Um francesinho tão lindo como você, que veio passar as férias aqui na Sicília, vai ter que
desaparecer. Me desculpe. Eu poderia me alimentar e deixá-lo ir com apenas uma lembrança
agradável de uma noite sexual intensa e prazerosa. Mas, estou melancólico e nostálgico hoje e
decidi te contar minha história. Então, é assim que vai ser e assim como são as coisas. Não
precisa se tremer e tentar se desvencilhar. Você está totalmente amarrado e amordaçado. Não
vai conseguir fugir. Apenas aproveite esse último instante e observe as estrelas enquanto
minha mordida leva você bem devagar ao abismo da não-existência.

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