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Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa


ser feita referência a eventos históricos reais ou locais
existentes, os nomes, personagens, lugares e incidentes
são o produto da imaginação da autora ou são usados de
forma fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais,
vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, eventos, ou
localidades é mera coincidência.

Primeira Edição: 2023


Rio de Janeiro – RJ
 
Capa: LA Design
Revisão: Sonia Carvalho
Diagramação: Independente
Assessoria geral: Fox Assessoria
Assessoria de Comunicação e Conteúdo: Laura Brand
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DEDICATÓRIA

Querida Isabella Martins, Kane é todo seu. Aprecie os caramelos

sem moderação!

Para todos aqueles que ainda acreditam que a vida pode ser
doce
PLAYLIST:

Se quiser conhecer a playlist de O Filho que ele não Conhecia,

segue o link do Spotify:

https://open.spotify.com/playlist/6TeC24niTFeIje0UxWQP47?

si=3767cf27d097494f&pt=fd6343fca5dbb083d1a03e75dd02edc
7
SUMÁRIO

CAPÍTULO UM

CAPÍTULO DOIS

CAPÍTULO TRÊS

CAPÍTULO QUATRO

CAPÍTULO CINCO

CAPÍTULO SEIS

CAPÍTULO SETE

CAPÍTULO OITO

CAPÍTULO NOVE

CAPÍTULO DEZ

CAPÍTULO ONZE

CAPÍTULO DOZE

CAPÍTULO TREZE

CAPÍTULO QUATORZE

CAPÍTULO QUINZE

CAPÍTULO DEZESSEIS

CAPÍTULO DEZESSETE

CAPÍTULO DEZOITO
CAPÍTULO DEZENOVE

CAPÍTULO VINTE

CAPÍTULO VINTE E UM

CAPÍTULO VINTE E DOIS

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

CAPÍTULO VINTE E CINCO

CAPÍTULO VINTE E SEIS

CAPÍTULO VINTE E SETE

CAPÍTULO VINTE E OITO

CAPÍTULO VINTE E NOVE

CAPÍTULO TRINTA

EPÍLOGO

 
 

 
CAPÍTULO UM

DOIS ANOS ANTES

Máscara. A porra da garota estava com uma


máscara. E isso era, de fato, tudo o que eu me lembrava
dela.

Estávamos em uma festa à fantasia, e eu não tinha


muita paciência para essas coisas, então tentei convencer
as pessoas de que eu estava vestido de uma versão
moderna de James Dean – o que consistia no meu casaco
de couro de sempre, mas com um pouco de gel no cabelo,
imitando o astro do cinema.

A mulher usava uma peruca roxa, se eu não estava


enganado, mas isso não fez a menor diferença quando me
aproximei dela. Para ser bem pouco lisonjeiro, tudo o que
enxerguei foram as pernas longas, torneadas, a cintura fina
e os seios durinhos.
Eu não fazia ideia de qual era a fantasia dela. Talvez
só tivesse juntado um milhão de adornos que tinha em
casa e se arrumado para estar lá.
Não pensei em muita coisa, bêbado como estava,
quando começamos a dançar, e ela aceitou que eu a
beijasse.

Acho que a gente conversou um pouco, para lhe dar


algum crédito. Talvez ela tivesse me dito seu nome, talvez
tivéssemos trocado elogios, embora eu mal me lembrasse
de seu rosto. Havia uma lente de contato péssima também,
daquelas brancas, e eu me lembrava disso, porque fiquei
tentado a imaginar qual seria o tom natural por trás
daquela coisa pavorosa.

Do beijo, fomos parar em um canto mais escuro,


onde eu me recordava de tê-la erguido e colocado suas
pernas entrelaçadas na minha cintura.

Quase podia escutar novamente, na minha


memória, um gemido baixinho quando encontrei ponto
molhado em sua calcinha quando a tateei.

Então minha mente se tornava um apagão


completo, até aquele momento, onde acordei em uma
cama no motel da cidade, completamente nu, coberto por
um lençol.

Ainda estava com os olhos fechados, tentando me


situar e quase orgulhoso de me lembrar de tantas coisas,
porque já tinha passado por situações piores e
simplesmente deletado tudo da mente, como se tivesse
apertado um botão em um sistema.
Claro que teria um problema para convencer a
menina de que sabia o nome dela, porque não fazia ideia
nem com que letra começava. Mas ela entenderia, sem
dúvidas. Provavelmente estava bêbada também.

O que era péssimo. Eu odiava fazer aquele tipo de


coisa. Odiava o dia seguinte. Odiava a sensação de ter que
olhar para alguém que sequer conhecia, mas com quem
compartilhei uma intimidade extrema. Por mais que fizesse
isso o tempo todo, o passatempo vinha se tornando um
pouco sem graça.

Não que quisesse aquietar. Não eram meus planos


ainda, por mais que já tivesse trinta e três anos. Um dia ia
querer me casar, ter filhos, é claro, mas antes de chegar a
esse ponto, estava feliz daquele jeito.

Decidi me virar para o lado e tatear a cama com


cuidado, esperando sentir um corpo quente e macio ao
lado do meu, mas comecei a perceber que isso não
aconteceria. Conforme ia buscando mais, tomava
consciência de que estava sozinho.

Quando abri os olhos, a constatação surgiu.

Era a primeira vez na vida que era deixado sozinho,


numa manhã após um sexo.
Era algo... intrigante.
Eu poderia ter sorrido, quase divertido pela forma
como o jogo virou e decidido a descobrir quem era a
garota, até ver uma mancha de sangue no lençol branco.

Não... não podia ser.

Ela não podia ser... virgem!


Por que uma garota inocente iria se atracar com um
cafajeste como eu – cuja fama era conhecida pela cidade
inteira – no meio de uma festa, se entregar e ainda sair de
fininho sem se apresentar, sem dizer: “olha, você foi o meu
primeiro...”? Não fazia o menor sentido.

Ao menos, uma das coisas que percebi, era que


havia uma camisinha jogada no chão, ao lado da cama,
com um nó na ponta. De péssimo gosto, é claro, mas eu
estava bêbado; não era de se estranhar.
Precisava dar um tapinha nas minhas costas por ter
me lembrado de me cuidar, afinal, a menina era nada mais
do que uma estranha em uma festa.

Levantei-me da cama, tomei um banho, arrumei o


quarto o máximo que pude e saí, tentando guardar minha
dignidade por ter sido abandonado, sem entender
absolutamente nada.
Mas consegui tirar minhas próprias conclusões, dois
meses depois, quando minha secretária anunciou uma
ligação que parecia importante. Atendi, porque estava em
ascensão na empresa na qual trabalhava, e eu nunca
poderia recusar clientes, mas fiquei um pouco surpreso ao
perceber que se tratava de uma senhora do outro lado da
linha, com uma voz rouca, em um tom acusatório.

— Você não tem vergonha não, garoto?

A forma como ela falou acendeu o meu lado mais


sarcástico, e eu não resisti.
— Tenho vergonha de muitas coisas, senhora, pode
ser mais específica?

— Tia, não é culpa só dele! — outra voz feminina,


bem mais jovem, gritou por trás, como se me defendesse.
Mas que diabos estava acontecendo?

— Você é um cafajeste, Kane O’Roark! Deveria


segurar melhor esse pau e não tentar seduzir garotas
inocentes com sua lábia.

Do que ela estava falando, pelo amor de Deus?

— Senhora, por favor, podemos nos acalmar?


Preciso saber de quem está falando e do que está me
acusando.
Eu não podia bancar o inocente, de forma alguma.
Eu tinha, de fato, seduzido algumas garotas nos últimos
tempos, mas por que isso era um tabu? Não obriguei
nenhuma delas a irem para a cama comigo.

E sobre serem inocentes... a imagem da mancha de


sangue logo voltou à minha mente. Que eu soubesse,
apenas aquela mulher desconhecida poderia receber essa
nomenclatura, por mais que eu ainda tivesse minhas
dúvidas, já que ela saiu fugida e nem pudemos conversar.
Talvez ela tivesse se machucado... Eu nunca saberia.

Ou... pior.

— Vai ter um filho, rapaz. Espero que assuma suas


responsabilidades!
É... era pior.

A primeira coisa que se passou pela minha cabeça


foi um “puta que pariu”. Deixei meu inconsciente governar
minha cabeça e não pensei com cuidado, relembrando o
que eu sabia sobre aquele estranho encontro.

Conforme fui respirando e ouvindo o silêncio do


outro lado da linha, como se a mulher estivesse esperando
que eu me manifestasse, logo me lembrei da camisinha.
Tudo aquilo começou a parecer muito armado. Muito
absurdo.

Uma menina mascarada, virgem, transando com um


cara que sequer conhecia.

Sangue no lençol, deixado para trás como um


rastro.

Uma ligação súbita, dois meses depois, feita por


outra pessoa.
Eu tinha usado camisinha, isso era uma certeza. E
ela estava intacta, aliás. Certifiquei-me disso quando a
joguei fora.

Não havia motivos para acreditar que era real.


Minha família era tradicional na cidade onde nasci e
na qual a festa aconteceu. A fábrica de doces do meu pai
era praticamente o que sustentava Port Haven, sem contar
que exportávamos para vários lugares do mundo.
Tínhamos uma parceria com a Disney e fornecíamos
mercadorias exclusivas para o parque, o que nos rendera
não apenas um contrato milionário, mas também uma
respeitabilidade internacional.

Havia um tour pela nossa fábrica, exatamente como


na de Willy Wonka – e eu quase tinha a impressão de que
meu pai se sentia exatamente como ele.

Ou seja, nós éramos a porra da realeza de Port


Haven. Quem não gostaria de criar uma mentira para que
eu acabasse caindo e aceitando a ideia de que seria pai?

Não... eu não ia cair nessa.

— Quando a criança nascer, podemos pensar em


fazer um DNA, mas espero que até lá coloquem a mão na
consciência e vejam o tamanho da mentira que estão
contando e desapareçam! — respondi com raiva, porque
eu odiava gente daquele tipo. Aproveitadoras baratas, sem
dúvidas.
— Seu...

— Tia! — a outra mulher gritou, provavelmente


fazendo cena, impedindo a mais velha de me ofender. O
que eu também não ia permitir.
— Se me derem licença, tenho trabalho a fazer.
Sabem onde me encontrar, caso não mudem de ideia e
continuem com essa loucura.

Desliguei o telefone na cara da mulher sem nenhum


remorso. Não era possível que acreditassem que qualquer
um cairia naquela história mal contada e visivelmente
forjada.

Decidido a continuar meu trabalho, voltei-me para o


computador, embora um pouco desfocado, mas querendo
deixar aquela maluquice para trás.

A vida precisava continuar, e eu certamente não


permitiria que uma mentira abalasse a minha sanidade.
CAPÍTULO DOIS

DIAS ATUAIS

A casa se erguia à minha frente, como sempre:


imponente e cheia de lembranças poderosas. Com as
mãos nos bolsos da calça jeans, eu a contemplava com o
coração cheio de nostalgia e tentando lutar contra essas
memórias que ameaçavam me soterrar.
Por melhores que elas fossem, tinham um sabor
agridoce, porque me faziam acreditar que tinha perdido
muito mais do que tentei me convencer ao longo do tempo.

Eu me abstive de enfrentar essas lembranças, de


todas as formas, mas estava na hora. Tanto que quando
dei o primeiro passo, tentei fazê-lo de cabeça erguida,
precisando tocar a campainha.
Em outros tempos, eu apenas enfiaria a chave
naquela fechadura e abriria a porta, entrando no meu lar,
mas não era mais o caso. Lembrava-me muito bem do dia
em que a lancei no chão, na frente do meu pai, cortando
relações.

Tentava jurar de pés juntos que não me sentia


arrependido, que fora o certo a fazer depois de eu ter
descoberto o que descobri, mas naquele momento, por
mais grave que tivesse sido a discussão, parecia pequena
demais em comparação ao luto.

Meu pai sempre foi uma rocha, eu não esperava que


fosse nos deixar antes mesmo de termos uma nova chance
para conversar. Um infarto e tudo foi pelos ares.

Mas será que eu teria lhe dado uma oportunidade


caso ainda estivesse vivo?

A porta se abriu diante de mim e um rosto muito


querido e familiar me recebeu. Então braços estavam ao
meu redor, e eu me senti em casa.
Aquela mulher era a minha segunda mãe. Aquela
que me acolheu depois que uma posição materna faltou
em minha vida, que me criou, que arrancou boa parte do
jeitão mimado de um filho único, o príncipe de um império,
poderia ter.

Não que eu não fosse tudo isso às vezes, mas


Marybeth Johnson me tornara um ser humano muito
melhor.

Ou tentara.

— Meu menino, que saudade! — falou com a voz


chorosa.
Eu não tinha passado tanto tempo assim fora de
casa. Um ano e meio, talvez. Ainda assim, para ela que
vivera grudada em mim desde que eu usava fraldas, era
muito.
Para mim também, na verdade.

— Também senti sua falta, Bethie.


Afastamo-nos, e ela pegou um lencinho no bolso do
vestido preto, secando as lágrimas.

— Sinto muito, filho. De verdade. Não sabe como o


seu pai vai nos fazer falta. Queria tanto que tivessem se
entendido antes de ele...

— Eu sei. Eu sei... — respondi, tentando interrompê-


la, porque não queria continuar aquele assunto. Já era
doloroso demais pensar. Ouvi-la falando, então...

Fomos entrando, e eu vi que foi pegando o caminho


do escritório da casa.

— O Dr. Baldwin já está chegando. Ele me enviou


uma mensagem avisando. Pediu que você e a outra
pessoa esperassem no escritório.

— Que outra pessoa?

Eu obviamente tinha planos de voltar a morar na


casa da minha família, especialmente porque iria assumir a
fábrica. Com meu afastamento, acabei tentando outro
emprego e até estava indo muito bem, com possibilidades
de crescimento, mas não fazia sentido, levando em
consideração que eu era filho do dono de uma das
empresas mais lucrativas do país.
Estava ali, na casa do meu pai – que logo seria
minha – para ouvir a leitura do testamento. Eu era seu
único herdeiro, não tinha irmãos, então não esperava
surpresas.

Aparentemente estava enganado.


— Não sei, menino. Seu pai não me falou nada, e
também o que diria a uma empregada? Nunca me tratou
assim, claro, mas, no final das contas...

Marybeth podia falar pelos cotovelos quando queria.


Meio que fiz ouvido de mercador, não porque não
quisesse prestar atenção nela, mas porque estava
encucado demais com a questão de haver um outro
possível beneficiário no testamento.

Eu não me importava em dividir a herança com


alguém. Esperava, inclusive, que meu pai tivesse incluído
Marybeth e outros dos funcionários que se tornaram nossa
família. O problema era ser alguém desconhecido. Alguém
que não tinha chegado.

Bethie me deixou sozinho no escritório, e eu tomei


meu tempo para contemplar aquele lugar, novamente
sendo bombardeado por emoções que tentei suprimir
durante os últimos meses.

Quantas vezes não me sentei ali, àquela mesma


mesa onde em breve o Dr. Baldwin se sentaria, ouvindo
meu pai falar sobre negócios como se fosse a oitava
maravilha do mundo? Ele claramente amava o que fazia e
tinha saído do nada, vendendo doces em uma barraquinha,
para produzir, vender e exportar uma marca fortíssima,
amada por crianças e adultos de todo o país.
Ergui os olhos e contemplei nossa foto: eu, ele e
minha mãe, há uns vinte anos. O peito chegou a doer de
saudade.

Senti meus olhos marejarem e apressei-me em


secá-los quando ouvi a porta se abrindo, com Marybeth
acompanhando o advogado do meu pai.

Estendi a mão para cumprimentá-lo, já que era outro


que me conhecia desde garoto.

— Faz uns dez anos que eu não te vejo, rapaz —


ele falou, assim que nosso cumprimento finalizou.
Apesar de ter uma equipe de advogados à sua
disposição na Sweet Haven – a marca de doces da família
–, meu pai nunca deixara seus assuntos pessoais na mão
de outra pessoa que não Henry Baldwin. O homem tinha
seus setenta anos e não prestava mais serviços para
ninguém, então ele não cuidava dos meus negócios. Cresci
com ele na minha casa, mas depois que se aposentou,
mudou-se para uma cidadezinha no sul da Califórnia e
ficara por lá, com sua esposa, cuidando dos netos quando
iam visitá-los.
Ele viajara para bem longe de casa só para a leitura
daquele testamento; algo que poderia ter sido feito online,
em uma chamada de vídeo.

— Fico feliz em te encontrar, Henry, mas acha


mesmo necessário ter se despencado até Port Haven?

— Eh... sim. Você vai entender o motivo.


Comecei a ficar um pouco preocupado.

Não... eu estava preocupado pra caralho. E essa


tensão não aliviou enquanto nos sentávamos e
começávamos a conversar como se nada estivesse
acontecendo. Eu era bom em fingir. Costumava não ter
problemas em me fazer de sonso quando o mundo inteiro
estava pegando fogo. Naquele momento, não conseguia
parar de mexer as mãos, de olhar para porta e muito
menos me perguntar o que diabos estava acontecendo.
— Quantas pessoas estarão presentes? —
perguntei, finalmente, não conseguindo conter minha
curiosidade.

— Há mais beneficiários no testamento, porque seu


pai deu algumas bonificações para os funcionários. —
Exatamente como eu imaginava. — Mas os herdeiros são
dois.
— Eu e quem?

— Bem... — Henry ia começar a falar quando


ouvimos a porta se abrir.
Acompanhando Marybeth estava uma jovem de no
máximo uns vinte e um anos. Ela era linda. Tinha longos e
ondulados cabelos dourados, olhos muito azuis e um rosto
doce. Alta e magra, usava uma calça jeans bonita, uma
blusa branca e um blazer preto, o que a deixava com um
aspecto elegante, mas casual.
Só que ela não estava sozinha. Em seus braços
havia um bebezinho, de um ano, talvez. Os cabelinhos
loiros cobriam sua cabecinha, e ele estava usando uma
camisetinha polo azul, com uma bermudinha jeans. Nos
pezinhos um tênis adorável. Ele era gordinho e balbuciava
alguma coisa enquanto a mãe o trazia para dentro, com a
ajuda de Bethie, que empurrava o carrinho.

— Me desculpem o atraso, mas com um bebê... —


ela foi falando enquanto se acomodava. Em nenhum
momento nos olhara, mas quando o fez, senti uma enorme
animosidade na minha direção, como se me conhecesse,
embora seu rosto não me fosse sequer familiar.

— Não se preocupe, Srta. Ward. Nós


compreendemos — Dr. Baldwin falou com um sorriso,
complacente e cálido, e eu fiquei ainda mais perdido.

— Olha, desculpa se estou sendo indiscreto... mas...


quem é você? — precisei perguntar, porque, afinal,
estávamos presentes na leitura do testamento do meu pai.
Aquela moça não estivera no velório dele, que acontecera
no dia anterior, disso eu tinha certeza. O que estaria
fazendo ali, então?
Ela e Henry se entreolharam, o que me preocupou.
Assim como a demora na resposta.

— Esta moça, Kane, é a outra beneficiária do


testamento. Ou melhor, o menino é.

— Como assim? — indaguei, olhando de um para o


outro, me sentindo como o marido traído que é o último a
descobrir que fora chifrado. — Quem é esse menino?

— Este menino... — Henry hesitou, olhando para a


moça, que balançou a cabeça, concordando com algo e
provavelmente lhe dando autorização para dizer o que quer
que precisava dizer. — Este menino foi adotado pelo seu
pai antes de morrer. Ele o registrou, portanto é um dos
herdeiros legítimos.

Mas o que diabos estava acontecendo ali?


CAPÍTULO TRÊS

Eu sempre soube que no momento em que olhasse


na cara dele novamente, um misto de sensações iria me
acometer. Só não pensei que ficaria quase zonza.

Kane O’Roark sempre foi diabolicamente bonito, e


eu percebi isso quando tinha apenas treze anos de idade e
visitei a cidade de Port Haven pela primeira vez.

Meu pai era funcionário da fábrica da qual a família


O’Roark era dona, e meu sonho era participar da visita
guiada anual que eles faziam. Tal qual acontecia na
Fantástica Fábrica de Chocolates, poucas pessoas eram
contempladas com esse presente, no dia primeiro de junho
– dia internacional das crianças.
A gente preenchia um formulário em um site e
concorria a apenas vinte vagas por ano. Filhos de
funcionários tinham chances extra, e o limite para a
participação era de crianças com treze anos. Ou seja,
minha última chance, depois de ter tentado por anos e
anos fazer parte do que eu jurava ser uma aventura.

Quando fui contemplada, mal acreditei. Coloquei


minha melhor roupa, me arrumei e me senti criança
novamente – porque meninas de treze anos lutam muito
para parecerem adultas, mas só quando convém.

Tudo, de fato, foi perfeito. Especialmente a presença


do único filho de Finn O’Roark.

Naquele dia ele substituíra o pai no final da tour, e


eu tive meu primeiro crush adolescente. Na época Kane
tinha vinte e seis anos; muito mais velho do que eu, mas
sabe aquela coisa da menina que tem um pôster do Chris
Hemsworth na parede? Pois é... eu poderia ter pendurado
uma foto dele do lado da minha cama do tanto que fiquei
babando.

E ele não mudara absolutamente nada daquela


época, com exceção de que envelhecera apenas um
pouco. Sempre tivera os cabelos castanhos cortados de
um jeito despojado, mas elegante, quase espetados. Os
olhos eram de um verde-escuro, intensos e profundos,
deixando-nos com vontade de desvendá-lo. Era muito alto,
tinha ombros largos e sempre se vestia com um casaco de
couro, mesmo trabalhando na fábrica, o que lhe dava um
ar meio rebelde, de bad boy.

Ou seja... infalível para uma garota deslumbrada.


Saí de lá suspirando, certa de que, algum dia, com
muita sorte, eu o conheceria e ele seria o meu primeiro
beijo, meu primeiro homem. Enchi minha cabecinha
inocente de sonhos de um conto de fadas e não consegui
mais parar de acompanhar tudo o que podia a respeito de
Kane.

Com o tempo, depois que meus pais morreram, e eu


precisei ir morar com a querida tia Agnes, essa paixonite
foi passando. A vida foi seguindo, mudando seu curso, até
eu inventar de ir em uma maldita festa à fantasia e
encontrá-lo lá.

Foi puro acaso, mas poderia ter sido planejado. O


problema foi que ele se aproximou, falou comigo e quando
me dei conta já estávamos nos beijando.
Ir para a cama com ele foi uma escolha minha,
porque sempre soube que seria uma oportunidade em mil.
Quando é que uma garota tem a chance de perder a
virgindade com o cara por quem é apaixonada desde os
treze anos de idade?

Foi uma escolha louca, mas não me arrependeria,


caso as coisas não tivessem saído do controle.

Perdi a virgindade com o homem que amava.

Descobri uma gravidez inesperada.

Ele me rejeitou, sem nem me dar chance de


explicar.
Pedi muito para tia Agnes não ligar para ele, mas
nunca imaginei que iria tratar as coisas daquele jeito.
Com o Sr. O’Rorke, no entanto, tudo foi diferente.

E lá estávamos nós.

— E esta moça é quem? A assistente social?

— Não! — neguei com veemência. — Sou mãe


dele.

Kane me olhou com uma enorme confusão nos


bonitos olhos verdes, com o cenho franzido. Fazia muito
sentido ele estar tão atordoado, levando em consideração
que, há dois anos, nem me dera o benefício da dúvida.

Não querendo defender, porque o babaca não


merecia consideração, também não fui atrás dele para um
exame de DNA. Minha tia foi direto na fonte, depois que
meu bebê nasceu. Ela insistira que ele precisava do apoio
de uma família poderosa.

Minha única condição foi: não queria que Kane


soubesse. E isso se manteria até aquele momento, mas o
Sr. O’Rorke falecera.

Novamente... lá estávamos nós.


Com um sorriso de canto, muito sarcástico, Kane
passou a mão pelos cabelos, remexendo-se, inquieto. No
meu colo, meu bebê fez um barulhinho fofo, agarrando
uma das mechas do meu cabelo, quase levando-a à boca,
mas tirei de seus dedinhos.
— Me desculpa, mas acho que perdi alguma coisa
aqui... Qual a sua ligação com o meu pai?

Tentei fingir que não senti a clara insinuação em seu


tom de voz, porque meu papel ali era simplesmente pegar
a herança do meu filho e ir embora. Criar um atrito com
Kane não era uma opção, principalmente porque eu não
queria que ele soubesse a verdade.

Não nutria esperanças de que o Sr. O’Rorke tivesse


deixado para ele metade de sua fortuna e nem queria isso.
Só esperava que o futuro do meu garotinho estivesse
garantido. Fora esse o argumento que tia Agnes usara
para me convencer, já que relutei muito em aparecer
naquela casa.

— Éramos amigos — foi a resposta que dei, mas


logo percebi o meu erro. Ela dava margem para muitas
suposições.

Kane ergueu uma sobrancelha, novamente com


aquela expressão cínica.
— Interessante. Como, então, nunca ouvi falar de
você?

— Nem sabe o meu nome... De onde já tirou essa


conclusão? — respondi com o mesmo tom provocador.
— Touché. Qual o seu nome, afinal?

— Iohanna. Iohanna Ward.


Ele pensou um pouco, e por alguns instantes quase
acreditei que pudesse se lembrar. Não mencionei meu
sobrenome para ele naquela noite, mas não era um nome
assim tão comum.
Nunca esperei me tornar inesquecível para Kane,
porque sabia que ele saía com mulheres diferentes a cada
semana, mas também não imaginava que simplesmente
me esqueceria, que me apagaria completamente de sua
memória.

— Nunca ouvi falar.

Babaca!

— Pessoal, podemos começar? Eu tenho um longo


trajeto de volta... se não se incomodarem — o advogado
falou, e eu logo consenti. Kane também, o que fez com que
nós dois nos sentássemos, nas cadeiras de interlocutor da
mesa, enquanto aquele que ia ler o testamento se
acomodou do outro lado.
Simon, meu bebê, estava inquieto, olhando demais
na direção de onde Kane se sentara, então eu percebi que
os dois começaram a se encarar.

Era impossível que ele não estivesse percebendo a


semelhança. Os olhos dos dois eram absolutamente iguais.
Meu garotinho apenas nascera com os meus cabelos, mas
o resto todo era do pai.
O que o tornava parecido também com Finn
O’Rorke, e isso obviamente fazia com que Kane pensasse
em outras possibilidades, sem dúvidas.

— Bem, vamos lá — o Sr. Baldwin começou,


abrindo a pasta que continha o testamento. Ela estava
lacrada, então demorou um pouco. — Como poderão ver, o
documento está assinado, com firma reconhecida e
autenticado. O Sr. Baldwin o modificou pela última vez em
Maio de 2022, o que faz mais ou menos sete meses.

— Sete meses? — Kane se surpreendeu.

— Sim. Tenho todas as alterações documentadas e


autenticadas em cartório. — O advogado fez uma pausa,
então continuou: — Prosseguindo... Ele deixou uma
quantia de dez mil dólares para cada um de seus
funcionários da casa, além de uma pensão de mil dólares
por mês, além do salário que será pago, caso desejem
continuar trabalhando. Todos os nomes estão listados
cuidadosamente, caso queiram checar.

O Sr. O’Roarke era muito bondoso; sempre foi, aliás.


Meu pai o admirava demais, e eu passei a fazer o mesmo
depois de precisar de sua ajuda. Não me surpreendia em
nada que tivesse aquele carinho pelas pessoas que
trabalhavam em sua casa.

— Desejo dividir o resto dos meus bens, tanto o


somatório das contas bancárias, quanto os imóveis e a
empresa, entre meus dois filhos, Kane e Simon O’Rorke,
deixando Iohanna Ward como tutora legal da herança até
que Simon complete maioridade...
— Eu não estou entendendo... — Kane interrompeu
o advogado. Seu maxilar estava contraído, o que me dizia
que deveria estar muito irritado. — De onde veio essa ideia
de adoção? Como nada me foi dito?

— Você não falava com o seu pai há um ano e meio,


Kane — o Sr. Baldwin interviu.

— Mas este é o tipo de coisa que ele deveria me


avisar, não? Que fosse por mensagem, e-mail, carta... Não
é possível que eu tenha ficado de fora de uma decisão tão
definitiva.
— Isso não cabe a mim, garoto. Seu pai era um
homem adulto — foi um fora bem dado, e eu quase
comemorei, mas me mantive impassível, porque,
novamente, minha intenção não era criar confusão. —
Continuando... o que vocês precisam saber é que para que
essa herança seja dividida entre vocês, Finn deixou uma
condição.

— Uma condição? — perguntei, porque aquilo me


surpreendeu.
— Sim. Ele deixou como último desejo que vocês
reformem esta casa e que planejem, juntos, a visita anual a
Sweet Haven.

O que nos dava seis meses de convivência e de


trabalho juntos.
Eu sabia muito bem quais eram as intenções do Sr.
O’Rorke. Ele queria que Kane conhecesse o filho e vice-
versa.

Só que o que eu não sabia era o que aconteceria


conosco a partir daquele momento.
CAPÍTULO QUATRO

— Sem chance — falei, em meio a uma risada


sarcástica, levantando-me de onde estava sentado e
começando a caminhar pelo escritório.

— Então isso quer dizer que você abre mão da


herança? Se abrir, toda a sua parte vai para Simon.
Girei com pressa, encarando Henry com o cenho
franzido.
Aquilo era uma loucura. Trabalhava na Sweet Haven
desde os meus dezessete anos. Comecei de baixo, não
apenas por indicação do meu pai, mas porque quis. Fui
caixa, trabalhei no estoque, ajudei com planilhas, a
distribuir panfletos e até no setor de embalagens. Fiquei no
balcão das lojas, participei de cada processo e quando subi
na hierarquia, tornando-me gerente comercial, foi tudo por
mérito. Claro que se eu não fosse filho do dono as coisas
seriam mais difíceis, e eu não negligenciava a minha sorte.
O controle daquela fábrica pertencia a mim. Era meu
legado. Se abrisse mão dele, abriria mão da minha história
como pessoa e dos desejos do meu pai, porque sabia que
ele lutara muito para me fazer gostar daquele lugar. Para
que eu me sentisse parte do todo. 

Não era uma garota que eu mal conhecia, que


claramente tivera intenções de dar um golpe na minha
família, que iria me deter.

Antes de responder qualquer coisa, lancei um olhar


para ela, quase com raiva, tentando imaginar, de fato, qual
era sua conexão com o meu pai. A mulher era linda, sem
dúvidas, e meu pai certamente não era santo.

O menino era a cara dele, aliás. Claro que era seu


filho. O que o tornava... meu irmão?

Se isso fosse verdade, a herança deveria ser dele


por direito também. Não tinha culpa de ter nascido no meio
de toda aquela confusão.
— Eu não vou abrir mão de nada, mas isso tudo é
um absurdo! — vociferei, mesmo sabendo que seria inútil.

— Eram as vontades de seu pai — a garota falou


baixinho, de cabeça baixa, ainda segurando o neném
quase com força.

Aquilo me deixou irritado. Aproximei-me dela,


tentando me controlar para falar o mínimo de besteiras
possível, embora eu normalmente fosse bastante
impulsivo.
— Para você é fácil, né? Provavelmente era o que
queria com tudo isso...

A loira ficou parada por um tempo. Olhava para mim


com uma dignidade impressionante, além de uma calma
invejável. Levantou-se, colocou o bebê no carrinho, e
finalmente se voltou para mim, ainda devagar, como se não
tivesse pressa de nada.

Diante de mim, apesar de alta, ela era uns quinze


centímetros mais baixa, o que não pareceu intimidá-la.
Cruzou os braços contra o peito e respirou fundo. Acabei
imitando-a, por puro instinto, e senti um cheiro de tutti-frutti,
que pareceu vir de seus cabelos.

Era um aroma familiar demais...

Só que não me lembrava de onde vinha a memória.

— Pode acreditar quando eu digo que a última coisa


que eu iria querer era ter que conviver com você.

Ela falou com tanta convicção, dando tanta ênfase


ao pronome, com tanta raiva, que tive a sensação de que
me conhecia. Talvez fosse por intermédio do meu pai, de
alguma coisa que ele pudesse ter lhe falado, mas nossa
separação se deu por causa de um erro dele. Não meu.

— Apesar disso, estou disposta a fazer qualquer


coisa que seu pai tenha pedido, não porque quero essa
fortuna toda. Vivi minha vida inteira sem dinheiro e não me
faz falta. Eu trabalho para ganhar o meu. Só que o Sr.
O’Rorke foi um anjo para mim, e eu quero honrá-lo.
Iohanna – era esse o nome dela, não era? – falou
com muita convicção. Tanta que me deixou até
envergonhado. O homem era meu pai, e ele certamente
fora um dos bons, mesmo que tudo tivesse desandado e
minha admiração tivesse murchado um pouco nos últimos
tempos.
Fixei meus olhos nela por instantes, quase
compreendendo o que meu pai poderia ter visto que o
levara a um sentimento tão forte – porque eu obviamente
estava supondo que ele tinha se apaixonado por ela. Isso,
é claro, além da beleza evidente.

A garota tinha uma senhora determinação. Eu


mesmo gostava disso.

— Acho que estamos decididos, então? — Baldwin


interrompeu nossos olhares, e eu quase me sobressaltei,
virando-me para ele, sendo arrancado dos meus
pensamentos.

Assenti, com as mãos no bolso, porque...  o que


mais me restava? A tal Iohanna estava certa.
Havia documentos para assinarmos e ainda muita
burocracia para ser colocada em prática, mas quando
estávamos andando pela casa, passando pelo corredor
que nos levaria à sala de estar, deixei que Bethie tomasse
a dianteira, levando Henry até a saída, e coloquei a mão
suavemente no ombro de Iohanna, esperando não invadir
demais seu espaço.
— Posso falar com você por um minuto?

A moça pareceu surpresa, mas concordou. No


momento em que nos viramos para nos afastarmos, o
cheiro de tutti-frutti novamente veio em minha direção.

Comecei a acreditar que não se tratava,


exatamente, de algo que ela me proporcionara,
principalmente porque não nos conhecíamos, mas um
sentimento de nostalgia. A empresa da minha família era
de doces, com certeza fora lá que senti no passado e de lá
que me remetia.

Minhas opiniões a respeito dela não eram as


melhores, sem dúvidas. Ainda assim, sabia que se
tratavam de julgamentos pré-concebidos, só que eu não
queria lhe dar o benefício da dúvida ainda tão cedo.
Precisava investigá-la e estudá-la. De certa forma, tê-la por
perto me ajudaria nisso, embora não fosse exatamente
minha melhor ideia de companhia.

— Te peço desculpas pela forma como falei —


comecei em um tom de voz gentil, que eu normalmente
usava quando queria seduzir.

E, não. Por mais que eu a achasse bem bonita, não


era a minha intenção seduzir ninguém; especialmente uma
mulher que, talvez, tivesse sido amante do meu pai.

Ela ficou calada por um tempo, e eu observei sua


sobrancelha se erguer, em uma forma desafiadora.
— Tudo bem, mas não precisa se esforçar para ser
meu amigo.

Porra! O que eu tinha feito para aquela mulher ter


um ranço tão forte de mim?

Eu queria ser educado, gentil – por mais que tivesse


intenções por trás de toda essa mudança de
comportamento –, mas ela ia tornar a convivência difícil
aparentemente.

— Mas não precisa ser ignorante assim também,


né? Estou tentando estabelecer uma relação cordial e...

— Podemos fazer isso. Você no seu canto, e eu, no


meu. Pretendo não te incomodar e nem o meu bebê.
Quando precisarmos trabalhar juntos, vou ser profissional,
mas a maior parte do tempo vou passar no meu quarto,
com o meu serviço. Não se preocupe.
Ela foi categórica e se afastou, levando a criança
consigo, empurrada no carrinho, me deixando parado que
nem um tonto, observando-a, certo de que aqueles seis
meses seriam muito, muito estranhos e longos.

Ou caóticos.
CAPÍTULO CINCO

Três dias depois, lá estava eu, me mudando com


mala e cuia para a mansão dos O’Rorke. Precisava de
mais algum tempo para organizar tudo que deveria levar
para passar seis meses em uma cidade completamente
diferente, sem contar as coisas do meu bebê.

Minha tia me ajudou na mudança, chorando como


uma criança, porque eu ficaria longe dela tanto tempo, e
prometeu que me enviaria todo o resto, que deixei para
trás, caso fosse necessário.
Um carro foi me buscar em casa e outro, uma
caminhonete, pegou minhas coisas. Até pensei em
comprar uma passagem de ônibus, mas o Sr. Baldwin me
recordou gentilmente que a partir daquele momento eu era
uma mulher rica, com todas as regalias que o sobrenome
O’Rorke poderia me dar.

Não que isso me afetasse de alguma forma, mas se


fosse melhor para o meu filho, iria aceitar de bom grado.
Fui recebida com um sorriso pela governanta da
casa, que já tinha sido muito gentil comigo da outra vez.

— Seja bem-vinda, querida — ao dizer isso, ela me


ajudou com o neném, que eu já tinha tirado da cadeirinha e
estava nos meus braços. Sendo uma criança muito
espertinha, Simon praticamente se jogou no colo dela, com
um sorriso. — Ah, meu Deus... você quer vir com a tia, é?

— Ahhhh — Simon soltou, de um jeitinho muito fofo.

Quando a mulher o segurou, pude pegar minha


bolsa no banco e me organizar com mais liberdade.

— Eu vou morrer com você, coisinha fofa. Não vou


aguentar ter um bebê em casa e não apertar o dia todo.

— Pode apertar. Ele adora um colo, adora ser o


centro das atenções.

— Vou abusar.

Fomos entrando na casa, e eu precisei parar um


pouco e contemplá-la, aceitando a ideia de que se tratava
do meu novo lar.

Tendo vindo de família pobre, com um pai


trabalhador de fábrica e uma mãe costureira, nunca pensei
que um dia conseguiria morar em uma mansão como
aquela. Mesmo quando eu saísse dali, em seis meses,
teria condições de comprar algo tão opulento quanto, não
apenas pela herança que me seria deixada, mas pelo fato
de ter ações da empresa além de outras propriedades que
poderiam ser vendidas.
Contudo, apesar de ser um lugar lindo, podia ver
que, de fato, precisava de uma reforma. Como se a própria
casa tivesse começado a se decompor por conta da
tristeza que se formou depois que pai e filho brigaram.
Eu não sabia muito sobre a situação entre os dois,
além do que o Sr. O’Rorke me contara. Desabafamos um
com o outro nas vezes em que nos vimos, quando ele
viajava para me encontrar, e criamos um laço fraternal
muito forte, principalmente porque ele se apaixonou pelo
neto. O que não era difícil de acontecer.

Por mais que ele sempre tivesse sido discreto a


respeito do motivo e insistido que fora culpa dele o
afastamento, meu ranço por Kane me impedia de pensar
racionalmente.
— Estou muito feliz que esteja aqui, querida. O Sr.
O’Rorke queria muito que o pequenino assumisse seu
lugar nesta casa.

— Estou feliz de estar aqui também, só acho que


essa alegria toda não é uma unanimidade — não precisava
me esforçar muito para saber de quem eu estava falando.

Marybeth ficou calada com o meu comentário, mas


só por alguns instantes, porque logo me olhou e soltou um
suspiro.

— Não é bem assim, menina. Kane é um bom


garoto.
— Acontece que ele deveria ser um bom homem,
senhora. Não um bom garoto — respondi com amargura,
mas logo fiquei muito séria. — Me desculpa, não queria
soar rude com você.

— Não soou. Entendo seu lado. E tem muita razão


em ficar ressentida.

— Você sabe da história toda?


— O Sr. O’Rorke me contou. Eu queria dar uns
tapas na orelha do garoto, mas ele não deixou. Disse que
você quer que continue em segredo.

— Sim, por favor.


— Não pretende contar nunca a ele? — ela indagou
quando começamos a subir as escadas.

— Nunca é uma palavra muito forte.


— Mas você não acha que se Kane ficar sabendo
depois de muito tempo isso pode ser prejudicial ao neném?

Aquela sempre foi uma preocupação para mim. Eu


pensava em Simon e tinha muito medo de meu filho sentir
a ausência de um pai; de crescer sem aquela parte tão
importante.
Logo eu que tive uma figura paterna tão presente e
maravilhosa na minha vida, era difícil aceitar que Simon
seria criado só por mim. Quando o Sr. O’Rorke decidiu
assumir esse papel, fiquei um pouco mais tranquila, mas
então ele se fora. E a dúvida retornou com toda força.
Ao reencontrar Kane, quase tive vontade de contar
para ele, especialmente quando o vi olhando para Simon e
sendo encarado pela criança de volta. Alguma conexão
poderia ter acontecido, ou talvez fosse apenas a minha
impressão emocionada de algo, quando, na verdade, era
apenas uma coisa cotidiana. Um homem encantado com
um bebê que era, de fato, adorável.
— É só pelo Simon que eu ainda tenho minhas
dúvidas, Marybeth. Se fosse por Kane, eu não me
importaria nem um pouco. Se ele não quis o filho quando
nasceu, também não deveria tê-lo agora.

A mulher respirou fundo, entrando em um dos


quartos, que supus ser o meu. Logo depois viriam minhas
malas, levadas por outros funcionários da casa.

Ela afastou o bebê de si um pouco, olhando para ele


com carinho e brincando com sua mãozinha. O garotinho
abriu um sorriso enorme para ela, que claramente se
derreteu.

— Essa fofurinha precisa do amor de todos que


puder ter. Com a convivência vocês vão se acertar e até
ser amigos. — Ela sorriu, e então eu retribuí, certa de que
aquela mulher era, sim, puro amor e que seria maravilhosa
para Simon.

Finalmente ergui meus olhos e dei uma olhada no


quarto no qual entramos, mas paralisei por completo, muito
tocada.
Não era um quarto para mim. Era um cantinho todo
decorado para um bebezinho. Vários tons de azul, vários
bichinhos espalhados por todo canto, inclusive em um
papel de parede muito doce. Havia livrinhos em uma
estante, um berço delicado, tapete colorido, cortinas
branquinhas, além de um milhão de outras coisas que me
deixaram completamente emocionada.
Por mais que se tratasse de uma casinha segura,
acolhedora e sempre com cheirinho de lar, minha tia vivia
com modéstia, então conseguimos, no máximo, adaptar
um bercinho no quarto onde eu dormia. Sempre sonhei, no
entanto, desde a gravidez, em ter um cantinho como
aquele para o meu menininho. Só que sempre pensei ser
algo impossível.

Nada era impossível.


— Que lindo... — falei, com a voz já embargada.

— O Sr. Rorke estava preparando há um tempo.


Não imaginávamos que Simon viria para cá só depois de
ele não estar mais entre nós, mas aqui está o cantinho
como ele queria.

Eu ainda estava choramingando quando fomos


interrompidos pelo som da porta rangendo. Nós duas nos
viramos para o local ao mesmo tempo, e Kane surgiu
diante dos meus olhos, ridiculamente bonito como sempre.

Por um momento pensei que iria surtar ao ver o


quarto, já que parecia igualmente surpreso por contemplar
aquele espaço.

Mas ele só colocou as mãos nos bolsos e deu de


ombros.

— O garotinho vai ser um reizinho aqui dentro, hein?


Era difícil pensar no fato de que, além de tudo, ele
era muito charmoso. O sorriso de canto que abriu logo
depois de dizer isso foi mais do que suficiente para que
qualquer uma se sentisse balançada.

E, ok, minha tia diria que eu não era qualquer uma,


mas... que ódio!

Quando se aproximou de nós, esticou a mão e a


levou ao rostinho do meu neném, ainda sorrindo.

— Como é mesmo o nome dele?

— Simon — respondi, sentindo o nó na garganta


aumentar.

Era a primeira interação real entre pai e filho. A


primeira real.

— Simon — ele repetiu, quase em um sussurro


gentil. — Vamos ser amigos, não é, parceiro? Sua mãe não
vai com a minha cara, mas você não tem nada a ver com a
história.
Era uma mensagem clara. Não era apenas eu que
não ia com a cara dele; Kane tinha suas desconfianças a
meu respeito, e é claro que todas elas iriam dificultar nossa
convivência.
Eu não estava ali para me tornar sua amiga, mas
precisava concordar com o que Marybeth dissera sobre
Simon necessitar de um pai. Se iríamos conviver, que
fosse pacificamente – ao menos o máximo possível –, em
nome do meu garotinho.

Sem contar que nada tiraria a minha alegria naquele


dia. Depois de levarem minhas malas e as de Simon, fui
informada de que minhas coisas seriam organizadas para
mim, então decidi mandar uma mensagem para a minha
tia, com um vídeo panorâmico do cantinho lindo que fora
criado para meu bebê.

Ela não demorou a responder.


 

TIA AGNES:

Que coia mais libda!

Tia Agnes tinha um sério problema para digitar no


celular. Ela sempre errava várias palavras e nunca corrigia.
No início foi difícil compreender suas mensagens, mas
passei a me acostumar.

IOHANNA:
Ele amou, tia.

Todo mundo recebeu a gente bem.


 

TIA AGNES:

Até o babquinha?
 

Não pude deixar de rir.


 

IOHANNA:

Com ele foi um pouco mais complicado, mas acho


que vai dar tudo certo.

Estou feliz.
 

TIA AGNES:

Iso que impeoota.

Não.

Importa.

Era o q eu queria dizr.

De fato. Isso era o que importava.


Era nisso que eu precisava pensar.
CAPÍTULO SEIS

Foi uma gargalhada de bebê o que me acordou.


Não fiquei muito feliz em olhar no relógio e perceber que
não eram sequer sete e meia da manhã, mas o som foi
gostoso o bastante para que eu abrisse um sorriso sem
nem perceber.

Ainda não fazia ideia do que aquele garotinho e


aquela mulher representavam na minha vida. Talvez ele
fosse meu irmãozinho... Ou melhor, ele era, legalmente
falando, mas poderia ser, também, de sangue.
A semelhança com a minha família era inegável. Os
olhos eram meus, ou melhor, do meu pai, já que sempre
compartilhamos essa característica.
Fosse como fosse, não era prudente me apegar.
Mesmo ele sendo parte da minha família, eu
provavelmente não tinha direito nenhum a reivindicar sua
presença na minha vida, e a garota deveria ter sua própria
vida fora de Port Haven. Ela certamente sumiria depois dos
seis meses, o que provavelmente era muito melhor, já que
não era muito simpática comigo.

Por mais que tivesse tudo isso em mente, a


gargalhadinha me atraiu como um canto da sereia.
Levantei-me da cama, nem me importando por estar
vestindo minhas roupas de dormir – uma calça de moletom
e uma camisa de algodão bem amassada – e me
aproximei do quarto.

Lá estava a linda Iohanna, sentada no chão,


brincando com o garotinho, que dava seus passinhos
tímidos, de um lado para o outro, ainda um pouco
desequilibrado.

Fiquei em silêncio, levemente encantado com a


interação entre mãe e filho. Apoiei-me no batente da porta,
cruzando os braços e observando-os.

O garotinho tentou acelerar sua caminhada, mas


caiu de bunda no chão, o que me fez ficar em alerta. Foi
muito surpreendente o senso de proteção que surgiu
dentro de mim, desejando correr para pegá-lo antes que
chorasse, sendo que eu mal o conhecia, mas para a minha
surpresa, depois de um momento de hesitação, onde ele
pareceu pensar um pouco sobre a queda, outra gargalhada
surgiu.

Uma tão gostosa que me fez acompanhá-lo e que


chamou a atenção de Iohanna, fazendo-a voltar os olhos
para mim, sobressaltada, porque não tinha se dado conta
da minha presença.
— Ah, você está aí... — o tom de desânimo em sua
voz era quase cômico.

— Você, definitivamente, é péssima para o meu ego.


Nunca vi ninguém tão decepcionado em me ver.

— Deve ser um problema enorme para você,


realmente. Imagino que não vá nem dormir.
Ergui uma sobrancelha, surpreso com sua resposta
e com o revirar de olhos. A garota tinha uma carinha
inocente, gentil, mas a língua era afiada. Um contraste
quase interessante.

Isso, claro, se eu me permitisse esquecer que


poderia ser uma bela de uma golpista que enganara meu
pai e que estava dentro da minha família só por interesse.

Completamente alheio às farpas que voavam entre


nós, o pequenino veio andando até mim, com aqueles
passinhos hesitantes. Parou na minha frente e precisou se
agarrar na minha calça, com as mãozinhas gordinhas, para
não cair de novo.

Ao fazer isso, ergueu a cabecinha e riu para mim,


soltando uns sons na sua língua de bebê e abrindo um
sorriso com uma covinha.

Não resisti e me agachei, pegando-o no colo.

Eu gostava de crianças, embora não tivesse tido


contato com muitas. Ainda assim, ele era o menorzinho
que eu pegava nos braços.
A sensação era incrivelmente boa.

Simon começou a pular nos meus braços,


emanando uma alegria que só uma criancinha pura e
inocente como aquela poderia transmitir. Uma criança que
vivia em um lar seguro, com uma mãe dedicada e
provavelmente mimado até o ponto em que poderia ser,
com as limitações que o rondavam.

— Ele é muito cativante e...


Lancei um olhar para Iohanna pela primeira vez
desde que peguei o bebê no colo e fiquei surpreso ao vê-la
com os olhos levemente marejados. Poderia ser qualquer
diabo de coisa, mas a mulher estava olhando para mim e
para seu bebê, juntos, e se emocionara.

— O que foi?
Como se também se sobressaltasse com a minha
pergunta, Iohanna balançou a cabeça, parecendo afastar
pensamentos, e levou logo uma das mãos ao olho que
lacrimejava, limpando-o.

— Está tudo bem, eu só me emociono ao olhar pro


meu bebê. Toda mãe deve ser assim, né?

O que eu entendia de mães? Com exceção da


minha, nunca convivi com muitas. Imaginei que ela deveria
estar certa, então concordei.

Antes, porém, que eu pudesse voltar a interagir com


seu filho, ela se aproximou e praticamente o arrancou do
meu colo.
— Você tinha alguma coisa a dizer? — cuspiu as
palavras.

— Não, por que teria?

— Estava parado aí na porta, como uma estátua...


— Olhando seu filho.

— É... você disse... — ela respondeu meio


atordoada, e eu fiquei me perguntando o que diabos tinha
acontecido. — Eu não vou demorar para me arrumar, ok?

Ela foi se mexendo pelo quarto, como se estivesse


muito interessada em se esconder e se movimentar para
que o clima entre nós mudasse.

Naquele dia, um pouco mais tarde, teríamos nossa


primeira reunião na Sweet Haven, com membros da
gerência e diretoria. Todos eles já me conheciam desde
pequeno, então eu não estava muito preocupado. Já tinha
trabalhado por lá, conhecia bem seu ritmo, mas no
momento em que Iohanna falou sobre o assunto, vi que
começou a roer o cantinho do dedo, parada, olhando para
o nada, com o pequeno Simon no outro braço.

— Está nervosa?

— Eu? Não... eu não. Nem um pouco... — Então


respirou fundo. — Nem um pouquinho mesmo.
— Sei... — falei em um tom debochado, cruzando os
braços.

Ela olhou para mim, irritada.


— Está tudo bem. O que poderia dar errado, né?

— Absolutamente nada — respondi, tentando lhe


dar um pouco de segurança.

Respirando profundamente, ela me deu as costas, e


eu peguei isso como uma deixa para sair dali, antes que
começassem novamente as farpas.
Cheguei no meu quarto, pronto para trocar de roupa
e usar um pouco da sala de musculação que era minha
velha amiga, e peguei Marybeth começando a fazer a
minha cama.

— Ah, não! Nada disso, Bethie... Pode parar! —


alertei, categórico.
— O que eu estou fazendo, garoto doido?

— Arrumando a minha cama.

— Eu sempre arrumei sua cama.

— É, mas eu passei um tempo longe desta casa,


aprendi uma coisa ou duas sobre não ser abusado. Pode ir
fazer suas outras coisas, eu me encarrego dessa parte.
Ela parou e colocou as mãos nos quadris fartos,
olhando para mim com um jeito maternal.

— Desde quando me dá ordens? Só porque é o


dono da casa acha que as coisas mudaram?

— Jamais mudariam, até porque desde o início dos


tempos quem manda aqui é você. — Dei-lhe um beijo no
rosto, bem estalado, e coloquei as mãos em seus braços,
afastando-a. — Pode me fazer companhia, se quiser.

— Onde já se viu a empregada ficar olhando o


patrão trabalhar enquanto ela fica parada? — Comecei a
alisar o lençol, e eu percebi que ela estava de olho. Tanto
que foi quem me empurrou da segunda vez. — Você não
presta pra isso. Vai ficar tudo bagunçado.

Tive que deixá-la agir daquela vez, mas meus


planos eram passar a acordar e colocar a mão na massa
antes mesmo de lhe dar tempo.

Então fui eu que fiquei parado, observando-a e


tentando aprender como ela fazia, para não errar.

— Estava no quarto do menininho? — ela indagou,


e estava demorando. Fofoqueira como era, nunca duvidei
que fosse jogar suas indiretas.

— Estava.

— Ele é bonitinho, né?

— Lindo.

— A mãe também.

— Ah, não, Bethie! — indignei-me. — Não vai


começar com esse espírito de cupido para cima de mim,
não.

— Ué, quem falou em romance? Só comentei que a


menina é bonita. Isso você não pode negar.
— Ela é, e meu pai provavelmente achava também.
Bethie me lançou um olhar de reprovação, e eu
pensei que ia dizer alguma coisa, porque não duvidava
nem por um momento que sabia de muitas e muitas
informações que eu não tinha.

— Espero que um dia abra os olhos, menino, porque


por enquanto está cego. E se continuar assim por muito
tempo, vai acabar se arrependendo.
Do que ela estava falando?

Não era possível que todo mundo parecesse


esconder coisas de mim.

Fosse o que fosse, eu precisava descobrir.


CAPÍTULO SETE

No momento em que paramos o carro diante do


portão, depois de passar alguns minutos em uma sensação
um pouco claustrofóbica, sentada ao lado de Kane, que
dirigia, em uma proximidade incômoda, especialmente
porque nem tentamos conversar, meu coração acelerou.

Ergui meus olhos, imaginando que eles deveriam


estar brilhando exatamente como brilharam quando eu era
só uma menininha deslumbrada que nada sabia da vida.

Para ser sincera, eu ainda não sabia. Só tinha


levado mais porradas e tomado um pouco mais de
consciência de que contos de fadas não aconteciam na
realidade.
Estávamos diante do portão, e um valete veio pegar
o carro de Kane, para estacioná-lo.

— Tem certeza de que não quer entrar pelos


fundos? Podemos ir direto para a o prédio administrativo —
Kane comentou, colocando-se ao meu lado.
— Nem pensar.

Eu queria a experiência completa. Queria aproveitar


cada segundo do retorno ao meu lugar favorito no mundo
inteiro.

A fábrica Sweet Haven não era apenas um prédio


onde os melhores doces eram preparados, embalados e
deixados prontos para venda. Aos poucos ela fora
crescendo e ganhado uma espécie de minicidade.

No momento em que seus portões eram abertos,


você entrava em um mundo colorido e lúdico com lojinhas
de cada lado, cada uma especializada em um dos doces
mais famosos da marca. Os donuts, os bolinhos, as balas,
as tortinhas, os biscoitos, além das lojinhas de suvenires.
Havia banquinhos, postes de luz, vegetação, tudo dando
um ar de pracinha delicioso.

Um shopping a céu aberto, charmoso e cheio de


estilo.
Ao final dessa jornada, encontrava-se a sonhada
fábrica, que todos queriam conhecer como funcionava por
dentro. Era grande, imponente e possuía uma espécie de
coreto, alto, de onde se podia enxergar todo aquele mundo
de sonhos de forma panorâmica.

Absolutamente cada espacinho daquele lugar vivia


nas minhas lembranças. Muitas coisas tinham mudado,
mas eu ainda me recordava dos cheiros. Das cores. Da
forma como cada coisinha parecia se encaixar e se
completar.

Era tudo lindo, mágico, e eu me sentia uma criança


novamente.

Lancei um olhar para o meu companheiro de


jornada, aquele homem por quem fui apaixonada por tanto
tempo, mas que me magoara de uma forma cruel, e o vi
mexendo no celular, sem olhar para absolutamente nada
ao nosso redor enquanto caminhávamos.

— Não é possível que você não se importe com


nada disso.

Kane se virou para mim, com o cenho franzido,


como se não compreendesse aonde eu queria chegar.

— Nada disso o quê?

— Este lugar! — Abri os braços, mostrando para ele


as lojinhas e todo o resto. — Isto aqui é lindo! Mágico!
Encantador.

— Ah... sim. Eu concordo. Só que já passei tantas


vezes por este lugar... Trabalhei aqui por muito tempo.

Deixei meus ombros caírem. Claro que havia


sentido.
— Acho que eu nunca deixaria de me deslumbrar.
Mesmo entrando aqui todos os dias.
Kane abriu um sorriso de canto.
— Um dia se torna normal. Até enjoa.

— Aí você está exagerando.

— Não estou. Confia.

Parei de andar, virando-me para ele, e Kane fez o


mesmo.

— Vamos apostar? Ao final dos seis meses que vou


trabalhar aqui, eu te digo.

— Você pode dizer qualquer coisa. Não teremos


provas.

— Não sou mentirosa, Kane. Vai ter que confiar na


minha palavra, ao menos uma vez — quase falei mais do
que deveria, mas também usei de toda a minha convicção
naquelas frases.
Ele pareceu um pouco desconfiado pela forma como
eu falei, mas estendeu a mão, o que me surpreendeu.

— Gosto de apostas.
Fiquei olhando para a mão dele, hesitando um
pouco, mas, por fim, a apertei, selando o pequeno pacto.
Voltamos, então, a caminhar, rumo ao prédio
administrativo.

Eu nunca tinha ido ali, até porque apenas


funcionários autorizados podiam entrar, e quase fiquei
decepcionada pelo fato de realmente se parecer com um
estabelecimento comercial.
Havia duas recepcionistas logo na entrada, assim
que entramos, depois de Kane abrir a porta para mim como
um cavalheiro – o que me surpreendeu.

Elas abriram enormes sorrisos para ele, que as


tratou de forma muito simpática e charmosa, então eu
recebi um crachá. Ele já tinha o dele, claro.

Para mim aquele negócio era quase um tesouro.


Claro que eu teria que devolver ao final do dia, até que
tivesse o meu próprio, mas era a minha primeira vitória.

Subimos no elevador, e eu me peguei muito nervosa


com a ideia de encarar pessoas tão poderosas.

Quem era eu, afinal? Só uma garota que sequer


fizera faculdade; que terminara apenas o segundo grau,
mas que se aventurara a escrever, e era tudo o que eu
sabia.
Eu publicava alguns livros na Amazon, ganhando o
meu sustento e o do meu filho dessa forma, mas a verdade
era que tudo o que eu entendia era de histórias de amor,
embora a minha não estivesse nem perto disso.

Sempre li muito, os romances sempre foram minha


válvula de escape, e eu escrevia desde bem nova.
Começar a publicar foi um desafio, um sonho, mas fui me
dando bem. Ao menos conseguia pagar algumas contas e
ganhar dinheiro com honestidade.
Kane foi me guiando por dentro dos corredores da
empresa, sabendo muito bem o caminho que deveria
seguir. Ainda bem, porque eu provavelmente ficaria
perdidíssima naquele lugar.

Nós nos aproximamos de uma mesa em específico,


onde uma mulher muito bonita, de uns quarenta e poucos
anos, estava sentada, tão concentrada em seu trabalho
que demorou a nos ver ali.

Por um momento, vi seus lábios se curvando com


um sorriso quase maternal, mas este desapareceu
imediatamente.

— Já era hora de você voltar, né, filho pródigo? —


Nem foi uma indireta, foi um tapa na cara, literalmente.

Kane deu uma olhada para mim, envergonhado,


mas logo se voltou para a mulher.
— Não é o que parece, Chels.

— Está falando como um marido que traiu a esposa.


Não precisa se explicar para mim. — Então ela se virou na
minha direção. — E você deve ser a Iohanna. Finn foi
econômico quando disse que era linda.

Fiquei um pouco constrangida, e poderia jurar que


tinha corado.

— Obrigada. Ele era muito gentil.


— Isso ele era, sem dúvidas — a mulher respondeu
com um ar nostálgico, e eu vi algumas lágrimas se
acumulando no canto de seu olho. Com um sorriso
melancólico, porém, ela continuou: — Bem... estou feliz
que esteja aqui, querida. Só lamento não ter trazido o
pequeno Simon. Queria muito conhecê-lo.

— Não vão faltar oportunidades.

— Espero que não. — Um pouco mais carinhosa,


ela colocou uma mão no braço de Kane. — Também estou
feliz que esteja aqui, menino. Fez falta, sabia?
— Claro que sabia. Eu sempre faço falta. — Deu
uma piscadinha para ela, que a fez revirar os olhos.

Muito fofa, se apresentou para mim como Chelsea,


enquanto entrelaçava o braço no meu e me guiava até uma
porta, onde uma placa indicava: Sala de Reunião –
Diretoria.

Ouvia vozes vindas lá de dentro, o que indicava que


as pessoas mais importantes daquela fábrica, o alto
escalão, já estava reunido.

— Todo mundo aí, Chels? — Kane perguntou,


tomando a dianteira para abrir a porta.

— Sim, todos. Estavam só esperando por vocês.

Kane olhou para mim, de forma quase complacente,


questionando:

— Pronta?
Respirei fundo.

Não, eu não estava pronta, mas precisava estar, por


isso assenti.
Ele abriu a porta, e nós entramos. A porta era mais
silenciosa do que eu esperava, então imagino que as
pessoas não tivessem nos ouvido chegar, por isso eu
escutei uma conversa paralela, com um homem de óculos
falando de maneira quase apaixonada, como se estivesse
palestrando em uma campanha eleitoral:

— Essa garota vem do nada e tira o nosso lugar.


Tenho certeza de que Finn tinha a intenção de tornar um
de nós sócio. Ou até mais de um. Precisamos colocá-la em
seu lugar e fazê-la entender que não vai ser fácil chegar e
já se enfiar na diretoria. Todos nós trabalhamos muito para
chegar aonde estamos e...

Uma das mulheres o cutucou e o fez olhar para nós,


percebendo nossa presença.

O cara nem ficou sem graça. Apenas se empertigou


e me olhou com cara de ódio.

Ok... seria ainda mais difícil do que imaginei a


princípio.
CAPÍTULO OITO

O babaca se chamava Gordon Loomis. Era o Diretor


de Finanças; um dos primeiros a entrar na empresa, e eu
precisava concordar que ele estava lá desde o início e
realmente merecia a posição que ocupava. Mas daí a
pensar que meu pai lhe daria uma sociedade era demais.

Apesar de serem parceiros de longa data de


trabalho, sempre ouvi meu pai falando que era muito difícil
trabalhar com ele, por causa de suas ideias arcaicas e de
seu ego. As dificuldades de aceitar que estava errado
também eram constantes, assim como seus estresses com
funcionários que quase resultaram em processo
trabalhista. Teria colocado o nome da empresa em risco
com isso se meu pai não fosse um chefe tão legal e
contornado a situação mais de uma vez.
Nunca que Loomis receberia poder daquela forma.
Não pelas mãos do meu pai.
Só que sua fala ridícula foi certeira para incitar os
outros, que olharam para Iohanna com uma cara de
pouquíssimos amigos e cheios de má vontade. E mais do
que suficiente para que a garota se encolhesse como um
coelhinho no meio da mata, pronta para ser devorada.

Não importava que eu tivesse minhas ressalvas em


relação a ela e que ainda não soubesse exatamente qual
papel representava. De forma alguma eu iria permitir que
houvesse um clima como aquele dentro da empresa, ainda
mais porque iríamos passar seis meses trabalhando juntos.

— Contestando uma vontade do meu pai, Gordon?


É o mesmo que contestar um desejo meu... — falei de um
jeito cínico.
O idiota novamente se empertigou, ajeitando-se na
cadeira e arrumando a gravata.

— Foi um comentário genuíno. Além do mais, você


deveria concordar comigo.
— Pois não concordo. Meu pai era o dono de tudo
isso; ele poderia fazer o que quisesse. Quem não estiver
disposto a colaborar comigo e com Iohanna neste trabalho
durante o período estabelecido, pode se retirar. — Abri um
sorriso de canto, bastante irônico. — Mas aí pode ir para
não voltar mais, ok?

Muitos ficaram de boca aberta, e claro que foi o


próprio Gordon que se intrometeu:

— Não pode nos demitir!


— Por que não? Apesar de ter colocado como
último desejo que Iohanna fosse a tutora legal de um dos
principais herdeiros do meu pai, não me lembro de o nome
de vocês ser mencionado no testamento. Portanto, não
tenho obrigação nenhuma de mantê-los aqui.

Todos ficaram completamente calados. O rosto de


Gordon se tornou vermelho de um jeito que eu poderia
jurar que sua cabeça iria explodir.

Mas, para a felicidade de todos, ficou calado, no


final das contas.

Coloquei a mão nas costas de Iohanna,


incentivando-a a dar um passo à frente.

— Vocês obviamente já sabem quem ela é, depois


de fofocarem com o seu nome, mas esta é Iohanna Ward.
Vai trabalhar conosco nos próximos meses, então vamos
recebê-la e ajudá-la a entender um pouco mais sobre a
empresa.

Iohanna olhou para todos eles com uma expressão


muito assustada, enquanto a olhavam como se ela, de fato,
fosse uma usurpadora de cargo.

O que era mais ridículo era pensar que a única


pessoa que poderia ter esse pensamento a respeito dela
era eu.

E... bem... eu, de fato, tive. Ainda sentia, se fosse


sincero. Meu lado babaca também existia, e não conseguia
não pensar que Iohanna podia ser uma golpista, mas qual
era a desculpa deles?
Puxei a cadeira para ela e a incentivei a sentar,
colocando-me ao seu lado. Não coloquei nenhum de nós
dois à cabeceira, porque queria tentar demonstrar que
éramos iguais ali dentro.

A má vontade com ela continuou tão evidente, que a


menina ficou calada a reunião inteira, mesmo enquanto eu
tentava fazê-la se soltar.
Algumas coisas foram explicadas a respeito do
evento, qual seria a data já fechada, e a equipe de
marketing e a de produção cultural mostraram suas
propostas, ainda iniciais, e dali poderíamos desenvolver
alguma coisa.

Ficamos umas boas horas reunidos, até que nos


dispersamos para almoçar.
A fábrica tinha seu próprio refeitório para
funcionários, e eu comecei a rumar para lá, acompanhado
de Iohanna, mas senti sua mão em meu braço.

— Não. Não quero ir para lá.

— Não quer comer? — perguntei, preocupado de


aquela confusão toda na sala de reuniões ter afetado seu
apetite.

— Não. A gente pode almoçar no bistrô, não


podemos? Sei que é caro, mas...
O bistrô era um espaço dentro dos portões da Sweet
Haven, onde quem estava passeando podia almoçar. Era
bem gostosinho, um ambiente todo lúdico também, em que
o cardápio era todo formado por pratos infantis. Tudo com
formato de carinhas, colorido, desenhado e inocente.
— Sim, podemos ir, se você quiser.

Já era uma surpresa que não se importasse de ir


comigo, mas decidi aceitar.
E, não, não era assim tão caro, mas imaginava que
para a menininha que ela foi um dia, cada centavo
importasse e muito. Só que ela era rica a partir daquele
momento, então teria que começar a se acostumar com
isso.

Partimos para lá, nos sentamos em uma das


mesinhas e abrimos o cardápio. Novamente vi os olhos de
Iohanna brilharem, como se ela fosse uma garotinha
encantada.
— Sabe que pode escolher qualquer coisa, né? —
indaguei, só para ter certeza.

— Ainda é um pouco surreal para mim. Quando vim


aqui com meu pai, só íamos entrar para conhecer, mas a
gerente deixou que comêssemos em uma das mesinhas,
porque estava vazio. A gente tinha trazido comida de casa.
Ela foi muito gentil.
— Meu pai fazia questão de incluir todo mundo.

— Sim, eu sei. Foi muito importante para mim.


Ouvir Iohanna falando daquele jeito fazia meu
coração ficar pequeno. Eu era um babaquinha privilegiado
que nunca tive acesso a outras realidades. Não era cego
para as dificuldades que outras pessoas passavam, mas
sem dúvidas não tinha nenhuma experiência com viver na
pobreza.
Talvez precisasse aprender uma coisa ou duas
sobre seres humanos.

Sobre ser mais humano.

Acabamos escolhendo nossos pratos e bebidas, e


ficamos calados, enquanto aguardávamos, porque Iohanna
ficou observando atentamente uma garotinha loirinha,
muito fofa, que estava muito, muito encantada. Ela pulava
na cadeira como uma pipoquinha, mostrando aos pais as
coisas que tinham comprado. Eles aparentemente eram
turistas e tinham mimado sua filhinha com aquele passeio,
o que era encantador de ver.

— Está vendo? É isso que a Sweet Haven


representa. Sonho. Não só vendas, dinheiro e lucro —
Iohanna comentou do nada, o que eu rapidamente entendi
que tinha a ver com nossa recente reunião.

De fato, a alta hierarquia da Sweet Haven tinha essa


visão de apenas trazer mais e mais dinheiro para a marca.
Eu não poderia negar que era assim também. Para mim,
tudo que eles falaram procedia, especialmente a forma
como queriam fazer o evento. Aquele que deveria ser o
último, já que sempre foi algo apenas mantido pelo
saudosismo do meu pai.

— Não gostei dessa ideia deles... Não gostei nem


um pouco.

E eles estavam apenas começando.


Em um primeiro lugar, a ideia que foi apresentada
era de criar um grande evento, maior do que o normal, com
festa, música, com promoções nas lojas, mas que o tour
pela fábrica fosse feito mediante pagamento de ingressos
caros e não como um sorteio, para que qualquer um
pudesse participar.

Logo vi que Iohanna não ficara nem um pouco


satisfeita.

— Você tem um envolvimento emocional com o


negócio. Precisa passar a pensar nele de outra forma.

— Não, Kane! — ela exclamou, com veemência. —


É impossível você me pedir para fazer isso. E não estou
falando por mim. Estou falando porque sei o outro lado.
Sabendo disso, nunca vou conseguir fechar meus olhos.
Este lugar já é milionário o suficiente e vai continuar sendo
do jeito que está, porque as pessoas amam a Sweet
Haven. Começar a transformar em uma empresa fria e
distante só vai fazer com que perca a essência. Eu não
entendo nada de marketing, mas imagino que isso seja um
diferencial.

Respirei fundo, porque sabia que ela estava certa.


— Por que não falou isso na reunião?
Iohanna parou com o garfo a caminho da boca.

— E ser ainda mais odiada? Não, obrigada. Quem


tem que falar isso é você, caso concorde comigo.
Eu precisava pensar. Poderia, é claro, analisar o
lado de Iohanna, porque fazia muito sentido. Sem contar
que eu também não era a favor de tudo o que aquele
pessoal sugeria. Mas também não queria que ela ficasse o
tempo todo acuada com medo de dar suas opiniões.
Precisava fazer alguma coisa em relação a isso.

Naquele momento, porém, eu só queria comer,


porque, de fato, estava uma delícia.

Quando terminamos, paguei a conta para nós dois,


por mais que ela tivesse protestado, e aceitei sua sugestão
de caminharmos um pouco.

Não dizíamos nada, mas até que o silêncio não foi


dos mais desconfortáveis. Não tínhamos muito a dizer um
ao outro, não nos conhecíamos, mas havia gente suficiente
ao redor, cenas muito adoráveis, para que ficássemos
entretidos.

Era possível que ela tivesse toda a razão: que


aquele lugar fosse mágico por si só e que eu nunca tivesse
dado a devida atenção a esse detalhe.

— Ah!!! — a garota ao meu lado soltou uma


exclamação animada, e eu a vi apressar os passos em
direção de uma loja específica.
Fui atrás dela, caminhando de forma um pouco mais
lenta, tentando conter um sorriso pela forma como parou
diante da vitrine, exatamente como uma criança feliz.

Então se voltou para mim:

— Meu Deus! Vocês ainda fazem isso aqui! — Ela


apontou para uma cestinha, que estava repleta de balinhas
de caramelo. — Eu sou apaixonada por elas!
— Fazemos. Não são o produto que mais vende,
mas meu pai gostava também.

— Foi a única coisa que comprei no dia em que vim


aqui, quando criança. Como já te disse, a gente não tinha
muito dinheiro, especialmente porque precisávamos pegar
ônibus, já que não morávamos aqui, então meu pai me
pediu para escolher uma coisa só, para comprar.
— Vocês não eram de Port Haven, mas seu pai
trabalhava aqui?

— Nós éramos da cidade vizinha. Ele pegava o


ônibus todos os dias. Dava uns quarenta minutos de
viagem.

Assenti, entendendo o porquê de nunca a ter visto


por ali, nem mesmo como criança. Imaginava que, talvez,
pudesse conhecê-la, já que em cidades pequenas meio
que todo mundo sabia o nome de todo mundo.

— Mas então você escolheu este caramelo? —


Também apontei para a vitrine.
— Claro! Meu pai me deu um valor específico. Eu
poderia comprar um chocolate, um sorvete, um donut... Só
que pensei que com o dinheiro que me entregou, eu
poderia comprar um monte de caramelos. Se comesse um
por dia, durariam mais.

— E você conseguiu se controlar assim?

— Consegui. Mantive a Sweet Haven comigo por


um bom tempo.
Novamente precisei respirar fundo, porque a história
dela com a empresa da minha família era muito tocante.

Sem dizer nada, ergui um dedo em riste, pedindo


que ela me esperasse. Afastei-me um pouco, entrando na
loja e me aproximando do balcão. Pedi que a menina
pegasse todos os caramelos daquela cestinha e colocasse
em uma bolsinha. Para a minha sorte, ela disse que abrira
um pacote inteiro e que havia cem deles lá dentro. Seria
um bom tempo perdido se a vendedora precisasse contar
um a um.

Então eu paguei, ela os colocou na bolsinha de


papel da Sweet Haven e ainda pedi que a fechasse com
um lacinho.

Quando cheguei lá fora, os olhos de Iohanna já


estavam cheios de lágrimas, embora as estivesse
controlando quando recebeu o presente.
— Por que fez isso? — ela perguntou, erguendo os
olhos para mim e já abrindo a embalagem, com todo o
cuidado.

Não importava que ela me odiasse, sem que eu nem


soubesse o motivo; a história dela com aqueles caramelos
me comovera, e eu fiquei pensando na menina que um dia
fora. Na menina que não tinha nada, que passava
dificuldades, mas que se encantara pela fábrica de doces
que meu pai construiu.

— Porque acho que é um bom símbolo de trégua


entre nós. Coma um por dia ou todos de uma vez, a
escolha é sua. — Ela ficou me olhando em silêncio, até
que eu abri um sorriso de canto, quase tímido. — Bem-
vinda a Sweet Haven, Iohanna.

Com isso, afastei-me, antes de ficar emocional


demais. Antes de perceber que, naquele momento, aquela
mulher não parecia uma golpista, mas uma garota muito,
muito inocente.
CAPÍTULO NOVE

Chegamos em casa por volta das seis, e eu estava


morrendo tanto de saudade do meu bebê, que corri para
ele e o enchi de beijinhos. A recepção foi extremamente
calorosa também, com ele, e foi só depois que acalmamos
nossos corações que eu fui olhar para a bolsinha de papel
que deixei sobre a escrivaninha do meu quarto.

Deitada na cama, com Simon ao meu lado,


segurando um brinquedinho, sentado e fazendo seus
sonzinhos infinitos, respirei fundo e me lembrei daquele
momento completamente inacreditável em que fiquei sem
reação com o presente inesperado.

Levantei-me e fui até os doces, pegando um e


levando para a cama. Adoraria que Simon pudesse prová-
los, mas meu bebê ainda não tinha os dentinhos fortes, e
eles eram mais durinhos. Mas um dia eu adoraria que ele
gostasse das mesmas coisas que eu e que fizeram parte
da minha infância.
Abri a embalagem e logo senti o cheirinho
característico. Não tinha comido nenhum depois do almoço
e nem durante o expediente, não só porque ficamos indo
de setor em setor na empresa, para que eu conhecesse
todos os processos do trabalho, mas também porque
queria degustar o primeiro com um pouquinho de
privacidade, porque sabia que, novamente, me deixaria um
pouco emocional.

Aliás, o dia inteiro fora muito especial para mim.


Mais do que imaginei. Apesar do tratamento horrível que
recebi dos diretores e gerentes, todo o resto fora quase um
sonho. Até mesmo minhas interações com Kane me
surpreenderam.

E seu gesto de me presentear...

Droga! Eu não queria ter ficado tão sentimental


como fiquei.

Tudo o que eu precisava pensar era que não


importava o quão charmoso e legal ele parecesse. O cara
me rejeitara quando mais precisei e renegara o próprio
filho.

Lancei um olhar para Simon, que me observava com


os olhinhos verdes, iguais aos do pai, com um dedinho na
boca. Provavelmente também estava sentindo o cheirinho
delicioso da bala, então cortei um pedacinho bem pequeno
com a mão e coloquei em sua boquinha. Um tamanho ok
para que conseguisse chupá-la e engoli-la.
A carinha que ele fez ao sentir o gosto foi adorável.

— Gostosa, né, filho? — Dei mais um pedacinho a


ele, e teria feito isso até acabar a bala, mas meu telefone
vibrou com a chegada de uma mensagem.

Da minha tia, claro.

TIA AGNES:

E ai, filja, como fio?

Nossa, eu tinha muita coisa para contar a ela, mas


por mensagem seria complicado. Podia imaginá-la
digitando, irritada com os problemas e animada com as
coisas boas e as letras se embolando e formando palavras
ininteligíveis.

IOHANNA:

Melhor a gente se falar por ligação, não?

 
Ela nem respondeu, apenas me ligou, pelo
Whatsapp mesmo, e eu atendi.

Enquanto fazia isso, senti um cheirinho


desagradável, já imaginando que só poderia ser o meu
pequenininho precisando de uma ajuda com a fralda.
— Oi, filha! Estava ansiosa para falar com você,
mas com medo de te atrapalhar. Como foi o dia?
Suspirei, pegando Simon e o levando ao banheiro,
para trocá-lo, colocando a ligação no viva-voz.

— Foi legal, tia. Amei estar na Sweet Haven, poder


entrar nas lojas, almoçar lá. Eu amo aquele lugar.
— Sei, meu amor. Seu pai gostaria de saber disso.

— É, ele gostaria mesmo. — Sorri ao pensar que ele


sempre trabalhou muito para tentar me dar aqueles
pequenos mimos. Não sabia se estaria assim tão
orgulhoso pela forma como consegui me infiltrar no lugar
que sempre amei tanto, embora nada tivesse sido
premeditado.
— Mas por que estou sentindo um pouquinho de
tristeza na sua voz?

Era uma droga querer esconder algo de alguém que


te conhecia tão bem, por isso nem pensei em tentar. Tia
Agnes nunca fora enganada, porque seu radar funcionava
mesmo à distância.

— É que as pessoas foram um pouco difíceis...

— Que pessoas? Aquele filho da putinha? —


Definitivamente Kane não era a pessoa preferida da minha
tia.
— Não! — respondi com mais convicção do que
seria necessário. — Ele foi até... bem gentil. Estou falando
dos diretores, gerentes... As pessoas da empresa em geral
não foram muito solícitas. Todos eles concordam que eu
estou ali sem merecer.

E não estavam errados. Meu filho, sim, tinha direito,


porque era neto do Sr. O’Rorke, só que as pessoas nem
sabiam disso. Para elas, Finn adotara uma criança
aleatória, porque estava transando com a mãe, o que me
tornava uma interesseira.

Não trabalhei para estar ali. Não me esforcei. Não


fiz minha parte.

Estava disposta a fazer tudo em dobro, no entanto.

— Isso não quer dizer que você não possa mostrar


a eles que é capaz.
— Mas será que eu sou, tia? Nunca trabalhei em
uma empresa assim, não fiz faculdade...

— Você vai aprender. Sem contar que tem sua


profissão e tem ido muito bem nela.

— Tenho medo de não ter tempo de escrever. Vou


ter que me virar aqui para não perder a constância nos
meus lançamentos.

— É só começar a aceitar ajuda e o fato de que o


Sr. O’Rorke te deixou uma herança. Pode usá-la para
contratar uma babá.
— As pessoas daqui da casa amaram o Simon. A
governanta já falou que vai adorar cuidar dele para mim,
mas tenho vergonha.

— Por quê? Por que as mulheres têm que se


envergonhar de não darem conta de tudo? Vai ter uma
jornada dupla de trabalho, querida. Como ainda quer ter as
tarefas do bebê? Por um tempo pode abrir mão disso, mas
não de dar atenção a ele.

— Isso eu nunca conseguiria.


— Mas o resto, sim. Simon não se importa com
quem troca sua fralda, mas com quem o ama. E ele tem
uma mãe maravilhosa. — Ela deu uma bufada do outro
lado da linha. — Pena que o pai...

Engoli em seco, pensando em Kane e no quanto ele


tinha me surpreendido naquele dia de diversas maneiras.
— Ele não é de todo mau — falei com cautela. Tia
Agnes odiava Kane, já sabia que ela iria reclamar.

— Não amoleça com ele. Não merece teu perdão,


filha.

— Não, pode deixar. Eu sei que ele é um babaca,


um safado, que só quer saber do próprio umbigo e do
próprio pau, mas foi legal comigo hoje. Me defendeu
quando precisei... — Tinha me dado caramelos também,
mas achei melhor não mencionar esta parte, porque minha
tia acharia bobo da minha parte amolecer por um gesto tão
mundano.

E era mesmo, mas meu coração era deslumbrado, e


eu ainda sentia algo por aquele idiota.
Já tinha terminado de trocar Simon, então achei que
era uma boa hora para encerrar a ligação.

— Tia, a gente se fala mais tarde, ok? Nosso


garotinho está agitado.

— Saudade dele. E de você, querida.


— Eu também, tia — falei com um suspiro e
desliguei.

No momento em que fiz isso, a voz masculina soou


atrás de mim.

— Gosto da forma como seus olhos me veem.


Confesso que realmente tenho um grande apreço pelo meu
pau, não nego.

Dei um pulo, sabendo que Kane tinha ouvido a


minha conversa.
Mas o quanto ele ouvira?

— Não te ensinaram a bater, não? — perguntei,


levando a mão ao peito.

— A porta estava aberta, e eu queria te avisar que


fomos chamados para um jantar na casa de Gordon
amanhã.

— De Gordon? Logo ele? Podemos não ir, né? —


indaguei, pegando Simon no colo e me aproximando de
Kane.
— Podemos, mas acredito que possa ser uma boa
forma de você demonstrar que não se importa com a
opinião dele.

— Mas eu me importo!

— Pois não deveria — ele falou com um risinho


torto.
— Fácil falar.

— Não, Iohanna, não é... — Kane estendeu a mão,


tocando o rostinho de Simon, que já respondia bem a ele,
como alguém familiar. — Você é chefe dele, já pensou
nisso?

Não, eu não tinha pensado por aquele lado, mas era


algo a se levar em consideração.

— Se quiser, pode ser grosseira, pode responder à


altura e colocá-lo em seu lugar. Estará no seu direito, mas
mais do que isso, precisa fazer isso para que ele entenda
que precisa te respeitar, que é parte da hierarquia e dos
desejos do meu pai.

Fiquei olhando para Kane, analisando o que estava


me dizendo.

Eu tinha mil perguntas a fazer, sobre o porquê –


novamente – de ele estar sendo legal comigo e me dando
aquelas dicas, mas achei melhor deixar passar, porque
estava ficando chato.
— Tudo bem, podemos ir. Mas você promete ficar
do meu lado? — foi uma pergunta feita em um impulso,
porque eu nem sabia se queria uma proximidade daquelas.

— Prometo.

Era a primeira promessa que ele me fazia, né?


Então precisava lhe dar algum crédito, embora não
confiasse.
Seríamos parceiros de trabalho, afinal, e eu tinha
que trabalhar um pouco mais aquele meu ranço. Quando
fosse embora, talvez, a gente estivesse até se dando
melhor. Quem sabe?
CAPÍTULO DEZ

Sempre fui péssimo para dar nós em gravatas; por


isso, eu as evitava como o diabo que foge da cruz. Se não
era bom suficiente em algo, para que tentar tanto e me
estressar?

Na verdade, eu não era nem um pouco bom usando


aquele tipo de roupa. Era fã de casacos de couro, blusas
de algodão e jeans. Até mesmo para trabalhar, eu me
aventurava em algo mais informal, já que a Sweet Haven
não era exatamente um local para engravatados. Já que
vendíamos sonhos, por que eu precisava passar o dia
inteiro em um pesadelo?

Sendo assim, precisei pedir ajuda de reforços.


Lá estava Bethie mexendo no negócio, como uma
profissional.

— Trinta e cinco anos na cara e não sabe dar um nó


em gravata. Que vergonha! No meu tempo é que os
homens eram elegantes de verdade — resmungou, o que
me fez rir.

— Eu sou um cara elegante. Só que de um jeito


rebelde, sexy e peculiar — disse em um tom canastrão,
erguendo uma sobrancelha.

Ela me olhou atravessado.

Eu realmente amava aquela mulher.

— Tem que estar bem decente, porque sua


companhia está deslumbrante.

Engoli em seco, sabendo muito bem que aquilo


deveria ser verdade. O problema do meu nervosismo em
relação a isso não era só o fato de eu ter uma tendência
muito grande a amolecer perto de mulheres bonitas, mas
porque pensei em Iohanna o dia inteiro e no quanto, sem
dúvidas, ela iria passar por momentos complicados.

As pessoas que a tinham diminuído na reunião na


empresa estariam presentes e se eu os conhecia muito
bem, não iriam facilitar em nada. Prometi a ela que ficaria
ao seu lado, incentivei sua reação para que demonstrasse
força diante dos abutres que queriam prejudicá-la, mas
sabia que eu mesmo me sentiria incomodado.

Precisaria engolir meu orgulho e as minhas


diferenças com aquela garota, a minha opinião sobre ser
ou não uma golpista, porque de forma alguma eu iria deixar
que a maltratassem, principalmente estando ao meu lado,
sendo minha companhia.
— Bethie, não vai rolar — falei, simplesmente,
enquanto ela terminava sua tarefa.

— Não vai rolar o quê, garoto?

— Essa sua tentativa de me empurrar para Iohanna.


A gente nunca daria certo.

Ela suspirou, ou quase bufou. Nem saberia discernir


um do outro.

— Você sabe de si, né? Sempre soube. Espero que


esteja bem certo das escolhas.

Com isso, ela saiu do meu quarto, me deixando com


a pulga atrás da orelha. Qual era a ideia ali? Me deixar
arrependido? Não fazia nem sentido.

Mas se eu fosse sincero, precisava admitir que foi


bom Bethie me avisar, embora nem mesmo isso tivesse me
preparado para o acontecimento que foi meu encontro com
Iohanna naquela noite, vendo-a tão bonita, com um vestido
belíssimo tom de verde-escuro, de mangas longas e que
delineava seu corpo magro, mas com curvas, em todos os
lugares certos. A cor em contraste com o tom pálido da sua
pele fazia com que meus olhos sequer conseguissem se
afastar.

Havia uma maquiagem delicada em seu rosto. Nada


exagerado, nada que não combinasse perfeitamente com a
sutileza de suas feições. Ela parecia uma princesa Disney,
com as bochechas coradas, o lábio brilhando em um rosa
muito feminino e os olhos com cílios enormes e marcados.
— Podemos ir? — perguntou, completamente alheia
ao meu atordoamento.
Completamente alheia à sua própria beleza.

Continuei parado, observando-a como um bobo,


tentando encontrar discernimento para me mexer e fingir
que não me sentia paralisado.
Só que a única coisa que consegui dizer foi:

— Você está... linda.

Era simples. Era um elogio que qualquer um poderia


fazer a ela, mas eu não estava em busca de vencer algum
concurso. A única coisa que queria era ser sincero e fazer
com que aquela mulher recebesse as palavras que
merecia receber.

Vi seus lábios se abrirem em uma expressão de


surpresa, e ela chegou a levar a mão ao peito. Seria
possível que ela não soubesse que causava uma
impressão e tanto?

— Ah, obrigada... eu não... não esperava.

— Um elogio?
— Não um vindo de você.

Franzi o cenho, quase incomodado. Ela realmente


tinha uma opinião péssima de mim, e eu não tinha a menor
noção do porquê.

Claro que não adiantava em nada discutir.


— Pois saiba que é verdade. — Com apenas esta
resposta eu me aproximei, colocando a mão em suas
costas e percebendo que, além de tudo, o decote do
vestido era muito mais longo do que esperei. Sendo assim,
senti pele com pele, e inconscientemente meus olhos logo
se voltaram para sua boca.
Uma coisa não tinha a menor relação com a outra,
mas estar tão próximo a ela, subitamente me deu vontade
de beijá-la.

O que não fazia o menor sentido, mas naquele


momento pareceu a coisa que eu mais queria na vida.

E ela não recuou.

Só que algum estalo me fez lembrar de quem ela


era, de onde estávamos, o que tínhamos que fazer ainda
naquela noite e o quanto seria complicado se
acabássemos nos entregando ao que eu considerava um
enorme erro.
Afastei-me rapidamente, como se ela tivesse
alguma doença contagiosa, e nós dois meio que saímos de
um transe, começando a caminhar para a saída da casa de
súbito, para pegarmos o carro.

Queria muito afirmar que aquela foi a última vez na


noite que me senti balançado perto de Iohanna, mas seria
uma completa mentira. A cada momento que eu ousava
olhar para ela, meu coração errava uma batida.
Era apenas uma reação comum. Como falei
anteriormente, eu não tinha muito autocontrole quando se
tratava de mulheres, embora, no último ano eu tivesse
tomado a decisão de me aquietar.
Ou talvez nem fosse uma decisão. Talvez fosse uma
atitude natural, porque eu não era mais um garotinho. Era
hora de assentar a minha vida.

Não casar e ter filhos, porque nem sabia se isso


aconteceria um dia. Já que meu pai tinha outro herdeiro,
bem mais jovem do que eu, essa preocupação fora tirada
dos meus ombros.

Tive meus pensamentos interrompidos ao dar mais


uma olhada na garota, já na festa, nós dois parados no
meio do salão, e perceber que seu rosto estava um pouco
mais pálido do que o normal.

— Você está bem? — perguntei, preocupado.


— Não. É normal que eu queira vomitar sem nem ter
comido nada ainda? Estou apavorada.

— Você não comeu nada desde hoje de manhã? —


exclamei, sobressaltado.
Em um segundo movimento, arranquei a taça de
champanhe de sua mão, comemorando que só tivesse
dado uma ou duas goladas.

— É que eu realmente estou nervosa.


Quem poderia culpá-la? A partir do momento em
que chegamos na casa de Gordon – exatamente o covil do
inimigo –, os olhares para ela não demonstravam nem um
resquício de simpatia. Pelo contrário, aqueles mesmos
filhos da puta da reunião continuavam cochichando depois
de olhar para ela e ainda pareciam contaminar outras
pessoas.
Assim que ela terminou de falar, um grupo de três
pessoas começou a se aproximar de nós. Entre eles, o
próprio Gordon, com quem tínhamos trocado apenas
cumprimentos quando chegamos – o que tinha uns quinze,
vinte minutos –, além de sua esposa e seu filho, que ele
sempre quis que ocupasse um cargo na empresa, mas que
meu pai sempre vetou por ser um preguiçoso, que não iria
trabalhar nada e só se fazer valer da posição de seu pai.

— Estamos surpresos que vocês vieram — a forma


como ele deu ênfase na palavra não deixava a menor
dúvida de que estava se referindo a Iohanna e não a mim.

— Não fomos convidados? Se não queria que a


gente aparecesse, era melhor ter avisado — soltei isso
com um sorriso cínico.

— A presença dos dois é bem-vinda — a esposa


dele falou, sem graça. Ela não era das melhores nem das
mais simpáticas, mas ao menos tinha um pouco mais de
senso do que seu marido rabugento.

— Até porque... — Novamente coloquei a mão nas


costas de Iohanna, puxando-a para frente, deixando-a do
meu lado, porque ela estava acuada, mais para trás —
Iohanna veio como minha companhia.

Gordon deu uma olhada de cima a baixo para


Iohanna, e eu vi desejo em seus olhos, o que me deixou
puto pra caralho. Claro que ele não a tolerava como sua
chefe, mas a achava bonita – o que não era nem um pouco
inexplicável.

— Diga-me com quem andas... — o babaca


começou a falar, mas deixou o resto no ar.

Ah, não. Ele obviamente tinha perdido a noção.


Alguém precisava o colocar em seu lugar.

— Pense bem antes de falar essas coisas, Gordon.


Iohanna é sua chefe agora.

Ele sabia disso, só que não se importava. Talvez


fosse o momento de realmente fazer Iohanna se impor.

Só que no momento que olhei para ela, tudo o que


vi foram seus passinhos para trás, afastando-se. Quando
dei por mim, ela estava se dirigindo ao banheiro, fechando
a porta.

Lancei um olhar para Gordon, que estava se dando


por realizado, e tudo o que eu sentia era raiva, porque
aquele comportamento era mais do que revoltante.

— Vamos falar sobre isso depois — assegurei a ele,


afastando-me e deixando a taça de champanhe sobre um
aparador e indo atrás de Iohanna, esperando consertar
alguma coisa, porque tinha prometido que cuidaria dela e
já estava falhando desde o início.
CAPÍTULO ONZE

Eu não tinha absolutamente nada para fazer no


banheiro, a não ser me esconder. E isso fazia com que eu
me sentisse uma baita de uma covarde, mas não
conseguia evitar.

Só que quem poderia exigir tanto de mim, sabendo


que nunca tive experiências como aquela? Se não fosse
pelo meu bebê, já teria largado tudo e voltado para a casa
da minha tia, para minha vidinha simples, mas onde todo
mundo me tratava com o mínimo de respeito.
Mas era por Simon que eu iria suportar tudo. Mesmo
que precisasse deixar cair algumas lágrimas no processo.
Parei diante da pia para tentar secar as lágrimas de
um jeito que a maquiagem não ficasse muito arruinada,
mas ouvi alguém bater na porta.

— Está ocupado — falei, em um tom de voz alto,


para que a pessoa do outro lado ouvisse.

— Iohanna? Sou eu, Kane. Me deixe entrar.


Mas no que diabos ele estava pensando?

— É um banheiro! Não vou te deixar entrar.

— Está fazendo xixi? Ou número dois?

— Não, mas...

— Então não tem motivo para não me deixar entrar.


Sei o que está fazendo aí e não vai se esconder. Não
precisa.
A forma como ele falou a última frase, tão convicto e
tão seguro, me fez suspirar e ceder. Era como se estivesse
me garantindo que não havia necessidade de eu ficar
sozinha.

A verdade era que fazia tanto tempo que eu vinha


aguentando meus próprios problemas sem ninguém, além
da minha tia, para me servir de ombro amigo que ainda me
sentia um pouco reticente em permitir que outras pessoas
derrubassem as barreiras que construí ao redor do meu
coração.

A morte dos meus pais foi algo que sem dúvidas me


tornou um pouco mais dura. Gostava de me convencer de
que se tratava de força e não de amargura, mas a verdade
era que tinha passado a ver a realidade de uma maneira
muito menos gentil, especialmente porque desde menina
sempre fui levada a acreditar em magia e em contos de
fadas.

E o mais irônico era pensar que outra pessoa que


me levara àquele tipo de sentimento era exatamente o
homem para quem abria a porta daquele banheiro e que
entrava, parecendo muito convencido de que seria a minha
salvação.
Kane me afastou um pouco da porta, ele mesmo
passando a chave e nos trancando lá dentro. Então pegou
minha mão e me acompanhou até os fundos do cômodo,
que era muito maior do que poderia ser um lavabo de uma
casa comum, e se sentou no chão, incentivando-me a fazer
o mesmo.

— Não sei se é uma boa ideia — falei, hesitante.

— Vamos, é só uma conversa.

— Em um banheiro...

— O cenário importa, dadas as circunstâncias?

Sim, ele estava certo.

Kane estendeu a mão e me ajudou a me agachar


com o vestido, de uma forma decente e quase graciosa.
Sentei-me com as pernas esticadas, deixando minha bolsa
do meu lado, no chão.

— Acho que teria decepcionado o Sr. O’Rorke, né?


— falei, do nada.

— Por que está dizendo isso?

— Não tive pulso firme o suficiente.

Kane deu uma risadinha meio amarga.


— Você subestima o meu pai. Não sabe o que já
passou com o próprio filho. E com as outras mil pessoas
que fizeram muitas coisas piores do que nós.
— Quando ele decidiu adotar o Simon, pediu que eu
fosse forte. Que ia precisar, porque acabaria passando
pelo julgamento de muitas pessoas. Imaginei que ele
estava exagerando. Não fazia ideia de que estava sendo
até um pouco sutil.

Ele balançou a cabeça, começando a brincar com


os próprios dedos, pensativo.

— Pessoas são cruéis, Iohanna. Especialmente


quando dinheiro está envolvido.

— É o mal do mundo, né?


— Não na minha opinião. Dinheiro é maravilhoso. É
o que nos possibilita muitas coisas. Se ele não existisse,
quantas pessoas iriam trabalhar? Se tudo fosse de graça,
como existiria este “tudo”? Quantos médicos trabalhariam
sem salário? Professores? Advogados?

Era uma filosofia que fazia muito sentido.

— Não é errado ser rico. Não é errado ser chefe. A


não ser que você tenha feito algo ilegal para chegar ao
topo — ele prosseguiu.

— De acordo com Gordon, eu fiz.


Ele ficou quieto por algum tempo, chegando a
morder o lábio inferior. Aquele assunto era um problema
entre nós, e eu definitivamente não deveria mencioná-lo,
mas em algum momento precisaria colocar para fora o que
eu sentia.

Mais do que isso, precisaria lhe dizer a verdade.

— O que importa é o que você acha, né? Meu pai


deveria gostar muito de você e do menino. Talvez vocês
dois tenham preenchido um espaço que eu deixei quando
me afastei.
— Não, Kane. Isso nunca aconteceu. Seu pai era
louco por você.

Kane respirou fundo, soltando um suspiro.


— É uma coisa que me incomoda, sabe? Que me
faz muito mal. Não ter sequer me despedido. Lembrar da
nossa última conversa e a forma como o tratei... Se eu
pudesse voltar no tempo...

Voltei meus olhos para Kane, sentindo toda a


melancolia que ele provavelmente guardava no coração.
Por um momento comecei a pensar que aquela era a
consequência do rancor. Era isso que eu ganharia também
me mantendo com raiva dele e, principalmente, sem lhe
contar que Simon era seu filho. Porque eu também sentia
um vazio dentro de mim por conta da mentira. Também
tinha a impressão de que nunca seria completa enquanto
tivesse aquela pendência no meu coração.
Só que mal sabia como começar a falar.
Remexi-me no chão e encolhi as pernas,
abraçando-as, sem nem me importar se meu vestido era
curto demais para isso. Kane estava ao meu lado e
nenhum de nós dois estava ali dentro para ficar olhando
para a minha calcinha.
— Você acha que ele me perdoou? — Kane
perguntou, e eu senti um desespero em sua voz; uma
urgência e uma angústia desesperadoras.

Ele estava perguntando, mas só queria uma


resposta. Como eu poderia ter coragem de falar qualquer
coisa diferente, mesmo que não fosse verdade?

— Sim, Kane.

O que ele não sabia era que, por mais que Finn
O’Rorke tivesse, de fato, perdoado o filho, Simon fora um
bálsamo, um incentivo para que o coração do homem
amolecesse. O que Kane fizera comigo o deixara irritado,
mas não o suficiente para morrer com aquele rancor.
Por mais que a morte tivesse sido súbita, ele falara
algumas vezes sobre o filho, e a cada vez que
conversávamos o carinho parecia mais evidente em suas
frases, em seu tom.

— Ele com certeza te perdoou — reforcei,


observando minha companhia novamente, e eu vi seus
lindos olhos verdes marejados.
Era um momento emocional demais para o meu
gosto. Não queria pensar em Kane como aquele cara sério
e sensível que se importava com os sentimentos dos
outros.

— Obrigado. Saber disso é importante para mim.

Ficamos calados por alguns instantes, e eu estava


perdida em um milhão de pensamentos. Sobre mim, sobre
ele, sobre Finn, sobre Simon, sobre toda aquela história
absurda que nos rondava, de encontros e desencontros.

Fiquei surpresa, porém, ao ver Kane levando a mão


a um dos bolsos de sua calça e tirando algo de dentro dele.

Algo pequeno o suficiente para caber em sua mão


grande e eu não ver o que era.

— Feche os olhos — ele falou, baixinho.

Ouvir sua voz daquela maneira me fazia lembrar de


coisas que eu não devia.
De seus sussurros roucos enquanto me amava.
Seus toques. A forma como meu corpo se moldara ao dele.
Como me dera prazer, mesmo eu sendo inexperiente ao
ponto de sentir dor, mas conseguir chegar a dois
orgasmos, um em seus dedos e um em sua boca.

— Por quê?

Ele abriu um daqueles sorrisos cafajestes, mas que


era tão sexy que ficava impossível não ser indulgente.

— Se eu contar, não vai ter graça. — Ergui uma


sobrancelha, desconfiada. Não queria aquele clima entre
nós. Não queria que fosse leve, suave e confortável. —
Vai... — Ele moveu o ombro, tocando o dele com o meu,
dando um leve empurrãozinho. — Fecha os olhos. Pode
confiar.

Fiz o que ele pediu e senti sua mão abrir a minha


com muita gentileza, cálida, e eu cheguei a respirar fundo
por causa daquele contato.

Senti uma coisinha pequena na minha palma, mas


ainda não sabia o que era.
— Pode abrir.

Quando eu o fiz, encontrei um dos caramelinhos da


loja da Sweet Haven; aqueles, meus favoritos, com os
quais ele já tinha me presenteado.

Fiquei completamente sem fala. Era uma coisinha


tão pequenininha, mas tão significativa que quase perdi o
ar.

— Isto é para você sempre lembrar que por mais


que algumas pessoas tentem te encher o saco, algumas
coisas da vida podem ser doces.

Meus olhos pararam naquele pequeno docinho, que


tanto fez parte da minha vida e dos meus sonhos. Eu ainda
tinha vários dele em casa, porque dos cem que Kane me
dera no dia anterior, comi apenas uns cinco.

A vontade de economizá-los, como fazia quando


pequena e não tinha como comprá-los, ainda não mudara.
Eles eram preciosos. Ainda.
Meus olhos quase desamparados se voltaram para
Kane, emocionados.

— Obrigada, Kane. Muito obrigada.

Eu estava surpresa. Estava tocada, abalada.

Ele, de fato, era um perigo. Mais do que imaginei.

Aquilo seria muito, muito complicado.


CAPÍTULO DOZE

DUAS SEMANAS DEPOIS

Na intenção de me inserir ao máximo na Sweet


Haven, minha escolha foi passar alguns dias em cada um
dos setores. Conhecer não apenas os funcionários, mas os
processos e me adaptar à rotina de uma empresa, já que
nunca trabalhei em uma. Além do mais, era uma boa forma
de as pessoas também me conhecerem, mesmo que já
tivessem suas pré-concepções ao meu respeito.

Fiquei alguns dias no RH, outros no setor de


marketing, no de vendas, na administração geral das lojas
e naquele dia eu iria começar com a equipe de produção
cultural, que seria aquela com quem iria trabalhar por mais
tempo, já que minha função ali era ajudar a organizar a
visitação à fábrica.

Por mais que estivesse com medo e que a ideia de


me separar de Kane que, além de Chelsea, era a única
pessoa ali dentro que me tratava bem, precisava concordar
que as coisas foram melhores do que o esperado. Recebi
muitas caras feias de início, muita indiferença, e sabia que
algumas das pessoas não iriam mudar seus pensamentos
ao meu respeito. Outras, no entanto, pareceram se
surpreender. Isso me deixava um pouco mais tranquila.
Como Chels trabalhava lá há muitos e muitos anos,
as pessoas a respeitavam, principalmente por sua relação
com o Sr. O'Rorke. Havia o boato de que os dois, inclusive,
tiveram um romance, então a forma como ela me
apresentou, pegando a minha mão e me levando em cada
um dos setores, fez certa diferença. Se tanto ela quanto
Kane me tratavam com respeito – sendo que poderiam ser
os mais afetados pela minha existência na fábrica e na
"família", por que aquelas pessoas não podiam fazer o
mesmo?

Aquele seria mais um dia de desafio, é claro, mas


eu esperava ter sucesso novamente em ganhar a
confiança e simpatia de mais alguns funcionários. O
problema era que eu tinha acordado me sentindo péssima.

Para ser sincera, estava demorando demais para


acontecer, levando em consideração o nível da minha
alimentação nos dias anteriores. Eu não almoçava, não
jantava. Comia qualquer coisa gordurosa e me enchia de
café para aguentar o pouco que dormia.

Passava várias noites estudando tudo o que podia


sobre a fábrica; tanto de sua história quanto de suas regras
e cada loja. Cada um de seus doces, cada uma das
submarcas, o que ela representava para a cidade.

Quando me sobravam algumas horinhas sem sono,


ainda caía dentro da minha mais recente história, porque
não podia deixar de trabalhar no que realmente amava. Eu
não tinha intenção de me infiltrar de vez na fábrica, apenas
me tornar relevante pelo tempo que iria passar lá. Não
queria dar margens para as pessoas terem o que reclamar
de mim.

Sabia que estava ultrapassando até o que seria


necessário, porque poderia apostar que a maioria dos
funcionários lá dentro não se empenhavam tanto quanto
eu, mas era meu jeito. Se ia fazer algo, que fosse bem-
feito, ainda mais quando esperavam tão pouco de mim.
Acordei naquela manhã e corri para o banheiro, me
sentindo muito mal. Passei a noite toda revirando na cama,
com uns calafrios, dores no corpo e com o estômago
incomodando. Precisei me levantar várias vezes, inquieta,
mas naquela manhã a sensação era ainda pior.

Entrei no chuveiro, com água quente, ainda


tremendo e me sentindo muito fraca. Escovei os dentes
para limpar a boca do gosto ruim que sentia e tentei me
arrumar da melhor forma possível. Meu rosto estava pálido,
então coloquei um pouco mais de maquiagem, apostei em
uma cor mais viva na roupa e prendi os cabelos em um
rabo de cavalo longo.
Havia uma babá cuidando de Simon, então fui beijá-
lo antes de sair, especialmente porque não fiquei com ele
tanto tempo na noite anterior quanto gostaria. Ainda assim,
meu bebê me recebeu bem como sempre, e eu o levei lá
para baixo, para nos acompanhar no café da manhã como
sempre.
Kane já nos esperava, e eu poderia jurar que minha
cara estava pior do que imaginei porque assim que me viu
ele reparou.

— O que aconteceu? Você está bem? — perguntou,


parecendo verdadeiramente preocupado, enquanto se
servia de um pedaço de bolo.

Por mais maravilhoso que eu soubesse que era


aquele café da manhã, foi o suficiente para embrulhar meu
estômago.

— Não muito — respondi, entregando Simon para a


babá que o colocou na cadeirinha. Normalmente era eu
que fazia tudo isso, porque não queria que meu filhinho
fosse negligenciado ou criado por uma babá, mas naquele
dia eu realmente precisava que alguém me ajudasse com
ele, porque estava me sentindo até sem forças. — Acho
que comi algo que me fez mal.

— Você não tem se alimentado direito. — Ah, ele


tinha reparado? Era até atencioso de sua parte.

— Não, mas vai passar.


— Deveria ficar em casa.
— Tem muita coisa para fazer. A gente nem
começou a ver ainda os detalhes do evento.

— Não, porque estamos te esperando — Kane falou


entre uma garfada e outra.

— Não quero atrasar ninguém.


— Bobagem. Não fique tão na defensiva, Iohanna.
Acho a sua ideia de passar um tempo em cada setor muito
boa, e até os diretores concordaram com isso.

— Gordon, não.

— Mas aquele babaca não concordaria com


absolutamente nada, nem se o Papa benzesse sua
decisão.

Dei uma risadinha, mas foi o suficiente para me


fazer ficar outra vez desconfortável. A minha cabeça
estava começando a latejar. Ela iria explodir em breve,
tanto que abri minha bolsa e tirei de lá um analgésico,
esperando que ele ajudasse também com a minha dor no
corpo.

Ergui meus olhos e vi que Kane me observava com


uma expressão muito séria.

Desde o dia em que conversamos no banheiro da


casa de Gordon, eu comecei a enxergá-lo com outros
olhos. Por mais que ainda estivesse decidida a manter um
pouquinho do meu ranço intacto, para preservação, era
inegável que Kane era um cara mais legal do que imaginei
a princípio.
Sua intervenção naquele dia me deu um pouco mais
de força, e por mais que não tivesse conseguido falar muito
e me impor a Gordon, consegui aguentar firme o resto do
jantar sem sair correndo como uma covarde.
Decidi ignorar seus olhares para mim, e fomos para
o carro, depois de eu me despedir de Simon com um
beijinho – até Kane já fazia isso, porque o menino vinha se
apegando a ele, sem saber que era seu pai.

Partimos para a empresa, e naquele dia nem


conversamos no caminho. Não que a gente se aventurasse
em assuntos muito diferentes – normalmente falávamos
sobre coisas da Sweet Haven mesmo. Só que eu não
estava com paciência para falar, e conforme as dores iam
piorando, me sentia mais e mais rabugenta.
Ao menos, como não tinha comido nada, não
precisava correr ao banheiro.

Fiquei horas e horas assim, ouvindo as pessoas


falando comigo e não conseguindo absorver nada. Era o
setor mais importante para conhecer; as pessoas com
quem precisava ser mais simpática de todas, e a reunião à
qual estávamos participando tinha como um dos assuntos
o calendário do ano e a definição da data verdadeira da
visitação à fábrica.

Kane estava comigo, ao menos, além de Chelsea, o


que me dava uma sensação de segurança, de
familiaridade.
— O que você acha, Iohanna? — Tinha pedido que
todos me chamassem pelo primeiro nome, porque eu
achava Srta. Ward muito formal.
Quem estava falando naquele momento era uma
das meninas do setor. Com aquelas pessoas fora mais
fácil, porque eu sabia que havia muita fofoca dentro da
empresa – como em qualquer outra –, e já tinha chegado
nos ouvidos de muitos que os funcionários estavam se
dando bem comigo. Isso gerou menos hesitações da parte
deles, e eu fui ficando um pouco mais à vontade.

O problema era que eu não fazia ideia do que eles


estavam falando. Não tinha prestado muita atenção na
conversa, o que eu sabia ser uma enorme falha.
Lancei um olhar meio desesperado para Kane, mas
não havia nada que ele pudesse fazer por mim, porque
também não sabia o que estava acontecendo.

— Perdão, eu hoje estou um pouco...

— Relapsa? — uma voz cochichou. Uma voz


masculina, e outro cara ao lado também pareceu divertido
com o comentário.

— Não, não é isso... eu só... — O que eu poderia


dizer? Que estava passando mal? Não pareceria uma
desculpa muito esfarrapada? Uma saída muito
conveniente?

Eu sempre pensava demais nas coisas... sempre


remoía minhas próprias ideias, especialmente em
ambientes hostis.
Talvez se eu só levantasse, passasse uma água no
rosto e tomasse mais um remédio... quem sabe as coisas
não melhorassem e eu conseguisse prestar mais atenção
ao que era dito?

Se estava na empresa, me propondo a trabalhar, eu


não podia fazer corpo mole. O que iriam pensar? Se já não
me aceitavam bem, claro que iriam usar minha fraqueza
contra mim.

— Vocês me dão um minuto? Eu só preciso... —


Nem sabia o que precisava, para ser sincera. Mas iria um
pouco ao banheiro para me recuperar.

Só que quando cheguei à porta da sala de reuniões,


segurei a maçaneta e vi tudo girando.

Sabia que iria desmaiar, e tudo o que eu não queria


era fazer isso na frente dos outros, muito menos as
pessoas daquela empresa, mas cambaleei e apenas me
deixei levar.
CAPÍTULO TREZE

Desde o momento em que Iohanna se levantou,


percebi que havia algo de errado com ela. Ou mais errado
do que quando saímos de casa, porque claramente estava
muito pior do que queria dizer.

Eu tinha muito pouca paciência com pessoas


teimosas, embora fosse uma – enfim, a hipocrisia –, mas
compreendia os motivos de Iohanna para não querer ficar
em casa. Ela estava sendo observada o tempo todo
naquela empresa, por todas as pessoas, mesmo aquelas
que já pareciam aceitá-la. Era ridícula a forma como nunca
podia fazer nada de errado, por mais que se esforçasse
todos os dias muito mais do que a maioria.
Algumas pessoas que começaram com o pé atrás
com ela já tinham mudado de opinião, o que não era de se
estranhar, levando em consideração seu trabalho duro, sua
simpatia e o jeitinho doce de ser. Eu mesmo já tinha sido
facilmente dobrado e nem tinha nada a ver com sua
aparência. Ainda assim, sentia que Iohanna iria continuar
se entregando de corpo e alma ao trabalho para ser aceita
e respeitada.

Percebia que parara de sair para almoçar comigo e


que sempre chegavam embrulhos de lojas que não
vendiam exatamente comida. Ela estava se afundando em
lanches, sanduíches e doces para se manter com a
energia aceitável. Funcionando, mas por aparelhos.

Afastei minha cadeira da mesa no momento em que


parou diante da porta, então quando começou a cair, eu já
estava ao seu lado, perto o suficiente para segurá-la antes
que despencasse no chão.

— Ah, meu Deus, o que houve com ela? — uma das


funcionárias perguntou, exasperada. Ajeitei Iohanna nos
braços, pegando-a no colo, sentindo-a ainda mais pálida e
a testa suada, embora estivesse gelada.

— Acho que ela não anda se alimentando muito


bem. Vou levá-la ao hospital. Continuamos amanhã, ok?
Fui saindo da sala carregando uma lânguida
Iohanna nos braços, e Chelsea se aproximou de nós,
preocupada.

— Eu sabia que ela não estava bem, mas insistiu! —


a secretária comentou, vindo atrás de nós, para me ajudar.

— É, ela sabe ser teimosa quando quer. — Eu nem


a conhecia direito, mas já tinha percebido aquele pequeno
detalhe de sua personalidade.
Chelsea desceu no elevador, e eu fui observando as
pessoas olhando para nós com curiosidade, cochichando,
pensando no quanto Iohanna ficaria mortificada ao saber.
Ainda assim, o que eu poderia fazer?

Fui ajudado a colocá-la no carro e assumi o volante,


apressando-me para partir para o primeiro hospital da
cidade.

Ela despertou quando já estávamos quase


chegando, levemente desorientada.

— O que aconteceu?

— Você desmaiou. Estou te levando para o hospital


— expliquei, esticando a mão para tocar a dela. Parecia
um pouco menos fria, embora ela tremesse.

Sem hesitar, fui desafivelando o cinto de segurança


para tirar minha jaqueta. Precisei usar o joelho por alguns
instantes para manter o volante sob controle e a entreguei
a ela, para que a colocasse. Fiquei observando seus
movimentos lentos, enfiando-se sob o tecido de couro
como se fosse um cobertor.
— Está com dor? — perguntei, percebendo as
caretas que fazia. Iohanna assentiu. — Por que não
avisou? Deveria ter ficado em casa.

— Tudo o que construí nesses últimos dias iria por


água abaixo.

— Eu avisaria às pessoas que está doente.


— Não sabia se iriam acreditar. É muito difícil estar
numa posição como a minha, Kane, em que tenho que
provar o tempo todo que não quero só ganhar dinheiro,
como estou disposta a trabalhar.

Fiquei calado. Seria impossível discutir com ela,


porque estava certa. Era um argumento válido, mas por
mais que compreendesse, não podia corroborar com sua
decisão, principalmente quando colocava a saúde em
risco.

Eu não deveria me importar, mas... porra! A garota


estava do meu lado todos os dias, morava debaixo do
mesmo teto que eu, sem contar que tinha um filhinho que
precisava dela. Era difícil não... me apegar.

Seria essa mesmo a palavra? Eu estava apegado?

Péssima escolha.
Continuei dirigindo até chegarmos ao pronto
socorro. Dei a volta para abrir a porta para ela e a vi ainda
parecendo muito frágil.

— Quer que eu te carregue? — indaguei, mas ela


negou com a cabeça, com toda a veemência.

Ajudei-a a saltar e fomos caminhando até a porta.


Ela não queria ser carregada, mas aceitou a cadeira de
rodas que uma enfermeira ofereceu, o que me indicava
que realmente não estava bem.

Foi levada à área de emergência, onde uma ficha foi


preenchida, e ela recebeu o atendimento inicial, onde
mediram sua pressão, checaram temperatura e fizeram
perguntas.

Não passamos muito tempo por lá, porque o


diagnóstico foi rápido: ela estava com uma gastroenterite,
uma infecção intestinal. Claro... algo que comera lhe fizera
mal.

Voltamos para casa, e eu a acompanhei até seu


quarto, ajudando-a a se deitar. Não passava muito de uma
da tarde, e eu sabia que precisava comer, mas, medicada,
ela provavelmente tinha mais era que descansar.

Estava decidido a deixá-la sozinha, mas chamou


meu nome.

— Pode ficar um pouco comigo? — pediu com uma


voz frágil, o que me surpreendeu.
Em resposta, puxei uma cadeira para perto da
cama, sentando-me e me acomodando, fazendo o que me
pedira.

— Você sabe o que meu pai fazia quando eu estava


doente? — ela indagou, com os olhos fechados e com um
sorriso melancólico na boca.
— Não faço a menor ideia. Contanto que não seja
cantar, porque apesar de ter muitos outros talentos, uma
boa voz não é um deles, posso tentar ajudar.

Iohanna riu.
— Não, ele também não cantava bem. O que ele
fazia era me contar uma história. Sei que é bobo, vários
pais fazem isso, mas todas as que criava se passavam no
reino de Sweet Haven.
— Você realmente era uma garotinha fanática.

O que deveria me deixar com uma pulga atrás da


orelha, não? Se ela realmente tinha tanto amor pela fábrica
daquele jeito, por que eu não poderia pensar que sua
aparição na minha família fora mesmo toda planejada
desde o início? Como não acreditar que se aproximara do
meu pai para seduzi-lo? Não importava se o pequeno
Simon não era filho dele; mas toda a estratégia poderia ter
sido montada. Por mais que não parecesse uma mulher
ardilosa, as aparências costumavam enganar.
Só que não era hora de ficar pensando nessas
coisas, ainda mais porque a moça estava doente. Minhas
desconfianças precisavam ser deixadas de lado, ao menos
naquele momento.

— Eu sempre fui apaixonada — Iohanna continuou


sorrindo, sem ver malícia no meu comentário. Para ser
sincero, realmente não usei nenhum tom de segundas
intenções, mas algo me dizia que começava a ter um
pouco mais de confiança em mim, ao menos naquele
assunto.
— Mas como eram essas histórias?
— De todo tipo. Com princesas, dragões, bruxas,
magos, cavaleiros de armadura... Em algumas delas eu
imaginava você como o príncipe...
Franzi o cenho com aquela informação. Ela... me
conhecia?

Não adiantava perguntar muita coisa, porque


Iohanna parecia grogue, o que era explicável, é claro, por
causa da medicação. Sem dúvidas aquele comentário fora
feito de forma inconsciente.
— E você era a princesa? — joguei, esperando
colher as informações.

— Sim... eu era. Fiquei pensando nessas histórias


por muitos anos...

Mais uma prova de que ela poderia mesmo ter uma


obsessão por nossa família. Por mim, talvez?

Merda! Eu não queria voltar a pensar tão mal dela.


Não queria ficar tentando entender... Só que era
impossível, dadas as circunstâncias.
— Me conta uma história? — pediu de um jeito
muito doce. Se eu focasse naquela voz, no rosto angelical
parecendo tão sereno e vulnerável, poderia voltar a pensar
que se tratava só de uma garota que passara por maus
bocados na vida, com um homem que a abandonara com
um bebê, e que tivera a sorte de cruzar o caminho do meu
pai, que a ajudara quando precisara.
Por mais que eu não fosse muito bom em acreditar
em coincidências. Por mais que, se juntasse as peças, o
quebra-cabeças seria montado de uma forma muito
suspeita.

— Não sou muito bom nisso.

— Não importa. Use a imaginação. Sempre aparece


algo interessante.

— Ok... eh... — Hesitei, meio perdido, chegando a


coçar a sobrancelha, sem saber nem por onde começar.

Como começavam histórias como aquela?

— Era uma vez uma princesa, que sonhava em ser


dona do mundo dos doces...

Então a história foi tomando proporções que até me


animaram. Falei sobre uma bruxa malvada que queria
colocar fel nos doces, e essa era a missão da princesa,
com ajuda de um mago muito poderoso – que eu descrevi
como um jovem bonito e com um ar rebelde, cínico e meio
canastrão.

Não consegui chegar ao final, porque Iohanna


dormiu. Na minha imaginação, porém, havia um beijo antes
do felizes para sempre.

Só que, na história, o mago não desconfiava da


princesa.

A realidade era bem diferente da fantasia, e era isso


que eu precisava ter em mente.
CAPÍTULO QUATORZE

Tateei a mesinha de cabeceira do lado da minha


cama, pronta para ver que horas eram no meu celular, só
que não o encontrei ali.

Claro que não. Eu nem sabia onde estava a minha


bolsa, porque fui levada ao hospital inconsciente e nem a
peguei.

Levei aquela mesma mão à testa e a senti fria. Sem


febre.

Também não estava mais com tanto frio, embora


ainda sentisse meu corpo dolorido e meio sem forças.

O quarto estava escuro, o que me dizia que já era


noite e que eu tinha dormido por muitas horas. Ainda
assim, havia uma luzinha ligada, que supus ser a da suíte,
que eu sempre deixava acesa à noite, para poder me
orientar.

Alguém a tinha acendido, sabendo que eu fazia isso.


Ajeitei-me na cama e comecei a olhar ao meu redor,
surpreendendo-me ao olhar para o lado e perceber que
não estava sozinha. A forma longilínea de Kane
encontrava-se esticada na cadeira, com os ombros largos
parecendo em um ângulo um pouco desconfortável. Mas
não era só isso.
Meu bebê repousava sobre seu peito, dormindo
também, e ele mantinha um braço protetor ao redor dele.

Fiquei parada por alguns instantes, olhando para a


cena e me esforçando muito para não desmoronar. Só que
como era possível me manter imune à imagem de pai e
filho tão conectados, por mais que não soubessem que
eram sangue do sangue um do outro?
Meu garotinho parecia tão aconchegado, tão seguro,
tão confortável, que tive até medo de me mexer e fazer
muito barulho, acordando-os. Ao mesmo tempo sentia uma
enorme vontade de pular da cama e me aproximar,
arrancando a criança dali. Eu sabia que isso não poderia
acontecer, mas temia que algum tipo de ligação
sobrenatural avisasse Kane de que aquele garotinho lhe
pertencia.

Antes, porém, que eu pudesse tomar uma decisão,


o homem acordou.

Apesar de ainda estar um pouco desorientado do


sono, ele não descuidou da segurança do bebê, porque
sua mão enorme se fixara mais ainda nas costinhas de
Simon, ajeitando-o e levando-o junto quando se posicionou
melhor na poltrona.

O neném não acordou de imediato, mas Kane se


voltou para mim. Mesmo sob a fraca luz que iluminava o
quarto, consegui perceber a intensidade daquele olhar e
quase balancei diante dela.

Sabia que tínhamos conversado um pouco antes de


eu pegar no sono, e me conhecia muito bem quando
tomava aquele tipo de remédio. Já tinha falado coisas bem
absurdas naquele estado, então comecei a temer que
pudesse ter revelado segredos que não queria.

Mais ainda, inclusive, por ver os dois ali juntos, tão


próximos, em uma cena tão doce.

— Acho que dormi por muito tempo, né? — joguei,


esperando que suas respostas me servissem como pistas.

— Sim. Horas... — Ele estava monossilábico


demais. Também podia sentir alguma desconfiança
naquele mesmo olhar que me pareceu intenso no momento
em que o vi.

— Você ficou aqui o tempo todo?

— Não. Fui pegar Simon há uma hora mais ou


menos. Eu o trouxe para cá, porque a babá disse que ele
já entende a hora que você chega em casa do trabalho e
estava sentindo sua falta. Acho que se cansou de esperar.

Kane se levantou e veio até mim, sentando-se na


cama.
— Está bem para pegá-lo?

— Sim, estou. — Era o que eu queria. Mais do que


nunca, desejava estar com meu garotinho nos braços.

Acomodei Simon no meu colo, fazendo todo esforço


para não acordá-lo. Só que aquele garotinho tinha um
soninho de pedra.
Ele estava cada vez mais pesado, e eu imaginava
que daqui a alguns meses, talvez, fosse ficar mais e mais
complicado mantê-lo daquele jeitinho. Sendo assim,
precisava aproveitar ao máximo a proximidade que só uma
mãe consegue ter com um filho.

Lancei um olhar para Kane e o percebi olhando para


nós. Eu ainda tinha a impressão de que ele estava um
pouco estranho. Mas se tivesse descoberto que era pai de
Simon, já teria dito algo, não?
— Está tudo bem? — não resisti.

— Eu que deveria perguntar isso, né? — Kane


colocou um pouco de humor em sua voz, mas ainda não
parecia o cara leve que se sentara do meu lado em um
banheiro e que me dera um doce, da forma mais gentil
possível, só para me fazer sentir melhor.
— Ainda não estou cem por cento, mas melhor do
que antes.

— Do jeito que você estava péssima? Não sei se


isso é grande coisa.
— Acho que, além do problema físico, também
estou preocupada com as coisas na empresa. Muita gente
viu?

Kane hesitou. Ele nem precisava falar nada, tanto


que fechei os olhos e respirei fundo.

— Você não tem culpa, Iohanna.


— Sei que não, mas era tudo o que eu precisava...
— Simon se remexeu nos meus braços, acordando.

Estava prestando atenção no meu bebê quando


senti a mão de Kane no meu braço, gentil.
— Pare de se preocupar com essas coisas. Você
não precisa convencer ninguém. A posição é sua. Não
importa o que eles pensam.

Fiquei calada, porque não tinha o que dizer. Ele


estava certo, mas eu também não ia ficar discutindo sobre
meus problemas com autoestima ou com minha
necessidade de agradar os outros e de ser aceita. Era algo
que precisava ser tratado, mas na terapia; não numa
conversa com um homem que provavelmente seria, algum
dia, assunto de uma sessão com uma psicóloga.
Simon acordou animado, e ele abriu um sorriso tão
grande ao me ver, que eu poderia facilmente esquecer de
qualquer dor ou qualquer dificuldade pela qual estivesse
passando só de ver aquela carinha linda me olhando como
se eu fosse a melhor coisa do mundo.

Para mim, ele era.


Meu bebê fez algumas gracinhas, ergueu as
mãozinhas e começou a se movimentar, o que me obrigou
a colocá-lo na cama. Acordou no 220, pulando no colchão
e tocando o terror.
— Garotinho elétrico, hein! — Kane falou com um
jeitinho muito doce, como ele sempre começava a falar
com meu filho.

O filho dele também, na verdade.

— A tendência é piorar. Ou melhorar. Quando ele


começou a andar, fiquei com medo, porque é um pouco
assustador, sabe?

— Sofreu com as quedas?


— Cada uma delas.

Kane lançou um olhar para Simon, com um sorriso


quase nostálgico no rosto. Não parecia mais tão
desconfiado, embora nem sequer parecesse com o mesmo
cara de antes.

Conforme ficávamos em silêncio, eu fui me


perguntando: como ele não percebia? Como não reparava
que havia uma semelhança absurda? Como não notava,
inclusive, que com a convivência os dois iam ficando mais
e mais parecidos? De alguma maneira, Simon começava a
espelhar o pai em mais do que apenas o rosto. Ele seria
uma cópia de Kane quando crescesse, e eu esperava que
não saísse partindo o coração de garotinhas por aí.

Não como o pai dele partiu o meu.


Kane brincou um pouco com Simon, que ficou doido
com a atenção, então se levantou depois de alguns
instantes em silêncio. Pensativo, meio caladão.
— Vai jantar? — perguntou enquanto se
encaminhava para a porta.

— Não sei. Ainda estou um pouco enjoada.


— Precisa comer.

— Qualquer coisa eu desço.


— Tudo bem. Vou falar com Bethie para colocar o
seu lugar.

Assenti e o observei sair do quarto, fechando a


porta, deixando-me sozinha com Simon.
Olhei para o meu bebê, soltando um suspiro,
pensando quando foi que eu achei que aquela história iria
se desenrolar de uma maneira simples?

Muito boba eu era.


CAPÍTULO QUINZE

Ela não desceu naquela noite.

Nem nas próximas, para ser sincero. E eu sabia que


ela estava melhor. Isso começou a me intrigar.
Ok, não era nenhum segredo que a garota tinha um
ranço memorável em relação a mim, mas não era possível
que não tolerasse sequer fazer uma refeição ao meu lado,
em minha companhia por menos de uma hora. Jurei que
estávamos nos dando um pouco melhor, por conta das
questões da Sweet Haven, mas estava enganado.

Bem, a vida precisava seguir, não é mesmo?

Fartei-me da comida deliciosa e me alonguei na


cadeira, esticando os braços e me sentindo um pouco
entediado. Ainda estava cedo, e eu poderia dar uma volta
pela cidade ou nos arredores, entrar em um bar, conhecer
uma garota, dar uns amassos e parar em um motel
qualquer. Não seria novidade na minha vida, embora
fizesse algum tempinho desde a última vez.
Esse tipo de coisa passou a perder a graça, o que
era, sem dúvidas, muito surpreendente para alguém que
não passava uma única semana sem sexo.
Levantei-me da cadeira, tentando pensar em algo
para fazer. Comecei a pensar na história que contei para
Iohanna, no outro dia, e me condenei por não ser um leitor
mais assíduo. Talvez fosse interessante pegar um livro da
estante farta do meu pai e passar algumas horas da noite,
sentado confortavelmente lendo.

Sim, era um bom plano.

Começando a colocá-lo em prática, peguei as


escadas da casa, tão distraído e pensativo, com as mãos
no bolso da calça de moletom que usava, que mal reparei
em Marybeth descendo, com algumas roupas no braço. No
meio delas havia um brinquedinho de pelúcia, que caiu no
chão.

— Menino! Quase me mata de susto! — reclamou.


Para a nossa sorte, ela não tinha ainda pegado os
degraus. Estava no topo da escada. Não me perdoaria se
ela se desequilibrasse e caísse.

Agachei-me, então, pegando o bichinho, mas


olhando para ele.

Era um hipopótamo azul, com olhinhos doces e


orelhinhas redondas. Uma carinha simpática me fez sorrir,
não só pelo brinquedo ser adorável, mas por imaginar
Simon com ele.
O garotinho era, de fato, uma coisinha fofa.

— Desculpa, Bethie. Estou mesmo distraído. Você


quer ajuda para carregar isso tudo?

— Não. Está leve. São as coisas do pequeno. Esse


bichinho está imundo.

Segurei a pelúcia contra o rosto dela, ameaçando


encostá-lo no seu rosto, sabendo que ela tinha uma grande
mania de limpeza.

Eu era bastante implicante quando queria ser.

— Ah, garoto! Me poupa, né? — Dando-me por


vencido, coloquei o brinquedo sobre a pilha de roupinhas.
— Já estava indo dormir?

— Não, vou ler um pouco. O quarto do meu pai está


aberto? Queria pegar um livro lá.

— Está sim.

— Acha que tudo bem se eu entrar? — perguntei,


colocando novamente as mãos nos bolsos e encolhendo
os ombros, sem nenhuma confiança naquele quesito.

Marybeth suspirou.

— A casa é sua agora, querido. Você não precisa de


permissão para entrar em lugar algum. Só que é dela
também. E de Simon. — Claro que eu sabia a qual “ela”
Bethie estava se referindo.
Queria me manter firme na certeza de que aquela
história ainda estava muito mal contada, mas não podia
mais manter o mesmo discurso. Seria muito mais fácil me
ater à ideia de que ela era uma golpista, mas isso
começava a se tornar um pouco mais frágil.

Só que lobos em pele de cordeiro existiam, e esse


pensamento ainda me perseguia.

Dei um beijo na cabeça de Bethie, sem lhe


responder nada, e fui seguindo para o quarto do meu pai.
Era o último do corredor, a suíte master da casa, e eu
sabia que poderia ocupá-la, se quisesse, mas não
conseguiria me desfazer de tudo que lhe pertencia e muito
menos me inserir naquele espaço que lhe pertencera por
tantos anos, que ele chegara a dividir com minha mãe.

Era um antro de mais e mais lembranças, e eu não


queria participar de nenhuma delas. Ao menos por
enquanto.

Meu plano era entrar, escolher um livro e sair. Não


queria ficar olhando para nada, mas ao tropeçar em uma
falha do piso, lembrei-me da especificação do testamento
de que deveríamos reformar a casa. Com todas as
confusões da fábrica, isso ainda nem tinha passado pela
minha cabeça. Provavelmente nem pela de Iohanna.

Para um expectador desatento, a casa pareceria


intacta. Com exceção de algumas falhas normais na
pintura, uma ou outra marca de infiltração, nada precisava
ser modificado com pressa. Só que eu já tinha visto as
manchas nos tapetes. As imperfeições nos móveis. O
ranger das portas que precisavam de óleo. Algumas coisas
quebradas, e provavelmente alguns encanamentos
necessitavam de conserto.

Também pensava que ela merecia uma


modernização. Se quiséssemos vender, no final de tudo...

Esse pensamento fez meu coração se apertar no


peito.
Vender a casa que eu tanto amava... A casa dos
meus pais. Onde cresci...

Mas talvez fosse um passo adulto a se dar, não? Eu


não morava mais ali, minha estadia seria temporária. Para
quê me serviria uma propriedade tão grande?
Se Iohanna quisesse mantê-la, poderíamos negociar
a minha parte e vendê-la, mas imaginava que poderia
convencê-la, levando em consideração o quanto ganharia
com a venda, principalmente se estivesse reformada.

Era uma conversa que precisaríamos ter em algum


momento.

Mas não naquela noite, sem dúvidas. Principalmente


porque ela não se dera ao trabalho sequer de descer para
falar comigo.

Minha missão era escolher um título na estante,


partir para o meu quarto e ler até dormir. Com o livro na
cara, de preferência, aquele sono pesado.
Entrei devagar, aproximando-me das prateleiras,
começando a buscar por entre os títulos. Estavam
ordenados por sobrenome do autor, e eu fiquei tentado a
pegar um da Agatha Christie ou um Hemingway.
Algo, no entanto, me chamou a atenção entre eles.

Um livro perdido, sem informações na lombada.


Curioso, peguei-o na mão. Ao abrir, percebi que se tratava
de uma caixa. Dentro dela, havia alguns papéis,
documentos, todos presos com um clipe, com um post-it
escrito: Simon.

Havia um envelope também, com o selo de um


laboratório, o que me dizia que deveria se tratar de algum
exame de paternidade.

Seria mesmo o meu pai o pai biológico daquele


bebezinho?
Seria ele meu irmão?

Fiquei tão inquieto ao pensar nisso tudo que deixei


as coisas caírem no chão, fazendo um baita barulho.

— Merda! — resmunguei, agachando-me para


pegá-las.

A ideia de levar um livro tinha ido por água abaixo.


O que eu queria mesmo era pegar todas aquelas coisas,
escapar dali e descobrir qual era a história por trás daquela
mulher e daquele bebê nas nossas vidas.
Só que o tal ranger da porta velha me pegou no
flagra.

Ergui os olhos e lá estava Iohanna, à soleira,


observando-me.

— O que está fazendo aqui? — ela perguntou, cheia


de decisão.
Levantei-me, retesando as costas, porque não
gostava da vulnerabilidade que a posição na qual me
encontrava me proporcionava.

— Até onde eu sei, é o quarto do meu pai.

— E são as coisas dele. Você não pode mexer sem


permissão.

— Acho um pouco difícil eu conseguir permissão


agora.
Foi uma frase bem babaca, mas uma ironia bem-
vinda. Quem era ela para me dizer o que podia ou não
fazer?

— Mais respeito! — ela reclamou, defensora.

— Eu tenho respeito. É do meu pai que estamos


falando.

— Não pareceu ter muito respeito quando o


abandonou e foi viver sua vida sem nem saber como ele
estava.
Meu sangue esquentou imediatamente. Eu estava
disposto a gostar daquela garota. Mesmo sem saber de
onde surgira, o que fizera na cabeça do meu pai para que
ele se apegasse tanto a ela, queria que nossa convivência
fosse boa. Mas ela estava dificultando as coisas.

Dei alguns passos à frente, colocando-me diante


dela, bem próximo.

— Não sabe nada sobre mim! — cuspi as palavras,


irritado.

— Sei alguma coisa. E o que sei não me agrada.


Sendo assim... — Ela se agachou, reunindo o que tinha
deixado cair, colocando tudo dentro da caixa e agarrando-a
contra o peito. — Acho melhor parar de mexer no que não
deve.

Dizendo isso, Iohanna foi marchando até a porta do


quarto, saindo dele e desaparecendo com as informações
que estiveram tão ao meu alcance.
É, não era o momento de descobrir a verdade, mas
não iria desistir dela tão fácil.
CAPÍTULO DEZESSEIS

Era estranho morar numa casa com uma pessoa e


tentar evitá-la. Em minha defesa, Kane também estava
fazendo isso. Quando percebia que eu já estava à mesa,
comendo sozinha, não vinha me fazer companhia, e eu
também desaparecia quando era ele em qualquer refeição.

Por vezes tive que assaltar a geladeira à noite, só


para não ir dormir sem jantar.
Na hora de sair para o trabalho? Ele ia no carro
dele, e eu ia com o motorista da casa, o que era um
desperdício de combustível e uma afronta ao meio-
ambiente.
Ainda assim, nenhum dos dois parecia disposto a
ceder.

Até aquele momento, conseguimos nos evitar na


empresa também. Foram quatro dias, desde nosso
encontro no quarto do Sr. O’Roark, depois da discussão,
em que Kane precisara participar de reuniões externas, e
mesmo quando estava dentro da fábrica, ficamos mais em
nossas salas.

Ah, sim... eu tinha uma sala. Chelsea ficava comigo,


como minha secretária, mas para ser sincera era mais
como minha professora, porque estava me ensinando
absolutamente tudo.

Naquela tarde, a minha sorte de não precisar ficar


perto de Kane acabaria. Teríamos que participar de uma
reunião juntos, mas uma daquelas com toda a realeza da
Sweet Haven, que tanto me intimidava.

Eu estava literalmente em pânico.

Faltavam dez minutos para eu precisar sair da


minha sala e partir para a de reunião quando Chels bateu
na porta. Eu estava com a caneca de café na mão. Era,
provavelmente, a quinta do dia, e não eram nem dez da
manhã ainda.

— Meu Deus, que cara é essa, garota? — ela


perguntou, vindo até mim.

Era uma presença reconfortante, e eu agradecia por


cada dia que aquela mulher passava ao meu lado na
empresa. Não só me transmitindo conhecimentos, mas
sendo uma fonte de gentileza e me proporcionando um
ambiente de trabalho mais saudável.

— Estou em pânico.

— Por quê?
— O desastre que foi a outra reunião... eu não sei
lidar com aquelas pessoas, Chels. Eles vão me comer viva.

— Você está mais preparada agora. — Ergui a


cabeça para ela, sabendo que meus olhos deviam estar
suplicantes. Tudo o que eu queria era sumir dali e voltar
para casa. Mas para a minha casa. Com tia Agnes. Com a
minha vidinha de antes, mesmo sem dinheiro. Era melhor
do que ser humilhada.

— Será que estou?

Chelsea suspirou, respirou fundo, e se aproximou,


segurando minha mão.

— Não importa o que eles pensam, querida. O Sr.


O’Roark queria que fosse assim, e ele não era do tipo que
julga mal as pessoas ou que dá oportunidade para
qualquer um.

— Ele não teve escolha. É o neto dele — falei em


um tom de voz baixo, esperando que ninguém nos ouvisse.

— Tinha, sim. Poderia ter dado o dinheiro ao


menino, mencionado Simon no testamento, mas deixado
só Kane trabalhando aqui. Se ele te colocou foi porque viu
algum potencial. Precisa honrar a vontade dele.

— É o que eu tenho feito desde que aquele


testamento foi lido. Tenho anulado todas as minhas
vontades por isso. E não estou reclamando, porque ele fez
muito mais por mim do que imaginei que alguém fosse
fazer, com exceção da minha tia.
— Você vai ver que não será em vão.

Eu esperava mesmo que não fosse.

Chels me acompanhou até a porta da sala, e teria


me acompanhado até o local da reunião, mas eu pedi que
não fizesse isso. Seria como se ela estivesse tentando me
proteger, e eu precisava ser uma adulta. Grandinha.
Corajosa.
Fui repetindo esse mantra até estar diante da porta.
No momento em que entrei, erguendo a cabeça e me
sentindo extremamente confiante...

Os olhos das pessoas que já estavam lá fizeram


toda a minha confiança se esvair, como água sendo
sugada pelo ralo.
Eles me odiavam.

— Bom d-dia — gaguejei. Merda! Por que eu não


conseguia me colocar diante deles como a chefe que Kane
insistira que eu era?

Aliás, ele não estava presente. Eu estava pontual,


então imaginei que haveria um atraso, mas decidi usar isso
como assunto com as outras pessoas, antes que eu
começasse a ficar ainda mais nervosa com o silêncio.

— Kane não vem?


— Ele está preso em uma visita a um cliente, numa
cidade próxima, disse que vai se atrasar um pouco e pediu
que comecemos sem ele. — Quem respondeu foi Jennifer
Drew, uma das gerentes, mas que era a mais educada
comigo.

— Tudo bem. Então eu queria já começar


apresentando algumas ideias que tive. — Quase me
desequilibrei ao me acomodar na cadeira, ajeitando a saia
sob o corpo e esperando agir de forma natural e graciosa.

No final, podia jurar que estava parecendo uma


pata.
— Ideias? — Gordon, é claro, fez uma cara feia. Já
imaginava que ele sempre seria uma pedra no meu sapato.

— Sim... umas coisas que eu pensei.


Gordon deu uma risadinha sarcástica, quase como
se quisesse me fazer acreditar que ele não acreditava que
eu fosse capaz de pensar.

Eu iria ignorá-lo.

— Primeiro de tudo, não concordo com a ideia de


cobrar ingressos para o tour à fábrica. — Ele mesmo iria
começar a reclamar, daquela vez com alguns apoiadores,
só que eu ergui um dedo, tirando coragem sem nem saber
de onde, impedindo-o. — Talvez este seja o último de
todos, então acho que precisa ser especial. Podemos fazer
uma festa, para que mais pessoas compareçam às
instalações no dia, mas precisamos manter o sorteio. E
podemos fazer como aconteceu no filme, da Fantástica
Fábrica. Podemos colocar um cupom dentro de alguns
doces, e então as crianças...
— Srta. Ward, por favor... — Gordon começou,
cheio de desdém, ainda rindo. — Precisa entender que
chegou outro dia no mundo dos negócios. Não é a sua...
praia, como dizem os jovens.
Jovens? Aquela “gíria” não era falada há umas boas
décadas.

— Não vai ser viável colocar esse ingresso, como


disse. Isso só acontece nos filmes. Teríamos que fazer isso
manualmente. Sem contar que nossos produtos são
exportados internacionalmente. E se uma criança de outro
país recebe? Teríamos que pagar as passagens?

— E se acontecer? Garanto que não vai ser um


prejuízo tão grande para a empresa. Sem contar que
podemos separar os lotes. É possível fazer isso, não é? —
Voltei-me para o gerente do setor que cuidava dos
produtos em si, e ele assentiu, ganhando um olhar de
repreensão de Gordon.

— Você não pode querer se enfiar nos nossos


negócios dessa forma, garota. Nem conhece direito a
empresa. Garanto que nunca leu o livro do Finn, contando
sua história.

— O que isso tem a ver?

— Tudo a ver! É uma biografia completa, contando


como fez tudo isso crescer. Sabe há quantos anos exatos
fazemos essa visita? Quantas crianças já passaram por
aqui? E o principal: o quanto elas trazem de lucro? Isso eu
te respondo agora, porque é zero. Finn era um coração
mole e, que Deus o tenha, era como um irmão para mim,
mas seu conhecimento de negócios era arcaico. Nós
salvamos a Sweet Haven dia após dia.
Fui olhar para os rostos das pessoas, vendo que a
grande maioria concordava, assentindo e balançando a
cabeça. Com exceção de Jennifer e de um outro
coordenador, ninguém estava do meu lado.

Eu deveria ter me posicionado e mantido a firmeza


das minhas decisões, mas me encolhi. Morria de vergonha
de não me sentir mais forte, mas estava fora do meu
controle.

Sendo assim, comecei a ouvir ideias de outras


pessoas, até que Kane chegou e começou a participar
também.

Ele me vira calada, remexendo na caneta que


estava na minha mão sem parar, porque simplesmente não
conseguia ficar com as mãos paradas. Seus olhos se
voltavam para mim a todo o momento, de soslaio, com seu
cenho franzido, e quando saímos da sala de reunião, assim
que terminamos, eu apenas fugi dele e de todos os outros.
Era hora de almoço, mas só peguei minha bolsa e decidi ir
para casa. Queria meu bebê.

Nem mesmo Chels conseguiu me parar.

Eu sabia que, fazendo isso, só estava dando mais e


mais motivos para que falassem de mim pelas costas, mas
eu só queria um pouco de paz.
Antes, porém, de partir para a mansão, parei na
única livraria da cidade e comprei o livro do Sr. O’Roark. Eu
sabia que ele existia, e talvez devesse ter lido antes, mas
tratava-se de uma biografia muito voltada para os
negócios. Nunca tive interesse em ler, porque sempre
julguei que não seria necessário.

Quem diria.
Chegando em casa, dei um beijo em Simon e pedi
que a babá ficasse com ele, porque precisava estudar.
Avisei que não iria jantar, tomei um banho e me enterrei no
livro, com um caderno e caneta do lado, marca-texto e
post-its. Para uma leitora voraz como eu, aqueles eram
itens indispensáveis, mas para estudo eram mais ainda.

Apesar de ser uma história muito teórica, o biógrafo


escreveu de um jeito gostoso, bem contado e muito doce.
A leitura foi fluindo tanto que as horas foram passando e eu
nem vi.

Só interrompi minha concentração quando alguém


bateu à porta.

— Ei, tudo bem? — Kane se materializou na minha


frente, parado diante da porta, olhando pela fresta, como
se esperasse permissão para entrar.

Fazia dias que não nos falávamos, que sequer nos


encarávamos. Por que ele estava ali?

— Sim... tudo bem — respondi com hesitação.


— Certeza? Você não parecia muito bem na reunião
mais cedo. Sem contar que saiu da empresa, e eu nem vi.

Respirei fundo, pensando que eu poderia insistir em


não lhe contar, em apenas fingir que era cansaço, mas ele
era um colega de trabalho. Estava presente na empresa,
no dia a dia, e eu precisava muito de um apoio.

No momento em que ele entrou, fechando a porta


atrás de si e se sentando na minha cama, contei sobre
toda a confusão da reunião mais cedo, quase como se
fôssemos amigos de longa data.

— Agora eu estou lendo este maldito livro, porque


quero saber tudo sobre seu pai, sobre a empresa. Quero
decorar essa porcaria inteira, para jogar na cara do Gordon
Loomis que eu me esforcei.

Kane se levantou, pegando o livro e o folheando.

— Eu li. Duas vezes. Quando lançou e depois que


saí de casa. Queria ver se encontrava algo do meu pai
nestas páginas que me fizesse perceber que ele não era o
cara maravilhoso que sempre julguei que fosse. Mas só
consegui admirá-lo mais. — Kane ficou mexendo no livro
de um lado para o outro, parando na contracapa, onde a
foto do Sr. O’Roark se destacava. Então ergueu os olhos
para mim. — Você não precisa disso, sabe?

— O filho da puta do Loomis falou desse livro hoje.

Kane riu.

— Bela boca suja.


Bela boca... por que isso me remeteu a nossos
beijos do passado? O sorriso de Kane desapareceu
imediatamente, como se ele tivesse pensado a mesma
coisa.

Ainda bem que foi prudente o suficiente para mudar


de assunto.

— Você acha que isso vai ser relevante para seu


trabalho?
— Não sei. Mas confesso que já entendi algumas
coisas só com o que eu li, e não cheguei nem na metade.

— Precisa ser hoje?

— Amanhã, na reunião que teremos, quero estar


mais preparada. Se é isso que ele quer, é isso que ele vai
ter.

Kane continuou me encarando por alguns instantes,


assentindo.

— Então vou te ajudar.

Ele se sentou novamente na cama, abrindo o livro,


pronto para fazer o que prometera.

Eu não ia me fazer de rogada. Se ele queria ajudar,


assim seria. Era bom tê-lo como meu aliado, mais do que
como inimigo.
CAPÍTULO DEZESSETE

Apesar de me sentir um pouco mais confiante do


que no dia anterior – infelizmente um dos motivos era
porque Kane estava presente –, ainda precisei respirar
fundo ao entrar na sala de reuniões, com aqueles olhos de
águia me fitando como se fossem urubus aguardando a
chegada de carniça.

Nós nos acomodamos, e eu novamente me


surpreendi com Kane puxando a cadeira para mim. Na
verdade, ele também tinha me deixado muito confusa no
dia anterior, com a forma como me ajudou com a minha
decisão de estudar mais sobre a Sweet Haven.

Aliás, eu estava exausta. Devia estar mais do que


acostumada a noites maldormidas tendo um bebê ainda
novinho, mas eu me sentia um zumbi. Levemente
estressada. Irritada. Querendo estar na minha cama. Então
meu ódio por aquelas pessoas estava elevado a um nível
tóxico.
Acomodei-me, olhando para Gordon Loomis como
se fosse possível fuzilá-lo daquela forma.

Eu e Kane tínhamos combinado algumas coisas


para que nossos discursos batessem. Contei para ele a
minha ideia da festa, com ingressos pagos, mas que o
sorteio continuasse sendo feito, mas de forma diferente.
Nada de se cadastrar em um site com código de barras,
porque eu sabia que muitas crianças não tinham acesso a
um computador ou um celular de qualidade para esse fim.
O que eu queria era que todos tivessem chance de
participar. Por isso o ingresso vir em doces era algo muito
mais aceitável e inclusivo.

Foi Kane a apresentar a ideia. Só que ele o fez com


uma firmeza que eu nunca seria capaz de utilizar. Ele não
fez uma sugestão. Ele apenas comunicou que aconteceria
daquela forma, usando meu nome como a idealizadora.

Era o tipo de convicção que apenas pessoas que já


nasceram em meio ao poder eram capazes de ter.

— Isso é inviável, Kane. É um projeto arriscado, e


nós estamos em cima da hora! — Claro que foi Gordon
quem apontou isso.

— Arriscados os projetos sempre vão ser. Se


apenas decidirmos realizar coisas seguras, nunca vamos
sair do lugar. Sabem que não é a forma como meu pai
trabalhava.
— Seu pai passou a ser mais conservador nos
últimos tempos...

— Claro. Porque estava cansado e sob a influência


de vocês, que nunca o deixaram ousar. Agora somos duas
pessoas jovens, sem medo do trabalho, querendo mudar.
Não preciso lembrar, mais uma vez, que eu posso até
considerar a opinião de vocês, mas a palavra final sempre
será minha e de Iohanna.

Gordon remexeu-se na cadeira e deu uma olhada


de repreensão para os outros. Ele incitava os colegas a
ficarem contra nós. Principalmente contra mim.

— Não acho que uma moça com um filho pequeno


vá ter tempo para se dedicar tanto quanto estão
prometendo.

Kane ia responder alguma coisa, mas eu me


enfureci de tal forma que reuni coragem. Pretendia me
controlar, mas ele colocou a mão sobre a minha, inclinou-
se na minha direção e falou:

— Fale o que quiser, só não perca a razão.

Aquilo foi suficiente.

Respirei fundo, tentando me controlar, absorvendo


as palavras dele.

— Não acho que a Sweet Haven seja uma empresa


que mereça alguém como você, preconceituoso a ponto de
entender que uma mulher com um filho pequeno pode ser
tão ou mais competente do que qualquer homem. É uma
pena que os pais não tenham o mesmo empenho em criar
os filhos e deixem isso no colo da mãe.
— Ah, claro, mas você não tem um marido para
dividir as tarefas, não é?

Fiquei boquiaberta, pronta para jorrar um monte de


desaforos, mas daquela vez Kane se ergueu da cadeira,
espalmando as mãos na mesa.
— Isso é inaceitável, Gordon. Se não passar a
respeitar Iohanna como ela merece, como SUA CHEFE,
esta foi sua última chance.

Ele abaixou a cabeça, levando duas mãos à


têmpora.
— Perdão. É que eu me preocupo, sabe? A
empresa é tudo para mim, como sei que era tudo para o
seu pai.

— Eu sei disso. Aliás, sei toda a história agora —


respondi, sentindo-me muito boba por contar que fiz algo
só porque aquele babaca me levou a fazer. — Conheci
cada degrau que o Sr. O’Roark precisou percorrer, porque
li o livro. Ontem. Inteiro. Com a ajuda de Kane, separei
informações importantes, que anotei aqui. — Abri o
caderno, sentindo minhas mãos tremerem, não só de
nervosismo, mas de raiva também. Então comecei a relatar
tudo o que aprendi com a leitura do livro. Sobre ano de
fundação, sobre como começou, qual foi o primeiro produto
oferecido, quantos funcionários tinha a fábrica...
Informações irrelevantes para aquela reunião em
específico, mas que me fizeram, de fato, entender melhor a
cabeça do homem que tanto me ajudou. — Exatamente
como Kane falou, antes de vocês, o Sr. O’Roark ousava
mais, era menos contido. E sua missão era fazer crianças
felizes. Tenho certeza de que amaria a minha ideia.
— A missão de Finn era a de todos os empresários:
ganhar dinheiro.

— Não, Gordon. — Kane, ainda de pé, se meteu no


assunto. — Iohanna conheceu meu pai por muito menos
tempo e talvez tenha se empenhado mais em prestar
atenção no livro. Ele era um homem ambicioso, é claro,
mas nunca colocaria ganância acima do amor que sentia
pelo seu negócio. Pelas pessoas que eram fãs da marca.

— Provavelmente nunca teria chegado aonde


chegou sem pensar em lucro — outro dos gerentes
afirmou.

— Claro que não. Nada é um conto de fadas. Mas


não acho que a ideia de Iohanna vá contra o que meu pai
faria em seu lugar. Acho que ele concordaria e ainda daria
todo o incentivo. Sendo assim, como um porta-voz do meu
pai nesta companhia, eu digo que dou carta branca para
ela fazer o que quiser.

Fiquei meio boba olhando para ele. Em meio a todo


aquele caos, nunca me permiti esquecer que Kane fora o
homem que me rejeitara grávida. Ele nem sequer me dera
uma chance de explicar. Mal se lembrava do dia em que
ficamos juntos, não sabia meu nome, nem cogitara a
hipótese de meu filho ser seu também.

Eu deveria odiá-lo, do começo ao fim. Deveria


enxergar apenas a parte podre de seu caráter, em uma
personalidade de Peter Pan; um homem que não queria
crescer; por mais que a convivência dos últimos dias
tivesse me feito enxergar outro lado, um pouco mais
maduro e, sem dúvidas, muito leal.

Talvez fosse uma forma de compensar o que me


causara. Aquela defesa toda poderia ser uma artimanha
para me convencer de que não era um completo babaca.
Mas o que ganharia com isso?

O problema era que ouvi-lo falar, de forma tão


apaixonada, e, principalmente, me defendendo, estando ao
meu lado, literalmente segurando a minha mão, era algo
que mexia comigo. Sem contar, é claro, o quanto o filho da
mãe era bonito.

Ele tinha aquele tipo de boca incomum em um


homem: carnuda, vermelha como um morango,
desenhada. Conforme falava, ela ia se movimentando de
um jeito sensual, principalmente quando discursava,
enchendo seu tom de revolta pela forma como eu estava
sendo tratada. Ao falar do pai, seus lindos olhos verdes
também se enchiam de uma emoção visível. O maxilar
pronunciado se contraía. Um deleite.
Mas a boca... Ainda era um destaque e tanto.
E foi exatamente naqueles lábios que pensei
quando retornamos para nossas salas, e eu fui à de Kane
ao invés de me dirigir à minha.
— Tem algo a me dizer? — ele perguntou, surpreso,
mas não contava que eu iria fechar a porta, colocar as
mãos em sua gola e puxá-lo para mim, colando nossos
lábios.

Eu sabia que Kane mantivera uma bala de menta


por boa parte da reunião; uma da Sweet Haven, por isso
eu conseguia sentir o gostinho na minha língua. Era
refrescante, doce, e delicioso. Não mais do que a resposta
que teve quando percebeu que estava sendo beijado.

Pensei que Kane iria me afastar, que iria dizer que


não fazia sentido, mas demorou apenas breves instantes
para se recompor, e então eu fui imprensada na parede, o
que quase me fez perder o ar. As mãos de Kane tomaram
posse, uma do meu rosto e a outra da minha cintura,
pressionando com força, e eu o ouvi grunhir de leve, contra
a minha boca, enquanto correspondia o contato de forma
ávida.

Levei minhas mãos ao seu peito, sentindo seu


coração acelerar, e por um momento me perdi
completamente na rigidez de seus músculos e nas
habilidades daquela língua incrível.

Lembrava-me dela em outros lugares, mas com a


mesma destreza.
Só que a gente não podia ficar ali, se beijando como
loucos, sem lembrar que havia outras pessoas na empresa
e que precisávamos tomar cuidado. Se eu já era mal falada
e juravam que tinha tido um caso com Finn O’Roark, o que
não fariam ao me ver dando uns amassos no filho dele
que, por acaso, era o novo CEO da empresa.

Tudo bem que eu também estava na posição de


herdeira, não precisava seduzir o pobre rapaz para lhe dar
um golpe, mas aquelas pessoas insuportáveis com certeza
pensariam ainda mais mal de mim.

— Kane! Kane! — fui falando, conforme ele ia me


dando espaço. — A gente precisa parar. Alguém pode
entrar e...

— Porra nenhuma! Nem pensar... — foi tudo o que


ele disse, em um rosnado, antes de chupar o meu lábio
inferior, usando os dentes para mordê-lo de um jeito
delicioso.

O beijo continuou, e nós encontramos cada vez


mais o nosso ritmo, até que nos afastamos e ficamos nos
olhando por algum tempo, os dois ofegantes. Eu sentia
meus lábios inchados, mas ainda desejosos, querendo
mais.

Nunca me senti tão bonita e nem tão desejada.

— O que vamos fazer com isso, Iohanna? — ele


perguntou, rouco, sexy e visivelmente cheio de tesão.
— Não temos que fazer nada. Foi só um beijo. Você
foi incrível lá dentro comigo, então eu...

— O caralho que você vai me fazer acreditar que foi


um beijo de gratidão. E nós dois sabemos que não foi um
beijo qualquer.

— Foi um beijo bom.

— Não foi só bom.

— O que você quer, Kane? Que eu te enalteça?


Uau, você beija muito bem...

— Não. Não é disso que estou falando. Estou


afirmando que nós dois sentimos algo. E não importa o que
você fale, Iohanna, algo me diz que não vai parar aqui.

Ah, ele mal sabia do começo.

Ainda assim, não consegui negar. Só assenti com a


cabeça, novamente me perdendo em seu olhar intenso na
minha direção.

Estávamos fazendo absolutamente tudo errado.


CAPÍTULO DEZOITO

Naquele dia, depois do beijo, foi quase impossível


retomar o nível de concentração para o trabalho. Para
qualquer coisa, para ser mais específico.
Quando ela saiu da minha sala, fiquei olhando na
direção da porta, meio bobo, sem saber o que pensar.

Eu ainda nem tinha noção de quem era aquela


mulher. De como entrara em nossas vidas. Poderia muito
bem estar seduzindo a ex-amante do meu pai, a mãe do
meu irmão. Talvez meu velho estivesse se revirando no
túmulo naquele momento, se sentindo traído.

Por mim e por ela.

Tocara meu coração vê-la tão empenhada em


estudar, porque não queria nem pensar o quão terrível
deveria ser estar no meio de tantas pessoas ansiosas pelo
seu primeiro deslize para te prejudicar.

Ajudá-la foi instintivo, especialmente porque me


sentia pessoalmente incomodado com a forma como
aqueles babacas estavam se comportando com ela.

O que era irônico, sem dúvidas, levando em


consideração que eu também pensava mal dela o tempo
inteiro.

Inclusive, passei aquela noite inteira tentando


entender por que me beijara. Não fora apenas gratidão, e
disso eu tinha certeza. Reconhecia as reações do corpo de
uma mulher e nenhuma delas me fazia acreditar que
Iohanna não se sentira excitada com o beijo, exatamente
como eu tinha ficado também.

O problema era que, junto à certeza de que ela


gostara do que fizemos, vinha a pergunta: o que a
impulsionara? Compreendia gratidão, mas ela poderia ter
feito um milhão de coisas para me compensar. Um beijo no
rosto, uma conversa amigável, companhia no jantar,
tentado uma aproximação amigável em casa... Eram
possibilidades infinitas.

A ideia, no entanto, de que estava tudo muito bem


planejado naquela cabecinha bonita, não era algo muito
absurdo na minha opinião. A obsessão de Iohanna por
nossa família e pela Sweet Haven conectavam
absolutamente tudo. Como não acreditar que sua intenção
era estar exatamente onde estava, mas, mais do que isso:
prender um O’Roark e se tornar a senhora de
absolutamente tudo?
Cheguei a me jogar numa poltrona, no meu quarto,
com isso em mente. Também continuei me virando de um
lado para o outro na cama, mais tarde, sem nem jantar, e
ao mesmo tempo me condenando porque era cruel; porque
a impressão que eu tinha era de que era apenas mais um
filho da puta como os outros que a julgava só por ser uma
mulher bonita e jovem.

Acordei cheio de convicções na manhã seguinte: a


primeira delas era de deixar aquele beijo no passado e
tentar encará-lo apenas como um gesto de gratidão. Não
fora a ideia que Iohanna tentara vender para mim? Então
eu iria lhe dar algum crédito.

Isso durou até, no máximo, oito da manhã, quando a


vi entrar no carro para ir para a empresa, porque nunca
aceitava a minha carona. Depois, novamente me
incomodou quando comecei a vê-la passar pelo vidro das
paredes da minha sala, condenando-me porque, na minha
opinião, ela nunca estivera tão bonita do que com o vestido
bordô que decidira usar, com uma saia que parava pouco
acima dos joelhos.

Usava saltos também. Um sapato com aquele bico


fino elegante, que deixava um homem maluco nos pés de
uma mulher que usava apenas isso em uma lingerie de
renda.

A partir do momento em que isso surgiu na minha


mente, a imagem de Iohanna de calcinha e sutiã, usando o
maldito sapato, começou a me perseguir.

Fiquei trancado na minha sala o dia inteiro, sem


saber como agir, até o momento em que ouvi a batida, e
ela enfiou a cabeça pela fresta.

— Posso entrar?

Eu me senti um idiota no momento em que respondi


que sim, com um resmungo que parecia qualquer coisa
menos um sim.
Mas era.

Ela foi se aproximando, com uma pasta na mão, e


eu entendi que começou a falar alguma coisa, talvez sobre
trabalho, mas meus ouvidos estavam completamente
alheios ao que acontecia, ao que ela dizia. Meus olhos,
também, só conseguiam focar sua atenção nela.
Era uma imensa loucura, mas eu não ia conseguir
ficar olhando para aquela mulher sem tomar nenhuma
atitude.

Por isso, minha reação foi completamente


impensada: eu enlacei sua cintura com possessividade,
puxei-a para mim – fazendo-a deixar a pasta que
carregava cair –, agarrei uma de suas coxas, tirando-a do
chão e colocando-a sentada sobre a minha mesa.

— Kane, mas o que... — ela ia começar a falar, mas


eu a interrompi, sendo o que tomava a iniciativa naquele
momento.

Com a mão na sua nuca, segurei-a com vontade,


nem pensando e nem hesitando antes de lhe dar mais um
beijo. Não demorou, porém, para que Iohanna se
entregasse, quase derretendo nos meus braços.
Jurei que seria só mais uma vez. Tal qual uma
droga.

Eu não iria me viciar, de forma alguma.

Foi o que eu fiquei repetindo na minha cabeça um


milhão de vezes, nos dias seguintes, enquanto, por
acidente, minha língua ia parar novamente dentro de sua
boca, quase diariamente.
A gente nem conversava sobre isso. Tentávamos
nos controlar – em nossa defesa. Falávamos sobre
trabalho, até de forma amigável na medida do possível, e
nos preparávamos para nos afastar, mas um sempre
acabava correndo para agarrar o outro. Isso quando não
pensávamos na mesma coisa de forma espontânea.

E, sim, eu pensava em transar com ela. Todos os


dias.
Certa noite, cheguei a me levantar da cama de
madrugada, usando só uma calça de moletom e quase bati
na porta de seu quarto, mas desisti.

Eu ainda achava que poderia estar traindo o meu


pai, tanto que nunca ficamos juntos dentro da casa.
Até aquela noite.

Fazia alguns dias que Iohanna não aparecia para


jantar comigo. Desde nossa briga mais séria, a gente mal
conversava quando estávamos dentro de casa. Na
empresa, falávamos sobre trabalho e nos agarrávamos,
mas como se fôssemos dois desconhecidos se pegando
por puro tesão.

Marybeth serviu a refeição e se afastou, como se


quisesse nos dar privacidade. O menino fora colocado na
cadeirinha infantil, e eu não conseguia parar de olhar para
os dois.

Deveria ser pecado prender minha atenção na boca


de uma mãe que falava cheia de doçura com um bebê de
menos de dois anos. Deveria ser proibido olhar para seus
seios, no decote modesto, enquanto se inclinava para
limpar a boquinha do bebê.

Porra! O que diabos estava acontecendo comigo?

Tentando me controlar, passei uma das mãos pelo


cabelo, enquanto dava um gole na água e outro no vinho.
Os dois desceram de um jeito incômodo pela garganta, e
eu jurei que iria engasgar, mas consegui respirar fundo e
me controlar.
— Está tudo bem? — A voz de Iohanna me tirou dos
meus devaneios, e eu olhei para ela, virando a cabeça na
sua direção como se esta fosse um chicote.

— C-claro. Por que não estaria?


— Você parece tenso.

— Impressão sua. — Dei uma garfada na comida.


Novamente, em um movimento tão desajeitado que eu
poderia jurar que iria morrer entalado.
Iohanna ficou olhando para mim por mais alguns
instantes, mas logo voltou a comer.

Diferente de todas as outras vezes em que eu era


sempre quem puxava o assunto, precisava dar a mão à
palmatória de que ela estava se esforçando. Falava
principalmente sobre a empresa, sobre o evento e até
mencionou algumas coisas sobre a reforma da casa.
Parecia completamente natural e nada afetada em relação
a mim. Como se a gente não tivesse se atracado no
banheiro do escritório horas antes.

Como se não andássemos nos pegando na


empresa dia após dia, sem falhas.

Terminamos o jantar, e eu fui para a cama com a


sensação que me acompanhava há dias, desde que
começamos aquela estranha relação. Andava pensando
em Iohanna mais do que era saudável. Mais do que
gostaria de pensar em qualquer pessoa.

Consegui tomar um banho e ficar deitado por uma


hora, até ir ao quarto dela novamente, como na outra noite.
Só que eu bati na porta.
E ela atendeu.

Estava usando uma porra de um baby doll lilás, que


a deixava parecendo uma fada. O negócio era de seda, e
eu só conseguia pensar no quão delicioso seria tocar sua
pele com a sensação do tecido entre nós.
— Kane? O que você está fazendo aqui a essa
hora?

Não era possível que ela não imaginasse. Não era


possível que não desconfiasse que eu não queria só ficar
com ela no período comercial. Que algumas coisas entre
nós estavam mudando.

— Estou aqui para entender: o que está


acontecendo entre nós. Acho que está mais do que na
hora de definirmos.

Eu nem sabia se era a escolha certa a fazer, mas


estava disposto a arriscar.
CAPÍTULO DEZENOVE

Dei um passo para trás, sentindo como se a gente


estivesse prestes a entrar em combustão espontânea, caso
nos tocássemos. Os passos que dei, para trás, não eram
sinais de covardia, mas uma forma de nos proteger. A
gente não queria ir mais longe do que já estava indo, né?

Eu, menos ainda.


Já sabia quais eram as consequências de me
envolver intimamente com Kane. Qual era o preço de cair
em sua sedução e ceder a mais do que apenas os seus
beijos. Claro que não engravidaria novamente, porque
tomava anticoncepcional há alguns meses, mas o coração
ficara partido o suficiente para que eu não quisesse
experimentar a mesma dor outra vez.

Ainda assim...
Deus, como resistir?

O filho da mãe estava sem camisa. Cabelos


molhados, penteados para trás. A calça de moletom pendia
sob seu abdômen perfeitamente esculpido, e eu conseguia
ver cada gominho que existia ali. O entalhe em V que
descia para os quadris também.
O desejo de passar a mão em cada uma daquelas
curvas rígidas era inexplicável.

Não que fosse muito experiente. Eu e ele tínhamos


transado duas vezes, e uma delas fora dolorosa. Com a
outra, sim, eu conheci o prazer. Ou alguns resquícios dele,
o suficiente para querer mais. Para entender que o homem
sabia o que estava fazendo.

— Aguardo a resposta, Iohanna: o que está


acontecendo? — Ele cruzou os braços enormes, em frente
àquele peitoral igualmente grande, e eu poderia ter ficado
paralisada, só olhando para ele, mas me obriguei a sacudir
a cabeça, respirar fundo e olhar em seus olhos.

Só como uma forma de proteção, cruzei também os


braços, imitando seu gesto.
— Até onde eu sei, estou no meu quarto e você
apareceu aqui. Se alguém tem que explicar o que está
acontecendo é você.

— Não se faça de sonsa.

— Ah, agora vamos partir para as ofensas? — Ergui


uma sobrancelha, tentando parecer convicta, mas a
verdade era que eu não sabia, em absoluto, como agir.

Claro que eu entendia a pergunta de Kane. Só


estava ganhando tempo.
— Não. Não vamos... — ele sussurrou, com uma
voz rouca.

Tudo o que precisou fazer foi esticar a mão. Ela foi


parar um pouco acima do meu cotovelo, fechada, e ele me
puxou. Com força. Mesmo se eu não quisesse me mover,
seria difícil, dada a pressão com que me tocou.

Mas eu queria me mover.

Fui até ele, parando diante de seu peito. Kane não


parava de olhar para a minha boca, o que era
desconcertante. Seu braço me enlaçou.

— Vai continuar fingindo que não está entendendo?


Se quiser continuar em silêncio a respeito, tudo bem.
Podemos os dois nos fazermos de sonsos e não discutir o
óbvio. Mas vai ser minha esta noite, Iohanna. Vou te fazer
gemer e gozar por horas, porque estou esperando ouvir
cada um desses sons desde que me agarrou e me beijou
pela primeira vez.

Mas... o quê?

Como era possível que meras palavras já fizessem


tanto estrago assim? Ele só precisou ser direto daquele
jeito para que o meio das minhas pernas desse uma leve
latejada, pedindo por atenção.

— Não precisamos falar sobre nada — foi a minha


resposta.

Erradíssima, é claro.
A gente tinha muito a conversar, especialmente
sobre um lindo garotinho que dormia no quarto ao lado. Eu
precisava saber o motivo pelo qual Kane até aquele
momento não falara uma única palavra a respeito da
criança, de como ele lidaria com a situação.

Ele devia saber que era pai de Simon. Ou ao menos


que tivesse alguma desconfiança. Nós transamos, poxa!
Por mais que ele fizesse isso com trocentas garotas, a
forma como ele agia comigo me deixava muito mal e com
muita raiva.

Só que a raiva era, sem dúvidas, um sentimento que


despertava sensações muito diversas.

Ou eu esperava que fosse algo comum, porque o


tesão que comecei a sentir no momento em que ele tirou a
mão do meu braço e começou a deslizá-lo até chegar no
meu colo não podia ser imaginação.

Kane estava me tocando ainda de forma hesitante.


Foi subindo um pouco a mão, até ela ir parar no meu
pescoço. O polegar fez um pouco de pressão, como se
fosse me asfixiar, mas de um jeito gentil, embora
demonstrasse algo muito parecido com posse. Com
dominação.

Esse mesmo polegar continuou a fazer movimentos


circulares, a massagear minha pele, e eu arfei de leve.

— Você é tão macia... — ele quase ronronou. Era


extremamente erótico ouvir sua voz, naturalmente grossa,
firme e grave, suavizar-se e tornar-se melodiosa,
aveludada, mas ainda com um tom profundo que me
tocava tanto quanto suas mãos.

Ele continuou a descer, até chegar em um dos


seios, que foi espalmado, como se Kane quisesse ter a
sensação de segurá-lo inteiro em sua mão grande. Então
seu polegar o massageou, através da seda do baby doll, e
eu inclinei um pouco a cabeça para trás.

— Como será a sensação de estar com a boca bem


aqui? — Seu polegar fez movimentos circulares no mamilo,
indicando o que ele estava falando.

Você já conhece essa sensação – era o que eu


deveria ter dito a ele. Mas não falei nada. Apenas continuei
participando daquela tortura deliciosamente suave.

— Qual será a sensação de ter minha boca aqui


também? — Com a outra mão, ele foi certeiro no meu
clitóris, imitando os movimentos em ambos os pontos
sensíveis. — Você está sem calcinha, Iohanna? — quase
rosnou.

— Estou.

— Que perdição.
Levando as duas mãos à barra do meu short, ele
começou a tirá-lo devagar, baixando-o aos poucos,
enquanto também se agachava e ia beijando as partes do
corpo que iam sendo reveladas.
Ajoelhado à minha frente, com o meio das minhas
pernas completamente livre da peça, Kane começou a me
provar.

— Feche os olhos. Mantenha-os assim — ele disse


em tom de ordem, e eu obedeci. Até porque a sensação de
tê-lo passando a língua não só pelo meu clitóris, mas por
toda a fenda, de cima a baixo, enquanto eu não o olhava,
tornava tudo muito mais intenso.

Kane sugou meu clítoris e ainda o tomou entre os


dentes, puxando-o, enquanto sua língua brincava com
minha boceta, de várias formas diferentes. Usando os
dedos, ele abriu os dois lados, deixando-me ainda mais
exposta, e conseguindo ir mais fundo, mais intenso.

Gemi alto, jogando a cabeça para trás, e tateando


algo para me segurar, antes que minhas pernas falhassem.

Só que antes que eu pudesse gozar, percebendo o


quão zonza eu estava começando a ficar, Kane me tirou do
chão, entrelaçando minhas pernas em sua cintura,
levando-me a uma poltrona, próxima à escrivaninha. Meu
notebook estava aberto, no Word, com um dos meus textos
abertos. Não queria que ele lesse, muito menos que
descobrisse que eu estava exatamente escrevendo uma
cena hot, por isso aproveitei o caminho para fechar o
aparelho, antes de ser sentada montada no colo dele.
Kane tirou minha blusa, mergulhando a boca em um
dos meus mamilos, enquanto sua mão buscava o meio das
minhas pernas, começando a me masturbar.
— Muito molhada. Deliciosa.

Sua outra mão subiu à minha nuca, e ele levou a


boca à minha, fazendo-me sentir meu próprio gosto em sua
língua. Seu dedo girava dentro de mim, encontrando vários
pontos sensíveis, e cada um deles provocava um tipo de
gemido diferente saído da minha garganta.

Era como se ele estivesse compondo sua própria


sinfonia enquanto tocava meu corpo como quem toca um
piano com maestria.
O beijo também me envolveu, porque sua língua se
movia contra a minha no mesmo ritmo de seus dedos.
Quando ele levou dois, estocando com força, eu não
consegui mais me segurar e gozei, derramando-me sobre
ele.

Kane se levantou, carregando-me até a cama,


deitando-me sobre ela, e tirando sua roupa.
Teria observado o show com um pouco mais de
atenção, porque era, de fato, um espetáculo, mas meu
raciocínio estava comprometido pelos efeitos do orgasmo
incrível que ele me deu.

— Preciso estar dentro de você, Iohanna... Você se


opõe a isso? — Mesmo se eu me opusesse, a voz gutural
dele, arfante, com aquele corpo perfeito sobre mim, teriam
me convencido ao contrário.

Arqueei os quadris, dando a entender que desejava


recebê-lo, e Kane me penetrou devagar, cuidadoso.
Ele foi se acomodando dentro de mim, abrindo
espaço, enquanto sua mão encontrava novamente meu
clitóris, para acentuar o prazer. Foi se remexendo, fazendo-
me acostumar com seu tamanho, enquanto eu ofegava, já
sentindo que daquela vez seria completamente diferente
das primeiras. Eu não era mais virgem. Por mais que Kane
tivesse sido meu primeiro e único homem e que não
tivesse tido mais ninguém, estava bem mais pronta.

A primeira investida foi forte, precisa, nada gentil.


Ele soltou um rosnado e abaixou a cabeça, fechando os
olhos.

— Tão apertada. Puta que pariu, Iohanna!


Kane se pôs a estocar mais e mais intenso,
grunhindo e rosnando como um animal, o que me fez sentir
ainda mais excitada. Não só porque o som era sexy, mas
também pelo fato de ele estar sentindo tanto prazer dentro
de mim, e isso me fazia sentir poderosa.

Agarrei suas costas musculosas, afundando as


unhas na carne de seu ombro. Kane ergueu minhas
pernas, colocando cada uma delas em seus ombros,
ficando ajoelhado na cama. Com toda a minha
inexperiência, não fazia ideia de que aquela posição
possibilitava que seu pau fosse ainda mais fundo; que ele
pudesse me atingir com ainda mais força.

A fricção e a intensidade dos movimentos me


levaram a outro orgasmo. Insano. Delicioso.
Kane se deixou consumir também e gozou com um
grunhido selvagem, erótico, jogando-se na cama logo em
seguida.

Ficamos olhando para o teto por alguns instantes,


ambos ofegantes, meio que sem saber o que dizer.

Até que Kane quebrou o silêncio.

— Vamos ficar sem falar sobre isso também?

— Não sei. Eu realmente não sei — falei com


sinceridade, porque aquele tipo de coisa era muito
complexo para mim.

Não estava acostumada a sexo casual, e não


imaginava que Kane iria querer qualquer coisa além disso.
Sem contar a nossa enorme pendência.

Estava tudo muito errado.


— Acho que, agora, podemos só dormir. O que você
acha?

Dei de ombros e concordei. Mal nos levantamos da


cama. Eu apenas desliguei a luz do abajur, enquanto Kane
pegava o edredom e nos cobria.
Não nos abraçamos, não foi romântico. Apenas
viramos um de cada lado e tentamos pegar no sono,
enquanto minha cabeça se enchia de mil pensamentos, e
eu não conseguia formular nenhum deles de forma
coerente.
CAPÍTULO VINTE

Consegui cochilar por pouco tempo, mas acabei


acordando. Queria dizer que estava surpreso por me
encontrar na cama de Iohanna, ou levemente
desorientado, mas me lembrava de cada segundo. De
cada gemido. De todas as mais diversas sensações que
tive enquanto estava dentro dela.

Principalmente uma delas, que era a mais


desconcertante de todas: não parecia ser a nossa primeira
vez.
Não podia ser real, é claro, porque nunca tinha
transado com Iohanna, mas meu corpo parecia se lembrar
dela, de alguma forma. Flashes de memórias, de
momentos, de sons, de cheiros. Mas não era possível.

Ou era?

Ainda me lembrava daquela festa, a garota


mascarada, e eu não conseguia me recordar de
absolutamente nada do seu rosto, por mais que
imaginasse que ela tivesse tirado a máscara. Voltei-me
para Iohanna, apoiando-me no meu cotovelo para poder
olhá-la melhor.
Estava apagada, cansada, e seu rosto angelical
parecia ainda mais sereno, mais doce. Conseguia ver o
contorno do corpo por baixo do edredom, sabendo que
estava nua. A necessidade de tocá-la se manifestou
novamente em mim, fazendo meu pau voltar à vida,
especialmente ao pensar no quanto fora bom.

Não trivialmente bom. Fora acima da média. Fora


intenso. De um jeito que me deixou surpreso.

Muito surpreso.

Precisei me afastar um pouco, chegando a me


levantar da cama, para tentar colocar minha cabeça no
lugar. Vesti a calça, que estava jogada no chão, cobrindo
minha nudez.

Não queria que acordasse sozinha, porque seria


muito escroto da minha parte. Nunca tinha feito isso nem
com as mulheres aleatórias com quem transei; não faria
isso com Iohanna que, de alguma forma, era parte da
minha vida.

Aproximei-me da varanda, afastando a cortina e


dando uma olhada no mundo lá fora. Ainda era noite, não
havia sinais do amanhecer, e eu suspeitava que tinha
adormecido só por umas duas horas.
Dei uma respirada profunda, sentindo-me pensativo
e incomodado.

Quem era Iohanna Ward? O que ela estava fazendo


na minha vida? Será que eu estava mesmo me metendo
com uma mulher por quem meu pai tivera sentimentos?

Enquanto pensava nisso, aquela pasta a respeito de


Simon retornara à minha cabeça.

Eu poderia encontrar a prova ali. Poderia ter as


minhas respostas.

Seria uma traição, porque Iohanna claramente não


queria que eu visse aqueles documentos, pela forma como
reagira quando percebera que eu os encontrei. Ainda
assim, aquilo poderia se tratar de uma informação
importante para a minha vida. Poderia ser até mesmo uma
explicação para a mulher estar na minha família. Na minha
casa. Ser herdeira do meu pai.
Ok, Simon era o verdadeiro herdeiro. Mas ela estava
no meio.

Foi em um impulso que me movimentei, começando


a procurar a pasta. Tentei manter o máximo de silêncio e
me convenci de que se Iohanna acordasse antes de eu
chegar a ela, era porque não deveria encontrá-la. Se me
pegasse no flagra, eu poderia tentar encontrar uma
desculpa.

Mas era hora de descobrir algumas coisas, já que as


explicações não chegavam para mim de mão beijada.
Se Iohanna precisasse trabalhar em alguma missão
secreta, ela seria a pior agente do universo, porque seu
esconderijo para algo que claramente queria esconder fora
péssimo.

Ela deixara a pasta em sua gaveta de calcinhas.

Mais óbvio, impossível.


Claro que eu me sentia invasivo mexendo em coisas
que não me pertenciam e sem autorização, mas engoli
minha moral no momento e segui em frente.

Nem esperei sentar ou me acomodar para consumir


o que estava ali dentro. Eu precisava, principalmente, olhar
dentro do envelope do laboratório, porque tinha certeza de
que se tratava de um exame de DNA.
Na minha cabeça, havia duas possibilidades de
resultado: ou Finn O’Roark era o pai de Simon ou não era.

Pensar que ele era avô do menino...?

Não julguei sequer possível.

Fiquei olhando para as palavras no papel, lendo-as


e relendo, tentando entender, porque nunca tinha visto um
exame de DNA feito entre avô e neto, mas aparentemente
isso existia. A probabilidade não deixava em dúvidas. Era
de 99,9%.
E se meu pai era avô de Simon...

Puta que pariu!


Completamente zonzo, precisei me jogar na mesma
poltrona onde eu e Iohanna nos sentamos horas antes, em
meio ao frenesi do sexo, e no processo de me encaminhar
ao móvel, dei uma topada em qualquer coisa no caminho,
que causou um barulho considerável, o que fez a mulher
sobre a cama se sobressaltar.
Claro que a primeira coisa que ela olhou foi para as
minhas mãos, que seguravam a pasta e principalmente o
exame do qual tinha acabado de ver o resultado.

— Kane! — exclamou meu nome, com um tom de


desespero, e logo se levantou. Ainda estava nua, mas não
consegui sequer apreciar seu corpo, porque estava
desconcertado.

Ela se vestiu e se aproximou de mim. Parecia nem


saber o que dizer, mas ficara claramente pálida e
atordoada.

— O que diabos é isso, Iohanna? — falei bem baixo,


muito sério.
— Eu queria te contar. Não queria que descobrisse
assim.

Fiquei calado por algum tempo, desejando muito me


levantar daquela poltrona e me colocar de pé, porque me
sentia extremamente inquieto.
— Simon... — Eu falei o nome do menino, mas a
força da minha voz morreu antes que eu conseguisse
terminar a pergunta. Precisava prosseguir, no entanto: —
Simon é meu filho? Meu filho?

Iohanna hesitou, mantendo os olhos em mim,


soltando um suspiro e apenas assentindo.

Ok, aquela constatação foi o suficiente para me


fazer levantar e me mover da minha inércia.
Deixei a pasta sobre a poltrona, porque sabia que
não ia conseguir ficar parado, mas me agoniou o silêncio
de Iohanna.

— Comece a explicar. Você me deve isso.


— Eu não te devo nada.

Aquela resposta me surpreendeu, principalmente


quando percebi que Iohanna falou por entre os dentes,
mostrando-se irada.

Qual direito ela tinha?

— Você me escondeu a existência de um filho! —


vociferei.
— E você me rejeitou grávida.

— Como posso ter te rejeitado se eu nem sabia?

— A gente transou, eu era virgem! Minha tia te ligou


para te falar sobre o bebê, mas você não quis nem ouvir!
— indignou-se, gesticulando nervosa.
Então era ela mesmo. Fiquei parado, observando-a,
meio atordoado.
Iohanna era a garota mascarada da festa. Era a
menina que desaparecera, deixando uma mancha de
sangue sobre o lençol, mas de quem eu nem lembrava o
rosto.
Lá estava, aliás. O gap na minha memória agora
tinha forma.

— Eu sei que você sai com muitas mulheres, mas


não se lembra de mim. Não se lembra da nossa noite! Não
estou te cobrando nada, Kane. Quando ficamos juntos eu
já sabia que seria assim, que seria só uma noite, mas eu
não esperava engravidar.
— Eu encontrei uma camisinha do lado da cama —
foi a minha resposta atordoada.

— Nós fizemos duas vezes. Em uma delas


esquecemos a camisinha.

Ah, merda! Claro... fazia sentido.

Levei uma das mãos à cabeça, ainda andando de


um lado para o outro, sentindo como se meus neurônios
estivessem entrando em colapso.

— Eu estava bêbado. Não consigo me lembrar de


quase nada daquela noite... Você não percebeu?

Lancei um olhar para ela e a vi boquiaberta.

— Eu imaginei que estivesse um pouco alto, mas


bêbado a ponto de não se lembrar de nada?

— Nada. Não me lembro de nada.


Os ombros dela caíram, e eu a vi dar uma risada
sombria.

— Provavelmente nem teria ficado comigo se


estivesse sóbrio.

— Você com certeza chamaria a minha atenção,


Iohanna. Como chamou agora. Nós acabamos de transar,
e eu definitivamente não estava bêbado.

Ela ficou calada, como se analisasse o que tinha


acabado de falar.

Só que eu não podia deixar que as coisas ficassem


daquela maneira.

— Nada disso muda o fato de que estamos


convivendo há mais de um mês, e você não me contou
sobre Simon ser meu filho.

A mulher soltou um suspiro, também passando a


mão pelos cabelos, jogando as mechas douradas para
trás.
— Não foi tão simples. Eu estava com raiva.

— Raiva foi a última coisa que senti em você nas


últimas horas — soltei a frase, mas imediatamente me
arrependi.

Vi Iohanna se aproximar de mim com fúria nos


olhos, erguendo um dedo em riste.

— Não ouse falar assim comigo! Eu estou errada?


Sim. Mas você deveria ter tido um pouco mais de
responsabilidade.

— Pensa pelo meu lado, Iohanna! — alterei a voz


com ela também. — Minha família é rica. Quantas
mulheres você acha que poderiam resolver me dar um
golpe? Eu não te conhecia, não me lembrava de você. Não
me lembrava do seu rosto; como poderia acreditar que
uma pessoa que estava me telefonando merecia atenção
suficiente?

— Porque você não é exatamente um exemplo de


celibato!

— Sempre uso camisinha. Foi um deslize, pelo qual


estou me condenando, e não por Simon existir, mas por
todo o resto que poderia ser muito perigoso.

Ao falar o nome de Simon, meu peito apertou. O


estômago revirou. Eu tinha visto o menino horas antes,
mas senti uma necessidade avassaladora de olhar para
ele, mesmo sabendo que estaria dormindo.

Precisava olhar para ele, vendo-o pela primeira vez


como meu filho.

A discussão poderia ficar para depois, aquilo era


prioridade.

Sendo assim, afastei-me de Iohanna, saindo do


quarto, sem lhe explicar nada, sem sequer discutir, e fui
atrás de Simon.

Do meu garotinho.
CAPÍTULO VINTE E UM

Demorei um pouco para conseguir sair do meu


estado de paralisação, mas fui indulgente comigo mesma.
Levei uma das mãos à cômoda, esperando conseguir me
equilibrar antes de me mover.

Mas o que eu poderia esperar de mim, né? Eu tinha


acabado de vivenciar o que temi por tanto tempo. E lá
estava Kane, no outro quarto, com o meu filho – nosso
filho, no caso –, já sabendo que era pai dele.

Ao mesmo tempo que eu pensava nisso, tentando


lidar com a situação, também me obrigava a repassar
nossa conversa, levando em consideração os argumentos
de Kane.
Ele fora um babaca? Sim, ele fora. Mas o fato de
haver pessoas cruéis no mundo que poderiam querer dar
um golpe na família O’Roark não poderia ser deixado de
lado. A oferta para um exame de DNA fora feita, só que eu
sumi, indo procurar apenas o avô do meu bebê.
Como teria sido se procurasse Kane? Teria ele
assumido Simon desde o início, e meu filho teria um pai?

Será que seríamos um casal?

Levei a mão a ambos os olhos, esfregando-os e


torcendo para que a dor de cabeça que começava a se
formar fosse apenas passageira.

Também os sentia marejar, por isso apressei-me em


partir para o quarto de Simon, só que a cena que eu vi só
me deu ainda mais vontade de chorar.

O neném tinha acordado, e isso poderia me deixar


puta em qualquer outra situação, mas o jeito como Kane o
tirou do berço, com todo o cuidado do mundo, me fez ter a
sensação de que ele tinha virado pai naquele exato
momento.

Acomodou a criança no seu peito sem camisa, e o


bebê ainda estava meio grogue do sono. Não tardaria a
dormir novamente.

Os olhos de Kane, no momento em que ele se virou


na minha direção, estavam muito, muito cheios de
lágrimas, até mais do que os meus. Na verdade, não
demorei a perceber que seu peito convulsionava com o
choro.

— Oi, Simon. Eu sou seu papai, sabia? — até a voz


de Kane saiu embargada. Ele estava, realmente, muito
emocionado.
Então foi quando comecei a pensar se ele teria
agido daquela forma também se soubesse da verdade
desde o início. Se eu o tivesse chamado, mais de um ano
atrás, para lhe cobrar o exame de DNA. Ou aquela emoção
toda por ser pai do meu garotinho vinha da convivência e o
laço que se formou entre eles?

— Você é meu, bebê. Meu filhinho. Como não


percebi antes? Como? — Eu não sabia se Kane estava
falando consigo mesmo ou com Simon.

Ele segurou a cabecinha do bebê e se permitiu


chorar.

Foi um choro tão compulsivo, que ele se sentou na


poltroninha de amamentação e ficou embalando a criança
enquanto estremecia.

Não direcionou uma única palavra a mim. Eu


também não falei nada com ele por algum tempo. Só deixei
que chorasse, enquanto eu o acompanhava porque meu
coração não era de ferro. Como não me emocionar com a
cena de um homem grande como ele, se debulhando em
lágrimas, ao descobrir que tinha um filho sem saber?

Que o neném que passara a fazer parte de sua vida


de uma forma doida e repentina, lhe pertencia?

Mas mais do que isso: o homem por quem eu era


apaixonada finalmente descobrira que meu filho também
era dele. Meu garotinho, a partir daquele momento, teria
alguém para chamar de papai, quando aprendesse a falar
a palavra em meio às outras que começava a balbuciar e
aprender.
Kane começou a beijar os cabelinhos loiros de
Simon, e o bebê se remexeu em seus braços. Ergueu a
cabecinha e olhou fixo nos olhos do pai. A boquinha se
formou em um beicinho, e eu achei que ele ia chorar. Seu
olhar atento me mostrava que estava ainda sonolento,
tentando despertar.

— Oi, filho. É papai — Kane repetiu.


Como se entendesse o que fora dito, Simon foi
abrindo um sorriso aos poucos, revelando alguns
dentinhos. Riu tanto que chegou a levar uma mãozinha à
boca e deixar escapar sonzinhos, além de algumas
palavrinhas em sua língua de bebê.

— É... é o papai. Vou estar aqui a partir de agora.


Nunca mais vou te abandonar. Nem a você... — Ele ergueu
os olhos para mim, e eu sequei uma lágrima boba que
deslizava pelo meu rosto. — E nem a sua mãe.
Assenti, respirando fundo.

Kane estendeu a mão, mas eu hesitei. Aquele era o


momento deles. Um  momento do qual eu os tinha privado
por muito tempo.
— Vem cá — ele sussurrou delicadamente, de forma
gentil, e eu não pude resistir.

Fui me aproximando, e ele equilibrou o bebê em um


braço só, para poder usar a outra mão e posicionar o
banquinho de apoio de pé ao lado da poltrona, para que eu
pudesse participar.

Ao me ver, Simon sorriu ainda mais e tentou se


jogar para mim. Segurei sua mãozinha, impedindo-o.

— Fica com o papai, filho. A mamãe tá aqui.


Kane segurou a minha mão, levando-a à boca e
beijando-a. Lançou um olhar de soslaio para mim, depois
de respirar profundamente.

— Nós dois estaremos aqui. Hoje e sempre. Juntos


— Kane deu muita ênfase à última palavra, o que me fez
estremecer.
O que ele queria dizer com aquilo?

Qual era a intenção por meio daquelas frases e de


seu tom de voz?

Tudo o que me restava era esperar e especular.

Apesar disso, ainda sentia a necessidade de falar


alguma coisa. De me explicar. Por mais que Kane tivesse
errado comigo, eu também tinha errado com ele.
— Me desculpa — pedi, esperando soar o mais
sincera possível.

— Você?

— É. Eu escondi a verdade por muito tempo.


— Sim, escondeu. Mas acho que é justificável.
— Sua explicação fez sentido para mim, Kane. Não
pensei nisso quando me enchi de raiva e jurei que tinha
sido rejeitada da pior forma possível.

— Você foi. — Ele fez uma pausa, remexendo-se na


cadeira para poder olhar melhor para mim. — Tudo o que
aconteceu entre nós me faz pensar que sou um cara muito,
muito irresponsável. Como posso não me lembrar de nada
daquela noite?

— Talvez eu não tenha sido assim tão especial... —


falei em um tom de brincadeira, dando de ombros.

— Impossível. Depois do que senti com você, hoje?


Eu tenho certeza de que em qualquer outra situação me
lembraria, Iohanna. Foi... intenso.

— Isso foi, sem dúvidas.


— Não estou falando só do sexo em si. Estou
falando de nós dois. Não sente nada por mim?

Meu Deus! Ele ia mesmo me fazer aquela pergunta?


Naquele momento eu estava vulnerável demais para falar
qualquer coisa. Meu coração não tinha maturidade alguma
para encarar uma confissão daquele tamanho, mas se
estávamos sendo sinceros um com o outro, com nosso
filho entre nós, eu precisava engolir meu orgulho.
— Nunca tive a intenção de me aproximar da sua
família por qualquer interesse, Kane. Sou apaixonada pela
Sweet Haven desde criança, e acabei me apaixonando por
você, como uma garotinha deslumbrada que se encanta
por um ator, um cantor ou alguém inalcançável. Quando te
vi naquela festa, e você deu em cima de mim, foi como um
sonho.
— Você era virgem! — ele frisou, franzindo o cenho,
claramente surpreso.

— Eu era. Mas quis que minha primeira vez fosse


com você... É uma escolha justa, né?

— É uma escolha sua. Você tem direito de entregar


sua virgindade para quem quiser. Eu só queria ter sido um
pouco mais gentil e um pouco menos babaca depois. —
Kane fez uma pausa. Nosso bebê tinha deitado em seu
ombro e dormido. Ao olhar novamente para mim, a
expressão de Kane estava completamente diferente. Ele
parecia sério, preocupado. — Eu te machuquei?

Queria dizer que não, mas nós dois saberíamos que


era mentira.
— Acho que é impossível uma garota não ser
machucada na primeira vez. Mas se isso te consola,
mesmo bêbado, quando eu disse que era virgem, você foi
bastante delicado. E eu realmente não sabia que você
estava tão fora de si. Sinto como se tivesse te estuprado...
Sei lá.

Kane deu uma risada baixinha, porque Simon já


tinha dormido.

— Está tudo bem. Nenhum de nós dois sofreu


nenhum dano irreversível. Ou melhor... Simon é algo
irreversível. Ainda bem.
— Ainda bem — repeti.

— Mas eu não queria ter te abandonado grávida. Fui


um babaca e te peço perdão.
Balancei a cabeça, sabendo que ele estava sendo
sincero.

— Eu não queria ter escondido a verdade.

Kane pegou a minha mão mais uma vez e a beijou.

— Acho que estamos quites.


O caminho seria longo entre nós, mas eu conseguia
ver uma luz no fim do túnel. Não sabia para onde nos
levaria, mas, sem dúvidas, sem mentiras, sem omissões,
tudo seria mais fácil.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Ser pai acabou se revelando uma montanha-russa


de emoções. Ao mesmo tempo que o amor por meu
garotinho surgiu, parecendo afundar todos os outros
sentimentos em meio a uma areia movediça, outras
emoções começaram a me atormentar.

Acima de todas elas, uma insegurança. Um medo


desesperador de não ser bom para Simon. De não saber
como conduzir aquele menino a ser uma boa pessoa. Um
desespero desolador de não compreender a grandiosidade
de ter outro ser humano sob minha inteira
responsabilidade.

Eu mal sabia se era capaz de cuidar de mim


mesmo, quanto mais de outra pessoa.

Ainda assim... eu queria tentar. Mais do que


qualquer coisa. A partir daquele momento, minha missão
no mundo se tornou mais relevante. Eu tinha um propósito.
Acordar passara a ter mais graça por saber que eu
ganharia um abraço do meu filho, poderia lhe dar bom dia
e aprenderia uma coisa nova ao lado dele. Colocá-lo para
dormir era meu novo passatempo favorito, principalmente
quando se acomodava no meu colo, sentindo-se seguro o
suficiente para pegar no sono ali mesmo.
Às vezes eu me pegava observando-o por horas e
me condenando por não ter sentido antes. Éramos sangue
do mesmo sangue, como eu não percebi? Como meu
coração não o reconheceu desde o início?

Iohanna vinha sendo compreensiva e nos dando


espaço. Por mais que também quisesse seus momentos
com o filho, eu percebia que interagia com ele, cuidava,
mas me deixava fazer coisas simples, porque eu pedia.
Aprendi a trocar sua fralda, a lhe dar mamadeira, a atender
aos seus chamados.

Seguia seus passinhos incertos pela casa inteira,


segurando em sua mãozinha, querendo lhe ensinar tudo.
Brincava, desenhava para ele, lhe dava comida.

Eu me sentia quase desesperado para participar,


para compensar todo o tempo em que ficamos separados.

As coisas com ela não avançaram muito mais desde


a noite em que transamos. Não rolou mais nenhum beijo,
nem mesmo um toque. Entendia que a descoberta que fiz
em relação a Simon tomara boa parte das nossas vidas,
especialmente porque a gente precisou ajustar as coisas
para que eu me tornasse pai dele oficialmente – sem
contar o trabalho na fábrica que também nos tomava muito
tempo –, mas comecei a sentir sua falta.

Sabia que estava mais envolvido com ela do que


pensei, porque, assim como me sentia meio bobo olhando
para o meu filho, também ficava observando-a, encantado.

Gostava do jeito como mexia no cabelo.


Da forma como sorria quando Simon fazia uma
gracinha.

Da risada que a fazia jogar a cabeça para trás,


principalmente quando era por algo que eu dizia.

De quando comia algo gostoso e fechava os olhos,


respirando fundo.

De quando cantarolava uma música que tocava no


rádio – porque passamos a ir juntos para o trabalho,
finalmente.

Das roupas que usava.

Do cheiro de seu perfume.

Do contorno de sua boca.

Do formato de suas pernas.

Eu gostava dela absolutamente inteira.

Sabia que ainda havia um longo caminho até que


conseguíssemos nos perdoar, depois de tantos percalços
que se colocaram diante de nós, mas eu tinha uma missão:
queria a minha família.
Queria ela e Simon.

Eu tinha me tornado um homem de trinta e seis


anos há pouco tempo. Jurei que ainda demoraria a sentir
essa vontade de formar um lar, de construir um
relacionamento mais sólido. Para ser sincero, sendo filho
único e tendo um legado tão importante nas costas, temia
que precisasse acabar cedendo ao desespero e me
casando com alguém só por negócios.

E, sim, eu estava pensando em casamento.


Era o certo a fazer, não? A garota era mãe do meu
filho, a gente se dava bem na cama, os beijos eram
incríveis, e ela dissera que tinha sentimentos por mim.

O que eu sentia por ela? Gostava de sua


companhia, morria de tesão, ela me atraía e havia algo...
embora ainda não soubesse definir exatamente do que se
tratava. Ela me intrigava, me seduzia, me desafiava. Em
qualquer outra situação, não seria suficiente para um
casamento, mas as coisas eram diferentes.
Simon deveria ser o foco. Até onde eu sabia, a
melhor escolha para um garotinho como ele era ter papai e
mamãe juntos. O resto a gente podia dar um jeito.

Convidei Iohanna para almoçar naquele dia, na


Sweet Haven, porque fazia muito tempo desde a última
vez. Ela tinha feito algumas amizades dentro da empresa –
ninguém da alta hierarquia, é claro –, então acabávamos
saindo em grupos diferentes.
Fomos ao bistrô, já que ela adorava tanto a comida
de lá, nos sentamos e pedimos nossos pratos. Enquanto
esperávamos o garçom, poderíamos ter começado a
conversar, mas nossas atenções foram capturadas pela
presença de uma coisinha de uns cinco anos.
Estava acompanhado dos pais, mas parecia
inquieto, encantado com tudo o que via. Exigiu muita
batata frita e falou para a mãe que não queria bifinho. Só a
batata. Com queijo. E bacon. Parecia decidido e
argumentando maravilhosamente a seu favor.

Eu e Iohanna nos entreolhamos, e a sensação que


me acometeu foi que estávamos pensando na mesma
coisa.

— Acha que Simon vai nos ganhar assim algum


dia? Que vai nos manipular dessa forma? — perguntei
baixinho.

— Acho que ele vai ser pior.


Nós dois rimos, e eu fiquei olhando para o garotinho,
meio sonhador. Antes não costumava perceber crianças
daquela forma, mas comecei a imaginar que isso passaria
a ser uma constante na minha vida: notar crianças e
pensar no meu filhinho.

— Meu pai era um bom avô? — perguntei do nada,


sentindo o coração se apertar.
Iohanna pareceu surpresa, e seus lindos olhos
chegaram a se arregalar. Só que ela logo se recompôs,
provavelmente não querendo fazer alarde com o assunto.

— Ele era. Não tivemos muito tempo, infelizmente,


mas quando descobriu a verdade, chorou quase tanto
quanto você.

Abri um sorriso.
— Quer dizer que eu chorei mais?

— Como uma criança.

Balancei a cabeça, dando-me por vencido.

— Kane... sei que não é uma pergunta simples para


ser feita durante um almoço, mas o que aconteceu entre
vocês?
Assim como ela não esperava a pergunta que eu fiz,
a dela também me pegou de surpresa. Virei o rosto,
respirei fundo e comecei a pensar que talvez pudesse lhe
dizer que não queria responder.

Até onde eu sabia, qualquer pessoa poderia nos


ouvir. Qualquer um com más intenções. Só que não queria
dar uma resposta que Iohanna pudesse interpretar como
sendo grosseira ou evasiva.
Sendo assim, só lhe dei a verdade:

— Descobri que meu pai traía a minha mãe. Ele


tivera uma amante por algum tempo. Quando ela ficou
doente, terminou tudo, mas a mácula ficou.

— Como você descobriu?


— Ela veio atrás de nós. Estava em uma situação
complicada e achou que pudéssemos ajudá-la,
principalmente porque já fazia muito tempo que minha mãe
tinha morrido.
— E seu pai ajudou?

— Claro. Ele nunca negaria.


Iohanna sorriu.

— Sim, isso é verdade. Seu pai era uma pessoa...


ímpar.

Aquela frase de Iohanna mexeu demais comigo. De


uma forma maravilhosa e de uma forma ruim ao mesmo
tempo. Porque sentia falta dele. Porque me considerava
um merda por não ter me despedido e por não ter dito o
quanto o amava nos seus momentos finais.

— Foi um motivo sério para mim, na época, mas se


eu pudesse voltar no tempo... — Não completei a fala,
porque obviamente Iohanna compreendia o que eu queria
dizer. — Parece que, nos últimos tempos, eu só tenho
cometido erros. Com meu pai, com você...

— Erros acontecem. A forma como tentamos


consertá-los é que diz muito mais sobre o nosso caráter.

— Não posso consertar com o meu pai. Mas posso


consertar com Simon. Quero ser para ele tão bom quanto
Finn O’Roark foi para todo mundo.
Para a minha surpresa, Iohanna colocou a mão
sobre a minha.

— Você vai ser — respondeu pouco antes de


nossas comidas chegarem e de precisarmos fazer o
assunto morrer, transformando-o em coisas cotidianas da
empresa.

Ao voltarmos para o escritório, aliás, Iohanna veio à


minha sala, porque eu precisava lhe entregar um
documento. Já estava de saída, com a porta aberta, mas
um rompante me fez espalmar a madeira, de ambos os
lados de sua cabeça, prendendo-a ali.

A garota chegou a levar um susto, olhando para


mim com aqueles olhos inocentes.

Era muito louco saber que eu tinha sido o primeiro e


único homem de sua vida. Que ela se entregara a mim
daquele jeito, sem esperar nada em troca, e que duvidei
tanto de sua integridade.
Precisava arrumar as coisas. Não podia lhe devolver
sua primeira vez, mas poderia construir um momento
especial para nós, que compensasse.

Não fora o que ela dissera? Erros podem ser


consertados? Então era isso que eu iria fazer.

Ainda à sua frente, tirei uma das mãos da porta e


arranquei minha gravata do colarinho, entregando-a a ela.

— Leve isto aqui com você. Esta noite, depois do


jantar, venha ao meu quarto e coloque a gravata nos seus
olhos. Daí em diante, eu vou conduzir, ok?

— Kane...? Que loucura é essa?

— Se aparecer lá, vou interpretar como um


consentimento. E vou fazer amor com você como deve ser.
Do jeito que você merece.
Ao dizer isso, inclinei-me e beijei sua boca, mas só
um selinho, porque pretendia deixar o melhor para aquela
noite.

Ela ficou atordoada, conforme eu me afastava, e eu


senti meu lábio se curvar em um sorriso cínico.

Ótimo. Pretendia deixá-la ainda mais zonza mais


tarde, quando a tivesse na minha cama.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Passei o dia inteiro intrigada com as instruções de


Kane. Andando de um lado para o outro, com a gravata na
mão, fiquei me perguntando qual passo deveria dar.

Não era algo novo, né? Já tinha ido parar em sua


cama antes, e eu nem estava pensando no dia em que
Simon foi concebido, mas na vez mais recente, o que
poderia ser uma desculpa muito mais eficaz para qualquer
que fosse a minha decisão.

Tinha colocado meu neném para dormir, logo depois


de comer – ou não comer, porque quase não consegui
tocar na comida –, passado algum tempo olhando para ele,
esperando ganhar alguns minutos, mas não adiantou
muito. Não podia hesitar mais.

E nem queria.

Quando saí do meu quarto, indo em direção ao dele,


fiquei tentando me convencer de que seria só mais aquela
noite. Então depois teríamos que tomar uma decisão,
conversar, porque logo Simon compreenderia que papai e
mamãe não eram um casal, e seria muito complicado
explicar para ele sobre isso se nos visse juntos de qualquer
forma.

Fui caminhando insegura, vestindo nada mais do


que uma roupa confortável – um shortinho de moletom e
uma camiseta nada sexy, de mangas, bem larguinha –, até
parar diante da porta. Kane dissera que eu deveria entrar,
por isso encontrei-a entreaberta.

Empurrei-a de leve, dando uma olhada lá dentro e


não vi absolutamente nada de diferente. Nem mesmo Kane
estava à vista.

Teria ele desistido?

Bem, fosse como fosse, eu iria seguir as instruções,


confiando que não tinha a intenção de me fazer de boba.
Parei diante da cama, levando a gravata aos olhos,
vendando-os.

— Kane? — chamei, com a voz um pouco frágil,


porque me sentia nervosa. Não só por ainda estar confusa
com toda a situação, mas por ansiedade. Uma ansiedade
gostosa, para ser sincera.

Ele não respondeu nada, então eu entrelacei as


mãos na frente do corpo, tentando ficar parada. Tentando
apurar meus ouvidos para ouvir melhor e tentar entender o
que poderia acontecer.
Não demorou muito para escutar passos e a porta
sendo fechada, trancada.

— Kane? — repeti, esperando que me desse algum


sinal, embora soubesse que só podia mesmo ser ele.

— Tire a roupa — a voz conhecida penetrou meus


ouvidos, obrigando-me a respirar fundo, principalmente
porque ela soava autoritária de um jeito extremamente
sexy. Já que me viu hesitar, ele insistiu: — Entre na
fantasia, Iohanna. Prometo fazer valer a pena.

Bem, quem era eu para lhe negar qualquer coisa


naquele momento?

Fiquei nua, parada no mesmo lugar, aguardando a


primeira sensação.

E foi um toque.

Kane levou a mão ao meu rosto, segurando-o em


concha e tomando minha boca.

Sua língua abriu meus lábios, enterrando-se,


dominando e suplicando, reivindicando o que eu queria dar
com todo o meu desejo.

Senti o gosto de caramelo, como se ele tivesse


acabado de mastigar um, e suspirei, deleitando-me com a
sensação.

Kane pegou-me pelas coxas, tirando-me do chão, e


eu segurei seus ombros, para me firmar, até que fui
colocada gentilmente sobre a cama. O beijo continuou, e
eu aproveitei que estávamos conectados, que minhas
mãos estavam em seu corpo, para tocar seus ombros,
deslizando pela pele quente – já que ele tinha tirado a
camisa –, mas tive meus punhos agarrados e imprensados
contra o colchão.

Tendo-me totalmente à sua mercê, Kane começou a


deixar beijos pelo meu pescoço e meu colo, encontrando
um mamilo sensível, chupando-o com força entre seus
lábios quentes. Soltou uma das minhas mãos, só para
prender as duas com uma das suas, sobre a minha
cabeça, e então eu senti algo sendo passado pelos meus
lábios. Era doce, e eu reconheci o gosto como sendo mais
um caramelo.

Abri a boca, e Kane o colocou sobre a minha língua


com seus dentes, obrigando-me a mastigá-lo conforme ele
continuava sua exploração de beijos pela minha pele.
Parou no vão entre os meus seios, usando os dedos
para brincar com um dos bicos e começou a dar um baita
beijo de língua naquele espaço entre os dois, sem pressa.

— Você é mais doce que os caramelos, sabia? —


falou, com a voz rouca, enquanto soltava minhas mãos e
se remexia, colocando-se montado sobre meus quadris,
segurando minhas pernas com as dele.

Não demorei a sentir algo pastoso e muito gelado


em um dos bicos, o que me fez arquear o corpo. A reação
foi intensa, porque a sensação também era.
O outro mamilo recebeu o mesmo tratamento, e eu
senti uma gota escorrer para o vão que Kane acabara de
beijar, então sua língua veio lambendo o mesmo caminho,
até chegar no que quer que ele tivesse colocado ali,
chupando.
O contraste de sua boca quente com o gelado da
pasta me fez ir à lua. Duas vezes, já que ele fez a mesma
coisa do outro lado.

— Kane! — jurei que sairia como um grito, mas foi


nada mais que um arfar profundo.

— Estou só começando.

Mais uma vez ele trouxe a boca até a minha, e eu


finalmente percebi o que ele usara. Era sorvete. O meu
favorito, de pistache, da sorveteria da Sweet Haven, que
eu considerava o melhor de todos.
Também levou um dedo cheio de creme aos meus
lábios, o que me fez lamber devagarzinho.

— Chupe.

Fiz isso, e então sua língua veio lamber meus


lábios, passeando pelo meu queixo, como se eu fosse uma
iguaria tão deliciosa quanto o doce.

— Está gostoso? — ele me perguntou, ainda me


beijando inteira.
— Sim, muito — respondi arfante. Eu poderia gozar
só daquele jeito, sem dúvidas.
Kane saiu de cima de mim, deixando-me deitada na
cama, ainda sentindo o gosto dos doces e de seus beijos
na língua.

Quando retornou, colocou-se do lado do meu


quadril, pelo que pude perceber dos seus joelhos e pela
forma como o colchão afundou sob seu peso.

Com a mão molhada, senti seu polegar e seu


indicador brincarem com meu clítoris, enquanto, com a
outra, usava outros dois dedos para me penetrarem. 

Arqueei os quadris, com a investida precisa, mas,


mais ainda quando se inclinou, roçando a barba em pontos
sensíveis e novamente usando a língua em mim, mas
brincando e alternando entre mãos e boca, chupando e me
masturbando, às vezes rápido e intenso, às vezes devagar
e torturante.

Precisando me segurar em alguma coisa, levei as


mãos à cabeceira da cama, aproveitando que ela era de
ferro, para agarrá-la, enquanto me remexia, desejando
mais, necessitando de mais.

O orgasmo veio vindo intenso, incendiando cada


pedacinho do meu corpo. Estremeci ao percebê-lo, e mais
ainda quando Kane também reparou e se colocou sobre
mim, dentro de mim, posicionando seu pau perfeitamente,
deslizando e indo fundo, fazendo-me senti-lo aos poucos.

— Caralho, Iohanna! Você é perfeita. Estar dentro


de você é incrível — Kane disse, também arfante,
enquanto socava a primeira vez.

Eu já estava a ponto de gozar. Seria questão de


mais alguns instantes, de mais poucas estocadas.

Só que ele ficou parado dentro de mim, inclinando-


se e me dando mais um puta beijo. Fazendo amor com a
minha boca também, Kane rosnou contra ela, segurando a
minha cabeça com ambas as mãos, bagunçando meus
cabelos, enterrando os dedos neles, como se o desejo dele
fosse tão intenso que não conseguia sequer se controlar.
Ainda ficou parado, dentro de mim, por alguns
instantes, até que estocou sem aviso. A surpresa foi tão
grande que eu gritei.

Percebendo o que causou, ele novamente restringiu


seus movimentos, o que me fez tentar eu mesma me
movimentar. Só que Kane era um torturador profissional,
porque pressionou seus quadris, imprensando os meus
contra o colchão.

— Quieta. Ou vamos ficar aqui por muito tempo.


Posso ser cruel com você por horas.

Para piorar tudo, colocou uma mão entre nós,


encontrando o meu clitóris, massageando-o, enquanto
fazia movimentos quase ínfimos dentro de mim.

Mais uma estocada forte, e eu cheguei a me sentir


zonza.

Kane tirou a venda dos meus olhos, no momento em


que eu ainda buscava por ar, e olhou fixo para mim. Não
era só tesão. Era mais. Estávamos conectados mais do
que apenas com nossos corpos.

Segurei seus ombros com força quando ele investiu


novamente, conforme esfregava aquela minha pontinha
sensível entre os dedos, causando uma fricção
deliciosamente intensa.

Ficamos algum tempo daquele jeito, até que Kane


pareceu também não se segurar e começou a me foder de
verdade. Apoiou ambas as mãos no colchão, como se
fosse fazer flexão, cada uma de um lado da minha cabeça,
chegando a ranger os dentes pela força que fazia.

Apesar disso, seus olhos não saíam dos meus,


obscuros, sedentos.

Era tudo muito cru naquele momento.

Mas ao mesmo tempo doce. De alguma forma, as


coisas entre nós eram doces. Tanto quanto o caramelo e o
sorvete que experimentamos juntos naquela noite.

Eu finalmente cheguei ao orgasmo com nossos


olhares fixos, e Kane não demorou também.

Exatamente como sonhei que tivesse acontecido na


primeira vez, ele se jogou ao meu lado e me puxou para
seus braços, para um longo beijo que corou o sexo
exatamente como sempre quis que fosse. Forte, mas com
um toque de romantismo.

Doce, exatamente como pensei momentos antes.


Assim que o beijo terminou, ele estendeu a mão
para a mesinha de cabeceira, pegando uma tigela de lá. Ri
ao perceber que estava cheia de caramelos, já sem a
embalagem.

— Antes de partirmos para uma segunda rodada,


vou te mimar.

— Tem muitos! — exclamei como uma criança, com


os olhos arregalados, e ganhei mais um beijo.

— Você fica adorável quando há doces envolvidos.


Comprei muitos mais. Estou doido para experimentá-los no
seu corpo.

Então ele se colocou novamente em mim,


espalhando caramelos pela minha barriga, capturando-os
com os dentes em meio a beijos deliciosos.
Não consegui não sorrir...

Era bom, muito melhor do que sonhei.


CAPÍTULO VINTE E QUATRO

As duas semanas seguintes foram de intenso


trabalho. O tempo estava passando, e por mais que, na
teoria, ainda tivéssemos meses a frente para o evento, as
coisas precisavam ser resolvidas, porque envolvia uma
enorme logística.

A ideia de Iohanna seria acatada, então precisamos


definir como aconteceria a festa e como faríamos a
distribuição dos ingressos gratuitos. A cada reunião, ela ia
se soltando mais e dando suas ideias, e algumas pessoas
começavam a respeitá-la como deveria ser.

Passávamos muito tempo juntos e, no final do dia,


íamos para casa, para curtir nosso bebê. Víamos algumas
coisas de decoração, embora ainda não tivéssemos
decidido o que faríamos com a casa; se ela seria vendida,
se algum de nós iria morar lá.

Depois de ter descoberto que Simon era meu filho,


eu não conseguia mais imaginar meus dias sem ele. Não
conseguia pensar em morarmos em casas diferentes e,
mais ainda, cidades diferentes, que era o que poderia
acontecer, caso eu não tomasse uma atitude... o que cada
vez mais parecia o certo.

Também já estava mais do que na hora de eu


revelar a todos que o menino era meu filho, mas queria
fazer isso quando outras coisas estivessem definidas.
Queria que essa história fosse contada por nós dois, que
combinássemos o que seria dito, que nada ficasse
subentendido. Enquanto isso, vivíamos nossa vidinha,
conhecendo um ao outro, tanto como pessoas quanto na
cama.

E nós realmente fazíamos muitas coisas na cama.


Nós nos entendíamos a cada toque, cada beijo, e eu me
sentia ensinando Iohanna muitas coisas, porque a garota
era muito inexperiente, o que a tornava mais e mais
adorável aos meus olhos. Cada nova sensação despertava
reações maravilhosas, e eu me embriagava delas, ainda
tentando compreender o que sentia.

Era uma sexta-feira quando voltamos para casa e


Marybeth nos avisou que tinha chegado uma encomenda
importante. Nós sabíamos o que era, e Iohanna se
empolgou, saindo correndo para o escritório, no segundo
andar da casa, onde o envelope fora deixado.

Não queríamos que tivesse ido para a empresa,


porque aquela ainda era uma decisão não tomada.
Insistíamos muito para que os outros gerentes e diretores
acatassem, mas ainda era um dilema. E estávamos com
pouco tempo, por isso decidimos fazer um protótipo para
ver se o objeto físico ajudava a convencê-los.
Iohanna entrou primeiro, quase tropeçando de tanta
empolgação. Parecia uma menininha, enquanto parava
diante da mesa, pegava o envelope com o timbre da
gráfica e o abria.

Levou uma das mãos à boca, contendo uma


exclamação, enquanto me aproximava e me colocava ao
seu lado.

Em suas mãos havia um papel dourado, como se


fosse um pergaminho. Em letras mais escuras, uma
imitação de um convite, explicando que a pessoa que o
encontrasse teria direito ao tour pela fábrica Sweet Haven,
sem custos, e com direito a participar da festa.

Iohanna virou o papel e lá estava um pequeno


regulamento para a participação. Ela insistira também para
uma das cláusulas fosse que toda a alimentação da
criança e de seu acompanhante seria por nossa conta.

Algo que, obviamente, nossa equipe odiara


solenemente.

Ainda assim, fora uma grande insistência de


Iohanna, porque ela vivenciara na pele a dificuldade de
uma criança que não tinha condição para um passeio como
aquele, mas que não tivera chances de aproveitá-lo ao
máximo.
Eu sabia que aquela cabecinha tinha mais ideias,
mas ela ainda se sentia tímida de colocá-las para fora.
— Não ficou lindo, Kane? Imagina a carinha da
criança que encontrar no chocolate? — Ela parecia
emocionada.

— Estou me sentindo como Papai Noel.


— Sim, é essa mesmo a sensação. E não é uma
delícia?

Abri um sorriso, olhando meio bobo para ela.

— Sim, sem dúvidas. — Eu não sabia se estava


falando, de fato, da sensação de ser generoso ou da
mulher à minha frente.

— Eu queria tanto fazer mais. Queria que


pudéssemos fazer um sorteio entre os vencedores e que
pagássemos os estudos dessa criança... — Lá estava ela
cheia de esperança.

— O problema é que não temos como saber se vai


ser uma criança pobre ou não. Nossos doces não são
baratos.

— Mas aí é que está. Podíamos colocar o convite só


na linha mais acessível da Sweet Haven. Ou baixar os
preços durante esse período.
Apoiei o quadril na mesa, cruzando os braços contra
o peito e dando uma risada.
— Não funciona assim, querida. É uma coisa muito
complexa. Podemos falar sobre precificação em uma
próxima reunião, e ele vai te explicar.

Iohanna assentiu, parecendo um pouco chateada,


mas compreendendo.

Ela começou, então, a andar de um lado para o


outro, inquieta, falando sobre um milhão de outras coisas.
Eu queria prestar atenção, e provavelmente teria prestado
em qualquer outra situação, mas meus pensamentos se
mantinham muito confusos.

Uma ideia fixa começou a se manifestar. Não


naquele momento em específico, mas algo que fora sendo
construído desde o momento em que descobri que Simon
era meu filho.

A ideia da família...
— Iohanna? — chamei, infelizmente interrompendo-
a no meio de seu monólogo. Ela parou subitamente de
andar, olhando para mim por cima do ombro. Com certeza
não fazia ideia do que estava prestes a acontecer. Do que
eu planejava lhe perguntar.

— Hum?
— Quer se casar comigo?

É, ela realmente não esperava.


Sua reação foi a mais fofa possível. Os olhos muito
azuis se arregalaram de tal forma que jurei que iriam
explodir. O corpo paralisou, a boca ficou aberta e sua
respiração se tornou incerta.

Foram necessários minutos inteiros para que se


virasse na minha direção e se colocasse de frente para
mim.

— Do que você está falando?


Dei de ombros, com um sorriso cínico.

— Casamento, sabe? Aquela cerimônia em uma


igreja, em que eu fico te esperando no altar, você vem
vestida de branco, uma música meio brega tocando de
fundo, as pessoas emocionadas falando que você está
linda... Tipo isso...
A explicação não foi suficiente.

— Ainda não faz sentido. Kane? A gente não está


junto nem há dois meses!

— Errado. Nós temos um filho de quase dois anos.

— Não conta.
— Claro que conta. Não acha que Simon precisa de
uma família? Pai e mãe juntos?

Este foi o meu erro. Talvez eu até estivesse indo


bem até este momento, mas a expressão de Iohanna
mudou imediatamente. Chegou a usar a cabeça para
assentir e cruzou os braços, me imitando.

— Você quer se casar comigo?


No momento, não peguei a armadilha da pergunta,
tanto que respondi com sinceridade, porque achei que era
mais importante. Já tínhamos mentido e omitido coisas de
mais um do outro.
— É mãe do meu filho, claro que quero me casar
com você.

Ela arqueou uma sobrancelha, parecendo mais


severa.

— Não podemos nos casar só por causa do nosso


filho. Precisa haver mais do que isso.

— Precisa, mas temos muito mais do que muitas


pessoas que se casam. Nós nos damos bem, tanto na
cama quanto fora dela.

Iohanna respirou fundo, como se tentasse se


acalmar.

— Kane, você não precisa fazer isso. Não estou


dizendo que não podemos nos casar um dia, mas acho
que temos, primeiro, que tentar ver se é o que realmente
queremos.

Franzi o cenho, começando a me estressar,


sentindo um gosto de rejeição.

Irônico pensar que ela deveria ter sentido a mesma


coisa quando estava grávida, assustada e abandonada por
um babaca que tirou sua virgindade e nem se lembrava de
seu rosto.
— Eu tenho trinta e seis anos, Iohanna. Sei muito
bem o que eu quero! — meu tom saiu um pouco rude
demais. Não parecia a atitude de um homem da minha
idade, para ser sincero.

— Não estou dizendo que não. Só acho que


podemos esperar um pouco. Não temos pressa.

— Meu filho vai crescer e precisa de um lar. O que


vai acontecer quando você for embora e levá-lo de mim?
— Essa é sua preocupação?

Passei as mãos pelos cabelos, compreendendo que


estava fazendo tudo absolutamente errado, só que incapaz
de perceber isso naquele momento e sem saber como
começar a acertar nas merdas que dizia.

— É uma delas. — Fiz uma pausa, respirando


fundo. — Eu perdi muito tempo com ele, não posso mais
permitir que isso aconteça.

— Kane, não é assim que vamos resolver as coisas.


Acho que...

— Porra, Iohanna! Você disse que tinha sentimentos


por mim.

— Eu tenho!

— Pois não parece. Estou te pedindo em


casamento! Não é possível que isso seja leviano para
você! — minha voz soou alterada, enquanto eu me sentia
um merda.
Eu podia dizer muitas coisas a ela, embora ainda
não compreendesse meus próprios sentimentos. E no final
das contas a garota tinha razão. Seria uma loucura darmos
aquele passo só por causa de Simon.

No entanto, com a cabeça enevoada pela surpresa


de ter recebido um não, acabei não pensando com lógica.

— Não é, Kane. Só que, além de mãe, eu sou


mulher. Não quero ir para o altar com alguém que só tem
interesse em se tornar meu marido por causa do meu
bebê.

Pretendia dizer mais alguma coisa, mas fiquei meio


sem fala. Percebendo isso, uma Iohanna muito madura e
gentil colocou a mão no meu braço, olhando nos meus
olhos.

— Acho que não estamos com cabeça para


continuar conversando sobre isso agora. Vou lá embaixo
pegar Simon, ficar um pouco com ele, tomar um banho e
mais tarde eu tento te explicar o meu ponto de vista, ok?
Ela se afastou e chegou a sair do escritório.

Era a forma prudente de lidar com as coisas, mas


tinha a impressão de que se a deixasse sair daquela forma,
a gente nunca conseguiria voltar àquela conversa sem nos
lembrarmos de como foi ruim da primeira vez.
Será que ainda dava tempo de dizer que eu sentia
algo por ela?
Merda, talvez eu estivesse até apaixonado. Era um
sentimento novo para mim, o que eu sabia sobre o amor?

Como iria reconhecê-lo se o sentisse?

— Iohanna? — Apressei-me para ir de encontro a


ela, chamando-a. Isso a fez parar em um dos degraus da
escada.
Provavelmente minha voz a fez sobressaltar, porque
no momento em que girou para olhar para mim, meio no
susto, percebi quando se desequilibrou e começou a cair.

Tentei correr em sua direção, mas era tarde demais.


A sorte foi que estava quase chegando ao primeiro andar,
e a queda foi só de quatro ou cinco degraus. Ainda assim,
senti meu coração sair pela boca.
Eu não me perdoaria se ela se machucasse.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Tentei respirar, mas até mesmo isso era difícil. Uma


dor insuportável me fez fechar os olhos e prender o ar,
enquanto minha costela latejava. Queria me movimentar,
verificar quais as extensões dos danos, mas minha cabeça
girou, e eu teria desmaiado, se os braços de Kane, ao meu
redor, não tivessem funcionado como um guindaste me
puxando de volta.

— Hanna? Hanna, amor... você está bem?

Em meio ao caos da minha quase inconsciência, a


primeira coisa que consegui pensar foi que ele nunca tinha
me chamado de “Hanna” e muito menos de “amor”.
Não consegui lhe responder, apenas soltar o ar com
um silvo, enquanto tentava fazer qualquer movimento para
compreender em que estado eu estava.

— Eu preciso te levar ao hospital. Precisamos ver...


Puta que pariu, Hanna! Meu Deus, me desculpa! — Kane
parecia transtornado, e eu queria dizer que não era culpa
dele. Não era culpa de ninguém. Eu poderia ter sido mais
cuidadosa ao me virar, ter terminado de descer os
degraus... Qualquer coisa.
Só que eu realmente não conseguia falar.

Sendo assim, ergui uma das mãos, pedindo um


tempo.

Eu só precisava ficar ali sentada, no chão mesmo,


tentando respirar, porque iria amenizar. Era só a dor da
pancada.

Talvez houvesse algum dano um pouco maior, mas


fora uma queda relativamente pequena. Não poderia ser
nada tão grave.

Não é?

— Fala comigo! Qualquer coisa! — ele exclamou,


parecendo cada vez mais desesperado. Seus olhos se
arregalaram de tal forma que jurei que iriam sair das
órbitas.

— N-não c-consigo... — foi tudo o que consegui


responder. Ao menos de início. Sem contar que tive uma
vontade enorme de rir por toda a situação. Isso me levou a
mais um acesso de dor.

— Não ria, garota doida! — Mas ele estava rindo


também. — Me deixa te ajudar, por favor...

— Ok! — Provavelmente a risada e o clima um


pouco melhor me fizeram relaxar o suficiente para
conseguir respirar e tentar me acalmar.

A presença de Marybeth, que veio correndo com um


pano de prato na mão, igualmente desesperada, também
foi relevante para essa melhora. A mulher tinha se tornado
uma figura materna para mim muito rápido.

— Meu Deus, menina! Você caiu?


Balancei a cabeça, enquanto Kane me ajudava a me
levantar. Dei um grito no momento em que precisei
remexer a cintura para me colocar de pé, mas consegui.

— Quer que eu te carregue? — Kane perguntou,


mas não conseguia nem pensar em ficar numa posição
razoável para isso.

Balancei a cabeça, e ele compreendeu. Cada um


dos dois se colocou de um lado, amparando-me, e assim
eu consegui ir andando até o sofá do hall da casa, que era
o mais próximo, embora ele fosse um móvel de aspecto
antigo, quase vitoriano, com espaldar alto. Acolchoado,
sim, mas não tão confortável. Ainda assim, era a melhor
opção pela proximidade.

Kane levou a mão ao meu rosto, tirando algumas


mechas de cabelo da minha testa que estava suada.

Continuei tentando puxar o ar mais profundamente,


e aos poucos foi se tornando mais fácil.

Marybeth – que Deus a abençoasse – desapareceu


em segundos e voltou com um copo d’água, além de um
analgésico, que eu esperava que fizesse efeito em tempo
recorde.
— Gente, mas como isso aconteceu? — ela
perguntou, ainda consternada.

— Eu fui um babaca com ela. Foi culpa minha —


Kane saiu falando antes que eu pudesse responder.
Cheguei a abrir a boca, para defendê-lo, mas ele não
deixou, interrompendo-me. — Agora eu preciso te levar ao
hospital. Consegue andar?
— Não sei. Não podemos pular essa parte, e eu só
ir para a cama? — Ao menos falar eu já estava
conseguindo. Mesmo que soasse apenas num sussurro.

— De jeito nenhum, menina! Precisa ver se não


fraturou alguma coisa. Vamos, vou ajudar o garoto a te
colocar no carro.
É, eu não ia conseguir fugir daqueles dois.

Marybeth ia ficar em casa, com Simon, e ao pensar


no meu bebê, meu coração já se apertou, doendo quase
um pouco mais do que minhas costelas, porque eu não
tinha sequer dado atenção a ele.

Mas faria isso quando chegasse em casa.

No carro, durante o trajeto para o hospital, Kane


parecia ainda muito alterado, tanto que permaneceu em
silêncio. Queria conversar com ele, dizer que não era sua
culpa, mas ainda estava começando a conseguir falar.
Ainda era difícil encontrar forças para pronunciar palavras.
Sendo assim, quando chegamos na emergência, fui
atendida rapidamente e levada para a sala de Raio X.

Já havia um hematoma se formando na minha


costela, ainda levemente avermelhado, mas que eu sabia
que ficaria roxo em poucos instantes. A dor ia amenizando,
por causa do efeito do remédio, mas também porque eu
comecei a ficar mais calma.

Quando chegou o resultado da radiografia, o médico


nos informou que eu tinha fraturado duas costelas. Não
havia muito o que ser feito, porque era um local difícil de
ser imobilizado, mas a recomendação era de repouso
completo. Nada de esforço.

Novamente no carro, ao voltar para casa, fiquei em


silêncio, controlando-me para não chorar. Claro que Kane
percebeu.

— Fala comigo, Hanna. Está com muita dor? —


indagou, preocupado.
— Não, não é isso. É só que... Não é a melhor hora
para precisar ficar de repouso, né? Será que ir à empresa
e ficar sentada em uma cadeira serve?

Kane chegou a rir.


— Não, querida. Você precisa ficar em casa, na
cama.

— A gente não tá com muito tempo para isso, né?


Sem contar que eles já têm certeza de que eu sou uma
aproveitadora, uma descansada, claro que vão achar que é
história minha.

— Eles podem achar mil coisas sobre você. O que


importa é a verdade. Sua preocupação agora precisa ser
melhorar.

É, ele estava certo.


Voltamos para casa, e Kane me ajudou a subir as
escadas para o meu quarto, enquanto eu choramingava de
dor. Quando já estava na cama, acomodada, Bethie trouxe
meu bebê para mim, e nós três – pai, mãe e filho –
assistimos a um filme, ali mesmo, até que eu dormisse.

Não foi tão ruim assim.


No dia seguinte, Kane levou o café da manhã para
mim, pedindo desculpas, e me deu um beijo tão gostoso de
bom dia, que eu comecei a pensar que não seria nada mal
ser mimada daquele jeito. Até mesmo o banho que me
ajudou a tomar, de banheira, esfregando minhas costas
com cuidado, principalmente por sobre o hematoma, me
fez acreditar que eu poderia sobreviver àqueles quinze dias
sem nenhum problema.

Não foi tão legal, no entanto, receber a notícia de


que Kane precisaria correr em outra cidade para resolver
um contrato importante com o qual surgira uma dúvida.
Qualquer um poderia ir em seu lugar, mas era um parceiro
de negócios com quem Finn tinha uma relação muito
pessoal, e ele não queria que isso se perdesse.
Sendo assim, acordei no dia seguinte da viagem –
setenta e duas horas depois do meu pequeno acidente –
sem o meu café da manhã na cama e sem o beijo de bom
dia.
Mas ainda não poderia reclamar. Kane retornaria na
noite seguinte, então não passaria muito tempo longe dele.

Para me distrair, fiquei com o notebook no colo,


trabalhando em meu romance, que já estava até atrasado
para sair, até que recebi uma mensagem no celular, da
minha tia.

TIA AGNES

Como vc etá, meu amo?

 
Ela e o dedinho que não conseguia digitar
corretamente de jeito nenhum...

IOHANNA:

Melhorando, tia.

Como estão as coisas por aí?

TIA AGNES:
Sauidade
De vc e do pequanp.
 

Demorei a entender do que ela estava falando, mas


compreendi que se tratava de Simon.
 

TIA AGNES:
E como ta o bbcão?

IOHANNA:

Bem.

Ele me pediu em casamento, sabe?

TIA AGNES:

O q? Comp asscm?

Não pude deixar de rir, porque conseguia imaginar


perfeitamente a reação dela, com olhos arregalados, ao
ouvir falar da proposta de casamento.

 
IOHANNA:

É, foi isso.
Só que, aparentemente, ele só quer se casar
comigo por causa de Simon.

TIA AGNES:

É bom p o mnnino ter um pau.

Não!

Um pau!

Não é iso!
PAI.

Um pai!
 

Caí em uma gargalhada imensa, que chegou a doer


a minha costela fraturada. Aquela era, sem dúvidas, uma
das maiores armadilhas que qualquer pessoa poderia cair
ao digitar em um celular.

TIA AGNES:

Ai, menina, eu já estou falanndo bwsteira.


 

IOHANNA:
Tá não, tia. Acontece.

Mas sobre Simon ter um pai, ele tem.


Kane é um bom pai. Não precisamos estar casados
para isso.

A não ser que ele se apaixone por mim.

 
TIA AGNES:

Pq você sempre foi apaxonad por ele, né?

Respirei fundo, quase chateada por aquela


resposta. Sim, eu sempre fui e ainda era apaixonada por
Kane. Isso era algo que não iria mudar.

Tanto que fiquei pensando em tudo o que havia


acontecido. Na verdade, por causa da confusão do hospital
e da dor, não levei em consideração a nossa conversa.

Sim, ele tinha me pedido em casamento. Qualquer


mulher poderia ter ficado lisonjeada com isso. Qualquer
mulher que não quisesse ser amada de verdade.

Por mais que a gente se desse bem na maioria dos


sentidos, e que os dois tivessem seguido em frente em
relação às coisas que poderiam nos prender ao
ressentimento, havia um abismo entre aceitar migalhas ou
querer um amor completo. Um relacionamento que me
proporcionaria não apenas segurança para mim e para o
meu filho, mas também... felicidade.

E, meu Deus, como eu queria ser feliz.


Mas ainda não achava que minha decisão fora
errada. Um dia Kane poderia ser meu, quando entendesse
que me queria de verdade.

Depois de parar de falar com a minha tia,


aconcheguei-me na cama, onde acabaria passando aquele
dia inteiro – como os anteriores e todos os próximos.

Não que eu estivesse reclamando, pois teria tempo


para adiantar meu trabalho. Só que eu sabia que ia sentir
falta da empresa. Mesmo com seus problemas, tinha se
tornado um refúgio para mim, um lugar que me dava prazer
em estar. Não só por ser a fábrica que sempre amei desde
criança, mas porque estava me dando um novo propósito.

Aquele lugar tinha a sua magia. Quem poderia não


gostar dele?

Mas os acontecimentos seguintes me fizeram


entender que o ódio podia fazer pessoas tentarem destruir
até mesmo os sonhos mais doces...
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Eu estava cochilando, agarrada a Simon, quando o


telefone tocou e me acordou. Olhei primeiro a hora,
passava um pouco das nove.

Atendi à ligação sentindo um aperto no peito, já


sabendo que não poderia ser algo muito bom.
— Srta. Ward? — a pessoa chamou, com uma voz
chorosa. Outros sons ao redor me preocuparam ao ponto
de eu até esquecer que estava com as costas doendo e
me levantar quase de um pulo da cama, colocando-me
sentada.

Eram sons de gritos, de coisas caindo, de confusão.

— Quem está falando?

— É o John, do T.I. da Sweet Haven. Senhorita, me


desculpa ligar a essa hora, mas temos um incidente na
fábrica.

Meu coração parou no mesmo instante.


— Que tipo de incidente?

— Ainda não sei direito. Chamamos a polícia. Eu


estava aqui com umas pessoas resolvendo umas
pendências, em hora extra, e ouvimos o barulho. A vitrine
de algumas lojas foi quebrada. Picharam muros, tinha o
seu nome em uma das mensagens, aliás...

— Meu nome?

— Sim, senhorita. Sinto muito.

Uma montanha-russa de sentimentos me invadiu.


Não apenas raiva por alguém ter tentado prejudicar o
patrimônio do meu filho, embora fosse mais do que óbvio
que era um dos motivos, mas porque eu amava a Sweet
Haven. Como alguém poderia ter coragem de destruir algo
tão bonito, tão lúdico? Sem contar que eram
estabelecimentos onde muitas pessoas trabalhavam, de
onde tiravam seu sustento.

Usaram meu nome na degradação daquele lugar


que era parte da minha vida desde que eu me entendia por
gente. Eu não podia ficar parada.

Levantei-me da cama, soltando um gemido ao pegar


Simon no colo. Ele era um bebê pesado, ainda mais
dormindo. Como seu pai era um homem grande, tinha
certeza de que o garoto ficaria bem alto. Isso, obviamente,
não foi nada bom para a minha coluna.

Precisava entregá-lo a Marybeth, embora temesse


que tentasse me segurar em casa. Mas eu precisava avisar
a alguém, sem dúvidas.

Desci as escadas com todo o cuidado, sentindo as


costelas latejarem e uma imensa vontade de voltar para a
cama. Só que o meu propósito era ainda maior.

Cheguei na cozinha e não só Bethie, mas os outros


funcionários também me olharam espantados.
— Menina teimosa! O que está fazendo em pé? E
com o Simon ainda! — Marybeth correu na minha direção,
pegando o neném dos meus braços.

Voltei-me para o motorista, que estava sentado,


lanchando.

— Desculpa interromper, Harry, mas você pode me


levar à fábrica? — Queria me mostrar firme, para ninguém
tentar me impedir, mas precisei respirar fundo, porque a
dor foi lancinante.

— Mas... senhorita... — o pobrezinho falou, meio


hesitante, olhando de um lado para o outro, buscando
orientação.
— Como assim ir à fábrica? O médico ordenou
repouso total.

— Bethie, confia em mim, eu ficaria em casa se não


fosse algo muito sério. Preciso ir, como... como dona da
fábrica. — Era a primeira vez que admitia aquilo em voz
alta. Na verdade, ainda tinha um pouco de dificuldade de
verbalizar que a Sweet Haven era um pouco minha.
— Não tem cabimento, Iohanna! — ela insistiu. —
Você não está bem.
— Eu estou. Só vou ver como estão as coisas e
volto. Se puder me ajudar, avisando a Kane... Sei que ele
está longe, mas precisa saber.

A mulher respirou fundo, obviamente não tendo


como negar. Apesar de não me comportar daquela forma,
eu era patroa dela. Minha vontade acabaria prevalecendo.
Harry pegou seu sanduíche, levando-o consigo para
o carro, e nós partimos.

No momento em que entramos pelos portões da


Sweet Haven, a dor foi completamente esquecida. Tudo o
que eu conseguia ver era a confusão. Sirenes de polícia e
várias pessoas reunidas, filmando, tirando fotos e se
aglomerando ao redor da entrada. Cada um queria um
pedacinho da fofoca.
Chegando mais perto das lojas, a dor retornou. Mas
não na coluna, como era de se esperar. Uma dor no
coração. Uma que afundou meu peito de uma forma que
jurei que mal conseguiria respirar.

— Mas o que aconteceu aqui? — Harry perguntou,


mas tive a impressão de que falava mais para si mesmo do
que qualquer outra coisa.
— Invadiram. Parece que deixaram um estrago...

Em cada vitrine, em cada muro, lá estava o meu


nome. Ao lado de xingamentos como “vadia”, “puta”.
Também frases como “vá embora”, “seu lugar não é aqui”.

Claro que isso me incomodava. Não era possível


que depois de meses trabalhando ali, convivendo com
aquelas pessoas dia após dia, elas ainda não me
aceitassem.

Saltei do carro, novamente ignorando a dor,


caminhando assim que vi Jennifer. Quase nem me despedi
de Harry, mas também nem precisei, porque ele veio atrás
de mim.

Apesar de a mulher também ser do grupo que


gostava de criar confusão comigo, ela era um rosto
conhecido e de autoridade por ali, no meio dos outros. Foi
dela que me aproximei, porque precisava de algumas
orientações.

Além do mais, eu a vi parada, com a mão na cintura,


observando enquanto outros rostos conhecidos, mas de
funcionários de escalão mais baixo, colocavam a mão na
massa, ajeitando a bagunça, catando o lixo e limpando
vidros.

— O que aconteceu? — Parei do lado dela, levando


uma das mãos à costela, fazendo uma careta de dor.

Jennifer me olhou com os olhos arregalados, muito


assustada.
— Iohanna? Sinto muito... Já deve ter visto o que
escreveram. — Ela parecia sincera.
— Sim, já vi, mas isso não vem ao caso. O que
posso fazer para ajudar?

— Cheguei quase agora. Ainda estou meio


atordoada, mas...

Eu não tinha tempo para ficar atordoada. O que quer


que precisasse fazer, não podia esperar. A Sweet Haven
precisaria voltar a funcionar o mais rápido possível, porque
famílias dependiam disso.

Não permiti que ela terminasse de falar e logo fui em


direção a um grupo de pessoas que lavavam uma das
vitrines. Não demorei a conseguir um balde extra, uma
esponja e um pouco de produto para tirar a tinta.

Jennifer parou do meu lado e colocou a mão no meu


braço:
— Você não está machucada? — perguntou,
provavelmente porque estava vendo minhas expressões de
dor, que não conseguia disfarçar.

— Não importa. Isso aqui é mais importante.

Parecendo pensativa, ela assentiu. No segundo


seguinte eu a vi se movimentando, pegando uma vassoura
e começando a varrer os cacos de vidro de dentro da loja,
além da sujeira.

Ótimo, eram mais duas mãos para ajudar.

E nós precisávamos de muitas.


CAPÍTULO VINTE E SETE

Fiquei surpreso ao perceber que eu estava louco de


saudade. De Simon, é claro, mas também de Iohanna.
Foram menos de dois dias afastados, mas eu não via a
hora de chegar em casa, ver como estava e mimá-la um
pouco mais.

Não importava nem um pouco que não pudéssemos


fazer amor, por ela estar machucada. Não importava se só
me fosse permitido que a abraçasse e a mimasse. Eu
queria estar com ela.
Para o inferno se eu não estava apaixonado.

E mais ainda: eu era um babaca por não ter dito isso


logo.

Ela tinha razão em não apressar o casamento. Se


conseguisse convencê-la a permanecermos em Port
Haven por mais algum tempo, vivendo juntos, a
convivência poderia nos levar a algo mais. Ou a uma
amizade, talvez, caso as coisas não dessem certo.
Mas... puta que pariu. Ficaria louco se
desistíssemos de um relacionamento e eu precisasse vê-la
com outro cara.
Amizade o caralho! Eu queria aquela mulher para
mim.

Estava exatamente pensando nisso enquanto


dirigia, voltando para o hotel onde fiquei hospedado,
sentindo um enorme vazio.

Na noite anterior eu jantei sozinho, me deitei em


uma cama enorme e sem companhia, e tive um sono
agitado e nada agradável. Acordei várias vezes durante a
madrugada, pensando em cometer uma loucura e voltar
para casa àquela hora mesmo, só para ir dormir com
Iohanna e para ver meu filho.

Era impressionante como as pessoas conseguiam


se tornar mais do que importantes para você em tão pouco
tempo. Elas se tornavam essenciais.
Só não fiz isso e peguei a estrada, porque teria que
almoçar com o empresário parceiro no dia seguinte,
quando estava previsto que eu visitasse sua casa, para
conhecer sua esposa e almoçarmos juntos. No entanto, era
uma cortesia apenas. Eu não tinha sequer dado certeza.
Sem dúvidas poderia inventar uma desculpa, usando
Iohanna e seu machucado. O universo não iria me castigar
por isso, porque não era uma mentira.
Com isso em mente, decidi seguir minha intuição e o
impulso. Quase enfiei o pé no acelerador, mas me contive
quando um senso de responsabilidade me alertou que um
pai não poderia mais se colocar tanto em risco, em nome
de seu filho.

Simon, sem nem saber, já estava fazendo com que


eu me cuidasse melhor também.

Ainda assim, cheguei em casa em pouco mais de


uma hora e meia, porque a cidade ficava próxima. Entrei
pelos portões da mansão, já sentindo a deliciosa sensação
de lar.

Pensei que todo mundo estivesse dormindo, porque


já passava de meia-noite, mas encontrei as luzes acesas, e
Marybeth veio me receber com uma expressão aflita.

Imediatamente pensei em Simon e em Iohanna.

— O que aconteceu? Por que vocês estão


acordados? — Olhei ao redor dela e vi os outros
funcionários, menos Harry.

— Aconteceu uma confusão na fábrica. Pelo que


entendi, invadiram e quebraram coisas. Vandalismo.

Meus ombros caíram, sentindo-me um pouco


confuso. No caminho que eu fazia de volta para casa, não
passava pela Sweet Haven. A fábrica ficava em um ponto
mais afastado da cidade, exatamente por estar localizada
em um terreno enorme, que comportava todo o seu
tamanho opulento.
— Onde está Iohanna? — Foi a primeira coisa que
pensei, porque não duvidei nem por um segundo que ela
estaria muito angustiada.
— Aí está o problema. A menina recebeu a notícia e
foi para lá. Disse que só ia ver como as coisas estavam,
mas ainda não voltou.

— Quanto tempo tem isso?


— Umas duas horas ou mais.

— Puta que pariu! — vociferei, mas em um tom


baixo, levando uma das mãos à cintura e outra à cabeça,
começando a andar. — Aquela louca está machucada. Não
deveria nem ter saído de casa!
— Tentei impedir, mas... mas ela nem me ouviu.

Bufei, sabendo que nenhuma daquelas pessoas que


estava ali poderia ter proibido Iohanna de sair, porque ela
era a chefe. Ela mandava. Ainda assim, queria que alguém
tivesse jogado aquela doida dentro do quarto e a trancado
lá.

Sem dizer nada, comecei a me mover, indo em


direção à saída.

— Kane, o que vai fazer? — Marybeth veio atrás de


mim.
— Ver como estão as coisas na fábrica e buscar
aquela teimosa.

— Não brigue com ela. A menina tinha boa intenção.


Lancei um olhar para a mulher, assentindo.

— Eu sei disso, Bethie. Pior que eu sei.

Iohanna sempre tinha a melhor das intenções.


Duvidei dela por tempo demais, mas não iria mais fazer
isso. A mulher era feita de amor, com aquele coração puro
e gentil. Não havia nada em relação a ela que eu não
conseguisse admirar.
Só que essa admiração inflou o meu peito de um
jeito que me provocava um misto de emoções. Ao chegar
na fábrica e vê-la de longe, movendo-se de um lado para o
outro, carregando um balde pesado, parando de frente
para uma vitrine pichada, para esfregá-la, tudo o que
consegui foi sentir um imenso amor e orgulho pela
guerreira que eu tinha ao meu lado, mas também
preocupação e raiva, por vê-la se esforçando tanto, depois
de ter recebido ordens para ficar em repouso por conta de
seu estado.

Vários rostos conhecidos da fábrica passavam de


um lado para o outro, e eu percebia que muitas coisas
estavam em ordem. As pessoas tinham se empenhado
verdadeiramente para aquele resultado, para salvar as
instalações da fábrica, embora, sem dúvidas, fosse visível
que o estrago tinha sido enorme.

— Kane? — Virei-me na direção da voz feminina,


sentindo que a pessoa parou ao meu lado.
Imediatamente vi Jennifer, completamente diferente
da imagem que sempre apresentava na empresa.

Naquele momento, seus cabelos estavam


bagunçados, presos em um coque, e sua blusa, antes
branca, estava imunda, amassada. Havia suor em sua
testa e até uma mancha de sujeira, o que me fazia pensar
que tinha passado a mão por ali, para se limpar, mas
acabara piorando a situação.

— Ainda bem que você chegou. Pode pedir, por


favor, para que Iohanna pare? Ela está trabalhando à
exaustão. Não reclamou de dor uma única vez, mas tenho
certeza de que está mal, porque chegou a cambalear mais
de uma vez.

Aquela mulher estava defendendo Iohanna? Depois


de ter ido contra ela mais de uma vez? Era surpreendente.

Busquei a doida da mãe do meu filho novamente e a


vi parada, diante da vitrine que limpava, precisando apoiar-
se nela. Respirava com dificuldade e levou a outra mão,
que não segurava o pano, à costela; a mesma que
fraturara.

Comecei a caminhar em direção a ela, com Jennifer


ao meu lado.

— Tinha o nome dela por toda parte, Kane —


Jennifer falou, com verdadeiro pesar na voz.
— Como assim?
— Xingamentos, ameaças, pedidos que fosse
embora. Encontraram algumas imagens na câmera de
segurança, e a pessoa estava mascarada, mas conheço o
agasalho que estava usando. Tinha a logo de uma
universidade. A mesma onde o filho de Gordon estudou.
Precisei parar por alguns instantes, ouvindo aquela
revelação.

Olhei ao meu redor, compreendendo que as coisas


pareciam muito melhores, porque todas aquelas pessoas
tinham se esforçado para que ficasse assim. O que me
assustava era pensar que alguém, por causa de um
ressentimento infundado, tivera coragem de destruir a
própria empresa na qual trabalhava. O lugar de onde tirava
seu sustento.

— Não estou querendo acusar, mas acho que se foi


ele mesmo, precisa pagar por isso. Sei de uma história que
Finn cogitou contratar o rapaz para a posição que Iohanna
ocupa agora. Não como dona ou parte da alta hierarquia,
mas com a mesma função.

Tudo fazia muito sentido. O ódio de Gordon, a forma


como lidou com Iohanna desde o início... Não era apenas
uma mágoa qualquer. Era inveja.
Uma perigosa inveja.

Eu ia dizer alguma coisa, mas olhei outra vez para


Iohanna e vi seu corpo arquear para trás. Seus olhos
reviraram nas órbitas, e eu precisei correr para alcançá-la.
Segurei-a antes que caísse, porque já estava perto
o suficiente para isso, e a sustentei nos braços, ouvindo
um gemido de dor que me partiu o coração.

Ela estava exausta. Provavelmente sentia uma dor


insuportável. Mas era imparável. A mulher mais incrível
que eu poderia ter conhecido.

— Hanna? Amor? — chamei, ainda amparando-a.

Seus olhos permaneceram fora de foco por um


tempo, mas logo buscaram os meus, parecendo tristes,
cansados.

— Kane... eles destruíram tanta coisa... — Ao falar


isso, Iohanna começou a chorar, e eu senti ainda mais
raiva.

Como eram capazes de desejar mal àquela mulher?

Segurei-a com ainda mais cuidado, erguendo um


pouco seu rosto e beijando-o. Não havia mais nenhum
resquício do nome dela espalhado, e eu fiquei feliz que
isso tivesse sido logo eliminado, porque se eu visse, iria
acabar com alguém de porradas ali dentro mesmo.

— Tiraram fotos? — perguntei para Jennifer, que


estava ao meu lado, olhando para Iohanna com
compaixão.

— Sim. A polícia ainda está aqui averiguando. Foi


até a fábrica. Contei para eles o que sabia, Kane. Espero
que eu não esteja enganada.
— Tenho quase toda a certeza de que não está.

Iohanna tentou se remexer nos meus braços, mas


soltou mais um gemido.

— Não vai a lugar algum, garota teimosa —


sussurrei para ela, com um tom de voz indulgente, cheio de
ternura. Não queria discutir. Queria beijá-la e niná-la e
enchê-la de amor por tudo o que tinha feito, embora ainda
me preocupasse que tivesse feito tanto esforço estando
machucada.
— Ainda tem muito a fazer, eu não posso ir...

Antes que ela tentasse insistir, eu me agachei e a


peguei no colo, com todo o cuidado. Mesmo assim, acabou
fazendo uma careta, mas não havia jeito de tirá-la dali.
Algo me dizia que nem caminhar até o carro conseguiria
sem cair no chão.

Jennifer esticou a mão e tocou o braço de Iohanna,


parecendo muito mais gentil do que em qualquer outro
momento anterior.

— Vou cuidar de tudo, fique tranquila.

Vi Iohanna assentir e finalmente encostar a cabeça


no meu peito. Não colocou os braços ao redor dos meus
ombros, porque sentia que mal conseguia erguê-los.

— Onde estão os outros? — perguntei a Jennifer,


falando sobre os diretores e gerentes que adoravam
participar dos complôs, mas que pareciam ter se tornado
fantasmas no momento mais difícil.
— Liguei para todos eles, Kane. Nenhum se dignou
a vir.

— Bom saber. — Comecei a caminhar com Iohanna,


deixando Jennifer ali, em frente à vitrine que ainda
precisava ser limpa. — Diga a eles, quando puder. Fale o
estado em que tirei Iohanna daqui. Conte o quanto ela
trabalhou, estando em recuperação, e o quanto deu de si
em nome da Sweet Haven. Vamos conversar a respeito de
merecimento e de caráter. — Fiz uma pausa, sentindo que
estava irritado ao extremo. — Vou deixá-la em casa e volto
para ajudar.

A mulher assentiu, e eu levei Iohanna para o carro,


sentindo-me completamente zonzo com toda a confusão.

Ela dormiu todo o caminho para casa, então eu a


levei até o quarto, com uma Marybeth muito preocupada
atrás de mim, e a coloquei na banheira, depois de despi-la.
A água morna em contato com seu corpo a fez suspirar,
mas não acordou.

Nem mesmo quando esfreguei cada centímetro de


sua pele da forma mais delicada que consegui,
especialmente a parte do hematoma – que ainda estava
bem feio – tentando manter minha calma enquanto
pensava no que Jennifer dissera sobre ser o filho de
Gordon um dos responsáveis.

Não duvidava em nada que estivesse ali a mando


do pai.
Quando deixei Iohanna na cama, depois do banho,
voltando para a fábrica para tentar fazer a minha parte, eu
tinha duas certezas: ninguém nunca mais faria mal a ela,
nem mesmo com o assédio moral que chegara longe
demais, e aquelas pessoas pagariam.

Nunca mais poriam o pé em Sweet Haven.

Eu tinha certeza de que meu pai aprovaria cada


uma das minhas decisões.
CAPÍTULO VINTE E OITO

A jornada fora cansativa naquela madrugada.

Voltei ao cenário do caos e tentei ser útil, da melhor


forma que pude. Arregacei as mangas e fui ajudar as
pessoas a carregarem coisas, a organizarem o possível
dentro das lojas, mas principalmente tentei calcular o
prejuízo e pensar em formas de consertar o que seria
possível consertar no mínimo de tempo possível.
As lojas precisariam ficar fechadas, e por mais que o
maior lucro da fábrica viesse das exportações e vendas
fora do mundinho da Sweet Haven, precisaríamos lidar
com aquele período da melhor forma possível,
principalmente levando em consideração que a data da
festa estava chegando.

Ainda teríamos alguns meses pela frente, para


organizar tudo – e daria tempo de deixar as coisas
certinhas como antes –, mas precisaríamos de bastante
planejamento e esforço de toda a equipe.
Ou melhor... de toda a equipe que restaria.

Mas aquele era um pensamento para o dia seguinte,


onde eu convocaria uma reunião na qual precisaria cortar
algumas cabeças e pensar no que faria com outras.
Jennifer iria me ajudar. Não sabia se por querer ser puxa-
saco e traíra com seus antigos parceiros de crime, mas ela
parecia muito mais aberta a Iohanna depois de vê-la
ajudando tanto.

Para ser sincero, sempre foi a menos escrota do


time e merecia um pouco de crédito por isso.

Ainda assim, antes de voltar para casa, eu tinha


uma missão a cumprir.

Acabara de amanhecer; o céu ainda sustentava


seus tons alaranjados, quando eu me vi batendo na porta
da casa de Gordon Loomis.
Claro que a polícia iria lidar com ele, mas havia
coisas que eu queria resolver pessoalmente.

Fui atendido por uma funcionária da casa, mas pedi


que ela acordasse o patrão em caráter de urgência. Não
era possível que o filho da puta decidisse se esconder.
Ou melhor... eu não deveria duvidar de
absolutamente nada.

Ele já sabia, sem dúvidas. Desceu as escadas ainda


fechando a faixa do robe, tentando um sorriso muito
forçado.
— Bom dia, Kane. Em que posso te ajudar?

A minha vontade era partir para cima dele, sem


muitas explicações, com uma porra de um soco em sua
cara. Só que me segurei, porque queria tentar ser
civilizado, ao menos de início.

— Ficou sabendo sobre o incidente da fábrica


ontem? — joguei, só para saber qual ia ser a sua reação.

— Ah, claro, claro. Uma vergonha. Não sei como as


pessoas podem ter coragem de destruir assim, sem
propósito.

— Sem propósito? — Ergui uma sobrancelha, quase


cínico.

— Claro. Nada foi roubado, não é?

— Não. Nada foi roubado — respondi, analisando


sua cara de pau.

— Ao menos isso. Sei que teremos um trabalho


grande pela frente, mas...

— Você não terá nada — falei com convicção,


interrompendo-o. — A partir de agora, se não for preso,
não vai mais aparecer com essa cara de merda na Sweet
Haven. Se tiver coragem, eu vou te colocar para fora, que
nem o lixo que é.

Gordon paralisou por alguns instantes, olhando para


mim, muito sério. Se precisasse ser ator para sobreviver,
passaria fome, porque não conseguia nem disfarçar suas
reações.
— Não tem o direito de fazer isso — ele falou, ainda
mantendo a calma, mas eu era quem estava a um passo
de perder a cabeça por completo.

— Aquela fábrica é minha. Minha e de Iohanna.


Você não põe mais os pés lá ou vai sair algemado. Está
demitido.
Seu rosto começou a ficar vermelho, como se
estivesse prestes a explodir.

— Seu moleque de merda, não pode me demitir. Eu


trabalho lá há vinte anos. Seu pai me contratou, e ele não
ia querer que...
— Que você mandasse seu filho para destruir tudo o
que ele se fodeu por anos para construir? — também
alterei o tom de voz.

Gordon se empertigou.

— Está fazendo uma acusação muito séria. Posso


te processar por isso.

Dei um passo à frente, colocando-me muito próximo


dele.
— Tente.

Com a minha determinação, ele pareceu um pouco


menos corajoso.
— Onde está seu filho, aliás? — perguntei, ainda
sem me afastar, mas ele fez o favor de dar dois passos
para trás.

— Meu filho? Viajou ontem de tarde...

Um sorriso debochado curvou um canto do meu


lábio.
— Ontem de tarde? Que curioso... — Cruzei os
braços contra o peito. — Fiquei sabendo que um dos
nossos estagiários saiu com ele para beber à noite e que
ele desapareceu antes de tudo acontecer. Além do mais,
as imagens da câmera mostram coisas bem interessantes.
Inteligência nunca foi uma das armas do Gordon Junior,
não é mesmo?

O maxilar dele se contraiu e seu lábio inferior


tremeu. Os olhos adquiriram um brilho nada saudável, mas
não senti medo. Nem mesmo quando partiu para cima de
mim, agarrando a gola da minha blusa.
— Não vai acusar meu filho, seu babaca. É um
garoto promissor. É meu herdeiro!

Não demorei nem dez segundos para conseguir me


desvencilhar e mudar o jogo. Eu não ia agredir o cara, mas
ele estava pedindo. Com o punho fechado, virei um soco
em seu queixo, o que o fez cambalear e cair no chão como
uma banana podre.
— Eu tenho muito mais motivos para te enfiar a
porrada, Gordon, principalmente o jeito como sempre falou
com a minha mulher...

Precisei parar por alguns segundos pensando em


como aquela expressão soava.

Minha mulher.
Iohanna não era minha esposa, nem minha noiva,
nem mesmo minha namorada. A gente tinha um
relacionamento, que não ganhara rótulos até aquele
momento, mas o sentimento de que queria que ela fosse
algo mais para mim começara a existir desde o momento
em que compreendi que não queria ficar sem ela.

Não tinha nada a ver com Simon, porque ele sempre


seria meu. Tinha a ver com o quanto eu a admirava, o
quanto a respeitava e o quanto desejava tê-la em minha
vida para sempre.
Eu deveria tê-la protegido bem mais desde o início.
Não tirar aquele infeliz de seu alcance era uma das coisas
das quais me arrependia, mas antes tarde do que nunca. O
problema fora o caos que causara. E isso não poderia ser
desfeito.

— Sua mulher? — Ele também percebeu, é claro. —


A vadiazinha já deu pro pai e pro filho? Que espertinha.
Será que não daria para todos os diretores e gerentes para
garantir mais ainda do que já tem?
Eu não pretendia agredi-lo mais, e sabia que sua
intenção era exatamente me fazer perder a cabeça, mas o
que poderia fazer? Deveria ser o meu papel proteger o
nome de Iohanna, e ela tivera que lê-lo de várias formas
indevidas naqueles muros e vidros. Cheguei a ver as fotos
que foram tiradas, antes de a polícia chegar, e fiquei
enojado.
Naquele momento eu tinha que lidar com um
desgraçado usando os mesmos termos para se referir a
ela. E porra... eu não tinha sangue de barata. De forma
alguma.

Mas até que consegui me conter o máximo possível,


dando só mais dois socos. A verdadeira vontade era
acabar com ele, mas sabia que isso tiraria a minha razão.
Segurando-o pela gola do robe, eu ergui seu tronco
do chão e apontei para sua cara, esperando soar bastante
ameaçador com o que precisava falar.

— Estou te dando um conselho: esqueça que


Iohanna exista. Vá buscar outra coisa para fazer. Vou
deixar a polícia avisada, e eles já estão atrás do seu filho.
É questão de tempo para que seja preso e que caia um
belo de um processo no seu colo. Vamos tirar até seu
último centavo, mas podemos ser um pouco mais
benevolentes nessa parte se jurar sumir e deixar minha
mulher em paz.
Ele não falou nada, apenas assentiu. Se era
verdade, só o tempo poderia dizer. Ainda assim, imaginava
que a polícia lhe daria um belo susto depois que
descobrissem que não era apenas seu filho que não era
inocente.
Saí de sua casa e passei na minha, para tomar um
banho e me arrumar. Estava cansado, com os músculos
doloridos pelo trabalho pesado, mas tinha muito a fazer.

Dei um beijo em Iohanna, que ainda estava


dormindo depois da noite tumultuada, e peguei meu filho,
ficando um pouquinho com ele, esperando compensar os
dois mais tarde.

Ao partir para a Sweet Haven, decisões seriam


tomadas.

Assim que fechei a porta da sala de reunião, as


pessoas já sabiam. Apenas Jennifer permaneceria e
receberia um aumento. Alguns seriam demitidos, outros
teriam apenas mais uma oportunidade, porque foram
menos grosseiros com Iohanna.

Aquela seria a métrica. E eu estava pouco me


lixando para quem me julgasse por isso.

Apesar de saber que estava certo, porque


desrespeito era algo que nunca poderia tolerar, ainda voltei
para casa com uma sensação ruim de que tinha tirado o
emprego de algumas pessoas. Não de Gordon. Aquele
filho da puta merecia era cadeia, mas de outros.

Pensando nisso, deitei-me ao lado de Iohanna, na


cama, depois de um banho. Ela dormia em seu quarto,
com o pequeno na cama, do lado, também cochilando.
Remexeu-se ao me sentir rodeando sua cintura com
o braço.
— Eu dormi o dia inteiro — ela falou com a voz
ainda sonolenta. Havia um notebook sobre a cama
também.

— Parece que nem tanto. Estava usando o


computador, aparentemente.

— Trabalhando... — respondeu meio grogue.

— Coisas da Sweet Haven?

— Não. Já disse que trabalho em outra coisa


também.

Era verdade, ela tinha mesmo falado. Só que na


época em que comentou, eu não me sentia no direito de
perguntar sem parecer um fofoqueiro, já que não tínhamos
a menor intimidade.

Mal sabia eu que tínhamos um filho juntos e que


fora eu o responsável por tirar sua virgindade.

— Perdão, linda. Você realmente falou, mas achei


que tinha parado. O que você faz, afinal?

— Sou escritora de romances.

Uau, aquilo realmente me surpreendeu.


— Tem algum livro publicado?

— Vários. Todos em e-book.

— Posso ver?

Ainda com a cabeça enterrada no travesseiro, de


olhos fechados, pronta para pegar no sono mais uma vez,
Iohanna assentiu.

Fui caçar o nome dela no site mais famoso de e-


books e encontrei muitos, realmente. Ao contar, percebi
que havia mais de doze obras. Pelas capas, não eram
apenas romances. Eram histórias sensuais.

— Você me deixa ler algum?


— Estão online. Qualquer pessoa pode ler...

Bem, ela estava certa.

Sendo assim, decidi começar pelo mais recente.


Usando seu próprio notebook, comprei o livro e comecei a
ler pelo aplicativo que ela tinha instalado. Enquanto isso,
Iohanna adormeceu novamente, e eu fiquei fazendo
carinho em seus cabelos, enquanto desbravava o universo
dos seus romances, sentindo-me cada vez mais e mais
admirado e orgulhoso da mulher que eu queria
desesperadamente que se tornasse minha.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Levando em consideração a quantidade de esforço


que fiz no dia da confusão na fábrica, eu poderia dizer que
minha recuperação foi bastante rápida. Em exatos quinze
dias eu não sentia mais dor nenhuma.

Kane me levou novamente ao hospital, eu tirei mais


uma radiografia e, de acordo com o médico, a fratura tinha
diminuído. Quase nova em folha.
Com isso, voltei a trabalhar e à vida normal.

Era estranho participar de uma reunião e não ver


alguns rostos familiares, mas precisava admitir que não
sentia falta da maioria deles, em absoluto. Muito menos de
Gordon.

Kane, aliás, me contara que o filho dele tinha sido


preso, que iria responder em liberdade por ser réu primário,
mas que um processo estava sendo movido. Uma grana
absurda seria pedida, o que levaria Gordon facilmente à
falência.
Eu poderia sentir pena... mas, não. Ele merecia
muito mais.

Em casa, entretanto, as coisas não poderiam estar


melhores. Kane era atencioso comigo e com Simon, e eu
só sentia falta de que viesse me procurar para o sexo.

Nossa, eu estava ansiosa para o momento em que


me tocaria novamente, embora soubesse que
provavelmente estava dando algum tempo até que me
recuperasse por completo.
Eu já me sentia bem o suficiente, mas um homem
cuidadoso era algo a se levar em consideração.

Cinco dias depois de eu retornar à empresa, em


uma sexta-feira, nós retornamos para casa depois do
expediente, jantamos e passamos algum tempo juntos com
Simon, como sempre. Ao irmos para o quarto, jurei que a
ideia seria dormir, mas Kane me puxou para si, fazendo-me
bater de encontro ao seu peito, e me beijou como não
beijava há dias.

Não que não se aproximasse daquele jeito, mas


havia algo de diferente na forma como seus lábios
reivindicaram os meus. Eu sabia que aconteceria naquela
noite.

Só precisei alimentar esse pensamento para sentir


minha boceta latejar.

Mais ainda quando as mãos fortes de Kane


começaram a me apertar. Ele segurou cada um dos lados
da minha cintura, enterrando os dedos na minha carne,
enquanto soltavam um leve grunhido contra a minha boca,
sem interromper o beijo.
— Senti sua falta — falei, soando quase arfante,
quando ele deu uma pequena trégua para mordiscar meu
queixo, enquanto me enlaçava com os dois braços,
espalmando minhas costas, cheio de pegada.

— Eu também. Mas ainda temos pendências a


acertar...

Ao dizer isso, tirou minha blusa, meu sutiã, fazendo-


me ofegar em expectativa. Também o vi começar a abrir o
cinto que estava preso em sua calça.

— Como assim?

— Quase perdi dez anos da minha vida, por


preocupação, ao te ver lá na fábrica, trabalhando, estando
machucada. Não acha que merece uma punição por isso?

Afastei-me imediatamente, arregalando os olhos.

— O que vai fazer? — Fiquei ainda mais surpresa


quando o vi segurando o cinto em ambas as mãos.

Então ele me girou de costas para si, e se


aproximou, sussurrando no meu ouvido.
— Nada que você não tenha feito com alguma de
suas personagens. E elas parecem gostar bastante.
Meu Deus! Ele tinha mesmo lido meus livros?
Mal tive tempo de perguntar muito mais, porque
Kane uniu meus dois punhos nas costas e usou o cinto
para prendê-los. Tirou-me do chão e foi até a cama,
sentando-se na beirada dela, colocando-me deitada sobre
seus joelhos, com o bumbum empinado para cima e o
tronco arqueado para baixo, como se fosse me dar
palmadas.
Bem, e ele o fez. Mas de levinho, espalmando a
minha bunda sob a saia rodada que eu usava, causando
uma ardência que nem era incômoda, só gostosa.

Só que não foi só isso que ele fez. Afastando a


minha calcinha, ele levou um dedo à minha boceta,
penetrando-a e encontrando rapidamente meu ponto mais
sensível.

Gemi alto, não só pela sensação, mas por tudo.

O cara estava imitando exatamente uma das minhas


cenas de sexo favoritas de um dos meus livros. Ele não só
devorara meus romances, como entendera que eu
realizava algumas das minhas fantasias por intermédio das
minhas personagens.

Isso tornava tudo ainda mais excitante.

Outro tapa me fez soltar mais um gemido. Eu não


estava esperando que ele cumprisse toda a cena, mas
Kane ainda levou a mão à minha boca, cobrindo-a para
abafar os gemidos, exatamente como o mocinho do livro
fizera.
Eu podia gritar o quanto quisesse.

A força da sua mão investindo contra minha boceta


molhada me fez querer ainda mais, tanto que não consegui
suportar parada e me remexi também, rebolando em seu
colo, o que me fazia ganhar mais palmadas, que eram
intercaladas com estocadas.

Kane soltou minha boca em certo momento, só para


brincar com meu mamilo, o que também não estava na
cena do livro. Além de tudo, seu polegar massageava meu
clitóris, e eu me sentia zonza de tão louca que eu ia
ficando com todas as reações do meu corpo.

— Goza para mim, linda. Vai...

Como não atender a esse pedido?


Eu já não estava muito longe do orgasmo, então não
foi difícil me sentir chegando lá, mais e mais, até que ele
explodiu. Soltei outro gemido lento, alto e lânguido e me
entreguei, deixando que meu corpo despencasse sobre
suas pernas, ganhado algum tempo apenas para me
recuperar.

Busquei o ar desesperadamente, enquanto Kane


massageava meu bumbum, que deveria estar vermelho.
Depois de algum tempo, as palmadas se tornaram um
pouco mais fortes, mas ainda não o suficiente para me
machucar. Ele dosava bem a força, o que só servia para
me deixar muito excitada.
Quando percebeu que eu já estava recuperada,
ajudou-me a ficar de pé, mas não me soltou.

Olhando para mim de um jeito predatório, tirou a


roupa, começando pela calça, cueca e depois a camisa.
Completamente nu, puxou-me pelos quadris, agarrando
minhas coxas e me tirando do chão, colocando-me
perfeitamente sentada sobre seu colo, montada nele.

Nós dois nos remexemos para que eu pudesse me


sentar e seu pau se encaixar dentro de mim com a
perfeição de sempre.

Porque era perfeito. Sentir Kane dentro de mim me


dava uma sensação de poder, de força, de plenitude, que
eu sabia que jamais conseguiria encontrar com outro
homem.

Eu o tinha escolhido para ser o meu primeiro, e não


importavam todos os percalços que nos levaram até ali.
Ainda faria a mesma escolha um milhão de vezes.
Comecei a me mover, ao mesmo tempo que ele
também se remexia, e não demoramos a encontrar um
ritmo juntos. Aproveitando que eu estava com os braços
para trás, Kane agarrou o cinto, puxando-me e me fazendo
arquear as costas, inclinando-as e lhe dando total liberdade
para chupar meus mamilos. Um de cada vez. Sem pressa.

Soltei mais um gemido que era quase um


choramingo profundo, principalmente quando ele espalmou
minha bunda, levantando-me um pouco do seu colo e me
fazendo subir e descer em seu pau, primeiro devagar e
depois com força.

Conforme seu prazer foi aumentando, ele foi se


tornando mais feroz, tanto ao puxar meu corpo para cima e
para baixo, quanto com a boca. Saindo dos meus mamilos,
buscou meus lábios, beijando-me de língua, quase
selvagem, investindo tudo em todos os sentidos.

O orgasmo veio novamente para mim, enquanto eu


era beijada e fodida de um jeito que poderia fazer meu
corpo inteiro incendiar e minha mente derreter. Sentindo a
chegada do meu gozo, Kane também se libertou, e nós
chegamos ao clímax juntos.

Ele me soltou, e eu pude abraçá-lo, o que nos


permitiu ficar naquela posição, com ele dentro de mim, por
alguns minutos, enquanto nossos corações se
conectavam, em batidas perfeitas, em uníssono.

— Você realmente leu meus livros? — Não era


exatamente um assunto para um pós-sexo, mas eu estava
muito curiosa.

— Quase todos. Faltam dois apenas. Mas acho que


consegui reunir muitas informações interessantes. Estou
ansioso para colocar em prática.

— Eu também...

Com isso ele me beijou novamente, e nós nos


deitamos, rindo, enquanto eu tentava me lembrar o que
mais tinha escrito naquelas histórias para adivinhar o que
estava por vir.
CAPÍTULO TRINTA

ALGUNS MESES DEPOIS

Ela parecia uma fada. Um vestido rosa, cabelos


perfeitamente cacheados, com os olhos muito azuis
brilhando de felicidade. Mesmo sem asas, eu poderia jurar
que era assim que aquelas crianças realmente a viam.
Como um ser mitológico, linda, celestial e gentil.
O fascínio era tanto que eu a deixei conduzir a
visita, colocando-me ao seu lado também como um mero
expectador, sentindo-me sorrir como um bobo.

Ela quase saltitava enquanto andava, mostrando os


corredores da fábrica, fazendo a narrativa que ensaiara
exaustivamente em casa, nos últimos dias, parecer
mágica. Por mais que fossem processos simples,
mecânicos, Iohanna descrevia como se houvesse
pequenos gnomos por trás das máquinas, fazendo o
trabalho.
Claro que ela não falava isso do jeito literal, embora
eu pudesse jurar que os menorezinhos seriam capazes de
acreditar em qualquer coisa que ela dissesse. Ainda assim,
o jeito como usava a entonação da voz, como se dirigia às
crianças, fazia com que tudo soasse como uma cantiga de
Natal.
Eu sabia que nem todas as crianças que estavam
ali, naquele tour, eram pobres, mas tínhamos conseguido
filtrar um pouco nossas entregas dos chocolates premiados
para bairros mais carentes. No final das contas, havia até
mesmo um garotinho órfão entre os participantes.

Pesquisamos um pouco sobre cada menino e


menina que se cadastrara com o número do ingresso que
recebera, e este fora o que chamara mais a atenção de
Iohanna. Vivia em um orfanato desde os três anos de
idade, depois que perdera os pais, restando mais ninguém
de sua família para cuidar dele.

Tinha sete naquele momento, e fora acompanhado


com uma das funcionárias do abrigo onde acabara
morando. Ela parecia muito carinhosa com ele, o que
também não era difícil, já que o menino era educado,
sorridente e estava encantado com tudo.

No final das contas, eu também não conseguia tirar


a atenção dele.

Enquanto Iohanna explicava sobre a fabricação do


seu caramelo preferido, parecendo muito mais
entusiasmada ao falar sobre ele, fiquei parado diante do
vidro da fábrica, em uma parte dela cuja vista dava para as
lojas. De lá, eu conseguia ver a nossa minicidade,
funcionando a pleno vapor. Havia muita gente lá embaixo,
fazendo suas compras, prontas e animadas para a festa
que começaria assim que o tour tivesse fim.

Foram dias e dias de muito esforço de nossas


partes. A equipe se empenhou demais para contratar
empresas que nos entregassem resultados o mais rápido
possível. Não tínhamos tempo a perder, porque o evento
parecia se aproximar cada vez mais rápido, mesmo que os
dias simplesmente corressem igual a sempre, no ritmo
imutável do calendário.

Tudo estava ainda mais bonito do que antes. E


harmônico, porque nossas reuniões eram, de fato,
produtivas. Não perdíamos tempo atacando uns aos
outros, e as pessoas que eu e Iohanna promovemos, para
os cargos que foram deixados em aberto pelas pessoas
que demiti, estavam fazendo um ótimo trabalho. Muito
melhor, até, do que os anteriores. Ideias novas estavam
sendo exploradas, e eu conseguia enxergar um futuro
promissor com o novo time.
Também conseguia enxergar a mesma coisa em
relação a mim e a Iohanna. Só estava na hora de darmos
um passo um pouco maior.

Ela lançou um olhar para mim, enquanto eu pensava


nisso, então lancei uma piscadinha, o que a fez sorrir
amplamente.
Linda.

Eu a amava.

Tanto que chegava a doer.

Também amava o meu garotinho, o qual


encontramos lá embaixo, depois do final do tour, no colo de
uma mulher que eu sabia ser a tia de Iohanna. Ao lado
dela, Marybeth ria, comendo um algodão doce.

Fui apresentado à tia dela, que me olhou com uma


cara desconfiada, mas se esforçou para ser simpática. Já
tinha lido algumas de suas mensagens, cheias de erros de
digitação, dando recados muito enfáticos sobre o que
pensava de mim.
Eu tinha a intenção de fazer todo o possível para
mudar sua concepção ao meu respeito.

Com alguns planos na cabeça, peguei o neném do


colo dela, pedindo licença, e dando a mão a Iohanna, meio
a que levando em direção ao coreto da pequena
cidadezinha da Sweet Haven. Esperava que ela não
percebesse quais eram minhas intenções.

— Foi um sucesso, não foi? — Iohanna novamente


saltitou do meu lado, enquanto caminhávamos, parecendo
tão jovem e tão inocente que chegava a fazer meu coração
acelerar.

— Com certeza foi — respondi, cheio de orgulho.


— Pena que vai ser o último, né? — Iohanna levou
ambas as mãos às costas, entrelaçando-as. Eu sabia o
que sua carinha queria dizer. Ela estava quase fazendo um
pedido.

Eu também tinha um a fazer.

— Ah, mas não precisa ser. Podemos repetir no


próximo ano. E no seguinte... Não há nada que nos
impeça.
Iohanna arregalou os olhos, parando em um dos
degraus que nos levaria ao coreto, segurando no corrimão.

— Jura? Está falando sério?


— Ué, claro que estou. Acho que formamos um bom
time, né? Mas isso, é claro, se você quiser continuar
trabalhando comigo. Se quiser ficar...

Já no coreto, estendi a mão, ajudando-a a subir os


últimos degraus, e nos posicionando de frente para toda a
festa lá embaixo. De onde estávamos tínhamos uma vista
privilegiada, ouvíamos a música e podíamos sentir as
vibrações positivas que a alegria que as pessoas sentiam
emanavam.
— Eu quero ficar — ela respondeu baixinho.

Senti, finalmente, uma esperança.


Coloquei Simon no chão, à minha frente e me
ajoelhei ao lado dele. O safadinho quase estragou meus
planos, querendo começar a correr, mas Iohanna o
segurou, pegando-o no colo.

— É o que eu to pensando? — ela perguntou,


depois de ajeitar a criança no quadril. Simon estava
agitado, batendo palminhas e balbuciando suas
palavrinhas que aos poucos iam se tornando mais
compreensíveis.

Inclusive eu amava quando ele falava “papai”.

— Espero que seja nisso que você esteja


pensando... — Estendi duas mãos à frente, ambas com os
punhos fechados, um pulso sobre o outro. — Escolha uma.

— Não faça isso comigo, Kane!


— Confie em mim. Seja lá qual for que você
escolher, o resultado vai ser o mesmo.

Iohanna respirou fundo, pensou um pouco e tocou


na minha mão direita. Sorri ao pensar que a brincadeira
seria exatamente como eu queria.

Quando abri os dedos, lá dentro havia um dos


caramelos que ela tanto amava. Brincalhona, ela ergueu
uma sobrancelha, mas pegou o doce, abriu a embalagem e
a mordeu, dando um pedacinho para Simon e comendo o
resto.

— Uma boa escolha, Sr. O’Roark, mas não era o


que eu estava esperando.
— Calma... Não seja apressada. Se você tivesse
escolhido a outra mão...

Abri os outros dedos bem devagar, deixando que a


joia lá dentro se revelasse aos poucos.

Era um anel bonito, com uma pedra delicada. O tipo


de coisa que eu sabia que Iohanna, que não era nada
exagerada com adereços, iria gostar. Tinha escolhido com
cuidado.

— Isso quer dizer que você não vai me pedir em


casamento?

— Já levei um não uma vez, né? Será que eu


aguentaria mais um?

— Tente a sorte... — ela respondeu, emocionada.

Respirei fundo, olhando para ela.


Ou melhor, mal conseguindo tirar os olhos daquele
rosto lindo, dos seus olhinhos marejados, dos lábios
entreabertos. Ela soltou um suspiro, cheio de expectativa,
e eu tomei coragem.

— Você disse que quer ficar. Mas quer ficar para


sempre? Construir uma vida aqui em Port Haven? Ao meu
lado?
Engolindo em seco, ela assentiu, enquanto uma
lágrima caía.
— Eu quero.
— Quer ficar, Iohanna Ward... mas como minha
esposa?

— Por que você quer se casar comigo, Kane


O’Roark? — perguntou, mas daquela vez com um sorriso.
Eu nunca tinha dito as palavras, mas ela já sabia.

Ou melhor... eu esperava que soubesse.


Para dizer o que precisava dizer, eu me levantei.
Ainda com o anel na mão, segurei seu rosto, esperando
fazê-la me olhar nos olhos.

— Porque eu te amo. Porque você se tornou a luz


da minha vida. Você e Simon. Porque me apaixono mais e
mais a cada dia, e porque não consigo me imaginar sem
vocês dois do meu lado.

Ela começou a chorar um pouco mais, e nosso lindo


bebê levou uma das mãozinhas à bochecha da mãe,
limpando uma lágrima, balbuciando: “mamã”. Era um
garotinho muito empático, muito carinhoso, e não me
surpreendia que tivesse tanto cuidado com Iohanna,
principalmente porque era apaixonado por ela.

Modéstia à parte, por mim também.

Eu imaginava que ele seria louco pelo avô, caso


este ainda estivesse vivo, mas tentaríamos manter a
memória viva ao máximo. Mesmo que tivéssemos feito a
mudança na certidão e que eu tivesse feito um anúncio
com direito a imprensa sobre a paternidade de Simon, meu
pai sempre seria uma figura importante na vida dele.
— Então, linda... aceita?

— Sim. Desta vez eu aceito...

— Finalmente!
Coloquei o anel em seu dedo e me inclinei para
beijá-la.

Pegando nosso bebê no meu colo, levei um braço à


sua cintura, e Iohanna encostou a cabeça no meu ombro,
enquanto observávamos a festa acontecer lá embaixo.

Pensando no meu pai...

É, ele estaria abençoando mesmo tudo aquilo.


Nossas escolhas, nosso garotinho, nossa união.

Tudo estava perfeito.


EPÍLOGO

TRÊS ANOS DEPOIS

— Simon! Não coma tantos caramelos, vai te dar


dor de barriga! — reclamei com meu garotinho, porque era,
provavelmente, a décima bala que ele colocava na
boquinha.

Eu também era viciada naquele doce, nem poderia


dizer nada.

Segurando minha linda Fiona no colo, de apenas


seis meses, inclinei-me para pegar o pacote que Simon
tinha deixado sobre a mesa.
— Mas foi o papai que me deu, mamãe!

Lancei um olhar para Kane, que deu de ombros,


tentando se fazer de inocente.

— Seu papai gosta muito de distribuir caramelos.


Uma vez ele me deu cem, sabia?
— Cem? — Simon arregalou os olhos verdes,
idênticos aos do pai.

Na verdade, ele estava cada dia mais parecido com


Kane. Meu garotinho partiria muitos corações.

Fiona era mais parecida comigo. Bem loirinha, olhos


azuis, uma bonequinha.

— Eu gosto mais das balas de fruta...

Outra vozinha soou no meio da discussão, e eu


lancei um olhar para o sofá, onde nosso filho mais velho,
Vincent, colocava uma meia. Estava quase na hora de eles
saírem para o colégio, e Kane os levaria no caminho para a
fábrica.

Depois do tour pela Sweet Haven, não conseguimos


nos desfazer do contato com Vincent. Concedemos a ele o
direito de ter os estudos pagos, como fora planejado
depois daquele evento – e continuávamos fazendo isso por
crianças ano após ano, escolhendo, dentre as que
ganhavam os ingressos para o evento, a mais carente –,
mas nos apaixonamos pelo rapazinho inteligente,
esforçado, carinhoso e muito adorável.

Depois de muitas conversas, decidimos que ele não


merecia só estudo. Merecia um lar. Um papai e uma
mamãe – além de irmãozinhos que o amassem. Nós
pedimos sua guarda provisória e, há mais ou menos um
ano, pouco antes de Fiona nascer, conseguimos sua
custódia definitiva.
Vincent O’Rourk ele tinha se tornado. Nosso filho
mais velho.

Eram três crianças maravilhosas, e nós tínhamos


muita sorte.

— Estas também são deliciosas, querido, sem


dúvidas.
Coloquei Fiona no cercadinho na sala e terminei de
ajeitar Simon, que também iria para a escolinha.

Eu ainda tinha minha participação na Sweet Haven,


e amava passar por lá pelo menos uma vez na semana,
mas com tantas crianças, e sendo tão apaixonada pela
minha outra profissão, decidi ficar integralmente
escrevendo, porque queria passar mais tempo com meus
filhos, por mais que tivéssemos uma excelente babá e
Marybeth, que cuidavam muito bem deles.

Tia Agnes também fora morar em Port Haven, para


ficar perto de mim, aliás. Ou seja, era um time de peso
para me dar suporte.

Ainda assim, eu optaria pela escrita em qualquer


situação.

Caprichava especialmente nas cenas hot, porque


sabia que meu marido lia cada história que eu publicava e
gostava muito de me surpreender imitando algumas
atitudes dos meus mocinhos.

Com as duas crianças prontas, peguei novamente


Fiona e acompanhei meus meninos até o carro.
Inclinei-me para beijar Kane, desejando-lhe um bom
dia de trabalho, e fiz Fiona acenar para o papai e seus
irmãozinhos.
Entrei na casa, observando todas as mudanças que
tinham acontecido nela desde que cheguei lá, anos atrás,
com meu bebê e um milhão de incertezas. Tínhamos
cumprido o que fora solicitado no testamento e reformado a
casa. Deixamos tudo do jeito que queríamos, com espaço
para as crianças brincarem, um escritório dos sonhos para
mim, uma cozinha moderna e ambientes confortáveis.

No alto da escada, no caminho para nossos quartos,


colocamos um quadro com uma foto de Finn. De onde eu
parei, depois de entrar na casa com Fiona no colo, eu
conseguia vê-lo sorrir, segurando alguns de seus doces na
mão.

Aquela era a imagem que eu gostaria de guardar


dele. Sorrindo, feliz. Não importava que tivesse cometido
seus erros, ele sempre seria um ser humano incrível. Fora
ele que proporcionara a vida maravilhosa que eu tinha,
com meu marido, meus filhos e as pessoas que amava ao
meu redor.

— Olha, filha... o vovô. — Apontei para a foto dele, e


os olhinhos de Fiona se perderam na imagem, levando
uma mãozinha à boca. — Você ainda não entende, mas
acho que posso te contar uma história, né? Era uma vez
uma princesa, que sonhava em ser dona do mundo dos
doces...
Continuei parada no mesmo lugar, enquanto falava
para minha filhinha sobre uma bruxa malvada, que queria
colocar fel nos doces e um cavaleiro bonito e com um ar
rebelde, e como eles se apaixonaram perdidamente em
meio a alguns mal-entendidos.
Depois do fim, voltei meus olhos para o homem no
retrato e murmurei um “obrigada”.

Eu também estava a caminho do meu “felizes para


sempre”, e eu tinha certeza de que o futuro seria doce,
muito doce.

FIM
 

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