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SÉRIE AMORES EM KENT

BOX COM OS SEIS LIVROS


TATIANA MARETO
Série Amores em Kent @ 2019-2020. Todos os direitos reservados. Obra protegida
pela Lei 9.610 de 1998 (Lei de Direitos Autorais).
É proibida a reprodução gratuita ou a comercialização desta obra sem autorização expressa
da autora.
É proibida a reprodução parcial da obra, mesmo que de forma gratuita, sem a indicação dos
créditos autorais.
Essa uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera
coincidência.
Plágio e crime. Crie, não copie.

Para saber mais sobre a autora, visite


http://tatianamaretoescritora.com.br
Para minhas amigas escritoras que me ajudam a manter a sanidade no
mercado literário - Karina Heid e Sarah Summers.
CONTENTS

Algumas palavras minhas para vocês


UM DUQUE PARA CHAMAR DE MEU
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Capítulo vigésimo quarto
Capítulo vigésimo quinto
Capítulo vigésimo sexto
Capítulo vigésimo sétimo
Capítulo vigésimo oitavo
Capítulo vigésimo nono
Epílogo
Cena extra
UM CONDE PARA CURAR MEU CORAÇÃO
Prólogo
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Capítulo vigésimo quarto
Epílogo
UMA NOITE PARA SEDUZIR UMA LIBERTINA
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Capítulo vigésimo quarto
Epílogo
Nota da autora
UMA LADY PARA ME DAR UM CORAÇÃO
Prólogo
Capítulo primeiro
Capitulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quatro
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Epílogo
UMA DONZELA PARA REDIMIR UM CANALHA
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Capítulo vigésimo
Capítulo vigésimo primeiro
Capítulo vigésimo segundo
Capítulo vigésimo terceiro
Epílogo #1
Epílogo #2
Notas
UMA PRINCESA PARA DESAFIAR O MEU DESTINO
Prólogo
Capítulo primeiro
Capítulo segundo
Capítulo terceiro
Capítulo quarto
Capítulo quinto
Capítulo sexto
Capítulo sétimo
Capítulo oitavo
Capítulo nono
Capítulo décimo
Capítulo décimo primeiro
Capítulo décimo segundo
Capítulo décimo terceiro
Capítulo décimo quarto
Capítulo décimo quinto
Capítulo décimo sexto
Capítulo décimo sétimo
Capítulo décimo oitavo
Capítulo décimo nono
Epílogo #1
Epílogo #2
Nota da autora
Notas
Sobre a autora
Agradecimentos
Se você por acaso chegou a esse livro por grupos de WhatsApp, Telegram ou sites
de PDF…
ALGUMAS PALAVRAS MINHAS PARA VOCÊS

Olá, leitoras e leitores.


Esse box contém os seis livros da série AMORES EM KENT, também
publicada individualmente na Amazon e em breve integralmente lançada em
físico pela Editora Freya.
Apesar de ter realizado pesquisas e ter adquirido um bom conheci- mento
dos usos e costumes da época e dos locais escolhidos por mim, eu me dei
algumas liberdades literárias para conseguir desenvolver a história da forma
como pensei. Assim, algumas datas foram utilizadas de acordo com o meu
interesse, sem que isso possa ter alterado fatos históricos importantes, as
propriedades foram inventadas para satisfazer as necessidades da trama, e o
comportamento dos protagonistas não necessariamente segue os padrões mais
rígidos daquela época.
Por que isso, Tatiana? Porque eu escrevi um romance em que padrões são
rompidos e diferenças são superadas. Talvez isso nunca fosse acontecer de
verdade, mas livros de ficção são para que possamos sonhar, não é mesmo?
Então vamos sonhar.
Mesmo sendo uma série de romances de época, os livros contém cenas
eróticas. Como meus demais romances, há cenas com conteúdo
sexualmente descritivo, mesmo que essas cenas tenham sido descritas
dentro de um vocabulário adequado para a época, dentro de um padrão de
comportamento sexual da época. A série é composta de romances com
conteúdo erótico e cenas de sexo, adequado apenas para quem gosta desse
tipo de livro.
Era isso que eu tinha para contar nesse momento. Espero que vocês se
divirtam durante a leitura.
A autora
CAPÍTULO PRIMEIRO

ARREDORES DE KENT. INGLATERRA, 1891


E LIZABETH NÃO AGUENTAVA MAIS ANDAR . E LA PRATICAMENTE ARRASTAVA
pela mão duas crianças, que também estavam exaustas, e uma valise
quadrada, pesada. Patrick e Peter já tinham parado de reclamar do cansaço
havia alguns minutos. Ela esperava um pouco de paz. Precisavam parar em
algum lugar e descansar, já que era quase noite e fazia horas que estavam
fugindo de Londres.
Fugindo. A cidade tinha sido tomada pela escarlatina. Até os adultos
estavam adoecendo e já haviam muitas mortes declaradas. As equipes
sanitárias passavam pelas ruas lavando as vias com jatos de água, como
faziam com a cólera, acreditando que, assim, a doença iria embora. Elizabeth
tinha suas dúvidas e preferiu não arriscar com os dois filhos pequenos.
Pessoas como ela ficavam. Só os nobres fugiam quando uma epidemia
começava, recluindo-se em suas propriedades afastadas do epicentro do
problema. Pessoas como ela não tinham propriedades, precisavam trabalhar
para garantir sustento e não sabiam para onde ir em caso de calamidade. Ela
já tinha perdido o marido para a cólera, não queria arriscar a vida de seus
meninos.
— Mamãe, estou com fome — Peter reclamou, puxando-a pela saia e
tirando-a de seus devaneios.
— Já vamos conseguir um lugar para jantar. Mas precisamos encontrar
uma estalagem — ela dissera, sem muita convicção, já que não tinham visto
nenhuma construção nos últimos quilômetros.
Caminhavam por uma rua de pedras e muitas carruagens passavam por
ali, mas nenhuma ousaria perguntar se queriam ser levados a algum lugar.
Para os nobres, eles eram invisíveis — apenas plebeus miseráveis que
serviam como criados, não eram para ser vistos fora desse contexto.
A esperança de Elizabeth se acendeu quando viu uma fumaça em
distância considerável. Aquilo vinha certamente de uma chaminé e, onde
havia chaminé, tinha uma casa ou hospedaria. Qualquer lugar serviria para
que ficassem. Ela só esperava que fossem aceitos. Não por sua condição
plebeia, mas porque vinham de um lugar infectado.
— Eu não aguento mais andar. — Patrick parou e sentou no chão de terra.
— Vamos parar só um pouco, por favor.
— Não podemos nos dar ao luxo de parar, se quisermos chegar a algum
lugar, meu filho. — Elizabeth segurou as mãos pequenas do menino e o
puxou para cima. Ele se recusou, voltando a sentar. Ah, Patrick sempre fora
teimoso, mas ele estava certo. Os pés dela também a estavam matando, quase
a ponto de abandonar os sapatos em um ponto qualquer da estrada.
Enquanto debatia com as crianças se paravam ou seguiam, mais uma
carruagem passou por eles. Era apenas outro transporte que os ignoraria, mas
aquela, curiosamente, fez meia-volta e parou ao lado da família. Estava
escuro, mas Elizabeth percebeu uma dama que colocava a cabeça para fora e
os encarava. A dama era muito jovem e usava um gorro para esconder os
cabelos castanhos.
— Estão em apuros? — ela perguntou à Elizabeth. Era uma surpresa que
uma dama tão refinada, em uma carruagem suntuosa, cheia de adornos e
arabescos, falasse com ela.
— Cansados apenas, milady. — Elizabeth fez uma reverência. Ela sabia
como se portar com a nobreza. — As crianças estão exaustas e com fome.
A porta da carruagem se abriu de súbito e um criado desceu, colocando
um caixote para que a dama pudesse descer. Ela, no entanto, disse algo
próximo a seu ouvido e se manteve dentro do transporte.
— Minha senhora está se oferecendo para conduzi-los até o seu destino.
Elizabeth arregalou os olhos enquanto as crianças pulavam em animação.
Eles nunca tinham viajado em uma carruagem e ela precisou segurar Peter
pelo colarinho da camisa, porque ele já estava correndo para entrar no
veículo.
— Mas não temos destino. Estamos procurando uma estalagem para
passar a noite, fugindo da epidemia em Londres.
O criado voltou a ter com sua senhora e conversaram mais uma vez em
tom baixo. Peter se debatia, querendo entrar na carruagem, afirmando que
tinha sido convidado, que queria sentar nas almofadas. As crianças estavam
sujas de poeira e vermelhas de suor, já que fazia calor naquele início de
verão.
— Levaremos vocês até a estalagem — a jovem dama disse, colocando
novamente a cabeça para fora. — Ela fica a poucos quilômetros daqui.
Podem entrar.
Elizabeth não conseguiu mais segurar os filhos. Os dois meninos
correram para entrar no veículo, como se não tivessem sido educados nos
melhores modos. Um pouco desconfiada da bondade inesperada da dama, ela
se aproximou da carruagem e viu que era tão luxuosa por dentro quanto por
fora. Nem nos áureos dias em que sua família tinha dinheiro e eles viviam em
uma zona mais abastada de Londres, ela tinha viajado em uma carruagem
como aquela.
Era certamente o veículo de um nobre. Seria aquela dama uma duquesa
gentil demais que assumira o compromisso de oferecer conforto aos menos
afortunados? Elizabeth entrou e se sentou, puxando os filhos para seu lado,
ficando de frente para a jovem.
— Como se chamam? — a dama perguntou. — Sou Lady Agatha,
também estamos fugindo da epidemia.
— Elizabeth Collingworth. — Ela baixou a cabeça, tentando fazer uma
reverência no espaço apertado. A carruagem voltou a andar e os meninos
celebraram. A vantagem de crianças pobres era que elas se empolgavam com
tudo, porque não eram acostumados a ter nada. — Esses são meus filhos
Patrick e Peter. É muita gentileza da senhorita nos conduzir até um abrigo,
milady.
— Meu pai era um homem que fazia o bem a todos, sempre. Ele jamais
deixaria uma família necessitada à margem de uma estrada.
O seu pai era um homem único, foi o que Elizabeth quis dizer, mas não
disse. Nenhum nobre se preocuparia com uma família como a dela, não
importava onde estivesse. Quando avistaram a estalagem, os meninos
comemoraram mais uma vez e Lady Agatha sorriu, contagiada com a alegria
deles.
A carruagem parou em frente à construção, que tinha muitas janelas e
lamparinas a gás iluminando o pátio. O criado abriu a porta e ofereceu a mão
para que Elizabeth descesse. Nenhum dos dois usava luvas, mas não havia
aqueles códigos de etiquetas entre criados. Os meninos desceram sozinhos,
correndo para dentro da estalagem em enorme algazarra. Será que algum dia
aqueles meninos ficariam sem energia para gastar? Ela duvidava.
— Obrigada, milady. O bom Deus lhe pagará tamanha bondade — ela
agradeceu à dama, que estendeu a mão para o criado, intencionando descer.
— Gosto de honrar a memória do meu pai, mesmo que isso me coloque
toda semana nas colunas de fofocas dos folhetins locais. — Ela riu. — John,
farei uma pausa na viagem, preciso esticar meus pés.
— Milady, seu irmão pode…
— Deixe que me entendo com Aiden depois. — Lady Agatha moveu os
ombros, indicando que não se importava com as ordens do irmão, quaisquer
que fossem. — Vamos conhecer essa estalagem e ver se suas instalações são
dignas de uma dama.

E LIZABETH ENTENDEU que seu agradecimento a desvinculava da senhora


nobre e se aproximou do balcão onde um jovem magricela, de cabelos
espetados para cima e dentes mal formados, fazia anotações em um papel.
— Boa noite. Preciso de abrigo para mim e meus filhos, e de um bom
jantar.
— Vai te custar três libras, uma por pessoa.
Sem nem olhar para ela, o rapazote continuou rabiscando o papel.
— Mas esse valor é muito acima do que é praticado! — Elizabeth se
indignou. Uma noite em uma estalagem como aquela não lhe custaria mais do
que alguns xelins. Três libras era dinheiro que ela não poderia dispor naquele
momento. Ficaria sem ter como alugar um casebre para se abrigar quando
chegasse a… algum lugar.
— Tempos de crise, senhora. O dono mandou cobrar uma libra de
qualquer um que requisitasse hospedagem neste período. Como a senhora
está com duas crianças…
— Isso é um absurdo! — Ela bateu com a mão sobre o balcão,
pretendendo que isso mostrasse sua indignação. — Vocês estão explorando o
sofrimento das pessoas, isso é imoral. Quero falar com o dono.
Outras pessoas entraram na estalagem e se aglomeraram no balcão. O
rapazote desapareceu por uma porta para buscar o gerente e Lady Agatha
também se aproximou. Os filhos começaram a reclamar que tinham fome e
queriam a comida que viram em outro salão, mas foram impedidos de entrar
porque não eram hóspedes. A balbúrdia instalada fez com que ninguém
conseguisse ouvir ninguém.
Quando o dono chegou, Elizabeth protestou pelo valor cobrado. Sua
veemência, no entanto, fora tratada apenas como insubordinação de uma
mulher exagerada. Ela já estava acostumada a ser chamada de louca, sempre
se colocando contra as injustiças que presenciava.
— Senhora, o preço é esse — o homem disse, irredutível. — Se quiser,
pague, se não, pode se retirar com esses pequenos vândalos.
— Meus filhos não são vândalos — Elizabeth indignou-se ainda mais,
apesar de não poder afirmar com muita certeza de que o homem estava
errado. Seus filhos eram muito educados, mas também muito ativos.
— O senhor não deveria se aproveitar das pessoas para lucrar — lady
Agatha se envolveu na discussão. — Isso é vil, vai manchar a reputação do
seu estabelecimento.
— São apenas negócios.
Eram apenas negócios, Elizabeth sabia, mas aquele dinheiro iria fazer
falta. Ela não podia pagá-lo, mesmo sabendo que os meninos precisavam
comer. Teria que continuar caminhando pela estrada até encontrar um lugar
em que eles não fossem explorados.
— Pode ficar com sua ganância. Vamos embora daqui.
Os meninos protestaram, reclamando. Peter ameaçou chorar e lágrimas
rolaram por aqueles olhinhos pequenos e muito azuis. Elizabeth ajoelhou na
frente do filho para explicar a ele que pessoas pobres, como eles, não tinham
muitas escolhas na vida. Desistiu, não precisava destruir os sonhos do
menino, era melhor ensiná-lo a progredir e não a aceitar sua miséria.
Elizabeth conhecia os dois lados da vida: a riqueza e a ostentação e a
pobreza miserável das docas. Depois que o pai perdeu tudo que conquistou
em mesas de jogos, eles precisaram todos trabalhar para não passar fome.
Elizabeth tinha apenas quatorze anos quando começou a costurar para fora e,
depois, se tornou dama de companhia de jovens nobres. Sua educação
irretocável era seu talento e o que garantiu o sustento de sua família por
muitos anos, depois que seu marido morreu.
Os filhos foram criados com a mesma educação dos pequenos nobres,
mesmo que, de vez em quando, parecessem pequenos diabinhos. Bem, quase
sempre eles se pareciam diabinhos, mas sabiam se portar se quisessem.
— Vou pedir a meu irmão que interfira — lady Agatha disse a ela, depois
que o movimento dissipou. — Não é justo que esse homem explore as
pessoas em momentos de necessidade.
— Creio que não haja lei contra isso — Elizabeth desanimou. —
Agradeço toda a sua bondade, lady Agatha, mas não vejo como seu irmão
terá influência em uma situação como essa.
— Ele é o Duque de Shaftesbury.
Oh. Por aquela Elizabeth não esperava. Aquela gentil dama era irmã de
um duque. E não era um duque, mas o duque, um dos mais ricos e prósperos
da Inglaterra inteira.
Assim que lady Agatha disse o título do irmão, como se as palavras
fossem mágicas e abrissem portas secretas, um barulho na entrada chamou a
atenção de Elizabeth. Talvez ninguém tivesse ouvido nada e fosse apenas a
presença intensa da pessoa que acabara de chegar, mas ela sentiu como se um
lufo de ar fresco lhe tivesse arrebatado o corpo. O vento imaginário bateu em
sua face e esvoaçou seus cabelos.
Pela porta entrava um homem que parecia iluminar o ambiente mais do
que qualquer lamparina. Elizabeth teve certeza, em um segundo e meio, que
aquele era o homem mais lindo de toda a Inglaterra. Era inadmissível que
outros como ele existissem. Vestindo calças de linho bege, camisa branca e
colete vinho com paletó da mesma cor, ele tinha os cabelos castanhos e
ondulados penteados com cuidado. Seus olhos eram de um castanho-escuro
tão intenso que podiam conter a noite inteira dentro deles, e sua pele tinha
uma tonalidade bronzeada similar a dos homens que trabalhavam nas docas.
Mas aquele homem certamente não trabalhava nas docas. Ele tinha o porte da
realeza. Não havia dúvidas de que era um nobre perdido por aquela região,
provavelmente fugindo da epidemia como ela. Sua boca era vermelha e os
lábios grossos estavam comprimidos. Os olhos atentos procuravam alguma
coisa e miraram Elizabeth alguns segundos depois.
Ela quase deixou cair ao chão a bolsa de moedas que segurava. O homem
olhava para ela, não olhava? Sua expressão não era suave. Havia um vinco
severo entre suas sobrancelhas que lhe conferia um ar de quem seria capaz de
implodir o lugar, se assim quisesse. Como se a sua presença já não fosse
impactante o suficiente, ele fora na direção dela.
Naquele instante, enquanto seu coração disparava por causa de um
completo desconhecido que nunca deveria tê-la notado em lugar algum, a
fraqueza do dia a abateu. Elizabeth sentiu o peso de um dia inteiro de fuga,
caminhadas e desejos de matar um dono de estalagem, e seu corpo sucumbiu.
Tudo ficou escuro, girando, até que ela sentiu o chão se aproximar enquanto
caía desmaiada no meio do salão.

A IDEN T ROWSDALE FOI PREPARADO para assumir o ducado desde que nasceu.
Ele foi criado para ser um duque, foi treinado para ser um cavalheiro, um
nobre, um homem respeitável na sociedade. Com o falecimento de seu pai,
dois anos atrás, ele herdou o título e se tornou o 13º Duque de Shaftesbury,
um dos títulos de nobreza mais antigos da Inglaterra.
A morte do pai não lhe trouxe apenas o ducado. Aiden também precisou
lidar com coisas para as quais não estava tão preparado assim, como as
mulheres da casa. Enquanto ele estudava e se formava com distinções,
treinava todos os esportes e se destacava em qualquer atividade masculina,
estava afastado de casa, da mãe e da irmã mais nova. Ao assumir o título e as
propriedades, as coisas ficaram reais e as responsabilidades não eram mais
hipotéticas.
Sua irmã, lady Agatha, nunca fora uma jovem difícil. Ao contrário, era
dócil e gentil, mas a morte do pai a transformou no demônio de saias. Como a
mãe era uma mulher doente que nunca saía da propriedade de verão da
família, a residência em Londres estava quase sempre desamparada, e a irmã
aprontando das suas. A quarta governanta tinha acabado de se demitir, apesar
do tentador salário que lhe fora oferecido, e Aiden não sabia mais o que fazer
para conseguir uma mulher para administrar sua casa e Agatha, já que a mãe
não fazia um bom trabalho.
Ele precisava se casar, essa era a opção mais esperada. Um homem na sua
posição e com sua idade já deveria estar casado e, preferencialmente, com um
herdeiro a caminho. Mas Aiden nunca desejou casar-se, apesar de saber que
deveria fazê-lo. O problema era que casamento exigia um esforço que ele não
estava interessado em empregar. Tinha que escolher uma noiva, cortejá-la,
ajustar os trâmites com a família dela, e todas as demais formalidades que
envolviam o enlace matrimonial entre a aristocracia. Aiden não conseguira
nem passar da primeira etapa, já que a maioria das damas eram lindas e
agradáveis, mas não o interessavam.
Todos os planos que ele não pretendia cumprir foram interrompidos pela
epidemia de escarlatina que, de uma hora para outra, se alastrou por Londres.
Aiden preparou as carruagens, mandou a irmã na frente e, depois de deixar
tudo organizado na Casa Trowsdale, seguiu para Kent, onde ficava Thanet
Bay. O litoral, com seu ar fresco, deveria ser o melhor lugar para se esconder
até que as coisas estivessem melhores na capital. A irmã não o deixaria em
paz durante esse período, ele já sabia. A caminho de Kent, sua carruagem
subitamente parou no meio do caminho e um dos criados que o
acompanhava, Geoffrey, desceu para falar com ele.
— O que houve, Geoffrey? Por que paramos?
— Vossa Graça… o cocheiro avistou a carruagem de sua irmã.
Aiden colocou a mão na porta e a abriu, saindo do transporte. Estavam no
meio do nada em uma estrada provavelmente muito utilizada como rota de
fuga dos nobres e que deveria estar repleta de ladrões esperando para arrancar
até as botas dos aristocratas que por ali passavam. A preocupação de que algo
tivesse acontecido com Agatha o fez esquecer a prudência e lançar-se para
fora e dar alguns passos na direção de um pátio iluminado, até ver a
carruagem ainda parada na frente de uma estalagem.
— Céus, o que ela aprontou desta vez?
— Vossa Graça deseja que eu vá verificar?
— Não, vamos encostar. Estou mesmo precisando de uma boa dose de
uísque, está muito quente e úmido.
O duque voltou para dentro da carruagem, que se movimentou por mais
alguns metros até parar ao lado da outra. Havia um burburinho incessante
vindo do lado de dentro e Aiden suspeitou que todos ali também estariam
fugindo. Provavelmente não haveria muitos nobres no lugar, que parecia não
ser o mais adequado para sua irmã tomar um chá ou jantar. Em alguns
quilômetros eles estariam em casa e poderiam desfrutar do tratamento digno à
aristocracia. Por que raios ela não esperou mais um pouco?
Assim que entrou, percebeu que tinha razão. Apesar de bem vestidas, as
pessoas daquele lugar não eram nobres. Talvez burgueses endinheirados que
tinham adquirido propriedades nos arredores de Kent, mas não possuíam
títulos a ostentar. Logo encontrou sua irmã conversando com uma dama
qualquer.
Não. Aiden estava enganado, não era uma dama qualquer. Ele olhou para
sua irmã, mas tudo que viu foram os cabelos louros, meio acobreados, que
engoliam a luz de todas as velas acesas naquele salão. Eles emolduravam o
rosto mais delicado e os olhos mais transparentes de toda a Inglaterra. Não
havia nada nela que não parecesse uma pintura renascentista, mas Aiden
podia jurar que os renascentistas não eram tão talentosos.
Ele percebeu que algo estava errado com ela. Sua face empalideceu
quando ela o viu, como se fosse um fantasma que tivesse vindo para
assombrá-la. Seu corpo começou a desmoronar como um castelo de cartas
mal feito e ele só teve tempo de se aproximar para segurá-la em seus braços e
impedir que caísse ao chão.
CAPÍTULO SEGUNDO

— O H ! — A GATHA ASSUSTOU - SE E COLOCOU A MÃO NA BOCA . A S PESSOAS SE


afastaram. A epidemia deixou todos muito apavorados, já que a última, de
cólera, matou quase um terço da população de Londres.
Aiden não teve tempo de pensar que aquela mulher pudesse estar doente.
Ele precisou segurá-la em seus braços quando ela desfaleceu. Não podia
deixar que caísse ao chão e se machucasse. Em um movimento rápido,
ergueu-a e procurou um lugar onde pudesse estender seu corpo inerte. Ela
não pesava muito mais do que a metade do seu próprio peso.
— Ela não pode ficar aqui no meu salão!
Um homem se aproximou do duque, que o olhou de cima a baixo. Aiden
era alto, muito alto, e aquilo fazia com que quase todas as pessoas lhe
parecessem minúsculas.
— Além de explorar as pessoas, o senhor não tem um pingo de
humanidade? — Agatha se enfureceu. Pronto, lá estava a personificação do
diabo tomando forma nas bochechas vermelhas da irmã. Ela fechou as mãos
enluvadas em punhos e marchou na direção do dono da estalagem. — Ela
desmaiou de fraqueza porque você não deixou que ela comesse!
O burburinho voltou a crescer e aquele falatório estava deixando Aiden
com dor de cabeça. Ele acomodou a mulher em seus braços, já que ela não
dava sinais de que acordaria, e encarou o homem de meia-idade que segurava
um monóculo para enxergar Agatha melhor. Talvez ele se arrependesse disso,
depois. Sua irmã sabia ser assustadora quando queria — e isso era quase
sempre.
— Dê-me um quarto — Aiden disse. Sua voz grave retumbou pelo salão
e as pessoas pararam de falar. O dono da estalagem olhou para o duque com
um brilho dourado nos olhos. Um nobre nunca pedia algo, ele sempre
ordenava. E pagava bem.
— George! — o homem gritou e o menino magricela apareceu. — Leve
este senhor à casa dos fundos.
Com um movimento de cabeça que indicava um “sim, senhor”, o garoto
pediu que o duque o seguisse. Antes que Aiden pudesse dar o segundo passo,
uma voz estridente veio gritando em sua direção.
— Mamãe! Aonde vai levá-la?
Patrick segurava Peter pela mão e ambos tinham a boca suja de algum
doce, que tinham obtido de um hóspede gentil. Agatha se aproximou dos
garotos e eles olharam para ela como se pedissem respostas. Aiden não
entendeu, eles chamavam a mulher em seus braços de mãe? Ela não podia ser
mãe deles, ela não podia ter idade para ser a mãe de ninguém.
— Sua mãe desmaiou — Agatha disse para o garoto, ajoelhando-se até
ficar de sua altura. — Meu irmão irá levá-la para o quarto para que possa
descansar. Vamos juntos?
Patrick concordou e Agatha indicou que era para prosseguirem. A casa
dos fundos era composta por dois ambientes e suntuosa demais para uma
estalagem que não abrigava a nobreza. Havia uma antessala com um aparador
e dois sofás, uma lareira que estava apagada, e um quarto com uma cama
bastante grande, emoldurada por um dossel imenso com cortinas aveludadas.
Aiden depositou a mulher sobre os lençóis brancos e desamassou a roupa
com as mãos enluvadas.
— Os meninos não podem ficar sozinhos com ela desmaiada — Agatha
disse, depois que o duque a encontrou na antessala. Os garotos estavam
agarrados à saia da irmã como se ela estivesse responsável por protegê-los.
— Agatha, como você conhece essas pessoas? — Aiden perguntou,
aproveitando para se servir de uma dose de uísque. Pelo bom Deus, como ele
precisava de uma bebida. Ainda bem que aquele quarto era adequado às suas
necessidades. O homem que atendeu sua ordem era esperto.
— Eu os recolhi na estrada. Estavam fugindo da epidemia e trouxe-os até
a estalagem. Eu ia convidá-la para um chá em Thanet Bay, quando você
chegou.
O duque puxou a irmã, que se desvencilhou dos meninos, e arrastou-a
para um canto.
— Pelos céus, você não pode sair por aí recolhendo pessoas! Nem deve
se relacionar com esse tipo de gente, Agatha!
— Esse tipo de gente, Aiden, é uma mãe e seus dois filhos! — A irmã se
soltou e cruzou os braços na frente do corpo. — Ela precisava de ajuda e não
me arrependo de tê-la ajudado. Igual você, agora, carregando-a nos braços,
enquanto todo mundo acha que ela tem uma doença contagiosa.
— Ela pode ter!
— Mas você não se importou.
Não, ele não se importou. Aiden passou as mãos pelos cabelos, que
estavam desgrenhados, e bebeu seu uísque todo em um gole. Serviu-se de
mais bebida e encarou a irmã, que tinha razão. Quando viu a mulher prestes a
desmaiar, sua primeira — não, sua única atitude — foi segurá-la. A criação
que receberam, principalmente do pai, impedia que vissem pessoas
necessitadas e não corressem em auxílio. Por isso, mantinham uma escola,
dois orfanatos e faziam bailes beneficentes para recolher fundos para o
hospital.
Ninguém em Londres fazia bailes beneficentes, apenas Agatha. Ela talvez
não fosse o demônio, mas uma mulher muito diferente das outras. Ele sabia
que aquilo, provavelmente, dificultaria seus planos de arranjar para ela um
ótimo marido.
Quanto a Aiden, ele não podia falar muito diferente de si mesmo. O
duque era um espécime atípico na nobreza. Ele se envolvia com burgueses,
negociantes e industriários. Tinha pretensões de desenvolvimento econômico
e social. Não acreditava na indolência dos nobres que nunca precisavam
trabalhar para sobreviver e que apenas desperdiçavam a fortuna acumulada
por seus ascendentes.
Aiden era tão incomum e inadequado para a sociedade londrina quanto
sua irmã. A diferença era que, como homem e portador de um título
importante, ele podia ser excêntrico. Sua indiferença às muitas regras sociais
e seu desprezo pela arrogância da nobreza eram toleradas porque ele era o
Duque de Shaftesbury.
— Certo, mas agora temos que ir — Aiden decidiu. — Ela já está
abrigada e os filhos estão bem.
— Eles não podem ficar sozinhos — a irmã insistiu. — Ficarei com ela
até que acorde.
O duque coçou a cabeça. Por mais que ela soasse gentil e delicada,
Agatha tinha uma determinação que nunca o permitia dizer não, mesmo que
sua proposta fosse absurda. Ficar ali era atrasar sua ida para Thanet Bay, criar
atritos com sua mãe e, pior, expor-se à doença. Talvez a pior parte fosse
levantar os questionamentos da duquesa. Tudo que Aiden não precisava era
da mãe lhe fazendo perguntas. Ele não sabia se havia alguém contaminado
naquela estalagem e, se houvesse, todo seu plano de fugir de Londres um
pouco antes do esperado e livrar sua família dos riscos da escarlatina seriam
perdidos.
— Você sabe que basta que eu dê uma ordem e você será levada comigo,
não sabe? — o duque ameaçou, imaginando se a irmã seria capaz de temer
sua autoridade. — Sou seu irmão mais velho e o Duque de Shaftesbury, até
se casar, você obedece a mim. Se eu mandar, John…
— Então mande. — Agatha cruzou os braços e se sentou em uma
poltrona. — Só sairei daqui quando a Sra. Collingworth acordar.
Maldição. Ele não teria coragem de mandar o criado agarrar Agatha e
colocá-la nas costas. Talvez ele mesmo devesse fazer isso, mas… seus olhos
vagaram rapidamente para a mulher deitada na cama. Havia alguma coisa
errada com ela. Olhou depois para os dois meninos sentados no sofá. Eles
estavam abraçados um ao outro e tinham olhares assustados e arregalados.
Estavam sujos e magricelas, mas eram crianças muito bonitas. O mais velho
tinha o mesmo cabelo da mãe.
— Certo. Por que não jantamos e, se ela não acordar até terminarmos de
comer, chamamos um médico para vê-la? Por minha conta.
Agatha levantou-se e bateu palmas de alegria. Ela tinha vinte anos, mas
poderia ter dez. Sua empolgação era como a de uma criança em uma doceria.
— Eu sabia que você tomaria a decisão certa, Aiden.
O duque bufou e chamou John, seu mordomo, que viajava com Agatha.
Pediu que servissem um jantar privado naquele quarto em que estavam,
enquanto a Sra. Collingworth se recuperava. Depois, pediu a Geoffrey que
levasse os meninos para tomarem um banho, onde fosse possível encontrar
água quente, e para jantar. Havia uma banheira no quarto, mas lavar as
crianças ali faria muita algazarra.
A ama de companhia de Agatha se comprometeu a cuidar dos meninos,
que foram com ela na promessa de que a mãe estaria acompanhada. Depois
que o quarto esvaziou, Agatha disse que iria procurar um lugar para se
refrescar antes do jantar. Ela saiu e o duque ficou sozinho na companhia da
desacordada estranha.
A SSUSTADA , foi como Elizabeth despertou depois do desmaio. Ela se
lembrava de ter caído, mas não de ter tocado o chão. Seu corpo estava
deitado em uma superfície tão macia que ela teve certeza de que morrera e
aquelas eram as nuvens do céu. Ou talvez ela não fosse para o céu, já que era
uma pecadora. Não era?
Seus olhos demoraram a enxergar a silhueta de um homem que, daquela
vez, não olhava para ela. Velas iluminavam o lugar onde estava e nada tinha
mais luz do que ele. Acomodado no parapeito da janela, olhava para a
escuridão como se pudesse enxergar pela noite.
Ele estava de lado e seu perfil era duro como se tivesse sido talhado por
um machado. Queixo quadrado e nariz proeminente. Elizabeth podia jurar
que tinha uma covinha no queixo. Mas, afinal, quem era ele? Provavelmente
ela tinha morrido e ele era o paraíso.
Desde a infância, Elizabeth acreditava em amor. Ela sonhava com o amor
que a arrebataria e a levaria aos céus. Com o homem para quem ela olharia e
se apaixonaria de forma instantânea. Suas amigas eram mais pragmáticas e
riam dela. Homens eram como negócios, só que ela era uma romântica.
Esperava viver um amor avassalador e tinha certeza de que, um dia, ele
chegaria.
Talvez ela estivesse olhando para ele naquele momento.
— A senhora acordou — o homem disse, virando-se para ela. Ele não
demonstrava muita emoção na voz. Elizabeth sentiu um pequeno desconforto
na forma como os olhos dele a observavam.
— Onde estou? Onde estão meus filhos? Quem é o senhor?
— Muitas perguntas. — Ele fora na direção dela e seu coração martelou
alto demais. Os ombros largos davam a dimensão de que ele era grande, mas,
daquele ângulo, ele parecia ainda maior. Ela se sentou na cama, nervosa com
o que ele poderia fazer com ela. Só não tinha certeza se estava com medo ou
excitada.
Damas respeitáveis não se sentiam excitadas. Por sorte, ela não era nem
dama, nem respeitável.
— Sou o Duque de Shaftesbury. A senhora está em um quarto nesta…
estalagem, já que desmaiou no meio do salão. Minha irmã insistiu para que
esperássemos que acordasse e seus filhos estão sendo lavados. Eles
estavam… imundos.
As pausas na fala do homem sugeriam que ele escolhia palavras. Então
era o duque. O irmão mencionado por lady Agatha, dono de muitas
propriedades espalhadas pela Inglaterra. Poucas pessoas não tinham ouvido
falar do duque, seja por sua riqueza, seja por seu jeito pouco habilidoso nos
eventos sociais e no trato com pessoas.
— Vossa Graça. — Elizabeth tentou fazer uma reverência, mesmo
sentada, mas estava se sentindo zonza. Tombou o corpo para frente e quase
caiu novamente. Foi amparada pelos braços do duque.
Aqueles braços. Eles estavam descobertos, ela conseguiu perceber e sentir
o calor da pele dele que passava através do tecido de sua camisa branca.
Eram fortes, firmes e masculinos. Ele tinha um cheiro de roupa lavada que a
deixou inebriada.
— Sra. Collingworth, acho que deve ver um médico — o duque disse,
ajudando-a a sentar novamente. — A senhora está grávida?
— Por Deus, não! — Elizabeth deu um gritinho e colocou a mão na frente
da boca. Aquela percepção era absurda, mas o duque não podia saber. Ela
tinha dois filhos, ele certamente pensava que fosse casada. — Eu não comi
nada o dia inteiro, é isso.
O homem garantiu que ela estivesse acomodada no colchão da cama e
deu dois passos para trás. Claro que não era adequado que ele estivesse tão
perto dela, mas Elizabeth não queria que ele se afastasse. A proximidade
daquele corpo a fazia sentir-se melhor, menos vulnerável.
— Nosso jantar será servido. Minha irmã está retornando e creio que ela
insistirá para a senhora comer conosco.
Elizabeth engoliu e sentiu a boca seca. Olhou ao redor e viu uma jarra
com água. Subitamente ela sentia muita sede. Levantou-se com mais cuidado
e pegou um copo do milagroso líquido. Suas mãos estavam tremendo e ela
olhou para elas, à luz da vela. Ficou um pouco assustada com o que viu —
havia manchas vermelhas por sua pele.
— Vossa Graça poderia me ajudar?
Ela se virou para o duque, que a observava com seriedade. Apesar da
ausência de expressões amistosas em sua face, ele estava com os olhos
cravados nela, sem conseguir desviá-los. Elizabeth deu dois passos na direção
dele e pediu que segurasse a vela. Depois, colocou juntas as duas mãos e
analisou com cuidado o que via.
— O que está havendo, Sra. Collingworth?
— Oh, céus. — Aquilo não era nada bom. Nada bom, ela sabia que as
manchas significavam uma coisa: ela estava doente. Não era fome que a
fizera desmaiar nem fome que a deixara fraca, ela estava contaminada. —
Afaste-se, Vossa Graça.
Com alguns passos para trás, Elizabeth bateu a cabeça na parede. Ela não
podia estar perto do duque, nem deveria ter ficado perto dos filhos ou da
gentil lady Agatha. Ela estava doente e aquela moléstia era muito contagiosa.
Era dela que estavam fugindo.
O duque ignorou seu pedido e foi até Elizabeth, pegando suas mãos com
as dele. O homem tinha as mangas da camisa dobradas e não usava luvas, ele
não deveria estar tocando-a. Mesmo assim, pareceu não importar. Seus olhos
procuraram alguma coisa errada e não encontraram. Foi então que ela sentiu
novamente o calor emanando dele — não era um calor normal.
— Vossa Graça está se sentindo bem? — perguntou, já imaginando que
ele dificilmente responderia que não.
— Estou com dor de cabeça. Minha irmã costuma me causar muita. Por
quê?
Elizabeth passou os dedos pelos antebraços do duque. Seus olhos estavam
cravados nos globos escuros que capturavam para si toda a luz ambiente.
Havia pavor nos dela e confusão nos dele. Mas ela apenas confirmou o que
suspeitava, o duque estava quente demais para ser apenas efeito do clima. Ele
estava quente porque tinha febre. E manchas vermelhas pelo corpo.
Antes que ela pudesse ter uma reação qualquer, a porta do quarto abriu e
a voz de lady Agatha foi ouvida.
— Aiden, o criado já está subindo com o jantar. A Sra. Collingworth…
A jovem dama parou quando chegou à porta do quarto e viu que
Elizabeth segurava seu irmão, que a encarava sem qualquer reação razoável.
A cena não devia ser das mais agradáveis porque dava uma impressão
totalmente errada.
— Lady Agatha, por favor, não se aproxime — Elizabeth bradou.
— O que está havendo?
— Saia do quarto, vou explicar. Mas preciso que mantenha distância de
nós.
— Sra. Collingworth, eu estou começando a ficar assustado. — O duque
deu um passo para trás e quebrou o contato entre eles.
— Estamos contaminados, Vossa Graça — ela disse, sem conseguir
pronunciar exatamente o nome da doença. — Temos os sintomas da
escarlatina e ninguém deve entrar em contato conosco, até vermos um
médico.
Com uma interjeição de espanto, lady Agatha fez o que lhe foi pedido e
saiu, fechando a porta entre ela, Elizabeth e o duque.
— Eu não estou doente, eu me sinto ótimo.
— Claro que Vossa Graça se sente. — Elizabeth foi até a porta e trancou-
a. A sua agitação podia ser interpretada com algo inadequado, principalmente
por se isolar em um quarto de estalagem com um homem. Um duque. Ele era
um maldito duque. — Mas eu tenho motivos para suspeitar que estamos
contaminados.
— Isso é uma grande bobagem.
O duque fez menção de ir até a saleta de acesso para abrir a porta e
Elizabeth não podia permitir aquilo. Pensou rápido e tomou uma decisão
desesperada, agarrando o homem pela roupa e fazendo-o virar para si. Ele foi
pego de surpresa e não reagiu quando ela, com dedos atrapalhados, atacou os
botões da camisa até abri-la quase que totalmente.
Só então Elizabeth entendeu que não deveria ter feito aquilo. Não porque
ele era um duque e ela não podia tocar a nobreza daquela forma. Ela deveria
ter sido cautelosa e mantido distância porque aquele homem era mais
perigoso que o diabo, com sua pele lisa e seu peito musculoso, permeado de
fios escuros que desapareciam onde a calça e a camisa se encontravam. Ela
esticou os dedos para tocá-lo mas recobrou o juízo antes de fazê-lo.
Pegou a vela e colocou próxima ao peito — aquele peito! — do duque.
— Veja, Vossa Graça. — Ela apontou para a região do seu diafragma,
onde manchas vermelhas de vários matizes subiam na direção de seu
pescoço. O homem tomou-lhe a vela das mãos e terminou de retirar a camisa,
ficando seminu e fazendo com que Elizabeth não conseguisse mais respirar.
Ela desaprendera, naquele momento, como levar o ar até seus pulmões.
— Maldição — ele blasfemou, colocando a vela de volta sobre uma
bancada. — A senhora também tem essas manchas?
— Certamente que sim.
O duque foi até a porta de madeira e gritou pela irmã.
— Agatha, mande chamar o doutor Davies. É urgente. E não deixe
ninguém entrar neste quarto.
— O que está havendo, Aiden? — A voz da jovem estava fraca do outro
lado da porta. — Os filhos da Sra. Collingworth já estão aqui, estamos
assustados.
— Parece que estamos doentes — o duque disse. Não havia uma nota
naquela voz que não indicasse controle, mesmo em uma situação de pânico.
— Até que isso seja confirmado, não quero ninguém em contato conosco.
Chame o doutor, ele deve estar na vila.
— Certo. Vou alugar um quarto na estalagem, então. Para ficarmos.
— Não. Você pegará os meninos, uma carruagem e irá para Thanet Bay,
assim que pedir a John para ir buscar o doutor. Geoffrey acompanhará vocês.
O silêncio indicara que lady Agatha tinha entendido as ordens de seu
irmão. O choro, em seguida, indicava que Peter não estava satisfeito com os
arranjos, mesmo que eles viessem de um duque. O coração de Elizabeth
apertou e o ar ainda não conseguia entrar em seus pulmões. Medo era o que
corria em suas veias naquele momento, não porque seus filhos estavam do
outro lado da porta, mas porque, se ela morresse, eles não teriam ninguém
para olhar por eles. Seriam órfãos e ela sabia o destino que tinham os órfãos.
— Peter. — Ela correu até a porta e chamou a atenção do filho menor
com algumas batidas na madeira. — Preste atenção, filho. Eu preciso que
você e Patrick acompanhem lady Agatha até a casa dela. Como ela é uma
dama, não pode andar sozinha por aí, à noite. Você é um cavalheiro, então
deve acompanhá-la. Você pode fazer isso?
O choro cessou.
— Eu posso. Mas quem vai cuidar da senhora, mamãe?
Elizabeth não sabia. Ela não tinha como responder ao filho porque não
havia, de fato, ninguém para cuidar dela. Desde a morte de Gregory, ela
cuidava de si mesma e dos filhos.
— Eu farei isso, meu jovem. — A voz grave do duque ecoou por cima
dela. Elizabeth virou-se repentinamente e ele estava ali, muito próximo, a
ponto de seus corpos quase se tocarem. Seus olhos se encontraram e as
palavras morreram na garganta dela, como se qualquer coisa que pudesse
dizer fosse insignificante.
CAPÍTULO TERCEIRO

Q UANDO ACORDASSE DO PESADELO , A IDEN IRIA DESCOBRIR O QUE ANDOU


bebendo. Ele tinha que estar muito embriagado e entorpecido para ter o sonho
mais surreal de toda a sua vida. Nesse sonho, estava preso em uma casa
elegante para hóspedes, em uma estalagem qualquer, com uma plebeia. Eles
estavam padecendo de uma doença muito grave e isolados. E ele estava
morrendo de fome.
A parte estranha era que Aiden estava acordado, portanto, não podia estar
sonhando. Girava pelo quarto em passos largos, iluminado pela chama débil
de algumas velas, enquanto era observado pela mulher mais linda que já vira.
Mulher que ele não conhecia, mas de quem tinha prometido cuidar. Reviveu
mentalmente as últimas horas e teve certeza de que, se não estivesse
enlouquecendo, a doença já teria carcomido seu juízo.
Aiden nunca fora um homem que se incomodasse muito em cuidar das
pessoas. Ele cuidava das coisas. Aprendeu assim a ser um excelente duque,
atento às suas responsabilidades e afazeres. Depois da morte do pai, ele fora
catapultado a um mundo que para o qual fora ensinado e sobre o qual sabia
apenas em teoria. Naquele momento, mesmo que parecesse um absurdo,
também era extremamente razoável que ele decidisse cuidar de Elizabeth
Collingworth.
— Onde está o maldito jantar? — esbravejou, mais para si mesmo do que
para uma plateia, já que não havia nenhuma.
— Devem ter desistido de trazer, Vossa Graça. — A Sra. Collingworth
estava com a voz fraca e embargada. Aiden não sabia dizer se era cansaço,
nervoso ou a doença. — O senhor mandou que ninguém se aproximasse…
— Então decidiram nos matar de fome. — Ele parou de girar e percebeu-
se ainda sem camisa. Sua peça de roupa estava jogada no chão e, de repente,
fazia muito frio. A brisa fresca que entrava pela janela não poderia causar
nele tanto impacto. O duque estava acostumado a correr pela propriedade, a
tomar chuva e a fazer exercícios ao ar livre. Era um homem saudável, não
fazia sentido algum ficar doente.
Foi até a porta e a espancou. Bateu com uma das mãos com força,
querendo chamar a atenção de alguém. Por sorte, seus criados eram fiéis e um
deles estava de guarda, esperando qualquer demanda do duque.
— Vossa Graça precisa de algo? — Era a voz de Granger, o mais jovem
de seus empregados. Por que deixaram justo o menino para trás?
— Sim. Preciso que sirvam nosso jantar. Deixem as travessas na porta,
não interessa como vão fazer, mas estamos com fome. E descubra por que
raios o doutor Davies ainda não está aqui.
Mais silêncio. Aiden se irritou novamente porque ninguém o respondia.
Será que pensavam que podia ver através das paredes? Sentou-se em um sofá
e arrancou as botas, que o estavam incomodando. Desamarrou todos os
cadarços sem qualquer paciência e atirou-as longe, enquanto se encolhia entre
almofadas. Estava com mais frio, naquele momento, mas não pretendia
demonstrar fraqueza para a mulher que estava logo ali.
Pressionou as têmporas com as duas mãos e sentiu, finalmente, o corpo
sucumbir. A dor de cabeça era lancinante e fazia com que ele desejasse
arrancar o membro fora com uma espada. Sua garganta ardia e ele sentia
como se tivesse engolido uma bola de pelos. Deitou a cabeça em uma
almofada e fechou os olhos. Estar naquele pesadelo, agora, não seria tão
ruim.
Estava prestes a perder os sentidos quando percebeu o frescor em sua
testa. Um tecido cobriu seu corpo e ele se agarrou a ele como se sua vida
dependesse do cobertor.
— A febre está muito alta, Vossa Graça. — A voz suave e feminina
entrou em seus ouvidos como música. Como, no meio de tanta agonia, ela
conseguia ainda ter uma voz de anjo? Se os anjos falassem, Aiden duvidava
que tivessem um timbre tão delicado como aquele. — Precisamos baixá-la.
Quis pedir para ser deixado em paz, mas não teve forças. As mãos
pequenas e firmes da Sra. Collingworth tocaram seu pescoço e ele pensou
que ela, se fosse uma mulher respeitável, não o estaria tocando ali. O
acetinado de seus dedos traçava uma linha suave por sua face enquanto ela
sussurrava qualquer coisa que se parecia uma música. Ela estava
cantarolando e sendo gentil com ele, por motivo algum.
Aiden ouviu batidas na porta e depois vozes. Enrolou-se ainda mais nas
cobertas quando o trinco foi aberto e um vento forte esfriou a saleta. Logo a
temperatura se estabilizou e seu nariz captou o aroma de… comida.
— É o jantar?
— Sim, Vossa Graça. Trouxeram uma sopa encorpada, vai lhe fazer bem
tomar um pouco.
Ele queria muito comer, havia um buraco em seu estômago. Ao mesmo
tempo, não conseguia nem mesmo abrir os olhos de tão cansado que estava.
Provavelmente não era cansaço, mas a doença, a febre. As mãos que o
tocaram estavam tão quentes como ele, porém, eram firmes e decididas, como
se mãos pudessem ter personalidade. Ergueram seu tronco e colocaram mais
almofadas em suas costas, enquanto Aiden se sentia fraco e impotente. Tudo
que ele não era, que ele nunca foi.
Abriu os olhos e observou-a, mesmo que a razão já lhe tivesse
abandonado o corpo. Era realmente linda, a Sra. Collingworth. Tão linda
quanto plebeia, tão delicada quanto mãe de dois filhos, tão cheirosa quanto
distante. Tudo naquela mulher o atraía na direção dela ao mesmo tempo que
repelia qualquer possibilidade de relacionamento entre eles.
Ela levou a colher de sopa até a boca dele e o caldo morno tocou seus
lábios. O duque levou a mão para pegar a tigela, ele não precisava ser
alimentado como se fosse um bebê, porém, os dedos trêmulos não
conseguiram cumprir a tarefa.
— Deixe que eu faço isso — a Sra. Collingworth disse, enquanto esfriava
a sopa com um pequeno sopro de ar. Ela provavelmente fazia o mesmo para
os filhos dela e para os filhos das mulheres para quem trabalhava. Aiden
começou a divagar sobre o que fazia aquela mulher, se ela era criada de
alguém, se tinha um marido trabalhando que ela tinha deixado para trás, se
era uma meretriz e por isso vivia sozinha com crianças.
Enquanto pensava, histórias se formavam em sua cabeça e o duque não
conseguia parar de olhar para ela. A mulher tinha a suavidade de uma
orquídea e sua pele era tão branca quanto o leite. Ele pôde ver as manchas
rosadas em suas bochechas e não teve certeza se eram pela escarlatina ou pela
vergonha de estar ali, com ele, em uma intimidade que não era adequada.
Estava difícil comer e sua garganta ardia, mas ele se esforçou para fazê-lo
apenas para que ela continuasse ali, sentada próxima a ele, aquecendo-o com
seu calor.
— Obrigada — ela sussurrou, com uma expressão cansada. — Obrigada
por ter feito meu filho se acalmar naquele momento. Ele é muito sensível e
apegado a mim.
— Sensibilidade não é uma qualidade muito adequada a um homem —
Aiden resmungou, não sabendo dizer nada agradável. Ele era daquele jeito,
péssimo com interações sociais. Sua gentileza poderia ser comparada à de um
cavalo selvagem ou qualquer outro animal bruto e indomado. As mulheres,
elas eram bem-vindas em sua cama e, de preferência, iam embora logo depois
do sexo. Se ficassem mais, era porque haveria mais sexo. Fora isso, ele não
tinha nenhuma habilidade em dialogar com elas.
— Sensibilidade é adequada a qualquer pessoa, Vossa Graça. Ela nos faz
humanos.
A Sra. Collingworth se esforçou para sorrir. Ela não se irritou com ele por
ter criticado seu filho, o que era esperado — as pessoas não demonstravam
irritação com os duques. Duques tinham direito a opinião e frequentemente a
emitiam sem que fossem censurados por isso. E ela era uma mulher, afinal.
Mas ele suspeitava de que ela estava apenas sendo condescendente.
O barulho da colher raspando a louça indicou que a comida acabara. Ela
ofereceu mais, porém, ele recusou, fechando de novo os olhos. A dor
continuava e a febre não havia cessado. A mulher-anjo ao seu lado puxou a
coberta, forçando-o a levantar, e o conduziu, quase precisando arrastá-lo, até
a cama. Aiden não tinha forças para protestar nem discutir. Ele se deixou
levar até desabar no macio do colchão e sucumbir à doença.

B ATIDAS À PORTA fizeram com que Elizabeth abrisse os olhos. Ela quis
levantar, mas não conseguiu. Seu corpo insistia em ficar deitado por causa da
dor e da febre. Sua garganta arranhava. A luz do dia já estava entrando pelas
janelas e iluminando o quarto onde ela estava, a cama onde estava
acomodada. Ao lado do duque.
Aquilo fez com que ela erguesse o corpo em um salto. Havia um homem
ao seu lado e ele dormia profundamente, relaxado e suando muito. Gotículas
de suor brilhavam em sua testa, escorriam por seu pescoço e por seu tórax nu.
Ele estava nu. Ela passou a noite ao lado de um homem nu.
Passou a mão em seu corpo, ela também não estava completamente
vestida. Elizabeth sentiu um calor imediato, e não era da febre, ao imaginar
que aquele duque a despira e a vira em suas roupas de baixo. Se ela soubesse
que seria desnudada por um nobre, teria vestido alguma seda. Não que ela
tivesse seda para vestir. Por mais que ela soubesse que aquilo era um
escândalo e que não haveria sobreviventes quando as fofocas começassem,
ela não conseguia se importar muito.
— Vossa Graça. — A voz veio da porta. — Sou eu, Davies.
O médico. Elizabeth levantou de uma vez, sentindo seus ossos estalarem,
e se enrolou na coberta. O duque virou para o lado e grunhiu, agarrando-se ao
seu cobertor. Mesmo doente e febril, aquele grunhido era sensual. Aquele
homem era sensual.
Abrindo uma fresta da porta, Elizabeth se apresentou ao doutor. Ele
colocou a mão na madeira e a empurrou sem pressa, entrando no quarto.
Estava com um pano à frente do rosto e suas mãos cobertas por borracha.
— Preciso examiná-los, senhora. — O médico apoiou uma maleta preta
sobre o aparador. Ele era baixinho e estava ficando calvo, um homem na
meia-idade. Vestia-se com roupas bem cortadas e costuradas, indicando que
sua posição social era elevada. — Onde está o Duque de Shaftesbury?
— Vossa Graça está dormindo. Ele teve muita febre, ontem.
— Certo. Vou examiná-la primeiro, então. A senhora poderia…
O doutor Davies fez um gesto indicando que ela precisava se desenrolar
da coberta. Uma corrente fria a fez tremer da cabeça aos pés, assim que o ar
entrou em contato com as finas camadas do tecido que pouco a cobria. Tudo
que vestia era uma camisola e calçolas.
Não precisou de muito esforço do médico para identificar a doença.
Elizabeth tinha manchas rosadas por todo o torso e braços, também
espalhadas pelas pernas. Sua garganta estava inflamada e a febre era alta,
ainda. Depois, ela conduziu o médico até o quarto, onde estava o duque, e foi
acender a lareira.
Elizabeth sempre acendia sua própria lareira. A casa onde morava com os
filhos era um sobrado simples e gelado, com chão de terra e alguma umidade.
Patrick vivia adoecendo por causa disso, sempre espirrando e tossindo. Para
evitar o frio, até no verão, ela mantinha a lareira acesa, o que também ajudava
a secar as paredes. Carregar madeira e fazer fogo nunca foram mistério para
ela. Naquele momento, no entanto, ela sentia dor e ajeitar a lenha no
compartimento foi uma tarefa árdua.
Feriu o dedo com uma farpa e arranhou o braço com um pequeno tronco
mais rebelde. Depois de algum esforço, o fogo estava finalmente queimando
e ela pôde se acomodar na poltrona ao lado.
— Senhora. — O médico retornou. — A infecção é mesmo escarlatina,
mas parece uma forma mais branda. Só o tempo dirá. Não há muito que eu
possa fazer, além de recomendar banhos frios para baixar a febre, repouso e
muita sopa. Deixarei um tônico de acônito para a infecção que pode ser muito
útil, e recomendarei láudano, se a febre causar euforia.
— Podemos ir para casa? — ela perguntou, ansiosa.
— Recomendo que fiquem em isolamento para evitar que essa doença se
alastre. Sei que as condições são… impróprias. — Ele pigarreou e frisou a
última palavra, indicando que a permanência de um duque, em um quarto,
com uma viúva, causaria a ruína da reputação dela. — Mas informarei aos
criados e pedirei vigilância.
Elizabeth assentiu antes de o médico deixar a saleta. Ela suspeitava que o
duque não fosse um cavalheiro preocupado com sua virtude e aquilo podia
rapidamente transformar-se em um escândalo impossível de se reverter. Ele
estava dormindo sem roupas ao seu lado. Ela não o vira nu, apenas seu peito
descamisado, mas a sua calça estava pendurada em uma cadeira próxima à
cama. Um homem sem calças é um homem nu.
Ele também a despira e a deixara em suas roupas de baixo. Ela não sabia
se estava mais frustrada por não ter impedido ou por não ter sentido as mãos
firmes do duque em seu corpo. Céus, ele tinha mãos enormes.
— Sra. Collingworth?
A voz grave e masculina veio do quarto. Elizabeth reuniu forças para
respondê-lo, preferindo se levantar e ir até o duque. Se ela conhecia bem os
nobres, ele provavelmente daria algumas ordens a ela, mesmo que não fosse
sua criada. Nobres adoravam dar ordens para pessoas como ela, adoravam
mandar e ser obedecidos.
— Pois não, milorde?
Ele estava sentado na cama e, por Deus, como era lindo. Elizabeth não
sabia como conseguira dizer qualquer coisa diante daquela escultura
masculina que terminava de abotoar as próprias calças. Com os pés descalços
e peito descoberto, ela podia ver o bronzeado natural de sua pele e os
músculos proeminentes por todo o corpo. Como aquele homem, um
aristocrata, poderia ter tantos músculos? Ele não fazia trabalhos braçais,
nunca deveria ter costas tão largas, ombros tão firmes e uma barriga tão…
As palavras faltavam para defini-lo.
— Acredito que vamos passar alguns dias presos, aqui. — Ele lhe sorriu e
ela quase desmontou em seus joelhos, como se aquele sorriso estivesse
mergulhado em láudano e pudesse anestesiá-la. — Pode abandonar os
tratamentos formais. Como a senhora está se sentindo?
— Dolorida. — Ela se sentou novamente, em uma cadeira. O mais longe
que podia daquele pecado em forma masculina. — Se vamos nos tratar por
nomes informais, senhor, pode me chamar de Elizabeth.
Um homem e uma mulher, desconhecidos, nunca se tratariam por
primeiros nomes. Nem os conhecidos faziam aquilo, era indecoroso, mas
Elizabeth precisava sempre lembrar que ela não era uma dama da sociedade e
que aquelas regras não foram feitas para os miseráveis plebeus.
— É um nome muito bonito. — O duque se levantou e sua altura era
ainda maior à luz do dia. Ele todo era maior, e melhor, com o sol reluzindo
em sua pele e cabelos. Nem as manchas da escarlatina conseguiam deixá-lo
menos lindo. — Vou dar algumas orientações ao meu criado. Se a senhora
quiser, pode tomar um banho.
Tomar um banho. Elizabeth notou a banheira próxima à outra lareira, que
já estava acesa antes, um pouco afastada da cama. Também havia um balde
de metal e uma bica de água. Aquela não era uma estalagem modesta e
aquele não era, definitivamente, o quarto pelo qual ela fora cobrada, antes. As
instalações eram caras demais para hospedar uma trabalhadora como ela.
O médico dissera que banho frio era bom para a febre. O corpo cansado
de Elizabeth pedia por aquela banheira, pedia por uma água morna que lhe
banhasse a sujeira de um dia inteiro de fuga inútil. Suas roupas estavam um
pouco encardidas por fuligem e poeira da estrada e seu cabelo cheirava a
fumaça. Ela adoraria deitar naquela banheira e lavar a cabeça, ficar cheirosa e
limpa para que o duque a visse…
Ele não a veria de forma alguma, como estava sendo tola. Homens como
Aiden Trowsdale não notavam plebeias como ela, provavelmente nem
mesmo para deitarem em sua cama.
Perdida nos devaneios, ela se pôs a preparar o banho. Deixou a água
esquentar no fogo da lareira, pegou a pedra de sabão que estava em uma
caixa de madeira e o tecido que servia de toalha, para se enxugar. Olhou para
a porta que separava o quarto da saleta e suspirou — não havia porta. A voz
imponente do duque ecoava por todo o espaço e ela considerou como, afinal,
iria entrar naquela banheira.
De uma vez só, fora a decisão. Apressada, na velocidade que a doença lhe
permitia, Elizabeth tirou a roupa, deixando-a ao lado, jogou o balde de água
quente e completou com água fria. Entrou na banheira e soltou uma blasfêmia
quando encostou na água quase gelada. Era o que o médico recomendou,
então era o que faria.
Seu corpo começou a tremer, mas ela resistiu. Encolheu-se, agarrando os
joelhos com os braços e ficou ali por quase um minuto inteiro. Esfregou o
sabão, limpou as impurezas da pele, mas não lavou os cabelos. Também não
percebeu quando a voz do duque cessou e tomou um susto quando sentiu a
sua presença ali.
— Esse banho não parece estar sendo muito agradável.
O coração de Elizabeth saltou duas batidas e ela tentou não olhar para ele.
O que aquele homem estaria fazendo ali, se ele sabia que ela iria se banhar?
Não deveria manter-se na sala, por decoro? Ou será que ele era um duque
devasso, libertino, daqueles que não tinham nenhuma decência? A fama do
Duque de Shaftesbury era de um homem que quase não se socializava, mas…
ele podia realizar orgias em sua casa. Oh.
— Está gelado. Ou eu estou muito quente, não sei dizer. Mas o médico
recomendou.
— Isso parece mais tortura do que tratamento.
Fingir que ele não estava ali não era uma possibilidade. Ele emanava
calor e fazia com que o coração dela disparasse. Elizabeth tremia de frio e
com a tensão daquele corpo masculino a menos de um metro de distância
dela. Um corpo masculino diferente de tudo que já tinha visto, porque ela não
estava acostumada a homens como aquele. Sem que esperasse, Aiden se
aproximou mais e, pegando a toalha em suas mãos, colocou sobre os ombros
dela.
— Você parece estar se sentindo melhor — Elizabeth murmurou. Não
esperava que sua voz saísse tão fraca e trêmula, mas foi o que ela conseguiu
fazer, agarrada à toalha enquanto seus dentes trincavam.
— Sou um duque, ficar doente não é bem algo a que estou acostumado.
Ele sorriu e ela cometeu o erro de olhar. Aquela era a boca mais perfeita
que existia e ela só conseguiu pensar que ele poderia beijá-la. Não fazia
sentido querer ser beijada pelo duque quase desconhecido, mas ela queria. O
sorriso dele se transformou em uma linha fina e sua expressão assumiu
contornos densos, sombrios. Algo o incomodou.
— Acho que a senhora deveria sair dessa água fria — Aiden disse. —
Não quero que morra sob meus cuidados.
Dando dois passos na direção da banheira, seus pés firmes encostaram no
metal e ele colocou as duas mãos nos ombros dela. Elizabeth sucumbiu a toda
espécie de sensação: calor, frio, ansiedade, fraqueza, medo, desejo. O simples
toque displicente daquele duque com poucos limites disparou todos os alertas
dentro dela. Ele a fez levantar, puxando-a para cima com delicadeza e
enrolando a toalha em seu corpo para que permanecesse coberto.
Ela parou de respirar e engoliu o ar. Aiden virou de costas para que
Elizabeth pudesse deixar a banheira e se vestir, desaparecendo em seguida
pela saleta. Bateu à porta e falou mais alguma coisa com seu criado. Seriam
mais alguns dias naquela tortura. Como ela pretendia resistir a um homem
como aquele?
CAPÍTULO QUARTO

— S E O SENHOR QUISER , PODE TOMAR UM BANHO TAMBÉM .


A voz da tentação ecoou nos ouvidos de Aiden. Há segundos, ele estava a
ponto de fazer uma besteira e não sabia como tinha resistido. Entrou no
quarto na intenção de vê-la nua, ele queria ver aquele corpo perfeito por
inteiro, mesmo que estivesse doente. Aquela era a atitude de um devasso, de
um homem que não respeitava as mulheres — e ele não as respeitava muito,
mesmo. Aquela em especial o fez perder o senso desde a primeira troca de
olhares.
Pelo menos, ela tinha se vestido, ou quase. Estava com uma camisola e
nada mais, o que significava que todo acesso àqueles seios estava ali, ao seu
alcance. Seria muito tempo sem uma mulher em sua cama? Será que Aiden
estava em uma abstinência muito longa e isso o estava afetando?
— Vou prepará-lo para o senhor.
— Posso preparar meu próprio banho — ele disse, sem saber exatamente
por quê. Ele não costumava nem preparar a roupa que vestiria, quanto mais
um banho. Nunca fizera isso em toda a vida. E ela sabia, porque o risinho em
sua boca vermelha dissera aquilo.
— Está tudo bem, milorde… Aiden. No final, a água fria fez com que
minha temperatura abaixasse e estou me sentindo melhor.
A deusa dourada voltou para o quarto e ele notou seus cabelos soltos,
caindo por sobre os ombros. Ela desfez a trança para tomar banho e
obviamente não tinha ninguém para refazê-la, nem fazia qualquer diferença
cobrir os cabelos com uma touca. O duque ouviu barulho de água e Granger
trouxe a comida — o desjejum. Os dois combinaram um código, já que o
duque estava confinado àquele quarto até segunda ordem do médico. Sempre
que precisassem se falar, Aiden bateria. Ele não queria as pessoas entrando
no quarto sem necessidade.
O criado teria que ficar o dia inteiro na porta, mas o duque decidiu que
um pagamento extra o compensaria. Ele também pediu notícias de Agatha,
queria saber se mais alguém tinha adoecido em Thanet Bay. Achou prudente
não querer nenhuma informação sobre a duquesa, porque ela provavelmente
estaria esbravejando e praguejando — mesmo que duquesas não
esbravejassem nem praguejassem — porque o filho estava preso em uma
estalagem com uma qualquer. Depois de colocar toda a comida para dentro,
sentiu novamente o cansaço da doença e imaginou que Elizabeth tinha razão,
ele precisava de um banho, como ela.
— Está pronto. — Ela reapareceu na saleta e viu a mesinha cheia de
iguarias, presunto e chá. — Vejo que ficar reclusa com um duque tem suas
vantagens, afinal. Eu nunca seria servida dessa forma, ainda mais se estivesse
doente.
— A senhora pode comer, se quiser.
— Sou grata. — Ela sorriu e era um sorriso perfeito. Merecia uma
moldura. Ele sentiu um incômodo na região da virilha e rezou em silêncio
para que Elizabeth não prestasse nenhuma atenção à anatomia masculina.
Aquela parte em questão estava um tanto quanto alterada. — Agora venha ou
a água vai ficar gelada.
Com alguma hesitação, ela segurou-o pela mão e o puxou para o quarto.
Quando uma mulher fazia isso, ela geralmente o estava chamando para deitar
em sua cama. Não era aquele o caso, mas ele não se importaria. Ou se
importaria, já que nada daquilo era para acontecer.
— Depois que o senhor se despir e entrar na banheira, me avise.
Ela virou de costas e o duque olhou para seu próprio corpo. Em regra, ele
tinha orgulho de sua forma física e sua virilidade, mas estava enfraquecido e
todo manchado de vermelho. Podia fingir que não se sentia mal, mas tudo
que queria era baixar aquela febre e dormir o dia inteiro. Fez o que ela pediu,
arrancou as calças e se enfiou na banheira.
— Maldição! — praguejou, ao sentar no gelo. — A senhora chegou a
esquentar esta água?
Elizabeth virou-se ainda com aquele sorriso nos lábios e Aiden nem tinha
terminado de se ajeitar na água. Ela não olhava para ele, apenas pegou a
toalha e colocou sobre a banheira, cobrindo quase toda a masculinidade
exposta. Era como se ela já tivesse passado por aquilo algumas vezes e
soubesse exatamente o que fazer.
— Vou lavar suas costas, milorde. — Elizabeth abaixou ao lado da
banheira e pegou a pedra de sabão. — Se quiser, posso lavar seus cabelos
também.
Aiden ficou em silêncio. Ele não sabia genuinamente o que dizer.
— Fique tranquilo, sou a mãe de dois e uma mulher trabalhadora. Sei
lidar com pessoas doentes.
— Onde está o seu marido?
A pergunta saiu rude, mas ele precisava de qualquer coisa para se distrair
das mãos pequenas e macias tocando sua pele ferida. Mesmo que isso fosse
fazer com que ela o achasse desrespeitoso, era melhor que servisse para que
ficasse longe dele.
— Sou viúva — ela respondeu, passando os dedos ensaboados por suas
costas. Eram toques de um querubim que despertavam as partes mais
sensíveis do duque. — Perdi meu marido para a cólera, cinco anos atrás.
— Seus dois filhos são dele?
Outra pergunta invasiva e inadequada, mas Elizabeth não pareceu se
abalar. Suas mãos delicadas continuavam passeando pelas costas de Aiden,
escorregando vez ou outra para seu peito. Ele desejou que ela pudesse abraçá-
lo e entrar ali, naquela banheira, mesmo que vestida.
— Não é porque sou uma plebeia que vive em Shadwell que sou uma
prostituta. — A voz suave cantou nos ouvidos dele. — Quando fiquei viúva,
Peter tinha acabado de nascer.
— Não quis soar rude. — Ele ganiu no instante em que as mãos dela
esfregavam sua lombar, quase dentro da água. Elas estavam muito perto,
perto demais. — Eu me entedio facilmente, por isso gosto de conversar.
Elizabeth levantou-se e começou a mexer no balde. O duque ajeitou-se na
banheira, temendo que ela pudesse vê-lo nu e excitado. Seu pênis duro
latejava dentro da água fria e ele nem mesmo lembrava que estava com uma
doença muito grave.
— Está tudo bem. — Ela despejou um pouco de água morna em sua
cabeça e Aiden gostou quando os dedos femininos se embrenharam em seus
cabelos. — Eu entendo a curiosidade. O senhor também não é casado? Não
há uma duquesa esperando em sua propriedade?
— Ainda não me casei. — O duque deitou a cabeça na borda da banheira.
Ele queria ser apenas sentidos, enquanto Elizabeth acariciava seu couro
cabeludo, sua nuca, ensaboava seus cabelos como se fosse uma mãe cuidando
do filho.
Não, aquele não era o toque de uma mãe. Aiden já fora tocado por criados
e até por sua mãe, quando criança, e era tudo muito diferente. Aquela mulher
tinha dedos sensuais que indicavam que ela sabia o que estava fazendo —
banhando um homem que estava em ponto máximo de excitação. Bem, talvez
ela não estivesse muito consciente da segunda parte.
— Uma pena. Tenho certeza de que há várias damas interessadas no seu
cortejo. O senhor é um homem muito… duque. O senhor é um duque.
Aiden deixou um sorriso esticar seus lábios, porque ele tinha certeza de
que ela completaria a frase com outra coisa que não a obviedade do seu título
de nobreza. Todos sabiam que ele era um duque e, sim, muitas mulheres
iriam querê-lo por esse motivo, mas Elizabeth não hesitaria ou se engasgaria
nesse ponto específico. Aquilo significava que ela também estava abalada?
Que ele causava nela o mesmo efeito intoxicante que ela causava nele?
Elizabeth jogou mais água sobre os cabelos do duque até tirar totalmente o
sabão.
— Talvez sim, mas eu não me interessei muito em cortejá-las, até hoje.
Eu não sou um homem que corteja mulheres, Elizabeth. Eu geralmente não
presto nem atenção no nome delas.
A confissão grosseira extraiu uma interjeição sutil da mulher ajoelhada ao
lado de Aiden. Ela tentou disfarçar e engoliu as palavras, mas ele percebeu
que o momento a impactou, também. Elizabeth levantou-se e estendeu outra
toalha para o duque.
— Vou deixá-lo para que se vista. Acho que precisamos comer alguma
coisa.

C UIDAR de Aiden Trowsdale poderia ter parecido uma ideia razoável no


início, mas se transformou na coisa mais imprópria que Elizabeth já fizera em
toda a sua vida. Estava acostumada a cuidar de pessoas. Ela passara boa parte
de sua vida, até então, cuidando da família. Do marido, dos filhos. Dos
patrões. Cuidar do Duque de Shaftesbury não deveria ser tão difícil. Ela
chegou a duvidar de suas próprias intenções gentis depois que seus dedos se
perderam na pele e nos cabelos daquele homem que personificava o pecado.
Claro que ele era um duque e os nobres não estavam acostumados a fazer
nada por si próprios. Mas ela exagerou.
Não precisava lavar suas costas — nem seus cabelos —, mas o fez,
mesmo assim, sabendo que aquilo despertaria sensações que ela já tinha
esquecido há muito tempo. Na verdade, eram sensações completamente
novas. Por mais que ela e o falecido Gregory tivessem um relacionamento
bastante romântico, Elizabeth não se lembrava de ter sentido aquela sensação
que fazia com que as borboletas em seu estômago se agitassem.
— Obrigado.
A voz do duque fez com que ela se sobressaltasse em seus devaneios.
Elizabeth estava na saleta, ajeitando a comida do desjejum, mesmo que seu
corpo não estivesse interessado em comida.
— Não precisa agradecer, milorde. Afinal…
Ele estava muito perto dela e aquilo fez o coração de Elizabeth disparar,
martelando incessante em seu peito.
— Se me permitir retribuir, eu gostaria de trançar seu cabelo.
Elizabeth virou-se repentinamente, segurando um prato com pães,
presunto e ovos. Seus olhos esbugalhados indicavam que ela não estava
entendendo a suavidade daquele homem que, até então, só tinha blasfemado e
dado ordens.
— E o senhor sabe trançar cabelos?
— Ter uma irmã muito mais nova e uma mãe muito pouco afetuosa faz
com que aprendamos algumas coisas.
— Mas havia criados para isso. Sua irmã não tinha uma tutora?
— Nós temos dúzias de criados, mas Agatha sempre foi apegada a mim.
Ela deu uma risada curta e estendeu ao duque a comida que acabara de
servir. Elizabeth precisava de qualquer coisa para reduzir aquela intimidade
entre eles, mas apostava que a reclusão só faria com que se aproximassem
mais.
— Vamos comer, primeiro. Depois, precisamos descansar, como mandou
o doutor. Não precisarei de tranças, por enquanto.
Comer foi difícil para Elizabeth, enquanto sua garganta doía, seu corpo
estava ainda exausto e sua mente girava sem parar pensando em todas as
coisas impróprias que ela queria que o duque fizesse com ela. Era tudo
certamente por causa dos delírios da febre.
Elizabeth não era uma donzela, menos ainda uma dama, mesmo assim,
ela não saía deitando com todos os homens de Londres. Depois do marido,
ela nunca mais teve um amante. Cada vez que Aiden Trowsdale levava um
pãozinho à boca, ela desejava que ele deitasse aquela boca sobre a dela.
Desejava aquelas mãos em seu corpo. Desejava aquele corpo sobre o seu.
Céus, e ela o conhecia há um dia. Um mísero dia era suficiente para fazê-
la desejar que aquele homem fizesse coisas impróprias com ela. No mais, a
doença não deveria abatê-la o suficiente para que não sucumbisse àqueles
desejos impuros?
— O senhor deveria se deitar — ela sugeriu, recolhendo os pratos e
empilhando a louça.
O duque, parecendo ainda bastante afetado pela febre, levantou-se
cambaleante e desapareceu pelo quarto. Elizabeth bateu à porta e lá estava
Granger, o criado que tinha passado a noite em um corredor e estava
passando o dia sentado no chão frio. Aquilo era fidelidade ao seu patrão, mas
ela não podia evitar sentir-se mal pelo menino.
Com recomendações de que o jovem não tocasse diretamente em nada e
levasse tudo para a cozinha, onde as louças deveriam ser mergulhadas em
água quente, Elizabeth trancou a porta e deitou no sofá. Ela também
precisava repousar. Qualquer esforço era demais, seu corpo não aguentava
nem os trabalhos mais simples do dia a dia.
Já tinha fechado os olhos quando ouviu seu nome dançar na voz do
duque.
— Elizabeth — ele chamou e ela não respondeu. Queria ouvi-lo falar
outra vez, queria saborear aquela voz. — Sra. Collingworth?
Enrolada em uma coberta, ela foi até o quarto. Aiden estava embolado na
cama, escondido por cobertores.
— Diga, milorde.
— Por favor, não fique naquele sofá. Ontem precisei trazê-la para a cama,
não me faça carregá-la novamente. Estou enfraquecido demais e gostaria de
poupar energias.
Oh. Então ela não tinha ido sorrateiramente até o duque no meio da
madrugada, ele a carregara até a cama. Ele a despira e deitara ao seu lado.
Aquilo era um absurdo. Ela então sofria por não ter sentido o calor daquele
corpo no dela.
— Mas não tenho outro lugar para ficar e preciso repousar. Estou me
sentindo muito mal.
— A cama é suficiente para nós dois. Acho que cabem umas quatro
pessoas aqui. Provavelmente o estalajadeiro esperava hospedar nobres
libertinos que gostam de ter muitas mulheres de uma só vez.
Elizabeth sentiu as bochechas arderem e não era pela doença. Ao mesmo
tempo, suas coxas tremeram e ela percebeu que sua intimidade se agitou com
a imagem que se formou daquele homem perfeito em uma cama rodeado das
maiores beldades de Londres. A imagem lhe causava repúdio porque não
queria que ele estivesse em uma cama com várias mulheres. Se alguém fosse
se deitar ali com ele seria ela. E Elizabeth não tinha mais nenhum pudor em
pensar aquelas coisas. Sua alma estava encomendada para o inferno.
Com cuidado para não entrar em um espaço físico que lhe conduziria a
um toque involuntário de pele, Elizabeth se deitou no colchão macio e seu
corpo agradeceu. Ainda enrolada no cobertor, acomodou-se virando as costas
para o duque e ansiando para que ele adormecesse logo para que, caso ela
ficasse tentada a olhar e admirá-lo, o homem não percebesse.
— Elizabeth. — A voz abafada chamou a sua atenção. — Conte-me uma
história.
— Que tipo de história Vossa Graça deseja ouvir?
— Qualquer uma. Conte-me sobre você. Quem é Elizabeth Collingworth?
Uma mulher perdida. Uma que causa inveja em outras como ela apenas
por poder dividir a cama com um duque, mesmo que seja só para conversar e
dormir. Uma devassa que só pensa em ser tocada de todas as formas mais
inapropriadas.
— Não há nada interessante sobre mim.
— Duvido. — A voz dele estava ficando mais embargada. — Aposto que
há muito por trás da mãe viúva que… onde a senhora trabalha, mesmo?
— Estou desempregada, no momento. Eu trabalhava com os Pensington,
mas eles se mudaram para a França. Era dama de companhia de lady
Charlotte.
— Os Pensington. — A risada dele indicou que sabia quem era a família.
— Então a senhora já deve ter conhecido o Conde de Cornwall.
— Ah, sim. Ele cortejava lady Charlotte. Eu o conheci, certamente.
Um silêncio de alguns segundos fez com que Elizabeth pensasse que o
duque tinha caído em um sono súbito.
— Edward é meu amigo. Talvez o único amigo que eu tenha.
A voz saiu baixa e sonolenta. Elizabeth quis virar-se para ele e afagar
seus cabelos até que adormecesse. Ela gostava de fazer isso com os filhos e
sentia vontade de cuidar daquele duque que, provavelmente, pela primeira
vez em sua vida, estava vulnerável. Mas ela não fez nada daquilo, apenas
continuou contando a ele a história que pedira.
— Lorde Edward é um bom homem. Recomendei várias vezes à lady
Charlotte que aceitasse seus cortejos, mas ela estava muito envolvida com o
lorde francês. Eles devem se casar, acredito que serão felizes, já que ela o
ama.
— A senhora amava seu marido?
Claro que amava.
— Pessoas como eu têm o luxo de poder se casar por amor.
— Entendo. Continue falando.
Elizabeth atendeu àquele pedido, que era uma ordem. Ela contou sobre
quando conheceu Gregory, em uma taverna. Fora buscar o pai, que tinha
bebido demais outra vez. Um agiota fora à casa deles informar que o pai
devia muito dinheiro e que estava embriagado em um dos antros de
Whitechapel. Que deveriam dar um jeito de pagar ou sofreriam
consequências piores. Enquanto a mãe ficou apavorada, Elizabeth dirigiu-se
até a taverna para resgatar o pai. Gregory estava bebendo com amigos e a
ajudou. Ele era um homem lindo, forte e másculo, mas muito castigado pelos
anos de trabalho intenso. Os dois se apaixonaram no instante em que se
viram, ela soube depois. Eles se amaram, verdadeiramente, até a prematura
morte dele.
Contar aquela história fez com que Elizabeth tivesse belas recordações
que lhe acalentaram a mente. Por mais pobre que fosse, eles eram uma
família feliz. Tinham o necessário para sobreviver com alguma dignidade e
estavam sempre juntos. Foi muito difícil viver sem Gregory nos primeiros
meses, ela sofreu muito e passou muitas dificuldades financeiras, até decidir
usar seu estudo e sua educação para ganhar dinheiro.
Enquanto Elizabeth narrava sua saga da juventude, o duque pegou no
sono. O silêncio precedeu ao som de sua respiração pesada e ressonante. A
dor e a febre acabaram por fazê-la sucumbir também.
CAPÍTULO QUINTO

A VOZ DE UM ANJO CONTINUAVA ECOANDO NA CABEÇA DE A IDEN , ENQUANTO


ele lutava contra a febre. Estava muito cansado, o suficiente para não
conseguir sair da cama mesmo sentindo fome e sede. Também sentia dor e
frio e aquilo era o bastante para decidir ficar onde estava. Abriu os olhos,
encarou as costas e os cabelos claros de Elizabeth e não evitou sorrir. Por
que, com tantas donzelas perfeitas em toda a Inglaterra, era aquela plebeia
viúva que estava causando tanto rebuliço em suas entranhas?
Enquanto a observava, ela se virou para ele. A face delicada acomodada
sobre as mãos, apoiada no travesseiro. A escarlatina não afetou em nada a
beleza que Elizabeth carregava consigo.
— O senhor está com uma aparência péssima — ela disse e sorriu.
Maldição, aquele sorriso ainda iria fazer com que ele perdesse a linha.
Depois, levou a mão à testa de Aiden e permaneceu ali por alguns segundos.
— E a febre está muito alta. Tome outro banho.
— Não tenho forças.
Elizabeth fechou os olhos.
— Nem eu. Também estou me sentindo como se fosse morrer, talvez eu
vá. Há uma luz me atraindo, a luz está atraindo o senhor, também?
— Deve ser o sol do lado de fora. — Ele riu.
Não era o sol, Aiden também sentia que a morte poderia estar próxima.
Não conseguiu nem se mover, apenas voltou a dormir. O sono, dessa vez, foi
agitado e inconstante. Parecia um pesadelo, ele por vezes pensou estar caindo
em um precipício, outras vezes sendo sugado por uma tempestade em alto-
mar. O duque nunca nem tinha estado em alto-mar para saber que sensação
era aquela, mas era como se seu corpo adoecido inventasse as memórias por
si próprio.
Ah, seria tão melhor ter memórias do corpo quente de Elizabeth sob o
seu. Tão melhor saber como era tê-la em seus braços, aninhada em seu peito,
o gosto dela em sua boca. Aiden nunca quisera mulheres aninhadas, nem
fazia questão de lembrar-se delas depois. O prazer carnal era efêmero e
satisfatório, ele não precisava rememorar gostos e texturas.
A mente lhe pregou peças substituindo o pesadelo pelo desejo. Ele não
estava mais caindo, sendo atirado na parede ou esfaqueado em um beco,
estava apenas ouvindo Elizabeth rir e contar histórias. Imaginou o corpo dela
nu, suado e ofegante, chamando por seu nome. Aiden. E então a agitação
passou e o duque adormeceu profundamente.
Ouviu batidas à porta e seu criado o chamava, fazendo com que
despertasse. Não sabia se ainda era dia ou noite. Se já era o dia seguinte ou o
mesmo. Piscou várias vezes e a escuridão do quarto fez com que se
localizasse no tempo. Uma brisa fria entrava pela janela aberta, que permitia
que a luz da lua clareasse um pouco a cama onde estava. Não queria falar
com Geoffrey, não tinha nem forças para se levantar e o calor o estava
fazendo suar.
Calor?
Aiden tentou se mover e percebeu Elizabeth em seus braços. Ela estava
aconchegada em seu peito, ele a tinha envolvido com o braço direito e ela
segurava seu tórax com as mãos pequenas e macias. O duque fechou os olhos
e colocou o nariz naqueles cabelos acobreados como o pôr do sol, inspirando
o aroma que eles exalavam. Rosas? Não, gardênias. Elizabeth tinha um cheiro
doce e marcante que ele não tinha sentido ainda, nem nas damas com quem
compartilhara a cama, nem nas donzelas da aristocracia.
Geoffrey continuou chamando e foi ignorado. Com cuidado, Aiden puxou
Elizabeth para mais perto e a comprimiu em seus braços. O calor dela se
misturava com o dele e aquilo foi o suficiente para que sua excitação
aflorasse. O que veio a seguir apenas agravou a situação.
Ela começou a despertar. Estendeu os braços e passou as mãos pelo peito
nu de Aiden. Ele reprimiu um gemido quando os dedos dela deslizaram por
sua barriga, hesitantes, em reconhecimento, e se enroscaram brevemente nos
fios escuros que desapareciam na calça que ele vestia. Elizabeth então abriu
os olhos, piscou e ergueu a cabeça. Sua expressão assustada estava misturada
com a mais genuína confusão. Se ela tivesse descido os carinhos um pouco
mais… ele não seria capaz de impedi-la.
Os olhares se cruzaram e permaneceram um no outro por um minuto
inteiro. Aiden levou a mão até a face corada, enrubescida de Elizabeth e
afastou alguns fios quase alaranjados da testa dela, limpando o suor que
estava ali. Desceu o polegar pelas bochechas, pelo queixo delicado, parou ao
tocar os lábios. Estavam tão próximos que ele podia sentir a respiração suave
e morna tocando sua pele.
E então o encanto se rompeu. O que ele estava fazendo? Aonde eles
queriam chegar com aquilo? Elizabeth rolou para o lado e o espaço que ela
ocupava ficou subitamente muito vazio, frio, oco. O duque encarou o teto por
longos minutos, o silêncio quebrado pelas insistentes batidas na madeira, pela
água gotejando em algum lugar do lado de fora, pelo ressonar das respirações
aceleradas. Talvez ele conseguisse ouvir seu próprio coração martelando. A
dor estava toda concentrada em sua virilha. Ele precisava dar um jeito de
tomar aquela mulher para si ou livrar-se dela de uma vez.

M ARTELADA . Outra martelada. Mais uma martelada. O coração de Elizabeth


parecia a oficina de um ferreiro ou um canteiro de construção. Ela estava
imóvel deitada de costas na cama, fitando o escuro do teto enquanto o ar
escapava de seus pulmões sem que ela conseguisse respirar. Em algum
momento durante o sono conturbado pela febre ela rolou para o lado do
duque e acabou nos braços dele.
Se não fosse morrer pela doença, precisava dar um jeito de sair daquela
cama. O duque até parecia um homem gentil, mas era apenas isso. Ele
poderia querê-la para uma noite, só que a simples ideia de ser amante de
alguém a deixava enjoada. Elizabeth podia ser pobre e desempregada, mas
não se prestaria a ser sustentada por um nobre como sua amante. E se daquela
loucura ela engravidasse? E se gerasse um bastardo?
A febre fez com que ela sucumbisse ao delírio novamente e seu corpo
apagou.

J Á FAZIA três dias que Agatha estava em Thanet Bay e ela ainda não tivera
notícias de Aiden. O irmão estava confinado em uma estalagem, no meio do
caminho para Londres e os criados apenas disseram que ele continuava dando
ordens e mandando como um duque. Bem, era o que ele era, mas Agatha o
enxergava de outra forma. A maturidade a fez compreender o irmão e
perceber que ele era, no fundo, uma alma solitária que não sabia muito bem
como se aproximar das pessoas. Então ele usava sua autoridade sobre elas.
— John — ela interpelou o criado no jardim. O sol em Kent estava
agradável e o ar era limpo. As flores brancas e amarelas cobriam quase todo o
arredor da enorme casa e o gramado estava de um verde vivo esfuziante. —
Preciso que prepare a carruagem, vou ver o duque.
— Lady Agatha, temos ordens expressas de Vossa Graça para que a
senhorita não saia da propriedade.
— Bem, se você não preparar a carruagem, vou montar em um cavalo e
vou assim mesmo. — Ela colocou a mão na cintura e encarou o criado, que
esfregou a cabeça com desânimo. — Entenda, eu preciso de notícias dele.
Preciso falar com ele. Não vou fazer nada arriscado.
John fez uma reverência e saiu. Era muito difícil convencer lady Agatha
de qualquer coisa quando ela não queria ser convencida. Logo, a carruagem
estava pronta, esperando-a, e conduziu a lady e sua dama de companhia até
onde Aiden Trowsdale estava. Ela entrou na estalagem e, antes de chegar até
à casa dos fundos, foi interpelada pelo estalajadeiro. O homem pequeno e
barrigudo arrumava os bigodes enormes com os dedos. Ele tinha uma
aparência horrível, parecia um enfeite de jardim mal feito e mal pintado.
Ele queria lembrá-la que a conta do irmão estava alta e que ele temia que,
com a morte do duque, não recebesse o que lhe era devido.
— Meu irmão não vai morrer, isso eu lhe asseguro.
— Mas a escarlatina é uma doença grave, milady — o homem insistiu. —
Por que não fazemos o seguinte: a senhorita me paga o que o duque deve até
agora e depois ajustamos o restante. Claro que terá que pagar a parte da
mulher também, já que ela parece não ter onde cair morta.
— O senhor é uma pessoa odiosa. — Agatha moveu os ombros e olhou
para sua criada, com desânimo. — Mais interessado pelo dinheiro do que
pela vida das pessoas. Não se preocupe, eu pagarei o que o senhor tem a
receber. Dou a minha palavra.
Mesmo com a promessa, o estalajadeiro seguiu Agatha. Para ele, a
palavra de uma mulher não valia nada. Claro que, se Aiden morresse, ela não
seria sua herdeira, mas Agatha tinha certeza de que o irmão garantira a ela e à
mãe uma forma de subsistência, por testamento. O esperado era que ela se
casasse e tivesse uma confortável vida ao lado de um nobre endinheirado,
mas Agatha preferia acreditar que o irmão não contara com a sorte e deixara
um testamento a seu favor.
Geoffrey estava na porta do quarto com as costas recostadas na madeira.
— Milady. — O jovem criado levantou-se ao ver Agatha se aproximar,
marchando firme com o estalajadeiro e uma criada atrás dela.
— Como está o duque, Geoffrey?
— Em silêncio, milady. Desde ontem, ele não bate na porta nem atende
aos meus chamados. Já insisti e insisti e nada. Eu troquei com o Granger,
mandei o menino descansar e estou aguardando ser solicitado por Vossa
Graça. Mas confesso que estou preocupado.
Agatha não disse nada, apenas bateu delicadamente à porta. Como não
obteve resposta, bateu mais forte. Por fim, esmurrou a madeira na intenção de
ser ouvida, sem muito sucesso. Não havia um som vindo de dentro do quarto.
— Preciso entrar — ela disse, virando-se para o estalajadeiro. — Faça
valer o dinheiro que receberá e abra esta porta.
— O quarto está em isolamento, senhora. Não devemos entrar até que…
— Eu pareço preocupada com isso? Apenas pegue uma chave reserva e
abra esta porta, ou pedirei que meu criado a arrombe.

A IDEN IMAGINOU QUE ESTIVESSE SONHANDO , delirando ainda com a febre.


Enfiado na banheira de água fria, ele sentia todos os seus ossos estalarem e os
músculos tremiam, mas sua temperatura estava baixando gradualmente.
Aquela tinha sido a primeira vez que preparara um banho e não pareceu ter
muito sucesso.
Em dois dias, era a primeira vez também que conseguia sair da cama. A
dor não havia cessado, mas estava tolerável. O tônico deixado por Davies
estava fazendo efeito.
Ele olhava para a mulher adormecida e não sabia se estava com medo de
que ela acordasse e o pegasse nu novamente, ou se preferia que ela
despertasse para poderem conversar um pouco mais. Ela tinha uma vida
interessante e ele pouco conversava com mulheres interessantes. A maioria
delas só falava com ele sobre o clima, enquanto Elizabeth Collingworth tinha
histórias para contar.
Tudo que ele ouvia eram batidas à porta e elas ficavam mais fortes a cada
vez. Precisava conferir se não eram parte dos devaneios causados pela febre.
Depois do episódio do dia anterior, quando acordou com a mulher em seus
braços, ele não tinha mais certeza de nada.
Levantou-se com dificuldade e enrolou-se na toalha, tomando cuidado
para cobrir seus quadris e esconder aquilo que Elizabeth não deveria ver. Ela
não deveria ver nenhuma parte exposta do seu corpo, era verdade, mas
algumas eram menos ofensivas do que outras. Seu peito nu, suas panturrilhas,
seu pé descalço, isso ela podia tolerar, mas nada muito além disso.
Arrastou-se até a porta no instante em que a maçaneta girava e se abria. A
imagem de uma Agatha agitada, vestindo rosa e dourado, surgiu à sua frente.
A irmã levou as duas mãos à boca ao vê-lo quase despido.
— Céus, Aiden. — Ela deu um risinho. — Você está vivo, graças ao bom
Deus.
— O que está fazendo aqui, Agatha? Você vai ficar doente, saia deste
quarto.
— Não seja tolo, estou o mais distante de você que posso. — Ela se
escondeu um pouco por trás da porta. — Mas não me recuperarei jamais de
ver tanto de você exposto. Que visão horrível.
O duque olhou para si mesmo e quis rir. Nunca imaginou receber a irmã
vestido — ou não vestido — daquela forma. Se alguém soubesse haveria um
escândalo. Os últimos dias foram bem escandalosos para ele, doente e
confinado com uma mulher viúva e de moral duvidosa em um quarto de
estalagem. Ele havia feito com ela coisas bem indecorosas, desenvolvera uma
intimidade física inédita. Mesmo que já tivesse se relacionado com várias
mulheres durante sua vida, Aiden geralmente as tinha para os desejos carnais,
apenas. Aquela proximidade etérea ele ainda não experimentara.
— Vou demitir John. — O duque quis parecer irritado. Bastava alguns
dias isolado para que suas ordens fossem ignoradas. — Quem deixou você vir
aqui?
— Até parece que John é capaz de me impedir quando quero fazer algo.
— Agatha riu. — Onde está a Sra. Collingworth? Ela…
— Ela está dormindo. A febre está muito alta. Nós passamos dois dias
muito difíceis.
— Quer que chame o doutor novamente?
— Para ele nos entupir de láudano e tônicos? Isso posso fazer sozinho.
— Certo, então vou deixá-lo e voltar para Thanet Bay. Eu apenas queria
notícias suas. Mas antes… o estalajadeiro quer receber seu pagamento.
Pagamento? Aiden levou alguns segundos para compreender que tipo de
pagamento um hóspede, ainda ocupando um quarto, poderia ter que fazer.
— Ele quer que eu pague antecipado? — O duque deu dois passos na
direção da porta. — Chame-o aqui.
— Ele está aqui. Ele é uma pessoa horrível, Aiden! Ele explorou a Sra.
Collingworth e agora está querendo explorar você também.
Agatha abriu a porta por completo e o duque viu Geoffrey, com uma
expressão assustada, e o estalajadeiro e seu bigode afiado na ponta. Toda a
dor e exaustão da doença foram colocados em segundo plano. Saber que
aquele homem explorava pessoas em situação de necessidade era uma afronta
à educação que ele recebera do pai.
Sem considerar as consequências do que estava fazendo, o duque agarrou
o estalajadeiro pelo colarinho. Geoffrey e Agatha se afastaram.
— Não gosto de gente mesquinha — Aiden rosnou. — Vou pagar o que
devo, o que a Sra. Collingworth deve, e vou embora desta estalagem. Depois,
tratarei para que ela receba as piores recomendações da região.
— Mas, Vossa Graça, é que, com sua condição, eu pensei que…
— Interessa-me pouco o que tenha pensado. — O duque o colocou no
chão, sem deixar transparecer que o fazia porque seus músculos estavam
exaustos. Para quem estivesse observando, ele ainda era o homem mais forte
daquela arguição. Voltou para dentro do quarto e fechou a porta, separando-o
dos demais pela madeira carcomida. — Está decidido. Geoffrey, preciso que
despache Lady Agatha de volta para Thanet Bay. Depois, pegue o cavalo e vá
o mais rápido que puder para lá. Diga para John preparar a casa próxima ao
poço. Coloque provisões de comida, deixe a lareira acesa e roupas de cama
limpas.
— Claro, milorde. E então volto para cá?
— Não, mande a carruagem nos buscar. Vamos para casa, continuar
nossa quarentena lá.
Silêncio. Quando o duque decidia, estava decidido e apenas Agatha ou a
duquesa tinham coragem de desafiá-lo. Naquele momento, no entanto, o que
ele pedia era tão absurdo quanto coerente. Aiden não continuaria naquela
estalagem com apenas uma cama, sem o conforto ao qual estava acostumado.
Se tinha que ficar isolado, então faria isso do jeito que achasse mais
conveniente.
— Imediatamente, milorde — o criado disse. Nada mais foi ouvido e
Aiden relaxou. Quando estivesse em casa, em uma banheira grande o
suficiente para cabê-lo e enrolado em roupas limpas, ele mandaria chamar
Davies e veria quanto tempo mais teria que se manter afastado das pessoas
em geral.
Elizabeth ainda dormia quando ele retornou ao quarto e ela não parecia
bem. Rolava de um lado para o outro, murmurando qualquer coisa
ininteligível. Quando tocou sua face suada com a palma da mão, Aiden
percebeu que ela estava muito quente. Aquela mulher não podia morrer sob
seus cuidados, ela tinha que resistir. Até porque o mundo seria um lugar
menos bonito sem a sua beleza.
O duque então colocou panos frios sobre a testa e o pescoço de Elizabeth.
Sentado ao lado dela na cama, passou os dedos pelos cabelos dourados e
esperou que ela se acalmasse com as duas mãos em seus ombros.
Semiconsciente, ela ergueu o braço e o tocou na face. Dedos delicados e
queimando como o fogo do inferno roçaram em sua barba por fazer e se
apoiaram em seu peito.
— Aiden — ela o chamou pelo nome. A sensação foi intrigante, ele
sentiu o coração aquecer. — Não me deixe morrer.
— A senhora não vai morrer. — O duque pegou a mão dela entre as suas.
Ela era delicada e suave como porcelana. — Apenas resista, vai ficar tudo
bem.
— Se eu morrer, meus filhos não terão ninguém.
Ela estava preocupada com os filhos, claro que estava. Todas as mães
sempre colocavam os filhos à frente do próprio bem-estar. Aiden lembrava-se
bem de quando sua mãe teve o primeiro bebê natimorto. Cada um que lhe
fora tirado ressecou uma parte do seu coração. Uma mãe sempre sofreria
pelos filhos, mesmo que a sua mãe tivesse desenvolvido uma forma tão
eficiente de afastamento que Aiden duvidava que ela pudesse sentir qualquer
coisa, naquele momento.
Já Elizabeth, ela estava sofrendo.
— Prometo que cuidarei deles — Aiden disse, com convicção. —
Garantirei que estudem e trabalhem em minha casa. Não faltará abrigo para
seus filhos nem eles precisarão ir para um orfanato, Elizabeth. Eu prometo.
Ela sorriu e seu corpo amoleceu, flácido sobre os colchões. Não, ela não
poderia ter morrido. O duque baixou a cabeça para confirmar se Elizabeth
ainda respirava e sentiu alívio imediato ao perceber que sim. A temperatura
estava alta, mas ele tinha certeza de que conseguiria fazer com que ela se
recuperasse. Afinal, era o Duque de Shaftesbury e ninguém — quase
ninguém — ousava desafiar suas ordens. Se ele dissera que Elizabeth não
morreria, ela não se atreveria a morrer.
CAPÍTULO SEXTO

T HANET B AY ERA UMA PROPRIEDADE ENORME E PRODUTIVA , PRÓXIMA AO


litoral de Kent. Com um passeio curto de carruagem era possível chegar às
praias no verão. Lá a família Trowsdale criava cavalos, algumas das mais
belas raças europeias. Também possuía arrendatários que plantavam para
subsistência e comércio locais. Não era a principal fonte de renda da família,
porém, era o lugar preferido de Aiden Trowsdale, tanto na adolescência
quanto na vida adulta.
Quando ele avistou a casa, naquela tarde, seus olhos brilharam em júbilo.
A carranca que o acompanhava quase desapareceu de sua face e ele sorriu.
Havia criados nos jardins, cuidando das plantas de sua mãe, havia janelas
abertas e vida na casa. E duas crianças correndo pelo quintal.
Crianças que ele nunca quis ter, mas que estavam ali por um acidente do
acaso. Dentro da carruagem, repousada em seus braços estava a mãe delas,
Elizabeth Collingworth, uma plebeia que ele não conhecia muito bem, mas
que perecia da mesma doença que ele. Se aquela não era uma grande
zombaria do destino, ele não sabia de mais nada.
— Vossa Graça, chegamos.
O cocheiro avisou que estavam parados nos arredores da casa do poço.
Aquela era uma construção tão antiga quanto a mansão e ficava afastada
alguns metros, para dentro do bosque que ladeava a propriedade. Havia uma
trilha que passava pelas árvores frondosas e desembocava em um poço como
aqueles das histórias infantis. O casebre fora moradia de empregados e estava
vazio desde o 9º Duque de Shaftesbury.
Já fora um lugar para o qual Aiden levara suas mulheres. Algumas delas.
Muitas delas. Quase todas elas já tinham passado pela casa. O que aquilo
queria dizer sobre sua própria relação com Elizabeth Collingworth?
Depois de abrir a porta da carruagem, o cocheiro se afastou conforme
orientado pelo duque. Com Elizabeth ainda apagada em seus braços, Aiden
entrou na casa e depositou a mulher em uma das camas. Deixou que ela
ficasse com a menor, porém, naquela ele nunca tinha fornicado com
ninguém.
Com um sinal, mandou o cocheiro levar a carruagem embora e checou se
todas as suas determinações tinham sido cumpridas. Havia comida, muita
água fresca e da lareira emanava um fogo suave. O médico só iria vê-los no
dia seguinte, então teria mais uma noite isolado. Não que esse fosse um
problema para Aiden, ele adorava ter razões para se livrar dos compromissos
sociais enfadonhos, principalmente quando sua mãe os organizava de sua
reclusão. Quando ele estava na propriedade, ela insistia em fazer jantares e
bailes que o irritavam porque eram todos com a intenção de arrumar para ele
um casamento.
Os músculos doloridos pela febre reclamaram do cansaço pela viagem,
por carregar uma mulher nos braços — duas vezes — e por insistir em fingir
que estava saudável. Sem nem mesmo se preocupar em tirar as botas, o duque
deitou em uma das camas e relaxou.

E LIZABETH SENTIU que dormira por uma semana inteira. A dificuldade em


reagir à doença e ao delírio fora enorme, mas, depois de algum esforço, ela
conseguiu abrir os olhos. Estava em um sono agitado havia horas e queria
muito acordar, sem conseguir. O ambiente desconhecido fez com que ela
sentasse na cama, assustada. Eram muitos sustos em menos de uma semana,
muitos eventos inquietantes.
Enrolada em um cobertor, tentou fazer um reconhecimento rápido. Era
um espaço novo, aquele, muito mais elegante do que a estalagem. A cama era
menor, de mogno e com enormes dosséis que chegavam ao teto. A parede
decorada com papel damasco e algumas pinturas que ela não reconheceu. Ela
estava sozinha. Calor emanava de outro cômodo e Elizabeth podia jurar que
sentia a brisa fresca com cheiro de mar entrando pela única janela aberta no
quarto.
— A senhora acordou.
A voz do duque veio antes de sua imagem gloriosa na porta. Estava tudo
muito escuro e ele carregava uma vela, que iluminava seus olhos escuros. A
forma como ele a olhava não sugeria que ele fosse um aristocrata — Aiden
Trowsdale tinha feições duras e uma expressão masculina que sugeria que ele
fosse como os homens com quem ela lidava em Shadwell, como os
negociantes e industriários, como os plebeus.
— Onde estamos? O que aconteceu?
— Tivemos alguns contratempos e pedi que nos trouxessem para Thanet
Bay. Estamos na minha residência de praia e esta é uma casa isolada. Não se
preocupe, não estamos colocando ninguém em risco.
Talvez ela estivesse em risco ficando em qualquer lugar isolado com
aquele homem, mas entendeu que ele falava da doença. Ela não se sentia
doente naquele momento.
— O médico nos verá amanhã — o duque prosseguiu. — Meus criados
providenciaram comida, imagino que a senhora deva estar faminta.
Oh, ela estava. Elizabeth sentiu o estômago reclamar assim que Aiden
mencionou comida, apesar de que ela estava muito distraída com as
ondulações que a chama da vela fazia no semblante sereno do duque. Apesar
de parecer tranquilo, ele tinha uma expressão indissolúvel, impassível, rígida.
Havia tanta informação em seus traços duros e masculinos que ela precisaria
de muitos dias para entendê-los por completo.
A casa em que estavam era pequena, mas confortável e acolhedora. A
lareira acesa mantinha o calor dentro da sala e havia sofás espalhados, além
de cristaleiras, estantes com livros e aparadores. Aiden serviu dois copos de
uísque e entregou um a Elizabeth. Ela encarou o líquido âmbar e ficou
curiosa pelo seu gosto. Molhou a ponta da língua e fez uma careta. Era
amargo.
— Nunca bebeu uísque?
O duque sentou em uma cadeira enquanto a observava. Ele aparentava
estar um pouco melhor, apesar das olheiras perceptíveis debaixo de seus
olhos perfeitos.
— Não. Na verdade, não temos dinheiro para essas comodidades. Algum
xerez, eventualmente.
Ela não tinha nenhum dinheiro — aquela era a realidade. O pouco que
sobrava ia para as economias dos filhos, portanto, Elizabeth vivia com o
mínimo. Mas ela não falaria aquilo para o duque naquele momento. Ele
parecia bastante alheio ao abismo que os separava. Serviu-se da sopa que
estava na terrina e o caldo não fumegava, porém, estava quente o suficiente.
— Vossa Graça precisa de ajuda?
Elizabeth deu uma risada baixa ao ver o duque tentar servir-se de um
pouco de sopa e derramar boa parte pela mesa.
— Geralmente estou cercado de criados. Não é comum, para um duque,
servir sua própria comida — ele disse e finalizou a tarefa, tomando o cuidado
de limpar a sujeira com um pano.
O duque não era tão inapto quanto sugeria a sua criação e Elizabeth
divertiu-se ao vê-lo desempenhar uma tarefa tão ordinária — comer. O
movimento corporal de Aiden Trowsdale indicava que ele era consciente do
poder masculino que possuía. A forma como segurava a colher, a pressão que
seus dedos exerciam no metal e o flexionar dos antebraços para conduzir a
sopa até a boca.
Ele tornava qualquer coisa ao seu redor mais interessante apenas por estar
presente. Ela ainda não compreendia os motivos pelos quais ele era tão
atraente, mas podia imaginar alguns. Força. Poder. Gentileza. Ele a tratava
como uma pessoa, enquanto nenhum aristocrata o fazia.
— Eu gostaria de agradecer ao senhor por fazer isso — disse, tentando
livrar-se dos pensamentos divagantes. — Por cuidar de mim.
— Prometi a um jovem que faria isso.
— Mesmo assim, o senhor não precisava prometer nada. — Elizabeth
ergueu o copo de uísque, quase intocado. Era um brinde desajeitado, porém,
sincero. Como uma mulher, ela nunca brindou à mesa de ninguém, antes. —
Obrigada, milorde.
Aiden aceitou o agradecimento dela e sorriu. Aquele sorriso que
congelaria o frio e aqueceria o sol, que seria capaz de causar uma guerra ou
selar a paz. Ele tinha a boca tão perfeita, os lábios grossos e vermelhos que
eram simétricos e pareciam… saborosos. Ela quis saber o gosto que eles
tinham. A barba que começava a crescer e esconder o queixo quadrado dava
ao duque um ar despojado de homem comum.
Elizabeth desejou, naquele instante, que ele fosse realmente comum. Que
o sangue azul dos Trowsdale não corresse nas veias dele para que pudesse
simplesmente deixar que soubesse que ela o queria. Mulheres não tomavam a
iniciativa, mas não se importaria que ele percebesse que ela aceitaria ser
cortejada.
Mulheres como ela, contudo, jamais seriam cortejadas por nobres. Aquele
duque podia ser um bom homem, mas ela nunca seria suficiente. Aborrecida
com aqueles pensamentos, Elizabeth virou o uísque em um gole, como o vira
fazer. Estendeu o copo e pediu que ele lhe servisse mais.
— Não exagere — ele disse, ao entregar-lhe a bebida. — É sua primeira
vez.
— Eu estava prestes a morrer. Ainda estou correndo risco de morte.
Beber um pouco não pode ser pior do que convalescer da escarlatina. Ao
menos ameniza a dor.
E ela então virou a segunda dose toda de uma vez. O uísque desceu
arranhando e queimando em sua garganta, mas Elizabeth fingiu que não
sentiu nada. A ardência logo passou e, depois da terceira dose, tudo que ela
via eram estrelas.
— A senhora deve parar. — O duque impediu que ela mesma se servisse
da quinta dose. — Vamos, converse comigo. Conte sobre os Pensington,
qualquer segredo sujo que eles possam ter.
— É a sua vez de contar histórias, milorde. — Elizabeth jogou-se em um
sofá, com modos pouco femininos. Sua delicadeza e sutileza estavam
obnubiladas pelo álcool. — Conte-me por que ainda não se casou.
A pergunta saiu crua e intrusiva, como aquelas que ele lhe fizera na
estalagem.
— Não achei ser necessário até agora. Mas sei de minhas
responsabilidades, devo escolher uma noiva em breve.
Claro que escolheria. Afinal, por que um duque ficaria solteiro depois dos
trinta? Elizabeth não tinha certeza, mas aquele homem deveria estar por volta
dos trinta. Já era para estar casado e cheio de herdeiros.
— Um brinde à próxima duquesa. — Ela ergueu o copo com o restante do
uísque e despejou-o garganta abaixo. Talvez não tivesse vontade de
entorpecer-se antes, mas o próprio álcool a puxava cada vez para mais perto
dele. — Tenho certeza de que ela será uma boa esposa e vai amá-lo bastante.
— Infelizmente, Elizabeth, algumas pessoas como eu não possuem o
direito de escolher se casar por amor.
Oh. A forma como ele dissera aquilo fez com que ela se arrependesse de
zombar da nobreza e seus arranjos casamenteiros. Claro que um duque
precisava de uma dama que atendesse aos padrões ingleses, que a rainha
fosse abençoar. Seus desejos não eram importantes diante da necessidade de
manter a linhagem e garantir que o ducado permanecesse com a família. Mas
aquilo era muito triste e solitário.
Ela tivera um casamento feliz, por amor. Alguns nobres que conhecia
também casavam por amor. O duque não deveria precisar se submeter ao
casamento com uma mulher que ele não amasse.
— Desculpe-me, não quis soar rude. — O duque pegou o copo da mão
dela e colocou de volta na bandeja. — A senhora deveria voltar para a cama.
Se não repousarmos, podemos voltar a sucumbir da febre.
Ela assentiu e Aiden desapareceu por uma porta escura. Elizabeth deitou a
cabeça para trás e fitou o teto, sonolenta. A claridade precária da casa deixava
o ambiente melancólico. O dia seguinte seria, provavelmente, um dia de
liberdade. Quando o médico chegasse, veria que eles estavam bem o
suficiente para sair do isolamento e Elizabeth poderia retomar seu caminho
— direto para algum lugar, ela apenas não sabia qual.

E DWARD M C F ADDEN , o Conde de Cornwall, conhecia Aiden Trowsdale por


toda a sua vida. Não era tanto tempo, mas parecia que nunca existiu um sem
o outro. Quando começaram a estudar juntos, Edward era um garoto
introspectivo e com dificuldades de relacionamento. Sendo filho mais velho
de uma família grande, assumira muitas responsabilidades e não tinha
atenção suficiente dos pais.
Aiden era diferente. O garoto de cabelos e olhos escuros como a meia-
noite tinha uma aura que fazia com que todos o admirassem. Edward não
entendia bem o que havia naquele jovem que o colocava sempre em posição
de destaque. Ele brilhava e chamava a atenção. Nunca se metia em
problemas, não gastava muito dinheiro, era o melhor aluno. Ele se interessou
por Edward no primeiro momento em que cruzaram na biblioteca. Fizeram
uma amizade que permaneceu e Edward talvez fosse a única pessoa que sabia
quase tudo da vida de Aiden. Sabia, por exemplo, que suas qualidades se
intensificaram. Ele cresceu mais inteligente, sagaz e persistente. Passou a
conquistar mulheres com sua extrema capacidade de seduzir. Era eloquente e
sempre se saía bem em ambientes sociais.
Alguns defeitos surgiram, no entanto. Depois que eles voltaram para casa,
já formados, Aiden foi lançado no caos silencioso da sua família. A mãe era
uma megera cheia de traumas que ignorava a filha pequena e o marido. O pai
era um benfeitor altruísta, um homem generoso que passava mais tempo
cuidando de sua filantropia que dos filhos. E, com isso, Aiden se tornou a
antítese em pessoa. Muito habilidoso em lidar com pessoas, sem nenhuma
vontade de se relacionar com elas.
Enquanto ele sabia muito bem se portar em sociedade, Aiden detestava
eventos sociais. Desenvolveu certa repulsa pelas regras rigorosas da
aristocracia e se tornou um devasso incorrigível. Nisso, eles eram quase
iguais. Gostavam de mulheres, principalmente se elas estivessem nuas em
suas camas. Achavam as damas entediantes e não queriam se casar. Isso,
somado a um “quê” autoritário que sempre esteve presente no menino
brilhante que ganhava todos os prêmios na escola, transformou Aiden no
duque mais extravagante de Londres. Ele vivia em um permanente conflito
entre o que queria fazer e o que deveria fazer, assumindo uma faceta dúbia
que o tornou um aristocrata investidor e que circulava facilmente entre os
burgueses.
Quando Edward ficou sabendo que o amigo estava em quarentena por
causa de uma doença fatal, isolado em um quarto com uma mulher
desconhecida, ele se preocupou mais com a segunda parte.
Os homens que estavam reunidos em Greenwood Park eram todos de um
círculo curioso de amizade. Todos muito ricos, a maioria rejeitada por uma
sociedade que só valorizava o sangue azul. Edward McFadden era o centro
das atenções por ser o anfitrião do pequeno encontro. O conde recebera seus
convidados com um brunch farto, repleto de pães, carnes temperadas e muito
uísque. Estavam presentes o Visconde de Whitby, o Sr. Sawbridge,
industriário no ramo de locomotivas, o Sr. Hartright, investidor e importador
de produtos das Índias, e o Sr. Riderhood, dono de um dos maiores clubes de
aposta de Londres.
Todos eles tinham em comum o projeto de revitalização de uma área em
Shadwell, que pretendia atrair lojistas e famílias de classe média, além de
viajantes e estrangeiros que visitassem a cidade. Alguns eram amigos há mais
tempo, como o conde e Sawbridge, que tinham a mesma idade e
frequentaram a mesma escola.
— Onde está Shaftesbury?
Foi a questão levantada por Riderhood. O duque nunca perdia aqueles
encontros de negócios.
— Fiquei sabendo que ele está doente. — Edward serviu do seu melhor
vinho do porto para os cavalheiros, depois que estavam recolhidos no
escritório. — Não me explicaram direito, mas parece que é contagioso.
— Ele está doente — Sawbridge disse. — E há muitas fofocas sobre as
condições em que nosso amigo se encontra. Parece que ele está
comprometendo a integridade de uma mulher.
— Isso parece com algo que ele faria. — Hartright não tinha a melhor das
considerações pelo duque. Apesar da diferença de origem entre eles, o
investidor era um homem muito religioso e devotado à família. A vida de
perversão e libertinagem de Aiden Trowsdale o incomodava. — Quem é a
mulher, as fofocas dizem?
— Não, apenas sabemos que eles estão confinados. Os dois, apenas,
sozinhos.
— Isso é um escândalo, mas nosso amigo vai superar. Temos que
continuar as negociações até que ele esteja apto a retornar para nossa
presença.
Edward manteve os ouvidos atentos ao que conversavam os homens,
porém, seus pensamentos estavam no amigo duque e no que poderia estar
acontecendo. Apesar do que pensavam de Aiden, principalmente em relação à
sua capacidade de arruinar mulheres, ele sabia que o duque não era uma
pessoa tão depravada. Aiden não costumava se envolver com virgens
incautas, ele se relacionava com prostitutas ou mulheres livres que desejavam
tornar-se amante de um nobre.
Se ele estava doente e trancafiado com uma mulher, aquilo poderia não
causar nenhum prejuízo à sua reputação já muito arranhada. Se fosse uma
dama honrada, se a reputação dela estivesse em risco, talvez o duque se visse
forçado a casar-se com ela para reparar o dano. Edward precisava saber
melhor sobre isso.
Quando o dia seguinte chegou, ele decidiu ir até Thanet Bay ter notícias
do duque. Pediu que selassem seu cavalo se preparou para ir à propriedade do
amigo, já preocupado em como a duquesa viúva estaria em razão de tantas
fofocas circulando.

A PRESENÇA de Lady Caroline Eckley, em qualquer situação, era sempre


equivalente a um fenômeno da natureza. Ela podia ser comparada a um
furacão ou maremoto com grande facilidade. Quando ela entrou na mansão
em Greenwood Park naquela manhã, tratando os criados como se fossem os
dela e agindo como a dona da casa, o Conde de Cornwall considerou que
estivera se preocupando com as pessoas erradas.
O caos na vida de Aiden Trowsdale tinha um metro e meio de altura,
cabelos escuros como o ébano e olhos castanhos. Agia como uma dama e
tinha nas veias o sangue dos Granville, mas nunca se casara nem demonstrara
desejo em fazê-lo.
Caroline era uma mulher livre que recebia uma substancial mesada depois
do falecimento de seu tio, o antigo Marquês de Granville. Com isso,
acreditava que não precisava de homem algum a quem devesse se submeter.
Ela os usava apenas para seus interesses pessoais — e sexuais.
Edward tinha certeza de que ela queria notícias de Aiden. O duque era a
mais recente aquisição em sua coleção de amantes e ela parecia encantada
com ele, mesmo tendo desaparecido por meses.
— Lady Eckley. — Edward recebeu-a depois que o criado informou da
chegada turbulenta de Caroline. — A que devemos a honra de recebê-la tão
cedo, sem que tenha comunicado previamente sua visita?
— Seu motejo não me intimida, milorde. — Ela estendeu a mão enluvada
para que ele a cumprimentasse. — Tenho certeza de que o senhor sabe dos
motivos de minha visita. Acabo de voltar de meu retiro no continente, onde
visitei França e Itália com minha tia Gertie. Preciso saber notícias do Duque
de Shaftesbury e não é como se eu pudesse perguntar sobre ele para qualquer
pessoa. Não desejo levantar suspeitas.
Edward deu uma risada e convidou a dama para que se sentasse. Ela
vinha sem uma dama de companhia e eles não deveriam ser vistos em lugares
privados. O grande salão era o espaço mais adequado da casa. Pediu a uma
criada que lhes trouxesse chá e acrescentou, no seu, uma boa dose de brandy.
— Por que não vai a senhorita mesmo até Thanet Bay e pergunta à Lady
Agatha sobre o irmão?
— A jovem Trowsdale não responderia a meus questionamentos. —
Caroline bebericou seu chá e exibiu uma expressão inocente. — Ela não
aprova a natureza do meu relacionamento com o irmão dela.
— Deus não aprova o relacionamento de vocês. — Edward riu
novamente. — Não que isso me importe, Ele também não aprova os meus.
Diga, o que quer saber?
— Ouvi que Aiden está doente. O que sabe sobre isso?
— O mesmo que a senhorita. Eu estou de saída para visitá-lo, sendo
atrapalhado por sua visita inoportuna.
Caroline fingiu-se ofendida com a acidez do conde, mas ele sabia que ela
raramente se importava com o que pensavam dela. Edward poderia ser rude,
até mesmo desagradável, e ela continuaria ali, impondo sua presença
indesejada.
Em verdade, ele não sabia bem o que ela estava fazendo ali, fingindo se
importar com Aiden. O conde também sabia que Lady Eckley não costumava
ligar para as pessoas a não ser que elas lhes estivessem garantindo alguma
vantagem. Mesmo que ela e Aiden fossem amantes ocasionais, ela tinha
diversos outros para deitar em sua cama em substituição ao duque.
— Certo, não irei mais atrapalhá-lo com minhas preocupações. Mande
minhas lembranças ao duque.
— Talvez eu me esqueça de fazê-lo. Diga-me, Caroline, o que veio fazer
realmente aqui? Não minta.
A lady encarou Edward por alguns segundos, ajeitando os dedos nas
luvas. Depois de um tempo longo demais, decidiu expor a verdade.
— Soube que ele está com uma mulher. Já disseram até que ele está
fingindo a doença para poder passar mais tempo com ela. Que mulher é essa,
você sabe?
— Não, e essas fofocas são provavelmente mentirosas. — Edward
levantou-se, ajeitando a calça de montaria, feita de camurça bege. Elas
combinavam perfeitamente com suas botas de couro que iam até os joelhos e
com o conjunto de paletó e colete azuis. O conde costumava ter os melhores
alfaiates à sua disposição porque vestir-se bem era um de seus prazeres. —
Agora, se me dá licença, eu preciso visitar meu amigo. A senhorita pode
terminar o chá e, se quiser, fazer companhia para Wilhelmina.
Lady Eckley não demonstrou interesse na irmã mais nova do conde e
tratou de acompanhá-lo na saída. Edward não sabia por que atraía mulheres
tão complicadas. Elas pareciam sempre decidir fazer de seus ouvidos um
muro de lamentações, como se ele fosse capaz de resolver os problemas que
elas apresentavam. Ele preferia quando elas tinham medo dele, ou eram
tímidas demais, ou falavam apenas sobre o clima.
Não, na verdade, ele não preferia. Edward adorava mulheres desafiadoras
que não se importavam em olhá-lo nos olhos e dizer, talvez, uma blasfêmia
ou outra. Rindo de suas próprias conjecturas, o conde montou em seu cavalo
e dirigiu-se para Thanet Bay, ainda mais intrigado pelas fofocas que corriam
sobre o Duque de Shaftesbury. Se Aiden estivesse escondendo uma mulher
em sua propriedade ele acabaria descobrindo.
CAPÍTULO SÉTIMO

O SOL EM K ENT ERA MAIS BRILHANTE DO QUE EM L ONDRES . F OI COM ESSA


certeza que Aiden acordou no dia seguinte, depois de uma noite de sono sem
intercorrências. Ele ainda estava quente, sentia sua pele ardendo pela febre e
as manchas continuavam dizendo que a doença continuava ali, mas também
sentia que estava melhorando. A morte provavelmente não pairava mais
sobre sua cabeça.
Alguma coisa, contudo, ainda o incomodava. Ele descobriu isso quando,
olhando pela janela, viu Elizabeth Collingworth caminhando do lado de fora
da casa. Descalça, com apenas uma camisola branca e com os cabelos mal
trançados, ela parecia uma visão mística, etérea, do paraíso. Ele não era um
homem muito religioso, mas aquela mulher o instigava a pecar todos os
minutos do dia.
Em breve, ela não estaria mais ali e isso era bom. Aiden tinha que
escolher uma noiva, casar-se com uma dama da aristocracia e aquela mulher,
ali, bailando pela grama verde como se fosse uma fada, não servia para ser
sua esposa. Também não iria aceitar se tornar sua amante. O melhor, para
ambos, era que seguissem seus caminhos, totalmente opostos.
Sua mãe o infernizaria por toda uma eternidade. Se Agatha era o
demônio, ele precisaria de um adjetivo mais satânico para definir a duquesa.
Aiden tentara compreender a amargura da mãe depois de perder tantas
crianças, as que nasceram entre ele e sua irmã. A cada bebê que nascia morto,
a duquesa definhava mais e mais. Aquilo significava que, para se manter sã, a
mãe fizera um pacto com o inferno. Provavelmente, prometera a sua alma e a
de mais algumas pessoas que pudesse arrebanhar. Tudo que ele menos
desejava fazer era desagradá-la, sobretudo porque a duquesa estava sempre
muito doente.
Então, por que diabos ele não queria deixar Elizabeth ir? Por que tinha a
ilusória sensação de que poderia tê-la, mesmo que por uma vez, e que isso
seria o suficiente? Porque era um tolo, e a tolice não deveria ser característica
de um duque.
Ao sair do quarto, depois de tomar banho e se barbear, algo que ele fez
com nenhuma destreza, encontrou uma linda mesa de desjejum, posta com
perfeição.
— Bom dia, milorde. Pode se servir, espero que tenha acordado com
fome.
Havia chá recém-preparado em um bule e ovos mexidos. Elizabeth
manejava a cozinha com talento e ele subitamente lembrou que precisava de
alguém como ela. Era urgente. Talvez oferecer emprego àquela mulher fosse
a melhor forma de mantê-la por perto mais algum tempo. Até que a nova
duquesa — sua futura esposa — pudesse decidir sobre os criados.
— Sente-se bem, Elizabeth? — Aiden perguntou, sentando e servindo-se
de ovos e presunto. Não era muito difícil colocar a comida no próprio prato,
afinal.
— Sim, tenho certeza de que a febre diminuiu. E minhas manchas estão
menos vermelhas.
— Sorte da senhora. Eu ainda estou bastante avermelhado, como se um
artista vesgo tivesse me usado como tela de pintura.
Ela deu uma risada e o som daquele sorriso fez com que o duque se
inquietasse na cadeira. Elizabeth aproximou-se dele sem muita cautela e
puxou a gola de sua camisola, expondo a clavícula.
— Veja.
— Não consigo perceber nenhuma melhora. Talvez se…
Mostre mais, mostre tudo. O desejo de vê-la com menos tecido superou a
razoabilidade e a decência que ainda restavam em Aiden. Elizabeth não
pareceu perceber a malícia por trás daquele comentário e ergueu a barra da
camisola para exibir a panturrilha.
— Agora não tem como dizer que não percebe. As manchas quase
sumiram.
Aiden respirou fundo e olhou para as pernas à sua frente. Elas eram
condizentes com a mulher perfeita com quem compartilhara os últimos dias.
Suas mãos adquiriram vida própria e tocaram os tornozelos de Elizabeth, com
cuidado. Ele pensou que ela fosse estapeá-lo, o que não aconteceu. Vidrado
na pele delicada desnuda, deixou que as mãos tocassem as panturrilhas. E a
parte detrás dos joelhos.
— Parece tudo muito bem. Porém eu não saberia dizer. Esperemos o
doutor.
O duque desconversou e voltou a se concentrar na comida. Ele podia
ignorar a prudência e beijá-la ali mesmo, mas aquilo seria irresponsável.
— A senhora deveria vestir-se — ele disse, finalmente. Não dava para
continuar resistindo a uma mulher seminua e seu pênis já reclamava dentro
das calças. Precisava de alívio ou de parar de lidar com aquela mulher em
roupas ínfimas.
— Minhas roupas estão úmidas. Eu as lavei hoje cedo.
— Cedo? Mais cedo? Que horas a senhora acordou?
— Bem cedo. — Os lábios dela se partiram em um sorriso. — Estou
acostumada a despertar por volta das cinco horas.
— Pelo bom Deus, isso é realmente muito cedo.
— Meu trabalho exigia minha presença nas primeiras horas da manhã.
Agora, desempregada, eu acordo cedo para buscar serviço pela cidade. Já
estava fazendo isso há dois meses, até que a epidemia chegou.
Aiden respirou e continuou comendo. Elizabeth sentou-se e serviu o chá,
bebericando na xícara de porcelana que tinha a cor de sua pele. Aquilo era
mesmo um absurdo, mas não apenas por ela levantar cedo ou não ter roupas
secas. Era um absurdo o quanto ele se importava, o quanto ele, sem motivo
algum, desejou mudar a situação em que ela se encontrava.
O pai era um bom samaritano. Um homem que gastou parte de sua
fortuna em caridade. Construiu escolas para filhos de pessoas pobres,
manteve hospitais, orfanatos e casas de apoio para mães viúvas. Ele visitava
suas obras frequentemente e levava o jovem Aiden com ele. O duque cresceu
aprendendo que dinheiro não representava caráter e que um homem era
respeitado pelas obras que realizava.
Talvez por aquilo ele desprezasse o ócio da nobreza e preferisse a
companhia de investidores, industriários, negociantes. Na residência
Trowsdale todas as pessoas de negócios eram bem-vindas e o pai nunca
deixou de convidar plebeus para seus eventos. O valor dos homens que
frequentavam sua casa era medido pelas ações respeitáveis que eles
realizavam na vida.
Aquela era a primeira pessoa necessitada que cruzava seu caminho desde
que assumiu o ducado. Elizabeth Collingworth era uma mulher de valor que
precisava de ajuda para conseguir dinheiro para a sua sobrevivência.
— Não posso me vestir ainda, mas está tudo bem — ela retomou o
assunto. — Eu… nós já compartilhamos uma intimidade maior do que essa,
não? — disse e se levantou, recolhendo as louças e levando para uma tina.
Depois, despejou o conteúdo de um balde que estava aquecendo no fogo e
ergueu os cabelos para prendê-los. Naquele breve instante, Elizabeth deixou
sua nuca à mostra, os fios dourados por entre seus dedos enquanto ela
indicava que sentia calor com a pequena atividade. O esforço a estava
deixando agitada e a febre, debilitada.
Era demais, até mesmo para um homem doente.
O duque deixou a comida e se levantou. De novo, desejou que Elizabeth
não estivesse atenta à sua anatomia, pois duvidava que fosse capaz de
esconder a ereção que forçava suas calças. Aproximou-se da mulher, que
ainda estava de costas para ele. Segurou-a pelos ombros e fez com que se
virasse e olhasse para si. Apenas para si.
— Sabe qual é o problema dessa intimidade, Elizabeth?
O corpo dela tremeu sob suas mãos. Ele sentiu que sua pele estava quente
por baixo do tecido fino.
— Sei. É indecorosa — arriscou, sem certeza. A voz vacilante e abafada
também era sensual e sugeria para Aiden que ela poderia desejá-lo tanto
quanto ele a desejava. Que aquela conexão imediata entre eles não era
fantasia de sua cabeça. Ou talvez ele quisesse tanto que ela o desejasse que
estava apenas imaginando coisas.
— Não. É irreversível. Uma vez que nos acostumamos um com o outro e
que ignoramos as convenções, não conseguimos voltar atrás.
— E Vossa Graça quer voltar atrás?
Não, claro que ele não queria. O que Aiden queria, naquele momento, era
tomar aquela boca perfeitamente desenhada para si. E foi assim que ele fez,
dobrando o corpo sobre Elizabeth e colando seus lábios nos dela.

E LA SENTIA como se estivesse caindo em queda livre em um precipício. Era


uma sensação inesperada e que arrebatava Elizabeth em uma espiral infinita
enquanto a boca quente e macia de Aiden Trowsdale estava sobre a sua. O
beijo começou ríspido, um pouco abrupto, mas não demorou nem cinco
segundos para que os dedos dele subissem pela nuca dela e se amoldassem
ali, fazendo com que o toque de lábios suavizasse.
Não era a primeira vez que Elizabeth era beijada. Era só infinitamente
diferente do que ela se lembrava. Talvez fosse o calor que emanava daquele
corpo masculino bruto, esculpido em músculos. Ou talvez fosse a enorme
atração que ela sentira pelo duque desde que o vira na estalagem, antes de
desmaiar. O cheiro masculino e amadeirado que emanava de sua pele lisa.
Poderia ser o toque daquelas mãos fortes e marcadas por calos, mas que
mantinham uma suavidade e maciez comuns às mãos aristocráticas.
A pressão na nuca se intensificou no instante em que ele procurou abri-la
para ele, pressionando delicadamente sua língua contra os lábios ansiosos de
Elizabeth. Ao invés de resistir e afastá-lo, ela se pegou oferecendo espaço
para acomodá-lo em sua boca, para receber o calor febril que se enroscava
com sua própria língua e fazia com que ela sentisse aquele gosto de uísque
que poderia inebriá-la em segundos. Ao invés de fazê-lo parar, Elizabeth
ergueu os braços e o enlaçou pelo pescoço. Com um grunhido sensual e
rouco, Aiden desceu os dedos pelo corpo dela, traçando as linhas de seus
braços até posicionar-se em sua cintura e puxá-la para perto.
No instante em que os dois corpos se uniram e ela sentiu-se esmagada
contra aquele peito duro e viril, uma voz do lado de fora os tirou do transe.
— Trowsdale!
Era um homem. Elizabeth não o identificou como nenhum dos criados,
que jamais chamariam o duque daquela forma, nem como o doutor Davies.
Ouvir o sobrenome causou um efeito imediato em Aiden, que se afastou
repentinamente dela. Os olhares se cruzaram e ficaram presos um no outro
enquanto ele passava os dedos pelos próprios lábios.
— Edward, seu maldito. — O duque deu três passos largos e se apoiou na
janela.
Elizabeth sentiu os joelhos amolecerem e sentou em um dos sofás que
estavam na sala. Não achou que conseguiria ir até o quarto se esconder e teve
medo do que poderia acontecer se ele fosse até ela, lá. Não, não era medo. Ela
temia, sim, que algo muito mais inadequado pudesse acontecer, mas o que
sentiu foi antecipação. Ansiedade.
— Fui até a mansão para confirmar as fofocas sobre você e me disseram
que estava aqui. É tão grave assim? Você não parece doente.
O duque pressionou as têmporas, demonstrando que a interrupção o
deixou agitado.
— Estou doente. Tenho escarlatina e o doutor Davies me orientou ficar
isolado para não arriscar contaminar mais ninguém. Sei que temos assuntos
para conversar e conhaques para tomar, mas precisaremos adiar por mais uns
dias, até que eu esteja recuperado.
— Claro, jamais me colocaria como obstáculo à sua recuperação. Eu e os
cavalheiros estamos conduzindo as negociações enquanto isso. Agora, o mais
absurdo de tudo, também há fofocas de que você está comprometendo a
virtude de uma dama. Você está com uma mulher, Aiden?
Ah, claro que havia esse tipo de fofoca. Desde o momento em que Aiden
pegou Elizabeth no colo para impedir que ela caísse, as pessoas já devem ter
elaborado as mais cruéis teorias sobre o quanto o devasso Duque de
Shaftesbury estaria comprometendo a reputação de uma mulher.
— Edward, um cavalheiro não faz esse tipo de pergunta.
— E outro cavalheiro não dá respostas evasivas a esse tipo de pergunta. É
bom saber que não esteja morrendo. Pedirei a John que me mantenha
informado sobre sua saúde.
Barulho de patas de cavalo indicaram que o homem, Edward McFadden,
o Conde de Cornwall, estava se afastando. Como Elizabeth não ouviu que ele
se aproximava, antes? O silêncio ruidoso do beijo fez com que ela se
concentrasse apenas naquele momento e, se o conde não fosse cuidadoso,
poderia tê-los pegado no ato.
Ela riu de nervoso e colocou a mão sobre a boca para esconder o riso. Era
ridículo que pensassem que o duque estava comprometendo a virtude de
alguém — Elizabeth não tinha mais nenhuma virtude para ser comprometida.
Mesmo assim, ela sabia que um escândalo daqueles iria colocar um fim em
suas possibilidades de trabalhar novamente para uma família nobre.
Sorrateira, ela escondeu-se no quarto, tentando se manter fora da visão de
Aiden Trowsdale.
Por minutos, a casa ficou em silêncio absoluto. O lado de fora era
barulhento, com o farfalhar da copa das árvores e os pássaros gorjeando nos
galhos. Aquela característica do verão deixava Elizabeth em êxtase, sempre.
Ela sonhava em poder visitar o litoral nos meses mais quentes. Sua atenção,
contudo, estava toda capturada pelos movimentos sutis que aconteciam na
sala. Ela não podia ouvir, mas sabia que ele estava ali.
Sua respiração. Sua presença. A hesitação. Tudo aquilo que era percebido
e sentido por ela enquanto os pelos de sua nuca se arrepiavam ao recordar do
toque e da pressão dos dedos masculinos. Ah, por que ela tinha deixado que
aquilo acontecesse? Só serviria para deixá-la contemplativa e mulheres
trabalhadoras não podiam se dar ao luxo de serem contemplativas. O duque
tinha razão, aquela intimidade compartilhada por eles era, de todas as formas,
irreversível.
Ele apareceu na porta do quarto e ela deu um sobressalto. Passou as mãos
suadas pela camisola e sentiu uma súbita vergonha de ter o corpo tão exposto.
Antes do beijo, ela não acreditava que aquele homem que estava ali à sua
frente, aquela personificação do pecado e da beleza humana, poderia sequer
notá-la. Então ele a segurou, ele a beijou, e fez com que o corpo dela
despertasse e desejasse mais.
— Edward já foi. O médico deve vir em algumas horas, se meus criados
foram diligentes. Eu…
— Assim que o médico vier e nos liberar, eu preciso ir.
A frase saiu desajeitada, interrompendo o duque. Não parecia muito
inteligente interromper um nobre, afinal, mas ela não pôde evitar. Continuava
esfregando a camisola com as mãos, sem conseguir livrar-se da ansiedade.
Por estar muito centrada em suas próprias reações, Elizabeth acabou não
notando a confusão estampada na face do homem.
— E para onde pretende ir?
— Não tenho certeza, mas deve haver algum lugar por aqui em que uma
viúva e seus filhos possam se abrigar.
O duque recostou no batente da porta e cruzou os braços. Encarou
Elizabeth por alguns segundos e ela ficou ainda mais desconfortável em ser
escrutinada daquela forma. Quis correr para o lado de fora e pegar suas
roupas, mas duvidava que estivessem secas.
— Elizabeth, você não tem para onde ir e eu preciso de uma governanta.
Por que não fica em Thanet Bay durante o verão? Nossos aposentos de
empregados são muito confortáveis, tenho certeza de que seus filhos ficarão
muito bem acomodados. A duquesa, minha mãe, é muito doente e quase não
sai de seu quarto, por isso a casa está sempre à deriva e minha irmã carente
de orientação feminina.
— Vossa Graça está me oferecendo emprego?
Era difícil crer que o duque a quisesse como governanta. Bem, nem tanto,
afinal ela contara a ele toda a sua saga com os Pensington. Como foi
companhia de Lady Charlotte e a ajudou a se tornar uma dama respeitável.
Como cuidava de tudo para a família e mantinha a casa em Londres
impecável. Outros nobres poderiam contratá-la por suas referências, porém, a
situação entre ela e Aiden era diferente. Ele não a enxergava como uma
governanta nem pretendia empregá-la antes. O que havia mudado?
— Sim, estou — ele finalmente respondeu. — Não vou conseguir dormir
à noite se deixar que uma mulher e seus filhos pequenos saiam de minha
propriedade para vagar por Kent, principalmente sem dinheiro.
Os olhos dele a fitavam como um felino. Elizabeth não conseguia evitar o
que sentia com aquele escuro profundo que a devorava. Aquela oferta poderia
ser algo mais. Ele poderia estar com a impressão errada sobre ela, depois do
bendito beijo.
— Espero que Vossa Graça não esteja incluindo uma oferta para que eu
me torne sua amante.
Aiden ergueu as sobrancelhas depois que ela fez aquela insinuação de
forma direta, porém, suave.
— Não, não estou. Mas a senhora estaria aberta a esse tipo de oferta?
As palavras dele foram ditas com cuidado. A voz baixa era sensual e
Elizabeth não sabia se a proposta realmente lhe ofenderia ou se, no final, não
parecia tão ruim assim.
Ela conhecera algumas amantes de nobres. Em uma sociedade que se
casava por conveniência, muitos homens e mulheres buscavam satisfação
sexual e espiritual em outras pessoas que não seus cônjuges. Mas Elizabeth
não se sentia confortável com aquela realidade. Da forma como fora criada,
ser amante de alguém não era muito diferente de ser a prostituta de alguém.
— Não, milorde. — Ela baixou o olhar para não ver se ele parecera
frustrado, decepcionado ou aliviado. — Eu não estou aberta a ser a amante de
nenhum nobre. Sou uma mulher honrada.
— A minha oferta também é honrada — Aiden disse, por fim. Ela voltou
a olhá-lo e quase se arrependeu de tê-lo feito. O duque tinha uma expressão
decidida e quase faminta que pouco condizia com o que estava dizendo. —
Aceite-a, são apenas alguns meses.
Alguns meses de bonança. De comida na mesa e dinheiro para pagar as
contas. As poucas libras que tinha na bolsa eram fruto de muitas economias e
ela não queria gastá-las. Pensava no futuro dos filhos e na possibilidade de
pagar uma educação melhor para Patrick, que era tão inteligente. Elizabeth
estava apostando muito na bondade e generosidade daquele duque, mas não
havia possibilidade de recusar trabalho remunerado naquele momento.
CAPÍTULO OITAVO

A PERDA COMPLETA DO JUÍZO DEVERIA SER UM DOS SINTOMAS DA


escarlatina. Depois de beijar a mulher que convalescia com ele, Aiden ainda a
contratou para trabalhar na mansão durante o verão. Aquilo tinha tudo para
dar muito errado e ele ignorou todos os riscos e ofereceu à Elizabeth um
emprego de governanta na casa em Thanet Bay.
Sua mãe tornaria a sua vida muito difícil. Ela sabia que precisavam de
uma governanta, mas a duquesa tinha um faro para os problemas que o filho
arrumava. Elizabeth Collingworth era o maior deles.
Não teve tempo de pensar na besteira que fez porque, depois da visita de
Edward, uma carruagem se aproximou com o doutor Davies para examiná-
los. Fazia horas que se sentia bem e, se tivera febre, não era alta. O médico
concordou que os sintomas estavam desaparecendo e que a saúde dele estava
sendo recuperada. Era uma forma branda da doença, por sorte. Mesmo assim,
Davies recomendou que ainda ficassem pelo menos dois dias em isolamento.
— Vou morrer de tédio em dois dias — o duque reclamou, abotoando a
camisa branca de linho.
— Ora, Vossa Graça, não seja melodramático. Faça o que sabe fazer de
melhor nesse tempo: absolutamente nada.
Aiden rosnou para o médico e expulsou-o do quarto. Se Davies não fosse
um amigo antigo, ele o puniria por falar daquela forma desrespeitosa. Mas
afinal, o homem estava certo — duques e outros nobres usufruíam de longos
períodos contemplativos. A nobreza não trabalhava, não costumava mover
um músculo para fazer o que queria. Existiam criados, afinal.
Ele era diferente. Aprendeu que o valor do dinheiro estava em ganhá-lo
de modo justo. Conhecia vários herdeiros que já tinham começado a
desperdiçar suas fortunas em jogos, mulheres e outras diversões profanas.
Sabia de vários nobres que viviam apenas com as propriedades inalienáveis,
porque já tinham consumido todo o patrimônio que podiam vender. Aiden
trabalhava desde que saíra da faculdade e já tinha, com a ajuda do pai, mais
do que quadruplicado o patrimônio dos Trowsdale. A família gozava de
imensa fortuna e ele pretendia investir ainda mais.
Também gostava de se exercitar. Praticava vários esportes, todos ao ar
livre, e gostava de seu corpo em movimento. Costumava cavalgar para sentir
o vento em suas roupas e cabelos assim como acordava cedo para correr e
aproveitar as primeiras horas da manhã e a energia que elas portavam. Eram
hábitos bem incomuns para um duque, dos quais ele muito se orgulhava.
Seu melhor amigo, o conde, o acompanhava em suas atividades. Também
era Edward que o auxiliava no relacionamento com homens de negócios.
Aiden sabia que a nobreza se tornaria obsoleta de alguma forma e que os
empreendedores engoliriam a Inglaterra. Com o aproximar do novo século, as
coisas estavam mudando muito rápido, principalmente no continente. Ele já
tinha estreitado relações com dois negociantes e um fabricante de
locomotivas.
Sim, ele poderia morrer de tédio em dois dias, mas a mulher do quarto ao
lado não permitiria que isso acontecesse. Talvez ela o matasse de desejo.
Quando Davies foi embora, deixou com Elizabeth Collingworth as
mesmas recomendações: dois dias a mais de isolamento, evitar atividades
extenuantes, repousar. Aiden sabia porque ouvira a conversa, porém, a
mulher não reapareceu — manteve-se trancada em seu quarto até a noite cair
sobre a casa. Ninguém mais tentou contato com eles nem os incomodou e o
duque acabou adormecendo enquanto a luz do dia se esvaía.
Ele teve certeza de que sonhou com gardênias e cabelos da cor do sol.
Jurava que no sonho havia risadas, vozes sensuais e uma mulher ofegante sob
seu corpo. Acordou horas depois sentido muita fome e o corpo quente e
dolorido. A febre voltara, mesmo que branda. Sentindo um mal-estar
incômodo e muita dor de cabeça, Aiden foi até a sala para perceber que a
lareira estava com mais lenha, havia sopa fumegante sobre o fogão e algumas
lamparinas acesas.
Serviu-se de uma dose de uísque e notou sua mão tremer. Ele odiava
aquela doença por fazê-lo vulnerável. Olhou pela janela pensando ter visto
uma luz do lado de fora e lá estava Elizabeth, vagando pela noite como um
espectro. A mulher era realmente diferente de tudo que ele já vira em sua
vida. Ela se portava como… um homem? Talvez. Ela não tinha um
comportamento de dama da sociedade e era exatamente por isso que ela era
tão interessante.
— Aconteceu algo? — Aiden perguntou, indo até a porta. A mulher ainda
não tinha se vestido e continuava desfilando com uma camisola quase
transparente. Na escuridão, sua visão era tão intimidadora quanto
fantasmagórica. Ela estava sentada na grama e olhava para o céu.
— Na verdade, não. Estou vendo como é bonito o céu no litoral. Tantas
estrelas…
Aiden colocou-se ao lado dela e se sentou com a lamparina entre eles.
Aquela posição era desconfortável e o deixaria com dor no pescoço. Jogou-se
para trás e deitou com a cabeça apoiada nas mãos.
— Londres tem muitas luzes. — Ele suspirou. — Eu gosto do campo, do
litoral, do afastamento da cidade.
Ela se deitou, também. Apoiou o cotovelo na grama e esqueceu o céu por
alguns segundos para espreitá-lo. Aiden sentiu-se escrutinado.
— Conte-me outra história, milorde. O senhor e sua irmã parecem ser
pessoas muito boas, que acolhem os necessitados sem fazer muitos
questionamentos. A que isso se deve?
O duque sorriu e virou-se de lado para que ficassem frente a frente. A luz
da lamparina era fraca, mas sombreava o corpo curvilíneo de Elizabeth e
deixava muito pouco para a imaginação. Dava, inclusive, para ver o escuro
dos mamilos e… ele precisava focar nos olhos dela, ou voltar a apreciar a lua.
— Meu pai era um homem muito bondoso. Ele nos criou dessa forma,
ensinando que a força de um homem não vem de seu título e suas posses,
apenas, mas do seu legado. Para ele, o legado estava além do sangue azul, era
o que esse homem deixou de contribuição para o mundo.
— Ele não acreditava que fazer filhos e disseminar o sangue dos
Trowsdale fosse um legado suficiente?
— Não, meu pai era um visionário. — As memórias vívidas do pai
inundaram a mente de Aiden naquele momento e ele sentiu nostalgia. Sabia
que, na realidade em que viviam, muitas famílias não desenvolviam afeto e as
relações eram quase negociais entre pais e filhos. Para ele, as coisas eram
diferentes. Pelo menos, em relação ao pai. Ele fora amado, mas tinha extrema
dificuldade em expressar os sentimentos de seu coração. — Albert Trowsdale
tinha ideias muito avançadas para a nobreza e ele era usualmente suplantado
no parlamento. Mas a força do ducado de Shaftesbury não esmoreceu.
— É muito intrigante ver sua admiração por seu pai. O meu colocou tudo
que tinha a perder com jogos e mulheres. Passamos fome e necessidades
materiais porque o homem não conseguia manter os botões das calças
fechados.
Eis que a mulher também não tinha nenhum decoro na fala. Aiden
pigarreou, engasgando com saliva, enquanto ela deu uma risadinha ao notar o
desconforto dele. O silêncio que se seguiu deu a dimensão da tensão
estabelecida entre eles. A beleza da natureza foi esquecida por minutos
inteiros em que eles apenas se olharam, até que o estômago de Aiden fez um
ruído animalesco que foi ouvido certamente até pelos criados da mansão.
— Acho que está na hora daquela sopa. — Elizabeth levantou, espanando
grama e terra da sua camisola. Aiden suspirou e a seguiu, certo de que dois
dias eram muito tempo para compartilhar com aquela mulher sem
comprometê-la de todas as formas possíveis.

U M DIA PASSOU sem que o duque sucumbisse ao desejo inadmissível que seu
corpo sentia por aquela mulher. Ele tentou afastá-la de todas as formas,
buscando se convencer de que ela era inadequada, uma plebeia, viúva. Que
ela não poderia oferecer a ele nada além do que todas as outras já lhe tinham
oferecido, mas isso não surtiu efeito. Toda vez que ela respirava perto dele,
Aiden relembrava o beijo breve que compartilharam e desejava beijá-la
novamente.
O último dia de isolamento começou com Elizabeth chateada. Ela não
levantou cedo da cama, como fizera das outras vezes, nem perambulou pelo
gramado exterior. Não preparou o desjejum nem se incomodou em deixar o
quarto. Aiden deveria comemorar não precisar resistir à tentação dourada que
o provocava a cada segundo desde que seus olhares cruzaram naquela
estalagem, mas havia algo errado com aquela reclusão.
Já passava do meio-dia quando ele decidiu fazer alguma coisa. Um
Trowsdale raramente fugia de uma dificuldade e ele fora ensinado a enfrentar
todos os desafios. Dobrou as mangas da camisa, abriu alguns botões no
colarinho e decidiu preparar ovos com presunto. Ele já a vira fazer aquilo por
três vezes, não devia ser tão difícil.
Era quase impossível.
As duas primeiras tentativas representaram ovos queimados. Aiden
também não obteve muito sucesso preparando um chá, já que ele não sabia
como fazer a infusão. Ferveu água, mergulhou as ervas, e aquilo não parecia
certo. Já estava se sentindo frustrado e com sua virilidade ferida por não
conseguir superar as mínimas habilidades de uma mulher quando ela abriu a
porta e apareceu.
— Está tentando colocar fogo na casa?
A voz dela estava embargada, porém, divertida. Elizabeth estava enrolada
em um cobertor e tinha os cabelos despenteados. Não havia nenhum
resquício de vaidade feminina naquela figura pálida que se mostrava para
Aiden, mesmo assim, ele nunca vira nada tão belo à sua frente.
— Não creio que eu seja capaz, já que não consegui nem mesmo ferver
um chá. Aparentemente, colocar fogo em qualquer coisa é uma tarefa
complexa demais para um duque realizar.
Ela se aproximou e mexeu o chá que ainda estava em infusão. Provou um
pouco e franziu a testa, encarando o duque com uma expressão que o deixou
apreensivo. Era surreal que ele tivesse expectativa pela aprovação daquela
mulher, que ele desejasse fazer qualquer coisa certa para que ela gostasse.
— Basta coar, agora. O sabor muito bom, é camomila?
— Sim, há muitas flores logo aqui perto. Eu gosto bastante de camomila.
— Ora. — Ela ergueu as sobrancelhas em uma expressão surpresa. —
Vossa Graça colheu flores?
Apesar da aparente normalidade que o olhar dela transmitia, Aiden
pressentiu que Elizabeth não estava bem. Aquela mulher tinha se mostrado
forte e lutadora durante a doença, mesmo sucumbindo à febre. Ela cuidou
dele, ele cuidou dela, os dois compartilharam momentos intensos demais e
aquilo deu a ele conhecimento sobre coisas que não pretendia conhecer. A
frequência de sua respiração, o som de sua voz, o olhar altivo e sempre alerta.
Algumas dessas coisas estavam diferentes.
— A senhora está se sentindo bem?
Aiden continuou insistindo em preparar os ovos, enquanto aguardava que
ela lhe respondesse. A quarta tentativa deveria ser a da sorte.
— Não estou — ela, por fim, confessou, longos segundos depois. —
Tenho saudade dos meus filhos. E não tenho nada para vestir.
Os ovos que estavam nas mãos de Aiden caíram na frigideira, com casca
e tudo. Ele bateu no cabo de metal quente e queimou a mão, derrubando tudo
pelo chão. Virou-se repentinamente para a mulher enrolada em um cobertor.
Ela estava nua por baixo daquele tecido grosso? Não havia nenhuma peça de
roupas entre eles? Se havia um jeito de distraí-lo e causar um incêndio na
casa, Elizabeth tinha descoberto sem muito esforço.
— Suas roupas não secaram?
Ele tentou recolher a bagunça e ela se abaixou para ajudar, tentando
segurar o cobertor com uma mão, apenas. As pernas dela ficaram expostas e
Aiden jogou o corpo para trás, batendo a cabeça no fogão à lenha.
— Secaram, mas estão cheirando a… não sei, estão com um cheiro
horrível. E minha camisola estava muito antiga, acabou rasgando quando
tentei lavá-la, hoje cedo.
O duque não acreditava que nada dela pudesse ter um cheiro horrível. Ali,
naquele instante, a proximidade fazia com que ele sentisse o aroma de sabão
que exalava do corpo de Elizabeth. E tinha as malditas gardênias, de onde
aquele cheiro surgia?
— Vou mandar que lhe tragam roupas limpas. — Aiden levantou. —
Apesar de… eu não tenho como chamar os criados daqui. Isso pode ser um
problema.
— Está tudo bem. — Ela sorriu e tomou a frigideira da mão dele,
recolocando sobre o fogão. Depois, pegou um pano escurecido e umedeceu
em água para limpar o chão, que era de pedra. Tudo aquilo com uma mão
segurando aquele cobertor enrolado nos ombros. — Amanhã estaremos
liberados para seguir nossos caminhos. Deixe-me fazer isso.
Ela parecia realmente disposta a cozinhar naquelas condições. Aiden não
impediria, já que tinha fome, mas ele podia ajudá-la de alguma forma.

F OI ALGO RÁPIDO , mas que durou um ano inteiro. Elizabeth estava de costas
para o duque, equilibrando-se para manter sua dignidade enquanto tentava
cozinhar nua. Não estava tecnicamente nua, já que havia um grosso tecido
sobre ela, mas aquele tecido cobria apenas sua pele desnuda. Talvez aquela
condição a deixasse mais vulnerável, porém, foi capaz de sentir com
exagerado entusiasmo a aproximação de Aiden.
Ele foi silencioso como um fantasma e ficou cinco segundos parado atrás
dela antes de tomar uma atitude. Cinco segundos em que o coração dele
martelou oito vezes. Elizabeth parou de respirar quando Aiden colocou as
mãos em seus cabelos soltos e desarrumados e juntou os fios com os dedos,
elaborando uma trança frouxa. Aquelas mãos eram habilidosas demais para
um duque. Ele não mentiu quando disse que sabia trançar cabelos.
Depois, segurou o cobertor com as mãos grandes e seus dedos tocaram a
pele dela, no pescoço e na clavícula. Elizabeth fechou os olhos enquanto os
ovos estalavam na frigideira.
— Confie em mim — Aiden sussurrou, bem próximo ao ouvido dela.
Elizabeth quis gritar que sim, ela confiava, apesar de não ter motivos para
aquilo. O corpo dela inteiro retumbava com a mera proximidade do duque.
Não havia certeza maior em sua realidade — ela queria ser tocada por ele.
Elizabeth soltou o cobertor. O duque o manteve firme no lugar e,
juntando as pontas, deu um nó na altura do pescoço dela. O tecido caiu
frouxo por seu corpo, não a cobrindo como deveria. Se ela se movesse, o
cobertor também se moveria e partes dela ficariam expostas. Mas, ao menos,
permitia que ela tivesse as mãos livres.
— Vou me sentar ali atrás.
O duque se afastou e ela sentiu um frio repentino, como se uma corrente
de ar lhe atingisse. A presença dele a envolvia em calor e fazia tempo desde a
última vez em que se sentira daquela forma. Provavelmente Elizabeth nunca
percebera que sentia falta ou que precisava daquele tipo de calor, mas Aiden
Trowsdale estava causando nela um efeito problemático. Estava fazendo com
que ela desejasse coisas que não poderia ter.
Cozinhar se tornou mais fácil. Os ovos ficaram com uma aparência ótima
e o pão, que ela havia feito no dia anterior, ainda estava macio. Passando um
braço pela própria cintura para evitar uma exposição desonrosa, Elizabeth
levou a comida até a mesa e se sentou, tentando manter os olhos afastados do
duque.
— É sua vez de contar uma história — o duque disse, cortando o pão com
as mãos. Ela tentou evitar os olhos dele, o que não fez nenhuma diferença.
Qualquer parte do corpo de Aiden despertava os sentidos de Elizabeth. —
Fale-me dos sonhos de Elizabeth Collingworth.
Ela riu. Claro que tinha que rir, mulheres como ela não tinham sonhos.
Ao menos ela não tinha mais sonhos, eles foram despedaçados, pisoteados e
incinerados quando tinha quatorze anos. Tudo pelo que foi criada virou pó
aos seus pés e ela precisou encarar outra realidade — a de trabalhar por seu
sustento e de viver em uma sociedade muito diferente daquela que deveria
acolhê-la.
— Quando eu era uma menina, e minha mãe me ensinava coisas sobre o
futuro e sobre como eu deveria me portar… quando minha tutora me dava
orientações sobre a sociedade e a nobreza… eu tinha um sonho. Era uma
coisa tola, mas eu por vezes sentia que poderia atingi-lo.
— E que sonho tolo era esse? Vamos, a senhora não pode começar uma
história e não a terminar.
— Meu sonho era se casar com um duque.
Aiden engasgou com o pedaço de pão que levou à boca. A expressão
resoluta de Elizabeth indicava que ela esperava aquela reação.
— Parece o sonho de uma dama — ele disse, depois de beber um pouco
de chá. Não, ele virou uma xícara inteira de chá enquanto Elizabeth o fitava,
preocupada. Aiden tinha a voz rouca, ela não sabia se era por algum
incômodo em sua garganta ou se ele estava constrangido com o sonho dela.
— Acontece que eu não sou uma dama. Não mais. Eu tive sonhos, mas
Vossa Graça pode perceber que hoje eu apenas luto pela sobrevivência.
Naquela época, eu era uma menina e eu fui criada para me casar. Hoje eu sou
uma mulher adulta e sei que há coisas mais importantes na vida do que
escolher maridos aristocratas.
— A sua família, ela… tinha ascendência?
— Não. Mas eu podia conquistar um nobre, claro. Um baronete, talvez,
até um visconde poderia ter interesse em desposar uma moça rica com um
dote excelente. E eu era refinada, fui treinada para ser uma anfitriã perfeita,
uma esposa dedicada. Seria fácil transitar comigo nas festas e bailes, eu não
tinha estirpe, mas tinha classe. O duque era apenas um sonho, mesmo.
Nenhum deles se interessaria por mim. Eu não era boa o bastante.
Elizabeth tinha certeza de que jamais se casaria com um duque. Era um
título alto demais, havia pretendentes muito melhores do que ela. Duques se
casavam com mulheres nobres, filhas de condes ou outros duques. Eles não a
escolheriam, por mais que ela fosse a escolha perfeita. Ainda assim, ela
sonhava. Ela sonhou. Aquilo tinha ficado no passado.
— E então o seu pai perdeu tudo.
Ele não precisava de muito esforço para entender a situação.
— E eu perdi meu dote. Sem estirpe e sem dote, a minha vida miserável
me conduziu a outros caminhos.
— Lamento. A senhora certamente daria uma ótima esposa para qualquer
homem na minha posição.
— O senhor não pode saber disso. — Ela o encarou. Nunca tivera tanta
proximidade com um homem a ponto de conversar abertamente com ele
sobre aquelas tolices sentimentais. Primeiro, porque nenhum homem queria
realmente conversar sobre aqueles assuntos. Segundo, porque ela não se
sentia confortável em falar deles. — Só me conheceu em posição de
subserviência, como uma criada. Talvez possa acreditar que eu seja uma boa
ama de companhia, ou tutora, ou até mesmo governanta. Mas, esposa?
Aiden riu e terminou de comer o que havia em seu prato. A luz da vela
que estava sobre a mesa bruxuleava em seu semblante rígido, amenizado por
um breve sorriso nos lábios perfeitos.
— Tem razão. Mas eu suspeito que minhas impressões estejam corretas.
CAPÍTULO NONO

D UAS COISAS IMPEDIAM A IDEN DE DORMIR NAQUELA NOITE . U MA ERA A


antecipação de retornar para casa e para suas atividades sociais. Mesmo que
ele não gostasse da maioria delas, ficar enclausurado em uma casa isolada
não era seu melhor conceito de diversão. Ele tinha negócios a tratar,
investimentos a fazer, propriedades para supervisionar. Sua fortuna não se
multiplicaria sozinha.
A segunda era a mulher do quarto ao lado. Eles passaram momentos
interessantes durante o dia, enquanto ela vestia um cobertor e nada mais.
Durante todo o tempo ele desejou desatar aquele nó e despi-la para seu
deleite.
Pensar nela fazia com que o incômodo em sua virilha se transformasse
em algo imenso. Poderia ser o tempo sem mulheres. Aiden não estivera
ocupado em satisfazer seus desejos carnais nas últimas semanas, ele estava há
tempos sem alívio. Provavelmente era por causa daquilo que o desejo por
Elizabeth Collingworth estava lhe deixando louco.
Era tanta loucura que chegou a se animar quando ela perguntou se havia
uma oferta para torná-la sua amante. Por um minuto, ele ansiou para que ela
aceitasse uma proposta não feita, como se adivinhasse o desejo em seu peito.
Ela negou, como era de se esperar. Apesar de pobre, aquela mulher tinha a
alma de uma dama da sociedade. Se ela não seria sua amante, não seria nada
além de sua governanta. Era inadmissível ter tanta vontade de beijar sua
empregada.
Desistindo de rolar de um lado para o outro, o duque se levantou e foi até
a sala servir-se de uísque. Se ele bebesse duas ou três doses talvez seu corpo
relaxasse e ele pudesse pegar no sono. Estava escuro demais para ler e não
havia nada que ele pudesse fazer para se divertir.
Aquilo era o que ele pensava, até ver Elizabeth de pé na janela.
Maldição, ela era apenas uma silhueta escura e avermelhada à luz da
lareira, mas os seus cabelos estavam esvoaçantes como se flamejassem.
— Não consegue dormir? — ela perguntou, percebendo-o na sala.
— Não. Espero que o uísque me ajude a resolver esse problema.
Ela se virou para ele e estava lá, com aquele cobertor que não conseguia
mais cobrir seu corpo inteiro. Estando os dois de frente, ele podia vê-la. Será
que Elizabeth considerava que a ausência de luz a mantinha em segurança e
escondia suas formas? Será que ela não percebia que a lareira continha
claridade suficiente para expor sua pele parcialmente desnuda e deixar Aiden
duro como granito?
— Se tiver mais sorte do que eu. Bebi duas doses e só fiquei um pouco
confusa.
— O álcool faz isso conosco. — Aiden deu dois passos na direção dela.
— Ele desinibe e amortece.
Elizabeth foi até o bar e serviu duas doses do líquido âmbar. Entregou um
copo ao duque e ficou com outro para si. Ele bebeu tudo em um gole e
serviu-se de mais. Bebeu de uma só vez para ganhar coragem. Não que Aiden
precisasse de coragem, mas ele nunca fizera nada como aquilo que estava
fazendo.
— Amanhã estaremos liberados. — Ele deu outros dois passos até ela. —
Provavelmente este é o último momento em que ficaremos assim, sozinhos.
Ela baixou o olhar e Aiden percebeu seu constrangimento. Ao mesmo
tempo, não fez nada para impedir que ele se aproximasse mais.
— Provavelmente muitas fofocas já surgiram. A sua reputação pode estar
em perigo, milorde.
— A reputação de um homem nunca está em perigo. — Ele estava
perigosamente próximo e ela conseguia sentir o calor emanado da pele
descoberta dele. — Já a sua, tenho certeza de que sairá daqui bastante
arranhada. Isso a preocupa, Elizabeth Collingworth?
— Não tenho muito mais com o que me preocupar. Eu não sou uma
dama, não tenho reputação a zelar. Uma mulher das docas não será rejeitada
apenas porque passou alguns dias com um duque em uma casa isolada.
— Talvez não. Mas isso pode atrapalhar seus planos de trabalhar como
tutora de jovens damas.
— Será uma consequência com a qual terei que lidar.
A forma como ela o olhou era determinada, porém, triste. Não havia mais
virtude a ser arruinada, nem as classes mais baixas davam tanta importância
assim aos intercursos sexuais entre pessoas não casadas. Mesmo assim, ela
parecia sempre presa entre dois mundos, aquele em que fora criada e aquele a
que pertencia. Havia a dignidade que ela tentou precariamente proteger
durante aquele curto período em que ficaram juntos. E ele teria total
responsabilidade pelo que estava para acontecer.
O silêncio perdurou enquanto Aiden se aproximava até estar a menos de
dois centímetros dela. O cobertor roçava em sua pele, já que ele estava sem
camisa. Aiden pegou o copo quase vazio da mão de Elizabeth e colocou
sobre a mesinha do bar. Sua mão, então livre, posicionou-se nos cabelos dela
e os dedos enrolaram os cachos loiros entre eles.
— A senhora é a mulher mais linda que já conheci.
A frase saiu quase como uma confissão. Um sussurro de sua alma, algo
que Aiden dificilmente diria em voz alta, mesmo sendo verdade. Já dissera a
outras mulheres que elas eram lindas, nunca que eram as mais lindas. Já
dissera coisas para levá-las para a cama, a maior parte era apenas para
conseguir um objetivo. Naquele momento, enquanto a face de Elizabeth
corou em vários tons de vermelho, o duque entendeu que não precisava
mentir para seduzi-la. Que a verdade era suficiente.
— Vossa Graça, eu…
O duque calou os lábios dela com o polegar.
— Não diga nada. Apenas me peça para parar.
Ela não disse, então ele não parou. O polegar contornou os traços da boca
dela e desceu para o pescoço, até se posicionar sobre o nó inconveniente
daquele cobertor. Devagar, como se fosse um caçador prestes a pegar a presa,
Aiden levou a outra mão até a nuca de Elizabeth e a beijou.
Foi um toque de lábios, no início, em que a boca dele, muito quente e
ansiosa, encontrou a dela, trêmula. O gemido que se seguiu fez com que
Aiden forçasse uma abertura para sua língua. Como ela ainda não tinha
pedido para ele parar, o duque desceu as duas mãos até a cintura da mulher e
a puxou para mais perto.

E LIZABETH ESTAVA COMEÇANDO A ACREDITAR que ela nunca tinha sido


beijada. O falecido Gregory não foi o único homem a tomar algumas
liberdades com ela — depois dele, outros já tinham roubado um beijo ou
outro, mas nada era como aquilo. Nada fora sequer parecido com aquilo.
As duas mãos do duque estavam firmes em sua cintura, os dedos
pressionando sua carne e quase penetrando o cobertor. Dava para sentir o
calor que delas emanava e a aspereza do toque, algo que não parecia muito
comum a um nobre. As mãos dos nobres eram lisas e incólumes, mas as
daquele homem pareciam rudes e até mesmo calejadas. A língua dele estava
se enroscando na dela, fazendo com que Elizabeth emitisse alguns sons muito
constrangedores.
— Milorde — ela murmurou, sem afastar a boca dele. Estava com as duas
mãos nos ombros do duque e os dedos já se arriscavam a delinear alguns
músculos proeminentes que não deveriam estar ali, tão evidentes. — Eu não
sou esse tipo de mulher.
Ela não era. Elizabeth fora criada, na infância, como uma lady. Ela
aprendeu o recato e o pudor necessários. Uma dama não sentia desejo. Uma
dama aceitava seu marido, apenas seu marido, para gerar filhos dele ou para
lhe dar o prazer carnal. Ela mesma não tinha aqueles interesses, uma dama
respeitável não tinha. Foi o que cresceu ouvindo, como aprendeu a ser.
O mundo, contudo, a fez diferente. Dura, talvez? Havia muito da antiga
Elizabeth nela, mas boa parte fora tomada por uma mulher que precisou
enfrentar uma realidade que não a permitia fragilidades. Ela entendeu que, na
verdade, aqueles ensinamentos estavam equivocados. Uma mulher tinha
desejos. Ela também poderia querer prazer. Uma mulher não pensava apenas
em vestidos, sombrinhas ou no clima. Ela sabia dos assuntos, aprendia com
facilidade e adorava conversar.
Naquele momento, em que ela sentia a boca do duque por todos os
lugares da sua pele, depois de todas as vezes em que o decoro fora
abandonado por eles, ela só conseguia sentir. O desejo a fazia enxergar tudo
nublado e não parecia errado que ela o quisesse. Daquela forma, de todas as
formas. Elizabeth não tinha mais nada a perder.
— Eu sei. — Aiden a puxou para mais perto ainda. Elizabeth sentiu a
dureza de sua masculinidade pressionando-a por baixo do cobertor, que não
cobria absolutamente mais nada. — Por favor, Elizabeth, peça-me para parar.
Mande-me de volta para o meu quarto.
— Eu não quero.
Céus, ela não queria mesmo. Não pretendia se entregar e não desejava se
afastar. Não pretendia deixar que ele a tocasse nem conseguia evitar gemer
por seu toque ou ansiar por mais. Mais contato. Mais intimidade.
— Você precisa.
— Talvez possamos fazer com que as fofocas não sejam fofocas, afinal.
Três doses inteiras de uísque não apenas a desinibiram, abriram uma
comporta por onde jorrava um rio que Elizabeth não podia mais represar. O
rosnado emitido por Aiden Trowsdale demonstrou que ele não parecia muito
preocupado com aquilo, que ele também gostaria de dar motivos para os
fofoqueiros. Ele provavelmente estava apenas sendo respeitoso com ela, de
uma forma bastante peculiar.
Não apenas o beijo, mas o toque ficou mais intenso. Ela fechou os olhos
para receber a boca dele de novo e, daquela vez, já se abriu para que ele a
invadisse com a língua. Passando as duas mãos pelo pescoço de Aiden,
Elizabeth uniu os corpos e seus seios nus tocaram o peito firme dele. A
sensação dos músculos em contato com a sua pele era indescritível.
Quando foi que ela se sentiu assim? Fazia tempo, ou talvez fosse nunca.
Elizabeth seria confrontada em suas verdades naquele minuto em que passou
beijando um duque — e nem era a primeira vez. Era provável que ela não
tivesse ainda experimentado um prazer como aquele.
Aiden direcionou seus beijos para outros lugares. As bochechas, o queixo,
o pescoço. Enquanto deixava um traço de fogo em sua pele, ele subia as mãos
devagar. Muito devagar, em um ritmo tão lento que causou agonia. Se ela
sempre fora pervertida daquela forma, não tinha percebido. Elizabeth jurou,
naquele momento, que a culpa era do duque. Ele despertara nela sensações
que ignorava.
Quando o polegar dele escorregou para dentro do cobertor e tocou seu
mamilo, ela gemeu. Ele considerou aquilo um incentivo e circulou o mamilo
com o dedo, acariciando-o e provocando-o enquanto arrancava dela mais
gemidos. Não havia mais vergonha que impedisse Elizabeth de demonstrar o
prazer que sentia com aquele toque. Ela agradeceu estar apoiada no corpo
dele, pois seus joelhos se transformaram em gelatina.
Sem parar de beijá-la, Aiden segurou um seio nas mãos.
— Isso é perfeito. — Ele o encaixou entre os dedos e o acariciou, fazendo
com que ela se contorcesse de prazer. Então a boca de Aiden estava ali,
beijando e lambendo o seio que ele segurava. Ela arqueou o corpo para trás e,
não fosse a mão dele em suas costas, teria caído ao chão. — Não, isso é
perfeito. Isso. Peça-me para parar, Elizabeth.
Não quero que você pare. Quero mais e quero agora. Ela não era capaz
de impedi-lo em nome de uma honra que já tinha sido maculada. A única
forma de acreditarem que ela e o duque não fizeram nada impróprio naquele
período de quarentena era que ele a rejeitasse. Fora isso, ninguém acreditaria
que aquela mulher fosse capaz de dizer não ao Duque de Shaftesbury.
Talvez ela não fosse.
Aiden sugou o mamilo e ela não conseguiu pensar mais nada além
daquele prazer. Empurrada para a parede, ela se apoiou na pedra fria,
enquanto ele conduzia a mão livre também para dentro do cobertor e descia
pelo corpo dela. Tocava suas curvas até embrenhar-se em seu sexo, buscando
algum espaço ali, naquele lugar que estava pulsante e dolorido desde que o
beijo começou.
— Oh, Aiden.
Ela suspirou ao senti-lo abrindo espaço para os dedos, por entre seus
cachos e suas dobras femininas. O duque conhecia tão bem a anatomia das
mulheres que não teve nenhuma dificuldade em encontrar seu centro de
prazer — e foi ali que ele concentrou sua atenção. Fazendo círculos com o
indicador, Aiden acariciava o botão rosado entre as pernas de Elizabeth
enquanto ela não tinha mais condições de ficar de pé.
— Faça isso. — Ele percebeu que ela estava trêmula em suas mãos. —
Entregue-se.
Parecia simples para ele, mas era quase impossível que Elizabeth se
entregasse tão facilmente. Por mais que ela ansiasse por aquele toque e por
mais habilidoso que ele fosse, ela não fora treinada para sentir prazer, mas
para dar. Ela se preparou para deitar, nua, abrir as pernas e esperar que o
homem se satisfizesse. Mas aquele ali era diferente. Ele pedia que ela sentisse
— e ela sentia muito, forte e intenso.
— Eu não…
Aiden deslizou um dedo para dentro dela. Oh, ela não conseguiria evitar.
O calor que crescia em seu ventre parecia prestes a explodi-la em uma chuva
de fogos de artifícios, como se Elizabeth fosse se transformar em ano novo.
Seus olhos enxergavam luzes inexistentes enquanto ele colocava e tirava o
dedo, inseria um segundo, e a sustentava com firmeza contra a parede.
Se já estava difícil sustentar sua dignidade, ele dedicar atenção a seus
mamilos não ajudou muito. Elizabeth soltou outros gemidos constrangedores
e sentiu seu corpo todo convulsionar.
— Sim, Elizabeth, você consegue — Aiden murmurou, a boca muito
próxima à dela. — Apenas deixe vir.
Ela deixou. As luzes piscavam frenéticas e seus olhos não conseguiam
mais ficar abertos. As ondas de prazer inebriante que se abateram sobre ela
pareciam uma tormenta em alto-mar, prestes a naufragá-la e deixá-la à deriva.
Por algum motivo, ela acreditou que houvesse um bote salva-vidas à sua
espera.
Talvez ela já tivesse sentido aquilo, antes, mas não com aquela potência.
— Aiden — ela gemeu baixo, enquanto o mar acalmava e as nuvens
escuras davam lugar à claridade do sol. Elizabeth era só metáforas e ela não
sabia nem mesmo o que dizer. — Oh.
O beijo que a silenciou foi sôfrego e intenso, mas doce. A boca dele
estava quente e ansiosa, deixando rastros suaves de calor pelos seus lábios.
— Considere essa como uma nova proposta.
Ela não era capaz de entender o que ele dizia. Aiden continuava com as
mãos em seu corpo e os lábios em sua pele, mantendo-a muito estimulada
depois do orgasmo.
— Não entendo.
— Eu não quero que seja minha criada. Eu desejo você, Elizabeth. — A
boca traçou os contornos do seu queixo, percorreu o caminho até a parte de
trás da orelha. — Venha viver comigo.
A nova proposta significava apenas uma coisa — ele a queria como
amante. O que estava fora da mesa de negócios, antes, passara a ser a oferta
principal muito rapidamente. Claro que para isso ela servia, para dar a ele
prazer. Elizabeth não esperava despertar os desejos do duque, mas, já que ele
a queria, ele a queria apenas como sua concubina. E aquilo ela não poderia
aceitar.
— Não posso, milorde.
— Por que não? — Ele ainda a beijava e ela estava dividia entre o desejo
de que ele a possuísse e o repúdio pelo que ele propunha. — Elizabeth, eu
cuidaria de você. Cuidaria de seus filhos. Você nunca mais precisaria
trabalhar. Só diga sim.
Seria muito fácil. Nada em sua vida fora fácil desde a falência do pai.
Elizabeth, contudo, não arriscaria colocar um bastardo no mundo, nem
abandonaria sua moral apenas para ter uma vida fácil.
Pense nos meninos, Elizabeth. Uma voz gritava dentro dela, enquanto o
duque beijava seu pescoço. Ele não fazia nenhuma investida mais íntima,
apenas a mantinha presa naquela espiral de desejo enquanto ela decidia.
Pense no que você poderá proporcionar a Patrick e Peter. Eles terão uma
educação de qualidade e poderão ir até a universidade. Eles poderão se casar
com uma dama da classe média. Pense nos seus filhos.
Ela pensou. Por mais que quisesse, ali, naquele momento, ceder a Aiden
Trowsdale, ela não conseguiria olhar nos olhos dos meninos se virasse uma
concubina. Quando ele se cansasse dela, seria trocada por uma mulher mais
jovem e com mais vigor, uma mais bonita e que soubesse fazer coisas que ela
não sabia.
— Não posso. — O momento findou. Ela puxou o cobertor para se cobrir
e Aiden se afastou alguns centímetros. — Eu não sou uma amante, não sou
esse tipo de mulher.
Voltando para seu quarto, ela fechou a porta e se enrolou nos cobertores,
sentindo um mal-estar que não era da doença. Seu corpo ardia de desejo e sua
cabeça doía pela negativa. No dia seguinte, ela precisaria ir embora e voltar
para a miséria com seus filhos.

— O NDE ESTÁ MEU FILHO ?


A duquesa viúva perguntou à sua criada particular. Ela sabia que Agatha
estava na propriedade, mesmo que ainda não tivesse saído do quarto
nenhuma vez, nem tivesse mandado chamar a filha. A jovem impetuosa não
ia ver a mãe a não ser que fosse solicitada. Aquele fora um comportamento
treinado desde a infância — Agatha nunca deveria entrar no quarto da
duquesa sem um convite. Ninguém deveria.
— O duque está na casa do poço, senhora. — Emma abriu as cortinas
para deixar entrar luz solar no quarto. Já passava de meio-dia, mas a nobreza
raramente acordava antes daquele horário. — Parece que ele está de
quarentena.
— O que ele tem? Ninguém nesta casa pensou em me contar que meu
único filho está doente?
— Ele tem a febre vermelha, senhora. escarlatina. Mas John disse que
está tudo bem, eles estão se recuperando. Granger e Geoffrey têm garantido
que nada lhes falte.
— Eles?
O plural usado pela criada não tinha sido um mero acidente linguístico
em razão de sua alfabetização precária. Seu filho estava com outra pessoa
naquela casa isolada e a duquesa tinha que saber quem era.
— Sim, senhora. — Emma baixou o olhar e encarou o piso de madeira.
— O duque está abrigando a Sra. Collingworth, uma viúva de Londres. Ela
também está doente.
Uma viúva não parecia o tipo de mulher que atraía seu filho. Certamente
era uma senhora de meia-idade que teve a infelicidade de contrair a doença.
Aquele comportamento bondoso Aiden aprendera com o pai e não parecia
haver nada que o demovesse de ajudar os necessitados. Myrtle imaginou que
não precisaria se preocupar com escândalos ou reputações porque seu filho
estivera deflorando mulheres indefesas.
— Assim que ele retornar para a mansão, informe-me. Quero acompanhar
todas as notícias sobre o convalescimento do duque.
Emma assentiu com a cabeça e saiu do quarto, ansiosa por libertar-se da
duquesa maligna. Myrtle sabia que os empregados a abominavam e que sua
fama de cruel era tão popular quanto a libertinagem de seu filho. Ela tinha
deixado de se preocupar com isso desde que percebera que não havia nada
que pudesse fazer para evitar uma fofoca.
Aquele era um indicador do que ela já suspeitava. Sua longa abstenção da
família estava começando a cobrar um preço — o filho não se casava e a filha
não lhe seria de nenhuma serventia, já que não pretendia depender do marido
de Agatha para sobreviver. As melhores chances de Myrtle sempre foram em
um casamento conveniente do duque com uma mulher de boa origem e que
pudesse dar ao filho herdeiros suficientes.
CAPÍTULO DÉCIMO

N ÃO FOI O SOL NEM O CALOR REPENTINO QUE ACORDARAM E LIZABETH


naquela manhã, muito mais tarde do que ela geralmente despertava. Seus
ouvidos capturaram um miado e isso a tirou do transe do sono. Miado?
Ela sentou na cama e puxou o lençol para si ao se perceber nua. Claro que
ela estava nua, depois do que houvera na madrugada. A lembrança dos
momentos de extrema intimidade fez com que suas bochechas ardessem.
Sentiu-se muito devassa e impura, suja. Seu corpo estava marcado pelo toque
indecente do duque com quem compartilhava os dias e noites desde que se
descobriu doente.
Ela podia ter sonhado tudo aquilo. Não era difícil de imaginar. A doença
sucumbiu seu corpo e a devassidão tomou conta de sua mente, então
Elizabeth provavelmente sonhara com um duque másculo e sedutor que a
beijava e tocava em partes inapropriadas. Com certeza foram sonhos todas
aquelas sensações inebriantes causadas pelos dedos de um homem que ela
nem imaginava que existia — lindo, forte, nobre, preocupado com a sua
satisfação.
Não tinha sido um sonho. A verdade doía em sua cabeça e ela sabia que
precisava ir embora.
O miado ainda ecoava em seus ouvidos, mas, fora aquilo, não havia
nenhum outro ruído no quarto. A porta estava recostada e ela estava sozinha.
Ele a respeitara, não insistira para possuí-la, não forçou nenhum outro
contato. Era provável que Aiden estivesse irritado com ela.
Daquela vez ela se vestiu com dignidade e seguiu o som do miado, para
encontrar o duque na sala. Ele estava de costas para ela, de frente para a
janela, usando uma camisa branca perfeitamente passada e calças de camurça
muito justas. Ele tinha pernas enormes e qualquer roupa deveria ficar justa
nele. Os cabelos, desarrumados, reluziam sob o pálido sol da manhã. E ele
estava alimentando um gatinho.
— Oh, céus, o que é essa coisinha doce?
Aiden virou-se para ela e um sorriso ergueu os cantos de sua boca.
— Bom dia. Esperava que esse danadinho não acordasse a senhora, mas
ele parecia faminto.
— É muito gentil da parte de Vossa Graça cuidar dele.
O duque acariciou o pelo do gato, que pareceu muito confortável com ele,
e se virou para Elizabeth. Ela sentiu o cheiro de presunto e chá e entendeu
que ele tinha conseguido fazer a comida. Depois do fracasso do dia anterior,
aquela parecia uma vitória e tanto.
— Não temos animais domésticos em Thanet Bay — ele confessou,
colocando uma frigideira cheia de ovos sobre a mesa. — Nem pão fresco
nesta casa, portanto, espero que ovos e presunto sejam suficientes para um
desjejum razoável. Creio que, depois de comermos, podemos caminhar até a
mansão.
Ansiedade dominou Elizabeth e fez seu coração disparar. Ela não sabia se
era porque ansiava ver os filhos ou porque estava gostando de ficar ali.
Depois que cruzassem a porta da casa e se lançassem de volta no mundo
exterior, eles voltariam a ser o duque e a criada, o homem de sangue azul e a
mãe viúva sem ter onde cair morta. Qualquer coisa que eles tivessem
experimentado naqueles dias isolados teria que ficar no passado.
— Será ótimo retornar. — Ela não tinha certeza do que dizia. — Se
Vossa Graça quiser, eu posso ir até a casa e pedir que sua carruagem venha
lhe buscar. Depois eu pegarei os meninos e deixarei a propriedade.
— Gosto de caminhar. — O homem bebeu um gole de chá e, por Deus,
ele ficava lindo de qualquer jeito. Vestido como um lorde que era, ele estava
tão magnífico quanto nos outros momentos em que ela o vira praticamente
sem roupas. — Mas… por que deixará a propriedade, Elizabeth?
A forma como ele a encarou a fez desejar esconder-se atrás da xícara.
— Porque preciso retomar meu caminho. Eu devo achar um lugar para
ficar com os meus filhos e…
— Vai recusar trabalhar para mim também? — Ele a olhava com as
sobrancelhas unidas, sério, inquisidor. — Vai me rejeitar como homem e
como patrão?
— Vossa Graça não pode estar pensando… — Elizabeth bebeu um gole
do chá, sentindo a garganta seca. — Eu não o rejeitei — ela murmurou.
— Não entendo.
— Eu não o rejeitei — Elizabeth disse, com mais certeza. — Nem como
homem, nem como patrão. Apenas não posso aceitar ser a amante. O senhor
não entende, o senhor não faz ideia de como é, para mulheres como eu.
Quanto ao emprego, pensei que a oferta tinha sido retirada.
Ele a fitou por mais tempo e ela quis esconder-se debaixo da mesa.
— Nunca mais suponha as coisas por mim. — O tom de voz dele era
sério. — Espero que possa ser minha governanta, ainda preciso de uma
mulher qualificada para gerir os empregados.
Por aquilo, ela não esperava. Os olhos escuros de Aiden a encaravam com
ansiedade, esperando uma resposta. Como poderia fazer aquilo funcionar? O
que ela sentia por ele era real, não parecia uma tarefa simples ignorar o
impacto que o Duque de Shaftesbury causou na vida dela.
— Não sei se devemos fazer isso. Haverá fofocas e a duquesa
dificilmente me aceitará. Sou jovem demais para ser uma governanta.
— Mamãe não determina nada na casa, há uma década. — O duque
começou a recolher a comida de cima da mesa. Ela tentou impedi-lo,
tomando as vasilhas da mão dele, mas Aiden demonstrou que gostaria de
fazer o trabalho. — Eu quero que seja minha governanta. Pagamos bem aos
empregados, pode confirmar com qualquer criado da casa.
Elizabeth precisava decidir, mas não era uma escolha fácil. Ela teria que
trabalhar meses na mansão e isso significava ver o duque todo dia. Ou talvez
não, poderia ser que ela nem mesmo esbarrasse com ele em uma casa tão
grande. Seu trabalho não seria de contato direto com ele, poderia apenas
administrar as empregadas e pronto. Eles precisavam do dinheiro.
Assentiu com a cabeça e foi o suficiente. O duque compreendeu que ela
dizia sim para aquela oferta específica, como já tinha dito antes. Trabalhar
para ele era tolerável, mesmo que seu corpo o quisesse de outras formas.

E LA O REJEITARA . Desde a noite, quando sua ereção dolorida se frustrou


porque Elizabeth Collingworth preferia ser parte da criadagem a se tornar sua
amante, sua virilidade estava mortalmente ferida. Será que ele esteve
enganado e ela não o desejava? A forma como reagiu ao primeiro beijo,
depois ao toque dos dedos dele indicavam que sim, ela o queria. Talvez da
mesma forma que ele a queria.
Se Aiden não estava errado, por que ela o rejeitava? Ser sua amante era
menos digno do que ser uma criada invisível? Ele poderia dar a ela todo luxo
que merecia. A cobriria de seda e joias, possibilitaria a melhor educação para
os filhos dela, faria com que ela tivesse tudo que sempre sonhou. Ele
garantiria amá-la, compartilhar o calor de seu corpo com ela, oferecer prazer
sem limites. E Elizabeth não o quis.
Aquilo o magoara, mas ele não pretendia deixá-la ir. Se ela fosse embora,
ele nunca mais a veria, e Aiden Trowsdale não estava pronto para esquecê-la.
Caminhando de volta para a casa, ele ia à frente. O sol estava forte já
durante a manhã e aquele seria um bom dia para ir à praia. Era provável que
Edward o convidaria para uma cavalgada e ele aceitaria. Combinariam uma
caçada pelos bosques, Aiden encheria a casa de convidados e tudo voltaria ao
normal. O duque não precisaria rememorar os dias em que esteve doente,
temendo pela vida e isolado com uma completa desconhecida.
— Vossa Graça, seja bem-vindo de volta. — John o recebeu pela entrada
principal. — O conde pediu que eu o avisasse assim que retornasse, ele
deseja fazer outra visita. Uma mais adequada.
— Certo. Mande o mensageiro até ele. Minha irmã já acordou? Aliás, que
horas são? Minha mãe, ela…
Aiden lembrou-se de não ter pegado o relógio nem uma vez durante
aquele confinamento. Não prestou atenção em horários nem em convenções.
Foram dias de uma liberdade que ele desconhecia existir.
— Quanto às horas, estamos por volta das dez, milorde. Sua irmã está
dormindo e a duquesa está como sempre, porém, um pouco mais como
sempre. Vossa Graça deseja tomar seu desjejum?
— Eu já comi. — E muito bem, Aiden quis dizer, porém, manteve-se com
a postura de duque que ele sabia usar perfeitamente. — Mas quero me
encontrar com Agatha quando ela acordar. Vou para meus aposentos, ainda
estou muito fraco. Mande Geoffrey preparar um banho para mim.
O duque caminhou pela extensão do salão de entrada e encarou as
escadas com desânimo. Ele não se sentira mal no dia anterior, mas, desde que
estivera liberado para voltar, fora abatido de um cansaço terrível. Talvez
tivesse sido a caminhada.
— Ah. John, eu contratei a Sra. Collingworth para ser nossa governanta.
Por favor, receba-a e indique para ela o serviço. Ordene que preparem
aposentos para que ela e os filhos sejam devidamente acomodados.
O mordomo moveu a cabeça em concordância e se retirou. Aiden foi para
o quarto e Geoffrey já estava lá, preparando a calefação para aquecer a água
do banho. Havia um banheiro no quarto principal daquele andar, para uso do
duque, e outro no quarto ocupado por sua mãe, para uso das mulheres.
Ambos foram construídos por seu pai. Não mentira quando disse que ele era
um visionário, Aiden não fazia ideia da fortuna que o pai gastara naquelas
engenhocas de encanamento e aquecimento para que eles não precisassem
carregar jarras e baldes de água quente escada acima.
O criado o ajudou a retirar as roupas e, depois que o duque entrou na
banheira, ajoelhou-se para lhe lavar as costas. Aiden fechou os olhos por um
instante e teve vontade de blasfemar. Maldição, aquilo estava muito errado.
Aquele não era o toque de Elizabeth.
— Pode deixar, Geoffrey. — O duque indicou que o criado deveria sair.
— Eu quero apenas relaxar um pouco na banheira.

Q UANDO E LIZABETH ENTROU pelos fundos e viu seus filhos, ela teve vontade
de chorar. Além da saudade que apertava seu peito, eles estavam parecendo
pequenos aristocratas. Nunca eles tiveram roupas tão belas e bem talhadas
como as que estavam vestindo. Peter veio correndo e a abraçou, gritando
mamãe. Patrick, mais contido, se aproximou com cuidado. Ela afagou a
cabeça do filho mais velho e o beijou na testa.
— Vocês se portaram bem?
— Sim, mas Peter não quis dormir na cama dele.
— Aquela não é minha cama — o menino resmungou, com o nariz
enfiado na saia da mãe. — Você vai nos levar para casa agora, mamãe?
— Ainda não podemos. — Elizabeth ajoelhou-se e fez com que os
meninos olhassem para si. Ela costumava conversar com eles de forma que
seus olhos estivessem na mesma direção. — Eu fui contratada por essa
família, portanto, ficaremos aqui pelo verão. Será bom, quando voltarmos, a
cidade estará livre da doença. E temos um quarto confortável para ocupar.
Sabiam que na propriedade há um poço dos desejos?
Não havia testado fazer desejos naquele poço, mas os meninos poderiam
fantasiar um pouco. Talvez algum pedido deles fosse atendido, por que não?
— Vamos nos mudar para cá? — Patrick não estava convencido.
— Não, será temporário. Mas o quarto em que vamos ficar é melhor do
que a nossa casa inteira. Vocês adorarão.
Ela estava arriscando, mas provavelmente estava certa. Ambos
concordaram. Elizabeth levantou-se e os encarou. Tanto Patrick quanto Peter
vestiam um conjunto de linho e lã, com bermuda, camisa branca e colete. As
meias cobriam as pernas e os sapatos eram novos. Tudo era novo.
— Quem lhes vestiu dessa forma, Patrick? — Ela precisava perguntar.
— Lady Agatha nos deu roupas novas. Muitas roupas; uma mulher
chegou aqui com caixas e mais caixas de roupas e nós experimentamos e ela
ajustou.
Oh. Elizabeth nunca seria capaz de recompensar a bondade daquelas
pessoas. Talvez devesse trabalhar sem receber um salário, para ser justa, mas
ela precisava do dinheiro e o aceitaria de bom grado.
— Nós dissemos obrigado, mamãe — Peter complementou.
— Fizeram bem. Agora, eu preciso conversar com os empregados, vocês
devem voltar a fazer o que vinham fazendo até agora.
Os garotos correram para fora da casa e foram brincar no quintal.
Elizabeth notou que o gato que o duque alimentara estava rondando a casa e
miando. Ele disse que não havia animais domésticos naquela região, talvez as
coisas estivessem para mudar.
John a estava aguardando para explicar sobre o serviço. Ela fora tutora de
lady Charlotte, naquela casa ela teria funções mais domésticas. Coordenar as
criadas, a cozinha, cuidar da aparência dos aposentos. Não precisaria fazer
serviços pesados, porém, teria toda a responsabilidade do funcionamento das
engrenagens. E responderia apenas ao mordomo.
Aquilo parecia um bom emprego, melhor do que trabalhar servindo
cervejas em uma taverna qualquer ou ser obrigada a prostituir-se. Aquela
seria, definitivamente, sua última opção, porém, ela nunca deixaria seus
filhos sem ter o que comer ou vestir. Faria de tudo que estivesse ao seu
alcance. Por sorte do destino, o trabalho que lhe ofereceram era digno.
— Lady Agatha pediu que a senhora fosse vê-la ao chegar. Ela ainda não
acordou, porém, a criada subiu para apagar a lareira e abrir as cortinas.
— Eu servirei seu desjejum, então. Obrigada pelo acolhimento, John.
O mordomo era um homem grande e esguio, com cabelos descoloridos
pela idade. Sua dicção era muito boa, o que indicava que ele também tivera
boa educação. Depois que ele se retirou, Elizabeth procurou as cozinheiras,
Gretha e Loretta, para se inteirar dos procedimentos regulares. A casa parecia
bem-cuidada, apesar da insistência do duque de que eles precisavam de uma
governanta. Ela ainda teria que conferir todos os aposentos, mas faria aquilo
depois que todos acordassem.
Levou as duas cozinheiras para inspecionarem a despensa e fazer um
inventário do que havia para ser utilizado. Não se decepcionou com a fartura
de comida e logo se sentou para elaborar um cardápio que serviria para a
semana. Como as cozinheiras garantiram que sabiam ler, ela pediu papel e
tinta para escrever e até mesmo considerou algumas receitas que duvidava
que fossem servidas naquela residência.
A criada de lady Agatha informou que ela tomaria seu desjejum no salão
e que o irmão lhe faria companhia, portanto, ela deveria servir comida para
dois. Aquilo não parecia nada bom. Era ainda muito cedo para rever Aiden
Trowsdale. Ela estivera com ele por vários dias, por tempo demais — e ainda
assim parecia muito pouco. Se fechasse os olhos podia sentir as mãos dele
sobre ela. Em lugares que não estava acostumada a ser tocada.
Maldito fosse aquele duque.
Equilibrando uma bandeja e seguida por duas outras criadas, que eram
assistentes da cozinha, Elizabeth entrou no salão principal sem nem ter
trocado ainda de roupa. Ela usava sua saia de lã crua que cheirava como um
cachorro molhado e sua blusa amarrotada que estava amarelada pela água
suja do poço. Seus cabelos estavam razoavelmente trançados porque pedira
ajuda a Moira, a criada privada de Lady Agatha. Ela tinha olheiras por dormir
mal e seu corpo todo tremia de fadiga. Mesmo assim, manteve uma altivez
esperada de sua posição. Não que ela fosse ser notada, as criadas não eram
comumente vistas.
— Elizabeth! — Lady Agatha agitou-se ao vê-la. — Que bom que esteja
curada. Fiquei muito preocupada quando meu irmão precisou trazê-la quase
desmaiada em seus braços.
— Estou como nova, milady. Obrigada por tudo que fez por meus filhos.
Eu jamais poderei pagar-lhe de volta.
Enquanto servia a comida, Elizabeth não conseguiu deixar de antecipar a
chegada dele. Apenas a jovem Agatha e sua presença entusiasmada estavam
ali, falando bastante sobre tudo que acontecera na casa durante o período de
confinamento. Aparentemente, ela não se importava em conversar com os
criados, ou considerava Elizabeth algo além de uma criada.
— Eu gostaria que viesse comigo à vila — lady Agatha por fim disse. —
Preciso fazer duas visitas e a senhora poderia me acompanhar.
— Será muito bom poder ajudá-la, milady. Eu apenas tenho algumas
tarefas que…
— Que podem ser negligenciadas, se for para que Agatha tenha a melhor
companhia.
A voz. Se Elizabeth não estivesse preparada para ouvi-la, teria desabado
sobre as próprias pernas. O que havia naquela voz que causava tanto impacto
sobre ela? Não ouvira o duque falar durante dias? Não o ouvira poucas horas
atrás? Por que ele ainda estava causando tanto rebuliço em seu corpo a ponto
de seu coração disparar e sua respiração travar?
— Aiden, pensei que precisaria tirá-lo da cama. — Lady Agatha abraçou
brevemente o irmão. — Então você me empresta Elizabeth? Sei que a
contratou como governanta, mas eu me sinto muito sozinha aqui, minhas
amigas ficam muito distantes e mamãe não sai do quarto!
— A Sra. Collingworth pode acompanhá-la sempre que quiser. As tarefas
da casa são importantes, porém, fazer com que você tenha companhia
qualificada é ainda mais. Quem sabe assim você não se torna uma dama
respeitável?
O Duque de Shaftesbury sentou-se à mesa. Ele também tinha sinais da
convalescença, mas estava magnífico. Tinha se banhado e barbeado. Usava
um conjunto de colete e paletó azuis sobre uma camisa branca. O lenço em
seu pescoço estava perfeitamente ajustado e preso com um alfinete perolado.
— O que o faz pensar que ela é capaz de me transformar em uma dama?
— Lady Agatha riu. A criada serviu-lhe ovos, presunto e torradas. Elizabeth
levou até ela uma xícara fumegante de chá.
— Ela fez um bom trabalho com a Srta. Pensington, pelo que sei.
Charlotte Pensington era uma excelente referência. A jovem era
completamente desqualificada para a sociedade quando fora tutelada por
Elizabeth e terminou noiva de um lorde francês. Agatha Trowsdale era muito
mais amável e adequada do que a jovem lady Charlotte, seria muito mais
simples moldá-la aos propósitos casadoiros do irmão. Mas, será que era isso
mesmo que Elizabeth deveria fazer?
Por algum motivo, desde que fora obrigada a enfrentar o desemprego, a
fuga, a doença e o desejo carnal mundano, ela começou a duvidar de algumas
coisas.
— Vossa Graça deseja chá? — ela perguntou, sem virar-se para esperar
uma resposta. Aiden assentiu com os lábios comprimidos e não disse nada em
voz alta. Mas Elizabeth sabia o que ele tinha dito. Ou querido dizer.
Providenciou uma xícara de chá de camomila e adoçou com uma pedra de
açúcar e um pouco de leite. Mesmo que o duque conversasse com a irmã,
Elizabeth não conseguia prestar atenção nas palavras, apenas na voz e no
calor que emanava dela. Aproximou-se com cuidado para que ninguém
percebesse o quanto suas mãos tremiam e colocou a xícara à frente do
homem.
— Obrigado.
A proximidade era um veneno, então Elizabeth afastou-se bruscamente da
mesa.
— Estarei na cozinha. Quando desejar sair, milady, avise para que eu me
vista adequadamente.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

— V OCÊ AGORA AGRADECE AOS CRIADOS ?


A voz estridente de Agatha despertou Aiden de um transe do qual ele não
entendeu como entrou nem como conseguiu sair. O jornal que ele pretendia
ler estava na mesa à sua frente, o chá fumegava intocado e ele estava há
vários segundos tentando descobrir por que aquela mulher fazia com que tudo
girasse ao seu redor. Seria ela algum tipo de bruxa que o estivera enfeitiçando
durante os dias reclusos?
— Não seja petulante, Agatha. Agradecer a alguém é errado?
— Aos criados, Aiden Trowsdale. — Agatha escondeu uma risada com a
mão. — Você é mandão e autoritário, nunca vi você agradecer a ninguém,
quanto mais à criadagem. Ninguém na sua posição agradece aos criados!
Aconteceu algo que eu deva saber?
— Sim. — O duque ergueu o olhar e enfrentou a irmã. Ele sabia que, se
esmorecesse, ela não sossegaria enquanto não descobrisse o grande segredo
que sua alma escondia. Talvez não fosse tão grande, mas era um segredo
complicado o suficiente para permanecer secreto. — Eu fiquei doente e
aquela mulher cuidou de mim. Talvez eu esteja grato, apenas isso.
Se a explicação não fosse suficiente, com o tempo ele mostraria para a
irmã que Elizabeth Collingworth era apenas a governanta. Pretendia que ela
cuidasse da casa para que ele pudesse ter preocupações exclusivamente
masculinas. Até quis que ela fosse algo mais, que ela aceitasse sua proteção e
se tornasse sua amante, mas, a partir do momento em que ela recusou, a
posição de Elizabeth estava definida na casa.
Depois do segundo desjejum do dia, forçado a não ficar na cama para não
parecer fraco, Aiden decidiu que precisava de exercício físico.
Alguns metros de caminhada para os fundos de Thanet Bay, o duque
construíra um galpão onde ele treinava sem ser incomodado. Era praticante
de esportes e gostava de colocar o corpo em movimento. Ele até mesmo
usava um saco de areia, como os boxeadores, para exercitar seus chutes e
socos. Não que fosse socar alguém, os cavalheiros como ele decidiam suas
desavenças em um duelo, mas bater em alguma coisa ajudava a gastar
energia.
Quando o Conde de Cornwall chegou, Aiden já estava no seu galpão.
Vestia uma calça de camurça um pouco encardida, não usava camisa, estava
suado e com os cabelos grudados na testa e no pescoço. O duque tentava
cansar o corpo para desanuviar a mente, ignorando que estivera doente e
ainda convalescia de uma infecção grave.
— Já está bem o suficiente para rolar no chão com os porcos?
Edward se aproximou dobrando as mangas da camisa. Os dois tinham as
melhores conversas e ideias enquanto duelavam na esgrima ou treinavam
para jogos de rounders ou cricket. O conde sabia para o que era esperado.
— Não perco meu tempo com doenças. Coloque a proteção e escolha
suas espadas. — Aiden jogou um capacete de tela para o amigo e vestiu a
camisa e o colete de proteção. — Um longo treino com o florete pode me
ajudar a focar.
Ele precisava mesmo de foco. Qualquer um que não fossem as curvas do
corpo de Elizabeth.
— Muito bem. — Edward jogou uma espada para o duque. — Conte-me
seus planos para o verão. Pretendo fazer um jantar em Greenwood Park,
minha mãe vai me enlouquecer se eu não encher a casa de convidados.
— Pretendo organizar o final de semana tradicional de verão dos
Trowsdale. — Aiden fez uma investida, mas não acertou o conde, que se
esquivou no momento certo.
— Então faça isso. Apenas evite as pessoas de Londres, por causa da
epidemia.
— Não deve ter ninguém em Londres, mais. Só os trabalhadores.
O duque tentou outra investida e sofreu um contra-ataque. Edward atingiu
Aiden no meio da proteção e ele cambaleou para trás.
— Concentre-se, homem. Quero um oponente à altura. Vamos organizar
a caçada, então. Você está com empregados novos, isso não será um
problema?
— Sou o melhor oponente que você pode ter. — Outra investida rebatida
e a espada de Aiden voou para longe. Ele se irritou e arrancou o capacete,
jogando-o longe. — Essa porcaria está me atrapalhando. Posso contar com
sua ajuda para fazer a lista de convidados e organizar as atividades? Quero
chamar todos os investidores possíveis.
— Sabe que sim. — Edward também retirou o capacete, para que
disputassem em total igualdade. Não valia nada, era apenas um treino, mas
dois cavalheiros sempre tinham regras rígidas a seguir. — Você pretende
convidar os Westphallen?
Aiden não conseguiu se defender de uma nova investida de Edward e foi
atingido na proteção mais uma vez.
— Provavelmente não, aquelas filhas são pegajosas.
O duque não gostava da companhia das damas da família Westphallen.
Eram três mulheres jovens, a mais velha tinha vinte e três anos e já estava à
beira da solteirice, então viviam em uma saga para conquistar um marido
nobre. Tirando a mais nova, que ainda não fora apresentada à sociedade, as
outras duas poderiam facilmente enlouquecê-lo. Nem pelo respeito ao título
de Miles Westphallen, o Visconde de Whitby, ele desejava tê-las na sua
propriedade por muitos dias.
— Porque você é o mais cobiçado solteiro de toda a Inglaterra,
Trowsdale. — Outra investida de Edward jogou o amigo para trás e o atingiu
no braço, abrindo um corte na pele. Sangue verteu e manchou parte da calça
que Aiden vestia. — Tudo bem, vamos interromper.
— Não precisamos, não foi nada. — Aiden atacou mais uma vez. — Eu
não pretendo me casar com nenhuma das Westphallen. E não quero ser
assediado até a próxima temporada, quando definitivamente escolherei uma
noiva.
— Certo, vamos convidá-las, então. — Edward deu uma risada. A luta
não lhe parecia equilibrada, o duque não tinha nenhuma concentração nos
golpes e não conseguia nem atacar nem defender. — Vou selecionar outras
damas que estejam na região para que venham ao baile, com seus pais
endinheirados e que possam começar a te ajudar a definir teu gosto por uma
esposa.
Aiden já tinha um gosto, e ele continuava em sua língua desde a noite
anterior.
— Não vou escolher uma esposa agora, Edward.
— Certo. Então me explique por que contratou, como sua governanta, a
mulher que esteve doente com você.
O duque não queria explicar nada. Ele nunca explicava suas atitudes para
ninguém, estava acima daquelas necessidades. O amigo sabia disso, porém,
estava disposto a perturbá-lo. Aiden hesitou com o florete e quase sofreu
outro golpe.
— Ela precisava de emprego.
— Eu ainda não a vi. Diga-me que ela tem cinquenta anos, uma verruga
no nariz e está ficando careca.
Edward investiu e recolheu a espada, provocando o duque a atacá-lo.
Aiden desferiu um golpe que foi amortecido pela proteção do conde. Ele não
queria falar de Elizabeth, ela o desorientava. Ele estava ali para não pensar
nela.
— Ela não é nada disso. O que te importa se eu contratei um novo
empregado, Edward? Você por acaso é meu contador?
— Sou seu amigo e me preocupo com você. Essa mulher, você a
comprometeu?
— Vá para o inferno. — Aiden investiu novamente. Os homens lutavam
como que em uma dança.
— Praguejar não vai me fazer deixar de me importar. Ah. Também
preciso te avisar, que lady Eckley voltou do continente. E ela está querendo
notícias suas.
A menção em Caroline Eckley fez com que Aiden se desconcentrasse
ainda mais. Ele investiu contra o amigo, mas o conde foi mais rápido.
Revidou e acertou Aiden novamente. A espada escorregou e a dor que o
duque sentiu naquele momento foi aguda e incapacitante, fazendo com que
caísse ao chão segurando a coxa entre as mãos.
Havia uma perfuração de espada em sua perna direita. Aquilo não podia
estar acontecendo com ele, Aiden se recusava a crer que fora tão imprudente
e inconsequente em uma luta que se permitiu ser ferido pelo melhor amigo.
Era uma brincadeira que eles faziam quase sempre, praticar esgrima era uma
de suas paixões, mas eles nunca se machucaram. Alguns arranhões, que
deixavam a demonstração de força mais interessante, mas um ferimento
como aquele?
Mesmo sentindo muita dor, ele não iria deixar que sua fraqueza ficasse
tão evidente. Reassumiu sua posição ante o olhar apreensivo de Edward.
— Não lutarei com você assim, Trowsdale. — O conde jogou a espada no
chão. — Um cavalheiro precisa saber a hora de parar e você, pelo visto, está
ainda muito afetado pela doença.
— Não seja covarde. — O duque rasgou um pedaço da sua camisa, que
estava pendurada em um cabide, e amarrou no ferimento. — Já nos
arranhamos antes e nem por isso paramos.
— Isso não é um arranhão. Vamos para a sua casa, talvez aquele
conhaque seja uma boa ideia, agora.

A VILA próxima a Thanet Bay era bastante movimentada naquele período do


ano. Elizabeth adorou poder voltar a acompanhar uma dama, principalmente
em compras. Ela adorava compras, mesmo que nada daquilo fosse para ela.
Apesar dos gastos exagerados dos nobres, ela se sentia mais feminina
ajudando as ladies a experimentarem colares e dando opiniões sobre tecidos.
Aquilo era fútil. Havia coisas bem mais importantes do que joias e
vestidos de seda para as mulheres trabalhadoras. Elas tinham que se
preocupar com a comida em suas despensas. Mas fora divertido perambular
com lady Agatha pela vila, visitar uma estilista de renome, um joalheiro
exclusivo e comprar tecidos para vestidos. A jovem também quis sapatos e,
quando findou a tarde, elas tinham sacolas demais para carregar.
Também fora providencial que Elizabeth não estivesse na mansão. Os
filhos estavam bem com os demais empregados, vestidos e alimentados, e ela
precisava ficar longe de Aiden Trowsdale. Quanto mais distante daquele
cheiro e daquela presença masculina, mais tempo ela poderia resistir sem
desejar estar em seus braços novamente.
Porque não havia novamente.
— Elizabeth, tem algo que gostaria de perguntar.
A voz de lady Agatha a tirou do transe e fez com que parasse de divagar.
As duas estavam já dentro da carruagem, retornando para a propriedade. O
veículo estava duas vezes mais pesado com tudo que estava sendo carregado.
— Pois não, milady.
— Como a senhora sabia como meu irmão prefere o chá?
Elizabeth ergueu as sobrancelhas. Seria melhor se não se surpreendesse
por aquela pergunta, se agisse de forma indiferente, mas não conseguiu
evitar. Afinal, se aquela jovem notara alguma coisa em seu comportamento
que a instigara em questionamentos, talvez ela devesse se esforçar mais para
ser discreta. Precisava muito daquele emprego para arriscar.
— Eu servi Vossa Graça durante o período em que estivemos confinados.
A resposta estava acompanhada de um sorriso. Por favor, que ela
acreditasse porque era a coisa mais razoável a se dizer. Ele era um duque, por
que serviria o próprio chá? Ela era uma empregada, o esperado era que
fizesse seu papel. Ela tinha memorizado aquela informação porque servi-lo
lhe deu algum prazer, durante aqueles poucos dias. Porque era confortável
demais estar na presença dele. Mas a lady não precisava saber.
Aparentemente, a resposta satisfez a curiosidade da jovem aristocrata.
Depois que a carruagem parou na frente da propriedade e os criados
apareceram para carregar as sacolas de compras. Elizabeth decidiu que
deveria retomar suas atividades na casa. Ela precisava inspecionar e
inventariar os quartos, e eles eram muitos.
Pelas orientações de John, o quarto da duquesa ficava na ponta direita da
casa e deveria ser evitado. O mordomo não quis revelar muito sobre os
motivos, mas Elizabeth suspeitou que a mãe de Aiden não fosse uma mulher
fácil de lidar. Para tentar se manter longe daquele problema, ela começaria,
então, pelo lado esquerdo da casa. Só naquela direção havia mais de dez
quartos que precisavam ser vistoriados.
Estava saindo do terceiro quando ouviu um rosnado. Era mais como o
ganido de dor de um cão, mas ela já fora informada que não havia animais na
propriedade. Outro rugido fez com que ela compreendesse que alguém estava
sentindo dor. E ela podia jurar que reconhecia aquele som.
Tateando as portas e tentando descobrir de onde vinham os ruídos,
Elizabeth acabou onde ela suspeitava. Aquela era a imponente porta dos
aposentos ducais. Elaborando uma desculpa para invadir o quarto do duque,
caso fosse pega, ela abriu a enorme peça de madeira maciça, que rangeu.
Dava para ouvir apenas os gemidos de dor que vinham de um quarto
anexo. Elizabeth entrou nos aposentos de Aiden Trowsdale e fechou a porta.
— Geoffrey, eu já disse que…
— Sou eu, milorde — ela o interrompeu, mantendo as costas apoiadas na
madeira. Seu coração ribombava no peito porque ela não sabia o que iria
encontrar ali. Nem mesmo entendia por que estava ali. Jurara que manteria
distância daquele homem, mas lá estava, flutuando na direção dele.
— Elizabeth? — Aiden colocou a cabeça para fora do quarto anexo e a
olhou. — O que houve?
— Estava inspecionando os quartos e ouvi vossos… ruídos. Precisa de
alguma ajuda?
— Não. — Ele desapareceu novamente. — Pode retornar para suas
atividades.
— Tem certeza? — insistiu. — Porque Vossa Graça parece estar sentindo
dor.
Dez segundos de silêncio antecederam à aparição do Duque de
Shaftesbury. Ele estava pálido, com o rosto tomado por gotículas de suor. Seu
peito coberto por uma camisa branca com colarinhos abertos e mangas
dobradas e aquela era a única peça de roupa que o duque vestia. Em seus
quadris, uma toalha manchada de vermelho pendia.
— Oh. — Elizabeth colocou uma das mãos sobre a boca. — Vossa Graça
gostaria de me dizer que houve?
— Eu me feri treinando esgrima. — O homem desabou sobre o colchão,
segurando a perna com as duas mãos. Sua expressão de sofrimento era
visível, mas ele tentava manter a voz firme para resguardar sua virilidade. —
Está sendo difícil fazer o sangramento parar.
— Deveria chamar o doutor — ela disse. — Vou pedir a Geoffrey que…
— Não quero chamar o Davies para cuidar de um arranhão! — Aiden a
interrompeu. — Se quiser me ajudar de verdade, poderia conseguir um pouco
de láudano.
A mão do duque apontava para o quarto anexo e Elizabeth decidiu ir até
lá. Sabia que ele estava sendo teimoso e arrogante, porque homens eram
sempre teimosos e arrogantes quase o tempo todo, principalmente em se
tratando de ferimentos. Nenhum deles queria demonstrar fraqueza, ainda
mais na frente de uma mulher.
Ela se deparou com um banheiro completo e precisou de alguns segundos
para admirar a construção. Nunca vira nada como aquilo, com paredes
cobertas, decoradas, banheira de cobre e todo o sistema de encanamento
necessário. Deveria ter custado uma fortuna ao duque construir aquilo. Havia
um armário de portas de vidro próximo à pia e lá ela encontrou o láudano.
Pegou também um pano limpo e iodo.
Aiden estava prostrado sobre a cama. Sua quase nudez não a espantava
mais, depois de tudo que acontecera durante o confinamento. Ela já tinha
inspecionado aquele corpo em partes e quase podia dizer que conhecia o
bastante de cada detalhe dele.
— Beba. — Entregou o vidro com o láudano ao duque. — E agora me
deixe tratar esse ferimento.
O homem a encarou com alguma incredulidade.
— O que pretende fazer?
Elizabeth não respondeu, apenas ergueu parcialmente a toalha para buscar
o ferimento. Como se o destino ainda não tivesse sido cruel o suficiente com
ela, o corte era profundo e estava na parte interna da coxa direita do duque.
— Se Vossa Graça puder afastar a toalha um pouco, eu farei um curativo.
Ela esperava que ele entendesse que “afastar a toalha” significava manter
suas partes masculinas longe do local onde Elizabeth precisaria trabalhar.
Aiden usou sua mão grande e angulosa para atendê-la.
— E a senhora sabe fazer curativos, Sra. Collingworth?
— Posso apostar que costuro pessoas melhor do que o doutor Davies.
Com um sorriso petulante, Elizabeth rasgou o pano que segurava em duas
partes, embebeu uma em iodo e colocou sobre o corte. Aiden quase saltou da
cama e mordeu o antebraço para não gritar — o láudano ainda não tinha feito
o efeito esperado. Depois que o ferimento estava limpo, ela usou o restante
do pano para enrolar a coxa ferida e manter o sangramento controlado.
— Se o senhor ficar na cama por um dia, creio que não precisará de
pontos. Beba mais um pouco do láudano e durma, milorde.

L ADY A GATHA ESTAVA no jardim tomando seu chá quando lady Caroline
Eckley chegou em sua carruagem elegante, ornada em preto, dourado e
vermelho. Fazia bastante tempo que Caroline não visitava Thanet Bay. Ela
passara meses no continente com a família e se afastara do Duque de
Shaftesbury, mas o tempo não fez com que seu interesse nele esmorecesse.
Ao contrário, ela tinha certeza de que desejava se tornar a nova duquesa,
mesmo que não fosse a mais qualificada pretendente.
Aiden não era um homem que se prendesse tanto às tradições. Na maioria
das vezes ele as desprezava, e era com isso que Caroline contava. Eles eram
bons amantes e ela sabia que o satisfazia. Suas chances eram poucas, mas ela
se agarraria a elas como um caçador à sua presa.
Ela estava ali para revê-lo. Escolheu um vestido de cetim amarelo e
prendeu os cabelos escuros com tiaras ornamentadas em fitas de veludo.
Parte dos seus seios estava à mostra, mesmo que o acabamento de renda
atrapalhasse um pouco a visão. Poucas mulheres tinham noção plena do
poder que os decotes exerciam sobre os homens, mas Caroline sabia bem que
eles dificilmente resistiam a belos seios expostos.
Sua chegada não fora programada porque nunca era. A forma como a
jovem Trowsdale a encarou deu a dimensão de que sua presença ali não era
bem-vinda. O que também era comum. Caroline costumava ser pouco
desejada nos espaços da sociedade, o que lhe permitia trânsito fácil era o fato
de ser sobrinha de Granville. Tendo se tornado órfã de pai e mãe ainda
criança, o Marquês assumiu sua criação e, com isso, possibilitou que ela
transitasse pela sociedade. O que ele não conseguiu prover a ela foi uma
criação dentro das regras da feminilidade. Por vezes, Caroline parecia um
homem.
— Olá, querida.
Lady Eckley acenou para Agatha, que não demonstrou nenhuma
satisfação ao vê-la.
— Caroline! Que prazer revê-la, como foi sua viagem pelo continente?
Claro que aquele encantamento era fingido.
— Ah, foi ótima! Aprendi muita coisa com outras sociedades, inclusive
que a nossa é a mais elegante de todas. Os italianos são ótimos, mas os
vestidos… que horror! Muito espalhafatosos.
Os franceses eram muito melhores, mas Caroline achou melhor não
comentar sobre todos os hábitos que faziam os franceses mais interessantes
que os italianos.
— Um dia teremos que combinar um chá para que me conte todas as
fofocas. Preciso saber se é verdade que os homens italianos podem se casar
com mais de uma mulher ao mesmo tempo.
— Por que não começamos essa conversa agora? — Caroline se sentou
em um banco de mármore para os convidados, sem conseguir evitar que seu
olhar divagasse pela propriedade. Ela sabia exatamente em que janela estava
o quarto do duque, mas não havia nenhum sinal dele em lugar algum.
A anfitriã chamou a criada e pediu mais uma xícara para Caroline.
— Seria mais simples se você dissesse logo que deseja ver meu irmão. —
Agatha esticou para ela um olhar de quem sabia, e reprovava, as suas
intenções.
— E ele está? Ele já se recuperou?
— O duque está recolhido em seus aposentos — lady Agatha disse, com
o olhar ainda sobre o semblante de Caroline. A jovem Trowsdale era como
uma águia que não deixava passar nenhuma expressão. — Ele precisa
repousar, ainda mais depois de receber uma visita do Conde de Cornwall.
— Claro que precisa.
Caroline sorriu e decidiu que não aceitaria ser enxotada de Thanet Bay. A
família de Aiden tinha bons motivos para saber do envolvimento indecoroso
entre eles, mas ela não se importava. Queria vê-lo, estava ali para isso.
Continuou sentada com Agatha por mais algum tempo, distraindo a jovem
lady com assuntos frívolos da sociedade francesa e das mulheres que
arrancavam os pelos do corpo com cera e pinças, até ter certeza de que não
havia nenhum movimento estranho na casa.
Fingindo que ia embora, Caroline despediu-se de Agatha e entrou em sua
carruagem. Ao invés de deixar a propriedade, contudo, mandou que o
cocheiro desse a volta e parasse na entrada dos fundos. Ela espreitaria a casa
até que escurecesse o suficiente para escapar pela entrada lateral. Por sorte,
ela sabia alguns caminhos para chegar ao quarto do duque.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

O RUÍDO NA PORTA FEZ COM QUE A IDEN SE ANIMASSE . D EPOIS DE PASSAR O


dia na cama e ter fingido para os criados que o repouso era orientação do
doutor Davies, ele esperava que Elizabeth voltasse para visitá-lo. Ela tinha
cuidado dele, dado ordens a ele — e ninguém dava ordens a um duque, então
era desejado que ela retornasse para conferir seu bem-estar. Ela era a única
pessoa que sabia da extensão do ferimento, ele não confiara aquela
informação a mais ninguém.
Ninguém deveria saber suas fraquezas, mas com Elizabeth era diferente.
Quando a porta de seu quarto se abriu, a decepção que abateu sobre o
duque foi evidente. Ver Caroline Eckley ao invés do objeto de seu desejo o
frustrou a ponto de não conseguir segurar uma interjeição de desagrado.
— Olá, meu senhor — a mulher disse, em baixa voz. — Eu voltei.
Sim, ela tinha voltado. Ele já sabia e aquilo não lhe parecia importante. O
duque mal se recordara de Caroline nas últimas semanas. Não pensou nela
nem lembrou que ela estava em uma viagem pelo continente.
— Estou vendo. O que está fazendo aqui em meu quarto, lady Caroline?
Como entrou nesta casa sem ser anunciada?
Aiden ajeitou-se na cama, tomando de súbito consciência de sua nudez. O
lençol que o cobria era fino demais para protegê-lo da mulher que escapava
sorrateiramente para dentro do seu quarto. Houve um tempo em que ele não
queria se proteger dela, que a receberia em sua cama de bom grado. Mas
Aiden nunca gostou de mulheres que tomavam aquela decisão por ele.
— Eu já entrei nesta casa sem ser anunciada várias vezes. — Ela piscou,
os longos cílios escondendo a malícia no olhar que lançava ao duque. — Sua
irmã não pareceu favorável a me deixar ver como o senhor está.
— Talvez porque nenhuma dama deva ser recebida no quarto de um
cavalheiro.
Caroline deu uma risada e tentou abafar o som com sua mão enluvada.
Foi até a cama onde Aiden estava e olhou-o de cima a baixo, demorando
tempo demais examinando sua virilha. Ele teria se levantado e a arrastado
para fora do quarto, mas, estando nu, não pretendia se expor.
— Nós vamos mesmo por esse caminho, Aiden? — Ela sorriu e colocou a
mão no ombro desnudo dele. As formalidades tinham acabado. — Sua irmã
disse que você está repousando por causa da doença, tem algo mais que não
esteja revelando?
— Caroline, eu não te devo nenhuma explicação. Você pode sair do meu
quarto e retornar para sua casa. Não estou em condições de ter esse tipo de
encontro, agora.
Os dedos dela desceram pelo peito do duque e puxaram o lençol. Antes
que Aiden pudesse tomar o tecido de linho das mãos dela, Caroline deu uma
apreciada no que conseguiu ver. Com os lábios ligeiramente esticados, ela
deu dois passos para trás, sabendo a hora de se afastar. O duque a encarava
com tanta irritação que era um movimento inteligente não estar ao alcance de
suas mãos.
— Você continua em forma, milorde. — Ela passou a língua pelos lábios.
— A doença não afetou em nada esse corpo que eu aprecio. De todos os
lordes e vagabundos de Paris e Roma, nenhum deles tinha tanto vigor quanto
Vossa Graça.
Aiden desejou pular daquela cama e expulsar Caroline Eckley sem
nenhuma elegância. Expor sua audácia por invadir o quarto de um duque sem
ser convidada, anunciada, esperada. Mas ela foi mais rápida e saiu da mesma
forma sorrateira que entrou, fechando a porta depois de deixar os aposentos
ducais.
Ele não entendera a forma como reagira a ela. Caroline sempre fora uma
boa amante, ela sabia jogos divertidos na cama e o deixava satisfeito
sexualmente. Aiden estava dolorido de desejo há dias, sentindo seu corpo
reagir à proximidade da governanta sem poder possuí-la. Se ele tivesse
deixado que Caroline ficasse, poderia ter aliviado a tensão que o incomodava.
Mas não, ele sequer considerou compartilhar a cama naquela noite com uma
criatura tão irritante quanto Lady Eckley.
Os motivos para rejeitá-la eram muitos, porém, apenas um o impediu.
Aiden recusava admitir que Elizabeth pudesse afetá-lo a ponto de fazê-lo se
fechar para outras mulheres, mas não havia outra explicação para o que
acabara de acontecer.

H AVIA coisas que os empregados sempre sabiam em uma casa. Uma dessas
coisas era a presença de visitantes inesperados e pessoas passando pelas
passagens escondidas que eram utilizadas por eles. Quando lady Eckley
entrou na casa, ela acreditava que estivesse protegida pelo anonimato, mas as
cozinheiras sabiam quem ela era e o que ela fazia perambulando pelas
escadas laterais da mansão em Thanet Bay.
Quando Elizabeth entrou na cozinha naquela noite, o assunto que estava
na roda de fofocas das empregadas era exatamente o retorno da amante do
Duque de Shaftesbury.
— Já disse que ela não é amante dele. — Gretha parou de cortar o pedaço
de carne e empunhou a faca na direção de Loretta. — Amantes são mantidas
pelos nobres. Eu até as entendo, o que as motiva. Essa daí não, ela é apenas
uma imoral.
— Não importa o nome que dão. Sei que ela está de volta para a cama de
Vossa Graça depois de desaparecer. Será que ela teve criança e escondeu?
Será que o duque tem um bastardo perdido por aí?
— Por Deus, espero que não!
— O que está havendo? — Elizabeth interferiu, porque não entendera
nada do que as cozinheiras falavam. Algo sobre uma mulher na cama do
duque e filhos bastardos fez com que ela se interessasse pelo assunto. —
Estão fofocando sobre a vida privada dos patrões?
— Não é fofoca — Loretta sussurrou, virando-se para Elizabeth na
intenção de poder falar bem baixo. — É que uma das amantes do duque
estava no quarto dele, mais cedo.
— Não é amante. — Gretha manejou a faca na direção da outra,
indicando sua insatisfação com a escolha imprudente das palavras.
— De quem estão falando? Quem é essa amante?
— Lady Caroline Eckley. Ela é sobrinha de um marquês, mulher fina e
sempre com vestidos tão elegantes. Mas não tem nenhuma moral, nunca vai
se casar porque nenhum homem quer uma mulher como ela.
— Ela sempre frequentou a casa — Gretha explicou. — Sabemos que ela
e o duque…
A mulher fez um sinal da cruz indicando que não pronunciaria o ato em
voz alta. Elizabeth raramente se envolvia com aquele tipo de mexerico de
empregadas, porém, a ideia de que uma amante de Aiden estivesse rondando
a casa a incomodou. O duque estava ferido e repousando, não era possível
que ele estivesse recebendo mulheres em sua cama. Ela não se surpreenderia
com nada que viesse dos homens. Talvez a melhor estratégia fosse manter-se
afastada e atenta, observando os fatos.
— Avisem-me imediatamente se virem essa mulher na casa — ela
ordenou às cozinheiras.
— Sim, Sra. Collingworth. Alguma outra orientação?
— Vamos conferir o cardápio do jantar.
Elizabeth aproximou-se do fogão para conferir o que estava sendo
preparado e se tudo estava conforme suas instruções. A presença de uma
dama do passado de Aiden, no entanto, a deixou incomodada e com um
desejo ridículo de tirar satisfações com ele. Quase riu mais de uma vez por
sequer considerar cobrar qualquer coisa do duque. Ele nunca lhe prometera
nada e ela recusara a proposta que ele fizera.
Sua relação com ele era profissional, apenas.

— O QUE VAI FAZER com ele?


Elizabeth estranhou Granger agarrado ao gatinho alaranjado que tinha
começado a rondar a mansão. O bichano já tinha frequentado a cozinha e
ganhando leite e restos de peixe, mas o criado o estava arrastando para fora
da casa de forma um pouco bruta e aquilo despertou o interesse dela.
— O gato está miando muito e está incomodando a duquesa — o menino
disse, um pouco constrangido. Elizabeth se aproximou dele e pegou o gatinho
no colo, mas ele estava arisco. — Ela pediu que alguém desse um jeito no
bicho.
— Certo. Vamos dar um jeito, então, de mantê-lo alimentado para que
não precise miar. Não é isso?
Granger não entendeu muito, mas não insistiria. Elizabeth era a chefe dos
criados, ele não deveria desacatá-la. Achou melhor concordar e se retirar
enquanto a mulher levava o bichano para o quarto que ocupava. Lá estava
Peter e ele adorou cuidar do gato de forma definitiva. Assumiu a
responsabilidade de tratar do animalzinho e deveria mantê-lo por perto
sempre que possível.
— Onde está seu irmão? — Ela deu falta do filho mais velho.
— Patrick está nos estábulos. Ele foi lá com o filho do cavalariço, eles
estão amigos agora.
Elizabeth entendia de onde os filhos tiravam o amor por animais. Ela
cuidava dos cães sarnentos que apareciam e dos gatos perdidos pelos becos.
Patrick era fascinado por cavalos e passava horas admirando as carruagens e
cavaleiros que passavam pelas ruas de Londres, mas ela temia que ele se
metesse em confusão, fazendo algo que o duque desaprovasse. Precisava
lembrar sempre que aquele trabalho era muito importante para eles.
Ajeitou as saias e foi até os estábulos. Manter-se longe da casa parecia
sempre uma boa ideia, pois ela ainda não tinha cruzado com a duquesa e
esperava não o fazer tão cedo. Gretha e Loretta já tinham fofocado que ela
era cruel e adorava maltratar os empregados. Elizabeth lembrou que ouviu
algo como pacto com o tinhoso e apadrinhada por Satã para definir a mãe do
duque. Talvez fosse exagero, ela apenas não queria tirar a prova.
Os cavalos, aqueles eram magníficos. Um jovem escovava um puro
sangue castanho do lado de fora e seu filho estava ali, observando. Ela
levantou a saia para não sujar a barra e caminhou até ele, mas acabou
atolando o sapato em uma poça de lama causada pela água que escorria pelo
campo.
— A senhora está bem? — um homem a interpelou, vendo-a praguejar
baixinho por causa do sapato arruinado. Elizabeth ergueu o olhar.
— Sim, foi apenas um acidente. Agora terei que trocar o sapato e não
tenho muitos pares sobrando.
— Deixe-me ajudá-la. — O homem ofereceu a mão para que ela apoiasse
e saísse da lama. — Sou James Hodges, o cavalariço do Duque de
Shaftesbury.
— Elizabeth Collingworth, a nova governanta.
Na sociedade, ela jamais se apresentaria a um cavalheiro. Jamais aceitaria
a mão dele se não tivessem sido apresentados primeiro, talvez apenas para
salvar sua vida. Como eram apenas empregados e, para eles, a sociedade era
outra, Elizabeth não se importou. O Sr. Hodges era um homem por volta dos
trinta e cinco, com cabelos escuros que continham alguns fios prateados, pele
marcada pelo sol e ombros largos, típico dos homens trabalhadores. Talvez
ele não fosse bonito, mas o sorriso em seus lábios era cativante. Ao menos
tinha todos os dentes na boca.
— O menino é seu? — Hodges indicou Patrick, ainda fascinado pelo
cavalo.
— Sim, ele adora animais. Espero que não esteja incomodando.
— Não, pode deixá-lo. Meu Reggie pode ensinar algumas coisas a ele, se
a senhora não se importar, e ele ajuda nos estábulos.
— Ah, seria uma ótima ideia. — Ela sorriu de volta para Hodges e o
momento ficou um pouco constrangedor. Era hora de se afastar. — Bem, vou
retornar para a casa. Obrigada por aceitar meu menino. Qualquer coisa, fale
comigo.
O cavalariço fez uma reverência com o chapéu e ela se afastou na direção
da mansão. Aquele fora um encontro bem esquisito. Se fosse em outra
ocasião, como em uma taverna, Elizabeth poderia supor que o homem flertara
com ela. O comportamento foi de flerte, mas certamente ela estava enganada.
Não se importaria em ser cortejada por um homem trabalhador como aquele.
Claro que Hodges era casado, tinha até mesmo filho, mas ele poderia ser um
bom marido para ela. Tinha seus atrativos e um emprego que deveria pagar
um salário mais digno do que o de outros homens nas docas. Um bom
partido, era como chamava.

F ICAR na cama era a maior punição que Aiden poderia sofrer por sua
inconsequência. Foram dois dias parados, sem poder descer as escadas,
esperando cumprir as ordens da governanta. Desde que lady Eckley deixou
seu quarto, a única pessoa que viu foi o criado Geoffrey. Agatha esteve em
seu quarto logo depois do chá, mas ele fingiu que estava tudo bem e ela não
retornou. E Aiden ficou ali, pensando em caçadas, bailes e casamento.
A caçada era sua parte preferida. Adorava se embrenhar na floresta e
fazer uma atividade coletiva e social que não representasse uma interação
muito delicada, já que Aiden tinha péssimo jeito com as palavras. Os bailes,
ele organizava mais por causa de sua mãe. Era a única ocasião em que a
duquesa aparecia em público, mesmo que por pouco tempo. Não que ele
adorasse bailes, mas às vezes ficava feliz em ao menos ver a mãe.
Já o casamento, aquele ele gostaria de poder esquecer.
Aiden não queria se casar. A próxima temporada parecia perto demais,
nenhuma das damas solteiras que ele conhecia o interessavam. Talvez
houvesse alguma que ele não conhecesse, provavelmente a ideia de Edward
era boa — naquele período do ano, havia moças de todas as partes da
Inglaterra espalhadas por Kent, era possível que Aiden encontrasse alguém.
Ou o problema podia ser que ele já tivesse encontrado.
Mesmo que ninguém o tivesse visitado, além de Caroline Eckley, a única
pessoa que ele quis ver fora Elizabeth. Estava insatisfeito porque Geoffrey
lhe banhara, mesmo sabendo que era aquela a função do criado. Estava
insatisfeito porque ela não apareceu mais para fazer uma inspeção fingida nos
aposentos, usando aquela desculpa para vê-lo. Estava insatisfeito porque seu
corpo sentiu falta dela, assim como sua mente.
A pior parte de tudo foi espreitá-la do lado de fora. Por duas vezes,
acompanhada por Hodges. O que diabos o cavalariço queria com a sua
governanta? Alguma coisa ferveu dentro dele e tudo que ele pode fazer fora
desejar transformar o homem em sua caça, levá-lo até o galpão e surrá-lo,
mas não faria nada daquilo. Aiden Trowsdale não perdia a linha por causa de
uma criada.
Naquele dia, quando acordou cedo demais porque não aguentava mais
dormir, ouviu o barulho das crianças. Aiden ainda não tinha notado a
presença dos filhos de Elizabeth naquela casa, mas eles gritavam do lado de
fora e aquilo aguçou a curiosidade do duque.
Não chamou o criado, apenas levantou-se e vestiu a calça e a camisa
branca. Dispensou o colete e o casaco, pressentindo o calor do lado de fora, e
desceu. Quando Geoffrey o viu, ficou agitado e preocupado, já que o duque
não havia solicitado sua presença.
— Vossa Graça precisa de algo? Devo mandar servir seu desjejum?
— Está tudo bem, Geoffrey. Eu só precisava sair da cama, estou me
sentindo ótimo. Onde está minha irmã?
— Dormindo ainda, milorde. Ela pediu que avisasse que hoje terá amigas
para o chá das cinco e que solicita os serviços da Sra. Collingworth para si,
durante todo o dia.
Ah, mas ele não estava nada interessado em passar outro dia sem ver
Elizabeth. Só não podia deixar que percebessem.
— Certo. Peça à Sra. Collingworth que venha me ver e traga a comida.
Conversarei com ela.
O criado assentiu e moveu-se na direção da cozinha. Aiden se sentiu
subversivo e decidiu dar um passo além.
— Geoffrey.
— Pois não, milorde.
— Mudei de ideia. Vou comer na sala privativa. Peça que meu desjejum
seja servido lá, e que eu não seja incomodado.
A sensação de que faria algo proibido, algo muito secreto, encheu seu
peito de ansiedade. Por mais que Aiden tivesse sido criado de uma forma
menos convencional por seu pai, mesmo que ele não fosse um daqueles
nobres que zelasse pela moralidade imaculada, ele não costumava fazer
muitas coisas erradas. Ele tinha sua quota de libertinagem porque podia. Ele
era um duque, era um homem, ele poderia ter vinte amantes espalhadas pela
Inglaterra e pela Escócia e ninguém criticaria sua moral.
Fora isso, Aiden era correto. Ele se esforçava para levar adiante o legado
de seu pai. Os desejos de sua mãe doente, que não eram poucos. As loucuras
de sua irmã. Mas ali, enquanto se dirigia à sala privativa, seu espaço
particular, onde estavam seus livros mais queridos e o sofá já tinha a marca
de seu corpo, o duque se sentiu como um menino travesso.
Minutos depois que se sentou e abriu um livro, apenas para fingir que não
estava antecipando demais a chegada dela, Elizabeth entrou na sala com uma
bandeja. O cheiro de camomila preencheu o ambiente, porém, Aiden preferia
gardênias.
— Vossa Graça deseja me falar? — ela perguntou, enquanto colocava a
comida sobre uma mesa redonda. A lareira da sala não estava acesa, mas
fazia muito calor naquela manhã. Ou era apenas o duque que se sentia quente,
ainda.
— Minha irmã precisa de seus serviços hoje. Peço que a atenda. A
senhora… está bem acomodada na casa?
Elizabeth serviu o chá, colocou o açúcar e o leite. Ela não se virou nem
olhou para ele enquanto servia um prato com torradas e geleia fresca. Fazia
tempo que Aiden não comia geleia.
— O quarto que ocupamos é melhor do que merecemos. Vossa Graça foi
muito gentil.
Fechando o livro, Aiden levantou-se e sentiu uma pequena fisgada no
ferimento. Aproximou-se da mesa, ou dela, não tinha certeza, e sentiu quando
Elizabeth travou os músculos. Ele não queria que ela o repelisse. Precisava
que ela tivesse sentido falta daquele contato tanto quanto ele.
Segurando a xícara, ela se virou. Parecia uma tentativa não muito
eficiente de colocar alguma coisa entre eles. Aiden pegou o objeto com as
duas mãos e depositou sobre a mesa. Depois, levou os dedos até o queixo de
Elizabeth e ergueu sua face. Ela finalmente olhou para ele, o azul mais
límpido que ele já vira. Nenhuma paisagem do lado de fora concorria com
aquele brilho.
— Seu chá vai esfriar — ela murmurou.
— Esperei te ver, durante esses dias — ele confessou. — A senhora
esteve no meu quarto quando me feri, então pensei…
— Milorde. — Elizabeth baixou novamente o olhar. — Eu pensei que
estivéssemos de acordo sobre isso. Que eu não serei sua amante.
— Estamos de acordo — ele fingiu concordar. Aquela tinha sido uma
decisão dela que ele respeitava, porém esperava que Elizabeth mudasse de
ideia. — Ao mesmo tempo, eu ansiei pela senhora. Quis ouvir histórias.
Saber mais sobre sua vida. Fiquei observando pela janela enquanto a senhora
cuidava de tarefas que não são suas. Geoffrey comentou sobre como a
senhora é cuidadosa e respeitosa. Eu a vi caminhar com Hodges e brincar
com as crianças. Não sei como cumprir esse acordo se eu não estou
conseguindo parar de pensar em…
Ah, o proibido. Era difícil até mesmo completar as frases. Nem ele, nem
ela, conseguiam ser explícitos naquilo que não compreendiam.
— O senhor esteve ocupado nesses dias. Não seria prudente interromper.
— Ocupado? — O duque ergueu uma sobrancelha enquanto analisava a
expressão da governanta. — Eu passei dois dias na cama, por sua orientação.
Não havia nada…
Elizabeth o interrompeu. Ela tinha aquela mania inaceitável de
interrompê-lo, porém, ele não se aborrecia com isso.
— Os criados sabem tudo que acontece em uma casa. Não é porque nos
silenciamos que não saibamos. Eu não ousaria retornar ao seu quarto e
deparar-me com uma mulher em sua cama.
Maldição. Ela sabia sobre Caroline, e sabia tudo. Certo que as camareiras,
as cozinheiras, as arrumadeiras fofocavam. Ele só não tinha considerado que
Elizabeth era uma delas e acabaria descobrindo seus segredos não tão
secretos.
— Não havia esse risco — o duque confessou, por fim.
— Ela não é sua amante? — A suavidade da voz dela não escondeu a
crudeza da pergunta. Nem a latente mágoa em sua face. — Não é uma mulher
que compartilha sua cama e…
— Elizabeth. — Foi a vez de ele a interromper. Aproximou-se e segurou
a mão dela, colocando-a sobre seu peito. — Eu e Caroline, o que tenha
havido entre nós ficou no passado. Ela não demonstrou ter entendido isso,
portanto, precisei ser mais claro. Ela esteve em meu quarto, mas foi embora
logo em seguida.
A governanta olhou para baixo. Por alguns segundos fez-se tanto silêncio
que era possível ouvir as respirações dentro da sala.
— Não há nada entre nós — Aiden reforçou sua afirmação. Elizabeth não
parecia acreditar no que ele dizia. Não havia motivos para que ela acreditasse.
Ele sempre fora um devasso. Qualquer mulher que se aproximasse seria
rotulada de amante. Ainda mais uma que invadia seu quarto sorrateiramente.
— Se houvesse, não seria de minha conta. — Ela ergueu o olhar e havia
uma nota de desapontamento no azul translúcido que encarava o duque. —
Eu não deveria questionar o que ocorre em sua vida privada. Quanto ao
ferimento, o senhor está bem?
Aiden quis gritar que não. Ele não estava bem porque um mal-entendido
atrapalhou o momento que ele planejara. A presença indesejada de lady
Eckley fora notada pelos empregados. Por Elizabeth. E ele estava ali, como
um jovem tolo tentando se explicar para sua governanta sobre as mulheres
que não frequentavam mais a sua cama.
Aquilo estava errado. Aiden era um duque, não devia satisfações a
ninguém, mas queria ajoelhar à frente dela e implorar que ela acreditasse
nele.
— O ferimento foi superficial. A senhora exagerou nas recomendações
— Voltou a sangrar depois que saí?
— Apenas quando me levantei à noite, logo parou.
— Não parece tão ruim. Eu fiquei preocupada.
Ali estava a rendição que ele esperava. Que ele desejava, quando pediu
para que ela fosse conduzida à sala privativa. O duque queria saber se
Elizabeth pensou nele. Se ela se preocupou com ele. Não apenas porque viu
uma mulher de moral duvidosa se esgueirando pela casa. Ele estava tão
próximo dela que sentia a respiração morna de Elizabeth, que parecia
hesitante.
— Eu pedi que viesse aqui porque eu precisava te ver. Se quiser, eu me
afasto e a senhora retorna para suas tarefas.
Ela não se moveu. Não disse nenhuma palavra, não resistiu à
proximidade, não deu um passo para trás. Ao contrário, colocou as duas mãos
na camisa que ele vestia, ajustou o lenço no pescoço e fechou um botão que
estava aberto. Depois, ergueu o olhar e quase foi engolida pela escuridão.
Aiden sabia que a encarava com desejo demais, só não conseguia evitar.
— Desculpe, Vossa Graça, mas eu não sei como fazer isso.
— O que seria isso? — Aiden levou a mão até a cintura dela e a puxou
para perto. Os corpos trombaram, o cheiro dela era tudo que ele conseguia
sentir. A outra mão retirou uma mecha de cabelo da testa de Elizabeth.
Desceu pela face, deslizando os dedos pela tez macia e suave até os lábios,
que estavam vermelhos. Intensidade, era aquilo que ele admirava tanto nela.
Tudo em Elizabeth pulsava como se ela inteira fosse um vulcão prestes a
entrar em erupção. Consciente apenas do seu desejo, o duque levou sua boca
até a dela.
Não fora um beijo, apenas um roçar de lábios. Ela ficou imóvel, a
princípio.
— Isso — Elizabeth murmurou novamente. — Não sei como fazer isso.
— Parece que sabe muito bem.
Ele a beijou. Daquela vez, Elizabeth segurou-o pela camisa e forçou o
contato mais íntimo de seus corpos. A boca dela se abriu para receber a
língua quente que a invadia. A sensação de beijá-la era algo que Aiden ainda
não sabia descrever, talvez algo que ele nunca sentira antes. Ela tinha uma
textura única, um gosto singular, um toque indescritível. Era como se ele
estivesse beijando pela primeira vez.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

E LA PROVAVELMENTE ESTAVA FICANDO LOUCA . A BANDONAR A PRUDÊNCIA


nunca levava a resultados desejáveis, Elizabeth sabia bem que precisava
manter distância de Aiden Trowsdale. Aquele homem era para ela como o
álcool para os homens das docas — um alívio para os dias de trabalho intenso
e uma droga poderosa para derrubá-los quando a vida estivesse difícil demais
para lidar. O duque era como aquela droga, que a incapacitava e atrapalhava a
clareza de seus pensamentos.
Então o que estava fazendo ali? Com ele, naquela sala? Por que não ouviu
o comando e saiu, recatada como deveria, voltando para seus afazeres até que
fosse solicitada pela lady? Por que ela deixou que ele a beijasse, ou por que
ela queria tanto que ele a beijasse?
Porque ela queria. Porque sentira a falta dele durante os dias em que o
duque se manteve recluso. Porque, cada vez que ela ouvia alguém falar sobre
ele naquela casa, era algo bom, algo interessante. Porque ela aprendera mais
sobre o Duque de Shaftesbury e seus trabalhos de caridade e ficara tocada
com tanta bondade. Porque, mesmo que ela quisesse se convencer de que ela
não o desejava, Elizabeth sabia que era mentira.
Enquanto as línguas se enroscavam e alguns gemidos de desejo eram
reprimidos, Elizabeth sabia que tinha que se afastar. Nada bom poderia
resultar de seu envolvimento com o duque, tinha certeza. O problema era que
seu coração, que batia fora de ritmo, parecia discordar.
— Talvez eu deva retornar para meu trabalho — ela balbuciou, sem força
alguma na voz. Tudo que saía de sua garganta eram gemidos de prazer ao
sentir a língua dele na sua. Interromper o contato dos lábios parecia algo
muito errado de se fazer.
— Agatha está dormindo. — Aiden colou a testa na dela. — E eu mandei
que não me interrompessem.
Ela se assustou. Aquilo parecia muito mais imprudente do que ela estava
disposta a suportar.
— Por que fez isso? Os empregados vão desconfiar.
— John é meu mordomo há décadas. Ele cuida desta casa há muito
tempo, confio nele. Assim como Geoffrey. — As mãos dele estavam em suas
costas, descendo e subindo em uma carícia delicada. Ela continuava agarrada
ao colarinho de sua camisa como se sua vida dependesse daquele contato. —
Mas eu não quero forçá-la a nada, Elizabeth. Eu não me aproximarei da
senhora novamente se for isso que desejar. A senhora pode preferir a
companhia de outro homem, mas eu fico louco quando te vejo.
Ah, ele ainda era um cavalheiro. O duque tinha todas as ferramentas para
subjugá-la, mas ele preferia que ela concordasse. Que fosse consensual, que
fosse por prazer.
— Eu não sei o que quero — ela confessou e o rubor cresceu por suas
bochechas. — Também não consegui parar de pensar no senhor, mas sei que
não devo. Nem mesmo conheço outros homens por aqui, e eu jamais quis a
companhia masculina depois que meu marido faleceu.
— A senhora pareceu apreciar a aproximação de Hodges.
Oh. Ela temeu que sua proximidade com o cavalariço pudesse lhe causar
problemas. Não que houvesse alguma coisa errada em conversar casualmente
com outro empregado. Por dois dias, ele se mostrou uma companhia
agradável e interessado em Patrick. Não se confundia, no entanto, com o
desejo vulgar que sentia por Aiden.
— Ele é um homem gentil. Mas estávamos apenas conversando sobre
Patrick, ele tem cuidado do meu filho mais velho, ensinado muitas coisas
sobre cavalos e dado a ele uma atenção masculina que o menino não tem.
O duque estava então tenso sob seus dedos. Eles continuavam muito
próximos, ela sentia a respiração dele em sua pele, as batidas irregulares do
coração, o calor que emanava daquele corpo masculino. Ele não disse nada,
apenas fechou os olhos por alguns segundos e, quando os abriu novamente,
era como se a escuridão da noite estivesse dentro deles.
— Tenho uma sugestão, se me permite. — Aiden se aproximou dos
ouvidos dela e sussurrou: — Sei que não aceita se tornar minha amante, mas
podemos não fugir um do outro. Nem fingir o que sentimos. Prometa-me que
dará sinais se, por acaso, desejar minha companhia novamente. Eu farei o
mesmo. Ninguém precisa ficar sabendo.
Elizabeth afastou-se alguns centímetros. O que ele propunha era bastante
perigoso e excitante. Ela poderia demonstrar que o desejava e ele a atenderia.
Ela teria direito de escolher, de solicitar, e um duque — aquele duque —
estaria disposto a satisfazê-la. Parecia uma proposta irrecusável, mas não era
muito diferente da anterior. Ela acabaria na cama dele e, depois, substituída
por uma esposa ou outras amantes.
— O que é este lugar? — Ela desviou o assunto.
— Minha sala privativa. — Aiden olhou ao redor. Os dois ainda estavam
muito próximos, grudados. Elizabeth soltou a camisa dele e ajeitou-a para
eliminar os amassados. Depois ajeitou a própria saia e os cabelos, na intenção
de não parecer que tinha sido beijada.
— Ainda não consegui inventariar todos os cômodos. Vossa Graça tem
muitos livros. Gosta de ler?
— Sim, sempre li muito. E a senhora, lê?
— Adoro ler. Eu poderia passar horas entretida com um livro, se tivesse
horas disponíveis para isso.
— Claro que a senhora adora. — O duque sorriu e caminhou até a estante
que ocupava uma parede inteira. Examinou alguns volumes com
encadernamento azul escuro e letras douradas e pegou um nas mãos.
Entregou à Elizabeth depois de soprar um pouco de poeira da capa. — Pegue
este, é um romance. Agatha costuma adorar o estilo, a senhora provavelmente
também gostará.
Com um sorriso tímido e bochechas vermelhas de tanta vergonha,
Elizabeth aceitou o livro e passou os dedos pelo baixo relevo do título. Ela
adorava romances, mesmo que eles a fizessem sonhar com amores que ela
não teria. Desde que conhecera o duque, já vinha sonhando com coisas que
não podia ter, mesmo.
— Devo mesmo retornar. Continuo não podendo aceitar sua proposta,
Vossa Graça, mas obrigada pelo livro.
A forma como ele sorriu, antes de ela se virar, indicou que Aiden estava
magoado. Outra recusa dela era uma afronta à sua masculinidade e
provavelmente ele desistiria de insistir. Tentando não demonstrar sua
ansiedade, Elizabeth voltou para a cozinha, onde pretendia estabelecer o
cardápio do dia e determinar as tarefas das arrumadeiras. Teria pouco tempo
até lady Agatha acordar, portanto, precisava ser ágil.
Falhou em quase tudo. Seu corpo ardia e seus músculos não respondiam
adequadamente aos seus comandos. A boca tinha memória, continuava
sentindo o doce toque e sabor de Aiden sobre ela. Poderia ser muito fácil
sucumbir ao duque, mas era quase impossível fingir que nada tinha
acontecido. Que ela não estava completamente dominada por sensações que a
embriagavam como uísque.
Não, ela estava equivocada. Seus sentidos estavam aguçados em exagero,
sua pele sensível, seu corpo muito desperto. O duque não a entorpecia, ele
libertava sensações dentro dela.

H AVIA bagunça do lado de fora, no quintal, e Elizabeth decidiu intervir. Os


filhos dela tinham feito amizade com os filhos de alguns arrendatários e
estavam brincando nos arredores da mansão, um pouco escondidos próximos
ao estábulo. A gritaria estava sendo ouvida da cozinha. Preocupada que eles
pudessem incomodar, foi até onde eles jogavam para pedir que se afastassem
mais ou fizessem menos algazarra. Como a duquesa não admitia nem mesmo
o miado de um gatinho, as crianças certamente eram barulhentas demais.
Fechou o romance que ganhara de Aiden Trowsdale, um pouco
aborrecida por interromper sua leitura em uma parte tão interessante do livro
— a jovem dama estava prestes a ser cortejada pelo vigoroso nobre e ela
queria saber como aquilo se desenrolaria —, mas precisava interferir na
brincadeira dos meninos.
A medida em que se aproximava, uma voz diferente chamou a sua
atenção. Não era infantil e Elizabeth podia jurar que ouvira aquele som em
seus ouvidos algumas vezes. Não estava enganada, os meninos jogavam com
outras três crianças e, no meio deles, estava o Duque de Shaftesbury. Em toda
a sua magnitude, o nobre tinha as mangas da camisa dobradas, segurava um
taco e ensinava os pequenos arruaceiros a melhorarem suas habilidades no
jogo de rounders.
Ela gastou alguns segundos olhando para ele. Não conseguiu se mover
enquanto o duque conversava com os meninos e empunhava o taco, exibindo
o bronzeado de seus antebraços. A camisa também tinha dois botões abertos,
exibindo alguns fios escuros do peito esculpido que ela já havia visto vezes
demais. A presença do duque era tão impactante que Elizabeth não conseguia
prestar atenção em nada além dele.
— Milorde — ela se aproximou —, se eles estiverem incomodando
muito, vou pedir que joguem em outro lugar.
— Não incomodam. — Aiden deu uma tacada na bola e os garotos
continuaram o jogo, correndo pelas bases. O duque afastou-se um pouco. —
Na verdade, vi que eles precisavam melhorar a pegada no taco e vim orientá-
los. Eu não estou acostumado com crianças ao redor. Eles possuem bastante
energia, não é mesmo?
— Até demais. — Elizabeth riu e percebeu que o duque se aproximou
dela, ficando ao seu lado.
— Eu gostaria de ir até a praia, amanhã. Seus meninos conhecem o
litoral?
— Vossa Graça não sabe, mas eles nunca saíram de Londres.. É o
primeiro contato que têm com o campo, por isso estão tão animados. A vida
aqui parece muito mais saudável para eles.
— Com certeza é. Londres tem seus encantos, mas nada é como o litoral.
— Aiden continuava observando o jogo enquanto conversava. — Está
decidido. Providencie que estejam prontos para o passeio amanhã. Depois
não terei muito mais tempo, já que precisamos organizar um baile que durará
um final de semana inteiro.
Elizabeth virou-se e encarou o perfil severo do duque. Sua face angulada
e masculina estava suavizada por um sutil sorriso que pousara em seus lábios.
Ele tinha os braços cruzados no peito e observava as crianças com diversão
no olhar. Ela não acreditava no que estava ouvindo.
— Vossa Graça os está convidando para ir à praia?
— Sim, por que isso te espanta? — Ele também se virou para ela e quase
a engoliu com seus olhos de obsidiana. — Estou convidando vocês. Gostaria
que a senhora também estivesse no passeio.
Ela escondeu a boca com a mão para que ninguém percebesse que estava
estupefata com aquele convite.
— Como sua criada, devo dizer que isso é bastante inadequado. Os
patrões não convidam empregados para passeios, milorde.
— Acho que eu tenho o poder de decidir o que é ou não inadequado em
relação aos meus criados.
— Lamento informar, mas, infelizmente, Vossa Graça não tem esse
poder.
O duque rosnou baixo e voltou a olhar para a frente, para os garotos. Ele
estava chateado. Homens poderosos sempre ficavam aborrecidos quando
descobriam que seu poder era limitado.
— Certo. Mas talvez eu esteja ansioso demais pela sua companhia.
Perdoe-me.
Aquela confissão era tudo que ela desejava dele, mas a deixava em uma
posição desconfortável. Elizabeth tinha certeza do que decidira, porém,
sentia-se mal em aceitar investidas do duque mesmo depois de recusar ser sua
amante. Mesmo assim, ela não conseguia evitar.
— Estaremos prontos para o passeio.
Elizabeth agradeceu e retornou para a casa. Seu coração continuava
disparado e aquilo não podia ser saudável. Elizabeth considerou se
sobreviveria àqueles meses na mansão de Thanet Bay, já que ela mantinha
uma taquicardia permanente desde que vira Aiden Trowsdale pela primeira
vez. Pelo menos ela teria distração com lady Agatha pelo restante do dia e
poderia tentar não pensar naquele homem por pelo menos algumas horas.

A PAZ em Thanet Bay tinha acabado. Ao menos foi o que Myrtle Trowsdale,
a duquesa viúva, determinou enquanto se aproximava da janela para ver o
que significava aquela algazarra. Ela odiava barulho e odiava ainda mais
barulho de crianças. Não havia crianças na mansão, ela sempre deu ordens
expressas aos criados para não permitirem que os filhos dos arrendatários
chegassem a menos de um quilômetro da casa, mas não tinha dúvidas, aquela
gritaria indicava que suas ordens não eram mais cumpridas.
O motivo ficou claro quando percebeu Aiden no meio da confusão. A
doença deveria tê-lo prejudicado intelectualmente, pois o ranzinza do seu
primogênito não era dado àquele tipo de atividade. Também não era dado a
crianças. Ela tinha certeza de que Aiden só lhe daria um neto pela extrema
necessidade de produzir um herdeiro.
— Emma — a duquesa chamou e a criada entrou no quarto em menos de
dois segundos. — Quem é essa mulher com meu filho?
A criada não entendeu o que dizia a duquesa. Ajeitou a touca e passou a
mão na saia, nervosa.
— Que mulher, milady?
— Venha aqui e veja, sua inútil.
Mais do que depressa, a criada se aproximou da janela e viu a governanta
conversando com o duque. A forma como estavam dispostos era bastante
incomum entre um patrão nobre e uma empregada, mas Emma não se
surpreendia mais com nada naquela casa. Os Trowsdale não eram muito
tradicionais.
— É a Sra. Collingworth, a nova governanta. Vosso filho não lhe
informou?
— Não estou sabendo de governanta alguma. Por que ele a contratou? De
onde surgiu essa mulher?
Emma explicou à duquesa sobre o confinamento do duque e da Sra.
Collingworth durante a doença, sobre ela estar desempregada e sobre os
filhos que precisavam de abrigo. Falou sobre a experiência com os
Pensington e estava até mesmo entusiasmada em contar sobre como a
governanta geria bem a cozinha e tratava bem os empregados.
— Quero conhecer essa mulher — a duquesa disse, mais para si mesma
do que para a criada.
— Vossa Graça deseja que mande chamá-la?
— Não, eu vou descer para o chá de minha filha, hoje. Avise a lady
Agatha que estarei presente, mas não conte à governanta. Não quero que ela
saiba, prefiro surpreendê-la.
Com um aceno de concordância, a criada tratou de deixar o quarto da
duquesa o mais rápido possível. Aquele era o covil do diabo, ninguém
gostava de passar mais tempo do que o necessário. Logo, o próprio demônio
iria sair para passear, o que era muito incomum — a duquesa não saía de seu
quarto a não ser nos poucos bailes oferecidos pelo filho.
Ela precisava descobrir sobre a mulher que estava em sua casa. Durante
cinco ou dez minutos, ela viu seu filho reluzir como o sol e não era pelo astro
rei que brilhava imponente no céu. Ela era uma mãe, claro que sabia tudo
sobre seus filhos. Não era difícil perceber que Aiden estava flutuando ao
redor daquela criada e aquilo era muito preocupante. Myrtle tinha que tomar
alguma providência e não podia esperar mais um dia.

— E U CONVIDEI LADY A NNE , lady Sarah e lady Madeline para o chá das
cinco. Elas são divertidas, mas um pouco travessas. Aiden não gosta muito
delas, na verdade… ele não liga para Anne, mas acha Sarah e Madeline muito
atrevidas. “Não chame essas Westphallen para a casa, elas são irritantes”.
A jovem Agatha tagarelava enquanto finalizava seu desjejum, na
companhia da governanta. Elizabeth tinha habilidades de tomar notas mentais
das tarefas que precisava cumprir, mas precisava que elas fossem ditadas com
um pouco menos de rapidez. Frear a irmã do duque, no entanto, parecia uma
difícil missão. Agatha tinha a jovialidade dos seus filhos.
— Mas a senhorita as convidou assim mesmo, porque o duque não lhe diz
o que fazer. Certo, milady?
— Certíssimo. A senhora compreende as coisas rapidamente, gosto disso.
— A dama sorriu. — Quero que mande preparar bolos e biscoitos para o chá.
Quando estamos apenas nós, as mulheres, podemos comer sem que critiquem
nosso apetite. Ah. E quero que me ajude na organização das brincadeiras para
o baile. Sei que Aiden está programando uma caçada, e o baile é quase um
evento de negócios. Ele e Edward adoram reunir gente para falar coisas sobre
política, investimentos e outros assuntos masculinos, mas eu e as mulheres
podemos nos divertir. Pensei em alguns jogos para nos entreter e precisarei
de ajuda.
Eram muitos eventos em tão pouco tempo, mas Elizabeth estava
acostumada. Chá naquele dia, baile, jantar — e uma casa cheia de
convidados. Pensava que teria paz naquele dia de afazeres, porém, não
conseguia se desconectar de nenhum dos momentos vividos ao lado de Aiden
Trowsdale. Nem quando alimentou seus filhos, ou mandou que eles fossem
para o quarto se lavar depois de um dia inteiro jogando rounders com os
vizinhos. Nem quando ajudou as cozinheiras a fazer uma receita nova de
biscoitos, ou a arrumadeira a fazer um inventário das almofadas dos quartos
de hóspedes, que poderiam ser ocupados em breve. Ela só pensava no dia na
praia ao lado do duque. Também não conseguia parar de sentir as mãos dele
ao seu redor ou os lábios dele em sua pele nem quando ajudou Granger, o
jovem criado que tanto lhes auxiliou na estalagem, a carregar lenha para
dentro da casa.
Elizabeth não precisava fazer muitas das coisas que fazia, mas ela tinha
que se ocupar para não sucumbir à tentação de procurar o duque. Ou de
sonhar com ele enquanto estivesse acordada. Antes do horário do chá, ela se
lavou e vestiu roupas limpas. Lady Agatha havia solicitado sua presença no
período em que suas convidadas estivessem na casa, então ela precisava estar
apresentável. Colocou sua melhor saia xadrez com sua camisa branca de
babados e prendeu os cabelos debaixo da touca de renda.
Não havia ninguém que lhe trançasse os cachos dourados, então pensara
em Aiden outra vez. Em como ele segurou seus cabelos entre os dedos e os
ajeitou em tranças frouxas durante aqueles dias confinados.
As convidadas de lady Agatha chegaram por volta das dezesseis e trinta.
Uma carruagem preta com ornamentos dourados e dois cavalos também
pretos e magníficos trouxe as irmãs Westphallen. Outra carruagem, toda preta
e cinza, carregava a Srta. Anne Brighton. Elas eram falantes e animadas e
espalharam as enormes saias rodadas e bordadas pelos sofás e poltronas do
salão de chá. Elizabeth abriu as portas para o jardim de inverno e permitiu
que o sol do final da tarde iluminasse o ambiente.
A surpresa da tarde ainda estava por acontecer, contudo. Sem anúncio
prévio, a duquesa desceu até o salão de chá e se juntou às damas. Ela era uma
mulher pequena, muito magra e de cabelos ralos e prateados, mas ostentava
poder e glória. Mesmo que seu corpo demonstrasse sinais de fraqueza, ela
exalava força. Seus olhos castanhos capturavam tudo ao seu redor. Quando
chegou, as damas fizeram uma reverência.
— Que honra ter a companhia da senhora! — Lady Sarah estava
entusiasmada.
— Faz tempo que não tomo chá em companhia de jovens damas, nem que
tenho a oportunidade de discutir sobre o casamento do meu filho.
As mulheres se entreolharam. Elizabeth sentiu a boca seca e a língua
grossa, como se tivesse consumido láudano. Permaneceu impassível e
aguardou ser solicitada, mesmo que aquela não fosse sua função. Sua
curiosidade se aguçou pelo assunto inusitado.
— O que tem para conversar sobre o casamento de Aiden? — Lady
Agatha estranhou.
— Vamos ver seu irmão, Agatha? — Madeline Westphallen perguntou,
curiosa. — Ele está na propriedade?
— Duvido que o duque vá aparecer aqui. — Lady Anne bebericou um
pouco do chá que lhe fora servido. — Os homens raramente se interessam em
conversar com as damas. Eles preferem companhias masculinas.
— Eu espero que ele prefira minha companhia, em breve — Madeline
prosseguiu. Elizabeth ouvia a conversa de pé, próxima a um janelão, apoiada
no parapeito. — Ouvi dizer que ele pretende escolher sua noiva na próxima
temporada.
— Ele vai escolher — a duquesa interrompeu. — E vai aparecer aqui. E
talvez a noiva que ele escolha possa estar nesta sala.
As damas não tentaram segurar o espanto com a fala da duquesa. Olhos
arregalados e bocas abertas indicaram que nenhuma delas esperava por
aquela revelação.
— Aiden precisa mesmo se casar. — Lady Agatha suspirou. Os olhos
dela vagaram até Elizabeth e ela espiou a governanta por sobre a xícara de
chá. — Quem sabe uma esposa não resolve aquele mau humor permanente
dele?
A conversa aborreceu Elizabeth. Ela se virou para a janela e observou o
lado de fora por alguns instantes. A beleza do céu de verão a distraiu por
segundos enquanto seus ouvidos se desligavam do assunto Duque de
Shaftesbury. Não queria saber com qual das Westphallen ele se casaria nem
como uma esposa lhe faria bem.
As coisas pareciam bem ajustadas, de certa forma. A duquesa, que ela não
conhecera antes, estava determinada a decidir pelo filho sobre o casamento.
Aquela era a prática mais comum dentre a nobreza — quando não eram os
pais que escolhiam as noivas e maridos dos filhos, eles tinham grande poder
de persuasão naquela decisão.
Por um momento, naquele dia, durante a manhã, ela sonhou que poderia
ter algo com o duque. Que ela poderia significar algo para ele. Que os
momentos que compartilharam construíram algo entre eles. Mas ela estava se
iludindo. O duque se casaria com uma dama da sociedade e a melhor chance
que ela teria de se manter próxima a ele seria aceitando uma proposta
indecorosa que já havia rejeitado. Era melhor parar de se enganar, mas ela
sabia que falharia naquilo, também.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

Q UANDO G EOFFREY INFORMOU QUE A DUQUESA ESTAVA NO SALÃO DE CHÁ ,


Aiden pensou que o criado estivesse ficando confuso. Sua mãe nunca descia
do quarto. Quando queria falar ou ver alguém, pedia que fosse até ela. Muito
fraca e debilitada desde o nascimento de Agatha, a duquesa era uma reclusa.
A última vez que ela saiu do quarto fora no enterro do marido.
O que a teria levado ao salão de chá? Ele precisava conferir aquilo,
mesmo que sua presença no momento das mulheres fosse inadequada e que
ele tivesse que enfrentar as Westphallen, que sabia terem sido convidadas
pela irmã. Agatha não era a maior fã daquelas duas, porém, não havia muitas
amigas na região.
Ajustou a roupa e sentiu necessidade de estar arrumado para… o chá da
irmã. Não, claro que Aiden não se preocupava em vestir-se bem para as
convidadas tediosas de lady Agatha. Estava pensando em encontrar a
governanta pelos corredores da mansão, mesmo que a casa fosse tão grande
que ele pudesse passar dias sem ver os criados se não os chamasse. E foi o
que houve. Ela, Elizabeth, não estava em lugar algum à sua vista.
Não a ver era frustrante. Não a ter era tortura. Não parecia haver nada que
ele pudesse fazer para mudar aquilo. Havia?
Sua decepção durou até o momento em que chegou ao salão. Tudo que
ele viu em um canto foi a mulher que se destacava entre as outras.
— Vossa Graça! — Madeline Westphallen dirigiu-se ao duque com
algum entusiasmo. Eles tinham a intimidade adequada para que ela não
precisasse esperar o cumprimento do homem, mesmo assim, era como se a
empolgação da jovem incomodasse Aiden. Ele descobriu que gostava de
mulheres empolgadas, porém, não gostava de Madeline. Não o suficiente.
— Senhoritas.
Aiden aceitou as reverências que lhe foram dirigidas e se aproximou de
Sarah Westphallen, primeiro. Era a irmã menos inconveniente, então ele
segurou sua mão enluvada e beijou os dedos com sutileza. Fez o mesmo com
Anne Brighton e só então chegou à Madeline. As damas suspiraram pela
passagem do duque, que poderia revirar o olho em desânimo. Ele não queria,
mesmo, despertar nenhuma esperança nelas.
— Mamãe, a que devemos a honra de vossa presença? — ele perguntou,
aproximando-se. Seus olhos passearam por Elizabeth brevemente e pousaram
na figura pouco expressiva da duquesa viúva.
— Decidi ver como estão as coisas, já que você escolheu não me contar
que contratou uma governanta.
Ah. O mistério estava parcialmente solucionado. A duquesa descobrira
sobre Elizabeth e queria explicações. Porém era esperado que ela chamasse o
filho em seus aposentos. O simples fato de exigir satisfações pela contratação
de uma empregada ainda não respondia de todo a aparição surpreendente da
mulher.
— Foi uma decisão de oportunidade.
— Você anda saindo demais com negociantes. — A duquesa franziu a
testa, indicando seu desagrado com as companhias do filho. Um nobre de
linhagem tão expressiva quanto a dele deveria deixar de lado os burgueses e
relacionar-se com os portadores dos melhores títulos. — Bem, contanto que a
casa esteja sendo cuidada a contento, sua atitude será tolerada. Da próxima
vez, consulte-me antes.
Aquela era a postura comum de Myrtle Trowsdale — desafiar o filho
duque na frente das pessoas. Mais grave era quando ela tentava intimidá-lo na
presença dos homens, forçando-o a adotar uma postura debochada. Daquela
vez, eram apenas as ladies tolas que bebiam chá e só sabiam conversar sobre
rendas e o clima, mas sua virilidade ficava comprometida sempre que a mãe
media forças com ele.
Talvez Aiden pudesse mandá-la passar algum tempo na Escócia. Ou no
continente — Paris seria escandalosa o suficiente para deixar a duquesa viúva
com assunto para infernizar as criadas por um ano inteiro. Mas ele não tinha
coragem de livrar-se da mãe, aquilo não seria desejado nem aprovado por seu
pai.
— Como deseja, mamãe — Aiden assentiu, sabendo que aquela não era a
melhor hora de lutar uma batalha desnecessária.
Como esgrimista ele sabia exatamente o momento de atacar — e de
recuar.
— O senhor estará no jantar do Conde de Cornwall? — perguntou lady
Madeline Westphallen.
— Sim.
— Ah, será uma honra revê-lo no evento. — Ela deu uma risadinha.
— Aiden, você não tem nada masculino para fazer? — Agatha o
interpelou, demonstrando que a presença do irmão incomodava. — Talvez
fumar cigarros ou beber uísque em seu escritório.
— Claro que tenho. Vou deixar as senhoritas conversarem.
O duque se retirou do salão sem estar satisfeito. Havia mais por trás da
súbita exibição de sua mãe no andar de baixo. Algo na forma como ela o
escrutinava enquanto estava no meio do salão, mesmo que ele estivesse se
policiando para fingir desinteresse por tudo — e todas. A duquesa viúva era
mais perigosa do que parecia porque ela estava sempre espreitando a caça.
Ele precisava ficar alerta.

— S RTA . Westphallen — a duquesa chamou a atenção de Madeline, que


bebericava seu chá enquanto as outras damas conversavam sobre os solteiros
que encontrariam no jantar do Conde de Cornwall. Ao menos Sarah e Anne
estavam animadas a elencar as qualidades deles, já que Agatha apenas
comentava sobre os defeitos dos potenciais maridos.
— Pois não, senhora.
— A senhorita demonstra claro interesse no meu filho.
Madeline fitou o chá. Certamente ela preferia não ser indiscreta, só não
conseguia evitar. Sempre que o Duque de Shaftesbury estava no mesmo
ambiente que ela, sentia uma necessidade visceral de falar com ele, de se
aproximar dele, de ser notada por ele. Seu pai ficaria bastante satisfeito em
casá-la com um duque, mas era mais do que um simples arranjo
casamenteiro. Madeline sentia alguma coisa pelo homem que ela não sabia
explicar.
— Vosso filho é um homem bastante intrigante. Ele desperta o interesse
de todas as damas casadoiras.
— Inclusive, o seu.
— Inclusive, o meu.
A jovem estava corada e sentindo calor. A duquesa a olhava com
curiosidade e ela não conseguia mais beber seu chá. Por sorte, as outras
estavam ainda muito envolvidas em sua conversa para notar o seu
desconforto.
— Gostaria de casar-se com ele, Srta. Westphallen?
Sim. Sim. Mil vezes sim. Tudo que Madeline sonhava era casar com
Aiden Trowsdale. Ela desejava aquele homem ao seu lado, fazendo com ela
coisas que apenas um marido deveria fazer. O calor se intensificou e os tons
de rosa em sua bochecha também.
— Seria uma enorme honra!
— Saiba que tem minha aprovação. — A duquesa ajeitou-se no canapé.
— Não gostaria de intervir na escolha do duque em relação à sua esposa, mas
ele não parece estar fazendo um bom trabalho decidindo sozinho.
— Vossa Graça me honra com vossa aprovação. — Madeline sentiu seu
coração disparar. — Mas não sei como isso poderia funcionar, o duque não
me nota com nenhum interesse especial.
— Isso vai mudar. Conversarei com ele e exporei meu desejo de vê-lo
casado com a senhorita. Preciso que me ajude, Srta. Westphallen, já que o
processo de cortejo nem sempre começa com o interesse do homem.
— Não entendi bem, milady..
— O cortejo — a duquesa ajeitou-se novamente, tentando ficar mais
perto de Madeline para soprar em seus ouvidos —, só parece ser
responsabilidade do homem. Nós, mulheres, direcionamos o interesse deles
para nós. Fique tranquila, eu lhe darei algumas dicas.
Aquela conversa era de tudo intrigante para Madeline, que jamais esperou
despertar o interesse da duquesa viúva. Na verdade, ela só vira a duquesa
uma vez, no baile do ano passado, e a mulher não pareceu nem mesmo
perceber sua existência. De repente, ela aparecia em um chá e informava que
desejava ver Madeline casada com seu filho.
Talvez fosse um sonho se tornando realidade. Um filho zeloso como era o
Duque de Shaftesbury dificilmente deixaria de atender a um desejo de sua
mãe doente. Ela sabia, pelas conversas que ouvia dos cavalheiros, quando
espiava sorrateira enquanto eles tomavam o vinho do porto depois do jantar,
que Aiden Trowsdale era um homem que fazia tudo a seu alcance para cuidar
da mãe e da irmã.
— Adoraria seu apoio e suas dicas! E garanto à senhora que serei a
melhor esposa para vosso filho.

A QUELE EVENTO de chá parecia um pesadelo para Elizabeth. Além de ficar de


pé ao lado da mesa para servir as damas, ela tinha que suportar a conversa
desagradável sobre um casamento sendo arranjado para o duque. Sua função
não era servir, mas lady Agatha parecia solicitar sua companhia para todas as
ocasiões. Ela não se importava, gostava da jovem e estar na presença dela era
empolgante, mas aquele evento não estava sendo nada divertido. Sua
invisibilidade se acentuou com a chegada a duquesa viúva. Nem mesmo
Aiden pareceu notá-la no salão. Sem contar o assunto que ouvira sem poder
evitar. Deveria ser discreta porque uma criada não revelava nada sobre seus
patrões, mas não concordava que a mãe decidisse a noiva do filho por suas
costas. Aquilo não deveria surpreendê-la, era como as coisas aconteciam na
sociedade.
— Como se chama?
A voz da duquesa atraiu a sua atenção. Elizabeth sentiu o coração
disparar e, pela primeira vez desde que fugira de Londres, não fora por uma
boa sensação.
— Elizabeth Collingworth, milady.
— Certo. Sirva-me mais chá.
Ela pegou a xícara da duquesa e serviu o Earl Grey com leite, sem açúcar.
Sua mão tremia e ela pensou que pudesse derrubar a louça quando a entregou
novamente.
— Ouvi que tem boas referências — a duquesa continuou falando com
ela, mesmo sem olhar para ela. — E sei que Eleanor Pensington é uma
mulher bastante corajosa por contratar uma jovem tão bonita para ser
acompanhante de sua filha.
— Eu era tutora de lady Charlotte, milady.
A duquesa virou-se para escrutinar Elizabeth e ela sentiu as bochechas
arderem.
— Quais idiomas fala?
— Inglês e francês.
— A senhora é muito educada e limpa para ser uma criada qualquer.
Entendo por que meu filho a contratou e por que Agatha demonstra interesse
na sua companhia. Porém espero que não se esqueça do seu lugar nesta casa.
Elizabeth não sabia como reagir nem entendia o que significava aquele
momento. Provavelmente a duquesa viúva decidira aparecer para uma
demonstração de força e para garantir que o comando da casa ainda era de
sua responsabilidade.
— Jamais me esqueceria, milady.
— Isso é bom.
A duquesa terminou seu chá e cutucou Emma, indicando que subiria de
volta para seu quarto. A dama de companhia a auxiliou a levantar-se e depois
a seguiu, sempre um passo atrás, até saírem do salão de chá. O coração de
Elizabeth batia fora de ritmo e ela estava rígida como uma estaca de madeira.
Não relaxou nem mesmo depois que a duquesa viúva ficara fora de suas
vistas.
Como as jovens conversavam e o chá já estava no final, ela pediu licença
à lady Agatha para retornar a seu trabalho. Não que tivesse muito a fazer, mas
queria garantir que o jantar saísse conforme o esperado e precisava terminar
de inspecionar o restante daquele andar. Só havia finalizado os cômodos do
segundo andar.
Eram cinco salões, todos muito bem decorados. O salão de baile era
enorme e não tinha mobiliário significativo, apenas quadros e candelabros
pendurados. O salão de jantar estava fechado havia algum tempo e a mesa
central era tão grande, mas tão grande, que ela imaginou ser capaz de
acomodar mais de cinquenta pessoas. Nunca vira uma mesa imensa como
aquela. Depois visitou os outros salões e terminou na biblioteca.
Por sorte, não precisava inventariar os livros, pois eram três paredes
cobertas até o teto por estantes repletas de obras encadernadas com perfeição
e cores variadas. Azul, verde e marrom se dividiam em coleções bem
organizadas. Esperava que houvesse uma contagem daquelas obras em algum
lugar, por isso vasculhou as gavetas da escrivaninha localizada no canto.
Como nada achou, Elizabeth entendeu que precisaria fazer a contagem ela
mesma. Talvez devesse perguntar a John sobre aquela informação, mas seu
estado de espírito estava conturbado depois da breve conversa com a duquesa
viúva. A mulher pretendia afetá-la e conseguiu. Não se esqueça do seu lugar
nesta casa, a frase ecoava em sua cabeça.
Não era como se ela pudesse se esquecer. Entendia que não precisava ser
lembrada daquilo.
— Elizabeth.
Ela piscou ao ouvir seu nome. Estava virada para a janela, segurando
alguns cadernos na mão, olhando para o monte de obras em diversos idiomas.
Não esperava encontrar ninguém, ou ser encontrada por alguém.
Era ele, o duque que parecia presente demais em todos os lugares nos
quais ela estava. Com uma casa daquele tamanho, deveria ser mais difícil que
eles se encontrassem tanto.
— Pois não, milorde.
— A senhora está bem?
A forma como ele se dirigia a ela era muito informal e deveria deixá-la
constrangida. Só que, depois de tudo que aconteceu entre eles, era meio
ridículo que ela se sentisse ofendida por ser tratada sem cerimônias.
O problema foi que ela não conseguiu respondê-lo. Elizabeth não estava
bem. Havia toda a conversa que ouvira sobre o casamento de Aiden e o
quanto aquilo a incomodou. Também a forma como ela fora tratada pela
duquesa. Mesmo que Elizabeth soubesse que os criados eram sempre tratados
daquela maneira, acabou se acostumando com a gentileza de lady Agatha e o
interesse do duque. Isso a deixou um pouco incomodada, sim, até mesmo
irritada.
— Minha mãe estava no salão. — Ele se aproximou dela. A presença de
seu corpo próximo causava arrepios em sua nuca. — Se eu a conheço, ela
provavelmente falou algo desagradável. O que foi?
— A duquesa nem mesmo me notou ali.
— Acho difícil de acreditar. Ela desceu apenas por sua causa, Elizabeth.
Eu peço desculpas, se tivesse ido até ela falar sobre sua contratação…
Ele a tocou. Passou a mão sem luvas pelo braço dela e subiu até seu
ombro.
— Vossa mãe não disse nada de mais.
Ela se virou e seus olhos a traíram, de forma que ele compreendeu que ela
mentia. Aiden levou as duas mãos à face de Elizabeth e roçou os lábios nos
dela, que deveria resistir e se afastar, porém, não conseguia.
— Eu queria tanto cuidar de você. — Arrastou um polegar por suas
bochechas. — Por que não me aceita, Elizabeth Collingworth?
Eu aceito, eu aceito tudo. Ela quis gritar, mas não diria nada. Por mais
que o desejo de ser cuidada fosse maior do que a razão, ela manteria sua
decisão. O silêncio fez com que o duque entendesse e se afastasse. O espaço
vazio que ele deixou era incômodo demais. Se ela continuasse com aqueles
encontros, seria difícil que resistisse por mais tempo.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

A IDEN NÃO ESTAVA ACOSTUMADO A CRIANÇAS . E LE CONVIVEU COM A GATHA E


achava que só precisaria lidar com os pequenos novamente quando tivesse
seus próprios filhos. Então, de súbito, ele decidiu levar não apenas um, mas
seis moleques para a praia. Os filhos de Elizabeth e quatro meninos filhos dos
arrendatários e do cavalariço.
Claro que ninguém entendeu nada e os pais das crianças mal acreditaram
quando receberam o criado pessoal do duque a solicitar a autorização deles
para levar os filhos em um passeio pelo litoral. Mesmo assim, ele decidiu que
iria fazer aquilo tudo apenas para que Elizabeth pudesse ver o mar. Precisou
de três carruagens, uma entupida com meninos bagunceiros, para conseguir
seu objetivo. Para sorte dele, o litoral não ficava muito distante de Thanet
Bay.
— Você está sendo gentil demais — Agatha observou. O duque não tinha
certeza se ela estava zombando de sua atitude ou confusa. Talvez as duas
coisas. — A doença deve ter afetado sua cabeça. Ou foi outra coisa.
— Não seja impertinente, Agatha. É triste que pessoas nunca tenham
visto o mar. Lembre-se de que fomos ensinados a sempre fazer o bem com
nossas posses.
A atrevida riu, tentando inutilmente esconder sua risada com a mão.
Estavam os dois em uma carruagem, mas Aiden preferiria dividir aquele
espaço com outra pessoa. Passar algum tempo sozinho com Elizabeth, dentro
de uma carruagem, o ajudaria a aliviar a tensão. Porque ele estava tenso,
estava ansioso por alguma coisa que ele sabia que não aconteceria.
Foi uma longa hora até que a carruagem parou em uma via e permitiu que
todos descessem. A barulheira das crianças foi imediatamente ouvida,
seguida da risada dela. Descendo do transporte com a ajuda de Geoffrey,
Elizabeth gargalhava com a algazarra e aquilo fazia seu corpo chacoalhar. Ela
não era como uma das damas que Aiden conhecia, ela não refreava as
emoções. Assim que o sol tocou os cabelos dela, os raios iluminaram os fios
mais claros e a transformaram no vislumbre perfeito de um anjo.
— Patrick! — gritou para o filho mais velho. — Vigie Peter e só entrem
na água até os joelhos.
— Pode deixar, mamãe.
Lá foram os meninos correndo para a areia e, logo, brincando com as
ondas que arrebentavam e deixavam rastros de espuma salgada. Havia muita
coisa para fazer em uma praia, desde recolher conchinhas pelo chão até
construir castelos de areia. Aqueles garotos com certeza iriam se divertir
enquanto ele, o duque, passaria mais tempo com Elizabeth.
Isso se Agatha deixasse. A irmã já tinha se juntado a ela e parecia um
soldado ao lado da governanta, tagarelando qualquer coisa sobre o quanto
eram audaciosos os trajes de banho das Américas. Por um momento, Aiden
desejou que estivessem na América apenas para poder ver Elizabeth em
roupas menores, mesmo que ele já a tivesse visto praticamente nua.
Sem muita chance de evitar o inevitável, o duque tirou os sapatos, as
meias e dobrou as calças até a metade da panturrilha. Retirou o colete, abriu
dois botões no colarinho, dobrou as mangas. Sem chapéu, o sol batia em sua
face e fazia com que ficasse difícil enxergar. Depois, sentou-se na areia fofa
para observar. E observou por quase meia hora.
Elizabeth e Agatha brincavam com as crianças. Nenhuma das duas
parecia uma dama da sociedade e ambas aparentavam ser adolescentes. Sem
sapatos, sem meias, com as saias levantadas e o decoro abandonado à própria
sorte, elas riam e os cabelos, que se soltavam das tranças, esvoaçavam com a
brisa.
Aiden considerou por que nenhuma das mulheres com quem deveria se
casar o interessavam. Elas eram damas bonitas, de boas famílias, ricas, bem-
criadas e educadas, mas ele não sentia qualquer tipo de atração por nenhuma
delas. Ao contrário, as achava entediantes e enfadonhas. Enquanto via
Elizabeth Collingworth correr pela areia com um bando de crianças e se
lembrava de tudo que ele já ouvira dela, e já a vira fazer, ele começava a
entender os porquês.
Acabou distraído com alguns pássaros que pousaram muito perto e não
notou quando ela se aproximou e sentou-se ao seu lado, por sobre as pernas
dobradas, olhando para o horizonte.
— São lindos, não? — Elizabeth apontou para as aves. Ele desejou dizer
que, na presença dela, nada deveria ter o direito de receber aquele adjetivo.
— São intrigantes. A senhora está se divertindo?
— Sim, eu não me lembrava mais do oceano. Faz muitos anos desde a
minha primeira e última vez no litoral, então é como se eu estivesse
debutando. E as crianças, elas estão eufóricas. Mas vejo que Vossa Graça não
está compartilhando dessa diversão.
Aiden se virou e respirou de modo profundo, encarando o perfil delicado
e perfeitamente desenhado daquela mulher. Ela fazia com que ele se sentisse
vulnerável e tolo. Só por isso ele deveria detestar estar ao lado dela, mas tudo
que ele queria era que ela percebesse. Que ela entendesse o quanto o afetava.
— Eu inventei essa excursão inteira apenas para desfrutar deste momento
— confessou. — Você ao meu lado, nós dois conversando como se não
houvesse nenhuma hierarquia entre nós. Já está valendo a pena.
— Mas há hierarquia.
— Ignore-a. Aqui, agora, hoje, apenas seja Elizabeth Collingworth e
converse comigo. Diga-me com sinceridade, a senhora acha que minha irmã
será uma dama respeitável qualquer dia desses?
Ela riu. Virou-se para ele e havia um brilho malicioso que Aiden ainda
não notara naqueles azuis que suplantavam o mar.
— Sua irmã já é uma dama respeitável. Se pensa em moldá-la conforme a
sociedade exige, já tive essa experiência uma vez e recomendo: não faça isso
com lady Agatha. Sua irmã tem um espírito que poucas pessoas possuem, ela
é especial.
— Eu sei. — Aiden suspirou. Agatha estava ainda brincando com as
crianças e seu vestido já estava ensopado. — Mas eu gostaria que ela se
casasse com um bom marido. Alguém que pudesse mantê-la em segurança
quando eu faltar. Mamãe, ela…
— Ela se casará — Elizabeth interrompeu o duque. Foi ele mesmo que
disse que seria sem hierarquia e ela já o interrompera antes. — Sendo ela
mesma, ela conquistará um homem que a amará e não precisará se casar com
alguém que se importará mais com o dote do que com a mulher.
— Esqueci que a senhora acredita em casamento por amor.
— Vossa Graça, eu acredito em amor. Mas quem sabe sejam apenas
devaneios de uma mulher tola que uma vez sonhou com príncipes e castelos?
Elizabeth levantou-se e se pôs a caminhar pela orla. Claro que ele a tinha
ofendido. Estúpido! Aiden nunca fora muito habilidoso em conversar com
mulheres, principalmente porque elas nunca conversavam com ele. Elas
falavam sobre o clima, ou também sobre rendas, sombrinhas e vestidos. Até
poucos dias, ele acreditava que aqueles fossem os assuntos de toda mulher e
que nunca valeria a pena falar mais do que cinco minutos com nenhuma
delas. Ele não podia esperar para discutir com Elizabeth sobre suas
pretensões de negócios. Apostava que ela teria argumentos que ele gostaria
de ouvir.
Levantou-se e foi atrás dela, ignorando a presença de qualquer um que
pudesse não entender por que um aristocrata caminhava, sozinho, ao lado de
uma criada.
— A senhora não é uma mulher tola. Peço desculpas se algo que eu disse
fez com que entendesse que penso isso.
— Está tudo bem. Eu sei que a ideia de amor, em sua condição, parece
superestimada. Mas, se minha opinião tiver alguma valia, permita que sua
irmã continue a ser como ela é. Verá que tudo vai dar certo assim mesmo.
Pela forma como ela pisava na areia, parecia que Elizabeth estava
chateada. Aiden achou prudente não persistir naquele assunto nem tentar
fazê-la falar mais. Alcançou-a e ofereceu o braço para que ela o segurasse.
Confusa, ela olhou ao redor para conferir que o litoral estava vazio naquele
dia. Se ela estivesse se perguntando onde estariam todas as pessoas, ele
também não saberia dizer.
Eles se olharam outra vez. Aiden tinha uma vaga memória da primeira
vez em que seu olhar tocou o dela, em um incidente causado pela febre e um
quarto com apenas uma cama. Naquele momento, eles estavam bastante
conscientes, mas o impacto foi o mesmo. Ela levou a mão para envolver seu
braço com seus dedos macios e pequenos e ergueu a cabeça. Havia um
sorriso delicado, quase imperceptível, naqueles lábios rosados. O sol reluzia
nas mechas douradas dos cabelos de Elizabeth e faziam com que ela ficasse
ainda mais linda.
Aiden não conseguia respirar. Sua expressão era séria, de veneração.
Havia algo em si que ele não sabia explicar quando ela o olhava daquele
jeito. Ele poderia ajoelhar no chão e rezar para ela que não sentiria cometer
blasfêmia alguma. Seu coração estrangulou no peito e bateu um baque surdo
algumas vezes, implorando para que ele fizesse alguma coisa para acabar
com aquela agonia.
Eles voltaram a caminhar. Ela segurava a dobra do seu cotovelo e o
contato era pele com pele. Não havia barreira artificial de tecido que
impedisse que ele sentisse o calor daquele toque. A praia acabou, logo eles
estavam em um rochedo onde o mar agitado estourava.
— Vamos voltar? — Elizabeth perguntou.
— Não. Podemos sentar aqui e observar as ondas nas rochas. É um
espetáculo feroz, não acha?
Ela assentiu com um movimento de cabeça.
— Vossa irmã vai desconfiar de algo.
— Aiden. — Ele se sentou e estendeu a mão, convidando-a para fazer o
mesmo. — Chame-me pelo meu nome, eu imploro. Ele soa tão bem quando
você o pronuncia.
— Certo, Aiden. — Elizabeth sentou-se ao lado dele. Os ombros estavam
colados. — Então vamos observar a ferocidade da natureza e a elegância das
gaivotas.
Sim, mas não apenas isso. Quando ele decidiu segui-la naquela
caminhada, quando ofereceu o braço, o duque esperava que fossem longe o
suficiente para que ninguém conseguisse notá-los. Não havia pessoas por
perto nem carruagens, tudo que conseguiam identificar do outro lado da praia
eram pontos em movimento. Ninguém conseguiria vê-los ali, conseguiria?
Aiden esperava que não. Por isso, passou a mão pelas costas de Elizabeth
e a puxou para mais perto. Ela não resistiu ao contrário e deitou a cabeça em
seu ombro. Com os dedos trêmulos, ele percorreu a extensão dela com um
carinho intermitente, deslizando a mão para cima e para baixo nos braços nus
de Elizabeth.

O DUQUE DEVERIA SER um bom homem, mas possuía a ingenuidade dos


aristocratas. Elizabeth não podia esperar que ele a compreendesse nem
perderia seu tempo tentando fazê-lo entender coisas que não fariam diferença
na vida do nobre. Ela preferia aproveitar o toque de suas mãos quentes
enquanto compartilhavam a manhã na praia.
O tempo passou e eles precisaram voltar para a companhia dos outros.
Enquanto caminhavam de volta para a realidade, ela via seus filhos se
divertindo, imundos e molhados, e imaginava que estava se iludindo. Em
breve aquilo iria acabar e eles voltariam para a vida medíocre que tinham,
mas era a vida que podiam ter. Que aproveitassem as boas coisas enquanto
elas durassem.
— Obrigada. — Foi o que conseguiu dizer antes que a mágica que lhes
permitia desfrutar de momentos a dois acabasse. — Isso significou muito
para Patrick e Peter, então eu agradeço por essa gentileza.
— Mesmo que eu tenha feito isso apenas pela senhora?
— Neste caso, os fins justificam os meios.
Ele riu e aquele deveria ser o sorriso mais lindo que Deus criou. Nunca
lábios se ergueram daquela forma tão sensual, nem covinhas tão perfeitas se
formaram nas bochechas de ninguém como se formavam nas dele. Aiden
Trowsdale era uma obra de arte que andava e falava. E tinha um cheiro
incrível de madeira e bergamota.
— Foi um prazer ter sua companhia hoje.
O duque segurou a mão dela e beijou os dedos de uma forma reverencial.
Era impressionante como ele conseguia ser um devasso, tocando-a de forma
inadequada em algumas situações, e um perfeito cavalheiro em outras.
Precisava parar de pensar no homem e conseguiu isso se ocupando de
alimentar as crianças. Ela e Moira, a criada pessoal da lady, trataram de
organizar um lanche para os meninos, mesmo que eles estivessem tão
molhados e sujos que fossem comer mais areia do que qualquer outra coisa.
Ela não conseguiu evitar os olhares suspeitos que lady Agatha lançou tanto
para ela quanto para o irmão, que fingia não estar prestando atenção demais
em tudo. Claro que também não conseguiu evitar pensar nele.
Enquanto as crianças comiam, Elizabeth notou movimento ao redor. Duas
meninas, uma delas menor do que Peter, observavam a comitiva. Elas
estavam muito magras e pareciam famintas. Tinham olhos grandes e claros,
cabelos que pareciam loiros, mas estavam encardidos. Quando perceberam
que estavam sendo vistas, tentaram se esconder atrás de algumas pedras que
estavam próximas.
Elizabeth foi até elas.
— Como vocês se chamam?
As duas a encararam sem saber se deviam responder. Seguravam a mão
uma da outra e pareciam amedrontadas. Talvez as pessoas que frequentassem
a praia não as tratassem muito bem.
— Podem me dizer. Eu sou a Elizabeth, mãe daqueles dois garotinhos ali.
— Ela apontou Peter, que estava de pé imitando alguma coisa, e Patrick, que
comia de forma serena enquanto observava os outros. — Eu moro em
Londres. E vocês?
Uma delas apontou para a direção da vila.
— Meu nome é Helga — a de aparência mais velha disse.
— Vocês querem se juntar a nós, Helga? Estamos comendo e acho que
vai sobrar um pouco de comida. Querem nos ajudar?
As duas se entreolharam e recuaram dois passos. Elizabeth se distraiu
com as meninas e não notou quem se aproximava. Por trás dela surgia a
figura imponente do Duque de Shaftesbury. Um pouco desgrenhado pelo
vento, pelo sol e pela maresia, ele ainda parecia o homem mais poderoso da
face da Terra. Sua presença causava estupefação e pavor em qualquer pessoa.
— Ora vejam. Essas duas damas são suas convidadas, Sra. Collingworth?
— Sim, milorde. Mas elas estão um pouco reticentes em aceitar meu
convite.
Aiden ajoelhou-se à frente das duas garotas e pediu que se aproximassem.
Um pouco receosas, elas deixaram que ele sussurrasse qualquer coisa e riram.
Em uma conversa que durou um minuto e duas frases trocadas, o duque
conseguiu convencê-las a se juntar aos meninos.
— O que disse para elas? — Elizabeth quis saber, caminhando ao lado do
duque na direção do grupo de moleques. — Como as convenceu tão
rapidamente a confiarem em nós?
— Eu apenas disse que, como um duque, eu poderia conceder um desejo
para cada uma se elas aceitassem seu convite.
— Oh. — Elizabeth colocou a mão na frente da boca para esconder seu
entusiasmo. — E se elas pedirem coisas muito difíceis?
— Eu sou um duque. — Ele sorriu e os olhares se cruzaram novamente.
Ela sentiu um calafrio que percorreu todo o corpo em um segundo. —
Mesmo que não seja minha função atender a pedidos, eu posso conseguir
tudo que quiser. Quase tudo. Estou certo de que consigo conceder-lhes um
desejo.
Se a vida fosse justa com ela, Elizabeth jamais teria conhecido Aiden
Trowsdale. Ela atrasou o passo para vê-lo seguir à frente e poder admirá-lo.
Aquele homem era lindo por dentro e por fora. Ele tinha uma combinação
cruel que fazia com que qualquer pessoa rapidamente se encantasse. Mesmo
que ele fizesse questão de se mostrar autoritário e arrogante, ela entendera
que havia muito mais debaixo da superfície. E mais ainda que ela gostaria de
conhecer. Mas ela não podia se interessar pelo Duque de Shaftesbury.
Precisava superar o dia perfeito ao lado daquele homem proibido.
A VOLTA para casa não representou conforto para Elizabeth. O restante do dia
passaria de forma mecânica. Os trabalhos com a casa, os preparativos para
garantir que tudo estivesse perfeito para o baile. Vários convidados da
sociedade estariam presentes. A lista continha alguns negociantes e
industriários também, mas eram homens ricos e influentes que conquistaram,
com ouro e moedas, um lugar naqueles eventos.
Depois de tudo arrumado, Elizabeth aproveitou a tranquilidade da noite e
a folga para ver a estrelas. Saiu pela porta dos fundos segurando um
candeeiro e sentou-se em um banco improvisado próximo aos estábulos.
Esperava não incomodar os cavalos, mas sua presença ali acabou atraindo
outras atenções.
— Sra. Collingworth. — O cavalariço se aproximou. — Não consegue
dormir?
— Não é isso. Eu apenas gosto de observar as estrelas.
— Conhece as constelações?
O homem sentou-se ao lado dela, com uma distância respeitável. Ela o
fitou na quase profunda escuridão da noite e imaginou se ele conhecia as
constelações.
— Sim, algumas. Mas elas, aqui, ficam mais em evidência.
— Reggie gostou bastante do passeio hoje. Disse que a senhora foi muito
gentil.
— Deve agradecer ao duque. — Ela sorriu, pensando em Aiden e nos
momentos do dia. — O convite partiu dele.
— O duque é um bom homem, assim como foi seu pai. Diga-me, senhora,
já que tem as noites livres, gostaria de jantar em minha casa, amanhã?
Elizabeth virou-se bruscamente para fitar o cavalariço. Ele tinha uma
presença mais bruta quando iluminado apenas pela pouca claridade da vela.
Suas feições não eram feias e ele tinha uma gentileza que não era comum dos
homens da classe dele. Deles. Seria aquele convite um cortejo? Uma forma
de se aproximar dela com outras intenções? Depois de descobrir que ele era
viúvo, como ela, as possibilidades se ampliaram. E, se fosse, ela estaria
disposta a aceitar o cortejo de James Hodges?
— Agradeço o convite, mas eu só folgo depois das vinte e duas.
— Os jantares dos nobres nunca acontecem mais cedo. — Hodges moveu
os ombros. — O horário não é importante.
— Tudo bem. Aceito seu convite, Sr. Hodges.
— Leve seus meninos, minha casa é bem espaçosa. Espero que goste da
comida feita por um homem.
O cavalariço levantou-se e, com uma reverência, se afastou. Aquele era
um empregado diferente dos demais. Enquanto Granger, Geoffrey e os outros
homens da propriedade pareciam um tanto brutos e eram iletrados, Hodges
tinha um ar mais erudito. Mesmo que seu corpo indicasse os anos de trabalho
pesado, ele tinha uma mente diferente.
Talvez não fosse tão ruim assim investir em Hodges. Elizabeth acreditava
que nunca mais se casaria e adoraria estar errada. A vida em Kent poderia ser
mais agradável do que em Londres.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

Q UANTO MAIS TEMPO ELE PASSAVA PRÓXIMO DE E LIZABETH , MAIS ELE A


desejava. Insatisfeito em tê-la em sua casa, Aiden ainda inventava outras
formas de mantê-la por perto. Ele temia perdê-la. Da janela de seu quarto, era
possível ver a claridade da vela que indicava uma pessoa no quintal. Pela
silhueta que se movia e o brilho dourado que a acompanhava, aquela só podia
ser a governanta. E, pouco depois, outra pessoa se juntara a ela, o cavalariço,
James Hodges.
O que eles queriam, conversando sob o véu silencioso da noite? Estavam
próximos e Aiden não conseguia ter certeza se estavam muito próximos ou
apenas em uma distância razoável. Não era possível distinguir se fariam algo
impróprio.
Oras, ela era uma criada viúva e Hodges também. Se eles quisessem ficar
juntos, o duque não poderia, nem deveria, impedir. Provavelmente seria
ótimo se Elizabeth conseguisse um marido para ajudá-la no sustento e criação
dos meninos. O cavalariço já tinha um filho e… Mas o que ele estava
pensando! Era óbvio que Aiden não queria que Elizabeth se casasse com
outro homem. Ela deveria ser dele, apenas dele.
Foi com aquele pensamento em mente que o duque pegou uma vela e
desceu as escadas, tentando ser o mais silencioso possível. Ele não se
importaria se acordasse todos os criados, mas era melhor que estivesse
sozinho se fosse fazer o que pretendia. Quando Elizabeth entrou novamente
na mansão, ele a esperava na área de serviço anexa à cozinha.
— Milorde!
Ela se sobressaltou ao ver sua figura amarelada pela chama do fogo que
tremeluzia na vela. Aiden tinha plena certeza do que faria ali, mesmo que
temesse ser rejeitado pela terceira vez. Só sabia que, depois de vê-la com o
cavalariço tantas vezes e de imaginar que Elizabeth poderia ter em Hodges
interesses que iam além da boa convivência entre empregados, ele precisava
marcá-la como sua.
— Não consegue dormir? — A voz profunda e grave ecoou baixa. Os
criados dormiam do outro lado da casa provavelmente não os ouviriam.
— Quis ver as estrelas outra vez, ficar um pouco sozinha.
— Mas não ficou sozinha.
— Vossa Graça estava me observando?
Havia uma nota de divertimento na forma como ela perguntou, mesmo
que tentasse parecer séria. Elizabeth estava achando graça do ciúme que ele
sentia. Maldição, Aiden não queria acreditar naquilo, mas tinha ciúme da
governanta. Aquele era um dos vários problemas de uma casa sem uma
presença feminina marcante — o homem nunca deveria ficar por conta dos
empregados.
— Eu também cheguei à janela para ver as estrelas — mentiu, porque ele
realmente a estava observando.
— O Sr. Hodges é um bom homem. Ele me convidou para jantar.
— E a senhora aceitou?
— Deveria recusar?
— Não sei. A senhora me recusou, duas vezes.
— Eu não o recusei — ela murmurou, baixando o olhar. — Eu recusei ser
sua amante.
— E não é a mesma coisa?
— Não querer se tornar amante de um homem, da forma como me
propôs, é diferente de não querer esse homem.
A frase dela saiu confusa, mas ele a compreendeu. Talvez tenha
compreendido da forma como desejou, interpretou-a como melhor atendesse
a seus interesses, só que Aiden não iria perguntar se entendera corretamente.
Aquele pequeno enfrentamento serviu para que ele soubesse de duas coisas
importantes. Primeiro, aquela mulher sentia algo por ele, mesmo que apenas
uma fagulha de desejo, mas ela sentia alguma coisa. E segundo, ele não
esperaria mais para tê-la em sua cama.
E LIZABETH NÃO PRETENDIA DIZER ao duque que o desejava, mesmo porque
ela não conseguia medir as dimensões daquele desejo. Só que as palavras a
atropelaram, saindo de sua boca sem muito cuidado. Toda vez que tinha
conversas particulares com Aiden, ela falava demais. Claro que ele entenderia
tudo errado, porque logo as velas estavam apoiadas em algum lugar e ele
estava com as mãos em seu corpo.
Aiden deu apenas um passo em sua direção e reivindicou boca dela com
uma intensidade que Elizabeth ainda não tinha experimentado. As mãos dele
a seguraram pela cintura e puxaram os corpos para mais perto, provocando o
contato das roupas dele com as dela. Ele estava quente e os músculos
tremiam. Não era o primeiro beijo que compartilhavam, mas era um
totalmente novo.
— Alguém pode nos ver — ela disse, abafada nos lábios dele, tentando
não ser entorpecida pelo toque da língua de Aiden na sua.
O duque pareceu refletir sobre o que ela disse porque o beijo ficou suave
e lânguido.
— Tem razão. Venha comigo para meu quarto.
Com uma martelada forte, o coração dela passou a bater alto demais,
como se fosse sair do peito e pular pela boca. O ar ficou pesado e impossível
de respirar. Se ela fosse com ele, sabia o que iria acontecer. Não estava
disposta a recusá-lo mais uma vez. Se ela estivesse sozinha com ele no quarto
principal, não iria conseguir dizer não. Ao mesmo tempo, ela não se lembrava
de ter menos vontade de recusar alguma coisa. Queria dizer sim a Aiden,
queria gritar para ele e pedir que fizesse o que tivesse vontade. Sua hesitação
foi entendida como aceitação e ele segurou-a pela mão para conduzi-la pelos
corredores.
Não havia muita luz pela casa — as velas estavam apagadas — e não
havia quase nenhuma luz no quarto de Aiden. A claridade avermelhada da
lareira, proveniente da chama indolente que queimava desde cedo, fazia com
que o ambiente fosse tomado por um efeito melancólico que combinava com
a expressão severa do duque que a encarava.
Depois de fechar a porta e girar a chave, Aiden deixou o lado de fora, o
restante da casa, em segundo plano. As marteladas do coração dela podiam
ser ouvidas no silêncio do quarto e Elizabeth tentava continuar respirando.
Quando ele a tocou novamente, com os dedos nos cabelos dourados e, depois,
tocando os contornos da sua face, ela exalou e soltou um gemido de prazer.
— Diga-me se eu fizer algo que não devo — ele sussurrou com os lábios
em seus ouvidos. Ela se agarrou aos ombros dele para não cair, sentindo os
joelhos moles quando a boca de Aiden deslizou por seu queixo e tomou a sua.
— O senhor não deveria me beijar assim. — Deu uma risadinha nervosa
quando ele desceu os carinhos para o pescoço dela. — Nem assim. — A boca
dele já estava delineando a clavícula exposta pelo decote da camisa branca
que ela vestia.
— E eu deveria tocá-la assim?
Aiden levou as mãos à cintura dela e desceu para as nádegas, fazendo
com que ela segurasse um gritinho abafado.
— Com certeza, não.
Ele riu, esticando os lábios que ainda a beijavam. Os dedos subiram e se
colocaram nos botões da camisa dela, abrindo-os lentamente. Elizabeth era
uma criada, não usava espartilho e seus seios estavam livres sob o tecido,
esbarrando nas mãos do duque enquanto ele expunha partes do corpo dela
que deveriam ficar bem cobertas. Toda vez que a pele dele roçava nos
mamilos, Aiden soltava um grunhido de prazer, até perder a paciência e
arrebentar todos os botões que faltavam.
Despudoradamente exposta, Elizabeth sentiu o ar fresco da noite tocando
sua pele e a língua morna do duque lambendo seus seios livres. Ao invés de
sair correndo ou mandar que ele parasse, tudo que ela fez foi arquear o corpo
para permitir mais contato.
— Acho que também não deveria fazer isso.
Aiden colocou um mamilo entre os dentes, envolveu-o com os lábios e o
sugou. Foi como ver as estrelas, só que aquelas vinham acompanhadas de um
prazer mais intenso. Ele já tinha feito aquilo antes, mas as sensações ainda
eram inebriantes.
— Oh, Aiden, o senhor não…
Ela perdeu a fala quando o outro seio foi para a boca dele, que alternava
entre um e outro com lambidas suaves e mordiscadas leves.
— Eu não devo prosseguir? — O duque desceu uma das mãos e começou
a desamarrar os laços da saia que ela vestia. A hesitação do seu discurso não
era sentida em suas ações. — Diga-me, Elizabeth, eu devo parar?
Não pare. O grito de sua mente quase pôde ser ouvido quando ela abriu a
boca em surpresa ao sentir o tecido que a cobria descendo pelas pernas, mas
tudo que saiu foi um gemido constrangedor de prazer, que a deixou
envergonhada e fez com que ele esticasse mais ainda os lábios.
O duque não demonstrou paciência alguma com as calçolas ou com as
meias. Empurrou tudo para baixo, mas fez aquilo passando as mãos pelas
formas do corpo dela, delineando as coxas, as panturrilhas, acariciando os
tornozelos com cuidado.
— Maldita seja a escuridão deste quarto — ele grunhiu, ao ficar
novamente de pé. Elizabeth sentiu-se desprotegida naquele instante. Sua pele
desnuda se arrepiou ante o olhar de inspeção que Aiden lhe dirigia. Era como
se ele pudesse vê-la por inteiro, mesmo na parca luminosidade, e se deleitasse
com a visão.
Quando ele exigiu a boca dela novamente, Elizabeth entendeu que não
pensara nas consequências de se entregar daquela forma.
— Acha que é inapropriado se eu a tocar assim? — o duque disse e
deslizou uma das mãos por entre as coxas dela, subindo e descendo. Ela arfou
em resposta e ele, segurando-a firme pela nuca para mantê-la em um beijo
ansioso, conduziu os dedos até a feminilidade de Elizabeth.
— Deus. — A blasfêmia não importou — É absurdamente inapropriado
que o senhor me toque assim.
Ele riu. O maldito duque ria do constrangimento e do prazer que causava
a ela, sabendo que a colocava entre escolhas impossíveis. Os dedos dele
acariciavam seu botão rosado, inchado pelo desejo. Ela poderia desfalecer de
prazer ali mesmo, nas mãos dele, como foi na casa do poço, enquanto se
recuperavam. Só que Aiden tinha outras intenções.
Fez com que ela se deitasse no colchão macio, com as pernas penduradas
e os pés quase tocando o chão. Naquela posição, a feminilidade de Elizabeth
estava exposta para que ele pudesse acessá-la da forma que desejasse. E ela
deixaria que ele fizesse qualquer coisa se ele pedisse, tamanho era o desejo
que sentia pelo toque de Aiden.
Ela quis se cobrir com os lençóis, mas ele impediu. Deitou o corpo sobre
o dela, colocando uma das pernas, ainda vestidas, por entre suas coxas,
tomando-a os lábios novamente. O beijo desceu para o pescoço e a clavícula
até encontrar os mamilos intumescidos. O duque não permitia que ela
antecipasse muito o que ele faria, ele fazia. Colocou um dos seios na boca e
sugou devagar, deliciosamente devagar, depois repetiu com o outro.
Gemendo sob aquele corpo pesado, Elizabeth estava entregue, sem pudor
ou decoro. Ele a tinha completamente e não havia nada que ele quisesse para
que ela não dissesse sim. Os beijos continuaram descendo enquanto Aiden
dobrava o corpo e separava as pernas dela com cuidado.
— Alguém já te tocou aqui, Elizabeth? — Ele passou os dedos sobre os
cachos dourados de seu sexo.
— O senhor. — Ela riu.
— Além de mim?
— Não, eu lamento informar que só o senhor.
— Isso não me desanima em nada. — Ele também riu. — A senhora me
permite ser o primeiro?
— Primeiro? Mas eu pensei que…
— Eu ainda não te toquei aqui como eu pretendo fazer, agora.
Oh. Ela não entendeu o que ele dizia até que um beijo na região do seu
baixo ventre fez com que seu estômago borbulhasse.
Ele se ajoelhou e ficou de frente para a intimidade desnuda. Ela ergueu
um pouco o corpo para vê-lo e a lascívia nos olhos dele a deixou corada e
excitada. Com os dois polegares, Aiden acariciou e abriu sua intimidade para
fazer o que prometeu — ele a tocou lá, com a língua.
O prazer imediato que irradiou pelas terminações nervosas dela fez com
que Elizabeth jogasse o corpo para trás novamente. Nocauteada.
— Aiden! — ela se lamuriou, enquanto sentia-o com a boca ao redor de
sua feminilidade. — O que o senhor está fazendo? Isso não é contra a lei?
Ele riu.
— Sou um membro do Parlamento. — O duque ergueu o olhar. — Eu
saberia se fosse.
— Se não é contra a lei dos homens, deve ser contra a lei de Deus.
Aiden ergueu o corpo e beijou-a na boca. Um beijo rápido, mas intenso,
que significou sua vontade de silenciá-la.
— Elizabeth, não há pecado em fazer algo que nós dois queremos tanto.
A senhora não quer?
Ah, ela queria. Queria muito, mesmo sabendo que não poderia, ou
deveria, tê-lo. Ao invés de falar, ela apenas assentiu movendo a cabeça.
— Então me deixe te dar prazer. Não se reprima.
Ela faria qualquer coisa que ele pedisse. Com aquela certeza, Elizabeth
relaxou os músculos e aceitou quando a boca dele voltou a tocar seu centro
de prazer. Aiden beijou e acariciou com os dedos e com a língua toda a sua
extensão. Depois, penetrou-a com um dedo e, não sentido muita resistência,
inseriu mais um. Dentro dela, uma agonia deliciosa começava a crescer em
seu ventre.
M ESMO QUE ELE soubesse que Elizabeth não era nenhuma virgem, Aiden
divertiu-se ao constatar que ela nunca havia sentido prazer da forma como ele
lhe proporcionava. Havia algo de poderoso em ser qualquer primeira vez,
uma experiência nova para ela, principalmente quando ele pretendia marcá-la
de forma incontestável.
Ela era tão deliciosa. Além do aroma de flores, tinha um sabor adocicado
de pêssego e bergamota, com a nota exata de acidez que fazia o ato de beijá-
la ali, em sua intimidade, tão bom. Claro que ele queria que fosse bom para
ela, em primeiro lugar, mas estava sendo gostoso demais para ele também.
A cada desbravada de sua língua, Elizabeth gemia e se retorcia sobre a
cama. Quando ele adicionou os dedos e a penetrou, pôde sentir que ela se
entregava totalmente. A vontade de possuí-la ali, naquele instante, se
intensificava a cada murmúrio delicado que ela exalava. Aiden queria vê-la
gemer seu nome e desfalecer em seus braços de todas as formas possíveis.
Mas ele não faria aquilo a não ser que ela pedisse.
Enquanto Elizabeth resistisse em ser dele, Aiden respeitaria aquela
decisão e se concentraria em fazer com que ela mudasse de ideia. Seu pênis
dolorido e duro, que clamava por sair de dentro das calças, discordava
daquela decisão.
Sua língua circulava o centro de prazer de Elizabeth e seus dedos a
penetravam. Ele deixou a imaginação se perder e começou a divagar. Ela
delirava com o toque dele e gemia até convulsionar em sua boca. A indicação
de que ela chegava ao clímax o abalou. Se levantasse e a possuísse, ela não
diria que não. Era fácil colocar fim ao seu martírio, mas seria injusto e imoral
se ela não o desejasse da mesma forma.
Exaurido, Aiden deitou-se na cama ao lado de Elizabeth. Ela estava nua e
extenuada sobre o colchão. Seu corpo imaculado parecia incapaz de se mover
e ela tinha uma expressão indecente de quem ainda não tinha superado o
êxtase. Ele estava com as calças úmidas de sua excitação, a camisa
desgrenhada e os cabelos despenteados. Se aquela não fosse a melhor
representação de duas pessoas que haviam acabado de fazer sexo, ele não
sabia de mais nada.
Abraçou-a com todo cuidado e ela enfiou o nariz em seu peito. Aquela
era uma ótima sensação com a qual ele poderia se acostumar.
O SOL PENETROU INDOLENTE pelas cortinas mal fechadas do quarto ducal e
fez com que Aiden despertasse cedo. Ele demorou um minuto inteiro para
perceber o espaço em sua cama e suas mãos acabaram repousando sobre sua
virilha. Era uma manhã diferente, ele não acordou duro nem entorpecido pelo
desejo.
— Bom dia, milorde.
Geoffrey entrou no quarto e abriu as janelas. O criado tinha ordens para
despertá-lo cedo todos os dias, para que o duque tivesse tempo suficiente para
seus exercícios físicos. Aiden sentou-se na cama e olhou ao redor — ela não
estava ali. Elizabeth saiu dos aposentos do duque pelo meio da madrugada,
ciente de que ela não deveria ser vista pelos criados.
— Um mensageiro do Conde de Cornwall deixou uma mensagem para
Vossa Graça. Devo separar suas roupas de cavalgada?
— Sim, por favor. — Aiden levantou-se e foi até o banheiro lavar-se. O
cheiro de Elizabeth estava por todo lugar. Ele temeu que alguém pudesse
senti-lo. — Antes, preciso comer alguma coisa.
— Serviremos vosso desjejum na sala privativa.
O criado saiu e retornou minutos depois para ajudar Aiden a vestir-se. O
duque já suspeitava do que se tratava a mensagem de Edward e seria bom
passar o dia na presença do amigo. Se ficasse na casa, sem nenhuma
atividade, acabaria procurando a governanta. Ele deveria estar satisfeito, mas
não estava. Sua pretensão de passar uma noite com Elizabeth para abrandar
seu desejo não teve sucesso. Ele não se satisfez fisicamente. Dar prazer a ela
só fez com que a ânsia aumentasse. A vontade de tê-la em seus braços
permaneceu. Ele acordou querendo vê-la.
O melhor que podia acontecer era ser arrastado por Edward para algum
tipo de atividade masculina.
Depois de comer, dirigiu-se aos estábulos e seu cavalo já estava selado à
sua espera. James Hodges estava sorridente segurando os arreios do puro
sangue castanho cujo pelo brilhava na claridade do dia.
— Como ele está hoje, Hodges?
— Bem-disposto, como Vossa Graça pode ver. Esse meninão vai adorar
um passeio.
Aiden olhou ao redor para ver se a encontrava. Viu os meninos passarem
correndo para uma parte mais afastada da propriedade e os jardineiros indo
cuidar das flores da duquesa. O dia estava lindo e a brisa era fresca, mas ele
se chateou por não ver Elizabeth antes de sair.
Precisava parar de pensar naquelas bobagens. Conduziu o cavalo pelas
trilhas na direção de Greenwood Park, onde se encontraria com o amigo e
passaria um dia longe dos problemas que aquela mulher representava.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

D EPOIS DE PASSAR O DIA NA CASA DE LADY A NNE B RIGHTON E PASSAR POR


Greenwood Park, os criados levariam lady Agatha o mais rápido possível
para casa, mas ela tinha outras intenções. Decidiu pedir que a carruagem
cortasse caminho pela propriedade do Conde de Cornwall, queria falar com
Edward McFadden. O conde era o melhor — e talvez único — amigo de
Aiden, e poderia ajudá-la em um propósito.
— Granger! — Ela bateu no teto da carruagem e gritou pelo criado. —
Quero parar em Greenwood Park, peça ao cocheiro que me leve até a casa
principal.
— Como desejar, milady.
Agatha sabia que o conde não a estaria esperando e temia que, talvez, ele
não fosse estar em casa para recebê-la. Arriscou assim mesmo e teve sorte.
Tão logo foi anunciada, ao chegar ao casarão da família McFadden, foi
recebida pelo irmão mais novo do conde, o segundo filho, lorde Isaac.
Ele era um jovem bonito, até mais do que Edward, mas Agatha ainda não
se interessava exatamente pelos homens. Talvez fosse do gosto de Aiden que
ela se casasse com um dos meninos McFadden, já que Edward contava com
três irmãos, só que ela não tinha certeza se gostaria de desposar nenhum
deles.
— Lady Agatha. — Lorde Isaac beijou a mão enluvada da dama. — É um
prazer revê-la em Kent. Seu irmão acabou de sair. Se veio encontrá-lo, temo
ter perdido a viagem.
— Na verdade, gostaria de falar com seu irmão, o conde, milorde.
Ela deu um risinho que sabia poder ser confundido com um flerte. Agatha
fazia muito daquilo. O duque já a havia repreendido por sorrir demais para os
homens. Ela apenas não conseguia impedir.
— Então seja breve. — A voz de Edward ecoou vinda do salão. — Não
estou com tempo para perder com crianças.
— Ele é sempre assim? — ela sussurrou para lorde Isaac.
— Assim como? Um completo imbecil? Acho que sim.
Os dois riram e dispersaram quando o conde pigarreou e se intrometeu no
cochicho. Ofereceu o braço para Agatha acompanhá-lo até o jardim de
inverno. Mesmo sendo amigo da família, ela sabia que o conde só tomava
aquela liberdade porque ela estava devidamente acompanhada de sua criada.
— Diga o que quer, lady Agatha. Se veio sozinha, já sei que está
tramando alguma coisa.
— Eu não tramo coisas, milorde. — Ela se fingiu ofendida com a
insinuação dele. — Mas gostaria de sua ajuda em nome da amizade que tem
com meu irmão.
Eles se sentaram em uma das mesinhas redondas com cadeiras de ferro do
jardim e o conde chamou um criado, pedindo que servisse um chá para os
dois. Era hábito dos McFadden tomar o chá no jardim de inverno, apreciando
as plantas e flores da mãe.
— Sou todo ouvidos. O que pretende?
— Primeiro, gostaria que me dissesse se notou algo diferente em Aiden
nesses dias. Se o percebeu distraído, um pouco arrebatado, talvez.
Edward coçou o queixo quadrado e fitou a dama com seus olhos azuis.
Ela enrubesceu ao se perceber examinada. Era a primeira vez que o conde
causava nela algum efeito que não a vontade de estapeá-lo por suas falas
rudes.
— Se diz depois da doença, devo confessar que sim. Ele tem estado muito
distraído, inclusive, se feriu em um treino de esgrima e hoje quase bateu com
a cabeça em um galho de árvore, durante nossa cavalgada pelo bosque. É
como se a escarlatina lhe tivesse afetado o cérebro. Estou até um pouco
preocupado.
Agatha riu. Um largo sorriso ao confirmar que sua percepção sobre o
irmão não estava equivocada, que seu melhor amigo também estava
percebendo as mudanças no comportamento do duque.
— Pois é por isso que gostaria de sua ajuda, com total discrição. Acredito
que o problema de Aiden não tenha muito a ver com a doença. Ele está
apaixonado.
O conde engasgou com o chá que acabara de ser servido.
— O duque? Apaixonado? — Deu uma risada e limpou os lábios com um
guardanapo de tecido. Agatha se incomodou por estar tão atenta aos
movimentos do conde. — Deve estar enganada, lady Agatha. Aliás, tenho
certeza de que está enganada. Aiden não é do tipo que se apaixona.
— Pois ele está e eu gostaria que convidasse a Sra. Collingworth para seu
jantar. Pretendo dar a ele a chance de interagir socialmente com ela e até
mesmo tirá-la para uma dança.
— Collingworth? — Edward se ajeitou na cadeira. Ele parecia
incomodado com a conversa. — Está falando da governanta?
— Sim. A mulher com quem ele ficou confinado por uma semana e só
eles sabem dizer o que aconteceu nesse tempo. Seja lá o que for, afetou meu
irmão de uma forma que talvez nem ele esteja percebendo.
A lady bebericou seu chá. Ela estava arriscando se indispor com Aiden ao
interferir daquela forma. Pior, arriscava se indispor com sua mãe, a duquesa,
que havia decidido casar o filho com Madeline Westphallen. Claro que os
planos da mãe não dariam certo, Aiden não se casaria com Madeline apenas
porque ela queria. Mesmo assim, a duquesa acreditava que tinha muito poder
sobre o filho e contrariá-la era comprar uma briga que Agatha não poderia
vencer.
Aquela era a primeira vez que Agatha via o irmão tão afetado por uma
mulher. O sempre indiferente Aiden Trowsdale tinha sido arrebatado pela
linda e delicada mulher que apareceu em sua vida por uma obra zombeteira
do destino. A jovem não tinha dúvida nenhuma que seu irmão estava
apaixonado.
— Milady, seu irmão é um duque. O Duque de Shaftesbury, um dos
maiores e mais prósperos ducados da Inglaterra. Ele continua o legado de
sucesso de seu pai e tem muitas responsabilidades. Atualmente, temos
inclusive fechado negócios com a nova classe de negociantes e industriários
para não ficarmos para trás na economia. Ele tem um papel relevante no
parlamento britânico e a senhorita deseja casá-lo com uma… criada?
A forma como o conde escolheu as palavras fez com que elas soassem
quase educadas, mas eram rudes, mesmo assim. Por mais que lady Agatha
soubesse das responsabilidades ducais do irmão, ela não conseguia ver
problemas se ele quisesse escolher uma esposa que não fosse nobre.
— Essa deveria ser uma decisão exclusivamente dele. — A jovem
manteve sua postura de quem fazia a coisa certa. — Eu apenas gostaria de
possibilitar que ele percebesse que está apaixonado.
— Certo. Se eu convidar a governanta e recebê-la em minha casa no meio
das famílias aristocratas, afrontando a condessa ao fazê-la cumprimentar uma
plebeia, a senhorita acredita que o duque compreenderá que gosta dela apenas
por vê-la em um vestido de seda?
— Apenas faça isso, milorde. Sei que peço algo grande, mas o senhor
vive convidando plebeus para seus eventos. O que são esses negociantes e
suas famílias sem estirpe que sempre frequentam sua casa? Eles não são
melhores do que Elizabeth apenas porque possuem dinheiro. No final, vieram
da mesma classe social que ela.
O conde coçou o queixo. Era difícil argumentar com Agatha e ela sabia
daquilo. Aquele era um dos motivos pelos quais Aiden sempre se irritava
com ela. Dizia que ela era inteligente e petulante demais para uma dama e
aquelas ofensas a entusiasmavam mais do que elogios.
— Vou enviar um convite para a Sra. Collingworth — ele cedeu. —Mas,
se Aiden não se encantar por ela nesse jantar, se seu plano não for bem-
sucedido, prometa-me que deixará de interferir nas decisões amorosas do seu
irmão.
— Temos um trato, então. — Lady Agatha terminou seu chá e depositou
a xícara no pires sem fazer nenhum ruído. — Sabia que podia contar com sua
ajuda, é ótimo que meu irmão tenha amigos tão progressistas.
Ela se levantou para voltar para casa. Precisava colocar as outras partes
do seu plano em prática, afinal, o jantar aconteceria em dois dias.

A CASA de James Hodges era simples, porém, melhor do que a sua, em


Londres. Elizabeth percebeu aquilo no instante em que viu as grandes janelas
abertas e a luminosidade que provinha da lareira e das velas. Patrick e Peter
vinham atrás dela, um pouco desconfiados, mas entusiasmados em participar
de um evento social. Para eles, era um grande evento.
Como criada, ela não tinha nada muito elegante para vestir. Estava com
os cabelos soltos e conseguira ajustar um vestido antigo, que possuía uma
saia em camadas e um decote generoso. Sentiu-se bonita e digna do cortejo
de um pretenso marido.
Ao mesmo tempo, sentiu-se impura como se estivesse prestes a cometer
traição. O sorriso que deu para si mesma, na frente do espelho, continha a
alegria de despertar o interesse de um bom homem e a tristeza de desejar
outro. Bem, ela não era uma virgem que precisava estar intocada para o
casamento. Se Hodges fizesse alguma proposta, no futuro, seria consciente de
que Elizabeth fora mãe duas vezes e tivera um marido. Mas seu coração,
aquele não conseguia parar de reclamar pelas decisões racionais que a cabeça
tomara.
— Sejam bem-vindos! — Hodges os recebeu e beijou a mão de Elizabeth
quando ela se aproximou. — Reggie está na cozinha me ajudando com o
jantar, já vamos servi-lo. Estão com fome?
Os meninos assentiram com movimentos de cabeça. O lado de dentro a
casa era confortável — havia um sofá estofado na sala, uma lareira grande e
até mesmo livros em uma estante. O cheiro de ensopado que vinha da
cozinha era agradável.
— Deixe-me fazer algo — ela insistiu.
— Não, hoje a senhora é minha convidada. Vamos comer um guisado que
é receita da minha falecida mãe e tomar xerez barato.
Sim, claro que eles iam. Um lado de Elizabeth estava ansioso por aquilo,
outro desejava retornar para a mansão. Ela ainda não tinha visto Aiden depois
de ter ido com ele até os aposentos ducais e não sabia como interpretar aquele
afastamento.
Como prometido por Hodges, o jantar foi saboroso e divertido. Reggie
era um jovem espirituoso e inteligente, que vinha estudando sozinho porque
não tinham dinheiro para matriculá-lo em uma escola. A vila não dispunha de
escolas gratuitas financiadas pelos nobres e aquele pobre rapaz só poderia
contar com ele mesmo para aprender.
O cavalariço era um viúvo que vivia para o trabalho e o filho, mas que já
estava cansado de cuidar sozinho da casa. Durante o tempo que passaram
juntos, Elizabeth teve certeza de que ele pretendia casar-se novamente, e a
primeira pretendente que ele se dispôs a cortejar era ela.
— Obrigada pelo convite — Elizabeth agradeceu, enquanto caminhavam
de volta à mansão. O cavalariço ofereceu-se para conduzi-la. — Foi uma
noite muito agradável.
— Agradeço que tenha aceitado. Espero que não me considere muito
afoito, Sra. Collingworth, mas eu gostaria muito de poder cortejá-la, se for do
seu interesse.
Ela o fitou brevemente sob a luz prateada da lua. Suas impressões sobre o
homem não mudaram — ele não dispunha de muita beleza física, mas seus
traços singulares eram intrigantes e bem-desenhados. Não havia mal algum
em aceitar as investidas daquele homem, que poderia resgatá-la de uma vida
penosa que já se estendia por cinco anos. Mães viúvas eram uma das
categorias que mais sofriam na gelada e esfumaçada Londres.
Havia Aiden, mas o duque não poderia ser considerado um impedimento
para que ela aceitasse o cortejo de outro homem. As intenções de Aiden para
com ela se resumiam ao desejo de torná-la amante, enquanto Hodges
demonstrava que tinha pretensões bem mais honestas.
— Claro, Sr. Hodges. — Ela deu um risinho tímido ao perceber que ele
ficou aliviado com a sua resposta. — Mas fique sabendo que sou uma mulher
exigente.
— Tomarei nota de suas exigências e tentarei atendê-las.
Despediram-se ao chegarem à porta dos fundos. Elizabeth notou que
Loretta os espiava pela janela da cozinha, no escuro, tentando passar
despercebida. O cavalariço beijou a mão da governanta e ela entrou com os
filhos, levando-os logo para a cama. Já passava da meia-noite e crianças
pobres dormiam bem mais cedo que aquilo.
Não pôde deixar de notar, enquanto se aprontava para dormir, que James
Hodges a tratava com mais reverência do que Aiden Trowsdale. Seria aquilo
um efeito dos momentos íntimos involuntários que ela compartilhou com o
duque? Afinal, a conversa fluía com tanta facilidade e a proximidade era tão
natural entre ela e Aiden que era como se ele não precisasse pedir permissões
ou se prender a convenções. Eles eram íntimos, eles se tornaram íntimos
desde o início e aquilo fez diferença na forma como se tratavam.
Ela precisava parar de pensar no duque. Aiden era um sonho de menina
que tinha ficado para trás. Tendo um pretendente interessado nela, era mais
prudente que se concentrasse em considerar um novo casamento e uma nova
vida fora de Londres.

— M ILORDE .
John entrou no escritório do duque, depois de confirmar que ele estava
ali. Aiden acordara mais cedo do que gostaria, com a cama vazia e fria. Ele
não vira Elizabeth por um dia inteiro e aquilo o estava deixando ansioso. Não
sabia como ela reagiria depois do que houve, já que ela fora sempre tão
resoluta em negar que seria sua amante.
Talvez fosse possível negar. O que eles fizeram não foi sexo. Foi? Aiden
era homem, para ele o sexo era bem mais do que ele compartilhara com a
governanta. Ele precisava estar dentro dela. Sobre ela. Ela não era,
tecnicamente, sua amante. No fundo, ele sabia que nenhum jogo de palavras
mudaria a realidade.
— Diga, John.
— O criado do Conde de Cornwall trouxe uma mensagem para Vossa
Graça. É o convite formal para o jantar em sua residência, amanhã.
Aiden ergueu a cabeça e pegou o papel da mão do mordomo. A
mensagem, escrita em linho e com caligrafia bastante elegante, convidava a
família Trowsdale para o tradicional jantar realizado na casa em Greenwood
Park.
Era uma festa para poucas figuras da aristocracia que estavam em Kent.
Dois marqueses, um conde e um duque, além dele, eram convidados, com
suas respectivas famílias. E, claro, as Westphallen. Por que diabos Edward
cismou que ele iria querer se casar com uma daquelas mulheres
desagradáveis? Também estariam presentes os Fairfax e os Oglethorpe, duas
famílias burguesas que não ostentavam título de nobreza, mas tinham muito
dinheiro e negócios de interesse do conde.
— Certo. Por favor, envie Geoffrey com a confirmação, diga que vamos.
A Sra. Collingworth, peça que venha me ver.
Com um movimento de cabeça, John se retirou e deixou Aiden pensativo.
Ele gostaria que Elizabeth fosse àquele jantar. Adoraria vê-la vestida em seda
e renda, usando um vestido que fizesse justiça à sua beleza angelical ao invés
das roupas cruas e sem graça dos criados. Mas não podia levá-la. Ela era sua
governanta. Também não a levaria como dama de companhia de Agatha, essa
não era uma prática comum em eventos como aquele. Aquilo o aborreceu em
dobro. Ele era um duque que tinha tanto poder e, ao mesmo tempo, nenhuma
decisão sobre a própria vida.
Voltou a analisar os documentos que tinha em mãos por alguns minutos
até que a porta se abriu e ela entrou. Cabelos que reluziam com o sol e um
brilho perfeito no olhar.
— Mandou me chamar, milorde?
— Sim. Eu queria te ver.
Ah, ele poderia falar bobagens tolas o tempo todo apenas para ver o rubor
que tingia as bochechas dela. Elizabeth limpou as mãos no avental que estava
pendurado em sua saia e sorriu, ajeitando uma mecha teimosa de cabelo para
dentro do gorro que usava.
— Quer que eu traga seu desjejum?
— Já comi. Eu realmente só queria te ver.
Ela sorriu mais uma vez e suas bochechas estavam quase vermelhas.
Aiden adorava levar cor àquela face linda. A timidez de Elizabeth fazia com
que ela se parecesse ainda mais jovem. Era quase impossível acreditar que ela
tinha um filho de sete anos.
— Apesar de grata pela lisonja, nós não podemos continuar fazendo isso.
Eu… O Sr. Hodges pediu permissão para me cortejar. E eu dei.
Aquela frase atingiu Aiden no meio do peito, como uma espada prestes a
romper seu coração. Por mais que ele soubesse que havia algo suspeito na
interação dela com o cavalariço, desejava que não fosse nada além de um
flerte tolo. Se Hodges fosse um homem esperto, ele jamais deixaria uma
mulher como aquela lhe escapar. E não havia como competir com ele. Era
ridículo que um duque se considerasse em posição de desvantagem em
relação a um criado, mas o cavalariço poderia oferecer a Elizabeth um status
que ele, Aiden, não tinha condições de fazê-lo.
— Bem, ele pode cortejá-la, mas vocês não possuem nenhum
compromisso. Estou enganado?
— Não temos um compromisso. Ele não me pediu em casamento, se é
isso que Vossa Graça quer dizer.
— Então, enquanto não houver compromisso, significa que podemos nos
ver.
Aquela era uma atitude que lhe cabia bem. Aiden não costumava deixar
aquilo que era de seu apreço sem esgotar todas as suas possibilidades de
mantê-lo. Elizabeth era de seu apreço. Ele daria qualquer coisa para que ela
mudasse de opinião sobre sua oferta.
— Tudo bem, o senhor tem um bom argumento. Agora que estou aqui, se
quiser pode me contar em que está trabalhando. Eu sempre acreditei que
aristocratas não trabalhavam.
Aiden riu e levantou. Pegou um documento nas mãos, considerou se
deveria compartilhar com ela aquelas informações. Não eram segredo, mas a
maioria das pessoas não o compreenderia.
— Não trabalhamos. Mas eu não acredito que a saúde financeira da
nobreza vá durar muito tempo. A Inglaterra é agora dos investidores, dos
negociantes, de quem movimenta a indústria. Esses homens estão
acumulando o dinheiro e nós, os nobres, apenas gastando nossas posses. Em
pouco tempo, seremos engolidos por essa classe média que sonha em chegar
ao nosso posto.
Os olhos dela brilharam. Elizabeth estava interessada no que ele falava,
então o duque indicou que ela deveria sentar em um sofá próximo. Depois,
sentou ao lado dela e entregou o documento que segurava.
— Essa é uma teoria e tanto. Acredita mesmo que ela vá se concretizar?
— Talvez sim, talvez não, mas não ficarei esperando para ver se estou
certo ou errado.
Ela fixou a atenção nos papéis. Aquele era um contrato de investimento
com um industriário importante e muito rico, que estava construindo prédios
novos em Londres. Eram regiões empobrecidas que estavam sendo renovadas
e atraindo a atenção da burguesia e dos americanos. Já havia hotéis e lojas
abertas, convidando as pessoas de dinheiro a frequentarem os arredores
afastados de Mayfair.
Elizabeth sabia. Ela era uma observadora, Aiden já notara, e a região mais
afetada por aqueles contratos ficava próxima de Shadwell, o bairro em que
ela morava.
— Vossa Graça vai investir com esse homem, então. Não é arriscado?
— Um pouco. Por isso começarei com um investimento de média monta,
para não me descapitalizar muito. Com o tempo, posso investir mais, só
depende dele.
A luz que refletia no azul límpido dos olhos dela indicava seu fascínio
pelo assunto, mesmo que ele entediasse, ou confundisse, a maioria das
damas.
— Parece uma decisão muito inteligente. Cada vez mais percebo a cidade
crescendo na vertical, as docas recebendo mercadorias e turistas, e enviando
nossos produtos para fora. Não sei se acredito que os nobres perecerão, mas
eles já precisam dividir espaço com um novo grupo de pessoas que, até pouco
tempo, não era admitido nas rodas sociais.
— E amanhã, dois negociantes estarão na festa do meu amigo conde. Um
deles é o homem que subscreve esses papéis na sua mão. Eles já estão entre
nós.
Aiden gostaria de encerrar a pequena distância entre eles e beijá-la. Ele
não estava satisfeito. O prazer infligido, duas noites atrás, não serviu para
aplacar o desejo que ele sentia por ela. Ao contrário, fez com que ele se
intensificasse. A vontade de estar com Elizabeth era maior do que antes,
principalmente porque ela compreendia — e apoiava? — as decisões que ele
vinha tomando. Mas ele não fez isso porque o escritório foi invadido por uma
Agatha agitada e animada demais.
— Aiden, preciso sair para visitar minha estilista. Edward, aquele
tratante, enviou esse convite em cima da hora e não tenho um vestido
adequado para…
Ela percebeu os dois sentados no sofá. Elizabeth levantou-se, um tanto
constrangida, assim que a porta se abriu, mas Agatha era perspicaz. Parecia
que o destino de Aiden era estar cercado de mulheres sagazes que não
deixavam de notar nada ao redor.
— Você tem mais vestidos do que pode usar, Agatha. Mas, se precisa de
um novo, vá à estilista.
— Certo. — Agatha os olhava com curiosidade. A irmã desconfiava de
algo, claro que sim, mas ele não fazia ideia do que aquilo significava. —
Então vou levar Elizabeth comigo.
Aiden quis dizer que ela não deveria fazer aquilo, que a governanta tinha
outros serviços, mas havia garantido que a irmã era a prioridade sempre. Não
deveria voltar atrás. Concordou e suspirou por mais uma vez passar o restante
do dia sem poder ver Elizabeth.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

E LA NÃO ESTAVA ENGANADA . O IRMÃO E A S RA . C OLLINGWORTH TINHAM UM


relacionamento estranho. Aiden sempre fora um homem distante e
desinteressado pelos criados, Agatha duvidava que ele soubesse o nome de
pelo menos metade deles. Mas a governanta... Ele a tinha contratado e ela
estava sempre com ele, em situações, no mínimo, inusitadas. Não que Agatha
se importasse. Ela achava o máximo que o irmão tivesse, afinal, vontade de
estar com alguma mulher. O problema era a governanta ser uma plebeia. A
lady não sabia o que fazer com aquilo. Se incentivasse Aiden, se ajudasse
uma aproximação dos dois, isso poderia ferir Elizabeth porque ele não se
casaria com ela. Certo? Bem, e por que não?
A primeira coisa que ela precisava fazer era garantir que as duas fossem à
festa de Edward McFadden e aquilo tinha sido providenciado com sucesso.
Agatha não gostava muito do conde, ele era pedante e cheio de regras e
manias, mas poderia tê-lo como aliado. Naquele momento ele seria seu único
aliado, já que a mãe não suportaria a ideia de aproximar o duque de uma
plebeia viúva.
Ela tinha um bom plano. Ele fez mais sentido no instante em que pegou o
irmão tocando Elizabeth enquanto pegava um papel das mãos dela. Inventou
a necessidade de levar a governanta para acompanhá-la até a estilista porque
precisava conseguir um vestido para ela. Não poderia levá-la ao baile sem um
vestido adequado.
— Elizabeth, preciso confessar uma coisa — a lady disse, quando as duas
caminhavam na direção da loja de sapatos. Agatha também inventou que
precisava de sapatos, claro. — Não estamos aqui para comprar algo para
mim.
— Entendo. Será um presente, então? Algo para o duque?
— Não, o duque não é muito fã de presentes desse tipo. Eu pensei em
comprar um presente, sim, mas para a senhora.
— Para mim? — Elizabeth parou no meio da via e levou alguns segundos
para retomar o passo. — Lady Agatha, eu fico agradecida, mas não posso
aceitar. Nem teria onde usar um sapato refinado como os que vendem nesta
loja.
As duas entraram e foram recebidas por um vendedor de olhar amistoso.
Era um antigo conhecido de Agatha, que tinha uma coleção de sapatos que
mal cabia em um quarto.
— Terá, quando for comigo ao jantar do Conde de Cornwall, amanhã.
— Milady, eu não vou ao jantar. Não é comum uma dama levar criadas
de companhia em um evento social, portanto…
— Elizabeth. — Agatha virou-se e segurou-a pela mão. O vendedor
aguardou. — A senhora não irá como minha acompanhante, mas como
convidada. Tenho certeza de que, quando retornarmos para Thanet Bay,
haverá uma mensagem do conde para a senhora. Concordamos que, apesar de
seu contrato como governanta, sua situação na casa é bastante atípica. E,
bem, eu sei que há algo entre a senhora e meu irmão.
Aquela última parte saiu sussurrada, mas não evitou que Elizabeth
enrubescesse e baixasse o olhar.
— Não se preocupe — a lady prosseguiu. — Seja qual for, seu segredo
está seguro. Na verdade, eu estou empolgada não importa o que for que haja.
Por isso quero que vá ao jantar, quero que ele tenha a chance de tirá-la para
dançar. Você já participou desses eventos quando bem nova. Sabe como se
portar neles.
Elizabeth não parecia convencida e o plano de Agatha precisava da
concordância dela para dar certo. Talvez com um banho de seda e um pouco
de reforço de sua feminilidade, a resistência dissipasse. Foi isso que a jovem
dama fez: experimentaram sapatos, depois foram para a estilista e
experimentaram alguns vestidos de segunda mão. Agatha só vestiria um
exclusivo, mas não tinham tempo e o vestido não era para ela. Elizabeth tinha
que estar perfeita para a noite seguinte. E ela estaria.
O vestido escolhido era rosa, um tom intenso e elegante, com a saia
enfeitada por laços, rendas e rosas. Não tinha mangas longas e o decote
exibia o colo de forma a provocar sem exageros. Depois de alguns ajustes, ele
coube em Elizabeth como se tivesse sido feito sob medida.
— Está perfeito — Agatha disse, animada. — Só precisa de uma joia no
pescoço.
— Certo, mas a senhorita não vai comprar uma joia para mim.
— Não preciso, eu tenho várias. Há colares que foram de minha avó e
nunca nem mesmo usei. Tem um que tem um quartzo rosado que certamente
vai ficar perfeito com o vestido.
A governanta retornou para o outro lado do biombo.
— Lady Agatha, eu aprecio seu esforço, mas não entendo os motivos
pelos quais minha presença nesse jantar é adequada. Eu sou apenas uma
criada.
— Não é. — A lady foi até ela para ajudá-la com o espartilho. Dispensou
a estilista por um instante para poderem conversar. — Veja bem, eu sei que
Aiden gosta da senhora. Não me faça perguntas, mas eu conheço meu irmão.
E ele precisa de uma esposa, precisa de um herdeiro, e isso vai acabar
fazendo com que ele se case por obrigação com uma dama que ele não ame.
A risada de Elizabeth era um misto de nervosismo e horror. Agatha
adorava despertar aqueles sentimentos nas pessoas.
— E milady acha que eu sou a solução para isso? Que seu irmão
consideraria casar-se comigo?
— Por que não? Ele não precisa de uma dama com dote, somos muito
ricos. Basta que seja alguém que ele ame.

A INOCÊNCIA de lady Agatha era tocante. Elizabeth engasgou duas vezes com
a própria risada nervosa durante uma conversa bastante constrangedora em
que a lady insistia que Aiden Trowsdale gostava dela e poderia se casar com
ela. Claro que o duque não se casaria com ela, em nenhuma das vidas que ela
tivesse vivido. Se houvesse vinte vidas possíveis, ainda assim, o duque não
desposaria uma mulher como ela.
— Milady, por mais que eu me sinta honrada com sua aprovação, seu
irmão jamais desposará uma plebeia. Ele é um duque, tem responsabilidades
a cumprir.
A jovem deu uma risada divertida e terminou de soltar o espartilho. Foi
bom voltar a respirar, Elizabeth não estava acostumada a ser tão apertada.
Aquilo era coisa que tinha ficado na sua adolescência.
— Vamos ver. Deixe-me seguir com o plano. Você não gostaria de ser
cortejada por um duque? Sei que ele é meu irmão, mas Aiden é um homem
bonito. Ele é meio mandão todas as vezes, mas tem um bom coração.
Ah, ela sabia muito bem o quanto o duque era bonito. E o quanto ficaria
feliz em ser publicamente cortejada por ele. Não mais por causa de um sonho
de juventude, mas porque ela gostava de Aiden. Poderia continuar negando e
fingindo que sentia apenas desejo pelo homem, mas a verdade era que
Elizabeth gostava da companhia do duque, muito mais do que deveria.
Ele era divertido e falava coisas com ela que nenhum outro homem
falaria. Tinha ideias progressistas demais para um duque e pensava no bem-
estar das pessoas menos afortunadas. Ele tratava bem os empregados, mesmo
que agisse como um nobre quase sempre. Aqueles detalhes, que ela percebeu
no pouco tempo ao lado dele, faziam de Aiden um nobre incomum. Ele a
notara e ele a reconhecera como pessoa, enquanto nenhum outro aristocrata o
fizera.
Aquela situação criada por lady Agatha, contudo, era absurda. Se ela
deixasse que o plano prosseguisse, por melhores que fossem as intenções da
jovem, apenas um coração sairia ferido — e era o dela. Elizabeth não podia
ser tão inconsequente. Mesmo assim, ela nada fez para impedir. Não recusou
o vestido nem os sapatos nem o convite para ir à festa, mesmo que aquela
informação só fosse ser revelada para Aiden no dia seguinte, poucas horas
antes do jantar.
— Eu irei aos festejos do conde — Elizabeth concordou, já arrependida
de tê-lo feito. — Mas a senhorita não pode provocar seu irmão a me tirar para
dançar nem inventar uma história mirabolante sobre mim. Minha família já
foi burguesa e frequentou eventos sociais com a nobreza. Não é preciso ser
muito criativo para contar uma história.
— Combinado! — Lady Agatha bateu as palmas das mãos. — Estou
muito excitada, quase poderia gritar de euforia.
Não dava para compreender por que aquela jovem estava tão empolgada
em casar seu irmão com uma mulher de fora da sociedade. Um casamento
daqueles representaria a exclusão de Aiden Trowsdale de todos os círculos
sociais que ele conhecia. Deixaria de ser convidado para bailes e eventos e
seria motivo de chacota nos clubes de cavalheiros.
Também não dava para entender por que Elizabeth concordou em deixá-
la prosseguir com aquela loucura, sabendo dos riscos e das consequências.
Talvez ela quisesse, afinal, ter um dia de realeza e frequentar um baile na alta
sociedade, na aristocracia.
Se não fosse sua vestimenta de criada e seu caminhar sempre dois passos
atrás da lady, talvez ela até pudesse acreditar que passar a tarde na vila fosse
um programa de uma dama. Quando retornaram para casa, a jovem ordenou
esconder todas as compras em seu quarto e determinou que, no dia seguinte,
Elizabeth deveria estar disponível para se arrumar quando faltassem três
horas para o jantar. Greenwood Park ficava próximo de Thanet Bay, então
elas não precisavam de muito tempo.
Aquele era um plano que a deixou agitada. Mesmo já deitada, na cama,
com as crianças dormindo, Elizabeth não conseguia pegar no sono. Olhava
fixamente para a chama de uma vela que queimava solitária em uma
arandela, sonhando com um salão de baile iluminado por muitos candelabros
e cheio de cavalheiros elegantes, com casacas pretas, cartolas e bengalas, e
damas com vestidos bordados e cheios de babados.

O PÉSSIMO HUMOR do duque podia ser sentido no ar da mansão. Apesar da


impecável postura do mordomo, John estava temeroso ao informá-lo que sua
mãe, a duquesa demoníaca, desejava vê-lo. Aiden não detestava a mãe, nem
se importava muito em ir até ela, mesmo sabendo que seria ofendido. Preferia
que ela o fizesse na privacidade de seu quarto ao invés de desqualificá-lo
perante outros nobres, como costumava fazer quando deixava sua reclusão.
O problema dele, naquela noite específica, era a falta da luz dourada dos
cabelos de Elizabeth. A ausência do azul cintilante como o céu daquele verão,
não poder sentir o cheiro das gardênias nem tocar aquela pele de porcelana. A
governanta estava tirando o seu juízo, mas ele não podia deixar que ninguém
suspeitasse daquilo.
Preferiu não bater à porta, apenas entrou nos aposentos da duquesa. Ela
estava à janela, sentada em um canapé, observando o breu que começava a
engolir o bosque que circundava parte da propriedade. Quando percebeu o
filho chegando, ajeitou-se com sua mais inexpressiva face.
— Mandou me chamar, mamãe? — Aiden perguntou, com um sorriso.
Ele nunca era correspondido, mas insistia em parecer feliz na presença dela.
— Sim. Quero que inicie o cortejo de Madeline Westphallen no jantar de
Cornwall, amanhã.
Ele engasgou. Talvez porque tentou não rir do absurdo que lhe era
pedido.
— Cortejo? — Aiden repetiu a palavra marcando cada letra, desejando
confirmar que não tinha se equivocado.
— Sim, cortejo. Você é um homem de trinta e um anos que nunca
demonstrou interesse em nenhuma dama, nunca frequentou uma temporada a
sério. Já passou o momento desse comportamento, Aiden Trowsdale. Como o
Duque de Shaftesbury, você tem responsabilidades em dar continuidade à sua
linhagem e precisa de uma esposa adequada.
— A senhora decidiu, portanto, que lady Madeline é adequada? — O
duque mantinha sua atitude gentil mesmo que seu corpo indicasse seu
desconforto ante a intromissão da mãe em seus assuntos.
— Ela é filha de um visconde e está na idade certa para se casar. E tem
afeição por você. Amanhã você deve reservar a primeira dança dela, isso
indicará seu interesse.
Aquilo era um completo absurdo. Aiden levou as duas mãos às têmporas
e as pressionou, olhando para o chão enquanto respirava profundamente. Ele
deveria gargalhar de uma vez e garantir que sua mãe entendesse que ele não
pretendia, em nenhuma hipótese, cortejar Madeline Westphallen.
Ou ele podia concordar. Tirá-la para dançar, manter a paz dentro de sua
residência e, no final, escolher a noiva que desejasse. Ainda era cedo para a
próxima temporada, ele tinha tempo para decidir. De uma forma ou de outra,
ele acabaria se casando com uma dama como lady Madeline e não havia
muito que pudesse fazer para evitar.
— Certo, mamãe. Amanhã, quando as danças começarem, eu tirarei lady
Madeline para dançar. Mas eu não posso prometer nada além disso.
— A primeira dança, Aiden.
— Uma dança. — Ele sorriu. — Não prometo mais do que isso. Deseja
mais alguma coisa?
A duquesa levantou-se e caminhou até ele, que prendeu a respiração e
sentiu seu coração acelerar. Por mais que fosse impossível amar Myrtle
Trowsdale, ele a amava. Conhecera a versão agradável da mãe, a versão
amorosa e gentil. A que não tinha sido amaldiçoada por cinco bebês que
morreram logo após o parto. A que não tinha sido contaminada pela
amargura, antes que ela se fechasse em uma armadura de desamor e azedume.
O duque que amava sua mãe ansiava por um abraço ou um sorriso, mas o
que ele recebeu naquele instante foi um olhar de desprezo que o inspecionou
de cima a baixo.
— Não seja uma vergonha para seu título — ela murmurou. — Sabe que
odeio crianças tanto quanto você, mas precisamos de um herdeiro nesta casa.
Quanto mais cedo começar, mais tempo terá para produzir um varão. Pare de
agir como um irresponsável e procure uma esposa, Aiden. Agora pode ir.
Pode ir era sinônimo de vá logo, a realização do desejo de qualquer
pessoa que adentrasse nos aposentos da duquesa viúva. O duque engoliu uma
lufada de ar e saiu, fechando a porta atrás de si. Recostou-se por alguns
segundos na madeira bem lixada e ponderou se tudo aquilo valia mesmo a
pena. Se valia a pena abrir mão de qualquer coisa para satisfazer um desejo
de Myrtle. Ela continuaria odiando e desaprovando tudo que ele fizesse, não
importando o que nem como fosse feito.
Ele dançaria com Madeline Westphallen, mas se casaria com quem a
dama que escolhesse e a mãe não poderia impedir.

— A SENHORA ESTÁ LINDA .


Lady Agatha estava mais animada do que de costume, dando saltinhos e
batendo palmas toda vez que olhava para sua criação. Era o que Elizabeth
significava naquela noite: o resultado de um dia inteiro de dedicação.
Três mulheres ficaram trancadas no quarto da lady, protegidas por uma
mentira fácil de acreditar: a necessidade de organizar o quarto de vestidos,
que ficava anexo, e preparar lady Agatha para os festejos da noite. Era
desejável uma ajuda maior, mas elas não podiam confiar em mais ninguém
para aquele plano. Se a duquesa desconfiasse que a governanta iria à festa do
conde, ela teria um ataque do coração. Elizabeth não queria estar
desempregada no dia seguinte, então precisava ser cuidadosa.
Primeiro, elas se banharam com leite e sais, para que a pele ficasse macia.
Depois, elas se ajudaram com os vestidos, que necessitavam de muitas
camadas e muitos ajustes. Por fim, dedicaram-se a cuidar dos cabelos.
Quando Elizabeth se olhou no espelho, já no início da noite, a figura que
ela viu fazia jus à frase da lady. Aquela mulher que a encarava de volta era
uma dama, ninguém diria que não. Os cabelos estavam trançados, presos e
enfeitados com flores. O vestido rosa tinha um tom adequado para sua pele e
a gargantilha com a pedra rosada ficou perfeita em seu pescoço.
— Faz muito tempo que não me visto assim. — Ela girou lentamente no
próprio eixo para admirar o trabalho perfeito das suas ajudantes e da estilista
que elaborou aquele vestido. — Espero não me acostumar.
— Já eu espero que a senhora se acostume. Porque, quando meu irmão te
notar…
Ele já a notara, Elizabeth quis dizer. Mas ela só conseguia pensar no
quanto era ridículo aquele plano. Mesmo que o duque a desejasse, entre eles
nunca haveria mais do que aquilo. Ou ela aceitaria ser sua amante, ou ela
continuaria sendo sua criada. Não havia outra opção.
— Isso nunca acontecerá, milady. Sem contar que sua mãe jamais será a
favor de nada relacionado ao seu plano.
— Minha mãe também não manda em Aiden. A senhora pode ser uma
plebeia, mas Madeline Westphallen não é em nada qualificada.
— O pai dela tem um título, milady. Ela é de todo mais qualificada do
que eu.
— Bem, eu duvido que Aiden se importe mais com títulos do que com os
sentimentos dele. Ele foi criado por meu pai, por Deus!
Aquilo não acalmava o nervosismo que crescia dentro de Elizabeth desde
que se trancou naquele quarto com a lady. Não adiantava discutir ou voltar
atrás, ela tinha que enfrentar a estúpida decisão de se envolver naquela
bobagem de seduzir o duque em um evento formal. Era uma exposição
desnecessária de uma personagem fictícia, pois Elizabeth nunca poderia
aparecer em público como ela mesma.
— Moira vai garantir que um cabriolé te conduza a Greenwood Park —
Agatha disse, já se preparando para sair. — Vamos à frente e a senhora chega
depois, porque eu quero ver a expressão de Aiden quando a senhora surgir
naquela festa. Sobre mamãe, não se preocupe, ela já se recolheu e nunca sai
do quarto à noite. A doença se agrava e ela sente dor.
Elizabeth ouviu tudo com cuidado, mas o estômago estava cheio de
borboletas que voavam nervosas dentro dele. Os minutos viraram horas e,
quando Moira indicou que ela deveria descer para ser conduzida até a
propriedade do conde, ela quase não conseguiu sair do lugar. No final, ela
queria ir à festa e aproveitar uma noite sem que ela fosse a mulher servindo
os convidados.
A casa do conde não ficava muito longe de Thanet Bay e o vento da noite
estava fresco o suficiente para que Elizabeth não sentisse enjoo com a
ansiedade crescente. Aquele era um momento crucial porque, se o duque não
gostasse de sua aparição surpresa, ela teria que voltar para Londres no dia
seguinte, desempregada e desiludida.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

A PRIMEIRA COISA QUE A IDEN VIU , AO CHEGAR A G REENWOOD P ARK , FORAM


as damas casadoiras. Elas o perseguiam, era como se estivessem ali
esperando os nobres solteiros para fisgá-los. O duque sabia que era um dos
melhores partidos para aquelas jovens já próximas da solteirice, mas ele não
podia se obrigar a querer nenhuma delas.
Sua educação não permitia que fosse deselegante com elas, mas ele
também não era gentil. Desceu da carruagem, ofereceu a mão para a irmã e
caminhou carrancudo para a entrada principal da residência dos McFadden.
Várias pessoas se aglomeravam ali enquanto aguardavam para ser anunciadas
e entrar. Algumas apenas queriam esperar um pouco antes de enfrentarem as
formalidades da noite.
— Vamos entrar logo e sair desse formigueiro — Aiden sussurrou para
Agatha. Ela segurava a dobra do cotovelo dele e acenava para algumas ladies
que conhecia. — Suas amigas estão doidas para me pegarem sozinho.
— Não podemos entrar agora — ela murmurou de volta. — Tenho uma
surpresa e ela deve estar chegando.
O duque olhou para baixo e viu os olhos grandes e úmidos da irmã, que
se assemelhavam aos olhos de filhotinhos pidões.
Céus, ela tinha aprontado alguma. Aquela era a certeza que emanava das
palavras “eu tenho uma surpresa” proferidas de Agatha, porque ela sempre
estava por trás das mais profanas armações. Tinha a quem puxar, afinal,
porque a mãe também era bem engenhosa.
— Que surpresa, Agatha? Por Deus, não me faça passar nenhum
constrangimento hoje. Esta é a casa do meu melhor amigo.
Ela riu, uma risadinha tímida que representava uma ingenuidade que ela
não tinha. Agatha era pura engenhosidade perversa e Aiden tinha medo do
que ela planejava.
— Vamos apenas aguardar, aí você decide se eu vou te constranger ou
não.
Aiden entregou a cartola e a bengala para um criado e colocou dois dedos
no colarinho justo da camisa. O lenço não estava apertado, nem a roupa, mas
ele tinha começado a suar por receio do que o esperava. Como a irmã olhava
fixamente para a entrada, ele também fez aquilo e aguardou. Minutos e mais
minutos se passaram até que um cabriolé parou na porta de Greenwood Park.
Não era comum que os nobres chegassem em transportes como aqueles,
por isso muitos dos presentes pararam para ver quem seria o convidado
inusitado. O queixo de Aiden Trowsdale tocou o chão e seu coração deu um
salto pela boca quando, de dentro do veículo, saiu Elizabeth Collingworth
vestida como uma rainha.
Não. Ele conhecia a realeza e nenhuma dama real era tão bela, tão
elegante, tão angelical como aquela que caminhava em sua direção. Ela vinha
sozinha, o que também era incomum, e segurava o vestido com uma mão
enluvada. Tudo nela reluzia como ouro e ela irradiava tanta luz quanto
qualquer lamparina daquele jardim.
Aiden deveria ir até ela, mas seus pés estavam colados no chão. Agatha o
cutucou nas costelas e fez com que ele se movesse — era adequado que ele a
recebesse. Com alguns passos vacilantes o duque parou à frente de Elizabeth
e precisou de muitos segundos para estabelecer um raciocínio coerente.
— Elizabeth — ele murmurou. As pessoas então olhavam para eles. — A
surpresa de Agatha era… a senhora?
— Acredito que sim. — Elizabeth sorriu. — Peço desculpas por isso,
Vossa Graça, mas a sua irmã sabe ser persuasiva.
— Ah, sabe. — Ele ofereceu o braço para ela segurar. — Mas eu não
quero que se desculpe eu… fico sinceramente feliz que esteja aqui, agora. Eu
quis te ver todos esses dias, porém, os compromissos me impediram. E eu
quis muito que a senhora estivesse nesta festa.
Sim, ele quisera muito vê-la, tocá-la, beijá-la e fazer amor com ela por
quase três dias inteiros, mas tudo conspirava para que se desencontrassem.
Naquele momento, a presença dela ali era como um desejo secreto sendo
atendido.
Elizabeth segurou a dobra do cotovelo de Aiden e o calor dos dedos dela
ultrapassavam qualquer barreira de tecido. Talvez ele estivesse enganado,
mas ela tremia e tinha o coração acelerado.
— Eu não sei se deveria ter vindo, afinal. Não sei como serei anunciada.
— Deixe que eu e Agatha nos preocupemos com isso. Afinal, a senhora
foi convidada, não foi?
— Sim, o conde me enviou um convite formal.
— Então seu nome está na lista, não há nada com o que se preocupar. Só
tem uma coisa, Elizabeth.
— Diga, milorde.
— Bem, agora são duas. Uma, não me chame de lorde. Duas, sua
primeira dança é minha.
Ela virou o pescoço e olhou para ele. Seus olhos azuis brilhavam
emoldurados por belíssimos cílios longos e fartos. Se Aiden sabia como
respirar, naquele instante ele tinha se esquecido. Não fazia diferença que a
mãe lhe tivesse exigido que reservasse a primeira dança para Madeline
Westphallen. Nada ali, naquele momento, importava além da iluminada
presença de Elizabeth Collingworth.
— Isso não é um baile formal. Teremos dança?
— Sempre temos dança nos jantares de Edward. E eu quero ter uma
dança com você.

T ODAS AS INCERTEZAS de Elizabeth desapareceram quando ela entrou


segurando o braço do Duque de Shaftesbury no salão cheio de nobres e
pessoas com dinheiro. Ela poderia ser recusada por todos aqueles cavalheiros
e damas que não seria importante — já tinha sido aceita por ele, por Aiden
Trowsdale, o homem mais imponente, alto e lindo daquele lugar. Quando
eles passavam, homens cumprimentavam e mulheres suspiravam, mas quem
estava com as mãos nele era ela. A governanta, a plebeia incauta que decidiu
aceitar fazer parte dos planos inconsequentes de uma lady bastante atrevida.
— O Duque de Shaftesbury. Lady Agatha Trowsdale e Sra. Elizabeth
Collingworth.
O criado os anunciou com um brado alto e metade do salão principal se
virou para vê-los entrar. Edward McFadden foi da confusão para a
estupefação assim que os viu, assim como algumas ladies, dentre elas as que
estiveram na casa em Thanet Bay para o chá das cinco. Todo mundo ali
poderia reconhecê-la. Todas aquelas mulheres saberiam quem ela era, então
não havia uma mentira sendo contada. Apenas uma brutal afronta à sociedade
que eles tanto prezavam — uma plebeia qualquer introduzida como se fosse
um deles naquele ambiente.
— Seja bem-vindo, meu amigo. — O conde veio recebê-los. — Vejo que
trouxe uma convidada especial hoje.
Elizabeth fez uma pequena reverência. Edward chamou o criado que
servia as bebidas e pegou duas taças de champanhe para as mulheres.
— Sei que você já tinha plena ciência da vinda dessa convidada.
— Claro. Isso já deixou mamãe louca, ela teve que mudar o mapa de
disposição de lugares de um dia para o outro. Será intrigante. Vou cuidar dos
meus outros convidados, divirtam-se.
O conde se afastou, e Aiden indicou que faria o mesmo. Pegou a mão de
Elizabeth e beijou-a delicadamente por cima da luva. A forma como ele a
olhou enquanto fazia aquilo causou um rebuliço dentro dela.
— Senhoritas, eu vou conversar com alguns cavalheiros. Nos vemos no
jantar.
Lançada aos lobos, à deriva em alto-mar, perdida em um deserto. Aquelas
foram algumas das sensações experimentadas por Elizabeth naquele instante.
Ela sentia como se todo mundo olhasse para ela e a escrutinasse de forma a
tentar entender quem era aquela mulher desconhecida que recebia tanta
atenção do duque. O duque desejado e cobiçado pelas damas solteiras
daquele evento. O duque que administrava prósperas propriedades e fechava
negócios milionários com os novos ricos de Londres.
Talvez por causa da ansiedade, Elizabeth bebeu o champanhe muito
rapidamente. O salão girou duas vezes, mas parou quando as irmãs
Westphallen se aproximaram dela e de lady Agatha. Precisava se esforçar
para não chamar os patrões de forma a indicar que ela fosse uma mera criada,
mesmo que o fosse.
Madeline era uma jovem bonita, apesar de ter um olhar de quem estava
sempre prestes a atacar a presa. Ela tinha cabelos castanho-escuros e olhos
verdes, o que lhe conferiam um ar exótico e chamava a atenção dos homens.
O porquê ela ainda estava solteira, era um mistério. Sua irmã, Sarah, era
bastante baixa e tinha formas arredondadas que estufavam o vestido. Ela
estava fora dos padrões estabelecidos por aquela sociedade, porém, parecia
confortável com aquilo e sorria de modo franco. As duas eram muito
diferentes, não pareciam irmãs.
— Agatha! — ela cumprimentou a lady. — Que bom vê-la, já estava
achando que não teria nenhuma jovem solteira para me fazer companhia além
de minha própria irmã. Precisamos garantir bons negócios na próxima
temporada, aqui está cheio de bons partidos.
— Não estou desesperada pela próxima temporada. — Lady Agatha
sorriu.
— Mas deveria! Não queira ficar como eu, com vinte e dois anos e sem
marido.
— Acredito que Agatha encontrará um ótimo casamento em breve —
Elizabeth disse, metendo-se onde não deveria. Não conseguia ficar silente
quando ouvia todo mundo insistindo que a lady deveria se tornar uma caça
maridos e mudar seu espírito para conquistar um homem. Elizabeth
acreditava que ela conseguiria aquilo sem deixar de ser quem ela era.
— Oh. — Madeline pareceu notar Elizabeth pela primeira vez. — Você
trouxe a criada para a festa, Agatha? — a jovem murmurou, tentando fingir
que se importava que alguém as ouvisse.
— Elizabeth é minha amiga e está hospedada em Thanet Bay pelo verão.
Ela foi convidada pelo conde, por que eu não deveria trazê-la?
— Claro que deveria.
A forma como Madeline começou a olhar Elizabeth a fez desconfiar de
que a lady Westphallen não tinha ficado convencida. Aquilo e o fato de ter
sido ignorada pelas irmãs enquanto elas discutiam estratégias para caçar
maridos durante o jantar e durante o final de semana do baile tradicional em
Thanet Bay.
A noite poderia ser mais cansativa se o mordomo não chamasse todos
para servir o jantar. Elizabeth nem estava com fome, mas adoraria enfiar um
pouco de comida na boca de Madeline Westphallen para que ela parasse de
falar.

A CONDESSA ERA uma mulher elegante e com uma expressão austera, para
quem Elizabeth não fora apresentada antes do jantar. Ela estava em uma das
pontas da mesa e o conde em outra. Ele tinha mais outros três irmãos,
homens, que estavam em partes espalhadas da mesa. Eram solteiros, do que
Elizabeth desconfiou pela quantidade de damas que disputavam a atenção
deles. A irmã mais nova também estava espalhada entre os convidados.
A mesa era muito grande, quase poderia acomodar toda a população de
Kent. A louça e a prataria estavam impecavelmente dispostas. Elizabeth
sentiu um prazer secreto em ver uma mesa tão bem-posta, aquele era um
serviço que ela apreciava. O lugar que lhe tinha sido destinado era ao lado de
Aiden Trowsdale. O mais cobiçado dos lugares para uma dama solteira.
Ao ver Agatha e Edward se cumprimentarem sutilmente à distância,
Elizabeth teve certeza de que eles estavam juntos naquela armação. Por que
aquelas pessoas tinham decidido que o Duque de Shaftesbury deveria cortejá-
la? Claro que eles não tinham ideia do que já acontecera entre eles. E de
qualquer forma, com tantas damas solteiras, ela deveria ser a última opção
para retirar o duque da solteirice. Se houvesse uma lista, ela nem estaria nela.
— A senhora sabe que eles fizeram isso de propósito, não sabe? — Aiden
sussurrou para Elizabeth, depois que estavam sentados e sendo servidos.
— Desconfio que tenham feito. Mas não entendo por que fizeram.
— Nem eu. Prefiro aproveitar o momento a tentar desvendá-lo.
Sim, ela também. Se gastasse seus esforços tentando compreender as
pessoas, acabaria perdendo boas oportunidades de se divertir. O serviço em
Greenwood Park também era tão surpreendente quanto a decoração. A
comida era muito bem coordenada e as bebidas harmonizavam perfeitamente
com cada prato.
Como uma dama não comia muito, ela se controlou para aceitar apenas
pequenas porções e levou bastante tempo com cada bocado, movendo a
cabeça em atenção às conversas da mesa. Todas elas giravam, de certa forma,
sobre negócios, construções, empreendimentos. A vida em Londres estava
mudando e ela considerou que Aiden tinha razão: em breve, a Inglaterra seria
comandada pela burguesia.
— E Vossa Graça, quando deixará essa vida libertina para trás e
sossegará com uma esposa? Está na hora de encomendar um herdeiro, não?
— um homem de cabelos permeados por fios prateados disse. Elizabeth não
tinha sido apresentada a ele, também. — O meu já está a caminho, dessa vez
será um menino.
— Você disse isso nas outras três vezes, Lockwood — Edward provocou.
— Pretendo escolher uma noiva na próxima temporada — o duque disse,
mas não havia nenhuma emoção ou entusiasmo em sua voz. Ele parecia
querer apenas encerrar o assunto, não deixar que aquela conversa se
prolongasse.
— Se for sortudo como seu pai, terá logo um filho. O homem era uma
máquina de produzir herdeiros.
Elizabeth franziu a testa e olhou para o semblante de Aiden. Ele estava
tenso e aquele homem que falava parecia não saber muito sobre limites. O
que ele quis dizer com aquilo? O duque tivera apenas dois filhos e um deles
era lady Agatha, uma menina. Ou ela estaria enganada?
— Vamos esperar que eu seja como meu pai. Detestaria precisar
engravidar minha esposa tantas vezes apenas para conseguir produzir um
varão.
— Senhores, por favor, vamos falar de assuntos mais agradáveis — a
condessa interveio. — Por que não conversamos sobre o baile e a caçada que
o gentil Duque de Shaftesbury nos oferecerá em breve?
O tema da conversa mudou e logo todos estavam falando dos eventos que
teriam em Thanet Bay. Elizabeth sentiu Aiden ainda tenso. Depois ela
perguntaria por que aquela discussão o incomodava e o que ela significava. O
peso da necessidade de se casar não deveria incomodar tanto um duque,
deveria?
Ela preferiu apenas observar durante o restante do jantar. Estava em uma
posição complicada no meio dos nobres, agindo como se não fosse uma
criada. Elizabeth queria acreditar que não estavam mentindo a seu respeito, já
que ela não foi apresentada como uma dama, mas não podia se enganar —
ninguém ali queria acreditar em quem ela era de verdade.
Ao final, as mulheres saíram para outro salão, coberto com papéis de
parede de tons pastéis e muitos quadros, enquanto os homens permaneciam à
mesa para tomar um vinho do porto. Aquela seria a melhor hora para
Elizabeth voltar para Thanet Bay, mas lady Agatha insistiu que ela deveria
ficar.
— Sei que Aiden te pediu uma dança — ela sussurrou.
— Mas não tem ninguém dançando, milady. Nem música tocando.
— Terá. Em breve. Apenas espere e ouça.
Esperar era perigoso, principalmente quando algumas das damas
presentes pareciam interessadas nela. Ou quando a conversa sobre o clima,
sobre vestidos e sobre maridos futuros estava tão enfadonha. No meio das
mulheres trabalhadoras, da classe mais baixa de Londres, os assuntos eram
bem mais variados. Ainda assim, ela esperou, e se surpreendeu quando a
música realmente começou a tocar.
Eram cordas, ela reconheceria o violino e o violoncelo em qualquer lugar.
Aliás, eram os violinos, e eles tocavam obras clássicas que Elizabeth
aprendera a admirar na infância. A condessa apareceu no salão onde as damas
tomavam chá e as convidou para o salão de baile, de onde vinha a música.
Seria muito assustador acreditar que aquela mudança repentina no evento
decorresse das intenções do duque em dançar com ela. Claro que Edward
McFadden já tinha uma orquestra planejada desde o início, ele não
conseguiria músicos para tocar em evento se decidisse por tal no meio dele.
Se estivessem em Londres, talvez, mas ali? Não. Era apenas coincidência,
mas a coincidência às vezes podia ser a mãe de todas as tragédias.
Assim que pisou no salão de baile, ela o viu. Aiden estava como que a
esperando e como se ninguém mais existisse naquele ambiente. Mil homens e
mulheres poderiam estar naquela sala, mas Elizabeth só conseguia vê-lo. A
forma como ele a olhava fazia com que ela se sentisse a única mulher daquele
salão.
— A senhora me prometeu a sua primeira dança. — Aiden segurou-a pela
mão enluvada.
— Se eu me lembro, o senhor exigiu que eu lhe prometesse minha
primeira dança. — Ela riu e suas bochechas coraram. Ficaram no tom de rosa
do vestido, dando àquela pele clara o tom de quem estava constrangida.
— Se não fosse inadequado, todas as suas danças seriam minhas. — O
duque a encarou com seriedade. Os olhos, dois globos escuros que a
devoravam com ansiedade, indicavam que ele não estava brincando. — Não
vou gostar que nenhum outro homem aqui coloque as mãos na senhora.
— Ninguém mais vai me tirar para dançar.
— Acredito que a senhora se surpreenderá, então.
O duque conduziu-a para o centro do salão. Alguns casais já iniciavam a
dança e Elizabeth temeu não se recordar dos passos que aprendeu ainda
muito jovem. Ela nunca fora convidada para os bailes, apenas conseguia ver
as danças quando elas aconteciam na casa dos Pensington. Aiden, porém, era
um exímio dançarino. Com a mão na cintura dela e a outra segurando seus
dedos trêmulos, ele fez um movimento com a cabeça indicando que ela
deveria apenas segui-lo e passou a rodopiar pelo salão como se os pés dele
fossem feitos de nuvens.
Elizabeth segurou a saia e tentou fingir que estava relaxada e
aproveitando a dança. Ela estava, mas a presença de Aiden, em um evento
social como aquele, depois de algum tempo sem que pudessem ao menos se
ver, a deixou desorientada.
— Eu gostaria de elogiar minha irmã e dizer que Agatha fez um ótimo
trabalho com a senhora, hoje —ele disse. — Mas seria injusto, mesmo que
verdadeiro. A sua beleza não precisava de retoques.
— Vossa Graça, eu…
— Aiden. — Ele sorriu.
— Eu não mereço elogios tão exagerados.
— Não há nenhum exagero nas minhas palavras. — Os olhos indicavam
mais uma vez que ele dizia a verdade. — Minha vontade, agora, era de girar
com a senhora para fora deste salão e encontrar um local com privacidade o
suficiente para que eu pudesse beijá-la.
Ela corou, a face rubra pelo desejo que estava estampado em cada
expressão vinda do duque. Temeu que as pessoas pudessem notar. Que todo
mundo ali percebesse que ela estava apaixonada pelo Duque de Shaftesbury e
que nada bom poderia vir daquilo.
CAPÍTULO VIGÉSIMO

A IDEN NÃO LIGAVA PARA BAILES NEM FESTEJOS SOCIAIS . A CHAVA DANÇAS
muito entediantes e preferia discutir negócios com os homens em espaços
menos excêntricos. Mas ali, naquele momento, tudo que ele queria era dançar
com Elizabeth Collingworth. Mostrar para todos que ela concedera a sua
primeira dança para ele, demarcar seu território de alguma forma.
Desde que ela chegou, ele mal conseguia disfarçar que não tirava os olhos
dela. Se Agatha havia planejado aquilo para constrangê-lo em público, ela
tinha conseguido atingir seu objetivo. O mais absurdo era que Aiden não
conseguia entender o que sentira ao ver Elizabeth chegar, vestindo seda e
renda, produzida como uma dama, impactando com sua presença suave,
porém, marcante.
Ela estava mais linda do que quando a viu pela primeira vez, na
estalagem? Ou mais perfeita do que quando a despiu em seu quarto? Estaria
Elizabeth mais digna de sua admiração apenas porque vestia roupas elegantes
e tinha o cabelo empoado e penteado? Não. Ele duvidava que aquela
produção toda fosse a razão de seu coração bater fora de um ritmo razoável.
Por que ele sentia aquele aperto no peito e tanta dificuldade para respirar
enquanto giravam pelo salão de baile ao som de Handel e conversavam sobre
bobagens?
— A Srta. Westphallen está enciumada de nossa valsa — Elizabeth
murmurou, movendo sutilmente a cabeça para o lado. O duque notou a figura
de lady Madeline segurando uma taça de champanhe com força demais
enquanto os observava.
— Ela não tem motivos para ter ciúme.
— Não tem?
— Não. Eu nunca prometi nada a ela, nem dei nenhuma esperança de que
tenho algum interesse nela. Todos os meus negócios com os Westphallen
envolvem o pai, que é um nobre negociante, como eu.
Elizabeth respirou profundamente e ele não soube dizer se aquela reação
se deu pela resposta dele ou porque a música estava prestes a acabar.
— A senhora entende que eu devo dançar com as outras damas, não
entende? — Aiden perguntou, assim que os últimos acordes da valsa
terminaram. — Inclusive, com lady Madeline.
— Assim como eu não devo recusar o pedido de outros cavalheiros. —
Ela o seguiu para o canto do salão, deixando o centro para os próximos casais
que já se posicionavam para a próxima dança. — Mas eu acho que devo
voltar para Thanet Bay, milorde. Continuar aqui é…
— Justo, para a senhora. Uma tortura, para mim. Eu gostaria de pedir que
me espere, que vá para casa comigo.
— E isso não seria inapropriado? Se nos virem saindo juntos, vão
comentar. Já estão comentando.
Claro que iam comentar, mas Aiden suspeitava que fariam isso de
qualquer jeito. Já havia várias fofocas sobre uma mulher que passou dias
trancada com o duque, e como ele foi desonroso com ela, como ele a
arruinou. Depois da presença de Elizabeth em Greenwood Park, todos
acabariam associando a misteriosa mulher à visitante desconhecida que
estava hospedada na propriedade ducal. Deixar a festa com ela seria apenas
mais um combustível à fofoca, que ele não pretendia fomentar pelo bem da
honra de Elizabeth.
Aiden pouco se importava que o considerassem um libertino. Ele não era,
mas ganhara fama por não demonstrar nenhum interesse em se casar ou
cortejar uma dama. Só que Elizabeth não merecia ser o centro do escárnio da
maldosa sociedade inglesa. Mesmo que ela não fosse uma dama. Mesmo que
ela não fosse uma virgem que ele pudesse arruinar. Se ele pudesse evitar que
ela fosse atirada aos leões, então o faria.
— Tem razão. — Aiden beijou os nós dos dedos dela, por cima do tecido
fino da luva. Eles ainda estavam trêmulos. — Aguarde algumas poucas
músicas e volte para casa, se assim desejar. Nos vemos em outra
oportunidade.
D URANTE TODO O trajeto para Thanet Bay, Elizabeth tentou aceitar o que
significavam as palavras de Aiden ao despedir-se dela. Era uma promessa,
mas uma promessa futura. Eles se viriam, aquilo aconteceria um momento ou
outro, mas seria depois. Depois daquela noite. Depois daquela valsa. Apenas
depois.
Passadas algumas músicas e duas valsas dançadas com homens a quem
ela fora apresentada pouco antes, Elizabeth escapuliu pela porta lateral do
salão. Fora acobertada por lady Agatha. A jovem não concordou muito com a
fuga, mas parecia tão satisfeita com alguma coisa que a auxiliou a sair sem
ser notada.
Ele quer te ver. Uma voz ecoava no vazio da mansão em que todos
dormiam. Não havia nenhum som humano produzido nos espaços comuns.
Todos os criados já tinham se recolhido, os filhos dela dormiam
profundamente em suas camas e a duquesa estava em sua clausura regular.
Espere por ele, a voz insistia. Mas onde? Sentada como um espectro em uma
sala qualquer?
Elizabeth fechou a porta dos fundos, deixando-a destrancada para que o
cocheiro pudesse entrar quando chegasse e olhou para a escuridão. Acendeu
uma vela e tomou uma decisão — ela esperaria por Aiden até que ele
chegasse, mesmo que demorasse muito. O esperaria da forma como gostaria
que ele a visse.
Cada passo dado na escada que conduzia aos quartos foi uma sentença
que a condenava a uma vida de pecado. Era uma resolução importante — a
aceitação de que o desejo que sentia por Aiden Trowsdale era mais forte do
que o medo de partir seu coração. Que a paixão que experienciava precisava
de vazão.
Em silêncio e tremendo como se seus músculos estivessem virando
pudim, Elizabeth entrou nos aposentos do Duque de Shaftesbury e começou a
acender todas as velas que havia em sua vista. Logo, o quarto estava
iluminado, aquecido e aconchegante.
O ambiente era ricamente decorado. Aquela era a primeira vez que ela
realmente notava os aposentos do duque — aquele espaço ainda nem mesmo
tinha sido inventariado por ela. Papéis de parede com padrões sóbrios e cores
pastéis, uma cama de mogno imponente, com um enorme dossel que subia
até o teto e cortinas de seda, em tom verde-claro com bordados, que se
embolavam ao chegar ao chão. Havia duas janelas grandes, uma de cada lado
da cama, e uma lareira com lenha queimando na parede da esquerda. Tudo ali
era masculino e cheirava a Aiden. Era como se cada parte daquele lugar
estivesse impregnado de sua presença.
Elizabeth começou a retirar suas roupas — ao menos as partes que ela
conseguia alcançar. Desfez o penteado, retirou a maquiagem do rosto com
um pano úmido, arrancou os sapatos e puxou as meias pelas pernas. Também
retirou as calçolas e permaneceu apenas com os impossíveis botões do
corpete e das saias. O coração dela martelava em batidas tão altas que ela
teve medo de acordar a duquesa. Sentou-se em um sofá próximo à lareira e
esperou, temendo que precisasse esperar demais. Talvez Aiden não fosse
chegar logo e, se chegasse, estaria com lady Agatha. E se a lady visse a
claridade vinda do quarto do irmão? Ela, ainda assim, queria arriscar.
Duas horas inteiras se passaram até que ela ouviu os cavalos e uma
carruagem parou no pátio frontal. Seu coração disparou mais uma vez, mas
Elizabeth não se moveu. Manteve-se ali, sentada, tentando parecer não estar
ansiosa em invadir o quarto de seu patrão no meio da madrugada. Quando a
porta se abriu e ele entrou, todas as suas dúvidas viraram certezas. No
instante em que ele a viu, a forma como os olhos dele capturaram os dela, fez
com que tudo aquilo parecesse a coisa certa a se fazer. Sem dizer uma
palavra, Aiden deu alguns passos na direção dela, puxou-a para cima pelas
mãos e a beijou.
— Eu sonhei em encontrá-la aqui — ele murmurou, com os lábios ainda
colados aos dela. Elizabeth levou a mão até o pescoço dele e entrelaçou os
dedos em seus cabelos. — Estou sonhando, ainda?
— Eu não deveria estar aqui — ela disse. — Mas não é como se eu fosse
uma virgem sendo arruinada por um duque libertino.
Elizabeth afastou-se alguns centímetros e enxergou a confusão divertida
nos olhos dele.
— Eu vim porque eu… — Ela tentou complementar, mas ficou sem
palavras para explicar o óbvio. Estava ali porque desejava Aiden Trowsdale
de forma proibida e não sabia como fazer para evitar aquele sentimento.
O duque entendeu que ela precisava de ajuda e voltou a clamar por sua
boca, silenciando-a.

Q UANDO CHEGOU ao quarto e viu as luzes, Aiden parou de respirar. Ele


suspeitou que poderia encontrá-la, mas não imaginava tamanha sorte. A visão
de Elizabeth sentada em seu sofá fez com que qualquer resquício de controle
o abandonasse completamente. Tudo que ele pôde fazer foi beijá-la. Ela
estava ali, ela o queria e isso era o suficiente por aquela noite.
Enquanto as línguas se enroscavam durante um lânguido e demorado
beijo, ele levou as mãos aos botões do vestido dela e percebeu que alguns
estavam abertos. Por mais que fosse dolorido separar-se dela naquele
momento de intensa intimidade, ele fez com que Elizabeth girasse em seus
braços para poder acessar seu espartilho. Seus dedos tremiam um pouco. Ele
era um homem seguro, forte e indiferente aos sentimentos insensatos da
paixão, porém, era a segunda vez que notava seu corpo reagir tolamente na
presença daquela mulher.
— A senhora está linda — ele sussurrou na orelha dela. — Mas eu vou
ter que tirar este vestido.
— Por favor, eu mal consigo respirar com este espartilho.
Ela riu pelo alívio do espartilho afrouxado. O tecido caiu por sua pele
branca e Aiden percebeu que ela não estava vestindo mais nada por baixo do
amontoado de anáguas. Aquilo o excitou mais, mesmo quando ele acreditou
que fosse impossível sentir mais desejo por aquela mulher.
— A senhora foi assim para o jantar?
— Claro que não. — Ela riu, virando-se de volta para ele, o tecido do
vestido escorregando por sua pele sedosa. — Eu nunca andaria por aí sem
roupas íntimas. Eu apenas…
Os olhos dela baixaram. A timidez que o encantava contrastava com toda
a iniciativa que a conduziu ao quarto dele. Aiden a beijou enquanto os tecidos
deslizavam para o chão. Logo, todas as roupas que ela vestia eram uma pilha
amontoada em um canto e, daquela vez, havia luz o suficiente para que ele
pudesse vê-la.
— Obrigado pelas velas. — Ele se afastou alguns centímetros. As
bochechas dela irradiavam alguns tons variados de vermelho. Pelo calor do
fogo, pela intensidade do momento, pela vergonha da nudez. — Eu queria
mesmo poder te ver.
— O senhor havia amaldiçoado escuridão, antes. — Elizabeth riu. —
Agora que me vê, era o que esperava?
O duque suspirou e levou alguns segundos para formular um pensamento.
— Não. É bem melhor.
Quando ele reivindicou a boca dela novamente, o beijo foi urgente,
porém, gentil. Os lábios dele sobre os dela davam a dimensão do desejo e o
encontro das línguas era como o toque do veludo. Com as duas mãos na
cintura nua, ele puxou Elizabeth para si e forçou a carne macia dela contra
suas roupas.
— Maldição — praguejou. Ele ainda usava as roupas elegantes do jantar
e era tecido demais para tirar. Os dedos vacilantes dela assumiram a função
de abrir os botões do colete cinza, depois da camisa. Aiden puxou o tecido
pela cabeça e descartou as peças na pilha que já tinha se formado.
Com cuidado, ele a conduziu até a cama e fez com que deitasse. Começou
a abrir os botões da calça, mas Elizabeth colocou suas mãos sobre as dele.
— Eu também quero te ver. — Ela piscou e o azul reluziu sob os longos
cílios castanhos. Aiden respirou fundo e colocou-se de pé. Ela apoiou o corpo
nos cotovelos para observá-lo e aquela foi a primeira vez que ele, o quase
insensível Duque de Shaftesbury, ficou envergonhado em se despir para uma
mulher.
A audácia de pedir para vê-lo nu fora algo que surpreendeu Elizabeth.
Aquele duque libertava o que havia de mais devasso dentro dela e ela estava
adorando. Quando a calça acinzentada que ele vestia, de corte perfeito e
elegantemente costurada, caiu pelos quadris e o expôs com completo, ela
quase se arrependeu do seu pedido.
Aiden era ainda mais lindo despido. Seu corpo era incomum em um nobre
e os músculos proeminentes de seus braços e coxas fizeram com que ela se
fixasse naquelas partes com excessiva atenção. Ele pareceu pudico ao ser
escrutinado por ela, que não conseguiu evitar deixar seus olhos passearem
por cada centímetro do homem. Elizabeth conduziu seu olhar desde a boca
vermelha e inchada dos beijos trocados até o peito permeado de fios escuros e
o abdômen esculpido. Sua mão se ergueu na intenção de tocá-lo, mas ela não
o fez. Os pelos desciam do peito e seguiam até a magnífica ereção que
despontava proeminente em sua direção. Sua boca salivou e ela ansiou por tê-
lo.
Aiden tinha razão. Não podia ser pecado se era o que desejavam.
— Eu quero você — ela disse, quase um murmúrio. — Eu quero que
você me possua, Aiden.
O brilho escuro daqueles olhos flamejou. Toda a expressão dele se
resumia à volúpia do momento.
— Seu desejo é uma ordem, minha senhora.
A frase, em tom zombeteiro, a chacoalhou por dentro. O duque se
posicionou sobre ela e a beijou, abrindo espaço para si entre as coxas
trêmulas e ansiosas. Sem tirar a boca da dela, aproximou o pênis intumescido
da sua feminilidade e se introduziu lentamente em Elizabeth, forçando seu
peito másculo sobre ela e movendo os quadris com força moderada. Ela
estava tão pronta para ele, tão ansiosa por recebê-lo que não foi difícil que
Aiden encontrasse seu caminho até penetrá-la profundamente.
Ela gemeu.
— Desculpe-me por isso. Eu vou tentar ser delicado, mas não posso
prometer isso.
Não seja delicado, não seja sutil — ela quis gritar, mas as palavras não
saíram. A força das estocadas foram se intensificando à medida que ele
movia o corpo sobre ela, forçando-a a abrir mais as pernas, provocando-a a
enlaçá-lo pelos quadris, empurrando-a contra os colchões macios. Alternando
as estocadas com beijos suaves nos lábios dela, Aiden mantinha o olhar firme
sobre Elizabeth.
Ela sentia crescer o calor que ardia em seu ventre e descia até onde ele
entrava e saía. Era uma pena que não podia durar para sempre. Que o corpo
sucumbia ao prazer e o clímax fosse o indicativo de que aquela fricção de
corpos chegaria ao fim. Aos poucos, ela ergueu os quadris para buscar mais
contato. Quando Aiden sentiu que ela estava próxima do êxtase, levou o
polegar até o feixe de nervos que ansiava por aquele toque. Elizabeth não
resistiu mais. Seu corpo inteiro convulsionou em ondas de prazer enquanto
seus músculos apertavam o membro rijo que continuava entrando e saindo
dela.
A mudança de ritmo dele indicava que Aiden estava buscando a própria
liberação. Com um beijo mais intenso, ele investiu mais duas vezes.
Elizabeth o sentiu se expandir dentro dela. O corpo dele ficou pesado e uma
pegada mais forte nos quadris dela marcou o momento em que ele, com um
gemido grave, atingiu o orgasmo.
Eles não se desencaixaram de imediato. Aiden tinha a respiração
acelerada e o corpo suado pendia sobre Elizabeth enquanto as bocas se
encontravam. Beijaram-se por minutos até que ele rolou para o lado, deitou
no colchão e puxou-a para um abraço.
A maior parte das mulheres que ela conhecia detestava o sexo. Não
queriam que os maridos as procurassem e preferiam dormir em camas
separadas. Quase todas elas reclamavam da relação sexual como se fosse uma
tortura nas vidas de cada uma. Mas ali, naquele instante, Elizabeth sentiu-se
abençoada. Nunca fora desagradável antes, mas Aiden fez com que a
experiência fosse transcendental.
Era uma pena que ela precisasse ir embora em seguida.

N ÃO ERA PRECISO PALAVRAS . Qualquer coisa que fosse dita poderia estragar a
perfeição daquele momento. Eles ficaram ali por muitos minutos, deixando
que seus corpos se aquecessem.
Não era amor. Não tinha nada a ver com amor, mas era o suficiente.
Quando a luz das muitas velas se extinguiu e apenas a lareira iluminava o
quarto, eles estavam abraçados sob os lençóis. Elizabeth apoiava a cabeça no
peito firme do duque e traçava os contornos de seu abdômen com a ponta dos
dedos. Mesmo na penumbra alaranjada era possível notar o quanto ele era
lindo. Ele acariciava seus cabelos e suas costas. Em silêncio, não havia
nenhum ruído que não fossem os insetos e animais do bosque ao redor da
propriedade.
— Eu preciso ir.
Foi uma afirmação duvidosa, quase soada em tom de pergunta.
— Sim, precisa. Mas eu não quero que vá. — Ele a estreitou mais forte
entre os braços. — Sou o Duque de Shaftesbury, será que não posso decidir
nem mesmo quem pode dormir ao meu lado?
Ela deu uma risada.
— Talvez Vossa Graça possa. — A saudação formal tinha um tom
zombeteiro e ele percebeu. Elizabeth levantou-se e se sentou sobre as suas
coxas, deixando que seus dedos passeassem por uma extensão maior daquele
corpo que ela adorava. — Mas, se eu ficar mais tempo aqui, talvez nenhum
de nós vá dormir, exatamente.
— E a senhora pretende me deixar acordado como?
Havia luxúria no brilho escuro dos olhos dele. Elizabeth sentiu sua
garganta arranhar, mas ela não tinha como voltar atrás. Estava ali, com aquele
homem à sua disposição, e ele a autorizava brincar com ele. Talvez brincar
não fosse uma boa palavra, mas foi a que veio à sua cabeça. As mãos então
passearam pelo tórax, pelo abdômen e encontraram os quadris firmes. Ela se
afastou um pouco e tocou a base da ereção que pulsava à sua frente.
Era a primeira vez que ela prestava atenção naquela parte do corpo de um
homem. O seu marido era tímido e não gostava de luz quando iam para a
cama. Ela quase nunca vira Gregory nu. Já o duque, ele era bastante
depravado. Ele a beijou em seu sexo, tocou sua intimidade com a língua, fez
com que ela sentisse prazeres pecaminosos, e não se importava em exibir sua
masculinidade para que ela pudesse… tocar. Então, ela tocou.
Segurou-o com as duas mãos, passou o polegar pela ponta úmida,
deliciou-se com o gemido que ele soltou. Depois, levou as mãos para cima e
para baixo, simulando os movimentos que ele fazia dentro dela. Ele gemeu
mais, fechando os olhos e arqueando as costas. Foi quando ela pensou, talvez
também fosse bom se ela o beijasse ali. Afinal, ele fizera aquilo com ela e foi
uma das melhores sensações de sua vida. Por que ela não poderia dar o
mesmo a ele?
Elizabeth segurou com cuidado o pênis em sua mão e tocou a ponta com
os lábios. Aiden gemeu e abriu os olhos, o desejo pulsando em sua face. Ela
lambeu, passando a língua em toda a sua extensão, e o encarou. Havia uma
certa súplica em seu olhar, para que ele dissesse se gostava daquilo. Para que
ele a orientasse como fazer.
— Você pode colocá-lo na boca, se quiser — Aiden murmurou e ela
atendeu.
O gosto era ácido e o toque era macio, muito macio. Com cuidado, ela
envolveu o membro rígido em sua boca e o engoliu. O duque gemeu, se
retorceu, segurou-a pelos cabelos e a fez movimentar-se sobre ele. Ela
percebeu que não era apenas ele que estava gostando, mas ela também.
— Elizabeth — Aiden gemeu mais. — Eu não vou aguentar.
— Não seja exagerado. — Ela riu. — Mas fico feliz que tenha gostado.
— Eu estou gostando. Suba em mim, deixe-me entrar em você. Venha.
Ele a puxou pelas mãos e ela se acomodou com a ereção em sua barriga.
Outra coisa a qual não estava acostumada, toda aquela proatividade. Aiden
lhe permitia o comando e ela estava adorando. Atendendo ao seu pedido, fez
com que ele entrasse completamente dentro de si. Ah, a sensação de
preenchimento era sempre fantástica. E o controle também, porque ela adorou
cavalgá-lo até que ele não resistisse mais, virasse por sobre ela na cama e
terminasse conduzindo-os ao ápice mais uma vez.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

A NOTÍCIA DE QUE A GOVERNANTA DE T HANET B AY TINHA SIDO CONVIDADA


para o jantar em Greenwood Park chegou rapidamente até os ouvidos da
duquesa viúva. Ela nunca tentou se manter alheia às fofocas só porque não
saía do quarto — sua criada pessoal era quem fazia as vezes de alimentá-la
com tudo de podre que era dito nos bastidores da sociedade.
Claro que ela não ficou satisfeita em saber que seus filhos tinham levado
uma criada a um jantar. Mesmo que o Conde de Cornwall não tivesse feito
oposição, as fofocas maculavam o bom nome dos Trowsdale. Nem mesmo o
seu falecido marido tinha sido tão imprudente em suas aventuras como
benfeitor dos oprimidos. Albert Trowsdale era um bom samaritano, mas isso
não fez dele um tolo.
Aquilo significava que a duquesa teria que agir com mais rigidez. Ela
precisava sair de sua reclusão, mesmo que aquilo custasse um pouco da sua
saúde. Precisava controlar de perto a situação daquela governanta ousada que
não saiba colocar-se em seu lugar. Naquela manhã, ela decidiu fazer seu
desjejum no salão principal, assim como seriam todas as demais refeições.
Até o final de semana do baile, ela fiscalizaria a atitude dos filhos e tomaria
as suas próprias, se necessário.

O BOM HUMOR de Aiden se esvaiu quando ele soube que sua mãe estaria
presente no desjejum. Alguns meses atrás, ele adoraria tê-la como companhia
para as refeições. Enquanto o pai ainda era vivo, sua admiração pela mãe era
imaculada, mesmo que ela nunca lhe dirigisse uma palavra de afeto. Desde o
falecimento do duque, porém, tudo que a mãe fazia era aborrecê-lo,
principalmente no trato com Agatha. E ele estava começando a se fatigar
disso.
— Vossa Graça, há um mensageiro aguardando — Geoffrey disse,
enquanto ajudava o duque a se vestir. — Ele diz que traz um convite do
Visconde de Whitby.
— Certo. Pode descer e dizer a ele que me aguarde.
O criado assentiu e retirou-se, deixando Aiden sozinho e pensativo. Ele
mal tinha acordado e ainda sentia o calor do corpo de Elizabeth sob o seu.
Sentia o gosto dela em sua boca e céus, era como se ele ainda pudesse sentir
os espasmos do prazer que ela lhe proporcionou. O desejo que nutriu pela
mulher, desde que a conhecera, não amenizou apenas porque ele a possuiu.
Ao contrário, se intensificou.
Seus compromissos não o deixariam divagar sobre o rompante da noite.
O criado de Miles Westphallen portava um convite para uma tarde de
cavalheiros e incluía os investidores. Os planos para a revitalização das
docas, construção de navios e indústria ferroviária não estavam mais somente
no papel. Em breve, a primeira fábrica de locomotivas seria inaugurada e
Aiden estava certo de que ela instauraria uma nova era para a nobreza
inglesa. E ele ainda precisava enfrentar a duquesa.
— Bom dia, mamãe. — O duque fez uma reverência e beijou a mão da
senhora franzina que estava sentada à mesa. — Vejo que anda disposta,
descendo com frequência para as refeições.
— Quero as novidades do jantar. Como foi sua dança com lady
Madeline?
— Foi uma dança. — Aiden sentou-se e aguardou ser servido. — Minha
irmã já acordou?
— Ainda não, milorde — disse o criado.
— Eu exigi que fosse a primeira, Aiden. E eu exigi que ela significasse o
início de um cortejo. Não era para ser “uma dança” apenas.
— Mamãe, eu fiz exatamente o que prometi. Mas devo lembrá-la que a
senhora não exige nada nesta casa. Eu sou o Duque de Shaftesbury.
A duquesa não demonstrou nenhum abalo pela autoridade do filho. Ela
não acreditava que ele fosse desobedecê-la porque ele nunca o fizera. Aiden
sempre tentou agradar a mãe, ainda mais depois do nascimento de Agatha e
de sua reclusão pela doença, mas ela estava começando a extrapolar limites.
Ou ele estava incomodado por saber que precisava cortejar e noivar uma
mulher que não fosse aquela que frequentou sua cama na noite anterior.
Depois de alguns minutos, Agatha desceu para o desjejum e tratou de
ocupar a mãe com assuntos femininos. Isso deu ao duque a oportunidade de
retirar-se.
— John, vou ao meu escritório. Peça que a Sra. Collingworth me encontre
para as orientações do dia.
— Estou bem aqui — a duquesa se manifestou. — Posso muito bem
cuidar dos afazeres da governanta.
— A senhora não cuida de nada, há anos. — O sorriso na face de Aiden
não suavizava a dureza de suas palavras. — A governanta sabe que responde
a mim, portanto, prefiro continuar mantendo o bom funcionamento da casa.
O duque ignorou os resmungos da mãe e fez aquilo que se propôs.
Enquanto selecionava documentos para a reunião na casa do Visconde de
Whitby, pensava em como resolver os problemas que estava causando.
Envolver-se com a plebeia por quem estava apaixonado era a pior decisão
possível — e nunca parecera tão adequada. Ele sabia que não devia, mas não
conseguia evitar.
Quando ela entrou pela porta, trajando suas roupas simples de criada,
Aiden sabia que estava com problemas. Seu coração parou de bater por
alguns segundos e ele sorriu.
— Vossa Graça mandou me chamar?
O brilho azul dos olhos dela estava mais cintilante pela luz do sol que
penetrava pela janela aberta. Aiden apoiou os documentos na mesa e quis ir
até ela, pegá-la nos braços e beijá-la. Limitou-se a expirar uma grande
quantidade de ar para dentro de seus pulmões.
— Preciso que organize a casa para o final de semana. Vamos receber
muitos convidados e já enviei mensageiros para os quatro cantos de Kent. —
O duque serviu-se de um conhaque. — Também gostaria de saber como a
senhora está.
Elizabeth corou. O rubor rosado em suas bochechas fazia com que ela
ficasse exatamente como na noite anterior.
— Assim que eu tiver a lista de convidados em mãos, farei a melhor
distribuição de quartos e organizarei os lugares à mesa. O senhor pode se
tranquilizar, eu tenho alguma experiência com jantares e eventos da nobreza.
— Tenho plena confiança em sua competência, Elizabeth.
Aiden se aproximou dela e levou uma das mãos para cuidar de uma
mecha de cabelo que caía para fora do gorro que ela sempre usava para
trabalhar. O polegar deslizou pelas bochechas e ela baixou o olhar, não
conseguindo encará-lo. O duque levou sua boca até a dela e a beijou. Não foi
erótico, não foi intenso, foi apenas um carinho com os lábios.
— Preciso passar o dia fora, estarei com Miles Westphallen. Não deixe
que minha mãe a aborreça, mesmo que ela tente.
— Terei muito trabalho por esses dias. Manterei distância da duquesa.
Aiden sorriu e a dispensou. Assim que Elizabeth deixou o escritório, ele
se deu conta de que estava sorrindo e sentindo seu coração bater no ritmo. Ele
gostava tanto da presença daquela mulher e se permitia ficar tão feliz quando
conversava com ela, ou simplesmente a tocava, que não imaginava mais
passar um dia sem vê-la. Ele a queria ainda mais depois da noite anterior, se
aquilo fosse possível.

N ÃO ERA difícil evitar a duquesa viúva. Elizabeth tinha muitas tarefas na


casa, bem como que cuidar dos filhos, do felino que ficava em seu quarto
para evitar causar distúrbios e dar atenção a James Hodges, o homem
interessado em cortejá-la. Isso tudo depois de ter passado alguns bons
momentos na cama do duque, fazendo tudo que ela sabia ser pecado e sem
nenhum remorso em pecar.
Faltavam apenas três dias para o grande evento em Thanet Bay e ela
precisou contar com todos os empregados para que os preparativos dessem
certo. Montou um cardápio impecável com as cozinheiras, solicitou que
Granger fosse à vila para repor a despensa e adquirir alguns itens necessários
para os pratos que foram escolhidos e deu orientações às arrumadeiras para
que ajustassem cada quarto de acordo com o convidado que fosse ocupá-lo.
Os quartos das mulheres teriam flores frescas todos os dias e roupa de cama
clara, em tons de rosa, amarelo e lilás. Os quartos dos homens seriam os de
móveis mais escuros e papéis de parede com padrões mais agradáveis aos
gostos masculinos. Os casais ficariam na ala esquerda, o mais longe possível
do quarto da duquesa viúva. Seria conveniente para os maridos e suas esposas
que os momentos de amor entre eles, caso acontecessem, não fossem chegar
aos ouvidos sensíveis da mãe do Duque de Shaftesbury.
A casa inteira estava agitada pela proximidade do evento e o duque se
manteria o máximo possível ocupado com negócios. Elizabeth sabia que ele
precisava fechar alguns investimentos importantes e que aquele final de
semana seria um marco para os seus projetos. Mesmo assim, sentiu falta de
vê-lo, de conversar com ele, de estar com ele naquele dia.
— Mamãe, o gato fugiu. — Peter apareceu na cozinha, enquanto ela
escrevia a distribuição dos assentos durante os almoços e jantares. — Patrick
deixa a porta aberta, ele não presta atenção.
— Certo, conversarei com Patrick sobre isso. — Ela chamou o filho e
afagou sua cabeça. — Vá procurá-lo e tente não fazer muito barulho. Não
queremos incomodar as pessoas.
O menino assentiu. Elizabeth pegou um pedaço de presunto e entregou ao
filho, para que ele usasse o cheiro como isca para o bichano. Seus
pensamentos se voltaram para Patrick, que passava tempo demais nos
estábulos com Reggie. O filho não estava fazendo as tarefas que ela mandava
nem estudando. Tudo que fazia era cuidar de cavalos. Precisava prestar mais
atenção nos filhos, cuidar deles mais de perto. Mesmo quando trabalhava
muito, durante o período de maior pobreza em sua vida, não descuidava dos
estudos nem da saúde de Peter e Patrick, mas passara a dar-lhes pouca
atenção desde que se tornara governanta dos Trowsdale. Queria acreditar que
não fosse por causa do duque e de seu relacionamento conturbado, porém,
sabia que estaria se enganando.
Decidida a ter uma conversa séria com o filho e pedir, também, que ele
fosse mais cuidadoso com o gato, Elizabeth decidiu, por fim, tomar uma
decisão quanto a James Hodges. Se ela fosse aceitar se casar com ele, e
aquela era a evolução natural do cortejo que ela tinha autorizado, não poderia
ter dormido com Aiden. O que aconteceu entre ela e o duque não
representava mais do que libertação carnal, porém, ela se sentia imunda
aceitando o cortejo de um homem enquanto se entregava ao pecado com
outro.
No dia seguinte, mais tarde, lady Agatha interpelou Elizabeth sobre os
acontecimentos no jantar-baile dos McFadden. Ela ainda estava assoberbada
de serviço com pendências sobre os filhos, mas não deixaria de atender à
jovem lady.
— Elizabeth. — A jovem entrou no salão de chá enquanto a governanta
inventariava as louças. — Conte-me sobre a noite em Greenwood Park.
— Não sei o que dizer, milady. — Ela continuou a tomar nota de todos os
pratos, xícaras, bules e porcelanas enquanto conversava. — Mas gostaria de
agradecer por ter me dado a oportunidade de recordar minha adolescência.
Foi uma noite muito agradável.
— Quero saber sobre a senhora e meu irmão! — a lady falava baixo,
demonstrando que não queria ser ouvida por ninguém além da sua
interlocutora. — Vocês dançaram, ele estava fascinado pela senhora!
Sim, ele estava. Elizabeth se deixou perder por alguns segundos,
relembrando o baile, a dança, os olhares. Depois a noite, a entrega, o prazer
que compartilharam. E, então, ela não esteve mais com ele. Mesmo que
soubesse que o duque estava muito ocupado, ela não podia deixar de sentir
insegurança.
— Milady, mesmo que ele estivesse, o fascínio era por uma personagem.
Eu não sou uma dama com quem Vossa Graça pode pensar em se casar.
Lady Agatha fez uma careta de reprovação, demonstrando que ela não
queria saber das diferenças sociais entre eles, que as ignorava e que apostava
que Aiden também ficaria satisfeito em descumprir as regras impostas pela
rígida sociedade londrina. A jovem não tinha a malícia de quem já vivera nos
dois mundos. Elizabeth sabia que a aceitação social era importante. Que
todos os negociantes burgueses que tinham projetos com o duque só
pensavam no prestígio social que aquela aproximação poderia causar.
— Eu quero conversar com ele, mas Aiden está o tempo todo envolvido
com assuntos masculinos. E mamãe está tão presente esses dias! Mas ela é
cruel, ela me monitora e faz perguntas desagradáveis, então estou tentando
me portar mais adequadamente.
A lady deixou o salão insatisfeita por não obter as respostas desejadas.
Elizabeth não podia deixar que Agatha soubesse que o baile produziu parte
dos efeitos que ela imaginava. Ela e o duque se envolveram, mas aquele
envolvimento só representava a degradação moral de Elizabeth.
Na sexta-feira, os convidados chegariam e começariam a ocupar os
quartos e demandar atendimento. Ela precisava garantir que tudo saísse a
contento.

A GATHA ESTAVA ANSIOSA , aguardando a chegada dos convidados, quando a


primeira carruagem estacionou na entrada principal. O tradicional baile dos
Trowsdale era um momento de diversão no qual a casa ficava cheia de
pessoas e muitas atividades afastavam o tédio. O primeiro grupo que chegou
foi a família Westphallen, como esperado. Miles estava sempre adiantado e,
daquela vez, ele trazia a terceira filha, Diana. A jovem estava com dezesseis
anos e debutaria no ano seguinte. Nenhuma das mulheres da família perdia
tempo na busca de maridos ricos e nobres para alavancar o prestígio dos
Westphallen na sociedade londrina.
A duquesa viúva estava no salão para recebê-los. Aiden não estava em
lugar algum, mas Agatha sabia que ele logo apareceria. Os criados estavam
em fila para recolher os casacos, bengalas e chapéus dos convidados.
Duas outras carruagens chegaram em seguida. Uma delas levava lady
Caroline Eckley. Agatha não se lembrava de vê-la na lista de convidados,
mas dificilmente eles deixariam de receber a sobrinha do Marquês Granville.
Sua mãe preferia aturar qualquer coisa a desagradar o nobre que fosse. A
outra trazia a família McFadden — ou parte dela. Vinham Isaac, Nathaniel e
Wilhelmina, enquanto Edward vinha a cavalo.
Edward era um homem petulante e tinha muitas liberdades na
propriedade. Ao invés de entregar o cavalo para um dos criados, como todos
fariam, ele foi direto para os estábulos. Confabulou com o cavalariço, brincou
com o filho dele e entrou nas baias para ver os animais — tudo sem a
presença do duque. Agatha não tinha muito apreço por seu comportamento,
mas eles se conheciam desde sempre. Aquela família era mais próxima dela
do que seus outros parentes de sangue, por isso ela tolerava Edward e seus
excessos.
— Milady. — O conde se aproximou e segurou a mão enluvada de
Agatha. Ela quis puxar os dedos e dizer que não queria ser beijada por ele,
mas a duquesa estava ali, olhando. Com uma careta, Agatha fez uma
reverência enquanto Edward levava sua mão até a boca. Havia um sorriso
zombeteiro em sua face e aquilo a incomodava ainda mais. Talvez a ponto de
bater nele com um objeto qualquer.
— Seja bem-vindo, lorde McFadden. O duque já deve estar descendo
para cumprimentar seus convidados. Por enquanto, estamos servindo um
brunch no salão principal.
— É encantador vê-la fingindo ser uma dama. — A voz baixa do conde
só pôde ser ouvida por Agatha. Os olhos azuis dele, irritantemente profundos,
a fitaram antes que ele se afastasse, mantendo o sorriso insuportável. Agatha
adoraria bater nele com alguma coisa bem pesada, mas ela estava, de fato,
fingindo ser uma dama. Aquela atitude era exclusiva para os eventos
familiares. No dia a dia, a lady era bem menos comportada.
John informou que os outros convidados chegariam mais tarde, liberando
Agatha e a mãe para seguirem até o salão. As duas estavam incomodadas
com a ausência de Aiden, que ainda não tinha aparecido. Não era educado
que ele deixasse os convidados esperando, mesmo que eles estivessem
entretidos com o brunch primoroso preparado pela governanta.
Elizabeth estava de pé, próxima à porta fechada que conectava o salão ao
corredor que levava aos fundos, observando o movimento. Usava uma saia de
xadrez azul e uma camisa branca impecável, com colarinho de babados. Os
cabelos, trançados com perfeição, estavam livres do gorro que ela costumava
usar. Agatha conseguia perceber nela um porte aristocrático que nenhuma das
ladies daquele evento tinha. Elizabeth era a esposa perfeita para seu irmão,
ela só esperava que Aiden tivesse percebido aquilo.
— A senhora viu meu irmão? — A lady se aproximou na intenção de que
ninguém notasse seu questionamento.
— Faz alguns dias que não vejo Vossa Graça, milady. Mas ele solicitou
que Geoffrey fosse até o escritório, é lá que deve estar.
— Ele precisa vir receber os convidados. O que está havendo com ele,
Elizabeth? Depois do baile, eu… houve algum desentendimento entre vocês?
A governanta tentou esconder sua estupefação com a pergunta. Era como
se Agatha colocasse situações absurdas que nem mesmo deveriam ser
pronunciadas.
— Não, milady. Nenhum desentendimento.
— Certo, tentarei arrancá-lo daquele escritório.
Agatha não era a pessoa mais adequada para arrancar Aiden de nenhum
lugar. O duque era teimoso e, se estava se escondendo de algo, suas tentativas
seriam inúteis. Mas sabia quem seria capaz de desafiar o irmão — o Conde
de Cornwall. Ela teria que falar com ele de novo, mas era por um bem maior.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

— E U NÃO ME LEMBRO DE TER AUTORIZADO VISITAS AO MEU ESCRITÓRIO —


Aiden reclamou ao ver Edward McFadden passar pela porta. — Terei que
demitir todos os criados, será que ninguém compreende uma ordem nesta
casa?
O conde colocou as duas mãos nos quadris e encarou o amigo. O Duque
de Shaftesbury estava sentado atrás de sua mesa, parcialmente escondido
atrás de uma pilha de papéis. Havia uma grande bagunça entre os documentos
e ele não estava vestido de modo adequado a receber cinquenta convidados
na mansão. Desde que acordara se sentia incapaz de enfrentar um exército de
damas casadoiras que estariam interessadas em ser a próxima duquesa.
Também não queria, ou melhor, não podia enfrentar Elizabeth. Depois da
noite em que fizeram amor ele fora quase um canalha. Não a procurou e
colocou os compromissos profissionais na frente dos sentimentos dela. Isso
se ela tivesse algum sentimento para com ele — se o momento tivesse sido
mais do que carnal.
— O que diabos faz trancado aqui, Trowsdale?
— Trabalho. Os nossos investidores chegam em breve e eu preciso
finalizar esses contratos.
Edward pegou os papéis e retirou da frente do duque. Colocou-os sobre
uma escrivaninha e admirou a nova pilha por alguns segundos.
— Pronto, eles estão finalizados. Agora vamos, sua irmã está nervosa
porque você ainda não apareceu para cumprimentar os convidados. E o
brunch está uma delícia.
— As Westphallen já chegaram?
— Miles nunca perde um brunch.
Não, o visconde não perdia um brunch. Aiden sabia que as irmãs estavam
ali e que sua mãe começaria a empurrar Madeline para ele.
— Mas tem outra coisa — Edward prosseguiu. — Caroline apareceu.
Segundo Agatha, ela não foi convidada.
— Isso nunca a impediu. — Aiden se levantou e ajeitou as roupas. A
calça marrom era adequada para o dia, assim como o colete verde bordado.
Ele não usava casaco. — Estou muito cansado para fazer isso, Edward. Não
pensei que fosse ficar exausto de interações sociais tão cedo.
— Tem certeza de que sua exaustão se deve as damas que perseguem um
duque como marido ou às conversas pouco profundas tidas com os nobres
que não adotaram nosso estilo de vida?
O conde tinha os braços cruzados no peito e continuava fitando o amigo
com olhos que o examinavam de dentro para fora. Aiden detestava sentir-se
escrutinado daquela forma. Não gostava quando o conheciam tão bem quanto
Edward, e quase ninguém o conhecia.
— O que quer dizer? Não estou bem para decifrar enigmas.
— A Sra. Collingworth é mesmo muito bonita.
Edward exibiu um sorriso que despertou no duque a vontade de arrancá-
lo da face do amigo com um cruzado no queixo.
— Cuidado com a linha que pretende cruzar, Edward.
— Não pretendo cruzar linha alguma. Estou apenas constatando. Com
tantas damas que conhecemos, você por acaso já viu alguma mais bonita que
ela? É incrível acreditar que ela tenha dois filhos, seja viúva e tenha tanta
experiência. — Enquanto o conde falava, Aiden dava passos lentos em sua
direção. As mãos estavam fechadas em punhos e o olhar do duque indicava
que ele pretendia matar alguém. — Eu creio que ela seja uma joia rara que se
perdeu no submundo londrino. Assim que cheguei, eu a notei, ela não tem
nada ordinário. Você não concorda comigo? Que a Sra. Collingworth possa
ser a luz mais brilhante daquele salão?
Aiden sentiu sua respiração acelerada. Foi quando percebeu que estava
erguendo o punho para agarrar o amigo pelo colarinho. Ele se irritou ao ouvir
Edward elogiar daquela forma a sua mulher. Até a noite em que fizeram
amor, ele tinha certeza de que poderia superá-la ou se satisfazer com uma vez
apenas. Só que ele estava errado.
— Edward. — O duque tinha os dentes cerrados e a voz saiu como um
rosnado baixo. — Se você estiver pensando em se aproximar dela, por
qualquer motivo, pense novamente.
O conde deu uma risada e colocou as duas mãos nos ombros de Aiden.
— Céus, homem, você está tenso como uma estaca de madeira! Eu não
quero me aproximar de ninguém, eu apenas queria provocá-lo para que isso
acontecesse. Você não consegue me enganar, Trowsdale.
— Isso o quê?
— Essa explosão. — Edward se afastou alguns passos e observou o
duque, ainda em posição de ataque. — Você está pronto para me esganar
apenas porque eu elogiei a sua governanta. Foi um elogio, Aiden.
— Você faltou com o respeito.
— Não faltei. Você a ama, não ama? Você se apaixonou em algum
momento desde que ficaram confinados naquela estalagem e agora não sabe o
que fazer, não é isso?
— Você está louco. — O duque se afastou e virou de costas para o amigo.
Encarando a parede decorada com livros, ele ficou imaginando se Elizabeth
já lera o romance que ele emprestara a ela. Não queria ter que pensar no que
Edward lhe estava falando. Não podia pensar.
— Trowsdale, você já dormiu com ela? — o conde arriscou.
— Um cavalheiro não faz esse tipo de pergunta.
— Não sou um cavalheiro, sou seu amigo libertino. Somos devassos e
adoramos ter muitas mulheres em nossas camas. Já compartilhamos amantes,
Aiden. Você nunca se importou em comentar sobre uma mulher comigo.
Diga, você já…
— Aconteceu na noite do seu baile. — Aiden virou-se novamente para
Edward, sentindo sua cabeça doer tanto a ponto de pensar que ela poderia
explodir. O conde foi até o bar e serviu duas doses do conhaque especial, o
que eles bebiam quando o assunto era sério. Entregou uma dose ao amigo,
que bebeu tudo em apenas um gole. — Maldição, não era isso que você e
Agatha estavam tramando? Não tente fingir, eu sei que vocês convidaram
Elizabeth para o jantar apenas para me provocar. Bem, a armação foi um
sucesso. Depois que eu voltei para casa, doido para fugir de Caroline, ela
estava me esperando.
O duque serviu-se de mais conhaque e encarou o líquido âmbar por
segundos. Se ele ao menos pudesse ficar bêbado tempo o suficiente para não
precisar lidar com aquele conflito...
— E eu acabei sendo um patife com ela. Depois que dormimos juntos, eu
tive que ir à casa do Visconde de Whitby e, desde então, não nos falamos.
Mas não tem um minuto dos malditos dias em que eu não pense nela, ou que
não a sinta sob meus dedos. Em minha boca.
— Seu medo então é sair e enfrentar a sua governanta. Não tem nada a
ver com o fosso cheio de tubarões que terá que atravessar.
Aquela era a constatação mais óbvia. O duque temia reencontrar
Elizabeth em uma situação conflituosa como ter que cumprimentar, beijar a
mão e sorrir para suas possíveis pretendentes. Primeiro, porque ele não as
desejava. Não queria nenhuma delas. Segundo, porque ela provavelmente não
ficaria satisfeita em vê-lo interagir com outras mulheres, sendo que uma
delas, um dia, seria sua esposa.
Ele queria acreditar que ela poderia ter ciúme dele. Como ele tinha dela.
Um dos motivos que fez com que Aiden se afastasse, de forma covarde, foi
não suportar vê-la, nem mesmo imaginá-la, com James Hodges. Aquele
comportamento era patético.
— Eu sou o Duque de Shaftesbury. — Aiden bebeu a terceira dose de
conhaque e apoiou o copo sobre a mesa. — Eu não tenho medo de nada.
Vamos ao salão, tenho convidados a receber.

O UTRAS DUAS CARRUAGENS não tardaram a chegar. Uma tinha o Sr.


Hartwright, com a esposa, um filho jovem e uma filha pouco mais velha do
que lady Agatha, e a outra o Sr. Sawbridge. Os criados estavam muito
ocupados em recolher chapéus, casacos, bengalas, sombrinhas, e em conduzir
os convidados para o salão. Granger e Reggie, que fora convocado para
auxiliar durante o final de semana, carregavam as malas para o andar de
cima, de acordo com os quartos indicados. Até mesmo Patrick tinha tarefas
importantes. Ele precisava ajudar o cavalariço Hodges a cuidar dos animais
excedentes.
Enquanto isso, a cozinha trabalhava em ritmo acelerado para dar conta da
comida do brunch, do almoço e do jantar. Gretha trouxe duas primas suas
para picar, cortar, limpar e lavar. Elas sempre eram contratadas por um
período quando Thanet Bay estava cheia de convidados.
Elizabeth estava no meio de tudo. Assim como o mordomo John, a
função dela era garantir que tudo funcionasse a contento. Se houvesse falhas
no serviço, ela seria responsável. Se houvesse qualquer detalhe que não saísse
de acordo com as mais altas regras de etiqueta, a culpa recairia sobre ela.
Naquele final de semana ela provaria ser apta como governanta. Ou um
completo fracasso.
A segunda opção pareceu mais provável quando ele entrou no salão. O
Duque de Shaftesbury tinha o cabelo um pouco desalinhado, a corrente do
seu relógio de bolso estava exposta demais e o lenço em seu pescoço
precisava de ajustes. Mesmo assim, não houve uma pessoa dentre os
presentes que não parou para vê-lo tão logo ele chegou. A sua presença
dispersava tanto poder que as damas suspiravam e os homens o respeitavam
sem que ele precisasse dizer uma palavra. Acompanhado do Conde de
Cornwall, ele tinha a expressão rígida e inamistosa, distante. Elizabeth não
reconheceu nele de imediato o homem com quem passou uma semana
trancada, que a conduziu em uma dança e que fez amor com ela de forma
terna. Ao mesmo tempo, ele era todo Aiden Trowsdale e sua imponência
ducal.
— Céus, como ele é lindo.
Elizabeth ouviu uma dama dizer. Não virou para ver quem ousava
admirar o seu homem, ela não conseguia desprender os olhos dele.
— Parece que ele está firmando compromisso com uma das filhas do
visconde. Hoje, Vossa Graça é o melhor partido no mercado dos casamentos.
Ela não sabia de onde tinham saído tantas damas para admirar o duque,
mas a conversa a incomodava. Ele não era um produto à venda em um
mercado. O casamento dele não deveria ser uma decisão de negócios. Aiden
merecia casar-se com a mulher que ele amasse. E, por Deus, como ela queria
ser aquela mulher.
— Não sei. — A primeira-dama, que disse achar o duque lindo, foi até a
mesa para servir-se de ponche. — Ouvi fofocas de que ele tem uma amante
aqui nesta casa. Na verdade, duas amantes. A mulher que ele arruinou
durante a semana em que esteve doente e outra. O duque é um devasso
incorrigível, tenho pena da mulher que ele desposar.
Não era saudável continuar ali ouvindo aquela conversa. Elizabeth
examinou as mesas e os pratos ainda estavam cheios. Havia criados prontos
para repô-los, bem como para servir chá. O ponche precisava ser trocado,
essa foi a sua desculpa para esgueirar-se pelos cantos e desaparecer pela porta
de acesso.
Seu coração batia acelerado. Retumbava como os trovões dos dias de
chuva. Era como se uma tempestade estivesse acontecendo dentro dela. A
simples visão de Aiden Trowsdale não podia desorientá-la daquela forma.
Elizabeth era uma mulher experiente e madura, apesar da pouca idade. Ela
não admitia que ele a afetasse tanto, cada vez mais, não depois de ele passar
dias sem falar com ela, sem dirigir-lhe a palavra depois que fizeram amor.
Ela deveria estar magoada com ele, não ainda mais apaixonada.
A cozinha estava um caos, por isso ela foi até a lavanderia. As pilhas de
roupas para lavar, lavadas e para passar conferiam um bom esconderijo.
Elizabeth enfiou-se entre os vestidos que estavam pendurados e apoiou as
duas mãos no tanque. Inspirou e expirou lentamente, algumas vezes. Não
havia motivo algum para aquela reação exagerada do seu corpo. E ela
precisava voltar para o salão.
— Sra. Collingworth?
John entrou na lavanderia. Seu porte era sempre elegante, como se nem o
rompimento de uma adutora pudesse atrapalhar seu foco. Elizabeth
recompôs-se e ajeitou os cabelos com as mãos.
— Estou aqui, John. Os criados precisam de minha atenção?
— Não, senhora. Eu apenas notei que tinha saído do salão e imaginei que
a senhora precisasse de alguma ajuda.
Ela precisava, mas o mordomo não podia oferecer o alento que
necessitava.
— Eu tive um pequeno desconforto — ela mentiu, para evitar que John
especulasse. — Minha cabeça está doendo um pouco, já está passando.
— Certo. Aguardaremos seu retorno.
John retornou para o salão, onde sua atenção era sempre necessária.
Nobres não realizavam quase nenhuma tarefa ordinária, fazendo com que os
criados fossem demandados com frequência. Elizabeth colocou um pouco de
água em uma bacia e usou para refrescar seu rosto. Já estava quase
recomposta quando ouviu passos em sua direção.
Ela não precisava vê-lo para saber que era o Duque de Shaftesbury quem
estava ali. Elizabeth não se virou, apenas esperou que ele se aproximasse.
Aiden colocou as mãos nos ombros dela e ajeitou o colarinho da camisa que
ela vestia. Naqueles segundos em que ele a tocara, tudo que ela ouvia era o
ruído da própria respiração.
— John me disse que a senhora estava se sentindo mal.
O duque segurou os cabelos dela e os afastou do pescoço. Elizabeth
sentiu um sopro frio em sua nuca e o toque dos dedos dele em sua pele.
— Já estou retornando para o salão, milorde. Eu apenas…
— Elizabeth, olhe para mim — ele a interrompeu. Os polegares de Aiden
desenhavam círculos imperfeitos na pele tensa do pescoço dela, enviando
espasmos de prazer e dor pelo corpo intranquilo de Elizabeth. Por dias, ela
desejou senti-lo novamente. Aquele toque era mais necessário do que o ar em
seus pulmões. — Sei que minha atitude com a senhora não foi digna de um
cavalheiro, mas eu gostaria de me explicar. Dê-me essa chance.
— Essa não é a melhor hora nem o lugar adequado. Vossa Graça tem
convidados e logo todos notarão que não está mais no salão.
Ela se virou e ele estava ali. Real, a apenas alguns centímetros dela.
Daquela distância ela podia estender os braços e tocá-lo, traçar os contornos
de sua face e afundar os dedos nos cabelos macios, mas ele não era dela para
que tomasse aquelas liberdades.
— Meus convidados estão sendo devidamente entretidos pelo Conde de
Cornwall. Edward sabe conduzir uma festa melhor do que eu.
— O conde sabe que o senhor está aqui? — ela perguntou. O silêncio dele
serviu como resposta. — Céus, o conde sabe que…
— Edward é meu melhor amigo. — O duque levou a mão até a face
enrubescida de Elizabeth. Ela não sabia se estava nervosa, com calor ou
envergonhada. — Ele não revelará a ninguém. Elizabeth, eu preciso dizer que
eu pensei na senhora todos os minutos dos últimos dias. Eu deveria tê-la
procurado, mas…
Ele respirou fundo e fechou os olhos por breves momentos. Ela o
observava, tensa, os músculos retesados sob as camadas de tecido e a pele
queimando onde ele mantinha sua mão.
— Precisamos retornar.
A voz trêmula indicava que ela não desejava realmente sair dali. Daquele
toque, daquele pequeno espaço que parecia tão seguro e assustador ao mesmo
tempo. Aiden olhou para ela e era muito fácil se perder nos caminhos escuros
daquele olhar. Então ele a beijou. Levou sua boca à dela e reivindicou um
contato mais íntimo, ignorando a prudência. Era a primeira vez que ele a
beijava sem que uma porta os isolasse do mundo exterior.
Elizabeth também não se sentia prudente. Ela levou as duas mãos até o
colete do duque e cravou os dedos no tecido, puxando-o para mais perto no
instante em que ele procurava a língua dela com a dele.
— Eu não quero que as coisas sejam assim. — Aiden traçou o queixo
dela com a boca, enviando espasmos por todas as partes do corpo de
Elizabeth. — Nós dois, escondidos, fingindo.
— Não há muitas opções, Aiden. — Ela deitou a cabeça para trás,
oferecendo a ele espaço para seus beijos. — A não ser que Vossa Graça
anuncie para seus convidados que cortejará uma plebeia viúva, não temos
como não esconder. Nem mesmo se eu aceitasse ser sua amante, o senhor
poderia demonstrar esse tipo de afeto em público.
Aiden emitiu uma espécie de rosnado, indicando que ele entendia as
limitações impostas pela diferença social entre eles. Talvez o duque não
aceitasse que, sendo tão rico e influente, não houvesse nada que pudesse
fazer para mudar aquela situação. Não havia.
— Eu não sei o que fazer — ele disse, por fim, afastando-se alguns
centímetros dela. A separação causou em Elizabeth uma sensação
desagradável, como se ele tivesse arrancado dela uma parte importante de seu
corpo. — Diga-me, Elizabeth. Eu sou o Duque de Shaftesbury e pela primeira
vez eu não sei o que fazer.
— Não vamos fazer nada. — O sorriso que ela estampou era falso.
Elizabeth também não sabia o que fazer. Por ele, ela abriu mão da sua própria
vergonha. — Na verdade, vamos retornar para a festa. O senhor vá para seus
convidados que orientarei às criadas a prepararem mais ponche.

O DUQUE TENTOU FINGIR que estava bem, porém, demonstrou um


comportamento desagradável durante quase todo o brunch. As mulheres o
cercaram e insistiram em falar do clima em Thanet Bay, como se as estações
do ano na propriedade acontecessem de uma forma diferente. Sua mãe o
observava ao longe e demonstrava insatisfação por suas atitudes. Pelo menos
ela tinha que aguentar as entediantes esposas dos nobres e negociantes que
estavam na mansão.
A noite trouxe um encontro de negócios que acalmou a irritação do
duque. O momento de interação masculina era tudo que ele precisava.
Reunidos no escritório, um amplo espaço com sofás, cadeiras, mesas e muito
uísque, os homens discutiam sobre os investimentos nas regiões mais
degradadas de Londres. Apostando nas exportações e no comércio marítimo,
pretendiam reviver áreas em Shadwell e atrair pessoas de maior prestígio.
Quando o jantar foi servido, a governanta não estava presente. Aiden
sabia que ela precisava ficar na cozinha para garantir o melhor serviço, mas
isso não fazia com que ele se sentisse menos aborrecido. Enquanto comia
cada prato que era servido e agradecia os elogios dos convidados pelo
cardápio refinado, sua cabeça estava em outro lugar.
Elizabeth disse que ele deveria cortejá-la. Não, ela não disse, ela apenas o
lembrou que aquela era a única forma de serem vistos em público. Ele
precisava sondar o quanto aquilo afetaria a sua vida. Como se suas preces
pudessem ser ouvidas, a conversa na mesa seguiu em uma direção intrigante.
— Ouviram comentários sobre o casamento do herdeiro do Marquês de
Westmore? — lady Jocelyn, esposa do Conde de Fortshire, perguntou.
Estavam servindo o quinto prato, costeletas de cordeiro com molho.
— Soube que ele foi obrigado pelo pai a se casar com a camareira da irmã
mais nova. Ele comprometeu a mulher.
A reposta de lady Sarah deixou os presentes em um silêncio de alguns
segundos. Apenas os talheres tocando a louça podiam ser ouvidos. Aiden
bebeu um longo gole do vinho tinto que estava à sua frente.
— É cruel arruinar a reputação de um jovem herdeiro assim — lady
Jocelyn prosseguiu. — Posso apostar que a camareira aplicou um belo golpe
no futuro marquês. Será que ela era mesmo pura?
— Eles estão apaixonados — o Visconde de Whitby disse. — Esses
jovens tolos acham que o amor é o motivo para um casamento. Conversei
com o marquês e ele afirmou que lorde Brandon quis se casar livremente.
Pena que sua vida social estará acabada.
O Duque de Shaftesbury deixou a faca bater no prato e fez um barulho
que chamou a atenção para si. Não era sua intenção. O burburinho causado
pelo assunto cessou e os olhares sobre ele indicavam que era preciso dizer
alguma coisa.
— Não sei o motivo de tanto alvoroço. O casamento deles foi abençoado
por Deus, a honra da jovem foi preservada e eles se amam. Isso não é o
suficiente?
— Vossa graça, ela é uma plebeia — lady Madeline disse, um quase
murmúrio.
— É uma jovem muito intrigante, porém, ela não é adequada para o
futuro marquês.
Depois que o Lorde Greenmore se manifestou e os criados chegaram para
retirar os pratos e servir a primeira sobremesa, o assunto mudou. Para Aiden,
contudo, ele continuava ecoando. Ela não é adequada. A vida social dele está
acabada. Aquele deveria ser o aviso que ele precisava sobre Elizabeth. Ele
podia tê-la, podia amá-la, mas não podia casar-se com ela. Lorde Brandon, o
futuro marquês de apenas vinte e três anos, amigo de sua irmã Agatha, era
um homem mais corajoso do que ele. Apaixonara-se por uma criada e
arriscara sua vida inteira para viver aquele amor. Os homens da mesa o
achavam tolo, Aiden o achava admirável.
Aiden também era menos inconsequente do que um jovem sem
responsabilidades. Até que lorde Brandon tivesse que assumir o marquesado,
muita coisa poderia acontecer. A sociedade poderia acostumar-se com sua
esposa. Ou eles poderiam acostumar-se sem a sociedade. Aiden era um
duque, seus compromissos com o parlamento e com a sociedade eram
importantes. Ele não podia arriscar sua reputação.
Aquela constatação o abateu. Depois de ficar doente e quase morrer, de
ferir-se com sua própria espada e de ser humilhado por seu melhor amigo, ele
não esperava perder Elizabeth.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

O DIA FOI EXAUSTIVO , MAS TRANSCORREU COM PERFEIÇÃO . P OR VOLTA DE


meia-noite os convidados se recolheram, já que haveria uma caçada no dia
seguinte. Os criados também foram dormir, mesmo que alguns não
conseguissem ter um sono tranquilo. Nobres sempre chamavam, no meio da
madrugada, com desejos estranhos. Elizabeth conferiu que seus filhos
dormiam, que o gato estava preso no quarto com eles, e foi para quintal com
seu romance.
Não havia mais luz pela casa. A lua brilhava alta no céu e as estrelas
proporcionavam um lindo cenário para que ela pudesse avançar na leitura.
Com uma vela pendurada na parede, Elizabeth acomodou-se na parte detrás
da mansão. Ninguém ia ali além dos empregados.
Ela não conseguiu se concentrar. Seus olhos se perderam no horizonte,
para além dos estábulos. Havia fumaça saindo das casas que ficavam nos
arredores. Uma delas era de James Hodges, seu pretendente, e ela tinha
ficado tão ocupada que não o vira naquele dia. Também não queria vê-lo.
Depois do episódio na lavanderia, tudo que ela queria era Aiden Trowsdale.
Com tantas coisas para ocupá-la, ela esperava não pensar no duque a cada
minuto, mas estava enganada. Cinco páginas depois, Elizabeth desistiu de ler.
Olhou para cima e viu luz na janela do quarto do duque. A brisa causou-lhe
calafrios. Se aquele trabalho não fosse tão importante para ela, a coisa certa a
fazer seria ir embora no dia seguinte. Aquilo já tinha passado dos limites.
Seus sentimentos por Aiden eram perigosos demais, ela acabaria com o
coração partido.
— Essa iluminação não é adequada para uma boa leitura.
A voz fez com que ela se sobressaltasse e virasse para trás. A figura
soturna de um homem vestindo calças cinza e camisa branca de linho entrou
em seu campo de visão. Ele tinha os cabelos um pouco desalinhados, mas foi
como esteve o dia inteiro. Aiden Trowsdale era lindo de toda forma que
desejasse aparecer.
— Já estava me recolhendo.
Ela fechou o livro e se levantou. O olhar dele observou cada movimento
do seu corpo.
— Estou indo à casa do poço — ele disse, sem desprender os olhos dela
por nenhum segundo.
— Está muito escuro por lá, milorde. É perigoso.
— Não há perigo algum. Qualquer pessoa poderia ir até a casa se
soubesse o caminho.
Ele não disse mais nada, apenas deu alguns passos e se afastou. Elizabeth
ficou ali, segurando o livro na mão e em dúvida se aquilo era um convite ou
uma ameaça.

A IDEN NÃO SABIA se ela entendera seu recado. Se Elizabeth compreendera


que ele lhe fizera um convite ao dizer que iria para a casa do poço e que
qualquer pessoa conseguiria chegar até lá. Ele esperava que ela fosse até ele.
Aquele era um movimento arriscado. Com uma casa cheia de convidados
e uma caçada marcada para a manhã seguinte, ele deveria dormir. Os quartos
estavam todos ocupados e os criados ficavam de prontidão para atender a
qualquer chamado. Mesmo que ele conhecesse algumas passagens quase
secretas, era quase impossível passar despercebido em sua própria casa.
Mesmo assim, ele queria se encontrar com Elizabeth. Se precisasse mentir,
enganar e infringir as leis para estar com ela, ele o faria com prazer. Só não
estava muito certo de que ela nutria por ele os mesmos desejos.
Os minutos que sucederam à sua chegada à casa foram torturantes.
Acendeu uma vela, a lareira, serviu uma dose de uísque e esperou. Aiden não
estava acostumado a esperar por nada, nem ninguém. Quando Elizabeth abriu
a porta da casa e preencheu o ambiente com seu cheiro de gardênias, ele
pensou que seu coração fosse parar de bater.
— Eu me sinto muito imoral fazendo isso.
Ela recostou na madeira da porta e o encarou. Suas bochechas estavam
rosadas pelo esforço e pela vergonha, que ela abandonara para se render
àquele encontro. Sua expressão não denotava arrependimento, apenas
excitação. Elizabeth estava excitada pela possibilidade de repetir o ato
indecoroso.
O duque se levantou, apoiou o copo sobre a mesa e deu três passos na
direção dela. Ele pensou no que dizer. Tinha muito o que gostaria de falar
para Elizabeth, mas nenhuma palavra saiu de sua boca. Suas mãos se
apoiaram na parede e os braços aprisionaram a governanta em um pequeno
espaço que deixava os corpos muito próximos. Ela arfou, entreabrindo os
lábios, e isso foi demais. Dobrando o corpo, ele a beijou. Levou a boca até a
dela e a reivindicou como se tivesse o direito de possui-la. Que o inferno o
carregasse, ele tinha. Nenhuma mulher o fez sentir-se daquela forma e ele
tinha experiência sobrando para ter certeza.
A partir daquele momento, os dois corpos se uniram. Ele a segurou pelos
quadris e ela passou os braços pelo pescoço dele. Aiden viu, pela primeira
vez, vantagem no vestuário simples das criadas. Aquela saia era bem mais
fácil de ultrapassar do que as saias cheias de camadas e goma das aristocratas.
Suas mãos se amoldaram às formas das nádegas de Elizabeth e ele a
suspendeu, forçando-a buscar equilíbrio no contato mais profano com o corpo
dele.
Empurrando-a contra a parede, Aiden desabotoou suas calças. Sua ereção
dolorida fez contato com o tecido grosso da roupa dela e ele gemeu. As bocas
se procuravam, ele a acariciava com a língua enquanto procurava afastar as
poucas camadas que o separavam daquilo que desejava. Com um movimento
rápido, Aiden ergueu-a mais uma vez e a penetrou. Elizabeth gemeu e enfiou
o rosto no pescoço dele. A sensação de estar dentro dela era fantástica.
— Eu não quero mais que você aceite ser cortejada por Hodges. — O
duque estava imóvel, o membro latejando dentro de Elizabeth, enquanto ele
se permitia acalmar. Ela o desorientava como nenhuma mulher nunca fez. —
Invente qualquer desculpa e o dispense. Você não pode se casar com ele,
Elizabeth. Você é minha, eu quero você para mim.
Ela emitiu um som que parecia um rosnado e apoiou a cabeça no espaço
entre o pescoço e o ombro do duque. Voltou a beijá-lo, mordendo
suavemente o lábio inferior dele.
— Isso parece bastante pretensioso. O senhor quer que eu seja sua e não
posso exigir que seja meu?
— Você não precisa exigir. — Aiden voltou a se mover, investindo
contra ela com força. Ele precisava de alívio rápido, depois podia beijá-la,
cheirá-la, prová-la e conduzi-la a um prazer intenso. — Eu já sou seu,
Elizabeth. Por inteiro, sem restrições. Você é a única mulher que eu desejo e
eu quero você na minha cama. Todas as noites.
Ele estava embriagado pelo desejo. Abandonou o restante de dignidade
que lhe sobrara com estocadas firmes e profundas. Murmurou palavras que
não deveria dizer, fez promessas que não poderia cumprir. Manteve Elizabeth
em seus braços, suspensa no ar, até que a necessidade de estar dentro dela
amenizasse.

M ESMO SABENDO que nada bom sairia de seu relacionamento com o Duque de
Shaftesbury, Elizabeth se sentiu muito bem quando ele disse que a desejava.
Melhor ainda porque ele disse que era dela. Ele pertencia a ela, mesmo que
não pertencesse. Aquilo significava mais do que um simples desejo carnal.
Sentada na banheira de metal ao lado da lareira, com água cobrindo seus
ombros, ela olhava para a chama flamejante enquanto seu pensamento
divagava. Não sentiu a aproximação dele até que mãos firmes tocassem sua
pele sensível. Aiden segurou os cabelos dela e os ajeitou com as mãos,
deixando a nuca desnuda. A respiração dele aqueceu a pele exposta e logo foi
substituída pelos lábios quentes. Elizabeth sentiu um calafrio lhe percorrer a
coluna.
— Eu vou cuidar de você agora.
Ela sorriu. Naquele momento ela não era mais senhora. No breve tempo
que passavam juntos, não eram necessários pronomes de tratamento. Depois
que ele declarou pertencer a ela, não havia mais hierarquia entre o que
sentiam um pelo outro.
— Preciso voltar para a casa. Se derem por minha falta…
— Você é a governanta. — Ele colocou sabão nas mãos e as enfiou na
água. Elizabeth se contorceu ao toque dos dedos longos em sua barriga, seus
quadris, suas coxas. — Não tem que atender a chamados de madrugada.
Ainda tem muito que eu queira fazer esta noite.
— Vossa Graça é muito mimado.
Elizabeth deitou a cabeça na borda da banheira. Aiden massageava a parte
interna das coxas dela e roçava a ponta dos dedos em sua abertura feminina.
— Eu sou. Mimado, devasso e estou morrendo de desejo.
Aquilo foi o suficiente para que ela risse, mas o riso se transformou em
um gemido baixo quando ele acariciou-a no ponto mais sensível do seu sexo.
Elizabeth abriu-se para que ele pudesse tocá-la melhor. Mais profundamente.
Enquanto Aiden usava os dedos para estimulá-la, beijava seu pescoço, seu
ombro, mordiscava o lóbulo da orelha.
Os sons que ela não conseguia evitar a deixariam constrangida antes, mas
o duque libertou o seu lado mais impudico. Ele demonstrava satisfação em
fazê-la gemer, provocando-a e excitando-a ao máximo. Os carinhos cessaram
e ela abriu os olhos querendo protestar. Viu Aiden crescer em seu campo de
visão e entrar na banheira com ela.
— Aiden. — Ela se encolheu, dobrando as pernas. — Não há espaço para
nós dois.
— Da forma como eu planejo ficar, há bastante espaço.
O duque riu e acomodou-se, erguendo-a pela cintura para fazer com que
ela se sentasse sobre suas pernas. A água esfriando não importava. A
compreensão daquele corpo nu e excitado no qual ela estava apoiada fez com
que ela desejasse ser possuída. Imediatamente.
Ele não tinha mais o sorriso em seus lábios. Olhava para ela com desejo e
reverência, passando as mãos espalmadas pelos seus braços, pernas, barriga.
A expressão dele era perturbadora e capaz de confundi-la.
A posição era incômoda, mas não atrapalhou que Elizabeth segurasse o
membro rígido do homem e se sentasse sobre ele, permitindo uma penetração
profunda. Daquela vez, ele não tinha pressa. Com as mãos apoiadas nos
ombros dele e os joelhos dobrados dentro do espaço reduzido, ela o cavalgou
lentamente, enquanto ele esfregava seu botão rosado com o polegar.
Assim como da primeira vez, Aiden não permitiu que ela atingisse o
clímax. Ergueu-se da banheira, derramando água pelo chão, e jogou-a sobre o
colchão macio da cama pronta que esperava por eles. Depois, forçou os
joelhos dela abertos e levou a boca até o centro de sua intimidade. Elizabeth
praguejou e se contorceu com a língua dele em suas partes íntimas. Não era a
primeira vez. Ela já sabia que não era ilegal, ao menos para as leis britânicas,
e as sensações foram mais inebriantes. Talvez porque ela o desejasse mais, ou
porque ele já a havia estimulado o suficiente. Todo o interior dela pulsava e
ansiava por um contato mais profundo.
— Aiden, por favor — ela disse, a voz embargada pelo prazer iminente.
O duque lambia e chupava o feixe de nervos intumescido e protuberante em
sua feminilidade e quase lhe tirava os sentidos. — Por favor, me possua.
— Não agora, minha querida. — Ele a penetrou com os dedos para
proporcionar algum alívio. — Como eu disse, ainda há muito o que eu queira
fazer. Vamos nos divertir muito esta noite.
Ela quis dizer que eles não tinham muito mais tempo, mas foi silenciada
pela boca dele. Aiden a beijou, sugou os lábios, depois desceu a língua pelos
mamilos tesos. Segurou um com o dente e mordiscou enquanto acariciava-a
entre as pernas. Toda vez que Elizabeth sentia que iria explodir em um prazer
inebriante, ele retrocedia e começava tudo novamente.
Ele demorou, mas a atendeu e a penetrou, enquanto mantinha os
estímulos na zona mais sensível da sua intimidade. Elizabeth cravou os dedos
nos lençóis e arqueou os quadris para receber o orgasmo mais intenso de sua
vida. Ela não tinha experiência naquelas sensações. Depois de conhecer
Aiden ela teve certeza de que nunca tivera nenhum tipo de prazer como
aquele durante o ato sexual. O duque fazia com que ela desejasse ser tocada,
penetrada e manipulada. Fazia com que ela quisesse passar um dia inteiro
sendo beijada e possuída por ele.

A MULHER ERA DELICIOSA . Vê-la gozar em sua boca, em sua mão, enquanto
ele a possuía, dava a Aiden uma sensação de poder que ele não achava já ter
sentido outras vezes. Havia algo diferente nela. Podia ser a resistência da
governanta em ceder às suas propostas de tomá-la como amante. Mulheres
difíceis eram sempre mais intrigantes. Ele suspeitava, contudo, que era algo
mais do que a sedução pela caçada. Por mais que o duque gostasse de ser
desafiado, não era apenas o desafio que o atraía.
Ele estava olhando para ela havia vários minutos. Era tarde, muito tarde, e
até os ruídos do bosque estavam silenciosos. Os dois já tinham feito amor três
vezes desde que chegaram à casa do poço e Elizabeth cochilava nos braços
dele. Os cabelos loiros e cacheados estavam desgrenhados, ela tinha as
bochechas rosadas e a respiração suave. A imagem fez com que o coração
dele pulasse algumas batidas. Todo o corpo dela era de uma beleza que ele
ainda não vira. A pele era branca e macia como se uma porcelana pudesse ser
estofada com algodão. Os seios eram fartos, os mamilos rosados e do
tamanho perfeito. Para ele. Ela era perfeita para ele.
Elizabeth guardava algumas marcas de quem ela era. Pequenas cicatrizes,
calos nas mãos, notas de que sua pele fora castigada pelo tempo sem os
cuidados merecidos. Nada que diminuísse sua beleza. Ao contrário, aquelas
marcas davam a ela personalidade. Elizabeth era única.
Aiden aconchegou-se ao lado dela, garantindo que a mulher não
acordasse, e adormeceu. A exaustão do dia e da noite fizeram com que ele
dormisse profundamente até os primeiros raios de sol penetrarem pelo vidro
da janela, fazendo-o despertar.
— Volte para a cama.
Ele se ajeitou entre os lençóis quando viu Elizabeth saindo da banheira.
Ela já tinha acordado, tomado banho e estava pronta para voltar para a vida
real. E a vida real não permitia que eles ficassem juntos.
— Bom dia. — Ela lhe sorriu. — Está na hora de retomar minhas
atividades. Os criados vão questionar onde estive e terei que inventar
mentiras. Meus filhos já devem ter acordado e vão me questionar. Eu não
deveria ter dormido tanto.
Aiden se levantou, vestiu suas calças e a interceptou no meio do quarto.
Ajudou-a a abotoar as saias e ordenou que ela se sentasse à frente do espelho.
Ele também queria ajudá-la com os cabelos. O duque adorava os cabelos de
Elizabeth.
— Não tenho nenhuma vontade de voltar. Gostaria de ficar aqui pelo dia
inteiro. Talvez o final de semana. Mas aguardarei que você saia para que não
sejamos vistos juntos.
Ela lhe sorriu e ele não resistiu. Fez com que se levantasse e a beijou na
boca. Elizabeth se abriu para recebê-lo, a língua tocando a dele como se fosse
veludo e seda.

C LARO QUE E LIZABETH estava perdendo o juízo. Louca, talvez, como se a


doença não lhe tivesse afetado os pulmões, mas a cabeça. Saiu sorrindo da
casa do poço. Cada momento compartilhado com o duque fazia sua visão
mais clara, o dia mais ensolarado e o cantar dos pássaros mais belo. A mesma
realidade que a impedia de ser a nova duquesa também a fazia sorrir como as
mocinhas tolas dos romances.
Ela não conseguiu enganar nenhum dos empregados, mas eles também
não lhe perguntaram nada. Os filhos estavam acordados e sendo alimentados
por Loretta, que adorava entupir os pequenos de pães e bolos logo nos
primeiros minutos da manhã.
— Eles me ajudam provando a comida. — Era a desculpa que ela dava.
Elizabeth sabia que a solteirona desenvolvera afeto pelos meninos e fazia
aquilo porque queria cuidar deles.
Depois de vestir uma roupa mais adequada à manhã de atividades da casa,
a governanta foi coordenar a preparação do desjejum, porque os homens
sairiam para caçar.
— Não consigo entender o prazer em perseguir animais indefesos — ela
resmungou, enquanto conferia as louças que Gertie estava secando. As
criadas estavam no salão principal. As cortinas de tecido bordado,
estampadas com dourado, estavam abertas e havia muita luz solar penetrando
pelas janelas.
— Mas eles não caçam animais! — Gertie respondeu a uma pergunta não
feita. — A senhora não sabe? O duque é contra maltratar animais. A caçada é
uma espécie de busca por um tesouro escondido. Os cães sentem o cheiro que
os criados deixaram nas pistas e o prêmio final é sempre algo muito valioso.
— Por isso, os nobres adoram a caçada dos Trowsdale!
Outra criada demonstrou animação. Elas começaram a falar sobre as
vantagens de se trabalhar para a família, mesmo com a presença da duquesa
na casa. Elogios ao duque e a lady Agatha, elogios ao falecido Albert
Trowsdale, elogios aos eventos e festas que eles faziam e aos trabalhos
comunitários que eles conduziam. Se Elizabeth já não estivesse apaixonada
pelo duque, ela imaginaria que aquela conversa era um plano de lady Agatha
para mostrar a ela o quanto o irmão era um homem interessante.
Depois de supervisionar o salão e garantir que tudo estava perfeito,
Elizabeth precisava ir à vila buscar algumas encomendas. Pediu que a
carruagem dos empregados a levasse para não ficar muito tempo fora. Sua
programação costumava ser impecável, ela nunca se atrasava ou deixava de
cumprir o cronograma. Sem intercorrências, estaria de volta logo após os
convidados terminarem a refeição e poderia, assim, organizar o salão de baile
como desejava quando todos estivessem na caçada.
Quando ela retornou para Thanet Bay com caixas e mais caixas de
ornamentos para decoração, percebeu uma agitação nos estábulos. O jovem
Reggie estava nervoso e, assim que ela saiu da carruagem, veio correndo ao
seu encontro. Sua expressão era de medo e o menino estava branco como
cera de vela.
— Sra. Collingworth. Sra. Collingworth, o Patrick.
A menção do nome de seu filho fez com que ela quase derrubasse a caixa
que carregava.
— O que tem o Patrick, Reggie?
— Ele pegou um cavalo e saiu, senhora. Tem poucos minutos. Eu tentei
impedir, mas ele é muito rápido. Ia montar para ir atrás dele, mas vi a senhora
chegando.
Reggie estava agitado e atropelando a fala. James Hodges apareceu para
intervir ao ver o filho transtornado.
— Como assim, ele pegou um cavalo?
— O que houve para ele fazer isso, Reggie? — Hodges questionou. —
Você fez algo com ele?
— Não. Ele saiu da casa, correndo. Estava chorando.
O centro de gravidade de Elizabeth girou e ela precisou ser amparada pelo
cavalariço para não cair ao chão. Aquilo não fazia sentido para ela. Patrick
sempre fora um garoto tranquilo e muito educado. Ele nunca pegaria um
cavalo sem permissão e sairia galopando pela propriedade se algo muito
grave não tivesse acontecido.
— Reggie, reúna alguns homens. Vou levar a Sra. Collingworth para
dentro e vamos sair em busca do garoto. Chame os arrendatários e seja
rápido.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO

A BUSCA POR P ATRICK GEROU UMA COMOÇÃO QUE SE ESPALHOU RAPIDAMENTE


por Thanet Bay. Elizabeth não quis aceitar ser conduzida para a mansão, mas
ela tremia muito e não estava em condições de ficar de pé. Loretta preparou
um chá de valeriana e fez com que ela bebesse, enquanto uma operação de
resgate era montada nos bastidores.
Hodges conseguiu reunir três dos arrendatários. O ajudante do estábulo
ficaria porque os nobres estavam já saindo para perseguir o tesouro. Para não
perturbar o evento, o cavalariço decidiu conduzir a busca como uma atividade
paralela. Esforçou-se para evitar que os convidados percebessem qualquer
movimentação que não fosse aquela planejada para eles, mas ele não
conseguiu enganar o Duque de Shaftesbury. Vestindo uma calça de montaria
de camurça escura, camisa branca e colete de brocado, Aiden Trowsdale
percebeu que alguns dos seus arrendatários estavam ali nos estábulos e que as
baias estavam todas vazias. Os cavalos menos valiosos tinham sido retirados
e estavam selados nos fundos do estábulo.
— Há algo errado — Aiden disse, atraindo a atenção do conde. Edward
aproximou-se para ver o mesmo que via o amigo. — Sr. Hodges, por que os
arrendatários estão nos estábulos e por que os cavalos estão selados nos
fundos?
O cavalariço se aproximou com algum receio. O duque era um homem
gentil, mas seu excesso de autoridade fazia com que os criados temessem
algumas explosões.
— Eles vão sair em uma busca pela propriedade, milorde.
— Busca de quê?
— O filho da governanta. Ele desapareceu e vamos procurar o menino.
A informação atingiu o duque como um soco no queixo ou uma pontada
do florete. Ele olhou ao redor, mas não viu Elizabeth.
— Explique-me isso. Quem desapareceu e o que houve?
— Não sabemos direito, milorde. Meu filho, Reggie, viu o jovem Patrick
sair correndo da casa, pegar um cavalo sem sela e galopar descontrolado pelo
campo. Prometemos à Sra. Collingworth que acharíamos o menino. Ninguém
sabe por que ele fugiu.
Aiden ficou em silêncio por alguns segundos para organizar o
pensamento. O filho de Elizabeth estava em perigo e aquela informação era
muito importante.
— Há quanto tempo foi isso? — o conde perguntou.
— Menos de meia hora, milorde.
— Avise aos convidados que a caçada mudou — Aiden disse. — Vamos
todos sair em busca do menino. Quero todos os homens disponíveis e
indisponíveis em um cavalo. Vamos varrer cada centímetro dessa
propriedade e vamos até a vila, mas não retornamos para cá sem o garoto.
— Sim, senhor. — Hodges fez um movimento com a cabeça —
Convocarei todos os criados.
— É uma ordem minha, Sr. Hodges — o duque insistiu. — Não aceito
nenhuma escusa de ninguém. Quem não estiver doente ou inválido nesta
propriedade deve montar um cavalo e ajudar a encontrar Patrick. Eu vou
conseguir roupas dele para provocar os cães. Edward…
Aiden virou-se para o amigo, que já estava segurando as rédeas de seu
puro-sangue. O conde costumava entendê-lo mesmo antes de dizer alguma
coisa.
— Eu coordenarei as buscas no bosque. Pedirei a Sawbridge que organize
uma expedição até a vila. Vá falar com ela.

A TÉ E LIZABETH VER o duque se aproximando, ela não conseguira notar toda a


mobilização na casa. As mulheres estavam reunidas no jardim e observavam,
sem compreender bem, os homens se organizando em grupos. A conversa se
dava de ouvido em ouvido e, se ela estivesse consciente do que estava
acontecendo, saberia que a fofoca não a pouparia. Não daquela vez. Tudo que
ocupava sua mente era Patrick. Ela sequer sabia onde estava Peter, tudo tinha
acontecido há minutos.
O chá de Loretta ainda não tinha produzido efeito quando o duque a
segurou pelas mãos. O movimento parou. Dava para ouvir uma gota de
orvalho tocar a relva. As criadas que as cercavam se afastaram e foram cuidar
de outros afazeres. As mulheres no jardim se viraram. Aiden usava luvas,
mas ele segurou a mão despida de Elizabeth entre as suas. A forma como ele
fez aquilo era íntima demais. Um duque não deveria ter aquela intimidade
com uma governanta.
— O que houve? — ele perguntou, no instante em que Peter apareceu. O
pequeno estava escondido na cozinha e se aproximou ao ver o duque.
— Eu não sei. Cheguei da vila e Reggie veio falar comigo. Eu preciso
achá-lo, Aiden, eu tenho que… eu não posso…
— Acalme-se. — O duque esfregou os dedos dela. — Nós vamos
encontrá-lo. Todos os homens vão procurá-lo e ele não deve ter ido longe.
Provavelmente se aborreceu com alguma coisa.
— Foi a senhora elegante — Peter murmurou por trás da saia da mãe.
Aiden ajoelhou e indicou que o menino devia se aproximar. — Ela brigou
com Patrick e ele ficou triste.
— Que senhora, Peter? — O duque segurou o menino pelos ombros.
Peter parecia assustado. — Qual das damas brigou com seu irmão?
— A fada — o pequeno murmurou. — Ela tem os cabelos prateados
como uma fada, não tem?
A expressão estampada na face do duque indicava que ele sabia de quem
Peter estava falando. Elizabeth também sabia. Não era novidade que a
duquesa não gostava de crianças, mas eles não esperavam que ela fosse
ofender tanto um menino a ponto de fazê-lo fugir.
— O que ela disse para o Patrick? — Aiden insistiu.
— Ele estava na biblioteca procurando o gato. Ele foge muito. Ela disse
que ele tinha que ir embora. Que criados não podiam estar ali, que ele não era
bem-vindo na casa.
Elizabeth pegou Peter no colo. O filho mais novo era pequeno, mas muito
esperto. Poucas coisas o incomodavam e ele jamais teria se afetado tanto com
uma fala da duquesa. Já Patrick era muito sensível.
O duque se levantou e limpou a poeira dos joelhos.
— Vou trazer seu filho de volta.
— Eu também vou procurá-lo. Pegarei com o Sr. Hodges um cavalo e…
— Você não vai a lugar algum, Elizabeth — o duque interrompeu-a. — É
muito perigoso para uma mulher sair cavalgando por bosques.
— Aiden, é o meu filho. Eu vou sair atrás dele com ou sem sua
autorização. Se quiser garantir minha segurança, leve-me com você.
Nenhum dos dois notou a informalidade do tratamento na frente dos
criados, menos ainda se preocuparam que alguém estivesse ouvindo. O duque
fitou Elizabeth por alguns segundos. Eles estavam perdendo tempo.
— A senhora sabe montar?
— Eu monto com as pernas passadas pelo cavalo. Como você.
— Pelos céus! — Aiden pressionou as têmporas. — E como pretende
fazer isso com esse vestido?
— Dê-me um minuto. Eu tenho vestes de montaria.
Ela as possuía realmente. Elizabeth não tinha a oportunidade de cavalgar
há muito tempo, mas ela adorava fazer isso como se fosse um homem. Nunca
conseguiu se adaptar à sela feminina, nem à cavalgada com saias. Entregando
Peter para que Loretta cuidasse, ela foi até seu quarto e vestiu sua roupa de
montaria. Ainda servia, apesar de um pouco justa nos quadris. Ela iria
procurar por Patrick, mesmo que isso lhe custasse o restante de dignidade que
sobrava.
Quando Elizabeth chegou vestindo calças, o duque se dividiu entre a
vontade de cobri-la com uma toalha de mesa e tomá-la em seus braços e
beijá-la. Ela tinha conseguido um meio de provocá-lo ainda mais. O tecido
envolvia as pernas dela e deixava suas formas femininas em destaque. Ele iria
enlouquecer duas vezes até aquela busca acabar.
— Hodges vai te dar um cavalo. Não saia do meu lado.
A necessidade de protegê-la de qualquer coisa era tão forte quanto a
preocupação em encontrar o menino desaparecido. O duque não tivera muito
tempo para conviver com as crianças, mas elas eram os filhos daquela
mulher. Os sentimentos por Elizabeth ainda não estavam claros, mas ele não
podia negar que ela o afetava como ainda não fora afetado por ninguém.
Depois que ela estava montada, Aiden comandou um grupo que também
contava com o cavalariço Hodges, o Visconde de Whitby e o Sr. McFadden,
o segundo filho na família de Edward. Eles iriam até as ruínas do lago e
encontrariam o grupo que fora até a vila em seguida.
O dia ainda estava claro e o verão proporcionava um período mais longo
de luz solar. Para cobrir uma área maior, os cavaleiros se afastaram enquanto
chamava por Patrick, mantendo contato apenas visual. O cavalo de Elizabeth
seguia o de Aiden. Ele não permitiria que ela se distanciasse.
— Vossa Graça, Patrick é muito fechado. Se o avistarmos, deixe que eu
fale com ele.
— Como desejar. Eu gostaria de me desculpar por minha mãe. Não sei o
que ela disse, mas…
— Mas não é sua culpa para que a assuma — ela o interrompeu. Aiden
sorriu, mesmo na tensão do momento. Por mais estranho que fosse, ele
adorava ser interrompido por ela.
A busca prosseguiu até chegarem às ruínas e não encontrarem nada. Não
havia nem mesmo rastro do cavalo que Patrick teria montado. Como ainda
havia bastante luz, o grupo decidiu adentrar no bosque para se encontrar com
o Conde de Cornwall. De minuto a minuto, o duque conferia como estava
Elizabeth. Ela aparentava serenidade, e ele suspeitava que era apenas
fachada. Antes de avistarem o outro grupo, ouviram um grito.
— Onde foi isso? — o visconde perguntou, aproximando-se do duque.
— À frente, tem uma clareira.
— Foi Patrick — Elizabeth confirmou e disparou seu cavalo. O mestiço
passou pelos outros do grupo e desapareceu por entre as árvores.
Aiden não podia acreditar no que estava acontecendo. Ele odiava perder o
controle das coisas e podia afirmar que, naquele momento, não tinha o
controle de mais nada. Fez com que seu cavalo seguisse o de Elizabeth por
entre galhos e folhas secas, até vê-la parar, desmontar e se ajoelhar.
Aquela era a cena mais triste que ele já vira. O cavalo que o menino
montava não estava à vista, mas o duque pôde ver o pequeno corpo imóvel da
criança no meio da folhagem. Sem saber o que tinha ocorrido, tudo que ele
pode fazer foi rezar. O Duque de Shaftesbury era religioso, mas aquilo não
dizia que Aiden costumava expressar sua religiosidade com frequência. Ele
costumava frequentar a igreja e fazer caridade, mas nem sempre pensava no
Divino com o devido respeito. Naquele momento, ele desejou com toda a sua
força que houvesse um Deus, e que aquele Deus não tivesse levado o filho de
Elizabeth. Ele não resistiria vê-la definhar como viu acontecer com sua mãe.
— Aiden! — ela chamou pelo nome dele, erguendo o menino do chão. —
Ele bateu com a cabeça.
— Venha comigo, no meu cavalo.
Ele ofereceu a mão para pegar Patrick. Elizabeth hesitou em entregar o
filho, mas o duque ofertou-lhe um olhar de segurança. Ele não deixaria que
nada acontecesse com aquele garoto. Nada que ele pudesse impedir. Ela
subiu no cavalo e se colocou à frente de Aiden, tomando o filho novamente.
Os outros cavalos se aproximaram e o grupo de Edward também os
encontrou. Aiden ordenou a Hodges que fosse buscar o doutor Davies e
disparou na direção da mansão.

A CHEGADA da comitiva causou mais rebuliço do que a partida. As mulheres


tomavam chá na varanda do solário quando perceberam o retorno dos homens
e foram bisbilhotar para descobrir o que estava acontecendo. As fofocas não
confirmadas pelas criadas indicavam que o filho da governanta fugiu e o
duque, um homem magnânimo e muito altruísta, decidiu ajudar a encontrá-lo.
Caroline Eckley sabia que era muito mais do que aquilo. Ela conhecia
Aiden melhor do que aquelas damas alienadas e não acreditava que o
deslocamento da programação se desse apenas a um surto de bondade. O
duque destacaria seus criados e arrendatários para encontrar o menino e
prosseguiria com sua caçada. Afinal, era a caçada dos Trowsdale, o maior
evento de Kent em todo verão.
Quando viu o puro-sangue marrom apontar no horizonte, ela teve certeza
de que seu amante estava escondendo algo. Na noite anterior, ele não estava
em seu quarto. Ela foi até ele, bateu à porta, mas Aiden não respondeu. Não
havia velas acesas, nada que indicasse que ele retornara depois de uma
escapada pelo campo. Então, ele retornava da busca com a governanta
sentada em seu colo.
A forma como ele conduzia o cavalo e, ao mesmo tempo, protegia a Sra.
Collingworth era tocante. Lady Eckley não teve dificuldade de identificar o
gesto como cuidado. Carinho. Algo que um homem só faria por alguém que
ele nutrisse sentimentos de afeto.
O Duque de Shaftesbury estava envolvido com a governanta.

E LIZABETH SE LEMBRAVA da ausência de sentidos de quando perdeu Gregory.


A cólera era cruel e já tinha levado muitos conhecidos e amigos, mas a perda
do marido a deixou desorientada. Peter, ainda recém-nascido, chorara por
horas até que ela conseguisse dar a ele a atenção necessária. Talvez aquilo
tivesse influenciado nas atitudes de Patrick. O filho mais velho era uma
criancinha quando precisou lidar com a perda súbita do pai.
Ela estava vivendo tudo aquilo de novo. Desde o momento em que viu
Patrick no chão, tudo não passava de uma sucessão de eventos que iniciavam,
mas não terminavam. Ela não veria, se terminassem.
Sentada à beira da cama onde o filho dormia, ela segurava a mão dele,
enquanto as pessoas alvoroçadas iam e vinham. Gretha colocou um pano frio
na cabeça ferida de Patrick. Havia um calombo em sua testa e a pele estava
machucada. John segurava um crucifixo e fazia uma oração. Geoffrey trouxe
um odorizante alcoólico e levou ao nariz do menino para que ele cheirasse.
Até o doutor Davies chegar, dias poderiam ter se passado sem que ela
sequer percebesse. O barulho das vozes era ouvido, mas não lhe importava.
— Aiden — lady Agatha disse, em baixa voz. Elizabeth sabia que ele
estava ali, o duque. Ela quase podia sentir a mão dele em seu ombro. — Vá
entreter os convidados. Eu ficarei aqui com ela.
Elizabeth também não notou a negativa dele, o movimento de cabeça que
indicara que não, ele não sairia daquele quarto. Ele precisava ir. Lady Agatha
tinha razão e os convidados não podiam ser deixados sozinhos. Os
comentários se intensificariam e a duquesa…
— Se você insistir em ser cabeça-dura, mamãe vai surgir aqui para saber
o que está acontecendo.
— Mamãe — Aiden repetiu, em uma súbita lembrança. — A duquesa.
Ela causou tudo isso. Foi por causa dela que o menino fugiu.
— Ela é uma pessoa má. Cruel. Nós sabemos que ela é assim, mas, de
qualquer forma, é nossa mãe.
— Ela quase matou uma criança, Agatha! — A voz do duque se
intensificou. — Não dá mais para ser complacente com as atitudes dela.
Mamãe passou dos limites e isso eu não vou tolerar.
Aiden rompeu para fora do quarto no mesmo instante em que Hodges
chegou, arfante, com o médico. O duque teve tempo de recomendar ao doutor
que fizesse tudo que estivesse ao alcance da medicina para curar o menino.
Não faltaria dinheiro para pagar as despesas nem recursos para tratá-lo.

E NQUANTO AS MULHERES fofocavam no salão de chá, Myrtle Trowsdale


imaginava como faria para impedir que as fofocas se espalhassem. Eles
estavam ali em Kent, um pouco afastados do furor londrino que ela há muito
desconhecia, mas o escândalo não demoraria a se alastrar como erva daninha.
Ela bebericava sua xícara com Earl Grey quando Aiden entrou salão adentro.
As damas se agitaram. As solteiras estavam animadas, mesmo depois de
terem visto o duque chegar com Elizabeth em seus braços. Para as ingênuas
perseguidoras de maridos nobres, ele era um herói. O salvador de crianças
indefesas, aquele que devolvia os filhos perdidos para suas mães. Para as
mais velhas, era apenas um devasso incorrigível que fizera da governanta o
mais novo nome no seu interminável rol de amantes.
— Mamãe. — Aiden colocou-se à frente de Myrtle. Seus cabelos estavam
desgrenhados e ele não se preocupou com a aparência. Era incomum que o
duque se postasse tão desalinhado na frente dos convidados, mas aquele era
um dia atípico. — Nós precisamos conversar. Venha comigo até o terraço,
por favor.
— Não posso deixar os convidados...
— Venha comigo — ele insistiu e adicionou, em baixa voz: — Ou o
escândalo que os convidados presenciarão será duas vezes mais
constrangedor do que os deixar esperando por alguns minutos.
Myrtle assumiu uma expressão fechada e levantou-se. Pedindo licença,
acompanhou o filho até o terraço externo. O duque fechou a porta para
garantir-lhes privacidade, porém, não se importava se os convidados
acabassem ouvindo a conversa. Ele estava no seu limite.
— O que a senhora disse ao menino Collingworth antes de ele sair
galopando daqui?
— Nada de mais. Por que acha que eu tenho algo a ver com o que
aconteceu?
— Porque a senhora tem. Diga, o que foi que a senhora falou que o
transtornou tanto?
— Já disse, Aiden, nada. O pirralho é muito sensível, eu apenas o impedi
de continuar mexendo nos livros.
Aiden pressionou as têmporas com os dedos, perturbado. A vontade de
agredir a mãe era quase maior do que seu autocontrole. Era a primeira vez em
sua vida que ele não sentia pena de Myrtle, nem se compadecia da condição
dela.
— Mamãe, ele não estava “mexendo nos livros”. Estava procurando um
gatinho fujão. Mesmo assim, Patrick está aprendendo a ler e eu deixei que
lesse os títulos na biblioteca. Ele tem minha autorização para estar onde
quiser nesta casa. A senhora não pode achar que manda na minha casa.
Minha. Casa — ele enfatizou as palavras. Sua voz saía como um rosnado. O
duque estava perto de uma síncope. — Se alguma coisa acontecer com esse
menino, o sangue dele estará nas suas mãos.
— Você é muito ingênuo se não consegue ver que está sendo manipulado
por essa família. — A duquesa deu uma risada baixa, porém, cínica. — A
governanta…
— Elizabeth é uma mulher honrada — ele a interrompeu. — Ela foi
contratada por mim e os filhos dela são bem-vindos nesta casa. Se a senhora
fizer qualquer coisa que a incomode ou atacar aqueles meninos novamente,
eu prometo que Paris será um destino próximo demais para suas próximas
férias.
Aquele era o fim do resquício de controle que restava ao duque. Ele abriu
a porta e saiu pisando forte do salão. Não demonstrou nenhuma elegância
nem fineza ao desaparecer pelos corredores. Se continuasse ali, Aiden faria
algo do que se arrependeria. A mãe poderia ser uma alma sem salvação, mas
aquela tinha sido a última maldade da duquesa.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUINTO

D AVIES ERA UM BOM MÉDICO E E LIZABETH NÃO TINHA MOTIVOS PARA NÃO
acreditar nele. Se ele dissera que seu filho estava bem, então não havia nada a
temer. Pouco antes do doutor chegar, Patrick acordou assustado. Estava
agitado e precisou da mãe para ser contido. O médico o examinou e
encontrou uma concussão apenas, nada grave. Pediu repouso, muito líquido e
compressa para a dor.
A situação fez com que Elizabeth precisasse considerar algumas coisas.
Desde o momento em que segurou o corpo inerte de seu filho, ela se culpou.
Se estivesse em casa para protegê-lo, aquilo não teria acontecido. Patrick
teria ido até ela, se sentiria seguro com a mãe. Ela lhe explicaria que a
duquesa era uma mulher amarga e cruel, que ele não deveria se sentir
diminuído pelo que ela falasse.
Elizabeth passou a vida trabalhando e estando ausente. Tinha que estar
ausente ou não levava comida para casa. Os filhos ficavam mais tempo com
estranhos do que com ela. Aquilo tinha que acabar. Ela não toleraria mais
uma vida de faltas. De não ter o que comer, ou de precisar se submeter aos
trabalhos mais degradantes. Isso dava a ela duas opções: casava-se com
Hodges e se tornava dona de casa, ou se entregava ao duque e sua proposta
indecente. Era como se não houvesse escolha.
Por mais digno que James Hodges fosse, ela não sentia nada por ele além
de respeito e admiração. Um homem de certa instrução, devotado a seu filho.
Ela poderia tê-lo como marido, mas se sentira impura se pensasse no duque
toda vez que se deitasse com Hodges.
Ser amante de alguém nunca passou por sua cabeça. Tanto por não achar
que seria sequer considerada por um nobre endinheirado quanto por não
aceitar tamanha humilhação. Mas, seria mesmo tão humilhante assim ser
cuidada por um homem a quem ela amava? Ludibriar as rígidas exigências de
uma sociedade impiedosa para viver ao lado do homem por quem seu
coração clamava parecia mais uma forma de rebeldia do que uma vergonha.

O S NOBRES ESTAVAM DESCANSANDO ANTES da soirée e exigindo pouco de sua


atenção. Elizabeth lavava roupas pessoais quando ele chegou. Ela tinha
passado o tempo quase todo ao lado da cama de Patrick e se afastou apenas
porque ele dormia tranquilo. O duque tinha tomado banho, se barbeado e
vestia roupas limpas e engomadas. A calça bege ficava justa em suas coxas
musculosas e ela não deveria estar olhando para os quadris dele enquanto seu
filho dormia depois de um grave acidente.
— Como ele está?
Aiden parecia saber que a lavanderia conferia privacidade suficiente.
Nenhum nobre ou convidado iria ali. Os criados eram todos de confiança.
— Vai ficar bem. O doutor disse que foi uma pancada forte, mas crianças
se recuperam rápido.
— Minha mãe pagará por ter sido tão cruel. — Ele a tocou no ombro, mas
Elizabeth não estava bem para ser tocada, por isso se afastou. — Se a senhora
preferir não mais ficar na mesma casa que ela, eu posso conseguir que
trabalhe para o Conde de Cornwall. Edward não vai negar-me esse pedido e
assim a senhora não precisará lidar com a duquesa novamente.
Elizabeth virou-se e o encarou. Ele dizia que arrumaria para ela um
emprego em outro lugar apenas para que não se sentisse mal. Se ela não o
conhecesse, pensaria que Aiden pretendia livrar-se dela, mas Elizabeth
entendeu suas intenções ao olhar em seus olhos. Havia dor e agonia no escuro
que a engolia. A expressão rígida do duque entregava a contradição dentro
dele.
— Eu não me importo com a duquesa. Ela pode ser uma mulher cruel,
mas quem deveria estar aqui para proteger meu filho era eu. São sete anos de
privações, em que Patrick não pode ter a mãe em tempo integral. Estou
cansada, Aiden, exausta — ela explodiu e largou a roupa que estava
segurando, baixando os braços na lateral do corpo. Seu coração batia
rapidamente.
— Não é culpa sua.
— Não será mais culpa minha. A sua oferta ainda está disponível?
O duque levou dez segundos para entender a pergunta que ela lhe fez. Seu
olhar era confuso até que ele ergueu uma sobrancelha e a encarou.
— Até que a senhora a aceite, sim.
— Então considere-a aceita. Eu quero que Vossa Graça seja meu protetor,
desde que prometa garantir o futuro dos meus filhos.
Um relâmpago cruzou o céu e, em seguida, um trovão anunciou a
tempestade. Não era incomum chover nos verões do litoral, mas não havia
nada antes que prenunciasse a chuva. Aiden levou a mão para tocá-la
novamente e, daquela vez, Elizabeth aceitou. Assim como aceitou quando ele
a puxou para um abraço. A tensão do dia desabou sobre ela como os pingos
grossos que caíam do lado de fora da casa. Abalada, Elizabeth mal percebeu
quando começou a chorar e foi amparada pelos braços fortes do duque.
— Por favor, não chore. — Ele beijou o topo da cabeça dela. — Não
posso permitir que aceite ser minha amante se isso lhe causa tanto mal.
— Não é isso. Eu estou exausta, Aiden. Eu só quero descansar. Quase
perdi meu filho, hoje. Eu não quero perder mais ninguém.
Ele levou a mão até o queixo dela e o ergueu.
— Vou pedir que meus advogados elaborem um contrato. Abrirei um
fundo em nome dos seus filhos e eles serão matriculados nas escolas que
você desejar. Também comprarei alguns bens e colocarei em seu nome, para
garantir que minha ausência não a deixe desamparada. Eu vou cuidar de você
como prometi, Elizabeth.
Ela sabia. No fundo, Elizabeth sabia que o duque era um bom homem e
que cumpriria suas promessas. Em troca de carinho, cuidado e encontros
amorosos, ele a trataria como uma princesa. Com a condição de que ela fosse
invisível. Ela não frequentaria a sociedade, não seria vista em público com
ele. Se fosse, seria ignorada pelas outras damas e cobiçada pelos outros
cavalheiros. Talvez eles disputassem para que se tornassem seus próximos
protetores. A amante do Duque de Shaftesbury teria fama de mulher
desejável.
Tudo aquilo era repugnante para Elizabeth Baynes, a filha de um burguês
que frequentava alguns bons círculos sociais. A viúva Collingworth, mãe de
duas crianças e que trabalhava como criada não podia se sentir humilhada por
uma oferta tão generosa. Muitas mulheres desejariam a posição dela. Ser a
amante de um duque era mais do que a maioria delas poderia sonhar. Ela
também já tinha se entregado para ele. Seu corpo e sua alma já pertenciam a
Aiden Trowsdale.
— Quando o senhor se casar…
— Eu não vou me casar agora. — Ele a silenciou com um beijo breve. —
Eu tenho tempo para produzir herdeiros que satisfaçam as exigências legais
para que o ducado permaneça na família.
Ah, como ele era bom em iludi-la. Como Aiden era habilidoso em fazê-la
acreditar em ilusões, como se ele não tivesse responsabilidades com o título
que os impedissem de viver o amor com o qual ela sonhava. Talvez fosse
suficiente que ela o amasse.
— Quando o senhor se casar, a sua esposa não me aceitará — ela
finalizou a frase, mesmo enquanto ele a segurava nos braços e a distraía com
carícias suaves em suas costas.
— Eu não me casarei por amor. Minha esposa não me amará a ponto de
se importar.
Era provável que não. Aquilo também poderia ser suficiente. Ela poderia
acreditar que, no final de tudo, ele a amasse. Apenas.

D EPOIS DE COMUNICAR ao duque sua decisão, Elizabeth precisava romper


com James Hodges. O homem era bom demais para ser enganado por ela por
mais tempo. No que estava pensando quando aceitou ser cortejada por ele?
Ela sempre soube que não seria capaz de corresponder ao que ele precisava,
nem seria capaz de se casar com um homem sem estar apaixonada.
— Foi bom encontrar a senhora — ele disse, assim que se viram nos
estábulos. — Gostaria de convidá-la para um passeio no litoral.
Oh, ele tornava as coisas mais difíceis sendo gentil. Elizabeth tinha sorte
em ter James em sua vida, mas ela estava cansada de passar necessidades e de
impor aos filhos uma vida de poucas posses. Casar-se com o cavalariço era
digno, mas ela queria mais para eles. Quase perder Patrick a fez enxergar
tudo em outra perspectiva. Seu filho nunca mais seria humilhado.
— Eu terei que recusar, Sr. Hodges. — Ela esperava não o magoar. Sabia
que o cavalariço não nutria sentimento algum por ela, apenas vira nela uma
mulher disponível. — Vim aqui porque preciso conversar com o senhor. Eu
não posso mais aceitar seu cortejo.
Hodges sorriu. Amarrou o cavalo em uma estaca e começou a escová-lo.
A conversa acontecia nos fundos dos estábulos, onde os animais eram
lavados e cuidados.
— Acredito que entenda seus motivos. Mas, Sra. Collingworth, a senhora
sabe que ele não irá assumi-la, não sabe?
— Sim, eu sei. Estou trilhando caminhos sinuosos, Sr. Hodges, mas eu
preciso ser honesta, ainda assim. O senhor merece coisa melhor.
Como não tinha mais nada para dizer, Elizabeth fez um movimento com a
cabeça e se retirou. Ela podia ter perdido parte da sua dignidade ao aceitar ser
amante do duque, mas não precisava arrastar ninguém para o inferno com ela.

Q UANDO J OHN ENTROU no salão de jantar e convidou os homens para uma


apresentação musical, o duque pediu que Miles Westphallen o seguisse até o
segundo andar. Foram até a sala privativa que dava para o salão de baile.
Assim, podiam conversar com privacidade sobre assuntos de negócios.
— Espero que tenha me chamado até aqui para dizer que tem interesse
em casar-se com minha filha. — O visconde se sentou em uma poltrona de
tecido estampado. — Depois da conversa lá embaixo, estou preocupado com
você.
— Não há motivo para preocupação, Westphallen. — Aiden serviu
brandy em dois copos e entregou um para o amigo. — Eu tenho uma amante,
mas você também tem. Isso não afetará em nada meus planos de casamento.
— Certo, digamos que isso seja verdade. Por que me chamou?
— Para dizer que eu não pretendo me casar, agora. Sei que minha mãe
anda espalhando boatos, mas eu pretendo esperar um pouco mais. Assumi o
ducado há pouco tempo e tenho muito o que fazer antes de me dedicar ao
matrimônio.
O visconde encarou o copo de bebida por instantes. Aiden sabia que suas
palavras impactavam negativamente as expectativas de Miles Westphallen.
Todas as mulheres solteiras de Londres queriam ser a próxima Duquesa de
Shaftesbury. Todos os homens gostariam de casar suas filhas com o duque. A
prosperidade do ducado que ele comandava era motivo de inveja. Casar-se
com Madeline Westphallen, contudo, não manteria as fofocas sob controle.
Faria tão somente com que ele precisasse se dedicar a uma esposa e ele não
queria nada daquilo. Não naquele momento.
— Não precisava de formalidade para me informar que não deseja se
casar.
— Gosto de deixar meus negócios às claras. — Aiden levantou e colocou
o copo vazio sobre a bandeja. — Não tenho como impedir que falem sobre
mim ou cobicem uma posição ao meu lado, mas não quero que meus amigos
e parceiros comerciais pensem que estou agindo como um patife.
— Pois bem. — Miles Westphallen também se levantou. — Pedirei
apenas que impeça a duquesa de continuar iludindo minha filha. Madeline
acredita que tem chances de se tornar a próxima duquesa.
— Talvez ela tenha. Porém não agora. Caso outro homem, mais bem-
intencionado que eu, deseje cortejá-la, não serei impedimento para que receba
uma proposta mais vantajosa.
Aquela era uma atitude razoável e o visconde sabia. Os homens
apertaram as mãos e saíram para a apresentação musical. Aiden desejava
voltar a dançar com a mulher dos seus sonhos, mas teria que se contentar e
convencê-la a visitar seu quarto novamente.

— A CHO que estamos prestes a ter uma nova duquesa.


Gretha disparou a informação, enquanto preparava a carne para o jantar.
Loretta bateu com a colher de pau na cabeça da amiga. As ajudantes fingiram
que não tinham ouvido nada. Elizabeth inspecionava o cardápio e ergueu o
olhar. Peter passou correndo pela cozinha atrás do gato.
— Não seja fofoqueira. Como sabe disso?
— Vossa Graça tirou agorinha mesmo a Srta. Westphallen para dançar. A
primeira dança. E Emma já tinha dito que a duquesa prometeu convencer o
filho a se casar com ela.
— Ela é mais respeitável do que aquela prostituta. — Loretta voltou a
mexer o purê de batatas. — Se Vossa Graça se casasse com aquela biscate, eu
acho que pediria demissão.
— Que tolice! — Gretha riu. — O salário que nos pagam aqui vale
aguentar qualquer madame como patroa. Principalmente com ela como
governanta.
A cozinheira apontou para Elizabeth. Aquilo era um elogio, ela sabia,
mas incomodou-se em ver que o duque rompera a promessa que lhe fez. Se
não pretendia casar-se, por que cortejava publicamente a jovem Westphallen?
Peter passou correndo, daquela vez segurando o gato. Ela precisava sair
daquela loucura. Ainda não estava confortável com a decisão de aceitar ser a
amante do duque. Não pretendia voltar atrás, as vantagens que ela teria em
ser protegida por ele eram muitas, mas o preço destas regalias era sua
dignidade. Era a afirmação pública de que ela não era, nem nunca mais seria,
uma dama.
Elizabeth precisava de paz. Mesmo antes de firmar um contrato com
Aiden, ela pretendia pedir a ele que a levasse para outro lugar. Qualquer
lugar, desde que não precisasse ficar no meio das fofocas sobre esposas e
outras libertinagens do duque.
Saiu da cozinha para conferir se o salão estava organizado. Não esperava
encontrar em seu destino a figura esguia e elegante de Caroline Eckley. Ela
parecia perdida ali, já que todos estavam no salão de baile. Faltava uma hora
para o jantar, mas a lady solitária observava a forma como a louça estava
distribuída na mesa.
— Sra. Collingworth. — Ela sorriu ao ver Elizabeth. A governanta
suspeitou que estava sendo aguardada. — Esperava mesmo vê-la sozinha.
— Posso ajudá-la em algo, lady Eckley?
Elizabeth tentou manter a sanidade. Ainda eram dez horas da noite e ela
já tinha passado por tudo que era intolerável. Uma noite ao lado do duque.
Uma manhã sonhando. Uma tarde de horror. Tomou decisões lógicas, porém,
indesejadas. Lidar com uma dama inconveniente não poderia ser nada de
mais.
— Eu quero apenas olhar para a senhora. Saber quem é a senhora. Tentar
entender o que Aiden viu na senhora.
— Vossa Graça me contratou porque tenho ótimas referências. — Ela
começou a reorganizar alguns talheres que não estavam impecavelmente
dispostos. — Se estiver precisando de uma criada, eu posso…
— A senhora sabe quem eu sou?
Elizabeth parou o que fazia e ergueu o olhar.
— Sim, eu sei quem a senhorita é, milady. — A forma como ela encarou
lady Eckley sugeria que ela sabia. Tudo. Seus olhos transpareceram a vez em
que vira a lady saindo do quarto do duque. As fofocas. As ofensas proferidas
pelas cozinheiras. — E não sei por que deveria me importar com isso.
— Eu vou me casar com o duque — lady Eckley disse, sorrindo. Ela
parecia um anjo às avessas, com os cabelos escuros e lisos que caíam por
seus ombros descobertos. O vestido vermelho bordado exibia um decote
indecoroso. Se fosse uma obra de arte, a dama teria sido esculpida por um
devasso. — Esteja a senhora no meu caminho ou não. E eu não vou tolerar
que ele tenha amantes.
— Isso não é da minha conta, milady.
Elizabeth decidiu sair dali. Parecia não haver lugar naquela casa em que
pudesse respirar sem ser incomodada por alguma coisa ou alguém. Nunca
pensou que, como criada, fosse atrair tanta atenção.
— É. — Lady Eckley colocou-se à frente da governanta, impedindo-a de
cruzar a porta. — Não pense que sou tola. Eu vi como Aiden fala com a
senhora, como ele olha para a senhora. O que ele tenta esconder eu consigo
perceber. Apenas preciso que fique fora do meu caminho.
— Parece-me que é a senhorita que está no meu caminho, milady. —
Elizabeth olhou-a de cima a baixo. Lady Eckley era mais alta do que ela e
usava um vestido de seda e veludo que encantaria a realeza, mas Elizabeth
não estava com ânimo para ser destratada por uma mulher cuja moral não era
nada superior à dela. — E, provavelmente, a senhorita deveria ter essa
conversa com lady Madeline. Pelo que dizem as fofocas, é ela quem se casará
com Vossa Graça.
Considerando ter dado um recado, a governante insistiu em passar. A
jovem dama deu dois passos para o lado e abriu espaço para que Elizabeth
pudesse sair do salão. Exausta e incomodada, ela decidiu que tomaria um
banho e se afastaria do movimento pelo restante da noite. Dormiria ao lado
dos seus filhos e se manteria longe do veneno destilado pela sociedade.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEXTO

O DUQUE ESPEROU POR E LIZABETH , MAS ELA NÃO APARECEU . S ABENDO QUE
não deveria continuar sendo tão indiscreto em relação a ela, tentou não a
procurar pela casa durante a noite. Deu atenção aos seus convidados, mas só
conseguia pensar em tê-la nos braços. A frustração quando a manhã chegou
sem que ela o tivesse visitado foi grande o suficiente para fazer com que ele
deixasse o quarto, irritado.
Claro que ela não iria até ele. Com um filho se recuperando de um
acidente e tantos escândalos pela casa, Elizabeth não seria imprudente. Ela
nunca era. Saber disso não aplacava a irritação de Aiden. Precisava socar
alguma coisa, bater em alguém, quebrar uma parede. Vestiu-se precariamente
e foi até o galpão dos fundos. Para sua sorte, Edward estava lá. O conde
treinava esgrima e parou ao ver o amigo.
— Você está péssimo.
Edward apontou para as olheiras que Aiden exibia. Passara a noite em
claro sem conseguir acalmar o desejo que fazia seu corpo desconfortável.
— Tive uma noite ruim. Está disposto para um desafio?
— Eu estou, mas não lutarei novamente com você enquanto estiver tão
desfocado. — O conde jogou um rolo de ataduras para cima do duque, que
deixou o objeto cair. — Vamos socar alguma coisa, assim essa ansiedade
diminui.
— Não estou ansioso — Aiden mentiu.
Enfaixou as mãos para não se ferir com o saco de areia, enquanto o amigo
fazia o mesmo. Depois, desabotoou a camisa e a pendurou em um cabide.
— A Sra. Collingworth saiu — Edward disse, segurando o saco de areia
para que Aiden pudesse socá-lo. — Acordei cedo e fui até a cozinha
incomodar as criadas. Ela estava vestida e de saída com Granger. Os dois
meninos dela são crianças muito bonitas.
— Ela levou os filhos? — Aiden desferiu alguns socos e sentiu uma
fisgada no pulso. Cansaço, mas ele submeteria seu corpo à exaustão absoluta
para livrar-se daquele sentimento que o impelia a ficar com Elizabeth em seus
braços por um dia inteiro.
— Sim, saíram todos de carruagem. Acho que ouvi dizerem que iam
comprar provisões.
— Vou levá-la para Hampshire.
— É uma boa ideia. Vai ter uma casa para ela em Londres, também?
O conde empurrou o duque para o lado e trocou de posição com ele.
— Eu quero que ela esteja onde eu estiver — Aiden confessou, enquanto
ajudava o amigo a treinar. — Não é assim que as coisas são com as amantes,
certo? Estou fazendo alguma coisa errada, não estou?
— Amantes não são esposas, Aiden. Você está satisfeito com os arranjos
que fez com a Sra. Collingworth? Ela está? Acha mesmo que isso vai dar
certo?
— Eu cuidarei dela, ela terá o luxo de uma princesa, os filhos estudarão
em boas escolas. Em troca, eu a terei em minha cama. Por que raios não
estaríamos satisfeitos?
Edward deu um soco mais forte no saco e Aiden cambaleou para trás.
— Porque você não está sendo você mesmo desde que se conheceram.
Nunca te vi passar a noite sem dormir e treinar tão desatento. Todo mundo
está percebendo que tem algo errado, Aiden. Por que não resolve isso e casa
logo com essa mulher?
O segundo soco fez com que Aiden caísse sentado no chão. Ele não
saberia dizer se o que o nocauteou foi a força do golpe de Edward no saco de
areia ou se foram suas palavras.
Ele já tinha cogitado casar com Elizabeth. Claro que tinha. O desejo que
sentia por ela era tanto que, para tê-la, ele faria a proposta. Quando ela o
aceitou como protetor, fez com que a loucura de desposar uma plebeia sem
origem não precisasse ser levada a cabo.
— Eu não posso fazer isso, Edward. Elizabeth nunca seria aceita na
sociedade, ela seria massacrada. E eu tenho minhas responsabilidades. Não
posso estar no meio de um escândalo.
— Você não liga para a sociedade. Não liga para escândalos. Você sequer
deve ter perguntado à mulher a opinião dela. Então, continue com suas
desculpas para não enfrentar seus sentimentos por ela.
O conde ofereceu a mão para que o duque se levantasse. Depois de bater
a terra da calça de camurça, ele ouviu a carruagem retornar. O barulho das
crianças. Uma partida de rounders foi organizada próxima ao galpão onde
estavam. Enquanto desenfaixava a mão, considerou que atividade ao ar livre
seria mais proveitosa do que se esconder do sol.
— Vamos ensinar a uns moleques como que se segura um bastão?

O SILÊNCIO na mansão significava que as damas não estavam reunidas.


Elizabeth procurou por lady Agatha e não a encontrou em nenhum dos
lugares habituais. Descobriu que havia um distúrbio do lado de fora e decidiu
conferir do que se tratava. Ela e John eram os responsáveis por manter a
ordem e algo lhe disse que seus filhos estariam envolvidos na balbúrdia.
Ela não estava errada, mas, para sua surpresa, o causador da agitação era
o Duque de Shaftesbury. Ele e o Conde de Cornwall, mais exatamente.
Vestindo camisas brancas com botões abertos, mangas dobradas e cabelos
despenteados, os homens jogavam rounders com os meninos. Peter estava
entre eles. Havia uma fila de mulheres, com suas sombrinhas, que fingiam
tomar sol no jardim para observá-los.
— Meu Deus, como ele é lindo. — Lady Sarah suspirou.
— Qual deles? Confesso que se trata de uma escolha difícil. O que você
acha, Agatha?
Lady Agatha quase derrubou sua xícara de chá sobre a saia. Olhou
espantada para lady Madeline, não acreditando na pergunta que lhe era feita.
— Pelos céus, Madeline. Um deles é meu irmão, o outro é o seu melhor
amigo desagradável. Eu não acho nenhum deles desejável.
— E eu nunca imaginei que veria nenhum dos dois se portando de forma
tão deselegante — a duquesa reclamou. Ela estava mais distante, sentada em
um canapé.
— Eles são homens jovens. — Lady Jocelyn tentou amenizar o
comportamento dos nobres. — Deixe que se divirtam enquanto não ficam
com barrigas enormes que lhes impeçam de abotoar as próprias calças.
Algumas damas riram. Elizabeth não sabia como se aproximar de lady
Agatha sem atrair atenção para si, então esperou. Recostada em uma coluna
de mármore, ela se distraiu com os homens jogando. Não era difícil de
entender por que as mulheres estavam tão entusiasmadas com a cena. A
exibição de músculos e pele masculina era sensual, e fez com que ela sentisse
um desconforto entre suas pernas. A ardência que a provocou a pressionar as
coxas uma na outra era pouco compreendida. Elizabeth nunca se sentira
excitada na presença de um homem como ela se sentia pela mera visão do
Duque de Shaftesbury.
Um toque delicado fez com que ela retornasse para a realidade.
— Elizabeth — lady Agatha sussurrou próxima a ela. — Precisamos
conversar. Venha comigo.
A lady arrastou a governanta para dentro enquanto as colegas
continuavam a suspirar. Entraram no escritório de Aiden e a jovem dama
trancou a porta.
— Seu irmão não gostará de nos pegar aqui.
— Só as portas dele trancam. Diga-me, as fofocas sugerem que ele será
seu protetor. É isso mesmo? A senhora aceitou esse arranjo?
Elizabeth olhou ao redor e não soube como responder à pergunta. Dizer a
verdade poderia chocar a jovem lady e ela não queria deixar de ser admirada
por lady Agatha.
— Sim, milady. Depois do episódio que levou meu filho a cair de um
cavalo, eu percebi que preciso passar mais tempo com eles. Que preciso
cuidar deles. E de mim, também. Seu irmão me ofereceu isso, não pude
recusar.
— Sei disso, eu não julgo a senhora. Mas é que… — A lady começou a
girar pelo escritório. — Elizabeth, eu não quero que ele se case com essas
damas fúteis. Aiden não será feliz com elas. Eu planejei que ele se casasse
com a senhora. Eu sei que ele a ama.
Elizabeth deu uma risada. Ela não pretendia fazer troça da lady, mas
aquela história de que Aiden tinha sentimentos românticos por ela, e que isso
seria suficiente para que se casassem, era ridícula. Uma governanta e um
duque não se casavam, mesmo que eles se amassem. A nobreza não
valorizava o amor como os plebeus.
— Não vamos nos casar, milady. Eu sou uma criada, ele um duque. Nos
livros, talvez aconteça. Na realidade, homens como seu irmão não se casam
para ser felizes. Lamento decepcioná-la.
— E sou obrigada a aceitar essas regras sociais horríveis?
A frustração no olhar da lady era cortante. Elizabeth preferia não
responder.
— Diga-me, a senhorita gostaria de organizar jogos para as damas hoje,
no final da tarde, após o chá? Tenho algumas ideias, gostaria de conversar
sobre elas?
Mudar de assunto faria com que ela não precisasse continuar pensando no
que ganhava ou perdia aceitando os arranjos com o duque. Havia mais
vantagens do que desvantagens e ela estava satisfeita com sua decisão.
Elizabeth gostava de lady Agatha, seria ótimo poder continuar a conviver
com a jovem dama. Talvez até poder ajudá-la quando se casasse.

D EPOIS QUE CONVERSARAM sobre os jogos, Elizabeth garantiu que tudo


estivesse em ordem para o almoço e foi até os fundos da casa. Ela não tinha
nada para fazer lá, queria apenas um pouco de paz. Com seu livro em mãos,
tentou ler mais algumas páginas para descobrir se o malvado marquês
obrigaria sua filha a se casar com o nobre ainda mais malvado. Sentou-se à
relva, ajeitou as saias e abriu o livro.
Uma presença já conhecida fez com que todos os pelos de sua nuca se
eriçassem. Mãos quentes tocaram seus cabelos e os soltaram das presilhas.
— Vossa Graça sabe que estamos em um lugar público, não sabe? — ela
disse, sem nem precisar olhar para ele. O cheiro de almíscar e menta, que
misturava perfume e loção pós-barba, levou Elizabeth a fechar os olhos. Ela
nunca estava preparada para resistir a ele.
— Eu tenho plena consciência disso. Da mesma forma que sei que este
lugar não é frequentado por nenhum dos convidados, que estão se
organizando para o almoço. E que estamos distantes o suficiente para não
sermos nem vistos, nem ouvidos.
Em um segundo, Aiden estava sentado ao lado dela. No outro, ele a
deitara sobre a grama. O beijo que se seguiu foi suave, mas urgente. A boca
dele estava ansiosa e quente. Elizabeth se rendeu quando a língua dele tocou
a sua.
— Por Deus, Elizabeth. Por que não foi me ver essa noite?
Ele traçou a linha do queixo dela com carícias. As mãos tocavam-na nos
braços e ombros. Ela o segurava pelo colarinho da camisa, impedindo que se
afastasse.
— Há muitos rumores sobre nós. Achei que deveríamos silenciá-los,
primeiro.
— Para o inferno os rumores. — Ele desceu os beijos para o pescoço, a
língua ateando fogo por onde tocava. — Eu devo estar fora do meu juízo
completo, de tanto que preciso de você.
Ah, ela também precisava dele. Daqueles lábios sobre os dela. Aiden
ajeitou-se por entre as saias e seu joelho tocou-a na parte interna das coxas.
Uma fisgada de prazer fez com que ela arqueasse os quadris na direção dele.
— Vossa Graça está cortejando lady Madeline?
A pergunta direta fez com que ele parasse com as carícias e a encarasse.
— Eu fiz uma promessa de que não me casaria agora. Não sou um
homem que rompe promessas, Elizabeth. Nós dançamos.
— A primeira dança.
Levando as duas mãos aos quadris dele, Elizabeth puxou a camisa de
dentro da calça. Deixou que seus dedos tocassem a pele nua do duque.
— Você não estava lá. Eu dancei com aquelas damas porque não pude
dançar com você.
— Isso vai acontecer com frequência, não vai?
Ela não quis soar desapontada, mas a forma como colocou a pergunta deu
a impressão de que o fato a incomodava. Claro que incomodava. Elizabeth
não queria que outras mulheres colocassem as mãos em Aiden. Ela não podia
pensar que outras mulheres fossem receber dele a atenção que deveria dedicar
a ela.
— Eu odeio eventos sociais. — Aiden voltou a beijá-la. Com mais
urgência, a boca desceu até os seios. Ele afrouxou os laços da camisa que ela
vestia e os expôs para seu deleite. — Eu odeio dançar. Isso vai acontecer o
mínimo que eu puder garantir.
O duque beijou cada um dos seios dela. Depois, sugou os mamilos
túrgidos, arrancando, em público, gemidos constrangedores.
— Elizabeth, você está insatisfeita com nosso arranjo? — ele perguntou,
enquanto as mãos suspendiam as saias.
— Não é justo fazer essa pergunta enquanto o senhor me toca… — Ela
abafou um rosnado ao senti-lo abrir sua feminilidade com os dedos. — Eu
não estou nem um pouco insatisfeita com nada.
— Mas preferia que fosse diferente?
A risada não saiu alta porque o prazer que ele lhe proporcionava a
emudecia.
— Aiden, não tem como ser diferente. — Ela desabotoou as calças dele e
puxou seu membro ereto para fora. O duque arqueou as costas pelo toque em
sua pele sensível. — Possua-me, eu preciso de você agora.
Ele atendeu àquele desejo, como ele já tinha atendido a tudo que ela
pedira. O duque a penetrou lentamente, entrando e saindo, garantindo que ela
acomodasse todas as partes dele. Elizabeth nem acreditava que toda aquela
extensão pudesse caber dentro dela. Com um beijo intenso, ele passou a se
mover em estocadas firmes até conduzi-la ao ápice.

N O DIA SEGUINTE , todos os convidados iriam embora. A casa voltaria a ser


como Aiden gostava: vazia. Os compromissos sociais do verão tinham
acabado. Ele não se sentia obrigado a atender mais nada, a não ser que fosse
algum evento organizado por Edward. Só o conde seria capaz de tirá-lo do
sossego. Mas Aiden ainda precisaria fingir mais um pouco.
Ao menos seu corpo estava satisfeito, mesmo que exausto. Depois de
lavar-se e de algumas doses de conhaque, ele estava bem o suficiente para
continuar a ser o anfitrião. Antes do jantar ser servido, as damas se reuniram
para algumas brincadeiras organizadas por Agatha. Sua mãe também estava
participando de tudo. A duquesa não havia se dignado a pedir desculpas a
Patrick, como Aiden exigira. Ela, contudo, não havia mais levantado a voz
para ser desagradável com ninguém, nem mesmo com os criados. A paz
parecia finalmente ter sido alcançada em Thanet Bay.
Ele apenas não esperava ser pego em uma emboscada.
Enquanto escolhia um uísque de sua coleção pessoal, em sua sala
privativa, foi encontrado por lady Eckley. O clique da porta se fechando fez
com que Aiden se virasse e olhasse para ela. A dama vestia veludo vermelho
e suas formas estavam mais destacadas pelo corpete justo. Os seios, expostos
em um decote ousado, chamavam a atenção de todos os homens.
— O que faz aqui, Caroline? Esta sala é exclusiva para os homens.
— Vim falar com você. Que história absurda é essa de que a governanta é
sua amante, Aiden? E que você vai se casar com Madeline Westphalen?
— Não dê ouvidos às fofocas. — Ele continuou o que fazia antes.
Precisava do seu melhor uísque para entreter seus convidados. Os nobres,
porque só bebiam o melhor. Os investidores, porque precisava da confiança
deles. — No mais, não lhe devo explicações sobre minha vida. Não há nada
entre nós que justifique esse tipo de cobrança.
O duque ignorou qualquer indignação que pudesse vir da lady. De costas
para ela, apenas ouviu a porta bater atrás de si. Caroline Eckley precisava
descobrir o seu lugar. Ela não podia continuar insistindo em um
relacionamento inexistente. Eles foram amantes, tiveram bons momentos,
mas acabou.
Quando a porta rugiu novamente, Aiden decidiu que expulsaria lady
Eckley de sua propriedade. Virou-se abruptamente, segurando a garrafa do
uísque escolhido. Tinha algo pronto para dizer a ela e chegou a abrir a boca
para falar, mas foi surpreendido pela figura de Madeline Westphallen. Até
quando as mulheres insistiriam em agir como bem entendessem na casa dele?
— Lady Madeline, estou de saída. Esta é minha sala privativa, não
costumo receber ninguém que não tenha sido convidado previamente.
A dama não disse nada. Aiden percebeu algo estranho nos olhos dela.
Uma indecisão, ou a determinação de quem faria algo muito perigoso. Ela
usava um vestido rosa pálido que não combinava com sua pele muito clara ou
seus cabelos escuros.
O duque deveria ter saído da sala. Se ele forçasse passagem por ela, a
jovem não seria forte o suficiente para segurá-lo, mas tudo aconteceu muito
rapidamente. Lady Madeline levou a mão aos laços em suas costas e os
soltou. O corpete afrouxou. Ela usou os dedos para puxar o decote e o tecido
fino de seda se rasgou. Botões e enfeites voaram.
Aiden assistiu à cena sem reagir. Os seios da mulher estavam expostos.
Ela deu dois passos na direção dele, e o duque começou a tirar o casaco para
cobri-la. Era claro que a jovem estava em um surto. Talvez tivesse bebido
ponche demais. Antes que ele conseguisse completar seu objetivo, lady
Madeline jogou-se sobre ele.
— A senhorita está louca! — Aiden a empurrou, mas a lady pressionava
sua boca sobre a dele. Fora de si, ela parecia mais forte e mais resoluta do que
nunca. — Lady Madeline, recomponha-se!
O duque a empurrou mais uma vez e a dama caiu sentada no sofá. Com
um sorriso maléfico, ela se levantou e voltou a se atirar sobre Aiden. Naquele
instante, a porta se abriu outra vez e três homens entraram. Edward
McFadden, Grant Sawbridge e Thomas Riderhood. A cena que eles viram
remetera a um tórrido momento de amor. Um homem sem casaco, com o
colete mal fechado e os cabelos desarrumados. Uma mulher com o corpete
arruinado e os seios de fora. Os dois atracados, nos braços um do outro. Lady
Madeline fingiu recato e buscou o casaco do duque, que ela descartara
momentos antes, para se cobrir.
— O que está havendo aqui? — Riderhood perguntou, mesmo que a
resposta fosse óbvia.
— Lady Madeline está embriagada — Aiden tentou explicar o que não
parecia possível de ser explicado.
Ninguém acreditaria nele. Sua fama não sugeria que ele fosse um grande
respeitador de mulheres. Os boatos já indicavam que ele se casaria com a
dama. O cenário era favorável para que ele a comprometesse.
— Madeline? — Lady Sarah surgiu por detrás dos cavalheiros. Com ela,
vinha Lady Agatha.
A porta ainda estava aberta. Nem mesmo Edward foi sagaz o suficiente
para trancar a sala e tentar conter o alvoroço. Aquele era um escândalo que o
duque não podia prever e que daria muito trabalho desfazer.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SÉTIMO

O S HOMENS ESTAVAM REUNIDOS NO ESCRITÓRIO DO DUQUE . A IDEN , SEU


padrinho, Edward, e o Visconde de Whitby. Havia uma certa animosidade no
ar, impossível de evitar depois do desagradável episódio na sala privativa.
— Como assim, Vossa Graça não vai se casar com ela?
O visconde não estava satisfeito com a decisão do duque. Mesmo que,
pouco antes, Aiden tivesse garantido que não pretendia desposar ninguém no
momento, Miles Westphallen esperava que aquilo mudasse após o ocorrido
na sala privativa. Aiden não se casaria com uma mulher que era capaz de
simular uma situação comprometedora apenas para fisgar um marido.
— Não há forma educada de dizer isso, Miles. Mas eu não comprometi a
virtude de sua filha. Não toquei em Madeline.
— E o que houve, então? O que Vossa Graça está tentando sugerir?
— O que o duque está dizendo é que lady Madeline deve estar um pouco
alterada pelo ponche. — Edward tentou contemporizar.
O dano estava feito. Se Aiden não se casasse com a filha do visconde,
eles perderiam o parceiro de negócios. Aquilo afetaria o projeto de Shadwell.
Era improvável que Miles Westphallen mantivesse os negócios com o duque
depois de uma desfeita como aquela.
— Sim, é a explicação mais provável para o ocorrido. — O duque serviu
outra dose de conhaque para os cavalheiros.
— Eu não posso aceitar um insulto como esse.
Westphallen se levantou. O duque se manteria firme na sua posição de
não aceitar ser intimidado por um visconde, nem por uma mulher de poucos
escrúpulos, mas seus negócios seriam seriamente prejudicados por aquela
atitude.
Seriam, se os gritos femininos que vieram no terraço no segundo andar
não chamassem a atenção dos homens. As damas nunca gritavam, o que
significava que algo muito estranho estava acontecendo. Eles saíram em
direção ao distúrbio e encontraram Lady Madeline acuada em um canto,
abraçada a sua irmã mais nova, e lady Eckley empunhando uma pistola.
Aiden não queria acreditar no que estava acontecendo. Caroline Eckley
sempre demonstrou alguma instabilidade, mas nunca a ponto de apontar uma
arma para alguém.
— Você vai falar a verdade agora, sua megera — ela gritava e sacudia a
pistola. Lady Madeline apenas chorava e se agarrava à lady Diana. — Pare de
se lamuriar e fale a verdade!
Havia uma horda de espectadores que não sabia como agir. Outras
mulheres estavam apavoradas. Duas tinham passado mal e estavam sendo
acudidas por criadas. A esposa do visconde tinha sido retirada do terraço. Os
criados aguardavam a chegada do duque para tomar uma atitude. Se
tentassem tomar a arma das mãos de lady Eckley, poderiam falhar e ela
atiraria.
— Caroline. — Aiden tentou não se aproximar muito. — O que está
havendo? Abaixe essa arma.
— Não. Eu só farei isso quando ela contar que armou para você. Ela
precisa confessar, ninguém vai acreditar em mim.
— Confessar o quê? — o visconde questionou. Ele estava exaltado, sendo
contido por Edward. — A senhorita perdeu o juízo, vai ferir alguém.
— Eu vou matá-la, se ela não disser que se jogou em cima de Aiden para
obrigá-lo a se casar com ela. Madeline não foi comprometida, ela rasgou o
próprio vestido e criou toda aquela situação. E ainda teve ajuda!
— Ela está mentindo, papai. — Lady Madeline chorava e se lamuriava.
— Não estou! Eu estava escondida na sala privativa e eu a vi. Uma das
criadas já tinha ouvido a megera confabulando o plano. Isso é um golpe,
Aiden, você não tem que se casar com ela.
— Não vou me casar com ela, Caroline. — O duque tentou se aproximar
mais. — Vamos, entregue a pistola para mim. Eu não me casarei com ela,
independente do que aconteceu, eu acredito em você.
— Acredita? — Lady Eckley virou o pescoço e encarou o duque com
alguma ternura. — É muito gentil de sua parte mentir para salvá-la, mas eu
quero que ela confesse.
O burburinho era ensurdecedor. Os homens começaram a planejar algum
tipo de ataque, mas os nobres eram indolentes demais para saber reagir.
Aiden olhou para Geoffrey e indicou que o criado deveria sair para
interceptar lady Eckley vindo de outra direção. Ele entendia de algumas
técnicas de combate, porém, tentaria a diplomacia primeiro.
— Lady Madeline, por favor, conte a verdade a todos — Aiden insistiu.
— Eu sei que não tentei beijar a senhorita e cheguei a suspeitar que fosse
uma espécie de surto. Mas, o que lady Eckley está falando realmente
aconteceu? A senhorita planejou me encurralar para forçar um casamento
indesejado?
Madeline Westphallen estava vermelha. A forma como ela olhou para o
pai indicava que escondia algo. Os soluços foram cessando enquanto o tempo
passava devagar.
— A duquesa disse que era a única forma — a jovem Westphallen
murmurou. — Eu não quis fazer isso a princípio, mas ela insistiu. Ela disse
que Vossa Graça perdeu o juízo, que precisa de uma esposa adequada para
retornar à sanidade.
— Ah, e você pensa que é adequada? — Caroline Eckley gargalhou. — O
Duque de Shaftesbury vai se casar comigo, apenas comigo. Eu sou a mulher
que o satisfaz sexualmente.
— Pronto, Caroline. Você conseguiu sua confissão, agora me entregue a
pistola. Madeline Westphallen está arruinada na sociedade, ela nunca se
casará com um homem respeitável. Não mais.
O duque estendeu a mão na direção de lady Eckley. Ela olhou para a arma
e para ele, pensou por alguns segundos, e deu um sorriso vitorioso. Aiden
pegou a arma e a entregou rapidamente a Edward, que desapareceu do terraço
com o objeto. Geoffrey e Granger entraram pela porta lateral e seguraram a
lady pelos braços, imobilizando-a.
A polícia foi chamada. Um médico e dois familiares de Caroline Eckley
também foram convocados. Parecia bastante claro que ela estava sofrendo
algum surto psicótico e precisava de tratamento. Quem a conhecia sabia que a
lady era espalhafatosa e tinha recebido uma criação bastante liberal, porém,
ela nunca fora violenta.
— O desejo de desposar um duque está enlouquecendo essas damas.
Fora a constatação de Sawbridge. Havia verdade em suas palavras. Todos
ali sabiam que o desespero das jovens para se casarem com bons nobres as
levava a atitudes tolas. Daquela vez, levou lady Madeline a arruinar sua
reputação tentando comprometer um duque, e lady Eckley a conquistar um
lugar em um hospital para loucos.
O que mais incomodava Aiden era a imputação feita à duquesa. Ele sabia
que a mãe era diabólica, mas nunca esperou tamanha infâmia da parte dela. A
possibilidade, no entanto, o fez buscar uma audiência privada com a mãe
assim que os ânimos esfriaram.
O sol não tardaria a raiar quando entrou no quarto da duquesa. Ele não se
anunciou, não bateu, apenas abriu a porta com um empurrão e entrou. A
criada se apressou em interceptá-lo, mas ele a afastou com educação. Seu
alvo era a mulher franzina sentada em um canapé. Pela aparência da mãe, ela
não tinha dormido ainda, como nenhum dos convidados daquela casa.
— Preciso que a senhora negue o que lady Madeline disse.
O tom de voz saiu mais educado do que ele esperava. Aiden tentava
conter um fenômeno da natureza dentro de si. Ele não podia perder a
compostura com a mãe. Se ele despejasse sobre ela a raiva que sentia, seria
violento.
— Não sei o que pode ter dito a jovem Westphallen que seja de minha
competência negar.
— Pare de mentir. A senhora sabe tudo que acontece nesta casa e só se
recolheu para seus aposentos depois que a polícia chegou. Vamos, mamãe.
Negue.
A duquesa se levantou. Ela não enfrentava o filho sentada ou em posição
de inferioridade. Aiden tinha que respeitá-la por isso. A forma como ela o
olhava era de desapontamento. Ele tentava não sentir nada. Se afastasse o
ódio e o desprezo, não sobrava muita coisa.
— Eu não nego. Lady Madeline não tinha brios suficientes para fazer o
que precisava ser feito e eu posso tê-la ajudado a formular um plano.
Aiden virou de costas para a mãe. Dos seus olhos emanava fogo. As mãos
se fecharam em punhos e ele precisou resistir para não a agredir. O duque
nunca investiu contra uma pessoa se não fosse em uma briga merecida, mas
os atos da mãe não podiam ser deixados impunes.
— Emma — ele chamou a criada, que se colocou à sua frente. — Quero
que você prepare as coisas da minha mãe. Encha as malas da duquesa com as
roupas favoritas dela, prepare bagagem para uma viagem longa.
— Pois não, milady. Posso saber para onde?
— Para as Américas. Mamãe vai passar uma temporada em Nova Iorque.
A duquesa levou a mão à boca para esconder o assombro.
— Emma, não faça isso. Não vou a lugar algum.
— Vai. — O duque então se voltou para ela. — Mamãe, eu suportei a
senhora por entender seu sofrimento. Mas o que a senhora fez, agora, é
imperdoável. Quase levou um garotinho à morte por sua arrogância e
orientou uma moça desesperada a arruinar a própria reputação para empurrar
seu filho em um casamento indesejado. Eu não quero mais a senhora na
minha casa, nem à minha vista. Nova Iorque é um ótimo lugar, liberal o
suficiente para que a senhora tenha muito assunto até o final de sua vida.
— E se eu me recusar a ir?
— Eu garantirei que a senhora entre no navio. Se não for por vontade
própria, será carregada para a embarcação nos ombros de um criado.
Aiden não disse mais nada, nem conseguiu permanecer no quarto. Aquela
fora uma das mais difíceis decisões que ele já tomara. Seu amor pela mãe
obnubilara todo o seu discernimento a respeito dela. Porém a duquesa não
causaria mais nenhum mal às pessoas que ele gostava.

T ODOS OS CONVIDADOS deixaram Thanet Bay falando sobre os escândalos


que aconteceram na mansão. Aquele foi o final de semana mais intenso da
vida de Elizabeth Collingworth, principalmente porque ela fora personagem
de quase todos os burburinhos. Quando todos os hóspedes foram embora
deixaram para ela bastante trabalho, inventariando de novo todos os
cômodos. Aquilo serviria, ao menos, para fazê-la não pensar em todas as
implicações que continuar na vida de Aiden Trowsdale representaria. Ele
pode ter decidido que não casaria com lady Madeline, mas ele se casaria em
algum momento. A sua posição de amante seria nítida e indiscutível quando
aquilo acontecesse.
Não poderia imaginar que uma fuga mal planejada de Londres, o
encontro inusitado com uma lady e uma doença fatal poderiam causar a ela
tantas emoções.
O dia já estava terminando quando Aiden a procurou. Elizabeth ainda
contava os talheres e louças, com a ajuda das criadas, quando John avisou
que o duque queria falar com ela. Ajeitou a touca na frente do espelho e
dirigiu-se à biblioteca.
Seu coração ainda disparava quando ela pensava em se encontrar com ele.
Mesmo depois de todas as vezes em que estiveram juntos, ela sentia como se
fosse proibido, como se fosse a primeira vez.
Elizabeth bateu à porta e entrou. O duque estava sentado atrás de uma
mesa e levantou-se quando ela chegou. Tinha acabado de tomar banho. Ela
sentiu o cheiro de sabonete e roupa limpa que ele exalava. Subitamente,
percebeu que precisava ser abraçada por ele. Que precisava ouvir dele que
tudo estava bem, porque ela acreditaria se ele dissesse. E ele a abraçou. Como
se ouvisse os desejos dela, foi em sua direção e a segurou nos braços.
— Eu nunca pensei que passaria por tantos dissabores em um final de
semana.
A frase saiu abafada na touca de linho que ela vestia. Elizabeth se afastou
um pouco e o encarou.
— Eu quero voltar para Londres.
A frase saiu brusca. Elizabeth não sabia bem se era aquilo que ela
desejava, mas era o que precisava ser feito. Ela queria voltar para casa, sair
um pouco daquele espaço de loucura.
— Pode não ser completamente seguro, ainda. Para as crianças.
— Se não for, eu quero ir para qualquer outro lugar. Não posso continuar
aqui. Eu sou a sua amante, Aiden. Não posso morar com sua família, isso é
imoral. Não sei se suporto mais tantos escândalos em pouco tempo.
Aiden segurou-a pela face, uma mão de cada lado do rosto dela.
Acariciou a pele, passou os dedos pela parte detrás das orelhas. Arrancou a
touca que ela usava, libertou seus cabelos dourados e tomou a boca dela na
dele em um beijo terno.
— Eu preciso ir a Londres hoje. Visitarei alguns negócios. Já que eu
duvido que pegue a escarlatina duas vezes, sou a melhor escolha para
inspecionar os trabalhos. Volto em uma semana. Até lá, eu terei uma
propriedade organizada para receber você e os meninos. Seja na capital ou
em qualquer lugar que você escolher.
Ele a beijou novamente. Toda vez que Aiden reivindicava a sua boca, ela
derretia de dentro para fora. Ela era dele. Preferira evitar comentar que
também escoltaria a mãe até o navio que a levaria para os Estados Unidos
sem previsão para retorno.
— Uma semana é bastante tempo sem você — ela se lamentou. —
Aguardarei ansiosa o seu retorno.
— São apenas negócios, Elizabeth.
Com um sorriso, ela deixou a biblioteca e retornou para seus afazeres. Em
alguns dias, ela se mudaria de Thanet Bay para uma casa dela. Uma mansão.
Uma das propriedades do duque ou algo que ele compraria para ela. Não era
o sonho da sua infância, mas era o melhor que ela poderia conseguir sendo
Elizabeth Collingworth. Tinha que ser suficiente.

A ESCARLATINA ENLOUQUECIA . Aiden teve certeza de que a doença lhe afetou


o cérebro depois de passar aquela semana em Londres. Sozinho na Trowsdale
House, não houve um minuto de seus miseráveis dias que ele não desejasse
passar ao lado de Elizabeth. As futilidades do dia seriam mais interessantes
com ela. O chá tinha um gosto melhor quando compartilhado com ela. Os
momentos que eles dividiram na semana em que estiveram confinados ainda
reverberavam nele como se tivessem acontecido no dia anterior.
Ele estava até mesmo com saudade da correria das crianças e do barulho
que elas faziam. Não havia paz se ela não estivesse por perto. Não havia luz
sem os olhos dela para refletirem o sol. Tudo lhe parecia faltar. Essa
constatação fez com que ele tomasse algumas decisões. Depois que os
negócios estivessem fechados e que nada mais pudesse atrapalhar seus
investimentos, ele mudaria o status de Elizabeth. Ele não queria tê-la apenas
como sua amante. Enquanto estivessem juntos, ele não conseguiria se casar
ou se envolver com nenhuma outra mulher. Precisava dela e a desejava de
outra forma. Mesmo que a sociedade inteira fosse deixá-lo no ostracismo, ele
já estaria com negócios encaminhados o suficiente para não precisar da
aprovação de ninguém.
Que se explodissem todos. Ele queria se casar com a mulher.
Aiden teve algumas reuniões durante o dia e estava um pouco alterado
durante o entardecer. Aquele fora seu último dia em Londres e a ansiedade de
retornar para Kent o fez exagerar no conhaque com os investidores. Os
homens de negócios já tinham retornado para a capital e o movimento nas
ruas começava a voltar ao normal. Aos poucos, a cidade voltaria à sua feiura
natural. E ele traria a sua mulher para casa.
Ah, Elizabeth não era a mulher dele, nem a Trowsdale House seria a casa
dela por enquanto. Aiden não conseguia imaginar-se vivendo em outro lugar
que não ao lado de Elizabeth. Ele teria que acomodá-la em outro lugar, onde
ele certamente passaria mais tempo do que na sua própria casa. Aquilo estava
tão errado de muitas formas diferentes.
Assim que a carruagem parou na entrada principal, Aiden soube que algo
estava errado. John não estava na porta para recebê-lo e apenas Granger veio
ajudá-lo com as malas.
— Onde estão todos, Granger?
— Nos fundos, milorde — o menino disse, a voz trêmula.
— E fazendo o quê? O que está me escondendo?
— Nada… é que a Sra. Collingworth teve um acidente. O doutor Davies
está aqui.
Aiden ignorou a compostura. Deixou o chapéu e a bengala sobre um
aparador e correu até a ala dos criados. As cozinheiras estavam no corredor e
John estava à porta do quarto de Elizabeth, que estava fechada. Algumas
criadas tinham lágrimas nos olhos.
A chegada do duque causou alguma comoção. Todos o esperavam,
porém, estavam desorganizados com o episódio envolvendo a governanta.
— O que diabos aconteceu aqui? Eu exijo que alguém me diga alguma
coisa.
— Milorde. — John fez uma reverência. — Desculpe-nos a imperdoável
falha por não termos recebido Vossa Graça em seu retorno.
— Para o inferno com meu retorno, John. O que houve com Elizabeth?
— A Sra. Collingworth passou mal. Ela teve uma indisposição e
desmaiou. Geoffrey buscou o doutor Davies e ele está com ela neste
momento.
Um acidente. Uma indisposição. Um duque nunca fora tão mal informado
em toda a história da Inglaterra. Sem cerimônias, ele abriu a porta e entrou no
quarto de Elizabeth. Aquela era a sua casa, ao menos acesso aos cômodos ele
ainda tinha.
Sua irmã estava ali, sentada ao lado da cama. Elizabeth estava deitada,
pálida e encolhida, com os joelhos dobrados. O doutor Davies terminava de
escrever uma receita qualquer.
— Aiden, dê-nos licença. — Lady Agatha se levantou e quis empurrar o
irmão para fora do quarto. — Tenha mais respeito e não vá entrando assim
nos aposentos dos outros.
— O que houve com ela? — O duque se manteve imóvel. Seu corpanzil
ocupava todo o vão da porta, ninguém entrava ou saía sem o seu comando. —
Elizabeth, o que houve?
— Ela teve uma indisposição, mas vai ficar bem.
— Não foi uma simples indisposição, se precisou que meus criados
chamassem o médico da família para cuidar dela.
Aiden afastou lady Agatha e se ajoelhou ao lado da cama. Elizabeth olhou
para ele e esboçou um pequeno sorriso. Ela estava fraca e não havia vida no
azul cintilante de seus olhos. O duque passou as mãos pelos cabelos dourados
e afastou algumas mechas das têmporas suadas.
— Diga para mim o que houve — ele sussurrou próximo ao ouvido dela.
— Creio que seja melhor que Vossa Graça a deixe descansar — o médico
insistiu. — Venha comigo, eu lhe darei mais detalhes.
O duque se pôs de pé e arrastou o médico para seu escritório. Já estava
começando a se irritar. Ninguém nunca lhe negava informações, nem para dar
notícias ruins. O que podia ser tão grave com Elizabeth?
— Diga logo, Davies. — O duque se serviu de uma dose de conhaque.
Entregou também um copo para o médico. — E não deixe escapar nenhum
ponto.
— A situação de vossa governanta é peculiar. — O doutor se sentou em
uma poltrona. — Ela desmaiou e, quando cheguei, ela sangrava muito.
— Ela se feriu?
— Não. O sangue era proveniente das regras femininas.
Aiden fez uma careta. Aquele era um pormenor que poderia ter sido
omitido e ele não se importaria.
— Certo. E?
— Bem, ela não estava no período das regras. A Srta. Collingworth teve
uma hemorragia causada por um abortamento.
Aquela não deveria ser uma palavra comum ao vocabulário de um duque,
mas tendo acompanhado a sucessão de gestações malsucedidas de sua mãe,
Aiden já a tinha ouvido antes. A duquesa teve não apenas alguns natimortos,
ela também gerou algumas crianças que nem mesmo chegaram a nascer.
Aiden levantou-se e derrubou o copo que estava sobre a mesa. Passou as
mãos pelos cabelos e deu dois giros completos ao redor de si mesmo.
— Elizabeth está grávida?
— Estava, milorde. — O doutor terminou de beber seu conhaque. —
Veja que o assunto é bastante íntimo e eu não deveria estar discutindo com
Vossa Graça. Mas a gestação não foi adiante. É mais comum do que parece,
porém, ela teve uma grande perda de sangue. Recomendei um tônico e muito
repouso por pelo menos três dias.
O duque deixou o médico no escritório e retornou ao quarto de Elizabeth.
Mandou que todos os empregados dispersassem, ameaçou-os com demissão
se continuassem por ali, depois agradeceu-os por terem sido diligentes.
— Agatha, saia. — Aiden pegou a irmã pelo braço e a conduziu para fora
do quarto.
— Por Deus, Aiden! — A jovem dama bateu com os punhos no peito do
irmão. — Desde quando você age como um bruto?
— Preciso conversar com Elizabeth. A sós.
— Era seu, não era? — Agatha sussurrou. O duque sentiu um mal-estar
súbito e pensou que ele também fosse desmaiar.
— Sim, era. Vamos, saia, eu preciso falar com ela.
Lady Agatha limpou uma lágrima que correu do olho e abraçou o irmão.
Aiden estava confuso demais para entender o turbilhão de emoções que o
arrebatava.
— Se você tivesse feito a coisa certa desde o início…
— Eu fiz a coisa certa.
— Não, meu irmão. Você fez o que a sociedade disse que é certo quando
deveria ter seguido o seu coração.
A jovem se afastou e o deixou no vazio. Aiden fechou a porta e se
ajoelhou ao lado da cama. Elizabeth parecia um pouco melhor, mas seus
lábios ainda estavam sem cor. Sem vida. Ele beijou-a na testa e ela segurou a
mão dele entre as suas.
— Não havia nada que você pudesse ter feito para mudar isso, Aiden.
Foi o que ela conseguiu dizer. A voz estava fraca e débil. Nem durante a
escarlatina ele a tinha visto tão decadente.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
— Não. Mas espero que saiba que a melhor coisa que pode acontecer
para essa criança foi não nascer.
O duque se levantou de supetão. O susto pelas palavras duras dela quase
o nocauteou.
— Você repudiaria ter um filho meu?
— Eu repudiaria ter um bastardo. — As lágrimas começaram a escorrer
pelos olhos dela. Aiden não conseguia entender o que ela dizia. — Você sabe
qual o tipo mais miserável de ser humano que existe na sociedade londrina?
O bastardo. Eu convivi com mulheres como eu que pariam filhos de homens
como você. As crianças eram afogadas. Mortas. Ou entregues para as
fazendas de bebês. Não há nada mais degradante do que isso. Eu jamais…
Os soluços a impediram de continuar. Ele sentou ao lado dela e fez com
que deitasse em seu colo. Elizabeth o abraçou, envolvendo sua cintura com
os braços, e chorou. Ele não poderia suportar vê-la sofrer daquela forma, mas
talvez ela tivesse razão.
— Eu nunca deixaria um filho nosso desamparado, Elizabeth. Eu cuidaria
de qualquer criança sua. Eu estou disposto a cuidar de Patrick e Peter.
— É diferente. Eles não são bastardos. Você cuidaria de nós até quando?
Até se cansar de mim? Patrick e Peter são filhos de pessoas pobres, mas eles
são filhos de alguém. Bastardos não são considerados pessoas, Aiden!
Ele parou de discutir e deixou que ela continuasse a chorar. A reação dela
ao episódio poderia estar relacionada ao trauma de ter perdido uma criança.
Ele já vira aquilo antes. Esperava que Elizabeth não fosse despedaçada pela
dor e pela culpa como sua mãe fora.
CAPÍTULO VIGÉSIMO OITAVO

E LA SABIA QUE O MACHUCARA . D IZER QUE A CRIANÇA NÃO DEVERIA TER


nascido impactou o duque, mas era a verdade que precisava ser falada. Aiden
era como lady Agatha, duas pessoas gentis que foram criadas em um mundo
de perfeição que só existia para as pessoas da abastada sociedade britânica.
Eram as pessoas como eles que engravidavam as pessoas como elas com
crianças que não podiam sobreviver.
Elizabeth teve dois filhos legítimos. Ela poderia aguentar qualquer coisa.
Suportaria ser a amante de um homem, viver à margem da sociedade,
invisível. Ela já não era mesmo vista. Suportaria que ele se casasse com
outra, que tivesse que se deitar com outra, que engravidasse outra, mas ela
não estava preparada para gerar um bastardo.
Foi por aquele motivo que o mundo quase perfeito que ela idealizou ruiu.
Quando aceitou ser amante de Aiden, ela se permitiu sonhar. A ideia era boa
e ela seria feliz, mas aquela consequência ela não queria suportar. Ela não
podia.
— Mas você se prevenia, não? — Gretha perguntou, oferecendo um chá
para que ela bebesse. Já era o dia seguinte, mas Elizabeth ainda não podia
levantar da cama. Ela tivera novos sangramentos de madrugada e estava
muito fraca. Geoffrey havia saído cedo para encomendar o tônico que fora
recomendado pelo doutor.
— Sim, Gretha. Eu tomava todas as precauções possíveis. Inclusive,
aqueles chás horríveis que só serviram para me tirar o paladar.
— A senhora deveria ter contado ao Sr. Hodges. Se vocês se casassem, a
criança não nasceria bastarda.
Loretta entrou no quarto com o desjejum de Elizabeth. As duas
cozinheiras gostavam dela, e era recíproco. Tinham desenvolvido um bom
relacionamento durante o período em Thanet Bay. Ela sentiria falta das duas.
— O filho não era do Hodges, sua tonta.
— Ora, mas não era ele que cortejava a senhora… — Gretha se
interrompeu e colocou a mão na frente da boca. O que não foi dito acabou
sendo compreendido e nenhuma das três mulheres completou a frase não
terminada.
Não havia segredo entre os criados. Todos sabiam que Elizabeth era
amante do duque, e não era como se eles estivessem escondendo o
relacionamento de forma muito eficiente.
As duas cozinheiras saíram no instante em que o duque apareceu. Ele
tinha olheiras e a camisa estava por fora da calça. Ou não dormira a noite, ou
não tivera ajuda para se vestir. Elizabeth estava sentada, comendo ovos,
presunto e torradas. Ela quis parecer menos desarrumada para ele, mas não
podia nem mesmo se levantar para ajeitar o cabelo.
— Como você está? — Ele se sentou novamente ao lado dela.
— Vou me recuperar. Não sou a primeira mulher que passa por isso, nem
serei a última.
— Gostaria de movê-la para um quarto no andar superior. — Ele tomou
os talheres da mão dela e cortou fatias de presunto. Depois, colocou sobre a
torrada e ofereceu para que ela comesse. — Uma cama mais confortável, até
que possa viajar de carruagem novamente.
— Este quarto está ótimo.
Aiden passou as mãos pelos cabelos dela e colocou algumas mechas por
trás das orelhas. Ajeitou o colarinho da camisola que ela vestia e acariciou-a
nas bochechas. Ela também sentiria falta daquele toque. Porque, depois do
que aconteceu no dia anterior, Elizabeth teria que repensar suas decisões.
— Assim que o doutor Davies te liberar, vou levá-la para Londres.
Oglethorpe possui um dos melhores hotéis na região do Piccadilly e eu tenho
uma suíte reservada no último andar.
Elizabeth levou a mão até a face de Aiden. Ela passou a noite toda
pensando e sabia que qualquer decisão que tomasse a faria sofrer. Mesmo
assim, decidiu não mais chorar.
— Eu não vou.
— Como assim, não vai? Não quer ir para Londres? Se uma suíte de hotel
for ruim para você, então posso te acomodar em Trowsdale House. Ou
podemos ir para Hampshire.
— Eu quis dizer que não vou mais aceitar sua proteção, Aiden.
Ela afastou a bandeja e se ajeitou na cama. O duque a encarou com
incredulidade. Aquela era mais uma fala que o machucaria, porém, a atitude
de voltar atrás em sua decisão já havia sido tomada.
— Não posso arriscar engravidar novamente. Não de um amante. Por
mais que eu queira estar com você e ser cuidada por você, estamos correndo
um risco que não vale a pena. — Ela acariciou os cabelos dele. — Você vai
se casar e ter uma família com sua esposa. Eu talvez me case novamente,
também, e posso ter outros filhos, mas serão todos legítimos. Não podemos
fazer isso, não dessa forma.
Aiden se levantou. A forma como ele a encarava era de estupefação e
ódio. Ele demonstrava raiva naquele momento.
— Eu não posso permitir que você vá, Elizabeth. Eu tenho planos para
nós, só preciso de um pouco mais de tempo.
O duque rosnou. As mãos dele estavam fechadas em punhos.
— Creio que Vossa Graça não tenha opção. Eu já tomei a minha decisão,
Aiden, e eu não posso ser sua amante. Eu me iludi, achando que meus
sentimentos eram suficientes para suportar a desonra e a humilhação. Que
amar você superasse saber que se casaria com outra e teria filhos com outra.
Mas não é.
— Se você diz que me ama, como pode simplesmente desistir assim?
Desistir de nós?
— Não há nós — ela se exaltou. Elizabeth nunca se exaltava, ela era
sempre comedida e educada. O treinamento que a fez ser uma dama, mesmo
sem títulos, a ensinou a nunca elevar a voz. Mas, naquele instante, ela estava
quase gritando. — Eu sou uma governanta, uma plebeia, uma viúva que não
tem nada a oferecer. E você é… é o Duque de Shaftesbury. Nós vivemos em
mundos opostos. É melhor que seja assim.
Antes que pudesse replicar qualquer coisa, lady Agatha entrou no quarto.
Não esperando ver o irmão ali, muito menos desgrenhado, ela se assustou
com a cena que encontrou.
— Agatha, agora não.
— O que houve, Aiden? Eu vim ver como Elizabeth está.
— Estamos em uma conversa privada.
— Podemos prosseguir depois. — Elizabeth sorriu, tentando fingir
normalidade. — Ainda não estou apta a deixar a propriedade.
— Deixar? — Lady Agatha estranhou. — Por que pretende deixar Thanet
Bay, Elizabeth?
— Porque ela está me recusando, Agatha. — O duque passou as mãos
pelos cabelos. Os olhos dele estavam vermelhos, a boca ressequida. Sua
aparência estava longe de ser a mesma de uma semana atrás. — Elizabeth
decidiu me deixar, não tem nada a ver com a propriedade.

E LE NÃO CONSEGUIA MAIS FICAR ALI . O ar dentro do quarto estava pesado e


Aiden não conseguia respirar. Passou pela irmã como se ela não existisse e
saiu pela porta dos fundos. Quando foi que tudo que ele havia planejado deu
errado? Tudo parecia tão ajustado — seu casamento por conveniência, sua
amante — porém, ela estava ali, desistindo de tudo, indo embora. Ele
precisava casar-se com ela se quisesse mantê-la consigo.
No fundo, ele entendia. Aiden não era tolo. Elizabeth podia amá-lo, mas
ela queria mais. Ela merecia mais. Ser uma amante invisível apenas porque
queria proteger os filhos não era digno dela. Ela podia estar disposta a deixar
muita coisa de lado, mas a gravidez a fez enxergar que ela precisa de mais
para estar com ele.
Sentindo o coração quase parar e uma vontade desesperadora de gritar, o
duque vagou sem destino até desabar sentado em um banco no jardim. Ele
estava quase no bosque, ao lado de trepadeiras e uma fonte de água fresca
que jorrava o ano inteiro. Apoiou a cabeça nas mãos e permaneceu imóvel
por algum tempo. Ele precisava se recompor. Aquele não era um
comportamento digno de um duque.
Aiden iria perdê-la.
Depois de todas as decisões equivocadas que tomou, ele se sentiu seguro
quando Elizabeth aceitou ser sua amante. Ele a teria, faria qualquer coisa por
ela, mas iria perdê-la se não antecipasse as suas pretensões. Não podia
continuar esperando.
O barulho de passos na grama fez com que o duque levantasse a cabeça.
Seus olhos estavam úmidos. Aiden deveria se importar em demonstrar
qualquer tipo de emoção na frente de alguém, porém, nada parecia realmente
importá-lo naquele instante.
— Vossa Graça está bem?
O jovem Patrick estava à sua frente. Com os braços estendidos ao lado do
corpo pequeno, o menino era magro e idêntico à sua mãe. Com a luz do sol
batendo atrás de seus cabelos, ele facilmente poderia ser confundido com um
anjo das pinturas.
— Sim, Patrick. Eu tive uma noite ruim, só isso.
O menino se sentou ao lado do duque. Poucas pessoas ousavam tanta
impertinência, mas ele era uma criança. E, se fosse mesmo parecido com a
mãe, não se importaria com o título de nobreza de Aiden.
— Mamãe também teve. Ela chorou a noite toda, mas escondeu para que
não víssemos. Ela tenta parecer forte para mim e para o Peter.
O duque ajeitou os cabelos. Ergueu o corpo e ajeitou a postura. O menino
olhava para ele com alguma reverência. Se Elizabeth podia fingir força para
os filhos, ele também conseguiria.
— Sua mãe teve um mau momento. Ela vai ficar bem.
— Eu sei. Mas nós vamos embora, não vamos?
Aiden assentiu. Eles iam.
— Que pena, eu gosto daqui. Obrigado por nos acolher, milorde.
Patrick levantou-se e jogou os braços ao redor do pescoço de Aiden,
abraçando-o e afastando-se em seguida. O homem ficou paralisado por
segundos, sem conseguir reagir à demonstração de carinho.
Depois de recuperar parcialmente a razão, o duque foi até os estábulos e
montou seu cavalo. Ele precisava fazer alguma coisa. Não importava mais a
sociedade, os compromissos ou a responsabilidade que ele tinha como duque.
Não interessava o que dissessem as fofocas. Não importava se ele nunca mais
seria bem-vindo em nenhum evento social. Ele podia suportar ser excluído
daquela sociedade hipócrita, mas não podia deixar aquelas pessoas irem
embora da sua vida.

E LIZABETH ESTAVA DE PÉ . Mesmo que o doutor tivesse recomendado um


repouso mais longo, ela não aguentaria ficar nem mais um minuto na cama.
Já tinha arrumado as malas, deixando de fora as roupas novas que os filhos
tinham ganhado. Não se sentia confortável em levá-las, mesmo que eles
precisassem.
— Sra. Collingworth, eu recomendo fortemente que a senhora não saia
desta casa a esse horário.
O mordomo John estava ao lado dela. A figura esguia tentou impedir que
a governanta se levantasse, depois que remexesse as gavetas. Os meninos
observavam tudo sentados em suas camas.
— John, eu agradeço sua preocupação. Porém não posso mais ficar aqui.
Se eu continuar, Vossa Graça vai aparecer e dar um jeito de me convencer a
ficar.
— E desta vez eu terei que apoiar Vossa Graça nessa empreitada. A
senhora acabou de passar por um trauma.
— Eu estou me sentindo ótima. Vamos caminhar até a vila, ainda tem luz
solar o suficiente. De lá nós pegamos uma condução para Londres.
Claro que os planos dela eram bem simples. Não havia planos. Ir embora,
retornar para a cidade, conseguir um emprego que pagasse as contas.
Provavelmente ela não conseguiria nada muito digno, mas servir em tavernas
não era tão ruim quanto os riscos que corria ficando ali.
Elizabeth mandou os meninos se levantarem. Eles a acompanharam de
péssimo humor. Nenhum dos dois queria ir, nenhum dos dois entendia o
motivo de partirem. Estavam na porta da cozinha quando lady Agatha
apareceu. Ela vinha do lado de fora e estava vestida para sair.
— Elizabeth, venha comigo — a lady disse, um pouco agitada.
— Eu não voltarei atrás na minha decisão, milady. Não ficarei em Thanet
Bay.
— Eu sei disso. Não vou tentar dissuadi-la, mas me permita tentar ajudá-
la.
Lady Agatha indicou que a carruagem estava estacionada no pátio lateral.
O cocheiro aguardava vestido como se fossem a um evento. Elizabeth riu. O
que tinha aquela família que se sentia na obrigação de ajudar pessoas em
necessidade?
— O que pretende, milady?
— Vou levá-la a Greenwood Park.
— Lady Agatha, não acha que não deveria envolver o conde novamente
em seus propósitos? O que lorde McFadden pode fazer por nós?
— Eu conheço Edward. Ele é desagradável quase sempre, mas não
deixará a senhora desabrigada. Se não quer ficar aqui por causa do meu
irmão, eu entendo. Ou não entendo, mas aceito. Porém não pode esperar que
deixemos a senhora na rua depois de termos nos afeiçoado tanto!
A expressão da lady era sincera. Ela tinha as bochechas rosadas pelo
esforço em organizar uma operação tão complexa, os cabelos estavam um
pouco desalinhados e as luvas estavam empoeiradas. Ela parecia jovial e
determinada. Elizabeth não podia negar que via um pouco de si própria
naquela dama.
Com um aceno de cabeça, ela concordou e se deixou conduzir por lady
Agatha até a propriedade do Conde de Cornwall. Como deveria ser previsto,
a chegada delas não tinha sido anunciada. Nem previamente agendada. A
carruagem estacionou na frente da mansão e elas foram recebidas pelo
mordomo dos McFadden.
O conde estava nos estábulos com seus cavalos. Edward era um adorador
de cavalos e criava raças incomuns. Era frequente que passasse bastante
tempo cuidando de seu passatempo principal. Ao ser notificado da chegada
das visitantes, que o aguardavam no hall de entrada, suspeitou que teria
problemas pela frente.
— Pelos céus, Agatha. — O conde entrou pela porta lateral com as botas
ainda sujas de terra e sem colete. Era tarde demais para uma visita de
cortesia. — Não é apenas porque você é irmã de Aiden que pode aparecer
desacompanhada em qualquer hora do dia.
— Não estou desacompanhada. — A lady se levantou. Elizabeth a seguiu,
escondendo os dois filhos atrás de si. Ela não se sentia diminuída na frente da
nobreza, mas os meninos ainda não estavam acostumados.
— Sra. Collingworth. Certo, eu vou querer ouvir essa história.
O conde passou as mãos pelos cabelos e chamou o mordomo. Pediu que
servisse chá no salão e encaminhasse as damas para lá. Uma criada levou os
meninos para comer na cozinha e Edward foi ao seu quarto se lavar.
Retornou para as mulheres depois de estar refrescado e com os cabelos
penteados.
— Muito bem, agora me expliquem o que está havendo.
Ele se sentou em uma poltrona e observou as mulheres. Elizabeth quis
deixar que lady Agatha se explicasse — no fundo, ela se divertia vendo a
lady e o conde travarem alguns embates interessantes —, mas quem deveria
contar a história seria ela mesma. Mesmo que não entendesse o que a lady
pretendia do conde, era Elizabeth quem deveria explicar os motivos que a
levavam a deixar Aiden Trowsdale.
Edward ouviu tudo com alguma perturbação no olhar. No meio da fala
dela, levantou-se e se serviu de uma dose dupla de uísque. Depois que
Elizabeth terminou sua narrativa, ele levou alguns segundos para reagir.
— Sra. Collingworth, eu sei que não deveria me meter, e que se trata de
um tema muito íntimo, mas… considerando que a senhora decidiu expor a
situação para mim, eu preciso dizer. A senhora sabe que Aiden cuidaria de
todo e qualquer filho que ele tivesse, não sabe?
— Eu tenho certeza que sim, milorde. — Ela forçou um sorriso. — Mas
as coisas são mais simples para os homens, que não carregam o fardo das
crianças bastardas. O duque cuidaria de nós até que ele se cansasse de mim. E
meus filhos com ele nunca teriam reconhecimento. Seriam pessoas excluídas
da sociedade. Eu não posso suportar isso.
— Entendo. E respeito bastante a decisão que a senhora tomou. Faremos
o seguinte, eu vou acomodá-los em uma suíte. Amanhã veremos o que fazer.
— Edward, deve ter algum emprego que você possa oferecer à Elizabeth
— lady Agatha se apressou em insistir. — Mesmo que não aqui em
Greenwood Park, pode ter algo para ela em Londres. Ou outra propriedade.
Wilhelmina não precisa de uma camareira?
— Agatha, acalme-se. — O conde se aproximou da lady e segurou-a
pelos dois ombros, fazendo com que ela parasse de girar pela sala. Elizabeth
segurou uma risada. — Amanhã veremos o que fazer. Volte para casa, a Sra.
Collingworth ficará bem. Onde está a sua criada?
— Eu não a trouxe.
— Céus. — O conde pressionou as têmporas com os dedos. Elizabeth
podia notar que a jovem não dava dor de cabeça apenas para o irmão. O
amigo do irmão também parecia bastante desconfortável com as atitudes
impulsivas da lady. — Pedirei que Taylor a acompanhe até Thanet Bay.
— Não preciso de babá.
— Sua segurança não está em discussão, milady. Vamos tratar de
acomodar a Sra. Collingworth aqui e você vai para casa. Imediatamente, e
acompanhada.
Elizabeth podia estar enganada, mas ela raramente estava. A forma como
Edward e Agatha se tratavam estava um pouco além da mera amizade. Ou
inimizade. O esforço que eles faziam para demonstrar desagrado era
louvável, porém, inútil. Qualquer um com um pouco de perspicácia notava
que eles não se detestavam.
Talvez, se ela fosse ser mesmo empregada do conde, pudesse orientar a
lady a entender esses sentimentos. Ela desejava sinceramente que sim. Que as
pessoas que aprendera a respeitar e admirar não saíssem tão rapidamente de
sua vida.
O DUQUE não retornou para casa. Passou a noite em Londres porque não
admitia retornar para Thanet Bay sem uma solução para a crise que se
instaurou em sua vida. E a solução não era muito ortodoxa, mas ele estava
certo do que queria. Do que precisava. Aiden precisava de Elizabeth
Collingworth em sua vida e não mediria esforços para tê-la.
Não tinha muita certeza de quando foi que se apaixonou por ela.
Provavelmente, fora no dia em que se viram na estalagem. A doença, o
confinamento e a intimidade só serviram para confirmar o que o coração dele
já sabia, mas Aiden não era um homem dado a romance. Nem paixões. Ele
não acreditava que estava apaixonado até ouvi-la dizer que iria partir.
Aquele foi o momento em que ela partiu o coração dele em pedaços.
Naquela manhã, ele sentia que as coisas podiam ser diferentes. Ele sabia
que tinha um trunfo nas mãos. Algo que só o Duque de Shaftesbury
conseguiria, algo que poderia fazer Elizabeth mudar de ideia. Quando ele
falasse novamente com ela, seria para garantir que seria sua mulher e que
nunca mais sairia do lado dele. Com essa certeza, o duque cavalgou até Kent.
Fez algumas paradas, alimentou o cavalo, descansou, e chegou de volta à sua
propriedade pouco depois das duas da tarde.
A casa estava vazia. Não exatamente, mas não havia crianças correndo
pelos arredores.
— John — ele cumprimentou o mordomo que o recebia. Havia algo
estranho, a expressão de John era de quem escondia alguma coisa importante.
— Onde está a Sra. Collingworth?
— Creio que Vossa Graça deva perguntar isso à sua irmã.
— Elas saíram? Mas Elizabeth não está de repouso?
— Ela estava, milorde. Porém…
Aiden não esperou. Entrou pela casa adentro e foi até os aposentos dos
criados. O quarto estava vazio, a cômoda desocupada, as camas arrumadas.
Não havia nem mesmo mais o cheiro das gardênias no ar. Tudo estava oco.
Ele então subiu as escadas. Não se importava mais se parecia
transtornado, ele estava. Bateu à porta do quarto da irmã sem nenhuma
moderação. Seu exagero poderia derrubar a peça de madeira maciça, que se
abriu antes que ele conseguisse seu intento.
— Pois não, milorde? Lady Agatha está repousando.
— Para o inferno, tire-a do repouso. Eu quero saber onde está Elizabeth.
— Vossa Graça, eu…
Ele não esperou. Não havia mais nenhum resquício de paciência nem
decoro em suas atitudes. Aiden parecia um bruto, um homem sem escrúpulos
que não reconhecia os limites da boa educação. Entrou quarto adentro e
encontrou Agatha sentada na cama, com um vestido de dormir e o cabelo
despenteado, como se não tivesse saído da cama naquele dia.
— Espero que haja um motivo razoável para entrar no meu quarto como
um animal raivoso. — Ela tentou demonstrar bom humor, mas o irmão não
estava racional.
— John disse que você sabe onde está Elizabeth.
— Eu sei. — Agatha se levantou e caminhou na direção de Aiden. Ele
estava trêmulo, com a mandíbula travada e os braços arqueados. Aquela era
uma posição de ataque. — E quando você estiver mais calmo, eu posso te
contar.
— Agatha, você não quer testar a minha sanidade. Não neste momento.
— Não quero testar nada, Aiden. Mas me diga, se eu te contar onde ela
está, agora, o que fará? Vai correr até ela e tentar convencê-la a…
— Eu vou me casar com ela, Agatha.
O duque tirou do bolso do casaco um papel enrolado. A lady arregalou os
olhos e tentou decidir se sorria ou chorava com a notícia.
— O que é isso?
— Uma permissão de casamento. — Ele desenrolou o documento e o
entregou à irmã. — Eu voltei a Londres para conseguir uma. Eu não vou
deixar Elizabeth ir embora, ao menos eu não pretendia deixar. Como você
pôde permitir que ela saísse desta casa?
Lady Agatha deu uma gargalhada. Ela queria expulsar o irmão do quarto
para se vestir e acompanhá-lo até Greenwood Park, mas não conseguia parar
de rir.
— Meu irmão, acha mesmo que eu controlo Elizabeth? Ela é uma mulher
livre. E muito teimosa. Vocês dois combinam mais do que pensam.
— Onde ela está, Agatha?
— Eu a deixei com Edward, ontem à noite.
Mais uma vez, ele não esperou. Bastou ouvir que Elizabeth estava em
Greenwood Park para sair correndo do quarto da irmã, que gritou pedindo
que esperasse porque ela queria ir com ele. Aiden fingiu não ter ouvido. Nada
o seguraria. Ele não esperaria nenhum minuto a mais para tornar Elizabeth
sua esposa.
CAPÍTULO VIGÉSIMO NONO

A RESIDÊNCIA DE E DWARD NUNCA FOI TÃO DISTANTE DE T HANET B AY QUANTO


naquela tarde. O cavalo preto do duque galopara pelos campos, buscando
atalhos conhecidos para encurtar o tempo que eles gastariam para chegar a
Greenwood Park. Aiden não era um homem ansioso. O suor em sua testa não
queria dizer que ele estava nervoso. As batidas variantes de seu coração não
representavam nenhum tipo de desconforto. Ele não demonstraria nenhum
descontrole na frente de Elizabeth, ou de quem mais lá estivesse.
Suas atitudes eram as de um homem no limite. Até que Edward chegasse
à sua presença, os minutos pareceram durar horas.
— O que veio fazer aqui, Aiden? — o conde perguntou, com sincera
dúvida. Edward era um homem prático e de rara honestidade. Aquela era a
sua melhor qualidade.
— Preciso falar com Elizabeth.
— Essa não é a melhor hora. Wilhelmina está dando um chá para duas
dezenas de jovens damas debutantes da próxima temporada. Isaac está com
amigos no salão de jogos. A casa está cheia e não precisamos de mais um
escândalo em Kent neste verão.
— Não farei um escândalo. — O duque não estava muito certo daquela
promessa.
Ele não gritaria, ou se desesperaria — um homem como ele não se
desesperava —, mas o que ele pretendia fazer era, por si só, bastante
escandaloso.
A ausência de Elizabeth o deixaria maluco. Tinha passado uma semana
em Londres, depois os dias ruminando sua perda. A agonia que apertava seu
peito fazia com que respirar fosse muito difícil.
— Vamos conversar, então. Ela está com minha irmã no salão de chá.
Assim que o evento acabar, vocês…
— Não posso esperar, Edward. — Aiden se colocou em movimento. Ele
sabia onde era o salão de chá. — Lamento, amigo, mas eu preciso falar com
ela, agora.
O conde não conseguiu impedi-lo. A criada que estava à porta do salão
deu um salto quando viu o duque chegando apressado. Aiden abriu a porta
para encontrar o espaço cheio de mulheres com vestidos elegantes e cabelos
empoados. Apenas uma se destacava, e ela não estava vestida como a
nobreza.
Os cabelos dourados de Elizabeth reluziam à luz do sol que penetrava nas
janelas. A condessa se levantou ao ver o duque, incomodada com a invasão.
Homens não entravam de supetão nos eventos femininos.
— Aiden, você precisa se acalmar primeiro — Edward disse, vindo logo
atrás. Sua voz quase não fora ouvida por causa do burburinho das mulheres.
Todas conheciam o Duque de Shaftesbury e sabiam que ele era o solteiro
mais cobiçado de Londres. Um pouco dado a escândalos, mas, ainda assim,
dono de um título respeitável e de um próspero ducado.
— Eu estou calmo, maldição! — Aiden parou no meio do salão. Nada
mais existia ao seu redor, apenas ela. Elizabeth estava de pé e olhava para o
duque com surpresa e assombro. — Eu só preciso falar com ela.
— Vossa Graça está causando tumulto na casa de seu amigo — Elizabeth
sussurrou. A suavidade no tom de voz dela tornava tudo mais difícil. Talvez
Aiden preferisse que ela estivesse zangada com ele. Era mais simples
transformar irritação em paixão. A irresignação dela o incomodou.
— Eu não me importo. — Aiden passou as mãos nos cabelos para ajustá-
los. — Eu fiquei sinceramente desesperado quando cheguei a Thanet Bay
hoje e não a vi, Elizabeth. É bastante impróprio deixar um duque
desesperado.
— Eu precisava ir. Não podia…
— Deixe-me falar, sim? — O duque deu alguns passos na direção dela.
Todas as presentes olhavam o momento sem entendê-lo. Talvez algumas
delas entendessem, porém, não compreendiam a dimensão do que o duque
estava prestes a fazer. — Quando você me disse que ia me deixar, eu entrei
em pânico. Eu sou um duque, duques não entram em pânico. Eu tinha que
fazer a coisa certa, Elizabeth. A proposta que eu te fiz não era certa. Ela era
indigna, indecorosa, injusta. Você não a merecia. Eu não te merecia.
— Aiden…
Ele a ignorou. Naquele momento, precisava que ela o ouvisse e não
tomasse uma decisão sem que ele tivesse colocado todas as cartas na mesa.
— Eu deveria ter feito isso há mais tempo. Desde o primeiro momento,
desde que eu te beijei pela primeira vez. — O duque se ajoelhou à frente dela.
O relógio parou de bater. As damas levaram as mãos às bocas. Algumas
abafaram um grito, outras esconderam o espanto. O conde cruzou os braços e
sorriu. Elizabeth parou de respirar. Tudo pareceu passar lentamente, como se
o tempo desacelerasse para fazer o momento durar o dobro. — Eu te amo,
Elizabeth Collingworth. E, mesmo que ainda não mereça, eu ficarei honrado
se você aceitar ser a minha esposa.

U MA DAS DAMAS QUASE DESMAIOU . Foi amparada por uma criada e terminou
sentada em um canapé. O burburinho voltou e Elizabeth conseguia ouvir
tudo, mas não reagia a nada. Depois de piscar algumas vezes, a imagem que
seus olhos viam ainda era a mesma. Em sua frente estava o Duque de
Shaftesbury segurando uma caixa de veludo com um anel obsceno. Para ela.
O anel. O homem. A proposta. Era tudo para ela.
— Nós não podemos nos casar — ela murmurou, tão baixo que mal
conseguiu ouvir a si mesma. — A sociedade, eles nunca me aceitariam. Isso
te afetaria.
— Para o inferno com a sociedade! O problema é meu título? Então eu
abro mão dele. A partir de agora, não sou mais o Duque de Shaftesbury.
O comentário fez com que o burburinho das damas se intensificasse.
Ninguém se movia, todas querendo saber o desfecho daquele momento.
— Você não pode abrir mão do seu título, Aiden.
— Então eu continuo sendo um duque, mas não deixe que isso nos
impeça, Elizabeth. Case comigo. Seja minha esposa.
— E os negócios? As responsabilidades como membro do Parlamento?
Vai colocar tudo em risco por minha causa?
— Eu não me importo mais com nada disso. Eu me importo com você e
com os meninos. Eu te amo. Você me disse, um dia, que homens como eu
deveriam poder se casar por amor. E é você que eu amo, Elizabeth. Você é a
mulher que eu amo.
Ele era o homem que ela amava.
— Sim, Aiden. Eu ficarei honrada em me tornar a sua esposa.
Ela não sabia como conseguira dizer uma frase completa com a voz
embargada e os olhos cheios de lágrimas. O duque se levantou e a tomou nos
braços, selando com um beijo o compromisso que acabavam de firmar no
meio das damas, na frente da condessa. O maior escândalo que a sociedade
teria que enfrentar.

O REBULIÇO na casa do Conde de Cornwall não foi proposital. Aiden não


queria causar nenhum problema para o amigo nem comprometer a sua
posição na sociedade, mas calhou de Elizabeth estar na casa de Edward
quando ele precisava pedi-la em casamento. Não havia outra forma de
recuperá-la. Ele precisava oferecer a ela o que ela precisava.
Segurança. Amor. Uma família.
Mesmo que ele tivesse medo de não conseguir ser o marido que ela
merecesse, ele era egoísta a ponto de arriscar. Edward ofereceu-lhes uma
carruagem para irem até Thanet Bay. Durante o trajeto os meninos estavam
curiosos com o anel no dedo da mãe e com o retorno à mansão ducal.
— Vamos morar lá, agora? — Peter inquiriu, segurando a mão da mãe.
— Esse presente veio de uma fada?
— Não, meu jovem. Este é o presente que um homem dá a uma mulher
quando ele a ama muito e quer tomá-la como esposa.
— O senhor ama minha mãe? — Patrick o encarou de forma inquisitiva.
— Sim, eu amo. E nós vamos nos casar.
— O senhor vai ser meu pai? — Foi a vez de Peter se virar para o duque.
Com a demora em receber uma resposta satisfatória, o menino pulou para o
lado dele na carruagem e se sentou.
— Eu cuidarei de vocês como um pai cuida dos próprios filhos. Vocês
acham isso uma boa ideia? Gostariam que sua mãe se tornasse a Duquesa de
Shaftesbury?
— Mamãe sempre foi uma dama. — Peter subiu no colo de Aiden. O
duque não sabia muito bem como agir com crianças. Elizabeth deu uma
risada e um olhar encorajador. Não parecia tão complicado, ele tinha
memórias de como o pai lidava com ele. Aiden era curioso e intrometido
como aquele pequeno moleque. — Ela vai ficar muito bem de duquesa.
Mas… e a outra duquesa? Ela não vai ficar triste?
— Não, ela não vai. Ela está em um lugar muito divertido, não terá tempo
para se preocupar com isso.
Até chegarem a Thanet Bay, Patrick também já havia sentado ao lado do
duque. Os homens conversavam sobre cavalos quando a carruagem
estacionou na entrada principal. A partir daquele momento, Elizabeth nunca
mais entraria pela porta dos fundos. Uma aglomeração de criados aguardava
para recebê-los. Agatha estava entre eles. A irmã respirou aliviada e colocou
a mão no peito quando viu o duque descer segurando a mão de Elizabeth. Os
meninos correram para dentro da casa.
— Seja bem-vinda novamente, Sra. Collingworth.
— Amanhã ela será a sua duquesa, John. — Aiden entregou o casaco ao
mordomo. Ele não estava usando um chapéu, fora descontrolado até
Greenwood Park e não se cuidou de vestir adequadamente.
— Amanhã?
Tanto Elizabeth quanto Agatha falaram ao mesmo tempo. A jovem dama
segurou a mão da sua futura cunhada para olhar o anel.
— Por que a pressa? — Elizabeth questionou. — Pensei que os nobres se
casassem na Igreja de São Jorge, com pompa e toda a realeza convidada.
— Sim, os nobres se casam assim. É o que você quer?
— Há opções? — Ela riu.
— Meu amor, você será a Duquesa de Shaftesbury. Comece a se
acostumar, opções não vão faltar. Podemos nos casar amanhã, na vila, ou na
São Jorge com todo o luxo que você merece.
— Vamos fazer as duas coisas — Agatha se intrometeu. — Vocês se
casam logo, porque eu não aguento mais esses desencontros. Antes que algo
mais aconteça para separá-los, casem-se. Aos olhos de Deus e da rainha,
sejam marido e mulher. Depois, fazemos uma cerimônia em São Jorge. O que
acham?
— É uma ideia muito boa, milady.
— Eu só tenho boas ideias. — Agatha riu. — E agora não me chame mais
de lady, Elizabeth… eu serei sua cunhada, trate-me como igual.
N ÃO SERIA fácil para que ela se acostumasse. Por anos, Elizabeth não foi
nada além de uma plebeia. Uma criada. Sem dinheiro, sem título, sem
qualquer possibilidade de ascender na burguesia por ser uma viúva com duas
crianças. Ali, recebendo os cumprimentos dos criados de Thanet Bay, ela
considerou que talvez não precisasse se acostumar. Ela poderia estabelecer
uma nova forma de se tratar os empregados. Ao menos na Trowsdale House
ou nas outras propriedades do seu futuro marido.
Depois do jantar, que Elizabeth desfrutou à mesa com o duque e lady
Agatha, ela foi conduzida pela camareira Mary até os seus aposentos. Eles
ficavam no segundo andar, ao lado do quarto ducal. Os meninos foram
acomodados no quarto da frente, um em cada cama. Era a primeira vez que
eles dormiriam em um colchão que não fosse feito de palha ou capim.
Também era a primeira vez que eles teriam uma roupa de cama combinando
e mais de um travesseiro. A alegria nos olhos de Peter fez com que os olhos
dela ficassem úmidos. Elizabeth quase nunca chorava na frente dos filhos,
mas, naquele momento, era permitido. Quaisquer lágrimas que rolassem por
sua face seriam de alegria e júbilo.
Depois que os dois estavam adormecidos, ela se recolheu para tomar um
banho e descansar. Fora um dia intenso. As emoções ainda não estavam bem
organizadas dentro de si. Ela estava apaixonada. Amava Aiden Trowsdale,
aceitara que não poderia tê-lo, e então ele a pediu em casamento no meio de
metade das jovens damas da nobreza inglesa.
Talvez ela devesse ter recusado. Aquele casamento faria mal para os
negócios e para a imagem de Aiden na sociedade, mas ela não quis recusar. O
duque sabia bem o que estava fazendo. Ela o queria e, se ele a aceitava como
ela era, então eles se casariam.
Divagando em memórias recentes, Elizabeth recostou a cabeça na borda
da banheira e fechou os olhos. Abriu-os subitamente ao sentir o toque dos
lábios de Aiden em seus ombros.
— Desculpe, não queria te assustar. — Ele acariciou os cabelos dela com
cuidado.
— Como entrou aqui? Estou tão distraída que não ouvi a porta?
— Os quartos são conjugados. — O duque beijou-a, primeiro no pescoço,
depois mordiscando o lóbulo da orelha. — Acha que eu colocaria minha
futura esposa para dormir longe de mim? Fora do meu alcance?
Ela riu.
— Eu esperava que não. Mas, Aiden, eu ainda não posso…
— Nem eu vou. — O duque se levantou e indicou que ela deveria fazer o
mesmo. Havia uma toalha branca e felpuda em suas mãos. Elizabeth se
deixou envolver pelo tecido e pelos braços fortes e desnudos do seu futuro
marido.
Seria mais fácil se acostumar com toda a pompa da riqueza do que com
Aiden como seu marido. Ele era lindo. Másculo. Íntegro, educado, bondoso.
Tudo aquilo reunido em um homem só. E era exclusivamente dela.
— Eu só quero te abraçar e passar a noite ao seu lado, Elizabeth — Aiden
murmurou nos ouvidos dela enquanto a enxugava. — Eu quero acordar com
você e ter certeza de que você estará aqui durante o dia.
— Depois que você me trouxe de Greenwood Park, acho que estou sem
opções de lugar para ir.
Ela tentou brincar, mas ele falava sério. Os olhos de obsidiana que a
fitavam indicavam que Aiden estava tenso. A rigidez dos seus músculos,
também.
— Nunca mais me deixe.
Foi o que ele conseguiu dizer antes de beijá-la.

T ODOS OS JORNAIS de fofocas de Londres publicaram sobre o pedido de


casamento feito pelo Duque que Shaftesbury à sua governanta. Não houve
folhetim que não exibisse uma caricatura grotesca de uma mulher odiosa que
carregava um pobre nobre pelo cabresto. Dois exemplares foram entregues na
residência em Thanet Bay, mas não havia ninguém para se incomodar com
eles.
Ainda cedo, Elizabeth e lady Agatha foram para a vila. A estilista teria
muito trabalho para produzir um vestido de noiva adequado ao casamento de
uma duquesa. As duas sabiam que não seria nem exclusivo nem luxuoso, mas
tinha que ser um vestido perfeito.
— Não sei se desejo um vestido branco, mas também não deve ser uma
cor extravagante. Talvez amarelo. Ou dourado? Não, eu ficarei muito pálida.
Mas não quero usar rosa nem azul.
— Talvez seja melhor deixar que eu ajude a escolher — a estilista
sugeriu, revirando seus cabides de vestidos. — Todas essas peças aqui foram
usadas apenas uma vez. Com uma rápida reforma, podem ficar perfeitas.
Ela colocou os vestidos na frente de Elizabeth. Contando com a opinião
sempre bem-vinda de lady Agatha, o escolhido acabou sendo um modelo
pouco rebuscado, em um tom de dourado que combinaria com os cabelos da
noiva.
Os ajustes durariam boa parte do dia. Tempo suficiente para que alguns
criados enfeitassem a capela da vila e para que Aiden terminasse de organizar
os documentos para o casamento.
Às seis em ponto, com o sol querendo se pôr no horizonte de Kent,
algumas pessoas se reuniram para celebrar o matrimônio do duque com a
plebeia. Naquele momento, Elizabeth não se sentia plebeia. Nem nobre.
Nenhum título ou origem de nascença era significativo quando ela caminhava
ao som de violinos na direção de Aiden Trowsdale. Ela era apenas uma
mulher apaixonada, realizando um sonho. Seguia na direção do homem que
amava. Era apenas o que importava.
Peter e Patrick vinham à frente e estavam radiantes de participar do
casamento da própria mãe. Os convidados se resumiam a lady Agatha, o
Conde de Cornwall e seus irmãos, alguns arrendatários e criados. Todos
poderiam participar daquele momento e compartilhar com ela a sua
felicidade.
O duque a recebeu com as mãos trêmulas. Ele sorria e ela não se
lembrava de tê-lo visto tão espontâneo — e tão nervoso. Usava calça preta,
camisa branca de linho, colete dourado com bordados e uma casaca preta
abotoada à frente. Os botões também eram dourados, mas nada reluzia como
o seu olhar.
— Você é a única pessoa capaz de me fazer tremer, Elizabeth. — Ele
beijou-a nos dedos enluvados. — Não sei se isso é bom ou ruim.
— É bom que eu seja a única.
O pároco conduziu uma cerimônia simples. Eles trocaram alianças,
assinaram documentos e foram abençoados. Como aquele seria um
casamento de duas partes, teriam que adiar os momentos dos votos. Só que
seu marido não era dado a simplicidades.
— Sei que este não é o momento — ele disse, antes de saírem da capela
—, e que prometi à Elizabeth que não teríamos votos, mas eu preciso falar
alguma coisa agora. Se os jornais desejarem publicar sobre o duque mais
propenso a escândalos da Inglaterra se casando, então espero que publiquem
tudo.
Aiden virou-se para ela. Elizabeth não imaginava o que ele diria e desejou
bater nele. Era injusto que o duque decidisse mudar o que combinaram
porque ela não tinha preparado nenhuma fala.
— Elizabeth. — Ele a tocou na face e segurou-a pelas mãos. — Eu fui
criado de forma pouco convencional e tive, durante toda a minha vida,
aversão aos moldes da sociedade britânica. Ao contrário de você, que foi
criada para ser uma dama. Não apenas uma dama, mas a melhor delas. O
destino nos obrigou a cruzar caminhos e contrair uma doença fatal foi a
melhor coisa que me aconteceu em toda a minha vida. — Alguns dos
presentes seguraram o riso. — Sei que demorei demais para entender meus
sentimentos. Mais ainda para entender que eu não ligo a mínima se você não
tem sangue azul ou dotes. A nobreza que meu nome carrega é escrava do
amor que sinto por você. Obrigado por me mostrar que pessoas como eu
podem merecer pessoas como você. E que um duque também tem o direito de
se casar por amor.
Ela também estava tremendo quando ele terminou de falar. A pequena
capela estava em silêncio, esperando. Aiden passou o polegar pelos olhos
úmidos da sua esposa e a beijou. Era bem provável que sim, Elizabeth
poderia se acostumar a ser amada por ele.
EPÍLOGO

LONDRES, DEZEMBRO DE 1891


A NEVE QUE CAÍA DO LADO DE FORA DEIXAVA O N ATAL MAIS BONITO , MAS AS
ruas de Londres estavam geladas. Elizabeth passara o dia fora com o marido e
os filhos. Eles visitaram várias casas e instituições de caridade e recolheram
pessoas que estavam vivendo nas ruas. Distribuíram presentes e garantiram
uma refeição quente, calefação e cobertores para muitas famílias miseráveis.
Aiden Trowsdale sempre foi um benfeitor, um homem que fazia a
caridade e compartilhava seus bens. Depois que conheceu Elizabeth, ele
passou a ser um dos nobres mais dedicados a melhorar a vida das pessoas, e
eles estavam casados há poucos meses.
Quando retornaram para a Trowsdale House, naquele dia vinte e quatro
de dezembro, estavam certos de terem tornado o Natal de parte dos cidadãos
londrinos mais alegre e aquecido. As crianças correram para a frente da
lareira e foram recebidas pela tutora, a Sra. Cunningham. Ela tinha chocolate
quente e biscoitos para um lanche.
— É uma pena que Agatha não esteja conosco — Elizabeth lamentou,
sentando-se no sofá de veludo estampado que guarnecia a sala de estar. — Eu
gostaria muito de passar nosso primeiro Natal em família.
— Também sinto falta dela, mas Agatha precisava voar. Ela vai retornar
mais experiente e provavelmente pronta para sossegar com um bom
casamento.
Lady Agatha estava nos Estados Unidos da América com duas primas e
Moira, sua criada. Ela havia pedido para sair e conhecer o mundo logo depois
do casamento de Aiden, alegando que ele não precisava mais dela para
manter a cabeça no lugar.
Elizabeth deu dois tapinhas no sofá, indicando que o duque deveria se
sentar ao lado dela. Eles continuavam não sendo como todo casal tradicional
da nobreza, pois sempre demonstravam afeto público e não cansavam de
declarar seus sentimentos.
— Você poderia parar de insistir em casar a sua irmã. Quando o homem
certo aparecer, ela saberá reconhecê-lo.
— Assim como você me reconheceu imediatamente?
Ela riu e ele a beijou. Peter pulou no meio dos dois e atrapalhou o
momento.
— Podemos abrir os presentes?
— Devemos abri-los pela manhã, quando já for Natal — Elizabeth
decidiu.
— Então podemos abrir alguns presentes? Por favor, eu quero muito abrir
presentes agora.
Claro que ele queria. O menino nunca tivera um Natal. Desde que
nascera, as privações impediram que Elizabeth desse a eles uma celebração
condigna com o evento. Não tinham árvore decorada, nem jantar típico, nem
presentes.
— Creio que algumas caixas possam ser abertas. — O duque segurou
Peter em seu colo. — Diga, quais você acha que são para você?
O grande pinheiro decorado estava em um canto da sala, enfeitado com
bolas e guirlandas. Havia tantas caixas com laços embaixo dele que era
impossível ver a base.
— Os que têm meu nome escrito?
— Parece que você é mais esperto do que eu pensava. — Aiden levantou-
se com Peter ainda em seus braços. A cena fez com que Elizabeth sentisse o
coração ainda mais aquecido. Toda vez que ele dizia que a amava ela se
apaixonava um pouco mais, mas, quando demonstrava carinho por seus
filhos, ela tinha vontade de agarrá-lo e beijá-lo no meio de todo mundo. —
Escolha duas caixas e abra-as. Patrick pode fazer o mesmo.
O menino mais velho era menos dado a demonstrar afeto, mas não
hesitou em sair de onde estava para escolher os presentes que gostaria de
abrir. Aiden voltou para o lado da esposa segurando uma caixa de veludo nas
mãos.
— Este é seu.
— Achei que tínhamos combinado não trocarmos presentes. — Ela pegou
a caixa e abriu. Havia um vidro de perfume dentro.
— Eu sei, mas não resisti. Essência de gardênias.
Peter voltou para o lado deles. Elizabeth sabia que o filho era
impertinente sempre que os dois estavam juntos por sentir ciúme, mas Aiden
tinha muita paciência com ele e nunca se aborrecia com seus excessos.
— Este é meu presente para você. — O menino entregou um papel
colorido ao duque. — Um desenho da família, eu que fiz.
— Excelente. Vamos descobrir quem são todos.
Aiden foi apontando os desenhos um a um e confirmando os membros de
sua família. Havia representações dele, de Elizabeth, dos meninos, do gato e
do cachorro. Havia um personagem a mais naquele desenho, que o duque não
conseguiu identificar. Seria outro dos animais de rua que Peter insistia em
recolher?
Elizabeth não falou nada. No instante em que ela viu o desenho na mão
do filho, já sabia que o segredo que ela vinha guardando para aquela ocasião
seria revelado prematuramente.
— Quem é esse, Peter? — Aiden perguntou. — Outro gatinho?
— Não. Esse é o bebê que mamãe está esperando — ele respondeu, com
um largo sorriso. Aiden olhou para a esposa, que o fitava com a expressão de
culpa.
— Bebê?
— Eu pretendia contar amanhã — ela zombou. — Parece que também
tenho um presente de Natal para você.
O duque se levantou e segurou Elizabeth nos braços. Abraçou-a com
cuidado, mesmo que desejasse espremê-la contra seu peito.
— Tem certeza?
— Absoluta. Estou bastante atrasada e já estive em uma consulta com um
médico. Você vai ter um herdeiro, Aiden Trowsdale.
Aquele era o melhor presente de Natal possível, ele mal poderia esperá-
lo. Sem se preocupar com a presença das crianças e dos criados, o duque
segurou a face de Elizabeth nas mãos e a beijou. Tomou a boca dela com
volúpia, procurou sua língua, fez com que os corpos se ajustassem para
aumentar o contato entre eles.
— Você terminou de ler o livro que te emprestei? — ele perguntou, de
súbito, interrompendo o beijo. Ela demorou alguns segundos para entender a
pergunta e depois para lembrar a resposta.
— Com todos os acontecimentos dos últimos meses, não. Por quê?
— Eu queria saber se eles tiveram um final feliz.
— Finais felizes são apenas para livros, meu marido. — Ela o beijou
novamente. — Não servem para pessoas como nós.
— Então você acha que não seremos felizes?
— Claro que seremos. — Elizabeth passou as mãos pelos cabelos escuros
do duque. Ela adorava a maciez daquele toque. — Nós não teremos um final.
Os sinos da capela em Mayfair bateram indicando as seis horas. Um coral
de crianças cantava na rua, em frente a Trowsdale House, preenchendo a sala
com vozes infantis. Os meninos correram para a porta para ver. O duque
encarou sua duquesa com os olhos de meia-noite que tanto a encantavam e a
segurou em seus braços.
— Eu te amo, Aiden Trowsdale.
Não havia nada com que ela sonhasse mais do que estar casada com o
amor da sua vida.
CENA EXTRA

NOITE DE NÚPCIAS
C OM E LIZABETH DE REPOUSO , OS RECÉM - CASADOS NÃO PUDERAM CONSUMAR
o casamento logo após a celebração na capela da vila, em Kent. Não que eles
precisassem, pois já tinham consumado o amor várias vezes antes de
contraírem núpcias. Mas as regras precisavam ser cumpridas.
Eles estavam em Londres. Apenas um mês depois da primeira cerimônia,
foram para a capital para tratar de assuntos de interesse do duque e agilizar
alguns preparativos para o casamento na Igreja de São Jorge. Os meninos
ficaram em Thanet Bay, aos cuidados dos criados.
Elizabeth conheceu a Trowsdale House em Mayfair. A casa do Duque de
Shaftesbury era então a sua casa. Os empregados receberam a nova duquesa
com entusiasmo, mas ficaram um pouco chocados quando ela dispensou uma
camareira para ajudá-la a tomar banho e se vestir. Ainda não tinha se
acostumado aos vestidos que começaria a usar e a ter criados à sua disposição
para qualquer a fazer.
— Você precisa visitar uma estilista — Aiden disse. Eles estavam nos
aposentos ducais, depois de jantarem em casa. Como era esperado, a nobreza
virou as costas para o Duque de Shaftesbury. As fofocas se intensificaram e
alguns convites para eventos sociais foram retirados. Apenas os amigos mais
antigos e os burgueses, sem sangue azul, mantiveram o relacionamento de
antes.
Elizabeth temia que aquilo tudo afetasse lady Agatha e atrapalhasse um
casamento. Mas a lady sozinha dava conta de destruir suas chances de
arrumar um bom marido, preferido viajar pelo continente a frequentar a
próxima temporada londrina.
— Sei que preciso, mas não tenho nenhuma vontade. — Ela pediu ajuda
ao marido para desabotoar o vestido e retirar o espartilho. Desde que
conhecera Elizabeth, uma das coisas que mais dava prazer ao duque era
despir sua esposa. — Adoro os vestidos lindos e cheios de camadas, mas
estou tão acostumado às roupas mais simples que…
— Você pode usar a roupa que quiser. — Aiden beijou-a nos ombros que
acabara de desnudar. — Ou não usar roupa alguma, o que é ainda melhor.
Ele a virou para si e reivindicou a sua boca. Elizabeth desmontou nos
braços do marido, recebendo com satisfação a língua que procurava uma
abertura em seus lábios.
— Em Londres, eu preciso me portar de forma adequada — ela
murmurou, sem descolar a boca da dele. — Já arruinei sua vida social, se me
vestir como uma plebeia miserável, nunca vão parar de nos julgar por
ficarmos juntos.
— Shhhh. — Aiden a silenciou com um beijo intenso. O vestido que ela
usava já estava no chão, embolado em uma pilha aos pés deles. O duque
ainda trajava suas calças e a camisa branca de linho. — Diga-me, o doutor
Davies pediu quanto tempo de resguardo?
Elizabeth afastou-se alguns centímetros e segurou a face do marido nas
mãos. A expressão dele confundia desejo com antecipação.
— Trinta dias.
— Trinta dias da data do nosso casamento ou trinta dias de quando…
Sem conseguir terminar a frase, Aiden deixou no ar sua dúvida.
— O prazo dele acabou ontem.
O duque entendeu que ela estava zombando dele. Homens apaixonados
não eram razoáveis, principalmente se estavam há tanto tempo sem poder
fazer amor com suas esposas. Eles estavam casados, por Deus, e ele ainda
não pudera fazer com ela tudo que desejava.
Naquele instante, o duque segurou sua esposa e a jogou sobre a cama.
Saber que podia amá-la sem causar riscos à sua saúde despertou nele toda
devassidão contida, e Elizabeth adorava a versão devassa do marido. Nua e
esparramada sobre os lençóis, ela o observou abrir os botões da camisa e
arrancá-la pela cabeça. Depois, abrir a calça e descartá-la no chão do quarto.
Ela adorava ainda mais vê-lo despido e se dar conta do quanto o corpo dele
demonstrava o desejo por ela.
— Minha duquesa, agora que somos casados, eu prometo que não terei
nenhuma restrição. Eu quero fazer amor com você a noite inteira, se me
permitir. E cada vez eu serei mais ousado, sendo que cada vez você gostará
mais.
— Tem como ser mais ousado do que…
Ela se surpreendeu. Recordou as vezes em que ele a beijara em sua
feminilidade, usando a língua para penetrá-la e conceder-lhe prazer. Para ela,
aquela era a coisa mais absurda que um homem poderia fazer com uma
mulher na cama, e estava enganada.
— Pode ter certeza de que tem. — Ele riu. — Mas não se preocupe. Eu só
farei o que você gostar, e farei bem feito.
Claro que ele faria. Aiden era um amante espetacular e ela duvidava que
outro homem fosse capaz de proporcionar tanto prazer a uma mulher.
Dizendo aquilo, o marido subiu na cama e a beijou. Colocou uma perna entre
as dela, fazendo-a se abrir para receber seus dedos habilidosos.
Sempre que ele a beijava daquela forma, o turbilhão de sensações quase
naufragava Elizabeth em mar aberto. Ela se sentia tão à deriva das emoções e
dos sentidos que mal conseguia perceber algo que não fosse o toque dele. Os
lábios dele nos dela. A língua procurando a dela. Os dedos abrindo-a em sua
intimidade e circulando seu botão rosado até fazer com que ele inchasse.
A carência de contato mais íntimo fez com que os dois estivessem muito
ansiosos por alívio. Cobrindo-a com seu corpo musculoso, o duque forçou
espaço entre as pernas da esposa e a penetrou devagar. Encostou a testa na
dela e moveu os quadris uma, duas vezes, tão lento que parecia estar sendo
muito difícil se controlar. Até que ele se soltou e passou a investir contra ela.
Forte. Profundo. Ele tinha o ritmo que a levaria à loucura e foi assim que
Aiden seguiu até que Elizabeth se entregasse à libertação do orgasmo. Não
levaram duas estocadas para que ele buscasse o próprio alívio dentro dela.
Foi rápido, mas ele tinha prometido mais.
— Céus. Depois de tanto tempo, não sei como resisti tanto.
Ele riu, puxando-a para si. Elizabeth recostou em seu peito nu, sentindo
as gotículas de suor lhe umedecerem a pele. Ela também estava exaurida.
— Espero nunca mais precisar passar tanto tempo sem você, Elizabeth.
— O duque beijou seus cabelos. — Estou embriagado pelo desejo e pela
paixão, eu passo o tempo contando as horas para estar com você. Sou um
empreendedor inútil, uma vergonha para os homens.
— Não há qualquer vergonha em amar. — Ela se apoiou nos cotovelos e
o encarou. Havia tanta sinceridade no escuro profundo daqueles olhos que ela
não tinha como duvidar do quanto ele a amava. Era real. — Eu estava prestes
a aceitar uma vida de imoralidade porque amo meus filhos e porque amo
você de tal forma que seria capaz de vender minha alma ao diabo, se isso
fosse fazer com que fôssemos uma família. Mesmo que não fôssemos.
— Eu sinto muito por tê-la feito passar por isso. — Aiden beijou-a na
boca. — Mas agora você é a minha mulher. E eu nunca deixarei que se
esqueçam disso, ou que você se esqueça do quanto eu te amo.
Elizabeth sorriu. Ela poderia ouvi-lo dizer que a amava o tempo todo,
porque era quase tão prazeroso quanto o sexo. Quase. Deixou que seus dedos
passeassem pelo corpo do marido e seguissem a trilha que conduzia até seu
pênis. Aiden soltou um gemido ao senti-la tocando-o enquanto ainda estava
recuperando as forças.
— Você prometeu ser muito devasso esta noite.
Ela o encarou com um brilho indecente no olhar. Sim, ele seria o mais
despudorado dos maridos e Elizabeth estava pronta para se tornar a mais
corrompida das esposas.
PRÓLOGO

NOVA IORQUE, 1892


A NOITE ERA ESCURA EM N OVA I ORQUE . A S PEDRAS DAS RUAS ESTAVAM
úmidas pela chuva que caía fina e mantinha as pessoas dentro de casa. De
dentro de uma habitação precária, com pouca iluminação, ouvia-se os gritos
de uma mulher.
— Força. A senhora precisa fazer força.
Os comandos vinham da parteira que lutava para colocar uma criança no
mundo. A gravidez era de risco e o bebê não estava na hora de vir. Era muito
cedo, tinha-se certeza de que ele não sobreviveria. Mesmo assim, ele
precisava nascer.
— Eu não aguento mais.
— Se não fizer força, senhora, vai morrer parindo. Seu filho não deve ter
chances de sobreviver, mas a senhora ainda pode ter outros.
As duras palavras não impactavam mais a jovem que, sobre uma cama
simples, gritava de frustração e exaustão. Havia quatro mulheres naquele
quarto e nenhuma delas ouviu o choro de uma criança quando ela finalmente
nasceu. O bebê não tinha nem seis meses de gestação, tinha o tamanho de um
filhotinho e já nasceu sem respirar.
Enrolado em uma coberta branca, o pequeno corpo foi levado até a
jovem. Ela se encolheu na cabeceira da cama, puxando os joelhos até o peito.
Tinha acabado, mas não havia alívio algum. Virando a cabeça, ela se recusou
a segurar o filho natimorto. Naquele instante, enquanto todo o horror dos
últimos sete meses passava por sua cabeça, ela apenas conseguia pensar na
mãe.
As mulheres conversaram entre si e levaram o bebê embora.
— A senhora não quer saber se era menino ou menina? — uma delas
perguntou.
— Não me interessa — a jovem disse. — Ele está morto, mesmo.
Era melhor daquela forma. Ela nunca conseguiria conviver com aquela
criança. Se ela nascesse viva, seria o lembrete permanente da violência que a
jovem sofreu. Seria a materialização de sua burrice e imbecilidade, por ter se
iludido tão facilmente por um lobo em pele de cordeiro.
As outras saíram e o quarto ficou em um excruciante silêncio. Não havia
mais nada, nem gritos, nem dor, nem nada. O vazio no peito da jovem dama
não podia ser preenchido por nada. Ela se encolheu sobre o colchão, abraçou
os joelhos e ficou ali por muito tempo. Não comeu nem bebeu nada por um
dia inteiro, até que a fraqueza fez com que ela se entregasse à escuridão.
CAPÍTULO PRIMEIRO

O C ONDE DE C ORNWALL NÃO CONSEGUIA ACREDITAR NO QUE ESTAVA


segurando. Em suas mãos, uma carta finamente redigida, com a linda letra de
sua Bridget. Ela estava rompendo com ele.

Caro Edward,
É injusto que eu continue vinculada a nosso compromisso quando
tenho uma proposta muito mais rentável na Alemanha. O arquiduque
que deseja me desposar acrescentará muito mais ao patrimônio da
minha família e sua incomparável saúde financeira foi
definitivamente um requisito para que meu pai tomasse essa decisão
junto comigo. Espero que você não se importe por ele não sentar
para negociar os termos do nosso rompimento, porém, a viagem para
Londres seria extenuante para ele. Um advogado o procurará em
breve.
Lady Bridget.

Uma carta! Sua noiva escrevera uma maldita carta, de poucas palavras,
para dizer que não haveria mais casamento. A batida sobre a mesa de mogno
chamou a atenção de outras pessoas na casa. Lorde Isaac McFadden entrou
no escritório do irmão com uma expressão confusa de quem não entendera o
barulho. O conde era uma pessoa calma e contida quase sempre. Era difícil,
quase impossível, vê-lo perder a paciência.
— Algum problema, Ed?
— Sim. Muitos problemas. Uma tonelada deles. — O conde sacudiu o
papel que segurava, sem entregá-lo ao irmão. — Lady Bridget, minha
estimada noiva, decidiu que era uma ideia brilhante escrever-me uma carta
para romper nosso noivado!
— Romper?
Lorde Isaac foi até o bar e serviu duas doses de conhaque. Sabendo que o
humor do irmão não melhoraria logo, escolheu algo que poderia acalmá-lo,
mesmo que precariamente.
— Sim. Romper. Veja você mesmo.
O conde entregou a carta ao irmão. O papel estava amassado, mas a letra
desenhada da dama era inconfundível.
— Isso é uma afronta, Edward. — O lorde devolveu o papel ao irmão e se
sentou. — Você deveria processá-los, eles merecem ser processados.
— E tornar isso um escândalo? Céus, não. — Edward também sentou e
passou as mãos pelos cabelos loiros. Os fios estavam compridos demais, todo
ele estava desalinhado e amarrotado. Aquela era uma versão ruim de si
mesmo. Já fazia dias que não sentia interesse em se arrumar, e não era por
causa da carta. — Isaac, com o afastamento de Aiden, eu estou
sobrecarregado. Nossos negócios sobreviveram a um duque casando-se com
uma plebeia respeitável, mesmo que isso tenha custado a vida social dele,
mas não sei o quanto sobreviveriam a uma disputa minha contra minha ex-
noiva. É patético demais.
Ele desabafou para o irmão, que o ouviu com paciência. Desde que
Elizabeth, a Duquesa de Shaftesbury descobriu que estava grávida, seu
marido não fazia quase nada pelos negócios. Aiden vivia em casa com a
esposa, cuidando dela e do futuro herdeiro que estava a caminho. Talvez
fosse porque ela já havia sofrido uma perda antes, ou porque Aiden era um
boboca apaixonado.
Apaixonado. Quanta bobagem era pensar que um homem como ele
poderia se casar por amor. Edward e o amor eram bastante incompatíveis.
— E o que fará?
— Esperarei o advogado. A quebra desse contrato vai custar uma fortuna
para eles, porque Bridget também não pode suportar nenhum escândalo.
Depois que eu arrancar do pai dela todos os bens que conseguir, procurarei
outra noiva.
— Vai dar trabalho. — Lorde Isaac finalizou sua bebida. — Você levou
bastante tempo cortejando lady Bridget.
— E quem disse que vou cortejar minha próxima noiva? — O conde
bateu o copo de vidro na mesa. — Agora, eu só caso por negócios. Quero um
casamento padrão da sociedade inglesa, com o menor grau de envolvimento
pessoal possível.
O lorde encarou seu irmão por alguns segundos. Ele duvidava que
Edward estivesse falando a verdade. Naquele momento, o conde estava ferido
e se sentindo traído, sofrendo com o abandono. Claro que ele jamais admitiria
nada disso, mas lorde Isaac sabia que seu irmão, apesar de tudo, queria ser
amado.
O irmão não era como todos os outros homens que ele conhecera. Edward
fora retraído, tímido e tratado como um soldado pelo pai. Enquanto todos os
filhos tiveram amor, cuidado e carinho, Edward recebia ordens, instruções e
treinamento para assumir uma função. Isaac sentia até mesmo alívio em ser o
segundo filho. Por mais que o conde insistisse em apresentar uma carapaça
impenetrável, ele precisava ser cuidado por alguém. Amado por uma mulher.

Q UANDO O NAVIO atracou no porto de Shadwell, Aiden Trowsdale estava lá


para receber sua irmã de volta. Aquela foi uma das poucas vezes que deixou a
residência desde que sua esposa engravidou. Elizabeth estava bem, gozando
de boa saúde e feliz, mas ele temia pela segurança dela e do seu herdeiro. O
excesso de zelo provavelmente tinha a ver com o fato de sua mãe ter
enfrentado tanta dificuldade para parir crianças saudáveis, ou porque
Elizabeth tivera um abortamento antes.
Quando eram amantes e resistiam em enfrentar toda a sociedade para
viver o amor, o Duque de Shaftesbury engravidou Elizabeth. A criança não
desenvolveu. Segundo o doutor Davies, médico da família, aquilo era bem
comum de acontecer. Geralmente a mulher nem mesmo descobria que era um
abortamento, acreditando que o sangue se tratava das regras mensais.
O duque gostava de cuidar da sua esposa. Estar com Elizabeth e os
meninos, filhos do primeiro casamento dela, era a parte mais prazerosa de seu
dia, mas ele precisava sair às vezes. Ir ao Parlamento, encontrar com seus
encarregados das propriedades, visitar a fábrica que construíram em
Shadwell. Tinha decidido que não viajaria, isso não significava que podia
ficar recluso em casa.
Naquele momento, Aiden estava ansioso para reencontrar sua irmã, que
passara quase um ano inteiro nas Américas. Ele estava feliz como nunca
esteve em sua vida toda e queria que Agatha compartilhasse da sua alegria.
Tinha certeza de que ela ficaria radiante ao descobrir que teria um sobrinho.
Enquanto os passageiros desembarcavam por uma prancha de madeira, o
duque aguardava junto aos demais espectadores. Seus olhos procuravam o
brilho que acompanhava Agatha aonde ela fosse, e não encontraram. Ela
estava ali, vindo em sua direção. Portava um sorriso e vestia um tom pálido
de lilás que sempre combinou com ela. O vestido era simples, com um decote
decorado em renda e laços enfeitando a saia. Em sua cabeça, um chapéu
também rendado completava o visual que remetia Aiden ao passado, mas
tinha algo faltando.
— Aiden!
A jovem atirou-se sobre o irmão assim que o viu. O duque teve que se
reequilibrar para não cair no meio do porto. Foi um abraço apertado e
demorado, condizente com o comportamento de sua irmã, mas que apenas
confirmava as suspeitas de Aiden. Alguma coisa estava diferente nela,
mesmo que tudo parecesse o mesmo.
Seria o brilho no olhar? A ausência dele? Ou a forma como ela sorria,
sem o entusiasmo de sempre? O abraço entre eles indicava que ela se sentia
segura como há muito não sentira?
— Seja bem-vinda de volta, irmãzinha. — Ele a beijou no topo da cabeça.
— Nossa, nunca imaginei que sentiria tanta saudade de ser desafiado por
você.
— Sua esposa não está dando conta disso? — Agatha franziu a testa e
encarou o irmão. — Tenho que conversar com Elizabeth, ela não está fazendo
um bom trabalho.
Aiden explodiu em uma risada e conduziu a irmã pela multidão com uma
mão em suas costas.
— Ela está fazendo um trabalho excelente. Você vai adorar revê-la.
Temos uma surpresa.
— Uma surpresa? O que é?
— Se eu contar agora, deixa de ser surpresa.
Quando chegaram à carruagem de laca preta e ornamentos dourados,
Hodges estava guiando os cavalos. Ele cumprimentou Agatha com uma
reverência e logo Geoffrey e Granger chegaram, puxando um carrinho de
madeira com a bagagem da lady. Aiden também estranhou que ela retornasse
com menos malas do que quando partira.
A Trowsdale House ficava em uma das mais belas e ricas regiões de
Londres, muito tranquila e próxima a áreas verdes. Enquanto faziam o trajeto,
Aiden observava a irmã em seu silêncio enigmático. Agatha nunca fora
silenciosa. Ela olhava a paisagem pela janela da carruagem e suspirava,
dando a entender que sentira saudade de casa.
— Como está mamãe?
Ele fez a pergunta inconveniente porque sabia que, assim, ela despertaria
do transe.
— Igual. Quase nunca sai do quarto, não trata ninguém com o mínimo
respeito e está ainda mais azeda, culpando você por ser um filho ingrato.
— Não sei por que pensei que ela podia aprender alguma coisa com as
maldades que fez.
O duque pressionou a ponte do nariz, demonstrando sua exaustão com
aquele assunto, que foi encerrado. O silêncio permaneceu durante o restante
do trajeto. Assim que chegaram à Trowsdale House, Elizabeth estava na
entrada para recebê-los. Ela estava muito ansiosa desde o dia anterior,
falando no retorno da cunhada com muita expectativa. As duas se deram bem
desde o início e, com certeza, tinham muitas novidades para compartilhar.
Não foi difícil para Aiden notar o choque de Agatha ao ver que sua
esposa estava grávida. A beleza de Elizabeth estava realçada pela barriga
redonda e alguns quilos a mais. A roupa, que acomodava seu corpo
crescendo, não era muito elegante o suficiente para uma dama sair às ruas.
Qualquer pessoa que olhasse para ela saberia que carregava um bebê de
muitos meses, e a expressão de susto de Agatha era intrigante. Não era susto,
era pavor. Como se a gravidez a aterrorizasse.
— Agatha. — Elizabeth a abraçou assim que a dama pisou no último
degrau. — Quanta saudade! Estou tão feliz com seu retorno.
— Eu também. — A jovem, que tinha ficado pálida, sorriu. — Não
aguentava mais as Américas, mas ao menos a sociedade deles é mais livre.
— São um pouco bárbaros — Aiden criticou. Ele continuava observando
com atenção a irmã.
— Estou muito feliz também por essa surpresa.
Agatha colocou as duas mãos em concha ao redor da barriga da cunhada e
suspirou.
— Nós estamos radiantes. Apesar de os meninos apostarem que será uma
garotinha, Aiden ainda não parou de sonhar com seu herdeiro.
— As apostas estão altas. Até Edward está contra mim, ou seja, se for
menino eu ficarei rico.
— Você já é rico, meu marido. — Elizabeth deu uma risadinha.
— Então eu ficarei duplamente rico.
— Conversaremos sobre os modos americanos e apostas sobre o sexo do
bebê depois. Agora Agatha precisa descansar. — Elizabeth passou o braço
pelo ombro da cunhada e a conduziu para dentro da casa. — Seu quarto está
arrumado. Esta é sua casa.
Depois que a irmã subiu e se fechou no quarto, o duque beijou sua esposa
e disse que precisava se retirar no escritório para resolver alguns assuntos de
trabalho. Era uma desculpa para refletir um pouco sobre os breves momentos
do retorno de Agatha. Havia alguma coisa errada com ela, algo muito
diferente, que o conduzia a uma conclusão ruim. Ele precisava descobrir o
que acontecera nas Américas e era provável que tivesse que fazer perguntas
subliminares.

A CASA de jogos de Thomas Riderhood era a melhor de Londres. Se um


cavalheiro procurasse bebidas extravagantes e muita depravação, não havia
outro lugar para aonde ir. O proprietário se orgulhava de servir os melhores
uísques escoceses, o melhor conhaque e o mais respeitável Bourbon.
Também tinha os mais honestos crupiês e as mais lindas e higiênicas damas.
Era motivo de honra para Riderhood que ninguém pegasse uma doença
venérea em seu estabelecimento.
Aquele vinha sendo o lugar favorito de Edward McFadden desde que fora
abandonado pela noiva. Ele jogava até ganhar o suficiente, ou perdia até
esvaziar os bolsos. Bebia até perder parte dos sentidos e, de vez em quando,
se servia das prostitutas. Muitas das vezes ele pagava para reclamar delas,
para dizer que mulheres eram cobras venenosas e ofender o gênero feminino.
Elas ouviam sem questionar. Ele pagava mais para que elas questionassem,
para que brigassem com ele e ele pudesse brigar com elas.
Naquela noite, Edward já tinha bebido bastante e perdido libras demais
quando fora resgatado por lorde Isaac. O irmão o interceptou na mesa de
carteado e cancelou a aposta que ele acabara de fazer.
— Você não pode me interromper, Isaac — Edward protestou. —
Riderhood vai chutar sua bunda daqui.
— Quem você acha que mandou me chamar?
O jovem lorde ergueu o irmão, colocando-se debaixo do ombro dele, e o
afastou da mesa.
— Riderhood é um idiota. Ele deveria querer que eu perdesse minhas
tripas nessas mesas.
— Até um idiota tem moral.
O proprietário da casa de jogos interpelou os homens. Era visível a
dificuldade que Isaac, mais magro e jovem do que Edward, tinha para
carregar o irmão.
— Pode levá-lo para um dos quartos, se quiser — Riderhood ofereceu. —
Garanto que ninguém irá importuná-lo até amanhã.
— Agradeço a oferta, Sr. Riderhood, mas consigo levá-lo para casa.
Edward precisa se recompor, essas não são atitudes de homens na posição
dele.
— Concordo, mas aqui todos perdem a linha. Seu irmão vem sofrendo de
coração partido, não será fácil remendá-lo.
— Não entendo os motivos de tanto sofrimento. — Lorde Isaac apoiou-se
em uma pilastra. — Meu irmão nem mesmo amava Bridget.
— Orgulho ferido, coração partido, quem se importa? — Edward
esbravejou, com uma voz embriagada. — Aquela vagabunda me humilhou e
nem mesmo posso desafiá-la para um duelo.
Lorde Isaac e Riderhood se olharam. A comunicação muda sugeriu que
eles entendiam que não era possível argumentar com o homem embriagado.
Aquele era o comportamento deplorável do conde desde a ruptura do
noivado, e era o irmão que garantia que os escândalos fossem abafados.
Se a sociedade soubesse, não faria muita diferença. Homens raramente
eram julgados por seus deslizes de conduta, mas as fofocas dificultariam que
Edward conseguisse uma esposa, além de aumentarem a humilhação que ele
já vinha sofrendo. A melhor coisa era esconder a bebedeira e depravação
moral do conde e fingir que nada acontecia.
— Sabe quem retornou para Londres, Ed? — Lorde Isaac tentou puxar
uma conversa racional com o irmão para impedi-lo de adormecer. Estavam
dentro da carruagem, a caminho de McFadden Gardens.
— Não faço ideia, nem me interessa.
— Creio que interesse, sim. Lady Agatha Trowsdale.
O conde ergueu o olhar e encarou o irmão. A expressão vencedora de
lorde Isaac era insuportável. Aquele sempre fora um assunto que atiçara a
atenção de Edward, mesmo que ele negasse qualquer interesse na jovem
Trowsdale.
— Ela voltou quando? — Edward ajeitou-se no banco acolchoado.
— Há uma semana, mas está ainda descansando da exaustão da viagem.
Recebeu poucas visitas e o duque vai organizar um jantar íntimo de boas-
vindas.
— Como sabe tudo isso?
— Eu costumo conversar com Wilhelmina. — Lorde Isaac riu. — E eu
ouço a nossa irmã, ao contrário de outros.
Sem falar mais nada, o conde continuou empertigado em seu assento. O
assunto do retorno da irmã mais nova de seu melhor amigo o afetara de
alguma forma, lorde Isaac só não sabia o que aquilo significava. Seria ótimo
se servisse para colocar o irmão na linha.

— E U NÃO QUERO SER anfitriã de um baile.


Agatha reclamou à mesa do café da manhã. Ela estava sentada com o
irmão e Elizabeth, e fora comunicada que Aiden planejava dar um jantar para
celebrar o seu retorno à casa.
— Não é um baile, Agatha. É um jantar íntimo, para poucos convidados.
Você retornou há uma semana, não saiu de casa, mal deixou seu quarto.
Precisamos te reapresentar à sociedade.
A jovem bufou, demonstrando sua insatisfação. O duque não entendia a
irritação da lady. A irmã sempre adorou bailes, festas e eventos.
— A viagem foi exaustiva.
— E agora você já descansou o suficiente. Está na hora de aparecer outra
vez, Agatha, ou você logo ficará uma solteirona. Ninguém vai querer casar-se
com você se continuar agindo dessa forma.
Ela estava prestes a retrucar quando Elizabeth percebeu que deveria
intervir. A questão do casamento de Agatha sempre fora um ponto de
discórdia entre os irmãos. A ida para as Américas não agradou Aiden de todo.
Ele temia que ela se afastasse demais da sociedade e perdesse os bons
pretendentes. Naquele momento, qualquer pretendente já parecia adequado à
dama que insistia em não cumprir regras.
— Agatha, veja pelo lado positivo. Você poderá encontrar suas amigas,
as irmãs Westphallen, e até mesmo alguns jovens cavalheiros. Se preferir,
escolha os convidados, faça a sua lista. Mas concordo com seu irmão, um
jantar de boas-vindas é necessário, depois que você passou quase um ano nas
colônias.
— E você deve participar de eventos sociais estando assim, tão grávida?
Aquele era um ponto relevante. Mulheres grávidas não costumavam
comparecer aos eventos mais elegantes da sociedade. Ainda mais Elizabeth,
que estava de quase seis meses e se recusava a usar espartilho. Ela alegava
que poderia prejudicar o bebê ser apertado daquela forma e que nunca usara a
peça nos dois outros filhos.
— Claro que não. Por isso o jantar será oferecido por nós e contará
apenas com amigos íntimos.
— Não tenho como me livrar, certo? — a jovem cedeu, batendo os
talheres no prato de porcelana.
— Não — o duque decidiu. — É bom ver que o tempo fora não afetou
seus excelentes modos.
Blasfemando algo em tom de voz ininteligível, Agatha levantou-se e saiu
da mesa sem pedir licença. Ela era bastante educada, mas não estava
interessada em fingir comportamento. O período nas Américas foi horrível,
ela viveu os piores dias de sua vida e só queria se esquecer de tudo. Não
podia. Não conseguia. Eventos assombrosos se repetiam em sua mente toda
vez que tentava dormir, e ela não podia contar a ninguém. Não podia
confidenciar a uma amiga, nem conversar com sua cunhada tão solícita.
Elizabeth podia compreendê-la, mas Agatha tinha vergonha demais para
revelar seus segredos.
Ela não queria um jantar, nem um baile, nem nada. Queria ficar trancada
no quarto por meses até a dor passar, mas não teria como se livrar das
investidas do irmão, a não ser que contasse a verdade. Era melhor continuar
fingindo, ser mal-educada, afastar todo e qualquer possível pretendente e, se
desse sorte, aceitar ser enviada para um convento.
CAPÍTULO SEGUNDO

O CONVITE PARA UM JANTAR NA RESIDÊNCIA DO D UQUE DE S HAFTESBURY ERA


um convite recusável para a maioria da aristocracia. Depois que ele se casou
com a governanta, o círculo social do duque se restringia a poucos amigos
que o apoiaram e os negociantes burgueses. Os nobres costumavam rejeitar
os convites antes mesmo de recebê-los.
Não fora surpresa para Agatha ver que os convidados que confirmaram
presença eram os mesmos de sempre. A família do Visconde de Whitby, as
famílias dos negociantes que Aiden conhecia e a família do Conde de
Cornwall. Além de lady Anne Brighton. Compareceram em torno de
cinquenta pessoas, no máximo, porém, representava gente demais.
Olhando-se na frente do espelho, ela estava infeliz. Os cabelos escuros
estavam presos em camadas no alto da cabeça, ornamentados com laços e
flores. O vestido lavanda era discreto demais, mas fora o único que aceitara
usar. Sua beleza não tinha se alterado, mesmo tendo engordado alguns quilos.
Como era muito magricela antes, Agatha apenas se tornara mais curvilínea e
feminina. Ela estava mais velha, mais cansada e com problemas demais.
Batidas à porta indicaram que ela precisava descer. Os convidados já
tinham começado a chegar e ela, a anfitriã, não estava lá para recebê-los.
Agatha se lembrava de quando Aiden fizera a mesma coisa, um tempo atrás,
e a colocara em situação de precisar pedir ajuda a Edward McFadden. Não
parecia injusto que ela lhe desse o troco.
Edward. Ela estivera evitando pensar no conde, assim como em quase
todos os seus conhecidos. Não queria sentir muita saudade deles enquanto
viajava, mas a memória do episódio ocorrido no último verão em Thanet Bay
fez com que a imagem dele tomasse seus pensamentos. Como estaria
Edward? Já casado, provavelmente. Não, ela teria sabido se lady Bridget já
fosse a nova condessa. O que estaria postergando o casamento deles? Um
cortejo muito longo não era prudente para um homem na idade do conde, ele
precisava de herdeiros.
— Milady, o seu irmão pediu que eu levasse a senhora — John insistiu,
do outro lado da porta. — Aliás, ele deu ordens para carregá-la nos ombros,
se fosse preciso.
— Aiden anda muito dramático. — A lady apareceu vestida e preparada
para o confronto social. — Como estão as coisas lá embaixo, John?
— Tranquilas. Vossa Graça anda tão feliz que tudo nesta casa tem sido
tranquilo, alegre e empolgante. Diria que há entusiasmo demais no duque e
ele precisa extravasá-lo.
Agatha deu uma risadinha e se encaminhou para uma entrada triunfal. As
escadas do segundo andar davam no hall principal e ela se deparou com
praticamente todos os convidados ali, conversando enquanto bebericavam
champanhe. Estampou um sorriso na face e desceu degrau por degrau,
segurando a saia com uma das mãos e acenando com outra.
Seu peito apertou. Ela queria ver todas aquelas pessoas, ela gostava delas.
Eram amigos e amigas que ela sempre respeitou. Ao mesmo tempo, o pânico
de que alguém percebesse que havia algo errado com ela se intensificou. Era
como se as marcas que as Américas deixaram nela pudessem ser vistas por
qualquer espectador mais minucioso.
Ela estava pronta para manter aquele sorriso falso pela noite inteira, mas
sua expressão de alegria murchou quando ela viu o inconveniente amigo do
irmão. Sempre petulante, tradicional em excesso e acostumado a tirá-la do
sério toda vez que se encontravam, o Conde de Cornwall estava… lindo.
Não. Agatha não o achava lindo de verdade. Eles se conheciam desde que ela
era um bebê, pensar em Edward como um homem sensual e sedutor era um
pecado. Deveria ser. Ele era um lindo no estilo anjos das pinturas, porém,
loiro. Se bem que os anjos das pinturas eram gordinhos e fofinhos, enquanto
o conde tinha aquela aparência máscula. O tronco largo e os braços fortes,
cujos músculos ela já tinha visto diversas vezes enquanto ele e o irmão
travavam algumas disputas no galpão. Era alto, tinha pernas longas e…
Agatha constatou que Edward estava mais para o diabo encarnado do que
para um anjo. Ela não entendeu a própria reação ao prestar tanta atenção nele.
Você sentiu saudade dele, menina tola. Uma voz gritou dentro dela e foi
silenciada. Claro que sentira saudade de Edward, assim como sentira do gato
que fora adotado pelos filhos de Elizabeth.
— Milady. — Ele deu dois passos na direção dela e só então Agatha
percebeu que caminhara direto para ele. — Que bom revê-la. Seja bem-vinda
ao lar.
Edward segurou a mão enluvada e beijou os nós dos dedos dela. Ele
estava com a barba por fazer e ela pôde sentir os fios lhe arranhando a pele,
mesmo coberta. A jovem sentiu um tremor lhe percorrer a espinha e ela
precisava falar alguma coisa desdenhosa para irritá-lo, como sempre fazia.
Aquilo reequilibraria seus sentimentos.
— Precisei voltar, as Américas não estavam preparadas para me receber.
— Certamente que não.
Ele sorriu e não devolveu nenhuma provocação. Ao contrário, ofereceu o
braço para conduzi-la até o salão do brunch, em uma gentileza muda.
— Muito cavalheirismo de sua parte, milorde, mas preciso cumprimentar
meus outros convidados.
Com uma reverência, Agatha se afastou do conde sem entender nada do
que tinha acontecido.

O BRUNCH ESTAVA DELICIOSO . O jantar só seria servido depois de onze horas


da noite, como era o esperado. No intervalo, os homens bebiam e falavam de
coisas masculinas e as mulheres fofocavam sobre a sociedade. Lady
Madeline estava bem mais afiada do que Agatha se recordava. Ela nem
mesmo deu importância ao motivo do evento, que era uma recepção para a
amiga. Não parou de falar sobre as outras damas e de alfinetá-las. Agatha
suspeitava que aquele comportamento era uma forma de defesa. Ela passou a
acreditar nisso depois de sua viagem. As pessoas feridas ou que não
conseguem lidar com alguns aspectos da vida tendiam a mentir e a tirar o
foco delas mesmas, mas lady Madeline ultrapassava vários limites.
Agatha não estava muito tolerante. Boa parte da sua amabilidade tinha se
perdido em algum momento desde que pegou o navio para ir às Américas.
Ela não conseguiria fingir por muito tempo estar interessada na conversa
desagradável da amiga. Resistiu o quanto pôde até ser educado inventar uma
desculpa qualquer e se afastar.
Depois de se servir de mais ponche, Agatha foi na direção dos jardins. A
Trowsdale House era circundada por um belíssimo jardim com flores
coloridas, treliças com trepadeiras, bancos de pedra e estátuas que foram
trazidas do continente pelo pai. Algumas áreas mais afastadas, próximas do
muro coberto de plantas, eram usadas pelos amantes para se esconderem.
Naquele evento não havia casais apaixonados, então ela podia se refugiar por
ali.
Enquanto caminhava, notou que tinha bebido um pouco mais de ponche
que deveria. Sentiu a boca dormente e tropeçou duas vezes pelo caminho.
Não era a primeira vez que ela bebia além da conta. Uma dama nunca
abusava do álcool. Uma dama sequer bebia vinho puro, só dissolvido em
água, mas, nas Américas, os costumes eram diferentes. Mais livres. Lá as
damas bebiam com mais frequência, e bebidas mais fortes. Ela já tinha
experimentado o quanto aquilo poderia ser ruim.
Agatha ficou ali no jardim, sentada em um banco, por algum tempo.
Apoiou o rosto nas mãos e deixou a mente esvaziar, ainda assim, os
pensamentos de sempre insistiam em reaparecer. Assombrada por pesadelos
mesmo estando acordada, tudo que Agatha queria era um momento de paz.
Ela se assustou quando alguma coisa a tocou no ombro e quase desabou no
chão.
— Calma, milady. — A voz grave e insuportável do Conde de Cornwall
se fez ouvir no quase silêncio da noite. — Estou acostumado a causar esse
efeito das mulheres, mas geralmente elas caem nos meus braços.
Edward sentou-se no banco de pedra como se sua presença fosse bem-
vinda. Passando a mão para ajeitar as camadas das saias, Agatha voltou se
acomodar e enfrentou o perfil do homem que se atrevia a perturbá-la.
— A sua certeza sobre suas habilidades como amante beira à arrogância.
— Tenho várias testemunhas que atestariam em minha defesa. — Ele riu
e bebeu parte do líquido âmbar que estava em suas mãos.
— Sua noiva, inclusive?
Agatha se arrependeu do que disse no instante seguinte a dizê-lo. Ela
soube que o conde havia sido abandonado pela noiva. A história lhe foi
contada por lady Madeline com detalhes, provavelmente exagerados, porém,
ela tinha certeza de que o episódio ferira o ego masculino de Edward.
— Você agora passou dos limites, Agatha. — Ele a encarou com
ferocidade. A lady nunca vira tanta intensidade nos olhos do conde. O azul
era dominado por mágoa e raiva, indicando que o assunto era mais incômodo
do que ela considerava. Será que Edward amava lady Bridget? Poderia ele
estar sofrendo com um coração partido? A perspectiva fez com que ela
sentisse alguma simpatia pelo conde, mesmo que ela desejasse provocá-lo e
irritá-lo o tempo todo. — Eu posso ter muitos defeitos, mas eu jamais
defloraria minha noiva antes de nos casarmos.
— Desculpe-me. — Ela suspirou e olhou para o céu estrelado. A cidade
era nublada e cinzenta, dificultando a compreensão das constelações. — Mas
vocês iam se casar mesmo, imaginei que…
— Como pode ver, não nos casamos. — O conde virou o restante do
líquido que estava no seu copo. — E desde quando uma dama fala sobre
esses assuntos com um cavalheiro? Não acredito que estamos discutindo isso.
Agatha deu uma risadinha. O espartilho estava apertado demais e alguma
coisa coçava dentro de suas roupas. Não estava frio, mas ela sentia mais calor
do que era admissível. Ela olhou novamente para o conde e fitou seu perfil
por alguns instantes. O ponche estava mesmo muito forte ou ela não perderia
seu tempo admirando aquela criatura desprezível.
— Penso que milorde já deveria saber que não sou uma dama
convencional. Eu gosto de conversar sobre qualquer coisa com os
cavalheiros. Provavelmente, esse é um dos motivos pelos quais vocês homens
fogem de mim. Sentem-se intimidados.
O breve silêncio que sucedeu à afirmação sagaz e arrogante indicou que
ela havia vencido a discussão. Entre eles sempre havia uma disputa, um
combate para decidir quem tinha o melhor argumento. Ou quem faria o outro
desistir primeiro. Agatha não se satisfez em ganhar. Naquele momento, ser
melhor ou mais irritante do que o conde não lhe interessava. Ela ainda estava
exausta e se sentiu frágil sendo observada pelo homem.
Seria melhor que ele fosse embora e a deixasse ali. Que desistisse dela,
como os outros faziam. Mas Agatha se lembrou de que, apesar de tudo,
Edward nunca desistiu dela. Que ele sempre tentou fazer com que ela se
sentisse melhor ou embarcou em seus planos mais absurdos. Claro que ele
não a deixaria ali, e era certo que ele notaria a lágrima que escapou da
barreira de contenção e molhou as bochechas dela.

T ODAS AS FORÇAS da natureza gritavam que ele não deveria fazer aquilo. Vá
embora daí, Edward McFadden. Não adianta discutir com ela, você sempre
perde. Apenas volte para os negócios. Ele não ouviu as vozes que tentavam
afastá-lo. A estranha sensação que teve ao vê-la descer as escadas lhe
surpreendeu. Meses atrás, Edward se lembrava de ter acompanhado o amigo
duque até o porto para despedir-se da irmã mais nova. Uma jovem
impertinente que deveria ter sido devolvida pelos americanos em poucas
semanas. Ela se foi como uma garota magra demais, uma pilha de ossos
ambulantes, ornamentada com laços e flores em excesso. Ela voltou depois
de ter ficado tempo demais no outro continente.
Edward não sentira falta dela até vê-la outra vez. Agatha não era mais
uma menina aborrecida que insistia em descumprir todas as regras da
sociedade. Ela tinha se tornado uma mulher. Estava encorpada, com os olhos
mais vibrantes e os cabelos mais brilhantes. Não usava flores ou laços, mas a
simplicidade da seda e do veludo com cores sóbrias que a deixavam com um
aspecto maduro.
O conde não deveria enxergar a irmã do seu melhor amigo como uma
mulher. Ela era, no máximo, uma dama que ele respeitava e por cuja honra
zelava. Da mesma forma que Aiden cuidaria de Wilhelmina se fosse preciso,
Edward deveria ser o porto seguro de Agatha.
O que ele estava fazendo ali, então? Sentado com ela em uma parte
remota do jardim, tocando-a na face com uma mão sem luvas?
— Você está chorando, Agatha? — Ele tinha que saber. Mesmo que ela
tentasse manter a altivez de sempre, a luz peculiar que brilhava dentro de
Agatha estava apagada. Ela estava mais linda, uma mulher de curvas e formas
desejáveis, mas seu interior parecia vazio. — O que houve nessa viagem que
te deixou assim?
Quando ela se virou para ele, havia confusão e fúria nos olhos verdes. Ao
mesmo tempo que ela parecia ansiar por ser protegida e entendida, ela o
estava mandando embora. Vá, Edward. A voz ignorada continuava dando
ordens que não seriam cumpridas.
— Nada que seja da conta de ninguém.
— Você era tão intrigante, sempre desafiadora, nunca media palavras
para falar com as pessoas. Isso ainda está aqui em você, mas é como se você
estivesse interpretando um papel. Eu olho para você e vejo um pedido de
ajuda.
— Não seja ridículo, milorde.
Ela quis virar o rosto, ele não deixou. Os dedos dele não pararam de tocá-
la. Ao contrário, Edward acariciou-a com o polegar e permitiu que sua mão
se acomodasse de forma a segurar a face de Agatha nas mãos. Ela não o
repeliu, permaneceu encarando-o com ferocidade e… ele podia apostar que
era desejo.
Seus olhos vagaram para o pescoço dela, descendo para o colo despido,
onde repousava uma gargantilha de diamantes. A renda do vestido fazia
sombra sobre o decote, que subia e descia com a respiração acelerada dela.
Edward voltou a encará-la e seu corpo assumiu uma proatividade que ignorou
a razão. Sem perceber como, ele se pegou baixando a cabeça e levando sua
boca até a dela.
Não que ele pretendesse beijar alguém. Menos ainda, ele não pretendia
beijar Agatha. A visão da boca dela, rosada como um morango e entreaberta
na busca por ar, fizeram com que todo o uísque que bebera durante o dia
assumisse o controle. Ela hesitou por dois segundos e agarrou a lapela do
casaco dele, puxando-o para mais perto. O beijo, que iniciou como um toque
de lábios, ficou intenso. Edward pressionou a boca contra a dela, forçou sua
língua até penetrá-la e surpreendeu-se ao perceber que ela era mais experiente
do que sua aparente ingenuidade sugeria.
Os corpos se aproximaram. As camadas de saias da lady estavam por
sobre as pernas dele, o joelho dela perigosamente próximo de uma zona
muito sensível. Edward abafou um gemido e enfiou os dedos por entre os
cabelos dela, desalinhando-os. Nenhum dos dois estava nas posses de suas
faculdades mentais plenas. Entregues ao momento, não perceberam as vozes
que aumentavam a cada segundo. Também não ouviram os passos de
calçados no assoalho de madeira, depois de pedra, indicando que o jardim era
ocupado por outras pessoas que não deveriam pegá-los naquela situação.
— Oh.
Um ganido agudo despertou Edward do transe e ele levantou a cabeça
para ver de onde ele vinha. Seus olhos azuis capturaram as figuras
assombradas de lady Madeline, lady Sarah e lorde Brandon com sua esposa.
Em um impulso, ele puxou Agatha contra seu peito e ela enfiou a face por
dentro do casaco dele.
— Parece que interrompemos algo importante — lorde Brandon
pigarreou e comentou, fazendo com que a esposa virasse para o outro lado.
— Vamos ver se há outro lugar da casa em que possamos ver as constelações,
senhoritas.
As quatro pessoas saíram do jardim da mesma forma que entraram, sem
dizer mais nada. O coração de Edward estava disparado e ele mal conseguia
respirar. Aquela era uma situação fora do seu controle. Depois que a noiva
decidira terminar com ele por uma maldita carta, nada mais esteve em seu
controle. O olhar que lady Madeline lhe dedicou enquanto saía indicava que
ela não mediria esforços para fazer a fofoca circular o mais rápido que
pudesse.
CAPÍTULO TERCEIRO

O BURBURINHO DE VOZES JÁ ESTAVA DEIXANDO A GATHA COM DOR DE CABEÇA .


O excesso de ponche cobrou um preço alto e ela não sabia como ia se livrar
daquele escândalo. A resposta era simples, ela não ia. As fofocas eram como
labaredas de fogo em um monte de palha, se alastravam com uma velocidade
incontrolável. Logo, toda a festa sabia que ela estava aos beijos com o Conde
de Cornwall no jardim.
Aos beijos. Com o conde. Com Edward.
Ela não podia acreditar em tanta estupidez. Fora por causa de uma
situação como aquela que ela viveu seus piores momentos em Nova Iorque.
Álcool, um homem oportunista e uma decisão equivocada.
Edward não era um aproveitador, ela sabia. O que houve nos jardins era
diferente do que acontecera em Nova Iorque, muitos meses atrás. Mesmo
assim, não era menos grave. Sentada em um canapé, na sala privativa de
Aiden, ela aguardava uma conversa dos homens dentro do escritório. De vez
em quando, ouvia um ruído de madeira batendo.
— Beba isso.
Elizabeth sentou-se ao lado dela e entregou uma xícara com um líquido
esverdeado. Agatha não perguntou o que era, apenas obedeceu. A cunhada
sempre fora uma pessoa sensata e provavelmente interviria a favor dela,
qualquer que fosse a decisão do duque.
— O que acha que eles estão conversando?
— Eles não estão conversando. — Elizabeth suspirou e deixou seu olhar
se fixar na porta. — Eles estão se estranhando. Aiden está brigando e batendo
na mesa, Edward está se desculpando e eles terminarão tomando a decisão
correta.
— Como sabe que será a decisão correta? — Agatha insistiu.
— Minha querida. — Elizabeth passou a mão pela face agoniada da lady
e a puxou para um abraço. — Seu irmão é um pouco devagar, mas ele acaba
sempre tomando as melhores decisões. Os homens não percebem tudo na
nossa velocidade, porém, eu confio que Aiden é sábio.
Enquanto as mulheres falavam, a porta se abriu. O conde apareceu com
uma aparência desgrenhada que não afetava em nada a sua beleza, ao
contrário, deixava-o ainda mais sedutor. O que estava acontecendo com
Agatha? Ela nunca tinha sequer prestado atenção o suficiente nos atributos
físicos de Edward. Desde quando os cabelos um pouco compridos demais,
reluzindo em tons de âmbar e dourado, os olhos azuis penetrantes e a boca
vermelha e carnuda chamavam a sua atenção?
— O duque pediu para que entre, milady — ele se dirigiu à Agatha,
somente.
— Vamos juntas. — Elizabeth segurou a mão dela e sorriu, assegurando
que tudo ia ficar bem. Agatha não compreendia se o conceito dela do que era
bem era o mesmo de seu irmão. — E não podemos nos demorar porque o
jantar logo precisa ser servido.
— Para o inferno com o jantar — Aiden esbravejou, assim que elas
entraram e se sentaram em um sofá. Agatha sentia o coração bater rápido
demais e seu estômago borbulhava. Estava ansiosa, mesmo que já suspeitasse
o que tinha sido decidido. — Se bem que precisamos dele para fazer o
anúncio.
— Que anúncio, meu marido? — Elizabeth perguntou, sem tirar o sorriso
dos lábios. Agatha gostaria de ser mais conciliadora como a cunhada. Suas
explosões impulsivas quase sempre a colocavam em problemas.
— Do casamento desses dois, é claro.
Agatha sentiu o ar ser arrancado de seus pulmões. Ficou paralisada por
alguns instantes sem conseguir mexer um músculo. Seus olhos vagaram até
os do conde e ele já olhava para ela. Intenso, amargo, confuso. Ele era uma
mistura de emoções. As mãos estavam fechadas em punhos.
Elizabeth levantou-se e se colocou atrás do marido. Com as duas mãos,
massageou os ombros do duque.
— Aiden, meu amor, essa foi uma decisão sua ou de Edward? — ela
sussurrou no ouvido do marido.
— Minha — Edward respondeu, mesmo que a pergunta não lhe tenha
sido dirigida. Ele continuava olhando para Agatha e mais ninguém na sala. —
Posso ter bebido mais do que deveria e ter feito algo imperdoável. A única
forma de reparar o dano é essa.
— Se ele não tivesse tomado essa decisão conscientemente, eu a teria
enfiado goela abaixo — Aiden rosnou. Ele estava tenso.
— Eu não quero me casar — Agatha ousou contestá-los. — Não é justo
que seja obrigada a me casar com alguém, apenas porque…
— Apenas? — Aiden se levantou da cadeira. Elizabeth segurou-o pelo
braço e fez com que ele se sentasse outra vez. — Agatha, o que vocês dois
fizeram não pode ser tratado como apenas! Lady Madeline apressou-se em
contar para todos os convidados, que cuidarão de contar para toda Londres,
que você estava em um beijo escandaloso com o conde em meus jardins.
Vocês dois não têm nenhuma vergonha? E agora você me diz que não quer
se casar?
— Você se casou com uma plebeia porque a amava — Agatha
esbravejou, levantando-se do sofá. Por instinto, o conde tentou se colocar
entre ela e o irmão. Um braço impediu que ela avançasse mais. — Eu fiquei
do seu lado quando todos achavam que estava louco. Você pôde se casar por
amor, Aiden, e quer me obrigar a um casamento arranjado? Eu nem gosto de
Edward!
— Então por que diabos estava aos beijos com ele na minha casa,
Agatha?
Aquela pergunta a silenciou. Não fora a fúria do irmão, que precisou ser
contido pela esposa grávida. Não fora a audácia dele em exigir que ela se
casasse com um homem que ela não escolheu. Agatha não conseguiu replicar
porque ela não sabia a resposta. Ela não entendia por que havia beijado, ou se
deixado beijar, por um homem que ela nunca sequer considerou interessante.
Edward era seu amigo. Era irritante, como seu irmão. Ele não podia ser o seu
marido.
Ela olhou para ele por uma fração de segundo e notou que ele a engolia
com o olhar. Não entendeu o que aquilo significava, ou se significava
realmente alguma coisa. Edward também nunca teve para com ela nenhuma
atitude que sugerisse que ele a visse diferente de uma garotinha.
— Meu amor — Elizabeth sussurrou no ouvido do marido. — Posso
conversar com Agatha um instante? Em particular?
Aiden virou-se para a esposa e acariciou a redonda barriga que carregava
seu filho. Ou filha.
— Se for para colocar qualquer juízo na cabeça dela, faça-me esse favor.
A duquesa sorriu e beijou o marido de modo rápido. A excessiva
demonstração de afeto entre eles era motivo de críticas e comentários
jocosos, mas Aiden não ligava. Ele já tinha rompido com tudo quando
decidira se casar com uma plebeia viúva, uma mulher sem linhagem.
Demonstrar que estava apaixonado por sua esposa e que pretendia ser fiel a
ela era uma coisa bastante fora de moda. Um comportamento burguês que ele
estava feliz em assumir.
Segurando na mão de Agatha, Elizabeth conduzi-a para fora do escritório.
Antes, passou pelo conde e o encarou com olhos semicerrados. A jovem
dama não conseguiu evitar ouvir o que ela sussurrou.
— Espero que saiba o que está fazendo.

F ECHADA no salão de chá com a cunhada, Agatha rodava em círculos pelo


lugar. Talvez ficasse tonta, mas qualquer coisa era melhor do que a sensação
de não ter saída. De estar em uma posição de não poder escolher.
— Espero que essa conversa não seja para me convencer a aceitar a
absurda proposta de me casar com Edward.
— Não pretendo convencê-la. — Elizabeth serviu uma xícara de chá. O
bule ainda estava quente, as damas tinham acabado de sair. O jantar seria
servido em quinze minutos e elas precisavam se apressar. — Sei que fará a
coisa certa. Pretendo apresentar a você as opções.
— Eu tenho opções? Meu irmão deu a entender que não.
— Seu irmão é… seu irmão. Um duque. Ele acredita que tem uma
autoridade infinita. Mas ele tem muita sabedoria, Agatha. — Elizabeth
sentou-se no sofá e indicou que a jovem dama deveria sentar-se ao lado dela.
— Você e Edward… quer me explicar?
— Não. Eu não sei o que houve.
— Até uma virgem como você sabe o que é um beijo.
Agatha engoliu e sentiu a boca seca. Aceitou o chá que lhe fora oferecido
e sentou. Claro que ela sabia o que era um beijo. Sobre a virgindade… era
melhor que ninguém soubesse dos segredos sobre o que acontecera nas
Américas.
— Sei que nos beijamos. Não entendo como. Nem por quê.
— Tenho uma teoria, mas prefiro esperar para falar sobre ela. De
qualquer forma, minha querida, você foi comprometida. Lady Madeline é
uma jovem cheia de rancor que arruinou a própria reputação. Ela não vai
parar enquanto não fizer o mesmo com você. Casar-se com o conde é a
melhor solução, ou você nunca mais se casará com nenhum homem
respeitável.
— Não quero mesmo casar.
— Claro que quer. — Elizabeth passou as mãos pelos cabelos da lady,
ajeitando alguns cachos caídos. — E tenho certeza de que o conde será um
marido muito bom. Ele é atencioso, zeloso, respeitável, rico e tem uma
aparência ótima.
O estômago de Agatha doeu e ela ficou sem saber se era fome ou a
simples menção aos dotes físicos de Edward.
— Nada disso importa. De todas as pessoas, você e Aiden deveriam
entender que…
— Eu entendo. — Elizabeth não a deixou continuar. — Por isso disse que
você tem escolha. Se disser que não se casará com Edward, eu convencerei
seu irmão. Mas você arcará com as consequências disso. Entende quais são?
Reputação arruinada. Jamais conseguir um marido decente. Ser excluída
dos círculos sociais aos quais estava acostumada. Agatha tinha uma vaga
noção do quanto sofria uma dama da sociedade que fora comprometida por
um homem. Já Edward não sofreria qualquer censura. Aquilo era injusto.
Ao mesmo tempo que ela tinha plena certeza de que não queria se casar
com o conde, considerou se a oportunidade não fora uma interferência do
destino para lhe oferecer algum alívio. Ela poderia colocar regras rígidas de
contato físico com o marido e acabaria com uma posição confortável. Edward
teria as amantes que quisesse, ela teria paz e manteria sua vida social. Ele
conseguiria uma esposa de estirpe, ela conseguiria um marido de
conveniência.
Tudo dependeria de ele não descobrir que ela já fora violada. Edward
descobriria quando ela não sangrasse na noite de núpcias. O que Agatha
poderia fazer para evitar uma anulação e uma vergonha ainda maior, ela não
sabia, ainda, mas uma ideia lhe ocorreria. Naquele momento, aceitar uma
proposta de casamento seria vantajoso. Ela enrolaria com um noivado longo e
talvez eles até rompessem, quando o conde entendesse que tinha feito
bobagem em fazer aquela proposta.
— Tudo bem. Eu aceitarei. Vamos avisar aos homens que nosso noivado
será anunciado esta noite e que o beijo fora apenas um episódio de excessiva
demonstração de carinho. Edward estava com muita saudade e, em razão do
meu retorno, não se conteve.
Elizabeth sorriu e se levantou, com alguma dificuldade. A barriga
pesando e dificultando-a a encontrar seu centro. Quando abriram a porta,
Edward McFadden estava ali, esperando. Ele deu o braço para que a duquesa
se apoiasse.
— Temos um noivado a anunciar — Agatha rosnou.
— Certo. Seu irmão fará isso. Ele está levando os convidados para a sala
de jantar, eu vim buscá-las.
O conde ofereceu o braço a ela também. Agatha hesitou, mas segurou-o
na dobra do cotovelo. Ele estava quente e era macio. Mesmo com a luva e as
camadas de tecido que o cobriam, ela sentia a tensão dos músculos do
antebraço dele. Firmes. Ela se lembrava que o corpo de Edward era todo
definido por exercícios físicos, mas era a primeira vez que tocá-lo despertava
nela qualquer coisa.
Deus me ajude, ela pensou. Sabia que já cometera vários pecados em
nome de seu coração, talvez aquele fosse seu castigo.

D EPOIS QUE TODOS se sentaram à grande mesa de jantar e foram servidos de


bebidas e da sopa de entrada, o duque pigarreou e chamou a atenção dos
convidados. Não havia nenhuma severidade em sua expressão, ele parecia
natural e relaxado. Edward olhou ao redor para confirmar que ninguém o
observava, mas todos prestavam excessiva atenção em Agatha. Ela remexia a
sopa com a colher, envergonhada.
Aquilo causou nele a vontade de gritar. Ninguém naquela mesa tinha uma
reputação exemplar. Eram todos excluídos da grande sociedade por algum
motivo. Lorde Brandon, casado com a camareira. Lady Madeline, que havia
tentado seduzir o duque à força. O Marquês de Brisbane, que já tinha
desperdiçado toda a fortuna da família e fora ameaçado de deserdação pelo
pai porque um escândalo revelara que ele mantinha um homem como amante.
Eles ousavam julgá-la?
— Meus amigos — o duque disse e todos prestaram atenção. — Minha
satisfação de tê-los em minha casa, hoje, para receber minha irmã depois de
uma longa viagem às Américas, é enorme. Maior ainda porque tenho um
anúncio a fazer.
Começou um burburinho que fez Agatha se encolher mais. Edward sentiu
uma mão tranquilizadora, porém, firme, em seu ombro.
— Não vá até ela — sussurrou seu irmão, Isaac.
Edward percebeu então que estava prestes a se levantar para se colocar ao
lado da mulher. Isso era muito estranho. Ele insistia que nunca nutrira
qualquer sentimento por Agatha que não fosse o mais puro carinho fraternal,
que sempre a viu como sua irmã pequena, uma garotinha a quem ele deveria
cuidar e proteger. Ela não era mais uma garotinha. O conde estava
plenamente consciente disso.
— Eu esperaria mais alguns dias para revelar isso, mas parece que os dois
pombinhos não conseguiram conter a euforia pelo retorno de Agatha. Então,
é com satisfação que lhes informo que meu melhor amigo, o Conde de
Cornwall, pediu a mão de minha irmã em casamento.
Os sorrisos poderiam ser falsos, mas aquela notícia aplacaria a fofoca.
Aiden sempre foi muito talentoso com as palavras, mesmo que ele raramente
se dispusesse a usá-las em eventos sociais. Elizabeth operara um verdadeiro
milagre com ele, pois, desde o casamento, o duque se mostrava muito mais
sociável e calmo.
Olhares e frases amenas desejando parabéns ao casal preencheram a
conversa na mesa. O Visconde de Whitby ergueu sua taça de champanhe e
brindou ao casal. Edward sorriu agradecendo e fingindo felicidade para fazer
com que a história contada pelo duque parecesse verdadeira, enquanto sua
então noiva não fazia nada para parecer apreciar o momento. Ele também não
estava feliz com os arranjos, não pretendia sair noivo daquele jantar, mas se
incomodou por Agatha nem mesmo fingir alguma alegria. Ficaria difícil
convencer as pessoas que estava ao menos conformada com o noivado se sua
expressão era de pura derrota.
— E quando será o casamento? — lady Sarah perguntou, com sincera
curiosidade.
— Em duas semanas — Aiden determinou.
— Isso é realmente rápido. — Lady Sarah bebericou seu champanhe. —
Dará tempo de organizar os festejos?
— Temos muito dinheiro e criados o suficiente à nossa disposição. Esse é
o tempo que Edward precisa para conseguir a permissão de casamento. Como
todos perceberam, eles estão bastante ansiosos.
O jantar se seguiu tendo o casamento como assunto principal. Perguntas
demais foram feitas e as respostas evasivas se davam ao fato de que o pedido
fora feito logo no retorno da jovem. Não tiveram tempo para organizar nada.
Os pratos se seguiam em uma velocidade controlada, os criados sempre
muito bem treinados e coordenados para trocar os pratos, recolher farelos e
rejeitos, encher os copos. Depois de nove pratos e duas sobremesas, os
homens permaneceram à mesa com uma garrafa de vinho do porto e uma
caixa de charutos, enquanto as damas se refugiaram no salão de chá.
Por sorte, nenhum assunto sobre beijos em jardins ou casamentos foram
tratados durante o momento masculino. Todos beberam e falaram de
negócios, como era de se esperar. Sempre que se reunia, aquele grupo só
pensava em negócios. Não era por acaso que estavam todos cada vez mais
ricos.
Horas depois, Aiden decidiu encerrar sua participação no próprio evento.
Os convidados podiam continuar bebendo e conversando, mas ele precisava
levar a esposa para a cama. Elizabeth passou a dormir cedo por causa da
gravidez e ele era o tipo de marido que fazia companhia a ela, se não
estivesse trabalhando. O grupo se dissolveu, todos indo para suas casas. O
conde, no entanto, vagou um pouco pelos salões até se reencontrar com ela.
Sua noiva.
Agatha não abriu a boca, apenas indicou que eles precisavam conversar
em particular. Ele a seguiu por um corredor iluminado e com paredes
decoradas por quadros com toda a genealogia dos Trowsdale. A família
tendia a se orgulhar bastante da sua linhagem. Quando chegaram ao terraço
privativo, ela fechou a porta e os isolou.
As vidraças enormes não conferiam nenhuma privacidade, mas não havia
mais muito risco de serem pegos sozinhos. Afinal, iriam se casar.
— Você não tem juízo? — ela esbravejou. — Por que casar comigo?
Edward olhou ao redor e não viu uma mesa com uísque e copos. Nada
que indicasse que ali havia bebida.
— Preciso de um drinque.
— Já não acha que bebeu o suficiente?
— Parece-me que não. Pelo visto, nunca é o suficiente. — Ele a encarou.
A jovem tinha os braços cruzados na frente do corpo e media pouco mais de
um metro e meio. Mesmo assim, ela parecia ocupar todo o terraço. — O que
quer de mim, Agatha?
— O que eu quero? Edward, você me beijou!
— E você me beijou em retribuição. Achei que a sua língua na minha
boca indicava isso.
Ela enrubesceu. Todos os tons de vinho das cortinas de veludo estavam
nas bochechas de Agatha enquanto ela parecia muito irritada e envergonhada.
— Eu concordei em me casar com você porque provavelmente não me
casarei com ninguém. Estou começando a ficar velha demais para fazer isso.
Meu irmão assinou uma sentença de exclusão social quando se casou com
Elizabeth, e isso me afetou indiretamente. Porém… não vamos dormir juntos.
— Minha casa é enorme, podemos ficar em quartos separados. — O
conde também cruzou os braços. — Não precisamos dormir juntos.
— Eu estou dizendo que não vamos… não faremos nada na cama. Coisas
que maridos e esposas fazem.
Edward levou alguns segundos enfrentando o semblante desafiador de
Agatha. Ela o fitava com ira, com uma irritação que poderia derrubá-lo.
Compreendendo o que ela dizia, sua vontade foi de rir.
— Você está dizendo que não vamos fazer sexo, Agatha? É isso?
Ele segurou uma risada e isso a irritou ainda mais. Quase era possível ver
fumaça saindo das orelhas da lady.
— Nunca.
— Temos que consumar o casamento. Se não fizermos isso, ele não será
válido.
As cores na face de Agatha se intensificaram. Ela parecia uma pimenta,
de tão vermelha.
— Não vamos. Não é um casamento por amor, que importância tem a
validade dele?
— Qualquer pessoa pode anulá-lo, milady. — Edward deu dois passos na
direção dela e estendeu os braços para segurá-la pelos ombros. Agatha se
retraiu. — É tão repugnante assim a ideia de se deitar comigo, mesmo que
seja apenas uma vez e por um motivo justo?
Ela manteve o olhar baixo. Edward sentiu o desprezo dela como se fosse
uma espada lhe furando o peito. Horas atrás, ela o beijou com tanta
intensidade que quase lhe arrancou o fôlego. Havia desejo na forma como ela
o tocara. Agora ela aceitava o casamento, mas o recusava como se ele tivesse
uma doença incurável.
Aquilo o magoou. Ele já fora rejeitado uma vez e jurou que não se abriria
para de novo ser machucado por outra mulher. Se Agatha não o queria, então
ela não o teria.
CAPÍTULO QUARTO

A SSIM QUE O CONDE SAIU DO TERRAÇO , A GATHA SOUBE QUE O TINHA


magoado. Ela vinha fazendo aquilo com frequência, magoando as pessoas
que se importavam com ela. Não havia nada que pudesse fazer. Estava
aceitando se casar para fugir de um escândalo, mas isso significava que ela
tinha que ficar longe do seu marido.
Antes, acreditava que podia enrolar o irmão e o noivo. Podia segurar o
noivado por alguns anos. Isso poderia fazer com que Edward desistisse dela.
Ele poderia se apaixonar por alguém e liberá-la do compromisso. Talvez ela
tivesse sorte e aquele casamento nunca se concretizasse. O irmão tinha
determinado duas semanas de noivado, e o conde não havia contestado
aquele prazo. Ela tinha duas semanas para fazer com que nada desse certo ou
nunca deixar seu marido tocá-la.
Se ele descobrisse que ela não era mais virgem, estaria desonrada.
Talvez ela pudesse contar a ele. Edward era um homem de compaixão.
Sempre fora bondoso, fizera caridade, recebera todos em sua casa. Desde que
assumira o condado ele demonstrara sua capacidade de aceitar as pessoas
como elas eram. Ele poderia entendê-la. Mas ela não conseguia nem mesmo
pensar no que aconteceu, como poderia fazê-lo compreender?
Deitada em sua cama, ela não conseguia dormir nem pensar em um plano
satisfatório. Não havia muito a fazer que não rezar. Talvez Deus a perdoasse
pelos pecados e a ajudasse.
Não teve muita sorte em suas orações. Deus parecia um pouco mais
devagar em atendê-la do que os planos casamenteiros de seu irmão e sua
cunhada. No dia seguinte ao jantar, uma equipe chegava à Trowsdale House
para discutir os preparativos da festa. Confeiteiros, modistas, decoradoras,
floristas. Gente para decidir sobre o bolo, os doces, o vestido, a decoração, o
buquê. Estavam acompanhados de lady Sarah, lady Madeline e lady Anne.
— O que veio fazer em minha casa? — Agatha recebeu a irmã
Westphallen mais velha com desprezo. — Depois do que aprontou ontem,
não acha que já me causou problemas o suficiente?
— Minha querida Agatha, o que eu fiz foi ajudá-la. — Lady Madeline
demonstrou estar ofendida com a recepção. — Com a sua idade e sua
disposição para arrumar um marido, você dificilmente se casaria antes de se
tornar uma solteirona. Eu dei um empurrãozinho, até porque você e o conde
não estavam muito preocupados em se esconder.
A expressão autêntica na face de lady Madeline indicava que ela
acreditava em suas boas intenções, achava que a interferência foi positiva. A
dama Westphallen não acreditava em casamento por amor, só queria fisgar
um marido com bom título e riqueza. Tendo perdido a chance de se casar
com Aiden Trowsdale, ela tivera sua reputação destruída, mas acreditava que
estava ajudando uma amiga. Como era tola. Agatha sabia que aquele era o
pensamento da maioria das damas. O que importava era um marido rico, com
título e, de preferência, uma aparência física que encorajasse a consumação
do casamento.
E não havia nada de desencorajador na aparência de Edward.
— Diga-nos, Agatha… vocês estão apaixonados? — Lady Anne estava
muito empolgada. — Edward é um sonho, tão lindo como um anjo, educado
e rico. Absurdamente rico.
— Meu irmão é rico — Agatha esbravejou. — E não estamos
apaixonados. Casamento por amor é coisa de burgueses.
— Seu irmão se casou por amor — lady Madeline desdenhou.
— Aiden é como se fosse um burguês, mas com um título.
As damas deram risinhos cúmplices. Agatha pediu que lhes servissem o
desjejum no salão, enquanto as pessoas apresentavam maquetes, modelos e
tentavam convencê-la das melhores coisas para o casamento.
— Você não é uma noiva muito empolgada — lady Sarah questionou,
depois de algumas horas em que Agatha não demonstrou muito envolvimento
com os preparativos do próprio casamento.
— Aliás, você parece muito diferente desde que retornou das Américas.
O que aconteceu por lá?
— Nada. — Ela foi ríspida. — Eu não estou diferente, estou mais velha.
E cansada. Não tenho interesse nesse monte de bobagens.
Agatha levantou-se e ajeitou as saias. Foi até os bolos que estavam
expostos e escolheu qualquer um. Depois, fechou os olhos e apontou para
uma das opções de cardápio. Quanto ao vestido, decidiu pelo primeiro que
havia experimentado. Não tinha vontade de continuar a sessão de tortura que
eram os preparativos para um evento que lhe causaria mais problemas do que
soluções.
— Seu marido vai gostar do seu jeito prático — lady Madeline implicou.
— Homens sempre reclamam que as damas não tomam decisões racionais.
Agatha dispensou a comitiva. Mandou todo mundo de volta e pediu que
não poupassem esforços em fazer o melhor que pudessem. Retornou para as
damas que observavam tudo com alguma surpresa e se sentou com uma
xícara de chá.
— Vamos voltar a falar dos maridos que vocês três precisam conquistar.
Como está sendo a temporada?

A M C F ADDEN G ARDEN estava com uma agitação fora do comum. Edward já


tinha mandado que as criadas inventariassem toda a prataria, todas as roupas
de cama e todas as almofadas. Duas vezes. Não havia cômodo que não
tivesse sido revirado, reorganizado e revirado novamente. Cortinas foram
abertas e remendadas, tapetes foram batidos e higienizados. O conde nunca se
envolvera tanto em afazeres domésticos e nunca exigira tanto da criadagem
para garantir que tudo estivesse perfeito.
Lorde Isaac olhava para o mordomo, que supervisionava os trabalhos
daquele dia, e pensava nos motivos para aquele comportamento do irmão. A
mãe estava retornando de Greenwood Park no dia seguinte. Os irmãos Emile
e Nathaniel também vinham para o casamento. O noivo não precisava realizar
nenhum esforço, todos os preparativos ficavam por conta da família da noiva.
Tudo que o conde precisava era de reunir a família e isso estava sob controle,
mas Edward não estava.
— Brett. — A voz do conde ecoou vinda do andar superior. — Mande
chamar a governanta. Quero um relatório sobre a cozinha.
— Pois não, milorde.
O mordomo moveu os ombros indicando que não entendia. Lorde Isaac
também não. Edward sempre fora um pouco compulsivo. Ele adorava ordem,
estrutura, organização. Tudo sempre no lugar, tudo sempre bem feito e dentro
das regras. Mesmo que ele estivesse disposto a quebrá-las por motivos
específicos, Edward tinha padrões dos quais nunca se afastava.
O ponto falho de Edward sempre foram as mulheres. Um homem de todas
as mulheres, que adorava tê-las e nunca pensava em mantê-las. Aquela era a
parte sombria do caráter do quase perfeito Conde de Cornwall. Um homem
sem vícios, que comandava o patrimônio com mão de ferro e que já havia
multiplicado as riquezas da família. Não tinha nada a ver com os amigos
pouco convencionais. Ou com as companhias nem sempre bem-vistas pela
sociedade. Ele era um libertino, e ia se casar com uma mulher que ele nem
mesmo escolheu, que ele conhecia desde que nascera. Ia se casar com a irmã
de um duque, que possuía um dote invejável e tinha uma linhagem que era
motivo de orgulho para a rainha. Isaac desconfiava fortemente que havia mais
por trás daquela fachada negocial no casamento do irmão. Talvez algumas de
suas teorias se confirmassem, afinal.
— Ed. — O lorde subiu as escadas e encontrou o irmão sem camisa e
descalço. Ele e o criado pessoal estavam mexendo em alguma coisa no dossel
de uma das camas nos quartos de hóspedes. Eram tantos quartos que Isaac
não tinha certeza do motivo pelo qual aquele parecia importar. — Se não
precisa de mim, vou até a fábrica ver se tudo está sob controle.
— Faça isso. — O conde limpou o suor da testa com o antebraço. —
Depois passe em Trowsdale House e veja se Aiden tem tudo certo para
amanhã.
— O casamento é em dois dias.
— Certo. — Edward pareceu confuso com o tempo. — Então veja se está
tudo certo para depois de amanhã.
— Farei isso. Posso saber por que está fazendo o trabalho dos criados?
O conde, que estava pendurado na lateral da cama, desceu. Observou o
dossel e soltou as cortinas para confirmar que estavam com caimento
perfeito.
— Há coisas que um homem precisa fazer por ele mesmo.
— Sabe que, quando sua esposa chegar, ela vai mudar tudo de lugar, não
sabe?
— Claro que vai. — O conde sorriu, mas logo reassumiu sua postura
taciturna. — Mas esse dossel estava precisando de reparos e a cortina tem
que ser trocada. É a cama que ela vai dormir. Se ela não encontrar perfeição,
ao menos estaremos perto disso.
Lorde Isaac assentiu e saiu. Era melhor deixar o irmão com sua loucura.
Aquele era um vício melhor do que jogos e álcool que ele andava praticando
desde que perdera Bridget.

A T ROWSDALE H OUSE estava em silêncio. Como Peter e Patrick já estavam


dormindo, não havia o ruído normal de crianças pelos corredores. O duque
deixou o escritório, sentindo uma dor peculiar na nuca, e decidiu voltar para a
cama. Passava de uma da manhã. Aquele era um horário muito tarde para um
nobre que tinha assumido a burguesia como estilo de vida. Enquanto os
aristocratas passavam praticamente toda a temporada social em Londres em
eventos, jantares e bailes, ele era um dos gestores de uma fábrica de peças
navais, comandava suas propriedades, investia no mercado imobiliário e
estava iniciando a construção de um hotel.
Chegou ao quarto e encontrou sua esposa deitada, lendo um romance
qualquer. A visão de Elizabeth ali, com a barriga redonda por carregar um
filho deles, o enchia de alegria. O amor que sentia por ela parecia com a
escarlatina. Consumia por dentro como fogo, ardia, incapacitava.
O duque tirou as botas, o colete e a gravata. Abriu a camisa de linho e
juntou-se a ela por entre as cobertas.
— Deixe-me adivinhar. Uma doce dama é seduzida por um libertino sem
coração e é salva por um nobre honrado.
Ela riu, fechando o livro e olhando para o marido. Aiden sorriu ao ver que
a esposa reluzia à luz do lampião aceso à beira da cama.
— Não. Na verdade, uma dama enfrenta um casamento arranjado.
— Ah. — O duque terminou de retirar as calças e se aproximou de
Elizabeth, acariciando a barriga por sobre a camisola. — Parece familiar. O
que acontece?
— Estou na parte em que ela faz seu marido passar por maus bocados.
Mas ele merece, é um libertino incorrigível.
— Céus. Parece muito familiar. Podemos ver o que acontece no final?
Elizabeth virou para o lado e apoiou a face nas mãos. Os carinhos do
marido faziam com que os cabelos em sua nuca se arrepiassem. Ele sabia
disso e fazia na intenção de provocá-la.
— Aiden, eu estou preocupada com Agatha.
— Eu também. Mas vai ficar tudo bem. Edward será um marido
excelente, ele não se atreverá tratá-la como menos que uma rainha.
— Não temo por isso. — Elizabeth se acomodou nos braços do marido,
que a puxou para mais perto. — Mas receio que ela esteja escondendo algo.
Não consegui fazer com que me contasse, mas sei que tem algo errado com
ela.
— E eu sei que continuará tentando descobrir o que é até conseguir. — O
duque beijou a esposa. Beijos suaves, salpicados em sua boca, bochechas e
pescoço. — Eu também acho que ela esconde algo, e já estou agindo para
descobrir o que é. Mas, agora, eu gostaria de saber se posso cuidar de você.
— Ah, pode. — Ela se ajeitou no colchão, ficando o máximo que podia
debaixo dele. — Na verdade, eu preciso bastante de cuidados.
O duque riu e estendeu a mão para apagar o lampião. Depois, despiu a
camisola de Elizabeth e fez amor com ela com a atenção que ele costumava
ter. Ele se preocupava com a irmã, mas não havia nada que ele pudesse fazer
naquele momento. Teria uma noite tranquila e cuidaria dos outros afazeres
familiares no dia seguinte.

A CAPELA de São Jorge era monumental. Sua construção datava do século


XIII, tendo sido ordenada pelo rei Henrique III, e posteriormente anexada ao
colégio São Jorge, construído por Eduardo III, no século XIV. Havia passado
por uma reforma recente e era o palco do casamento de todos os ramos da
família real britânica. A fina linhagem de lady Agatha Trowsdale indicava
que ela deveria se casar na capela. Mesmo que o noivo tivesse um título
inferior ao da família dela, o legado Trowsdale requeria que a cerimônia
seguisse certos rigores.
O interior da capela estava decorado com lírios e jacintos. O aroma das
flores era inebriante. Os convidados, dispostos em filas simétricas, já tinham
chegado. No altar, o noivo mantinha uma expressão impassível e tentava
esconder o medo de ser novamente abandonado.
Não era medo. Claro que não. O Conde de Cornwall não tinha medo. Ele
apenas não pretendia ser humilhado por uma mulher de novo. Não podia
negar que Agatha reunia todos os elementos para que ele suspeitasse que ela
poderia desaparecer. Ela era imprevisível. Impetuosa, voluntariosa, sempre
tomando decisões impulsivas. Estava claro que ela não queria se casar.
A fila de padrinhos contava com todos os irmãos de Edward e Sawbridge.
Assim que entregasse a noiva, se aquilo acontecesse, Aiden tomaria lugar ao
lado deles. O conde ainda temia que algo pudesse acontecer. Ele não deveria
se casar. Homens como ele não deveriam ter o direito de tomar uma esposa
para destruir o coração delas depois. Porque era o que ele faria, certamente.
Um órgão ruidoso começou a tocar a marcha nupcial e os convidados se
levantaram. Edward esperou um trovão riscar o céu e destruir a abadia. Ou a
invasão de cães raivosos. Talvez alguém dizendo que uma praga estava
varrendo a cidade. Mas tudo que ele viu foi sua noiva à porta, entrando com
um vestido branco de seda e pérolas.
A sensação era de que seu peito estava sendo esmagado. Ele precisava
sair correndo dali, porém, seus pés não se moveram. Esfregou as mãos
enluvadas umas nas outras, tomado por um frenesi irresistível. Ela vinha em
sua direção, um véu cobrindo-lhe toda a cabeça e arrastando pelo chão. Era
conduzida pelo Duque de Shaftesbury, que estava elegante em seu fraque
preto e colete vinho.
Edward parou de respirar quando eles chegaram até o altar. Aiden
levantou o enorme véu da irmã e beijou-a na testa. A expressão de Agatha
contrastava com a do irmão. Havia pavor em seus olhos? O duque entregou-a
ao conde com um sorriso e tomou seu lugar na cerimônia.
Quando ele a segurou pela mão, ondas tranquilizadoras foram enviadas
por seu corpo. Edward não sabia o que era aquilo. A euforia era similar à de
algumas drogas que ele já havia provado, em eventos profanos na noite
londrina. O conde sabia que, depois da sensação mais intensa, vinha a apatia
e a indolência.
O padre começou a falar e o distraiu de suas divagações. Pretendendo
prestar atenção em suas palavras, Edward se concentrou para não olhar para o
perfil delicado da mulher ao seu lado. Ele nunca notara o quanto Agatha era
bonita? Por que antes ela não parecia ter traços tão suaves, um nariz tão bem
desenhado e uma boca de pecado?
Nada daquilo estava certo. Ele não estava preparado para se casar e fora
exatamente por isso que sua ex-noiva o deixara. Ela sabia que Edward seria
um péssimo marido. Enquanto todos acreditavam que ele era um partido
excelente, o conde tinha certeza de que precisava manter distância de sua
esposa para garantir que não a arrasaria no processo.
N A IDADE de vinte e um anos, Agatha já tinha frequentado alguns
casamentos. O mais lindo tinha sido o de seu irmão, já que Aiden se casara
com a mulher que ele amava. A aura de paixão e devoção que preenchera o
casamento do duque com sua adorada Elizabeth podia ser sentida por todos
os convidados. Naquele momento, ela desejou que pudesse ter o mesmo para
si. Amor. Um homem que a adorasse tanto quanto Aiden adorava Elizabeth.
Ela acreditou que tivesse encontrado esse homem, mas fora enganada,
abandonada e deixada à própria sorte. Marcada para sempre por ter se
entregado ao seu coração estúpido. Foi quando ela descobriu que o amor era
um pouco burro e decidiu que ele não poderia estar no comando de sua vida.
Quando o padre pedia que ela declarasse seus votos, Agatha não sabia o que
dizer. Sua boca proferiu palavras mecanicamente, mas seu coração gritava
outra coisa.
— Eu, Agatha Christine Trowsdale, aceito você, Edward Colin
McFadden, para ser meu marido…
O silêncio da abadia era sepulcral. Todos os presentes apenas ouviam e a
voz dela era baixa demais, esganiçada demais. Agatha tinha um bolo de
saliva em sua garganta. Suas mãos tremiam, mesmo amparadas pelas mãos
fortes do conde.
— … Para amar e cuidar deste dia em diante, na alegria e na tristeza, na
saúde e na doença…
A voz tremeu. Ela precisou engolir, mas a garganta estava seca. Agatha
abriu os olhos pela primeira vez desde que começara os votos e o encarou. A
expressão de Edward era serena, mas continha uma tormenta dentro dela. Ele
lhe sorriu, esticando os lábios. O azul brilhante daqueles olhos profanos
poderia afogá-la.
— … E eu prometo amá-lo e ser fiel até que a morte nos separe.
Assim que ela terminou, o conde apertou os dedos dela entre os seus. Ele
proferiu os mesmos votos que ela, marcando cada palavra em seus lábios
carnudos, a mandíbula movendo-se no ritmo das frases que deveriam
representar o amor entre eles. Não havia amor, mas, entre o momento em que
Edward iniciou seus votos até o instante em que ele levou os dedos dela à
boca e os beijou, Agatha sabia que havia algo.
O padre falou mais coisas que ela não conseguiu ouvir. O zumbido que a
atordoava decorria das vozes que gritavam dentro dela, mas o que fazia suas
pernas moles era o olhar do seu marido. A forma como o conde a encarava. A
indecifrável mensagem que ele passava. A cerimônia durou bem mais do que
ela estava apta a suportar. Quando as palavras finais foram finalmente
pronunciadas, Agatha se viu em uma realidade alternativa. Ela não se
reconheceu nela mesma.
Eu vos declaro marido e mulher.
Edward se aproximou dela e levantou o véu. Descobriu a face corada e
ansiosa da esposa e beijou-a na testa. Um beijo casto e molhado.
— Vai dar tudo certo — ele sussurrou de forma que só ela pôde ouvir.
Os lábios dele estavam próximos do ouvido dela e Agatha pensou que ele
fosse deslizar para outras partes, mas Edward era, acima de tudo, um
cavalheiro. Ele ergueu novamente o corpo e colocou a mão dela na dobra de
seu cotovelo.
O coração de Agatha parecia prestes a pular fora do peito. Ela nunca se
sentira daquela forma, nunca reagira com tanta intensidade a nada.
Caminharam para fora da capela, acompanhados dos padrinhos e das damas
de honra, e foram direto para uma carruagem ornamentada com dourado e
laca branca.
Por mais que o momento fosse inusitado e ela estivesse arrebatada,
Agatha sabia que aquilo acabaria em breve. Que ela não queria, nem podia, se
entregar ao marido. Que, a partir dali, ela voltaria a ser uma alma solitária e
de coração partido.
CAPÍTULO QUINTO

A RECEPÇÃO DO CASAMENTO DURARIA O DIA INTEIRO . C OMEÇOU COM UM


brunch na McFadden Garden e, em seguida, haveria um baile para os
convidados. A residência McFadden estava impecavelmente arrumada,
decorada e organizada para receber mais de uma centena de duques,
marqueses, condes e suas famílias. Mesmo que o Conde de Cornwall fosse
criticado por ser amigo de pessoas de baixa classe e burgueses, ele ainda era
o possuidor de um cobiçado título. Muitas damas casadoiras lamentaram o
anúncio de seu noivado e choraram o casamento tão rápido.
Acostumado a fingir, Edward não teve dificuldades em transitar entre
seus convidados com um sorriso nos lábios. Ninguém esperava que ele
estivesse radiante, já que ele não amava sua esposa. Homens nobres se
casavam por conveniência. Apenas os plebeus eram apegados ao amor. Por
baixo de sua casaca preta, ele sentia a parte interna de seu colete coçar
bastante. Todo o seu corpo formigava.
— Parabéns, milorde. — O Barão de Rosemund o interpelou enquanto
servia-se de uma dose de uísque. — A sua esposa é um achado. Jovem, de
linhagem impecável e indomada. Imagino que encontrará muita diversão para
domá-la.
O conde virou o drinque em um gole só.
— Talvez eu não perca meu tempo com isso, caro lorde Rosemund. Eu e
Agatha combinamos que não vamos nos incomodar muito um com o outro.
— O melhor arranjo. — O barão serviu outra dose para ambos e ergueu o
copo em cumprimento. — Não entendo o porquê nosso amigo Shaftesbury
tem tanto cuidado em demonstrar que ama a sua esposa. Não há nada mais
fora de moda.
— Aiden é complicado. — Edward riu. — Obrigado pelos cumprimentos,
eu os transmitirei à minha senhora.
— Talvez eu faça isso por mim. Vou adorar segurar aquela mãozinha
delicada e beijar.
Os olhos de Edward fitaram o barão com fúria assassina. Ele teve muita
vontade de agarrar o homem barrigudo pelo colarinho e arremessá-lo na
parede, quem sabe atirá-lo pela janela. O barão saber que seu casamento era
sem amor não dava a ele o direito de se insinuar para sua esposa.
— Se você encostar na minha esposa, a não ser que seja para salvar a vida
dela, eu deceparei a parte do corpo que mais gosta e a servirei de alimento
para meus cavalos — o conde rosnou, fazendo a voz sair baixa e grave. —
Estamos entendidos, milorde?
O sorriso do barão morreu em seus lábios.
— Acalme-se, homem. Eu estava brincando.
— Pois não brinque. — Edward virou outra dose de uísque e a coceira
por baixo do colete ficou mais forte.
Ciúme não era algo que o conde estava acostumado a sentir. Todas as
mulheres de sua vida foram amantes sem nenhum tipo de envolvimento
emocional. Eles se divertiam juntos e, quando o ato sexual acabava, não
sobrava mais nada. Quando Bridget o trocou por um alemão esnobe, o
sentimento era de humilhação. Edward não amava Bridget. No início, achou
que sim. Estava encantado pela beleza e pela timidez dela. O desafio de ter
uma joia tão bela fez com que ele se esforçasse muito para consegui-la, mas o
tempo desvaneceu o interesse. Edward passou a lidar com o noivado de
forma burocrática até que ela o deixou.
Claro que ela o deixou. Edward era incapaz de amar e incapaz de ser
amado. Foi assim toda a sua vida. Sua família era bastante amorosa, com os
outros filhos. O pai tratava a ele como um general a seus cadetes. Um
soldado treinado para cumprir uma missão: assumir o condado. A mãe não
interviria, ela tinha muito o que fazer como condessa, sem contar que os
meninos mais novos davam muito trabalho. Por quantas vezes invejou o
cuidado de Albert Trowsdale para com Aiden.
Com o tempo, Edward descobriu que ele era quebrado. O problema
estava nele, por isso ninguém o amava. Isaac era espirituoso e inteligente,
sempre com as melhores notas sem precisar de muito esforço. Nathaniel era
gentil, Emile era vulnerável em razão dos problemas de saúde que teve ao
nascer. E, quando nasceu Wilhelmina, Edward já era adulto demais para
saber que ele não tinha qualidades suficientes. Decidiu quais qualidades
queria e as produziu artificialmente. Usou a amizade com Aiden Trowsdale
para moldar uma personagem e segui-lo. O atual Duque de Shaftesbury o
resgatou de uma condição de isolamento e prostração e ele seria sempre grato
por aquilo. A sagacidade, o humor ácido e taciturno, a compulsão por ter
sempre tudo em ordem — essas eram características desejáveis em um
homem da posição dele, por isso Edward se transformou em quem ele era.
Ainda assim, ele não era digno de ser amado. Casar-se com Agatha
provavelmente foi o erro mais cruel que ele cometera em toda a sua vida.
Depois que o barão se afastou, o conde continuou circulando pelo salão
sem ter ideia de onde sua esposa estava. As mulheres e os homens não
costumavam compartilhar os mesmos espaços. Já bem tarde, depois de
dançar com quase todas as damas da festa e não aguentar mais a irritação por
dentro de suas roupas, o conde decidiu escapar da própria festa e descobrir a
origem daquele problema. Foi até seu quarto e arrancou o colete, depois a
camisa branca de linho. Olhou no espelho e notou a vermelhidão em sua pele.
Uma mancha em tons rosados se alastrava por seu tórax e Edward temeu que
fosse uma doença. Alerta, encheu uma bacia pequena com água, umedeceu
uma toalha e passou pelo corpo, tentando aliviar o incômodo.
Foi quando ele ouviu um gemido. Era um lamento, e soluços. Edward
ficou imóvel em silêncio por alguns segundos e teve certeza de que havia
alguém chorando. O som aumentou quando ele se aproximou da porta que
conectava seus aposentos ao quarto que fora destinado à Agatha. Sem hesitar,
o conde girou a maçaneta e abriu a porta, encontrando sua esposa sentada na
cama com o rosto entre as mãos.

D URANTE A RECEPÇÃO , Elizabeth convidou Agatha para uma conversa


reservada. As mulheres se sentaram na sala privativa da família, decorada
com as obras de arte mais valiosas. Não era ideal que a noiva fosse roubada
por ninguém no dia do casamento, mas a duquesa não podia se demorar
muito na recepção. Ela tinha que levar os filhos para casa e estava muito
grávida para aguentar a movimentação de um baile.
— Agatha, eu sei que deveria ter falado sobre isso antes, mas tudo
aconteceu muito rápido. A sua mãe chegou a explicar a você o que acontece
na noite de núpcias?
A lady sentiu a boca seca. A mãe nunca havia conversado com ela. Se
não fosse pelo pai, Agatha nunca saberia o que era aquele tipo de amor, mas
ela sabia como seria. Tinha uma ideia bem razoável e pretendia evitar a todo
custo que qualquer coisa parecida acontecesse.
— Não — ela confessou. — Mamãe e eu nunca tivemos essa conversa.
— Então, eu acho que, como sua cunhada, deveria explicar. Quando você
se recolher, esta noite, o seu marido vai te procurar na cama. E isso pode ser
assustador, no início.
Era apavorante. Horrível. Agatha já experimentara as consequências do
desejo e da virilidade masculina e não gostou do resultado.
— Creio que seja assustador o tempo todo. — A dama riu, nervosa.
— Não é. — Elizabeth sorriu e segurou as mãos da cunhada entre as suas.
— Se você tiver um marido amoroso, ele pode fazer com que seja muito
bom. E Edward parece o tipo de homem que aprendeu a satisfazer uma
esposa.
Agatha sentiu um calafrio lhe percorrer a espinha. Ela queria acreditar no
que dizia Elizabeth. Sabia que ela e o irmão tinham uma vida amorosa
bastante ativa. O amor e a devoção de Aiden pela esposa eram impossíveis de
não perceber. Mesmo assim, a situação deles era diferente. Eles eram
apaixonados. Aiden era um o marido perfeito.
Quando Agatha experimentou o amor pela primeira vez, tudo que lhe
restou fora decepção, dor e uma alma machucada. As consequências de
entregar seu coração geraram marcas profundas nela. Talvez as feridas nunca
cicatrizassem. Ela não queria nem mesmo arriscar se entregar a Edward.
— E o que eu devo fazer? — Ela fingiu que se interessava pelo assunto.
— Como devo agir?
— Porque você é inexperiente, eu recomendo que deixe seu marido te
guiar. Não tenha medo, aceite as orientações dele. Edward saberá conduzi-la
como em uma dança.
A conversa deixou Agatha um pouco perturbada. Se ela não tivesse
passado por situações tão complicadas em um passado próximo, não seria
difícil se entregar ao conde. Ele era seu marido. Ela o conhecia há anos, sabia
que ele era um homem gentil. As fofocas sobre suas qualidades como amante
indicavam que muitas mulheres gostariam de estar no lugar dela, mas ela não
podia.
Se Edward descobrisse que ela não era mais virgem, ele a rejeitaria. Ela
estaria duplamente arruinada, o casamento seria anulado e o esforço para
evitar o escândalo seria jogado no lixo. A conversa e os pensamentos a
fizeram não desejar voltar para o baile. Agatha não queria dançar, não queria
conversar, não queria se socializar. Mentiu dizendo que iria ao banheiro e
trancou-se no quarto que lhe fora destinado. Ficou ali até ser interrompida por
um clique na maçaneta da porta.
Agatha se assustou ao ver que tinha alguém no quarto — e não era uma
criada. A figura esguia do conde fez sombra no tapete persa que decorava o
ambiente. Ele estava sem camisa, com a calça desajustada e despenteado. Os
músculos proeminentes do peitoral permeado de fios dourados tinham sido
construídos por muitos exercícios. Edward McFadden era a personificação do
pecado. Aquele deus profano era o marido que ela rejeitava.
— O que houve? — ele perguntou, sem se aproximar muito.
— Você não pode entrar assim no meu quarto — ela atacou. — E se eu
estivesse despida?
— Você é minha esposa, agora. Não haveria problema se eu a visse
despida. — O conde cruzou os braços no peito. O subir e descer da respiração
dele tornava a sua imagem ainda mais sensual. — Por que está chorando?
Nós mal nos casamos, você já está tão infeliz assim?
Enxugando as lágrimas com as costas das mãos enluvadas, Agatha
encarou o marido.
— Não estou chorando porque estou infeliz — mentiu. — Estou certa de
que cometi um erro e não estou a fim de celebrar. Por que está aqui? O que
houve com suas roupas?
Edward se aproximou e segurou a face de Agatha entre os dedos. Ele era
um conde, mas tinha calos nas mãos. Elas pertenciam a um homem que
trabalhava e empunhava uma espada com talento.
— Sei que está mentindo para mim. — Ele passou o polegar pelas
bochechas úmidas da esposa. — Mas isso não importa, não é mesmo? Em
breve, você estará envolvida com amigas, eventos de caridade, vestidos e
outras futilidades, enquanto eu continuarei trabalhando. Não precisaremos
nem nos ver durante os dias.
A forma como ele dizia aquilo a irritou. Mesmo que fosse um casamento
por conveniência, ela não desejava ser completamente ignorada. Engoliu a
mágoa e se manteve firme.
— Bem, você não tem que voltar para o salão? Se continuarmos os dois
desaparecidos, sua fama sugerirá que estamos fornicando pelos cantos da
casa.
— Não há mal em fornicar com a esposa. E está mesmo na hora de deixar
que pensem que estou fazendo isso. Afinal, espera-se que eu consume o
casamento.
Agatha se soltou da prisão que eram os olhos de Edward sobre ela e pisou
firme na direção da porta conjugada. Virou-se para ele e demorou algum
tempo admirando as formas definidas do corpo seminu do conde. Ele
precisava deixar o quarto dela. Deixá-la em paz.
— Precisa tratar essa alergia. Deve estar coçando muito, foi por isso que
tirou a camisa?
A mudança repentina de humor deve ter confundido Edward, mas Agatha
não conseguia controlar. Desde as Américas, ela ia do sarcasmo absoluto à
ira, e da ira às lágrimas. De vez em quando, ela também conseguia ser gentil.
— É uma alergia? Sei que coça terrivelmente e água fria não ajudou em
nada.
— Precisa de uma pomada. Acho que tenho algo em minhas coisas. Se eu
tratar da sua coceira, você promete que volta para seu quarto?
Ela esperava com ânsia que ele concordasse. Já estava nervosa pela
presença masculina naquele espaço confinado, ainda sentindo o efeito das
emoções liberadas durante a cerimônia. Edward assentiu em concordância e
ela vasculhou algumas gavetas procurando por seus medicamentos. Como
nunca teve muito cuidado da mãe e precisou lidar sozinha com quase tudo
que lhe aconteceu durante a juventude, Agatha tinha se tornado conhecedora
de diversos assuntos. Entre eles, ela sabia bem como lidar com feridas,
machucados, doenças e outros problemas de saúde que não requeriam
atenção médica.
Pegou um bálsamo de hortelã-pimenta, uma receita que ela aprendera nas
Américas, e que cheirava tão bem quanto aliviava os males das doenças de
pele. Ordenou que o conde se sentasse à beirada do colchão e o examinou.
Havia uma vermelhidão na pele, uma mancha que se estendia do ombro
direito até a lateral esquerda, passando pelo peito, pelo abdômen e… Agatha
respirou fundo. Edward era muito mais provocativo do que ela desejava. A
sua nudez era um inconveniente que ela precisava evitar.
— Vai funcionar, pode passar.
Ela estendeu para ele a lata com a pomada, mas o conde a fitou com
alguma desconfiança.
— Não será você a me tratar?
— Está em um lugar que você tem capacidade de alcançar. Não precisa
de mim.
— Temos um combinado, milady. — Ele comprimiu os lábios e sorriu.
Maldito fossem os homens com aquelas covinhas nas bochechas. — Se
quiser que eu vá embora…
Ah, ela queria. Para livrar-se daquela tentação que andava e falava,
Agatha era capaz de fazer quase qualquer coisa. Aborrecida por ser
manipulada, ela abriu a lata e besuntou os dedos com o bálsamo refrescante.
Ao levar a mão à pele despida do conde, sentiu o calor que emanava de sua
pele antes mesmo de tocá-la.
Ele ficou imóvel, fechando os olhos quando os dedos dela deslizaram
pela pele irritada. Aquilo não a ajudou a manter o controle. Saber que ele
desprezava o seu toque a magoava ainda mais. Ele era tão macio e firme, ao
mesmo tempo. E quente. Tinha o corpo cheio de reentrâncias masculinas
como se tivesse sido feito por um artesão.
Respirar ficou difícil. Maldito espartilho apertado. Ela adoraria livrar-se
dele, mas não pretendia deixar-se exposta na presença de homem algum,
mesmo que o homem em questão estivesse abençoado e enlaçado a ela pelo
matrimônio. Enquanto cobria a pele ferida de pomada, ela se permitiu
observar o belo espécime masculino que estava à sua frente e notou algo
diferente nele. Algo que indicava que Edward não desprezava o toque ela.
Na verdade, ele estava apreciando o contato.
A mão de Agatha parou muito perto do cós da calça preta de linho. Ela
prendeu o ar nos pulmões e quis se afastar, mas ele abriu os olhos e a
encarou. Desceu o olhar até a boca dela e aproveitou-se aquele segundo de
hesitação para beijá-la.

E DWARD NÃO PRETENDEU , nem por um minuto, respeitar o combinado com


Agatha. Ela podia ser o demônio de saias, podia ser a garota magricela que
ele conhecia desde que nasceu, podia ser irritante e arrogante, mas também
era sua esposa e ele poderia tomá-la para si a hora que quisesse. E, bem, ela
estava longe de ser a mesma. De magricela ela não tinha mais nada. Agatha
era uma mulher completa que desconhecia sua capacidade de seduzir.
Quando ela colocou as mãos nele, Edward sentiu que o restante de seu
juízo o abandonara. Quando as mãos se aproximaram demais de sua ereção
dolorida, ele decidiu que precisava beijá-la. Levou as duas mãos até ela,
segurou-a pela nuca e reivindicou sua boca como se precisasse daquele beijo
para sobreviver. Pressionou seus lábios contra os dela com força, insistiu para
que ela os abrisse até conseguir espaço para a língua. Agatha tinha as duas
mãos em seu peito e ela parecia que resistiria. Logo, as mãos deslizaram para
os ombros e ela o enlaçou pelo pescoço.
Edward empurrou-a para trás e a fez deitar na cama. Os corpos estavam
muito próximos, ele se apoiou nos cotovelos para amenizar o seu peso sobre
ela. Levou a boca até o queixo, o pescoço, procurou explorar as partes mais
sensíveis que estavam ao seu alcance. Ela gemeu quando a língua dele tocou
o lóbulo da orelha, desceu pela lateral do pescoço e terminou em sua
clavícula. Aquele era um sinal de completa rendição. Edward sabia que,
daquele ponto em diante, ele só precisava ser delicado e tocar nas partes
corretas. Quando ele mostrasse os prazeres que ela poderia atingir cedendo a
ele, Agatha não conseguiria resistir.
— Deus — ele rosnou —, como você é macia.
A mão dele estava sobre os seios dela, nervosa, querendo abrir o
espartilho. O conde voltou a beijá-la na boca e forçou o tecido do vestido,
arruinando a parte da frente dele. A renda e a seda se partiram, expondo o
colo imaculado e o par de seios mais lindo que ele já vira. Redondos, do
tamanho perfeito para caberem em suas mãos, com os mamilos rosados e
delicados.
Agatha arqueou as costas e ofereceu a ele mais acesso. Para o inferno que
ele não consumaria aquele casamento. Não precisava haver amor entre eles
para que o sexo fosse prazeroso. Edward fez sexo sem amor por toda a sua
vida, a maior parte dos homens fazia. Desceu os beijos até que sua boca
capturasse o mamilo entre os lábios. Primeiro ele lambeu, depois mordiscou,
e por fim sugou-o com uma pressão delicada, porém, constante.
Em um segundo, tudo mudou. Agatha se tornou rígida como uma tora de
madeira debaixo dele. Ela se retraiu e começou a se debater, empurrando-o
com as mãos.
— Não. Pare, Edward. Pare — ela disse, se esforçando para sair debaixo
dele. Nunca uma mulher dissera não a Edward. Nunca uma mulher pedira
para que ele parasse depois que ele começou.
Confuso, o conde se sentou na cama. Agatha colocou os braços na frente
do corpo para cobri-lo.
— Me deixe em paz. — Ela virou para o outro lado. — Eu disse que não
faríamos isso. Nunca.
— Você sabe que eu posso reivindicá-la, não sabe? — ele disse, o corpo
latejando pelo desejo não satisfeito. Agatha estremeceu quando ele tentou
tocá-la nos ombros. O conde pegou um lençol e a cobriu.
— Se fizer isso, será à força.
— Nunca constrangi uma mulher a ficar comigo. — Ele se levantou.
Estava ferido, machucado, rejeitado. — Não farei isso com você, mas eu não
vou desistir, Agatha.
O conde saiu do quarto e fechou a porta. Ele poderia ter as mulheres que
desejasse. Todas elas sempre se atiravam em seus braços e caíam em seus
encantos. Ele e Aiden eram os devassos mais requisitados de todos os clubes
de jogos. Não deveria se importar se a esposa era arredia e não queria sexo.
Podia obrigá-la uma vez ou outra, para que consumassem o maldito
casamento e produzissem um herdeiro, ao menos. Estava decidido que a
queria. Edward não sabia o quanto desejava Agatha até beijá-la no jardim. A
visão dela parcialmente nua o deixou louco de desejo. E, se ele a queria, ele a
teria. Era um homem paciente, sabia esperar pelo prêmio principal.
CAPÍTULO SEXTO

A ESCURIDÃO NÃO ERA NEM SILENCIOSA NEM FRIA . F AZIA MUITO CALOR E
Agatha conseguia ouvir todos os ruídos de uma cidade grande. Era como
Londres, porém, mais barulhenta. Ela estava de olhos abertos, mas não via
nada. De repente, uma dor excruciante fez com que ela caísse ao chão. Um
líquido morno e viscoso saía do meio das pernas dela. Ela tentou se arrastar
pelo lugar e seu corpo não se movia. O ruído ficou mais alto.
Ela então gritou. Chamou por ajuda, mas ninguém apareceu. Gritou mais
alto, não conseguiu ouvir a própria voz. Estava desesperada, sentindo o
sangue esvair de dentro de si quando foi resgatada. Continuava escuro
demais, mas Agatha sabia que estava sendo carregada por alguém. Sentia as
mãos fortes ao seu redor. Sua cabeça repousou na maciez firme de um peito
masculino. Não temeu o estranho que a confortava, apenas aproveitou o
alento que seus braços lhe causavam.
— Vai ficar tudo bem. Shhh.
A voz murmurava em seu ouvido e ecoou suave até que ela adormeceu
novamente. De todos os seus pesadelos, era a primeira vez em que era
resgatada da escuridão.

A GATHA NÃO PASSOU BEM A NOITE . Ela quase não dormiu, rolando pela cama
e tendo pesadelos. Cenas do período em que esteve nas Américas a
assombraram, como toda vez. A figura brilhante de Edward a assombrou. Ela
teve medo do passado recente, teve medo do futuro. Quando a exaustão fez
com que sucumbisse, ela apagou. Só foi despertar quando um barulho alto do
lado de fora estremeceu o quarto.
Aquela era Londres. O “lado de fora” era sempre ruidoso demais, mesmo
que eles estivessem em Mayfair. Sentindo o corpo cansado e a cabeça
dolorida, Agatha se levantou e chamou uma criada para ajudá-la a se banhar e
se vestir. A McFadden Garden tinha uma casa de banho completa que atendia
apenas à suíte principal e que, naquele momento, estava vazia.
A jovem dama se enfiou na água morna até o pescoço, temendo que o
banheiro fosse invadido a qualquer tempo. Ela não fazia ainda ideia da hora.
— Milady, onde a senhora deseja tomar seu desjejum? — a criada
perguntou, ajudando-a a lavar os cabelos.
— Onde o conde costuma tomar o dele?
A pergunta não era incomum, principalmente porque eram recém-
casados. A criada compreenderia que ela queria ficar perto do marido
quando, na verdade, era o contrário.
— Lorde McFadden costuma fazer as refeições no salão principal,
milady. Mas ele não está em casa, ele já saiu.
Agatha fingiu surpresa.
— Ah. Mas eu também farei meu desjejum no salão.
— Mandarei servirem.
A criada levantou e pediu autorização para sair. A dama preferia terminar
seu banho sozinha, mesmo que ela não conseguisse se vestir adequadamente
sem ajuda. Para sua sorte, quando retornou ao quarto, encontrou Moira
esperando por ela.
Mesmo que tivesse solicitado a presença de sua camareira pessoal,
Agatha imaginou que teria que esperar mais. Ficou feliz ao ver um rosto
conhecido e acabou demonstrando entusiasmo demais ao abraçar a criada.
Aquele era um comportamento típico dos Trowsdale. Casar-se com um
McFadden não faria com que ela mudasse sua atitude.
— Depois que eu comer alguma coisa, precisamos sair — Agatha disse,
sentada à frente de um espelho. Moira estava arrumando seus cabelos em um
coque sobre a cabeça. — Preciso de vestidos novos. Desde que voltei não
comprei nada ainda e não sei nem mesmo como está a moda em Londres.
Não posso desfilar em trapos.
— Certamente que não, milady. A senhora é uma condessa, agora.
Ela sorriu, mesmo que isso não fosse planejado. Não queria se sentir feliz
pelo ocorrido, não sentia nada além de confusão e dor de cabeça, mas sorriu.
— Então precisamos de roupas dignas de uma condessa.
Moira terminou o penteado e acompanhou sua lady até o salão. O
desjejum já estava sendo servido e Agatha descobriu que teria companhia.
Sentado à mesa, folheando um jornal, com a pose de uma estátua grega, lorde
Isaac estava concentrado em alguma notícia. Como ela não foi notada, a lady
se sentou na cadeira indicada pelo criado que a recebera. O movimento fez
com que lorde Isaac fechasse o jornal e a encarasse, enigmático.
Agatha quis sorrir. Aquele era certamente o homem mais lindo que ela já
tinha visto. Os homens McFadden eram deslumbrantes.
— Oras, minha nova irmãzinha resolveu dar-nos o prazer de sua
presença. Teve uma boa noite, milady?
— Bom dia, lorde Isaac. Eu dormi muito bem, obrigada.
Agatha não teve como saber se ele acreditou ou não na mentira dela. Os
olhos estavam um pouco caídos e havia aquelas manchas arroxeadas debaixo
deles. Não havia compressa que as escondesse.
Os criados serviram torradas com manteiga, ovos, presunto e bolos com
cobertura. Agatha não estava com muita fome, mas se esforçou para aceitar o
que colocaram no prato. Bebericou do chá e ergueu o olhar para perceber que
seu cunhado a espreitava por cima do jornal que tinha voltado a ler.
— Meu marido, o conde, saiu cedo? — ela perguntou, porque quis
demonstrar interesse.
Em verdade, ela estava curiosa para saber por que o conde não estava em
casa. Agatha sabia que ele e o irmão tinham atividades matinais, mas aquela
era a primeira manhã após o casamento. As pessoas pensavam que ele estava
em lua de mel. Por que sair cedo e dar a impressão errada?
— Edward foi até a fábrica. Ele a visita todas as manhãs, você se
acostumará em breve. Ele não tem uma rotina como a dos outros nobres, está
sempre trabalhando.
— Sei que pareço bastante ignorante fazendo essa pergunta, mas essa é a
fábrica que seria aberta quando viajei?
Edward, Aiden e o Visconde de Whitby tinham se unido com negociantes
e investidores para revitalizar uma região degradada em Londres. A primeira
iniciativa para tornar isto real era abrir uma fábrica, e eles pretendiam
também se envolver com exportações, com hotelaria e no mercado
imobiliário. Empregar as pessoas e garantir a elas um salário mais digno era a
maior proposta que eles tinham. Todos ganhariam. O conhecimento de
Agatha sobre os assuntos masculinos acabava aí.
Lorde Isaac a olhou com alguma incredulidade, já que nenhuma mulher
costumava se interessar sobre negócios. A maioria sequer falava sobre aquilo.
Não era considerado elegante.
— Sim, ela mesma. Está aberta e em pleno funcionamento.
— Ela fabrica o quê?
— Peças navais. Em breve, eles pretendem se envolver na construção de
navios. Edward e Aiden são meio… como dizer? Insaciáveis.
Agatha se engasgou com o pãozinho que levara à boca. A forma como
lorde Isaac falou levava a uma compreensão dúbia sobre a expressão
insaciável. Pelo que ela ouvira, eles eram impossíveis de satisfazer em tudo.
Não era à toa que o irmão engravidara Elizabeth em tão pouco tempo. Duas
vezes.
Não tendo como continuar a conversa sem parecer interessada demais no
marido que queria rejeitar, ou sem ficar admirando o cunhado que era mais
belo do que deveria ser, a lady manteve silêncio enquanto terminava de
comer. Lorde Isaac mal tocou na comida, ele deveria estar acordado há mais
tempo e ali apenas fazendo companhia a ela. Aquela família era tão estranha
quanto a sua. Os homens não aceitavam a realidade da nobreza, insistiam em
trabalhar para ficarem ainda mais ricos.
— Milorde, peço licença para me retirar. — Ela se levantou, assim que
terminou de comer. — Vou à modista encomendar alguns vestidos.
Lorde Isaac riu, finalizando seu chá. Colocou o jornal sobre a mesa e a
encarou.
— Claro, uma condessa precisa de novos vestidos. Antes, no entanto,
teria uns minutos para mim?
— Certamente. O que deseja?
— Sente-se novamente. Prometo que não vai demorar.
Agatha saiu da mesa e se sentou em um sofá. Ajeitou as saias e fingiu que
não se preocupou com o que o cunhado falaria. Ela tinha medo de ser óbvia
demais e de que todos desconfiassem do seu passado. Ou do seu presente.
— Imagino que não se importe com minha ousadia, milady, mas eu amo
meu irmão a ponto de ser intrometido. — Lorde Isaac levantou-se e serviu
um conhaque. — Edward é um homem muito bom. Mas também é um
homem que não acredita no seu potencial.
— Arrogante do jeito que ele é? — Agatha riu. — Desculpe se acho
difícil de acreditar, milorde. Seu irmão é um poço de pedantismo.
— Ele é, mas essa é apenas a imagem que ele precisa passar. Edward se
inspirou no seu irmão para construir quem ele é, hoje. Insolente, presunçoso,
irritante. Não acha que eles são bem parecidos?
Agatha assentiu com a cabeça.
— Mas eles são totalmente diferentes — ela concluiu. — E por que está
me contando isso, milorde? É um pouco inadequado que fale da intimidade
do seu irmão dessa forma.
— Você é a esposa dele. Eu não sei se concordei com esse casamento,
milady. Não por não a aprovar, mas porque Edward é um homem que precisa
ser amado. Ele foi abandonado por sua noiva, jurou que só se casaria
novamente por conveniência, e logo em seguida a comprometeu. Temo,
inclusive, que ele tenha feito isso propositadamente. Mas ele não será feliz
sem amor. Ele não acredita que é capaz de ser amado, mas anseia por isso.
Você notou, Agatha, que o seu quarto foi arrumado? O dossel está reformado
e as cortinas são novas. Assim como a roupa de cama é de uma cor
específica.
Verde.
— Sim, notei. Eu apreciei o gesto, é claro.
— Exatamente. O que talvez não tenha sido contado a você: Edward fez,
ele mesmo, todas as reformas no quarto, dois dias antes do casamento. Ele
queria perfeição para quando a sua esposa chegasse. Ele é perfeccionista,
costuma fazer tudo por si próprio. E ele fez coisas por você que não fez por
ninguém, até agora. Estou sendo claro?
Ela quis dizer que não estava entendendo nada, mas seria mentira. Lorde
Isaac estava alertando que seu marido era um homem que precisava do amor
de uma esposa. O amor que ela não podia dar. Ficou intrigada que ele
parecesse saber bem disso.
— O amor é superestimado, milorde. — Foi o que conseguiu dizer. Não
porque acreditava nisso, mas porque era o que não a comprometeria. —
Podemos ter um casamento confortável sem a necessidade de nos perdermos
em paixões.
— Foi exatamente isso que Edward me disse quando puxei esse assunto
com ele. — Lorde Isaac riu e caminhou na direção da porta. — Bem, eu
tenho atividades para fazer. Obrigada pela conversa, milady. Nos vemos no
jantar.
Ele saiu, deixando a jovem lady preocupada com as expectativas sobre
ela. Agatha não era a mulher que amaria Edward e o faria realizado no amor.
Ela poderia apenas servir como uma esposa adequada à sociedade. Nada além
disso.

O MOVIMENTO na fábrica era frenético. Apesar disso, ninguém esperava que o


Conde de Cornwall aparecesse para trabalhar naquele dia. Como recém-
casado, acreditava-se que ele tiraria pelo menos uma pequena folga.
Sawbridge, que havia se associado aos nobres para também investir na
indústria naval, quis perguntar o que levara o conde a deixar a cama de sua
esposa tão cedo. Desistiu de fazê-lo ao notar que o humor do amigo não era
dos melhores.
Durante a manhã, Edward chamou os encarregados, discutiu a linha de
produção, convocou investidores, analisou contratos e tomou decisões sobre
os equipamentos. Manteve o corpo e a mente ocupados, assim não precisava
pensar no que aconteceu no dia anterior. Ele não queria se lembrar de
nenhum momento relacionado ao seu casamento. Não era como se as
memórias pudessem desaparecer, mas ele podia se esforçar para que elas
fossem insignificantes.
— Manhã agitada?
Sawbridge entrou em seu escritório segurando alguns papéis. Edward se
sentou pela primeira vez desde que acordou. Indicou que o amigo e sócio
deveria entrar.
— Algumas questões que se acumularam. Pelo visto, você tem mais uma
para discutir.
Os papéis foram colocados sobre a mesa do conde. Sawbridge serviu duas
doses de uísque e entregou um copo a Edward.
— Nada grave, isso pode esperar. Pensávamos que você não viria hoje,
então…
— Diga logo do que se trata, homem.
— Alguns problemas com fornecedores. Miles está resolvendo, mas
gostaria de deixá-lo a par. Parece que os madeireiros estão pretendendo
aumentar os preços depois de já termos ajustado a carga.
— Em que área?
— Sussex.
Edward pegou a documentação. Eram cartas de comunicação entre a
fábrica e os fornecedores de Sussex e alguns contratos. Depois de alguns
minutos examinando o conteúdo, ele não gostou do prospecto.
— Miles vai até eles? Ou eles vêm até nós? — O conde terminou de
beber seu drinque.
— Uma reunião está marcada para daqui a dois dias. Mas… sabe que
temos um plano alternativo. Como estamos com a produção vinda de
Hampshire?
Aquele era um plano ambicioso e Edward não tinha certeza de como as
coisas iam. Aiden estava por conta do projeto e ele fora duas ou três vezes até
Hampshire, mas isso foi antes de Elizabeth estar grávida demais para
acompanhá-lo. Havia algum tempo que ninguém inspecionava a propriedade
que tinham adquirido com objetivo de fornecer madeira para a fábrica.
— Eu vou me organizar para ir a Hampshire. Falaremos com Miles para
que ele prossiga com as negociações. Poucas pessoas conseguem ser mais
hábeis para negociar do que nosso amigo visconde.
Se Sawbridge quis perguntar sobre o casamento recente, ou sobre como
ele iria a Hampshire estando em lua de mel, não o fez. A aura de curiosidade
em sua expressão se dissolveu no instante em que ele levantou e se deparou
com a chegada inesperada de lady Agatha.
A dama usava um vestido de dia verde-esmeralda, de seda com adornos
em bordado branco. Com os cabelos presos em um coque e decorados com
brilhantes, ela parecia pertencer à realeza.
— Milady — Sawbridge cumprimentou-a, beijando a mão enluvada.
Agatha sorriu para ele e Edward não gostou. Talvez porque, desde que se
reencontraram, ela não havia lhe direcionado nenhum sorriso sincero. —
Devo cumprimentá-la pelo casamento.
— Obrigada, Sr. Sawbridge. Espero que em breve possamos recebê-lo em
nossa residência para um jantar.
O negociante deixou o escritório e fechou a porta. O sorriso murchou nos
lábios de Agatha quando ela olhou para o marido.
— Então é aqui que se esconde durante o dia — ela provocou. Girou pelo
lugar passando a mão pela estante com alguns livros, pelo aparador com
enfeites, pela mesa de mogno, até estar de frente para Edward. Ele a
observava com curiosidade, já que não fazia ideia do que ela pretendia.
— É aqui que eu trabalho. — Ele se levantou. — Onde está sua
acompanhante?
— Na carruagem. Não preciso de uma criada para me encontrar com meu
próprio marido.
A lady tocou os papéis da mesa e pegou um contrato nas mãos. Edward
quis tomar o documento dela, mas Agatha foi mais rápida e virou de costas
para ele.
— Agatha, se veio aqui para me irritar, temo que não seja nem um bom
momento, nem um bom lugar. Podemos manter nossas brigas restritas à casa,
por favor?
— Oras, você sabe pedir por favor? — Ela riu. — Ontem à noite tive a
impressão de que essa expressão era desconhecida por você, milorde.
— Um homem não pede favor para dormir com a esposa. Principalmente
quando ela parece tão solícita. — O conde passou as mãos pelos cabelos,
desarrumando-os no processo. — Diga, o que veio fazer aqui?
— Eu quero saber uma coisa. Conversei com seu irmão hoje e ele sugeriu
que você possa ter me comprometido de propósito, apenas para arranjar um
casamento. Isso é verdade?
Ela sempre foi direta, então Edward não deveria se surpreender pela
forma como Agatha disparou a pergunta. Ele se casou com uma mulher que
não tinha muitos trejeitos de uma dama. Direta, incisiva e nada preocupada se
o assunto tratado era inadequado para uma lady. O que atingiu o conde como
uma bala saída do cano de uma pistola fora o fato de ela e seu irmão estarem
conversando. Sobre ele.
— Isaac perdeu o juízo. — Ele se levantou e rodeou a mesa. Pegou o
documento das mãos de Agatha e o devolveu para o lugar. — Se eu quisesse
um contrato para me casar com você, teria negociado diretamente com seu
irmão. Teria sido bem mais simples do que passar por essa… humilhação.
— Imagino que sim. Mas eu fiquei intrigada.
— Não fique. Faça coisas que mulheres fazem. Compre vestidos,
organize chás, promova eventos de caridade como você adora.
Edward não percebeu, mas ele estava muito perto dela. Os dois
conversavam e a postura era de enfrentamento. Ele flutuava na direção de
Agatha. Involuntariamente, seu corpo pendia para ela e ele só foi notar a
proximidade quando seus joelhos bateram na armação das saias que ela
usava.
— Já comprei os vestidos. — Ela fez uma careta divertida. — Quanto aos
outros eventos, eu farei. É que a maior parte das minhas amigas está fora de
Londres e organizar eventos de caridade no final da temporada social não é
uma jogada inteligente.
— Você é a esposa de um conde. — Edward levou a mão até uma mecha
solta do cabelo dela e a prendeu atrás da orelha. — Acredito que vá conseguir
se divertir. Se preferir, pode ir para Greenwood Park. Wilhelmina e mamãe
são companhias agradáveis.
— Claro que são. Mas eu quero conhecer a fábrica, por isso vim.
Edward afastou-se e encarou sua esposa. Ela não estava mentindo. Seu
semblante inocente indicava que aquilo não era uma forma de provocação.
Cruzando os braços no peito, ele recusou o pedido dela.
— De jeito algum. Aqui não é lugar para uma mulher. Ainda mais a
minha.
— Por que não? Estarei acompanhada por você, que mal pode me
acontecer?
O conde apertou a ponte do nariz. Aquela não seria uma discussão fácil e
ele duvidava que pudesse vencê-la.
— Agatha, o ambiente é perigoso. Há ruídos, estampidos, homens
gritando. Algo pode dar errado e você se ferir.
— Terei você para me proteger.
Ela disse aquilo e levou as duas mãos até ele. Os dedos brincaram com os
botões do colete enquanto ela o encarava com a expressão de uma criança
pedindo um brinquedo novo. Com quatro irmãos menores, Edward estava
acostumado a situações como aquela.
Claro que mimar a esposa não estava em seus planos. Só que ele acabou
oferecendo a ela seu braço e conduzindo-a até a área de produção. O ar foi
ficando mais denso e quente à medida que se aproximavam das máquinas.
Entraram em um galpão e foram até uma estrutura metálica que circulava
toda a área pelo alto. Dali podiam ver o trabalho dos operários sem muitos
riscos de estilhaços e outros problemas.
Agatha se aproximou da contenção metálica e debruçou-se sobre ela.
Edward sentiu um calafrio e se pegou estendendo as mãos para segurá-la.
Parou no meio do caminho ao perceber que ela já estava segura.
— São enormes. — Os olhos da lady brilhavam enquanto o ruído tornava
sua voz delicada quase inaudível.
— Navios são enormes, por isso requerem peças de tamanhos
proporcionais.
— Verei a construção de um navio?
— Não. Nós ainda não o fazemos, apenas provemos peças de manutenção
e reparo. — Edward se colocou ao lado da esposa e apontou para um
aglomerado de homens que gritava ao redor de uma caldeira. — Ali eles
estão produzindo peças de motor. São as mais solicitadas.
— Nunca imaginei que vocês fariam algo tão grandioso no meio de
Londres. Não havia espaço quando fui para Nova Iorque.
— Desapropriamos algumas casas.
A forma como Agatha o encarou indicou que ela se chocou pelo fato de
terem desalojado famílias. Isso fez com que o conde desse uma sonora
gargalhada. Ela era tão inocente em relação aos negócios e, ao mesmo tempo,
tão atrevida e curiosa. Nenhuma jovem casadoira jamais se interessaria pelo
que uma fábrica fazia, menos ainda pelo destino dos cidadãos que foram
despejados para dar espaço à construção.
Prevendo que ela explodiria em indignação, o conde explicou o processo
de desapropriação. Eles compraram as casas e levaram as famílias para um
dos hotéis de Oglethorpe. Elas ficariam lá, sem custos, até conseguirem
novas casas, e a maioria das pessoas conseguira emprego na própria fábrica.
Saber que o irmão e o marido não tinham deixado crianças sem lar fez
com que a lady se acalmasse.
— Agora acho melhor irmos. — Edward colocou a mão nas costas dela,
pretendendo guiar Agatha para fora do galpão. — A fuligem vai deixá-la suja
e arruinar seu vestido.
— Obrigada por me trazer aqui. — Ela segurou a dobra do cotovelo dele.
Edward não usava casaco na fábrica, apenas uma camisa de linho fina e, de
vez em quando, colete. As mangas estavam dobradas e expunham seus
antebraços marcados pelo sol. O toque dela foi sentido por todo o seu sistema
nervoso. — Eu agora já sei quem será meu próximo grupo de caridade, os
empregados da fábrica.
— Eles são bem remunerados, Agatha. — O conde levou a mão livre até
os dedos dela e os acariciou por cima da luva. — Seus esforços serão mais
úteis com os órfãos.
Satisfeita por sua excursão no emprego do marido nobre, Agatha deixou a
fábrica poucas horas depois que retornou. A presença dela, ali, serviu para
dissipar qualquer provável comentário sobre a noite de núpcias do casal. Ela
agiu como uma esposa encantada pelo marido e pelo que ele fazia, tocou-o
nos lugares apropriados e manteve um sorriso nos lábios durante toda a visita.
Edward não se iludiu. Ela sabia o que estava fazendo. Ele tinha se casado
com a mulher mais esperta que já conhecera.
CAPÍTULO SÉTIMO

O CONDE RETORNOU PARA CASA POR VOLTA DAS VINTE HORAS . A GATHA
esteve entediada durante o dia, depois de retornar da fábrica. A sogra e a
cunhada já tinham retornado para Greenwood Park, afirmando que não
ficariam na casa importunando os recém-casados. Apenas lorde Isaac
permanecia em Londres. Sendo final de julho, quase todos os nobres já
tinham se retirado para passar o verão e o outono em suas casas de campo ou
praia. A cidade estava entregue aos negociantes e aos menos afortunados.
As amigas de Agatha também tinham saído de Londres e isso a deixava
com quase nada para fazer. Pegou um ou dois romances para ler, mas não se
divertiu com nenhum deles. Eram as mesmas histórias sobre donzelas em
apuros resgatadas por nobres valorosos. Ela queria que outras tramas fossem
contadas, em que as mulheres não fossem donzelas, nem precisando da ajuda
de cavalheiros, e que os homens não fossem tão nobres, porque ela sabia bem
que a maioria deles era canalha.
Visitar Elizabeth também estava fora de cogitação. Ela adoraria se
divertir com Peter e Patrick, já que os meninos estavam de férias da escola,
mas a cunhada estava próxima de ter o bebê. Naquela fase da gestação, nunca
se sabia bem quando o parto iniciaria. Se ela fosse até a Trowsdale House,
ficaria nostálgica e teria que explicar por que não dormira com seu marido.
Claro que Elizabeth notaria. Ela notava tudo.
Quando o conde retornou do trabalho, cheirando a óleo queimado e
tabaco, com os cabelos desalinhados e as botas sujas de fuligem, ela se
excitou. Quis brigar com ele por deixá-la sozinha, ao mesmo tempo que quis
pedir que ele lhe fizesse companhia. Estava tão aborrecida que chegou a
pensar em pedir para lorde Isaac jogar xadrez com ela, mas não queria
assustar o cunhado. As damas como ela não deveriam saber nada sobre jogos
masculinos.
— Como passou o dia? — Edward cumprimentou-a, assim que a viu no
salão principal.
— Você sempre sai cedo e volta nesse horário? — ela rebateu a pergunta,
sem vontade de dizer que estava muito entediada.
— Sempre, não. Mas, com o afastamento do seu irmão, é necessário que
eu tenha uma presença mais regular. O Visconde de Whitby nunca pode ficar
em Londres fora da temporada, ele tem esposa e três filhas para cuidar. — O
conde afrouxou a gravata e começou a subir as escadas em direção ao quarto.
Agatha se levantou e foi atrás dele, quase tropeçando nas camadas das saias.
— Por que pergunta, milady? Sentiu falta da minha companhia?
Ele estava zombando dela, o que a deixou com vontade de atirar nele um
ornamento de cerâmica qualquer. De preferência, um bem pesado que fosse
causar uma grande dor.
— Estou apenas me adaptando a essa vida nova. Vocês, homens de
negócios, prendem suas esposas em Londres. O mesmo aconteceu com
Elizabeth, que precisará ter seu bebê na cidade, já que não pode viajar mais.
Assim, ficamos sem nada muito interessante para fazer.
O conde entrou em seu quarto e ela parou na soleira da porta. Ela poderia
entrar atrás dele, mas sabia o que ele faria em seguida: tiraria as roupas e
tomaria um banho. Não era de sua vontade ver o marido despido. Talvez
fosse. Agatha pouco conhecia da anatomia masculina. A sua única
experiência com homens nus fora um total horror, mas ela sabia o suficiente
para entender que Edward era um espécime diferenciado.
— Elizabeth teve outras duas crianças em Londres. Ela sabe como fazer
isso. E você pode ir para Greenwood Park, já disse. Suas amigas estão quase
todas em Kent e você terá muita ocupação.
— Mas eu não quero deixar Londres enquanto meu sobrinho não nascer
— ela falou, da porta semicerrada. Ouviu alguns barulhos dentro do quarto e
esperou.
— Minha esposa, eu vou tomar um banho. — Ele reapareceu na porta e
colocou parte do tronco para fora. Estava sem camisa, os ombros suados e
empoeirados. — Ou você entra ou me aguarda descer para o jantar. O que vai
ser?
Ela queria entrar. Respirou fundo e aceitou que precisaria esperar mais
um pouco para ter qualquer conversa com Edward. Com uma expressão de
desânimo, se afastou do batente e indicou que ele podia fechar a porta.
— Você sabe que há bastante espaço na banheira para nós dois, não sabe?
O conde deu um sorriso provocante e ela quis bater nele outra vez.
— Sei, mas dispenso o convite. Aguardarei na sala privativa.
Ela desceu as escadas com pressa incomum. Não que Agatha não fosse
agitada e acelerada, ela sempre estava correndo pela casa ou andando mais
rápido do que as damas de sua idade. Naquele momento, ela sentiu que
precisava ficar o mais longe possível do conde. Alguma coisa a provocava a
quebrar com suas próprias regras e aquilo seria o seu fim.

D EPOIS DE UM banho e de vestir roupas limpas, Edward se olhou no espelho


sem muito entusiasmo. Ele garantiu a Agatha, no casamento, que tudo daria
certo, mas não tinha tanta certeza assim. Não dava para manter um casamento
onde cada conversa era uma disputa. Ele e Agatha sempre foram daquele
jeito, se provocando e brigando o tempo todo. Ela implicava, ele fazia
questão de importunar para que ela implicasse ainda mais. Ela sempre caía
em suas brincadeiras.
Edward tinha fome. Não comeu o dia inteiro e ainda precisava se preparar
para ir a Hampshire. A viagem era longa e exaustiva e ele sequer poderia
ficar para aproveitar o clima do campo. Precisava retornar com novidades
para seus sócios. Seus criados já estavam servindo o jantar quando ele chegou
ao salão. Isaac e Agatha conversavam sobre alguma coisa e se interromperam
quando o viram. A cumplicidade entre eles irritou Edward por um segundo.
Talvez Agatha e Isaac sempre tivessem sido amigos, sempre conversado sem
que os espinhos dela o espetassem.
Era exatamente aquilo, Agatha parecia um ouriço — mas ela nunca
atacava Isaac. Claro que isso era por causa da longa amizade. Não fazia
sentido sentir ciúme do irmão.
— Boa noite, milorde.
O mordomo o recebeu e um criado puxou a cadeira para que se sentasse.
Os outros dois se sentaram em seguida, Agatha ao seu lado direito e Isaac ao
lado esquerdo. A entrada foi servida e ele precisou se controlar para não
atacar a sopa. A fome de um dia inteiro o consumiu assim que sentiu o cheiro
da comida.
— Ed, recebemos convites para um evento — Isaac disse, antes de
servirem o primeiro prato. — Vai ter uma noite de jogos e diversão no
estabelecimento do Sr. Riderhood, com a presença das damas.
— Riderhood? Aquele lugar é um antro.
— Um antro que você frequenta. Será aberto às damas, Edward —
Agatha insistiu. — Um evento social em Londres, fora da temporada. Não
podemos deixar de ir.
— Não é um evento da nobreza, milady. — Ele riu, aceitando de bom
grado o vinho que lhe era servido. — Não haverá as damas que você
conhece. Serão mulheres de burgueses ou amantes de homens ricos ou outros
tipos de mulheres livres.
— Como Caroline Eckley? — Ela o observou por sobre a taça de vinho
branco.
— Como ela.
— Bem, eu vou confirmar nossa presença — Isaac decidiu. —
Precisamos transitar entre homens de negócios.
— Veremos se não coincide com minha ida a Hampshire.
— Vamos a Hampshire? — Agatha se entusiasmou. Nunca um jantar na
casa dos McFadden fora tão tumultuado quanto aquele. Nem sua esposa nem
seu irmão sabiam ficar quietos à mesa. Era por isso que se davam tão bem.
— Eu vou, a trabalho. Mas agora adoraria comer em silêncio, se possível.
O dia foi intenso, podemos conversar depois.
Depois significava ele e o irmão, na sala masculina, fumando um charuto
e bebendo um conhaque. O conde não estava acostumado à presença de
mulheres, menos ainda aquelas a quem ele precisava dar atenção. Ele
suspeitava fortemente que a sua esposa não desejaria sua atenção. Ela deixara
claro que não desejava nenhum contato físico com ele. Ela o rejeitara, mas
estava bastante exigente.
Ela aceitou aguardar até depois do jantar, se frustrando quando os homens
se recolheram para tratar de negócios. Não que Edward se importasse, já que
ela deixara claro que eles não precisariam nem mesmo se tolerar. Era difícil
entender por que ela estava tão… dependente, naquele primeiro dia.
Uma mulher frustrada não era algo com o que ele saberia lidar.
— E LE VAI se arrepender de me ignorar.
Agatha falava para si mesma enquanto Moira desfazia seu penteado.
Passara o dia negligenciada, não suportaria também ser deixada de lado à
noite.
— Vou fazê-lo se arrepender, Moira. Que marido é esse que deixa a
esposa sozinha na segunda noite depois do casamento?
— Mas, milady, não foi a senhora mesmo que disse que não queria tê-lo
muito por perto?
A condessa comprimiu os lábios, irritada com a verdade sendo jogada
sobre si. Moira tinha razão e a sinceridade da camareira sempre era bem-
vinda. Agatha não entendia a confusão de sentimentos dentro de si.
— Ainda quero puni-lo. Ter paz é diferente de ser ignorada.
— Como pretende puni-lo, milady?
Ah, Agatha sempre tinha ótimas ideias para torturar e punir aqueles que a
incomodavam. Mas, depois de passar por momentos muito ruins, foi
esmagada por problemas que a tornaram mais amarga e menos habilidosa em
lidar com aquelas pequenas coisas. Mesmo assim, ela podia irritar Edward a
ponto de fazer com que ele se arrependesse de tê-la abandonado.
— Ainda não sei, Moira.
A criada ajudou-a a se despir, depois a se lavar. Ainda era muito cedo
para que fosse dormir, mas ela suspeitou que o marido não demoraria a se
deitar. Na ausência de eventos sociais e se levantando cedo como ele
costumava fazer, não restava muito para um homem além de dormir. E ela
ansiava para que ele não esperasse a companhia dela.
Depois que seus cabelos estavam trançados e ela vestia uma camisola
muito ousada, Agatha se deitou e apagou as velas e lampiões. Manteve-se em
silêncio planejando alguma vingança, atenta ao movimento no quarto ao lado
e aos ruídos vindos da rua. Com a janela aberta por causa do calor, ela podia
distinguir os cavalos passando ou os homens bêbados retornando para suas
mansões.
O som que a atraía era do homem que parecia travar uma pequena batalha
no quarto conjugado. Mesmo com a porta fechada, era possível ouvir móveis
arrastando e outros ruídos. Depois que o silêncio pareceu imperar, ela ainda
ouvia a respiração dele. Pesada, masculina, intensa. O que estaria fazendo?
Ela nunca esteve tão consciente assim de alguém como estava do seu marido.
Em um impulso, Agatha pulou da cama e abriu a porta que ligava os
quartos. Deparou-se com Edward deitado na cama, com um lampião aceso ao
lado e um livro nas mãos. Ele tinha um par de óculos apoiado no nariz e
estava concentrado. Ela nunca o vira de óculos antes. Nem lendo. Nem com a
pele dourada pela chama, como deveria ser a imagem de um deus pagão.
— Agatha? — Ele se virou para ela assim que a viu entrar. Ajeitou-se na
cama e colocou o livro na cabeceira. — Aconteceu alguma coisa?
A lady pulou sobre os colchões, ao lado dele. Edward se retraiu.
— Leve-me para Hampshire com você. Apenas leve-me, por favor.
O conde fitou-a por intermináveis segundos. Ele estava com o tórax
descoberto, mas ela já o tinha visto sem camisa na noite anterior — não que a
imagem de agora causasse menos impacto do que antes.
— Não será divertido, não é uma viagem a passeio. Vou inspecionar uma
propriedade de onde pretendemos extrair madeira para a fábrica.
— Entendo isso. — Sentada sobre as pernas, Agatha se esforçava para
manter distância do marido. Sua mão quis tocá-lo. Seu corpo não obedecia às
ordens que dava e ela não entendia. Nunca sentira nada pelo conde. — Mas
eu menti quando disse que estou entediada porque minhas amigas não estão
em Londres.
Edward percebeu que ela queria conversar. Ajeitou o travesseiro atrás das
costas e a incentivou a prosseguir.
— Eu estou entediada porque eu sou uma pessoa diferente, agora. — A
jovem continuou a tagarelar. — Desde que voltei das Américas, eu não quero
mais esses encontros sociais fúteis ou essas conversas tolas das jovens
casadoiras. Elas me irritam falando dos prováveis maridos como se fossem
produtos expostos em uma prateleira.
— Mas eles são. — Edward riu. — Assim como são vocês. O casamento
é um negócio para nós, Agatha, você ainda não entendeu?
— Claro que entendi. Mas não deixa de ser irritante. Eu fiquei uma hora
na fábrica e achei tudo fascinante. Já participei de conversas de negócios
antes, sempre como ouvinte silenciosa. Mas é tudo muito intrigante. Eu estou
casada com um nobre que trabalha e investe. Você é diferente dos outros,
Edward. Eu sou, estou diferente das outras.
Falar sobre isso deixou Agatha mais leve. Ela sentiu um peso deixar-lhe o
corpo, como se as palavras pesassem toneladas. Fazia tempo que estava
percebendo essa mudança em seu comportamento e tudo ficou mais claro
quando reencontrou as amigas no fatídico jantar em Trowsdale House. Ela
não suportava mais as ladies tolas cujo assunto mais interessante era qual
marido agarrar. Agatha queria falar de negócios. Saber da vida das pessoas,
sobre como ajudá-las Ela sabia que o trabalho nas fábricas era degradante e
mal remunerado e queria fazer algo. Isso fervilhou dentro dela durante todo o
dia. Uma agonia por algo que não sabia dizer o quê.
Seus olhos pousaram no semblante curioso do conde. Ele a examinava
como se ela fosse um animal raro, uma peça de colecionador. Sentiu-se
exposta demais e subitamente a camisola pareceu uma vestimenta
inadequada.
— Você é diferente, isso eu tenho certeza. — O tom de voz dele era
grave. — Vou pensar sobre Hampshire. Acho melhor você voltar para o seu
quarto.
— Vai me mandar embora? Eu posso não apreciar a companhia das
minhas amigas, mas isso não quer dizer que não queira companhia.
Edward moveu-se na direção dela, como uma serpente atrás da presa.
Calmo, silencioso, preciso. Uma das mãos dele segurou a trança e soltou os
cabelos dela, que se espalharam pelos ombros cobertos pela seda branca.
— A essa hora, se você procura a companhia do seu marido, tem que
estar pronta para aceitar as consequências.
A boca dela estava seca. Agatha sentiu sua garganta arranhar enquanto
buscava ar para seus pulmões. O coração, disparado, entregava que ela estava
abalada pela presença masculina. Edward cheirava a sabonete e loção. A
barba dele roçou no pescoço dela quando ele a beijou na orelha. A boca
traçou uma linha pelo maxilar até a bochecha dela.
— Que consequências seriam essas? — ela murmurou, a voz saindo
trêmula.
Edward moveu-se, empurrando-a contra os travesseiros e soltando um
pouco do seu peso sobre ela. Agatha tremeu, abafou um gemido
constrangedor e colocou as duas mãos no peito dele. Ela precisava sair dali.
— Nem você pode ser tão ingênua a ponto de não saber o que acontece na
cama de um casal, Agatha.
Era quase desesperador que ele a considerasse inocente. Ingênua. Uma
virgem prestes a ser deflorada pelo marido. Enquanto ela tinha certeza de que
precisava sair daquele quarto, a forma como a boca dele trilhava os contornos
do rosto dela a impedia de se mover.
O conde sabia do seu poder de sedução e o estava usando contra ela.
Céus, como ele era bom naquilo. Agatha se sentiu mole, rendida, quando ele
colocou um joelho entre as pernas dela, forçando que se abrissem. Pôde sentir
a força de sua masculinidade contra a camisola fina.
— Edward, pare — ela disse, vacilante. — Você está… nu?
Ele abafou uma risada no pescoço dela.
— É assim que durmo, milady. Mas não se preocupe. Logo, você estará
também.
— Eu vim aqui para conversar. — Ela resistiu, tentando fechar as pernas.
Ele se ergueu e a encarou, tirando a boca dela por alguns instantes. — Não
era esse tipo de companhia que pretendia.
— Mas nós podemos conversar. — Ele voltou a beijá-la. Agatha sentia
seu corpo aceso como as luzes de Natal. Cada toque dos lábios de Edward
deixava um rastro de fogo na pele dela, e as mãos dele começaram a desfazer
o laço da frente da camisola. — Dá para conversar enquanto fazemos isso…
depois que fizermos isso…
— Creio que isso seja um distrativo muito grande.
Ela mentalizava que precisava sair de baixo dele, mas a verdade era que
não queria. Aquele toque, aquela boca sobre ela, aquele corpo masculino era
um conforto que ela ainda não tinha vivenciado. A experiência anterior fora
degradante, desagradável, bruta.
Quando Edward tomou a boca dela na sua, de forma possessiva, Agatha
entendeu que ela precisava fazer qualquer coisa para impedir o que viria a
seguir. Os lábios dele atacaram os dela com força e desejo. O sabor da língua
dele era ainda mais delicioso do que ela se lembrava. Eles precisavam parar
de se beijar se ela não queria dormir com ele. Quando ela tentou se esquivar,
ele pegou uma das mãos dela e colocou nas costas dele. Depois, fez o mesmo
com a outra. O corpo dele aquecia o dela e provocava para que ela abrisse
mais as pernas, lentamente… Ela se pegou deslizando as mãos para tocá-lo
mais embaixo…
— Não.
Com uma força que ela desconhecia ter, Agatha conseguiu rolar para o
lado e desprender-se do abraço envolvente do marido. Edward se deitou de
costas, fitando as amarras da cortina no alto do dossel. Ela não olhou para ele,
não podia vê-lo nu e excitado depois de tê-lo repelido.
— Agatha, saia desta cama antes que eu me arrependa de dizer isso.
— Edward, eu…
— Apenas vá.
Ela quis explicar a ele. Dizer que não podia. Que, apesar de ser casada
com ele e de conhecer os deveres de uma esposa, ela não podia. Que proibir a
consumação do casamento, que rejeitá-lo estava ligado ao fato de que ela não
era mais a virgem intocada que ele esperava. Que ela estava maculada, que
fora arruinada e abandonada e que, apesar de tudo, não era digna de um
marido como ele.
Mas ela não podia. Não tinha forças nem tinha vontade de destruir mais
ainda sua vida. Ela precisava de tempo para entender se Edward teria
compaixão dela quando descobrisse a verdade.

O C ONDE DE C ORNWALL fora rejeitado duas vezes por sua esposa. Se alguém
soubesse daquilo, sua reputação estaria arruinada para sempre. Edward nunca
fora rejeitado antes, por ninguém. Ele deveria desistir daquela mimada e
concentrar seus esforços em outras mulheres, mas não conseguia.
Desde que soube que ela retornou, mesmo bêbado demais para perceber,
ele quis vê-la outra vez. Desde que a viu, sabia que precisava ficar com ela.
Por tempo demais, Agatha foi a menina que implicava com ele. Até ela se
tornar adulta e Edward entender que seus sentimentos para com ela eram
pecaminosos demais. Era a irmã de Aiden. Ele a vira nascer. E ela era agora
sua esposa. Talvez se ele tivesse planejado, não tivesse saído tão certo.
Como ela era resistente, dizendo não ao mesmo tempo que seu corpo
gritava sim. Enquanto Edward rolava na cama sentindo o desejo o dominar,
ela estava realmente gritando.
Era a segunda noite, a segunda vez que ele despertava com os berros da
esposa. Edward pulou da cama, sem se preocupar em vestir-se, e se colocou
ao lado dela. Agatha chorava, as lágrimas escorrendo pelos olhos fechados, e
esperneava na cama. Dormindo, ela parecia ter um pesadelo horrível.
— Shhhhh, minha querida. — Edward segurou-a em seus braços. Ela
ficou tensa, mas parou de se debater. — Acalme-se, Agatha, eu estou aqui.
Edward não sabia o que que era aquilo que fazia a esposa ter pesadelos
tão reais. Acomodou-a em seu colo, deitou-a em seu peito, e acariciou seus
cabelos. Ela acalmou, relaxou ao encontro do corpo dele.
— O que está acontecendo com você? — o conde sussurrava nos ouvidos
da esposa, que parava de chorar aos poucos. — O que te deixa tão nervosa,
tão agitada no sono?
Agatha balbuciou palavras que ele não conseguiu entender. Parecia uma
canção de ninar ou algo que uma mãe diria a um filho. Não acordou, apenas
foi se acalmando até que o único ruído no quarto eram as duas respirações.
Na noite anterior, Edward se deitou ao lado dela e ficou até que ele
precisasse sair. Ela não percebeu que ele estivera ali. Naquela noite, faria o
mesmo. Agatha não estava bem e precisava do cuidado dele. Recostado nos
travesseiros, Edward deslizou para baixo, com ela nos braços, e se ajeitou na
cama. Se ela acordasse e o expulsasse, pelo menos ele saberia que ela estaria
se sentindo melhor.
CAPÍTULO OITAVO

A CABEÇA DE E DWARD DOÍA NAQUELA MANHÃ . E LE JÁ TINHA BEBIDO TODO O


uísque de Londres e não se lembrava de uma dor como aquela. Tomou um
chá, que a governanta garantiu ser muito bom para curar aqueles males e foi
para a fábrica na expectativa de combinar a viagem a Hampshire. Ele
pretendia ir em três dias, só esperaria passar o evento na casa de jogos de
Riderhood. Não era de bom tom recusar o convite de um parceiro importante.
Durante a noite ele quase não dormiu. Primeiro, porque estava dolorido
pelo desejo insatisfeito. Sua ereção incomodou por muito tempo enquanto ele
considerava se invadia o quarto de sua esposa ou se buscava outra forma de
satisfação. Depois, ela começou a gritar de madrugada e demandou a sua
atenção. Ele a odiava por fazê-lo de bobo, por provocá-lo sem nenhuma
intenção de se render a ele, mas a adorava a ponto de se perturbar com os
pesadelos dela.
Desconfortável, o conde não ficou feliz ao ver seu amigo duque no
escritório. Aiden remexia papéis e estava absorto em alguma coisa quando ele
entrou, fazendo mais barulho do que o necessário.
— Oras, se não é meu melhor amigo que agora é meu cunhado — Aiden
provocou e recebeu um rosnado em retorno. — Vejo que ficar casado com
uma Trowsdale é perigoso. Esse não é o humor típico dos McFadden, meu
amigo. Por que está tão rabugento? Minha irmã tem tornado sua vida difícil?
Edward encarou Aiden e quis praguejar. Claro que a irmã dele estava
sendo difícil, o que se esperar de uma Trowsdale? Ela o estava quase
enlouquecendo em apenas dois dias. Ter que aguentá-la pela vida inteira iria
matá-lo antes dos quarenta.
— O que está fazendo aqui, homem? Pensei que não saía mais de casa.
— Minha mulher me expulsou. — Aiden jogou-se na cadeira e cruzou os
braços atrás da cabeça. — Ela acha que sou superprotetor. É um exagero,
claro, mas mulheres grávidas sempre exageram. E você, não deveria estar em
lua de mel?
— Eu estou. — Edward serviu um uísque. — Mas alguém precisa
trabalhar.
— Você podia tirar alguns dias. Sawbridge me disse que você veio
trabalhar ontem.
— Aiden, se você não tem nada para fazer, deixe-me cuidar dos
contratos. Não me admira que sua mulher tenha te mandando embora, você
não sabe ficar quieto.
— Os Trowsdale falam muito. Pensei que estava acostumado. Mas eu
queria mesmo falar com você, por isso te esperei aqui.
O conde estendeu um copo de bebida para o amigo e se sentou em um
sofá. Se Aiden tinha algo a dizer, aquilo poderia demorar. Ele tinha razão, os
Trowsdale eram falantes e irritantes, mas nada daquilo tinha sido sequer
notado por ele. Por que raios acabou casado com a dama menos convencional
que poderia escolher?
— Você vai ao evento de Riderhood? — Edward perguntou, antes que o
duque começasse sua ladainha.
— Não, não posso deixar Elizabeth sozinha à noite. É muito arriscado.
— Eu ofereceria Agatha para fazer companhia a ela, mas sua irmã quer ir
comigo.
Aiden franziu o cenho e bebeu um gole do uísque. Pelo visto, o
comportamento da lady não assustava apenas o marido.
— À casa de jogos de Riderhood? E você concordou?
— É um evento aberto para as damas. Ela está queixosa por ter ficado em
Londres, eu estarei lá. Não há riscos.
Ele não acreditava nas próprias palavras, mas não podia dizer ao duque
que levaria a esposa para um antro de perdição. Tinha que ao menos fingir ser
um marido zeloso.
— Certo, ela é sua esposa agora. Sua responsabilidade. Mas… sabe que
passei a vida cuidando dela, Edward. Ela é minha única família restante, já
que pretendo que minha mãe nunca retorne para a Inglaterra.
— Eu nunca deixaria mal algum acontecer a Agatha, Aiden — o conde
disse e se surpreendeu porque estava falando sério. Não estava tentando
convencer o duque sobre suas atitudes, estava expondo uma verdade. Edward
não permitiria que Agatha se ferisse ou sofresse mesmo se não estivesse
casado com ela.
— Então precisa me ajudar. Minha irmã, ela… algo aconteceu em Nova
Iorque.
— Algo?
Edward acendeu um sinal de alerta. Ajeitou-se reto no sofá e pressionou o
copo de vidro com força desproporcional.
— Eu percebi que ela estava diferente, quando retornou. Decidi investigar
por que ela se recusava a se abrir. Ficava fechada no quarto, agindo com um
mau humor que eu nunca tinha visto. E olha que eu estou acostumado ao
temperamento dela. — Finalizando seu drinque, o duque olhou para o fundo
de vidro por alguns segundos. — Eu mandei uma carta para meus criados nas
Américas. O mordomo da casa em que mamãe está disse que Agatha não
passou todos os meses lá. Que, depois de uns três meses, ela disse que
precisava respirar outros ares, fez as malas e se mudou para um hotel na
cidade.
A expressão nos olhos de Aiden deixou Edward preocupado. Sim, o
amigo era superprotetor e Elizabeth estava sendo sensata em ficar um pouco
longe dele, mas a história merecia atenção. Por que uma dama deixaria,
desacompanhada, a casa de sua mãe? Por que ficar em um hotel? Conjugado
com a perda do brilho do olhar de Agatha e com os pesadelos que ela teve
depois que se casaram, Edward tinha que dar crédito a Aiden. Algo
acontecera com ela.
— Myrtle fez algo contra ela?
A mãe de Aiden e Agatha fora exilada em Nova Iorque pelo filho, depois
de ter quase provocado a morte do seu enteado mais velho e de ter armado
uma situação para que o duque fosse visto comprometendo uma dama. Ela
era abominada pelos filhos, mas Edward sabia que ambos a amavam, apesar
de tudo.
— Os criados afirmam que não. Parece que ela fez amizades, passou a
frequentar alguns eventos em companhias duvidosas e se mudou.
— E ninguém pensou em te avisar? — Edward se levantou, um arroubo
exagerado em relação a um problema que não era dele. Se fossem seus
criados, estariam todos demitidos. Se sua irmã fizesse algo parecido, e ele
não fosse informado, mandaria decapitar alguns homens. — O que quer de
mim, Aiden? O que posso fazer?
O duque se levantou, deixando a mesa para o amigo. Ajeitou os papéis e
se aproximou de Edward.
— Descubra o que aconteceu. Minha irmã adora falar. Você é o marido
dela. Não deve ser difícil arrancar-lhe a verdade.
Aiden saiu pela porta e deixou Edward com mais dúvidas do que
respostas. Ele não precisava ter que se preocupar se algo grave acontecera
com a mulher com quem se casou. Tinha decidido que ia se casar por
negócio. Que sua esposa seria apenas alguém para acompanhá-lo e cumprir
um papel. Por que diabos tinha se metido ainda mais com os Trowsdale?
Agatha seria qualquer coisa, menos uma esposa decorativa. Ainda tinha essa
confusão das Américas. A forma mais simples de resolver seria apenas
perguntando a ela e esperando a verdade. Mas, se a verdade fosse um
problema, Agatha nunca revelaria a ele.
Sem vontade de pensar em nada daquilo, a melhor coisa a fazer era
trabalhar. Como os nobres conseguiam ocupar seus dias sem trabalho, ele
nunca saberia.

A GATHA MANTEVE distância do marido por dois dias inteiros. Evitou-o como
se ele estivesse com uma doença contagiosa. Foram dias tranquilos,
principalmente porque ela dormiu bem durante todas as noites. Teve sorte
também porque lorde Isaac não ficou muito tempo em casa e ela só precisou
confraternizar com pessoas no jantar. Apesar de estar em segurança, ela
estava solitária quando chegou a noite do jantar oferecido pelo Sr. Riderhood.
Estava segura porque não corria o risco de cair nos encantos de sedução
de Edward, e solitária porque ansiava por gente nova, por mulheres
interessantes que pudessem conversar assuntos diferentes com ela. Ela
ansiava pelo próprio marido, de quem estivera fugindo.
Moira ajudou-a com um vestido que trouxera das Américas. Os que
encomendara da modista ainda não estavam prontos e ela decidiu não a
apressar. Ninguém em Londres tinha visto aquele, então ela podia ir a um
evento que não estava sendo organizado pela alta sociedade. Olhou-se no
espelho e gostou do que viu. Os cabelos presos no alto da cabeça com uma
tiara de pérolas, brincos de pérolas, um pouco de pó no cabelo, uma
gargantilha de pérolas. Tudo combinava com o vestido amarelo e dourado
que tinha três camadas, bordado, seda, tule e renda.
Ela não parecia uma garota inocente e sentia-se bem assim.
Quando desceu as escadas, encontrou Edward esperando por ela. Ele
usava roupa de noite completa, mas não estava de fraque. Calça cinza, colete
preto com um bordado que parecia brilhar à luz, uma gravata branca
impecável e presa com um único alfinete perolado. Claro que ele sabia a
roupa que ela usaria, os criados devem ter contado para que ele se arrumasse
de forma a combinar com ela.
— Milady.
O conde segurou-a pela mão e beijou os nós dos dedos. Ele tinha a boca
quente e macia e ela quis sorrir para aqueles olhos azuis que pareciam ser
sempre verão.
— Seu irmão vai conosco? — ela perguntou, sendo conduzida para a
carruagem que os aguardava.
— Não, Isaac foi na frente. — Edward ajudou-a subir e sentou-se em
frente a ela. Bateu no teto para indicar que o cocheiro poderia seguir. — Você
está ciente de que esse evento não é como os que está acostumada? Que as
pessoas lá não são as damas da sociedade, e os cavalheiros não são tão
cavalheiros assim?
— Não estou — ela confessou, ajeitando as saias. O conde era muito
grande e as pernas dele encostavam nela. — Mas estou preparada para me
surpreender.
— Tente não sair de perto de mim.
O tom da voz dele era severo. Agatha quase podia acreditar que ele se
importava, que não agia daquela forma porque, entre os comuns, a
infidelidade era algo muito ruim. Eles estariam entre os plebeus e Edward
certamente preferia agir como eles.
Não havia ninguém para recebê-los na porta. O clube de Thomas
Riderhood era o mais exclusivo de Londres e contava com sócios muito ricos,
mas a maioria era da burguesia britânica. A nobreza já tinha perdido muita
riqueza e, como dizia Aiden, o mundo era dos investidores e negociantes.
Mesmo assim, a fama do clube garantia muito dinheiro para seu proprietário
e muita discrição para os sócios. A fachada de mármore, composta por
colunas imponentes, lembrava uma obra romana. Agatha se deslumbrou por
um momento, enquanto o marido a conduzia com relativa indiferença. Ele já
estivera ali tantas vezes que não se importava mais com a magnitude do
lugar.
— Bem-vindo, milorde.
Um empregado do clube os recebeu já dentro do hall de entrada. Edward
entregou a cartola a ele. Ajudou a esposa a tirar a capa e demorou dois
segundos olhando para ela, antes de suspirar.
— Obrigado, Anthony. Vá à minha carruagem depois, há algumas caixas
para você.
O homem, que tinha aparência de meia-idade, sorriu e agradeceu com um
gesto. O casal de nobres entrou no salão e Agatha se deslumbrou mais uma
vez com a beleza do lugar. Era mais amplo e decorado do que a maioria dos
salões das casas de Mayfair. Tinha candelabros pendurados e lustres que
ajudavam a manter o espaço muito bem iluminado, e estava repleto de
desconhecidos.
— Que caixas trouxe para o criado? — Ela demonstrou curiosidade.
— São doações. Algumas roupas que a esposa pode remendar para ele e
para os filhos mais velhos. Anthony é uma boa pessoa, mas os salários que
pagam aos criados são sempre muito baixos.
Agatha sorriu timidamente. A família McFadden era parecida com a dela.
Não era à toa que eram tão amigos.
— Vou apresentá-la a dois cavalheiros que estão com suas esposas —
Edward disse, chamando a atenção de Agatha. — Depois, elas se encarregam
de apresentá-la às outras damas. Nenhuma das duas é nobre, mas você pode
encontrar algum rosto conhecido por aqui.
— Acho que já encontrei. — Ela indicou um grupo de cavalheiros e uma
dama bastante eloquente entre eles. Edward riu. Era lady Caroline Eckley.
— Ela sempre está nesses eventos, adora a atenção masculina. Não mais
do que adora a si mesma. Desde que perdeu seu irmão, ela procura
incessantemente um protetor rico.
Agatha quis perguntar por que ela não se casava, mas já sabia a resposta.
Nem todas as mulheres foram feitas para o casamento, ela entendia. Lady
Eckley era uma mulher livre e não se importava com escândalos. Agatha a
admirava e a repudiava pelo mesmo motivo.

L ADY C AROLINE E CKLEY não era a companhia preferida de Agatha, mas foi
ela quem salvou a jovem da conversa tediosa da Sra. Fancy Thompson. A
mulher de meia-idade só sabia falar sobre as qualidades de seu marido e
sobre as riquezas que ele estava conquistando. Quando lady Eckley as
interceptou e arrastou Agatha para um canto, com uma desculpa qualquer, ela
suspirou de alívio por não precisar mais aguentar o discurso verborrágico da
esposa do Sr. Thompson, o relojoeiro.
— Com o tempo você se acostuma. — Lady Eckley ofereceu à Agatha
uma taça de champanhe. — Beba, fica mais fácil transitar entre os assuntos
menos divertidos.
A jovem bebericou um gole da bebida borbulhante e seus olhos
passearam pelo salão de baile. Oval, com piso quadriculado de preto e
branco, ornamentado com papel de parede em alto relevo e cheio de janelas,
o espaço era notável. Seu marido, no entanto, não estava à vista.
— Obrigada por me salvar — Agatha agradeceu. Ela detestava o
comportamento de lady Eckley, repudiando a forma libertina como ela se
portava, principalmente quando ela insistira em um relacionamento com
Aiden. Mas, depois de uma viagem para as Américas, havia muito do
comportamento de Caroline que Agatha passara a compreender. — A Sra.
Oglethorpe é divertida, mas…
— Ninguém aguenta ouvir Fancy Thompson por muito tempo. —
Caroline riu. — Então, Agatha… você voltou com tudo. Devo lhe dar os
parabéns pelo casamento.
— Obrigada, novamente.
As duas mulheres ficaram em silêncio por um minuto inteiro. Agatha
preferia não conversar, ela tinha muito a observar, mas não era possível
impedir Caroline de falar.
— Dentre todos os bons partidos de Londres, eu nunca imaginei que você
escolheria Edward McFadden. Ele é muito certinho para você. Mas, bem, já
deve ter descoberto que ele é um amante maravilhoso.
Agatha se engasgou com o champanhe e não deixou ninguém perceber.
As palavras de Caroline a atingiram no meio do peito como uma espada
afiada. Não, ela não descobrira que o marido era um “amante maravilhoso”
porque ela não se deixaria tocar por ele daquela forma. Também não fazia
questão de saber que Edward já estivera na cama com Caroline Eckley. A
sobrinha do marquês já deveria ter dormido com todos os homens de Londres
e Agatha preferia ignorância sobre a lista de seus amantes.
— Eu sou a filha de um duque, ele é um conde. Foi um bom negócio para
ambos. E eu não o escolhi, houve uma situação que nos conduziu ao
casamento.
Caroline riu. Ela devia saber que Edward não pretendia se casar com
Agatha antes do escândalo.
— Não quero ser sua inimiga, Agatha. Eu sou uma mulher de sangue azul
que despreza a aristocracia e faz tempo que percebo que você tem muito mais
afinidade com as pessoas comuns do que com a nobreza. Como eu. Sua
família é pouco tradicionalista, eu diria até progressista. Mulheres como nós
precisam se unir, temos que caminhar juntas para mudar algumas coisas.
— Mudar o quê?
Caroline quis prosseguir, mas fora interrompida pela chegada de dois
homens. Eles eram conhecidos dela e foram apresentados à Agatha como
Finley e Gregor. Daquela forma simplória, primeiros nomes, sem cerimônias.
Finley era loiro como palha de milho e Gregor tinha belos cabelos ruivos,
mas nenhum dos dois era bonito. Agatha era casada com o homem mais belo
daquele salão. Nenhum outro acabava lhe chamando a atenção.
Eles se aproximaram com clara intenção de cortejar as damas, já que
nenhum deles conhecia Agatha e não sabia que ela era comprometida. Ao
segurar a sua mão enluvada para beijar os dedos, Gregor notou o anel e deu
um sorriso torto. Mesmo assim, continuaram a conversar com animação,
principalmente com Caroline. O assunto dos homens era bem menos irritante
do que o de Fancy Thompson, e lady Eckley tinha fluência nos temas que
eles discutiam.
A conversa fora interrompida pela chegada do Conde de Cornwall. Com
uma presença masculina marcante e cheiro de tabaco, Edward colocou a mão
na cintura da esposa e sorriu. Sem dizer uma palavra, indicou que não
gostava daquela aproximação.

Q UANDO ESTAVA na casa de jogos de Riderhood, Edward geralmente bebia e


jogava. Depois que lady Bridget rompeu com ele, vivia embriagado e
cambaleando por entre as mesas. Naquela noite, no entanto, ele não
conseguiu prestar atenção nas atividades masculinas. Deixou sua esposa
conversando com a Sra. Fancy Thompson e a Sra. Annabelle Oglethorpe mas
manteve sobre ela vigilância constante.
Talvez ele parecesse controlador e obcecado. Agatha era uma jovem
inocente demais para aquele ambiente. Ela quis ir, ele garantiu que ela
deveria manter-se ao lado dele, mas ele também precisava circular pelos
espaços dos homens. Se ficasse andando com a mulher a tiracolo, seria visto
como um homem sem brios. Só que isso não o impediu de preocupar-se com
ela. Principalmente quando viu que Lady Eckley se aproximou.
Era muito fácil cair nas artimanhas da sobrinha do marquês. Edward ficou
de olho nas duas, conversando, enquanto fingia prestar atenção nos assuntos
de Oglethorpe e Sawbridge. Os dois falavam sem parar sobre negócios, seu
tema preferido nas conversas. Por sorte, o evento era um baile no salão
principal, que ficava no meio da casa de jogos, e não possuía obstáculos a
visão de nenhum ângulo.
Foi então que dois homens se aproximaram e agiram com desrespeito. Ele
não pode ouvir o que falavam, só não gostou que um tenha segurado as mãos
de Agatha e beijado uma delas. Que outro tenha sorrido para ela e que ela lhe
sorrira de volta. Achou muito desagradável que eles abordassem uma mulher
casada sem antes serem apresentados por um homem em comum. Aquele era
um costume até mesmo da burguesia, era uma questão de respeito.
Estava na hora de dar fim à conversa. Edward deu passos largos na
direção de Agatha e segurou-a pelo braço com dedos firmes. A esposa o fitou
com curiosidade e ele precisou inventar uma desculpa pela aproximação
possessiva.
— Poderia me conceder a sua primeira dança, milady?
Edward não sabia se queria mesmo dançar. Fazer aquilo com a própria
esposa era muito fora de moda, mas eles estavam entre as pessoas comuns,
apenas poucos aristocratas frequentavam os eventos de Riderhood. Naquele
espaço, dançar com Agatha era esperado e incentivado. Então ele
aproveitaria.
Foi pura sorte que ela aceitou o convite sem protestar ou dizer não.
Aproveitando a abertura, o conde conduziu a esposa para o centro do salão,
onde alguns casais já iniciavam a primeira dança. Edward segurou-a pela
cintura e girou com ela pela pista.
— Vão achar estranho ver você dançando comigo.
— Estão acostumados. — O conde ajustou a pegada, amoldando os dedos
ao redor dela. — Talvez eles não vejam maridos aristocratas dançando tão
intimamente com suas esposas, mas os costumes aqui são diferentes.
— Intimamente? — Ela franziu a sobrancelha e o encarou. Edward sorriu,
ela tinha uma expressão indignada que permanecera mesmo depois do que a
tinha afetado nas Américas.
— Próximos. — Ele levou a boca até a orelha dela e sussurrou: — Tome
cuidado com Caroline. Ela só se interessa por ela mesma.
— Sei me defender, Edward.
— Assim como estava se defendendo dos abutres que estavam sobre
você.
Ela deu uma risadinha.
— Está me comparando com uma carne podre, milorde?
— Claro que não! — Edward ergueu as sobrancelhas e a encarou. —
Você adora distorcer tudo que eu digo. Aqueles dois não valem o uísque
barato que bebem, eles não deveriam ter se aproximado de você sabendo que
era casada.
— Agora parece que está com ciúme. — Ela riu mais e Edward foi
preenchido por indignação. Claro que ele não tinha ciúme da esposa.
— Vou amanhã para Hampshire — ele desconversou, enquanto giravam
ao som da valsa. — Preferia que você não fosse, mas, se insistir, pode ir
comigo.
Agatha sorriu e sua face de iluminou como um dia de sol. Ela podia ser
linda e irritante ao mesmo tempo, luz e tormenta de um segundo a outro.
Quando Edward passou a ter tanta noção quanto a mulher que considerou
uma criança, ele não sabia.
— Eu insisto. Vou adorar respirar um pouco do ar do campo.
— Vamos ficar dois dias lá. Não tenho uma propriedade em Hampshire,
na verdade, estou comprando uma. Mas a casa senhorial está em reformas e
não há como ocupá-la. Teremos que ficar em uma estalagem. E vamos de
carruagem, não de trem.
Ela assentiu com um movimento de cabeça e não falou mais nada.
Edward podia sentir o medo que fazia o coração de Agatha disparar. Naquele
momento, ele teve ainda mais certeza de que Aiden não tinha exagerado
sobre a irmã. E, pior, ele suspeitava que o problema estivesse ligado à
intimidade entre um homem e uma mulher. Com a mão espalmada nas costas
dela, o conde tentou tranquilizá-la, mesmo que ela não expressasse nenhuma
emoção que sugerisse desconforto.
A valsa terminou e ele se despediu da esposa com um beijo nas costas da
mão. Naquela noite ele a deixaria em paz, mas, durante a viagem, daria um
jeito de convencer Agatha a se abrir. Edward precisava saber o que tinham
feito a ela, porque ele tinha certeza de que ela estava com medo das pessoas.
CAPÍTULO NONO

H AMPSHIRE ERA LINDA , VIBRANTE E QUENTE . A S LEMBRANÇAS QUE A GATHA


tinha da região eram as melhores, sempre ia acompanhada do pai e do irmão.
A propriedade dos Trowsdale ficava em uma área produtiva, tinha muitos
arrendatários e uma floresta que nunca fora explorada. Já dera muito lucro,
quando as fazendas eram o motor principal da economia. Com a
industrialização crescente, Crystal Place ainda era autossuficiente, mas não
era mais usada para lucro. A propriedade que Edward McFadden estava
adquirindo era ao lado, compartilhando a floresta com a dos Trowsdale.
Edward e Aiden pretendiam contratar pessoas capazes de potencializar o
uso da terra e da madeira, que seria extraída para reduzir os custos na fábrica.
Era uma estratégia inteligente, mas Agatha nunca duvidou que o marido fosse
esperto. Edward e Aiden eram uma dupla intrigante.
Ela estranhou que ele não tivesse aceitado a oferta de ficar na propriedade
dos Trowsdale. Crystal Place tinha uma casa grande e que estava vazia há
bastante tempo. Aiden jamais se importaria em cedê-la para que usassem
naquela viagem, mas Edward insistiu que deveriam ficar em uma estalagem e
ainda emendou que a viagem era dele, ela deveria seguir as suas regras.
Estranhou também que eles não viajassem de trem, para economizar tempo.
Edward inventara uma desculpa para ir de carruagem — seu vagão privativo
ainda não estava pronto. A família McFadden demorou a aderir à
modernidade de um vagão privado, mas se rendera ao luxo e à comodidade
alguns anos atrás. O Sr. Sawbridge, no entanto, encomendara um novo vagão
para eles, que ainda estava sendo reformado e adaptado. Aquele era um
argumento muito ruim, já que eles poderiam viajar na primeira classe. Ela
acabou suspeitando que o marido a estava punindo por ter insistido em ir com
ele.
Embolados na carruagem luxuosa da família McFadden, eles já estavam
na estrada havia duas horas. Em breve, parariam para trocar os cavalos e
descansar um pouco. Agatha estava com um vestido simples para a viagem.
Poucas saias, seda leve e com poucos bordados, sem usar luvas. Considerou
que, daquela forma, ocuparia menos espaço e teria mais conforto. Só que o
conde era muito alto e muito largo, fazendo com que seus esforços não
surtissem muitos efeitos.
As pernas dele estavam entre as dela. Os joelhos se tocavam. Mesmo que
Agatha tentasse permanecer indiferente ao contato, não era fácil resistir aos
encantos do próprio marido. Toda vez que ela desviava os olhos da paisagem,
ele a estava encarando. Fingia que não, mexia nas almofadas e cortinas, mas
logo os olhos azuis estavam sobre ela novamente. Ele sorria. Os dentes muito
brancos brilhavam, enquanto covinhas se formavam em suas bochechas. Um
homem tão devasso não podia ser tão lindo. Aquela era uma combinação
perigosa para ela, já que não podia ceder a ele.
— Vai continuar em silêncio pelas nove horas que faltam? — ele
perguntou, distraindo-a da contagem de nós no bordado de uma das
almofadas.
— Não imaginava que gostasse de me ouvir falar — ela zombou. — Mas
posso conversar sobre o que vamos fazer em Hampshire. Sobre madeiras,
florestas e aproveitamento do solo.
— Você não sabe dessas coisas. — O conde começou a desarrumar sua
roupa. Afrouxou a gravata e dobrou as mangas da camisa. Estava quente, mas
a temperatura dentro da carruagem aumentou.
— Li um ou dois livros desde que soube das atividades da fábrica. Eu
gosto de aprender as coisas e, quem sabe, não possa ser útil?
Edward fitou-a com curiosidade. Dobrou o corpo e pegou um dos pés da
esposa. Agatha pensou em protestar, mas ele moveu a cabeça pedindo que ela
confiasse nele. Tirou o sapato e começou a lhe massagear os pés. A jovem
jogou a cabeça para trás e se recostou melhor no assento. Ele tinha mãos
habilidosas.
— Agatha, tire da cabeça essa ideia de frequentar a fábrica. Lá é muito
perigoso para uma mulher.
— Eu sei cuidar de mim mesma.
Ela gemeu e se constrangeu pelo som que saiu de sua boca. Ele tocava em
pontos sensíveis do pé e do tornozelo que a distraíam até dos protestos que
queria fazer.
— Sei que sabe. Mas, ainda assim, é perigoso demais. Invente coisas
menos complicadas para fazer.
— Quero trabalhar com você. — Agatha fechou os olhos. — Ou também
posso aceitar o convite de Caroline e…
— Convite? — Edward deslizou as mãos para as panturrilhas dela.
Agatha sentiu como se os dedos dele contivessem o calor de dois sóis. —
Agora estou em dúvida sobre o que é mais perigoso. O que Caroline quer?
— Amizade.
O conde fez uma careta e continuou a massagem. Pegou o outro pé,
colocou sobre a perna, retirou o sapato e apoiou em sua coxa. Agatha esticou
os dedos e encostou, sem querer, em uma parte do corpo dele que não
pretendia tocar nunca. Ela encolheu a perna, nervosa, enquanto ele ria.
— Está tudo bem, Agatha. — A voz dele tinha um tom divertido, mesmo
que os olhos azuis estivessem cheios de desejo. — Você é minha esposa, não
tem nada de mais.
Edward ajeitou-a e manteve o olhar fixo nas meias pretas com bordado
cor-de-rosa que ela usava. Agatha fechou os olhos e tentou relaxar, mas seu
corpo não obedeceu. Os dedos tocaram novamente aquela parte masculina e
ela se surpreendeu em como estava rígida. Fora de controle, ela deslizou o pé
pela extensão da ereção do conde e se surpreendeu porque ele era enorme.
Como as mulheres podiam adorá-lo? Do jeito que Edward era grande, ele
deveria causar muita dor. Aquilo tudo nunca caberia dentro dela. De mulher
alguma.
Ela não conseguiu evitar. Continuou passando o pé de um lado para o
outro, sentindo o pulsar daquela masculinidade viril que parecia despertar
apenas por causa dela. Sentiu-se até mesmo orgulhosa porque o Conde de
Cornwall a desejava, porque ele a queria a ponto de expressar sua fome
daquela forma.
Depois de alguns minutos, ela percebeu que ele estava parado e que tinha
as duas mãos cravadas nas almofadas ao lado. Agatha olhou para ele, com a
cabeça tombada e os olhos fechados, a respiração pesada, o peito subindo e
descendo, e quis beijá-lo. Edward saiu do transe e segurou o pé dela com
suavidade, afastando-o de seu corpo.
— Calma, minha querida. — Ele beijou o pé, levando-o até os lábios. —
Vamos deixar essas brincadeiras para outro momento. Agora precisamos
trocar novamente os cavalos.
Ela se frustrou quando eles pararam. Edward passou as mãos pelos
cabelos e respirou fundo algumas vezes, levando vários segundos para deixar
a carruagem.

A MALDITA MULHER com quem ele tinha se casado o deixaria louco antes de
uma semana. Edward precisava seduzi-la e consumar o casamento. Precisava
prová-la para se livrar daquela tentação. Assim que ele dormisse com ela,
tinha certeza de que ficaria bem. Nunca precisou de uma mulher por mais do
que uma noite. Era o que lhe bastava.
O plano de viajar de carruagem transcorria bem, só que Edward suspeitou
que os ventos não estavam a seu favor. Ele queria puni-la e aproveitar o
momento para seduzi-la. Em uma viagem rápida, em um vagão cheio de
gente, não haveria oportunidade, mas Agatha fazia jogo duro. Mesmo que ela
já tivesse se rendido aos seus beijos, que ela quase o tivesse levado a um
orgasmo no meio da carruagem. Quando ele tentava ir adiante, ela se
esquivava, mas eles iriam passar aquela noite juntos. O conde já tinha
planejado ficar em uma boa estalagem, garantindo que o quarto deles tivesse
apenas uma cama de casal. Seria uma boa cama, ela não teria como escapar.
Durante o restante da viagem ela não falou mais nada. Depois de comer
os sanduíches que Edward levou para servir de almoço, Agatha cochilou por
quase uma hora. O conde ficou em silêncio vendo o céu escurecer e a noite
chegar. Ele a observava. Uma vez, dobrou o corpo sobre ela e ajeitou uma
almofada sob sua cabeça. Ela sorriu. Outra vez, retirou uma mecha de cabelo
de sua face. Voltou a lhe massagear os pés, garantindo que ela não o tocasse
em locais inapropriados. Quando a carruagem parou pela última vez, na
estalagem do Sr. Wakefield, ele estava exausto de resistir para não a
devassar.
— Venha, querida — sussurrou no ouvido de Agatha, provocando-a a
acordar. Ela estava sonolenta. — Chegamos.
— Chegamos aonde?
— Em qualquer lugar que tenha uma cama macia e uma comida quente.
Venha, deixe-me ajudá-la.
Edward passou o braço pelas costas da esposa e levantou-a. Depois, fez
com que ela esperasse sentada em um sofá enquanto negociava o quarto com
o estalajadeiro. O Sr. Wakefield era um velho conhecido do conde, que
sempre se hospedava ali quando precisava ir a Hampshire. O quarto que ele
escolheu, daquela vez, era mais elegante e bem aparelhado do que os que
geralmente ficava. Ele tinha uma esposa para acomodar.
— Eu preciso me lavar — ela disse, ainda zonza de ter sido despertada
subitamente.
— Vou pedir que mandem água quente e que tragam a banheira portátil.
Verei também o que tem para comer.
O conde deixou a esposa no quarto e desceu. Ele também estava exausto
e adoraria uma refeição quente, mas tinha que cuidar dela primeiro. Solicitou,
na recepção, que preparassem um banho para Agatha e reservou a sala
privativa para que pudessem jantar. Escolheu algumas opções de pratos e
voltou para o quarto.
As criadas estavam saindo com baldes vazios. Deram alguns risinhos
quando passaram por Edward, um comportamento ao qual ele já estava
acostumado. Entrou no quarto e Agatha deu um salto, quase virando a
banheira e derramando toda a água pelo quarto.
— Edward, saia já deste quarto — ela esbravejou, tentando se cobrir com
os braços. A banheira era pequena, mas a acomodava quase que por inteira.
Mesmo assim, ela estava com os ombros de fora e os seios expostos.
— Não seja tola, eu nem estou prestando atenção em você. Quero
descansar, me lavar e comer.
Arrancando as botas e jogando-as de lado, Edward fingiu que não olhava
para a esposa e deitou-se na cama. Ela continuou parada por um minuto
inteiro, emitindo alguns sons que pareciam rosnados de fúria, até decidir
continuar seu banho. Enquanto esperava, o conde acabou pegando no sono.
Acordou com um toque macio e úmido em sua face. Piscou algumas
vezes e rosto apreensivo de Agatha apareceu em seu campo de visão. Edward
se sentou e viu que ela estava usando uma combinação de seda e uma camisa
por cima. Branco, rosa e lilás se misturavam naquela pele clara como marfim
e os olhos cintilavam sobre ele.
— Preciso de ajuda para me vestir — ela disse. — Não consigo ajustar o
espartilho e…
Edward piscou algumas vezes e se ajeitou na cama.
— Você não precisa de espartilho. Vou pedir que sirvam o jantar aqui em
cima.
Aquela era a melhor decisão. Depois de vê-la com as roupas de baixo,
pedir que ela se vestisse era um absurdo. Agatha cruzou os braços e fez uma
careta.
— Certo. Acho que está na hora de ir para seu quarto, milorde.
Edward deu uma risada. Ele ainda estava sonolento e morrendo de fome,
mas a ingenuidade de Agatha sempre o alegrava.
— Este é meu quarto, milady. Somos casados, acha que vou dormir em
outra cama, em uma estalagem qualquer?
Ela achava, claro. Agatha não queria nem mesmo imaginar que o marido
dormiria na mesma cama que ela por uma noite inteira. A expressão de
Edward indicava que ela não tinha escolha, a não ser que decidisse dormir na
recepção.
— Vou pedir que sirvam o jantar aqui e me lavar.
O conde saiu do quarto e voltou minutos depois, seguido de algumas
criadas com baldes de água quente. A banheira foi esvaziada e enchida
novamente e, depois que as mulheres saíram, ele começou a se despir.
Agatha se encolheu na cama. Ela nem mesmo tinha trazido um livro para
fingir que lia. Edward tirou a blusa, exibindo suas costas musculosas, e
deixou a calça cair ao chão logo em seguida. Ela sentiu a boca seca e seu
coração disparou. Aquela era a primeira vez que via um homem nu. Mesmo
com sua experiência horrível em Nova Iorque, quando foi deflorada por um
aproveitador que a enganou e se aproveitou de sua ingenuidade, tudo
acontecera no escuro. Ela não o vira e estava afetada pelo álcool.
Naquele momento, Agatha estava muito consciente da nudez do marido.
Edward tinha pernas bem torneadas, cobertas por pelos, assim como seus
braços eram. Ele tinha pelos por todo o corpo, bem diferente dela. Sua bunda
era perfeita. Por sorte, ele estava de costas e não a percebeu admirando-o.
Quando ele entrou na banheira e se cobriu, ela foi preenchida por frustração.
Agatha precisava se lembrar de que ela não podia ter Edward.
— O que faremos em Hampshire? Você disse que precisa inspecionar
uma propriedade — ela disse qualquer coisa, querendo distrair-se.
— Fica ao lado de Crystal Place. Preciso confirmar se a floresta pode ser
utilizada para extrair madeira, se o corte das árvores pode ser feito de forma a
atender nossa demanda. Há um especialista lá, esperando por mim. Enquanto
isso, você pode passear pela vila.
— Ah, claro que não. — Ela se encolheu na cama, olhando fixamente
enquanto Edward se lavava. A forma como ele passava as mãos ensaboadas
pelo corpo. Os dedos entre os cabelos loiros, a espuma escorrendo para fora
da banheira. — Eu vou com você, eu quero participar de tudo.
O conde abriu a boca para protestar no instante em que bateram à porta.
Agatha pulou para atender as criadas que traziam o jantar. Olhando para o
marido nu na banheira, ela mandou que deixassem as bandejas no corredor,
sobre o carrinho do serviço. Ela mesma se encarregou que colocar a comida
para dentro e dispor tudo em uma mesa redonda, coberta por uma toalha
ensebada.
A toalha não era tão ruim assim. O lugar era simples, mas adequado. Ela
estava apenas nervosa pelo que estava por vir. Se ao menos pudesse
conversar com Elizabeth. Se pudesse obter alguma orientação. Ela tinha
certeza de que, se passasse a noite ao lado do marido, ela não resistiria às
investidas de Edward.
Quando decidiu virar para o lado dele, o conde já tinha saído da banheira
e enrolado uma toalha de banho ao redor da cintura. Ela estava com a boca
seca e acabou bebendo um gole longo demais do vinho branco que tinha
acabado de servir. Percebendo que ele a incomodava, Edward virou de costas
e vestiu sua calça. Agatha foi preenchida com alívio, mesmo que a figura dele
úmido, despenteado e sem camisa não fosse muito alentadora.
O jantar seguiu em silêncio. Ela não quis insistir sobre ir com ele
inspecionar a propriedade. Ele não discutiu reafirmando que ela não ia. A
comida era simples, composta por uma sopa consistente e pão, uma carne e
batatas. Agatha brincou com a comida por mais tempo do que deveria. Ela
tinha fome, mas também tinha angústia. Parte porque ela desejava Edward.
Parte porque ela não entendia desse desejo. Parte porque ela tinha medo dele.
Ela podia até lutar com o que sentia, mas tinha carinho demais pelo
insuportável e arrogante conde que a impedia de jogar tudo para o alto.

E NQUANTO A GATHA NÃO TROUXERA nada para se distrair, o seu marido


parecia bem acostumado àquele tipo de viagem. Depois de comerem e dos
criados recolherem as louças e retirarem a banheira portátil do quarto, ele
deixou apenas um lampião aceso e se deitou com um livro nas mãos. A figura
do homem sereno, com um par de óculos, fez com que Agatha considerasse
ter se casado com duas pessoas diferentes. Com cuidado, ela se deitou ao lado
dele e se enfiou nas cobertas. Ajeitou o lençol ao redor do corpo para formar
uma barreira de proteção.
— Não se preocupe. Eu não vou violá-la no meio da noite, milady.
Era para ser uma brincadeira dele, mas a deixou nervosa. A simples ideia
de ser violada a assustava.
— Poderia ser ainda mais gentil e dormir em outro quarto.
Edward manteve o olhar fixo no livro aberto. Ela identificou que era
sobre o cultivo de árvores.
— Agatha, eu não vou sair daqui. Fique tranquila, você tem dormido
comigo toda noite e acordado ilesa. Eu não mordo.
— Eu não dormi uma noite sequer ao seu lado, milorde! — A jovem se
indignou e puxou a coberta para os ombros.
— Por quase uma semana, toda vez que você tem pesadelos, Agatha. —
O conde fechou o livro. — Quem você acha que fica com você até que os
tremores e gritos passem?
Agatha arregalou os olhos e o encarou, surpresa. Ela não se lembrava dos
pesadelos, nem de gritar, nem de tê-lo ao lado dela na cama. Sabia que,
depois de se casar, começara a dormir melhor. Uma noite depois da outra,
como se os pesadelos fossem arrancados dela.
Era ele?
Os olhos azuis de Edward engoliam toda a luz do lampião aceso. Em um
impulso, Agatha foi na direção dele. O conde pareceu confuso quando ela se
sentou em seu colo, passou as pernas ao redor do quadril e apoiou as duas
mãos no peito dele. Sua face adotou uma expressão sombria enquanto
esperava por ela.
Agatha não desejava intimidade com homem algum, mas aquele cuidou
dela. Preparou um quarto para ela dormir. Respeitou-a quando ela disse não,
mesmo sendo seu marido e podendo exigir que ela consumasse o casamento.
Aceitou as regras que ela impôs. A abraçou quando ela precisou. Foi
pensando em tudo de bom que Edward era e no quanto ela poderia perder,
nas palavras de Elizabeth e nas batidas do seu coração que Agatha decidiu
beijá-lo.
E contar a verdade, em algum momento.
Quando ela desceu a boca sobre a dele, Edward retesou. Logo, levou a
mão até os quadris dela e pressionou a carne com força demais. Agatha
gemeu ao ser puxada contra a pele quente do torso despido do marido no
instante em que ele forçava espaço para sua língua. Foi um beijo lânguido,
porque representava uma derrota. Ela não queria mais resistir.
Edward virou-se na cama. Deitou-a de costas no colchão e continuou a
beijá-la. Agatha se perdeu em algum lugar entre o desejo de tê-lo e o horror
das memórias. Sentiu os lábios do marido no seu queixo, depois descendo
para a orelha e voltando para a boca. Sentiu o peso do corpo dele sobre o
dela, o aroma de sabão misturado ao de pele masculina. Por um momento, o
passado recente parou de importuná-la. Edward era o homem que ela
conhecia pela vida toda.
Com mãos ágeis, ele desfez os laços da camisola e da combinação que ela
ainda não tinha tirado. Seus olhos tinham a cor do mar em tormenta e o vinco
em sua testa demonstrava que ele estava atento a ela. Às formas, ao corpo, às
reações da esposa. Com cuidado, ele abriu a camisola e arrancou a parte de
cima da combinação. Agatha sentiu um soluço apertar-lhe o peito.
— Deixe comigo — ele murmurou, a boca percorrendo a pele nua e
trêmula. — Eu sei fazer ser muito bom para você também, minha querida.
Ela acreditava. Ela queria e ela desejava que ele lhe mostrasse. Então o
passado voltou a assombrá-la. Edward puxou para baixo a calçola e passou a
língua pelo umbigo, descendo lentamente até enroscar-se nos cachos da
intimidade dela. Agatha se retraiu. Debateu-se sobre ele, encolheu-se na parte
superior da cama. O conde se sentou, respirando com dificuldade, e a
encarou.
— Certo, Agatha. Seu irmão disse que eu deveria descobrir isso de forma
sutil. Sei que os Trowsdale são arredios e que encurralá-la nunca vai fazer
com que me obedeça. Mas eu não tenho essa paciência toda. O que houve
com você durante essa viagem para as Américas?
— Eu não vou obedecer a você nunca, Edward — ela protestou, sentindo-
se impura, inquieta, desconfortável.
— Sei que não, mas não é o que me importa, agora. Quero a verdade.
Comece a falar. O que te fizeram, Agatha, para você agir dessa forma?
CAPÍTULO DÉCIMO

E L E SABIA . O U DESCONFIAVA . E LA , QUE JÁ TINHA DECIDIDO FALAR ,


precisaria revelar o segredo que carregava como um fantasma há meses.
Agatha puxou o lençol para cima dela e baixou o olhar. Concentrada em um
ponto escuro, ela respirou fundo e começou a contar. Quando a primeira
palavra saiu, foi como se um rio jorrasse de dentro dela.
— Aconteceu um mês depois que cheguei a Nova Iorque. Mamãe não
saía do quarto, eu não conhecia ninguém, e aquela família de empreendedores
era divertida, simpática e amorosa. Ao menos, era o que eu achava. Fui
apresentada a eles durante um pequeno evento e passei a frequentar a casa
principal. O pai é um industriário do ramo de perfumes. São três filhos, e o
do meio era fascinante.
Agatha ergueu o olhar ao notar movimento na cama. O marido se
levantara e estava enchendo um copo com uísque. Entregou a ela e incentivou
que ela bebesse.
— Ajuda a relaxar. Esse jovem “fascinante” tem nome?
Ela não notou de imediato o desdém no tom de voz de Edward.
— Gareth Bristol. Eu e ele tínhamos muito em comum. Gareth tinha vinte
e cinco anos, tinha acabado a faculdade e adorava jogos. Conversávamos o
dia todo, se deixassem. Nas Américas a sociedade é menos rígida com o
comportamento feminino. Mulheres até cavalgam com calças.
— Selvagem — Edward provocou. — Prossiga.
— Um dia ele se declarou para mim. Nós nos conhecíamos há semanas,
mas parecia que eram anos. Ele disse que pretendia me cortejar e que falaria
com Aiden sobre um possível casamento. E, outro dia, em uma festa na casa
deles, para a qual fui convidada, nós ficamos sozinhos. Em uma posição
bastante inadequada.
— O que esse moleque apaixonado fez com você, Agatha?
O tom de Edward era severo e embargado. Ele estava sentado sobre os
joelhos e parecia um leão prestes a atacar. Ela não sabia se ficava com medo
dele ou se aquela era uma posição de proteção.
— Ele, nada. Mas havia outros homens na casa, incluindo o irmão mais
velho, Colton. Ele era arrogante, eu nunca gostei dele. Mas Colton exercia
grande influência sobre o irmão e, quando percebi, ele tinha me embebedado.
Ele me serviu um ponche muito forte e…
Edward tinha o semblante severo. Ela estava olhando diretamente para ele
e podia sentir tensão no ar. Claro que ele, como homem, sabia o que tinha
acontecido em seguida. Claro que ele, como um devasso que já tinha deitado
com a maior parte das mulheres livres de Londres, sabia o que um homem
fazia depois de dar bebida a uma mulher.
— O jovem fascinante não fez nada a seu favor? Não interveio?
— Não. — Ela estava com a boca seca e bebeu mais um gole de uísque.
Edward tirou o copo da mão dela e bebeu o restante em um gole só. — Ele
deixou que o irmão dele me levasse para um quarto da mansão e me
deflorasse.
Era a primeira vez que ela falava aquilo. Nunca contara a ninguém sobre
o que lhe acontecera. Não verbalizou o que houve, nem no dia seguinte, nem
depois. Agatha emparedou o episódio como se pudesse esquecê-lo. Mesmo
depois que o bebê começou a crescer em sua barriga.
Foi demais e ela não aguentou. Um soluço alto calou sua voz e a jovem
começou a chorar. Seus ombros subiam e desciam enquanto as mãos
esconderam o rosto molhado e envergonhado de quem acabara de revelar
uma desonra com a qual ela não podia lidar. Se tivesse sido mais esperta. Se
não tivesse se deixado seduzir pelo amável e educado Gareth. Se não bebesse
o maldito ponche. Eram muitas hipóteses cujos desfechos ela não saberia,
pois não era possível retornar ao passado e mudar suas atitudes.
Enquanto chorava, ela sentiu os braços fortes que a amparavam. Era a
mesma sensação do sono, o mesmo conforto que encontrou depois dos
pesadelos que a desorientavam. Encostou a cabeça no peito firme de Edward
e deixou que as lágrimas lavassem sua dor.
E RA QUASE IMPOSSÍVEL DE ACREDITAR . Agatha não mentiria sobre uma coisa
daquelas, nem inventaria uma mentira tão absurda apenas para se livrar de
consumar o casamento. Naquele momento, tudo fez sentido. O retorno tardio
dela para a Inglaterra. A preocupação de Aiden. A ausência de brilho no olhar
dela. O “algo” que estava errado em Agatha era aquilo. Ela tinha sido
desonrada em Nova Iorque. Contra a sua vontade.
Algumas sensações passaram por Edward enquanto ela contava a sua
história. Primeiro, ciúme. Houve outro homem, ele a cortejou, ele a fascinou.
Isso o incomodou porque ele não era admirável para a esposa, enquanto ela
comentava de forma tão gentil sobre um moleque qualquer das Américas.
Depois, ele foi dominado pelo horror. A possibilidade daquela mulher
frágil e pequena ser abusada por um homem o deixou enjoado. Logo em
seguida, o horror se misturou à fúria em seu estado mais puro e Edward
pensou em navegar para Nova Iorque no dia seguinte, apenas para matar
Colton Bristol. Ele o mataria com suas próprias mãos se não lhe dessem uma
espada. Ele arrancaria o coração do vagabundo e depois o daria de refeição
para os corvos. Não havia lugar para onde o maldito tentasse fugir: o Conde
de Cornwall o acharia e daria fim à sua vida medíocre. Mas então ela
começou a chorar e tudo que restou dentro dele foi uma agonia enorme.
Ficou difícil de respirar e toda a raiva que ele sentiu se transformou em um
instinto de proteção. Ele envolveu Agatha em seus braços porque precisava
arrancar aquela dor dela. Precisava cuidar dela para que ela se sentisse
melhor.
— Sua mãe sabe sobre isso? — Edward sussurrou nos ouvidos dela,
sentindo que o pequeno corpo de sua esposa relaxava aos poucos.
— Ninguém sabe, só você. Eu nunca falei sobre isso, eu me sinto imunda.
O conde afastou Agatha de seu peito por poucos centímetros, apenas o
suficiente para poder olhar nos olhos dela. Passou a mão pelo rosto úmido e
ajeitou algumas pequenas mechas de cabelo que estavam fora do lugar.
— Agatha, entenda uma coisa. Um homem honrado nunca força uma
mulher a isso. Eu sou seu marido, poderia obrigá-la ao sexo e não o fiz.
Nunca um homem honrado deflora uma virgem, a não ser que seja para se
casar com ela. O que aconteceu com você não foi culpa sua. Você era… você
é tão inocente. Foi seduzida por um vilão e eu vou acabar com a existência
dele.
As palavras dele não fizeram com que ela se sentisse melhor. Agatha se
debateu nos braços dele e se soltou, virando de costas.
— Não conte isso a ninguém, Edward. Por favor. Não faça nada, não me
desonre ainda mais. Se quiser me devolver a Aiden, faça isso sem revelar
essa história. Não conte nada, invente qualquer coisa, mas não diga o que
aconteceu.
Ela voltou a chorar. Edward ficou entre o puro ódio por quem a fez ficar
naquele estado e a estupefação por ela achar que ele a devolveria.
— Eu não vou contar. — Ele tentou puxá-la de volta, mas ela resistiu. —
Shhh, Agatha, olhe para mim. Eu não vou falar sobre isso com ninguém. E
não vou devolvê-la a Aiden. Por que diabos acha que farei isso?
— Porque eu estou arruinada. Eu não sou…
— Não ligo que não seja virgem. — Edward fez com que ela se
acomodasse em seu colo. Envolveu-a com pernas e braços, fez com que ela
se deitasse novamente em seu peito. Passou as mãos pelos cabelos soltos,
revoltos, e beijou-a no topo da cabeça. — Bem, é mentira. Todo homem liga.
Não posso mentir e dizer que ser o seu primeiro não era o que eu esperava.
Mas eu não vou desfazer nosso casamento por isso. Mesmo que você não
tivesse sido enganada, mesmo que tivesse escolhido se entregar a esse…
traste humano. — O conde sentiu a bile subir até a boca e precisou respirar
fundo para controlar seu temperamento. — Eu, ainda assim, ficaria com você.
— Ninguém é tão bom a esse ponto. Nenhum homem.
— Você passou a vida inteira convivendo com homens assim. — Ele riu.
A mistura de indignação e sofrimento na voz dela o divertia. — Seu irmão
aceitou uma mulher com filhos. Seu pai nunca teria negado uma mulher
deflorada apenas por esse motivo. Pare de se culpar, Agatha. E não tente usar
isso a seu favor. Sei que está louca de vontade de se livrar de mim, mas eu
não vou a lugar algum. Casei-me com você e isso vai ter que dar certo.
Ela ergueu a cabeça e os olhos verdes como a esmeralda o fitaram.
Estavam vermelhos e afogados em lágrimas, mas ainda eram os olhos mais
lindos que Edward vira. Ele fez tudo errado desde o início. Comprometeu-a e
impôs a ela o casamento. Talvez Isaac estivesse certo e ele realmente achara
mais fácil apenas se casar com alguém conveniente. Agatha estava no lugar
certo e na hora certa, mas o conde não tomou aquela decisão consciente. E,
tirando o momento em que ele reformou o quarto dela, ele não tinha sido um
bom marido.
Não a levou em lua de mel, foi trabalhar no dia seguinte ao casamento,
irritou-se porque ela o rejeitara e o empurrava para longe. Sabia que ela
estava com problemas e, ainda assim, agiu como um bichinho ferido ao invés
de um verdadeiro marido. Agatha precisava dele, dos cuidados dele, da
proteção dele. Mas ela parecia não ligar para aquilo no momento. Ela parecia
desorientada e… deslumbrada.
Com aqueles olhos de fogo e gelo, que podiam atirá-lo no inferno ou
resgatá-lo aos céus, ela passou os dois braços pelo pescoço dele e o beijou
mais uma vez.

U M BEIJO . O turbilhão de emoções dentro de Agatha convergiu naquele


encontro de bocas. Um tanto desesperado, porém, repleto de informações
contraditórias e desejo. Ela o desejava, sim. Não conseguia se manter
indiferente à beleza física do marido, mas ele não era só um homem bonito.
Edward era o homem com quem ela sonhava. Cavalheiro, nobre, honrado e
capaz de aceitá-la com suas imperfeições.
Como Elizabeth estivera certa em suas orientações.
Mas ele ainda era Edward. O insuportável e arrogante melhor amigo do
irmão. E ela ainda estava ferida demais para aceitá-lo. Era irritante que ele
soubesse isso melhor do que ela. O conde a segurou pela cintura, devorando-
a com a boca e com a língua, enviando sensações distintas para partes ainda
não atingidas do seu corpo, e deitou-a na cama. Beijou-a nas bochechas, no
nariz, no pescoço, acariciou os seios desnudos dela com as mãos e soltou um
gemido que mais pareceu um rosnado.
— Ah, Agatha. — Ele riu, deixando-a confusa. Ele não deveria estar
achando graça do momento e o sorriso dele fazia com que ela também
desejasse sorrir. — Eu vou segurá-la agora em meus braços e você vai
dormir. Já liberamos muitas emoções por hoje.
— E você espera que eu simplesmente ignore a erupção que despertou em
meu corpo, vire para o lado e feche os olhos?
O protesto dela era sincero. Empurrando as memórias ruins para o fundo,
tudo que sobrava era a consciência da magnitude do marido ao seu lado. E
sim, ele era magnífico.
— Fico honrado em saber que despertei uma erupção em você, minha
querida. — Ele estava ainda sobre ela e roçou aquela barba indecente no
pescoço de Agatha. — Mas, agora que entendo suas restrições…
Ele desceu a boca até o colo da esposa, passou a língua pela pele lisa e
encostou os lábios em um dos seios. Agatha se encolheu, o corpo dela
tremeu, ela se esforçou para relaxar sob o toque dele.
— Não quero que seja assim. — Ele se afastou. — A sua primeira vez
precisa ser melhor do que isso.
Edward rolou para o lado e puxou-a para seu peito. Ela ainda tremia,
desorientada. Queria ser arrebatada pelo marido, mas não conseguia evitar o
horror.
— Essa não seria… a primeira vez.
— Seria. — Ele riu. — Quando acontecer você verá que eu tenho razão.

A GATHA DORMIU uma noite inteira sem pesadelos. O conde não a deixou por
nem um minuto durante a noite. Ele a embrulhou no lençol, como se ela fosse
um bem precioso, e a manteve em seus braços durante toda a madrugada.
Quando a manhã chegou, ele pouco tinha dormido e estava exausto de lutar
contra o desejo de possuí-la.
Claro que ele se importava com virgindade, mas não o suficiente para que
ele deixasse de querer a sua esposa. Edward não entendia quando aquele
sentimento aflorou. A desilusão com o abandono de Bridget não o deixou
vulnerável. Edward não era vulnerável. O que ele sentia por Agatha não
podia ter surgido em uma semana.
Quando Isaac sugerira que ele nutria sentimentos pretéritos pela irmã do
melhor amigo, Edward riu da cara dele. Ele estava errado, completamente
equivocado. No entanto, ele ainda não entendia o que havia ali. Naquela
cama. Naqueles dois corpos que estavam próximos e, ao mesmo tempo, tão
distantes.
Vestiu-se com roupas de cavalgada e desceu para conferir os cavalos.
Usava calça de camurça bege e botas, camisa branca e colete. No restaurante,
encontrou seu contato em Hampshire esperando por ele. Chal Wareham,
como preferia ser chamado, era filho de pai cigano e mãe nobre. Uma jovem
lady que se encantara pelo homem moreno e sedutor que cruzou seu caminho.
Ela fugiu para se casar com o rom, mas morreu no parto do segundo filho.
Chal, cujo nome gadjo era Gerard, viveu entre dois mundos distintos por
muito tempo.
Mesmo que a família da mãe a tivesse deserdado, um tio quis conhecer a
ele e ao irmão. Os dois foram acolhidos pelo Visconde de Lockley e
frequentavam alguns eventos sociais. Chal era muito bom com negócios e
administrava de forma exemplar as propriedades que herdara do tio, por
testamento. Ele tinha sido o indicado para auxiliar o Conde de Cornwall com
a aquisição da propriedade em Hampshire e com o corte e plantio de árvores.
— Bom dia, milorde. — O cigano fez uma reverência forçada ao ver
Edward chegar.
— Bom dia, Sr. Wareham. O senhor pode me acompanhar hoje até o
terreno? Preciso verificar a viabilidade de meu empreendimento com alguma
pressa. Meus fornecedores estão sendo especialmente difíceis.
— Eles sempre são, milorde. Pretende ir a cavalo? A distância é
desafiadora, mas o acesso de carruagem é prejudicado. Como o senhor está
adquirindo a propriedade, creio que deverá providenciar muitas reformas no
casario principal, nas estradas e reconsiderar a permanência dos
arrendatários.
Edward sabia que o proprietário anterior detestava arrendatários. O
homem morreu desprezando as pessoas que julgava inferiores a ele e acabou
que suas terras não afetadas ao título foram todas leiloadas por causa das
dívidas deixadas. Ele pretendia mudar aquilo.
Um criado trouxe chá e bandejas com um desjejum para duas pessoas. O
estalajadeiro já sabia como Edward gostava de seu desjejum e era por aquele
motivo que o conde sempre se hospedava no mesmo lugar. Ele apreciava
rotina e estrutura.
— Vamos comer — Edward decidiu. — Depois, encaramos o trajeto a
cavalo. Aproveite e me mostre os arredores. Eu não conheço todos os
caminhos para a propriedade.
Chal concordou e os homens comeram a refeição sem conversar muito.
Edward não era falante, o cigano parecia desconfiado. Depois de dois pratos
de ovos, presunto e carnes, e três pães, o conde estava alimentado o suficiente
para a tarefa que o aguardava.
— Sr. Wareham, peço que me aguarde no pátio. Preciso falar com minha
esposa, antes.
— Fiquei sabendo que se casou recentemente. Minhas felicitações.
O conde agradeceu e voltou para o quarto. Ele pretendia sair sem falar
com Agatha e evitar um confronto, mas não conseguiu. O bem-estar dela o
preocupava. Ele tinha que saber se ela já estava acordada e se estava bem.
O RUÍDO da porta fez com que Agatha se sobressaltasse. Ela esperava vestir-
se e encontrar o marido no andar de baixo, mas ele apareceu no quarto antes
que ela pudesse terminar de se lavar e arrumar o vestido.
Estava envergonhada pela noite. Sua vulnerabilidade fez com que ela
agisse de forma impulsiva com o marido. Ficara sensível demais depois de
revelar a verdade sobre seu infortúnio nas Américas, mesmo que não tenha
sido toda a verdade. Achou desnecessário falar sobre o bebê. Edward nunca
descobriria que ela já tivera uma criança, um natimorto. Ela não precisava
revelar aquela dor. Agatha sabia que era como a mãe. Ter filhos não seria
uma tarefa fácil para ela.
Quando ele entrou no quarto, com os cabelos impecavelmente penteados
e o colarinho com dois botões abertos, ela sentiu calor. Suas bochechas
ficaram rosadas pelo fluxo excessivo de sangue naquele local.
— Bom dia. — Edward lhe sorriu. Ele carregava uma bandeja, que
apoiou sobre a mesa. — Trouxe seu desjejum.
— Não precisava fazer isso, eu pediria a uma criada.
— Sei que não precisava. — O conde andou até ela e assumiu a função de
ajustar o espartilho. A ideia de estar quase nua na frente dele à luz do dia a
constrangeu. — Mas eu quis saber como estava antes de sair.
Edward terminou de ajustar as faixas do espartilho e afastou-se, fazendo
com que ela sentisse sua ausência. Não era digno sentir desejo por ser tocada,
mesmo que aquele homem fosse seu marido. Havia ainda segredos entre eles
que não podiam ser revelados e que os manteriam afastados, no final de tudo.
— Você não vai mesmo me levar, Edward? Eu não quero ficar aqui
sozinha. Quis vir para Hampshire para participar dos eventos.
— Minha querida, o que vou fazer agora não é uma atividade para uma
dama. Vamos de cavalo até a propriedade, é um trajeto longo e difícil.
— Quero ir mesmo assim. Eu tenho calças, Edward. Comprei nas
Américas. Eu posso cavalgar muito bem.
A expressão do conde era indissolúvel. Ao mesmo tempo que ele não
pretendia deixá-la ir, ele parecia não saber como impedi-la. Agatha não era
uma mulher fácil de dissuadir.
— Minha mulher não vai sair por aí usando calças — ele rosnou. — Eu
sou um conde, um nobre que já não tem muito respeito da sociedade por
causa das minhas amizades. Se não consigo controlar nem a minha esposa…
— Você não consegue me controlar. — Ela cruzou os braços, entrando na
frente dele. — Por favor, leve-me com você. Deixe-me ao menos me vestir
para que possa ver como fica.
Agatha não esperou que ele concordasse. Abriu a mala e pegou as roupas
de cavalgada que trouxe das Américas, vestindo-as com alguma velocidade.
A vantagem daquele tipo de vestimenta era a praticidade. Sem as saias que
prejudicavam o equilíbrio e sem o excesso de laços e enfeites. Quando o
marido olhou para ela, abriu a boca em estupefação.
— Céus. — Edward se engasgou duas vezes antes de conseguir falar. —
Você definitivamente não irá conosco nesses trajes.
O conde passou as mãos pelas bochechas dela. Agatha estava irritada,
mas o toque a fez sentir a eletricidade percorrendo suas veias. Com um
sorriso, ele depositou um beijo breve em seus lábios.
— Estarei de volta assim que puder. Vá visitar a vila. Temos coisas a
conversar, minha querida, mas eu preciso resolver essas questões, primeiro.
Ele saiu do quarto, deixando-a indignada pelo desdém com suas boas
intenções. Agatha nunca entenderia Edward e seu comportamento ambíguo.
Um homem ora gentil e sedutor, ora insuportavelmente arrogante. Mas ela
iria atrás dele. Primeiro comeria o desjejum, depois conseguiria um cavalo e
um guia.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

E SPERAR E OBEDECER NUNCA FORAM AS PALAVRAS FAVORITAS DE A GATHA .


Depois de comer, a condessa desceu, de calças, e solicitou que alguém a
conduzisse até seu marido. Sua postura da realeza, conjugada com a
prepotência de um metro e meio de altura, amedrontava os criados. O
estalajadeiro explicou que eles não poderiam a ajudar, e ela ameaçou sair
sozinha a cavalo atrás de Edward. Quando disseram que não selariam um
cavalo, ela disse que não precisava de sela.
Claro que conseguiu o que queria. Em menos de vinte minutos, estava
montada em um mestiço avermelhado, sendo guiada por um dos criados da
estalagem. O proprietário achou mais prudente garantir a segurança da lady
do que arriscar que ela se colocasse em perigo. Agatha o faria, porque ela
estava chateada com Edward. O marido não deveria tê-la abandonado. Não
era porque ele a tinha aceitado, mesmo conhecendo seu segredo mais
obscuro, que poderia mandar nela. O conde não iria tratá-la como uma posse
ou como uma criança. Ela queria tomar parte de tudo, não estava a fim de ser
uma condessa fútil interessada apenas em eventos e vestidos. Ela queria mais.
A visita à fábrica foi o marco. A partir de então, Agatha descobriu coisas
novas para motivá-la, e, naquele dia, seguindo o criado, ela continuava tendo
ideias que pretendia compartilhar com Edward quando estivessem juntos, à
noite. Depois de uma cavalgada de pouco mais de meia hora, eles chegaram à
floresta onde o conde estava com o cigano Chal Wareham, a quem ela ainda
não conhecia.
A O VÊ - LA CHEGAR , Edward baixou a cabeça em desalento. Ele estava sobre o
cavalo e conversava com o homem ao seu lado. Parou o que fazia e caminhou
na direção da esposa.
— Eu não acredito — Edward rosnou, olhando desconfiado para o criado.
O homem arregalou os olhos e manteve-se em silêncio. Falar poderia ser pior
do que calar. — Você não vai conseguir fazer nada do que eu peço, Agatha?
Mesmo quando é para sua segurança?
— Sei que estou mais do que segura ao seu lado. — Ela sorriu, tentando
desarmá-lo. Edward suspirou e dispensou o criado com um gesto de cabeça.
— E eu não sou muito de obedecer, você sabe.
— Venha aqui, suba no meu cavalo e fique comigo.
— Não seja tolo, Edward. Sei cavalgar muito bem e posso te acompanhar.
O conde parecia que explodiria. Sua face estava tão vermelha e sua
expressão era de tanta irritação que Agatha teve medo de que ele a colocasse
de castigo, trancada em uma torre escura, mas ele não falou mais nada e
retornou para sua conversa com o Sr. Wareham. Observando-os, ela
conseguiu entender que discutiam sobre a necessidade de cortar algumas
árvores, em períodos específicos, para garantir o crescimento ordenado da
floresta. Também, sobre não exagerar na produção de madeira, para não
comprometer o tempo de crescimento das árvores. O cigano projetou algumas
estimativas de produção, números que ela não compreendeu, mas que
deixaram Edward animado.
— Agora, se tiver interesse, podemos ir até a madeireira que fica na
propriedade do lado — o Sr. Wareham convidou. — O proprietário é meu
amigo, lorde Westhouse.
— Ele tem interesse em vender? — Edward considerou.
— Talvez sim, talvez não. Acho interessante conversarem, até porque ele
pode ser um prestador de serviço.
Agatha estava atenta, e Edward a encarou com faíscas saindo do azul de
seus olhos. Eles brilhavam mais que o céu claro do verão. O marido segurou
as rédeas do cavalo dela com uma das mãos e se colocaram a cavalgar lado a
lado, seguindo o Sr. Wareham. Já estavam vendo a serraria quando um
barulho ensurdecedor a fez encolher sobre o cavalo. Tudo aconteceu muito
rápido.
O ruído de algo se rompendo, seguido de uma explosão, assustou os
cavalos. Agatha tomou as rédeas e controlou o mestiço no qual estava
montada, mas jogou-se ao chão ao ouvir o barulho que se seguiu, lembrando
o som de vários estampidos. Ela não conhecia nada que produzisse disparos
tão próximos, em velocidade tão acelerada. Gritos de homens se misturaram
ao som, que pareceu durar uma eternidade. O cavalo de Edward disparou na
direção oposta à que eles estavam, mas sem o conde em seu lombo.
Quando Agatha conseguiu sentar-se sobre as pernas e olhar ao redor,
havia peças de metal cravadas em partes das árvores próximas a eles. O Sr.
Wareham estava desmontando e correndo na direção dela. Foi quando
percebeu que não ouvia nada. Ele gritava alguma coisa e apontava, mas ela
não conseguiu compreendê-lo. Até que viu seu marido caído ao chão,
desacordado.
Ela se arrastou até ele. Havia um ferimento em sua cabeça, não dava para
saber se ele estava vivo ou morto. Agatha quis vomitar, chegou a sentir a bile
em sua língua, mas já tinha enfrentado coisas piores do que aquilo. Deitou a
cabeça sobre o peito de Edward e sentiu um soluço lhe rasgar a garganta ao
perceber que o coração dele batia.
— Edward. — Ela colocou a cabeça dele em seu colo. — Edward,
acorde.
O cigano ajoelhou-se ao lado dela e a sacudiu pelos ombros. Ele falava,
mas ela não ouvia nada. Sua cabeça estava doendo e ela percebeu que sangue
vertia da testa. Passou a mão e os dedos tingiram de vermelho.
— Não estou ouvindo — ela gritou para o rom. — Ajude-me a tirá-lo
daqui.
Balançando a cabeça, o homem não entendeu o que ela pretendia. Agatha
levantou-se, ágil por causa das calças de montaria, e agarrou as rédeas do seu
cavalo, que estava ali, ainda.
— Coloque-o sobre o cavalo. — Mais gritos. Os sons eram zumbidos
insuportáveis que lhe causavam dor de cabeça, mas ela precisava levar
Edward para algum lugar seguro. Ajoelhou-se novamente sobre ele, enquanto
o cigano considerava se fazer o que ela pedia era razoável.
— A senhora não aguentará conduzi-lo — o Sr. Wareham disse, tentando
dissuadi-la de suas intenções. Agatha ainda não conseguia ouvi-lo, nada iria
impedi-la de fazer o que decidira. Com uma calma que não lhe era comum,
encarou o rom e pronunciou as palavras bem devagar.
— Eu vou montar. O senhor vai colocá-lo montado na minha frente. Ele
vai tombar sobre o cavalo e eu vou segurá-lo da melhor forma. Venha atrás
de mim, nós o recompensaremos pela ajuda. Estamos indo para Crystal Place,
fica a poucos quilômetros daqui.
Ela fez o que disse, montando com destreza no mestiço ainda um pouco
agitado pelos barulhos. O rom balançou a cabeça mais uma vez, porém
ergueu Edward e, com muito esforço, conseguiu colocá-lo sobre o cavalo. O
conde era um homem grande demais, a sorte era que o Sr. Wareham o
ultrapassava em força bruta.
Batendo as botas nos flancos do cavalo, Agatha fez com que ele iniciasse
um trote leve. Demorariam bastante para chegar, mas evitariam uma correria
que faria com que Edward caísse. O rom foi atrás dela, também trotando.
Enquanto Crystal Place ficava mais próxima cada pisada das ferraduras na
terra úmida, o coração dela retumbava no peito.
— Não morra, Edward McFadden — a jovem rosnou, dobrando o corpo
sobre o marido. — Faça o favor de ficar vivo, eu não aguento mais perder
pessoas.

D OR FEZ com que Edward mantivesse os olhos fechados, mas ele estava
desperto há minutos sem saber onde estava ou o que tinha acontecido. Um
pouco desorientado, piscou algumas vezes e quis levantar o corpo, mas foi
impedido por mãos suaves. Ele tinha certeza de que era Agatha quem o
amparava, até porque a voz lírica dela brincava em seus ouvidos.
— Calma — o sussurro fez com que os pelos de sua nuca se arrepiassem.
— Não se agite.
Agatha falava com suavidade. Não parecia a jovem irritante que
cavalgara até a floresta, acompanhada de um criado qualquer, apenas para
desafiá-lo. A delicadeza do seu toque o fez voltar a fechar os olhos. Ela
passava o pano úmido pelo peito dele, pela barriga, limpando-o e
refrescando-o. Edward se sentia quente.
— Onde estamos? Na estalagem?
A voz dele saiu baixa, grave demais.
— Não. Quando te vi desacordado, trouxe você para Crystal Place. Este é
meu quarto, você está na minha cama. Não é um problema, afinal, somos
casados.
— Você me trouxe?
— Claro. Quem mais se importaria com sua saúde a ponto de cavalgar
com um homem desacordado?
Ela sorriu e ele virou o pescoço para vê-la. Havia uma mancha roxa na
testa de Agatha. Estava inchada e marcada com uma linha avermelhada que
parecia ser sangue. Edward quis erguer o braço para tocá-la, mas ela o
segurou.
— Também fui atingida. Isso não é nada, nem está doendo.
— Você podia ter morrido, Agatha! — Edward rosnou, a dor de cabeça se
mostrando insuportável ante o ato. — Por isso eu a queria segura na
estalagem. Ai.
A esposa estava limpando muito perto do ferimento que ele tinha na
cabeça. A boca dela estava fechada em uma linha fina, enquanto se
concentrava no que fazia.
— Vou pegar láudano para você. O médico deve chegar daqui a pouco.
— Não quero me dopar. Quem vai cuidar de você? E não preciso de
médico.
Agatha não ouviu, ou fingiu não o ouvir. Ela se levantou e voltou com
uma garrafinha de vidro cheia de líquido marrom com cheiro alcoólico. A
mão nos quadris indicava que ela não tinha a menor intenção de se importar
com a vontade dele. Sua expressão dizia “beba”.
Com cuidado, a esposa ajeitou alguns travesseiros nas costas dele.
Edward foi erguido e acomodado por uma mulher que era a metade do seu
tamanho, mas que demonstrava serenidade e força. Ela entregou a garrafinha
de láudano e o fez beber todo o conteúdo. Aos poucos seus músculos
relaxaram e a dor ficou mais tolerável. Ele então ergueu a mão direita e
tocou-a no ferimento da cabeça.
— Ai — Agatha reclamou e segurou-o pelos dedos.
— Dói. Você mentiu, disse que não doía.
— É porque você tem a mão pesada. Parece um bruto. Vou pegar algo
para você comer.
Ela saiu de perto dele, deixando-o confuso pelo ópio e solitário. Edward
fechou os olhos e esperou até que ela retornasse, despertando quando o ruído
de metal em louça precedeu ao cheiro delicioso de uma sopa.
Ele quis olhar para Agatha e confirmar que a única mácula nela era
aquela ferida na testa. Sua esposa usava um vestido simples de seda verde-
esmeralda com renda, sem espartilho. Ela tinha o cabelo castanho preso em
um coque alto e alguns fios escapavam pelas laterais. Sua expressão era de
exaustão.
— Você vai comer e descansar. Fui informada pelo criado que o médico
não poderá vir hoje. Ele chegará amanhã, então precisa recuperar suas forças.
Dando ordens como um general, ela se sentou quase no colo de Edward e
passou a alimentá-lo. Ele não tinha opinião ou escolha, apenas obedecia.
Abria a boca, aceitava o que ela oferecia, se encantava com a doçura e a
firmeza que ela conseguia fazer naturais quando juntas. Talvez Edward
estivesse fascinado, naquele momento. O vinco no meio dos olhos dava a ela
uma expressão séria. Os cabelos caindo pelos ombros era uma visão sensual.
Enquanto ela limpava a boca dele ao final da refeição, Edward quis jogá-la na
cama e beijá-la. Ele nunca quis tanto beijar alguém quanto ele queria beijar a
sua esposa naquele momento.
Só que não podia. O láudano o derrubou depois de meia hora. A última
coisa que Edward viu foi Agatha puxando as cobertas sobre ele.

— O QUE HOUVE ? Você sabe dizer o que aconteceu lá?


Elizabeth ouviu a voz preocupada do marido e foi até o escritório do
Duque de Shaftesbury. Havia um mensageiro com um telegrama ditado às
pressas e Aiden parecia bastante incomodado com o seu conteúdo. Ele
sacudia o papel e girava no próprio eixo.
— Não sei, milorde. Fui apenas solicitado para que lhe informasse do
ocorrido, parece que foi um acidente com uma serraria.
Ela se aproximou de Aiden. Assim que a viu, o duque parou de rodar e
envolveu-a nos braços, amparando a barriga redonda com as duas mãos.
— Meu amor, você não deveria estar perambulando por aí.
— Se eu não andar, a criança não vai nascer nunca. — Elizabeth riu. —
Diga, o que está acontecendo? Por que está nervoso? Aconteceu algo com
Agatha?
— Com Edward. — Aiden entregou o bilhete à esposa. — Ele se feriu e
eles foram para Crystal Place.
— Você precisa ir até eles — Elizabeth disse, sentando-se na cadeira do
marido para ler o bilhete. — Sua irmã é muito inexperiente para enfrentar
esse tipo de situação sozinha.
— Não posso deixar você aqui, Elizabeth. Essa criança pode nascer a
qualquer momento. É muito arriscado e eu quero acompanhar o nascimento
do meu herdeiro.
— Tem razão. — Ela respirou fundo. — Céus, precisamos fazer algo.
Uma figura pequena e magricela entrou pelo escritório e apoiou as duas
mãos na mesa de mogno.
— Eu vou até tia Agatha — Patrick disse. A sua expressão, adulta demais
para um menino de oito anos, era de quem estava disposto a ajudar.
Elizabeth sorriu e levou a mão para afagar o filho. Patrick não convivera
muito com Agatha, mas era grato todo dia por ela tê-los resgatado na estrada,
tê-los vestido, alimentado e defendido quando todos os tratavam como
pessoas inferiores. E porque ela interferiu para que a mãe se casasse com o
duque, provendo a eles uma vida de qualidade.
— Meu filho, você é muito jovem. Se fosse a Hampshire, o que faria para
ajudar?
— Eu faria companhia a ela. Poderia pegar coisas. Cumpro bem as ordens
que me dão.
Antes que uma decisão pudesse ser tomada, o escritório foi novamente
invadido. Daquela vez, uma mulher de vermelho, com cabelos escuros soltos
sobre os ombros expostos. Atrás dela, vinha John, que tentava em vão
impedir Caroline Eckley de entrar na área privativa do Duque de Shaftesbury.
— Oras, temos uma linda reunião familiar, aqui — ela disse. — Olá,
Aiden. Vejo que seu herdeiro deve chegar a qualquer momento.
O duque se colocou à frente de Elizabeth, mas ela empurrou o marido
para o lado. Não se sentia incomodada pela lady. Caroline era uma mulher
com muitos problemas, mas ela sentia piedade por ela. Não havia ódio nem
rancor, apenas uma sensação de que a lady precisava de algo que o dinheiro
de seu tio não podia comprar.
— Desculpe-me, Vossa Graça. Mas lady Eckley não costuma esperar ser
anunciada.
— Ah, John, eu não preciso dessas formalidades.
— Todo mundo precisa de formalidades, Caroline — Aiden rosnou. — O
que quer? Essa é uma péssima hora para qualquer coisa que você deseje.
— Vim saber notícias da sua irmã. Na cidade só se fala do acidente
sofrido por Edward, então decidi me colocar à disposição para ajudar.
O silêncio da sala era eloquente. Caroline Eckley era uma mulher bastante
egocêntrica, para que se imaginasse que ela quisesse ajudar qualquer pessoa.
— Como “a cidade” sabe do acidente?
— O cigano Wareham mandou um telegrama a Sawbridge. Esse tipo de
coisa nunca fica secreta.
— Certo. E o que ganha com isso, Caroline? — Aiden insistiu. — Você
não é altruísta a esse ponto.
A lady se sentou em um sofá e ajeitou as saias. Todo mundo olhava para
ela, inclusive, Elizabeth.
— Vocês são a única família que ainda me trata bem. Essa sociedade
hipócrita… os homens que traem suas esposas e sustentam amantes por aí
decidiram que eu sou imoral para frequentar suas festas. Não ajudou muito
que eu tenha empunhado uma arma e ameaçado matar lady Madeline, nem
que eu tenha passado algum tempo internada em um sanatório. Os Trowsdale
são os únicos tão esquisitos quanto eu.
Elizabeth deu uma risada. Tudo que ela falava fazia bastante sentido.
Aquela era uma família totalmente fora dos padrões rígidos da sociedade
londrina. Aiden Trowsdale era um duque que trabalhava, que geria empresas
e que se casara com uma plebeia viúva, mãe de dois filhos. Ele não se
importava mais com a morte de sua vida social e estava inserido na
burguesia. O seu círculo de amizades era restrito.
Agatha Trowsdale nunca seguiu padrões das damas de sua idade. Não
gostava das temporadas, não aceitava cortejos, tinha mania de caridade e
lidava com os criados com humanidade e respeito. Estava casada com o
Conde de Cornwall, que também possuía sua quota de excentricidades.
Aquelas eram as pessoas que perdoaram lady Madeline Westphallen e que a
aceitavam. Isso significava que poderiam fazer o mesmo por lady Caroline
Eckley.
— Precisamos de uma companhia para levar meu filho Patrick para
Hampshire — Elizabeth disse. Aiden a olhou com surpresa.
— Você tem certeza disso, meu amor? — ele perguntou, massageando os
ombros da esposa.
— Claro. Para Patrick, será bom visitar o campo e lidar com
responsabilidades. Para Caroline, será bom exercitar a compaixão. E não
posso deixar meu menino de oito anos viajar sozinho por aí.
O duque não estava convencido da decisão de sua esposa, mas ele
raramente contestava Elizabeth, sobretudo em relação aos meninos. Ela
sempre fazia o melhor para todo mundo e os filhos vinham em primeiro
lugar. Se ela confiava Patrick a Caroline Eckley, ele não se oporia.
— Certo, então. Patrick, está tudo bem para você viajar acompanhando
lady Eckley até Crystal Place?
— Claro! — O menino mostrou animação. — Eu vou organizar minha
mala.
— Peça ajuda a Granger — Elizabeth sugeriu. — E não saia antes de vir
me ver. Quero me despedir adequadamente.
— Bem, eu também tenho coisas a arrumar. Não conheço Crystal Place,
vou gostar de lá?
Caroline Eckley levantou-se e ofereceu o braço para o criado mensageiro.
Ele entendeu que deveria acompanhar a lady até sua carruagem, mesmo que
não fosse sua função.
— Tenho certeza de que vai adorar. — Aiden riu. — Não sei como
Agatha vai reagir a isso.
— Ah, meu querido duque… eu sei ser agradável quando quero. Fique
tranquilo que vou ajudar bastante sua irmãzinha com o marido moribundo
dela. Coitada, tão jovem e já vai ficar viúva.

A MANHÃ CLAREOU o quarto e Agatha despertou cedo demais. Era noite ainda
quando os pesadelos a acordaram. Edward dormia profundamente, arrebatado
pelo láudano, e ela se sentiu solitária. Vê-lo não a acalmava. A escuridão
fazia com que ela respirasse com dificuldade e seu coração disparasse.
Sentou-se à janela e ficou observando o céu se tingir de rosado até o sol
nascer.
Desistindo de não fazer nada, ela se levantou e se lavou. Rosto, pescoço,
examinou o ferimento na testa. Parecia mais feio do que era. Não doía muito,
ela não sentira nada demais. A lesão de Edward era mais grave, a marca roxa
na cabeça dele estava muito intensa. Agatha se aproximou dele na cama e
tocou os cabelos dourados como os raios de sol. A infinidade de matizes
naquelas mechas fazia com que fossem ainda mais belas. Então ele acordou.
— Ainda aqui — Edward provocou, ao vê-la sentada sobre os joelhos,
olhando para ele.
— Parece que não tenho muita coisa para fazer. Como se sente? Muita
dor?
— Estou bem. — Ele se ajeitou na cama e apalpou a cabeça. — Você
dormiu, Agatha?
Seus olhos deviam estar rodeados por marcas escuras que denotavam a
privação de sono adequado. Ele perceberia por ser muito perspicaz. Edward
sempre prestou muita atenção em tudo ao seu redor.
— O suficiente.
— Pesadelos? — ele perguntou, ela respondeu com um gesto de cabeça.
— Podemos aproveitar que estamos os dois sem nada para fazer no momento
e conversar sobre o que você me contou.
Os olhos azuis eram dois globos que continham o verão inteiro dentro
deles. Eles a encaravam querendo respostas. Ele tinha o direito de saber.
Mais, tudo, a história toda. Talvez ela nunca contasse, mas ele insistiria em
chafurdar até descobrir o máximo de informação. Ela precisava tentar
satisfazê-lo com respostas ou convencê-lo a devolvê-la ao irmão. Como
Edward era um cavalheiro e melhor amigo de Aiden, ele não faria escândalo.
O casamento acabaria por motivos que ele jamais esclareceria.
Agatha o via ali, na cama, pouco vestido, ferido e vulnerável. Tão lindo
como um anjo caído. Era quase possível ver as labaredas que o
acompanhavam. Ela estava no inferno com ele e não queria sair dali.
— Não é um assunto que me agrade, Edward. — Agatha tentou desviar o
foco. — E eu já te contei as partes importantes. O que mais quer saber?
O marido levou a mão até o rosto dela. Afastou algumas mechas de
cabelo e acariciou sua bochecha.
— Eu quero tanto matar o maldito que fez isso com você, que sou capaz
de pegar um navio para as Américas só para poder arrancar a cabeça dele
fora. Depois, eu penduraria as partes dele pela cidade para que todo mundo
soubesse que ninguém deverá nunca mais chegar perto de você — Edward
disse, sério. — Mas não farei isso. Eu só preciso… entender.
— Não há muito o que entender. Eu estava alcoolizada. Ele me desonrou,
depois me deixou lá, como se eu fosse uma das prostitutas que eles estavam
acostumados a ter.
Edward puxou-a para mais perto e Agatha recostou em seu peito nu.
Deitou a cabeça nos músculos firmes e fechou os olhos, ouvindo o coração
dele bater. O conde acariciou seus cabelos por alguns minutos, em total
silêncio.
— Isso nunca deveria ter acontecido, Agatha. — Ele levou a boca até o
topo da cabeça dela e beijou. — Eu não vou deixar que nenhum outro mal te
aflija. Vou protegê-la de agora em diante.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

O MÉDICO CHEGOU CEDO . E DWARD JÁ TINHA LEVANTADO , SE LAVADO E SE


vestido. Estava entediado e descera para o salão principal. Não queria ser
examinado e reclamou quando Agatha insistiu que ele precisava. Edward
sugeriu um trato: o médico também deveria examiná-la. Encararam-se por
um minuto inteiro até que ela cedeu. Era melhor submeter-se às bobagens
dele a deixá-lo sem tratamento.
Por sorte, tudo estava bem. A lesão na cabeça não era grave e os testes
que o médico fez indicaram que Edward se recuperaria logo, mas ele foi
proibido de ir para Londres. Ao menos por dois dias, precisava repousar e
evitar a longa viagem.
— Eu tenho coisas a fazer na cidade — resmungou, fechando o colete
depois que o médico saiu. Estavam na sala privativa do Duque de
Shaftesbury. Agatha serviu uma dose de uísque e não entregou a ele. Sentou-
se com o copo e virou parte da dose. — Céus, desde quando você bebe
assim?
— Reminiscências das Américas. — Ela fez uma careta. — E não seja
dramático, as coisas em Londres conseguem sobreviver sem sua magnífica
presença por alguns dias.
O conde foi até a esposa e tomou o copo dela. Bebeu o restante do líquido
maltado em um gole só.
— Melhor deixar esses comportamentos americanos para as damas
americanas. E você não faz ideia da minha função na fábrica, Agatha. Não
pode julgar se sou ou não imprescindível.
— Me conte, então — ela provocou.
— Farei melhor. Quando voltarmos, vou te mostrar. Passará um dia
inteiro me acompanhando no trabalho e verá que, sem mim, os homens não
são cuidados. Sawbridge e Miles são ótimos negociantes, mas ligam pouco
para essas questões. Eu garanto que eles sejam pagos todo dia, que não
corram riscos desnecessários.
Ela não esperava que ele tivesse uma função como aquela. Menos ainda
que ele usasse tanta ênfase ao explicá-la. Nem mesmo Edward entendia
porque aquelas questões importavam tanto, mas era assim que ele e Aiden
geriam os negócios.
— Podemos passear por Crystal Place já que está tão entediado.
— Eu adoraria cavalgar.
— Nada de cavalos. — Agatha levantou-se e passou pelo marido, saindo
da sala. — Caminhada. Bem leve, pelos arredores da propriedade. Podemos ir
até a torre.
Edward revirou os olhos.
A torre era o lugar preferido de Agatha quando ela era criança. Uma vez,
quando tinha uns dez anos de idade, ela escondeu-se lá e deixou a todos
desesperados. Ele se lembrava de passarem horas a procurando. Destacaram
todos os criados e reviraram a mansão inteira. Crystal Place tinha vinte e
cinco quartos, sendo a maior propriedade dos Trowsdale, e só a encontraram
quando o sol já estava se pondo. Ele a encontrara. A menina de cabelos
castanhos e pele branca, com bochechas rosadas e personalidade forte, estava
com o vestido sujo de folhas e terra, sentada em um banco de pedra e
desenhando na parede interna da torre. Quando o viu, correu para mostrar a
Edward os desenhos.
As sensações daquela tarde retornaram naquele breve momento em que
ele se recordara do episódio.
Seguiu-a até o lado de fora da casa. Ao contrário do que esperava, o dia
não estava ensolarado e quente. Repleto de nuvens, o céu prenunciava chuva.
— Sua caminhada vai terminar cedo. — Edward apontou para o céu.
Agatha abriu uma sombrinha branca e fez uma careta.
— Não seja medroso. Não vai chover e não somos feitos de açúcar.
Não eram. Edward ofereceu o braço para ela segurar e conduziu-a por um
caminho de pedras que cortava o jardim lateral. Naquela época do ano, os
lírios estavam em floração e o aroma preenchia todo o ar. Andaram em
silêncio por minutos, Agatha parecendo relaxada. Ela era bastante instável
emocionalmente, uma hora triste e aborrecida, outra feliz e satisfeita, às vezes
também irritada como o diabo. Para sorte de Edward, ela acordara de bom
humor.
Adentraram no bosque seguindo uma trilha antiga. Fazia tempo que
ninguém passava por ali e havia muitas plantas mais baixas que escondiam o
caminho a ser seguido. Agatha estava com botas confortáveis de caminhada,
mas manteve o vestido pesado de ficar em casa. O conde também usava
botas, e o piso estava seco e fácil de seguir.
A vegetação foi ficando mais densa à medida que entravam no bosque.
As copas das árvores impediam que eles vissem a luz do dia.
— Esse barulho… lembra-se do curso de água que passa por aqui?
Agatha pediu silêncio para ouvir o jorro da água. Edward também se
lembrava do pequeno riacho, em que ele e Aiden nadaram muitas vezes e
para aonde levaram mulheres, durante festas degradantes que fizeram na
propriedade. O período de juventude dos dois não foi muito glorioso. Sempre
foram devassos.
— Vamos até lá?
Claro que ela não o esperou concordar para retomar o passo. Edward
esperava que ela não pretendesse nadar. Era provável que a temperatura da
água estivesse fria demais para que ele desejasse enfrentá-la. Assim que se
aproximaram do curso de água, ouviram vozes. As esperanças que Edward
tinha de ficar seco desapareceram quando eles visualizaram três crianças
tentando resgatar um cachorro que havia caído no riacho.
— Oh, céus! — Agatha saiu em disparada na direção deles. Era um
menino e duas meninas que usavam roupas maltrapilhas. Estavam um pouco
enlameados por deslizar pelo chão. Um cão de porte grande e bastante peludo
tentava, em vão, subir em uma pedra. — O que aconteceu aqui?
— Milady. — Uma das meninas se assustou quando viu Agatha e o
conde. — Estamos tentando salvá-lo, mas não conseguimos.
— Ele precisa ser empurrado — Edward constatou, olhando a cena. —
Vocês têm que pular na água.
As crianças se entreolharam.
— Não sabemos nadar, milorde.
Edward ergueu uma sobrancelha. Era surpresa que crianças como
aquelas, filhas de arrendatários ou criados e nascidas no campo, não
soubessem nadar. Olhou para o riacho e a correnteza estava puxando forte. O
cão não teria muito tempo, estava ficando exausto.
— Está bem, está bem — ele disse, arrancando as botas com destreza.
Agatha colocou-se à frente dele, as duas mãos apoiadas em seu peito.
— O que pretende fazer?
— Vou resgatar o animal, oras. As crianças não vão conseguir puxá-lo e
ele vai acabar sendo arrastado. A correnteza está muito forte.
— Edward. — O toque de Agatha estremeceu em contato com o tecido da
camisa. — É perigoso, você está ferido.
O conde entendeu que ela estava preocupada com ele. Por um instante,
sentiu-se bem por despertar nela sentimentos de cuidado, mas não queria que
ela se importasse tanto. Ele passou o polegar na bochecha dela.
— Fique tranquila, minha querida. Eu sou um exímio nadador.
Com um puxão, Edward arrancou a camisa e pulou na água. As crianças
vibraram e ele emergiu em segundos, com os cabelos molhados e o corpo
reluzindo sob o mormaço. Aproximou-se com cuidado do cão agitado. O
animal pareceu entender que ele queria ajudar e acalmou-se para se deixar
erguer. O conde colocou o animal sobre a pedra e as crianças terminaram de
puxá-lo.
Tudo demorou menos de quinze minutos. A água estava menos fria do
que Edward imaginara, e ele logo saiu, bastante molhado, para ser
cumprimentado como o herói daqueles pequenos. Sacudiu os cabelos assim
como o cão que, agradecido, sacudiu os pelos.
— Como ele se chama? — o conde perguntou.
— Não é nosso cão — a menina loira confessou. — Quisemos salvá-lo
para convencer nossa mãe a nos deixar ficar com ele.
Edward passou a mão na cabeça do cachorro, que o lambeu em resposta.
Despediu-se do grupo, que saiu na direção das casas dos arrendatários.
Quando virou para sua esposa, ela o estava admirando com os olhos
brilhantes arregalados.
— Isso foi muito heroico. — Ela quase soltou um gritinho de animação.
— Mas agora está todo molhado… vai ficar doente.
— Logo eu seco, está calor.
Pegando sua camisa para cobrir-se, Edward olhou para o céu no instante
em que um estrondo anunciou a chuva iminente.
— Oh. — Agatha deu uma risada. — Vamos até a torre, podemos chegar
antes de chover.
— Certo. Tente me alcançar.
O conde começou a correr para dentro do bosque e Agatha o perseguiu,
reclamando que era impossível correr com as saias. Ela ria, gargalhava, e
aquela alegria era contagiante. A torre estava muito próxima quando ele
parou para esperá-la. Agatha vinha como um cavalo selvagem na sua direção
e, antes que ela trombasse com ele, a chuva caiu.
Pingos grossos molharam rapidamente o chão, os cabelos e as roupas de
sua esposa. Quando ela chegou até ele, estava já ensopada da cabeça aos pés.
Ela ria, como se ainda fosse aquela criança que encantava todo mundo. A
maldade que sofrera não afetara a sua beleza, nem seu humor, nem sua
alegria.
Agatha estava diferente, mas ainda era a mesma. Foi com essa certeza que
ele a tomou nos braços, empurrou-a contra a parede de pedra e a beijou.

F AZIA tempo que Agatha não se divertia tanto. Era bobagem, mas rir de
coisas não importantes era algo que ela sempre fizera e que o sofrimento lhe
havia roubado. A vontade de rir cessou no instante em que ela foi aprisionada
pelo olhar ferino de Edward. Ele estava com a camisa desgrenhada e úmida,
os cabelos despenteados, a calça encharcada, sem sapatos e a encarava como
se estivesse faminto. Como se ela fosse o jantar.
Talvez Agatha devesse sair correndo de novo, fugir dele enquanto
pudesse, mas o que ela fez foi gravitar na direção dos braços que a
capturavam e se render quando ele a pressionou contra a dura superfície de
pedra no exterior da torre. A chuva caía sem piedade e a boca de Edward a
devorava com desejo.
O toque de seda da língua do marido fez com que ela abrisse os lábios
para recebê-lo. Agatha poderia facilmente se acostumar a ser beijada por
Edward. Ele fazia aquilo muito bem, mesmo que ela não tivesse muitos
exemplos de comparação. Não era preciso comparar porque era impossível
que pudesse ser melhor do que aquilo. Como se ele tivesse muitas mãos, a
segurava pelos quadris, firmava sua nuca e acariciava seus cabelos. Agatha
estava sustentada pelo corpo masculino, que a incendiava com a mera
proximidade. O beijo era intenso e quase violento. Ela passou os braços pelo
pescoço do marido e o manteve o mais perto possível. Não havia espaço entre
eles.
Edward desceu a boca para o pescoço dela, traçando a linha da
mandíbula. Agatha tombou a cabeça para oferecer a ele mais espaço, mas o
conde parecia insaciável. A boca dele deixava traços de fogo onde a água
esfriava. Ele levou as mãos até as costas dela, puxou-a contra si, desfez os
laços que seguravam o espartilho no lugar e abriu alguns botões do vestido
que ela usava. Os seios dela se libertaram e foi fácil para que ele os
alcançasse pelo decote.
Para um homem experiente como Edward, aquela tarefa era simplória.
Desenhando o contorno da renda no colo de Agatha, ele acariciou a pele
exposta com cuidado. O conde rosnou contra a boca dela e puxou o vestido
para baixo. Ela gemeu quando ele segurou um seio na mão e o acariciou.
— Céus. — A voz dele saiu esganiçada. — Eu quero você. Eu quero
muito você. — A boca desceu, lambeu a água que escorria pelo colo até a
ponta de um mamilo e o sugou. Ela arqueou as costas e não quis fugir
daquela vez. Seus dedos cravaram nos ombros do marido, que não se
demorou nas carícias. Ela tinha os joelhos bambos e não sabia dizer como
estava de pé. — Me aceite, Agatha.
Ela não sabia como respondê-lo. Cada centímetro de sua pele, cada nervo
em seu corpo queria Edward — pedia por Edward —, mas, assim que ela
fechava os olhos, a escuridão a engolia. Ela se perdia em memórias
desagradáveis que obnubilavam o momento.
— A-agora? — A voz saiu trêmula.
— Não, por Deus, claro que não. — O conde colocou as mãos por dentro
das saias que ela vestia. Agatha sentiu o toque quente dos dedos dele em suas
coxas e nádegas. — Nem agora, nem aqui. — Ele a beijou novamente e a
puxou contra sua ereção. Seu corpo arremetia contra o dela mesmo que não
fosse intencional. — Mas eu não vou parar de te querer hoje. Eu te quero
amanhã, daqui a uma semana, quanto tempo precisar. Só preciso saber que
você me aceitará. Eu te desejo tanto que chega a doer.
— Dói? — Ela se distraiu enquanto a língua dele brincava com o lóbulo
de sua orelha. Edward pegou a mão de Agatha e levou à sua virilha. Ela se
assustou, mas deixou que seus dedos se amoldassem à forma rígida que
desafiava o espaço dentro da calça.
— Aqui. — Ele riu com a estupefação dela.
— Não sabia que causava dor para vocês, homens, também.
Edward soltou-a e passou as mãos pelos cabelos de Agatha. Salpicou
beijos breves em sua boca e bochechas.
— É uma dor simbólica. — A língua dele procurou espaço e os beijos se
aprofundaram. Ela não entendia como ele podia falar enquanto fazia aquilo.
— Eu garanto que, quando acontecer, você só terá boas sensações.
Agatha queria muito experimentar aquelas sensações. Ela cresceu
aprendendo que mulheres não sentiam prazer, que era pecaminoso. Que
deveria apenas abrir as pernas e deixar seu marido fazer o que queria. Sabia
que com Elizabeth e Aiden era diferente, e Edward lhe fazia promessas que a
tentavam. Era bem provável que ele estivesse falando a verdade. Ali, debaixo
da chuva, enquanto eles se beijavam, ela estava incapacitada pelo desejo.
Ainda assim, tinha medo. Não o medo racional da descoberta da perda da
virgindade, mas um medo visceral que a impedia de se entregar por
completo. Ela precisava aceitar a consumação do casamento. Se havia uma
certeza que Agatha tinha naquele instante, era de que não desejava mais ficar
afastada do seu marido.

O RETORNO para a mansão foi silencioso e constrangedor. Os dois estavam


molhados e Edward tinha as roupas um pouco desfeitas. Sua camisa branca,
arruinada pela chuva e pela lama, estava por fora da calça. Agatha tinha cor
demais nas bochechas, efeito do fluxo intenso do sangue correndo em suas
veias. Se Elizabeth os visse, saberia o que acontecera. Eles nem mesmo
chegaram a entrar na torre, passaram vários minutos se beijando
indecorosamente na chuva.
Talvez ninguém notasse. Os criados prestavam atenção nos senhores,
porém, guardavam segredo. Fofocavam entre eles, nunca para que a
sociedade soubesse, e não seria um escândalo se descobrissem que o Conde
de Cornwall estivera aos beijos com sua condessa.
Bastou pisarem na mansão para descobrirem que ela tinha sido invadida.
Duas carruagens de aluguel já retornavam para a vila depois de entregar
alguns visitantes a Crystal Place. Nem Agatha, nem Edward, imaginavam
quem poderia estar ali. Olharam-se confusos e entraram. No hall estavam o
mordomo para avisar-lhes que esperavam no salão lady Caroline Eckley,
lorde Isaac, lorde Nathaniel e o pequeno Patrick.
— Você avisou a família sobre o acidente, Agatha? — Edward sussurrou.
— Claro, avisei a ambas. Enviei um mensageiro. Você estava ferido, eu
não sabia a extensão de suas lesões, achei adequado contar a seus irmãos e ao
meu irmão. Apenas não esperava…
Aquilo. Agatha não esperava que fossem baixar em Hampshire para saber
como o conde estava. Talvez ela estivesse subestimando o amor da família
que tinha. Eles tinham indo de trem.
— Céus, o que houve com vocês? — Isaac se aproximou, rindo, assim
que entraram no salão. Ele era estonteante quando ria, Agatha sempre queria
sorrir também. Ela passou a vida sendo meio boba na presença do lorde,
aquilo era irritante.
— Chuva. Estávamos caminhando.
O desdém na voz de Edward fez os homens rirem ainda mais. Uma criada
apareceu com toalhas para secá-los.
— O que fazem todos aqui? — Agatha perguntou, agarrando-se à borda
da toalha. As vestes molhadas estavam ficando frias, ela precisava trocá-las
antes que ficasse doente.
— Ficamos preocupados, milady. — Patrick se aproximou e ela quis
abraçá-lo. Ajoelhou-se para ficar na altura do garoto. — Mamãe disse que eu
deveria ajudá-la.
— Oh, Patrick! Você é um homenzinho muito prestativo. Mas estamos
bem, como podem ver. E… — Agatha olhou para Caroline, vestida de
vermelho, parecendo uma enviada do inferno para provocar a humanidade a
pecar. — Lady Eckley?
— Alguém precisava conduzir o menino. Eu me ofereci.
Era muita informação para lidar. Seria melhor conversar depois de um
banho morno, roupas secas e uma farta refeição.
— Já que estão todos aqui, pedirei aos criados que lhes acomodem e que
sirvam o almoço. Vou me trocar.
Agatha orientou o mordomo a cuidar da situação. Pediu que ele
destacasse criadas para arrumar quartos para todos e que informasse à
cozinheira sobre a chegada de quatro hóspedes. Depois, subiu para seu quarto
pretendendo se livrar da roupa molhada. Surpreendeu-se ao notar que Edward
não estava atrás dela. Imaginou que ele fosse aproveitar a oportunidade para
importuná-la, mas não apareceu mesmo após ela terminar o banho e estar
novamente vestida. Com a ajuda de uma camareira, colocou um vestido roxo
de veludo e ajeitou os cabelos molhados em uma trança.
Quando tornou a descer, Edward não estava à vista. Os homens e
Caroline conversavam e ela os desafiava em alguma espécie de jogo de
lógica. Outra vez Agatha se pegou admirando a capacidade de interagir com
o universo masculino. A lady tinha uma reputação horrorosa, quase não
transitava nos salões sociais, jamais se casaria com um homem honrado e,
ainda assim, parecia bem demais consigo mesma. Satisfeita com sua
liberdade.
Ela pediu ao mordomo que servisse o almoço e se juntou aos convidados.
Foi então que ela viu o marido. Ele vestia roupas limpas e secas, tinha os
cabelos úmidos penteados para o lado e estava sentado em uma poltrona
próxima da lareira, com Patrick em seu colo. O menino lia algum papel que
estava na mão do conde. A cena fez com que ela sentisse um misto de
sentimentos contraditórios. Carinho. Amor. Cuidado. Angústia. Ela não
poderia oferecer aquilo para seu marido. Agatha tinha certeza de que não
teria filhos. Nunca.
A mãe passou por momentos horríveis. Teve um menino saudável, mas
uma sucessão de bebês abortados e natimortos causaram fissuras incuráveis
na alma da duquesa viúva. Se houvesse justiça divina, Agatha não deveria ter
nascido. Ela foi outro fardo, difícil de carregar. Não queria passar por ele.
Não queria sofrer como a mãe para ter a alma carcomida pela dor e pelo luto.
Talvez ela fosse diferente, mas o bebê natimorto que foi enterrado em um
cemitério clandestino nos fundos de uma igreja indicava que não.
O Conde de Cornwall talvez não quisesse filhos, mas ele precisava.
Mesmo que tivesse outros irmãos, não produzir herdeiros era um risco muito
grande. Edward tinha que ter filhos, e legítimos. Com ela.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

F AZIA ALGUM TEMPO QUE E DWARD NÃO PASSAVA O DIA COM OS IRMÃOS .
Isaac estava trabalhando com ele na fábrica, mas Nathaniel estivera viajando
pelo continente para se especializar. Eles se espalhavam por Londres e Kent e
o conde era um nobre com muitos afazeres. Por sorte, os irmãos ajudavam na
administração das propriedades. Naquele dia, forçado a ficar em casa por
causa do ferimento na cabeça e da chuva, acabou tendo a oportunidade de
fumar e beber com eles.
Depois do almoço, que foi um momento agradável com convidados
inusitados, os homens se reuniram na sala privativa do Duque de Shaftesbury,
sem o próprio duque em si, para conversar. Deixaram as mulheres e a criança
cuidando de outros assuntos e se refugiaram em um espaço masculino.
— Como estão as coisas em Greenwood Park? — Edward perguntou,
acendendo um charuto. Ele estava se aproveitando em excesso da
hospitalidade de Aiden e nem se importava com isso.
— Tivemos algumas dificuldades com dois arrendatários — Nathaniel
explicou. — Mas acredito que o problema tenha sido resolvido. Eles queriam
compensação pela perda de uma colheita.
— Nate é bom negociador. — Isaac serviu uísque para os três. — Ele
deveria ser considerado na fábrica.
— Deus me livre de empregar toda a minha família na fábrica. Preciso de
alguém nas propriedades, não consigo me dividir em dois.
— Ainda mais agora, recém-casado — Isaac provocou. — Como anda a
lua de mel?
— Não seja indiscreto — Nathaniel repreendeu o irmão. — Mesmo que
esteja na cara que nosso irmão está ridiculamente apaixonado por sua esposa,
não devemos perguntar sobre sua intimidade.
— Eu e Agatha temos um casamento contratual, como deve ser —
Edward se defendeu. A sugestão do irmão de que ele estaria apaixonado pela
esposa era tão absurda quanto impossível. — Agora parem de falar bobagens
e vamos discutir sobre os arrendatários que estão dando problemas.
— Ele finge bem, mas nós sabemos exatamente a natureza desse
casamento — Isaac falou com Nathaniel, como se o irmão conde nem
estivesse ali.
— Não vejo os motivos pelos quais fingir. — Nathaniel finalizou seu
conhaque. — Edward sempre teve esse lado romântico, por que não dar
vazão a ele com a própria esposa?
— Vocês dois — o conde rosnou —, parem de falar do que não
entendem. Não há romance nem paixão. Agatha e eu somos um casal nobre
comum. Temos poucas afinidades e não estamos apaixonados. Encerrem esse
assunto.
Isaac e Nathaniel se entreolharam. Nenhum dos dois acreditou no que
disse o irmão. Isaac tinha restrições quanto ao casamento de Edward porque
sabia, sempre teve certeza, de que ele tinha sentimentos confusos para com
Agatha. Mesmo que o irmão insistisse que o beijo nos jardins fora um acaso,
Isaac não acreditava. Fora um acaso conveniente. Agatha, por sua vez, era
livre, determinada e insubordinada demais. Ela podia despedaçar o coração já
muito machucado do irmão. Só não adiantava pressionar Edward. O conde
era tão teimoso quanto sua esposa. Eles eram parecidos o suficiente para
darem conta um do outro.
Continuaram a conversa sobre os negócios em Greenwood Park até serem
chamados para o jantar. O mordomo os acompanhou até o salão. A mesa
menor tinha sido posta, como no almoço.
As mulheres chegaram em seguida. Caroline continuava de vermelho, sua
cor preferida. Ela provavelmente só usava tons de vermelho, Edward não se
recordava de tê-la visto usando outras cores. Quanto a Agatha, o conde não
estava preparado para vê-la tão linda. Sua esposa vestia azul real e renda
branca, com tule e babados. Era um vestido simples, ela não costumava usar
roupas exageradas, mas a cor e o modelo destacavam suas formas físicas. O
decote era quase indecente. Edward olhou para os irmãos, querendo garantir
que eles não estivessem olhando para a pele exposta de Agatha. Eles eram
seus irmãos, mas a possessividade do conde, naquele momento, não poupava
ninguém. Os cabelos dela estavam presos e decorados com flores.
Ela o olhava com a intensidade de um raio e a inocência de um filhotinho.
Sentou-se ao lado dele na mesa, mas não trocaram uma palavra. Edward e
Agatha sempre conversavam, e muito. Sobre tudo e todas as coisas. Aquele
silêncio significava alguma coisa que ele ainda não sabia.
— Ed, o filho de Aiden já nasceu? — Nathaniel perguntou, já pelo
terceiro prato.
— Ainda não. Há um banco de apostas sobre o sexo da criança.
— Há apostas? — Agatha se surpreendeu.
— Sim, e só Aiden aposta em um menino — Isaac respondeu. A troca de
olhares entre ele e Agatha fez com que Edward sentisse ciúme outra vez.
Aquilo era demais. Ele precisava reivindicar aquela mulher, porque ele nunca
sentira ciúme de ninguém. Estava claro que se tratava de um caso de desejo
não satisfeito. — Eu apostei duas libras.
— Eu apostei três. — Caroline deu uma garfada no faisão. — Mas acho
que vamos perder, aquele duque é muito sortudo.
— Só espero estar em Londres quando a criança nascer. — Agatha
suspirou. — Não esperava esse contratempo.
— Amanhã retornaremos — Edward determinou.
— O médico disse…
— Minha querida, eu pulei em um riacho, salvei um cão e tomei chuva.
Uma viagem em um trem confortável não me fará mais mal do que nada
disso.
Os convidados riram. Agatha quis protestar, mas ela sabia que o marido
tinha razão. Não havia motivo para que continuassem em Hampshire,
principalmente se ele estava disposto a renunciar à longa viagem de
carruagem para se render à modernidade irresistível das locomotivas.
— Vamos nos encontrar com o Sr. Wareham amanhã — Edward disse
aos irmãos. — Depois, partimos de volta.

O C ONDE DE C ORNWALL estava acostumado a se retirar cedo. Ainda não eram


onze horas da noite quando se recolheu para o quarto. Sentia uma pequena
pontada de dor na cabeça, o ferimento latejava. Havia uma protuberância em
sua testa, bem próxima aos cabelos, mas ele se sentia bem apesar de tudo.
Fora um dia intenso, ele precisava apenas descansar.
Depois do jantar, fumou com os irmãos e não viu Agatha. Não sabia onde
ela estava, nem se iria dormir. Lavou-se, despiu-se e ajeitou-se na cama com
seu livro sobre cultura da terra. O autor tinha ideias interessantes sobre o
melhor uso dos espaços para cultivar produtos diferentes. Parecia um bom
livro para quem cuidava de uma propriedade no campo, mas aquele tema não
estava tão atraente para Edward, principalmente depois de ele ser distraído
com a porta se abrindo.
Agatha entrou no quarto parcamente iluminado e lhe sorriu. Ele quis
continuar a leitura, mas ela começou a retirar o vestido. Desfez o laço do
espartilho, abriu os botões e retirou os sapatos antes de abrir a porta do quarto
de banho que estava conectado ao quarto.
Edward suspirou ao notar o incômodo em sua virilha. A ereção o deixou
desconfortável. Queria parar de reagir de modo tão visceral à presença de
Agatha. Os barulhos dela tomando banho o excitavam. Qualquer coisa que
ela fazia o excitava. Voltou a ler, mas as palavras se embaralhavam. Fechou o
livro antes que se irritasse.
A porta abriu novamente. Ela estava de camisola. Não havia nada
embaixo, apenas o tecido fino que impedia a sua nudez. A transparência da
roupa deixava pouco espaço para a imaginação. Ele já vira aquele corpo nu,
que não devia afetá-lo tanto. Agatha tinha um brilho diferente nos olhos. Eles
o encaravam com a mesma intensidade do jantar. Indecentes.
Agatha subiu na cama e se ajoelhou à frente do marido. Edward salivou.
Ela tinha os cabelos soltos e começou a desfazer os laços da camisola. O
tecido escorreu por seus ombros. Caiu sobre o colchão e a revelou por inteiro.
— Eu te aceito, Edward McFadden.
Aquela era a resposta para a pergunta que ele fizera à tarde. Foi uma
manifestação de pura irracionalidade. O desejo estava no comando quando
ele disse aquilo. Porém ela estava ali, rendida, entregue. Ela o aceitava, e ele
a queria, mas Agatha era um animal acuado.
Edward precisava ir com cuidado. Retirou os óculos e a segurou nos
braços. Fez com que se sentasse sobre si e acariciou seus cabelos. Os cachos
grossos e densos caíam em camadas pelos ombros desnudos. Ele nunca vira
uma mulher tão perfeita quanto a sua. Ele a beijou, deslizando as mãos pelas
costas dela. Traçando os contornos de sua coluna.
As mãos pequenas de Agatha se apoiaram em seu peito. Estavam
hesitantes, ela parecia não saber o que fazer. Mesmo que ela não fosse
virgem, Agatha era inexperiente e devia estar morrendo de medo.
— Você pode me tocar — ele murmurou nos ouvidos dela, a boca
brincando com o lóbulo da orelha. — Você pode fazer o que quiser, Agatha.
As mãos de Edward se uniram as dela. A esposa se afastou alguns
centímetros e o observou. Estava ofegante e rosada, as bochechas coradas
com vários tons. Ela fixou o olhar nas partes masculinas dele, que estavam
comprimidas entre os dois corpos.
— Ninguém nos prepara para isso. — Ela deu uma risada nervosa.
— Também não somos preparados. — Edward voltou a beijá-la e colocou
a mão direita dela sobre seu pênis. Gemeu quando ela o envolveu com os
dedos. — Aprendemos pela experiência, minha querida.
O conde aprofundou o beijo. Procurou espaço para acomodar sua língua
na boca dela, mordeu os lábios, rosnou e gemeu enquanto ela, sem muita
habilidade, movia as mãos sobre sua ereção. À medida que ela relaxava, o
beijo ficava mais pesado. Edward virou-a na cama e ajeitou seu corpo sobre
ela. Um dos joelhos garantiu que as pernas de Agatha estivessem abertas.
— Fique olhando para mim — ele disse, acariciando os seios redondos
que segurava com as duas mãos. — Não pare de me olhar, Agatha.
— Não sei se consigo. — A voz dela falhou. Edward notou que seu corpo
tremia. Ele desceu com os lábios até capturar um dos mamilos tesos na boca.
Agatha gemeu, arqueando as costas. Ele a manteve segura com as duas mãos
e passou a língua pelo seio, chupou e mordiscou a carne sensível até que ela
fincasse as mãos nas costas dele.
— Apenas mantenha os olhos em mim, minha querida.
Ele deslizou o corpo para baixo, mas ela travou as pernas. Edward se
ajoelhou e massageou a parte interna das coxas com as duas mãos para que
ela relaxasse. Estava muito perto, o pênis rijo roçava nos cachos castanhos da
feminilidade dela. Ela fez o que ele mandou e abriu os olhos.
Edward voltou a deitar sobre Agatha e colou a testa na dela. Ele queria
prová-la, dar a ela o prazer mais intenso que pudesse, mas ela estava muito
resistente, talvez fosse melhor romper aquela barreira depois. Reivindicando
sua boca, Edward a beijou e garantiu que estivesse com os joelhos dobrados.
Com uma investida firme, ele a penetrou. Ela levou as mãos aos quadris dele
e segurou com força. Havia agonia nos olhos verdes.
— Agatha. Olhe para mim. O que você vê?
— Você. — Ela arfou. Ele entrou mais.
— O que você sente?
— Você.
Ele saiu e voltou para dentro dela. Daquela vez, penetrou-a
profundamente, não deixando nenhum espaço no ponto onde os corpos se
uniam. Ela continuava com os olhos cravados nele.
— Onde você me sente?
— Em todo lugar.
Levando a mão até o botão rosado da intimidade da esposa, Edward se
retirou por completo e voltou para ela. Agatha arfou mais, gemendo enquanto
ele circulava seu ponto de prazer.
— Sou eu que estou aqui. Eu, seu marido. Você confia em mim?
A resposta veio com um movimento de cabeça. Sim, ela confiava e aquilo
lhe era o bastante. Edward manteve os olhos abertos e atentos a qualquer
reação. Ela também o encarava, mesmo quando as sensações a dominavam.
Ele investia contra ela em uma cadência dolorosamente lenta, o suficiente
para não a assustar. Uma estocada depois da outra, Agatha relaxou. As mãos
dela soltaram os quadris e deslizaram pelas nádegas, depois subiram pelas
costas, puxando-o pelo pescoço para conduzi-lo a um beijo.
Quando ela se rendeu e gemeu, sentindo a proximidade do clímax, ele
não resistiu. Moveu-se sobre ela com força para arrancar-lhe gritos e ganidos
até que ela convulsionasse comprimindo seu membro dentro dela. Em uma
última troca de olhares, ele aumentou o ritmo e atingiu o próprio orgasmo.

N AQUELA NOITE , Agatha descobriu que o conde cumpria suas promessas. Ele
havia prometido que faria com que ela se sentisse como na primeira vez. Não
mentiu, não exagerou. Aquilo que ela experimentou não era como nada que
tivesse vivenciado antes. No momento em ele estava dentro dela e perguntou
se ela confiava nele, Agatha entendeu que ela sempre confiou. Que ela
colocaria a vida nas mãos de Edward, até mesmo antes de se casarem.
A união dos corpos foi transcendental. Ela não quis se afastar dele.
Passou as pernas pelos quadris, prendeu-o na posição em que estavam para
que pudessem permanecer ali. Edward a beijou como se saboreasse o fruto
proibido, até que ela se sentisse satisfeita.
Ao acordar de manhã, Agatha se frustrou porque o marido não estava ao
seu lado na cama. Ela percebeu que não estava satisfeita. O cheiro dele
continuava nos lençóis e o calor do corpo de Edward ainda não tinha se
dissipado. Havia ruído de conversa do lado de fora, pessoas e crianças
falando. E risadas.
Agatha se levantou, enrolou-se em um roupão e foi até a janela. Edward,
Isaac e Nathaniel jogavam rounders com Patrick e outras crianças. Ela
reconheceu o menino que estava no riacho no dia anterior. Os homens
estavam com as camisas largas, colarinhos abertos e mangas dobradas. Ela
prendeu a respiração por um minuto quando Edward se aproximou de Patrick
para ajudá-lo com a pegada no taco.
Batidas à porta chamaram a atenção dela. Era Caroline Eckley com a
criada.
— Bom dia, milady. Viemos ajudá-la a se arrumar.
— Você, inclusive? — Ela estranhou a presença de Caroline.
— Sem minha ajuda e minhas dicas, querida Agatha, você é uma mulher
comum. Eu posso transformá-la em uma sedutora que arrasa os corações
masculinos.
A expressão sincera de Caroline indicava que ela acreditava realmente no
que dizia. Em si, no seu potencial, e no que era melhor para Agatha.
Curiosamente, ela não queria seduzir. Nem arrasar. Ela estava confusa com a
noite e com tudo que ela representou. O casamento fora consumado, parte
dos traumas que trouxera das Américas fora superado. As marcas foram
substituídas por outras. Poderosas. Indeléveis. Edward estava nela, por todos
os lugares.
A criada foi preparar o banho enquanto Caroline revirava os vestidos que
estavam na mala. Não tinha nada especial ali, mas aquele era o quarto de
Agatha. Um enorme guarda-roupa continha vestidos mais antigos, alguns que
ela nunca sequer usara, e outros acessórios. Enquanto decidiam cores e
tecidos, ela esfregava as mãos pelo corpo tentando arrancar dali as provas de
que fizera sexo com seu marido.
Não era pecado, ao contrário, era esperado que acontecesse, mas ela não
pretendia compartilhar aquilo com Caroline. Nem ninguém. Porém, uma
dama livre sempre parecia saber daquelas coisas.
— Estava ficando preocupada com você — Caroline disse. Agatha retirou
a camisola e entrou na banheira.
— Por que motivo se preocuparia comigo? A lesão na testa?
— Não. Você parecia muito alheia a Edward como homem. Eu vi, na
festa de Riderhood, que havia algo faltando, uma peça solta, e era essa
conexão que eu percebo agora.
— Você está divagando, milady. — Agatha riu. — Não faço a menor
ideia do que está falando.
— Claro que faz. É por isso que preciso te ajudar a ficar linda e sedutora.
Homens sempre tendem a escapar dos nossos dedos. Mantenha-o sempre
interessado em você.
Aquilo não fazia sentido para Agatha. Ela nunca quis interessar a um
homem apenas por seus atributos físicos. Nem mesmo ligava para eles.
Arrumava-se para cumprir um ritual da sociedade, preferia roupas mais
confortáveis e cabelos menos espalhafatosos. O homem com quem ela se
casaria a amaria porque ela era espirituosa, ousada, desafiadora, inteligente e
bem-humorada. Nem tão bem-humorada, era verdade, mas Caroline tinha
certeza de que ela também precisava ser linda.
Ela se lavou, se vestiu e se penteou como a sua nova amiga sugeriu.
Assustou-se em saber que passava de meio-dia e que os homens já tinham se
reunido com o cigano Wareham. Mais, eles esperavam apenas por ela para
retornar a Londres.
Agatha não dormia tanto desde antes de viajar para as Américas. As duas
mulheres desceram para o desjejum, que estava sendo servido no salão.
Comeram sozinhas e apenas Caroline falou. Ela contou sobre alguns planos
que estava tramando e para os quais queria a ajuda de Agatha. Planos
extravagantes. Caroline pretendia oferecer educação a moças, mas não aquela
tradicional das escolas de damas. Ela queria algo muito mais ambicioso.
— Se eu… quero dizer, se nós construirmos essa escola para jovens
damas, elas serão ensinadas a coisas muito mais interessantes do que casar e
criar filhos. Você é como eu, Agatha, não acredita que essa seja a única
vocação de uma mulher.
— Mesmo que eu concorde, que pai ou tutor, gozando de suas faculdades
mentais, matricularia sua filha em uma escola gerida por nós duas? — Agatha
mordeu um pãozinho. A ideia era sedutora, mas parecia fadada ao insucesso.
— Sou sobrinha de um marquês e você é uma condessa. Ao menos as
burguesas virão a nós. Elas podem aprender muito mais do que costurar e
fazer a lista de compras.
Caroline tinha razão. Agatha pretendia cuidar de um orfanato ao retornar
para Londres e construir uma casa para filhos de mães trabalhadoras
passarem o dia. Uma escola de jovens damas acrescentava muito às tarefas e
não a deixaria com nenhum tempo livre. Provavelmente, era perfeito.
— Pensarei em sua proposta. Podemos discuti-la mais vezes em alguns
encontros.
A refeição foi interrompida pela chegada dos homens. Eles estavam com
roupas limpas e impecáveis, indicando que tinham se lavado depois da
brincadeira. Patrick estava com eles, os olhos brilhando de satisfação por
andar com os adultos.
— As carruagens de aluguel chegaram. Se pretendemos chegar a Londres
antes do sol raiar no dia seguinte, devemos partir. A estação está sempre tão
cheia neste período do ano… Posso pedir que os criados recolham suas
malas? — o conde perguntou às damas, mas os olhos estavam sobre Agatha.
Ela sentiu a respiração pesada pela simples presença dele. A ideia de
passar mais algumas horas em uma carruagem com ele a excitava e
apavorava, na mesma intensidade. Ao menos, ela não estaria sozinha.
Com a concordância delas, eles saíram do salão e foram organizar a
viagem de volta. Quando chegassem em Londres, tudo para Agatha estaria
diferente. Medos e culpas a estavam abandonando e ela precisava encontrar
outra coisa para preencher o tempo.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

— C OMO PASSOU A NOITE ? — E DWARD PERGUNTOU , DEPOIS QUE O TRAJETO


até a carruagem já se iniciara. Agatha estava de frente para ele, as pernas
ainda emboladas com as saias elaboradas que foram escolhidas por Caroline.
— Eu dormi demais.
— Talvez o suficiente. — Ele levou a mão até a face dela e afastou uma
mecha de cabelo. — E a cabeça, dói?
— Estou bem, Edward — Agatha insistiu. — Ontem foi… você tinha
razão. Eu nunca fiz isso antes.
— Tenho sempre razão. — Ele riu. — Espero que agora você decida
fazer isso mais vezes. Foi bom, Agatha? Era o que esperava quando disse que
me aceitava?
As bochechas dela coraram pela intimidade da pergunta. Um sorriso
malicioso formou-se nos seus lábios.
— Foi melhor do que eu esperava. Não acreditei muito quando Elizabeth
me contou sobre as maravilhas que aconteciam na privacidade do quarto de
um casal.
O marido deu uma gargalhada e dobrou o corpo para frente, levando a
boca até a dela. Agatha se surpreendeu ao ser beijada, mas aquele era um
beijo tranquilo que indicava apenas que ele gostava de beijá-la. Lábios
macios e quentes envolveram os dela com suavidade e logo se afastaram.
Algo nos olhos dele indicava que ela mal sabia o que a esperava. Que ele
tinha mais coisa guardada para ela e que o prazer da noite anterior fora
apenas uma entrada. O prato principal ainda estava para ser servido e essa
perspectiva a excitou bastante.
Por alguns minutos, Agatha manteve um silêncio nervoso. Nunca sentira
nada como aquilo. O seu corpo reagia à presença de Edward e a cada olhar
que ele lhe lançava. Ela queria mais, ela queria repetir a noite ali mesmo,
naquela carruagem. Quis mais do prazer desconhecido que ele lhe
proporcionara, quis que ele lhe tocasse e sussurrasse qualquer coisa em seus
ouvidos.
Ela poderia pedir, dizer o que queria, mas não o fez. Calou-se e tentou
fingir que não desejava loucamente o marido. Sua resistência foi testada
quando o olhar de Edward sobre ela ficou mais intenso. Era como se ele
pudesse sentir o desejo dela pulsando em cada batida do seu coração. Agatha
sentiu o sangue gelar e o ar ficar denso quando Edward ajoelhou no piso da
carruagem, reduzindo o espaço entre eles.
— Está tudo bem. Eu também quero, muito.
Com as mãos firmes em sua nuca, ele tomou a boca da esposa e a beijou.
Como ele fazia aquilo bem. Uma pontada de irritação cutucou Agatha quando
ela entendeu por que as mulheres se atiravam aos pés dele. Ciúme? Imaginar
que Edward já tinha feito tudo aquilo, várias vezes, com muitas mulheres, a
aborreceu e fez com que ela passasse os braços pelo pescoço dele para acabar
com qualquer distância. Ele agora era dela. Pertencia a ela, e ela tomaria
posse para que nenhuma outra se atrevesse a achar que podia tê-lo.
A carruagem era grande, mas não o suficiente para um intercurso
amoroso. Não para um homem da estatura de Edward, mas ele não pareceu se
importar. Enfiou a língua na boca de Agatha, procurando sorver cada
centímetro dela, explorando com iguais cuidado e força. Ela correspondeu,
pressionando os lábios contra os dele, segurando-o pelos ombros, acariciando
a firmeza de seus músculos por sobre a camisa.
Enquanto se beijavam, Edward levou as mãos às saias dela. Agatha se
sobressaltou quando ele passou as mãos pelas coxas, soltou as ligas e desfez
o laço da calçola. O estômago dela borbulhava e ela era dominada por uma
ansiedade ainda não experimentada. Gemeu entre os dentes dele no instante
em que ele levou a mão à sua intimidade.
— Ah, isso é uma delícia — Edward murmurou, enquanto descia os
beijos para o pescoço de Agatha. Ela arqueou as costas para trás, oferecendo
mais espaço para ele trabalhar. A trilha de beijos parou no decote do vestido,
mas os dedos do marido continuavam a acariciar sua feminilidade. —
Agatha, minha querida, eu preciso que você fique bem relaxada, agora.
— O que vai fazer? — O coração dela estava disparado pela antecipação.
— Existem várias formas de dar prazer a uma mulher — ele falava e fazia
movimentos circulares com o polegar, bem no centro da excitação de Agatha.
Ela já não conseguia evitar as ondas de prazer que a arrebatavam. — Essa é
minha preferida. Sei que muitos homens não ligam se as mulheres saem
insatisfeitas de suas camas, mas eu jamais permitirei isso.
— Ontem eu não fiquei insatisfeita.
— Claro que não ficou. — Ele riu, e a malícia contida naqueles lábios
profanos fez com que ela salivasse. — Mas vai ficar bem mais agora. Apenas
relaxe e me deixe beijá-la.
— Mas você já não está… — Agatha foi interrompida em seu discurso
pela boca de Edward em seu sexo. Ele se acomodou entre as pernas dela e,
como se aquela fosse a coisa mais normal que ele faria durante a viagem até a
estação de trem, passou a língua por entre os cachos castanhos que recobriam
o ponto mais sensível do corpo dela. Por aquele beijo ela não esperava.
Seguindo as orientações do marido, manteve os olhos abertos. Aquilo
serviu não apenas para evitar a escuridão, mas para deixá-la com uma libido
incontrolável. Vê-lo lamber, beijar e sugar sua intimidade causava uma ânsia
impossível de restringir dentro dela. Com cuidado, Edward introduziu um
dedo em sua abertura. Ela gemeu e ele passou a entrar e sair dela com os
dedos. A mistura de carícias fez com que o prazer aumentasse.
Ela quis resistir. Tentou afastar a tempestade que vinha em sua direção,
prestes a naufragá-la. Queria que ele a tocasse daquela forma por muito
tempo. Queria sentir a língua dele dentro dela por um dia inteiro, mas Edward
era incrivelmente habilidoso e destruiu sua resistência. Quando ele sugou
mais forte a pérola de seu clitóris, Agatha não conteve o maremoto de prazer
e se entregou ao orgasmo.
A mão dele permaneceu sobre a intimidade da esposa enquanto ela se
recuperava. Agatha estava desfalecida sobre o banco da carruagem, sentindo
tremores por todo o corpo. Não era medo nem pavor, era o gozo. Nada
preparava as mulheres para aquilo e ela estava apavorada por querer mais,
mesmo depois de tudo.
Edward beijou-a suavemente nos lábios. Passou as mãos pelos cabelos
suados dela e analisou o elaborado penteado que Caroline produzira.
— Você está linda, mas prefiro que fique confortável. E então, o que
achou?
O arrogante queria que ela comentasse sua performance. Ela se apoiou
nos cotovelos e o encarou.
— Isso acontece todas as vezes em que fazemos sexo? Você… faz
sempre isso?
— Todas as vezes que você quiser, onde você quiser e por quanto tempo
desejar, milady.
As palavras dele fizeram com que a boca dela secasse. Maldito conde e
sua capacidade de seduzi-la com um olhar travesso ou um sorriso torto.
— Céus. Todas as vezes que eu quiser?
— Eu disse que seria bom, Agatha. Não há motivos para não tirarmos o
melhor proveito do nosso casamento, e isso inclui você passar muitas horas
na cama, em minha companhia.
O conde sentou-se novamente em seu banco e a deixou desnorteada. Não
havia como contestar aquele argumento, afinal.

D URANTE O RESTANTE DA VIAGEM , Edward não tentou mais seduzir a esposa.


Eles estavam em um trem comercial, em uma cabine de primeira classe na
qual cabiam todos os adultos. Lady Caroline sentou-se com Isaac ao lado,
enquanto Nathaniel e Patrick dividiram um banco. Não viajaram com criados,
pois os que os serviram residiam permanentemente em Crystal Place.
Edward envolveu Agatha e Caroline com uma conversa agradável sobre
os eventos do dia, narrando o encontro com o Sr. Wareham em detalhes.
Contou sobre os prejuízos da serraria com a explosão e da intenção do dono
em conseguir um financiador para proporcionar os reparos no maquinário.
Também falou sobre a expectativa de produção de madeira e outros assuntos
masculinos que eram enfadonhos para as mulheres, mas não para ela.
Agatha adorava conversar sobre qualquer coisa que não fosse o clima.
Antes, ele se incomodaria por ter se casado com uma mulher tão pouco
convencional. Tirando a linhagem perfeita dela, sua esposa não tinha
nenhuma afinidade com a sociedade londrina. Bem, ele também não tinha.
Era bom que ela tivesse interesses variados além de gastar toda a fortuna que
ele ganhasse.
Quando chegaram à estação em Londres já era noite e eles decidiram ir
direto para a casa dos Trowsdale. Agatha abraçou Patrick, que estava
sonolento, e decidiu.
— Ele dormirá na McFadden Garden, amanhã eu o deixo em casa e visito
Elizabeth. Estou preocupada com ela.
— Sabe que se ela estivesse em trabalho de parto, seu irmão teria nos
enviado uma mensagem imediatamente, não sabe?
— Sei, claro. Mas estou pressentindo que é por agora.
Edward não discutiu. Patrick era uma criança capaz de dormir sozinha em
um quarto e dispensava a necessidade de uma ama ou babá, mas a sua
presença ali o deixava desconfortável. Ele queria produzir um herdeiro que
pudesse levar adiante a linhagem dos McFadden. Parecia tolo que, mesmo
tendo três irmãos a quem amasse incondicionalmente, o conde estivesse tão
absorvido pela ideia de ter filhos. Talvez fosse mais do que o desejo de que
seu próprio filho herdasse o condado. Edward poderia ser como o pai, afinal,
e querer uma grande família para si.
Agatha parecia maternal o suficiente, mas o seu histórico de violência
poderia ser um problema. Era até possível que ele a tivesse engravidado na
noite anterior, Edward sabia que não era preciso mais de uma vez para um
homem plantar sua semente em uma mulher, mas ele precisava ser cauteloso
com aquele assunto. Talvez ele fosse o problema e a paternidade fosse algo
que o incomodasse.
Decidiu que não queria pensar naquilo enquanto Agatha estava tão
tranquila e pacífica. Preferia terminar a noite sem declarar uma guerra ou ter
uma enorme dor de cabeça. Ele já sentia um pequeno mal-estar e fisgadas no
local da pancada. Tinha certeza de que uma noite de sono resolveria o
problema e esperava fazer isso em paz.
Quando a carruagem de aluguel, que pegaram na estação, estacionou em
McFadden Garden, já passava de meia-noite. Brett os recebeu, mas Edward
fez questão de pegar Patrick no colo e levá-lo até um quarto. O menino
adormecera no trajeto.
— Devo mandar avisarem a Vossa Graça que o enteado dele chegou? —
o mordomo inquiriu.
— Não, imagino que ele já esteja recolhido em seus aposentos. Amanhã
levaremos o menino.
Brett assentiu e foi dispensado de seus serviços. Edward raramente
explorava os criados à noite. Deixava que dormissem em suas casas, se
preferissem. Apenas quando a sua mãe estava em Londres os serviços da sua
camareira eram solicitados. Fora isso, ele sabia que podia despir-se e tomar
um banho sozinho.
Agatha entrou no quarto de banho e ele não a viu sair. Ajeitou-se para
dormir, não pretendendo ler nada naquela noite. Esperou até que ela fosse até
ele, mas a porta do quarto conjugado não se abriu. A vontade de ir até ela
venceu a razão. Não era razoável que um marido desejasse tanto a companhia
de sua esposa. Eles passaram uma semana inteira juntos.
Ela estava sentada em sua cama, no escuro, com as mãos cravadas no
colchão. Os pés descalços mal tocavam o chão e ela parecia ponderar alguma
situação. Ele recostou no batente da porta e encarou sua silhueta na
penumbra.
— Por que está sentada aí, Agatha? Não tem sono?
— Sim, tenho. — Ela ergueu os olhos e eles brilhavam mesmo na
ausência de luz. — Mas eu… a cama está… fria. Acho que é isso.
— Engraçado, a minha cama está bastante quente.
Era mentira, a cama dele também estava fria e solitária.
— Sério?
— Você quer conferir?
Ela sorriu porque ele percebera o que a estava incomodando. Talvez fosse
o motivo do conde ter sucumbido e aberto aquela maldita porta. Ao mesmo
tempo, ela hesitou.
— Venha dormir comigo, Agatha. — Edward saiu da frente da porta para
ela passar. — Não faz sentido você ficar sozinha nessa cama.
— Vamos apenas dormir?
— Santo Deus, espero que sim. Mas você ficará muito chateada se eu não
conseguir?
Ela riu. Era uma pequena diabinha, a mulher com quem ele tinha casado.
Edward deveria ter escolhido uma esposa mais madura, mais experiente, mas
acabou casado com uma jovem impetuosa e cheia de vontades. Agatha
passou pela porta e se enfiou debaixo dos lençóis na cama do conde. Edward
fechou a porta conjugada e apagou o lampião. Que Deus o ajudasse, porque
ele não sabia se conseguiria ficar tão perto dela sem assaltá-la no meio da
noite.

A QUELA FOI a segunda vez que ela dormira nos braços de Edward. A segunda
que ela se recordava, pois ele a havia visitado de madrugada antes. Mas ela
só dormiu. Ele cumpriu a promessa, a acomodou em seu peito e acariciou
seus cabelos até que ela pegasse no sono. Ela não esperava que ele a
acordasse. Cedo demais. Sacudindo-a pelos ombros.
— Minha querida, acorde.
— Céus, Edward — ela resmungou, sonolenta. — Isso não é muito
romântico.
— Não quero ser romântico, quero te acordar. Vamos, o seu sobrinho vai
nascer.
A informação a fez sentar subitamente na cama. Sentiu uma tontura que
logo passou e encarou o marido. Ele estava glorioso como um dia de sol,
reluzindo com os cabelos loiros úmidos e penteados, uma camisa branca
impecável e colete azul. Edward deveria ser proibido de usar azul. Os olhos
dele ficavam absurdos.
— Como assim?
— Granger veio aqui avisar. Patrick foi correndo com ele, mas imagino
que você também queira estar com sua cunhada.
Claro que ela queria. Agatha ainda não tinha despertado plenamente, mas
sabia que precisava estar ao lado de Elizabeth quando o bebê nascesse. Ela
pulou da cama e se arrastou para a casa de banho. O marido foi atrás dela e a
ajudou a preparar um banho, depois a secar-se e a vestir-se. Foi tudo muito
rápido e não houve tempo nem para ela pensar em se arrumar muito. Aquele
não era um momento que pedia uma produção elaborada.
A carruagem os aguardava na entrada. A Trowsdale House ficava no final
da rua, mas seria mais rápido do que ir a pé. Durante o curto trajeto, Agatha
esfregou as mãos e não escondeu o nervosismo. Ela estava ansiosa para o
nascimento do filho de Aiden, nervosa por Elizabeth.
Aiden estava sentado no salão quando eles chegaram. Segurava um copo
de conhaque em uma mão, um charuto em outra e tinha a aparência de quem
acabara de chegar da guerra. Agatha deu uma risada ao ver o estado do irmão.
— Vocês chegaram! — Ele se levantou. Bebeu o conhaque, fumou,
apagou o charuto, passou as mãos pelos cabelos. — Elas dizem que está tudo
normal, mas não posso ficar no quarto.
— Claro que não pode. — Agatha abraçou o irmão, acariciando sua face.
— Homens não entendem nada de nascimentos, eles só atrapalham. Quem
está com ela?
— A Sra. Ferguson. Ela não quer um médico, diz que já fez isso outras
duas vezes.
— Ela já fez. Fique com Edward, vou subir e fazer companhia à
Elizabeth. Quando minha sobrinha nascer, eu volto.
— Sobrinho. Elizabeth vai parir meu herdeiro — Aiden rosnou.
— Pelo bem de sua fortuna, esperemos que sim.
Rindo do desespero do irmão, Agatha subiu as escadas, apressada. Do
corredor, ela pôde ouvir os barulhos vindos dos aposentos ducais. A porta se
abriu e uma mulher saiu com um monte de toalhas brancas. Elas estavam
molhadas de um líquido viscoso. O coração de Agatha saltou algumas
batidas. Ela entrou no quarto e ele quase parou de bater.
A cena era totalmente diferente, mas ainda assim muito igual à que ela
vivera, meses atrás. Elizabeth estava sobre a cama, usando uma camisola
branca, com as pernas dobradas, recostada em travesseiros. Sua tez branca
estava corada e seus cabelos suados. A Sra. Ferguson limpava as mãos com
algum líquido que Agatha desconhecia.
— Você chegou! — Elizabeth estendeu os braços e pediu que a cunhada
se aproximasse. Foi preciso uma força sobrenatural para que os pés de
Agatha fossem até ela. O ar do quarto estava impossível de respirar. Ela
pensou que fosse desmaiar. — Não deve demorar muito agora. É meu
terceiro filho.
— Quando começaram as dores?
— Há umas quatro horas. Mas as águas já desceram. Ela está vindo.
— Já consigo ver a cabeça. — A parteira se abaixou e olhou entre as
pernas de Elizabeth. — Você precisa ajudá-la agora.
Elizabeth acenou com a cabeça e pegou a mão de Agatha. Ela segurava
com muita força enquanto gritava pela contração. A jovem dama precisou se
concentrar para não sair correndo. Mesmo com o coração disparado e as
pernas tremendo, Agatha se manteve firme enquanto Elizabeth colocava no
mundo o primeiro filho do Duque de Shaftesbury.

E DWARD TOMOU o copo de conhaque da mão de Aiden ao notar que a garrafa


estava pela metade.
— Precisa parar, meu amigo, ou vai receber seu filho bêbado demais para
segurá-lo.
— Não consigo. — Aiden perambulava pelo local, desgrenhado e
agitado. — Poxa, Edward, você entenderá quando tiver o seu. Eu estou
morrendo de medo.
O conde cruzou os braços sem saber o que dizer.
— Não seja bobo, vai dar tudo certo. Elizabeth já teve dois meninos
saudáveis.
Claro que a experiência de Aiden com nascimentos era muito ruim. Ele
vira cada um dos bebês natimortos de sua mãe e presenciara os abortos. Para
ele, partos eram situações perigosas. Edward não queria passar por nada
daquilo, mesmo sabendo que seria inevitável. No final das contas, ele
precisava de um herdeiro.
— Distraia-me. Diga se você e Agatha conseguiram se acertar.
— Defina “se acertar”. — O conde pressionou os lábios em uma linha
fina enquanto observava o duque girar pelo salão. — E, por favor, sente-se.
Estou ficando tonto só de te ver girar.
Aiden se sentou. Acendeu outro charuto e serviu-se de mais conhaque.
Edward desistiu, ele não era capaz de impedir o amigo de fazer bobagens.
— Você sabe, Edward, que eu deveria tê-lo desafiado para um duelo se
isso não fosse tão antiquado e ilegal. Você rompeu um importante pacto
silencioso que há entre homens: nunca cobiçar a irmã do outro. Mas eu
preferia vê-la casada com alguém honrado. E não há ninguém mais honrado
que você, afinal. — O duque, sempre falante demais, bebeu um gole do
líquido âmbar em suas mãos. Edward o fitava, aguardando que concluísse. —
Sempre houve uma enorme tensão entre você e Agatha. Vocês sempre
demonstraram prazer em se desafiar. Toda vez que estavam no mesmo
recinto, eu sentia que poderiam colocar fogo nas paredes só por se encararem.
Mesmo depois de casados, essa tensão permaneceu. Hoje… vocês chegaram
mais leves. Ela está leve. Você descobriu o que aconteceu em Nova Iorque?
O conde se sentou e bebeu do copo que tomara do amigo. Olhou para o
fundo de vidro e tomou decisões rápidas que representavam a quebra da
confiança de um dos irmãos Trowsdale. Se contasse a verdade a Aiden,
quebraria a promessa feita à Agatha. Se não contasse, quebraria a promessa
feita ao duque. Ergueu o olhar e fitou o semblante desesperado de Aiden. Ele
tinha sua família para cuidar. Agatha agora era responsabilidade de Edward.
Ele resolveria aquele problema. Sozinho.
— Ainda não descobri. Mas creio que não tenha sido nada grave. Sua
irmã é muito livre e rebelde.
— Certo. Você tem razão, estou me preocupando à toa. E o restante? O
casamento? Vocês estão bem?
— Não sei o que você quer saber, Aiden. — Edward estava ficando
impaciente.
— Sabe que eu só concordei com sua proposta para reparar a reputação
dela porque eu acreditava que vocês teriam um bom casamento, não sabe? —
o duque disse, mas Edward continuou confuso. — Eu sei que vocês, no
fundo, se gostam de uma forma estranha.
— Meu Deus. — Edward passou as mãos pelos cabelos. — Você parece
Isaac falando.
— Bem, se há dois irmãos percebendo a mesma coisa, talvez você
devesse prestar mais atenção, meu amigo.
O conde queria responder ou mandar Aiden à merda. Não teve essa
oportunidade, pois do andar de cima descia Agatha segurando um bebê
embrulhado em lã.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

A PROVAÇÃO DO PARTO FOI DIFÍCIL , MAS , QUANDO O CHORO DO BEBÊ ECOOU


pelo quarto, Agatha se sentiu transportada para outra dimensão. A parteira
ergueu o pequeno ser e o enrolou em uma manta.
— É uma menina — a Sra. Ferguson disse, enquanto fazia procedimentos
que Agatha não entendia. O filho dela, o bebê que ela esperou, nascera morto.
Não houve choro. Ela nem mesmo quis vê-lo. Foi melhor daquela forma, ela
sabia, mas a dor pungia ali, no meio do peito, como se a carne dela estivesse
dilacerada.
Elizabeth recostou nos travesseiros, mas algo em sua expressão não
indicava tranquilidade. Era como se o bebê ainda não tivesse nascido, mesmo
que ele estivesse ali, nas mãos da parteira.
— Tem algo errado, não tem? — a duquesa perguntou, limpando o suor
do rosto. Agatha entregou a ela uma toalha umedecida em água fresca. A
parteira pegou a bebê, que ainda resmungava, e a entregou à Agatha.
— Segure-a. O outro não deve demorar a vir.
— Outro? — As duas mulheres falaram ao mesmo tempo.
— Sim. Há outro, Vossa Graça. Suspeitei quando toquei sua barriga e
agora tenho certeza.
A estupefação de Agatha contrastava com a alegria de Elizabeth. Havia
um júbilo inabalável em seus olhos, mas ela não estava rindo porque a dor
das contrações ainda a incomodava.
— Agatha, leve a bebê até Aiden. Diga a ele para vir aqui.
— Vossa Graça não acha que…
— Quero meu marido aqui — Elizabeth interrompeu a parteira. — Não
conte sobre os gêmeos, Agatha. Apenas faça-o subir.
A jovem olhou para o pequeno ser humano em seus braços. Ele era
enrugado e estava ensebado, sujo de sangue e fluidos. Era uma bebê linda.
Tinha cabelos escuros e parecia como qualquer bebê que ela já vira. A
vontade de chorar se misturou à necessidade de rir e ela precisou sair do
quarto para não assustar Elizabeth. Fez o que lhe fora pedido, foi até Aiden.
Ele e Edward conversavam de forma quase inamistosa. Se não estivesse
acostumada com os dois se espetando no galpão em Kent, imaginaria que
estavam brigando. Quando a viram descer as escadas, eles se levantaram. A
expressão no rosto de Aiden foi da surpresa à completa desorientação.
Caminhando na direção dela, ele parecia não acreditar que o bebê nascera.
— Como está Elizabeth? — Aiden perguntou, decidindo se estendia as
mãos para segurar o filho ou não. — E ele… ela…
— Elizabeth está bem, ela quer que você vá até o quarto. E é ela. Uma
menina.
— Aha! — o duque gritou. Virou para Edward, pulou no pescoço do
amigo e beijou a sua bochecha. Enquanto o conde limpava o rosto indignado,
Aiden pegou a menina nos braços e olhou para a filha que tanto esperou.
— Pensei que estivesse apostando em um menino — Edward implicou.
— Foda-se o sexo. — O duque fitou o semblante enrugado da menininha
em seus braços. — Eu apenas queria que ela fosse saudável. Olá, querida. —
Ele ofereceu o dedo para que ela segurasse. — Prepare-se para ser a garotinha
mais mimada de toda Londres.
— Como ela vai se chamar? — Agatha perguntou, rindo.
— Lillian — Aiden respondeu, sem conseguir parar de olhar para a bebê.
— Esse é o nome que Elizabeth daria a Patrick, se ele fosse uma menina. Ou
a Peter.
— É um lindo nome. Agora vá ver sua esposa, eu te acompanho.
Edward sabia que ele deveria ficar onde estava. Os irmãos Trowsdale
foram até os aposentos ducais. Antes mesmo de abrirem a porta, ouviram os
gritos de força de Elizabeth e a parteira dizendo que ela deveria empurrar.
Assustado, o duque entrou no quarto e quase tropeçou nas próprias pernas ao
ver que a esposa ainda estava em trabalho de parto.
Agatha o empurrou para o lado da duquesa e pegou o bebê de volta.
— O que está havendo aqui? Por que me chamou, o que é isso?
— São dois, meu amor. — Elizabeth recostou novamente nos
travesseiros, o suor escorrendo por seu rosto delicado. Havia bastante sangue
nos lençóis e isso deixou Agatha em alerta.
— Dois? Gêmeos? — O duque segurou a mão da esposa e beijou.
— Sim, milorde. — A parteira se ergueu e examinou a cama. — O
segundo está sendo um pouco difícil.
Agatha sabia o que tinha que fazer. Devolveu o bebê para o pai e correu
pelos corredores. Desceu as escadas se atropelando e pisou sobre a barra da
saia, caindo exatamente nos braços do marido que esperava. Edward
amparou-a antes que desabasse no chão.
— Chame John — ela disse, arfando. — Precisamos de um médico.
Elizabeth não está bem.
Edward ajudou a esposa a se erguer e procurou pelo mordomo, que
prontamente apareceu para atendê-lo. O jovem Granger teve que sair para
buscar o doutor enquanto Agatha se recuperava do choque. Eram dois.
Primeiro, o parto em si. Todas as imagens daquela manhã a faziam se lembrar
do seu próprio momento de horror nas Américas. Ter um filho bastardo era
um problema grave. Agatha suspeitava que o irmão fosse acolhê-la e ajudá-la
com o bebê, assim que ela retornasse. Não tinha expectativas que Colton
Bristol se casasse com ela, nem aceitaria se casar com o homem que a
violentara, mas ela sabia que jamais conseguiria se casar com um bom
marido tendo um bastardo. Mesmo que ela fosse a irmã de um duque e que
tivesse um dote invejável. Agatha não se casaria com ninguém da sociedade.
Talvez aquilo fosse bom. Ela poderia ser livre, mas queria que essa fosse uma
decisão dela, não resultado do desprezo da sociedade.
O maior problema não era o parto em si. O sangue, o cheiro de álcool a
levavam de volta à experiência da morte. Quando o pai faleceu não houve
caos. Ele estava sereno e tranquilo. Agatha sofreu, mas o decesso dele foi
limpo. O parto do filho natimorto foi sangue, dor e cheiro de morte. Ela
sentiria aquele cheiro para sempre, e o quarto de Aiden e Elizabeth estava
impregnado dele.
O médico chegou em menos de quinze minutos. Subiu correndo as
escadas, guiado por Agatha e uma criada, que carregava uma pilha de panos
limpos. No quarto, Elizabeth estava recostada, com as pernas dobradas e
muito sangue entre elas. O médico balançou a cabeça e pediu à parteira um
relatório do parto.
— Não fiquem conversando, façam alguma coisa — Aiden esbravejou,
segurando a mão da esposa. A duquesa estava pálida e exausta. — Digam ao
menos qual é o problema.
— O bebê está sentado — o médico concluiu, depois de ouvir a parteira e
examinar Elizabeth. — Vossa Graça, vamos prosseguir com o parto, mas
preciso informá-lo dos riscos. Pode ser que tenhamos que optar entre salvar
uma vida ou outra.
Aiden apertou a mão de Elizabeth e beijou-a no alto da cabeça. A sua
expressão de horror indicava que ele estava desesperado, mas não
demonstrou nenhum medo na frente dela. Afastou-se, levou o médico para
um canto do quarto, e colocou as duas mãos em seus ombros.
— Salve minha esposa. Já temos um filho saudável e podemos ter outros.
Não a deixe escolher, nunca a deixe escolher. Ela é uma mãe, decidirá pela
vida do filho. Mas eu digo… aliás, eu exijo que a salve.
— Certo, atenderei à exigência de Vossa Graça. Agora peço que saia,
precisamos de paz e privacidade.
O duque voltou até Elizabeth. Ajoelhou-se ao lado dela na cama, beijou-a
nos lábios, acariciou suas bochechas e sussurrou alguma coisa em seus
ouvidos. Ela sorriu, fraca, e o acariciou nos cabelos.
Agatha segurou o irmão pelo braço e o guiou para fora. Ela sabia que ele
não iria embora sozinho, que ele precisava de um incentivo para sair do
quarto. Aiden foi arrastado, desolado, para o andar de baixo e até mesmo o
rígido Conde de Cornwall deixou que ele terminasse de se embebedar.

J Á PASSAVA DE MEIO - DIA . A casa estava em completo silêncio. Sentado em


um sofá de uma sala particular, Edward fitava o vazio. O menino Peter estava
adormecido com a cabeça sobre suas pernas. Agatha estava em uma poltrona
logo à sua frente, esfregando as mãos sem luvas. Na pressa de saírem de casa,
ela deixou de vestir várias das indumentárias regulares de uma dama. Ele não
se importava. Com a aparência exausta e preocupada, ela ainda era a mais
linda das mulheres de Londres.
Aiden estava jogado no sofá em seu escritório. Ele bebera tanto que
apagou. Um homem de quase um metro e noventa derrubado pelo medo.
Edward acariciou os cabelos de Peter e observou o semblante do menino. Os
filhos de Elizabeth eram crianças lindas. Os olhos do conde se ergueram para
Agatha. Ela fitava o chão, também estava nervosa. A tensão na Trowsdale
House era tão densa que poderia ser tocada.
Dentro do conde, um misto de sentimentos o deixou confuso. Ao mesmo
tempo que ele jamais desejaria que sua esposa passasse por aquele trauma do
parto, o desejo de ter um filho o arrebatou. Poderia ser o instinto de
sobrevivência sussurrando em seu ouvido, mas ele sentiu algo em suas
entranhas. Uma sensação que começou no estômago e percorreu toda a sua
coluna.
Edward não se importaria em segurar um bebezinho em seus braços. Em
chamá-lo de filho, em ensiná-lo as coisas que não aprendeu com seu próprio
pai. Não tinha passado um dia desde a última vez em que ele teve certeza de
que não deveria ter filhos, e então ele estava imaginando uma criança em sua
vida. Na vida deles. Era culpa de Aiden e sua excessiva fertilidade. Ficar
rodeado de crianças fofas e bebês nascendo não o ajudava a manter uma
decisão racional.
— Está demorando muito — Agatha disse, fazendo seus pensamentos
dissolverem.
— Sim, está. Deve estar tudo bem.
— Como pode saber? — Ela se levantou e começou a girar.
— Por minha experiência, querida, quando as coisas tendem a dar errado
elas não levam muito tempo para estragar. Se está difícil, é porque o doutor
deve estar conseguindo contornar o problema.
O conde ajeitou Peter no sofá, colocando uma almofada sob a cabeça do
pequeno. Levantou-se e foi até a esposa. Segurou-a nos braços, mesmo que
ela se mostrasse rebelde. Acariciou os cabelos dela e a fez recostar em seu
peito.
— Acalme-se. Vai ficar tudo bem, Elizabeth já enfrentou coisas piores.
Era provável que Edward não acreditasse em suas palavras. Também era
possível que soasse insensível, mas era a forma que ele encontrava de
acalmar as pessoas, tentando fazê-las acreditar que nada ruim aconteceria.
Antes que Agatha pudesse protestar ou desafiá-lo, os olhos se
encontraram. O semblante indignado da esposa murchou quando capturados
pelo azul do olhar do conde e ele quis beijá-la. Ele a teria beijado se não fosse
um barulho de passos descendo a escada.
— Milady. — A criada pessoal de Elizabeth vinha com um bebê nos
braços. — O doutor está chamando o duque.
— Como ela está, Anna?
— Agora, está descansando. O doutor conseguiu tirar a criança, é um
menino.
Edward e Agatha se encararam.
— Ele está vivo? Está bem?
A criada estendeu a criança que estava em seus braços para que Agatha
segurasse. Foi quando ela percebeu que aquele não era o mesmo bebê de
antes, era menor. O conde passou os dedos pela cabeça cheia de cabelos que
eram visivelmente claros.
— Vou buscar Aiden. Mas ele está completamente indisposto.
— Vou subir e conversar com o médico.
Edward deu passos largos até o escritório e encontrou o amigo no chão.
Embolado sobre o tapete, agarrado a uma almofada e babando. Seria uma
cena engraçada, motivo para ele rir e implicar com o duque, se os motivos
que o levaram à bebedeira não fossem justos. Ajoelhado ao lado de Aiden, o
conde o chacoalhou pelos ombros para despertá-lo.
— O que foi?
— Sente-se e recomponha-se. O médico quer te ver.
O duque tentou se levantar às pressas, mas cambaleou para trás. Caiu
sentado no sofá. Olhou ao redor, ainda desorientado pelo álcool. Passou as
mãos pelos cabelos e encarou o amigo, que estava de pé e com os braços
cruzados no peito.
— Não me julgue, merda — Aiden protestou.
— Não estou julgando. Se fosse a minha mulher e o meu filho, eu
provavelmente estaria mais bêbado do que você. Tem condições de ver
Elizabeth?
— Ela está bem?
— A criada disse que sim. Mas creio que apenas o médico pode dizer
com certeza o que houve.
Aiden concordou. Edward foi até a mesa e encheu um copo com água
fresca, oferecendo ao amigo. Depois, foram até o andar de cima para que ele
pudesse se reorganizar na sala de banho.

E LIZABETH PARECIA DORMIR quando Agatha entrou no quarto, segurando o


menino ainda sem nome. O médico estava limpando as mãos em um pano e a
parteira guardava alguns objetos. Lillian, a menina, estava dormindo em um
berço colocado ao lado da cama. Eles só tinham um, precisariam providenciar
o segundo. Nada que fosse um real desafio para o Duque de Shaftesbury, ela
pensou. O irmão adorava exercer sua autoridade e aquela era uma ótima
oportunidade para dar ordens.
— Milady, o duque está…
— Indisposto — ela interrompeu o médico. — Mas meu marido deve
trazê-lo em minutos. Como está a duquesa?
— Ela está bem. Teve uma perda significativa de sangue, por isso precisa
de repouso e alimentos fortes. Vou prescrever alguns tônicos também. O bebê
é um pouco fraco, mas ele deve sobreviver.
Agatha se sentou ao lado da cunhada na cama e Elizabeth abriu os olhos
azuis. Mesmo pálida e desfeita, ela preservava uma beleza incomum. A
duquesa sorriu ao ver a jovem ao seu lado.
— Você o viu? — perguntou.
— O bebê? — Agatha ajeitou o menino no colo da mãe. Passou os braços
de Elizabeth para que ela pudesse segurar o filho sem riscos. — Claro, ele é
muito parecido com você.
— Aiden?
— Ele bebeu um pouco demais. Edward está resolvendo isso.
— Homens. — Elizabeth riu. — Eles não aguentam nada, não é mesmo?
Agatha deu uma risada sincera. Ela não tinha muita experiência com
homens, nem com nada. Mesmo que Elizabeth fosse poucos anos mais velha
que ela, já vivenciara muita coisa. Por vezes, ela se sentia como que
conversando com a irmã mais velha que não teve, ou a mãe que nunca a
amou.
Antes que pudessem continuar a conversa, o conde entrou no quarto
arrastando o Duque de Shaftesbury atrás dele. A aparência de Aiden era
horrível, mas ele tinha lavado o rosto, penteado os cabelos e trocado a
camisa. Edward chamou o médico para conversar enquanto Aiden tentou
caminhar na direção da cama. Agatha se levantou e o ajudou a acomodar-se
ali, do lado da esposa.
— Graças a Deus. — Ele abraçou Elizabeth, que se aninhou em seu peito.
Ela colocou o bebê no braço livre do marido, que olhou para os cabelos
claros do menino. — Ah, essa tem os seus cabelos.
— É um menino, meu amor — Elizabeth murmurou. — Seu herdeiro.
Aiden se sobressaltou, mas logo lembrou que segurava a esposa em um
braço e o filho recém-nascido no outro.
— Céus, temos um de cada?
— Sim. — Ela riu. — E o nome dele, qual será?
— Albert. — O duque beijou os cabelos de sua esposa. — Nosso filho
receberá o nome de meu pai, o melhor homem que já conheci.
O quarto foi esvaziado para que a família se recompusesse. Agatha
desceu para organizar a casa e deu ordens na cozinha para que preparassem
uma sopa para Elizabeth, bem como mandou servirem o almoço para as
crianças. Patrick e Peter estavam agitados, queriam ver a mãe e só se
tranquilizaram depois que a tia explicou que ela estava dormindo com os
bebês. Depois eles poderiam subir e conhecer os irmãos.
Edward estava atrás dela quando saiu do quarto dos meninos. Eles
dormiam juntos no andar superior, em um dos maiores quartos da Trowsdale
House. Agatha determinou que lavassem as mãos e o rosto para comer e
considerou que não precisava mais organizar nada na próxima hora.
— Eu vou ficar — ela disse, virando-se para o marido. O conde a fitou
com uma expressão curiosa. — Eles precisam de ajuda, eu tenho que ficar
aqui para cuidar das coisas.
— Aiden tem dúzias de criados, Agatha.
— E todos precisam de orientação. Não sou mais uma garota, sei gerir
uma casa.
Provavelmente ela não sabia, mas se considerava madura o suficiente
para tentar.
— Tudo bem, eu preciso ir à fábrica. Quando sair, venho te buscar.
— Não vou voltar para casa hoje — ela decidiu. — Minha família precisa
de mim.
— Eu também sou sua família. Eu também…
A frase não foi completada. Edward parou como se ele fosse dizer mais
alguma coisa, porém, decidiu não o fazer. Um vinco se formou em sua testa,
no espaço entre os olhos. Agatha não imaginou o que teria ficado não dito, só
que parecia importante.
— Tudo bem. Durma aqui hoje, amanhã retorno para saber como estão as
coisas.

N ÃO ERA verdade que o conde fosse realmente imprescindível na fábrica, ele


apenas gostava de acreditar naquilo. Passou dias longe e nenhum dos
empregados morreu, nenhum acidente ocorreu, nenhuma máquina explodiu.
O Visconde de Whitby e Sawbridge eram capazes de, com a ajuda de Isaac,
administrarem o empreendimento.
Quando Edward apareceu naquela tarde, com olheiras de exaustão
causadas pelas emoções vivenciadas com o nascimento das crianças de
Aiden, a única coisa que queriam saber dele era sobre o sexo dos bebês. Era
provável que ninguém tivesse apostado em gêmeos.
Depois de uma inspeção de rotina entre o maquinário, quando o céu já
estava alaranjado pela noite que caía, Miles Westphallen foi ao escritório do
conde para conversar sobre os fornecedores de madeira e a propriedade em
Hampshire.
— Como foi com o cigano? Ele deu algum prognóstico satisfatório?
Edward serviu uísque aos dois. Parecia adequado beber mais um pouco
naquele dia.
— A propriedade é produtiva e há uma serraria ao lado. O dono teve
alguns prejuízos e podemos tentar comprá-la como uma extensão ou oferecer
financiamento para uma sociedade. Não tive tempo de negociar os termos, no
entanto.
O conde prosseguiu explicando os detalhes do que o Sr. Wareham havia
detalhado. O visconde pareceu mais interessado na possibilidade de adquirir a
serraria do que na sociedade e se comprometeu a fazer uma proposta de
compra. Miles era o homem mais indicado para isso, já que seu poder de
persuasão era fantástico.
Edward duvidava que andasse muito persuasivo. Não conseguia nem
mesmo convencer a sua esposa a ficar em sua cama e ele precisava parar de
pensar em sexo. Agatha não era um pedaço de carne para servir no jantar, ele
deveria tê-la em melhor estima.
Chegou a noite e ele estava cansado demais para ir à Trowsdale House.
Pediu que o cocheiro o levasse diretamente para casa, querendo lavar-se,
comer e descansar. Parte do seu desejo em retornar para a McFadden Garden
era uma espécie de pirraça infantil porque Agatha preferia ficar com a outra
família dela. Claro que ela preferia, a casa do duque estava cheia de crianças
e animação. O que ele poderia oferecer a ela além dele próprio?
Era patético que o Conde de Cornwall fosse tão ciumento e possessivo
em relação à sua esposa. Ele tivera ciúme do irmão, ainda acreditava que
Isaac fosse muito atirado para Agatha e ela para ele. Aquela amizade deles
não deveria irritá-lo, mas irritava. E estava apresentando ciúme do irmão
dela. O seu melhor amigo. O que aquilo significava?
Não. Edward não estava apaixonado por Agatha. Ele não podia estar
porque, se estivesse, ele estaria vulnerável. Não podia abrir o coração mais
uma vez para ser despedaçado.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

A AGITAÇÃO NA T ROWSDALE H OUSE NÃO PERMITIU QUE A GATHA PERCEBESSE


que Edward não retornara. Ele não prometeu que retornaria, era verdade, mas
ela esperava que, de alguma forma, ele aparecesse para vê-la. Tinha se
acostumado a ele e não sabia se aquilo era bom ou ruim, e uma casa com dois
bebês recém-nascidos era uma casa bastante animada.
— Claro que eu vou amamentá-los. — A duquesa pegou uma das
crianças das mãos da criada, que pretendia levá-los para o outro lado do
corredor. — E eles ficarão no quarto conjugado, nenhum dos gêmeos sai de
perto de mim.
— Mas Vossa Graça não acha melhor…
A criada tentava argumentar, mas Elizabeth era resoluta demais. Ela já
estava de pé e perambulando pelo quarto desde que se sentira forte o
suficiente para levantar. Foi apenas um parto difícil, ela dizia. Tivera dois
filhos antes destes, não havia muito mistério em parir, ela afirmava.
— Eu acho melhor que meus filhos fiquem com a mãe.
O duque respirou fundo e concordou. Ele concordava com tudo que
Elizabeth dizia e dava a ela tudo que ela queria. Não havia nada que ela
pedisse que o marido não iniciasse uma cruzada para conseguir.
— O quarto já está arrumado — ele disse para a criada. — Pode deixar
que vamos ficar bem.
A duquesa se sentou em uma poltrona e acomodou a bebê Lillian em seu
colo. Puxou um seio para fora para amamentá-la. A imagem de ternura fez
com que Agatha sentisse algo revirar dentro dela. Enquanto Aiden aguardava,
segurando o pequeno Albert nos braços e oferecendo o seu próprio dedo para
o menino sugar, ela decidiu que deveria sair. Aquele era um momento de
intimidade entre o casal e suas crianças. Outras duas precisavam de atenção.
Patrick estava ansioso pela casa e Peter tinha começado a urinar nas
calças. Por três vezes, naquela tarde, Agatha o pegou escondido com as
calças molhadas. Quando ela perguntou o que era, o menino tentou enganá-la
afirmando que derrubara água sobre as roupas, mas era mentira, ela sabia.
— Vocês querem que eu durma no quarto de vocês, hoje? — Agatha
perguntou aos dois, fazendo com que se sentassem ao lado dela no sofá. Peter
logo se aninhou no colo da tia.
— Seu marido vai deixar a senhora dormir com a gente? — perguntou.
— Ele vai, sim. — Ela riu. — E podemos contar histórias antes de pegar
no sono.
— Gosto de histórias de piratas. — Os olhos de Patrick brilharam. —
Sabe alguma, tia Agatha?
— Se sei? Fique sabendo que eu vi um navio pirata, com meus próprios
olhos.
Os garotos se fascinaram. Era fácil divertir uma criança, fácil conquistá-
las com palavras simpáticas e doces. Naquele dia, em Trowsdale House,
Agatha descobriu que ela gostava de crianças. Que a perda da sua própria
cria fazia, naquele momento, com que ela desejasse outras.
O medo de ser como a mãe estava sendo substituído pelo desejo de tentar,
a qualquer custo, gerar filhos. Ela estava começando a entender Myrtle
Trowsdale e sua ânsia por engravidar, mesmo que aquilo a tivesse destruído.
Ela adormeceu com os meninos e acabou dormindo melhor do que
esperava. Pode ter sido porque a mãozinha de Peter permaneceu sobre o peito
dela durante a noite, mas certamente era porque, em seus sonhos, não houve
escuridão. Não houve nada, apenas um vazio silencioso que a embalou até
que fosse a hora de acordar.

E RA fim da tarde quando Edward decidiu sair da fábrica e ir até a Trowsdale


House. Ele enviara um mensageiro até sua esposa e ela dissera que
permaneceria lá mais um pouco. O conde não sabia mensurar “mais um
pouco”. Aquilo era coisa de mulheres. Homens como ele tinham medidas
exatas de tempo. Horas, dias, meses. Não importava qual medida usasse,
seria tempo demais para ele.
Edward se pegou incomodado com a ausência dela. Admitiu para si
mesmo que não era nada de mais. O desejo exagerado pela esposa fazia com
que ele a quisesse. Na cama, em seus braços, debaixo dele. Estava claro que
era apenas uma pequena abstinência, mas, quando ela pediu, com olhos
doces, para dormir outra noite com o irmão e a cunhada, ele ficou bastante
chateado.
— Eles têm dúzias de criados para cuidar das crianças.
Tentou argumentar com Agatha.
— Mas Elizabeth é uma mãe diferente. Ela cuida dos filhos. E Patrick e
Peter estão solitários. Por favor, Edward, deixe-me ficar com eles outra noite.
O conde sabia que não venceria aquele argumento. Ela estava de pé,
olhando para ele com a expressão pidona, os longos cílios escuros
emoldurando o verde-esmeralda dos olhos e passando os dedos pela lapela
dele. Aquela era uma posição específica para seduzi-lo, e Edward acabava
fazendo o que ela queria. Não era nada de mais. Que mal havia em deixá-la
dormir com a família?
A solidão que o abateu no caminho de McFadden Garden fez com que
desviasse o rumo até a casa de jogos de Riderhood. Fazia muito tempo que
ele não bebia e jogava. Precisava de atividades masculinas. Nada deu muito
certo. Seu planejamento fracassou porque, durante toda a noite, pensou na
esposa. Jogou mal, perdeu algumas libras. Bebeu demais, arrumou confusão
com o crupiê e Riderhood acabou colocando-o na carruagem à força. Agiu
como um canalha e precisou se conformar que ele teria que fazer Agatha
voltar para casa, que foi o que aconteceu no dia seguinte.
Mesmo que tivesse passado o dia na fábrica, como sempre, à noite ele
retornou à Trowsdale House e, daquela vez, não sairia sem sua esposa. Foi
recebido por John e logo notou a correria pela casa. Peter passou por eles, no
salão principal, e foi na direção do escritório. Atrás dele vinha Agatha,
gargalhando e proferindo ameaças.
Ao ver Edward ela parou e ajeitou as saias. As risadas demoraram um
pouco mais a cessar.
— Olá, meu marido.
— O que está havendo? — Edward perguntou. O mordomo moveu os
ombros e saiu, deixando-os sozinhos.
— Estava brincando com Peter. O que veio fazer?
— Espero que buscar sua esposa. — Elizabeth apareceu, caminhando
com tranquilidade. Carregava um dos bebês no colo. O conde tinha certeza de
que nunca diferenciaria as crianças enquanto elas estivessem enroladas em
panos. Talvez quando começassem a usar vestidos ou bermudas. — Já a
mandei embora cinco vezes, hoje.
— E estou começando a achar que não sou bem-vinda — Agatha
resmungou.
— Sempre será, mas você é uma jovem recém-casada. Não deve ficar
aqui às noites.
— Elizabeth está certa. — Aiden também chegou. Edward respirou,
aliviado, havia um complô a seu favor. — Vá com seu marido.
Agatha torceu os lábios e suspirou. Ele não queria que ela fosse com ele
contrariada, queria que sentisse sua falta da mesma forma que sentira a dela.
— Venha aqui todos os dias, se quiser — ele se aproximou dela e disse,
tirando uma mecha de cabelo rebelde e colocando atrás das orelhas da esposa.
— Eu venho te buscar ao sair da fábrica. Mas volte para casa comigo.
— Certo. Esse parece um excelente combinado. — Os olhos dela
brilharam.
Ela foi até Peter, que olhava contrariado para a conversa, ajoelhou-se no
chão e conversou com ele. O menino fez algumas caretas, mas entendeu o
que lhe tinha sido dito. Depois, foi atrás de Patrick e despediu-se dele, depois
do irmão, da cunhada, do bebê. Apenas meia hora depois, Agatha estava
sentada na carruagem com Edward em direção à casa deles.
Ficou em um silêncio inconveniente até chegarem, e o manteve enquanto
se lavava para o jantar.
— Agatha. — Edward resolveu falar alguma coisa, enquanto o jantar era
servido e eles comiam. Estavam sozinhos naquela noite, Isaac tinha decidido
passar umas semanas em Kent, com a mãe, a irmã e Nathaniel. — Você está
contrariada. Diga, é tão ruim assim estar aqui comigo?
Ela apoiou os talheres no prato e o encarou com surpresa. Os olhos verdes
piscaram várias vezes e ela pareceu até mesmo aborrecida com o
questionamento dele.
— Claro que não, Edward! Que bobagem. Eu… eu senti sua falta — ela
confessou. — Mas a casa de Aiden é tão viva, tão cheia dessa animação que
as crianças causam. Não sei como os aristocratas conseguem ser tão
burocráticos para criarem seus filhos. É muito bom conviver com crianças.
— Você pode fazer o mesmo aqui. — Ele apenas falou, sem refletir sobre
as consequências. — Pode encher a casa de… filhos.
A expressão dela era confusa. Agatha parecia extasiada, mas também
horrorizada com a possibilidade.
— Filhos nossos?
— Claro, que outros filhos acha que eu pretendia trazer para cá?
— Não sei. Há tantas crianças precisando de um lar. Pensei que sua
sugestão…
Ela não terminou a frase. Segundos se passaram até que Edward decidisse
falar novamente. Foi preciso refletir, daquela vez.
— Você quer adotar crianças? Bem, por que não? Esta casa é realmente
enorme e somos ricos o suficiente para isso. Mas não considera ter os seus
próprios filhos?
— Considero. Bem, eu sei que você deseja seus herdeiros. Mas,
Edward… tem algo que eu preciso falar. Eu não sei se… quero dizer, eu
talvez não possa… é provável que eu seja como minha mãe.
Mais silêncio. O ruído dos talheres batendo nos pratos era quase
ensurdecedor.
— Sua mãe teve dois filhos saudáveis.
— E diversos abortos, e natimortos, e bebês que nasceram e viveram
horas ou dias. Foram tantos que não cabem nos dedos das mãos. Eu… — Ela
largou os talheres e passou as mãos pelo rosto. Ela não podia estar chorando,
podia? — E se eu não puder ter filhos, ou se for como ela?
— Não sabemos isso. Podemos consultar um médico, mas a maior parte
deles é imbecil e a outra parte só fala o que queremos ouvir. A única forma
de ter certeza é tentando.
A conversa parou ali. Agatha não conseguiu responder mais nada, nem
continuar comendo. Ela remexeu o que havia no prato e pediu licença,
levantando-se e saindo do salão. Edward sentiu-se idiota, porque ele parecia
sempre fazer a coisa errada quando pretendia agradá-la. Fora da cama, ele
parecia inapto em conseguir satisfazer uma mulher.
Acabou desistindo do jantar. Bebeu o restante do vinho que estava na
taça, pegou uma garrafa de champanhe com Geoffrey e subiu para o quarto.
A esposa acabara de voltar para casa, ele não a queria chateada com ele.

E LA NÃO PRETENDIA FICAR emotiva nem agir como uma tola, mas a conversa
do jantar a deixou nervosa. Talvez fosse cedo para ter filhos. Só que fora ela
quem estivera obcecada por crianças nos últimos dias. Se não tivesse tão
envolvida com os filhos dos outros, era provável que o conde não falasse
nada.
Retirando-se para o quarto, Agatha pediu ajuda de Moira para despir o
vestido, desfazer o penteado e vestir uma camisola. Dispensou a camareira e
aguardou que o mal-estar passasse. Algumas lágrimas rolaram por sua face,
outras ela conseguiu reprimir com sucesso. Apesar de saber que não era
possível evitar chorar, costumava se esforçar bastante para isso. Não teve
muito tempo para ficar sozinha com sua dor, logo a porta do quarto se abriu e
o marido apareceu. Segurava uma garrafa de champanhe e duas taças.
Edward não disse nada. Abriu a garrafa e serviu uma taça. Entregou o
líquido borbulhante para ela e se sentou à cama, ao seu lado.
— Não vamos falar sobre coisas que te aborreçam. Traga as crianças que
quiser para casa. Vamos adotar todas que desejar. Quanto aos nossos filhos,
podemos nos divertir no processo de produção e deixar que Deus decida o
que acontecerá.
Agatha bebeu um gole do champanhe e riu. Ele sempre dizia coisas
engraçadas que a faziam sorrir, mesmo quando estava chateada, e ela não
andava merecendo muito o carinho dele.
— Desculpe-me, Edward. — Ela bebeu outro gole. — Não sei dizer por
que tenho agido assim. Eu quero que tudo dê certo entre nós. Quero mesmo.
Mas acho que eu não tive tempo de sofrer, de processar meu sofrimento. Sei
que estou sendo uma péssima esposa.
— Não está. — Ele serviu mais champanhe e bebeu da taça dela. — As
coisas entre nós nunca foram simples. Mas, agora que estamos casados,
descobrimos que podemos melhorá-las.
Agatha riu e sentiu um alívio imediato em suas costas. Ela parecia
carregar o mundo nelas, até descobrir que Edward era mais do que o melhor
amigo irritante do irmão. Edward era o homem que a resgatava. Naquele um
minuto em que olhou para ele, por sobre uma taça borbulhante, ela se
lembrou de todas as vezes em que ele a ajudara. Em que ele a resgatara. Em
que ele a fizera se sentir melhor, mesmo com a carranca habitual e os braços
cruzados no peito. Depois de casados, ele a fazia sentir melhor de outras
formas. A excitação fez com que ela sentisse as entranhas revoltas.
— O que significa exatamente se divertir no processo de produção dos
filhos? — ela disse, provocativa. O conde a encarou e exibiu um sorriso
perfeito. Agatha nunca o vira sorrir daquela forma. Parecia diabólico.
— Que vamos passar muito tempo tentando fazer com que minha
semente seja plantada em seu ventre.
Ela bebeu o restante do líquido cheio de bolhas. Elas desceram fazendo
cócegas em sua garganta e o álcool subiu à cabeça, mas não o suficiente para
não sentir as mãos do marido em seu corpo e a boca dele sobre a sua. Edward
se moveu como um gato e logo estava se posicionando sobre ela, beijando-a.
Claro que Agatha sabia como bebês eram produzidos. Sabia, inclusive,
que já poderia ter um crescendo dentro de si. Aquilo a assustava na mesma
medida que a encantava. Apesar de todo o trauma que vivenciou, ela não
recusava a semente de Edward. No fundo, queria filhos — apenas morria de
medo de tê-los —, mas sim, o processo de produzi-los era bem prazeroso.
Naquele momento, ela se deu conta do quanto sentiu a falta dele. O tempo
com as crianças, na casa de Aiden e Elizabeth, fora um tempo de fuga. O
parto desencadeou alguma coisa dentro dela, algo que não sabia explicar, mas
ali, enquanto Edward pressionava seus lábios contra os dela e empurrava o
corpo dela contra o colchão, percebeu que precisava daquilo. Precisava dele.
As mãos de Agatha agarraram o colarinho da camisa branca que ele vestia
e o puxaram para mais perto, aceitando satisfeita a língua dele embolada à
sua. Do colarinho, passou aos botões e começou a abri-los. Ela detestava
estar em desvantagem em relação ao marido. Detestava que ele a pegasse de
camisola, ou com menos roupa, enquanto estivesse totalmente vestido.
Daquela vez, ela queria despi-lo com suas próprias mãos. Edward não
resistiu. Continuou a beijá-la, deslizando os lábios pelo queixo, para o
pescoço, até a parte sensível atrás da orelha. Estava difícil se concentrar na
tarefa de abrir botões enquanto ele a distraía com tanta habilidade, mas ela
conseguiu. Fez com que a camisa saísse pela cabeça dele e o empurrou contra
o colchão.
— O que quer fazer? — ele perguntou, erguendo-se e ficando de pé ao
lado da cama. Ela se ajoelhou sobre a superfície macia, ficando de frente para
ele e o beijou. Passou as mãos pelas costas musculosas e desceu até
posicioná-las sobre a bunda dele. Edward estremeceu com aquele toque e se
afastou ligeiramente. — Agatha…
— Um libertino como você não pode ser um puritano. — Ela riu. — É
incompatível.
— Não sou puritano. — Ele atacou a boca dela novamente. — Apenas
estou surpreso que você…
— Shhh.
Ela fechou os lábios do marido com os dedos. Edward estava surpreso,
mas sorrindo, o que a encorajou a prosseguir. Ela suspeitava que ele tinha se
magoado por sua permanência por tanto tempo na casa do irmão. Precisava
deixar claro o quanto o desejava para que ele entendesse que ela o queria. A
melhor forma de fazer aquilo era mostrando a ele.
Tímida e inexperiente, ela distribuiu alguns beijos no torso despido do
marido. Beijou os ombros, depois desceu para o peito. Edward grunhiu,
emitindo um som gutural de satisfação, e não a impediu. Ao contrário, ele a
segurava pelos cabelos com apenas uma das mãos e ajudava, conduzindo-a
pelo percurso.
Mais atrevida, Agatha continuou beijando a barriga e levou as duas mãos
aos botões da calça. Foi especialmente desafiador abrir o que ficava
escondido, porque o volume da ereção esticava o linho e atrapalhava, mas
não desafiador o suficiente para impedi-la.
— O que eu devo fazer? — ela perguntou, erguendo o olhar enquanto
acariciava o membro masculino em suas mãos. Edward estava muito
excitado, toda a sua extensão parecia, ao mesmo tempo, mais dura e mais
suave. A forma como ele a encarava a deixou com ainda mais desejo.
O marido não disse nada, mas seu olhar ditava instruções claras. Agatha o
beijou pela pele macia que pulsava em suas mãos. Ele era mesmo grande,
tinha um cheiro masculino irresistível e ela não segurou a vontade de passar a
língua da sua base até a cabeça. Edward continuava olhando e, segurando-a
pelos cabelos com força, indicou que ela deveria engoli-lo.
A inexperiência de Agatha não a impediu que obedecer. Os lábios
envolveram o membro do marido e ela lambeu e sugou o que conseguiu
colocar na boca. Com um movimento da pélvis, Edward se inseriu um pouco
mais, fazendo com que ela abocanhasse a maior parte de seu pênis. Ele urrou,
um gemido tão primitivo que a deixou duas vezes mais excitada. Ela queria
fazê-lo sentir o mesmo prazer incomparável que ele lhe proporcionava.
Queria vê-lo se dissolver em suas mãos, em sua boca.
Aquilo parecia ser muito poderoso. Ela se sentia poderosa.
Prestando atenção aos movimentos e às expressões dele, ela prosseguiu.
Ergueu os olhos e o percebeu com os olhos fechados, a boca entreaberta e o
pescoço tombado para trás. Era uma posição que indicava que Edward estava
gostando. Ela continuou a sugá-lo enquanto se deleitava com o sabor
masculino — salgado, ácido e muito afrodisíaco.
— Agatha. Pare.
Edward gemeu o nome dela e segurou firme seus cabelos, querendo
mantê-la parada. Ela o segurou pelos quadris, os dedos fincados nas nádegas,
e se afastou apenas o suficiente para conseguir falar.
— O que acontecerá se eu não parar?
— Eu não vou mais conseguir segurar. — O marido gemeu mais quando
ela recomeçou a chupá-lo. — Céus, mulher, eu estou falando sério. Eu vou…
— Então não se segure. — Ela riu, passando a língua pela ponta do
membro. — Vai me fazer mal? Eu vou ficar doente?
— Não… eu acho que… — Edward gemeu mais, ela não parava. —
Nunca fez mal a ninguém… que eu…
— Então isso é algo que se faz? Entre um homem e uma mulher?
— Sim, é, mas…
Não havia mais argumentos para convencê-la. Agatha queria ver até
aonde aquilo os levaria e o que acontecia depois. Continuou agarrada a ele, a
boca engolindo o pênis como se simulasse o momento da penetração. Edward
quis se afastar mais de uma vez, chegou a puxá-la pelos cabelos, mas depois
cedeu. A expressão de prazer e os sons que ele emitia indicavam que ele
estava gostando. Até que, com um gemido alto, ele estremeceu todos os
músculos e chegou ao clímax, aliviando-se.

— V OCÊ É …
Edward não conseguia acreditar naquilo. Sua esposa, tão inocente,
acabara de conduzir uma fantástica sessão de sexo oral, algo que ele
raramente recebera de qualquer mulher. Por mais prazeroso que fosse, a
maioria delas não sabia fazer nem queria tocar em seu pênis, acreditando que
o ato em si era impuro ou pecaminoso. Talvez fosse, mas ele estava pouco se
importando. Era algo pelo que valia a pena pecar.
Agatha estava tão orgulhosa de si mesma, olhando para ele com aquele
verde brilhante e sedutor, que ele desistiu de falar qualquer coisa. Pegou-a
pelos ombros, ergueu-a e possuiu sua boca com uma voracidade que não
chegava nem perto do desejo que estava sentindo por ela. Ele não estava
satisfeito. Jogou a esposa na cama e pressionou o corpo dela contra o
colchão, forçando sua entrada com o membro já rígido novamente. Queria
mais, queria outro orgasmo e queria fazer aquilo vendo-a gozar. Agatha
recebeu-o com surpresa. Estava tão molhada que Edward simplesmente
deslizou para dentro dela sem nenhuma resistência.
Não era comum para ele continuar duro depois de um orgasmo tão
intenso. Edward era um pervertido e tivera muitas mulheres, mas geralmente
não durava muito mais do que uma vez. A força do desejo por Agatha era tão
grande que ele não conseguia parar.
Beijou-a, enfiou a língua em sua boca, mordiscou os lábios, desceu para o
pescoço e capturou um mamilo entre os dentes. Agatha gemeu. Edward
colocou o polegar entre as pernas dela e começou a acariciá-la no feixe de
nervos que estava pulsante e inchado. Arremeteu com força contra ela,
entrando e saindo com vigor.
Esperou que ela atingisse o ápice. Ergueu o corpo e continuou a tocá-la
enquanto movia os quadris em um frenesi primitivo. Precisava que ela
chegasse logo ao clímax porque não estava aguentando mais.
— Goze, Agatha — murmurou, dobrando o corpo novamente sobre ela.
— Goze para mim, por favor.
Ela o encarou e o agarrou pelo pescoço, puxando a boca dele para a dela.
O beijo despertou algo que fez com que ela o obedecesse. Em minutos, os
músculos internos da esposa estrangularam seu pênis e ela convulsionou
debaixo dele, mordendo-o no lábio inferior com força demais. O som que ela
emitiu foi a coisa mais erótica que ele já ouvira.
O segundo orgasmo dele foi quase mais intenso do que o primeiro.
Edward empurrou contra ela uma última vez e derramou o que restava de sua
semente dentro da esposa, satisfeito momentaneamente. Desabou sobre ela,
girou na cama e fez com que Agatha se acomodasse em seu abraço.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

E LES DORMIRAM JUNTOS , NUS E EMBOLADOS . A GATHA SABIA QUE A


intimidade entre ela e Edward estava se desenvolvendo aos poucos, que ela se
aproximava dele a cada dia. Era o esperado em um casal jovem como eles,
mas ela não imaginava que fosse ser tão viciante. Que fosse ser tão difícil ao
menos querer se afastar dele. Ela tinha passado dois dias na casa do irmão e
morrera de saudade do marido. Achava, contudo, que não era nada de mais.
Pelo menos, não a ponto de acreditar que não conseguia respirar sem ele.
Então ele foi buscá-la e, depois que se trancaram no quarto, ela não conseguia
mais se desvencilhar de Edward.
Quando acordou no dia seguinte, com a claridade do dia entrando pelas
janelas, viu que ele continuava do seu lado. Adormecido como um anjo
caído, uma versão loira de Lúcifer.
Ela passou as mãos pelos cabelos dele. Edward estava de bruços, com um
braço sob a cabeça, a boca entreaberta, os olhos fechados e as pernas
estendidas. Não havia nenhum lençol sobre ele e nenhuma paisagem da
natureza poderia ser mais perfeita do que a visão de seu marido naquela
posição. Agatha suspirou. Ela estava se sentindo muito tola.
— Edward — sussurrou nos ouvidos dele. — Já é de manhã.
Ele se espreguiçou, virou e a segurou nos braços. Agatha riu ao ser
enclausurada entre o corpanzil do conde e o colchão, mas a risada morreu ao
sentir sua ereção pressionando-a na barriga.
— Bom dia.
— Você não precisa ir à fábrica? — Ela tentou organizar uma frase
enquanto ele a beijava no pescoço. — Sempre que acordo você…
— Hoje não preciso. — Edward desceu a boca para os seios dela. Agatha
deu um gemido alto quando ele dedicou atenção especial aos mamilos
túrgidos. — Não fui um bom marido, deixando você sozinha, indo trabalhar
no dia seguinte ao do nosso casamento. Não venho te dando atenção
suficiente. Conversei com Sawbridge sobre isso.
Ela arqueou as costas para dar a ele mais acesso.
— Conversou?
— Sim. Decidi que vamos passar uns dias neste quarto. Nesta cama, mais
especificamente.
— Isso tem a ver com a ideia de produzir um herdeiro? — Ela passou as
pernas ao redor dele, excitada.
— Pode ter certeza que sim. Independentemente do resultado, pretendo
me empenhar bastante.
Agatha deu uma risada que foi interrompida quando Edward levou a boca
até sua intimidade. Ele havia prometido dar a ela aquele prazer quando ela
quisesse. Estava prometendo alguns dias de depravação na suíte principal da
McFadden Garden. Era provável que ela pudesse lidar muito bem com
aquilo.

D EPOIS DE UMA sessão completa de sexo conjugal, de um banho morno e


desjejum servido no quarto, Edward fez Agatha deitar-se ao seu lado e leu
para ela. O livro sobre cultura da terra tinha sido abandonado e ele estava
desbravando uma história sobre cavaleiros, princesas e um romance bobo
qualquer. Ela ficou encantada em como o tom da voz dele era suave e grave e
embalava a narrativa.
— Você vai me deixar visitar meus sobrinhos? — ela perguntou,
sonolenta. — Durante esses dias de cativeiro?
— Claro. — O conde beijou-a na cabeça. — Se quiser ir agora…
— Não. — Ela passou os braços pelo peito nu do marido. — Estou
exausta para sair daqui. Mas estou com algumas coisas para fazer, em breve.
— Conte-me.
— Vou me dedicar ao projeto de construir uma casa-escola para os filhos
de mães trabalhadoras. Mulheres como Elizabeth, que precisavam deixar suas
crianças para trabalhar. E vou considerar a proposta de Caroline.
Edward ajeitou-se na cama e se deitou de frente para Agatha.
— A primeira ideia é fantástica. A segunda envolve lady Eckley. Devo
me preocupar?
— Não. Caroline parece ter ideias bastante progressistas sobre a educação
das mulheres. Gostei do que ela pensa, acredito que poderia dar certo.
— E você vai me contar o que é essa proposta inovadora?
— Uma escola de jovens mulheres.
O conde se sentou.
— Como essas que ensinam as damas a conseguirem bons maridos?
— Por Deus, não. — Agatha riu. — Uma escola que ensine coisas
interessantes. Mais do que apenas matemática e história. Também queremos
ensinar a administrar propriedades, a negociar, a…
— Quer ensinar às mulheres coisas que são atribuições masculinas?
— Sim. E que somos perfeitamente capazes de fazer.
Edward deitou novamente e acomodou a esposa em seu colo. Agatha não
fazia ideia do que ele achara, mas precisava da concordância do marido para
iniciar um empreendimento. Aquilo era muito inconveniente. Mulheres não
eram senhoras de si quando se casavam, e, se não se casassem, eram párias na
sociedade londrina.
— Não sei o que pensar sobre isso. Mas, se é algo que deseja fazer, então
faça. Providenciarei amanhã para que uma conta em seu nome seja aberta e
para que você tenha acesso a uma quantia mensal satisfatória. Se precisar de
mais, peça-me.

M ESMO SABENDO que podia sair do quarto a hora em que quisesse, Agatha
não saiu. Foram quatro dias inteiros na cama com Edward. Quatro dias em
que eles nem mesmo se vestiram. Não saíram da suíte principal. Comeram na
pequena mesa redonda que ficava na antessala do quarto e se amaram ao
ponto da exaustão.
Ele, contudo, não estava exausto. Ao contrário, descobria coisas novas a
cada vez. Desbravar sua esposa era como abrir a caixa de Pandora, com a
diferença que ele não liberara o mal sobre a Terra, mas uma reação absurda
sobre ele próprio. Edward não deixaria que ela soubesse o quanto de poder
passara a exercer sobre ele. Caso contrário, estaria totalmente arruinado.
Durante aqueles dias, receberam várias visitas recusadas. Caroline Eckley
e as irmãs Westphallen estiveram na casa. Aiden Trowsdale esteve na casa. O
duque chegou a ir até a porta da suíte incomodar o casal. Depois de ser
ameaçado de morte, caso não fosse embora, prometeu voltar depois de alguns
dias para garantir que a irmã ainda estaria viva.
— Temos que voltar à vida social — Agatha disse, levantando e se
enrolando no roupão. Ela parou em frente à janela e olhou para o parque que
ficava do outro lado da via. O sol se pondo dava a Londres um ar
melancólico e esfumaçado.
— Não sei por quê. — Edward foi até ela e a abraçou por trás. — Aqui
está quente, confortável e temos comida. Posso ficar nessa cama por um mês.
Agatha virou-se para o marido e colocou as duas mãos no peito dele.
Havia um lampejo de malícia nos olhos inocentes.
— Você é um devasso. — Ela riu, beijando a pele nua. — E está me
transformando em uma. Há vida além de ficar na cama com você, Edward.
— Há. — O conde puxou a boca da esposa e a beijou. — Mas não é tão
gostosa.
Ela se desvencilhou dele e voltou para a cama.
— Então aproveite esta noite, amanhã voltamos à rotina. Temos uma vida
inteira para dormirmos juntos, para que gastar tudo agora?
Descartando o roupão e abrindo os braços, ela o chamou. Edward juntou-
se à esposa na cama com a intenção de demovê-la da ideia de encerrar a lua
de mel. Ele pretendia ficar com ela por uma semana. Naquele momento,
decidiu fazê-la sentir um prazer tão intenso que a faria reconsiderar, mas o
que conseguiu foi expressar o seu arrebatamento sem controle.
A sensação insuperável de estar dentro dela, as carícias das mãos de
Agatha em suas costas, o cheiro da pele dela enquanto os corpos se amavam.
Aqueles ingredientes inebriavam Edward a ponto de ele perder a razão.
Depois de tanto tempo perdido em sua esposa, ele acabou sendo dominado
pelos sentimentos.
— Meu Deus — ele rosnou, com a boca abafada no pescoço dela quando
chegou ao clímax. O corpo convulsionou sobre ela, que o prendia com as
pernas cruzadas em seus quadris. A boca quente de Agatha beijava-o no
ombro e apenas fazia com que o prazer fosse maior. — Como eu amo você,
Agatha… como eu…
Ele congelou. O sangue em suas veias espalhou cristais de gelo por todos
os músculos quando ele percebeu o que acabara de dizer. Ela ainda o beijava,
então não ouvira. Claro que não ouvira, ele sussurrara muito baixo e o ruído
das respirações era alto demais. Ela não ouviu — não podia ter ouvido —,
mas ele disse. Sem querer, sem perceber, sem raciocinar sobre as palavras
que saíam de sua boca. Ele a amava. Era ruim o suficiente porque era
verdade.
Edward prometera a si mesmo que não se apaixonaria. Ele acreditava que
fosse apaixonado por Bridget e sofrera com o abandono. Não era. Nunca
sentiu por Bridget o que sentia naquele momento. Se entregasse seu coração
de verdade, não saberia lidar com a rejeição. E era bastante óbvio que Agatha
não o amava em retorno. Por que ela o amaria?
Sem contar que a paixão deixava os homens idiotas. As reminiscências do
pai, austero e determinado, o inundaram. O pai garantira que ele não era
digno de receber amor. O reprimiria por desejar ser amado, já que o amor era
fraqueza. O amor era tolice, deveria ser guardado para os tolos. O Conde de
Cornwall não era um tolo e nunca seria como Aiden. Ele não invejava o
amigo. Preferia manter sua razão acima de qualquer coisa e não podia ser
racional se estivesse apaixonado.
Saindo de dentro dela, ele se acomodou na cama sentindo fisgadas nos
músculos. Sentia uma súbita dor na cabeça pela consciência dos seus
sentimentos. Ele amava a sua esposa. Isso deveria ser bom, ele deveria estar
feliz, mas tudo que ele sentia era o coração aberto e sangrando.

E LA ERA BOA EM FINGIR . Agatha aprendeu a esconder sentimentos quando


precisou mentir para todas as pessoas que conhecia. Naquele momento, em
que Edward confessou que a amava, ela fingiu também. Não mudou de
expressão, não interrompeu os beijos, deixou que seu corpo a guiasse.
Permitiu-se aproveitar o clímax, mesmo notando o desconforto dele. Edward
estava claramente apavorado por constatar seus sentimentos pela esposa.
Agatha também se assustou. Se fosse uma situação normal, ela ficaria
muito feliz e gritaria de entusiasmo. Aquele homem fantástico era dela, e ele
a amava. Não era apenas o desejo que o movia. Não era mais a obrigação que
cumpriu ao se casar com a mulher cuja virtude comprometera. Havia
sentimentos envolvidos, e eram os mais nobres. Mas nada entre eles era
normal. Edward era um homem complicado e ela também. Confessar
sentimentos não era fácil para nenhum dos dois, por isso Agatha sabia que o
marido estava, sim, arrependido de ter falado qualquer coisa.
Ele saiu de dentro dela e se deitou de costas com Agatha em seus braços.
O silêncio do quarto, somado à escuridão da noite, fez com que Edward
adormecesse. Agatha estava sobre aquele corpo masculino, enorme, que a
seduzia e a fazia esquecer dos problemas, das soluções, do mundo. O calor
dele a aquecia. As batidas do seu coração estavam na mesma cadência.
— Eu também te amo — Agatha sussurrou, recostando o ouvido no meio
do peito dele. Dormiu ouvindo o ressonar da respiração do marido, sabendo
que nenhum pesadelo jamais ousaria invadir seu sono novamente.

E RA uma hora da manhã quando Edward se levantou. Agatha dormia como


uma criança, linda e serena. O conde acendeu uma vela na antessala e
inspecionou as marcas dos dias. Elas estavam por seu corpo inteiro. Manchas
avermelhadas, arranhões, algumas marcas roxas. Ele tinha um lábio partido,
porque a esposa adorava mordê-lo. Deveria estar satisfeito por ter uma
mulher tão desinibida na cama, mas estava apavorado.
Só pensava que precisava domar aqueles sentimentos que o destituíam da
razão. Confirmou que ela estava em um sono profundo e se vestiu. Roupas de
noite, gravata e sapatos. Penteou os cabelos com apuro e desceu as escadas.
Brett se espantou quando foi chamado pelo patrão e o encontrou pronto para
sair, sozinho. Àquela hora só havia um lugar para onde ele poderia ir.
— Deseja que arrume sua carruagem, milorde?
— Sim. Vou até Riderhood.
— E se a condessa acordar? — o mordomo questionou. — Digo a ela que
o senhor…
— Se ela acordar e descer, diga que fui resolver assuntos masculinos.
Brett assentiu e foi providenciar o pedido do conde. Logo, a carruagem
estava pronta para conduzi-lo até a casa de jogos. Lá ele poderia se encontrar
com amigos, jogar e talvez até mesmo flertar com as mulheres da casa. Não
as queria, mas vê-las poderia ajudar a afastar os sentimentos românticos que
o incomodavam.
Nas tentativas passadas, ele fracassou, mas aquela era uma questão de
honra. Se deixasse que o amor por uma mulher prevalecesse, seria um tolo
fadado a sofrer pela eternidade. Homens como ele não se apaixonavam.
Quando Riderhood o viu chegar, não achou estranho que o amigo
retornasse depois de alguns dias sumido. Ele sabia que os homens casados
nunca deixavam de frequentar a casa. Ao menos os nobres. Cumprimentou o
conde e ofereceu a ele um lugar em sua mesa preferida. Edward colocou
algumas libras sobre a mesa e pediu fichas.
Durante o jogo, algumas mulheres foram até ele. As prostitutas da casa
geralmente não lhe prestavam serviços, mas jamais perdiam as esperanças.
Edward não gostava de prostitutas. Ele costumava se fartar com as mulheres
livres como Caroline Eckley, a esposa do Barão de Worcestershire ou a
Marquesa de Cunningham. Não mantinha amantes nem pagava por sexo, era
uma regra silenciosa que obedecia, mas elas eram insistentes e ele precisou
afastá-las várias vezes. Não queria mulheres, nem precisava de alívio. Seu
corpo estava muito satisfeito e nem o vislumbre de belas meretrizes o
excitava. Claro, ele estava saciado. Sua esposa era uma diabinha na cama.
Estava ali apenas para espantar os sentimentos, reforçar sua masculinidade.
Isso significava beber, fumar e jogar. Trair Agatha não fazia parte do pacote.

— B RETT — Agatha interpelou o mordomo, assim que desceu as escadas


naquela manhã. Usava um vestido de veludo vinho e branco e o cabelo preso
no alto da cabeça, com ornamentos perolados. Moira fizera um excelente
trabalho com aquele penteado, mas a condessa estava aborrecida por ter
acordado sozinha. Estava mal-acostumada. — Onde está o conde?
— Ele saiu à noite, milady. Ainda não retornou.
Eram oito horas da manhã.
— Aonde ele foi, Brett? Algum problema com a fábrica?
— Não, minha senhora. O conde foi até a casa do Sr. Riderhood.
Agatha respirou fundo e engoliu saliva amarga. Por que Edward a teria
deixado durante a madrugada, depois de dizer que a amava, para ir à casa de
jogos? Se ele queria jogar, poderia ter dito a ela. Não era sua intenção
impedir que o marido continuasse com suas atividades masculinas. Ora,
quem inventou de se trancar em um quarto por uma semana fora o próprio
Edward.
— Onde devo mandar servir seu desjejum, senhora? — o mordomo a
inquiriu, alheio à sua irritação.
— No terraço. Quero tomar um pouco de sol.
Brett assentiu e se afastou. Agatha chamou Moira e pediu que ela fosse
até a residência de Caroline Eckley e marcasse um encontro com ela.
Consciente de que a nova amiga gostava da noite, escolheu o Butterfly’s,
depois do meio-dia. Eles serviam um brunch maravilhoso.
Forçou-se a comer. Não tinha apetite, estava nervosa e se sentindo
abandonada. Não por causa dos jogos, ou da bebida, ou do clube de
Riderhood em específico, mas porque ela sabia que tipo de serviços um
homem podia contratar lá. Sabia que o marido costumava fazer uso de alguns
deles.
O conde chegou por volta das dez, depois que Agatha já finalizara o
desjejum e estava sentada lendo, na biblioteca. Ele não aparentava
embriaguez, caminhava em linha reta e subiu as escadas sem ajuda. Ela
morreu de vontade de ir atrás dele, mas esperou. Depois que Edward desceu,
banhado, cheirando a água de colônia e vestindo roupas de dia, eles se
encontraram no escritório.
— Divertiu-se essa noite? — Agatha perguntou, apoiando as mãos na
mesa de mogno. O marido a fitou com o azul cristalino rodeado por círculos
arroxeados. As olheiras que representavam a privação de sono para um
homem acostumado a uma rotina de noites tranquilas.
— Sim. Ganhei algumas libras, então posso dizer que foi uma boa noite.
— Pensei que não passasse a madrugada fora.
— Não passo. Mas ontem percebi que estou há muitos dias sem
frequentar o clube. É um pouco constrangedor para um homem como eu
deixar de realizar atividades masculinas apenas porque me casei.
Claro que era. Agatha sentiu o sangue ferver e teve vontade de gritar com
ele. O marido tinha dito que a amava e se portava como um canalha. Estava
consciente de que ele não achava que ela ouvira. Que ela fingira não ter
percebido a declaração e que não correspondera dizendo que o amava,
também. Ela disse, mas enquanto ele dormia. Edward ignorava os
sentimentos da esposa, mas não podia ignorar os seus próprios.
Sem vontade de discutir com ele, Agatha virou as costas e marchou até a
porta.
— Já vai? — ele a interceptou com a voz. — Pensei que gostaria de um
passeio pelo Hyde Park.
— Não será possível. — Agatha sorriu. Se Edward tivesse algum amor
por sua segurança, interpretaria aquele sorriso como uma ameaça. — Eu
também tenho atividades femininas. Vou me encontrar com lady Eckley e
depois visitar o orfanato.
Ela não permaneceu no escritório. Nem para ver a reação dele, nem para
ouvir se fosse chamada novamente. Sua atitude não era condizente com uma
mulher adulta da alta sociedade londrina. Era certo que nenhuma condessa se
importaria se o marido fosse ao clube de madrugada, nem se ele tivesse
amantes. Bastava que ela arrumasse homens para satisfazê-la, mas Agatha
não queria um casamento daqueles. Não mais. Sua primeira intenção era de
que eles sequer consumassem o casamento. Semanas depois, estava se
corroendo de ciúme do marido.

A CARRUAGEM que a levara até o Butterfly’s era pequena e aberta, ideal para
os dias quentes de agosto. A cafeteria era frequentada pelas damas da
sociedade, que sempre usavam o espaço para pequenos eventos durante o dia.
Poucos eram os cavalheiros que costumavam comer por ali, ou marcar
encontros. A própria Caroline Eckley não era uma frequentadora assídua,
pois ela não tinha mais assuntos com as damas.
Agatha não se importava se era uma afronta levar a sobrinha do marquês
para o lugar mais exclusivo que conhecia. Sua nova amiga era uma pessoa
extravagante, com seu gosto peculiar para roupas e cabelos. Sempre de
vermelho, sempre com os cachos soltos sobre os ombros. Ela era a figura de
uma libertina, o que apenas a tornava mais interessante.
— Adorei receber seu convite — Caroline a cumprimentou, segurando-a
nas mãos enluvadas. — Espero que seja porque pensou em minha proposta.
— Sim, pensei. — Agatha pediu que servissem um chá completo. Ela mal
comera desde que acordou e estava com muita fome. — Conversei com
Edward, também. Quero fazer parte disso, acho que devemos construir essa
escola.
Caroline bateu as mãos em uma atitude entusiasmada.
— Excelente! Já vi alguns lugares, eles parecem ideais para começarmos
e…
— Mas você terá que me ajudar com meu projeto — Agatha interrompeu
o jorro de ideias que certamente seria despejado sobre si. — É uma troca.
— Qual seria seu projeto? Não me diga que é outro orfanato.
— Não é.
A condessa explicou sua intenção de construir uma casa para abrigar
filhos de mães empregadas. Crianças que precisavam de acolhimento
enquanto suas mães trabalhavam. O lugar ofereceria educação, cuidados
básicos e, o mais importante, carinho. As crianças seriam bem tratadas, ao
contrário do que acontecia na maioria das famílias.
— Parece bem intrigante.
O chá chegou e as interrompeu. A criada serviu as xícaras, a de Agatha
com leite e a de Caroline com duas pedras de açúcar.
— Temos um acordo, milady — Caroline concordou, mordendo um
bolinho. — Confesso que estou bastante empolgada em fazer algo com minha
vida que não seja correr atrás de maridos que nunca terei.
— Não pensa em se casar? — A curiosidade fez com que Agatha jogasse
a pergunta invasiva.
— Já pensei. Talvez ainda pense. Mas nunca me casarei. Eu sou uma
mulher que já teve vários homens. Não tenho nenhuma virgindade para valer
como virtude e não há homem nesta Londres que não saiba disso. Mesmo
com meu dote, eu dificilmente fisgaria um marido. Se houvesse um
desesperado por dinheiro, haveria uma chance. Mas, sinceramente? Não vale
a pena. Não será um como Aiden. Ou como Edward. E não desejo abrir mão
de minha liberdade por um marido. A masculinidade precisa ser
constantemente reafirmada e não estou disposta a exercer este papel.
As imagens inconvenientes de Edward e Caroline em uma cama, fazendo
as coisas que ele passou as últimas noites fazendo com ela, causaram uma
reviravolta no estômago de Agatha. Labaredas acenderam seus olhos e ela
sentiu a fúria de doze mares revoltos enquanto apertava um guardanapo entre
os dedos. Sua irritação irrompeu como uma represa que não conseguia conter
o fluxo de água. As comportas de sua raiva se abriram e Agatha despejou sua
frustração em Caroline.
— Talvez seja ótimo que não se case. — Ela mordeu uma torrada. A fúria
fez com que o alimento se esmigalhasse. — Afinal, para que servem os
homens se não para te fazerem de boba? Para te iludirem com palavras de
amor e depois procurarem outras para satisfação?
— Oh. — Caroline franziu a testa e um vinco se formou entre suas
sobrancelhas. — Espero que esse discurso não seja sobre o seu marido.
— Claro que é sobre meu marido. Aquele… aquele devasso. Ele foi até o
Riderhood ontem, de madrugada, e teve a desfaçatez de chegar só hoje de
manhã!
— Eu o vi lá. — A sobrinha do marquês continuou tomando seu chá. Ela
agia como se nada a abalasse. — E posso afirmar, minha querida, ele é um
dos homens mais comportados daquele lugar. Todos os homens traem, eu
duvido que o seu te trairá.
Agatha pousou as mãos cheias de migalhas sobre a mesa e encarou
Caroline Eckley. Ela queria muito acreditar no que a amiga dizia. Precisava
acreditar.
— Você o viu.
— Sim, eu frequento a casa. E Edward jogou, bastante, a noite toda.
Estava endiabrado, como se Belzebu em pessoa estivesse sentado ao lado
dele ditando o que fazer. Nunca vi o homem jogar com tanta fúria. Mas foi só
isso. Jogou, bebeu, fumou, jogou mais. Até a hora que eu saí, e isso já foi de
manhã, o conde não deixou que nenhuma mulher sequer se aproximasse dele.
O silêncio que se seguiu foi eloquente. Caroline fitava Agatha por sobre a
xícara de chá, intrigada. Era provável que traições e episódios como aquele
não a chocassem ou incomodassem. Ela era imune ao ciúme.
— Bem, ainda defendo que casamentos não são tão interessantes assim
— Agatha rosnou. — Vamos tratar de temas menos estressantes. Conte-me
tudo sobre o que já começou a resolver para que possamos construir nossa
escola.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

A MASCULINIDADE PRECISAVA SER CONSTANTEMENTE REAFIRMADA . C OM AS


palavras sábias de Caroline Eckley ecoando em sua cabeça, Agatha não tocou
mais no assunto sobre a jogatina noturna de seu marido. Esperava, apenas,
que ele não escapasse de madrugada com se estivesse fazendo algo errado.
As duas damas seguiram para o orfanato onde Agatha era voluntária. Ela
não apenas sustentou aquele lugar, com a mesada que recebia do pai desde
que passou a se perceber como uma pessoa, como também visitava
frequentemente os órfãos, levava presentes e passava o dia com eles.
Caroline nunca estivera em um lugar daqueles. A jovem sobrinha do
marquês não era uma mulher honrada em nenhum dos sentidos. Não era
virgem, frequentava locais impróprios, andava constantemente na companhia
de homens desconhecidos e nunca fizera caridade com sua pequena fortuna,
mas ela parecia uma pessoa diferente, então Agatha quis apostar.
— Todas essas crianças perderam as mães?
O espanto de Caroline ao conhecer o refeitório do orfanato foi sincero. As
crianças estavam comendo pães com chá, já que Agatha exigia que lhes fosse
servido chá diariamente.
— As mães, os pais e não possuem outros familiares para olhar por elas.
São mais do que órfãos, são crianças sem ninguém. E existem vários outros
como este por Londres, minha cara.
Mesmo após as condições sanitárias terem melhorado muito, depois da
grande epidemia de 1854 que matou mais milhares de londrinos, ainda havia
muitas doenças infecciosas que tiravam a vida de jovens mães e pais que
viviam em condições econômicas precárias. A mortalidade de bebês também
era muito alta.
As damas começaram a circular entre as mesas. Agatha tinha muita
desenvoltura com as crianças e era a primeira vez que ela retornava ao St.
James depois da viagem às Américas. Sua volta fora tão impactante e causou
tantas mudanças em sua vida que ela ainda não organizara tempo para
retomar suas tarefas regulares. Caroline apenas observava de longe.
Sentada em uma das mesas, Agatha recebia o carinho dos órfãos e
distribuía presentes que portava em uma carriola. Uma das meninas, Lavinia,
a reconhecera mesmo depois de um ano de afastamento. Ela tinha os cabelos
loiros como os de Elizabeth, cacheados. Os olhos castanhos se destacavam
pelos detalhes dourados na íris. Com bom cuidado, Lavinia seria uma linda
mulher.
— Quantos anos tem mesmo? — Agatha perguntou, sentando a menina
em seu colo. Caroline fez uma careta, claramente incomodada com o estrago
que aquilo causaria nas saias da condessa.
A menina mostrou o número quatro com as mãozinhas.
— Lavinia não fala — a diretora do orfanato explicou. — Ela nunca falou
uma palavra, milady. A senhora deve lembrar.
— Claro. — Agatha beijou os cabelos da menina e se levantou. —
Esperava que ela pudesse superar isso com o tempo.
— Aparentemente, isso não acontecerá. Ela não fala nem brinca com as
outras crianças, vive escondida pelos cantos. Deve ser traumatizada pela
perda brutal dos pais. Pensávamos que ela era muito jovem, portanto, não
recordaria de nada. Parece que estávamos erradas.
Agatha olhou para a menina e seu coração transbordou de alguma coisa
que ela não sabia o que era. O mesmo que acontecera quando vira os bebês
de Elizabeth ou quando ficou com os meninos. Ela pensava que era por causa
do seu próprio trauma, porém, começava a achar que se equivocara.
Depois da visita ao orfanato, Agatha ficou estranhamente calada.
Enquanto Caroline falava entusiasmada sobre as possibilidades com a escola
de jovens moças, ela apenas respondia com acenos de cabeça ou
monossílabos. Não estava desanimada, apenas pensativa.
As duas damas passaram o restante do dia juntas. Visitaram duas casas
antigas que estavam à venda e podiam ser negociadas por bons preços.
Ambas ficavam em regiões prestigiosas de Londres. Era a localização
escolhida por Caroline, mesmo sabendo que os nobres raramente deixariam
que suas filhas estudassem com duas degeneradas como elas.
O NAVIO que aportou em Shadwell vinha dos Estados Unidos da América.
Trazia alguns americanos para visitar a Inglaterra, incluindo famílias muito
ricas que pretendiam alcançar prestígio aristocrático. Algumas moças
casadoiras pretendiam conquistar um marido nobre para ascender
socialmente. Mesmo fora da temporada social, muitas pessoas vinham das
antigas colônias para Londres.
Naquele dia chegavam os irmãos Bristol. Colton e Gareth desembarcaram
em Londres com um objetivo apenas: recuperar lady Agatha Trowsdale.
O irmão mais velho sucumbira aos lamentos de Gareth, que afirmava ter
perdido a mulher de seus sonhos. Eles eram da classe que enriquecera pelo
trabalho. Estavam acostumados a casamentos por amor e fidelidade. Quando
lady Agatha desapareceu, depois de uma desastrosa festa regada a muito
álcool e um episódio de gravidez fora do casamento, Gareth ficou
inconsolável.
Ele a queria de volta e seu drama fez com que Colton organizasse a
viagem. Sentia-se responsável, já que fora ele quem causara da fuga da dama.
Não imaginava que ela fosse uma puritana, nem que fosse entrar em pânico.
Colton Bristol tinha certeza de que aquela jovem estava tentando seduzi-lo e
fora apenas por isso que a levou para seu quarto. Na verdade, ele adorava
virgens e deflorá-las era seu esporte favorito.
— Como vamos encontrá-la, sem que percebam nossas intenções? —
Gareth questionava pela décima vez.
Os homens arrastavam suas malas até a hospedaria que lhes fora
recomendada. Ficava em uma área da cidade ocupada por famílias burguesas.
Uma zona em expansão, foram informados. Agatha não morava ali e talvez
fosse um bom lugar para se esconderem e sondarem as informações
necessárias.
— Temos o nome completo dela, não deve haver duas iguais neste lugar
fedendo a latrina. Amanhã mesmo começaremos a procurar onde vivem os
aristocratas londrinos e o que fazem para se divertir. Decerto que vamos
descobri-la em poucos dias.
— Não sei, Colton. Agora que estamos aqui, penso que cometemos um
erro.
— Não seja idiota. — O irmão bateu com a mão espalmada na nuca de
Gareth. — Vem me infernizando por causa dessa mulher há muito tempo.
Vamos encontrá-la e acabar logo com isso.
— Pretendo me casar com ela. Quero reparar o mal que você a fez.
— Desejo-lhe sorte. — Colton riu. — Ela é horrível na cama. Não sabe
nem mesmo se mexer.
— Não admito que fale assim dela. Agatha será minha esposa em breve,
tenha mais respeito. Já demonstrou que não respeita nada nem ninguém, mas
tente se esforçar, ao menos.
Os dois irmãos se instalaram na hospedaria, cada um em um quarto. Eram
aposentos simples, mas Colton planejava alugar uma casa se demorassem
mais de dois dias para encontrar a desgarrada de Gareth. Reencontraram-se
novamente no saguão.
— Estive pensando. Já considerou que a vadiazinha pode não querer se
casar com você? — perguntou ao irmão, enquanto esperavam o desjejum.
— Por que ela não iria querer? — Gareth se espantou. — Sou rico, posso
dar a ela tudo que quiser. E Agatha foi deflorada, ela está arruinada e tem um
filho bastardo. Não poderá mais se casar com ninguém. E ela me ama. Sei
que ama, estávamos apaixonados.
A ingenuidade de Gareth incomodava Colton. Era um frouxo, um tolo,
um homem fadado a viver à sombra de outros. Desde que conhecera a jovem
aristocrata, tinha ficado ainda mais idiota. Dizia que a amava, mas não teve
coragem de defendê-la e impedir que o irmão a devassasse em uma das
muitas camas da mansão onde moravam. Agora queria ficar com os restos de
Colton, com a vadia cuja virgindade ele roubara.
O estúpido insistia que queria se casar com Agatha e o pai o defendia,
como sempre. Afinal, ela era a irmã de um duque. Aprimorar a linhagem da
família com sangue azul não era má ideia. Só que o pai não sabia de todos os
detalhes que envolviam a relação entre a jovem e Gareth. Então estavam os
dois ali, Colton tentando atender aos desejos do irmão imbecil e do pai,
enquanto procuravam agulha em um palheiro.
— Vou sair. — Colton pegou o chapéu. — Precisarei investigar, se não
quisermos perder nosso tempo aqui.
— E eu, faço o quê?
— Qualquer coisa. Vá andar pela cidade, procure lugares onde podemos
descobrir sobre sua futura noiva. Homens bêbados costumam falar bobagens,
vá aos clubes de cavalheiros.
Q UANDO A GATHA RETORNOU para McFadden Garden, o céu estava alaranjado
e o sol se punha no horizonte acinzentado de Londres. Estava exausta, os pés
a matavam, apesar das botas confortáveis. Queria ir para seu quarto, arrancar
aquele vestido, tomar um bom banho e descansar um pouco. A curiosidade,
contudo, fez com que fosse até o escritório do marido. Precisava saber se
Edward estava em casa e aquele era o lugar mais provável para encontrá-lo.
Ele estava. Sentado atrás da mesa, folheando documentos. Quando a viu
entrar, os olhos azuis flamejavam apesar do sorriso suave que ele exibia.
Agatha tinha certeza de que se casara com um demônio. Ninguém podia ser
tão lindamente sedutor como Edward, e a sedução ficava mais intensa porque
ela sabia que o amava.
Era irrelevante negar. Mesmo que brigasse consigo mesma e mesmo que
ela detestasse a ideia de se apaixonar, porque sabia as consequências disso,
ela amava Edward. Algo dentro dela gritava que Agatha sempre o amara.
— Oras, minha esposa retornou. — Ele deixou os papéis sobre a mesa. —
Divertiu-se esta tarde?
— Estive com Caroline, então sim. — Agatha riu. — Vai… sair?
— Não agora. — O conde se ergueu e foi na direção dela. Agatha sentiu o
coração pular a ponto de escapar por sua boca. — Vamos jantar?
— Preciso de um banho.
— Ideia excelente. Eu também.
Não houve tempo para fugir. Quando Agatha percebeu as intenções dele,
Edward já estava com os braços ao seu redor e a boca sobre a sua. Ela, que
pretendia estar aborrecida com ele, não resistiu. Passou os braços pelo
pescoço dele e retribuiu o beijo, pressionando seu corpo contra o dele.
Com um olhar malicioso, o conde levou a esposa para o quarto, despiu-a
e preparou um banho. Para ambos. A banheira de cobre da casa de banhos,
que contava com um sistema de aquecimento, era grande, mas Edward era
ainda maior. Enorme. Ele ocupava todo o espaço. Quando o marido tirou as
calças, a camisa e entrou na água, ela quase transbordou pelas beiradas.
— Venha. — Edward segurou-a pela mão.
Agatha não tinha mais nenhuma timidez em ficar nua na frente dele, não
depois dos muitos dias em que praticamente não se vestiram, mas ela ainda
não tinha tomado um banho sentada sobre aqueles músculos fortes. E não foi
um banho qualquer. Eles se ajudaram mutuamente. Um lavou os cabelos do
outro, o espaço diminuto e os corpos ensaboados tornando a tarefa quotidiana
mais excitante.
Quando a sessão de limpeza acabou, Edward a retirou da banheira, secou,
levou para a cama e a amou. Bem devagar.
Ao final, quando ele atingiu o clímax e se derramou dentro dela, não disse
nada. Não exprimiu nenhum sentimento diferente, nem repetiu as palavras de
carinho da noite anterior. Ela também não disse. O silêncio falava por si, já
que Agatha tinha certeza de que ele estava morrendo de medo. E ela também.
Edward levantou e foi se limpar, voltando em seguida já vestindo suas
calças pretas de noite. Agatha pulou da cama sabendo o que ele faria.
— Vai voltar ao Riderhood?
— Sim. — O marido pegou uma camisa passada. — Mas não se
preocupe, voltarei cedo desta vez.
— Cedo. Isso quer dizer em uma ou duas horas?
— Isso quer dizer antes de meia-noite. — Ele se virou para a esposa e a
beijou. Agatha quis se afastar, mas cedeu. Será que nunca conseguiria evitar
ser seduzida por Edward? — Vamos jantar, depois sairei. Você pode visitar
seu irmão.
— Ah, não é adequado fazer uma visita à noite porque Elizabeth cuida
dos filhos. Eles devem ser recolher cedo.
O conde não disse mais nada, apenas terminou de se vestir e desceu,
dizendo que a esperaria. Agatha não queria que ele fosse, mas tentou se
lembrar da conversa com Caroline. Edward não seria infiel. Ele saía de casa
satisfeito sexualmente, o que significava que não precisaria procurar outras
para isso. Mesmo assim, não queria ver o marido enfiado em um antro de
jogatina e perversão.

E DWARD PODIA AGIR como um canalha, mas ele sabia que, se colocasse regras
e controlasse seus sentimentos, todo mundo ganharia. Naquela noite, foi cedo
para a casa de jogos e apostou apenas o que sabia que poderia perder. Ele
nunca perdia demais, mas também não arriscava. Antes, fizera o que um bom
marido deveria fazer. Tratou de sua esposa com cuidado. Ofereceu a ela
prazer e satisfação e tentou cumprir a promessa de dar filhos a ela. Mais do
que isso era pedir muito. O conde não estava preparado para dar seu coração.
Mesmo que, por suas contas, aquele fosse um caminho sem volta.
— Quem é o cavalheiro novo? — Sawbridge perguntou ao crupiê.
Edward não tinha notado ninguém novo no salão, nem mesmo na cidade. Ele
andava com a cabeça fora do ar. Naquele mesmo instante, estava distraído
olhando para os dados que rolavam na outra mesa sem nem se lembrar da
aposta que fizera.
— É americano, senhor — o crupiê respondeu, sem se distrair das cartas.
— Veio pela primeira vez hoje, ninguém sabe nada sobre ele, ainda.
— Em breve, Riderhood deve ter um relatório completo para nos passar.
— Sawbridge apostou algumas fichas. — Ninguém entra neste clube sem que
ele saiba tudo antes. Por enquanto, ficarei de olho. Não gosto desse pessoal
das colônias.
— Não seja preconceituoso, Sawbridge. — Edward também apostou.
Aquele era seu limite, ele não ganhara nada naquela noite. — Mas eu também
tenho motivos para desconfiar do tipo.
Ele tinha um motivo muito sério. Agatha fora enganada por americanos,
que arrancaram dela a virtude de forma violenta. Se Edward visse um
daqueles irmãos, certamente o mataria com suas mãos, mas nem todo
americano merecia seu desprezo.
O crupiê deu mais cartas e Sawbridge recolheu as fichas. O filho da mãe
estava com sorte.
— Essa é minha deixa. — Edward virou o restante do uísque. — Já perdi
o suficiente, não quero deixar mais uma promissória nas mãos de Riderhood.
O colega o cumprimentou com um aceno. O conde ajeitou o colete e saiu,
passando pelo tal americano pelo caminho. O homem o olhou e sorriu, mas
Edward sentiu um calafrio, uma sensação ruim. Se fosse dado às crendices
populares, diria que era a sensação de um fantasma lhe soprando as orelhas.
Fosse o que fosse, estava ligado àquele estrangeiro.

O S BEBÊS de Elizabeth e Aiden eram lindos. Já tinham uma semana de vida e


finalmente abriram os olhos. Lillian tinha os cabelos do pai e os olhos da
mãe, enquanto Albert era uma incógnita. Os poucos cabelos com que nascera
caíram todos e outros não tinham nascido no lugar. Agatha estava encantada
por eles.
Com os dias atarefados pela busca de um lugar perfeito para construir a
escola, a jovem condessa só visitara os sobrinhos três vezes desde que fora
libertada do cativeiro imposto pelo marido. Naquele dia, ela passara no
orfanato de manhã e estava à tarde na Trowsdale House.
Sentada em uma poltrona, segurando a garotinha recém-nascida nos
braços, ela tinha certeza de que queria um daqueles para ela.
— Você será uma ótima mãe — Elizabeth disse, colocando Albert no
berço. — Dá para ver pela forma como a segura, seu jeito com crianças é
incrível.
— Morro de medo de fazer tudo errado. — Agatha riu, nervosa. — Eles
são tão pequenos e frágeis. Como saber do que precisam? É impressionante
que você não tenha preferido entregá-los aos cuidados de uma ama.
A duquesa se sentou ao lado dela e suspirou.
— Não tive isso nos meus primeiros filhos. Cuidei deles desde que
nasceram, praticamente sozinha. Tenho ajuda agora, mas nunca conseguiria
entregar meus filhos a ninguém. Sofro até porque Patrick quer estudar em
Eton ano que vem.
— Claro que ele quer! — Agatha deu uma gargalhada. — Inteligente
daquele jeito, ele será um dos destaques. Aiden certamente resolverá isso
com facilidade.
— Sim, o duque fará qualquer coisa possível pelos enteados. Arrisco
dizer que o impossível, também. Bem, diga-me, como estão as coisas com
seu casamento? Você e Edward finalmente hastearam a bandeira branca?
— Acho que sim. Está tudo esquisitamente calmo e estranhamente
normal entre nós. Deve ter uns cinco dias que não brigamos por nada. Ele
faz… Edward faz tudo que eu quero e me deixa fazer tudo que depende
apenas de mim.
— Finalmente. — Elizabeth pegou Lillian, já adormecida, e a colocou no
berço, também. — Vamos descer para um chá, agora é o momento em que ter
uma ama é prazeroso.
As mulheres se acomodaram no salão de chá, mas não tiveram muita paz.
Patrick e Peter interrompiam a conversa a cada trinta segundos, fosse
correndo pela casa, fosse trazendo uma novidade qualquer. Apenas depois
que Elizabeth ameaçou trancafiá-los em algum quarto, eles deixaram que
conversassem.
— Ele disse que me ama.
Agatha soltou a informação no meio do assunto. Elizabeth arregalou os
olhos e a fitou, parando a xícara de chá antes que ela chegasse à boca.
— Imagino que isso devesse ter causado algum tipo de desastre. Tem
certeza, Agatha? Porque não houve maremotos nem tempestades nos últimos
dias.
O sarcasmo da duquesa fez Agatha rir.
— Eu tenho certeza, mas ele falou por impulso. Desde então, vem
fazendo de tudo para agir da forma mais neutra possível. O problema,
Elizabeth, é que… — A condessa suspirou. Bebeu um gole do seu chá e
refletiu sobre o que dizer. — Eu também o amo. Confesso. Estou
completamente apaixonada pelo meu marido e quero que ele aceite isso.
Quero ser uma tola romântica apaixonada e quero romance da parte dele
também.
Elizabeth deu uma gargalhada. Os meninos correram para ver o que fizera
a mãe rir, mas voltaram a ser expulsos do salão.
— Ah, minha querida Agatha! — A duquesa segurou as mãos da
cunhada. — Eu te entendo. Não tenho esse problema, o duque é o homem
mais romântico que existe. Daqui a pouco ele chegará da fábrica, sentindo-se
culpado por ter me deixado sozinha durante o dia, e me trará algum presente
exótico. Mas, se lhe faltasse romance, eu desejaria. Porém entenda, seu
marido é um homem muito fechado. Ele tem aquele ar soberano da realeza e
isso certamente esconde fissuras internas. Pode ser um pouco difícil fechá-
las, Agatha, então tenha paciência.
Ela sorriu. Um meio sorriso envergonhado. De fissuras e problemas
internos Agatha entendia bem. Edward fora tão compreensivo com ela. Lorde
Isaac lhe contara sobre as questões de infância do irmão, sobre ele precisar de
alguém que o amasse. Ela tinha que compreendê-lo, também. Edward podia
não ser romântico da forma como ela almejava, mas nada sugeria que isso
não pudesse mudar.
— Obrigada pela orientação, Elizabeth. — Agatha abraçou a cunhada. —
Eu nunca tive uma mãe que me ajudasse a entender nada. Às vezes penso que
sou mais masculina do que feminina, porque fui praticamente criada por dois
homens.
O chá das mulheres foi interrompido pela chegada do duque. Como
Elizabeth havia previsto, Aiden entrou no salão pé ante pé, carregando um
buquê de flores. Tulipas. Não havia tulipas naquele período do ano, então
Agatha nem queria imaginar o que ele fizera para obtê-las.
Aquela era a deixa para que Agatha retornasse para casa. O casal
apaixonado provavelmente se envolveria demais em momentos dos quais ela
não deveria participar. E, considerando o horário, era provável que o conde
estivesse em casa, esperando-a.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

C HEGAR DA FÁBRICA , MIMAR A GATHA , FAZER AMOR COM ELA , JANTAR COM A
esposa e ir para a casa de jogos. Aquela vinha sendo a rotina estabelecida
pelo conde e ela era fantástica. Durante o dia, morria de saudade da esposa.
Chegava em casa e a encontrava quase sempre carrancuda ou cheia de
histórias para contar. Aquela era a melhor parte, quando ele precisava
arrancar o mau humor dela, ou silenciá-la. E, depois de ficar com ela, as
atividades masculinas não o faziam pensar em tolices como o amor.
Tudo estava perfeito, mesmo que ele sentisse algo estranho no ar.
— Edward. — Agatha o puxou para si quando ele tentava se levantar.
Estava um pouco tarde, mas ele insistiria em sair todas as noites. A rotina
deveria ser mantida. — Não vá. Precisamos conversar.
O conde sentou-se na cama e fitou a esposa. Ela parecia sempre mais bela
depois do sexo. As bochechas rosadas e os cabelos soltos transformavam
Agatha em uma deusa pagã, um objeto de luxúria. Era impossível que ele a
desejasse tanto, mesmo tendo acabado de tê-la, mas ele desejava.
— Não pode esperar até amanhã?
— Não quero esperar um dia inteiro para falar com você. — Ela
emburrou e cruzou os braços à frente do corpo. — É sobre Lavinia.
Edward não fazia ideia de quem era Lavinia. Agatha era mesmo esperta,
ela sabia que o faria curioso se revelasse algo intrigante. O conde recostou
nos travesseiros e se dispôs a ouvi-la.
— E quem é Lavinia e por que ela seria um assunto importante a essa
hora?
— Estive no orfanato. Eu vou lá todos os dias. — A esposa pulou sobre
ele e se sentou sobre suas pernas. Edward se distraiu um pouco com a posição
dos corpos, mas logo voltou a prestar atenção no que ela dizia. — Essa
garotinha, Lavinia, é diferente das outras crianças de lá. Ela me lembra
Patrick, mas é bem mais nova. Eu gostaria de…
Ela baixou o olhar. Fazia algum tempo que ele não precisava lidar com a
timidez da esposa, então ela deveria realmente estar constrangida com o
pedido.
— Gostaria de…
— Trazê-la para McFadden Garden. — Agatha disparou como uma arma
de fogo. — Ah, Edward, ela é linda e tenho certeza de que você a adoraria.
O conde levou as mãos aos cabelos da esposa e ajeitou as mechas
rebeldes que caíam em sua face branca. Acariciou-a nas bochechas com o
polegar e puxou-a para um abraço. Ela tinha o coração acelerado e a
respiração ofegante. Aquele assunto a excitava.
— Pensei ter dado autorização para que enchesse a casa de crianças.
— Foi uma autorização genérica. Agora que pode se tornar verdade, eu
quis te consultar, antes.
O sorriso que nasceu nos lábios de Edward foi involuntário. Ele não
conseguia evitar se maravilhar com a alegria e entusiasmo de Agatha. Como
podia sequer suspeitar que pudesse afastar o que sentia por ela com aquela
rotina masculina? Enquanto estavam juntos, ela o arrebatava sem que ele
tivesse chance de se defender.
— Bem, estou dando uma autorização específica agora. Quero conhecer
essa pequena órfã que te encantou.
— Obrigada. Você é maravilhoso.
Ela se ajeitou em seu colo e a fricção fez com que Edward se contraísse.
Logo, Agatha estava posicionada sobre sua masculinidade agitada. Na
empolgação, passou os braços pelo pescoço do conde e o beijou. Começou
com um roçar de lábios e uma pressão suave. Assim que ela percebeu a
ereção contra a barriga, o beijo se tornou feroz.
Com a língua se enroscando na dele. Agatha movia os quadris e isso o
provocava ao máximo. Edward rosnou algumas palavras incompreensíveis,
agarrou-a pelas nádegas e a forçou contra sua ereção. Mesmo que ela
estivesse pronta para ele desde o início da noite, o atrito da carne quente
envolvendo seu membro fez com que Edward estremecesse. Ele a desejava de
uma forma tão visceral que se assustava. Era para que esse desejo
amenizasse, mas ele só crescia.
Naquela noite, ela conseguiu prendê-lo à cama. Edward não conseguiu
sair mais dali. Não ofendia seus planos burlar uma vez ou outra a rotina
estabelecida, mas ele começou a acreditar que o plano iria por água abaixo.

— A CHEI A DIABA . — Colton Bristol pareceu muito satisfeito com sua


proeza. Encontrou-se com o irmão na hospedaria onde ainda estavam e deu a
ele a boa notícia. Depois de muito perambular por Londres, conversar com os
habitantes e subornar algumas pessoas, ele descobriu onde moravam os
Trowsdale. Não era muito difícil encontrar um duque naquele lugar, e Agatha
esteve em uma conhecida cafeteria das damas da sociedade.
— Céus! — Gareth se agitou. — E você a trouxe? Falou com ela?
Marcou um encontro? Como ela está?
— Gorda.
O irmão Bristol mais velho pediu o jantar e duas cervejas. Ele queria
comemorar o fato de que não precisaria gastar muito tempo mais naquela
cidade fedorenta.
— Poupe seus insultos.
— Eu a vi em uma cafeteria, sim, mas não conversei com ela. Imagino
que a vagabunda não queira me ver, depois do que aconteceu. Precisamos de
um plano para interceptá-la.
— Talvez eu deva fazer isso. — Gareth bebeu um longo gole da cerveja.
— Diga-me como encontrá-la, onde é essa cafeteria?
— Vou te dar o endereço da casa dela. Descobri onde mora o Duque de
Shaftesbury, o irmão de Agatha. Se ela está em Londres, certamente está na
casa do irmão. O meu bastardo deve estar por lá, também. Maldição.
— Você é responsável por isso, Colton. Se tivesse se prevenido…
— Eu estava bêbado. Não pensei em tirar antes de gozar, maldição.
— Chega de blasfemar. Passe-me o endereço e resolverei isso. Sou o
irmão mais civilizado, se deixar por sua conta, vai estragar tudo novamente.
Gareth Bristol agitou-se ao receber um papel amassado com uma
caligrafia horrorosa. Ali estava o endereço dos Trowsdale e ele buscaria sua
amada no dia seguinte. Mal dormiria de tanta excitação. Ansiava por vê-la e
por explicar tudo. Era certo que ela o perdoaria, afinal, estivera apaixonada
por ele antes. Ele não se importava em criar o bastardo do irmão. Afinal, era
sangue do sangue dele. Mesmo que a lei não lhe permitisse reconhecer filhos
ilegítimos, ele cuidaria da criança e faria com que tivesse propriedades. Nas
Américas o garoto conseguiria se dar bem, ele sabia.

O DIA seguinte foi de ansiedade para Agatha. Ela queria fazer aquilo. Queria
levar uma criança para casa. Encher a McFadden Garden de vida e alegria.
Sem Isaac, que estava em Kent, e com Edward passando a maior parte do
tempo fora, ela precisava de ocupações. Até que o marido resolvesse a
questão da propriedade que pretendia adquirir junto a Caroline para construir
a casa para os filhos de mães trabalhadoras, ela não podia fazer muita coisa.
Também esperava que Caroline finalizasse a compra da casa para a escola.
Eram duas atividades de tamanho monstruoso, mas que Agatha não
poderia iniciar sozinha. Ser mulher casada gerava alguns inconvenientes,
pensou. Dependia do marido para tudo, dependia da autorização e do dinheiro
dele. Agatha não gostava de pedir e, ainda assim, precisava fazê-lo. Mesmo
que Edward não lhe negasse nada, ela sempre teria que pedir.
Tentou não se concentrar em nada daquilo porque iria ao orfanato
conversar com a diretora e levar Lavinia para casa. Não entraria ainda com o
processo de adoção. Agatha achava melhor levar a menina para passar um
tempo com eles. Precisava garantir que tudo fosse sair bem, porque ela queria
que a primeira criança da casa fosse querida e desejada. Uma filha adotiva
não tinha os mesmos direitos nem prerrogativas dos filhos legítimos, mas isso
não a impediria. Uma vida com conforto e carinho era melhor do que uma
vida institucionalizada, mas nem tudo era simples como parecia.
— Receio que não possamos permitir que leve a menina, milady. É
preciso uma autorização do departamento responsável pelos menores.
A resposta a diretora era a mesma há uma hora. Agatha já insistira de
todas as formas, mas, sem a tal autorização, não era possível levar Lavinia
com ela.
— Serão apenas algumas semanas. Ela é órfã, quem vai reclamá-la? Sem
contar que não é como se eu fosse fugir com a menina. Sou a Condessa de
Cornwall, meu marido tem cadeira no Parlamento. Todo mundo sabe onde
moramos.
A expressão da diretora, impassível, indicava que ela não se importava
com o título de Agatha. Ela insistia: sem autorização, Lavinia ficaria no
orfanato. A condessa espremeu a sombrinha nas mãos, nervosa. Não esperava
que fosse encontrar aquele tipo de obstáculo.
— Sra. Havisham, meu marido e meu irmão são benfeitores deste
orfanato. Minha família mantém a instituição há décadas. Precisarei mesmo
incomodar o conde para que ele obtenha esse documento, sendo que meu
pedido é perfeitamente razoável?
— Lamento, milady. Pode vê-la, se quiser. Mas não posso deixar que a
leve.
— Certo. Providenciarei a documentação, se ela é assim tão importante.
Agatha saiu da sala da diretora bufando como um animal indomado. Ela
costumava achar que, por ser filha de um duque, podia fazer tudo. Então ela
se tornou a irmã do duque e, depois, a esposa de um conde. Aquela
compilação de títulos dos homens em sua vida fazia com que Agatha se
considerasse quase invencível. Mesmo assim, não pretendia passar por cima
da lei. Apenas não conseguia compreender a dificuldade em levar a menina
com ela. Se Edward estivesse junto, ele certamente teria saído vencedor no
argumento. Ninguém costumava levar mulheres a sério. Nem mesmo as
outras mulheres. Aquilo deixou Agatha possuída por uma fúria não domável.
Pediu ao cocheiro que a conduzisse até a fábrica. Moira corria atrás dela,
tentando acompanhar os passos de sua ama. A jovem condessa pisava com
força no calçamento de pedra, quase a ponto de estragar as botas, e passou o
curto trajeto até Shadwell esbravejando e reclamando por precisar requisitar o
marido para tudo que fazia.
Para agravar seu estado de espírito, Edward não estava na fábrica.
— Ele não veio trabalhar? — ela disse, desconfiada. Estava no escritório
de Aiden, que decidira não arriscar uma viagem para o interior com os bebês
e permaneceria em Londres, mesmo fora da temporada social.
— Veio, mas precisou sair para uma reunião. Ele e Miles Westphallen
foram a Wattford, devem voltar à noite. Aconteceu alguma coisa?
Aiden era muito sensível às variações de humor de Agatha. Ele sempre
pressentia quando algo com ela não ia bem.
— Sim, eu pretendia… ah, não deveria te contar isso.
O duque cruzou os braços no peito e esperou. Ela não conseguiria se
safar.
— Tem essa menina, Lavinia. Eu me apaixonei por ela e Edward disse
que posso levá-la para casa.
— Céus, Agatha. — Aiden deu uma risada nervosa. — Você falou como
se ela fosse um cachorrinho que viu na loja e decidiu comprar. Tem a vaga
noção de que estamos falando de uma criança?
— Claro! — A jovem se sentiu ofendida. Ela podia ser tola às vezes, mas
tinha total consciência do que era ser mãe. Mesmo que ela tivesse sido
privada do exercício da maternidade, no seu ventre já crescera um filho. Ela
adorava crianças, sempre esteve cercada delas. — Aiden, eu estou mais do
que preparada para isso. E Lavinia nem é um bebê, ela tem quatro anos. Mas
não pude levá-la comigo porque é preciso uma autorização.
— Sim, é. Eu poderia providenciá-la agora mesmo, mas…
— Mas seria melhor que meu marido fizesse isso. Afinal, será nossa
criança, é preciso que ele se envolva.
O duque riu e puxou a irmã para um abraço. Ela envolveu o corpo quente
e acolhedor de Aiden com os braços e se sentiu em casa. Parecia estranho
estar sempre dividida entre duas famílias. Por sua sorte, ela nunca precisaria
escolher.
— Está ficando cada dia mais esperta, irmãzinha. Converse com Edward
quando ele chegar, amanhã ele providenciará essa autorização para você. Seu
marido é muito influente nesses assuntos, ele tem um trânsito melhor do que
o meu no Parlamento.
Esperar nunca fora o forte de Agatha, mas ela sabia que precisava.
Deixou a fábrica um tanto insatisfeita, aceitando que não poderia fazer nada
até o dia seguinte.

A S VIAGENS com Miles eram divertidas, mas só até certo ponto. Edward
gostava de ouvir o amigo visconde e suas histórias, mas, quando o assunto
chegava às filhas, ele se entediava. Lady Madeline o irritava bastante. A falta
de noção e de bom senso da filha mais velha do Visconde de Whitby era
assunto recorrente entre os homens, sempre quando Miles não estava por
perto.
Madeline Westphallen era uma daquelas damas caçadoras de maridos
nobres, com títulos importantes. Antes que Aiden se casasse com Elizabeth,
ela forjou uma situação em que ele a comprometeria, acreditando que, assim,
o forçaria a um casamento para reparar sua honra. Não contava com a
presença sempre inusitada de Caroline Eckley para desmascará-la.
Por ser bem mais velho do que ele, o visconde tinha casos interessantes
para narrar, mas acabava retornando no assunto da família e não havia como
evitar. Eles foram e voltaram de Wattford. Por algumas horas ficaram apenas
os dois na carruagem. Edward descobriu sobre a precocidade de Sarah, sobre
os pretendentes de Madeline, mesmo que eles não existissem, e sobre o
quanto a viscondessa era sortuda em ter um marido tão viril. Isso porque ela
estava grávida do quarto filho, uma criança temporã que poderia ser o
desejado herdeiro dos Westphallen.
— Jamais deixarei minhas propriedades para primos! — Miles rosnava.
— Desta vez, minha esposa vai parir um menino.
— Se tiver a sorte de Aiden, poderão ser dois meninos.
Edward provocou, mas Miles adorou a ideia.
— E você, meu caro conde? Quando vai decidir inseminar sua esposa?
Não deixe para começar a produzir herdeiros muito tarde.
Ele já a estava inseminando. Edward poderia passar duas viagens a
Wattford contando sobre a devassidão que performava no quarto principal em
McFadden Garden, mas ele jamais exporia a intimidade de sua esposa.
Preferiu voltar a falar de negócios, até porque o assunto sobre bebês o estava
fatigando. Era como se todos os homens ao seu redor tivessem decidido
procriar.
No retorno a Londres, o conde estava exausto, faminto e morrendo de
saudade da esposa. A melhor decisão seria ir para casa ficar com ela, mas
acabou aceitando o convite de Miles para o Riderhood. Pretendia ficar apenas
um pouco, mas acabou perdendo a hora entre um copo de uísque e outro, uma
rodada de carteado e outra.
— Se eu perder outra libra, minha esposa vai comer minhas entranhas —
Oglethorpe reclamou, jogando duas fichas sobre a mesa.
— Parando de apostar, parará de perder — o visconde desdenhou do
amigo, pagando a aposta. — Eu estou me sentindo com sorte, hoje.
— Acho que precisamos de outro drinque. — Edward ergueu o copo e
pediu mais uma dose para cada homem da mesa. — O dia de hoje foi bem
cansativo. Precisa parar de me levar em negociações, Miles.
— Se eu parar, você não aprenderá, meu caro amigo.
— Quem quer aprender a negociar é Sawbridge. Prefiro administrar as
propriedades e os empregados.
Edward jogou suas fichas na mesa e o crupiê distribuiu as cartas. Sua
mente estava dominada pelo álcool, já que ele continuava sem comer.
Pensava no jogo, em Agatha, imaginava se ela já levara a menina para casa.
Ele não processara a ideia de adotar uma criança, apenas autorizara a esposa a
fazer o que queria. Enquanto estava distraído com questões variadas, ela
chegou.
Ela, a mulher mais fatal de toda Londres. Enquanto alguns acreditavam
que fosse Caroline Eckley, Edward sabia que a sobrinha do marquês era mais
solitária do que perigosa. Mas aquela não, ela devorava homens como uma
viúva negra. Serviria as cabeças dos aristocratas no desjejum, se canibalismo
fosse uma prática tolerável. Fazia algum tempo, estava obcecada pelo conde.
Antes de se casar, Edward frequentou a cama da Marquesa de
Cunningham. Constance Laroche era a prima distante do Duque de
Cambridge e a maior conquista de Joseph McLelland, o marquês. Com
cinquenta e dois anos, era mais velho e enrugado que alguns homens de mais
idade, e alguns diziam que era impotente. Tivera três filhos homens com o
casamento anterior e não precisaria casar-se novamente, se não estivesse
falido. O dote de Constance garantiu ao marquês a retomada de sua saúde
financeira, mas ele estava longe de satisfazê-la. A marquesa estava sempre
faminta.
Edward chegava a temê-la. Depois que se casou, Constance manteve uma
agradável distância que ele considerou um alento. Ela teria encontrado outro
objeto de diversão. Estava enganado. Naquela noite, enquanto bebia um
pouco além da conta e sentia os efeitos do álcool com mais intensidade, ela
decidiu que o queria.
— Protejam suas bolas — Sawbridge alertou. — Constance está com cara
de quem veio para caçar.
— Ela já escolheu sua presa. — Oglethorpe deu dois tapinhas no ombro
do conde. — Boa sorte, meu amigo. Vai precisar, para enfrentar essa serpente
na cama.
— Não vou para a cama com ela. — Edward chacoalhou qualquer
imagem mental que representasse ele e uma deusa loira e fatal em uma cama,
fazendo todo tipo de depravação.
— Ah, não vá me dizer que também decidiu ser fiel à sua esposa? —
Miles deu uma gargalhada. — Por Deus, Edward. Isso é coisa de burgueses!
— Assim me ofende — Oglethorpe resmungou. — Eu sou fiel porque
amo minha esposa. E porque, se não for, ela me matará enquanto durmo.
— Você também ama sua esposa, Edward? — Sawbridge provocou.
— Vão se foder, os três. Apostem ou caiam fora.
Os amigos ainda riam quando Constance se aproximou da mesa. Ela
usava um vestido preto com detalhes em amarelo. Ninguém usava preto,
apenas as mulheres de luto. A marquesa não se importava. Preto realçava a
cor de seus cabelos, dizia.
— Ora, se não é meu quarteto preferido. — Sorriu para a mesa e ocupou
um espaço entre Edward e Oglethorpe.
— Não atrapalhe o crupiê, Constance — Miles reprovou. — Estamos
ocupados.
— Percebo que sim. Mas adoro vê-los jogar, são sempre tão
competitivos.
A assistente do diabo debruçou-se sobre a mesa e exibiu os fartos seios
quase saltando do decote. Edward desviou o olhar. Ela pendeu para o lado
dele e recostou-se em seu ombro. O cheiro de rosas, adocicado demais,
incomodou suas narinas. Ele deveria ter saído dali enquanto podia, mas o
uísque o deixou lento. Enquanto o jogo transcorria, Constance tombava cada
vez mais sobre si. Até que, quando percebeu, ela estava com uma perna sobre
as suas.
— Constance, hoje não — ele rosnou, próximo aos ouvidos dela. — Por
favor, não me provoque a fazer uma cena. Afaste-se.
— O que houve, meu conde querido? — A carrasca de Hades se virou e o
enlaçou pelo pescoço. Edward retirou-lhe os braços, a expressão impassível.
Mesmo que ele não a desejasse e estivesse incomodado com a proximidade, o
corpo feminino provocava sua masculinidade. — Não está pensando que vai
se livrar de mim, está?
— Estou casado agora.
— E desde quando o casamento te deixou impotente? — Constance levou
a mão ao meio das pernas de Edward, tocando-o em seu membro quase
rígido. Ele se afastou bruscamente e quase caiu da cadeira em que estava
sentado. — Pelo visto, seu mastro está pronto para hastear a bandeira, meu
querido.
O conde proferiu alguns insultos que nenhuma mulher respeitável deveria
ouvir. Não queria uma cena, mas acabou não conseguindo evitar. O problema
não estava nos amigos que o observavam com expressões diabólicas, mas na
outra plateia. Enquanto se ajeitava para expulsar Constance de vez ou voltar
para casa, Edward se virou e congelou onde estava. Seus músculos viraram
granito quando, parada logo na porta do salão, estava sua esposa.
Dois homens falhavam em retirá-la do lugar. Ela segurava um xale nas
costas e olhava diretamente para ele. Não dava para saber quanto ela viu, nem
o que a cena lhe pareceu. No meio segundo em que Edward hesitou para ir
até ela, Agatha marchou para fora do prédio.
CAPÍTULO VIGÉSIMO

O S SEGUNDOS PASSAVAM MAIS DEVAGAR DO QUE AS HORAS . D ESDE QUE


retornara para casa, Agatha esperava que seu marido chegasse de Wattford.
Sabia que ele tomaria um banho, jantaria com ela e poderiam conversar.
Queria saber como foram os negócios e pedir ajuda com a questão de
Lavinia.
Na verdade, ela estava sendo muito egoísta naquela espera. Ela não se
importava muito com o dia dele. Queria ser beijada, amada e queria Lavinia.
Mas Edward não chegou. Nem às oito, nem às nove, nem às dez. O ponteiro
maior do relógio girava outra hora completa quando ela decidiu subir, lavar-
se e aguardar por ele no quarto. Não jantara, nem aceitara qualquer coisa dos
criados. Esperava que Edward retornasse para cumprir a rotina de sempre. Se
ele fosse falhar em voltar para casa, enviaria um mensageiro para avisar.
Agatha acreditou nisso até passar de meia-noite. Quando ouviu as doze
badaladas, chamou Moira e pediu que a camareira a ajudasse com um
vestido. Não tinha certeza, mas suspeitava de onde encontrar o marido. Tinha
a impressão de que Edward já estava em Londres, em uma conhecida casa de
jogos. Os pressentimentos de Agatha nunca podiam ser ignorados. Colocou
um vestido elegante de veludo azul, mas não se preocupou em arrumar
demais os cabelos. Apenas prendeu-os com a ajuda da criada e fez com que o
cocheiro a levasse até a rua da devassidão.
A casa de jogos de Riderhood era uma construção imponente. Três
andares de mármore e metal, janelões e muita iluminação. Não havia
nenhuma intenção do seu proprietário em esconder o que estava ali, mesmo
com a proibição dos jogos de azar. Riderhood mentia, dizendo que no local
funcionava um distinto clube de cavalheiros. Como apenas sócios podiam
entrar, e a um custo bem elevado, ninguém confirmava se as informações
eram verdadeiras ou falsas. A polícia não se importava, já que o maior
escalão era membro do clube.
A condessa sabia o que acontecia ali. Não se importava que não era bem-
vinda, ela entraria e arrastaria seu marido para fora daquele antro.
— A senhorita não pode entrar. — Um criado a barrou na porta.
— Senhora. — Agatha ajeitou o xale. Moira aguardava na carruagem,
sob protestos. — Sou a Condessa de Cornwall e preciso saber se meu marido
está aí, hoje.
— Lamento, milady, mas não podemos dar informações sobre os
frequentadores.
— Então me deixe entrar que eu mesma descubro.
— Também não podemos deixar que entre. Apenas sócios têm acesso ao
clube.
— As prostitutas também são sócias? — ela disse, em voz aguda. Parecia
um ganido.
— Milady, por favor, tente entender que…
Ela não tentaria. Pequena e muito ágil, Agatha tinha seus truques para
furar bloqueios como aquele. Com um olhar ferino e os lábios apertados em
uma linha fina, ela encarou o criado e passou por ele. Foi rápido e foi de uma
só vez. O pobre homem nem mesmo teve a chance de prever o movimento.
Evitando gritar para não atrair atenção desnecessária, o criado a perseguiu até
o salão.
Não precisou de mais esforço, porque a própria Agatha parou, assustada.
Talvez nauseada, enjoada ou incrédula com o que via à sua frente. Na mesa
central, entre os seus homens de confiança, estava Edward McFadden, o
Conde de Cornwall, seu marido. Com uma vadia sobre seu colo. E ela o
estava tocando. Lá.
Quando a viu, Edward reagiu, mas ela deu meia-volta e saiu pelo mesmo
lugar por onde entrou, deixando seus perseguidores confusos.
— Agatha.
O marido a chamou, mas ela não quis ouvi-lo. Sua cabeça latejava e tudo
que precisava era de sair daquele lugar. Marchou para fora do prédio
enquanto Edward a seguia, até que ele a interceptou no hall de entrada.
Segurou-a com uma mão e a fez parar.
— Deixe-me ir — Agatha rosnou, furiosa. — Não toque em mim com
essas mãos imundas.
Edward soltou-a e ficou ali, parado, olhando para a esposa que o encarava
com as labaredas do inferno saindo de seus olhos. Logo, elas foram apagadas
pelo brilho marejado das lágrimas que Agatha se recusava a derramar pelo
conde.
— Seja lá o que você pense que esteja acontecendo…
— Por favor, Edward — ela sussurrou, olhando em volta e vendo que eles
atraíam todas as atenções do lugar. — Poupe-me de mentiras. Vou para casa.
Tente só aparecer lá quando você estiver limpo dessa imundície que acabei de
presenciar.
Ele quis impedi-la, mas o escândalo que estavam encenando seria o
assunto do dia. Edward tinha que ter algum amor pela sua reputação para não
prosseguir com aquele espetáculo. Agatha entrou na carruagem, que estava
parada logo na entrada do prédio, e retornou para McFadden Garden.
Dentro do veículo, manteve a pose aristocrática e indignada. As palavras
de Caroline ecoavam em seus ouvidos como se tivessem acabado de ser
proferidas. Edward não trai. Ele é o homem mais comportado de Riderhood.
Como podia acreditar naquilo se vira, com seus próprios olhos, o contrário?
Fosse o que fosse, naquela noite, Edward estava se atracando com outra
mulher. Ela o tocara. Ela colocara as mãos nele e aquilo era suficiente para
Agatha desejar matar alguém.
Sua cabeça começou a doer. Entrou na residência pisando firme, trancou-
se no quarto sem sequer aceitar a ajuda de Moira para desfazer o penteado.
Arrebentou os botões do vestido, e, sentada na cama, apenas com as roupas
íntimas, começou a chorar.

M AIS DE UMA hora se passara quando o barulho de uma carruagem chamou a


atenção de Agatha. O trotar dos cavalos no piso de pedra era inconfundível.
Ela limpou os olhos e lavou o rosto para tentar esconder que estivera
chorando. Uma tolice. A vermelhidão que atordoava o verde escuro de sua
íris dava certeza de sua tristeza. Mesmo que ele soubesse que ela chorara por
ele, Edward não se safaria. Apesar de triste, Agatha estava furiosa.
— Abra a porta. — A voz do marido fez com que um tremor lhe
percorresse os ossos. — Por favor, Agatha, deixe-me conversar com você.
Ela abriu. Preferia não ter que encarar o azul infernal daqueles olhos
heréticos, só que não se esconderia de Edward. O maldito dissera que a
amava e estava se esfregando em uma vagabunda qualquer. Girou a chave e
deixou que ele entrasse no quarto dela.
Percebeu que ele não usava as mesmas roupas de antes. O que fizera com
elas, não suspeitava, mas estava limpo, cheirando a sabão e colônia
masculina. O colarinho mal arrumado e a ausência de gravata indicavam que
se vestira sozinho, ou às pressas. Teria tomado banho em um dos quartos de
Riderhood? Ao menos, ele só a procurou depois de estar limpo, como ela
mandou.
— Você tem cinco minutos para dizer o que pretende usar para me
enrolar. Depois, vou expulsá-lo a sapatadas.
— Não quero enrolá-la. Agatha, o que você viu… deve ter visto… foi a
louca da Marquesa de Cunningham. Ela estava me assediando.
— Certamente sem motivos — ela rosnou. — Não acredito em você.
— Você sabe da fama da marquesa. Tem que saber, Londres inteira
fofoca sobre os amantes dela. Ninguém sai ileso quando ela resolve atacar.
Edward parecia nervoso, Agatha pensou. Ele passava as mãos nos cabelos
e tentava se explicar usando a péssima fama da mulher. Claro, o ataque era
sempre a melhor defesa. Se Constance McLelland fosse uma devassa com o
objetivo de seduzir todos os homens no raio de um quilômetro, ele era apenas
uma vítima inocente que caíra em sua teia.
— O que sei é que eu vi uma mulher qualquer te tocando — Agatha
esbravejou. — Não me importa que seja a Marquesa de Cunningham ou a
Rainha Victoria! Ela estava com as mãos… — A condessa apontou para a
virilha do marido. — Ela tinha as mãos aí, Edward!
Agatha não conseguia parar de olhar para o mesmo lugar. Imagens
horrorosas de mulheres fazendo com seu marido aquilo que ela fazia. Dele
fazendo com elas o que era para ser apenas dela. Como outras damas da
sociedade suportavam a ideia de seus maridos terem amantes? Como
conseguiam se deitar com eles, mesmo que apenas para procriar, sabendo que
eles também se deitavam com outras? Ela jamais aceitaria aquilo.
— Toda noite é assim? Você vai jogar e acaba se divertindo com as
prostitutas?
— Eu não preciso de prostitutas. — Edward elevou a voz. Seu
nervosismo era visível. Ele caminhou na direção de Agatha e a segurou pelos
ombros. — Eu tenho você, minha esposa. Por que vou querer outras
mulheres?
— Diga-me você! Afinal, parece que elas se sentem bastante confortáveis
em sentar no seu colo.
— Constance é louca, Agatha.
— Ah, você a trata pelo primeiro nome? — A condessa se afastou e girou
no próprio eixo. — Que diabos de intimidade você tem com a marquesa para
tratá-la de Constance, Edward? Você já esteve na cama com ela? Céus, você
já esteve na cama com todas as mulheres de Londres? Há alguma que não
tenha sido devassada por você em algum lugar, em algum momento?
— Por favor, Agatha! — ele esbravejou, dando dois passos para trás. —
Você se casou comigo sabendo disso. Sabia que eu era um devasso, que eu já
tive muitas mulheres. Sempre fui um libertino desgraçado. Não é como se eu
fosse virgem, maldição! Você também não era.
No instante em que ele disse aquilo, arrependeu-se. Era possível ver o
remorso em seus olhos antes mesmo do estalar do tapa de Agatha em sua
face. O pescoço do conde virou para a direita com a força do golpe. Ele
apanhou pelo que fez, pelo que disse e pelo que ousou insinuar. As lágrimas
voltaram a lhe inundar os olhos e ela não conseguiu resistir. Se chorasse na
frente dele, ao menos seria para regar a ira que crescia em seu peito.
— Seu maldito! — gritou, sem se importar que os criados fossem ouvir.
Toda Londres podia estar debaixo de sua janela e isso não a impediria de
gritar. — Como pode jogar isso na minha cara? Como pode sequer comparar
sua libertinagem com… você é a única pessoa a quem confiei meu segredo.
O único que sabe o que houve comigo. Não foi nada que eu quisesse. Não é
como se eu estivesse prestes a seduzir todos os cavalheiros que cruzassem
meu caminho. Eu não deixo homens me tocarem de forma íntima nem me
sento no colo deles! Eu fui… eu fui…
Ela não conseguiu completar. Ele se aproximou e tentou abraçá-la, mas
Agatha se recusou. Afastou-se, cruzou os braços para impedi-lo de se
aproximar mais.
— Desculpe, Agatha, eu não quis dizer isso. Eu bebi demais, eu não quis
que ela se aproximasse de mim, estava afastando-a quando vi você.
Desculpe-me, eu não deveria…
— Eu ouvi você naquela noite — ela o confrontou, com olhos vermelhos.
— Eu não falei nada para não te constranger. Mas eu ouvi. E, desde então,
você tem feito de tudo para que eu não perceba. Aposto que gostaria de
retirar o que disse, não gostaria?
O conde a encarava com estupefação. Não sabia como argumentar contra
aquilo.
— E quer saber mais, meu marido? Eu também amo você. Eu também
disse, nos seus braços, durante seu sono. Podia ser o seu segredo e o meu
também. Mas agora, você me magoou demais. Saia deste quarto.
— Você está sendo intransigente — Edward insistiu. — Nem me deu a
chance de explicar.
— Não há nada para explicar. — Dirigindo-se até a porta, Agatha indicou
que ele deveria cruzá-la. — Eu poderia perdoar sua traição. Mas você está
agindo como um canalha e eu não preciso ser tratada dessa forma. Saia,
Edward.
— Vou ficar até você recobrar o juízo e me ouvir. Este é meu quarto
também, e você é minha esposa. Sou eu quem dá ordens nesta casa.
— Se for ficar, eu saio.
Agatha abriu a outra porta e se lançou nos corredores. Vestia apenas uma
camisola e sua combinação íntima. Até o conde ter a malícia de persegui-la,
já se enfiara em um dos quartos e desaparecera de sua vista. Esperava que ele
tivesse a decência de deixá-la em paz. Era possível que, no dia seguinte, ela
estivesse mais calma e se interessasse por ouvi-lo, aceitasse seus pedidos de
perdão. Ou relevasse alguma coisa sabendo que ele bebera mais do que
deveria. Naquele momento, ela preferia ver Belzebu ao marido. Queria
distância dele. Queria ficar sozinha com sua dor, como fizera muito bem
meses atrás.

P OR HORAS A FIO , o Conde de Cornwall girou por seu quarto sem conseguir
pregar o olho. Encheu um copo de uísque, depois o atirou na parede,
espalhando vidro estilhaçado por todo o chão. O valete apareceu para ver o
que acontecia, mas foi dispensado. Edward abriu e fechou a porta mais de dez
vezes. Decidia ir atrás da esposa, depois o juízo o convidava a desistir. Sabia
que, se fosse atrás dela, apanharia. Fizera algo imperdoável.
Não por causa da marquesa, Edward tinha a consciência limpa quanto
àquilo, mas Edward rejeitara o sentimento por Agatha. Ela ouviu. Ela sabia
que ele dissera que a amava e depois agira de forma incompatível com isso.
Para completar o cenário de um teatro de horror, ele ainda a acusara de não
ter se casado virgem.
A irritação e a bebedeira fizeram com que batesse a cabeça na parede
várias vezes. De propósito. Quando a luz do sol entrou pelas janelas e o céu
alaranjado coloriu a cinzenta Londres, Edward decidiu fazer alguma coisa.
Chamou o criado pessoal, lavou-se e vestiu-se. Depois, arrancou de Brett os
motivos que levaram Agatha até Riderhood naquela madrugada. Ao descobrir
que fora por causa da criança, foi ao orfanato.
Passou no departamento de menores e conseguiu a documentação
necessária para levar a menina para sua casa. Depois de explicar várias vezes
a mesma coisa e precisar expor seu título para três pessoas diferentes, a
papelada ficou pronta e ele pôde prosseguir.
Sua aparência era a de um homem que não dormira. Se tivesse sido
atropelado por uma horda faminta ou um séquito de carruagens estaria em
melhor forma. Os cabelos, mesmo penteados, tinham arrepiado no topo da
cabeça. A gravata estava mal arrumada. Edward sentia calor, fome e uma
maldita dor de cabeça. A voz estridente da diretora do orfanato em seu
ouvido não o fazia sentir-se melhor.
— Sra. Havisham, eu só preciso que traga a criança até mim — o conde
falou, apontando mais uma vez para o documento sobre a mesa. — Não é
necessária uma aula sobre responsabilidades. Tenho quatro irmãos, sei muito
bem sobre responsabilidades.
— Tenho plena certeza de que o senhor…
— A criança, Sra. Havisham. — Edward estava no limite entre pedir com
educação e atirar a mulher pela janela. Ele jamais bateria em uma dama, mas
estava prestes a reconsiderar sua educação.
A diretora, não satisfeita por ser silenciada, deu a ordem para que
buscassem Lavinia. Edward não a conhecera antes, mas entendeu os motivos
pelos quais Agatha se encantou pela pequenina no instante em que ela chegou
à sala da diretoria. Era uma garotinha magra, muito branca e de olhos
enormes, dourados como os cabelos dela. O conde nunca vira olhos como
aqueles. Ela estava maltrapilha, com roupas gastas e sapatos rotos, mas
mantinha uma aura angelical que o deixou desarmado.
— Lavinia, esse é o Conde de Cornwall — a diretora disse. — Ele vai
levá-la para conhecer a casa dele. Você gostaria de ir?
Edward ajoelhou-se e olhou para a menina diretamente. Ela o fitava com
curiosidade.
— Eu sou o marido da Agatha. Você a conhece, não é mesmo?
A menina assentiu com a cabeça e segurou a mão do conde. Ele sorriu.
Mesmo em frangalhos, aquele toque cuidadoso da mãozinha de Lavinia fez
com que ele se sentisse aquecido por dentro.
— Não a devolva, milorde — a diretora insistiu. O pesar em seus olhos
indicava que ela realmente se importava com aquela criança. Não era algo
comum de se ver. As crianças em orfanatos eram comumente exploradas e
maltratadas. — Esses pequenos já sofreram muito. Se ela passar pela
experiência de uma família e for devolvida, não sei se poderá se recuperar.
— Não temos a intenção de devolvê-la.
Conduzindo a garota pela mão, Edward a levou para casa. Tinha alguma
dúvida sobre os motivos que o levaram a buscá-la. Queria fazer algo para
aplacar a ira de Agatha, impedir que ela fosse embora. Queria mostrar para a
esposa que se importava. Depois de ter se mostrado um ogro insensível, ele
precisaria levar o orfanato inteiro consigo para se redimir.

E LA ESTAVA TRISTE . Agatha se acostumara a sentir raiva, ira, fúria, dor e


angústia, mas, depois que o dia raiou sem que ela conseguisse pregar os
olhos, tudo que conseguia perceber dentro de si era tristeza.
Queria acreditar que Edward não estivesse seduzindo a marquesa. Porém,
sabia que ele não deveria deixar que ela se aproximasse. Não deveria nem
mesmo passar todas as noites em Riderhood. Queria acreditar que ele fosse
tão correto quanto Caroline Eckley dizia. Só que não conseguia apagar a
imagem de sua mente. Uma deusa loira e bela com as mãos em seu marido.
Ela podia perdoá-lo se fosse apenas isso. O problema era que ele usara a
sua desonra como argumento de discussão. Na primeira oportunidade, jogou
na cara da esposa que ela não se casara virgem. Que fora arruinada antes por
um canalha e sugeriu que, por aquele motivo, ela deveria relevar as aventuras
sexuais do seu passado.
Aquilo era demais.
Então o canalha do seu marido chegou em casa antes do meio-dia
carregando Lavinia pela mão. A pequenina olhava para tudo com seus
olhinhos vidrados e assustada. Segurava os dedos do conde com muita força,
mas ele parecia não se importar. Claro que não, a mãozinha dela não poderia
nem lhe fazer cócegas.
A visão de Edward com a menina fez com que o coração de Agatha
amolecesse. Eles pareciam pai e filha de verdade. Aquela menina linda tinha
muitas semelhanças com o conde, principalmente por serem loiros. Ela
desejou poder dar a ele filhos tão belos quanto ela, mas estava ainda muito
aborrecida.
— Olá, Lavinia.
Agatha foi até eles e se ajoelhou na frente da menina. Vendo alguém
conhecido, a pequena sorriu e levou os bracinhos até o pescoço da condessa.
— Seja bem-vinda. — Ela tentou impedir algumas lágrimas que
inundaram seus olhos. — Você está com fome? Vou pedir para preparem chá
e biscoitos.
A condessa pegou a menina no colo e procurou a governanta. Quando
quisera levar Lavinia para casa, tivera uma conversa com a Sra. Goodwill e
estabeleceram que Mary Alcoth, uma das criadas, seria a babá da garota.
Mary tinha experiência com crianças, pois criara quase que sozinha seus seis
irmãos, e era solteira, podendo dormir na McFadden Garden.
Depois de apresentar Lavinia aos criados que encontraram e conduzi-la à
cozinha para que comesse, Agatha voltou ao salão. Seu marido continuava no
mesmo lugar. Com as mãos nos bolsos da calça, o conde fitava o tapete. Ao
ouvir a esposa chegando, ergueu a cabeça e a encarou. Foi quando Agatha viu
que havia tristeza nos olhos dele, também.
— Ela é encantadora. — Edward teve a iniciativa do diálogo. — Mas não
conversa muito.
— Lavinia nunca falou nenhuma palavra. Ninguém sabe por quê.
— Podemos descobrir. Vou mobilizar alguns especialistas para vê-la e
diagnosticar o motivo de ela não falar.
— Por que a trouxe, Edward?
A pergunta continha vários significados. Agatha estava com os nervos
expostos, a mera proximidade dele a deixava em frangalhos. Era aquela
sensação horrivelmente maravilhosa de estar apaixonada. A dor e a delícia de
amar um homem tanto quanto amava a própria vida. Era mais sofrido porque
aquele mesmo homem a machucara muito e não tinha nem vinte e quatro
horas.
— Porque você a queria. E porque eu prometi a você que a teria. E
porque eu estou morrendo de medo de você ir embora.
Oh. Agatha ergueu as sobrancelhas em surpresa. Por isso ela não
esperava. O sempre tão duro e impenetrável Edward McFadden confessava
que tinha medo.
— Eu não vou embora. Mesmo que fosse a coisa mais certa a fazer.
— Agatha, me desculpe. — Ele deu dois passos na direção dela, mas
Agatha se afastou. Seu coração estava estrangulado no peito. — Eu não
deveria ter falado aquilo, eu nunca quis…
— Vai passar, Edward. — Ela o encarou. As lágrimas então
transbordaram e foi inevitável chorar. — Já sofri mais do que isso e passou.
Mas não será agora que você poderá me tocar como se nada tivesse
acontecido.
Agatha não conseguiu ficar mais ali. Ela não queria ser uma tola
chorando na frente do conde. Sabia que o perdoaria inevitavelmente, já que o
amava, mas faria com que ele implorasse seu perdão. Faria com que ele
dissesse, com todas as letras, que a amava também.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

A ANSIEDADE DE G ARETH B RISTOL ERA INCOMPATÍVEL COM O


comportamento de um homem de respeito. Sua masculinidade ficava
comprometida por suas mãos trêmulas ao bater ao portão dos Trowsdale. Ele
estava genuinamente nervoso. Depois de muitos meses, reencontraria Agatha
e teria que convencê-la a perdoá-lo.
Demorou algum tempo para que alguém o atendesse. Um homem alto e
de cabelos prateados, vestindo um terno elegante, esperou nas escadas
enquanto um criado jovem abria o portão de ferro. Aquela era a pompa da
residência de um duque.
— Pois não, senhor?
O homem, que Gareth suspeitou ser o mordomo, dada à sua elegância,
perguntou sem permitir que ele avançasse muito.
— Vim à procura da senhorita Agatha Trowsdale.
— A Condessa de Cornwall não reside mais nesta casa.
— Condessa?
— Sim, milorde. Posso saber quem deseja falar com ela?
— Eu… — Gareth ficou sem voz. Mulheres não carregavam aqueles
títulos a não ser que se casassem. Mesmo ele, um plebeu pouco versado nas
regras da aristocracia londrina, sabia disso. — Estou um pouco confuso. A
condessa é lady Agatha?
— Desde o seu casamento. Mas devo insistir, senhor, em saber suas
intenções para com ela.
O homem ficou branco como cera de vela. Não se despediu do mordomo
nem perguntou sobre o endereço da nova residência de sua amada. Tudo que
ocupava espaço em sua cabeça se relacionava à descoberta infeliz de que
Agatha estava casada.
Aquilo era impossível. Ela não era mais virgem, nenhum nobre
respeitável iria aceitar uma mulher desonrada. Mesmo que fosse a irmã de um
duque, com um dote imenso. Sua mente fez um estalo e ele entendeu. O tal
conde deveria ser um velho falido, precisando de dinheiro. Agatha, arruinada,
não conseguiria marido nem posses, portanto, aceitou casar-se com ele em
um grande acordo.
Tinha que ser isso. O tal Conde de Cornwall era um aproveitador,
interessado apenas no dinheiro da jovem que ele amava. Gareth precisava
resgatá-la daquele casamento cruel. Eles fugiriam para as Américas, onde
viveriam em pecado, mas felizes.
Tomada aquela decisão, precisava falar com seu irmão, Colton. Antes,
precisava beber um pouco para criar coragem de enfrentar o que viria pela
frente. Ele descobriria onde morava o conde e iria até lá persuadir Agatha a
se juntar a ele. Era uma empreitada e tanto, algumas doses de uísque
aliviariam o fardo de seus ombros.

A GARRADO à esperança de que sua esposa o perdoaria em algum momento,


Edward foi trabalhar. Não adiantava ficar em casa porque ela estava
desconfortável com ele. Depois do espetáculo no Riderhood, tinha que
manter a aparência de normalidade. Era indesejado que a sociedade fofocasse
sobre brigas e desavenças no casamento deles. Tudo que Edward menos
queria era ter que lidar com rumores mentirosos.
Aiden estava em seu escritório, mas não suspeitava de nada. Fazia meses
que o duque não ia à casa de jogos, passando as noites com sua esposa,
depois com seus filhos. Não lia os jornais de fuxicos sociais e se mantinha
quase sempre ligado a negócios.
Edward já fora daquela forma, tirando o fato de que vivia na libertinagem.
Mesmo que, durante o dia, seu foco fossem negócios, à noite ele se permitia
jogar, beber e dormir com as mais variadas mulheres. Casado, ele achou que
poderia levar aquela vida, sem a parte de dormir com mulheres. Não deu
certo.
O medo de perder Agatha era maior do que o risco de ser destruído por
ela. Preferia mil vezes ser pisoteado por centenas de cavalos e ter seu coração
reduzido a pó do que ficar sem a esposa. Não dava para evitar, ele a amava.
— Vamos ao Riderhood. — Sawbridge bateu à porta do escritório do
conde. — Um figurão da indústria de navios chegou das Américas há alguns
dias e Miles marcou de encontrar com ele, lá.
— Tinha que ser no Riderhood? — Edward suspirou.
— É cedo, você não precisa se demorar. As coisas ontem não ficaram
bonitas, não é?
— Não. — A confissão fez com que ele se erguesse e servisse um
drinque. — Tenho vontade de encontrar Constance e matá-la. A cena que ela
causou fez com que eu e Agatha brigássemos. Por que diabos essas mulheres
decidiram ficar tão ciumentas, Sawbridge? Poderia me explicar?
— Jamais entenderei as damas. Mas considere que você também não
gostaria de outro homem tocando sua esposa.
Edward fechou os olhos e trincou os dentes.
— Eu mataria quem ousasse chegar perto dela.
— Vejo que é capaz de compreendê-la, então. Mas Agatha não precisa
nem desconfiar que estaremos no Riderhood. Vamos apenas a negócios,
evitaremos o salão de jogos e as prostitutas.
O conde suspirou mais uma vez. Aquele era um movimento muito
arriscado. Ele tinha que se endireitar.
— Ficarei uma hora. Falaram com Aiden?
— Ele não vai. Para ele eu dou um desconto, afinal, Aiden é quase um
burguês com essa mania de cuidar dos próprios filhos.
— Já eu, sou atirado aos tubarões?
Sawbridge riu e colocou a mão no ombro de Edward, conduzindo-o para
fora. Ele ficaria por uma hora, voltaria para casa antes de o sol se por.
Tentaria mais uma vez reconciliar com Agatha e, se não desse certo, dormiria
cedo com a consciência pesada.
A casa de jogos abria cedo e permanecia assim até todos irem embora.
Tinha vezes que Riderhood nem mesmo fechava as portas, emendando um
turno em outro, só para atender aos jogadores ávidos por desperdiçar
dinheiro. Naquele horário do dia, estavam apenas os nobres que não
trabalhavam e alguns negociantes que usavam o espaço exclusivo para tratar
de assuntos sérios.
Edward McFadden, Sawbridge e Miles Westphallen se sentaram ao
balcão enquanto aguardavam o figurão americano. Depois de alguns drinques
e um pouco de conversa, o mesmo estrangeiro que causara um mau
pressentimento no conde se aproximou. Ele tinha uma aparência péssima e
pediu uma garrafa de conhaque.
— Pretende beber isso sozinho, senhor? — Sawbridge provocou. Ele
também estava curioso sobre o homem.
— Se tiver sorte, sim. — Ele encheu um copo. — Será melhor estar
inconsciente do que lidar com meu coração partido.
— Hm. Ela te deixou, filho? — O Visconde de Whitby ergueu seu
próprio copo em um brinde solidário. — Espero que não tenha dito que a
amava. As mulheres costumam ser especialmente cruéis quando nos fisgam.
— Não cheguei a dizer. — O estrangeiro bebeu o drinque em um gole só
e serviu-se de mais. — Mas eu acreditava que ela me amasse. Agora descobri
que está casada.
Os homens lamentaram o infortúnio do desconhecido. Com o atraso do
convidado que esperavam, continuaram conversando enquanto o estranho
revelava parte do seu drama. Conhecera a dama, se apaixonara, pensava que
seriam um casal perfeito. Até que ela foi embora e fez com que ele a
perseguisse cruzando os oceanos.
— Então o senhor é americano? — Edward foi quem perguntou, ainda
incomodado com o inusitado companheiro de bebida. — Veio também no
último navio?
— Sim, vim buscá-la para fugir comigo.
— Mas o senhor disse que ela é casada, homem. Como pretende resolver
isso?
A dúvida de Sawbridge era a de todos que ouviam a narrativa. Depois de
meia hora, todo o bar de Riderhood compartilhava da dor da perda do
estrangeiro cujo nome ignoravam.
— Ah, daremos um jeito de anular. Aposto que o casamento não foi
consumado, quando ela me deixou não era mais virgem.
Um calafrio percorreu a coluna de Edward e fez com que ele se
levantasse. Estava observando a conversa sem participar dela, introspectivo,
curioso para desvendar o que o perturbava tanto, os amigos eram bons em
extrair informações dos tolos, mas a história começou a ficar familiar demais.
— O senhor a deflorou? — O assombro do visconde não era legítimo. —
Claro que com a promessa de casamento, certo?
— Não apenas a deflorei. Ela estava grávida do meu filho quando deixou
Nova Iorque.
O conde deu dois passos na direção dos homens. Sawbridge o viu
aproximar e suspeitou que havia algo errado. Não conseguiu, a tempo, evitar
que o estrangeiro continuasse a falar.
— Um bastardo?
— Infelizmente. Mas, assim que nos casarmos, não deixarei faltar nada
para ele. Ela terá orgulho de usar o sobrenome Bristol.
As mãos enormes de Edward agarraram o americano pelo colarinho e o
ergueram do chão. Sawbridge quis intervir, mas foi fulminado com o olhar
mais letal que o conde já lhe dirigira. As pessoas se espalharam ao redor dos
dois. Sem conseguir tocar os pés no piso de madeira, o homem começou a
reclamar.
— O senhor ficou louco? Coloque-me no chão.
— Como disse mesmo que se chamava, senhor coração partido?
— Bristol. Sou Gareth Bristol, por quê?
Edward não respondeu, apenas acertou um cruzado de direita no queixo
de Gareth, derrubando-o ao chão.

L AVINIA ERA uma criança quieta e introspectiva. Durante o dia que passaram
juntas, ela pouco interagiu com o ambiente. Na intenção de fazê-la mais
ativa, Agatha decidiu levá-la para comprar coisas para o quarto que estavam
ainda montando.
A condessa mobilizou todos os empregados da casa para arrumarem um
dos quartos para a menina, mas nada em McFadden Garden era adequado a
uma criança. As coisas antigas de Wilhelmina estavam em Kent, não havia
brinquedos ou roupas de menina em Londres. Apesar do lindo quarto e das
cortinas cor-de-rosa, aquele espaço não parecia pertencer a uma garotinha.
Agatha queria que Lavinia tivesse de tudo. O que ela teve e o que ela não
teve — o amor de uma mãe. Se arrumou, pegou a menina pela mão e saiu,
com a companhia de Moira. Foram até a algumas lojas encomendar vestidos,
bonecas e outros brinquedos que Lavinia gostasse. O conde havia dado a ela
tanto dinheiro que talvez não pudesse gastá-lo todo em uma vida, então quis
fazer as vontades de sua filha.
Filha. Era isso que Lavinia seria. A criança que a ajudaria a extravasar
aquele arrobo maternal que não passava. Ela precisava da menina mais do
que a menina precisava dela.
No retorno para casa, Agatha pediu que o cocheiro as levasse ao Hyde
Park. Já estava tarde, mas a luz do dia ainda demoraria a se esvair. Mesmo
que fosse bastante incomum uma condessa andar pelas ruas em longos
passeios com sua filha adotiva, Agatha não gostava de ser comum.
— Ah, eu adoro as flores no verão — Agatha decidiu falar para provocar
a atenção de Lavinia. Ela iria trabalhar a dificuldade de fala da menina com
profissionais, se fosse preciso. — São tão coloridas e cheirosas. Gosta de
flores, Lavinia?
A garotinha balançou a cabeça positivamente. Agatha recolheu algumas e
colocou no cabelo dela.
— Pronto, agora ficou ainda mais linda. Céus, você é tão loira e perfeita
que parece até a filha de Elizabeth.
Moira riu, caminhando atrás dela. A condessa gargalhou de sua própria
tolice. Continuaram caminhando até que um mau pressentimento fez com que
Agatha levasse a mão à nuca. Uma dor aguda a estremeceu por completo e
fez com que virasse o rosto para o lado. Então ela o viu.
Agatha reconheceria aquele rosto em qualquer lugar. Mesmo em uma
multidão de homens, ela saberia que era ele. Só nunca imaginara que o veria
novamente. Precisava manter a maior distância possível daquele demônio.
Por um segundo, quis correr. Seus pés não obedeceram, nem quando o sorriso
diabólico de Colton Bristol reluziu sob o sol fraco do final de tarde. Ele vinha
na direção dela.
Não era possível que ele estivesse em Londres. O coração de Agatha
retumbou uma sinfonia desafinada e ela apertou a mão de Lavinia. Moira se
aproximou, pressentindo também algo errado.
— Ora vejam, se não é a minha flor do campo.
A voz dele afetou-a. Agatha começou a suar, as luvas ficaram úmidas.
Quis gritar, mas não podia. Aquele era seu maior, pior e mais hediondo
segredo.
— O que está fazendo aqui?
— Vim por você, queridinha. — Colton tentou tocá-la nas mãos, mas
Agatha cruzou-as nas costas. — Meu irmão está com a sensação louca de que
te ama e quer se casar com você. Reparar sua honra, entende?
Os olhos de Colton desceram para Lavinia, que o encarava sem qualquer
constrangimento.
— Gareth está aqui, também? — Agatha tentou falar de forma tranquila,
mas estava tremendo. Seu corpo parecia prestes a colapsar.
— Essa é a bastarda? — Colton não a respondeu. — É uma menina? Não,
não pode ser. Ela teria que ser um bebê.
Lavinia escondeu-se atrás das saias de Agatha. A cor sumiu do rosto da
condessa. Não havia quase nada de sua dignidade para salvar naquele
momento.
— Moira. — A voz saiu esganiçada, mas ela precisava reassumir o
controle. — Leve Lavinia para a carruagem.
— Senhora, eu não acho que…
— Agora, Moira. Pegue-a e leve-a para a carruagem. Eu preciso ter uma
conversa com esse senhor.
A criada não quis se mover. Agatha a encarou com irritação. Um misto de
sentimentos a deixava confusa e nervosa. Ela queria matar Colton Bristol.
Quando o vira se aproximando, teve medo, o ar faltou aos seus pulmões,
então o medo se transformou em estupefação. Ela não acreditava que o diabo
em carne e osso estivesse em Londres. No momento em que a estupefação
virou ódio, ela agradeceu a Deus por não ter uma pistola em sua bolsa. Se
estivesse com uma arma, ela atiraria em Colton. A sangue frio. Se regozijaria
em vê-lo sangrando até a morte.
— Acho melhor obedecer a sua senhora — o homem desprezível disse.
— Ela virá comigo para um passeio.
Moira decidiu afastar-se um pouco. Pegou a criança no colo e foram olhar
as flores do outro lado. Continuava à vista, porém, não podia ouvir o que
conversavam Agatha e Colton.
— Não vou com você a lugar algum. E aquela não é sua filha. O filho que
você colocou dentro de mim morreu no parto. Sua semente ruim não vingou.
Os olhos do americano cintilaram. Havia fúria em sua expressão
debochada.
— Melhor. Eu detestaria ter que encarar o bastardinho toda vez que a
família se reunisse.
— Colton, não sei que tipo de doença mental você e seu irmão têm. Mas
eu não farei parte de sua família, nunca. Eu estou casada, sou a Condessa de
Cornwall.
— Casamentos podem ser anulados. O seu marido nobre já sabe que você
está arruinada? Sabe que você carregou um bastardo na barriga?
— Edward me ama. Ele sabe tudo e prometeu nunca deixar que nada
mais aconteça comigo. Também prometeu matá-lo. Se eu fosse você, iria
embora de Londres no primeiro navio de volta. Meu marido raramente deixa
de cumprir uma promessa.
Agatha disse aquilo sem perceber a profundidade de suas palavras. Ela
disse o que sabia, o que sentia. Edward a amava sim e ele mataria Colton com
as mãos nuas se fosse para protegê-la. Como ela fora tola em achar que ele a
trairia naquele antro de Riderhood. Caroline sempre esteve certa, mas a
insegurança de Agatha a fez ficar cega.
— Veja bem, florzinha. Eu não me importo com você, nem com seu
marido. Mas meu irmão te quer. Convença-o a desistir dessa burrice e vamos
embora. Não há diversão nesta cidade, já estou ficando entediado.
— Eu não vou falar com Gareth nem convencer ninguém. Não fiz
nenhuma promessa a ele. O maldito do seu irmão deixou que você me
violasse!
— Não faça uma cena, florzinha. Você virá comigo, por bem ou por mal.
Colton sacou uma pistola da cintura. O sangue de Agatha congelou pela
segunda vez. Olhou ao redor e não viu ninguém além da criada e da filha
adotiva. Como não havia ninguém no Hyde Park àquele horário? Talvez, se
ela gritasse, aparecesse socorro, mas foi tudo muito rápido. O americano a
segurou com pelo braço e a arrastou. Agatha quis protestar e começou a se
debater, fazendo com que ele batesse nela.
— Por Cristo, cale a boca.
Colton Bristol acertou a pistola na cabeça de Agatha, fazendo com que
ela ficasse tonta. Continuou arrastando-a para dentro de uma carruagem
alugada, enfiou-a pela porta e ordenou ao cocheiro que seguissem para a
hospedaria. O americano passara o dia negociando em Londres e alugara uma
casa para que tivessem mais privacidade. Pegaria as coisas, arrumaria uns
dois criados e levaria Agatha com ele.
Ela tinha certeza de que Colton não se importava com ela — não se
importava com nada —, mas insistia em sequestrá-la, em conduzi-la para um
lugar qualquer contra a sua vontade, apenas porque o irmão assim desejava.
Um pouco atordoada pela pancada, sem conseguir reagir direito, Agatha
não impediu quando ele amarrou as mãos dela. Ou quando colocou um pano
em sua boca para que não gritasse ou pedisse por ajuda. Naquele instante, ela
teve medo porque entendeu que Colton era louco. Não podia ser apenas um
maldito desprezível, ele tinha que ter perdido completamente o juízo.
Quando Edward descobrisse que ela havia sido raptada por ele, Agatha
sabia que o marido o mataria, e ela não faria questão de pará-lo.
J OHN AGUARDAVA ansioso a chegada do Duque de Shaftesbury. Parado na
porta, pretendia interceptar seu patrão antes que ele entrasse na casa.
Precisava contar a ele o que acontecera. John sabia que havia algo errado com
aquele homem procurando pela condessa. O barulho da carruagem foi um
alívio para o mordomo. Bastou o duque pisar na soleira para ser surpreendido
pelo criado.
— Vossa Graça, há algo que preciso lhe contar.
Aiden sentiu o coração falhar uma batida. Aquela atitude de John fez com
que pensasse que algo acontecera com Elizabeth, com os bebês, ou com os
meninos. Ele tinha muita gente para cuidar, iria envelhecer dez anos em um.
— O que houve, John?
— Hoje um cavalheiro esteve no portão procurando por lady Agatha
Trowsdale.
— Um cavalheiro? Que cavalheiro?
— Ele não deu o nome, Vossa Graça. Mas ficou bastante abalado quando
disse que ele deveria procurar a Condessa de Cornwall. Pelas vestes e pelo
sotaque, ele parece americano.
Problemas. Aiden tinha certeza de que John lhe trazia problemas. Um
homem americano batendo à sua porta, depois de Agatha ter passado um ano
nas Américas, só podia significar coisas com as quais o duque não queria
lidar. Ele sabia que havia algo que sua irmã escondia. Sabia que algo
acontecera em Nova Iorque e seus investigadores não foram capazes de
descobrir o que foi. Aquele homem podia ser parte do mistério.
— Certo. Vou contar isso a Edward. Ele está em Riderhood, por favor,
avise à duquesa que vou me atrasar para o jantar.
— Ela certamente compreenderá vossas razões.
— Deus te ouça.
John sorriu e Aiden foi até o estábulo. Pegou seu cavalo e galopou para a
casa de jogos de Riderhood. Se confrontasse Agatha sobre o misterioso
homem, ela mentiria para ele. Agatha vinha escondendo coisas desde que
chegara das Américas e não seria naquele momento que ela decidiria se abrir.
Conversaria com Edward e deixaria que o marido dela resolvesse a questão.
Antes mesmo de entrar no clube de Riderhood, Aiden percebeu a
comoção do lado de fora. Os criados iam de lá para cá, e o motivo era a briga
que acontecia no bar. O duque chegou a tempo de arrancar seu amigo conde
de cima de um homem antes que ele o matasse.
— Mas o que diabos está acontecendo aqui?
Aiden agarrou Edward pela camisa e o puxou para trás. O duque era
muito grande e forte e, ainda assim, precisou se esforçar para separar o conde
do resto humano que jazia no chão. O homem, desfigurado, tinha uma massa
amorfa de sangue e pele no lugar do rosto. Os olhos estavam inchados e
fechados. Ele parecia inconsciente.
— Solte-me, Aiden. Solte-me porque eu vou matar esse desgraçado.
— Quem é ele? Por que precisa matá-lo de forma tão brutal?
— Porque esse é o canalha que…
Edward se aprumou de repente e virou-se para o duque. Havia sangue na
camisa, no colete e na gravata do conde, que já se havia transferido para a
roupa de Aiden. Suas mãos estavam vermelhas e ele suspeitava que tivesse
quebrado algum osso. O duque percebeu que ele se refreou para não contar
alguma coisa e ele não toleraria mais ser enganado.
— Ele é o canalha que fez o quê? — Aiden olhou ao redor. — Alguém
neste lugar vai abrir a boca e me contar o que esse monte de ossos fez para
tirar o sempre comedido Edward McFadden, o Conde de Cornwall, de seu
regular comportamento. Quem é esse coitado?
— O nome dele é Gareth Bristol — Sawbridge disse, pegando um
conhaque para os dois. — É americano.
— E os senhores decidiram deixar que o conde o matasse de pancada por
quê…
— Porque ele merece morrer — Riderhood foi quem intercedeu daquela
vez. — Não gosto de brigas no meu estabelecimento e raramente permito
esse tipo de espetáculo. Mas esse patife falou coisas da condessa que, se fosse
da minha esposa, eu já o teria metido debaixo de sete palmos de terra.
Aiden estava começando a fazer as conexões. Aquele deveria ser o
americano que esteve em Trowsdale House procurando por Agatha.
— O show acabou. — Aiden indicou que os homens deveriam dispersar.
— Alguém pegue gelo para as mãos de Edward. Até eu descobrir o que
houve, ninguém toca no desgraçado que estava sendo espancado. E sirvam-
nos mais conhaque.
O movimento da casa de jogos voltou ao normal, como se nenhuma briga
tivesse acabado de acontecer. Os homens que estavam no salão de jogos
retornaram para ele. O barman encheu os copos do duque, do conde e de seus
amigos, Sawbridge e Miles Westphallen. Um segurança de braços roliços
parou ao lado de Gareth Bristol, que gemia e se retorcia.
— Contem-me.
Aiden se sentou próximo ao homem e cruzou os braços, encarando os
amigos. Edward tremia por completo e seus olhos não saíam do americano. O
duque tinha certeza de que, se não tivesse tirado o conde de cima do coitado,
ele o teria matado.
— Não adianta mais esconder. Todas as pessoas ouviram esse traste
dizer. — Edward virou seu drinque em um gole. O álcool desceu rasgando a
garganta. — Quando esteve em Nova Iorque, Agatha se apaixonou por ele.
O conde apontou para Gareth e contou o que sabia sobre a história. Ele
prometera à esposa que nunca falaria daquilo para ninguém, mas o próprio
homem tinha aberto a boca e exposto toda a intimidade dela. Enquanto
falava, Edward quis matá-lo mais três ou quatro vezes. Manteve-se sob
controle, mas não podia confirmar por quanto tempo se seguraria.
— E você sabia disso. — Aiden demorou minutos para formular uma
frase. — Sabia e não me contou quando te perguntei?
— Não era meu segredo para dispor, Aiden. E Agatha é minha esposa.
Cabe a mim lidar com essas coisas, agora.
O duque olhou para o chão. Gareth tentava sentar e passava as mãos pelo
rosto. Os olhos estavam fechados, havia dentes trincados e o rosto estava
amassado. Depois, olhou para as mãos de Edward. Sangravam por cortes nos
nós dos dedos e por lesões causadas pelos dentes do homem que ele surrou.
— Estava lidando muito bem, como um animal irracional. Parabéns, você
é oficialmente um tolo apaixonado por sua esposa.
— Cale a boca.
— Não seja infantil. Assuma o que sente, porque ninguém quase mata de
pancadas um homem pelo que esse daí nem fez se não fosse por amor. Onde
está Agatha agora? Ela sabe que esses trastes estão em Londres?
— Não sabe. Preciso ir até ela.
O conde se levantou e ajeitou a camisa. Não havia muito o que fazer, ele
tinha sangue por todos os lados. Passou as mãos avermelhadas pelos cabelos,
limpou as manchas do rosto com um pano úmido e deixou algumas moedas
sobre o balcão para pagar a conta e cobrir os estragos com o homem.
— Vou com você. Preciso garantir que chegue inteiro até McFadden
Garden. Você está em frangalhos, meu amigo.
— O que fazemos com ele? — Sawbridge perguntou.
— Por mim, que apodreça. — Edward cuspiu sobre as roupas de Gareth
Bristol. — O irmão dele ainda receberá uma visita minha amanhã.
Os dois amigos saíram da casa de jogos em direção à casa do Conde de
Cornwall. Cada um em seu cavalo, trotaram rápido demais pelas ruas mal
iluminadas de Londres. Mesmo em Mayfair, a iluminação noturna não era a
melhor para garantir a segurança de quem transitava.
Chegaram até a McFadden Garden com rapidez. Edward estava nervoso e
agitado. Não sabia como contar a Agatha o que acontecera. Que os irmãos
Bristol estavam em Londres. Que Gareth revelara todos os seus segredos.
Pior. Ele não sabia como perguntar a ela por que diabos ele dizia que tinha
com ela um filho bastardo. O motivo pelo qual o homem disse, para todos
naquele bar, que Agatha e ele tiveram um filho juntos.
Não teve tempo de decidir o que fazer. Assim que chegou à sua casa,
descobriu que sua esposa não estava. E ninguém sabia aonde ela tinha ido.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

P ASSOU ALGUM TEMPO ATÉ QUE A GATHA COMPREENDESSE ONDE ESTAVA . E LA


fora amarrada, amordaçada e vendada durante o trajeto, permanecendo dentro
de uma carruagem. Protegida da vista das pessoas, duvidava que alguém
fosse notá-la. Se notassem, não fariam nada. Colton era um homem e poderia
inventar uma história qualquer que todos acreditariam, apesar de louco, ele
era inteligente. Mantê-la amarrada era o melhor que fazia para impedir que
ela arrancasse a cabeça dele fora. Era o que Agatha tinha vontade de fazer,
enquanto olhava para o teto abobado de uma casa elegante que ela não
conhecia.
Não havia nenhum barulho além daqueles do lado de fora. Estavam na
cidade, e ela, provavelmente, sozinha. As mãos estavam bem presas nas
costas e Agatha estava deitada em um sofá. As saias estavam emboladas em
suas pernas, em uma posição indecorosa. Tentou se levantar algumas vezes,
sem sucesso. Rolou para o lado e caiu no chão, batendo com o rosto na
madeira. Sentiu uma dor aguda na bochecha e gosto de sangue na boca.
Blasfemou em silêncio, irritada por sua impotência. Sem ter muito o que
fazer para sair dali, precisava esperar. Edward sentiria sua falta e viria atrás
dela.
Passos apressados, depois vozes, fizeram com que ela ficasse alerta. Eram
duas vozes masculinas e elas pareciam nervosas. Agatha ouviu xingamentos e
reclamações.
— Você é um imbecil, Gareth! Um imbecil! Não é possível que tenhamos
nascido do mesmo pai — Colton gritava.
Os passos ficaram mais próximos, havia uma terceira pessoa com eles.
Agatha sentou-se no chão, tentando demonstrar alguma dignidade.
— Senhor, ele precisa descansar. Amanhã creio que estará apto a
conversar.
— Eu não quero conversar! Quero bater ainda mais nesse idiota. Agora o
marido dela sabe que estamos aqui.
Os homens entraram na sala. A casa era bem mobiliada e decorada, mas
era uma casa de aluguel. Pensada para viajantes mais endinheirados que não
tinham interesse em ficar nas hospedarias da cidade. Oferecia conforto sem
excessos, então não tinha muitos cômodos. Era composta de um salão central,
um escritório e três quartos no andar superior. Havia também cozinha, área
para os criados e sala de jantar.
Um médico, que Agatha não conhecia, colocou Gareth sentado em um
sofá. Ela pôde vê-lo, mas teve certeza de que ele não a via. Os olhos estavam
inchados, fechados, e o rosto ensanguentado. Ele tentava resmungar alguma
coisa, mas não conseguia falar. Agatha soube que ele apanhara, e muito. A
não ser que tivesse sido atropelado por cavalos selvagens em debandada,
Gareth levara a maior surra da vida dele.
Ela quis rir e, na verdade, riu. Mesmo com a boca travada, as gargalhadas
guturais chamaram a atenção dos homens que se reuniam próximos a ela.
— Maldição, esqueci a vadia.
Colton foi até ela e a agarrou pelas mãos amarradas. Fez com que se
levantasse e a empurrou para cima. Forçou-a a subir as escadas, enquanto o
irmão continuava tentando falar. Jogou-a em um dos quartos, sobre uma das
camas, e a observou por alguns segundos.
— Tem sorte de eu só gostar de virgens, ou eu te devassaria sobre essa
cama agora mesmo. Fique quieta e não tente fugir. Vamos decidir o que fazer
com você daqui a pouco.
Ele fechou a porta e saiu, deixando-a no escuro. Agatha tinha esperanças
de que fosse ser encontrada logo. Já era noite e seu marido não a deixaria
ficar fora de casa, sozinha. Edward viria procurá-la.

— C OMO ASSIM , ela não está em casa? — Edward perguntou pela terceira
vez, sem dar a ninguém a chance de uma explicação. Ele girava pelo salão, e
nem mesmo Aiden conseguia acalmá-lo.
— Se você parar com esse espetáculo, vamos descobrir — o duque
rosnou, já irritado. — Moira, conte tudo, desde o início.
— Aquele homem horrível levou a condessa com ele. Ela me mandou
afastar, mas eu fiquei perto o suficiente para ver. Sei que ela não foi de boa
vontade, ele a arrastou para uma carruagem.
— Que homem? — Edward parou na frente da criada. Seus olhos
estavam flamejando pelo ódio por Gareth Bristol e pelo pavor em saber que
Agatha fora interceptada por um homem qualquer cuja identidade ignorava.
— Eu não sei, milorde. Nunca o vi, antes. Mas ele chegou falando coisas
horríveis com a condessa. Chegou a perguntar se… se… — Moira olhou ao
redor e sussurrou: — Se Lavinia era a filha bastarda dele. Não sei o que isso
significa, milorde. Sei que a senhora estava muito nervosa.
Edward pressionou as têmporas, nervoso. Só de pensar que Agatha estava
em qualquer lugar com Colton Bristol, o irmão que a violentou, fazia com
que ele desejasse arrancar algumas cabeças. E, novamente, aquela história do
bastardo. Fosse o que fosse, ele precisava recuperá-la. Se ela estava com o
maldito, então ela estava em perigo.
— Para aonde eles foram?
— Não vi, milorde. Quando ele a fez entrar na carruagem, eu voltei
correndo para casa para avisar Brett.
— Maldição! — Edward bateu na parede com as duas mãos. Apoiou a
testa e ficou ali por alguns segundos, respirando com dificuldade. Seu arrobo
assustou Moira, que soltou um soluço alto. Ele não queria que os criados
pensassem que estava ficando louco, mas ele estava. — Vou voltar ao
Riderhood. Tenho que descobrir onde esses animais estão hospedados.
— Acha que ele a levou para uma hospedaria? — Aiden estava atordoado
com toda a história. Ele não conseguia reagir normalmente. — Parece
arriscado demais e eles devem ser covardes.
— Eu não sei o que achar. Mas eu vou até o inferno procurando aquele
maldito.
— Então vamos logo. Se ele encostou um dedo na minha irmã, terá que
me segurar para que eu não o mate primeiro.
Os dois homens pegaram seus cavalos e voltaram à casa de jogos. Se o
próprio Gareth Bristol ainda estivesse lá, eles o fariam falar. Se não estivesse,
Riderhood teria a informação. Não havia sócio daquele clube que não tivesse
a vida investigada. Estrangeiros podiam participar temporariamente do clube,
mas precisavam deixar endereço em Londres. Eles descobririam onde
encontrar Colton, por bem ou por mal.
A HOSPEDARIA indicada por Riderhood era uma das melhores de Londres. Os
irmãos não fariam um escândalo por lá. O estalajadeiro era um homem
respeitável e que nunca tolerou desordem em seu estabelecimento. Edward
sabia que eles não manteriam Agatha cativa se estivessem por lá. Tanto que,
quando chegaram, foram informados que os irmãos tinham encerrado a conta
e saído da hospedaria naquele dia.
— O senhor deve saber para aonde foram — foi o duque que perguntou,
esforçando-se para ser educado. O conde estava a ponto de revirar todos os
quartos e arrancar todas as pessoas de dentro deles. — Quando fecharam a
conta, não contaram nada? Esses homens são falantes, gostam de contar
histórias.
— Lamento, Vossa Graça, mas tudo que sei é que um deles estava
procurando casas para alugar. Aparentemente, passariam um tempo mais
longo em Londres e preferiam privacidade. Mas… — O estalajadeiro parou
por um minuto e chamou uma pessoa com um gesto. Aiden e Edward se
viraram e uma criança se aproximou. — Eles contrataram o pai de Gillie para
trabalhar com eles. Talvez ela saiba.
Edward ajoelhou-se à frente da menina e colocou as duas mãos nos
ombros dela.
— Gillie, precisamos saber onde seu pai está trabalhando. Os homens que
o empregaram estão com a minha esposa e eu preciso buscá-la.
A menina olhou para o estalajadeiro, que assentiu para que prosseguisse.
— Não sei dizer onde fica, mas posso mostrar.
— Poderia nos levar até eles?
Gillie balançou a cabeça afirmativamente. Nem Aiden nem Edward
gostariam de levar uma criança para a confusão que estavam prevendo, só
não havia opção. Para evitar problemas, pediram à mãe da garota, que era
empregada da hospedaria, para acompanhá-los. Iriam em uma carruagem
aberta e fariam as duas retornar a salvo assim que encontrassem a casa.
Quanto mais os segundos passavam, mais Edward ficava nervoso. Ele
pegou o relógio do bolso várias vezes e contou cada volta do relógio por
quinze intermináveis minutos. Quando se puseram em movimento na direção
indicada pela menina, ele ficou ainda mais nervoso.
Não sabia o que faria quando encontrasse Agatha. Ele provavelmente
mataria os dois irmãos, isso se Aiden não os matasse antes. Apesar da
aparente elegância e contenção do duque, Edward sabia que havia um
monstro assassino dentro do amigo. Aiden era educado, polido e gentil até ser
provocado. Se alguém que ele amasse estivesse em perigo, ele não mediria
esforços para eliminar os riscos. Edward, não era muito diferente. O
sentimento que crescia em seu peito misturava medo, ansiedade e desespero
com fúria. Ele queria abraçar sua esposa e colocá-la a salvo tanto quanto ele
queria exterminar os Bristol como se fossem insetos.
A casa indicada ficava na Hanover Square. Os homens pediram ao
cocheiro que parasse alguns metros antes para que o barulho dos cascos dos
cavalos não alarmasse quem nela estivesse. Edward dobrou as mangas da
camisa, mesmo que ela já estivesse desgrenhada demais para fazer alguma
diferença. Aiden arrancou a gravata e repetiu o gesto do amigo.
— Vou pelos fundos, você bate na porta da frente. Assim, eles ficam
cercados.
O duque indicou a estratégia. Sussurrava, já na calçada da residência,
notando que havia iluminação interior.
— Para o inferno com as estratégias, Aiden. Quero minha mulher de
volta.
Edward enfiou o pé na porta principal. A madeira se partiu em um
estrondo. Não havia dobradiça forte o suficiente para segurá-lo.
— Bristol! — o conde gritou, rugindo como um leão. — Apareça,
covarde, e me enfrente!
Um criado escondeu-se na parte dos fundos. Edward olhou ao redor para
reconhecer o lugar. Paredes decoradas com papéis de parede damasco,
quadros e objetos pontiagudos. Sofás, uma lareira acesa e muita iluminação.
Passos pelo andar de cima chamaram a sua atenção. Aiden correu para as
escadas enquanto o conde pegou uma espada que fazia parte da decoração.
Colton apareceu, descendo as escadas. Segurava Agatha à sua frente e
uma pistola apontada na direção dela.
— Ora, vejam, é o marido. E, pelo visto, trouxe um ajudante.
— Ajudante? — Aiden cruzou os braços no peito e encarou o irmão
Bristol. Era fácil perceber que ele tremia enquanto segurava a arma. Podia ser
arrogante, mas Colton não estava acostumado a ameaçar condessas com uma
pistola, nem a enfrentar dois nobres vigorosos. — É a isso que me reduzi?
Fique sabendo, Sr. Bristol, que sou o Duque de Shaftesbury. Também fui o
Marquês de Hedley, o Conde de Norfolk e o Visconde de Bradbury.
— Precisa recitar todos os seus títulos neste momento? — Edward
reclamou
— É bom que o homem saiba ao menos o nome de quem vai arrancar as
tripas dele pela boca.
— Calem-se, os dois — Colton berrou. — Eu quero que saiam da minha
casa, ou terei que devolver a belezinha aqui com um furo no meio dos olhos.
Os olhos de Edward se estreitaram. Ele também percebeu que o homem
tremia. Havia cheiro de álcool no ar, indicando que Colton bebera. Enfrentar
um homem desesperado era uma coisa. Um desesperado e bêbado, era outra.
Exigia estratégia, algo que Edward não estava disposto a traçar. Ele estava a
ponto de enfiar a espada no coração de Colton antes que o maldito pudesse
firmar o dedo no gatilho.
— Agatha, você está ferida?
Ela balançou a cabeça, negando. Continuava com as mãos amarradas e a
boca coberta por um pano.
— Solte-a, Bristol. Seja homem e me enfrente como um. — Edward
pegou outra espada da decoração e estendeu a ele.
— Edward… — Aiden murmurou, preocupado com o que viria a seguir.
— Só um covarde como você se esconde atrás de uma mulher. Vença-me
e poderá sair de Londres. Caso contrário, você será caçado até o final dos
tempos. E tenha certeza, eu vou te achar.
O conde tinha uma postura impassível. Ele não tremia um músculo, não
piscava nem escorria de sua pele uma gota de suor. Apesar de o cabelo
despenteado e das mãos inchadas de tanto socar Gareth Bristol, Edward
estava inabalável.
— Entregue-a para mim. — Aiden se aproximou dois passos. — Prometo
não interferir, e sou um duque. Duques sempre cumprem suas promessas.
— Fodam-se seus títulos. — Colton deu uma gargalhada. — Vocês não
podem ferir meu irmão impunemente. Vou sair agora desta casa e levarei a
princesinha comigo. Não tentem me impedir.
Edward e Aiden se olharam. Precisavam de uma armadilha para impedir
que o americano passasse por eles. Não podiam pular sobre ele enquanto o
cano de uma pistola estivesse apontado para Agatha. A sorte lhes acenou no
instante em que um barulho no andar de cima chamou a atenção de todos.
Bastante lesionado e com os olhos excessivamente inchados, Gareth
Bristol pendurou-se nos balaústres que cercavam os corredores superiores e
chamou o irmão. Foi uma fração de segundo. Colton olhou para cima e
afrouxou o dedo do gatilho, a pistola deslizou para o lado. Nesse instante, o
duque pulou sobre ele e fez com que a arma voasse para o lado.
Aiden puxou Agatha para si e a soltou do seu captor. Desarmado e sem o
trunfo da condessa sob seu controle, Colton recolheu a pistola no chão e
tentou correr para os fundos. Era sua chance de fugir. Edward foi atrás dele.
Enquanto isso, o duque soltou as mãos e descobriu a boca da irmã.
A porta dos fundos estava trancada. As janelas, naquela direção, também
estavam. Colton acabou preso na cozinha. Não havia para onde escapar. O
conde parou na porta que ligava o cômodo ao restante da casa e encarou o
americano, que estendia o braço e lhe apontava a arma.
— Você só tem um tiro, Bristol. Se parar para carregar, eu te mato. Então,
é melhor me matar primeiro.
Agatha gritava na sala, mas ele não iria ouvi-la. Não podia ouvi-la ou ela
tentaria impedi-lo de fazer o que tinha que ser feito. Trêmulo, Colton Bristol
mirou e atirou, mas ele não foi preciso o suficiente. O tiro acertou o ombro de
Edward. O chumbo ardeu quando penetrou a carne e o impacto fez com que
ele virasse o corpo para o lado. Isso não o demoveu. Assim que o tiro foi
proferido, o conde deu cinco passos na direção de Colton e o acertou com um
direto.
O americano cambaleou para trás, o nariz ensanguentado. Edward chutou
a pistola para longe enquanto o homem passava pela porta e tentava voltar
para o mesmo lugar de onde veio. O sangue tornou difícil para que ele
enxergasse e fez com que tropeçasse algumas vezes. O conde o encontrou
novamente no salão. Aiden estava na frente da porta principal.

— E DWARD — Agatha murmurou ao ver o estado do marido. Ele não olhou


para ela. Mantinha Colton Bristol em seu campo de visão quando jogou a
espada no chão, fazendo-a deslizar para onde ele estava ainda caído.
— Nunca mato um homem desarmado.
A voz gelada fez com que Agatha engolisse um soluço alto. Colton pegou
a espada e se levantou, tentando aprumar o corpo. Aiden continuou na frente
da porta, impedindo que o americano tentasse fugir.
— Edward, pare com isso — Agatha reclamou e quis entrar na frente
dele. Recuou ao receber uma advertência silenciosa do irmão. — Eu estou
bem, vamos embora.
— Não. Ele vai pagar o que te fez, aqui e agora.
— Edward é o segundo melhor espadachim que conheço — Aiden
provocou. — Ele só perde para mim, claro. Recomendo que comece a rezar,
Sr. Bristol. E recomendo que golpeie para arrancar-lhe um membro.
Colton soltou um grito de raiva e avançou sobre Edward. Aquele era o
esporte favorito do conde. Aprendera a lutar espadas desde muito jovem e
usava a esgrima para defender-se, para exercitar-se, para extravasar quando
precisava. Homens como Edward nunca podiam desabafar com amigos ou
demonstrar qualquer sinal de cansaço. Para ser imbatível, ele lutava.
Naquele momento, lutava com toda a fúria contra o homem que deflorara
sua esposa, que a fizera passar pelo horror de um sequestro e que
provavelmente a engravidara com uma criança bastarda. O conde era um
homem inteligente. Não precisou de muito esforço para fazer as conexões.
Agatha deve ter parido um filho daquele verme. A criança estava prestes a se
tornar órfã de pai.
Gareth tentou descer as escadas. O criado que se escondera apareceu para
segurá-lo. Aiden entendeu que ele estava impedindo o homem de ir até o
confronto. Edward moveu-se para um lado e Colton passou por ele. Os dois
homens iniciaram uma dança a qual o Conde de Cornwall conduzia. Com
movimentos elegantes, Edward desviava das investidas do americano e
atacava. Golpe a golpe, cortou-o no braço, na coxa, nas costelas e no rosto.
Colton gritava, tanto de dor quanto de raiva. Depois de mais um golpe
malsucedido, o conde decidiu que era hora de encerrar o combate. Preferia
que Agatha não estivesse presenciando tudo. Aiden precisava guardar a porta
e ela não aceitaria ser retirada dali. Os lutadores se encararam por alguns
segundos até que Edward desferiu os golpes finais.
Primeiro, ele acertou Colton Bristol no estômago. A espada entrou e saiu
sem verter uma gota de sangue. Quando o americano colocou a mão no
ferimento, a hemorragia pôde ser vista transbordando por sua camisa branca.
Ele caiu de joelhos e a espada soltou de sua mão.
— Essa é por ter violentado Agatha. Por tê-la desonrado e abandonado.
Segundo, Edward acertou-o no pescoço. A espada abriu a carne e fez o
sangue esguichar no mesmo instante. Agatha gritou e levou a mão à boca.
Aiden segurou a irmã em seus braços e a fez parar de olhar. Ela se debatia,
mas Edward não podia prestar atenção nela. Ainda não.
Colton levou as duas mãos ao pescoço. Ele não conseguia mais respirar e
estava sufocando com o próprio sangue.
— Essa é por tê-la sequestrado. Por tê-la ameaçado e por fazê-la vê-lo
morrer.
Por fim, ele cravou a espada no meio do peito de Colton. O americano
caiu para frente sobre uma poça do próprio sangue. A sala estava em silêncio.
— Essa é pela história que ela ainda vai me contar. Porque eu sei que
você fez muito mais do que ela me contou. Vejo você no inferno, miserável.
Edward deixou a espada cair no chão. O ferimento no ombro finalmente
começou a doer, lhe drenando as forças. Ele sentiu as pernas fracas e caiu
sobre os joelhos. Seu corpo foi amparado por braços firmes e graciosos e ele
relaxou no colo da mulher que amava.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

N EM TODO O SOFRIMENTO QUE VIVENCIARA NO PARTO DE SEU PRIMEIRO FILHO


preparou Agatha para aquela experiência. Dois homens se enfrenando como
animais, lutando por honra, vingança e orgulho. Ela via seu marido, o homem
por quem estava apaixonada, cumprindo outra de suas promessas.
Ela queria que Colton morresse. Queria vê-lo sangrar e definhar em sua
frente. Algo sombrio dentro dela desejava que aquele homem pagasse com a
vida pelo que lhe fez. Mesmo assim, ela tentou evitar. Avisou ao estúpido
Bristol que Edward o mataria. Sabia que nem seu marido, nem seu irmão,
permitiriam que ele vivesse se soubessem que ele a havia sequestrado por
razões que nem a própria Agatha entendia.
Ela não tinha tempo de se preocupar com ele. Ao ver Edward sucumbir à
exaustão do combate, com o sangue escorrendo por seu braço e ensopando
sua camisa, Colton Bristol foi para último lugar em suas prioridades.
Ajoelhou-se ao lado de Edward e o amparou, fazendo com que se apoiasse
nela.
— Aiden, faça alguma coisa.
— Estou fazendo, irmã querida. — O duque abrira a porta e gritava para
alguém que passava na rua. Depois ele reclamaria com ela, porque um duque
nunca gritava. Aquele era um comportamento incompatível com seu título.
— Primeiro, preciso garantir que alguém venha limpar essa bagunça.
Aiden desapareceu pela porta, ainda aos berros. Gareth Bristol continuava
no salão, desolado. Talvez ele chorasse, mas ela não conseguia perceber.
Também não conseguia sentir pena dele. O criado o conduziu para longe
depois que a condessa pediu. Forçá-lo a encarar o corpo sem vida do irmão
era sofrimento demais até para ele.
O duque voltou trazendo três homens consigo. Um oficial da polícia de
Londres e dois homens que contratou para ajudá-lo. O policial cuidaria das
questões legais envolvendo a morte de Colton Bristol e os homens
carregariam Edward para uma carruagem de aluguel que os conduziria para
Trowsdale House.
Agatha não quis deixar o marido quando o ergueram. Edward estava
consciente, mas não alerta.
— Ele está em choque. — Aiden tentava tranquilizá-la. — Assim que
chegarmos, vamos chamar um médico.
— Quero ir para casa, levá-lo para casa. Posso cuidar dele e…
— Acalme-se, Agatha. — O duque colocou as duas mãos sobre o ombro
de Agatha. Mesmo com as camadas de tecido, ela sentiu o calor reconfortante
do irmão. — Depois que tudo estiver mais calmo, Granger levará vocês para
a McFadden Garden.
A razão a tinha abandonado, porém, Agatha sabia que Aiden estava certo.
Ela cuidou do marido antes, em Hampshire, mas daquela vez era diferente.
Não precisava fazer tudo sozinha, estava fragilizada por ter visto Edward
matar um homem em sua frente. Sentimentos se misturavam dentro dela.
Gratidão por ter sido resgatada e porque nada aconteceu a ele, pavor e medo
pelo que poderia ter acontecido. Pelo sangue, pelos gritos de agonia, pela dor.
Apreensão porque seu marido acabara de cometer assassinato.
Por certo, aquilo teria implicações legais que ela desconhecia. Esperava
que Aiden pudesse, também, ajudar a resolver.

Q UANDO PARARAM na casa do Duque de Shaftesbury, Elizabeth já aguardava


no saguão. Patrick esperava do lado de fora, agitado. A casa estava toda
apreensiva porque sabiam que algo muito ruim acontecera. John contou a
história que sabia e era o suficiente para que a duquesa desconfiasse. Homens
atrás de Agatha, Aiden demorando todo aquele tempo para retornar. Isso
tinha que significar problemas. A cena que irrompeu sua casa era bastante
chocante. O duque carregava o amigo conde, que se arrastava com o braço
esquerdo pendurado ao lado do corpo. Havia muito sangue e Agatha estava
em frangalhos.
— John, chame o doutor Davies. Sei que ele já está em Londres. Peça que
venha aqui com urgência — o duque ordenou.
Davies era o médico de confiança da família Trowsdale, quem resolvia
todas as questões complicadas com discrição e eficiência. Enquanto o
mordomo dava ordens para que os criados cumprissem as determinações de
Aiden, o duque carregava seu amigo para o andar de cima. Com a ajuda de
Geoffrey, colocaram o conde em uma cama e começaram a rasgar a camisa.
— O que está havendo? — Elizabeth segurou Agatha, que tentava ir atrás
do marido. A condessa percebeu que suas mãos estavam ensanguentadas. Ela
nunca vira tanto sangue na vida.
— Uma longa história, Elizabeth. Mas agora eu preciso…
— De um chá. — A duquesa puxou a cunhada com ela, conduzindo-a
para a sala privativa. — E me contar a longa história. Os homens vão dar
conta de Edward. Ele está ferido?
— Sim. Tenho que ficar com ele.
— Certo. Já subiremos.
Elizabeth pediu à criada que buscasse água para que a condessa se
lavasse, bem como chá e torradas. Agatha tinha fome e seu corpo estava
fraco. Quase não comera naquele dia. Quando a comida chegou, ela a
devorou sem muita sutileza. Bebeu do chá de camomila e agradecendo em
silêncio que a cunhada soubesse que ela estava muito nervosa.
Agatha precisava falar. Desabafou com Edward quando contou a ele
sobre o que houve em Nova Iorque. Seu espírito ficou mais leve e ela pôde
lidar melhor com a violência que sofrera. Sua reputação estava novamente em
xeque por causa da presença dos Bristol em Londres, todos saberiam o que
eles faziam na cidade. Não havia segredos para a sociedade. Fofocar era o
esporte favorito de todas as damas e cavalheiros.
Contar à Elizabeth toda a história teve o mesmo efeito libertador de
contá-la para Edward. Falou desde o momento em que conheceu Gareth
Bristol até voltar para Londres, e o que aconteceu naquela noite, quando
Edward tirou a vida de Colton.
A duquesa estava abalada. Mesmo que Elizabeth nunca demonstrasse
emoções em excesso, ficou chocada ao saber que Agatha fora violada pelo
americano. Mais ainda porque ela gerou um filho do maldito. Por sua
experiência com gestações e partos ser muito feliz, era difícil mensurar o
sofrimento da condessa.
— É muito difícil acreditar que tenha guardado esse segredo por tanto
tempo, Agatha — a duquesa falou, ainda sem conseguir raciocinar sobre tudo
que lhe fora falado. — Estou impressionada com sua força. Suportar tamanho
fardo não é para qualquer uma.
— Pensei que poderia enterrar essa história. Depois que a criança nasceu
morta, não haveria rastros do que houve. E então, Edward McFadden
aconteceu.
Elizabeth deu uma risadinha. Apesar do caos, o saldo de tudo ainda era
positivo.
— Eu sinto muitíssimo, minha querida. Mas pense pelo lado bom, sempre
há um. Você encontrou um marido compreensivo, que vingou sua honra com
o próprio sangue. — Elizabeth bebericou o chá. — E que está muito
apaixonado por você, para aceitá-la com toda essa história. Edward é mesmo
um homem à frente do seu tempo.
— Ele não sabe do bebê — Agatha confessou. — Não tive coragem de
contar.
— Assim que ele se recuperar, você poderá colocar tudo às claras.
Gostaria de vê-lo, agora?
Sim. Agatha precisava saber se Edward estava bem. Mesmo sabendo que
as notícias ruins galopavam, ela queria estar ao lado dele. Prometera fazê-lo
rastejar a seus pés, mas nenhum homem faria por ela o que ele fez. Aquilo era
demonstração suficiente de afeto, mesmo que ele não dissesse nada.

O FERIMENTO de Edward não era muito grave. Davies o examinou com


cuidado e constatou que o chumbo penetrara os músculos, entrando pela
frente e saindo por trás. Não havia resíduos metálicos que pudessem causar
uma infeção. O médico pediu que comprassem água fenicada em um
boticário e fez uma limpeza completa no local da ferida. Depois, prescreveu
láudano para dor, tônicos e um curativo que deveria ser trocado diariamente.
— O senhor deve recuperar todo o movimento do braço, milorde — disse
o médico. — Mas precisa repousá-lo por alguns dias.
Edward balançou a cabeça.
— Isso é bobagem. Estou me sentindo ótimo.
— Claro que sim, está entupido de láudano. — Aiden deu uma risada. —
Obrigado, Davies. Vamos ao meu escritório para que possa te pagar. Meu
amigo precisa descansar.
O duque saiu do quarto, levando o médico com ele. Edward não pretendia
ficar ali deitado enquanto as coisas aconteciam. O ópio não o impediu de
preocupar-se com o que ficou sem ser resolvido. Gareth Bristol, que ainda
caminhava com vida, e Agatha. Subitamente ele se deu conta de que não
sabia onde nem como a esposa estava.
Olhou para o braço esquerdo, inutilizado por um curativo muito bem feito
e uma tipoia. Levantou-se e procurou um espelhou para confirmar que estava
em péssimas condições. Sem camisa, com as calças desabotoadas, descalço e
ainda salpicado de sangue. Preocuparam-se em cuidar do ferimento, não em
garantir-lhe uma boa aparência.
Edward hesitou um minuto inteiro sem saber se rompia de vez com o
decoro e percorreria quase nu a casa do amigo duque ou se esperava que
alguém fosse até ele. Preferiu chamar um criado. Sentou-se na cama, pegou a
sineta e, antes que pudesse tocá-la, a porta se abriu.
Agatha colocou meio corpo para dentro do quarto. Ele sentiu o peso de
três cavalos saindo de suas costas. Ainda não tivera tempo de refletir sobre o
que acabara de acontecer. Precisava apenas garantir que sua esposa estivesse
a salvo.
Vendo-o desperto, ela foi até ele, seguida por Elizabeth.
— Ah, meu Deus, Edward.
Ele não deixou que ela falasse mais nada. Puxou-a para si com o braço
direito e afundou a face nos tecidos do vestido empoeirado que ela usava.
Agatha abraçou-o e acariciou seus cabelos. Ficaram daquela forma por
minutos. Edward ouviu a porta se fechar e soube que a duquesa os deixara
sozinhos.
— Está doendo? — Ela se afastou centímetros e colocou a mão sobre o
curativo.
— Na verdade, não. Ah, Agatha, você quase me matou de preocupação!
Aquele desgraçado te fez algo? Ele machucou você?
— Não. Ele era covarde demais para tentar qualquer coisa.
O conde fez com que a esposa se sentasse em seu colo. Ela ajeitou as
saias e se acomodou de frente para ele.
— Aquele maldito nunca mais tocará em você. Ou chegará perto de você,
ou respirará para pensar em te fazer algo. Eu apenas desejava que você não
tivesse presenciado nada daquilo.
— Está tudo bem. Ele mereceu. Estou até mesmo um pouco satisfeita. —
Ela recostou a cabeça no peito do marido. Edward abraçou-a com mais força.
— Lamento ter causado esse inconveniente.
— Inconveniente? — Ele beijou-a na cabeça. — Você tem ideia do que
me fez passar, Agatha? — Edward murmurou nos ouvidos dela, sem soltá-la.
Era provável que a condessa não conseguisse respirar de tanto que ele a
mantinha cativa em seu braço. — Eu estava em pânico, imaginando que esse
canalha tinha lhe feito algo. Se algo te acontecesse, eu não saberia viver sem
você. Eu não sei ficar sem você, eu a amo tanto que não sei nem acordar de
manhã se não souber que você estará do meu lado.
— Ama? — Ela ergueu o olhar e o encarou. — Tem consciência de que
estou acordada e alerta agora, senhor meu marido?
— Sim, tenho. E não me importa, preciso que saiba. Eu a amo.

E LA DESEJOU OUVIR AQUELAS PALAVRAS . Precisava que Edward as dissesse


espontaneamente e que não as retirasse depois. Agatha não sabia quando se
apaixonara pelo conde. Era bem provável que fosse desde a adolescência. A
irritação que ele lhe causava era proporcional ao fascínio que Edward exercia
sobre ela. Precisou que ela fosse sequestrada, amarrada e que o conde
espancasse um homem e degolasse outro para que ele se declarasse. Mesmo
que Agatha estivesse tremendo pelo nervosismo, ela se sentia protegida e
amada nos braços do marido.
— Eu também o amo — ela murmurou. — É muito bom que possamos
dizer isso um para o outro sem parecermos dois idiotas escondendo o que
sentimos.
— Não sou um idiota — ele reclamou.
— Agora, não mais.
Edward segurou-a pelo queixo e ela esperou que ele a beijasse, porém, a
porta do quarto se abriu. Aiden entrou e pigarreou, sugerindo estar
incomodado com as manifestações de afeto. Agatha não se importou em estar
sentada sobre as pernas do marido. Apesar do trauma, ele mantinha o vigor
masculino de antes, como ela podia sentir.
— O comissário de polícia está no meu escritório — Aiden disse, sem
preliminares. O duque era direto quando precisava ser. Agatha saltou do colo
de Edward e ajeitou as saias, nervosa.
— Por que o comissário está aqui? O que ele pretende?
— Ouvir Edward. Ouvir-me. Eu disse que ele podia vir, melhor
resolvermos logo isso. Como está se sentindo, Edward?
— Apto. — O conde ergueu-se, levantando-se com pouco equilíbrio. —
Poderia me ajudar com a camisa, meu amor?
Ela podia, mas não estava satisfeita com a presença da polícia na casa. A
situação toda era incomum. Edward matara um homem. Assassinato era
ilegal. Se eles tivessem brigado, apenas, não haveria lei que os punisse, mas
Edward enfiara uma espada no coração do maldito. Colton era rico e tinha um
pai influente.
Suas mãos tremiam enquanto vestia no marido uma camisa branca que
estivera na mão de Aiden. Ela manteve o braço ferido por dentro e fechou os
botões com alguma dificuldade, sentindo o coração bater acelerado.
— Vai ficar tudo bem. — Ele beijou-a na testa, sentindo a ansiedade que
a dominava. — Ninguém condenaria um homem por matar Colton depois do
que ele te fez.
— Mas ninguém sabe o que ele me fez. Sabe?
A expressão de Edward, dura e penosa, fez com que Agatha entendesse a
resposta, mesmo que ele não dissesse uma palavra.
— Parece-me que o irmão dele andou contando algumas coisas sobre
você, minha irmã — Aiden explicou. — E você sabe que isso significa que
toda Londres já sabe de suas desventuras em Nova Iorque.
— Todas? — Ela sentiu a boca seca. O coração falhou uma batida.
— Todas. — Edward frisou a palavra ao repeti-la. — Conversaremos
sobre isso depois, preciso atender ao comissário.
Os dois homens desceram as escadas juntos. Edward recusou ser apoiado
pelo amigo, ele não queria que o achassem vulnerável. Confessar que ama a
esposa era uma coisa, ser ferido pelo homem que acabara de matar era outra.
Ele queria chegar de cabeça erguida e caminhando com as próprias pernas no
escritório do duque. Mesmo que, depois, desabasse no sofá e só levantasse
quando tudo acabasse.
Agatha foi atrás, mas não conseguiu relaxar. Não sabia o que mais temia.
Havia a possibilidade de o marido sofrer um processo por assassinato, bem
como de ele saber sobre bebê. Saber que ela lhe escondera parte da verdade.
Enquanto os homens conversavam, ela se juntou à Elizabeth e os filhos na
biblioteca. Os gêmeos já dormiam e ela em breve mandaria Patrick e Peter
para a cama. Ao menos a arruaça dos meninos ajudava a amenizar a
ansiedade da espera.
O S BIGODES do comissário estavam afiados. Edward percebeu que ele usava
um terno elegante e suspeitou que fosse pela visita à Trowsdale House. Havia
duas coisas que todo mundo em Londres sabia: a primeira era que o Duque
de Shaftesbury era escandalosamente rico, e a segunda era que deveriam
temê-lo.
Aiden cultivou uma fama de quem seria capaz de arruinar qualquer
reputação que cruzasse seu caminho sem muito esforço. Sua ação no
Parlamento era sempre incisiva e ele tinha aliados muito fortes. Se o
comissário quisesse manter seu cargo, não deveria incomodá-lo. Vestir-se de
acordo com a presença de um duque era o mínimo que faria.
— Vossa Graça entende que temos o corpo do filho de um milionário
americano — o comissário explicou. — E que precisamos, ao menos, dar
uma justificativa para a família. A situação é delicada.
— Diga a verdade para a família, Longbooth. — O duque serviu uísque
para todos. — A Condessa de Cornwall foi sequestrada pelo homem e o
marido dela foi resgatá-la. O sequestrador atirou, houve uma luta e o
resultado, todos sabemos.
— Dizer a verdade significa especularem sobre os motivos do sequestro,
milorde.
O duque olhou para Edward. Até então, o conde olhava para o fundo do
copo de uísque e não falava nada. Aquela não era uma decisão que Aiden
poderia tomar sozinho.
— Conversarei com Agatha, mas a verdade não requer tocar em assuntos
sensíveis. Diga à família que os irmãos Bristol vieram a Londres com o
objetivo de levarem minha esposa com eles e que, quando a descobriram
casada, enlouqueceram.
— Essa é apenas a parte que interessa – Aiden concordou. – Não
precisamos entrar nos detalhes que impliquem vergonha para Agatha. Ao
descobrir que ela não seria dele, Gareth Bristol enlouqueceu e o irmão a
sequestrou para a levar à força para os Estados Unidos. É a melhor versão,
basta omitir alguns pontos. O senhor está de acordo, comissário?
O comissário quis discutir, mas ficou em silêncio. A reputação e a honra
de uma mulher casada só diziam respeito ao marido. Por mais incompleta que
fosse a desculpa do conde, aquela parecia a que menos iria ferir a imagem da
condessa. O duque também era um homem que dava voz à sua esposa. As
atitudes daqueles nobres eram incomuns e Longbooth não tinha qualquer
interesse em tentar dissuadi-los. Só esperava que o pai do defunto engolisse o
motivo sem lhe causar maiores problemas.
A conversa masculina se estendeu. O assunto variou um pouco, mas
manteve o foco do assassinato. Discutiram outros casos similares e falaram
sobre a inexistência de leis que protegessem mulheres de situações como
aquelas. Sempre que um homem desonrava uma mulher, era preciso que seu
pai, seu irmão ou seu marido agissem de forma bruta. Não havia lei suficiente
para garantir que os violadores fossem presos. Aquele precisava se tornar um
pleito no Parlamento. Em trocas silenciosas de olhares, Aiden e Edward
acordaram que uniriam esforços para garantir que se estudasse uma forma de
evitar lutas sangrentas pela honra das mulheres.
Quando o comissário finalmente deixou a Trowsdale House já passava
das dez da noite. Elizabeth se recolhera com Patrick e Peter e apenas Agatha
aguardava na biblioteca. Havia uma pilha de livros ao seu lado e ela não
parecia estar concentrada em nenhum deles.
— Vamos para casa. — Edward ofereceu a mão direita para que ela se
levantasse. — Você precisa descansar.
— Está tudo bem?
A voz dela falhou. Ele a segurou pela nuca e puxou a sua boca para um
beijo, um toque com os lábios. Edward queria apenas fazer com que ela
entendesse que sim, estava tudo bem.
— Agora vai ficar.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO

A M C F ADDEN G ARDEN ESTAVA TÃO AGITADA QUANTO A T ROWSDALE H OUSE .


Brett não deixou ninguém relaxar enquanto o conde não voltasse para casa.
Moira estava nervosa e Lavinia só aceitara ir para o quarto com Mary depois
de muitas promessas de que Agatha iria até ela quando chegasse. Quando a
carruagem parou à frente da casa, o mordomo desceu as escadas, apressado,
para receber o patrão e a condessa.
Edward era um bom patrão. Pagava bem e cuidava dos empregados. Eles
eram gratos e ficaram genuinamente preocupados com o sumiço da condessa.
— Sejam bem-vindos. — Brett ajudou o conde a descer da carruagem. —
Vou ordenar que preparem um banho para cada um e que sirvam o jantar.
— Brett, nós…
— Será servido na suíte, milorde. Está tudo bem com a senhora, milady?
— Sim, Brett. Obrigada. Como está Lavinia?
— A menina foi dormir com Mary. Ela é muito educada e não dá trabalho
para ninguém.
A notícia a fez sorrir. Edward aceitou o apoio dela para subir as escadas e
a ajuda para abrir a camisa. Moira preparou um banho quente para Agatha,
mas ela não precisava, nem queria, a presença de mais ninguém na suíte.
Depois de tirar as camadas de vestido, algo que não conseguiria fazer
sozinha, dispensou a camareira.
Na casa de banho, a água fumegante preenchia a banheira de cobre.
Agatha tinha certeza de que, quando mergulhasse ali, relaxaria e espantaria
toda a inquietação do dia. Então decidiu que era melhor que Edward fosse o
primeiro.
Olhou para ele, recostado na cama, e sentiu seu coração apertado. Ainda
havia o que resolver entre eles. Ainda que ele confessasse seu amor, os
segredos que ela deixara de revelar eram desonrosos demais. Com os olhos
fechados, Edward repousava a mão direita sobre a barriga. Mesmo ferido, o
corpo despido dele causava um alvoroço dentro dela.
— Venha. — Agatha se aproximou e o beijou na bochecha. — Você
precisa mais do que eu.
O conde não entendeu de imediato o que ela dizia, mas seguiu-a. Depois
que a esposa levou as mãos até os botões da calça que ele vestia e os abriu,
esperou que ela o estivesse conduzindo ao banho.
— Entre na banheira, vou ajudá-lo a lavar os cabelos.
— Você deve estar exausta. — Edward recostou a cabeça na borda
metálica. — Posso chamar Grey para me auxiliar.
— Você prefere chamar Grey? — A pergunta saiu forçada. Agatha tinha
a voz presa e só saíam ganidos de sua garganta. Estava nervosa.
Edward ergueu o olhar e a encarou.
— Se eu prefiro um homem me tocando ao invés da minha esposa?
Certamente que não.
— Então permita-me.
Enchendo a mão de sabão pastoso, Agatha molhou os cabelos do conde e
os ensaboou. Enquanto acariciava fio por fio, percebia o quanto aquele
dourado a entorpecia. Seria a maldição dos Trowsdale se apaixonar por
cabelos dourados como aqueles? Enquanto se perdia nos próprios devaneios,
Agatha desceu as mãos pelo pescoço, pelo ombro e pelo peito dele. Edward
soltou um gemido baixo e colocou sua mão sobre a dela, impedindo-a de
descer mais.
O curativo o impedia de mergulhar na banheira. O conde rendeu-se aos
carinhos de Agatha e ficou o tempo todo em silêncio, mas ela precisava falar.
Tinha que contar o restante da história e as palavras não foram contidas.
Saíram de sua boca em turbilhões.
— Precisamos conversar — ela murmurou no ouvido dele. — Depois de
tudo que aconteceu, sei que você bateu em Gareth Bristol.
— Não o matei, porque seu irmão não deixou — Edward respondeu. A
voz estava dura e seca.
— Como você o descobriu, Edward? Como sabe que ele falou sobre
mim?
Aquela era a pergunta que conduziria às respostas indesejadas. A uma
conversa que a condessa não queria ter nunca, mas que precisava acontecer.
— Eu estava lá quando ele falou. Agatha, preciso fazer uma pergunta.
Seja sincera comigo. — O conde ajeitou-se na banheira e puxou a esposa
para que ela pudesse ficar de frente para ele. A água começava a esfriar, mas
não era um problema. — Você tem um filho bastardo perdido por aí?
Agatha piscou algumas vezes. Nervosa, agarrou a borda da banheira e
levou algum tempo pensando no que dizer. O maldito Gareth contara tudo,
realmente. Ele era mais idiota do que Agatha imaginava. Como fora tola em
se apaixonar por aquele traste.
— Não.
— Os Bristol parecem bem seguros de que sim.
— A criança morreu no parto — ela confessou. Fechou os olhos para
adquirir coragem de prosseguir. As imagens a inundavam e ela estava prestes
a transbordar. — Eu senti as dores cedo demais, ela nasceu aos seis meses.
Por isso, eu temo ser como minha mãe. Não devo ser capaz de dar à luz a
uma criança saudável, Edward.
Mais uma vez, aquele assunto fez com que ela fosse dominada pela
emoção. Agatha se levantou de repente e saiu da casa de banho, as lágrimas
escorrendo por suas bochechas em uma torrente que não era possível
interromper.
Sentou-se na cama do marido, iluminada pela pouca luz da lareira acesa.
O dia fora exaustivo e ela estava mentalmente esgotada. Repousou a face
sobre as mãos e deixou que as lágrimas rolassem. Não podia impedi-las, nem
queria. Agatha precisava chorar muito pelo luto que não teve. Pelo medo do
futuro.
Os soluços não permitiram que ela ouvisse passos, nem sentisse a
presença do marido. Só quando a mão dele a tocou no ombro que percebeu
Edward sentado ao seu lado.
— Eu sinto muito, Agatha. Deve ter sido muito difícil lidar com isso
sozinha, até agora.
— Por favor, Edward. — Ela virou para ele com olhos avermelhados. —
Não me rejeite por isso. Sei que nunca pretendi te dar filhos e sempre falei
isso claramente, mas eu não imaginava que me apaixonaria. Não tenho mais
nenhuma dignidade nem honra em toda Londres, não sei o que será de mim
se você me abandonar agora.
As palavras continuaram a atropelá-la. O semblante de Edward se tornou
rígido e uma linha unia as duas sobrancelhas.
— Agatha, você está pensando que vou rejeitá-la porque perdeu uma
criança? Céus, você faz um péssimo juízo de mim.
— É que homens…
— Não sou qualquer homem — ele a interrompeu. — Pensei que tivesse
provado isso até agora, mas vejo que me enganei. Eu te amo. Não me importa
o que houve no seu passado, ele está morto e será enterrado. Sou seu futuro,
minha esposa, e não pretendo renunciar a isso.
Ela abriu os olhos arregalados e piscou várias vezes, querendo desanuviar
a visão. Nada em Edward sugeria que ele estava mentindo ou fingindo.
— Gostaria de não precisar passar a vida provando que te amo. Mas, se
precisar, é o que farei. Eu teria te aceitado, inclusive, com a criança, se ela
tivesse sobrevivido. Não duvide do que sinto. É mais forte até do que eu
posso suportar.
As palavras dele saíam sinceras e ela não resistiu. Beijou-o nos lábios de
forma terna, roçando a boca na dele e tentando mostrar, com o gesto, que ela
acreditaria. Que ela acreditava.
— Então talvez seja melhor eu contar o outro segredo — Agatha
provocou.
— Outro? — O conde passou a mão nos cabelos molhados. — Deus, é
mais sombrio do que ser violada e perder um filho? Porque não imagino nada
pior que isso. Você não matou ninguém, matou?
O momento era sério, porém, Agatha quis rir. Ele a fazia rir, sempre a fez.
Edward era a luz quando ela se perdia pelo caminho.
— Não, meu marido. É que eu muito provavelmente, quase certamente,
estou carregando o seu herdeiro no ventre. E estou bastante apavorada com
isso.
Ele acabara de matar um homem. Descobrira que sua esposa sofrera mais
do que o que lhe dissera em Nova Iorque. Contara a ela que a amava, porque
ele amava, até mais do que à própria vida. Não fazia ideia de como reagir
àquela revelação. Ele seria pai. Ela carregava o filho que eles se casaram
jurando que não queriam, mas que passaram a desejar.
— Tem certeza? — Foi o que conseguiu dizer.
— Não. Mas as minhas regras já deveriam ter vindo e eu não costumo
atrasar. E não é como se não estivéssemos bastante empenhados em
atividades que têm como resultado produzir um bebê.
Edward levantou-se. A toalha enrolada em seus quadris quase caiu.
Sentiu uma pontada no ferimento pelo movimento brusco. Olhou para
Agatha, que estava ainda sentada, usando uma combinação de seda e os
cabelos soltos pelos ombros. Poderia ela estar ainda mais linda do que todas
as outras vezes que a olhou?
Ter filhos era algo que ele esperava, mas Edward sempre encarou o
processo como mecânico. Quando se casou com Agatha, certo de que ela não
nutria sentimentos por ele, tinha certeza de que ela lhe daria filhos, só não se
via envolvido demais na criação deles. Depois de tantos irmãos, sendo o mais
velho e de quem se esperava perfeição, Edward não queria mais aquela
responsabilidade, não tão cedo. Então sua esposa dizia que estava grávida.
Com todas as emoções do dia envolvidas, ele ficou à flor da pele.
— Você está sentindo alguma coisa? — perguntou a ela, sentando-se
novamente.
— Cansaço.
— E… — Edward levou a mão espalmada até o ventre de Agatha. Ela
estava quente. — Acha que está tudo bem? Depois de hoje, do que houve…
— Não sei. — Ela colocou a mão por cima da dele. — Eu morria de
medo, mas você me ensinou a ter coragem. Eu não acreditava que fosse
capaz, mas você acreditou em mim e agora sei que farei de tudo para que esse
bebê nasça saudável. Hoje eu entendo minha mãe, os motivos pelos quais ela
insistiu tanto. Eu não sabia que queria esta criança tanto até enfrentar a
possibilidade de que ela seja real.
A expressão dela era de felicidade. Agatha era pura. Não havia nada que
ele fizesse por ela que fosse suficiente para compensar o quanto ela lhe
causava bem. Sem conseguir nem mesmo entender os sentimentos que se
misturavam em seu peito, Edward segurou-a pela nuca e a beijou. Depois de
tudo, beijá-la era o que faria com que ele se sentisse vivo.
— Como se sente quanto a isso? — ela perguntou, encontrando espaço
entre os beijos dele.
— Ah, Agatha. — Edward traçou a linha do queixo dela com a boca. —
Eu também nunca quis tanto filhos quanto agora. Só de imaginar que um
pedaço de mim está dentro de você… isso faz de mim o homem mais sortudo
de toda a Inglaterra.
— Ainda não temos certeza.
Edward não se importou com aquilo. Continuou a beijá-la como se
estivesse buscando o ar que lhe faltava. Agatha apoiou as duas mãos no peito
dele e rompeu o contato quando as bocas ficaram famintas demais.
— Vou me vestir. Você verá se nosso jantar já foi servido. Vamos comer
e vamos dormir.
Ele riu. Ela se levantou e foi até o quarto de banho, deixando-o cheio de
expectativas e ansiedade.
— Sabe que precisa garantir um menino agora, não sabe? — implicou
ele, falando um pouco mais alto para que ela ouvisse. Agatha mostrou metade
do corpo pela porta. Estava nua, já pronta para o banho.
— Por que essa exigência toda, marido?
— Porque já temos Lavinia. Também quero ter um de cada.
O sorriso de Agatha fez com que ele desejasse arrancar aquela tipoia para
poder agarrá-la e fazer amor com ela ali mesmo onde estava. Refreou seus
instintos e fez o que ela mandou. Não se importava mais em ser mandado por
ela. Depois pensaria em como faria para dar uma surra em Aiden. Seu melhor
amigo era uma péssima influência. Por causa dele, Edward era mais um tolo
apaixonado por sua esposa.

O EVENTO que culminou com Edward McFadden matando Colton Bristol em


legítima defesa foi julgado algumas semanas depois. O comissário de polícia
iniciou um inquérito que contou como principal testemunha o Duque de
Shaftesbury. Um criado contratado pelo falecido também foi ouvido. Ambos
confirmaram que o homem tinha a condessa sob a mira de uma pistola e que
estava fora de seu juízo perfeito. Até a notícia chegar às colônias, o inquérito
fora encerrado pela constatação de que o conde agira em defesa da vida da
esposa.
Gareth Bristol não sofreu queixas, nem prestou alguma. Foi enviado de
navio para Nova Iorque a fim de que por lá permanecesse. Edward não
permitiu que ele se aproximasse de Agatha, nem mesmo para pedir perdão.
Ele não teria o direito de se redimir e ela não desejava vê-lo.
Agatha visitou um médico que confirmou a gravidez da qual ela já sabia.
O outro acontecimento daqueles dias foi aceitar que toda Londres soubesse
da verdade sobre ela. A melhor defesa para seu marido era que tudo ficasse às
claras, mesmo que Edward tenha se esforçado para não a comprometer. Não
havia muito o que salvar. Tudo que precisava, estava em sua família. Tinha o
melhor irmão, que se casara com a melhor mulher. Também tinha o melhor
marido, por quem estava cada dia mais apaixonada.
Reforçara os laços com Caroline Eckley. A escola de moças finalmente
saiu do planejamento e começou a ser executada. Tiveram assessoria de
Oglethorpe e contrataram um empreiteiro que prometeu transformar o lugar
naquilo que elas desejavam. Quando as obras ficassem prontas e pudessem
inaugurar a escola, sabiam que contariam com toda ajuda que pudessem para
convencer a sociedade, e a burguesia, de que eram duas damas respeitáveis.
A adoção de Lavinia saiu vinte dias depois que ela se mudou para a
McFadden Garden. Edward deu entrada nos papéis e eles logo foram
deferidos. Quando um conde queria adotar uma criança órfã, o conde em
questão adotava a criança que desejasse. Mesmo que todo dia Agatha
desejasse levar mais uma para casa, ela sabia que era melhor fazer uma coisa
de cada vez. Cuidar para que elas fossem bem tratadas no orfanato e garantir
que seu filho nascesse saudável.
A menina não falou nenhuma palavra. Não emitiu nenhum som, nem
quando abraçou Agatha e chorou ao saber que ela moraria para sempre com
os McFadden. Edward garantiu que arrumaria os melhores especialistas para
cuidar daquela questão, mas Agatha suspeitava que fosse emocional. Um dia,
ela estaria segura o suficiente para se expressar.
Com todo o trabalho que consumia os dias de Agatha, ela acendia uma
vela cada noite e dava graças por não ter sentido as dores do parto. De todos
os medos de sua vida, o único que não desapareceu fora aquele. O medo de
não conseguir dar a Edward filhos. De ser como sua mãe.
Cada mês que passava, ela precisava reduzir as tarefas. Não pôde mais ir
até a escola, nem à casa de filhos de mães trabalhadoras, nem à casa de Aiden
e Elizabeth. Não podia visitar seus sobrinhos, tendo que contar com a
paciência da duquesa para levar as quatro crianças para vê-la. Agatha temia
fazer esforço demais e perder o bebê, ainda que o médico dissesse que estava
tudo bem.
Em uma noite de primavera, Agatha entrou em trabalho de parto. Nove
meses depois de descobrir que carregava um bebê, fruto de um tão
ambicionado casamento por amor.
— Nem Deus em pessoa vai me tirar deste quarto.
Edward rosnou para a parteira que insistia para que ele saísse. Desde que
Agatha indicou que o bebê nasceria e a casa inteira acordou, nada demovia o
conde do lado dela.
— Talvez seja melhor se esperasse lá embaixo, meu amor. — Ela
acariciou a face do marido. — Avisaram Aiden e Elizabeth?
— Mandei que fossem avisar. E eu espero, se, e somente se, você quiser
assim. Prefere que eu saia?
A expressão dele indicava sinceridade. Edward faria o que ela quisesse e
pedisse. Agatha estava calma, porque o parto estava na data prevista. Muita
coisa podia dar errado, mas ela acreditava que o maior problema fora
superado. Gostaria, sim, da presença dele.
— Não é adequado que o pai fique enquanto…
— Pelos céus! — o conde esbravejou. — Se um médico pode mexer na
minha esposa, por que diabo não posso ficar? Não há nada aí que eu não
tenha visto, como acha que esse bebê foi parar dentro dela?
Agatha deu uma risada. A parteira se afastou, assustada. O médico
chegou, entrando com Elizabeth. O quarto ficou muito cheio, mas estava
cheio de pessoas que ela amava e que a ajudariam.
— Edward, não afugente a Sra. Ferguson. Senão, como seu filho virá ao
mundo?
O conde concordou. Levantou-se, pegou água para ela beber. Esperou
paciente na cabeceira enquanto o médico tocava lá e acolá para descobrir a
posição do bebê. Tudo indicava que o parto transcorria dentro da
normalidade. Quando as contrações aumentaram muito e Agatha passou a
sentir mais dor, ele se ajoelhou ao lado da cama. Segurou-a pela mão e
limpou o suor de seu rosto.
— Agatha, olhe para mim. O que você vê?
Ela sorriu.
— Você.
— Vai ficar tudo bem. Eu estou aqui. Você confia em mim?
Agatha não respondeu, apenas assentiu com a cabeça. Elizabeth
interrompeu o momento e relegou Edward para um canto no quarto. Agatha
ficou rodeada de toalhas e com o médico e a parteira esperando que uma
última contração expulsasse a criança de vez.
Tudo não levou muito tempo, mesmo que Edward considerasse que se
passara um ano. Agatha gritou e, em seguida, o choro de um bebê chamou a
atenção da casa inteira.
— Ora, essa tem um pulmão forte.
A Sra. Ferguson pegou o bebê e o enrolou em uma manta. O médico
examinou rapidamente o recém-nascido e o entregou para a mãe. Agatha
abriu os braços para recebê-lo, mesmo exausta das horas em trabalho de
parto.
— É uma menina. — Elizabeth chegou até Edward, que estava
paralisado, recostado na parede. — Por que não desce e dá a notícia a Aiden?
— Posso vê-la, primeiro?
— Claro.
Elizabeth segurou a mão do conde e o conduziu até o lado da cama. O
antes rabugento e determinado Edward se reduzira a um homem impactado
por presenciar o milagre da vida. Quando ele se sentou ao lado de Agatha, ela
transferiu o bebê para os braços dele.
— Já pensou em um nome para ela?
— Não me veio nada na cabeça. — Edward suspirou, olhando para a
filha. — Deus, Agatha, ela é perfeita, não é?
— Sim, ela é. — Agatha sorriu. — Mas não é um menino, então acho que
teremos que continuar tentando aquela coisa de se empenhar ao máximo na
produção de um herdeiro.
A parteira proferiu uma frase qualquer da Bíblia e o médico virou de
costas. Elizabeth abafou uma risada na toalha branca que carregava. Edward
devolveu a menina para os braços da mãe e beijou-a na testa.
— Vai ser muito difícil, mas já que precisamos…
O conde levantou-se e deixou o quarto, indo dar a notícia do nascimento
de sua primeira filha para o melhor amigo e tio da criança. Era, na verdade, a
segunda filha do casal. Afinal, eles tinham Lavinia. Se dependesse de Agatha,
eles teriam tantos aniversários de filhos para comemorar que faltariam meses
no ano.
EPÍLOGO

A NOTÍCIA DO NASCIMENTO DA PRIMEIRA FILHA DO C ONDE DE C ORNWALL


chegou à Caroline Eckley no dia seguinte. Por um momento, a sobrinha do
marquês riu da sorte de Agatha. Ela mal tinha se casado e já estava
procriando. Aquilo não era bem um problema para a aristocracia, já que as
mulheres sempre tinham babás e tutoras para cuidar dos filhos, mas a
gravidez e o confinamento de Agatha fizeram com que elas precisassem adiar
a abertura da escola que construíram.
Era apenas um inconveniente. Caroline sempre soube que dava conta da
empreitada sozinha, mas precisava de Agatha, porque ela era como Moisés.
Abriria caminhos que ela mesma não teria a capacidade de trilhar. Sem um
título e tendo a mesma honra de uma meretriz, poucas famílias confiariam em
Caroline para orientar suas filhas no que fosse.
A escola estava pronta, decorada, mobiliada. Iniciaram as entrevistas das
mulheres que atuariam como tutoras e professoras das jovens que se
matriculariam, mas ainda não estavam funcionando porque esperavam que
Agatha parisse. Agora, esperariam que ela estivesse bem o suficiente para
sair de casa. Assim, poderiam iniciar os trabalhos.
Olhando a mensagem por vários minutos, Caroline sentiu algo estranho
em seu peito. Agatha estava feliz. Edward estava feliz. Aiden estava feliz.
Eles tinham encontrado alegria no casamento, algo que ela imaginava
impossível. Tudo que Caroline sempre quis foi independência, ser dona de
suas decisões, casar significava renunciar àquilo.
Ela não fora criada para o casamento. Mesmo que os homens da família
soubessem que ela precisava, eles não sabiam como prepará-la. Nenhuma
tutora foi capaz de assentar o espírito selvagem de Caroline. Lady Eckley não
nascera para ser domada, nem castrada. Era isso que aconteceria se ela se
casasse. Seus bens iriam para o marido. As decisões de sua vida iriam para
seu marido. Ele seria seu senhor. Ela não aceitaria isso.
No fundo, a vontade de ter alguém ao seu lado era grande. A vontade de
embalar um bebê, fruto de seu amor, era real. Caroline apenas contentou-se
que isso não aconteceria com ela. Para que tivesse as duas coisas, precisaria
submeter-se ao casamento, e isso ela não faria.
— Milady. — A camareira bateu à porta da sala privativa e entrou.
Caroline morava em um apartamento na Grosvenor Square, um espaço
moderno e de boa infraestrutura. Usou praticamente toda a sua renda anual
para investir no lugar e quase precisou pedir ajuda para pagar aos criados,
mas não se arrependeu. O conforto era importante. — Há um homem
querendo falar com a senhora.
Os criados já estavam acostumados ao comportamento de lady Eckley. Se
ela tivesse nascido homem, seria chamada de libertino, um devasso. Como
nasceu mulher, não tinha moral. A sociedade tinha um hábito curioso de
nomear de forma diversa o mesmo comportamento em gêneros diferentes.
— Não estou esperando ninguém. Peça que volte outra hora.
A camareira saiu e Caroline serviu-se de um conhaque. Já ouvira que
damas não tomavam conhaque de outras mulheres, era por aqueles motivos
que preferia a companhia dos cavalheiros. Deles não era esperado decoro,
nem decência, nem virtudes. Até era, mas os que não tinham nada daquilo
continuavam com o respeito da sociedade. Os duques, condes e marqueses
que frequentaram sua cama atestavam o fato.
— Milady, tentei fazê-lo ir embora, mas ele insiste. Disse para avisá-la
que é o lorde McFadden.
Caroline parou com o copo no meio do trajeto para a sua boca. Não era
Edward, ele se identificaria como Conde de Cornwall. Qual dos irmãos
estaria ali para importuná-la?
— Diga a ele que estou indo. Aliás, deixe que eu mesma digo.
A sobrinha do marquês ajeitou as saias e desceu as escadas, apressada. A
curiosidade falava mais alto do que a segurança. Se não era Edward que
estava procurando-a, só podia ser o outro lorde. O segundo filho.
— Isaac. — Ela demonstrou entusiasmo ao ver o jovem lorde de pé na
sala.
O apartamento de Caroline era de tamanho modesto. Pessoas solteiras e
livres como ela preferiam espaços cada vez menores, que podiam administrar
com poucos criados e muito conforto. Gastavam menos e tinham mais
liberdade de ir e vir do que em mansões enormes.
Isaac McFadden usava um traje completo. Calça cinza de linho, camisa
branca, colete de lã e um paletó escuro com botões cuidadosamente fechados.
Segurava um chapéu de feltro na mão e tinha o semblante decidido, porém,
hesitante. O azul de seus olhos era tão poderoso que fez Caroline quase
tropeçar quando ele a encarou.
— Lady Eckley, obrigado por me receber. Se pudermos conversar um
pouco, gostaria de alguns minutos de sua atenção.
Caroline olhou em volta e ele estava sozinho. O relógio em cima do
aparador de mogno marcava onze e quinze da noite.
— Não é muito tarde para me visitar desacompanhado? Creio que sua
honra está em risco, milorde. Sou uma libertina notória. Se ficarem sabendo
que está aqui comigo, sua reputação estará arruinada.
Ele deu uma risada nervosa.
— Creio que não existam libertinas, milady.
— Então acabo de inventar o tipo. O que pensa que sou, afinal?
— Uma dama — Isaac insistiu.
— Certo. Venha ao meu escritório, vamos conversar.
Mulheres não tinham escritórios, aquilo era incomum, mas Caroline em
breve seria uma mulher de negócios e não queria saber das coisas comuns.
Precisava de espaço para sua papelada e gostaria de manter um espaço
daqueles em sua própria residência.
Isaac acompanhou-a até uma sala pequena, ornamentada com estantes;
um sofá de tamanho médio, que acomodava duas pessoas; duas poltronas e
uma mesa marrom que estava entulhada de livros e papéis. A lady serviu
duas doses de uísque e entregou uma ao lorde. Ele fitou o líquido antes de
começar a falar.
— Estava em Kent até ontem, quando retornei ao saber do nascimento da
minha sobrinha.
— Tem passado muito tempo em Kent, milorde. Não vai mais trabalhar
na fábrica?
— Com a aquisição da propriedade em Hampshire, o conde precisou
redividir seus irmãos. Nathaniel está cuidando da madeireira e eu estou por
conta de Greenwood Park. Mas o motivo que me trouxe aqui é… durante
minha estada no litoral, conheci uma dama. Lady Francesca.
— Aristocracia italiana? — Caroline arriscou.
— Sim, o pai dela está com negócios em Londres. Essa nova tendência
dos aristocratas investirem em indústrias, ferrovias e navegação não é
exclusiva dos ingleses, pelo visto.
— Certo, milorde. O senhor veio aqui para me contar que conheceu esta
dama?
— Não. É que fica mais simples entender meus motivos se eu conseguir
explicar toda a história. A verdade é que me interessei por lady Francesca e
pedi autorização ao pai dela para cortejá-la.
— Creio que ele tenha dado sua bênção. O senhor é o segundo filho de
um conde. Irmão do atual Conde de Cornwall e o primeiro na linha de
sucessão do título. Se Edward não for capaz de produzir um herdeiro, irá
herdar o condado. Casar a filha com o senhor é um trampolim para o sucesso
na sociedade londrina.
O lorde sorriu, repuxando os lábios para cima. Caroline examinou-o sem
pudor, correndo os olhos dos cabelos castanho-claros até os sapatos
envernizados. O homem à sua frente era lindo.
— Foi exatamente isso que disse minha mãe. Mas, como sou o segundo
filho, certamente casarei com damas de menor relevância social. As filhas
dos duques e marqueses querem se casar com duques ou príncipes, de
preferência.
— E? — Caroline encorajou-o a prosseguir.
— E que lady Francesca é uma jovem bastante entusiasmada. Estivemos
em um jantar de amigos e ela me pediu que lhe roubasse um beijo.
— Gosto do tipo de lady Francesca. — Caroline riu. — Mas não estou
entendendo exatamente qual o meu papel nessa história, milorde. Poderia ir
logo ao ponto? Não gosto de pensar que estou sendo enrolada.
Isaac apertou o vidro entre os dedos. Bebeu o uísque em um gole só e
apoiou o copo sobre a mesa.
— Lady Eckley, eu amo meu irmão. Ele é minha maior inspiração.
Sempre quis ser como Edward em tudo, menos em uma coisa: odeio que ele
seja um libertino. Tenho repulsa por esse lado dele e estou bastante satisfeito
que Agatha conseguiu endireitá-lo. Antes eu temia que ela não o fizesse feliz,
mas agora vejo que ela não apenas o transborda de felicidade, como também
o mantém na linha.
— Certamente, a condessa tirou seu irmão de circulação. Ele só tem olhos
para a esposa, ainda mais agora que eles têm um bebê. Mas?
— Por causa disso, milady, eu acabei crescendo com certa aversão a… —
O lorde respirou fundo e ergueu o mar azul que estava contido em seu olhar.
— Eu nunca estive com uma mulher.
— Nunca esteve…
— Eu sou virgem, milady.
Caroline cuspiu o uísque que levara à boca. Uma crise de tosse a
acometeu, fazendo com que se sentasse. Sentiu o ardor do álcool que saiu por
suas narinas no acesso explosivo que a informação despejada por Isaac lhe
causou.
— Não existem homens virgens, milorde. Nem os garotos de quinze anos
são virgens.
— Então sou uma rara espécie em extinção.
A expressão de sinceridade absoluta na face do lorde fez com que
Caroline o encarasse com suspeita. Ele parecia dizer a verdade.
— Milorde, o senhor não gosta de mulheres?
— Claro que gosto. — Isaac pareceu ofender-se.
— Veja, não me leve a mal. Não me importo se prefere homens. Não sou
puritana, pelos céus!
— Nunca desejei homens, milady. Eu gosto de mulheres. Eu já tive
desejo por elas. Apenas não consumei nenhum ato.
Caroline Eckley desabou em uma gargalhada sonora e espalhafatosa.
Seus cabelos escuros e soltos sobre os ombros farfalharam com o movimento
de seu corpo. O disparate do absurdo que lhe estava sendo contado era
demais para que ela conseguisse se controlar. Sabia que não estava sendo
educada, mas era impossível de acreditar que Isaac McFadden era virgem.
— Desculpe-me, milorde. É que não consigo crer no que ouço. Ainda
assim, continuo sem entender por que veio me contar isso.
— Agora que há a possibilidade que me case em breve, não quero parecer
ignorante. Algum tempo atrás, sentia que era romântico, que eu aprenderia
sobre os prazeres entre homens e mulheres junto com minha esposa. Hoje,
temo não saber satisfazê-la.
A sinceridade cortante de Isaac silenciou o riso de Caroline. O jovem
lorde estava realmente preocupado com aquele “problema” relacionado à sua
virgindade indesejada.
— Pergunte ao seu irmão. Ele definitivamente sabe como satisfazer uma
mulher na cama.
— Não quero explicações. Quero aprender de verdade.
— E insisto… onde eu entro nisso, milorde?
Isaac fitou-a sem hesitar mais.
— Lady Eckley eu estou aqui porque tomei uma decisão. Eu gostaria que
a senhorita aceitasse me ajudar e tirasse a minha virgindade.
CAPÍTULO PRIMEIRO

Q UANDO L ORDE I SAAC M C F ADDEN DECIDIU SAIR DE K ENT E IR A L ONDRES ,


ele tinha uma única certeza: não queria continuar a ser um virgem. Primeiro,
nenhum homem de vinte e quatro anos era virgem. Ele ainda era jovem, mas
todos os meninos que conhecia já tinham dormido com uma mulher. E,
quando ele dizia todos, ele incluía seus dois irmãos mais novos, Nathaniel e
Emile. Até o adoentado irmão erudito, que vivia enfiado em livros e estudos,
já tinha se deitado com uma garota. Uma prostituta, Isaac sabia, mas, ainda
assim, uma mulher.
Seu irmão mais velho, Edward, o Conde de Cornwall, era um libertino
consagrado. Londres inteira reconhecia as habilidades do conde quando se
tratava de seduzir uma mulher. Edward estava casado e oficialmente fora do
mercado da libertinagem, mas ele já tinha esgotado a quota de dez homens.
Segundo, ele estava cortejando uma dama que já se mostrara um tanto
quanto fogosa. Tinham avisado que as italianas eram como as francesas.
Mulheres que gostavam do prazer. Que seduziam os homens, ao invés de
serem seduzidas por eles. Se ele não demonstrasse competência para Lady
Francesca, ela o rejeitaria. E Isaac McFadden era o segundo na linha de
sucessão do condado de Cornwall. Ele não seria rejeitado por aquele motivo.
As regras, no entanto, eram complicadas. Por que Isaac tinha que ser um
lorde tão difícil? Quem o conhecia superficialmente acreditava que ele era
um nobre divertido, de boa conversa e companheiro de bebedeiras. Mas, se
alguém se arriscasse a conhecê-lo mais profundamente, veria que ele era
apenas um homem cheio de manias. Então, perder a virgindade era algo
muito complexo.
Nada de prostitutas. Nada de mulheres pagas para ir para a cama com
homens que não usavam as próprias esposas para o prazer sexual. E essa
determinação, de não se deitar com uma meretriz, fazia com que sua missão
tivesse grandes chances de falhar.
Nada de virgens, também. Ele não defloraria uma dama apenas por
capricho. Aquilo era função de um marido.
Mas havia uma mulher capaz de ajudá-lo. Uma dama conhecida por sua
liberdade e sem nenhum decoro. Perfeita para o ofício. O que Isaac não
contava era que ela fosse lhe dizer não.
Os segundos em que Lady Caroline Eckley o encarou, estupefata,
duraram dois meses. Ela segurava um copo de uísque nas mãos, tinha os
cabelos escuros e soltos, caindo pelos ombros como cascatas, e usava
vermelho. Caroline estava sempre ornamentada em vermelho. Se o diabo
fosse uma mulher, ele certamente seria como ela.
E então ela irrompeu em mais uma gargalhada humilhante.
— Milorde, o senhor está bêbado?
Lady Caroline aproximou o nariz de Isaac, tentando cheirá-lo. Ela queria
confirmar se havia odor alcóolico em seu hálito, ou em qualquer lugar.
Tirando o uísque que ele acabara de aceitar dela, não havia uma gota de
bebida em seu sangue.
— Nunca estive tão sóbrio e lúcido, milady. — Ele afirmou, ofendido
com a forma como ela o encarava. — Minha proposta é tão ofensiva assim?
— Ofensiva? — Ela engoliu as risadas com mais um gole do uísque. —
Claro que não. Ela é absurda. Primeiro o senhor me diz que é virgem, depois
que quer perder essa virgindade comigo? Mas o senhor está noivo!
— Não estou noivo. — Ele ajeitou o colete. — Pedi permissão para
cortejar Lady Francesca. Pode ser que noivemos, pode ser que não. Só que eu
preciso estar preparado caso o cortejo leve ao casamento.
— Contrate uma prostituta.
— Não desejo meretrizes. Quero uma dama.
— Damas não se deitam com homens que vão propor casamento a outras
mulheres.
— Meu irmão se deitava com várias delas.
— Elas já eram casadas. Tenha uma amante, então.
— Não preciso de uma amante, apenas de uma noite para resolver meu
problema.
Aquela conversa não parecia ter sentido algum. Pelo que Isaac ouvira de
Lady Eckley, ela jamais recusaria dormir com ele. Os homens diziam que ela
era livre demais, desinibida demais. Ele sabia que a lady já dormira com mais
de metade dos lordes londrinos. A não ser que fosse mentira e ela alimentasse
uma lenda a seu respeito. Mas, por que diabos uma dama mentiria sobre algo
que apenas serviria para afundar sua reputação?
— Não posso fazer isso. — Ela finalizou seu drinque. — O senhor é
irmão de Edward e é um garoto.
— Faço vinte e cinco em algumas semanas.
— Tenho vinte e oito. Sou mais velha que o senhor.
— Milady, eu não estou procurando uma esposa. Apenas uma noite de
sexo.
— Pelo visto, o senhor precisa realmente de ajuda nesse quesito. Não é
assim que as coisas funcionam. Não basta chegar para uma mulher e dizer
que quer deitar-se com ela. O senhor precisa seduzi-la.
Isaac tirou o relógio do bolso e confirmou que passava de meia noite.
Olhou para o piso de madeira, perfeitamente encerado, e manteve os olhos
distraídos por intermináveis segundos. Como ele podia ter chegado àquele
ponto? De não saber nada sobre mulheres, sobre a arte de seduzi-las?
— Entendo. A senhorita deseja que eu a seduza?
— Talvez o senhor devesse. — Lady Caroline caminhou ao redor de
Isaac, passando o dedo pelo tecido grosso de seu casaco. — Mas, agora que
já sei suas intenções, não sei se funcionará.
— Há algo que eu possa fazer para mudar sua opinião, milady? — Isaac
não queria parecer desesperado, mas ele estava. Não gostou de ser rejeitado
por uma mulher que, aparentemente, não rejeitava homem algum.
— Provavelmente não. Mas estarei em Londres cuidando dos negócios.
Podemos nos encontrar em um evento ou dois, em um clube ou outro. Talvez,
e digo apenas talvez, a sorte possa mudar a seu favor. Mas, milorde…
recomendo que desista de mim e procure uma das garotas de Riderhood para
satisfazê-lo. Elas certamente estarão bastante ansiosas por recebê-lo em suas
camas por uma quantia modesta de dinheiro.
O lorde sorriu. Ele visitara Caroline Eckley em busca de solução e recebia
dela um desafio. Não era à toa sua fama de diaba. Estava além de suas feições
perfeitas, seu corpo sedutor e suas vestes sempre vermelhas. Ela se
comportava como Lilith em pessoa. Como uma deusa pagã, colocada na
Terra para arrasar com os homens.
Consciente de que aquela discussão não levaria a nenhum outro lugar,
Isaac segurou a mão sem luvas de Lady Caroline e beijou-lhe os dedos.
— Milady.
Com uma reverência desajeitada, ele virou de costas para ela e deixou o
escritório.

D E TODAS AS loucuras que Caroline presenciou em sua curta vida, aquela fora
uma das mais loucas. E ela passara meses em um sanatório, cuidando de uma
suposta doença mental depois de ter atentado contra a vida de Lady Madeline
Westphallen.
A dama sentou-se em sua poltrona de veludo vermelho, com botões
acolchoados, e encarou o fundo do copo de vidro. Ela precisava beber mais.
Acabara de dispensar uma noite de amor ardente com Isaac McFadden. Ele
era o homem mais lindo que ela conhecia. Provavelmente, um dos homens
mais lindos de toda a Inglaterra. Quando ele saiu do escritório, ela gastou
bons segundos admirando-o afastar-se. Um traseiro perfeito, esculpido pelo
próprio diabo para tentar as mortais como ela.
E Caroline dissera não para aquele traseiro e todo o seu conjunto. Encheu
o copo com mais do líquido âmbar e virou um gole. O álcool ardeu em sua
garganta e ela tentou compreender o que acabara de acontecer. O homem era
virgem. Nunca estivera com uma mulher e escolheu a ela para acabar com o
celibato. Porque, Caroline não sabia. Mas os motivos que a levaram a recusar
eram claros.
Ela não era uma prostituta. Ao contrário do que os salões londrinos
contavam, os homens com quem ela se deitara se contavam nos dedos. Ela
precisava usar as mãos e os pés, mas, ainda assim, eles cabiam nos dedos de
apenas um ser humano. Caroline alimentava as fofocas porque sabia que não
adiantava combatê-las.
E, se Isaac quisesse dormir com ela, teria que fazer o mesmo que os
outros homens. Seduzi-la. Provocá-la. Fazer com que ela o desejasse.
Com mais um gole, a sobrinha do marquês terminou sua bebida e decidiu
sair. A noite estava apenas no começo para quem apreciava a companhia dos
dados e das cartas. E, apesar de damas não serem muito bem-vindas no clube
de Riderhood, ela tinha entrada livre a qualquer hora do dia.
— Violet. — Chamou a camareira, que estava de prontidão do lado de
fora. Seus criados eram de confiança, mas adoravam espiar pelas portas
fechadas. — Ajude-me a ajeitar o cabelo, eu vou sair.
— Devo mandar preparar sua carruagem, milady?
Caroline assentiu e subiu até seu quarto. Deixou que Violet ajeitasse as
madeixas, que eram mais lisas do que a da maioria das inglesas, em um
penteado qualquer. A conversa com Isaac a deixou agitada, ela precisava
extravasar seu espírito de alguma forma. Depois de pronta e satisfeita com
sua aparência, a lady pegou a carruagem até o clube do amigo Riderhood.
Seus nobres favoritos não estavam presentes. Eles não passavam mais as
noites em clubes de cavalheiros. Caroline precisava substituir Aiden e
Edward de alguma forma, não podia ficar sonhando com os maridos de suas
amigas. Porque, mesmo que Elizabeth e Agatha resistissem, elas eram suas
amigas. Agatha era sua sócia. Ela precisava de outras distrações. Era cada
vez mais difícil acreditar que recusara o segundo filho dos McFadden.
A presença dela não causava nenhum constrangimento no clube. Os
homens estavam acostumados a Caroline Eckley e ela a eles. Nenhum deles
tentava nada que ela não autorizasse primeiro. E eles não se escandalizavam
mais com seu comportamento não convencional.
— Chegou tarde para me ver esvaziar os bolsos do barão.
Sawbridge bateu no tampo de um banco vazio ao seu lado, indicando que
Caroline deveria sentar-se ali. Ela inspecionou a mesa, antes. Jogavam cartas
o empresário, o Barão de Attwood e um estrangeiro que ela não conhecia.
— Sabe que não gosto de frequentar a mesa de estranhos. — Ela aceitou
o convite. — Como estão as apostas?
— Sawbridge está limpando todas as nossas fichas. — Attwood
reclamou.
O empresário moveu os ombros para cima e para baixo, indicando que
não podia ser responsabilizado por sua sorte.
— Considerando que minha cama estará vazia essa noite, estou fazendo
jus ao ditado. Feliz no jogo…
— Não seja ridículo, Grant. A sua cama nunca está vazia. O seu coração,
talvez. Mas eu suspeito que você não tenha um coração. — Caroline jogou
algumas fichas indicando que cobria a aposta, fosse qual fosse. — Apresente-
me seu amigo. Ele fala inglês?
— Claro que fala, ou não estaria jogando conosco. Lorde Ignazio é
italiano, ele e o pai estão fazendo negócios em Londres. Acabou a era da
nobreza indolente, minha querida.
O lorde italiano pegou a mão de Caroline para cumprimentá-la. Espantou-
se ao vê-la sem luvas. Mal sabia que aquela era a menos convencional das
damas a quem ele seria apresentado.
— Piacere, milady.
Ela sorriu. Italianos eram muito sensuais. Não era sem motivo que Lorde
Isaac tinha se interessado por uma dama italiana. Aquilo era uma
coincidência intrigante.
— Vamos acabar com essa coisa melosa e continuar nosso jogo. O crupiê
já está com teias de aranha.
As cartas foram dadas e a jogatina prosseguiu. Depois de várias rodadas,
a sorte de Sawbridge já tinha virado e quem enchia as mãos com as fichas era
Lady Eckley. O barão desistiu algumas rodadas depois e o italiano
abandonou a última mão blasfemando palavras que ninguém no salão
entendeu. Quando o jogo parecia encerrado com apenas dois jogadores e
Sawbridge decidido a não perder mais, outro par de mãos surgiu para
participar.
Isaac McFadden.
Ele estava com as mesmas roupas que estivera na casa dela. Os cabelos
perfeitamente penteados e os olhos brilhando como se absorvessem a luz de
todas as lamparinas do salão. Caroline se incomodou com a presença dele. E
se incomodou por se incomodar.
— Ora vejam, se não é o menino McFadden. — Sawbridge bateu nas
costas do lorde.
— Menino. — Ele riu, erguendo a boca sutilmente. — Diga isso quando
assinar uma promissória para engordar minha conta bancária.
— Se não for atrevido, não é um dos garotos McFadden. Mas informo
que sua adversária, hoje, é Caroline. Ela está possuída pelo diabo.
A lady estreitou os olhos para o amigo empresário e depois encarou Isaac.
Ele olhava diretamente para ela, sem qualquer pudor ou constrangimento.
Aquele homem sempre fora assim? Desinibido e descarado? E lindo? E ela
nunca percebeu?
— Imagino que esteja.
Isaac pagou a aposta e o jogo continuou. Mão após mão, carta após carta,
fichas após fichas, eles protagonizaram uma disputa interessante. Sawbridge
cansou de perder e passou apenas a observar. Por volta das quatro horas da
manhã, Lady Eckley desistiu. Ela raramente desistia, mas o lorde estava
implacável.
— Acho que bebi uísque barato demais. — Ela pegou suas fichas e
colocou dentro de uma sacola de veludo vermelho. — Thomas precisa servir
uma bebida mais qualificada nesse estabelecimento.
— Meu uísque é o melhor de Londres, milady. — O próprio Riderhood
surgiu atrás dela. — Não difame meu malte porque a sorte a abandonou.
— Quando retornar, quero que abra aquele conhaque que fica guardando
para os figurões da indústria. A nobreza perdeu prestígio no seu clube, mas
eu não sou qualquer lady.
Riderhood fez uma reverência e Caroline deixou a mesa despedindo-se
dos homens. Ela não bebeu demais. Nem o uísque era de baixa qualidade. A
sorte talvez a tivesse abandonado. Porém Lady Eckley suspeitava que o
problema fosse um certo par de olhos azuis que a distraiu.
Lorde Isaac nunca a distraía. Ela não o notava muito, na verdade. Quando
notava, achava-o irritante. Ele era muito correto, cheio de valores e
princípios. Ela não suportava homens como ele. Mas a presença dele ali,
depois de ter ido até ela com uma proposta absurda, não era acidental. Ela já
estava quase de volta a sua carruagem quando girou no próprio eixo e voltou
para dentro do clube. O cocheiro ficou confuso, porém todos se acostumavam
com a impetuosidade de Caroline.
Ela caminhou até onde estava Lorde Isaac, sentado no bar. Não, ela
marchou, como um soldado. Segurou-o pelo braço e o arrastou até um lugar
com mais privacidade. Caroline conhecia bem os locais privados daquele
clube. E ela nem estava se importando em chamar a atenção.
— O que o senhor está fazendo aqui?
Os olhos escuros e ferinos enfrentaram o mar azul que parecia confuso ao
encará-la na pouca luz do corredor onde estavam.
— Jogando e bebendo. Sou sócio do clube e o frequento desde os dezoito
anos, milady.
— Veja bem, Isaac, eu sei que falei que poderíamos nos esbarrar por aí,
mas…
— A senhorita disse que eu deveria seduzi-la, milady. — Ele sorriu. —
Pois bem. Passarei semanas em Londres e voltarei a Kent apenas no final da
temporada social. Durante esse tempo, esforçar-me-ei para fazer com que
aceite minha proposta.
— O senhor está obcecado! — Ela esbravejou. As mãos viraram punhos e
a voz de Caroline saiu esganiçada demais. — Encontre uma prostituta e
satisfaça seus desejos, milorde.
— Nunca fui rejeitado por uma mulher, milady. Foi minha primeira
tentativa e foi desastrosa. — O olhar dele ficou sério e intenso. Era como se
os olhos de Isaac derramassem um líquido quente sobre ela, fazendo com que
tudo fervesse. — Não gostei da sensação da rejeição. Posso aprender muito
com a senhorita. Considere isso como uma boa ação. Afinal, a senhorita não
se tornará tutora em uma escola?
Ela ia. Não seria tutora exatamente. Caroline era a dona da escola,
juntamente com Lady Agatha Trowsdale. As coisas saíram mais devagar
porque Agatha era casada, e precisava que o marido fizesse tudo por ela. E
porque ela engravidou e teve uma bebê. Isso atrasou o cronograma, mas a
escola seria inovadora. Caroline em si não tinha nenhuma moral para atrair
moças para seu empreendimento, porém Agatha certamente facilitaria as
coisas. Muita gente acharia interessante colocar a filha para estudar na escola
de uma condessa.
— Escola de jovens damas! — Caroline virou de costas para Isaac.
Qualquer posição era melhor do que continuar encarando aquele olhar. — O
senhor não é uma jovem dama, pelo que me consta.
— Não, eu não sou. — Ele riu novamente e ela o sentiu, mesmo de
costas. — Creio que precisarei mostrar isso à senhorita.
Isaac segurou Caroline pelo braço e fez com que ela se virasse.
Subitamente, prendeu-a pela cintura e deitou sua boca sobre a dela.
A lady sobressaltou-se e colocou as duas mãos no peito dele. Assustou-se
ao tocar uma superfície sólida, dura e quente. Músculos definidos e muito
firmes estavam sob aquele monte de tecido que cobria o corpo de Isaac
McFadden. Caroline desistiu de resistir quando percebeu que ele a beijava
com uma inexperiência encantadora.
A boca dele estava fechada sobre a dela. Isaac parecia nunca ter beijado
uma mulher. Aquilo era ridículo. De repente, ela precisou mostrar a ele o que
era um beijo. Com algum talento e muita experiência, ela acariciou os lábios
dele com a língua. E fez com que ele os abrisse em um susto. As mãos dele
deslizaram pelas costas dela, posicionaram-se na nuca de Caroline e a
seguraram com força e suavidade. Ao mesmo tempo.
Ela não esperava que um virgem tivesse uma boca tão macia. Nem uma
língua tão sedosa. Quando Isaac aceitou as investidas dela e retribuiu o beijo,
desajeitado, Caroline deixou que ele a invadisse com aquele sabor masculino
de uísque e tabaco. E ela o envolveu com os dois braços e colou seu corpo no
dele.
Aquilo era totalmente inusitado. E durou bem menos do que ela desejava.
— Tenha uma boa noite, milady.
Ele se afastou. Repentinamente, Caroline estava sozinha. Desorientada,
extasiada, arrebatada. E sozinha. Aquele lorde tinha o péssimo hábito de sair
dos lugares encerrando a conversa sem que ela estivesse encerrada. Lady
Eckley se acostumara a ter a última palavra. E, pelo visto, Lorde Isaac
McFadden também. Aquelas seriam semanas longas, das quais ela não
poderia fugir. Tinha que cuidar dos preparativos para a inauguração da escola
de moças e não poderia se retirar para o litoral antes do final da temporada.
Caroline nunca enfrentara uma situação como aquela. Precisava de
orientação. Ela tinha que ver Anthony.

E LE SAIU da casa de jogos de Riderhood sem entender muito do que acabara


de acontecer. As pernas estavam firmes, mas sentia os músculos tremerem
como se estivesse acometido de uma febre intensa. Claro que Isaac não
permitiu que percebessem. Não queria deixar que a vulnerabilidade que o
envergonhava ficasse evidente. Ele era um McFadden. Tinha uma reputação
devassa pela qual zelar, mesmo que não fosse a dele.
Mas o beijo que deu em Caroline Eckley o deixou desorientado. Não
pensou em beijá-la quando foi provocá-la na casa de jogos. Queria apenas
fazer-se presente de alguma forma. Ela sugeriu que a proposta dele não fora
feita da forma correta. Que um homem deveria seduzir uma mulher. E que ele
era como uma jovem dama histérica que ela receberia na escola.
Então, ele precisou mostrar que não era uma garota. Que não agiria como
uma… mulher. Que ser virgem não o fazia menos homem do que aqueles
com quem ela se deitava. Só que, provavelmente, estava errado. Assim que
deitou a boca sobre a dela, percebeu que não sabia o que fazer. Ao menos,
descobriu que o que sabia não era nada comparado ao que ela poderia ensiná-
lo.
Meu Deus, ela fez com que ele abrisse os lábios. E ela usou a língua para
beijá-lo. O tolo Isaac não sabia que beijos poderiam ser daquele jeito. E ficou
completamente arrebatado pelo episódio, a ponto de acordar mais de uma vez
durante a noite porque sonhara com aquele corpo pequeno de Caroline contra
o dele.
Quando ficou inconveniente demais continuar na cama, Isaac levantou-se
e chamou seu valete para preparar um banho para si. A McFadden Garden,
residência da família McFadden em Londres, era muito moderna e luxuosa.
Possuía encanamento de qualidade e casas de banhos em todos os quartos da
família. Para os hóspedes da ala oeste da mansão, havia um banheiro
privativo muito bem equipado.
Depois que o irmão mais velho, o Conde de Cornwall, se casou, Isaac
entendeu que deveria mudar-se dali. Quanto estivesse em Londres, deveria ter
um lugar só para si. Comprou um apartamento ideal para homens solteiros e
mandou reformá-lo por completo. Mas a obra ainda não estava pronta, então
ele continuava abusando da hospitalidade do irmão e de sua condessa.
Mesmo que eles estivessem com uma bebê recém-nascida.
— Bom dia, milorde. — Brett, o mordomo, o interceptou quando descia a
escada. — O conde o aguarda na biblioteca. Ele está lendo para Lavínia, mas
precisa falar com o senhor. Enviarei o desjejum para o escritório.
— Certo, Brett. Peça à cozinheira para colocar alguns bolos e biscoitos.
O mordomo assentiu e se afastou. Se Edward estava esperando desde
cedo para falar com Isaac, provavelmente era assunto importante. O conde
geralmente estava na fábrica naquele horário, mesmo que sua esposa ainda
estivesse em resguardo do nascimento da pequena Eloise.
Isaac seguiu para a biblioteca. Encontrou o irmão sentado em um sofá,
com uma menina loira em seu colo. Lavínia, a filha adotiva do conde, usava
um vestido cor-de-rosa que destacava a cor de seus cabelos. Eles pareciam
pai e filha de verdade. Claro que eram. Edward não apenas levou a menina
para morar com eles, ele assumiu definitivamente a paternidade da garotinha.
Naquela cena, ele lia alguma história infantil para Lavínia. Ela estava
vidrada nele, os olhos brilhando pelo som da voz grave e suave do pai. Isaac
considerou que era uma pena interromper aquele momento, mas não
conseguiu desistir. O irmão o viu e pediu que ele esperasse. Com apenas um
olhar, Edward era capaz de comunicar suas ordens e decisões.
— Pronto. — Edward colocou a menina no chão. — Chega de princesas e
castelos por hoje. Vou deixar você com Mary porque preciso conversar com
o tio Isaac.
Lavínia sorriu para o lorde e se sentou no tapete em meio a bonecas e
outros brinquedos. Edward chamou a babá e saiu, acompanhando Isaac até o
escritório.
— Três dias em Londres e já retomou o hábito de passar madrugadas em
claro. — O conde repreendeu o irmão.
— Nunca tive esse hábito, Ed. Sempre preferi usar a noite para dormir.
Mas precisei ir ao Riderhood ontem.
— Claro que precisou.
Os dois foram brevemente interrompidos pelos criados com o desjejum.
Bandejas com bolos, torradas, ovos, presunto e alguns biscoitos foram
colocadas sobre uma mesa de nogueira, assim como um bule com chá.
Depois que todos saíram, Isaac sentou-se próximo à comida para aplacar a
fome que subitamente passara a perceber que sentia.
— O que deseja falar comigo, Ed? Você sempre vai direto ao ponto,
portanto, se começou questionando minha virtude, é porque o assunto não
deve ser muito agradável.
Edward não demonstrou interesse na comida servida e pegou um copo de
uísque para si. Depois de um gole, fitou o irmão mais novo com uma
expressão de quem daria notícias ruins.
— Tivemos um problema em Cornwall. Nate precisou ir para lá resolvê-
lo.
— Algo grave? — Isaac se ajeitou na cadeira.
— Sim e não. Algo com os arrendatários que estão resistentes às
modernizações na propriedade. Algumas pessoas ainda resistem à tecnologia
e parece que nossos arrendatários não se deram conta de que estamos à beira
de um novo século. Mas Nate é um bom negociador, confio que ele saberá
conduzir a questão.
— Claro que ele conseguirá. Mas você está me contando isso dessa forma
porque…
— Porque preciso que você volte para Kent. — O conde bebeu o restante
do líquido âmbar. — Lamento, Isaac. Sei que acabou de vir de lá e que sua
futura noiva está aqui, com a família. Mas tenho que ter alguém para
gerenciar Greenwood Park e ninguém é tão conhecedor daquela propriedade
quanto você.
Mordendo um bolinho, Isaac manteve a boca ocupada enquanto refletia o
pedido do irmão. Edward raramente pedia alguma coisa, ele geralmente
ordenava com educação. E, como conde, as responsabilidades que recaíam
sobre ele eram imensas. Mas Edward era um ótimo irmão e pedia muito
pouco de todos.
Isaac não negaria aquele pedido do irmão conde. Ele administrava
Greenwood Park desde que descobriu seu talento para cuidar da propriedade
e adorava o lugar. Recebia um salário justo de Edward e, no final, achava
Londres bem cansativa. Eram muitos eventos e festividades durante as
madrugadas e Isaac costumava fazer diferente dos outros nobres – ele dormia
à noite.
— Pegarei o trem hoje ainda. — Isaac concluiu em voz alta.
— Obrigado. — Edward colocou a mão sobre o ombro do irmão, que
finalizava uma xícara de chá. — Eu poderia ir, mas a fábrica me prende aqui
ainda e…
— Você não deve submeter Agatha e a bebê a uma viagem, mesmo de
trem. Ainda é muito cedo. Pode deixar, Ed, eu adoro estar em Kent, mais
ainda na companhia de Wilhelmina e mamãe.
A conversa se encerrou e Isaac deixou para suspirar depois que o conde
deixou o escritório. Aquele retorno súbito para Greenwood Park atrapalharia
seus planos de cortejar Lady Francesca e seduzir Caroline Eckley.
CAPÍTULO SEGUNDO

A ESTAÇÃO DE L ONDON B RIDGE ERA UMA DAS PREFERIDAS DE I SAAC . E LE


adorava viajar de trem e não entendia por que o irmão insistia em fazer
pequenos trajetos de carruagem. Elas estavam tão obsoletas, já sendo
substituídas pela Europa por aquela invenção curiosa e muito intrigante, o
automóvel. E os trens, ah, eles eram tão confortáveis! Tudo para Isaac
poderia, e deveria, ser percorrido pelas linhas férreas.
London Bridge foi construída em dezembro de 1836, operada pela
empresa London and Greenwich Railway. Contava com quatro linhas, tinha
18 metros de altura e 120 metros de comprimento. Foi reconstruída em 1849
e depois novamente em 1864, para aumentar a capacidade e oferecer mais
serviços. Os trens dominavam Londres naquele final de Século XIX, e toda
distância, antes inconveniente, fora abreviada pelas ferrovias.
Tão logo conseguiu ver a cunhada e segurar sua sobrinha no colo por
alguns minutos, o lorde pegou um cabriolé para a estação, desejando chegar a
Dover o mais rápido possível.
Não haveria muito a fazer em Greenwood Park. Com a temporada social
ainda em alta em Londres, ele enfrentaria tédio e longas horas sem nenhuma
atividade desafiadora. Para se manter em forma, Isaac teria que apelar para o
envolvimento com os arrendatários e moradores da vila, novamente.
Consertar telhados, arrumar cercas, carregar fardos de feno e sacos de grãos
não eram mais mistério para o lorde.
— Milorde, temos um inconveniente. — Seu criado privado o interpelou,
enquanto esperava na plataforma. — Fui informado que não há mais cabines
de primeira classe disponíveis para o primeiro trajeto, até Aylesford.
— Como assim não há cabines disponíveis? Estamos na temporada, não
há tanta gente viajando para Kent.
— É sexta-feira, milorde. — Dewitt, o criado, explicou. — Como faz um
calor anormal em Londres, muitas famílias estão buscando refúgio no litoral.
O novo hotel do Sr. Oglethorpe tem atraído muitos burgueses.
O lorde pressionou a cabeça com as duas mãos. Massageou as têmporas,
tentando fazer com que uma solução aparecesse. Poderia voltar para casa e
embarcar no sábado. Mesmo que tivesse que recolocar toda a bagagem em
um cabriolé de aluguel, sem que nada lhe compensasse o tempo perdido, não
havia possibilidade de embarcar naquele dia. Isaac poderia soar arrogante,
mas ele não viajaria na segunda classe.
Ergueu o olhar para dar ordens a Dewitt quando vislumbrou uma figura
feminina singular. Caminhando como se toda a estação pertencesse a ela,
Caroline Eckley chegou à London Bridge com uma acompanhante e dois
criados carregando sua bagagem.
Ela também o viu, e isso pareceu abalá-la. Piscou duas vezes, os longos
cílios pretos vistos à distância. Caroline deu algumas ordens aos criados e
flutuou na direção de Isaac.
— Milorde. — A dama sorriu sutilmente e fez uma mesura com o corpo.
— Também vai viajar?
Isaac segurou a mão de Caroline e beijou os dedos enluvados. Sentiu o
calor da pele dela mesmo por baixo da cobertura de seda. Ele nunca se
importou com a proximidade de mulheres, sempre foi bastante habilidoso em
flertar com elas. Mas a pretensão de uma intimidade escandalosa com Lady
Eckley fazia com que suas entranhas reagissem àquele toque.
— Eu ia, milady. Porém não há lugar no trem. Terei que voltar amanhã.
— Já está voltando para Kent? Tão cedo? Espero que…
— O conde precisa de minha presença lá. — Ele a interrompeu antes que
ela mencionasse o episódio da negativa. Ou do beijo.
— Ora, e Edward não te emprestou seu vagão privado?
— O vagão da família está passando por uma reforma e adaptação para
acomodar melhor a filha recém-nascida do conde.
— Ah, compreendo. Bem. Eu estou indo para Dover. Se quiser, há espaço
no meu vagão.
— A senhorita possui um vagão privativo, milady?
Era estranho que uma dama, que vivia da mesada do falecido tio, tivesse
tanto luxo. Ou nada era estranho quando se tratava de Caroline.
— É da família Eckley. Anthony me deixa usar quando quero e ele está
em Kent. Não seja orgulhoso, milorde. Nosso vagão é muito bem equipado e
possui espaço suficiente para o senhor e sua bagagem.
A perspectiva de passar algumas horas trancado em uma estrutura de
metal, ao lado da mulher a quem ele fizera uma desastrosa proposta, era
incômoda. Ao mesmo tempo, se Isaac queria oportunidade para seduzir
Caroline, aquela era uma das melhores. Ela tinha uma acompanhante porque
mulheres solteiras nunca transitavam sozinhas, mas isso não parecia um
empecilho. A considerar pelo fato de que a acompanhante sequer se moveu
quando a lady caminhou na direção de um homem sozinho, ela dificilmente
estaria prestando atenção em Caroline durante a viagem.
Isaac precisava parar de pensar naquilo. Mas era como se uma decisão
muito importante tivesse sido tomada e ele precisasse fazê-la se concretizar.
Depois de semanas planejando abordar a lady sobre o assunto de sua
virgindade, sair do apartamento dela ainda sem ter se deitado com uma
mulher o deixou frustrado.
— Aceito seu convite, milady. Insisto em compensá-la financeiramente
por esse inconveniente. Diga-me como posso fazer isso.
Ela exibiu um sorriso tímido.
— Tenho dinheiro demais, milorde. Depois conversamos sobre uma
compensação não financeira.
O lorde sentiu a boca seca e um desconforto físico. O calor que emanava
de Caroline era desconcertante. Ela tinha um cheiro exótico, um aroma que
não era de perfume nem nada que ele conhecesse. Aquele cheiro o excitou
sem que ela precisasse se esforçar. A viagem seria uma provação. Mas,
talvez, atacá-la dentro do vagão não fosse uma ideia ruim. Era o que ele
desejava desde o início e ainda podia ser excitante e perigoso.
Com ordens aos criados para que conduzissem a bagagem para o vagão
privativo da família Eckley, Isaac seguiu Caroline até a entrada. Ajudou-a a
subir a escada portátil e se surpreendeu com o luxo e a beleza daquele espaço
de confinamento. A decoração era feita em madeira clara e veludo. Havia
cortinas nas janelas de vidro, assentos acolchoados, almofadas e espaços de
convivência.
Assim que entrou e se sentou, Caroline começou a desabotoar suas luvas.
Deus o ajudasse, mas ela parecia pronta para devorá-lo durante a viagem. E
ele dificilmente recusaria ser devorado, já que a proposta fora exatamente
aquela.
S ENTADA DE FRENTE PARA ELE , Caroline achou que Isaac parecia
desconfortável. Para um homem que ousava propor sexo a uma mulher livre,
e que a beijava em locais públicos mesmo não sabendo beijar, ela achou
graça que ele estivesse constrangido, de qualquer forma, por vê-la despir as
luvas e as sapatilhas de viagem.
— Por que vai para o litoral durante a temporada, milady? — Ele
perguntou, mantendo o olhar desviado para a janela. O trem já estava em
movimento. — Pensei que trataria dos preparativos para inaugurar a escola.
— Farei isso, mas preciso visitar meu primo.
— Algum problema com ele? — Isaac voltou-se para ela, o semblante
então preocupado.
— Por Deus, não. Anthony é saudável como um cavalo puro sangue. Eu
vou até ele conversar. O marquês é meu mentor, ele sempre soube me dar os
mais valiosos conselhos.
Caroline chamou um criado e pediu que ele servisse um chá com
biscoitos. Eram cinco horas da tarde e ela tinha rigor quanto ao horário do
chá.
— Imagino que esteja precisando de orientação, mesmo. Entrar no mundo
dos negócios, para uma mulher, deve ser muito difícil e desafiador.
Ela riu. Isaac franziu a testa, suas sobrancelhas se unindo para formar
uma linha única. O homem mantinha uma barba fechada, grossa e muito bem
aparada, que vinha se tornando moda cada vez mais entre os cavalheiros
londrinos. Moda importada das antigas colônias, era verdade. Ele era muito
bonito. Aquilo dificultava demais sua decisão de manter a recusa à proposta
de tirar-lhe a virgindade.
— Milorde, eu já estou no ramo de negócios faz tempo. Tenho ações da
companhia de Sawbridge. Investi com Oglethorpe no novo hotel construído
no litoral. Eu gerencio minhas finanças desde os vinte anos. Não pense que as
mulheres não são capazes. Nossa inteligência é a mesma dos homens, a
diferença é que vocês insistem que só precisamos aprender frivolidades
domésticas.
O criado serviu o chá. Isaac olhava diretamente para ela, como se
Caroline fosse uma criatura exótica e completamente louca. Já estava
acostumada àquilo. Tirando o momento em que realmente pareceu louca,
quando ameaçou a vida de Lady Madeline Westphallen com uma pistola, ela
sempre foi uma mente sã incompreendida pela sociedade.
Homens tinham direitos e responsabilidades públicas. Homens eram
livres e podiam fazer escolhas. Mulheres eram… esposas. Mesmo que ela
não fizesse, antes, objeção em se casar, ela não aceitaria nada menos que um
homem que a tratasse como igual.
— Não quis dizer que não era capaz, milady. Desculpe-me o uso
inadequado das palavras. Mas o mundo dos negócios é sempre desafiador, até
para homens.
— Nisso concordo. Mas não é ele que me preocupa nesse momento. —
Caroline bebericou o chá.
— O que seria?
— O senhor, milorde.
Isaac tossiu. Pareceu engasgar-se com alguma coisa e levou a mão até a
boca para cobrir o ataque de tosse que fez aquele corpo sólido e masculino
sacudir.
— Por que eu sou uma preocupação?
— Não lhe parece óbvio? — Ela riu. — O senhor aparece na minha casa
de madrugada, com um pedido absurdo. Eu nego, o senhor não aceita. O
senhor me beijou, milorde. E o senhor nem mesmo sabe beijar. Não estou
acostumada a homens inexperientes e insistentes, então decidi afastar-me um
pouco e me orientar com meu primo. E cá estamos nós. O senhor também vai
para Kent, nossas propriedades são contíguas e, se eu quiser agir
corretamente, precisarei de uma grande dose de força de vontade. Coisa que
sempre tive muita, mas nunca para recusar um homem como o senhor.
A forma como os olhos azuis dele a encaravam era fascinante. Isaac
sempre lhe pareceu um homem forte, viril e controlado. Como seu irmão,
mas ainda mais bonito. Só que, naquele momento, ele estava como um jovem
vulnerável. Foi quando Caroline se deu conta de que ele era jovem e de que
estava vulnerável.
— Por que me recusa, então? Já que causa à senhorita tanto sofrimento?
— Porque é a coisa certa a se fazer. — Ela sorriu. — Veja, o senhor está
noivo. Sua proposta foi indecorosa. Essa é uma valiosa lição. Não é assim
que se aborda uma mulher.
— Não estou noivo. E compreendi que agi equivocadamente. Pretendo
corrigir isso.
— Que seja, está envolvido com uma jovem dama de alguma forma.
Entendo que queira experiência para quando se casar, mas isso não vai
acontecer com você perdendo a virgindade, apenas. O senhor precisa
trabalhar a arte de seduzir. Isso não se adquire com uma noite na cama,
mesmo que seja comigo, milorde.
O desconforto do lorde se intensificou. Ele dobrou o corpo para frente e
apoiou-se na mesa de madeira envernizada que estava entre eles. Em um
impulso, segurou entre as suas a mão esquerda de Caroline, que descansava
sobre a mesa. Ela quis retirá-la, mas o calor da pele lisa que a envolveu fez
com que mudasse de ideia.
— Então me ensine tudo, milady. Deixe-me ser seu aluno. Garanto que
sou bastante empenhado.
Oh, céus, ele não podia dizer aquilo enquanto a segurava de modo tão
íntimo e a fitava com olhos tão transparentes. Caroline surpreendeu-se por
sentir calor, misturado com uma agonia que lhe atingia o ventre, apenas por
ser tocada nas mãos. Ela já se perdera no corpo de tantos homens. Já estivera
na cama com eles por tantas vezes. Aquele breve contato não podia causar
nela tanto alvoroço.
— Lorde Isaac, entende o que está me pedindo? O grau de envolvimento
que isso representa?
— Entendo. Eu creio que entendo.
Ele soltou-a e se ajeitou no assento. Caroline pediu que o criado retirasse
o chá e disse que precisava de privacidade. Aquilo foi suficiente para que ele,
e a acompanhante que os observava à distância, deixassem a cabine principal
do vagão. A porta de metal e madeira fechou-se e isolou ela e Isaac do
restante dos passageiros de seu vagão privado.
— Assim é melhor, então. Veja, até que eu converse com Anthony,
porque eu preciso conversar com alguém sobre isso, vou te dar apenas uma
lição. Servirá como amostra do problema que o senhor pretende criar. Vou
ensiná-lo a beijar.
— Eu sei beijar. — Ele comprimiu os lábios em uma demonstração de
indignação. — Eu já beijei algumas mulheres.
— Encostar a boca na minha não é beijar, milorde.
Ante a expressão de confusão dele, o silêncio foi essencial. Isaac logo se
recordou do breve momento que tiveram na casa de jogos de Riderhood e de
como ela penetrou sua boca com a língua. Do contato inebriante. As
sobrancelhas dele se ergueram e os olhos azuis continuaram encarando a
lady, que recolhia a mesa retrátil. Logo, não havia nenhuma barreira que a
impedisse de se aproximar perigosamente daquele homem que mais parecia
um arcanjo perdido na Terra.
Daquela vez, a iniciativa foi dela. Caroline se sentou ao lado de Isaac no
assento, ajeitou as saias, segurou-o pela nuca e levou sua boca até a dele.

E RA APENAS UMA LIÇÃO. Caroline estava decidida a mostrar a Lorde Isaac que
o pedido dele representava mais do que uma noite de prazer. Ela nunca
conseguiu se envolver sexualmente com um homem sem que isso também
representasse um envolvimento emocional. Não que ela fosse uma romântica.
Não havia nenhum romance na vida de Caroline Eckley. Mas ela acabava
desejando mais contato, mais intimidade com os homens com quem realizava
seus intercursos sexuais.
Não havia motivos para acreditar que seria diferente com Lorde Isaac. O
problema era que nenhum dos dois tinha interesse em mais envolvimento do
que o sexo. Ele tinha um objetivo, ela tinha mais de um - e nenhum deles
envolvia um marido ou um amante. Em um futuro próximo, Caroline seria
uma empreendedora, não uma esposa. Ao decidir seguir com um projeto
novo, ela precisava se afastar dos desejos de matrimônio.
Por isso, ela iria beijá-lo. Mostrar como poderia ser um encontro de bocas
digno de uma libertina. Quando os lábios se tocaram, ela o ouviu suspirar e
retesar, fazendo com que segurasse sua lapela para mantê-los conectados.
Caroline subiu as mãos pelos ombros do lorde e o enlaçou pelo pescoço.
Isaac quis mostrar algum protagonismo. Posicionou as mãos na cintura
dela e a puxou para mais perto. Não precisou de muito para que ele
compreendesse como estabelecer um ritmo adequado. Caroline indicou que
ele deveria abrir os lábios e ele demonstrou mais compreensão do momento
do que na primeira vez. Assim que as línguas se encontraram, ele ficou mais
ávido e dobrou o corpo sobre ela.
Com as duas mãos espalmadas no peito dele, Caroline pretendeu
interromper o contato. Mas os dedos delicados delinearam as ondulações dos
músculos sob as três camadas de tecido e ela afrouxou suas defesas. Permitiu
que ele a deitasse no banco. E então ela sentiu como seria se sucumbisse à
vontade dele. Ao menos, em parte.
— Isso, — ela murmurou enquanto ele se permitia uma breve exploração.
— é um beijo, meu querido lorde.
— Parece um pouco mais íntimo do que um beijo. — Ele buscou o ar e
depois enfiou o nariz no espaço entre o pescoço e o ombro de Caroline. A
barba arranhou, fez cócegas em sua pele fina. Ela riu.
— Beijos são íntimos. Todos eles. Se não for de corpo e alma, é só um
toque de lábios que demonstra afeto. Eu só sei beijar assim. Por inteiro.
Caroline deslizou as duas mãos para dentro do casaco do lorde e
acariciou-o por cima do colete. Isaac estremeceu sobre ela quando as mesmas
mãos desceram para seus quadris e forçaram um encaixe perfeito. Nem todas
as camadas de tecido que os separavam conseguiram impedir o encontro do
calor que os corpos produziam naquele momento.
Ele gemeu. Ela o empurrou e fez com que se sentasse. Depois, ajeitou os
cabelos soltos, o decote do vestido e as saias.
— Se fizer sempre assim, vai agradar bastante as damas que beijar.
— A partir de agora, pretendo beijar apenas minha futura noiva. Mas não
creio que ela apreciará esse entusiasmo todo.
— Claro que não — Caroline riu. — Ela é uma virgem, como você. Deve
morrer de medo de se deitar com um homem. Ou está extremamente curiosa.
Descubra o que ela pretende e dê a ela. Já que vai mesmo se casar…
— As negociações não estão tão avançadas assim, milady. Eu vou apenas
cortejá-la. É um período de conhecimento. Se tudo der certo, ficaremos
noivos.
A lady voltou para seu assento e recolocou a mesa de madeira entre eles.
Seu coração estava disparado, o fluxo de sangue intenso fazia com que ela
sentisse uma vertigem ainda desconhecida. Caroline não entendia o efeito que
Isaac exercia sobre ela e não decidiu se gostava dele ou não.
— Depois de um beijo desses, milorde, talvez devêssemos abandonar os
tratamentos formais. Meu nome é Caroline.
— Não sei se me sinto confortável tratando a senhorita com tanta
intimidade.
— Bem, eu gosto de intimidade. Tratarei o senhor por seu nome de
batismo, a partir de agora.
— Não vai causar falatório?
— A minha vida inteira é um grande falatório, Isaac. Já me acostumei.
Caroline agitou uma sineta de prata e o criado retornou à cabine. Ela
pediu que ele atendesse Isaac no que fosse de seu desejo, porque iria
recolher-se para descansar por meia hora. Sem dizer mais nada, deixou a
cabine social e recolheu-se em seu espaço mais privado. Ela tinha mais coisas
para refletir do que simplesmente se ocupar de um jovem inocente como
aquele.

A VIAGEM até Dover foi rápida, mas não o suficiente. Depois que Caroline
deixou a cabine, Isaac refletiu por vários minutos sobre o que acabara de
acontecer. Questionou suas decisões desde o primeiro momento. Não
precisava perder a virgindade antes do casamento. Estava se deixando levar
pelo comportamento masculino depravado que ele não queria reproduzir. Sua
esposa seria tão inexperiente quanto ele e os dois chegariam a entendimentos
mútuos. Aquilo era romântico.
E Isaac era um tolo romântico.
Não precisava ter ido atrás de Caroline Eckley, a mulher mais
despudorada que ele conhecia. E a mais louca. Nada de bom poderia vir
daquele contato, mas ele não conseguiu evitar. E, quando ela o desafiou a
seduzi-la, foi como acordar cedo e mergulhar em um rio gelado. A melhor e a
pior sensação da vida. Juntas, ao mesmo tempo.
Por sorte, Greenwood Park exigiria muito esforço e não deixaria espaço
para frivolidades. Ele não teria tempo nem para se arrepender de ter feito uma
proposta indecorosa a Caroline, nem de insistir nela.
— Como vai chegar à sua propriedade?
A voz doce do demônio o tirou de suas conjecturas. Isaac enfrentou os
olhos escuros e determinados de Caroline assim que desembarcaram na
estação de Dover. Até aquele momento, ela ficara reclusa em outra parte do
vagão privativo.
— Uma carruagem me espera. Obrigada por me permitir viajar em sua
companhia, milady.
Ele segurou a mão dela e beijou os dedos. Caroline ainda estava sem
luvas, o que tornou o episódio bastante escandaloso. Isaac apenas passou a
acreditar que a dama era movida por escândalos.
— Ainda vou cobrar esse favor. Até breve, Lorde Isaac.
Com uma reverência breve, Caroline afastou-se bailando por entre saias e
babados. Seu caminhar era quase um giro de valsa. Quem a via, com a
sombrinha aberta e o movimento sutil dos quadris, diria que ela era uma
dama. A melhor coisa que Isaac faria seria deixar para lá a ideia de tê-la
como parceira amorosa. Se tudo desse certo, ele esqueceria aquele desafio,
ela se envolveria demais com suas tarefas e eles não teriam mais que lidar
com nada constrangedor.
Mas seu corpo gravou as memórias dela com muito cuidado. Durante o
trajeto para Greenwood Park, Isaac sentiu o gosto de Caroline. O cheiro, a
maciez da pele, o calor. Ele estava desafiado a seduzi-la e completamente
arrebatado pelo processo.
Passou pelo pórtico de entrada da propriedade litorânea dos McFadden
considerando que nunca deveria ter saído dali. O aroma da maresia que
impregnava seus cabelos era delicioso. Tudo em Greenwood Park era
agradável e o fazia sentir-se em casa. Mesmo que não admitisse
publicamente, Isaac preferia ficar em Kent do que em Londres.
A propriedade ficava em uma zona produtiva. Com o crescimento
industrial da Inglaterra, as grandes propriedades passaram a exigir
investimentos e tecnologia para se manterem autossuficientes. A cultura da
terra também perdeu espaço e muitas propriedades passaram a criar animais
de corte e leite. A mecanização e a pecuária já eram realidade em Greenwood
Park, o que fazia com que ela se mantivesse satisfatoriamente.
— Isaac. — Wilhelmina, a irmã mais nova, o recebeu assim que entrou
na mansão. — Fiquei confusa quando o cocheiro saiu para buscá-lo.
Aconteceu algo?
— Problemas em Cornwall. Nate precisou ir, eu precisei voltar.
A jovem de dezesseis anos o fitou com as mãos na cintura. A irmã era a
única filha de George e Pauline McFadden. Herdara os cabelos loiros que
eram típicos da família, mas tinha olhos escuros como o ébano. Era muito
bem-educada e já estava se preparando para debutar na sociedade, no ano
seguinte.
— Edward virá no final da temporada?
— Sim, ele virá. Eloise precisa de ar puro e o litoral fará certamente
muito bem para a bebê.
— Aconteceu alguma coisa, sim. Você está me escondendo algo, Isaac.
O lorde não queria ter aquela conversa. A jovem petulante que era sua
irmã sempre sabia como ele se sentia. Até quando nem ele mesmo sabia. E a
confusão de sentimentos e sensações que arrebatava Isaac era inconveniente e
inadequada. Ele não queria falar sobre aquilo, menos ainda com sua irmã.
Decidiu ignorá-la e subiu para seus aposentos. Os quartos da família
McFadden ficavam todos na ala lesta de casa, no terceiro andar. Os quartos
da ala oeste eram para visitas. No segundo andar ficavam salas de jogos, a
biblioteca, salões de artes e os aposentos dos criados de cargo mais elevado.
Aquela era uma residência moderna, com suítes para todos os membros da
família. Isaac pediu que seu valete lhe preparasse um banho. Depois, que lhe
trouxesse os relatórios da semana.
Claro que ele poderia lê-los no dia seguinte. Mas preferia ocupar a mente
com números e informações sobre vacas, porcos e galinhas a ter que ficar
pensando no que fazer em relação a Caroline Eckley.
CAPÍTULO TERCEIRO

O AR LITORÂNEO FAZIA BEM A C AROLINE , MAS DESPENTEAVA SEUS CABELOS .


Ela gostava deles soltos, porém a brisa marinha os fazia revoltos e os
mantinha constantemente úmidos. Quando ela desembarcou na estação de
Dover, a primeira coisa que sentiu foi o vento quase arrancando o chapéu de
sua cabeça.
Durante a viagem, outra coisa deixou seus cabelos arrepiados. A presença
de Isaac McFadden a desorientava. Nunca, em nenhum momento de sua vida,
um homem a confundiu. Quem mais fez com que ela perdesse o rumo fora
Aiden Trowsdale, o Duque de Shaftesbury. Ela chegou ameaçar uma dama
com uma pistola para lhe salvar a reputação. Ela queria casar-se com Aiden.
Planejou uma vida com ele.
Mas, apesar disso, Aiden nunca a deixou desorientada a ponto de não
saber o que fazer. Mesmo quando fora chamada de louca e internada em um
sanatório, depois do fatídico episódio em que apontou uma arma para Lady
Madeline Westphallen, ela sempre esteve bastante consciente das decisões
que tomou.
Mas ela não podia desanimar por causa de um homem. Estava ali com um
objetivo claro, falar com Anthony.
O primo assumiu o marquesado Granville com o falecimento do tio que a
acolheu na infância. Foi Anthony quem melhor compreendeu Caroline dentre
todos os cinco filhos do marquês. Era ele para quem ela sempre recorria
quando tinha qualquer dúvida ou dificuldade.
Naquele momento, ela buscava orientação. Se havia um rei dos libertinos,
o primeiro, o inventor daquela palavra, esse era Anthony Eckley. Nenhum
homem contribuiu mais para a devassidão dos costumes e para a
desmoralização da virtude do que seu primo mais velho. Nenhum homem
arruinou mais virgens do que ele.
Até se apaixonar perdidamente por uma artista. Aos trinta e dois anos,
Anthony andava de quatro pela esposa, mesmo que já fossem casados há três
anos e tivessem dois filhos. Do jeito que eles faziam sexo, em breve o
marquês estaria com mais crianças do que o próprio pai. Ainda assim, ele era
seu mentor. Tudo que sabia sobre devassidão, Caroline aprendera com
Anthony.
Ao passar pela entrada marmorizada da propriedade da família em Kent,
Caroline sentiu-se em casa. Fazia anos que ela não morava mais em Granville
House, mas ela tinha excelentes memórias dali, às quais acrescentava a
experiência de todo verão. E a forma calorosa como era recebida pelo primo
apenas a fez sentir ainda mais pertencente àquele lugar.
— Minha garota está de volta. — Anthony beijou-a no topo da cabeça. —
E, para vir sem avisar, antes do fim da temporada social, imagino que seu
problema se resolva com um cheque.
— Você faz muito pouco de mim. — Caroline se sentou em um sofá
grande de veludo que ficava no escritório do primo. Retirou os sapatos e
esticou os dedos dos pés. Mesmo de trem, a viagem era cansativa. — Eu
tenho uma fortuna em investimentos e ações, não preciso de um cheque.
— Certo. Vou pedir que nos sirvam um chá para que me conte o motivo
de sua visita repentina. Ainda prefere o seu com conhaque?
Ela deu uma risada.
— Claro que sim. Estou faminta, peça que sirvam comida junto com o
chá. Onde está Rose?
— Trancada no seu estúdio. Faz dois dias, ela só pinta. Não sei se tenho
intelecto para compreender a mente dos artistas.
Anthony tocou uma sineta e pediu a uma criada que providenciasse um
lanche para a prima. Depois que a comida foi servida e Caroline estava
atracada com duas tortas recheadas de geleia, ele decidiu que precisava
arrancar dela os motivos pelos quais apareceu em Kent antes do final da
temporada social. E ela sabia que não podia mentir.
— Agora fale, minha menina. O que precisa?
— Tenho uma história para contar. Mas antes, uma pergunta. O que você
faria se uma virgem oferecesse sua virtude a você?
O primo deu uma gargalhada sonora.
— Céus, Caroline. Você não quer rever essa pergunta? Eu deflorei
dezenas de virgens antes de me casar. Arruinei damas aristocratas cujos
nomes sequer me lembro.
— Mas todas elas foram para a sua cama de bom grado.
— Nunca forcei nenhuma mulher a se deitar comigo. Foi uma escolha
delas que decidi respeitar. Não concordo que a sociedade decida a quem uma
dama deve entregar sua virtude, nem que seja obrigada a ter apenas um
homem em toda a sua vida. Paixões não respeitam convenções sociais.
Não respeitavam, Caroline sabia bem.
— Você nunca hesitou?
— Já, várias vezes. Mas, quando ficava claro que elas queriam, eu não me
importava se eram virgens ou não. Aonde vamos com essa conversa,
Caroline? Você quer entregar sua virgindade a algum homem?
Foi a vez da lady gargalhar. Ela bebeu um gole de chá e enfiou um
pedaço generoso de bolo na boca, para acalmar a vontade de rir
descontroladamente.
— Já fiz isso anos atrás.
Ela fizera. Uma paixão de adolescência, um homem totalmente
inadequado para ela. Caroline era a sobrinha do marquês. Apenas nobres de
títulos elevados eram elegíveis para serem seus maridos. Mas ela se encantou
pelo filho do pároco. Um jovem bem-criado e lindo, mas não muito honrado.
Ela descobriu depois que se entregou a ele.
— Graças ao bom Deus. Pensei que meus esforços tinham sido em vão.
— Foi um homem que me propôs… tirar a virgindade dele.
— Um homem?
— Sim.
— Adulto?
— Claro! — Caroline ajeitou-se no sofá, querendo parecer ofendida com
aquela insinuação. Ela jamais consideraria uma relação sexual com um
garoto. Esperava que ninguém cogitasse aquilo. — Mas ele é virgem. E eu
recusei.
Anthony coçou o queixo finamente barbeado e a fitou por alguns
instantes. Ela sabia que ele provavelmente daria uma resposta decisiva para a
dúvida dela. Nem sempre era a resposta que Caroline esperava. Quase sempre
era a correta.
— Você não o deseja? Para ser virgem, deve ser manco, ou caolho. Ou ter
algum problema de pele.
— Ele é perfeito e absurdamente atraente. E está disposto a me seduzir.
Trocamos alguns beijos bem íntimos, mas eu não sei o que fazer. Não sei o
que isso significa.
— Significa que minha garota precisa de um tempo fora de Londres.
Antecipe sua vinda para o litoral, minha querida. Fique conosco em Granville
House, apenas até sua escola inaugurar.
— Ah, eu adoraria fugir um pouco da cidade. Mas… prometi fazer um
evento para apresentar a proposta da escola às damas.
— Faça o evento aqui. As portas dessa casa estarão sempre abertas para
você, Caroline. Temos espaço, criados e disposição para receber centenas de
damas para um evento, não importa o quanto dure. Traga-as para o litoral,
programe atividades e mostre um pouco do que pode oferecer a elas como
tutora.
A oferta era tentadora. Quase irrecusável e bastante intrigante. A maior
parte das damas estaria saindo de Londres com suas famílias, rumo a
Hampshire, Kent, Cornwall. As famílias aristocráticas adoravam o campo e o
litoral. Se ela conseguisse criar uma atmosfera agradável em Granville
House, poderia convencer alguns pais a investir a educação de suas filhas na
escola que era seu sonho tornando realidade.
E Agatha estaria a caminho de Kent em pouco tempo. Ela viria com o
marido para Greenwood Park, que ficava na divisa da residência do marquês.
— Muito bem, eu adoraria fazer um grande evento aqui. Rose não vai se
opor?
— Rose vai adorar ter um pouco de agitação. Mas você mesma pode falar
com ela sobre isso durante o jantar.
Anthony ergueu-se da cadeira e conduziu Caroline para fora do escritório,
com uma mão protetora nas costas dela. E ela achou prudente omitir que a
causa de seus problemas também antecipara sua ida para o litoral, naquele
ano.

N OBRES indolentes que insistiam em não trabalhar, mesmo com a


proximidade de um novo século, não acordavam antes de meio dia. Era
incomum que acordassem cedo, já que dormiam muito tarde em eventos e
soirées. Já os nobres que se tornaram investidores, negociantes ou passaram a
gerir suas propriedades, acordavam pouco depois do nascer do sol. Lorde
Isaac sempre foi um homem diurno. Ele frequentava os eventos sociais
quando estava em Londres, mas preferia a calmaria dos jantares e brunchs.
Bailes que iam até o dia seguinte eram cansativos.
O barulho dos criados trabalhando na parte externa da casa não foi o que
o despertou naquela manhã. Isaac estava acostumado a ruídos. Mas um calor
em contato com seu corpo o deixou alerta. E um toque molhado e frio fez
com que ele abrisse os olhos, assustado.
— Mas que diabos.
Um cão bastante grande, peludo e babão estava sobre ele na cama. O
animal o cheirava com um focinho gelado e úmido. Ao ver Isaac acordado, o
animal latiu, soltando uma baforada quente e malcheirosa na face do lorde.
— Quem é você? — Isaac se sentou na cama e se ajeitou sob o cão, que
abanava o rabo e demonstrava interesse em fazer amizade. — Eu passo três
dias fora e arrumam um cão?
A porta do quarto abriu e o valete de Isaac entrou. Ao ver o cão sobre a
cama, fez uma expressão de horror e tratou de fazer o brutamonte descer.
— Desculpe-me, milorde, mas não sabia que sua porta estava entreaberta.
Esse meliante é escorregadio como sebo.
— Não tem problema, Dewitt. — Isaac colocou os pés para fora do
colchão e afagou a cabeça do cão, que insistia em arfar ao lado dele. —
Afinal, desde quando temos um cachorro?
— O cão chegou antes de ontem, senhor. — Dewitt começou a abrir as
cortinas. — Veio a pedido do conde, que disse que deveríamos cuidar do
brutamonte até que ele pudesse voltar para sua casa.
Isaac encarou os olhos escuros do cão. Ele tinha o porte grande de um
Setter, a pelagem pintada de preto e branco e um pouco malcuidada.
Precisava de uma boa escovada e de um banho. O banho definitivamente
deveria entrar na lista.
— Certo, então temos um cão temporário. Ele tem nome?
— Lorde, senhor.
— O cão se chama Lorde? — Isaac se esforçou para não rir. Levantou-se
e foi até o banheiro anexo, onde Dewitt já estava finalizando o preparo de um
banho. — Isso vai ser divertido.
A água estava quente o suficiente. Isaac adorava passar longos períodos
dentro da banheira, bebendo uma taça de vinho do porto ou apenas relaxando
os músculos. Geralmente, fazia aquilo à noite. De manhã era um banho
rápido, apenas quando estava em casa. O cão continuou espreitando, daquela
vez apoiou a cabeça na borda da banheira.
— Vou descer com ele, milorde.
— Não, deixe-o aqui. Será bom ter companhia. Peça que avisem aos
arrendatários que pretendo fazer uma visita aos currais, hoje.
Dewitt assentiu e deixou o banheiro. Isaac pretendia conferir se as
melhorias para escoamento dos excrementos dos animais já haviam sido
implantadas a contento. A equipe que ele contratou, antes de retornar a
Londres, garantiu que terminaria o serviço em dois dias. Tudo estaria pronto
quando ele inspecionasse novamente os currais.
Enquanto se banhava em água morna e sabão e acariciava o pelo de
Lorde, que estava bastante confortável com ele, Isaac não pensou em
nenhuma proposta indecorosa. Nem em Caroline Eckley, ou em beijos
trocados em trens. Seus pensamentos foram ocupados por gado, mato, lama e
esterco. Daquela forma ele não se sentiria incomodado com ela, mas também
não pensaria em maneiras de seduzi-la.
Não era uma boa ideia. Saiu da banheira, enxugou-se e vestiu a roupa que
Dewitt deixara separada sobre a cama. Isaac raramente solicitava ajuda para
vestir-se, ele nunca gostou de pessoas tocando-o de forma muito íntima.
Abraços, apertos de mão e tapinhas no ombro estavam de bom tamanho. Mas
não queria ninguém com as mãos entre suas pernas.
Quase ninguém. Sabia que, no trem, desejou que Caroline o despisse e
fizesse amor com ele ali mesmo, naquela cabine.
A mãe ainda não estava acordada. Wilhelmina, no entanto, aguardava-o
no salão para o desjejum. Com um vestido azul claro para o dia, ela sempre
parecia radiante e iluminada. Sorriu ao ver o cão, que saltitou na direção da
jovem.
— Você sabe a história dele? — Isaac perguntou, solicitando que o chá
lhe fosse servido.
— Parece que Edward o salvou, em Hampshire. Ele pertence a algumas
crianças, mas elas estão mudando para outra casa. O duque vem fazendo
melhorias em sua propriedade do campo. Por isso, o cão veio ficar aqui.
— Empolgante. — Ele implicou. — Diga, como tem sido seus estudos?
— Ótimos, eu sou uma aluna bastante aplicada. — A jovem mordiscou
um bolinho. — Já praticamente decorei os livros de etiqueta que deveria ler,
sei matemática, história e geografia e sou muito boa em tarefas domésticas.
Será que… será que Edward me permitirá estudar na escola que Agatha e
Caroline estão inaugurando?
O lorde se engasgou com o chá que acabara de levar à boca. A ideia de
misturar sua irmã delicada e tradicional com a subversiva Caroline Eckley era
assustadora.
— Não vejo motivos para isso. Você tem uma ótima tutora, não precisa
estudar em uma escola formal.
— Mas, Isaac! — Wilhelmina apoiou os talheres sobre o prato e tentou
conter a agitação. — A escola certamente será boa para mim. É em Londres.
Eu debutarei em menos de um ano e quase nunca fui a Londres. Como
conhecerei os lugares se não posso ir até eles? E são apenas moças como eu.
Vamos trocar experiências e eu posso fazer novas amigas.
— Há algo errado com suas amigas atuais? — Isaac uniu as sobrancelhas
ao franzir a testa. Ele estava provocando a irmã, mesmo que não acreditasse
que Edward permitiria que Wilhelmina estudasse naquela escola.
Apesar de ser a escola de Agatha, o problema estava em Lady Eckley.
Caroline era livre demais, e tinha uma reputação arruinada que poderia atingir
uma dama refinada como sua irmã. As filhas dos plebeus não teriam
problema em conhecer as ideias progressistas de Caroline, ou em se misturar
com uma mulher desonrada. As regras para elas eram menos rígidas que para
as ladies. Wilhelmina precisava de um casamento nobre, de um homem de
posses e título, como Edward.
— Não seja bobo, Isaac. — A jovem bebeu um gole do chá. Ela também
precisava se controlar para não comer demais. — Minhas amigas são ótimas.
Mas eu gostaria de conhecer mais pessoas. E de estudar mais coisas.
— Teremos essa conversa quando a temporada social recomeçar e
quando a escola abrir.
— A temporada social nem acabou. E Lady Eckley vai promover um
evento em Granville House em algumas semanas, para apresentar a escola.
A informação pegou Isaac de surpresa. Ele baixou os talheres e olhou
para a irmã. A expressão simpática e quase indecifrável de Wilhelmina
indicava que ela estava falando a verdade.
Então era aquilo que Caroline estava fazendo em Kent? Ela dissera que
precisava se orientar com o primo e sugeriu que fosse por causa da proposta
de Isaac. Mas aquela nova perspectiva era muito mais razoável.
— Como sabe?
— Os criados fofocam e eu gosto de ouvir as fofocas. Minha camareira
me contou que a Sra. Worthington ouviu do jardineiro dos Eckleys, que ficou
sabendo pela camareira da marquesa. Ela enviará convites para diversas
famílias importantes.
A realização de que Caroline continuaria em Kent fez com que ele se
animasse. Teria a chance de seduzi-la sem precisar pegar um trem para
Londres a cada três dias. A viagem era cansativa, mesmo sendo feita em um
terço do tempo. Mas a mesma realização o deixou incomodado. Eles nunca
teriam a privacidade suficiente para que ela pudesse sucumbir aos seus
encantos.
Isaac riu. Ele sempre soube que tinha encantos. As mulheres suspiravam
por ele e várias já haviam se oferecido para a sua cama. Mas aqueles encantos
não eram suficientes para a dama de vermelho dos Eckleys.
— Se você receber um convite, pode participar do evento. Mas terei que
acompanhá-la.
Wilhelmina animou-se e exibiu um largo sorriso. Ela não fazia ideia das
intenções dúbias do irmão, acreditava que ele era apenas excessivamente
protetor. A refeição transcorreu sem mais assuntos intrigantes, apenas sobre
os vestidos novos que a jovem mandou fazer na modista da vila e sobre a
filha mais velha de um dos arrendatários que se casaria em algumas semanas.
Depois de comer e despedir-se da irmã, Isaac deixou a residência da
família. Foi aos estábulos, pediu que o cavalariço selasse seu cavalo, e
informou mais uma vez que visitaria os currais. O sol já brilhava em um céu
limpo de primavera. Os campos estavam cobertos de lavandas e o aroma
adocicado das flores causava desconforto para o lorde. Quando subiu no
cavalo e se preparou para sair, ouviu um latido. O mestiço se agitou e
inclinou a frente, desequilibrando Isaac que precisou agarrar-se ao arreio para
não cair.
Era Lorde, o cão. Animado e abanando o rabo, parecia decidido a segui-
lo. Isaac afagou a crina do cavalo e o acalmou.
— Bem, Lorde… se deseja me acompanhar, ao menos seja menos
ruidoso. Não pretendo quebrar o pescoço indo visitar as vacas.

O S CONVITES FORAM REDIGIDOS sete vezes. Caroline escreveu pessoalmente


os três primeiros. Depois desistiu de prosseguir e entregou para que o
secretário de Anthony os escrevesse. Ela ditou as palavras mais quatro vezes
até que o texto ficasse como ela pretendia.
— Está excelente. — A dama se entusiasmou depois que o secretário leu
as mesmas palavras pela quinta vez. — Envie para a casa do Conde de
Cornwall, em Londres. Enderece-o à condessa e diga que preciso de sua
aprovação. Mande pelos correios, com urgência. Preciso que esses convites
tenham sido rodados em menos de uma semana, para serem distribuídos a
tempo. É deselegante enviar convites de última hora. Caso a condessa aprove,
ela pode ordenar a sua produção. Anotou tudo, Seymour?
— Sim, milady.
Caroline estava agitada. A ideia de Anthony era perfeita. Conduzir um
evento na casa do Marquês de Granville demonstrava a importância da
presença de todos os convidados. Apesar de a sociedade não ser muito
tolerante com o passado da prima, o marquês conseguiu manter a relevância
social e política de seu falecido pai. Poucos nobres ousariam recusar um
convite para a sua residência.
E os negociantes e investidores veriam a oportunidade de se misturar com
a nobreza. Era o plano ideal para apresentar a escola. Ela esperava que
Agatha pudesse comparecer.
— Inclua no texto a necessidade de que a condessa esteja em Kent para o
evento, no final da temporada. Ela é muito esperada. Desejada, ansiada,
aguardada. Use palavras enfáticas.
— Serei bastante enfático, milady. Isso é tudo?
— Sim. Pode sair.
O secretário deixou o escritório do marquês, onde Caroline trabalhava
desde que acordou. Ela jantou com a família, quando foi comunicado a
Rosamund, a esposa de seu primo e atual Marquesa de Granville, sobre as
intenções de realização de um grande evento. Como esperado, ela adorou a
ideia e se dispôs a endossar alguns convites.
Sentada à mesa, olhando os dedos marcados de tinta e os rabiscos dos
convites que precisavam ser ainda descartados no lixo, Caroline pensou, pela
primeira vez em bastante tempo, como sua vida estava mudada depois de ter
sido internada como louca.
Ela não era louca. Caroline era diferente. Não pensava como uma dama,
não continha seus impulsos, não aceitava passivamente que lhe dessem
ordens. Comia o quanto queria, só usava espartilho quando lhe convinha,
gostava dos cabelos soltos. Era livre demais para a sociedade londrina
suportá-la. Era livre como um homem. E aquilo causava desconfortos para
ela, frequentemente.
Mas não se importava. Quando apontou uma arma para Madeline
Westphallen, não pretendia matar a jovem. Caroline não seria capaz de fazer
mal a uma mosca. Ela queria que Madeline confessasse suas mentiras e não
se aproveitasse da honra excessiva de Aiden Trowsdale. O grande amor de
sua vida, Caroline acreditava. Ela nunca se sentiu ligada emocionalmente a
outro homem como se sentiu ligada a Aiden.
E ela o perdeu, assim como sua liberdade. Enquanto esteve internada,
drogada e examinada, só pensava em sair e se ajustar. Não a ponto de se
tornar uma dama, realmente. Mas para que não fosse mais rotulada de louca.
Queria um trabalho, algo respeitável. Talvez quisesse um marido, só que
tinha desistido disso. Homem decente algum iria querê-la como esposa, não
importava seu dote. E ela não abriria mão de sua liberdade por causa de um
marido.
Tudo estava sendo apostado naquela escola. Ela queria ajudar outras
moças a compreenderem que nem tudo se resumia a casamentos arranjados.
Que mulheres deveriam poder ter outro papel na sociedade. Que a liberdade e
a própria dignidade eram preços caros demais para pagar pelo matrimônio
com um homem que elas nem mesmo amavam.
A reconciliação forçada com os Trowsdales e os McFaddens era parte do
seu projeto de reforma emocional. Caroline queria ser uma pessoa melhor,
mesmo que quase ninguém acreditasse nisso.
A porta do escritório se abriu e ninguém entrou. Caroline ergueu-se da
cadeira ao ver um tufo enorme de pelos se arrastar pelo tapete.
— Marquesa!! — Ela se abaixou para ficar na altura da cadela que
acabava de entrar. — Onde você estava, menina? Senti saudades!
A bela e elegante exemplar de Galgo Afegão, de pelagem branca e muito
bem cuidada, lambeu o rosto de Caroline. As duas eram boas amigas desde
que Marquesa chegou à casa Eckley, trazida como presente ao seu primo por
um de seus parceiros de negócios. A cachorra, de raça exótica, era oriunda do
Afeganistão, um país com laços comerciais com a Inglaterra.
— Está bem, sei que você adora passear nos jardins. Do jeito que estou
cansada de pensar em coisas importantes, vou adorar tomar chá com bolinhos
enquanto o ar do litoral embaraça meus cabelos.
Parecendo compreender o que lhe fora dito, Marquesa trotou para fora do
escritório, indo na direção dos jardins da mansão. Caroline pediu a um criado
que levasse uma bandeja com chá e guloseimas para seu lugar preferido e foi
se encontrar com sua amiga de quatro patas. A cabeça ainda fervilhava de
ideias e ela adoraria ter com quem conversar. Esperava que Rose saísse da
clausura imposta pela arte em breve.
CAPÍTULO QUARTO

I SAAC NÃO ENTENDEU QUANDO O ENCARREGADO DOS ANIMAIS LHE EXPLICOU


que a produção de leite estava reduzida em razão de fatores externos que
atrapalharam o descanso das vacas.
— Como assim, as vacas estão temperamentais?
— É isso que tem sido falado, milorde. Que as bichinhas se aborreceram
com o barulho das máquinas mais novas que chegaram para ajudar no campo.
— Mas as máquinas não fazem tanto barulho assim, fazem?
— Elas assustam os animais, milorde.
— Então teremos que fazer mudanças. Vamos deslocar os currais para
outro ponto da propriedade, que fique mais afastado para evitar que as vacas
se incomodem com o que for.
— Isso custará muito dinheiro, milorde.
Claro que custaria dinheiro. Isaac não tinha dúvidas, já que tudo requeria
grandes quantidades de dinheiro. Retirou o chapéu e coçou a cabeça úmida
do suor. Já estava de pé, no sol, havia muito tempo. Pegou o relógio no bolso
do colete e confirmou. Quase meio dia. Ele não tinha mais casaco, estava
com o colete aberto e em mangas de camisa. Gotículas de suor escorriam por
seu pescoço.
— Não é um problema, desde que as vacas voltem a produzir leite
adequadamente. Sem a pecuária, a fazenda deixa de ser produtiva, Sr.
Finnerty. Chame alguns especialistas para que analisem a viabilidade de
mover os currais para um lugar mais adequado.
O capataz assentiu e se afastou. Isaac permaneceu ali, com as botas
enfiadas em esterco e cercado de vacas que pareciam encará-lo de forma
inamistosa. Ele sempre preferiu cavalos. Os equinos eram animais mais
interativos, usados para montaria. Se ele se apegasse a um cavalo, sabia que o
bicho jamais seria abatido para servir de prato principal no jantar de alguém.
O cheiro de estrume fez com que ele desistisse de permanecer dentro do
curral. Bateu as botas para tirar o excesso de sujeira e recostou-se em uma
cerca de madeira. Não havia um barulho desconfortável. As máquinas eram
bem rudimentares, naquela época. Mesmo que Edward houvesse investido
muito dinheiro na modernização da propriedade, vislumbrando que ela
deixaria de ser lucrativa se continuasse no passado, os equipamentos
tecnológicos disponíveis em 1893 eram poucos.
A maresia sempre fazia com que ele desejasse nadar. Isaac olhou para o
horizonte e viu o contorno das pedras que separavam a propriedade do mar.
Dava para chegar lá em poucos minutos de cavalgada.
— Você me acompanha, Lorde?
Perguntou ao cão, que latiu em conformidade. Isaac montou em seu
cavalo e trotou na direção da praia, sendo seguido pelo animado Setter.
Greenwood Park era uma propriedade interessante exatamente por possuir
uma espécie de praia privada. Aquela enseada era reservada, sem acesso por
outras vias que não a propriedade do Conde de Cornwall. Não podia,
portanto, ser frequentada por turistas ou viajantes. Apenas convidados da
família.
Por esse motivo, Isaac não se importou em ir até lá sem roupa de banho.
Ele não precisava de uma. Duvidava que alguém estivesse ali, já que a mãe e
Wilhelmina só iam à praia durante a manhã, e acompanhadas de uma
comitiva muito bem planejada.
Ao ver o mar convidativo, sabia que a água estava gelada. Não se
importou. Prendeu o cavalo, retirou as botas, a camisa e as calças. Pendurou
tudo na sela, para que não sujasse de areia, e correu para as ondas que
quebravam preguiçosas.
— Meu Deus! — Foi a reação ao entrar em contato com o gélido mar da
costa inglesa. O cão, por sua vez, não pareceu se incomodar com o frio e se
jogou na água, latindo animado. — Lorde, você não está morrendo de frio?
O cão latiu novamente. Claro que não estava! Corria e brincava de
perseguir a espuma branca que ia e vinha. Isaac deu um mergulho, molhando-
se todo para tentar se acostumar com a temperatura. Depois de alguns
minutos, não achava mais que fosse congelar. Nadou mais para o fundo até
que ouviu Lorde latir de forma diferente. E, em seguida, uma voz feminina de
protesto.
— De onde surgiu essa besta peluda cheia de areia? Não pule em mim,
você não tem educação?
Isaac virou-se para a praia e paralisou. Entre a estupefação, a vergonha e
a vontade de rir, levou alguns minutos observando o estabanado Lorde
rodeando Caroline Eckley, que vinha com uma sombrinha, uma bolsa e…
outro cachorro. Ela vestia algo indecente, uma versão pitoresca das roupas de
banho femininas tradicionais. Meias listradas, uma saia muito curta, corpete
justo e sapatilhas de seda. Tudo vermelho, preto e branco.
Se ele já achava Lady Eckley uma obra de Lúcifer para tentar os homens
na Terra, aquela roupa fazia com que ele tivesse certeza.
Com a sombrinha fechada, ela tentou manter Lorde longe. O cão que a
acompanhava rosnava e se escondia atrás dela. Era uma cena cômica, na qual
Isaac não podia interferir. Ao notá-lo na água, Caroline esbravejou.
— Milorde, esse monstro é seu?
— Ele me acompanha, mas não posso chamá-lo de meu.
— Venha aqui cuidar dessa fera. Ele está importunando minha Marquesa!
— Lamento, milady, mas terá que resolver isso sozinha. Não posso sair
da água.
— Posso saber por quê? — Caroline colocou uma das mãos na cintura e
empunhou a sombrinha como uma espada. — Fique longe, seu mal-educado!
Eu sou boa em esgrima.
— Não estou vestido, milady. Minhas roupas estão penduradas na sela do
cavalo, próximas da senhorita.
Ela olhou para o cavalo, que descansava à sombra, e riu. O sorriso
diabólico formado naquele rosto delicado e perfeito sugeriu que ela se
divertia por algo que não era engraçado.
— Já vi minha quota de homens nus, milorde. Não me importo em vê-lo
despido, desde que tire esse cão daqui.
Lorde continuava querendo confusão. Isaac tentou chamá-lo, mas o cão
não o obedecia. A cena era engraçada: uma mulher em roupas de banho, um
animal brincalhão, um acuado, muita areia e vento marítimo. Tudo isso sob o
sol quente de quase meio-dia.
— Vire-se, milady. Vou sair, me vestir e cuidar do cachorro.
— Como vou me virar? Esse brutamonte pulará sobre mim e atacará
minha Marquesa.
Isaac nunca ficara nu na frente de nenhuma mulher. A possibilidade o
deixou muito envergonhado. Principalmente porque a água estava mesmo fria
e Caroline poderia ter uma imagem equivocada de suas partes masculinas.
Aquilo era um absurdo. Respirando fundo, o lorde nadou em braçadas até a
parte mais rasa, onde rebentavam as ondas. Ergueu-se da água e caminhou
rapidamente pela curta extensão de areia que o separava de suas calças. Com
as duas mãos na frente de seu corpo, tentou manter-se oculto o suficiente para
preservar uma mínima dignidade.

E RA verdade que Caroline já vira uma boa quantidade de homens nus. Quase
todos eles, excitados e prontos para o ato sexual. E, quase sempre, na
proteção escura da noite, onde os detalhes viravam sombras no bruxulear das
lamparinas a gás ou do fogo da lareira.
Nada era como aquilo que vinha do mar em sua direção. Se ela se
surpreendeu com o toque no peito firme e sólido de Isaac, no primeiro beijo
que trocaram, aquela visão a abalou completamente. Não durou mais do que
alguns segundos. O homem saiu da água, deu alguns passos e vestiu suas
calças muito rapidamente. Mesmo assim, ela viu toda a cena bem devagar,
registrando cada detalhe para que sua mente inquieta a torturasse depois.
Ele tinha músculos definidos, indicando que fazia muitos exercícios. Os
pelos eram distribuídos pelo corpo inteiro como se tivessem sido
cuidadosamente dispostos por alguma mão artista. Molhado e reluzindo sob o
sol, era a visão de um deus dourado. Isaac parecia banhado a ouro.
Levou algum tempo até Caroline perceber que ele já segurava o cão
agitado com os dois braços e que não havia mais perigo para sua cachorra.
— Pronto, milady. Ele vai se comportar agora. Não vai, Lorde?
O Setter se sentou ao lado de Isaac e latiu duas vezes. Caroline acariciou
a cabeça de Marquesa, que lamuriava ao seu lado.
— Muito bem. De onde surgiu esse… animal?
— Edward pediu que o abrigássemos temporariamente. Mas, milady, eu é
que devo questionar o que a senhorita faz na minha propriedade.
Caroline sorriu. Abriu novamente a sombrinha para proteger-se do sol e
começou a tirar a sapatilha.
— Eu sempre nado aqui. Adoro a privacidade dessa enseada. Nunca
percebi que fica em Greenwood Park. Tem certeza que ela não pertence aos
Eckleys?
— Tenho bastante certeza disso, milady.
Isaac sabia que ela estava troçando com ele. Caroline tinha plena
consciência dos limites da propriedade de sua família, tão explorada por ela
na infância. E ela adorava nadar ali, porque a praia particular dos McFaddens
era muito divertida. Com a presença masculina ao seu lado, ficou duas vezes
mais interessante.
Ela terminou de tirar as sapatilhas e correu para a água. Marquesa ganiu,
protestando por seu afastamento, mas a cadela nunca entrava no mar. Era
elegante e fina demais para aquele comportamento mundano, o de se
encharcar com água salgada. Caroline pisou com cuidado nas ondas que
espumavam e fez uma careta ao ver o quanto a água estava fria. Mesmo
assim, deixou-se molhar até os joelhos.
— Não vai mais nadar? — Ela se virou e viu o lorde sentado entre os dois
cachorros.
— Prefiro evitar que esses dois briguem. Não sabia que tinha um cão.
— Cadela. O nome dela é Marquesa.
Isaac deu uma risada. Exibiu dentes brancos e perfeitos que podiam ser
vistos à distância. Era antinatural um homem ser tão bonito quanto ele.
Principalmente quando ela se propunha a resistir a qualquer processo de
sedução vinda dele.
— Talvez eles se entendam bem, então. — Isaac se levantou e caminhou
na direção da água. — Minha irmã esteve comentando hoje sobre um evento
que acontecerá em Granville House. Pretende ficar em Kent mesmo durante a
temporada social?
— Sim. Foi ideia de Anthony e acredito que seja uma boa ideia reunir
algumas famílias para apresentar a elas a escola. Conto que a condessa possa
vir.
O lorde entrou na água. Tinha dobrado as calças até os joelhos e tentou
evitar molhá-las, sem muito sucesso. As ondas batiam em suas pernas e
respigavam no tecido marrom.
— Tenho dificuldades em entender como Agatha pode ter aceitado uma
amizade com a senhorita. Depois de tudo que fez, do tanto que importunou o
duque, do quanto fornicou com meu irmão…
— Pensei que ela resistiria mais à minha aproximação. — Caroline
deixou a água cobrir-lhe os quadris. — Mas entenda, milorde, que mulheres
foram criadas para aceitar que seus maridos tenham aventuras sexuais.
— Agatha não aceita isso de Edward.
— Agora não. Eu a entendo, se fosse ela também prenderia aquele conde
comigo e não o deixaria gastar sua energia com outras. Mas, ainda assim,
fomos condicionadas a perdoar, e até mesmo justificar, todas as aventuras
sexuais pretéritas dos homens. Vocês podem tudo, a nós cabe aceitar.
Fez-se silêncio. Havia apenas a arrebentação do mar e o barulho das
gaivotas, que disputavam peixes e moluscos nas pedras da enseada. Os cães
se entreolhavam inamistosos, mas tranquilos. Isaac molhou as mãos na água e
passou nos cabelos. Ela se perdeu naquele movimento por breves segundos.
— Não entendo muito bem sobre mulheres. Talvez possa me instruir em
alguns assuntos.
O brilho dos olhos dele era pura malícia. Talvez Isaac não tivesse
experiência com mulheres, mas a capacidade de sedução não lhe faltava. O
talento dos McFaddens era inato.
— Posso te instruir, sim. — Caroline sentou-se na arrebentação. As ondas
iam e vinham, molhando-a com alguma bruteza. — Sobre como mulheres
podem ter assuntos interessantes. Sobre como não somos apenas receptáculos
para a semente de vocês. Sobre o motivo pelo qual temos o direito de receber
a mesma educação que os homens porque temos a mesma capacidade
intelectual. Já leu Wollstonecraft, milorde?
— Não, eu não li. O que ele escreveu.
— Ela. Wollstonecraft é uma mulher inglesa que ousou escrever sobre
direitos femininos. Recomendo que procure, também, John Stuart Mill. Ele
escreveu sobre mulheres com muita sensibilidade. Serão ótimas formas de
começar se instruindo sobre mulheres.
Ele se sentou ao lado dela. Ficaram olhando para o horizonte onde o sol
se punha. Caroline fincou as mãos na areia. As ondas cobriam e descobriam
seus dedos até que o calor da pele de Isaac fez com que ela se sobressaltasse.
A mão dele estava sobre a dela. O contato era íntimo demais, inadequado até.
Mas nada entre eles havia sido adequado até aquele momento.
— Onde aprendeu todas essas coisas? Isso é tão… diferente do que se
ensina às meninas. Mesmo hoje em dia, em que tudo está tão moderno.
— Fui criada livre, cercada de homens em um mundo masculino. Mas
aprendi essas coisas no sanatório. Com uma enfermeira chamada Marianne.
Ela logo descobriu que eu não era a louca que diziam que eu era e começou a
conversar muito comigo. Marianne me deu livros para ler. E nada está tão
moderno, milorde. Não enquanto o casamento nos transformar em objetos e a
solteirice for um fardo pesado demais.
— É isso que pretende ensinar em sua escola? Nada como bordado, como
servir o chá, como dar festas inesquecíveis, como organizar boas soirées?
— Toda menina de quinze anos sabe essas coisas. Nem se ensina mais
isso nas escolas tradicionais, milorde. De certa forma, nossa escola ensinará
tudo que as damas precisam saber. Mas também permitirá a elas leituras
interessantes. Conhecimentos que elas não adquiririam com suas tutoras em
casa. Essas moças precisam de mais. Precisam de uma educação…
— Como a sua? — Ele desafiou.
— Haveria algum problema se elas fossem como eu?
Caroline virou-se para ele. Isaac colocou os dedos entre os dela,
aprofundando o toque.
— Considerando que a senhorita nunca se casou e não teve filhos, se toda
mulher for assim, a humanidade estará extinta em breve.
O contato entre eles se desfez. Caroline levantou-se e bateu a areia da
roupa de banho. Ajeitou a saia de lã e deu uma última olhada para o lorde aos
seus pés. Ele estava na posição que ela preferia os homens. Quando podia vê-
los debaixo dela.
— Se os maridos fossem melhores e insistissem em se apegar a leis
antigas que apagavam nossa existência depois do casamento, duvido que
alguma mulher, mesmo instruída, teria objeção ao matrimônio. Mas, com
homens desagradáveis como o senhor, fica difícil defender a instituição.
Estava irritada. Marchou pela areia fofa, pegou sua sombrinha e suas
sapatilhas nas mãos e rumou na direção da propriedade Granville.
— Vamos, Marquesa. — Chamou a cachorra, que se levantou e esnobou
Lorde. — Não devemos perder a hora do almoço.

A QUELE HOMEM ERA INSUPORTAVELMENTE ARROGANTE . Ela deveria saber,


todos eles eram. Mas sua irritação com Lorde Isaac era mais do que pura
estupefação por ele insultá-la. Caroline era insultada todo dia, pela maior
variedade pessoas que ela conhecia. Quando visitavam a casa Granville, a
paparicavam por respeito ao marquês. Mas não a convidavam para suas
festas. Faziam fofocas a seu respeito, mas também frequentavam sua cama
nas noites escuras de Londres.
Ah, como ela desprezava a sociedade. Por vezes preferiu ter nascido em
família plebeia, ao menos sabia que suas escolhas seriam vistas de forma
mais natural.
Sua irritação com ele se dava por motivos desconhecidos. Caroline nunca
fez nenhuma questão da aprovação condescendente de um homem. Ela
conquistava o respeito deles de formas variadas e posições surpreendentes -
na cama. Já Isaac não estaria na sua cama e ela não poderia seduzi-lo e tratá-
lo como um cachorrinho na coleira.
— Milady, espere.
A voz dele ecoou pelo ar, misturando-se com o farfalhar da vegetação.
Além de arrogante, ele não parecia entender quando uma pessoa estava
irritada a ponto de desejar ficar sozinha.
— Não desejo continuar a conversar, milorde. Minha família me aguarda
para o almoço e ainda preciso me arrumar.
Ele estava a cavalo, com o cachorro ao lado. Aproximou-se dela, já
vestido com suas botas e a camisa. Não que fizesse diferença, mas ele ficava
mais bonito com a roupa desgrenhada do que sem ela.
— Está aborrecida com meu comentário.
Não foi uma pergunta. Era uma constatação óbvia.
— Claro que não. Já deveria ter me acostumado, esse é o comentário que
todos fazem. Sou uma solteirona devassa, o que podem esperar de mim?
— Desculpe-me. Não pretendia ofendê-la.
— Isaac, não se desculpe. — Ela o tratou pelo primeiro nome, aquele
gesto de intimidade que provavelmente faria com que todos desconfiassem de
algum envolvimento entre eles. — Apenas volte para seu divertimento, vou
para casa.
— Não posso continuar me divertindo, tenho que conferir se o silo de
grãos foi consertado.
— Os criados não fazem isso? — Ela parou e o encarou.
— Um bom administrador cuida pessoalmente dos seus negócios. Por
isso Edward confia em mim para gerir Greenwood Park. Quer cavalgar
comigo?
— Cavalgar? No mesmo cavalo?
— Creio que sim, milady. Há apenas o Trovoada aqui. Os cães nos
acompanham, eu deixo a senhorita na porta de Granville House.
Era uma oferta tentadora. O sol estava a pino e fazia calor. Caroline podia
ter uma insolação. Havia muitas desculpas para subir no cavalo com Isaac
McFadden. Ela olhou ao redor. Pensou no escândalo que seria, para uma
dama, chegar montada a cavalo com um homem que não fosse seu marido.
Ainda mais sem sela adequada. Parecia excelente, para ela.
— Certo. Como vou subir no cavalo?
Isaac sorriu e estendeu a mão para que ela segurasse. Com firmeza e
força, ele a puxou para cima e fez com que se acomodasse à sua frente.
Caroline virou para frente e segurou com suavidade a crina de Trovoada, que
relinchou. Ela acariciou o pescoço do cavalo e fez com que se acalmasse. O
lorde então passou as duas mãos pelas laterais do corpo dela, segurou o arreio
e imprimiu um trote lento.
— Não a deixarei cair.
Ele sussurrou em seus ouvidos e Caroline sentiu um arrepio lhe percorrer
o corpo todo. Naquele momento, ela teve consciência dos músculos dele ao
seu redor. As coxas firmes que a envolviam. O peito sólido contra o qual suas
costas estavam apoiadas. Os braços que impediam que ela cambaleasse para
o lado. Eles estavam totalmente vestidos e, ainda assim, Caroline acreditava
que era a interação mais erótica que já tivera com um homem.
— O senhor já chegou a um entendimento com o pai de sua noiva?
Caroline desviou o assunto para algo desagradável. O possível casamento
do lorde era algo que ela não apreciava discutir. A esposa dele seria uma
mulher de sorte.
— Lady Francesca não é, ainda, minha noiva. Mas a família dela foi para
Londres e eu tive que retornar abruptamente para Kent. Assim que a
temporada acabar, o que acontecerá em breve, eles virão para o litoral e eu
poderei prosseguir com meu cortejo e, quem sabe, fechar os trâmites do
casamento.
— Ela deve estar ansiosa para se tornar a Sra. Isaac McFadden. Não é
sempre que uma dama italiana fisga um segundo filho de seu porte.
Isaac deixou a barba roçar no pescoço de Caroline. Abaixou a cabeça para
falar perto do ouvido dela.
— A senhorita, no entanto, despreza meu porte.
Uma mão de Isaac segurou Caroline, espalmada sobre a barriga dela. O
calor do toque fez com que a dama se alarmasse. Ela se acomodou sobre o
cavalo e sentiu que ele estava duro atrás dela. Homem devasso. Ou
inexperiente. Nenhum homem que ela conhecia era capaz de conter uma
ereção se estivesse roçando em uma mulher.
O movimento do cavalo fazia com que os corpos se movessem como em
uma dança. Os cães pareciam ter se entendido e corriam à frente. Brincavam.
Caroline fechou os olhos e relaxou as costas. O calor e o cheiro de maresia
que a envolviam eram provenientes do homem atrás dela.
— Não desprezo, milorde.
Caroline quase sussurrou as palavras. Desejava tê-las mantido guardadas,
mas estava muito acostumada a dizer o que pensava. Desejava também que o
ruído do vento impedisse que Isaac a ouvisse, mas o novo roçar da barba dele
no pescoço dela indicou que ele sorria.
Maldito fosse. Eles cavalgaram até Granville House sem trocar outras
palavras. Isaac teve o cuidado de parar com o cavalo na parte de trás da casa,
para que eventuais convidados não os vissem chegando. A situação era
indecorosa demais e, apesar de tudo, ele pareceu preocupado em resguardá-
la.

E RA MUITO difícil ter certezas quando estava na presença de Caroline. Isaac


sempre foi sistemático e cheio de regras. Não voltava atrás nas decisões
tomadas porque elas eram muito refletidas. Era daquela forma desde a escola,
sempre irritando os outros colegas por ser um aluno muito dedicado e por
cobrar empenho dos demais. Mas a única certeza que ele tinha, ao lado de
Lady Eckley, era que ela cheirava como um dia de verão.
Muitas damas cheiravam a flores. Tinham aquele aroma adocicado da
fragrância de rosas, ou jasmins, ou violetas. Lady Francesca cheirava a rosas.
E Caroline não cheirava a flor alguma. Ela tinha cheiro de pele. Não era
delicado nem romântico, não o recordava de nenhuma mulher com quem já
flertara.
Mas aquele cheiro o embriagava. Mais do que o uísque. Todas as
decisões que tomou a respeito dela pareceram muito erradas quando a deixou
em casa, naquele início de tarde. A proposta, a sedução, a perseguição. Ela o
incomodava em níveis que aparentemente eram exclusivos. Nunca soube de
um homem que se incomodasse com Caroline Eckley.
— Isaac. — Wilhelmina o interceptou assim que desceu do banho. O
lorde se banhou e gastou longos minutos deixando seu corpo voltar ao
normal, depois do arrebatamento do passeio na praia. Achava Caroline linda,
queria deitar-se com ela, mas a ereção, que o fez ficar mais duro que os
rochedos que circulam a praia, era quase novidade. Nunca uma mulher o
excitara tanto a ponto de fazê-lo desconfortável apenas com um toque. —
Leve-me à vila.
— O que pretende fazer na vila?
— Preciso fazer a prova de alguns vestidos que mandei preparar. E
também quero ver como estão os preparativos para o festival.
Ah, o festival que antecedia ao verão. A marca do final da primavera era
sempre celebrada na região. Mesmo com a agricultura minguando e com as
pessoas migrando cada vez mais para as fábricas, o litoral de Kent mantinha
uma atmosfera animada. Principalmente depois do hotel imenso construído
por Oglethorpe, que gerou empregos e ampliou a ida de burgueses
endinheirados para conhecer as praias da região.
Talvez aquele fosse o motivo de Isaac ter tanto carinho por Greenwood
Park. Ou porque aquela era uma das mais antigas propriedades dos
McFaddens. Ou, ainda, porque era um tolo sentimental.
— Você tem acompanhantes para isso. — O irmão reclamou. — E eu
tenho serviço. Preciso administrar o conserto do silo.
— Não quero ir com minha acompanhante. Prefiro a companhia do meu
irmão. Vamos, Isaac, eu quero sua opinião sobre o vestido que encomendei.
Ele olhou para a irmã sabendo que aquele era o resultado da sua interação
excessiva com a família. Nathaniel sempre dizia que ele conversava demais
com Wilhelmina e a mãe. “Mulheres são manipuladoras. Dê a elas uma mão
e logo elas se apossarão do braço inteiro”. Mas aqueles olhos castanhos que
pediam com tanta ênfase não eram fáceis de dizer não.
— Tudo bem. Vamos almoçar e eu te acompanho à vila. — Isaac tocou
uma sineta e o mordomo veio até eles. — Peyton, por favor peça que
preparem a carruagem grande. Vamos à vila depois do almoço.
— Pois não, milorde.
O mordomo saiu e os dois irmãos foram para o salão de refeições
pequeno. A mãe desceu logo depois, sempre acompanhada de sua camareira.
A mulher não era mais tão jovem, mas a condessa viúva não queria saber de
outra companhia. Apenas Mildred era capaz de atendê-la em todas as suas
exigências, ela dizia. E, com isso, a solteirona de quase quarenta anos
continuava servindo a Pauline McFadden como já fazia por vinte anos.
A refeição foi simples. A família nunca exagerava nas refeições quando
eram apenas eles. Se Edward e Nathaniel estivessem em casa, serviam um
banquete. Quando Emile vinha do internato, era quase como se fosse Natal.
Naquele dia, comeram uma entrada de sopa de tartaruga, depois o prato
principal, de carne de caça e sobremesa de frutas.
Isaac evitou comer demais para não ter indigestão com o sacolejo da
carruagem. Depois de colocar seu chapéu, esperou pela irmã na varanda. Não
conseguiu deixar de olhar para a propriedade dos Granville, ao longe. O que
ela estaria fazendo naquele momento?
Não teve muito tempo para pensar. Logo a irmã estava ali e o cocheiro os
guiou para a vila. Isaac estava pensativo, silencioso, e isso lhe era incomum.
Os McFaddens não eram falantes como os Trowsdales, mas, ainda assim,
Isaac era o mais comunicativo dos irmãos. Wilhelmina não o incomodou,
nem questionou sobre onde estavam seus pensamentos.
— Enquanto eu provo o vestido e faço ajustes, você pode dar uma volta
pela vila.
A jovem disse, assim que a carruagem parou na frente do estabelecimento
da modista.
— Pensei que quisesse minha opinião.
— Claro que quero, mas vai levar quase uma hora para que o vestido
fique ajustado. Você volta depois e me diz se gosta.
O lorde suspirou. Ele não tinha mesmo nenhuma pretensão de entender as
mulheres. Queria, mas duvidava que fosse capaz. Era mesmo preferível
caminhar pelas lojas ao invés de ficar sentado esperando. Beijou a irmã no
topo da cabeça e pôs-se a andar pelas construções.
A vila estava muito movimentada. Havia gente andando para lá e para cá,
ornamentando a via e arrumando barracas. Então o festival deveria começar
naquele dia. Isaac olhou para um lado e viu a imponente construção do
Palace of the Sea, o hotel recém-inaugurado. Do outro lado, havia apenas
casas modestas. Alguns prédios pequenos que se amontoavam pela região
litorânea. O ar marinho deixava tudo com uma aparência de verão
permanente.
Distraído, Isaac parou em uma barraca de flores. Uma garota de cabelos
escuros e olhos expressivos arrumava violetas, jasmins, jacintos e outras
flores coloridas em ramalhetes, para depois colocá-los em vasos de porcelana.
Ele levou um conjunto ao nariz e imaginou que elas ficariam lindas nos
cabelos escuros de Caroline.
Por que pensava nela, afinal? Por que deixava que sua imaginação
vagasse na direção de Caroline Eckley, quando seus objetivos com ela eram
apenas carnais, e por apenas uma noite? E por que ele estava achando aquela
proposta que fez a ela tão indecorosa, tão imprópria e tão ofensiva?
Porque era. Isaac não considerou Caroline como uma pessoa, quando foi
até ela. Procurava um meio para um fim. Desconsiderou que ela pudesse ter
sentimentos. Os homens sempre viam Caroline com espanto. Alguns nutriam
admiração, secretamente, como Sawbridge e Riderhood. Outros, só se
importavam com ela como uma dama que poderiam seduzir para a cama.
Alguns a desejavam como amante. E ele agiu movido pelo senso comum
sobre ela. Como era possível que, em poucos dias, já considerava que havia
muito mais conteúdo sob a superfície de Caroline Eckley?
— Flores, milorde? — A menina perguntou.
— Quanto por elas?
— Um centavo, milorde.
Isaac remexeu as flores sob os olhos atentos da jovem e escolheu
algumas. Pegou dois ramalhetes e entregou um xelim à menina. Ela arregalou
os olhos ao receber uma moeda de valor muito superior.
— Milorde, ainda não tenho troco.
— Fique com ele. Eu posso querer mais flores, depois.
Era comum que Isaac oferecesse dinheiro a mais pelas coisas que
comprava na vila. Esforçava-se para ser justo com os arrendatários, sempre
possibilitando que eles tivessem maior qualidade de vida. Quanto mais eles
estivessem satisfeitos, melhor o lucro de Greenwood Park. E, se eles
confiassem no administrador, era mais fácil convencê-los a adotar as
melhorias que Isaac frequentemente insistia para que fossem implementadas.
Pôs-se a andar novamente sem saber para que comprara flores. Na
verdade, ele sabia, mas não queria admitir. Havia algo nele que queria
colocar jasmins nas roupas e cabelos de Caroline. Isaac estava sendo tolo.
Não adiantava esbanjar romantismo com ela. Flores não a seduziriam. Ela era
mais prática do que aquilo. Principalmente depois que ele estava sendo um
canalha com ela.
Retornou para a modista um pouco depois da uma hora que a irmã pediu.
Encontrou Wilhelmina rodeada de costureiras que finalizavam ajustes em um
vestido azul e ornamentado com renda. Isaac teve certeza que não havia
dificuldades para a irmã em conseguir um casamento adequado. Além do
dote que Edward estabeleceria para ela, a jovem McFadden era muito bonita.
— O que achou? — Wilhelmina perguntou ao irmão ao vê-lo recostado
no batente da porta.
— Digno de um membro da realeza. Pretende usá-lo…
— Não me faltarão oportunidades para usar vestidos novos, Isaac. Mas
espero estreá-lo quando a temporada acabar e os eventos aqui se iniciarem.
Esse ano vocês me levarão aos bailes, não levarão?
— Foi uma promessa, ela será cumprida.
A jovem sorriu. Conversou qualquer coisa com a modista e trocou os
vestidos. Meia hora depois, estavam na carruagem de volta para Greenwood
Park.
— Comprou flores? — Wilhelmina notou os ramalhetes que foram
colocados dentro do chapéu que o irmão retirou. Ele pegou um deles e
entregou a ela.
— Combinam com seus olhos.
Wilhelmina sorriu e se esticou para beijar a bochecha do irmão. Depois,
prendeu as flores no corpete do vestido com um alfinete.
— E essas? — Ela apontou para os jasmins. — São para quem?
Eu comprei para presentear a dama mais indecorosa da Inglaterra, era o
que ele deveria dizer. No entanto, conseguiu apenas bater no teto da
carruagem para chamar atenção do cocheiro.
— Miles, deixe-me em Rhode Port. Vou à Granville House.

L ONGE DA AGITAÇÃO DE L ONDRES , Caroline se divertia com atividades do


interior. Ela podia usar calças de montaria, montar de frente e fazer coisas
que, na cidade, seriam consideradas muito escandalosas. Ainda eram
escandalosas em Kent, mas ali ela se sentia protegida. Todos a conheciam,
ninguém a julgava na sua frente.
Depois do episódio com Isaac McFadden, ela demorou algum tempo para
voltar a se concentrar em qualquer coisa. Pediu que preparassem seu cavalo,
deu uma volta pela propriedade, conversou com arrendatários e descobriu que
a Sra. Lange estava doente. A esposa do ferreiro era uma senhora idosa e
muito gentil, que sempre ofereceu doces a Caroline quando ela visitava a vila.
Ao retornar para Granville House, a dama pediu à cozinheira que
preparasse, para a manhã seguinte, uma cesta com bolos, doces e licores para
levar para a Sra. Lange. O relógio marcava já quase cinco horas, então ela
precisava correr para se lavar e não perder o chá.
Se havia um ritual importante na casa dos Granville, esse era o chá das
cinco. Uma mesa farta com comida era colocada no jardim de inverno, onde
Rose preferia ficar, e toda a família se reunia para o chá. Caroline desceu as
escadas quase atrasada e foi interceptada pelo mordomo.
— Milady, há um visitante para a senhorita no saguão.
— Um visitante? — Caroline franziu a testa. — Qual o nome dele?
— É Lorde Isaac, milady. Ele pediu para falar com a senhorita.
Então o homem era audacioso o suficiente para ir até a casa dela e pedir
para falar com ela. Caroline começava a gostar da insistência dele.
Geralmente, preferia que os homens não ficassem próximos demais. Achava
alguns nobres pegajosos, interessados em algo que ela não queria dar.
Caroline não se deitava com todos os homens, menos ainda com qualquer
um. Muitas vezes, quase sempre, ela precisava lembrá-los que sua liberdade
sexual não era sinônimo de prostituição. Nem a colocava à disposição deles.
— Vou recebê-lo. Peça que coloquem mais uma xícara na mesa, ele
tomará o chá conosco.
A dama foi ao saguão e pode observar o lorde antes que ele a visse. Isaac
admirava um vaso indiano que ornamentava a entrada da casa, com pinturas
muito peculiares. Se observado com cuidado, dava para notar que os
pequenos detalhes em cores escuras representavam pessoas nas mais variadas
posições do Kama Sutra. Anthony tinha prazer em mantê-lo ali para ruborizar
quem se interessasse demais pelo objeto.
Aquele vaso era um escândalo. Caroline o adorava. E Isaac estava
bastante intrigado com ele, a mão estendida quase tocando a porcelana.
Vestia traje completo, imaculado, como se tivesse acabado de tomar um
banho e sair de casa. Segurava o chapéu de feltro em uma das mãos e
demorou vários segundos para notar que era observado.
— Essas pinturas… são pessoas? — Ele perguntou, a ponta do dedo
tocando o vaso. Caroline assentiu com um movimento de cabeça. — E elas
estão…
— Sim, elas estão. — Caroline riu. — Conhece o Kama Sutra, milorde?
— Sei o que é, mas nunca o li.
— Deveria folheá-lo. Há um exemplar na nossa biblioteca, se desejar.
Ele ficou vermelho, o rubor subindo pelo pescoço e se instalando
próximo aos olhos azuis. Caroline exibiu um sorriso vencedor. Ela adorava
fazer as pessoas escandalizadas com seu comportamento.
— Talvez aceite sua oferta. Nesse momento, passei aqui para lhe entregar
isso e para me desculpar.
Isaac estendeu as flores para ela. Caroline franziu a testa novamente e
encarou o pequeno ramalhete de jasmins que ele a entregava. Pegou-as e
levou-as até o nariz, sorvendo o aroma adocicado. Era a primeira vez que um
homem a presenteava com flores. Ela já recebera alguns presentes
extravagantes de nobres que a desejavam tê-la como amante. A maioria fora
recusada porque ela recusava a proposta que vinha acompanhando o presente.
Mas flores, ninguém ainda fora tão delicado a ponto de considerar jasmins
para presenteá-la.
— Estão frescos. — Isaac explicou. — Estive na vila e… achei que
jasmins combinavam com a senhorita.
Caroline sorriu. Não era o sorriso de deboche ou diversão que geralmente
a acompanhava quando interagia com pessoas. Era algo novo, que ela
geralmente guardava para a família, apenas.
— Não sei o que fazer com elas. Coloco em um jarro?
— Nunca recebeu flores, milady?
— Não. — Ela confessou.
O lorde deu alguns passos em sua direção. Pegou as flores da mão dela e
prendeu na lapela do casaquinho de passeio que ela vestia. O contraste do
branco das flores com o tom avermelhado do tecido era perfeito. Caroline
ficou segundos absorta naquela imagem.
— Quanto às desculpas, — ele prosseguiu — eu gostaria que soubesse
que estou ciente que minha proposta foi ultrajante. Não pretendia ofendê-la,
mas em nenhum momento considerei seus sentimentos. Eu gostaria de retirá-
la.
Oh. Ela se surpreendeu com aquilo. Não apenas com a retirada da oferta
de desvirginá-lo, mas também com a percepção de que ela tinha sentimentos.
Claro que tinha, mas poucos homens se davam conta disso.
— Considerou que me seduzir é muito difícil? — Ela provocou.
— Não. Eu apenas não me senti confortável com a senhorita achando que
tudo que faço tem como objetivo levá-la para a cama.
— E não tem?
Os dois se entreolharam. Isaac não sabia o que fazer ou dizer.
— Milady. — O mordomo pigarreou atrás dela, interrompendo o
momento. — O marquês perguntou se a senhorita e seu convidado não vão se
juntar a eles para o chá?
— Claro que vamos!
— Estou de saída.
Eles falaram ao mesmo tempo e sorriram logo em seguida.
— Lorde Isaac vai tomar chá conosco. — Ela determinou. — Vamos,
milorde?
Talvez Isaac quisesse discordar e dizer que não pretendia ficar mais,
entretanto não disse nada. Ofereceu o braço para que ela segurasse e deixou-
se conduzir até o jardim de inverno, onde a família Eckley se reunia. Ao
redor de uma mesa, com toalha rendada, estavam Anthony e Rose.
Ao vê-los chegarem, o marquês se levantou. Por um breve segundo, o
olhar que ele lançou a Isaac foi predatório. Caroline acreditou ter visto um
brilho diabólico nos olhos escuros de Anthony. Isso a divertiu. Apesar de
tudo, ela sabia que o primo continuaria a cumprir o papel de seu tio e cuidaria
dela enquanto fosse preciso.
— Espero que não se importem. Lorde Isaac estava passando por aqui e
eu o convidei para o chá.
— Seja bem-vindo, McFadden. — O marquês o cumprimentou.
— Obrigada por me receber, Granville. Milady.
Isaac cumprimentou os anfitriões e puxou a cadeira para que Caroline se
sentasse. Um criado serviu-lhes chá.
— McFadden, é você que vem administrando as terras do conde, estou
certo? — Anthony iniciou uma conversa.
— Sim, milorde. Com as muitas atividades de meu irmão na cidade, eu
auxilio tomando conta de Greenwood Park.
— Estou impressionado com o maquinário que vi chegar recentemente.
Vocês estão investindo em criação animal e na mecanização da agricultura e
não parecem economizar recursos.
— Recebemos uma nova debulhadora para os grãos. Ela faz o serviço de
cem homens em tempo recorde, milorde. Sem contar as máquinas para
ordenha das vacas.
Os homens engajaram em um debate sobre agricultura, cultivo de terras,
criação de animais e outros assuntos de negócios. O marquês não estava
muito por dentro de questões como aquelas. Ele decidira investir seu dinheiro
em ações da indústria naval e ferroviária há alguns anos. Também mantinha
negócios com o Afeganistão e a Índia, exportando produtos exóticos e de
interesse dos ingleses.
Rhode Port, por ser uma propriedade litorânea, tinha o solo ruim para
certos cultivos. Ele aproveitou a oportunidade para extrair informações de
Isaac.
— Então vocês conseguiram manter a propriedade lucrativa.
— Não estamos falando de um grande lucro, mas, sim. Conseguimos
lucrar, enquanto muitas fazendas minguaram. E, com o investimento de
Oglethorpe na vila, muitos jovens desistiram de ir para a cidade, trabalhar nas
fábricas. Acredito que os “milagrosos banhos de mar” podem ajudar bastante
nossa região.
O brilho diabólico que Caroline vira, antes, deu lugar a uma reluzente
admiração. Pareceu claro que Isaac sabia muito bem como cuidar dos
negócios de Greenwood Park, mesmo sendo ainda muito jovem. E era óbvio
que Anthony o respeitou por isso.
— Que tal pararmos de falar de negócios antes que eu morra de tédio? —
Rose interferiu. — Vamos falar de assuntos mais agradáveis. Lorde Isaac,
como andam as coisas em Londres?
— Fétidas e cinzentas, milady.
Rose deu uma gargalhada. A esposa artista de Anthony era uma mulher
irreverente. Tinha uma personalidade forte, tomava decisões demais e
passava a maior parte do tempo em seu ateliê de pintura. Depois que ela se
casou seus quadros eram vendidos para amigos ou enviados para exposições
pela Inglaterra e França. Ela obtinha uma renda razoável com aquela
atividade.
A conversa prosseguiu e Caroline deu conta de que Isaac estava
confortável ali, entre sua família. Ele sempre transitou bem entre os
ambientes e com as diferentes pessoas. Não pode deixar de nutrir uma
pequena admiração por ele enquanto conversava abertamente sobre uma peça
de teatro que entraria em cartaz na cidade. Ele conhecia um pouco de tudo,
tinha uma eloquência sagaz e olhos azuis que capturavam a luz do ambiente.
E ele lhe dera flores. Ele fora até sua casa, com um presente singelo e
desinteressado. Não, ele estava disposto a seduzi-la. Caroline não podia se
enganar, nada que vinha dele era desinteressado. Mas ele lhe pediu desculpas.
Ela ainda tinha certeza que Isaac pretendia fazê-la desejá-lo. E estava
chegando bem perto de conseguir seu objetivo.

E LE NÃO TEVE certeza do que foi fazer na casa de Caroline Eckley. Queria
entregar flores a ela e aquilo não parecia fazer tanto sentido. Queria pedir
desculpas, dizer que foi um idiota imbecil ao desprezá-la como se ela fosse
uma mulher disponível para atender às suas vontades mundanas. Isaac não
queria uma prostituta, mas tratou Caroline como se fosse uma.
Mas ele continuava interessado em seduzi-la. Mesmo sabendo que isso
significava iniciar o processo de um envolvimento romântico, porque Isaac
era romântico. Porém, as coisas estavam sendo naturais demais entre eles.
Depois do chá irreverente com os Eckleys, Isaac convidou Caroline para ir
com ele ao festival, o que fora aceito prontamente.
Durante o jantar, em Greenwood Park, a mãe fez companhia a ele e
Wilhelmina. Sem o irmão Nathaniel para contar em número, Isaac ficava
rendido às mulheres. Era inacreditável que ele soubesse tão pouco sobre elas,
no geral.
— Eu gostaria de ir ao festival, amanhã. — Wilhelmina disse, depois que
serviram o terceiro prato. Os almoços eram informais, mas Pauline
McFadden, a condessa viúva, insistia que os jantares deveriam ser os mais
tradicionais possíveis.
— Você ainda é muito jovem. — A mãe indicou. — Mas cabe a seu
irmão decidir se é adequado ou não. Na falta do conde, creio que Isaac possa
representar a vontade dele.
— Eu vou ao festival. — O lorde afirmou. — Podemos ir juntos. Mas
concordo com mamãe, você é muito jovem. Irá com uma acompanhante e
ficará sob minha supervisão.
Wilhelmina assentiu e deu um sorriso de aprovação. Ele tinha certeza que
ela apostaria suas fichas na concordância dele, porque Isaac e ela sempre
foram cúmplices em suas bobagens. E duvidava que ele fosse supervisioná-la
muito de perto.
— Isaac, você está cortejando Lady Eckley?
A pergunta o surpreendeu e fez com que ele se engasgasse com a comida.
Bebeu um gole de vinho para esconder o assombro e fitou a irmã com uma
expressão de incredulidade.
— De onde tirou esse absurdo? Eu pedi autorização ao pai de Lady
Francesca, o italiano que esteve em nossa casa. Não posso cortejar duas
mulheres ao mesmo tempo.
— Eu sei, isso não é atitude digna de um lorde. Mas não sei, você poderia
ter mudado de ideia.
— Não mudei.
— Certo. Apenas fiquei intrigada com sua visita a Rhode Port hoje.
Isaac poderia fuzilar a irmã com o olhar. Há segundos ele fora gentil com
ela e aceitara acompanhá-la a um evento para o qual ela não tinha idade. E ela
o apunhalava com aquela conversa sobre Caroline.
— Fui cumprimentar o marquês e conversar com ele sobre a criação de
animais.
A irmã fingiu que acreditou nele e o jantar prosseguiu com a discussão
apenas de assuntos banais. Alguma coisa que fora lida nos jornais e fofocas
sobre a temporada em Londres. Mas Isaac não conseguiu parar de pensar que
estava sendo óbvio demais. Ele precisava tomar cuidado para que as pessoas
não interpretassem equivocadamente suas intenções para com Caroline
Eckley.
De fato, elas não deveriam interpretar nada. Ninguém deveria saber que
ele pretendia seduzi-la. Isso seria difícil, porque ali todo mundo prestava
atenção em tudo. Poderiam relevar. Não se importar. Apoiar. Mas não ignorar
o fato de que ele pretendia passar muito tempo na companhia da lady.
CAPÍTULO QUINTO

C AROLINE NÃO PRETENDIA PASSAR MUITO TEMPO DENTRO DE CASA . A LÉM DO


olhar inquisidor que Anthony lhe lançava, esperando que ela contasse a ele
coisas que não pretendia contar - porque ela mesma não as entendia - ela
gostava de estar ao ar livre. Já que o final da temporada social estava perdido,
preferia se lançar em atividades divertidas e aguardar a resposta do telegrama
enviado à Condessa de Cornwall.
Acordou mais cedo do que o habitual e tomou um breve desjejum em seu
quarto. Vestiu calças de montaria e desceu para solicitar que sua égua lhe
fosse preparada. Pretendia cavalgar, carregando Marquesa para um passeio
pela propriedade, e levar a cesta de quitutes para a Sra. Lange. A cachorra,
que adorava andar atrás dela, precisava de exercícios. E ela queria visitar a
senhora doente.
O cavalariço não se espantou com a presença dela em vestimentas tão
pouco femininas. Ninguém se assustava mais com o comportamento de
Caroline e aquilo dava a ela liberdades que a maioria das mulheres não tinha.
Montada em sua égua castanha trotou pelos campos, com a cadela desfilando
atrás de si, até a casa do ferreiro. Entregou os presentes, perguntou o que
poderia fazer para ajudar e, depois de uma conversa amigável, voltou a
cavalgar pela propriedade. Surpreendeu-se ao perceber que estava próxima à
divisa de Greenwood Park. E ficou bastante tentada a ir até onde podia ouvir
a voz de homens conversando animadamente sobre algo.
— Marquesa, vamos seguir essas vozes. Onde há homens animados, há
diversão!
A cachorra não demonstrou interesse, mas continuou a seguir a dona.
Logo, latidos altos e nervosos se misturaram às vozes masculinas e Caroline
descobriu que havia um grupo de fazendeiros trabalhando arduamente no
conserto de um silo de grãos. Entre eles, estava Isaac McFadden.
O cão dele latia, acompanhando o ir e vir dos homens com materiais.
Isaac tinha o torso despido e exibia uma forma física invejável. As calças
marrons estavam arriadas nos quadris. As botas, enlameadas até a metade. O
suor lhe escorria pela pele bronzeada do sol. Apesar da presença de outras
pessoas, era impossível não o notar imediatamente. Isaac destacava-se com
facilidade em uma multidão.
Ela desmontou e recostou na cerca que separava as duas propriedades. Ao
vê-la ali, alguns homens arregalaram os olhos. Outros riram, alguns fizeram
graça. Não era todo dia que se via uma mulher de calças.
— Milady. — Isaac se aproximou ao vê-la. A forma decidida como ele
caminhou até ela era intimidadora. Por um instante, ela sentiu como se ele
estivesse ali para tomar posse de algo. Como um conquistador.
— Parece que nossos caminhos continuam se cruzando, milorde.
— Você não deveria estar aqui vestida dessa forma. — Ele a repreendeu
em voz baixa. — Todos esses homens…
— Eles estão me devorando com os olhos.
— E você parece gostar disso. — Isaac constatou.
— Parece que sim. — Ela sorriu. — É interessante exercer poder sobre os
homens. Se há uma forma de fazer isso, aproveito-me dela. Minhas roupas te
incomodam, milorde?
Ele a encarou. Desceu os olhos até as botas de montaria que ela usava,
depois retornou com eles para os cabelos escuros presos em tranças.
— Não. Você fica linda com elas.
— Que bom que agora nos tratamos com informalidade. — Ela sorriu
novamente. Não costumava ser tão sorridente assim com homens com quem
não pretendia um envolvimento sexual. — Diga-me o que está fazendo.
— Precisamos finalizar o conserto do silo para a colheita que começa
amanhã. Estou ajudando os homens.
— Não imaginei que um nobre fizesse esse tipo de coisa.
— Meu irmão é nobre, eu não. Não detenho título nem propriedades, sou
apenas o segundo filho e próximo na linha de sucessão do condado, até
Edward produzir um herdeiro. — Isaac limpou o suor que lhe escorria pela
face. O movimento foi extremamente sensual. — E eu sempre me envolvo
com as atividades dos arrendatários. Não seria possível conhecê-los e
administrar essas terras sem isso.
Ela sorriu. Isaac fez uma mesura e retornou para suas atividades enquanto
Caroline decidiu que o observaria. O cão manchado dele passou a rodeá-la e
a interagir com Marquesa. Não havia mais atrito entre eles, que latiam e
corriam pelos campos em uma brincadeira animalesca. Recostada na cerca,
Caroline viu algumas mulheres conversando no entorno de uma estrutura de
madeira. Como a conversa entre elas era extremamente animada e pareciam
admirar os homens trabalhando, a lady se interessou em participar.
Pulou a cerca e foi até o grupo feminino. Ao vê-la chegar, as mulheres
silenciaram.
— Milady. — Uma delas fez uma reverência.
— Por favor, não parem. Eu estou apenas… na verdade, não sei o que
estou fazendo. Vi que conversavam e fiquei curiosa. Do que falam? O que
fazem?
— Estamos preparando lanches para os homens. — Uma delas, que usava
uma saia xadrez e blusa cinza, disse. Parecia uma mulher jovem, com cabelos
loiros escuros e olhos verdes expressivos.
— E falando sobre eles. — Outra disse, com uma risadinha. Aquela
parecia ainda mais jovem. — Não é sempre que podemos admirar os homens
seminus, então é intrigante vê-los trabalhar.
Caroline virou-se e percebeu que a maioria dos homens não estava
vestida de forma decorosa. Camisas abertas, mangas dobradas, peitos
descobertos. Eram homens de várias idades, alguns musculosos pelo esforço
do trabalho braçal, outros mais rechonchudos. Alguns com cabelos prateados
pela idade, outros ainda sem ter experimentado os primeiros pelos faciais. E
aquelas mulheres, ali, apreciavam a beleza masculina em sua essência, sem
pudor algum.
— Posso juntar-me a vocês? Não resisto a uma exibição de seminudez
masculina.
As mulheres se entreolharam e riram. Uma delas entregou limões e uma
faca para Caroline, indicando que ela deveria cortá-los. Enquanto isso,
continuaram falando sobre como alguém era másculo e como outro alguém
era alto. A lady ignorava os nomes, já que mal sabia nomear os criados da
Granville House. Foi apenas quando mencionaram Isaac que a atenção dela
foi capturada de volta para a conversa.
— Ele é um sonho, mas não é para nosso bico. — A mulher de saia
xadrez repreendia outra. — Um homem desses só vai se casar com uma dama
de verdade, Portia. Essas madames refinadas da cidade.
— Mas ele é sempre tão gentil conosco…
— E tão lindo sem roupa…
— Ele não está sem roupa. — Caroline se pegou falando em voz alta. As
mulheres olharam para ela. — Quero dizer, está de calças, não está?
— Ah, sim. — Portia suspirou. — Eu nem me importaria em tirá-las.
— Não fale um absurdo desses! — A mulher de xadrez bateu com uma
colher de pau na cabeça de Portia. — Depois ele se deita com você, toma sua
inocência e se casa com a italiana. Seja mais inteligente, não foi para isso que
te criei.
Caroline não quis interferir novamente na conversa. Ela poderia tecer
elaborados comentários sobre liberdade sexual. Sobre Portia ter direito de
escolher o homem que lhe “tomaria a inocência”. Que a virgindade era
apenas uma forma dos homens restringirem as mulheres, porque nenhum
deles se obrigava a ficar casto. Mas preferiu não fazer isso. Ela ainda não
conhecia aquelas mulheres e talvez nunca conhecesse. Tudo que conseguiria
era assustá-las com suas ideias progressistas. Precisava ir com calma.
E, também, ela ficou com ciúmes. Ouvir Portia, uma jovem que deveria
ter uns vinte anos, suspirar por Isaac e manifestar abertamente o desejo de
fazer coisas indecorosas com ele, acertou Caroline como um punho fechado
em um ringue de boxe. Ela ergueu os olhos e o observou carregando madeira
e rindo com os homens. Enquanto ele estava ali, despido da arrogância da
nobreza e das excessivas camadas de tecido exigidas pelo decoro da
sociedade, ele parecia outra pessoa. Talvez aquele fosse o verdadeiro Isaac
McFadden que Caroline nunca se importou em conhecer porque o
considerava um garoto.
O garoto cresceu. Aquele ali era um homem em sua magnitude. Ele tinha
calos nas mãos. A pele bronzeada do sol. O corpo moldado pelo esforço. Ela
nunca o tinha visto, realmente. E estava muito satisfeita com o que descobria.

O SILÊNCIO na Trowsdale House indicava que Eloise estava dormindo. A


bebezinha andava bastante inquieta e Agatha costumava fazer de tudo para
que a filha ficasse confortável. Depois de ter presenciado a forma como
Elizabeth cuidava dos filhos, ela não quis relegar sua menina para um
berçário isolado. Eloise dormia em um quarto ao lado da suíte principal e
tanto o conde quanto a condessa dedicavam bastante atenção à filha.
O mesmo acontecia com Lavínia. A filha adotiva, que ainda não falava,
dormia em um quarto conjugado com o de Eloise. Se ela precisasse de
assistência, bastava chamar a babá para ser atendida. Mas era comum que a
menina escapasse de madrugada e entrasse sorrateiramente no quarto da
condessa. Isso fez com que ela e o conde tivessem que adotar medidas de
segurança, trancando a porta quando queriam fazer mais do que apenas
dormir.
Mas, naquela manhã, Agatha dormiu demais. Pediu ajuda a Moira para se
vestir para o dia, conferiu que a bebê também dormia e que Lavinia estava
com a babá, e desceu para o escritório do marido. Ela tinha que responder
Caroline Eckley. O telegrama da nova sócia permanecia aberto e intocado
sobre a mesa de mogno. Tocou a sineta e Brett apareceu para atendê-la.
— Bom dia, milady.
— Bom dia, Brett. Sirva meu desjejum aqui, por favor. O conde já saiu?
— Sim, milady. Está na fábrica desde as sete e meia.
Claro que ele estava. Poucos homens eram mais responsáveis em seus
trabalhos do que Edward McFadden. Era por isso que ela sabia que não podia
ir para Kent ajudar Caroline no processo de preparação para um evento de
apresentação da escola.
Duas criadas entraram com bandejas de comida e um bule de chá
fumegante. Deixaram tudo sobre a mesinha redonda com duas cadeiras, que
ficava no enorme escritório cheio de estantes. Era o lugar preferido de
Edward, na casa. Quando ficava ali, Agatha sentia-se duas vezes mais
conectada ao conde.
— Milady. — Brett a interrompeu. — A Duquesa de Shaftesbury está
aqui.
— Oh! Mande-a entrar, Brett. Elizabeth não precisa ser anunciada.
— Sei disso, milady, mas ela insiste todas as vezes.
O mordomo fez uma mesura e logo Elizabeth entrou. Vestia amarelo e
aquela cor era injusta com quase todas, menos com ela. A cunhada brilhava e
reluzia com qualquer ornamento. Era uma mulher linda, radiante e sempre
sorridente. Depois de se casar com o duque, irmão de Agatha, ela sempre
parecia mais feliz. Mas as expressões de Elizabeth eram sempre contidas,
como se ela fosse a mãe de todas as pessoas. Bem, ela tinha quatro filhos,
então era mãe de muita gente.
— Chegou bem na hora. Venha, sirva-se de chá. Gostaria de conversar
com alguém sobre a escola que vamos inaugurar.
— Ah, a escola. — Elizabeth pegou o bule e serviu o chá. O
comportamento dela ainda era determinado por quem ela foi boa parte da
vida: uma mulher simples, plebeia, casada com um trabalhador das docas,
depois viúva dele. A vida de duquesa não a tinha moldado para a indolência.
Elizabeth se intrometia no trabalho dos criados a ponto de deixá-los loucos.
— Como andam os preparativos?
— Caroline deseja fazer um evento na Granville House assim que
terminar a temporada. Reunir as famílias de moças que seriam alunas em
potencial. Ela deseja minha opinião para envio do convite formal.
Agatha entregou o telegrama à cunhada. Elizabeth bebericou seu chá e
baixou os olhos para o papel, depois levou alguns segundos fitando-a.
— É curiosa a forma como vocês se associaram. — A duquesa disse,
servindo-se de torradas. — Você sabe, algumas damas comentam que jamais
teriam admitido Caroline Eckley em suas residências, depois de saber que ela
fora amante de seus maridos.
— Caroline não era amante de Edward. — Agatha suspirou. — Se eu
fosse fechar as portas para todas as mulheres que ele devassou em uma cama,
só receberia homens na McFadden Garden.
— Eu entendo você. — Elizabeth segurou a mão da condessa. — Não
precisamos detestar as que eles tiveram antes de nós, até porque nossos
maridos são homens de comportamento bastante diferenciado. Que tipo de
ajuda precisa?
— Vocês vão para Thanet Bay quando acabar a temporada?
— Por Deus, sim! — Elizabeth deu uma risada. — Não aguento mais
Londres e o cheiro de latrina dessa cidade. Apesar de morarmos em uma
região mais limpa e agradável, ainda assim prefiro a brisa do litoral. As
crianças precisam de sol e tempo ao ar livre.
— Sinto-me melhor sabendo que terei sua companhia. Avisarei Caroline
que ela pode enviar os convites. Será divertido receber famílias
endinheiradas, com e sem título, para um final de semana.
Agatha se sentou à mesa do marido e redigiu uma breve carta para a
sócia. Ela mesma já tinha se perguntando quando foi que parou de achar
Lady Eckley uma pessoa desagradável e passou a tolerá-la ao ponto da
amizade. Provavelmente, depois do trauma sofrido na viagem. Agatha passou
a acreditar que todas as pessoas tinham direito a uma segunda chance.
— Diga, Agatha. Por que decidiu tomar parte nessa escola de moças?
Elizabeth arrancou-a dos devaneios.
— Não sei direito. Acredito que eu queira que as meninas sejam mais
bem instruídas. Depois do que eu passei, desejo que mais coisas sejam
ensinadas às mulheres. Muitas jovens não têm oportunidade de cursar uma
boa escola porque seus pais ainda as acham aptas apenas para o casamento.
Gostaria de mudar essa realidade.

A VILA próxima a Greenwood Park era linda. Ficava na orla marítima e


estava crescendo por causa do turismo. Havia notícias de que as praias em
Kent eram milagrosas, que os banhos de mar podiam curar males crônicos.
Claro que essas notícias foram amplificadas propositalmente, para garantir o
sucesso do empreendimento de Oglethorpe. O magnata da rede hoteleira
adorava inventar histórias e aumentar lendas para lucrar com os mais
crédulos.
O festival de primavera era uma tradição local que durava uma semana e
antecedia à colheita de grãos. Mesmo com a baixa da agricultura, a tradição
local se manteve para fins turísticos. Naquele ano, a vila estava enfeitada com
flores, cores e luzes. Lamparinas a gás que, penduradas em fios resistentes,
criavam cordões de iluminação como se as casas fossem uma grande árvore
de Natal.
Isaac pensava em tudo que deveria estar acontecendo na vila quando a
carruagem parou em frente à Granville House. Wilhelmina estava
desconfiada que ele tinha interesses em Caroline Eckley e ficou ainda mais
alerta quando o irmão informou que eles parariam na propriedade do
marquês.
— Espere-me. — Isaac pediu. — Retornarei em breve.
— Lady Eckley vai conosco?
— Sim, eu a convidei.
O lorde não ficou para ouvir o que a irmã disse. Claro que ela o provocou.
Vestindo um terno de noite com lenço de seda no pescoço, Isaac pretendia
causar uma boa impressão. Ele sabia que Caroline havia observado o
conserto do silo durante o dia. Que ela fez limonada com as mulheres e
participou das fofocas. Enquanto trabalhava, ele deixou que seu olhar vagasse
até o dela várias vezes. E ela olhou para ele, em retorno. Aquilo era um flerte
inocente que não parecia combinar com ela.
O mordomo o recebeu e pediu que aguardasse. Enquanto observava mais
uma vez o vaso de porcelana pintado com imoralidades, percebeu a presença
masculina do marquês. Anthony Eckley era pura virilidade em forma
humana. Ele fazia com que Isaac lembrasse do Duque de Shaftesbury, um
homem alto, de cabelos escuros e olhos profundos, que parecia observar com
precisão tudo ao seu redor. E ele observava o lorde parado em seu saguão,
naquele momento.
— Lorde Isaac, que intrigante recebê-lo duas vezes em seguida na minha
residência.
— Vim buscar Lady Eckley para o festival. Minha irmã aguarda na
carruagem.
— Acredito que Caroline esteja terminando de se aprontar. Poderia vir
comigo ao meu escritório? Tenho um conhaque aberto que precisa ser
bebido.
O marquês conduziu Isaac pelas salas amplas da mansão. Passaram por
portas, quadros com imagens de anjos e pessoas em posições indecorosas
dividindo o mesmo espaço, estátuas de pessoas nuas. A nudez, em museus,
era adorada. Mas a casa do Marquês de Granville parecia um templo de
honraria a Baco.
Ao chegarem ao escritório, o anfitrião indicou que Isaac deveria se sentar
e começou a procurar alguma coisa em um armário com portas de vidro.
— Sei que essa belezura está aqui em algum lugar. Diga-me, Isaac, você
bebe?
— Sim, milorde. Não sou uma criança, faço vinte e cinco anos em uma
semana.
— Claro. — O marquês achou a garrafa e abriu. Serviu duas doses. — É
que eu me lembro de você correndo atrás dos garotos mais velhos, como eu.
Sempre achamos que vocês continuam meninos.
Isaac aceitou o conhaque e bebeu um gole longo. O malte desceu
queimando sua garganta porque ele estava ansioso. Nervoso, talvez.
— Milorde, sei que minha vinda aqui é completamente inadequada. E que
eu não deveria levar Lady Eckley para o festival sem que ela estivesse
devidamente acompanhada e que eu estivesse autorizado a cortejá-la. É
provável que milorde esteja ultrajado por minha ousadia, mas…
— Calma, Isaac. — Anthony deu uma risada baixa e bebeu todo o seu
conhaque de uma só vez. — Não trouxe você aqui para uma discussão. Eu
apenas gostaria de, talvez, descobrir suas intenções para com Caroline.
As intenções de Isaac eram indecentes. Ele não podia dizê-las para o
primo de Caroline. Aquele era o homem responsável por ela, depois do
falecimento do quarto Marquês de Granville. Mesmo depois de ter retirado a
proposta ofensiva, ele ainda queria seduzir a mulher. Alguma coisa nela o
atraía.
— Somos amigos, milorde.
— Claro que são. Mas nunca tivemos homens aqui nessa casa para
conversar, cortejar ou apenas visitar Lady Eckley, se me entende. Ela leva
suas conquistas para Londres, ou usa o chalé de hóspedes. É a primeira vez
que vejo algo além de um envolvimento sexual entre minha prima e qualquer
pessoa.
Isaac engoliu e sentiu a boca seca.
— Posso garantir que não há esse tipo de relação entre nós.
Ainda não. Mas ele esperava que houvesse.
— Bem, de qualquer forma, eu tenho apenas algo a dizer. — O marquês
se levantou e serviu mais conhaque para o lorde. — Amo Caroline como se
ela fosse minha irmã. Ela foi criada nessa casa e tem um dote garantido por
meu pai. Não sei se ela vai se casar, e sinceramente não me importo nem um
pouco com o comportamento dela. Caroline é livre, Isaac. Ela foi criada
assim. Mas, se você a machucar de qualquer forma, se ferir seus sentimentos,
eu vou garantir para que nunca, em nenhum outro momento, você tenha
envolvimentos sexuais com alguma mulher.
A forma como Anthony Eckley disse aquilo foi desconcertante. Ele não
elevou a voz e não parou de sorrir. Mas Isaac sabia que ele falava sério. Por
mais disfuncional que aquela família fosse, eles se amavam e protegeriam uns
aos outros.
Antes que pudesse responder qualquer coisa, a porta do escritório se abriu
e Caroline apareceu. Ela usava um vestido vinho com flores vermelhas, de
veludo e seda, com renda e babados. Os cabelos, sempre soltos, estavam
enfeitados com contas de pérolas e grampos encapados com fita. Ela tinha a
aparência de uma ninfa que frequentava lugares pagãos. Tudo naquela mulher
reluzia como se ela fosse etérea demais para ser tocada, apenas possível de
ser venerada.
— O que significa essa reunião? — Ela olhou para o marquês, seu
semblante impassível.
— Seu primo estava me mostrando esse conhaque especial. — Isaac
levantou o copo. Caroline flutuou até ele, pegou a bebida e virou em apenas
um gole.
— Gostoso, mas estamos atrasados. Sei que há um show de fogos de
artifício e não quero perdê-lo.
O marquês autorizou que saíssem. A ameaça não velada permaneceu no
ar. Isaac podia fazer o que quisesse, não havia naquela casa as mesmas regras
da sociedade. Mas ele não podia magoar Caroline.
CAPÍTULO SEXTO

E LA DESCOBRIRIA SE A NTHONY ESTAVA SE METENDO EM SUA VIDA , MAS FARIA


isso quando sua atenção não estivesse totalmente voltada para o homem ao
seu lado. Depois de ter passado o dia admirando Isaac trabalhar, ela
acreditava que já havia decorado as linhas do corpo dele. Os lugares onde a
pele, bronzeada por ficar exposta ao tempo, desvanecia e se transformava em
uma tez rosada e intocada pelo sol. A forma como os pelos de seu peito se
distribuíam pelo torso e desciam para morrer em um caminho escondido e
proibido para dentro das calças dele. Os músculos que se contraíam toda vez
que ele levantava um amarrado de feno ou uma tora de madeira sobre a
cabeça.
Mas vê-lo na Granville House garantiu que havia ainda várias facetas dele
que ela desconhecia. E que ansiava por conhecer. Sentada na carruagem,
enquanto se dirigiam à vila, ela estava ao lado de Wilhelmina e de frente para
o lorde. Os joelhos dele tocaram os dela, por cima das saias, mas queimaram
a pele assim mesmo. Era a segunda vez que muitas camadas de tecido não
eram capazes de impedir a combustão que fazia fervilhar o sangue correndo
em suas veias.
Todas aquelas reações eram conhecidas de Caroline. Ela estava
visceralmente atraída por Isaac McFadden. Não seria nada difícil ceder a ele
e conduzi-lo por uma noite tórrida de amor. Ao pensar naquele homem viril e
firme sobre si, naquela barba arrastando por sua pele, ela desejava ser
possuída por ele. Desejava que ele a segurasse nos braços, jogasse sobre a
cama e fizesse amor com ela até exauri-la.
— Chegamos, milady. — A voz suave e ainda infantil de Wilhelmina a
tirou do transe em que estava. Uma criada estava do lado de fora da
carruagem, junto com o cocheiro, para acompanhá-la. Isso sugeriu a Caroline
que Isaac pretendia deixar a irmã por conta dos empregados.
O lorde ofereceu a mão enluvada para que Caroline descesse. Os olhos
deles se cruzaram e permaneceram um no outro por algum tempo.
— Vamos passear pelas barracas, ver a decoração. Está tudo lindo.
Ela tentou desviar o olhar, mas não conseguia por muito tempo.
Segurando no braço dele, o toque fez formigar as pontas dos dedos dela.
Caroline era muito experiente para sentir aquele estupor juvenil. Não fazia
sentido sentir tanto calor quando várias camadas de roupas os separavam.
Rodaram por entre pessoas vendendo todo tipo de comida. Flores, objetos
feitos à mão e doces. Em um momento qualquer, enquanto passeavam entre a
multidão e se distraíam com o movimento, Wilhelmina e a sua acompanhante
se afastaram. Ou se perderam. E Caroline e Isaac passaram a caminhar
sozinhos, como um casal.
Uma criança correu na direção dela e agarrou em suas saias.
— Milady! — A menina disse, entusiasmada, ainda abraçada a Caroline.
— Que bom te encontrar!
— Olá, Vivian! Como está você, pequena?
A lady abaixou, ajoelhando-se no chão de pedras. Isaac soltou uma
imprecação baixa, não sendo rápido o suficiente para colocar um lenço no
chão e ao menos tentar impedir que ela se sujasse.
— Muito bem agora, milady. Mamãe ainda está se recuperando. O papai é
muito agradecido. Ele está em casa, mas viemos ao festival vender doces.
Atrás de Vivian, estava um garoto maior. Ele carregava uma cesta com
pacotes de doces e tortas. A mãe deles cozinhava muito bem e trabalhava na
cafeteria da vila, mas ficou doente e precisou se afastar.
— Vou comprar alguns, então. Quanto custam?
— Dois centavos cada.
Caroline pegou sua bolsa, mas Isaac colocou a mão enluvada sobre a
dela. Eles se encararam e ele sugeriu, apenas com o azul deslumbrante
daquele olhar, que ela deveria deixá-lo fazer aquilo.
— Dê-me dez de cada.
— Dez? — O menino com a cesta arregalou os olhos e Isaac puxou uma
libra do bolso. Era dinheiro demais, ele sabia, ela sabia, todos sabiam. Mas o
lorde parecia gostar de esbanjar para impressionar.
— Sim, eu gosto muito de doces.
As crianças contaram os pacotes e entregaram a Isaac, dentro de um saco
de papel. Ele agradeceu e entregou a moeda. Quando os irmãos tentaram
contar o troco, ele insistiu para que usassem o dinheiro para algo útil.
— Foi muito bondoso da sua parte. — Caroline disse, depois que as
crianças se afastaram. — E arrogante, também.
— Crianças não deveriam ter que trabalhar. — Ele divagou, apoiando a
mão sobre a dela, que envolvia seu antebraço. — Eu gosto de dar dinheiro a
elas sempre que posso, mas valorizo o trabalho delas para que não pensem
que seja caridade.
— Vê problema em caridade, Isaac?
— Não, claro que não. — Ele sorriu. — Mas vivemos em uma sociedade
que só dá valor ao desempenho de uma pessoa por seu título ou seu trabalho.
Ou você é portador de um título ou precisa trabalhar como um animal de
carga. Essas pessoas se sentem importantes quando o trabalho delas rende
frutos, quando são bem remuneradas.
Se fosse possível ficar mais fascinada por Lorde Isaac, Caroline não
esperava que o altruísmo e a maturidade dele conseguissem seduzi-la ainda
mais. Para algumas coisas, ele era extremamente ingênuo. Para outras,
parecia um homem maduro, experiente e muito sensato.
— Aprendeu isso com…
— Sou quase um fazendeiro. — O sorriso se alargou. — Aprendi com os
homens trabalhadores, milady. Mas, pelo que percebi, a senhorita também é
uma alma caridosa. Ajudou a família daquelas crianças.
— Eu sempre ajudo. — Ela confessou. — Desde que passei a ter lucro
nos meus investimentos, reservo parte dele para ajudar famílias que precisam.
Quando soube que a mãe deles estava doente, pedi que uma criada da
Granville House colaborasse nos afazeres domésticos, para o pai poder
trabalhar. Claro que paguei a criada um salário extra.
Caroline sempre sentiu necessidade de ser boa com as pessoas, porém
escondia essa faceta com medo de expor fragilidade. Vivendo em um
universo masculino e transitando entre homens, ela precisava ser forte.
Caridade era coisa de mulheres. Mas, como Isaac parecia também um homem
adepto da caridade, ela se sentiu confortável em contar a ele.
A multidão ficou mais difícil de desbravar. As ruas estreitas estavam
tomadas de pessoas. Isaac manteve a mão sobre a dela e acariciou seus dedos
por sobre a luva.
— Prefiro você sem elas. — Ele disse, em tom de voz baixo. Quase um
sussurro. Olhava para frente como se não quisesse que ela o ouvisse. Ou que
percebessem que ele estava abalado.
— Posso tirá-las, se quiser. Não me importo com luvas, apenas acho um
adorno bonito.
— Gostaria de ser eu a tirá-las.
Daquela vez ele a encarou. Caroline sentiu o ar fugindo de seus pulmões.
— Isaac…
— Não consigo parar de pensar em você, milady. Se não queria minhas
investidas, não deveria ter me beijado naquele vagão de trem.
— Mas você retirou sua proposta. Não quer mais que eu o desvirgine.
— Eu tirei minha proposta — ele manteve o olhar nela — porque ela era
ofensiva. Não porque eu não queira perder minha virgindade com você. Neste
momento, eu me sinto muito atraído por qualquer coisa que você faça e estou
a ponto de arrastá-la para um dos cantos escuros da via para explicar melhor
como me sinto.
Ela não devia tê-lo beijado, mesmo. Caroline tinha certeza que qualquer
envolvimento com Isaac McFadden era inadequado, indevido, uma tolice.
Mas por que não conseguia evitá-lo? Era tão boa em afastar homens
indesejados. E quando ele falava aquelas coisas…
— Isso é por causa da sua inexperiência. Qualquer mulher que o tocasse
de forma mais íntima despertaria isso em você.
— Eu já fui tocado antes. — Ele confessou. — Mulheres já se ofereceram
para… eu nunca desejei que elas continuassem a me tocar. Nem quis tirar-
lhes a luva.
Eles se olharam por longos segundos. Nada na expressão de Isaac
indicava que ele estava mentindo ou exagerando. Ele parecia tão honesto, tão
puro e inocente. E, ao mesmo tempo, totalmente devasso. Seus olhos azuis
transbordavam luxúria e ela tinha certeza que ele seria capaz de fazer coisas
bem indecentes.
— Venha comigo.
Ela o segurou pela mão e o puxou por entre as pessoas. Ninguém estava
prestando atenção neles, o movimento era frenético.
— Aonde estamos indo? — Isaac questionou ao ver que se embrenhavam
por entre as barracas e passavam pelos cordões de lamparinas.
— Conheço todos os lugares escuros dessa vila. De repente tive vontade
de tirar as luvas.
I SAAC SENTIU SUA BOCA SECA . Logo em seguida, estava salivando. A reação
incongruente de seu corpo era compatível com a ansiedade que o dominou
quando Caroline começou a arrastá-lo pelo meio das pessoas, passando por
barracas e se enfiando em becos escuros por entre as casas. A vila era bem
iluminada, mas passando as construções estava a praia. Apenas em frente ao
hotel havia lamparinas a gás para permitir que os hóspedes visitassem a areia
à noite.
Ele estava ardendo de desejo por Caroline Eckley. E fora indecente o
suficiente para confessar isso. Aquele não era bem o tipo de sedução que
esperava. Mas as palavras dele tiveram efeito libertador. Foi bom confessar
que não a queria por causa de um capricho masculino, mas porque ela o
encantava.
Ali, de onde estavam, dava para ouvir as ondas arrebentando. E não dava
para enxergar quase nada. Cobertos pelo véu da noite densa e pelos ruídos
das vozes das pessoas que conversavam animadamente no festival, Isaac e
Caroline dificilmente seriam vistos.
Ela parou quando os pés dele afundaram em alguma coisa fofa. Areia,
provavelmente. Recostou em uma parede de pedra e sorriu. Isaac não
conseguia ver muito, mas os dentes dela reluziram indicando que sorria.
— Logo seus olhos vão se acostumar. — Ela murmurou, a voz quase
engolida pela brisa que soprava. — Você quer tirá-las, agora?
Caroline colocou as duas mãos na frente do rosto de Isaac. Ela usava uma
luva de seda até os cotovelos, fechada por uma dúzia de botões pequeninos.
Aquilo não era uma peça de roupa, era uma tortura. O lorde segurou-a pelo
pulso direito e colocou os dedos nos pequenos botões. Eles eram lisos como
pérolas e ele tinha dedos com calos e a pele grossa.
Isaac não podia dizer que não tentou. A mão deslizava pela seda enquanto
ele abria um a um os botões em velocidade muito lenta. Mas alguma coisa
dentro dele estava agitada. Ele sentia arder as entranhas, o sangue em
ebulição, calor que o consumia como fogo. Quase todas as sensações se
concentravam em sua virilha. Ele já tivera uma ereção. Assim como já se
tocara com as mãos. Entendia o que era o prazer e sabia como obtê-lo, mas
nunca experimentara aquela reação visceral. Todos os seus sentidos
convergiam para o mesmo lugar.
E era o toque mais inocente que ele imaginava em relação a Caroline
Eckley.
— Se eu as rasgar, você ficará aborrecida?
A personificação de Lilith riu.
— Eu ficarei aborrecida se você não rasgar nenhuma peça de roupa
minha, hoje.
— Céus.
Ele agarrou a fileira de botões e puxou com força. Pequenas contas
peroladas voaram e caíram na areia enquanto ele arrancava o tecido e
descobria a pele macia do braço direito de Caroline. Depois, agarrou a mão
esquerda e não perdeu nenhum minuto tentando abrir nada. Arrebentou os
botões e puxou a seda, que escorregou pelos dedos longos e muito claros da
mão mais delicada que ele já vira.
Caroline estava recostada na pedra atrás dela. Parecia aguardar que ele
desse o próximo passo. Só que Isaac não sabia qual era. Sem querer perguntar
para ela o que deveria fazer, segurou as duas mãos dela entre as suas. Virou
as palmas para cima e beijou uma, depois a outra. Um beijo molhado, em que
ele fez um círculo com a língua em cada palma. Caroline emitiu um gemido
que o atingiu diretamente no membro estrangulado dentro das calças.
Ele a olhou e ela tinha razão. A visão se acostumou e era possível vê-la,
mesmo que mais sombras do que luz. Isaac então pegou as duas mãos e
colocou uma de cada lado de seu rosto. Ela enfiou os dedos na barba dele,
traçou os contornos do seu maxilar e puxou sua cabeça na direção da dela.
Sim, ela só beijava por inteiro. Tão logo a boca dele desceu sobre os
lábios macios e ansiosos de Caroline Eckley, ela o agarrou pelo pescoço e fez
com que os corpos se moldassem um ao outro. Não havia tecido suficiente
para mantê-los protegidos do desejo que queimava a pele. Isaac pressionou-a
contra a superfície na qual estava encostada e moveu seus quadris em direção
aos dela. Parecia a coisa mais certa a se fazer, era como se o instinto o
guiasse.
Então, o instinto o guiaria. O lorde fechou os olhos e desceu a boca pelo
pescoço de Caroline, passeando com a língua pela pele sedosa e levemente
salgada. Dava para sentir a pulsação dela exatamente ali. O coração de
Caroline estava acelerado. Ela estava excitada. Ela o queria, talvez tanto
quanto ele a queria.
— Sua irmã vai te procurar? — Ela disse, sussurrando sobre os cabelos
dele. Isaac beijou-a até o decote, que permitia expor a protuberância dos
seios. Sua boca permaneceu ali, no vale onde eles se encontravam, e ele quis
ir além.
— Provavelmente.
— Maldição, Isaac. — Ela soltou uma imprecação. — Por que trouxe
Wilhelmina com você?
— Porque ela queria vir ao festival… sou o homem da casa…
Caroline levou as mãos para dentro do casaco dele. Com habilidade, ela
desabotoou o colete e puxou a camisa de dentro das calças. Os dedos tocaram
a barriga de Isaac, que se retraiu.
— Isso é injusto. — Ele reclamou. — Vocês têm… muitas roupas.
— Na maioria das vezes, basta que você as levante. — Ela riu. Isaac
ergueu a cabeça e a encarou nos olhos. Caroline se divertia com a
inexperiência dele. — Não seja tolo, Isaac, tudo está disponível debaixo
dessas camadas de pano. Tente.
O ar ficou repentinamente pesado e ele não conseguiu respirar. Ela o
instigou com o olhar e ergueu a perna direita até o pé encostar nos quadris
dele. Isaac segurou-a pelo tornozelo e a mão deslizou por baixo das anáguas.
Caroline manteve o olhar firme sobre ele, enquanto os dedos exploravam a
panturrilha, a parte de trás do joelho, a coxa. Ela usava meia de seda preta
com bordados. Tão macia, mas não era o que ele queria tocar. A roupa íntima
começava no meio da coxa, absurdamente indecente. Ela riu e gemeu quando
ele encontrou a fita que amarrava a barra das calçolas.
Tateando com os dedos firmes, Isaac continuou a subir. O incentivo nos
olhos dela cessou quando Caroline gemeu e jogou o corpo para trás. Ele
estava acariciando a parte interna da coxa direita dela.
— Machuco você?
— Céus, não. — Ela riu. — É que… quanto mais perto você chega, mais
ansiosa por seu toque eu fico.
— E chegar perto te dá prazer?
Ela desceu o pé que estava apoiado nele para a região mais rígida de seu
corpo. Isaac quase gritou quando os dedos dela tocaram sua ereção.
— Você reage quando eu te toco aí, eu reajo quando você me toca lá. É o
mesmo tipo de prazer.
Ela não disse mais nada. Isaac nunca vira uma mulher real nua, nem
mesmo com roupas de baixo. Mas ele sabia o que encontraria ao chegar lá.
Continuou sua exploração, procurando em sua memória onde estaria o ponto
exato no qual os corpos deles poderiam se unir. Já havia visto alguns cartões
eróticos. As imagens estavam borradas e envelhecidas, mas…
Ele subiu a mão e encontrou uma abertura no tecido. Naquele momento,
Caroline estava imóvel, com a cabeça firmemente apoiada na pedra atrás
dela. Parecia antecipar alguma coisa. Ansiar por um prazer que ele temia não
saber dar. Os dedos dele entraram na abertura e ele sentiu os pelos macios
que cobriam aquela região no meio das pernas dela.
Aquele roçar suave fez com que ele ficasse ainda mais duro. Como seu
corpo sabia tão bem o que era para ser feito se ele nunca fizera? Ele então
acariciou-a e passou os dedos pela região que tocava, a parte mais íntima de
uma mulher. Queria poder vê-la. Entender como era. Os dedos escorregaram
para dentro da carne macia que estava úmida e quente.
— Meu Deus. — Caroline segurou-o pelo pulso e fez com que ele
parasse.
— O que houve? — Isaac ficou alerta. — O que fiz errado? Eu te
machuquei, Caroline?
Ela firmou os dois pés no chão e ajeitou as saias. Ele não estava
enganado, as mãos dela tremiam.
— Você não fez nada errado, milorde. — Ela riu e passou a mão pela
barba densa dele. — Definitivamente, nada errado. Mas não podemos
continuar fazendo isso aqui.
— Eu nem mesmo tenho certeza do que estávamos fazendo.
— Provavelmente, acha que sexo se resume ao seu pênis dentro de mim.
Homens...
A risada dela o constrangeu o suficiente para que Isaac começasse a
abotoar seu colete. Não queria ser motivo de chacota. Tudo o que ele sabia de
sexo era o que os homens falavam nos clubes. Nunca perguntou ao irmão
nem experimentou com uma mulher. Até aquele momento, ele sequer havia
tocado os joelhos de uma dama.
— Isso é sexo. — Ele afirmou, querendo demonstrar que aprendeu.
— Um prelúdio. Como a abertura de um concerto. — Ela passou as mãos
pelos cabelos dele, ajeitando-os. — Mas não estamos protegidos e me recuso
a roubar sua primeira vez dessa forma. Não pode acontecer sobre uma pedra,
no meio da areia, com toda essa roupa envolvida. Você é virgem, Isaac. Eu
seria uma pessoa horrível se não estivéssemos em uma cama, entre lençóis
macios.
O barulho continuava na vila. Ninguém daria pela falta deles, talvez nem
mesmo Wilhelmina. Isaac não se importaria de continuar. Por um momento
ele quis tanto Caroline que sentiu dor. Seu corpo precisava estar dentro dela,
movendo-se em um ritmo que ele ainda ansiava por descobrir.
— Leve Wilhelmina para casa. — Ela continuou. — Depois, volte para
Rhode Port e vá até a casa de hóspedes. Em silêncio, sem ser anunciado. A
porta estará aberta.
Depois da conversa com Anthony Eckley, Isaac sabia o que significava
aquilo. Era mais do que um convite, era a redenção. Ela daria a ele o que ele
precisava. Seu coração bateu acelerado mais uma vez.
— Mas milady, eu retirei aquela proposta horrível.
— Sim. — Ela sorriu. — E é exatamente por isso que eu estou fazendo
esse convite.
Claro que era. Sem se sentir ofendida por ele, ela dava vazão aos seus
desejos. Aquela era Caroline Eckley, uma mulher que respondia apenas a si
própria.
— Certo. Então… vamos?
— Quero ver os fogos de artifício. Estão preparando, consegue ver ali, ao
longe? Vamos aguardar.
Isaac recostou na pedra ao lado dela.
— Onde estão seus outros primos? Faz bastante tempo que não vejo
nenhum deles por aqui.
— Ah, eles estão espalhados por aí. O mais novo está em Oxford, ainda.
Robert está nas Índias. Ele tem negócios por lá, relacionado com a
importação e exportação de produtos exóticos. Leonard, aquele maluco, está
no Brasil. Acredita? Brasil!
— Parece bem longe. Fica nas Américas?
— Sim. Leo se meteu com um comerciante espanhol que foi parar no
novo continente. E tem Nick, que vive em Londres, mas quase nunca vem a
Kent. Ele costuma ir para Sussex, com a família da sua prometida.
— Nós dois temos famílias enormes.
Ele riu. Imagina se nos casássemos, foi o que pensou. Jamais diria aquilo,
nem de brincadeira. Caroline poderia interpretar equivocadamente e acabar
com sua expectativa. Isaac estava muito perto de ter o que seu corpo ansiava,
não podia estragar tudo naquele momento.
— Agora podemos ir. — Caroline se desencostou e ajeitou o cabelo.
— Ainda não vimos os fogos.
— Não tem problema. Já conseguimos distraí-lo o suficiente.
Ela olhou para baixo, mais precisamente para a virilha dele.
Imediatamente, Isaac entendeu que ela o estava fazendo desconcentrar do que
havia acontecido entre eles para que sua ereção não chamasse atenção de
ninguém. Como ela era esperta e sagaz naqueles assuntos.
Oferecendo o braço para que ela se apoiasse, ele os conduziu para fora
das sombras. Com cuidado, tentando não ser notado. Mas duvidava que
ninguém ouvisse seu coração martelando como um tambor dentro do peito.
CAPÍTULO SÉTIMO

P ARA NÃO CHAMAR A ATENÇÃO DE NINGUÉM , C AROLINE PEDIU QUE V IOLET A


ajudasse a se despir. Como havia saído, não pareceria estranho querer tomar
um banho antes de se deitar. Foi um pouco estranho que ela derramasse quase
um vidro inteiro de sais de banho na banheira de cobre. Ou que escolhesse
uma camisola diferente daquela que a camareira havia preparado. Ela estava
estranha, mas esperava que Violet fosse tola. Ou discreta o suficiente para
fingir não perceber.
A casa estava em total silêncio quando ela escapuliu pelos corredores. Era
provável que, naquele momento, Anthony e Rose estivessem recolhidos em
seus quartos. As crianças já estavam dormindo e os criados sempre eram
dispensados para seus aposentos depois da meia-noite.
Não era a primeira vez que Caroline escapava para encontrar um amante.
Porém, daquela vez, ela se sentiu como uma jovem que faria algo muito
devasso. Passou pelo corredor que interligava a mansão ao antigo chalé que
costumava hospedar visitantes inesperados, ou menos próximos da família.
Depois que a maioria dos filhos do marquês se mudou, quase ninguém mais
usava o espaço. Só a lady solteira que frequentava Granville House fora da
temporada.
Deixou as cortinas fechadas para evitar que vissem as luzes acesas.
Silenciosa, atiçou o fogo na lareira e acendeu uma a uma as lamparinas do
quarto. Eram três no total, fazendo com que o espaço ficasse muito
iluminado. Olhou para si mesma no espelho oval que ficava sobre o aparador.
Os cabelos estavam soltos, o roupão de veludo vermelho estava aberto e sua
camisola estava à mostra. Era a roupa de dormir mais sensual que ela tinha.
Nunca usara para homem algum.
Estava nervosa, e ela nunca ficava nervosa, também. Ruídos no andar de
baixo a fizeram alerta. A porta rangeu abrindo, depois fechando. Passos
firmes ecoaram na madeira antiga do piso, até que ela o viu subindo as
escadas.
Pela disposição do chalé, havia uma sala no primeiro andar, com
comodidades necessárias para um hóspede relaxar. Sofá, estante com livros,
lareira, uma pequena mesa para refeições. E, logo acima no andar superior,
um quarto grande, com antessala e quarto de vestir, que também era
composto com uma banheira. Assim que Isaac subiu o último degrau ele a
viu. Levou cinco segundos olhando para ela. E então deu dois passos até
tomá-la nos braços e beijá-la.
Caroline não esperava que ele fosse agir impulsivamente. Estava
preparada para guiá-lo pelo caminho, mas ele simplesmente a arrebatou. Se
não soubesse da inexperiência dele, poderia fechar os olhos e acreditar que
Isaac era um amante capaz de levá-la à loucura.
Talvez ele fosse. A boca dele pressionava a dela com volúpia. A forma
como a língua dele procurou pelos sabores que ela escondia, fez com que
Caroline retesasse nas mãos dele.
— Desculpe! — Isaac afastou a boca apenas para buscar algum ar. Ela
tinha certeza que não sabia mais como respirar. — Não queria parecer
ansioso, mas…
— Não se desculpe. — Ela o segurou pelo colarinho. — É exatamente
isso que você deve fazer.
Isaac voltou a beijá-la, com intensidade. Os lábios estavam vorazes e as
línguas se encontravam, veludo e seda, como se ambos tivessem fome.
Caroline aproveitou a proximidade para lhe desabotoar a camisa. Botão por
botão, ela expôs o peito firme e permeado por pelos que já vira e cobiçara
outras vezes. Os dedos percorreram suavemente a pele parcialmente desnuda
e ele gemeu sobre os lábios dela. Com a mão nas nádegas de Caroline, Isaac
puxou-a para si e pressionou-a contra sua masculinidade.
— Temos que ir mais devagar. — Ela desceu os beijos para o pescoço
dele e terminou de despir a camisa branca.
— É para ser devagar?
— Se formos rápido demais, vai parecer incompleto. Esse momento deve
ser saboreado. Eu vou despi-lo, depois você fará o mesmo por mim. Vamos
nessa ordem.
A respiração dele acelerou, mas Isaac não disse nada. Não concordou,
não se afastou. Deixou as mãos caírem ao lado do corpo e esperou. O peito
dele subia e descia, com o ar inflando seus pulmões. Ela o empurrou para
uma poltrona que ficava próxima à lareira e se ajoelhou. Sem pressa, retirou-
lhe as botas. Depois, abriu os botões da calça, um a um, permitindo que os
nós dos dedos roçassem na ereção que urgia por se libertar.
Quando Isaac se levantou, as calças caíram e ele terminou de retirá-las.
Caroline finalmente pode escrutinar Isaac completamente nu.
— Precisamos mesmo de tanta luz? — O lorde estava corado,
nitidamente envergonhado por estar tão exposto enquanto ela ainda
preservava seu roupão.
— Ah, claro que precisamos. Sem iluminação, como eu poderia ver tudo
isso?
Caroline passou as mãos pela lateral do corpo dele, descendo até os
quadris. Ela queria tocá-lo ali. Segurá-lo entre os dedos, até mesmo beijá-lo.
Mas isso poderia prejudicar o seu desempenho. Ela nunca teve um virgem em
sua cama, mas já ouvira os homens comentando sobre aqueles que chegavam
muito depressa ao orgasmo.
— Sua vez. — Ela se ofereceu a ele. Isaac estava nervoso, mas as mãos
dele foram firmes ao retirar o roupão. A camisola dela tinha apenas um laço
no decote, que ele desfez em um segundo e derrubou a peça de roupa no
chão.

C ÉUS , Caroline Eckley era linda! No instante em que a camisola branca dela
caiu ao chão, ele entendeu por que as lamparinas acesas. Vê-la ali, despida,
em suas formas perfeitas e frágeis, já era suficiente para fazê-lo desejá-la
além do decoro. Seus olhos se perderam por segundos nos seios redondos e
que cabiam perfeitamente em suas mãos. Depois, desceram para o triângulo
de pelos entre as pernas, o lugar que ele tocou enquanto estavam na praia.
A boca dele salivou. Ele quis beijá-la em todo lugar.
— Duvido que seja fácil assim toda vez.
Isaac olhou para a pilha de roupas no chão. Ele queria jogá-la na cama e
colocar um fim ao seu tormento, mas ela disse que deveriam ir devagar.
Caroline era a mestra ali. Ela comandaria o espetáculo.
— Na noite de núpcias, provavelmente será. Ela vai se preparar para estar
na sua cama. Mas eventualmente você enfrentará botões, espartilhos, roupas
íntimas, meias e muito tecido para chegar ao que deseja.
O que ele desejava estava ali à sua frente. À distância de um braço. Ela
sorriu ante a indecisão dele e segurou-o pela mão. Puxou-o para a cama,
deitando-se sobre o colchão e se esticando nos lençóis brancos. Como uma
deusa pagã, disponível para ele.
— Venha.
Ela estendeu os braços e ele se deitou por sobre ela. O coração de Isaac
martelava no peito, quase a ponto de abrir um buraco e sair. Teria sido dessa
forma se ela tivesse atendido ao seu pedido quando ele a visitou em Londres?
Aquela ânsia, aquela sensação de que todos os sentidos do corpo convergiam
em apenas uma parte específica? Isaac duvidava.
Ele a tomou na boca outra vez, acomodando-se de forma a colocar um
joelho entre as pernas dela. Caroline deslizou as mãos pelas costas dele e
segurou-o pelas nádegas. Isaac gemeu e apoiou a testa na dela. Ofegante. Seu
membro dolorido de tanto desejo pulsava naquela região quente e úmida do
corpo dela.
— Isaac. — Caroline murmurou, beijando-o no pescoço. — Deixe seu
corpo guiá-lo. Não há nenhum mistério, é puro instinto. Só há um lugar onde
você queira estar agora. Qual é? Tome posse dele.
Posse. Sim, ele queria possuí-la naquele momento. Ajeitou os quadris
sobre ela e se moveu, conduzindo sua ereção impaciente na direção da carne
macia. Ele foi devagar, temendo machucá-la, temendo se perder pelo
caminho. Caroline não era virgem, mas ele estava muito ansioso. Ela arqueou
as costas e levou seus quadris de encontro ao dele. Isaac não resistiu e
penetrou-a o mais profundamente que pode.
Com um rosnado gutural, vindo do fundo de sua alma, ele reivindicou a
boca dela. A sensação de estar dentro daquela mulher era ridiculamente
deliciosa. Caroline mantinha as mãos nos quadris dele e provocou-o a se
mover. Ela tinha razão, era instinto. O corpo sabia o que queria, e ele queria
entrar e sair, ir e vir, mergulhar no fundo da feminilidade dela e voltar à tona.
Uma vez, duas vezes, três. Até que fosse muito difícil parar.
Não foi como nas vezes em que ele procurou alívio escondido na casa de
banho, por vezes dentro da banheira para abafar qualquer ruído. O prazer
solitário o permitia esperar, mas ele duvidava que fosse se satisfazer sozinho
depois de ter experimentado aquilo. Os músculos de Caroline o envolviam
com tanta força e maciez que ele poderia realmente ter se perdido dentro dela.
Com as sensações mais intensas, ele foi mais rápido e mais fundo até ser
engolido pelo orgasmo.
Seu corpo trêmulo precisava descansar. Ele não queria sair de dentro dela,
não queria soltar o peso de seu corpo sobre ela. Caroline pareceu
compreender sua hesitação e girou sob ele, fazendo com que Isaac deitasse as
costas no colchão. Subitamente ela estava por cima, as pernas entrelaçadas,
apoiada por inteiro no peito dele.
— Eu… — O lorde quis dizer algo. — Não deveria ter esperado tanto. É
por isso que os homens são tão devassos, porque é…
— Sim, eu sei que é. — Ela riu, a boca encostada nele.
— Você sente o mesmo? É… assim para vocês, mulheres, também?
— Ah, sim. É quase igual, eu acredito.
Isaac a abraçou. Ele quis puxá-la para bem perto, ficar ali apenas agarrado
a ela, sentindo o cheiro do que acabaram de fazer. Tinha cheiro. Pungente,
salgado, de suor e fluídos corporais. Mas sua cabeça estava girando em várias
direções. Seria difícil para ele simplesmente fechar os olhos e relaxar.
— Caroline. — Ele murmurou sobre a cabeça dela. Beijou-a nos cabelos.
— Isso que fizemos não foi arriscado? Quero dizer, você… pode engravidar?
Ela ergueu os lindos olhos castanhos e o encarou. O cabelo desgrenhado e
as bochechas rosadas a deixavam ainda mais linda.
— Sim, mas eu tomei precauções. Tinha certeza que seria impossível para
você se retirar na hora, então eu usei uma esponja. Aliás, eu preciso me
levantar.
A mulher se ergueu, preguiçosa, e caminhou até uma porta que Isaac não
teve tempo de perceber. Ele ouviu água sendo despejada em uma bacia.
— Eu ainda tenho muito que aprender. O que é uma esponja?
Caroline respondeu de dentro do banheiro.
— É um método contraceptivo. É comum para as mulheres embeber uma
esponja com limão e usar para matar a semente do homem. Mas não podemos
deixar muito tempo aqui dentro.
— Aqui dentro…
— Para onde acha que vai sua semente, Isaac? Não fique pensando muito,
essa é uma tarefa da mulher. Existem formas dos homens se prevenirem
também, podemos conversar sobre elas.
Ele se ajeitou com os braços atrás da cabeça. Olhou para o dossel acima
de si. Também não havia percebido que estavam em uma cama com dossel.
Cortinas de seda desciam de uma construção imponente de madeira escura.
Estavam bem amarradas para permitir que a cama ficasse bem iluminada.
Caroline retornou, muito à vontade com sua nudez, e se deitou ao lado dele.
— Com o tempo você aprende mais. Eu ensino. Quanto tempo tem para a
dama italiana retornar a Kent?
— Assim que a temporada social terminar. Por quê? O que quer dizer?
— Decidi que posso ensiná-lo o que sei. — Ela beijou-o rapidamente nos
lábios. — Temos três semanas, então. Talvez um pouco mais. Nesse tempo,
você pode compartilhar a cama comigo e eu te ajudo a não ser um homem
inexperiente na sua noite de núpcias.

E LA NÃO FAZIA a menor ideia dos motivos que a levaram simplesmente a


ceder tudo. Convidá-lo para a casa de hóspedes, fazer amor com ele, oferecer
mais do que fora proposto inicialmente. Caroline não tinha ideia de como
aquilo começara, mas não podia negar que estava seduzida por Isaac
McFadden. Ele era lindo, viril e muito forte. E era encantador que ele fosse
tão inexperiente. A lady tivera sua quota de homens dominadores e
arrogantes, que podiam copular em todas as posições do Kama Sutra. Tirando
seu primeiro amante, todos os outros que estiveram entre seus lençóis eram
extremamente conhecedores da arte do sexo.
Foi delicioso ser tocada por mãos tão inocentes. Mãos com calos e
trêmulas. Era delicioso tê-lo ali, tão à mercê dela e de tudo que ela podia
fazer com ele. Então, ela não queria parar por ali. Não estava satisfeita por tê-
lo uma vez. Queria mais. Por dez segundos, que duraram uma eternidade, ela
aguardou que ele dissesse algo. E então ele sorriu.
— Eu me sinto lisonjeado, milady.
— Agora descanse. — Ela se deitou na curva do braço dele. Isaac a
envolveu e puxou para seu peito. Ele tinha um cheiro tão masculino, tão
poderoso. Não era nada como os nobres quase insípidos com quem se
relacionava diariamente, nos clubes e nos negócios. Não que ela enfiasse o
nariz no peito de todos eles. Mas muitos pareciam não tomar banho todos os
dias, ou usar tanta colônia que fazia com que cheirassem a uma perfumaria.
Sem contar as roupas engomadas e com cheiro de sabão.
Isaac não. Ele era puro suor e sândalo. A nota do perfume era quase
imperceptível.
Ficaram em silêncio por minutos. Ela fechou os olhos e se deixou
envolver pelo calor da pele do homem ao seu lado. Poderia dormir ali, e
provavelmente iria. Mas…
— Creio que já devo ir embora. — Isaac murmurou. — Está bem tarde.
— Seu cavalo está em segurança?
Ela não o encarou. Deixou os dedos passearem pelos fios dourados que
cobriam toda a extensão do peito dele.
— Sim.
— Então está tudo bem. Ninguém vem ao chalé de hóspedes. E Violet
não deixaria que ninguém nos incomodasse.
— Sua camareira sabe que estamos aqui.
— Ela sabe que eu estou. — Caroline beijou-o. A boca roçou suavemente
no mamilo dele. — Isso é suficiente.
— Você está me provocando. — Foi uma afirmação. Claro que ela
estava. Acomodada preguiçosamente nos braços dele, deixou que sua língua
contornasse o mamilo masculino até que ele despontasse, túrgido. Isaac
soltou um gemido que mais pareceu um ganido. — Caroline, por Deus. Eu
vou acabar desejando possuí-la novamente.
— Estou contando com isso, milorde. — A risada não pôde ser contida.
— Então você gostou? — A voz dele vacilou na pergunta. — Eu fiz
certo?
— Fez. E eu gostei.
Isaac inverteu a posição na cama. Deitou-se de lado, jogando-a sobre os
lençóis, e apoiou a cabeça no braço. Fitou-a por longos segundos. Toda vez
que ele a observava daquela forma, Caroline sentia como se estivesse
derretendo de dentro para fora. Não havia, no mundo, olhos mais azuis e mais
intensos do que os de Isaac McFadden.
— O tom de sua voz não sugere que tenha gostado. O que fiz de errado?
Me diga.
Ele não poderia ser tão sensível a ponto de perceber sutilezas na fala dela.
Poderia? Ela passou a mão pela barba dele. Era deliciosa e ela imaginou qual
seria a sensação de tê-la arranhando a carne entre suas coxas.
— Não foi nada. É que eu sou peculiar. A forma como eu sinto prazer é
um pouco diferente. Eu nem sempre consigo ter um orgasmo apenas com um
homem dentro de mim. Na maioria das vezes eu preciso de outras coisas.
Aquele assunto a incomodava. Caroline não o discutia com ninguém,
apenas com alguns homens com quem já se deitara. Poucos conheciam
aquela sua condição. A maioria das mulheres mal sabia o que tinha entre as
pernas, e ainda assim conseguia extrair o máximo prazer dos intercursos
sexuais com seus maridos. Isso quando eles eram cuidadosos e preocupados
com elas, claro.
Mas Caroline era diferente. E isso a frustrava frequentemente. Naquele
momento, não estava frustrada. Nem insatisfeita. Só achava que devia a
verdade ao homem depois de tê-lo roubado a virgindade. Bem, ela não
roubou. Ele a entregou de bom grado.
Isaac passeou os dedos levemente sobre ela. As pontas tocando os seios,
depois a barriga, então os seios novamente.
— Na praia, se eu tivesse continuado o que estava fazendo, você
experimentaria esse prazer que eu experimentei, agora?
Ela assentiu apenas movendo a cabeça. Ele desceu os carinhos para as
coxas e os pelos castanhos de sua feminilidade.
— Esse é seu segredo?
— Não é um segredo. — Caroline segurou o dedo indicador dele e
colocou entre os lábios de seu sexo, exatamente no feixe de nervos que
ansiava por receber atenção. — Essa é uma das partes mais sensíveis do
corpo feminino. Tocar qualquer mulher nesse lugar fará com que ela sinta um
prazer imenso.
A expressão dele era de atenção máxima. O lorde passou os dedos pela
feminilidade dela em um tímido reconhecimento. Afastou os cachos
castanhos, acariciou-a intimamente. O toque era delicado e bruto, ao mesmo
tempo. Nenhum homem que ela conhecia tinha mãos como as dele. Caroline
não queria fechar os olhos, preferia olhar para ele e admirar. Mas um período
longo demais de abstinência fez com que ela ficasse muito sensível.
Acomodando-se entre as pernas dela, Isaac fez com que as coxas se
abrissem. A exploração ficou mais intensa. Ele a estava olhando ali, as partes
femininas inchadas e já úmidas pelo estímulo. Caroline podia sentir o calor
daqueles olhos azuis enquanto ele acariciava-a no clitóris.
— Isso. — Ela soltou um gemido profundo, sentindo as ondas de prazer
que vinham para arrebatá-la. — Isso mesmo.
Incentivado, ele prosseguiu. Circulou o botão intumescido e pulsante com
o polegar, acariciou-a com excessiva delicadeza até que ela não aguentasse
mais. O prazer violento que a arrebatou não era desconhecido, mas nunca
Caroline o experimentara por mãos tão inexperientes. E ela adorou.
O ATO sexual o deixou exausto, e Isaac acabou adormecendo. Preocupou-se
que soubessem que ele estava ali. Que o vissem sair de manhã. Decidiu que
iria embora antes do nascer do sol. Mesmo que Caroline não se importasse
com sua reputação, ele acreditava que seria muito desagradável que
suspeitassem do que estavam fazendo ali. Aquele tipo de intimidade deveria
ser exclusivo entre marido e mulher. Não entre solteiros, de forma tão
descompromissada. Ela podia não se importar com o decoro, porém ele
queria ser cuidadoso por ambos.
Mas ele dormiu. Despido, entre lençóis que cheiravam a suor e sexo, ao
lado do único corpo feminino que ele já vira e tocara. Despertou com o fogo
da lareira bem baixo. As lamparinas apagadas e o sol prestes a nascer. O
quarto estava com um aspecto melancólico. Percebeu-se deitado de lado com
Caroline aninhada contra seu peito. E seu membro ficou rígido quando
acordou em contato com o traseiro macio da mulher.
Como tinha sido tolo em pensar que poderia ter uma noite de sexo com
Caroline Eckley e se tornar um mestre na arte do prazer. Não aprendeu quase
nada, nem estava satisfeito. Seu corpo ansiava por mais. Instintivamente, ele
enfiou o nariz entre os cabelos dela. Sorveu o aroma do corpo feminino de
manhã. Era a primeira vez que fazia amor com uma mulher e já passara a
noite com ela. Aquilo parecia muito certo de todas as formas.
Caroline se moveu e virou. Isaac contraiu todos os músculos quando
sentiu os lábios dela tocando-o no peito. Calor subiu por suas entranhas.
— Bom dia. — Ela disse com a voz abafada na pele dele. Depois, passou
as pernas por sobre as dele e aproximou-se perigosamente da masculinidade
que já ansiava por aquele contato. — Adoro essa disposição matinal.
— Eu provavelmente deveria estar satisfeito.
— Seria estranho se estivesse. Eu também não estou.
Caroline beijou-o no ombro, depois no pescoço. Percorreu a pele dele
com a língua.
— Mas preciso ir.
— Tem alguém te esperando fora dessa cama? — A lady ergueu o olhar,
encarando-o diretamente.
— Não agora. Mas ninguém deve saber que estou aqui. Sua reputação
estaria arruinada e…
— Eu cuido de minha reputação. Eu ainda preciso te mostrar alguns
truques.
Ela riu, a risada abafada novamente no peito dele. Caroline empurrou-o
para trás e ele desabou com as costas no colchão. Em outro movimento
rápido, subiu sobre ele, acomodando-se com as pernas ao redor dos quadris
de Isaac.
Os músculos dele retesaram outra vez quando ela desceu a boca para a
sua barriga e começou a beijá-la. Escorregando por sobre ele, a lady desceu
os beijos até a coxa, depois subiu novamente até ter, entre seus dedos, o pênis
rígido. O toque o fez arquear as costas. Ela então se ajeitou sobre o membro
masculino e o envolveu com os lábios. Daquela vez, o homem cravou os
dedos no colchão.
Caroline o beijou sabendo o que fazia. Passou a língua ao redor,
conduziu-o ao fundo da boca, segurou firme com os dedos pequenos. Era
delicioso e ele teve certeza que estava perto de atingir o ápice do prazer
quando ela parou. Ergueu a cabeça, deslizou por sobre as pernas dele e
conduziu-o pra dentro dela.
— Agora você vai aprender como não engravidar uma mulher. Ao menos,
a forma que os homens acabam preferindo.
Com um movimento suave de quadril, ela o inseriu completamente dentro
de sua feminilidade. Isaac gemeu, as mãos segurando-a pelos braços. Os
olhos estavam vidrados nela. O desejo de possuí-la se intensificava a cada
segundo que permanecia ao lado daquela mulher. As mãos correram para os
seios dela e Isaac os segurou como se eles fossem joias preciosas. Ele então
se sentou, acomodando-a em seu colo, e levou-os à boca.
Ela pareceu apreciar bastante o gesto. Isaac sugou os mamilos, provocou-
os com a língua, sugou novamente. Fez com que ela gemesse e rosnasse
enquanto subia e descia em um movimento tão suave que parecia tortura. Ele
a jogou sobre o colchão e se posicionou por cima.
— Diga-me o que fazer.
Ele estocava fundo, procurando o maior contato entre os corpos.
— Quando estiver perto de… quando você estiver perto de gozar, precisa
sair de dentro de mim. Posicione-se sobre minha barriga.
— O que vai acontecer?
— Sua semente será derramada do lado de fora.
Isaac não conseguia parar de se mover. Ela dizia que não atingia o prazer
máximo daquela forma, mas parecia gostar bastante do que ele fazia. Quando
ela cravou as unhas nos ombros dele, o lorde sentiu que sua respiração ficava
mais acelerada e o clímax se aproximava, inevitavelmente. Sentiu um pouco
de medo, mas ela confiava nele. Com mais algumas estocadas firmes, as
ondas do orgasmo o arrebataram e ele saiu, sentindo-se aliviar exatamente da
forma como ela dissera que seria.
CAPÍTULO OITAVO

S EM MÁSCARAS . Q UANDO CHEGOU PARA TOMAR SEU DESJEJUM COM A


família, Caroline não usava nenhum de seus artifícios tradicionais para
esconder quem ela realmente era. Havia um sorriso em seu rosto e ela tinha
certeza que seus olhos brilhavam. Era uma grande tolice que estivesse tão
bem depois de passar uma noite com Isaac McFadden. Mas ela estava.
Sentia-se revigorada, satisfeita e faminta.
Rosamund logo percebeu que algo nela estava diferente. A esposa de
Anthony não era muito observadora. Não, ela era bastante observadora para
elaborar suas pinturas. Mas isso a tornava absurdamente distraída para muitas
coisas. Se não fosse um objeto de seu interesse, Rose raramente prestava
atenção suficiente. E Caroline era uma prima querida, mas não tomaria parte
nas obras da artista.
— O festival foi bom?
Ela perguntou, passando manteiga em uma torrada. Caroline sentou-se à
mesa e Marquesa se arrastou até os pés dela. A criada serviu chá e colocou
um prato de bolinhos à frente da lady. Depois, o mordomo trouxe presunto e
ovos. Ela atacou a comida como se não comesse a dias.
— Sim, muito bom. Tivemos fogos de artifício.
— Imagino que deva tê-los aproveitado bastante.
A implicação era clara. Mesmo que ninguém soubesse que Caroline
esteve com Isaac no chalé de hóspedes, ela saiu com ele para o festival.
Aquilo era absurdamente fora dos padrões. Não que Caroline se importasse
muito. As outras pessoas, no entanto, prestavam atenção.
Anthony chegou para fazer companhia às mulheres e Caroline decidiu
não falar mais. Ela ainda não descobrira o que ele conversou com Isaac e não
queria ter que ouvir nenhum sermão. Mesmo ainda com fome, ela se
restringiu e pediu licença para sair.
— Vou cavalgar. Depois, visitarei a Sra. Lange para saber se ela
melhorou.
— Teve resposta sobre o evento? A condessa lhe escreveu aprovando o
convite?
— Ainda não. Mas creio que deva receber algo hoje ainda. Em algumas
semanas, a casa estará tão cheia de damas que vai parecer um convento.
A referência à castidade e o decoro das damas da sociedade, e da maioria
da burguesia, era sempre feita com desdém. Caroline não ligava para aquele
comportamento excessivamente contido. Algumas mulheres eram devassas
entre quatro paredes e traíam seus maridos com amantes impetuosos. Era
comum que uma mulher nobre casada procurasse prazer na cama de outros
homens. E algumas eram tão ingênuas em relação ao relacionamento entre
homens e mulheres que viviam frustradas e com medo de seus maridos.
Depois de trocar-se para as calças de montaria, pouco cobertas por uma
saia curta e um corpete, Caroline pediu que preparassem sua égua. Marquesa
andou atrás dela, pretendendo ser incluída no passeio.
O caminho favorito da lady passava por uma área verde, com vegetação
rasteira, arbustos floridos e árvores típicas do litoral. Não havia uma praia na
propriedade dos Eckleys. Se quisesse nadar, tinha que invadir Greenwood
Park ou cruzar Rhode Port até a vila. A ideia de invadir as terras dos
McFadden era divertida, mas ela não pretendia encontrar Isaac naquele dia.
Ficara muito mais abalada pela noite compartilhada com ele do que esperava.
Precisava de um tempo.
A égua trotava devagar e Caroline aproveitava a calmaria para tomar sol.
Tirou o chapéu para sentir o calor diretamente na pele. Os cabelos estavam
trançados para não se rebelarem com a maresia. Marquesa começou a latir
para alguma coisa que a lady não identificou. Quando chamou a cadela de
volta e mandou que sossegasse, a égua empinou.
Uma cobra passava pelo caminho. O réptil sequer interrompeu sua
trajetória, mas a égua se assustou e derrubou Caroline no chão. A lady bateu
com o lado esquerdo do quadril no chão. A dor aguda quase a fez gritar.
Marquesa continuou a latir, espantando a cobra para longe.
— Maldição. — Ela reclamou. — Não consigo me levantar. Marquesa!
Preciso que vá chamar ajuda.
A cadela se sentou ao lado dela e observou. Caroline não tinha certeza se
Marquesa compreenderia seu pedido. Claro que não, era um cão, afinal de
contas. Mas era um cão esperto.
— Vá para casa. Chame Anthony ou algum criado! Chame ajuda.
Saindo em disparada, Marquesa deixou Caroline meio sentada no chão
coberto de flores. Era um lindo cenário, bastante romântico. De um lado,
pedras e rochedos formavam a costa da enseada. Ali, onde ela estava, um
campo de flores e algumas árvores próximas da borda do terreno. A égua
manteve-se parada depois do susto. A dor irradiava pelos ossos. Ela esperava
sinceramente que a cadela fosse mais esperta do que ela.

L ORDE NÃO PARAVA DE LATIR . Isaac estava parado no sol, em mangas de


camisa, sem colete, sentindo o suor lhe escorrer pelo corpo. O conserto do
silo estava sendo mais desafiador do que ele esperava. Havia um
comprometimento na estrutura e eles precisavam reforçá-la antes de
prosseguir. E o maldito cão rodeava e latia sem controle.
— Acho que o bicho não gosta de ser ignorado.
Um dos trabalhadores disse. Isaac desviou rapidamente os olhos para
onde Lorde estava. Parecia perseguir um animal selvagem qualquer.
— Ele tem muita energia. — Outro trabalhador se pôs a explicar. — É
como um moleque, só que tem quatro pernas.
O cão se afastou e o ruído dos latidos diminuiu. Um dos engenheiros
segurava uma planta do silo nas mãos e dava ordens sobre o que deveria ser
feito. Isaac já arrastara madeira para lá e para cá e, naquele momento, estava
observando a construção para tentar entender o que poderia estar errado. Ele
não entenderia. Estudou administração de negócios na faculdade, não sabia
construir prédios.
Mais latidos o distraíram. A bagunça do dia era bem-vinda, fazia com que
ele não pensasse em Caroline. Desde que saíra da cama dela, Isaac estava
com uma estranha sensação de saciedade e vazio. Ao mesmo tempo. Teve
muita fome, comeu mais do que estava acostumado no café da manhã.
Procurou ocupar-se desde cedo para tentar afastar as memórias da noite, mas
não conseguira.
— Agora são dois.
Isaac olhou para o lado e lá estavam eles. Lorde e Marquesa, correndo em
sua direção. E latiam. Marquesa estava muito agitada. Ele procurou por
Caroline e não a viu. Nem caminhando, nem cavalgando. Os cães
continuaram a se aproximar e Marquesa parou próximo de Isaac, latindo
muito.
— O que houve? — Isaac ajoelhou-se quando a cadela parou de correr.
— Por que está aqui sem sua acompanhante? Aonde está Lady Eckley?
A cadela latiu mais. Lorde latiu também e correu. Voltou para perto,
correu mais. Isaac tentou afagar a cabeça da cachorra, ela permitiu. Em
seguida, prendeu a mão dele entre os dentes e puxou. Ele se assustou, ela
latiu novamente. E Lorde continuava indo e vindo.
— Acho que eles querem que o senhor os siga.
O engenheiro parou o que estava fazendo para observar o movimento dos
cachorros.
— Para onde?
— Tenho um par de cães, muito espertos. Eles sempre me chamam assim
quando alguma coisa os incomoda. Veja como faz o Setter, ele está
mostrando o caminho.
Desacostumado com animais, Isaac não sabia o que fazer. Se seguisse os
cães, ao menos eles parariam de latir e importunar os trabalhos no silo.
Colocou o chapéu na cabeça e indicou, com um gesto, que iria atrás de
Marquesa e Lorde. Quando perceberam que ele os estava acompanhando, os
dois começaram a correr. E continuavam latindo.
Os cães estavam nas terras de Rhode Port, indo em direção à borda. Em
breve, chegariam às rochas e teriam que parar. Havia um penhasco ali, muito
perigoso, e Isaac esperava que eles não fossem até ele. Para sua sorte, os cães
diminuíram o ritmo e ele conseguiu ver a égua de Caroline. Aproximando-se
mais, viu-a estirada no chão.
Marquesa colocou-se ao lado dela e recebeu um afago. Isaac correu
quando imaginou que a lady certamente estaria ferida. Ela parecia estar
apreciando o sol, sentada na relva. Mas ela tinha uma expressão de dor que o
fazia ter certeza que havia algo errado. Ajoelhou-se ao lado de Caroline e
segurou-a pelos dois braços.
— Você está bem?
— Ora, Marquesa… eu pensei que havia pedido para ir à casa chamar por
ajuda. Você foi atrás do seu namorado Lorde?
A cadela latiu e se sentou. Lorde estava posto ao lado dela. Os dois cães
pareciam estar se dando muito bem. Isaac imaginou que o Setter estivesse por
perto quando o Galgo Afegão saiu procurando ajuda. E eles foram buscá-lo.
— Eles são notáveis. — Ele riu. — Não pararam de latir enquanto eu não
vim até aqui. O que houve, Caroline? Você caiu?
— Sim. Raiada empinou e me derrubou. Não foi culpa dela, ela viu uma
cobra. Mas bati muito forte no chão e não consigo me levantar. Dói apoiar a
perna no chão.
Isaac preocupou-se. Passou as duas mãos pelos braços que segurava,
percebendo que estavam sem ferimentos. Havia folhagem presa nas rendas do
vestido. Caroline não usava um casaco de passeio nem chapéu. Aquelas
roupas de montaria indecentes eram compostas de uma saia muito curta e
calças que delineavam as formas do corpo dela. As memórias de tê-las tocado
continuavam ali. Ele conhecia a textura e o calor da pele de Caroline. Não
tinha como ignorar aquilo.
— Onde está doendo?
— Aqui. — Caroline colocou as duas mãos em seus quadris, no lado
esquerdo. — Mas quando eu levanto, sinto dor na perna inteira.
Ele estava suado e suas roupas não eram dignas nem mesmo para que ele
estivesse conversando com Caroline. Mas não podia deixá-la ali até se lavar e
se vestir adequadamente. A alternativa era levá-la de volta à Granville House
naquelas condições. Sem considerar opções, Isaac segurou a dama em seus
braços e ergueu-a do chão.
— Consegue ficar sobre o cavalo?
— Não sei, eu não tentei.
— Vou colocá-la na sela. Veja se consegue passar a perna para o outro
lado.
Caroline assentiu e Isaac ergueu-a ainda mais alto. Ela era leve como uma
pluma, bem menor do que geralmente aparentava. Ele nunca a vira tão frágil
e delicada como naquele momento. Isaac considerou subitamente que a
grandeza de Caroline Eckley não estava em sua compleição física ou em sua
força muscular, mas em seu espírito. Ela nunca se diminuía nem permitia que
alguém o fizesse.
Mesmo assim, ela não parecia constrangida em tê-lo ajudando-a. Ao
sentar-se na sela, ela fez uma careta e passou a perna com um gemido. Sentia
dor, mas não fez nenhum drama. Aprumou as costas e respirou
profundamente.
— Vou conduzir a égua para Granville House. — Isaac segurou os arreios
e virou-se na direção da mansão dos Eckleys.
— E SPERE . — Caroline disse, fazendo com que ele parasse. Isaac olhou para
ela, o azul transparente de seus olhos reluzindo a luz do sol. — Eu preciso
visitar uma pessoa, antes.
Ele a fitou e exibiu um sorriso. Maldito McFadden, como ele podia ser
ainda mais lindo do que todos os outros homens lindos que ela já conhecera?
— Milady, você nem mesmo consegue pisar no chão. Seja lá quem
precise visitar, essa pessoa certamente entenderá sua ausência quando for
explicada.
— A cesta no lombo de Raiada está cheia de iguarias que estou levando
para a casa do ferreiro. A Sra. Lange está doente e eu pretendo fazer com que
essa comida chegue às mãos dela.
Isaac tirou o chapéu e coçou os cabelos dourados. Ele era o menos loiro
dos irmãos. Ao menos seu cabelo parecia menos claro, quase um castanho
com mechas cor de âmbar. Naquele lindo dia de final de primavera, no
entanto, ele reluzia como se fosse inteiramente feito de ouro. Caroline
segurou uma risada. Ela estava sendo incrivelmente piegas.
— Se eu a levar até a casa do ferreiro, você promete voltar para casa
depois e repousar? Talvez a queda não tenha causado nada além de uma
contusão, mas seria prudente ver um médico.
— Eu prometo repousar. Não gosto de médicos.
Não, ela não gostava de médicos. Toda lembrança que tinha de morte
estava conectada com médicos. Os pais, o marquês, a marquesa. Em todas
essas perdas, havia médicos envolvidos. Sua teimosia poderia fazer com que
um homem desistisse de ajudá-la, ou simplesmente impusesse sua vontade.
Mas Isaac apenas moveu a cabeça em concordância e começou a caminhar,
guiando a égua.
— Será uma longa caminhada. — Ela disse ao confirmar que ele
pretendia andar até o destino que ela estabelecera.
— Sei disso. Já estive na casa do ferreiro antes, para pegar algumas peças
que ele consertou para a fazenda. Estou acostumado a andar, milady.
— Parece desnecessário. Já cavalgamos no mesmo cavalo, antes.
— Sim. E foi uma experiência muito agradável. Mas agora não é
adequado, pode fazer com que sinta dor.
Ele parecia preocupado com o bem-estar dela. Caroline não podia negar
que era bom receber a atenção masculina por razões que não a beleza de seu
corpo e sua expertise na cama.
— O que tem a Sra. Lange?
Foi a vez de ele puxar assunto. Os cães estavam um pouco à frente,
correndo e brincando. Isaac também pareceu um pouco desconfortável com o
silêncio.
— Gripe. Pedi que o médico da vila fosse vê-la. Ele prescreveu caldos e
repouso, mas algumas pessoas podem morrer de gripe. Quero levar algum
conforto para a família, também.
— Eu não sabia que você costumava cuidar tanto das pessoas.
O passo de Isaac diminuiu. Ele tirou o chapéu e passou a manga da
camisa para secar o suor da testa. O sol estava mais forte do que deveria para
aquela época do ano. Caroline não queria que ele se sacrificasse por um
capricho dela.
— Eu não me importava tanto assim. Um pouco, mas não tanto. Depois
que estive internada, eu passei a enxergar muita coisa diferente.
— Parece que o sanatório fez bem a você, afinal.
— Não seja tolo. — Ela se aprumou novamente no cavalo, sentindo um
incômodo na coxa esquerda. — Uma instituição para pessoas doentes mentais
não é boa para ninguém são. E eu não sou louca, milorde. Mas eu encontrei
pessoas boas naquele lugar. Elas me ajudaram.
O lorde parou de andar e virou-se para ela. Acariciou a crina da égua, que
ergueu o focinho na direção dele. O homem era capaz de seduzir até os
animais com seu charme irresistível.
— Não quis ofendê-la. Sei que não é louca. Talvez algum dia queira falar
mais sobre essa experiência.
— Talvez. Agora acho que devemos voltar.
— Por quê? — Ele a encarou e ela pôde jurar que havia uma nota de
frustração naqueles olhos. — Desculpe minha insensibilidade, Caroline, eu…
— Isaac. — Ela o interrompeu. — Não estou ofendida. Mas não quero
que continue andando nesse sol. Depois entrego a cesta à Sra. Lange.
Com um movimento de cabeça, ele negou. Retomou seu trajeto, puxando
a égua, aproveitando-se que ela estava obrigada a fazer o que ele decidisse.
Nunca Caroline Eckley esteve subjugada a um homem, nem à vontade dele.
Provavelmente, sua resistência ao casamento surgiu ao se certificar de que
perderia sua independência. Mas, naquele momento, ele tinha os arreios e ela
não podia andar. Ele decidiu guiá-la e ela se colocou em suas mãos. Era uma
sensação nova, mas ela confiava nele.
— Obrigada por ir ao meu resgate!
— Não sabia que estava em apuros. Agradeça a sua cadela, ela foi muito
inteligente em me procurar.
— Mandei que fosse até Granville House e procurasse Anthony.
— Então eu que devo agradecer a Marquesa. Quis evitá-la por hoje, mas,
assim que a vi, percebi que estava sendo tolo. De verdade, eu desejava vê-la
novamente. Mesmo depois de tê-la visto tanto.
Mesmo que ele estivesse de costas para ela, Caroline suspeitava que Isaac
estivesse corado. Não pelo sol, mas por admitir que estava feliz em vê-la. E
ela pensando que o estava importunando.
— Também gostei que tenha sido você. Foi mais agradável ser erguida
em seus braços do que nos do meu primo.
Ele riu. Os ombros subiram e desceram mesmo que ela quase não pudesse
ouvir o riso saindo de sua garganta. Caroline gostava de fazê-lo rir. Deus,
quando foi que ela se tornou tão consciente da existência de Isaac McFadden,
e quando foi que ele se tornou tão relevante para ela? Aquilo era um pouco
assustador. Se fosse prudente, ela deveria encerrar o contato entre eles
definitivamente. Mas prudência nunca foi uma qualidade dos Eckleys.
A casa do ferreiro despontou depois de um pequeno desnível no terreno.
Os cães já estavam lá, brincando com duas crianças. Eram os netos do Sr. e
da Sra. Lange, filhos de uma filha viúva que passara a residir com eles.
Quando avistaram Isaac e Caroline chegando, correram para dentro. Logo a
figura do ferreiro estava na porta aguardando.
— Bom dia, Sr. Lange. — Isaac tirou o chapéu para cumprimentá-lo.
— Bom dia, milorde. Milady. Vieram ver Helga?
— Eu trouxe uma cesta com os mais deliciosos bolinhos recheados. Mas
me feri hoje mais cedo e não posso descer do cavalo. Lorde Isaac fará as
honras por mim, tudo bem?
O ferreiro manteve o largo sorriso de agradecimento. Isaac pegou a cesta
e entrou na residência simples atrás dele, deixando Caroline sozinha, com
Raiada como companhia. Ela não quis dizer que a perna estava doendo ainda,
que a posição era incômoda. Estava satisfeita em ter cumprido a missão da
manhã e de ter sido respeitada por Isaac. Ao invés de agir como todo homem,
dando ordens e exigindo que ela as atendesse, ele fez o que ela desejava.
Talvez ele tivesse salvação, aquele homem especificamente. Por um
momento, Caroline divagou como seria casar-se com alguém como ele.
Algumas vezes, Isaac adotava uma postura muito típica dos homens da
sociedade londrina, julgando-a por seu comportamento livre, mas desejando-
a em sua cama. Ao mesmo tempo, ele demonstrava respeito para com ela. Por
Deus, ele retirou a proposta indecorosa porque a considerou ofensiva. Se ela
tivesse um marido como ele, poderia trabalhar? Manter seus negócios?
Não. Ela seria como Agatha, a condessa. Teria liberdades, mas apenas
aquelas autorizadas pelo marido. Mesmo que a lei tivesse mudado, os
costumes ainda insistiam em permanecer. Homem algum aceitaria que ela
fosse tão livre. Que ela tivesse negócios tão valiosos e os gerisse por si
própria. Caroline já esteve preparada para aquilo, não estava mais.
Os pensamentos dissolveram no ar quando ela viu Isaac retornando. Ele
era tão lindo e tinha uma presença tão fabulosa que ela quase não se
importaria em ceder para tê-lo todo dia.
— Agora vou levá-la para casa. Como está a perna?
— Estou bem. — Ela mentiu. Não faria diferença se ele soubesse que ela
ainda estava desconfortável. — Obrigada, milorde!
Isaac assentiu apenas movendo a cabeça. Ele não parecia cansado por
causa da caminhada e do calor. Prosseguiu conduzindo o cavalo enquanto os
cães acompanhavam. Caroline não costumava continuar interagindo de forma
amistosa com os homens com quem tinha relações sexuais. Pelo visto, aquele
espécime estava sempre pronto a surpreendê-la.

Q UANDO I SAAC ENCONTROU C AROLINE FERIDA , ele ficou apavorado. Pensou


que ela poderia estar muito machucada, mas devia suspeitar que ela não era
fácil de ser vencida. Enquanto conduzia-a para a Granville House, teve
certeza que aquela era uma mulher muito forte. Perguntou várias vezes se ela
estava sentindo dor e ela negou, mas era mentira. A expressão dela indicava o
contrário. Mesmo assim, Caroline foi resistente até chegarem à mansão dos
Eckleys.
Pelos fundos, Isaac aproximou-se com a égua e ofereceu a mão para
Caroline descer. Ela escorregou da sela e ele a amparou com os dois braços.
O cavalariço veio receber o animal e estranhou que a lady estivesse ainda no
colo de Isaac.
— Aconteceu algo, milady?
— Raiada assustou-se com uma cobra e eu caí. Mas estou bem, o Sr.
McFadden é muito dramático.
— Quedas podem ser perigosas, milady. Talvez a senhorita devesse ver o
médico.
O cavalariço segurou a égua pelos arreios e começou a conduzi-la para os
estábulos. Caroline assumiu uma expressão de irritação. Ela provavelmente
detestava homens dando-lhe ordens. Isaac queria que ela entendesse que ele
não pretendia mandar nela. Não era uma atitude autoritária. Mas ela insistia
em dizer que estava tudo bem, enquanto claramente não estava.
Sem preocupar-se em decoro, daquela vez, Isaac entrou na residência com
a dama no colo. Ela passou os braços pelo pescoço dele e recostou a cabeça
em seu ombro. Era um gesto de afeto ou uma tentativa de se manter segura?
— Pode me deixar em qualquer sofá. — Ela disse. — Logo eu vou me
sentir melhor.
— De jeito algum. — Isaac continuou pisando firme para dentro da casa.
— Vou deixá-la em seu quarto. Não importa que seja indecoroso, estou
apostando que o marquês não vá me matar se me vir subindo as escadas com
você nos braços.
— Você está sendo muito mandão, milorde. — Ela riu e Isaac sentiu a
boca dela tocando-o por cima da camisa desgrenhada. Ele ainda estava em
péssimas condições, com vestimentas não adequadas para um lorde. — Mas
não precisa ter esse trabalho, um criado pode me levar para o quarto.
— Prefere que seja um criado colocando as mãos em você?
Ela ergueu o olhar e o encarou.
— Não. Pensando por esse lado, meu quarto fica no terceiro andar, na ala
oeste.
Duas criadas os viram subindo, mas nenhuma teve coragem de se
aproximar. Aquela era uma casa com crianças. Isaac não queria acreditar que
a família fizesse perversões pelos cantos. Nem que fosse comum homens
levarem a sobrinha do marquês pelas escadas até um antro de devassidão
qualquer. Era mais provável que Caroline fosse assustadora, para elas.
— Vou deixar você na cama e procurar o mordomo. Ele chamará o
médico. O marquês ou a marquesa estão em casa?
— Não preciso de médico. — Ela insistiu.
— Pode se fazer de difícil, milady. Mas descobrirá que eu sou mais
insistente do que pareço.
— Tenho plena consciência da sua insistência.
A risada abafada de Caroline na camisa dele foi uma das coisas mais
sensuais que Isaac já experimentara. Era difícil concentrar-se no que fazer se
ela acariciava sua nuca com as pontas dos dedos e mantinha o nariz enfiado
na camisa dele, que tinha o colarinho aberto. A falta de pudor dela não tinha
limites.
Com o pé, Isaac abriu a porta do quarto de Caroline. Era um cômodo
grande, arejado e enfeitado de vermelho. Uma cama de madeira estava posta
no centro do quarto e dela subiam quatro magníficas colunas de mogno
entalhado. Cortinas de veludo, vermelhas, estavam amarradas nas colunas
com cordas douradas. O papel de parede adamascado tinha tons de vermelho
e creme, os lençóis da cama eram cor de vinho. O lorde depositou Caroline
cuidadosamente sobre eles.
— Qual é o motivo de tanto vermelho?
— É uma cor que combina comigo. Com meus cabelos. Eu gosto de
vermelho.
— É apenas gosto? Tem momentos que parece obsessão.
Ela deu uma risada e se ajeitou na cama. Tentou esconder a careta de dor
quando moveu a perna esquerda. Isaac sentou-se ao lado dela no colchão.
Aquele atrevimento era difícil de evitar. Ele não sentia mais nenhuma
barreira em relação a Caroline. Não havia restrições, ele a vira nua.
Compartilhara com ela a maior intimidade possível entre um homem e uma
mulher. Sentar-se ao lado dela e tocá-la na face não pareciam mais
inadequados. Mesmo que fossem.
— Caroline, eu vou encontrar o marquês e pedir que um médico venha
vê-la. Ao menos para prescrever láudano, pois você está sentindo muitas
dores.
— Eu não preciso de médico. — Ela fechou os olhos e deitou a face nos
dedos dele, que acariciavam seu maxilar. — E não se prenda por mim, Isaac.
Sei que você tem muitas ocupações.
— Eu tenho. Mas, nesse momento, minha maior ocupação será garantir
seu bem-estar.
CAPÍTULO NONO

S EM ESTAR ACOSTUMADA A SER CUIDADA POR ALGUÉM , C AROLINE NÃO SOUBE


muito bem como reagir à atitude autoritária - e carinhosa? - do homem que
acabava de socorrê-la, colocá-la em sua cama e sair do quarto decidido a
fazer algo contra a vontade dela. Até a noite anterior, ela via Lorde Isaac
como um garoto. A sensação de que ele era muito jovem a acompanhava
lembrando que ele deveria estar fora de seu alcance. Mas ela estava
enganada. Ele era um homem, em toda a sua virilidade. Não havia como
duvidar disso.
E ele também era um homem em toda a sua prepotência. Achando que
sabia o que era melhor para ela, indo atrás de um médico para vê-la depois de
uma queda insignificante. Se bem que sua perna estava mesmo doendo. E a
dor não estava ficando mais fraca. Mover-se estava quase impossível. Talvez
ver o médico não fosse uma ideia tão equivocada.
Violet entrou no quarto dois minutos depois que Isaac saiu.
— Não mandei chamá-la.
— Milorde Isaac pediu que eu viesse. — A criada começou a ajeitar os
travesseiros atrás das costas de Caroline. — Ele disse que milady precisa
trocar as roupas porque o médico vai examiná-la.
— Lorde Isaac não decide o que eu preciso ou não preciso. — Caroline
fez uma careta. — O que mais ele está fazendo?
— Conversando com a marquesa, milady. O marquês não está, saiu para a
vila. Wallcott já foi buscar o doutor.
As coisas estavam fora do controle dela. Caóticas. Caroline sabia quando
não lutar uma batalha e aquele parecia o momento de se render. Sem ter
como resistir, deixou que Violet a ajudasse a retirar as calças de montaria. A
dor foi excruciante quando ela teve que mover os quadris. Para seu
desapontamento, havia uma mancha arroxeada na sua coxa esquerda. Aquilo
certamente chamaria a atenção do doutor.
— Melhor não colocar as calçolas, Violet.
— Mas milady… é indecente.
— O médico vai ter que ver isso. — Ela apontou para o lugar do
ferimento. — Não vou querer que ele coloque a mão onde não precisa.
A criada não concordou, porém obedeceu. Ela vestiu uma camisola e um
roupão por cima, evitando roupas complicadas e apertadas. Logo depois de
terminar de se vestir, o quarto foi invadido por Rose. A marquesa tinha a
expressão preocupada, apesar da tranquilidade aparente.
— O que houve, Caroline? — Rose sentou-se à beira da cama. — Lorde
Isaac disse que caiu do cavalo.
— Foi uma queda pequena. Eu estou bem.
Ela quis reforçar suas palavras com um sorriso, mas Rose não a levou
muito a sério.
— Violet, avise que Lady Caroline almoçará em seu quarto, hoje. Peça
para a cozinha preparar uma sopa consistente. E mande o médico subir assim
que ele chegar.
— Rose, eu não estou inválida.
A marquesa a observou por alguns segundos. Era o olhar perscrutador da
pintora, aquele que desnudava a alma e analisava cada fibra do corpo. Rose
era um ano mais nova que ela. Tinha vinte e sete anos, mas parecia ter o
dobro da idade de Caroline, às vezes. Ela dizia que fora a maternidade que a
fizera envelhecer. Mas a lady tinha a impressão que ela que era imatura
demais.
— Aceite o cuidado, Caroline.
Rose sorriu.
— Lorde Isaac, ele…
— Ele está lá embaixo. Parece que só vai embora quando o médico
chegar. Não sei por que ele duvida que você vá se comportar e prefere
garantir que não vá expulsar o doutor.
Caroline quis rir. A ideia de que Isaac estava ali para confirmar que ela
seria atendida pelo médico era ridícula. As pessoas não podiam pensar que
ela era tão teimosa. Mas era provável que ela fosse mesmo muito teimosa.
Qualquer um poderia pensar que ela mandaria o médico voltar para o lugar de
onde ele viera.
— Ele se importa com você. — Rose passou os dedos pelos cabelos de
Caroline, ajeitando-os atrás da orelha. — Sei que ele tem em mente outro tipo
de dama para desposar, mas já considerou que Isaac é um excelente partido,
Caroline?
Ah, sim. Ela considerou. Em alguns momentos daquela manhã desastrosa,
ela considerou. Por que diabos ela estava pensando em casamento e Isaac
McFadden no mesmo intervalo de tempo, não estava claro.
— Não estou mais apta ao casamento. — Caroline suspirou. — Já passei
da idade de me casar, de ter filhos. Sou oficialmente uma solteirona, é melhor
que eu aceite isso. E eu não quero mais me casar, também. Agora serei uma
empresária. Quero cuidar de negócios.
A forma condescendente com que a marquesa a olhou foi irritante. Ela
não queria condescendência. Queria alguém que a entendesse. Que não
colocasse o casamento como a única forma de felicidade possível para uma
mulher. Ela aceitaria se casar. Mas primeiro, ela precisaria amar. Estar
apaixonada, arrebatada a ponto de desejar passar a vida ao lado daquele
homem. E, segundo, ela precisaria ter certeza que ele não a anularia. Que ela
não se tornaria apenas a esposa de alguém. Era muito difícil que qualquer
mulher entendesse aquilo.
— Ao que me parece, Lorde Isaac não está considerando isso. Como eu
disse, ele não está se portando como um homem que planeja cortejar outra
mulher. Ele demonstra que quer você, Caroline.
Rose se levantou da cama no instante em que a porta se abriu e o médico
entrou. Caroline quis rir novamente, mas estava nervosa. A presença do
médico a deixou ansiosa. E aquela conversa sobre Isaac a deixou muito
desorientada. Seria bem mais fácil levar qualquer coisa adiante se ela tivesse
certeza que ele a queria apenas para perder a virgindade.

A EXCENTRICIDADE da casa Eckley fez com que Isaac não se sentisse muito
mal por usar roupas inadequadas. Sentado em uma poltrona próxima à lareira,
segurando um copo de uísque na mão, ele viu o médico chegar. Depois, viu
uma criada descer. A criada subiu novamente, carregando algumas ervas.
Virou a bebida toda em um gole e serviu-se de mais. Por ordens da marquesa,
um criado deixou a garrafa em uma mesinha ao seu lado.
Passou meia hora até que o médico descesse, conversando com a
marquesa. Lady Granville era uma mulher peculiar. Sua beleza era singular,
não comum às outras que Isaac conhecia. Ela parecia tão distinta que era
compreensível que tenha retirado do mercado o maior libertino de Londres.
E ele já deveria ter ido embora. Garantira que o médico atenderia
Caroline. Não deveria esperar por notícias dela. Poderia receber essas
notícias depois de ter se lavado, vestido e almoçado. Mas continuou ali, as
mãos apertando o copo de vidro, desejando que a marquesa não notasse sua
ansiedade.
— Milorde. — Rosamund foi até ele, que se ergueu, desajeitado. Sentia-
se quase despido sem colete, com o colarinho aberto e as mangas dobradas.
— Fique tranquilo, o médico disse que não foi nada grave. Mas Caroline
precisará repousar. Quer vê-la?
Sim, ele queria. Mas era melhor que voltasse para Greenwood Park.
— Não vou incomodá-la. Por favor, transmita a Lady Eckley minhas
estimas.
A marquesa sorriu e Isaac se afastou. Sair de Granville House foi mais
difícil do que ele esperava. Ele quis subir as escadas, colocar-se ao lado de
Caroline, fazer alguma coisa para confortá-la. Quis desculpar-se por ser
autoritário e exigir a presença de um médico. Não estava arrependido, mas
entendia que agira contra a vontade dela. Quis apenas voltar a ficar na
companhia daquela mulher que o intrigava tanto.
Só que não faria nada disso. Não naquele dia. Precisava retornar para
casa, para seus afazeres e para uma ordem diária à qual estava acostumado.
Assoviou para Lorde, que estava nos jardins ao lado de Marquesa, e os dois
foram juntos, caminhando, para a propriedade dos McFaddens.
Ao chegar em casa, o engenheiro o estava aguardando.
— Diga-me que está tudo bem, Sr. Richmond.
Isaac interpelou o homem, levando-o para o escritório de Edward. Serviu
mais bebida, uma dose dupla para si mesmo, e sentou-se à cadeira do irmão.
Ele não fazia nenhuma questão de ser conde, mas adorava envolver-se nos
negócios.
— Não está, milorde. — O engenheiro colocou alguns papéis sobre a
mesa. — A estrutura está mesmo comprometida e não temos como reforçá-la
até a colheita.
— Não podemos colher os grãos se não existir um silo, Sr. Richmond. —
Isaac bebeu o uísque e pressionou as têmporas com as mãos. Esperava que os
problemas de Cornwall estivessem sendo menos desafiadores do que os de
Kent. — Qual é a alternativa?
— Escoras. — O homem coçou a cabeça. — Se apoiarmos essas colunas
aqui e aqui, a estrutura aguentará até que os grãos tenham sido vendidos.
— Será arriscado?
— Há riscos. Mas é mais seguro do que manter a estrutura como ela está.
Claro que era. Isaac não tinha muito o que pensar. A colheita dos grãos
seria em uma semana e ele não podia simplesmente deixar os arrendatários
sem lugar para armazená-los.
— Farei uma reunião amanhã. Quando poderemos iniciar as obras?
— No mesmo dia.
— Então aguarde meu retorno. Mandarei um mensageiro assim que
conversar com os arrendatários.
O engenheiro agradeceu e saiu. Isaac olhou para si mesmo. Sujo,
encardido, cheirando a suor e feno. E uma nota de jasmim. Caroline estava
finalmente usando perfume? Ele não notou aquela diferença mais cedo,
quando a encontrou. Talvez estivesse muito preocupado. Mas ali, naquele
momento, tudo que Isaac queria era arrancar a camisa para levá-la ao nariz e
cheirar Caroline mais um pouco.
Alguma coisa estranha estava acontecendo com ele.

O TELEGRAMA da Condessa de Cornwall chegou à tarde. Violet levou-o para


Caroline, que se empolgou em saber que os convites para o evento da escola
já estavam rodando e seriam distribuídos por Londres. Fora garantido que
todas as damas elegíveis para a escola seriam convidadas, assim como as
filhas da burguesia. Não importava a Caroline se as suas alunas seriam moças
nobres ou sem títulos. Ela queria apenas agir para transformar a vida delas.
Apesar da animação pelo andamento do evento de apresentação da nova
escola, a lady dormiu uma boa parte do dia. Estava acostumada ao álcool,
mas não ao ópio do láudano que o médico prescreveu. E o emplastro que fora
colocado na perna ferida aliviou o desconforto.
No dia seguinte, ela conseguiu levantar-se. Foi ao lavatório, escovou os
dentes com dentifrício em pó e tocou a sineta para chamar Violet. Queria
tomar um banho e tirar o cheiro dos remédios que estava impregnado em si.
— O doutor mandou usar água fria, milady.
Violet foi até a casa de banhos anexa ao quarto de Caroline e começou a
encher a banheira.
— Nem pensar que tomarei banho frio. Pode colocar menos água quente,
mas é só.
— Mas milady, o doutor…
Caroline pretendia ignorar os comentários da criada, que sabia que seria
ignorada mesmo que continuasse falando. Achou melhor silenciar-se e
terminou de preparar o banho, deixando a água o menos quente possível. A
lady tirou o roupão, a camisola e entrou na banheira com alguma dificuldade.
A perna ainda estava dolorida e com uma mancha roxa mais escura.
Depois de acomodada, com a água cobrindo seu corpo inteiro, Caroline
deitou a cabeça em uma toalha dobrada na borda da banheira e relaxou. Ficou
alguns minutos em completo silêncio até ouvir passos. Pensou que fosse
Violet retornando, mas a arfada característica de Marquesa a fez abrir os
olhos para descobrir a cadela sentada e olhando para ela.
— Oras Marquesa, sentiu minha falta lá embaixo?
Caroline afagou a cabeça da cadela e notou que, em sua coleira, havia um
papel preso. Marquesa se agitou e latiu ao vê-la segurar o papel nas mãos.
— O que é isso? Quem pediu que você entregasse isso?
Marquesa latiu novamente e girou ao redor de si própria. Caroline abriu o
papel e era um bilhete, escrito com uma letra claramente masculina e
descuidada. Não conseguiu evitar sorrir ao confirmar que o bilhete vinha de
Isaac McFadden.

Gostaria de notícias de sua recuperação. Se puder, envie algumas


palavras para que eu não precise inventar uma desculpa para ir à
sua casa.

Aquilo era inusitado. E totalmente excitante. Caroline olhou para a


cadela, que estava visivelmente animada com a tarefa que lhe foi designada.
Era a primeira vez que ela trocava bilhetes com um homem. Na verdade, a
primeira vez que trocava bilhetes com qualquer pessoa. Ela não estava
acostumada a flertar. Os homens não flertavam com ela. A primeira e última
vez que flertou com alguém foi quando perdeu sua virgindade, e ela era bem
mais jovem e inexperiente.
Excitada com a novidade e o segredo estabelecido, Caroline enrolou
novamente o bilhete e o devolveu para a coleira de Marquesa. Chamou Violet
e solicitou ajuda para terminar o banho e para vestir-se. Depois, sentou-se à
penteadeira. Pediu papel e uma caneta e dispensou a camareira. Como todos
os criados estavam acostumados aos impulsos de Caroline, Violet nunca
achava nada que ela fazia estranho o suficiente para se alarmar.
Sozinha, Caroline escreveu algo que acreditava expressar
satisfatoriamente seu estado físico.

Estou bem, porém devo repousar por mais um dia. Detesto o ócio
compulsório, mas a experiência do láudano é intrigante. Gostaria que
inventasse uma desculpa qualquer para me ver amanhã.

Ela riu enquanto fechava o bilhete. Dobrou o papel e colocou dentro de


uma pequena caixa de metal que usava para guardar lenços.
— Marquesa, preciso que leve essa caixa para o Lorde. Ele deve entregar
isso ao dono dele. Você entende o que estou falando?
A cadela latiu e pegou a latinha com a boca. Depois saiu do quarto com
toda elegância, desfilando com o porte aristocrático que lhe pertencia.
Caroline deitou-se na cama, com os cabelos desfeitos e um pouco úmidos. O
bilhete de Isaac a fez mais feliz do que a resposta da condessa. Ela tinha um
sorriso tolo nos lábios e não estava muito familiarizada com os motivos que
causavam aquela reação nela.

Q UANDO I SAAC RETORNOU PARA CASA , depois de um exaustivo dia em


reunião com os arrendatários, tudo que ele queria era um copo de uísque e o
jantar. Estava exaurido mentalmente. Não era um negociante muito
habilidoso, como Nathaniel, e convencer os arrendatários a fazer algo que ele
mesmo considerava arriscado era muito difícil. Antes de colocar escoras em
colunas e arriscar a vida das pessoas em um desmoronamento de estrutura,
ele iria pedir ajuda ao vizinho marquês.
Mas, antes que pudesse chegar ao seu quarto para tirar as roupas
empoeiradas do dia, foi interceptado pelo mordomo. A expressão de
indignação e confusão na face dele era indecifrável.
— Milorde, o senhor tem uma… visita.
— Quem é, Peyton?
— A visita não se identificou, milorde. Está com Lady Wilhelmina na
biblioteca.
Era muito incomum que uma visita não se identificasse. Mais ainda que
seu mordomo, muito rígido e bem treinado, deixasse um visitante
desconhecido sozinho com a lady da casa. Enquanto se dirigia à biblioteca,
no segundo andar, Isaac se pegou correndo. Abriu a porta e entrou agitado no
cômodo, pensando que sua irmã pudesse estar em apuros. Mas ela estava
ajoelhada no chão, sobre as saias, rodeada por cachorros.
— Isaac! — Wilhelmina exultou. — Veja, ele não é lindo?
Lorde e Marquesa estavam deitados ao lado da jovem. Ela acariciava o
pelo liso e sedoso do Galgo Afegão, que levantou e latiu assim que viu o
lorde. Já o Setter tinha um objeto na boca. Ele também se levantou o
depositou-o nos pés de Isaac.
— O nome dela é Marquesa. — Isaac explicou. — Ela é uma cadela
muito inteligente. Você poderia continuar a entreter os animais? Preciso
resolver algo no escritório.
— Claro, eu adorarei brincar mais com eles. E você precisa de um banho
antes de qualquer coisa.
Ele precisava. A ordem correta dos eventos seria tomar um banho, vestir-
se decentemente e analisar o conteúdo da caixa. Mas estava bastante ansioso
para saber o que fora trazido por Marquesa. Sabia que era um recado de
Caroline. Sabia que a presença da cadela ali representava que sua tentativa
furtiva de enviar um bilhete para ela deu certo.
Então, Isaac ignorou a necessidade de manter um padrão e foi direto para
o escritório. Abriu a latinha e encontrou o bilhete. Cheirava a jasmim. A flor
que ele escolheu para ela.
A porta do escritório se abriu e Dewitt entrou.
— Milorde, posso preparar seu banho?
— Sim, claro, em alguns minutos. Preciso apenas terminar de ler um
documento.
Ele pegou um papel em uma pilha organizada sobre a mesa de mogno e
uma caneta para escrever a resposta.

Tenho uma excelente desculpa para ir à Granville House. Um caso


sério que preciso discutir com o marquês. Estou aliviado em saber de
sua recuperação.
Satisfeito com sua resposta impessoal, Isaac enrolou o papel e prendeu
com uma fita. Voltou à biblioteca, onde Wilhelmina ainda estava com os
cães. Aproximou-se de Marquesa, prendeu o bilhete na coleira dela e afagou
suas orelhas.
— Leve de volta. Você sabe para quem entregar.
A cadela latiu e saiu correndo, levando Lorde consigo. Isaac imaginou
que aquele Setter nunca mais poderia ir embora de Greenwood Park. Ele já
estava fazendo da propriedade seu lar, e Marquesa era sua melhor amiga.
— Ela pertence a Caroline Eckley? — Wilhelmina levantou-se do tapete
e bateu a poeira do vestido. A forma como ela observava o irmão indicava
que ela sabia que ele estava fazendo algo escondido.
— Sim, ela é dos Eckleys. Por quê?
— Nada demais.
A irmã saiu pela porta e ele decidiu que, finalmente, precisava de um
banho. Tinha certeza que estava metido em uma enrascada. Se descobrissem
seu envolvimento com Caroline, ele seria obrigado a casar-se com ela. Não
que ela fosse aceitar isso, ou que ela tivesse exatamente uma honra a ser
reparada. Caroline não era virgem e havia vários homens que atestariam isso.
Mesmo assim, a coisa certa a se fazer seria casar-se com ela.
Precisava tomar mais cuidado. Ainda assim, não conseguia deixar de
desejar aquele relacionamento escandaloso e totalmente inadequado, que o
fazia sorrir como um tolo e esquecer até mesmo das refeições.

E LE ESTAVA HÁ cinquenta e três horas e vinte e oito minutos sem ver Caroline
Eckley. Naquele intervalo de tempo, trocaram bilhetes secretos tendo seus
cachorros como mensageiros. Ele fez uma reunião com seus arrendatários e
decidiu pedir ajuda ao Marquês de Granville para o armazenamento dos
grãos. Trabalhou, suou, respondeu às correspondências. E nunca sentiu tanto
desejo por uma mulher quanto naquela maldita tarde.
Isaac sabia que não poderia extravasar o que sentia. Primeiro, porque
Caroline estava ferida e ele não sabia se ela já se recuperara. Segundo, porque
ainda era dia, o sol continuava a brilhar, descendo no horizonte em
Greenwood Park, e ele tinha uma reunião com o primo dela. O mesmo que
ameaçou sua masculinidade com palavras educadas.
Mesmo assim, ele tomou banho e se vestiu com um traje completo para a
noite. Calças cinza, camisa branca, colete e casaco pretos. Garantiu que o
lenço em seu pescoço estivesse bem ajustado e os cabelos penteados. Ajeitou
a barba na frente do espelho. Já pensara em tirá-la, mas gostava da barba. Ela
estava na moda e Caroline disse que era macia. Ele não manteria a barba
apenas por causa de Caroline, mas não negava que ela era um incentivo a
mais.
— Dewitt, vou sair. — Isaac disse para seu valete, antes de dispensá-lo.
— Avise que não jantarei com mamãe e Wilhelmina.
— Sim, milorde. Devo mandar preparar a carruagem?
— Não, vou a cavalo. Porém não sei que horas retornarei.
O valete fez uma reverência e se afastou. Isaac foi até os estábulos, pediu
que selassem seu cavalo e montou. Lorde veio correndo atrás, latindo. Depois
do tanto que os cachorros o estavam ajudando, ele não teria coragem de pedir
que o animal ficasse em casa. Aceitou a companhia e trotou para a
propriedade dos Eckleys.
Na Granville House, foi recebido pelo mordomo que o conduziu ao
escritório do marquês. Tinha negócios a tratar, antes de tudo.
— Sente-se, Isaac. — Anthony Eckley acendeu um charuto e ofereceu um
a Isaac. — Quando recebi sua mensagem fiquei preocupado. Em que posso
ser útil?
— Serei direto. Estamos com um problema de estrutura nos silos e temos
uma colheita em menos de uma semana. Os silos de Rhode Port são capazes
de armazenar pelo menos parte da nossa produção em Greenwood Park?
O marquês saboreou o charuto e observou a fumaça por alguns instantes.
Ele não tinha aquela aparência de autoridade mofada e imponência arrogante
de muitos nobres de alto título. Anthony Eckley era de uma nova geração da
nobreza inglesa. Apesar de não ser visionário como Edward, tinha uma boa
noção de que a indolência dos pares não conduzia a um futuro próspero.
— Creio que será possível acomodar parte dos grãos de seus
arrendatários. Você teria que conversar com meu administrador. Eu não tenho
um conhecimento muito profundo dessas questões.
— Nós pagaremos o preço que for necessário.
Isaac sabia que era mais justo que pedisse ajuda remunerada. O marquês
ergueu uma sobrancelha e o fitou.
— Não será necessário me pagar. Será um prazer ajudá-los. Somos
vizinhos há muitos anos. Meu pai era amigo de seu pai. Apenas converse com
o administrador e ajuste as questões operacionais.
— Obrigado. As obras no silo começarão logo, porém não será possível
concluí-las antes da colheita.
— O seu engenheiro é de confiança? — Perguntou o marquês. — Se
quiser, posso pedir que enviem uma equipe de Londres. Se bem que eu
aposto que Edward conseguiria uma equipe ainda melhor do que a minha.
— Creio que o Sr. Richmond seja muito competente. Ele vem realizando
serviços para a família há bastante tempo. E também foi cauteloso em suas
recomendações.
— Certo, então. Amanhã avisarei ao administrador que você irá procurá-
lo.
— Agradeço, milorde. — Isaac terminou seu charuto e levantou-se.
— Ficará para o jantar, não é mesmo?
— É um convite irrecusável, porém não estou vestido adequadamente.
O marquês riu e também se levantou. Pegou uma garrafa de conhaque e
serviu duas doses.
— Está mais bem vestido do que eu quando vou ao Parlamento. Não se
preocupe com essas bobagens, não fazemos jantares formais quando estamos
apenas nós. Creio que o ver fará bem a Caroline. Ela está duas vezes mais
difícil nesses últimos dias.
Encurralado, Isaac não conseguiu negar o convite. Não desejava
participar de eventos familiares com Caroline presente. Ansiava por vê-la
novamente, mas preferia poder estar em um espaço mais íntimo. Onde ele
tivesse privacidade para tocá-la. Onde poderia beijá-la. Ali, sentado à mesa
com os Eckleys, tudo que ele conseguiria seria ser analisado e examinado,
pois era como se sentia desde que fora procurar Caroline em sua residência
londrina. Ele temia que, a todo minuto, fossem desvendar suas intenções.
— Será um prazer jantar em sua companhia, milorde.
O marquês tocou a sineta e o mordomo apareceu na porta para receber a
notícia de que haveria um convidado para o jantar. Depois de finalizarem o
conhaque e conversarem sobre algumas trivialidades, os homens saíram do
escritório e foram para uma sala privativa da família. Lá encontraram as
mulheres, Rosamund e Caroline.
O que Isaac sentiu ao ver a lady depois de dois dias foi uma reação
patética de seu corpo ansioso por ela. O coração disparou e a boca ficou seca.
Precisou se concentrar para não sorrir como um garoto e ir diretamente até
ela. A etiqueta indicava que, primeiro, ele cumprimentasse a marquesa.
— Ah, teremos companhia para o jantar? — Rosamund se animou. Isaac
segurou a mão dela e beijou rapidamente os dedos sob a luva de seda.
— Precisei obrigá-lo. — O marquês também se aproximou e beijou sua
esposa nos lábios. — Espero que não se importem.
— Eu, me importar? Sabe que adoro convidados!
Isaac não prestou atenção no que a marquesa disse. Ele já estava
segurando a mão descoberta de Caroline Eckley e o toque na pele dela,
mesmo que ele estivesse com suas luvas de pelica, fez com que ele sentisse
seu estômago borbulhar. Ela estava linda, com um vestido vermelho e os
cabelos trançados. Como estava de pé, Isaac imaginou que estivesse liberada
do repouso.
— Como você está?
— Bem melhor. Não sinto mais dores.
— O que disse o médico? A lesão foi muito grave?
— Foi uma contusão, Isaac. — Caroline sorriu timidamente. Ela não era
tímida, então ele estava enganado. Foi um sorriso, apenas. — Estou ótima,
agora.
O silêncio fez com que ele percebesse que o salão estava subitamente
vazio. O marquês e sua esposa não estavam mais ali. Nem os cachorros
pareciam à vista. Era como se todos tivessem combinado em desaparecer para
que eles compartilhassem daquele momento a sós. Homens e mulheres de
respeito não ficavam a sós. Para sorte de Isaac, aquela casa não parecia se
importar tanto com as regras de decoro.
Porque ele queria, muito, beijá-la. Não importavam os motivos. Ele
apenas precisava tê-la nos braços e tomá-la como sua. E, sem considerar os
riscos que estava correndo, Isaac simplesmente segurou Caroline pela cintura,
puxou-a para perto e colou sua boca na dela.
CAPÍTULO DÉCIMO

C AROLINE ESPERAVA QUE I SAAC FOSSE APARECER DE MADRUGADA . C OMO UM


bom amante, ele deveria chegar depois que todos estivessem dormindo para
não causar desconfianças. Ela deveria lembrar que ele não era um bom
amante. Era um jovem inexperiente e romântico, cujo sangue azul não o
impedia de trabalhar na fazenda em meio a estrume e mato. E que não tinha
muita noção de como se portar em uma situação como a deles.
Então, ele estava ali para o jantar. E, se ela sentiu o corpo reagir quando o
viu, ficou totalmente entregue quando ele a beijou. Porque sim, o audacioso
lorde teve a ousadia de beijá-la no meio do salão, aproveitando a ausência de
seus familiares.
Ela adorou o gosto da boca dele na dela. E a pressão das mãos dele em
suas costas. Isaac beijava com muito mais ímpeto e ardor desde a primeira
vez em que ela o experimentou. A forma como a língua dele procurou a dela
a deixou com as pernas bambas. Ela queria mais.
— Não vá embora depois do jantar.
Ela disse, depois que as bocas se desvencilharam. Dava para ouvir seu
coração bater descompassado. Acelerado.
— Eu devo ir. Você se feriu, eu…
— Foi uma contusão, Isaac. — Ela repetiu. Segurou-o pelo colarinho e
colou a boca na dele outra vez. Não durou muito, foi apenas uma forma de
mostrar que o desejava. — Eu estou andando pela casa desde cedo.
O lorde passou as mãos pelos cabelos dela. Colocou uma mecha atrás da
orelha e acariciou-a na face. Caroline quis dizer para ele não resistir. Para se
entregar ao que o movesse naquele momento. Mas até ela sabia o quanto tudo
aquilo era inadequado. Pelos céus, eles estavam se beijando e se tocando no
meio da Granville House!
— O que eu devo fazer? Me esconder até que todos durmam?
— Não. — Ela deu uma risada. — Depois que tomar o vinho do porto
com Anthony e decidir retornar para casa, dê a volta. A porta do chalé de
hóspedes estará aberta.
— Você sabe que envolver os criados nisso significará que, em breve,
toda a vila saberá que…
— Não estou envolvendo os criados. — Caroline ajeitou o lenço no
pescoço dele, ajustando o alfinete que prendia o nó. — Violet está
acostumada comigo. Ela sabe que não deve fofocar ou perderá o emprego.
O silêncio dele indicou que estavam combinados daquela forma.
Desvencilharam-se pouco antes do mordomo aparecer e informar que o jantar
seria servido. Caroline suspeitava fortemente que sua família saíra da sala
para dar a ela privacidade com Isaac. Rose não era uma mulher tão liberal
quanto ela, mas ignoraria o decoro se fosse para empurrar Caroline para um
casamento.
A mesa estava posta no salão menor. Anthony se sentou em uma ponta
com sua esposa ao seu lado. Eles nunca se sentavam afastados e passavam o
jantar todo conversando. Ele falava de assuntos masculinos com ela e não se
importava se era considerado adequado ou não. Ela o entretinha com as
fofocas de Londres e de Paris.
Naquele ambiente agradável de conversa, os pratos foram sendo servidos
um depois do outro. Caroline ainda sentia um pequeno desconforto em sua
lesão, mas o que a estava deixando agitada aquela noite era a presença
masculina ao seu lado. Enquanto Isaac discutia com o Marquês sobre os
investimentos para tornar a vila um lugar turístico, ela admirava o perfil dele.
Admirava a inteligência dele para temas relevantes da produção agrícola e da
criação de animais. Admirava o sorriso dele. Como a boca erguia sutilmente e
exibia os dentes perfeitos.
O jantar demorou mais do que ela estava disposta a esperar. Depois da
sobremesa, Anthony convidou Isaac para a biblioteca, onde tomariam um
vinho e falariam mais bobagens masculinas. Ela pediu licença para se
recolher, alegando que precisava voltar a repousar. Rose assentiu e disse que
veria se as crianças estavam dormindo.
Claro que Caroline não iria para o quarto. Ela desviou do caminho e foi
direto para o chalé de hóspedes. Usando a escada dos criados, ninguém a
notaria. O que ela queria, naquele momento, era se afastar das pessoas para
não permitir que desvelassem seu estado de espírito. Que ela nem mesmo
sabia qual era. Deslumbramento, talvez?
— Milady, devo ajudá-la a tirar o vestido e se lavar? — Violet a
encontrou no meio do caminho, quando ainda caminhava pelos corredores.
— Não, pode deixar. Vá se recolher e não seja vista perambulando por aí.
A criada se afastou com aquele olhar desconfiado de sempre, mas que não
incomodava Caroline em nada. Violet sabia de praticamente todas as
aventuras sexuais da lady, mas sempre fora de confiança e nunca fizera
fofoca. Mesmo que isso também não incomodasse Caroline em nada.
No chalé de hóspedes, ela acendeu algumas lamparinas e se sentou em
uma chaise longue no térreo. Esperou. A lareira estava apagada e começou a
esfriar. Quanto tempo os homens costumavam gastar bebendo vinho do
porto? Caroline levantou-se e pegou um livro: Frankenstein. Depois das
leituras interessantes que fizera no sanatório, ela não gostava mais de
bobagens. Bateu a poeira da capa de couro azul escuro e se sentou
novamente, folheando as primeiras páginas. Aquele exemplar parecia nunca
ter sido lido. Continuou folheando até encontrar algumas passagens grifadas.
Estava enganada.

Houve uma época que eu alimentava falsas esperanças de


encontrar seres que, perdoando minha aparência externa,
me amariam pelas qualidades excelentes que eu seria
capaz de demonstrar.

Por algum motivo, aquela frase a tocou. Caroline era o oposto de


Frankenstein: ela tinha um exterior lindo, desejável, perfeito. Mas seu interior
não era tão agradável assim. Ou, ao menos, era o que ela achava. Tentava
esconder a verdadeira Caroline para que ninguém a visse como ela era e
desejassem apenas o que ela apresentava: um corpo feminino belo.
Antes que pudesse continuar divagando nas palavras contundentes de
Mary Shelley, a porta do chalé se abriu. Isaac McFadden entrou e caminhou
até ela, sentando-se ao seu lado.
— Alguém seguiu você? — Ela perguntou, fechando o livro e o apoiando
em uma mesinha de madeira.
— Não. Tomei cuidado para seguir na trilha de volta a Greenwood Park
até desaparecer na escuridão e voltei pelo bosque.
— Isso foi perigoso.
— Não tenho medo do escuro.
Ele tirou as luvas e tocou-a na face. Ela fechou os olhos apenas para
poder aproveitar melhor o contato.
— Você poderia acender a lareira?
— Assim que levá-la para cima. — A mão dele desceu pelo pescoço dela
e ele passou a ponta dos dedos na renda do decote, tocando suavemente a
carne macia no vale entre os seios. — Hoje você não facilitou para mim,
certo?
— Nem um pouco. — Ela riu. — Mas estou sem espartilho. Você hoje
vai aprender quantas camadas de tecido cobrem uma mulher.

A S MÃOS firmes que seguraram a lenha e atiçaram o fogo da lareira estavam


trêmulas abrindo os pequenos botões do vestido de Caroline Eckley. Aquela
também era uma das inúmeras primeiras vezes que a lady representava para
Isaac. Ele esteve enganado sobre quase tudo, desde o primeiro momento em
que decidiu procurá-la. Enquanto desabotoava a primeira camada de tecido
que o afastava do corpo que desejava, ele começava a entender por que ela
lhe disse não.
Tudo ali envolvia mais do que o ato sexual. Não era uma cópula, como
ele pensava. Havia mais do que apenas instinto. A reação de seu corpo ao
dela indicava um envolvimento que transcendia a sua compreensão.
Ela se manteve quase imóvel enquanto ele a desnudava, peça por peça.
Depois do vestido, foram as duas anáguas. Ela realmente não usava
espartilho. Isaac então a virou de frente para si e examinou a mulher que
estava ali em seus braços, trajando apenas seda branca.
— Você é linda.
Isaac disse, mesmo sabendo que ela já ouvira aquelas palavras muitas
vezes. Ninguém duvidava da beleza de Lady Eckley, uma verdadeira Lilith,
pronta para instigar todos os homens a pecarem. Mesmo assim, ela baixou o
olhar e sorriu. Ele teve certeza que viu um rubor em suas bochechas que não
combinava com ela. Ou talvez combinasse. O lorde estava descobrindo coisas
sobre Caroline a cada dia. Havia mais nela, também, do que uma mulher
devassa.
— E você ainda está vestido. — Ela provocou. — Vamos dar um jeito
nisso.
Bem, nenhuma timidez durava muito tempo com ela. Caroline afrouxou o
laço no pescoço dele, abriu o colete, desabotoou a camisa. Foi mais rápida do
que ele foi ao despi-la, mas infinitamente mais lenta do que o desejo dele
precisava que fosse. Quando Caroline abriu os três botões de sua calça, o
alívio de não ter mais quase nada que os separasse se transformou em um
suspiro.
Isaac abriu os laços da chemise dela e puxou o tecido por seus braços.
Depois, ajoelhou-se para baixar a calçola. Olhou brevemente para a marca
roxa que ocupava quase toda a extensão da coxa esquerda dela e levou a
ponta do indicador para tocá-la.
— Não dói muito. — Caroline disse, segurando a mão dele e colocando
sobre o ferimento. — Só se apertar.
— Não precisa fingir resistência comigo. — Ele beijou a pele ferida, já
descoberta. Um roçar de lábios suave. — Eu acho melhor…
Ela o segurou pelos cabelos e fez com que olhasse para cima.
— Isaac, não se atreva a desistir agora. Não sou frágil. Se doer, eu te
aviso.
A forma autoritária como ela falou fez com que ele desse uma risada
nervosa. Não dava para desafiar a ira de Caroline Eckley. Se ele parasse por
ali, ela provavelmente o jogaria na cama e o atacaria. Depois das calçolas, ele
começou a retirar as meias. Enrolando a seda fina, descendo pelas pernas e
descobrindo cada pedacinho de pele que ele queria beijar.
E foi o que ele fez. Segurou um pé nas mãos, beijou os dedos, o
tornozelo, a panturrilha, a parte de trás dos joelhos. Caroline apertou os
ombros dele com força, onde ela se segurava para não perder o equilíbrio. A
trilha de beijos se estendeu para a parte interna da coxa. Ela gemeu. Perto, ele
estava muito perto.
Uma das mãos deslizou até tocar a feminilidade de Caroline. Ele roçou os
dedos ali, nos cachos escuros que cobriam o ponto mais sensível do corpo
dela. Quanto mais ela demonstrava que estava gostando, mais ele a tocava. E
continuou subindo a boca até que ele a beijou bem ali.
A posição era incômoda, então Isaac segurou Caroline pela cintura e, com
cuidado, empurrou-a para os colchões. Ela ficou com as pernas penduradas e
ele usou as duas mãos, agora livres, para abri-la como às pétalas de uma flor.
Ela também era linda, ali. O botão que pulsava apenas pela antecipação do
toque estava túrgido, úmido. Ele voltou a beijá-la, deixando que a língua
acariciasse o clitóris.
— Oh, céus! — Ela rosnou. — Você vai mesmo fazer isso?
Isaac ergueu os olhos e a fitou, esparramada sobre a cama.
— Não é algo que você goste?
— De tudo que você pode fazer comigo, provavelmente isso é o que eu
mais gosto. — Ela riu, abrindo os braços em desamparo.
— Então sim, eu vou mesmo fazer isso. Me diga se não estiver do seu
agrado.
Mas ela não falou nada, apenas gemeu. Caroline estava novamente
agarrada aos cabelos dele como que guiando-o pelo caminho. Com cuidado,
ele não apenas beijou e lambeu a região sensível entre as pernas dela, mas
também chupou e mordiscou. Os gemidos dela serviram de incentivo para
que ele fosse mais rápido. E mais forte. Rápido. E forte. Até que ela gritou
seu nome e convulsionou em sua boca.
Ele não queria parar de beijá-la, mas ela o puxou para cima.
— Entre em mim, agora!
Era uma ordem fácil de obedecer. Ele queria estar dentro dela desde que a
vira, naquela noite. Não, ele queria voltar para dentro dela desde o instante
em que saíra dela, algumas noites atrás. Ajeitando-a um pouco para cima no
colchão, Isaac forçou espaço entre as pernas de Caroline e a penetrou.
Assim que seu membro foi envolvido pela carne macia e quente dela,
Isaac entendeu por que a urgência. O corpo de Caroline ainda apresentava os
sinais do êxtase e ela o envolveu com uma intensidade que o arrebatou.
Mantendo o corpo dobrado sobre ela e os pés firmes no chão, ele tomou sua
boca com uma paixão que ainda não experimentara, enquanto se movia com
cuidado.
Ela correspondeu ao beijo entre gemidos, rosnados e murmúrios. Falava o
nome dele, uma vez depois da outra. Tudo nela indicava que o ato a
agradava. E ele estava ficando cada vez mais perto de explodir no ápice do
prazer que ela oferecia.
— Você está protegida?
Isaac murmurou, interrompendo o beijo por um instante. Caroline não
verbalizou uma resposta, apenas balançou a cabeça indicando que não. Ele já
sabia o que fazer. Continuou a mover-se, entrando e saindo até não resistir
mais e se entregar ao orgasmo, fazendo sua semente derramar sobre ela,
como da outra vez.
C AROLINE NÃO ESTAVA ACOSTUMADA ÀQUILO . Ela desejava Isaac, sabia bem
disso e não negava que o queria. Ela nem poderia dizer como resistiu a ele
em um primeiro momento. Mas, em nenhum dos intercursos sexuais com
seus outros parceiros, ela teve um orgasmo tão intenso e prolongado como
aquele. Quando o homem desabou ao lado dela, exausto pelo clímax, ela não
conseguia se mexer. As pernas estavam trêmulas. Seu corpo convulsionava.
Quis se arrastar para cima, acomodar-se melhor no colchão, mas não
conseguiu. Precisou que Isaac percebesse suas inúteis tentativas de se mover
e a auxiliasse.
Ele a segurou nos braços e a fez deitar nos travesseiros. Depois,
caminhou até o lavatório e pegou um pano úmido para limpá-la. Eles estavam
quase no escuro, daquela vez. Havia apenas a luz alaranjada da lareira e de
uma única lamparina ao lado da cama. Isaac ficava tão lindo nas sombras
quanto na luz.
— Machuquei você.
Não foi uma pergunta. Ele se deitou ao lado dela e a puxou para seu peito,
acreditando que ela estava sentindo dor. Caroline não conseguiu se impedir
de rir.
— Não estou machucada, apenas muito satisfeita.
A boca dele tocou-a nos cabelos.
— Eu também estou. Ao menos por enquanto. Eu quis voltar para essa
cama desde o momento em que me afastei dela.
Sim, ela também quis. Confirmar aquilo para ele não era um problema,
mas Caroline acreditava que estava em apuros. Não poderia continuar
fazendo aquilo com Isaac McFadden sem se apaixonar um pouco, no
processo. E ela sabia que não dava muita sorte em suas paixões. Seu coração
era bastante tolo. Ele só se interessava por homens que não estavam
disponíveis para ela.
O problema era: Caroline não costumava ser prudente.
— Você pode voltar sempre que quiser.
— Temo que a ver durante a noite seja insuficiente. Eu também quero
passar tempo com você durante o dia.
— Não seja tão devasso, Isaac! — Ela riu, espantada com o apetite que
aquele homem, antes virgem, estava demonstrando.
— Por Deus, não é isso! — Foi a vez de ele rir. — Não estou falando de
passar o tempo assim… fazendo essas coisas. Apesar de que não oporia
objeções. Céus, eu estou apenas querendo dizer que eu gostaria de…
Ele parou de falar. Caroline estava com a cabeça recostada em seu peito e
podia ouvir seu coração bater como um tambor. Isaac quase disse algo de que
se arrependeria. Ela sabia o que era. Tinha uma forte suspeita do que se
seguiria se uma longa pausa não o tivesse silenciado por completo. Talvez
fosse melhor que não falassem sobre aquelas coisas. Sobre coisas com as
quais nenhum dos dois queria lidar.
Pela segunda vez, ela adormeceu nos braços do homem com quem fizera
amor. Não era um hábito que Caroline cultivava. Mas nada a fez desejar sair
dali. Também não quis que ele se fosse. O calor das chamas e a escuridão da
noite fizeram com que ambos dormissem por um longo período. Quando
Caroline abriu os olhos novamente, o sol ameaçava nascer no horizonte. E ela
estava sozinha na cama.
Sentou-se, um pouco aborrecida por despertar sem Isaac ao seu lado.
Estava prestes a blasfemar contra ele em pensamento quando ouviu barulho
de água no quarto anexo. Levantou-se, pisou de mal jeito e sentiu a perna
doer. Mentalizou uma imprecação grosseira e arrastou-se até onde Isaac
estava se banhando.
Talvez ela pudesse ficar ali, observando, por um longo tempo. A banheira
de cobre era pequena para um homem do tamanho dele. As pernas de Isaac
estavam para fora e ele esfregava um pano pelos braços. Ele fazia com que
ela desejasse pecar todo minuto em que estivesse em sua companhia.
— É intrigante que seu chalé de hóspedes tenha um encanamento tão
bom.
Ele disse, percebendo-a ali. Caroline ajoelhou-se ao lado da banheira, de
frente para ele.
— Anthony tem mania de encanamentos. Ele andou quebrando a casa
toda, depois que o marquês morreu. Estamos à beira de um novo século,
milorde. Precisamos de água encanada.
— Você tem noção que seu primo é agora o marquês, certo? Que ele
herdou o título de seu tio.
— Claro que tenho! Não sou tola. Mas é difícil para mim, ver Anthony
como o marquês. Esse continuará sempre sendo o homem que me criou.
Isaac sorriu e passou as mãos molhadas pelo cabelo dela. Caroline viu-se
pendendo para frente até encostar sua boca na dele. A intimidade entre eles
era absurda. Muito rápido, muito intenso, muito em tão pouco tempo. Aquele
não era um beijo de desejo. Era um beijo de um casal. Não havia barreiras
erguidas para resguardá-los.
— Hoje preciso resolver questões com os arrendatários. Você aceita meu
convite para passar o dia comigo, amanhã?
Sim, sem dúvidas ela queria passar o dia com ele. Mas Caroline teve
medo quando olhou dentro dos olhos de Isaac. O que estavam fazendo?
Aonde queriam chegar? Ela não estava preparada para nada daquilo.
— Eu tenho que cuidar dos preparativos do evento de apresentação da
escola. Comprometi-me a visitar algumas pessoas. Talvez possamos nos ver à
noite.
Era mentira. Caroline não tinha nada planejado. Ela cultivava o ócio da
nobreza com muito cuidado. Envolvia-se com ações de caridade e costumava
cuidar das pessoas quando estava em Kent, mas não permitia que muitos
soubessem desse seu lado altruísta. A maioria das mulheres que a toleravam
apenas doavam pilhas de moedas para orfanatos e hospitais, enquanto
permaneciam dentro de suas casas, tomando chá. Caroline evitava que
soubessem que ela ia pessoalmente conferir o bem-estar dos menos
favorecidos.
Mas ela precisava mentir. Não sabia o quanto era saudável passar tanto
tempo com Isaac, mesmo que quisesse muito estar com ele. O maldito
McFadden estava comprometido com o cortejo de outra mulher! E era
excelente que estivesse, já que ela nunca seria uma opção. Não queria sequer
sonhar com ele.
— À noite, então. — Ele suspirou. — Você quer ajuda para tomar um
banho?
— Sim, eu quero. É uma pena que essa banheira mal te caiba, porque eu
adoraria tomar banho com você.
Isaac riu, levantou-se e pegou uma toalha felpuda para se enxugar.
Depois, esvaziou a água e encheu novamente a banheira, enquanto ela
aguardava. O silêncio indicou que ele estava um pouco magoado com ela.
Caroline estava acostumada a magoar pessoas. Ela percebia quando isso
acontecia. Não queria que ele se chateasse, mas talvez fosse melhor que Isaac
entendesse que eles não deveriam ter tanta intimidade.
Ele a ajudou a entrar na banheira e a deixou sozinha. Caroline acomodou-
se para que a água morna a cobrisse até acima da cintura. Fechou os olhos e
relaxou, até sentir mãos masculinas tocando-a nos ombros. A respiração de
Isaac em seu pescoço. A boca dele beijando sua orelha. A barba arranhando
sua pele. Ele pegou o sabão, fez espuma com as mãos e deslizou-as pelos
braços dela. Subiu, desceu até os seios.
— Você está tentando me seduzir. — Caroline murmurou, rendida pelos
carinhos.
— Eu não pretendia. Mas é impossível vê-la nua e coberta de espuma e
não desejar seduzi-la.
Isaac passou a massageá-la nos ombros.
— Isso é muito bom. Espero que não esteja esperando que eu resista ao
seu processo.
— Não resista! Como você gosta de ser massageada?
— Não sei. Nunca recebi massagens, antes.
Ele parou subitamente. Acariciou-a no pescoço, voltou a descer as mãos
pelos braços.
— Nenhum… homem com quem se deitou fez isso para você?
— Você é o primeiro.
— É boa a sensação de ser seu primeiro em qualquer coisa.
A melancolia no tom de voz dele atingiu a lady como o punho de um
boxeador. Bem no queixo. Caroline virou-se. Segurou-o pela face e fez com
que olhasse diretamente para ela.
— Isaac, pare. Eu sei aonde você está querendo chegar. Não se compare
com outros. Não faça isso com você, nem comigo. Eu tenho um passado. Eu
tive homens. Você sabia disso quando quis deitar-se comigo.
— Sim, eu sabia. Mas é difícil fingir que eles não existiram. Não querer
superá-los.
— Não precisa fingir nem superar. Não há uma competição em que vocês
precisem ser melhores uns que os outros. Por que os homens são sempre tão
complicados? Dizem-se tão liberados sexualmente, mas se sentem ameaçados
por qualquer coisa. Se estivéssemos na posição inversa, gostaria que eu
fizesse comentários como esse?
Ele suspirou.
— Não gostaria.
— É por isso que será melhor se nos envolvermos menos. Vamos
restringir nossos encontros às noites, aqui no chalé. Podemos dormir juntos,
mas é só.
Isaac beijou-a nos cabelos e saiu do quarto. No instante em que terminou
de falar, Caroline sabia que o magoara outra vez. Ela era muito habilidosa em
falar bobagens para afastar dela aqueles que não pretendia ter muito
próximos. E, depois daquela noite, teve certeza que precisava guardar alguma
distância de Isaac McFadden.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

U M ADMINISTRADOR TINHA SEMPRE MUITA COISA PARA FAZER . I SSO


significava não ter tempo para frivolidades, nem para gastar pensando em
damas endiabradas que foram colocadas na Terra para infernizar os mais
incautos. Isaac era ocupado demais, e estava com problemas suficientes para
resolver. Mesmo assim, nada conseguia tirar Caroline Eckley da sua cabeça.
Ele tentou contato com ela durante o dia inteiro depois que ela colocou
limites no relacionamento deles. Lorde retornou para Greenwood Park com
três bilhetes sem resposta. À noite, ele se recusou a ir até ela. Não iria ceder a
ponto de se mostrar tão necessitado daquele contato físico. Ela estava sendo
teimosa, ele também seria.
Nos outros três dias que se sucederam, Lorde retornou com mais bilhetes
sem resposta. Apenas um foi entregue por Marquesa, e continha uma pequena
frase: venha à noite. Mas ele não iria. Apesar de não entender os motivos que
o levavam a ser tão renitente, Isaac não iria mais querer Caroline pela
metade. Essa realização fez com que ele tomasse uma atitude drástica.
Isaac não podia continuar aquela vida dupla. Em Londres, todos
acreditavam que ele estava cuidando dos negócios da família. Que ele
precisara viajar às pressas para atender aos interesses do conde. Que ele tinha
um compromisso com uma jovem dama italiana, cuja família estava muito
bem vista na sociedade londrina. Como segundo filho e, ainda, primeiro na
linha de sucessão do condado, ele era um dos melhores partidos da
temporada.
Mas a verdade era que ele estava em Kent fornicando com Caroline
Eckley. Não poderia anunciar isso nos salões, mas precisava garantir que sua
moral não seria abalada. Mesmo que a sociedade fosse excessivamente
permissiva com homens como ele e tolerasse as aventuras sexuais até mesmo
dos casados, ele não era desse tipo. Isaac cultivou uma virgindade por fins
morais. Ele não podia ter compromisso com uma mulher e estar,
efetivamente, desejando cortejar outra.
— Peyton, preciso que entregue esse telegrama com urgência! Peça a um
criado para ir imediatamente até a vila despachá-lo. Mande entregá-lo ao
Barão Capovilla.
O lorde entregou um papel dobrado e selado para o mordomo.
— Imediatamente, milorde. Devo mandar servir seu desjejum?
— Peça que enviem uma bandeja aqui. Estou terminando uns relatórios e
não posso me atrasar para conferir como anda a colheita.
Peyton não era muito de falar, então fez uma mesura e saiu do escritório,
onde fora chamado. A primeira ação fora tomada. Apesar de tudo, Isaac era
íntegro demais para se permitir ser leviano com uma dama que não merecia
ser enrolada por ele.
A segunda atitude requereria mais cuidado. Ele precisava conseguir
conversar com o Marquês de Granville, sem que Caroline soubesse. Como
eles tinham negócios a discutir sobre o comodato do silo de Rhode Port,
havia uma desculpa para convidar o marquês para sua residência. Não podia
arriscar tropeçar em Lady Eckley se visitasse o templo pagão da Granville
House.
Tocou a sineta e chamou novamente o mordomo.
— Pois não, milorde?
— Mande outro mensageiro à Granville House. Peça que convide o
marquês para um encontro de cavalheiros hoje, às seis horas. Depois do chá.
Peyton fez outra mesura e se retirou novamente. Com os planos em
andamento, Isaac tomou uma xícara de café preto, que lhe fora servido com
torradas, e deixou a casa. Iria ocupar-se de serviços pesados e exaustivos para
não precisar pensar que não estaria na cama com Caroline novamente naquela
noite. Porque ele não estaria. Ele faria as coisas do jeito dele, daquela vez.

N ÃO ERA admissível que Isaac McFadden a estivesse rejeitando. Claro que


ele não estava. Caroline não se enganava sobre o desejo de um homem por
ela, principalmente depois de terem dormido juntos. Ela sabia que ele a
queria. Mas, ante a oferta de ter exatamente o que pretendia, o lorde agia
como se tivesse mudado de ideia. E não, ela não estava nem um pouco
disposta a ceder a ele.
Recebeu vários bilhetes entregues por Marquesa ou Lorde. Os cães
pareciam desapontados quando ela devolvia o mesmo papel, sem escrever
uma resposta. Todos os bilhetes queriam marcar encontros diurnos e
românticos. Caroline não gostava de romance. Ela não tinha romance em sua
vida. Homens românticos só queriam seduzi-la, possuí-la e descartá-la. Não
criava expectativas com nada daquilo, principalmente porque nobres sempre
se casavam com o melhor negócio que aparecia na frente deles.
Mas ela estava indignada que ele não queria mais compartilhar a cama
com ela. Indignada e bastante frustrada. Caroline queria sentir outra vez o que
sentira na última noite que passaram juntos. Ela jamais imaginou que um
homem inexperiente no corpo feminino pudesse ser tão certeiro no processo
de sedução.
— Ah! Caroline, que bom encontrá-la.
Rose desceu as escadas, vinda do quarto das crianças. Ela sempre passava
tempo com os filhos durante a manhã.
— Precisa de mim para algo? Vou à vila conversar com uma decoradora
para ajudar nos preparos do evento.
— Recebemos um convite.
— Convite? Ainda durante a temporada?
— É para um dia na praia. Lorde Isaac nos convidou para visitarmos a
enseada particular dos McFaddens. Eu nunca fui até lá, dizem que é linda. As
crianças certamente vão adorar brincar na areia. Os balneários públicos
andam muito cheios ultimamente.
Caroline sentiu algo borbulhar dentro dela. Como se fosse água fervendo
para preparar o chá.
— O que você quer dizer com ele nos convidou? Isaac convidou a família
toda? As crianças?
— Sim. Ele quer agradecer por Anthony ter permitido o uso dos silos em
Rhode Port.
Ela sorriu. Caroline raramente demonstrava destempero. Tirando a vez
em que apontou uma arma e ameaçou a vida de Madeline Westphallen, ela
nunca parecia nervosa ou afetada. Mesmo que sua vontade fosse de gritar,
sair correndo, encontrar Isaac McFadden e apontar-lhe um dedo por estar
sendo tão desleal. Como ele ousava convidar a sua família para um passeio?
Como ele ousava agir como se a estivesse cortejando?
— Não acho que possa ir. Amanhã tenho um horário marcado na modista.
— Ah, Caroline! Remarque com a modista. Duvido que ela esteja muito
ocupada agora, em junho.
— Verei se consigo outro horário. Não posso deixar de preparar novos
vestidos para os dias do evento, Rose. Quanto a ir à praia, eu posso fazer isso
outra hora.
A marquesa também não demonstrou nenhum abalo. Sorriu e disse que
voltaria para suas pinturas. Caroline olhou ao redor e, vendo-se sozinha,
soltou uma imprecação. Maldito fosse aquele McFadden! Ele não tinha o
direito de fazer aquilo. E ela nem poderia confrontá-lo sem ir até ele e
arriscar ser envolvida por sua lábia. Ou por aqueles braços fortes. Não, ela
não iria até ele, ela mandaria um bilhete.

Q UANDO O M ARQUÊS de Granville chegou a Greenwood Park, ninguém


duvidou dos motivos que o levaram até ali. No dia seguinte, Isaac começaria
a direcionar a produção para o silo em Rhode Port. Apesar do olhar suspeito
de Wilhelmina, que andava silenciosa demais na opinião de Isaac, tudo
indicava que o marquês estava na propriedade para conversar sobre negócios.
Isaac, no entanto, tinha outros planos. Ele estava no escritório, vestindo
traje completo e abrindo uma garrafa de conhaque quando Peyton abriu a
porta e o marquês entrou. Como homem adulto, Isaac nunca se sentira um
menino tolo indo pedir autorização para fazer algo errado. Naquele momento,
era exatamente isso que pretendia.
— Por favor, sente-se, milorde.
Ele serviu duas doses do conhaque favorito de Edward e entregou uma a
Anthony Eckley. O marquês bebeu um gole e sorriu.
— Você está parecendo que vai a um baile de debutantes - como a
debutante, claro. Está tremendo feito um garotinho e me servindo a bebida do
conde. Certamente eu não estou aqui por causa dos silos.
Isaac suspirou.
— Muito óbvio?
— Desde que te recebi na minha casa pela primeira vez. — O marquês
riu. — Diga-me, Isaac, o que está havendo?
— Comuniquei ao Barão Capovilla que estou liberando a filha dele do
compromisso comigo. Sei que não formalizamos nada, mas eu pedi
autorização para cortejá-la e já havíamos nos encontrado algumas vezes. Não
desejo que Lady Francesca fique me esperando e perdendo a oportunidade de
conhecer outros cavalheiros.
Ele disse tudo de uma vez. Se fosse comedido, perderia a coragem. O que
estava fazendo era loucura. Tudo envolvendo Caroline Eckley era loucura. E
ele era o tolo que acreditava que poderia ter uma noite com aquela mulher e
sair ileso do processo.
— Entendo e respeito sua atitude. Sei que fui um libertino imoral, mas
não teria coragem de iludir uma mulher. Mas também tenho certeza que você
não me chamou aqui para discutir seu rompimento com a dama italiana.
— Não, milorde. Eu solicitei sua presença porque não queria ir à
Granville House. Não quero que Caroline saiba que estou fazendo isso. Eu
gostaria da sua permissão para cortejá-la.
Anthony Eckley deu uma gargalhada sonora. Depois, bebeu o restante do
seu conhaque e apoiou o copo sobre a mesinha redonda ao seu lado.
— Você sabe que não precisa pedir minha permissão, não sabe? E
também sabe que Caroline não é cortejada? Ela corteja.
Certamente, Isaac tinha uma noção bem clara daquilo. Dificilmente um
homem cortejaria aquela mulher. Ela era a dona de si mesma e tinha sempre
as melhores cartas na mão.
— Sei perfeitamente, milorde. Mas eu não gostaria de continuar
envolvido com ela sem sua permissão e bênção.
— Ah, Isaac. — O marquês passou os dedos pelos cabelos escuros. — Eu
amo Caroline. Ela é a irmã que eu não tive. E eu abençoarei qualquer coisa
que a deixe feliz. Eu vi como ela ficou feliz nesses últimos dias. Não quero
saber absolutamente nada do que andaram fazendo, porém eu espero que
continuem fazendo. Corteje-a, se é isso que deseja. Insista com ela. Caroline
ainda não sabe, mas ela sonha com o amor.
Mesmo que Isaac acreditasse que amor não tinha muito a ver com Lady
Caroline Eckley, não desmentiria o marquês. Mesmo que aquela mulher
teimosa não quisesse ser cortejada, ele iria continuar tentando. Mesmo que o
relacionamento deles não desse em nada, Isaac não queria deixar de tentar.
Uma hora depois que chegou, o Marquês de Granville deixou Greenwood
Park. Aquela seria outra noite em que Isaac dormiria mal, ansiando ter
Caroline em seus braços. O corpo dela sob o dele. Mas ele tinha algumas
estratégias ainda e precisava resistir. Quando disse que a seduziria, ele não
estava falando só de levá-la para a cama. Não mais.

O SOL DECIDIU APARECER forte e brilhante naquela manhã. Para garantir a


aparência de passeio familiar, Isaac convenceu Wilhelmina a ir com ele à
praia, encontrar-se com a família Eckley. Lorde era o mais animado para o
passeio. Ia latindo e correndo na frente, enquanto a comitiva dos humanos ia
mais devagar. Duas criadas e um criado carregavam cestas com comida,
toalhas e sombrinhas, enquanto os dois McFaddens caminhavam
animadamente na direção da enseada.
— O que vamos fazer lá? — Wilhelmina perguntou, abrindo sua
sombrinha para se proteger do sol. — Por que vamos nos encontrar com os
Eckleys?
— É um agradecimento. A marquesa gosta de praia, ela tem filhos
pequenos.
— Lady Eckley vai?
— O convite foi para toda a família, Wilhelmina. E, pela quantidade de
comida que estamos levando, espero que eles levem alguns agregados.
A jovem riu e segurou o braço do irmão. Eles estavam já com suas roupas
de banho, pois não encontrariam ninguém estranho pelo caminho. Aquela
trilha que percorriam era reservada para a família McFadden e seus
convidados. Empregados e arrendatários não circulavam por ela.
Depois de alguns minutos, os rochedos ficaram mais visíveis. Eles
seguiram por um caminho de pedras e areia, que demarcava a separação entre
a vegetação mais verde e a enseada. Era uma paisagem impossível, que
mesclava uma área onde se podia cultivar vários tipos de produtos e um mar
azul e de águas frias. Assim que cruzaram aquela linha invisível, foram
transportados para o paraíso marítimo de Kent.
Os criados colocaram toalhas quadriculadas na areia, prenderam
sombrinhas no chão para fazer alguma sombra, espalharam cestas com
comida por todos os lados. Isaac sentou-se, abraçou os joelhos e esperou. Na
noite anterior ele recebera um bilhete, levado por Lorde, em que Caroline
esbravejava por sua ousadia. Ela disse que ele não podia convidar a família
dela. Que aquilo era jogo sujo e que haveria retaliação. Ele esperava
ansiosamente por ela.
Wilhelmina tirou as sapatilhas e correu para a água. A irmã, às vezes,
ainda parecia aquela garotinha que ele segurava pela mão e ensinava coisas.
No fundo, era bom ficar sempre em Greenwood Park e conviver com a
família tão de perto. Ele era um homem caseiro.
O choro de uma criança fez com que ele saísse de suas divagações. A
Marquesa de Granville e uma comitiva de criados chegavam à enseada.
Rosamund Eckley vinha segurando um bebê nos braços e um garotinho
gorducho corria pela areia. Ele se desequilibrou e a babá o segurou pelos
bracinhos. Marquesa também estava ali, marchando como um verdadeiro
membro da realeza.
Mas Caroline Eckley não estava à vista. Havia umas dez pessoas
chegando, mas nenhuma delas era quem ele realmente desejava ver.
— Lorde Isaac. — A marquesa se aproximou sorrindo. Wilhelmina saiu
da água e chegou para cumprimentar os convidados. — Obrigada por este
convite. Phillip está eufórico.
O menino dava pulos e gritava. Os criados da marquesa começaram a
ajeitar um lugar na areia para a família.
— Você também gosta de água, Phillip?
Wilhelmina ajoelhou perto do garotinho, que tinha uns dois anos de
idade. Caroline tinha razão em dizer que o marquês não brincava em serviço
quando o assunto era engravidar sua esposa. Com a resposta positiva do
menino, Wilhelmina levou-o pela mão para onde arrebentavam as ondas. Os
dois logo começaram a cavar na areia para construir alguma coisa.
— É um prazer recebê-los, milady. — Isaac respondeu à marquesa. —
Podem vir à enseada sempre que desejarem. O marquês não virá?
— Ah, Anthony precisou resolver alguma coisa em Londres. E eu pedi
que ele não viesse.
O lorde endireitou as costas. Rosamund entregou o bebê, que estava em
suas mãos, para a babá e também retirou as sapatilhas. Ela usava um traje
completo de banho, com saias curtas e meias de seda. Parecia bastante jovem.
— Eu queria conversar com você. — Ela completou seu raciocínio. —
Creio que teremos a oportunidade de trocar algumas palavras.
Os criados estavam afastados, reunidos debaixo de uma árvore. A babá e
as crianças estavam cavando um buraco no chão. O bebê parecia bem novo,
mas o sol estava fraco e era cedo. Wilhelmina não prestava atenção neles.
Não era indecoroso para uma mulher, casada, conversar em público com um
homem que conhecia. Então ninguém precisava acompanhá-los.
— Decerto, Lady Eckley não virá.
— Não. Caroline está confusa. É por isso que eu gostaria de conversar.
Anthony me contou que você pediu permissão para cortejá-la, mas não deseja
que ela saiba disso.
Isaac olhou para o horizonte. A brisa marinha estava suave e o calor
começou a fazer com que ele suasse.
— Se ela souber, vai rejeitar meu cortejo.
— Claro que sim. Ela já está rejeitando, mesmo que não esteja totalmente
consciente de suas intenções. Eu gostaria de pedir que não desista dela.
A marquesa continuava prestando atenção nos filhos enquanto falava.
Isaac fitou seu perfil e notou que ela sorria. Certamente não desejava que
ninguém notasse o tom sério da conversa. Os criados podiam ser discretos,
mas eles sempre fofocavam entre si.
— Não pretendo desistir, milady. Eu desenvolvi um tipo de… afeto por
Lady Eckley.
Daquela vez a marquesa riu. Foi uma risada baixa, mas indicou que ela
estava se divertindo com a tentativa frustrada de Isaac esconder o que havia
entre ele e Caroline. Céus! Será que todos sabiam de suas visitas ao chalé de
hóspedes?
— Caroline contou a você sobre Robert Langdon?
— Não. Ele foi… algum de seus amantes?
— Sim, foi. — Rosamund virou-se para Isaac. A sua expressão mudou e
ela ficou subitamente mais séria. — Quando conheci Anthony, demorei
pouco tempo para compreender as razões por trás da atitude de Caroline em
relação ao casamento. Claro que ela é uma mulher muito mais livre do que as
outras que você conhece. Ela não entende nem aceita as limitações impostas
pela sociedade. Mas, ainda assim, existe um motivo para ela afastar todas as
pessoas e usá-las apenas para satisfação sexual.
O rubor que subiu pela face de Isaac o deixou tão constrangido quanto
ouvir a marquesa usar aquelas palavras obscenas. Ela parecia confortável, no
entanto.
— E milady me contará esse motivo?
— Eu certamente não deveria. Mas entenda, não é fofoca. Eu desejo o
bem de Caroline e sei que você seria muito bom para ela. E sei, também, que
a libertinagem dela pode ser um obstáculo para que vocês possam chegar a
algum entendimento. Mas preciso que saiba. Caroline não é infiel, nem
promíscua.
— E Robert Langdon?
— Ele a iludiu. Ela tinha dezessete anos! — A marquesa voltou a olhar
para frente. O filho correu até ela e entregou algumas conchas. Quando a
criança retornou para a babá, a conversa prosseguiu. — Ele fez promessas de
casar-se com ela. Caroline estava apaixonada e você já deve ter percebido
que ela é dada a paixões muito intensas.
Sim, ele percebera. Apenas não considerava que aquilo era paixão.
Luxúria, talvez. Desejo. Sua ingenuidade acerca dos assuntos do coração o
constrangeu mais uma vez.
— No fim, ele não se casou com ela.
— Não. Mas ele tomou-lhe a virgindade com promessas que não
pretendia honrar. O Sr. Langdon era ambicioso e preferiu casar-se com uma
dama de mais estirpe que Caroline. Afinal, ela não vinha de uma família com
título. Apesar do sangue, azul, correr em suas veias, seu pai era o segundo
filho e o marquês tinha três filhos homens para herdar o marquesado.
Então era aquilo. O motivo pelo qual Caroline sempre se referia ao
casamento daquela forma pejorativa. Não era apenas porque ela, como
mulher, se sentiria anulada ao se casar. Ser propriedade do marido era,
provavelmente, o maior ponto negativo que Caroline via em se casar. Mas ela
também carregava uma decepção amorosa em seu passado.
— Milady, já que a senhora está sendo tão honesta sobre Caroline, eu
gostaria de saber. A senhora me contou essa história para que eu entenda o
comportamento de Caroline ou para justificar sua libertinagem?
— Não pretendo justificar nada por ela. Eu sequer deveria contar isso a
você. Quando ela souber, vai ficar muito zangada comigo. Mas eu vou
entender que valeu à pena se você conseguir fazê-la se abrir para o amor
novamente.
— Ela amava Aiden Trowsdale.
Isaac disse aquilo com amargura na voz. Quando procurou Caroline pela
primeira vez, o passado dela era irrelevante. Ao contrário, ele confiava
naquele passado para que ela lhe desse o que precisava. Foi rejeitado, seu
orgulho fez com que assumisse o desafio de seduzi-la. E arrependeu-se
amargamente de tê-lo feito, porque o seduzido foi ele. O passado de Caroline,
então, passou a assombrá-lo. Não o fizera desistir dela, mas o deixava
inseguro. E ciumento. Como ele sentia ciúmes de cada homem que tocara
Caroline antes dele.
— Ah, ela estava obcecada pelo duque, sim. Caroline tende a se
aproximar de homens que não pode ter. O duque nunca se casaria com ela,
mesmo que ela fantasiasse essa ilusão.
— Porque ela não era digna dele?
— Isso poderia pesar, sim. Mas você conhece Aiden melhor do que eu.
Ele foi feito para se casar com a mulher que amasse. Ele nunca seria feliz
com um casamento de negócios. E ele não amava Caroline. Ela também não
o amava, verdadeiramente. Ela gosta de querer o que não pode ter, pois assim
não corre o risco de se machucar. Ninguém perde aquilo que não tem!
— Eu não sei bem o que sou para ela. Nós… eu sinto muito, milady, não
posso entrar em detalhes sobre meu relacionamento com Caroline. Devo a ela
minha discrição.
Rosamund deu uma risada.
— Conheço-a melhor que você. Sei bem que relacionamento vocês têm.
E, ao vê-la fugir de você, também sei que ela está encurralada. Você é algo
que ela pode ter, Isaac, e pode perder. Ela não vai arriscar. Mas bem, eu acho
que vou entrar um pouco no mar. Foi muito bom conversar com você.
Do mesmo jeito súbito que chegou, Rosamund afastou-se na direção da
água. Aproximou-se das crianças, levou Phillip para pular as ondas na
arrebentação. Wilhelmina também participou das brincadeiras. O lorde, no
entanto, não estava mais com humor para diversão. As palavras da marquesa
martelavam em sua cabeça, enquanto ele tentava fazer com que elas fizessem
mais sentido.
Caroline não parecia uma criatura amargurada. Menos ainda sofrendo de
coração partido. O episódio com Robert Langdon, fosse quem fosse aquele
miserável, acontecera anos atrás. Depois dele, a lady tratou de prosseguir
arruinando sua reputação e se envolvendo com dúzias de homens, solteiros
ou não. Ela demonstrava gostar do ato sexual e sabia muito bem como
seduzir um homem.
Foi então que seu irmão mais velho apareceu em suas memórias. Quando
se casou com Agatha, Edward estava fechado para o amor. O conde
acreditava não ser digno de ser amado, guardava profunda mágoa da forma
como o pai o tratara e do desprezo da ex-noiva, Lady Bridget. Isso não o
impedia de ser um homem cortês, refinado, sempre buscando novas formas
de aumentar a fortuna da família e bastante sociável. Edward foi, por muito
tempo, o partido mais cobiçado dos bailes londrinos.
E se Caroline também suportasse os traumas do abandono sem perceber?
E se sua aversão ao cortejo fosse uma forma de proteção?
Ele não podia jogar com Caroline. Estava na hora de acabar com o gato e
rato e ir até ela conversar francamente. Mesmo que não revelasse suas reais
intenções, já que ele mesmo tinha dúvidas quanto a elas, ele precisava ser o
primeiro a ceder. Ou a perderia e não teria nenhuma chance de descobrir até
onde eles poderiam chegar.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

F AZIA ALGUM TEMPO QUE E DWARD NÃO TINHA UMA BOA MÃO . E STAVA
enferrujado, sem jogar a quase um ano. Mas aqueles três reis o fizeram
desejar blefar um pouco. Fingir que estava com a melhor das mãos
vencedoras e instigar os amigos a apostarem bem alto. Ele não podia negar
que adorava a adrenalina das apostas.
A mesa no Riderhood era das mais favoráveis. Estavam ali seu melhor
amigo, Aiden Trowsdale, seu outro melhor amigo, Grant Sawbridge, seu
sócio e feliz pai de um herdeiro - finalmente! - Miles Westphallen, o
Visconde de Whitby, e seu outro amigo e milionário, Virgil Oglethorpe. Eles
jogavam cartas toda semana na casa de Thomas Riderhood, outro amigo. O
conde, pela primeira vez em muito tempo, estava de volta aos clubes de
cavalheiros.
— Riderhood. — Sawbridge gritou. — Traga aquele conhaque especial.
Temos que celebrar o retorno de Edward à vida masculina.
— Pensávamos que tinha perdido suas bolas. — Oglethorpe provocou. —
Depois que se casou você abandonou a vida noturna.
— Minha esposa estava grávida. E vocês sabem o que aconteceu aqui na
minha última vez.
Edward rosnou e jogou algumas fichas na mesa, cobrindo a aposta que
Aiden acabara de cobrir.
— Acalme-se, homem. Todos aqui são casados e comandados por suas
esposas. — O duque deu um tapinha nas costas do amigo. — Menos
Sawbridge, mas ele é um bastardo insensível. Não se importe com ele.
— Fale por si mesmo. Minha esposa não me comanda. — O Visconde de
Whitby também cobriu a aposta. — Vamos logo com isso, mostre sua mão,
Edward.
O conde resistiu em apresentar suas cartas. Riderhood chegou com uma
garrafa especial de conhaque e abriu, atrapalhando a jogatina. Enquanto os
homens eram servidos e esperavam para um brinde, o grupo ganhou um
acréscimo. Lorde Ignazio, o italiano amigo de Sawbridge, chegou. Ele vinha
frequentando o clube desde que a família se mudou para a Inglaterra a
negócios. Sua irmã estava sendo cortejada por Isaac, ou, ao menos, havia
uma proposta nesse sentido.
Mas o italiano não estava satisfeito. A sua expressão era de indignação e
a forma como ele segurou o copo de conhaque que lhe fora oferecido deu
certeza que o homem estava louco de vontade de esbofetear alguém.
— Dê-me cartas.
Lorde Ignazio pediu, colocando suas fichas sobre a mesa. Os homens
terminaram a rodada anterior, que Edward venceu, e receberam novas mãos.
O italiano, ao invés de olhar para suas cartas, encarava o conde. Jogou uma
rodada, perdeu, continuou a encará-lo. Jogou mais uma, os olhos
permaneciam em Edward.
— O senhor tem algo a me falar. — O conde resolveu dizer alguma coisa.
Não estava acostumado a ser confrontado sem um confronto real.
— Talvez milorde tenha algo a me falar. Meu pai recebeu isso ontem.
Apoiando as cartas na mesa, Lorde Ignazio retirou um papel do bolso do
casaco e jogou sobre o feltro verde. Os presentes pararam o que faziam.
Riderhood se aproximou novamente - ele estava sempre atento a tudo em seu
clube, principalmente se envolvia seus amigos e um estrangeiro que ele
pouco conhecia.
Edward pegou o papel na mão e o desdobrou. Havia um resquício de cera
e ele reconheceu parte do brasão dos McFaddens. Aquela correspondência
vinha de sua família. Todos aguardaram que o conde lesse o conteúdo, o que
ele fez sem verbalizar uma só palavra.
Era uma carta de Isaac. Seu irmão estava avisando ao Barão Capovilla
que não tinha mais interesse em cortejar Lady Francesca, sua filha.
— Não tomo as decisões por meu irmão, milorde. — Edward devolveu o
papel ao italiano, que o fitava com os olhos semicerrados. — Ele é adulto e
cuida da própria vida.
— Seu irmão é um ingannatore! — Lorde Ignazio esbravejou. — Ele
iludiu minha irmã com promessas de interesse. Ela passou boa parte da
temporada esperando que ele retornasse e desejando reencontrá-lo.
— Sinto muito por sua irmã. Mas, se quiser confrontar alguém por causa
disso, deve falar com Isaac. Ele está em Greenwood Park, se precisar eu
posso lhe indicar a direção.
Ao ver que o conde não se abalaria com a notícia, nem se justificaria em
nome do irmão, o italiano jogou as cartas sobre a mesa, pegou as fichas que
lhe restaram e saiu. Os homens levaram alguns segundos para se
reorganizarem.
— Bastante temperamental. — Miles Westphallen ajeitou-se na cadeira.
— Deus nos livre de sermos governados por italianos, eles são muito
exagerados.
— Posso entender que ele esteja inconformado. — Edward pegou suas
cartas novamente e descartou duas. — Mas fiquei preocupado. Isaac parecia
bastante interessado na moça. Ele voltou para Kent e desistiu dela?
— Talvez ele tenha conhecido outra moça. — Aiden sugeriu, apostando
algumas fichas.
— Ou talvez uma moça antiga tenha atraído sua atenção…
O duque e o conde olharam, ao mesmo tempo, para Sawbridge. O
industriário jogou algumas fichas na mesa e fingiu que não percebia que
estava sendo escrutinado.
— O que você sabe, Grant? — Aiden pediu que um garçom trouxesse
outra rodada de bebidas.
— Posso estar enganado, claro. E não gosto de fazer fofocas. Acho que
devo ficar quieto.
Edward virou-se para o amigo e colocou as duas mãos no colarinho dele.
Ajeitou o lenço em seu pescoço e inspirou profundamente.
— Fale.
— Não tenho medo de você, Edward. Você pode ter degolado o
americano e ainda assim eu acabo com você sem uma espada e com uma mão
amarrada. Mas eu posso ter visto seu irmão em uma conversa um tanto
quanto interessante com Lady Eckley.
— Uma conversa?
— Posso ter visto um beijo, também.
O conde colocou as mãos nas têmporas e inspirou outra vez.
— Todos nós já beijamos Caroline e isso não foi um problema para
ninguém.
— Eu nunca a beijei. — O visconde cobriu a aposta.
— Nem eu. — Oglethorpe pagou. — Ela é minha investidora no hotel,
não costumo misturar negócios com prazer.
— Não importa. A questão é que, se Isaac teve um caso com Caroline
isso não necessariamente pode ser considerado um problema. Afinal, ela não
se envolve com ninguém a ponto de fazer um homem desistir de um cortejo a
uma dama decente.
O silêncio na mesa precedeu à jogada final. Daquela vez, o Duque de
Shaftesbury levou as fichas com dois pares de reis e valetes.
— Edward. — Sawbridge bebeu seu conhaque em um gole e pediu mais.
— Seu irmão já esteve com mulheres, não esteve?
— Claro que sim. Eu acho que sim. Por que não? Você sugere que ele
seja… virgem?
Mais silêncio, que durou segundos intermináveis. Apenas se ouvia as
cartas sendo embaralhadas pelo crupiê.
— Bem, se era, ele certamente não é mais. Se beijou Caroline Eckley,
duvido que tenha parado por aí.
— Não existem homens virgens. — Aiden deu uma risada. — Só garotos.
— Eu posso estar mais uma vez enganado.
Ele poderia, mas Edward sabia que Sawbridge era perspicaz como uma
cobra. Ele não costumava errar e não atirava no escuro. Se fez aquelas
perguntas, se sugeriu que havia um envolvimento entre Isaac e Caroline, é
porque deveria haver realmente alguma coisa. E aquilo era um problema com
o qual Edward precisaria lidar. Não podia deixar seu irmão se relacionar com
a sobrinha do marquês.
— Preciso ir a Greenwood Park. — Edward jogou algumas fichas na
mesa, apostando em suas cartas. — Vocês dois conseguem dar conta da
fábrica por dois dias?
— O que vai fazer lá, Ed? — Aiden colocou a mão no ombro do amigo.
O conde estava nervoso, mesmo que fingisse não se abalar com aquela
conversa.
— Preciso conversar com Isaac e tirar essa história a limpo. Se ele deixou
de cortejar a italiana por causa de Caroline, percebe que tenho um problema
para lidar?
O duque, e todos os homens presentes, concordaram com um movimento
de cabeça. Edward estava decidido. Ele pegaria o primeiro trem para Kent no
dia seguinte e descobriria o que estava acontecendo com seu irmão. Agatha
compreenderia a necessidade de resguardar o bem-estar da família. Isaac
precisava de ajuda e ele sairia em seu resgate.
O RGANIZAR EVENTOS ERA TEDIOSO . Caroline adorava participar deles, mas
estava descobrindo que a parte por trás dos salões decorados, orquestras e
mesas cheias de comida eram bastante desinteressantes. Claro que ela nunca
se ocupava de organizar nada. Quando havia um evento na Granville House,
a anfitriã era a marquesa. Quando era convidada para algum baile ou jantar,
não precisava se envolver em nenhuma atividade que não dançar, comer e
encantar os outros convidados.
Porque Caroline era encantadora. Quando ousavam convidá-la, sabiam
que ela iria para que todos os homens prestassem atenção nela. Se não a
convidassem, ela acabava aparecendo nas festas de qualquer jeito. Era a
sobrinha do marquês e fora amante de muitos homens. Poucos tinham
coragem de destratá-la e ninguém jamais ousou expulsá-la de um evento.
Só que ela daria uma festa. Um final de semana para seduzir mulheres,
não homens. Damas, não cavalheiros. Precisava convencer a sociedade que
estava redimida. Ou convencer a burguesia que seu passado maculado era
irrelevante. E precisava de uma desculpa para manter-se ocupada e não
pensar em Isaac McFadden.
Não era uma decisão fácil. O homem era difícil de não se fazer presente.
Ele teve a audácia de convidar a família dela para ir à praia. E Caroline teve
que fingir compromissos para se esquivar do convite. Mas, ao ver Rose e as
crianças retornarem, ao pôr do sol, felizes e sorridentes, ela desejou ter ido.
Se fosse, iria se encantar por Isaac. Se isso acontecesse, ela acabaria cedendo
ao que ele queria. Mesmo que ela realmente não soubesse o que ele queria.
Ela dormiu outra vez no chalé de hóspedes. Esperava por ele, que não
aparecia há quatro noites. Teve um sono ruim, inconstante, quase não fechou
os olhos. Sentiu calor, mas depois sentiu frio porque apagou a lareira. Estava
escuro, mas ficou muito claro quando acendeu uma lamparina. A camisola
fez com que sua pele coçasse. Quando o sol nasceu, ela agradeceu pelo dia e
se arrastou para fora da cama.
— Ele vai ter que pagar caro por me fazer rolar na cama a noite toda.
Caroline disse, enquanto tomava seu chá no terraço. Marquesa estava
sentada ao seu lado, ouvindo atentamente as lamentações da lady. Era uma
ouvinte excelente, que nunca contestava nem criticava. E não colocava seus
próprios lamentos à frente dos de Caroline. Como a casa ainda dormia, ela
podia falar livremente sem risco de ser ouvida.
— Espero que esteja com mais sorte com seu namorado. — A lady
mordiscou uma torrada. — Porque o meu é muito complicado.
Marquesa latiu. Caroline arregalou os olhos e encarou a xícara de
porcelana decorada. O terraço ficava na lateral da casa, com vista para um
belo jardim florido e muito bem cuidado. Era silencioso e o aroma das flores
com a maresia suave fazia com que ela se sentisse sempre em casa. Ela
geralmente adorava tomar chá ali, mas estava perturbada por seus
pensamentos. Não estava enganada, acabara de chamar Isaac de namorado.
Conversando com a cachorra. Depois de terem dormido juntos apenas duas
vezes.
— Marquesa, veja que estou perdendo meu jeito. Não é possível que eu, a
rainha do pecado, a musa da perversão, use a palavra “namorado” para definir
o homem que está na minha cama. — Ela bebericou o chá e a cachorra se
aproximou, apoiando a cabeça na perna dela. — Você tem razão, ele não está
na minha cama e eu não usei a palavra exatamente, não é mesmo? Sabe o
problema, Marquesa? Eu não posso deixar que ele controle a situação. Se eu
quero fazer amor com Isaac McFadden, então eu devo ir atrás disso.
Maldição! Eu sou Caroline Eckley, eu não faço amor.
A lady depositou a xícara sobre o pires sem fazer nenhum ruído.
Levantou-se, ajeitou as saias e tocou a sineta. Sua camareira veio
imediatamente, acompanhada de outra criada.
— Violet, vou sair.
— Preciso fazer algo pela senhorita, milady?
— Apenas informe aos meus parentes, quando eles acordarem, se
perguntarem por mim. Não tenho hora para retornar.

O TRAJETO até Greenwood Park era curto, então ela decidiu fazer a pé.
Marquesa acompanhou-a, arrastando sua pelagem impecável pela grama e
pelas pedras, quando seguiam por trilhas mais civilizadas. Para evitar ser
vista por muita gente, Caroline preferiu tomar alguns desvios que acabaram
por deixar a barra de seu vestido ornamentada com pequenos galhos e folhas
secas. Enquanto seguia em busca de seu objetivo, pensava.
Não tinha muita certeza do que faria ao encontrar Isaac. Prometeu a ele
que não se veriam durante o dia, mas ele não queria as noites. Tinham que
chegar a um meio termo porque ela ainda tinha muito o que ensinar a ele.
Talvez estivesse indo ao lugar errado. Era cedo, ela deveria procurá-lo em
casa. O homem nem deveria ter acordado ainda. Ela mesma só despertara por
causa dele. Por não conseguir dormir. Mas, ao ver Marquesa disparar na
frente e ouvir os latidos de Lorde à distância, teve certeza que seguia no
caminho certo.
A construção decadente do silo de grãos apareceu à sua frente. Uma
estrutura de madeira e pedras muito antiga e que gritava por socorro. Caroline
não viu ninguém por ali, mas ouviu barulho vindo de todos os lugares.
Apressou-se para ver os dois cachorros correndo e brincando na parte frontal
do prédio.
— Isaac?
Ela chamou, sem se preocupar que fossem achar escandaloso que ela se
referisse a ele pelo primeiro nome, sem o pronome de tratamento adequado.
Lorde entrou latindo pela parte inferior da construção e voltou em seguida.
Caroline não precisou esperar muito, a voz de Isaac ecoou pelo vazio.
— O que houve, garoto? Por que está me chamando?
A silhueta esguia e musculosa do lorde surgiu na penumbra da estrutura
condenada. Ele estava sem camisa, o maldito. Havia suor em sua pele,
fazendo com que seu torso assumisse um aspecto brilhoso. Como se estivesse
encerado. Polido, para que ela o admirasse. Seus cabelos, desgrenhados,
estavam também suados e grudados na nuca. Ele secava a mão com um pano
quando a viu.
— Caroline.
Foi uma constatação. Ela entrou, mesmo sabendo que aquelas paredes e
tudo o mais não forneciam segurança alguma.
— O que está fazendo aqui? Pensei que esse prédio estava condenado.
— Está. O engenheiro deve começar a trabalhar amanhã. Estamos
esvaziando… havia homens aqui comigo… este não é um lugar para damas.
— Por sorte eu não sou uma dama.
Eles estavam há alguns metros de distância. Caroline não percebeu
quantos passos deu na direção dele, mas Isaac não se movera. A penumbra a
envolveu e ela sentiu cheiro de feno e mofo.
— Você é uma dama. Espere lá fora, eu vou me recompor e podemos
conversar.
— Não quero conversar. — Ela disse, um pouco desorientada. O
ambiente estava carregado de masculinidade. Suor, mato, estrume, aromas
desagradáveis da fazenda que, misturados com aquele ar marítimo, a
deixavam confusa. Ou era apenas Isaac que a confundia. — Quero chegar a
algum entendimento. Não podemos continuar fugindo um do outro. Eu passei
a noite esperando você.
— Você tem ideia de que, para chegarmos a um entendimento,
precisamos conversar?
— Não estou acostumada a conversar com homens. Eu geralmente os
entretenho com outra coisa. De toda sorte, precisava dizer que senti sua falta
nesses dias. Estou disposta a abrir uma exceção e aceitar vê-lo durante o dia,
em algumas…
Antes que conseguisse terminar, foi interrompida por mãos que a
puxaram, braços que a envolveram e uma boca que a devorou. Isaac deu dois,
três passos na direção dela e a arrebatou. Quando Caroline percebeu o que a
atingira, estava com as costas contra uma coluna de madeira, sucumbindo a
um beijo que quase a fez perder os sentidos.
Isaac segurou-a pelos cabelos soltos, puxou-os para trás e fez com que ela
dobrasse o pescoço. Saboreou-a com a língua, desceu a boca em uma trilha
de beijos até a orelha, depois desceu até o decote. Caroline quis tocá-lo, mas
nunca experimentara uma euforia como aquela. Ela costumava estar sempre
no protagonismo. Naquele momento, estava sendo devorada pelo homem que
ela considerava um tolo inocente.
As mãos de Isaac seguraram-na pelos quadris e puxaram para perto. Ela
gemeu ao senti-lo tão rígido e quente que nem as camadas de saias foram
capazes de protegê-la.
— Meu Deus. — Ele rosnou de encontro à pele dela, a boca espalhando
ondas de calor por sobre os seios, aquela parte exposta no decote. — O que é
isso que você fez comigo?
— Não fui eu. — Caroline riu, mas deixou os braços pendurados, sem
força, enquanto ele subia com os dedos para os botões do vestido dela. —
Você se reprimiu por muito tempo, milorde.
— É você, sim. Eu nunca quis devassar uma mulher dessa forma, menos
ainda no meio da palha, debaixo de um prédio condenado que pode desabar.
Ela deu uma risada, mas estava nervosa. Isaac era muito sincero. Ele
falava o que queria e o que sentia, sem muitas restrições. Isso era porque
homens não precisavam se conter. Se eles falassem bobagens, eram
excêntricos. Ou apenas homens. As damas tinham que adotar
comportamentos irretocáveis. Constrição não se aplicava aos cavalheiros. Só
que aquele arroubo dele somado à falta de sono dela, indicavam que eles
estavam reféns um do outro. Ela o desejava, ele a desejava, e aquele desejo
não era como ela já sentira antes.
Os beijos dele ficaram mais intensos e o corpete dela cedeu. Os seios
saltaram do decote frouxo e ele passou a língua de um até o outro. Capturou
um mamilo entre os lábios, sugou, mordiscou, sugou novamente. Caroline já
não enxergava direito. O sol, que entrava por algumas frestas, criava
mosaicos no teto alto do prédio, e as formas giravam fazendo com que ela
não soubesse se estava zonza ou atordoada.
— Eu estou louco. Passei esses dias pensando em vê-la se contorcendo de
prazer nos meus braços.
— Isaac…
— Não fale. Apenas me deixe ter isso mais um pouco.
Caroline não pretendia fazer com que ele parasse. Mas eles estavam se
arriscando muito. Aquele não era um lugar privado.
— Hoje à noite. — Ela colocou as mãos nos ombros dele. Deslizou pela
nuca, segurou-o e acariciou-o nos cabelos. Isaac repousou a cabeça no peito
dela. Caroline pôde sentir a respiração dele pesada, densa. — Venha me ver.
Vamos conversar como quiser.
Ele concordou. Isaac parecia ainda muito afetado quando começou a
ajudá-la a arrumar as roupas. Prendeu os botões do corpete, ajeitou o decote,
passou as mãos pelas saias, que estavam amarrotadas e cheias de sujeira. A
respiração deles estava acelerada. O coração de Caroline batia como uma
orquestra em seu peito.
— Eu chego às dez. Deixe a porta aberta!
O lorde beijou-a novamente e se afastou. Ela nunca teve reações como
aquelas. Sem olhar para trás, arrastou-se para fora daquele prédio e voltou
para a luz solar. Precisava voltar para casa e tomar um banho frio, ou não
aguentaria até a noite.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

E LE ESTAVA RINDO COMO UM TOLO QUANDO CHEGOU A SUA CASA . T RABALHOU


o dia inteiro, mal comeu algum lanche com os outros homens, exauriu-se ao
limite. Suado, sujo, com a camisa esgarçada pelo esforço, empoeirado dos
pés à cabeça. Com aquelas mãos imundas ele segurara Caroline e a beijara no
meio do feno, da palha e das cascas antigas de grãos que estavam no silo. Por
muito pouco ele não a jogou naquele chão encardido e fez amor com ela.
Isaac estava perdido, tão encantado por Caroline Eckley como se ela fosse
aceitar ser cortejada por ele. Claro que ela não ia. Ele teria que reinventar o
significado do cortejo. Ela era diferente de tudo que ele conhecera.
Entrou na casa pelos fundos, já tirando as botas enlameadas. Do jeito que
estava não podia se apresentar para a mãe e a irmã. Precisava tomar um
banho antes de entrar pela casa.
— Dewitt. — Isaac chamou o criado, tocando a sineta. — Prepare-me um
banho aqui embaixo.
— Perdão, milorde. — O valete pareceu confuso. — Aqui, na cozinha?
— Não, ache um quarto vazio, coloque uma banheira e encha de água.
Mande uma criada fazer isso, claro. Eu não vou entrar em casa, imundo desse
jeito.
— O senhor esteve arrumando feno, milorde?
— Estava no silo. Acho que encerramos por lá, está tudo pronto para o
engenheiro entrar amanhã com seus trabalhadores.
— Certo. Então devo informar que seu irmão chegou esta manhã.
O valete falava enquanto arrastava uma banheira de cobre para um quarto
pouco utilizado no andar de baixo. Isaac observava debruçado sobre a pia da
lavanderia, tentando tirar a sujeira das mãos com uma esponja.
— Nate? Ah, os problemas em Cornwall foram fáceis de resolver, então.
— Não, milorde. Não foi o Sr. Nathaniel, foi o conde. Ele está no
escritório, disse que aguardaria o seu retorno.
Isaac parou o que fazia. Algo estava errado. Edward não apareceria sem
avisar, antes do final da temporada.
— A condessa veio com ele?
— Não, milorde. O conde está sozinho e não trouxe bagagem.
Dewitt também suspeitava de algo. A forma como ele contou da presença
de Edward indicava que ele achava que alguma coisa levara o conde até
Greenwood Park sem um planejamento adequado. Edward era muito
sistemático, cheio de regras e procedimentos. Ele não costumava fazer visitas
não programadas nem mesmo à sua própria casa de praia.
Se Isaac não estivesse tão sujo, ele iria imediatamente ter com seu irmão e
descobrir de uma vez por todas o que estava acontecendo. Como precisava
realmente de um banho, entrou na banheira assim que ela encheu, lavou-se
com pressa e obrigou Dewitt a ajudá-lo a se vestir em velocidade atordoante.
Com os punhos desabotoados e sem casaco, o lorde cruzou a casa e foi até o
escritório.
O conde estava sentado atrás de sua mesa de mogno, lendo os relatórios
de administração. Isaac tinha certeza que não era para saber do progresso das
obras ou dos lucros da produção. Além de ele nunca ter demonstrado
desconfiança no trabalho dos irmãos, ele recebia relatórios constantes de tudo
que acontecia de novo.
Ao ver Isaac entrar, Edward ergueu o olhar e retirou os óculos que usava
para ler.
— Finalmente retornou. — O conde não sorriu, apenas manteve o olhar
examinador sobre o irmão. — Você se envolve sempre assim com os
assuntos dos arrendatários? Fui informado de que estava no silo, trabalhando.
— Eu sou bom no que faço porque faço, Ed.
Isaac foi até a mesa de bebidas e serviu duas doses de uísque.
— Não é cedo para você beber?
— Com sua presença súbita aqui, imagino que eu vá precisar de um
drinque. O que houve, Ed?
Pela forma como o conde estava agindo, Isaac começou a suspeitar de
que era algo grave. Edward era sempre comedido em palavras e atitudes,
mas, com os irmãos, ele não performava nenhum papel. Como não parecia
haver nada com as propriedades, o pensamento de Isaac se voltou para a
fábrica. Ou possíveis dívidas. Estaria Edward afundado em dívidas? Não era
possível, já que o irmão não assumia riscos que pudessem levá-lo à ruína.
Mesmo estando um pouco afastado da fábrica, Isaac sabia que os negócios
iam bem. Afinal, ele lia os jornais todo dia.
— Soube que cancelou seu noivado com a dama italiana.
Então era aquilo. Isaac quis cair na gargalhada, mas não conseguiu reagir
a contento. Sentou-se outra vez e bebeu o uísque todo. Estava cansado, com
fome e pensando em Caroline. Seu corpo ansiava por estar junto ao dela,
delirava com a promessa da noite. Não sabia como lidar com aquela
afirmação fantasiosa de seu irmão.
— Edward, eu não estava noivo de Lady Francesca. Por Deus, vocês
nunca prestam atenção no que digo? Sei que está atarefado com seus assuntos
pessoais, mas eu pedi permissão para cortejar a dama, não para casar-me com
ela. Interessei-me pela possibilidade e jamais teria um encontro com ela sem
autorização de seu pai.
— Ela criou expectativas. O irmão não estava feliz quando me interpelou
no Riderhood.
O lorde arregalou os olhos. Preferia não reagir emocionalmente, mas não
conseguia evitar na maioria das vezes. A frieza não era sua melhor qualidade.
— Lamento que isso tenha acontecido. Foi para evitar que ela se iludisse
que comuniquei ao pai dela que retirava meu interesse no cortejo. Sei que
isso provavelmente a ofenderia, mas prefiro que ela me odeie por rejeitá-la do
que por fazê-la perder oportunidades reais de casamento.
Edward balançou a cabeça em concordância. Ele sabia que o irmão era o
homem mais sensato que conhecia. Isaac não se envolvia em escândalos, nem
causava descontentamento a ninguém. Era adorado por todas e todos,
desejado nos eventos e cobiçado pelas damas casadoiras, mesmo não sendo
portador de nenhum título. Jamais chegaria perto de uma dama respeitável
sem fazer aquilo da forma certa.
Mesmo assim, o conde continuou tenso. Havia mais que ele queria falar.
— Isso teve a ver com Lady Eckley?
Isaac serviu mais uísque. Talvez ele precisasse estar bêbado para aguentar
aquela conversa.
— De onde tirou que Caroline determina minhas decisões?
— Caroline? Você a trata pelo nome de batismo?
— Você também. Não parece ser um problema.
— Isaac, você sabe que eu… que Caroline e eu já tivemos alguns
arranjos. A forma como a trato decorre desse fato. Agora, você… — O
conde passou as mãos pelos cabelos loiros e perfeitamente penteados, dando-
se conta do que acabara de falar. Fez algumas conexões em cinco segundos, o
tempo que levou para retomar seu discurso. — Céus, diga-me que não se
envolveu com Caroline Eckley. Que Sawbridge está equivocado.
— Não é de sua conta com quem me envolvo, Ed. Nunca me meti nos
seus assuntos com mulheres, espero que tenha o mesmo respeito por mim.
— Você é melhor do que eu, Isaac. Merece uma dama adequada que
possa ser sua esposa, com quem terá filhos. Lady Eckley é…
— Uma dama. Perfeitamente adequada. E não é como se eu a tivesse
pedido em casamento. Ou essa fofoca está rolando nas línguas masculinas em
Londres? O que Sawbridge anda espalhando sobre mim?
Edward levantou-se e girou pelo escritório. Parou de frente para a estante,
examinou os livros por algum tempo.
— Ele viu vocês se beijando. — O conde respondeu, sem virar-se. —
Não fez fofoca, apenas contou-me quando o italiano apareceu no clube para
me confrontar. Eu o defendi, mas preciso entender seu envolvimento com
Caroline.
— Sua esposa está montando uma escola de moças com ela. Por que eu
não posso ser amigo de Caroline?
— Você é amigo dela? — Edward encarou o irmão. Isaac já estava de pé,
e as mãos fechadas em punhos. A ausência de uma resposta rápida fez com
que o conde confirmasse suas suspeitas. — Imaginei que não. Bem, você
sabe que precisa manter esse caso em segredo, não sabe? E que deveria
terminá-lo imediatamente, antes que a coisa se prolongue por mais tempo do
que o necessário.
Isaac fechou os olhos. O sol já estava posto e a escuridão da noite
começava a engoli-los. Havia duas luminárias acesas, mas o escritório ficara
na penumbra. Ele não queria ter aquela conversa com seu irmão. Não daquela
forma, nem naquele momento. Isaac pretendia entender-se com Caroline,
primeiro. Convencê-la a sair com ele, a passar tempo com ele. Queria
conhecê-la melhor e deixar que ela o conhecesse. Ir além do prazer intenso na
cama. E, só então, conversaria seriamente com Edward.
Porque o irmão não tinha que se meter nas suas escolhas. Se Isaac
quisesse casar-se com Caroline, tomá-la como esposa, Edward não tinha nada
a ver com isso. Não era como se ele fosse um garoto.
— Ed, eu não vou terminar nada. Quer saber? Não adianta fingir porque
você já tem sua convicção sobre o que acontece. Eu e Caroline estamos
envolvidos, sim. Nós nos encontramos algumas vezes. Mas eu conversei com
o marquês. Não estou fazendo nada errado, nem escondido, nem contra os
costumes. Eu quero apenas passar algum tempo com ela.
Edward deu uma risada. Uma gargalhada cínica, quase exagerada. Isaac
não podia saber se ele estava nervoso ou debochando dele. Deu dois passos
até o irmão e segurou-o pelos ombros, em uma atitude paternal.
— Meu irmão, eu amo você. Não posso permitir que arruíne sua vida.
Caroline não passa tempo com homens, nem nada como você pretende. Você
falou com o marquês? Pediu para cortejá-la?
— Sim. E tenho a bênção dele.
— E como Caroline se sente sobre isso?
— Ela não sabe. Ainda. Eu tenho receio que ela fuja de mim se imaginar
minhas intenções.
— Exatamente, porque Caroline só deseja homens para satisfação sexual.
Ela não se casa, não tem amantes fixos, não tem relacionamentos. Está
perdendo seu tempo com ela e comprometendo sua honra.
Isaac afastou-se de Edward, empurrando suas mãos.
— Você acha que a conhece! — Ele riu, nervoso. — Deve ter passado
muito tempo com ela, claro, e isso faz com que acredite que sabe tudo sobre
ela. Pois não sabe. E tem mais, Ed. Nada que eu fizer comprometerá minha
honra. Eu sou um maldito lorde, meu comportamento sempre será desculpado
por essa sociedade hipócrita. Pode pegar seus conselhos e guardá-los para si.
Eu não vou terminar nada, não vou agir como todos vocês libertinos que a
usaram e descartaram.
— Ninguém usa Caroline, Isaac! — Edward estava perdendo o usual
controle. — Ela usa você.
— Talvez seja verdade. Mas é minha decisão ser usado por ela ou não.
O lorde deixou o escritório sem pedir licença ou encerrar formalmente a
conversa. Estava irritado, aborrecido com aquela conversa sem qualquer
sentido. Edward não tinha o direito de se intrometer. Não podia tratar
Caroline daquela forma. Não podia agir como se Isaac precisasse de proteção
contra a maligna libertina devoradora de homens. Maldição.
Ele não podia sair para vê-la. Havia uma tensão familiar que só se
agravaria se não jantasse em casa, se não jogasse cartas com Wilhelmina à
noite, se não desse atenção à mãe. Se Edward imaginasse que ele estava
negligenciando a família para fornicar com Caroline, isso apenas agravaria
sua impressão sobre ela. Isaac soltou uma imprecação, bufou e foi atrás de
papel e caneta para escrever um bilhete. Precisava desmarcar seu encontro,
no dia seguinte explicaria a Caroline que um imprevisto acontecera.
Provavelmente, não contaria a ela sobre Edward. Aquilo a magoaria. Ela
podia achar que nada a afetava, que estava acima daqueles sentimentos
mundanos, mas Isaac sabia que era apenas fachada. Caroline era sensível.
Não queria magoá-la por causa do seu irmão estúpido. Inventaria uma
indisposição qualquer e colocaria a responsabilidade sobre a mãe.

O CONDE não podia ficar mais tempo em Greenwood Park. Não contou a
Agatha o que faria, nem tinha uma desculpa para deixar seus afazeres na
fábrica até o final da temporada. Para impor a Sawbridge a permanência em
Londres, ele tinha que cumprir sua parte no acordo e trabalhar bastante. Mas
estava preocupado com Isaac. O irmão estava enfeitiçado.
Durante o jantar, eles quase não se falaram. Edward sentou-se à
cabeceira, sua mãe na outra ponta, e Isaac e Wilhelmina em laterais.
Acomodaram-se no salão menor, a mesa não era grande demais para mantê-
los afastados. As mulheres não sabiam da discussão e nem desconfiavam dos
motivos. Os McFaddens não eram muito comunicativos à mesa, então não
viram nada estranho no silêncio.
— Trarei Agatha e as crianças para cá em duas semanas. — Edward
disse, quando já serviam a sobremesa. — Eu terei que voltar constantemente
a Londres, mas elas precisam de ar fresco e sol.
— Finalmente conhecerei minhas netas. — Pauline McFadden
resmungou. — Pelo menos algum de meus filhos me dará netos. Os outros
estão enrolando demais, se demorarem como você, Edward, eu não verei as
crianças.
— Não faça drama, mamãe. — Wilhelmina deu uma risadinha. — Os
meninos são jovens, e a senhora está tão bem!
— Espero que você se case logo. — A condessa viúva lançou um olhar
terno para a filha. — Não estou ficando mais jovem, quero ver meus filhos
todos encaminhados.
— Eu cuidarei de Wilhelmina, mamãe. Não acha mesmo que deixarei
minha irmã desamparada, não é? — O conde franziu a testa. — E o dote dela
é tão obsceno que teremos que afastá-la dos pretendentes.
— Aposto que vocês farão isso muito bem. Espero que não assustem os
pretendentes com reais interesses.
A jovem estava sorrindo. Ela parecia bastante animada com a perspectiva
de debutar na sociedade. Wilhelmina era uma moça criada de forma
tradicional, com valores adequados para ser o objeto de desejo de todo nobre
solteiro ou viúvo. Apesar disso, Edward não a empurraria para um homem
decrépito ou endividado. Também não a faria casar-se sem que estivesse um
pouco apaixonada, pelo menos. Não forçaria sua irmã a um casamento de
conveniência porque ela não precisava - nem eles.
Queria que ela fosse feliz como ele era. Queria que todos os irmãos
fossem felizes.
— Não tem nada a dizer, Isaac?
— Estou me sentindo mal. — Ele baixou os talheres sobre o prato. —
Tomei sol demais, preciso descansar. Se me dão licença, vou me recolher.
O lorde levantou-se e saiu do salão. Seu humor fez com que a mãe se
preocupasse. Isaac nunca reclamava nem demonstrava indisposição para
nada. Ele já ficara doente e, mesmo assim, continuava realizando suas
atividades sem questionar.
— Wilhelmina, você tem notado algo estranho em seu irmão? — Pauline
perguntou. — Ele anda trabalhando demais. O segundo filho de um conde
não deveria trabalhar tanto.
— Isaac gosta de estar em atividade, mamãe. Sempre tão ativo! Mas eu
creio que haja algo mais por trás desse comportamento dele.
— O que seria?
Foi Edward quem se ajeitou na cadeira para ouvir a teoria da irmã.
Wilhelmina era muito próxima de Isaac, eles conversavam sempre quando ela
era mais nova. Depois que o irmão assumiu a administração de Greenwood
Park eles se afastaram um pouco, mas o afeto entre eles não diminuiu.
— Não devo fofocar. — Ela levou um pedaço do pudim à boca. — Mas
Isaac pode estar sofrendo por questões sentimentais.
Fez silêncio no salão. Os criados que estavam acompanhando o jantar
pareciam estátuas, de tão quietos. Por mais que eles soubessem do que se
tratava, eles não diriam uma palavra sobre Isaac. Todos ali o respeitavam
demais.
— É aniversário dele amanhã. — Pauline retomou o diálogo. —
Deveríamos oferecer um jantar.
— Não tem ninguém importante em Kent. Creio que o jantar ficaria
vazio, sem convidados. — O conde disse. — Entendo que seja melhor
celebrarmos com um evento de encerramento de temporada, quando os
amigos dele e pessoas da sociedade pudessem atender ao convite.
— Ah, Edward, não podemos fazer isso. Haverá o evento de Caroline
Eckley na Granville House! Temos que comparecer, Isaac se comprometeu a
me acompanhar!
O conde não se lembrava desse evento. Provavelmente, era algo que sua
esposa estaria ciente, e pelo qual não tinha nenhum interesse.
— Comprometeu-se? Interessante.
— Eu quero ir. Haverá moças de toda Londres, muitas que não conheço.
Podemos fazer um evento depois, Isaac nunca se importou mesmo em
celebrar o seu aniversário.
— Acalme-se, irmã. Você pode ir ao evento, não me oponho. — Edward
levou a mão até a da irmã e a segurou com ternura. — Mas preciso que me
ajude. Se você está certa sobre Isaac, ele pode estar se envolvendo em
problemas.
— Que problemas? — Pauline ergueu o olhar.
— Como assim, se envolvendo? — Wilhelmina apoiou os talheres no
prato.
— Tenho razões para acreditar que precisamos ficar de olho em Isaac. Se
algo estranho acontecer, vocês duas me reportarão?
A condessa viúva chamou sua camareira com um aceno de cabeça. Um
criado se colocou atrás dela e puxou a cadeira para que levantasse.
— Edward, se seu irmão tem problemas, eu conversarei com ele. Isaac é
meu filho, no final das contas.
— Mamãe…
— Não estou discutindo isso, estou comunicando. Tente continuar em
harmonia com seu irmão, eu não quero meus filhos brigando. Vamos tomar
chá, Wilhelmina?
A jovem pediu licença ao conde e saiu com a mãe. Edward não desejava a
mãe se envolvendo naqueles assuntos, mas talvez fosse bom. Isaac daria
ouvidos a ela.
— A SENHORA PRETENDE MESMO CONVERSAR com Isaac? — Wilhelmina
questionou a mãe, depois que estavam sentadas no salão privativo da
condessa viúva, tomando chá. — Porque eu não entendi o que Edward quis
dizer.
A condessa viúva ajeitou-se no sofá e olhou para uma imagem na parede.
Havia fotos da família naquele quarto, todas devidamente emolduradas a
pedido dela. O antigo conde, seu marido, posava imponente ao lado de seus
dois filhos mais velhos.
— Seu pai nos deixou muito cedo. Edward teve que assumir o condado
ainda muito jovem e cuidar de negócios importantes. Ele tem essa ideia de
que precisa ser um pai para vocês. Garantir que os meninos se mantenham na
linha e que você se case bem. George sempre foi muito duro com ele.
— Isso diz sobre Edward. E Isaac?
— Não vou falar nada com ele. — Pauline bebericou seu chá. — Disse
aquilo para que seu irmão achasse que estamos observando. Mas Isaac é
adulto, não cabe a mim me meter em suas confusões.
— Ele é seu filho. — Wilhelmina insistiu. — Ele é quem mais cuida de
nós.
— E é por isso mesmo que eu devo deixá-lo livre. Wilhelmina, somos
mulheres. Não devemos nos intrometer nos assuntos dos homens a não ser
que seja necessário. Não vejo necessidade de fazer isso. Edward está
exagerando.
A jovem dama aquiesceu. Estava acostumada a ouvir o mesmo discurso
de sua preceptora, de suas professoras, de todas as mulheres com quem
convivia. Tinha que lembrar sempre disso para não cometer falhas em seu
debute na sociedade. Os assuntos masculinos deveriam se manter entre os
homens.
Mas ela estava curiosa em saber por que Edward se importava com o caso
de Isaac. Ela sabia o que estava acontecendo, não era tola. Conhecia bem
Isaac para entender que ele estava tendo um romance com a dama de
vermelho. Mas também sabia que o irmão era inteligente demais, ele não
pedira Caroline em casamento nem o faria se isso significasse problemas. Ela
chegou a sugerir que ele a cortejasse, mas Isaac era muito adequado para se
envolver seriamente com uma mulher libertina. Wilhelmina gostava de
Caroline, mas sabia que ela não era bem vista na alta nobreza. Casar-se com
ela rebaixaria Isaac e era provável que Edward tivesse medo que seu irmão
não soubesse separar um caso amoroso de um casamento.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

C AROLINE NÃO SE CHATEOU PORQUE I SAAC DESMARCOU NAQUELA NOITE . E LE


mandou um bilhete, não a deixou esperando feito uma tola. Quando viu
Lorde chegar sozinho à Granville House, suspeitou que algo acontecera. Mas
ela precisou de um banho quase frio para acalmar seu corpo. E, naquela
manhã, em que ela novamente acordou cedo demais por causa da cama vazia,
tudo que precisava era vê-lo.
Lavou-se, vestiu-se, deixou que Violet arrumasse seu cabelo, mesmo que
o preferisse solto, e desceu para seu desjejum. Phillip corria pela casa naquela
manhã, usufruindo da liberdade que a fuga da ala infantil lhe proporcionava.
Gritinhos de criança fizeram com que ela sorrisse. Antes que chegasse ao
salão, o mordomo a interceptou com uma bandeja e um papel dobrado sobre
ela.
— Milady, um cavalheiro deseja vê-la.
— Cavalheiros têm nome, Shelton. Quem é?
Sem deixar o mordomo responder, Caroline pegou o papel dobrado e
sorriu mais uma vez. A letra já conhecida de Isaac indicava que era ele
esperando no hall. Com um semblante inexpressivo, o mordomo fez uma
reverência e se afastou, enquanto ela foi à direção da entrada. Precisou se
controlar para não sair correndo e demonstrar que estava muito feliz com a
presença de Isaac em sua casa.
Ele continuava observando o vaso com figuras sexuais. Admirava a peça
de cerâmica intrigado, quase se ajoelhando para vê-la melhor.
— Precisamos resolver seu problema de nunca ter lido o Kama Sutra.
Isaac levantou-se ao ouvi-la. Ele estava glorioso sob a luz do sol que
penetrava pelas janelas de vidro. Segurava o chapéu de feltro nas mãos e
tinha os cabelos dourados, que misturavam cores entre o âmbar e o loiro. A
barba, perfeitamente aparada, dava a ele um ar masculino e misterioso. Ela
costumava pensar que não havia nada de misterioso em Isaac McFadden, mas
ele a estava fazendo crer que esteve enganada.
— Seria necessário que eu praticasse. — Ele disse, sorrindo. O tom de
voz malicioso deixou Caroline excitada. — Algumas sugestões aqui parecem
muito complicadas.
— Podemos providenciar alguns testes.
Os dois estavam mais próximos do que o decoro permitia. Não que a casa
Granville fosse um primor de virtude, porém não pretendiam entregar que o
relacionamento deles já tinha ultrapassado todos os limites da decência.
Caroline colocou a mão espalmada na lapela do paletó que ele usava e sentiu
seu peito inflar com a respiração.
— Desculpe-me por ontem. Eu tive imprevistos familiares.
— Não precisa se explicar. A que devo sua visita?
— Vim convidá-la para ir à vila tomar um chá. Soube que há uma nova
casa de tortas e ainda não tive a oportunidade de conhecer.
— Ainda não tomei meu desjejum. — Ela levou as mãos para ajeitar o nó
do lenço no pescoço dele. A peça não precisava de ajuste algum, mas ela
queria uma desculpa para manter-se próxima a ele. — Estou faminta!
— Então meu convite veio em boa hora. Talvez possamos discutir os
termos de nosso acordo, afinal.
— Não temos um acordo, milorde.
— Podemos ter um, então. Algo que envolva mais do que aulas à noite.
Ele falava com a voz rouca e suave, como se estivesse prestes a seduzi-la.
Caroline olhava para ele, encarava seus olhos azuis que pareciam o céu de
verão, transparentes e límpidos, e tinha certeza que estava enfeitiçada. Talvez
os livros explicassem aquele fenômeno. Isaac McFadden fazia sua mágica e
desarmava todas as defesas que ela construíra com muito afinco.
— Certo. Pegarei minha sombrinha, aguarde um instante.
O coração dela retumbava no peito quando se afastou dele. O desejo era
tão latente que gritava dentro dela, esperneava querendo sair. Passar mais
tempo com ele poderia ajudá-la a domá-lo ou causar um rebuliço de vez.
A carruagem dos McFaddens estava parada na frente da Granville House.
Isaac a ajudou a subir e sentou-se de frente para ela. Os joelhos dele se
acomodaram entre as saias dela. Enquanto o veículo andava, trepidando sobre
a via de pedra, eles não conversaram. Caroline olhou pela janela algumas
vezes, Isaac colocou sua mão com luvas sobre a dela. O trajeto era curto
demais e logo estavam parados na via principal da vila.
Isaac desceu e ofereceu o braço para que ela segurasse. Como ela não
estava de luvas, sentia a maciez do tecido do casaco que ele vestia e o calor
morno da pele por baixo. Entraram na casa de chá e tortas da Sra. Thorne,
uma viúva espirituosa e que adorava conversar. Era refrescante que na vila as
mulheres não a tratassem como em Londres. Talvez por não serem nobres,
por estarem acostumadas a regras menos enfadonhas, elas respeitassem
Caroline.
— Sejam bem-vindos. É uma honra recebê-los, milorde. Milady.
A Sra. Thorne correu detrás do balcão e veio até a porta.
— Vamos nos sentar ali no canto. — Isaac apontou uma mesa mais
reservada. — Sirva-nos chá e torta de morango.
A mulher assentiu com um movimento de cabeça e foi providenciar o
pedido. Isaac conduziu Caroline até a mesa, puxou a cadeira para ela se
sentar e acomodou-se de frente, novamente. Daquela vez eles não estavam
em contato, mas ele apoiou os cotovelos na mesa ao dobrar o corpo e encará-
la.
— Odeio-me agora por não ter ido até você, ontem.
— Venha até mim hoje. — Ela riu. — Como sabe que gosto de torta de
morangos?
— Vermelho. — Isaac retirou suas luvas e guardou-as no bolso interno do
casaco. — Mas, se preferir outra, eu posso…
— Não, morango está ótimo! — Ela o interrompeu. — Bem, estamos
aqui. O que você quer discutir comigo? Que tipo de arranjo podemos fazer
para que você pare de me rejeitar?
— Céus, Caroline. — Ele riu e passou os dedos pelos cabelos,
despenteando-os um pouco. — Eu não estou rejeitando você! Ao contrário,
eu desejo mais tempo com você. Só isso que peço.
— Sabe que vai parecer que você está me cortejando?
A Sra. Thorne chegou com o chá e as tortas. Colocou um pedaço na
frente de cada um e duas xícaras de porcelana decorada, acompanhadas pelo
bule fumegante. Isaac indicou que ela podia deixar tudo ali e Caroline pegou
o bule para servir o chá. Ela também sabia que ele preferia dois cubos de
açúcar. Isaac gostava das coisas doces.
— Talvez pareça. Mas não precisamos vir sempre à vila, podemos nos
ver em Greenwood Park, na praia, em Rhode Port… há muitos lugares onde
podemos ficar juntos e conversar.
— Apenas conversar?
— Duvido que eu consiga isso por muito tempo. — Ele riu e aceitou o
chá que ela ofereceu. — Agora mesmo, estou me esforçando bastante para
não a tocar de forma íntima demais.
Ela também estava. A proposta de passar tempo com Isaac era tentadora e
perigosa. Nada do que ela estava acostumada. Tinha certeza que as pessoas
confundiriam tudo e pensariam que ele estava cortejando-a. Isso chegaria aos
ouvidos da dama italiana. Ela teria trabalho desfazendo boatos, mesmo que
todos acreditassem nela. Caroline Eckley não era dada a cortejos.
E também seria arriscado porque ela estava desenvolvendo muito afeto
por aquele lorde. Nenhum homem fazia com ela o que ele fazia. Ninguém a
queria como companhia, ou a convidava para comer torta no meio da manhã.
— Ainda temos mais de uma semana até o final da temporada e os nobres
começarem a infestar o litoral. — Caroline disse, bebericando seu chá e
olhando o lorde por cima da xícara. — Até lá, deve ser seguro nos
encontrarmos por aí. Aceito seus termos, milorde.
Isaac sorriu e segurou a mão dela. Era um contato íntimo demais.
Inadequado. Mas não havia ninguém no estabelecimento além deles. E a Sra.
Thorne não parecia estar prestando atenção.
— É um excelente presente de aniversário.
— Aniversário? — Ela apoiou a xícara na mesa e o fitou brevemente.
— Sim. Hoje é meu aniversário.
— Oh, céus, Isaac! — Caroline bateu, no prato, o garfo que acabara de
pegar. O ruído do metal sobre a porcelana fez com que a Sra. Thorne se
alertasse. — Como me diz isso com essa tranquilidade? Haverá uma festa?
— Não. Raramente celebro meu aniversário. Geralmente jantamos em
família.
— Não creio. — Caroline colocou um pedaço de torta na boca. —
Precisamos fazer algo!
— Como disse, não tenho o hábito de celebrar meu aniversário. Prefiro
estar com as pessoas que gosto.
Mesmo que ele tenha dito aquilo com muita convicção, Caroline não
acreditava que fosse totalmente verdade. Ela adorava festas. E amava
aniversários. Era justo e adequado que Isaac pudesse comemorar o dele.
— Sua família ficará aborrecida se eu o roubar pelo dia?
O lorde franziu as sobrancelhas perfeitas, unindo-as no centro. Terminou
seu chá e acenou para a Sra. Thorne, indicando que pretendia pagar pela
comida. Enquanto a senhora fazia as contas do quanto era devido, ele encarou
Caroline, que esperava uma resposta.
— Antes não queria se arriscar comigo. Agora quer passar o dia inteiro
em minha companhia?
— Agora eu sei que é um dia importante. Vamos, faremos algo para
celebrar seus vinte e cinco anos.
Isaac sorriu. Um sorriso largo que exibiu seus dentes brancos perfeitos e
que fez o coração dela saltar uma batida. E ela percebeu que se lembrava da
idade dele. Que sabia quantos anos ele faria. E que ele era significativamente
mais novo que ela. A Sra. Thorne trouxe um papel com o valor devido
anotado e Isaac pegou duas moedas em seu bolso.
— Fique com o troco. Os morangos estavam deliciosamente frescos.
A mulher fez uma série de mesuras que eram certamente um exagero,
mas que significavam sua gratidão pela atitude. Isaac sempre pagava mais do
que devia por tudo. Aquilo era uma tradição nos McFaddens. Caroline sabia
que Edward também era dado a supervalorizar os produtos que adquiria e
pagar salários exorbitantes a seus empregados.
O lorde levantou-se e deu o braço a Caroline. Ela estava nervosa com a
falta de resposta. Esperava que ele não se ofendesse com a mudança súbita de
opinião sobre passar tempo com ele. Aniversários eram diferentes. Mereciam
atenção especial. Não era como se Caroline fosse volúvel. Mesmo que ela
fosse.
Quando estavam já dentro da carruagem, Isaac se sentou do lado dela e
fechou as cortinas. Levou as duas mãos à face de Caroline, puxou-a para si e
a beijou. Ela amoleceu como a cobertura da torta que acabara de comer. Ele
tinha aquele sabor doce e a boca quente. Não foi um beijo que durou muito.
— O que pretende fazer comigo durante o dia, milady?
Foi a vez de Caroline sorrir diante da pergunta. Ela não fazia a menor
ideia. As propriedades de Kent estavam vazias. Os nobres só voltariam para o
litoral em duas semanas. Não havia como convidar pessoas para uma festa,
não de última hora.
— Pretendo não deixar que seu dia passe em branco, nem no meio do
feno ou da palha.
Isaac bateu no teto da carruagem e o cocheiro seguiu para Rhode Port.
Quando chegaram à Granville House, Caroline conduziu Isaac pelos
corredores até a biblioteca que ficava no segundo andar. Pediu que ele
esperasse e desceu para a cozinha. Não era o lugar que costumava frequentar
na casa, então a cozinheira chefe assustou-se ao ver a lady entrando em
território pouco explorado pelos nobres da casa.
— Sra. Brooks. Preciso que preparem um bolo de aniversário.
— Oh! Céus, alguém está fazendo aniversário e não fui comunicada?
Teremos uma festa na residência, milady? Devemos estabelecer um cardápio?
— Não será uma festa. — Caroline girou ao redor, examinando a cozinha.
Ela não entendia o que acontecia ali, nunca precisou cozinhar ou ferver uma
água em sua vida. — Mas um amigo está fazendo aniversário e ele não
costuma comemorar. Gostaria de surpreendê-lo com um bolo.
— Certo milady. É um cavalheiro? Devemos usar uma decoração
masculina, então.
— Sim, façam isso. Quero recheios bem doces, ele adora doce! E façam
limonada também. Tudo tem que estar pronto para o chá das cinco.
A Sra. Brooks bateu as mãos e duas criadas se aproximaram. A
cozinheira explicou brevemente o que precisava ser feito e as duas se
afastaram, iniciando tarefas em velocidade acelerada. Caroline voltou para a
biblioteca e encontrou Isaac remexendo nos livros. Por sorte, Anthony não
estava por ali. Não queria que os homens se envolvessem em conversas
masculinas e a deixassem de lado. Podia ser ridículo sentir ciúmes do primo,
mas ela pretendia ter Isaac para si o dia inteiro. E a noite também.
Ela faria com que aquele aniversário fosse inesquecível.

A BIBLIOTECA do Marquês de Granville era enorme. Maior do que a dos


McFaddens, o que indicava que se lia mais naquela família. Isaac estava
procurando o bendito Kama Sutra quando Caroline chegou. Ele estava
curioso para saber como um livro cheio de depravação podia ficar exposto
em uma casa de família. Provavelmente estaria escondido em um porão. Mas,
se ele não soubesse a localização do livro, jamais o encontraria naquelas
prateleiras que iam até o teto e ocupavam duas paredes inteiras.
— Pronto, eu deixei todos avisados que estamos aqui e não queremos ser
incomodados.
Caroline chegou por trás e fez com que ele soltasse de repente o livro que
tentava pegar na estante.
— Silenciosa como um fantasma. — Ele provocou. — E completamente
sem juízo. Não podemos ficar na biblioteca “sem sermos incomodados”. É
inadequado.
— Quase nada é inadequado na casa dos Eckleys. Por que acha que te
trouxe aqui?
A dama de vermelho se aproximou e pegou o livro que ele deixara cair.
Era um exemplar daqueles que ela recomendou, escrito pelo filósofo
utilitarista John Stuart Mill. Isaac queria compreender o mundo dela, entender
por que Caroline era tão diferente. Ler o que ela lia talvez ajudasse.
— Posso ler para você?
Ela perguntou, abrindo o livro em uma página específica. Isaac sentou-se
em uma poltrona próximo à lareira, que estava acesa e Caroline acomodou-se
no sofá. Observou o espaço e bateu nas saias do vestido. Como o lorde
demorou demais a entender o que ela queria, precisou verbalizar suas
intenções.
— Venha cá, Isaac. Deite a cabeça no meu colo. Ficará mais fácil para
mim se meu público ouvinte estiver bem próximo.
Era uma péssima ideia. Qualquer parte dele em contato com Caroline
poderia desencadear uma reação violenta. Mas ela não parecia interessada em
seduzi-lo, ela realmente estava interessada em ler para ele. Ainda achando
que não deveria, Isaac sentou-se no sofá e deitou a cabeça no monte de tecido
que compunha as saias do vestido de Caroline. Acomodou-se no calor
daquele corpo que ele já conhecia e desejava, enquanto ela abria o livro e
iniciava a leitura de algumas partes previamente selecionadas.
O texto era chocante. Stuart Mill considerava que mulheres não eram
biologicamente inferiores aos homens. Que elas poderiam ter a mesma
capacidade masculina se tivessem a oportunidade de estudar o mesmo que os
homens. Que a sujeição feminina era um projeto político e social que se
supôs adequado. Seria melhor para todos se as mulheres se submetessem aos
homens, simplesmente.
Aquilo era muito subversivo. Uma afronta à própria Rainha, que declarou
publicamente que as mulheres não podiam arriscar perder a proteção
masculina. Mas, deitado ali, olhando para cima e para o semblante
concentrado de Caroline, Isaac não podia concordar mais com John Stuart
Mill. Aquela mulher ali, lendo para ele, com os cabelos trançados meio
despenteados pelo vento, o olhar profundo e um corpo delicado como o de
um filhote de passarinho era a maior representação de força que ele conhecia.
Ela era mais resistente que qualquer homem. Nenhum dos nobres que ele
conhecia seria capaz de suportar tantos ataques à reputação deles como ela
suportava. Claro que Caroline não era uma dama tradicional. Ela
desconsiderava qualquer regra de recato da sociedade, porque ela não
concordava que as mulheres deveriam ser submetidas a tantos rigores. Mas
ela era punida por isso, mantinha a cabeça erguida e suas decisões
permaneciam. Se Edward, aquele hipócrita, a tivesse confrontado, ela
provavelmente chutaria suas bolas e o deixaria gemendo de dor.
Ela era mais inteligente que muitos homens. Ela investia, multiplicava sua
renda, constituía imóveis e negócios. Caroline não dependia da proteção de
ninguém para sobreviver dignamente. Ele mesmo não detinha posses, ainda
não fizera nada com o salário de administrador que recebia. Ao contrário,
gastava com tolices. Tinha pouco guardado e não investira em nada, ainda. Se
eles se casassem, ele seria sustentado por ela.
Enquanto a voz de Caroline o embalava lendo sobre a necessidade de se
reconhecer o valor feminino, ele se assombrou ao pensar em casamento. Mas,
no fundo, sabia que o caminho que seguia era sem volta. Mesmo que ele
ainda não estivesse apaixonado por Caroline, ele se apaixonaria fatalmente se
continuassem a fazer o que estavam fazendo.
— Interrompo algo?
O Marquês de Granville entrou na biblioteca. Isaac quase não o ouviu,
estava de olhos fechados e tão relaxado que poderia adormecer. Percebeu que
a mão de Caroline lhe afagava os cabelos. E que ela não parou de fazer aquilo
porque o marquês chegou. Não sentia nenhuma vergonha de tocar um homem
de forma íntima na frente de seu primo.
— Anthony! — Ela fechou o livro. — Estava lendo para Isaac. Você
deveria se sentar aqui e ouvir, também.
— Estava era fazendo o coitado do homem dormir. — O marquês deu
uma gargalhada. — Suas leituras são tediosas.
— O que deseja?
— A cozinheira precisa falar com você sobre algo que pediu, mas todos
os criados estão com medo de entrar na biblioteca. Você precisa parar de
amedrontá-los, Caroline.
— Eu não faço isso! — Ela riu. — Apenas pedi para não nos
incomodarem. Eles também não deveriam tê-lo incomodado.
— Rose está com as crianças, o mordomo não sabia o que fazer. Poderia,
por favor, resolver esse impasse?
Isaac entendeu que deveria se levantar. Ele ouvia a conversa, mas não se
percebia dentro de seu corpo. O decoro ordenava que ele se sentasse
imediatamente com a entrada do marquês. Era escandaloso demais que fosse
pego com a cabeça sobre as pernas de Caroline. Só aquilo já sugeria que eles
deveriam sentar e negociar um casamento. Mas o marquês não parecia
incomodado com o que vira.
Caroline levantou-se e saiu da biblioteca. Ela flutuava como se estivesse
dançando nos salões de baile. O lorde ajeitou-se no sofá, passando os dedos
pelos cabelos e desamassando o paletó. O Marquês de Granville sentou-se em
uma poltrona e pegou o livro que sua prima estava lendo, conferindo o título
na capa.
— Ela sempre me manda ler essas coisas. Como convenceu você?
— Não sei se tive alguma escolha. — Isaac endireitou as costas. Apesar
de aquela não ser uma família convencional, ele não se sentia confortável em
ser pego pelo marquês em posição tão indecorosa.
— Com elas, geralmente é assim. Principalmente se estivermos falando
de Caroline. Vejo que tem se saído bem no cortejo. Ela não costuma trazer
homens para casa e mimá-los com carinho.
Sem dizer mais nada, o marquês se levantou novamente e saiu da
biblioteca. Isaac suspeitava que estivesse sendo monitorado pela família
Eckley. E que os motivos eram diferentes dos tradicionais. Granville queria
que a prima se casasse. O discurso era progressista e de respeito aos desejos
dela, mas o marquês provavelmente ansiava que Caroline tivesse um futuro
estável e tranquilo ao lado de um homem que a valorizasse.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

P ASSAR A TARDE NA BIBLIOTECA COM UM HOMEM ERA NOVIDADE PARA


Caroline, mas foi o que ela fez no aniversário de Isaac McFadden. Depois de
resolver o problema com o bolo, ela retornou para ele. Continuou lendo John
Stuart Mill até atingir seu objetivo, que era oferecer a ele informações sobre
respeito às mulheres. Depois, eles jogaram jogos de tabuleiro. Isaac era muito
bom em quase todos eles. Eles riram, se divertiram e praticamente não se
tocaram.
Nada daquilo reduziu o desejo que ela sentia por ele. Mas foi muito bom
interagir com um lorde que não estivesse tentando seduzi-la naquele
momento. Quando o relógio badalou cinco da tarde, eles desceram para o chá
e havia uma linda mesa posta, com o bolo de aniversário no centro.
— Surpresa!
A marquesa estava lá e as crianças também. O chá acabou se tornando um
evento um pouco mais interessante do que o usual. Isaac ficou visivelmente
surpreso com o bolo. A forma como ele arregalou os olhos e arqueou as
sobrancelhas deixou claro que ele não esperava ter nenhum tipo de
celebração.
Mas Caroline também não esperava a presença de Wilhelmina McFadden
e da condessa viúva. Tanto a irmã quanto a mãe de Isaac estavam no salão de
chá, e ela não se lembrava de ter convidado as duas. Claro que ela não tinha.
Um convite dela dificilmente seria aceito por mulheres da alta sociedade.
Aquilo era coisa de Rose.
— Céus! — Isaac manteve a pose invulnerável, mas Caroline sabia que
ele estava abalado. — Então eu terei um chá de aniversário?
— Eu disse que não considero justo que ninguém passe um dia como esse
sem comemorar.
— Feliz aniversário, Isaac. — Wilhelmina aproximou-se e abraçou o
irmão. Ela não faria isso em público, Caroline tinha certeza que não. Mas ali
era um evento privado. — Fiquei muito feliz em saber que o Marquês de
Granville tem tanto apreço por você a ponto de fazer-lhe uma festa.
Wilhelmina olhou para Caroline e sorriu. Aquele era um sorriso que
carregava conteúdo. A jovem dama não era tola. Ela já os vira juntos antes.
Se ela não fosse totalmente ignorante sobre os assuntos que envolviam
homens e mulheres, ela desconfiava do que havia entre eles. Depois, olhou
para o marquês e fez uma mesura.
A pose de Anthony era irrepreensível. Então ele também tinha parte
naquela fraude. As pessoas estavam se envolvendo demais no que não
deveriam. Mas, afinal, o efeito estava sendo melhor do que o esperado. Isaac
estava nitidamente feliz com a surpresa.
— Vamos nos sentar! — Rose indicou os lugares à mesa. Isaac estava do
lado de sua mãe e da irmã, Caroline ficou do outro lado e um pouco afastada
dele. Era prudente. Se a família estava presente, ela não podia demonstrar
tanto entusiasmo ou intimidade.
— Obrigada pelo convite, milady. — A condessa viúva disse, enquanto
chá lhe era servido. Os criados estavam treinados para servir de forma
coordenada, portanto todas as xícaras estavam cheias naquele momento. —
Meu filho tem um hábito estranho de nunca comemorar seu aniversário. Os
outros adoram dar festas, Isaac prefere os eventos dos outros.
Isaac limitou-se a sorrir e a conversa acabou centralizada nas mulheres.
Rosamund era extremamente sociável, adorava receber e conversar. Se não
estivesse reclusa em suas pinturas, era uma ótima anfitriã. Ela deixou a
condessa viúva e Wilhelmina confortáveis, enquanto Anthony apenas
observava. Ela, Caroline, tentou conversar, mas descobriu que tinha poucos
assuntos femininos em sua pauta.
Aquilo era uma constante. Ela tinha dificuldade de transitar entre damas
da sociedade porque não foi criada para ser uma. E porque seus interesses
acabavam sendo distantes dos delas. Não costumava saber sobre casamento,
filhos ou bailes. Preferia negócios. Mas, ali, enquanto via a marquesa e suas
convidadas conversando, Caroline percebeu que ela gostava daquelas coisas.
Ela já quisera se casar. Já quisera ter filhos. Foi abandonando seus sonhos por
perceber que realizá-los significava a perda de sua liberdade.
A conversa se estendeu. Depois que beberam chá e comeram torradas, foi
o momento do bolo. Isaac achou uma moeda na sua fatia e teve que fazer um
desejo. Phillip também achou uma e quase a engoliu. Quase duas horas
depois, era o momento de as convidadas retornarem para Greenwood Park.
— Vou levá-las. — Isaac disse, aproximando-se de Caroline enquanto
sua mãe e irmã despediam-se de Rose e Anthony. — Obrigado pelo dia. Foi
muito divertido.
— Volte. — Ela sorriu. — Vamos sair para beber cerveja.
O lorde ergueu a sobrancelha. Eram surpresas demais para um dia, mas
Isaac sempre soube que viver próximo a ela era uma aventura.
— O marquês anda escondendo barris em seu porão?
— Não, vamos à taverna! Podemos nos encontrar lá.
— Eu jamais deixaria você ir sozinha a um lugar desses. — Isaac
balançou a cabeça. Eles não tinham mais muito tempo, as despedidas estavam
terminando. — Venho buscá-la com a carruagem. Aguarde-me.
Sim, ela aguardaria. Isaac beijou-a nos dedos e saiu com sua família. Não
seria fácil esperar. Caroline estava ansiosa, ela passara o dia antecipando
alguma coisa que não aconteceu. Ou que não aconteceria. Depois que os
convidados saíram, não esperou ser interpelada por Anthony. Subiu para seu
quarto, arrastando Violet atrás dela para preparar um banho. Iria se lavar
adequadamente e vestir algo bastante intenso para a noite.
— O que preparo para milady? Um vestido leve para o jantar?
— Vou sair novamente. Quero o vestido vermelho, de veludo.
Violet arregalou os olhos e fez o sinal da cruz.
— Ele é indecente, milady! — A camareira protestou, terminando de
encher a banheira. — Não tem mangas, deixa suas partes expostas.
— Ele realça minhas partes bonitas, Violet. Não tem nada de indecente,
deixe de ser pudica. Anos trabalhando para mim e ainda não se acostumou?
Prepare o vestido, eu quero estar linda.
Falando algumas palavras que Caroline suspeitou ser uma oração, a
criada deixou-a e desapareceu pelo quarto de vestir. Quando o banho
terminou, sua roupa estava perfeitamente passada para que pudesse ser a
dama mais linda daquela taverna. Era provável que não fosse a única. As
mulheres da vila sabiam se divertir.
Isaac levou mais de uma hora para retornar. Ela teve que esperá-lo mais
do que desejava e girou pelo quarto, nervosa. Só acalmou quando o mordomo
apareceu com o aviso que uma carruagem estava parada na frente da casa e
que Isaac a esperava no hall.
O chapéu caiu da mão dele quando a viu. Caroline sabia o efeito daquele
vestido nos homens.
— Você fez isso para me obrigar a desistir do passeio que você mesma
planejou? — Ele provocou, já se acomodando dentro da carruagem.
— Não, eu só queria um embrulho bonito para seu presente de
aniversário.
O rubor que subiu pelo pescoço dele, e se instalou nas bochechas, o
deixava ainda mais irresistível. Mas o programa seria mantido. Foram para a
taverna, onde beberiam, se divertiriam e, depois, afogariam o desejo
reprimido pelo dia.

E LE NÃO QUERIA , de verdade, ter aceitado nenhum convite para beber em


uma taverna. Do jeito que seu corpo estava reagindo, Isaac provavelmente
manteria uma ereção constante enquanto não buscasse o alívio do corpo de
Caroline. Algo que ela estava bastante disposta a oferecer e que tornava tudo
bem mais excitante. Depois de vê-la com aquela peça de roupa de veludo
vermelho, Isaac quis arrastá-la para o chalé de hóspedes ou possuí-la ali
mesmo, na carruagem.
Só que Caroline se esforçara tanto para oferecer a ele um aniversário
especial que não era justo que deixasse seus desejos mundanos atrapalharem
os planos dela. Pelo que ela dissera antes de entrarem na carruagem, em
breve ele teria o presente pelo qual tanto ansiava.
Quando chegaram à taverna, no entanto, ele quase se arrependeu
novamente. O lugar não era adequado para uma dama. O cheiro de urina, que
fez suas narinas arderem no instante em que desceu da carruagem, indicava
que muita gente já estava mais bêbada do que deveria. E isso podia
representar problemas, principalmente com Caroline usando um vestido
capaz de incitar uma declaração de guerra.
— Oh, céus, homens nunca aprendem a atender ao chamado da natureza
em lugares adequados!
Ela reclamou ao pisar no chão de pedra. Dois homens saíram pela porta,
um carregando o outro, e trombaram em Isaac.
— Creio que seja melhor voltarmos. Ou irmos a um lugar mais adequado.
— Lugares adequados não servem cerveja. Vamos beber um pouco e
depois pensamos em algo melhor para fazer, preferencialmente entre lençóis
macios.
Maldita mulher e suas provocações. O lorde ofereceu o braço para ela
segurar e entrou na taverna. O ambiente interno estava mais agradável. Havia
mulheres ali e nem todas eram prostitutas. Algumas estavam na companhia
de outras mulheres, provavelmente exaustas de um dia de trabalho e
procurando alguma diversão. Um grupo de pessoas atacava, de forma não
muito agradável, alguns instrumentos musicais, sobre um tablado de madeira.
Tinha barulho de vozes, risadas e música desafinada.
Eles se sentaram em uma mesa redonda no espaço mais reservado que
encontraram. Foram interceptados por muitos olhares especulativos, curiosos
com a presença de um lorde na taverna. As roupas perfeitamente talhadas e
de tecido fino entregavam a origem nobre de Isaac. O mesmo valia para
Caroline. Nenhuma mulher da vila teria um vestido como aquele que ela
estava usando. O tecido era caro, o corte era fino.
— Duas cervejas. — Isaac pediu para a mulher de seios fartos e cabelos
loiros que veio atendê-los. A roupa que ela usava era ainda mais indecorosa
que a de Caroline.
— Acredito que me equivoquei em trazê-lo aqui. Muitas distrações.
Caroline riu, retirando as luvas.
— Eu não quis prostitutas antes. Por que as quereria agora?
Duas canecas de malte dourado e gelado apareceram à frente deles. A
atendente deixou a bebida e um sorriso malicioso para Isaac, mas ele
realmente não conseguia prestar atenção nela. A sua companhia era a mais
bela figura de todo o litoral, com seus cabelos soltos e a pele cor de creme,
reluzindo sob a luz da taverna.
Beberam em silêncio, ouvindo os sons do ambiente. Depois que as duas
canecas foram esvaziadas, mais duas apareceram. E outras duas, depois
daquelas. Já estavam na quarta caneca quando o silêncio entre eles ficou
incômodo demais.
— Obrigado pelo dia, Caroline. — Isaac decidiu retomar o diálogo. Eles
costumavam conversar bastante desde que iniciaram aquela espécie de
acordo, antes mesmo de ele parecer um acordo. — Aniversários nunca foram
muito atraentes para mim.
— Espero que eu não tenha reavivado memórias ruins de algum trauma
de infância.
— Não, claro que não. Não tenho traumas. Mas o dia de hoje certamente
fará com que eu veja aniversários por outra perspectiva. Obrigado!
Caroline ergueu a caneca em um brinde e bebeu um gole longo. A
espuma da cerveja fez um bigode sobre o lábio dela e Isaac levou a mão para
limpar. Passou o polegar pela pele úmida e fria e ela sorriu.
Involuntariamente, a mão dele se amoldou ao queixo dela, os dedos
acariciaram a pele fina do pescoço e ela repousou a face sobre a palma dele.
E tudo acabou rapidamente com uma trombada. Um homem corpulento e
com cheiro azedo esbarrou propositalmente no braço de Caroline, derrubando
a cerveja que ela segurava e molhando o vestido. Ela se levantou por
impulso, deixando a caneca cair e estilhaçar no chão. Isaac também se
levantou e o homem, cuja barba seria capaz de abrigar um ninho de ratos,
gargalhou ao ver a cena.
— Peça desculpas à dama. — Isaac interpelou o homem, colocando-se
entre ele e Caroline.
— Dama? — O homem riu mais. — Não me desculparei com sua
prostituta, milorde. Foi ela que ficou no meu caminho. Acho melhor pegar
um pano para ela limpar a bagunça que fez.
— Se você sabe que sou um lorde, deveria ter mais respeito. Vamos, peça
desculpas e traga outra bebida para a dama.
O homenzarrão cruzou os braços no peito e olhou para Caroline de cima
em baixo. Isaac não sabia se ela estava indignada ou assustada. Se o vestido
estava arruinado ou não. Naquele momento, ele encarava o brutamonte mal-
educado, que estava atrapalhando sua noite, com toda fúria - pouco - contida
em seus olhos.
— Se ela fosse uma dama, eu poderia considerar. Mas estamos falando de
uma lady que frequenta a cama de todo homem rico da Inglaterra.
Outros homens riram. Até mulheres acompanhavam o movimento,
pressentindo que haveria confusão. Aquelas pessoas desdenhavam de
Caroline. Claro que sabiam quem ela era. Seria impossível, para eles, não
conhecer uma das ladies daquela vila. Ela era a sobrinha do marquês. Isso
significava que ninguém ali a respeitava.
Isaac virou para trás e Caroline estava confusa. Sua expressão facial era
de quem poderia matar qualquer um ali com suas próprias mãos. Ele não
duvidava. Talvez ela arrancasse algumas cabeças e comesse os órgãos
internos. Mas, ao mesmo tempo, ela estava vulnerável. Algo nela indicava
cansaço. Desistência. Abandono.
— Peça. Desculpas. À dama.
O lorde pronunciou pausadamente cada palavra e empurrou o homem
com as duas mãos batendo no peito dele. O gesto inesperado fez com que o
grandalhão cambaleasse para trás. Ele abriu os braços e deu outra gargalhada.
— Acha que pode comigo, milorde? Pois venha me obrigar.
Isaac desviou de um soco. O público gritou. Caroline se afastou, cobrindo
a boca com as duas mãos. Assim que o homem caiu para frente,
desequilibrado por não ter acertado seu alvo, Isaac o atingiu pelas costas.
— Não vamos brigar aqui dentro. — Ele desfez o nó do lenço em seu
pescoço, retirou-o, e abriu dois botões do colarinho. — Não quero causar
estrago. Lá fora. Pela honra da dama.
O barbudo gritou e saiu pela porta. Isaac tirou o paletó, o colete e dobrou
a camisa.
— Isaac, não faça isso. — Caroline o segurou por trás. — Aquele homem
é enorme.
— Eu luto boxe.
— Mas você não está esperando que seu adversário vá lutar conforme as
regras. Está?
Não, claro que ele não estava! Isaac podia ser jovem, quase virgem e ter
sangue azul correndo em suas veias, mas não era tolo.
— Ele não vai, nem eu.
Caroline o encarou com uma expressão de surpresa, espanto e
encantamento. Seria possível que ela se sentisse atraída pelas partes menos
nobres dele? Ela ergueu as saias e o acompanhou para o lado de fora, onde
um agrupamento de homens um pouco bêbados e de mulheres pouco cobertas
já se formara. O brutamonte estava no meio do círculo formado. As pessoas
se afastaram brevemente quando Isaac chegou e ficaram em silêncio.
Não importava se ele apanhasse. Talvez tomasse uma surra e até
quebrasse o nariz. Esperava manter os dentes. Mas ele não aceitaria que
falassem de Caroline daquela forma. Não aceitaria mais.
O grandalhão se projetou para cima de Isaac, que desviou. Com as mãos
em punhos, ele acertou a lateral do corpo do seu adversário, que virou e
disparou um contragolpe. A força do punho do homem barbudo era
descomunal e fez com que Isaac cambaleasse para trás. Ele se irritou e pulou
em cima do brutamonte, acertando-lhe diversos socos. Foi atingido também.
Os dois homens rolaram pelo chão sujo e fedendo a urina e fezes de cavalo,
enquanto a turba que os assistia comemorava aos gritos.
A luta durou mais alguns minutos. Isaac pôs-se de pé e agarrou o homem
pelo pescoço. Ambos tinham a face ensanguentada e a roupa arruinada.
Segurando o adversário sem qualquer sutileza, o lorde encontrou Caroline no
meio da multidão. Havia gritos e lamentos. Ele podia jurar que havia apostas,
também. Esperava que sua dama tivesse apostado nele, porque tinha certeza
que era o azarão.
— Peça desculpas.
Isaac virou-se para Caroline. Ela parecia horrorizada e excitada, ao
mesmo tempo. O homem fez uma careta e rosnou qualquer coisa. Caroline
assentiu, indicando que aceitava aquele murmúrio raivoso para encerrar o
espetáculo.
— Ela não vale tudo isso.
O grandalhão, reduzido a um monte de carne ensanguentada e sujeira,
disse. Isaac olhou para si mesmo. Não sentia nem dor, ainda. Sua roupa
estava arruinada e ele provavelmente não conseguiria abrir os olhos no dia
seguinte. Chegaria em casa com o rosto todo destruído e daria a todos
motivos para que o criticassem. Mas Caroline estava ali, segurando seu paletó
e seu chapéu, com a barra do vestido mais bonito que ele já vira arrastando
naquele chão insalubre, olhando para ele com os olhos mais escuros e
expressivos que existiam - e tudo valia, sim, à pena.
— Ela vale mais do que eu e você juntos, seu patife. Nunca mais dirija a
palavra à Lady Eckley, a não ser que seja para um elogio. Não, nem mesmo a
elogie, ou eu terei que arrancar sua língua fora.
Isaac jogou o homem para o lado e ele caiu sentado no chão. A plateia
gritou, ensandecida, celebrando o momento. O lorde mal sentia seus pés
pisando nas pedras. Caroline veio na direção dele e o segurou com as mãos
firmes, mesmo que aquilo fosse sujar todo o seu vestido.
— Desculpe estragar sua noite. — Ele sussurrou próximo ao ouvido dela.
— Vamos para o hotel. Está mais perto e tenho uma suíte lá. Temos que
cuidar desses machucados antes que eles infeccionem.

P RIMEIRO C AROLINE PRECISAVA GARANTIR que Isaac visse um médico. Depois


ela analisaria as implicações do que acabara de acontecer. Porque eram
muitas, ela sabia. Do tipo que era impossível voltar atrás. Com efeitos
permanentes.
Assim que chegaram ao Palace of the Sea, ela chamou o gerente até a
porta lateral.
— Sr. Downey, preciso que me ajude a entrar com uma pessoa ferida.
O homem baixo, de estrutura óssea muito larga e ostentando um bigode
magnífico arregalou os olhos em espanto.
— Ele precisa ser carregado, milady?
— Não, acho que não. Mas não gostaria que ele fosse visto no salão
principal. Vamos levá-lo direto para minha suíte, de lá chamarei um médico
para vê-lo.
O Sr. Downey a acompanhou até a carruagem e ficou ainda mais
espantado ao ver Isaac esfolado, ensanguentado e imundo. Ajudou Caroline a
conduzi-lo por caminhos exclusivos dos criados até o elevador hidráulico que
servia aos nobres com suítes nos andares mais altos. Eles chegaram aos
aposentos de Caroline, que ficavam no último andar, e o gerente estava aflito
com a situação.
Tanto tempo e as pessoas ainda não estavam acostumadas com ela.
— Chame o médico. Qualquer um que esteja disponível, mas dê
preferência ao Dr. Davies. Ele já conhece a família.
— Sim, milady. A senhorita precisa que eu chame um criado, alguém
para…
— Não, Sr. Downey. Providencie o médico e será suficiente.
Caroline interrompeu o gerente e fechou a porta, colocando-o para fora.
Isaac estava de pé, recostado na parede, com a cabeça pendendo para trás. Ela
se sentiu estranhamente protetiva e não deixaria que nenhum criado tocasse
nele. Não fazia sentido algum aquela possessividade, o que não a impediu de
senti-la.
Ela foi até o banheiro e abriu as torneiras que encheriam a banheira de
água. Aquele era o hotel mais moderno que existia no litoral e os quartos do
último andar eram bastante exclusivos. O encanamento era muito bem
estruturado, levando água quente e fria para todos os aposentos. Até mesmo
as unidades mais baratas contavam com encanamento, mesmo que o banheiro
fosse compartilhado.
A banheira ainda estava enchendo quando Isaac entrou na sala de banho,
desabotoando a camisa. Ele já soltara os punhos e tentava se livrar do tecido
arruinado pela sujeira da rua.
— Deixe-me ajudá-lo.
Caroline se aproximou e assumiu a tarefa de terminar de despi-lo. Por
inteiro. Tirou a camisa, abriu os botões da calça, arrancou os sapatos, baixou
a roupa de baixo e fez com que ele entrasse na água morna. Isaac recostou a
cabeça na borda alta da banheira e soltou um gemido. Ela ajoelhou ao lado
dele e, com um pano, começou a limpar o rosto ensanguentado.
— Eu devia bater em você de novo. — Ela rosnou, irritada com os
ferimentos que descobria. — Por que você fez isso? Por que brigou com
aquele homem? Ele era o dobro do seu tamanho.
— E eu ganhei assim mesmo. — Isaac sorriu e gemeu outra vez. O
repuxar dos lábios causava dor. — Não vou me desculpar, Caroline. Ele a
ofendeu. Alguém tinha que entrar em defesa de sua honra.
— Não seja tolo, Isaac. Sabe quantas vezes já ouvi esse tipo de ofensa?
As pessoas tendem a insultar aquilo que elas não entendem. Tudo que as
deixa desconfortável é motivo de afronta. Aqueles que pensam diferente,
mulheres como eu.
— Não existem mulheres como você.
Ela ignorou o que ele acabara de dizer e continuou a limpá-lo. Colocara
uma bacia com água e sabão para retirar o sangue dos ferimentos. Isaac se
contraía quando a dor era forte, mas não reclamava. Ele tinha um olho quase
fechado, um lábio partido e um corte acima da sobrancelha, por onde vertia
sangue o suficiente para incomodá-la.
— Você não pode sair por aí batendo em todo mundo que me chamar de
prostituta. Vai ficar todo quebrado, pois serão muitos para brigar.
— Talvez você minta sobre tolerar isso de homens como aquele. Mas eu
sei que não tolera. Ninguém gosta de ser ofendido, Caroline. Não me
arrependo de tê-lo feito desculpar-se.
Isaac ergueu a mão molhada e tocou-a nos cabelos. Eles estavam de
frente um para o outro, ela do lado de fora da banheira, ele imerso em água e
espuma. Caroline colocou o pano dentro da bacia e segurou a mão que descia
para sua face. Havia ferimentos nos nós dos dedos. Aquela era uma mão
grande, máscula e de um homem trabalhador. Em algum momento de sua
vida, Isaac deixou de ser um lorde indolente e passou a cuidar pessoalmente
dos afazeres das propriedades. Ela o respeitava mais por isso.
— Violência não é a melhor forma de resolver os problemas.
— Isso é engraçado, vindo de você, que apontou uma arma para Madeline
Westphallen e ameaçou matá-la.
Caroline deu uma risada. Levou a mão ferida de Isaac à boca e beijou os
machucados. Ele também riu, mas se contorcia a cada movimento facial.
— Foi diferente. Ela iria arruinar a vida do duque. Eu estimava Aiden,
não podia deixar que ela se aproveitasse de uma mentira para casar-se com
ele.
— É diferente quando é por amor?
— Eu não o amava.
— Mas achava que sim.
— Sim, eu achava. — Ela voltou a dedicar atenção aos ferimentos da
face. A mão de Isaac a acariciava na face, os dedos dele se embolavam em
seus cabelos. — Eu estava bastante desorientada naquela época. Isso foi há
dois anos, muita coisa mudou.
Ele tocou-a com mais intimidade. Puxou-a para frente até desequilibrá-la.
Ele a teria beijado se a porta do quarto não se abrisse e pessoas entrassem.
Era um criado com o médico. Por sorte, encontraram o Dr. Davies. Por azar,
ele entrou no banheiro e os pegou em posição comprometedora.
— O que temos aqui?
Davies fingiu não ter visto nada. Ele era um médico tradicional naquela
vila e muito acostumado com as famílias nobres da região. Era o médico
preferido dos Trowsdales e dos McFaddens. Conhecia Isaac desde que ele era
bem pequeno.
— Milorde colocou-se na direção dos punhos de outro homem. —
Caroline provocou. — Eu estava limpando os ferimentos aparentes.
O médico franziu a testa e estendeu uma toalha para Isaac deixar a
banheira. Caroline não queria sair dali, mas sabia que era escandaloso demais
se ficasse para ver o homem nu. Havia limites até mesmo para a sua falta de
decoro. Saiu do banheiro e esperou no quarto, girando para lá e para cá até
que os homens aparecessem. Isaac vestia um roupão de veludo e sangue
ainda escorria de sua testa.
— Teremos que dar pontos aqui. — Davies segurou o ferimento entre os
dedos. — Lady Eckley, poderia solicitar um criado para me auxiliar?
— Não será preciso. — Ela se colocou ao lado do médico. — Eu mesma
ajudo.
— Haverá bastante sangue.
— Não mais do que já vi. O que precisa, doutor?
— Láudano. E uma lata de metal que está ao lado.
— Não quero ser drogado. — Isaac reclamou. — Não preciso de láudano.
Dê os pontos, Davies.
— Beba o láudano, Isaac. — Caroline sentou-se ao lado dele na cama e
lhe entregou a garrafinha marrom. O cheiro de álcool e ópio era suficiente
para intoxicá-la. — Haja como um homem forte e assuma sua fraqueza.
Sentir dor é uma prova tola de masculinidade.
Ele fez uma careta, mas virou toda a garrafinha. Davies preparou seus
equipamentos e, quando o lorde estava suficientemente incapacitado pela
droga, deu cinco pontos pequenos no corte, fechando-o. Aproveitou para
examinar outras partes que poderiam ter se ferido, mas não encontrou nada
além das escoriações que Caroline já vira.
Antes de ir embora, Davies deixou uma receita com um tônico de acônito
para ajudar na recuperação das lesões. Ele não pareceu satisfeito em deixar
Caroline sozinha no quarto com Isaac, mas não lhe fora dada opção. Depois
que o médico saiu e Isaac estava deitado em silêncio, ela chamou um criado e
pediu que encontrasse um mensageiro que pudesse entregar dois bilhetes.
Pegou caneta e papel e escreveu um recado para sua família, explicando que
passaria a noite no hotel. Escreveu outra para os McFaddens, em nome de
Isaac. Esperava que não percebessem a letra feminina.
Um garoto apareceu no quarto. Caroline entregou a ele os dois bilhetes e
uma moeda.
— Entregue esse aqui — ela depositou um papel dobrado na mão direita
do menino — na Granville House. Esse aqui — outro papel foi colocado na
mão esquerda — vai para Greenwood Park. Não misture os bilhetes e não
falhe. Quando cumprir sua missão, eu te darei outra moeda dessas.
— É um Soberano, milady!
— Serão dois se você trabalhar bem.
O garoto riu e saiu correndo do quarto. Ela aprendera com Isaac que
pessoas bem remuneradas demonstravam mais interesse nas tarefas. Caroline
fechou a porta com chave e eles estavam finalmente isolados do restante das
pessoas. Daquela vez todo mundo sabia. Não era um segredo. Ela passaria a
noite com Isaac McFadden nas vistas de todos.
Ela começou a rir. Seu vestido lindo estava arruinado. Aquelas manchas
de sujeira e sangue nunca sairiam. Seu cabelo estava desgrenhado. Ela
cheirava a uma mistura de odores fétidos. Acabara de presenciar o homem
com quem estava dormindo entrar em uma luta por ela. Nunca alguém
brigara por sua honra. Nem mesmo Anthony. O devasso do seu primo
mataria por ela, mas achava uma grande bobagem importar-se com o que os
outros pensavam dele mesmo. Com ele, Caroline aprendeu a também não se
importar.
Mas Isaac tinha razão, ela se magoava. Não queria ser constantemente
atacada por sua decisão de ser uma mulher livre. Ela não se arrependia de
nenhum de seus atos. De nenhum de seus homens. De nada que fizera. Mas
preferia ser, pelo menos, respeitada.
E aquele homem, aquele menino, esfregou a cara de um brutamonte no
chão. Por ela. Pela honra que ela nem mesmo tinha. E estava ali na cama,
drogado e costurado, dizendo que faria novamente a mesma coisa.
Ela continuou a rir. Foi para o banheiro, preparou outro banho quente,
despiu-se e mergulhou nos aromas doces dos sais de banho. Qualquer coisa
era melhor do que aquele cheiro de latrina. A noite seria longa.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

E LE NÃO SABIA O QUE ERA PIOR , SE A SONOLÊNCIA MORIBUNDA DO ÓPIO OU O


gosto de sangue na boca que o recordava de ter socado a cara de um
grandalhão. Isaac tentou ajeitar-se na cama, mas acabou embolando-se na
colcha. Ele era um emaranhado de tecidos quando ouviu o barulho de água.
Torneiras abrindo, torneiras fechando. Piscou os olhos, mas não conseguia
mantê-los abertos. Não havia muita luz e a penumbra o forçava a permanecer
na escuridão do sono, que o puxava para longe.
Os sons estavam caóticos, mas o toque daquelas mãos em seus cabelos
era inconfundível. Era o mesmo carinho da biblioteca, o mesmo cuidado, o
mesmo cheiro de pele feminina. Ele tentou manter-se desperto para senti-la
próximo a ele. A colcha foi afastada e substituída pelo corpo macio que se
acomodou ao seu lado. Se Isaac conseguisse levantar a mão, ele a tocaria.
— Você precisa ir. — Ele balbuciou. — Não pode passar a noite comigo.
— Como se fosse a primeira vez.
Caroline passou os dedos pelos cabelos dele. Desceu pelo rosto ferido.
Acariciou a barba e os lábios com o polegar.
— Então converse comigo. Eu estou a ponto de apagar.
— Deveria dormir. O láudano ajuda a relaxar.
— Conte-me qualquer coisa. Ainda é meu aniversário, você não pode me
negar um desejo. O que Caroline Eckley quer compartilhar?
A voz dele estava arrastada e baixa. Ela se acomodou mais perto e,
daquela vez, ele a envolveu com o braço. Dava para sentir o hálito morno
dela tocando-lhe a pele do ombro. Isaac correu os dedos pela lateral do corpo
dela e a sentiu estremecer sob o toque.
— Você queria saber sobre o sanatório, então vou partilhar um segredo.
Eu digo para todo mundo que foi tudo bem, que me ajudou a ver a vida de
outra forma. Mas a verdade é que foi um período terrível. A pior coisa é estar
presa sendo considerada louca apenas por ser impulsiva. Eu tive uma crise de
nervos, mas eu não sou louca.
— Claro que você não é. — Isaac passou a mão pelas costas dela e a
puxou para mais perto. Ele não sentia mais dores, apenas pontadas no lugar
onde o ferimento foi costurado. O láudano entorpecia. — Eu sinto muito,
Caroline! Foi por isso que decidiu mudar? Ser diferente?
— Tive ajuda de uma enfermeira que foi um anjo. Ela me proporcionou
leituras de boas obras, me ajudou a perceber que não há problema comigo. E
acabei entendendo que eu precisava parar de correr atrás de homens que
apenas me queriam para seus desejos carnais. Eu sou melhor do que isso.
— Eu sei que é. — Ele levou os lábios até o ombro dela e beijou bem ali.
Poderia estar entupido de ópio, mas a presença dela fazia com que seu corpo
reagisse com rigidez. O desejo contido era maior do que a força da droga. —
E eu não penso em você dessa forma.
— Sei disso. Por que acha que estou aqui?
Isaac segurou-a pelos quadris e puxou-a para si. Caroline gemeu e ele a
beijou. Nada ali era romântico ou atraente, mas ele não conseguia passar
nenhum momento mais longe dela. Virou-a na cama e acomodou-se sobre
ela, forçando-se contra ela, buscando mais contato e mais proximidade.
Enquanto se beijavam, ela tentava ser delicada. Colocou uma mão de cada
lado de sua face, deixando o polegar tocar cuidadosamente o hematoma em
seu olho esquerdo. Pressionou os lábios dele com cuidado. Mesmo que Isaac
estivesse faminto, Caroline esbanjava sutileza e carinho.
Sim, era carinho. Ele se sentiu cuidado enquanto delirava entre um estado
de puro instinto e ligeiro torpor. Ela desceu as mãos suavemente pelos
ombros, pelas costas e posicionou-as nos quadris de Isaac. Ele não percebeu
exatamente em que momento notou que Caroline estava nua sob ele, nem que
seu membro duro buscava seu caminho entre as coxas dela. Sentiu apenas
que ela o guiava, entre beijos e murmúrios, até que ele se acomodasse e a
penetrasse profundamente.
Ao se perceber dentro dela, Isaac interrompeu o beijo e apoiou sua testa
na de Caroline. Ela se movia debaixo dele, forçando uma fricção pela qual
também deveria estar ansiosa. Ele a desejava demais e queria que ela
entendesse que não era apenas um intercurso sexual. Não mais. Apoiando os
joelhos no colchão, Isaac assumiu uma posição ativa e começou a estocá-la.
Foi mais rápido e mais forte do que ele esperava, mas ela o encorajou.
Ele ergueu o corpo e ficou ajoelhado na cama. Colocou as mãos sob as
nádegas de Caroline e ajeitou-a contra si, apoiando as pernas dela em seus
ombros. Depois, levou o polegar até o seu centro de prazer e, aproveitando a
umidade da excitação dela, começou a estimulá-lo.
A penetração era profunda e Caroline parecia rendida aos carinhos. Ele
não conseguia pensar em mais nada que não aquele corpo perfeito conectado
ao dele, movendo-se em um ritmo cadenciado e forte, que estremecia sob o
seu toque.
— Oh, Isaac. — Ela gemeu e fechou os olhos. Depois os abriu
novamente. — Não pare.
Dar a Caroline prazer era algo que o agradava imensamente. Ele não iria
parar. Provocá-la-ia para levá-la ao clímax, mesmo que ela o tivesse alertado
que eles geralmente sempre gozariam em tempos diferentes. Talvez, com o
hábito, isso mudasse. E foi pensando que eles poderiam repetir aquele
momento várias vezes que Isaac se entregou aos sentidos. A forma como
Caroline o envolvia mudou. Ela passou a quase estrangulá-lo, tornando a
penetração absurdamente mais estimulante. Isaac estava longe de ser
experiente na arte do prazer feminino, mas até ele entendeu que Caroline
estava prestes a encontrar seu alívio.
Ah, como ele queria estar dentro dela quando isso acontecesse. Mais forte
e mais fundo, Isaac aumentou o ritmo até que ela se contorcesse nas mãos
dele, agarrando os lençóis e chamando por seu nome. Já tendo ultrapassado
seu limite de resistência, ele investiu mais algumas vezes contra ela e se
retirou, derramando sua semente sobre o ventre dela.

D EPOIS QUE I SAAC desabou ao seu lado na cama, Caroline sabia que ele tinha
ultrapassado vários limites. Depois de uma briga em uma taverna, um olho
inchado e alguns pontos, ele estava ferido demais para a diversão sexual.
Ainda havia o láudano, que deveria incapacitá-lo parcialmente. Ele não
pareceu nada incapacitado ou com alguma dificuldade quando se colocou
sobre ela. Mas, naquele momento, a dor o abatera.
Ela puxou o roupão que estava sob ele e se limpou precariamente, apenas
para poder levantar. Foi até o banheiro e voltou com uma bacia de água
fresca e uma toalha limpa. O ferimento sobre o olho menos inchado de Isaac
estava sangrando e ela precisava garantir que o esforço não causara o
rompimento de pontos.
— Estou bem. — Ele virou para ela, querendo pegar a toalha. —
Faminto, mas bem.
— Pedirei que sirvam o jantar aqui no quarto. Mas você precisa
descansar, Isaac. Deixe-me fazer as coisas, tudo bem?
Ele provavelmente concordou com ela, pois permitiu ser limpo, virado e
coberto. Caroline voltou ao banheiro, lavou-se e vestiu um roupão grosso de
veludo, que cobria até quase os seus pés. Sentindo-se adequada para receber
um criado, foi para a antessala da suíte e tocou a sineta. Havia criados
permanentes nos andares das pessoas endinheiradas, fossem elas nobres ou
não. Uma jovem, vestida impecavelmente, apareceu na porta.
Caroline pediu que ela trouxesse sopa, pães e uma garrafa de vinho. Se
Isaac não fosse beber, ela iria. Voltou para o quarto e o encontrou
adormecido, os ferimentos no rosto não interferindo em nada em sua beleza
angelical.
Claro que hematomas e sangue afetavam a beleza de qualquer pessoa. Até
um deus do Olimpo seria menos belo se estivesse combalido. Mas não fazia
nenhuma diferença para ela. Talvez ele estivesse ainda mais perfeitamente
lindo e desejável depois de ter brigado com o brutamonte barbudo, se isso
fosse possível. Aquele maldito aniversário passara a representar mais
problemas do que diversão.
Depois que o jantar chegou, ela o despertou e fez com que se alimentasse.
O láudano finalmente o abateu, forçando-o a adormecer novamente logo
depois. Caroline deveria dormir, também, mas estava com muitos
pensamentos que tornavam difícil relaxar. Ela estava um rebuliço. Cada
minuto de cada hora de cada dia com Isaac McFadden fazia com que ela
desejasse mais dele e isso a assustava bastante.
E então ela se deitou ao lado dele, envolveu-o com um abraço e puxou as
cobertas sobre eles. Levou algum tempo sentindo o aroma pungente da pele
masculina, a maciez rígida dos músculos relaxados e o inflar dos pulmões
dele enquanto respirava. Caroline não se viu adormecer, mas acordou
relaxada como se ela também tivesse ingerido uma quantidade moderada de
láudano.
Espreguiçando-se enquanto abria os olhos para perceber o seu arredor,
Caroline notou Isaac sentado em uma poltrona próxima à cama. Ele estava de
calça e sapatos, usava a camisa desabotoada e com os punhos abertos. Tinha
o cabelo úmido, indicando que se banhara, e olhava para ela com a
intensidade de um tornado.
Apesar do tormento aparente naquele azul límpido que eram os olhos de
Isaac, ele tinha a expressão suave.
— Bom dia. — Ela se espreguiçou e se sentou na cama. — Você parece
bem melhor, agora.
— Eu estou melhor, obrigado. Pedi que sirvam nosso desjejum. Nós
precisamos conversar, Caroline.
Sim, eles precisavam, porém ela não desejava estragar, com palavras, o
que eles tinham de tão bom. Qualquer conversa serviria para colocar questões
no relacionamento deles. O que era simples se tornaria complexo. Caroline
não queria discutir por quês nem racionalizar demais sobre os sentimentos
que ela sabia que estavam ali, gritando, entre eles.
Caroline se levantou e foi ao banheiro se lavar. Ela nunca fora tão
asseada, mas a imundice da noite anterior permanecia no odor fétido das
roupas amontoadas em um canto do quarto.
— Podemos conversar enquanto comemos? Estou faminta, a sopa de
ontem à noite não serviu para aplacar meu apetite.
Isaac surgiu na porta do banheiro e recostou no batente de madeira.
Aquele cômodo era lindamente decorado, com azulejos coloridos e pintados à
mão, bordas douradas, e lamparinas de metal polido. Os componentes do
banheiro eram de louça branca. A banheira de cobre era grande o suficiente
para duas pessoas. Por um momento, Caroline desejou que eles iniciassem a
conversa nus, ensaboados e mergulhados na água morna.
— Todos sabem que dormimos juntos. — Isaac disse, cruzando os
braços. — Nós estamos brincando com fogo há algum tempo. Precisamos
tomar uma atitude quanto a isso.
— Não será a primeira vez que dormi com um homem. Todos sabem,
também.
— Eu não sou como os homens com quem você se relacionou até agora.
Não quero que falem que eu sou seu amante para dar mais motivos para
falarem de você.
Ela entrou na água e começou a se esfregar.
— As pessoas falam de mim desde que tive meu debute em Londres. O
que pretende fazer para silenciá-las?
— Eu pretendo conversar com o Marquês de Granville e casar-me com
você.
Caroline parou o que estava fazendo, como se a água da banheira tivesse
congelado subitamente. Seu corpo travou. A tranquilidade na voz dele foi
ainda mais assustadora do que a ideia surreal de que eles se casassem. Era o
que ele realmente pretendia. Não se sentia ameaçado, nem compelido a fazer
algo que não desejava.
— Você perdeu o pouco juízo que tinha. Essa proposta é ainda mais
irrazoável do que a primeira que me fez.
— Acha irrazoável que eu deseje me casar com você?
— Sim. — Os movimentos voltaram e ela saiu da banheira. Enrolou-se
em uma toalha felpuda e o encarou. — Principalmente para reparar uma
honra que eu não possuo. Eu não sou uma dama cuja virtude precise ser
resguardada. Parece que você não me conhece há tantos anos, milorde.
Ele foi até ela e pegou a toalha, ajudando-a a se secar. Ela estava muito
sensível e a proximidade a fez manter a guarda baixa.
— A coisa certa a se fazer é nos casarmos. — Ele a enrolou na toalha e a
puxou para um abraço. — Depois de ontem, depois do que compartilhamos
nesses dias, você pode acreditar que seríamos um casal tão improvável?
Era difícil resistir a Isaac. Caroline afundou o nariz na dureza do peito
dele e respirou fundo.
— Não somos improváveis. Apenas não vou me casar, Isaac. Eu vou abrir
uma escola, eu tenho negócios e investimentos. Não vou estragar tudo isso.
Por mais que a lei me permita manter meus negócios, nós dois sabemos que
maridos controlam suas mulheres.
— Eu jamais faria isso com você. Eu deixaria você continuar tendo sua
própria vida.
— Você não pode me julgar por não acreditar. — Caroline afastou-se
dele e voltou para o quarto. Naquele instante, bateram à porta e entraram com
o café da manhã. O barulho dos criados arrumando uma mesa na sala anexa
distraiu-a um pouco. — Eu não vou abrir mão da minha vida por um marido.
— Mas você já quis fazer isso. — Isaac seguiu-a. — Já quase matou para
se casar com Aiden Trowsdale.
— Eu mudei de perspectiva. E eu achava que o amava, estava
desorientada.
— Se você me amasse, seria diferente?
Ela não respondeu. Tentava arrumar-se para o dia, enfiando-se em peças
de algodão e seda sem a ajuda de uma camareira. Quando Isaac se aproximou
para ajudar, ela se afastou, mas acabou aceitando que ele amarrasse os laços,
prendesse os ganchos e fechasse os botões. Na noite anterior, Violet mandara
uma maleta com roupas para Caroline e para Isaac, que foram obtidas de
forma subliminar na casa dos McFaddens. Os criados se comunicavam e se
ajudavam, dependendo da necessidade.
Era fato que todos já sabiam que eles passaram a noite juntos. E, por
todos, estavam incluídos os criados de Greenwood Park.
— Não faça isso, Isaac. — Ela se virou para ele e colocou as duas mãos
nas bordas abertas da camisa. — Está tudo tão bem entre nós. Você não está
satisfeito com nosso arranjo?
— Minha satisfação nunca será plena se nosso arranjo servirá para
continuar perpetuando coisas maldosas sobre você.
Ela levou sua boca à dele e o beijou. Os lábios estavam menos inchados,
o corte ali já quase cicatrizado. O hematoma no olho dele também reduzira,
mesmo que ainda indicasse que ele se envolvera em uma contenda. Os pontos
na testa pareciam secos. Ele parecia bem melhor, como dizia estar. Precisava
apenas tirar aquelas ideias da cabeça.
— Vista-se, vamos comer e depois voltar para casa. Não pense mais
nisso.

E LE NÃO SABIA quando tomara a decisão de se casar com Caroline. Mas, ao


despertar de manhã e a ver ao seu lado, dormindo como uma ninfa na
floresta, ele sabia que precisava tomar uma atitude. Esgueirar-se com ela pela
escuridão e passar a noite escondido em um chalé de hóspedes era uma coisa
completamente diferente de dormir com Caroline à vista de todos. Depois de
brigar por ela. Não havia uma única alma na vila que já não soubesse do
episódio na taverna, e certamente todos sabiam que eles estavam ali.
A irredutibilidade dela o incomodou. Quando ela disse que não se casaria
com ele, Isaac sentiu ciúmes de todos os homens com quem ela já desejou se
casar. Porque eles existiram. E foi difícil não os nomear e jogar sobre ela.
Mas Isaac não queria parecer desesperado. Ele tinha mais dignidade do que
aquilo. Faria as coisas do jeito que considerava correto e tentaria convencê-la,
no processo.
Depois de tomarem um desjejum quase em silêncio, eles desceram pelo
elevador hidráulico até a recepção. Daquela vez passariam pela frente do
hotel. Não havia mais necessidade de esconderem-se nas sombras. Não era
mais possível evitar um escândalo.
A forma como Caroline transitava entre as pessoas era intrigante. Ela não
se envergonhava, não se constrangia, não abaixava a cabeça. Sorria e
cumprimentava a todos, mesmo que olhassem para eles de forma suspeita.
— Sr. Downey. — Ela se dirigiu a um homem de bigodes que estava
circulando pelo saguão do hotel. — Gostaria de agradecê-lo por ontem. Por
sua discrição e prontidão.
— Foi um prazer servi-la, milady. — O homem segurou a mão dela e
beijou. Isaac agradeceu aos céus por ela estar de luvas naquela manhã. Não
gostaria de ver um homem que ele nem conhecia colocando a boca imunda
nos dedos de Caroline. — Vejo que Lorde Isaac está bem melhor.
O Sr. Downey olhou para ele, mas não recebeu um cumprimento
amistoso. Isaac estava rabugento por ter sido recusado. Ele esperava que, se
permitisse que Caroline soubesse de suas intenções, ela pelo menos as
considerasse.
— Estou me sentindo revigorado. O hotel tem quartos muito confortáveis.
— A Srta. Eckley é responsável por boa parte desse conforto, milorde.
Isaac concordou, sem entender exatamente o que dizia o homem. Eles se
despediram e foram até o pátio do hotel, onde fora estacionada a carruagem
dos McFaddens. O cocheiro estava já de prontidão, aguardando ordens. O
lorde solicitou que ele os levasse até a Granville House, depois iriam para
casa.
Dentro da carruagem, Caroline continuava distante. Ela olhava para fora,
para o litoral, e ele não conseguia entender o que se passava naquela
cabecinha complicada.
— O que quis dizer o gerente com aquilo? Por que você é responsável
pelo conforto do hotel?
— Fui eu quem cuidou da decoração de todos os quartos. — Ela se virou
para ele e sorriu. — Adoro decorar e enfeitar coisas. Ficou mais divertido
quando havia um propósito para isso.
— Pensei que você só investisse no Palace of the Sea. Não sabia que
tinha uma participação tão ativa.
Caroline voltou a olhar a paisagem.
— Eu investi no hotel. Mas talvez não tenha sido clara sobre o percentual
da minha participação. Eu detenho oitenta por cento do Palace of the Sea.
— Oitenta por cento? — Isaac se surpreendeu. — Então por que
Oglethorpe diz a todos que é mais um dos hotéis de sua rede?
— Porque é assim que deve ser. Ninguém confiaria em um hotel gerido
por uma mulher. Oglethorpe é um homem inteligente e sua rede hoteleira é
um sucesso. O nome dele engrandece o empreendimento e dá credibilidade
ao projeto. Enquanto nós, mulheres, formos meras decorações no mundo
masculino, é assim que as coisas devem ser.
Mesmo que ela sorrisse, havia amargura em suas palavras. Isaac não sabia
como ela se sentia. Não teria como saber. Caroline era uma mulher que
multiplicara sua fortuna e que, ainda assim, mantinha uma feminilidade que
poucos notavam. Ela era uma mulher em toda a sua plenitude. Tudo que
desejava era ser respeitada por isso.
Os motivos pelos quais ela o rejeitou estavam ali, gritando para ele.
Sempre estiveram, mas ele não os entendeu. Desde que ela retornara do seu
período no sanatório, Caroline não era mais a mesma pessoa nem desejava as
mesmas coisas. E ela desistira do casamento porque não havia como conciliar
sua vida livre com um marido.
Ainda assim, ele a desejava o suficiente para ser insistente. Precisava que
ela confiasse nele. Não importava o que ela achava, ele a deixaria livre.
— Como vai explicar para sua família esse olho roxo?
Ela perguntou, por fim. A mão enluvada dela procurou a dele e aliviou o
peso que estava em suas costas.
— Falarei a verdade. Ganhei-o defendendo a honra de uma dama.
— Dirá quem foi a dama?
— Claro que sim. — Ele levou os dedos dela até a boca e os beijou. —
Você pode não acreditar, Caroline, mas eu não tenho vergonha de você.
— Eu acredito em você, Isaac. — Ela se acomodou melhor à frente dele e
passou a mão por sua face. — Mas eu sei que sua família não aprovará um
relacionamento seu comigo.
Definitivamente, não. Isaac sabia que Edward já se colocara contra. Era
possível que a mãe também repudiasse a ideia do segundo filho ter um caso
com uma mulher. Ela esperava que ele constituísse família. Mas Isaac sabia
que conseguiria convencê-los.
Assim que a carruagem parou em Granville House, eles se despediram.
Não havia muita coisa a ser dita. Caroline o beijou com suavidade e encerrou
o contato dos lábios antes que ele pudesse se tornar mais intenso. Não houve
adeus ou promessas de reencontros. Isaac sabia que eles precisavam guardar
um tempo para si mesmos, para refletir. Mas ele tinha planos que deveria
executar, e esses não podiam esperar.
Mas seu planejamento teve que ser postergado no instante em que entrou
em casa. O mordomo arregalou os olhos ao vê-lo, assustado com sua
aparência. Wilhelmina, que acabara seu desjejum, correu para cumprimentar
o irmão e parou no meio do caminho, levando as mãos à boca.
— Meu Deus, Isaac, o que houve com você?
A jovem se aproximou mais e levou os dedos para tocá-lo no ferimento
na testa.
— Um inconveniente.
— Parece bem mais que um inconveniente. Você esteve brigando?
— Quem esteve brigando?
A voz da condessa viúva ecoou no corredor. Ela saía do salão onde
tomara seu desjejum com a filha. Tudo que Isaac menos desejava era
explicar-se para elas naquele momento, porém não podia esconder-se para
sempre. Era melhor falar a verdade antes que a fofoca circulasse.
— Eu precisei defender a honra de uma dama. Sei que não praticamos
mais duelos nem apelamos para a violência, mas o homem que apanhou de
mim não sabia outra linguagem.
— Ele apanhou? — Wilhelmina tocou o olho roxo. — Mais do que você?
— Sim, eu o fiz retratar-se. — O lorde retirou seu casaco e seu chapéu e
entregou para Peyton. — Isso aqui não é nada, é o que geralmente acontece
quando homens brigam.
— Por acaso a dama cuja honra estava em ruína era Lady Eckley?
A condessa viúva perguntou.
— Talvez devêssemos ter essa conversa em algum lugar privado.
Pressentindo que o assunto se estenderia, Isaac levou as mulheres para o
salão de artes e serviu-se de uma dose de conhaque. Ele precisava beber para
enfrentar um interrogatório.
— Você está cortejando Lady Eckley? — Wilhelmina insistiu.
— Talvez eu esteja. — Ele bebeu seu drinque em um gole só. — Mas
estou fazendo tudo corretamente, inclusive tendo me descompromissado com
Lady Francesca e conversado com o marquês, antes.
— Suas intenções são de casamento, Isaac?
— Sim, são. — Ele serviu-se de mais bebida. Seus dedos tremiam, ele
estava nervoso tendo que explicar aquilo para sua família. Principalmente
porque Caroline ainda não demonstrara intenções de aceitá-lo e Edward se
mostrara tão contrário ao enlace dos dois. — Mas eu preciso convencê-la,
primeiro.
— Você sabe que ela tem uma reputação maculada. — Não foi uma
pergunta, mas uma afirmação. A condessa viúva sentou-se e levou segundos
fitando o filho. — Ainda assim deseja tomá-la como esposa?
— Ele está apaixonado.
Wilhelmina disse, afiada como uma adaga. Isaac se engasgou com o
conhaque e quase derrubou o copo em suas mãos.
— Não tem nada a ver com paixão.
— Posso ser jovem e não saber muitas coisas, mas eu leio bastantes livros
de romance e sei reconhecer os sintomas. Seus olhos brilham quando você
fala dela. Passa muito tempo com ela e, agora, ao responder mamãe, você
sorriu.
— Não sorri.
— Sorriu, sim. — A condessa viúva confirmou.
— Céus, vocês duas querem o quê de mim?
Nervoso, Isaac virou de costas e passou a observar o exterior, pela janela.
Daquele salão era possível ver os rochedos e parte da fazenda. Ele tinha
tantas coisas para cuidar. Precisava visitar a reforma do silo, precisava
confirmar se já havia uma avaliação para a mudança do curral para outra
região, precisava analisar relatórios e discutir a venda dos grãos com os
arrendatários. E tudo que ele conseguia pensar era em Caroline.
A condessa viúva aproximou-se do filho e colocou uma mão no ombro
dele. Pauline McFadden fora uma mãe tradicional para a aristocracia. Os
filhos passavam mais tempo com tutores e babás do que com os pais. Mas
isso não significava que ela não os amasse. Sentia necessidade de compensar
a rigidez do marido, principalmente com Edward. Mas o primogênito cresceu
duro e ranzinza, enquanto os demais eram doces e afetuosos.
— Queremos que seja feliz. Que forme uma família e tenha filhos. Que
consiga usufruir da pequena herança que seu pai lhe deixou. Sempre pensei
que você daria trabalho para conseguir uma esposa. Edward era pragmático e
objetivo, ele negociaria uma dama e a desposaria. Não foi como eu esperava.
Mas você? Como sua mãe, sempre soube que só se casaria pela mulher por
quem se apaixonasse.
— Vocês estão vendo sentimentos onde eles não existem. Eu não fui um
cavalheiro com Caroline. Eu preciso reparar a honra dela.
— Não conheço Lady Eckley muito bem. — A condessa prosseguiu. —
Mas suspeito que ela não precise que você redima sua honra.
— Já considerou as consequências de sua decisão, Isaac? — Foi a
pergunta de Wilhelmina.
— De quais consequências estamos falando?
— Das sociais. — Foi a mãe que respondeu. — Você é um homem criado
dentro dos mais rigorosos padrões. Mesmo que nossa família tenha se
tornado pouco tradicional, casar-se com Lady Eckley representará ostracismo
social. Alguns amigos não o convidarão mais para eventos. A alta sociedade
se afastará. Talvez alguns mantenham contato com vocês em razão do título
de seu irmão - e da fortuna que ele fez. Mas, apesar do sangue azul de
Caroline, casar-se com ela pode rebaixá-lo.
Isaac pressionou as têmporas. Ele sabia bem o que significava casar-se
com Caroline Eckley. Ela era uma pária na sociedade londrina. Costumava ir
aos eventos sem ser convidada e geralmente era assunto nas rodas de fofoca
nos clubes de cavalheiros. Nada daquilo era novidade para ele. E, mesmo
assim, parecia incomodá-lo muito menos do que imaginava. Quando pensou
em procurar Caroline, ele mal a considerava uma criatura com sentimentos.
Pouco tempo depois, ele mataria para evitar que alguém a magoasse.
— Entendo as consequências. — Ele falou ainda virado para a janela. —
Mas também sei que, mesmo que uma mulher tenha um comportamento
escandaloso, ela sempre acaba redimida por se casar com um homem íntegro.
— E você se acha um homem íntegro?
— Espero que o suficiente.
— Então, não precisamos ter essa conversa. Não procure desculpas para
não fazer o que deseja, meu filho. Apenas faça. Use o pragmatismo de seu
irmão e negocie com o marquês.
Isaac virou-se para a mãe, surpreso.
— A senhora aprova meu enlace com Lady Eckley?
— Bem, ela é jovem, bela, rica e de sangue azul. Ela parece apta a
produzir filhos saudáveis. Você não se importa com as restrições sociais que
ela representa. Não vejo motivos para não a aprovar.
Ele olhou para Wilhelmina, que balançava a cabeça concordando com
tudo que dizia a mãe. A surpresa era imensa. Primeiro, pela aceitação
declarada de um possível casamento entre ele e Caroline. Segundo, pela
sugestão de que ele fosse negociar com o Marquês de Granville, pois era
exatamente isso que Isaac pretendia fazer.
Batidas à porta do salão antecederam a entrada de Peyton. O mordomo
carregava um papel dobrado e selado com o brasão dos McFaddens sobre
uma bandeja.
— Milorde, acabaram de entregar esse telegrama. É de Lorde Nathaniel.
Isaac pegou o papel e rompeu o lacre. As mulheres estavam curiosas
aguardando que ele o lesse. Assim que abriu o telegrama, Isaac soltou uma
imprecação.
— O que houve? — Wilhelmina se aproximou.
— Nate precisa de mim em Cornwall. O mais habilidoso negociador da
família não conseguiu resolver o problema e mandou me chamar.
Não poderia haver momento menos adequado. Ao mesmo tempo em que
Isaac não poderia deixar de atender o irmão. Aquela era a propriedade
ancestral da família, encrustada em uma das regiões mais conservadoras da
Inglaterra. Era distante, úmida e pouco servida pela linha férrea. Se eles não
retomassem as rédeas da propriedade e resolvessem o problema com os
arrendatários, eles acabariam tendo que se desfazer de Tyntesfield.
— Vai até ele?
— Sim, eu preciso. Talvez tenha que obrigar Edward a se retirar mais
cedo para o litoral. Se me dão licença, preciso organizar minha viagem ao
outro extremo do país.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

T UDO QUE ELE PRETENDIA ORGANIZAR EM SEMANAS FOI AJUSTADO EM HORAS .


Isaac foi até o silo, conferiu o que precisava o engenheiro, escreveu um
telegrama para Edward e deixou uma lista de afazeres que seu encarregado
teria que cuidar. O conde fora tão enfático em enviá-lo para Kent para
garantir que alguém estivesse administrando a propriedade que Isaac sentia-
se dividido. Ele tinha certeza que Edward determinaria sua ida para Cornwall
assim que soubesse que Nathaniel estava em apuros. Então, faria o que
deveria fazer. Mas não queria deixar Greenwood Park desguarnecido, por
isso, informava ao conde o que faria.
Orientou Dewitt a arrumar sua mala, depois de se lavar e vestir um traje
completo para o dia, cavalgou até Rhode Port. Ele acabara de ver Caroline,
passara a noite com ela. Mas não podia deixar de despedir-se, principalmente
depois que as coisas ficaram um pouco estremecidas entre eles. E havia a
necessidade de conversar com o marquês.
Isaac prometeu a Caroline que respeitaria a vontade dela sempre, então
ele não a negociaria com Granville. Se sentasse com o homem e pedisse a
lady em casamento, era provável que o marquês concedesse. Fazendo isso, no
entanto, ele começaria o casamento com uma quebra de confiança. Isaac
queria que Caroline o aceitasse. Falaria com Granville apenas para pedir
ajuda. Para demonstrar suas intenções reais.
Para sua sorte, o marquês estava em casa e concordou em recebê-lo. Isaac
foi conduzido até o escritório e surpreendeu-se ao encontrar Rosamund
Eckley. Eles compartilhavam uma bebida e Granville não pareceu
incomodado em receber um convidado homem com sua esposa. Não
convencional. Isaac precisava lembrar-se que a família Eckley desafiava
todas as tradições.
— Seja bem-vindo, Isaac. Em que podemos ajudá-lo?
O marquês indicou uma cadeira para que ele se sentasse. Por trás da mesa
de mogno escuro, Anthony Eckley ficava ainda maior. Ele tinha ombros
largos e seu tamanho era ameaçador. Se Isaac não tivesse intenções honradas
para com Caroline, ele teria medo de estar em uma sala com o marquês.
— O que houve com seu rosto? — A marquesa levou a mão à boca, em
espanto. Aquela era a reação padrão aos ferimentos do lorde. O inchaço do
olho fazia com que ele não conseguisse abri-lo totalmente.
— Foi um pequeno acidente que ocorreu ontem. Os punhos de um vilão
colidiram com meu rosto, mas posso garantir que ele ficou em situação pior
que a minha. Mas foi por isso que vim aqui. Os eventos de ontem conduziram
a uma situação em que a honra de Caroline foi comprometida. Eu pretendo
repará-la.
A expressão do marquês e da marquesa foi do assombro pelos ferimentos
à estupefação pelo pequeno discurso. Eles se entreolharam e levaram alguns
segundos para se recompor do susto.
— Vocês foram pegos em uma situação comprometedora? É isso?
A marquesa se ajeitou na poltrona em que estava sentada. Granville
levantou-se e serviu três doses de conhaque.
— Não fomos pegos, mas isso é irrelevante. Haverá rumores e fofocas.
— Com Caroline, sempre há rumores e fofocas. Você nos dirá o que
houve?
Isaac aceitou o conhaque e bebeu-o todo de uma vez. Se ele dissesse que
passara a noite com Lady Eckley, aquilo selaria o seu destino. O marquês não
toleraria um amante de sua prima olhando-o face a face. Por mais irreverente
que ele fosse, havia limites quando o assunto versava sobre a honra de uma
pessoa amada.
— Depois da briga que causou meus ferimentos, nós dois fomos ao
Palace of the Sea e… bem, eu devolvi Lady Eckley para casa apenas hoje de
manhã.
Rosamund Eckley manteve-se em um silêncio inexpressivo, olhando para
o marido. O marquês fitou o líquido âmbar no copo de vidro por poucos
segundos. Quando ergueu o olhar, ele demonstrava um desconforto sensível
em prosseguir a conversa.
— Meu caro Isaac, eu poderia resolver isso de forma bem simples.
Obrigá-lo a casar-se com Caroline seria a decisão mais correta. Mas eu
estaria sendo leviano se mentisse que ela tem uma honra a ser reparada.
Como minha querida prima não é uma mulher que cultivou sua virgindade na
espera de um marido, há muito se tornou desnecessário que ela se casasse
para redimir qualquer coisa que façam com ela - porque tudo será da vontade
dela. Se estiver preocupado com a reação da sociedade, nós já nos
acostumamos.
— Entendo, milorde, mas eu não me acostumei. Eu pretendo casar-me
com Lady Eckley.
Daquela vez a marquesa se agitou. Um sorriso largo se formou nos lábios
bem delineados da mulher, que não conseguiu esconder sua alegria pela
notícia.
— Casar-se! — Ela juntou as duas mãos e bateu palmas. — E veio aqui
pedir autorização do marquês para tomá-la como esposa?
— Sim, eu vim. Porém, sei que Lady Eckley não aceitará um casamento
imposto a ela. Eu gostaria de sua bênção novamente, milorde, mas ainda não
a convenci de que casar-nos seja uma boa ideia. Ela está muito preocupada
com seus novos empreendimentos.
— Certamente que está. — O marquês era mais comedido, mas
demonstrava satisfação pela decisão de Isaac. — Ainda assim, Caroline é
uma mulher. Ela deseja um amor, um marido, filhos. Se confiar que você não
a podará como um arbusto seco no outono, ela aceitará sua proposta.
Continue cortejando-a, Isaac. Esqueça o escândalo, não se sinta obrigado a
desposá-la. Fazia algum tempo que eu não via Caroline tão envolvida com
algo que ela queira - e não estou falando da escola nem do evento que
acontecerá em uma semana e meia, mas de você.
A sinceridade crua do marquês fez subir uma onda de calor que
enrubesceu o pescoço e a face de Isaac. Aquele fluxo exagerado de emoções
era inadequado. Nenhum padrão masculino se referia a um homem tão
sentimental como ele.
— Obrigado, milorde. Fui convocado por meu irmão Nathaniel com
urgência, por isso embarco hoje ainda para Cornwall. Mas, assim que
retornar, continuarei a visitar Lady Eckley. Peço desculpas por meu
comportamento.
— Você é um cavalheiro, Isaac. — O marquês estendeu a mão para
cumprimentá-lo. — Se Caroline não quiser se casar com você, vou amarrá-la
e arrastá-la para a igreja. Não há homem mais adequado para ela em toda
Inglaterra.
O aperto de mãos selou um acordo de cavalheiros. Não era um contrato
de casamento, apenas um ajuste no combinado que fizeram antes. Isaac
tomava todas as providências dentro da decência, mesmo que ele não
estivesse sendo decente com Caroline. O marquês chamou um criado e pediu
que acompanhasse o lorde.
Ao sair do escritório, ouviu a marquesa comemorar em voz alta. Pelo
menos alguém da família estava satisfeito com sua proposta. Dali, Isaac pediu
que fosse conduzido até Caroline. Precisava despedir-se e garantir que a
viagem não os afastaria de vez. Pensar que ela poderia encontrar um
substituto para ele enquanto estivesse fora quase o fez perder o passo
enquanto seguia o criado. Não, ela não faria isso. Ela gostava dele. E
Caroline não era uma prostituta, ela só se envolvia com homens por quem
tivesse sentimentos.
Ela estava no jardim de inverno. O lugar era grande, fartamente
iluminado pela luz solar e repleto de plantas e flores. As paredes continham
janelas que iam do chão ao teto, que era parte de vidro e parte de madeira e
alvenaria. Orquídeas e acônitos se misturavam de um lado, rosas e jasmins do
outro. A excentricidade era compatível com a família Eckley.
Caroline segurava alguns papéis e parecia concentrada neles. Deitada no
chão ao lado dela, Marquesa cochilava enquanto recebia carinho dos pés
descalços da lady. A cachorra ergueu a cabeça ao ver pessoas se
aproximando. Caroline virou para o lado e sorriu ao ver Isaac chegar.
— Milorde, que bom receber sua visita. — Ela colocou os papéis sobre
uma mesinha redonda. — Fulton, traga-nos chá e bolinhos.
— Minha visita será breve. — Isaac disse, fazendo com que o sorriso
morresse nos lábios dela.
— Certo. Fulton, traga o chá com bolinhos assim mesmo. Aliás, mais
bolinhos do que chá. Aqueles com cobertura. Peça para que a criada mande
café preto, também.
O homem fez uma mesura e se afastou. Caroline indicou que Isaac
deveria sentar-se em uma cadeira que estava próxima a ela. A lady usava um
vestido branco com detalhes em vermelho. Isaac nunca a vira vestindo
qualquer coisa que não fosse apenas vermelho em suas diversas nuances. O
branco a deixava tão linda quanto qualquer cor a deixaria. Os cabelos
estavam trançados e ela parecia refrescada, como se tivesse terminado de
tomar banho.
— Desculpe interromper sua leitura. Eu vim me despedir. Passarei alguns
dias em Cornwall, meu irmão Nathaniel está com problemas.
— Não é nada importante. — Ela apontou para os papéis. — Documentos
da escola. Eu nunca os assino sem lê-los primeiro.
— Entende o que eles significam? Deseja uma opinião?
— Se não entendesse, milorde, não estaria mais rica do que nunca. — Ela
deu uma risadinha bem-humorada, mas estava afiada como uma espada. —
Mas adoraria que pudesse dar uma olhada neles. Gosto de ouvir as pessoas
sobre meus negócios, mesmo que nem sempre siga as orientações que me
dão.
Duas criadas entraram com bandejas. Serviram café para Isaac e chá para
Caroline. Ele gostava de café preto de vez em quando, aquele seria um bom
momento. Estava tenso como se houvesse engolido uma estaca de madeira.
Depois que as criadas saíram, ele abandonou o decoro e segurou as duas
mãos de Caroline entre as dele. Beijou os dedos e saboreou a pele acetinada
em seus lábios.
— Pensarei em você enquanto estiver fora. Você me enfeitiçou, Caroline
Eckley.
Ela correu os dedos pela face dele.
— Também pensarei em você. Mas, seja lá o que for que seu irmão
precise, tenho certeza que conseguirá ajudá-lo.
— Pense em minha proposta enquanto isso.
— Não vou me casar com você, Isaac. — Caroline bebeu o chá e
mordiscou um bolinho. — Mas considere aceitar você a minha. Continuemos
como estamos. E por favor, prove esse bolinho.
Caroline levou o doce à boca dele. Isaac deu uma mordida e soltou um
gemido baixo. A maciez e a textura do bolinho eram incríveis. Olhando para
ele, Caroline indicou que um pouco da cobertura sujara seus lábios. Isaac
tentou limpar, mas passou o guardanapo no lado errado. Ela riu, dobrou o
corpo e levou a boca até a dele.
Não era para ser um beijo, apenas uma provocação. Caroline era
espontânea e fazia tudo que desejava sem se importar muito com as
consequências. Mas o toque dela fez com que ele, inteiro, estremecesse. Isaac
segurou-a com as duas mãos, uma de cada lado de sua face, e beijou-a de
verdade. Levaria muito tempo para que ele se cansasse de tê-la. O
afastamento o deixaria miserável.
Durou pouco, o suficiente para um beijo de despedida.
— Mandarei notícias.
Ele se levantou depois de soltá-la. Saiu do jardim de inverno se
esforçando para caminhar em linha reta, sentindo seus músculos trêmulos e o
coração batendo forte demais. O efeito Lady Eckley era mais potente do que
o láudano da noite anterior.

P OR DOIS DIAS , Caroline foi a mesma mulher de sempre. Seu humor ácido e
seu temperamento mantinham os criados afastados dela. Era como se a sua
imoralidade fosse contagiosa. Muitas criadas se recusavam a olhar para ela,
apenas cumpriam as ordens que recebiam porque precisavam do emprego. A
única que a tratava com algum respeito era Violet, sua camareira. Mas
Caroline não se importava tanto. Ela se acostumara a ter o desprezo da
sociedade e de todos com quem socializava. Tirando sua família, todas as
pessoas conviviam com ela por serem obrigadas.
Os preparativos para o evento se intensificaram. Ela recebera diversas
confirmações, a maioria de famílias burguesas. Jovens damas com muito
dinheiro que desejavam maridos com títulos para ascender socialmente.
Naquela época, ainda havia muitas famílias nobres que insistiam em viver de
renda, pois julgavam o trabalho degradante. E, com o crescimento
exponencial da indústria e da tecnologia, a maioria já estava endividada até
os últimos fios de cabelo. Caroline sabia disso e contava com a necessidade
de ambos os lados em se unirem.
Rosamund estava empenhada em auxiliá-la. Como boa anfitriã,
respondeu alguns convites que fizera a mulheres nobres com filhas jovens,
dentro da idade esperada por Caroline. O silêncio da condessa, no entanto, a
desanimava. Sabia que Agatha tinha restrições quanto a ela, mesmo que
tivesse aceitado uma amizade e a sociedade. Mas, no fundo, ela esperava ser
perdoada. Não por ser livre e tomar decisões contrárias ao recato, mas por
não ter entendido o lado das mulheres que eram diferentes dela.
No terceiro dia, no entanto, ela não conseguia mais dormir. Rolava na
cama a noite toda e chegara a tomar láudano para ver se a droga a derrubava.
Não teve muita sorte, apenas náuseas. Violet fez alguns chás para ajudá-la a
descansar, mas, no final, Caroline parecia um fantasma com manchas
arroxeadas debaixo dos olhos. Exausta e irritadiça, ela precisava manter-se
afastada das pessoas.
Claro que seu primo não a deixaria em paz. Mesmo depois de ela ter dado
ordens aos criados que não aparecessem perto dela nem se fossem chamados,
porque ela não queria destratar ninguém, ele foi até ela na biblioteca com
uma bandeja de doces. E uma garrafa de vinho.
— Vamos hastear uma bandeira branca, Caroline. Você está com suas
regras mensais? — Anthony serviu duas taças e entregou uma para ela.
— Não. Mas elas não demorarão. Minha barriga dói e estou muito
aborrecida com tudo. E você não deve me fazer essas perguntas. Não é
inadequado falar de partes do corpo e de questões femininas?
— Desde quando você se importa com decoro e com o que é adequado?
Vamos, beba. Pode te ajudar. Converse comigo, como andam os
preparativos?
Caroline ajeitou-se em uma chaise longue e bebericou o vinho.
— Rose está sendo fantástica, eu quase não preciso fazer nada. Ser
marquesa faz dela praticamente a comandante de um império. Mas estou
preocupada, nunca ofereci eventos dessa magnitude. E se falhar tentando
apresentar meu projeto?
Anthony sentou-se próximo a ela, apoiou a taça em uma mesinha e
segurou as mãos dela nas suas.
— Estaremos aqui para te ajudar. Você está com saudades dele?
— Saudades de quem?
— Dele, Caroline. Isaac McFadden, seu lorde romântico.
— Anthony. — Ela esticou a coluna e se sentou ereta no estofado,
soltando as mãos do marquês. Encarou-o com sua expressão mais
assustadora. — Ele não é meu lorde e por que eu teria saudades dele? Isaac
mal se foi.
— Não sei, pensei que isso pudesse contribuir para seu humor
insuportável. Mas, se está dizendo que Isaac não tem nada a ver com isso, eu
acredito.
O marquês continuou bebendo, mas em silêncio. Caroline enfiou um
bolinho na boca, mastigou, mas não se satisfez com o sabor dos morangos.
Estavam frescos, o creme era delicioso, mas faltava alguma coisa. Estava
faltando alguma coisa e ela até sabia o que era, porém recusava-se a admitir.
Não podia admitir.
— Anthony, diga-me uma coisa. — Caroline recostou novamente nas
almofadas e encarou a luz flamejante das lamparinas que clareavam a sala. —
Como foi que você descobriu que estava apaixonado por Rose?
O maldito primo tentou esconder um sorriso quando se virou para encará-
la. Um sorriso. Ele estava rindo dela. Ou da sua confusão. Caroline sempre
soube que Anthony era um vilão. Ela queria bater nele por imaginá-lo
fazendo troça de seus problemas.
— Desde o primeiro momento em que eu a vi. Mas foi apenas quando ela
me mandou para o inferno e jogou uma taça de champanhe sobre mim que
tive certeza que a amava. Mas você já sabe essa história.
— Sei a história de como vocês se conheceram. Paris, café, champanhe,
festa, todos os detalhes. Estou falando agora de sentimentos. Você era um
libertino. Não tinha mais honra do que um cão de rua. E então se apaixonou?
Foi dormir um dia querendo acordar todas as manhãs ao lado dela?
— Mais ou menos isso. — Anthony deu uma risada e mudou de lugar.
Sentou-se ao lado de Caroline. Ela se ajeitou para que ele se acomodasse. —
Apenas para corrigi-la, eu sempre tive muita honra. Nunca matei, nem feri
ninguém deliberadamente. Nunca roubei ou explorei as pessoas. Nunca fui
avarento e sempre tentei levar o bom nome dos Eckleys adiante. Eu era um
libertino no que toca às liberdades sexuais, apenas isso.
— E decidiu que queria ficar com Rose.
— Eu amo minha esposa, Caroline. Não há explicação racional para esse
sentimento. Você sempre pensou muito sobre tudo. Não dá para pensar muito
sobre amor. Você o sente, bem aqui. — O marquês levou a mão
cautelosamente até o meio do peito dela e tocou-a onde era possível sentir as
batidas do coração. — Se estiver apaixonada por alguém, seu próprio corpo
te dirá. O ar vai faltar sempre que você estiver próximo a ele, ou também
quando estiver longe. Suas pernas tremem, suas mãos suam, você fica um
pouco tola querendo estar com ele o tempo todo. E o desejo, ah, o desejo…
você provavelmente notará que o ato sexual é muito mais prazeroso com ele.
Ela não disse mais nada, apenas continuou a beber e a encarar os objetos.
O marquês continuou ao seu lado enquanto ela refletia sobre o que ele disse.
Anthony sempre acabava falando de sexo ou outras perversidades, só que ele
tinha razão. E ela tinha um problema. Se aqueles eram os sintomas, o que ela
sentia por Isaac poderia ser classificado como paixão.
E Deus sabia que ela não pretendia se apaixonar. Não mais. Não enquanto
ela tinha tantos planos. Porque todas as suas paixões a levaram à ruína.
Caroline sempre escolhia os homens errados, fossem eles canalhas ou
apaixonados por outras. Mas Isaac não era um canalha.
Ele também não estava apaixonado por outra, mas pretendia casar-se. E
com outro tipo de mulher. Ele queria uma esposa tradicional, ela jamais seria
uma. Ele precisava de alguém como a dama italiana: que fosse calma,
resiliente e disposta a lhe encher de filhos. Caroline era um furacão que
derrubava todas as estruturas dos lugares por onde passava.
— Ele disse quando volta? — Anthony perguntou, tirando-a dos
devaneios.
— Não, ele disse que daria notícias e… de quem estamos falando
mesmo?
— Acha que consegue me enganar, Caroline? Eu sou aquele que cuida de
você desde que chegou nessa casa, indefesa e assustada. Estamos falando de
Isaac McFadden, a causa dessa conversa que acabamos de ter. O homem por
quem você está apaixonada - e morrendo de medo de seus sentimentos.
— Ah! Mas eu não tenho medo dos meus sentimentos! — Ela se levantou
rapidamente, ajeitando as saias que estavam amassadas. — Eu sequer tenho
sentimentos, Anthony Eckley. Não invente coisas onde elas não existem.
— O menino é um cavalheiro, Caroline. Ele tem intenções nobres para
com você.
— O problema não é ele. — Ela se sentou em outra poltrona, de frente
para o marquês. — Eu não quero ser podada por um marido, Anthony. Por
nenhum marido.
— Duvido que ele seja um tirano com você.
— Ele é maravilhoso, mas ainda não tem a autoridade sobre mim. E
quando tiver? E se ele mostrar uma face que nunca exibiu para ninguém,
antes?.
— Tudo bem, minha cara. Entendo suas dificuldades em confiar nos tipos
como eu. Espero apenas que Isaac não desista de você facilmente. Vá se
lavar, vamos jantar em breve.
Da mesma forma súbita que entrou, o marquês saiu da biblioteca e deixou
Caroline ali, pensativa. Ela encheu novamente a taça de vinho e se encolheu
na frente da lareira. Iria se atrasar para o jantar, mas estava confusa, cansada
e ansiosa por alguma coisa que não compreendia bem. Imaginou estar ali nos
braços dele. Conversando. Podendo ler alguns trechos de seus livros favoritos
para ele. Ouvir como estavam sendo as coisas em Cornwall. Recebendo
carinhos e beijos suaves.
Isaac não oferecia a ela apenas noites de prazer. De uma forma ou de
outra, ele era capaz de preencher seus dias. Ele era presença, enquanto os
outros foram ausência. Ele esteve ali para ela quando os outros preferiram
não estar. A decisão de ter aquilo para toda a vida parecia muito simples de
tomar. Se ela não fosse perder nada no processo que culminaria na destituição
de todo o seu patrimônio. Talvez Anthony tivesse razão e ela estivesse sim,
apaixonada por Isaac McFadden. Aquele jovem romântico e ingênuo que, no
final, se mostrava masculino, atraente, sedutor e muito maduro. Mas ela
precisava confiar nele para ceder a ele. Paixão não parecia suficiente em troca
de tudo que ela poderia perder.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

J Á SE HAVIAM PASSADO CINCO DIAS DESDE QUE I SAAC CHEGARA A


Tyntesfield e ele ainda não encontrara uma solução para os problemas da
propriedade. Isso porque ele não encontrara o problema propriamente dito.
Aquilo aborrecia Nathaniel. Ele estava certo que havia impropriedades na
contabilidade. Desde a conversa com os arrendatários, ele descobrira os reais
motivos de descontentamento - nenhuma das melhorias que foram prometidas
se realizou. E o administrador havia destinado dinheiro para cada uma delas.
Se as melhorias não existiam, onde estava o dinheiro?
Mas Isaac estava debruçado naqueles livros há quase uma semana e não
descobrira exatamente o que aconteceu. Os arrendatários insistiam que não
receberam o maquinário e que não houve implementos nas sementes, ou nos
edifícios. O administrador garantia que tudo fora cumprido, mas que os
arrendatários eram eternos insatisfeitos. A forma mais simples de descobrir
quem falava a verdade era encontrar mais falhas na contabilidade. Se o
administrador estava desviando dinheiro, ele provavelmente fazia isso há
bastante tempo.
E lá estava o irmão sentado detrás da mesa no escritório do casario
principal, parecendo nem mesmo ter dormido, com os dedos sujos de tinta e
todos os livros contábeis abertos à sua frente.
— Céus, você é tão madrugador quanto Edward.
Nathaniel entrou no escritório com a aparência de quem ainda não
acordara. Estava com os cabelos cuidadosamente penteados e úmidos,
indicando que acabara de tomar banho. Vestia um traje completo para o dia,
composto de colete cinza de brocado e paletó de linho. Os olhos azuis
estavam avermelhados porque o irmão mais novo sempre dormia tarde
demais. Nate era apreciador da vida noturna e das festas que iam até o nascer
do sol. Acostumara-se a dormir durante e o dia para poder aproveitar a noite.
— Para fazer meu trabalho, preciso estar acordado enquanto as pessoas
que trabalham estão. Isso significa durante o período de luz solar, Nate.
— E então? Os números falaram com você?
— Não, porque eles não falam comigo. Eles se escondem e eu os
encontro, os arranco de onde estão e os exponho publicamente. Mas, dessa
vez, está difícil. Se o administrador está roubando, ele faz isso muito bem.
— Foi por isso que te chamei. Eu sei que ele está roubando. Mas não
posso ir ao conde sem provas. Não posso acusar ninguém sem provas.
Nathaniel serviu duas doses de conhaque e chamou o criado. Pediu que
servissem seu desjejum no escritório mesmo. Isaac sabia que ele ficaria ali
para ajudá-lo, mesmo que não fosse habilidoso em administrar nada. Nem a
própria vida ele administrava direito, abusando de mulheres e vícios com
uma idade tão tenra.
— Como descobriu que havia algo errado com a contabilidade?
— O problema dos arrendatários me fez precisar consultar os livros.
Nosso administrador não quis entregá-los, o que me levou a suspeitar de algo.
Depois, há esse dinheiro destinado a obras que os arrendatários juram que
não foram realizadas.
— Falou com Edward sobre isso?
Isaac fechou o livro de encadernamento de couro e massageou as
têmporas com os dedos. Estava há horas debruçado sobre os dados e
observara pouca discrepância que pudesse suspeitar. Nathaniel sabia que, por
ele não administrava Tyntesfield, ficava difícil encontrar os detalhes que
precisavam ser encontrados. Não conhecia os hábitos e despesas da
propriedade bem o suficiente. O criado entrou com o desjejum e um bule de
café preto.
— Achei que deveríamos deixar o conde de fora até termos respostas. Ele
anda muito irritadiço com tudo, ainda mais do que antes. Pensei que o
casamento ia fazê-lo mais afável.
— Ele está com uma filha recém-nascida e não pode dormir com a
esposa. Logo, passa.
Os dois riram. Um dos esportes favoritos dos irmãos era implicar com o
conde, principalmente porque ele não gostava de ser provocado. Como Isaac
e Nathaniel tinham uma diferença de idade muito pequena, eles eram
melhores amigos e muito unidos. Parecia bastante razoável que Nate
recorresse a ele quando precisasse de apoio.
— Eu vou descobrir o que está havendo aqui. Dê-me mais algum tempo e
finja que está tudo bem. Se há alguém desviando o dinheiro de nossas
propriedades, vou pegar o maldito.
— Sabe que elas não são nossas, não é?
— Claro que sei, mas também sei que Edward nunca nos deixaria sem
nada. No fundo, ele tem coração mole e cumprirá a vontade de nosso pai.
Nathaniel concordou. Precisava que Isaac se dedicasse em tempo integral
naquela tarefa. Estar enganado não era parte do seu plano. Ele sabia que algo
estava sendo escondido naqueles livros e só confiava no irmão para ajudá-lo.
Depois de mais dois dias, Isaac descobriu algo que poderia ser um
problema bastante grave. Havia pequenas discrepâncias em despesas e
desvios do que deveria ser revertido em melhoria da propriedade. De início,
pareciam quantias pequenas, mas, somadas, contabilizavam somas
exorbitantes. Tyntesfield estava sendo aparentemente negligenciada pelo
administrador, mas as divergências estavam bem escondidas, para que
alguém desconfiasse em uma verificação superficial.
O homem era esperto, mas os irmãos McFaddens eram mais.
Antes de confrontar o administrador, Isaac sugeriu que eles conversassem
com Edward e contassem o que sabiam. Afinal, o conde era o dono de todas
as propriedades e patrão de todos os empregados. Se os dois irmãos
colocassem o administrador na parede, ele talvez não se intimidasse tanto.
Mas se fosse Edward… todos morriam de medo do conde.
Como o irmão ainda estava em Londres, no dia seguinte eles decidiram ir
até a cidade. Colocaram os livros, onde estavam as evidências do desvio de
dinheiro e da má administração da propriedade, em uma maleta e pegaram o
primeiro trem da manhã. Isaac obrigou Nathaniel a dormir cedo na promessa
de levá-lo ao Riderhood para se divertir. Claro que ele não precisava de ajuda
para ir ao clube do qual era sócio, mas, ainda assim, preferia fazer o que o
irmão pedia. Era uma forma de agradecê-lo por deixar seu trabalho e ir ajudá-
lo.
Compraram passagens na primeira classe e fizeram uma viagem tranquila,
enquanto conversavam sobre propriedades, negócios, os irmãos mais novos e
as mulheres.
— Diga Isaac, e as coisas com a dama italiana? Esfriaram depois que
você voltou para Kent? Ou está ansioso para reencontrá-la agora enquanto
estivermos na cidade?
— Esfriaram. — Isaac recostou na cadeira e olhou pela janela. A
paisagem mudava na medida em que se aproximavam de Londres, ficando
menos rural e mais industrializada. A parte norte do país estava tomada por
indústrias das mais variadas, atraindo os jovens para o trabalho nas fábricas -
que era mais sedutor, porém mais precário. — Eu a liberei para ser cortejada
por outros cavalheiros, já que meu interesse foi direcionado a outra dama.
— Outra dama? — Nathaniel cruzou as pernas. — Você está me saindo
pior do que os libertinos que tanto critica, meu irmão. Que dama é essa que
roubou sua atenção?
— Você a conhece. Lady Caroline Eckley
O silêncio desconfortável não foi planejado, mas Nathaniel não conseguiu
evitar. Todo o trem fazia silêncio naquele momento e Isaac pareceu
desconfortável.
— Irmão, eu sei que você é virgem, mas não pensei que fosse também
ingênuo. Você sabe que Caroline é… — Nathaniel ajeitou-se para aproximar-
se de Isaac, podendo falar mais baixo. — Que ela é uma mulher livre.
— Não sou ingênuo, irmão. — Isaac também falou baixo. — E nem
virgem.
— Mas você… quando foi que isso aconteceu?
— Se pensa que vou te contar detalhes dos meus intercursos sexuais,
desista. E eu sei exatamente tudo que preciso saber sobre Lady Eckley.
— E ainda assim deseja cortejá-la? Está… interessado nela?
— Sim.
— Ora, se meu irmão cavalheiro perfeito e honrado não está me saindo
um rebelde! — Nathaniel deu uma risada. — O passado dela não te importa?
— Não me importa. Não é como se eu não sentisse ciúmes de cada
homem que já tenha encostado nela. Mas não será isso que me impedirá de
casar-me com ela.
Falar em casamento fez Nathaniel arregalar os olhos em surpresa e
assentir, dando por encerrado o assunto. Ele acreditava que era muito cedo
para que Isaac pensasse em se casar com alguém, que ele deveria primeiro
aproveitar os prazeres da juventude. Admitia que Edward estivesse certo em
casar-se depois dos trinta, principalmente porque eles não precisavam
produzir herdeiros. Não era função deles procriar para garantir a linhagem
dos McFaddens, esse era o papel do conde. Não havia motivos para que se
prendessem ao casamento tão cedo.
Isaac, no entanto, era tradicional. Queria casar-se cedo, casar-se virgem,
ser o homem de uma mulher só, viver feliz com sua esposa perfeita. E, de
repente, ele demonstrava interesse em desposar a maior libertina da
Inglaterra. A única, pelo que Nathaniel sabia.
Depois de desembarcarem na London Bridge, a mais central estação da
cidade, pegaram uma carruagem de aluguel para a McFadden Garden.
Imaginavam que o conde estivesse na fábrica durante o dia, mas aguardariam
por sua chegada enquanto desfrutavam da companhia da cunhada e das
sobrinhas.

Q UANDO O CONVITE para o evento na Olsen Terrace chegou à casa Granville,


Caroline mal acreditou que ela estivesse incluída. A Duquesa de Norfolk
sempre dava um grande baile, disputadíssimo, em sua residência londrina
antes do encerramento das atividades do Parlamento. Era um dos eventos
mais esperados do ano, principalmente pelas moças casadoiras que
encerravam sua temporada. Era a última chance de receber uma proposta de
casamento para muitas delas.
Caroline nunca frequentou o baile. Desejou ser convidada pela duquesa
desde seu debute na sociedade, o que não aconteceu nenhuma vez até aquele
ano. Rosamund recusava-se a ir sem que ela fosse, e Caroline nunca teve
coragem de invadir aquele evento específico.
Não eram claras as razões pelas quais a duquesa a convidara. A reputação
de Caroline não parecia melhor desde a última vez em que ela frequentou um
evento social - o fatídico evento na casa Trowsdale, quando ela atentou
contra a vida de Madeline Westphallen. Aquele episódio fora o marco
revolucionário em sua vida inteira, mas a sociedade não passou a vê-la como
uma pessoa melhor depois dele. Mesmo que ela tenha se tornado melhor.
Mesmo que ela se sentisse melhor.
Mas havia tanto que ela precisava finalizar para seu próprio evento na
semana seguinte que parecia leviano deixar tudo para trás apenas para ir a
Londres. Nem a curiosidade de descobrir por que ela estava sendo
subitamente recebida em grandes salões a motivava.
— Você precisa ir. — Rose insistiu. Elas conversavam enquanto
brincavam com as crianças no meio do quarto infantil. — É a oportunidade
perfeita de olhar diretamente na cara de todos que sempre te desprezaram.
— Não preciso provar nada para ninguém. E não estou tão interessada
assim em ir. Tenho muito que fazer.
— E se eu te contar que o Conde de Cornwall foi convidado? E que ele
confirmou presença, com os dois irmãos mais novos?
— Dois irmãos? — A atenção de Caroline imediatamente se virou para a
cunhada. — Isaac e Nathaniel estão em Londres?
— Ao que tudo indica, sim. Ele não te deu notícias?
Não, não deu. Já se haviam passado dez dias desde que Isaac deixara
Greenwood Park para resolver pendências em Cornwall. Ele prometera que
daria notícias, que entraria em contato, mas não o fez. Ela aguardou todo dia
pela chegada de uma carta. Ou um telegrama, pois bastavam algumas
palavras para que ela se satisfizesse. Entre seus afazeres e seus períodos de
ócio, Caroline esperou que o homem que a propusera casamento
demonstrasse alguma consideração por ela naqueles dias afastados.
Mentalmente, ela justificou a ausência com vários motivos. Talvez
Nathaniel estivesse envolvido em problemas tão graves que exigiram total
atenção do irmão. Ou talvez ele tenha enviado um telegrama que extraviara.
Chegou a se culpar por esperar algo de Isaac. Os homens não eram dados a se
doarem, como as mulheres faziam. Por que ele teria consideração de contatá-
la? Apenas porque decidira que precisavam se casar para reparar a honra
arruinada dela?
A verdade era que Caroline desejava, no fundo, que ele fosse diferente.
Que não fosse mais do mesmo e que representasse a evolução das criaturas
masculinas que povoavam a Terra.
— Por que eu desejaria ir a um baile em que Isaac McFadden estivesse?
Eu apenas me sentiria muito humilhada quando ele não me tirasse para
dançar ou fingisse que não me conhece.
— Caroline, ele não fará nada disso. — Rosamund pegou a bebê no colo
e o aconchegou no peito. Ela estava com sono e fechou os olhinhos com o
carinho da mãe — O homem esteve aqui para conversar com seu primo. Ele
entrou em uma briga por sua causa. Como pode ser tão difícil para você
perceber que ele tem intenções honradas?
Porque era difícil com todos os homens, foi o que ela quis dizer. Não
disse.
— Então iremos a esse evento. Vamos confirmar a presença dos Eckleys
pela primeira vez no encerramento de temporada dos Olsen.
Se a marquesa não estivesse segurando a filha nos braços, teria dado
pulinhos e batido palmas, tamanha a sua animação. Caroline pediu licença e
foi para seu quarto com Violet. Elas precisavam organizar a viagem para
Londres, que seria curta, e decidir que vestido usar no baile. Era a primeira
vez que Caroline atenderia a um baile daquela magnitude como convidada.
Se não estava tão empolgada assim em ir, ao menos faria com que a família
não se envergonhasse dela. Seria a dama mais bela do salão.

— E LIZABETH , você conversou com a Duquesa de Norfolk recentemente?


A pergunta de Agatha não surpreendeu a duquesa. As duas estavam na
Trowsdale House tomando chá, em meio a crianças e babás. Apenas Patrick
não estava com elas, pois Aiden o levara à Eton College para apresentá-lo ao
diretor. O menino queria entrar para a escola mais tradicional de Londres e
precisava da ajuda do duque. Se tudo corresse como esperado, no ano
seguinte ele seria admitido em Eton.
— Tomamos chá regularmente. Ela tem uma filha da minha idade e
ficamos próximas. Por quê?
— Bem, Londres continua um antro de fofocas. Em cada lugar que se vai,
ouve-se algo absurdo sobre alguém. E fizeram questão de me contar que a
duquesa convidou os Eckleys para seu baile de encerramento da temporada.
— O marquês é sempre muito requisitado nos eventos da alta sociedade.
Por que isso seria uma fofoca?
— Porque Lady Eckley também foi convidada.
— Ah, entendi. — Elizabeth pegou um bolinho da bandeja e deu na mão
de Lillian para que ela provasse o doce. A menina soltou um gritinho de
alegria ao se lambuzar com a cobertura. — É verdade que ela tenha
convidado Caroline. Ela agora é sua sócia em um empreendimento. E, bem,
digamos que a duquesa anda interessada em casar um de seus filhos com uma
dama rica.
— O que vive bebendo, jogando e desperdiçando o dinheiro da família?
— Esse mesmo. Um segundo filho bastante problemático, do qual ela tem
intenções de se livrar. Casando-o com uma dama rica e arruinada, ele passará
a gastar o dinheiro de outra pessoa.
— Céus, esse é um plano horrível. — Agatha fez uma careta de desgosto.
— Sei que Lady Eckley tem uma reputação ruim na sociedade, mas ela tem
se mostrado uma boa pessoa. Não merece esse destino.
— Certamente que não. Podemos tentar ajudá-la, se for de seu gosto.
— Você estaria disposta?
— Por que não? — A duquesa se levantou e se sentou no chão com os
gêmeos, que brigavam por algum brinquedo. Ela sempre cuidava das
crianças, mesmo que Aiden, o duque, insistisse em manter um exército de
babás. Elizabeth se acostumou a lidar ela mesma com seus filhos, desde que o
primeiro nasceu. — O que ela teve com Aiden ficou no passado. Você
mesmo disse que ela mudou. Eu vislumbrei essa mudança. Temos que
acreditar que pessoas aprendem com seus erros e se arrependem dos seus
pecados, ou minhas confissões na igreja toda semana serão totalmente
inúteis.
— Tem razão. Podemos avisá-la do plano diabólico da duquesa.
— Algo me diz que não precisaremos. Mas vamos ficar de olho.

O CLUBE de Riderhood era o ponto de encontro dos homens endinheirados de


Londres, mesmo nos dias de grandes eventos. Como os bailes começavam
sempre por volta das dez, os nobres iam se encontrar com os burgueses
industriários, negociantes e banqueiros antes do horário marcado. E todos
comentavam que a Duquesa de Norfolk estava muito diferente naquele ano,
pois convidara uma boa cepa de famílias não nobres, o que nunca acontecia
em seus tradicionais bailes de encerramento de temporada.
Norfolk era um título antigo. Isso fazia com que fosse respeitado por
todos. O duque também era um homem rico, mas, como parte da nobreza
tradicional, resistia a se envolver com negócios. Para ele, trabalhar era uma
vergonha, um demérito que o rebaixava ao nível dos plebeus. Por esse motivo
e por ter dois filhos perdulários, a riqueza de Norfolk estava minguando.
Lentamente, mas alguns temiam que ela não durasse por muito tempo depois
que um novo duque assumisse.
Naquela noite, estavam reunidos ali o Duque de Shaftesbury, o Conde de
Cornwall e seus irmãos, o Visconde de Whitby, o Barão de Attwood, o
industriário Grant Sawbridge e o empresário Virgil Oglethorpe, todos ao
redor de uma garrafa de conhaque sobre uma mesa. Sentados em cadeiras
confortáveis, os homens fumavam charutos e bebiam, conversando sobre
trabalho e propriedades.
Isaac estava alheio ao que acontecia. Em Londres há dois dias, já queria
ter retornado para Greenwood Park há pelo menos três. Tinha preocupações
com o silo, que já deveria estar no final dos reparos, e com a reconfiguração
do curral. O responsável pela propriedade já o contatara por telegrama para
informar que tudo estava sob controle, o que não diminuiu sua preocupação.
Boa parte do desejo de retornar estava na vontade de rever Caroline. Ah,
ela deveria estar muito irritada com ele. Por não ter voltado ainda e por não
ter escrito, como prometera. Ele sabia que deveria ter escrito um telegrama.
Uma carta, um bilhete, qualquer coisa. Mas, sempre que se sentava com um
papel e uma caneta, tudo que saía era romântico demais, tolo demais,
apaixonado demais.
Céus, ele não queria estar apaixonado por Caroline Eckley. Ela deixara
bem claro que não estava interessada em se casar com ele. Quantas vezes um
homem conseguiria ser recusado por uma dama e manter a sua honra intacta?
E, no entanto, sempre que pensava nela ou escrevia para ela, algo meloso e
tolo saía. Claro que ela riria dele, o acharia um grande tolo. Sentado ali com
os homens dela, Isaac não podia se sentir menos atraente em comparação a
eles.
— Desde que meus irmãos descobriram que meu administrador em
Tyntesfield está me roubando, procuro um substituto. Não encontrei ninguém
à altura do cargo, vocês não me indicam alguém?
Edward perguntou para o grupo e atraiu a atenção de Isaac. Ele segurava
um charuto quase intocado, mas tinha interesse nos desdobramentos do caso
de Cornwall.
— Já disse, você tem irmãos o suficiente para usá-los. — Aiden
Trowsdale respondeu. — Coloque Nathaniel para administrar a propriedade,
ele já provou seu valor.
— Não sou administrador, milorde.
— Aprenda a ser. Hoje em dia está difícil encontrar homens de confiança
para cuidar de nossos negócios. Se eu tivesse irmãos, eu os seduziria com
muito dinheiro para que fizessem tudo para mim. Edward, não me diga que
você está sendo avarento com seus irmãos?
— Eu nunca sou avarento. Nathaniel sabe que, se ele quiser, qualquer
cargo nas propriedades será dele, assim como Isaac administra Greenwood
Park.
— Se Nate recusar, avise-me. Vou conversar com uns conhecidos. —
Sawbridge interferiu. — Já demitiu o homem em Tyntesfield, Edward?
— Ainda não. Eu iria para lá imediatamente, mas Agatha decidiu que
quer ir ao baile de Norfolk, então aguardarei até amanhã.
— Todos aqui foram convidados? — Miles Westphallen, o visconde,
perguntou.
— Sim. Norfolk convidou mais gente do que de costume. Dizem por aí
que a duquesa convidou muitos plebeus e que até mesmo Lady Eckley foi
confirmada.
O assunto subitamente se tornou muito interessante para Isaac. Ele se
ajeitou na cadeira e bebeu um gole de conhaque. Depositou o charuto em um
cinzeiro e encarou o barão, que acabara de falar as palavras mágicas para
atrair sua atenção.
— Mas Caroline sempre vai a todos os eventos. — Aiden provocou. — E
ela nem precisa de convite.
— Dessa vez ela foi realmente convidada. A duquesa deve estar
desesperada para casar aquele paspalho do Gregory Olsen.
— Milorde acha que ela pretende que Olsen se case com Caroline
Eckley?
A voz de Isaac saiu vacilante. Se homens do passado de Caroline não o
incomodavam, os do futuro eram uma ameaça. Se ela fosse se casar com
alguém, teria que ser com ele. O filho de Norfolk era um jogador que
desperdiçava todo o dinheiro da família. Ele nunca seria um marido digno
para Caroline.
— É o que dizem as fofocas. Descobriremos em poucas horas.
O assunto mudou para a situação financeira dos Olsen. Isaac levantou e se
serviu de mais conhaque, que bebeu em apenas um gole. Em um minuto
descobriu que enfrentaria Caroline no baile, em ambiente desfavorável, e que
ela tinha um pretendente. Para agravar a situação, era um homem cuja família
desejava o enlace. Seu desconforto foi notado pelos irmãos e até mesmo pelo
duque.
— O que está havendo com o segundo McFadden? — Aiden perguntou
em voz baixa, criando uma conversa paralela à principal. — Está agindo
como se tivesse engolido uma estaca de madeira.
— Creio que descobrir que Lady Eckley foi atraída para um plano de
casamento o afetou.
Nathaniel despejou a informação sem nenhum cuidado. Nem mesmo
considerou que Isaac não quisesse contar sobre seu caso com Caroline. Mas o
irmão era sempre muito distraído. Era quase impossível manter em segredo
algo que Nate soubesse.
— Por que diabos o casamento de Caroline afetaria… — O duque fez
uma pausa e ergueu as sobrancelhas pela realização dos motivos da irritação
de Isaac. — Oh, é sério isso?
— Isso o que, Aiden? — Edward rosnou.
— Caramba, Ed, você deixou seu irmão se envolver com o demônio?
— Ela não é o demônio. — Isaac virou-se bruscamente para o duque. A
conversa principal cessou e todos olharam para ele, que segurava o copo de
vidro com muita força. Sua mão livre estava fechada em um punho. — Os
senhores deveriam ter mais respeito por uma dama. Sei que veem Caroline
apenas como uma mulher promíscua. Afinal, ela não se importou em guardar
a virtude para o marido como todas as damas respeitáveis fazem, não é
mesmo? Mas nenhum dos senhores a conhece realmente. Ela é uma mulher
inteligente, gentil e bondosa. E mudou muito desde que saiu do sanatório.
Seria interessante se conseguissem vê-la além de um corpo feminino na cama
dos senhores.
Ele não pretendia dizer tudo aquilo, mas estava guardado por tempo
suficiente para explodir. Isaac não sabia em que momento daqueles últimos
dias sentira tanta vontade de defender Caroline, mas ele precisava colocar
aqueles homens no lugar deles. Curiosamente, nem ele conhecia a lady tão
bem. Só que ele se propusera a ouvi-la, a passar tempo com ela, a entrar na
vida dela. Os outros queriam apenas usá-la para satisfazer desejos carnais.
Ele queria mais.
E não importava que tivessem passado mais tempo separados do que
juntos. Cada minuto com Caroline pareceu ter durado uma hora, e cada dia,
uma semana.
Fez-se silêncio entre os homens. Todos se entreolharam por alguns
segundos, até que Isaac pediu licença e se afastou. Foi até o bar, de onde
Riderhood observa seus clientes mais notórios, e sentou-se ao balcão.
— Sirva dois uísques, Thomas.
O Conde de Cornwall sentou-se ao lado do irmão. Isaac pensou em se
retirar, mas ele respeitava Edward demais para fazer aquilo. Aceitou a bebida
colocada à sua frente e percebeu que estava já cheirando a malte. Mais uma
dose além daquela e estaria levemente embriagado.
— Poupe seus esforços, meu irmão. Se vai falar algo que desabone
Caroline para mim…
— Não estou aqui para isso. — Edward o interrompeu. — Mas eu
gostaria que você pensasse em algo. O que você acredita que sente por
Caroline não pode ser reflexo do desejo sexual? Ela foi sua primeira mulher,
não foi?
— Isso não importa.
— Claro que importa. Sei que pensa estar apaixonado, porém tudo que
vocês têm é sexual.
Isaac fechou os olhos. Era previsível que as pessoas pensassem que tudo
relacionado à Caroline fosse sexual. Era como eles a viam.
— Quando você se casou, Edward, você amava Agatha?
— Não misture as coisas.
— Não estou misturando. Responda. Você a amava?
Isaac virou-se para o irmão e o fitou com o azul transparente dos seus
olhos. Edward estava rígido. Os homens fingiam que não estava prestando
atenção neles, mas o lorde sabia que Aiden estava louco de vontade de se
meter na conversa.
— Não. Meus sentimentos por ela cresceram com o tempo.
— A maior parte dos homens que conheço não amam suas esposas. E
aqueles que amam não se casaram tão apaixonados, assim. Infelizmente, para
que eu possa conhecer Caroline melhor, eu preciso me casar com ela. De
qualquer outra forma eu a estarei desonrando. E não farei isso.
— Isaac, eu quero apenas protegê-lo. — Edward insistiu. — Todos nós
aqui conhecemos Caroline. Ela é mais velha do que você, mais experiente e
provavelmente está esperando outra coisa de um relacionamento entre vocês.
Casamento não está na pauta.
— Você tem razão, ela não quer se casar. Mas eu não quero que me
proteja, Ed. Eu sou um homem adulto. Quero que seja meu irmão e me apoie
nas decisões que eu tomar, mesmo que eu vá tropeçar e cair.
O conde colocou as mãos nos ombros do irmão. Passou a mão direita
pelos cabelos dele e o puxou para um abraço. Isaac estava trêmulo, nervoso.
— Quer que eu fale com o marquês sobre isso? Anthony com certeza
deve estar louco para dar a mão da prima em casamento.
— Eu já falei com ele. Quem eu preciso convencer agora é Caroline.
Edward deu uma risada.
— Claro que sim. Se você deseja isso, Isaac, eu me colocarei do seu lado
e te apoiarei.
— É tudo que eu preciso, nesse momento.
— Certo, agora se recomponha. Estamos quase atrasados e Agatha ficará
furiosa se não chegarmos cedo ao baile. Será seu primeiro evento social
depois do nascimento de Eloise e ela ainda está muito preocupada com a
repercussão da sua desonra entre a alta sociedade.
A esposa de Edward fora violentada quando viajou para as Américas. O
caso teve que ser exposto publicamente depois que o conde matou o violador,
Colton Bristol. Agatha fora sequestrada por ele, que pretendia obrigá-la a um
casamento com seu irmão mais novo, mas o cativeiro foi descoberto pelo
conde e pelo Duque de Shaftesbury. Para evitar que seu marido sofresse com
persecuções criminais, Agatha decidiu contar a verdade e, desde então, não
fora mais a nenhum grande evento para se preservar.
— Caroline estará no baile. — Isaac riu. — Ninguém vai ter outro
assunto para falar.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

Q UANDO ERA PEQUENA , C AROLINE LEMBRAVA - SE DO MARQUÊS ENTRANDO EM


seu quarto para lhe contar histórias. Ele dizia que sonhava em ter uma
menininha, mas Deus só lhe concedera varões. E que ela era o pequeno
milagre de sua vida. Aquilo a deixava orgulhosa de si mesma. Ser o milagre
de alguém. E ela apreciava cada história de princesa, cavaleiros e dragões
sanguinários que o marquês contava.
Ao se olhar no espelho, naquela noite, ela se sentiu uma princesa saída
diretamente das histórias de sua infância. Era a primeira vez que ela usava um
de seus modelos de seda vermelha. Aquele tinha uma cauda comprida e era
pouco armado. Anquinhas estavam fora de moda há uma década, o excesso
de anáguas também. Sem mangas e com um decote ousado, o vestido era
escandaloso como ela. E lindamente elaborado com ornamentos de flores e
detalhes em cetim preto.
Apesar de preferir os cabelos soltos, Caroline deixou que Violet os
prendesse no alto da cabeça com enfeites de diamantes. O pente que firmava
o coque no lugar era a única recordação que tinha de sua mãe.
— Você está fabulosa.
Anthony disse, ao recebê-la no saguão. Estavam hospedados em um dos
hotéis da rede de Oglethorpe, em uma suíte no último andar. As mulheres
estavam se arrumando enquanto o marquês se divertia no bar do hotel.
Geralmente, Caroline era a primeira a terminar de se produzir para qualquer
evento. Naquele dia, ela se atrasou.
— Esteja preparado para defender minha honra algumas vezes. Prevejo
caos e confusão.
— Estou acostumado. — O marquês ofereceu o braço para conduzi-la até
a carruagem, onde a marquesa já esperava. — Mas hoje espero que outra
pessoa tome meu lugar.
— E eu espero que ele tenha boas desculpas para ter me deixado sem
notícias.
— Talvez ter rejeitado o pedido de casamento dele seja uma justificativa
razoável?
— Não é. — Caroline riu. — Preciso que ele tenha mais força de vontade.
A família Eckley ocupou três assentos da carruagem de aluguel e seguiu
na direção de Olsen Terrace. A residência londrina do Duque de Norfolk
ficava no Hyde Park, uma das regiões mais exclusivas da cidade, e era uma
mansão histórica imponente. A fachada de mármore, com colunas frontais,
relembrava a arquitetura de palácios. E estava toda iluminada para o baile,
com música tocando que podia ser ouvida do lado de fora.
A carruagem parou em frente à mansão e o cocheiro abriu a porta para
que o marquês descesse e ajudasse as damas. Várias carruagens estavam
estacionadas ou chegando para a festa. Eles pegaram muito trânsito e
chegaram com meia hora de atraso. Os olhos de Caroline vagaram pelos
veículos, procurando o brasão dos McFaddens, sem encontrar. Aceitou
novamente o braço oferecido pelo primo e caminhou pela passarela de pedra
até a entrada principal.
Um criado elegantemente vestido recebeu-os. Pegou o chapéu de
Anthony e os indicou o hall de entrada. Vários casais de nobres aguardavam
para serem anunciados e poderem entrar no salão de baile. Anthony passou
por eles com um sorriso. Ele adorava ser um marquês apenas para poder
invocar sua precedência sobre ex-colegas de escola. Aqueles que eram os
valentões, que maltratavam os mais fracos e que se achavam mais
importantes do que outras pessoas apenas por ostentarem um título de
nobreza futuro. E, tirando os duques e duquesas que estavam ali, nenhum
marquesado era mais antigo que o de Granville.
— O Marquês e a Marquesa de Granville. Lady Caroline Eckley.
Outro criado, ainda mais elegante, os anunciou. Bastou a menção do seu
nome para que o salão praticamente emudecesse. Não fossem os violinos
tocando, o silêncio seria absoluto. Não houve viva alma à vista que não se
virasse para vê-los entrar. Caroline segurou a barra de seu vestido para
caminhar com mais tranquilidade e sorriu.
Desde que saíra do sanatório, aquele era o primeiro evento que atendia.
Não recebera nenhum convite e não se interessara em invadir a festa de
ninguém. Ela não fora vista na sociedade e as especulações sobre sua saúde
mental eram muitas. Caroline frequentava clubes de cavalheiros, tavernas e
lugares inadequados para qualquer dama de sangue azul. Mas os bailes e
saraus foram riscados de sua lista. Até aquela noite.
Rosamund viu um grupo de damas que gostaria de cumprimentar. Soltou-
se do braço do marido, que a beijou sobre a luva e a deixou ir. Caroline só
percebeu que ela a estava chamando quando a marquesa a segurou pela mão.
— Vamos, Caroline. — Rose disse, sorrindo. — Vamos começar a
socializar com as fofoqueiras.
O marquês também a beijou sobre a luva e se afastou. Ele preferia,
certamente, ir atrás dos homens que estavam na outra sala, jogando e
fumando. Não era solteiro, não precisava dançar com ninguém, não tinha que
seduzir nenhuma dama casadoira. Vendo o primo se afastar, Caroline foi
arrastada para a conversa com o grupo de damas escolhido por Rose. Eram
três conhecidas, a Condessa de Surrige e a Baronesa de Attwood, além da
Sra. Oglethorpe. E algumas desconhecidas que olhavam para Caroline como
se ela tivesse uma doença contagiosa.
Ela correu o olhar pelo salão. Estava bastante cheio. Havia uma mesa
retangular com comida disposta e tigelas de ponche. Algumas jovens
circulavam acompanhadas e em grupo, analisando os homens que estavam
por ali. Todas com cabelos perfeitamente empoados, enrolados e presos,
vestidos de cores sóbrias e discretos, e colunas eretas. Tudo que Caroline
nunca foi nem nunca quis ser.
Os homens ao redor eram os solteiros, em sua maioria, que buscavam as
melhores pretendentes ainda no final da temporada social. Isaac não estava à
vista, nem seu irmão Nathaniel. Era provável que estivessem com o conde,
junto dos homens casados. Teria ela que invadir a sala masculina para tirar
satisfações com aquele miserável?
— Então, Lady Eckley, ficamos todos muito felizes em saber de sua
recuperação. — A condessa disse, fazendo com que ela prestasse atenção na
conversa. Até então, não ouvira uma palavra. Esperava que as damas não
tivessem conversado sobre a previsão do clima, pois ela adoraria saber se iria
chover. — A sua doença chocou todos nós.
— Não estive doente, milady. — Caroline sorriu. — Eu tentei matar
Madeline Westphallen e as pessoas acharam que eu tive uma crise de nervos.
Não foi uma coisa, nem outra.
— Não teve uma crise? — A baronesa perguntou.
— Nem tentei matar Lady Madeline. Eu só queria assustá-la.
— Soube que ela está sendo cortejada pelo herdeiro de Norfolk, Lorde
Berwick. O visconde está muito satisfeito.
— A família está desesperada para se livrar dos filhos. — Annabelle
Oglethorpe disse, escondendo-se atrás de um copo de ponche. — Fiquei
sabendo que os dois têm muitos vícios e os pais querem casá-los de qualquer
forma.
— Coitada de Lady Madeline. — Caroline suspirou. — Se eu pudesse
falar com ela, orientá-la-ia para passar um tempo em Paris e livrar-se desse
lorde. Mas ela foge toda vez que ouve falar meu nome.
Rosamund riu e escondeu a risada fingindo que tossia. As damas
desconhecidas, cujos nomes Caroline não ouviu, a olharam estarrecidas.
— Mas ela está muito feliz com a possibilidade de casar-se com o
herdeiro de um ducado. — A baronesa explicou. — É o desejo dela ter
precedência sobre o restante da família.
Daquela vez, todas as damas riram. Caroline não entendia os motivos que
levavam aquelas mulheres a acharem divertido casar-se com homens
detestáveis como era Berwick. Se estivessem elas falando de cavalheiros de
verdade, aqueles educados e trabalhadores, que se preocupavam em satisfazê-
las e multiplicar suas riquezas, Caroline entenderia o apelo do casamento. Ela
já desejara muito se casar. Mas não o faria enquanto o mercado oferecesse
produtos tão ruins em condições tão precárias.
A marquesa insistiu em fazer Caroline circular. Despediu-se das damas e
foi para outro grupo, onde o assunto era um escândalo qualquer. Alguma
jovem tola foi pega aos beijos com algum oportunista que estava interessado
no dote dela. Em outro grupo, o escândalo era sobre o amante de Lorde
Folston, o Marquês de Beresford. Havia uma fofoca diferente em cada
conjunto de bocas naquele salão, nenhuma delas parecia importar-se com
Caroline.
Logo ela viu duas faces conhecidas com quem gostaria de socializar. A
Duquesa de Shaftesbury e a Condessa de Cornwall. Elizabeth usava um
vestido amarelo de seda, coberto por tule bordado em dourado. Tudo
combinava com os cabelos dela, fazendo com que parecesse ser feita de ouro.
Já Agatha estava mais discreta, como era de costume. Usava um vestido azul
de seda bordada, com detalhes em cetim e renda. Curiosamente, elas
pareceram animadas ao ver Caroline se aproximar com a marquesa.
— Milady. — Elizabeth cumprimentou Rosamund com uma reverência.
— Lady Eckley. Que bom vê-las em Londres.
— Vossa Alteza. — A marquesa também fez uma reverência. — Ainda
não pude parabenizá-la pelo nascimento dos gêmeos. Lady Agatha, que
prazer revê-la.
— Já se inteiraram de todas as novas fofocas da cidade? — Agatha
implicou. — É minha primeira festa depois do nascimento de minha filha e já
aconteceram tantas novidades que levarei o verão inteiro sendo informada
sobre elas.
— Estou sabendo mais do que gostaria. — Caroline pegou uma taça de
champanhe de um criado, que circulava com uma bandeja. — Mais ansiosa
por nosso evento na Granville House, em breve.
— Também estou. Recebi várias confirmações, creio que teremos muitas
famílias interessadas em nossa escola.
Dois homens se aproximaram delas, em companhia da anfitriã. Eram os
filhos mais velhos da Duquesa de Norfolk, Lorde Berwick e Gregory Olsen.
Caroline sentiu um arrepio lhe percorrer a coluna. Os dois homens eram
desagradáveis, apesar de bonitos e muito bem vestidos.
— Miladies. — A duquesa as cumprimentou. — É um prazer recebê-las.
Gostaria de apresentar-lhes meus dois filhos.
Todas já os conheciam, mas era adequado que fossem formalmente
apresentadas por uma dama em comum. Os lordes cumprimentaram as
mulheres com as formalidades exigidas para o momento.
— Fazia algum tempo que desejava conhecê-la, milady. — Gregory
Olsen disse, diretamente para Caroline. — Há algum espaço para uma dança
em sua caderneta?
— Não tenho uma caderneta. — Ela riu. — Mas não há ninguém
dançando, milorde.
— Se não se importar, gostaria de ter a primeira dança da noite. — Lorde
Gregory ofereceu-lhe o braço. — A senhorita me daria a honra?
Caroline olhou ao redor. As expressões de Elizabeth e Agatha sugeriam
que ela deveria tomar cuidado. Ela sabia. Homens não a cercavam e
demonstravam interesse em conhecê-la apenas por saber de sua honra e boa
educação. A maioria deles tinha intenções indecorosas. Mesmo assim,
aceitou a dança. Ela esperava ser vista por alguém em específico. E esperava
que ele morresse de ciúmes.
E STAVA DIFÍCIL NÃO PARECER ANSIOSO . Isaac estava no salão masculino
quando o Marquês de Granville chegou, com sua imponência morena
atraindo atenção até mesmo dos homens que já estavam acostumados a ele.
Se Anthony Eckley estava ali, era porque Caroline chegara. O lorde desejou
correr na direção dela, mesmo que não soubesse qual era. Desejou perguntar
ao marquês ou sair em perseguição pelo salão. Mas aquilo seria fazer papel
de tolo, de homem desesperado. Ele não atrairia o interesse de Caroline sendo
tão fraco.
Terminou de jogar a mão de cartas que tinha. Estava perdendo, distraído
desde que chegara ao baile, e não faria questão de perder novamente. Depois
que Nathaniel começou a recolher as moedas que foram apostadas, ele se
levantou com a desculpa de ir ao reservado. Não precisou de muito esforço
para encontrar Caroline. Bastou sair do salão onde se reuniam os homens
para que seus olhos fossem atraídos para ela.
Linda, uma divindade pagã, de vermelho e preto. Séculos atrás, Caroline
teria uma religião apenas para adorá-la. Com os cabelos escuros presos em
um coque elaborado, com cachos pendendo do alto da cabeça, ela rodopiava
pelo salão de baile ao som de uma valsa. Nos braços de Lorde Gregory
Olsen.
Ele teve vontade de ir até o meio do salão e arrancá-la daquele patife. Se
não soubesse das intenções da família Olsen, talvez não se importasse tanto.
Afinal, era uma dança, em público, nada que todas as damas presentes não
fizessem em todas as festas que frequentavam. Dançar com os filhos da
anfitriã era sempre muito honrado. Mas Isaac sabia que Gregory Olsen estava
apenas interessado na fortuna e no dote considerável de Caroline.
Apesar dos ciúmes que o devoravam de dentro para fora, Isaac
permaneceu ali. Aceitou uma taça de champanhe de um criado, sorriu para
algumas damas que o cumprimentaram à distância e esperou. A valsa durou o
equivalente a um dia inteiro. Quando finalmente a música terminou, Lorde
Gregory conduziu Caroline para fora do círculo de dança e ela estava
sorrindo, conversando alguma coisa com ele. Ao ver Isaac, o sorriso se
estreitou e os olhos dela o desafiaram.
— Milady. — Isaac interpelou o casal que já estava parado próximo a
alguns vasos de decoração. — É bom vê-la depois de tanto tempo.
O olhar de Caroline estava mais gelado do que o inverno londrino. Ela
demorou algum tempo para responder, dando a Lorde Gregory a
oportunidade de se intrometer.
— Lorde Isaac, achei que não estava em Londres.
O homem estendeu a mão para Isaac, que o cumprimentou. Seus olhos,
no entanto, continuavam em Caroline. Esperando que ela dissesse ou fizesse
algo.
— Milorde, foi um prazer dançar com o senhor. — Ela agradeceu a
Gregory Olsen e soltou-se do braço dele. — Se me dá licença, aceitarei o
convite de Lorde Isaac para a próxima valsa.
Ela ofereceu sua mão enluvada para que Isaac segurasse. Era uma luva de
seda que ia até os cotovelos, fechada por dezenas de botões perolados. Ele se
recordou de quando a beijou na escuridão da praia, no festival da vila, e
arrancou cada botãozinho daquele com um puxão desastrado. Os casais
começavam a se formar no centro do salão para a próxima dança e Isaac a
conduziu até lá. Tentou encontrar um lugar onde pudessem conversar sem
chamar atenção de todos, mas Caroline, por si só, não comportava discrição.
Os músicos iniciaram uma valsa de Strauss. Os olhos de Caroline se
acenderam.
— Eu adoro Strauss. — Ela piscou. Os cílios muito longos quase tocando
as bochechas. — Quando estive na Alemanha, dançava valsa toda noite.
— Por quais países já viajou?
— Ah, apenas os que todo mundo conhece, França e Alemanha. Gostaria
muito de ir às Índias, mas meu primo nunca me levou.
Isaac segurou Caroline em seus braços e não percebeu que estavam
próximos demais. A valsa era uma dança indecente, os moralistas que
sobreviviam ao tempo ainda a detestavam. Parecia perfeita para Lady Eckley
e seu vestido vermelho como o pecado. No instante em que começaram a se
mover ao som da música, nada mais pareceu importar. Os olhos dele estavam
novamente cravados nela e seu coração batia em um ritmo acelerado demais.
— Eu mataria para segurá-la assim novamente. — Ele sussurrou. O medo
de ser meloso e tolo desapareceu assim que Isaac colocou os olhos na dama
de vermelho. — Senti sua falta, Caroline.
— Se tivesse sentido, teria escrito algumas linhas para me contar. Você
me prometeu notícias que nunca chegaram, Isaac. Descobri que estava em
Londres por acaso.
— Desculpe-me. — Ele girou com ela pelo salão. Isaac não sabia se era
um dançarino muito bom, mas nenhuma dama reclamou, antes. — Eu quis
escrever, mas…
— Não se desculpe. Você não tem nenhuma dívida comigo. O que eu
deveria esperar dos homens? O seu tipo não costuma cumprir promessas
feitas a uma dama.
— As comparações são injustas. Sei que cometi um erro, porém não
pretendia descumprir uma promessa.
— Mas descumpriu. — Ela virou o olhar. Estava magoada com ele e
Isaac não sabia o que sentir. Ao mesmo tempo em que precisava consertar
aquele erro, estava satisfeito porque aquela mágoa demonstrava uma emoção
que ela pretendia esconder. Caroline só se importava com a falha cometida
por ele porque se importava com ele, no final.
— Sabe por que não te escrevi?
— Porque se ocupou demais com os assuntos de Tyntesfield e não teve
tempo. Porque os assuntos masculinos são muito importantes e você acabou
envolvido demais neles. Não é isso?
Ela voltou a olhar para ele. Isaac maldisse aquele salão cheio, aquela
valsa maravilhosamente tocada e aqueles casais que giravam junto deles ao
som de violinos. Ele queria beijá-la e não podia.
— Eu pensei em você a cada hora do dia, Caroline. — Isaac segurou-a
pela cintura e puxou-a para mais perto. Estavam tão próximos que era quase
escandaloso. — E escrevi algumas cartas que nunca enviaria. Todas elas
eram tolas. Eu só conseguia dizer que sentia sua falta. Não fui capaz de
formular nada razoável para te contar. Só queria falar de sentimentos.
— E se eu quisesse saber dos seus sentimentos?
— Você não quis casar-se comigo. Supus que essa discussão fosse
entediá-la.
— Isaac, não querer me casar com você não quer dizer que eu não goste
de você.
A conversa silenciou. Tudo que eles ouviam era o som dos instrumentos e
das vozes ao redor. Dançar com Caroline era prazeroso o suficiente para ele
desejar apreciar cada segundo da música, mesmo que ela estivesse aborrecida
com ele.
Quando a música terminou, os casais dispersaram. Isaac conduziu
Caroline para fora do círculo central do salão, desejando levá-la para um
passeio nos jardins. Ele não era frequentador da Olsen Terrace, mas conhecia
alguns caminhos interessantes cuja iluminação era precária. Mas, para sua
insatisfação, outros cavalheiros pleitearam uma dança com ela. Que aceitou.
Cada um deles, mesmo que ela sequer tivesse uma caderneta de danças.
E LA NÃO ESTAVA interessada em ir ao baile, depois pretendia pisar sobre
algumas cabeças quando chegasse. No fundo, tudo que Caroline desejava era
ser respeitada. Naquele momento, ela fazia o possível para irritar Isaac. Os
sentimentos se misturavam dentro dela e tornavam sua alma um mar revolto.
Aqueles cavalheiros que insistiam em dançar com ela serviam de instrumento
para provocar o homem que despertava sentimentos indesejados.
Não, não eram indesejados. Caroline nunca se importou em se apaixonar.
Sempre preferiu ter relações sexuais com homens por quem se envolvesse
romanticamente. Mas Isaac não era um homem qualquer - ele insistia nisso e
tinha razão. Apaixonar-se por ele era um caminho muito mais complicado do
que apaixonar-se por qualquer pateta que babava sobre ela como um cão com
um osso.
De qualquer forma, ela queria puni-lo. Fazê-lo sofrer por tê-la prometido
algo que não pretendia cumprir, por provocar nela desejos e vontades que ela
já abandonara antes, por ousar ser quase perfeito em um mundo de
imperfeições. E, por isso, Caroline valsou com cada cavalheiro que lhe pediu
uma dança. Ficou com os pés doloridos de tanto girar para lá e para cá, mas
divertiu-se ao ver Isaac de pé, esperando, parado.
Ele não se moveu por quase uma hora inteira. Bebeu algumas taças de
champanhe. Ela sequer conseguia prestar atenção na conversa tediosa dos
seus parceiros de dança. Queria saber se ele a provocaria também. Se ele
tiraria alguma dama para uma valsa. Mas ele apenas esperou. E isso a irritou
ainda mais. Porque ele estava fazendo exatamente o que ele deveria fazer
para conseguir o seu perdão.
Ou o seu coração.
— Se não tiver mais nenhum pretendente por agora, poderíamos dançar
novamente? — Ele perguntou assim que ela retornou da oitava valsa, outra
vez com Lorde Gregory Olsen. Isaac pareceu duas vezes mais furioso por vê-
la aceitar uma segunda dança com ele.
— Meus pés doem. — Caroline reclamou. — Prefiro sentar-me em algum
lugar.
— Posso levá-la à varanda. — Lorde Gregory prontificou-se
imediatamente. — De lá podemos ter uma bela vista do Hyde Park e há
bancos confortáveis para descansar, milady.
— Adoraria conhecer essa vista.
Caroline seguiu com Gregory Olsen para o outro lado do salão. Passaram
por uma porta e chegaram a uma parte externa da casa. Era uma área grande,
cercada por uma balaustrada decorada e pouco iluminada. Como estavam no
segundo andar, havia uma escada para os jardins e vários móveis de exterior,
que sugeriam ser aquela uma parte bastante frequentada da casa. Durante o
dia, provavelmente.
Por mais que desejasse provocar Isaac, aquele passeio pela varanda
parecia intencional demais. Caroline nunca fora aceita naqueles círculos.
Nunca recebera tanta atenção de nobres cavalheiros. E nunca fora convidada
para ir ao exterior de uma festa por nenhum deles. Se ela fosse mais tola,
talvez pudesse ser enganada por aquele lorde elegante. Mas ela jamais seria
pega em um escândalo. Até porque não havia escândalo que ela já não
houvesse superado.
Enquanto observava a vista do Hyde Park, que era realmente privilegiada,
Caroline sentiu a proximidade de Lorde Gregory. Ele estava ao lado dela,
porém perto demais. Ela se afastou um pouco. Ele levou a mão até as costas
dela.
— Foi bom respirar um pouco de ar puro. Agora, se me dá licença,
milorde, retornarei para o salão.
A mão de Gregory Olsen a impediu de prosseguir assim que se virou. O
homem colocou o braço na frente dela, fazendo com que Caroline se
mantivesse no mesmo lugar.
— Ainda é cedo. Se esperar um pouco, logo podemos ver os fogos no
parque.
— Agradeço o convite, mas prefiro entrar.
Ela sentiu o corpo dele se colocar na frente do dela. Se havia algo que
Caroline detestava era um homem tentando se impor a uma mulher. Ela
aprendeu com Anthony sobre liberdades e como toda mulher deveria ter
direito de escolha. Poder escolher um homem era, também, poder dizer não a
ele. E era difícil encontrar um que aceitasse ser recusado por uma mulher.
— Milorde, o senhor está sendo inoportuno.
— Não me diga que vai querer se fazer de difícil comigo? — Ele riu,
irritando-a ainda mais. — Milady, com sua fama, não pretende que eu
acredite que esteja assustada com meu comportamento.
— Assustada? Milorde, o senhor tem dez segundos para sair do meu
caminho. Caso contrário, afirmo que o senhor protagonizará um verdadeiro
escândalo na festa de sua mãe, quando cair ao chão gemendo de dor depois
de ser atingido por uma mulher de um metro e meio de altura.
Lorde Gregory não acreditou no que ela prometeu fazer. Caroline treinara
técnicas de defesa em Paris e era capaz de causar dor excruciante a um
homem com o dobro do seu tamanho. E ela pretendia empregar todo o seu
conhecimento para derrubar aquele canalha quando sentiu seu braço sendo
tocado por ele. Isaac estava ao lado deles, enfrentando Olsen com o olhar e
afastando-a dele.
— Se você não aprendeu a respeitar uma dama, Olsen, respeite o meu
punho. Se chegar perto de Caroline novamente, a não ser que ela peça, terá
que se entender comigo. E eu não lhe darei dez segundos.
Isaac ofereceu o braço para ela segurar, conduzindo-a para fora da
varanda sob o olhar perplexo de Lorde Gregory.
— Venha comigo.
Pessoas viram o que aconteceu. Eles não estavam sozinhos na varanda e
ela sabia que era o assunto do baile. Mesmo que, na sua frente, as fofocas
tenham sido outras, Caroline tinha certeza que falavam dela pelas costas.
Eles seguiram por uma varanda grande e pouco iluminada e saíram para
um jardim. Isaac demonstrava conhecer bem o espaço, enquanto ela nunca
estivera ali. Treliças com plantas e muitas flores compunham o cenário do
jardim, que também contava com uma fonte de pedra esculpida e diversos
bancos de mármore. Isaac sentou-se com ela em um dos bancos que ficava
mais afastado, de frente para as flores e de costas para a casa. Eles podiam ser
vistos, mas estavam discretamente posicionados.
— Não precisava se envolver. — Ela disse, quando já se sentia segura. —
Eu daria conta dele.
— O futre pretendia provocar um escândalo. Dizem que a mãe dele
precisa casá-lo com uma dama de dote exorbitante, como é o seu.
— Ah, Isaac. Quão tolo seria Lorde Gregory em pensar que poderia me
prender com escândalos?
Caroline deu uma risada baixa, tentando ser contida. A expressão
taciturna de Isaac, no entanto, sugeria que ele não estava satisfeito com o
episódio que presenciara.
— Onde vocês estão? Na casa de sua família?
— Não, Anthony decidiu ir para o hotel. A casa está fechada há algum
tempo, daria muito trabalho organizá-la para a vinda de todos. As crianças
também vieram, estão com a babá. Preferi ficar com eles, já que dei folga a
meus criados quando fui para Kent.
— Você concordaria em ir comigo para minha casa?
— Quer me levar para a McFadden Garden? — Caroline arregalou os
olhos. — Ficou louco?
— Não é lá, essa é a casa de Edward. Eu comprei um apartamento, ele
ficou pronto ontem. Está limpo e…
— Virgem. — Ela deu uma risada. Toda a irritação que sentira por Isaac
se perdia quando ao lado dele. Era quase impossível permanecer muito tempo
aborrecida com um jovem tão impetuosamente lindo como aquele.
— Sim, você pode dizer que sim. Eu confesso, não aguento mais dividi-la
com esses abutres. Principalmente Gregory Olsen, aquele patife. Se eu o
encontrar novamente acho que ganharei outro olho roxo.
— Eu adoraria conhecer seu apartamento. — Ela levou as mãos
enluvadas até a lapela dele. Deixou que os dedos passeassem pelo nó do
lenço no pescoço de Isaac, quis desfazê-lo para liberá-lo da prisão dos
tecidos. Ele era muito mais interessante sem aquele monte de camadas de
roupas. — Como vamos sair daqui sem que ninguém perceba?
— Vim para o jardim exatamente por esse motivo. Há uma saída por
aqui.
Ah, então ele era mais esperto do que demonstrava. A iluminação onde
eles estavam era precária, mas Isaac fez questão de olhar ao redor e ver se
alguém os observava. À vista, não havia ninguém. Caroline não se importou
muito. Aquele não seria seu primeiro escândalo. Definitivamente, nem o
último. Passando por entre os arbustos com seu vestido de seda e cetim,
sentindo fisgadas em seus pés pelo esforço da dança, ela seguiu o lorde pelos
caminhos que apenas ele conhecia até se depararem com um portão.
Dali via-se a rua, o Hyde Park e as carruagens dos nobres, que estavam
estacionadas. Isaac aproximou-se da carruagem dos McFaddens, com seu
brasão imponente, e conversou com o cocheiro. Caroline manteve-se discreta
nas sombras causadas por uma falha na iluminação externa.
— Anton vai nos levar, depois ele retorna para buscar os outros.
CAPÍTULO VIGÉSIMO

O APARTAMENTO DE I SAAC FICAVA EM UMA REGIÃO BEM FREQUENTADA DE


Londres. Era uma região em expansão e que vinha recebendo o investimento
considerável de Sawbridge, em sua sanha de reconstruir a cidade. Caroline
pouco entendia o que movia o amigo. Ele era um homem reservado, muito
centrado e que ganhou muito dinheiro ajudando nobres falidos. Havia boatos
que ele era filho bastardo de um nobre, mas ninguém confirmava. Nem seu
pai, nem sua mãe, admitiam qualquer coisa. Ele teve uma família estruturada,
estudou em boas escolas e decidira que transformaria a cidade em algum
lugar melhor. E Charing Cross vinha passando por significativas
remodelações desde a construção da Charing Cross Street e da Shaftesbury
Avenue.
De uma das janelas dava para ver a Trafalgar Square. A cidade dos
comuns dormia enquanto a parte nobre começava a festejar a noite. Caroline
estava a alguns minutos observando as luzes que clareavam Mayfair e o Hyde
Park, esperando Isaac dispensar o cocheiro e acender a lareira. Quando se
virou para dentro da sala, ele estava desabotoando as luvas e desfazendo o
lenço do pescoço.
Caroline achava sensual ver um homem despir-se. Ela poderia sentar-se e
esperar que ele retirasse cada peça de roupa. Ou podia incentivá-lo a fazê-lo.
A segunda opção era mais divertida. Não importava se eles estavam na sala,
se as janelas estavam abertas. Do quinto andar de um grande edifício, na
penumbra, ela duvidava que pudessem ser vistos por alguém. Com habilidade
que desenvolveu durante uma década de treinamento, ela retirou as luvas sem
desabotoá-las. Uma depois da outra.
Isaac não disse, mas pareceu entender o que ela queria. Lentamente, ele
retirou seu casaco e o pendurou em uma cadeira. Depois, abriu um a um os
botões do colete. Em incentivo, Caroline levou as mãos desnudas aos cabelos
e começou a soltar os grampos. Os cachos caíram sobre seus ombros. Ele
respirou fundo, seu peito subindo e descendo pelo movimento dos pulmões se
expandindo, e tentou se aproximar. Ela estendeu o braço e indicou que ele
deveria manter-se afastado.
— Não vou poder tocar?
Isaac começou a desabotoar os punhos da camisa branca que vestia.
— Vai. Mas não agora.
Ela esperou que ele terminasse com os botões e se livrasse do tecido.
Imediatamente, arrependeu-se de tê-lo afastado. Ela queria colocar as mãos
naquele peito definido, esculpido, enroscar os dedos nos fios dourados que
cobriam a pele. Mas decidiu esperar. Levou as mãos até o vestido e começou
a abri-lo.
Era uma regra para Caroline vestir apenas aquilo que podia despir. Violet
se irritava porque ela exigia que as modistas preparassem vestidos com
botões laterais e outros truques que permitiam que ela os tirasse sem auxílio.
Naquele momento, foi bastante útil ser capaz de abrir os botões do próprio
corpete, enquanto notava a ereção de Isaac despontar em suas calças de linho
cinza.
Sempre foi um deleite ter consciência do poder em despertar aquela
reação no corpo masculino. A forma como ele a encarava, com o desejo
latente em seus olhos, fazia com que ela se regozijasse. Depois de soltar o
corpete, Caroline terminou de desfazer alguns laços e descartou o vestido aos
seus pés. Ela usava apenas uma anágua, que também saiu em um empurrão
para baixo. Isaac se sentou na cadeira em que apoiara seu casaco e retirou as
botas. Caroline se sentou no sofá de veludo e retirou as sapatilhas de seda.
Ele levantou e abriu o fecho da calça, que desceu por suas pernas musculosas
e expôs toda a glória de sua masculinidade.
— Quanta indecência, vir até mim sem roupas íntimas.
— Eu não sou um homem decente. — Ele riu. — Não mais.
Caroline riu. Ele podia não acreditar, mas era a criatura mais honrada e
decente que ela conhecia. Ainda sentada, ela abriu as ligas e retirou as meias
uma por uma, enrolando-as enquanto descia-as pelas pernas. Os olhos de
Isaac mudaram. As partes escuras crescendo enquanto ele parecia fazer muito
esforço para não ir até ela. Com um movimento rápido, ele também se livrou
de suas meias.
Virando de costas para ele, Caroline desceu a calçola lentamente. Sua
chemise era curta, muito mais do que o modelo tradicional usado pelas damas
londrinas. Não cobria toda a extensão de suas nádegas, que ela fez questão de
expor para ele. O tecido fino também não dava muita margem à imaginação,
permitindo que um observador mais atento enxergasse os contornos de seu
corpo.
Assim que ela levou a mão aos últimos botões que a separavam da nudez
total, foi arrebatada por Isaac, que a tomou nos braços e a beijou. A
intensidade do toque quase a derrubou sobre o sofá. Depois de dez dias, o
gosto dele ainda era o mesmo. Daquela vez era champanhe e tabaco, doce e
amargo em um misto de sedução.
— Quanto tempo nós temos? — Ele perguntou. A boca desencaixando da
dela por apenas breves segundos. Os dois corpos estavam emaranhados como
se fossem um. Mãos que buscavam o toque e pele que precisava de pele.
Caroline não se lembrava de sentir aquela urgência por contato, antes.
— Quanto for preciso. Ninguém dará falta de mim, Anthony e Rosamund
provavelmente esperam que eu desapareça essa noite.
A intensidade do beijo mudou. Isaac pressionou a boca na dela, buscando
saboreá-la com a língua e com os lábios. Pegou-a nos braços, carregou-a para
o quarto e colocou-a cuidadosamente na cama. Acomodou-se ao lado dela
sem parar de beijá-la. E então ele desceu os beijos para o pescoço, o colo,
passou a língua pela pele suada e excitada dela, até capturar um mamilo
túrgido entre os dentes.
Caroline gemeu e se contorceu debaixo dele. As mãos dela acariciaram
suas costas com pouca delicadeza, cravando as unhas na carne e deixando um
rastro de sangue e dor. Isaac não protestou, não demonstrou desconforto, ao
contrário. Quando ela posicionou as mãos nos quadris dele e o tocou nas
nádegas, ele perdeu o controle.
— Preciso de você, Caroline. Preciso agora.
Ela também precisava. Os olhares se cruzaram e ele a penetrou, forte e
rude, fazendo Caroline soltar um murmúrio abafado. Foram muitos dias
afastados. Nunca foram muitos dias, com nenhum outro homem. Daquela
vez, ela queria ser arrebatada por Isaac, consumida por ele, exaurida ao ponto
de não pensar em mais nada, não sentir mais nada. Com movimentos firmes e
ritmados, ele entrava e saía sem que seus olhos a deixassem um segundo.
Consciente da urgência de seu prazer, Caroline pegou a mão de Isaac e
levou até o seu centro intumescido. Ele suportou o corpo com os joelhos no
colchão e ergueu as costas, fazendo com que as pernas dela se apoiassem nos
ombros dele. Com aquele ângulo, ele podia tocá-la e penetrá-la ainda mais
profundamente.
Ele parecia muito próximo do alívio, mas não parou de se mover e de
estimulá-la. Circulou seu clitóris com o polegar enquanto investia uma, duas,
tantas vezes quanto fosse necessário. E Caroline sentiu o calor em seu ventre,
aquela sensação da iminência do clímax. Tudo pareceu confuso demais para
ela, que se considerava tão experiente que nada deveria surpreendê-la.
— Isaac. — Ela murmurou. — Não pare agora.
Sem responder, ele continuou a se mover e a tocá-la daquela forma
erótica. Força e suavidade combinadas. Ela não estava acostumada àquilo.
Estava à deriva, entregue aos carinhos daquele lorde devasso, que deveria ser
ingênuo, inocente, mas se mostrava absurdamente hábil. A sensação mais
incrível que ela conhecia a dominou e Caroline foi atordoada pelo orgasmo.
Tão logo percebeu que ela convulsionava em seus braços, Isaac retirou-se e
derramou sua semente sobre seu ventre.
Naquele momento, Caroline entendeu o que Anthony quis lhe dizer. Ela
não queria, não pretendia, não era capaz de lidar com o sentimento. Mas
podia afirmar, sem dificuldade, que nunca experimentara um intercurso
sexual tão intenso e tão prazeroso. Foi rápido, foi simples, foi perfeito. Foi
como disse o marquês - quando se está apaixonado, o sexo é extraordinário.
Caroline não tinha como negar. Estava apaixonada por Isaac McFadden.

I SAAC LEVOU minutos para se recuperar. Deitado em sua cama, ele segurava
Caroline em seus braços e não fazia nada além de sentir a respiração dela em
sincronia com a sua. Eles estavam abraçados e emaranhados, em silêncio
enquanto seus corpos descansavam da atividade sexual. Ele desejou tomá-la e
possuí-la desde que a viu no salão, valsando com outro homem. E ali,
naquele quarto, enquanto compartilhavam momentos de intimidade, ele se
sentia poderoso. Quase invencível. Poderia fazer aquilo toda noite. Dormir ao
lado dela e acordar com Caroline em seus braços todo dia.
Ele tinha que se casar com ela. Não havia mais nada que desejasse tanto.
Mas ela tinha outros planos, e o silêncio indicava que era melhor adiar
uma conversa até o dia seguinte. Disposta a passar outra noite ao lado dele,
Caroline logo adormeceu entre os lençóis, nua, perfeita sobre a cama. Isaac
levantou-se, lavou-se, ajeitou uma colcha sobre ela, deitou-se novamente ao
seu lado e também adormeceu. Ele costumava dormir muito mais cedo que
seus pares em Londres. A exaustão de trocar os dias pelas noites cobrava
invariavelmente seu preço.
Durante a madrugada, eles despertaram algumas vezes. E fizeram amor
em todas elas. Mesmo que eles fossem apenas sombras, que a nebulosidade
do sono ainda pairasse sobre suas vistas, o desejo conduziu um até o outro.
Isaac pode tocá-la mais, senti-la mais, beijá-la mais - e se deleitar com os
gemidos de prazer que ela soltava só para ele.
Quando a luz do sol penetrou pelas janelas ainda abertas do quarto, ele
despertou ao perceber o vazio ao seu lado. Caroline não estava no quarto.
Isaac quis levantar-se e procurá-la, mas a dama logo retornou enrolada em
um roupão. Os cabelos longos e escuros estavam úmidos.
— Seu encanamento é fascinante. Nunca havia usado um chuveiro,
sempre preferi a banheira. Estou revendo meus conceitos.
Ela sorriu e pulou sobre a cama, colocando-se ao lado dele.
Definitivamente, Isaac poderia fazer aquilo todo dia.
— Os prédios recentemente construídos são muito modernos. Por isso
quis comprá-lo. Também porque eu queria um lugar para chamar de meu.
— Preciso me arrumar e voltar para o hotel. Anthony tem alta tolerância
para minha falta de decoro, mas eu não posso exagerar.
Caroline levantou-se e começou a procurar suas peças de roupa. Não
parecia razoável que ela saísse de seu apartamento vestida com o vermelho da
noite.
— Deixe que eu mande Dewitt buscar roupas adequadas para você. Sua
criada pode vir ajudá-la a se arrumar. Não vou atrasá-la muito mais e será
menos desonroso do que desfilar pelo dia com as roupas de ontem. Enquanto
esperamos, podemos conversar.
— Ah, conversar. — Caroline recostou-se na cabeceira da cama. —
Certo, pode dar seguimento ao seu plano. Diga a seu criado que procure
Violet, ela providenciará tudo que preciso.
Isaac assentiu. Saiu do quarto, chamou seu valete e pediu que Dewitt
cumprisse algumas tarefas. Entre elas, que trouxesse comida de uma padaria
muito conhecida que ficava próxima ao apartamento. Tudo levaria mais de
uma hora para ser resolvido, então ele teria aquele tempo para discutir alguns
detalhes importantes com a mulher em sua cama.
— Temos algum tempo, agora. — Ele disse, se colocando ao lado de
Caroline. — Eu sei que deixei Kent subitamente e não resolvemos algumas
pendências. E que você não quis casar-se comigo. Mas tenho outra proposta
agora, Caroline. Eu quero cortejá-la.
A expressão assombrada de Caroline poderia ser interpretada como uma
ofensa, mas Isaac duvidava que sua masculinidade pudesse sofrer mais.
— Cortejar? Depois dessa noite, depois de todas essas noites, ainda
acredita que isso é necessário?
— Claro que é. Nós temos intimidade física, mas não somos um casal aos
olhos públicos. Eu quero que sejamos. Quero cortejá-la em festas, em
passeios, em eventos, visitá-la formalmente. E, só depois, propor-lhe
casamento.
O assombro deu lugar à consternação. Isaac poderia jurar que os olhos
dela estavam úmidos. Mas demonstrar emoções não era o ponto forte de
Caroline Eckley. Ela parecia mais dura do que uma rocha. Mesmo assim,
com carinho, ela levou a mão direita até ele e tocou-o na face.
— Ah, Isaac. Você é o homem mais romântico que conheço. Eu adorarei
aparecer em público com você, além de encontros casuais às escondidas.
Preciso confessar que eles não estão me satisfazendo. Eu quero mais de você.
— Mas isso é excelente! — Ele se exultou. — Isso significa que…
— Ainda assim, eu não pretendo me casar. — Ela o interrompeu. — Não
posso me casar agora. Nós não podemos continuar com nosso arranjo
inicial? Como amantes?
— Céus, não! — Isaac levantou-se repentinamente. Passou as mãos pelos
cabelos, nervoso com a dificuldade que ela colocava ao relacionamento deles.
Para ele, era tudo muito claro, muito óbvio. Ele estava apaixonado por ela.
Era ridículo que estivesse, mas não adiantava negar e dizer que não. Mas
Caroline impunha obstáculos intransponíveis a qualquer proposta digna que
ele fizesse. — Certamente não podemos ser amantes. Eu não quero nada tão
indigno. Sem contar as implicações. Nunca poderemos ser uma família,
Caroline. Você não quer filhos? Mesmo que eu não precise providenciar
herdeiros para os McFaddens, eu gostaria de ter os meus filhos. E ainda há os
riscos, pois você pode engravidar mesmo que tomemos todas as precauções.
Ele disse tudo rápido demais. Estava nervoso com todos os obstáculos
que ela insistia em colocar ao relacionamento deles. Caroline queria o
mínimo, ele só se satisfaria com o máximo. Vendo que ele parecia fora de
controle, ela se levantou e foi até Isaac. Passou a mão pela face dele, pelos
ombros, pelo peito despido.
— Sei de todos os riscos. Mas você não entende, você jamais entenderia.
Eu quis ser uma dama como todas as outras, mas nunca fui. Quis ter um
marido como todas as outras, mas os homens só me desejaram por motivos
fúteis. Eu servia para dar-lhes prazer, nunca para ser a esposa. E então eu
passei por tudo aquilo em Thanet Bay, fui internada como louca e me
redescobri como pessoa. Como mulher. Foi preciso um choque para me
transformar, Isaac. Eu não vou abrir mão de quem eu sou, hoje, para me
casar. — Ela levou a boca até ele, beijou-o no lugar onde batia o coração. —
Eu gosto muito de você. Mais do que deveria. Mas, no fundo, você é apenas
mais um homem como todos os outros. Vai tentar me controlar e me podar
assim que nos casarmos. Não posso fazer isso. Não posso deixar que faça
isso.
— Eu jamais podaria você, Caroline. — Ele a abraçou, puxando o corpo
pequeno e trêmulo para si. — Eu me apaixonei pela mulher que você é. Por
que eu mudaria qualquer coisa em você?
— Ainda assim, não posso. — Caroline ergueu o olhar. Havia um brilho
úmido em seus olhos castanhos que indicava que ela estava emocionada. — É
difícil para um homem entender que, quando se tem tudo a perder, não se
pode ceder nada. Quero você. Mas não vou me casar.
Isaac fechou os olhos. De todas as fraquezas que ele já demonstrara na
frente dela, chorar seria a mais vergonhosa de todas. Ele não costumava
chorar, apesar de se considerar um homem sensível. Aquelas vulnerabilidades
eram femininas demais para que ele demonstrasse sem se sentir diminuído
perante seus iguais. Mas ele estava prestes a derramar algumas lágrimas pela
constatação de que não teria a mulher que desejava.
Não teria Caroline. Ela o recusou de todas as formas possíveis. Um
homem não podia ser rejeitado tantas vezes e sair ileso. Ele precisava dar um
fim àquilo, porque senão seria tarde demais.
— Não posso ter você pela metade. Não é a coisa certa a se fazer, não é
justo conosco.
— O que faremos sobre isso, então?
A pergunta dela ecoou no fundo de sua alma. O que ele faria? Ela estava
decidida, não seriam suas declarações que a fariam mudar de ideia. Caroline
não era uma dama manipulável nem influenciável. Tudo que ela foi antes,
tudo que se falou a respeito dela, não era mais. E era aquele o motivo de ele
desejá-la tanto. De querer tanto ter mais tempo com ela, passar a vida com ela
para descobri-la todo dia. Com Caroline, ele suspeitava que os dias nunca
seriam tediosos ou mornos.
Mesmo assim, ele precisava deixá-la ir. Com cuidado, Isaac afastou-a de
seu peito e beijou-a nos lábios. Foi rápido, úmido e suave.
— Preciso encontrar-me com Nathaniel e Edward. O problema de
Tyntesfield fora causado por um administrador desonesto e estamos
resolvendo isso de forma a não gerar escândalos. Logo suas roupas chegarão.
Fique o quanto quiser, Dewitt trará também comida e preparará um desjejum
para que desfrute da manhã.
— Você está indo embora. — Ela constatou.
— Por enquanto, eu estou.
A voz estrangulada foi sucedida do afastamento. Isaac não podia
continuar naquele quarto ou não sairia mais dali. Acabaria cedendo e fazendo
todas as vontades de Caroline, porque ela sim, o dominava. Porém, precisava
ser razoável. Ela não merecia que ele aceitasse aquela proposta. Assim como
ela não aceitou a sua primeira, de tirar-lhe a virgindade. Ambas eram
indecorosas, injustas, e não representavam a dimensão dos sentimentos dele
por ela.
Ele pegou uma camisa branca, seu casaco e saiu. Terminaria de se vestir
em outro cômodo e manteria uma distância razoável de Caroline enquanto
tentava descobrir uma forma de fazê-la confiar nele. Ela precisava confiar.
Isaac não estava pronto para abrir mão dela, para desistir. Mas não podia
dizer sim e permitir que continuassem como amantes.

A SSIM QUE A PORTA de madeira se fechou, Caroline sentiu seu corpo falhar.
Não conseguiu manter as pernas firmes, acabou sentada na cama com os
membros trêmulos. Outros homens já haviam deixado sua vida. Todos eles.
Nenhum de seus amantes ficou. E ela não quis que ficassem. Alguns, ela
desejou que voltassem. Outros, ela precisou expurgar como a uma doença.
Mas aquele… daquele homem ela precisava.
Não, Caroline não precisava de maridos ou amantes. Ela queria amigos.
Pessoas que se importassem com ela e que não a tentassem mudar. Estava
cansada de depender de quem a magoaria no final. Mas a voz dentro dela
gritava que estava enganada. Que Isaac nunca seria outro Robert Langdon.
Porque todos os homens, até então, eram iguais ao miserável que a deflorou e
a abandonou. Só que aquele ali era diferente. Por que era tão difícil para ela
confiar?
Ela não sabia o que fazer. Pela primeira vez, Caroline ficou sem reação.
Batidas à porta precederam à entrada de uma criada que carregava uma
bandeja com comida. Ela saiu e voltou com uma valise contendo um vestido
e os acessórios que Caroline precisava para sair com dignidade do
apartamento de Isaac.
— Milady deseja ajuda para se vestir?
A criada perguntou, vendo a dama apática à sua frente. Caroline assentiu
sem dizer nada. Estava com a sensação de quem engolira um bolo de pelos.
Sua voz sumiu, sua garganta estava áspera. Deixou-se vestir e arrumar pela
jovem moça desconhecida e se sentou à frente da bandeja, que continha um
bule de chá, biscoitos e bolinhos com cobertura.
— Milorde pediu para garantir que a senhorita comesse tudo. — A criada
disse, com um sorriso. — Ele mesmo escolheu os doces, milady. Lorde Isaac
é muito atencioso.
Sim, ele era. Caroline sabia e já experimentara bastante daquela atenção.
E ela já estava se acostumando a tê-la. Acostumando-se a saber que aquele
homem estava ali para ela. Afogada em pensamentos confusos, ela mordeu
um bolinho e descobriu que era recheado de morangos. As lágrimas vieram
sem que ela conseguisse impedir. Sozinha novamente, Caroline chorou pelas
decisões tomadas e pela perda que acabara de sofrer.
Isaac foi embora. Ele não iria voltar. Nenhum homem, nem ele, aceitaria
tantas rejeições. O mais difícil era que Caroline não pretendia rejeitá-lo. Ela o
desejava tanto, o queria tanto, mas acreditava que seria possível mantê-lo sem
a necessidade do enlace matrimonial.
E não era. A comida adquiriu um gosto amargo e desagradável. Ela
deixou tudo ali, o chá pela metade e os biscoitos intocados, e decidiu voltar
para os Eckleys. Não adiantava chorar por Isaac. Ela tinha que tomar atitudes.
Caroline sempre foi uma mulher de ação. Precisava organizar os pensamentos
e decidir. Afinal, o que ela queria?
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

A FAMÍLIA E CKLEY VOLTOU LOGO PARA R HODE P ORT , POIS O EVENTO DE


Caroline seria naquele final de semana. A maior parte das famílias já estava a
caminho do litoral e do campo, indo para suas propriedades no interior da
Inglaterra. As famílias que não eram nobres não tinham terras nos lugares
mais populares, mas muitas viajavam para os hotéis, que se multiplicaram na
última década. Thanet, a cidade de Kent onde ficavam as propriedades das
famílias Eckley, McFadden e Trowsdale, era um dos balneários mais
visitados.
Mas a iminência da festa não animou Caroline. Ela mentiu para Anthony
e Rosamund, afirmando que nada acontecera para deixá-la melancólica.
Fingiu sorrisos e forçou algumas piadas sarcásticas que eram sua
especialidade. Por dentro, ela estava arrasada e destroçada. Estava ocupada
com seus afazeres e, por dois dias, apenas desejou aquilo que não podia ter
sem conseguir pensar como fazer para obter. Sabia que precisava ir atrás de
Isaac e fazer o que ele mais gostava, conversar. Porém tinha compromissos
que exigiam sua integral atenção naquele momento.
E eles estavam ali, em propriedades vizinhas. Se ela saísse de casa, corria
o risco de encontrá-lo. Os McFaddens já estavam todos em Greenwood Park,
incluindo o Conde de Cornwall, sua esposa e filhas, e o irmão Nathaniel. Em
um ou dois dias, o jovem Emile chegaria para completar a família. Se pisasse
fora da segurança da Granville House, poderia ouvir a voz de Isaac falando
com os arrendatários, ou sentir o perfume dele pelo ar denso e úmido do
litoral.
Claro que ela não podia. Mas Caroline via Isaac por todos os lugares
desde aquela manhã. Talvez passar um final de semana cercada de damas
fosse lhe fazer algum bem, no final. Ela precisava se desintoxicar dele.
Quando o aguardado dia chegou, a criadagem estava agitada. Fazia tempo
que a Granville House não recebia tantos convidados. Todos os quartos
estavam preparados e separados para seus ocupantes. A roupa de cama foi
escolhida de acordo com a cor preferida de cada um. A localização dos
quartos obedeceu a critérios rigorosos de precedência e tamanho das famílias.
As cortinas foram trocadas para combinar com a decoração.
Anthony estava animado para receber os homens. Como o evento tinha
como foco as mulheres, ele fora encarregado de entreter pais e maridos.
Preparou atividades masculinas variadas, reativou sua sala de jogos e separou
diversas garrafas de conhaque, uísque e vinho para garantir que seus
convidados tivessem o melhor.
À medida que as carruagens chegavam, trazendo os hóspedes da estação
de trem, os criados iam recebendo e orientando cada família. O mordomo,
impecavelmente trajado, dava ordens sobre o local para onde a bagagem seria
levada e conduzia os recém-chegados ao solário, que tinha parte do teto de
vidro e estava preparado com duas mesas grandes de comida, café e chás.
Quando Caroline desceu, foi primeiro recebida por Marquesa. A cadela
andava muito sumida, desde que conhecera Lorde, o Setter malhado. Até ela
estava seduzida por um dos McFaddens. No solário, encontrou-se com as
Westphallens, pois a irmã mais nova era da idade ideal para a escola.
Também estavam lá outras dezenas de jovens, entre filhas de nobres e
burgueses. A nova realidade industrial, comercial e social da Inglaterra estava
conduzindo muitas moças a interesses que não apenas o casamento. Mesmo
que casar ainda fosse a coisa mais importante que elas pudessem fazer,
algumas preferiam exercer profissões ou, pelo menos, entendê-las melhor.
— Sejam todas bem-vindas. — Ela se apresentou. Destacava-se pelos
cabelos soltos e vestido vermelho, enquanto as damas, todas de vestidos de
dia, usavam cores sóbrias como amarelo claro, azul claro, verde claro. —
Espero que estejam sendo bem tratadas até agora.
— Muito bem, milady. Estamos agradecidas por seu convite. — Disse a
filha mais nova de um industriário.
— Estamos ansiosas para saber das atividades! — Lady Diana, a filha
mais jovem dos Westphallens, se empolgou. — É verdade que estamos
próximas da praia? E que podemos nadar em uma enseada particular?
— Claro, vamos todas fazer um passeio pela enseada. Ela fica na
propriedade dos McFaddens, em Greenwood Park, mas temos autorização
para frequentar.
— Ah, será adorável! — Lady Felipa exaltou-se. Não, damas nunca se
exaltavam, ela apenas demonstrou entusiasmo moderado. — Seria intrigante
se, acidentalmente, encontrássemos os donos da propriedade.
O restante das jovens deu risinhos. Caroline semicerrou os olhos, irritada
com o comentário luxurioso sobre os McFaddens. Sim, eles eram lindos. E
três deles eram jovens o suficiente para interessar a todas aquelas ladies. Mas
um deveria estar fora de circulação. Um era dela, e ela estava quase pronta
para clamar sua posse sobre ele.
— Creio que não os encontraremos. Na verdade, tomarei precauções para
que isso não aconteça. Não será adequado que nos misturemos com os
homens, se formos nos banhar.
Os risinhos foram substituídos por lamúrias. E surpresa. Nenhuma
daquelas damas acreditava que Caroline fosse pudica. Ela não era. Apenas
não queria Isaac sendo exibido como um pedaço de carne para as mulheres
famintas.
Enquanto conversavam e bebiam chá, mais damas foram chegando. Entre
as famílias, algumas que Caroline nem mesmo reconhecia, pois eram
convidadas de Agatha ou Rosamund. E uma delas, muito bela e nitidamente
estrangeira, chamou a sua atenção. Não tinha mais do que dezesseis anos e
estava tímida. Estava acompanhada de uma dama mais velha, também
estrangeira. Ela tinha um olhar mais atento e parecia procurar alguma coisa.
— Buongiorno. Somos Lady Francesca e Lady Angelica. Viemos a
convite da Condessa de Cornwall.
A dama mais velha disse. Todas olharam para elas, de cabelos claros e
olhos expressivamente azuis, como duas bonecas feitas à mão. Usavam
vestidos com saias farfalhantes, renda e brocado, nas cores da primavera.
Antes que Caroline conseguisse cumprimentá-las, ouviu um clique em sua
cabeça e parou no meio de uma reverência.
Ela conhecia Lady Francesca. Aquela era a noiva de Isaac. Não, a
pretendente. A mulher que ele se propusera a cortejar antes de iniciar a
cruzada para se casar com Caroline. E ela estava ali, em Rhode Port, para o
evento. Ficaria hospedada com os Eckleys, ao lado de Greenwood Park.
Aguentar as damas aguadas que estavam ali era uma coisa. Apesar de
tudo, Caroline duvidava que qualquer uma delas interessasse a ele. Isaac
gostava de desafios e sua futura esposa deveria oferecer-lhe algo além de
saber servir o chá e ser um receptáculo para sua semente. Mas Lady
Francesca… ela não era uma concorrente qualquer. Ela transpirava confiança,
esperteza e poder destrutivo. Ela era a versão loira de Caroline.
— Por favor, acomodem-se! — Rosamund surgiu por trás dela e
cumprimentou as recém-chegadas. — Estamos todas aqui conversando, não é
mesmo?
— Claro, sejam bem-vindas! Vou servir-lhes chá. — Assumiu Lady
Diana.
— Sirva para mim, também.
Dessa vez, a voz que ecoou foi de Wilhelmina McFadden. Ela entrou
sozinha no salão, sem acompanhante ou companhia dos irmãos. Caroline
sentiu o amargo do chá que acabara de colocar na boca. Tudo ali conspirava
para que ela pensasse em Isaac, lembrasse-se de Isaac e sentisse ciúmes de
Isaac.
Mas ela não tinha o direito de sentir nada. Nem de pensar tanto nele,
menos de se enciumar pela possível talvez futura noiva. Ela o recusara,
reiteradamente, durante todo o tempo que ficaram juntos. Ah, como ela
estava confusa.
— Nosso grupo está quase formado. — Foi Rose quem a tirou do transe
de seus pensamentos. — Que tal fazermos um passeio pela propriedade?
Depois do almoço, teremos a apresentação da escola e não haverá tempo para
diversão ao ar livre.
As damas concordaram e continuaram conversando sobre futilidades.
Eram todas muito jovens. Algumas acompanhadas de irmãs mais velhas ou
mães. Todas potenciais alunas que atrairiam novos olhares para a escola.
Tudo estava exatamente do jeito que Caroline desejava, mas nada a agradava.
Nenhum assunto tolo, nenhuma dama sorridente, nenhum comentário jocoso
sobre qualquer coisa. Ela estava anestesiada e não sabia o que fazer para se
livrar daquela sensação.
Quando foram conhecer Granville House, guiadas pela animada
marquesa, as mulheres entraram na biblioteca. O exemplar de A Sujeição da
Mulher estava ainda ali sobre a mesinha, fazendo-a lembrar de alguns
momentos vividos naquele lugar. Depois, passaram pelo hall de entrada e ela
deixou-se perder observando o vaso de figuras obscenas. Ninguém notava
aquele objeto, apenas ele prestou tanta atenção a ponto de criar memórias.
E assim foi durante toda a manhã. Caroline andava com as damas e suas
acompanhantes pela propriedade sem conseguir conectar-se a nada. Nem
depois da chegada da condessa ela se interessou pelo evento. Sua cabeça
doía, latejava e ela desejava beber. Ao invés de chá, uísque. Qualquer coisa
que pudesse derrubá-la e mantê-la em estado comatoso até esquecer aquele
lorde insistente.
— O que tem ali? — Lady Aline perguntou. Ela era filha do Barão de
Attwood e uma das mais agitadas do grupo.
— É a propriedade dos McFaddens, Greenwood Park. Podemos ir até lá,
Lady Wilhelmina? — Lady Felipa, a filha do Conde de Yorcestershire disse.
— Naquela direção ficam os prédios dos arrendatários. Não há nada para
ver lá, a não ser homens trabalhando e muita sujeira.
— Homens trabalhando? — A Srta. Justine se animou.
— Parece bárbaro. — Lady Angelica se assombrou.
— Muito animalesco. — Lady Felipa concordou.
— Será que eles trabalham como os homens das docas? Em mangas de
camisa e de colarinhos abertos?
As damas se entreolharam. Elas eram jovens diabinhas, interessadas em
ver homens em poucas roupas. Talvez elas nunca tivessem aquela
oportunidade outra vez. Caroline não podia negar a elas a chance de apreciar
belos espécimes masculinos - mesmo que ela soubesse que era mais fácil
encontrarem homens barrigudos e peludos como ursos ao invés de bonitos e
bem cuidados. E era possível encontrar Isaac. Eles estavam separados há dois
dias e ela sofria como se fossem dois anos. Vê-lo apenas ampliaria o
sofrimento.
— Por que não vamos até lá conferir essa barbárie?
Rosamund balançou a cabeça em negação e Caroline liderou a
caminhada. A comitiva de damas e sombrinhas estava quase chegando à
fronteira das propriedades, avistando os trabalhadores e o movimento de
pessoas quando um estrondo fez com que parassem. Algumas gritaram,
outras se encolheram, quase se atirando ao chão. Mais gritos e vozes
masculinas chamaram a atenção de Caroline. Ela viu a imagem de Nathaniel
ao longe e Wilhelmina começou a correr na direção do irmão. Agatha
também disparou.
Virando para o lado, ela notou o grande edifício do silo quase em ruínas.
Muita poeira subia, indicando que um grave acidente acabava de acontecer.
T UDO SE DEU MUITO RAPIDAMENTE . Pessoas corriam de um lado para o outro.
Nobres e plebeus, homens e mulheres. Não importava quem fossem, estavam
empenhados em fazer alguma coisa. O silo desmoronara e havia pessoas
dentro dele. Em um minuto, as futuras alunas da escola de Caroline e Agatha
estavam a caminho de uma aventura - ver homens trabalhando em mangas de
camisa, suados e escandalosamente expostos e, no instante seguinte, havia
poeira para todo lado e elas estavam apavoradas, algumas correndo também,
outras abraçadas aos prantos.
Caroline não saberia dizer como suas pernas se moveram na direção do
tumulto. Ela começou andando, então se lançou em disparada até chegar onde
estavam todos. Wilhelmina e Agatha também chegaram com ela. Foi apenas
sorte que Rosamund conseguiu manter-se ao lado das damas e ajudar a
controlar a situação.
— O que está havendo, Nate? — Wilhelmina perguntou ao irmão, que
estava com as mangas da camisa dobradas até os cotovelos e os cabelos
cheios de pó.
— Só sabemos que tudo caiu. Estávamos ajudando a reabastecer o silo
com grãos e de repente…
— Quem está aí dentro? — Foi Agatha que questionou. Havia uma nota
de desespero em sua voz. — Há alguém dentro, não há?
— Umas dez pessoas, pelo menos. Deixe-me ajudar os homens,
precisamos correr para resgatá-los.
Nathaniel começou a se afastar, mas Agatha agarrou-o pela blusa e o
obrigou a ficar.
— Nathaniel, quem está preso nos escombros?
— Alguns arrendatários. O engenheiro. Isaac. Ele não conseguiu sair.
O jovem McFadden não esperou para ver a reação das mulheres.
Apressou-se para onde estavam vários homens levantando pedras e pedaços
de madeira. O ruído de vozes e entulhos sendo removidos era ensurdecedor.
Mãos agarravam escombros e os tiravam de uma pilha para formar outra.
Tentavam desobstruir a entrada do prédio, que estava totalmente bloqueada.
Ouviam-se vozes de comando e ordens sendo proferidas.
Vindo de outra direção, os homens que estavam no evento em Rhode Port
se aproximavam. Anthony guiava vários cavalheiros, todos a cavalo, até o
epicentro da destruição. Ele desmontou e seguiu na direção de Nathaniel,
seguido por Edward, que tentava manter sua expressão de não se afetar por
nada. Enquanto o marquês não se importava em parecer descontrolado, o
conde era extremamente comedido.
— O que diabos aconteceu aqui?
— Ainda não temos certeza, milorde. Mas precisamos tirá-los de dentro.
— Tirar quem, Nathaniel?
A pergunta de Edward ecoou no silêncio. Um homem deu algum
comando para que todos ficassem quietos e foi obedecido no instante em que
o conde falou. Outra voz, fraca e abafada, veio de baixo dos escombros.
Ninguém entendeu direito o que foi dito.
— Meu Deus, eles estão vivos!
Nathaniel subiu no monte de pedras e entulho e começou a arrancar
pedras de lá. Edward tirou seu casaco e arrancou o lenço do pescoço, sendo
imitado por alguns homens do grupo. Tinha bastante gente mobilizada a
ajudar, mas o trabalho era exaustivo. As mulheres observavam assombradas.
Algumas começavam a preparar o espaço para receber os feridos.
— Vá até a vila e chame o médico. — Edward deu a ordem a um jovem
magricela que tremia de nervoso. — Você, vá até Thanet Bay e avise ao
duque o que aconteceu. Peça que venha aqui. — Foi a ordem para outro
jovem, que estava coberto de poeira da cabeça aos pés. — Quem quiser
ajudar, não fale. Vamos tentar ouvi-los para saber onde procurar. Quem não
quiser ou não puder ajudar, desapareça daqui.
O conde, o marquês, alguns industriários amigos e dois nobres
começaram a ajudar na tarefa de retirar os destroços onde ouviram a voz.
Precisavam ser rápidos, pois não sabiam o quão feridos os homens estavam, e
se havia ar para respirarem.
Caroline estava em choque. Não exatamente paralisada pelo horror e pelo
medo, mas genuinamente aterrorizada. Ela nunca vira um grave acidente,
nem pessoas feridas ou mutiladas. Em suas andanças de caridade, viu pobreza
e miséria suficientes para assombrá-la pelo resto da vida. Mas era diferente.
Naquele momento, ela só pensava que Isaac não sairia inteiro daquele
amontoado de madeira e pedra. Que ele estaria ferido, talvez inconsciente,
faltando algum pedaço ou morto.
Ela não suportaria se ele estivesse morto.
— O que podemos fazer? — Wilhelmina perguntou para a cunhada. —
Diga, há algo que possamos fazer?
— Vamos ajudá-los. — Caroline tomou a frente e foi na direção das
ruínas. — Ficar aqui parada é que não vou.
— Você vai apenas atrapalhá-los, Caroline. — Agatha colocou-se no
caminho dela. — Eles sabem o que estão fazendo. Edward não vai deixar o
irmão enquanto não o retirar de lá.
— É fácil pedir para que eu me afaste quando seu marido está a salvo
logo ali. — Caroline apontou o conde, glorioso de pé no ponto mais alto das
ruínas. — E se fosse ele soterrado?
— Não entendo a comparação, Caroline. Seu marido não foi soterrado,
você não tem…
— Lady Eckley, talvez seja melhor ajudarmos a preparar macas
improvisadas para os cuidados com os resgatados. — Wilhelmina
interrompeu a cunhada e segurou Caroline pela mão. — Veja, as esposas dos
arrendatários já estão se ocupando dessa tarefa. Nate disse que há uns dez
homens debaixo do prédio, então teremos muito trabalho. Vamos?
Com um aceno de cabeça, Caroline assentiu e seguiu a jovem McFadden.
Seria impossível para Agatha compreender o sofrimento de seu espírito. A
condessa não sabia de seu envolvimento dela com Isaac. E do quanto saber
que ele estava debaixo dos escombros a assustava. Mas Wilhelmina tinha
razão. Ela era jovem, mas extremamente razoável - e sabia do que havia entre
Caroline e o irmão dela.
Esperar era difícil. Rosamund conduziu as damas de volta à Granville
House, o médico chegou, trazendo dois auxiliares, e arrendatários de Rhode
Port também vieram ajudar. As mulheres que permaneceram no local do
acidente contribuíram com água fresca para os homens que trabalhavam e
auxiliando a montar macas, estender lençóis limpos, cortar panos e ferver
água para os feridos - quando eles fossem resgatados. Só que o resgate
começou a demorar demais.
Mais de uma hora se passou até que vozes foram novamente ouvidas.
Edward mandou todos se calarem. O som, muito baixo, dizia que todos os
dez homens estavam no mesmo lugar. As buscas então se concentraram ali.
Caroline já retirara as luvas e estava nervosa, esfregando os dedos. Ninguém
entendia sua ansiedade, apenas as pessoas que desconfiavam do motivo.
Depois de mais uma hora, um buraco se abriu no prédio em ruínas e os
homens que estavam ali começaram a sair.
Oito deles, pelo menos. Empoeirados, feridos e assustados, foram
imediatamente colocados sob cuidados dos médicos. Mas havia algum
problema - dois homens estavam ainda presos sob os entulhos e um deles era
Isaac.
— Deixe-me passar. — Caroline tentou se meter entre os homens que
ajudavam a arrancar pedras e paus. — Eu vou entrar aí.
— Não vai a lugar algum. — Anthony segurou-a pela cintura. — Perdeu
de vez o juízo? A estrutura está instável, ela pode ceder a qualquer momento.
— Mais um motivo para alguém entrar e tirá-lo lá de dentro! Por que ele
não saiu, Anthony?
— Edward está ali conversando. Caroline…
— Diga logo o que houve. Você nunca foi de me poupar.
— Isaac está inconsciente. Ele bateu a cabeça. O homem que está com ele
tem a perna esmagada e não consegue sair sozinho, ou ajudá-lo.
— Eu vou ajudá-lo. — Ela forçou passagem, mas o marquês era duas
vezes mais forte. — Saia da minha frente, Anthony.
Ele saiu. Temia pela segurança da prima, mas certamente vira as lágrimas
nos olhos dela, a ansiedade latente em cada palavra que dizia. Caroline só
seria parada se fosse derrubada por tranquilizantes. Anthony conhecia aquele
espírito, era o que ele mais admirava nela. E foi por ele que permitiu que ela,
usando saias longas, anáguas e sapatilhas, fosse até onde estavam resgatando
os soterrados.
O conde conversava com outros homens. Caroline aproximou-se e inflou
o peito com ar. Precisava parecer confiante e segura de que seu tamanho
poderia ajudar. Ser pequena dava a ela vantagem para entrar e sair do buraco
aberto pelos homens e auxiliar os que ainda estavam presos.
— Você não passará com essas roupas. — Edward determinou. —
Causará um aumento do risco de novo desmoronamento.
Caroline olhou ao redor. Edward estava certo, ela não poderia passar com
as saias. E não teria como ir à sua casa buscar suas calças de montaria, ou
pedir emprestadas as roupas de algum jovem. Mas nada a impediria de entrar
naquele buraco e retirar Isaac de lá. Nem mesmo o risco de ser soterrada com
ele. Era melhor morrer tentando do que nada fazer para ajudar. Olhando para
o conde que a fitava de braços cruzados, Caroline tomou a atitude mais
drástica que podia. Colocou a mão nos botões que prendiam seu vestido e
começou a retirá-lo.
Foi um escândalo. Anthony correu até ela, mas parou na metade do
caminho. Edward ficou sem saber o que fazer. Agatha levou as mãos à boca e
Wilhelmina riu. Aquela era Lady Eckley, a libertina mais devassa de
Londres. Despir-se na frente de vários homens e ficar apenas com suas
roupas íntimas para poder caber em uma abertura diminuta parecia algo
condizente com seu caráter. Depois de retirar o vestido e ficar apenas com
sua calçola até os joelhos, a meia - preta -, a chemise e o espartilho, ela girou
no próprio eixo e encarou o conde.
— Estou adequada agora, milorde?
— Você ficou louca, Caroline. — Edward rosnou.
— Agradeça-me depois que eu resgatar seu irmão.
E ela se aproveitou da estupefação causada para burlar as defesas e ir até
onde estava Isaac. Inconsciente ou não, perigoso ou não, ela daria um jeito de
trazê-lo de volta. Porque não parecia mais admissível que ela continuasse
vivendo em um mundo em que ele não estivesse.

I SAAC ESTAVA SONHANDO . Era um sonho estranho e pouco usual, em que ele
sentia muita dor e estava preso. Amarrado, com pés e mãos acorrentados. O
barulho ao redor era vezes ensurdecedor, vezes uma calmaria tranquilizante.
Não sabia onde estava. A escuridão o engolia mesmo de olhos abertos. Não,
ele não conseguia abrir os olhos por mais que se esforçasse para fazê-lo. Mas,
assim mesmo, ele sabia que ela estava ali. Por perto, procurando por ele.
Foi então que as correntes foram arrancadas de seus membros e ele estava
liberto. Imóvel, porém, em liberdade. A luz ardeu suas pálpebras, forçando-o
a piscar algumas vezes.
— Isaac?
A voz de Caroline era música em uma tarde de verão. Como os pássaros
cantando nas árvores. A mão dela segurava a dele, mas ele não conseguia vê-
la. Tudo estava muito turvo, borrado, cinzento. Isaac abriu bem os olhos,
tinha certeza de tê-los arregalados - e, ainda assim, Caroline não passava de
um borrão.
— Deixe-me examiná-lo, milady.
Aquele era Davies. O que o doutor fazia em seu sonho?
— O senhor não me afastará dessa maca, doutor. Faça o seu melhor.
Ele quis sorrir e não soube afirmar se seus lábios se moveram. Era como
se tivesse recebido uma grande quantidade de morfina, mas sentia dor demais
para estar drogado.
— Preciso de espaço para trabalhar. Se milady se preocupa com ele,
sente-se naquela cadeira por alguns minutos, ao menos para que eu o
examine.
Não, não se afaste. Isaac quis gritar, sua voz não saiu. Ele estava tão
confuso, o sonho parecia tão etéreo e tão real. Nervoso, ele tentou protestar,
tentou agarrar alguma coisa, tentou acordar. O esforço o deixou cansado e
tudo ficou escuro, quieto e silencioso por muito tempo.

C AROLINE ESTAVA SENTADA HÁ MUITO tempo. O quarto em que Isaac foi


colocado, já na mansão em Greenwood Park, estava cheio de pessoas e ela
resolveu sair. Não, não resolveu, foi conduzida para o lado de fora por
Wilhelmina, que decidiu ser sua guardiã naquele pandemônio. A jovem
McFadden era mais madura do que demonstrava. Ou ela não demonstrava
porque, como uma boa dama, fora ensinada a agir como uma tola para não
constranger os homens. Mas ali, enquanto tudo era caos e sangue, ela se
mostrava forte e intangível. Uma rocha de cabelos ondulados e vestido de
babados.
Ninguém foi conversar com ela até Edward se aproximar. O Conde de
Cornwall raramente lhe dirigia a palavra em lugares públicos. Eles
costumavam conversar nos clubes de cavalheiros e quando ela impunha sua
presença, mas ele não demonstrava interesse algum em manter diálogos
agradáveis com ela.
— Obrigado.
Ela ergueu o olhar. Edward era um dândi, sempre impecável mesmo na
tormenta. Apesar dos cabelos desfeitos, dava para notar que ele tentou limpar
o pó de sua vestimenta.
— Não quero agradecimentos. Fiz o que deveria fazer para ajudar.
— Confesso que não esperava uma atitude tão altruísta vinda de você,
Caroline.
— Como ele está?
A mudança de tema da conversa era sua forma de defesa. Ao invés de
contra-atacar as ofensas à sua honra, Caroline escolhia quase sempre
alimentá-las ou ignorá-las. Quanto mais ela prolongasse o assunto, mais ele
se propagaria pelos lugares.
— Ainda desacordado. Davies disse que ele bateu a cabeça, mas não
temos como saber a extensão das lesões por enquanto. Você deveria ir para
casa cuidar de suas convidadas.
— De jeito algum. Consenti em me afastar da cama e sair do quarto
porque era o melhor a ser feito por Isaac. Porém não vou embora, milorde. O
senhor pode me arrastar para fora de sua propriedade se quiser que eu saia,
porém, essas pernas não caminharão sozinhas.
A expressão rígida no rosto de Edward suavizou. Era difícil precisar se
ele estava surpreso, incomodado ou satisfeito com a insistência dela.
— Você gosta dele.
— Isso não lhe diz respeito.
— Certo. Mandarei lhe trazerem roupas limpas para que possa se lavar. E
o médico lhe examinará assim que terminar com os feridos.
— Não preciso ser examinada. Eu estou ótima.
— Ainda assim, está sob meus cuidados. Verá o médico.
O conde se afastou e deixou-a ali rosnando, irritada. Havia coisas que
Caroline tolerava pouco, uma delas era receber ordens. Mas ela precisava
domar seu espírito, ao menos domesticá-lo um pouco. Um animal selvagem
não vivia em sociedade. Seu desejo por liberdade a estava conduzindo por
caminhos nem sempre satisfatórios. Ela não sabia ceder, não conseguia abrir
mão de nada, pois se acostumara a ser quase sempre usurpada por aqueles em
quem confiara.
Depois que o médico saiu do quarto de Isaac, ela entrou. Notou que
estava encardida, com as roupas de baixo cheias de pó escuro e sentiu-se
imunda e indecente. Esqueceu-se de seus problemas e dramas ao ver o
homem deitado sobre a cama. Seu coração falhou, o ar sumiu de seus
pulmões. A imagem a desestabilizou.
Havia uma imagem de Isaac em suas lembranças. Em todas elas, ele
sorria. Estava sempre impecavelmente vestido e cortês. Era um verdadeiro
cavalheiro, sem máscaras e fingimentos. Vê-lo incapacitado sobre uma cama
era insuportável. Não haveria satisfação em tirá-lo vivo dos escombros se ele
não se recuperasse plenamente.
Com os pensamentos arrebatados, Caroline se sentou ao lado dele na
cama e segurou a mão dele entre as suas. Acariciou-o nos cabelos. Estavam
ainda sujos de poeira, assim como ele inteiro. Era provável que o criado
pessoal fosse aparecer para limpar e cuidar do seu lorde, mas ela não estava
disposta a esperar.
Caminhou até o lavatório e encheu uma bacia. Levou-a para a cama,
embebeu um pano em água fresca e passou pelo rosto silencioso de Isaac. O
peito dele subia e descia lentamente, como se estivesse em sono profundo.
— Daqui a pouco virão me obrigar a sair. — Ela disse, embebendo
novamente o pano em água. — Não tolerarão o escândalo de ter uma mulher
semivestida em seu quarto. Principalmente porque você está nu, não está?
Caroline levantou o lençol que o cobria para confirmar suas suspeitas.
Dificilmente um paciente como ele manteria suas roupas no lugar. Mesmo
ferido, aquele Adônis conservava sua beleza extasiante.
— Isso significa que não teremos muito tempo para conversar. Mas não
se preocupe, eles não conseguirão me fazer ir embora. Apenas perturbarão
nossa privacidade. — Ela desceu o pano pelo pescoço, recolhendo cada grão
de sujeira daquela pele perfeita. — Isaac, você precisa acordar. Entende isso?
Você precisa. Não sei o que fazer, estou muito confusa. Mas sei uma coisa,
eu preciso de você.
Não houve retribuição, ela falava sozinha. Ele continuou respirando
lentamente, em silêncio sepulcral. Caroline notou que suas mãos tremiam
enquanto torciam o pano na bacia esmaltada. Ela era sempre forte. Nada a
abalava. Mas aquilo já era demais para suportar. Ninguém nem mesmo sabia
por que Isaac estava desacordado, que tipo de ferimentos ele tinha, se ele iria
ficar bem. E ela nem deveria estar ali. Aproveitava-se de um descuido e
afastamento do médico para se colocar onde não deveria ter saído.
E, por isso, a lady sucumbiu às lágrimas outra vez. Deitou a cabeça no
peito dele, colocou a sua mão sobre ela, como se ele pudesse abraçá-la e
acariciá-la, e se permitiu chorar. Em três dias, já chorara duas vezes por
aquele homem que abalou suas muralhas desde a primeira vez em que bateu à
sua porta, em Londres. Ela, a tão temida libertina, o terror dos homens de
família, quase uma rocha de força mesmo sendo tão pequena fisicamente, se
mostrava tão frágil e desprotegida para ele. Por ele.
Enquanto deixava as lágrimas lavarem seus medos e angústias, Caroline
sentiu algo. Tentou refrear as emoções e segurar o choro ao perceber que os
dedos de Isaac se enrolaram em seus cabelos. Ela parou de respirar quando
ele desceu a mão até os olhos dela e os enxugou. Com o polegar, capturou a
umidade que vertia sem controle.
— Não chore.
Isaac murmurou. Sua voz era quase um sopro. Fraca, exausta, um
sussurro de sua alma. Caroline ergueu a cabeça e enlaçou seus dedos aos
dele. Com os olhos abertos, ele parecia disperso.
— Você está acordado. Isaac, eu vou chamar o médico.
— Não. — Os dedos dele seguraram os dela. — Fique comigo. Fique
aqui. Eu estou… conte-me o que houve.
Caroline não sabia a dinâmica do acidente, porém narrou as partes que
conhecia. O estrondo, o desmoronamento, o resgate. Isaac ouvia com
atenção, apertando a mão dela com bastante força.
— O doutor Davies disse que você bateu a cabeça. Ele precisa vê-lo
novamente, agora que está acordado.
— Não vá ainda. Eu estou… assustado.
— Por quê? Sente algo? Isaac, diga o que…
— Não consigo ver, Caroline. Meus olhos estão abertos, mas tudo é um
borrão turvo.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

Q UANDO O MÉDICO RETORNOU AO QUARTO DE I SAAC , ELE ESTAVA RECOSTADO


nos travesseiros, parcialmente limpo e coberto por lençóis e uma colcha.
Caroline terminou de ajeitá-lo e o ajudou a se acomodar melhor antes de
buscar o doutor Davies. A situação não podia ser mais desconfortável. Ele
sofrera um acidente terrível, saíra relativamente ileso, mas não conseguia ver
direito. Havia luz, claridade, ele notava as formas humanas, dos objetos. Mas
era tudo borrado e desfocado.
— A perda de visão deve ser resultado da pancada na cabeça. — Davies
diagnosticou, colocando uma lamparina próxima ao rosto dele. Isaac via a
claridade e ela o incomodava bastante. — Deve passar com o tempo, mas ele
precisa fazer mais exames com um médico especializado.
— Ele já pode viajar para Londres? Podemos conseguir uma consulta
com o doutor Greyling.
Disse Edward. Os irmãos McFaddens estavam todos reunidos. Emile
chegou mais cedo, naquela tarde, e já encontrou a casa caótica. Wilhelmina
levou Caroline para algum lugar. Isaac sabia apenas que sua presença não
estava mais ali, enquanto todos discutiam seu futuro.
Uma sensação de impotência o atingiu, assim como o medo irracional da
invalidez. Ele estava cego, ou quase cego. Enxergava mal e estava ferido
demais para sequer procurar ajuda de um especialista. E se fosse tarde demais
quando pudesse se levantar daquela cama? E se ele nunca mais recuperasse
integralmente sua visão, como continuaria a trabalhar e a realizar suas
atividades? Aos vinte e cinco, ele se tornaria um fardo para sua família e um
indesejado perante a sociedade.
Era apenas sorte que Caroline ainda não tivesse aceitado sua proposta de
casamento. Isaac jamais poderia impor a ela aquela realidade.
— Seu irmão ainda não deve viajar, milorde. Ele teve contusões nas
costelas e nas pernas e uma lesão na cabeça. Precisa de repouso por alguns
dias. Se o problema for temporário, assim que as feridas melhorarem ele pode
recuperar integralmente a visão.
— Isso é animador. — Isaac desdenhou. — Tudo que ouço são hipóteses
e possibilidades. Nada a afirmar, Davies?
— Lesões na cabeça ainda são um mistério para a medicina, milorde. —
A imagem enevoada do médico circulava pelo quarto. — Já houve muita
evolução, mas ainda não conseguimos saber exatamente o que se passa
dentro dessa maravilha que é a caixa craniana. Portanto, o tempo costuma ser
o remédio mais eficiente.
Como Isaac não tinha o hábito de esperar por nada, aquela era uma
sentença desfavorável. O lorde era paciente e determinado, porém gostava de
perseguir o que desejava e ir atrás de seus objetivos. Não ficava sentado
aguardando que as graças caíssem sobre sua cabeça. Dar tempo para que suas
lesões curassem seria uma tormenta, mas ele suportaria sem reclamar. A
grande incerteza da cura era o que o afetava. Nunca mais voltar a enxergar o
transformaria em um peso inútil.
— Onde ela está? — Ele perguntou, depois de alguns segundos de
reflexão.
— Tomando um banho e vestindo-se. — Nathaniel sentou-se ao lado do
irmão na cama. — Ela te contou que arrancou as roupas para entrar debaixo
dos escombros e ajudar no seu resgate?
— Céus, não! — Isaac quis rir, gargalhar. A ideia de que Caroline tenha
se despido na frente de um monte de homens era repugnante e, ao mesmo
tempo, cômica. — Mas eu não esperaria nada diferente dela. Doutor Davies,
eu posso me levantar? Caminhar? Lavar-me?
— Recomendo que se mantenha deitado por pelo menos um dia, milorde.
— Pedirei a Dewitt que venha banhá-lo. — Edward disse e saiu do
quarto. Isaac ouvia passos e movimentos, via sombras e feixes de luz. Era
suficiente, naquele momento, para entender a dinâmica dos acontecimentos.
— E eu avisarei a Caroline que você perguntou por ela. — Nathaniel
segurou a mão de Isaac entre as suas. — Vai ficar tudo bem. Você sabe, não
sabe?
Ele não sabia, mas assentiu para que Nathaniel não se preocupasse.
Depois que os irmãos deixaram o quarto, seguidos do médico, e ele ficou
sozinho, os pensamentos começaram a importuná-lo. Desde que deixara
Caroline em seu apartamento em Londres, Isaac passou todos os minutos
disponíveis de seus dias pensando em como convencê-la de suas intenções
dignas. E, estando cego e inválido, era como se todo seu esforço escorresse
pelos dedos como areia.
Parecia justo que Caroline não confiasse nele, pelos motivos de uma vida
de desconfianças e decepções. Isaac não a culpava. Ele compreendia todo o
sofrimento que ela escondia, ao menos ele tentava ser sensível àquele
sofrimento. E tinha planos para romper as defesas de Caroline. Planos para
fazê-la acreditar nele, para que ela compreendesse que ele não era um homem
como todos os outros.
Talvez ele fosse parecido. Tinha seus defeitos e vicissitudes, porém não
minaria aquele espírito selvagem e impetuoso que ela tinha. Uma das
melhores coisas em Caroline era exatamente o que ele desprezava, antes.
Precisava mostrar a ela que não apenas deixara de desprezar, Isaac passara a
amar cada detalhe que era considerado nela um defeito.
Ah, ele amava! Todos diriam que ele estava fora de si. Que perdera o
juízo. Que Caroline não era uma dama para o casamento, que ele não podia
amá-la tão rapidamente. Mas a verdade era que ela era adorável. Qualquer um
que enxergasse além do que ela mostrava podia se apaixonar por Caroline.
Mas, cego? Sendo um homem incompleto, parecia impossível que Isaac
fosse atender às necessidades de Caroline. Ela precisava de um homem que
fosse seu companheiro, que andasse ao seu lado e não que fosse carregado
por ela.
A porta do quarto abriu e fechou. Não havia cegueira capaz de impedi-lo
de notar o vermelho esvoaçante da seda que cobria Caroline.
— Nathaniel disse que queria me ver.
— Como você está?
— Muito nervosa. Eu quase perdi você hoje, portanto acredito que seja
tolerável meu comportamento.
Ela se aproximou mais. Isaac podia sentir seu cheiro de pele limpa e
cabelos lavados. Estendeu as mãos para ela, que atendeu a seu apelo e sentou-
se próximo a ele, deixando-se envolver em um abraço.
— Fiquei sabendo que você se colocou em perigo por mim. É verdade
que se despiu na frente de todos e entrou naquele prédio em ruínas para me
ajudar, Caroline?
— Sim, é. Mas saiba que eu faria novamente, se precisasse. Alguém tinha
que agir, Isaac, eu não poderia vê-lo ferido e…
— Acalme-se, amor. — Ele beijou-a nos cabelos. — Eu não vou
repreendê-la. Eu agradeço que tenha me tirado de lá, assim eu poderei abraçá-
la mais uma vez.
Caroline envolveu-o com os dois braços e Isaac sentiu-a soluçar em
contato com sua pele. Suspeitando que demonstrar emoções não fosse algo
que Caroline fizesse com muita facilidade, ele deu a ela tempo para chorar e
se recompor.
— Tornei-me uma dessas mulheres que choram por qualquer coisa. —
Ela se afastou brevemente do contato com ele para enxugar as lágrimas. —
Desculpe!
— Caroline, hoje não é o primeiro dia do evento de apresentação de sua
escola? — Isaac perguntou, imaginando que ela deveria ser necessária para
ciceronear suas convidadas.
— Sim, é. Mas sua cunhada Agatha está lá, representando-me. Ela não
conhece a escola nem é empolgada com o projeto como eu, porém é muito
comunicativa e sei que falará de forma a cativar as damas e suas famílias.
Isaac segurou Caroline pelos ombros e afastou-a. Olhou para ela,
tentando focar os borrões que o impediam de apreciar a sua beleza. Ele daria
qualquer coisa para vê-la novamente.
— Volte para Granville House. Já está anoitecendo e seus convidados
precisam de você.
— Não vou deixá-lo aqui.
— Eu estou cuidado por quatro irmãos e uma mãe, que provavelmente
está se recuperando do susto. Tenho criados e estou me sentindo muito bem.
Esse evento ocupou sua mente por muito tempo, meu amor. Você precisa
estar lá para vê-lo acontecer.
— Isaac, eu…
Ele se dobrou na direção dela e a beijou. Foi uma atitude corajosa e
idiota, pois Caroline sempre beijava por inteiro. Aquilo significava que eles
terminariam embolados sobre aquela cama, com ele nu e excitado, sem poder
possuí-la. Mesmo assim, Isaac precisava beijá-la. A privação de Caroline o
deixava sensível, ansioso e nervoso. Os dias sem ela eram sem graça, como
manhãs de verão sem sol, primavera sem flores ou inverno sem neve. Aquela
devassa e despudorada dama era quem dava cor aos seus dias e luz às suas
noites. Não importava que fosse súbito demais ou intenso demais. Talvez isso
significasse que ele, Isaac, só amasse por inteiro.
Temerosa que ele se machucasse mais, Caroline estava comedida. Ela se
deixou capturar pela boca ávida de Isaac, sem reagir propriamente. Com
cuidado, ele a empurrou até deitá-la nos lençóis e acomodou-se ao lado dela.
Beijou-a com intensidade, saboreou-a lentamente como se bebesse o mais
precioso néctar. Colocou as mãos por baixo da saia do vestido, erguendo-a
alguns centímetros, tocando Caroline sobre o tecido fino de suas roupas
íntimas. Ela forçou seu corpo contra o dele, erguendo mais as saias até que o
encaixe entre eles fosse quase perfeito.
Mesmo sem penetrá-la, Isaac ajeitou-se ali, acomodando seu membro rijo
entre as pernas dela, em contato com a abertura de sua calçola. Naquele
momento de intimidade, ele não precisava de visão. Bastava tocá-la e ser
tocado por ela para sentir-se satisfeito e muito poderoso.
— Você me assustou, hoje. — Caroline beijou-o no pescoço, descendo
para a clavícula e para seu peito despido. Moveu os quadris para garantir que
eles estivessem próximos a ponto de ser possível senti-lo invadindo sua
intimidade. Ele gemeu em retribuição. — Eu não sei o que faria se você
tivesse…
— Shhh! — Isaac silenciou-a com a boca, puxando-a para cima e
beijando-a novamente. — Não vou a lugar algum. Mas você precisa voltar
para casa. Suas convidadas te aguardam e aposto que estão muito curiosas
sobre o acidente.
— Não vou conseguir agir como esperam de mim. Estou muito abalada.
— Aja como desejar, seja você mesma.
— Você não gostava de mim sendo eu mesma.
— Eu estava errado. — Ele a acariciou nas costas, desejando que seu
vestido desaparecesse. — Sobre você, sobre tudo. Você é perfeita como é,
Caroline. E eu te amo exatamente dessa forma.
Não houve resposta, ele não esperava nenhuma. Ela voltou a beijá-lo e as
bocas se devoraram por mais alguns minutos. Caroline moveu-se novamente
e sua umidade fez com que o membro de Isaac deslizasse entre suas coxas.
Ele a segurou pelos quadris e forçou-se contra ela, penetrando-a apenas um
pouco.
— Não comece o que você não pode parar. — Ela murmurou, sentindo-o
entrar e sair lentamente. Eles estavam de lado, em uma posição talvez
desconfortável, mas que exigia pouco esforço dele. — Você está ferido,
Isaac.
— Nada grave. — Ele a penetrou mais um pouco. — E eu não pretendo
parar.
Caroline passou uma perna por sobre ele e abriu-se o suficiente para ser
invadida por completo. Moveu os quadris para frente e para trás, tentando
fazer com que ele não precisasse se cansar. Ele estava à flor da pele e muito
excitado, não demoraria a encontrar seu alívio. E ela, implacável, estava
decidida a arrancar dele um orgasmo fulminante.
— Eu não consigo mais segurar. — Sussurrou, entre os dentes, enquanto
se sentia preso pelas pernas dela ao seu redor.
— Não segure. Não pare, Isaac, apenas venha para mim.
— Caroline, eu…
Foi a vez de ela silenciá-lo com um beijo. Isaac tentou se afastar, mas não
conseguia. Estava bom demais.
— É seguro? — Perguntou, sentindo a iminência do orgasmo.
— Não. Mas faça assim mesmo. Eu quero o risco.
Ele nem conseguia compreender o risco, mas estava disposto a aceitá-lo
para permanecer dentro dela naquele momento. Movendo-se junto dele,
Caroline o provocou até que Isaac não resistiu mais e despejou-se dentro
dela, preenchendo-a com sua semente.
— Meu Deus. — Isaac afundou a cabeça no pescoço dela. Sentiu uma
fisgada nas costas, onde tinha uma grande marca roxa e dolorida. — Eu não
tenho nenhum controle quando estou ao seu lado. Nenhum.
Ela riu. Os dois corpos relaxaram no colchão macio.
— Nem eu. E nunca foi tão bom perder o controle.
— Vá para casa, Caroline. Volte amanhã, se quiser. Temos tanto a
conversar, eu tenho outra proposta para te fazer.
— Eu voltarei. Mas será hoje à noite. Eu quero dormir com você,
abraçada a você, garantindo que seus sonhos sejam todos meus.
E Caroline levantou-se e desapareceu pelos corredores, deixando-o
confuso, saciado e completamente apaixonado.

A G RANVILLE H OUSE não ficava a uma distância considerável de Greenwood


Park, mas o conde não permitiu que Caroline caminhasse. Era tarde e ele
pretendia acompanhá-la, na intenção de rever sua esposa. O desgaste do dia
afetou a rotina de todos, fazendo com que as crianças fossem relegadas às
babás e as mulheres precisassem se unir para que o evento da escola não
resultasse em um grande fracasso. Na carruagem dos McFaddens, Caroline
foi para casa enquanto era escrutinada em silêncio por dois dos irmãos. Para
garantir que a breve viagem não representaria uma violação à honra da dama,
a condessa viúva foi convidada para seguir com eles.
Caroline nunca conversara com a mãe de Isaac, mas sentia-se também
examinada pela senhora elegante e de cabelos brancos. Não costumava
relacionar-se com mães. Nunca tivera pretendentes nem amantes cujas
famílias se interessassem. Em verdade, era absurdamente inadequado que ela
se relacionasse com a família de seus amantes, mas ela pouco se importava
com as regras. Naquele momento, em que se sentia tola e exposta, ela
adoraria que qualquer assunto rompesse o silêncio.
Quando chegaram, a casa estava calma e quase silenciosa. O mordomo os
recebeu e conduziu Caroline até o salão de chá, onde estavam Elizabeth e
Agatha. O conde e seu irmão foram interceptados por Anthony, e a condessa
viúva foi convidada por Rosamund para conhecer a casa. Ela não teve aquela
oportunidade quando esteve ali, no aniversário do filho.
Ao ver Caroline, Marquesa quase pulou sobre ela. A dama não se
surpreendeu ao perceber que Lorde também estava ali e que eles faziam
companhia um ao outro. Aninhado sobre o tapete, o Setter cochilava
enquanto a namorada canina se agitava ao ver a melhor amiga retornar.
Seriam os cães tão sensíveis a ponto de perceberem nela a mais sutil nota de
desespero? Ou não havia sutileza alguma e Caroline estava visivelmente
descomposta? A segunda opção a preocupava muito.
— Ela retornou. — Elizabeth servia uma xícara de chá quando Caroline
entrou no salão. — Deseja chá, milady? Conte-nos sobre como está Lorde
Isaac.
— Ele está bem. Vossa graça não precisa me servir, deixe que eu…
— Ora, por favor. — A duquesa riu. — Antes de me casar com Aiden eu
era uma governanta, milady. Certos hábitos não mudam. Sente-se, você
parece…
As duas mulheres a encararam por segundos. Elizabeth entregou a ela
uma xícara com chá e leite e também se sentou em uma poltrona. A lareira
estava acesa e com fogo recente, indicando que a sala acabara de ser
preparada.
— Percebo que Isaac deve estar em boas condições de saúde, depois do
que houve. — Agatha tentou esconder uma risadinha baixa.
— Certamente que sim. E você deve estar mais tranquila agora, milady,
que está vestida a contento e, digamos, recebeu alguns cuidados.
O rubor subiu pelas bochechas de Caroline, fazendo-as tão vermelhas
quanto sua vestimenta. Os olhares de Agatha e Elizabeth indicavam que elas
sabiam que alguma coisa acontecera em Greenwood Park e se divertiam com
aquilo.
— Não pensei que fosse possível perceber certas coisas apenas olhando
para alguém.
— Somos muito observadoras. — Agatha continuava tentando segurar o
riso. — E há alguns sinais um pouco evidentes, milady. Por sorte, os homens
são completamente incapazes de perceber esses detalhes.
— Sinais?
Elizabeth apoiou sua xícara em uma mesinha e levou a mão aos cabelos
soltos de Caroline. A ponta suave de seus dedos delicados tocou-a no pescoço
e deslizou para a parte sensível atrás da orelha. Ela se recordava bem da boca
de Isaac ali. O estremecimento que sentiu apenas fez confirmar o que já
suspeitavam as damas.
Ela olhou para si mesma por alguns segundos. Caroline sempre foi capaz
de perceber quando uma mulher estava satisfeita pelo intercurso sexual,
porém nunca se ocupara de perceber a si própria. O vestido não estava muito
bem ajustado no corpete e a saia tinha dobras que sugeriam ter sido
levantada. Apenas uma virgem ingênua deixaria de relacionar sua aparência
com a de uma mulher que acabara de fazer sexo.
Céus, ela ainda precisava se lavar. Sentiu novamente a queimação que
indicava um enorme fluxo de sangue em suas bochechas e baixou o olhar.
— Eu não sabia que havia algo entre vocês. — Agatha retomou a
conversa. — Lamento pela forma como agi, hoje.
— Nosso objetivo era manter nosso relacionamento em sigilo. Parece-me
que, depois de hoje, esses planos são inúteis.
— Isaac é um homem maravilhoso, Caroline. Eu apenas espero que você
não esteja disposta a zombar dos sentimentos dele. Por sua atitude hoje, creio
que não seja esse o caso.
Fez-se silêncio enquanto as damas terminavam seus chás. Havia tensão
entre eles, talvez assuntos não resolvidos sobre o passado. Caroline não era
uma mulher muito simpática às outras damas. Ela as julgava por fazerem
escolhas que considerava equivocadas. Ela as desprezava por preservarem
suas virtudes perseguindo casamentos sem amor, enquanto os homens não
perdiam nenhuma oportunidade de exercitarem-se sexualmente. Ela as
criticava por não compreenderem o seu lado. E então ela percebera que
estava tão errada.
Nenhuma daquelas mulheres era realmente responsável por suas decisões.
Elas foram tão moldadas por uma sociedade masculina que não eram capazes
de enxergar além daquelas realidades. O casamento era uma necessidade tão
bem plantada nas jovens moças que elas cresciam acreditando que só seriam
capazes de serem elas mesmas no matrimônio. Curiosamente, os matrimônios
as transformaram em nada por décadas.
E, ainda assim, não importava que a lei houvesse mudado. Não importava
que a individualidade da mulher fosse preservada com o casamento, pois a
cultura masculina ainda era de manter a mulher sob rédeas curtas. Homens
exerciam o controle sobre suas esposas, independentemente do que dizia a
lei.
— Miladies, eu gostaria de fazer uma pergunta sincera. Espero não ser
invasiva demais, mas eu preciso saber. Por que se casaram? Por que quiseram
prender-se ao casamento?
Agatha e Elizabeth se entreolharam. Talvez fosse demais forçar aquela
pergunta a elas. Provavelmente, não desejavam uma amizade mais íntima,
mas Caroline não tinha muitas mulheres a quem recorrer. Aquelas duas
pareciam sempre as mais favoráveis a aceitá-la entre elas.
— Eu amo meu marido. — Foi Elizabeth quem rompeu o silêncio. — Eu
amei meu marido anterior, também. Casei-me primeiro porque era necessário
para minha sobrevivência, depois porque estava apaixonada. Quando se ama,
se quer ficar com aquela pessoa. Quer ter filhos abençoados pelo matrimônio.
— Mas Vossa Graça não tinha outra opção. Se tivesse, a escolheria?
— Talvez. Mas o casamento é muito bom para mim. Aiden é um marido
atencioso, apaixonado e que provê a família com tudo que é preciso: posses e
amor.
— Milady, eu acredito que sua resistência ao casamento não seja quanto à
instituição em si. — Agatha ponderou. — Você não conheceu muitos bons
homens, não é mesmo?
— Quase todos eram porcos chauvinistas que desprezavam suas mulheres
e procuravam diversão em outras camas. Alguns solteiros libertinos, alguns
excelentes partidos, porém nenhum deles via a mim como uma possibilidade
de casamento. Eu não confiaria a minha vida inteira a nenhum deles.
— Já que estamos sendo sinceras, eu te perguntarei. Quais são seus
sentimentos por Lorde Isaac? Você o ama, Lady Eckley? Ou ele também lhe
é um porco chauvinista a quem não confiaria sua vida?
A pergunta de Elizabeth poderia ser uma adaga cravada em seu peito,
dilacerando a carne e fazendo sangrar o coração. Poderia ser o chumbo de
uma pistola, disparada à queima-roupa em seu peito. Doía ouvi-la, ainda mais
respondê-la. Porque a resposta representava a derrubada de todos os seus
muros. A queda de suas defesas, o fim de quem Caroline Eckley era. Estaria
Caroline realmente preparada para se reinventar em uma nova pessoa?
Depois de tudo que ela fizera nos últimos dias, tinha quase certeza que
sim.
— Eu o amo. — As palavras saíram baixas demais. Culpa a dominou por
não as dizer antes para o dono de seu coração. — E estou apavorada.
— E ele sente o mesmo por você? — Agatha perguntou. — Ah, esqueça.
Essa pergunta já foi respondida por essas marcas em seu pescoço e pelo
estado de suas roupas. Se vocês se amam, por que estamos tendo essa
conversa? O que te impede de viver esse amor, Caroline?
— Não acredito em casamento. Não desejo ser submetida a um marido.
Quero gerir meu patrimônio livremente, manter minha independência. Mas
eu não consigo mais ficar sem ele. E, bem… depois de hoje, temo que possa
haver um bebê envolvido.
As duas esconderam muito mal o misto de surpresa e divertimento que as
acometeu. Caroline estava ali, desnudando sua alma para as duas mais
improváveis ouvintes, e sentindo-se exposta e abrigada, ao mesmo tempo.
Cada palavra dita era um pedaço de pele arrancado, até que sobrasse apenas a
carne viva, vermelha, sangrando. Não sobraria nada depois daquela conversa.
— Talvez você precise parar de olhar para o lado ruim e enxergar o que
está à sua frente, minha querida.
A voz de Rosamund fez com que Caroline se sobressaltasse e quase
derrubasse a porcelana em suas mãos. A marquesa, silenciosa como um
fantasma, caminhou até a mesa de chá e serviu-se de uma xícara. Elizabeth
levou a mão até a de Caroline e segurou-a entre as suas.
— Precisa de exemplos de casamentos felizes. E há três bem aqui à sua
frente. Sei que os arranjos atuais não são ideais para as mulheres, Lady
Eckley. Que ainda estamos longe de caminhar lado a lado com os homens.
Mas isso não quer dizer que não haja homens que nos respeitem, homens que
nos ouçam e que nos tratem como iguais. Nós nos casamos com esses
homens. Hoje, o casamento é a forma que temos de viver com o amor de
nossas vidas. Se você desse uma chance a ele…
— A não ser que Isaac não tenha demonstrado interesse em se casar. —
Agatha considerou.
— Ele já me propôs casamento de todas as formas possíveis. — Caroline
deu uma risadinha.
— E você recusou todas.
— Sim, recusei.
— E ele insistiu?
— Sim, insistiu.
— Ah, Caroline. — Rosamund apoiou a xícara que segurava e fez uma
expressão de decepção. — Quase nenhum homem coloca o amor por uma
mulher na frente de sua virilidade. Na primeira rejeição, muitos teriam
partido para outra. Ele persistiu. Não é possível que você não acredite que
esse homem te ama.
— Eu sei que ele ama, ele me disse.
As três mulheres se entreolharam. Por um breve segundo, Caroline
sentiu-se como em uma sabatina. Elas provavelmente lhe dariam um sermão
sobre coisas do coração, pois todas ali eram mais experimentes quando o
assunto era amor.
— Talvez eu não deva interferir. — Agatha retomou a conversa. — Mas
eu me casei com um McFadden, então posso testemunhar sobre como eles
são quando estão apaixonados. Caroline, Isaac é o melhor homem que eu já
conheci. Ele reúne todas as qualidades de um cavalheiro e não possui quase
nenhuma das falhas comuns a eles. Se vocês estão apaixonados, não se deixe
conduzir pela desconfiança. Você não acha que ele vale a pena?
Ele valia. Depois daquele dia, depois do medo de perdê-lo para sempre,
Caroline tivera certeza de que não aceitaria mais viver sem Isaac. Ele dissera
que tinha outra proposta para ela, porém ela não estava interessada em sabê-
la. Daquela vez, seria ela a ter uma proposta para ele.
— Obrigada pela conversa, miladies. — Ela se levantou. — Como estão
nossas convidadas?
— Lavando-se para a noite. A apresentação foi um sucesso, creio que elas
continuarão interessadas nos pormenores durante o jantar. Se me dão licença,
preciso ir. Imagino que meu marido esteja aqui e deseje voltar para casa.
— Ele veio comigo, escoltando-me até aqui. Rose, o que você fez com a
condessa viúva?
— Pauline está aqui? — Agatha arregalou os olhos.
— Sim, eu a deixei com Marquesa e Lorde. Parece-me que a senhora está
se divertindo com os cães e as crianças.
— Então eu preciso mesmo voltar para casa. — A condessa se aproximou
de Caroline e segurou suas mãos. — Milady, independentemente de nossas
desavenças, nunca lhe desejei nada que não a felicidade. Minha cunhada
Elizabeth, aqui, me ajudou a reafirmar a crença de que todas as pessoas
merecem uma segunda chance. Eu tive a minha, você está tendo a sua.
Espero que a aproveite da melhor forma possível.
— Poderá sempre contar com nosso apoio. — A duquesa também se
aproximou. — No final, somos todas damas que desafiaram algumas regras e
pagamos o preço por essa ousadia. Se não nos mantivermos unidas, seremos
destruídas pela sociedade que nos despreza.
As duas mulheres se retiraram e deixaram Caroline com os olhos
novamente marejados. Ela precisava parar de chorar, mas estava vivendo
emoções muito intensas naqueles dias. A força recebida por aquelas que
poderiam odiá-la - e teriam motivos para tanto - fez com que ela tivesse
certeza de sua decisão. Mas, antes, precisaria cuidar dos negócios. Era hora
de jantar com suas futuras alunas.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

L ORDE RETORNOU PARA G REENWOOD P ARK SEGURANDO UMA CAIXINHA DE


metal em sua boca. Fazia algum tempo que Isaac não recebia nenhum bilhete
pela via canina, o que o deixou intrigado. Caroline prometera visitá-lo
naquela noite e, ao invés de uma dama sedutora e atraente, quem entrava em
seu quarto de madrugada era o Setter babão.
E ele estava acompanhado. Nathaniel sentou-se ao lado de Isaac na cama
e pegou o objeto da boca do cão.
— Sua mulher queria mandar um recado, mas você não consegue ler.
Acabei sendo escolhido como mensageiro. Ela mandou o bilhete mesmo
assim, posso lê-lo?
— Claro que ela escolheria você. Quem mais poderia desdenhar da minha
vergonha? — Isaac riu. — Leia, você já sabe de tudo, mesmo.
Nathaniel limpou a garganta com um pigarro e segurou o papel próximo à
lamparina sobre a mesa de cabeceira.
— “Meu caro Isaac. Terei que desmarcar nosso compromisso. Sinto
muito, mas o jantar com as damas parece que se prolongará mais do que o
esperado e tive um contratempo feminino para lidar. Isso não significa que
esteja liberado. Seus sonhos ainda devem ser meus essa noite.” — O irmão
colocou o papel aberto na mão de Isaac, que o levou ao nariz para sentir o
cheiro dos jasmins. — Céus, que bobagem romântica é essa? Ela está
cortejando você?
— Certamente que está. Obrigada, Nate!
— Entenda, todos nessa casa amam você. Nossas restrições quanto a
Caroline não significam nada se ela é quem você escolheu.
— Você não aprovaria Caroline como minha esposa.
Isaac não perguntou, constatou. Não precisava ser muito perspicaz para
saber que toda a sociedade acreditaria que ele se rebaixava ao se casar com
ela. Mesmo não sendo detentor do título, ele era o segundo na linha de
sucessão. Ele tinha uma origem nobre e honrada, enquanto Caroline, apesar
do sangue azul, era equiparada às meretrizes pela grande maioria na
sociedade.
— Irmão, Caroline não é pura e casta. Não age como uma dama e
mandou um bilhete escandaloso para você. Confesso que ela seria minha
última opção como esposa. É mais adequado casar com a filha de um burguês
do que com ela. Mas duvido que outra mulher teria feito o que ela fez.
Colocando-se em risco, despindo-se na frente de homens, lutado. Mesmo que
eu tivesse minhas ressalvas, antes, como vamos desaprovar uma mulher que
demonstra te amar tanto?
— Caroline não me ama.
— Não seja tolo! Até Edward sabe isso.
— Se vocês a conhecerem, como eu a conheço, vocês se apaixonarão por
ela também. Caroline é uma mulher fantástica.
— Bem, amanhã vamos ter a oportunidade de saber mais sobre isso. Ela
pediu para avisar que virá aqui.
Ele contaria com a presença dela. Passaria a noite confortável, na espera,
porque eles precisavam chegar a um entendimento derradeiro. Não podiam
continuar aquele relacionamento que não era uma coisa, nem outra. Depois
que Nathaniel saiu, Isaac tentou adormecer com Lorde ao seu lado. E os
sonhos de Isaac foram todos dela, todos sobre Caroline recusando outra
proposta dele. Sobre as dúvidas em fazer qualquer proposta enquanto
estivesse sem conseguir enxergar. Sobre não ser capaz nem mesmo de
sustentá-la dignamente sem visão.
E se houvesse um bebê? Naquele dia, suas preocupações com o futuro
duplicaram. Eles foram inconsequentes e arriscaram, Caroline poderia estar
carregando uma criança. Isaac não era tolo, sabia bem como bebês eram
feitos e que, sem prevenção, bastava uma vez para que a mulher
engravidasse. Eles teriam que se casar. A resistência de Caroline ao
matrimônio cederia diante da possibilidade de gerar um bastardo, não
cederia?
Ao mesmo tempo, ele se sentia tão incapaz de se casar. Quando acordou,
estava ainda cansado. Os olhos, embaçados. Dewitt ajudou-o a levantar,
banhar, vestir, e quis levá-lo para a cama. Mas Isaac sentia-se tão bem que
pediu ao criado que o conduzisse até o salão. Queria tomar o desjejum com a
família - afinal, não era sempre que eles conseguiam reunir todos os irmãos
em uma refeição.
— Pelos céus, Isaac. O médico não mandou ficar em repouso? — Edward
reclamou ao ver o irmão chegar ao salão, amparado por Dewitt e segurando o
lado do corpo que tinha uma costela muito provavelmente fraturada.
— Eu me sinto bem, não vou ficar entrevado sobre uma cama.
— Como está sua visão? — Nathaniel perguntou.
— Igual. Embaçada. Não sei dizer. É como se eu enxergasse tudo por
uma janela encardida.
O criado puxou a cadeira e Isaac sentou-se. Ao seu lado direito estava
Wilhelmina, que assumiu a função de abrir o guardanapo e colocar sobre as
pernas do irmão. Ele agradeceu com um movimento sutil de cabeça. Não
conseguiria cortar os alimentos, mas, por sorte, tudo que havia à mesa eram
bolinhos, torradas e pãezinhos.
Agatha estava sentada ao lado de Edward. Logo em seguida chegou a
condessa viúva e sua camareira. O conde indicou que a refeição deveria
iniciar.
— O médico lavou seus olhos com alguma solução?
Foi a pergunta de Emile, depois de alguns minutos. Todos ainda estavam
em silêncio, servindo-se de chá e provavelmente ponderando sobre a nova
condição de deficiente de Isaac.
— Não. Ele entende que a lesão decorre do trauma na cabeça.
— Talvez ele esteja enganado.
— E por acaso você acredita que saiba mais sobre lesões do que o doutor
Davies?
Edward questionou, fitando o irmão mais jovem. Emile era magro, quase
franzino, de pele muito branca e cabelos quase brancos. Ele nasceu prematuro
e foi uma criança fraca a vida inteira. Tinha vinte anos, mas parecia mais
jovem e sempre muito debilitado.
— Quando se é uma pessoa doente, aprende-se muito sobre patologias. E
tivemos um amigo que sofreu um acidente, em Eton. Ele ficou sem conseguir
enxergar e descobriram que havia detritos em seus olhos. Como ele não
sentia nada, demoraram a desconfiar do real problema. Bastou lavar os olhos
com solução bórica algumas vezes que ele retomou a visão.
— E quem recomendou essa solução?
— Um médico da escola. Por isso perguntei, pois Isaac pode ter o mesmo
problema. Afinal, ele foi soterrado, não foi?
— Tudo bem, Emile. Diga-me se consegue descobrir como preparar essa
solução. — Isaac agitou-se, mas tentou não demonstrar muita animação. Ele
pretendia sempre manter uma postura mais sóbria na presença da família,
mesmo que fosse considerado um homem divertido.
— Não seria melhor chamar o doutor Davies e conversar com ele sobre
isso? — A condessa viúva sugeriu.
— Por minha experiência, médicos não gostam de ser questionados em
seus diagnósticos. — Emile mordeu um bolinho.
— Pela minha, também. — Agatha disse.
— Não precisamos deslocar o doutor apenas para fazer um teste. Se
Emile estiver certo, minha visão deve melhorar na primeira lavagem, certo?
O McFadden mais jovem concordou. O assunto foi encerrado
momentaneamente até que o desjejum terminasse. Edward falou sobre
Tyntesfield e da necessidade que Nathaniel decidisse se ficaria com a
propriedade para administrar ou se ele precisaria contratar outro
administrador. Em seguida, Agatha puxou a discussão sobre o debute de
Wilhelmina em Londres, que deveria ser logo na temporada seguinte. Mesmo
que ainda faltassem muitos meses, a jovem precisaria ser preparada e uma
preceptora adequada deveria ser contratada.
Após a refeição, os homens foram para a biblioteca e as mulheres para os
jardins, tomar sol com as crianças. Lá estavam Lavínia e Eloise, a pequena
bebê de Agatha e Edward. A condessa amamentaria sua filha e elas
continuariam a conversa sobre debute, pretendentes elegíveis e bailes. Antes
de se recolher com os irmãos, Emile escreveu uma receita em um papel e
pediu que um criado fosse até a vila para consegui-la com o boticário. Não
era nada inovador ou futurístico, apenas ácido bórico diluído em água.
Quando o criado retornou, quase uma hora depois, foi até a biblioteca
onde estavam reunidos os irmãos McFaddens e entregou a encomenda.
— O que seu colega de escola fez? — Isaac perguntou, segurando o vidro
com cheiro estéril nas mãos. — Isso é para lavar o rosto?
— Não, apenas os olhos. Vamos pegar um pedaço de pano limpo.
— Céus! Não é melhor que criados façam isso? — Nathaniel resmungou.
— Ou mulheres. Vamos chamar Wilhelmina.
— Que bobagem, Nate. Como se eu não pudesse passar um pano
embebido em ácido nos olhos. Que risco isso pode oferecer?
— Prestou atenção nas suas palavras? É ácido, Isaac.
— Diluído. — Emile explicou. — Vamos, eu estou curioso para saber se
funciona.
— Vamos todos a um banheiro.
Edward segurou o braço de Isaac e eles caminharam pelo corredor até o
banheiro do primeiro andar. Todos os andares da mansão em Greenwood
Park tinham encanamento e calefação há décadas. E o conde não toleraria que
aquele conforto faltasse em sua residência de praia. O lorde foi colocado
sentado em um banco de madeira enquanto Emile procurava um pano nos
armários. Nathaniel passou as mãos pelos cabelos do irmão mais velho,
retirando-os da face.
— Parece que estão se preparando para uma cirurgia. — Isaac implicou.
— Seria divertido. Podemos fazer isso?
— Não seja idiota, Nate. — Emile ralhou. — Pronto, tenho um pedaço
pequeno de pano e agora vamos embebê-lo nessa solução bórica e ver o que
acontece quando lavarmos seus olhos.
Isaac esperava que desse certo. Ele podia ficar mais cego do que já
estava, afinal. No momento, enxergava borrões e sombras, mas podia chegar
à escuridão total. Se ele nunca mais voltasse a ver, seria preferível manter o
que já tinha. Mas Emile parecia tão seguro em sua determinação e ele se
sentia tão impotente que aceitou o desafio. Quando o tecido molhado entrou
em contato com seus olhos, sentiu ardência imediata e quis fechá-los. Mas
persistiu e aguardou enquanto o irmão mais jovem espremia o tecido e
derramava o líquido em suas membranas.
Assim que Emile terminou o que fazia, a sensação era refrescante e
picante. Incomodava, porém Isaac sentia-se melhor. Piscou algumas vezes,
olhou ao redor. Não parecia haver melhora no seu estado.
— E então? — O jovem perguntou, ansioso.
— Não sei o que deveria acontecer. Continuo vendo vultos.
— Meu colega levou dias para recuperar a visão. — Emile balançou a
cabeça, desanimado. — Podemos continuar tentando.
Isaac estendeu as mãos e segurou as do irmão. Ele não estava com muita
noção de profundidade, mas foi capaz de executar aquela tarefa.
— Obrigado! Vamos continuar tentando, sim. Sabe que não sou uma
pessoa que se entrega em uma batalha.
Ele não era. Edward passou o braço ao redor do seu ombro e o puxou
para perto. Nathaniel também se aproximou e eles terminaram em um abraço
desajeitado. Antes que a situação ficasse constrangedora, latidos atraíram a
atenção dos irmãos.
— O que diabos é isso? — Edward ajeitou seu paletó.
— Marquesa e Lorde. Pelo visto, eles estão animados com alguma coisa.
— Creio que não conseguiremos devolver o cão para Hampshire,
conseguiremos?
— Oh, ele ficaria tão triste se fosse embora e deixasse sua namorada para
trás…
O conde balançou a cabeça em negação e os irmãos deixaram o banheiro.
Isaac não usava paletó, apenas colete e gravata. Seus cabelos estavam
desgrenhados por terem sido mexidos por Nathaniel. Os olhos, ainda
embaçados, ardiam pelo banho de solução ácida. Mas, quando ele chegou à
varanda, freou bruscamente ao perceber o vermelho estonteante do vestido de
seda de Caroline Eckley.
Ela estava ali. Na varanda, com as mulheres reunidas e os cães em festa.
E, pelos céus, ele podia ver que ela sorria. Sua visão poderia não estar
melhorando, porém Caroline continuava fazendo com que a luz penetrasse
em seus olhos.
— Milady. — Edward a cumprimentou. Isaac travou o maxilar e virou-se
para ele, temendo que houvesse qualquer desabono à presença de Caroline
ali. — Seja bem-vinda!
— Obrigada, milorde! Eu gostaria de conversar com Lorde Isaac.
— Em particular?
— Ah, não, isso seria muito escandaloso, já que estou desacompanhada.
Podemos nos sentar na biblioteca, ou algum lugar público.
Edward riu, porque sarcasmo era o esporte preferido daquela mulher
insolente. A condessa viúva parecia atenta ao movimento enquanto Agatha
prestava mais atenção em algo que Lavinia pretendia mostrá-la. Wilhelmina
olhava diretamente para eles.
— Se não for nada privado, podemos conversar aqui mesmo. — Isaac
apontou uma mesa de pedra cercada por bancos confortáveis. — O dia parece
muito bonito.
Caroline aproximou-se dele a ponto de permiti-lo sentir seu cheiro de pele
feminina. Todos prestavam atenção, porém fingiam estar em assuntos
diversos ou distraídos. Ela ajeitou os cabelos que estavam emaranhados na
testa dele. Sentaram-se apenas um pouco afastados dos demais, de forma que
a conversa entre eles não seria privada.
— Tem certeza, milorde? Porque nossa conversa pode se transformar em
algum tipo de negociação.
— Sim, eu tenho uma nova proposta para fazer. E creio que…
— Isaac. — Ela o interrompeu. — Ontem, eu vi um prédio em ruínas e
soube que você estava debaixo dele. Isso tudo quando eu estava prestes a vir
aqui dizer coisas das quais eu esperava me arrepender. Eu fiquei sem respirar
por horas e meu coração só voltou a bater depois que eu te vi acordado. Se eu
te perdesse ontem, não sei o que aconteceria comigo. Nunca me senti dessa
forma, antes. Eu quero ficar com você. Eu quero passar mais tempo ao seu
lado, ir aos eventos, conversar sobre negócios, discutir planejamentos,
qualquer coisa que possamos fazer juntos. Meu medo de casar não é
irracional. Mas ele é significativamente menor que o medo de não ter você.
Se não for pedir muito, poderia abandonar a nova proposta e retornar à
segunda?

O SILÊNCIO imediato ocorrido depois das palavras de Caroline lhe permitiu


pensar. Dava para ouvir pássaros gorjeando, o farfalhar das árvores pelo
vento, até mesmo as ondas arrebentando na enseada, há mais de um
quilômetro de distância. Não havia ruído que lhe atrapalhasse processar o que
a lady lhe dizia, mas Isaac suspeitou que seu cérebro virara mingau.
A primeira proposta que ele fez a Caroline foi para que ela lhe tirasse a
virgindade. Mas era claro que a lady não se referiria a ela. Isaac retirou
aquela proposta indecente e fez outra muito mais adequada no lugar: ele quis
casar-se com ela. Então, aquela era sua segunda proposta. Caroline falava de
casamento. Matrimônio.
Depois de semanas tentando convencê-la, ela finalmente dizia sim. Bem,
ela não disse, já que ele não fizera uma proposta correta. Esperava que ela
aceitasse antes de fazer um pedido formal, romântico, que representasse seu
desejo verdadeiro de unir-se a ela. Ninguém levava Caroline a sério, e não
acreditavam quando ele dizia que estava apaixonado por ela. Até seu irmão
achava que ele era um tolo ingênuo que fora seduzido pela Viúva Negra e
estava preso na teia da morte.
— Caroline, você não quer se casar comigo. — Ele sussurrou, tentando
não ser ouvido pela família que já parara o que fazia para observá-los. —
Está assustada pelo acidente. E eu estou cego, não sei se retomarei minha
visão. Você não quer se casar com um homem inválido que não poderá
sustentá-la.
— Oras, Isaac! Assim você me ofende. Primeiro, não quero mesmo me
casar com um homem. Quero me casar com você. Segundo, não preciso ser
sustentada. Tenho mais dinheiro do que qualquer mulher na minha condição.
Era verdade. Ele gostaria de vê-la nitidamente para deleitar-se na
expressão enfezada que certamente tomara sua face.
— Tem razão. Você não precisa de nada disso.
— Eu preciso de você. — Ela levou as mãos à face dele. — Somente de
você. Fique comigo, Isaac. Não quero mais arranjos nem encontros
escondidos.
Isaac olhou ao redor. Até sua mãe o fitava com curiosidade. Todos
esperavam que ele fizesse alguma coisa, que dissesse alguma coisa.
— Então vamos fazer isso da forma correta. — Isaac escorregou do banco
onde estava para o chão, colocando-se de joelhos. Ele segurava a mão dela
entre as suas. Caroline prendeu a respiração e permaneceu com os olhos
vidrados nos dele. — Lady Caroline Eckley, desde que nos conhecemos eu
venho me apaixonando por você. Dia após dia eu conheço uma mulher forte,
determinada, sensível e passional. Eu gostaria muito de passar todos os dias
que me restam pela vida descobrindo você. Por isso peço, você aceitaria ser a
minha esposa?
Uma lágrima molhou as mãos unidas. Isaac vira Caroline chorar por raiva
e nervoso, esperava que aquelas fossem lágrimas de alegria. O sorriso dela
clareou um pouco mais sua visão.
— Eu adoraria ser sua esposa, Lorde Isaac McFadden.
Nem a presença de Lavinia e Wilhelmina fez com que Isaac se
contivesse. Ele se levantou, erguendo Caroline consigo e a beijou. Foi um
toque delicado e ávido de lábios, longe do suficiente para representar a sua
felicidade. Ele estava prestes a fazer a ela a mais desonrosa das propostas.
Para manter Caroline ao seu lado, Isaac a convidaria para ser sua amante.
Eles poderiam ter um contrato e tudo o mais. Estava tão obcecado por ela que
seria capaz de aceitar a indignidade enquanto lutava para convencê-la a casar-
se com ele.
Precisou apenas quase morrer. Não achava que Caroline estivesse com ele
por piedade. Uma vez, ela disse que precisou de um choque para mudá-la.
Aquele choque talvez tenha exercido alguma influência sobre ela. Se fosse
ela a quase morrer, Isaac nunca mais permitiria que ela saísse de seu lado.
— Nate, você poderia ir até meu quarto buscar…
— Isso? — O irmão o interrompeu e colocou uma caixa aveludada em
sua mão. — Quando ouvi essa declaração toda, imaginei que fosse precisar.
— Obrigado.
— O que é isso? — Caroline demonstrou curiosidade. Isaac entregou a
ela a caixa e indicou que deveria abri-la.
— Desde que decidi que me casaria com você, mandei fazer esse anel.
Tinha esperanças que você aceitasse, um dia.
Ela abriu a caixa e encontrou um anel dourado com um rubi modesto no
centro, cravejado de brilhantes ao redor. Isaac temia que ela não gostasse da
peça. Ele não era um conde e não dispunha de uma fortuna para esbanjar.
Adquiriu a joia que considerava digna de Caroline e que estivesse dentro de
suas posses. Mas, olhando-a ali, envolta em nuvens e fumaça, ele sentiu
medo. Talvez Caroline esperasse um anel melhor. Maior. Mais caro. Ela fora
a sobrinha do marquês. Era rica e acostumada à riqueza.
Mas a lady colocou a joia em seu dedo anelar e sorriu novamente.
— É a coisa mais linda que já vi na vida.
E ela o beijou outra vez. Se a família dele não ficasse escandalizada
depois daquilo, não haveria mais nada que pudesse assustá-los.

A S MÃOS de Caroline tremiam depois que ela saiu do quarto de Isaac. Ele não
devia ter descido e se esforçado tanto. Ela precisou convencê-lo a subir e
beber um pouco de láudano para a dor - que ficou evidente um pouco depois
que ela aceitou o pedido de casamento. Depois que o lorde, seu futuro
marido, adormeceu, ela precisava voltar para Granville House e continuar seu
evento. Apesar de ter se decidido pelo casamento, Caroline também estava
decidida a convencer Isaac que nada mudaria significativamente em relação
aos seus negócios.
Mas ela estava muito nervosa, ainda. Pelo que aconteceu no dia anterior e
pelas regras que chegaram desavisadamente. Por um lado, era bom ter que
lidar com aquele inconveniente feminino - ela não estava grávida. Apesar de
estar acostumada ao sexo, Caroline nunca fora tão inconsequente quanto
estava sendo com Isaac. E tudo aquilo fazia com que ela estivesse à beira da
exaustão.
Ela ia embora quando foi atraída para o escritório de Edward. O conde
estava ali, com sua esposa, conversando alguma coisa sobre alguns papéis.
Ao vê-la passar, chamou-a para juntar-se a eles. Caroline não sabia se
deveria. Ela se impôs aos McFadden como fez aos Trowsdales. Decidiu que
eles seriam seus amigos, porque ninguém mais lhes dava qualquer
importância. Apesar de tudo que acontecera entre eles, nem Elizabeth nem
Agatha a desprezavam. Ao contrário, até a duquesa, que tinha motivos de
sobra para detestá-la, tratava-a com educação e respeito.
Caroline agiu muito mal, antes de ser internada em um sanatório. Ela
tinha um relacionamento de rivalidade com outras mulheres. Demorou a
entender que fazia aquilo porque não conseguia ser como elas e se
atormentava com inveja. Parte do seu processo de mudança e do perdão que
precisava angariar restava na necessidade de mostrar para Agatha que ela era
uma pessoa melhor.
E ela faria parte da família. Isaac era um irmão querido e certamente
haveria muitos encontros e reuniões, como aquela em Greenwood Park. Ela
não fugiu de Agatha antes, por que estava preocupada naquele momento?
— Caroline, beba conosco. — Agatha ofereceu a ela uma taça de vinho
branco. — Vou ajeitar algumas coisas e acompanhá-la até Granville House.
A escola também é minha, preciso participar de tudo.
— Ah, mas milady ajudou muito ontem. Não posso pedir que deixe sua
família novamente.
— Não está pedindo, estou oferecendo.
— Obrigada! Representa muito para mim que tenha me perdoado pelos
erros do passado.
— Eu também preciso do seu perdão, Caroline. — Foi Edward quem
disse. Ele virou uma dose de conhaque de uma só vez, indicando que aquele
assunto o incomodava. O conde não costumava desculpar-se por nada. —
Quando soube do envolvimento de Isaac com você, julguei mal suas
intenções. Eu pensei que…
— Que eu estava interessada em usar seu irmão. — Ela bebeu um gole de
vinho. — Eu estava. Não nego que uma parte de mim quis se aproveitar de
um jovem tão viril quanto ele. Mas meus sentimentos são verdadeiros. Eu me
apaixonei por Isaac.
— Consigo perceber. Ninguém se enfiaria em um buraco e arriscaria a
própria vida se não fosse por amor.
— Você não se importa de ele ser mais jovem? — Agatha demonstrou
curiosidade.
— Nem um pouco. Pensei que ele se importaria de eu ser mais velha,
porém isso não aconteceu. Nunca conheci um homem como Isaac. Eu seria
uma tola completa se deixasse que essa pequena diferença de idade nos
afastasse. Meus motivos para resistir foram outros. Eu sou muito
independente.
— Os homens McFadden não prendem suas mulheres. — Edward olhou
para sua esposa com ternura. — Meu pai nunca demonstrou afeto por mim,
mas eu aprendi com seu exemplo. Minha mãe tinha muito mais liberdade do
que qualquer mulher de sua época. Talvez por isso sejamos tão bobos, fomos
ensinados a nos casar por amor.
— Ainda bem, pois eu só aceitaria um casamento se pudesse me
apaixonar por meu marido. — Caroline riu. — Eu te perdoo, Edward, porque
sei quem eu fui e que reputação eu tenho. Você é um idiota, mas não tinha
como saber que eu não pretendia ferir os sentimentos do seu irmão.
A lady terminou de beber seu vinho e foi até a varanda. Não encontrou
nenhum outro McFadden, o que era revigorante. Não sabia se conseguia ter
aquela mesma conversa pela quarta vez. Estava acostumada a famílias
grandes, foi criada com cinco primos, mas ficava exausta de se repetir. Pediu
a um criado da residência que informasse à condessa que precisava partir, e
que a aguardava em Granville House.
Ela foi caminhando para Greenwood Park, voltou caminhando para casa.
Marquesa e Lorde a viram partir e a seguiram, latindo e brincando um com o
outro. Caroline olhou ao redor e sentiu-se melhor do que em qualquer outro
dia de sua vida. Mesmo que uma cólica desconfortável a fizesse praguejar em
silêncio, nada tiraria seu bom humor naquela manhã de verão. Mas ela teria
que fazer outra exigência ao marido. Eles teriam que morar em Kent.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO

O D UQUE DE S HAFTESBURY E O C ONDE DE C ORNWALL DECIDIRAM INTERFERIR


mais uma vez no relacionamento de Isaac e Caroline. Retornaram a Londres
para usar suas influências para conseguir uma licença de casamento. Como o
Parlamento estava em recesso e tudo ficava em suspensão na cidade, Isaac
não conseguiria casar-se antes do inverno. E ele planejava uma festa no
litoral, aproveitando que as famílias estavam por ali depois da temporada.
Portanto, os nobres cobraram favores para conseguir a licença.
Não havia muita pressa, apesar de tudo. Caroline precisava cuidar de suas
convidadas, entreter as famílias que participaram de seu evento, e elaborar
uma lista de possíveis matriculadas na escola. Ela gostava de tratar de
negócios pessoalmente e sem a interferência de administradores. Homens não
se sentiam confortáveis estando submetidos a uma mulher. Qualquer
administrador serviria apenas para desautorizá-la e irritá-la.
Isaac precisava se recuperar. Ele vinha lavando os olhos, com a ajuda de
Emile, e sua visão estava melhorando. Os hematomas também desapareceram
com o passar dos dias e o doutor Davies afirmou que suas costelas fraturadas
estavam se curando. Depois de uma semana, ele pôde retomar atividades
físicas leves. Menos cavalgar e entrar em luta corporal com outros homens, o
doutor deixou bastante claro.
E Caroline não estava em condições de organizar um casamento em tão
pouco tempo. Ela precisava de um exército de auxiliares para dar conta de
vestido, decoração e da comida da festa. Sem contar, precisava convencer a
todos que o casamento deveria acontecer nos destroços do maldito silo que
desabou.
— Acho que você perdeu definitivamente o juízo. — Rosamund balançou
a cabeça. — Caroline, o lugar está cheio de entulhos. Ninguém mexeu no
prédio ainda.
— É um bom motivo para limparem tudo. — Ela moveu os ombros, não
se importando que isso pudesse dar muito trabalho. Pessoas eram pagas por
aquele serviço, e a maioria precisava do pagamento. — Aquele lugar é
especial para mim. Eu desejo que meu casamento aconteça lá. Está calor, não
há riscos de temporais e podemos fazer algo que inclua os arrendatários.
— E você quer incluir os arrendatários na lista de convidados? — Foi a
vez de Anthony se surpreender. Eles estavam na biblioteca conversando
casualmente antes do chá das cinco.
— Isaac gostaria. Ele adora os arrendatários e empregados de Greenwood
Park. Creio que seja porque ele é administrador das terras e tem contato
direto com eles. Eu faria isso por ele, não vejo nenhum problema.
— Isso pode desagradar alguns convidados de sangue azul.
— Os nobres só fizeram me desprezar a vida inteira, não faço questão de
agradá-los.
Anthony e Rose sorriram. O marquês sabia que tinha participação naquele
comportamento de Caroline e ela sabia que ele se orgulhava disso. Mas ela
nem sempre agiu com altruísmo e respeito. Aproveitaria aquele crescimento
para realmente ser uma pessoa melhor.
Por todos esses motivos, o casamento aconteceu mais de um mês depois
do pedido. Era um noivado curtíssimo, porém foi longo demais para um casal
que se manteve em celibato involuntário por razões variadas. Caroline podia
afirmar que estava em desespero quando chegou o dia do casamento. Se ele
demorasse mais uma hora, teria que invadir Greenwood Park novamente e
assaltar seu marido sexualmente.
Mas, de certa forma, valeu a pena esperar. Por ele, por aquele momento.
Quando ela colocou o pé fora da carruagem que a conduziu até o silo
desmoronado, percebeu que estava vivendo um conto de fadas da vida real.
Caroline foi proibida de participar diretamente dos preparativos. Ela
escolheu cardápio, escolheu bolo, escolheu vestidos. Tomou decisões
importantes e não o fez ao lado do noivo, que estava se recuperando. Mas ela
não viu nada pronto, pois Isaac prometeu que faria com que o lugar ficasse
perfeito. E ele não a decepcionou. Ele nunca decepcionava.
Todo o entulho fora recolhido e retirado. Sobraram algumas colunas e
meias paredes de pé, e elas serviram para sustentar uma decoração de flores e
pequenas lamparinas. Colocaram cadeiras para os convidados assistirem à
cerimônia, improvisaram um altar e usaram tecidos para enfeitar as partes
mais destruídas. Tudo estava lindo. Tão lindo que Caroline precisou segurar
suas lágrimas para não aparecer com os olhos inchados e vermelhos no
próprio casamento.
— Vamos, minha querida. — Anthony segurou Caroline pela mão. —
Seu noivo te espera, e ele parece muito mais ansioso do que eu estava quando
me casei.
Ela sorriu. O primo era um homem muito bonito, mas era seu primo.
Anthony sempre foi uma espécie de irmão mais velho, ela o adorava e o
tratava como tal. Entrar na cerimônia com ele ao seu lado era tudo que ela
esperava e precisava.
A marcha nupcial começou a tocar quando ela apareceu. Havia um trio de
cordas da vila, três jovens filhas de fazendeiros que aprenderam a tocar
violino para ajudar na conquista de um bom marido. Todos os convidados se
levantaram, e Caroline reconheceu praticamente cada um deles. Seus
parentes, os familiares de Isaac, a família do Duque de Shaftesbury,
arrendatários das duas propriedades, pessoas da vila. A esposa do ferreiro
estava melhor e pode comparecer, junto ao marido e filhos.
Eram todos amigos, colegas, pessoas que a respeitavam, apesar de tudo.
Não havia nenhuma pompa e nenhum membro fajuto da sociedade. Ela se
sentiu em casa.
Mais em casa ainda estava seu coração ao ver Isaac esperando por ela no
altar. Ele usava traje preto completo, uma gravata cinza e colete da mesma
cor, bordado com qualquer linha brilhante. A claridade do dia fazia com que
seus olhos azuis de mar reluzissem mais do que qualquer coisa existente. E
ele sorria. Um sorriso tão largo e verdadeiro que fez com que ela desejasse
correr para ele e abraçá-lo. Foi a primeira vez em muito tempo que Caroline
não quis ser devassada por um homem que desejasse. Eles estavam,
finalmente, em outro nível de relacionamento.
Ao se encontrarem no altar, Anthony franziu as sobrancelhas e olhou para
Isaac. Por trás dele estavam seus irmãos, os três. O estranhamento do
reconhecimento masculino durou segundos. O marquês sorriu largamente e
colocou a mão de Caroline sobre a do seu futuro marido.
— Cumpriu bem a promessa que me fez, Isaac. Mas você ainda precisa
continuar cuidando da minha garota, as ameaças duram pela vida inteira.
— Que ameaças? — Caroline murmurou no ouvido de Isaac, depois que
Anthony se afastou e voltou para o público.
— Não são ameaças. Apenas um combinado entre homens.
Ela conhecia bem aqueles combinados. Mas era bom saber que seu primo
zelava por sua felicidade - e que Isaac estava disposto a fazer o mesmo. O
pároco da vila pigarreou e iniciou a cerimônia, simples e direta. Caroline não
gostava de muitos floreios e bordados, ela preferia que tudo fosse objetivo
para não causar interpretações em excesso. Depois dos votos, Marquesa e
Lorde apareceram, cada um segurando um potinho de metal com as alianças.
— Eu vos declaro, de agora em diante, marido e mulher.
Aquelas palavras fizeram com que Caroline quase parasse de respirar.
Olhou para o lado e ele estava ali. Fazia dias que ele sempre estava ali. A
partir daquele momento, ele era seu marido e estar ali se tornou permanente.
Eles viveriam juntos, dormiriam juntos, teriam filhos que criariam juntos.
Porque, se Isaac fosse um bom representante dos McFadden, era aquilo que a
esperava.
E isso porque eles sequer haviam decidido onde morariam. Tudo
aconteceu mais rápido do que ela esperava.
Depois da cerimônia, havia um brunch na mansão em Greenwood Park.
Pela primeira vez, arrendatários, empregados, moradores da vila e nobres se
reuniram independentemente de suas origens. Havia mesas com presuntos,
bacon, ovos, pães, tortas de carne e outras iguarias salgadas. E mesas com
doces, bolinhos, tortas com cobertura e muitos morangos. Criados serviam
vinho e champanhe para todos.
— Você está tensa. — Isaac sussurrou para ela, que segurava o braço dele
com um pouco de força demais.
— Estou acostumada a chamar atenção em eventos, mas por outros
motivos.
— Se quiser, podemos cumprimentar a todos e ir embora. É seu
casamento, ninguém se importará se quiser começar a lua de mel um pouco
mais cedo.
— Seu devasso. — Ela deu uma risadinha e recostou no ombro dele. —
Não, vamos ficar aqui. Quero comer, quem sabe dançar uma valsa.
O conde de Cornwall os interpelou, trazendo duas taças de champanhe.
Entregou aos noivos e, em seguida, tirou do bolso de seu paletó um papel.
— O que é isso? — Isaac perguntou ao receber o documento que continha
um selo oficial.
— Papai deixou claro que todos vocês deveriam receber uma propriedade
depois que se casassem. Há uma reservada para Nate, outra para Emile, além
do dote de Wilhelmina. Eu tenho o poder de escolha, e acredito que você
preferirá continuar em Thanet, certo?
Isaac balançou a cabeça e abriu o documento. Caroline esticou-se para ler
a escritura que estava nas mãos do marido. Era uma transferência de terras,
mais especificamente as terras ao leste de Greenwood Park.
— Você está me dando Sunnyside Bay?
— O que é Sunnyside Bay? — Caroline pegou o papel para examiná-lo.
— São as terras que ficam próximas à enseada. Há uma grande área onde
Isaac pode desenvolver a criação de animais, além da agricultura. Já tem
arrendatários e uma belíssima casa com vinte e cinco cômodos. Não é grande
como essa aqui, mas acredito que…
— É maravilhoso! — Isaac sorriu. Caroline viu a emoção nos olhos do
marido. — Eu não esperava isso, pensei que receberia algo em Londres.
— Você já tem algo em Londres.
— Obrigada, Edward. Sei que Caroline vai adorar ficar perto dos Eckleys
quando estivermos em Londres.
— Você pode apresentar a casa a ela em breve. Nós cuidamos para que
ela estivesse organizada, limpa e preparada para vocês. Hoje.
— Hoje? — Ela arregalou os olhos. — Pensei que ficaríamos no hotel
antes de sairmos em lua de mel.
— Não precisam ficar. A casa de vocês está esperando.
O conde ergueu a sua própria taça de champanhe e fez um brinde
silencioso e solitário para os noivos. Caroline não tinha certeza se Isaac
receberia alguma propriedade, mas aquilo não importava para ela. Casara-se
com ele, não com suas posses. Mas saber que teria uma casa para si tão perto
do lugar que chamava de casa era gratificante.
— Não sei você, mas estou com muita vontade de conhecer Sunnyside
Bay. — Ela sussurrou no ouvido do marido. Ele ergueu o canto da boca em
um sorriso irresistível.
— Vamos cumprimentar os convidados e desaparecer.

N ÃO FOI fácil acreditar que a propriedade dada a ele era a sua favorita durante
toda a sua infância. Isaac sempre adorou estar perto do mar e a casa em
Sunnyside Bay ficava ridiculamente perto da praia. A brisa marinha entrava
pelas janelas o dia inteiro e, da suíte principal havia uma vista perfeita para o
mar de Thanet.
Depois de passarem duas horas cumprimentando todos no brunch, Isaac e
Caroline escaparam sem serem vistos e foram de carruagem até a
propriedade, que não ficava muito distante da casa principal em Greenwood
Park. Ele nunca pensou que, um dia, levaria sua esposa para lá. Quando
chegaram, havia um criado para recebê-los.
— Seja bem-vindo, milorde. Sou Taylor, seu mordomo.
— Muito prazer, Taylor. Creio que meu irmão tenha escolhido você.
— Sim, o conde foi muito gentil em me dar esse emprego. Posso
apresentá-los aos criados agora ou milorde preferirá…
— Podemos fazer as apresentações amanhã. — Isaac entregou seu chapéu
de castor ao mordomo. — Agora, eu preciso fazer com que minha esposa
conheça a vista.
— Cuidarei para que não sejam incomodados, milorde.
Como todo criado dos McFadden, aquele certamente era muito bem
treinado. Taylor desapareceu pelo corredor e Isaac conduziu Caroline pelas
escadas. Ela estava muda até então, deixando que o olhar vagasse por todos
os detalhes da casa. O lorde parou no meio do caminho e virou-se para a
esposa, que parecia bastante dispersa.
— Estou sendo autoritário. — Ele disse, passando as mãos pelos cabelos
dela. — Você quer conhecer os criados? Conhecer a casa toda agora?
Cômodo por cômodo?
— Não. Estou apenas um pouco assustada, Isaac. Nunca fui uma esposa
antes. Sei gerenciar negócios, mas nunca precisei cuidar de uma casa. E essa
casa maravilhosa… bem, tenho medo de falhar.
— Você não falhará, Caroline. Você nunca falhou em nada do que fez.
Tenho plena confiança que, logo, você terá todo o controle da situação.
Ele deu um passo na direção dela e, com um puxão, segurou-a em seus
braços. No colo. Desde que sua visão retornara praticamente por completo,
ele também recuperou a confiança e a força muscular. Ela deu um gritinho e
se agarrou no pescoço dele para manter o equilíbrio.
— O que é isso?
— O marido deve levar a mulher nos braços para o leito nupcial.
— Isso é definitivamente muito tolo.
— Sou tolo e sou romântico. Você terá que aprender a lidar com isso.
Isaac subiu o restante das escadas, abriu a porta do quarto com um pé e
fechou com o outro, e depositou sua esposa sobre a enorme cama de dossel
que ficava bem no meio da suíte. Depois, foi até as duas janelas que ficavam
ao lado da cama e abriu as cortinas para revelar a mais esplêndida visão de
Thanet. O mar da enseada, já na penumbra, sendo engolido pela escuridão da
noite.
— Oh meu Deus, Isaac. — Caroline pulou da cama e foi até a janela. —
Isso é lindo. É quase como estar no Paraíso.
Sim, era. Ele se aproximou por trás e começou a soltar os grampos dos
cabelos dela. Enquanto Caroline apreciava a vista que desaparecia diante de
seus olhos, absorvida pela beleza, ele beijava-a no pescoço enquanto soltava
seus cachos do elaborado penteado feito por Violet. Havia pouca iluminação
no quarto, mas naquele momento ele queria apenas sentir. O cheiro de
jasmins, a maciez da pele, a pulsação naquela zona sensível no pescoço dela.
Caroline apoiou as duas mãos na janela. Isaac desceu os carinhos para os
botões perolados do corpete. Aquele era o vestido de noiva mais lindo que ele
já vira. Era a primeira vez que ela não usava vermelho. Mas também não era
branco, era de um tom de creme que fazia com que Caroline parecesse uma
sobremesa a saborear. Com os cabelos soltos, ela poderia ser um manjar
esperando ser devorado. Isso fazia com que ele não tivesse muita paciência
com os botões.
Ainda assim, Isaac não os arrancou. Abriu um a um enquanto beijava-a
nos ombros e se deliciava com os sons que ela emitia a cada toque. O corpete
afrouxou e cedeu. Depois de terminar os botões da saia, o vestido inteiro caiu
aos pés de Caroline.
Ele já fizera aquilo outras vezes. Já a despira e já a possuíra de muitas
formas. Mas, naquele momento, ela era sua esposa. Ela era dele. E parecia
bem satisfeita com aquela condição. Isaac trabalhou nas fitas do espartilho e
retirou cada peça de roupa que cobria aquele belo corpo feminino. Depois,
abraçou-a por trás, forçando sua ereção contra suas costas.
— Você ainda está vestido. — Ela murmurou, sentindo-o deslizar as
mãos para o centro de suas pernas.
— Não teremos uma consumação formal de casamento. — Ele provocou,
virando-a para si. As costas de Caroline bateram contra o vidro da janela. —
Então eu posso me divertir fazendo as coisas que você se propôs a me
ensinar.
— Pelos céus, quando você se tornou tão arrogante assim?
Ela riu, mas a risada saiu estrangulada. Isaac arrancou os tecidos do
caminho deles e se ajoelhou, colocando uma das pernas de Caroline sobre
seus ombros.
— Eu sempre fui, milady. Mas agora eu sou um arrogante com
experiência.
Isaac acariciou os cachos castanhos que cobriam o objeto de seu desejo e,
com os polegares, expôs o sexo de sua esposa. Envolveu-a com a boca e
lambeu-a suavemente. Caroline gemeu e se contorceu enquanto ele segurava
o clitóris entre os lábios e sugava.
— Parece que você aprendeu muito bem. Acho que sou uma professora
muito eficiente.
Ele riu e continuou a beijá-la ali. Sim, Caroline era uma professora muito
boa. Não porque entendia do ato sexual, mas porque colocava significado
nele. Ela o ensinou a compreender seus gemidos, a entender cada movimento
de seu corpo, a perceber quando ela estava desesperada de desejo e prestes a
explodir no clímax. Dar prazer a ela era uma das coisas que ele mais se
deliciava em fazer.
Antes que Caroline chegasse ao orgasmo, ele parou. Ela ameaçou
protestar, mas ele levou as mãos às suas roupas e arrancou-as, quase com
pressa demais. Caroline segurou seu membro rígido nas mãos e ele grunhiu.
— Estou sem você há semanas. Se você não tomar cuidado, duvido que
eu possa durar muito.
— Pois eu quero que dure o máximo de tempo que puder. — Ela
conduziu-o para sua entrada, molhada e inchada, esperando por ele. — É a
primeira vez que farei sexo com um marido, estou achando isso muito
excitante.
Era excitante. Isaac penetrou-a com intensidade demais e fez com que ela
batesse no vidro novamente. Caroline riu e ele sabia que ela não se opunha a
um pouco de virilidade. Ela o enlaçou com as pernas e Isaac passou a mover-
se lentamente, beijando-a. Segurava-a pelos quadris, com as mãos debaixo
das nádegas, e percorria seus lábios, seu pescoço, ia até os seios, mordiscava
os mamilos. Enquanto ela gemia e murmurava seu nome, ele entrava e saía
dela e estimulava-a com o polegar acariciando o clitóris.
Aquela foi outra coisa que ele estava aprendendo. Ela podia atingir o
ápice enquanto ele estivesse dentro dela, se tivesse ajuda. Percebendo o que
ela dizia e como ela o envolvia com seus músculos apertados, Isaac ia e vinha
enquanto a acariciava onde ela mais gostava até que ela colapsasse em seus
braços chamando por ele.
Encontrando seu próprio alívio, Isaac investiu mais algumas vezes contra
Caroline e a abraçou, permitindo mais uma vez que sua semente a
preenchesse. Daquela vez, pelo menos, não havia risco algum. Eles eram
marido e mulher. Eles pertenciam um ao outro.

— O S CRIADOS FICARÃO ESCANDALIZADOS se continuarmos fazendo isso.


Caroline disse, deitada na enorme cama, aninhada nos braços de Isaac.
Eles tinham acabado de ter uma sessão de sexo rápido, intenso e barulhento.
Móveis rangeram, o vidro da janela estava gorduroso pelo suor e a madeira
do piso estalou.
— Você vai adorar que eles espalhem pela vila que seu marido é um
homem viril e incansável, não vai?
— Ah, definitivamente, eu vou. — Ela riu e virou-se na cama para ficar
de frente para ele. — Eu amo você! É muito ridículo que eu diga isso
algumas vezes?
— Céus, é maravilhoso que você diga. — Isaac puxou-a para um beijo
rápido. — Eu tinha um pouco de medo de estar sozinho nessa coisa de amor.
Sinto-me bem melhor que minha esposa também me ame.
— O que faremos agora? Vamos viajar, passar uma semana em uma ilha
e quando voltarmos…
— Tudo continuará no mesmo lugar. Eu administrando Greenwood Park,
você cuidando de seus negócios.
Caroline sentou-se na cama e cruzou as pernas. Ela não tinha nenhum
constrangimento com sua nudez e adorava ver Isaac sem roupas. Ele era tão
lindo que não merecia viver coberto por tecidos.
— Você não vai querer interferir?
— Nos seus negócios? Por Deus, não. — Isaac fingiu espanto. — Eu não
sou bom com esse tipo de empreendimento, Caroline. Não entendo nada de
escolas, nem de hotéis. Você já tem um combinado com Oglethorpe e ele é
um empresário brilhante.
— Não vai querer controlar o dinheiro, transferi-lo para uma conta
conjunta…
— Caroline. — Isaac também sentou e segurou as mãos dela. — Eu não
quero que nada mude. Quando te conheci, você era independente e fantástica.
Eu te achava uma aberração até te conhecer. E eu me apaixonei por cada
pedacinho de você. Ser minha esposa não mudará isso, apenas me dará
permissão para acordar ao seu lado, esmurrar homens que olhem para seu
decote e engravidá-la dos meus filhos. Você quer filhos, não?
Sim, ela queria. Caroline dobrou o corpo e beijou seu marido, um
movimento bastante equivocado. Logo, eles estavam envolvidos novamente
um com o outro, absorvidos pela paixão. Aquela seria uma das muitas noites
que ela passaria com Isaac, e suspeitava que todas seriam muito boas. Afinal,
ele foi o melhor não que ela já dissera na vida.
EPÍLOGO

C AROLINE BAIXOU A CANETA SOBRE O PAPEL E PRESSIONOU AS TÊMPORAS . E LA


estava muito cansada e sem ideias para vender o mesmo produto por mais
uma temporada. A escola era um sucesso, mas logo se iniciaria terceiro ano
de existência e ela ainda precisava de estratégias para convencer moças de
que bordar e pintar não eram os únicos talentos admissíveis em uma mulher.
Depois da inauguração da participação da Condessa de Cornwall na
sociedade, muitas jovens damas, entre quinze e dezessete anos, foram
matriculadas por seus pais e tutores. A maioria não era da alta sociedade
londrina, já que os arrogantes não aceitavam muito bem os escândalos da
família Trowsdale, depois McFadden, e finalmente Eckley. Não importava.
Caroline queria atingir mulheres, queria fazer o mesmo que fizeram por ela
durante seu período de internação.
No prédio da escola havia um exemplar de Reivindicação dos Direitos
das Mulheres em cada cômodo. Todos os quartos eram ornamentados com
veludo, seda, cetim e livros inspiradores. As aulas iam do tradicional piano
até história, geografia, matemática, física. Caroline e Agatha conseguiram
professoras francesas e americanas que se dispuseram a participar do projeto
de instruir mulheres. E a própria Caroline era uma das tutoras que ensinava
sobre gestão de negócios - que ela aprendeu na prática, mas fazia muito bem.
— Caroline? — A voz de Isaac ecoou pela biblioteca. Ela levantou a face
e olhou para a porta para ver o marido com meio corpo para dentro do
cômodo. — Você está muito ocupada?
— Não, meu amor, pode entrar.
Ela sorriu ao vê-lo, porque Isaac sempre a fazia sorrir. Um pouco
desajeitada, Caroline afastou a cadeira da mesa e se levantou, sentindo seu
centro de gravidade pender para frente. O marido a segurou, impedindo que
perdesse o equilíbrio. Marquesa, que estava deitada no tapete, latiu para
indicar que estava atenta ao movimento. A cachorra se esticou, preguiçosa, e
exibiu a barriga redonda querendo receber carinho.
— Vim ver se precisa de ajuda. É tão tarde e você ainda está aqui,
trabalhando.
Com cuidado, Isaac ajudou Caroline a acomodar-se em um sofá.
Morando há mais de dois anos em Sunnyside Bay, eles já tinham decorado e
ajustado a casa como gostavam. Em Londres, ficavam no apartamento de
solteiro de Isaac. Mesmo pequeno, era um espaço confortável e que os
acomodava bem. O de Caroline fora vendido e o dinheiro reinvestido.
Quando acabava a temporada e a escola encerrava suas atividades,
retornavam para Kent, pois o marido precisava manter a administração de
Greenwood Park com rédeas curtas.
Isaac colocou os pés da esposa sobre seu colo e começou a massageá-los.
Passava de uma hora da manhã. Ela estava de camisola de musselina e
roupão de veludo, com os pés descalços.
— Preciso preparar convites para a escola e não estou conseguindo nada.
— Tente não exigir tanto de você. — Ele subiu a massagem para os
tornozelos, para a panturrilha, desceu novamente para os pés. — Amanhã
vamos à praia para você espairecer um pouco.
— Não posso ir à praia neste estado. — Caroline colocou a mão sobre a
barriga, também redonda. — Nem roupas de banho eu tenho, estando desse
tamanho enorme.
— A praia fica em frente à nossa casa, meu amor. Vá de camisola, se
quiser.
Ele tinha razão, Caroline nunca se importou em exibir-se, ainda mais em
uma praia privativa. Mas ela estava ranzinza e muito sensível desde que se
descobriu grávida. Seis meses depois, sua saúde estava ótima, mas seu corpo
mudara completamente. Aquilo a deixava insegura e a insegurança a deixava
mais aborrecida do que a falta de criatividade para elaborar textos a fim de
atrair clientes.
A gravidez veio tarde, quando Caroline já estava muito velha para ter
filhos. Depois de quase três anos de casada, ela já estava na casa dos trinta e
se sentia muito incapaz de gerar e parir uma criança. Havia muito risco e o
doutor Davies recomendou que ela repousasse o máximo possível. E a dama
seguia o que dizia o médico porque Isaac se preocupava demais e ela estava
disposta a colocar nos braços dele uma criança saudável.
— Acha que será um menino? — Ela perguntou, distraindo o marido do
assunto anterior.
— Não me importo se for menino ou menina, mas sim, eu acho.
Principalmente se for para troçar com Edward.
Marquesa protestou outra vez. Continuava na mesma posição, querendo
atenção de Isaac tanto quanto Caroline recebia.
— Vocês duas não podiam ter engravidado na mesma época. — Ele
esticou um braço para fazer carinho na cadela. — E quando nascerem os
filhotes, o que faremos?
— Ah, vamos cuidar deles. Deixar que os filhos de Elizabeth escolham
um. Presentear Lavínia com outro. E o restante fica aqui, correndo pelo
jardim.
— Terei que conversar com Lorde. Ele precisa ter mais cuidado.
— Ele precisa? — Caroline acariciou a barriga. — Você não tem moral
para repreender o cachorro, meu marido.
— Caroline, do jeito que é nosso casamento, surpreende-me sinceramente
que você não tenha engravidado antes. Não foi por falta de tentativas.
Ela deu uma risada e o bebê se mexeu dentro dela. Caroline pegou a mão
do marido e colocou sobre sua barriga e pediu que ele a acariciasse. O bebê
mexeu de novo. Aquilo fez com que Isaac abandonasse qualquer outra tarefa
para colocar as duas mãos sobre seu filho e senti-lo se movendo para lá e para
cá dentro da mãe.
— Vamos para a cama. — Ele se dobrou sobre ela e a beijou. — Quero
contrariar um pouco as recomendações do doutor Davies sobre a gravidez.
— Adoro quando você fica rebelde, meu marido.
Isaac sorriu e ajudou-a a levantar-se. Aqueles eram os dias e as noites em
Sunnyside Bay, confortáveis, divertidos e apaixonados. O sentimento que ela
nutria pelo marido não esmoreceu, não diminuiu, não se perdeu com o tempo.
O cuidado e carinho dele para com ela permaneceram o mesmo. E, nenhuma
vez, Isaac pretendeu impedi-la de fazer o que fosse preciso para gerir seus
negócios. Ela continuava transitando entre os homens, elaborando contrato e
frequentando os clubes de cavalheiros.
A vida deles era muito diferente do que fora há três anos. Caroline não se
sentia mais solitária. Tinha companhia, tinha ajuda e tinha, acima de tudo,
amor.
NOTA DA AUTORA

Eu não costumo escrever notas, mas esse livro pede alguns comentários, não
pede?
Quando comecei as pesquisas para escrever romances de época, eu já
sabia um pouco sobre a realidade das mulheres nos séculos passados: sem
direitos, tratadas como propriedade dos pais, irmãos e maridos, sem
autonomia, sem que suas potencialidades pudessem ser desenvolvidas. Isso
porque eu tinha acabado de terminar meu doutorado em Direitos e Garantias
Fundamentais e temas como desigualdade de gênero e violência contra a
mulher foram os que mais estudei durante 5 anos inteiros.
Eu também já havia notado que os romances de época traziam suas
discussões sobre essa realidade. E foi aí que tive a ideia de criar Caroline
Eckley, uma mulher que destoava dos padrões, que recusava os estereótipos e
que era desrespeitada e rejeitada por isso. Caroline foi descrita como louca,
insana e desagradável no primeiro livro, mas isso foi proposital - mulheres
diferentes do padrão eram comumente consideradas loucas e internadas em
sanatórios.
Uma das partes interessantes da pesquisa se relacionou ao Married
Women’s Property Act de 1882, a lei britânica que concedeu às mulheres o
direito de manter propriedades e de existir como seres em separado de seus
maridos, depois do casamento. Até aquele ano, quando as mulheres se
casavam elas deixavam de existir. Marido e mulher viravam uma pessoa
única e apenas o marido despontava. A personalidade da mulher era apagada
por completo e seu patrimônio (caso ela tivesse) era absorvido pelo marido.
Quando Caroline se tornou adulta, a Married Women’s Property Act
estava se tornando realidade. Mas, apesar de existir no papel e valer para toda
a Inglaterra, Gales e Irlanda, a lei não mudou os costumes. Era incomum que
uma mulher efetivamente conseguisse gerenciar seu patrimônio depois que se
casasse. Mesmo que ela não fosse mais absorvida por seu marido, ela ainda
era controlada e submissa a ele.
A rejeição ao casamento podia ser uma forma de rebeldia a essa
realidade. O que não era uma decisão fácil, já que mulheres solteiras eram
mal vistas pela alta sociedade - ganhavam a denominação “solteironas” e
eram consideradas mulheres infelizes e incompletas.
Fico frustrada por ver que, hoje em dia, ainda há mulheres que se sejam
colocadas na posição de escolher constituir família pela via do casamento ou
seguir suas carreiras profissionais. Estamos no Século XXI e ainda
precisamos nos manter vigilantes quanto aos direitos pelos quais algumas
mulheres morreram para conquistar por nós.
Os livros que Caroline menciona são A Vindication of the Rights of
Women, de Mary Wollstonecraft e Subjection of Woman, de John Stuart Mill.
São obras fundamentais para se compreender a luta de mulheres por direitos
antes que os movimentos sociais se consolidassem, por volta de 1960.
Recomendo!
Beijo grande e até o próximo livro!
PRÓLOGO

THANET, ANO DE 1894


N ENHUMA MULHER DEVERIA SER TOLA DE SE APAIXONAR . P RIMEIRO , PORQUE
poucos homens valiam o preço de um coração. Segundo, porque ela arriscaria
encontrar o amor de sua vida e não poder ficar com ele. Mas Wilhelmina
jamais imaginaria a sua vida sem paixão. E foi com a certeza de que preferia
ter um coração partido a nunca ter experimentado o amor que ela decidiu se
encontrar mais uma vez com Thomas Caldwell, o enteado da modista.
— Ninguém vai nos descobrir aqui.
Ele afirmou, segurando-a pelas mãos enluvadas e conduzindo-a até uma
construção em ruínas, na direção norte da vila.
— Não sei se temo ser descoberta. Assim, teríamos que nos casar.
Ninguém seria contrário ao nosso enlace.
Thomas era um cavalheiro perfeito - com o defeito de não ser um
cavalheiro. O pai era arrendatário dos McFadden e trabalhava diretamente
para Isaac, um de seus irmãos mais velhos. Depois de viúvo e com três filhos,
casou-se com a modista da vila, que também era viúva. Desde jovem,
Thomas aprendeu a ser honrado, gentil e respeitador. E o abismo que o
separava de Wilhelmina não foi suficiente para impedir que o tolo coração da
jovem se encantasse completamente.
Eles se encontraram em segredo várias vezes. Sempre que ela precisava
provar um vestido novo, ele estava lá. Wilhelmina nunca precisou de tantos
vestidos como no último ano - e usava a boa desculpa de sua primeira
temporada à frente. Se ela debutaria em Londres, precisava de uma nova
coleção de vestidos.
Não adiantou que seu outro irmão, o Conde de Cornwall, oferecesse levá-
la a Londres para comprar com as melhores modistas da cidade. Ela não
queria vestidos, mas estar próxima de Thomas. Ela chegou a conseguir adiar
o seu debute, a atrasar sua apresentação à sociedade e a sua primeira
temporada, apenas por ele. Mesmo que apenas trocassem olhares, era
suficiente.
Depois foram algumas palavras. Meses se passaram até que ele teve
coragem de tocá-la. A seda da luva não conseguiu protegê-la das ondas de
calor que a arrebataram, depois daquele toque. O tempo passava e eles se
tornavam mais próximos, até que o inevitável os separaria: a temporada
social em Londres. Wilhelmina encontraria um marido e o breve romance que
experimentaram terminaria.
— Você não quer isso, minha flor do campo. — Thomas beijou-a nos
dedos. — No fundo, sabe que não podemos ficar juntos como marido e
mulher.
— Minha família é estranha, Thomas. Meu irmão se casou depois de um
escândalo. Meu outro irmão desposou uma libertina. Eles não são
convencionais.
— Há diferenças entre se casar com uma libertina de sangue azul e um
plebeu miserável como eu.
Ele sorriu, triste. Wilhelmina sabia que aquele encontro era uma
despedida, mas ela negava. Recusava-se a aceitar que precisava abrir mão do
amor por causa das convenções sociais, mesmo sabendo que o faria.
O lugar do encontro secreto era empoeirado e não tinha móveis. Eles se
sentaram em pedras empilhadas, de frente um para o outro. Wilhelmina
apressou-se em tirar as luvas para tocar a face do seu amado. Ele era muito
jovem ainda e tinha olhos expressivos e escuros como a noite. Os dela
também eram escuros.
— Se vamos dizer adeus, ao menos mande-me embora com uma memória
que ficará comigo para sempre.
— Não vou mandá-la embora. — Thomas suspirou. — Você irá porque
precisa. Mas sim, eu lhe darei as memórias que deseja.
O jovem segurou a face de Wilhelmina e levou sua boca até a dela. O
toque de lábios vacilante indicou que ele também não tinha muita experiência
em beijos. Ainda assim, ela teve certeza de que jamais esqueceria da maciez e
do calor que sentiu ao ser tocada de forma tão íntima. Depois de um minuto,
acabou. E, daquele momento em diante, ela sabia que seria incapaz de amar
outra pessoa.
CAPÍTULO PRIMEIRO

LONDRES, ANO DE 1898


E LA NÃO SABIA COMO SE METERA NAQUELA SITUAÇÃO . M AS , ENQUANTO
girava pelo diminuto espaço do escritório de Edward, seu irmão mais velho, o
Conde de Cornwall, Wilhelmina McFadden sabia que não teria uma saída
fácil.
Tudo começara no baile da Duquesa de Norfolk. Os Olsen adoravam
bailes, faziam pelo menos uns três em Londres e outros mais em Hampshire.
Wilhelmina fora a todos da temporada passada e retrasada. Aquela era sua
terceira temporada, que já estava no fim e ela não recebera nenhuma proposta
atraente de casamento.
Claro que recebera propostas. Era a irmã de um conde e tinha um dote
obsceno. Poucas damas disponíveis possuíam um dote como o dela. Mas,
apesar de ser uma dama tradicional e desejar um casamento nos moldes
aristocráticos, Wilhelmina não queria entrar em um negócio onde ela
investiria tempo, dinheiro e esforço e não teria nenhuma retribuição. Era
daquela forma que via as propostas de todas as temporadas.
Alguns nobres solteiros eram jovens e bonitos, mas poucos desses a
queriam. Havia damas mais lindas nas suas duas primeiras temporadas. Na
verdade, havia muitas damas mais lindas do que ela em todas as temporadas,
porque Wilhelmina era comum. Ao menos era como se enxergava, uma
beleza comum. Não tinha nenhum atributo muito atraente e ainda insistia em
ter assuntos muito elaborados para uma dama.
“Você fala demais”, era o que ouvia todo dia de sua acompanhante, a Sra.
Friedman. Edward teve o cuidado de contratá-la para garantir que
Wilhelmina fosse muito bem-educada para as temporadas - e também
protegida de abutres que tentassem enganar sua irmã mais jovem. E era
verdade, Wilhelmina adorava conversar. Estudou um ano inteiro na escola de
jovens moças de Caroline e Agatha, suas cunhadas, e tinha muita coisa para
discutir.
Mas só queriam que ela falasse sobre o clima. Ou sobre rendas, bordados
e babados. Ela falaria daquelas coisas, se fosse para discutir o preço no
mercado. Ou exportações daqueles produtos.
E, naquele baile em específico, Wilhelmina não saberia dizer bem como
foi que terminou encantada por um patife. Talvez tenha sido por causa do
ponche - ela bebera três copos em seguida e quase não comera nada. Mais
provável que tenha sido porque o lorde em questão tenha se aproximado dela
e, sem lançar elogios desnecessários, quis ouvi-la. Ela tinha certeza que foi
porque estava desiludida. O único homem que amara não seria o homem com
quem se casaria. Wilhelmina ainda nutria alguma esperança de se casar com
Thomas Caldwell, porém estava cansada de esperar por ele.
E aquele cavalheiro… ele era um canalha, mas foi muito sagaz ao se
aproximar dela. Tendo sido o primeiro homem que demonstrou algum
interesse pelo que ela tinha a dizer, conseguiu seduzi-la bem a ponto de
roubar dela alguns beijos no jardim.
— Não foram somente alguns beijos.
Edward esbravejava na biblioteca. As paredes da McFadden Garden eram
grossas, mas dava para ouvi-lo gritar do outro lado da casa. Era como se ele
soubesse o que a irmã estava pensando.
— Aqui diz que ela estava com o corpete frouxo! Sabe o que isso
significa, Agatha!
Wilhelmina encostou um copo de vidro na parede, apoiou-se em uma
cadeira e começou a espiar a conversa. Não, a contenda.
— Sei, meu amor. Claro que sei, como acha que acabamos casados?
— Nosso caso era diferente.
— Explique-me no que era diferente.
— Eu não fugi. Eu tomei a decisão honrada e me casei com você.
Um ruído assustou a jovem, que quase se desequilibrou. Barulho de
madeira rangendo e uma maçaneta girando chamaram a sua atenção e fizeram
com que apurasse os sentidos.
— Finalmente! — Edward continuou a rugir como um leão. — Pensei
que teria que arrastar vocês de casa.
— Como estão os danos?
Era a voz de Caroline, a esposa de seu segundo irmão. Wilhelmina
adorava as cunhadas. Elas eram joviais e muito independentes, orgulhosas de
ter maridos que as respeitavam e eram apaixonados por elas. Ambas serviam
de modelo para a jovem McFadden, mesmo que ela fosse mais tradicional.
— Veja você mesma.
O baque surdo de algo caindo sobre a mesa indicou que o conde oferecia
o jornal para que fosse lido.
— Meu Deus. — Aquele era Isaac. — Wilhelmina perdeu o juízo. Ela
está com algum pretendente em vista? Quem é o cavalheiro em questão?
— Cavalheiro? Você chama um canalha que se aproveita de uma dama
em um jardim escuro de um cavalheiro?
— Edward, cale a boca. — Agatha ralhou. — Precisamos conversar com
Wilhelmina sobre isso e deixar que ela…
A porta do escritório se abriu repentinamente. Wilhelmina desequilibrou
e caiu para trás. Cambaleou até a estante, bateu com as costas nas prateleiras
e encarou os olhos de um estranho. Não, não era um estranho, era um amigo
da família. Mas ela não imaginava o que ele queria ali, nem por que não fora
anunciado.
— Desculpe, milady. — O homem retirou imediatamente o chapéu, ao
vê-la. — Pensei que Edward estaria em casa.
— Ele está. — A jovem apoiou o copo de volta no aparador. — Mas na
biblioteca.
O homem fez menção de sair do escritório, mas parou ao ouvir a voz
estridente de Wilhelmina.
— Acho melhor o senhor não ir até lá.
— Aconteceu alguma coisa? Edward está em apuros?
Wilhelmina olhou ao redor. Ela estava sozinha em um cômodo pequeno
com um homem. Sua acompanhante nem deveria ter acordado ainda. O
decoro sugeria que ela mandasse o convidado indesejado embora ou que
fosse para o salão com ele, assim, estariam nas vistas dos criados. Mas, ela já
estava arruinada, mesmo. Respirou fundo e pegou um copo no aparador,
enchendo-o com uma dose de conhaque.
— Eu estou. — Ela respondeu à pergunta depois de estender o copo para
o convidado. — E, se o senhor não sabe, talvez não tenha lido a mais recente
edição do mais badalado folhetim de fofocas de Londres.
— Não leio folhetins de fofocas. Meu tempo de leitura é destinado aos
jornais sérios. Milady foi… comprometida?
Ela se sentou em uma poltrona e indicou que ele poderia fazer o mesmo.
Grant Sawbridge se sentou em uma distância razoável dela, indicando que
tinha plena consciência de que estavam em uma posição comprometedora.
Não importava mais.
— Talvez esteja muito óbvio, não é?
— Milady, jovens casadoiras como a senhorita só entram em apuros por
causa de patifes que se aproveitam de sua pureza. Seria esse o caso?
— Ele não se aproveitou de muita coisa. Digamos que permiti que alguns
beijos ultrapassassem os limites da minha boca. Eu apenas pensei que não
tinha sido vista. Tinha certeza de que estávamos em um lugar seguro.
— Baile da Duquesa de Norfolk?
— Sim. Agora estou arruinada e sou a vergonha da família. Toda Londres
sabe do meu interlúdio romântico e serei uma solteirona que ficará em Kent
para cuidar de mamãe. Parece pior do que é, na verdade.
Wilhelmina ignorou a decência, pegou o copo da mão do visitante e
bebeu o conhaque, virando todo o copo de uma vez. Sawbridge a fitava com
curiosidade. Ela estava ácida e rancorosa naquela manhã. Geralmente, era
uma jovem afável e muito fácil de lidar. Não cometia excessos e não abusava
do decoro. E nunca, nunca mesmo, bebia conhaque com desconhecidos.
Quase desconhecidos.
— Vou conversar com Edward. — Ele fez menção em levantar-se. —
Vamos obrigar o canalha a casar-se com a senhorita.
— Edward não sabe quem é. Eu não contei a ele e não contarei ao senhor,
pois não quero casar-me com o cavalheiro em questão. Eu sequer deveria ter
deixado que ele me beijasse. Eu fui tola, seduzida por palavras inebriantes e
um pouco de ponche demais.
Sawbridge voltou a apoiar as mãos sobre seus joelhos.
— Milady, creio que seja uma questão de honra. Se esse… digamos,
cavalheiro, a desonrou, ele precisa reparar o dano. Edward sabe bem como
essas coisas funcionam.
— Não me importa, eu jamais direi quem ele é. Posso ter sido burra o
suficiente para ser pega, posso estar disposta a um casamento arranjado, mas
desejo retribuição, senhor.
— Retribuição?
— Sim. — Ela se levantou e serviu-se de outro drinque. — Não sei
mesmo por que estou contando essas coisas ao senhor. Não é adequado.
— Se a senhorita não deseja amor, milady, que tipo de retribuição espera
de um casamento? Dinheiro?
Sawbridge pareceu ignorar a parte em que ela dizia não ser adequado
manter aquela conversa. Na biblioteca, continuavam a esbravejar e a
discussão estava mais acirrada. Wilhelmina suspeitava que as mulheres
tentavam conter o temperamento dos homens. Logo, eles a encurralariam e a
obrigariam a falar.
— Eu não sei. Mas, digamos, os pretendentes não parecem muito
interessantes em geral. Eles querem que eu lhes sirva como esposa, sem me
oferecer nada interessante em troca. Eu estaria disposta a aceitar um
casamento de negócios, mas negócios devem ser bons para ambas as partes,
não é mesmo?

Q UANDO G RANT S AWBRIDGE saiu de casa, naquela manhã de domingo, ele


não esperava parar no escritório do amigo conde, em uma posição delicada
com a irmã mais nova dele. Queria falar com Edward sobre negócios e
acabou sentado, bebendo conhaque e ouvindo uma jovem tagarelar sobre
estar arruinada depois de um episódio em um jardim qualquer.
Mas, enquanto ela falava e falava sobre seu infortúnio e sobre o quanto já
estava aceitando que se tornaria uma solteirona, já que nenhum homem lhe
oferecia nada interessante em troca de tê-la como esposa, ele bolou um plano.
Claro que era um plano tolo, pois nenhuma jogada de negócios poderia ser
bem-feita em quinze minutos. Mesmo assim, parecia bem possível dar certo e
ele quis arriscar.
Por dias ele infernizou seu mordomo com o mesmo assunto: precisava se
casar. Sawbridge não estava ficando mais novo. Temia morrer e deixar todo o
seu império para um primo distante qualquer. Ele nem mesmo sabia quem
eram seus primos, ou se algum estaria vivo quando ele morresse. Mas sabia
que precisava de filhos. Precisava criar alguém para substituí-lo e ninguém
seria mais qualificado que o sangue do seu sangue.
Só que o casamento parecia um grande inconveniente. Dava muito
trabalho arrumar uma esposa adequada. Sawbridge era rico, poderia comprar
uma, se quisesse. Mas a ideia de se casar com uma dama que não quisesse,
nem mesmo um pouco, ser sua esposa, era desagradável. Não precisava
paixão nem romance, mas era suficiente que ela quisesse o enlace. E poucas
damas tinham interesse em se casar com o homem que não tinha coração.
Ah, ele odiava Caroline por espalhar aquele boato.
— Milady. — Ele interrompeu Wilhelmina McFadden enquanto ela
girava pelo escritório, contando sobre o quanto teria que aceitar se tornar uma
solteirona pela terceira vez. — A senhorita não precisa abandonar seus
sonhos de formar uma família. Há homens que aceitariam desposá-la mesmo
depois desse escândalo.
— Provavelmente nenhum que eu queira.
— E se algum deles oferecer à senhorita uma proposta irrecusável?
— Eu diria que estaria aberta a avaliá-la.
— Pois bem. — Sawbridge esfregou as mãos na calça de linho e olhou
para a dama à sua frente. Ela era uma jovem bonita. Como a irmã mais nova
de seu amigo, ele nunca prestou atenção nela. Wilhelmina era jovem demais,
inexperiente demais e proibida demais para ele. Definitivamente, fora de seu
alcance e de seu interesse, mas ela parecia capaz de gerar bons filhos e tinha
ambição. Também não estava ansiando por romance e usava a palavra
“negócio” para definir um casamento. — Eu posso ser esse homem.
Ela o encarou com surpresa. Talvez fosse um pouco de horror também,
um misto das duas coisas. Sua mão afrouxou o copo que segurava e
Sawbridge precisou esticar-se para impedir que ele caísse.
— O senhor?
— Sim. Milady está falando de negócios. Sou um excelente negociador e
estou sempre disposto a pagar o justo pelo que quero.
— O senhor me quer?
— Não exatamente. Quero dizer, eu quero uma esposa. A senhorita quer
um marido que lhe ofereça algo. Eu tenho algo a oferecer, ao menos, acredito
que tenha. Milady pode vasculhar meu patrimônio e achar algo que lhe
apeteça. Pode exigir coisas que não tenho e mandarei buscar. Podemos
chegar a um consenso.
Wilhelmina levantou-se, para depois se sentar novamente, ficando
visivelmente desorientada com a proposta. Sawbridge deveria saber que uma
jovem inexperiente e virgem como ela não o aceitaria como marido jamais.
Sem contar que ele não tinha origem nobre. O plano era péssimo em todos os
sentidos, mas seria muito vergonhoso se ele apenas desistisse. Era melhor ser
recusado, ao menos não ganharia fama de covarde.
Mas a jovem endireitou a coluna, passou as mãos nas saias para ajeitá-las
e o encarou. Aqueles olhos castanhos transbordavam objetividade. Ela não
era uma dama histérica dada a vapores, era visível que Wilhelmina não se
guiava por sentimentalismos.
— Se eu aceitar negociar com o senhor, como faríamos? O senhor
entraria na biblioteca e assumiria ser o homem que estava comigo no jardim?
— Sim. Edward provavelmente me matará e milady ficará viúva antes de
se casar, porém é um risco que parece valer a pena.
— Ele não matará o senhor. Precisa de um marido para mim, portanto,
matá-lo não é uma decisão sensata. Apenas duvido que ele acredite.
— Sou um cretino sem escrúpulos quando se trata de mulheres. Edward
acreditará.
— Então temos um acordo. Preciso de um noivado de pelo menos uma
semana, para decidir o que quero em troca de servi-lhe de esposa.
— Não tenho pressa, milady. Podemos noivar o quanto for necessário. A
senhorita descobrirá que, não sendo a lua, eu poderei lhe dar qualquer coisa
de seu agrado.
Wilhelmina estendeu a mão, sem luvas, para que ele segurasse. Não era
um gesto delicado e feminino esperando um beijo. Ela tinha a mão firme e
virada de lado, esperando que ele, Sawbridge, a segurasse da mesma forma.
Aquela era a forma masculina de selar um acordo. Ela podia ser uma dama
perfeita, mas Wilhelmina tinha realmente o sangue dos McFaddens.

A BIBLIOTECA do Conde de Cornwall estava um caos. Alheios ao fato de que


Wilhelmina estava acordada e espiando o restante dos irmãos, eles estavam
todos reunidos para discutir o futuro da jovem. O folhetim de fofocas mais
lido de Londres amanheceu com uma notícia que explodiu como uma bomba
sobre a família: testemunhas flagraram Wilhelmina McFadden aos beijos
com um cavalheiro misterioso. Não eram apenas beijos, como frisou Edward,
o conde. Havia saias erguidas e corpetes frouxos envolvidos. Era um
verdadeiro escândalo.
Anos atrás, o próprio Conde de Cornwall envolvera-se em um escândalo.
Ele beijara a irmã do seu melhor amigo, o Duque de Shaftesbury, em um
jantar na Casa Trowsdale. Fora um passo em falso e um movimento
inadequado, mas Edward sempre nutrira sentimentos por Lady Agatha e
ofereceu-se para se casar com ela tão logo a fofoca se espalhou. Naquele
instante, a esposa estava por trás dele, massageando-o nos ombros, tentando
mantê-lo calmo. Ele a amava loucamente por cinco anos e tinha três filhos
com ela. Uma adotiva, Lavínia, a pequena Eloise e seu tão sonhado herdeiro,
Edmund, que pouco mais de um ano de vida.
Talvez, apenas talvez, o caso de Wilhelmina fosse o mesmo. Ela deveria
estar perdidamente apaixonada por um solteiro qualquer e agiu de forma
imprudente. Mas Edward não se importava que fosse isso - o patife teria que
assumir o que fez e reparar o erro.
— Você vai ter um ataque do coração. — Agatha sussurrou nos ouvidos
do marido. — Acalme-se, ou terei que embebedá-lo.
— Não seja por isso. — Nathaniel, o terceiro filho dos McFaddens,
estendeu um copo de uísque para o conde. — Beba, Edward, porque logo
teremos que conversar com nossa irmãzinha e ouvir a versão dela.
— Não há a “versão dela”. — Isaac, o segundo filho, disse. Levou um
cutucão nas costelas de sua esposa, Lady Caroline, a maior ex-libertina de
Londres. Eles estavam casados há quatro anos e eram estupidamente felizes -
e devassos, além de pais de um lindo menino de dois anos, Louis. — O que
foi, Caroline? É verdade o que digo. Há apenas uma versão: ela foi pega com
as calçolas à mostra.
— Ninguém viu as calçolas de Wilhelmina, Isaac. — A esposa tomou-lhe
o copo de bebida. — Jovens fazem tolices. Vocês parecem que nasceram com
trinta anos e nunca se perderam por um tornozelo exposto, antes.
Os homens ficaram em silêncio por alguns segundos. Foi o suficiente
para a porta da biblioteca se abrir e Grant Sawbridge entrar. Ele era uma
presença marcante, quando desejava. Tinha o hábito de usar os cabelos mais
compridos do que era adequado para os homens. Eram cabelos ruivos
alaranjados e ligeiramente ondulados, que contrastavam com olhos, que às
vezes estavam claros e às vezes pareciam um céu nublado. O paletó preto
tinha um corte perfeito enquanto o lenço em seu pescoço estava levemente
enrugado.
Ainda assim, as mulheres raramente o notavam. Ele costumava seduzi-las
com sua lábia e sua riqueza. Sem sangue nobre, Sawbridge fazia sucesso
entre as meretrizes de Riderhood e já fora convidado para ser amante de uma
ou outra dama entediada. Mas não era como seus amigos de sangue azul, que
atraíam os olhares e os suspiros sempre que apareciam em um evento.
Sawbridge transpirava potência, virilidade e autoridade - o que não
impediu Edward McFadden de expulsá-lo antes mesmo que ele conseguisse
fechar a porta atrás de si.
— Agora não, Sawbridge. Estamos em uma reunião de família, não tenho
cabeça para discutir negócios.
— Lamento, mas terá que considerar uma exceção. Estou aqui para falar
de Wilhelmina.
Todos olharam para ele. Um homem como Sawbridge não usaria o nome
de batismo de uma mulher se não fosse amigo dela de alguma forma. E ele
não era, definitivamente, amigo de Wilhelmina.
A porta novamente se abriu e ela entrou. A jovem manteve-se atrás de
Sawbridge, mas afastada dele dentro de um limite de decência.
— O que diabos está havendo aqui? — Edward levantou-se.
— Pelos céus, Edward. — Agatha saiu de trás dele e se colocou à sua
frente. — Sua irmã está presente, olhe seu linguajar.
— O que tem para nos dizer sobre Wilhelmina, Sr. Sawbridge?
Nathaniel perguntou, cruzando os braços e encarando o industriário.
Naquela posição, todos os McFaddens pareciam mais altos e mais fortes do
que Sawbridge.
— Bem, não é uma coisa fácil de dizer, portanto, serei direto. Era eu que
estava com ela ontem, nos jardins dos Olsen.
Um rugido rompeu a garganta de Edward e ele pulou por cima da mesa.
A esposa não conseguiu impedi-lo de saltar como um leão e agarrar-se à
lapela de Sawbridge, desferindo-lhe um soco que o fez cambalear para trás.
Algumas imprecações graves e outros rosnados se sucederam à agressão, mas
Isaac e Nathaniel se colocaram no meio e impediram mais violência.
Foi simbólico que Sawbridge não revidasse. Ele nem mesmo tentou.
Wilhelmina colocou a mão na frente da boca e, depois de alguns segundos,
foi até ele. O industriário estava com o lábio partido, sangrando, e uma
mancha avermelhada na face. Ela pegou um lenço em um bolso escondido
em sua saia e levou a mão até ele, pretendendo limpar o sangue.
— Ela é minha irmã, seu canalha!
O conde esticou os dedos, sentindo dor.
— Não seja hipócrita, Edward. — Sawbridge se ajeitou, colocando
novamente Wilhelmina atrás de si. — Você também arruinou a irmã de seu
melhor amigo.
— Eu me casei com ela, maldição!
— E estou aqui para dizer que me casarei com sua irmã, também.
Mais silêncio. Todos se entreolharam e, por fim, olharam para
Wilhelmina. Ela parecia genuinamente assustada com a brutalidade do
momento. Agatha e Caroline foram até ela e a tiraram de trás do homem que
assumira tê-la arruinado em público.
— Isso foi baixo demais até para você, Grant. — Caroline resmungou. —
Minha querida Wilhelmina, seus irmãos estão fora de si, mas eles querem o
melhor para você. Não precisa se casar se não quiser.
— Ela precisa. — Edward disse.
— Certamente, eles precisam. — Isaac confirmou.
— Não, não precisam. — Agatha insistiu. — Wilhelmina, você deseja
casar-se com o Sr. Sawbridge?
A jovem olhou para todos. Depois, demorou vários segundos fitando o
homem que segurava seu lenço nos lábios e estava ferido por ela.
— Sim, eu desejo. — Wilhelmina sorriu. — Grant e eu, nós… fomos
imprudentes. Mas isso apenas antecipará aquilo que já havia sido decidido
por nós.
— Certo, então. Amanhã vocês se casam.
— Não. — Wilhelmina disparou. — Eu não vou sair me casando às
pressas, como se estivesse grávida e temesse o nascimento de um bastardo!
Preciso montar meu enxoval e organizar a recepção… preciso de pelo menos
uma semana.
— Wilhelmina, você…
— Uma semana parece ótimo! — Agatha interrompeu o marido antes que
ele pudesse prosseguir. — Vamos ajudá-la em tudo, minha querida. Elizabeth
adorará participar também, se você concordar.
As mulheres saíram da biblioteca porque sabiam que era momento de os
homens debaterem os termos do casamento.
CAPITULO SEGUNDO

E M MENOS DE UM DIA , A VIDA DE W ILHELMINA MUDARA TOTALMENTE . D E


jovem quase fadada à solteirice, em sua terceira temporada, a noiva de um
industriário. Um homem rico, poderoso e que ela mal conhecia. Ela não
planejara nada daquilo e Grant Sawbridge definitivamente não estava na lista
de pretendentes ideais da Sra. Friedman. Mas se encontrava em uma posição
de tomar decisões rápidas: ela aceitava o acordo com o homem ou enfrentava
seus irmãos pelas consequências de sua tolice na noite anterior.
Sentada na sala de chá, bebericando um Earl Grey servido em uma xícara
de porcelana pintada, ela espreitava suas companhias enquanto fingia estar
com a boca ocupada para falar. O desjejum estava servido em uma mesa
retangular: bolinhos, biscoitos, peixe defumado, presunto, ovos, e muito chá.
As mulheres não estavam comendo muito, era verdade. Elas esperavam que a
jovem McFadden desse mais informações sobre seu súbito romance com um
homem totalmente improvável.
— Não entendo por que o Sr. Sawbridge não procurou o conde para pedir
autorização para fazer-lhe a corte.
A Sra. Friedman finalmente quebrou o silêncio. Os olhares se viraram
para a senhora viúva, que estava sentada próxima à lareira. Depois voltaram-
se para Wilhelmina. Ela apoiou a xícara de chá, determinada. Precisava
manter sua fraude e precisava ser mais convincente do que fora na biblioteca.
— O Sr. Sawbridge faria isso, mas eu pedi que ele esperasse um pouco
pois achava que Edward receberia mal a ideia de um enlace entre nós.
— Então esse escândalo foi proposital? — A Sra. Friedman arregalou os
olhos.
— Claro que não! Foi um grande inconveniente. Não era para termos sido
pegos, mas, agora que fomos, seguiremos adiante com o relacionamento.
— Grant é um homem sedutor. — Caroline divagou. — Entendo o
fascínio que ele pode despertar. Mas eu achava que você era mais… digamos,
tradicional.
Ela era. Sawbridge não seria, em nenhuma hipótese, sua escolha de
marido, mas estava feito. Ele fora extremamente conveniente naquele
momento - apareceu na hora certa, quando Wilhelmina precisava dele, e
ofereceu uma proposta de interesse. Sem contar que sua performance na
biblioteca fora fabulosa.
— Eu sei que cometi um erro, mas agradeço o apoio de vocês.
— Não se martirize, minha querida. — Agatha segurou as mãos da
cunhada. — Todas nós estamos susceptíveis a errar dessa forma.
— E eu seria muito hipócrita se considerasse que você errou. — Caroline
bebericou seu chá. — Veja, Wilhelmina, você e Grant tomaram decisões. São
adultos, portanto agora temos que planejar um casamento. Podemos começar
a decidir sobre a festa?
Naquele momento, dois homens entraram no salão. O Conde de Cornwall
e o Sr. Sawbridge, que pareciam menos inclinados a praticar violência física.
— Miladies. — O conde cumprimentou as mulheres. — Já conversamos
sobre o casamento. Será no próximo final de semana e as festividades
acontecerão aqui mesmo, na McFadden Garden.
— Acreditei que seria mais confortável para Wilhelmina. — Sawbridge
disse, olhando diretamente para ela. O lábio dele estava inchado por causa do
soco de Edward e ela se pegou olhando para ele também. Para a boca dele,
mais exatamente. — Miladies, eu poderia ter alguns momentos com minha
noiva?
Caroline e Agatha levantaram-se imediatamente. A Sra. Friedman levou
alguns segundos para aquiescer e encarou o industriário com uma expressão
letal. Os olhos da senhora diziam que ela ainda pretendia matá-lo em algum
momento futuro. Claro que a Sra. Friedman considerava o casamento com
Grant Sawbridge um grande erro e um rebaixamento para sua jovem pupila.
Edward foi arrastado para fora do salão de chá por sua esposa, que fechou a
porta ao sair.
Wilhelmina estava novamente sozinha com aquele homem. Daquela vez,
na condição de noiva dele. Tudo estava acontecendo rápido demais e ela
estava tonta. Temia levantar-se e cair no chão como fruta madura. Sawbridge
sentou-se próximo a ela, em uma poltrona separada.
— Milady, eu precisarei viajar. Tenho que resolver alguns negócios na
Escócia e ficarei lá por alguns dias. Já era uma viagem planejada, não posso
adiá-la.
— Alguns dias? Pensei que, durante essa semana, eu teria como negociar
a minha retribuição, Sr. Sawbridge.
— A senhorita poderá fazer isso. — Sawbridge ajeitou-se na cadeira. Ele
demonstrava um pequeno desconforto na presença dela, não era como se
estivessem entabulando uma negociação tradicional. — Pedirei à Srta.
Trimmes que coloque milady a par de todas as minhas propriedades. Se
propriedades não forem o que deseja, poderá escolher joias. Ou qualquer
coisa que o dinheiro possa comprar.
— Quem é a Srta. Trimmes?
— Minha secretária.
— Ela é solteira?
— Sim, milady. — Sawbridge dobrou o corpo para frente e olhou para os
lados, conferindo que estavam sozinhos. — Ela tem um filho bastardo.
— E o senhor a emprega, assim mesmo? — Wilhelmina se surpreendeu.
— Claro, ela é ótima secretária. E precisa do emprego.
Wilhelmina sorriu, sem saber ao certo se achava comovente a atitude do
seu futuro marido ou se a presença de uma mulher solteira trabalhando tão
próxima a ele a incomodava.
— Sr. Sawbridge, eu confio que poderemos chegar a um acordo. Não
preciso olhar propriedades agora, faremos isso depois. Porém, há algo que
precisamos discutir agora, pois eu preciso ter certeza de alguns aspectos de
nosso arranjo antes de prosseguir nele. O senhor exigirá fidelidade de mim?
Se o homem não estivesse incomodado antes, a pergunta da jovem dama
o fez se remexer na cadeira como se ela estivesse cheia de formigas.
— Um marido costuma desejar fidelidade de sua esposa.
— Um marido que esteja apaixonado por sua esposa.
— Na verdade, milady, a fidelidade independe de paixões. Espero que a
senhorita gere meus filhos, portanto, permitir que se deite com outros homens
não é exatamente o ideal para atingir esse fim. Mas, por que pergunta isso?
Milady gostaria de continuar se encontrando com o cavalheiro de ontem à
noite?
— Não, ele não.
— Mas há um cavalheiro.
Wilhelmina respirou fundo. Ela confiara um segredo àquele homem
antes, e mal o conhecia. Aceitou tornar-se sua esposa em um movimento
arriscado, como o avanço de uma rainha no jogo de xadrez. Mesmo assim,
não parecia prudente revelar a ele o outro segredo - a existência de um amor
de juventude que assombrava seus dias e noites.
— Não.
Ela mentiu com uma expressão assertiva. Era boa em mentir sobre
Thomas e estava frustrada por ele não abandonar tudo por ela. Um desejo
inconsequente se debatia dentro dela com a simples possibilidade de que o
homem que amava pudesse se enciumar do seu casamento. E se Thomas
quisesse se tornar seu amante? Estaria ela preparada para uma atitude tão
moralmente degradante apenas para desfrutar de alguns momentos íntimos
com ele?
— Então, milady, creio que não haja motivos para que me seja infiel.
— E o senhor será fiel a mim?
— Por que não seria?
Ela enrubesceu. Aquele assunto era intrigante e, ao mesmo tempo,
avançado demais para uma dama virgem discutir.
— Há algumas… necessidades masculinas, digamos, que não podem ser
satisfeitas por uma esposa.
Sawbridge se remexeu na poltrona outra vez. Como se estivesse
escondendo uma risada, ele começou a tossir e pigarrear enquanto seus olhos
lacrimejavam. Wilhelmina estava cruzando várias linhas de decoro com
aquela conversa, ela sabia.
— Milady tem certeza de que estudou com Caroline? — Sawbridge
distraiu-a dos pensamentos. — Porque… bem, creio que qualquer mulher
possa satisfazer essas “certas necessidades masculinas”.
— Sr. Sawbridge, uma esposa serve a um propósito: gerar filhos. Não se
espera devassidão entre marido e mulher em um quarto.
Daquela vez Sawbridge não conseguiu conter a gargalhada sonora que
ecoou pelo salão.
— Por Deus, milady. Bem, eu entendo que pense assim. Mas creio que, se
pensa assim, a senhorita ficará um pouco decepcionada em nossa noite de
núpcias.
Aquela afirmação a deixou desconfortável. Primeiro, por se lembrar da
noite de núpcias. Segundo, pelo tom velado de ameaça na voz dele. O que
haveria para acender aquele sinal de alerta? O homem era um libertino como
seu irmão mais velho fora, antes de se casar. Mas Wilhelmina esperava que
ele tivesse a decência de tratá-la com respeito, não como se fosse uma das
prostitutas de Riderhood.
Ela estudou com Caroline. Amava a cunhada e aprendera a respeitá-la,
apesar do passado indecoroso. E adorava que fosse também respeitada por
Caroline, que nunca tentou convertê-la a uma vida de indecências.
Wilhelmina não era daquele jeito. Ela achava que mulheres eram
intelectualmente capazes, que mereciam receber educação de qualidade, que
não poderiam ser consideradas inferiores aos homens. Mas não concordava
com a libertinagem, nem com a devassidão sexual.
Sawbridge levantou-se e ajoelhou-se à frente da jovem dama. Ela sentiu
seu coração disparar quando ele a segurou pela mão sem luvas, que foram
removidas para que pudesse comer seu desjejum. Calor percorreu seu corpo
como fogo ateado na relva seca quando ele levou os dedos dela à boca e os
beijou.
— Lamento não ter podido propor-lhe casamento de forma adequada.
Lamento não poder ficar essa semana para ajudá-la com os preparativos. Mas
creio que milady ficará melhor sem minha incômoda presença. Assim que
chegar ao meu escritório, providenciarei os fundos ilimitados para que milady
possa montar seu enxoval e tomar as decisões necessárias para o casamento.
E se levantou novamente e virou de costas para ela. Wilhelmina sentiu o
coração ribombar no peito. Aquela ansiedade não fora ainda experimentada
por ela.
— Mas. — Sawbridge virou-se novamente. — Antes, eu preciso fazer
uma coisa. Não posso deixá-la acreditando que “uma esposa” não seja capaz
de satisfazer seu marido plenamente.
Wilhelmina não entendeu o que ele dizia até ser arrebatada. Sawbridge
segurou-a com uma mão de cada lado da cabeça e levou sua boca até a dela.
Não era seu primeiro beijo, mas foi como se ela nunca tivesse sido beijada,
antes. Os lábios macios e habilidosos cobriram os dela sem muita delicadeza
e a língua dele penetrou-a sem pedir licença. Os sentidos dela foram
capturados pelo cheiro de colônia masculina, pela sensação da barba por fazer
e pelo hálito de tabaco e uísque.
Antes que começasse, o beijo acabou. Grant Sawbridge a soltou, fez uma
mesura para se despedir e desapareceu pela porta, deixando-a totalmente
atordoada. Não fora pela velocidade das decisões, daquela vez. Wilhelmina
estava arrebatada pelo poder de sedução do seu futuro marido, mesmo que ela
não fosse acostumada a ser seduzida por ninguém.
A SSIM QUE SAIU do salão de chá, Sawbridge se deu conta de que cometeria
um erro terrível. Onde ele estava com a cabeça ao decidir casar-se com uma
lady? Pior, com uma lady virgem, irmã de seu amigo e parceiro de negócios?
Depois da breve conversa que tiveram, Wilhelmina era certamente a dama
mais objetiva e direta que ele conhecera. Mas, também era ingênua e virgem.
Claro que ela era virgem. Mulheres como ela eram criadas para serem
intocadas até a data da noite de núpcias. Talvez uns beijos mais ardentes em
jardins, ou alguns toques indecentes por sobre os vestidos. Mas era só.
Ela certamente seria uma esposa excelente. Provavelmente, uma mãe
qualificada para seus filhos. Mas Sawbridge não era um nobre. Ele não fora
criado como um e, apesar de entender o casamento como uma grande
negociação, esperava mais do que apenas um contrato. E sua futura esposa
fora bastante clara: ela nem mesmo parecia preocupar se ele fosse fiel a ela.
Nobres não eram dados à fidelidade, mas Sawbridge se enganou,
acreditando que ela poderia ser mais parecida com os irmãos. Foi um
equívoco grave. Ali começaram as suspeitas que, talvez, Wilhelmina tivesse
sentimentos por outro e quisesse entregar-se a ele, mesmo depois de casada.
Se fosse o caso, ela teria que esquecê-lo. Ah, ela teria. A partir do momento
que fizesse aquela mulher sua, Sawbridge achava difícil que fosse aceitar
compartilhá-la. Ele era ligeiramente possessivo.
— Arthur, minha bagagem já está pronta?
Perguntou ao seu mordomo. Sawbridge não costumava ter criados, mas
adotara a prática dos nobres e contratou um mordomo. O homem ajudava a
manter a casa em ordem e garantia que não faltasse comida.
— Sim, Sr. Sawbridge. Está na carruagem, aguardando pelo senhor. E
chegou hoje esse telegrama para o senhor.
Arthur entregou um papel dobrado sobre uma bandeja ao patrão. Sempre
que ele agia como se estivesse servindo à nobreza, Sawbridge reconsiderava
a necessidade de ter um mordomo.
Mas o telegrama era importante. Vinha de sua mãe e avisava que ela
estaria em Londres em duas semanas. Maldição, ele teria que avisar à mãe e
ao pai que se casaria. Claro que teria, mas preferia fazer isso depois que
estivesse casado. Sabia que eles iriam querer conhecer a noiva e que se
chocariam ao saber que o filho não se casaria por amor.
O industriário se sentou à mesa e rabiscou uma resposta. Disse que
precisava conversar com a mãe e o pai, que era urgente, e que eles deveriam
estar em Londres em uma semana.
— Envie isso. — Entregou o bilhete ao mordomo, que aguardava no
escritório de pé. — E garanta que seja enviado com duas passagens de
primeira classe para meus pais. Eles devem vir de Hampshire antes do
casamento.
— O senhor realmente passará a semana em Edimburgo?
— Preciso ir até lá, estamos fechando um negócio importante.
— Mas é seu casamento, senhor.
— Estarei na igreja, Arthur. Não é como se eu estivesse fugindo.
— A Srta. Trimmes mandou avisar que os fundos que o senhor destinou
para a sua noiva já foram disponibilizados.
Sawbridge ergueu uma sobrancelha e encarou o mordomo.
— Eu me recordo de ter dito à Srta. Trimmes que ela atendesse todos os
pedidos da minha noiva, independentemente do valor que eles custassem.
— Creio que tenha sido isso que ela quis dizer, senhor. A Srta. Trimmes
ainda hoje visitará Lady Wilhelmina na McFadden Garden.
Com uma mesura, Arthur pediu licença e saiu. Sawbridge olhou seu
relógio de bolso e verificou que deveria partir, ou se atrasaria. Ele podia
viajar em um vagão privado, mas precisava acompanhar os horários dos
trens. E o que ia para Edimburgo partia em meia hora.
Deu uma olhada em seu escritório, passou os dedos pela mesa de
nogueira e respirou fundo o cheiro de tabaco que ficava permanentemente no
ar. Em breve, aquele cheiro se confundiria com o perfume de mulher que
estaria ali. Quando retornasse para Londres, seria para se casar. E que Deus o
ajudasse.

U MA SEMANA ERA o tempo que levava uma viagem para as Américas. Talvez
um pouco mais. Certamente, um pouco mais. Era possível cruzar o oceano
em um navio naquele tempo, mas não era possível planejar um casamento.
Mesmo que Wilhelmina contasse com um exército de mulheres, ela ainda
estava com uma missão além de suas forças.
Elizabeth Trowsdale, a Duquesa de Shaftesbury, juntou-se às suas
cunhadas, Agatha e Caroline, para ajudá-la. A duquesa era esposa de Aiden,
o melhor amigo do Conde de Cornwall, e irmão de Agatha. Ela era uma
mulher mais experiente, mãe de cinco crianças e muito sensata.
A Srta. Trimmes também participou da equipe. Ela era uma mulher
relativamente jovem, de cabelos vermelhos como o pecado e uma aparência
bela. Não disse nada, mas Wilhelmina suspeitava que ela fosse a amante de
alguém. E era mãe - parira uma criança bastarda há seis anos. Wilhelmina
não tinha motivos, mas sentiu incômodo ao saber que ela trabalhava todo dia
com seu futuro marido. Era uma mulher bonita demais para passar
despercebida pelo Sr. Sawbridge. Não seria surpresa se a criança bastarda
fosse filha do industriário.
Não, aquela especulação era absurda.
Depois de passarem o dia andando por Londres e comprando o que
faltava para o enxoval, as mulheres levaram as compras para a residência do
Sr. Sawbridge na Grosvernor Square. A casa era quase tão grande quanto a
McFadden Garden, e ficava no reduto da nobreza, em Mayfair. Em dois dias,
aquela casa seria sua nova residência.
— Arthur, não fique parado. — A Srta. Trimmes bateu as mãos,
chamando a atenção do mordomo. Ele parecia fascinado com a invasão
feminina na casa. Provavelmente era incomum que mulheres frequentassem o
lugar. — Oriente os empregados na retirada das caixas da carruagem. E peça
que sirvam chá com bolinhos, as ladies devem estar exaustas. Temos uma
duquesa entre nós, seja rápido.
Arthur assentiu e girou nos calcanhares, desaparecendo pela porta da
frente. Eram muitas as caixas que precisavam ser trazidas para dentro.
Mesmo que Wilhelmina não considerasse precisar de um item ou outro, ela
preferiu pecar pelo exagero. A secretária conduziu as damas para um salão
amplo e arejado, apresentando cada cômodo que elas cruzavam.
— O Sr. Sawbridge é um pouco espalhafatoso. Ele gosta de obras de arte
e a casa é cheia delas, como podem ver. Para ele, dinheiro gasto em quadros e
objetos de arte nunca é mal investido. O escritório dele parece um museu.
Enquanto a secretária tagarelava e encantava as outras mulheres com
histórias sobre um castiçal ou uma estátua, Wilhelmina estava silenciosa
observando a decoração. Parou em um corredor grande para examinar uma
fotografia pendurada na parede. Era um retrato de família, grande e elegante.
Tinha um casal e um jovem posando para as câmeras. A imagem mostrava
uma família simples, mas os sorrisos eram sinceros. Com exceção do jovem.
Ele não sorria, nem demonstrava nenhuma alegria em estar ali.
Ela se juntou às amigas no salão, cujas paredes eram cobertas por quadros
ou estantes com livros. Uma mulher vestida de uniforme preto e branco veio
servir o chá e logo elas estavam sozinhas novamente.
— Wilhelmina, sua mãe está vindo para o casamento?
Elizabeth perguntou, aproveitando-se de um momento de silêncio.
— Sim, Vossa Graça. Ela chega amanhã, Nathaniel foi buscá-la. Os
homens não confiam que ela possa transitar sozinha de um lugar para o outro.
— Todos super protetores. — Agatha resmungou. — Mas são filhos
excelentes.
— Talvez possamos aproveitar o momento e conversar com Wilhelmina
sobre o que esperar do casamento.
Caroline disparou. A Srta. Trimmes baixou a xícara um pouco rápido
demais, fazendo-a bater no pires. Wilhelmina parou com um bolinho a
caminho da boca.
— Pode ser uma boa ideia. Quando Pauline chegar, estará exausta para
conversar. E somos todas mulheres casadas, podemos ajudar.
— Sem contar que Pauline é antiga. — Caroline provocou. — Ela tem
uma visão ultrapassada do casamento. Wilhelmina precisa ser orientada por
mulheres como nós.
— Orientada sobre…
— Basicamente, sobre a noite de núpcias. — Elizabeth sorriu para ela. —
Essa é a parte mais difícil para uma dama como você, minha querida.
— Bem, vou deixá-las a sós. — A Srta. Trimmes levantou-se, um pouco
atarantada. — Esse é um assunto para a família.
As mulheres suspeitaram que ela estava assustada por falar daquele
assunto, dada a velocidade em que a secretária se ausentou do salão. Ficaram
ali as duas cunhadas de Wilhelmina e a duquesa, que era, sem dúvidas, a mais
versada em casamentos. Talvez ela fosse muito boa para conversar sobre
assuntos difíceis. Elizabeth era uma mulher tradicional, que respeitava ao
máximo as regras da sociedade. A diferença entre elas era, além da idade, a
origem. A Duquesa de Shaftesbury era uma plebeia e vivia na pobreza antes
de conhecer o duque.
— Então, o que eu devo saber?
— Primeiro, diga-nos o que já sabe. — Agatha determinou.
— Sei que o marido procurará a mulher em seu quarto e se deitará com
ela. E que isso se repetirá por algumas vezes para garantir que a mulher
engravide.
— Certo, agora diga-nos até onde Grant foi com você.
Wilhelmina corou. As bochechas receberam um fluxo enorme de sangue
e ela ficou vermelha como uma maçã. Sentiu um calor súbito e precisou
buscar um leque para se abanar. A verdade era que Sawbridge não fizera nada
com ela além de beijá-la de forma muito indecente. Eles mal se conheciam e
provavelmente trocariam apenas algumas palavras até a noite de núpcias.
Mas ela não podia contar aquilo. O plano era fingir que o cavalheiro no
jardim era o seu futuro marido.
— Como assim, até onde ele foi?
— Minha querida, vocês foram vistos em uma posição um tanto…
indecorosa. — Agatha segurou a mão da cunhada mais jovem. — Então,
sabemos que houve mais do que alguns beijos, não houve?
Ah, sim. Houve. Mas nada que deveria ser próximo do que acontece em
uma noite de núpcias. Isso ela tinha certeza. Não dera muitas liberdades para
o cavalheiro. Na verdade, quando ele tentou tocá-la por baixo das saias, ela o
estapeou e se afastou. Era uma pena que essa informação fora omitida do
folhetim. O Royal Gossip não era muito fiel à verdade, preferia contar as
histórias que satisfaziam a sede de escândalos de seus leitores.
— Foi uma situação bem menos indecente do que aquele jornal maldoso
fez parecer. — Ela respondeu, por fim. — Eu não lhe permiti ir muito além.
— Bem, então você provavelmente não sabe muito do que é necessário,
mas fique tranquila. Imagino que seu futuro marido seja experiente o
suficiente para te orientar durante a noite de núpcias.
— Assim como os maridos da maioria de nós, Grant é um libertino. —
Caroline bebericou o chá. — Mas é bom que Wilhelmina saiba o que esperar.
Assim ele não poderá desapontá-la.
— Há alguma coisa para esperar? Quero dizer, ele chegará no escuro, eu
estarei despida, ele me deflorará e voltará para seu quarto. Não é isso?
— Céus, isso parece com as cláusulas de um contrato. — Caroline deu
uma risada.
— É isso, mas não será assim tão frio e distante, minha querida. —
Agatha tentou amenizar a conversa. — Existe um processo de sedução
envolvido. Seu marido fará com que você deseje o envolvimento carnal com
ele.
Wilhelmina não saberia dizer se conseguiu esconder sua expressão de
desprezo e desgosto pela ideia de desejar o Sr. Sawbridge. Ela não estava se
casando por isso, não amava o noivo nem pretendia amá-lo. Mas estava
cercada por mulheres apaixonadas. Mesmo depois de anos de casamento,
aquelas damas ali ao seu redor eram completamente dedicadas a seus
maridos, que também se dedicavam exclusivamente a elas. Como explicaria
que seu casamento era pura conveniência?
Não explicaria. Era mais fácil continuar fingindo na frente das amigas.
— Entendo. E eu devo esperar ser seduzida, então. Não significa que eu
deva fazer nada.
— Ah, mas é desejado que faça! — Elizabeth riu. — É muito mais
interessante quando a mulher também seduz.
— Sim, certamente. Edward costuma dizer que eu o seduzo, e não o
contrário.
— Quando ditamos as regras no quarto, o ato sexual é muito mais
prazeroso.
As mulheres continuaram a falar e Wilhelmina passou a ser uma mera
espectadora. Ela não tinha como contribuir com aquela discussão e não
queria participar.
Era curioso que ela tivesse se descoberto tão conservadora. Quando mais
jovem, era destemida e curiosa. Depois, tornou-se amarga e frustrada. Sua
mágoa com as regras sociais que a impediam casar-se com o amor de sua
vida se transformou em obsessão. Wilhelmina defendia rigorosamente o
cumprimento delas, mesmo depois de ter estudado na escola mais liberal da
Inglaterra. Claro que ela esperava que as regras fossem cumpridas. Afinal, ela
estava se afastando do seu amor, da pessoa que a fazia sentir-se especial e
querida. Não parecia justo que outros subvertessem os costumes para seu
benefício.
Isso fez com que ela se chateasse com a própria família. Por três longos
anos, tentou ser uma boa dama, perfeita, a fim de conseguir um marido que
pudesse levá-la para um lugar de conforto e tranquilidade. Mas, no fundo, ela
esperava mais dos cavalheiros. Não conseguira afastar toda a influência que
recebera das cunhadas que eram felizes em seus casamentos. Não conseguia
impedir-se de desejar mais.
CAPÍTULO TERCEIRO

A C ONDESSA DE C ORNWALL COLOCOU SEUS PÉS PARA CIMA E OS ENCAROU .


Estavam um pouco inchados do dia, principalmente por tê-lo passado
ajudando sua cunhada a organizar o casamento, que seria no dia seguinte. A
sogra chegara e sua casa estava um pandemônio. O marido, Edward
McFadden, apareceu na porta do banheiro, enxugando o rosto que acabara de
lavar.
— Estou preocupada com sua irmã.
Agatha determinou, encarando Edward.
— Ela vai se casar com Sawbridge. Eu também estou.
— Não é esse meu motivo. Seu amigo é um libertino, você também era.
Seu amigo é considerado um monstro sem coração, e alguns diziam que você
era incapaz de amar. Mas eu a vejo muito desconectada do evento mais
importante de sua vida até agora. Ontem conversamos com ela e era como se
o casamento fosse de outra pessoa. Nem parece que eles estiveram se
beijando às escondidas em um baile.
O conde se sentou na cama e segurou nas mãos os pés de sua esposa. Ele
adorava massageá-la e ela sempre aceitava aquele carinho. Ainda mais
estando tão cansada.
— Cheguei a considerar que eles estejam mentindo.
— E não vai confrontar seu amigo? Ou Wilhelmina?
— Não. — Edward tocou em um ponto sensível na sola do pé e Agatha
gemeu, desabando sobre os travesseiros. — Mesmo que não fosse Sawbridge,
minha irmã estava com um homem desonrado naquele jardim. Ela precisa
casar-se, e escolheu meu amigo desalmado sabe-se lá por quê.
— O senhor meu marido decidiu respeitar a decisão dela, mesmo estando
errada?
— Não posso afirmar que esteja errada. — Edward subiu os carinhos
para o tornozelo e para a panturrilha. — Sawbridge é um bom homem. Vai
dar a ela conforto, vai protegê-la e será um bom amante.
— Céus, Edward. — Agatha se contorceu na cama. Não sabia dizer se era
pelo prazer do toque das mãos habilidosas do conde ou se era pela menção a
certas qualidades do noivo de Wilhelmina. — Não tenho interesse em saber
essas coisas. Aliás, como você sabe que ele é um bom amante?
— Porque ele sempre tem mulheres suspirando por ele.
— Talvez ele pague bem.
— Não é apenas isso. Um homem sabe.
Agatha deu uma risadinha cínica. Alguns homens sabiam, e o dela era
muito bom naquilo. Edward já estava subindo as mãos para os laços de suas
calçolas e ela nem mesmo entendeu como aquela conversa se tornou um
prelúdio ao relacionamento conjugal.
— Eu preferia que ela se casasse com alguém que amasse.
— Ela pode aprender a amá-lo. A situação não é muito diferente da nossa.
— É totalmente diferente da nossa. — A condessa jogou-se novamente
nos travesseiros, abandonada aos carinhos lascivos do marido. — Mas sua
irmã mudou muito nos dois últimos anos. Algo parece errado com ela.
— Vamos acreditar que Wilhelmina sabe tomar suas decisões. — Edward
dobrou o corpo sobre a esposa e a beijou. — Eu já interferi demais nos
relacionamentos dos meus irmãos. Veja o que aconteceu com Isaac. Pensei
que Caroline não servia para ele, mas no final eles são um casal muito
peculiar. Ela o ama e eles têm até mesmo um filho. Não quero cometer o
mesmo erro com Wilhelmina.
O conde encerrou a conversa desamarrando os laços e abrindo os botões
do vestido de sua esposa. Ela sabia que ele estava prestes a seduzi-la para
evitar que o assunto se prolongasse. Mesmo assim, Agatha decidira que iria
observar aqueles dois. Ela tinha muito carinho pela cunhada para deixar que
ela vivesse infeliz com um marido que não lhe oferecesse amor e dedicação.

V IAGENS DE NEGÓCIOS eram a vida de Sawbridge. Arthur sabia exatamente


quando um bom negócio fora fechado porque o patrão retornava vibrante. Ele
não sorria, porque Grant Sawbridge quase nunca sorria. Havia algo de
misterioso naquela aparência sempre severa, mesmo que ele não fosse um
homem cruel. Mas a ausência de sorrisos e a dureza de suas linhas sempre
deixavam claro que não era uma boa ideia arrumar briga com o industriário.
Mesmo assim, Arthur sabia quando ele estava de bom humor: sempre que
voltava de suas viagens. Edimburgo era o destino que mais proporcionava
retornos felizes para o patrão. Mas Sawbridge não parecia o mesmo naquela
manhã. O industriário tinha uma expressão ainda mais sombria do que de
costume. Entregou-lhe o chapéu e o casaco e demorou quase um minuto
inteiro para falar alguma coisa.
— Meus pais chegaram?
— Sim, senhor. Seu pai está em seu escritório e sua mãe está se
arrumando para o casamento.
Sawbridge passou uma das mãos pelos cabelos alaranjados e respirou
fundo.
— Creio que o senhor deveria fazer o mesmo. — Arthur sugeriu. —
Deixei seu terno passado e engomado sobre a cama. Posso…
— Sou homem, Arthur. Preciso de dez minutos para tomar banho e vestir
alguma coisa. Vamos ao escritório, quero relatórios completos de tudo que
aconteceu na minha ausência.
Os relatórios estavam prontos sobre a mesa de Sawbridge, como era
praxe. O mordomo, que também era uma espécie de faz-tudo para o
industriário, tomava notas diárias de tudo: correspondências, recados, visitas.
Todas as informações pessoais durante a semana em que ele estivera fora
estavam ali, esperando por ele.
Ao chegarem ao escritório, o pai levantou-se. Arthur não tivera muitas
oportunidades de conversar com o Sr. Sawbridge pai, pois ele pouco ia a
Londres. Era um homem de cabelos brancos e aparência frágil, mas com
presença de espírito e olhar profundo. Ao contrário do filho, era afável e
sorria com facilidade.
— Grant. — O pai foi até Sawbridge e o abraçou. Foi um abraço
masculino, com certa distância entre os corpos, mas afetuoso. — Sua mãe e
eu estamos extasiados e confusos com a notícia de seu casamento. Foi rápido.
A sua noiva ela… está grávida?
— Por Deus, pai! — Sawbridge afastou-se e serviu duas doses do
conhaque que estava no decantador. — Não, ela não está. Algo aconteceu e
nos levou a apressar o casamento, mas não foi nada dessa gravidade.
— Ah, filhos não são uma “gravidade”. A melhor coisa que eu e sua mãe
tivemos foi você.
— Não vamos falar sobre isso agora. — O industriário interrompeu o pai.
— Preciso que meu empregado me passe algumas informações. O senhor está
pronto para a cerimônia?
— Sim, desde cedo. Sua mãe está sendo auxiliada por uma moça muito
simpática, Srta. Trimmes. Estamos muito felizes por você, filho.
O pai era certamente mais entusiasmado que o filho. Arthur sempre
notava a discrepância de comportamento entre eles. Naquele domingo, um
abismo separava o humor de Grant Sawbridge do restante das pessoas
envolvidas no casamento. Ele agia como se estivesse condenado à forca e a
execução fosse acontecer em algumas horas.
Sentado em sua cadeira encapada com veludo azul marinho, o industriário
leu atentamente as notas do mordomo. Parou por um tempo com os dedos
sobre aquela que falava do momento em que as mulheres chegaram com o
enxoval de Lady Wilhelmina. Claro que Arthur notaria aquele momento de
hesitação. Não parecia difícil de entender, para o mordomo, que seu patrão
estava aterrorizado pela iminência do casamento.
Por mais que Sawbridge fosse implacável, duro e ranzinza, Arthur sabia
que havia maciez por dentro daquela casca. Ele jamais diria e o patrão jamais
admitiria qualquer coisa que pudesse ser considerada uma fraqueza. E a
presença de uma mulher na casa, a presença de uma esposa, era um risco.
Damas sempre desvelavam o lado suave dos cavalheiros.
— Arthur, prepare a carruagem. — Sawbridge terminou de ler e se
levantou. Serviu outra dose de conhaque e virou tudo em um gole só. — Vou
me vestir. Conduza meus pais assim que minha mãe descer. Não quero
atrasar para a cerimônia. Sabe onde ficará o quarto de minha futura esposa?
— Ela escolheu o quarto do outro lado do corredor, senhor.
— Do outro lado? A porta oposta?
— Sim, ela disse que é o mais arejado da casa. As coisas dela já foram
arrumadas, senhor.
Sawbridge rosnou alguma coisa ininteligível e saiu do escritório. O pai
sorriu e moveu os ombros, indicando que não era responsável por aquele
comportamento do filho. Arthur pediu licença e foi cumprir as ordens que lhe
foram passadas. Ele previa que, em breve, o movimento naquela casa estaria
muito mais interessante.
A M C F ADDEN G ARDEN não recebera esse nome por acaso. A mansão dos
McFaddens em Londres era cercada por belos jardins que contavam com uma
infinidade de flores e plantas. Algumas foram importadas por Pauline
McFadden quando ela se casou, outras eram nativas da Inglaterra. Não havia
lugar mais agradável para uma cerimônia de casamento, Wilhelmina tinha
certeza.
Ela quase desistiu, pelo menos duas vezes. Quando se viu vestida de
noiva, na frente de um espelho retangular de corpo inteiro, e quando pegou
Caroline e Isaac se beijando de forma um pouco íntima demais em um dos
salões. A certeza de que precisava se casar não era suficiente para evitar que
ela temesse qualquer coisa relacionada à intimidade física com seu futuro
marido.
Não era apenas aquilo. Wilhelmina suspeitou que pudesse tolerá-lo uma
ou duas vezes até engravidar. Mas era uma vida que ela compartilharia com
um estranho. O arrependimento quase a levou a contar toda a verdade para
Edward, mas ela não era mulher de voltar atrás em suas decisões. Primeiro,
aceitara a sedução daquele patife que tentou tocá-la de forma inapropriada no
jardim. Depois, aceitara um negócio aparentemente vantajoso para esconder o
primeiro erro.
E lá estava ela, de braços dados com seu irmão conde, parada sobre um
tapete vermelho. Sua sobrinha mais velha, Lavínia, segurava uma cesta com
pétalas de flores e caminhava, jogando-as pelo chão e espalhando o perfume
primaveril pelo ambiente. A marcha nupcial começou a tocar e ela enfrentou
a multidão de olhos que a observava.
Não eram muitas pessoas. A família dela, a família dele, alguns amigos
de ambos. Ainda assim, parecia gente demais. Todos esperavam que a noiva
sorrisse ou chorasse. Esperavam dela a expressão de emoções românticas, e
Wilhelmina estava fechada para elas há algum tempo. Foi preciso bastante
esforço para fingir e para chegar até seu noivo, que a aguardava no altar.
Era curioso: ele também não demonstrava nenhuma emoção. Mas tratava-
se de Grant Sawbridge. Todos sabiam que não tinha coração.
— Se você a magoar, Sawbridge, eu vou te perseguir no inferno. —
Edward sussurrou ao depositar a mão dela sobre a do noivo.
— Considerando seu histórico na cidade, eu não duvidaria.
Sawbridge fez uma mesura com a cabeça e Edward afastou-se. Os dois se
viraram para o altar e o vigário pigarreou. Era um amigo antigo da família
excessivamente religiosa. Ele começou a falar e só parou para que os noivos
proferissem os votos. Naquele momento, sua outra sobrinha, Eloise, entrou
segurando as alianças.
Era uma linda menina de cinco anos e cabelos castanhos, fartos e
ondulados. As crianças davam leveza ao momento e faziam até parecer com
que não fosse um casamento entre duas pessoas que estavam apenas
assinando um contrato. Enquanto alguns presentes secavam lágrimas com
lenços brancos e outros suspiravam, Wilhelmina e Sawbridge proferiram seus
votos, repetindo o que o vigário dizia. Ele os declarou casados e sugeriu que
o noivo beijasse a noiva.
Maldição, ela já quase tinha esquecido daquela parte da cerimônia. Claro
que haveria um beijo. Pior ainda, haveria um beijo público. Não seria crível
que eles se casassem, depois de um escândalo em outros jardins, e não
cumprissem aquela tradição. E seria ainda menos crível que Grant Sawbridge
a beijasse na testa, ou nas bochechas.
Antes de viajar, ele também a beijou e ela quase desmontou em pedaços
com o toque dos lábios dele. Agora, todo mundo veria isso.
Ele levou as mãos ao véu que cobria o rosto dela e gastou alguns
segundos fitando-a. O coração de Wilhelmina começou a bater de forma
irregular. Estava muito claro naquele domingo, fazendo com que a luz solar
lhe tocasse a pele e reluzia nos cabelos dele, que eram avermelhados. Ela não
notara antes. Os olhos, muito azuis, eram duas portas fechadas que não
entregavam nada do que ela precisava saber. Mesmo que o momento
parecesse durar dois dias, a boca dele se deitou sobre a dela muito
rapidamente.
Wilhelmina sabia que devia fechar os olhos e que seria breve. A mão de
seu marido segurou a parte de trás de sua cabeça e ele estava muito quente
sobre seus lábios. Ela só percebeu que prendia a respiração quando ele se
afastou.
Foi um momento patético. Wilhelmina olhou ao redor para confirmar que
todo mundo prestava atenção nela e jogava uma chuva de arroz cru sobre
eles. Sawbridge colocou a mão dela na dobra de seu cotovelo e a conduziu
pelo tapete. Nenhum dos dois sorria, apesar do entusiasmo dos convidados. O
contrato estava assinado, então.
T UDO QUE ELA precisava era fugir da sua própria festa de casamento. Depois
de cumprimentar todos os convidados e beber uma taça de champanhe, ela
pensou em levantar as saias do vestido e sair correndo dali. Seu marido
estava desaparecido há quase uma hora e ela nem fora apresentada aos
sogros, ainda. Sentindo uma pequena crise de pânico, Wilhelmina decidiu
escapar. Disfarçou andando para lá e para cá, subiu as escadas pé ante pé e se
recostou na parede do corredor do primeiro andar. Fechou os olhos e ficou
ali, inspirando e expirando por longos minutos.
Até o cheiro de tabaco atrapalhar sua respiração. O aroma acre fez com
que sua garganta arranhasse. Talvez os irmãos estivessem fumando no
escritório. Mas não, eles eram barulhentos quando juntos. Curiosa, decidiu
procurar quem era a origem do tabaco e surpreendeu-se ao ver seu marido ali.
Sentado à janela, olhando para o lado de fora, ele segurava um charuto entre
os dedos. A fumaça fétida fazia seu nariz arder, mas ela continuou curiosa.
— É comum um marido se esconder no próprio casamento?
Ela recostou no batente da porta aberta e o fitou. Sawbridge olhou para o
charuto, apagou-o no cinzeiro e virou-se para ela.
— Você está muito bonita.
— É o vestido de minha mãe. — Ela girou nos calcanhares. — Precisou
ser ajustado, já que mamãe era bem mais magra do que eu, mas é um modelo
clássico.
— Ainda bem que precisou de ajustes. — Sawbridge levantou-se e
caminhou na direção de uma balde de prata cheio de gelo. Serviu duas taças
do champanhe que estava ali e entregou uma para Wilhelmina. — A magreza
certamente não lhe cairia bem.
— Ainda não respondeu minha pergunta.
— Não estou me escondendo, estou espairecendo. Acostumei-me a ficar
sozinho ou entre amigos no clube. Não estou habituado a grandes eventos,
mesmo que eles possam me ser vantajosos economicamente.
Sawbridge estendeu a taça para ela e sugeriu um brinde.
— Espero que perdoe minha inexperiência. — Wilhelmina disse,
mantendo uma distância razoável entre ela e o marido. Ele tinha um cheiro
muito masculino, diferente do que ela estava acostumada. Seria possível que
os homens que ela conhecia não cheirassem como homens? Claro que ela
estava enganada. — Apesar do episódio no jardim, eu…
— Você é totalmente inocente. — Ele assentiu. — E eu não preciso
perdoá-la. É isso que se espera de uma esposa, inocência. Se você estiver
farta de celebrações, podemos nos despedir. Temos um longo caminho até
Anglesey, precisamos descansar.
— Anglesey?
— Sim, minha senhora. É lá que passaremos nossa lua de mel.
Wilhelmina sentiu como se dez adagas lhe perfurassem o peito. Poderiam
ser balas, que penetravam a carne e vazavam do outro lado, deixando uma
hemorragia. Como fora tola em pensar que o casamento se resumiria a uma
cerimônia, alguns momentos de intimidade e o tão desejado afastamento.
— E… vamos para lá assim que acabar a festa?
— Não, apenas amanhã. — Ele a fitava com intensidade. Wilhelmina
nunca fora escrutinada daquela forma por um homem. — Hoje ficaremos em
casa e jantaremos com meus pais.
— Não fui formalmente apresentada a eles.
— Teremos essa oportunidade em breve. Meus pais eles… eles são um
pouco entusiasmados demais. Estão ansiosos para conversar propriamente
com a nora.
— Certo. Sou de uma família grande, estou acostumada a jantares
formais. Sairá tudo bem.
— Tenho certeza que sim. — Sawbridge esticou os lábios em uma
espécie de sorriso. Cínico, talvez, mas um sorriso. — Eles estão tão felizes
porque me casei que adorarão qualquer esposa que eu leve para casa. E você
é… você é perfeita.
Perfeita. Era um adjetivo que ela ouvia com frequência. Nenhuma vez fez
com que se sentisse encabulada, porque nenhuma vez foi dito com tanta
ênfase. A forma como Sawbridge a olhava, enquanto seus lábios
pronunciavam a palavra, era indecente. Ele parecia capaz de devorá-la nua,
sobre uma mesa, com uma maçã na boca como se fosse um leitão assado.
Não, não daquela forma. Mas nua, com certeza. Seu marido era um homem
intenso, muito mais do que ela esperava.
— Por que Anglesey?
Ela tentou trazer um assunto que não fosse constrangedor. Apesar de que
falar sobre o lugar onde passariam a lua de mel era constrangedor o
suficiente.
— Tenho uma propriedade lá. Tem uma praia, é bonito e há muitas coisas
para fazer, assim você não se sentirá obrigada a interagir comigo.
— Poderíamos poupar esforços e permanecer em Londres.
Daquela vez, Sawbridge sorriu. Ainda era sarcasmo, ela tinha certeza,
mas ele ficava mais agradável sorrindo. Mais bonito. Não, ele não era bonito.
O marido levou a mão até ela e acariciou-a na face.
— Minha querida esposa, ninguém acreditará no nosso casamento se
ficarmos em Londres. Eu, Grant Sawbridge, teria que desejar pelo menos um
mês de privacidade com minha mulher quando pudesse torná-la minha.
— Um mês? Para fazer o que?
Ele gargalhou e ela se sentiu ofendida. Aquele homem zombava dela e de
sua inocência para com assuntos de casais. Bem que Wilhelmina deveria ter
prestado mais atenção nas obscenidades que Caroline insistia em contar
durante o chá.
— Você descobrirá, minha esposa. Tenho a impressão que se arrependerá
de ter escolhido o quarto do outro lado do corredor.
Ela bebeu um gole do champanhe e as bolhas fizeram cócegas em sua
garganta seca. Aquele assunto a estava deixando nervosa. Wilhelmina era
uma mulher prática e era difícil negar que estava se sentindo um pouco
intimidada por seu marido. Não porque ele fosse ameaçador ou perigoso. Ela
não se importava que ele fosse chamado de homem sem coração, porque
Grant Sawbridge era magnético. Algo entre a forma como ele a examinava
com o olhar, o cheiro de tabaco de sua pele e a intensidade dos olhos azuis
fazia com que ela sentisse o ar lhe faltar e o desejo de manter-se perto dele.
— Era o segundo melhor quarto da casa. — Ela replicou. — Dificilmente
vou me arrepender de uma vista daquelas.
A conversa estava prestes a causar constrangimento real quando o casal
foi interceptado pela Condessa de Cornwall. Agatha os encontrou em uma
posição reveladora, com Wilhelmina quase encostada na parede decorada e o
corpo de Sawbridge displicentemente apoiado em um braço esticado. Eles
estavam muito próximos. Sendo casados, ninguém se importava, mais.
— Ora, aí estão vocês! — A condessa segurou Wilhelmina pela mão. —
Venham, os dois. Está na hora de cortar o bolo, Edward e Aiden já beberam
mais conhaque do que deveriam e parece que eles querem propor um brinde.
Wilhelmina respirou fundo, envergonhada.
— Já posso arrepender-me de me casar com um dos amigos do meu
irmão?
— Se vocês não consumaram o casamento ainda, é a hora certa de se
arrepender.
Quando Wilhelmina virou para Sawbridge, ele a observava em um
silêncio ainda mais sombrio. Mordia o lábio inferior e segurava a taça de
champanhe com muita força. Estaria ele preocupado que ela simplesmente
desistisse dele? Que ela desistisse do casamento? Claro que ela não faria isso.
Era tarde demais para um arroubo de consciência. Se ela não teria o amor de
sua vida, qualquer marido lhe serviria.
CAPÍTULO QUARTO

A S ESTRANHEZAS DA VIDA FAMILIAR FORAM SUPERADAS POR S AWBRIDGE


quando ele mudou os pais para Hampshire. Sob a alegação de que estavam
velhos demais para a poluição e sujeira de Londres, o industriário os
convenceu que era melhor morarem no campo. A casa em Hampshire era
moderna, de ótimo tamanho para os dois, com empregados que atendiam a
todas as necessidades deles. E perto de uma linda e bucólica vila, onde
podiam passear e comprar suprimentos.
Eles nunca foram exatamente pobres. Apesar da ausência de sangue azul,
a família de Sawbridge foi uma das que inauguraram a nova classe social da
burguesia. Plebeus que começaram a ganhar muito dinheiro com
investimentos e indústrias. O pai era comerciante e possuía uma loja de
departamentos que atendia a bairros de classe baixa, como Shadwell e
Whitechapel. Apesar da miséria das pessoas daquelas regiões, elas também
precisavam comprar alimentos. Ele vendia fiado, a preços modestos, permitia
que os empregados pagassem apenas no dia em que recebessem seus salários.
Fazia malabarismos para atender aos clientes da melhor forma.
Prosperou, mas não enriqueceu como o filho. Conseguiu pagar para que
Sawbridge estudasse na melhor escola da Inglaterra: ele frequentou a Eton
College com herdeiros de ducados, condados e marquesados. Foi rejeitado
por muitos, acolhido por alguns. Quando saiu, transformou os negócios do
pai em um império.
Seus pais não foram ricos, mas ele era. Tinha mais dinheiro do que
precisava, bem mais do que podia gastar. Mesmo assim, não conseguia parar
de pensar em ganhar mais.
E toda a sua habilidade em negociar, somada a toda a sua facilidade em
transformar ruínas em montes de moedas, não poderiam ajudá-lo naquele
momento. Sentado em uma mesa retangular, tinha sua esposa recém-
adquirida ao seu lado direito e seus pais ao seu lado esquerdo. A forma como
olhavam para Wilhelmina era constrangedora. Mas ela parecia muito
confortável com ambos. Realmente, a jovem com quem casara era uma dama
perfeita.
— Então, minha nora… a senhora tem algum passatempo?
— Por favor, Sra. Sawbridge, chame-me de Wilhelmina. Sou sua nora,
agora. — A esposa sorriu suavemente. — Eu tenho alguns passatempos, sim.
Gosto de esportes e de colecionar coisas. E adoro ler.
— Colecionar coisas? — Sawbridge ergueu uma sobrancelha e a encarou.
— Esportes? — O pai deu um sorriso estranho. — Nenhum passatempo
feminino, então?
— Por favor, James. — A mãe ralhou. — Esse é um pensamento muito
antiquado. E ela disse que gosta de ler, pode dizer que a leitura não é um
passamento feminino?
— Definitivamente. Somos governados por uma rainha, não sei por que
insistimos que mulheres não podem fazer certas coisas. Mas… colecionar
coisas?
Ele insistiu, porque jamais imaginaria que aquela dama poderia ser uma
colecionadora. Aquele era um hábito de pessoas curiosas e estranhas, era
verdade. Mas ela apenas sorriu para ele e assentiu com a cabeça.
— Minhas coleções estão em Greenwood Park. Há um salão inteiro para
elas. Desde selos até miniaturas.
— E quais esportes gosta?
— Críquete, rounders e jogos de tabuleiro, mesmo que eles não possam
ser considerados esporte, ou possam?
— Creio que não.
O pai sorriu. A conversa prosseguiu com Wilhelmina demonstrando ser
uma mistura de lady fina, requintada e elegante, mas também uma jovem
audaciosa e curiosa. Por vezes, ela falava baixo e com recato, mas se animava
com alguns temas e o brilho em seus olhos castanhos ficava visível.
Castanhos. Sawbridge ainda não reparara que ela era a única McFadden
sem olhos azuis. Os irmãos dela, todos os quatro, tinham olhos claros. Quase
transparentes, como eram os seus próprios. Mas ela, não. Quando ela olhava
para ele, eventualmente, durante o jantar, era como se aqueles olhos de mel
pudessem guardar muitos segredos.
— Vamos nos retirar para o escritório? — Sawbridge convocou o pai. Ele
não estava mais confortável naquela mesa.
— Certamente. A falta de sangue azul não me impede de apreciar um
cálice de vinho do porto.
— Vamos com vocês. — A mãe deixou o guardanapo sobre a mesa. —
Assim eu garanto que meu marido não segurará o seu por muito tempo,
minha querida.
Mary Anne Sawbridge era uma senhora de cabelos grisalhos e olhos
gentis, fazendo parecer muito difícil negar-lhe qualquer coisa. Sawbridge
passou a vida vendo o pai satisfazer os desejos da mãe, mesmo que eles
fossem apenas caprichos. A forma como ela sorriu para Wilhelmina e olhou
de volta para o pai, indicou que não haveria discussão sobre aquela decisão.
— Os nobres não cultivam o hábito de misturar homens e mulheres
depois do jantar. — Ele explicou para a mãe, ante a surpresa na reação da
esposa.
— Ah, claro. Lembro-me vagamente de alguns poucos eventos que
frequentei com a nobreza. Mas esse é um costume tão tolo, não acham? É
muito mais divertido quando reunimos a família à frente da lareira.
— Certamente que é um costume tolo. — O pai levantou-se. — Vamos?
Vamos. Estava decidido e nem ele, nem Wilhelmina, iriam contradizer
James e Mary Anne. Os dois casais foram para o escritório em estados de
espírito muito diversos. Enquanto os pais de Sawbridge iam à frente,
conversando animadamente, os recém-casados mantinham silêncio e
distância. Ela parecia confusa com tudo que estava acontecendo.
Sawbridge abriu a garrafa de vinho do porto que ficava guardada para
uma ocasião especial qualquer. Ele a comprara por um preço exorbitante e
jurou que só a abriria se recebesse a Rainha em sua residência. Seu
casamento parecia um evento à altura, no entanto. Serviu uma taça para cada
um e sentou-se em uma poltrona. Wilhelmina estava ao seu lado, em outro
sofá.
— James. — A mãe levantou-se, subitamente, e colocou a mão nas
costas. — Estou sentindo aquela dor, novamente.
— Que dor?
— Aquela dor, James. Por favor, leve-me para o quarto. Preciso me
deitar.
O pai olhou para a taça de vinho em sua mão e depois para a esposa, que
o fitava com uma expressão fatalista.
— Levarei Mary Anne para o quarto e retorno em seguida. — Ele disse,
por fim.
— Aguardaremos você, pai.
O escritório ficou rapidamente muito grande. Com a saída dos pais,
restaram apenas Sawbridge e Wilhelmina na penumbra. Eles pouco sabiam
um do outro, quase nunca interagiram antes. Foi puro impulso pedi-la em
casamento naquela manhã, uma semana atrás. Ela precisava de um marido,
ele de uma esposa. Sawbridge nem mesmo sabia do que estava resgatando a
jovem, mas ela parecia definitivamente necessitada de resgate.
E então estavam ali, marido e mulher. Duas pessoas que não conseguiam
nem mesmo se tratar pelo nome de batismo. Ele resistiu ao impulso de
chamá-la milady por várias vezes. De todas as vezes que Sawbridge tomou
decisões impulsivas, aquela foi a que poderia gerar consequências mais
desastrosas. Ele estava atado, preso pela vida inteira com uma mulher. Não
que isso fosse um problema, mas ela era algo que ele poderia quebrar,
magoar, ferir. Wilhelmina era uma pessoa com sentimentos e ele não lidava
tão bem assim com sentimentos.
— Eles não retornarão. — Disse, bebendo seu cálice de vinho e pegando
o que pertencia a seu pai. — Minha mãe não tem “dores”.
— Então por que mentiu?
— Para nos deixar a sós.
— Oh. Entendo. E… vamos ficar aqui? A sós, bebendo vinho?
— Podemos fazer isso. Ou nos retirarmos para o quarto. O que prefere?
Ela virou-se para ele e sorriu. Sawbridge era especialista em reconhecer
expressões faciais. Ele era perspicaz e raramente se enganava sobre alguém.
Ela parecia assustada. Pela primeira vez desde que decidiram por aquele
casamento, Wilhelmina estava assustada.
— Creio que possamos conversar um pouco.
— Não precisa ter medo de mim, Wilhelmina. — Sawbridge bebeu um
gole do vinho que estava no cálice de seu pai. — Eu não vou fazer nada com
você. Nada ruim, pelo menos.
— Não estou com medo. — Ela sorveu um pouco do líquido adocicado e
ergueu os olhos. Eles eram firmes, mas estavam apavorados. — Eu apenas
não estou entusiasmada em antecipar nossa noite de núpcias. E gostaria, sim,
de saber um pouco mais sobre meu marido.
Ele normalmente levaria aquilo como uma ofensa. Mulheres sempre se
divertiam muito na cama de Sawbridge. Ele nunca as decepcionava. A
maioria queria mais. Em seus trinta e cinco anos, ele não recebera nenhum
comentário negativo de nenhuma mulher. Elas não diziam por aí que estavam
pouco ansiosas em deitar-se com ele.
Mas ele também nunca esteve com uma dama, uma virgem. Wilhelmina
era uma linda mulher, mas era inexperiente e dificilmente saberia o que
aconteceria na cama. Ela era cunhada de Caroline, mas parecia não ter
aprendido nada com a dama de vermelho.
Sawbridge se levantou e se sentou ao lado dela no sofá. Wilhelmina
sobressaltou-se e quase derrubou o restante do vinho sobre seu vestido. Ela
usava azul, e ficava muito bem com aquela cor. Para sorte do industriário, o
decote rendado deixava os fartos seios dela à mostra. Naquele momento ele
se pegou olhando um pouco diretamente para aquele ponto da anatomia de
sua esposa.
— Talvez seja mais fácil se você se acostumar com minha proximidade.
— Ele pegou o cálice da mão dela e colocou sobre a mesinha de madeira ao
lado do sofá. Depois, segurou a mesma mão entre as dele e levou os dedos à
boca, beijando-os. — E não se preocupe. — Sawbridge prosseguiu. — Não
vamos consumar o casamento essa noite.

A FRASE do marido fez com que Wilhelmina saísse de um estado de torpor


que ela não entendia como entrou. Aquela foi uma semana estranha, atípica.
Ela se acostumara a uma vida simples, mesmo na agitação de Londres.
Quando convenceu os irmãos a deixá-la estudar na escola de Agatha e
Caroline, ela logo se viu sendo utilizada como uma das monitoras. Os
ensinamentos de sua preceptora faziam com que ela fosse muito bem-educada
e as jovens damas da sociedade se sentiam confortáveis com ela.
A rotina da escola era agradável. Wilhelmina acordava, tomava seu
desjejum, ia para a escola e passava o dia lá. No final da tarde, ia para casa e
se entretinha com os sobrinhos. Teve certeza que adorava crianças quando se
pegou passando à frente da babá para cuidar dos filhos de Edward. Era ainda
melhor quando Louis estava com eles, nos momentos em que Caroline e
Isaac iam visitá-los.
Toda a sua vida era previsível e Wilhelmina descobriu-se uma dama
muito tradicional. Ela tinha uma identificação com Elizabeth Trowsdale, a
Duquesa de Shaftesbury. Apesar da origem humilde, Elizabeth era uma
mulher culta, educada e muito fina. Todas as vezes em que as mulheres se
reuniam, fosse para o chá, fosse para discutir negócios, ela admirava a
duquesa e almejava ser como ela.
E então ela decidiu casar-se com um quase desconhecido e tudo
aconteceu rápido demais. A semana passou em um borrão. Ela tentou manter
a serenidade, mas depois da cerimônia e de um delicioso jantar com seus
novos sogros, a exaustão cobrou seu preço. Naquele momento, ela estava
mais cansada do que assustada. Porque sim, ela estava espantada.
Não confessaria para Sawbridge de jeito algum. Ele jamais saberia que
era intimidante, com aqueles olhos azuis afiados como navalha e aqueles
cabelos acobreados que mudavam de cor conforme a luz. E como era alto…
nenhum dos seus irmãos era alto como ele. O marido tinha braços longos e
mãos enormes que eram uma visão perturbadora. Talvez ela devesse temer o
que ele podia fazer com aquelas mãos.
E ele estava ali, do lado dela, olhando-a como se ela fosse o conteúdo do
cálice de vinho do porto que jazia vazio sobre a mesinha.
— Não vamos? — Ela repetiu a afirmação dele em forma de pergunta.
Nem considerou que poderia parecer estúpida.
— Não. — Ele levou os dedos longos até a face dela e a acariciou ali.
Wilhelmina fechou os olhos com o contato. Ela realmente parecia estúpida.
— Amanhã viajaremos um dia inteiro para nossa lua de mel. Você precisa…
querer estar comigo.
— Eu quero. — Ela disse, por impulso.
— Quer?
— Não, quero dizer… eu me casei com o senhor. Certamente, espero que
haja intimidade física entre nós.
— Claro que espera. Mas entenda, minha querida, eu não estou
acostumado a nada disso. Nem a ter esposas, nem virgens em minha cama.
Sawbridge moveu-se lentamente. A mão dele deslizou para o pescoço
dela e posicionou-se ali. Ela podia sentir as pontas dos dedos acariciando-a
nos cabelos. Era hipnótico. Ela se viu subitamente rendida aos carinhos e ao
calor do corpo dele.
— Prefiro esperar até amanhã. — O marido prosseguiu. — Tudo que
conseguirei agora será apavorá-la ainda mais.
Wilhelmina quis discordar. Ela não estava apavorada, mas o protesto
morreu no fundo de sua garganta quando a boca dele deitou-se sobre a dela.
Foi como se o mundo ficasse silencioso e escuro e tudo se resumisse àquele
toque.
Cada beijo parecia um mundo novo sendo descoberto. Ela não era
inexperiente daquela forma. Na verdade, os beijos trocados com o canalha no
jardim foram bastante audaciosos. Ela imaginou que não pudesse mais ser
surpreendida por um homem que a beijasse até aquele momento, quando ela
precisou do suporte das mãos de Sawbridge em seu pescoço para não
desmanchar sob os lábios dele.
Foi bastante mais íntimo do que o beijo de despedida, certamente mais
íntimo que o beijo na cerimônia. Ele tinha a boca macia e quente, gosto de
tabaco e álcool e era muito experiente no que fazia. Ela chegou a pensar em
passar os braços ao redor do pescoço dele e puxá-lo para mais perto. Em
tocá-lo nos ombros firmes e enfiar os dedos nos cabelos que ela estivera
admirando antes, mas acabou rendida a ponto de não conseguir reagir.
Quando sentiu a língua dele buscando alguma abertura para participar do
beijo, tudo que Wilhelmina conseguiu fazer foi soltar um arquejo que pareceu
um gemido baixo.
E o marido aproveitou o espaço para aprofundar o beijo. Segurando-a
pelas costas, Sawbrige procurou a língua dela com a dele e o toque foi
eletrizante. Wilhelmina realmente se assustou. Não sabia dizer se fora porque
o momento estava muito íntimo ou porque ela estava gostando. Fosse o que
fosse, não conseguiu evitar enrijecer-se nos braços dele. Seus músculos
estavam moles como um pudim e mesmo assim ela conseguiu se colocar
firme como uma estaca de madeira.
Sawbridge interrompeu o beijo e se afastou alguns centímetros.
— É por isso que vamos esperar até amanhã. Boa noite, minha esposa.
Ele se levantou e ofereceu a mão para que ela fizesse o mesmo. Foi
desconcertante perceber que suas pernas tremiam. Wilhelmina se sentia
bastante imune àquelas paixões. Ela desejou apenas um homem, em toda a
sua vida. Um homem que ela não poderia ter, mas a quem decidira se
entregar depois de casada. Seu marido jamais teria seu coração.
Ali, naquele momento, ela descobriu que fatalmente o marido acabaria
por tomar um pouco mais do que ela estava disposta a ceder.
A NOITE FOI DESCONCERTANTE . Fora de casa pela primeira vez, Wilhelmina
achou muito difícil pegar no sono. Se fechasse os olhos, os fantasmas vinham
assombrá-la: eram fantasmas estranhos, com formas semelhantes, olhos azuis
e cheiro de tabaco. Quando percebeu que a fragrância de Sawbridge estava
em seus cabelos e sua pele, ela foi até o banheiro e se lavou. Foi a primeira
vez que tomou banho sem que uma criada o preparasse, mas ela precisava se
livrar daquele aroma. Precisava se livrar dele.
Depois do banho, os fantasmas desapareceram e ela conseguiu
adormecer. Estava com os cabelos úmidos e escovados e sentiu frio de
madrugada, mas satisfez-se em descansar um pouco. Ainda não eram oito
horas da manhã quando os barulhos da casa a fizeram despertar novamente.
Como uma boa aristocrata, Wilhelmina não estava acostumada a acordar
cedo, mesmo na casa dos McFaddens. Por participar da temporada social, ela
precisava estar presente em todos os eventos da sociedade para os quais era
convidada, e isso significava ficar em bailes até o dia nascer. Aquela vida
ficou para trás, precisava desapegar-se dela. Era agora casada com um
plebeu. Ele era rico, mas era um homem trabalhador, de horários regrados e
muitos compromissos. Ela precisava aprender a lidar com isso.
— Senhora? — Uma voz feminina surgiu da porta. Era uma jovem de
cabelos escuros que estava meio escondida, meio para dentro do quarto. —
Vim saber se a senhorita deseja ajuda para se lavar e se vestir.
Wilhelmina se sentou na cama e a jovem entrou no quarto. Ela não se
parecia com uma criada da McFadden Garden ou Greenwood Park.
— Você é…
— Joannie, senhora. Sou filha do cocheiro do Sr. Sawbridge e faço a
limpeza da casa. O patrão pediu que eu viesse ajudá-la porque a senhorita
está sem sua camareira.
Sim, ela estava. Como faria uma viagem de uma semana em lua de mel,
Wilhelmina entendeu que era melhor deixar a camareira que a acompanhava
em Londres. Os plebeus não eram acostumados a ter muitos criados e ela não
sabia como agir naquela situação. Pelo visto, o marido não se importaria se
ela mantivesse Harriet consigo.
— Obrigada, Joannie. Meus vestidos são realmente um pouco difíceis de
vestir.
— Claro, senhora. E acredito que seus cabelos precisem ser escovados.
Wilhelmina olhou-se no espelho retangular, de corpo inteiro, e viu que a
criada tinha razão. Dormir com os cabelos molhados fez com que ela
acordasse muito despenteada, os cachos loiros se transformaram em tufos de
cabelo emaranhado. Por sorte ninguém a veria tão desgrenhada.
Como a viagem estava prevista para seguir durante o dia, ela escolheu um
vestido de viagem verde escuro, com casaco combinando, e pediu que
Joannie fizesse tranças em seus cabelos, que foram presas com grampos. Era
um penteado belo, porém confortável. Completando o figurino com
sapatilhas de seda e um chapéu, ela estava adequada para seguir até
Anglesey.
A casa não era ruidosa como a McFadden Garden. Ali não havia crianças,
ainda. Quando desceu as escadas, Wilhelmina encontrou o mordomo Arthur
esperando por ela. Ele era um homem peculiar: mais baixo, com cabelos
ondulados grisalhos e bigode, mas tinha uma expressão simpática.
— Senhora, o Sr. Sawbridge a espera no salão.
O mordomo a conduziu por um corredor até onde o marido estava
tomando seu desjejum. Não era o mesmo salão do jantar, aquele era um
espaço mais intimista. Havia uma mesa redonda posta com iguarias como
presunto, ovos, arenque defumado e pães. Sawbridge estava sentado em uma
cadeira, segurando um garfo em uma mão, uma faca na outra, e olhando
fixamente para a comida. O sol que penetrava pela janela reluzia sobre seus
cabelos e fazia com que tivessem o aspecto de bronze.
Talvez ela não quisesse admitir, ou preferisse não ter percebido, mas
Wilhelmina não tinha como negar que se casou com um homem bonito. Um
homem que possuía o poder de seduzir.
— Bom dia, minha esposa.
Ele disse, assim que a notou na porta.
— Seus pais ainda não acordaram?
— Ah, já acordaram e já tomaram o desjejum. Estão na biblioteca. Você
poderá despedir-se antes de irmos.
Era o que ela esperava, mas não o motivo de desejar vê-los. Wilhelmina
preferia passar a menor quantidade de tempo possível a sós com o marido.
Um plano que ele provavelmente pretendia atrapalhar.
Ela se sentou e comeu. Sem pelo menos três criados para servi-la, pegou
o que desejava das bandejas na mesa e colocou em seu prato. Era estranho,
porém libertador, não ter pessoas fazendo tudo para ela. Sawbridge era rico,
mas tinha apenas alguns criados, e eles não estavam à disposição vinte e
quatro horas para fazer tudo que se pedia. Ela teria que se acostumar àquilo
também.
Como se atendesse a um desejo não verbalizado, Sawbridge não falou
muito durante a refeição. Limitou-se a perguntar se ela teve uma boa noite e
se estava gostando da comida. Disse que ela poderia interferir em tudo, a
partir daquele dia, já que ela era a senhora da casa e que, quando voltassem,
ele a apresentaria aos empregados e informaria que todos deveriam obedecer
a ela.
Também não houve muita conversa na despedida dos pais. Eles tinham
horário para chegar à estação e o trem não esperaria. Por volta das nove e
meia, Wilhelmina estava dentro de uma carruagem a caminho da estação
London Bridge, a mais central e movimentada de Londres. Não havia mais
volta. Ela estava casada, rumo à sua lua de mel, e em breve aquele homem ao
seu lado a tomaria como sua.
Ela estava nervosa, nauseada e apenas um pouco excitada com aquela
possibilidade.
CAPÍTULO QUINTO

T RENS ERAM O MELHOR MEIO DE TRANSPORTE EXISTENTE . S AWBRIDGE


adorava trens. Desde que tomara a decisão de adquirir um vagão privativo,
viajava sempre que podia. Ele podia passar uma semana dentro daquele
vagão que não se importaria. Era bom para os negócios que ele tivesse
conforto para se deslocar pela Inglaterra, pela Escócia e Irlanda.
Naquele dia, iriam para o País de Gales e ele não estava sozinho, como de
costume. Sawbridge levou muito tempo cultivando a solidão e sua fama de
homem misterioso, mas passaria uma semana com uma esposa a tiracolo.
— Espero que seja do seu agrado. — Ele disse, enquanto Wilhelmina
olhava ao redor com certo deslumbre.
— É fantástico. — Ela passou os dedos pelos móveis de madeira
envernizada e olhou pela janela quadrada. — O vagão privativo da minha
família… quero dizer, do conde, é bem diferente deste.
— Como você disse, é um vagão de família. Esse aqui foi pensado para
um homem solteiro. Talvez você o queira redecorar.
Sawbridge aproximou-se dela e retirou-lhe o chapéu. Ela estava tensa
como se estivesse caminhando em direção à forca e ele não queria que fosse
daquela forma. Sabia que não haveria sentimentos inconvenientes entre eles.
Wilhelmina foi clara o suficiente ao confirmar que, como ele, ela também não
esperava amor daquele casamento. Sawbridge não misturava sexo com amor,
nem casamento com amor, mas esperava, pelo menos, que ela o desejasse.
Em algum momento, ela teria que desejá-lo.
— Creio que ele está muito bem decorado. — A jovem se afastou
sutilmente.
— Sou um pouco extravagante.
— Gosto de extravagância. — Ela recostou as costas na janela, virou-se
para dentro do vagão e permitiu que os olhos vagassem por todo o espaço. —
Um pouco, pelo menos. Há quantos ambientes?
— Quatro. Essa sala, uma copa e cozinha e dois quartos.
— Um deles é dos criados?
— Raramente carrego criados no vagão. Quando viajo com alguém, é
com Arthur ou com a Srta. Trimmes.
— Eles não são criados?
— Empregados.
— E há diferença entre eles?
— Sim, há. Eu cumprimento meus empregados e agradeço quando fazem
algo.
— Entendo. Você parece nutrir algum desprezo pela forma como a
aristocracia trata seus criados.
Sim, ele nutria. Não sabia se deveria falar aquilo com a esposa de sangue
azul, mas ela era perspicaz. Sawbridge serviu duas doses de uísque e
entregou uma a Wilhelmina. Ela recebeu, por educação, mas não pretendia
beber muito.
— Não diria desprezo. Apenas prefiro lidar de forma diferente com as
pessoas que trabalham para mim.
— Parece bastante digno. — Ela bebeu um pequeno gole do malte cor de
âmbar. — E ainda tentaram me convencer que o senhor não tem coração.
Ele riu. Naquele momento sentiu-se tenso também. O trem estava em
movimento e eles levariam muitas horas para chegar à costa do País de Gales.
De repente, o vagão ficou pequeno demais para duas pessoas e Sawbridge
percebeu que iniciara um complexo processo de sedução de sua esposa.
Tornou-se complexo porque ela parecia corresponder, mas sem muito
entusiasmo.
— Creio que isso seja mentira. Eu tenho um coração. — Com três passos,
ele chegou bem perto da esposa. Ela se retraiu e colou as costas na janela,
como se pudesse misturar-se com o metal e o vidro. Sawbridge segurou a
mão enluvada de Wilhelmina e colocou-a sobre seu peito. — Sem coração,
eu estaria morto. Ele bate em meu peito, é claro. Mas tenho a reputação de
quem abandona os sentimentos quando estou tratando de negócios. E eu
sempre estou tratando de negócios.
Ela abriu os dedos e deixou que sua mão se amoldasse aos contornos do
peito dele.
— E sua reputação é verdadeira?
— Às vezes, sim. Sou um investidor. Não posso deixar que a compaixão
e o remorso influenciem meu trabalho.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos. Wilhelmina rompeu o
contato e afastou-se dele outra vez, indo para o outro lado do vagão. Aquele
ambiente era uma espécie de sala. Havia assentos estofados com veludo,
almofadas, mesas, estantes com bebidas e livros. Havia uma lareira com fogo
crepitando, mas Sawbridge era muito comedido com os riscos que corria. O
aquecimento, ali, era prejudicado, pois o fogo só podia permanecer com
janelas abertas.
— Quanto tempo levaremos para chegar a Anglesey?
— Devemos chegar amanhã de manhã.
— Então vamos passar a noite no trem?
— Sim, é o pretendido. Os aposentos são muito confortáveis. Mas não
viajaremos o tempo todo, o trem faz algumas paradas para descanso. Nem
todos os passageiros estão usufruindo de um vagão como esse.
— É um tempo bastante longo para permanecermos apenas nós dois.
Sozinhos.
Wilhelmina virou todo o conteúdo do seu copo de uma só vez,
abandonando a ideia inicial de não beber. Quando o apoiou em uma mesa de
madeira, Sawbridge pode ver que os dedos dela tremiam.
— Foi proposital, minha esposa. Precisamos nos conhecer melhor.
Considerei que um tempo para beber, comer e conversar fosse ajudar.
Ela sorriu. Foi um alívio perceber alguma aceitação pelo esforço que ele
tivera com aquela viagem estúpida. Cada vez parecia fazer menos sentido
levar uma esposa de conveniência para uma lua de mel. Eles nem mesmo se
gostavam. O que fariam por uma semana naquele fim de mundo? Sawbridge
não tomara a melhor decisão naquele momento.
— Eu gosto de jogos. O senhor tem algum aqui?
— Acredito que, porque somos casados, podemos nos tratar pelo nome de
batismo. Não precisa me chamar de senhor, Wilhelmina.
— Acredito que ainda não tenha intimidade o suficiente para isso.
Ela disse aquilo e suas bochechas ficaram rosadas quando sua boca
pronunciou “intimidade”. Era intrigante que ela estivesse aos beijos com um
estranho, mas fosse, ao mesmo tempo, a mulher mais inocente e pura que ele
conhecera na vida.
— Até o final do dia, espero que esse problema esteja resolvido.
S AWBRIDGE VIROU de costas para Wilhelmina e retirou o casaco. Ele tinha
costas largas e músculos suaves que se moviam enquanto ele fazia o
movimento de despir-se. Ela sentiu a garganta seca e arrependeu-se de ter
bebido todo o seu drinque. Depois do casaco, foi a vez do colete ser
descartado. Quando virou novamente para ela, o marido estava apenas com a
camisa branca e dois botões do colarinho abertos, sem lenço no pescoço, com
os cabelos levemente despenteados e uma aparência masculina intoxicante.
Era a primeira vez que ela ficaria sozinha com um homem por tanto
tempo. Parecia perigoso - e era.
— A cozinheira preparou várias refeições frias, que estão na cozinha.
Você quer comer alguma coisa?
Ele perguntou enquanto se servia de mais uísque. Ela quis pedir outra
dose, mas desistiu. Não estava acostumada a beber muito e sabia que se
embriagar seria uma decisão ruim.
— Não, obrigada. Eu gostaria de ler, se o senhor não se importar.
— Fique à vontade. Eu também costumo ler. Depois podemos jogar, eu
trouxe alguns jogos de tabuleiro.
Ela adorava aqueles jogos. Dissera no jantar passado e não imaginava que
ele tivesse realmente prestado atenção.
— Foi muito atencioso de sua parte.
O marido sorriu, erguendo o canto dos lábios sutilmente. Ela teve a
impressão de que ele sorria pouco, ou sorria por ser obrigado a isso. O
movimento do trem a estava deixando um pouco tonta, mas Wilhelmina
conseguiu encontrar seu livro atual em sua bagagem de mão e sentou-se em
um dos assentos. Era como um sofá, mas um pouco menor. Com as costas
acomodada em uma almofada, ela retomou sua leitura enquanto Sawbridge
acomodou-se um pouco mais distante dela.
A medida em que o dia avançava, ela começou a sentir frio e fome. A
fome era fácil de resolver, mas o frio… aquela era uma caixa de metal com
menos aquecimento do que o desejado. A lareira já estava apagada e ela
precisava de uma coberta. Mesmo com as meias, seus pés ficaram gelados
rapidamente. Como esfregá-los não fez com que o frio diminuísse, ela
desistiu e decidiu que buscaria um cobertor.
Mas Sawbridge foi mais rápido. Ela intencionou se levantar e ele já
estava ali, ao lado dela, com uma manta felpuda.
— Você está tremendo. — Ele a cobriu e sentou-se ao seu lado no sofá.
Ela quis se encolher, mas o marido segurou os seus pés e apoiou-os no colo.
O calor da pele dele era intenso, mesmo coberto por uma camada grossa de
tecido. — Eu lamento. Por mais confortável que seja o vagão, não temos um
aquecimento de qualidade.
— Está tudo bem. Acho que vou pegar algo para comermos.
— Claro que vai. Mas, antes, precisa parar com essa tremedeira.
Com as mãos, ele a tocou no tornozelo e na panturrilha. Wilhelmina quis
bater nele, mas aquele era seu marido. Ele tinha todo direito de tocá-la ali e
ela não podia negar que era gostoso. Ele tinha dedos macios e a forma como
esfregava as mãos para cima e para baixo causava uma sensação boa. Um
calor diferente.
Os olhos dele estavam sobre ela e brilhavam com o reflexo da luz que
entrava pela janela. Wilhelmina não era capaz de compreender o que eles
transmitiam, só percebia que eles ficavam mais intensos à medida em que as
mãos dele subiam por suas pernas, acompanhando a extensão das meias. E
eles se fecharam quando ele tocou os laços que amarravam a calçola.
Ela estava agarrada ao livro. Apertava-o com tanta força que os nós dos
dedos estavam brancos. Nem em seus sonhos mais indecentes, e ela teve
alguns, chegou a considerar que sentiria tanto calor quando um homem a
tocasse. Principalmente porque ele estava sendo ousado, mas não
ultrapassava nenhum limite.
— Eu sei que deveria parar. — Ele disse, abrindo os olhos. — Mas eu
provavelmente não vou conseguir. Incomodo você?
Ela apenas balançou a cabeça, negando. Sawbridge continuou a subir e
descer as mãos pelas pernas dela. Os dedos envolviam a carne por baixo da
meia e faziam com que ela sentisse um arrepio na coluna. Era diferente de
outras sensações que ela já experimentara. Era diferente até do que Thomas a
fizera sentir.
O pensamento em Thomas era inconveniente, naquele momento.
Wilhelmina sentiu os dedos do marido subirem um pouco mais e esticou
a perna. Seus pés tocaram um volume inusitado na virilha dele. Sawbridge
riu, ajeitando-se no assento. Segurou os pés nas mãos e afastou-os.
— Eu… não queria machucá-lo.
Ela disse, consternada.
— Não machucou, minha querida, ao contrário. Mas, se você me tocar
aqui como eu a estou tocando aí, não vou conseguir esperar até a noite.
Todo sangue do corpo dela correu para as bochechas. O frio que ela
sentia desapareceu totalmente pela indecência do que ele falava. Wilhelmina
não negava que estava intrigada. Ela não o queria. Sabia que deveria
entregar-se a ele, mas não o desejava. E, ainda assim, o corpo dela parecia
gritar por ele.
— Acho que eu deveria pegar algo para comermos. Já não sinto mais frio.
— Graças a Deus. — Ele riu novamente. — Isso significa que não perdi
meu jeito.
— Era sua intenção constranger-me para que eu sentisse calor?
— Constrangê-la, não. Era minha intenção excitá-la.
Wilhelmina se levantou rapidamente e foi até a cabine da cozinha. Ela
duvidava que conseguisse caminhar em linha reta por causa das obscenidades
que aquele homem dissera. Ele era um devasso libertino como o irmão mais
velho dela era. Antes de se casar, o Conde de Cornwall não passava uma
noite sem uma mulher em sua cama. Sawbridge era seu melhor amigo,
portanto, falar indecências devia ser uma especialidade do marido.
As funcionalidades da cozinha a distraíram. O pequeno espaço era muito
bem equipado com armários e fogão. Como Sawbridge dissera, havia
recipientes com comidas prontas: frutas, sanduíches de carne, tortas doces,
bolinhos, peixe defumado e outras iguarias. Ela preparou uma bandeja com
um pouco de tudo, garfos e facas, e voltou para a sala.
O marido estava sem sapatos, com as mangas dobradas e preparando um
tabuleiro de xadrez - no chão. Wilhelmina apoiou a comida na mesa maior e
esperou que ele terminasse de ajustar as peças. Se Sawbridge fosse um
solteiro elegível para a temporada, ele certamente seria o mais interessante.
Sua aparência não era exatamente adequada: ele tinha os cabelos sempre
despenteados, não parecia fazer a barba todo dia, e estava sempre prestando
atenção demais em tudo. Mas era ridiculamente charmoso.
Claro que ela nunca teria prestado atenção nele em uma situação normal.
Homens como Sawbridge estavam fora do alcance de damas casadoiras como
ela. Sua acompanhante jamais admitira que eles trocassem algumas palavras.
E ainda assim ele se tornara seu marido.
— Traga a comida para cá. — Ele disse, sentando-se sobre o tapete. —
Você joga xadrez, certo?
— Eu adoro xadrez. Mas nunca joguei sentada no chão.
— Solte suas amarras. Venha.
Sawbridge estendeu os braços com as palmas das mãos para cima. Por um
breve segundo ela acreditou que ele a estivesse convidando para um abraço.
O coração dela disparou e ela só não parou de respirar porque entendeu que
ele se oferecia para segurar a bandeja. Depois de entregar a comida a ele,
ajeitou as saias e acomodou-se sobre uma almofada, do outro lado do
tabuleiro.
— A saída é sua.
— Sou campeã de xadrez da escola. — Ela pegou um bolinho e mastigou.
Seu estômago pedia por comida, mesmo que ela precisasse controlar seu
apetite. — Não seja condescendente comigo.
— Não estou sendo. Pode ter certeza de que darei o meu melhor. Mas é
educado que as damas tenham a saída.
Ela sorriu e moveu um peão. Ele se levantou, serviu duas taças de vinho
branco e também fez um movimento. A partida prosseguiu enquanto eles
esvaziavam a bandeja e uma garrafa de vinho. Quando a rainha de
Wilhelmina colocou o rei de Sawbridge em posição de xeque-mate, ele abriu
outra garrafa. Ela venceu todas as três partidas e parou apenas porque o
marido pediu clemência.
— Você é uma grata surpresa. — Ele se levantou e ofereceu a mão para
ajudá-la. — Xadrez não é minha especialidade, mas nunca conheci alguém
que me vencesse três partidas em seguida.
— Tive muito tempo disponível para aprender e um irmão para me
ensinar.
— Isaac?
— Sim, ele adorava jogar comigo porque sempre ganhava. Até começar a
perder.
Wilhelmina riu e tombou para frente. Sawbridge segurou-a nos braços,
amparando-a e evitando uma queda. Ela mais uma vez se viu acolhida no
calor daquele corpo masculino e ficou assustada com a solidez do peito dele.
— Acho melhor você descansar um pouco. — Ele a ajudou a aprumar o
corpo.
— Não estou cansada.
— Mas está embriagada. — Sawbridge sorriu. Ele estava sorrindo
bastante desde que se casaram. — Vamos, eu levo você para o quarto.
D UAS GARRAFAS de vinho eram demais para compartilhar com a esposa,
mesmo que ele tivesse bebido a maior parte do líquido contido nelas.
Wilhelmina parecia uma mulher forte e destemida, mas tremia de frio como
um filhotinho no inverno e não era capaz de acompanhá-lo na bebida. Claro
que não. Ela era apenas uma jovem mulher, frágil e provavelmente bastante
confusa por um casamento tão corrido.
Sawbridge segurou-a pelos ombros e conduziu-a até a cabine do quarto.
A cama era ostentosa para um vagão privativo e era imaculada. Apesar de sua
libertinagem, ele nunca levara uma mulher para aquela cama. Preferia
devassá-las em lugares menos íntimos, menos importantes para si mesmo.
Afinal, era sexo e nada mais.
— Você consegue se despir?
A pergunta deveria assumir um tom casual, mas Sawbridge não conseguia
ser inocente quando o assunto versava sobre mulheres despidas. A esposa riu,
afastando-se alguns passos.
— Não seja indecente. O que o senhor quer é me ver sem roupas.
— Ah, eu definitivamente quero. — Ele passou as mãos pelos cabelos. —
Mas prefiro que você esteja em melhores condições. Na verdade, estou
desejando que esteja capaz de despir-se e deitar-se sozinha para que eu não
passe pela provação de ter que fazer isso sem poder possuí-la essa noite.
— Sou sua esposa. — Ela o fitou com a escuridão de dois invernos nos
olhos. Sawbridge sentiu o frio congelar-lhe os ossos. — Pensei que poderia
possuir-me quando quisesse.
— Eu posso, mas tenho alguma decência sobrando. Deus sabe o quanto
me custa isso, porém sou um homem honrado, apesar de tudo. Você bebeu
demais.
Wilhelmina virou-se de costas e tentou alcançar os botões do vestido.
Eram muitos. Dezenas de botõezinhos perolados que serviam para
ornamentar as roupas femininas e enlouquecer os homens. Ela tinha mãos
pequenas e delicadas. Dedos longos, finos, muito claros e habilidosos - que
estavam entorpecidos pelo vinho. Vendo a dificuldade da esposa em alcançar
seu objetivo, Sawbridge suspirou profundamente e se aproximou.
Ela enrijeceu os músculos quando o sentiu tocando-a. Havia poucas
coisas mais sensuais do que retirar a roupa de uma mulher. Em alguns
minutos, os botões já não exerciam função alguma. Os ganchos tinham sido
soltos e os laços desfeitos. O lindo vestido de viagem de Wilhelmina caiu ao
chão e se tornou um emaranhado de tecido aos pés dela.
Sawbridge sentiu a boca seca. Sua esposa era linda. Mesmo que ela ainda
conservasse as roupas de baixo, sua imaginação já atravessara os oceanos a
caminho das Índias. Enquanto desfazia os laços do espartilho, ele a
imaginava nua. Debaixo dele. A pele branca e delicada, mas rosada pelo
esforço e pelo prazer. Seu corpo reagiu às peças que a mente pregava.
— Pronto. — Ele sussurrou próximo ao ouvido dela, duvidando da sua
própria capacidade de falar. — Agora deite-se, eu vou cobri-la.
— Só há uma cama aqui. O senhor vai dormir nela?
A esposa virou-se para ele e a proximidade era desconcertante. Aquilo era
ridículo. Grant Sawbridge não ficava desconcertado na presença de damas.
Ele as deixava nervosas, não o contrário.
— Depende de sua vontade. O que minha esposa acharia de compartilhar
a cama comigo essa noite?
Ela deu uma risada tímida e baixou o olhar. As mãos dela esfregaram a
lateral do corpo. Quando ela ergueu novamente os olhos para respondê-lo, ele
perdeu o pouco controle que possuía. Segurou-a com uma mão nas costas e
uma mão na nuca e a conduziu para seus lábios.
Assustada com o ataque, Wilhelmina estremeceu, mas não resistiu. A
mão dela pousou sobre o peito vestido dele e relaxou, não exercendo nenhum
obstáculo ao toque. A ausência de roupas entre eles fez com que fosse um
beijo tentador. Sawbridge fez com que ela se amoldasse ao seu próprio corpo
e devorou-a com a boca. Usou a língua para saboreá-la. Rendida, Wilhelmina
passou os braços ao redor do pescoço dele e entrelaçou os dedos em seus
cabelos.
Era demais. Ele não deveria desejar aquela mulher tanto assim. Sua
ereção pulsou dolorida dentro de suas calças enquanto o corpo dela estava tão
próximo. Esperava-se que ele desse vazão àquele desejo, a atirasse sobre a
cama e a possuísse. Mas Wilhelmina era sua esposa, maldição. Ele não podia
tratá-la como a uma de suas prostitutas. Mesmo que ele quisesse muito fazer
aquilo.
— Você deve dormir agora.
Sawbridge interrompeu o beijo e afastou-a alguns centímetros. Ela
manteve a boca entreaberta e os olhos fechados. Sensual e inocente, uma
mistura que era explosiva para um homem devasso como ele. Wilhelmina era
sua esposa há menos de dois dias e já podia ser sua perdição.
— E se eu não quiser?
— Você quer. — Ele a empurrou para a cama e puxou as cobertas
debaixo dela. — Boa noite, minha querida.
Wilhelmina ajeitou-se no travesseiro e se encolheu na cama, deitando-se
de lado e dobrando as pernas. Os cabelos dourados como o sol de outono se
espalharam pelos lençóis brancos. Ele soltou um suspiro ao olhar para ela
antes de cobri-la com um cobertor felpudo. Onde estava com a cabeça
quando decidiu se casar com uma dama? Pior, uma dama virgem?
Sawbridge pressionou as têmporas com os dedos e sentiu a cabeça doer.
Olhou ao redor e decidiu não ser tão cavalheiro assim. Ele poderia se segurar
e não deflorar sua esposa naquela noite, mas nada o impediria de dormir
naquela cama.
CAPÍTULO SEXTO

W ILHELMINA NÃO ESTAVA ACOSTUMADA A BEBER . E LA JÁ PROVARA UÍSQUE E


conhaque com os irmãos. Bebia ponche e vinho branco nas festas, soirées e
jantares. Mas, na primeira vez que exagerou, acabou arruinada em um jardim.
Aquela era a segunda vez e acordou com um homem ao seu lado.
Por sorte, era seu marido. Ele estava autorizado a dormir com ela. Da
forma como estava enrolada no cobertor, Wilhelmina soube que eles apenas
dormiram. Estava com as roupas intactas e mais protegida do que a Rainha,
mas Sawbridge estava praticamente nu. Envolvido por um lençol branco, ele
tinha o torso despido.
Por favor, esteja usando calças, ela rezou em silêncio. Não que fizesse
muita diferença. O que estava à mostra já a deixou desconcertada.
Aquele não era o primeiro peito nu que ela vira. Já pegara os irmãos sem
camisa, trabalhando na fazenda. Isaac e Nathaniel eram bastante exibidos,
não tinham nenhum decoro: viviam em mangas de camisa ou com os botões
todos abertos, quando não estavam só de calças. Mesmo depois de casado,
Isaac continuou se expondo durante o trabalho braçal.
Mas eram seus irmãos, pelos céus! Nunca se importara com eles porque
eles não eram homens para ela. O que dormia ao seu lado, no entanto, era
bem másculo. Ele era magro, mas tinha músculos muito bem formados e
pelos pelo peito e braços. Ah, os braços eram longos e pareciam fortes.
Ela precisava confessar que estava arrependida. Se tivesse se controlado,
aqueles braços a teriam envolvido com mais vigor e teriam sustentado o
corpo de seu marido sobre o dela. Aquele peito teria comprimido o dela
contra os colchões e aquela boca a teria beijado em locais bastante
indecorosos. Wilhelmina não era dada a desejos carnais, mas os beijos de seu
marido despertaram alguma coisa nela.
Suspirando, ela se levantou e foi até o banheiro. Aquele era um vagão
muito moderno - os encanamentos eram surpreendentes. Escovou os dentes
com pó dental, lavou o rosto, olhou-se no espelho oval sobre o lavatório e
suspirou novamente. Não havia ninguém para ajeitar-lhe os cabelos. Ela
deveria ter insistido um pouco para levar sua camareira naquela viagem.
Ao retornar para o quarto, o marido estava sentado na cama. Sem os
lençóis, ele usava apenas calças de dormir e elas cobriam pouco daquele
corpo masculino e cheio de músculos esguios e definidos.
— Bom dia. — Ele ergueu o olhar e a fitou. Não havia em Sawbridge o
divertimento da noite anterior. — Vejo que está mais bem-disposta.
— Desculpe-me por ontem. Creio que tenha me entusiasmado em excesso
com nossos jogos.
Sawbridge levantou-se e se aproximou. Ela sentiu o corpo estremecer e o
coração disparar. Por Deus, aquele homem não podia desorientá-la daquela
forma.
— Gosto de saber que minha esposa é capaz de se entusiasmar, mas agora
precisamos nos vestir e sair. Vou levá-la a uma confeitaria para tomar o
desjejum.
Ele desapareceu para dentro do banheiro e ela remexeu sua bagagem,
procurando um vestido de dia. Ajeitou sobre a cama uma combinação limpa,
um vestido marrom e bege e parou na frente do espelho para trançar os
cabelos. Por sorte a moda já estava mudando e cabelos muito enrolados com
ferro e empoados já não eram mais uma tendência. As tranças foram presas
no alto da cabeça como um coque e ela começou a se vestir.
Não havia nenhuma privacidade naquele quarto. Apostou a sorte no
barulho de água que caía e indicava que Sawbridge estava enchendo a
banheira. Se ele se banharia, demoraria minutos o suficiente para que ela
pudesse trocar a combinação e colocar o vestido, mesmo que não conseguisse
fechar todos os ganchos.
Foram mais minutos do que os necessários. Enquanto esperava, ela
tentava não pensar em nada que significasse Sawbridge nu dentro de uma
banheira. Quando ele finalmente saiu do banheiro, estava enrolado em uma
toalha branca. Apenas em uma toalha branca. Nada mais cobria sua pele
masculina, seus pelos corporais estavam úmidos e os cabelos grudados no
pescoço. Ele era extremamente indecente.
— Nunca tomei o desjejum em uma confeitaria. — Ela disse, tentando
não olhar para ele.
— Mesmo passando três temporadas em Londres?
— Casa cheia, muitos irmãos, cunhadas, acompanhante. Mas eu já fui a
casas de chá, com amigas.
Virada para a janela quadrada que mostrava o lado de fora, Wilhelmina
prestou atenção no ir e vir da estação. Eles estavam parados em Anglesey há
algum tempo, pelo que podia precisar.
— Assim que me vestir, ajudarei com esses botões. — O marido disse.
Ela sentiu o calor do corpo dele passando próximo a ela e seu hálito tocando-
a no pescoço. O maldito voltou para o banheiro e saiu já com as calças e uma
camisa branca, ajustando os punhos.
Ele parecia disposto a tentá-la naquela manhã. E estava tendo sucesso em
sua missão.
— Estamos atrasados para alguma coisa? — Ela perguntou ao senti-lo
tocá-la por trás. Wilhelmina prendeu a respiração ao sentir os dedos dele por
cima do tecido.
— Não. Meu empregado está nos esperando, provavelmente. Vamos
comer, depois direto para minha casa na cidade.

E M UM MINUTO , ela estava plenamente vestida e eles estavam prontos para


sair do vagão. Foi bom ver a luz do dia e a claridade do sol, mesmo que o
clima em Anglesey não estivesse muito quente. Era primavera, ainda, e ela
sentia falta do cheiro de flores de Thanet. Morar no campo era muito mais
agradável do que morar na cidade.
Um homem distinto, com traje completo e chapéu de feltro os aguardava
do lado de fora do vagão. Sawbridge ofereceu o braço para ela segurar e
cumprimentou o empregado com um aceno de cabeça. Um cabriolé com
amortecedores de mola os conduziu até uma construção pitoresca e muito
bem decorada, de nome Confeitaria da Fancy.
— A dona é uma viúva que precisava sustentar os filhos. Eu a ajudei a
construir o negócio e posso comer de graça quando quiser.
Havia uma expressão cínica na face de Sawbridge quando ele disse
aquilo. Fancy, a viúva, era uma mulher voluptuosa e de fartos cabelos
castanhos que veio animada na direção deles.
— Sr. Sawbridge, que honra recebê-lo. Ficamos todos muito felizes em
saber que se casou!
— É um prazer revê-la, Sra. Finley. Essa é a Sra. Wilhelmina Sawbridge,
minha esposa.
— Ela é uma lady? — A viúva arregalou os olhos. Ela usava uma roupa
indecorosa, que mostrava demais dos seios comprimidos no decote. — O que
deu nela para se casar com o senhor?
— Ele me ofereceu dinheiro suficiente para me convencer. —
Wilhelmina decidiu dizer. Sawbridge ergueu uma sobrancelha, surpreso.
— Ah, claro. Ele consegue qualquer coisa quando despeja o saco de
moedas na mesa. Vamos, sentem-se. Vocês devem querer comer alguma
coisa, mandarei Joey servir o especial da casa.
Sawbridge assentiu, condescendente, e conduziu Wilhelmina até uma
mesa próxima às janelas. O lugar era bonito, com cortinas de tecido e
babados de renda, toalhas bordadas e muita iluminação natural. Era possível
ver o horizonte do litoral e gaivotas voando.
— O senhor é sempre íntimo das pessoas com quem negocia?
Wilhelmina disparou a pergunta sem refletir. Alguma coisa na forma
como o marido tratou a proprietária do estabelecimento a deixou
incomodada. Não fazia sentido, já que ela não deveria se importar se ele
flertava com outras mulheres. Sequer estava interessada na fidelidade dele,
porque não sabia se poderia oferecer a dela. Mesmo assim, estava
incomodada.
— Não sou íntimo de ninguém. — Sawbridge fitou-a com curiosidade. —
Nem da minha própria esposa, pelo visto.
— Pareceu confortável com a Sra. Finley. Aliás, o nome dela é Fancy
Finley?
— Sim, é. Antes de se tornar uma respeitável senhora dona de uma
confeitaria, ela era uma prostituta. Acabou casada, com filhos, depois viúva.
Mas posso dizer que teve sorte. O marido era um canalha.
Um garoto, de não mais que doze anos, os interrompeu. Trazia duas
bandejas com chá, biscoitos e bolinhos. Tudo que Wilhelmina adorava e que
a Sra. Friedman dizia que ela deveria evitar. “Toda essa gordura vai para seus
quadris, milady”. Eram absurdas todas as restrições que as mulheres
deveriam fazer para manter um peso aceitável. Principalmente porque ela
nunca foi magra como as amigas. Sempre foi um esforço hercúleo comparar-
se a elas e às cunhadas, sempre esguias, mesmo depois de parirem uma ou
duas crianças.
— Como gosta do seu chá?
— Não gosto muito de chá, prefiro café. Pode me servir sem açúcar, com
leite. Pouco leite.
— Eu adoro chá. O meu deve ser doce, sem leite.
— Certo. Eu deveria saber que você gosta de coisas doces.
Wilhelmina ergueu o olhar e uma linha fina indicava um breve sorriso
nos lábios dele.
— Deveria saber por que…
— Você me parece uma jovem doce, Wilhelmina. Foi um trocadilho.
— Não sou tão doce assim. Posso ser um pouco desagradável e bastante
geniosa.
— Tenho certeza que sim. Você é uma McFadden, no final das contas.
Lido com seus irmãos tempo o suficiente para imaginar que você tenha um
lado muito cruel escondido sob esses lindos olhos e esse cabelo dourado
como o sol.
Ela duvidava que ele a tivesse elogiado deliberadamente, mesmo assim,
corou. Suas bochechas receberam um enforme fluxo de sangue e Wilhelmina
precisou baixar os olhos.
— Não sou mais uma McFadden.
— Sempre será uma. — Ele levou a mão até ela e ergueu seu queixo com
a ponta dos dedos. — Mas tem razão, você agora carrega meu sobrenome.
O restante da refeição foi em silêncio, mas um silêncio eloquente, em que
expressões falaram mais do que palavras. Havia algo no ar que ela não sabia
dizer o que era porque não entendia. Estava na forma como ele a observava.
Como ele passava manteiga nos pãezinhos e mastigava. Ou como ele levava
os dedos até ela e limpava um pouco de geleia que sujara a lateral de sua
boca.
Todos os movimentos e olhares de Grant Sawbridge exalavam
sensualidade, ao mesmo tempo que pareciam tão simples e casuais.
Wilhelmina não queria estar tão atraída por seu marido. Mesmo que fosse
mais fácil realmente gostar do homem com quem se casou, ela não pretendia
chegar a tanto. Tinha assuntos não resolvidos com Thomas Caldwell e
fechara seu coração para novos amores - e dissabores. Não queria se encantar
justamente pelo homem sem coração.
Depois que terminaram de comer, Sawbridge levantou-se e foi até Fancy,
que sorria como um brinquedo de molas. Ele deixou algumas moedas para
ela, recolocou o chapéu e indicou que Wilhelmina deveria segui-lo.
— Vou deixá-la em casa, agora.
Sawbridge disse, ajudando-a a subir no cabriolé.
— Deixar-me?
— Sim, eu tenho que ver um investimento. Um investidor, na verdade.
Tenho alguns negócios em Anglesey.
— Ah. — Ela abriu a sombrinha para proteger-se do sol fraco da manhã.
— Então foi por isso que viemos para cá, por que o senhor tinha negócios?
Nossa lua de mel foi apenas uma desculpa?
— Não, minha querida. Eu apenas uni negócios e prazer. Imaginei que
você não iria querer passar muito tempo em minha companhia, então
providenciei algumas reuniões e encontros.
Claro que ele imaginou. Wilhelmina deixou claro, desde o início, que eles
tinham apenas um contrato.
— Certamente. O senhor é realmente muito prático, admiro isso. Mas, se
não se importar, gostaria de acompanhá-lo. Eu adoro negócios e raramente
posso me envolver com eles.
— Você adora negócios? — Ele ergueu uma sobrancelha e demonstrou
espanto.
— Sim. Não me olhe como se eu fosse uma anomalia. Prometo manter a
boca fechada e agir como uma tola.
Sawbridge parou subitamente o cabriolé no meio da rua, quase causando
uma colisão. Apesar das reclamações ecoadas pelos outros veículos, ele
apenas a encarou e adotou uma expressão sombria.
— Eu não desejaria ter me casado com uma tola. Na verdade, eu adoraria
que minha esposa ensinasse aos meus investidores como negociar. Quanto
mais inteligente você for, melhor terá sido a minha escolha.
O cabriolé voltou a andar e Wilhelmina não conseguiu responder. Ele a
deixara sem palavras.

E RA SÓ O QUE FALTAVA . Ele teria que levar a esposa para a reunião com um
parceiro comercial porque ela gostava de negócios e porque ela duvidava que
ele a respeitaria por isso. Era uma maldição que a aristocracia acreditasse tão
veementemente na diferença entre as pessoas. Homens e mulheres, nobres e
gentios, patrões e criados. Sawbridge não podia se importar menos com essas
bobagens. Ninguém valia mais ou menos do que ninguém, mesmo que umas
pessoas fossem ricas e outras pobres.
— Com quem vamos nos encontrar?
Wilhelmina rompeu o silêncio que se estabelecera desde que ele dissera
que preferia uma esposa inteligente.
— O nome dele é Albert Carlisle. É um visionário americano que está na
Inglaterra para convencer os novos ricos pós-revolução a investirem nas
Américas.
— E o senhor pretende investir com ele?
— Parece promissor. Mas é arriscado.
Wilhelmina remexeu-se no assento. As saias dela farfalharam e os quadris
tocaram a lateral do corpo de Sawbridge. Ela era uma pequena provocativa
que não fazia ideia de sua capacidade de atormentar um homem que estava
celibatário por tempo demais. Sawbridge não lembrava da última vez que
passou uma semana sem uma mulher em sua cama.
— O senhor não assume riscos.
Foi uma afirmação. O industriário viu o prédio do King’s Head à sua
frente. Eles estavam próximos de chegar ao destino.
— Eu assumo muitos riscos. Casar-me com você foi um dos maiores, até
o momento. Mas eu geralmente pondero se os riscos valem à pena.
Ela virou-se para ele com os olhos piscando. Cílios longos e castanhos
emolduravam as írises coloridas e iluminadas pelo sol. Maldição, ela era
muito mais bonita do que deveria ser. Ele não precisava se casar com uma
dama que fosse bonita. Bastava ser rica e capaz de gerar e parir seus filhos.
— Creio que isso signifique que eu valho à pena.
Sawbridge parou o cabriolé repentinamente. A rua era movimentada, mas
ele deixou o veículo parado na porta do hotel. Sabia que alguém viria e, por
algum dinheiro, removeria o inconveniente dali. Depois de pular de seu
assento, foi até onde ela estava sentada e ajudou-a a descer.
— Estou começando a desconfiar que sim.
A forma como ela corou ao ouvi-lo fez com que ele a desejasse. Não era
nada incomum que Sawbridge desejasse mulheres bonitas, portanto era
esperado que se comportasse como um animal. Ele apenas não gostaria que
seu pênis enrijecesse no momento em que o corpo dela escorregou próximo
ao dele, na descida do veículo.
O King’s Head não era um hotel de luxo. Para negociantes e burgueses,
era suficiente. O maldito americano aguardava por Sawbridge na recepção,
lendo o jornal que fora cuidadosamente passado a ferro pelos empregados.
Ele tinha cabelos castanhos fartos, barriga proeminente e usava roupas que
não combinavam.
Os dois homens se cumprimentaram e Carlisle indicou que deveriam ir
para a sala de chá.
— A dama pode esperar aqui enquanto tratamos de nossos assuntos no
salão de jogos.
— Creio que não será possível. — Sawbridge disse, segurando os dedos
da esposa que estavam segurando a dobra de seu cotovelo. — A Sra.
Wilhelmina Sawbridge veio para me acompanhar e ela ficará muito frustrada
se perder a conversa.
— Ah! — Carlisle deu uma risada. — Ela ficará entediada com o que
falaremos. Mas, se insiste…
— Eu insisto. — Wilhelmina falou, com a voz baixa e os olhos
expressivos.
Rendido, Carlisle assentiu. Eles ocuparam uma mesa, pediram café preto
e começaram a conversar. A esposa permaneceu sentada com as costas eretas,
as mãos apoiadas sobre as saias fartas, e o olhar fixo nos homens à sua frente.
Sawbridge queria prestar mais atenção no parceiro, mas foi difícil concentrar-
se nele. O espécime feminino que o acompanhava era demasiado intrigante.
Como prometido, ela não falou nada. Claro que ela não acreditou nele
quando disse que preferia uma esposa inteligente. Homens nunca queriam
mulheres que pudessem conversar de igual para igual com eles em nenhum
contexto, embora ele não estivesse mentindo.
Depois da reunião, eles não tinham mais nada para fazer. Nada que
adiasse os momentos de solidão conjunta de um casal recém-casado. Aqueles
momentos aguardados pelos apaixonados e evitados pelos que se uniram pela
conveniência. Já passava de duas da tarde e eles ainda precisavam enfrentar
uma viagem de carruagem por pelo menos meia hora até a casa do
industriário.
Ottis esperava o patrão na porta de casa. Ele já colocara as bagagens nos
quartos, todas as malas na suíte. Era de se esperar que um casal em lua de
mel aproveitasse o tempo juntos. Tudo aquilo estava ficando constrangedor
demais. Eles não estavam apaixonados. Era difícil fingir sentimentos quando
ele sequer estava acostumado a senti-los.
— Sejam bem-vindos, senhor e senhora Sawbridge.
O empregado fez uma mesura. Não era sempre que ele tinha a
oportunidade de ver uma lady. Nenhuma das pessoas que conhecia Grant
Sawbridge imaginaria que ele fosse sequer se casar. Quanto mais com uma
lady.
— Ottis, obrigado por seus serviços. Não preciso mais de você por hoje,
tire uma folga.
— Pois não, senhor. A cozinha está abastecida, mas a Sra. Crowle virá
amanhã preparar alguns pratos.
Com a pesada porta de madeira fechada, a casa repentinamente ficou
pequena demais para ele a esposa. Ela tinha cinco quartos, dois salões, uma
cozinha e escritório. Não precisava de mais, pois Sawbridge raramente ia ao
País de Gales - e quase nunca ficava tempo o suficiente para usufruir da casa.
Wilhelmina girava pelo salão observando a decoração. Quadros, estátuas,
miniaturas - tudo era um pouco exagerado, mas ele adorava aquela
ostentação. Ela parou diante de uma estante e examinou as estatuetas. Pegou
uma com as mãos, olhou, devolveu para o lugar.
— O que faremos agora?
Seria muito indecente dizer o que ele queria fazer. Depois de um dia de
intimidades com sua esposa, Sawbridge só conseguia pensar em jogá-la sobre
uma superfície qualquer e possuí-la. Sabia que precisava ser cuidadoso,
delicado e suave - mas tinha certeza de que não conseguiria. Ele era bruto. A
sutileza de sua aparência e vestuário era incompatível com a rudeza do seu
espírito.
— A praia fica a metros daqui. Se quiser, podemos ir até lá.
— Eu adoraria caminhar na areia. Gosto do oceano, deve ser porque fui
criada em Thanet. O senhor me indicaria onde posso me trocar por um
vestido mais adequado?
Claro que ela iria querer andar na praia. Uma virgem como Wilhelmina
não estaria considerando fornicar no meio do dia. Ela nem deveria saber o
que era fornicar, talvez nunca tivesse sido tocada de forma imprópria, nem
pelo patife do jardim.
Sawbridge conduziu-a até o quarto. Esperou que ela se trocasse e ajudou-
a a fechar os botões - malditos botões - do vestido azul claro com rendas.
Depois, os dois saíram pela porta dos fundos da casa, que conduzia a uma
trilha diretamente para o mar. O oceano em Amlwch era lindo e gelado. Ele
nunca colocou os pés na maldita água, mas ela tirou as sapatilhas e correu
para a areia, também gelada. Ele a acompanhou, tirando os sapatos e
dobrando as calças no meio das canelas.
Foi ridículo sentir-se como um homem velho enquanto sua esposa era
uma criança brincando na praia. Sawbridge tinha apenas trinta e cinco anos,
estava em pleno vigor físico e mental, apenas não ligava para muitas
atividades que não envolvessem ganhar dinheiro, jogar, beber, fumar ou
foder. Olhando para Wilhelmina, abaixada para pegar conchas e sorrindo
enquanto os lábios iam ficando azuis pelo frio, ele sentiu que não gostava de
muitas coisas.
— Venha. — A voz dela fez com que ele parasse de divagar. — Veja
essas conchas, elas são lindas. Nunca as vi na Inglaterra.
— As águas aqui são mais geladas. — Sawbridge blasfemou
internamente por enfiar o pé na água fria. — E eu acho que vir à praia foi
uma ideia ruim, já que o clima não está favorável.
— Não seja tolo, o sol está brilhando. Dê-me seu chapéu, quero coletar as
conchas.
— Vai molhar e estragar o feltro.
— O senhor deve ter outros chapéus.
— E nós poderemos voltar à praia depois, com um recipiente adequado.
Wilhelmina virou-se para ele e estendeu um braço. Ela não aceitaria um
não como resposta. Enquanto ela estava ali, de pé, com as meias úmidas e um
sorriso jovial nos lábios, ele decidiu que já adiara demais o momento. Ele
precisava tomá-la como sua.
— Certo, pegue o chapéu. Mas não vamos nos demorar aqui. Decidi que
tenho outros planos para nós, essa tarde.
CAPÍTULO SÉTIMO

U M BOLO AMARGO DE SALIVA DESCEU PELA GARGANTA DE W ILHELMINA . E LA


não era tola a ponto de não saber o que seriam os “outros planos” do marido.
— Agora?
— Assim que você terminar sua coleção.
— Aqui?
Sawbridge ergueu uma sobrancelha e a encarou. Então percebeu que ela
sabia.
— Não, por Deus! Acha que sou um animal? Vamos voltar para casa e
tomar um banho quente. Os meus planos envolvem uma cama macia e
lençóis limpos.
O amargor não desapareceu só porque o marido tinha opiniões razoáveis
sobre o local adequado para a intimidade de um casal. Certamente, uma cama
era melhor do que aquele monte de areia. E era uma praia! Pessoas poderiam
aparecer. Gaivotas! Wilhelmina nem podia imaginar o quanto desagradável
deveria ser a experiência do ato sexual em um lugar tão aberto.
Só que ele lhe dera um ultimato. Sawbridge adiou aquele momento, mas
sua paciência parecia esgotada. Ela desejou estender a caça às conchas
rosadas e rugosas por horas, só não iria conseguir. A faixa de areia não era
muito longa. Logo, foram interrompidos por um rochedo que cortava a praia
em dois. Era impossível que ela atravessasse usando aquele vestido.
Maldição. Wilhelmina soltou uma imprecação silenciosa quando virou
para trás e se deparou com a expressão satisfeita de seu marido. Ele sabia que
era um xeque-mate e a forma como os lábios dele se esticavam em um sorriso
sarcástico era irritante.
Sawbridge estendeu a mão para ela e a ajudou a caminhar pela areia de
volta para a trilha. O silêncio pairou sobre eles enquanto retornavam para a
pequena e curiosa residência do industriário. Wilhelmina não tivera tempo de
examiná-la, mas sabia que se surpreenderia com alguma coisa naquele lugar.
Aparentemente, o marido não parava de surpreendê-la.
— Eu escolherei um quarto. — Ela disse, assim que entraram na casa e a
porta se fechou atrás dela. Ainda entrava bastante luz solar pelas janelas, mas
fazia frio no interior da residência.
— Suas coisas já estão na minha suíte, minha esposa. Não há mais de um
banheiro no andar de cima. Essa é uma casa modesta.
Wilhelmina olhou ao redor. Os quadros e estatuetas pareciam encará-la.
— Prefiro ter um lugar com privacidade.
Sawbridge riu. Exibiu belos dentes brancos que indicavam um homem
cuidadoso com a higiene. Isso ela sabia, porque ele cheirava bem. O aroma
de sabão e roupas limpas o acompanhava.
— Estamos fingindo que nos desejamos, querida esposa. — Ele deu dois
passos na direção dela e levou a mão até os cabelos emaranhados de
Wilhelmina. — Seria pouco crível que estivéssemos em quartos separados.
Além do mais, eu não tenho empregados aqui. A cozinheira virá durante o
dia, uma arrumadeira cuidará da limpeza, mas é só. Quem vai ajudá-la a se
vestir… — ele enrolou um cacho dourado no dedo indicador e levou o nariz
até o pescoço de Wilhelmina — ou a se despir… ou ainda, a preparar o
banho?
— Sei fazer essas coisas sozinha.
Ela gemeu no instante em que a boca de Sawbridge a tocou. Molhada e
quente, ela deslizou em um traço suave da base do pescoço até o maxilar de
Wilhelmina, enquanto as mãos dele seguravam-na apoiando a cabeça.
— Claro que sabe. Céus, mulher! Eu acho que não consigo esperar.
A frase não fez sentido nem quando ele capturou a boca dela com a sua.
Wilhelmina sentiu as pernas enfraquecerem pelo ataque voraz. Foi um beijo
diferente dos anteriores porque aquele era um prelúdio. Era o início de
alguma coisa mais íntima, mais profunda.
E ele foi profundo. Sawbridge puxou os cabelos dela para trás e desceu
pelo pescoço em uma trilha profana com seus lábios e língua. Depois
retornou para a boca e saboreou-a em cada canto, com uma virilidade intensa
e quase dolorida. Uma das mãos dele segurou-a pelas costas, puxou-a para
perto e fez com que ela sentisse a dureza de sua masculinidade. Wilhelmina
sabia o que tinha ali, ela não era ignorante a ponto de não entender como um
homem e uma mulher se conectavam.
Mas ela, definitivamente, não esperava que fosse tão grande. Ou duro, a
ponto de ser sentido por cima de camadas e mais camadas de tecido.
Sem se preocupar com a delicadeza, Sawbridge empurrou-a até que suas
costas estivessem apoiadas em uma parede qualquer. A boca dele não dava
trégua e Wilhelmina não conseguia respirar direito. Não importava, porque
dentro dela havia uma revolução. Seus sentidos estavam confusos. Ela
deveria não se importar com nada daquilo. Era para ser automático, quase
mecânico, como um simples encaixe de peças que, apenas talvez, fossem
uma combinação adequada.
Só que não era adequado. Era perfeito. A língua dele em sua boca, as
mãos dele subindo por dentro da saia e deslizando sobre a meia, os dedos se
enroscando nos laços da combinação. O frio se tornou quente e a aspereza da
mão rústica do marido adquiriu a suavidade da seda enquanto ele buscava
contato com partes dela que ela mesma não ousava conhecer muito bem.
Sawbridge segurou-a pelas nádegas e fez com que erguesse as pernas.
Procurando amparo, ela enlaçou os quadris dele sem perceber. Aquele
volume absurdo nas calças do marido estava então em contato com sua
feminilidade. Ele atacou sua boca outra vez e moveu-se, causando atrito entre
o tecido de linho e a pele suave dela. A abertura entre as calçolas, bastante
útil em algumas situações, também pareceu útil para facilitar aos homens o
acesso às mulheres.
— Diabos. — Ele blasfemou, sem parecer importar-se com ela, ali. — Eu
não posso fazer isso aqui.
— Pensei que haveria uma cama macia e um banho morno antes de
acontecer… isso.
O marido apoiou a testa na dela. Eles continuavam encaixados de forma
que ela o sentia pulsar exatamente ali, onde os corpos deles se encontravam
com tanta intimidade. As mãos dele continuavam suportando-a pelas nádegas
e a mantinham bem próxima.
— Não vou me desculpar. Eu estou um pouco ansioso por esse momento.
Preciso… faz muito tempo… ah, não importa. Mas você tem razão, vamos
fazer da forma como precisa ser feito. Vamos subir.
As pernas dela escorregaram até o chão e Wilhelmina as firmou com
alguma dificuldade. Seu coração batia sem ritmo e estava difícil respirar. Ao
vê-la buscando o ar e ainda com as costas apoiadas na parede, o marido sorriu
novamente.
— Isso era o que eu esperava quando disse que você deveria me desejar
um pouco, pelo menos. — Os dedos dele resvalaram no decote rendado e
esbarraram nos seios que subiam e desciam pelo movimento respiratório.

E LA ERA VIRGEM . Sawbridge precisava lembrar disso todo segundo, porque


ele não costumava ser muito delicado com as mulheres com quem fazia sexo.
Ao menos ela estava excitada. Ela ficou excitada. Ele foi capaz de despertar
nela o suficiente para que Wilhelmina não o empurrasse para fora da cama,
mas ele estava, sim, ansioso, como dissera a ela.
Enquanto a esposa se banhava na suíte, ele usou o chuveiro no andar
térreo. Sawbridge adorava banhos rápidos com água corrente. Banheiras eram
confortáveis e lentas. Um homem como ele não tinha tempo para perder
enchendo banheiras e mergulhando em sais de banho. Então, bastava enfiar-
se debaixo da água aquecida pela calefação, passar sabonete no corpo,
escovar os dentes com pó dental e ele estava pronto.
Pronto para deflorar sua esposa. Maldição, ele sabia que aquilo ia dar
muito mais errado do que certo. Não havia um plano. Ele vestiu as calças e
subiu as escadas. Dispensou camisa e sapatos, não penteou os cabelos.
Quando chegou no quarto ela ainda estava no banheiro e ele teve medo de
que ela não saísse mais dali.
— Precisa de alguma ajuda?
Perguntou, recostando o ouvido na porta de madeira. Um aroma suave de
rosas saía pelas frestas.
— Não. Eu estou saindo.
Alívio. Sawbridge desceu correndo as escadas, foi até seu escritório e
pegou uma garrafa de champanhe. Subiu correndo de volta, sentindo o frio do
anoitecer que chegava. Wilhelmina estava sentada na beirada do colchão
quando ele entrou, equilibrando duas taças em uma mão e uma garrafa na
outra. Ela tinha os cabelos soltos e usava um roupão de veludo. Ele já a vira
com menos roupa que aquilo, mas a visão de seus tornozelos e panturrilhas
fez com que ele sentisse o coração falhar.
Mas que diabos era aquilo?
Sem dizer nada, Sawbridge abriu a garrafa. O pop da rolha chamou a
atenção de Wilhelmina, que acompanhou o objeto voar pelo ar até cair ao
chão. Ele serviu uma taça e entregou a ela.
— Prefiro não beber.
— Acredite em mim, será mais fácil se beber um gole.
— Quer que eu fique embriagada?
— Não, minha querida. Apenas que se sinta mais confortável.
Ela olhou desconfiada para o líquido borbulhante na mão dele. Depois,
ergueu os fascinantes orbes castanhos até encará-lo. Sem hesitar, pegou a taça
e bebeu um gole. Sawbridge suspirou aliviado e apoiou a garrafa sobre a
mesa redonda que ficava próxima à lareira.
Sentiu as mãos trêmulas. Era o frio, claro. O calor vindo da lareira estava
fraco, então ele colocou mais duas ou três pequenas toras secas e atiçou as
brasas para que o fogo alaranjado começasse a iluminar o quarto. Fechou as
cortinas e envolveu todo o ambiente em uma penumbra agradável. Seria mais
fácil, também, se ela usasse outros sentidos além da visão.
Wilhelmina virou-se de costas para ele. O olhar dela estava fixo no
espelho retangular que ficava no canto do quarto. Terminou de beber o
champanhe, apoiou a taça em uma cômoda e abriu o laço do roupão, para
descartá-lo no chão. Ela usava uma camisola amarela com renda. Muita renda
e muita transparência. Ele conseguia ver todas as suas formas de costas.
E, por Deus, ela era linda.
Por que tinha que ser linda? Ele preferia que ela fosse apenas uma mulher
normal, com todas as funções regulares. Mas era claro que a sorte não lhe
sorriria sem cobrar um preço.
— Caroline disse que eu deveria usá-la na noite de núpcias. — Ela se
virou para ele e havia mais renda na parte da frente. Os seios estavam
praticamente à mostra. — Achei que deveria ouvi-la.
— Sim, você fez bem em ouvi-la. — Sawbridge sentiu a boca seca.
Pegou a garrafa de champanhe e bebeu um gole, sem se preocupar com taça.
— Lembre-me de agradecê-la, depois.
Ele deu alguns passos na direção de Wilhelmina e conteve o impulso de
beijá-la. Levou as duas mãos aos seios proeminentes e os tocou por sobre o
tecido. Ela estremeceu, mas não resistiu. Eram seios lindos, firmes e com
mamilos rosados como ficavam as bochechas dela. Sawbridge segurou-os
entre os dedos e os massageou suavemente. Eram também macios e ah,
aquele cheiro de flores o estava deixando louco.
Sem muita sutileza, ele desceu as mãos para a cintura e puxou
Wilhelmina para si. Sua boca cobriu a dela e sua língua pediu espaço para
penetrá-la. Ela ainda era muito casta, beijava como uma jovem inexperiente.
Mesmo depois de tantas amostras, ela hesitava em abrir os lábios e permitir a
ele explorá-la. Mas, quando acontecia, entregava-se totalmente.
Enquanto beijava-a, Sawbridge abriu os laços da camisola. Wilhelmina
estremeceu outra vez. As mãos dela se posicionaram à frente do corpo e
seguraram o tecido no lugar.
— Você não precisa tirá-la.
Sawbridge deu uma risada nervosa.
— Eu imagino que você saiba que devemos estar nus para que isso
aconteça.
— Mas tem… tem espaço para você, aqui embaixo.
Daquela vez ele deu uma risada mais alta. Ela era encantadora e,
definitivamente, a mulher mais inexperiente que ele já beijara.
— Minha querida, entenda uma coisa. Talvez alguns homens não gostem
muito do corpo feminino e prefiram usá-lo sem vê-lo, mas eu não sou assim.
Eu sou um adorador das formas das mulheres. E as suas… ah, elas são lindas.
Eu necessito vê-la sem todas essas roupas. Para meu deleite.
Ela não afrouxou as mãos.
— Você ficará mais confortável se eu me despir primeiro? — Ele
perguntou. Ela arregalou os olhos e balançou a cabeça que não. — Você sabe
que vou me despir, certo?
Wilhelmina assentiu e fechou os olhos. Aquela seria uma noite longa.

T UDO AQUILO ERA INDECENTE DEMAIS . Ele era seu marido, ela sabia que
deveria entregar-se a ele, mas o conhecimento não tornava nada mais fácil.
Ali, naquele momento, ela tinha plena consciência do que iria acontecer, mas
não do que deveria fazer.
— Certo. — O marido disse, enquanto ela lutava para manter-se vestida e
evitava vê-lo. — Vamos mais devagar, então. Que tal se nos deitarmos
vestidos?
Aquela parecia uma ótima proposta. Se estivessem deitados, talvez ele
ficasse muito excitado e desistisse de despi-la. Wilhelmina abriu os olhos e se
deixou conduzir para a linda cama de dossel que ficava exatamente no meio
do quarto. Era uma cama grande, macia e com os lençóis brancos, como ele
prometera.
Ela se deitou, acomodando a cabeça em um travesseiro. Sawbridge
engatinhou sobre ela como um leão analisando a presa. Mesmo que
mantivesse suas calças, muito dele estava exposto. O peito masculino, os
braços firmes e o cheiro de bergamota e madeira ela já conhecia. Seus olhos
vagaram pelo corpo dele e notaram sua ereção por baixo do tecido.
Ele era grande. Muito grande. Ela se casara com um homem viril que
estava ali para mostrar sua potência. E, com outro beijo, Sawbridge a
arrebatou.
— Mantenha os olhos fechados. Vou tocá-la de duas formas. — Ele
murmurou de encontro à boca dela. — Você me dirá qual prefere.
Ela obedeceu e balançou a cabeça, concordando. Sentiu o corpo dele
deslizar sobre ela e um toque quente em seus tornozelos. O tecido de sua
camisola subiu um pouco e a boca dele mordiscou-a na coxa, por cima da
seda.
— Prefere assim… — Sawbridge subiu mais a camisola e colou os lábios
no lugar onde mordiscara. — Ou assim?
A língua dele circulou a pele e Wilhelmina descobriu que todos os nervos
conduziam espasmos para o mesmo lugar.
— Assim.
Ela gemeu e se envergonhou da forma como sua voz saiu, estridente e
distorcida. Ele sorriu e ela soube, mesmo que não estivesse olhando.
— Muito bem. — Ele então arrastou os lábios por sobre a feminilidade
dela. Wilhelmina contraiu os músculos e agarrou os lençóis com os dedos. —
Agora você prefere assim… — Sawbridge continuou subindo com a seda da
camisola e os lábios dele subitamente a beijaram ali, no meio de suas pernas.
Ela estremeceu e viu estrelas piscando no escuro de seus olhos fechados. —
Ou assim?
Não dava para responder àquilo. Ela sequer entendia o que ele estava
fazendo naquele lugar. A falta de reação fez com que o marido insistisse.
Wilhelmina sentiu que ele usava os dedos para abri-la e, sem seguida, sua
língua morna a tocou em um lugar que ela mesmo ignorava ser tão sensível.
Uma dama bem-criada não reagiria da forma como ela reagiu. Ao menos,
era o que aprendera com sua tutora, antes de ter a oportunidade de conhecer
um outro lado do prazer feminino - apresentado por suas cunhadas. Mas o
toque bruto e molhado da boca daquele homem em sua feminilidade fez com
que Wilhelmina se retorcesse e soltasse uma imprecação alta. Ele riu outra
vez.
— Vou entender que você prefere assim, minha querida.
Ele não parou. Voltou a lamber e beijar a intimidade dela, usando os
dedos para manter suas pernas afastadas o suficiente. Wilhelmina quis sentir-
se indiferente, mas era impossível. Cada vez que a língua de seu marido
deslizava sobre a sua carne quente, ela sentia mais espasmos pelo corpo
inteiro.
Depois de alguns minutos de uma doce tortura, ela decidiu entregar-se ao
abandono. Os espasmos foram ficando mais constantes. Calor subiu por seu
baixo ventre e ela viu uma explosão de luz quando seu corpo recebeu uma
descarga de prazer indescritível.
O gemido que ela soltou enquanto ele a estimulava com a língua foi
vergonhoso. Logo, ele estava com os quadris pressionando os dela. Mesmo
vestido, a fricção causou mais uma vez aquele atrito prazeroso. O marido
abocanhou um seio e mordiscou o mamilo. Depois, sugou-o com delicadeza.
— Agora, minha esposa… você prefere que seja assim? Ou assim?
O homem ergueu toda a camisola, expondo os seios ao ar morno do
quarto. Não houve tempo para que ela pensasse - o outro seio foi também
abocanhado, mordido e sugado. A língua dele circulou o mamilo sem
nenhuma delicadeza. Sawbridge era ríspido em suas carícias, mas nenhuma
delas gerou desconforto. Ao contrário - Wilhelmina estava assustada com
suas reações àquela sedução.
De todas as formas, era melhor quando eles estavam pele com pele. Ela
abriu os olhos e levou as mãos aos botões da camisola, pretendendo abri-los.
Toda a seda rendada se resumia a um emaranhado de tecido embolado em
seus ombros. Ao perceber o que ela pretendia, o marido assumiu a tarefa e
rasgou a camisola, ignorando que ela fosse feita para ser usada mais de uma
vez.
Os olhos dele estavam intensos sobre os dela. Sawbridge ergueu o corpo e
se sentou, apoiando os quadris nas pernas da esposa.
— Você é linda. — As mãos dele percorreram todo o corpo dela.
— Agora você… também vai…
— Sim, eu vou.
Claro que ele ia. Wilhelmina tinha a opção de continuar olhando para ele
ou enfiar um travesseiro no rosto. A segunda opção era a melhor decisão, mas
ela não resistiu em espiar. Quando ele levou as mãos ao cós de suas calças,
ela imaginou ver um brilho perverso naqueles olhos azuis transparentes. O
marido sentia prazer em constrangê-la, de qualquer forma.
A imagem do homem completamente nu era ainda mais perturbadora do
que a imagem dele vestido. Ele se levantou, tirou as calças e voltou para
sobre ela, mas ficou de pé tempo o suficiente para que ela o visse.
Além dos músculos longos, a projeção de sua masculinidade era
intimidante. Wilhelmina não era absolutamente inocente em relação aos
detalhes de um ato sexual, tinha alguma noção do que aconteceria. Talvez
uma noção equivocada, já que esperava poder fazer aquilo vestida, mas não
fora preparada para aquela visão.
Contra toda a decência, ela quis tocá-lo. Quis estender as mãos e segurar
aquele membro rígido entre os dedos, sentir sua textura seu calor. Mas não o
fez. Ele lhe deu a oportunidade, mas ela permaneceu estarrecida, encarando-
o.
— Dói. — Sawbridge aproximou-se dela, apoiando-se nos cotovelos. —
Não sei dizer o quanto, mas todos nós sabemos que dói, não é mesmo? Mas
uma coisa eu posso garantir: a dor não é permanente. O seu corpo vai se
acostumar ao meu e a dor dará lugar ao prazer. Confie em mim.
Ele a beijou. Wilhelmina não sabia se confiava naquele homem com
quem se casara, mas suas dúvidas pareciam irrelevantes enquanto ele a
possuía com a língua daquela forma.
Sawbridge ajeitou-se por entre as pernas dela e conduziu o pênis para a
sua abertura. Segurou-a pelos quadris com mãos firmes e forçou-se contra
ela. A boca dele causava distração suficiente para que a dor não a
incomodasse. Ele se afastou e investiu outra vez, com mais força, fazendo-a
sentir como se sua carne se dilacerasse. Era uma sensação estranha e os beijos
perderam o efeito. Quando ele investiu pela terceira vez e a penetrou por
completo, a dor fez com que ela visse mais estrelas.
O marido soltou um gemido gutural e permaneceu imóvel. Colou a testa
na dela, mantendo os olhos fechados. Suor escorria pelos cabelos ruivos dele.
Wilhelmina soltou os lençóis e percorreu os músculos das costas dele com os
dedos. Será que doía para os homens, também? Mas Sawbridge não era
virgem.
— Sinto muito. — Ele sussurrou nos ouvidos dela. — Não tem como ser
de outra forma, mas não vai demorar muito.
Ele então se apoiou nos braços e começou a mover os quadris. Entrava e
saía dela em um ritmo cadenciado. Seu rosto assumira uma expressão
contorcida, indicando que ele segurava alguma coisa e que logo buscaria a
libertação. Mas ele estava errado - a dor não ficou menor com o tempo. Cada
estocada fazia com que ela sentisse as pontadas de uma faca cutucando-a.
Como se o marido estivesse ali com um instrumento perfurante, pinicando-a
por inteiro.
Para ele, estava prazeroso. Os gemidos que Sawbridge soltava eram
diferentes dos dela e a forma como ele intensificava os movimentos indicava
que o alívio estava próximo. A força que o movia estava prestes a se soltar - e
isso aconteceu em uma última estocada, um último gemido.
Sawbridge deitou-se sobre ela, deixando que o suor de seu corpo a
molhasse. Wilhelmina quis sentir algo diferente, quis demonstrar alguma
satisfação no ato, mas não conseguiu, imediatamente. Foi uma experiência
absurdamente íntima e, de certa forma, libertadora, mas ela definitivamente
não pretendia sentir aquela dor uma outra vez.
CAPÍTULO OITAVO

F AZIA MUITO TEMPO QUE ELE NÃO TINHA UM ORGASMO TÃO INTENSO .
Sawbridge estava tão acostumado ao sexo que raramente algo novo acontecia
para empolgá-lo. As mulheres eram todas iguais e os estímulos que elas
ofereciam eram todos iguais. O ato sexual virou uma rotina, como as
refeições diárias: o corpo pedia e ele o satisfazia.
Mas nada naquele momento foi comum. Desde que ele se propôs a
seduzir sua esposa até o momento em que despejou sua semente dentro dela,
nada foi como ele esperava. Talvez fosse porque fazia muito tempo que ele
não ejaculava em uma mulher, só que não tinha certeza. Tudo que sabia era
que foi bom. Muito bom.
Mas foi bom apenas para ele. Sua esposa não aproveitou o momento nem
se entregou ao êxtase depois de perder a virgindade. Talvez ele não se
importasse. Ele certamente preferia não se importar, só que vê-la ali, deitada
e segurando os joelhos com os braços, mexeu com alguma coisa dentro dele.
Se Sawbridge tivesse coração, ele poderia dizer que estava tocado.
— Diabos. — Esbravejou para si mesmo, enquanto enchia uma bacia com
água morna. — Toda virgem passa por isso, maldição. Ela não é especial.
Claro que ele poderia tentar se convencer disso, mas, no fundo, sabia que
estava errado. Ela era sua esposa e, por algum motivo que ele desconhecia,
ela era importante para ele. Vê-la se contorcer de dor durante o ato sexual fez
com que ele quase desistisse.
Quase. Afinal, em algum momento ficaria bom para ela também.
Sawbridge voltou para o quarto com a bacia e uma toalha branca.
Wilhelmina estava encolhida, deitada de lado. Havia sangue pelos lençóis.
Ele precisaria trocar aquilo antes de dormirem.
— Eu já estou grávida?
Ela perguntou, surpreendendo-o. O industriário sentou-se na cama e
colocou a bacia no chão. Molhou a toalha, torceu e fez com que a esposa
virasse de barriga para cima.
— Não sei, mas provavelmente, não. É… muito cedo.
— Precisa de muitas vezes?
— Às vezes, eu não sei bem. — Sawbridge passou a toalha úmida pelas
pernas dela, subindo em direção à sua vulva. Wilhelmina manteve as pernas
bem fechadas, como se ele pudesse feri-la. — Você está desesperada para ter
um bebê?
— Não. Talvez. Eu só não queria passar por isso outra vez.
Ele respirou fundo. Aquele drama virginal era parte do pacote, Sawbridge
deveria saber. Com cuidado, forçou as pernas dela até que se abrissem um
pouco. Passou o pano por ali, limpando a mistura de fluidos e sangue que
ficara na intimidade da esposa. Seria mais fácil se ela tomasse um banho, se
entrasse em uma banheira de água morna e se lavasse mais adequadamente,
mas era uma tradição que o homem limpasse a mulher que ele deflorou.
— Você vai querer passar por isso de novo, minha querida.
— Duvido. É… é como tortura.
— Porque foi a primeira vez. Estava como uma tortura antes de eu
penetrá-la?
— Não. — Ela confessou, virando o rosto para o outro lado.
— Na próxima vez, será indolor. Você só sentirá prazer.
— É doloroso para os homens, também? A primeira vez?
Wilhelmina virou-se para ele novamente, apoiou o rosto na mão e o fitou.
Ela era curiosa.
— Geralmente, não. Alguns homens possuem um obstáculo que pode
fazer doer.
— Como nós?
— Sim, como vocês.
— Você tinha esse obstáculo? — Os olhos dela fitaram o pênis flácido de
Sawbridge. Ele não se importava em ser visto nu. Era um homem bem-
dotado e a maior parte das mulheres o parabenizava por possuir um membro
avantajado.
— Não. Eu nunca senti dor no ato sexual. — Ele colocou a toalha dentro
da bacia e cobriu a esposa com o lençol. — Você está com fome?
Ela assentiu a cabeça dizendo que sim. Sawbridge enfiou-se em um
roupão e desceu. Apesar do estado de Wilhelmina o incomodar, ele estava
estranhamente satisfeito e faminto, disposto a comer tudo que estivesse na
cozinha e a fazer qualquer coisa para que ela o quisesse outra vez.
Preparou uma bandeja com tudo que achou. A comida estava fria - mas a
cozinheira era esperta e preparou alimentos que pudessem ser consumidos
sem esforço. Pernil defumado, pães e torta. Wilhelmina iria querer chá, ele
precisava ferver água. O jantar ficaria mais complicado do que o esperado.

O RUÍDO VINDO da barriga de Wilhelmina foi constrangedor. Por sorte, ela


estava sozinha no quarto. Tudo que comera no dia foi o desjejum. Pela
escuridão do quarto, a noite já estava alta no céu e ela estava com fome.
Sentou-se na cama, olhou ao redor e encontrou seu roupão de veludo. Não era
decente sair do quarto sem uma camisola ou um vestido, mas quem se
importaria? Não havia criados ou outras pessoas na casa, apenas ela e o
marido.
Sawbridge estava demorando demais. Não que ela tivesse vontade de
revê-lo naquele momento, só que precisava de comida. Calçou os chinelos de
flanela e desceu pelas escadas. Havia lamparinas por todos os corredores,
indicando que o marido passou por ali. O ruído de algo caindo e se quebrando
indicou o caminho que ela deveria seguir.
— Precisa de ajuda?
Ela encostou no batente da porta ao vê-lo recolher os cacos de porcelana
do chão. Sawbridge ergueu os olhos e a encarou.
— Estou preparando um chá, mas o bule não pareceu disposto a
colaborar.
Wilhelmina abaixou-se para ajudá-lo. Não era comum que ela fizesse
atividades corriqueiras como catar porcelana quebrada ou ferver água, mas
era certamente mais apta do que o marido naquelas tarefas.
— Pode deixar que eu cuido do chá. O senhor…
— Wilhelmina. Por favor. — Ele a segurou pelos ombros com suavidade
e fez com que se virasse para ele. — Grant. Meu nome é Grant. Poucas
pessoas conquistam o direito de usá-lo, por que você o rejeita?
— Não seja arrogante. — Ela se desvencilhou. — Se o seu ego ficar
satisfeito, eu me acostumarei a chamá-lo pelo nome de batismo.
— Não é uma questão de ego. — Sawbridge passou as mãos pelos
cabelos. — Nós acabamos de fazer sexo. Eu sou seu marido, pelos céus!
Ele tinha razão, mesmo que custasse a ela admitir. A resistência em
adotar um tratamento informal era uma maneira de mostrar que entre eles não
havia nada além de um negócio. Só que isso também não era totalmente
correto, porque já havia coisa demais entre eles.
Não atrapalharia os planos dela, nem os dele, porém seria mais fácil se ela
não o achasse tão atraente. Ou se a voz dele não fizesse uma carícia tão
interessante em seus ouvidos ou, ainda, se aqueles olhos não tivessem tanta
capacidade de penetrá-la no fundo da alma.
— Sim, o senhor é meu marido. Devo chamá-lo pelo nome, é o que farei.
Ao menos entre amigos mais íntimos e quando estivermos à sós, ou com os
criados. Isso te satisfaz?
Sawbridge concordou com um movimento de cabeça. Wilhelmina
colocou a chaleira com água sobre o fogão. Notou que suas mãos estavam
trêmulas e não era o frio porque o ambiente estava estranhamente aquecido.
Ela estava nervosa. A discussão a deixou agitada e ela precisou se esforçar
para não demonstrar muitas emoções. A Sra. Friedman ficaria orgulhosa.
O silêncio pesou sobre eles. Wilhelmina preparou o chá, serviu duas
xícaras e colocou uma à frente do marido. A cozinha era um espaço
acolhedor, com armários de madeira, utensílios modernos, um fogão bem
equipado e uma mesa que não parecia ser muito usada. Havia espaço
suficiente para que eles sentassem e fizessem uma refeição rápida.
— Amanhã eu… preciso resolver alguns negócios. Imagino que você
queira um tempo para si. — Ele disse. Grant Sawbridge não parecia um
homem que se importasse com os desejos de outras pessoas, mas ele
demonstrava interesse pelos dela ou, ao menos, respeito. Era um grande
esforço.
— Talvez eu precise.
— Mas, essa noite, vamos dormir juntos.
Ele mordeu um pedaço de pernil. Seria possível que até mastigando
aquele homem mantivesse uma aura de sensualidade? Como ela nunca vira
nada disso nas poucas vezes em que se encontraram?
— Tudo bem, creio que seja adequado.
O olhar dele sempre continha informações demais, e estava vidrado sobre
ela. Wilhelmina sentiu-se desconfortável com toda aquela atenção. Talvez ela
também preferisse ser menos notada pelo homem com quem se casara.
O restante do jantar transcorreu em mais silêncio. A comida estava
deliciosa e a dor entre suas pernas foi desaparecendo com o girar do relógio.
Permaneceu um misto de sensações que ela não conseguia identificar. Todas
concentradas ali, onde os dois corpos se uniram. Foi um momento muito
poderoso. Não era à toa que aquela conexão fosse pecaminosa antes do
casamento - homens e mulheres não deveriam compartilhar tanto de suas
almas de forma leviana.
Porque sim, ela tinha quase certeza de que o ato os despiu não apenas de
suas roupas, mas também de suas máscaras.

S ERIA correto que ele levasse a esposa de volta para a cama e lhe desse prazer
de verdade, sem dores. Não se esperava que homens da aristocracia, que se
casaram por conveniência, se ocupassem de satisfazer suas mulheres, mas ele
tinha uma reputação a zelar - e estava longe de ser um aristocrata. Só que ele
não faria isso, não naquela noite.
Wilhelmina estava resistente a suas investidas cavalheirescas e ele
também não era um cavalheiro, era verdade. Deixaria a esposa em paz pelo
dia e, naquela bendita noite, ele apenas dormiria. Seria prudente dormir em
outro quarto, longe dela, só que isso seria ceder ao que ela queria. E não, ele
estava decidido também a atormentá-la, pelo menos um pouco.
Que péssimo marido ele era.
Depois do jantar, que foi nada além de um lanche, os dois subiram as
escadas. Ela se trancou no banheiro e demorou meia hora para sair. Por que
havia fechadura naquela porta? Sawbridge precisava providenciar a retirada
delas, se houvesse alguma em sua casa de Londres. Enquanto esperava, olhou
para o teto do dossel e deixou-se perder em pensamentos.
Mas então ela saiu e toda a sua atenção foi atraída pela figura feminina de
aroma de frutas silvestres que vestia outra camisola de renda. Maldição.
— É provável que eu esteja dormindo quando o senhor… quando você
retornar. Estou muito cansada. Tenha uma boa noite.
Sawbridge assentiu e foi ao banheiro se lavar. Arrancou o roupão e o
deixou embolado em um canto do chão. Olhou-se brevemente no espelho e,
depois, levantou o pênis para observar seu saco. Era bom que estivesse no
lugar, mas ele suspeitava que perdera suas bolas, porque estava começando a
agir como um bobo com aquela mulher.
Abriu as torneiras e deixou a banheira encher. Apesar do dia preguiçoso,
ele também estava exausto. Era acostumado a eventos muito mais
empolgantes do que conversar com um americano maluco e passear na praia
com sua mulher, mas sim, ele só pensava em fechar os olhos e dormir até o
dia seguinte raiar.
A água morna fez com que Sawbridge relaxasse ainda mais e isso o levou
a acelerar o banho ou acabaria dormindo na banheira. Esfregou-se, retirou os
resquícios de aroma feminino que estavam impregnados em sua pele, molhou
os cabelos e decidiu voltar para a cama. Ele dormiria como mais gostava - nu.
Esperava que sua esposa não se incomodasse com aquela característica sua.
Só que ela estava, mesmo, dormindo.
— Você ainda vai me dar algum trabalho, não vai?
Ele disse para ela, mesmo sabendo que não ouviria. Wilhelmina estava
adormecida, com o rosto apoiado sobre as duas mãos. Os cabelos dourados
davam a ela uma aparência angelical.
Estava certo de que ele ainda teria muitas dores de cabeça com sua
mulher. Era o preço que plebeus pagavam por se misturar com o sangue azul.

A LUZ do sol pousou sobre as pálpebras de Wilhelmina e ela abriu os olhos.


A noite foi muito tranquila, ela dormiu tanto que demorou minutos para que
seu corpo entendesse que estava acordada. Espreguiçou-se lentamente e
esperou sentir dor, alguma coisa que a fizesse lembrar do dia anterior, mas foi
em vão. Piscou várias vezes e olhou ao redor. Não teria sido um sonho, teria?
Claro que não. A primeira coisa que seus olhos capturaram foi a imagem
de Grant Sawbridge fechando os botões do punho de uma camisa branca. Ele
estava vestido com uma calça escura e tinha os cabelos despenteados. Apesar
do sol, que penetrava sutilmente pelo forro branco das cortinas, o quarto
estava na penumbra.
— Bom dia. — O marido se virou para ela. Tinha um semblante
inexpressivo, a face do jovem na fotografia que ela vira em Londres. — A
Sra. Crowle está lá embaixo. Quando quiser se levantar, ela lhe preparará o
desjejum.
— Já vai sair?
Wilhelmina esfregou os olhos e se espreguiçou novamente. Deveria estar
enganada, mas notou uma breve hesitação nos olhos de Sawbridge. Como se
ele lutasse contra alguma coisa.
— Sim, eu tenho compromissos pelo dia. Você pode fazer o que desejar
durante minha ausência. Se quiser sair pela cidade, a Sra. Crowle
providenciará um cabriolé. Há dinheiro sobre a cômoda.
O marido continuou a se vestir e ela foi ao banheiro se lavar para começar
o dia. Quando retornou ao quarto, ele já havia saído. Depois de dois dias, ela
não teria a presença masculina e marcante do homem com quem se casara. A
sensação era boa e ruim ao mesmo tempo. Ela prezava momentos de solidão
e paz para poder ler e bordar, mas se acostumou, no pouco tempo, a tê-lo por
perto.
Seria bom passear e fazer programas femininos por um dia. Agora que era
casada, podia andar pelas ruas sozinha, e Wilhelmina tinha a vaga impressão
de que ninguém tentaria provocá-la ou importuná-la de qualquer forma. Grant
Sawbridge não parecia uma pessoa que os outros quisessem desagradar.
Escolheu um vestido em tons de rosa e verde para o dia, e começou a
vestir-se em camadas: combinação de seda, com laços rosa escuro, o
espartilho, uma anágua, meia preta com bordados e o vestido - que tinha
botões demais, impossíveis de serem fechados por uma pessoa sozinha.
Talvez a Sra. Crowle pudesse ajudá-la. O espartilho estava frouxo e o vestido
aberto nas costas, mas ela desceu as escadas mesmo assim para pedir o
auxílio da cozinheira.
Antes de chegar à cozinha, foi interceptada por seu marido. Ele usava um
traje completo cinza escuro, com gravata azul presa por um alfinete no
pescoço. Poderia ser impressão dela, mas Grant estava lindo. E ela se pegou
pensando nele associado ao seu nome de batismo.
— Parece-me que precisa de ajuda.
Não havia necessidade de fingir que ela era capaz de dar conta de seu
vestuário sozinha. O marido se aproximou e fez com que ela virasse de
costas. Com dedos habilidosos, puxou as fitas do espartilho e as amarrou.
Depois, fechou cada um dos botões perolados em completo silêncio.
— Obrigada. — Ela murmurou, depois que se virou novamente para
Sawbridge. Grant. Wilhelmina tinha que se acostumar a chamá-lo de Grant.
— Verei você para o almoço?
— Não, eu não tenho horário para voltar. Tenha um bom dia, minha
querida.
O marido levou alguns segundos parado à sua frente. Pousou os olhos no
decote do vestido e na boca dela. Wilhelmina pôde ver o peito dele inflar e
esvaziar com uma respiração profunda. E então, Grant Sawbridge virou de
costas e saiu.
O salão ficou subitamente vazio demais. Ela percebeu que aquela foi uma
despedida demasiadamente formal para um casal. Afinal, ele não deveria
beijá-la? Céus, a pergunta que Wilhelmina deveria se fazer era por que estava
pensando em ser beijada pelo marido? Balançou a cabeça para tentar espanar
aquelas ideias devassas e foi até a cozinha apresentar-se para a Sra. Crowle.
A cozinheira era uma mulher de meia idade, com a pele enrugada e olhar
maternal. Não usava uniforme, mas roupas comuns e um avental branco,
além de touca na cabeça. Alguns fios prateados escapavam do ornamento e
indicavam que ela deveria estar na idade dos cinquenta anos.
— Fiquei muito surpresa ao saber que o patrão se casou. — A Sra.
Crowle colocou uma bandeja de comida na frente de Wilhelmina. —
Pensávamos que ele iria morrer solteiro e que tudo que ele tem seria entregue
a um primo distante qualquer. Então, ele aparece casado com uma dama.
Criados não costumavam conversar livremente com seus patrões, só que
aquela não era uma criada comum. Não como ela estava acostumada.
— A senhora trabalha para o Sr. Sawbridge há muito tempo?
— Desde que ele comprou essa casa, senhora. Mas ele não vem muito a
Amlwch.
— E como a senhora descobriu que sou nobre?
A Sra Crowle deu uma risada. O sotaque galês dela era forte, mas
sotaques não incomodavam Wilhelmina. A jovem mordeu um bolinho.
— Ah, a senhora tem aparência e vestuário de nobre. Cabelos bem
tratados, roupas finas, pele delicada como um pêssego e eu consigo farejar
sangue azul em uma distância de léguas.
Não era interessante falar de si. Wilhelmina não tinha certeza se queria
saber o que as pessoas pensavam a seu respeito, fosse bom ou ruim. Mas ela
poderia aproveitar que a senhora gostava de falar e interrogá-la sobre o
marido.
— Foi uma surpresa o Sr. Sawbridge se casar com uma lady?
Ela bebeu um gole de chá enquanto a Sra. Crowle limpou a mão no
avental.
— Sim, quase tão grande quanto o casamento em si. O patrão costumava
praguejar bastante contra a nobreza quando estava irritado. Não
imaginávamos que ele fosse passar tempo o suficiente com a aristocracia para
se interessar por alguém.
— Ele é amigo do meu irmão, que é um conde.
— Ah, entendo. — A senhora abriu um sorriso. — A senhora deve estar
assustada. Minha filha trabalha com a aristocracia e lá os criados são
praticamente mudos. Deve me achar uma falastrona.
Sim, Wilhelmina teve essa impressão no primeiro instante em que a Sra.
Crowle falou algo que soava impróprio. As mudanças de costumes poderiam
ser difíceis para ela.
— A senhora sabe bons lugares para passar o dia? Meu marido tem
compromissos e eu não quero ficar sozinha nessa casa.
— Conheço, claro. Trabalho em um comércio quando o Sr. Sawbridge
não está na cidade, o que é quase sempre. Se a senhora tomar um cabriolé e
for até a praça central, encontrará livrarias, algumas lojas e cafés. A
Confeitaria da Fancy é minha preferida.
Aquele era um lugar que Wilhelmina conhecia. Decidiu terminar seu
desjejum e dar uma volta pela cidade. Ela nem mesmo sabia pronunciar
Amlwch e não falava uma palavra de galês. Seria uma aventura desbravar um
lugar novo e completamente sozinha, já que nunca saíra sozinha de casa
desde que começou, efetivamente, a sair de casa.
— A senhora poderia me ajudar a conseguir um carro de aluguel? O Sr.
Sawbridge disse que bastaria que eu pedisse.
— Claro, senhora. — A cozinheira limpou novamente as mãos no
avental. — Meu cunhado tem um carro, ele está sempre nas redondezas. Vou
sair agora e encontrá-lo.
A Sra. Crowle disparou porta afora e Wilhelmina considerou brevemente
que quase nunca agradecia àqueles que cumpriam suas ordens ou atendiam
seus pedidos. A aristocracia não fazia nada daquilo, mas seu marido sempre
agradecia. Ficaria ele incomodado com o comportamento dela?
Quando a cozinheira retornou, a jovem estava terminando sua refeição.
Comeu ovos, presunto e torradas, além de bolinhos recheados. Um pouco
além do que deveria, mas ela não tinha mais a Sra. Friedman para regulá-la
nem precisava atrair a atenção de algum nobre remoso. Pensando nisso,
pegou o último bolinho recheado de geleia de framboesa e saiu pela casa a
fim de se preparar para sair.
Pegou as moedas deixadas por Grant, seu chapéu e sua sombrinha e
desceu para a porta da frente. O tempo estava firme e com um sol tímido que
faria o passeio mais agradável. Um cabriolé se aproximou, vindo pela estrada
de pedras que passava à frente da casa. Wilhelmina aproveitaria aqueles
momentos de liberdade e tentaria colocar a cabeça no lugar. Tudo estava
muito confuso e o tempo para reflexão seria proveitoso.
CAPÍTULO NONO

S AWBRIDGE NÃO AGUENTAVA MAIS OUVIR A MESMA COISA . E STAVA EM UMA


palestra da Sociedade Industrial de Gales, ouvindo um falatório interminável
sobre investimentos além-mar. Ele geralmente se interessava muito sobre o
tema e nunca sentia tédio em eventos como aquele. Não naquele dia. Algo o
incomodava, como se houvesse formigas em suas roupas ou abelhas em seus
ouvidos. A cadeira estava desconfortável, a voz do palestrante, o Sr.
Whitaker, era muito estridente, e ele estava com fome.
Certamente não era nada ligado à palestra em si. Sawbridge não era tolo.
Suas bolas doíam por um motivo singular - desejo. Ele mal tocara em
Wilhelmina antes de sair e, ainda assim, o cheiro dela estava impregnado em
suas roupas. Será que ele tocara na lapela depois de fechar os botões do
vestido? Ou na gravata?
— Vamos almoçar no The Mariner?
Foi a voz de Dylan Price que o tirou dos devaneios. Tratava-se de um
negociante como ele, dono de lojas no País de Gales. Um homem que
conhecia e aprendera a respeitar como colega, ao longo dos anos.
— Sim, claro. Você pagará a conta?
— Quem está muito rico aqui é você, meu amigo. Faz algum tempo que
não nos vemos! O que te traz a Amlwch dessa vez?
— Minha lua de mel.
Ele não saberia dizer se falou aquilo um pouco alto demais ou se os
homens ali realmente prestavam atenção no dia dizia, mas fez-se um silêncio
repentino no salão e todos olharam para ele.
— Lua de mel? — Price deu uma risada. — Você está me dizendo que se
casou?
— Sim, com Lady Wilhelmina McFadden, agora Sawbridge.
— Mas isso é maravilhoso! — Price estendeu a mão para um
cumprimento. — Agora sim, vamos almoçar que eu pagarei a conta! Vamos,
cavalheiros, temos um brinde a fazer em honra ao nosso colega Sawbridge.
Ser o centro das atenções não era muito de seu gosto. Mesmo assim,
acompanhou os colegas até o restaurante comumente frequentado por gente
como eles. Executivos, burgueses, plebeus endinheirados que giravam a
economia do Reino Unido enquanto os nobres indolentes ficavam cada vez
mais pobres. No final das contas, o almoço poderia render mais conversas
sobre investimentos e negócios.
Os colegas tinham outras intenções ao pedirem cervejas demais.
Sawbridge já deveria estar na quinta caneca e eles continuavam brindando
por seu casamento. Quanto mais bebia, mais ele tinha certeza que o dia seria
interminável. Marcara uma nova reunião com Carlisle para o final da tarde,
mas não pensara em uma resposta para ele. E tudo que fazia a cabeça de
Sawbridge girar era o pensamento nela. Em Wilhelmina.
Diabos. Ela era apenas uma mulher. Se ele pegasse uma das putas que
eventualmente circulavam pelo Mariner, poderia se satisfazer e seguir o dia.
Só que as putas não tinham longos e densos cabelos dourados, com ondas que
pareciam um mar de ouro sobre os travesseiros. Nem tinham olhos
expressivos e curiosos ou a língua ferina que o enfrentava sempre que tinha a
oportunidade.
Ah, a língua… Sawbridge divagou imaginando o que ela poderia fazer se
tocasse seu pênis… só um pouco… talvez uma lambida… Céus. Ele bateu a
caneca sobre a mesa e sentiu sua ereção pressionar as calças. Os colegas
olharam para ele e entenderam que ele precisava de mais cerveja. Logo, outra
caneca apareceu à sua frente. Aquele era seu limite.
— Tenho uma reunião. — Levantou-se e jogou duas moedas na direção
dos cavalheiros. — Como é por meu casamento que bebem, deixarei essas
cervejas pagas. Foi um prazer revê-los, senhores.
Sawbridge ergueu a caneca e virou o conteúdo de uma só vez. Os homens
ovacionaram sua performance com gritos. Um pouco de líquido escorreu pela
lateral de sua boca e molhou a gravata e o colarinho do paletó. Pelo menos
serviria para tirar dele o cheiro de Wilhelmina dali.
— Preciso ir para casa.
Disse, ao ver que o sol estava prestes a se por. Já perdera a reunião com o
investidor americano, precisava dar um jeito de não perder também as bolas
de tanto desejo pela maldita de sua esposa.

A CIDADE de Amlwch era aprazível. Lembrava a vila de Thanet e trazia


memórias insólitas para a jovem dama que circulava com sua sombrinha de
renda branca. Algumas pessoas olhavam para ela, conscientes de que era
estrangeira. Outras a ignoravam pelo mesmo motivo. Wilhelmina estava há
duas horas passeando pelos lugares e visitando todas as lojas. Deixou para ir
à livraria por último porque pretendia adquirir uns dois romances para ler
durante sua lua de mel.
Duvidava que o marido tivesse romances e contos de fadas em sua
estante, e escolher livros certamente lhe tomaria um bom tempo. Acabou
comprando uma edição de Jane Eyre, seu romance favorito, com a capa
vermelha. E uma indicação do livreiro, o mais recente lançamento de Thomas
Hardy: Judas, o Obscuro.
— Tem certeza de que gostarei desse?
Ela virou o livro de capa preta e letras douradas. Era uma encadernação
luxuosa e custava uma pequena fortuna.
— Sim, Sra. Sawbridge. É uma história intensa e muito bem contada. Se a
senhora gosta das irmãs Brontë…
— Eu adoro as irmãs Brontë. Vou levá-lo, mas se não gostar, mandarei
um bilhete de Londres com algumas imprecações escritas para o senhor.
O livreiro riu e ajeitou os óculos, que se equilibravam na ponta do nariz.
Era um homem por volta dos cinquenta anos, com cabelos ralos no alto da
cabeça. A careca era oleosa e cheia de pintas marrons e avermelhadas. Ele
ficou bastante agradecido pela quantia a mais que Wilhelmina deixara pelos
livros. Aprendeu com o irmão Isaac que sempre se devia remunerar a mais a
classe trabalhadora, pois elas eram geralmente mais pobres do que eles e
subvalorizavam seus produtos.
Ao sair da livraria, não havia mais nada para visitar. Podia sentar-se na
praça para ler, mas a luminosidade do dia logo se extinguiria. Ela passou
mais tempo na rua do que esperava. Seu estômago roncou e seu corpo deu
sinais de exaustão, indicando que era melhor pegar um cabriolé de aluguel e
retornar para casa.
Mas Wilhelmina era uma dama. Ela nunca precisou pedir um carro de
aluguel e nunca teve que fazer nada por si mesma. Se estivesse em Londres,
estaria acompanhada. Mesmo casada, ela teria sua camareira consigo. A
simples tarefa de fazer algo por si era excitante e extremamente frustrante.
Viu uma fila de cabriolés parados na praça e se aproximou.
— Boa tarde. O senhor poderia levar-me até este endereço?
Ela estendeu um papel com o endereço da casa. Fora escrito pela Sra.
Crowle, porque Wilhelmina temeu esquecê-lo. O homem, de barba mal
aparada e cabelos ralos, olhou-a de cima para baixo e pegou o papel nos
dedos.
— Vai custar um bom dinheiro, docinho.
— Senhora. — Ela ajeitou os ombros para parecer mais alta. — Dinheiro
não é problema, mas eu exijo ser tratada com o devido respeito.
O homem fez uma cara de deboche e os outros donos de carros,
próximos, começaram a rir. Wilhelmina puxou o papel das mãos do homem e
se virou, na intenção de ir embora. Ela não se submeteria à humilhação de
sofrer chacota de um desconhecido. Um puxão em seu braço direito fez com
que a caixa com os dois livros caísse de suas mãos.
— Volte aqui, docinho. Ainda não terminamos nossa conversa.
— Solte-me, ou…
— Ou o que? — O homem riu. Wilhelmina quis bater nele. Quis
abandonar seus modos e acertá-lo com a bolsa de moedas no meio da face.
Ela não teve tempo de levar seu plano adiante. Os outros homens
adotaram uma expressão assustada e ela sentiu uma presença que se
aproximava. Os passos eram lentos e calculados.
— Ora vejam, a cidade de Amlwch anda recebendo muitos novos
prestadores de serviço.
Grant. O ar voltou aos pulmões de Wilhelmina, que percebeu ter parado
de respirar por um instante. Ela tentou puxar o braço novamente, mas o
homem continuava segurando-o com força.
— Não se meta nisso, amigo.
— Eu tenho cara de ser um homem que possui amigos, senhor? — Ele
agora estava bem atrás de Wilhelmina. Ela podia sentir o calor emanando de
sua pele - e um aroma pungente de cerveja. — Mas, antes que eu me
apresente, o senhor deve me fazer um favor. Tire as mãos da minha esposa.
Houve um movimento entre os carros de aluguel. Alguns homens
desapareceram e outros fingiram que cuidavam de seus cavalos. Os dedos ao
redor do antebraço de Wilhelmina afrouxaram e ela se soltou. Deu dois
passos para trás e trombou com o peito sólido de seu marido, que a envolveu
com um braço protetor.
— Agora me diga… o senhor é novo na cidade? Ou tem a cabeça fraca?
— Sr. Sawbridge, ele não sabia que…
Outro homem tentou intervir, mas Grant ergueu uma mão e o silenciou.
— Não estou falando com o senhor. Quero saber se este cavalheiro aqui
— com a mesma mão, o marido encostou um dedo na testa do homem que
tentara agredi-la antes — tem problemas de cabeça ou é recém-chegado em
Amlwch. Porque são as duas únicas explicações admissíveis para ele estar
molestando minha esposa. Tenho certeza de que o garoto que paguei para
espalhar a notícia do meu casamento forneceu uma descrição precisa da Sra.
Sawbridge para que ninguém tivesse dúvidas sobre ela. Então, senhor? Trata-
se de ignorância ou burrice?
— Peço desculpas. — O homem andou para trás. — Não sabia que a
dama era casada.
— Ela não é apenas casada. Ela é casada comigo. Essa informação
deveria fazer com que o senhor estivesse a léguas de distância daqui neste
momento, não olhando para mim com essa expressão incógnita.
O homem se afastou mais. O braço de Grant ao redor dela se estreitou.
Wilhelmina quis se virar e enfiar o nariz no casaco dele, esconder-se e se
deixar ser protegida por ele. Mas ela não daria aquela satisfação ao seu
ofensor.
— Ele machucou você? — A voz do marido fez cócegas nos ouvidos
dela. Wilhelmina sentiu um arrepio até os dedos dos pés.
— Não. Ele foi apenas grosseiro e inconveniente.
— Você quer que eu acabe com ele?
Ela virou para trás. Esqueceu-se que preferia encarar o homem que ambos
enfrentavam porque a pergunta do marido a deixou desconcertada. O que ele
queria dizer com aquilo? Arregalou os olhos quando algumas possibilidades
lhe vieram à cabeça.
— Céus, não! Quero dizer… não precisa fazer nada, creio que ele não
mereça o esforço.
Grant colocou uma mão sobre os cabelos dela e puxou sua cabeça para si.
Wilhelmina acomodou-se nos contornos do peito dele, sentindo o calor da
pele masculina mesmo sob camadas e mais camadas de tecido. Ela não sabia
o que aquilo significava. Nunca tivera um contato tão íntimo com homem
algum e seus sentidos estavam embaralhados.
— O senhor ouviu a dama. Por sua sorte, não estou interessado em
desagradar minha esposa em nossa lua de mel. Mas, se eu vir o senhor
perambulando pela cidade novamente, ou se o vir dirigindo a palavra a outra
mulher, mesmo que ela seja uma prostituta, espero que seja para um elogio,
ou eu me arrependerei de não lhe partir a cara ao meio hoje.
Com um murmúrio qualquer, o homem se afastou. Grant segurou-a pelos
ombros e sussurrou que ele já fora embora. Depois, abaixou e pegou a caixa
com os livros. Bateu a poeira da via e ergueu o olhar para o restante dos
cocheiros que estavam ali.
— Bem, agora que tudo foi esclarecido, precisamos que nos levem até
minha residência.
O primeiro cabriolé da fila se ofereceu e Grant ajudou Wilhelmina a subir
no veículo. Com os livros apoiados no colo, ele passou o braço ao redor dela.
O ombro do marido se tornou subitamente um lugar confortável para
recostar. Sob o manto do pôr do sol, ela fechou os olhos e decidiu aproveitar
a pequena viagem com os outros sentidos.

T ALVEZ S AWBRIDGE ESTIVESSE MEIO EMBRIAGADO , mas não o suficiente para


não notar sua esposa sendo molestada por um indivíduo qualquer. Ele teve
vontade de quebrar o nariz do sujeito no instante em que o viu segurar o
braço de Wilhelmina. Se Sawbridge fosse um homem que brigasse como um
troglodita, certamente teria chegado às vias de fato com o patife.
Mas ele não era dado à violência física. Não que não conseguisse,
efetivamente, quebrar alguns narizes. Se quisesse, ele podia ser bem violento,
mas preferia brigar com diplomacia - e usar sua fama cuidadosamente
construída para afugentar e assustar quem o desafiasse.
Só que o miserável estava mexendo com sua esposa. Tocando-a com
dedos imundos. Foi difícil controlar a ira e, mais difícil ainda, foi controlar a
vontade de tratá-la como um cristal que fosse quebrar com um sopro.
Enquanto voltavam para casa, ele a apertou tanto contra si que teve medo de
assustá-la.
— Você está cheirando a cerveja.
Wilhelmina percebeu. Já estavam próximos de casa, graças a Deus. O
tom da voz dela o estava afetando. Era provável que estivesse, sim, mais
embriagado do que deveria.
— Alguns colegas souberam tardiamente do meu casamento e decidiram
comemorar. Posso ter derramado cerveja no paletó.
— Pensei que iria tratar de negócios, não beber em uma taverna.
Sawbridge riu. Certamente ela não gostava muito dele, mas aquela
pequena demonstração de ciúmes indicava que o sentimento de posse estava
ali. Ela era sua esposa, ele era o marido dela.
— Estávamos em uma palestra enfadonha pela manhã. Fomos almoçar e
perdemos a hora. Eu ia voltar para casa quando vi aquele homem…
A boca dele ficou seca. Wilhelmina descansou a mão esquerda sobre a
sua coxa. Ou ela era ingênua demais para não saber ou tinha plena
consciência de que o estava tocando em uma área muito sensível. Seu pênis
enrijeceu por baixo das calças. Não tão embriagado assim, pensou.
— Obrigada por me defender.
— Você é minha mulher. Eu seria visto como um covarde se não fizesse
nada.
— Mas teria coragem de bater naquele homem?
— Eu só não o fiz porque você me pediu, fy nghariad.
— O que significa isso?
— “Minha querida”, em gaélico.
Os dedos dela se abriram e se fecharam em contato com a perna dele.
Sawbridge se remexeu um pouco no assento, sentindo o desconforto da
ereção.
— Não imaginei que falasse gaélico. Nem que fosse capaz de bater em
pessoas.
— Bater é o mínimo que posso fazer com calhordas como aquele. Sou
capaz de matar para defender o que é meu.
Wilhelmina ergueu os olhos e o encarou.
— E eu sou sua.
— Sim, é. — Sawbridge acariciou-a no maxilar, deslizando os dedos
pelos contornos da face dela. — Eu farei qualquer coisa que precise para
protegê-la, Wilhelmina.
E ele a beijou. Quis tomar a boca de sua esposa durante o dia inteiro e não
conseguiu resistir, não mais. Não enquanto ela o fitava com aquela expressão
de medo e reverência ao mesmo tempo, com aqueles olhos lindamente
emoldurados por cílios escuros ou com aquela boca entreaberta que dizia
mais do que qualquer convite. Sawbridge segurou-a com uma mão na base da
cabeça e levou seus lábios aos dela, que não resistiram nem se fecharam ao
toque.
Ela finalmente o aceitou no primeiro instante. Bastou que as bocas se
encontrassem para que ela correspondesse ao beijo. No instante em que a
penetrou com a língua, o cabriolé parou.
Maldição. Sawbridge interrompeu o contato e percebeu que sua esposa
estava abalada pelo momento. Ela estava rendida e ele pretendia se aproveitar
isso. Desceu, entregou um xelim ao cocheiro e carregou Wilhelmina para
dentro da casa. Todo controle que restava nele foi consumido pelo esforço de
não enfiar os punhos em ninguém. Naquele momento, em que percebia sua
esposa levemente excitada, o controle foi abandonado para morrer à míngua.
Assim que fechou a porta atrás de si, Sawbridge arrancou o paletó e a
gravata com um puxão. Wilhelmina arregalou os olhos.
— Eu acho que devo… eu vou me lavar.
Ela virou as costas e subiu correndo as escadas. Não estava correndo
propriamente, mas demonstrava ansiedade. Ele sabia que não deveria desejar
tanto assim aquela mulher, mas diabos, ela era sua. Poderia possuí-la quando
quisesse e suspeitava que iria querer fazer aquilo várias vezes até se cansar.
Sawbridge mudaria seu nome se não fizesse aquela mulher desejá-lo da
mesma forma.
Wilhelmina logo nem mais pensaria naquela ideia louca de ter outros
homens. Ele lhe bastaria.

O CORAÇÃO DELA PULAVA BATIDAS . Wilhelmina entrou no banheiro e fechou


a porta, recostando sobre a madeira e levando a mão ao peito. O que estava
havendo? Ela estava flertando com o marido? Céus, aquilo era totalmente
inadequado, mas sim, ela estava. Sentia a respiração acelerada e uma estranha
ardência entre as pernas. Aquele beijo… ele beijava como se tivesse
inventado os beijos. Nenhum homem certamente sabia beijar como Grant
Sawbridge.
Os dedos estavam trêmulos, mas ela conseguiu desabotoar o vestido e
desfazer os laços do espartilho. Talvez tenha arrancado um ou dois botões
com a agitação. Encheu a banheira de água e enfiou-se dentro, querendo
aplacar as sensações que a inquietavam. Seus esforços foram vão, porque
tudo fazia com que ela pensasse no toque do marido.
A noite anterior foi confusa. Primeiro, ele fez com que ela se sentisse tão
bem e, depois, causou-lhe tanta dor. A dor era esperada, ela apenas não
acreditava que ficaria melhor. Todas as mulheres que enalteciam as relações
conjugais eram apaixonadas por seus maridos.
— Está tudo bem?
Sawbridge abriu a porta e colocou a cabeça para dentro do banheiro. Ela
se assustou e cobriu os seios com as mãos. Era tolice, já que estava de costas
para ele.
— Sim, eu já vou sair.
— Vou subir com o jantar.
Ela estava com fome. A oferta de comer alguma coisa seria certamente
aceita. E viria acompanhada de vinho branco. Wilhelmina já sentia o líquido
borbulhando em sua garganta e a leve embriaguez que ele proporcionava. E,
em seguida, ela certamente seria o prato principal servido em uma cama
macia. Não havia escapatória, tomara as decisões e precisava arcar com elas.
Saiu da banheira, enxugou-se e se enrolou em um roupão. O quarto estava
aconchegante com a lareira já acesa, as cortinas fechadas e uma mesa posta.
Teria demorado tanto assim no banho? Grant estava olhando para o fogo,
vestindo calças que pendiam em seus quadris. Seu coração disparou outra vez
ao ver as costas bem definidas e os músculos suaves do corpo dele. Ah, ela
estava perdida.
— Não precisava de tanta arrumação. — Ela disse algo para quebrar o
silêncio. — Poderíamos comer na cozinha, como ontem.
— Acho que preciso oferecer à minha esposa um jantar mais adequado do
que aquilo. — Ele se virou e puxou uma cadeira para que ela se sentasse. —
Venha, vamos comer. Enquanto isso, você me contará sobre o seu dia.
A proposta a fez sorrir. Ela adorava falar sobre o dia durante as refeições
noturnas. Conversava muito com Isaac antes de ele se casar, depois precisou
contar com a atenção da mãe e da acompanhante, a Sra. Friedman. Mas
nenhuma das duas era espirituosa a ponto de compreender a mente de uma
jovem de vinte e um anos.
E Grant, ele estava disposto a ouvi-la.
— Eu tomei chá na confeitaria da Sra. Finley. Ela é bastante agradável e
falante. Estou acostumada com mais silêncio, porém gosto de pessoas
entusiasmadas.
— E comprou livros. — Ele cortou um pedaço de carne e mastigou.
Mastigar era uma ação mecânica que não caía bem a ninguém, com exceção
do seu marido. Grant Sawbridge conseguia transformar a mastigação em um
ato de pura sensualidade. — Quais?
— Jane Eyre e Judas, o Obscuro.
— O segundo parece muito sombrio para uma jovem dama.
— O livreiro garantiu que é agradável e muito intenso. Gosto de
intensidade.
Ele riu e exibiu dentes perfeitos. Wilhelmina soltou uma imprecação
mental, algo que ela jamais falaria em voz alta.
— Essa é uma informação importante. E o outro, é um romance?
— Sim, mas contém drama. É bem dramático, na verdade.
— Você conhece a história?
— Ah, sim. Eu já li Jane Eyre várias vezes. O Sr. Rochester foi o
primeiro homem por quem me apaixonei.
Wilhelmina disse aquilo e deu uma risada. Deveria ser efeito do vinho.
Definitivamente, a taça de vinho branco que tomou desde que o jantar se
iniciou era a responsável por sua língua solta. Nunca contara para ninguém
sobre sua paixão recolhida pelo personagem fictício de Charlote Brontë. Para
uma ou duas amigas, talvez, mas lá estava ela, jogando aquela informação
constrangedora sobre seu marido.
— Ah, entendo. Então terei que ter uma conversa com esse Sr. Rochester.
— Ele não existe, Grant. — Ela riu mais. — É um personagem. Mas, se
quiser, pode ler o livro para conhecê-lo.
Não houve resposta. O marido não estava mais prestando atenção no que
dizia. Os olhos dele estavam sobre ela com aquela intensidade faminta de
antes. Algo súbito despertou aquela reação nele. Wilhelmina não fazia ideia
do que fora, mas, em cinco segundos, não estava mais em sua cadeira. Foi
arrebatada pelos braços firmes de Grant Sawbridge que a puxaram para cima
e, logo em seguida, foi consumida por sua boca voraz.
Na noite anterior ele foi delicado e suave. Ela estava nervosa e
constrangida, mas gostou da abordagem. Naquela noite, ele parecia um
tornado. Atirou-a sobre a cama e subiu sobre ela, beijando-a na boca, no
pescoço, atrás da orelha. Sua língua passeava por toda a pele descoberta de
Wilhelmina e ela sentia calor lhe percorrer o corpo inteiro.
— Diga outra vez. — O sussurro em seu ouvido fez com que Wilhelmina
sentisse novamente a ardência entre suas pernas. Era uma sensação
arrebatadora. — Diga o meu nome daquela forma.
Ele ergueu a cabeça e os olhares se encontraram.
— Grant? — Arriscou.
— Você me quer, Wilhelmina? — Ele levou uma das mãos até onde o
corpo dela pedia por atenção. Tocou-a ali, no centro de sua feminilidade,
fazendo-a arquear as costas e soltar um gemido baixo. — Porque Deus sabe o
quanto eu passei o dia desejando-a, mas só quero ir adiante se você também
me desejar.
Ah, homens e suas tolices. Ele não conseguia perceber que ela estava
muito provavelmente e quase certamente encantada por ele? Que Grant
Sawbridge poderia fazer qualquer coisa com ela, naquele momento, e ela
provavelmente aceitaria? Que ele derrubou todas as defesas que ela construiu
durante o dia com a demonstração de força e masculinidade estúpidas na
praça?
Era apenas difícil para ela verbalizar seu desejo. Moveu a cabeça para
cima e para baixo, esperando que o marido entendesse seus sinais. Era
provável que ela sentisse vergonha, mas depois. Não queria sentir nada
daquilo por Grant Sawbridge, mas lidaria com sua consciência depois. No
momento, seu corpo pedia algo que ele podia oferecer - e que ela estava
disposta a aceitar.
CAPÍTULO DÉCIMO

E LE ESTAVA OLHANDO PARA W ILHELMINA QUANDO ELA , DE OLHOS ABERTOS E


espantados, disse sim. Era um meneio com a cabeça, uma reação vacilante ao
estímulo que ele proporcionava. Mas era suficiente, porque qualquer sinal
indicando que ele poderia prosseguir serviria. Tinha que servir.
— Eu prometo que você não sentirá dor, fy nghariad. Hoje eu vou lhe dar
só prazer e essa será a memória que você terá a partir de agora.
Ela balançou a cabeça outra vez. Confiaria nele? Sawbridge não tinha
como saber. Abriu o laço do roupão e soltou uma imprecação quando viu que
ela estava nua por baixo. Sua esposa recém deflorada não era tão santa assim.
Sentado sobre os quadris dela, apoiando seu peso nos joelhos, Sawridge teve
uma visão maravilhosa do corpo nu de sua mulher.
Mesmo que ele pudesse passar o dia admirando aquela obra de arte, ele
precisava possui-la. Dobrou o corpo e dedicou atenção aos seios
proeminentes e mamilos túrgidos que o provocavam. Segurou com as mãos,
passou a língua pela pele branca, colocou-os na boca e sugou. Wilhelmina
gemeu e levou as mãos às costas dele, acariciando-o com pouca sutileza.
Se ela continuasse tocando-o, ele dificilmente conseguiria prosseguir com
o planejado. Consciente de suas limitações, escorregou pelo corpo dela,
cobrindo-a com uma trilha de beijos molhados, até encontrar os cachos de
pelos que recobriam a sua feminilidade. Sawbridge adorava tocar as mulheres
daquela forma, mas raramente podia fazê-lo. Não era adequado usar a boca
nas partes íntimas de uma prostituta.
Mas ali ele tinha a sua mulher. Ela cheirava sim, a flores exóticas, e
aquele era o seu território. Abrindo os lábios com os polegares, beijou e
chupou delicadamente cada pedacinho do que estava à sua mostra. Deixou a
língua acariciar lentamente a pérola feminina que pulsava de desejo até que
Wilhelmina quase chorasse, implorando que ele fizesse algo. Que fosse além.
— Você gosta disso. — Ele circulou o clitóris com o polegar.
— Não me faça falar…
— Eu adoro falar enquanto… — ele se refreou. A frase se completaria
com “enquanto fodo uma mulher”, mas Sawbridge não podia dizer aquilo
para sua esposa. E não sabia que outro nome dar àquele ato. — Não precisa
ser tão eloquente, existem outras formas de me responder. Você gosta disso?
Ele lambeu o clitóris e ela se contorceu. Ele chupou e ela gemeu. Sim, ela
gostava, aquela reação era resposta suficiente. Isso fez com que ele
prosseguisse, usando a língua e os lábios para estimulá-la até que ela perdesse
os sentidos. Não, ele não queria que ela perdesse nada. Queria que ela
gritasse, que chamasse seu nome, que gozasse para ele. Queria arrancar dela a
reação mais primitiva que o sexo lhe permitia. Não estavam claros os
motivos, mas Sawbridge queria ver Wilhelmina dissolver em sua boca.
E ela atendeu às suas preces profanas. As mãos dela agarraram-lhe os
cabelos e ela se contorceu e convulsionou em espasmos quando atingiu o
ápice do prazer. Em silêncio. Com muita paciência, talvez, ele conseguisse
alguns gritos. Sawbridge não era muito paciente, mas algo dizia que ele teria
muito tempo na cama com aquela mulher.
Deitada espalhada pela cama, ela parecia uma deusa dourada. Wilhelmina
estava ainda sentindo as ondas do êxtase quando ele se levantou, retirou as
calças e se posicionou entre ela. A presença de seu pênis em contato com
aquela maciez úmida fez com que ela se sobressaltasse e se apoiasse nos
cotovelos. Sawbridge tentou acalmá-la com um beijo.
— Eu prometi que não iria mais doer. — Ele fez com que ela se deitasse
novamente. — Eu prometi que lhe daria prazer. Cumpri essa parte?
— Sim. — A voz dela estava rouca e trêmula.
— Então, confie que estou falando a verdade.
Ele levou as mãos até as pernas dela e elevou os joelhos para que se
dobrassem. Com um movimento de quadril, forçou sua ereção contra ela.
Wilhelmina estava tensa. Aquilo não iria funcionar. Deitou-se novamente e
voltou a beijá-la. Manteve-se ali, nas portas do Paraíso, provocando-a com
uma fricção agoniante, enquanto tentava relaxá-la com beijos suaves e
quentes.
A respiração dela ficou mais forte. Wilhelmina levou as mãos às costas
dele outra vez. Hesitante, ela o acariciou e desceu os dedos até tocá-lo nos
quadris. Ele rosnou, ansioso, e sentiu a resistência ceder. Em um movimento
firme, arremeteu e penetrou-a por completo. Céus, aquela mulher iria matá-
lo.
— Está tudo bem? — Sussurrou no ouvido dela.
— Sim, está.
Ele se retirou e voltou a penetrá-la. Ela ainda era muito apertada, mas já o
recebia com músculos relaxados e lubrificados. Wilhelmina arqueou as costas
e ele investiu contra ela outra vez.
— Dê-me um sinal se doer. Eu não consigo mais me controlar.
Não conseguia. Sawbridge não estava habituado a se controlar. Ele fazia
sexo viril e, às vezes, violento. As mulheres que levava para cama gostavam
de seu lado bruto. Esperavam dele palavras sujas, mordidas e arranhões. Mas
ali estava em suas mãos uma flor delicada. Uma dama cuja virgindade ele
tomou, que não esperava que fosse ter um orgasmo em algum momento da
vida. Por ela, ele precisava ser gentil. Suave.
Mas os movimentos de seu quadril se intensificaram quando ele percebeu
que ela não sentia dor, não mais. Um sorriso indecente se abriu em seus
lábios enquanto ele observava a mulher debaixo de si. Com os olhos fechados
e a boca entreaberta, ela era a imagem do abandono e isso fez com que ele a
desejasse ainda mais.
Ela gostava de intensidade. Ele a penetrou mais fundo e mais forte,
segurando-a pelos quadris até ser consumido pelo orgasmo. Definitivamente,
permanecer dentro dela depois do êxtase fazia com que tudo fosse diferente.

E LE NÃO ESTAVA MENTINDO . Quando o marido disse que não haveria dor,
Wilhelmina apostou que fosse uma farsa para convencê-la a aceitá-lo outra
vez. Grant Sawbridge parecia um homem que faria algo do tipo. Mas não era
mentira. Ela não sentiu dor e ainda experimentou um prazer físico que
pensava ser inatingível.
E, quando ele encontrou seu alívio e se deitou por sobre ela, molhando-a
com suor, Wilhelmina o envolveu com seus braços e não o permitiu afastar-
se. Foram minutos até que ele conseguisse rolar para o lado e, ainda preso em
seu abraço, acomodasse-a em uma posição menos incômoda.
— Descanse. — Ele beijou seus cabelos.
— É muito cedo. O sol mal se pôs.
— Não temos nada melhor para fazer.
— Mesmo assim. Eu poderia ler…
— Prefere se encontrar com o Sr. Rochester a ficar comigo nessa cama?
Wilhelmina ergueu o olhar e ele a encarava com uma expressão
indecifrável. O calor dos braços dele era aconchegante. Claro que ela estava
resistindo a ficar ali porque não admitia que se sentia tão acolhida e protegida
com seu marido. Não era para ser daquela forma. Mas ela não tinha nenhuma
intenção de sair daquela cama. Ah, não tinha mesmo.
— Talvez eu prefira ficar aqui mais um pouco.
Ele a acomodou nos braços e puxou o lençol por sobre eles. Wilhelmina
adormeceu logo depois, sem conseguir resistir ao cansaço que a acometeu.
Durante o sono, sonhou com flores, primavera e o sol de Kent. Sentia
saudades de casa, da casa que ela conheceu quando criança, do lugar onde foi
criada. O calor do sol em sua pele era real quando abriu os olhos e percebeu
que já era dia.
Era dia o suficiente. O sol estava brilhando intenso do lado de fora e o
relógio que fazia tic-tac ao lado da cama marcava nove horas da manhã. Ela
dormira por quase vinte horas! Grant não estava ao seu lado e ela teve certeza
de que ele voltara para seus negócios. Provavelmente o casamento seria
daquela forma. Eles dormiriam juntos, ele passaria o dia envolvido com o
trabalho, ela seria uma esposa rica. Logo, uma mãe.
Passou a mão na barriga. Poderia estar grávida? Ela não fizera nenhuma
conta sobre seu período mensal. Esteve tão desorientada nas últimas semanas
que só saberia quando as regras viessem. Se elas viessem. Talvez a gravidez
fosse uma coisa boa, ela teria como ocupar seu tempo vivendo em Londres,
longe da família.
Não queria pensar em coisas tristes como o afastamento de seus irmãos.
Levantou e abriu as cortinas totalmente, revelando uma belíssima paisagem.
A janela dava para o oceano e era possível ver a praia e o mar refletindo azul
no vidro. Wilhelmina abriu as bandas de madeira para sentir a brisa marinha e
deparou-se com uma visão inesperada.
Seu marido. Ele estava parado de frente para o mar, flexionando as costas
enquanto esticava os braços para cima. Usava uma calça de linho escura, sem
sapatos e sem camisa. O sol lhe tocava a pele com cuidado, como se fosse
perigoso perturbar Grant Sawbridge. Uma fumaça suave indicava que ele
estava fumando um cigarro.
Que homem despudorado era aquele, que perambulava seminu do lado de
fora da casa? E que sensação estranha era aquela que a fazia sentir arrepios
por todos os cantos do corpo, como se a simples visão do homem com quem
passara a noite fosse suficiente para transformá-la totalmente?
Como se ele pressentisse que ela estava ali, virou o pescoço para trás e a
observou por cima dos ombros. Wilhelmina sentiu-se atingir pelos olhos
azuis e enrubesceu imediatamente. Mesmo em uma distância de muitos
metros, ele era capaz de fazê-la corar.
Ela estava muito perdida. Não fazia parte do plano, mas temia que
pudesse, no final de tudo, se apaixonar pelo homem sem coração. E não havia
mais lugar para paixões no seu próprio coração.

O CASAL S AWBRIDGE passou mais cinco dias em Anglesey, na cidade de


Amlwch. Ele não deixou mais a esposa para ir a reuniões ou eventos e ela
aproveitou a companhia que antes lhe era indesejada. Também não passearam
muito pela praça ou pelo comércio - ficaram em casa, ocupando o salão
principal, a cozinha e o quarto.
Ah, Sawbridge não queria mais sair do quarto. Se fosse saudável, ele faria
sexo com Wilhelmina pelo menos três vezes por dia. Ela era um território
inexplorado cujos mistérios o estavam enlouquecendo. Cada dia descobria
mais sobre ela e não se saciava com aquele conhecimento a conta-gotas.
Queria poder exauri-la por um dia, consumi-la até que ambos se fundissem
em apenas um ser.
Isso era impossível e acabaria com todo o prazer da conquista. Sawbridge
desbravou, em cinco dias, uma terra indômita e ignota onde estavam
escondidos seus próprios sentimentos. Wilhelmina o fazia vivenciar o que ele
não vivenciava nunca - e isso o assustava. Por um momento, desejou nunca
mais voltar a Londres. Abandonar toda a vida pretérita e ficar ali, naquele
lugar pequeno e quase esquecido pela modernidade, para sempre.
Isso também não era possível. Sete dias depois de deixarem a capital do
Reino Unido, eles retornaram e retomaram a vida de onde pararam no dia
após o casamento.
— É um prazer recebê-los de volta! — Arthur estava empolgado
esperando-os à porta. — Sra. Sawbridge, será muito bom tê-la nessa casa.
Finalmente, esse receptáculo vazio ganhará vida!
— Não seja melodramático, Arthur. — Sawbridge rosnou. — Diga se
minha casa não é aconchegante?
— Sobremaneira, senhor. Mas o senhor nunca está aqui, se me entende.
— Isso também não é verdade. Está exagerando para cair nas graças de
sua patroa.
— Vou adorar “dar vida” à casa, Arthur. — Ela riu, entregando para ele
sua sombrinha. O mordomo quase urinou nas calças por receber atenção de
sua senhora.
— Vamos entrar, estou exausto de viajar e morrendo de fome.
— A Srta. Trimmes esteve aqui e deixou tudo organizado em seus
respectivos quartos. Vou providenciar o desjejum no salão.
Voltar à rotina seria difícil nos primeiros dias, porém logo eles se
acostumariam. Wilhelmina parecia mais leve, menos intimidada por ele e
pela casa. Em breve, sabia que teria que conversar sobre a promessa feita
quando se casaram - a esposa precisava escolher algo de seu patrimônio para
si. Ela teria direito a pedir uma casa, uma propriedade no campo, até mesmo
uma empresa para administrar. Sawbridge não era daqueles que acreditava
que mulheres não eram capazes nos negócios.
Não queria falar naquilo para não estragar o clima de cordialidade que se
estabelecera entre eles. Quando não estavam na cama, conversavam sobre
coisas agradáveis e de mútuo interesse. Se fossem discutir bens, a conversa
certamente se tornaria mais feroz.
— Vou querer tomar um chá com a Srta. Trimmes em breve.
Wilhelmina disse, enquanto se lavavam para o desjejum. Havia um
lavabo próximo à sala de refeições que possibilitava aos convidados lavarem
as mãos e o rosto.
— Um chá? Com a secretária? Pensei que aristocratas não se envolviam
com empregados.
— Ela não é uma mera empregada, certo? Ela parece uma pessoa bem
influente em sua vida.
Sawbridge coçou o pescoço. Não sabia se aquela aproximação seria uma
boa ideia, pois, por sua experiência, ele sabia que mulheres podiam se tornar
rivais por motivos tolos. Mas Wilhelmina certamente não iria disputá-lo com
a secretária, pois ela não se importava com ele tanto assim.
— Uma boa secretária é essencial para um homem solteiro. Alguém
precisava cuidar das minhas questões pessoais. Mas agora estou casado.
— Ah. Então eu serei quem cuidará de suas questões pessoais, meu
marido? — Ela deu uma risadinha. — Parece bem importante.
— Você pode cuidar de tudo que quiser, Wilhelmina. — Ele também
sorriu para ela. — Da casa, das minhas roupas, dos empregados pessoais, dos
móveis. Se quiser, pode redecorar a casa. Se quiser, podemos mudar de casa.
Você é a senhora desse pequeno castelo, agora.
Ela terminou de enxugar a mão e saiu rodopiando pelo salão. Era muito
jovem, sua esposa. Sawbridge quase poderia se arrepender de ter escolhido
uma mulher tão mais nova, tão entusiasmada. Quase. Porque ela era fabulosa
em suas particularidades.
Depois do desjejum, Sawbridge precisava retornar ao trabalho. Ele tinha
correspondências acumuladas para responder e deveria inspecionar seus
muitos negócios. Todo dia ele pensava em reduzir seu império e todo dia ele
decidia comprar mais alguma coisa ou investir em algo novo.
— Arthur. — Chamou o mordomo, que entrou no salão rapidamente. —
Vou trabalhar no escritório até o almoço. Não me interrompa e não deixe
ninguém me interromper. Atenda a Sra. Sawbridge no que ela precisar.
— Sim, senhor.
— Eu quero sair. — Ela disse, limpando a boca em um guardanapo. —
Há uma carruagem que eu possa usar?
— Claro, senhora. A carruagem do Sr. Sawbridge está sempre
estacionada no pátio.
E ele precisava ir às empresas, mas poderia fazer aquilo a cavalo. Não
atrapalharia os planos da esposa, mesmo não sabendo quais eram. Bem,
mesmo tendo prometido não interferir na vida dela, Sawbridge queria saber.
— Visitará a McFadden Garden?
— Não, meu irmão deve ter ido para Kent. Vou à escola, talvez estejam
precisando de mim. Eu espero que… não seja um problema que eu continue
trabalhando na escola.
O tom de voz dela era baixo e vacilante, indicando que uma resposta
negativa para aquela afirmativa devastaria seus sonhos. Sawbridge olhou para
ela e quis beijá-la. Ali, no meio do salão e na frente de Arthur. Ele não era um
maldito aristocrata e não havia problemas em demonstrar afeto por sua
esposa, apenas não sabia como ela reagiria.
Até porque era um beijo. Não significava afeto, mas luxúria.
— Jamais te impediria de trabalhar. — Sawbridge levantou-se da mesa.
— Mas você não precisa, sabe disso. Posso suprir todas as suas necessidades.
— É apenas para ter o que fazer. Depois que me acostumei a ir à escola
ajudar, creio que não consiga mais passar um dia inteiro ocioso.
— Certamente. Eu devo retornar apenas para o jantar. Tenha um bom dia,
Wilhelmina.
Ele deixou o guardanapo sobre a mesa e afastou-se. Ouviu-a arrastar a
cadeira para se levantar e fechou os olhos. Maldição, ele passou uma semana
com aquela mulher e já sentia incômodo em se separar dela. Aquilo era tão
errado de tantas formas que Sawbridge não conseguia mensurar.
Virou-se para Wilhelmina e ela estava ajeitando as saias com a mão. Deu
alguns passos em sua direção, segurou-a pela cabeça e a beijou. Ela se
assustou e resistiu, mas logo os lábios dela estavam macios e quentes sob os
dele. Foi um beijo suave e calmo, mas teria que servir para o restante do dia.

E LA NÃO ESPERAVA SER beijada naquele momento. Esperava menos ainda


gostar de ser beijada. Não que o marido fosse um homem frio - ele apreciava
bastante a intimidade física com ela, mas estavam novamente em Londres,
ele tinha seus afazeres e não parecia ser daqueles homens que beijavam suas
esposas sem um motivo específico, como levá-las para a cama.
Ficou alguns segundos parada com dois dedos tocando os lábios. Arthur
entrou e começou a recolher os pratos da mesa, colocando-os em um carrinho
de madeira. Wilhelmina sorriu timidamente e voltou para seu quarto, aquele
que ficava do outro lado do corredor. Agradeceu silenciosamente que sua
camareira estaria de volta no dia seguinte, pois ela era péssima em se vestir
ou se arrumar sozinha.
Depois de escolher um vestido de dia com poucos botões e cujos ganchos
ela poderia alcançar sozinha, pegou a carruagem do marido e foi até a escola
de jovens damas. Era provável que apenas a secretária executiva, a Srta.
Bringstone, estivesse ali. Suas cunhadas já deveriam estar em Kent em razão
do fim da temporada social. Algumas alunas, cujos pais eram burgueses que
trabalhavam o ano todo, frequentavam a escola durante o recesso do
Parlamento. Por isso, achava que podia ser útil ali.
— Ora! Milady! Quero dizer, Sra. Sawbridge… é tão bom revê-la!
A Srta. Bringstone pulou de trás de uma mesa e ajeitou os óculos que
escorregavam para a ponta do nariz. Ela era uma jovem cujos pais faleceram
muito cedo e acabou criada na casa de um industriário americano que se
mudara para Londres a negócios. Tinha vinte e dois anos e não participava
dos mesmos círculos sociais de Wilhelmina. As duas se conheciam porque
passaram a frequentar a escola.
— É muito bom retornar. Como estão as coisas por aqui?
— Ah, está tudo muito bem. As moças ainda estão em aula, mas a
condessa e Lady McFadden estão ansiosas esperando pela senhora.
— Quem? — Wilhelmina pensou ter ouvido errado. As cunhadas estavam
em Kent, tinha certeza.
— Suas cunhadas, senhora. Vamos até o salão de visitas, até a duquesa
está aqui.
A agitação da Srta. Bringstone foi capaz de superar a estupefação de
Wilhelmina. A secretária segurou sua mão e a conduziu para onde estavam
Agatha e Caroline, em companhia da Duquesa de Shaftesbury, Elizabeth. As
três se levantaram imediatamente e foram cumprimentar a recém-casada com
entusiasmo.
— Céus! Pensei que já tivessem partido!
— Ah, não iríamos antes de vê-la. — Agatha demorou-se em um abraço.
— Estávamos com saudades.
— E curiosas. — Caroline disparou. — Muito curiosas para saber como
foi sua lua de mel.
— Por quê?
Wilhelmina estava genuinamente confusa. Era muita animação para uma
tarde que parecia fadada ao tédio. De repente, suas amigas estavam todas em
Londres e a recebiam para um chá informal enquanto faziam perguntas e
distribuíam abraços.
— Vamos nos sentar, minha querida. — A duquesa puxou-a pela mão. —
Temos chá, bolinhos e horas para conversarmos.
— Seu marido certamente está trabalhando. — Agatha suspirou. — O
meu não sai daquela fábrica. Então, pode ficar conosco.
— E vocês não vão para o litoral?
— Ah, vamos. Mas não sabemos ainda quando. — Caroline suspirou. —
Não reclamo, sou muito urbana e adoro Londres. Mas, com a agricultura
dando cada vez menos lucro, e com as propriedades retalhadas porque os
arrendatários estão abandonando as terras, pouco se justifica deixar as
fábricas aqui. Isaac está muito preocupado com o futuro das propriedades em
Kent.
Elizabeth serviu chá para as damas. Entregou uma xícara para cada uma,
causando um silêncio eloquente após a fala de Caroline.
— Acha que teremos que vendê-las?
— Ah, não. O conde é rico demais para isso. — Agatha riu. — Nossos
maridos investem em indústrias. Cada dia temos mais nobres falidos e
precisando vender tudo que possuem, enquanto nós prosperamos.
Mais um minuto inteiro de silêncio, enquanto as damas tomavam um gole
de chá. Aquela realidade atingiu Wilhelmina como um raio caído do céu.
Claro que ela sabia que as fazendas não eram mais lucrativas, desde muito
nova ouvia os irmãos conversando sobre esses assuntos. Sabia também que
os jovens migravam para as fábricas e que as condições de vida de algumas
pessoas caíram bastante. Sabia que os irmãos investiram pesado na indústria
porque “era o futuro”.
Só que ela se sentiu um pouco alienada da realidade ao ouvir Agatha
falar. Era possível que, em breve, suas amigas e cunhadas não fossem mais
passar meses no litoral ou no campo, pois seus maridos precisariam ficar em
Londres para trabalhar. Era muito provável que algumas amigas
empobrecessem e vendessem suas propriedades.
— Vamos falar de assuntos menos masculinos. — A voz melodiosa de
Elizabeth a tirou do transe de seus pensamentos. — Conte-nos sobre o País
de Gales.
— Não! Nós queremos as partes interessantes da viagem, aquelas que
acontecem no quarto.
— Caroline… — Elizabeth balançou a cabeça para um lado e para o
outro. — A menina é muito jovem para esse tipo de conversa.
— Jovem, mas não virgem. Não mais. — Caroline moveu os ombros. —
Ela agora é uma mulher casada e pode falar de assuntos de mulheres casadas.
Agatha deu uma risadinha. Elizabeth tentou manter a postura, mas dava
para ver que também achava graça da situação.
— Então é sobre isso que mulheres casadas conversam? Sobre o que
fazem no quarto com seus maridos?
— Falamos sobre caridade e filhos, também.
— Mas é mais sobre nossos maridos, sim.
Céus, como elas eram devassas. Será que o brilho pervertido nos olhos
das cunhadas sempre estivera ali e ela não notara?
— Bem, eu não sei o que dizer? O que querem saber?
— Ele te tratou bem?
— Ele se preocupou com você durante a noite de núpcias?
— Ele te fez sentir prazer?
Foram três perguntas quase ao mesmo tempo e talvez Wilhelmina nem
soubesse quem perguntou o que. Ela bebeu um longo gole do chá e tentou
não demonstrar seu constrangimento. A pausa acabou demorada demais e as
três mulheres a encaravam com curiosidade.
A resposta era sim, para tudo. Wilhelmina sentiu o rubor esquentar suas
bochechas ao perceber que o marido fora educado, gentil e suave com ela
durante todo o tempo. Sim, ele a tratou muito bem, como uma princesa de
cristal. Sim, ele se preocupou com ela a ponto de adiar a noite de núpcias e,
mesmo que houvesse muita dor envolvida no processo, as promessas dele
foram, afinal, verdadeiras. E sim, ela sentiu prazer. Muito mais do que
esperava sentir.
O combinado sobre seu casamento pareceu pertencer a um passado muito
distante. Foram um pouco mais de duas semanas desde que aquele homem
entrou no escritório de Edward e eles fecharam negócio. Fora nada mais que
um negócio, um grande acordo em que ele a proveria com riqueza e ela lhe
daria filhos. Além disso, nenhuma promessa de afeto ou carinho.
Só que as cláusulas do contrato pareciam diferentes, naquele momento.
Confrontada pelas mulheres a falar sobre suas experiências, Wilhelmina tinha
muitas coisas boas a dizer. Memórias interessantes de passeios matinais na
praia, desjejum em confeitarias, beijos apaixonados e corpos suados.
Céus, apaixonado era um adjetivo completamente inadequado. O marido
sentia luxúria por ela, que sabia de sua fama de garanhão indomado. Assim
como ela estava apenas carente e desamparada de afeto quando foi seduzida
por ele, na cama.
— Eu não deveria contar nada disso a vocês.
— Ah, não seja pudica. — Caroline provocou. — Grant é conhecido por
aí como o homem sem coração e, de repente, aparece de quatro por uma
jovem dama virgem. Eu estou muito curiosa sobre isso.
— Ele não está de quatro. Que coisa horrorosa de se dizer! —
Wilhelmina nem quis considerar imaginar o marido em uma posição tão
ridícula. — Meu Deus, vocês não vão me deixar me paz, vão?
Nenhuma das três pareceu interessada em desistir de perturbá-la.
Olhavam por cima de suas xícaras de chá e sorriam cinicamente.
— Certo. Então vou falar. Meu marido é um homem sério, as pessoas
parecem temê-lo por razões que desconheço, mas é muito carinhoso comigo.
Tivemos ótimos momentos íntimos… — A palavra saiu torta e ela precisou
beber um gole de chá para recuperar a voz. — A resposta para suas perguntas
é sim, e minha lua de mel foi bastante satisfatória.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

A S RTA . L ONGBOTTOM CORREU DE VOLTA ATÉ SUA CADEIRA . E LA ESTAVA


espiando na porta para ver o movimento no corredor.
— Elas estão vindo!
— Mary, não devemos correr. — Daisy Payne ajeitou a porcelana sobre a
mesinha de chá pela terceira vez. — Daqui a pouco a Srta. Bringstone vem
aqui e vai punir a todas nós por causar tumulto.
— Não seja boba, Daisy. A Sra. McFadden está aqui, ela sempre nos
deixa fazer travessuras.
— É, mas a duquesa também está aqui. — A Srta. Barone sorriu e seus
olhos brilharam. — E ela é tão refinada, tem tanta classe… não quero parecer
uma selvagem quando ela entrar nesse salão.
Cinco jovens estavam reunidas no salão de chá da Escola McFadden para
Jovens Damas. O sonho da libertina Caroline Eckley tornou-se realidade e se
manteve firme mesmo depois que ela se casou e teve um filho. Com a ajuda
de sua cunhada, a Condessa de Cornwall, e da Duquesa de Shaftesbury, a
escola era um sucesso entre as famílias não aristocratas.
A alta aristocracia continuava a desprezar Caroline. Ela não se importava
o suficiente para tentar mudar essa realidade.
Quando a porta do salão se abriu, o clima de aparente normalidade não
enganou nenhuma das mulheres que entrou. As jovens fingiam que estavam
comportadamente conversando sobre os bordados que a Sra. Chilton fazia ou
sobre o clima do lado de fora, que estava ensolarado e morno. Como os pais
dessas jovens eram industriários, negociantes e homens que trabalhavam
diariamente em Londres, só iam para o interior quando convidados pelos
nobres ou para passar períodos mais curtos em suas propriedades de campo e
de praia.
Elas ficavam, a maior parte do tempo, na cidade abafada e bolorenta. A
escola era um retiro, um lugar agradável para conviver com amigas.
— Sra. Sawbridge! — Mary Longbottom entusiasmou-se ao ver que
Wilhelmina retornara de sua lua de mel. — Como é bom revê-la!
— Seja bem-vinda de volta, senhora! — Daisy Payne fez uma mesura.
— É muito bom voltar, meninas. Vocês conseguiram decorar toda a
etiqueta do chá durante minha ausência?
Wilhelmina era a tutora do chá. Todo dia, às cinco, ela tomava chá com
as alunas e ensinava a elas todas as regras de etiqueta do chá da aristocracia.
Mesmo que as alunas fossem, em sua maioria, plebeias, os pais desejavam
que elas tivessem uma formação equivalente à da nobreza. A escola
representava uma grande ruptura na tradição - ali, as mulheres não aprendiam
a ser damas submissas e comportadas. Elas aprendiam a ser elas mesmas.
Wilhelmina era um sopro de tradicionalidade naquele ambiente subversivo.
— Corretamente. — A Srta. Barone exclamou.
— Não totalmente. — Daisy Payne moveu os ombros.
— Em alguns momentos, confundimos sobre a precedência dos títulos na
hora de servir. Não estamos acostumadas a isso. — Reclamou Dorothy
Preston.
— Está tudo bem. Eu acho.
— Nós vamos deixar vocês conversarem. — Agatha indicou que ela,
Caroline e Elizabeth sairiam. — Temos filhos que nos demandam e maridos
que, em breve, chegarão em casa.
— Eles demandam mais que os filhos. — Lembrou Elizabeth.
— Definitivamente. — Caroline riu. — Mas não estou reclamando.
— A senhora continuará conosco durante o recesso do Parlamento, Sra.
Sawbridge?
As jovens moças olharam para Wilhelmina com uma expressão ansiosa.
— Sim, eu ficarei um bom tempo por aqui. Meu marido trabalha mesmo
durante o recesso, mas, eventualmente, visitarei meus irmãos em Thanet.
Agatha, Elizabeth e Caroline se despediram da recém-casada, que ficou
com as jovens. Elas estavam entusiasmadas para conversar com Wilhelmina e
extrair dela tudo que podiam sobre… casamento.
Havia pouca coisa que interessava mais aquelas meninas do que falar
sobre cavalheiros.
Daisy Payne levantou-se e serviu o chá. Não havia ordem de precedência
entre elas, pois eram todas plebeias, mas Wilhelmina, apesar de não possuir
um título nem ter se casado com um nobre, era a mais velha. O sangue azul
que corria em suas veias era suficiente para fazer com que as jovens a
considerassem mais importante.
— Conte para nós como é ser casada com o Sr. Sawbridge. — Foi a
pergunta de Mary Longbottom. — Ele é tão…
— Misterioso. — Angelica Barone sussurrou.
— Sombrio. — Dorothy Preston concordou.
— Intrigante — Ressaltou Mary Longbottom.
— Pelos céus! — Daisy bateu a xícara no pires. — É inadequado falar
sobre o marido de uma dama. E não temos idade para essa conversa.
— A Srta. Payne tem razão. — Wilhelmina bebericou seu chá. — Não é
decente falar de homens pois todas vocês são solteiras. Posso apenas dizer
uma coisa: o Sr. Sawbridge é um marido agradável.
Os risinhos das meninas eram tudo que Wilhelmina desejava. As jovens
também queriam descontração com a tutora, que era pouca coisa mais velha
que elas, apenas, e que passava a ser parte da classe trabalhadora. Mesmo
tendo sangue azul, estava casada com um plebeu. E parecia bastante
satisfeita.

D EPOIS DE DEIXAR A ESCOLA , Wilhelmina encontrou sua casa quase vazia. Já


passava das seis e meia e Grant ainda não retornara. Foi recebida por Arthur,
o mordomo, que parecia muito satisfeito com a presença dela desde que fora
apresentada como a senhora da casa.
Ela foi para seu quarto, tomou um banho e colocou um vestido de noite.
A ausência de sua camareira já a estava deixando louca. Desde que se casou,
não conseguiu mais fazer um penteado adequado nem ajustar seu espartilho.
Olhou-se no espelho e viu-se apresentável. Talvez o suficiente para se
encontrar com o marido, mas não era o que desejava. Não queria estar
adequada para ele, queria estar perfeita.
Não fazia sentido algum desejar agradar a Grant Sawbridge. Se bem que,
depois que se casaram, ele se mostrou um homem que merecia ser agradado.
Um marido atencioso que fazia coisas que a deixavam sem fôlego no quarto.
Algo nele mexeu com algo nela. Era impossível negar, àquela altura.
— Arthur. — Wilhelmina encontrou o mordomo parado no salão
principal. Ele parecia esperar que algo acontecesse. — Podemos conversar
alguns minutos?
— Pois não, senhora.
— Diga-me, quantos criados… digo, quantos empregados trabalham na
casa?
Lembrou-se que o marido não falava criados. Aquela palavra, talvez,
assumisse uma forma negativa que ela desconhecia.
— Somos três. Eu, a Sra. Cook, a cozinheira, e a Srta. McGhee, que
mantém a casa limpa.
Wilhelmina segurou uma risada. A cozinheira se chamava Sra. Cook.
Aquilo se parecia realmente com algo que seu marido faria. Como se ela
pudesse conhecê-lo tão bem em uma semana para compreender o seu
comportamento.
— E nenhum de vocês mora na casa?
— Não, o Sr. Sawbridge nos dispensa depois do jantar. Às vezes até
antes. A Sra. Cook costuma ir para casa às seis, senhora.
Aquilo era realmente cedo. Os costumes dos plebeus eram muito
diferentes e Grant parecia ser ainda mais exótico. Ele tratava os empregados
da casa como tratava os de sua empresa, pelo visto.
— E o Sr. Sawbridge costuma demorar muito para retornar?
Arthur olhou para o relógio de pé que ficava no salão e pigarreou. Já
marcava mais de sete horas da noite.
— Ele costuma chegar bem tarde, senhora.
— Mas, se ele libera os empregados cedo… e o jantar?
— O Sr. Sawbridge não costuma jantar.
Ela bufou. Aquilo era inadmissível. O marido, pelo visto, não tinha um
comportamento adequado. Durante a lua de mel, estando apenas eles dois,
havia desjejuns, almoços e jantares nos horários corretos. Aquela era uma
residência de família, agora. Wilhelmina teria que tomar algumas
providências, e começaria imediatamente.
— Certo. Arthur, vamos estabelecer alguns horários a partir de amanhã.
Conversarei com a Sra. Cook sobre as refeições e com a arrumadeira para me
ajudar a organizar uma sala privativa para mim. Um dos quartos vazios deve
servir. E vamos jantar às sete e meia, todas as noites.
— Mesmo que o Sr. Sawbridge não tenha chegado?
— Ele chegará. — Ela sorriu. — Hoje não vou mantê-lo aqui depois do
horário estabelecido por seu patrão. Faremos o seguinte: indique-me onde
estão as correspondências que recebemos após o casamento para que eu
separe o que precisa ser respondido com urgência. Depois, considere-se
dispensado pelo dia.
— Pois não, senhora. A correspondência está no escritório, como ordena
o Sr. Sawbridge. E devo servir-lhe o jantar…
— Não, eu esperarei meu marido. Pode se retirar, agora.
O mordomo fez uma expressão de espanto, erguendo uma sobrancelha,
mas não discutiu. Empregados não discutiam com seus patrões, a não ser que
fossem como a camareira da condessa viúva, mãe de Wilhelmina. Aquelas
duas passavam tanto tempo juntas que nem eram mais criada e patroa, já se
haviam tornado amigas.
Depois que Arthur se retirou, Wilhelmina foi até o escritório. Ela estava
com fome, mas não iria jantar até o maldito do seu marido chegar. Estava
claro, para ela, que ele não estava trabalhando. Naquele horário, homens
como Sawbridge estariam nos clubes de cavalheiros jogando, bebendo,
flertando com mulheres.
Mulheres. Aquela ideia a incomodou. Sacudiu a cabeça para afastar
pensamentos indesejados e sentou-se na cadeira do marido para olhar a
correspondência. Muitos envelopes selados, alguns fechados com cera, outros
abertos. A maioria era para o casal - aqueles ela deveria responder. Outros
eram mais antigos, endereçados apenas a Grant Sawbridge.
Certamente ela não deveria mexer nelas, só que Wilhelmina adorava
cometer o pecado da curiosidade. A Sra. Friedman também a repreendia
constantemente por meter-se onde não era chamada. Só que a Sra. Friedman
não estava mais ali, estava?
As cartas para Grant eram todas de negócios. Falavam de investimentos,
propriedades e lucros. Havia uma intensa discussão sobre a expansão da
economia dos Estados Unidos da América - que vinha alcançando a
Inglaterra na disputa pela maior economia mundial. Ela gostava daqueles
assuntos e acabou absorta em alguns papéis a ponto de não ouvir os passos no
corredor.
— Ora vejam, se minha jovem esposa não é uma traça de documentos.
Wilhelmina assustou-se, bateu a mão em uma composição de itens de
escritório, derrubou um tinteiro ao chão e bateu o joelho na borda baixa da
mesa. Apesar da claridade do corredor, a figura taciturna de Grant Sawbridge
a fez lembrar de Conde Drácula, porém mais bonito. Sim, significativamente
mais bonito.
— Boa noite. — Ela se levantou para ver o estrago sobre o tapete. — Oh,
céus. Acho que está arruinado.
Um líquido viscoso azul escuro escorria lentamente pelo tapete
estampado com um padrão oriental. Grant aproximou-se e ela foi intoxicada
pelo cheiro dele. Uísque, tabaco, madeira e bergamota.
— Nada que não possa ser substituído. Onde está Arthur?
— Dispensei-o. Pelo que fui informada, os criados não dormem na casa.
Mas estabelecemos alguns horários para a partir de amanhã que gostaria de
discutir com você.
— Você é a dona da casa. — Grant foi até o aparador e serviu-se de um
conhaque. — Não precisa da minha autorização para esses assuntos.
A visão que ela tinha do marido era interessante. De costas para ela,
Grant tirou o casaco e jogou-o sobre uma poltrona. Parecia exausto, mesmo
que ela não pudesse ver sua expressão naquele momento. Provavelmente era
apenas uma impressão errada, mas Wilhelmina podia jurar, ajoelhada à frente
de um pastor, que era possível ver o movimento dos músculos dos ombros
flexionando por baixo da camisa branca.
— Não se trata disso. Gostaria de contar com sua presença em alguns
eventos.
— Eventos? — Ele se virou.
— Coisas simples como almoço e jantar.
Grant sorriu. Dentes perfeitos emoldurados por uma boca indecente.
— Certo, você tem minha atenção. Mas, antes, diga-me: o que desejava
encontrar em meio à minha correspondência?
Ele indicou que deveriam se sentar próximos à lareira. Fazia calor, mas o
fogo crepitando e a madeira queimada estalando dava uma sensação de paz e
quietude ao escritório.
— Nada. Estava separando as mensagens que recebemos após o
casamento. Devemos respondê-las e dizer sim para algumas visitas.
— Não gosto de visitas.
— Imagino que não. — Ela sorriu. — Mas precisamos recebê-las assim
mesmo. Preciso marcar um horário com sua secretária?
Grant balançou a cabeça dizendo que não.
— E também visitaremos algumas pessoas. Estou selecionando quais.
— Gosto menos ainda de visitar pessoas.
— Continuamos precisando visitá-las.
Ele ergueu o olhar e a fitou por longos segundos. Os olhos azuis eram
transparentes, mas, ao mesmo tempo, tão intransponíveis. Como tanto brilho
podia conter tanto mistério?
— Você não tornará isso fácil para mim, tornará? — Grant esticou os
lábios em um sorriso provocador. — O que houve com a mulher que mal
queria encontrar comigo na própria casa e sonhava com manter a maior
distância possível do homem com quem se casou?
Wilhelmina comprimiu os lábios e o encarou. As mãos dela ficaram
subitamente úmidas demais, fazendo com que precisasse limpá-las no tecido
das saias para diminuir o desconforto. A resposta àquela pergunta podia ser
muito inconveniente para suas intenções futuras.
— Aquela mulher passou uma semana em Anglesey com você.
Não foi preciso dizer mais nada para que ele entendesse. O marido era um
homem inteligente. Não importava o que a movesse antes, tudo ficou
diferente depois da lua de mel. Havia aquela conexão entre eles que
Wilhelmina não tinha como negar. Ela queria estar com ele e conversar com
ele e desbravar a terra misteriosa que era o homem com quem ela se casou.
Apoiando o copo vazio sobre a mesinha de centro, Grant encerrou a
distância entre eles e a beijou. Depois de um dia longo demais, ela entendeu
que não estava pronta para afastar-se dele tão bruscamente. Sentiu falta da
boca dele sobre a dela, da língua aveludada explorando os lugares que apenas
ele encontrava. E de se render às carícias que os dedos dele faziam enquanto
a seguravam pela cabeça e se entremeavam nos cabelos dourados.

E LE NÃO ESPERAVA BEIJAR sua esposa no meio do escritório quando chegou


em casa. Não antes de ouvi-la dizer que a semana compartilhada com ele a
fizera repensar seu acordo de casamento. Tudo bem, ela não disse exatamente
isso, mas Wilhelmina sugeriu que a lua de mel a fez desistir de afastar-se dele
o máximo possível. E Sawbridge não sabia se estava muito assustado com
aquela perspectiva ou um pouco satisfeito.
Era verdade que ele também queria repensar seu acordo, mesmo que não
verbalizasse nada daquilo. Passou o dia enfrentando problemas, mas, ao invés
de fugir para o Riderhood como de costume, voltou para casa. Voltou para
ela.
Naquele momento, ele podia muito bem agarrá-la e levá-la para o quarto.
Wilhelmina estava rendida, seduzida, entregue aos carinhos que sua língua
fazia na dela. Era um toque quente e doce, de veludo com seda. A forma
como as mãos dela seguravam, vacilantes, o colete que ele vestia indicavam
que ela lutava contra o desequilíbrio. Mas Sawbridge nunca fora um homem
que se rendeu aos impulsos. O desejo nunca o dominou - nada o dominava.
Era totalmente racional e consciente de tudo que fazia.
Mesmo que Wilhelmina o embriagasse mais do que o uísque, ele
terminaria a conversa que estavam tendo. Havia tempo para o sexo, depois.
— Você falava da correspondência. — Disse, ao afastar os lábios dela.
Permaneceu segurando-a pelos braços, observando-a recuperar o fôlego.
— Eu falava de visitas. Para me silenciar, você me beijou.
Ele riu. A esposa parecia dormente em seus braços, quase desfalecida. O
rubor em sua face era lindo. Mostrava que ela o desejava tanto quanto ele a
desejava.
— Tenho certeza de que o motivo não foi silenciá-la.
— Precisamos também conversar sobre almoços e jantares. Estabelecer
horários que você esteja disposto a cumprir.
Sawbridge ajeitou-a no sofá, recostando as costas dela em uma almofada.
Depois, esticou os nós dos dedos enquanto fitava a expressão ainda atordoada
da esposa.
— Não estou acostumado a nada disso.
— Pelo visto, você não está acostumado a nada que represente uma vida
regrada. Pessoas comem, Grant. Eu posso gerenciar uma casa sem criados e
abotoar meus próprios vestidos, mas precisamos estabelecer rotinas.
— Intrigante. Então eu posso entender que você pretende morar nessa
casa, em Londres, comigo, e que seremos um casal convencional?
Aquela era uma dúvida razoável. Não que ele se importasse tanto.
Esperava mesmo que a esposa não estivesse tão presente, assim poderia
continuar com sua rotina habitual. Ao contrário do que Wilhelmina pensava,
não faltava rotina na vida de Sawbridge - faltava uma que a incluísse.
— Seria adequado. Principalmente porque minha função primordial é dar
a você herdeiros. Terei que permanecer aqui até que isso aconteça, pelo
menos.
A menção a herdeiros fez com que Sawbridge pensasse na forma de
produzi-los e isso conduziu impulsos nervosos diretamente para seu pênis
indomado. Aquela parte do corpo era a mais rebelde e andava reagindo com
muita veemência à presença de Wilhelmina.
— Você já jantou?
Ela meneou a cabeça.
— Vamos jantar. Preparei algo e trarei aqui para o escritório. Enquanto
isso, podemos conversar sobre escrituras.
— Escrituras?
— Sim. Propriedades. Você ainda não decidiu o que receberá em troca
desse acordo. Nosso casamento, quero dizer.
Wilhelmina sorriu sutilmente e se levantou. Ofereceu a mão em um gesto
terno, indicando que desejava que ele a acompanhasse. Quando ele aquiesceu
e entrelaçou os dedos nos dela, percebeu que alguma coisa muito fora do
comum estava acontecendo consigo. Naquela casa, naquele momento.
Os dois desceram e prepararam um jantar leve com o que fora deixado
pela Sra. Cook. Sawbridge raramente jantava em casa, portanto a cozinheira
não se importava em preparar pratos elaborados. Mas havia pães, presunto e
carnes, ingredientes que se transformaram em sanduíches. Tudo foi levado
para o escritório, arrumado em uma mesa redonda pequena, que mal cabia a
bandeja, e servido com uma garrafa de vinho branco.
Enquanto Wilhelmina beliscava a comida, Sawbridge pegou alguns livros
em sua estante. Sentou-se ao lado dela no sofá e colocou os papéis entre eles,
indicando que ali estava o Santo Graal da riqueza dele.
— Vamos ver o que pode te interessar aqui.
Ele abriu os livros e começou a falar das propriedades. Wilhelmina
começou a tirar pedaços de um sanduíche e levou à boca do marido. De
início, ele se retraiu. Aquilo parecia mais íntimo do que o próprio ato sexual.
Ela ousava oferecer a ele comida como se fosse um bebê? Mas, depois, cedeu
e deixou que ela colocasse os pedacinhos de pão e carne em sua boca,
permitindo que ele envolvesse os dedos dela com os lábios e os limpasse com
a língua.
Maldição. Sawbridge precisou concentrar-se bastante nos documentos
que lia para evitar que seu pênis reagisse outra vez. Aquele desgraçado
inconveniente precisava aprender a ter modos.
Passou uma hora e ele falou de praticamente todo o seu império.
Wilhelmina dividiu dois sanduíches com o marido e eles beberam a garrafa
de vinho inteira. Nada nela indicava que estava satisfeita com o que ouvia,
mas parecia bastante interessada na interação entre eles.
— Eu estou um pouco cansada. Aparentemente, você tem um patrimônio
vasto demais.
Ela provocou, passando a língua pelos lábios úmidos de vinho branco.
— Que não a atraiu em nada.
— Talvez eu deva escolher algo diferente. Algo que seja apenas meu, que
não tenha antes pertencido a você.
— Pois escolha. — Sawbridge levantou-se e devolveu os livros para a
estante. Parou na frente da mesa e remexeu as cartas que estavam mal
empilhadas. — Céus, quanta bobagem precisa ser lida e devidamente
ignorada. Informativos, mais informativos, outros informativos e… Thomas
Caldwell? Oras, essa é nova. Quem diabos é Thomas Caldwell?
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

O SANGUE NAS VEIAS DE W ILHELMINA CONGELOU SUBITAMENTE . S E ELA NÃO


estivesse sentada, teria desabado estatelada no chão ao ouvir aquele nome.
Grant pegou o envelope de papel amarelado, amarrado com uma corda de
sisal fina, e o coração dela quase parou.
— É um amigo. — Disparou. A voz saiu estridente e um pouco trêmula.
O marido ergueu os olhos e a encarou, certamente confuso pelo fato de ela ter
um amigo que lhe enviava correspondências. — Da família, quero dizer. Dos
McFaddens.
Grant olhou o envelope, virou-o nas mãos e colocou sobre a pilha de
felicitações.
— Arthur deve ter confundido e colocado no meio da minha
correspondência. Nunca ouvi falar dos Caldwell.
— São de Thanet. Meus irmãos são muito queridos na vila e você sabe
que os McFaddens não deixam de conviver com plebeus apenas porque eles
são plebeus.
— Claro que não. — Grant sorriu e foi até ela. — Seus irmãos são muito
diferentes da maioria dos nobres que conheço.
Ele ofereceu a mão para ela, mas Wilhelmina estava travada. A menção
do nome do único homem que ela amou a desestabilizou. Seu estômago
estava dando cambalhotas na barriga.
— Aconteceu alguma coisa? Você está bem?
Ah, ela não estava. Desejava pegar a carta de Thomas e ver o que ele
queria, por que escrevera naquele momento. Desejava expulsar Grant do
escritório para ficar sozinha com a dor de lembranças que ainda a
assombravam, mesmo depois de quatro anos. Ao mesmo tempo, assustou-se
ao imaginar que o marido poderia descobrir sobre Thomas. Temeu que ele a
considerasse infiel por manter seu coração fechado para um homem que não
fosse ele.
Justo ela, que chegou a pensar em adultério, em entregar-se ao homem
que amava depois que a virgindade não fosse um obstáculo. Que esperava
que seu marido procurasse o prazer em outras mulheres e a deixasse em paz.
Poderia uma semana influenciar tanto o desejo de uma pessoa?
— Estou. Senti uma tontura que me tirou o equilíbrio.
Wilhelmina segurou a mão de Grant, que a amparou nos braços. Ela não
estava tonta, mas ficou assim que enfiou o nariz na camisa branca que ele
vestia. O cheiro dele a inebriava.
— Você não deve ficar muito tempo sem se alimentar, nem beber tanto
vinho.
O sorriso que ele a dedicou fez com que a confusão em seu coração se
agravasse. Por que parecia que ele sorria para ninguém, apenas para ela? Não,
ela não podia sentir ternura por aquele homem. Ela amava Thomas, e
somente Thomas. Por que Grant Sawbridge tinha que ser encantador? Ele
deveria ser um negociante pragmático que se interessasse apenas por
contratos.
— Eu acho que preciso me deitar. O dia foi muito intenso.
— Acompanho você até seu quarto.
Ela assentiu. Se o marido ficou desapontado pela sugestão de que não
dormiriam juntos naquela noite, não demonstrou. Seguiu-a pelas escadas até
a porta do quarto, do outro lado do corredor. Uma corrente de ar entrava pela
janela parcialmente aberta. Um pouco vacilante ela se sentou na beirada da
cama. Grant acendeu a lareira, atiçou o fogo e fechou a janela.
— Está frio. — Ele provocou. Wilhelmina sentia o estômago prestes a
sair por sua boca, exausto das cambalhotas.
— O fogo logo aquecerá o quarto. Tenha uma boa noite.
De costas para ela, o marido levou algum tempo para se virar. Ele
mantinha aquele sorriso enigmático que não parecia exatamente com um
sorriso, mas um alerta. Era como um aviso para que ela tivesse cuidado.
Tomou a mão direita dela entre as suas e levou os dedos dela aos lábios
quentes. O toque daquela boca indecorosa quase a fez perder os sentidos de
vez.
— Precisa de ajuda para retirar o vestido? — Ele perguntou.
— Não, eu consigo desabotoá-lo. Esse é… mais simples.
— Muito bem. Boa noite, minha querida esposa.
Grant saiu do quarto e a deixou ali, isolada em uma casa enorme e fria,
enquanto o coração martelava como um canteiro de obras e seu ouvido
zumbia de nervoso. Wilhelmina fechou os olhos e respirou fundo. Estava
agindo como uma garota tola. Anos se passaram sem que Thomas desse
notícias. Ele não a procurou, não a incentivou a esperar por ele, não deu a ela
nenhuma esperança de que ficariam juntos. Mandou uma carta explícita
dizendo que ela deveria seguir com sua vida. Ela divagava, sonhava com o
impossível, até se desiludir, se perder pelo caminho e acabar casada com
outro homem.
Não havia motivos para que ficasse tão nervosa. No dia seguinte, veria o
conteúdo da carta e tomaria uma decisão a respeito dela. Naquele momento,
trocaria de roupa e dormiria tranquilamente entre lençóis limpos, sobre um
colchão macio.
Lençóis frios. Mesmo que Wilhelmina estivesse coberta até o pescoço
com um cobertor, a cama estava fria. Ela apagou as velas, fechou os olhos,
tentou dormir. Levou horas até conseguir pegar no sono e, quando conseguiu,
não durou muito tempo. Ela rolou pela cama várias vezes, durante bastante
tempo. Não conseguiu adormecer, não conseguiu ter sequer uma hora de
sono, fosse tranquilo ou agitado.
Estava exausta e sabia o motivo. Passara noites e mais noites entrelaçada
aos músculos firmes e quentes do marido, abraçada a ele, sentindo o cheiro
dele, sendo acalentada por ele. O que fora desconfortável no início se tornou
prazeroso rapidamente e fez com que Wilhelmina se acostumasse à presença
de Grant ao seu lado.
Desistiu de ficar na cama antes do nascer do sol. Ainda no escuro,
acendeu uma lamparina e desceu as escadas para o escritório no primeiro
andar. Talvez, se confrontasse a carta de Thomas Caldwell, ela se acalmasse.
Pegou o papel sobre a mesa de nogueira e sentou-se em uma poltrona
próxima da lareira. O fogo estava praticamente extinto, apenas algumas
poucas brasas cintilavam na quase escuridão. Com a lamparina bem próxima,
Wilhelmina abriu a carta e começou a lê-la.

“Cara Sra. Sawbridge,


Escrevemos para felicitá-la pelas bodas. Não ficamos surpresos
ao saber que milady conquistou um dos mais bem estabelecidos
solteiros de Londres. Todos aqui sabíamos que seu casamento seria
um evento digno do Royal Gossip. Desejamos-lhes sinceramente um
matrimônio feliz, respeitoso e fértil. Quando retornar a Kent,
esperamos poder tomar um chá com a senhora e seu esposo.
São os votos da família Caldwell.”

Um suspiro escapou de seu peito. Era uma bela carta e, ainda assim, ela
não estava satisfeita. Thomas não tinha o direito de corresponder-se com ela
de forma tão impessoal. Ele não tinha o direito de falar com ela se não fosse
para dizer que a amava e que a sequestraria para viverem um amor proibido.
Por quatro longos anos ela o esperou. Passou por três temporadas desejando
vê-lo em todos os homens que a cortejavam. Agora, estava casada e ele tinha
a audácia de parabenizá-la como se nunca a chama do amor tivesse queimado
dentro deles?
Wilhelmina não queria felicitações, não dele. Ela queria que ele invadisse
aquela casa e a sequestrasse. Não, que ele sequer permitisse o casamento.
Queria que ele invadisse a Igreja e a arrastasse de lá, jurando amá-la para
sempre. Não, Thomas não podia chegar naquele momento e agir como se
nunca nada tivesse acontecido entre eles.
A frustração fez com que ela amassasse o papel e o atirasse nas brasas.
Uma lágrima indesejada rolou por sua face, morrendo nas bochechas que
estavam ardendo pela irritação do momento.
Ela precisava libertar seu coração. Thomas pode ter sido o homem de sua
vida, mas não esteva disposto a enfrentar tudo e todos para ficar com ela.
Eles não eram como o Duque e a Duquesa de Shaftesbury. Aiden Trowsdale
moveu montanhas e aceitou perder prestígio social para ficar com a mulher
que ele amava. Wilhelmina estava disposta a abrir mão de tudo para ficar
com Thomas, mas ele nunca se colocou em uma posição de desejá-la mais do
que tudo.
Ou ele a respeitava demais para obrigá-la a uma vida de privações. Não
importava para ela. Wilhelmina queria viver o amor de sua vida - se não
pudesse, preferia enterrá-lo, sepultá-lo como se estivesse, naquele momento,
viúva.
As lágrimas vieram sem que ela pudesse mais controlá-las. Chorou pela
perda do que nunca teve e por ser tão tola de manter aquele homem em seu
coração, quando ele claramente não parecia amá-la da mesma forma. Depois
de algum tempo, vendo os raios de sol debilmente penetrando pelos vidros
transparentes das janelas, Wilhelmina decidiu voltar para a cama.
Mas não a sua cama. Exausta e frágil, ela foi diretamente para onde sabia
que seria acolhida, o quarto do marido. Com as cortinas fechadas, a
penumbra fazia o ambiente confortável. Grant dormia tranquilamente
abraçado aos travesseiros. Encolhido em um lado da cama, parecia cuidadoso
ao deixar livre o espaço que ela ocupara até aquela noite. Wilhelmina sentiu-
se subitamente ridícula por ter se afastado no dia anterior.
Ela estava tão confusa. Entregou o seu coração a Thomas e prometeu ser
eternamente dele. Nunca pretendeu ceder aos encantos de nenhum outro
homem, mesmo sabendo que, eventualmente, alguns deles se tornariam
difíceis de resistir. Ela deveria ser forte e capaz de mantê-los afastado. Seu
plano de casar-se com Grant era perfeito! Não haveria nenhum envolvimento
emocional entre eles. O que poderia ter dado errado? Em silêncio, retirou o
roupão e enfiou-se debaixo dos lençóis, ao lado dele.
O marido virou subitamente para ela, assustando-a.
— Céus! — Grant sentou-se na cama, passando as mãos pelos cabelos. —
Wilhelmina…
— Desculpe-me, não queria acordá-lo. Eu apenas…
Grant olhou-a demoradamente. Dava para ver que o gelo do azul
transparente de seus olhos derreteu e deu lugar a uma chama branda, que
ardia no fundo de sua alma. Ele esticou os lábios em um sorriso parcial e se
deitou novamente, aprisionando Wilhelmina entre seu corpo e o colchão. Ela
se assustou mais uma vez com o movimento brusco e sentiu seu coração errar
uma batida.
— Não interessa o motivo, gosto que esteja aqui.
Ele a beijou. Foi um beijo suave no início, suficiente para servir de faísca
para o fogo que passou a consumi-la lentamente. A mão dele acariciou-a nos
cabelos e a boca desceu para o maxilar e o pescoço.
— Tive uma noite ruim. Acho que há algo errado com a cama.
— Sim, há. — Ele sussurrou. — Eu não estou nela.
— Como você é arrogante…
Os protestos dela morreram na garganta quando Grant passou a traçar os
contornos de seu pescoço com a língua.
— Arrogante, sim, mas apto a satisfazê-la e deixá-la exausta o suficiente
para que durma como uma rainha.
Maldito, ele tinha razão. Foi o calor daquele corpo colado ao dela que fez
diferença durante a noite. Ela fora dormir com pensamentos confusos sobre
Thomas Caldwell, mas o que a impediu de dormir não foi o amor do passado.
Foi a ausência do presente.
Grant continuava a beijá-la, abrindo os botões da camisola e desbravando
sua pele como apenas ele sabia fazer. Wilhelmina não esperava aquilo
quando se enfiou na cama com ele. Pretendia apenas dormir um pouco. Mas
não negaria que preferia o que ele a oferecia.
Com a boca, Grant trilhou os caminhos pelos seios e pelo abdômen de
Wilhelmina até encontrar a sua parte preferida do corpo dela. Ao menos era o
que acreditava, já que ele demonstrava certa predileção por tocá-la ali,
naquele ponto de prazer incrível. E ah, como ele sabia o que estava fazendo.
Lábios e língua habilidosos chupavam e lambiam o botão intumescido da
feminilidade dela e a levavam ao delírio em poucos minutos. Ela se
envergonhava de ceder tão facilmente a ele, mas eram carinhos irresistíveis.
Depois de arrancar da esposa um orgasmo um pouco barulhento demais,
Grant deitou-se sobre ela e conduziu seu membro para sua entrada. Durante a
lua de mel o marido fora sempre lento, cuidadoso e demorado em todas as
carícias. Naquele momento, ele era rápido, quase bruto, intenso. Ela não
achou ruim, ao contrário, sentiu ainda mais prazer quando ele arremeteu
contra ela e a penetrou profundamente, soltando um gemido grave de
satisfação.
— Você não pode deixar essa cama, à noite. — Ele rosnou enquanto
investia contra ela. Wilhelmina não conseguiu responder, estava em êxtase
pelo prolongamento das sensações prazerosas. — Faça o que quiser com
aquele quarto, mas vai dormir aqui, comigo.
Uma, duas, três estocadas firmes e determinadas. Ele a encarava enquanto
falava e a mantinha cativa com seu corpo.
— Eu não…
— Você sim. — Grant a beijou. Os movimentos do quadril dele ficaram
mais rápidos. — Você sim, Wilhelmina.
As mãos dele a seguraram pelas nádegas e a ergueram da cama. Com
mais algumas investidas, ele chegou ao ápice e despejou sua semente dentro
dela com um rugido. Foi a primeira vez que ela o teve como um amante
vigoroso. Rude, forte, masculino. Quando o corpo dele pesou sobre o dela e
ele descansou a cabeça em seu ombro, Wilhelmina estava com o coração
disparado e o corpo estranhamente muito satisfeito.
E LA NÃO DORMIRIA outra noite longe dele. Aquilo não seria negociável e
Sawbridge faria qualquer coisa para manter sua esposa em sua cama. Quando
solteiro, ele fazia sexo toda noite, estava acostumado a ter uma vida sexual
ativa. E Wilhelmina era… nem ele mesmo entendia o que sentia quando
estava ao lado dela. Seu corpo reagia visceralmente, como se ele fosse um
animal submetido aos seus instintos. Ela conseguia despertar uma ereção
apenas com um olhar tímido ou um sorriso inocente. Ele a queria e não era
um desejo normal, não era nada além de primitivo, como uma necessidade
corpórea que ele pudesse satisfazer com um orgasmo.
Mesmo depois, ele queria continuar ali, abraçado a ela, mantendo-a junto
a seu corpo enquanto respiravam no mesmo ritmo. Maldição, ele estava
ferrado.
Após meia hora, ela adormeceu. Sawbridge acomodou-a na cama e se
levantou, sentindo-se finalmente relaxado o suficiente para enfrentar o dia.
Talvez ele quisesse dormir, também, ao lado dela, mas precisava trabalhar.
Tinha reuniões com investidores e comerciantes e muitas questões
profissionais a tratar.
Tomou um banho, vestiu-se e saiu, indo direto para seu escritório. Ele
tinha negócios com nobres que precisavam ser cuidados, pois boa parte da
nobreza estava rendida a seus pés. Eles jamais admitiriam que precisavam
dos plebeus ricos, mas a verdade era que, sem Sawbridge, muitos já estariam
para morrer de fome.
— Srta. Trimmes. — Chamou a secretária assim que chegou ao seu
escritório. — Consiga algo para comer e traga ao escritório. Preciso me
concentrar em uns papeis, portanto não deixe que me interrompam. E, depois,
confirme minha visita a Lorde Withmore.
A secretária assentiu e ele se fechou em seu castelo. Sim, o escritório
fazia com que Sawbridge se sentisse um rei. Dali, ele comandava um
pequeno império consistente em empresas, lojas, fábricas e até mesmo um
bairro - que construíra anos atrás. Pegou alguns relatórios para se informar
sobre números e considerou que deveria passar na fábrica. Edward e Aiden
eram excelentes amigos e muito bons gestores, mas ele ainda confiava mais
em si.
— Senhor. — A Srta. Trimmes entrou, carregando uma bandeja. — O
mensageiro que enviei à Withmore Terrace retornou informando que o
marquês viajou para Hampshire com a marquesa e seus filhos. E o Duque de
Shaftesbury deixou um convite para que almoçassem juntos. Disse que o
senhor saberia onde encontrá-lo.
— E o marquês disse se retornaria em breve?
— Não tenho essa informação, senhor. Se quiser, posso…
— Não, está tudo bem. Pode sair, Srta. Trimmes.
Maldito fosse o Marquês de Rutland. Ele sabia que Sawbridge queria
dissuadi-lo de fazer um negócio tolo com seu principal concorrente e estava
fugindo. Homens covardes não eram o seu tipo.
O industriário pegou alguns pãezinhos para comer e serviu-se de uma
xícara de café. Não gostava de chás e esperava que sua preferência não
magoasse sua esposa. Damas aristocráticas sempre faziam questão do chá das
cinco e ele pouco se importava com aquela tradição. Um sorriso sutil
distorceu sua face carrancuda e Sawbridge se incomodou. Ali, no escritório,
não era lugar de sorrir.
Como não poderia fazer o que desejava, decidiu fazer o que precisava.
Chamou seus diretores e gerentes e extraiu informações de todos. Queria
saber sobre os negócios e fez com que falassem sobre tudo - absolutamente
tudo - que pudesse parecer importante.
Depois de perturbar seus empregados, Sawbridge saiu para encontrar-se
com o duque. Se ele conhecesse o amigo, também se encontraria com o
conde, e talvez com Oglethorpe. Aqueles homens viviam juntos. Ah, e ainda
havia o jovem Isaac, que fora admitido no grupo depois de ter se casado e
tornado um respeitável administrador dos negócios de sua esposa.
O restaurante escolhido por Aiden Trowsdale era o preferido do grupo,
também. Servia pratos consistentes, com carne farta e vinho de qualidade.
Não era comum que os nobres comessem fora de suas casas, mas Aiden
estava longe de ser comum. Quando chegou, Sawbridge descobriu que estava
certo - todos já o aguardavam enquanto bebiam conhaque.
— Eis que chegou nosso amigo recém-casado. Agora, oficialmente
atrasado para os eventos por ter uma esposa à disposição em casa.
— Pelos céus, Aiden. — Edward rosnou. — Ele está casado com a minha
irmã.
— E acha que, por isso, ele deixará de vê-la como uma mulher, meu caro
amigo? — O duque riu e ergueu seu copo de conhaque. — Um brinde ao
homem sem coração que foi fisgado pelos laços matrimoniais.
— Não sou tolo como vocês, não fui fisgado por nada. — Sawbridge
reclamou. — E tome cuidado, Aiden. Ele também é casado com sua irmã.
— Não há um dia em que eu não lembre disso e queira partir a cara dele
em duas. — O duque bebeu todo o seu drinque em um gole. — Mas ela é
feliz e eles têm filhos lindos. Em algum momento, aprendemos a relevar.
— Vocês me convidaram para falar sobre filhos, sexo e irmãs?
— Meu Deus. — Isaac arregalou os olhos. — Essas três palavras não
deveriam estar em uma mesma frase, Grant.
Os homens riram. Sawbridge se sentou com eles e Oglethorpe mandou
que trouxessem mais bebida e a comida.
— Na verdade, convidamos você porque estamos em uma conversa
interessante com um dos irmãos de Granville. — Edward confessou.
— Qual deles?
— O que está nos Estados Unidos. Ele está nos tentando a investir lá.
— Leonard? Mas ele não estava no Brasil? — Isaac perguntou.
— Ele estava, no passado. — Aiden pegou um pedaço de carne e colocou
em seu prato. — Agora está mexendo com exportações nos Estados Unidos.
— Faz tempo que eles estão para nos superar economicamente. —
Sawbridge bebeu um gole do conhaque que lhe foi servido. — Mas eu não
sou muito de riscos não calculados e Leonard é bastante imprevisível. O que
vocês pretendem?
— Vamos mandar Nathaniel para lá. — Edward determinou. — Ele é
solteiro e desbravador. Certamente combinará com Leonard e sua
personalidade errante.
— E, assim que nosso enviado estiver no outro continente, ele analisará
as propostas e as possibilidades, e nos enviará notícias.
— Isso parece muito demorado. Vamos precisar de meses para
decidirmos investir. E depois, mais meses para realmente fazermos alguma
coisa. Acho que já sei o que devemos fazer - barcos mais rápidos.
— Para isso, falemos com o outro irmão, Robert. — Isaac serviu-se de
comida. — Ele está nas Índias e disse que os engenheiros deles são ótimos.
— Melhores que os nossos?
— Talvez.
Os homens se entreolharam. Ninguém acreditava que a Ásia tinha
engenheiros melhores que os da Inglaterra, ou da Europa, porém não
discutiriam aquele assunto. Preferiram comer e beber enquanto conversavam
sobre possibilidades de novos negócios e, certamente, da viabilidade de se
construir barcos mais rápidos.
Q UANDO W ILHELMINA ACORDOU , já passava de meio dia. Ela demorou algum
tempo para descobrir que estava em outro quarto, não aquele que escolhera
para si. Sentou-se na cama, nua, e riu. Por mais presunçoso que seu marido
fosse, ele tinha razão quando disse ser capaz de fazê-la dormir. Algo teria que
ser feito e ela esperava que pudesse, com o tempo, superar aquele desejo
físico, aquela vontade de estar com ele.
Depois de um banho rápido em uma banheira meio cheia, um vestido mal
abotoado - Harriet ainda não retornara para o trabalho - e um cabelo trançado,
ela estava pronta para almoçar. Não conversara com Arthur sobre as novas
regras da casa nem discutira com a cozinheira o cardápio. Precisava fazer
aquilo antes de passar na escola, ou estaria negligenciando suas atribuições
de esposa.
— Sra. Cook. — Wilhelmina entrou na cozinha e assustou a cozinheira.
— Precisamos conversar.
— Claro, senhora. — A mulher limpou as mãos em um avental. — Posso
oferecer um chá à senhora?
— Sim. Chá e torradas.
Com rapidez e presteza, a Sra. Cook atendeu à demanda da patroa, que se
sentou para comer.
— Sente-se, também. — Wilhemina indicou uma cadeira oposta à sua. —
Quero discutir as refeições na casa. Aparentemente, o Sr. Sawbridge não
costuma fazê-las nos horários adequados, mas estou convencendo-o a
repensar esse comportamento. Gostaria que pudéssemos almoçar à uma hora,
todos os dias. E jantar às sete e trinta. Não se preocupe, pelo tempo extra, a
senhora poderá ter um dia inteiro livre durante a semana. Os domingos, se
preferir.
A cozinheira arregalou os olhos.
— Seria muita generosidade, senhora. Quanto ao cardápio…
— Em dias de eventos, quando eles acontecerem, eu gostaria de escolher
o cardápio. Nos dias comuns, a senhora pode preparar o que considerar
adequado.
— Certamente.
— A senhora tem uma ajudante? — A Sra. Cook balançou a cabeça
negativamente. — Precisamos contratar uma, então. Se conhecer uma boa
jovem que possa assumir essa tarefa, traga-a para ser entrevistada. Também
desejo contratar duas arrumadeiras.
— A Joannie…
— Continuará trabalhando conosco, não se preocupe. Apenas desejo mais
empregados para dar conta de uma casa que tão grande como essa.
Wilhelmina continuou a comer enquanto a cozinheira contava sobre
algumas mulheres que conhecia e que adorariam trabalhar para o Sr.
Sawbridge. Ela descobriu que seu marido era adorado entre as classes mais
pobres. Mesmo que ele tivesse vindo de uma família rica, sempre foi humilde
com os menos favorecidos e pagava muito bem aos trabalhadores sob seu
cuidado.
Ela não conhecia esse lado dele. Edward sempre dizia que Grant não se
preocupava tanto com pessoas quanto ele. Talvez o marido fosse tão
preocupado em manter uma imagem de homem cruel e desalmado que
impedia que os amigos e parceiros o vissem como um ser humano.
Depois da conversa com a cozinheira, foi a vez do mordomo. Ele também
adorava o patrão e só tinha elogios a dizer. O mesmo veio de Joannie, a
arrumadeira. Grant Sawbridge era endeusado em sua residência, pelos que
trabalhavam para ele.
Aquilo dizia muito a respeito do homem com quem se casara. Ela olhou
no relógio e viu que passava das três. Gastou muito tempo conversando com
empregados e estabelecendo uma nova rotina. Poderia ir para a escola e
tomar o chá com as alunas e, talvez, com as cunhadas. Mas decidiu que
conheceria o ambiente em que seu marido trabalhava. Ela queria encontrar
mais pessoas que poderiam dizer coisas elogiosas sobre Grant. Decidiu que
faria isso às quatro e meia - antes, precisava responder ao menos algumas das
felicitações pelo casamento.
Ao sentar-se na cadeira de couro do marido, Wilhelmina entendeu que
precisava de um espaço só para ela. Um lugar feminino e que não cheirasse a
cigarros, pois o simples cheiro de Grant a deixou distraída por minutos.
Apesar de ser interessante estar ali, não parecia haver segredo algum que
desafiasse a sua curiosidade. Era apenas distração, pura e simples e ela não
gostava muito de ter sua atenção desviada.
Pegou a pilha de cartas e enfrentou o desafio de responder a todos os
convites e felicitações, queram muitos. Alguns de conhecidos dela, outros de
pessoas com quem ela não convivia, mas que sabia quem eram. Fazia parte
de uma boa temporada conhecer todas as boas famílias e identificar todos os
potenciais cavalheiros disponíveis para o casamento. Abriu a carta dos
Rutherford, depois a dos Olsen, e seguiu agradecendo e aceitando convites de
uns, fazendo convites para outros.
Como uma boa dama, ela sabia exatamente como separar as felicitações
que precisavam de uma resposta rápida, os convites que seriam aceitos dos
que seriam postergados, e quem seria chamado para um jantar. Teria que
negociar com Grant sobre aquilo, mas não estava preparada para ceder. Ele
teria que se tornar um homem mais sociável, aquilo não estaria em
negociação.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

O ESCRITÓRIO DE G RANT S AWBRIDGE FICAVA EM UM EDIFÍCIO COMERCIAL NA


Picadilly Circus, um dos mais movimentados espaços de Londres. Sendo a
confluência de avenidas importantes, era o reduto principal das livrarias da
cidade. Wilhelmina adorava aquele lugar, era seu favorito em toda Londres.
Quando o cabriolé de aluguel a deixou ali, ficou tentada a passear antes de se
dirigir a seu destino.
Mas não o fez. Seguiu direto para o edifício que Arthur lhe indicara e
subiu pelo elevador até o quinto andar. Claro que Grant teria um escritório no
andar mais alto do prédio - ele era importante demais para ficar nos níveis
mais baixos. Quando chegou, descobriu que o andar inteiro era dele. E que a
Srta. Trimmes estava ali para recebê-la.
— Sra. Sawbridge! — A mulher ruiva pulou da cadeira quando viu a
esposa do seu patrão entrar timidamente pela porta. — É uma honra recebê-la
aqui. Em que posso ajudá-la?
— Vim ver o Sr. Sawbridge.
Wilhelmina disse, usando o tom de voz mais sutil e delicado que
conhecia. Era o tom de voz escolhido pela Sra. Friedman para demonstrar
fragilidade e delicadeza e ela sempre o preferia quando falava com
desconhecidos em geral. Não que a Srta. Trimmes fosse uma desconhecida,
mas ela era uma amiga, afinal.
— Ah, lamento. Ele saiu para almoçar com o Duque de Shaftesbury e
ainda não retornou. A senhora quer esperá-lo? Eu mando um mensageiro…
— Não, está tudo bem. — Wilhelmina olhou para o relógio de pêndulo
que ficava pendurado na parede. — São cinco horas, vou perder o chá. Creio
que irei para casa.
— Claro que não! — A Srta. Trimmes agitou-se e passou pela jovem,
abrindo uma porta. — Fique e tome o chá enquanto espera! Posso preparar,
diga qual a sua preferência.
— Earl Grey. A senhorita… é comum fazerem chá aqui no escritório?
— Chá, não muito. O Sr. Sawbridge não gosta muito, prefere café. Mas
venha comigo, senhora, há um salão aqui do lado. Siga-me.
Subitamente animada demais, a Srta. Trimmes indicou um caminho. O
corredor era largo e iluminado por duas janelas nas pontas. Também havia
lamparinas penduradas meticulosamente pelas paredes e um papel de parede
creme que refletia a luz. Os quadros e outros objetos de decoração
denunciavam o toque pessoal de Grant.
A secretária abriu uma porta e um belo salão, com mesa redonda, sofás,
cadeiras e uma lareira pareciam sem uso por algum tempo. Ela abriu cortinas,
cutucou as brasas e jogou algumas pequenas toras de madeira no fogo.
Depois, desapareceu por uma pequena porta em uma lateral.
— Sente-se, senhora. Vou preparar o chá, só preciso ferver a água.
— O que é esse lugar?
— O salão de reuniões. O Sr. Sawbridge deveria trazer convidados para
cá, para discutir negócios. Só que ele prefere ir para os clubes, entende?
Lugares mais masculinos.
Os móveis estavam limpos e o fogo começou a crepitar. Mesmo que a
sala fosse pouco usada, ela parecia bem conservada. Alguém a limpava e
cuidava de acender a lareira todo dia para manter o ambiente apto a receber
pessoas a qualquer momento. Wilhelmina sentou-se em uma poltrona
próxima das janelas no instante em que a Srta. Trimmes retornou com uma
bandeja, contendo um bule de chá, uma xícara e biscoitos.
— Mandarei avisar que a senhora está aqui.
— Não me fará companhia?
— Eu… — A secretária ajeitou as luvas para recolocá-las no lugar. — Se
a senhora desejar, posso acompanhá-la, sim.
— Por favor. Tomar chá sem uma companhia é muito solitário. Vamos
conversar, estou tentada a ouvir sobre a rotina do escritório.
A Srta. Trimmes buscou uma xícara para si e se sentou em outra poltrona,
de frente para a patroa. Aquela era outra boa chance para Wilhelmina
conversar com empregados e ouvir coisas interessantes sobre Grant, mas ela
se viu mais curiosa sobre a secretária. Entendia que, por decidir parir e criar
seu filho bastardo, ela fora execrada pela sociedade. Era isso que acontecia
com todas as mães que não eram casadas, mas, ainda assim, seu instinto dizia
que havia algo mais por trás da história dela.
— A senhorita trabalha para o Sr. Sawbridge há muito tempo? —
Perguntou, no mesmo tom artificialmente tímido e recatado de antes.
— Há seis anos, mais ou menos. Ele disse que sou boa com organização e
por isso deveria cuidar de sua agenda.
— Os empregados do meu marido parecem gostar bastante de trabalhar
com ele. É o seu caso?
— Ah, senhora. Eu jamais diria uma palavra desabonadora sobre o Sr.
Sawbridge. Ele tem aquele ar arrogante e parece guardar muitos segredos
perigosos, mas nos trata com respeito e paga muito bem.
— Tenho ouvido bastante isso.
— Oh, desculpe-me! — A Srta. Trimmes enrubesceu, visivelmente
envergonhada de algo. — A senhora deve estar horrorizada com meu
falatório. Na nobreza as pessoas não são tão expansivas, acredito eu.
— Falamos mais sobre o clima e bordados. — Wilhelmina riu e
bebericou o chá. A secretária era simpática, mas a sensação de incômodo
continuava lá. Aborreceu-se porque a Srta. Trimmes dizia seu marido
guardava segredos. Por motivos que ela mesma desconhecia, teve a sensação
de que Grant se mostrava misterioso apenas para ela, então frustrou-se ao
perceber que ele era assim com todo mundo. — Mas eu gosto de conversar.
Fico um pouco desconfortável com o silêncio compartilhado.
Claro que a Srta. Trimmes entendeu as palavras de Wilhelmina como um
incentivo para prosseguir. A jovem descobriu que a secretária tinha vinte e
seis anos, vinha de uma família muito pobre, foi rejeitada quando engravidou
e só conseguia sustentar a si e ao filho por causa do emprego. Apesar da
simpatia que a secretária despertava, Wilhelmina não conseguiu evitar que o
incômodo crescesse.
Céus, ela estava com ciúmes de Grant.
Aquela mulher linda, com uma cintura finíssima e pele de pêssego,
cabelos vermelhos como o pecado e um sorriso encantador trabalhava há
anos com ele. Conhecia Grant Sawbridge muito melhor do que ela mesma,
sua esposa. Wilhelmina sentiu como se ácido a corroesse por dentro enquanto
sorria, dignamente, ante o borbulhar de suas entranhas.
Alguns passos no corredor atraíram a atenção das mulheres. Uma voz
grave, viril e que arrepiava todos os pelos do corpo de Wilhelmina ecoou
pelo corredor e a porta do salão foi subitamente aberta.
— Srta. Trimmes, os relatórios que eu pedi… — Grant Sawbridge, em
sua glória masculina, entrou e paralisou no instante em que as viu. Sua
expressão era severa e suavizou imediatamente assim que seus olhos
vislumbraram a esposa. Ela depositou a xícara sobre uma mesinha e sorriu.
— Wilhelmina.
— Sr. Sawbridge, sobre os relatórios, eu me atrasei porque a Sra.
Sawbridge chegou e era hora do chá das cinco, portanto…
A secretária pulou mais uma vez de onde estava sentada. Wilhelmina
imaginou que ela vivia sobressaltada com os desmandos do marido, mas ele
não prestou nenhuma atenção nela. O olhar continuava fixado na figura da
esposa.
— Srta. Trimmes. — Grant virou-se repentinamente e a mulher se calou.
— Se minha esposa vem até meu escritório, você tem duas coisas a fazer.
Primeiro, oferecer a ela tudo que ela pedir. Segundo, mandar me chamar. Por
que não fui informado que a Sra. Sawbridge estava aqui?
— Eu ia informar, senhor, mas é que…
— Eu pedi que ela me fizesse companhia para o chá. — Wilhelmina
levantou-se e deu alguns passos na direção do marido. Ele enrijeceu com a
proximidade e ela se sentiu um pouco poderosa por despertar qualquer reação
em um homem como Grant.
— Compreendo. Srta. Trimmes, deixe-me a sós com minha esposa. Vá
providenciar aqueles relatórios.
Repetindo “sim, senhor” sem parar, a secretária deixou o salão e a porta
fechou atrás do corpanzil masculino.

W ILHELMINA ESTAVA ALI , em seu escritório, e Sawbridge não sabia como se


sentir em relação àquilo. Claro que ele estava ficando completamente louco,
pois seu coração disparou quando a viu tomando chá com a Srta. Trimmes.
Justo ele, que nem tinha coração. E não foi apenas isso, o sangue começou a
correr mais rápido em suas veias. Depois de horas discutindo negócios com
seus amigos e parceiros, depois de um dia inteiro pensando em como ficar
mais rico e investir seu dinheiro em coisas diferentes, a visão dela ali,
brilhante como o sol da primavera, o fez sentir-se… vivo.
Vivo. Ele já estava vivo, afinal respirava e seus órgãos funcionavam
normalmente. Mas seu peito se encheu de um sentimento estranho ao qual
não estava acostumado. Era cedo demais para… não importava o que aquilo
significava. Era cedo demais para qualquer coisa.
— Desculpe incomodar seu trabalho. — Wilhelmina entrelaçou os dedos
e demonstrou timidez. Ela havia tirado as luvas para tomar o chá e suas mãos
delicadas expostas fizeram com que ele desejasse segurá-las. — Eu fiquei
curiosa e entediada. Estou acostumada a uma casa cheia de pessoas, criados
e, agora, crianças.
Sawbridge mordeu o lábio e se aproximou dela, que se surpreendeu com
o arrebatamento súbito. Alguns homens eram lentos, agiam como um gato
circundando a presa. Ele era mais incisivo, realizava um ataque frontal
imediato e nocauteava o oponente. A comparação quase o fez rir, mas estava
concentrado demais em não deixar que Wilhelmina fugisse.
— Garanto que estamos providenciando as crianças. — Ele colocou uma
das mãos na cintura dela, reduzindo a distância entre eles. — Mas elas
demoram um pouco a vir e a crescer…
— Logo eu me habituarei à nova rotina. Hoje respondi algumas
felicitações por nosso casamento. A partir de amanhã, receberemos alguns
convidados para jantar.
— Jantar. — Sawbridge puxou-a para mais perto. Wilhelmina olhava
para baixo e ele precisou levar a mão até seu queixo, erguendo-o. — E
teremos muitos desses jantares?
— Tomei o cuidado de marcá-los em dias alternados. E também aceitei
três convites para eventos na residência de alguns amigos seus.
— Meus amigos não são pessoas divertidas.
— Mas eles nos convidaram, é educado aceitar.
— Certo. E eu terei algo em troca de me tornar um homem sociável
porque minha linda, jovem e disposta esposa assim deseja?
— O que você quer em troca?
Ela o fitou com olhos castanhos grandes. Os cílios longos emolduravam
aquele olhar capaz de derreter o ferro dos trens que ele fabricava. Será que
ela sabia que conseguiria dele qualquer coisa que pedisse? Sawbridge não
podia determinar quando foi que aquilo aconteceu, mas, naquele momento,
teve consciência de que seria incapaz de negar qualquer coisa para sua
esposa. Ela o tinha dominado e ele estava assustado.
Amor não era fraqueza, porém Sawbridge não tinha certeza se o amor
tornava os homens uns imbecis. Era algo óbvio para quem convivia tanto
tempo com Aiden e Edward. Mas, se ele se apaixonasse por Wilhelmina, se
essa tragédia acontecesse, ele se tornaria um homem exposto. Vulnerável.
Todos saberiam que ela era capaz de manipulá-lo e ele perderia todo o
respeito que conquistou no meio dos negócios. Sem contar que seus inimigos
saberiam que ele podia ser derrotado. Maldição.
Só não pareceu importar. Enquanto ela o encarava com os lábios
entreabertos, Sawbridge desceu a boca sobre a dela e a beijou. Ternura e
suavidade emanavam de sua esposa e ela transferia tudo para ele quando se
conectavam. Apoiou-a com as duas mãos espalmadas nas costas, depois
segurou-a pela cabeça e aprofundou o beijo, penetrando-a com a língua. Ela
correspondeu, ainda tímida para demonstrar todo o desejo que ele sabia estar
contido nela.
— Desista do quarto do outro lado do corredor. — Sawbridge murmurou
entre os dentes, enquanto os lábios traçavam a linha do maxilar dela. —
Transforme-o no que quiser, mas mude-se para a minha suíte.
Ela riu. Aquela risada cínica que ele conhecia bem em todas as pessoas -
de quem acabara de fechar um bom negócio ou vencer uma partida.
— O quarto dará um bom escritório para mim. E eu preciso de espaço
para minhas coleções.
Sawbridge interrompeu as carícias e olhou para ela. Wilhelmina estava
rindo dele.
— Você definitivamente vai me dar muito trabalho, não vai?
— Hoje não temos nenhum jantar marcado. — Ela se afastou e ajeitou o
vestido, passando as mãos pela seda farfalhante. Ela ficava linda de azul e
provavelmente ficaria linda com qualquer cor que vestisse. — Que tal se me
mostrar o que vocês fazem nesse lugar?
Concordando, ele a conduziu até o escritório propriamente dito. Poucas
pessoas trabalhavam ali com ele, apenas a Srta. Trimmes e alguns
funcionários. A força de Sawbridge estava em suas indústrias, era lá que o
dinheiro se fazia e se multiplicava.
Wilhelmina ficou de pé observando o espaço por algum tempo. Ele
passava a maior parte de seus dias trancado naquele escritório, portanto nada
ali era novidade para si, nada lhe causava impacto. Mas era a primeira vez
que a esposa estava em seu ambiente de trabalho, portanto a curiosidade dela
falou mais alto. Sawbridge sentou-se em sua cadeira e começou a ajeitar seus
papéis, organizando-os em pilhas e em ordem de importância do que
precisava ser analisado.
Com a cabeça baixa, concentrado em um documento, ele não percebeu
que Wilhelmina circulou pelo espaço e parou atrás dele, apoiando as duas
mãos no encosto da cadeira. Dobrou o corpo e espiou por sobre o ombro dele
o que estava lendo. Sawbridge sentiu um arrepio lhe percorrer o corpo pelo
contato da respiração morna da esposa em seu pescoço. Tentou manter o foco
nos números, mas a mão dela se deslocou para suas costas Em seguida, ela
apoiou o queixo no seu ombro e perguntou o que ele estava lendo.
Naquele momento ele teve certeza de que daria muito dinheiro para poder
beijá-la. Que empenharia todo o seu patrimônio para tê-la em sua cama. Que
era capaz de ir à ruína para manter Wilhelmina ao seu lado. A intensidade do
sentimento o assustou. Sawbridge sabia que era um momento pouco
comedido, mas a razão sempre preponderava sobre suas emoções. Então, por
que diabos se sentia totalmente exposto, como se sua pele tivesse sido
arrancada de seu corpo, deixando-o em carne viva?
— Não é nada importante. — Foi a resposta. — Você quer voltar para
casa?
— Eu adoraria. — Ela falou e os lábios tocaram-no na base do pescoço.
— Céus. — Sawbridge virou-se repentinamente e puxou Wilhelmina para
seu colo. Ela caiu sentada sobre ele e deu um gritinho de susto, mas sua
expressão era de divertimento. — O que houve com a mulher recatada com a
qual me casei? O que você fez com ela?
— Ela também passou uma semana com você em Anglesey.
— Lembre-me de agradecer ao Carlisle por marcar aquela reunião
comigo. — Sawbridge beijou-a rapidamente nos lábios. — Vamos voltar para
casa, há coisas que precisam ser feitas na privacidade de um quarto.

D OIS DIAS DEPOIS , Sawbridge chegou em casa e encontrou sua esposa vestida
para sair. Ele tirou o relógio de bolso e conferiu a hora: eram sete e trinta e
dois. Dois minutos atrasados não contavam como um atraso, tinha certeza.
Capitulou mentalmente se era um daqueles dias em que eles enfrentariam um
jantar de cortesia, com visitas espalhafatosas em casa ou indo até a residência
de algum amigo que ele nunca pretendera visitar. Nada lhe veio à cabeça e
ele teve certeza que gritaria algumas imprecações à Srta. Trimmes por não o
ter avisado daquele evento. Fosse o que fosse.
— Vamos sair ou vamos receber pessoas?
Ela sorriu, reluzindo como uma pedra preciosa. Talvez ela fosse um
topázio, pelo brilho caleidoscópico dos seus cabelos à luz de velas. Também
poderia ser uma opala, pelo castanho de seus olhos, sempre atentos e
curiosos.
— Vamos sair, mas não para jantar. Faremos nossa refeição em casa,
estava esperando você.
— E depois iremos ao…
Teatro. Deveria ser teatro, pois havia uma nova peça de Shakespeare
sendo encenada no Royal Albert. Não era uma nova peça, pois Shakespeare
era encenado e reencenado pelo menos duas vezes por ano nos teatros
londrinos, mas fazia algum tempo que ninguém apresentava MacBeth.
— Riderhood.
O complemento da frase não era o que ele esperava nem em mil anos.
— Riderhood?
— Sim, o clube.
— O clube de cavalheiros, você quer dizer.
— Sim, aquele que você frequenta depois que sai do escritório à noite. —
Ela deu um sorrisinho tímido. — Faz algum tempo que você não vai ao
clube, não é verdade?
Era a mais pura e triste verdade. Desde que se casou, Sawbridge não
passara uma noite jogando e bebendo com os amigos, como fazia
rotineiramente durante o período em que foi solteiro. E, mais triste ainda, era
perceber que o motivo para aquele afastamento era a sua incapacidade de
passar uma noite sem se jogar nos braços da esposa. E ele não ficava com ela
porque tinha que ficar, mas porque queria ficar.
— Isso é irrelevante. O Riderhood não é lugar para damas.
— Caroline frequenta.
— Caroline nunca foi uma dama.
— Eu irei com você, meu marido. Duvido que alguém aja de forma
indecorosa comigo estando ao seu lado. Sua fama parece ser ainda pior que a
do meu irmão.
Desde que Edward enfiou uma espada no peito do homem que ousou
violentar sua esposa, Londres inteira morria de medo do conde. Ele ganhou
notoriedade como uma criatura sanguinária, capaz de eliminar qualquer um
que se colocasse em seu caminho - o que era uma grande bobagem. Edward,
o Conde de Cornwall, era um homem muito tranquilo e sensato. Ele matou
um agressor, o raptor de sua esposa, e agiu movido pela paixão intensa que
sentia por sua condessa.
Sawbridge considerou se ele mataria por Wilhelmina e a resposta o
deixou bastante assustado.
— A resposta continua sendo não.
Arthur apareceu na sala principal, pigarreando, e informou que o jantar
seria servido. Wilhelmina mantinha uma expressão condescendente demais
para quem recebera um não.
— Você faz parecer que eu fiz uma pergunta. — A esposa continuou a
conversa depois que ficaram sozinhos na sala de jantar. — Esse é o evento de
hoje.
— Não está em discussão. — Sawbridge bebeu um gole do vinho tinto
que foi servido. — Aquele lugar é um antro de jogatina e…
— E?
— Não me obrigue a falar.
— Prostituição? Pois saiba que eu sei o que acontece lá, não precisa
fingir. Sei que…
Sawbridge apoiou os talheres sobre o prato e fitou a mulher que estava do
outro lado da mesa. Que tolice era aquela de jantarem um em cada ponta? Por
que diabos a etiqueta dos aristocratas insistia em separar os casais o máximo
possível?
— Nunca escondi meu passado, porém disse, desde o início, que
pretendia lhe ser fiel. E eu sou.
— Não duvido disso. Vamos, termine seu jantar, eu estou ansiosa para
apostar na roleta.
— Você não vai apostar em nada.
— Claro que vou. Já inclusive escolhi as mesas em que pretendo jogar:
dados, roleta, vinte e um…
— Céus, Wilhelmina, eu não vou levá-la ao Riderhood!
— Vai, porque você prometeu que iríamos a todos os eventos que eu
agendasse.
— E você agendou uma ida ao clube de cavalheiros? Por que raios?
— Para entrar no seu mundo, Grant.
Ela disse, suave como uma dama, mas agoniada como uma mulher que
tentava se comunicar com uma parede. Como ele era insensível e incapaz de
entender o que se passava naquela cabecinha loura. Mas aquele era Grant
Sawbridge. Era incomum que permitisse que pessoas penetrassem em seu
mundo. Afastou até os pais, mandou-os para longe apenas para poder livrar-
se de interferências em sua rotina solitária. Decidiu se casar, mas esperava
um daqueles casamentos em que a esposa nem mesmo quisesse ficar na
mesma casa que ele. Bem, ele conseguira um, mas uma virada nos fatos fez
com que simplesmente precisasse ficar perto de Wilhelmina.
Tinha que dar um jeito de se abrir um pouco para ela. De permitir que ela
o compreendesse, se isso não fosse afastá-la de vez.
— Tudo bem. Eu a levo, nós vamos. Mas há regras, e eu espero que você
cumpra todas.
— Se eu não cumprir, muito provavelmente você, Edward, Isaac e
Nathaniel darão um jeito de me punir.
Sim, isso era uma certeza. Se bem que Sawbridge podia pensar em várias
formas mais interessantes de punir a esposa por mau comportamento, porém
duvidava que aquelas ideias pudessem ser consideradas verdadeiros castigos.
Eles terminaram o jantar em silêncio e saíram na carruagem do industriário.
O clube de Riderhood ficava em uma área prestigiosa da cidade, sem
riscos para os membros. Como era um ambiente frequentado pela alta
nobreza e por burgueses endinheirados, seu proprietário não queria
problemas como criminosos rondando as proximidades. Também era
localizado perto da residência de Sawbridge, o que permitiu que eles
chegassem rapidamente.
Ele desceu da carruagem e ofereceu a mão para ajudar sua esposa, que
estava radiante e empolgada com a ida ao clube. Isso o fez sentir ciúmes
novamente. Não do clube, mas de qualquer homem ali que pudesse enxergar
em Wilhelmina a beleza que ele via nela. Para garantir que ninguém lhe
dirigiria um olhar inquisitivo, ele passou o braço ao redor da esposa e seguiu
para a porta principal.
O porteiro permitiu que entrassem e Wilhelmina suspirou, arquejando,
quando viu a magnitude da construção. Teto alto, muitos lustres para garantir
iluminação perfeita no salão principal, luxo. Havia partes escuras que ele
pretendia manter afastadas dela, mas o clube de Riderhood era opulento e
extravagante.
— Vamos por ali — Sawbridge indicou o caminho de um corredor
amplo, à direita.
— Por quê? O que tem nas outras portas?
— Acesso a lugares que uma dama definitivamente não deve frequentar.
Eu a trouxe ao clube, mas vamos ficar no cassino, somente.
Ele jamais deixaria sua esposa perambular pelos lugares mais obscuros
daquele clube e ficou satisfeito porque ela não insistiu em desobedecê-lo.
Não que fizesse muita questão de uma mulher subserviente, ele preferia as
inteligentes e desafiadoras. Só que estavam no ambiente dele, no seu lugar
preferido de Londres. Ali, Sawbridge conhecia bem e podia decidir melhor
que ela.
Chegando ao cassino, ela parou na mesa de vinte e um. Riderhood não era
tolo, suas mesas tinham ímã para novatos. Pelo menos ela não se interessou
pela roleta, que representava um ralo de moedas até para jogadores mais
experientes.
— Posso observar? — Wilhelmina sussurrou no ouvido do marido. A
área do cassino também era bem iluminada, mas havia algumas partes nas
sombras. — É autorizado?
— Sim, você pode. Sente-se ao redor ou fique aqui, vou buscar uma
bebida.
Ela assentiu e ele, por algum motivo, acreditou. Afastou-se e foi até o bar,
onde encontrou quem menos pretendia naquela noite: os amigos. Mesmo que
todos estivessem já mais velhos, casados e cheios de filhos, pareciam
moleques de Eton implicando uns com os outros. Quanto maior o título, mais
insuportáveis eles eram - o que colocava Aiden Trowsdale no topo da chatice.
— Sawbridge! — O duque ergueu um copo de conhaque. — Finalmente
recebeu uma carta de liberação de sua esposa?
— Boa noite, cavalheiros. Sirva-me um, Riderhood.
— Sente-se aí, vamos conversar. Pensamos que ia levar um ano até
decidir voltar ao clube. Wilhelmina deixou que saísse de casa à noite? —
Edward perguntou.
— Não cabe a ela deixar ou não. Porém, em sua resposta…
Sawbridge apontou para a mesa de cartas e os homens seguiram a
indicação de sua mão. Todos viram a jovem absorta em suas observações.
— Céus, você trouxe a Minnie para o clube? Ficou doido?
— Não creio. — Sawbridge virou-se para o grupo de amigos e pegou o
drinque. — Sua mulher é quase membro fundador do clube e está criticando
que eu tenha trazido a minha?
— Agora ele tem um ponto, caro Isaac. — Aiden provocou.
— Ela é muito ingênua para esse ambiente. — Edward reclamou.
— E vocês mimaram demais a menina e não perceberam que ela cresceu
e se tornou uma mulher. Minha mulher.
— Ouch. — Aiden provocou mais. — Se estivéssemos em um ringue,
isso seria um cruzado de direita.
Enquanto os homens conversavam - ou se provocavam, Wilhelmina se
aproximou. Sorriu animada para os irmãos, cumprimentou a todos e colocou
uma das mãos no braço do marido.
— Quero jogar, preciso de fichas.
— Você não deveria. — Ele baixou a cabeça para falar perto da orelha
dela. — Nunca jogou vinte e um na vida. Aqueles ali são apostadores
profissionais, eles estão acostumados a perder muito dinheiro toda noite.
— Creio que o senhor, meu marido, esteja enganado quanto a isso. — Ela
deu um sorriso tímido e olhou para Isaac. O irmão moveu os ombros para
cima e para baixo, indicando que não tinha responsabilidade sobre aquilo. —
Eu já joguei praticamente tudo que envolve cartas.
— Com Isaac, suponho.
— Nós tínhamos algum tempo disponível, quando eu morava em
Greenwood Park e administrava as terras. — Justificou-se o irmão.
— E eu sempre ganhava. Vamos, Grant, deixe-me jogar um pouco.
Ele virou um gole do conhaque, sob os olhares atentos dos cunhados.
Sawbridge respirou fundo por estar sem saída. Afinal, a decisão de levá-la foi
dele, mesmo que a esposa soubesse ser bem persuasiva. Deixou-a ali, foi até
o crupiê, conversou alguma coisa e entregou algumas moedas. Depois,
chamou Wilhelmina e indicou uma cadeira para ela se sentar.
Feliz, ela o beijou na face e o crupiê deu as cartas. A expressão festiva e
juvenil desapareceu do rosto angelical da esposa - de um segundo para o
outro ela adotou uma postura ereta e focada na partida. Sawbridge não
gostava muito de cartas, e vinte e um era um jogo muito aleatório,
incompatível com seu pragmatismo. Era o que pensava, até ver Wilhelmina
jogar.
Sem sutileza, ela superou Lorde Harrington e o Sr. Campbell. A
capacidade dela em identificar as cartas e os blefes era intrigante. Logo,
Edward e Isaac se aproximaram quando perceberam que a irmã já havia
vencido três rodadas.
— Desisto. — O Visconde de Whitby baixou suas cartas e se levantou. —
Não dá para jogar contra um McFadden, nem mesmo se estiver usando saias.
— Isso quer dizer que eu ganhei? — Ela sorriu, fingindo ingenuidade.
— Você está ganhando há algumas rodadas já, Minnie. Não percebeu?
Ela sorriu novamente para Isaac e juntou as fichas que estavam à sua
frente. Sawbridge contou rapidamente mais de duzentas libras - ela só não
arrancou as calças dos oponentes porque seria indecente demais, e sua esposa
não fazia nada indecente. Mas a forma como ela colocou as fichas na bolsa de
tecido que segurava e sorriu para o crupiê, agradecendo, indicou exatamente
o que ele já desconfiava. Wilhelmina não era tão tola ou ingênua quanto fazia
parecer. Ela usava da sua aparência de dama perfeita para seduzir e
conquistar, e estava fazendo exatamente aquilo com ele.
Afinal, parecia impossível não se apaixonar por uma mulher que tomava
decisões por ela mesma e se envolvia com as decisões do marido, jogava
vinte e um melhor que qualquer homem no Riderhood e olhava para ele com
o sorriso mais gentil de todos.
CAPÍTULO DÉCIMO QUATRO

W ILHELMINA ADOROU JOGAR . A NOITE NO CLUBE DE CAVALHEIROS TERMINOU


bem tarde e ela chegou em casa levemente excitada com a experiência - e
com as bolsas cheias. Grant disse que as moedas eram dela e que deveria
guardar para comprar o que quisesse. Foi quando ela notou que havia muito
tempo que sequer pensava em encomendar um vestido. Tinha muitos, e
vestidos a lembravam de Thomas. Aquela não era noite para relembrar
defuntos.
Principalmente porque, no dia seguinte, ela tinha um passeio no Hyde
Park com o marido. Claro que Grant não aceitou sair do escritório antes do
final do dia para caminhar pelo parque, isso para ele era uma grande perda de
tempo. Mas ela conseguiu convencê-lo que tudo fazia parte do plano e que
ele precisava cumprir aquele acordo também.
Quando desceu as escadas para o passeio, encontrou-o esperando no
salão. Estava penteada adequadamente pela primeira vez desde que se casou,
graças ao retorno de Harriet ao seu lado. A camareira era um anjo com mãos
perfeitas para prender e ajeitar seus cabelos muito densos. Usava um vestido
verde com mangas curtas e um decote que atraiu imediatamente os olhares do
marido. Ele pigarreou.
— Vamos caminhando? — Perguntou a ele.
— Estamos deveras longe do parque. É melhor irmos de carruagem.
— Mas o dia está lindo! — Ela sorriu. — Podemos caminhar até lá e
retornarmos em um veículo de aluguel.
Grant respirou fundo, não satisfeito com a proposta. Depois da noite
anterior, ela apostava em um marido menos ranzinza, mas aquela aposta não
acertou.
— Certo, minha esposa. Vamos caminhar até o parque.
Ele ofereceu o braço para ela segurar e colocou a mão sobre os dedos que
o envolveram por sobre o casaco. O trajeto até o parque era tranquilo durante
o dia. Eles estavam em uma parte favorecida da cidade de Londres, afastada
da bandidagem e da miséria. Wilhelmina nunca conheceu a pobreza, ela não
fazia ideia do que acontecia nas regiões miseráveis da cidade. Não sabia dizer
se isso era bom ou ruim, se a protegia ou a vulnerabilizava para o mundo.
— Você está planejando investir nos Estados Unidos? — Ela perguntou,
chamando-o de volta de seus pensamentos mais distantes.
— Talvez. Seu irmão e o duque estão animados, tanto que enviarão
Nathaniel para o novo continente.
— Oh, pobre Nate! — Ela deu uma risadinha. — Ele nem mesmo gosta
de viajar. E, isso não é arriscado demais?
— Não, seu irmão é bem capaz de cuidar de si mesmo.
— Estou falando do investimento. Não senti muita segurança no Sr.
Carlisle.
Wilhelmina falava distraidamente, olhando para as construções e para o
pavimento. Sentiu os olhos do marido sobre ela, mas manteve o ar
despreocupado e desinteressado. Mesmo que ele dissesse o contrário, ela
aprendeu que homens nunca gostavam de mulheres muito atentas aos seus
negócios.
— Concordo com você, ele é uma criatura que não transmite firmeza.
Mas, ainda assim, está muito rico.
O casal chegou ao parque ainda sob a luz do dia. Talvez devessem fazer
aquele passeio em outro horário, mas os compromissos do escritório não
permitiam muita flexibilidade de horário para Grant. A claridade do fim do
dia a atingiu diretamente, fazendo com que ela abaixasse um pouco a aba do
chapéu.
— Você tem alguma sugestão?
Grant perguntou, fazendo com que ela se animasse. Talvez estivesse
errada sobre ele, afinal.
— Não, eu não tenho muito conhecimento sobre a economia dos Estados
Unidos. Se pudermos conversar mais sobre isso, ou se eu puder ler algumas
matérias a respeito…
— Podemos conversar sobre economia sempre que quiser. Não morrerá
de tédio?
— Eu adoro conversar.
Disso ninguém duvidava, mas ela temia ser inconveniente demais. Como
os empregados da casa falavam o tempo todo, Wilhemina acreditou que o
marido não estivesse tão acostumado ao silêncio. Isso era bom, pois ela não
era silenciosa se não fosse obrigada a ser. Preferia se comunicar, discutir,
mostrar opiniões. Foi o que a atraiu em Caroline, de início, a possibilidade de
encontrar uma mulher sem freios para suas opiniões.
O parque estava ainda cheio de pessoas. Homens saindo de seus
trabalhos, mulheres caminhando com crianças, jovens moças com suas
acompanhantes. Quase nenhum sangue azul, pois a nobreza estava fora da
cidade. Quem perambulava por Londres durante o recesso do Parlamento
eram os plebeus. Ela não se incomodava muito com a diferença de classes
sociais porque sua família a criou dessa forma.
Cruzaram com um grupo de crianças que brincava, observado pelas
babás. Um garotinho chorava porque seu brinquedo estava pendurado em
uma árvore. Era um artefato de madeira com cordas, que fora provavelmente
atirado para cima e não retornou. As duas babás pareciam atrapalhadas ao
tentar fazer o menino silenciar e uma das crianças estava prestes a cair, meio
dependurada em um galho.
— Céus, ele vai se machucar!
Wilhelmina disse e disparou na direção da criança. Não pensou que
provavelmente não seria capaz de ajudar, apenas lançou-se até o pequeno sem
qualquer planejamento. Grant deu alguns passos até conseguir passar à sua
frente e agarrou o menino pelas calças antes que ele despencasse para o chão.
— Rapazinho, esse chão é duro demais para enfrentar.
O industriário colocou o menino no chão, que ajeitou os suspensórios
antes de encará-lo bem.
— Eu tenho nove anos, sou capaz de pegar o brinquedo do meu irmão.
— Imagino que seja, mas aprendi bem cedo que não devemos desafiar a
natureza. A árvore é mais alta que você, então ela ganha. Deixe que eu
resolvo isso.
— Mas a árvore também é mais alta que o senhor.
— Sim, e eu já aprendi a lidar com isso.
Sentando-se na grama, Grant retirou os sapatos e as meias. Depois,
dobrou a barra das calças, exibindo parte da panturrilha.
— Grant. — Ela se abaixou ao lado dele, esparramando as saias pela
grama. — O que está fazendo? Você está tirando a roupa!
— Não, querida. — Ele deu uma risada e ela imaginou se fosse comum o
marido rir tanto. — Eu apenas vou pegar o brinquedo.
As babás o observavam com olhos arregalados. Uma delas fechou os
olhos, assustada pela visão de parte das pernas do industriário, que fez um
sinal para o garoto e foi até a árvore, agarrando-se em um galho.
— Vou soltá-lo. Fique aqui embaixo e pegue-o quando cair.
O menino assentiu e Grant subiu na árvore, que farfalhou e rangeu ante o
peso dele. Wilhelmina colocou as duas mãos à frente da boca e observou
cada movimento com angústia. Esticando-se por sobre o galho, ele soltou o
brinquedo, que caiu exatamente nas mãos do garoto mais velho. Sucesso, até
o marido cair ao chão como se fosse uma fruta madura.
A árvore rebelou-se contra o invasor e um de seus galhos rompeu. Grant
perdeu o equilíbrio e caiu, batendo com a lateral do corpo no pavimento. As
babás soltaram uma interjeição assustada e Wilhelmina correu até ele,
deixando sua sombrinha de renda jogada.
— Você está bem? — Ela abaixou novamente, segurando-o pelos braços.
— Sim, estou ótimo. Só sujou minhas roupas.
O garotinho que chorava já estava com o brinquedo na mão e o mais
velho agradeceu formalmente pela ajuda. As pessoas se afastaram e eles
permaneceram ali, no chão, por alguns minutos, ainda.

O MARIDO ERA impulsivo e inconsequente. Era tudo que Wilhelmina podia


apreender daquele episódio no Hyde Park. O que era para ser um passeio
tranquilo tornou-se uma escalada em uma árvore para o resgate de um
brinquedo e terminou com Grant no chão, depois de cair de uma altura
preocupante.
No fundo, era algo ridiculamente adorável.
— Devemos ver um médico. — Ela disse, ao vê-lo ter dificuldades para
pisar.
— Não seja tola, é apenas um arranhão. Amanhã estarei com a força de
um cavalo.
Disso ela não duvidava. Grant também parecia intocável e inabalável,
como se fosse feito de aço ou alguma estrutura impenetrável. Mas o medo
que sentiu ao vê-lo caído a assustou.
— Tudo bem, mas vamos voltar para casa. Podemos caminhar no parque
novamente outro dia. Afinal, amanhã temos o evento na casa do Conde de
Worcestershire.
Grant ofereceu novamente o braço a ela e seguiu para onde estavam os
cabriolés de aluguel. Pediu a um cocheiro que os levasse para casa e entregou
a ele uma moeda que valia o dobro da corrida.
— Eu não sabia que o conde estava em Londres.
— Ele não está.
— Wilhelmina. — O tom de voz do marido era de repreensão. Ela estava
acostumada a ele, e a ignorá-lo. — O tal evento será onde?
— Em Thanet, na propriedade da família.
— Não vamos.
— Mas eu confirmei nossa presença. — Ela segurou a mão dele com as
suas. — Entendi que tínhamos um acordo que, durante essa semana, você iria
aos eventos que eu escolhi e eu me mudaria definitivamente do quarto do
outro lado do corredor.
— Acho que consigo que você mude de lá sem precisar ir a esse… o que
será? Um baile? Uma soirée?
O cabriolé parou em frente à casa deles. Grant pisou com dificuldades
mais uma vez e ela decidiu postergar a resposta até que estivessem dentro de
casa. Levou o marido até o escritório, sentou-o no sofá e serviu um uísque
para ele.
— Será uma soirée. Podemos dormir em Greenwood Park, Edward
certamente nos receberá e ele também foi convidado.
Grant virou o uísque em um gole. Ela lhe serviu mais. Não que
pretendesse embriagar o marido, mas gostava quando ele parecia mais
amável e suspeitava que o álcool pudesse garantir isso.
— Não tenho tempo para perder um dia inteiro de trabalho. Não, serão
dois. Dois dias, Wilhelmina. Quem vai cuidar das fábricas? Seu irmão e o
duque estão se dando férias no litoral, alguém precisa ficar. — Ele coçou o
queixo, pensativo. — Já sei, você vai. Pegue o trem, use o vagão privativo,
aproveite a companhia da sua família.
Apesar de ele não ter dito nada demais, nada que devesse ofendê-la,
Wilhelmina se magoou quando ele se referiu aos McFaddens como a família
dela. Sim, eles eram, mas o marido também deveria ser. Naquele momento,
ela considerou que não pertencia mais a lugar algum. Não era mais uma
McFadden, não se sentia como uma Sawbridge. Ela queria se sentir.
— Não vou sem você. — Ela suspirou. — Pedirei a um mensageiro que
informe ao conde que sua queda teve consequências mais profundas e não
poderemos comparecer.
— Definitivamente, não. — O marido puxou-a para mais perto.
Wilhelmina quase caiu sentada no colo dele. — Conte a verdade, diga que
não posso ir por trabalho.
— Não se conta a verdade na aristocracia, Grant. Inventarei uma
desculpa.
Ela tentou se afastar, mas ele a puxou novamente e, daquela vez,
Wilhelmina caiu sobre ele. Foi amparada pela construção de músculos e
ossos que compunham a maravilhosa estrutura de Grant Sawbridge e
suspirou novamente. Se havia uma forma de a distrair, aquela era bastante
eficiente. Mesmo chateada porque ele estava descumprindo o combinado, a
proximidade a confundia.
— Deixe que eu cuido disso. — Ele a beijou, mas Wilhelmina não estava
interessada em ser seduzida. — Pedirei que a Srta. Trimmes informe a
Worcestershire. — Ele tentou beijá-la outra vez e ela se esquivou. Levantou-
se e ajeitou o vestido, indo observar o fogo. — O que houve, Wilhelmina?
— Tínhamos um acordo. Eu comecei a esvaziar o quarto para transformá-
lo em uma sala privativa feminina, e você não parece interessado em cumprir
sua parte.
— Como não? Creio que esse ontem tenhamos jantado com o Sr. e a Sra.
Payne, além de suas adoráveis filhas, e hoje tenhamos passeado pelo Hyde
Park onde, caso não tenha percebido, ganhei uma lesão nos quadris.
— A lesão deve ter afetado sua memória. Você deveria ir a todos os
eventos que confirmei. A sociedade é cruel, ela não perdoa esse tipo de
atitude. Quando se confirma uma presença, só se deve cancelar se alguém
morrer.
Grant deu uma risada. Ela quis bater nele e, se fosse dada à violência,
talvez devesse. Mas não saberia nem por onde começar, pois aquele homem
parecia impossível de ferir. Ele era tão sólido, tão firme e tão absurdamente
bonito com aquela expressão de quem estava se divertindo às custas dela.
Céus, quando foi que Grant Sawbridge se tornou lindo?
— Posso providenciar algum cadáver para convencer Worcestershire.
— Por Deus, não! — Ela resmungou. — Vou subir para me lavar e
depois vamos jantar. Terei também que explicar à Sra. Cook que ela não terá
a folga prometida para amanhã.
Fazendo questão de mostrar-se chateada, Wilhelmina virou-se para sair
do escritório quando ouviu um ruído. Algo se moveu por sobre a mesa e de
repente ouviu-se um blam! Algo também estava quebrado ao chão - um peso
de papel de cristal que tinha a forma de uma estatueta qualquer. Ao se
aproximar para ver o que era, encontrou um gato sobre a cadeira de couro -
que estava arranhada.
— Oh! — Ela pegou o bichano nas mãos. — Como você entrou aqui,
meu querido?
— O que houve? — Grant já estava ao lado dela. — De onde surgiu
essa… coisa?
— É um filhote. Ele deve ter entrado por uma janela aberta ou pela porta
dos fundos. Eles são muito sorrateiros.
Wilhelmina acomodou o animalzinho em seu colo e percebeu que ele
tremia. Devia estar assustado e até mesmo faminto.
— Vamos devolvê-lo para fora, então.
— Claro que não. Está frio para um filhote.
— Ele deve ter uma mãe.
— Se tivesse, não estaria aqui abandonado. Ele deve ser um órfão.
— Então, vamos levá-lo ao orfanato.
Ela virou-se para ele, querendo acreditar que o marido estava apenas
brincando. Claro que o orfanato só recebia crianças, e elas nem eram bem
tratadas. A família de Agatha era benfeitora de um orfanato em Londres e ela
já visitara o lugar algumas vezes. Depois que adotou Lavínia, a condessa
ficou mais sensível às causas dos órfãos e fez questão de que o “seu” orfanato
fosse um modelo de cuidado. Mas os outros, infelizmente, não seguiam o
bom exemplo e insistiam em tratar crianças abandonadas ou órfãs como se
fossem lixo.
— Vou ver se há leite para ele, na cozinha. — Wilhelmina ignorou a fala
de Grant. — Depois subirei para me lavar.
— Isso quer dizer que esse saco de pulgas não vai sair, hoje?
— Sim, meu marido. Isso quer dizer que o saco de pulgas vai ter uma
refeição e uma cama macia para dormir.

M ULHERES FORAM CRIADAS para enlouquecer os homens. Sawbridge


costumava acreditar que isso era mentira, que elas serviam mais para dar-lhes
prazer e que, se estivessem satisfeitas, não causariam maiores complicações.
Até se casar. Ele tinha um acordo que já estava descumprindo - estava
impossível não se envolver com sua esposa. Fizera outro por esse motivo e,
pelo visto, aquele seria obrigatório. Se ele não fosse ao maldito baile, soirée,
o que fosse, ela ficaria magoada por um bom tempo.
Naquela noite, por exemplo, ela preferiu dormir com o gato. Um bicho
feio e magricela que miava como um violino desafinado, mas que ficou no
colo de Wilhelmina desde que ela o encontrou e que o encarava como se
estivesse prestes a tomá-la dele. Ele tentou chegar até ela duas vezes, mas ela
o rejeitou. Não disse exatamente que o rejeitava, mas não demonstrou
nenhum entusiasmo em receber seus carinhos. E ainda nasceria o dia em que
Sawbridge se deitaria com uma mulher que não clamasse por ele.
— Arthur! — Gritou para o mordomo assim que desceu as escadas de
manhã. Estava despenteado e com o colarinho da camisa aberto. — Onde está
a Sra. Sawbridge?
— Ela está no solário com Bertrand, senhor.
— Bertrand?
— O gato, senhor.
O felino arranhador de cadeiras já tinha nome. Pelo visto, seria difícil
livrar-se do gato independente do que ele fizesse. A esposa precisava de um
bebê, ele tinha que adotar medidas mais enérgicas para engravidá-la.
— Certo. Ela já tomou o desjejum?
— Não, ela espera pelo senhor.
Sentiu alívio por ela não estar irritada a ponto de não o esperar para as
refeições. Encontrou-a brincando com o animalzinho e um novelo de lã,
radiante como o sol que brilhava do lado de fora.
— A que horas é a soirée de Worcestershire?
Wilhelmina virou para ele com a expressão confusa. Talvez a
objetividade dele realmente deixasse as pessoas um pouco confusas, pois
Sawbridge geralmente dizia as coisas pela metade, esperando que todos
estivessem dentro de sua cabeça e soubessem o mesmo que ele. Em uma
negociação, era comedido e observador. Em outros momentos da vida tendia
a atropelar-se.
— Às cinco.
— Certo. Prepare-se, então. Avisarei ao Conde de Cornwall que
pernoitaremos em Greenwood Park. Vou ao escritório e a carruagem a levará
para London Bridge à uma hora.
Ela se levantou, sobressaltada. O bichano pulou com suas pequenas
garras para o lado de Sawbridge e as cravou na calça de lã.
— Não desejo que meus eventos sociais atrapalhem seus negócios.
— Temos um acordo. Entendi exatamente qual a pena você imporá se eu
não o cumprir, a noite passada foi bastante eloquente.
— Há sempre uma cláusula penal para contratos descumpridos, meu
marido.
— Sim, e estou garantindo que isso não ocorra novamente. Esteja pronta
à uma.
Ele se virou para sair. Tinha que correr ao escritório e deixar tudo
organizado para que os diretores soubessem como agir durante o tempo em
que ficasse fora. Não era como se fosse passar um mês na França, mas
Sawbridge não costumava se ausentar sem motivos. Por isso, raramente ia a
festas e eventos sociais a não ser que vislumbrasse um bom negócio.
Era o que repetia para si mesmo - estava atendendo ao pedido de sua
mulher porque era a melhor jogada. Ele blefou, ela pagou para ver e ele tinha
uma mão horrorosa. As cartas não estavam a seu favor. Preferia enfrentar
uma soirée enfadonha no meio de aristocratas arrogantes do que ficar outra
noite sem o corpo dela ao seu lado. Sim, mulheres existiam para a ruína dos
homens.
Quando chegou à estação, seu vagão estava preparado, abastecido de
suprimentos e ela o esperava. Linda como uma flor do campo, vestindo
amarelo e olhando para o movimento de pessoas indo e vindo.
— Estamos atrasados. — Ela disse, sem olhar para ele.
— Subornei o maquinista. Ele nos levará diretamente para Thanet, sem
fazer nenhuma parada.
A informação conseguiu chamar a atenção dela. Wilhelmina ergueu o
rosto e o encarou.
— Mas esse não é um trem comercial?
— Sim, mas não há trens indo para Kent nesse horário.
— Então…
— Esse é exclusivo.
— Deve ter sido muito caro pagar por isso.
— Foi, mas eu tenho dinheiro o suficiente.
Sawbridge foi até a locomotiva, passando por dentro dos vagões, e
informou que podiam partir. Chegariam praticamente na hora da soirée e
talvez atrasassem, mas ele apostava que ela não se importaria. Queria
comparecer ao evento e socializar com as amigas, então ele garantiria que
isso acontecesse.
A viagem foi… silenciosa. Ele não era muito conversador, mas não
houve um minuto, desde que se casou, em que pôde aproveitar o silêncio. Sua
esposa falava sem parar sobre os mais variados assuntos e ele já se
acostumara à voz dela. Ao timbre feminino que ressoava em seu ouvido e
acabava produzindo efeito em suas calças.
Mas, naquela tarde, ela não conversou muito. Ficou distraída, olhando a
paisagem ou lendo Judas, o Obscuro - um dos livros que ela comprou em
Amlwch. Não era o livro do Sr. Rochester, o personagem fictício de quem
poderia sentir ciúmes fictícios e ter assunto para conversar. Aquela era uma
história mais sombria e Sawbridge teve certeza que precisava romper
novamente o gelo que se formou entre eles. Maldição.
Quando o trem parou na estação, havia uma carruagem fechada para
esperá-los. O brasão dos McFadden reluzia em dourado no verniz preto e
dava um ar de imponência aristocrática ao veículo. Sawbridge não se
importava com nada daquilo, mas os olhos de sua esposa brilharam ao
reconhecê-lo.
— Oh, é a carruagem de Edward.
— Eu pedi que ele providenciasse isso para nós. Por sorte, o telegrama
chegou a tempo.
Da estação até a propriedade litorânea do Conde de Worcestershire eles
levariam meia hora, considerando que as estradas estavam boas - a ausência
de chuvas garantia isso. Wilhelmina não parecia cansada da viagem, nem
demonstrou desconforto em sentar-se de frente para ele na carruagem.
Durante todas aquelas horas em que estiveram sozinhos, ele quis tocá-la e
beijá-la e mantê-la em seus braços, mas ela permaneceu esquiva.
— Pensei que a vinda a esse evento fosse garantir seu perdão. — Ele
disparou, quando já avistavam a magnífica construção que seria seu destino:
a mansão Blakewell.
— Você descumpriu uma promessa.
— Não descumpri. Estamos aqui, não estamos?
— Sim, estamos. Tem razão, não há motivos para eu me sentir magoada.
No final, você manteve sua palavra.
Ela segurou as mãos dele entre as suas e Sawbridge soltou o ar,
finalmente. Esteve prendendo a respiração, sem notar, enquanto esperava que
ela dissesse aquilo - que estava tudo bem. Porque, subitamente, ele precisou
que eles estivessem bem, que o relacionamento entre eles não tivesse
regredido para quando não havia nenhuma intimidade.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

A CHEGADA DO S R . E DA S RA . S AWBRIDGE EM B LAKEWELL TINHA QUE SER


triunfante. O marido parecia não entender qual era a importância daquele
evento, pois o conde não costumava convidar plebeus para suas festas. Eles,
como casal, nunca foram formalmente apresentados à sociedade porque ele,
Grant, não tinha título algum. Mesmo que ela fosse uma lady, aquilo não era
suficiente para que fossem realmente aceitos nos meios mais elevados.
Era curioso que, antes, ele demonstrasse interesse em ascender e,
posteriormente, deixasse claro que desprezava a maioria dos sangue-azul. Por
vezes, Grant era extremamente ambíguo.
Ele desceu da carruagem e ofereceu a ela o braço. Um criado,
formalmente vestido e muito elegante, recebeu-os com uma lista nas mãos.
Grant disse quem eram e o homem riscou alguma coisa no papel.
— Sejam bem-vindos, Sr. Sawbridge e senhora. Por favor, aguardem para
serem anunciados.
Ah, eles não seriam anunciados nunca, pois ele, o marido, não tinha
precedência sobre ninguém naquele lugar. Wilhelmina correu os olhos pelo
saguão, onde várias pessoas aguardavam para entrar no salão de eventos, e
não viu seus irmãos, nem o Duque de Shaftesbury. Um criado apareceu com
uma bandeja e Grant pegou duas taças de champanhe, entregando uma a ela.
— Espero que haja coisa mais forte na sala masculina.
— Há uma sala masculina? — Ela bebericou o líquido de bolhas. Não era
educado que mulheres bebessem muito em festas, e Wilhelmina já se perdera
uma vez ao exagerar no ponche.
— Sim, ao menos eu espero que haja. É onde correm os jogos e servem o
melhor uísque do anfitrião.
— Não parece justo que vocês possam se divertir com jogos e bebidas
enquanto as mulheres precisem suportar ponche doce e assuntos enfadonhos.
Agora entendo por que meus irmãos desaparecem nesses eventos. Caroline,
inclusive.
— Ela tem preferência por assuntos masculinos.
Grant bebeu seu champanhe e depositou a taça sobre a bandeja de outro
criado, enquanto outro começou a anunciar os convidados para entrarem no
salão de baile, onde aconteceria a soirée. Eles acabaram chegando mais cedo
do que ela imaginava e o restante da família estava atrasada. Todos os
presentes foram anunciados até que chegou a vez da plebe - e eles eram os
únicos.
— Senhor e senhora Sawbridge.
O criado anunciou e eles entraram. Havia olhares demais virados para o
casal e Wilhelmina sentiu-se mais escrutinada do que quando chegou para a
sua terceira temporada, depois de ter declinado várias propostas de casamento
de cavalheiros de excelente reputação. Todos olhavam para ela e para o
homem ao seu lado: o marido, que estava glorioso em um traje de noite
completo, com gravata vermelha presa com um alfinete perolado e os olhos
azuis que reluziam como pedras preciosas.
Não havia homem com mais presença do que ele, não ali, não naquele
momento. Mesmo assim, ele era um plebeu. Sempre bem recebido nos
eventos do Conde de Cornwall, sempre um amigo bem-vindo nos eventos do
Duque de Shaftesbury, e era apenas aquilo. Sem os amigos nobres, Grant não
era visto por ninguém, cumprimentado por ninguém, considerado por
ninguém naquela sociedade à qual ela pertencia.
Para alívio dela - pois Grant não parecia incomodado em ser ignorado
pela maioria dos convidados, o criado anunciou a chegada do Duque de
Shaftesbury. Assim que os viram ali, parados próximo a uma pilastra e um
vaso enorme de planta, Aiden e Elizabeth se aproximaram.
— Ainda bem, um homem para beber comigo. — Aiden fez uma mesura
para cumprimentar Grant. — Sra. Sawbridge, importa-se se eu levar seu
marido para um antro de perdição envolvendo jogos, álcool e conversas sobre
negócios?
Elizabeth cutucou o duque, que fez um gesto indicando que ele não
dissera nada demais. Wilhelmina deu uma risadinha baixa.
— Por certo, Alteza. Meu marido provavelmente está ansioso para visitar
tal antro.
— Qualquer lugar que tenha uma bebida mais forte que esse suco com
bolhas.
O duque indicou o caminho e Grant o seguiu. Os homens desapareceram
por um corredor e a duquesa aceitou uma taça de champanhe que lhe era
servida.
— É seu primeiro evento social depois de casada? — Elizabeth
perguntou.
— Na sociedade, sim.
— Está preparada para lidar com essas fofoqueiras? Porque elas podem
ser um pouco cruéis, minha querida.
— Não me importo muito. Eu sei que causei um escândalo e que isso vai
demorar para desaparecer.
O Conde e a Condessa de Cornwall chegaram cerca de quinze minutos
depois. Edward apenas cumprimentou as damas e foi direto para a sala
masculina. Eles apareceriam, eventualmente, para uma dança ou outra, mas
homens casados raramente se misturavam com as mulheres naqueles eventos.
Apenas os solteiros ficavam perambulando pelo salão, buscando o melhor
partido da temporada anterior para continuar investindo ou cortejando.
— Desculpem o atraso. — Agatha esfregou as mãos enluvadas. —
Caroline não virá, ela está se sentindo mal. Creio que seja por sua condição.
— Condição? Ela está doente?
— Ah! Você ainda não sabe! — Agatha sorriu. — Caroline está
esperando outro bebê. Ela descobriu por esses dias.
A novidade fez com que Wilhelmina sorrisse e se animasse, ao mesmo
tempo que ficasse apreensiva. A ideia de ter um bebê a rondava desde que se
casou, afinal, fora um negócio com obrigações bem estabelecidas. Ela tinha
que dar um herdeiro a Grant. Só que as coisas saíram um pouco de seu
controle e, agora, um filho não era mais apenas o herdeiro do marido. Era
algo que eles teriam juntos, uma mistura de ambos, a herança que deixariam
para o mundo.
Isso a deixou profundamente tocada, no momento. A imagem de uma
criança ruiva correndo pela casa
— Essa é uma notícia maravilhosa! Espero que Isaac não enlouqueça…
ele ficou superprotetor da primeira vez.
Caroline não era mais jovem. A medicina nem mesmo acreditava que ela
era apta a gerar filhos, mas o menino Louis nasceu muito saudável. E agora,
com mais de trinta anos, ela esperava o segundo filho do casal. Sua cunhada
era mesmo uma força da natureza.
— Vamos pegar alguns quitutes, estou faminta. — Elizabeth decidiu. —
Sou uma duquesa, mãe de cinco, posso me dar ao luxo de comer.
Elas riram e caminharam para uma das mesas com comida disposta.
Enquanto serviam-se de bolinhos, trufas, peixe defumado e pequenos
sanduíches de pão e iguarias variadas, um grupo diferente de damas
conversavam. Eram jovens solteiras e casadas e, entre elas, estava Madeline
Olsen - agora esposa de Lorde Berwick, herdeiro do Duque de Norfolk. Elas
conversavam, de costas para a mesa, e não notaram a aproximação de
Wilhelmina. Ou, se notaram, não se importaram.
O assunto eram os melhores partidos da temporada anterior que
permaneceram solteiros, além de alguns escândalos. Por certo, o caso nos
jardins de Norfolk não passaria despercebido, já que foi na casa dos sogros de
Madeline. E ela continuava, mesmo depois de casada com um lorde
insuportável e já ter parido duas crianças para ele, uma cobra venenosa.
— Bem, pelo menos temos uma solteira a menos no páreo. — Uma das
jovens disse. Wilhelmina a reconheceu como Lady Felipa, a filha do
anfitrião. Elas tinham a mesma idade e Felipa ainda não conseguira um bom
casamento - assim como ela, a jovem esperava um pouco mais do enlace
matrimonial. — Com Lady Wilhelmina fora do mercado, temos menos
concorrência com os pretendentes solteiros.
— Ela não era páreo para você, minha querida. — Lady Berwick
disparou. — O comportamento dela sempre foi duvidoso, veja o escândalo
que ela proporcionou com aquele… plebeu.
— Não entendo porque ela se casou com um homem tão abaixo dela. —
Lady Aline, a filha do Barão de Attwod, ponderou. — Com um dote como o
dela, poderia ter o marido nobre que quisesse.
— Wilhelmina era um pouco sonhadora demais. — Lady Felipa afirmou.
— Ela queria um marido adequado, e por adequação não entendemos apenas
títulos e poder.
— Céus, o que mais ela poderia querer? — Madeline riu.
— Acho que amor.
Lady Felipa suspirou. Wilhelmina não estava gostando da conversa. Não
porque falavam dela, isso já sabia que aconteceria com frequência, mas
porque falavam de Grant de forma depreciativa. Nenhuma delas poderia
conseguir um marido como o dela - gentil, atencioso e podre de rico. Se ela
quisesse poder, Grant tinha sobrando. Dinheiro, idem. E ele era carinhoso e
um amante incomparável.
Wilhelmina não casou esperando amor, mas ela recebia muito mais do
que planejava e duvidava que Madeline tivesse um marido tão bom. Até
porque os Olsen estavam falidos e precisaram do dinheiro do dote dela para
pagar a maior parte das dívidas.
— Isso é ridículo. — Madeline disparou novamente. — Mas deve ser
influência dos irmãos, todos apegados ao amor como se fosse a coisa mais
importante de um casamento.
— Realmente, ela é de uma família de sonhadores.
— Ainda assim, ela se rebaixou injustificadamente. Não era como se não
houvesse pretendentes. O industriário com quem se casou é um devasso
indecente que não tem pedigree e ainda carrega a fama de ser o bastardo de
algum nobre.
Aquilo era demais para ela continuar ouvindo. O pedaço de peixe que
levara à boca estava com gosto amargo e a raiva fazia com que a bile subisse
até a garganta. Ela quis entrar no meio daquelas fofoqueiras e gritar com elas.
Dizer que estava muito bem casada com um homem maravilhoso e que não
trocaria seu marido por nenhum daqueles pretendentes frouxos que estavam
perseguindo. Que Berwick não era metade do homem que Grant era. A
intensidade da sua ira e as coisas que pensou em dizer para as ex-amigas fez
com que ela se assustasse.
Wilhelmina não estava preparada para sentir aquele arrebatamento todo
pelo marido e só o descobriu depois que ele foi criticado na sua frente.
Porém, ao invés de causar um escândalo na soirée dos Worcestershire e
aparecer novamente no Royal Gossip, ela decidiu apenas sair dali.
— Preciso ir ao reservado.
Disse, sabendo que Agatha e Elizabeth mantinham um olhar atento sobre
si. Todas ouviram os absurdos que foram ditos.
— Você quer companhia?
— Não, eu consigo resolver isso sozinha.
Claro que ela conseguia, só não sabia o que tinha que resolver. Caminhou
lenta e calmamente para longe das amigas, contando os passos comedidos
que precisava dar até chegar à porta que a separava do corredor imenso. Ali
estava o banheiro - sua desculpa para se afastar - e, em algum lugar, a sala
masculina. Por motivos que desconhecia, precisava vê-lo. Precisava
encontrar-se com Grant e abraçá-lo, uma forma silenciosa de dizer que elas
estavam erradas - mesmo que ele não fizesse ideia dos motivos pelos quais
seria abraçado.
Não fazia ideia de onde era a tal sala. Aproximou-se todas as portas e
abriu-as sutilmente, até ouvir vozes e cheiro de tabaco. Onde havia tabaco,
também havia homens reunidos. Wilhelmina parou à frente da porta e a abriu,
lentamente, ouvindo a madeira ranger.
Sabia que não devia estar ali, mas estava. Assim que entrou, os homens
olharam para ela. Não dava para ser discreta invadindo um espaço privado. A
fumaça dos cigarros fez arder seus olhos, mas ela o viu erguer-se
subitamente.
— Senhores, creio que eu precise de um momento. Alteza, assuma
minhas cartas.
Grant levantou-se e se afastou da mesa. Em sua cadeira, sentou o Duque
de Shaftesbury, que estava de fora daquela rodada. Em segundos ele estava
ao lado dela, empurrando-a para fora da sala. Poderia ser apenas uma atitude
possessiva de quem não desejava que a esposa entrasse no reduto masculino,
se misturasse com aquele lado de sua vida, mas não. Ele sabia que algo
estava errado.

S AWBRIDGE LIA BEM as expressões nos rostos das pessoas. Como um bom
negociante, ele precisava daquele trunfo. Se percebesse quando mentiam,
blefavam ou eram sinceros, teria mais sucesso em seus contratos e
investimentos. E sua esposa tinha sido absurdamente simples de se ler,
naquele momento em que ela invadiu a sala masculina.
Mulheres não eram proibidas ali, mas ela não fora em busca de aventura
ou movida pela curiosidade. Ela precisava de alguma coisa - ele sabia, ele
sentia aquilo. Segurando-a pelo cotovelo, saiu porta afora e parou com ela no
corredor bem iluminado.
— O que houve?
Wilhelmina ergueu o queixo e olhos castanhos, avermelhados, o
encararam. Ela estava chorando? Triste? Sawbridge sentiu-se repentinamente
dominado pelo desejo de estripar alguém por tê-la entristecido. Ele mesmo
poderia merecer uma surra por colocar seus interesses profissionais à frente
da promessa feita, mas ele não a magoou. Não a ponto de fazê-la chorar.
Em um gesto impulsivo, ela o abraçou e recostou a cabeça em seu peito.
— O que aconteceu aqui, minha querida?
Ele ergueu o queixo dela outra vez.
— Pessoas cruéis. Talvez eu tenha a memória curta, pois esqueci como as
pessoas podem ser simplesmente maldosas.
— Alguém lhe fez algo?
— Não. Sim. Talvez. Algumas mulheres estavam conversando e
falaram… coisas.
— Sobre você? — Ele perguntou, ela negou. — Sobre mim? — Ela
assentiu com a cabeça e voltou a recostar no peito dele.
— Mas elas estão totalmente enganadas e eu precisava vir aqui dizer isso.
Elas estão erradas sobre você.
Sawbridge beijou-a no topo da cabeça e passou as mãos abertas pelas
costas trêmulas. Ela tremia e ele apostava que estava nervosa, não com frio.
— Eu não me importo com isso. Não me importo com o que essa
aristocracia preguiçosa e sanguessuga pensa de mim.
— Eu sou dessa aristocracia. — Ela lamentou.
— Não, não é. Sua família é diferente, sempre foi. Você é diferente. Não
é toda pessoa de sangue azul que desafia meu desprezo, meu amor. É apenas
aquela que não trabalha, não produz, explora pessoas e julga tendo tanta
sujeira enfiada debaixo do tapete Persa que decora a sala.
— Elas estão erradas.
— Provavelmente estão, ou talvez estejam certas. O que te incomodou
tanto?
— Não aceito que digam que é uma pessoa indigna. Que me rebaixou,
que eu poderia ter conseguido um marido melhor.
Ah, ela estava então sofrendo por aquilo. Sawbridge sentiu calor
percorrendo seu corpo, subitamente aquecido pelo sentimento desencadeado
por aquela frase. Claro que ela poderia conseguir um marido melhor do que
ele. Provavelmente todos os pretendentes que ela tivera eram melhores do
que ele. Sawbridge era um plebeu rude e devasso que não tinha coração.
Wilhelmina certamente precisava de um homem melhor.
Mas isso foi antes. Agora que ela era dele, não seria possível abrir mão
dela. Ele teria que servir, teria que ser suficiente.
— Está tudo bem. Não se preocupe, volte para lá e acabe com elas, se
falarem de mim novamente.
— Não estou mais com vontade de ficar nessa soirée. Nós podemos…
podemos ir para outro lugar?
— Vai deixar o evento logo no início? Não há uma etiqueta contra isso?
— Sim, há, mas não me importo, mais. Só quero falar com Agatha e
Elizabeth, depois podemos ir. Voltar para o trem, para Greenwood Park, para
Londres…
Sawbridge abraçou-a novamente. Ele certamente preferia sair com ela
dali e ir para um lugar privado, onde pudesse a despir e possuir lentamente
até fartar-se dela. Isso dificilmente aconteceria, pois ele parecia incapaz de
parar de desejar sua esposa. Mas não, ela estava aborrecida e precisava
enfrentar aquelas megeras.
— Certo, o que acha de irmos ao festival da colheita? Imagino que a vila
esteja no seu terceiro ou quarto dia de festejos.
— Eu adoro o festival!
— Portanto, vamos. Mas eu tenho duas mãos para jogar e eu não estou
acostumado a fugir de desafios. Volte para o salão, despeça de suas amigas,
espere-me que vou buscá-la.
Ele depositou um beijo rápido nos lábios da esposa. Não podia se deixar
envolver por ela ou não sairia daquela casa sem protagonizar um escândalo.
Acariciou-a na bochecha e sorriu, tentando garantir a ela alguma segurança.
Wilhelmina sorriu de volta e retornou para o salão, deixando-o com a missão
de depenar alguns trouxas antes de retomar o processo de sedução de sua
esposa.

— V OU EMBORA . — Wilhelmina disse, ao reencontrar as amigas novamente.


— Em uma meia hora, creio. Grant está terminando duas mãos de carteado.
— Uma hora, mais provável. — Elizabeth riu. — O que houve?
— Madeline Olsen.
A duquesa e a condessa se entreolharam em compreensão. Não era fácil
sobrelevar a filha mais velha do Visconde de Whitby, que era o homem tão
simpático e agradável.
— Ah. Você não pode deixá-la te afetar, Minnie. — Agatha segurou-a
pelas mãos. — Ela é uma das pessoas mais desagradáveis que existe e todo
mundo acaba tolerando-a por causa do visconde ou do marido, futuro Duque
de Norfolk.
Agatha estava correta, mas Wilhelmina não queria mais lidar com aquele
tipo de gente. Não queria tolerar pessoas insuportáveis por causa de títulos
podres. Céus, como ela mudara naquelas semanas. Ou não. Era mais provável
que sempre tivesse menosprezado pessoas como Madeline, apenas passara a
suportá-los por causa das temporadas que era obrigada a frequentar.
— Você tem razão, Agatha. Mas eu prefiro ir à vila ver o festival com
Grant.
— Oh, então é isso que vão fazer? É tão romântico!
— O Sr. Sawbridge não parece ser romântico, Lizzie.
— Ainda assim, levar a esposa recém-adquirida para um passeio pela
vila…
— Tem razão, é romântico. Avisarei a Edward que eles não passarão a
noite em Greenwood Park.
— Claro que passaremos. — Wilhelmina interrompeu a enxurrada de
palavras das amigas. — Não pretendemos retornar para Londres hoje.
— Pois eu aposto que o Sr. Sawbridge preferirá ocupar sua suíte no hotel.
— Ele tem uma suíte?
— Sim, todos os empreendedores têm. Caroline, Oglethorpe e ele, seu
marido.
Oh. Ela ainda não sabia tantas coisas sobre ele e precisava realmente
passar mais tempo com Grant. Não imaginava tanto sobre os negócios e
empreendimentos que Sawbridge desenvolvia e isso a fazia uma esposa ruim.
Depois de mais alguns minutos de conversa, ele surgiu do corredor, passando
as mãos pelos cabelos e andando por entre os mortais como se fosse um deus
pagão.
Como aquelas tolas damas, com seus casamentos por conveniência,
estavam erradas a respeito dele!
— Miladies. — Grant cumprimentou Agatha e Elizabeth com uma
mesura. — Minha esposa. — Depois, beijou-a nas mãos enluvadas. — Estão
tocando uma valsa no salão ao lado. Você me daria o prazer de uma dança
antes de irmos?
As amigas suspiraram, porque elas eram duas tolas românticas que
viviam casamentos apaixonados e não perdiam a oportunidade de enxergar
romance em tudo. Wilhelmina era mais prática e sabia que aquele homem,
ali, era seu marido por um acordo. Não havia nada além de conveniência
entre eles, mesmo que, na verdade, houvesse mais.
— Você quer dançar comigo? — Ela sussurrou, próxima a ele.
— Sei que nobres não dançam com suas esposas, é escandaloso. Mas eu
não sou nobre e talvez um pouco de escândalo possa ajudar a silenciar as
fofoqueiras.
Havia divertimento na voz dele e Wilhelmina jurou que não imaginava
aquilo possível. Muda, segurou na dobra do cotovelo do marido e caminhou
com ele até o salão de baile. Realmente, havia música e casais dançando. Era
uma valsa de Strauss, bem previsível, já que Worcestershire não parecia
muito criativo. Quando aquela dança terminou, os casais que aguardavam se
posicionaram no centro do salão.
Mais olhos estavam sobre eles naquele momento do que quando
chegaram. O burburinho de vozes quase ficou mais alto do que os acordes da
valsa, Os Contos dos Bosques de Viena. Sim, Wilhelmina tinha certeza de
que qual das composições clássicas de Johann Strauss estava tocando quando
Grant segurou-a pela mão e, com o braço envolvendo sua cintura, começou a
girar com ela pelo salão.
Era ridículo que seu marido dançasse tão bem. Ela arregalou os olhos
enquanto flutuavam em círculos por entre pessoas e chamavam a atenção de
uma centena de aristocratas. Eles estavam próximos demais, a ponto de ela
conseguir sentir o calor da pele dele em contato com a sua.
— Você não me disse que dançava.
— Eu não danço. Não quer dizer que não saiba.
— Eu sei dançar. — Ela deu uma risadinha. — Você… você domina a
arte com maestria.
Grant exibiu um sorriso com dentes brancos perfeitos. Não era mais um
sorriso para ela, apenas. Era um sorriso para que todos vissem, porque ele
não estava ali por si mesmo. Aquela dança, aquela demonstração de que era
perfeito, de que fazia qualquer coisa com perfeição, era para colocar algumas
pessoas em seus devidos lugares.
Não faria diferença, ela sabia. A sociedade continuaria a falar sobre ele, a
espalhar boatos e a dizer que ela se rebaixou ao casar-se com um industriário
plebeu. Mas, no fundo, muitas damas apenas morreriam secretamente de
inveja. Ela sorriu novamente. Por mais arrogantemente masculino que aquela
demonstração de força fosse, Wilhelmina estava se divertindo bastante.
A valsa completa durava quase nove minutos. Foram oito minutos e
quarenta e sete segundos em que ela voou nos braços do dançarino mais
experiente que conhecia - seu marido. Depois de dois minutos, apenas ele
importava. Estava envolvida plenamente por seu cheiro, seu calor e sua
presença, que ofuscava qualquer outra. Quando acabou, ele a cumprimentou
com uma reverência e a conduziu para fora da pista de dança. Era o momento
de partirem.
Despediu-se das amigas, prometendo que retornaria para uns dias em
Thanet a fim de poderem realmente conversar e fazer alguns programas
femininos, com as crianças. O casal pegou a carruagem dos McFadden que
estava à sua disposição e foi para a vila de Thanet. Eles ainda não tinham
chegado, mas já conseguiam ouvir a música e ver as luzes. A carruagem
parou na entrada da vila e eles desceram. Grant ofereceu-lhe o braço para
caminharem, enquanto um trio de cordas tocava em um palco de madeira
improvisado.
O cheiro de comida de rua e pólvora dos fogos era familiar. Ali, ela
estava em casa, muito mais do que nas festas de Worcestershire ou outro
nobre da região. Era o aroma de maresia e terra, a risada das pessoas e a
multidão do festival que a recordavam quem ela era de verdade.
— Obrigada pela atuação na soirée. — Ela sussurrou, próxima ao ouvido
dele.
— Não foi atuação.
— Você costuma fazer aquelas coisas em eventos sociais? Dançar como
se estivesse cortejando? Cumprimentar a dama depois da valsa?
— Eu não frequento eventos sociais, só aqueles que seus irmãos
oferecem.
— E o duque.
— Sim, e Shaftesbury. — Grant passou os dedos por sobre os dela,
acariciando-a por cima das luvas de pelica.
— Então… por quê?
— Primeiro, porque eu acho que maridos devem uma valsa às suas
esposas. A maioria dos aristocratas corteja suas damas durante a temporada e,
com isso dança pelo menos uma vez com elas. Eu nunca a cortejei, portanto
precisei usar a criatividade. Segundo, porque você parece gostar desse tipo de
interação.
— Oh. — Ela estava realmente surpresa, só não pretendia que ele
percebesse o quanto o gesto a emocionava. — E meu marido descobriu isso
como?
— Você é uma dama, minha esposa. — Ele beijou-a no topo da cabeça.
— Damas gostam, geralmente, das mesmas coisas. Ao menos acham que
gostam, foram ensinadas assim.
— Isso é ruim?
— Não, definitivamente, não. Mas espero que saiba que, ao meu lado,
você pode gostar de tudo que quiser. Não pretendo moldá-la pelos padrões
atrasados dessa sociedade cruel.
A fala a deixou nervosa. Não porque era assustadora ou preocupante, mas
porque o marido era uma caixa de surpresas. Ele a deixava atônita, sem
fôlego, desorientada e perturbada a maior parte do tempo. Aquelas sensações
eram, geralmente, ruins, mas ele as fazia parecer fantásticas. Estar com Grant
era um estado constante de estupefação e isso a mantinha como que à deriva
em um barco em alto mar.
Eles caminharam pela via cheia e pararam quando viram a barraca das
flores. Grant comprou um buquê de rosas e prendeu no casaco dela. Ao lado
havia uma menina vendendo doces confeitados e Wilhelmina quis alguns.
Enquanto o marido pagava pelo produto e conversava rapidamente com a
criança, ela sentiu um vento frio em seu pescoço. Foi como o sopro de uma
alma gélida que estava parada bem ali, mas ela não podia ver. E, quando
virou para o lado de onde veio o vento, seus olhos pousaram nele. No
fantasma de Thomas Caldwell.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

“Minha flor do campo,


Espero que não esteja esperando propostas de casamento muito
criativas. Os nobres não sabem muito bem como fazê-las. Você
precisa seguir em frente. Eu não sirvo para você e não deve alimentar
esperanças sobre nosso amor. Case-se e seja feliz.
T.C., fevereiro de 1898”

C LARO QUE ELE ESTARIA ALI , NO FESTIVAL , EM CASA, COMO ELA . W ILHELMINA
estava tão irritada com Madeline, tão preocupada em demonstrar para Grant
que não se sentia rebaixada nem acreditava nas palavras das víboras
aristocratas e, depois, com os sentidos tão assoberbados pelas emoções que
ele proporcionava, que se esqueceu do perigo que era estar em Thanet,
principalmente a caminho da vila.
A alma penada de seu passado recente que lhe parabenizara pelo
casamento e que ela ignorara. O homem que ela amava e que a dispensou, em
uma carta sofrida, dizendo que eles nunca ficariam juntos. Que a levou a
beber e se arruinar em um jardim, que a jogou nas garras do marido. Se não
fosse Thomas, ela dificilmente teria se envolvido com o canalha do jardim e
não precisaria casar-se às pressas.
As palavras vieram todas de volta como se ela não pudesse evitá-las. As
memórias a afogaram como se fossem ondas de um mar revolto e ela não
conseguiu desviar o olhar. Ele também a vira e, como se ela não estivesse ali
com seu marido do lado, caminhou na direção deles.
No instante em que Thomas se aproximou, Grant virou para ela com o
saquinho de doces e colocou uma mão possessiva sobre seu ombro. Ela não o
viu, mas tinha certeza que o marido estava com sua mais célebre expressão de
quem poderia arrancar a cabeça de qualquer um ali sem fazer nenhum
esforço.
— Lady Wilhelmina. — Thomas fez uma mesura. — Se bem que devo
chamá-la Sra. Sawbridge, agora.
Ela não conseguiu dizer nada. Ficou ali parada, sem conseguir
cumprimentar o espectro materializado de seus sonhos e pesadelos. Também
não conseguiu fugir correndo.
— Grant Sawbridge. — O marido estendeu a mão para Thomas. — O
senhor é…
— Caldwell. Thomas Caldwell.
— Ah. O amigo da família.
Ele lembrava, mas era da mentira que lhe fora contada. Por favor,
Thomas, não o desminta - ela desejou em silêncio.
— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, senhor, e poder agradecer o que
tem feito por nós.
Wilhelmina franziu as sobrancelhas e se virou para o marido. Ele
mantinha a expressão inamistosa, mas as linhas duras de sua face estavam
suavizadas.
— Não é nada demais. Esse lugar é… intrigante. Mantê-lo à salvo da
selvageria das cidades é um bem que faço a toda a Inglaterra.
— Do que estão falando?
— O Sr. Sawbridge é um dos investidores do Palace of the Sea. Ele
também ajuda a manter a vila para que não precisemos nos mudar e trabalhar
nas fábricas. Com o perecimento da agricultura, não restaria muito fazer por
aqui e teríamos que abandonar as terras e nossas casas.
Ela não sabia de nada daquilo. Sabia do hotel, do investimento em
turismo, as coisas que Caroline falava e pelas quais contava vantagem. Mas
não sabia que o homem com quem se casara mantinha a vila. Sequer entendia
o que isso significava.
— Meu marido é um homem muito bondoso.
Wilhelmina sorriu, inquieta. Ela era uma pilha de nervos por baixo de um
vestido de noite e esperava que a mão de Grant, ainda cuidadosamente
posicionada em seu ombro, não notasse. Era certo que a mão ali era um
indicador de pertencimento, uma forma de demarcar seu território. Os
animais urinavam para deixar seu cheiro pelo ambiente, os homens trocavam
olhares taciturnos e se agarravam às suas posses.
— Bem, foi um prazer revê-la, Sra. Sawbridge. — Thomas segurou sua
mão enluvada e a beijou. Talvez ela devesse ter fechado os olhos para evitar
que ele a encarasse daquela forma intrigante, mas não o fez. — Vou deixá-los
aproveitar nosso festival. Em breve teremos queima de fogos.

T INHA algo muito estranho com sua esposa naquela noite. Sawbridge teve
medo de que ela se arrependesse do arranjo que fizeram porque ele não
pertencia ao seu mundo. Que as mulheres daquela soirée tivessem dito coisas
que a fizessem reconsiderar as decisões que tomou para ficar com ele. Tentou
dançar com ela na frente de todo mundo para que ela tivesse orgulho de ter se
casado com ele. Tentou tirá-la de lá para um lugar mais festivo, mas ela
reencontrou aquele homem e ficou ainda mais tensa.
Thomas Caldwell. Algo não estava certo, mas ele não sabia bem o que
era. Depois que o amigo se afastou, Wilhelmina andava como se tivesse
engolido uma ripa de madeira. Ele tirou sua capa e colocou sobre ela,
pretendendo aquecê-la.
— Quer ir até o hotel? A praia em frente é iluminada.
— Eu adoraria. — Até a voz ela estava trêmula. — Nós vamos passar a
noite lá?
— Se for de sua vontade, sim.
Ela assentiu com um balançar de cabeça e começaram a caminhar na
direção do hotel. Cruzaram a via ornamentada com pequenas lamparinas
pintadas, que emanavam uma luz fraca e colorida, e encontraram outros
conhecidos. Wilhelmina parecia muito popular em Thanet - todos a
conheciam por algo que ela fizera, principalmente as crianças.
A estrutura imponente do Palace of the Sea o enchia de orgulho. Aquele
hotel era ideia de Caroline, mas, como mulher, ela não tinha credibilidade o
suficiente para fazê-lo atrair hóspedes notórios. Oglethorpe entrou com seu
conhecimento dos negócios e ele, Sawbridge, proporcionou o material
humano necessário. Seu dinheiro praticamente sustentava a vila e o comércio
ao redor enquanto a cidade se tornava um polo de turismo.
À noite, ele era muito iluminado e estendia lamparinas até a arrebentação
do mar, permitindo que os hóspedes tivessem uma experiência única de nadar
depois do pôr do sol.
— Se eu te contar que nunca estive no hotel, parecerei tola?
— Claro que não. Você morava aqui, não tinha necessidade de ficar em
um hotel.
— A lua está linda. — Ela apontou para o céu. — Podemos vê-la da
areia?
Sawbridge concordou e a conduziu até uma estrutura que permitia aos
hóspedes guardar seus sapatos enquanto exploravam a praia. Ela tirou as
sapatilhas de festa e pisou com as meias de seda na areia fria, erguendo a
barra da saia. Ele a imitou, tirando sapatos e meias e dobrando a barra da
calça. Depois, caminharam até quase onde arrebentavam as ondas, mas antes
da areia ficar úmida demais, e se sentaram sobre a capa dele.
Por algum tempo, Wilhelmina ficou em silêncio. Recostou a cabeça no
ombro do marido, abandonando o recato e o decoro, e suspirou enquanto
observava o céu.
— Desculpe-me por hoje. Eu fiquei um pouco aborrecida com a conversa
na soirée.
— Não precisa se desculpar, mas também não precisa se aborrecer. Eu
deveria protegê-la disso. Sabia que sua reputação estaria à salvo, mas as
pessoas não perdoariam você ter se casado com um plebeu como eu.
— Você tem mais dinheiro do que todos aqueles cavalheiros juntos,
Grant.
— Sei que sim, mas a sociedade não nos mede pela régua bancária. Ela
contabiliza títulos e origens, e a minha é simples.
— Bem, como nosso arranjo estabelece que não fiquemos juntos depois
que eu lhe proporcionar um herdeiro, talvez não haja o que me preocupar,
certo?
Ele virou-a para si e fez com que ela olhasse diretamente dentro de seus
olhos. Aquele era um arranjo horrível e ele definitivamente não esperava que
ela tocasse naquele ponto. Não mais. Esperava que aquilo estivesse superado
ou, ao menos, esquecido.
— Você ainda quer isso?
— Isso o que?
— Mudar-se para algum lugar e seguir sua vida sem mim, ou continuar
em Londres, mas vivendo como se não fôssemos um casal?
Sawbridge não pretendia parecer agoniado, porque ele nunca
demonstrava sentimentos o suficiente para que o compreendessem. Mas ele
ficou um pouco desesperado ao ouvi-la repetir os termos do acordo selado
algumas semanas atrás. Céus, pareciam anos atrás, porque era como se ele
sequer lembrasse do que haviam combinado. Ele não queria deixá-la ir. Não
importava que ela nunca sentisse nenhum afeto real por ele, o desejo bastava.
Muitos casamentos eram alimentados por bem menos do que aquilo.
— Não. — Ela levou a mão até a face dele e o tocou. — Eu não quero.
Mas eu cumprirei o acordo integralmente, Grant. Não imporei a você mais do
que estiver disposto a suportar.
— Sei que cumprirá. Mas não há motivos para mantermos cláusulas que
não representam mais a vontade de nenhuma das partes.
Os olhos dela estavam escuros pela pouca luz solar. Era como se a lua
tivesse se mudado para eles e as estrelas estivessem ali para saudá-la.
Wilhelmina sorriu e ele gostaria de tê-la beijado ali, naquele instante, mas
não queria causar um escândalo, já que poderiam ser vistos. Ficaram em
silêncio por mais alguns minutos. A única coisa que ouviam era o ir e vir das
ondas do mar e, Sawbridge suspeitava, as batidas do seu coração, martelando
implacável em seu peito.
Fosse o que fosse, havia um sentimento muito forte e assustador dentro
dele, e esse sentimento parecia disposto a dominá-lo. Desejo? Talvez fosse,
mas suspeitava que não. Sim, havia desejo, mas não era apenas isso.
— Você poderia me levar para dentro?
Ela virou para ele e perguntou. Plena e tranquila, o que acendeu nele um
sinal de alerta duplo. Desde que conheceu Wilhelmina ela era prática e
objetiva, mas não costumava ser tranquila.
— Pensei que gostaria de ver os fogos.
— Sim, eu gostaria. Mas acho prefiro os que você pode me mostrar.
E qualquer conversa foi encerrada, qualquer pudor abandonado à própria
sorte para morrer. Sawbridge ergueu Wilhelmina em seus braços e a levou
para o Palace of the Sea. Ele tinha alguns fogos de artifício para explodir.

L ONDRES ERA uma cidade fria e sem graça fora da temporada, ou Wilhelmina
não sabia se divertir sem os eventos festivos que a nobreza proporcionava.
Em Kent ela não sofria de tédio. Mesmo que ficasse sozinha algum tempo
apenas com a mãe e as criadas, a vida no campo era muito mais interessante
que a vida na cidade. Ao menos era o que ela acreditava, já que sempre tinha
atividades para fazer e…
E havia Thomas. Ah, o maldito Caldwell que nunca lutou por ela e que
ressurgiu das cinzas, como uma fênix diabólica, exatamente quando ela
estava se sentindo mais fortalecida no casamento que escolheu para si.
Quando ela estava em Kent, sempre havia o maldito enteado da modista e ele
causava afetação suficiente em seus nervos, ocupando muito de seu tempo.
Aquele papel agora era feito por outro homem. Era a antecipação pelos
momentos compartilhados com Grant que a estavam deixando ansiosa. Então,
Wilhelmina sabia que havia algo ali, algo além de apenas um negócio. Ela
conhecia casais enamorados demais para ser tão tola e não reconhecer os
sintomas em si própria.
Wilhelmina não saberia dizer exatamente quando ela percebeu aquele
sentimento ali. Ela se sentia muito incomodada por tê-lo ou por saber que ele
existia. Por todo tempo, seu coração pertenceu a Thomas Caldwell e, de
repente, ela o retirou de sua vida para admitir outro em seu lugar.
Não, não foi de repente. Foram anos de espera e abdicação em que
nenhuma de suas esperanças foi alimentada. O amor que sentia morreu de
inanição, mas ela não conseguia admitir isso. Foi por isso que, naquela tarde,
ela acabou falando mais do que devia.
A família McFadden não ficou muito tempo em Thanet. Eles retornaram
para Londres dois dias depois dela, pois um problema na fábrica demandou a
atenção dos sócios. E, naquele dia, Nathaniel iria para os Estados Unidos,
encontrar-se com Leonard Eckley, um dos primos errantes da esposa de
Isaac.
As mulheres estavam sentadas no salão de chá. As crianças pequenas,
Louis, Edmund e os filhos da duquesa, Lilian e Albert, os gêmeos, e a bebê
Ophelia, brincavam mais afastados, vigiados pela babá. Patrick estava em
Eton, na escola, e Peter e Lavínia costumavam desaparecer pela casa em
muitas brincadeiras. Apenas Peter falava - Lavínia continuava se
comunicando por gestos e expressões. Mesmo depois de visitar todos os
médicos da Inglaterra e quase todos da Escócia, ela continuava sem dizer
uma palavra.
As duas damas convidadas já tinham se retirado e sobraram apenas elas.
Já passava das seis, mas os maridos só chegariam para jantar às sete - e,
naquela noite, o jantar seria na casa do duque.
— Elizabeth… — Wilhelmina chamou a atenção da duquesa em um
momento de silêncio. — Você é casada pela segunda vez. Desculpe-me pela
pergunta se ela for inadequada, mas… você amava seu primeiro marido?
Agatha arregalou os olhos e Caroline quase cuspiu o chá que levara à
boca.
— Acho que precisaremos de conhaque.
A dama de vermelho, que continuava usando vermelho diariamente,
levantou-se. Ainda não havia sinais de sua gravidez recente e Wilhelmina
sabia que ela ficava ainda mais gloriosa esperando um bebê.
— Não creio que seja necessário. É apenas uma pergunta.
— Eu amei Gregory, sim. — Elizabeth respondeu, depois de apoiar sua
xícara na mesinha. — Plebeus pobres geralmente se casam por amor, minha
querida.
— E agora ama o duque.
— Ah, sim, eu amo Aiden. — Os olhos dela brilharam. — Eu o amo tanto
que quase renunciei à minha própria dignidade por ele. Ainda bem que ele
me ama o mesmo tanto, assim estamos felizes juntos.
— E como é possível amar duas pessoas dessa forma? O amor por seu
primeiro marido passou com a morte dele?
— Conhaque, definitivamente.
Caroline entregou um copo com o líquido âmbar para cada uma de suas
amigas. Agatha virou o dela em um gole só, mas Wilhelmina sabia que ela
estava mais curiosa do que nervosa pelo interrogatório. Elizabeth bebericou a
bebida e fez uma careta de quem não gostava muito de conhaque.
— Vou buscar um licor.
— Sossegue, Caroline. — Agatha puxou-a pela saia e fez com que se
sentasse. — Minnie, aonde pretende chegar com esse inquérito?
— Eu apenas estou curiosa sobre isso.
— Sobre o amor de Elizabeth ou sobre amores em geral? — Caroline
perguntou.
— Deixem a menina falar. Wilhelmina, o amor que senti por Gregory não
sumiu. Ele continua aqui. — Ela levou a mão ao peito. — Mas eu superei sua
morte e segui em frente. Mesmo que eu ainda ame Gregory, isso não me
impede de amar Aiden. O amor se manifesta de muitas formas. Também amo
meus filhos, minhas amigas….
— Se eu amasse alguém, mas não pudesse ficar com essa pessoa, eu
poderia me apaixonar por outra? Ah, acho que estou fazendo uma confusão.
— Minnie, você está falando de quem, afinal? — Caroline estava
impaciente.
— É daquele rapaz de Thanet? O enteado da modista?
Wilhelmina ficou branca como cera de vela e quase deixou o copo cair.
Não era possível que Agatha estivesse falando daquilo em público. Certo, não
era em público, estavam apenas elas em um salão de portas fechadas com um
bando de crianças que não fazia a menor ideia do que era conversado. E foi
dito em baixa voz, quase em um sussurro. Mesmo assim, ela não imaginava
que as cunhadas soubessem. Que qualquer pessoa soubesse.
— Claro! O menino Caldwell. — Caroline balançou a cabeça. — Esse
jovem retornou para sua vida, Minnie? Ele está perturbando seu casamento?
— Céus, não! — Wilhelmina encarou o líquido âmbar em suas mãos. —
Vejam, como vocês sequer sabem sobre Thomas?
— Quem é Thomas? — Elizabeth se ajeitou no sofá e esticou as costas,
demonstrando curiosidade.
— É o jovem que fingia não cortejar Wilhelmina quando ela morava em
Thanet.
— Eles pensavam que se encontravam às escondidas, mas todos nós
sabíamos. Todas nós, ao menos. Os homens são sempre muito distraídos para
as questões do coração.
— Vocês duas… meu Deus, Caroline! Agatha! — As bochechas de
Wilhelmina ardiam de nervoso. — Ninguém pode saber disso.
— Minha querida. — Elizabeth tomou o copo das mãos dela e as segurou
entre as suas. — Esse jovem está em Londres? Ele se correspondeu com
você?
— Ele mandou felicitações pelo casamento. Mas é que… eu o amava,
entende? Eu o amei e jurei que sempre o amaria. E então…
— E então Grant Sawbridge aconteceu. — Caroline disparou. — Posso
apostar algumas fichas que o maldito conquistou sem piedade esse jovem
coraçãozinho.
— Ora, mas não é maravilhoso, isso? — Elizabeth sorriu. — Estar
apaixonada por seu marido?
— Eu não sei. — Ela balançou a cabeça, negando.
— Mas vocês disseram que se gostavam, quando ele a arruinou naquele
jardim. — Agatha se intrigou.
— Nós nos gostamos! Mas eu estou falando de algo mais… profundo.
— Ah, isso é perfeito. Minha querida Wilhelmina, nós três somos
mulheres que amam seus maridos. O Sr. Sawbridge é um plebeu, como eu
era, e ele certamente esperava se casar por amor. Se ele é um bom marido e te
trata bem, amá-lo apenas fará com que tudo fique mais fácil e mais
duradouro.
O coração de Wilhelmina estava disparado. As palavras de Elizabeth
eram difíceis de aceitar, mas eram a verdade. Todas elas. Não era necessário
expulsar Thomas Caldwell de seu coração. Ela podia aceitar que o amou um
dia, mas que não o amava mais. Ou podia ainda amá-lo, mas amar também
seu marido. Ela sabia que estava, sim, apaixonada. Ela apenas não entendia
como era ser correspondida - porque Grant parecia estar apaixonado por ela,
também.
— Minnie. — Agatha atraiu sua atenção e ela soltou as mãos das de
Elizabeth. — Pare de se torturar por esse menino Caldwell. Você está casada
com um homem respeitável e que pode te garantir uma vida boa e
confortável.
— E ele está totalmente encantado por você. — Caroline disparou. —
Nunca vi Grant tão… simpático? Acho que essa palavra nem pode ser usada
em uma frase que contenha o nome dele.
— Realmente, o Sr. Sawbridge demonstra visivelmente sua afeição por
Wilhelmina.
— Visivelmente, não. — Agatha ponderou. — Mas nós somos muito
perspicazes, jamais deixaríamos de notar.
— A questão é que Agatha está correta. Você está bem casada. Isso é
importante - ele está fisgado por sua rede e essa é a receita da felicidade.
Agora só falta um bebê para completar a família perfeita.
Caroline encerrou a prosa no instante em que eles chegaram. A porta do
salão se abriu e os homens entraram, conversando animadamente sobre
algum assunto masculino. Quando viram os pais chegando, as crianças se
animaram. Eloise correu até Edward e os gêmeos pularam sobre Aiden.
Wilhelmina sorriu - aquelas eram famílias pouco convencionais para a
aristocracia. E eram famílias felizes.
Seus olhos se encontraram com os de Grant. O marido parecia exausto do
dia e tinha olheiras acinzentadas debaixo dos orbes azulados. Ainda assim,
ele se permitiu sorrir ao vê-la. Wilhelmina teve certeza de que ele era o
homem que ela queria ao seu lado. Que ela estava apaixonada por Grant
Sawbridge e estava bem com aquilo.
S AWBRIDGE ESTRANHOU um pouco as atitudes da esposa. Na verdade,
estranhou o olhar dela, desde que cruzou com o dele. Durante o jantar, ela
estava dócil e gentil, mas Wilhelmina dificilmente era uma das duas coisas.
Ela era gentil, mas não dócil. Sua personalidade firme era bem conhecida por
ele, então teve que suspeitar que a tarde com as mulheres produziu algum
efeito interessante sobre ela.
Quando chegaram em casa, ela estava sorridente e ousada. Assim que
fecharam a porta principal, colocou-se à sua frente e o beijou. Sawbridge
assustou-se por um segundo, tempo o suficiente até segurá-la nos braços e
tomá-la definitivamente nos lábios.
— Você está bem? — Perguntou, buscando o ar em uma breve
interrupção.
— Sim, acho que sim. Eu apenas estou… quente.
Wilhelmina levou a mão à testa, como se pretendesse medir a
temperatura. Sawbridge enfiou-se na dobra de seu pescoço percebendo que
sim, ela estava em chamas. Mas não parecia que tinha a ver com alguma
doença ruim - a esposa estava estranhamente excitada. E ele seria um tolo se
não se aproveitasse disso.
— Sei um jeito de resolver isso.
Ele a ergueu e subiu as escadas dois degraus de cada vez. Precisava de
um banho e pretendia tomá-lo com ela, sua esposa. A banheira da suíte era
grande o suficiente para caberem juntos.
— E você vai me contar qual é?
— Sim, minha querida. Nós vamos tomar um banho morno.
— Nós?
Os olhos dela brilhavam como se as estrelas estivessem contidas ali
dentro. Ele a colocou no chão e beijou com doçura os lábios que lhe eram
ofertados.
— Sim. Nós. Você pode precisar de ajuda para diminuir a temperatura.
O risinho dela indicou que Wilhelmina entendeu seu sarcasmo. A
ansiedade fez com que tirassem a roupa um do outro com alguma pressa.
Botões voaram pelo quarto, o lenço de seu pescoço foi parar pendurado em
uma das barras do dossel, os laços do espartilho foram arrancados com os
dentes. Depois de livrá-la das muitas camadas de tecido, Sawbridge foi
encher a banheira com água e sais de banho.
Ele não ligava a mínima para aquelas frescuras, mas sua esposa adoraria
as bolhas subindo por sua pele. Ela apareceu, enrolada em um roupão, e o fez
rir.
— Não precisa esconder o que há aí em baixo. — Sawbridge se ergueu e
foi até ela.
— Está muito claro, iluminado. Se você apagar algumas lamparinas…
— Ah, definitivamente eu quero as lamparinas. Meu amor, eu conheço
todas essas curvas — ele a puxou para si e pressionou sua ereção contra a
barriga dela — em detalhes. E garanto, quanto mais de você eu vir, mais eu
vou gostar.
As bochechas enrubesceram e Wilhelmina levou as mãos ao laço do
roupão, soltando-o. Sawbridge fez deslizar a seda pelos ombros dela e chutou
o tecido para o lado. Passou as mãos pelos braços, pela cintura e pelos
quadris da esposa, admirando-a.
— Você parece confortável estando assim, nu.
— Não me importo com a nudez. Você se sente desconfortável comigo?
Ela baixou os olhos e percorreu lentamente o corpo do marido. Peito,
barriga, coxas, pés. E parou bem ali, onde a ereção despontava um tanto
quanto desesperada para a possuir.
— Não. Eu posso… tocar?
Sawbridge deu uma risada nervosa. Eles fizeram sexo quase todas as
noites desde que consumaram o casamento. Semanas cumprindo o mesmo
ritual noturno para, depois, dormirem aconchegados um no outro. Em todas
essas vezes, ela esteve tímida e retraída. Queria o escuro, mesmo que ele
insistisse em deixar algumas lamparinas acesas. Escondia-se debaixo das
cobertas sempre que possível e não demonstrou interesse em acariciá-lo mais
intimamente nenhuma vez.
Ela era carinhosa, ele sabia. Sentia as mãos que lhe percorriam o pescoço,
embrenhavam em seus cabelos, tocavam suas costas. Mas era isso.
E estava ali, ruborizada dos pés aos fios de cabelo, encarando sua
masculinidade em toda potência. Sawbridge tinha certeza de que ela podia
fazer com ele o que quisesse. Então, ao invés de responder, segurou sua mão
direita e colocou sobre a extensão de seu membro rígido. Wilhelmina soltou
um arquejo de espanto, mas fechou os dedos ao redor.
— O prazer do seu toque é o mesmo do meu. — Ele murmurou. — Se
você gosta que do que eu faço, eu certamente gostarei do que você fizer.
Ela sorriu e o acariciou com suavidade. A mão subiu e desceu, esticando
a pele fina e expondo a glande avermelhada e pulsante. Céus, era delicado
demais para ele suportar, mas jamais a impediria. Aquele era o momento em
que ela desbravava um corpo masculino pela primeira vez, Sawbridge
precisava deixar que ela fizesse o que quisesse.
Com cuidado, Wilhelmina simulou o movimento que ele fazia ao entrar e
sair dela. Porque ele gemeu, ela se sentiu encorajada a prosseguir.
— Eu posso beijar você?
— Claro que pode, meu amor, eu…
Sawbridge não conseguiu terminar a frase. Ela o empurrou para trás,
obrigando-o a se sentar na borda da banheira, fazendo-o segurar-se para não
cair, enquanto desligava a água e se ajoelhava à frente dele. Com um olhar
divinamente malicioso, que ele nunca vira naqueles olhos castanhos
femininos, Wilhelmina segurou seu pênis pela base e beijou-o.
Os lábios quentes encostaram na pele sensível da cabeça e ele soltou uma
imprecação alta. Ela riu, mas beijou outra vez, daquela vez passando a língua
ao redor. A aprendiz de devassa estava imitando o que ele fazia com ela,
lambendo-o e sugando.
— Meu Deus, Minnie.
Ela ergueu os olhos e as sobrancelhas.
— Você nunca me chamou assim.
— Desculpe, eu… é que isso…
— Não, está tudo bem. Eu gosto do meu apelido. Estou machucando
você?
— Não, meu amor. Você está me matando de prazer. Eu não imaginava
que passar uma tarde com suas amigas te transformasse em uma pequena
diabinha.
— É, posso dizer que a tarde de hoje foi libertadora.
— Então liberte-se.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

E LA ENTENDEU O QUE ELE ORDENAVA MESMO QUE G RANT TENTASSE SER


enigmático e cheio de metáforas. Deixou-se conduzir de volta para o pênis
que clamava por atenção e o colocou na boca, apenas uma parte daquela
extensão gloriosa. O gosto dele era pungente, masculino, inebriante. Os
gemidos do marido indicavam que ela estava fazendo a coisa certa - ele
estava gostando dos carinhos.
A reação dos corpos era incrível. Suor, gemidos e sincronia ensinavam o
que ela deveria fazer. A mão na cabeça dela acariciava seus cabelos e
indicava a pressão e a velocidade que extraía de Grant rosnados e murmúrios
de incentivo. E, apesar do objetivo ser oferecer a ele prazer, Wilhelmina não
podia negar que estava gostando do que fazia.
Ele tinha razão, ela estava liberta. E a liberdade que a fazia aceitar que
estava apaixonada por ele também tornava o ato sexual muito mais prazeroso.
— Meu amor. — Grant murmurou. — Você precisa parar agora.
Wilhelmina olhou para cima e enxergou toda luxúria naqueles olhos de
mar. Ele certamente encontraria seu alívio se ela continuasse a provocá-lo
daquela forma. Talvez fosse muito errado, mas ela se sentiu poderosa em
conseguir submeter aquele homem grande e forte apenas com algumas
carícias. Fazê-lo se sentir da forma como ela se sentia quando ele a tocava, ter
o protagonismo e dar, ao invés de apenas receber.
Aproveitando a sua hesitação, Grant puxou-a pelos ombros e a beijou nos
lábios. Depois, arrastou-a para dentro da banheira para constatar que a água já
estava um pouco fria. Mas ele se sentou com as costas apoiadas na lateral de
cobre e a recostou em seu peito, fazendo com que se encaixasse entre suas
pernas. O membro ereto continuava pulsando, pressionando suas nádegas.
— Vou lavar você.
O sussurro em seus ouvidos fez com que ela se arrepiasse. Grant começou
a esfregá-la, braços, colo, seios e abdômen, espalhando os sais borbulhantes e
espumantes por toda a sua pele. Wilhelmina deitou a cabeça no ombro dele e
fechou os olhos. Rendeu-se ao toque macio dos dedos que desenhavam
figuras indistinguíveis em seu corpo até descerem para a abertura entre suas
pernas.
— Você prefere assim? — Ele começou a acariciá-la com dedos suaves e
ensaboados. Apesar de Grant ter mãos de um homem trabalhador, o toque
dele era extremamente gentil e agradável. Circulou o botão intumescido pela
excitação e provocou nela espasmos de prazer. — Ou quando estou dentro de
você?
— Preciso escolher? — Ela murmurou.
— Não. — Grant beijou-a nos ouvidos e na base do pescoço. — Estou
apenas curioso.
A forma como ele a tocava a deixava muito distraída e era difícil
respondê-lo, assim como era impossível escolher. Grant parecia programado
para saber o que ela gostava e queria, como se ele sempre soubesse a coisa
certa a dizer e a fazer.
— Eu gosto de ter você aqui. — Ela colocou a mão sobre a dele e indicou
sua abertura. O marido também a enfeitiçava a ponto de eliminar qualquer
decência que restasse nela. — Porque eu te sinto.
Ele suspirou a ponto de ela perceber o peito dele inflar. Daquele momento
em diante, Wilhelmina conheceu a intensidade de um homem excitado ao seu
limite. Grant agarrou-a pelos quadris, virou-a de frente e fez com que se
sentasse sobre seu membro. A profundidade da penetração arrancou dela um
gemido alto, que foi abafado pela boca dele sobre a sua. A posição era
relativamente incômoda e absurdamente afrodisíaca.
Era a primeira vez que ela ficava por sobre ele, e a colocou ao mesmo
tempo em uma posição de poder e de submissão. Grant parecia também
afetado pelo momento e Wilhelmina quis dizer. Ela quis verbalizar o que
sentia, mas a forma como ele erguia os quadris e friccionava-a com sua pélvis
a deixou desorientada. Ondas de prazer faziam com que toda coerência a
abandonasse e, naquele instante, era tudo instinto, aroma e sabor. A mão dele
estava sobre sua feminilidade e acariciava seu ponto mais sensível,
espalhando sensações entorpecedoras por todo o seu corpo.
O prazer aumentou à medida em que ele foi mais vigoroso e mais rápido.
Assim que atingiu o ápice, Wilhelmina não se lembrava mais do que queria
dizer ou do que precisava ouvir em retorno. Talvez fosse melhor daquela
forma. Ela estava apaixonada pelo homem com quem se casara, mas
duvidava que ele sentisse o mesmo por ela.
O alívio de Grant veio em seguida do dela. Havia água espalhada pelo
banheiro e eles precisariam de outro banho, mas o que importava era deitar a
cabeça sobre o peito dele e descansar. Ainda encaixados, ele escorregou pela
banheira, e a acomodou no colo, envolvendo-a em um abraço forte.
— Assim?
Ele perguntou, ofegante. Ela levou alguns segundos para retomar a
consciência e entender o que o marido dizia.
— Assim.

E LE ESTAVA APAIXONADO e perdera a oportunidade de dizer. Segurando


Wilhelmina em seus braços, Sawbridge sabia que ela conquistara e cravara
fundo uma bandeira bem no meio de seu coração. Era provável que nem ela
soubesse, mas tomara posse dele e não havia nada que pudesse fazer para
evitar. Não era possível escapar e ele não era homem de fugir dos problemas.
Depois do sexo na banheira e de experimentar toda devassidão que sua
esposa poderia lhe oferecer, ele a enxugou, a levou para a cama e a aninhou
em seu peito. Ficaram em silêncio por vários minutos, talvez uma hora
inteira, enquanto ela apenas enroscava os dedos nos seus pelos e ele
acariciava-a nos cabelos até que dormisse.
Apesar da satisfação física, ele não conseguiu adormecer. Deixou
Wilhelmina ressonando sobre os travesseiros, vestiu seu roupão e desceu para
o escritório. Talvez se ele lesse cartas muito enjoadas de seus administradores
e gerentes, pudesse sentir sono o suficiente. Acendeu lamparinas e serviu-se
de um uísque. A pilha de correspondência do dia parecia ainda maior que a
anterior. A maioria das cartas eram convites e agradecimentos, resultado da
empreitada social de sua esposa.
Um sorriso se formou em seus lábios. Aquela mulher o estava deixando
desorientado, então precisava cuidar de ser um tolo apenas para ela. Sentou-
se para analisar algumas das cartas, pois nada era mais eficaz para causar
sono do que os relatórios de seus diretores. Números, mais números e
algumas palavras entremeadas por números deviam ser capazes de fazê-lo
adormecer, mesmo que por sobre a mesa.
Depois do segundo relatório, uma carta de aparência não familiar chamou
sua atenção. Tratava-se de um papel simples, diferente daquele que fornecia
para seus empregados e contratados. Era o papel de uma pessoa pobre,
comum, de renda inferior. Ao virar para ver o remetente, Sawbridge sentiu
um desconforto imediato. A correspondência vinha de Thomas Caldwell.
— Mas que diabos?
Ele virou a carta para lá e para cá. Endereçada à Sra. Sawbridge, estava
lacrada e não era possível ler o conteúdo. Claro que ele queria ler o que tinha
naquela maldita carta, afinal, um homem do passado de Wilhelmina estava se
correspondendo com ela de forma muito estranha. Homens solteiros não
trocavam correspondências com mulheres casadas.
Mas ele não faria aquilo. Talvez não fosse nada demais e Sawbridge
estivesse apenas exagerando. Para não restar dúvidas, tomaria uma
providência simples: assim que amanhecesse o dia ele investigaria aquele
Thomas Caldwell. Seus homens descobririam tudo sobre ele e, em breve,
Sawbridge saberia o que ele insistia em querer com sua esposa.

E LA PERDEU A HORA OUTRA VEZ . Acordou tarde, bem depois do nascer do sol,
com a cama vazia ao seu lado. Harriet aguardava no quarto de vestir para
ajudá-la a se preparar para o dia, mas ela precisava de um banho, antes. As
manchas, cheiros e gostos da noite anterior ainda estavam por sobre ela, em
todos os lugares - e pareceu muito indecente compartilhar tudo aquilo com a
camareira. Ninguém precisava saber das perversões que ela e Grant
realizavam em sua intimidade.
O relógio marcava dez horas. Grant já fora para o escritório, ou para a
fábrica, ou para alguma outra indústria ou loja que precisasse da presença
dele. Desinteressada em enfrentar a enorme casa sozinha, tocou o sino e
chamou sua criada. Com Harriet, entrou Bertrand. O pequeno miava e se
pendurava nas saias da camareira, que reclamava alguma coisa.
— Pois não, milady. Quero dizer, senhora.
— Demora a se acostumar, não? — Wilhelmina riu. — Harriet, traga meu
café aqui, por favor. Comerei alguma coisa no quarto e me arrumarei para ir à
escola.
Com um aceno de cabeça, Harriet saiu e deixou o gato. Bertrand pulou
sobre a cama, afiou as garras nos cordões da cortina do dossel e acomodou-se
sobre o travesseiro de Grant. Wilhelmina riu e olhou-se no espelho querendo
confirmar se havia um sorriso tolo em seus lábios, como aquele que percebia
nas amigas sempre que estavam suspirando por seus maridos.
Ela não queria ser uma “suspiradora”. Era prática demais para se abraçar
com seus romances e sonhar que o Sr. Rochester estava ali, para ela. Se bem
que o Sr. Rochester era imperfeito, ele tinha segredos sombrios que os
separaram de sua Jane.
A criada retornou com a bandeja de comida e uma carta.
— Senhora, o Sr. Arthur disse que essa carta chegou ontem. Veio
endereçada à Sra. Sawbridge.
Wilhelmina sentou-se à frente de uma mesinha. Estava com fome, pois o
cheiro de ovos com presunto e tortinhas doces a fez salivar. As noites de
indecências com seu marido a deixavam faminta e estranhamente relaxada
toda manhã. Comeu alguma coisa, bebeu uma xícara de chá, mas não
conseguiu desviar os olhos da carta. Intrigada, pegou a correspondência que
fora entregue com o destinatário para cima e quase congelou de pavor quando
olhou o remetente.
Ela precisava parar de reagir visceralmente a Thomas Caldwell. Quando
não estava morrendo de amores por ele, estava assustada e temerosa que a
presença dele pudesse perturbar a tranquilidade de sua vida de casada. Abriu
a carta apressada e leu o conteúdo estarrecida. O homem de seu passado
estava propondo encontrar-se com ela às escondidas.

Lady Wilhelmina,
Desde o festival da colheita em Thanet, venho sendo consumido
pela necessidade de reencontrá-la. Se for de sua vontade, também,
estou em Londres na casa do Sr. Fulton e adoraria revê-la. Aguardo-
a hoje, às cinco, para um chá, na Shaftesbury Avenue, loja seis.
T.C.

Se a carta de felicitações a irritou, aquela a deixou furiosa. Wilhelmina


jogou o papel sobre a bandeja e levantou-se, assustando Harriet, que
aguardava para arrumá-la para o dia.
— Não acredito! — A jovem dama disparou, nervosa. — Não consigo
acreditar que ele está fazendo isso agora!
— Desculpe, senhora… o que houve?
Wilhelmina pegou a carta e entregou para a camareira.
— Veja, Harriet. Olhe a audácia desse senhor!
A criada abriu o papel e o leu. A família McFadden só tinha criados
letrados, os que não sabiam ler foram ensinados na própria casa. Os criados
de Greenwood Park estudavam na escola da vila, mesmo já na fase adulta, se
fosse preciso. O Conde de Cornwall acreditava que a educação era
fundamental para o bem-estar das pessoas. Harriet devolveu a carta para sua
dama, um pouco confusa.
— A senhora vai encontrar-se com ele?
— Não! Quero dizer, não sei. — Wilhelmina começou a girar pelo
quarto. — Eu o esperei por quatro longos anos. Eu resisti a todos os pedidos
de casamento na expectativa de que ele fosse vir para mim. Até que… bem,
então estou casada com o Sr. Sawbridge. E o que o Sr. Caldwell faz? Ele quer
se encontrar comigo!
— Talvez ele queira a senhora exatamente porque esteja casada. Homens
são estranhos, eles costumam desejar o que não podem ter.
Wilhelmina sentou-se à frente da penteadeira, deixando a maior parte do
desjejum intocada. Harriet começou a lhe escovar os cabelos.
— Acha que é isso? Que ele me quer agora que estou casada?
— Não sei dizer, senhora. O que a senhora quer?
Ah, como aquela pergunta era de difícil resposta. Wilhelmina não fazia a
menor ideia do que ela queria, de verdade. Sentia-se determinada, obstinada,
ciente do que pretendia de sua vida - e então envolveu-se com um patife,
casou-se com um homem de fama duvidosa e estava sendo confrontada por
seus fantasmas. Ela tinha que tomar decisões e se ater a elas. Não podia mais
agir como uma menina - ela era uma mulher.
— Preciso dizer ao Sr. Caldwell que ele está perdendo seu tempo, que
estou fazendo o que ele me pediu meses atrás - estou seguindo com minha
vida.
— Quer que eu pegue papel e caneta?
— Não, Harriet. Preciso dizer isso a ele pessoalmente.
— Senhora… não é adequado encontrar-se sozinha com um homem
solteiro.
— Não estarei sozinha, você irá comigo. Tenho que falar com ele de
forma que não reste dúvidas da minha decisão, Harriet. Uma carta vai gerar
outra carta e mais outra. Quero que o Sr. Caldwell entenda realmente que não
há esperanças de me ter novamente.
A camareira fez silêncio, sabendo que não era muito sábio discordar de
sua dama. Mesmo que Harriet não fosse uma criada comum e conhecesse
Wilhelmina desde a infância, que elas tivessem sido praticamente criadas
juntas e que ela sempre emitisse sua opinião até quando não solicitada. As
escovadas ficaram mais intensas e dolorosas.
— Você quer dizer mais alguma coisa. — Wilhelmina suspirou.
— A senhora deveria contar ao seu marido. — Harriet puxou os cabelos
para trançá-los. — Esse Sr. Caldwell está sendo inadequado, se o Sr.
Sawbridge descobrir…
— Ele não descobrirá, Harriet. — Outro puxão no cabelo fez com que a
cabeça de Wilhelmina pendesse para trás. — Eu direi que estou na escola,
depois volto para casa como se nada tivesse acontecido. Thomas vai entender
e desaparecer e tudo ficará como está.
A criada puxou ainda mais os cabelos enquanto os penteava e Wilhelmina
decidiu não questionar. Harriet era ainda mais pudica do que ela e achava
homens todos uns brutos, indignos de confiança. Ela nunca gostou de
Thomas Caldwell, principalmente depois que confirmou que eles se
encontravam às escondidas - afinal, a camareira serviu de álibi por muitas
vezes.
Harriet estava certa. Era uma situação inusitada e Wilhelmina não deveria
aceitar o convite do seu ex-amor do passado para mais um encontro às
sombras, mesmo que fosse à luz do dia e em uma das avenidas mais
movimentadas de Londres. Aliás, isso apenas deveria acender para ela um
sinal de alerta bastante significativo. A cidade inteira conhecia Grant e a
Shaftesbury Avenue era próxima demais do escritório dele.
Mas, com a camareira a tiracolo, ela sabia que tinha uma boa desculpa -
estava passando e encontrou um amigo da família. Então, ela se sentiu segura
para ir uma última vez até o homem por quem esperou tantos anos - e diria a
ele que outro ocupara seu coração.

A INDA ERAM quatro e meia da tarde, mas poderia ter se passado uma semana.
Quando foi que um dia se tornou tão longo? Sawbridge adorava estar em suas
empresas, conversar com negociantes e tomar decisões importantes. O
escritório, que ficava ao lado do Banco de Londres, era seu lugar favorito.
Fechava-se lá e mal via o tempo passar. Poucas pessoas ousavam incomodá-
lo quando estava ali e, quando queria observar o movimento da cidade, abria
sua janela e deixava o ruído de pessoas, cavalos e carruagens passando entrar.
Mas estava muito incomodado, naquele dia. Levantou e sentou várias
vezes até que sua secretária entrou.
— Sr. Sawbridge, seu advogado deseja vê-lo.
— Eu marquei com ele?
— Não, senhor.
— Ele marcou comigo?
— Não, senhor. Mas ele diz que é muito importante. Pediu para frisar o
importante e o muito.
Claro que era importante. Sawbridge pedira informações sobre Thomas
Caldwell a todos os seus contatos possíveis, era provavelmente aquele o
assunto que Bowes tinha para tratar com ele. Se o advogado soubesse de
algo, viria correndo comunicar. Aquilo o fez se remexer na cadeira, nervoso.
— Mande-o entrar e traga café.
A Srta. Trimmes fechou a porta e o advogado entrou em seguida.
Carregava uma pasta preta impecável, vestia traje completo e tinha uma
expressão de quem daria uma péssima notícia.
— Sr. Bowes, o que o traz inadvertidamente até meu escritório?
O homem enrolou um tufo do bigode nos dedos e expirou profundamente.
— As novidades que o senhor procura. Tudo sobre Thomas Caldwell.
Abrindo a pasta preta, o Sr. Bowes colocou um envelope de papel
escurecido sobre a mesa de madeira. Havia uma ou duas fotografias,
documentos públicos e duas declarações.
— Não estou com paciência para ler. O que diz tudo isso?
— Talvez o senhor deva se sentar.
Sawbridge percebeu que estava ereto, apoiado com as duas mãos sobre o
tampo escuro de madeira envernizada. A Sra. Trimmes entrou com o café e
alguns biscoitos e deixou a bandeja sobre um aparador, saindo correndo em
seguida. Ela estava sempre morrendo de medo dele, como se fosse um
homem mau. Sawbridge serviu duas xícaras, uma para si e outra para o
advogado, e se sentou novamente.
— O que houve, Bowes? Quem é esse cara?
— O Sr. Thomas Caldwell é filho de Bruce Caldwell, um plebeu pobretão
meio escocês, meio inglês. Quando tinha seis anos, perdeu a mãe, o pai
mudou-se para Thanet, em Kent, e casou-se com uma mulher de lá - uma
modista. O Sr. Bruce Caldwell já faleceu de gripe, e o Sr. Thomas é hoje o
homem que sustenta a família. Ele tem vinte e nove anos e…
— E?
— E ele é amigo da Sra. Sawbridge.
Talvez o advogado esperasse um rompante de ira do industriário, mas a
informação que ele colocou levou bastante tempo para ser entendida por
Grant Sawbridge.
— Amigo da família McFadden, quer dizer?
— Não, senhor. Amigo de Lady Wilhelmina, hoje a Sra. Sawbridge.
— Homens solteiros não são amigos de damas solteiras. Isso é totalmente
inadequado.
— Sim, senhor, entendo que seja. Mesmo assim…
— Bowes, você está insinuando que esse tal Caldwell era… que ele
tinha… que ele e minha esposa…
— Não estou insinuando nada, senhor. — O advogado se sentou, suas
mãos trêmulas quase deixando a xícara cair. Sawbridge estava novamente
erguido da cadeira, dobrado por sobre a mesa como um leão prestes a atacar.
— Mas há indícios, senhor… as pessoas com quem conversamos, elas…
— Elas disseram o que?
— Que eles eram muito amigos.
— Isso é ridículo. — Sawbridge bateu na mesa e causou um estrondo. —
Quero falar com esse tal Caldwell, onde ele está? Onde ele está escondido
nessa cidade fedorenta?
— Ele tomará chá às cinco com uma dama, na loja seis da Shaftesbury
Avenue.
Sawbridge olhou para o relógio. Já eram quase cinco horas, mas a loja
ficava próxima. Era uma cafeteria frequentada quase sempre por negociantes
e algumas mulheres sozinhas também costumavam aparecer por lá. Mas eram
mulheres do tipo Caroline Eckley, não do tipo Wilhelmina McFadden.
— Como descobriu isso?
— O senhor nos paga uma quantia obscena para sabermos de tudo. Com a
quantidade certa de dinheiro, as pessoas dizem exatamente o que precisamos.
Ele sabia, claro que sabia. Havia muito pouco que o dinheiro não
comprasse, principalmente quando as pessoas estavam muito empobrecidas
pelas péssimas condições de trabalho nas fábricas. Era fácil arrancar
informações até dos criados mais fiéis se uma libra fosse balançada na frente
deles, por isso os investigadores de Sawbridge tinham fundos quase
ilimitados. Geralmente, eles descobriam informações sobre investidores e
futuros negócios. Daquela vez, ele precisava entender aquele relacionamento
entre sua esposa e um tal de Thomas Caldwell.
Relacionamento. Não, ele precisava conferir algumas coisas com os
próprios olhos.
— Certo, Bowes. Obrigado por seus serviços, eu vou sair.
De pé novamente, o industriário pegou seu chapéu e seu casaco e
marchou para a porta.
— O trajeto a cavalo é mais tranquilo, senhor.
Sawbridge respirou fundo e deixou o prédio. Sim, o trajeto a cavalo era
mais rápido, mas o deixava mais exposto. Ele não pretendia que ninguém o
visse indo espionar sua esposa por achar que ela o estava traindo. Por Deus,
ele parecia um jovem tolo dominado pelas emoções, pois o homem racional
conhecido como Grant Sawbridge jamais se prestaria a um papel ridículo
como aquele. Tentou caminhar calmamente para não chamar a atenção de
ninguém, mas seus pés quase o atropelaram.
Era por aquele motivo que estar apaixonado era uma bobagem. Homens
deixavam de ser objetivos e razoáveis por causa de mulheres. Guerras eram
travadas - e, de repente, Helena de Tróia veio à sua mente. Linda, loira como
uma deusa, e infiel. Não, Helena não foi infiel, foi raptada. Mas ela não se
apaixonou por Páris? Céus, Sawbridge estava correndo pelas ruas e
trombando nas pessoas enquanto divagava sobre a história da Guerra de Tróia
e sobre personagens mitológicos.
E então ele estava lá, na cafeteria onde Thomas Caldwell se encontraria
com uma dama. Mesmo que o patife estivesse acompanhado, Sawbridge o
abordaria e o colocaria em seu lugar. Provavelmente era sorte do canalha,
pois, se estivessem sozinhos ou em um clube de cavalheiros, Sawbrigde lhe
partiria a cara por apenas considerar escrever para sua esposa.
Ele se preparou para entrar. Ajeitou o paletó, passando as mãos abertas
pelo linho, e ajustou a gravata. Não queria parecer um homem que estivera
correndo para chegar ali. O atraso para arrumar o visual lhe foi providencial,
pois ele acabou vendo algo que o destroçaria antes que pudessem vê-lo sendo
destroçado. O maldito Caldwell estava sentado em uma mesa de canto.
Sawbridge provavelmente não o reconheceria imediatamente se não fosse a
presença de sua esposa na mesa com ele.
Wilhelmina usava um vestido laranja e marrom e estava acompanhada de
sua camareira. A jovem estava de pé ao lado de sua senhora e olhava,
distraída, para o lado de fora da cafeteria. Ela poderia vê-lo, se Sawbridge
não se escondesse atrás de uma pilastra. Toda tentativa de não parecer
ridículo, antes, esvaneceu ante a visão de sua mulher sentada com o homem
do passado, o amigo. Ele sabia que tipo de amizade seria aquela.
Não era possível ouvir o que conversavam sem se aproximar e, caso se
aproximasse, seria visto por Harriet. O coração de Sawbridge estava
disparado e ele sentiu dor no peito. Manteve os olhos na cena, querendo que
Wilhelmina se levantasse e batesse em Caldwell. Nos quinze minutos que
passou espreitando o casal, desejou secretamente que ela jogasse comida
sobre ele, que ela o estapeasse, que ela gritasse e xingasse. Claro que ela
jamais teria uma atitude tão indigna ou grosseira, mas era a única forma de
acalmar o monstro que começou a acordar dentro de si.
Mas nada daquilo aconteceu. Eles conversavam polidamente e, em
determinado momento, Caldwell levou as mãos às de Wilhelmina. Ela estava
sem luvas e não impediu que o homem a tocasse. Também não impediu
quando ele segurou seus dedos longos e macios e os levou à boca, beijando-
os. Sawbridge piscou uma vez, longamente, mantendo os olhos fechados por
dois segundos inteiros. A dor no peito aumentou enquanto uma tormenta de
pensamentos o assolava.
A ruína no jardim. O patife com quem ela não poderia se casar. A
necessidade de retribuição. A aceitação rápida demais de tê-lo como marido.
A estranha conversa sobre infidelidade. A carta recebida logo após o
casamento. A resistência em ser seduzida por ele. O nervosismo do encontro
em Thanet. Tudo aquilo estava relacionado a Thomas Caldwell - o homem do
passado de Wilhelmina, o homem com quem ela se relacionava desde antes
de se casar.
Sawbridge abriu os olhos e a cena continuava a mesma. Thomas
Caldwell, loiro, lindo e com aparência de homem pobre, segurando e
beijando as mãos de sua esposa. Parecia bastante claro que eles se gostavam.
Quase óbvio demais que eram amantes, e amantes descarados que não se
importavam em serem vistos em plena luz do dia.
Ele precisava ir para casa e beber até esquecer tudo aquilo. Esquecer o
que acabara de ver e todos os malditos sentimentos que começou a sentir por
uma mulher que nunca o quis, nunca o amou e que, desde o início, se
mostrou interessada em um casamento de conveniência por uma única razão:
retribuição. Então, endireitou a coluna e ajeitou novamente a gravata antes de
sair pisando firme da cafeteria. Quando suas mãos tocaram seu peito, por
sobre as camadas de tecido, ele pode confirmar que o espaço entre as costelas
estava vazio. Oco. Por um período, esteve doente acreditando que poderia
mudar ou ser mudado. Mas como fora tolo. Grant Sawbridge não tinha
coração, e era melhor que continuasse assim.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

O ENCONTRO COM T HOMAS NÃO FOI O QUE W ILHELMINA ESPERAVA . A O VÊ -


lo, sozinho, aguardando por ela, não sentiu vontade de correr para seus braços
e se atirar, pedindo que ele a levasse embora dali. Não quis dizer que o amava
e implorar para que fugissem juntos, como elaborou tantas vezes em seus
pensamentos noturnos. A profusão de sentimentos não a arrebatou. Onde
deveria haver aquela sensação de angústia e dor não havia nada.
Ele parecia abatido, com olheiras e a pele marcada pelo sol. Os cabelos
também estavam maltratados, mas talvez sempre tivessem sido e ela nunca
vira seus defeitos. Thomas era um homem que trabalhava na terra, ele era
pobre e mal tinha renda para sobreviver.
— Estou muito feliz que tenha vindo. — Ele se levantou e puxou a
cadeira para que ela se sentasse. Harriet colocou-se de pé ao lado de sua
senhora, mas nem mesmo olhou para eles. Ela sabia exatamente como se
portar em uma situação daquelas. — Temi que seu marido não fosse permitir
que saísse.
— Sou casada, não prisioneira. — Ela se assustou com a rispidez das
palavras. — Mas suponho que, se imaginasse que meu marido fosse tão
rígido, não deveria ter enviado aquela carta. Por quê?
— Desespero?
A risada nervosa de Thomas fez com que ela finalmente sentisse alguma
coisa, mas não era amor. Era pena. Um aperto na garganta indicou que ela
sabia que ele estava sofrendo e precisando dela, mas por outro motivo.
— O que houve, Thomas?
Uma moça se aproximou deles com um bloco para tomar notas e Thomas
fez o pedido de um chá completo. Wilhelmina suspeitou que ele não pudesse
arcar com aquela conta, mas ela estava com uma bolsa de duzentas libras em
seu poder. Jamais deveria levar aquele dinheiro todo consigo, mas, por algum
motivo, suspeitou que fosse precisar dele. Considerava apenas que fosse para
subornar o homem e garantir que ele não atrapalhasse seu casamento.
Talvez ela também estivesse desesperada.
— As coisas não estão bem. Mesmo com a ajuda promovida por seu
marido…
— A vila está sem recursos?
— Não, eu estou.
— Dívidas?
— Algumas por causa do tratamento de saúde de Moira. Outras porque,
tentando conseguir dinheiro extra, perdi algum em mesas de jogos.
Wilhelmina suspirou. Ela odiava vícios, mesmo sabendo que os homens
eram absurdamente fracos para todos eles. Moira, a irmã de Thomas, filha do
pai com a nova esposa, era uma menina doente. Ela mesma já ajudara com
algumas moedas para a compra de remédios, e Isaac sempre contribuía para a
família. Mas não foi o suficiente, nunca seria. Enquanto algumas pessoas
fossem tão pobres, nenhuma esmola seria suficiente.
— O que eu posso fazer?
— Eu não sei a quem recorrer, Minnie.
Ela sentiu um arrepio lhe percorrer a coluna ao ouvir o apelido. Era como
se ele não tivesse mais autorização para dizê-lo, como se apenas um homem
tivesse o direito de chamá-la de Minnie - e era seu marido. Certo, havia os
irmãos, mas eles não contavam.
— Você sabe que eu sou uma mulher casada, portanto seria improvável
que eu mantivesse dinheiro comigo.
— Não custava tentar.
Não, não custava. Assim como não custava a ela o ajudar. Wilhelmina
pegou a bolsa com dinheiro e colocou sobre a mesa. Era muito dinheiro, mais
do que ela deveria dar a ele. Não porque não merecesse, mas porque temia
que ele pudesse jogar fora em uma mesa de cassino, novamente. Ergueu os
olhos e o encarou, no instante em que o chá foi servido. Ela bebericou seu
Earl Grey com leite e sentiu o amargo em sua boca.
Wilhelmina era rica. Nobre, foi criada em um berço dourado e sempre
teve tudo que queria - e muito mais do que precisava. Sonhou com o amor
impossível de Thomas Caldwell, que preferiu viver na pobreza miserável do
que arruiná-la com sua falta de estirpe. No fundo, ele foi o homem mais
íntegro que ela já conhecera e fora totalmente correto com ela desde o início.
Ela era uma jovem mimada demais para reconhecer o quanto ele abdicara
para mantê-la livre para conseguir um bom casamento e viver a vida que
acreditava que ela merecia.
Se Thomas fosse um canalha, teria ficado com ela e seu dote. Usaria isso
para retirar a família da miséria e a colocaria em uma vida mediana. Estaria
Wilhelmina realmente preparada para abrir mão de tudo pelo amor dele, aos
dezessete anos?
Claro que não. Naquele momento, olhando para o homem que ela jurou
amar para sempre, tinha certeza que não. E ele garantira que ela estivesse
livre para um casamento que a faria feliz.
— De quanto é a dívida, Thomas?
— Cinquenta e duas libras.
— Esse é o valor total?
— Sim, é.
Wilhelmina pegou a bolsa de moedas e empurrou para o lado dele,
discretamente.
— Fique com isso. — Ela disse, bebericando o chá tranquilamente.
Precisava dar a impressão de que nada estava acontecendo. Por decoro e por
medo de que soubessem que havia muito dinheiro ali. — Dá para você pagar
o que deve e tentar um recomeço, talvez.
— Quanto tem aqui? — Thomas também demostrou medo de remexer a
bolsa. Era um lugar seguro, mas muito movimentado. Se o vissem com
dinheiro, podia ser arriscado.
— Duzentas.
— Céus, Minnie! — Ele passou as mãos pelos cabelos. — É muito, não
posso aceitar.
— Pode, e vai. Eu… eu sinto muito, Thomas. Não é justo que você e sua
família sofram tanto sendo tão honestos e trabalhadores.
— O dinheiro que a Sra. Caldwell ganha na vila cobre todas as nossas
despesas, sabe. Ela tem sido requisitada por mulheres que vão passar o verão
no hotel. Mas tem o tratamento de Moira e os médicos são sempre muito
caros.
— Eu não vou mentir que entendo, mas vou tentar ajudar. Conversarei
com Edward, pediremos que o Dr. Davies cuide dela.
— Não podemos pagar pelo serviço dele.
— Não terão que pagar.
Thomas piscou e ela percebeu que estava indo longe demais. Nenhum
homem aceitaria ser tão rebaixado em sua virilidade sem reagir. Ela estava
oferecendo demais e sabia que precisava recuar.
— Pensei que talvez você pudesse trabalhar no hotel.
Ele abriu os olhos novamente e a encarou.
— Eu já tenho trabalho.
— As terras não são mais lucrativas, Thomas. Eu sei, não sou apenas um
enfeite de prateleira. Se sua madrasta não consegue dinheiro o suficiente para
todos os tratamentos da filha e você não consegue renda com a fazenda…
— Não posso vender as terras, Wilhelmina. É tudo que sobrou do meu
pai.
— Não venda. Apenas vá trabalhar no hotel e deixe tudo por conta dos
seus irmãos.
— O hotel está contratando?
— Está. — Ela mentiu. Era arriscado, mas ela tinha Caroline e Grant para
pedir um favor. Se contasse a situação da família para sua cunhada,
certamente Caroline daria um jeito de empregar o Thomas Caldwell. Ao
menos para manter sua dignidade, já que ele não aceitaria dinheiro demais. —
E eu posso indicá-lo.
— Tudo bem, eu vou me inscrever para o cargo. — Thomas pegou o saco
de moedas e colocou dentro do bolso do casaco. Depois, levou as duas mãos
até as dela. — Você sabe que eu sempre te amarei, não sabe, Minnie?
Era demais ouvir aquilo. Talvez Elizabeth tivesse, sim, razão, e ela
pudesse ter aqueles dois homens em seu coração. Mas, naquele momento,
mesmo quando o seu passado a segurava com as mãos nuas e levava os dedos
dela até os lábios, ela só sabia que estava errado. Que não era ele quem
deveria beijá-la ou tocá-la, e sim seu presente. Seu marido.
— Eu agradeço tudo que fez por mim. Você compreendeu o que eu
precisava antes que eu tivesse maturidade para isso.
— É o papel de um cavalheiro, proteger uma dama.
Sim, era. E também era hora de ir embora, pois o encontro já a afetara
demais. Passava das seis e ela precisava voltar para casa, se arrumar e esperar
Grant para o jantar sem que ele percebesse a perturbação dentro dela.
Despediu-se de Thomas Caldwell dando adeus ao passado de forma
definitiva e prometeu que o ajudaria a conseguir um salário melhor. Seguiu
com Harriet para fora da cafeteria e pegou um lenço de um bolso escondido
na saia. As lágrimas que segurara resolveram descer por sua face, teimosas e
inconvenientes, fazendo com que precisasse esconder-se dentro do primeiro
coche de aluguel que encontrou.

E LE JÁ TINHA BEBIDO meia garrafa quando a porta da casa se abriu. Ninguém


estava por perto porque ninguém era louco de o enfrentar naquele estado de
embriaguez. Depois que o Dr. Bowes saiu da casa, Sawbridge manteve-se no
escritório e ficou ali, vendo o nível do conhaque descer na garrafa enquanto
nutria com álcool seu ódio.
Não, não era ódio. Ele nunca sentira ódio em sua vida, não sabia sequer
compreender aquele sentimento. O que o movia naquele instante era algo
muito mais profundo, algo que parecia remexer suas entranhas querendo sair
e que gritava em seus ouvidos, como se houvesse, realmente, um monstro
dentro de si. O conhaque fazia o monstro mais forte e mais capaz de mantê-lo
respirando e lutando.
A casa pareceu ganhar vida de repente. Um miado desafinado, passos na
madeira, vozes femininas, aroma de flores - tudo que ele não precisava ouvir,
ou sentir, ou cheirar. As vozes ficaram mais altas e mais nítidas até que a
porta do escritório se abriu e ela entrou, acompanhada de Bertrand. O felino
pulou sobre a cadeira de Sawbridge, arranhando o couro com garrinhas
afiadas, mas ele não teve nenhuma vontade de reagir. Estava sentado em uma
poltrona, de frente para a lareira, olhando para o fogo que ardia no carvão.
— Grant? Você já está em casa?
— Há uma hora. Talvez mais.
— Aconteceu alguma coisa no escritório? Você… está doente?
Ela foi até ele, os passos irritando seus ouvidos. Wilhelmina se colocou
na sua linha de visão e o encarou. Sawbridge serviu-se de mais uma dose e
muito pouco sobrou na garrafa.
— Não estou doente. Mas eu precisava resolver um assunto, portanto
estou aqui.
— É algo importante?
Ele se levantou e apontou para a mesa. Sua escrivaninha de nogueira
estava cheia de pastas, papéis e livros, alguns abertos, outros fechados, com
marcações. Havia moedas e outros papéis do tesouro espalhados.
— Sim, é. Você tem até as dez horas para escolher o que quer de mim.
Qual a retribuição que deseja por nosso casamento. Afinal, não foi por isso
que nos unimos? Você se redimia de um escândalo, eu tinha meu herdeiro e
você receberia o que quisesse em troca. Escolha.
Wilhelmina ficou confusa. A expressão na face dela foi de uma leve
preocupação para um leve pavor. Era bom que estivesse apavorada, sim, pois
ele preferia que ela o temesse. Embriagado, ele estava com muito pouco
controle de qualquer coisa.
— Grant, o que está havendo?
Ela tentou tocá-lo e ele se afastou. Remexeu os papéis na mesa e
encontrou um documento dentro de um envelope.
— Depois que escolher, assine isso.
As mãos tremiam sutilmente quando ela pegou o documento e o leu. O
pavor deu lugar à pura estupefação.
— O que é isso? — Ela sacudiu os papéis. — Divórcio? Você… você
quer se divorciar de mim? Nós estamos casados há pouco mais de um mês!
Ontem tudo estava bem entre nós e hoje você chega em casa dessa forma,
com um documento de divórcio?
— Você não está grávida nem eu posso pedir uma anulação. Portanto,
teremos que ir pela via mais difícil. Escolha, Wilhelmina, e acabe logo com
isso.
— Não, eu não vou escolher absolutamente nada! — Ela esbravejou, mas
a voz estava trêmula. — Você vai me explicar o que está acontecendo nesse
escritório, aqui e agora.
Talvez ela tivesse direito a uma explicação ou talvez não. Era provável
que fosse ser muito grosseiro, que falasse coisas das quais se arrependeria.
Olhou para o copo já vazio em suas mãos e pegou a garrafa de conhaque para
mais um gole. Encarou a lareira crepitando por um minuto inteiro enquanto
tudo que se ouvia no escritório era a respiração dela.
Quando se virou para a esposa, Sawbridge tinha os olhos flamejantes
como o fogo que ardia lentamente.
— Eu vi vocês, Wilhelmina.
— Você nos viu. — Ela repetiu. — O que isso significa?
— Eu vi você e Thomas Caldwell! Quem é ele? O que é ele?
A frase a abalou. De repente, Wilhelmina ficou pálida e se apoiou na
mesa, a cor sumindo de sua face. Piscando muito rapidamente, ela o encarava
com esforço e em silêncio súbito, provavelmente procurando palavras para
respondê-lo. Sawbridge não estava apto a compreender nenhuma resposta
que ela pudesse dar, mesmo que fosse a verdade. Dominado por uma fúria
difícil de ser contida, ele virou mais um gole de conhaque e a garrafa já
estava quase no fim.
— Você bebeu demais, vamos para o quarto. Vou providenciar um banho
e…
— Quem é Thomas Caldwell, Wilhelmina?
— Grant…
— Sawbridge. Você perdeu o direito de me tratar pelo nome de batismo
quando me humilhou publicamente se encontrando com seu amante em plena
luz do dia.
A boca dela se abriu e fechou novamente. Wilhelmina girou ao redor do
próprio eixo, visivelmente nervosa.
— Amante? Você enlouqueceu? Grant, eu nunca havia sido tocada de
forma mais íntima por um homem até…
— Mentira. E o homem no jardim?
— Eu era virgem, Grant.
— Você não tem ideia das coisas que eu posso fazer com uma mulher e
mantê-la virgem, minha querida. — Ele disse, debochado.
A face de Wilhelmina ficou vermelha como se todo o fluxo de sangue
tivesse sido direcionado para suas bochechas, mas ela não reagiu. Não era
fácil reagir a ele, quando queria ser cruel, Sawbridge sabia bem o que fazer.
Ele era mestre na arte de descobrir as piores formas de destruir alguém.
— Nenhum homem me tocou antes de você.
Ela apenas murmurou.
— Quem ele é?
— Thomas é um amigo da família. Ele é enteado a Sra. Caldwell, a
modista da vila de Thanet. Eu os conheço desde a infância, eles…
— Pare de mentir para mim! — Sawbridge finalizou a garrafa e bateu
com o fundo de vidro no tampo da mesa. O estrondo assustou Bertrand, que
saiu correndo do escritório. — Você tem mentido há quanto tempo? Não, eu
acho que você não está mentindo… sempre me disse a verdade, não? O
casamento foi por isso, você queria ficar bem financeiramente, queria evitar o
escândalo, nós tínhamos um negócio. Você não fez nada errado, fez?
Inclusive me deixou claro que não pretendia me ser fiel, por que diabos eu
não entendi isso naquele momento?
Ela tentou se aproximar novamente, ignorando o tom exasperado da voz
do marido, e levou a mão até ele. Sawbridge não se afastou, deixou que ela o
tocasse, que ela apoiasse as duas mãos em seu peito e o fitasse
demoradamente.
— Grant, não há nada entre mim e Thomas. Ele não é meu amante.
Sawbridge segurou as duas mãos dela entre as dele, apertando com um
pouco de força demais. Ao perceber o que fazia, soltou-a e deu três passos
para trás.
— Eu vi. Vocês estavam trocando carícias em público, maldição. E eu
entendi tudo, desde o início até agora. — Pegou os papéis do divórcio e os
colocou dentro de uma gaveta. — Mas você tem razão, o divórcio é
precipitado. Eu ainda preciso saber se terei a minha parte do acordo, preciso
saber se você está grávida antes de me divorciar. Enquanto isso, escolha a
merda que quiser, fique com o que quiser, apenas tenha a decência de enviar
ao meu advogado.
Wilhelmina talvez tenha tentado o impedir. Sawbridge provavelmente a
ouviu falar alguma coisa, talvez tenha perguntado aonde ele iria.
Cambaleando e tropeçando em si mesmo, com a roupa desgrenhada e os
cabelos despenteados, ele apenas foi. Não sabia para onde nem o que faria,
apenas que precisava ir embora dali.

D IVÓRCIO . Eram papéis estranhos, com letras difíceis de entender, como se


ela subitamente tivesse perdido a capacidade intelectual para compreender as
palavras que estavam escritas à sua frente. Wilhelmina não conhecia uma
pessoa divorciada, aquilo era a maior desonra que ela poderia imaginar. Nem
o escândalo no jardim a conduziria a uma vergonha tamanha. Ela seria
rejeitada e viraria fofoca em todos os eventos sociais por uma década inteira.
O Royal Gossip teria uma edição especial dedicada ao seu fracasso.
E, curiosamente, o que a fez desmanchar-se em lágrimas, naquele
momento, foi vê-lo sair pela porta sem nem mesmo ouvi-la. Foi pensar em
perdê-lo, em nunca mais o ter e não poder dizer que o amava.
Wilhelmina se sentou - não, ela desabou na cadeira do marido e
descansou a face nas mãos. As lágrimas a cegavam e os soluços a faziam
sacolejar sobre a peça de mobiliário que mantinha o cheiro dele, o cheiro que
geralmente a acalmava. Naquele momento, fez com que ela sofresse ainda
mais.
Não houve tempo para se explicar. Ela sequer pode dizer que Thomas não
era seu amante, que o absurdo que Grant estava pensando só existia em sua
cabeça. Ele virou as costas, ele a deixou enfiada no meio de livros e papéis
de… divórcio. Tão zangado com ela que não a queria mais.
Ela também ficou zangada. Entre lágrimas, levantou-se e foi para o quarto
que eles compartilhavam desde que se comprometeu a deixar o seu. Arrancou
o vestido, sem preocupar-se em destruir alguns botões e antes que Harriet
pudesse surgir, esbaforida, para ajudá-la. A frustração de não poder falar, de
nem saber onde ele estava para ir atrás dele, a deixou ainda pior.
— Senhora, o que houve?
— Ele foi embora. — Wilhelmina disse, arrancando a roupa de baixo
com a mesma irritação. A camareira nem sabia o que fazer, então foi ao
banheiro preparar o banho. — Ele deixou essa casa, não sei se voltará hoje.
— O senhor está enganado. Eu estava lá, posso afirmar pela senhora.
Ela sabia, claro que sabia. Os criados sempre ouviam tudo em uma casa, e
Grant não esteve preocupado em ser silencioso.
— Se eu tivesse tido a oportunidade de falar qualquer coisa! Ele jogou
aqueles papéis horrorosos sobre mim e me deixou, Harriet!
Uma nova onda de lágrimas a atingiu e Wilhelmina pensou que poderia
se afogar naquela banheira se não tomasse cuidado. Seu corpo estava fraco e
exausto. Primeiro, ela lidou com Thomas Caldwell e tudo que ele
representava. Precisou entender que o amor por ele era um ideal, um sonho
não vivido de uma menina tola e apaixonada, e que nunca iria acontecer. Que
o amor real estava à sua frente, ao seu lado, em sua cama, com olhos azuis de
vidro e cabelo laranja como o fogo no inverno. Ela teve que escolher entre
uma mentira contada para si mesma todos os dias, por quatro anos, e uma
verdade que lhe era exibida em uma vitrine, mas que ela não conseguia
enxergar muito bem.
E teve que conversar com ele, com Thomas, sobre a miséria em que ele
vivia. Sobre um homem adulto, solteiro e trabalhador não conseguir sustentar
a sua família e recorrer à jogatina para tentar - sem sucesso - multiplicar
dinheiro, enquanto ela gastava em um vestido a quantia que ele precisava
para viver um ano. Aquilo a abateu, pois Wilhelmina nunca pensou nas
pessoas daquela forma. Ela nunca viu a pobreza e a ausência de recursos nos
olhos do homem que ela amou.
Foi especialmente mais difícil ter que admitir que ele, Thomas, esteve
certo ao deixá-la. Que ela não seria totalmente feliz longe da vida que
aprendeu a viver. Talvez, apenas talvez, o amor deles bastasse. Uma casa
amorosa, crianças saudáveis. Mas, e se não bastasse? E se a pobreza os
empurrasse para longe um do outro?
Ela chegou em casa massacrada pela verdade, pela exaustão mental e pelo
fato de que qualquer coisa que fizesse para ajudar aquele homem pareceria
como esmola. Ao saber que Grant estava em casa, desejou ser acolhida em
seus braços e descansar a cabeça em seu peito sólido. Queria ouvir as batidas
de seu coração, a voz grave a acalentando e falando qualquer coisa, desde que
ele continuasse falando.
Harriet pegou o sabão e começou a lavar-lhe os cabelos.
— Você pode dizer que tinha razão.
— Não queria ter razão, senhora.
— Eu fui tola.
— Sim, senhora. Foi. Não deveria ter ido se encontrar com aquele senhor
sem contar a seu marido. Homens são assim mesmo, quando eles tiram
conclusões sobre uma coisa, não adianta tentar lhes explicar que estão
errados.
— Eu apenas não entendo como ele nos viu e conseguiu… — Sim, ela
entendia. Houve aquele momento em que Thomas beijou-lhe as mãos, mas
foi algo tão suave, tão pouco íntimo… não, ela estava querendo enganar-se.
Foi íntimo, apto a causar arrepios em qualquer dama de respeito na
sociedade. Foi escandaloso e ela sabia, porque ela entendia todas aquelas
regras idiotas e estúpidas. — Apenas preciso contar a ele o que estava
fazendo.
— Acha que ele acreditará, senhora?
— Ele tem que acreditar, não? Afinal, é a verdade.
A camareira não respondeu nada, mas Wilhelmina entendeu o que ela
queria dizer com seu silêncio. Palavras não apagariam fatos, o que ele achava
que viu era mais contundente do que a verdade. Mesmo assim, teria que
tentar. Não podia simplesmente aceitar aquela ruptura, escolher um
patrimônio e sair da vida de Grant para sempre. Ela não poderia fazer aquilo,
ela o amava.
Ah, maldição, ela amava o marido teimoso e agora teria que resolver
aquele problema que causou.
N ERVOSA , Wilhelmina não dormiu à noite. Desmaiou de cansaço, por volta
de duas da manhã, mas não foi um sono tranquilo. Antes da alvorada, estava
de pé, girando em círculos, pensando no que faria. Primeiro, ela precisava
encontrar Grant para, depois, convencê-lo a ouvi-la.
Talvez ele a amasse também. Talvez o motivo da irritação, o que o fez
beber e decidir pela medida drástica do divórcio fosse exatamente aquilo - ele
se apaixonara por ela, assim com ela estava apaixonada por ele. Aquela
pequena esperança fez com que ela quisesse se arrumar e sair para procurá-lo.
Havia muitos lugares em que Grant poderia estar naquele horário – mesmo
antes das oito, então ela teria que ser criativa.
Pediu que Harriet a arrumasse de forma sóbria, como uma jovem esposa
deveria se apresentar. Vestido azul claro para o dia, chapéu e uma sombrinha,
já que fazia sol do lado de fora. Bertrand pediu atenção e ela decidiu
aconchegar o bichano. Colocou-o acomodado em seu colo, por dentro do
casaco, e desceu.
— Sra. Sawbridge, bom dia. — Arthur a recebeu. — Onde sirvo o
desjejum?
Claro que o mordomo sabia que seu patrão não estava em casa. Ela não
precisava contar, nem tentar esconder. Era função de uma boa criadagem
saber tudo sobre a casa e seus patrões.
— Não vou comer nada agora, Arthur. Preciso sair.
— Mas senhora…
— Onde encontro a Srta. Trimmes?
O mordomo franziu a sobrancelha e não disse nada.
— Não precisa se preocupar, Arthur, eu apenas quero perguntar se ela
sabe onde meu marido está. Todos vocês já devem saber o que houve aqui,
ontem, portanto também entendem que eu preciso encontrá-lo. Se haveria
alguém mais para quem ele pediria ajuda, seria a secretária. Estou errada?
— Não, senhora. Basta pedir ao cocheiro que ele levará a senhora até a
Srta. Trimmes.
— O Sr. Sawbridge não saiu de carruagem, ontem?
— Ele foi a cavalo, senhora.
Ah, além de tudo o homem estava louco. Sair cavalgando depois de beber
uma garrafa de conhaque era totalmente inconsequente. Ele poderia cair e
quebrar o pescoço. Wilhelmina sentiu o peito doer e o ar lhe faltar ao
imaginar Grant Sawbridge ferido, morto em uma via imunda.
— Obrigada, Arthur. — Ela segurou as duas mãos do mordomo, em um
gesto que lhe era totalmente incomum. — Harriet, fique. Eu preciso resolver
isso sozinha.
— Senhora, eu acredito que…
— Você sempre está certa, Harriet. Mas eu realmente preciso me
encontrar sozinha com o Sr. Sawbridge.
A camareira aquiesceu, como se fosse necessário. No fundo, Wilhelmina
costumava fazer apenas o que queria. O responsável por aquele
comportamento era Isaac, que sempre a deixava tomar as decisões. Não,
também havia Nathaniel, que a incentivava a ouvir mais a si mesma do que
aos outros. Nate dizia que ela podia errar, mas era melhor quando a culpa do
erro fosse integralmente sua.
A Srta. Trimmes morava em Whitechapel, uma região pobre e perigosa
da cidade. Nenhuma mulher solteira com uma criança bastarda deveria morar
ali, pois o risco de ser assaltada ou violentada era muito maior – mas não
havia opções viáveis fora dali. Era curioso como Londres era dividida em
duas partes muito distintas - aquela habitada pela nobreza e pelos burgueses
ricos, e aquela ocupada pela plebe miserável.
Wilhelmina teve receio de embrenhar-se, sozinha, por vielas fétidas e de
piso escuro, com pessoas amontoadas, maltrapilhas e desabrigadas. Mas ela
acreditava que, se alguém pudesse saber aonde Grant estava, era a secretária.
Se Edward e o duque estivessem na cidade, ela procuraria o marido na
McFadden Garden ou na Casa Trowsdale. Como estavam ambos em Kent,
ela não pretendia sair por cada hotel da cidade procurando seu marido
errante. Pior, ela temia que ele pudesse ter se enfiado no Riderhood, na cama
de… não, ela não iria pensar naquilo.
A carruagem parou na frente de um prédio simples, porém com fachada
arrumada. Havia flores em cantoneiras nas janelas e a pintura não parecia
apodrecida, como seus vizinhos. Era nitidamente uma estrutura cuidada por
seu proprietário.
— A Srta Trimmes mora aqui, senhora. — O cocheiro desceu e abriu a
porta para Wilhelmina. — Vou aguardá-la.
Agradecida, ela assentiu com a cabeça e bateu à porta de madeira. O
barulho a assustou, pois acreditou que não usara de muita força. Como
ninguém atendeu, ela bateu novamente. Algo rangeu, tremeu e a porta
começou a abrir. Uma cabeça pequena, com olhos extremamente azuis e
cabelos ondulados a encarou. Era um garoto de não mais do que sete anos,
provavelmente o filho da Srta. Trimmes.
— Sua mãe está? Diga a ela que é a Sra. Sawbridge.
O menino correu para dentro, deixando a porta parcialmente aberta. Ou
ele era realmente muito jovem para entender os perigos da região ou
acreditava que ela não era uma ameaça. Não demorou muito para que a Srta.
Trimmes aparecesse. Ela estava adequadamente vestida, mas seus cabelos
foram rapidamente ajustados em um coque mal feito sobre a cabeça. Era
muito cedo, mas Wilhelmina não se importava.
A porta foi totalmente aberta.
— Sra. Sawbridge, por favor, entre.
— Desculpe-me pelo horário, mas eu preciso saber aonde ele está.
Os olhos da Srta. Trimmes entregaram que ela estava nervosa. Com
algumas piscadelas rápidas, a mulher não encarou Wilhelmina diretamente e
desviou-se para a lareira, cujo fogo estava quase extinto.
— Harry. — Ela gritou para o menino. — Pegue mais carvão. Sra.
Sawbridge, eu não sei aonde ele está.
— Mas sabe que ele saiu ontem de casa e não voltou mais.
— Ele esteve no escritório e eu ainda estava lá. O Sr. Sawbridge estava…
— Furioso?
— Transtornado. — A Srta. Trimmes disse. — A senhora aceita um chá?
Está pálida, imagino que não tenha dormido bem à noite.
— Eu preciso achá-lo. — Wilhelmina quis declinar. — Eu tenho que
explicar a ele que tudo não passa de um mal-entendido.
O menino voltou com o carvão pedido pela mãe. Era um garoto pequeno
e franzino, com a aparência saudável. Os olhos fitavam Wilhelmina com
algum encantamento, era provável que ele nunca tivesse visto uma dama em
sua vida.
— Coloque na lareira, Harry. — A mãe determinou e ajoelhou-se para
atiçar o fogo. — Agora vá lavar-se, não podemos nos atrasar.
— Eu não deveria ter vindo. — Wilhelmina sentiu-se subitamente
deslocada demais ali, interferindo na rotina daquela família. — Se souber
onde ele está, Srta. Trimmes, por favor, diga que eu preciso falar com ele.
Que ele precisa me ouvir.
— Ah, Sra. Sawbridge… ele é muito cabeça-dura, sabe? Mas espere-o
esfriar a cabeça, imagino que logo ele perceberá que não adianta fugir e
estará pronto para ouvi-la.
— Eu não estou fugindo.
A voz de Grant Sawbridge ecoou dentro da casa, indicando a sua
presença masculina marcante. Wilhelmina sentiu seu coração falhar uma
batida e depois disparar. Virou-se para onde vinha o som e viu seu marido
descendo as escadas. Estava perfeitamente vestido com calça cinza, camisa
branca e colete de brocado e ajustava o lenço em seu pescoço. Os cabelos,
ainda úmidos, indicavam que acabara de se lavar. De repente, ela não
conseguiu mais respirar.
— Sr. Sawbridge…
— Não vou me esconder dela, Eleanor. — Ele disse e o coração de
Wilhelmina parou de vez. Grant tratava a secretária pelo primeiro nome. Sua
secretária linda, perfeita, ruiva e mãe de um menino que… ela então encarou
o pequeno Harry que retornava de algum lugar e o sangue congelou em suas
veias. O menino podia, sim, se filho de Grant. Não precisaria de muito
esforço para compreender as semelhanças entre eles. — Você não tem nada
para fazer aqui, Wilhelmina, a não ser que seja para me informar dos seus
termos.
— Não há termos, Grant. — Sua voz saiu como um lamento, fraca e
trêmula. Ela se envergonhou por não conseguir manter a dignidade naquele
momento. — Eu preciso conversar com você, por favor.
— Diga o que quer. — Ele cruzou os braços à frente dela e a encarou.
Não havia nenhum sinal de sofrimento naqueles olhos que poderiam cortá-la
ao meio. — Ou vá.
— Podemos ir a algum lugar… privado?
— Não. Eleanor é minha secretária, ela sabe mais da minha vida que eu
mesmo.
— Grant, por que você está aqui?
— Eu vou fazer um chá. — A Srta. Trimmes segurou o menino pelos
ombros e saiu. Eleanor. A deusa ruiva deixou a sala e o espaço de repente
ficou muito amplo.
— Eu vim para cá porque estava bêbado demais e ela me trouxe. Diga,
Wilhelmina. O que há para me contar?
— O que vocês dois são? Você é um homem casado, ela é uma mulher
solteira com… com um bastardo. — Wilhelmina sussurrou. Ela não
conseguia mais falar do assunto principal, estava absurdamente incomodada
com a situação de seu marido naquela casa. Sozinho, tendo passado a noite
lá.
— Veio aqui me interrogar sobre minha relação com Eleanor?
— Você nunca a chamou pelo nome de batismo, antes.
— Porque ela é minha secretária, eu preciso manter a formalidade. Mas,
agora, não sei se desejo mais isso. Terminamos?
— Não, claro que não. Desde quando vocês… você e a Srta. Trimmes…
A secretária retornou com um bule de chá.
— Posso servi-la, Sra. Sawbridge?
— Não, Wilhelmina está de saída.
— Grant, você não pode me expulsar da casa dela.
— Eu posso, a casa é minha.
As palavras dele tinham espinhos. Não, eram como facas sendo lançadas
aleatoriamente na direção dela. A presença dele ali não fazia sentido a não ser
que ele tivesse alguma coisa com aquela mulher. Se ela fosse apenas sua
secretária, não o teria socorrido nem levado para casa. A casa dele, na qual
ela morava.
Subitamente, a necessidade de falar sobre Thomas e o encontro na
cafeteria deu lugar a outra coisa. Ela estava irritada com aquele cenário - seu
marido acordando na casa de sua secretária, uma mulher solteira, quem
tratava pelo nome de batismo em uma situação privada. E Grant fazia questão
de provocá-la com isso.
— Entendo. Você pretende voltar para casa, hoje?
— Não sei.
— Amanhã é a celebração do aniversário de Isaac. Temos que ir a
Greenwood Park.
— Dê os parabéns a Isaac por mim.
Grant se sentou em uma poltrona próxima do fogo e pegou a xícara de
chá que a Srta. Trimmes serviu. Ela olhou para ele e para Wilhelmina sem
saber como reagir. Nenhuma das duas esperava aquele desenrolar dos
eventos, era verdade. Mas o nível de humilhação que uma esposa poderia
tolerar de seu marido fora superado. Por mais que ela estivesse errada, Grant
não tinha o direito de expor sua amante e seu possível filho na sua frente
daquela forma.
E como ele era hipócrita! Estava incomodado porque ela tinha se
encontrado com Thomas Caldwell enquanto mantinha uma relação
extraconjugal com outra mulher. Wilhelmina sentiu-se imunda e decidiu ir
embora como chegou. Sozinha.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

E LA ESTAVA IRRITADA QUANDO SAIU DA CASA . A FORMA COMO BATEU A PORTA


de madeira indicou que Wilhelmina estava muito zangada - e isso era bom.
Era exatamente o que Sawbridge queria, fazê-la sofrer da mesma forma que
ele estava sofrendo. Ainda assim, quando a porta fechou, levantou-se para
conferir que ela entrava na carruagem e que o cocheiro a tirava daquele lugar
horroroso que era Whitechapel. Imaginando-a em segurança, voltou para
tomar seu chá e enfrentar o escrutínio de Eleanor Trimmes.
— Você não deveria ter feito isso. — Ela disse, de braços cruzados.
Harry estava sentado sobre o tapete do chão, comendo bolinhos enquanto
nenhum adulto realmente prestava atenção nele. — Por que mentiu sobre
nós? Ela é sua esposa.
— Não menti. Ela tirou as conclusões que quis.
— Claro que tirou. Grant, você não pode deixá-la pensar que somos…
céus, isso é nauseante.
— E você deveria parar de se intrometer na minha vida privada. É meu
casamento, saberei lidar com ele.
— Saberá? Pois não parece.
Ela se retirou e subiu as escadas para se arrumar para o trabalho. Estava
certa, a simples ideia de que fossem amantes era ridícula e desagradável, mas
era o que muitas pessoas poderiam pensar, se os vissem juntos. O problema
era que Sawbridge não podia revelar o que os unia sem colocar seus pais em
risco, pois o que eles fizeram não era facilmente tolerado na sociedade.
Quando nasceu, Sawbridge seria deixado em uma fazenda de bebês, um
orfanato de crianças bastardas. O homem que o gerou era um nobre profano
que não se importava em emprenhar suas amantes e descartar sua prole
indigna como se fosse lixo. Mas seus pais o acolheram em uma grande
mentira, registrando-o com seu próprio sobrenome. Ele se tornou Grant
Sawbridge, herdeiro de James Sawbridge e do império que posteriormente ele
iria ajudar a construir. Não era por sua honra que escondia isso das pessoas,
era pelo que seus pais fizeram por ele.
Mas, adulto, ele quis saber que foi o animal que o descartou - e foi
quando descobriu Eleanor. Ele se lembrava de quando a conheceu, grávida de
um canalha que não se importava com o filho nem a mulher que arruinou.
Quando a viu pela primeira vez foi como olhar-se em um espelho - ela era
exatamente como ele. Os dois eram filhos do mesmo pai, mas ela teve o azar
de ser criada em um orfanato, sem o amor e o cuidado de uma família. E, por
ironia de um destino cruel, terminou gerando um bastardo - mas que não foi
abandonado. Ele a ajudou a criar o menino, a ajudou a sobreviver
dignamente.
Só que ninguém podia saber por quê. Para todos, Eleanor era a Srta.
Trimmes, sua secretária, e o menino mal era visto, já que bastardos não eram
bem-vindos em nenhum lugar. Ao menos eles tinham carvão na lareira e
comida na mesa.
Sawbridge pegou um bolinho da mão de Harry, indicando que o menino
já comera demais. Depois, levantou-se, pegou seu casaco e foi até os fundos
da casa, onde estava amarrado seu cavalo.
— Avise a sua mãe que fui para a fábrica. Não devo aparecer no
escritório hoje.
O menino balançou a cabeça, mas esqueceria tudo até o momento de
dizer. Sawbridge não tinha condição de se importar, ele estava sofrendo e não
sabia como aquele sentimento funcionava direito. Primeiro, apaixonou-se
pela primeira vez. Depois, desiludiu-se, teve seu coração - inexistente -
partido, e isso era ainda pior. Era quase impossível entender tudo aquilo que
o encantava e o massacrava ao mesmo tempo e a frustração de ver sua esposa
com outro homem acabou com ele. Não quis nem mesmo ouvi-la, ele não
queria que ela mentisse novamente. E ele não suportaria mais mentiras.

A CASA FICOU grande demais para Wilhelmina. Ela levou o que pareceram
horas para retornar e depois outras horas olhando o salão em sua magnitude.
Tudo ali era tão masculino, não dominado, controlado e possuído por Grant
Sawbridge que ela não teve tempo suficiente para deixar a sua marca. As
lágrimas já estavam secas, deixando trilhas de mosaicos em sua pele clara.
Ele tinha uma amante. Como poderia, se ele dissera, desde o início que
lhe seria fiel? Ele prometeu fidelidade, ele jurou diante de Deus. Os céus
eram testemunha de que ela nunca quis nada daquilo - nem o homem, nem a
paixão, nem o envolvimento. Mas, ainda assim, ela nunca fora infiel.
Wilhelmina não ficaria ali. Ela tinha o aniversário do irmão para celebrar,
mesmo que sequer pudesse pensar em comemorar alguma coisa. Precisava ir
para algum lugar - qualquer lugar - que não tivesse aquele cheiro de uísque e
tabaco que pertencia ao homem que conquistou e despedaçou seu coração em
tão pouco tempo.
— Senhora?
Arthur a interpelou. Ele deveria estar ali há algum tempo, enquanto ela
divagava olhando para o nada. O gato já escalara suas roupas e a obrigada lhe
prestar alguma atenção.
— Arthur, eu vou viajar para Thanet. Preciso conversar com você e a Sra.
Cook.
— Pois não, senhora.
Wilhelmina indicou que os dois empregados deveriam ir até o salão de
chá. Ela ainda se arrastava pela casa, sentindo os pés pesados pelo choque de
ter encontrado seu marido na casa de outra mulher.
— O que precisa, Sra. Sawbridge? — A Sra. Cook limpava as mãos no
avental de sua saia quando entrou.
— Estou indo para Greenwood Park. É aniversário do meu irmão e
haverá uma festa. O Sr. Sawbridge não irá comigo, portanto preciso que me
ajudem nesse período em que eu estiver fora. É imprescindível que a rotina
da casa permaneça inalterada.
— Devemos continuar seguindo os horários, senhora?
— Sim, Arthur. Desjejum, almoço e jantar precisam ser servidos
rigorosamente nos horários combinados. O Sr. Sawbridge sempre levou uma
vida pouco saudável, com rotinas inadequadas e não podemos admitir que ele
retorne para esses vícios.
— A senhora vai se demorar?
Ah, ela ia. Provavelmente, talvez, não sabia dizer. Tudo estava um
borrão, confuso, mas Wilhelmina precisava retomar as rédeas de suas
decisões. Sempre foi objetiva e prática, até para escapar de um escândalo e
arrumar um marido. Não ficaria chorando pelos cantos se lamentando pelo
ocorrido. Mas, também, não tinha como saber o que seria do dia seguinte.
Precisava cuidar para que suas ordens continuassem a ser cumpridas naquela
casa.
— Provavelmente não, Arthur. Mas um dia já é suficiente para fazer com
que o Sr. Sawbridge se desvie do caminho.
O mordomo riu, contido, e logo se envergonhou da informalidade. A Sra.
Cook o cutucou com o cotovelo e fez com que Wilhelmina se divertisse, ao
menos um pouco. Ela já gostava daquelas pessoas, mesmo tendo passado tão
pouco tempo com elas.
— Tudo bem, senhora. Vamos cuidar para que ele não se desvie, então.
— Eu prepararei o que ele mais gosta de comer: carne.
— Apenas não exagere, ele precisa comer com moderação.
E manter aquela forma física maravilhosa que o marido exibia quando
despido. Ela tinha certeza que aquele corpo fora esculpido com exercícios, e
que ele estava se cuidando de outra forma depois do casamento. Maldição,
Wilhelmina não queria pensar nos exercícios que o marido fazia com ela,
menos ainda se ele fazia aquela mesma atividade com outra mulher. De
qualquer forma, Grant não deveria comer demais, apenas comer corretamente
e nos horários certos.
— Mais alguma instrução, senhora?
— Sim, organize minha correspondência e deixe separado na minha sala
privativa, no segundo andar.
— Certamente. Senhora… aconteceu alguma coisa?
Wilhelmina se espantou com a pergunta e então notou que estava
chorando. Sem perceber, lágrimas escorreram por suas bochechas e os
empregados notaram, como não notariam? Ela passou as costas da mão
enluvada no rosto e piscou algumas vezes para afastar a umidade.
— Nada demais, Arthur. Estou um pouco emotiva, porém deve ser
saudades da família.
Os empregados nada mais disseram. Pediram licença e saíram. A
desculpa era ridícula, pois Wilhelmina vivia na presença de seus familiares e
amigos. O casamento não a afastou de nada de sua vida anterior, mas o que
poderia dizer? Peguei o maldito do seu patrão na casa da secretária e agora
estou muito zangada? E isso se deu porque ele está acreditando que eu me
envolvi com um homem com quem realmente pensava me envolver, mas
mudei de ideia quando descobri que estava apaixonada pelo ranzinza com
quem me casei?
Ela deu uma risada nervosa, que se misturou às lágrimas recentes. Ela
precisava parar de chorar e acreditava que dois ou três dias em Kent fariam
bem para eles. Depois que Grant estivesse disposta a ouvi-la, Wilhelmina
retornaria e acabaria com aquele mal-entendido horrível.

W ILHELMINA NÃO FAZIA ideia dos horários de trem, nem como faria para
comprar uma passagem. Isso não a impediu de pegar uma mala com seus
vestidos e ir para a estação London Bridge. Se tivesse que esperar, esperaria.
Mas ela não queria continuar na casa, sendo assombrada por memórias de
horas antes que a remetiam ao amor e ao ódio tudo de uma só vez.
As duas mulheres estavam ali, paradas na plataforma, ao lado de duas
malas e com um gato enrolado em uma manta de lã, esperando receber
informações de um funcionário da ferrovia sobre o horário do trem. Um
homem de uniforme se aproximou das duas, Wilhelmina e Harriet, segurando
alguns papéis.
— Sra. Sawbridge. A senhora perguntou sobre o próximo trem para
Thanet, ele sai em uma hora. O seu vagão está preparado.
— Meu vagão? — Ela não entendeu.
— Sim, senhora, o vagão do Sr. Sawbridge.
— Não pretendo usá-lo.
— Senhora, temos ordens expressas do seu marido de não permitir seu
embarque em vagões comuns.
Ela ficou confusa novamente.
— Ele deu essa ordem…
— Há pouco, senhora. Disse que, quando a senhora desejasse pegar o
trem, que era para preparar imediatamente o vagão e não a deixar embarcar
em nenhum outro.
Maldito fosse Grant Sawbridge. O coração dela saltou do peito, quase
pulando pela boca, agitado ao sequer supor que aquele homem estava
preocupado com ela. Mas ele tinha uma amante. Mesmo que Wilhelmina
estivesse bastante favorável a isso quando se casaram, as coisas tinham
mudado. Ela tinha mudado, e acreditava que ele, também. Esperava que ele
honrasse a fidelidade prometida, porque disse, desde o início, que assim seria.
E não foi. Não era. Grant era amante de sua secretária e tinha um filho
bastardo. Por que, ela jamais saberia - pois não pretendia confrontá-lo nunca
mais. Mentirosa. Ela precisava apenas deixar aquela raiva passar, pois sabia
que, no fundo, os sentimentos não desapareciam tão rapidamente.
— Tudo bem, então podemos esperar no vagão?
Ela perguntou, ajeitando o gato em seu colo.
— Claro, senhora. Vamos levar sua bagagem.
O homem pegou as duas malas e indicou que elas deveriam ir na frente. O
vagão, que ela bem conhecia da viagem para a lua de mel, estava estacionado
e aberto, esperando. Depois que o funcionário saiu, fechou a porta e as isolou
do restante da estação.
Era um problema relativo estar ali, pois todos aqueles lugares a
lembravam do marido. Na ida para Anglesey, ele foi gentil, permitiu que ela
ficasse tranquila com ele e possibilitou uma abertura que ela nunca tinha
concedido a homem algum. Na volta para casa, o vagão foi testemunha do
vigor sexual de Grant Sawbridge e do quanto ela estava se tornando uma
mulher dependente dos carinhos daquele homem.
Olhar para os móveis a deixava nostálgica. O cheiro que continuava
impregnado em todo lugar a deixava nervosa. Por mais aborrecida que ela
estivesse, sentindo a traição borbulhar em suas entranhas, sentiu saudades dos
momentos que passaram ali.
— Harriet, acomode-se. Eu vou deitar e ler alguma coisa. Logo,
chegaremos a Thanet.
— Sim, senhora. Quer ajuda com o vestido, agora?
— Não, vou deitar-me assim mesmo.
A camareira foi para os aposentos dos empregados e a deixou ali.
Wilhelmina passou os dedos pelos móveis, retirou alguns livros do lugar, e
foi para o quarto. Retirou os sapatos, deitou-se na cama, abraçou com os
travesseiros e chorou até dormir.

A S DECISÕES PRECIPITADAS FIZERAM com que faltasse comunicação. Quando


Wilhelmina chegou a Thanet, ninguém a esperava na estação ferroviária, já
que ela não informou aos irmãos que estava chegando, nem informou que iria
sem seu marido. Mesmo assim, um homem a abordou assim que
desembarcaram e receberam suas malas do empregado da ferrovia.
— Sra. Sawbrige? — Perguntou o jovem, que usava chapéu e traje
completo para o dia. — Tenho ordens do seu marido para levá-la até
Greenwood Park.
Claro que ele tinha. Sawbridge era dono da ferrovia. Ele fabricava
aqueles trens, ou boa parte deles, e sua influência era imensurável.
Provavelmente, assim que ela saiu da casa da Srta. Trimmes ele tratou de dar
ordens para todo mundo, pois era o que fazia melhor: comandar um império.
Ela não sabia se aquele excesso era cuidado ou controle. Sua irritação a
fazia questionar coisas que ela não questionaria antes e a duvidar daquilo que
tinha como certeza. Grant tinha uma amante e cobrava dela uma fidelidade
que ela nunca prometeu.
O jovem que se apresentou para elas as conduziu, de carruagem, pelas
vias tranquilas do interior, enquanto o dia ia se extinguindo aos poucos.
Wilhelmina não estava ansiosa para reencontrar a família pois sabia que seria
interrogada e teria que falar a verdade - ou, ao menos, alguma verdade.
Edward não era tolo, ele desconfiaria quando a visse chegar sozinha.
Mas a sorte estava do lado dela, pois o irmão não estava na propriedade.
— Seja bem-vinda, milady. — Peyton a recebeu na porta. — É muito
bom a ter em casa. Sua mãe e sua cunhada estão tomando o chá no jardim de
inverno.
— E meus sobrinhos?
— Com a babá, senhora, mas logo a condessa irá vê-los.
O ritual de Agatha era rigoroso com as crianças. Durante o chá, elas
ficavam com a babá, mas, depois, a mãe ia brincar e passar tempo com os
filhos. Wilhelmina quis isso para si desde que viu o carinho com o que a
cunhada tratava os sobrinhos.
Um criado levou as malas para o quarto dela - o que sempre ocupou
enquanto morou ali. Era estranho estar de volta a Greenwood Park em uma
situação tão instável. Por anos, aquele foi o único lar que conheceu, agora ela
tinha outra casa e não queria ter que abandoná-la. Enquanto hesitava para ir
até o jardim de inverno, Lavínia desceu as escadas apressada e correu até ela.
Lavínia era a filha adotiva do conde e da condessa. Ela tinha quatro anos
quando foi tirada de um orfanato e estava com nove, vivendo há cinco anos
com os McFadden. Era uma linda menina, tão loira quanto os anjos deveriam
ser, com longos cabelos dourados e olhos claros. Mas Lavínia não falava. Ela
nunca disse uma palavra desde que chegou com Agatha em McFadden
Garden, e continuava sem falar mesmo depois de ter sido examinada por
diversos especialistas.
— Ora, minha querida. — Wilhelmina abraçou a sobrinha. — Você está
fugindo de sua preceptora?
A menina riu e balançou a cabeça positivamente.
— Certo, que tal me ajudar com esse aqui? — Ela colocou Bertrand, o
gato, nos braços de Lavínia, que ficou subitamente exultante e começou a
acariciar o bichano. — Ele está assustado com essa casa grande, você poderia
levá-lo para seu quarto e cuidar dele?
A menina correu para cima novamente, agarrada ao gatinho que,
certamente, estaria muito bem cuidado nas mãos de Lavínia. Era o momento
de enfrentar o restante da família estando sozinha, pois Wilhelmina tinha
certeza que Agatha e a mãe suspeitariam de algo errado imediatamente.
Talvez por causa dos olhos avermelhados pelas lágrimas que não pararam de
cair, ou pelo estado de espírito contraditório. Ao mesmo tempo em que ela
desejava matar o marido pelo que ele fizera, não suportava a ideia de perdê-lo
no mesmo instante em que descobriu amá-lo.
O jardim de inverno de Greenwood Park era o melhor lugar da casa. Com
enormes janelas e parte do teto de vidro, o espaço misturava plantas nativas,
exóticas e espaço para chá e conversa. Foi construído por Pauline McFadden,
a condessa viúva, para espairecer com amigas. Quando Wilhelmina entrou, as
duas mulheres que estavam lá se surpreenderam - ela não era esperada antes
do anoitecer.
— Oh, Minnie! — Agatha levantou-se para abraçá-la, entusiasmada. —
Bem-vinda, vou pedir que tragam outra xícara. Vocês chegaram cedo. E seu
marido?
— Eu vim sozinha. — Ela se sentou e aceitou o chá, servido por uma
criada solícita. Já estava desacostumando a ter pessoas fazendo as coisas por
ela antes que pedisse. — Peyton disse que Edward não está, o que houve?
— Como assim veio sozinha? — Pauline perguntou.
— O Sr. Sawbridge também ficou envolvido com problemas da fábrica?
Wilhelmina sorriu. Ela podia mentir, era tentador evitar a verdade
dolorosa e não se submeter à enxurrada de questionamentos que se seguiria.
Só que seus olhos tristes e seu semblante cansado a entregariam antes que ela
tentasse.
— Esse é o motivo de Edward não ter vindo?
— Sim, parece que uma entrega de aço ficou comprometida e eles
precisavam dar conta disso com urgência. Acredito que ele chegue amanhã, o
duque está com ele.
— Eles devem estar muito chateados, sozinhos, soltos em Londres. —
Pauline provocou.
— Certamente, tendo que passar a noite no Riderhood. — Agatha deu
uma risada. Wilhelmina baixou o olhar e fitou a xícara em suas mãos,
controlando-se para evitar a nova profusão de lágrimas. O que estava
acontecendo com ela! — Minnie, o que está havendo? Você está triste?
— Não, está tudo bem.
Pauline levou a mão até a filha e, tocando-a no queixo, a fez erguer o
rosto.
— Diga, Wilhelmina, onde está seu marido?
— Eu não sei. — Ela respondeu, sinceramente. — Talvez em casa.
As duas mulheres se entreolharam. Agatha arrastou sua cadeira para ficar
mais próxima da cunhada.
— Conte-nos tudo, desde o começo.
Foi o que Wilhelmina fez. Talvez ela estivesse mesmo precisando
conversar com alguém que pudesse ouvi-la, acolhê-la ou julgá-la. Seria
libertador falar de seus dramas para alguém que ela amava, então ela
despejou toda a sua história sobre a mãe e a cunhada, sem nem mesmo parar
para respirar. Falou sobre o encontro com Thomas Caldwell e seus motivos e
da irritação do marido. Falou também sobre o ter descoberto na casa da
secretária e das suspeitas sobre o menino ser filho bastardo de Grant
Sawbridge.
— Eu não entendo. — Agatha disse, depois que o silêncio indicou que
Wilhelmina terminara de falar. — Vocês estavam tão apaixonados quando se
casaram. Por que o Sr. Sawbridge desconfiaria de você?
— Talvez porque… — ela considerou o quanto estava se arriscando
falando a verdade, mas nada parecia importar, mais — nós não estivéssemos
apaixonados.
— Agora entendo menos ainda. E o episódio no jardim dos Olsen?
Aquele escândalo?
— Não era Grant comigo, naquela noite. Ele nem sabia o que tinha
acontecido quando me encontrou no escritório de Edward, naquela manhã de
domingo.
— E ele assumiu ter sido o homem que te desonrou? Aceitou apanhar de
Edward sem revidar mesmo sem ter nenhuma participação no episódio?
Certo, eu deveria mesmo estar tão confusa?
— Eu estou assustada. — Pauline serviu mais chá. — Minha filha,
quantos homens você teve? O enteado da modista, um cavalheiro em um
jardim, seu marido…
— O homem no jardim não me tocou. Quero dizer, foram apenas alguns
beijos. Saias erguidas são por conta do Royal Gossip, que não perde a chance
de aumentar os escândalos que noticia.
Mais cinco segundos de silêncio até que a pergunta mais importante fosse
feita. Wilhelmina gostaria de ter podido evitá-la, mas não era possível. Claro
que, assim que contasse sobre a verdade no baile da Duquesa de Norfolk,
todo mundo iria querer saber a identidade do patife que a seduziu e a
abandonou para um escândalo.
— Quem foi o homem que te beijou no jardim dos Olsen, Minnie? —
Agatha quase sussurrou, como se as paredes pudessem ouvi-la. As criadas
podiam, mas ninguém duvidava que elas manteriam o segredo.
— Lorde Ignazio.
A revelação saiu ainda mais baixa. Pauline franziu o cenho, tentando
identificar quem era aquele homem. Agatha arregalou os olhos, sabendo bem
de quem se tratava.
— Meu Deus, Edward vai matá-lo.
— Edward não pode saber. — Wilhelmina bateu a xícara no pires com
pouca sutileza. As criadas se sobressaltaram, mas nenhuma louça foi ferida.
— Prometa que não contarão a ele quem era o maldito no jardim.
— Minnie, ele é o conde. Está me pedindo para mentir para meu marido.
— Mentir não, omitir. Por favor, Agatha… mamãe… Se Edward souber
ele ficará furioso, enfrentará o lorde, isso não será bom para ninguém. Grant
já assumiu que foi ele, eu fui redimida, e o futuro barão desapareceu da face
da Terra depois disso.
— Quem é esse lorde?
Pauline perguntou, ainda confusa com a revelação.
— O italiano, irmão daquela jovem que Isaac começou a cortejar. Ele…
em algum momento ele jurou vingança porque Isaac teria deixado sua irmã
por uma libertina como Caroline. Mas passou tanto tempo que ninguém
imaginaria que ele decidisse levar aquela promessa a cabo, agora.
— Isso beira ao ridículo. — A condessa viúva falou. — Esse pobre lorde
é um homem muito infeliz. Por que não contou a verdade antes, Wilhelmina?
— Não queria ser obrigada a casar-me com ele. Eu estava levemente
embriagada e totalmente frustrada, naquela noite. Os beijos no jardim foram
um erro. Quando ele tentou ir além do decoro, eu o mandei embora.
— Beijos com estranhos já são além do decoro.
— Eu sei disso, mas foram apenas beijos, mamãe. Quando Grant chegou
oferecendo para me redimir eu… pareceu um ótimo negócio na época. E
então deu tudo errado, não sei como isso foi acontecer. O que há com essa
família?
Agatha deu uma risada e Pauline precisou de um minuto inteiro para
entender a indignação de sua filha.
— Oh, minha querida Wilhelmina. — A mãe pegou as mãos dela entre as
suas. — Seu pai foi um homem difícil, mas ele era amoroso. Ele amou vocês
e ele foi o amor da minha vida. Não nos casamos apaixonados, é verdade,
mas isso aconteceu depois. E fomos muito felizes até que ele fosse tirado de
mim pelo Todo Poderoso. Você cresceu em uma casa cheia de amor. Não me
surpreende que tenha desejado isso para si mesma.
— Estava resignada a um casamento tradicional.
— Não estava. — Agatha deu uma risadinha. — Aceitou isso porque não
podia ter o amor de sua vida, até que ele se materializou em um industriário
ranzinza que me parece morto de ciúmes.
— Ele não está morto de ciúmes. Ele tem uma amante!
— Ou ele está apenas provocando você. Não sei, Minnie, Sawbridge é um
plebeu… eles têm outra percepção sobre casamentos e fidelidade.
— Você não estava lá e não o viu descendo as escadas… depois de ter
tomado banho… e a chamar de Eleanor.
O assunto a desagradava e as lágrimas começaram a vir novamente.
Wilhelmina odiava ter se tornado tão fraca, tão ridiculamente frágil e
arrebatada por sentimentos horríveis. O amor não era horrível, mas o
desprezo e a traição faziam com que ela se sentisse enjoada.
— Faremos o seguinte. — Agatha pareceu ter uma ideia. — Vamos
deixar essa noite passar. Estamos em Thanet e as coisas aqui andam em um
ritmo diferente da grande cidade. Amanhã, visitaremos Isaac e Caroline.
— E fazer visitas me ajudará em que?
— Creio que precisemos conversar com um amigo de Grant. Como não
podemos falar com o conde…
— Falaremos com Caroline. — Wilhelmina preencheu as lacunas. — Faz
sentido, ela ficaria do meu lado.
— Nós adoramos você. Vamos dar um jeito de resolver isso. O Sr.
Sawbridge pode ser turrão, mas deve estar sofrendo tanto quanto você.
Como ela queria que fosse verdade, que ele estivesse realmente sofrendo.
Mas, por que diabos não a deixou explicar-se? Ao invés de ouvi-la, de dar a
ela um voto de confiança, preferiu envolver advogados, propriedades,
divórcios e secretárias ruivas esbeltas e com a cintura mais fina que um pilão
de socar que as esposas dos arrendatários usavam nas fazendas.
Ela aceitou a proposta de Agatha, pois não havia nada para fazer. Depois
do chá, as mulheres foram para o quarto das crianças e encontraram Lavínia e
Eloise às voltas com Bertrand, tentando mantê-lo à salvo. Edmund perseguia
o felino, que cravava as garrinhas em tudo que via para fugir do pequeno
visconde - Edmund, por ser o primeiro filho de Edward, recebera o título de
cortesia que era dele antes de assumir o condado, Visconde Leighton.
As crianças a divertiram e a fizeram parar de pensar em seus próprios
dramas. A melhor decisão foi ir para Kent e ficar com sua família, ao invés
de enfrentar uma cama vazia em um quarto frio, outra vez.
CAPÍTULO VIGÉSIMO

A CASA EM S UNNYSIDE B AY ERA LINDA . M UITO MENOR DO QUE A MANSÃO DE


Greenwood Park, mas exuberante em sua construção moderna. Toda a
arquitetura se preocupou em oferecer um espaço aconchegante e familiar.
Dois cachorros sendo perseguidos por um garotinho escandaloso apenas
reforçava que aquela era a casa de uma família feliz.
Quando Wilhelmina chegou à casa do irmão, naquela manhã, ela sentiu
um nó em sua garganta. Ainda não conseguia aceitar que seu marido a
expulsara de sua vida tão facilmente depois de um mal-entendido, que ele se
recusara a ouvi-la. Aquela cena familiar, que se completava com Isaac
sentado em uma poltrona na varanda, lendo para Caroline, que deitava a
cabeça em seu colo, era nauseantemente romântica.
A comitiva vinda da outra propriedade chamou a atenção deles e
interrompeu o momento - o que era uma pena, pois havia poucas coisas mais
agradáveis do que observar o amor entre Isaac e Caroline.
— Feliz aniversário!
Wilhelmina apressou-se e se atirou nos braços do irmão, que já se
levantara para recebê-la. Os dois eram muito próximos desde que Isaac
começou a administrar a propriedade do conde. Passavam mais tempo juntos
que os outros irmãos e Isaac a mimava de todas as formas possíveis. Talvez
fosse um pouco culpa dele que ela estivesse agindo de forma tão tola nos
últimos dias.
— Não trouxemos presentes. — Agatha fechou a sombrinha e colocou o
pequeno Edmund no chão. Louis correu para brincar com o primo e a babá
levou as crianças para o jardim gramado. — Quando Edward retornar de
Londres ele fará as honras.
— O melhor presente para meu aniversário é ter vocês comigo. Quem
gosta de festas é mamãe.
— Pauline está preparando um grande jantar. — Caroline revirou os
olhos. — Provavelmente, convidou o litoral inteiro. Onde está Edward,
afinal?
— Ele, e o duque, tiveram problemas na fábrica e ficaram pela cidade.
Espero que cheguem hoje a tempo para o jantar, ou teremos que lidar com a
condessa viúva um pouco aborrecida.
— E não será um pouco. — Isaac riu. — Vamos entrar e tomar um chá?
— Aceitamos, pois precisamos conversar com Caroline. — Agatha
informou. — É um assunto sério… precisamos de seus conhecimentos sobre
Grant Sawbridge.
Caroline deu uma risada alta que ecoou pelos corredores da casa,
enquanto dirigiam-se para o salão de chá. Já era possível notar os sinais da
gravidez e ela ficava ainda mais debochada quando esperava um filho. Quase
ninguém aguentava ficar perto da ex-libertina durante a gravidez de Louis, só
seu marido que, muito apaixonado, achava-a linda e maravilhosa em tudo que
fazia.
— Eu não tenho muitos conhecimentos sobre Grant. Digamos que ele
nunca para de surpreender. Mas… o que houve?
As mulheres sentaram enquanto Isaac lhes serviu o chá. Não era comum
que o homem fizesse aquela tarefa, mas nada era comum em Sunnyside Bay.
Era como se as tradições ali fossem ignoradas ou sequer existissem.
Wilhelmina olhou para o irmão, mas ele não demonstrou nenhuma intenção
de sair da sala. Não adiantava mesmo esconder, talvez fosse melhor que todo
mundo soubesse e que Edward matasse o italiano com as mãos nuas.
— O que há entre ele e a Srta. Trimmes?
— A secretária? — Caroline bebericou seu chá e reclamou. Ela preferia
conhaque ou uísque, mas não podia beber por causa da gravidez. Os médicos
não tinham certeza, mas suspeitava-se que as mulheres não deviam consumir
álcool enquanto esperavam um filho. — Tirando o fato de que ela é uma das
mulheres mais bonitas que conheço, não há nada digno de nota. Por quê?
— Eles poderiam ser amantes?
Caroline quase cuspiu o chá.
— Céus, Minnie. De onde saiu essa suspeita?
Pela segunda vez em dois dias, Wilhelmina se viu contando seus
infortúnios, desde o dia em que Grant Sawbridge entrou no escritório de seu
irmão conde até aquele momento. Toda vez que ela revivia aquela história,
sentia-se mais estúpida e menos esperta, como achava que era. Fora ingênua
em idealizar um amor e em não entender os motivos pelos quais Thomas
Caldwell quis manter-se afastado dela. Foi tola em acompanhar o italiano até
o jardim, mais tola ainda em aceitar uma proposta negocial para seu
casamento. Completamente maluca, também achou que poderia permanecer
ao lado de um homem forte, determinado e capaz de seduzir um objeto
inanimado sem se apaixonar por ele.
E estava sendo tola enquanto detalhava sua história para uma Caroline
assombrada e um Isaac enfurecido.
— Eu vou matá-lo.
O irmão girou pela sala com as mãos fechadas em punhos. Caroline
levantou-se e o fez parar, envolvendo-o em um abraço.
— Claro que não vai, meu amor. Você não mata nem os insetos que
entram na casa.
— Os insetos não abusaram da minha família. Eu mataria para defender
vocês.
— Tudo bem, mas olhe para sua irmã. — A ex-libertina apontou para
uma Wilhelmina rosada de vergonha e quase se tornando parte do estofado.
— Ela não foi arruinada, está casada com um homem tão rico quanto a
realeza, e completamente apaixonada por ele. Não vamos matar as pessoas
que não precisam sofrer a pena capital, vamos deixar que ele seja castigado
pelo marido de Wilhelmina. Pode ter certeza que não sobrará muito de Lorde
Ignazio quando Grant acabar com ele.
— Creio que precisamos focar no assunto principal. A amante.
— Duvido que Trimmes seja amante de Grant. — Caroline arrastou Isaac
e se sentou novamente, recostando no marido. Pretendia acalmá-lo e estava
conseguindo. — Mas vamos investigar isso. Se não vamos envolver condes
nem duques, mandaremos um telegrama para Riderhood.
— O dono do clube? — Wilhelmina franziu o cenho.
— E aquele que sabe tudo na cidade. Nada passa despercebido aos olhos
de águia daquele canalha.
— Não quero ficar esperando, Caroline. — Wilhelmina se levantou. —
Veja, eu vim para cá porque precisava esfriar a cabeça. Não parece haver
uma pessoa que acredite que aquele homem de gelo com quem me casei
tenha uma amante, portanto, eu quero confrontá-lo sobre isso.
— E vai. Mas não acha que ainda está irritada demais para desafiá-lo?
— Claro que estou. Você não viu o que eu vi!
Não, ninguém vira. O homem que ela amava, frio como uma pedra de
granito no inverno, com outra mulher. Não que ela tenha visto algo
comprometedor, mas Grant jamais seria tão íntimo de sua secretária. Seria?
— E enquanto isso, o que faremos?
Agatha perguntou, percebendo que a fúria de Wilhelmina certamente a
levaria até a estação de trem na intenção de voltar para Londres e confrontar
o marido.
— Comemoraremos o aniversário de Isaac, oras. Temos um jantar para
atender essa noite e faremos isso. Um dia a mais de espera só fará com que o
reencontro seja fabuloso!
A forma como Caroline simplificava a dor de Wilhelmina era irritante,
mas ela parecia totalmente certa. Todos estavam irritados e precisavam
esfriar os ânimos até conseguirem refletir sobre o que fizeram. Não era
possível ter uma conversa civilizada se todo assunto fosse uma grande troca
de acusações.
A dama de vermelho levantou-se e foi buscar papel e caneta para escrever
o telegrama e as crianças apareceram, vindas do jardim, fazendo algazarra. A
babá tentava contê-los, sem sucesso. Lavínia continuava agarrada com
Bertrand como se ele fosse uma boneca. Eloise abraçou Wilhelmina e Louis
subiu no colo da tia, deitando a cabeça sobre ela.
— Logo serão os seus. — Agatha sussurrou no ouvido dela, que sentiu
um arrepio. Sim, logo seriam os dela, mas Grant não podia suspeitar daquilo
enquanto eles não tivessem uma conversa séria.

O CLUBE de cavalheiros de Riderhood era o mais requisitado de Londres.


Para se afiliar, era preciso um convite - e havia uma fila de homens
interessados em participar do mais exclusivo espaço para diversão masculina
na cidade. Riderhood oferecia de tudo - desde um lugar para encontro de
negócios e bebidas até prostitutas. O lugar ocupava um espaço prestigioso em
Mayfair, para garantir a segurança de seus sócios, e tinha diversos ambientes,
separados por andares.
No térreo, salões de reuniões e um bar completo, além de um restaurante.
Era o ambiente mais tranquilo, voltado para negócios e para cavalheiros que
queriam apenas um tempo da cidade. No primeiro andar, o cassino. Mesas de
carteado, roleta, dados - tudo para extrair a maior quantidade de dinheiro
possível dos homens menos afortunados. O segundo andar oferecia outros
tipos de diversões mais violentas - lutas de boxe para satisfazer os mais
ávidos por sangue. E no terceiro andar estavam as garotas.
Naquela noite, Lorde Ignazio Barone, filho do Barão Capovitta e herdeiro
do título, estava no bar para reencontrar-se com Londres. Ele passara algumas
semanas na Cidade de Glasgow e retornara naquele dia. Para todos, disse que
estava a trabalho, mas Ignazio esteve fugindo durante esse tempo. Fugindo de
algo muito errado que fizera, mas que fora com o objetivo mais nobre que ele
teria - vingança.
Recostado no balcão do bar, ele estava em seu terceiro conhaque. Não
estava bêbado, já que precisava de um pouco mais do que três doses para se
embriagar, mas não estava exatamente sóbrio, pois não comera quase nada o
dia todo e a bebida lhe caiu mal. Esperava ver rostos conhecidos, porém
todos estava ocupados jogando, conversando ou negociando - sem tempo
para ele.
O italiano não conseguia se adaptar à rotina londrina, fria e distante.
Enquanto decidia se entraria em alguma roda de cavalheiros e imporia sua
presença, acabou ouvindo uma conversa entre dois homens que bebiam atrás
de si.
— Nosso amigo Sawbridge desapareceu, hem? Vivia no clube, agora não
o vemos mais aqui.
— Claro, ele está casado. Com uma mulher daquelas em sua cama toda
noite, por que raios ele iria querer ficar conosco?
Lorde Ignazio não sabia quem eram aqueles homens, mas ficou intrigado.
Quando deixou Londres, Sawbridge era um homem solteiro e parecia
bastante interessado em permanecer assim. Aquele industriário era um dos
únicos homens que pareceu aceitá-lo na sociedade londrina e ele sequer
pertencia a ela.
— Senhores. — Lorde Ignazio virou-se e interpelou os fofoqueiros. Não
eram nobres, talvez burgueses como o homem que era assunto. — O Sr.
Sawbridge casou-se?
— Sim, há uns dois meses? — Um deles, que vestia um casaco
aparentemente um tamanho menor do que o necessário, teve dúvida.
— Acho que sim. — O outro também não parecia certo. — Com uma
dama, aquele safado.
— Uma dama? Então ele fisgou uma aristocrata? Qual das ladies
casadoiras foi a escolhida?
— Céus, homem… você esteve em que país durante esse tempo?
— Escócia. — Lorde Ignazio se ajeitou na banqueta para mostrar seu
porte aristocrático. — Mais precisamente em Glasgow, a negócios. Não tive
tempo para fofocas sobre casamentos.
— Seja bem-vindo à civilização.
— Quem foi a dama, senhoras?
— Lady Wilhelmina, a irmã do Conde de Cornwall.
O nome atingiu o lorde como uma bofetada na face. Ele arregalou os
olhos e virou a dose de conhaque que estava em seu copo, pedindo para que
lhe fosse servido mais.
— Impossível. — Ele balançou a cabeça. — Ela estava arruinada, não
haveria homem decente querendo casar-se com ela. Por que Sawbridge se
rebaixaria a isso?
— Porque foi ele que a desgraçou, oras.
O rechonchudo riu, como se fosse algo engraçado ou como se o fato de
Sawbridge ter arruinado uma jovem dama contasse alguns pontos em sua
reputação. Talvez contasse, afinal, eles estavam falando de um notório
libertino que dormia com uma mulher diferente toda noite.
— Não foi! — Lorde Ignazio virou novamente o conhaque e bateu o copo
de vidro no balcão, chamando alguma atenção para si. Naquele momento ele
já estava um pouco mais fora de si do que deveria e bastante disposto a
contrariar os dois homens. — Não foi Grant Sawbridge que desonrou Lady
Wilhelmina naquele jardim!
— E milorde sabe quem foi?
A voz não veio do grupo, mas de outra pessoa que se aproximou, vinda
de outro lado. Quando Lorde Ignazio se virou, percebeu a presença o Conde
de Cornwall e seu amigo duque. O olhar sombrio do conde era um tanto
intimidador, principalmente em se considerando a sua fama.
— Milorde. Alteza. — O italiano os cumprimentou. — Eu…
— Diga quem foi, Lorde Ignazio. — Edward continuou se aproximando e
empurrando o lorde até o encurralar no balcão. — O que o senhor sabe sobre
esse episódio?
Thomas Riderhood se aproximou. Sempre que havia nobres envolvidos
em discussões em seu clube, ele aparecia para conter os ânimos e resolver os
problemas que pudessem resultar de eventuais brigas. E Edward era alguém
que estava sempre sob observação. A presença de Aiden Trowsdale não o
deixava mais tranquilo, pois do duque parecia gasolina no temperamento
explosivo do conde.
— Nada significativo.
— Não seja covarde. — O duque semicerrou os olhos. — Se tem certeza
que não foi Sawbridge…
— Milordes, vamos conversar em meu escritório. — Riderhood os
interpelou.
— Esse maldito está falando da minha irmã.
— Eles também estavam.
— Nenhum deles afirmou que ela, ou o homem que a desposou, são
mentirosos.
Riderhood manteve-se firme e conseguiu arrastar os aristocratas para
outro lugar, mais afastado dos olhares. Apesar dos salões de bailes serem o
lugar mais comum para as fofocas circularem, elas se formavam em todos
canto - inclusive em clubes de cavalheiros.
No escritório amplo, cheio de estantes com livros e enfeites de artes e
janelas enormes que exibiam a exuberância da noite londrina, os homens não
pareciam mais calmos. Lorde Ignazio sabia que não iria sair dali sem dizer
alguma verdade e, se ele quis a sua vingança, seria obrigado a enfrentar o
conde e dizer-lhe o que aconteceu no jardim dos Olsen.
Edward cruzou os braços e indicou que estava esperando. O duque foi até
o aparador e serviu uísque para todos.
— Lorde Ignazio, o senhor tem algo a dizer sobre a irmã do conde? —
Riderhood perguntou.
— Não.
— Parecia ter.
— Diga logo, homem. — Aiden entregou a ele um copo de bebida. — O
que afinal você sabe sobre aquela noite no baile? Por que afirmou que não foi
Sawbridge que estava lá com Lady Wilhelmina?
Lorde Ignazio começou a suar frio. Queria dizer na cara daqueles homens
que foi ele, o italiano que eles não consideravam como parte do grupo, que
seduzira e levara para os jardins aquela jovem e linda dama virgem. Que ele
teria feito coisas libidinosas com ela pelo simples prazer de a ter em seus
braços, pois ela era macia, cheirosa e estava com aquele hálito embriagado
que o deixou louco. E que, depois de descobrir quem ela era, pagou aos
jornais para que publicassem que viram o episódio, acrescentando alguns
detalhes.
Era a sua vingança. Não que tenha pedido por aquilo, foi apenas uma
coincidência que ele estivesse a fim de uma mulher e ela estivesse disponível.
Mas foi o bastante para que ele desejasse vingar Lady Francesca. O irmão
dela havia desprezado sua irmã e feito sua família de boba. Lorde Ignazio foi
obrigado a aceitar passivamente a vergonha em nome de bons contatos, mas
não esperava que, cinco anos depois, tivesse a oportunidade de um revide.
Porém, se abrisse a boca, ele apanharia. Ainda assim, preferiu um olho
roxo e alguns hematomas a deixar que outro levasse a fama por seus feitos.
— Porque era eu que estava com ela naquele jardim.
Aiden e Riderhood entraram na frente de Edward ao mesmo tempo e se
colocaram entre ele e Ignazio. O italiano expirou aliviado, mas manteve a
pose arrogante de quem não temia o irmão assassino da mulher que ele
arruinou.
— Você está mentindo! — O conde esbravejou. — Sawbridge pode ser
um canalha de primeira linha, mas ele jamais assumiria uma ruína que não
fosse causada por si.
— Mas ele assumiu, e não sei quais foram os motivos. Fui eu que levei
Lady Wilhelmina para o jardim e…
— Seu canalha!
Edward não deixou que ele terminasse e voou para cima do italiano,
forçando Aiden a usar toda sua força e tamanho para segurá-lo. Para
completar o cenário shakespeareano, a porta do escritório se abriu e um
empregado anunciou algo para Riderhood.
— Mande-o entrar.
— Quem?
A resposta veio em forma da imagem de Sawbridge. Ele estava horrível,
com olheiras imensas e a roupa desgrenhada, como se tivesse se vestido às
pressas. A camisa estava parte por fora da calça, não havia gravata em seu
colarinho, que estava aberto e exibia pele demais. Bem, aquele era um clube
de cavalheiros e definitivamente ninguém prestaria atenção na pele exposta
de Grant Sawbridge.
— O que diabos está havendo aqui? Por que fui chamado para esse circo?
— Talvez porque você nos deva uma explicação! — Edward voltou sua
fúria para o amigo industriário. — Por que mentiu dizendo que arruinou
minha irmã?
Sawbridge piscou lentamente e passou as mãos pelos cabelos
desgrenhados.
— Então vocês descobriram? Bem, eu não esperava ter que discutir isso
com você, Edward. É algo desagradável para um irmão saber.
— Desagradável é você assumir um fardo que não é seu e mentir para
mim durante todo esse tempo… por quê?
— Eu precisava de uma esposa, ela de um marido. Foi conveniente.
O industriário serviu-se de um uísque, mesmo parecendo que ele já
bebera o suficiente para aquela noite.
— Conveniente? Ela é minha irmã!
— E isso não a impediu de ter um amante! De planejar casar-se comigo
para poder desfrutar de um… um maldito fazendeiro!
— Do que diabos você está falando, Sawbridge? — Foi Aiden que
perguntou.
— De Thomas Caldwell. O homem que arruinou Wilhelmina no jardim
sem pretender casar-se com ela.
— Pelos céus, quantos homens estavam naquele jardim? — Riderhood
exclamou. — Os bailes da aristocracia são sempre interessantes assim?
— Cale-se, Thomas. — Edward resmungou.
— Parem de agir como crianças. — O dono do clube reagiu. — Afinal,
quem beijou a dama no jardim? Foi você, milorde?
Ignazio ajeitou seu casaco e encarou os homens. Ele precisava manter-se
firme, pois ele queria que os McFaddens soubessem.
— Sim, fui eu. Em seguida eu fui para a Cidade de Glasgow.
— Você? — Sawbridge viu o italiano pela primeira vez desde que entrou
no escritório. — Por que você beijaria a minha mulher na merda de um
jardim?
— Ela não era sua mulher. E eu não… eu tive a oportunidade de me
vingar. Quando descobri quem ela era, garanti que todos soubessem de sua
pequena excursão pelo jardim dos Olsen.
Pronto, a verdade estava lançada.
— Vingar?
— Pelo que aquele patife do Isaac McFadden fez com minha irmã, pela
humilhação. A irmã dele pela minha. Eu não planejava, mas, quando vi quem
a jovem era, pensei que seria uma boa ideia arruiná-la.
Daquela vez ninguém interferiu. Os homens podem ter tentado impedir o
conde de socar o italiano até esfolá-lo, mas não impediriam o marido de
Wilhelmina de defender a honra dela. Duelos não existiam mais, a sociedade
evoluíra o suficiente para que homens não se matassem mais pela honra, mas
eles não se importavam se houvesse um pouco de sangue envolvido.
Lorde Ignazio não viu o punho que o atingiu. A mão pesada de
Sawbridge desceu sobre ele e logo o industriário estava montado sobre o
italiano, socando-o impiedosamente. Depois de alguns minutos, Aiden e
Riderhood decidiram que era suficiente e arrancaram o marido ofendido de
cima do canalha que decidira provocar sua mulher.

E LE ESTAVA DORMINDO no Riderhood havia duas noites. O dono do clube era


seu amigo o suficiente para conceder um quarto privado no quarto andar,
onde ficavam os aposentos da administração. Ninguém ia lá além de
Riderhood e seus capangas. Sawbridge teria paz para sofrer e lamber suas
feridas enquanto decidia que estava sendo um canalha com Wilhelmina. Ela
quis contar alguma coisa e ele simplesmente não ouviu, mas, o que ela teria
para dizer? O que ela poderia falar que ele não sabia?
Já eram dois dias que ela saíra de casa e fora para Thanet. Aquele era o
dia do aniversário de Isaac e ele a imaginou com a família, comemorando,
feliz, sorrindo. Será que ela também sofria por ele ou estaria ao lado de
Thomas Caldwell? Sua cabeça estava prestes a explodir quando um dos
capangas de Riderhood apareceu para chamá-lo. Aparentemente, havia uma
confusão no térreo que ele precisava ajudar a resolver.
E, quando ele percebeu, estava esfolando a cara de Lorde Ignazio. Toda a
frustração de ter visto Wilhelmina com outro homem, de imaginá-la com um
amante, de fazê-la sofrer por achar que ele mesmo tinha um relacionamento
amoroso com sua secretária, se uniu às ofensas proferidas por aquele patife e
fez com que ele explodisse.
— Acalme-se, Grant. — Riderhood o segurava pelos braços. O Duque de
Shaftesbury estava à sua frente, mas a sua raiva era tanta que ele duvidava
que aqueles dois homens enormes pudessem contê-lo. — Não vou deixar que
o mate.
— Ele merecia apanhar mais um pouco. — Edward provocou.
— Não coloque lenha nessa fogueira, milorde. — Riderhood o
repreendeu. — Não quero esse tipo de problema no meu clube.
— Soltem-me. — Sawbridge esbravejou. — Eu não vou matá-lo.
— Como foi que chegamos a isso? — Aiden Trowsdale questionou. —
Explique-nos, Sawbridge, por que se casou com Lady Wilhelmina?
Riderhood afrouxou as garras, liberando seus braços. Sawbridge estalou
os dedos e percebeu que as mãos estavam feridas. Bom, ele adorava cicatrizes
de guerra. O italiano tinha se arrastado para o canto e era socorrido por outro
homem, um dos empregados do clube. Edward o mantinha sob vigília para
garantir que não saísse daquele escritório, como se alguém fosse passar pelo
brutamonte que estava de guarda na porta.
Ele contou aos amigos tudo que aconteceu, desde o momento em que
entrou no escritório de Edward e até aquele momento.
— Você é um idiota. — Edward rosnou. — Wilhelmina jamais teria um
amante.
— Ela estava com aquele homem e ele a tocou de forma íntima em
público.
— Bem, não era ele no jardim, era?
Todos olharam para Lorde Ignazio, cujos olhos estavam fechados pelo
inchaço e roxos. O nariz sangrava e ele certamente precisava de um médico.
— Pelo visto, não.
— Então você está enganado sobre isso e Deus sabe lá em que mais. De
todos os defeitos que você poderia ter, nunca imaginei que fosse burro,
Sawbridge.
A fala do duque não pegou ninguém de surpresa. Aiden Trowsdale tinha
aquele ar arrogante da alta aristocracia e, afinal, ele era um duque. Acreditava
- tinha certeza - que podia fazer tudo e continuaria sendo respeitado e
adorado. Sim, Sawbridge estava sendo teimoso, ranzinza e tolo, mas como
ele poderia saber?
Antes que alguma decisão fosse tomada ou que o médico chegasse para
cuidar do lorde italiano, a porta do escritório de Riderhood abriu-se
novamente. O empregado, que assumira uma expressão de completo desdém
pelo alvoroço causado, anunciou que mais gente queria entrar na contenda.
Em seguida, entrou Arthur, o mordomo.
— Qualquer um entra no clube, agora? — Riderhood reclamou.
— Ele disse que trabalha para o Sr. Sawbridge.
— Sim, senhor. Sou o mordomo e vim buscá-lo.
Sawbridge, que colocava um pouco de gelo sobre os nós dos dedos, que
estavam arrebentados, virou-se para o homem pequeno e determinado que
aderira ao grupo.
— O que diabos pensa que está fazendo, Arthur?
— Senhor, eu vim buscá-lo para levá-lo para casa. Prometi à Sra.
Sawbridge que manteria o senhor na linha e não o deixaria desviar,
portanto…
— Prometeu a quem? A Sra. Sawbridge foi embora, ela está em Thanet.
— Sim, senhor, mas ela deixou tudo organizado para sua ausência. A Sra.
Cook está arrasada porque preparou seu jantar preferido por duas noites
seguidas e o senhor não apareceu. A pobre Jeanne está preocupada que não
poderá prestar contas à patroa quando ela retornar porque o senhor também
não dormiu em casa, não tem nem aparecido por lá. Estamos falhando
enquanto empregados se não conseguimos cumprir uma ordem de nossa
patroa, portanto, o senhor voltará comigo para casa. Agora.
O mordomo, que era menor do que todos os homens presentes, falou tudo
de uma vez. Não parou sequer para tomar fôlego e manteve a pose de quem
não aceitaria nada além do que fora buscar naquele clube. Sua fala direta e
incisiva para o patrão, o homem sem coração, fez com que risadas
rompessem o súbito silêncio do escritório.
— Wilhelmina deu ordens? — Sawbridge enrolou um pano com gelo nas
mãos, não aguentando mais a dor. — Que ordens?
— Nós deveríamos cuidar do senhor. Mantê-lo na linha, se o senhor me
entende.
— Parece-me que Lady Wilhelmina saiu da cidade, mas manteve a
coleira firme em nosso amigo. — O Duque de Shaftesbury, que não
conseguia parar de rir, disse.
— Como se sua esposa não fosse exatamente igual. — Edward variava
entre a expressão fechada e alguns risos incontidos.
— Meu Deus, vocês dois são irritantes. Como foi que meu casamento se
tornou esse… pandemônio?
— Vá para casa, Sawbridge. — O conde colocou a mão em seu ombro.
— Se eu conheço minha irmã, ela está muito irritada com você, então tente
dormir, trate desses ferimentos e amanhã nos encontramos em London
Bridge. Vamos para Thanet.
Sawbridge assentiu com a cabeça e acompanhou Arthur, o mordomo mais
petulante que ele conhecia, até a carruagem que esperava por eles na rua
lateral. Ele cometera um erro - sua esposa não tivera um caso com Thomas
Caldwell naquele maldito jardim. Tudo foi uma armação de um italiano
rancoroso que não conseguiu superar uma bobagem do passado. Ainda assim,
precisava entender o que aquele fazendeiro era para Wilhelmina.
Estava na hora de um pouco da verdade, para variar.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

A NTES DE SE CASAR , AS MANHÃS ERAM SEMPRE CORRIDAS PARA S AWBRIDGE .


Depois de Wilhelmina, ele acordava e passava algum tempo na cama, com
ela. A esposa fez com que ele ficasse mais preguiçoso, mais disposto a se
dedicar a atividades que desprezava, como tomar café da manhã. Só que,
naquele dia, Sawbridge acordou com um propósito - recuperar sua mulher.
Primeiro, ele precisava saber o que diabos ele vira naquela tarde, na
Shaftesbury Avenue. Depois, ele diria que a amava e a levaria para o quarto e
faria amor com ela para descontar aquelas malditas duas noites sozinho.
Claro que era um plano perfeito, considerando que ela não estivesse muito
magoada por causa da mentira sobre a Srta. Trimmes.
Ele chegou à estação London Bridge cedo demais e não encontrou o
duque nem o conde por lá. Ou estavam atrasados ou pretendiam pegar outro
trem. Não era como se houvesse trens para Kent a toda hora - se eles não
saíssem naquele da manhã, só haveria outro depois de meio dia. Sawbridge
não estava disposto a esperar tanto tempo, tinha que chegar logo a
Greenwood Park.
Por muito tempo, a vida dele foi perfeita. Tudo que precisava, tudo que
queria, conquistava. Multiplicou a fortuna do pai, estudou nas melhores
escolas, possuiu as mais lindas mulheres de Londres, teve o mundo aos seus
pés. Alguns homens o comparavam a Midas, porque seu toque transformava
tudo em ouro. Nada o abalava, ele não temia ninguém e seguia movido por
objetivos, nunca sentimentos. E então aquela mulher aconteceu.
Sawbridge não sabia dizer se aquela manhã na McFadden Garden foi uma
bênção ou uma maldição. Sua vida mudou totalmente a partir daquele
momento, de quando decidiu fazer uma proposta aparentemente muito
lucrativa para a irmã mais nova do Conde de Cornwall. Uma dama. Uma
aristocrata não ao seu alcance quanto a lua - assim, Sawbridge conseguia
provar que, se quisesse a lua, ele poderia ter.
Só que ele não desejou voltar atrás nem um minuto. Mesmo acreditando
que aquele Caldwell era amante de sua esposa, ele não se arrependia de a ter
proposto casamento. Nada o faria desejar perder os momentos que
compartilhou com ela. As risadas, os passeios, as conversas. Ela parecia tão
simples, ao mesmo tempo que era extraordinária.
— Parece que nosso amigo está ansioso para rever a mulher.
A voz do Duque de Shaftesbury o tirou dos devaneios. Ainda bem, pois
um homem como ele não divagava como um tolo.
— Vocês estão atrasados.
— O trem ainda não partiu. Vamos embarcar?
Edward parecia pouco amistoso. Não era de se estranhar, afinal,
Sawbridge atacou a honra de sua irmã e mentiu para ele, assumindo ter
beijado Wilhelmina em um jardim quando fora outro homem naquela noite,
com ela. Os homens pegaram um vagão de primeira classe, pois seus vagões
privativos estavam com suas esposas, no litoral. A viagem talvez fosse longa,
mas ele não se importava em esperar. Sawbridge aprendeu a ser paciente. Só
seria difícil aguentar as piadas e fanfarrices do duque estando tão mal-
humorado.
O trem partiu em menos de meia hora e os homens acabaram envolvidos
em conversas de negócios. Falaram sobre o problema do fornecimento de
insumos, da economia das ex-colônias e do quanto precisavam se adequar a
novos tempos. Já estavam chegando na metade do caminho quando um
barulho, semelhante a uma explosão, quase os deixou surdos.
De repente, o chão virou teto, o dia virou noite e Sawbridge mergulhou na
escuridão de sua inconsciência.

A FAMÍLIA de Isaac chegou a Greenwood Park bem cedo, por volta das oito
da manhã. No litoral, assim como no campo, era hábito acordar cedo, mesmo
para a aristocracia. Wilhelmina, no entanto, mal dormira a noite toda. Era a
segunda noite que passava praticamente em claro, nervosa, ansiosa, sentindo
seu estômago borbulhar com a antecipação. Não era de seu feitio esperar,
gostava de resolver suas questões no momento em que elas apareciam.
Mas, primeiro, o marido não a quis ouvir. Depois, ela estava furiosa
demais para ouvir. Eles precisavam resolver aquilo, e seria naquele dia.
— Riderhood me escreveu um enigma. — Caroline reclamou, à mesa do
desjejum. — Disse que a verdade fora revelada e que Grant estava a caminho.
Entendi a segunda parte, apenas.
— Considerando que não há muitas mentiras entre nós, ele
provavelmente está falando da Srta. Trimmes. — O nome da secretária
amargou o chá que Wilhelmina bebia.
— Bem, se o homem está vindo, então precisamos esperar que chegue. —
Isaac decidiu.
Esperar, novamente, era tudo que ela não queria. A família continuou o
desjejum alegremente, falando sobre algumas questões típicas do interior.
Antes de debutar em Londres, os assuntos das propriedades a interessavam
mais, pois pertenciam à sua realidade. Era triste que as fábricas e indústrias
estivessem engolindo e destruindo aquele estilo de vida mais tranquilo. Quase
não havia mais grandes propriedades e a maioria dos arrendatários viveria em
absoluta miséria se não fosse a benevolência de alguns donos de terras. Em
Greenwood Park, parte dessas terras foi desmembrada e vendida ou doada
para alguns arrendatários maiores, mas eles também tinham dificuldade de
sobrevivência por conta da mudança causada pela revolução industrial, que
consolidou a vida urbana como padrão para todos.
Quando ela nasceu as coisas já eram daquela forma, ela apenas fora
imunizada contra a verdade. Seus olhos estavam, então, bem abertos. Tudo
que ela podia fazer era apoiar o marido e seus amigos na empreitada de
transformar a vida naquela vila, em Thanet, garantindo que se tornasse uma
estância turística.
— Meu senhor. — O mordomo interrompeu a conversa e trouxe
Wilhelmina de volta para a realidade. — Há um mensageiro pedindo para vê-
lo.
— Receba a mensagem, Peyton. — Isaac determinou. — Assim que
terminarmos o desjejum, vejo do que se trata.
— Tentei fazer isso, porém ele diz que é muito importante e precisa falar
com o senhor imediatamente.
Isaac colocou o guardanapo de tecido sobre a mesa e se levantou. A
severidade em sua expressão sugeriu que ele suspeitava que eram notícias
ruins. Wilhelmina e Agatha se entreolharam e decidiram conferir do que se
tratava. Saíram da mesa apressadas, deixando as outras mulheres para trás.
No salão principal da mansão em Greenwood Park havia um jovem com as
botas sujas de terra e homens conversavam rispidamente, indicando que
estavam nervosos.
— Mande chamar Davies e todos os homens da vila. Todos devem se
dirigir para o local do acidente.
— Que acidente? — Wilhelmina se aproximou da confusão.
— Parece que o trem sofreu um descarrilamento vindo para cá e os
vagões tombaram.
A frase de Isaac fez com que as pernas dela fraquejassem, mas ela se
manteve de pé. Colocou as duas mãos no ombro do irmão e fez com que ele
olhasse diretamente em seus olhos.
— Grant estava no trem? Nesse trem?
— Todos eles. — Isaac confessou. — Edward e Aiden também. Mas
acalmem-se, as notícias dizem que não foi muito grave.
— Como não foi grave? — Agatha bradou, a voz aguda e nervosa. — Um
trem tombou, como isso pode não ser grave?
— Acho que ele quer dizer que os homens estão bem. Certo, Isaac?
Caroline surgiu na conversa, vinda da sala de café da manhã. Pauline
seguia atrás dela, com sua camareira e fiel criada como companhia.
— Não sei, meu amor. — Ele confessou novamente, baixando a cabeça.
— O mensageiro veio a pedido do duque, foi Aiden que escreveu o bilhete.
Ele não disse nada além de pedir que fôssemos para lá.
— Então vamos.
Wilhelmina começou a sair e Agatha foi atrás dela. O irmão correu atrás
das mulheres e as impediu de deixar a casa, tentando convencê-las de que era
irrazoável ir até o lugar do acidente. Provavelmente era a coisa mais estúpida
que elas poderiam fazer, já que seus maridos poderiam estar feridos ou até
mesmo mortos. Não, eles não estavam. Ainda assim, elas seriam de pouca
valia naquela confusão toda.
— Deixe-as ir, Isaac. — Caroline abraçou o marido. — Quando você se
acidentou, não teve conde nem marquês que me impedisse de arrancar o
vestido e te resgatar. Deixe-as ir.
Isaac olhou para a irmã e a cunhada e pensou. Há quatro anos, o silo
antigo da propriedade do Conde de Cornwall desabou quando ainda passava
por reformas. Alguns homens ficaram soterrados, entre eles o administrador
da propriedade, Isaac McFadden. Naquela ocasião, Caroline e Agatha
ofereciam um final de semana de apresentação de suas escolas e um
agrupamento de damas foi até o local do desabamento para assistir a sobrinha
do marquês desabotoar seu vestido na frente de todo mundo e entrar, apenas
de roupas de baixo, em um buraco para ajudar a resgatar seu amado.
As pessoas ainda comentavam o quanto ela era louca, corajosa e
apaixonada. Caroline orgulhava-se das três coisas. Naquele momento,
Wilhelmina a entendeu totalmente, pois ela queria sair correndo para ver
como seu marido estava. O ar faltava em seus pulmões e seu coração estava
disparado, ela apenas precisava estar lá.
— Certo, vocês podem ir. Vamos na carruagem nova, ela é mais
dinâmica.
— Você deveria ficar. — Agatha disse. — Cuide das coisas para quando
retornarmos, e esteja do lado de sua esposa grávida e de sua mãe.
— Como pensam em ir até lá sem um homem?
— Somos casadas, não precisamos da companhia de ninguém. —
Wilhelmina esbravejou. — Vamos logo, estamos perdendo tempo.
Uma carruagem parou no pátio principal e elas embarcaram. Via-se o
movimento de homens a cavalo e outras carruagens; pessoas se deslocando
para ajudar os possíveis feridos. A ideia de que seu marido estivesse entre
eles a deixava enjoada.
Ela não podia perdê-lo. Não antes que resolvessem seus problemas e
conseguissem conversar sobre sentimentos. Ah, aqueles inconvenientes que
eram os sentimentos. Wilhelmina se perdeu neles uma vez e de nada adiantou
jurar que nada daquilo aconteceria novamente - ela não apenas se apaixonou
como fez isso pelo homem que não tinha coração.
Só que ela sabia que ele tinha. Grant era frio como gelo e difícil de lidar,
mas com ela era suave e gentil, sempre. Havia esperanças de que ele pudesse
cuidar dela sem destruir seu coração. Wilhelmina podia tolerar ser a única
apaixonada naquela relação se eles conseguissem chegar a um termo. O
marido não precisava amá-la, bastava que continuasse exatamente como ele
era. Porque Grant Sawbridge era fantástico e o mundo não estava pronto para
existir sem ele.

A INDA ESTAVA tudo escuro quando Sawbridge sentiu que alguém o segurava.
Não, ele estava sendo sacudido por um par de mãos nervosas que pareciam
querer desesperadamente alguma coisa. Ouvia vozes, gritos, sons estranhos
que tornaram difícil a tarefa de abrir os olhos e se localizar.
Aiden Trowsdale estava pendurado em uma janela e balançava os braços
nervosamente em sua direção. Sawbridge piscou algumas vezes e tudo voltou
subitamente à sua mente - o trem descarrilhou. Ele tentou se mexer, mas
estava preso por outro assento, que se desprendeu e o forçava a ficar sentado,
de lado, enquanto o cheiro de carvão fazia com que ele sentisse uma tontura
incômoda.
— Temos que entrar para soltá-lo. — Aiden disse para alguém. Era um
homem jovem que tinha um fio de sangue ressecado em escorrido de sua
testa. — Peça ao conde para trazer qualquer coisa que sirva de ferramenta.
— Vocês estão bem? — Sawbridge perguntou, tentando empurrar o
assento que prendia suas pernas. — O que diabos aconteceu?
— Ninguém sabe dizer. O maquinista está inconsciente, bastante ferido.
Você está bem, Grant?
Ele estava, ao menos parecia estar. Não sentia dor, tirando um pequeno
desconforto nos quadris por causa da pressão. Precisava se soltar daquela
prisão horrorosa, principalmente porque o cheiro de carvão aumentava o mal-
estar. Antes que ele conseguisse insistir mais um pouco com o assento, o
Conde de Cornwall aparece em seu campo de visão, cobrindo o sol. Os três
homens confabularam alguma coisa e Sawbridge entendeu o que pretendiam
quando viu Edward segurando um objeto pesado.
— Feche os olhos, meu amigo. Estilhaços vão voar.
Com algumas pancadas, os homens derrubaram a janela, fazendo com
que ela caísse sobre Sawbridge. O vidro pontiagudo perfurou sua pele em
alguns pontos, mas não era nada que causasse preocupação. O homem que
estava com eles era menor e entrou no vagão, que já estava vazio, para ajudá-
lo a sair. Usando uma corda e um pouco de força bruta, os homens puxaram e
bateram no assento até que ele cedesse para conceder a liberdade a
Sawbridge.
— Agora estique os braços. Vamos puxá-lo.
— Posso sair sozinho dessa lata amassada.
O duque e o conde não discutiram. Sawbridge subiu nas ferragens e se
projetou para fora do trem. Só então ele viu o estrago - dezenas de vagões
descarrilhados, muitas pessoas feridas e assustadas, mas aparentemente nada
similar a um cenário de guerra.
Carruagens e cavalos vinham de todos os lados. Barracas já estavam
montadas, lugares improvisados para que os feridos pudessem ser
examinados. A plebe miserável fazia uma fila enorme em frente a uma
barraca, podia-se ouvir crianças chorando e o burburinho era irritante. A
aristocracia, no entanto, recebia atendimento privilegiado.
— Pelos céus, Aiden. Você vai deixar que tratem as pessoas dessa forma?
— Sawbridge reclamou, descendo do vagão. Sentiu uma fisgada no quadril
ao pisar no chão, mas nada que justificasse sua atenção.
— Estava ocupado tentando salvá-lo, meu caro amigo. Mas não se
preocupe, sou o duque dessa vila. Darei ordens para que todos sejam tratados
pelos médicos. Espero que Davies chegue logo, mandei avisar Isaac e pedi
que ele tomasse providências.
O duque, no alto de sua arrogância aristocrática, ajeitou o colete desfeito
e tentou assumir uma aparência elegante antes de se deslocar para discutir
com os médicos e habitantes da vila, que estavam organizando tudo. Edward
tinha um ferimento no braço e estava sentado, tentando enfaixá-lo com uma
bandagem improvisada. Sawbridge decidiu perambular pelos vagões em
busca de pessoas precisando de ajuda e crianças perdidas de seus pais.
Depois de retirar pessoas de lugares escondidos, ajudar uma menina a
achar a irmã e resgatar dois gatos, ele se sentiu exausto e dolorido. Não
queria ser atendido ali, no meio da grama e do barro, mas suspeitou que
precisasse de algum auxílio. Havia um hematoma grande que começava a se
formar indo das suas costas até sua barriga e aquilo incomodava mais do que
ele estava disposto a tolerar.
Enquanto caminhava pela confusão, viu as carruagens dos McFaddens e
dos Trowsdales se aproximarem. Ao contrário do que esperava, não foi Isaac
que saltou da carruagem para ajudar no que fosse preciso, mas duas
mulheres. Sem dar a menor atenção para o cocheiro, que tentava auxiliá-las a
descer, Wilhelmina e Agatha pisaram no meio da terra revolvida e
começaram a olhar ao redor. Elas estavam aflitas.
Sawbridge teve vergonha de sentir-se bem ao ver a agonia nos olhos de
sua esposa. Ela estava preocupada com ele, era tudo que importava. Ela ficou
sabendo do acidente e foi até lá - esperava ele que não para confirmar a sua
morte, mas porque esperava vê-lo vivo. O desejo de correr até ela não
conseguiu superar a dor, nem a glória de perceber Wilhelmina tão nervosa.
Até que seus olhos se encontraram e ela o viu.
Naquele instante, naquela fração de segundo, ela correu o mais rápido que
alguém poderia correr. Segurou a barra do vestido e, erguendo as saias,
disparou na direção dele, que agradeceu secretamente a oportunidade de ficar
inerte. Quando se aproximou, ela estava com o cabelo trançado um pouco
desgrenhado, as sapatilhas arruinadas e a pele das bochechas rosadas como se
eles tivessem acabado de fazer amor.
E ele quis fazer amor com ela mais do que qualquer coisa que já tenha
querido antes. Sawbridge era capaz de abrir mão de sua riqueza por outra
noite com sua esposa. Céus, como homens apaixonados eram imbecis.
— Grant! — Ela parou, como se tocar pudesse quebrá-lo. — Você está
bem?
— Sim, não foi nada grave.
— Meu Deus, ficam me dizendo isso, mas veja só esse trem! Como pode
não ser grave? Você está ferido?
— Um pequeno hematoma, nada demais.
Ela levou as mãos até a camisa dele e puxou, deixando à mostra o lugar
exato onde o assento o prendera.
— Não é pequeno. Vamos ver o médico.
— Minnie…
— Não aja como se eu estivesse te dando opções. Venha comigo.
Parecendo irritada, ela o segurou pela mão e o arrastou até a barraca em
que também estavam Aiden e Edward, já com sua esposa nos braços.

C OMO AQUELE HOMEM ERA IRRITANTE ! Ela estava desesperada quando chegou
ao lugar do acidente e viu o horror com seus próprios olhos: uma massa de
ferro tombada no meio do nada, e um mar de pessoas feridas e girando para
lá e para cá. Ficou mais desesperada ainda procurando pelo marido, até seus
olhos encontrarem os dele e ela o ver saudável, de pé, encarando-a. Próxima
a ele, sentindo seu aroma de tabaco e misturado ao sangue e carvão, ela quis
beijá-lo e assassiná-lo ao mesmo tempo.
Por fazê-la preocupada, por fazê-la sofrer e chorar, e por estar glorioso
mesmo depois de sofrer um acidente de trem.
Mas ele estava ferido e precisava de atenção médica. Por sorte, Davies
chegou junto delas e estava atendendo o conde, seu irmão. Wilhelmina
conduziu Sawbridge até eles e fez com que o marido se sentasse.
— O que vocês duas estão fazendo aqui? Onde está Isaac?
— Com a mulher dele, em Greenwood Park, cuidando de tudo. — Agatha
respondeu. — Nós precisávamos vir para garantir que vocês estivessem bem.
— A presença de vocês realmente foi fundamental para que nossa saúde
fosse mantida. — O conde provocou.
— Não seja ridículo, Edward. — Wilhelmina esbravejou. — Agora deixe
de ser tolo e libere o médico para que ele examine Grant. Ele está lesionado.
— É apenas um hematoma. O seu irmão viu, eu estava preso por um
assento.
— Quando o médico disser isso, eu acreditarei.
Ela não sabia se estava furiosa porque ele tinha uma maldita amante ou
porque ela parecia não se importar com aquilo, mais. Ficou tão assustada
quando pensou que Grant estivesse ferido gravemente que agiu como se não
houvesse um passado recente entre eles. Divórcio. Mentiras. Amantes.
Parecia tudo uma grande bobagem depois que ela o viu ali, vivo, mas não era.
O Dr. Davies pediu que Grant se deitasse em uma maca improvisada e
examinou a mancha arroxeada que começava a despontar na pele clara. Não
parecia tão feia, afinal. Depois de alguns minutos, o médico se virou para ela
e ajeitou os óculos da face.
— É uma contusão, milady. Basta que o Sr. Sawbridge repouse e tome
alguns tônicos, logo ficará como novo.
O alívio despencou sobre seus ombros e o ar retornou a seus pulmões.
Wilhelmina poderia desabar ali no chão se não estivesse muito concentrada
no que precisava fazer naquela manhã - obrigar seu marido teimoso e infiel a
ouvi-la. Em um momento de distração, ele se sentou e puxou-a para si,
fazendo-a parar em seus braços. Calor, maciez e o cheiro que lhe era tão
característico a desmontaram e fizeram com que Wilhelmina não resistisse.
— Eu queria odiar você. — Ela o envolveu em um abraço, enquanto ele
apoiava a cabeça em seu peito. — Mas você tem tornado isso um pouco
difícil.
— E eu estava louco de vontade de abraçá-la, fy nghariad.
— Não fale em gaélico comigo. — Ela rosnou, beijando-o no topo da
cabeça. — A não ser que esteja pronto para me ouvir, ao invés de atirar
papéis e propriedades sobre mim como se eu fosse uma maldita caçadora de
fortunas.
Ele assentiu, esfregando a cabeça no vestido dela, indicando que sim, ele
a ouviria. Pediu privacidade, praticamente expulsou Edward e Agatha com o
olhar, mas eles não se moveram. Wilhelmina não se importava se alguém
mais fosse ouvir, ela apenas precisava falar, retirar aquele peso de seu
coração. Era aquele o momento ou não seria outro, pois, se fossem para casa
primeiro, outros eventos desviariam a atenção de todos.
— Eles não nos deixarão a sós. — Grant reclamou.
— Não importa. O que eu quero dizer é muito simples: eu não sei o que
se passa nessa sua cabeça complicada, mas eu e Thomas não temos nada. O
que você viu na cafeteria foi um homem desesperado que precisava de
dinheiro para pagar dívidas do tratamento de uma irmã doente.
Grant rosnou com a boca em contato com o vestido dela. Continuava
abraçado à cintura da esposa para evitar perder a cabeça enquanto a conversa
seguia.
— Se ele precisava de dinheiro, deveria pedir a outro homem. Nunca a
uma mulher casada. Nunca à minha mulher.
— Tem razão. Nosso encontro foi… imprudente. Mas Thomas é um
amigo do passado. Isso não é mentira.
— Não é mentira que seja um amigo?
— Não é mentira que seja um passado. — Ela respirou fundo. — Você
quer a verdade, então eu te darei a verdade. Eu amei Thomas Caldwell, ou ao
menos eu achava isso. Era jovem, encantada por um homem que me tratava
diferente dos outros. Eu acreditava que nos casaríamos, só que estava
enganada.
— Enganada que se casariam?
— Enganada que o amava.
Grant afastou-se dela e ajeitou o corpo. Ficou de pé, mas manteve-a ao
alcance de um braço. Wilhelmina quis se afastar, mas não conseguiu. Seria
mais fácil falar se ele não a interrompesse, se ele não a encarasse com aquele
azul afiado que poderia parti-la ao meio ao mesmo tempo que a enviaria ao
paraíso. Se Edward e Agatha não fingissem que estavam fazendo qualquer
coisa que não prestando atenção neles. Seria mais fácil se ela estivesse
falando para um espelho, mas não havia opção. Era ali, naquele momento, ou
não mais.
— Thomas foi um sonho, Grant. Eu não fazia ideia do que era o amor de
um homem e uma mulher, então eu o idealizei. Naquela tarde, ele só
precisava de algumas libras e eu dei a ele o que ganhei no cassino. A irmã
dele é uma menina linda, ela merece ser tratada. Mas eu não o amei, eu não o
amo, nós não somos nada além de pessoas que tiveram um passado.
— Quando descobriu que não o amava?
Uma pergunta cuja resposta era muito simples, porém dificílima de
verbalizar. Porque, para respondê-la, ela precisaria dizer, e dizer significava
não ter mais volta. Desnudar a alma era muito mais difícil do que o corpo.
— Quando descobri que amava você. — Ela não viu Agatha sorrir e
Edward arregalar os olhos em surpresa. Tudo que ela viu foi o mais profundo
azul límpido que existia no mundo. Cravados sobre ela estavam os olhos de
Grant Sawbridge e ele parecia prestes a atacá-la de alguma forma. — Tudo
ficou muito claro depois que eu descobri como me sentia em relação a você,
Grant. E então… então você partiu meu coração porque eu também descobri
que não sou a única.

E LA CONTINUAVA FALANDO enquanto as palavras não faziam todo sentido para


ele. Grant Sawbridge não era homem de se abalar por uma mulher. Não havia
nada mais risível do que alguém achar que ele se afetaria por um “eu te amo”,
mas ele se afetou. Estava com medo de piscar e ela desaparecer da sua frente
como uma alucinação, porque apenas estando muito louco para acreditar que
Wilhelmina, sua esposa, acabara de dizer que o amava.
Não apenas isso, ela estava se afastando. Virou de costas e saiu andando
na direção oposta, enxugando algumas lágrimas. Ele não podia deixar que
fosse.
— Wilhelmina. — Sawbridge moveu-se rapidamente e sentiu uma
fisgada. Que se explodisse a lesão, ele precisava ir atrás dela. — Wilhelmina,
volte.
Ele a alcançou quando já estavam do lado de fora da barraca. Algumas
pessoas viram a abordagem e pararam para ver um homem segurando uma
dama pelo braço e puxando-a para si. Nem todos os veriam como marido e
mulher naquela hora, porém não importava.
— Deixe-me, Grant.
— Não. Você pode dizer a sua verdade e eu não posso dizer a minha?
Ela se virou e cruzou os braços, encarando-o com a expressão resoluta de
quem estava magoada.
— Há uma verdade que você precise me dizer?
— Sim. Maldição, Eleanor Trimmes é minha irmã.
Incredulidade passou pela face de Wilhelmina, que o fitou com o cenho
franzido, para, em seguida, explodir em uma risada. Ela não acreditava nele,
por que acreditaria? Aquele era um segredo muito bem guardado, a ponto de
que ele permitisse que sua irmã vivesse em um bairro miserável para manter
as aparências. O medo de que a exposição pudesse prejudicar seus pais era
maior do que qualquer coisa.
— Você não tem irmã.
— Eu tenho. Você sabe os boatos que existem sobre mim? Sobre minha
origem ilegítima? Eles são verdadeiros.
Daquela vez, a surpresa assombrou a face de Wilhelmina e ali
permaneceu.
— Meus pais me acolheram quando eu nasci e me registraram como se eu
fosse filho legítimo deles. Isso é…
— Um crime.
— Sim, um crime. Mesmo que tantos nobres façam isso, meus pais são
apenas plebeus com dinheiro. Quando fiquei adulto, procurei minha origem e
descobri Eleanor. Ela já estava grávida de um canalha igual nosso pai. Ela
não teve a minha sorte, por isso eu a ajudo.
— Por que não disse isso quando fui lá?
— Eu queria que você achasse que ela era minha… amante. —
Sawbridge baixou o olhar, depois ergueu-o novamente para encontrá-la ainda
incrédula. Desfez o nó nos braços dela e segurou as mãos entre as suas. —
Wilhelmina, eu estava sofrendo e queria que você sofresse o mesmo tanto,
achando que eu lhe era infiel.
— Seu tolo. — Ela olhou para as mãos dele, que a seguravam com
firmeza e cuidado ao mesmo tempo. — O que houve com seus dedos? Por
que estão esfolados, foi do acidente?
— Não. Eu quebrei a cara de Lorde Ignazio Barone.
— Oh. — Ela fechou os olhos. — Então você sabe.
— Sim, eu sei. Na verdade, toda Londres sabe. Houve um pequeno
evento no Riderhood ontem à noite.
— Oh, Deus, precisarei de um ano para me livrar de todos esses
escândalos.
— Você acredita em mim?
Ele levou os dedos dela aos lábios e os beijou. Wilhelmina fechou os
olhos novamente e Sawbridge sentiu-a estremecer. Não era frio, ela sentia por
ele o mesmo que ele sentia por ela.
— Sim, eu acredito, mas você ainda é um tolo.
— Eu sou, mas sou um tolo apaixonado. Eu fiz todas essas bobagens
porque não sei lidar com os sentimentos em mim e porque não quis aceitar
lhe perder. Eu amo você, Wilhelmina.
Houve silêncio. Um longo silêncio que durou um, talvez dois minutos
inteiros, enquanto ele a observava. Ela estava imóvel, olhando para dentro
dele, para dentro de sua alma. As pessoas também os observavam, eles eram
a atração principal em um acidente de trem. Era como se a montanha de ferro
retorcido não importasse mais, apenas aquele casal improvável se declarando
em meio a sangue, carvão, grama e sujeira.
E então ela dobrou o corpo, ficou na ponta dos pés e o beijou. Não, ela
encostou os lábios nos dele, e aquela era a redenção que Sawbridge
precisava. Era a garantia de que ela o perdoaria por ser estúpido, por ter
sugerido que se divorciassem, por a ter expulsado de casa. Mas não era
suficiente, por isso ele a segurou pela cintura e a puxou para perto, fazendo
com que os corpos se amoldassem. Ela soltou um gemido baixo e ele não
resistiu em procurar espaço para sua língua e aprofundar o beijo mais
escandaloso que a vila de Thanet já presenciara em um acidente férreo.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

G REENWOOD P ARK ESTAVA AGITADA . A PROPRIEDADE DOS M C F ADDEN , POR


ficar no caminho até a vila, acabou sendo um dos pontos de apoio para os
feridos. Foram organizados leitos improvisados e algumas macas para
acomodar pessoas nos dois galpões externos. Thanet Bay, a propriedade do
Duque de Shaftesbury, também atendeu a um grupo de pessoas.
Não houve feridos com gravidade, segundo informações do Dr. Davies. O
trem foi a maior vítima do acidente, mas as pessoas estavam quase todas em
boas condições. Os nobres envolvidos se dispuseram a pagar médicos e
cuidados básicos para todos, o que comoveu, mais uma vez, os moradores de
Thanet. Não existiam muitos da aristocracia dispostos a fazer aquele tipo de
caridade.
Quando o Conde de Cornwall e o Sr. Sawbridge chegaram, acompanhado
de suas esposas, pareciam ainda mais gloriosos do que de costume.
Wilhelmina não sabia o que havia em homens como aqueles, que ficavam tão
bem desgrenhados e descabelados quanto perfeitamente vestidos para uma
cerimônia no Parlamento. Não, ela não estava falando de seu irmão, mas do
homem ruivo ao seu lado. Mesmo que ele mancasse e parecesse sentir dor,
sua expressão era impassível e ele mantinha o braço ao redor dela.
Depois de uma recepção emocionada da duquesa viúva, Isaac e Caroline,
eles foram para seus quartos - Edward estava ferido e Grant também, ambos
precisando de banho e descanso pelo dia - o que se tornou um problema no
instante em que ela fechou a porta do quarto atrás de si.
— Esse quarto era o seu? — Grant perguntou, nada surpreso pela
quantidade de objetos cor-de-rosa que decoravam o ambiente.
— Ainda é. Creio que devemos pensar em um novo papel de parede e
talvez cortinas novas, para quando viermos a Greenwood Park. Deite-se.
Ela indicou a cama, que parecia intocada há muito tempo.
— Estou imundo, Minnie. Preciso me lavar.
— Certo, vou encher a banheira.
— Não há um criado para fazer isso?
— Há criados para tudo, em Greenwood Park, mas eu posso fazer isso.
Acho que estou há muito tempo vivendo com um plebeu.
A verdade não era bem aquela. Wilhelmina não queria ninguém entre
eles, naquele momento. Não queria homens nem mulheres tocando seu
marido, nem atrapalhando momentos que eles deveriam desfrutar a sós.
Preparar um banho não era uma dificuldade insuperável, então ela encheu a
banheira com água morna e colocou alguns sais de banho para fazer uma
espuma suave. Quando retornou para o quarto, Grant estava lutando com a
camisa.
— Deixe-me ajudá-lo. — Ela assumiu a função de desabotoar o tecido
danificado para depois o descartar.
— Sinto-me um pouco zonzo.
— Você passou por uma situação estressante. Precisa descansar e comer
alguma coisa.
Wilhelmina continuou a despi-lo. A marca da lesão estava mais destacada
e ela teve medo de tocar a pele sensível. Abriu a calça com cuidado e
terminou de tirar as meias, livrando o marido de qualquer tecido que pudesse
cobri-lo. Ele continuava lindo, esplêndido em sua melhor forma, mesmo
parecendo exausto e faminto. Ela tinha certeza que ele não estava se
alimentando bem, apesar dos seus esforços.
Sem dizer uma palavra, ela o conduziu até o banheiro anexo e o fez entrar
na banheira. Havia algo que precisava ser dito, ainda, porém não era o
momento de causar mais emoções. Wilhelmina ainda estava arrebatada,
agindo como se estivesse do lado de fora do seu corpo, dando ordens para
que os músculos obedecessem. Ela preferia ter desfrutado de uma ocasião
mais tranquila para dizer que amava o marido. Uma circunstância romântica,
que ensejasse uma declaração.
Deveria saber que nada com Grant Sawbridge seria normal, ou próximo
da normalidade. Ele causava nela exatamente aquilo: colisões e
descarrilamentos.
— Por que você não se casou com o Caldwell?
Ele murmurou, com os olhos fechados, relaxado pelo toque dela em seus
cabelos.
— Eu era uma criança e ele tinha caráter o suficiente para não me dar
ouvidos. Thomas insistiu para que eu debutasse e me casasse com alguém da
minha classe social. Um homem que pudesse manter meu nível e não fosse
me arrastar para a pobreza com ele. No início, achei que estava sendo
rejeitada, mas hoje entendo o que ele quis dizer.
Grant levou os braços para trás e a tocou. Wilhelmina se aproximou
enquanto ele a acariciava os cabelos.
— O plano dele não deu muito certo, você se casou comigo.
— Um homem mais do que adequado. — Ela o beijou na face. — Agora
sou grata a ele, pois nenhuma mulher poderia desejar um marido melhor.
Ela disse aquilo no ouvido dele e o beijou no pescoço. Grant virou-se e
torceu o corpo para beijá-la nos lábios, tomando sua boca em um assalto
voraz, mas a dor o impediu de prosseguir. Wilhelmina ergueu-se e o enrolou
em um roupão, conduzindo-o para a cama. Como não se recordava de o
doutor ter ministrado láudano ao homem, era provável que o choque do
acidente o estivesse abatendo.
— Você ficará aqui, comigo? — Ele disse, um pouco sonolento.
— Sim, ficarei. Sempre.
Era a verdade que ela poderia dizer. Tentando ser silenciosa, Wilhelmina
retirou as sapatilhas, as meias, soltou o vestido e se deitou ao lado do marido.
Talvez fosse pela consciência de seus sentimentos, mas ela nunca o vira tão
lindo, tão etereamente perfeito como naquele momento. Mesmo enrolado em
um roupão de veludo e de olhos fechados, Grant Sawbridge poderia ser o
herói de todos os romances, o muso de todas as artistas e a inspiração de
todas as poesias. Ele era o seu Sr. Rochester tornado realidade - e ela nunca
pensou que os mocinhos dos livros pudessem simplesmente pular das páginas
para atender a todos os seus desejos.
Mas o dela estava ali. Não era um príncipe, nem um nobre, nem mesmo
um filho legítimo. Era um bastardo feito herdeiro de um império que ajudou a
construir com seu suor e esforço. E, se fosse possível, ela o amava ainda mais
exatamente porque ele era tudo isso ou nada disso. Ela recostou a cabeça no
travesseiro ao lado dele e o acariciou nos cabelos até que adormecesse.
S AWBRIDGE NUNCA SOFRERA UM ACIDENTE , portanto não fazia ideia dos
efeitos que o trauma poderia ter sobre seu corpo e mente. Naquela manhã, ele
não teve medo de morrer ou ficar aleijado, apenas de nunca mais ver
Wilhelmina e não ter tempo de explicar para ela a verdade. Teve medo de a
deixar sem que ela o pudesse perdoar. Sawbridge também não estava
acostumado a sentir medo, então aqueles sentimentos todos vindos de uma
vez o fizeram sucumbir.
O que aconteceu depois que ele disse à esposa que a amava, e a beijou,
foi um borrão indistinto de vozes, membros e cheiros até que ele
adormecesse. Quando recobrou a consciência, porque o sono foi tão intenso
que ele considerou ter recebido uma dose potente de láudano, o calor do
corpo dela estava ali. Wilhelmina tinha um dos braços por cima dele,
mantendo-o cativo em um abraço preguiçoso - um lugar do qual ele talvez
desejasse nunca sair.
Estar na cama no meio do dia o fez lembrar da lua de mel - e o desejo
puro e instintivo o acendeu como as lamparinas que enfeitavam as ruas no
Natal. Sawbridge virou-se para o lado e encarou a face adormecida da esposa
sem conseguir resistir a acordá-la. Precisava tocar e beijar aquela pele macia
e cheirando a rosas. Com cuidado, passou uma mão pelos cabelos dourados e
levou os lábios até o colo exposto, provando um pouco daquela doçura ácida.
— Você parece melhor.
Ela constatou, com uma voz rouca de quem acabava de acordar, o que o
deixou ainda mais excitado.
— Estou ótimo. — Sawbridge beijou-a no pescoço e deslizou a mão pela
lateral do corpo dela, desenhando as linhas de suas curvas. — E saudoso.
— Você é um devasso, meu marido. — Ela riu. — Vou levantar-me e…
— Não. — Ele a empurrou para o lado e a aprisionou com seu peso. —
Está louca se permitirei que deixe essa cama agora. Acredito que tenha
descoberto um vício perigoso, pois não consigo ficar longe de você. O quanto
isso me faz ridículo?
— Deve ser coisa dos apaixonados.
Ela riu novamente e Sawbridge a silenciou com um beijo suave, que logo
se transformou em posse. Pressionou a boca dela com a sua até esmagar os
lábios para que eles se abrissem e pudesse penetrá-los com a língua.
Wilhelmina gemeu pela atenção recebida, retribuindo o beijo, tocando por
baixo do roupão sem nenhum pudor ou decoro. Ah, ele certamente preferia a
sua esposa despida de tudo - recato, decoro, roupas.
Apesar de estar ansioso, Sawbridge não demonstraria nenhum
nervosismo. Desceu a boca pelo corpo da esposa até encontrar os seios
despontando por baixo das roupas íntimas. Abriu os botões da chemise
enquanto admirava-a respirar - o peito subir e descer, demonstrando que ela
estava tão desejosa daquele toque quanto dele. Quando o tecido se abriu e lhe
revelou a visão dos mamilos acastanhados, com partes rosadas, ele pensou
que poderia passar um dia inteiro adorando-a - mas não seria aquele dia.
Naquele dia, ele a tomaria para si e garantiria que ela entendesse a dimensão
do amor que sentia.
Sem muita sutileza ele capturou um mamilo com os lábios e o acariciou
com a língua, sugando e lambendo a carne quente e ansiosa por seu toque.
Ela gemeu e se contorceu debaixo dele, demonstrando sentir prazer e
desconforto ao mesmo tempo.
— Dói? — Ele apertou os bicos sensíveis entre os dedos e ela gemeu
outra vez.
— Um pouco, mas não pare.
— Sempre doeu?
— Não. Deve ser porque…
Ela parou. Sawbridge ergueu o corpo e se sentou por sobre as pernas dela,
livrando-a definitivamente da chemise e expondo-a praticamente nua para seu
deleite.
— Porque…
— Há algo que eu deveria contar, mas queria esperar um pouco mais. Ter
certeza.
Enquanto ela divagava sobre dizer ou não uma coisa importante, ele a
beijou novamente - os lábios tocaram a barriga, a língua fez um traço
molhado até o umbigo, as mãos continuaram a desnudá-la.
— Diga.
— Fica difícil com você se esforçando tanto para me distrair.
— Meu amor, se você consegue articular um pensamento nesse momento,
talvez eu não esteja me esforçando o suficiente.
Mais uma risada.
— Grant, não seja tolo. Eu estou cheia de coisas na cabeça, talvez seja
melhor dizer de uma vez. Eu acho… bem, Agatha diz que tem certeza, mas
eu não sei, porém é quase certo que eu esteja grávida.
Sawbridge ergueu os olhos e a encarou. Sentou novamente e plantou as
duas mãos sobre a barriga da esposa, que o olhava com antecipação.
— Grávida.
— Parece que sim, no final seus esforços não foram em vão.
Ele saiu de cima dela e ajoelhou no colchão. Colocou as mãos sobre a
barriga dela outra vez e a acariciou.
— Não posso dizer que estou surpreso. Nós realmente tivemos uma
performance e tanto na cama, desde que nos casamos.
— Eu não disse isso para você parar o que estava fazendo. — Ela
estendeu os braços, chamando-o.
— Não há nenhuma restrição quanto a isso?
— Bem, eu duvido muito. Elizabeth, Agatha e Caroline continuaram a
dormir com seus maridos enquanto grávidas.
— Meu amor, eu não estou nem um pouco interessado em dormir com
você.
Ela deu uma gargalhada, agarrou suas mãos e o puxou para si.
— Nem eu estava falando em dormir, no sentido literal. Venha, Grant, eu
preciso de você.
E ele precisava dela, portanto não foi preciso pedir duas vezes. Em
segundos, a boca dele retornou para o lugar onde estava antes da notícia - ele
beijou a parte interna da coxa dela, beijou o monte de vênus, acariciou os
pelos macios e encaracolados que cobriam a intimidade dela e então beijou-a
ali, onde ele sabia que ela ansiava por ele.
Sawbridge não entendia como muitos homens não se importavam com o
prazer de suas mulheres. Para ele, os gemidos e murmúrios de Wilhelmina
eram um combustível poderoso para seu próprio prazer. Era capaz de atingir
o orgasmo só por estar ali, chupando e se deleitando com aquele ponto
sensível do corpo dela, que demonstrava tanta satisfação em o receber. E ele
continuou oferecendo a ela tudo que podia, estimulando-a com a boca e os
dedos enquanto soltava palavras de apreciação, até vê-la esmorecer em seus
braços pela força do êxtase.
— Quando você estiver muito grávida — ele disse, deslizando para cima
dela e beijando-a pelo caminho inteiro — vamos precisar de novas posições
de encaixe. Acho que podemos começar a testar algumas.
— Imagino que você esteja ansioso para me ensinar todo o Kama Sutra.
Ele a virou de lado e deitou-se, puxando-a para si.
— E você conhece o Kama Sutra?
— Há um exemplar na biblioteca de Isaac, e ele fica em uma posição de
mais destaque do que o decoro permite.
Foi a vez de Sawbridge dar uma risada. Ele não imaginaria diferente da
biblioteca daquele casal inusitado - o último virgem do mundo inteiro que se
apaixonou pela libertina mais despudorada que ele conhecia.
— Vou adquirir um para nós, então. Talvez seja uma leitura interessante.
Ele falava sussurrando nos ouvidos dela, acomodando-se ao lado da
esposa e fazendo com que as costas de Wilhelmina estivessem grudadas em
seu peito. A vontade de estar dentro dela era tão grande que Sawbridge
precisou se controlar para não estragar o que planejava. Sempre acariciando-a
com suavidade, ele apoiou uma das pernas dela sobre seu quadril e permitiu o
contato pleno de seu membro rígido contra a feminilidade úmida dela.
— É comum para as pessoas fazer isso… de costas?
A ingenuidade que ela preservava era um afrodisíaco poderoso.
— Sim, é. E você verá que é também muito prazeroso.
Dizendo aquilo, ele escorregou para dentro dela em uma penetração direta
e profunda. Wilhelmina estremeceu quando ele aproveitou a posição para
levar o polegar até o clitóris inchado. Com mais suavidade do que estava
acostumado, Sawbridge entrou e saiu dela em estocadas firmes, porém gentis,
e circulou seu ponto de prazer para aumentar o que ela sentia.
Depois de algum tempo, ele não aguentou mais o ritmo lento e precisou
ser mais intenso. Segurou-a pela coxa e investiu forte contra ela, que estava
agarrada a ele para garantir que o contato entre eles não se perdesse.
Sawbridge garantiu que ela atingisse o clímax outra vez antes de ele próprio
encontrar seu alívio.
— Eu amo você, Wilhelmina. — Disse, antes de se perder
momentaneamente no êxtase. — Nunca mais vou magoar você, eu prometo.
Ele permaneceu dentro dela por vários minutos, enquanto acariciava-a nas
pernas, na barriga e nos seios, permitindo que os corpos se acalmassem.
Wilhelmina virou subitamente e colou o nariz no peito suado dele,
envolvendo-o em um mar de cachos dourados com cheiro de rosas.
— Podemos ficar aqui mais um pouco? — Ela perguntou.
— Podemos ficar aqui até amanhã. Quer chamar os criados e pedir
comida?
O beijo que se seguiu à pergunta poderia facilmente desencadear outra
sessão de carícias, mas ele precisava descansar o quadril ferido, então aceitou
apenas permanecer abraçado à esposa pelo tempo que seus braços tivessem
força para segurá-la.
E LES NÃO FICARAM na cama até o dia seguinte, pois foram solicitados pelo
conde para o jantar. Claro que Wilhelmina estava bastante tentada a provocar
seu irmão e dizer que preferia manter-se trancada com seu marido, porém ela
precisava conversar com Edward sobre outra mentira - a que a levou ao
casamento com Grant Sawbridge.
— Você está bem o suficiente para descer? — Ela perguntou ao marido
enquanto eles ainda estavam deitados lado a lado, pele com pele, depois de
alguns momentos de intimidade extrema.
— Eu estava bem para fazer todas essas coisas com você. — Grant a
beijou rapidamente. — Então posso descer alguns lances de escada. Vá,
levante-se e vista-se antes que eu mande Edward para o inferno e não te deixe
mais sair dessa cama.
Com uma risada alta demais, ela fez o que ele mandou. Chamou Harriet e
enfiou-se em uma banheira com água morna. Depois de um banho, de um
penteado simples feito pelas mãos habilidosas da camareira e um vestido azul
que realçava seus cabelos sem apertá-la demais, Wilhelmina estava pronta
para um jantar em família.
Secretamente, desejava que Isaac e Caroline estivessem ali. Os dois
sempre protagonizavam os escândalos da família até ela começar a aparecer
no Royal Gossip, e costumavam monopolizar os jantares, também. Ficaria
mais fácil para ela lidar com todos se os olhos não estivessem apenas sobre
si. Mas, ao retornar ao quarto e encontrar Grant vestido para a noite, em sua
mais perfeita elegância, com os cabelos penteados para o lado, ela sentiu que
não precisava se preocupar com nada. A forma como ele a olhou, o sorriso
que lhe dedicou e a firmeza com que segurou suas mãos indicava que ele,
como na primeira vez, quando começaram aquela loucura, estaria à frente.
Ele a respeitava como uma pessoa completa, mas a protegia como se ela
fosse preciosa demais.
— Ah, que bom vê-los! — Agatha os recebeu na escada. — O jantar será
servido agora, vamos para o salão.
— Mamãe jantará conosco?
— Claro. Ela está muito ansiosa para receber determinada notícia.
— Notícia que ela parece já saber? — Wilhelmina sentiu um frio na
coluna. — Por que a ansiedade, então?
— Você conhece Pauline, ela adora transformar tudo em um evento.
Certamente, a mãe era bastante espalhafatosa em alguns aspectos. O
jantar certamente seria um pandemônio, mas, afinal, quando ela teve um
minuto de tranquilidade desde que se casou?
O conde já estava sentado à mesa, finalmente lendo as notícias. Tinha
Edmund, o filho mais novo, sobre seus joelhos e conversava alguma coisa em
uma linguagem infantil. Wilhelmina adorava ver seu irmão, aquele homem
por vezes austero demais, se transformar em um bobo perto dos filhos.
Quando eles chegaram, Edward entregou o menino para a babá e pigarreou,
levantando-se em respeito às damas.
Mesmo que Wilhelmina tivesse passado a vida naquela casa e apenas
poucas semanas com Grant, ela já incorporara os costumes da plebe. Foi
estranho esperar que um criado lhe puxasse a cadeira. Depois que a entrada
foi servida - sopa de tartaruga, o assunto do escândalo do jardim foi
retomado, quase de onde ele parara antes de Grant Sawbridge entrar em sua
vida.
— Minnie, por que diabos mentiu para mim esse tempo todo? Por que
dizer que foi esse canalha que a seduziu no baile quando ele não fazia a
menor ideia do que aconteceu?
Ela rejeitou o vinho branco que lhe seria servido e aceitou uma taça de
água.
— Porque eu cometi um erro e não queria me casar com Lorde Ignazio.
— Mas queria se casar com ele? — Edward apontou para Grant, que o
encarava com uma expressão debochada.
— Não a princípio. Mas entabulamos um bom negócio.
— Certo. Só gostaria de entender se sou tão assustador assim que vocês
dois imaginaram que eu a obrigaria a casar-se com um homem sem que isso
fosse sua vontade. E você, Sawbridge, se tivesse dito a verdade, eu teria
concedido a mão de minha irmã a você.
— Convenhamos que a forma como conduziu as coisas com Isaac não me
deixou muito segura. — Wilhelmina disparou e Agatha deu uma risada baixa.
O marido a olhou com reprovação, mas ela manteve o ar de quem não podia
evitar.
— Eu aprendi que não devo me intrometer nos assuntos de vocês. Parece
que a família McFadden tem baixas expectativas quanto às pessoas por quem
se apaixonam.
Claro que Edward disse aquilo para encerrar o assunto de forma bem-
humorada, mas acabou gerando um burburinho enorme. Agatha protestou,
incluindo-se entre as baixas expectativas. Pauline repreendeu o filho,
Wilhelmina reclamou e Grant apenas bebeu um longo gole do vinho tinto.
Depois, ergueu a taça na direção de Edward, que fez o mesmo. Aquele era
um brinde de dois cavalheiros que, no fundo, eram mais parecidos do que
gostariam de admitir.
Ela parou subitamente de falar quando sentiu a mão quente de seu marido
sobre a sua, por baixo da mesa. Os criados serviram mais um prato, e outro, e
Agatha não resistiu à vontade de contar os segredos dos outros.
— Você não vai tomar vinho, Minnie? Hoje é quase um dia de festa,
afinal, não é todo dia que um casamento que nasceu de um acaso se
transforma em uma história de amor.
— Prefiro não beber. — Ela sorriu. Maldita fosse a cunhada, com aqueles
olhos ferinos que não deixavam passar nada.
— Minnie! Não faça isso, conte!
— Contar o que? — Pauline aceitou mais vinho.
— Vocês são muito assanhadas. — Wilhelmina reclamou novamente,
mas não estava verdadeiramente aborrecida. Não se importava em contar que
esperava um filho do homem a quem entregou seu coração, pois isso era um
motivo de muita alegria. Súbita alegria. — Eu descobri esses dias que muito
provavelmente, pois ainda é cedo para ter certeza, estou grávida.
— Mas já? — O irmão se espantou.
— Não costumo fazer nada pela metade, meu caro conde. Imaginei que
me conhecesse o suficiente para saber disso.
— Céus, Sawbridge! — Edward quase cuspiu a bebida. — Não preciso
ter informações a respeito dessa sua eficiência, me poupe de detalhes
desnecessários. Mas… bem, parabéns a vocês. Filhos são uma bênção e uma
tortura lenta e dolorosa, logo descobrirão.
— Estou feliz em ter mais netos. — Pauline se levantou da mesa,
quebrando os protocolos, para ir abraçar a filha do outro lado. — Parece-me
que Nathaniel e Emile não serão capazes de sossegar e procriar, então vocês
dois são minha última esperança de ver mais crianças correndo por essa casa.
O momento mãe e filha durou alguns minutos, até que a condessa viúva
retornou para seu lugar e o jantar prosseguiu. Ao final da sobremesa, Edward
convidou Sawbridge para tomarem um vinho do porto na biblioteca e
continuarem a conversa com um tom mais masculino. As mulheres foram
para o terraço aproveitar a bela noite estrelada ao céu aberto, enquanto
tomava chá e discutiam sobre enxoval e nomes de bebês. Era cedo demais
para aquilo, mas Wilhelmina não conseguiu impedir.
Ela ainda tinha outras coisas a resolver, entre elas convencer Grant de que
ele deveria empregar Thomas Caldwell no hotel. Talvez não fosse mais tão
difícil assim abordar aquele assunto, mas preferia não abusar da sorte e
esperaria alguns dias.
Umas duas horas depois, os homens retornaram. Edward convidou
Agatha para ir com ele até as crianças e Pauline chamou sua camareira para
que se retirassem. A noite mal tinha caído sobre Kent, Wilhelmina suspeitou
que todos apenas a quisessem deixar a sós com seu marido. Não que fosse
preciso - ninguém parecia muito tentado a fazer isso, antes.
Apoiada no parapeito do terraço, olhando as estrelas, ela sentiu quando
Grant se aproximou e a abraçou por trás.
— Você quer voltar para o quarto? Dá para ver estrelas lá, também.
E o devasso com quem se casara continuava ali.
— Claro que vamos. Mas, antes, acho que sei o que gostaria de
retribuição por nosso casamento.
Grant ficou tenso por suas palavras e Wilhelmina virou-se para ele,
apoiando as mãos em seu peito. Deslizou-as por dentro do casaco e tocou-o
por sobre o colete, abrindo os dedos para envolver o máximo que podia dele.
— Pensei que tivéssemos superado esse assunto.
— Claro que não. Eu sou uma boa negociadora, nunca deixo de cumprir e
exigir cumprimento dos contratos que firmo. Eu vou te dar um filho, agora eu
quero escolher algo em troca.
Ele continuava tenso, sua boca fechada em uma linha fina e os olhos
afiados como navalhas.
— E o que seria? Algo que eu tenho ou algo novo?
— Algo que você já tem, mas que parece ter esquecido por um tempo. O
seu coração.
Ela beijou-o no peito, onde suas mãos ainda estavam. Mesmo sob
diversas camadas de roupas, a pele dele emanava um calor deliciosamente
familiar. Grant expirou em alívio e deu uma risada, puxando-a para um
abraço.
— Você me assustou.
— Você não me disse se posso tê-lo.
— Wilhelmina, olhe para mim. — Ele levou a mão até o queixo dela e
ergueu sua cabeça até que os olhos se encontrassem. — Eu nunca amei uma
mulher e estou bastante apavorado com a sensação de entrega. Mas é isso.
Meu coração é seu. Pegue o que quiser, tudo em mim pertence a você.
E assim seria. Com um sorriso, ela se esticou para beijá-lo e selar o
cumprimento do acordo. Grant segurou-a nos braços e a tomou para si com a
mesma posse que ela declarava sobre ele, sob o céu estrelado do litoral de
Kent, confirmando que Grant Sawbridge continuaria o homem sem coração -
porque ele o tinha dado por completo para sua esposa.
EPÍLOGO

U M CHORO DE BEBÊ ECOOU PELA CASA ÀS NOVE DA NOITE . Q UANDO


Sawbridge chegou ao berçário, a babá já estava acalentando o pequeno
Joseph. O bebê, de quatro meses de idade, era uma criança bastante calma,
mas não gostava muito de dormir.
— Pode deixá-lo comigo, Sra. Broomingworth.
A senhora entregou o bebê para o pai. Enrolado em uma manta de lã, o
menino parou imediatamente de chorar ao se ver seguro pelas mãos grandes
de Sawbridge.
— Você não precisa acordar sua mãe agora, rapaz.
Ele desceu as escadas com o menino apoiado em um braço e foi até a
biblioteca. Bertrand apareceu, curioso, e escalou a poltrona onde Sawbridge
se sentou com o filho. Quando Joseph chegou, em uma linda manhã de
primavera, o bichano demonstrou imediato interesse em conhecer o novo
morador da casa, mas foi proibido de conviver com o bebê pelos médicos.
Daquela vez, Sawbridge decidiu que já era tempo dos dois se conhecerem.
Até aquilo, ele pensou em tudo que a esposa mudou em sua vida. Não
gostava de animais e só pensava em ter filhos com o objetivo de garantir que
seu patrimônio não se perdesse com sua morte. A prole era uma burocracia,
como seus negócios costumavam ser. Mas então ele se apaixonou por
Wilhelmina, viu seu filho crescer dentro da mulher que ele amava e, quando
olhou para a pequena criatura enrugada pela primeira vez, descobriu que
jamais poderia continuar a viver sem ele.
E tinha o gato, claro. Bertrand decidiu que gostava de Sawbridge e o
perseguia pela casa sempre que ele estava ali.
— Vamos ler uma história interessante para ver se você volta a dormir.
O bebê emitiu alguns sons ininteligíveis e manteve-se atento à voz grave
do pai. Sawbridge abriu um livro de romance - um dos favoritos de
Wilhelmina e começou a ler. Não que ele gostasse de romances ou que
Joseph fosse entender alguma coisa, mas ele acabou se interessando em
conhecer o universo que encantava sua mulher durante alguns momentos do
dia.
Eles estavam juntos há pouco mais de um ano, mas era como se fosse
uma vida inteira. Sawbridge poderia demarcar dois momentos distintos em
sua existência, um antes e outro depois de invadir, de forma descuidada, o
escritório de seu amigo conde. Desde que ele descobriu que sim, tinha um
coração, mas que ele pertencia integralmente a Wilhelmina, se tornou um
homem diferente. Melhor? Talvez. Mais feliz, com certeza.
E tudo parecia tão tranquilo que ele estranhava aquela vida de homem
casado. Não havia mais noites e mais noites no Riderhood, nem excesso de
bebidas e jogos. Fumava menos e passava mais momentos em família no
litoral, na casa do Conde de Cornwall, o que ele, antes, acharia tedioso e
desinteressante. Sem contar que, a cada dia, era como se ele ficasse mais rico.
Os negócios prosperaram e os investimentos nos Estados Unidos ficaram
mais sólidos com a ida de Nathaniel e Emile McFadden para Boston - o
irmão mais novo seguira o outro alguns meses depois.
Wilhelmina era muito perspicaz. Ela participou de várias negociações
com o Sr. Carlisle, que no final se tornou um grande parceiro comercial, e os
dois se deram muito bem. Só que Sawbridge tinha medo dessa tranquilidade
toda. Muita calmaria podia significar que uma tormenta se aproximava.
— Encontrei vocês.
A voz musical da esposa o tirou dos devaneios. Joseph virou a cabeça
para o lado, acompanhando o som da voz da mãe e o olhar do pai. Será que o
filho via Wilhelmina com o mesmo encantamento que ele? Ela chegou
vestindo um roupão de seda, por cima de uma camisola típica da maternidade
- que a fazia ainda mais linda do que ela já era. Parou atrás da poltrona em
que Sawbridge estava sentado, acariciou o gato, beijou o pescoço do marido e
levou os dedos até o filho, que se agitou ao vê-la.
— Ele precisava se acalmar.
— Vocês dois ficam lindos, juntos.
Wilhelmina afagou os tufos de cabelos ruivos de Joseph, que fez algumas
caretas em resposta.
— Acho que ele também é apaixonado por você.
Ela riu e pegou o bebê nos braços. Sentou-se em outra poltrona e abriu
alguns botões da camisola para amamentá-lo. Sawbridge poderia passar o dia
inteiro admirando-os, mas algumas batidas à porta chamaram sua atenção.
Não era mais horário de visita, portanto, só poderia ser algo importante. Ou
grave. Ou as duas coisas.
— Fique aqui, meu amor. — Ele beijou a esposa nos cabelos. — Verei do
que se trata.
Sawbrige abriu a porta da frente para encontrar Thomas Caldwell um
pouco molhado de chuva. Fosse um ano atrás, ele teria matado o miserável
com suas próprias mãos, mas agora ele era parte da família. Thomas
conheceu Eleanor enquanto trabalhava no hotel e os dois se apaixonaram.
Sua irmã sempre teve uma queda para homens complicados, mas, ao menos,
aquele ali era diferente. Educado, gentil e amoroso, ele não aceitou ter um
relacionamento qualquer com ela e a pediu em casamento algum tempo
depois.
Claro que foi bastante difícil para Sawbridge aceitar - tanto entregar a
mão de sua irmã, que, aos olhos da sociedade, não era sua irmã, e cujo
parentesco ele teria que negar, quanto aceitar a convivência com o Caldwell.
Mas, ao final, ele era um bom homem e já se tornara um dos seus gerentes.
Ao menos ele poderia tirar a irmã de Whitechapel e levá-la para um lugar
mais adequado. E Harry finalmente teria um pai.
— O que houve?
Sawbridge mandou o homem entrar. Ele tremia e segurava um papel
amassado nas mãos.
— Senhor, eu não sabia se devia vir logo, mas fiquei preocupado que essa
notícia chegasse aos ouvidos da Sra. Sawbridge sem o devido cuidado.
Afinal, ela acabou de ter um bebê.
— Faz quatro meses, Caldwell. Mas, que notícia? Venha comigo, vamos
ao meu escritório.
Os homens foram para o ambiente mais masculino da casa e Sawbridge
tomou o cuidado de encostar a porta. Serviu um conhaque para o cunhado,
que continuava aparentando muito nervosismo.
— Fale, o que aconteceu?
— Recebemos esse telegrama, senhor. Parece que o conde e o Sr. Isaac
também receberam, mas o da Sra. Sawbridge foi para o escritório.
Thomas Caldwell entregou o papel meio molhado para Sawbridge, que o
abriu sem muito cuidado. Poucas palavras anunciavam uma tragédia que ele
teria dificuldade de lidar.

Sra. Sawbridge,
Informamos a morte do Sr. Emile McFadden. Tratado como
homicídio. Investigações em andamento. Suspeito Nathaniel
McFadden detido.
CAPÍTULO PRIMEIRO

P RISÕES ERAM IGUAIS EM TODOS OS LUGARES DO MUNDO , ELE SUSPEITAVA .


Não que Nathaniel McFadden, terceiro filho de um conde e irmão do atual
Conde de Cornwall, um dos nobres mais influentes e ricos da Grã-Bretanha,
conhecesse muitas prisões - ele nunca fora preso antes. Durante sua vida em
Londres, fora um perfeito cavalheiro. Um pouco boêmio, mas totalmente
honesto e de moral elevada.
Nada daquilo permaneceu quando ele chegou em Nova Iorque. Depois de
ter sido enviado para a cidade americana para intermediar investimentos da
família com negociantes das ex-colônias, Nathaniel se envolveu em negócios
um pouco menos idôneos do que era esperado.
— McFadden! — Um agente de polícia bateu na grade da cela, fazendo
um estrondo agudo que feriu os ouvidos de Nathaniel. — Sua fiança foi paga.
Ele levou um minuto inteiro para se levantar. Não sabia se queria ser
solto, se desejava que alguém se importasse com sua liberdade. Sabia que
Leonard, o melhor amigo, estaria ali para o resgatar, mas não queria ser
resgatado. Arrastou sua carcaça para fora da cela e foi conduzido pelo
policial até onde havia alguma luz.
— Você está horrível. — Leonard constatou.
Sim, ele estava. Aquela noite inteira fora horrível. Aonde estava com a
cabeça quando decidiu permitir que Emile fosse àquele encontro? O irmão
mais novo chegara aos Estados Unidos havia dois meses e, desde então,
fizera de tudo para afastar Nathaniel dos seus negócios. O jovem não admitia
que Nate tivesse se desviado tanto da virtude e tivesse se tornado um dos
diretores do maior antro de jogatina da cidade – o clube Gênesis.
Naquela noite, Emile perseguiu o irmão ao saber que ele cobraria uma
dívida. Cobrar dívidas tinha um significado específico para Nathaniel - ou o
devedor pagava, da forma que pudesse, ou o devedor sofria. Quando ele era
chamado para agir, esperava-se que ele fosse causar dor, muita dor. Era
difícil entender como ele se tornou aquele homem frio e disposto a fazer
coisas ruins por dinheiro, talvez nem ele mesmo pudesse compreender como
chegou àquele ponto. Como poderia esperar que o irmão o entendesse?
E, quando tudo deu errado, tiros foram disparados, a polícia chegou e o
episódio terminou com Emile McFadden atingido e dragado pelo oceano.
— Você não devia ter vindo.
— O chefe mandou. Não é lucrativo ter um dos gerentes presos. Como
está se sentindo?
Um assassino, como nunca se sentira antes.
— Acharam meu irmão?
— Não. Dificilmente ele será encontrado, Nate. A essas horas já deve ter
virado comida de peixe.
Nathaniel fechou as mãos em punhos e deu dois passos firmes na direção
de Leonard, que se afastou ao perceber o estado de espírito do amigo. Ele não
o agrediria no meio do departamento de polícia. Não porque temia ser preso
novamente, mas porque, se batesse em alguém naquele momento, mataria.
Havia uma represa de sentimentos negativos e vingativos dentro de si, que
aproveitaria qualquer oportunidade para romper e o transformar em um
monstro.
— Vou para casa.
— Eu o acompanho. Não acho prudente que ande sozinho pela cidade.
— Não preciso de babá, Leo. Duvido que alguém vá cruzar meu caminho,
hoje.
E, se cruzasse, ele certamente não reagiria bem. Emile vinha sendo um
inconveniente, mas era seu irmão - e não havia nada que Nathaniel
respeitasse além de sua família. Não mais. Ele desistiu do decoro, da
decência, da honestidade e da virtude quando se associou ao chefe, o dono do
cassino. Quase ninguém o conhecia, poucas pessoas tinham a oportunidade
de uma conferência com ele e, ainda assim, era o homem mais temido de
Nova Iorque. Tinha tanto poder quanto os governantes da cidade e nenhum
remorso em arrancar a vida das pessoas com as próprias mãos.
Ainda assim, a morte de Emile estava na conta de Nathaniel. Ele nunca
deveria ter permitido que o irmão ficasse em Nova Iorque. Deveria tê-lo
enviado de volta em um navio quando pode.
— Nate. — Leonard colocou uma mão em seu ombro, sem temer uma
explosão de ira. — Aceite minha companhia. Você é uma granada prestes a
ser detonada e os efeitos colaterais serão muitos.
— Que seja.
Sem vontade de continuar ali, naquele antro fétido cheio de criminosos
comuns, os dois amigos saíram do departamento de polícia e pegaram um
coche de aluguel até a Quinta Avenida. Era em uma das mais prestigiosas e
avenidas de Nova Iorque que ficava a casa de Nathaniel, encrustada no meio
de diversas construções ocupadas por famílias importantes. Apesar do luxo
aparente, a casa era malcuidada e pouco frequentada, com a maior parte dos
quartos cobertas por panos brancos, cortinas nunca lavadas e tapetes cobertos
de pó.
Leonard serviu uísque para os dois, pois bebida nunca faltava no
escritório, que era a única parte da casa que se apresentava como habitável
naquele momento. Nate costumava dormir pelo sofá próximo a lareira, já que
tudo ali parecia suntuoso demais para ser ocupado.
— O que te levou a essa vida de confinamento e solidão, meu amigo?
Tem vezes que juro não te conhecer mais.
— Prefiro que seja assim. — Ele bebeu o uísque em um gole. — Eu não
gosto do que me tornei, gosto menos ainda de contaminar as pessoas com o
que sou.
— Diz isso apenas pelo que aconteceu ao seu irmão?
Nate caminhou até o decantador e encheu novamente seu copo, enquanto
fitava o amigo.
— Sabe que ele pode estar vivo, não sabe?
— Você estava lá, acha que alguém sobreviveria àquilo?
— Talvez não, mas também sei que, sem corpo, não há certeza.
— Nem provas.
— Posso tentar achá-lo, seguindo o oceano. O que não farei será desistir
de Emile. Não tenho como encarar Edward depois disso.
Leonard deu uma risada debochada.
— Meu amigo, você não tinha como encarar Edward nem antes disso. O
conde te renegaria como irmão se soubesse das coisas horríveis que tem feito.
Vamos, desista dessa loucura e concentre-se no que importa - provar sua
inocência.
— Eu não sou inocente, mas não matei Emile. Provarei isso encontrando
meu irmão.
— O que pretende? — Leonard girou pelo largo espaço do escritório,
parando de frente para uma grande janela envidraçada. — Peregrinar pela
costa procurando por um defunto que possa ter saído andando do mar?
— Talvez.
— Você enlouqueceu. É investigado por homicídio, não deve sequer
deixar a cidade. São condições de sua fiança.
Claro que havia condições, a maioria delas Nathaniel não estava disposto
a cumprir. Não fazia sentido ser um criminoso – e empregado de um dos
maiores chefes do crime de Nova Iorque – se ele seguisse as regras. Leonard
sabia, mas o Eckley sempre foi mais comedido do que o McFadden.
Enquanto Nate mergulhou de cabeça nos negócios escusos do cassino, Leo
fazia tudo com alguma cautela. Talvez por isso eles divergissem quase
sempre, e divergiam naquele momento.
Não importava o que pensariam ou se o perseguiriam. Ele investigaria e
iria atrás do irmão. Nathaniel recusava-se a acreditar que seu Emile
sucumbira àquele tiro. Havia a queda, também, mas Emile já sobrevivera a
coisas piores. Ele era um jovem frágil e adoentado que fez de tudo para
recuperar sua saúde até se tornar um homem forte e capaz de enfrentar
animais selvagens com as próprias mãos. Não seria um maldito de péssima
pontaria que colocaria fim à sua vida. Emile lutaria.
— Não há uma prova que eu tenha matado meu irmão – sequer há provas
de que ele esteja morto. Enquanto a polícia faz o que sabe melhor, que é
absolutamente nada, farei uma investigação paralela. Se souber qualquer
coisa, irei imediatamente atrás da informação – e ninguém me impedirá.
Leonard fez um gesto com os braços, indicando que não seria ele que
atrapalharia Nathaniel ou que se colocaria à frente de qualquer coisa que ele
quisesse fazer. Quando Nate decidia por algo, era quase impossível demovê-
lo.

A XÍCARA de chá fez um ruído exagerado quando Lucille a depositou no


pires. Mulheres educadas e finas como ela não espancavam a porcelana, mas
seus dedos tremiam e não conseguiam segurar nem mesmo a colher para
mexer o chá.
— Então você ouviu seu pai conversando com sua mãe sobre a ter
prometido em casamento a um marquês com idade para ser seu avô.
Millicent Ryan disse, resumindo em uma frase o discurso de vinte
minutos da amiga. As duas estavam sentadas na sala de estar de Milly,
tomando o chá às cinco da tarde – uma tradição inglesa herdada de suas avós.
Não havia mais ninguém na casa, então podiam conversar livremente sem
que alguém as estivesse escutando pelos cantos. Sempre havia os
empregados, mas eles não faziam fofoca – e, quando faziam, tendiam sempre
em favor das duas.
— Foi mais ou menos isso. Sei que ele é um marquês, que tem três filhos,
que está viúvo há algum tempo e praticamente falido.
Lucille tentou beber mais um gole do chá de camomila que a amiga lhe
preparara. O nervosismo a consumira desde que descobriu que o pai
consumara a promessa de lhe arranjar um casamento qualquer. Aos vinte e
sete anos e filha do homem mais rico de Nova Iorque, Lucy era uma
vergonha para a família – não se casara, gostava de conversar com
empregados e pessoas de status inferior ao dela, zombava na aristocracia
britânica e tinha desejos de estudar.
Mas Walter Smith estava disposto a acabar com seus sonhos, pois
concedera a sua mão a um inglês de sangue azul e não via a hora de enviá-la
para Londres.
— Esse homem não me parece precisar de uma noiva.
— Não precisa, é meu dinheiro que ele quer. Meu dote, precisamente. O
tal marquês está falido, Milly, e fará de tudo para salvar o patrimônio da
família.
— Como sabe que ele é um velho?
— Fiz minha pesquisa, andei perguntando por aí.
Como “por aí”, Lucille queria dizer que pediu aos empregados para lhe
contarem as histórias que ouviram. Por ser sempre muito educada e gentil
com todos eles e deixar gorjetas generosas, Lucille era querida por pessoas
invisíveis para mulheres como ela. A garçonete, o copeiro, a camareira, o
vendedor de frutas, o leiteiro, a professora da escola – todos gostavam dela e
costumavam a ajudar a sair de situações difíceis.
Ela se metia em algumas confusões em suas tentativas de ganhar a
liberdade quando mulheres não podiam ser livres. Gostava de fazer caridade,
visitava orfanatos, usava sua mesada para comprar coisas para os pobres,
andava sem acompanhantes e adorava passear pelas áreas menos favorecidas
de Nova Iorque.
— Certo, e o que pretende fazer para se livrar dessa confusão? Porque, se
te conheço, você tem um plano, Lucy.
— Tenho. Procurarei o Sr. McFadden, do clube Gênesis, e pedirei que ele
me arruine.
Daquela vez, o barulho de uma xícara caindo ao chão e se partindo em
pedaços chamou a atenção da arrumadeira, que entrou no salão para ver o que
estava havendo. Millicent encarou a amiga assustada, sem conseguir entender
imediatamente o que ela queria dizer. Depois de dispensar a empregada
dizendo que fora apenas um acidente, a conversa retomou.
— O que você quer dizer com isso?
— Não há muito o que explicar, há? Eu pedirei a ele que me deflore e,
com isso, meu noivo irá me rejeitar. Homens não querem mulheres que já se
deitaram com outros homens.
— Lucy! — Millicent aproximou-se, sentando-se ao lado da amiga e
baixando o tom de voz. — Não é possível que você esteja considerando esse
absurdo! Como, em primeiro lugar, você conhece o Sr. McFadden?
— Ele esteve em alguns jantares e ouvi mulheres falando sobre ele.
Aparentemente, é o terceiro filho de um conde, mas vive como um dos
diretores daquele antro de pecados chamado Gênesis. Que blasfêmia.
Lucille fez o sinal da cruz, indicando que abominava que um livro da
Bíblia Sagrada desse nome ao clube mais devasso e indecente da cidade.
Todos sabiam o que acontecia no Gênesis, mesmo que ninguém falasse em
voz alta. Jogos ilegais e prostituição eram os pecados mais simples que se
cometiam entre as paredes do clube, que ocupava meio quarteirão na Quinta
Avenida.
— E por que o escolheu? Quero dizer, ele é um homem horrível!
— O que ele faz de horrível?
— Além de levar todas as mulheres que conhece para a cama? Eu ouvi
dizer que ele e o amigo são assassinos! Ele matou o irmão, Lucy! O próprio
irmão!
Sim, ela soube que ele estava preso, acusado de matar o irmão, mas
também soube que seria solto em breve – pois homens como ele não
passavam muito tempo na cadeia.
— Não sabemos se matou, ele não foi condenado ainda. E Milly, eu não
quero me casar com ele, quero exatamente escapar de um casamento. O Sr.
McFadden é o único canalha do qual ouvi falar que não se importaria com
sua honra a ponto de concordar me deflorar e não se casar comigo depois.
Lucille ainda tremia quando levou a xícara novamente à boca e bebeu
outro gole de seu chá. Mesmo que tentasse demonstrar estar no controle de
suas emoções, ela estava muito mais nervosa do que gostaria de estar.
Tomara uma decisão absurda para tentar se livrar de um problema
insuperável: um casamento indesejado com um homem horroroso.
Ela não contava aquilo para ninguém, as amigas não sabiam e Lucille
fingia que vivia uma vida perfeita em uma família bem estruturada, mas o
casamento de seus pais era horrível. Constance Smith era uma mulher muito
jovem, que fora violentada por seu marido aos dezessete anos e obrigada a se
casar com ele. Walter Smith era um homem ruim, que nunca demonstrou
afeto algum pela esposa ou pelos filhos, tendo-os criados dentro de valores
religiosos, da decência e da honestidade, mas sem um gesto amoroso sequer.
Durante a infância, viu o pai agredir a mãe com palavras duras e também
o viu esbofeteá-la algumas vezes. Constance nunca reclamava e usava o pó
de arroz para esconder as marcas da violência que sofrera, porém ela era a
filha mais velha – via tudo, acompanhava tudo, entendia tudo. Ela não queria
um casamento como aquele, em que não houvesse respeito e amor que
pudesse tornar a união do casal agradável. Jamais aceitaria para si o tormento
vivido pela mãe, principalmente porque não pretendia permitir que seu
marido fosse cruel com seus filhos como Constance permitia que Walter
Smith fosse com os dela.
— Sua ideia não tem cabimento. Você teria coragem de permitir que
aquele homem... que ele a tocasse de forma íntima? Apenas para se livrar de
um casamento possivelmente ruim?
— Casar-me com um marquês com o triplo da minha idade não é
possivelmente ruim, é definitivamente péssimo. E, pelas fofocas que ouvi nos
jantares, o Sr. McFadden é muito habilidoso com as mulheres. Duvido que
ele será desagradável comigo.
Parecia razoável que Millicent não a entendesse, pois os pais da amiga
tinham um casamento muito amoroso. Apenas quem cresceu em uma família
de aparências, como ela, seria capaz de compreender o sentimento de repulsa
que a impulsionava à ruína. Estava decidido – ela visitaria Nathaniel
McFadden naquela noite, e que Deus a perdoasse por seus pecados.
A DECISÃO de enfrentar o diabo era menos difícil do que parecia. Como as
opções de Lucille não eram muito boas, fugir de casa à noite, sozinha e
carregando uma bolsa de moedas, para bater à porta de um covil de demônios
não era o pior que podia lhe acontecer. Ela olhou três vezes ao redor para
garantir que não era observada, que ninguém a seguira e certificou que o
capuz fosse grande o suficiente para cobrir-lhe o rosto. Pretendia ser
arruinada, mas não queria que isso acontecesse antes do planejado.
Bateu duas vezes com delicadeza. Suas mãos enluvadas estavam frias e
ela suspeitava que fosse porque estava nervosa. Claro que estava – esperava
que, quando a porta se abrisse, o próprio Lúcifer se materializasse e a
raptasse para uma orgia cheia de diabretes e criaturas do submundo. Ao
menos era aquilo que sua ama dizia que os homens libertinos faziam, e ela
acreditava na ama. Por que não acreditaria?
Talvez não devesse. Por acreditar demais, Lucille se sentia uma tola. Fora
enganada por todos em quem confiava, fora iludida e agora estava presa a um
pacto não negociado por ela, mas cujo cumprimento selaria seu destino para
sempre. O pai sempre sonhara em casar algum de seus filhos com a nobreza
britânica e ela, a solteirona, fora escolhida para desposar um marquês que
deveria ter setenta anos e uma verruga no nariz. Ou não, Lucille não o
conhecia – e esse era apenas um dos motivos pelos quais não queria se casar
com ele.
Passaram-se cinco minutos sem que ninguém a atendesse e ela estava
ficando mais nervosa. Lucille bateu mais vezes, com mais força, quase
esmurrando a porta de madeira. Fosse uma porta ruim, a madeira já teria
ruído. Quando se preparava para mais uma sessão de soquinhos, a porta
rangeu e se abriu, quase fazendo com que ela caísse para dentro da casa.
Para sua sorte – ou não – não havia deuses gregos nem pessoas usando
máscaras e exibindo chifres. O homem que estava diante dela era jovem e
aparentava ter acabado de acordar. Os cabelos estavam bagunçados e a barba
por fazer dava a ele um aspecto grosseiro, mas ele era muito bonito. Céus,
Lucille não deveria estar achando ninguém bonito, ela estava ali com um
propósito e precisava ater-se ao plano.
— Eu encomendei uma garota e não estou sabendo?
O homem perguntou para si mesmo, olhando para a rua e procurando uma
carruagem ou algum lugar de onde ela pudesse ter saído.
— Não fui encomendada. Preciso falar com o senhor, Sr. McFadden.
— A essa hora, vestindo capa? E tem certeza de que não é uma das
garotas de Madame Beaufort?
— Garanto que não sou, mas preciso entrar. Estou arriscando ser
reconhecida, poderíamos não falar aqui fora?
O corpo masculino afastou-se e deu espaço para que Lucille entrasse na
residência. O baque da porta se fechando atrás dela fez com que seus nervos
gritassem – ela estava trancada dentro do templo de Baco. Talvez ela tivesse
gostado um pouco demais das aulas de mitologia grega, afinal.
— Senhora, poderia explicar-me o que está acontecendo?
Lucille baixou o capuz e fitou o homem sob a luz das lamparinas. O salão
em que se encontrava não era muito iluminado, não o suficiente para a casa
de um nobre, de um homem rico.
— Poderemos conversar, Sr. McFadden?
Ele riu, exibindo dentes brancos que reluziram. Os olhos azuis eram
hipnotizantes e Lucille o achou belo demais, a ponto de não entender como
não reparara realmente nele, antes.
— Faz muito tempo que ninguém me chama assim. Sou todo ouvidos.
Não pretendia parecer assustada, então tentou evitar que ele percebesse
que estava tremendo desde o momento em que tomou aquela decisão. Por
segundos, fitou aquele homem desgrenhado e malvestido e imaginou que ele
não se parecia com nenhum nobre que ela já conhecera. Definitivamente,
estava fazendo papel de tola – e a ama estava muito equivocada. Não tinha
nenhuma criatura de chifres e aparência caprina à sua frente. Se bem que ele
podia, sim, ser uma personificação de Eros, ou de Davi, ou outra bela figura
da arte renascentista que estivera estudando.
— Peço que me perdoe. Eu esperava... quero dizer, esperava...
— Se queria o terceiro filho de um conde, veio ao lugar errado. — Ele a
interrompeu. — Sou o gerente de uma casa privativa de jogos e esse é o meu
melhor. Diga, seu marido perdeu dinheiro e a senhora veio negociar no lugar
dele porque pensa que serei piedoso com mulheres? Trouxe alguma criança
para me comover ou está grávida e escondendo uma barriga redonda com
essa capa?
Os olhos dela se arregalaram ainda mais ante aos disparates que aquele
homem falava. Ele podia não ter a aparência de um demônio, mas certamente
estava longe de ser um cavalheiro. Lucille sentiu a boca seca, mas não iria
fraquejar. Qualquer coisa parecia melhor que o destino que lhe fora traçado.
— Não tenho marido, nunca fui casada. Estou aqui em nome próprio para
lhe fazer um pedido. Preciso que o senhor me arruine.
Dizendo aquilo, Lucille abriu a capa e deixou-a cair ao chão, exibindo
seus trajes. Foi a vez do Sr. McFadden arregalar os olhos e abrir a boca em
descrédito. Por baixo da capa havia apenas uma combinação de camisola,
espartilho e calçolas, além de belas e novas meias pretas de seda, que ela
fizera questão de usar para a ocasião. Seu corpo todo tremia de medo, mas ela
não voltaria atrás.
CAPÍTULO SEGUNDO

A QUELE ESTAVA SENDO UM PÉSSIMO DIA , E NÃO FICOU MELHOR QUANDO


ameaçaram derrubar a porta de Nathaniel. Ele levou cinco minutos para
perceber que havia alguém na entrada principal, depois outros cinco para sair
do torpor que o uísque em excesso o colocara. Mais algum tempo para
confirmar que as calças estavam abotoadas e que a camisa tinha ao menos
uma aparência limpa. Nathaniel decidiu que estava pessimamente
apresentável para quem estivesse à sua porta às nove da noite.
E, depois de uma conversa que não lhe fez sentido algum, a visitante
estava nua em seu salão de entrada. Não, não estava nua, mas o que ela vestia
não podia ser considerado adequado em nenhuma ocasião – talvez se ela
fosse uma prostituta e estivesse trabalhando, mas nem assim, já que as
prostitutas de Madame Beaufort usavam vestidos elegantes e perfeitamente
talhados.
A visitante era uma mulher de cabelos cacheados e que estavam
despretensiosamente presos em um coque deselegante, indicando que não se
arrumara para sair. Os olhos castanhos pareciam muito escuros na pouca luz,
da cor da nogueira ou do álamo, ele não tinha certeza. Se a visse na rua talvez
não a notasse. Se fosse a um evento em que ela estivesse, dificilmente aquela
mulher atrairia a sua atenção. Nathaniel estava acostumado a ter as melhores
mulheres à sua disposição, portanto poucas o interessavam realmente.
Mas ela estava nua. Quase. Em suas roupas íntimas, pedindo para ser
arruinada.
— Creio que eu tenha bebido uísque vencido. — Foi a conclusão óbvia,
ele estava bêbado e não consumira o melhor malte. — O que mesmo a
senhorita deseja?
— Desejo ser arruinada, senhor. — Ela se repetiu com a voz trêmula. —
Estou prometida a um velho inglês babão e não desejo que casar-me com ele.
Se estiver arruinada, meu futuro marido me recusará e meu pai me enviará
para algum lugar onde ficarei livre. Sei inclusive de um refúgio para
mulheres solteiras, ou com problemas para se casar, que fica na Inglaterra.
Adoraria ir para lá e...
— Senhorita. — Nathaniel usou uma das mãos para interromper o fluxo
desordenado de palavras e se abaixou para pegar a capa dela, pendurando-a
em um cabide que ficava ao lado da porta. Ela o observava com assombro e
estupefação, mas ele estava acostumado a causar sentimentos estranhos nas
pessoas. — Não entendi uma palavra do que disse e não me interesso por
seus problemas. Como chegou até aqui?
— Eu caminhei.
Nathaniel não percebeu que estava muito perto dela até dobrar o corpo
para frente para exalar seu perfume. A mulher tinha as costas quase apoiadas
na parede do salão de entrada e cheirava a almíscar – uma fragrância comum,
mas que, misturada com o cheiro da roupa íntima que ela vestia, fez com que
ele perdesse o pouco de razão que possuía no momento. Sem pudor algum,
porque ele não costumava ter nenhum, Nate aproximou-se mais e a beijou ali
na curva do pescoço, fazendo com que a mulher estremecesse.
A prudência gritou que deveria se afastar. Não sabia quem era a senhorita
e não levava mulheres desconhecidas para a cama. Ele era Nathaniel
McFadden, não precisava se arriscar com uma completa estranha. Mas havia
alguma coisa naquele cheiro e naquela pele macia que o hipnotizou. Também
poderia ser a meia garrafa de uísque que bebera, mas não fazia diferença –
aquela mulher era desejável e ele a queria apenas porque estava seminua à
sua disposição. Sem afastar a boca do pescoço dela, Nathaniel entreabriu os
lábios e passou a língua discretamente pela tez ligeiramente salgada pelo
suor. Ela estava nervosa.
Subiu a boca, traçando uma linha até o maxilar tenso da mulher e passou
o polegar pelos lábios dela, que se abriram em seu toque. Nate ergueu a
cabeça para olhá-la e encontrou uma mulher rendida, de olhos fechados,
completamente deslumbrada por seu toque. Ele era bom, mas não tanto.
Aquela não era uma prostituta nem parecia entediada e à procura de
aventuras. Talvez ela estivesse falando a verdade e o senso de decência que
ele não tinha sugeriu que perguntasse.
— Como a senhorita disse que se chama?
Ela piscou algumas vezes e olhou para ele, um pouco envergonhada. Suas
bochechas estavam coradas pela excitação e Nathaniel tinha certeza que ela
também corara em outros lugares – que ele adoraria explorar, assim que
soubesse quem diabos ela era.
— Eu não disse. Meu nome é Lucille Smith.
Foi a vez de Nathaniel piscar e a encarar. Não era possível que aquela
mulher ali, quase desfalecida em seus braços depois de um simples toque,
fosse a filha mais velha de Walter Smith.
— A senhorita é filha de Walter Smith?
— Sim.
— Céus. — Ele passou uma das mãos pelos cabelos. Se aquela era uma
brincadeira, era de péssimo gosto. — Certo, vou acordar meu cocheiro. Ele a
conduzirá para sua residência.
— O senhor não está entendendo. — Ela o interrompeu. — Tive muito
trabalho para tomar essa decisão e vir aqui, hoje. Não pretendo retornar sem
obter o que vim buscar.
— Sua ruína?
— Sim, senhor.
Ela era louca, talvez devesse chamar as autoridades sanitárias, mas não
pretendia que ninguém soubesse que aquela mulher estava ali, nem por
equívoco. Não havia nada que ele pudesse querer menos do que se envolver
outra vez com Walter Smith, um homem que só perdia em crueldade para o
seu próprio chefe.
— Meu Deus. — Nathaniel deu uma risada nervosa. — Srta. Smith, sabe
para quem trabalho, não sabe? — Ela assentiu, muda. — Então a senhorita
sabe que meu chefe é um dos homens mais poderosos de Nova Iorque, não é
mesmo? — Ela assentiu novamente, apenas balançando a cabeça. — Talvez a
senhorita não saiba que existe apenas um homem com poder o suficiente para
fazer frente ao meu chefe, e esse homem é Walter Smith. Eu tenho
orientações diretas para não arrumar nenhum problema envolvendo seu pai.
Por isso, estarei morto e enterrado antes de criar qualquer tipo de
desentendimento com ele sem um justo motivo. A senhorita vai recolocar
essa capa e voltar pelo mesmo caminho pelo qual veio, fingindo nunca ter
batido à minha porta.
Lucille olhava para Nate como se não acreditasse no que ele dizia ou se
estivesse planejando uma forma de convencê-lo a mudar de ideia. Nem
mesmo ele acreditava que dispensaria aquela mulher bonita e que se oferecia
seminua para seu deleite. Uma virgem, que ele poderia conquistar como um
desbravador, fincando sua bandeira e podendo dizer que ela sempre se
lembraria dele, não importasse quantos homens tivesse. Nathaniel
dificilmente recusaria uma noite de sexo, principalmente já estando
ligeiramente excitado como estava.
Mas ela era um perigo ambulante, com aquela pele exposta, aquele corpo
intocado e aquele sobrenome imponente. Precisava ir para casa e fingir que
nunca esteve ali, pois ele tinha problemas demais para lidar e aquela mulher
era um inconveniente desinteressante.
— Sr. McFadden, eu não pretendo ir. Não me casarei com aquele
marquês.
— E não sabe que o homem que arruina uma mulher precisa casar-se com
ela? A senhorita por acaso preferiria se tornar minha esposa?
Nathaniel girou no próprio eixo para mostrar-se para a jovem senhorita e
exibir sua falta de atratividade. Ele sabia que era bonito, sedutor para as
mulheres, mas não tinha nenhum outro atributo que o pudesse classificar
como um bom partido. Ao contrário, ele era um péssimo partido em geral,
não servia para se casar.
— Não! — Ela pareceu entender a gravidade do que ele falara. — Não
pretendo desposá-lo também, senhor, mas o procurei exatamente porque, de
todos os homens possíveis, imaginei que fosse o único que não teria honra ou
moral para se sentir obrigado a casar depois de deflorar uma virgem.
A mulher era impressionante. Ela tinha uma aparência virginal e ingênua,
mas falava palavras indecentes que nunca deveriam sair da boca de uma
mulher pura. E estava absolutamente correta, Nathaniel não tinha mais honra
suficiente para se ver obrigado a casar com uma mulher apenas por tê-la
desvirginado. Céus, que tipo de canalha ele se tornara desde que viera para
Nova Iorque? Só que aquela mulher, especificamente, não estava disponível
para sua cama. Além de noiva – e isso representava arrumar confusão com
um marquês qualquer que ele não sabia quem, ela era filha de um homem
poderoso. Se havia uma coisa que Nate aprendeu nos Estados Unidos foi que
causar distúrbios com quem detinha o poder deveria ser um movimento muito
calculado.
— Converse com seu pai, mas não poderei ajudar. Se a senhorita não
quiser minha ajuda e se arruinar até o caminho de volta para casa, não será
mais problema meu, apenas não serei responsável por isso.
— Mas eu estou me oferecendo para ser deflorada.
— E eu estou recusando sua oferta.
Mesmo achando que estava ficando louco em expulsar aquela mulher
insana de sua casa, Nathaniel sabia que fazia a coisa certa. Não era
acostumado a agir corretamente, mas não tinha motivos altruístas – ele
pensava nos negócios, em primeiro lugar, e em como era ruim provocar gente
como Walter Smith. Sem cerimônias, abriu a porta e esperou que uma atônita
Lucille passasse para poder colocar uma barreira entre eles. Não estava tão
excitado assim que não pudesse se controlar e precisava livrar-se daquela
maluca.

I NSULTADA E HUMILHADA , era como Lucille se sentia na manhã seguinte à sua


tentativa frustrada de encontrar a ruína com o mais notório canalha de Nova
Iorque. Olhou-se no espelho demoradamente e tentou descobrir o que ela
tinha de errado para não ter incitado Nathaniel McFadden a seduzi-la.
Os olhos eram castanhos, não tinham o brilho colorido do verde ou do
azul. Os cabelos cacheados estavam sempre com a aparência de terem sido o
ringue de uma luta entre pássaros muito irritados. A empregada sonhava em
amansá-los com ferro, mas Lucille sentia-se uma completa tola quando tinha
os cabelos penteados daquela forma. Acostumara-se com os cachos livres e
um pouco rebeldes, mesmo que eles nunca estivessem na moda. Acreditou
que seu visual pouco atraente devia ter repelido o interesse do Sr. McFadden,
pois homens como ele estavam acostumados às maiores beldades em suas
camas.
A ideia de estar na cama dele fez com que um calafrio lhe percorresse o
corpo. Lucille nunca foi uma jovem muito ingênua, ela adorava conversar
sobre indecências com as amigas. Elas falavam de romances, homens e
atributos masculinos quando se reuniam para o chá, enquanto fingiam que
tratavam de temas como bordados e tecidos. Seus pais jamais saberiam que
elas fofocavam sobre como a calça do Sr. Stone ficava justa na coxa, ou
como aquele botão aberto no pescoço do Sr. Jones deixava um amplo espaço
para a imaginação. Só que as amigas foram se casando, uma a uma, com os
sujeitos das conversas de toda tarde, e ela permaneceu solteira.
Uma solteirona, para horror de Walter e Constance Smith. Suas duas
irmãs mais novas já estavam casadas, enquanto ela, aos vinte e sete anos,
continuava esperando. O que Lucille esperava, nem ela mesma sabia – só
sabia que não se casaria com um marquês velho e barrigudo cujo único
interesse nela seria seu dote.
— Senhorita, seu pai deseja vê-la.
A empregada bateu à porta e fez com que Lucille saísse de seus
devaneios. Não dava mais tempo para bancar a feia por quem ninguém se
interessava, pois ela tinha quase certeza que os homens não a queriam por ser
uma criatura indômita. Não era sua aparência física que os afastava, era seu
espírito livre.
— Peça a ele que me espere para o desjejum. Vou me vestir.
A empregada saiu e Lucille terminou de se despir, tomou um banho
rápido no chuveiro de seu quarto, escolheu um vestido adequado para um dia
fúnebre e desceu as escadas. O pai a aguardava no salão onde a família
costumava fazer o desjejum, lendo o jornal. Como não havia mais ninguém
ali, ela teve certeza de que o assunto que seria tratado não era de seu agrado.
Walter Smith preferia conversar com os filhos e filhas como se estivesse
gerindo uma de suas empresas e algo dizia a Lucille que ele estava ali para
dar uma notícia ruim.
— Sente-se e coma. — O pai disse, apontando para uma cadeira ao lado
da sua. — Tenho algo importante para dizer. Eu fechei negócio com o
Marquês de Hertford e ele está vindo a Nova Iorque para obter sua mão e
casamento.
Lucille serviu uma xícara de café preto e mordiscou uma torrada para
conseguir refletir sobre o significado da frase. O pai acreditava que estava
contando a ela uma novidade, mas não conseguiu fingir surpresa. Sua
preocupação era: precisava conseguir tempo
— Parece que vocês já têm tudo ajustado.
— Certamente que temos, esse é apenas um comunicado oficial. O
marquês é um nobre honrado, possuidor de um título sólido, e será um
acréscimo valioso para a família. Tenho certeza que gostará dele quando o
conhecer.
— E quando será isso, meu pai?
— Recebi uma carta do marquês ontem, mas você já estava recolhida em
seu quarto. Ele avisou que chega em duas semanas.
Daquela vez ela precisou de mais esforço para não parecer totalmente
abalada pela informação de que tinha apenas duas semanas para conseguir se
livrar daquele casamento arranjado. Seu primeiro plano dera errado, não
conseguiu ser arruinada pelo homem mais indecente que já ouvira falar. O
que podia fazer, arrumar outro? Talvez houvesse outros que não tivessem
senso moral suficiente para querer desposá-la depois de deflorá-la, mas
sempre havia a sombra de Walter Smith.
O pai era um homem mau e rico, e o dinheiro comandava o mundo. Ao
menos era o que ele dizia todo dia, quando tinha a oportunidade de expor o
quanto seu dinheiro podia comprar de tudo – desde comida até maridos.
— Meu pai, é mesmo necessário que eu me case com esse marquês? Ele...
ele precisa de um herdeiro?
— Não, mas precisa de dinheiro. — O pai colocou o jornal de lado e
virou-se para ela. — Lucille, você está encalhada e é uma vergonha para sua
família. Não importa mais com quem vai se casar, desde que case. Um
marquês trará honra e dignidade para nós e ajudará meus negócios.
Ela engoliu a comida que colocara na boca e o bolo de alimento desceu
amargo. Claro que o pai falaria de negócios e aproveitaria a oportunidade
para deixar evidente que ela era uma solteirona, para todos os aspectos. Isso
machucava mais do que a imposição de um casamento infeliz. Com um
sorriso sem graça, Lucille assentiu fingindo que aceitava as determinações de
Walter Smith e terminou seu desjejum. Em seguida, pediu licença e se retirou
para a casa da única amiga solteira que ainda podia ouvir seus dramas sem
julgá-la por não ter um marido e pelo menos três filhos aos vinte e sete anos.
Usando a carruagem da família, foi até a casa de Millicent, na Rua
Eldridge. O pai tinha um carro, um veículo extravagante que não precisava
ser puxado por cavalos, mas ninguém podia usar, apenas ele. Era um objeto
de luxo que lhe servia mais para exibir a grandeza da riqueza dos Smith e que
estava fora do alcance dos meros mortais. Lucille mesmo não se importava,
ela preferia o sacolejar da carruagem com o qual já estava acostumada.
— Meu Deus, Lucy. Você está com uma cara péssima! As coisas não
deram certo com o Sr. McFadden?
Milly a recebeu no jardim, enquanto estava ajoelhada no meio de um
canteiro de rosas. Segurando uma pá, a amiga estava suada e seu chapéu
ameaçava cair. Era uma visão deselegante, mas aquela era Millicent em sua
melhor forma: uma jovem que não se importava sinceramente com a
aparência.
— O que a faz pensar que não deram certo?
— Eu sempre sei essas coisas, Lucy. — Milly levantou-se e ajeitou o
chapéu com a mão suja de terra. Uma marca marrom apareceu nas fitas que o
enfeitavam, mas ela pareceu não ligar. — E, pelo que ouvi falar do homem,
se ele for metade do que dizem as fofocas, você estaria sorrindo de orelha a
orelha. Vamos sentar e você vai me contar tudo.
Sim, ela contaria tudo e pediria ajuda. Talvez duas cabeças tivessem
ideias melhores do que apenas uma. Depois que Milly lavou as mãos na fonte
do jardim, sentaram-se em uma mesa de ferro que ficava debaixo de uma
árvore frondosa e Lucille despejou toda a sua frustração com o Sr. McFadden
e a notícia da chegada do marquês.
— Céus, você é ainda mais louca do que pensei! Como você me sai
andando nua pelas ruas, Lucy!
— Eu não estava nua! E fale baixo, não é para que saibam disso, não
pretendo ser publicamente arruinada.
— Pensei que o objetivo fosse exatamente esse.
— Não, eu apenas queria ser deflorada. O tal marquês não iria querer uma
donzela que não fosse mais virgem, não é mesmo? Homens nunca querem.
Milly olhou para os lados e garantiu que ninguém estava por perto para
escutá-las.
— Depois que conversamos, andei fofocando e talvez você possa estar
enganada. Fiquei sabendo de algumas damas recatadas que entregaram suas
virtudes para cavalheiros que não se tornaram seus maridos. E, ainda assim,
conseguiram casamentos valiosos. O dinheiro compra a honra, Lucy, e seu
pai tem dinheiro sobrando. O seu plano...
Poderia ter sido inútil. Ela não tinha pensado nisso, na hipótese do
marquês a aceitar mesmo arruinada. Sua ama sempre dissera que homens
nunca ficavam com mulheres defloradas por outros homens e era nisso que
acreditava. Mesmo assim, Milly parecia muito segura do que dizia e Lucille
sentiu-se tola. Ela esteve a ponto de entregar-se a um canalha devasso que a
usaria como um objeto descartável e, talvez, mesmo depois disso, ainda seria
ser obrigada a se casar com um homem que tinha o triplo da sua idade.
— Preciso de outro plano.
— Espero que não esteja considerando outro canalha para deflorá-la.
— Eu disse outro plano, Milly. Algo que me salve desse casamento
horroroso.
— Já tentou conversar com seu pai sobre isso?
Lucille olhou para a amiga em completo desalento. Como ela podia
sequer considerar que uma boa conversa não fora sua primeira tentativa de
dissuadir o pai daquele casamento? Ela tentara todas as artimanhas que
imaginara, desde supor que era estéril até decidir bater à porta de um notório
canalha para ser deflorada por ele. Tudo que pode, antes, obviamente, fora
exaustivamente testado. Talvez ela fosse uma tola ou incompetente, mas
atirar-se na cama de um homem horrível com Nathaniel McFadden seria
certamente sua última opção em qualquer situação. E, nem assim, ela
conseguira livrar-se do problema.
— Você me ofende em pensar que não fiz isso, ainda.
— Desculpe, minha querida. É que, sinceramente, não vejo uma luz. Só
se você fugir.
No instante em que disse aquilo, Milly apertou os lábios com força, como
se sua sugestão fosse tão absurda que sequer devesse ser dita em voz alta.
Lucille a fitou com olhos arregalados por alguns poucos instantes até que a
ideia lhe fizesse algum sentido. Fugir. Ela não tinha para onde ir e
empreender fuga sendo uma mulher a deixava totalmente vulnerável. Mesmo
assim, se não houvesse outra saída, aquela teria que servir.
— Você irá no recital dos Jameson?
Lucille voltou de suas divagações e olhou para a amiga. Apesar da
amizade, ela não deveria deixar Milly saber que fugir era uma via elegível
para se livrar do problema “casamento arranjado”.
— Claro, se eu não for minha mãe terá uma apoplexia. Mesmo que eu
esteja de casamento marcado com um marquês, para eles não é suficiente.
Sempre devo aparecer linda e gentil para todos verem como somos uma
família amorosa e perfeita.
E era claro que não eram, mas Lucille não queria falar sobre aquilo no
momento. Discutir o quanto sua família vivia de aparências era um
desperdício de tempo, pois nada mudaria. Para Walter e Constance, o que
importava era o que se mostrava aos outros – e ela estava tão farta daquela
vida que estava prestes a cometer uma loucura qualquer para livrar-se dela.
— Então, nos veremos lá. Pensaremos em uma nova tática para você
escapar desse futuro desagradável, Lucy.
A amiga segurou as mãos dela e sorriu, encarando-a com um olhar doce e
sincero. Milly era uma jovem extraordinária e tinha uma ótima vida, pois
seus pais não a importunavam com casamentos nem a obrigavam a ser uma
caçadora de títulos. Tinham muito dinheiro, amavam-se e criaram filhos
felizes, cujas opiniões e desejos eram respeitados – o oposto de seus pais, o
contrário de sua criação. Lucille suspirou, desejando que a amiga tivesse
razão e que elas conseguiriam, juntas, pensar em uma solução.
CAPÍTULO TERCEIRO

S ARAUS , BAILES , RECITAIS E OUTROS EVENTOS DAQUELE ESTILO ERAM


insuportáveis para Nathaniel. Ele gostava deles, quando vivia em Londres,
mas apenas quando estava interessado em alguma dama que poderia arrastar
para os jardins. Seus objetivos em eventos da sociedade sempre foram beber,
jogar e beijar mulheres em alcovas escuras ou áreas descobertas isoladas.
Como descobriu que clubes e antros de jogatina ofereciam exatamente a
mesma coisa sem o preço de precisar lidar com a desonra de alguma virgem,
foi gradualmente trocando as celebrações tradicionais pelo submundo da
diversão londrina.
Em Nova Iorque, Nathaniel fugia de recitais. Não havia nada que o
assustasse, nada que lhe causasse medo, mas ele odiava o tédio que aquele
tipo de evento causava. Então, não fazia a menor ideia do que estava fazendo
no recital dos Jameson.
— Pela décima vez, você sabe que o chefe nos queria aqui. Pare de
reclamar.
Leonard entregou a ele uma taça de champanhe e fez uma careta,
indicando que deveria beber.
— Ele deveria vir pessoalmente. — Nate virou a taça em um só gole,
fazendo com que as bolhas estourassem em sua garganta. — O que tem aqui
de importante?
— O anfitrião.
— Jameson está devendo?
O amigo assentiu, olhando ao redor. Leonard sempre sabia de tudo sobre
todos, ele era o guardião dos segredos. O chefe colecionava segredos de
grandes figurões da cidade a fim de mantê-los sob seu controle.
Aparentemente, garantir que todos lhe devessem muito dinheiro não era
suficiente. E o anfitrião da noite, Neil Jameson, era o que se podia chamar de
homem rico. Se estava devendo ao chefe, alguma coisa estava errada com
suas finanças.
— Não se preocupe, não vamos cobrá-lo, apenas intimidá-lo.
— Espero que essa intimidação não dure a noite toda. Gostaria de comer
alguma coisa antes de dormir.
— Há comida aqui, Nate.
— Não falei nada sobre comida.
Leonard quase cuspiu o champanhe que levara a boca. Nathaniel pegou
outra taça de uma bandeja e também a virou em apenas um gole, desejando
ficar bêbado ao ponto de não se entediar. Se precisavam intimidar Jameson,
então considerava flertar com uma das filhas – se ele descobrisse quem eram,
ou causar uma cena desagradável com algum convidado ilustre. Como era um
recital, não haveria dança, graças a Deus.
Enquanto estudava a dinâmica do que faria ali, viu chegar uma pessoa
que atraiu sua atenção. A família Smith entrava pelo salão principal e era
cumprimentada por todos. Atrás dos pais, a figura de Lucille Smith não se
destacava em relação a nenhuma das damas presentes. Usava o cabelo preso
no alto da cabeça, com alguns cachos caindo pela lateral de seu rosto, e um
vestido violeta com renda e bordado. Uma mulher comum que não causaria
nenhuma impressão marcante, se ele já não a tivesse visto em suas roupas
íntimas.
Ela era bonita, mas parecia se esforçar para esconder sua beleza com
cores enjoativas e a ausência de uma expressão facial confiante. Não o
surpreendia que os pais a estivessem vendendo a um marquês falido como
mercadoria barata.
— Você ouviu uma palavra do que falei, Nate?
A voz de Leonard o trouxe de volta à realidade.
— Não.
— O que tem na família Smith?
— Ontem a filha deles me visitou.
— Visitou? — Leo virou os olhos na direção da jovem Lucille e tentou
imaginar o que aquele anjo virginal poderia querer com um completo
canalha. — Conte-me essa história.
Nathaniel contou. Bebeu outra taça de champanhe e arrastou Leonard
para um canto do salão e despejou sobre ele o episódio que se resumia em
Lucille Smith em sua casa, tarde da noite, apenas em roupas de baixo.
Explicitou a parte em que ele a recusava apenas por que ela era filha de
Walter Smith, não porque estava ficando louco de dispensar uma mulher
desejando ser seduzida.
— Quem diria que ela seria tão atrevida. Se não fosse pelo pai dela, eu
mesmo me ofereceria para arruina-la.
— Se não fosse pelo pai dela, ela já estaria totalmente arruinada. Talvez
umas três vezes arruinada.
— Que azar o chefe ser tão rigoroso com os jogos que podemos jogar. —
Leo começou a se mover. — Vamos circular por esse recital, não pretendo
ficar para confirmar se os músicos sabem realmente tocar.
Os amigos se separaram e começaram a abordar convidados. Todos ali
sabiam quem eram, mas eles transitavam normalmente como o segundo filho
de um marquês e o terceiro filho de um conde. Os americanos
desenvolveram, naquela época, um certo fetiche por títulos e pela nobreza
britânica, fazendo com que muitos homens desejassem casar suas filhas com
duques, condes, viscondes, entre outros títulos. Mesmo que Nathaniel fosse
um completo canalha e alguém que tinha perdido boa parte dos valores
morais da sociedade civilizada, ele era sempre admitido nos melhores salões
por causa de sua linhagem.
Depois de petiscar na mesa do brunch e de beber quase uma garrafa de
champanhe, o que não era suficiente para o embriagar, Nathaniel foi para a
sacada externa quando a música começou. Seu senso de dever não era tão leal
assim que o faria acompanhar uma exibição de violino e piano apenas para
demonstrar a Jameson que ele estava ali. Leo, que era mais erudito e sabia
fingir melhor, manteria sua presença enquanto ele fumaria um cigarro
olhando para o luar. Ah, que coisa cafona.
O que ele precisava era de informações. Já mobilizara metade de Nova
Iorque para descobrir sobre Emile. Seu irmão não estava morto, não podia
estar. De todas as burradas que Nate fizera desde que chegou aos Estados
Unidos da América, ele não admitiria ser o responsável pela morte de seu
irmão, mesmo que não tivesse puxado o gatilho. Se Emile estava vivo, fora
levado pelo oceano para algum lugar – e ele descobriria que lugar era esse.
Alguém deveria saber de um inglês ferido por arma de fogo que não foi
reportado à polícia.
Enquanto se concentrava em seus próximos passos, Nathaniel sentiu uma
presença e um aroma que ele definitivamente não deveria reconhecer – até
porque se tratava de um cheiro comum entre mulheres americanas. Almíscar.
— A senhorita não pode ser vista sozinha comigo. — Disse, sem virar-se
para olhar a mulher que se aproximava e encostava na balaustrada ao lado
dele.
— A porta do salão está aberta e, em minha defesa, não fazia ideia de que
o senhor estaria aqui.
Nathaniel olhou sutilmente para ela. Srta. Lucille Smith, a aparição da
noite anterior.
— Isso me deixa aliviado, pensei que a senhorita me perseguia. Devo
temer por minha segurança?
— Não deboche de mim. — Ela rosnou em baixa voz. — Eu não preciso
ser mais humilhada do que já fui.
— Ninguém sabe do que houve. Eu mesmo não me lembro direito de
nada, portanto não leve isso muito a sério.
Era mentira, ele se lembrava melhor do que deveria. Não porque ela era
interessante, mas porque qualquer mulher que se exibisse seminua para ele
deixaria uma marca. Não, aquilo também era mentira. Algo na ousadia e na
coragem de Lucille era admirável, e Nathaniel respeitava aquilo. A maioria
das mulheres da classe social dela era como as damas inglesas – insossas,
insípidas, totalmente previsíveis. Não serviam nem mesmo para aventuras
sexuais, pois elas não sabiam o que fazer e o deixavam ligeiramente
entediado por ter que ensiná-las.
— O senhor é totalmente grosseiro. Arrependo-me de ter-lhe feito
qualquer oferta.
— Seu arrependimento está registrado. Adeus, Srta. Smith.
A jovem se afastou, pisando forte no chão com suas sapatilhas de dança.
Nate deu uma última tragada em seu cigarro e continuou contemplando o céu
por algum tempo até ser interceptado por Leonard.
— Nossa missão aqui acabou. Jameson está mais pálido do que cera de
vela e creio que ele entendeu qualquer recado que o chefe quis passar.
— Ainda bem, já estava exausto de não fazer nada e posar de homem
íntegro para esses janotas irritantes.
Leonard encostou ao lado dele e entregou um bilhete, antes que Nathaniel
pudesse se virar para ir embora.
— Agora posso entregar-lhe isso. Precisava que estivesse concentrado
essa noite.
O bilhete estava rabiscado em uma caligrafia horrorosa, certamente
masculina, e continha algumas informações. Aparentemente, alguém com a
descrição de Emile fora visto em Norwalk, Connecticut. Não apenas a
descrição física batia, mas também o fato de que a pessoa fora encontrada na
praia entre a vida e a morte.
— Quem lhe entregou isso?
— Um informante deixou no clube, hoje de tarde. Você estava ocupado,
eu recebi.
— Seu maldito. — Nathaniel virou-se para o amigo com as mãos em
punhos. — Eu poderia estar na metade do caminho para Norwalk a essa hora.
— Exatamente, e eu precisava de você aqui, hoje.
— Sabe que, um dia, eu vou partir a sua cara no meio. E não vai demorar
muito.
— O que pretende fazer? Vai mesmo para Connecticut atrás de uma pista
cuja autenticidade não podemos confirmar?
— Prometi encontrar Emile e farei tudo que estiver ao meu alcance para
isso, inclusive seguir pistas anônimas. Amanhã parto, tenho uma carroça
pronta na estação esperando para essa ocasião.
Enfiando o papel no bolso, Nathaniel apagou o cigarro na balaustrada e
saiu, deixando o maldito recital sem se importar em despedir-se ou
cumprimentar ninguém. No dia seguinte, conversaria com o chefe e pediria
uma folga, ou se demitiria, dependendo de como estivesse seu humor. Seria
um pequeno problema viajar estando na mira da polícia, pois ele não deveria
pegar o trem. A forma menos extravagante para chegar a Norwalk era de
carroça pelas vias vicinais, assim corria menos riscos de ser notado. Ele
poderia ir a cavalo, mas um animal não aguentaria aquela viagem e Nathaniel
não podia arriscar se hospedando em estalagens de beira de estrada.
Maldição, ele precisava traçar mais estratégias e isso significava que teria
que ir para casa – sóbrio e sozinho. Seria a segunda noite que dormiria sem
uma mulher em sua cama e não fazia ideia de quando veria uma se
contorcendo debaixo de si, novamente. Emile era o foco – apenas o irmão
importava naquele momento. Ele podia ter sido destruído naquele ano nos
Estados Unidos, mas o amor por sua família não se alterara.

AS MÃOS de Lucille tremiam enquanto ela segurava uma tesoura na frente de


um espelho. Passou a noite no recital dos Jameson e decidiu que fugiria. Não
aguentava mais ouvir o pai gabar-se do seu casamento com o maldito
marquês, nem a mãe dizer como se orgulhava dela por conseguir um título
para a família, fingindo estar feliz com sua tragédia. Título comprado, sujo,
sem mérito algum. Ela não faria parte daquela farsa e não se casaria com
ninguém. Preferia viver a vida como saltimbanco do que se submeter àquele
casamento forjado e sabia que, se continuasse sobre o jugo de Walter Smith,
não teria opção. Legalmente, mesmo que ela fosse adulta, podia ser
comercializada pelo pai daquela forma.
E, depois de ouvir sorrateiramente a conversa entre o Sr. McFadden e o
Sr. Eckley, ela teve outra ideia. O canalha poderia ter lhe negado a ruína, mas
a ajudaria a fugir.
Mas ela não podia fugir como uma senhorita virginal de vestidos que
quase arrastavam no chão. Era impossível ter agilidade e disfarçar-se daquela
forma. Então, assim que a família chegou em casa e se recolheu, ela procurou
o cavalariço e pediu a ele roupas que lhe servissem – calça, camisa, colete e
gravata, limpas, de preferência. Vestiu, ajustou alguns detalhes, descobriu
que precisaria esconder os seios e sabia como as mulheres faziam isso
antigamente – enfaixando-os. Com todos os equipamentos necessários para
transformar-se em homem, só lhe faltava coragem de cortar os cabelos.
Depois, teria que jogá-los na lareira para que ninguém desconfiasse que o
fizera.
E pior, teria que agir sozinha. Segredos só existiam até que uma segunda
pessoa soubesse – aí deixavam de ser segredos. Olhando-se no espelho,
enfiou a tesoura em uma madeixa encaracolada e viu os fios se soltarem em
suas mãos. Repetiu o processo várias vezes, com as lágrimas escorrendo
pelos olhos e molhando as bochechas, mas ela não fraquejaria. Precisava ter
cabelos curtos, fáceis de manejar e que pudesse esconder debaixo de uma
boina masculina. Depois do que pareceu uma eternidade, ela estava então
com sua nova aparência e pronta para fugir.
Como não podia levar muita coisa consigo, Lucille pegou alguns itens de
higiene, algumas peças de roupas íntimas, e enrolou tudo em um saco.
Pessoas pobres não tinham malas e ela não conseguiria transitar escondida
carregando um trambolho consigo. Um saco de moedas, contendo todo o
dinheiro que conseguira furtar de seu pai de pouco em pouco, foi distribuído
em lugares diferentes e tudo que faltava era sair da casa. Não podia olhar para
trás, não podia despedir-se de nada, não podia pensar que sentiria saudades.
Talvez um dia, depois que o pai entendesse que ela não se casaria com
ninguém apenas por causa de um título, pudesse voltar para casa.
Lucille não tinha nada muito bem planejado. Era madrugada, ela fugira de
casa pulando a janela de seu quarto e deslizando por uma treliça, quase se
arrebentando ao bater no chão, e apenas ouvira sobre a carroça do Sr.
McFadden – não conseguiu saber em que ponto da estação ela estaria
esperando por ele, afinal. Estava em uma boa localização, mas as ruas eram
perigosas àquela hora. Pegou um coche que passava e, fingindo ser um jovem
perdido, pediu que fosse levada à estação ferroviária.
Estava com sorte, se fugir sem destino pudesse ser qualquer coisa
relacionado à sorte. Logo que chegou pode ver uma carroça, atrelada a dois
cavalos pretos antolhados, parada no estacionamento próximo à estação. Um
homem conversava com outro – e ela teve certeza que era ele, Nathaniel
McFadden. Quando se tornou tão especialista naquele canalha, não sabia.
Imaginando que ele estaria para partir, enfiou-se silenciosamente na parte
traseira da carroça, debaixo de um pesado cobertor, e esperou. Logo seria
conduzida escondida para a tão desejada liberdade.

O SOL ainda não nascera quando Nathaniel pegou estrada na direção de


Norwalk. A cidade não era longe, mas ele pretendia parar em alguns lugares,
antes. Duvidava que Emile tivesse submergido no Brooklin e emergido
apenas tantas milhas depois sem que isso tivesse lhe custado a vida. Era mais
provável que o irmão tivesse sido encontrado antes e levado para Norwalk. A
viagem levaria uns três ou quatro dias, até mais, contabilizando pelo menos
as paradas para descanso dos animais.
E ele ainda não entendia por que diabos Emile não havia se comunicado.
Estaria tão irritado assim com ele que preferia não dizer que estava vivo? Ou,
pior, estaria realmente entre a vida e a morte e não tivera como o contatar?
Eram muitas questões que serviriam para enlouquecer Nathaniel enquanto ele
conduzia os cavalos pela via de terra, saindo de Nova Iorque. Teria dias de
viagem, totalmente sozinho, e esperava que isso não fosse um problema, mas
seria. Estava desacostumado à solidão, sempre que se via a sós consigo
mesmo, era engolidos por pensamentos estranhos. Por que diabos um homem
como ele não conseguia deixar o que lhe acontecera durante aquele fatídico
mês escondido no fundo de sua memória?
Deveria ter convidado Leo para a viagem, mas o amigo precisava ficar na
cidade cuidando dos negócios. Era a única forma do chefe concordar com sua
longa ausência, então precisava deixar de agir como um medroso e enfrentar
seus temores. E foi construindo hipóteses absurdas sobre o que poderia ter
acontecido com Emile que passou a maior parte da manhã, até o horário que
pretendia parar para almoçar. Parou a carroça em uma área mais isolada na
lateral da via, que era ladeada por árvores. Deixou que os cavalos
descansassem e pastassem um pouco enquanto abria uma cesta que a
cozinheira preparara com algumas iguarias. Pelo menos para o primeiro dia,
haveria comida.
Enquanto se fartava com um sanduíche de faisão, ouviu ruídos e um
movimento em suas costas. Sacou a pistola da cintura e virou-se
repentinamente, surpreendendo o visitante inconveniente. Era um rapaz
jovem, com uma roupa surrada e que parecia estar... dormindo em sua
carroça.
— Mas que diabos?
— Por favor, não atire! — O rapaz se encolheu, cobrindo o rosto com os
braços. — Eu estou desarmada.
— Quem é você? Por que está me seguindo? O que faz na minha carroça?
O jovem ergueu um pouco os olhos e o fitou. Nathaniel deveria ter levado
uma mulher para a cama na noite passada, pois estava vendo feições
femininas onde elas não existiam. Aquele rapaz parecia-se muito com uma
garota.
— Eu... eu estou fugindo. — Ele se ergueu e olhou ao redor. — Sr.
McFadden, se me permitir explicar...
— Que bom que sabe quem sou, assim também sabe que não sou
conhecido por minha paciência. Diga logo quem é.
Tremendo, o rapaz se endireitou e tirou a boina, exibindo um cabelo que
mais parecia um emaranhado de cachos frondosos. Ele nunca vira um homem
com cabelos como aqueles. Bem, Nathaniel também nunca vira um homem
com o rosto delicado, os cílios longos e a boca desenhada...
— Sou eu, Lucille Smith.
Por Lúcifer, ela era mesmo louca.
— Srta. Smith, o que está fazendo na minha carroça?
— Se o senhor abaixar essa pistola, terei o maior prazer em lhe contar.
Nathaniel enfiou a pistola novamente na cintura e colocou o sanduíche de
lado. Aquela mulher não parecia uma ameaça, ele era capaz de imobilizá-la
com uma mão atada nas costas. Cruzou os braços e esperou que ela se
explicasse.
— Estou fugindo. — Ela esfregou as mãos, nitidamente envergonhada do
seu vestuário. — Como disse ao senhor, antes, não me casarei com um
marquês que pode ser meu pai. Eu ouvi o senhor dizer que iria para Norwalk
e decidi pegar uma carona até lá.
— Pegar uma carona? — Ele a interrompeu com uma gargalhada. —
Comigo? Qual parte do “eu não quero me envolver em seus planos” a
senhorita não entendeu, Srta. Smith?
— Eu entendi, Sr. McFadden, mas ignorei. Preciso fugir e ir de trem
deixaria rastros, então precisei improvisar.
Aquilo era um completo absurdo. Nathaniel deixara de acolher aquela
mulher em sua cama porque não queria problemas com Walter Smith, e lá
estava ela no meio de sua viagem, vestida como um moleque dos estábulos
e... e ela estava incrível. Nate nunca vira uma mulher vestida como um
homem e ele era cunhado de Caroline, a maior libertina que Londres já
conheceu. Caroline usava calças para cavalgar e uma vez se despira para
resgatar seu irmão dos escombros de um desmoronamento. Ainda assim,
nenhuma mulher usando camisa, colete e gravata – e talvez ele também
estivesse enlouquecendo, porque ela ficou mais bonita usando botas do que
com aqueles vestidos cheios de rendas e frufrus das damas.
Achá-la linda não mudaria em nada a situação. Ele tinha que encontrar o
irmão, não servir de escolta para uma fujona.
— Bem, senhorita, creio que nos separaremos por agora. Desça da minha
carroça, não viajará comigo até Norwalk.
Ela olhou ao redor, ainda esfregando as mãos.
— Aqui é um pouco deserto. O senhor não poderia... talvez se me
deixasse em uma estalagem, eu pudesse conseguir outra carona?
Era uma péssima ideia, mas a maluca tinha razão. A não ser que desejasse
vê-la morta, não podia abandonar uma mulher em uma beira de estrada –
mesmo que a mulher em questão estivesse se passando por homem. Ela era
uma presa fácil para qualquer criminoso que rondasse a região, e eles eram
bastantes.
— Tudo bem, Srta. Smith. Depois que terminar meu almoço, seguiremos
até a Prince Station, que fica a quatro milhas daqui. Lá nos separaremos.
Lucille assentiu e se sentou onde estava, por cima de algumas bagagens
que Nathaniel levava consigo. Eram provisões, roupas e outras coisas que
poderiam servir para acampar durante os dias que levaria na estrada. Quanto
mais despercebido passasse, menos chance de alguém o reconhecer – porque
tinha certeza de que, em algum momento, a polícia de Nova Iorque mandaria
alguém atrás do fugitivo que era.
Ele deu mais uma mordida no sanduíche de faisão e notou que ela o
encarava. As mãos femininas estavam trêmulas e tentavam colocar a
cabeleira para dentro da boina.
— Está com fome? — Perguntou, virando o sanduíche na direção dela.
— Não como nada desde o jantar de ontem.
Maldição. Por que diabos perguntava se não queria se importar?
— Pegue, eu tenho mais comida aqui.
Lucille agarrou o sanduíche com as duas mãos e o atacou sem muita
elegância. Ele duvidava que aquelas fossem as maneiras que usava durante as
refeições dos Smith, então suspeitou que ela realmente estivesse faminta.
Pegou outro sanduíche para si e ambos comeram em silêncio até a comida
acabar – e ela levar os dedos até a boca para lambê-los e retirar a gordura do
faisão.
Aquilo era um pouco demais. Nate pegou um pano de dentro da cesta e
entregou a ela, para que se limpasse.
— Posso sentar-me à frente com o senhor? As pessoas pensam que sou
um homem, portanto sua reputação estará à salvo.
Nathaniel deu outra gargalhada.
— Não tenho reputação para ser estragada, senhorita. Pode se sentar onde
desejar, inclusive no meu colo.
O arregalar dos olhos dela fez Nathaniel se alegrar por tê-la assustado
novamente. Ela precisava ter medo dele, precisava entender que ele não era
um homem inofensivo como os galanteadores com quem estava acostumada.
Normalmente, ele determinaria que ela deveria sentar-se em seu colo e
acomodar aquele lindo traseiro sobre suas partes íntimas, mas estava se
esforçando para não a arruinar desnecessariamente – portanto permitiu que
escolhesse. Não parecia muito útil resistir a Lucille naquele momento, mas
ela já tinha outros planos que não o incluíam.
Lentamente, ela deslizou para a parte da frente da carroça e acomodou-se
no banco acolchoado ao lado de Nathaniel. Encolheu-se no canto e manteve
as mãos juntas e entre as coxas. Apesar da aparência masculina e do cheiro de
sabão barato vindo das roupas, ela continuava exalando o mesmo perfume
que ele não deveria reconhecer. Enquanto a carroça retomava a estrada e
seguia na direção de Prince Station, uma estalagem de reputação duvidosa
que ficava pelos arredores, ela se manteve em silêncio por quase todo o
percurso.
Ele também, mas poderia dizer que fora um silêncio eloquente. Vez ou
outra, Nate virava o rosto sutilmente para espiá-la e ter uma visão rápida do
perfil feminino, da curva do pescoço, do peito subindo e descendo por baixo
de poucas camadas de tecido. A curiosidade para saber como ela escondera
seus seios acabou se transformando na imagem de Lucille nua, com os
mesmos seios de mamilos rosados despidos, vindo em sua direção.
Antes que pudesse ter uma ereção pelos pensamentos mais absurdamente
inadequados, a estrutura decadente da estalagem surgiu à sua frente.
— Parece um lugar... agradável. — Ela disse, a voz vacilando com um
humor despretensioso.
— É uma pocilga. — Nathaniel conduziu os cavalos para a lateral,
entrando na via que terminava na frente da estalagem. — Mas certamente a
senhorita conseguirá uma carona para... não faço ideia de para onde a
senhorita vai.
— Agora, nem eu.
Lucille não desceu, ficou esperando sentada a ajuda de um cavalheiro,
como uma mulher bem-nascida faria.
— Se vai fingir que é homem, precisa aprender a pular de uma carroça.
— Nate se aproximou e ofereceu a mão para que ela saltasse. — Homens não
ficam esperando outros homens, até porque homens não ficam encostando em
outros homens.
Ela assentiu em concordância e deu um pequeno pulinho, pousando no
chão com pouca graciosidade. Ao erguer a face, sorriu para Nathaniel e ele se
irritou por achar que ela tinha um sorriso bonito e mãos macias, já que
Lucille não usava luvas. Aquele disfarce não daria certo, ela não se passaria
por homem nem para um velho cego.
— Obrigada pela carona, Sr. McFadden.
Com uma reverência nada masculina, Lucille afastou-se e entrou no
Prince Station. Nathaniel inspirou profundamente e decidiu ir atrás apenas
para conferir se ela conseguiria alguém que a conduzisse a qualquer lugar. A
mulher definitivamente não parecia saber muito bem o que estava fazendo,
apesar de ter decidido fazê-lo de toda forma. Ela era determinada e não se
deixaria abater por uma dificuldade insuperável – porque ele sabia o quanto
estar sob o domínio de alguém poderia ser algo quase impossível de superar.
Nate trincou o maxilar e caminhou para dentro da estalagem. Sentou-se
no bar, que ficava logo na lateral da recepção, e pediu um conhaque. Preferia
conduzir a carroça estando sóbrio e certamente aquele seria um atraso em
suas programações, mas sentiu-se subitamente responsável por garantir que
Lucille não fosse mantida refém daquela espelunca. Claro que ali não havia
um grupo de sequestradores prontos para render moleques com roupas
maltrapilhas, mas ela era a filha de um milionário. Se descobrissem, valeria
um bom dinheiro. Ela também era bonita, uma mulher. Muitos homens
poderiam gostar de a levar para a cama. Não, muitos homens a possuiriam em
qualquer superfície que encontrassem, e não seria com gentileza.
Afastou aqueles pensamentos e bebeu um gole do uísque. Lucille
conversava com um grupo de pessoas que carregava malas – todos homens.
Não havia uma maldita família hospedada no Prince naquele dia? Ela depois
foi atrás de outro grupo, girou pela recepção, até sair da estalagem seguindo
três homens com uma aparência não tão simpática. Nathaniel não costumava
achar ninguém simpático e dificilmente considerava as pessoas confiáveis,
então terminou o uísque e espreitou o que conversavam do lado de fora.
Não sabia por que se importava, ou por que interferia em algo que já
dissera não se importar. Quanto mais tempo permanecesse na mesma milha
que aquela mulher, mais confusão poderia atrair para si mesmo, além de ela o
distrair de seus planos de encontrar o irmão. Pelo tempo que estava perdendo
naquela estalagem, já teria percorrido mais uma hora de viagem.
— Os senhores foram muito gentis em me oferecer um lugar em sua
carruagem.
A voz de Lucille não parecia muito firme. Nathaniel enrijeceu os
músculos e apurou os ouvidos.
— Não temos uma carruagem, belezinha. — Uma voz masculina e
melosa disse. — Estamos a cavalo.
— Oh. Então creio que não poderão me levar com os senhores.
Ela ficou ainda mais vacilante, indicando que eles sabiam que não era
homem. Não é problema seu, Nathaniel. Deixe-a com seus problemas, não foi
você que a raptou. Se ela tem coragem para fugir de casa, deve aprender a
enfrentar os riscos. Seu lado diabólico gritava em seu ouvido enquanto ele
continuava ouvindo a conversa e fazia-se de surdo para sua consciência.
— Ah, claro que podemos. Você vai dividir a sela comigo.
— Não, comigo.
— Senhores, eu creio que não tenha mais interesse em...
— Fique quieta, docinho, e prometo que será rápido.
A consciência – ou a falta dela – continuou gritando enquanto Nate
deixava uma moeda para pagar sua bebida e saía. Ninguém ajudaria uma
mulher em apuros naquele lugar, ninguém se importaria se Lucille fosse
violada por aqueles animais ali mesmo. Nem ele, provavelmente, deveria.
Mas, quando a viu sendo puxada por um braço por um homem barbudo e de
aparência imunda, e pelo outro braço por outro homem de cabelos presos em
um rabicho ensebado, algo estalou dentro de si e Nathaniel quis quebrar
algumas pernas.
Havia limites que ele não ultrapassava, um deles era bater em mulheres.
Nathaniel não praticava nem tolerava violência contra mulher alguma.
— A moça disse que não irá com os senhores.
Ele disse, sóbrio, ajeitando o chapéu que acabara de colocar na cabeça.
CAPÍTULO QUARTO

N ENHUM HOMEM ERA CONFIÁVEL , DISSE A AMA , MAS L UCILLE PENSOU QUE
ela falava apenas em relação à atitude deles com as mulheres. Para si mesma,
estava perfeitamente vestida como um deles, então não corria riscos. Como
fora tola em acreditar nisso. Depois de sondar alguns viajantes e conseguir
um grupo disposto a acolhê-la, descobriu que eles nunca duvidaram que ela
os estivesse tentando enganar.
Então, era como as coisas seriam. Ela provavelmente seria violada e
abandonada à própria sorte, ou se tornaria a meretriz daquele bando. Deixaria
de se casar com um velho interessado apenas em seu dinheiro para se
prostituir forçada por um grupo de brutamontes porque era burra. Não, claro
que não. Lucille não cortara cabelo, se apropriara de roupas do estábulo e
fugira de uma casa que mais parecia uma fortaleza para sucumbir nas mãos
daqueles homens horrorosos. Ela lutaria – e talvez acabasse morta, mas
lutaria. Porém, antes de começar a distribuir pontapés e tapas para tentar se
soltar, ele apareceu.
— Se quiser a moça vai ter que esperar até que eu acabe com ela.
O barbudo que cheirava a urina disse, quase a derrubando com seu mau
hálito. Aqueles homens não cuidavam muito da higiene, o cheiro deles
indicava que deveriam perambular pela estrada com frequência e sempre em
instalações inadequadas. Não importava, apenas que ela estava prestes a ser
salva por um patife – se ele não fosse apenas um contra três.
— Lamento, mas não posso esperar. Tenho compromissos longe daqui e
essa conversa já me fez perder bastante do meu tempo. Soltem-na e fingirei
que nada fizeram.
Os homens começaram a rir e não a deixaram. Lucille entendeu que
precisava ajudar seu pretenso salvador e começou a se debater, querendo se
livrar das garras em seus braços. Os dedos imundos que a mantinham cativa
já haviam encardido parte da manga da camisa nem tão branca assim que
usava.
— Fique quieta, docinho. — O barbudo desagradável falou bem perto de
sua orelha, fazendo com que sentisse náuseas. — Depois que acabarmos com
esse imbecil, poderá se mexer à vontade.
Um dos homens avançou sobre Nathaniel, que esquivou e o socou nas
costas. Outro pulou sobre ele, fazendo com que rolassem no chão, mas logo
as posições se inverteram e ela se assustou com o brilho prateado do metal
que reluziu sob a luz do dia. Com a elegância de um lorde e a frieza de uma
pedra de gelo, Nathaniel McFadden ergueu-se, batendo a grama de suas
roupas, enquanto o homem ficou caído, segurando uma das pernas e gritando.
O primeiro homem voltou e parou ao ver o amigo esfaqueado. Nathaniel
limpou o metal na calça preta e girou o punhal na mão, mostrando-o para os
dois homens que permaneciam de pé.
— Vocês podem descobrir se sou tão bom quanto pareço ou ajudar seu
amigo. Ele teve uma artéria seccionada e sangrará até a morte se não for
socorrido imediatamente.
Os patifes se olharam rapidamente e Lucille foi solta pelo barbudo, que
correu para cima de Nathaniel. Ela teve tempo de vê-lo revirar os olhos em
desânimo antes de atacar e golpear o homem nas costas, derrubando-o.
Depois, ajoelhou-se sobre ele, puxou um dos braços para as costas, torcendo
as articulações e o fazendo gritar. Ela ficou dividida entre a necessidade de
fugir para preservar sua vida e o desejo de ver Nathaniel McFadden, que
tinha a metade do tamanho daqueles senhores, acabar com todos eles.
Escolheu a segunda opção.
— Eu avisei para irem embora. — Ele disse, forçando ainda mais o braço
do barbudo e usando a faca para ameaçar o outro homem. — Preciso
desmembrá-lo para que entendam o recado?
O homem que permanecia de pé agarrou o esfaqueado pelos braços e
começou a arrastá-lo para a direção de um trio de cavalos, amarrados na
lateral da estalagem. Depois de uma conversa muda, Nathaniel ergueu-se e
soltou o barbudo, que correu na direção dos amigos. Eles proferiam ameaças
em alta voz, mas ninguém por perto parecia disposto a intervir, fosse para os
ajudar ou não. De toda forma, Lucille não conseguia prestar atenção em mais
nada que não o seu salvador.
Considerando a fama de Nathaniel McFadden, ela não sabia se corria
mais ou menos risco ao lado dele. Porém, já decidira entregar sua virtude a
ele uma vez, o que sugeria que não o repudiava. Ao menos ele tinha um
cheiro masculino agradável, cabelos claros que pareciam precisar ser
penteados, uma barba desleixada por fazer que lhe conferia um ar viril e... e
ela estava pensando demais nele. Aquele homem a ajudara, mas não era um
amigo.
Ainda assim, ela quase desmontou em seus braços quando ele se
aproximou, guardando a faca na em um bolso em seu colete e segurando-a
com firmeza pelos ombros.
— Eles machucaram você?
Os olhos sombrios indicavam que, se ela dissesse que sim, ele voltaria a
perseguir os seus agressores e os faria pagar por cada arranhão.
— Não, eles foram apenas inconvenientes. Eu...
— Esse disfarce é péssimo. — Nate abaixou e pegou a boina que ela
usava, que caíra durante a disputa. — Você não se parece um homem, não
fala como um nem se porta como um. Será presa fácil nessa estrada. Volte
para casa, Srta. Smith.
— Não, senhor. — Ela baixou os olhos porque encará-lo era mais difícil
do que ela esperava. — Cheguei até aqui, não voltarei atrás.
— Se queria desonra, depois de fugir de casa creio que esteja desonrada o
suficiente. Qualquer um acreditará em você.
— Minha amiga me convenceu que a desonra pode não ser suficiente.
Aparentemente, há homens tão necessitados de dinheiro que poderiam aceitar
uma mulher arruinada se o dote for suficiente. E o meu dote não é suficiente,
é obsceno.
Nathaniel riu e passou as mãos pelos cabelos desgrenhados. Era a
segunda vez que ela se pegava achando-o bonito naquele minuto e aquilo só
servia para explicar o quanto ela era realmente tola.
— Imagino que me arrependerei, mas, venha comigo, então.
Lucille piscou algumas vezes, achando difícil de entender a mudança
repentina de opinião.
— O senhor está me convidando para fugir com o senhor?
— Não, de onde tirou isso? Primeiro, não estou fugindo, estou em busca
de respostas. Segundo, não parece certo que, depois do trabalho de me livrar
daqueles animais, eu te deixe para ser atacada por outro bando.
Ele fechou novamente o casaco e seguiu para sua carroça. Não havia mais
sinais dos homens que tentaram raptá-la e nenhum movimento na estalagem
indicou que houvessem incomodado alguém. Talvez brigas e pessoas sendo
esfaqueadas fosse comum, naquele lugar. Nathaniel pulou na carroça e
indicou que ela deveria ocupar o espaço ao lado dele, mas não a ajudou a
subir. Claro, ela deveria agir como um rapaz, se quisesse, mesmo que de
longe, fingir ser um.
Os cavalos voltaram a trotar e logo eles pegaram a estrada novamente. Os
minutos de silêncio começaram a corroê-la. Lucille era falante, gostava de
conversar e costumava ter sempre pessoas dispostas a ouvi-la. Ela era rica,
filha de um milionário, a maioria das pessoas simplesmente fazia o que ela
queria ou o que achassem necessário para a agradar. Quando jovem, ela
adorava a bajulação, até descobrir que as pessoas não se importavam
realmente com ela – mas com a riqueza de sua família. E que ninguém a
desejava por ser quem era, mas por ser filha de Walter Smith.
Ainda assim, ela tolerava o excesso de atenção e nunca ficava sozinha.
Naquele momento, apesar do homem ao seu lado, ela se sentia invisível. Ele
mantinha o semblante sério e concentrado, o maxilar contraído e os olhos
fixos na estrada – e parecia ignorar completamente a sua presença.
— É verdade que aquele homem sangraria até morrer?
— Provavelmente, não, mas esperava que fossem estúpidos o suficiente
para acreditar em mim.
— O senhor tem uma pistola, por que preferiu usar um punhal?
— Sou melhor com facas. Prefiro uma luta corporal, se a senhorita me
entende.
Ela esfregou as mãos, intrigada por conseguir fazê-lo falar. Nathaniel não
olhava para ela, apenas para frente, sem perder o foco de seu caminho
nenhum segundo.
— O que o senhor está procurando? Que respostas pretende encontrar?
— Nada com o que possa me ajudar.
— Mesmo que não possa ajudar, gostaria de saber.
— Não precisamos manter uma conversa casual, senhorita. — Ele virou-
se rapidamente para ela, com olhos azuis cintilantes pelo sol. — Se terminou
o interrogatório, prefiro o silêncio. Pretendo que fique na primeira cidade em
que precisar parar.
— Gosto de conversar, mas tudo bem. Eu estou agradecida por ter me
ajudado com aqueles homens. Eles certamente não seriam gentis comigo.
— Não, não seriam. Eles provavelmente a machucariam e a largariam
jogada na beira da estrada, ou a tornariam prostituta deles – e não sei qual
destino seria pior.
As imagens do que poderia lhe ter acontecido a ocuparam por alguns
minutos da viagem. Lucille deixou de prever muitas coisas quando decidiu
fugir naquele rompante. Tudo que pensava era em sair de casa e deixar aquele
casamento forçado para trás. Depois de vinte e sete anos enrolando seus pais
com as mais absurdas desculpas para não se casar, ela precisou tomar
medidas drásticas – e isso significou sair com algum dinheiro, poucas
provisões e nenhuma dignidade.
Bem, isso não a abalaria. Ela encontraria um jeito de ir para a Inglaterra e
se refugiaria no balneário de mulheres solteiras do qual ouvira falar. Aquele
lugar era quase uma lenda em Nova Iorque, e algumas mães americanas já
haviam levado suas filhas para esconder suas desonras ou suas solteirices. Ela
queria apenas viver em paz, já que seus sonhos de faculdade estavam
frustrados – o pai jamais a permitiria estudar e ela não teria dinheiro para
fazê-lo sozinha.
O silêncio a deixou entediada e, mesmo depois de dormir em excesso,
Lucille se arrastou para a parte de trás da carroça e se aninhou sobre o
cobertor, cochilando novamente. Mesmo depois do susto, sentia-se
estranhamente segura, viajando ao lado de um notório canalha. Por algum
motivo que desconhecia, viajar ao lado de Nathaniel McFadden lhe conferia
proteção. Acordou novamente quando a carroça parou de sacolejar.
— Por que paramos? — Perguntou ao seu companheiro de viagem, que
estava soltando os cavalos.
— Não há luz o suficiente para prosseguirmos e aqui parece um bom
lugar para passarmos a noite.
Lucille arregalou os olhos, assustada com a confusão em seus
pensamentos. Olhou para cima e notou o céu rosado. Já era muito tarde, pois
naquela época do ano demorava a anoitecer. Ela dormira mais do que deveria,
mais do que seria tolerável, e agora era informada de que passariam a noite
ao relento.
— Não ficaremos em um hotel?
— Não há hotéis pelas próximas milhas e estamos tentando não chamar a
atenção, não é isso?
— Provavelmente sim, é isso.
Ela ajeitou a camisa, passando as mãos pelo tecido, e percebeu que seus
seios estavam doloridos. A faixa que usara para escondê-los, um truque
aprendido nos estudos com a tutora, estava muito apertada. Desceu da carroça
com um pouco mais de habilidade – mas nenhuma graciosidade, e olhou ao
redor. Estavam em uma área meio descampada, circundada de árvores
espaçadas e perto de um curso de água – se seus ouvidos não estivessem
também confusos. Logo, estaria muito escuro e eles estariam à mercê da
natureza, porém isso não parecia incomodar o homem que levava os cavalos
para descansar em uma área fresca.
Talvez tudo aquilo valesse a pena, pensou. Afinal, estava declarando a
sua liberdade e, livre, poderia tomar decisões e ser respeitada por quem ela
era, não em razão da família à qual pertencia. Livre, não teria nunca que se
casar com marqueses falidos e poderia começar a apreciar coisas que não
estava autorizada antes – como o cavalheiro que a acompanhava. Ele não era
um cavalheiro, mas era um homem magnífico.
— Vou armar uma tenda.
Ele disse e começou a se despir. Tirou o casaco, que colocou por sobre a
carroça, e depois o colete. Ela lembrou que, ali, guardava uma faca, e que
havia uma pistola na cintura de suas calças. Em seguida, dobrou as mangas
da camisa. Sem gravata, havia dois botões abertos que revelavam os pelos
dourados que cobriam o peito dele. Lucille sentiu a boca secar.
Sem saber se deveria o ajudar ou observar, ela escolheu a primeira opção.
— Diga o que posso fazer.
— Farei um buraco. Você manterá essa estaca firme enquanto eu a
enterrarei.
Sem mover uma linha em sua expressão, ele pegou uma pá na carroça e
começou a cavar. Toda a ação era uma exibição de masculinidade – músculos
e movimentos corporais somados a pele exposta e suor. Lucille não
conseguiu evitar arregalar os olhos assombrada pelo que sentiu – ardência na
garganta, as mãos frias e um leve tremor nos joelhos. Talvez ela soubesse o
que tudo aquilo significava, apenas repudiava que seu corpo fosse tão volúvel
e tolo.
Depois de quatro buracos cavados e enormes estacas de madeiras
fincadas, uma lona grossa foi estendida e amarrada, criando um pequeno
abrigo – suficiente para uma pessoa. Eles eram dois e ela não pretendia
perguntar como aquilo funcionaria. Provavelmente, dormiria ao relento.
— Estou ouvindo água por aqui, gostaria de... de me lavar.
Nathaniel limpou o suor de sua testa e olhou para o céu.
— Se for rápida. Logo escurecerá e eu definitivamente preciso de um
banho.
— Por favor, vá primeiro. — Ela enrubesceu apenas por imaginá-lo
tomando banho. — Creio que o senhor esteja mais...
— Suado e encardido, definitivamente.
Ele sorriu, e era a primeira vez que o via sorrir realmente. Até então ele se
mostrara debochado, entediado, aborrecido, irritado, furioso, mas nunca
alegre. Com um aceno de cabeça, Nathaniel afastou-se na direção leste e
desapareceu do seu campo de visão. Lucille encostou na carroça, sentindo os
joelhos finalmente cederem à tensão do dia.
Fugir de casa, enfiar-se na carroça do homem que a rejeitara, quase ser
raptada e violentada por homens de cheiro horrível. Aquelas foram as
aventuras que ela não esperava nunca realizar. Toda a sua vida fora
construída sobre a ideia de estudar, ajudar pessoas necessitadas, desenvolver
um ofício. Poderia aceitar casar-se com um homem que amasse. Ela queria
poder trabalhar e prover seu próprio sustento, não se tornar um bibelô de
exibição para algum nobre enfadonho. E, depois de tudo aquilo, seu coração
martelava pelo simples fato de compartilhar momentos muito estranhos com
Nathaniel McFadden.
Depois de retomar o controle de suas pernas, Lucille embrenhou-se por
entre os arbustos onde ele desaparecera. O céu escurecia a cada instante e,
mesmo que não tivesse medo de escuro, precisava se lavar. Sentia o odor
fétido dos homens que a agarraram impregnado em seus cabelos e estava
nauseada desde que fora liberta. Quando o barulho de água ficou mais forte,
ela reduziu o passo até parar completamente, ante a visão do homem seminu
que, ainda molhado, sacudia os cabelos para secá-los.
Pelo amor de Deus, se aquele era o diabo, o inferno deveria ser um lugar
muito interessante. Nathaniel estava sem camisa, com a calça desabotoada, os
pés descalços e gotículas de água escorrendo por seu peito esculpido. Todas
as histórias da ama estavam incorretas – ele não era Hades, era Adônis.
— Não precisa me espionar, senhorita. Se quiser me ver nu, basta pedir.
Ela corou imediatamente, mas não o deixaria falar daquela forma.
— Que eu me lembre, já pedi, mas o senhor se recusou.
Nathaniel pegou uma toalha e colocou nos ombros, segurando a camisa
muito branca em uma das mãos. Andou até ela com um sorriso cínico nos
lábios e parou próximo o suficiente para ela sentir cheiro de sabão.
— Estávamos em uma condição que me levava a não querer nenhuma
confusão com Walter Smith. Agora, parece que não faz mais diferença – a
senhorita já está arruinada, independente do que eu faça. — Dizendo aquilo,
Nathaniel chegou muito perto dela, levando o nariz até seu pescoço. Lucille
sentiu que seu coração fosse pular pela boca, certa de que a beijaria. Mas ele
se afastou, ainda sorrindo. — A senhorita está com o fedor daqueles
desgraçados. Trouxe alguma roupa para trocar?
Ela moveu a cabeça indicando que não e ele se afastou completamente,
indo na direção da carroça. Ela quase desabou novamente no chão. Levou
alguns segundos para se recompor, então olhou para o pequeno riacho que
despontava à sua frente. A água devia estar gelada àquela hora, sem sol, mas
precisava banhar-se. Livrou-se das roupas, retirou a faixa que escondia os
seios e entrou de uma vez no riacho, sentindo os ossos gelarem
instantaneamente. Moveu-se um pouco, deu alguns pulinhos e pegou o sabão
que Nathaniel deixara na margem – provavelmente, esperando que ela fosse
usá-lo. Mesmo que nada nele indicasse cavalheirismo, Lucille queria
acreditar que ele tivesse alguma coisa que pudesse ser salva.
Quando se preparava para sair da tortura gelada que era aquele banho,
Nathaniel surgiu em seu campo de visão. Já completamente vestido, com
colete e tudo, tinha os cabelos penteados e segurava uma camisa. Lucille
enfiou-se na água escura até o pescoço, esperando que seu corpo ficasse
devidamente protegido.
— Vou deixar aqui, a senhorita pode vesti-la. Tenho muitas camisas, a
sua pode ser jogada fora.
— Fico grata, senhor. — Ela disse, aceitando a oferta por falta de opção
melhor. — Assim que pararmos em uma cidade, posso comprar roupas e
compensá-lo por isso.
— Como eu disse, tenho camisas demais. E, quando pararmos em uma
cidade, a senhorita ficará nela.
Nathaniel afastou-se novamente e a deixou sozinha para vestir-se. Depois
de ajeitar a calça masculina, ainda um pouco grande em sua cintura, ela
segurou a faixa na mão e suspirou. Não iria ficar confinada naquilo
novamente, precisava de um descanso. Estava segura das vistas alheias
enquanto dormisse, então apenas vestiu a camisa e a abotoou de forma a
resguardar a intimidade de suas partes femininas.
E LE ESTAVA TÃO LOUCO QUANTO a mulher maluca que cruzara seu caminho
com ideias irracionais de defloramento e fuga, mas, quando a viu sendo
agredida por aqueles animais, não conseguiu ignorar. Nathaniel já se tornara
especialista em desprezar o sofrimento das pessoas e não se importar com
nada que não fosse lhe trazer ganhos e satisfação pessoal. O que acontecia de
ruim com os outros não era problema seu, não o afetava – então, por que
diabos resgatara aquela maldita mulher que só servia para atrasá-lo em sua
missão?
Não tinha nada a ver com ela ser bonita, porque ela não era. Ao menos,
nada como as mulheres com as quais Nathaniel estava acostumado. Aquela
ali tinha cabelos sempre desgrenhados, parecendo um ninho de pássaros mal
construído, quadris largos demais, e seios menores do que sua preferência.
Inferno, ele não deveria pensar novamente nos seios dela, mas foi impossível
evitar quando Lucille retornou de seu banho com uma camisa branca, um
pouco úmida, sem o artifício que estivera usando para escondê-los.
— Obrigada pela camisa. Ficou um pouco maior do que a outra, mas é
bem mais cheirosa.
— Pode ficar com ela. Está com fome?
Ele estava faminto, mas totalmente distraído. Pegou a cesta com comida e
colocou pães e frutas sobre uma toalha, oferecendo a ela uma das facas que
carregava consigo. Lucille atacou novamente os alimentos e acabou fazendo
com que ele precisasse comer, ou não sobraria nada.
— Desculpe. — Ela limpou o canto da boca com as costas da mão. —
Não estou acostumada a ficar sem comer, fazemos refeições regulares e com
horários muito rígidos na casa Smith.
— Tenho certeza que sim. A senhorita não pensa que se arrependerá de
fugir e viver sem aquele luxo e aquela fartura? Porque, mesmo que tenha
trazido dinheiro, em algum momento ele acabará. O que pretende fazer?
Lucille ajeitou-se, sentando-se sobre as pernas, e afofou os cabelos curtos
com as mãos.
— Pretendo trabalhar, senhor.
— A senhorita já trabalhou alguma vez na vida? — Ela respondeu que
não à pergunta, e Nathaniel deu uma risada cínica. — Talvez a prostituição
não seja mesmo uma ideia ruim.
— O senhor não precisa me ofender. Eu posso nunca ter trabalhado, mas
estudei em boas escolas e sou muito capaz. Com certeza aprenderei qualquer
ofício que precisar e conseguirei me sustentar até juntar dinheiro para fugir
para a Inglaterra.
— Não pretendia ofendê-la, mas sou realista e não vivo em um mundo de
contos de fadas, como a senhorita viveu até agora.
— Realista como o terceiro filho de um conde? Explique-me, senhor,
como pode um nobre ser tão realista?
Lucille o encarava com deboche e Nathaniel entendia bem aquela
expressão – costumava usá-la com frequência. Geralmente, as pessoas
achavam que ele, por ser nobre, vivia em uma redoma dourada. Era verdade,
por muito tempo a sua vida fora despreocupada – o dinheiro aparecia à sua
frente, mesmo que ele não o merecesse. Mas a sua ida para os Estados
Unidos o mudou completamente. Quase completamente.
— Não sou o terceiro filho de um conde, sou um dos diretores de um
antro de jogatina. Algumas situações nos levam ao limite, Srta. Smith, e,
quando cruzamos esse limite, perdemos todas as nossas referências.
Ela permaneceu olhando para ele com uma expressão de quem não sabia
se o entendia. Nathaniel esperava que ela permanecesse em silêncio, mesmo
que suas dúvidas persistissem. Não estava interessado em conversar, menos
ainda com ela, porque não queria admitir que Lucille Smith o afetava de
alguma forma. Ele mal a conhecia e tudo que sabia era que se tratava de uma
mulher rica, nascida nas Américas, desgostosa com um casamento por
conveniência. Mas ele nunca vira uma que fugiu de casa e abandonou a vida
que tinha apenas para se livrar desse mesmo casamento. Aquilo fez com que
ela se tornasse interessante – determinada, teimosa e audaciosa.
Mesmo com o silêncio, pelo qual agradecia, o fim da luz do dia fez com
que ele precisasse acender uma fogueira. Recolheu madeira ao redor, montou
uma contenção de pedras e usou sua pederneira para fazer fogo. Lucille
permaneceu ali, fitando-o, observando-o, olhando para a barraca, para a
fogueira e para ele próprio. Nathaniel estava acostumado a ser escrutinado
por mulheres, mas todas elas o faziam porque desejavam o levar para a cama
– e ele não fazia ideia do que pretendia Lucille.
— Há animais selvagens por aqui? — Ela perguntou, por fim.
— Creio que sim, mas eles não se aproximarão por causa do fogo.
— Entendo. E poderei usar algum cobertor para dormir? Ficarei enrolada
nele, perto da fogueira.
Ele olhou para a tenda – era muito pequena e ela sabia. Não pensava em
convidadas quando separou o que precisava para viajar. Olhou então para a
carroça, cuja extensão era satisfatória para caber uma pessoa deitada e
acomodada. Deveria mandar que ela dormisse em qualquer lugar que não o
incomodasse, mas era provável que aquela mulher o estivesse afetando mais
do que ele pretendia admitir.
— Durma na barraca. Ficarei na carroça.
— Não... quero dizer, o senhor não precisa fazer isso. Talvez eu possa
caber na barraca com o senhor.
Nathaniel deu uma risada. Ela era bastante tola se considerava que aquela
era uma opção segura.
— Srta. Smith, se dormirmos nós dois ali dentro, duas coisas acontecerão:
a senhorita conseguirá a ruína que deseja e não chegaremos a dormir,
efetivamente. Portanto, como estou exausto e preciso viajar um dia inteiro,
amanhã, creio que nosso melhor arranjo seja esse – fique sob a proteção da
tenda, eu não terei problemas em dormir com os rapazes.
— Rapazes?
— Zeus e Hades, os cavalos.
Ela arregalou os olhos e fitou os cavalos escuros, que pareciam ainda
mais pretos à pouca luz. Sem dizer mais nada e agradecendo com uma
mesura, enfiou-se dentro da tenda e o deixou finalmente sozinho para poder
refletir sobre aquele grande erro que estava cometendo. Claro que era um erro
– tanto envolver-se na fuga daquela desvairada quanto não se aproveitar dela.
Acomodou-se sobre a carroça e Zeus o cutucou com a cabeça, pedindo
que lhe coçasse atrás das orelhas. Cavalos eram mais confiáveis e
interessantes que pessoas, por isso Nathaniel sempre preferia a companhia
dos animais. Depois de subornar o equino com um torrão de açúcar, enrolou-
se no cobertor e tentou adormecer – sem sucesso. Rolou de um lado para o
outro, apertando a cabeça, na tentativa de pegar no sono, mas frustrou-se por
horas. Sentou-se, verificou se Lucille estava dentro da barraca ou se, por
milagre, decidira atirar-se em seus braços, e voltou a deitar. Ela não se
atiraria em seus braços – ele teve a oportunidade de a ter e recusou. Por que
ela o iria querer novamente?
E, por que diabos ele estava desejando que ela o quisesse? Aquela era
apenas uma mulher, uma nem tão linda, e totalmente inconveniente. Assim
que chegassem à primeira cidade, arrumaria uma prostituta para satisfazer
aquele desejo ridículo e se livraria da bagagem extra que só estava servindo
para atrapalhar.
Depois de atacar o cantil de uísque e beber mais da metade, acabou
sucumbindo ao cansaço. Despertou com Zeus lambendo seus cabelos –
aquele cavalo tinha sérios problemas com limites – e com cheiro de café.
Ergueu o corpo para espiar por sobre a contenção da carroça e vislumbrou
Lucille ajoelhada ao lado da fogueira, que ela alimentara com fogo, coando
café.
— Bom dia, Sr. McFadden. — Ela se ergueu com uma caneca de metal
fumegante em uma das mãos. — Preparei para o senhor, espero que esteja do
seu agrado.
Lucille sorria francamente e estendeu a caneca para ele. Nathaniel
acreditou que ainda não tivesse acordado, sentia a cabeça latejar e os olhos
embaçados – mas os dentes de Zeus em seus cabelos indicavam que sim, ele
estava desperto.
— A senhorita sabe cozinhar, Srta. Smith?
— Não, na verdade eu apenas sou observadora. Já vi café sendo
preparado, assim como o vi alimentar o fogo ontem. Havia comida em sua
cesta, também, portanto tomei a liberdade de preparar um desjejum completo.
Venha comer!
Nathaniel virou um gole do café quente, que estava horrível de tão ralo,
mas ela sorria ainda e, por motivos que ele sinceramente não imaginava quais
seriam, não quis magoá-la. Fez uma careta, indicando que gostara e desceu da
carroça, empurrando Zeus para o lado. O cavalo relinchou, bufando,
enquanto Hades ignorava completamente a existência de pessoas. Depois de
passar as mãos pelos cabelos, fechar o colete e dobrar os punhos da camisa
até os cotovelos, sentou-se ao lado da fogueira. Ainda era bastante cedo e ele
sentia como se não tivesse dormido nada.
— Imagino que teve uma noite boa. — Perguntou, mastigando um
pãozinho. Não sentia fome, mas aprendera a comer para manter-se resistente.
— Havia alguns mosquitos, mas, fora isso, foi uma noite agradável. Eu
agradeço sua gentileza de me permitir dormir na barraca.
Ela tinha o olhar baixo, evitando encará-lo. Nathaniel pode notar marcas
avermelhadas no pescoço dela, outras nos braços. Não foram alguns
mosquitos, talvez uma nuvem deles. Se não fosse a tenda, talvez Lucille
tivesse sido carregada pelos insetos. Ele conhecia um bálsamo bom para
picadas, mas não trouxera consigo. Não importava, precisou repetir de novo –
não importava que ela estivesse picada, ferida ou que seu sangue escorresse
pelos poros. Não deveria importar.
— A senhorita vai... quero dizer, a senhorita pretende continuar se
passando por homem?
— Creio que seja prudente. — Ela o fitou. — Uma mulher é um alvo
muito vulnerável.
— Então imagino que seja melhor... — Nate apontou na direção dos seios
dela. — escondê-los.
— Ah.
Lucille cruzou os braços na frente do corpo, visivelmente envergonhada.
Ela provavelmente não prestara atenção no quanto aquela exata parte de sua
anatomia estava evidente – e no quanto ele se via atraído para ela toda vez.
Constrangida, levantou e se escondeu dentro da barraca, provavelmente para
fazer o truque que a permitia esconder os atributos femininos. Nate
praguejou, talvez devesse ter ficado de boca fechado ou se oferecido para
ajudar – e isso não seria nada bom para sua decisão de mantê-la afastada.
Apesar do café estar ruim, Nathaniel bebeu duas canecas cheias para se
manter alerta. Eles tinham um bom pedaço de estrada pela frente e pelo
menos duas paradas seriam necessárias antes de chegarem a uma cidade.
Aquela ainda seria uma longa viagem.
CAPÍTULO QUINTO

C ONFORTÁVEL DEMAIS COM O DIABO , ERA COMO ELA ESTAVA . L UCILLE


precisava deixar de ser tola, ou não duraria nem um minuto sozinha onde
quer que fosse. Estava nervosa quando tirou a camisa e recolocou a faixa para
esconder os seios, o que mais parecia uma tortura. Não que usar espartilhos e
todos aqueles acessórios das mulheres fosse totalmente agradável, mas, com
eles já estava acostumada. Suas bochechas ardiam como fogo pelo
comentário inocente do demônio encarnado com quem viajava e isso só
demonstrava que era melhor que se separassem. Por mais cavalheiresco que o
Sr. McFadden tenha se mostrado, ele era um predador e ela estava mais para
um cordeiro sacrificial. Se quis que ele a deflorasse antes, aquela ideia
mudara depois que precisou fugir.
Quando saiu da barraca, ele já arrumara tudo de novo na carroça e estava
apagando o fogo.
— Vou desmontar a tenda e retomaremos a viagem. — Ele disse. — Sabe
como atrelar os cavalos?
— Sei selá-los, mas nunca atrelei em uma carroça.
— Certo, então ajude-me aqui. Hades é quieto, mas ele não perderá a
oportunidade de fugir, se a tiver.
Nathaniel estava sem colete e com vários botões abertos na camisa. Ao
contrário dela, ele não parecia ter nenhum pudor em exibir-se e não se
constrangia ao percebê-la o observando indecorosamente. Porque sim, ela o
estava observando. Precisava ocupar a cabeça com outras bobagens que não o
peito cabeludo e os braços fortes daquele homem.
— Por que dizem que o senhor matou seu irmão?
Ela disparou, enquanto apoiava as estacas que ele desenterrava. Só depois
percebeu que estava sendo absurdamente inadequada.
— Porque ele desapareceu e eu estava com ele.
— Não parece um motivo muito convincente para acusar alguém de
assassinato.
— E não é, tanto que estou aqui, não estou?
O sorriso cínico estava de volta e ela percebeu que o assunto o
incomodava. Afinal, o irmão era o motivo daquela viagem e Lucille
suspeitava que as razões para o encontrar fossem mais profundas do que
simplesmente se livrar das acusações. A tensão exibida no maxilar dele
indicava que estava nervoso por falar sobre aquilo. Ele talvez gostasse da
família, talvez amasse o irmão desaparecido.
Terminaram de desmontar a tenda e logo estavam sobre a carroça de
novo, que deslizava pela via cheia de mato. Aquela era uma estrada vicinal,
indicando que Nathaniel pretendia viajar escondido, ou chamar pouca atenção
para si. Para ela, era o ideal, pois Lucille apostava que seu pai já estava
enviando os cães atrás dela. A paisagem, no entanto, era bucólica e repetitiva,
fazendo parecer que estavam andando em círculos.
— Por que está nervosa?
Nathaniel perguntou, sem sequer virar para olhá-la.
— Não estou.
— Suas pernas estão tremendo e você fica esfregando as mãos. Está
nervosa. Sou pago para perceber as pessoas, Srta. Smith, e descobrir suas
fraquezas faz parte do meu trabalho.
Ela suspirou, desanimada. Era péssima em disfarçar-se, sempre
transparente como uma vidraça polida. Não conseguia se passar por um
homem, não conseguia esconder o que sentia nem se fosse para salvar sua
vida. Como pretendia fugir sozinha?
— Imagino que meu pai não aceitará minha fuga e enviará pessoas para
me levar de volta.
Ele riu e ela se pegou admirando-o. O que estava acontecendo, Lucille?
Tudo em Nathaniel McFadden sinalizava perigo, havia questões muito
maiores em jogo do que a beleza do homem. Mesmo que ela estivesse, antes,
disposta a oferecer-se a ele em uma bandeja de prata, não era mais
justificável que o fizesse.
— Quer dizer que, em breve, haverá capangas em seu encalço? Capangas
contratados por Walter Smith?
— Sim, muito provavelmente, sim. Não posso deixar rastros para que eles
me encontrem.
Nathaniel não pareceu abalar-se por seus dramas e continuou conduzindo
os cavalos pela via. O silêncio se abateu sobre eles mais uma vez ela nada
pode fazer senão passar a observar as belas ancas dos cavalos e a paisagem,
que parecia não mudar enquanto seguiam seus caminhos.

O MORDOMO ENTROU no escritório de Walter Smith às oito da manhã,


visivelmente constrangido por incomodar o patrão naquele horário. O
industriário não era muito conhecido por seu bom-humor de manhã.
— Sr. Smith, sua esposa lhe deseja falar. Pediu que o senhor a
encontrasse no salão matinal.
O homem ergueu o olhar dos documentos que analisava e não disse nada.
Com um gesto de mão, indicou que o empregado podia sair. Não gostava de
ser incomodado quando trabalhava, mas a esposa não costumava solicitar sua
presença. Ao contrário, quando estavam em casa, ela preferia ignorá-lo e
manter-se o mais longe possível. Não que se importasse, Walter já precisava
tolerá-la durante os eventos e quando estavam em público.
Ao chegar ao salão matinal, encontrou Constance alterada. Ela andava
pelo espaço vazio enquanto duas empregadas mantinham a cabeça baixa e os
braços cruzados atrás do corpo.
— O que houve para que me incomode antes do desjejum?
— Lucille não dormiu nessa casa.
Walter Smith parou onde estava. Levou a mão ao bigode e enrolou uma
das pontas nos dedos.
— O que quer dizer com isso?
— Ela não está em seu quarto e ninguém a vê desde ontem.
— Certamente está na casa das irmãs ou daquela amiga solteirona, a Srta.
Ryan.
— E acha que já não mandei que a procurassem em todos esses lugares,
meu senhor?
Pelo destempero no comportamento de Constance, não se tratava de
exagero ou engano. Walter podia não suportar muito a esposa, mas sabia que
ela era uma mulher extremamente controlada e nunca perdia a linha na frente
de ninguém – nem dos criados. Naquele momento, ela se exibia com cabelos
desfeitos e alterava ligeiramente a voz.
— Algo dela sumiu? — Virou para as empregadas, interrogando-as.
— Nenhuma roupa, senhor. Nem as malas, nem os sapatos. Está tudo
perfeitamente no lugar.
— Então ela não fugiu.
— Por que fugiria? — Constance perguntou e seu olhar cruzou com o do
marido. Foi quando ela percebeu que a filha já fora informada oficialmente
do noivado e que ele suspeitava que Lucille não estivesse muito satisfeita
com a notícia. — Meu Deus, Walter, acha que ela iria embora para fugir de
seu noivo? Céus, ela estará arruinada!
— E acha que não sei? Precisamos descobrir o quanto antes o que
aconteceu – se ela foi sequestrada, pedirão resgate.
— Sequestrada? — Constance desabou em uma poltrona e uma das
empregadas correu para socorrê-la, abanando-a com o avental. A outra foi
buscar chá. — Precisamos encontrar Lucille, Walter!
— É o que farei. Dê-me o tempo que preciso. Enquanto isso, ninguém
ficará sabendo que nossa filha está desaparecida. Para todos os efeitos, ela
está adoentada. Se alguma visita aparecer, Lucille tem febre pois pegou um
resfriado.
A situação era grave e requeria medidas extremas. Walter Smith não fazia
ideia do que podia ter acontecido, mas, se sua esposa dizia que a filha não
estivera em casa, é porque não estivera. Precisava de discrição e diligência.
Se fora um sequestro, pois muita gente poderia querer atingi-lo por meio de
sua família, ele a resgataria e mataria os envolvidos. Ninguém ameaçava um
Smith e ficava vivo para passar a história adiante. Se fora uma fuga, Lucille
seria encontrada e amarrada em seu quarto até a chegada do marquês – e
ninguém ficaria sabendo, pois não podia arriscar que o noivo pensasse que
ela estava arruinada.
Ao chegar ao seu escritório, pegou o telefone e fez uma chamada para o
escritório de George Dawson.
— Dawson, preciso que cancele sua agenda de hoje e venha me encontrar
em casa.
— Bom dia, Sr. Smith. Não posso cancelar minha agenda, tenho alguns
trabalhos que precisam de minha atenção.
— Delegue para qualquer capanga que esteja sob seu comando. Eu
pagarei o triplo do que qualquer um ofereceu.
— Chego em meia hora, senhor.
Situações urgentes pediam medidas desesperadas. Aquele era o melhor
investigador particular que o dinheiro podia comprar – esperto, atento aos
detalhes e sem escrúpulos. Walter não sabia nem mesmo por onde começar a
procurar Lucille, então precisava envolver alguém mais capacitado. Dawson
seria capaz de a encontrar e a devolver para casa mesmo que tivesse cruzado
o oceano.
O industriário pediu que seu desjejum fosse servido no escritório e, assim
que o investigador chegou, o recebeu com uma pequena refeição e café.
Também havia uísque, para caso o assunto se tornasse de difícil digestão.
Pedindo que Dawson se sentasse, Walter explicou sobre o desaparecimento
de Lucille e pediu que ela fosse encontrada.
— Entendo que pense que ela foi sequestrada, senhor, mas precisa
considerar a possibilidade de fuga. Mulheres são criaturas muito impulsivas.
— Não quero pensar em hipóteses, Dawson, para isso estou te
contratando. Pouco me importam as possibilidades, apenas traga minha filha
de volta em até dez dias. Preciso que esteja aqui para o maldito noivado, não
achamos marqueses à venda em prateleiras. Sabe o quanto a influência do
futuro marido dela pode me fazer lucrar?
— Imagino que seja muito, senhor. Mas fique tranquilo, traremos sua
filha, não importa onde ela esteja. Para isso, precisarei de recursos.
— Tem todo dinheiro que precisar. — Walter Smith foi até um cofre que
ficava meio escondido atrás de sua mesa e o abriu, pegando um maço de
notas. Fez algumas contas mentalmente e colocou a quantia dentro de um
envelope. — Isso deve dar para começar. Assim que precisar de mais, ligue-
me e providencio a entrega.
George Dawson abriu o envelope e contou o dinheiro, satisfeito. Walter
sabia que era mais do que suficiente para contratar alguns homens e, caso
fosse preciso, comprar algumas informações. Lucille voltaria para casa,
mesmo que ele mesmo a buscasse.

O PANDEMÔNIO comum na McFadden Garden se transformara em quase


silêncio absoluto naquele dia. Desde que alguns telegramas foram entregues
ao Conde de Cornwall e seus irmãos Isaac e Wilhelmina, informando que
uma tragédia se abatera sobre a família, eles se reuniram para confabular
planos e iniciaram os protocolos do luto em respeito a Emile McFadden.
O texto dos telegramas era o mesmo e não fazia sentido algum para eles.
As autoridades americanas informavam que Emile, o homem mais jovem da
família McFadden, fora assassinado pelo outro irmão, Nathaniel, mas
ninguém acreditava realmente naquilo. Nate era um fanfarrão que adorava a
vida noturna e só pensava em bebidas e mulheres, mas nunca fora um homem
cruel e, certamente, não era capaz de assassinar ninguém – quanto mais seu
próprio irmão mais novo.
Mesmo assim, algo devia ser feito. Emile estava morto e Nathaniel
acusado de um crime. Acostumados a agir sempre em favor da família, uma
reunião acontecia para decidir os próximos passos dos McFaddens.
— Eu vou para Nova Iorque. — Edward, o Conde de Cornwall, decidiu.
Em seu escritório em Londres estavam o irmão remanescente, Isaac, o
cunhado Grant Sawbridge, marido da única irmã, Wilhelmina, e o Duque de
Shaftesbury, o melhor amigo nobre do conde. — Pegarei o navio que parte
hoje e descobrirei o que está havendo.
— Há muitas implicações em sua ida, Edward. Nate dificilmente se abrirá
com você.
— Não me importa se ele se abrirá ou não, eu extrairei a verdade nem que
o obrigue a falar.
— Creio que seja disso que seu irmão esteja falando. — Sawbridge serviu
conhaque para todos. — Se algo grave aconteceu, agir como o irmão mais
velho e conde talvez não ajude a descobrir a verdade. Eu posso ir.
— Não, você se casou há pouco tempo e está com um bebê pequeno em
casa. Eu vou.
Isaac decidiu, virando um gole do uísque.
— Você também tem um bebê em casa.
As esposas de Sawbridge e Isaac deram à luz com menos de dois meses
de diferença, pois o segundo filho de Isaac nasceu prematuro. O parto foi
difícil e Caroline provavelmente não poderia mais ter filhos, já que seu útero
sofreu lesões, mas eles já tinham dois meninos saudáveis e lindos. Sawbridge
e Wilhelmina também tiveram um menino, que fora batizado de Joseph.
— Eu sou o melhor amigo de Nate, nós sempre fomos muito próximos.
Se tem alguém com quem ele falará, esse alguém sou eu. Precisamos trazer o
corpo de nosso irmão para ser enterrado em ao lado de nosso pai, Ed, e
precisamos salvar o outro da forca. Não quero perder os dois.
Dois minutos de silêncio significaram que os homens pensavam.
— Acha que consegue resolver isso sozinho?
— Sempre fui seu melhor administrador. — Isaac sorriu, mas por dentro
estava em agonia e isso era visível. — Sawbridge, posso pedir que Caroline
fique em sua casa com as crianças?
— Ela pode vir para cá também, Isaac. — O conde ofereceu.
— Claro que sim, mas Caroline não aceitará sair de casa sem um motivo.
Imagino que Sawbridge e Wilhelmina terão mais argumentos para a
convencer. Ah, não importa, contanto que ela não fique sozinha nesse tempo
em que eu estiver fora.
— Ela não ficará. — O duque, até então em silêncio, colocou a mão no
ombro de Isaac. — Nossa casa também está à disposição e tenho certeza de
que a duquesa ficará muito feliz em ter uma missão que não represente
fiscalizar crianças.
— Não temos culpa se vocês decidiram repovoar a Inglaterra, meu amigo.
— Edward fez uma piada, mas todos estavam tensos demais para rirem. —
Então está decidido, você irá para Nova Iorque, Isaac. O navio parte hoje,
será tempo suficiente para que arrume tudo e se despeça de sua família?
— Terá que ser. Caroline entenderá, ela também tem uma família grande
e faria qualquer coisa por eles. Sem contar que ainda precisamos descobrir o
envolvimento de Leonard Eckley nisso tudo – ele e Nate não estavam juntos?
— Estavam. Vou providenciar uma viagem a Kent para conversar com
Granville sobre isso. Boa viagem, meu irmão.
Edward levantou-se e abraçou Isaac por tempo suficiente para demonstrar
afeto sem que ambos chorassem. A perda de um McFadden estava sendo dura
demais e eles precisavam entender o que estava acontecendo. Estavam a
apenas um oceano de distância de descobrirem.
CAPÍTULO SEXTO

O S CAVALOS NÃO CONSEGUIAM SEGUIR MUITO MAIS DO QUE QUATRO HORAS


sem se cansar. Os de Nathaniel percorreram várias milhas e só demonstraram
alguma exaustão depois de cinco horas de viagem – as cinco horas mais
demorada da vida de Lucille. O homem ao seu lado parecia uma rocha,
impenetrável e silencioso enquanto eles passavam por paisagens
maravilhosas e ouviam apenas o ruído dos cascos dos cavalos e do vento. Ela
sentiu frio, sentiu sede, sentiu fome e sono, mas ele não se mexeu nem
demonstrou qualquer desconforto.
Quando finalmente pararam à beira da estrada, ela não sabia se precisava
ficar em pé, deitar-se ou correr para um banheiro. Precisou escolher urinar
pela necessidade, pois ele não estava disposto a demorar-se por ali. Os
cavalos beberam água, comeram e descansaram por uma hora, enquanto eles
comeram alguns sanduíches e frutas. A comida talvez durasse quatro ou
cinco dias, mas Lucille era um acréscimo que fez com que o estoque de
alimentos desaparecesse na metade do tempo.
E Nathaniel continuou em silêncio pelas outras duas horas, até decidir
para outra vez.
— Aconteceu algo?
— Vamos parar por aqui, hoje. — Ele disse, encostando a carroça na
lateral de uma construção de aspecto bem mais agradável do que a do dia
anterior.
— Parar? Mas pensei que o senhor estivesse desesperado para chegar a
Norwalk e só fosse parar em Stamford.
— Eu estou. — Nathaniel pulou da carroça e a encarou. Era a primeira
vez que ele sequer a olhava naquele dia, e Lucille sentiu algo borbulhar
dentro de si. O homem tinha uma intensidade perturbadora, capaz de
desestabilizar qualquer alicerce que ela pudesse ter erguido durante o dia. —
Mas creio que tenha planejado mal o tempo e o trajeto. Zeus e Hades estão
exaustos e precisam de mais do que uma hora para se recuperarem.
A parada era um apoio para viajantes. Havia um pequeno comércio –
lojas com roupas pré-fabricadas, chapéus, meias e outros acessórios, um
estábulo e uma hospedaria. Construções sólidas de pedra, com tijolos
aparentes e avermelhados, e janelões de madeira. O ambiente era familiar,
com crianças brincando e mulheres à vista. Lucille sentiu-se mais segura ali e
agradeceu que, muito provavelmente, não passaria outra noite ao relento para
ser atacada por insetos.
— Espere-me na recepção. — Nathaniel ordenou. Ele já não estava mais
olhando em sua direção. — Deixarei os cavalos para que sejam tratados.
Ela deveria obedecer, mas não o fez. Permaneceu ali, observando-o
conduzir os garanhões ao estábulo para os entregar a um jovem que parecia o
encarregado das tarefas. Pelo tempo que Nathaniel levou conversando,
Lucille imaginou que ele estivesse dando orientações rígidas sobre como
lidar com os animais, que pareciam ter personalidades distintas. Um era
sombrio e distante como seu dono, o outro estava sempre tentando ganhar
carinho e atenção. Ele então entregou as rédeas dos cavalos ao rapaz e
acariciou a crina de Zeus e de Hades. A devoção que ele demonstrava pelos
cavalos era tocante – ao menos para ela. Lucille gostava de animais, porém
não estava acostumada a vê-los como algo além de um instrumento.
Quando Nathaniel virou-se, ela correu para dentro da recepção para fingir
que estivera ali o tempo todo. O hábito de transgredir permanecia nela, mas a
certeza da punição fazia com que a tentasse evitar.
— Preciso de dois quartos. — Ele passou por ela como se nem existisse e
se dirigiu ao atendente. Lucille já sabia que aquele não era um homem
educado e gentil, então não deveria esperar nada dele – mas acabou ansiando
por atenção. Aquilo dizia muito mais sobre ela e sobre uma carência que não
imaginava ser capaz de sentir.
— Lamento, senhor, estamos cheios. Não temos quartos disponíveis.
— Nenhum?
Lucille viu quando Nathaniel colocou algumas notas sobre a bancada e a
expressão do atendente foi de uma surpresa positiva. Provavelmente o
dinheiro o faria reconsiderar a negativa.
— Tenho como conseguir um, senhor. Há apenas uma cama, mas
podemos improvisar outra.
— Esse quarto com uma cama improvisada terá um chuveiro quente
privativo?
— Creio que os quartos nesse andar...
— Vamos lá, eu tenho certeza de que, com o incentivo certo, você
consegue um quarto com chuveiro privativo para mim.
O atendente arregalou os olhos quando Nathaniel entregou mais dinheiro
a ele e desapareceu por uma porta. Lucille decidiu aproximar-se e descobrir
qual era o plano, afinal. Ela se sentia coadjuvante da própria jornada e aquilo
era um pouco irritante. Mas, ao mesmo tempo, como mulher, acabou sendo
coadjuvante de sua vida inteira. Não lhe era permitido ter iniciativa nem
tomar as próprias decisões, mesmo com tanta evolução social.
— Algum problema em que possa ajudar?
— Não. Eles estão com todas as unidades ocupadas e pedi que
reconsiderassem e nos conseguissem um quarto.
— Acha que conseguirão dois?
— Não, senhorita, apenas um.
Lucille fez algumas contas mentais sabendo que a matemática não
fechava. Eles eram dois, um quarto faria com que dormissem juntos ou que
um deles dormisse na carroça, como na noite anterior. Ela estava certa de que
o diabo não seria indulgente por dois dias seguidos. O atendente retornou
segurando uma chave e olhou para os dois lados antes de a entregar a
Nathaniel.
— O quarto fica no terceiro andar, senhor. As camareiras estão
providenciando as conveniências que o senhor solicitou, preciso apenas do
cadastro.
— Pagarei adiantado – e dobrado – para não precisar de nenhuma
burocracia.
Mais dinheiro foi entregue ao pobre rapaz que não sabia mais o que fazer.
Aparentemente, cumprir as regras não era algo que Nathaniel McFadden
fazia com frequência e ele considerava que tudo podia ser conseguido por um
preço. Talvez estivesse certo, mas isso não o fazia diferente de seu pai.
Homens europeus ricos costumavam acreditar que o mundo estava aos pés de
suas riquezas – e quase sempre tinham razão.
Um jovem franzino apareceu para os ajudar com a bagagem, mas foi
dispensado. Lucille não tinha quase nada, Nathaniel viajava com apenas uma
mala. Subiram as escadas até o quarto trinta e cinco e aguardaram que ele
fosse devidamente arrumado. Assim que entraram, ele fechou a porta atrás de
si e ela sentiu seu coração disparar com uma ansiedade injustificada.
— Temos duas opções. Dormir aqui ou dormir lá fora. O que prefere?
Lucille olhou ao redor, escrutinando rapidamente o quarto. Era uma
habitação pequena, com uma cama de solteiro, uma lareira, dois móveis e
uma poltrona. Não havia mesa ou cadeiras, indicando que as refeições tinham
que ser feitas no salão. Tudo era muito simples, mas cheirava bem e era
limpo. Ela adoraria um banho quente e uma cama macia, mesmo sabendo que
deveria continuar seguindo, indo na direção norte, fugir o mais rapidamente
possível. Fugir do seu pai, fugir daquele demônio loiro de olhos argutos.
Nathaniel permanecia de braços cruzados no peito, observando-a. Ela se
sentiu observada o dia inteiro, mesmo quando ele parecia ignorá-la por
completo. A forma como ele acompanhava seus movimentos com olhos
semicerrados a deixava nervosa.
— Estarei segura em algum lugar?
— Não. — Ele sorriu. — Eu gostaria de dizer que a senhorita estará mais
segura dentro deste quarto, porém não costumo mentir. Decida pelo que lhe é
mais valioso preservar.
— Se estou decidindo entre minha virtude e minha integridade física,
creio que seja uma escolha fácil. — Ela girou ao redor do quarto e suspirou.
— Vou descer para comprar algumas roupas para trocar. Espero que tenham
algo que sirva em um rapaz de estatura menor que a média.
Com um aceno de cabeça, Lucille saiu e desceu as escadas
apressadamente. Sua respiração estava acelerada e seu coração disparou
quando se viu sozinha no quarto com seu companheiro de viagem, mesmo
que ele não tivesse sequer se aproximado dela. Para quem tinha fama de ser
um sedutor incorrigível, o Sr. McFadden se comportara muito
adequadamente com ela, até então, o que a fazia considerar se o problema
não estava em si própria. Não seria ela que o estava desejando além da
decência? Que o estava escrutinando e buscando oportunidades para estar
perto dele, desde o episódio em que fora rejeitada por ele?
Lucille carecia de mais força de vontade. Ela não precisava mais ser
arruinada por Nathaniel McFadden, então, entregar-se a ele não fazia mais
sentido. Ajeitou o colete e continuou a descer até chegar ao térreo. Ainda era
dia, o sol demoraria um pouco a se pôr, o que a permita explorar os arredores.
Tirando as construções contíguas da hospedaria e do pequeno comércio, tudo
ao redor eram árvores e mato. O rio estava perto e a estrada a apenas alguns
metros, mas não parecia haver nenhuma cidade por milhas e milhas. Fosse o
que o movesse, Nathaniel estava se esforçando para pegar caminhos bastante
ocultos e deixar o mínimo possível de rastros.
Uma senhora de cabelos grisalhos e aparência envelhecida a atendeu.
Lucille precisava se lembrar que estava se passando por um homem e agir
como um jovem rapaz em busca de roupas. Também não podia ostentar pois,
apesar de possuir algum dinheiro consigo, não saberia por quanto tempo ele
teria que durar. Tentando não conversar muito, escolheu duas camisas
brancas, um colete e uma calça que pudessem lhe servir. Levou linha e
agulha para costurar os ajustes que fossem necessários e pagou fingindo que
aquele era um gasto ostensivo para suas economias.
Antes de subir para o quarto, encontrou crianças brincando à frente da
hospedaria. Elas jogavam bola no estilo pall mall. Os tacos eram
improvisados, as bolas estavam um tanto irregulares e os arcos tinham sido
feitos com peças reaproveitadas – mas eles se divertiam bastante. Eram duas
meninas e três meninos, todos na faixa de oito a dez anos. Lucille costumava
acompanhar a mãe a visitas de caridade e sempre brincava com os órfãos,
mesmo sob protestos de Constance Smith. Quando ninguém estava prestando
atenção nela, participava das mais diferentes brincadeiras com as crianças.
Um dia, ela sonhou em ter as suas próprias. Quis uma casa ampla e pelo
menos uma dúzia de filhos, mas descobriu que a oferta de maridos estava
escassa. Os maridos bons, aqueles pelos quais ela poderia apaixonar-se, não
existiam a não ser nas histórias que a ama contava. Contos, fantasias que
serviam para iludir mulheres com o mito de um tal amor verdadeiro. Aquilo
não existia e ela queria assim mesmo. Na impossibilidade de conjugar o
casamento com seus desejos, o sonho dos filhos morreu.
— Vocês precisam de um parceiro? — Perguntou, aproximando-se das
crianças.
— O senhor sabe jogar? — Um dos meninos perguntou, desconfiado. Por
sorte, Lucille conseguira amansar os cabelos debaixo da boina e estava mais
acostumada com as roupas masculinas. Talvez um bando de moleques não
fosse colocar seu disfarce em risco.
— Um pouco. Posso me unir às meninas e fazemos dois trios, o que
acham?
As crianças se entreolharam e tentaram entender o que ela dissera.
Dificilmente eram letradas e provavelmente não sabiam fazer contas, mas,
com uma demonstração, Lucille mostrou o que queria dizer – dois times de
três pessoas. Os pequenos concordaram e, logo, ela estava aos gritos em um
jogo que a deixaria facilmente imunda e exausta.

E LE ESTAVA FICANDO COMPLETAMENTE LOUCO . Com aquela certeza, Nathaniel


arrancou as roupas e entrou debaixo do chuveiro. Não era uma boa ducha, a
água era fraca e o aquecimento precisava melhorar, mas era melhor do que se
lavar no rio. Mesmo que algumas pessoas insistissem em não tomar banhos
diários, ele não gostava de se sentir sujo. Enquanto relaxava debaixo da água
corrente, batia com a cabeça na parede azulejada do banheiro.
— Você não é burro, então deve ser estúpido, o que significa exatamente
a mesma coisa. — Dizia para si mesmo. Manter aquela fujona ao seu lado era
a maior bobagem que fizera e continuava fazendo. Ela era um problema com
o qual ele não tinha tempo para lidar, que o estava atrasando. Por causa
daquela maluca calculara mal o tempo de viagem, precisara parar cedo
demais e estava dividindo o quarto com o pecado – decidido a não pecar.
Fazia meses que Nathaniel desistira de resistir à tentação, mas ele estava lá,
respeitando a virtude de uma mulher que nem mesmo parecia preocupada em
mantê-la.
Saiu do banho e percebeu que ela ainda não retornara para o quarto.
Aquilo era, certamente, um sinal de alerta que não podia ignorar. Vestiu as
calças às pressas e abotoou uma camisa desajeitadamente. Abandonaria o
colete e qualquer outro acessório para descobrir as encrencas nas quais
Lucille deveria estar metida até ouvir risos e gritos do lado de fora.
Aproximou-se da janela, afastou a cortina e viu um grupo de crianças
brincando. Ele podia estar enganado, mas o rapaz de boina entre elas era a
sua fugitiva.
Nathaniel sentiu um alívio inesperado – e inconveniente – e voltou a se
vestir. Abotoou corretamente a camisa, escolheu um colete bordado que não
sabia por que estava em sua mala, manteve os punhos da camisa abotoados e
penteou os cabelos. Não seria naquela noite que faria a barba, talvez quando
chegassem à primeira cidade. Ainda não estava com a aparência tão
incivilizada que precisasse de uma intervenção, então desceu até onde Lucille
se divertia com os pequenos bastardos. Talvez um ou outro ali realmente
fosse um bastardo.
— A senhorita está segurando o taco incorretamente. — Ele disse,
recostando em uma pilastra de madeira. — Desse jeito, não consegue bater na
bola com muita força.
Lucille sorriu ao vê-lo, como se a sua presença causasse a ela qualquer
alegria. Claro que não, ele não era tão tolo a ponto de acreditar nisso – sabia
que era apenas um meio para um fim. Ela se apoiava nele porque Nathaniel
poderia ajudar a escapar de um casamento detestável. Mas ela estava então
caminhando em sua direção, vestida como um rapazote das docas do
Brooklin e ele se viu desejando a receber em seus braços para beijá-la. Céus,
ela era um homem, ao menos fingia que era um e ele devia evitar que o caos
em seus pensamentos transparecesse de alguma forma.
— A intenção é essa, senhor. — Ela piscou para ele e sussurrou. — Estou
jogando com crianças.
— Não acha que eles aprenderiam mais se não fosse condescendente com
eles?
— Isso não é condescendência, é respeito. — Lucille encerrou o sorriso e
olhou para o grupo, que a aguardava retornar e discutia sobre alguma coisa
enquanto esperava. — Usar minha superioridade física contra eles é injusto e
desleal, por isso encontrei uma forma de equilíbrio.
Nathaniel não queria sorrir, mas foi impossível evitar.
— A senhorita parece acostumada a lidar com crianças. Sobrinhos?
— Órfãos.
Aquela era uma surpresa e tanto. A família McFadden sempre esteve
envolvida com caridade, na Inglaterra. Edward, o irmão mais velho de
Nathaniel, e Conde de Cornwall, tinha o hábito de pagar salários muito acima
dos praticados, e sua família, juntamente com a do Duque de Shaftesbury,
zelava pelo sustento de uma vila inteira, pelo que sabia das raríssimas cartas
enviadas pelo outro irmão, Isaac. A caridade não era novidade em sua vida,
mas ele não esperava que aquela mulher se ocupasse de órfãos.
Ele julgava pessoas. Não apenas observava e tomava notas mentais sobre
tudo que elas faziam em seu raio de visão, Nathaniel julgava. E, em seu
tribunal, Lucille Smith deveria ser tão fútil e insossa como todas as outras
como ela. O problema – ela não era.
— Preciso fazer uma ligação. Encontro-a para o jantar?
— Sim, senhor. Vou apenas brincar um pouco mais com eles, estou
ensinando alguns truques.
— Apenas não se meta em novas confusões. E lembre-se, a senhorita é
um homem.
Talvez fosse ideal que sua companheira de viagem fosse, realmente, um
homem. Afastando as divagações sobre como o corpo de Lucille se
comportava debaixo das roupas masculinas, Nathaniel foi até a recepção e
pediu uma ligação para o clube. Tinha certeza que o Gênesis estava sob
controle com seu amigo cuidando de tudo, mais certeza ainda que os
devedores não fugiriam até seu retorno, mas precisava saber se já estavam em
seu encalço.
— Já achou seu irmão? — A voz cortada de Leo Eckley fez com que ele
se sentisse menos tenso. Algo familiar, depois de alguns dias pisando em solo
desconhecido.
— Eu mal saí de Nova Iorque, Leo, não me provoque. Passe-me um
relatório da situação.
— Você mesmo disse que mal saiu daqui, meu amigo. Nada aconteceu
que valha a pena ser reportado.
— Alguma notícia importante? Alguma comoção que possa sugerir meu
retorno precoce e apressado sem que tenha cumprido minha missão?
— Não, Nate, está tudo sob controle – meu, é claro. Mas o submundo está
um pouco agitado. Lembra-se da filha dos Smith? A que queria que você a
deflorasse?
Sim, ele lembrava – e bastante. Talvez porque ela estivesse a poucos
metros dele, tão próxima que podia ouvi-la gritar com um bando de
moleques.
— Não enrole, Leo. O que houve?
— A mulher desapareceu. O pai acha que foi sequestrada e colocou todo
mundo atrás dela.
— E ela foi sequestrada? Sabemos algo sobre isso?
— Não, e não pretendo me envolver. Se o chefe quiser que descubra algo,
obedecerei, mas não procurarei encrenca por livre vontade.
— Certo. Quando chegar a Stamford, entro novamente em contato. Não
me mande nenhum bilhete, sempre aguarde.
Nathaniel desligou e levou algum tempo digerindo a informação obtida
aleatoriamente por Leo. Tinha certeza que Walter Smith enlouqueceria ao
saber da fuga da filha – afinal, ela estava prometida a um marquês e isso era
motivo suficiente para ele ter uma apoplexia em desespero. Por mais rico que
fossem os Smith, a nobreza os encantava. Desagradar um marquês era tudo
que o filho da mãe não desejava. Mas ele pensava que ela fora sequestrada,
ou seja, não acreditava que sua solteirona virginal fosse capaz de montar um
ardil como aqueles.
Talvez isso fosse bom para Lucille. Se o pai a subestimava, ela poderia
estar sempre um passo à frente. Mas era péssimo para ele – que já tinha um
crime pairando sobre sua cabeça. Ser acusado de sequestro não era bem o que
desejava. O resultado era imprevisível, porém indesejado, qualquer que fosse.
Não adiantava ficar supondo, Nathaniel precisava decidir. Deveria livrar-
se dela o mais rapidamente possível, aquela era uma hospedaria de boa
reputação e não seria difícil conseguir uma carona mais adequada para
Boston. Porém, ao abrir a janela e ver o jogo de pall mall mais mal jogado de
toda a história do esporte e uma das herdeiras do império dos Smith girando
com uma menina negra nos braços, ele duvidou que pudesse fazer a coisa
certa.
A coisa certa não era livrar-se dela, mas livrá-la dele.
Sentou-se no bar e pediu um uísque. Se tivesse sorte, ficaria bêbado, mas
não estava se sentindo sortudo. Menos de meia hora depois, ela entrou pela
recepção adentro e parecia deslumbrada de alegria. Fazia tanto tempo que não
experimentava aquele sentimento que não entendia como pessoas poderiam
preferir embriagar-se com felicidade ao invés de malte.
— Vocês venceram? — Perguntou, notando a aproximação eufórica de
Lucille.
— Não, perdemos.
Ele ergueu o olhar e a fitou brevemente. Bochechas rosadas, lábios
vermelhos, peito subindo e descendo pela agitação. Não, ninguém podia
acreditar que ela era um homem.
— Parece animada demais para quem perdeu um jogo.
— Não era importante ganhar. E Gretha aprendeu novos movimentos, ela
joga melhor, agora.
— Fez amizade com as crianças? Espero que não lhes tenha dado seu
nome.
Lucille recostou na mesa e pegou seu copo de uísque, virando o conteúdo
em um só gole. As bochechas dela coraram ainda mais e precisou conter uma
crise de tosse causada pela garganta ardendo.
— Meu Deus, como vocês homens conseguem beber isso com tanta
naturalidade?
Nathaniel riu. Não sorriu, nem exibiu sua melhor expressão cínica e
debochada – ele realmente riu, soltando uma breve gargalhada sonora. Aquilo
era uma grande e assustadora novidade, pois não se lembrava da última vez
que rira ou achara graça de qualquer coisa.
— Você nunca bebeu uísque. — Foi uma constatação.
— Não, mas pensei que fosse algo masculino que eu deveria fazer.
Ele riu novamente e pediu que servissem outra dose.
— Tome um banho e me encontre aqui. Tenho novidades para você, creio
que gostará de saber.
CAPÍTULO SÉTIMO

F AZIA ALGUM TEMPO QUE L UCILLE NÃO SE DIVERTIA COM CRIANÇAS , ENTÃO
ela estava bastante feliz quando se despiu e entrou no banheiro. Não deveria
sorrir tanto ou mostrar tamanha empolgação, já que estava fugindo e não
sabia bem para onde ir, mas não conseguia evitar – era uma pessoa de bom-
humor recorrente e modos nem sempre femininos. A vantagem de passar-se
por homem era poder agir como um e experimentar a liberdade das botas, das
calças e da ausência de espartilho – ah, como ela detestava o espartilho.
Olhou-se no espelho e tentou se acostumar com o que via. Cabelos curtos e
alvoroçados, pele corada, seios enfaixados, a ausência de roupas íntimas
adequadas. Sentia-se estranhamente livre, mesmo enclausurada pela mentira.
Abriu o chuveiro e entrou, molhando a cabeleira e esperando que a água
quente a fizesse relaxar.
Depois de devidamente limpa e vestida, penteou os cabelos com cuidado,
tentou domá-los enquanto molhados e enfiou a boina na cabeça. Garantiu que
estava com a aparência adequada para sua nova realidade e desceu até o
térreo para se encontrar com seu aliado. E, contra toda a razoabilidade e
decência do mundo, entristeceu-se ao vê-lo flertando com uma garçonete.
Claro que ele estaria flertando com alguém, sua fama de canalha e libertino
não fora construída em cima de comportamentos castos. Nathaniel McFadden
era um mulherengo e ali estava uma das provas. Talvez ele pretendesse se
esconder com ela em alguma alcova e...
Lucille olhou para si mesma novamente e suspirou. Ela não o queria, mas
se incomodava que ele não a quisesse.
— Está muito bem vestida, senhorita.
Ele disse, dispensando a garçonete quando a viu. A mulher se afastou
dando risadinhas e Lucille lhe lançou um olhar de desprezo. Valorize-se,
mulher, afinal, homem algum se importa mesmo com você.
— Comprei roupas novas, poderei devolver sua camisa. Disse que queria
me falar?
— Sim, tenho novidades sobre Nova Iorque. Vamos jantar.
Nathaniel chamou o garçom e pediu qualquer coisa que estivessem
servindo aquela noite, além de uma garrafa de vinho tinto. Mulheres
geralmente tomavam vinho branco, mas ela não era uma, era? Não naquele
momento. Enquanto ele conversava com o garçom e olhava ao redor, agia
como se tudo ali lhe pertencesse. A arrogância daquele homem era intrigante,
porque ele não a tinha por ser nobre, mas por ser poderoso. E ela não sabia se
temia aquele poder ou se ele a excitava.
— O que está havendo em Nova Iorque, Sr. McFadden?
— Seu pai acredita que foi sequestrada. Meu amigo me informou que
todos os caçadores de recompensa da região estão procurando por seus
captores.
Aquela era uma notícia realmente ruim. Péssima. O vinho foi servido em
taças pouco limpas e ela virou um gole desajeitado, deixando escorrer um
pouco e sujando o colarinho. Nate estendeu um guardanapo para que se
limpasse.
— Isso significa que terei que ser mais rápida em desaparecer.
— Adoraria que fosse realmente rápida, Srta. Smith. Desde que nos
encontramos a senhorita só me atrasa.
— Não se preocupe, senhor. Amanhã nos separaremos, conseguirei outra
carona.
— Para que eu tenha que a salvar novamente?
Ele olhou para ela com divertimento, mas Lucille estava incomodada.
Não entendia por que ele a repelia e a mantinha perto, tudo ao mesmo tempo,
como se estivesse em um jogo bastante irritante.
— Não precisa me salvar, senhor. Não entendo ainda por que fez aquilo.
Nathaniel virou um gole do vinho e olhou para algum lugar, desviando-se
dela.
— Tenho uma irmã. Acho que gostaria de imaginar que um homem faria
por ela o que fiz pela senhorita. Não se engane, Srta. Smith, eu sou um
canalha egoísta. Tudo que faço é por mim e para meu próprio benefício. E o
melhor é realmente que nos separemos, ou acabarei sendo acusado de
sequestro.
Então era aquilo, ele concordava que não seguiriam mais viagem juntos.
Por um instante ela sentiu completo alívio de não precisar mais lidar com um
homem explosivo ao seu lado, mas a frustração logo a dominou. Lucille não
sabia o que era exatamente, mas parecia estar um pouco obcecada pelo Sr.
McFadden.
O jantar foi servido – sopa de vegetais e outros elementos
irreconhecíveis. Mesmo que o pão não fosse fresco e o vinho fosse barato, a
comida estava saborosa e nutritiva. Servia para mantê-la com energia
enquanto estivesse na estrada escapando de um destino horrível, e que ficaria
ainda pior se ela fosse descoberta. O silêncio a incomodou, mas era o que ele
parecia apreciar, então resignou-se e limitou-se a comer. Qual foi a sua
surpresa ao ouvi-lo retomar a conversa meia hora depois.
— Por que, dentre tantos canalhas em Nova Iorque, a senhorita me
escolheu?
Lucille ergueu o olhar e ele a estava encarando. Segurava a colher
suspensa no ar e esperava uma resposta enquanto exibia seus antebraços. O
que havia de errado com ela para admirar aquela parte específica do corpo
dele enquanto os botões do colarinho continuavam abertos, deixando parte do
seu peito à mostra? Aliás, qual era o problema daquele homem com o decoro
– por que ele parecia não ser capaz de manter-se minimamente vestido?
— Por sua fama, obviamente.
— Minha fama é de ser cruel, mas a senhorita não esperava crueldade de
mim.
— Falava da sua outra fama.
— Libertino?
— Essa também, mas a outra... aquela que diz que o senhor sabe... que o
senhor é capaz de...
Nathaniel dobrou o corpo por sobre a mesa e olhou para os lados,
sussurrando em seguida.
— Que eu sou o melhor amante de Nova Iorque, capaz de fazer mulheres
se sentirem incríveis na cama? Essa fama?
Sim, maldito fosse. Lucille sabia que o escolhera porque, se aquela fosse
sua única experiência íntima com um homem, queria ter boas memórias. Ela
não queria apenas ser arruinada, queria ser seduzida e arrebatada.
— Essa. — Ela baixou o olhar, o rubor quase a impedindo de falar. — E,
como o senhor é um maldito canalha egoísta, eu imaginei que não fosse se
sentir compelido a me desposar depois de...
— Imaginou corretamente, senhorita. — Ele sorriu, debochado, e serviu
mais vinho. — E a senhorita gostaria de descobrir se minha fama é real?
Lucille enfiou uma colherada de sopa na boca para não precisar responder
e o maldito canalha riu de seu constrangimento. Em poucos minutos ela
praguejara duas vezes e falara um monte de grosserias sobre seu em breve ex
companheiro de viagem. Aquele homem fazia surgir nela um lado desbocado
e malcriado que não existia – ou que ela sequer sabia que existia. Ele a
desorientava.
— Preciso lembrar que o senhor teve essa oportunidade e recusou? É
exaustivo que pareça me culpar por renunciar a prazeres que eu tenho certeza
de que pretendia experimentar – mas fui impedida.
O diabo finalmente deu as caras e ele exibiu o sorriso mais profano que já
existira. Nathaniel colocou mais vinho em sua taça – era o álcool que a estava
provocando a dizer coisas que não diria. Ele não falou mais nada, apenas
deixou suspenso no ar que talvez, e apenas talvez, estivesse arrependido de
não a ter deflorado naquela noite. Claro que estava, era um libertino cretino
que não podia ver uma mulher sem a tomar para si.
— Obrigada por sua ajuda até aqui, senhor. Amanhã deixarei de
atrapalhar sua busca por seu irmão.
O jantar terminou em silêncio. Apesar de ser o que queriam desde o
início, quando chegou o momento de separarem-se foi como se não o
quisessem mais. Ao menos ela, que deveria desejar distância do cretino à sua
frente.
— Há um salão de jogos por aqui. Quer me acompanhar até ele?
Nathaniel levantou-se e perguntou subitamente.
— Nunca joguei. Mulheres...
— Sim, mulheres decentes e corretas não jogam nem frequentam esses
lugares. Mas…
Ele indicou um espelho para que ela se visse e se percebesse como todos
a percebiam – um jovem rapaz. Mesmo que Lucille não conseguisse fingir
muito bem, para quem a visse, ela era um homem e sua presença não seria
estranhada em um salão de jogos. Determinada, decidiu seguir o demônio até
seu habitat natural – o inferno.
E LA DESFILAVA com calças como se estivesse usando anáguas. Os quadris
mexiam para os lados e a pose perfeitamente ereta era característica de uma
dama. Mas ali, naquele lugar escondido do mundo, ela jamais seria notada
tempo o suficiente para que descobrissem que ela era uma mulher. Uma
mulher intrigante e muito falante que o estava enlouquecendo. A melhor
decisão seria pegar uma prostituta e encurralá-la nos fundos da hospedaria,
mas não era o que ele queria.
Maldição, por que diabos rejeitou Lucille Smith naquela noite? Ela estaria
arruinada e não teria se metido em sua viagem. Mas lá estava ela, sentada em
uma mesa de vinte e um sem nunca ter jogado uma partida sequer, pedindo
cartas como se entendesse o que estava fazendo. Ela tinha dinheiro e ele seria
facilmente tomado dela por aquelas águias que a devorariam em minutos –
mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Nathaniel pegou outro uísque e foi tentar a sorte na roleta. Não gostava
muito da sorte, ela nunca lhe sorriu por tempo o suficiente, então aproveitava
uma vitória e mudava de mesa. No Gênesis ele não costumava jogar,
aprendera que não se misturava negócios com prazer. E, naquela noite, apesar
de sentir-se em casa com um copo de malte e um salão cheio de vícios, sua
atenção estava dispersa. Não, não estava. Seu foco em Lucille era excessivo e
aquilo era preocupante – porque mulheres nunca, em nenhuma hipótese, lhe
roubavam a atenção.
Ainda mais uma que só o atrapalhava. Perdeu duas rodadas na roleta e
uma nos dados até convencer-se que não deveria ter considerado jogar.
Sentou-se próximo a ela e passou a observá-la. Com o perfil sério e
concentrado, Lucille estudava todos na mesa e tentava obter alguma
informação sobre como estavam se saindo. Ela quase não tinha mais fichas,
mas continuava com a coluna esticada e observando tudo que acontecia –
desde a expressão nas faces dos jogadores até as cartas que eles pediam. De
vez em quando, movia os dedos na mesa, indicando que contava.
E ela perdeu todas as rodadas, como era de se esperar. Ao entregar suas
últimas fichas, não se intimidou pela algazarra de um jogador mais exaltado –
levantou-se, fez uma mesura e agradeceu pelas partidas.
— Aquilo foi muito divertido! — Ela tentou conter a empolgação quando
se aproximou de Nathaniel e tomou dele o uísque. — O senhor viu como
aquele homem ali joga bem? Ele quase sempre consegue um vinte ou vinte e
um!
Nathaniel pegou o copo de volta antes que ela bebesse.
— Vá devagar, não precisa mostrar que bebe para esses caras, eles sequer
a estão notando. E sim, ele joga bem porque conta cartas. A senhorita perdeu
todas, por que está tão exultante?
— Meu propósito ali não era ganhar, mas aprender algo novo.
Aquilo era, mais uma vez, inesperado. Ele não se lembrava de conhecer
alguém que valorizasse mais a aprendizagem do que a vitória. Vencer sempre
fora o desejo de todas as pessoas que entravam no Gênesis – e vencer viciava
a ponto de fazer com que perdessem tudo na busca de outra vitória.
— Então sabia que perderia, mas quis continuar jogando apenas para
aprender a jogar? Conseguiu seu objetivo, afinal?
— Duvido que tenha aprendido, porém sei um pouco mais agora do que
sabia antes. E o senhor, quase não jogou.
Ele girou o copo de bebida na mão e virou o conteúdo em um gole.
Lucille esperava uma resposta qualquer enquanto olhava com aquela
expressão vívida de novo. As pupilas dilatadas pela excitação, as bochechas
coradas, a boca vermelha. Subitamente, ele quis ser o motivo pelo qual o
corpo dela reagia daquela forma. Quis que ela estivesse excitada por ele,
enrubescida pelas obscenidades que ele falasse e com a boca vermelha do
beijo que ele daria.
— Estou disperso.
— Claro que sim, como estou sendo tola. O senhor está preocupado com
seu irmão. Mas, afinal, o que houve? Por que o acusam e por que acredita que
ele esteja vivo?
— A senhorita deveria estar preocupada também, já que seu pai está
mobilizando toda Nova Iorque atrás de seus supostos captores.
— Não mude de assunto. — Ela pegou o copo outra vez e virou o restante
do uísque. Fez uma careta e pediu mais para uma garçonete pouco vestida
que circulava as mesas no antro de jogatinas. — O senhor sempre tenta
desviar a conversa para outra coisa, mas eu gostaria de saber. O que houve?
Nem ele sabia, realmente. Foi tudo tão rápido, tão confuso e tão escuro
que acabou na mesma velocidade em que começou. Nate aceitou o drinque
que lhe fora servido e olhou para o líquido âmbar dentro do copo, tentando
decidir se contava ou não qualquer coisa para aquele bichinho curioso à sua
frente.
— Eu estava cobrando uma dívida. — A necessidade de falar qualquer
coisa sobre aquilo venceu a razão. — Meu irmão estava em Nova Iorque há
pouco tempo, mas ele não aceitava que eu estivesse trabalhando com... com o
Gênesis. Nós somos nobres, não nos envolvemos com esse tipo de atividade
ilegal, e Emile era... Emile é excessivamente moralista. Ele tentou me
dissuadir por várias vezes, até que discutimos. Naquela noite, ele foi atrás de
mim. Não sei de onde saiu aquela arma, só percebi que o devedor portava
uma pistola quando ouvi o tiro.
— O tiro acertou seu irmão.
— Ele entrou na minha frente. Depois, me atraquei com o devedor e
Emile cambaleou até a mureta, caindo dentro do oceano. Quis pular atrás
dele, mas estava escuro demais. A polícia apareceu em seguida.
— E o devedor?
A conversa terminaria ali. Nathaniel virou o uísque em um gole e se
levantou. Lucille era muito doce, inocente e imaculada para se contaminar
com a verdade. Ela não precisava saber tudo que ele fazia, não devia sequer
ter contado o que acontecera no Brooklin. Mas ela era, também, insistente, e
foi atrás dele. Segurou-o pelo braço e o fez parar.
— Espere. — Os olhos castanhos estavam avermelhados pela emoção. —
Sinto muito pelo que aconteceu. Eu espero que seu irmão esteja vivo.
A mão dela segurava seu braço com uma sutileza incomum. Lucille
parecia sincera, ela realmente estava tocada pelo que acontecera, pela história
que contara. Os olhos dele foram dos dedos que envolviam sua pele até a face
gentil da mulher e ele tomou uma decisão que lhe causaria muitos problemas.
Mesmo que ela se casasse ou encontrasse prazer em outras camas, ele seria o
primeiro a mostrar-lhe o que um homem era capaz de fazer com uma mulher.
Ela gostava de aprender coisas novas, Nathaniel estava então disposto a
ensiná-la.
Com um giro rápido, inverteu as posições e tomou a mão dela na sua,
mesmo que aquilo parecesse estranho aos olhos dos outros, conduzindo-a
apressadamente pelas escadas, enquanto Lucille murmurava perguntando o
que ele pretendia. Não sabia o que pretendia, ou sabia, mas não acreditava
que fosse realmente fazer aquilo. Ao chegarem ao terceiro andar, abriu a
porta do quarto e a empurrou para dentro, trancando-os em seguida.
— Mas o que deu no senhor? Viu algo suspeito lá embaixo?
Ele não respondeu, apenas encerrou qualquer distância entre os corpos e
puxou a boca dela até a sua.
L UCILLE PREFERIA DIZER que ficara escandalizada com as atitudes
indecorosas do homem que a sustentava com mãos firmes e a devorava com
uma boca devassa, mas era mentira. Surpresa, sim, arrebatada, certamente.
Mas escandalizada, não realmente. Ela não apenas desejava como ansiava por
aquele beijo. Não esperava ser beijada por Nathaniel McFadden, já que ele
deixou claro que não a queria, ou que não se envolveria com ela por causa de
seu pai, mas ele parecia ter mudado de ideia.
Desde o início, o toque foi suave e gentil. Uma das mãos dele apoiava sua
cabeça para possibilitar o encaixe perfeito entre as bocas, a outra estava
espalmada em suas costas, fazendo com que os corpos se unissem de forma
escandalosa. Os lábios dele acariciaram os dela delicadamente e ela sentiu os
joelhos falharem. Se não estivesse plenamente amparada naquele corpo
masculino vibrante, teria caído e se estatelado no chão como fruta madura.
Percebendo-a rendida, Nathaniel passou a ponta da língua no seu lábio
inferior e ela reagiu com um gemido despudorado. Ele se aproveitou e
aprofundou o beijo, explorando-a por lugares que sequer imaginava que
pudessem ser descobertos em um beijo.
Já era noite, logo eles iriam seguir seus caminhos em separado, então
aquela era uma despedida – e uma que tornava muito difícil despedir-se,
afinal. Ao contrário do que ela imaginava, o momento não era sôfrego ou
intenso, era suave, lento, elaborado como se ele soubesse que movimentos
bruscos poderiam assustá-la. Lucille nunca fora beijada daquela forma. Suas
experiências com homens não passaram de alguns toques pudicos de lábios –
nada envolvia língua ou corpos entrelaçados como estavam os deles.
Quando ele afastou a boca apenas alguns milímetros, ela quis protestar,
mas sua voz estava presa na garganta. Nathaniel colou a testa na dela e
inspirou profundamente. Mantinha-a cativa com os dedos embrenhados nos
cachos revoltos.
— Peça-me novamente. — Murmurou, a boca traçando os contornos do
seu maxilar tenso. — Peça para que eu a arruine, Srta. Smith.
Céus, aquele homem a confundia.
— Não posso, eu... — A mão dele deslizou por suas costas, o indicador
desenhando a linha de sua coluna. Aquela camisa não oferecia proteção
alguma e Lucille percebeu que ele estava prestes a liberar a faixa de tecido
que prendia seus seios. — Tenho algum amor próprio, senhor, e não pretendo
ser rejeitada outra vez.
Nathaniel grunhiu, beijando-a no pescoço e forçando os quadris contra os
dela. Lucille arregalou os olhos ao sentir a dureza da excitação masculina que
a provocava.
— Não parece que eu esteja apto a rejeitá-la, senhorita. Em verdade, devo
ter perdido o juízo porque eu estou prestes a jogá-la naquela cama antes que
possa perceber que eu sou uma péssima escolha.
Talvez ele fosse, mas ela o havia escolhido, afinal. De todos os homens
canalhas que ela já ouvira falar ou conhecera em Nova Iorque, ele era o mais
imoral a ponto de não recusar uma virgem para uma noite apenas. Com um
movimento de cabeça, ela respondeu o que as palavras se recusavam a dizer,
assentindo para que ele prosseguisse. Nathaniel voltou a beijá-la, daquela vez
com mais intensidade, conquistando sua boca como um desbravador toma
posse de um novo território, como os ingleses tomaram posse das Américas.
Lucille não sabia retribuir o beijo com a mesma proficiência, mas
conseguia demonstrar desejo. Agarrou-se à camisa dele para mantê-los
próximos enquanto Nathaniel tirava a dela de dentro das calças e embrenhava
as duas mãos para tocá-la de forma mais íntima. Arfou com o toque quente
dos dedos masculinos em sua carne trêmula e gemeu de alívio quando ele,
habilidoso, a libertou da prisão que escondia suas partes mais femininas.
Mas, antes que ele pudesse tocá-la ali, Nathaniel interrompeu-se. Abriu os
olhos e parou de beijá-la, mesmo que as bocas permanecessem unidas.
— Aconteceu...
— Shhh. — Ele a silenciou com um polegar substituindo os lábios e
ergueu completamente a cabeça. — Há algo estranho.
Ela não percebera nada além do seu coração martelando intensamente em
seu peito, mas Nathaniel estava alarmado. Soltou-a, caminhou até a porta e
encostou o ouvido na madeira. Lucille permaneceu ali, parada e observando
cada expressão da face dele. Os olhos semicerrados indicavam que estava
concentrado e as mãos em punhos diziam que estava preocupado. Ela
certamente não o podia conhecer bem depois de apenas dois dias, mas sentia
como se fosse muito familiar a todas as manifestações do corpo de Nathaniel
McFadden – e isso indicava que ela estava ficando louca.
Com passos vacilantes, aproximou-se e encostou-se na porta, tentando
descobrir o que atraíra a atenção dele para longe dela. Vozes alteradas e
outros sons davam a entender que havia uma briga nos andares mais baixos.
— O que é isso? — Ela sussurrou.
— Parece que os homens do seu pai nos encontraram.
O coração dela quase parou de bater quando o ar foi subitamente sugado
para fora de seus pulmões. Não podia acabar tão cedo, ela não podia ser
levada de volta naquele momento.
— O senhor tem certeza?
— Posso estar errado, mas não creio que queira esperar para descobrir. —
Nathaniel olhou ao redor e foi até a janela, debruçando-se para olhar o lado
de fora. — Vamos embora, temos como descer por aqui.
— Descer? Estamos no terceiro andar, como vamos...
— Srta. Smith, há um cano de calefação subindo por essa parede. Pegue o
dinheiro e venha, não podemos levar nada. A senhorita sabe cavalgar? — Ela
assentiu. — Então vamos, Hades e Zeus estão nos estábulos, podemos chegar
até lá sem sermos vistos.
Foi tudo muito rápido, mas ela confiou nele do início ao fim sem fazer a
menor ideia dos motivos que a levaram àquilo. Nathaniel passou os dedos
pelos cabelos e as mãos pelo corpo – garantindo que a pistola e a faca
estivessem ali onde ele sempre as mantinha. Depois, apagou as lamparinas e
pendurou-se na janela, desaparecendo na escuridão. Lucille se aproximou do
parapeito e o viu deslizar pelo cano grosso e enferrujado da calefação.
Quando aterrissou, estendeu os braços indicando que era a sua vez.
Ela estava nervosa, mas não seria pega. Respirou fundo e, confirmando
que estava com as roupas no lugar, agarrou-se no cano e começou a descer. O
ferro estava quente e ela quis soltá-lo várias vezes, mas manteve-se firme até
ser capturada pelas mãos de Nathaniel – e finalmente sentir-se segura. Sim,
ela perdera totalmente o juízo, mas não estava com tempo para questionar
suas péssimas decisões. Eles correram pelo descampado sob a total escuridão
da noite até chegarem à construção dos estábulos.
Nathaniel era silencioso como um fantasma, ela mal o ouvia mover-se
enquanto a puxava para dentro do galpão e tateava em busca de seus cavalos.
Ela se acostou com a escuridão esperando-o selar os animais e aceitou a ajuda
dele para subir em um deles.
— Esse é Hades. Ele é quieto e disciplinado, vai obedecer a todos os seus
comandos. Monte como um homem, Srta. Smith, essas selas não foram feitas
para propósitos femininos.
Com um impulso, Nathaniel a possibilitou cruzar as pernas ao redor de
Hades, que se mexeu ao receber o peso de seu corpo. O cavalo ergueu o
pescoço e foi acariciado por Nate, que logo subiu em Zeus. Ela o ouviu dizer
para segui-la e partiu. Antes que Lucille o pudesse atender, o cavalo tomou a
iniciativa e a conduziu para fora do estábulo.
CAPÍTULO OITAVO

A ESCURIDÃO SERVIA DE MANTO PARA A FUGA , MAS N ATHANIEL NÃO FAZIA A


menor ideia de para onde iriam. Voltar para a estrada não era uma opção,
portanto embrenhou-se na vegetação, procurando seguir o curso de água para
se afastar o máximo possível da hospedaria e do perigo que representavam os
homens de Walter Smith. Enquanto galopava em meio a árvores e não
enxergava nem um metro à frente, tentava garantir que Lucille estivesse logo
atrás de si.
Depois de meia hora de cavalgada, entendeu que não havia mais risco
imediato de que os descobrissem. Reduziu o galope até que Hades
emparelhasse com Zeus e ele pudesse conferir como ela estava. Assustada,
definitivamente, com mãos trêmulas segurando vacilante as rédeas, mas firme
sobre a sela. A luz pálida da lua quase não penetrava ali e eles iriam congelar
se não chegassem a algum lugar em que pudesse fazer fogo. As noites
naquela região eram sempre frias, nas florestas eram ainda mais.
— Vamos seguir, há abrigo adiante.
— Outra hospedaria?
— Não, uma cabana de caçadores.
— O senhor conhece bem demais essa região.
— Eu a mapeei enquanto esperava notícias do meu irmão. Pela direção
das correntes marinhas quando ele caiu no mar, teria sido trazido para cá –
então estabeleci as rotas possíveis e o que tinha no caminho.
Não foi possível ver a expressão de Lucille para saber se ela o
considerava inteligente ou louco, mas eles não tinham tempo para conversar.
Se ele não estivesse enganado sobre a direção, estavam há poucos metros de
uma clareira e uma cabana – que ele esperava estar abandonada. Não
pretendia dar mais nenhuma demonstração de quem ele era para a mulher que
o acompanhava, podia deixar que ela não soubesse de tudo que ele era capaz.
Quanto mais a noite avançava, mais ela tremia sobre o cavalo. Eles
saíram sem bagagem e ela não usava casaco, apenas uma camisa de tecido
barato. Por sorte, antes que Lucille congelasse completamente, seu destino
surgiu à frente. Uma pequena construção de madeira que lhes serviria de
abrigo até o amanhecer.
Nathaniel desceu do cavalo e o amarrou em uma vara na lateral da casa.
Ajudou Lucille a descer e segurou-a em seus braços por breves segundos,
sentindo o corpo frio escorregar pelo seu. Não era mais o momento de a
desejar, ele precisava garantir que ela sobrevivesse. Amarrou Hades ao lado
de Zeus, acariciou as crinas dos cavalos e abriu a porta empenada da cabana.
A madeira rangeu, mas não se rompeu. Do lado de dentro, mais escuridão – e
uma lareira que produziria calor o suficiente para aquecê-los. Sem pensar que
poderia assustá-la, Nate pegou uma cadeira empoeirada e a arremessou no
chão, fazendo com que se partisse em pedaços, e jogou os destroços na
lareira. Usou sua pederneira para acender a chama e esperou, ajoelhado, que
o fogo pegasse.
A luz avermelhada da lareira clareou a cabana e o possibilitou analisar o
lugar. Uma porta, duas janelas, uma pequena cozinha, uma cama, uma mesa
e, naquele momento, nenhuma cadeira. Tudo empoeirado e com teias de
aranha suficiente para garantir que estava abandonado há algum tempo.
Talvez no inverno fosse ocupada, mas estava vazia e serviria para seus
propósitos. Um espirro chamou a sua atenção e fez com que se virasse.
Lucille estava próxima da lareira, como se o fogo a atraísse, e espirrando.
— Muita poeira?
— Parece que sim. Mas é melhor espirrar a noite toda do que morrer de
frio.
Ele concordou, aproximando-se dela. Nada estava saindo como ele
planejara e Nathaniel detestava imprevistos. Programara viagens que não
faria e traçara rotas que não percorreria apenas para não ser surpreendido por
nada, até que uma maluca decidiu esconder-se em sua carroça e ele não
conseguia a deixar ir. Não deveria ter-se envolvido naquilo, poderia
simplesmente ter ido embora e a abandonado na hospedaria, mas só pensou
em fugir com ela, não dela. E, naquele momento, estava preocupado em
garantir que ela estivesse aquecida e não na quantidade de problemas que
representava.
Aonde ele estava com a cabeça quando incluiu uma doida em sua busca?
Nem podia dizer que estivera deixando o desejo dominar a razão pois, até
aquela noite, ele não desejava Lucille. Talvez ele a desejasse um pouco,
como todo homem cobiça uma mulher, mas não era intenso a ponto de fazê-
lo desviar de seus objetivos. Era algo facilmente substituível e efêmero – ele
não precisava de Lucille para se satisfazer. E então ele não conseguia pensar
em quase nada que não fosse o corpo dela se contorcendo debaixo do dele.
Maldição!
— Não há cobertas por aqui, talvez a senhorita precise dormir ao lado do
fogo.
Lucille olhou ao redor e deu uma risada nervosa. Não havia nada para ela
se recostar ali.
— Vou bater a colcha da cama do lado de fora, assim ela poderá ser
aproveitada.
— Deixe que faço isso. Mantenha-se aquecida.
Ele também não tinha um casaco e o vento frio da noite o fez estremecer.
O silêncio era quase absoluto, só era possível ouvir o ruído da água e alguns
insetos. Não, não era silêncio, era a ausência de movimentação humana.
Aquilo era bom, Nathaniel tinha certeza que não os encontrariam ali. Depois
de bater a colcha com um pedaço de madeira que encontrou na varanda da
cabana, fechou a porta e empurrou uma cômoda velha que estava recostada
em uma parede para obstaculizar a entrada de visitantes inesperados. Se
precisasse, eles escapariam por uma janela que ficaria aberta.
Pegou o relógio de bolso e conferiu que passava de meia-noite. Seu corpo
estava cansado, mesmo que ele ainda pudesse se manter alerta por um bom
tempo. Lucille, no entanto, dava claros sinais de exaustão. Ele pegou o
colchão, colocou ao lado da lareira e cobriu, indicando que ela deveria se
deitar.
— Durma um pouco. — Nate se sentou no estrado da cama e olhou ao
redor, um tanto arrependido de ter destruído a única cadeira.
— E o senhor, ficará aí?
— Não há outros móveis na cabana além desse colchão, senhorita.
Ela se sentou e começou a retirar as botas. Nathaniel a observou, os olhos
fixos no movimento das costas dela. Depois, ela olhou para o leito
improvisado e para ele, e passou as mãos pela colcha, baixando a cabeça.
— Li um livro, uma vez, que falava sobre um grupo de pessoas perdidas.
Quando fazia frio, eles se aqueciam ficando próximos uns dos outros, ao
redor do fogo. — Quando ela ergueu novamente a cabeça, os cílios longos
emolduravam os olhos castanhos mais expressivos que Nate já vira – e
aqueles queriam lhe dizer alguma coisa. — O senhor pode recostar aqui, se
desejar.
Ele desejava, mas não era apenas recostar-se. À luz fraca da lareira, o
tecido branco da camisa dela transparecia o que havia por baixo – e era o
suficiente para fazê-lo endurecer. Sem tirar os olhos dela, Nathaniel retirou
seus sapatos e o colete e se sentou no colchão ao lado dela. Enfiou uma
almofada encardida por baixo da colcha e recostou-se nela, puxando Lucille
para si. Ela se sobressaltou e olhou para a mão dele segurando a dela.
— Não era isso que você esperava quando me convidou para “recostar
aqui”?
— Era. — Ela sorriu. — Mas eu nunca me deitei com um homem, antes.
Principalmente um homem... assim, como o senhor.
Os olhos dela desviaram para a sua ereção e Nathaniel deu uma risada
baixa. Na posição em que ele estava, era impossível esconder a excitação de
seu corpo e ele não se envergonhava de sua virilidade. Era comum responder
a uma mulher bonita, principalmente uma mulher bonita cujo gosto ele já
provara – e aprovara.
— Prometo que não farei com a senhorita nada que não queira. Não
costumo precisar obrigar mulheres a se deitarem comigo.
— Que horror. — Ela fingiu desgosto. — E por que mudou de ideia em
relação a mim? O que fez o senhor me beijar, antes?
— O mesmo que me fará beijá-la novamente, desejo. — Nathaniel fez
com que ela deslizasse em sua direção, acomodando-a quase por cima de si.
Lucille apoiou os braços em seu peito. — Não faz mais diferença se eu a
possuir ou não, isso importa apenas a nós dois, agora. Se nos descobrirem,
sua reputação estará arruinada por mim, de qualquer forma. Então, melhor
que eu faça algo por merecer a fama.

E LA JÁ ESTAVA ARRUINADA – e aquilo parecia totalmente coerente com o que


ela queria, mas não suficiente. Lucille se pegou subitamente desejando a
ruína, não apenas a aparência dela. Por esse motivo, não resistiu quando
Nathaniel a segurou com as duas mãos, uma de cada lado de sua face, e
puxou a sua boca até a dele. No instante em que os lábios se chocaram, ela se
acomodou melhor por sobre ele, envolvendo sua cintura com as pernas.
Aquilo era absurdamente inadequado, indecente e excitante.
Quando a língua dele penetrou sua boca, Lucille gemeu pela invasão
ansiada e agradeceu por estarem sozinhos. Uma das mãos de Nate desceu
pelas costas dela e entrou pela camisa, acariciando sua pele. Talvez ela fosse
capaz de dissolver com aquele toque, mesmo sendo tão indecoroso. O correto
seria que ela o estapeasse, fugisse, o mantivesse longe – mas Lucille queria
ser tocada por ele.
Com um movimento rápido e cuidadoso, Nathaniel inverteu as posições e
a colocou sob seu corpo rígido. Ela se viu subitamente presa debaixo de uma
massa de músculos bem definidos e quentes – e o frio passou
instantaneamente. O beijo ficou mais intenso e ele forçou seus quadris contra
os dela.
— Nunca fiquei com uma mulher de calças. — Nate riu, descendo os
beijos até o pescoço, parando no colarinho da camisa, pressionando sua
masculinidade contra ela e arrancando mais alguns gemidos constrangedores.
— Você por inteiro é uma experiência intrigante.
A barba que ele mantinha a arranhou quando os beijos desceram um
pouco além do colarinho. Lucille sequer percebeu quando ele abriu dois
botões de sua camisa, mas ele parecia determinado a livrar-se de todos.
E um estrondo do lado de fora fez com que o momento acabasse antes de
começar. Nathaniel ajoelhou rapidamente sobre Lucille e levou a mão até as
costas. Ela sabia que ele segurava a pistola, que parecia nunca sair daquele
lugar. De repente, uma chuva pesada começou a cair e os cavalos se agitaram.
Lucille sentou-se, apoiando nos braços, enquanto Nathaniel se recompunha.
— Preciso tirar os cavalos da chuva. Vou amarrá-los na varanda, espere
por mim aqui.
Como se ela tivesse algum lugar para ir. Antes de poder responder a ele
com uma frase espirituosa, o homem já estava do lado de fora da cabana. Era
comovente que ele cuidasse tão bem dos animais e que os cavalos
respondessem a ele como se o compreendessem. Lucille se deitou novamente
e passou os dedos pelos lábios. Provavelmente era aquele o motivo de
Nathaniel ser tão popular entre as mulheres, mesmo as tratando com aparente
desinteresse. A forma como ele as fazia sentir era única.
Recostou na almofada enquanto o ouvia conversar com os cavalos, do
lado de fora. Apesar da chuva, era possível ouvi-lo acalmar os animais e dizer
que logo amanheceria e eles teriam uma longa jornada pela frente. Pensando
em como fariam sem a carroça, sem provisões, sem roupas e quase um dia
atrasados, além dos capangas atrás de si, Lucille adormeceu antes que
Nathaniel retornasse para dentro.
Durante o sono, ela sonhou com ele. Era irrazoável sonhar com um quase
desconhecido – ou não, já que eles estavam muito conectados há alguns
poucos dias. Nathaniel se deitava ao lado dela, acariciava sua face, passava as
mãos por seu corpo e a beijava delicadamente no pulso, no pescoço, na
bochecha, na testa, até acomodar-se ao seu lado. O calor dele a manteve
aquecida durante a noite, mesmo que não fosse real e, apesar das condições,
Lucille dormiu tranquilamente.
Quando acordou, com a claridade penetrando pelos vidros embaçados, ela
o viu de pé, com o torso despido. A primeira reação foi colocar a mão no
próprio corpo e garantir que estava vestida. A segunda foi admirar o belo
espécime que cruzara seu caminho de forma tão inusitada. Nathaniel passava
um pano embebido em água pelo pescoço e ombros e sua camisa jazia
pendurada em uma viga.
— Não se preocupe, senhorita, não aconteceu nada que não saiba. Eu
prefiro minhas parceiras ativas, se me compreende.
Ela compreendia, mas isso não a impediu de ruborizar de vergonha.
— O senhor está de saída?
— Precisamos retomar a estrada, porém agora sabemos que os caçadores
de recompensa estão no caminho certo e devemos tomar mais cuidado.
— Devemos?
— Sim, senhorita. — Ele se virou para ela, com um sorriso canalha nos
lábios, e colocou o pano de volta dentro de uma bacia de água. Lucille sentiu
a boca secar ao vê-lo de frente e perceber que ele tinha um corpo notável.
Sem excessos, com o peito permeado de pelos bem distribuídos, que subiam
pelo tórax e iam na direção do pescoço, mas também desciam pela barriga e
morriam ao chegar ao cós da calça marrom que ele estava vestindo. Nathaniel
era o primeiro homem que ela via sem camisa, inteiramente sem camisa, e
não estava nem um pouco desapontada. — A não ser que prefira ser pega
pelos homens do seu pai.
— Céus, não. — Lucille levantou, cambaleando para trás, e notou que sua
camisa continuava meio aberta, permitindo que seus seios ficassem em
evidência. E ela não tinha mais a faixa, o que significava que estava com
vestimentas totalmente inadequadas. — Apenas pensei que o senhor seguiria
sua viagem e...
— E te deixaria aqui. — Ele completou a frase interrompida. — Depois
do trabalho que tive para tirá-la da hospedaria, não acha mesmo que faria
isso, acha? Venha, vamos logo porque nem comida temos. Precisamos chegar
a algum lugar.
Nathaniel pegou a camisa e vestiu novamente. Lucille quis perguntar se
ele dormira ao lado dela, se estivera seminu – ou até mesmo nu – durante
toda a noite. Quis saber se aquele corpo masculino estivera em contato com o
dela, se eles ficaram próximos o suficiente para que o cheiro dele se
impregnasse nela – mas não perguntou, nem falou nada. Manteve-se em
silêncio durante o tempo em que eles arrumaram as roupas e pegaram os
cavalos. Ela precisou montar novamente como um homem e adorou mais
aquela sensação de liberdade que sentiu em ter mais controle do cavalo e
mais equilíbrio.
Sua cabeça estava uma confusão e fazia tempo que Lucille não sabia o
que fazer. Sempre manteve planos e tentou executá-los, mesmo com as
dificuldades impostas pelo pai. Vinha juntando algum dinheiro para poder
estudar, mesmo que tardiamente – o mesmo dinheiro que estava usando para
fugir, pois livrar-se de um casamento desastroso parecia mais importante do
que outros projetos prévios. E, ao mesmo tempo, havia aquele homem
devasso, que torturava pessoas para ganhar a vida e que ela escolhera para
arruiná-la, mas que teve todas as oportunidades para isso e não o fez. E por
Deus, ela passara a querer muito que ele a arruinasse.
Sobre os cavalos, pegaram uma trilha por dentro da floresta até chegar à
estrada. Nathaniel ia à frente com Zeus e ela seguia com Hades, que se
portava como um lorde. Ela não conhecia nenhum homem que fosse tão
elegante quanto o garanhão preto. O silêncio se tornou inconveniente e ela se
aproximou, pareando com seu companheiro.
— Para onde vamos?
— Stamford. Preciso fazer uma ligação, precisamos de roupas e comida.
Você terá que aguentar até lá, se formos em um galope adequado,
chegaremos logo.
Lucille assentiu. Nathaniel não estava tão taciturno quanto no dia anterior,
havia certa leveza em sua postura corporal que a tranquilizou.
— O que levou o terceiro filho de um conde a se envolver com o
submundo?
As palavras pularam de sua boca, e isso era um defeito que ela
dificilmente conseguiria consertar. Lucille falava, era franca e raramente
evitava a verdade. Ele riu e levou algum tempo para responder.
— Eu agora sou o irmão do conde. Há tantos na linha de sucessão à
minha frente que eu precisaria viver três vidas para assumir o condado – o
que, definitivamente, nunca quis. E achei que já tivesse respondido a isso,
senhorita. Sempre fui um homem que preferiu bebidas e mulheres a trabalho.
Acabei encontrado minha degradação em ambas.
— O senhor está feliz?
Ele deu outro sorriso e virou-se para ela. A luz do dia refletiu o azul
daqueles olhos penetrantes, mas que não entregavam nada da alma por trás
deles.
— Depois de ontem, acredito que possa me chamar de Nate.
Lucille sentiu as bochechas arderem e entendeu que ele a mantinha em
um estado de constante rubor.
— É inadequado.
— Vamos determinar isso. A senhorita me viu sem camisa, eu quase a vi
sem camisa, estou agora mesmo vendo muito mais da senhorita do que
entendo ser saudável para um homem, nós nos beijamos e dormimos juntos.
Creio que essa conjugação de fatores autorize que nos tratemos pelos nomes
de batismo.
A cor nas bochechas de Lucille assumiu um tom de vermelho cereja.
— Nós dormimos juntos?
— Dormimos, senhorita. Infelizmente, foi tudo que aconteceu.
— Se eu o chamar de Nathaniel, o senhor deve fazer o mesmo. Meu
nome é Lucille.
— Muito bem, que assim seja. Diga-me, Lucille, por que foge do
casamento? Não me diga que está fugindo desse marquês especificamente,
pois, em sua idade, já deveria ter se casado. Há algo mais, não há?
Sim, havia muito mais. Ela não tinha objeções ao casamento, ao
contrário, mas queria tanto fazer outras coisas antes de se envolver
definitivamente com um homem que a tornaria propriedade. Se fosse casar,
queria alguém que a permitisse estudar, viajar, visitar as amigas, ser
independente – e não alguém que a transformasse em objeto de decoração.
Mas duvidava que Nathaniel fosse compreender aqueles motivos – ele era um
homem, afinal.
— Eu gostaria de fazer faculdade. — Ela contou o que achou razoável. —
O dinheiro que uso para a fuga estava sendo guardado para pagar meus
estudos.
— E por que seu pai não fez isso? Ele é mais rico que a Rainha.
— Ele acredita que minha única função na Terra é casar e parir os filhos
do meu marido, seus netos. — Lucille deu uma risada nervosa. — Nunca me
achou capaz de fazer nada além disso.
Nathaniel ficou em silêncio novamente. Ela podia seguir falando de sua
família, contaria todos os problemas que enfrentara desde que aprendeu a
andar, mas ele não parecia interessado em ouvir mais. A expressão do
homem endureceu e ele trincou o maxilar, formando uma linha tensa em seu
perfil bonito, e nada mais foi dito entre eles por longas horas. Pararam uma
vez para os cavalos descansarem e beberem água, um luxo que eles mesmos
não tinham, e depois retomaram o galope até quase anoitecer.
Ela não conseguia evitar se sentir culpada pelo que estavam passando –
sem roupas, sem comida e sem estrutura para a viagem. Afinal, se não fossem
os homens que seu pai mandou para resgatá-la, não teriam fugido sem suas
bagagens. Mas Nathaniel não reclamou – ele parecia imune aos
inconvenientes. Mesmo que a fome quase a derrubasse pelo final do dia, e a
sede a estivesse incapacitando, ele permanecia ereto e elegante sobre o
cavalo, como se nada o afetasse se ele assim não quisesse.
Quando Lucille estava prestes a desistir e desmaiar de exaustão e
fraqueza, eles avistaram a cidade de Stamford. Nathaniel reduziu o galope e
pegou um papel do bolso de seu colete – era um mapa, ou algo similar,
contendo anotações e rotas. Depois de examinar o conteúdo por alguns
minutos, indicou que ela deveria segui-lo. Transitando por vias de pouco
movimento e evitando aglomerações quando elas apareciam, eles pararam em
uma construção de tijolos com aparência de ser um hotel.
Era um prédio simples, porém charmoso. Cinco andares com janelas de
madeiras e beirais floridos, tijolos avermelhados e portas envidraçadas.
— Registre-nos em meu nome. Vou fazer uma ligação e te encontro no
refeitório. Pegue um quarto para cada um de nós.
Os cavalos foram amarrados nos fundos do estabelecimento, Lucille
desceu de Hades mas não se moveu, olhando para si mesma com algum
constrangimento. Ela se sentia quase nua, com aquela camisa fina não
cobrindo quase nada de seu corpo. Não era preciso ser observador para
entender que ela não era um homem. Nathaniel percebeu que ela hesitava e
tremia e se aproximou, segurando-a pelos braços no instante em que ela
desmaiou.
CAPÍTULO NONO

U M CHEIRO DELICIOSO DE CALDO DE CARNE FEZ COM QUE L UCILLE


despertasse e ela percebeu o quanto estava faminta. Não, ela já esteve faminta
antes, aquilo era diferente – ela estava há um dia inteiro sem comer, tão fraca
que mal conseguiu abrir os olhos e erguer o corpo para olhar ao seu redor. Só
se lembrava de ter colapsado nos braços de Nathaniel McFadden.
— Como está se sentindo?
O próprio Lúcifer apareceu à sua frente, segurando uma vasilha
fumegante. Com os cabelos úmidos e roupas limpas – e aparentemente novas,
mantinha a expressão séria que lhe era característica.
— Um pouco tonta. O senhor comprou roupas?
— Para mim e para você. E mandei trazerem o jantar. Sente-se, você
precisa comer.
Ela não ignorou que Nathaniel a tratava com informalidade. Sem
preocupar-se com o decoro, sentou-se ao lado dela na cama e esperou que se
ajeitasse. Lucille continuava com as roupas encardidas do dia e sabia que
precisava de um banho, mas mal conseguia segurar a colher que ele lhe
oferecera.
— Sopa?
— Você está muito fraca. Consegue fazer isso sozinha ou precisa que...
— Eu consigo. — Lucille ajeitou-se na cama e pegou a vasilha com a
comida, acomodando-a sobre as pernas. — Esse é meu quarto?
— Nosso. Duas camas, fique tranquila. Vou deixar que coma pois preciso
ligar para Nova Iorque. Deixei algumas roupas dentro daquela caixa ali — ele
apontou para uma mesa — para que vista depois que se lavar. Nos vemos
daqui a pouco.
Nathaniel levantou-se e saiu, fechando uma porta atrás de si. Ela cheirou
a sopa novamente e quase virou a vasilha para beber o conteúdo. Usou a
colher por puro condicionamento – ela fora treinada a ser educada, gentil,
extremamente servil. Depois de comer, sentiu-se melhor e capaz de tomar um
banho. Olhou ao redor, o quarto era amplo e mobiliado, significativamente
melhor do que o da hospedaria, mas ela não entendia por que o diabo não a
colocara para ficar em uma habitação separada. Cambaleando, Lucille foi até
a mesa e abriu a caixa que continha roupas para se surpreender outra vez.
Eram peças masculinas, refinadas e bem talhadas, mesmo tendo sido
compradas prontas. Havia também um pedaço de tecido com um bilhete
preso, rabiscado em uma letra apressada.
“É uma pena que tenha que escondê-los”, era o que estava escrito. Ela
sorriu olhando para tudo que ele arrumara para si e imaginando o que
significava. Cuidado? Não podia ser, aquele homem não cuidava de ninguém
além dele mesmo, mas ela não queria pensar demais sobre nada. Precisava
apenas manter-se no caminho da fuga e logo estaria livre de todos – inclusive
do canalha McFadden. Enfiou-se debaixo de um chuveiro de água quente e se
lavou das impurezas do dia. Enxugou-se e desejou vestir-se com roupas
femininas. Arrumar o cabelo, colocar rendas e saias, algo que a fizesse sentir
uma mulher.
Ela estava divagando, com tempo ocioso para pensar tolices. Pegou as
roupas que Nathaniel comprou e vestiu a roupa de baixo, colocou a faixa, a
camisa, a calça bege. Fechou todos os botões, garantindo que nada de sua
feminilidade ficasse exposto. Ajeitou os cabelos com um pente e os escondeu
dentro da boina, sabendo que ficariam amassados. Quando estava preparada
para qualquer coisa, ele retornou para o quarto.
— Ficaremos essa noite. Amanhã pegamos a estrada novamente até
Norwalk, minha pista me leva para lá. Vejo que as roupas ficaram boas.
— Eu preciso reembolsá-lo. E sim, ficaram ótimas, como se fossem sob
medida. Como conseguiu saber meu tamanho?
— Tenho boa memória e ontem eu tive a oportunidade de segurá-la me
meus braços. É o suficiente para eu me lembre bem de suas formas. Quer
descer para jantar? Há um restaurante próximo daqui cuja aparência é
satisfatória.
Ela ainda estava faminta, só restava concordar. Teria mais chance de
conversar com aquele homem intrigante que a fazia considerar se os boatos
sobre ele não eram todos infundados.
T UDO ESTAVA FORA de seu controle. Nathaniel sabia quando o trem
descarrilava porque nada saía como o planejado – e ele nunca conseguia
devolver o maldito trem para os trilhos. Desde que fora abandonado para
morrer, logo depois de sua chegada a Nova Iorque, ele nunca se sentiu tão
vulnerável quanto naqueles dias. Mais precisamente, desde que aquela
mulher louca invadiu sua casa e pediu para ser seduzida. Ele negou, mas não
significou que não quisesse seduzi-la. Estava prestes a fazê-lo, se não fosse o
maldito sobrenome Smith.
Ele odiava Walter Smith, mas sabia que vingança não o levaria a lugar
algum. Nada daquilo importava, ou deveria importar, apenas Emile – então o
que diabos fazia admirando Lucille enquanto ela caminhava ao seu lado? A
mulher estava vestida como um homem, usando calças – que encaixavam
perfeitamente em seus quadris – e colete! O problema era que ele sabia o que
estava por baixo daquela roupa, sabia parte do que encontraria ali e queria
conhecer o resto.
Estava decidido – Nathaniel precisava levar Lucille para a cama e
resolver o problema. Quando sentia desejo por uma mulher, seduzia-a e a
angústia passava. O que o impedia de pensar racionalmente era aquela
lascívia que precisava ser satisfeita.
— Conte-me mais algo. — Ela capturou sua atenção, mas Nathaniel
acabou olhando demais para a boca dela em movimento. — Por que veio para
os Estados Unidos?
— Eu conto se me contar algo seu, também.
— Combinado. Você começa.
Ele detestava falar de si mesmo, não tinha nenhum interesse que as
pessoas o conhecessem ou soubessem qualquer coisa sobre seu passado.
Porém, estava curioso a respeito de Lucille e podia contar sem revelar muito.
Estavam já no restaurante, então chamou um garçom e pediu que lhe
servissem o prato do dia e uma garrafa de vinho.
— Vim para fazer negócios com um americano, o Sr. Carlisle. Ele
pretendia convencer meu irmão e meu cunhado a investirem com ele, mas
minha irmã ficou desconfiada de suas reais intenções. Meu irmão, o Conde
de Cornwall, não dá passos em falso. Edward é extremamente seguro, correto
e ridiculamente perfeito. Um conde, como pode ver.
— Mas o senhor não fez negócios com o Sr. Carlisle, fez?
Não, ele não fizera. Assim que chegara aos Estados Unidos fora
arrebatado por um estilo de vida muito diferente do londrino. E Leonard
Eckley não fora uma amizade muito inspiradora – juntos, eles eram capazes
de incendiar meia Nova Iorque.
— Descobrimos que Carlisle era tão correto como meu irmão – e
queríamos algumas aventuras.
— Queriam?
— Eu e meu amigo, Leo Eckley. Ele dirige o Gênesis comigo.
O jantar chegou e eles foram servidos. A sopa que Lucille comera
certamente não a satisfizera, por isso Nathaniel cuidou de pedir algo mais
substancial. Encheu as taças de vinho e prosseguiu.
— Nós fizemos investimentos com outras pessoas.
— E o conde concordou com isso?
— Edward ainda pensa que estamos produzindo aço. Eu mando para ele
relatórios falsos e dinheiro que seria do lucro da produção, que é parte do que
recebo no Gênesis.
Lucille bebeu um gole longo do vinho e levou algum tempo processando
a informação de que ele era, além de um canalha, um mentiroso. Que estava
enganando seu irmão conde, que fingia investir com um homem probo e
acima de qualquer suspeita quando, na verdade, geria um antro de jogos
ilegais, prostituição e realizava um bom número de atividades criminosas.
— Isso parece excitante. — Ela revelou, com um sorriso tímido.
— Viver no limite de cruzar vários limites não é excitante, Lucille, é
arriscado. Meu pescoço está cada dia mais perto da forca.
— E por que continua fazendo isso, se é tão perigoso, assim?
Ela o fitou por sobre o vidro da taça, escondendo sua boca desejável e
adotando uma aparência inocente que só servia para excitá-lo ainda mais. Se
ele continuasse olhando para ela daquela forma, todos achariam que estava
interessado em seduzir um homem.
— Uma vez que entramos nesse mundo, não tem como sair. É o que sou
agora, não há volta.
— Não acredito nisso. Você provavelmente gosta do que faz, gosta do
poder que empunhar essa faca e ameaçar as pessoas lhe dá.
A maldita tinha razão, ele gostava, mas também estava errada, pois ele
não fazia aquilo apenas pelo poder. Fazia porque ficou bom demais para
desperdiçar seu talento e porque o sofrimento que passou acabou por moldá-
lo diferente do que era. O chefe o ensinou a ser destemido, cruel e arrogante –
não tinha como deixar de ser nada daquilo. Não mais.
— Agora é sua vez. Diga-me algo, mas precisa ser tão sujo quanto a
minha história.
— Eu estou fugindo do casamento porque não acredito que ele valha a
pena. Meu pai é violento com minha mãe, que é omissa com a violência
contra seus filhos. Eu já o vi quase a matar e não pretendo perecer pelas mãos
de um homem como ele.
Ela disse aquilo com aparente calma, tudo de uma vez, sem fazer pausas.
Se não estivesse se acostumando a observá-la, pensaria que era tão fria e
cínica quanto ele – mas Nathaniel pode notar que a voz tremia e seus dedos
ao redor da taça vacilavam. Era uma verdade difícil, uma verdade quase
impossível de ser digerida sem mais um pouco de vinho. Sem moderação,
encheu a taça de Lucille e manteve-se em silêncio, esperando que ela
comesse e bebesse. Embebedá-la tinha duas vantagens – faria com que se
acalmasse e com que o aceitasse em sua cama. Bendita hora que decidiu
registrar apenas um quarto para ambos.
— Lamento saber isso. Meus pais se amavam. Meu pai faleceu cedo
demais, mas fui criado em uma família amorosa. Imagino que deva ser difícil
ver Walter Smith espancar sua mãe.
— Acabei me acostumando. Veja que curioso, eu cresci entre pessoas
violentas e nunca fiz mal a um inseto. Você cresceu em meio ao amor e
hoje...
E hoje ele cobrava dívidas para um criminoso. Ela não precisou
completar a frase para que ele soubesse o que pensava – e incomodou-o que
ela o julgasse. O que os outros pensavam dele nunca o importou, Nathaniel
ignorava completamente a opinião que tinham sobre si. Ignorou enquanto
morou em Londres, ignorava em Nova Iorque. Sua arrogância aristocrática o
fazia pensar que estava acima de algumas mesquinharias, mas ele não gostou
de ser censurado por Lucille. Por algum motivo que ele não sabia, a opinião
dela era diferente das demais.
— Desculpe-me. — Ela retomou sua fala. — Não quis ofendê-lo.
— Não deve haver mais nada que me ofenda, Lucille.
Provavelmente, nada. Aquele era o novo Nathaniel McFadden, um
homem que já cometera quase todos os pecados que um mortal poderia
cometer e não se arrependida de praticamente nenhum deles. Decidiu
permanecer em silêncio enquanto terminavam de comer, tomando cuidado de
manter as taças de vinho cheias até a garrafa acabar. Apesar de tudo, ele não
desistira de a levar para a cama – não havia nenhum decoro que o impedisse
de tomar a virgindade dela, se ela concordasse em lhe entregar.
No retorno para o hotel, ele quis lhe oferecer o braço, mas seria muito
estranho que dois homens caminhassem pelas ruas como um casal. A cidade
era pequena e pouco movimentada naquela região. Ele escolhera um hotel da
periferia, que tinha boa calefação e roupa de cama limpa, mas nada no centro
nem com poucas rotas de fuga. Talvez, se estivesse sozinho, ficasse em um
lugar mais luxuoso, mas não podia arriscar que Lucille fosse vista – nem que
ele fosse visto com ela. Ser acusado de sequestro não estava em seus planos.
Ao chegarem ao hotel, ele ainda precisava ligar para Leonard, já que sua
tentativa anterior fora frustrada – o amigo não estava no Gênesis e não tinha
telefone em casa. Precisava manter-se informado das novidades de Nova
Iorque e gostaria de ouvir uma voz familiar. Pediu que Lucille subisse para o
quarto e foi até a cabine telefônica. Daquela vez teve sorte, foi o próprio Leo
quem atendeu a ligação.
— Stamford? — O amigo perguntou, sempre preciso nos cálculos.
— Cheguei hoje, parto amanhã. Como estão as coisas? Alguma novidade,
outra pista de Emile?
— Não. Como eu disse, o submundo agora só pensa em ganhar a corrida
do ouro patrocinada por Walter Smith. Ninguém está procurando seu irmão,
Nate, lamento. Essa deve ser sua única pista.
— Terei sorte, ela será uma pista quente. Amanhã vou atrás do contato
indicado.
— Agora diga o que te incomoda.
— A incerteza me incomoda, Leo. Não saber se Emile está vivo ou
morto. Nada mais.
— Você mente bem, não para mim. Vamos, conte-me o que o está
fazendo me ligar mesmo quando não há nada para ser dito. Se eu te conheço,
Nathaniel William McFadden, você está precisando de um sermão.
Maldito Eckley. Nate odiava ser chamado por seu nome completo.
— Eu estou com a Smith fugitiva.
— Mas que diabo? — Leonard quase gritou no telefone. — Como assim
está? Você a sequestrou, Nate? Ficou louco?
Sim, com certeza, definitivamente. Se não fosse insanidade, ele talvez
estivesse doente.
— Fiquei, mas não a sequestrei. Ela se escondeu em minha carroça para
fugir.
— Livre-se dela.
— Já tentei, Leo, não consegui. Acho que não consigo, porém não faço
ideia do motivo.
— Você está com problemas. Não saia de Stamford, vou me encontrar
contigo amanhã cedo.
Era exatamente o que ele não precisava, de uma babá. Ao mesmo tempo,
se havia uma pessoa que poderia impedi-lo de fazer uma bobagem com
Lucille Smith, aquela pessoa era Leonard. E, ao mesmo tempo, ele queria
fazer uma bobagem com ela. Queria fazer todas as coisas impróprias que
sabia e ensinar a ela o que ninguém mais ensinaria.
— Não venha, isso nos trará problemas. O chefe não permitirá.
— Se eu disser que precisa de mim e prometer trazê-lo logo, ele
acreditará. Espere-me, Nathaniel. Em que hotel está?
— London’s Lounge.
— Escolha óbvia. Amanhã estou aí.
Leonard desligou o telefone e aquilo era sinal de que estaria se
preparando para pegar um trem até Stamford. Pela ferrovia, o trajeto era
significativamente menor e logo ele chegaria à cidade. A viagem estava
ficando mais complicada do que ele esperava e a culpa era integralmente sua.
Olhou ao redor e decidiu que precisava ficar por ali, mesmo. Recostou-se no
balcão da recepção e perguntou onde haveria uma casa de jogos. Na noite
anterior ele foi distraído, naquela ele pretendia ganhar alguns dólares.

A SSIM QUE L UCILLE subiu e fechou a porta do quarto, recostou-se nela e ficou
esperando seu coração se acalmar. A conversa durante o jantar se tornou um
pouco constrangedora, mas ela suspeitava que algo muito inapropriado
poderia acontecer assim que ambos estivessem trancados naquela habitação –
e sem ninguém para interromper, daquela vez. Era provável que ela desejasse
qualquer coisa imprópria que Nathaniel pudesse lhe fazer, porém sabia que,
em nome da decência, deveria resistir ao menos um pouco. Antes, ela
precisava ser deflorada, mas a fuga fez com que ela já estivesse arruinada o
suficiente.
Então, ela ficou nervosa. Seus ouvidos zumbiam como se um diabrete e
um anjo sussurrassem palavras de incentivo – um comandando que ela se
entregasse à devassidão, outro lembrando que ela era uma mulher cristã e que
deveria se afastar do pecado. Girou pelo quarto em passos miúdos até quase
ficar zonza e perceber que ele estava demorando demais. A ordem era para
que ficasse no quarto, ela deveria obedecer. Poderia tirar as roupas
masculinas e enfiar-se debaixo das cobertas, mas não sobraria nada para
vestir, então.
Girou mais um pouco pelo ambiente, desarrumando a cama,
reorganizando os itens no banheiro, ajeitando as toalhas perfeitamente
alinhadas, mexendo nos cabides vazios dos armários, esperando. E ele não
chegava. Vá dormir, Lucille, o anjo comandou. Vá atrás dele, Lucille, o
diabrete instigou. Como vinha se sentindo muito pouco santa há alguns dias,
ela garantiu que suas roupas estavam perfeitamente alinhadas e desceu
novamente para a recepção.
Interpelou o jovem recepcionista tentando fazer uma voz masculina – e
falhando.
— Boa noite, o senhor viu o cavalheiro que chegou comigo?
— Ele perguntou por um cassino, senhor. Não temos muitos por aqui,
mas indiquei a ele o Fallen Bridge, no final da rua.
Lucille agradeceu e decidiu que iria atrás de Nathaniel. Por qual motivo,
ela não sabia, mas sentia que deveria ir. Algo dentro dela borbulhava,
querendo impedir que ele se envolvesse em confusão ou com prostitutas.
Tentando não correr, seguiu na direção apontada pelo recepcionista até
visualizar um letreiro meio escondido, meio apagado, indicando que estava
na direção certa.
Vestida como um dos visitantes habituais do lugar, conseguiu entrar
facilmente. Estava escuro, ninguém notaria que tinha feições femininas ou
voz aguda demais. Estava com pouco dinheiro e não pretendia apostar, não
queria aprender nada, daquela vez – apenas resgatar o homem que,
provavelmente, não iria querer ser resgatado. Aos poucos, seus olhos se
acostumaram com a luz alaranjada e Lucille conseguiu distinguir as formas
ao seu redor e pode se mover com mais facilidade. Identificou um bar, com
homens bebendo uísque ou conhaque, e algumas mesas de jogos – cartas,
dados e roleta. Um arco largo em um canto indicava que havia outro
ambiente, provavelmente onde ficavam as prostitutas – e ela esperava que
fosse o pior que encontraria ali.
Nathaniel não parecia estar em lugar algum. Ela se sentiu patética estando
ali atrás dele, sabendo que nada lhe dava o direito, ou a prerrogativa, de o
procurar. Ainda assim, seus olhos não pararam de vagar e fixar em todas as
faces presentes até que ela conseguisse visualizá-lo em uma mesa de
carteado. Talvez ela não o reconhecesse se não estivesse tão focada. Nate
fumava um charuto, tinha uma garrafa de uísque de um lado e duas mulheres
um pouco animadas demais do outro. Os cabelos loiros, mais compridos do
que era adequado, já grudavam no pescoço pelo suor. Lucille não soube o que
sentir ao vê-lo, arrebatada por um misto de alívio e ciúmes que não faziam
sentido algum.
Mesmo concentrado no jogo, ele a viu. Os olhos de Nathaniel se
ergueram e a perceberam ali, olhando diretamente para os movimentos que
fazia, permanecendo inabalável. Sua expressão não poderia ser decifrada por
ninguém se ele não quisesse. Estava com os antebraços de fora e ela se pegou
definitivamente fissurada por aquela parte da anatomia dele. Com um suspiro
de resignação, Lucille aproximou-se da mesa enquanto ele sussurrava
qualquer coisa para uma das mulheres, a que estava em seu colo. A “dama”
levantou-se e desapareceu por entre as pessoas.
O jogo já começara e era uma variante de pôquer que ela não conhecia –
Lucille não tinha nenhum conhecimento válido sobre carteado, conhecia
pouco sobre baralho e só jogara algumas partidas de alguns tipos de jogos
quanto as amigas ainda eram solteiras e elas se reuniam para fazer tudo que
fosse proibido para as mulheres. Quase tudo. Nathaniel não olhou para ela
novamente, permaneceu concentrado em sua mão e olhando sutilmente para
os outros jogadores. Havia muitas fichas à sua frente e ela imaginou que ele
já tivesse ganhado alguma coisa.
Um jogador empurrou todas as suas fichas para o centro e bradou “all
in 1”. Um burburinho iniciou-se, alguns presentes elogiando a postura
arrojada, outros o considerando louco. Lucille conseguia ver as cartas desse
jogador e ele tinha um full house 2, que ela sabia ser uma mão muito boa. Dois
oponentes desistiram, baixando suas cartas e se retirando da partida.
Permaneceram três, que decidiram cobrir as apostas. Nathaniel tinha fichas
suficiente para que algumas sobrassem, mas, ainda assim, o valor em disputa
parecia bem elevado.
O crupiê solicitou que mostrassem suas cartas e o apostador principal
exibiu seu full house. O outro apostador atirou uma trinca de ases sobre o
feltro verde, levantando-se irritado. Nathaniel olhou para a mesa e para suas
cartas por longos segundos até virar, com uma elegância que ela não vira nele
ainda, um royal flush 3. A comoção foi generalizada – pelo visto, o homem
não estava acostumado a perder nem aceitaria a derrota pacificamente.
Enquanto a audiência murmurava e antecipava um confronto, o perdedor se
levantou e bateu na mesa de jogos, bagunçando as cartas e misturando as
fichas.
— O senhor certamente foi desonesto! — Esbravejou o homem, que tinha
uma aparência ébria e cabelos escuros encaracolados. — Ninguém teria
condições de bater esse full house!
Nathaniel manteve-se sentado e começou a organizar as fichas em uma
pilha. Eram todas dele, afinal.
— Há duas hipóteses para a certeza que o senhor possui. Uma, o senhor
estava fraudando o jogo e acreditava que sua mão era a melhor porque
comprou o crupiê. Outra, o senhor estava contando cartas – o que é fraude, da
mesma forma. — Ele ergueu os olhos azuis, que flamejavam à luz das velas.
— Qual das duas é a verdadeira, senhor?
O homem rosnou alguma coisa e retirou o casaco. Aquele era um sinal
claro de que pretendia brigar e a audiência se afastou, obrigando Lucille a
fazer o mesmo. Nate fez um gesto negativo com a cabeça, indicando que não
queria confusão, mas ela sabia que ele reagiria se fosse atacado. E, quando
reagisse, ele provavelmente causaria problemas. Lembrou da pistola que
ficava em sua cintura e rezou, silenciosamente, para que ele não decidisse
sacá-la.
Com um impulso, o homem se lançou sobre Nathaniel e, com os punhos
erguidos, lhe desferiu um soco. A plateia acompanhou o movimento como se
estivessem em um ringue e aquela fosse uma luta recreativa, mas Lucille
sabia das implicações drásticas daquela contenda – a polícia apareceria
naquele antro e todos eles estariam em apuros. Nate desviou do soco e se
afastou.
— Não quero brigar. Seja um bom perdedor e se afaste.
— Está com medo, forasteiro? — O homem provocou. — Acha que não
sabemos que é inglês? Com esse sotaque e essa arrogância fica evidente sua
origem. E não gostamos muito de ingleses por aqui.
Nathaniel balançou a cabeça novamente e esperou o ataque, que veio
rápido. Enquanto o homem se movia com impulsividade e velocidade, Nate
era sutil e leve como um predador cercando sua presa. Estava desarmado,
com as mãos nuas e o cabelo desfeito, mas parecia dominar tudo, como se
controlasse até mesmo o tempo. Outros socos voaram até que o homem se
atirou sobre ele e o acertou no nariz, fazendo-o cambalear para trás. Sangue
escorreu e pingou em sua camisa branca.
— Eu lhe dei uma chance. — Nathaniel pegou um lenço e limpou o
sangue. — O senhor poderia ter ido embora, ter me deixado ir embora, mas
preferiu brigar. Então, espero que esteja disposto a arcar com o resultado de
seus atos.
Retirando o casaco, Nathaniel fechou as mãos em punhos e desferiu um
contragolpe, antes de ser novamente acertado pelo seu agressor. O homem
gemeu e deu dois passos para trás, sendo novamente golpeado por mãos
firmes. Uma vez, duas vezes, três vezes, até cair ao chão. Tentou se levantar
novamente, mas foi impedido pela bota de Nate, que o manteve com as costas
grudadas no solo. A plateia estava muda.
— Eu agora sairei daqui com meu dinheiro, se não for incômodo para os
senhores.
Lucille estava assustada e extasiada. A forma como Nathaniel abateu o
agressor, limpou o sangue que ainda vertia de seu nariz e recolheu suas
fichas, enfiando-as nos bolsos, a deixou sem fôlego. Ela o seguiu à distância,
mantendo algum afastamento como todos com quem cruzavam – um
verdadeiro corredor se abria a cada passo que Nate dava. Depois de trocar as
fichas por dinheiro, aproximou-se dela e, segurando-a pelo braço, arrastou-a
para fora do cassino.
Talvez ela devesse se incomodar em ser tratada como um saco de batatas,
ou reclamar que ele não poderia a tratar daquela forma – agarrando-a,
carregando-a dos lugares, mas não conseguiu. Estava absorta no perfil duro e
masculino, cujos maxilares travados indicava que ele estava irritado. Não era
por esse motivo que Lucille se silenciara, ela não temia a irritação dele –
apesar de parecer razoável que o fizesse depois de vê-lo abater mais um
homem que tinha o dobro de sua altura. Ela estava fascinada por Nathaniel e
pela sua forma de agir, como se o mundo estivesse aos seus pés, como se ele
tivesse todo o poder dos cinco continentes dentro de seus olhos.
Era arrogante, definitivamente insolente, porém era irresistível. Lucille
nunca conhecera um homem que se portasse com tanta certeza de ser superior
aos demais, e suspeitava que toda aquela empáfia se tratava de uma proteção.
Nathaniel se protegia de algo, talvez daquilo que o transformara em um
desalmado, em um cobrador de dívidas sem escrúpulos. Ainda assim,
enquanto tudo indicava que ela deveria correr para bem longe dele, pegou-se
desejando que, depois de ser arrastada para fora do cassino, fosse jogada em
uma alcova qualquer e arrebatada por outro beijo.
CAPÍTULO DÉCIMO

S E ELE PRETENDIA PASSAR AQUELA VIAGEM SEM ARRUMAR CONFUSÃO , ESTAVA


falhando miseravelmente. Não podia colocar a culpa em Lucille daquela vez,
já que ela não fizera nada para atrapalhá-lo ou desconcentrá-lo, tanto que
estava com os bolsos cheios de dinheiro. Também não podia atribuir a ela a
briga com um homem em um cassino, mas podia dizer que, por causa dela,
ele não puxou uma faca, não sacou a pistola, nem matou seu oponente de
pancadas.
Não queria que ela o visse em seu estado mais puro, nem queria que a
polícia chegasse e colocasse a fuga dela em risco. Era suficientemente
estranho que estivesse preocupado em frustrar os planos de Lucille, mas
estivesse disposto a sacrificar os seus próprios.
Assim que eles chegaram ao maldito hotel, ela estava assustada como um
passarinho que caíra do ninho. Ao menos era o que ele acreditava, já que
Lucille arfava, com o peito subindo e descendo pela respiração acelerada que
se tornava ainda mais agitada à medida em que eles subiam as escadas.
Quinto andar – por que diabos um quarto tão alto?
— Aonde a senhorita estava com a cabeça para se meter em um cassino,
sozinha?
Ele rosnou, soltando-a assim que fechou a porta atrás deles e a colocou
em alguma segurança. Isso se pudesse considerar Lucille segura estando ao
seu lado.
— Não estava sozinha, eu fui encontrar você. Diga-me, arruma confusão
em todo lugar que vai, Sr. McFadden?
Ela estava rindo, aquela mulher irritante. Rindo dele, enquanto ele
pensava que estivesse apavorada, aterrorizada em o ver envolvido novamente
em uma contenda. Daquela vez não houve muito sangue derramado.
— Aquele homem não me deixaria sair sem que eu o derrubasse.
Infelizmente, vencer costuma nos colocar em situações complicadas.
— Parece-me que o senhor está acostumado a vencer.
— Eu nunca jogo, Lucille. Diga, o que foi fazer lá?
— Nunca joga? E dirige um antro de jogatina? Como isso funciona?
— Funciona exatamente porque eu não jogo. Por que foi até o cassino?
— Céus, não seja irritante. Eu fui atrás de você, Nathaniel McFadden, já
que me deixou sozinha esperando.
— Não a deixei esperando – pretendia que dormisse antes de meu
retorno.
— Pois não dormi. Deixe-me cuidar de seu ferimento.
Ela entrou no banheiro e retornou com uma bacia com água e uma toalha.
Indicou a cama para que ele deitasse e Nate não conseguiu evitar dar uma
gargalhada alta. Quem era aquela mulher e por que ela acreditava que lhe
podia dar ordens? Talvez porque ele já demonstrara que as obedeceria.
— Não estou ferido.
— Posso ter alguns defeitos, mas a falta da visão não é um deles. Deite-
se, não seja orgulhoso. Vou apenas limpar o sangue e ver se não houve
fratura.
— É médica, por acaso?
— Adoraria estudar medicina. — Ela confessou, impassível, esperando
que ele a obedecesse. — Toda oportunidade que tive de ler livros a esse
respeito, aproveitei. Vamos, Sr. McFadden, não tenho paciência para
teimosos. Se me permitir lhe tratar, podemos jogar pôquer.
Uma oferta e ela então tinha toda a sua atenção. Nathaniel não jogava
porque ele era bom, porque ele usualmente ganhava e porque costumava
arrancar todo o dinheiro que seus oponentes levavam. Sua vida atual era
resultado de suas habilidades nas cartas, então preferia simplesmente abster-
se das mesas de jogos. Mas nada o impedia de fazer uma aposta com uma
mulher pela qual estava louco de desejo – principalmente se ela o permitisse
adicionar alguns extras naquela partida.
Ele cedeu e se deitou. Lucille sentou-se ao seu lado, embebeu a toalha em
água fria e passou por seu rosto. Sentiu dor quando ela se aproximou do
nariz, porém não demonstrou.
— Sabe jogar, Srta. Smith?
— Não. Acho que nunca havia visto um baralho completo até jogar vinte
e um naquela hospedaria. O senhor pode me ensinar, se quiser.
— Ensinarei, mas podemos incluir uma aposta para tornar o jogo mais
interessante.
— Não tenho dinheiro para apostar. — Lucille dobrou-se por sobre ele
para examinar o nariz, fazendo com que seus corpos estivessem muito mais
em contato do que a decência permitia. Ela não parecia tão audaciosa antes, o
que mudara desde que se conheceram? — Preciso de tudo que guardei para
conseguir comprar minha passagem para a Inglaterra.
— Se queria ir para a Inglaterra, por que não embarcou em Nova Iorque,
mesmo? Por que essa aventura para chegar até Boston enquanto o porto
novaiorquino...
— Preciso desaparecer antes, Nate. — Ela disse, chamando-o pelo
apelido pela primeira vez. A forma como as letras soaram em sua boca o
fizeram endurecer. Como ele era patético! — Meu pai não pode saber que
mudei de continente ou não estarei a salvo. Preciso fugir, fingir que sou outra
pessoa, e então ir embora definitivamente.
— Parece-me que tem tudo sob controle.
E ele pensava que ela estava perdida, sem direção, desorientada. Talvez
estivesse, no início, e aqueles planos foram traçados durante a fuga.
— Qual seria a aposta?
O sorriso malicioso nos lábios dela indicava que estava interessada em
um pouco de perversão mundana.
— Cada partida ganha valerá um ponto. Cada ponto representa uma peça
de roupa que o adversário deverá retirar.
Lucille arregalou os olhos e o fitou. Nathaniel conseguiu ver suas
bochechas corarem em um tom tão absurdo de vermelho que deveria receber
outro nome. Ela colocou a toalha dentro da bacia e observou a água
transparente se tingir de sangue antes de piscar algumas vezes e o encarar.
— Certo, mas parece que o senhor me terá nua, então.
— Na verdade, eu espero que a senhorita ganhe algumas partidas, assim
eu não ficarei em desvantagem.
Ela era uma mulher inteligente para compreender as implicações da
brincadeira. Nathaniel a queria, sim, nua, para que pudesse fazer com ela o
que Lucille desejava antes daquela viagem malsucedida. Sem dizer nada,
levantou-se, levou a bacia até o banheiro, enxugou as mãos passou os dedos
pelos cabelos.
— Tudo bem, Sr. McFadden. Ensine-me a jogar pôquer.
E LE EMBARALHAVA as cartas da forma como o demônio deveria fazer no
inferno. A personificação de Hades tinha dedos habilidosos que manipulavam
o baralho com se ele fizesse parte de seu corpo. O olhar semicerrado que
escondia parcialmente o azul sombrio daqueles olhos diabólicos indicavam
que Nathaniel estava confortável – aquilo era como estar em casa, para ele.
Estavam sentados ao redor de uma pequena mesa redonda, com todas as
peças de vestuário intactas, até mesmo os sapatos. Ele não permitiu que ela
retirasse nada, alegando que isso abreviaria sua vitória – e o jogo.
— A premissa é simples. Eu distribuirei as cartas e você deve fazer uma
aposta. Depois de ver suas cartas, pode trocar até três delas por outras três do
monte remanescente, e manter ou aumentar a aposta.
— Pensei que não iríamos jogar por dinheiro.
— Não vamos. A aposta é simbólica, apenas para dar a chance de blefar.
O blefe é a parte mais importante do pôquer, até mesmo do que ter uma mão
cheia de cartas boas.
— E vou saber o que significa uma mão cheia de cartas boas?
Nathaniel riu e espalhou as cartas pela mesa, gastando algum tempo para
ensiná-la sobre as variáveis que a conduziram à vitória. Partes, trincas, mãos
cheias, straights flushs, e outros nomes que a confundiram. Lucille não
lembraria daquelas sequências na primeira vez, mas se divertiria no processo
de tentar. O problema é que ela acabaria nua antes de lembrar como um
coringa funcionava no jogo.
Os dedos treinados de Nathaniel McFadden distribuíram as cartas e ela
olhou rapidamente o que tinha em mãos. Um par de três, nada muito
importante em um jogo de ases, reis e rainhas. Manteve sua expressão
impassível e colocou uma nota de um dólar no pote – aquela era a aposta
mínima, mas todo valor seria devolvido depois. Pediu as três cartas a que
tinha direito, ele pediu apenas uma e subiu a aposta para três dólares. Já que
estava jogando, Lucille decidiu cobrir, mesmo que ela mantivesse o simples
par de três. Ao exibirem suas mãos, Nathaniel tinha uma trinca de ases.
— Não é possível que você tenha tanta sorte. — Ela resmungou.
— Um dos motivos por que eu nunca jogo no Gênesis é exatamente esse
– eu sempre ganho. Creio que eu tenha direito de observá-la retirando uma
peça de sua roupa.
Lucille se ergueu e deu uma risada nervosa, mas retirou as botas.
Nathaniel embaralhou as cartas novamente e as distribuiu, e daquela vez ela
conseguiu uma mão mais satisfatória. Mesmo assim, perdeu para um straight
flush de cinco até nove – e foi compelida a retirar as meias. Na terceira
partida, ela tirou o colete. Na quarta, conseguiu uma quadra de valetes e
venceu, o que rendeu alguns gritos eufóricos e pulinhos pelo quarto. Não que
desejasse mostrar tanto entusiasmo assim, ainda mais para aquele canalha
devasso, mas a sensação da vitória foi realmente inebriante – o que a fez
compreender parte do que Nate lhe contara, antes, sobre o que fazia os
jogadores do Gênesis retornarem sempre ao cassino.
— Agora o senhor me deve uma peça de roupa, Sr. McFadden.
Ele riu e levou as mãos aos botões de sua camisa manchada de sangue.
Lucille sentiu a boca secar imediatamente, não acreditando que ele faria
aquilo – que retiraria a camisa mesmo estando ainda com os sapatos. Mas ele
fez. Levantou-se, terminou de abrir os botões, e deixou a camisa deslizar por
seus ombros e braços até jazer no chão, em uma pilha de tecido. Aquilo não
parecia justo, afinal, ela ficaria bastante distraída do jogo enquanto aquele
homem seminu estivesse à sua frente, a um braço de distância.
Era exatamente aquela a intenção dele, fazê-la prestar mais atenção
naquele peito definido do que nas cartas. E ele conseguiu, pois ela perdeu a
partida seguinte para outro straight flush.
— Estou começando a crer que o homem no cassino tinha razão – o
senhor joga sujo.
— Ofensas e formalidade não a impedirão de cumprir sua aposta, minha
querida. — Ele a olhou de cima embaixo. — E creio que não haja muito mais
para me enrolar.
Não havia, ela estava apenas com as calças, a camisa e as roupas íntimas,
que representavam nada mais do que uma ceroula horrível e uma faixa
cobrindo os seios. O jogo certamente seria encerrado antes que aquelas peças
tivessem que sair. Lucille se levantou e abriu os botões da calça, já que a
camisa era comprida e as ceroulas lhe garantiriam alguma proteção ao olhar
escrutinador de Nathaniel. Ele a observava atentamente, nunca desviando os
olhos de seus movimentos enquanto retirava a calça, uma perna depois a
outra, e se sentava novamente para continuar a partida.
— Essa é a última mão. — Lucille determinou. — Se eu perder, não
tirarei mais do que a camisa.
Ele não disse sim ou não, não concordou nem discordou, apenas
embaralhou e distribuiu as cartas. Ela se animou ao constatar que saiu com
uma trinca e poderia fazer uma boa mão. Apostou um dólar e pediu duas
cartas, vendo sua boa mão transformar-se em um full house. Seus olhos
certamente entregaram sua empolgação. Se estivessem jogando a dinheiro,
Nathaniel teria notado a reação e retiraria sua aposta, ou não a aumentaria.
Ao final, ele tinha apenas um par de cincos e ela saiu vitoriosa da partida,
obrigando-o a livrar-se de dos sapatos, daquela vez.
Mesmo sabendo que não conseguiria se concentrar no jogo novamente,
Lucille desejou secretamente que ele fizesse o mesmo movimento arriscado
de antes e retirasse as calças. Mas, se ela o visse apenas com as roupas de
baixo, ficaria bastante distraída.
— Como você não perdeu, podemos jogar mais uma. — Ele distribuiu
novamente as cartas. — Afinal, eu não ligo de tirar as roupas.
Claro que ele não ligaria, era um libertino, além de um canalha. Lucille
manteve sua expressão desinteressada, mas sua mão veio péssima e Nathaniel
venceu e exibiu um sorriso debochado que a fez desejar o esmurrar com suas
próprias mãos e beijá-lo, ao mesmo tempo. Então era aquilo, ele a forçaria a
despir-se quase completamente para ele. Não, não forçaria, ela estava fazendo
tudo de livre vontade. Por mais desonesto, violento e mau caráter que
Nathaniel fosse, ele não a obrigara a absolutamente nada desde que se
conheceram. Ele apenas removia todas as suas barreiras e filtros sociais,
deixando-a crua como uma tela em branco.
Lucille levou as mãos aos botões da camisa, mas ele balançou a cabeça.
— Não. — O comando fez com que ela parasse subitamente o que fazia.
— Retire a faixa.
— Mas a faixa está por baixo da camisa.
— Sim, eu percebo isso. Mas gostaria de vê-la sem a faixa. Faça isso por
mim.
Ela deveria dizer não, afinal não devia nada a ele. Mas, ao mesmo tempo,
retirar a faixa era menos constrangedor do que a camisa, já que ela não se
sentiria nua. Era uma escolha que a favorecia, então Lucille aceitou. Colocou
as mãos por dentro da camisa e desamarrou a faixa de tecido, que começou a
se soltar até ficar frouxa o suficiente para que ela a puxasse. Seus seios se
libertaram e ela não resistiu a um gemido de alívio. Mantê-los confinados
estava sendo uma experiência dolorida e Lucille estava prestes a agradecer à
Nathaniel pela sugestão quando notou a forma como ele a olhava.
Um leão rodeando uma gazela – e ele estava próximo demais para que ela
fugisse. Os olhos dele foram de suas pernas semi despidas até os dois botões
abertos de sua camisa e Nathaniel umedeceu os lábios com a língua, fazendo
com que ela sentisse sede.
— Era o que você queria? — Lucille perguntou, com a voz trêmula.
Provocá-lo era uma ideia ruim, mas ela o fazia assim mesmo.
— Não.
Antes que Lucille pudesse se ressentir por não ser capaz de seduzir nem
mesmo um canalha notório, Nathaniel passou pela mesa e, com dois passos,
estava sobre ela, confinando-a entre seus braços e consumindo-a com sua
boca.
Ela não negaria para si mesma que desejou aquele beijo. Ela não apenas
desejou como antecipou o momento que aconteceria outra vez e para onde a
levaria. Da forma como Nathaniel a possuía com lábios e língua,
provavelmente o beijo a levaria para a ruína absoluta – se, depois de tudo,
ainda lhe sobrasse alguma virtude para ser salva. De olhos fechados, Lucille
era apenas sensações enquanto aquele homem a mantinha cativa em seus
braços e a devorava com a língua. Era mais intenso do que fora antes, ele
tinha o aroma de uísque e tabaco pungente e seu corpo estava mais quente.
Não, era o contato pele com pele que a confundia, porque, sem camisa, havia
muito dele para a envolver, muito dele para tocar, muito dele para sentir sob
as pontas dos dedos.
As mãos de Nathaniel entraram por dentro da camisa e acariciaram suas
costas, enquanto ele mordiscava seu lábio inferior, descia a boca para o
pescoço, passava a língua pela pele sensível atrás da sua orelha. Lucille
soltou um gemido constrangedor quando ele deslizou as mãos para a frente e,
com um repuxão, estourou os botões que ainda restavam fechados na camisa
branca imaculada que vestia.
— Céus! — Ela gemeu novamente e levou as mãos até o tecido, tentando
cobrir-se. Sem a faixa, estava completamente exposta. Ele se afastou alguns
centímetros, apenas o suficiente para olhar para ela, e inspirou
profundamente.
— Estou cansado de vê-los sem poder tocá-los.
Nathaniel não esperou que ela reagisse ou protestasse ou sequer
compreendesse o que ele dizia – levou as mãos espalmadas até seus seios e os
segurou, acariciando a pele fina com suas palmas calejadas. Lucille não teve
tempo de pensar por que o terceiro filho de um conde teria calos nas mãos, as
sensações que o toque despertou nela foram arrebatadoras demais. A boca
dele voltou para seu pescoço, espalhando calor por partes que ela não ousava
nomear em voz alta, enquanto ele acariciava suavemente os seios e
pressionava os mamilos entre os dedos.
Dor e prazer a confundiram até o instante em que ele se dobrou sobre ela
e passou a língua pela extensão de sua aréola. Lucille arfou e seus joelhos
amoleceram quando ele capturou o mamilo na boca e o sugou. Não, aquilo
não estava certo, mas era tão bom que não podia ser errado. Era errado, era
pecado, ela arderia no inferno com ele por entregar-se tão futilmente aos
prazeres carnais, por arquear as costas e expor-se ainda mais para que ele
pudesse tocá-la melhor.
Quando o diabo reclamou sua boca outra vez, puxou-a pelos quadris e a
fez sentir toda a extensão de sua excitação. Sim, aquela brincadeira iria
conduzi-la à total degradação.
— Nate...
— Diga, Lucy.
Ela deu uma risada nervosa ao ouvir seu apelido naquela boca devassa. O
homem a desorientava e a deixava no limite da perdição.
— Eu não posso fazer isso.
— Fazer o que? — Ele a segurava com uma mão nas costas e ela sentia o
corpo mole, como se seus ossos tivessem se transformado em pudim.
Nathaniel colou os lábios nos dela outra vez. — Isso? — Afastou-se e passou
a língua por seu pescoço. — Isso? — Desceu a boca até os seios e os lambeu.
— Ou isso?
— Meu Deus, nada disso. — Ela tentou se soltar, mas não queria mesmo
que ele a deixasse ir. Seus esforços em parecer casta, íntegra e decorosa não
eram muito veementes. — Eu não quero perder...
— Preocupa-se com sua virgindade agora?
Ele continuava a beijá-la, a boca e a língua passeando por toda pele que
podia tocar.
— Sempre me preocupei. O que houve antes foi uma questão de
necessidade, e agora...
— Você não necessita mais dos meus préstimos. — Foi uma constatação,
mas a forma como ele pressionou seus quadris contra os dela e a sensação da
masculinidade rígida em contato com suas partes femininas a fez gemer
novamente. — Parece-me que você está equivocada, Lucy. Ainda precisa de
mim, não é mesmo?
Ah, ela precisava, ela desejava, ela queria. Mas era errado. Se ela
sucumbisse e pecasse, nenhum homem a iria querer novamente e ela perderia
quaisquer chances de se casar. Céus, como estava confusa, e ele não a
ajudava a pensar claramente. Lucille não queria casar-se, mas também não
pretendia perder todas as chances de fazê-lo, se não precisasse.
— Não importa, nós não devemos.
Nathaniel passou os dedos por seus cabelos e beijou-a no pescoço outra
vez, subindo a boca até capturar a dela.
— Há formas de aplacar essa agonia sem tocar em sua virgindade, Lucy.
Você gosta de aprender coisas novas, deixaria que eu te mostrasse como?
Permita-me demonstrar como ganhei a minha fama.
— De canalha?
— Não, a outra.
Ele tinha um sorriso malicioso, diabólico, nos lábios, e sabia bem como a
provocar. Lucille era curiosa, realmente gostava de aprender e ouvira coisas
impressionantes sobre as habilidades do canalha McFadden – sobre tudo que
ele podia fazer com uma mulher. Sentiu-se tentada a experimentar, muito
tentada.
— Continuarei virgem?
— Sim. — Ele falava enquanto mantinha a boca sobre ela, beijando-a, e
as mãos no corpo dela, tocando-a onde ninguém tocara, ainda. — Mas estará
completamente arruinada, no sentido real da palavra.
Arruinada ela já estava há tempos. Estaria se ficasse em Nova Iorque e se
submetesse a um casamento com aquele marquês. Estaria se ele tivesse dito
sim na noite em que fora à sua casa e pedido que se deitasse com ela. Depois
de fugir e compartilhar um quarto com um devasso, de participar de
jogatinas, vestir-se como homem e beber uísque, não havia como negar que
sua alma estava além da salvação. Então, por que negar a si mesma um prazer
que poderia nunca mais sentir?
Com um movimento de cabeça, ela sutilmente, quase
imperceptivelmente, disse sim. Sim para a devassidão, para a perdição, para o
que ele estivesse decidido a fazer consigo. Os olhos de Nathaniel estavam
escurecidos pelo desejo e Lucille não conseguiu evitar sentir-se orgulhosa de
despertar naquele homem algum sentimento que não fosse ira ou desprezo.
Ele capturou sua boca com calma e suavidade, segurou-a pelas nádegas com
as duas mãos e a ergueu do chão, levando-a até a cama – qualquer uma delas
– e a depositando sobre o colchão. Inesperadamente, o canalha era delicado e
seu toque, apesar da pele grosseira de suas mãos, só despertava prazer.
Com os dedos, ele seguiu afastando o tecido da camisa e beijando o que
não alcançava, antes. Lucille fechou os olhos e se entregou às sensações.
Nate traçava, com a língua, uma linha tortuosa descendente até segurar a
calçola que vestia e puxá-la para baixo. Ela deu um sobressalto, assustada, e
arregalou os olhos, apoiando-se nos cotovelos e o encarando. Percebendo-a
desconfortável, Nate a fitou.
— Você prometeu que não... que minha virgindade...
— Permanecerá intocada, senhorita. — O demônio sorriu. — O que farei
aqui não ultrapassará sua barreira. Confie em mim, Lucy, eu sou bom no que
faço.
Contra todas as possibilidades, ela confiava nele mais do que deveria.
Ainda assim, permaneceu observando enquanto ele retirava o restante de suas
roupas e a deixava nua. Sentiu uma vergonha repentina e o impulso de
agarrar alguma coisa para se cobrir, mas ele segurou suas duas mãos e fez um
movimento de negação com a cabeça. Depois, levou os dedos até o triângulo
entre suas pernas e acariciou os pelos que cobriam sua feminilidade.
— Você é muito bonita, Srta. Smith. — Deslizando pela cama, Nathaniel
posicionou-se entre as pernas dela, abrindo suas coxas com as duas mãos
firmes. Lucille engoliu o ar, nervosa e constrangida pela forma como ele a
estudava com os olhos. Soltou um gemido estridente quando ele baixou a
cabeça e beijou sua intimidade. — E macia. — Beijou mais abaixo, levando
dois dedos a abri-la ainda mais. A vergonha a fez deitar novamente, querendo
evitar que ele a olhasse nos olhos. — Ah, o maior afrodisíaco que existe é
esse, o cheiro feminino.
Para quem falava pouco, Nate parecia bastante eloquente com ela,
naquela noite. Depois de tanto silêncio e das tentativas de Lucille em o
provocar, em fazer com que ele contasse histórias de sua vida e a distraísse
durante a viagem, ele finalmente estava decidido a conversar – e em uma
ocasião bastante inoportuna, ela considerava. Ou não. Afinal, a voz dele a
divertia e seduzia ao mesmo tempo e os elogios quase a faziam acreditar que
era especial.
Sobressaltou-se novamente quando Nathaniel passou a língua por sua
feminilidade. Daquela vez ele a segurou pelos quadris e a manteve firme
enquanto beijava, languidamente, suas partes íntimas. Lábios macios e
quentes encontraram e envolveram o centro de prazer que nunca fora antes
tocado. Lucille ouvira amigas comentarem sobre lugares em uma mulher que
causavam sensações extremamente prazerosas, mas não as procurou para
confirmar a verdade daquelas fofocas. No momento em que Nate fechou a
boca sobre aquele feixe de nervos e chupou, ela viu estrelas.
Agarrada nos lençóis, Lucille tentou acalmar seu corpo para concentrar-se
apenas em sentir. Não fora preparada para aquilo, para nada daquilo. A ama
era muito inteligente e a deixava estudar sobre tudo, mas também era muito
moralista e tratava homens e fornicação com rigor. Nenhum deles era digno,
estavam sempre atrás do pecado, e fornicar era um deles. Enquanto Nate a
lambia e beijava como se ela fosse uma deliciosa sobremesa, as palavras da
ama foram ignoradas, esquecidas em um canto empoeirado onde Lucille
guardava memórias inúteis.
Ela subitamente quis mais dele, e ele deu – mesmo que ela não tivesse
verbalizado. Um dedo a penetrou delicadamente, esticando as paredes de seu
sexo, tocando-a em lugares que ela sequer sabia que existiam. Não foi
suficiente, ele penetrou outro dedo e os moveu para dentro e para fora.
Lucille gemeu e murmurou o nome dele.
— Nate.
Ele ergueu os olhos e passou a tocá-la com os dedos, mantendo uma
fricção deliciosa em seu ponto mais sensível.
— Lucy. — Sorriu novamente, beijando-a na barriga e retornando para o
meio de suas pernas. — Entregue-se, não resista. Quando sentir que está
prestes a cair de um precipício, jogue-se.
O exemplo a assustou, mas a boca dele em sua feminilidade a distraiu
outra vez. Nathaniel não estava mais lento ou delicado, as investidas de sua
língua se tornaram rápidas, intensas e cadenciadas. Logo, ela entendeu por
que ele falava em precipícios. Seus músculos contraíram e Lucille sentiu uma
agonia dominá-la, um crescendo em seu ventre que a fez querer gritar. Ela
gemeu o nome dele enquanto arqueava as costas e pressionava a cabeça no
travesseiro. Ao perceber que ela estava chegando em algum lugar, Nathaniel
introduziu os dedos novamente em sua abertura e ela saltou.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

V IRGENS ERAM GERALMENTE IRRITANTES E PUDICAS . N ATHANIEL NÃO GOSTAVA


de as levar para a cama porque muitas delas não se entregavam aos prazeres
da carne e lamentavam o defloramento, depois. Prometera para si mesmo que
não iria mais querer virgens em seus intercursos sexuais, mas lá estava ele
com uma em seus braços. Mais precisamente, estava no meio das pernas de
uma enquanto lhe proporcionava um prazer que ela nunca sentira.
Mas Lucille, como esperava, não era uma mulher comum. Suas atitudes e
vocabulário dificilmente pertenciam a uma senhorita casta e ingênua como
aquelas pelas quais mantinha restrições. Ela resistiu a ele porque era o que o
decoro exigia, porque fora criada para não se entregar sem que estivesse
abençoada pelos laços do matrimônio, mas apenas o suficiente para o
provocar – não para o afastar.
Foi uma experiência excepcional proporcionar a ela um orgasmo – o
primeiro orgasmo, ele apostaria todo o dinheiro que ganhara no cassino nisso.
Quando percebeu que ela estava perto, fez de tudo para que o momento
chegasse e, sem medo, ela se atirou em direção a ele. Isso fez com que a
desejasse ainda mais, mas prometera que preservaria a virgindade dela.
Maldição, se ele abrisse as calças e montasse sobre ela, certamente seria
recebido de bom grado. Rendida como Lucille estava, ela não faria objeções
imediatas ao ato sexual. Depois, talvez, ela o odiasse para sempre.
Ele não queria ser odiado por ela e isso era bastante curioso. Além disso,
Nathaniel McFadden não precisava trapacear para estar dentro das mulheres –
em algum momento, Lucille pediria por ele, que estaria ali para atender seus
desejos.
Dolorido e com uma ereção aprisionada, ele deslizou por sobre ela,
deitou-se de costas na cama e a puxou para si. Não costumava aconchegar
mulheres depois do sexo, mas ela era uma virgem, por Lúcifer. Ele deveria,
ao menos, dar a ela algo em que se agarrar até as sensações do orgasmo se
tornarem menos arrebatadoras.
— Isso foi... — ela pausou a fala e ofegou. — Entendo agora por que
metade de Nova Iorque já esteve em sua cama e a outra metade queria estar.
Lucille beijou sua pele bem ali onde estava recostada e enrolou os dedos
na cobertura de pelos do seu peito. Com uma das pernas por sobre a dele, ela
estava embolada com ele de uma forma que tornava difícil voltar a um estado
de normalidade. Se continuasse ali, não resistiria em possuí-la.
— Creio que esteja exagerando, mas entendo a sensação. — Ele deu uma
risada e moveu-se, querendo levantar-se. Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Aonde vai?
— Para a outra cama. Entendo que concordamos que sua virgindade
permaneceria intocada, portanto...
Nathaniel desvencilhou-se dela e saiu da cama já querendo retornar.
— E não há nada que possa fazer para... — ela mirou diretamente naquela
parte de sua anatomia que estava destacada pela excitação. Duro como
granito, Nate não tinha como esconder sua ereção nem se colocasse um
travesseiro na frente. — para satisfazê-lo?
Meu Deus, ele não podia nem pensar nas várias formas em que aquela
mulher linda poderia satisfazê-lo.
— Já viu um homem nu, Lucille?
Ela arregalou os olhos, aturdida. Ele era realmente bom em assustá-la.
— Você quer dizer completamente despido?
— Sim, certamente. Não sabia que havia mais de uma interpretação para
a nudez.
— Nunca vi um. — Lucille riu, nervosa. — Você pretende me mostrar?
— Se for o seu desejo...
As bochechas dela coraram, tão vermelhas quanto se eles estivessem em
pleno ato sexual. Aquela profusão de cores o deixava ainda mais duro, pois
era como se as tolices ingênuas de Lucille despertassem nele mais desejo de
possuí-la. Tímida, ela balançou a cabeça para cima e para baixo, assentindo.
— Olhe para mim. — Nate provocou. — Mantenha seus olhos em mim
enquanto eu faço isso.
Ela obedeceu, mas as mãos que seguravam um lençol sobre seu corpo
feminino estavam trêmulas. Nathaniel levou as mãos aos botões de sua calça
e os abriu, fazendo com que o tecido se embolasse aos seus pés. Como não
usava nenhuma roupa por baixo, sua ereção saltou no instante em que se viu
livre, clamando por alguma atenção. Lucille arregalou ainda mais os olhos.
— É impressionante. — Murmurou.
— Mais impressionante é o que ele pode fazer com você. — Nathaniel
voltou para a cama, engatinhando na direção dela como um felino. — Mas
combinamos que não faremos isso hoje. Ainda assim, você o quer tocar?
— To-tocar? — Lucille engasgou-se. — Com as mãos?
— Por enquanto, sim.
Ele se sentou ao lado dela e ajeitou as pernas para frente. Depois,
arrancou o lençol de sua mão e a puxou por sobre si, fazendo com que as
pernas de Lucille o envolvessem pelos quadris. Era uma posição erótica, uma
de suas favoritas, mas ele não a penetraria. Não descumpriria sua promessa.
Mesmo tentando manter os olhos nos dele, ela não conseguiu evitar notar
como a ereção se acomodou perfeitamente entre os dois corpos.
Nate a beijou, tomando a boca que ainda estava vermelha dos beijos
anteriores, fazendo-a relaxar e desejar mais. Lucille apoiou as mãos no peito
dele e o acariciou nos ombros. Mantendo sua boca sobre a dela, segurou-a
pelos dedos e os desceu até seu membro pulsante. Ela estremeceu ao tocar a
pele lisa e macia de sua masculinidade, mas não se afastou – ao contrário,
envolveu-o nos dedos e fez com que ele soltasse um gemido baixo.
Ele a guiou, demonstrando como gostava de ser tocado. Lucille desviou o
olhar para espiar o que estava fazendo e Nathaniel quase chegou ao clímax só
por vê-la tão absorta e maravilhada com sua anatomia. Acostumado à nudez,
à devassidão e a corpos suados, ele não se chocava com nada. Mas ela era
uma senhorita imaculada. Antes dele, sequer fora beijada da forma correta –
com paixão e volúpia. Para ela, a experiência era única – e talvez fosse, pois,
se ela se casasse com um homem íntegro e insosso, dificilmente repetiria
aquele ato.
À medida em que ela compreendia o ritmo que o fazia gemer de prazer,
Nathaniel pode soltar suas mãos e concentrar-se em tocá-la. Beijou-a outra
vez e acariciou os seios, que eram lindos e macios. Desde que os percebeu,
dias atrás, ele quis saber se cabiam em sua mão, que textura e gosto teriam
em sua língua. Pressionou os mamilos entre o indicador e o polegar e ela
choramingou, movendo os quadris em busca de mais contato. A reação dela
ao seu toque potencializou o desejo de Nate.
— Lucy. — Ele murmurou o nome dela. — Mais rápido.
Mesmo distraída e perdida em seus beijos lascivos, ela o entendeu. As
mãos pequenas, que o envolviam com delicadeza, subiam e desciam por seu
membro cada vez mais rígido, cada vez mais próximo de uma explosão. Sem
conseguir se segurar mais, ele a cobriu com suas mãos, acelerou ainda mais a
fricção e se entregou ao alívio.

N ATHANIEL NÃO SABIA os protocolos do depois, porque, para ele, o depois


representava vestir-se e ir embora. Quando seduzia uma mulher e a levava
para casa, não era para a sua cama – assim, garantia que poderia dormir
tranquilamente em seus aposentos. Quando o encontro acontecia onde ela
escolhesse, assim que o intercurso terminava, ele se despedia com uma
desculpa qualquer e desaparecia. Todas as mulheres sabiam que Nate não
ficava para o dia seguinte, nem servia para conversar ou beber um brandy
depois de fazer amor.
Claro, ele não fazia amor. A satisfação corporal era uma necessidade
física, não tinha envolvimento com as coisas do coração – e ele preferia
manter assim. Mas, naquela noite, ele estava preso em um mesmo quarto de
hotel com Lucille, tendo cometido o erro de seduzi-la. Não era um erro,
afinal, ele a desejava. Mas não sabia o que fazer com ela depois de espalhar
sua semente por entre eles, em uma atividade bastante erótica e intrigante.
— Eu vou me lavar.
Lucille tomou a iniciativa, levantou-se enrolada no lençol e foi até o
banheiro. Ele permaneceu deitado, com os braços cruzados atrás da cabeça,
sentindo-se física e emocionalmente satisfeito. Fazia algum tempo que o
intercurso sexual não lhe concedia paz e ele sequer deveria estar tranquilo –
havia homens perseguindo sua companheira de viagem e um irmão
desaparecido, talvez falecido, para encontrar. Ouviu-a ligar o chuveiro e o
barulho da água caindo o relaxou ainda mais. Não devia dormir, ainda,
precisava limpar-se, vestir-se, mudar de cama. Mesmo assim, acabou
fechando os olhos e se entregando ao cansaço.
Despertou com o toque delicado da mão úmida de Lucille. Estava coberto
por um lençol e ela vestida com uma ceroula masculina e uma camisa branca.
No dia seguinte ele lhe compraria uma camisola, assim poderia dormir com
uma vestimenta adequada. Não, no dia seguinte eles iriam para Norwalk e ele
não compartilharia outro quarto com ela.
— Já é de manhã?
— Não. — Ela riu. — A água está bem quente, se quiser um banho.
Nathaniel afastou o lençol e exibiu sua nudez apenas para vê-la corar.
Entrou debaixo da água, limpou os resíduos de sua semente que estavam ali
para mostrar que aquela virgem pura não era mais tão pura, nem tão virgem,
quanto antes. Suas barreiras continuavam intactas, nenhum homem
suspeitaria que ela esteve com ele – mas ele sabia quem fora seu primeiro.
O primeiro. Havia alguma glória em deflorar uma mulher, mas ele nunca
se importou sinceramente com isso. E, com Lucille, ele se importava. Pegou-
se sorrindo debaixo do chuveiro por saber que foram seus dedos e sua língua
que concederam prazer a ela pela primeira vez. Que, até suas investidas, ela
nunca fora tocada em sua feminilidade e desconhecia o potencial de seu
corpo.
Quando retornou para o quarto, ela estava deitada de lado, com as mãos
unidas debaixo de sua cabeça. Contra seus hábitos, Nathaniel vestiu uma
ceroula e se deitou junto com ela. Na mesma cama, colocando um braço por
sobre ela. Lucille virou-se e o fitou por alguns segundos, até acomodar-se em
seu abraço e fechar os olhos.

L UCILLE SONHOU outra vez com Nathaniel ao seu lado. Ele fora bastante
gentil no sonho anterior, apenas abraçando-a para que o frio passasse.
Naquele, no entanto, ele mostrava sua verdadeira face – devasso e indecente,
seduzindo-a com beijos intensos e libidinosos. Despertou suada, um pouco
agitada, para descobrir que, na verdade, não estivera sonhando – ao menos
em parte. Estava com o nariz no peito despido de Nathaniel e ele a mantinha
cativa com braços e pernas.
Ambos meio vestidos, o que revelava que não acontecera nada. Mais
nada, pois o que aconteceu antes foi o suficiente para a desorientar por
completo. Ela fechou os olhos novamente e inspirou o cheiro de pele
masculina e sabão. Para ele, aquilo não simbolizava nada – Nate era um
homem promíscuo e sem apego emocional com mulher alguma. Se as outras
famas dele eram verdadeiras, aquela deveria ser, também. Mas Lucille estava
bastante afetada. Nunca fora beijada como ele a beijara, nem tocada como ele
a tocara. Ele descobriu partes dela que estavam escondidas e a apresentou a
experiências incríveis. Como poderia ser tudo igual depois daquela noite?
Não poderia. E, ainda assim, ela não deveria entregar-se a nenhuma
dúvida, pois as dúvidas a conduziriam a um abismo irracional do qual não
saberia fugir. Lucille tinha planos – fugir, escapar, tornar-se outra pessoa,
realizar sonhos. Ela mal sabia quais eram esses sonhos, mas pretendia
descobri-los. Associar-se a Nathaniel McFadden era bom pois ele a ajudaria
na fuga, e nada mais. Nenhuma outra aliança poderia ser forjada entre eles.
— Bom dia. — A voz dele ecoou no fundo de sua alma. O movimento
daquele corpo masculino a abalou e Lucille precisou abrir os olhos e afastar-
se um pouco. — Que horas são?
— Não teria como saber, o senhor está me mantendo presa à cama.
Ele riu, a risada reverberando dentro dela. Nathaniel se ajeitou na cama e
Lucille sentiu a exuberância da ereção pressionar sua barriga.
— É por isso que não durmo com mulheres. — Ele se virou e a
enclausurou debaixo daquele corpo pesado. Lucille estava zonza e a
proximidade excessiva entre eles não a estava ajudando. — Não é divertido
acordar sentindo essa necessidade de alívio, Lucy.
Os quadris dele a pressionaram contra o colchão e ela gemeu quando a
boca dele a possuiu. Não seria capaz de livrar-se daquela ameaça porque ela o
desejava, ela continuava desejando mesmo depois do que fizeram na noite
anterior. Batidas a porta a salvaram de encontrar a ruína.
— Nate?
A voz de um homem assustou Lucille e Nathaniel se ergueu, sentando-se
na cama.
— Maldição, é Leonard.
— Seu amigo? — Ela arregalou os olhos e puxou qualquer coisa que
pudesse cobri-la mais. Entregara-se ao diabo e vendera a sua alma para o
inferno, mas apenas um homem poderia vê-la seminua. — O que ele está
fazendo aqui?
— Tentando evitar que eu me meta em confusão. Acho que chegou tarde.
— Nate, abra a porta. Precisamos sair daqui.
Havia um tom de alerta na voz do desconhecido, então algo estava errado.
Nathaniel saltou da cama e foi abrir a porta, enquanto Lucille escolheu
qualquer coisa que pudesse vestir e fechou-se no banheiro. Seu coração
disparou, as batidas estavam tão aceleradas e altas que talvez pudessem ser
ouvidas no quarto vizinho. O que ela estava fazendo?
Recostou as costas na porta e jogou a cabeça para trás, fechando os olhos
e respirando profundamente. Deveria acalmar-se para não demonstrar
nenhuma fragilidade desnecessariamente. Viu sua imagem no espelho que
ficava à frente e não conseguiu se reconhecer imediatamente. Os cabelos
emaranhados e curtos, a boca vermelha e inchada, uma marca arroxeada no
pescoço e outras que deveriam estar espalhadas por partes menos pudicas.
Suas mãos ainda tremiam e ela sequer sabia se era pela tensão ou pelo esforço
de mantê-las longe de Nathaniel.
Seu coração ainda martelava nas costelas quando ouviu a voz alterada dos
homens do lado de fora.
— Há homens perguntando pela Srta. Smith na estação de trem. Temos
que ir, não podemos ser associados a ela ou acabaremos acusados de
sequestro.
— Eu acabarei acusado, Leo. — Nathaniel rosnou. — O quão grave é a
situação?
— Havia pelo menos quatro homens atrás dela. Walter Smith não é tolo,
ele deve considerar todas as possibilidades e não está economizando. Prefere
pagar capangas ao eventual resgate da filha. O melhor a fazermos é
abandonarmos a mulher e seguirmos até Norwalk.
O silêncio a incomodou, mas durou apenas alguns segundos.
— Não, eu não a deixarei. Lucille seguirá conosco até Norwalk.
— Lucille? Ela te garantiu intimidade para tratá-la pelo nome de batismo?
Ah, ela garantiu a ele uma intimidade muito maior e isso a estava
consumindo. Culpa e desejo passaram a conviver dentro dela desde que
conheceu Nathaniel McFadden e ela não sabia qual venceria o duelo.
Terminou de vestir-se, garantiu que a faixa estivesse bem ajustada e saiu do
banheiro para encontrar o seu canalha também vestido como um lorde e o
outro – o amigo Eckley. Como não o conhecia, manteve uma expressão de
desinteresse e fragilidade, aquela que todas as mulheres apresentavam
quando conheciam um homem.
Os dois viraram-se para ela. Nathaniel sorriu – e ela odiou ter gostado
tanto daquele sorriso. O Sr. Eckley a fitou dos pés à boina que escondia
parcialmente os cabelos.
— Bom dia, senhores.
— Lucille, esse é Leonard Eckley. — Ela foi apresentada, como exigia o
decoro, mesmo que nenhuma outra regra da decência estivesse sendo
observada naquela fuga. — Ele vai conosco até Norwalk.
O Sr. Eckley olhou para Nathaniel e para ela novamente, demonstrando
incompreensão.
— Céus, esse é o pior disfarce que já vi. — Ele girou ao redor de Lucille
e continuou observando-a. — Vocês não estão enganando ninguém.
— Estamos enganando quem precisa ser enganado. As pessoas veem o
que querem, Leo. Vamos, precisamos ir embora, mas temos que comer
primeiro. Você deve estar com fome, Lucy.
Nathaniel disse aquilo olhando diretamente para ela e com uma imensa
carga de sedução na voz, fazendo-a sentir as bochechas arderem de tanta
vergonha. Seria difícil seguir adiante com seus planos se ele decidisse que ela
deveria ser seduzida – porque Lucille não tinha certeza se estaria apta a
refutá-lo. Talvez a presença do Sr. Eckley fosse bem-vinda, afinal.
— Vou alugar um cavalo. Encontro vocês em meia hora nos estábulos?
— Não comerá nada?
— Já comi meu desjejum na estação.
O Sr. Eckley assentiu e saiu pela porta, deixando-os para trás. Lucille
estava mais lenta do que o seu normal, bastante zonza pelo despertar confuso
e pela presença de outra pessoa em sua fuga. Pressentindo seu desconforto,
Nathaniel levou a mão até seu queixo e fez com que olhasse para ele.
— Ele é de confiança. — Disse, com uma expressão indecifrável. —
Vamos, não podemos perder tempo aqui. Somos procurados.

A CHEGADA de Leo Eckley era um freio para sua libido, mas Nathaniel
entendia que era melhor ter alguém para o controlar. Em Norwalk ele
descobriria sobre a pista que o levaria a Emile e Lucille seguira seu caminho
para Boston. Era uma pena que ele não tivesse a oportunidade de mostrar
para ela a potência de um amante, mas os momentos compartilhados foram
suficientes. Não, não foram suficientes e, por isso mesmo, Leo seria de
grande valia – ou ele acabaria devassando Lucille Smith no primeiro arbusto
que encontrasse na estrada.
Depois de um café da manhã um tanto constrangedor, em que ela ficou
em silêncio quase todo o tempo, os dois foram aos estábulos para buscar os
cavalos. Estavam descansados, o que os permitiria viajar direto até Norwalk e
pelas vias mais difíceis de acesso – o que poderia dificultar a perseguição dos
caçadores de recompensa. Depois de montados, encontraram Leonard os
esperando na via de acesso – mas que também os conduziria para fora da
cidade, subindo para o norte.
Lucille não parecia confiar em Leo como Nate confiava. Apesar de ele ser
um grande mentecapto, era seu amigo – e fora quem o mantivera são durante
o mês que ficaram confinados naquela prisão, esperando pelo abate.
Nathaniel não queria pensar naquilo, não precisava reviver memórias de um
ano atrás, nem relembrar os motivos que o tornaram um canalha. Também
não precisava preocupar-se com mais nada, já que, em poucas horas, cada um
seguiria seu caminho.
A viagem fora silenciosa, a princípio. Leonard observava, provavelmente
intrigado pela interação íntima demais entre o amigo e a fugitiva. Nate
apreciava não ter que conversar, assim não enfrentaria novos interrogatórios
de Lucille. E ela estava visivelmente constrangida. Suas bochechas
permaneciam com aquele rubor indecente que fazia Nathaniel salivar e
endurecer ao mesmo tempo, mesmo que ele precisasse, com todas as suas
forças, manter-se concentrado. Não podia se deixar excitar por qualquer
suspiro que ela dava. Nem pelas imagens da mulher nua que sua mente
insistia em mostrar.
Por uma hora, eles se estranharam e se reconheceram. A paisagem era
constante – os black birches 1 com suas folhas exuberantes sombreando a
estrada, vegetação rasteira, uma trilha bem demarcada com saibro e o ruído
indicando que estavam próximos de um curso de água. Todas as estradas,
fossem elas muito ou pouco frequentadas, seguiam os rios. Tudo que se ouvia
eram os cascos dos cavalos e os pássaros que farfalhavam as folhas com em
seus voos e gritos.
— O que diz a pista do seu irmão? — Lucille aproximou-se dele,
emparelhando os cavalos.
— Que um homem com suas características foi encontrado na praia,
bastante ferido. Mas pode não ser ele.
— E pode ser. Espero que seja.
Ela sorriu. A sinceridade em sua alegria o desarmou. Nathaniel não estava
mais acostumado a pessoas francas. Todos que o cercavam eram jogadores –
e estavam sempre blefando, ou homens de moral e dignidade duvidosas – e
estavam sempre dissimulando ou mentindo. Aquela mulher era honesta em
tudo, principalmente nos seus sentimentos, e não parava de surpreendê-lo.
— A pessoa que deu a informação vai o encontrar em Norwalk?
Leonard olhou para trás, provavelmente estranhando a interação entre
eles. Nate era conhecido por seu humor sombrio e raramente gostava de
conversar. Não respondia questionamentos, os fazia. Seu agir com Lucille era
significativamente diferente do seu agir com as demais pessoas e isso
certamente causou estranheza em seu amigo.
— Não, Lucy, eu sequer sei quem passou a pista. A informação veio
anônima e teremos que chafurdar a cidade atrás de alguma coisa. Por isso
trouxe uma fotografia de Emile, assim poderei perguntar se ele foi visto.
— Tem uma foto de seu irmão? Ela não ficou na carroça?
— Jamais deixaria Emile em uma carroça. Está no bolso interno do meu
casaco.
Lucille sorriu novamente e aproximou mais os cavalos. Sussurrou alguma
coisa na orelha de Hades e soltou o arreio, levando a mão até os botões do
casaco de Nathaniel. Antes que ele pudesse reclamar pela intromissão, ela os
abriu e buscou o bolso interno, encontrando a fotografia. Estava curiosa sobre
Emile e demonstrava um desprendimento que não era saudável. Ninguém
podia sentir-se tão à vontade na presença de Nate, ele era intimidante e não
gostava que o tocassem sem autorização. Mas ela ignorava aqueles alertas ou
sentia que podia fazer qualquer coisa que outras pessoas não pudessem.
— Ele é tão jovem!
— Fez vinte e seis anos. É o McFadden mais jovem, se contarmos apenas
os irmãos. Eu acredito que ele esteja vivo porque Emile é um sobrevivente.
Nasceu prematuro e o médico o entregou para mamãe segurar dizendo que
ele não passaria daquela noite. Ela nunca acreditou nisso, já havia parido três
filhos e sabia como cuidar de outro bebê. Apesar de ter desafiado os médicos,
Emile sempre foi frágil. Tinha pulmões ruins, nunca brincava conosco e
tomava muitos tônicos. E, um dia, pouco depois do acidente de Isaac, ele
decidiu que precisava se curar. Não sei o que fez Emile mudar, mas ele
passou um ano na faculdade, formou-se e voltou para casa outro homem,
forte como um touro.
Ele também não sabia o que o fizera abrir seu coração daquela forma.
Não, Nathaniel não abria nada, menos ainda o coração que era duro como
pedra. Estava contando uma história para distrair Lucille porque ela gostava
de ouvi-lo e estava curiosa. Ainda com um sorriso, ela colocou novamente a
foto no bolso do casaco e deslizou a mão pelo braço dele, até segurar seus
dedos e os levar até a boca. Em um ato bastante espontâneo – e indecoroso,
ela beijou os nós de seus dedos com lábios quentes e macios, para então
retornar a segurar as rédeas do seu cavalo.
Era um gesto gentil e Nate detestava gentilezas. Desde que chegara em
Nova Iorque, toda gentileza direcionada a si era interessada – sempre queriam
mais dele, ou havia coisas que deveria fazer para merecer que fossem
educados consigo. Tudo se resumia em uma troca, em o que alguém poderia
fazer para receber algo. Não havia atos abnegados, o discurso altruísta era
uma grande bobagem.
A conversa os distraiu o suficiente para não perceberem o tempo passar.
Depois de mais algumas milhas percorridas, a cidade de Norwalk despontou
à frente. Era cedo o suficiente para que fossem diretamente procurar
informações sobre Emile, o que levou Nathaniel a emparelhar o cavalo com o
baio alugado de Leonard para traçar estratégias.
— Vamos nos separar para cobrir uma área maior. Temos alguns pontos
de interesse para perguntar sobre meu irmão.
— Estação de trem, agência postal, hospital, parque público. Há um
parque público em Norwalk?
— Sim, e tenho tudo mapeado.
Nate tirou do bolso, o mesmo onde estava a foto, um papel com as
localizações dos pontos principais onde poderiam interrogar pessoas sobre
Emile. A maioria ficava em zona de encosta.
— Sua organização continua impecável, apesar da enorme distração que
arrumou para si. — Leonard olhou para trás. — Deixe-me andar com ela um
pouco, você precisa de foco, meu amigo.
— O que o faz pensar que não estou focado?
— O fato de ter dormido com ela essa noite?
Maldição, era óbvio que Leo descobriria – não que ele estivesse fazendo
questão de esconder seu envolvimento com Lucille.
— Não dormimos juntos.
— Só havia uma cama desarrumada quando cheguei.
— Isso nunca me atrapalhou a fazer meu trabalho, Leo.
— Prometo cuidar dela. Vamos ao hospital, sabe que mulheres são muito
mais sensíveis para essas tarefas.
Nathaniel respirou fundo. Aquele diálogo era absurdo. Lucille não era
dele para que tomasse decisões a seu respeito nem para que se importasse
com sua segurança. Bem, ele se importava, mas confiava em Leo. E sim, ela
certamente era bem mais sensível do que os dois juntos.
— Mas ela não é uma mulher, é um homem, para todos os fins. Converse
com ela, não é minha essa decisão.
Leonard assentiu e os cavalos prosseguiram até a entrada da cidade. A
facilidade de viajar por estradas secundárias era, além da privacidade e do
silêncio, a possibilidade de chegar sem ser notado – isso permitiu que se
aproximassem sorrateiramente de uma pensão para viajantes. Nathaniel
entrou para registrar quartos a fim de permitir que passassem a noite e deixou
que os outros dois conversassem sobre o desenrolar do restante do dia.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

E LA SUSPEITAVA QUE L EONARD E CKLEY NÃO GOSTAVA DELA , MESMO QUE ELES
sequer se conhecessem. Era a forma como ele a olhava, ou porque
conversava com Nathaniel sempre na intenção de separá-los de alguma
maneira. Quando ele se aproximou de Lucille, depois que os cavalos foram
entregues a um cavalariço, foi para questionar suas intenções.
— Srta. Smith, creio que precisarei de sua ajuda hoje. Importaria de me
acompanhar até o hospital e à agência postal?
O sorriso do Sr. Eckley era bem mais aberto e talvez mais encantador que
o de Nathaniel. Era como se ele não usasse máscaras nem subterfúgios e não
se escondesse atrás de nenhum papel. Mas Lucille não era tola, ela sabia que
homens não eram confiáveis e que aquele homem deveria ser menos
confiável que os outros.
— Em que poderia ajudar?
— O hospital da cidade é um lugar horrível, cheio de moribundos,
cuidado pelas freiras. A senhorita teria muito mais acesso do que eu ou Nate.
Lucille olhou para si própria e depois encarou o Sr. Eckley. Ele mantinha
o sorriso galanteador. Mesmo precisando de dois ou três minutos, ela
compreendeu o que ele queria.
— Então o senhor sugere que eu me vista de mulher, novamente?
— Sim, sugiro. Não se preocupe, senhorita, os capangas que a procuram
não irão a um hospital.
— Não tenho roupas femininas.
— Providenciaremos uma. Há lojas por aqui.
A ideia era tentadora por dois motivos. Primeiro, ela não aguentava mais
as faixas e as calças, por mais libertadoras que fossem, esquentavam o meio
de suas pernas. O motivo do calor poderia ser outro, provavelmente estaria
relacionado a um homem loiro, um par de olhos azuis e mãos provocadoras.
Mas, ainda assim, ela gostaria de usar vestidos novamente – afinal, foram
vinte e sete anos com saias e calçolas abertas, então as ceroulas a estavam
enlouquecendo. E o segundo motivo era querer ajudar Nathaniel a encontrar
seu irmão. Ele falou de Emile com tanto sentimento que a fez perceber que
era real, ele amava o irmão.
Se fosse de alguma utilidade, ela arriscaria ser reconhecida.
— Tudo bem, Sr. Eckley. Vamos.
— Perfeito. Avisarei Nathaniel que estamos indo e nos encontraremos
aqui ao final da investigação.
Lucille olhou ao redor enquanto esperava. Havia muita gente pelas ruas e
qualquer uma daquelas pessoas poderia a estar procurando, da mesma forma
que eles procuravam por Emile. Não sabia se caçadores de recompensa eram
barulhentos e anunciavam sua chegada. Era mais provável que andassem
pelas sombras e isso ampliava o risco. O Sr. Eckley retornou logo e a
conduziu para um conjunto de pequenos estabelecimentos comerciais que
ficava em outra quadra. Entraram em uma loja de roupas femininas pré-
prontas, do estilo que ela nunca usou – porque uma Smith sempre se vestia
com exclusividade.
A vendedora a conduziu para uma sala fechada e entregou diversas peças
para que experimentasse. Lucille pediu de tudo, desde roupas íntimas até
sapatos. Separou um conjunto de seda e fitas lilases e pensou se Nathaniel
gostaria deles. Depois, vestiu as meias pretas e bordadas e o imaginou
passando a mão por cima delas. Uma jovem a ajudou a fechar o espartilho e
Lucille desejou que fossem as mãos dele puxando as fitas. Depois de se
enfiar em um lindo vestido branco com corpete e mangas de renda e babado
na frente, ela ainda podia sentir como se fora Nate que a vestira. Estava
completamente fora de si e sequer sabia se era efeito do que compartilharam
na cama.
Tentando afastar as imagens tentadoras do homem que a estava
enlouquecendo, gostou do que viu no espelho. Lindos botões perolados
formavam pequenas flores bordadas pela parte superior e a gola era
delicadamente fechada no pescoço. Com um chapéu pequeno para o dia e um
ajuste nos cachos curtos, Lucille estava como uma mulher comum, porém
bem vestida.
— Agora sim, a senhorita encantará as freiras.
— Sorte a sua, Sr. Eckley, que eu costumava visitar o orfanato com
minha mãe. Conversar com freiras é quase uma especialidade minha.
Leonard Eckley ofereceu a ela o braço. Se estava vestida novamente
como uma mulher, era adequado que caminhasse pela cidade acompanhada –
e aquela companhia parecia segura o suficiente. Ele usava um traje completo
mais elegante que o de Nathaniel e tinha um porte mais altivo, como se não
carregasse o mundo sobre as costas. Pegaram um coche de aluguel até o
hospital e pediram para conversar com a diretora.
Foram recebidos em uma sala pequena. As instalações do hospital
assustaram Lucille – precárias e muito diferentes do que havia em Nova
Iorque. Talvez aquele não pudesse ser classificado como um hospital, mas
como um mero depósito de pessoas enfermas cujas doenças dificilmente
seriam curadas. Permitindo que ela falasse, Leonard Eckley entregou a foto
de Emile e manteve-se de pé, afastado.
— A senhorita está procurando este senhor? — A diretora colocou um
par de óculos pendurado na ponta do nariz — E acha que ele estaria aqui?
— Na verdade, senhora, eu não imagino onde ele poderia estar. Na última
notícia que tivemos dele, estava ferido e com risco de morte. Ele é meu primo
e minha tia está desolada.
— Entendo. Se a senhorita aguardar um minuto, levarei essa fotografia
para as salas dos enfermos e verei se ele se encontra entre eles. Também verei
se alguma enfermeira se lembra dele, mas não tenho muitas esperanças. Um
homem bonito assim seria difícil de esquecer.
Lucille sorriu e agradeceu. Ela também entendia a freira – era quase
impossível parar de pensar em Nathaniel. Se o irmão fosse parecido com ele,
também teria carisma suficiente para ser memorável. Mas havia esperança,
ele poderia estar inconsciente.
Esperaram por quase meia hora em um corredor no primeiro andar, de
onde podiam ver o pouco movimento no térreo. Quando a freira retornou, não
trouxe boas notícias.
— Infelizmente, nenhuma de nossas enfermeiras o viu. Ele também não é
um dos enfermos, nenhum dos que está aqui tem ferimentos, apenas doenças
do corpo e da alma.
— Agradeço sua atenção. — Lucille segurou as duas mãos da mulher. —
Posso deixar um telefone com a senhora? Assim, se meu primo aparecer por
aqui ou se a senhora ficar sabendo dele, poderia me contatar?
— Será um prazer ajudar.
Ela foi até Leonard Eckley e pediu que ele anotasse o telefone do
Gênesis. Não diria para a freira que era de um clube de jogos ilícitos e um
antro de prostituição, mas precisava dar a ela alguma forma de contato.
Afinal, era possível que notícias de Emile ainda chegassem aos seus ouvidos.
Depois de deixar o telefone com seu nome anotado, saiu rindo da composição
que fizera. Se era prima do desaparecido, achou por bem manter o sobrenome
dele – e se tornou Lucille McFadden.
Era cômico que usasse o sobrenome do homem pelo qual estava
ligeiramente encantada. Aquilo a fez rir de nervoso, deixando o Eckley
ligeiramente confuso. Depois de saírem do hospital, foram à agência postal,
onde havia um grande tráfego de pessoas. Lucille ficou nervosa ao chegar,
temendo que ali houvesse algum homem à sua procura. Manteve o chapéu de
lado e o rosto virado na direção do Sr. Eckley, evitando que a olhassem
diretamente.
— Não precisa preocupar-se. — Ele sussurrou próximo a ela. — Se tiver
algum caçador de recompensas por aqui, saberei.
Lucille não duvidou, aqueles homens pareciam ter um senso aguçado de
preservação que os permitia perceber tudo ao redor. Sentindo-se ainda
insegura, ela tentou se portar como era esperado de uma mulher – servindo de
decoração. Leonard Eckey circulou pelo lugar mostrando a foto de Emile a
diversas pessoas, fazendo perguntas, enquanto ela segurava na dobra de seu
cotovelo e mantinha a expressão amável. A agência postal era pequena,
portanto, passaram a circular pelas ruas, onde havia um pequeno comércio.
Viraram algumas esquinas, perguntaram a lojistas, até que pararam
subitamente.
— Há um burburinho estranho por aqui. Não somos apenas nós que
estamos procurando alguém.
— Como sabe?
O Sr. Eckley olhou para o lado e indicou, com um movimento de seu
maxilar quadrado, algumas pessoas que conversavam alguns metros distante.
Eram homens que mostravam um papel para algumas mulheres,
possivelmente uma fotografia. Lucille sentiu seu coração disparar, dominada
pelo medo.
— Mantenha a calma. Vamos sair daqui e voltar para a pensão.
Ela o seguiu, tentando não demonstrar seu nervosismo. Suas mãos
suavam dentro das luvas, que ela não usava há dias, e seus pés deslizavam
dentro dos sapatos. Esperava que o estado de sua alma não estivesse visível
para ninguém, pois ela estava bastante confusa. Tão logo saíram da frente dos
supostos caçadores de recompensa, entraram em um carro de aluguel e
rumaram para seu destino. A busca por Emile fora interrompida, mas Lucille
estava começando a suspeitar que o irmão de Nathaniel não estava por perto
para ser encontrado.

E M QUATRO HORAS , Nathaniel percorreu praticamente toda Norwalk em busca


de Emile. Estava a cavalo, fora a todos os pontos em que seu irmão poderia
ter sido visto, inclusive nas encostas e lugares de baixíssima classe. Os
Estados Unidos não eram diferentes do Reino Unido – o elevado
desenvolvimento econômico que o país estava experimentando produzia os
mesmos problemas de seu país natal, todos em torno da pobreza. Nada que
afastasse Nate de sua busca, pois lidar com bandidos e prostitutas não era
nenhuma adversidade.
Mas o irmão não estava em lugar algum, nem fora visto por ninguém.
Mais da metade da cidade coberta e não se sabia de um jovem loiro, ferido,
que viera trazido pelo oceano. Não reconheciam a foto, não lembravam de
um caso parecido, nada que o fizesse acreditar que Emile estivesse por ali. O
dia estava findando e ele sentia fome, já que apenas comera seu desjejum.
Também queria saber se Leo e Lucille tiveram mais sorte do que ele,
cobrindo a outra metade da cidade, então voltaria para a pensão.
Em verdade, ele queria ver Lucille. Não pensara nela durante todo o
tempo em que esteve entrevistando estranhos para saber se a pista que lhe
ofereceram era verdadeira. Concentrava-se em Emile e no que precisava fazer
para o encontrar. Mas, depois de exausto e frustrado por retornar de mãos
vazias, seus pensamentos começaram a trai-lo. Não queria, não devia pensar
em Lucille. Assim que se determinasse se Emile estaria ou não pelos
arredores, ele se despediria dela. Nunca se apegara a uma mulher antes, por
que escolhera se importar justo com uma bastante complicada?
As dificuldades se intensificaram quando chegou à pensão e os viu.
Sentados em uma mesa, no pequeno restaurante que ficava à esquerda da
recepção, bebendo vinho e comendo algo que parecia o jantar. Retirou o
relógio do bolso, ainda eram cinco da tarde – eles deveriam tomar chá, não
vinho. Estavam rindo de qualquer coisa que Leo tenha falado, pois ele
adorava ser o engraçado do grupo de amigos. Mas o que fez com que
Nathaniel paralisasse no lugar foi ver Lucille usando um vestido.
Vestido. Renda, babado, fitas, laços, pérolas e saias. Os cabelos dela
estavam arrumados, presos por grampos também perolados, e sobre seu colo
estava um chapéu. Era provável que, em um dia comum, Nathaniel nunca a
notasse. Não, ele a notaria, mas não a convidaria para uma valsa ou um
passeio, não se interessaria por ela em um evento e definitivamente não a
cortejaria. Lucille Smith talvez fosse uma mulher comum, e ele era arrogante
demais para se interessar por elas.
Ele era, pois, naquele momento, pegou-se fascinado. E irritado,
suficientemente irritado porque ela vestira aquela roupa para Leonard, estava
bebendo vinho com Leonard e rindo para Leonard como se eles fossem
amigos. Ao vê-lo, as bochechas dela coraram e ela se escondeu atrás da taça
de vinho.
— Teve sorte, Nate?
Demorou alguns minutos para responder Leo, o olhar vagando dele para
Lucille e de Lucille para ele. O que diabos estava acontecendo?
— Não. Ninguém viu uma pessoa como Emile por esses dias, nem em dia
nenhum. Ou toda Norwalk está mentindo em uma conspiração para esconder
meu irmão ou ele não esteve em nenhum dos lugares onde o procurei. Pelo
visto, vocês também não o encontraram.
— Tivemos um imprevisto. — Lucille recuperou a voz. — Homens
enviados por meu pai nos obrigaram a fugir.
Nathaniel puxou uma cadeira e se sentou. Imediatamente, uma atendente
com roupas indecentes demais para ser chamada de garçonete trouxe uma
taça e um prato de sopa.
— Então amanhã precisaremos de outra estratégia. Vestir-se com essas
roupas foi uma péssima ideia.
— Parecia adequado para irmos ao hospital. Uma mulher poderia
conseguir melhores informações de outras mulheres, não acha?
Ela tinha razão, o plano era razoável, mas ele não pretendia o aceitar. Não
fora elaborado por si, colocara Lucille em risco e não teve nenhum resultado
prático. Concordou com a cabeça para não parecer mal-humorado demais, o
que despertaria desconfiança em Leonard. Bebeu um gole de vinho, tomou
algumas colheradas da sopa e mastigou um pãozinho enquanto seus
companheiros de mesa se silenciaram.
— Não precisam parar de conversar porque cheguei. Vocês pareciam
estar se divertindo.
— O Sr. Eckley estava me contando sobre o clube Gênesis.
— Interessada no antro de perdição e pecados? — Ele a fitou e ela
enrubesceu novamente. Pelo menos ainda mantinha parte da vergonha.
— Não tenho interesse nem em perdição nem em pecados, mas o Sr.
Eckley me contava histórias engraçadas.
— Nada engraçado acontece no Gênesis.
— Muita coisa engraçada acontece, Nate. — Leonard bebeu um gole de
seu vinho. — É que você nunca está prestando atenção.
— Talvez porque alguém precise fazer o trabalho sujo enquanto você se
diverte, Leonard. — Nathaniel bufou. Tomou mais um pouco da sopa, virou
um gole de vinho e pegou um pãozinho. — Se me dão licença, estou exausto
e preciso de um banho.
Levantando-se, saiu da mesa e subiu as escadas, indo para o quarto que
reservara para si. Daquela vez, tomou o cuidado de alugar quartos separados
para evitar conflitos e escapadas para a cama alheia. Trancou-se, arrancou a
roupa sem muita sutileza, deixando as peças espalhadas pelo chão, e entrou
no cubículo que era chamado de chuveiro. A água não estava quente o
suficiente, o espaço era apertado e a ducha, fraca – o que apenas amplificou
seu mau humor.
O problema era a falta de notícias de Emile. Por esse motivo estava mais
irritável do que usualmente, mais volátil. Aquela jornada resumia-se em
procurar pelo irmão e tudo saiu do planejado desde o início, deixando-o
frustrado e decepcionado. Fechou o chuveiro e estava prestes a retornar para
o quarto quando ouviu batidas na porta.
— Amanhã conversamos, Leo.
Nate gritou, desejando que o amigo fosse embora. Geralmente, ele
sentaria e beberia um ou dois uísques com Leo, conversaria sobre o dia,
planejaria outra investida para descobrir pistas sobre Emile. Naquele
momento, precisava ficar sozinho.
— Sou eu, Lucille.
— Tanto faz, apenas não desejo companhia essa noite.
— Certo, mas eu não sairei dessa porta até que me atenda. Então,
dormirei aqui no corredor e estarei com muita dor nas costas, amanhã.
Ela provavelmente estaria blefando, mas Nathaniel se recordou que ela
não sabia fazer aquilo. Provavelmente passaria a noite batucando no chão e
fazendo com que ele não dormisse, pensando nela ali. Precisava acrescentar
teimosa à lista de características surpreendentes de Lucille Smith. Sem muita
paciência e pretendendo livrar-se rapidamente da visitante indesejada, abriu a
porta para ser escrutinado por seus olhos arregalados.
— Eu o esperaria vestir-se, não precisava abrir a porta...
— Estou de roupão, Lucy. Ele certamente cobre mais do que minhas
ceroulas, e você já viu tudo que há aqui de baixo. Não precisa bancar a tímida
comigo.
— Não estou bancando a tímida. — Ela estava irritada e entrou no quarto
pisando com um pouco de força demais no assoalho de madeira. — Relevarei
sua atitude porque sei que está sofrendo, então...
— Sofrendo? — Ele deu uma risada e olhou ao redor, desejando um
uísque. Maldita pensão de segunda categoria, que não tinha bebida no quarto.
— Srta. Smith, eu não sofro por absolutamente nada. Estou irritado por me
sentir enganado por quem me deu uma pista fria.
— Tratar-me com formalidades não me afastará, Nate. — Lucille se
aproximou e colocou a mão no braço dele. Foi um toque gentil, decoroso,
possível entre um homem e uma mulher que se tornaram amigos. Havia um
porém, eles não eram amigos. O desejo que ele sentia por ela confirmava
isso. — Pode convencer as pessoas de que é um desalmado cruel, e talvez
você seja bem cruel, mesmo. Eu o vi esfaquear um homem e quebrar o nariz
de outro, mas, no primeiro, você estava me defendendo. No segundo, estava
se defendendo. — Ela levou a mão até sua face, contornou a marca em seu
nariz e passou o polegar por suas pálpebras, que estavam ainda arroxeadas.
— Eu vejo um homem com questões a resolver, mas não vejo um homem
ruim.
— Mas você deveria. — Nathaniel segurou a mão dela e a afastou. — Eu
sou perigoso, Lucy, e ainda mais para você.
— Você não me fará mal, eu me sinto segura ao seu lado.
— Assim como se sentiria com qualquer homem.
— Definitivamente, não. — Ela puxou a mão e se soltou. — Nate, o dia
não foi como esperava, eu entendo. Não tivemos sucesso em descobrir nada
sobre seu irmão e sei que está amargurado por isso. Estamos apenas nós dois
agora, não precisa fingir que é um homem forte e inabalável. É aceitável que
sofra por perder seu irmão.
Nathaniel a encarou com os lábios apertados em uma linha fina. Abriu a
boca para dizer algo, mas desistiu em seguida. Ela era a mulher mais abusada
que ele já conhecera – ninguém, absolutamente ninguém falava com ele
daquela forma. Não diziam que ele podia parar de fingir, porque todos
sabiam que ele não fingia – ele era inabalável. Também não ousavam lhe dar
comandos, ou dizer o que ele deveria fazer. Mas Lucille, ela não parecia se
afetar pelo poder dele. Era como se fosse imune às barreiras que ele erguera
com tanto cuidado e simplesmente arrancasse as máscaras que ele usava,
expondo sua alma nua.
Ele não gostava daquela nudez. Todos podiam ver o seu corpo, não a sua
alma ou seu coração. Mas ela o desarmava, reduzia suas defesas a pó. Nate
virou de costas e suspirou.
— Recuso-me a aceitar que Emile se foi. Eu ainda o encontrarei, vivo.
— Já se passaram muitos dias, Nate. Se ele não emergiu e foi encontrado
e tratado por alguém, não há mais chances de...
— Você não sabe o que está falando! — As mãos dele fecharam em
punhos e ele quis bater em algo – ou alguém. Mesmo que ela estivesse certa,
que Lucille estivesse completamente certa, ele não estava pronto para desistir.
— Há coisas que fogem de nosso controle, como pode ter certeza?
— Eu não tenho certeza. Apenas gostaria que você....
Lucille interrompeu sua fala e colocou uma das mãos no ombro dele, que
fechou os olhos. Nathaniel não queria que ela fosse sensível nem se
compadecesse dele. Não queria que ninguém sentisse pena ou fosse solidário
ao seu sofrimento, porque ele não sofria, não sentia dor, não sentia nada.
No fundo, ele sentia. Virou-se para ela e a segurou nos braços, um tanto
atarantado, nervoso até. Abraçou-a como se aquilo pudesse apagar o dia
horrível sem despertar nele o desejo intenso de seu corpo por ela. Lucille
passou os braços ao redor dele e recostou a cabeça em seu peito, fazendo com
que ele compreendesse o quanto aquele impulso poderia ter consequências
desastrosas. Com os dedos dobrados, acariciou-a no queixo e ergueu a cabeça
dela até que os olhares se encontrassem – e ele pudesse levar sua boca à dela.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

S UA INTENÇÃO DE IR AO QUARTO DE N ATHANIEL NÃO ERA SER BEIJADA POR


ele, mas Lucille não podia negar que adorava o sabor daquela boca masculina
na sua. Céus, aquilo era totalmente inadequado, ela simplesmente precisava
parar. Precisava colocar as duas mãos no peito dele e se afastar, voltar para
seu quarto e trancar a porta, mas não conseguiu fazer nada daquilo. Ao
contrário, suas mãos acabaram deslizando para cima, os braços envolvendo o
pescoço dele e o puxando para mais perto. Se não era loucura, ela perdera
totalmente o rumo de sua vida.
Nathaniel a beijava lentamente, como fora da primeira vez. Lábios macios
que envolviam os dela com suavidade, molhados, com gosto de vinho tinto e
uma língua morna que tinha a textura do veludo e explorava sua boca com a
calma de quem tinha todo o tempo do mundo para fazê-lo. Talvez ela
estivesse correta e ele sofria, por isso fora tão mal-humorado antes e o
sofrimento estava sendo descarregado naquele beijo. As duas mãos dele,
espalmadas em suas costas, estavam trêmulas.
— Você não pode andar por aí vestida assim. — Disse, murmurando no
ouvido dela, depois de trilhar seu pescoço com a língua. — Eu vou matar
Leonard por te colocar em risco.
— Não estive em risco nenhum minuto ao lado dele.
Lucille sentia os joelhos moles enquanto Nathaniel a beijava no pescoço,
no maxilar, prendia o lóbulo da orelha entre os dentes.
— Ouso duvidar. Amanhã você vem comigo.
— Toma decisões por mim agora, Sr. McFadden?
Ele riu. Ela pode sentir a boca dele esticar em contato com sua pele e, em
instantes, estava sobre a dela novamente para outro beijo. Aquele foi sôfrego
e sensual. O tipo de beijo que a conduziria a outro estágio de contato físico –
um para o qual ela ainda não estava preparada.
E pode ter sido apenas sorte que tenham batido à porta naquele momento,
pois Lucille provavelmente não conseguiria dizer não.
— Nate?
Era a voz de Leonard Eckley. Nathaniel interrompeu o beijo e praguejou
em baixa voz, apoiando a testa na dela. Afastando-se, olhou-a como que para
confirmar se todas as peças de roupa estavam no lugar e suspirou,
caminhando até a porta.
— Seja lá o que for, não me interessa saber.
O Sr. Eckley entrou e examinou cuidadosamente o que via. Não havia
nada para alarmá-lo, Lucille tinha o vestido impecável, os cabelos arrumados
e o corpete no lugar. Mas, se ele fosse observador como Nathaniel, perceberia
sua boca vermelha e inchada, seu coração martelando as costelas, suas mãos
tremendo e suando.
— Há um prêmio pela Srta. Smith. — Ele ignorou o que disse Nathaniel.
— Parece-me que seu pai decidiu aumentar o interesse por sua busca e está
oferecendo cinco mil dólares para quem a devolver para casa ou oferecer uma
pista que leve ao seu resgate.
Lucille arregalou os olhos, assombrada.
— É um valor ridiculamente alto. — A voz dela saiu estridente demais.
— Pensei que meu pai queria evitar publicidade.
— O suficiente para tornar a sua fuga muito difícil, senhorita. E seu pai
está evitando publicidade, eu só sei essa informação porque meus contatos
entre os caçadores de recompensa ainda são muito úteis. A sociedade, aquela
para quem sua honra importa, não faz ideia do que está acontecendo.
— Amanhã vamos partir. — Nate, que ouvia com atenção, decidiu. —
Vamos subir para o norte, andando pelo litoral, até Boston. De lá, Lucille
conseguirá embarcar para a Grã-Bretanha.
— Vamos? — O Sr. Eckley pareceu confuso pela decisão do amigo. —
Desistiu de procurar por Emile?
— Claro que não, por que acha que vamos pelo litoral? Lucy tem razão, a
possibilidade de ele ainda não ter sido encontrado é mínima. Talvez em outra
cidade. Você retornará para Nova Iorque, Leo. Precisamos que continue
gerindo o Gênesis e que cuide de tudo por lá.
— Nate, você está obcecado. — Leonard Eckley colocou as duas mãos
nos ombros do amigo, ignorando a presença de Lucille. — Tanto pela busca
ao seu irmão quanto pela fuga dela. Veja bem, você a chama por um apelido!
Nunca o vi assim, tão desorientado. Volte comigo para Nova Iorque, ela não
é responsabilidade nossa. Não temos que...
Nathaniel se afastou, livrando-se das mãos do amigo. Seus olhos vagaram
até Lucille, que baixara a cabeça constrangida com a situação. Ela nunca se
sentira muito bem-vinda nos lugares, mas com ele era diferente. Nathaniel a
acolhia como nunca ninguém fizera antes. Talvez fosse por isso que ela o
achava tão fascinante. Além de suas próprias qualidades, ele a enxergava
além.
— Posso estar obcecado, mas permaneço racional. Ainda não encerrarei
minhas buscas – eu esperava passar dez dias em viagem e persistirei no
plano. Quanto a Lucille, ela pode não ser minha responsabilidade, mas não
posso simplesmente a abandonar. Amanhã nos separamos, Leo, é a coisa
certa a se fazer. Cuide das coisas em Nova Iorque.
O sorriso do Sr. Eckley indicava que ele acatava, mas não concordava
com a decisão. Não cabia a ele, porém, ainda assim, Lucille teve a impressão
de que nenhum dos dois homens tinha o menor interesse em renunciar ao
controle. De qualquer forma, ela se sentiu bem ao saber que Nathaniel a
escolhera – que, de alguma forma, ele decidira a escoltar em sua fuga
completamente caótica.
Despediram-se e Lucille foi para o quarto reservado para si. Fechou a
porta com a chave e arrastou uma cadeira para escorar a maçaneta. Ainda
assim, não se sentia protegida o suficiente. Estavam atrás de si, havia um
preço por sua cabeça e muita gente certamente seria capaz de vender a alma
para devolvê-la para casa. Arrancou o vestido, toda a roupa feminina que a
fizera sentir-se bem durante o dia e colocou debaixo da cama, desejando não
a ver nunca mais. Tomou um banho quente e enfiou-se debaixo das cobertas,
suspeitando que não conseguiria fechar os olhos naquela noite.
Assim que o sol nasceu, batidas à porta a fizeram sobressaltar.
— Espero você na recepção. Vista-se.
A voz de Nathaniel a fez sentir alívio. Ele decidira sair cedo,
provavelmente para despistar os possíveis perseguidores. Como não dormira
praticamente nada, Lucille tinha uma aparência horrível. Ajeitou os cabelos
debaixo da boina, manteve todos os botões da camisa fechados, o colete bem
ajustado e, parecendo um homem que passara a noite bebendo e jogando,
desceu as escadas, levando nada além de seu corpo cansado.
Nathaniel estava exuberante. A cada dia que ela o via, ele parecia melhor.
Mais forte, mais masculino, mas poderoso. Ele tinha a expressão séria
enquanto pagava a conta ao recepcionista. O Sr. Eckley não estava em
nenhum lugar que pudesse ser visto. Ao vê-la, Nate exibiu um sorriso curto e
entregou um pequeno embrulho de papel, contendo um sanduíche. Aquilo
indicava que eles não comeriam, que a fartura se encerrara e eles retornariam
à errância.
Foi incômodo não ser recebida com um bom dia, ou com uma expressão
calorosa. Ele estava seco, duro e inexpressivo como quando o conhecera, no
início da viagem e Lucille não sabia o que aquilo significava. Seguiu-o até os
estábulos para perceber que ele também providenciara uma nova carroça, o
que permitiria que viajassem com provisões novamente. Ao menos não
passariam fome e ficariam sem abrigo durante o trajeto – e deu a ela a
oportunidade de empacotar as roupas novas e algumas bobagens que
adquirira naquela fuga.
Sentada ao lado dele, enquanto a carroça ganhava a estrada na direção do
litoral, Lucille viu um mapa na mão de Nathaniel. Várias cidades estavam
marcadas, todas costeiras. Eles iriam até New Haven, depois New London,
Newport, New Bedford, Wareham, Plymouth e, por fim, Boston. A viagem
parecia ter dobrado de tamanho e eles levariam muito tempo para chegar ao
destino que a interessava, onde ela poderia, em desespero, pegar um navio
para reiniciar sua vida. Quase não tinha mais dinheiro, não haveria mais nada
até Boston.
— Talvez eu deva pegar um trem. Chegarei em Boston antes que possam
saber, então...
— Se eu a estivesse perseguindo, já a teria capturado. — Nate disse,
olhando diretamente para frente. — E só não o fizeram ainda porque você
estava comigo. Esses homens são profissionais. No instante em que pisar em
um trem, eles a encontrarão. Mas a decisão é sua, se quiser posso te deixar na
estação ferroviária.
Ele parecia bastante seguro do que dizia, apesar da expressão séria. Como
ela não disse que sim, que desejava ser conduzida à estação, a carroça
continuou seguindo. Foram muitos minutos, tempo demais sem uma palavra
trocada, sem conversa. Por algum motivo, ela suspeitou que superaram
aquele silêncio desconfortável e se tornaram próximos. Mas Lucille estava
sendo ingênua. Nathaniel McFadden não se aproximaria dela, não criaria
nenhum tipo de laço com uma mulher cuja presença servia apenas para
atrasá-lo.
Passou-se uma hora até que a exaustão a fez acomodar-se no fundo da
carroça e cochilar. Lucille esperava que, depois que tudo aquilo acabasse, ela
conseguisse dormir novamente longe daquele homem – pois parecia que
apenas na presença dela seu corpo se permitia descansar.

A VIAGEM para Nova Iorque seria melancólica, Isaac tinha certeza. Partira no
dia seguinte ao recebimento do telegrama que informava o falecimento de seu
irmão e mal tivera a oportunidade de despedir-se adequadamente de sua
esposa e filhos. Assim que entrou na embarcação sucumbiu à realização de
que perdera Emile e que estava na iminência de perder Nathaniel, também.
Não podia aceitar aquilo, não podia permitir que as Américas lhe levassem
dois irmãos. Acabou permanecendo trancado em sua cabine por dois dias,
saindo apenas no terceiro.
Por sorte, a riqueza de seu irmão podia financiar uma longa viagem na
primeira classe em um navio moderno. Todas as facilidades estavam à sua
disposição, inclusive uma área para cavalheiros, com mesas de jogos e bar.
Sentou-se em uma mesa e observou o ir e vir de homens que não conhecia. A
maior parte dos viajantes era composta por burgueses que tinham negócios
frequentes nos Estados Unidos e americanos retornando para casa. Pediu um
conhaque a um garçom bem-vestido e continuou observando até ver uma face
conhecida. Lorde Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Isaac ergueu o copo em cumprimento ao colega. Thaddeus estudara com
ele na faculdade e se formara com honras. Era um homem extremamente
inteligente e responsável, mas quase não frequentava Londres – preferia
viajar e conhecer o mundo.
— Oras, se não é meu maior adversário de xadrez. — O marquês se
sentou na cadeira vazia à frente de Isaac.
— É um prazer revê-lo, Thad. Não tive como expressar pessoalmente
minhas condolências pelo súbito falecimento de seu pai.
— Foi tudo muito rápido. — Thaddeus pediu um conhaque para si. —
Papai era um homem forte, apesar da idade. Não esperávamos que ele fosse
nos deixar por agora. Ao menos teve uma vida regada dos maiores prazeres
que um homem pode desejar.
Isaac ergueu o copo novamente, daquela vez propondo um brinde
póstumo.
— Que ele descanse em paz. O que o leva aos Estados Unidos?
— A salvação do marquesado. Meu pai não nos deixou em boas
condições financeiras, estimo que estejamos falidos.
— Lamento ouvir isso. Está com negócios em Nova Iorque, então?
— Meu pai tinha um negócio fechado que eu precisarei assumir. Se o
fizer, receberei dinheiro o suficiente para saldar as dívidas e permitir que o
marquesado prospere, além de resolver o problema que gira em torno da
necessidade de produzir um herdeiro.
— Não creio que tenha compreendido.
Thaddeus riu, bebendo seu conhaque em um gole só.
— Meu pai estava noivo. Iria casar-se com uma jovem americana, filha
de um industriário riquíssimo, com um dote obsceno.
A informação não chocou Isaac. Aquela ainda era uma das práticas mais
comuns, por mais que ele a condenasse. Nobres falidos, com títulos
importantes, casando-se com americanas, ou casando suas filhas com
americanos sedentos por fazer parte da nobreza.
— E você pretende assumir o lugar de seu pai nesse casamento?
— Não parece muito difícil, afinal o pai dela só tem interesse no título.
Não importa se o marquês tem sessenta ou trinta anos, não é mesmo?
— Creio que a jovem gostará mais de desposá-lo, milorde. A não ser que
ela estivesse apaixonada por seu pai.
A risada sonora de Thaddeus ecoou pelo bar. Claro que ela não estava. O
velho marquês, que Deus o tivesse, era um homem desagradável, rude e que
costumava cuspir ao falar. Dificilmente uma jovem se casaria com ele por
amor, mulheres não gostavam de ser maltratadas.
— Você tem sorte de ser o segundo filho, Isaac. — A voz do novo
marquês estava, então, cheia de ressentimento e mágoa. — Por mim, passaria
o título e seus encargos para meu irmão, ele é mais preparado para assumir o
marquesado do que eu. As obrigações que precisamos assumir para cumprir
nossos deveres são, às vezes, muito custosas.
— Não fique assim, meu caro. — Isaac colocou a mão no ombro de
Hertford. — A jovem pode ser uma boa moça, você pode acabar sendo muito
feliz.
Mesmo sem saber se era possível encontrar felicidade no casamento sem
amor, o desejo era sincero. Isaac se casou com a mulher que amava, mas seu
irmão conde também o fez. Mesmo que o casamento de Edward, no início,
parecesse um arranjo conveniente, já que ele arruinara a irmã de seu melhor
amigo em um jardim, Isaac sabia que ele sempre nutriu sentimentos por
Agatha. E eles, mesmo depois de seis anos, eram o exemplo de um casal
feliz.
Os dois colegas continuaram bebendo e contando suas histórias. Isaac
achou melhor evitar o assunto referente aos seus irmãos, já que nem ele
mesmo sabia o que acontecera. A viagem ainda duraria alguns dias e talvez a
presença de Thaddeus o ajudasse a passar o tempo fora de sua cabine.

N EW H AVEN ERA uma cidade maior do que Norwalk. Sua área costeira
impressionava e, naquela época do ano, as pessoas também ocupavam as
praias locais. Não eram prazeres aos quais Nathaniel poderia se render, então
ele ignoraria a compulsão que o litoral sempre lhe causava. Nascido em
Thanet, as praias sempre o atraíram sobremaneira. Mas havia uma missão a
cumprir, ele precisava focar nela como não fizera nos dias anteriores.
Leonard estava certo, Lucille o distraia. Não era culpa dela, nada que a
mulher fizesse ou deixasse de fazer o ajudaria a recuperar a sanidade. Se ela
se entregasse a ele totalmente, ele iria passar o tempo desejando mais. Se ela
desaparecesse de sua vida, o que aconteceria em breve, ele permaneceria com
sua memória assombrando-o. Saberia lidar com isso, mas não podia negar
que lhe causava uma dispersão inconveniente dos pensamentos.
Ao invés de irem a um hotel, daquela vez ele partiria para a busca direta
de Emile. Guiou a carroça pela cidade, indo até uma área comercial próxima
à costa. O cheiro de maresia quase o deixou embriagado.
— Vamos comer e investigar. — Ele decidiu, depois de estacionar a
carroça em um pátio destinado a esse fim. — Pretendo deixar a cidade ainda
hoje.
— Nada mais de hotéis, restaurantes e jogatinas, então? — Ela fez uma
piada. Lucille sorria sutilmente e não demonstrava irritação com ele, mesmo
depois de a ter ignorado durante toda a viagem.
— Se não quisermos ser capturados, teremos que mudar de estratégia.
Essa é uma fuga, Lucy, não um passeio de férias.
Ela concordou e pulou da carroça, já demonstrando habilidade em agir
como um homem. Vestida daquela forma e com atitudes mais masculinas, ela
enganaria olhos menos desavisados e não seria reconhecida por qualquer um.
A segurança do disfarce parecia mantê-la mais tranquila. Nathaniel
certamente estava, ele não imaginava como Leo fora tão imprudente no dia
anterior.
Comeram e interrogaram pessoas, caminhando lado a lado por várias
ruas. Perguntaram sobre Emile, sobre um homem ferido vindo pelo mar,
sobre homens com ferimentos de bala. Havia um hospital beneficente como
em Norwalk, simples e precário, que não recebia um baleado há meses.
Aquele tipo de ferida atraía o corpo policial porque precisava ser reportado às
autoridades. Homens baleados dificilmente procuravam tratamento em
hospitais públicos, mesmo que fossem pobres e não pudessem pagar por
médicos de qualidade.
A frustração fez com que Nathaniel se irritasse. Se estivesse em Nova
Iorque, iria a um ringue socar alguns narizes ou arrumaria novos devedores
para torturar. Sua dor passava com a dor alheia. Quando ele fazia alguém
sangrar por suas mãos sentia um sofrimento menor. Era como se, ao
despedaçar outras pessoas, ele os colocasse em posição de igualdade.
Pararam para dormir na beira da estrada, um pouco mais distante do curso
de água, daquela vez. Não haveria banho ou refeição quente naquela noite,
nem camas macias ou uma boa dose de uísque para o acalmar. Ao menos fora
cuidadoso de adquirir uma barraca grande o suficiente para que não
precisasse dormir por cima de Lucille – ou ele não dormiria.
Naquele dia ela pareceu disposta a lhe conceder paz. Não insistiu em uma
conversa amigável, nem fez perguntas que Nathaniel não desejaria responder.
Manteve-se distante. Observando-o, mas distante, respeitando seu espaço
individual. Todo aquele comedimento não parecia condizente com o espírito
dela, então o fazia apenas por ele. Para preservá-lo, reconhecendo sua
decepção, o desgosto de não obter êxito em sua busca.
Por isso, Nate montou a barraca sozinho, sem pedir a ajuda dela, sem
solicitar uma proximidade com a qual não saberia lidar. Só não conseguiu
parar de olhar para ela. Enquanto cavava, enfiava estacas ou estendia a lona,
observava-a conversar com Hades. O cavalo, que não gostava de ninguém,
gostava dela. Inclinava a cabeça para frente e apoiava a fronte no peito de
Lucille, mesmo que ela fosse bem menor em estatura. Agitava as patas
quando ela falava algo, relinchava. Zeus disputava atenção com o irmão
equino, mas isso não surpreendia Nathaniel. Sua fascinação se dava por ela
ter tanta habilidade em conquistar o puro-sangue mais arredio que ele
conhecera.
Era aquilo que ela estava fazendo com ele. Não, não podia ser. Ele não se
abria para ninguém, não importava quem fosse. Ele não deixava ninguém
entrar, as portas de sua alma eram trancadas e Nathaniel não fazia ideia de
onde estavam as chaves. Os cacos de seu coração ficavam guardados e
ninguém tinha o direito de sequer pensar em os remendar. Lucille Smith era
uma distração temporária e ele não podia, de jeito algum, encantar-se por ela.

E LE PRECISAVA DE UM TEMPO , ela se manteria afastada. Fisicamente presente,


pois não tinha para onde ir, mas espiritualmente distante. Durante o dia,
Lucille deixou que Nathaniel se fechasse em seu silêncio e se distraiu
imaginando uma nova vida, bem longe de tudo que conhecia. Seria feliz
afastada de casa, seria feliz distante do pai violento e da mãe indolente, que
não fazia nada para encerrar o ciclo de abuso em sua família. Viveria feliz,
mesmo que solteira até seus últimos dias, mesmo que não encontrasse paixão
e amor em sua próxima jornada.
Amor ela encontraria, sabia disso. O amor de um homem, tinha dúvidas.
Nem sabia se era capaz de apaixonar-se por um, quanto mais amar. Mas,
olhando para o perfil cansado de Nathaniel, naquele segundo dia depois da
partida de New Haven, ela suspeitava que já estivesse apaixonada.
Céus, como era tola. De todas as piores escolhas masculinas pelas quais
poderia se apaixonar, aquele homem estava no topo de qualquer lista. O mais
canalha, o mais libertino, o mais devasso, o mais cruel. E, ainda assim, tão
inteligente, obstinado e, quem diria, zeloso com ela. Nathaniel cuidava dela
como ninguém cuidara, ainda. Ele a permitia tomar decisões estúpidas, a
deixava beber uísque, respeitava suas escolhas ruins e se oferecia para a
ensinar coisas que ela só sabia que existiam por histórias ouvidas das amigas
casadas.
Mas ele carregava muito sofrimento dentro de si e, enquanto não lhe
contasse tudo, ela duvidava que melhorasse. Não que ela fosse alguma
solução. Se ouvisse as confissões da alma tortuosa daquele homem, que tipo
de conforto poderia lhe proporcionar? Que ajuda? Porém ele precisava falar
com qualquer pessoa. Lucille sabia que era preciso dar vazão aos
sentimentos, ou, em algum momento, a represa que os segurava iria ruir. Se
isso acontece com Nathaniel, que sentimentos verteriam dessa represa
rompida?
Então, naquele dia ela voltaria a ser ela mesma e a provocar reações.
Falaria, conversaria, perguntaria.
— Talvez estejamos com uma estratégia incorreta. — Ela disse, por fim,
já exausta de se conter. Passavam o dia viajando, chegariam a New London à
noite. — E se seu irmão não tiver sido encontrado por nenhum branco?
Nathaniel não demonstrou nenhum impacto pela pergunta, mas virou o
pescoço e a fitou.
— Prossiga.
— A região possui diversas tribos indígenas, ainda. Algumas não tão
dispostas a interagir conosco, não vamos abordá-los nas cidades.
Ele não respondeu, continuou conduzindo os cavalos pela via enquanto o
sol se punha ao lado deles. A luminosidade do dia que findava fazia com que
os cabelos dele assumissem um tom de dourado e sua pele, um pouco mais
bronzeada do que deveria ser a de um aristocrata, parecia feita de bronze. Por
sua posição inabalável, Nathaniel quase podia ser confundindo com uma
estátua. Ela quis estender a mão para o tocar, afinal, estavam sozinhos. Mas
não podia se permitir tanta intimidade.
— Pode ser que você tenha razão. Vamos subir procurando nas cidades.
Depois que eu te deixar em Boston, descerei buscando informações nas
comunidades indígenas. Isso deve acelerar nosso tempo de viagem.
Mesmo que ele não estivesse olhando, ela se forçou a sorrir. Precisava
confirmar para si mesma que a viagem teria um fim, que, em poucos dias,
eles estariam em Boston. Nathaniel pegou o mapa em seu bolso novamente e
conferiu algumas informações. Continuaram em silêncio até a chegada a New
London, hospedaram-se em uma pensão à beira da estrada e ficaram em seus
quartos durante toda a noite. Não houve nenhum contato amistoso entre eles
desde o beijo interrompido por Leonard, desde que ela insistira para que ele
abrisse seu coração para ela, que expressasse seu sofrimento.
No dia seguinte, Nate saiu e deixou um bilhete para Lucille, explicando
que faria cartazes e pregaria pela cidade, informando o telefone do Gênesis.
Preferiu que ela ficasse na pensão para não correr riscos, mas ela sabia que a
estava evitando. Tão logo ele retornou, por volta do meio dia, encerrou a
estadia e eles pegaram estrada novamente em direção a Newport.
O silêncio a estava enlouquecendo. Horas se passavam sem que eles não
cruzassem com ninguém, como se nenhuma pessoa mais utilizasse aquelas
estradas. Por vezes, um fazendeiro passava por eles e os cumprimentava com
um aceno do chapéu. Fora isso, Lucille nada tinha para fazer além de esperar
e olhar para Nathaniel – cada dia mais familiar e menos fácil de entender. Até
que ela não aguentou, mais. Já estavam chegando ao destino quando pararam
para acampar, exaustos, e cuidar dos cavalos, que também precisavam de um
descanso urgente. Daquela vez ela o iria encurralar e fazê-lo falar alguma
coisa. Qualquer coisa.
Depois de montada a barraca, Nathaniel informou, com um movimento
de cabeça, que iria se lavar. O barulho da água estava próximo. Lucille
esperou alguns minutos até não ouvir mais seus passos, foi até os cavalos e
sussurrou nos ouvidos de Hades.
— Se alguém aparecer, relinche. Vou ter uma conversa séria com seu
dono.
O animal se agitou, indicando que a compreendia. Lucille sorriu e afagou
a crina preta lustrosa para, depois, ir atrás de Nathaniel. Lentamente, pisando
com suavidade para não o alertar de sua chegada, ela espreitou para
confirmar que não o pegaria em nenhuma situação constrangedora. Bem, um
homem despido, enfiado em um rio até metade do tórax, era uma situação
constrangedora suficiente, mas ela já vira coisa pior. Naquele momento, era
adequado.
— Nate. — Ela chamou e ele se virou com calma demais. Passou as mãos
molhadas pelos cabelos e ameaçou sair. — Não saia. Fique aí. Eu apenas... eu
quero falar com você.
— E esperou que eu tirasse as roupas para isso?
— Achei que, assim, você me ouviria. Não tem para onde correr, tem?
Nathaniel deu uma risada e ela adorou aquele som. Preferia vê-lo sorrir,
mesmo que fosse puro sarcasmo. Preferia que ele implicasse com ela, fosse
malvado com ela, falasse coisas desagradáveis para ela – ao menos eles
estariam interagindo de alguma forma. O silêncio machucava mais que as
palavras.
— Lucy, se acha que a sua presença me impedirá de sair dessa água, você
realmente não me conhece.
— Não conheço. — Ela se sentou no meio da relva. — E adoraria
conhecer, mas você dificulta muito minhas pretensões. Por que têm me
evitado?
Ele mergulhou e emergiu novamente, com cabelos totalmente molhados.
— Não a tenho evitado. Apenas não costumo falar muito.
— Está mentindo. — Ela cruzou os braços. — Você está estranho e
pensei que homens como você não ficassem constrangidos com nada.
— Dê-me o sabão, por favor. — Nate pediu, indicando os itens de higiene
que estavam à beira do rio. — Ou eu posso sair para pegar, claro.
Lucille arregalou os olhos e se apressou em atender ao pedido dele. Era
bem tolo que ela sentisse as bochechas arderem por apenas pensar que ele
pudesse sair da água, um deus dourado sem roupas e molhado, com água
escorrendo por aquele corpo masculino que a deslumbrava. Nathaniel
ensaboou-se enquanto ela o observava, depois mergulhou de novo.
— Eu não fico encabulado, Lucy. Mas não vamos ganhar nada se nos
aproximarmos mais. Em dois dias você estará livre, embarcando para a
Inglaterra, e eu retomarei as buscas para meu irmão. Nunca mais nos veremos
outra vez e gostar de você tornará as coisas muito difíceis.
Ele disse aquilo enquanto esfregava os cabelos, de costas para ela. Se
estivessem frente a frente, as palavras teriam sido as mesmas? Nathaniel teria
dito que era possível que ele gostasse dela, ou que separar-se dela seria
difícil? E ela teria acreditado, se olhasse dentro daqueles olhos azuis que
continham a porta da sua alma?
Porque ela não acreditava nele, apesar de saber que dizia a verdade.
Desde que soube que se casaria com um velho que tinha idade para ser seu
pai, Lucille sabia que precisava fazer qualquer coisa para evitar aquilo. Ela
podia suportar muitas coisas, mas havia limites que ela não pretendia cruzar.
E, naquele momento, no exato momento em que Nathaniel virou-se para ela,
cheio de espuma e com um sorriso triste nos lábios, ela soube que o deixar
seria quase impossível.
— Não precisa gostar de mim. Eu sei ser bastante desagradável.
Sarcasmo não serviu para aliviar o momento. Nathaniel mergulhou uma
última vez e livrou-se de todo o sabão.
— Vire-se, Lucy. Eu vou sair.
Ela obedeceu e seu coração disparou. Para garantir que não veria nada,
fechou os olhos e se permitiu apenas ouvir o ruído da água se movendo, os
passos na vegetação, o tecido da toalha deslizando pela pele molhada, a
respiração ritmada e masculina, o som das roupas sendo vestidas. Mesmo
sabendo que era seguro respirar, Lucille permaneceu estática, imaginando
toda a cena em sua cabeça. De repente, um arrepio lhe percorreu o corpo
inteiro e ela sentiu o calor da presença de Nathaniel em suas costas. O hálito
morno em seu pescoço, as mãos ao redor de seus braços. Ele estava ali, mas
não a tocou nem disse nada.
Quando o homem passou por ela e, com passos largos, foi até onde eles
acampavam, seus joelhos fraquejaram e não conseguiram mais a sustentar de
pé.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

E RA POR ISSO QUE ELE PASSARA QUASE DOIS DIAS SEM ABRIR A BOCA –
porque acabava falando todo tipo de bobagem na presença de Lucille. Ela o
instigava, provocava, desafiava e ele sempre era capturado na sua rede.
Contou mais do que deveria sobre sua história de vida e acabara de dizer que
poderia gostar dela. Gostar. Nathaniel não gostava nem de si próprio, como
poderia gostar de alguém?
Mas havia mais entre ele e Lucille do que simples luxúria. Se fosse
apenas isso, ele já a teria seduzido. O que o impedia de ir além era mais do
que respeito pelo pedido dela, era medo. O invencível, imbatível e inabalável
Nathaniel McFadden estava com medo de sentir qualquer coisa que fosse por
aquela mulher. Não era um temor irracional. Ela era um pouco perturbada,
com toda aquela vitalidade e aquele desejo de conhecimento. Também era
curiosa demais, falante demais, sempre se intrometendo em assuntos
masculinos. Além de não se importar em perder, o que era imperdoável. Nate
jamais poderia tolerar envolver-se com alguém que apreciava mais o jogo do
que a vitória, ele tinha certeza.
Depois de sair da água e precisar de uma força sobre humana para afastar-
se dela, Nathaniel começou a duvidar de sua sanidade. Aquela viagem
precisava acabar antes que ele não conseguisse mais finalizá-la. Precisava,
também, manter-se mais tempo em silêncio, mesmo que isso significasse
magoar Lucille. Era preferível que ela não gostasse dele, também. Que ela o
desprezasse, o achasse arrogante e mal-educado. Quanto menos a companhia
dele ela quisesse, melhor para ambos.
A viagem seguiu até Newport, onde não tiveram nenhum sucesso
procurando por Emile. Passaram por mais duas cidades até chegarem a
Plymouth. Aquela seria a última parada antes de Boston. Quando chegassem
à cidade destino, Nathaniel garantiria que Lucille estivesse em um navio e,
então, retornaria para casa. Ainda não sabia se faria mesmo a peregrinação
esperada por aldeias indígenas ou se esperaria o irmão contatá-lo. Suas
esperanças se esvaíam a cada milha percorrida, a cada não recebido, e sua
vitalidade estava se esgotando.
Ela percebeu, claro. Lucille era muito observadora e a frustração de
Nathaniel a estava contagiando. Quanto mais sombria sua alma ficava, mais a
dela escurecia.
Plymouth era uma cidade costeira muito escolhida por pescadores e
turistas. Pessoas que queriam descansar à beira-mar, famílias que queriam um
tempo afastadas da loucura que as grandes cidades estavam se tornando. O
perigo continuava rondando, mas Lucille quis ver a praia e ele não conseguiu
impedi-la. Bem, Nathaniel sabia que não a conseguiria impedir de nada, já
que ela era adulta e livre para fazer o que desejasse. Mas não fora até ali para
permitir que ela se colocasse em risco, o que significava que a acompanharia.
— Nunca foi à praia? — Ele perguntou, vendo-a retirar os sapatos e
dobrar a bainha da calça. Pés femininos e delicados tocaram a areia fina – e
provavelmente gelada, fazendo com que Nate suspirasse.
— O litoral aqui é intrigante, eu nunca viajei tão para o norte. Você não
gosta de praias, Sr. McFadden?
— Cresci em uma vila litorânea, minha vida foi à beira-mar.
— Oras, uma história. — Ela sorriu, ajeitando alguns cachos soltos para
dentro da boina. — Conte-me.
Ele não queria contar, mas acabaria falando tudo que ela desejava ouvir.
Seguiu-a até onde as ondas arrebentavam, mantendo distância segura para
não molhar mais do que pretendia.
— A propriedade preferida do meu pai era Greenwood Park, que fica na
vila de Thanet, em Kent. Quando eu era moleque, a vila era muito pequena e
nós aterrorizávamos os habitantes. Eu e Isaac éramos terríveis.
— Quem é Isaac?
— Meu irmão, ele é apenas um ano mais velho. Somos muito próximos.
Éramos. Desde que vim para Nova Iorque nós não nos falamos muito. Agora,
provavelmente não nos falaremos nunca.
Nathaniel sentou-se na areia úmida. Pensar em Isaac o fez desmoronar
por dentro e não podia permitir que Lucille percebesse. Ela abandonou o que
estava fazendo e se sentou ao lado dele, interessada na abertura que concedeu
depois de dias.
— Não diga isso. Ele saberá que você não é culpado pelo que aconteceu
com Emile.
— Se eu me sinto culpado, Lucy, por que ele não acharia o mesmo?
Havia algumas pessoas perambulando pela praia, o que impediu Lucille
de tocá-lo. Pela forma como ela ergueu a mão e depois a recolheu, Nathaniel
entendeu que ela estava se controlando para não fazer nada que colocasse seu
disfarce em risco e os expusesse. Como viajavam bem devagar, era provável
que os caçadores de recompensa estivessem sempre à frente.
— O sol vai se por. — Ele continuou. — Devemos voltar para o hotel.
Amanhã é um grande dia, você estará livre.
— Nate. Diga o que aconteceu com você. Conte para mim, já que
estamos nos nossos últimos momentos juntos. O que houve quando vocês
desistiram de negociar com o Sr. Carlisle?
Ele respirou fundo e a olhou. Talvez se contasse toda a verdade, isso a
assustasse o suficiente para fazê-la se afastar.
— Nós nos envolvemos com contrabando. Bebidas, charutos, seda, tudo
que pudesse ser contrabandeado e que rendesse dinheiro. Mas não levou um
mês para que o contrabando nos conduzisse aos jogos ilegais. Nos acusaram
de jogar sujo, porque eu conto cartas. Pensei que fosse esperto e que não
perceberiam, mas perceberam. Eu não tinha dinheiro para pagar a dívida,
Leonard não tinha, então fomos capturados por cobradores de dívidas. Eles
nos surraram todo dia, eles nos bateram e praticaram todo o tipo de tortura
que eu nem sabia que existia. Quase não temos marcas no corpo, mas eles
conseguiram nos destruir por dentro. Depois de algum tempo, o chefe
apareceu. Ele disse que pagara nossa dívida e que poderíamos pagar a ele
com trabalho.
Lucille não pareceu muito chocada.
— Quem era o chefe? Vocês o conheciam?
— Não. Ele é o dono do Gênesis e nós nos tornamos seus homens de
confiança. Aprendemos a transformar nosso trauma em outra coisa, e isso é o
que eu sou agora.
Nathaniel abriu os braços como se quisesse mostrar a ela a dimensão do
que ele representava.
— Quem era o credor?
— Isso não importa, Lucy.
— Claro que importa. Quem mandou torturarem vocês?
— Seu pai. — Ele a fitou de soslaio. — Walter Smith, foi para ele que
ficamos devendo. Mas nada disso importa mais, já paguei a dívida.
Tranquilize-se, pois amanhã estará livre. De mim, de toda essa vida.
O sorriso nos lábios dela era sincero e triste. Ele pensou que a
proximidade da liberdade a deixaria exultante, mas não era alegria o
sentimento que os envolvia naquela última parte da viagem. Seguiram sem
continuar a conversa até o pequeno hotel que os abrigaria naquela noite, uma
pequena indulgência que ele estava disposto a fazer por ela. Estava sendo
uma viagem bem pouco custosa e Lucille, cujas economias ele recusava toda
as vezes, não gastava com absolutamente nada. Sendo mulher, ele esperava
que ela fosse desejar roupas ou outras bobagens, mas ela estava
suficientemente empenhada em sua fuga.
— Vamos nos encontrar para o jantar? — Ela perguntou, antes de abrir a
porta de seu quarto.
— Não, eu jantarei aqui mesmo. Boa noite, Lucy.
Saber que a estava desapontando causava a mesma dor de um punhal
cravado no peito, ainda assim ele não conseguia evitar. Fechou a porta atrás
de si e recostou-se na madeira por um longo tempo, colocando os
pensamentos no lugar. Leonard tinha razão, sempre teve, a garota era uma
grande distração, mas ela também o afastava do abismo que o engolia pelo
desaparecimento de Emile. No dia seguinte, tudo acabaria e ele voltaria a ser
o homem taciturno e cruel que sua profissão exigia.
Tomou um banho, pediu o jantar e se deitou para esperar a comida
chegar. Seu corpo doía pelos dias sentados na carroça desconfortável, pela
falta de exercício físico e pelo esforço para não sair e ir atrás de Lucille.
Fechou os olhos e cochilou, até ser despertado por três batidas sutis na porta
– o jantar chegara.
Mas, ao girar a maçaneta a mesma imagem de dias atrás o fez reviver o
momento em que tudo começara. Lucille entrou, sem pedir licença, vestindo
um roupão. Ela tinha os cabelos penteados, cheirava a almíscar e sabão, e seu
olhar era determinado.
— O que houve, Lucy?
— Amanhã eu parto para a minha nova vida. Eu vou me lançar em uma
jornada sem saber o que há do outro lado do caminho, Nate, e mentiria se
dissesse que não estou com medo. Mas nunca tive tantas certezas em minha
vida, e devo muito disso a você.
— Você não me deve absolutamente...
Ela levou o indicador até os lábios dele e o silenciou.
— Deixe-me terminar, ou não conseguirei fazer isso. — Ela deu dois
passos para trás e sorriu. — Com você eu vivi experiências incríveis em tão
pouco tempo. E é com você que eu quero viver isso, também. — Lucille
puxou o laço que prendia seu roupão e o veludo caiu ao chão. Ela não estava
de roupas íntimas daquela vez, mas completamente nua. — Eu quero que
você faça amor comigo.

Q UANDO ELES RETORNARAM ao hotel e Nathaniel despediu-se dela, Lucille


entendeu que não queria aquilo. Ela não chegara até ali para que dessem as
mãos e seguissem seus caminhos. Claro que era o que aconteceria, mas não
seria suficiente se fosse apenas aquilo. Ela queria algo mais, qualquer coisa
com a qual pudesse se lembrar dele para sempre.
Porque ela sabia que Nathaniel seria para sempre. Desde que decidira que
ele era o escolhido para a ajudar a livrar-se do casamento inoportuno, seus
destinos foram selados e atrelados de forma que ela jamais conseguiria
separá-los. Eles não ficariam juntos, mas as marcas que ele cravou em sua
alma eram indeléveis. Milly diria que ela estava louca. Quando tivesse a
oportunidade de contatar a amiga sem que isso representasse risco para sua
fuga, elas ririam daquilo tudo.
Mas, antes, ela precisava acalmar a inquietação de seu espírito – e sabia
exatamente o que precisava fazer. Ela precisava que ele terminasse o que
começara. Então, fez o mesmo de várias noites atrás, quando sofreu a maior
humilhação de sua vida – mas sabia que não receberia outro não. Despiu-se,
banhou-se demoradamente, passou a colônia de almíscar que comprara em
Norwalk com o Sr. Eckley, ajeitou os cabelos na frente do espelho e,
sentindo-se feminina o suficiente, enrolou-se em um roupão de veludo para
bater à porta de Nathaniel McFadden.
Quando ele abriu, ela colocou logo os dois pés dentro do quarto. Para não
ser vista, não correr o risco de que ele não a deixasse entrar, não desistir. E,
então, ela pediu que ele a amasse.
Claro que Nathaniel não a amaria, não no sentido literal. Ele a possuiria e
a faria plenamente satisfeita naquela noite – mas, para ele, aquela era uma
atividade carnal. Lucille não acreditava que o mesmo se aplicaria a ela. Ainda
assim, tinha certeza do que queria – e suas certezas se intensificaram quando
ele, saindo do estado de torpor que a pergunta dela o colocou, segurou-a em
seus braços e a beijou.
Lucille quase derreteu naquele beijo. De tudo que ela sabia que ele podia
fazer com ela, o contato dos lábios era o mais intenso. Eles se encaixavam tão
bem – era tão perfeito que ela chegou a pensar que sua boca existia para ser
beijada por Nathaniel. Como se ela não pesasse nada, ele a ergueu do chão e
a levou para a cama, acomodando-a nos colchões.
— Você tem certeza disso, Lucy? Porque, uma vez que acontecer, não
terá como voltar atrás.
— Por favor, não seja um cavalheiro. Não agora, não tenha uma recaída.
— Ela suplicou, puxando-o para perto, mantendo-o conectado a si. — Não
me coloque dúvidas, não pretenda que eu desista. Não importa o que
acontecer daqui para frente, eu quero que seja você.
Ele a beijou novamente, tomando seus lábios com posse resoluta. Era
aquilo, ela era dele – a partir daquele momento e para sempre. Mesmo que
houvesse outros, eles seriam apenas os outros. Talvez ela conhecesse alguém
com quem se casasse, mas a sua primeira paixão seria sempre a única.
Com cuidado reverencial, ele desceu a boca pela extensão de seu corpo,
saboreando suas curvas e sua pele, passando a língua por entradas e
reentrâncias que despertavam nela sensações ainda não experimentadas.
Nathaniel a beijou até a ponta dos dedos do pé e voltou, explorando a carne
macia de suas pernas até parar ali, onde ela o aguardava. A nudez não era
algo que ela enfrentaria sem embaraços, mesmo que ele fizesse tudo parecer
tão natural. Ainda assim, não resistiu em manter os olhos abertos enquanto
ele acariciava delicadamente seus pelos íntimos.
— Eu vou fazer você me desejar, Lucy. Muito, mais do que você será
capaz de suportar. Você vai me querer aqui — deslizando um dedo para
dentro de suas dobras femininas, Nathaniel provocou sua entrada com
investidas suaves. — e vai implorar para que eu a preencha.
Sim, ela iria, porque já estava implorando. Não fazia ideia de como
aquela dinâmica funcionava, apenas sabia que eles se encaixariam de alguma
forma. Com um sorriso devasso, Nathaniel acomodou-se entre suas pernas e
beijou seu sexo. Abriu espaço para sua língua com os polegares e a lambeu,
exatamente naquele ponto cheio de nervos que clamava por um toque. Ela
estremeceu e forçou o corpo para trás, afundando a cabeça no travesseiro. Ele
já fizera aquilo, antes, e ela já se sentira completamente arrebatada, antes.
Mas, daquela vez, ele não tornaria nada mais fácil. Como um gato, Nate
deslizou para cima e passou a língua pelos seios expostos. Tomou um mamilo
na boca, sugou, fez o mesmo com o outro. Desceu, voltou a explorar sua
feminilidade com carícias ritmadas e intensas. Lucille cravou as unhas no
colchão quando ele capturou sua pérola intumescida entre os lábios e chupou,
enquanto um dedo a penetrava cuidadosamente.
— Céus. — Ela choramingou, sem conseguir conter os espasmos de seu
corpo indócil. — Quando ouvi dizer que você era cruel, imaginei uma coisa
bastante diferente.
Nathaniel deu uma risada. Ele achava graça por submetê-la àquela tortura
deliciosa enquanto Lucille acreditava que poderia explodir de desejo.
— Eu darei o que você quer. — Ele acariciou seus seios. — E você
gritará meu nome, Lucy.
O miserável arrogante se levantou, ficou de pé ao lado da cama e puxou a
camisa para cima, fazendo-a sair pelo pescoço. Ela abriu os olhos para
apreciá-lo se despir no instante em que aqueles dedos habilidosos
desabotoaram a calça, que caiu ao chão. Nathaniel talvez não fosse o homem
mais bonito que existia, mas ele era glorioso em sua virilidade
inquestionável. Mantinha nos lábios o sorriso indecente de quem sabia que
fazia a coisa certa, que estava na iminência de a enlouquecer.
— Você quer tocá-lo, Lucy?
Ela hesitou, olhando fixamente para a ereção que a desafiava. Sim, ela
queria, mas precisava de outra coisa, naquele momento. Balançou a cabeça
para um lado e para o outro, negando tacitamente.
— Eu quero que ele me toque.
As bochechas coraram imediatamente, ela não sabia se pelo calor da
excitação ou pela vergonha de dizer coisas tão indecorosas. Era impossível
manter um comportamento minimamente decente na presença de Nathaniel
McFadden.
— Onde, Lucy?
Os olhos dela se arregalaram, mas ele parecia esperar que ela indicasse
exatamente o que queria que fizesse. Com dedos trêmulos e vacilantes, ela
tocou sua intimidade.
— Aqui.
— Então será aqui. — Ele riu, divertindo-se da sua timidez. — Mas,
antes, eu garantirei que esteja pronta para o receber.
Nathaniel voltou a se acomodar entre suas pernas e a sutileza se encerrou.
Com uma boca faminta, ele a abocanhou, lambeu e chupou com vigor até
arrancar-lhe gemidos embaraçosos. Lucille não conseguiria impedir que seu
corpo sucumbisse ao êxtase, ela estava muito próxima do precipício quando
ele simplesmente parou. A sensação de vazio durou um segundo. Logo, a
boca dele estava sobre a dela e o membro rígido pressionava sua entrada.
Ela pensou que ele diria alguma coisa, que a provocaria novamente com
palavras indecentes, mas Nathaniel apenas investiu, firme e profundamente,
contra ela. Lucille soltou um lamento que foi capturado pelos lábios
cuidadosos, sentindo-se expandir à medida em que ele a penetrava.
— Relaxe. — Ele murmurou em seus ouvidos, passando a língua por seu
pescoço e retornando para sua boca. — Logo vai passar.
Lucille não soube imediatamente o que iria passar, se a agonia de o ter
dentro de si, se as pontadas de dor que a faziam desejar expulsá-lo, se a
incoerência de seu desejo, que a impulsionava a erguer os quadris para o
receber por completo. Tudo fazia parte da mesma experiência, então ela não
queria que nada passasse. Queria tudo, queria mais, queria intensamente.
Sem parar de beijá-la, Nate moveu os quadris e se retirou, voltando em
seguida. Foi um movimento lento e delicado, que ele repetiu algumas vezes
até que ela sentisse sua pelve perfeitamente encaixada na dela. Daquele
momento em diante, ele não se conteve, mais. Ergueu o corpo, segurou-a
pelas nádegas, levantou-a parcialmente do colchão e investiu
cadenciadamente, entrando e saindo, provocando-a a sentir uma comichão
ainda desconhecida em seu ventre.
Ela o quis tocar, então cravou os dedos nas coxas masculinas, contraídas
pelos movimentos. Nathaniel parecia perdido no momento, com os olhos
fechados e a cabeça pendida para trás. Lucille gemeu quando ele levou o
polegar até seu clitóris e o circulou, aumentando todas as sensações que ela
pudesse sentir. Não demorou para que o êxtase a consumisse, fazendo com
que ela, involuntariamente, gritasse o nome dele.
— Meu Deus, Lucille. — Ele não parou, continuou entrando e saindo,
entrando e saindo, enquanto ela delirava pelas sensações incríveis que o
movimento dos quadris lhe proporcionava. Depois de mais duas ou três
estocadas, Nathaniel retirou-se dela soltou um gemido gutural, um som de
prazer e abandono que ela jamais esqueceria enquanto vivesse.
Q UANDO N ATHANIEL VIAJOU para os Estados Unidos, ele tinha algumas
certezas na vida. Uma delas era que seus irmãos eram uns tolos. Eram ainda
jovens e livres quando se apaixonaram e se deixaram capturar pelo
casamento. Entendia Edward, o conde, pois ele tinha a responsabilidade de
gerar um herdeiro, de dar continuidade à linhagem dos McFaddens. Mas
Isaac... o irmão tinha vinte e cinco anos quando se envolveu com uma
libertina e passou a viver em função da mulher. Não existia ninguém mais
apaixonado e dedicado do que seu irmão, e Nate só sabia que não queria ficar
como ele.
Sua vida era, sim, cheia de paixões, mas elas vinham sempre no plural.
Ele amava mulheres, várias delas, muitas delas, todas elas. Suas emoções
eram efêmeras, passageiras, e ele se orgulhava de nunca as desejar por mais
de uma noite. Nenhuma mulher compartilhara sua cama mais de uma vez.
Havia um número inatingível de damas e viúvas e solteironas que precisavam
experimentar os prazeres carnais que ele lhes podia proporcionar, e Nate
sempre soube que morreria cedo – não tinha, portanto, tempo a perder.
Mas algo estava errado. Primeiro, ele não morrera tão cedo quanto
esperava – sua vida estava durando mais tempo do que deveria, para muita
gente. Segundo, ele soube, naquele momento, que desejaria Lucille pelo resto
de sua vida – e talvez a continuaria desejando em uma vida depois daquela.
Então, ele estava muito confuso enquanto permanecia ali, deitado, com ela
em seus braços. Não tinha nada a ver com a virgindade – Lucille não era a
sua primeira virgem. Nathaniel não tinha nenhuma moral que o impedisse de
deflorar as mocinhas que caíam em sua lábia.
Era ela. Aquela mulher em sua cama era especial – e isso significava que
ele estava ferrado como nunca tivera, antes.
Quando acordou no dia seguinte, depois de dormir ao lado de Lucille em
uma cama apertada demais para os dois e não se incomodar com isso, decidiu
que não poderia a deixar ir. Não naquele dia, não quando ele ainda não estava
preparado para lidar com o buraco que outra ausência causaria em sua alma,
já completamente destroçada. Com cuidado, desvencilhou-se dos braços dela,
vestiu-se apressadamente, garantindo apenas que os botões estivessem todos
fechados, e desceu para a cabine telefônica. Precisava falar com Leo e o
avisar que ainda demoraria mais alguns dias até poder retornar.
— Já chegou a Boston? — O amigo perguntou como de costume, sem
sequer o cumprimentar.
— Ainda estou em Plymouth, hospedado no Queen’s Shore e preciso
contar com sua ajuda por mais alguns dias.
Leonard bufou do outro lado.
— Devo pegar o próximo trem?
— Não, claro que não. Quero você o mais longe possível, mas preciso
que continue me cobrindo no Gênesis. Eu vou retardar a partida de Lucille
em pelo menos um dia.
— Retardar? Por que raios, ela está em perigo?
— Não, Leo, mas quero passar mais tempo com ela.
Outra bufada fez Nathaniel entender que a perspectiva de que ele
efetivamente gostasse de Lucille incomodava o amigo. Se fosse o contrário,
ele estaria incomodado, também.
— Cristo, Nate. Você está fora de si. Entenda uma coisa, essa mulher é
pura encrenca. Ela está fugindo de um pai perigoso e milionário e é noiva de
um marquês poderoso, apesar de falido. Existem dúzias de mulheres como
ela aqui em Nova Iorque, deixe essa em paz.
— Não existe nem uma como ela no mundo inteiro, Leo. — Nate deu
uma risada nervosa. — Cada mulher é única, e Lucille é especial. Não sei por
que diabos estou te dando satisfações. Se não quiser me cobrir, avise ao chefe
que desertei.
— Certo, você está completamente louco. A morte de Emile afetou seu
juízo.
— Tchau, Leo, vejo você em uma semana.
Nathaniel não ficaria ouvindo desaforos de um homem com mais pecados
do que ele. Leonard era o seu porto seguro desde a chegada em Nova Iorque,
mas também a razão de todos os seus problemas. Se não fosse ele, nunca
teriam se envolvido naquele negócio e não teriam sido largados para morrer
em um prédio em ruínas. Estava confuso, em júbilo pela consciência dos
sentimentos inesperados por Lucille e em frangalhos pelo desalento de, a
cada dia, ter menos chances de encontrar o irmão com vida. Agarraria a
esperança de o encontrar em alguma aldeia ou vila isolada pelo interior, ou
não teria mais motivos para seguir vivendo. Se a morte de Emile pesasse em
suas costas, ele trataria de apressar sua chegada ao inferno.
Subiu para encontrar seu quarto vazio. Olhou ao redor, agitado, mas
encontrou um pequeno bilhete sobre a cama antes de entrar em pânico pelo
desaparecimento de Lucille. Ela dizia que estava em seu quarto se preparando
para o desjejum.
— Posso entrar? — Perguntou, à porta dos aposentos dela. Lucille
apareceu e girou a maçaneta, recebendo-o com um sorriso. — Gostaria de
conversar com você.
Ela saiu da frente e deixou que entrasse. Nathaniel era ruim com palavras.
Não, ele era ótimo com elas, era péssimo apenas com sentimentos – e os que
ele sentia, naquele momento, eram bastante assustadores. Mas ele não tinha
medo de nada. Praticamente nada. Certamente, de nada.
— Estamos para sair?
— Não. Quero dizer, na verdade, eu gostaria de lhe propor um adiamento.
— Adiamento? — Ela estava ajeitando o cabelo dentro da boina e virou-
se para ele. Vestia-se como o homem que ela não foi durante todo o tempo de
viagem, com aquelas vestes masculinas que a deixavam mais sensual e mais
exótica. — Não entendo, não vamos hoje para Boston?
— Pensei que, talvez, você quisesse passar mais algum tempo aqui.
— Aqui, em Plymouth?
— Aqui, comigo.
Ela conteve outro sorriso. Os olhos eram castanhos claros, às vezes
cintilavam à luz do dia, às vezes pareciam escuros e tempestuosos. Lucille
olhou para baixo por alguns segundos, intermináveis segundos, até voltar-se
para ele novamente.
— Você tornará isso bastante difícil, não é? Ir embora?
— Eu não sei, Lucy. Mas eu acabo de dizer para Leonard que ficaria mais
um dia na cidade, então eu detestaria me passar por mentiroso.
— Entendo. Eu também não estou preparada para dizer adeus.
Nathaniel deu cinco passos até chegar a ela, segurá-la em seus braços e a
beijar. Ainda era cedo, precisavam tomar o desjejum, ela certamente estava
dolorida e não poderia deitar-se com ele, ainda, mas não importava. Bastava
senti-la nos lábios, bastava explorá-la com a língua. E ela se rendeu
deliciosamente, tornando-se macia sob suas mãos, flácida enquanto ele a
segurava com intensidade exagerada. Também não estava preparado para a
deixar ir mesmo sabendo que não poderia adiar o momento para sempre.
Não podia.
— Vamos comer. — Nate se afastou um centímetro. — Depois, podemos
caminhar pela cidade e retornar para o hotel. Ainda há algumas coisas que
gostaria de te ensinar.
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

L EONARD OLHOU PARA O TELEFONE COM DESALENTO . N ATHANIEL ESTAVA


completamente louco, apaixonando-se pela filha de Walter Smith. Com tantas
mulheres no mundo inteiro, escolhera justo a menos disponível, a mais
perigosa.
— O que houve, Eckley?
O chefe entrou na sala enquanto Leo ainda mantinha sua expressão
confusa. Tinha de fazer algo para recolocar o amigo nos trilhos, apenas não
imaginava o que.
— Nate precisa de uma intervenção. Acho que terei de ir até ele outra
vez.
— Conte-me do início.
Quando se sentava na sala de Leonard, o chefe indicava que queria uma
história – e deveria ser uma boa história. Não era costume esconder nada do
homem que os salvara da morte e os transformara em figuras importantes e
temidas, em homens ricos. Então, Leo contou o que ele pedira – tudo o que
sabia, desde o momento em que Lucille Smith buscara a ruína na casa de
Nathaniel, até a última ligação recebida do amigo, indicando que ele estava
inegavelmente apaixonado.
— Por isso, preciso ir até ele resgatá-lo. Nathaniel é um McFadden,
afinal, e todos são muito passionais.
— Certo, você pode partir, mas terá que fazer isso amanhã. Hoje preciso
de você no clube, amanhã me organizo para que possa buscar nossa ovelha
desgarrada.
— Tudo bem. Ele me garantiu que ficará em Plymouth, hoje. Amanhã
talvez esteja na estrada, mas consigo o alcançar em Boston.
Sorrindo, o chefe se levantou e pegou um charuto da caixa fechada que
ficava sobre sua mesa. Levou ao nariz e cheirou, satisfeito.
— Você é um bom amigo, Eckley. Tenho certeza de que Nathaniel
compreenderá suas atitudes.

Q UANDO ENTROU no quarto de Nathaniel, naquela noite, Lucille pretendia


apenas conquistar algumas lembranças. Escolheu-o, mas não imaginava que
fosse querer mais do que recebera. Não era possível ter mais depois do que
aconteceu na cama dele. Ela se entregou por inteiro, ele também. Tudo que
havia para dar, tudo que havia para receber, foi compartilhado entre eles. E,
então, ele entrou no quarto dela e pediu que não partisse.
Se ela não fosse embora naquele instante, não iria mais. Se não fosse
embora naquele dia, partiria com sequelas que não se curariam, mas Lucille
arriscou e decidiu ficar. Cedeu a ele e concordou em passar mais um dia na
companhia do maior canalha de Nova Iorque – que, ao seu lado, não se
parecia tanto com um canalha, assim. Ela sabia que ele era perigoso, cruel,
que destruiria seu coração se ela deixasse, mas não se importou em permitir
que ele a levasse para um passeio, mesmo que, vestida de homem, eles nem
pudessem se tocar.
Voltaram para o hotel depois de um dia agradável – mesmo que tivessem
perguntado por Emile durante boa parte dele. O amanhã seria de despedidas,
mas a noite seria novamente deles, sem máscaras, fantasmas ou qualquer
outra coisa que os pudesse atrapalhar. Ela levou suas poucas coisas para o
quarto de Nathaniel e decidiu se lavar ali mesmo, se ele permitisse.
— Enquanto você se prepara, descerei e pedirei o jantar.
Ele lhe beijou os lábios rapidamente, com uma intimidade que ela nem
mesmo lhe concedeu. Aproveitou a água quente para um banho longo, vestiu
apenas a camisa, sem a faixa, e parou na frente do espelho para pentear os
cabelos. Examinou-se por alguns segundos, tentando descobrir o que estava
diferente, se algo estava diferente. Sempre se perguntou se mulheres
defloradas tinham uma expressão única, se era possível notar em suas faces
que se entregaram ao pecado. Considerou que não parecia, mas estava
mudada. Não foi por causa da noite anterior, mas desde sua decisão de tomar
sua vida em suas mãos.
Barulho no quarto chamou sua atenção e Lucille saiu do banheiro
esperando encontrar-se com Nathaniel. Seu estômago borbulhava de
ansiedade e aquela reação de seu corpo não parecia ser normal. Era normal
desejar tanto ser tocada novamente por um homem como Nate? Era normal
uma donzela que perdera a virgindade um dia antes estar tão ávida por repetir
todos aqueles atos libidinosos e ainda aprender outros? Talvez não fosse e
aquele maldito canalha a tivesse enfeitiçado com qualquer coisa que ele
fizesse para seduzir as mulheres para a sua cama.
Mas, ao adentrar no quarto, deparou-se com quatro homens
desconhecidos. Eles tinham uma aparência desgrenhada e portavam armas.
Dois deles empunhavam uma pistola e reviravam o quarto. Ao vê-la, um
homem correu em sua direção e o outro fechou a porta. Lucille se viu cercada
e começou a gritar.
— Saiam daqui! Esse é o quarto de uma mulher, os senhores não têm
respeito? — Tentou disfarçar que não entendia a presença daqueles
brutamontes, mas suspeitava que eram homens enviados por seu pai.
— Sabemos bem, Srta. Smith. Viemos resgatá-la.
— Não preciso de resgate.
— Lamento, mas não importa. Levaremos a senhorita assim mesmo.
O homem mais próximo a segurou com os dois braços. Lucille estava sem
suas calças, usando apenas uma camisa e as ceroulas, mas não teve tempo de
sentir vergonha ou de apelar para o decoro. Continuou a gritar, debater-se,
espernear. Não se entregaria pacificamente. Chutou o homem, acertando-o na
região da cintura, forçando-o a soltá-la. Sabia que eles não a machucariam,
não gravemente, ou não receberiam a recompensa prometida por seu pai.
Lucille só era valiosa se estivesse viva e imaculada, pois ela precisava se
casar com um marquês. Outro homem a agarrou por trás, fazendo com que
suas pernas balançassem no ar. Naquele momento, Nathaniel entrou no
quarto, já com a pistola na mão.
Ela sentiu o coração falhar uma batida quando o viu. Lindo, loiro, com
aqueles dois botões abertos no colarinho e um olhar assassino.
— Soltem-na. — Comandou. Os homens deram uma risada, outro
apontou a pistola para ele.
— Vamos. — O homem que a segurava disse, se movendo. Nathaniel
armou a pistola e a manteve na direção dele. — Sairei com a mulher, vocês
cuidem do sequestrador.
A realização de que os homens matariam Nathaniel desabou sobre ela
como um raio em dia de tempestade. Eram criminosos, não havia motivo para
mantê-lo vivo. E, depois do que ela o vira fazer, duvidava que fosse permitir
que a levassem sem lutar bastante, antes.
— Ele não é um sequestrador. — Ela gritou. — Levem-me, mas deixem-
no em paz. Deixem-no!
Ninguém parecia ouvi-la. Um tiro foi disparado enquanto ela era
arrastada, mas teve tempo de ver um dos homens cair ao chão. Outro se
lançou sobre Nathaniel e eles começaram a lutar. Lucille gritou mais, pessoas
ocuparam os corredores enquanto ela era carregada pelo mais forte deles. Já
quase não tinha mais voz quando olhou para trás e o viu correndo em sua
direção.
— Nate! — Gritou mais. — Atrás de você!
O último homem mirou e atirou em Nathaniel pelas costas. Lucille berrou
um sonoro “não” ao vê-lo cair, enquanto se afastava cada vez mais. Quando
ela foi maltratada na estalagem à beira da estrada, eram três homens
desarmados – e ele não se incomodou em acabar com todos de uma vez. Mas,
ali, aqueles capangas estavam preparados, como se tivessem sido alertados
que ela estava na companhia de um lutador. Não haveria chance de escapar,
mas ela não parou de gritar, espernear e chorar enquanto era suspensa no ar e
jogada dentro de uma carruagem.
— Pelos céus, precisamos amarrá-la. A mulher parece um gato selvagem.
— O homem disse, para o condutor. — Dê-me cordas e vamos.
— Aonde estão os outros?
— Lá dentro, espero que vivos. Eles conseguem sair dessa sozinhos,
precisamos levar a fujona para seu pai e receber a recompensa.
— Fujona? Não foi um sequestro?
— Como eu nunca vi uma vítima tão relutante em ser libertada, duvido
muito que seja o caso. Mas fique de boca fechada, não estamos sendo pagos
para arruinar a reputação da mulher, apenas para a restituir à sua família.
Lucille foi amarrada com uma corda e amordaçada com um lenço. Seus
braços, presos às costas, e suas pernas atadas, tornando impossível que
continuasse lutando contra seus captores. Aquele era o fim de sua jornada,
não haveria mais fuga para a Inglaterra, não haveria mais vida livre, estudos,
ou trabalhar em algum comércio para ganhar a vida honestamente. As
lágrimas vinham em profusão, a ponto de a afogar. Mesmo sabendo que não
deveria se entregar, que poderia pensar em outra forma de escapar do
casamento trágico que a esperava – e do castigo que seu pai infligiria, que
seria cruel o suficiente para que se lembrasse todos os dias de sua vida,
Lucille não conseguiu evitar chorar.
E, enquanto a carruagem andava pelas ruas irregulares de Plymouth, com
os pés de um homem sobre seu corpo, mantendo-a presa ao chão, ela também
não conseguiu evitar pensar nele, em Nathaniel. O homem que a rejeitou, a
ajudou, a salvou de tantas maneiras que ela passaria todos os seus dias
agradecendo em silêncio por seus caminhos terem se cruzado. Parte de suas
lágrimas era por si, outra parte era por ele. A agonia de não saber, o
desespero de pensar que ele poderia ter deixado o mundo sem cumprir sua
missão – encontrar o irmão, tudo fazia com que ela chorasse ainda mais.
Foi chorando que ela acabou nocauteada pelas emoções. Não viu que seus
captores a tiraram da carruagem e a enfiaram em um vagão de trem, o que a
conduziu, durante toda a noite, de volta para Nova Iorque. Quando despertou,
novamente, assustada, estava em casa. Os dois homens que a conduziam a
mantiveram amarrada e amordaçada durante todo o trajeto para a residência
dos Smith e a fizeram entrar pela porta dos fundos, diante dos empregados
assustados. Lucille caminhou voluntariamente até seu quarto, rendida,
sabendo que não era possível mudar seu destino naquele instante. Que novos
planos poderiam ser traçados, mas não naquele dia. Não até que seu espírito
se recuperasse do trauma de perder tudo.

N O PRIMEIRO DIA , Lucille ficou trancada em seu quarto sem ver ninguém, o
que considerou uma sorte. Estava profundamente ferida em sua alma, tendo
perdido a chance de escapar para sempre de um destino infeliz. Também
estava profundamente triste por causa de Nathaniel McFadden, o homem que
a salvou e a levou ao inferno em apenas um dia. A imagem que se repetia em
sua mente era ele caído ao chão depois de ser alvejado por um de seus
captores. Deitada de lado na cama, abraçada com os joelhos no peito, ela
chorou por horas sem se preocupar em ser ouvida ou interrompida.
No segundo dia, o pai apareceu. Ele segurava uma toalha e ela já sabia o
que aquilo significava. Sem dizer nada, embebeu a toalha em água e mandou
que ela se levantasse. Lucille desobedeceu, pois não faria diferença. Ele a
espancaria não importava em que posição estivesse, portanto não lhe daria
mais o sabor de a controlar. Walter Smith poderia ser o dono de seu corpo,
mas jamais comandaria sua alma. Quando confirmou que ela não faria o que
mandava, o pai arrancou as cobertas que estavam sobre ela, sem se importar
com qualquer regra de decoro, e bateu com a toalha até a exaustão. Aquele
era o limite de Walter Smith – ele só parava quando estivesse cansado.
Lucille também sabia que aquele castigo não deixava marcas. Ela o vira
bater muitas vezes na mãe – sempre que planejava uma surra, fazia de forma
que ninguém percebesse a violência. A dor, no entanto, era quase
insuportável, mas ela não gritou. Não deu a ele o prazer de saber que a
machucara, mesmo que suas pernas tenham fraquejado ao final e ela tenha
terminado no chão – o lugar onde ficou o restante do dia.
No terceiro dia, a mãe a visitou. Lucille não comia nada desde que
retornara para casa, o que significava que morreria de fome ou ficaria doente
até seu noivo importante chegar da Inglaterra – o que aconteceria em breve.
Um dia? Talvez dois, e o Marquês de Hertford estaria em Nova Iorque para a
reivindicar como esposa.
— Você precisa se alimentar. — A mãe se sentou na cama, segurando
uma tigela de sopa. — Está pálida e com uma aparência adoentada, Lucy.
Ela manteve o silêncio. Estava de costas para a mãe, deitada de lado, sem
conseguir se concentrar em nada que não sua própria miséria. Precisava de
forças para fugir, para planejar outra forma de escapar do casamento
indesejado.
— Se não comer, terei que chamar o doutor.
— Não se preocupou com minha saúde quando o permitiu entrar e me
espancar. — Lucille disse, sem virar-se. — Não finja que se preocupa, agora.
Constance apoiou a tigela na mesa de cabeceira.
— O que pretendia que eu fizesse, Lucille? Ele é seu pai, você fugiu de
casa para o desafiar. Fez com que ele passasse uma enorme vergonha e...
— Cale-se, mamãe. — Ela se virou, sentando-se na cama. O corpo doía
como se ela tivesse sido atropelada por uma carruagem em alta velocidade.
— Não fiz nada, absolutamente nada, com ele. O homem que responde por
meu pai me vendeu como mercadoria barata para um nobre falido sem nunca
se importar comigo. Ele a trata pior que aos cavalos e você ainda o justifica?
Sempre permitiu que ele a agredisse e agredisse seus filhos.
— Há coisas que uma mulher não pode evitar, Lucille.
— Bem, eu não acredito nisso. Não aceito me casar com o Marquês de
Hertford e prefiro morrer tentando ser livre a aceitar passivamente esse
destino.
Virando novamente de lado, Lucille desejou apenas que a mãe se fosse,
mas ela permaneceu ali, sentada, em silêncio. As lágrimas encheram seus
olhos, mas ela as conteve, não pretendendo dar a ninguém o prazer de a ver
chorando.
— Se eu pudesse ajudar, faria algo.
— Você pode, se quiser.
— Algum novo plano para fugir e fingir seu próprio sequestro?
— Eu não fingi. — Lucille desistiu de resistir e se sentou. — Mamãe,
você entregaria um bilhete a Millicent?
A mãe endireitou a coluna e passou as mãos pela saia, demonstrando
nervosismo.
— Se pai ordenou que ficasse incomunicável.
— Se fosse para cumprir as ordens dele, não precisaria de sua ajuda. É
apenas um bilhete, eu preciso falar com ela. Milly não sabia dos meus planos,
não contei nada a ninguém.
— Certo, escreva o bilhete que providenciarei que ela o receba.
Com dificuldade, Lucille levantou-se da cama e se sentou à escrivaninha.
Seu coração batia acelerado e ela mal conseguia respirar. Se falasse com
Millicent, poderia saber notícias de Nathaniel e poderia ter uma chance de
fugir novamente – mesmo que fugir parecesse uma péssima estratégia. Mas,
daquela vez, embarcaria em Nova Iorque mesmo, e iria para o lugar mais
distante que pudesse – talvez as Índias.

Milly, estou presa em casa. Fugi, papai descobriu, me trouxe de volta


e me mantém prisioneira até que o marquês chegue. Preciso que
procure o Sr. McFadden no clube Gênesis. Se não conseguir falar
com ele, procure o Sr. Eckley. Não tente entender esse bilhete, apenas
faça o que peço. Lucy.

Depois de escrever, leu rapidamente as palavras para ter certeza que seu
pedido ficara compreensível. Não ficou, talvez nem ela mesmo se entendesse,
mas não podia arriscar dar informações muito precisas. Apenas mencionar o
nome dos homens já os colocava em risco e tudo dependia do quanto sua mãe
estava disposta a agir por ela. Constance Smith nunca fizera nada para livrar
os filhos das punições do pai, aquela seria a primeira vez e Lucille estava
cética. Mas não havia outra forma de fazer chegar sua mensagem a Milly, os
criados não se arriscariam tanto.
Dobrou o bilhete, colocou dentro de um envelope e entregou à mãe.
— Você o lerá? — Perguntou, sincera.
— Não está endereçado a mim. Sairei hoje para visitar o orfanato e para o
clube de leitura. Antes, passarei na casa da Srta. Ryan.
O coração de Lucille continuava disparado, ribombando em suas costelas
e aumentando a dor pelas lesões que sofrera. Se Millicent recebesse o bilhete
e a ajudasse, talvez houvesse mais uma chance de escapar. Por um instante,
ela quis abraçar a mãe. Não era uma pessoa ruim, insensível – Lucille sempre
se considerou bem afetuosa. Mas não conseguiu. O mal que sofreu não foi
culpa de Constance, mas não conseguia perdoá-la por ser conivente.
Sozinha novamente, deitou-se na cama e se permitiu dormir um pouco
pela primeira vez em muito tempo. Dentro de si, acreditava que Nathaniel
estivesse vivo e sonharia em ser resgatada por ele – mesmo que ele não fosse
nenhum príncipe encantado e ela não estivesse nem um pouco interessada em
um.

E LE NUNCA SUCUMBIA , essa era uma das únicas certezas que Nathaniel
McFadden tinha. Depois do que vivera no mês seguinte à sua chegada aos
Estados Unidos, sabia que não viera ao mundo para ser abatido. Talvez uma
doença tropical ou uma besta selvagem o atacasse e ele morresse se
contorcendo em uma dor terrível, mas homem nenhum o derrubaria. Mesmo
depois de ter sido atingido pelas costas, ele se levantou e atacou seu agressor,
usando a faca no bolso de seu colete para o subjugar. Os outros dois estavam
já feridos dentro do quarto, ambos alvejados por sua pistola. Ele arrastou o
terceiro para lá, trancou a porta e correu atrás de Lucille.
Era noite e a escuridão começou a engoli-lo. Nathaniel desceu as escadas
freneticamente, gritando por ela, sob os olhares assustados dos hóspedes,
empregados e gerentes do hotel. O tempo que gastou para livrar-se dos seus
agressores custou caro – Lucille não estava em nenhum lugar para ser vista.
Maldição! Era tudo sua culpa, se não tivesse sido tão egoísta e a mantido
em Plymouth para que pudesse passar outra noite ao lado dela, Lucille não
teria sido encontrada. A imagem dela sendo arrastada por um homem
qualquer fez a bile amargar sua boca, até ele perceber que era seu sangue
escorrendo pelos lábios. Talvez Nathaniel não sucumbisse, mas, outra vez,
ele não conseguiria salvar alguém que deveria proteger e carregaria aquela
culpa para sempre.
A escuridão finalmente o derrotou e Nate desmontou no meio da rua. Os
joelhos dobraram, o corpo não resistiu aos ferimentos e ele caiu ao chão
inconsciente. Não havia dor física, não havia nada além do vazio de saber que
Lucille sofreria as consequências de sua estupidez. Por muito tempo, era
apenas aquilo, um hiato em que nada acontecia, nenhum som poderia ser
ouvido, nenhuma luz poderia ser sentida. Ele permaneceu ali, caído, imóvel,
lamentando miseravelmente a dor de sua alma, sem nem mesmo conseguir
dar um fim à própria vida. Seria fácil demais, ele merecia sofrer pelo que
causara aos outros.
E, então, ele caiu em um precipício e permaneceu em queda por um longo
tempo, até uma mão segurar a sua. Nathaniel ergueu a cabeça e se viu
olhando dentro dos olhos castanhos de Lucille. Ela sorria e estendia os braços
para ele, no instante em que acordou.
— Oh. — Uma voz feminina, que não era a dela, soltou uma interjeição
espantada. — Ele despertou, doutor.
— Isso é muito bom. — Um homem de cara redonda e bigodes se
aproximou de onde Nathaniel estava. — Como se sente, Sr. McFadden?
Antes de responder, ele quis olhar ao redor. Estava de bruços, sentindo o
peso de dois cavalos em suas costas. Não estava mais no hotel onde se ferira,
estava em Nova Iorque, em seus aposentos no Gênesis. Se voltara para a
cidade, isso significava que pelo menos um dia se passara desde que Lucille
fora capturada pelos capangas de seu pai, ou seja, que ela estava sob as garras
de um homem ruim.
— Por quanto tempo fiquei desacordado?
— O senhor estava sedado com láudano e morfina. — O homem, que fora
chamado “doutor”, começou a mexer em um curativo que estava em suas
costas. — Está em uma posição desconfortável, portanto...
— Quanto. Tempo.
Nathaniel repetiu a pergunta, trincando os dentes ao sentir a dor de mil
espadas perfurando seu corpo quando o médico descobriu o ferimento e
passou alguma substância no local.
— Três dias, senhor, mas foi necessário. O senhor foi transportado
inadequadamente de Plymouth para cá e teve uma hemorragia interna,
portanto...
— Recoloque o curativo, doutor. — Nathaniel virou o pescoço e encarou
o médico, que não soube como reagir à ordem. — Se não fizer isso agora,
levantarei sem.
— O senhor não deve se levantar, ainda precisa repousar. O ferimento...
— Vou morrer?
— Ainda há riscos, senhor.
— Certo. Recoloque o curativo, por favor. E, enquanto isso, conte-me
como diabos cheguei até aqui.
O médico não estava acostumado a receber ordens de pacientes, mas
Nathaniel não era um paciente comum – era indisciplinado e acostumado a
comandar. Depois de fazer uma limpeza no local da cirurgia, enfaixou
novamente o ombro enquanto explicava o que lhe fora pedido.
— Não sei dizer como chegou até aqui, Sr. McFadden. Mas fui chamado
para o tratar e o senhor estava em péssimas condições.
— Quem o chamou?
— Seu amigo, o Sr. Eckley.
Nathaniel se sentou. Ao menos, tentou se sentar, apoiando as duas mãos
no colchão e erguendo o corpo com alguma dificuldade. Sentiu uma pontada
aguda no braço esquerdo, jogou o peso para o direito e tombou de lado no
colchão. A enfermeira que os acompanhava tentou o ajudar e recebeu um
olhar fulminante que a preveniu de aproximar-se. A dor era excruciante.
— Sr. McFadden, se tentar se levantar, irá sangrar e não poderei fazer
nada para ajudar. Por favor, ouça minhas recomendações e fique deitado.
Precisa que chamemos o Sr. Eckley?
Ele concordou, relutante, apenas assentindo com a cabeça. Deixou o
corpo pender novamente para frente e caiu de bruços, sentindo o ombro
latejar. Como ele estava em posição vulnerável, a enfermeira sentiu-se segura
de aproximar e ofereceu láudano para que bebesse. Qualquer coisa que
fizesse aquela dor horrível passar seria bem-vinda, mas Nathaniel não queria
apagar. Precisava conversar com Leonard porque precisava de notícias de
Lucille.
Permaneceu ali, um pouco desorientado, lamentando seus infortúnios,
enquanto ouvia a enfermeira andar, o médico fechar a porta e então o
silêncio. Enquanto esperava, podia pensar no que fazer dali em diante.
Provavelmente sabiam que era ele quem estava com a filha de Walter Smith,
mas isso seria abafado para evitar o escândalo. Ninguém deveria supor que a
mulher fora sequestrada ou fugiu, todo o processo de resgate foi tratado pelos
criminosos mais sorrateiros de Nova Iorque. O pai de Lucille precisava
garantir que a sua classe social não soubesse de nada, para que nada chegasse
aos ouvidos do futuro marido da filha.
Então, Nathaniel não estava particularmente em risco, mas ele fora levado
para o Gênesis, não para sua casa. Aquilo também significava que seu amigo
não confiava que Walter Smith não fosse tentar retaliar. Eles tinham um
histórico de desavenças passadas, era de se esperar cautela de ambos os
lados.
Mas a possibilidade de deixar Lucille para trás era simplesmente absurda.
Ele não a abandonou nenhuma das vezes em que teve a oportunidade, bem
antes de se envolverem. Se ela não quisesse casar-se com o tal marquês, se
isso ainda não acontecera, ele a ajudaria a cumprir seu plano. Talvez fosse o
sentimento de culpa que o movesse – se não tivesse deixado a luxúria
conduzir suas ações, nada daquilo teria acontecido.
Tempo passou sem que ele percebesse. Deitado em uma posição
incômoda, um minuto tinha a duração de duas horas. A porta do cômodo
onde ele estava alojado se abriu e algumas lamparinas foram acesas. A luz do
dia se esvaía quando a figura taciturna de Leonard ajoelhou ao seu lado. Os
olhos escrutinadores o observaram.
— Você está péssimo.
— Preciso sair daqui, tenho que falar com ela.
Nathaniel tentou usar os braços para erguer o corpo outra vez, sem
sucesso. Sua força se esvaíra e seus músculos não obedeciam a seus
comandos – era efeito do ópio. O maldito láudano, ele precisava parar com
ele.
— Nate, não seja imbecil. Não está em condições nem se se alimentar
sozinho, quanto mais de falar com alguém.
— O que sabe dela? Você tem notícias de Lucille, Leo? Ela já... o noivo
dela já...
— O navio de Londres ainda não atracou, ela deve estar sendo mantida
em casa. O pai não arriscará outra fuga. Vou pedir que preparem um caldo,
você precisa comer alguma coisa.
Leonard saiu e Nathaniel quis gritar. Se estivesse de pé, chutaria alguns
móveis, socaria a parede e se sentiria melhor. Talvez saísse e quebrasse a cara
de algum devedor, mas não podia fazer nada daquilo. Aliás, desde que
Lucille se metera em sua vida ele não pode mais esfolar nem esmurrar
ninguém. Por isso nunca se deixava abater, pois não aguentava ficar em
posição de vulnerabilidade. O amigo retornou algum tempo depois e arrastou
uma cadeira para o lado da cama. Segurava um prato com um aroma
delicioso de qualquer coisa – com a fome que estava, não haveria comida
ruim.
— Coma. — Leo levou uma colherada do caldo à sua boca. Pela posição,
uma parte escorreu, precisando ser contida por um guardanapo. — Isso será
um desastre, mas precisamos continuar tentando.
A insistência de Leonard demonstrava que ele era um bom amigo para
Nathaniel. Os dois compartilhavam um trauma recente que poderia os ter
destruído para sempre e isso os fez bastante unidos. O Eckley tinha uma
compreensão bastante peculiar sobre certo e errado, mas isso nunca os
colocou em confronto direto. Naquele momento, agradeceu por tê-lo ao seu
lado. Quando já estava finalizando a sopa, tendo ingerido pelo menos metade
do líquido, a porta do quarto se abriu novamente e o um empregado do clube
chamou Leonard para cochichar alguma coisa.
— Não sou um inválido. O que está havendo?
— Alguém deseja me ver. — Leo apoiou o prato na mesa de cabeceira e
se levantou. — Deve ser algum problema no salão, já retorno.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

A CULPA QUE ESMAGAVA O PEITO DE L EONARD E CKLEY ERA RESPONSÁVEL POR


aquele agir tão cauteloso. Nathaniel estava bem, mas não conseguia sair de
perto do amigo. Deveria ter sido mais inteligente, mas nunca fora muito
esperto em lidar com o chefe. Era Nate quem o enfrentava, quem discutia as
decisões. Leonard não, ele apenas acatava e obedecia, como um soldado. E
sua tolice fez com que o amigo quase perdesse a vida.
Porque Leonard tinha certeza que fora o chefe quem contara sobre o
paradeiro de Lucille Smith para os homens que a resgataram. Por que ele fez
aquilo? Ainda precisaria descobrir, mas, primeiro, teria de garantir que Nate
estivesse bem.
Percorreu alguns corredores por onde se ouvia o barulho da jogatina e
outros ruídos menos decentes. Estava pronto para encerrar qualquer discussão
rapidamente, mas surpreendeu-se ao ver uma jovem mulher usando uma capa
escura. Não era nem uma prostituta, nem um frequentador do clube. Ela tinha
grandes olhos verdes e olhava ao redor como se tivesse acabado de entrar no
inferno. Bem, aquele era o Gênesis, talvez fosse o mais próximo que a
humanidade conhecesse daquele conceito.
— Sr. Eckley? — Ela perguntou, assim que o viu.
— Sim, sou eu. E a senhorita é...
— Millicent Ryan. — A mulher estendeu a mão para que ele a
cumprimentasse. Leonard a segurou entre as suas e beijou os nós dos dedos,
fazendo com que ela se assustasse. As americanas nunca paravam de diverti-
lo. — Eu... eu preciso falar com o Sr. McFadden. Foi por ele que chamei.
— O Sr. McFadden não está disponível, senhorita.
— Então terei que falar com o senhor.
— E sobre que assunto poderíamos conversar às sete da noite, em um
antro de jogatina? A senhorita sabe que está em um clube masculino, não
sabe?
— Sim, eu estou bastante ciente de onde estou, senhor. Ainda assim,
gostaria de conversar.
Leonard a olhou de cima embaixo. Era uma jovem bonita, simples,
bastante diferente do tipo que costumava frequentar a cama de Nathaniel.
Não deveria ser uma de suas conquistas amorosas, então ele teria de a ouvir
para saber o que desejava.
— Certo, senhorita. Vamos conversar, siga-me.
Leo conduziu a mulher até o seu escritório e chamou um empregado para
pedir que servisse chá. Depois, indicou uma poltrona para que ela se sentasse
e esperou que a Srta. Ryan dissesse alguma coisa.
— Eu venho a pedido da Srta. Smith. Lucille Smith.
O nome fez com que ele se engasgasse mesmo sem ter bebido nada. Uma
das ajudantes da cozinheira trouxe o chá e se assustou com a crise de tosse de
Leonard, apressando-se para servir a bebida e se retirar. A Srta. Ryan
entregou um bilhete amassado para ele, que, tentando se recuperar, o leu.
— Por que ela pediu que nos procurasse?
— Creio que ela deseje notícias do Sr. McFadden. Não sei exatamente o
que houve nesses dias em que minha amiga ficou desaparecida, Sr. Eckley,
pois ela não me atualizou de seus planos. Porém, imagino que os senhores
estiveram envolvidos em sua fuga.
— Não posso comentar sobre isso, Srta. Ryan. E, sinceramente, não sei
como poderia ajudar a sua amiga.
— Bem, se o senhor não sabe... ao menos eu poderia conversar com o Sr.
McFadden? Pelo menos um dos pedidos de Lucy eu gostaria de atender.
— Como eu disse, o Sr. McFadden não está disponível.
— Mas ele está bem?
— Não, eu não estou bem.
A voz de Nate ecoou pelo escritório e fez com que Leonard se levantasse
em um pulo. Ele vinha sem camisa, com o curativo mal amarrado e se
recostando pela parede, mal conseguindo ficar de pé. A Srta. Ryan arregalou
os olhos, assustada, mas correu para ajudar.
— Meu Deus, Nate, você enlouqueceu? O que faz fora da cama?
— Sua conversa estava demorando demais, suspeitei que havia algo
errado. E estava certo. Por que diabos não levou a amiga de Lucy
imediatamente para falar comigo, Leo?
— Você não pode se preocupar com isso agora, Nate. Desde que
conheceu essa mulher, você...
— Lucille. — As letras foram bem demarcadas nos lábios de Nathaniel.
— Essa mulher tem nome, mas você deve se referir a ela como Srta. Smith.
Depois de conseguirem o fazer sentar-se em uma poltrona, Leonard lhe
serviu um uísque. Millicent Ryan já deveria estar assustada o suficiente com
um homem ferido e quase nu à sua frente, mas não demonstrou nenhum
descontrole.
— Sr. McFadden, sou Millicent, amiga de Lucille Smith. Ela demonstra
preocupação com o senhor.
— Como ela está? A senhorita falou com ela?
— Não, sua mãe me entregou um bilhete. A informação oficial é que ela
está doente, mas eu sei que o pai a mantém presa. Ele é um homem ruim,
apesar de que Lucille sempre me escondeu a real dimensão dessa maldade.
— Preciso ir até ela.
Nathaniel tentou levantar-se novamente, sendo impedido por Leonard. O
comportamento do McFadden não era coerente, ele nunca agira com tanta
imprudência em relação a nada. E ali estava, colocando sua vida em risco
por... uma mulher?
— Você não vai a lugar algum, ferido assim. Veja, o curativo está todo
ensanguentado e o doutor deu recomendações...
— Leo, você não é minha mãe. Nem meu irmão, o Conde de Cornwall,
toma decisões por mim. Sou livre nesse maldito país, portanto, se eu digo que
vou tirar Lucille daquela casa, é porque irei.
A Srta. Ryan ajoelhou-se à frente de Nathaniel e apoiou as duas mãos nos
joelhos dele. Aquelas duas mulheres eram bem pouco atentas às regras de
decoro, pois não pareciam desconfortáveis tocando homens em lugares
inadequados.
— Sr. McFadden, eu o entendo. Lucy tem esse efeito sobre nós,
acabamos todos gostando dela mais do que deveríamos. Ela é boa, abnegada,
gentil, trata todos com respeito e é muito destemida. Mas o senhor deveria
ouvir seu amigo. Não está em boa forma para enfrentar Walter Smith, isso só
colocaria Lucy em perigo.
— E a senhorita acredita que ela esteja à salvo em casa, Srta. Ryan? —
Leo perguntou, temendo a resposta. Esperava que ela dissesse que sim,
certamente, mas suspeitava que estivesse enganado.
— Não, Sr. Eckley. Para a mãe ter interferido, imagino que ela esteja
sofrendo.
— Então, nem a Rainha poderá me impedir de tirá-la daquele lugar.
Quando Nathaniel tomava uma decisão, ele seguia com ela até desistir ou
morrer. Não havia como dissuadi-lo de resgatar Lucille Smith,
principalmente porque Leonard estava certo, o amigo estava apaixonado.
Podia negar o sentimento, e provavelmente o fazia, mas agia conforme as
emoções o afogavam. Que os deuses pagãos que protegiam aquelas terras os
protegessem, pois ele tinha certeza de que Nate ainda arrumaria muita
confusão.

O ESPELHO não costumava mostrar hematomas decorrentes das surras de


Walter Smith, mas a dor ainda a deixava desconfortável. Talvez fosse algo
mais grave e ela provavelmente precisaria ver um médico – mas não
permitiria que ninguém a visse fragilizada. Ainda, estava nervosa demais para
autopiedade, esperando ansiosa uma resposta de Millicent.
Não sabia o que ela conseguiria com aquele bilhete confuso, mas
esperava que fosse qualquer coisa. Esperava, ainda, que Nathaniel
entendesse o que ela não disse. A ausência de notícias dele apenas piorava
uma situação já bastante ruim. Provavelmente, estava sendo tola, mais uma
vez. Nada indicava que aquele canalha teria algum interesse nela, que ele
fosse realmente se importar com qualquer coisa que acontecesse com ela.
Lucille foi um obstáculo no caminho de Nate e ele estava certamente
desesperado para livrar-se dela. Ainda assim, ela precisava saber se ele ficou
bem depois do que aconteceu – não acreditava que pudesse ter morrido. A
força vital de Nathaniel McFadden não poderia ter se extinguido tão cedo no
mundo.
Vestiu-se com uma saia e uma blusa simples, sem espartilho, e debruçou
sobre a janela. Seu quarto ficava no segundo andar, com um pouco de
coragem ela poderia simplesmente pular e se libertar novamente. Mas parecia
simples demais – um plano pouco elaborado certamente estaria fadado ao
fracasso, já que seu pai era um homem bastante poderoso. Enquanto
observava o lado de fora e pensava em como fugir do destino, a porta de seu
quarto se abriu e a mãe entrou.
O coração de Lucille disparou. Constance trazia um papel dobrado e tinha
uma expressão confusa, ambígua, aquela que não permita uma leitura clara de
seus sentimentos.
— Sua amiga respondeu.
Ela estendeu o bilhete e Lucille se esticou para o pegar. O choque ao
reconhecer a letra de Nathaniel fez com que precisasse se sentar para o ler. A
mensagem continha apenas duas frases, poucas palavras.

Lucy, estou chegando. Esteja pronta hoje à noite.

A simplicidade do escrito a confundiu e ela olhou para a mãe, que a fitava


com os olhos brilhantes. Era como se ela estivesse se esforçando para não
demonstrar emoções.
— Você leu? — Constance balançou a cabeça negativamente, indicando
que respeitara sua privacidade. Aproximou-se de Lucille e indicou que ela
deveria se levantar.
— Não sei o que sua amiga planeja, mas espero que ela consiga. Você
não é como eu, Lucille. Pensei que pudesse aceitar esse casamento e ir para
longe dele, ir embora. Na Inglaterra você seria livre.
— Como eu poderia ser livre me casando com um velho que me trata
como um produto em uma prateleira?
— Ele provavelmente não exigiria muito de você. Logo, morreria e a
deixaria amparada por uma boa quantia, o que a permitiria uma vida tranquila
bem longe daqui. Bem longe de seu pai.
— O que você não entende, mãe, é que eu apenas trocaria de prisão.
Hoje, pertenço ao meu pai, se me casar, pertencerei a meu marido. A não ser
que esse homem esteja disposto a me respeitar e a me tratar com dignidade, o
quão diferente ele será de Walter Smith?
Constance sorriu, passou as mãos pelos cabelos ainda curtos, com pontas
irregulares, e se afastou novamente.
— Pensei que vocês não sofreriam com ele se eu me mantivesse
obediente e servil. Não peço que me perdoe por não ter a sua coragem,
Lucille, mas estou disposta a dar a você as chances que não tive. Você confia
nesse Sr. McFadden?
— Sim, eu confio.
— Certo. Então eu espero que ele mereça essa confiança.
A mãe saiu e fechou a porta atrás de si, deixando Lucille confusa e muito
mais nervosa do que antes. Seu coração martelava, causando dor nas costelas
feridas, porque Nathaniel estava vivo e estava indo resgatá-la. Não sabia o
que ele planejava, mas certamente era arriscado. Também não sabia o que
podia fazer para o ajudar, e a impotência a estava enlouquecendo.
A empregada entrou com seu almoço e deixou sobre a mesa. Ao invés de
sair, a jovem permaneceu de pé, olhando para Lucille que se aproximava da
comida com algum desinteresse. Não tinha fome nem vontade de comer
desde que retornara para casa. Suas roupas já estavam frouxas e ela estava
fraca, mas também não conseguia dormir nem descansar. Sentou-se à frente
do prato que lhe fora servido e segurou os talheres com as mãos trêmulas. A
sopa tinha um aroma delicioso de caldo de carne e ela se forçou a tomar um
pouco.
— Está do seu agrado, senhorita?
— Sim, Anna, está muito saboroso. Você pode ir, não precisa me esperar.
— Certo, senhorita. Apenas... apenas gostaria de dizer que nenhum de
nós concorda com o que está acontecendo. Se houver algo que possamos
fazer para ajudar... podemos deixar portas abertas, ou trancadas, se a
senhorita precisar.
Ela olhou para a expressão corajosa de Anna e entendeu que não podia
continuar se acovardando. Era uma mulher adulta, bastava sair andando
daquela casa sem olhar para trás. O pai faria o que, a mataria? Talvez, mas
Lucille não deveria ter medo de morrer.
— Obrigada, Anna. Hoje à noite, se virem algum movimento suspeito,
peço que não falem nada nem avisem a ninguém.
— Não vamos, senhorita.
Com um meio sorriso, Anna deixou o quarto. Lucille encarou a sopa e
decidiu que, mesmo indisposta, precisava comer. Afinal, se havia um plano
de resgate para acontecer naquela noite, precisava estar pelo menos apta a
caminhar com seus próprios pés. Depois, preparou uma pequena mala com
algumas roupas fáceis de vestir e que não amarrotariam muito, deixou
escondida em um canto do quarto e se deitou. Acabou cochilando um pouco,
mais pela exaustão absoluta do que por sono, enquanto esperava o anoitecer.

P ISTOLAS NÃO ERAM sua arma favorita, mas era a escolha mais segura. Pelo
que Millicent o informou, havia dois seguranças permanentes cuidando da
casa dos Smith e ambos estavam armados. Neutralizá-los não seria difícil,
mas Nathaniel não queria derramamento desnecessário de sangue. Por isso,
pediu ajuda a Leonard Eckley para o acompanhar e ajudar com os trâmites.
O plano era simples – eles entrariam na casa e tirariam Lucille de lá. Pela
porta da frente, ignorando qualquer regra de convivência social que pudesse
existir. Se o acusaram de sequestro, antes, então ele agiria como um
sequestrador. A diferença era que a vítima não faria nenhuma oposição a ir
com ele – ao menos era o que esperava. Nathaniel não tinha certeza se Lucille
o acompanharia. Ela poderia não ter coragem o suficiente, mesmo que
duvidasse disso. Ela poderia simplesmente ter mudado de ideia. Mas, se
tivesse, teria mandado o bilhete?
— Você sabe que está arrumando problemas maiores do que poderá lidar.
— Leonard escondeu a pistola no cós da calça e ajeitou o colete.
— Sim, eu sei.
— E sabe que, quando o chefe descobrir, teremos que explicar por que a
filha de Walter Smith foi trazida para cá.
— Leo. — Nate fechou os botões de seu colete, depois de garantir que
seu curativo não estava machado de sangue. — Nenhuma dessas questões me
importa. Se não quiser se envolver, diga-me logo pois terei de conseguir
outra ajuda.
— Claro que vou “me envolver”. Jamais perderia um sequestro-resgate na
casa mais bem protegida dessa cidade. Apenas quero me certificar que está
fazendo isso consciente de todas as implicações.
— Eu nunca ajo inconscientemente.
Duas facas foram adicionadas ao colete, a arma preferida dele. Conferiu
no relógio, passava de meia-noite. Aquele era o horário de maior movimento
no Gênesis e os dois gerentes se ausentariam, secretamente, para cometer um
crime. Não que fosse a primeira vez, eles já fizeram aquilo antes – mas fora
sempre para cumprir ordens, nunca por decisão própria. Cavalgaram até a
residência dos Smith porque era a forma mais fácil de fugir, depois. Nathaniel
sentiu dor, bastante dor, enquanto o cavalo galopava pelas ruas irregulares,
mas a adrenalina o entorpecia – nenhum ferimento seria capaz de desviá-lo
do caminho.
Pararam os animais na lateral da casa vizinha e os amarraram com nós
frouxos. Aquela era uma região muito movimentada durante o dia, mas já
estava tarde demais para o trânsito de pessoas. Uma ou outra carruagem
transitavam, levando os endinheirados para festas, clubes e cassinos, e
ninguém prestaria atenção neles.
— A Srta. Ryan disse que os seguranças ficam dentro da casa.
Provavelmente, temos um em cada porta. Eu vou pela frente.
— E os empregados?
— Espero que estejam do nosso lado, ou que temam nossas armas.
Leonard assentiu, mas estava visivelmente preocupado. Nathaniel nunca
fazia nada sem ter um planejamento extremamente detalhado. Aquele resgate
levaria pelo menos cinco dias para ser organizado, contando com auxílio de
mercenários, suborno dos empregados, estabelecimento de uma rota de fuga
– e ele não pensou em nada daquilo. Tudo que faria seria entrar na casa e
levar Lucille embora.
A porta estava trancada, obrigando-o a arrombar. Usando um grampo de
cabelo, outro objeto que costumava carregar nos bolsos internos, destrancou a
fechadura e empurrou a porta com cuidado, esperando que a escuridão lhe
servisse de manto protetor. Seria ideal que não houvesse confronto, mas ele
estava com muita vontade de bater em alguém. Assim que botou os dois pés
na casa, viu a sombra de um homem se mover e escondeu-se, esperando que
viesse o procurar. Vestido com casaco preto e com uma pistola na mão,
aquele era certamente um segurança contratado por Walter Smith.
Nathaniel pulou sobre ele e colocou a faca encostada no pescoço do
homem, que se assustou e disparou um tiro para trás. Aquele era o alerta que
apressaria a missão. Com um golpe certeiro, ele derrubou a pistola e, em
seguida, derrubou o segurança, pisando sobre sua garganta para garantir que
ele não gritasse. Nenhuma lamparina foi acesa e Leonard apareceu, com os
cabelos desgrenhados e uma corda nas mãos, que jogou para Nathaniel.
— Amarre-o.
— E o outro?
— Tivemos ajuda. Quando entrei, ele estava derrubado com uma ferida
na cabeça. Dois criados bem grandes estavam próximos, vigiando, e me
auxiliaram a amarrar o homem.
— A Srta. Ryan tinha razão, Lucille é adorada por todos. — Nathaniel
deu dois nós para garantir que o homem ficaria imobilizado, com as mãos
para trás e os punhos amarrados nos tornozelos. — Fique aqui, vou encontrar
o quarto dela.
— Não precisa de cobertura?
— Fique de olho no corredor, então.
Os homens subiram as escadas e não enfrentaram nenhuma resistência.
Segundo informações colhidas com Millicent Ryan, o quarto de Lucille
ficava no terceiro andar, virando à esquerda no corredor. Para o quarto dos
pais, a suíte de Walter Smith, bastava virar à direita. Não havia nenhuma
lamparina acesa, eles contavam apenas com a iluminação precária da avenida,
que entrava por uma única janela no final do corredor.
Por não desejar arriscar a integridade física de ninguém, Nathaniel tinha
pressa. Pisou firme pelo piso de madeira, indo na direção indicada, chamando
por Lucille em baixa voz. Leonard ficou de guarda observando qualquer
movimento suspeito. De repente, uma das portas se abriu e ela surgiu no
corredor. Usava um vestido escuro e carregava uma pequena mala – foi tudo
que ele conseguiu ver.
— Nate.
Lucille vagou em sua direção e ele a recebeu nos braços, aliviado. Beijou-
a na testa e indicou que deveriam ir embora, mas o resgate não sairia sem
dificuldades. Quando já estavam no térreo, chegando ao salão de entrada,
lamparinas foram acesas e uma voz masculina gritou nos andares superiores.
— O que diabos está havendo aqui?
Era Walter Smith. Nate teve certeza ao ver como Lucille arregalou os
olhos ao ouvi-lo.
— Vá para a porta. Leonard espera lá fora.
— Nate…
— Prometo que não vou matá-lo.
Ele precisava prometer aquilo, ou não saberia se conseguiria confrontar o
Smith sem acabar-lhe com a vida. Como um tigre saltando sobre a presa,
Nathaniel encurralou o pai de Lucille descendo a escada e o derrubou no
chão, colocando a pistola apontada para sua testa. O homem arregalou os
olhos e tentou gritar, mas Nate apenas balançou a cabeça indicando que era
melhor que não o fizesse.
Poderia dizer que sonhou com aquela oportunidade, com a chance de
meter uma bala na cabeça de Walter Smith, mas não poderia fazê-lo. Piscou
algumas vezes e desarmou o gatilho.
— Não tente pegar sua filha de volta. Ela só retorna para essa casa se
quiser. Venha atrás dela e eu arrancarei sua pele e pendurarei para secar no
Central Park.
Como planejado, Nathaniel saiu pela porta da frente e encontrou Lucille e
Leonard com os cavalos. Era o máximo de afronta possível, apenas
lamentava que Nova Iorque inteira não fosse ver. Se um dia Nathaniel temeu
envolver-se com aquele homem, se ele desejou não ter nenhum confronto
com ele, antes, não se importava mais com aquilo.
— Vamos nos separar. — Disse, para Leonard. — Pegue o caminho pela
Quarta e eu sigo pelo Central Park.
O amigo concordou. Nathaniel segurou a mão de Lucille, que
demonstrava bastante entusiasmo em o seguir. Fez com que ela subisse em
Zeus, o cavalo que escolhera para a fuga, e montou logo em seguida. Um tiro
foi disparado no vazio, vindo da mansão dos Smith. Por sorte seu inimigo não
era um bom atirador, ou ele seria alvejado pelas costas novamente.
Zeus era rápido e Lucille precisou agarrar-se com força ao colete de
Nathaniel para manter-se equilibrada. Ele sentiu dor, sentiu o ferimento
latejar, mas não podia parar de correr.
— Para onde estamos indo? — Ela perguntou, erguendo a face para olhá-
lo.
— Para o Gênesis. É o único lugar onde posso oferecer segurança a você.
— Ele virá atrás de mim.
— Ele não ousará, eu deixei bem claro o risco que ele correria se viesse.
Apesar do que sentia, do que preferia não sentir, do que seu coração, duro
e frio como pedra, gritava, ele manteria o plano que ela traçara, antes. Se
Lucille queria fugir para a Inglaterra, ele lhe concederia aquela oportunidade.
Como uma demonstração de alívio, ela afundou a face em seu peito e o
envolveu com os dois braços.
Quando chegaram ao Gênesis, foram direto para a parte dos fundos.
Aquele era o território de Nathaniel, ele nunca seria afrontado em sua própria
casa. Ajudou Lucille a descer, entregou o cavalo para o empregado que
cuidava das montarias e a levou para o quarto andar, pela escada secreta de
acesso. Apenas eles conheciam aquele caminho e ninguém, além deles,
possuía as chaves.
O corpo foi vencido pelo ferimento assim que chegaram aos aposentos de
Nathaniel. Ele mal terminou de subir as escadas e desabou ao chão.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

— N ATHANIEL ! — E LA GRITOU AO VÊ - LO CAIR . E NTROU EM DESESPERO ,


pensando que fora atingido pelo pai, mas depois lembrou que ele já estava
ferido. A fuga foi tão rápida e frenética que ela sequer teve tempo de
perguntar sobre sua saúde. Uma mancha vermelha tingia a manga da camisa e
ela notou que o colete estava ensopado de sangue.
Por sorte, Leonard apareceu em seguida. Com Millicent. Lucille não
entendeu o que a amiga fazia ali, mas descobriria depois. Não conseguia
pensar em mais nada que não fosse o homem que a salvara não apenas uma,
mas várias vezes durante aquela jornada.
— O que houve?
— Ele caiu, está sangrando.
— Ele é teimoso, eu avisei que não deveria ir. Vamos, ele precisa ir para
a cama.
Nathaniel não estava desmaiado, apenas parcialmente consciente.
Balbuciava alguma coisa e parecia em um estado febril. Leonard o ergueu e
as duas mulheres ajudaram a conduzi-lo para uma cama grande e coberta com
uma colcha estampada. O lugar parecia um pequeno apartamento, com uma
escrivaninha, cadeira, estante com livros e enfeites, uma mesa redonda para
refeições rápidas, lareira e a cama.
Ela levou as mãos aos botões dele e começou a abri-los. Millicent e
Leonard conversaram alguma coisa que não conseguiu ouvir, pois estava
distraída e concentrada nos cuidados com o homem ferido. Depois de o livrar
da camisa, retirou a bandagem e expôs o ferimento – com pelo menos dois
pontos rompidos. As bordas estavam avermelhadas, era uma ferida recente.
Ele não deveria bancar o cavaleiro de armadura para resgatá-la estando
naquelas condições.
— Vou chamar o médico. — Leonard disse, por fim. — Vocês duas, não
saiam daqui. Esse lugar é restrito, vocês ficarão trancadas. Entendem o que
digo?
As duas balançaram a cabeça e Millicent trouxe uma bacia com água e
uma toalha. Lucille agradeceu, em silêncio, e começou a limpar o ferimento.
A cada vez que levava novamente a toalha para a bacia, a água ficava
vermelha de sangue e precisava ser trocada.
— Milly, o que faz aqui?
— Esperava por você. Queria ter certeza que ficaria bem, que o plano
deles daria certo.
— Não foi um plano, foi quase um suicídio. — Lucille estava aborrecida.
Ele não podia se colocar em risco daquela forma, ela não merecia aquele
sacrifício. — Mas obrigada por ser uma amiga tão boa.
Depois de limpo, o ferimento parecia melhor. Nate, no entanto,
continuava quente. Ela passou os dedos pelos cabelos loiros, grudados de
suor no pescoço e nas têmporas, e percebeu que eles estavam ainda maiores.
A barba por fazer era uma característica que ele parecia cultivar, também.
Deslizou a mão pelo braço flácido e dobrou o corpo para beijá-lo. Pela
posição de bruços, apenas tocou a boca suavemente na bochecha dele, mas
notou que os lábios de Nathaniel se esticaram em um sorriso.
Millicent a observava com assombro.
— O que há entre vocês?
Lucille se levantou e foi até o lavabo, que ficava depois de uma porta.
Colocou a bacia e a toalha sobre a pia, apoiou as duas mãos no lavatório e
baixou a cabeça. Ela não sabia responder àquela pergunta.
— Eu não sei, Milly.
— Como não sabe? É difícil assim?
— É. Eu acho que... eu tenho quase certeza que estou apaixonada por ele.
Como era esperado, a revelação fez com que Millicent tivesse um acesso
de tosse. Ela mesma, que tivera três dias em cativeiro para lidar com aquela
informação, chocou-se por sua capacidade de dizê-la em voz alta. Não
parecia um absurdo, uma jovem inexperiente como ela, apaixonar-se pelo
homem que lhe apresentou o mundo. Mas não se tratava de um homem
qualquer – elas estavam falando do diabo.
A amiga a empurrou para dentro do lavabo e fechou a porta, como se
aquilo as isolasse do mundo e tornasse as verdades difíceis um pouco mais
possíveis.
— Pelos deuses, Lucy. Não era para isso ter acontecido, era apenas para
se livrar do tal marquês.
— Eu sei, Milly. Acha que acordei um dia determinada a me apaixonar
pelo maior canalha que conhecemos? Mas há algo nele... algo que só se você
o conhecer poderá compreender.
— E você o conhece?
— O suficiente.
Barulho de madeira e vozes masculinas ecoaram pelo quarto, fazendo
com que elas saíssem do lavabo com a conversa inacabada. Leonard retornara
com um homem de bigodes, que estava debruçado por sobre Nathaniel
enquanto balançava a cabeça para um lado e para o outro.
— Vou refazer os pontos, mas o senhor precisa ficar de repouso, Sr.
McFadden. Por favor, tente não sair da cama por pelo menos até amanhã.
Nate rosnou alguma coisa incompreensível. O médico começou a
trabalhar no ferimento e Leonard arrastou as mulheres para a escrivaninha.
Serviu-se de um uísque e pegou um relógio para conferir a hora.
— Srta. Ryan, a senhorita dormirá aqui, também?
— Não, eu preciso voltar para casa. — Milly o olhou com espanto. —
Meus pais são bastante tolerantes, mas há limites que não devo ultrapassar.
— Certo, eu a escoltarei até sua residência. Já passa de uma hora da
manhã, as ruas estão perigosas demais nesse horário. Srta. Smith, consegue
lidar com tudo até meu retorno?
Lucille olhou para Nathaniel deitado, para o seu entorno, para Leonard.
Há dias não se sentia tão protegida. Concordou com um movimento de
cabeça e os dois amigos deixaram o quarto. Ficou implícito, na despedida de
Millicent, que elas ainda tinham assuntos pendentes. A porta ficou aberta até
o doutor terminar o serviço.
— Ele está semi consciente. — Disse. — Refiz os pontos, coloquei um
emplastro e enfaixei o ombro, mas não posso fazer mais nada se ele insistir e
levantar e descumprir minhas orientações.
— Eu o manterei na linha.
O homem despediu-se dela e Lucille fechou a porta. Havia uma chave na
fechadura e ela a girou duas vezes até travar. Aproximou-se da janela,
entreaberta, e observou que estava muito escuro e silencioso. Não havia
movimento na rua, mal se podia ver a rua. E eles estavam no quarto andar, a
possibilidade de alguém entrar pela janela era ínfima. Com um movimento
rápido demais, fechou as cortinas e se confinou dentro daquele espaço de
quatro paredes.
Ela estava com medo. Não queria que soubessem ou percebessem, mas
estava assustada. Olhou para o homem estirado na cama e o quis estapear ao
mesmo tempo que o quis beijar. Estava confusa e prestes a ter um ataque de
nervos quando ele a chamou.
— Lucy.
A voz rouca e baixa atraiu sua atenção. Lucille tirou os sapatos e subiu na
cama ao lado dele.
— Você é louco, Nate. Por que fez isso, por que foi lá me buscar se
estava tão ferido?
— Prometi que a ajudaria a fugir. Eu cumpro minhas promessas, Lucy.
Maldito fosse aquele canalha que tinha, no fundo, alguma honra para
preservar. Ela tremia quando ele ergueu o braço e segurou suas mãos na dele.
Mãos grandes, masculinas, com as palmas calosas, que empunhavam uma
pistola e seguravam um punhal com a mesma elegância que as acariciavam
e... Lucille não queria pensar no que ele fazia com aquelas mãos porque
estava irritada com ele. Agradecida pela salvação, mas muito aborrecida por
ele ter feito aquilo estando tão machucado.
— Onde eu vou ficar? — Ela perguntou, cedendo aos carinhos que ele
fazia em seus braços.
— Aqui está bom? — Ele virou o corpo de lado para olhá-la. — A cama é
grande o suficiente.
Ela não resistiu. Levantou-se, apagou as lamparinas, deixando apenas o
fogo rarefeito da lareira para iluminá-los, e se deitou ao lado dele, perdendo-
se em um abraço quente e adormecendo. Foi a primeira noite que dormiu
inteira desde que fora capturada pelos capangas de seu pai, a primeira noite
em que se sentiu segura, mesmo sabendo que, na manhã seguinte, Nova
Iorque inteira a estaria procurando.
Quando despertou, Nathaniel estava ao seu lado. Ela não sabia se ele
dormia ou estava sob efeito dos opiáceos, mas pode gastar algum tempo
observando-o. De bruços, sem camisa, com as costas lisas e construídas por
músculos bem definidos, ele era uma figura esplêndida. Ela o admirou por
longos segundos. A forma como a respiração ressonante fazia o tórax subir e
descer, a boca entreaberta e as pálpebras pesadas escondendo os olhos azuis –
tudo nele parecia feito para a provocar e ela não podia se perder naquele
homem por mais tempo.
Foi até o lavabo arrumar-se. Os raios de sol tentavam penetrar pela
cortina pesada que ela fechara à noite e aquele seria um dia decisivo. Prendeu
os cabelos que estavam frouxos, retirou o vestido, ficou apenas com suas
roupas íntimas – um conjunto de seda branca com detalhes em verde - e
pegou uma toalha para se refrescar. Não havia um chuveiro, mas seria
suficiente que pudesse passar um pano embebido em água fresca pelo corpo.
Havia um espelho grande em frente ao lavatório e Lucille pode ver
quando ele entrou. Não que ela tivesse colocado algum obstáculo para
impedir que Nathaniel a interceptasse no banheiro, mas teve a impressão de
que ele respeitaria sua privacidade. Claro que não, ele não tinha pudor algum.
Sem dizer nada, Nate pegou a toalha de sua mão e a passou pelo pescoço
exposto. Lucille sentiu os lábios quentes que a beijaram no mesmo lugar.
— Vejo que despertou melhor. — Ela provocou, sentindo-o, encaixar-se
por trás dela. As mãos deslizaram pelos braços até que ele recolocasse a
toalha dentro de uma bacia.
— Nem tanto. Preferia que estivesse na cama, comigo.
— Lembro-me que o senhor disse que não gostava de dormir com
mulheres.
Nathaniel pressionou o corpo contra o dela, espalmando as mãos na parte
frontal do espartilho.
— Parece-me que tenho um problema com a senhorita, especificamente.
A boca dele voltou para seu pescoço. O homem tinha tentáculos como um
polvo, envolvendo-a, encapsulando-a, estimulando-a em todos os lugares que
ele sabia que a fariam gemer. Ela se virou para protestar, para dizer que ele
estava convalescendo e precisava voltar para a cama, mas o movimento
serviu apenas para conceder-lhe mais acesso. Nathaniel a segurou pela cabeça
e a beijou com urgência e paixão. Passou a língua por seus lábios, buscando
espaços para um beijo que ela não queria compartilhar com nenhum outro.
Nunca mais, em nenhuma ocasião. Estava arruinada, sim, mas não naquele
sentido cruel que a sociedade considerava. Estava arruinada porque sabia que
não seria capaz de sentir-se daquela forma com mais ninguém.
Ela o tocou, segurando-o pelos quadris, com medo de feri-lo ainda mais.
Deveria ter consciência e o obrigar a voltar para a cama, mas precisava
daquele toque – desde que fora tomada dele, pensando que estivesse morto, e
suportara dias de ausência e incerteza. Nathaniel afrouxou seu espartilho e
livrou-se da peça com habilidade única. Depois, ergueu-a do chão e a fez
sentar sobre o aparador onde estavam seus itens de toalete. As mãos
deslizaram da cintura para o centro de suas pernas, encontrando a abertura
conveniente da roupa íntima.
— Molhada. — Ele disse em seu ouvido, obsceno e indecente. — Pronta
para mim?
Sim, totalmente pronta. Lucille não sabia o que ela queria dele, apenas
que era mais. Desde que decidiu despir-se e buscar a ruína com aquele sem-
vergonha, ela quis cada vez mais – um toque, um beijo, uma mão atrevida. A
cada descoberta, ela não se contentava com o que tivera antes. Daquela vez
ele foi bruto, quase rude. No instante em que ela assentiu, silenciosa,
entregando sua boca para outro beijo, ele apenas levou as mãos até suas
calças, desabotoou-as e a penetrou.
Ela gemeu, sentindo-se expandir pela dureza e grossura do membro
masculino.
— Machuco você?
Lucille balançou a cabeça indicando que não. Era curioso como eles
invertiam os papéis durante aquele ato – ela se perdia nas palavras e ele as
encontrava, tornando-se bastante eloquente. Mas a intensidade do momento
fez com que ninguém estivesse apto a conversar. Nathaniel investiu contra
ela, aprofundando a penetração a cada estocada, e a beijou, tocando os seios
por cima da seda fria. Os quadris dele a empurraram contra o espelho, as
mãos dele deslizaram para suas coxas, acariciaram a carne macia e circularam
o seu ponto de prazer, fazendo com que ela gemesse o nome dele. Era como
uma oração – Nate, Nate, Nate – enquanto ele se movia com força e
intensidade dentro dela.
Ela não teve vergonha de se entregar ao prazer, daquela vez. Assim que
sentiu o êxtase se aproximar ela o agarrou e permitiu que ele a arrebatasse,
forçando-a a arquear o corpo e cruzar as pernas ao redor dos quadris de
Nathaniel. Ele permaneceu imóvel dentro dela e a tomou em um beijo
lânguido. Todas as suas energias estavam concentradas em uma única parte
do seu corpo, aquela que se encolhia ao redor do membro masculino com
toda força que ela não tinha.
Depois que os espasmos reduziram, ele voltou a estocar. Nathaniel
segurou-a pelos quadris e se moveu intensamente, murmurando seu nome até
desencaixar-se dela com um urro gutural.
— Por que você sai? — Ela perguntou, abraçada a ele, tocando seu ombro
com cuidado e observando que o curativo estava intacto. Ele demorou alguns
segundos para a responder.
— Você sabe o que significaria se eu ficasse?
Não, ela não sabia. Apesar do desprendimento de conversar sobre
indecências com suas amigas, elas não se aprofundavam em nada referente ao
coito. O ato sexual era um mistério, e as casadas, que o conseguiram
desvendar, não explicavam absolutamente nada para as solteiras.
— Não.
— Se eu derramasse minha semente em você, Lucy, você poderia
engravidar.
Nathaniel era sempre rude, objetivo, sem meias palavras. Ele não a
tratava como uma completa idiota, explicava sem floreios qualquer coisa que
ela quisesse ou precisasse saber. Ela não se chocou pela ausência de pudor,
mas pela informação em si. Claro que ela sabia que o sexo era como homens
e mulheres procriavam, mas o seu desconhecimento sobre a mecânica do ato
a constrangeu.
— E não queremos arriscar um filho bastardo. — Ele beijou sua orelha.
— Isso acabaria com sua vida.
Aquilo sim seria a ruína absoluta. Crianças bastardas eram párias na
sociedade, mesmo que seus pais as quisessem reconhecer. Se uma criança
fosse concebida fora dos votos sagrados do patrimônio, ela nasceria e
morreria em pecado – e ela não seria capaz de fazer aquilo. Respirou aliviada
por saber que ele era consciente a ponto de não a submeter a um risco tão
grande.
— O que faremos agora?
— Nos lavaremos. Acho que precisamos, depois disso.
Ela deu uma risada espontânea.
— Perguntei sobre o dia. Meu pai não deixará de me procurar, ele vai
revirar Nova Iorque do avesso.
— Ficaremos aqui, no Gênesis. Parte do meu plano é que todos saibam
que você está aqui comigo e que nós fugimos juntos, antes.
— Céus, Nate! — Lucille arregalou os olhos, verdadeiramente surpresa.
— Mas isso...
— Isso garantirá que a sua reputação esteja na lama. Nenhum homem em
Nova Iorque vai querer se casar com você, Lucille Smith, e poderá embarcar
para a Inglaterra, para sua nova vida.
E LE ESTAVA ABSOLUTAMENTE consciente da presença de Lucille. Acordou
precisando dela e a possuiu sem nenhuma vergonha, sem se importar nem
mesmo de perguntar se ela o desejava. Pela forma como reagia ao seu toque,
Lucille o queria tanto quanto ele a queria. Não, Nathaniel precisava de um
novo vocabulário. Ele não queria ou desejava Lucille Smith, ele necessitava
dela. E estava fazendo planos para que ela fosse embora para sempre de sua
vida.
Depois que conseguiram lavar-se satisfatoriamente, pediu que a
cozinheira do clube preparasse um desjejum para duas pessoas. O clube era
um lugar movimentado e todos os empregados eram totalmente leais a
Nathaniel e Leonard, o que lhes garantia proteção suficiente. Também
dispensava formalidades, o que o agradava bastante – assim que a comida foi
entregue, eles voltaram a ficar sozinhos, sem criados, empregados ou
interferências.
— Leonard nos manterá informados sobre todos os eventos do dia. — Ele
disse, servindo-se de café preto. — O navio vindo de Londres deve chegar
hoje, então você poderá embarcar amanhã mesmo.
— Não sei como farei isso. — Ela mordiscou um bolinho e olhou para a
xícara de chá, parecendo incomodada. — Não trouxe dinheiro comigo, Nate.
— Isso não será problema. Separei alguns fundos para você.
Lucille ergueu os olhos e o fitou como se ele tivesse dois chifres.
— Como assim separou fundos? Você pretende me dar dinheiro, é isso?
— É só dinheiro, Lucy. Eu tenho mais do que posso gastar.
— Não posso aceitar. Pedirei a Millicent que me empreste alguns dólares,
poderei pagar a ela quando começar a trabalhar.
— Por que a Srta. Ryan pode emprestar-lhe dinheiro e eu não?
— Porque acabamos de... porque nós dois... porque parece que estou
recebendo por favores...
Ela não conseguiu completar a frase, mas Nathaniel entendeu o que
queria dizer. Lucille sentia-se como uma prostituta ao receber dinheiro dele.
Estava equivocada, ele jamais a veria como uma. Ainda assim, ela ficou
desconfortável com a oferta e Nate não sabia como resolver aquilo – era a
primeira vez em muito tempo que mais dinheiro não seria a solução de um
problema.
Antes que pudesse responder, tentar uma forma de explicar sem ofender,
a maçaneta da porta girou, seguida de batidas nada sutis na madeira. Ele se
levantou e destrancou a fechadura para receber Leonard Eckley, que trazia
alguns papéis e novidades sobre o clube.
— Você quer conhecer o Gênesis, Lucy? — Nathaniel perguntou.
— Não é perigoso?
— Aqui é o lugar mais seguro de Nova Iorque.
— Então sim, eu gostaria. Ouço falar desse lugar como se fosse o Tártaro.
É tão ruim, assim?
— Creio que seja pior, senhorita. — Leo deu uma risada. — Mas estará
segura conosco, ninguém ousará importuná-la na nossa casa.
Eles terminaram o desjejum e desceram para o salão. Nathaniel sentia-se
bem, apesar do ombro repuxar e de não poder vestir um casaco para não
arriscar romper mais pontos. O Gênesis funcionava durante o dia todo, mas o
salão de jogos só abria a partir das cinco da tarde. Aproveitou para explicar a
Lucille como tudo funcionava, para mostrar a ela as mesas, os jogos, as
passagens secretas. Ela pareceu maravilhada com tudo, sem se chocar com a
ausência de sutileza de um clube masculino. Leonard não os acompanhou
durante todo o tempo, ele precisava resolver questões administrativas e
financeiras.
O dia transcorreu em uma normalidade estranha. Desde que conhecera
Lucille nada fora exatamente normal e, ainda assim, tudo acontecera como
deveria. Ela conversou com empregados, visitou a cozinha, brincou com o
gato – que nunca permitia ninguém se aproximar, e demonstrou um
desprendimento que ele já conhecia. Ao mesmo tempo, manteve-se distante
dele, olhando de soslaio, evitando conversar.
Depois de almoçarem e passarem bastante tempo vagando pelo clube,
Nathaniel retornou com ela para o quarto. Seu corpo estava exausto e
dolorido, ele precisava trocar o curativo e tomar sua morfina. Ela o fez
companhia, mas seu espírito não estava ali. Quis perguntar o que a
incomodava, por que a proximidade da conquista de sua liberdade a estava
entristecendo, mas não o fez. Nathaniel seguia uma regra – nunca se importar
– que ele já ignorara por tempo demais. Estava na hora de parar de agir como
um homem educado, como o cavalheiro que ele não era.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

P ASSAVA DE SEIS HORAS DA NOITE QUANDO N ATHANIEL DESPERTOU . E RA


noite, o quarto estava na escuridão quase total – apenas o fogo alaranjado da
lareira o iluminava. Ao seu lado, estava Lucille, também adormecida. Ela
tinha um sono agitado, tremia e balbuciava palavras que não faziam sentido,
mas permanecia dormindo. Eles acabaram adormecendo durante a tarde e
perderam a hora.
Sentou-se na cama e a olhou por vários minutos. Ele não sabia o que
estava fazendo, mas sabia que era errado. Não podia manter Lucille presa a
ele porque não havia futuro para os dois. Ao mesmo tempo, ele estava
irremediavelmente ferrado. Aquela era a primeira vez que Nathaniel William
McFadden fazia sexo duas vezes com a mesma mulher. Ela era a única com
quem ele dormira depois do sexo. Não, ela era a única com quem ele dormira
sem fazer sexo. E não era sexo - Lucille chamou de “fazer amor”. Maldição,
ela dava ao momento uma conotação diferente dele. A cópula, para Lucy,
significava alguma coisa a mais do que a mera junção de corpos suados.
E ele estava muito perto de concordar com ela.
Acendeu algumas lamparinas, ajeitou suas roupas e decidiu descer para o
salão. Aquele ainda era um horário fraco, havia poucos homens
desperdiçando o patrimônio nas mesas de carteado. Os que preferiam
prostitutas também costumavam chegar mais tarde. Perambulou pelo corredor
e encontrou Leonard em seu escritório, analisando alguns relatórios. Entrou
sem pedir licença e serviu-se de um uísque. Ele precisava beber.
— O navio aportou. — Leonard disse, sem tirar os olhos dos documentos.
— Pedi que nos avisassem assim que acontecesse, então, não demorará até
que o marquês vá até a casa dos Smith.
— Lucille disse que o homem é idoso, então deve ir direto para um hotel.
Sabe se a notícia foi devidamente espalhada?
— Com certeza. Pagamos muito bem para que as pessoas erradas
fofocassem às pessoas certas sobre a indiscrição de Lucille Smith.
Nathaniel sentou-se em uma poltrona e girou a bebida em suas mãos.
— Então está feito. Quando vierem atrás dela, amanhã, eu já terei
garantido seu embarque.
Um empregado do clube bateu à porta aberta e se anunciou.
— Sr. McFadden, o senhor tem uma visita.
— Não estou recebendo ninguém, Newton.
— Eu disse isso, senhor, mas o visitante insiste. Ele afirma que é seu
irmão.
Nathaniel deu um pulo da poltrona e pôs-se de pé em velocidade
incompatível com sua condição física. Sem dizer nada, praticamente passou
por cima de móveis e outros objetos para sair do escritório e seguir o
empregado até onde os dois seguranças impediam o visitante de ultrapassar
uma linha invisível que eles criaram.
Isaac.
Fazia muito tempo que ele não via Isaac. Eles eram muito próximos, os
melhores amigos, e se afastaram pela distância desde que Nathaniel chegara a
Nova Iorque. Comunicaram-se por cartas, mas o irmão tinha muitas
atribuições em Londres e ele passou algum tempo não desejando falar com
ninguém. Era esperado que alguém aparecesse, que a notícia da morte de
Emile fosse reportada ao irmão conde, mas Nate tinha certeza que seria
Edward que viria até ele.
Com nenhuma sutileza, passou pelos seguranças, olhou para o irmão por
breves segundos e o abraçou. Quando Isaac o apertou em seus braços, Nate
não se incomodou com a dor repentina do contato com seu ferimento, apenas
quis sentir o carinho que lhe faltara por tanto tempo.
— Meu Deus, o que houve com você? — Isaac disse, afastando-se e
percebendo que Nathaniel estava com a camisa malvestida e o ombro
enfaixado.
— Um pequeno incidente com uma pistola, mas não foi nada demais.
Céus, Isaac, o que você está fazendo aqui?
— Você não está me perguntando isso. — Isaac tirou do bolso do casaco
um telegrama meio amassado. — Nate, você mora em um clube de
cavalheiros?
— Não, eu tenho minha residência.
— Mas não vai muito lá, vai? O seu mordomo disse que você não aparece
em casa há dias.
A farsa acabara. Ele preferia receber o irmão em casa, mentir para ele
sobre seus negócios, deixar que Isaac acreditasse que ele ainda era uma boa
pessoa, pelo menos por mais um tempo. Parecia cruel revelar que, além de
ser responsável pelo desaparecimento de Emile, Nathaniel se tornara um
canalha, um homem que caminhava no limiar da lei. Mas as circunstâncias
não estavam a seu favor.
— Tem razão, eu não vou. Venha comigo, vamos conversar em um lugar
com mais privacidade. Eu explicarei tudo que quiser saber.
Não podia levar o irmão para seus aposentos, pois Lucille estava
dormindo lá, então subiu com Isaac até o escritório de Leonard, que ainda
cuidava dos documentos. Ao ver Isaac, levantou-se para cumprimentar o
amigo.
— Ora vejam, meu primo Isaac McFadden. Como andam as coisas com
Caroline? E suas crianças?
— Leonard, é um prazer revê-lo. Estamos todos muito bem. Caroline é...
Caroline. — Isaac sorriu. Ele sempre ficava um pouco tolo quando falava da
esposa. — E os meninos estão todos saudáveis.
— Não esperava que você viesse. — Nate confessou.
— Edward queria vir, sabe como ele é controlador. Mas sabemos que
Londres precisava mais de um conde do que de mim. E nós... nós sempre
fomos mais amigos do que irmãos.
O Eckley serviu mais uísque para todos.
— E sua bagagem?
— Deixei em sua casa, não sabia o que fazer. Vocês me contarão o que é
esse lugar? Por que parece que estou no Riderhood em sua versão nova-
iorquina?
— Porque você está. — Outra confissão. — Esse é o clube Gênesis, o
maior antro de jogos ilegais, apostas, prostituição e outras depravações do
norte dos Estados Unidos.
— E vocês são os donos desse clube? — Isaac arriscou.
— Não, somos os gerentes. Eu venho mentindo para vocês desde que
cheguei aqui. Nunca produzimos aço. Acho que nunca fizemos um negócio
lícito nesse ano inteiro que estivemos em Nova Iorque.
Leonard deu uma risada cínica e Nathaniel continuou encarando o tapete.
Era difícil ser um canalha olhando diretamente para o lorde perfeito, Isaac
McFadden. Não existia ninguém mais educado, gentil e correto que seu
irmão, que se decidira se manter virgem para o casamento. Em toda a sua
vida, Isaac teve apenas uma mulher em sua cama e estava feliz com isso.
Nenhum ser humano vivente poderia alcançar o nível de perfeição que seu
irmão mais velho atingira.
— Meu Deus. Foi por isso que Emile morreu?
— Ele não está morto. — Nate disparou as palavras como uma flecha.
— Como assim, não está morto? E esse telegrama?
Ele explicou ao irmão suas teorias sobre a suposta morte de Emile,
incluindo a parte em que iniciara uma jornada para tentar descobrir pistas
sobre o paradeiro do McFadden mais novo. Leonard não concordava com
nada e não fazia nenhuma questão de esconder sua opinião. Isaac estava
boquiaberto, cético em relação ao que Nathaniel dizia.
— Você também não acredita em mim. — Constatou.
— Parece-me difícil crer, Nate. Veja o que está falando: Emile teria de
sobreviver a um tiro, a uma queda e a um afogamento. Mesmo que um desse
não o matasse, o outro...
— Continuarei a procurar. Você me ajudará?
— Eu preciso de um tempo para entender tudo isso que está me dizendo,
Nate. E preciso enviar uma carta para o conde, explicando o que encontrei
aqui. Creio que você, Leo, deva fazer o mesmo – escreva para seu irmão e
conte você mesmo que estão mentindo a tanto tempo. Foi a providência
divina que me fez oferecer para vir até Nova Iorque, não imagino o que
Edward faria se tivesse de te buscar em uma casa de jogos.
— Como se Edward fosse imaculado. Você é um santo, Isaac, o conde,
não.
— Senhores, por que não saímos para jantar? — Leonard sugeriu. — Há
vários restaurantes ótimos em Nova Iorque, assim podemos colocar os
assuntos em dia.
— Não posso sair. — Nathaniel virou outra dose de uísque, mesmo
sabendo que estava exagerando. — Não deixarei Lucille sozinha.
— Quem é Lucille? — Isaac perguntou.
— Eu pedirei que busquem a amiga, a Srta. Ryan. Você não pode cercar a
mulher como se ela fosse sua, Nate.
O pronome possessivo causou um estalo dentro de Nathaniel. Como se
fosse o engatilhar de uma pistola, o empunhar de uma espada, o estalar de um
chicote. Ela era dele. Não importava o que diabos fosse acontecer, Lucille
Smith fora, e sempre seria, dele. Ainda assim, Leonard estava correto – e era
irritante que o amigo estivesse, invariavelmente, certo. Ele tinha muito o que
conversar com Isaac e ficar ali, com ela, o distrairia.
— Certo, então. O que acha da sugestão, Isaac?
— Quem é Lucille, Nate?
— É uma donzela que estamos ajudando a se livrar de um problema.
— Donzela? — Leonard riu e Nathaniel deu dois passos na direção dele,
com as mãos fechadas em forma de punhos.
— Mantenha a boca fechada, combina mais com você.
Isaac levantou-se e serviu-se de outra dose de uísque.
— Estou muito confuso, porém faminto. Vamos jantar, depois tento
entender essa nova dinâmica que desenvolveram aqui.
Leonard saiu e começou a dar ordens pelos corredores. Nathaniel foi até
seu quarto e encontrou-a desperta, sentada na cama, olhando para a janela.
Ao perceber sua chegada, Lucille se virou e passou as mãos pelo vestido para
ajeitá-lo.
— Meu irmão chegou de Londres.
Ela se levantou, sobressaltada, olhando ao redor.
— Ele viajou com meu... com o marquês?
— Provavelmente sim, mas não conversamos sobre isso. Ele quer saber
de Emile, vamos sair para jantar. Devo retornar em duas horas, você se
importa em esperar aqui?
— Por que deveria me importar, Nate? — Lucille sorriu e suas bochechas
enrubesceram. — Eu ficarei bem se me permitir remexer seus livros.
— Vamos pedir à sua amiga, Srta. Ryan, que faça companhia a você. E
pode remexer nos meus livros à vontade. Se achar algo interessante, me conte
depois.
Espontaneamente, Nathaniel a tomou nos braços e a beijou. Foi suave e
delicado, muito diferente do que estava acostumado. Um beijo que não
representava um prelúdio do sexo. Um beijo que carregava algum
sentimento. Ele nunca beijara ninguém com tanta frequência nem tanto
significado – e Lucille Smith não o rejeitou nenhuma vez.
S E L UCILLE ACHAVA que seu mundo havia virado de ponta-cabeça quando
decidiu fugir, não fazia ideia do que poderia acontecer depois. Nada a
preparara para Nathaniel McFadden nem pela possibilidade remota de
apaixonar-se por ele. Pela primeira vez em sua vida, ficou sem saber o que
dizer para Milly porque ela mesma não entendia o que se passava consigo.
As duas estavam trancadas nos aposentos de Nate, aproveitando um jantar
leve preparado especialmente para elas, enquanto esperavam – a noite passar,
o dia chegar, os homens retornarem.
— Toda Nova Iorque já sabe da sua ruína. — Milly disse, tomando
coragem para abordar aquele assunto. — A história foi muito bem contada,
seu canalha é bastante esperto.
— Ele não é meu canalha.
No entanto, era. A quem Lucille queria enganar?
— Ainda assim, é esperto. Sorte sua que lhe falta honradez para assumir
as consequências desse escândalo. Seu pai deve estar bastante irritado.
— Por que diz que tenho sorte?
— Oras, você quer fugir e ser livre. Se essa ruína fabricada pesasse na
consciência do Sr. McFadden, ele poderia negociar com seu pai e a tomar
como esposa.
Um arrepio percorreu o corpo de Lucille ante a mera possibilidade de se
tornar esposa de Nathaniel. Ela não soube se era por medo, repulsa ou por
ansiar que aquilo viesse a acontecer. Ela não estaria disposta a desistir de seus
planos antigos por alguns poucos dias de perdição, estaria? Certamente que
não.
— Não diga essa bobagem, Millicent! E minha ruína não é fabricada, ela
é real.
— Claro que é... você foi raptada por um homem. Mas sabemos que não é
pelo rapto em si que você está sendo considerada desonrada, mas pelo que
acham que ele fez...
— Mas é isso que estou dizendo. — Lucille dobrou o corpo para falar
mais próximo do ouvido da amiga, como se as paredes pudessem se
escandalizar com a conversa. — Ele fez.
Millicent arregalou os olhos e a encarou, assustada.
— Por Cristo, Lucy. Vocês dois... você teve coragem de... céus, me conte.
A fama dele é verdadeira?
— Todas elas, pelo que pude confirmar.
A amiga se engasgou com o vinho branco que bebia e precisou da ajuda
de Lucille para se recuperar. Depois que voltou a falar, não parou mais de
perguntar tudo sobre qualquer coisa relacionada a Nathaniel – ela também
estava fascinada pelo homem, assim como Lucille esteve, quando o
conheceu. Por volta das nove horas a porta do quarto se abriu e ele chegou,
mas não estava sozinho. Outro homem, também loiro e de olhos ainda mais
azuis, lindo como o Paraíso deveria ser, o acompanhava.
Aquele era o contraste perfeito – céu e inferno, o anjo e o diabo.
Enquanto Nathaniel era diabolicamente lindo, o outro homem carregava a
perfeição da divindade em seu sorriso. O irmão.
— Boa noite, senhoritas. Foram bem tratadas na minha ausência?
— Bem o suficiente.
Lucille respondeu, enquanto Millicent encarava os dois homens com uma
curiosidade pela qual se sentia culpada. Ela não deveria ter contado nada para
a amiga, mas não aguentava mais guardar para si todos os novos eventos de
sua vida.
— Esse é meu irmão, Isaac McFadden. Ele veio de Londres para resgatar
o filho pródigo.
Isaac balançou a cabeça e cumprimentou as duas mulheres. Exibia um
sorriso sincero e cortês quando segurou a mão de Millicent e a beijou. Fez o
mesmo com a mão de Lucille. Hábitos de um verdadeiro cavalheiro, um
homem nobre, de sangue azul. Todos deveriam ser educados daquela forma,
mas ela duvidava que fossem sempre tão lindos.
— Preciso descer para cuidar de alguns negócios. — Nathaniel disse,
aproximando-se dela e falando como se apenas Lucille devesse ouvi-lo. —
Levarei meu irmão comigo. Se sua amiga quiser passar a noite, podem ficar
em meus aposentos.
— E se quisermos conhecer o cassino?
— Está fora de cogitação.
— Nunca conheci um cassino, antes. — Milly demonstrou empolgação
com a possibilidade.
— Vocês duas não descerão para o cassino. Ele está cheio, agora, com
homens depravados e de péssima reputação. Não é um ambiente que donzelas
devem frequentar.
— Posso fazer-lhes companhia, Nate. — Isaac provocou. — Sou casado,
portanto, respeitável. E acostumado a acompanhar mulheres em antros de
jogatina.
Aquela história Lucille precisaria ouvir. O sorriso de Isaac permaneceu,
enquanto Nathaniel assumiu uma expressão ranzinza e rosnou.
— O senhor terá que explicar essa afirmativa, Sr. McFadden. — Lucille
riu.
— Ele é casado com uma ex-libertina. — A voz de Nathaniel continuava
soando como um rosnado. — O lugar preferido da mulher dele é um clube de
cavalheiros.
As mulheres arregalaram os olhos em excitação.
— O lugar preferido dela não deve ser mencionado para duas donzelas.
— Isaac provocou mais e Lucille decidiu que gostava dele. Qualquer pessoa
que tornasse desconfortável o inabalável Nathaniel era um amigo que ela
cativaria.
— Certo, façam o que quiserem. Eu preciso me trocar, se me dão licença.
Por “dar licença”, Nate queria dizer que todos deveriam sair. Não havia
um vestíbulo que lhe concedesse alguma privacidade, portanto Isaac
conduziu as mulheres para fora, mais precisamente para o escritório de
Leonard. Ao chegarem lá, encontraram-no com outro homem. Era um
homem jovem, por volta dos trinta anos, com cabelos ondulados e escuros e
uma aparência muito familiar para Lucille. Sentiu um déjà vu quando o viu,
porém não imaginava em qual baile, sarau ou evento social poderia o ter
encontrado.
Leonard enrijeceu na cadeira quando o escritório foi subitamente
invadido. Foi uma sutil mudança de comportamento, uma reação que sugeria
que ele preferia que o homem ali não estivesse ciente da presença de tantos
convidados no Gênesis.
— Oras, vejo que Nate recebeu algumas visitas.
O homem olhou para Leonard e esperou. O Eckley se ergueu e tentou
parecer indiferente ao constrangimento do momento.
— Isaac é irmão de Nate. Ele chegou hoje de Londres. As senhoritas
são... bem, talvez você deva perguntar ao maldito McFadden, pois eu ainda
não faço ideia de como introduzi-las.
— Lucille Smith. — Ela decidiu que não agiria como uma donzela tola.
Não combinava mais com a mulher que ela se tornou. — Sou amiga do Sr.
McFadden, ele está me ajudando em alguns negócios.
Com um sorriso largo, o homem segurou a mão estendida de Lucille e
beijou os nós dos dedos.
— É um prazer finalmente conhece-la, Srta. Smith. Leonard disse que a
senhorita acompanhou Nate durante sua viagem para o norte. Meu nome é
Nolan Fitzgerald, sou o proprietário do Gênesis.
Isaac também cumprimentou o homem que Nathaniel chamava de
“chefe”, mas Lucille sentiu alguma coisa estranha depois que ele se
apresentou. Como se dizer o nome em voz alta representasse uma forma de
ameaça. A reação de Leonard ao episódio como um todo apenas confirmou
para si que algo impactante acabara de acontecer – mas ela não fazia ideia do
que era.
Depois que o chefe deixou o escritório e os homens iniciaram uma
conversa masculina que capturou a atenção da sempre muito curiosa
Millicent, Lucille retornou para o quarto dele, de Nathaniel. Não sabia bem o
que faria ali, apenas se sentia arrastada para ele como se houvesse uma força
que a atraísse, algo que a puxasse para perto dele. Bateu duas vezes na
madeira e girou a maçaneta, entrando em seguida. Se a porta não estava
trancada, ele não se importaria com sua presença.
Nathaniel estava sem camisa e sem calças. Vestia apenas as ceroulas,
absurdamente justas em seus quadris firmes, e tentava, sem muito sucesso,
ajustar o curativo. Ela deu uma risadinha e o fez olhar para si. A expressão
ranzinza continuava em sua face bonita, franzindo suas sobrancelhas e
enrijecendo seu maxilar.
— Deixe-me fazer isso. — Ela se aproximou e tomou a faixa mal
ajustada da mão dele. — Sente-se na cama, eu vou ver como estão as coisas.
Ele obedeceu sem discutir, sem dizer uma palavra. Aquele homem
silencioso era mais condizente com a personalidade do canalha que fora
descrito para ela tantas vezes, mas Lucille sabia que ele também podia ser
falante e divertido. Ele a divertia. Depois de terminar de tirar a faixa,
examinou o ferimento e conferiu que as bordas não estavam mais vermelhas
e os pontos permaneciam intactos. Foi até o lavabo, pegou um pano úmido e
passou pela extensão do corte, garantindo que estivesse seco em seguida. Por
fim, passou a faixa de tecido pelo ombro e tórax de Nathaniel, garantindo que
estivesse bem presa.
— Você vai me contar o restante do plano? Porque estou me sentindo um
pouco alienada do meu próprio destino, Nate.
— O plano é seu, Lucille. — Ele sorriu, mas ela viu tristeza nos lábios
que se esticaram. — Pegar um navio, viajar para a Inglaterra, fazer algo mais
da sua vida.
— Claro, é o meu plano.
— O navio que chegou hoje retorna amanhã, para Londres. Isaac enviará
uma correspondência para nossa irmã Wilhelmina, ela a receberá no porto e
garantirá que chegue ao destino que escolheu.
— Por que esse esforço todo? — Ela ajoelhou à frente dele, ajudando-o a
abotoar a camisa branca. — Por que tanto empenho em me ajudar?
— Não sei responder a isso.
Nathaniel deixou que ela fechasse os botões da camisa antes de levantar-
se. Como sabia que ele gostava, os dois primeiros ficaram abertos, revelando
um pouco mais de pele masculina do que o decoro autorizava.
— Preciso trabalhar.
— Você está ferido.
— Não farei nada que arruine seu belo curativo. — Ele sorriu. — Tem
certeza que quer descer até o cassino agora? Os frequentadores do Gênesis
não são homens corretos e honrados, Lucy.
— Pensei que você também não era, e veja aonde estamos.
Ele passou o polegar por seu queixo e abriu a porta para que saíssem.
Lucille não sabia exatamente o que ela queria nem porque decidira passar a
noite entre jogadores e homens que desafiavam os limites da decência, mas
sentia-se estranhamente confortável ali, no mundo de Nathaniel. E ela
precisava conhecer mais daquele mundo para tomar as decisões de sua vida –
afinal, ele parecia suficientemente tendencioso a respeitar suas vontades.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

O G ÊNESIS ERA SEU IMPÉRIO , MESMO QUE NÃO LHE PERTENCESSE . E LE SEMPRE
se sentiu como um rei naquele castelo que ocupara com autorização do dono.
E, com os braços cruzados olhando para o salão, soube que encontrara sua
rainha. Lucille girava com a amiga, Millicent, por entre as mesas e parava
para assistir os mais estranhos tipos de jogos. Alguns homens as olhavam de
forma lasciva e Nathaniel quis pular sobre seus pescoços e quebrar-lhes os
narizes todas as vezes, mas sabia que, de alguma forma, elas estavam
seguras. Não era permitido prostituição no cassino - para isso havia o
segundo andar.
Isaac parou ao seu lado, segurando um copo de uísque na mão. Ele não se
lembrara de ver o irmão beber tanto, mas precisava aceitar que Isaac estava
confuso e ele não ajudara em nada a estabelecer alguma paz de espírito
depois da chegada de Londres. Durante o jantar, conversaram sobre Emile,
sobre sua esperança de o encontrar vivo, e o irmão não pareceu compartilhar
de seu otimismo. Nem ele estava mais tão crente em suas convicções, mas, se
não fossem elas, o que restaria?
— Ela me lembra Caroline. — Isaac disparou, bebendo um gole do seu
melhor malte.
— Ela não tem nada a ver com Caroline.
— Ah, meu irmão, você conhece muito pouco da minha esposa. Caroline
é muito mais do que uma libertina que joga, fuma charuto e bebe uísque. Ela
possui um espírito indomado, uma alegria constante, um jeito especial de nos
colocar as rédeas e nos guiar pelo caminho que ela deseja seguir.
— Ela é uma Eckley.
— Integralmente. — Isaac sorriu. — Sua Lucille também é assim.
— Ela não é minha, achei que isso já estivesse estabelecido.
Sim, era. Nathaniel já decidira aquilo, mas não tinha coragem de dizer a
ela, ou a qualquer outra pessoa. Mesmo que ela fosse embora - o que
aconteceria no dia seguinte, continuaria sendo dele enquanto ele existisse.
— Parece-me que você conhece bem pouco da natureza dos McFaddens,
também. Você é meu irmão, Nate. Mesmo que tenha se desviado totalmente
do caminho, ainda é o meu melhor amigo e eu te conheço bem o suficiente
para saber que você está apaixonado por ela.
— Você bebeu demais. — Nathaniel pegou o copo da mão do irmão e
colocou sobre o balcão do bar.
— Pode tentar se enganar e inventar desculpas para que a verdade seja
menos verdadeira. Eu também demorei um pouco a admitir que amava
Caroline.
— Você? — Ele deu uma risada. — Nunca vi um homem tão facilmente
capturado pelo amor, meu irmão. Você é honesto demais, sincero demais,
para se enganar por qualquer coisa.
— E quanto a você, o que o impede de ficar com ela?
— Não sou o homem certo para ela.
— Por que não acredito nisso?
Nathaniel virou-se para o irmão, os braços novamente cruzados no peito.
Ele e Isaac tinham praticamente a mesma altura, apenas um ano os separava
em idade, e, ainda assim, eram tão diferentes fisicamente. Isaac era como
uma pintura renascentista, um anjo loiro e de olhos tão azuis quanto o oceano
das Américas. Ele era perfeito, por fora e por dentro.
— Isaac, eu não me tornei um homem honrado. Eu fui treinado para ser
um soldado e minha missão não é lutar por meu país - não que eu ache
guerras de alguma utilidade. Eu sou um cobrador de dívidas e os devedores
me pagam por bem ou por mal. Meu dinheiro é sujo, cheira a sangue. Eu
matei meu irmão. O que acha que eu posso oferecer para uma mulher como
ela?
Os dois se viraram para onde Lucille estava. Ela vibrava porque
Millicent, que sentara em uma mesa de carteado, ganhou algumas fichas. A
maluca nem tinha dinheiro para fugir, mas estava apostando. Pelo menos,
estava ganhando. E, se perdesse para a casa, o dinheiro certamente retornaria
para ela.
Como se atendesse a um chamado silencioso, Lucille ergueu a cabeça e
olhou para eles. Seus olhos encontraram os dela e a sensação era de
reconhecimento. Familiaridade.
— Eu não a conheço o suficiente. Mas não deveria perguntar o que ela
quer?
Talvez ele devesse. Isaac estava sempre certo e aquilo era bastante
irritante, mas Nathaniel estava muito feliz que o irmão estivesse ali.
Acostumou-se a ter a família longe e perdera Emile na primeira oportunidade.
Não acreditava que pudesse perder Isaac.
— Ela tem planos. Sonhos. Amanhã eu garantirei que ela embarque em
um navio e alcance seus objetivos.
— Certo. Não vou insistir, Nate, mas eu te amo e não quero vê-lo sofrer.
Você poderia perguntar se, apesar dos planos e sonhos que Lucille tem, ela
não gostaria de realizá-los ao seu lado.
— Você nunca para de falar, não é mesmo?
— Não, é por isso que sou um ótimo administrador e as mulheres da
família me adoram. Mas agora estou exausto. Eu dormirei aqui, no meio do
vício e da promiscuidade, ou você me levará para sua casa?
— A escolha é sua, mas não posso tirar Lucille daqui. Fora do Gênesis eu
não garanto a sua proteção.
— Pegarei um carro e irei para sua casa. Converse com a mulher, se não
por você, mas por respeito a ela.
Isaac virou-se e descruzou os braços de Nathaniel para poder abraçá-lo. O
irmão não se importava em demonstrar sentimentos, mesmo que fizesse
aquilo à custa de sua masculinidade. Depois de o ver sair pela porta,
Nathaniel recostou em uma pilastra e voltou a observar as mulheres jogando.
Se soubesse que encontraria uma mulher como Lucille, ele nunca teria
tomado as decisões erradas que tomou. Nem teria se desviado tanto da
moralidade e da decência quanto fizera naquele ano.
Mas ele era um homem quebrado, amaldiçoado e não a submeteria à sua
vida de degradação. Por ela, ele gostaria de ser um homem melhor, mas não
era.

S ENTADA EM UMA POLTRONA , escovando os cabelos que cresciam a cada dia,


Lucille tentou imaginar o que faria quando chegasse à Inglaterra. Ela
pretendia trabalhar e estudar, ter uma vida digna e independente. Aquilo
garantira que ela pudesse fazer suas próprias escolhas e tomar as decisões que
desejasse - pelo menos enquanto fosse solteira e não se importasse com sua
honra. Porque mulheres solteiras e livres eram, em todo o mundo, mulheres
desonradas.
Olhou-se no espelho e não reconheceu a imagem que viu no reflexo.
Aquela pessoa olhando para si e repetindo todos os seus gestos não era a
mesma de duas semanas atrás. Aquela não era a Lucille Smith, aquela era a
Lucille de Nathaniel. Céus, por que ela o culpava por toda a sua
transformação? Por que creditava a ele seu novo corte de cabelo, sua
teimosia, sua petulância e sua falta de vergonha? Ela sempre fora daquela
forma, apenas não podia se expressar, não tinha liberdade o suficiente para
ser ela mesma.
— Dormirei com Leo.
A voz dele a sobressaltou. Lucille não se lembrava de o ter ouvido entrar
- o homem era silencioso como um fantasma.
— A cama aqui é grande o suficiente.
— Não sei se é uma boa ideia dormirmos juntos, Lucy.
Ela virou-se e sorriu, tentando entender o que se passava naquela cabeça
confusa.
— Você não pode estar preocupado com algum decoro, agora.
— Não estou preocupado com decoro, apenas…
Nathaniel suspirou e não terminou sua frase. O azul daqueles olhos
flamejava e Lucille não sabia se o compreendia. Precisaria de uma vida
inteira para entender um homem que escondia tão bem sua alma - e ela tinha
apenas algumas horas.
— Então eu durmo em outro lugar. Um sofá, sobre o tapete. Você está
ferido, nada me obrigará a ficar nessa cama para você ficar mal acomodado.
Levantando-se, Lucille se aproximou e tocou o ombro esquerdo, por cima
da camisa. A mão retornou seca, não havia manchas de sangue nem umidade.
— Como está se sentindo?
— Pronto para o que for preciso que eu faça.
Ele a fitava com o semblante rígido, as sobrancelhas unidas, a testa
franzida - e estava ainda mais lindo. O cabelo estava cortado, mas havia uma
sombra de barba para fazer que ele provavelmente cultivava por dois dias.
Lucille gostava da aparência dele agora, assim como gostou antes. Subiu a
mão e acariciou os fios soltos, meio grudados no pescoço, roçou os dedos
pelo maxilar rígido e salpicados de pelos, passou o polegar pelo lábio inferior
até arrancar dele um suspiro.
— Entende por que não podemos dormir juntos? — Ele a segurou nos
braços firmes e a beijou. — Porque eu não consigo resistir a você. Não mais.
— Outro beijo, daquela vez mais rápido e urgente, fez com que os seus
joelhos cedessem.
— Aí não seria dormir. Vamos, eu vou te ajudar a trocar as roupas e
depois vamos nos deitar - e prometo obrigá-lo a se comportar.
Nathaniel a presenteou com um sorriso, mas havia alguma tristeza em seu
olhar, em seu semblante. Por trás da devassidão, ele escondia algo que ela
não conseguira alcançar.

B ATIDAS À PORTA fizeram com que Nathaniel saltasse da cama segurando sua
pistola. Lucille continuava dormindo ao seu lado, enrolada nos lençóis. Se
houvesse um caderno de anotações de primeiras vezes, ele poderia tomar nota
de todas as vezes que aquela mulher tirara dele a virgindade e a virilidade.
Não podia afirmar que fora uma noite casta - ele a beijou até à exaustão, até
quase cansar-se da boca dela. Pensou que poderia arrancar Lucille de si à
força, esgotando-a, mas os beijos serviram apenas para o fazer desejá-la ainda
mais.
— Quem é?
— Sr. McFadden, o chefe pediu que fosse até seu escritório.
— Avise-o que estou descendo.
— Ele insistiu que fosse rápido.
O chefe sempre queria tudo em seu tempo. Esperava que não fosse
nenhum problema grave com devedores insubordinados, pois, apesar de ter
dito a Lucille que estava pronto para qualquer desafio, ele ainda se sentia
dolorido demais para enfrentar homens com seus punhos. Pretendia manter-
se afastado das cobranças por pelo menos mais uma semana.
Enfiou-se em suas calças, vestiu uma camisa branca e um colete cinza,
escovou os dentes, lavou o rosto com água fria e penteou os cabelos.
Parecendo-se demais com um McFadden, considerou que mandaria alguém
buscar seu irmão para que pudessem passar o dia juntos. Apesar do cuidado
para não acordar Lucille, ela despertou antes que conseguisse sair do quarto.
— Já vai trabalhar? — Aquela voz rouca, de quem acabara de acordar,
fez com que o corpo dele reagisse.
— O chefe precisa falar comigo, vou ao escritório dele. Continue
dormindo.
Ele não se virou para olhá-la, nem a cumprimentou adequadamente. Se
fizesse aquilo, não conseguiria sair do quarto, não conseguiria atender o chefe
no tempo exigido. A presença disponível de Lucille fazia com que ele
continuasse a desejando, mesmo sabendo que estava prestes a desistir dela.
Abriu a porta sem bater, sabendo que era aguardado, e parou subitamente
ao ver um rosto bastante conhecido - e totalmente inesperado. Sentado em
uma poltrona, bebendo o melhor conhaque do chefe, estava Thaddeus
Pinkterton, o herdeiro do Marquês de Hertford.
— O que diabos está havendo aqui?
Ele disse, sem se preocupar em cumprimentar ninguém. Gostava de Thad,
eles eram amigos e passaram bons momentos juntos, na juventude. Mas
Nathaniel não era mais o mesmo homem e não sabia se Lorde Pinkerton
também o era.
— Sente-se, Nate. Temos assuntos a tratar.
O chefe indicou uma cadeira, mas Nathaniel apenas segurou o encosto
com as duas mãos. Observando os dois homens, uma realização o atingiu
como um raio em dia de tempestade - o marquês de Lucille era Hertford. O
pai de Thad, que era viúvo há anos, e poderia perfeitamente estar à beira da
falência. Todas as informações condiziam com a história contada por Lucille,
e Hertford era realmente desagradável.
— É um prazer revê-lo, Nate. — Pinkerton ergueu a mão para
cumprimentá-lo, mas ele permaneceu imóvel. — Meus sentimentos por seu
irmão. Emile era um ótimo homem.
— O que você está fazendo aqui, Thad? Por que fui convocado para essa
reunião?
— Bem, percebo que você não está interessado em conversar. Então,
vamos aos negócios. Eu vim buscar minha noiva.
As sobrancelhas de Nathaniel se uniram sobre o nariz e ele fitou o amigo
por longos segundos. As palavras não eram críveis o suficiente para que ele
as compreendesse.
— Não faço a menor ideia do que esteja falando.
— Meu pai faleceu há dois meses. Deixou dívidas praticamente
impagáveis. Se eu quiser recuperar o marquesado, precisarei vender
praticamente todas as propriedades alienáveis e isso nos colocará em ruína
absoluta - pois não haverá nada mais para produzir lucro.
Nathaniel caminhou lentamente até o armário de bebidas e serviu-se de
uma generosa dose de conhaque.
— E você decidiu assumir o contrato de casamento de seu pai.
— Parece ser a alternativa mais razoável. Ela é jovem e carrega um dote
absurdo.
Ele olhou para o chefe, que se mantinha expectador até aquele momento.
— O que você tem a ver com isso? Por que está se envolvendo? Aliás,
como diabos você sabia que ela estaria aqui, Thad?
— Toda Nova Iorque sabe, Nate. — O chefe disse, mas Nathaniel sabia
que ele mentia. Toda Nova Iorque podia saber, mas não era aquele o motivo
de Thaddeus Pinkerton estar em sua sala. — Você garantiu que a reputação
dela estivesse definitivamente arruinada.
— Mas, pelo visto, não o suficiente para que Thad desista dela.
— Aonde ela está?
O marquês deu dois passos na direção de Nathaniel e ele sentiu que um
confronto se aproximava. Nunca vira Thaddeus resolver nada com os punhos
ou suas armas, o homem sempre fora um diplomata nato. Não se alterava,
não elevava o tom de voz, não desafiava. Mas ali, naquele momento, o peso
das acusações fez com que os dois homens se estranhassem.
Não que Nathaniel fosse se incomodar com aquilo. Ele poderia destruir
Thad com uma mão nas costas, mesmo que não quisesse ferir o amigo.
— Em algum lugar.
— Você não quer mesmo brigar comigo, Nate. — Thad colocou as duas
mãos no colarinho meio aberto de Nathaniel e fingiu que ajeitava o tecido,
mas todos sabiam que o toque significava uma ameaça. — Sabe que eu
sempre fui melhor lutador que você.
— Isso foi antes de eu me tornar o melhor cobrador de dívidas de Nova
Iorque, Thad.
Nathaniel respondeu à provocação, disposto a atacar primeiro. Mas, antes
que pudesse mandar o novo marquês para o inferno, a porta do escritório
abriu-se novamente e Leonard entrou, junto com Lucille. Ele fechou os olhos
e praguejou internamente. Tudo que não precisava era que ela estivesse ali.
Com os olhos vagueando entre as faces dos homens presentes, Lucille se
aproximou dele e o tocou no ombro. Nathaniel se controlou para não a
envolver nos braços e afastá-la do olhar de Thad, que permanecia ao seu lado
e escrutinava a mulher como se ela fosse um objeto raro em exposição. Mas
não podia fazer aquilo. Primeiro, porque as decisões sobre os homens de
Lucille deveriam ser dela própria. Segundo, porque ele precisava considerar
que Thaddeus Pinkerton seria um marido perfeito.
Ao invés de deixar seus ciúmes irracionais o controlarem, Nate pegou a
mão dela de seu ombro e, olhando sempre em seus olhos castanhos e
confusos, beijou os nós dos dedos.
— Lucille, o navio que trouxe meu irmão ontem também trouxe seu
noivo de Londres.
Ela piscou várias vezes, como se precisasse clarear a visão.
— Você me disse isso, ontem. Mas seu olhar me faz pensar que há uma
novidade em relação a essa informação.
— A novidade é que estávamos enganados. O homem com quem seu pai
tratou previamente era o Marquês de Hertford, mas ele faleceu há dois meses.
Os olhos de Lucille se arregalaram e ela o encarou com surpresa, talvez
alívio. Ninguém interferiu na conversa dos dois porque qualquer um ali sabia
do que Nathaniel era capaz para defender algo com que ele se importasse - e
certamente era bastante óbvio para seus amigos que ele se importava com
aquela mulher.
— Então, como ele veio de Londres?
— O novo Marquês de Hertford veio negociar para assumir o lugar de seu
pai. Ele é o homem que está de pé ao seu lado, segurando um copo de
conhaque.
Ele se forçou a sorrir, garantindo que ela se sentisse segura para virar a
cabeça e olhar.

O PESCOÇO de Lucille virou para a direita e ela precisou de uma força que não
sabia que tinha para evitar que sua boca se abrisse. O homem que estava de
pé, ao seu lado, prestando atenção excessiva na sua conversa com Nathaniel
era jovem, talvez por volta dos trinta anos, com cabelos escuros como os dela
e olhos tão azuis quanto o céu na primavera. Ele tinha feições masculinas,
sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Tão lindo quanto o Paraíso deveria
ser.
Lucille sentiu-se zonza quando seus olhares se encontraram. O marquês
bebeu seu conhaque e sorriu. Nathaniel hesitou, mas soltou a mão dela e deu
alguns passos para trás. Ela entendeu que ele a deixaria se apresentar ao seu
futuro ex-noivo, ao homem a quem não sabia que estava prometida.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Srta. Smith. — Ele segurou sua
mão, que ela não lembrava ter estendido, e beijou. Lucille sentiu um arrepio
em sua coluna. — Sou Thaddeus Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Ela enrijeceu ao olhar diretamente para o azul transcendental dos olhos do
marquês.
— Você não deveria ter trazido Thad aqui. — Leonard rosnou para o
chefe.
— Claro que eu deveria. Nathaniel precisa resolver essa questão e
entregar logo essa mulher antes que ele perca a cabeça de uma vez.
— Não falem de Lucille como se ela não estivesse aqui. — Nate também
rosnou. A relação entre eles não parecia de hierarquia. — E eu não vou
entregar ninguém, ela não é minha para que eu a mantenha.
— Mas você deseja mantê-la, esse é o problema. — O chefe insistiu.
— Isso não deveria ser um problema seu.
— Passou a ser quando você a trouxe para meu clube.
— Se o problema é esse, então vamos embora. Você traiu minha
confiança.
— Eu? Deveria conversar com Leonard sobre isso, afinal, como acha que
os capangas de Walter Smith a encontraram?
Lucille afastou-se da conversa e observou o que acontecia. Leonard
passou o braço na testa, limpando suor que se acumulou ali. Nathaniel o fitou
com fúria assassina, como se a confirmação daquela informação pudesse o
levar a matar o melhor amigo.
— O que isso significa?
— Eu não contei nada a Walter Smith. — Leonard murmurou, mas algo
em sua voz indicava que ele mesmo acreditava em sua traição.
— Contou a quem?
— A mim. — O chefe disse. — Ele se preocupa com você, assim como
eu. Tive de me envolver ou você acabaria causando mais confusão. Deixe-a ir
com o marquês, Nathaniel.
Ele deu alguns passos na direção do chefe e se colocou na frente dele,
agarrando-o pela camisa. Pela forma como Leonard o olhou, não esperava
aquela reação. Apesar da falta de hierarquia, havia respeito - ou medo - que
os mantinha em uma posição de resignação com tudo que o chefe fazia. Mas
as mãos de Nathaniel estavam no colarinho perfeitamente engomado de
Nolan Fitzgerald e ele quase ergueu o homem do chão. Para um homem
esguio como Nate, Lucille não achava que ele seria tão forte.
— Não diga que você contou a Walter Smith onde estávamos. Não diga
que você colocou a vida dela em risco em quase me matou, Nolan!
Outra reação surpresa de Leonard - como se falar o nome do chefe, gritar
com ele ou ameaçá-lo de, de qualquer forma, fosse mais grave do que torturar
pessoas. Lucille e o marquês apenas observavam a contenda, ela bastante
nervosa com o desenrolar dos fatos.
— Não direi, se preferir assim.
— Você é um maldito! Por que diabos fez isso? Por que ajudar aquele
animal que nos largou para morrer?
— Ele não é um animal, Nathaniel! — O chefe se soltou e ajeitou a
camisa. — Ele é um visionário e nosso principal investidor.
— Investidor? — Foi Leonard a se surpreender.
— Sim. Walter Smith empenhou muito dinheiro no Gênesis. Que pai não
teria orgulho de um filho de sucesso, como eu?
A palavra “pai” poderia ter sido mal compreendida, ou poderia se perder
entre outras, mas pareceu atingir Nathaniel como se fosse outra bala
disparada. Ele deu dois passos para trás, cambaleando, e olhou para o chefe
por longos segundos até desaparecer pela porta. Lucille quis correr atrás dele,
mas seus pés estavam fincados no chão como se tivessem criado raízes.
— Você sabe que acaba de o perder, não sabe? Que diabo é isso? Como
você pode ser filho de Walter Smith?
Leonard não pareceu importar-se em discutir aquilo na frente deles. O
marquês permaneceu em silêncio, observando.
— É um risco que precisava correr. Vocês achavam que estão vivos
porque eu enfrentei Smith? Vocês ficaram vivos porque eu pedi e ele me
permitiu mantê-los. Nunca esqueça a quem deve sua vida, Leonard.
Lucille piscou mais algumas vezes, como se o ato pudesse melhorar sua
audição.
— O que o senhor disse?
Sorrindo, o chefe se aproximou.
— Sabe de onde acha que me conhece, Srta. Smith? Se procurar nas
caixas de recordações de sua mãe, talvez descubra. Dizem que filhos
bastardos nascem muito parecidos com seus pais porque, assim, eles
carregam a lembrança constante do pecado que os gerou.
Lucille desabou na poltrona que, por sorte, estava próxima de si. As
novas verdades que foram reveladas para ela acabaram sendo intensas
demais, chocantes demais.
— Então o senhor é meu irmão. — Ela repetiu. — Sempre soubemos que
meu pai era infiel à minha mãe, mas…
— Não fiz o que fiz por mágoa de Walter Smith. — O chefe explicou. —
Não guardo nenhuma. Na verdade, esses dois só estão vivos porque eu os
quis alistar para o Gênesis - nosso pai sabe e se orgulha de meus negócios.
Ele não pode me reconhecer por uma questão legal, mas sempre disse que
sou o filho que ele gostaria de ter ao seu lado.
Certamente era. O irmão mais velho de Lucille era um homem sensível e,
quando teve a oportunidade de ir embora de casa, desapareceu praticamente
sem deixar vestígios. Ela soube que ele estava no sul, mas nunca recebera
uma carta dele e sabia que o pai o deserdara depois do casamento.
Aquele homem ali era tudo que Walter Smith desejava em um herdeiro -
força, determinação e nem uma gota de arrependimento por suas ações.
Leonard passou pela porta como um tornado e a deixou sozinha com dois
desconhecidos - nos quais ela não sabia se podia confiar. Mas sentir medo
não era uma opção.
— Milorde, eu lamento que nos conheçamos nessas condições, com
tantas revelações para perturbar esse encontro. Mas eu preciso dizer que não
tenho intenção de honrar o acordo que meu pai fez com o seu.
Lorde Pinkerton sorriu, devastadoramente lindo. Havia algo nele que a
atraía, fazia com que seus olhos se fixassem em seu rosto perfeito.
— E eu não tenho intenção de arrastá-la à força, Srta. Smith. Mas ficarei
em Nova Iorque por mais alguns dias e gostaria de ter a oportunidade de lhe
fazer a corte.
Com extrema gentileza, o marquês segurou novamente sua mão e a
beijou, permitindo que ela sentisse o calor de seus lábios, e saiu.
CAPÍTULO VIGÉSIMO

L EONARD O ENCONTROU EM SEU LUGAR FAVORITO - N ATHANIEL CHAMAVA DE


sala de tortura. Era para onde ele levava os devedores que precisavam de um
incentivo para pagar suas dívidas. O lugar era sombrio, escuro e parecia um
museu da Inquisição, mas Nathaniel sentia uma estranha paz de espírito ali
dentro. Não era o melhor lugar para o desafiarem, mas Leo foi esperto. Isaac
estava com ele.
— Eu não traí você. — Ele disse, depois de alguns minutos de silêncio.
— Ao menos, não conscientemente. O chefe, ele… eu jamais imaginaria que
ele fosse ligado ao Smith.
— Não quero conversar agora, Leo.
— Você precisará enfrentar isso uma hora ou outra. O chefe é filho do
canalha do Smith!
Nathaniel girou em seu eixo e encarou os dois homens, que tiveram a
sensatez de deixar a porta aberta. Claro que ele precisaria conversar sobre
esse assunto, mas palavras só viriam depois que ele compreendesse o que
aquilo significava. O chefe colocou sua vida em risco. Mentiu para eles.
Nunca houve um dia de verdade em toda a sua estadia nos Estados Unidos.
— E eu não tenho condições de lidar com um homem que coloca seu ódio
pelo pai acima de tudo.
— Ele não o odeia. Se tivesse ficado até o final, ouviria que ele o admira.
Tudo que fez, até agora, foi para agradar o Smith.
— Eu também não sabia que a noiva que Thad mencionou era sua
mulher.
Isaac disparou, interferindo.
— Ela não é minha, pelos deuses! Lucille não pertence a ninguém, ela é
uma mulher livre.
— Mas você está apaixonado por ela. — Isaac insistiu. — Tenha pelo
menos a decência de assumir seus sentimentos e contar a ela.
— Não sou um homem decente há mais de um ano. Acho que nunca fui
um.
— Auto depreciação não combina com você, Nate.
Ele não aguentava mais ouvir ninguém falar. Sua cabeça estava latejando
desde que descobrira que o homem para quem Lucille estava prometido era
um verdadeiro nobre. Digno, honesto, correto, educado, e um dos mais
requisitados amantes que ele já ouvira falar. Tudo que alguém pudesse dar a
Lucille, Thad poderia dar melhor - e em dobro. Com exceção da riqueza, pois
o marquesado estava falido - porém, Nate sabia que ela não era presa a bens
materiais.
Se, antes, ele poderia pedir que ela ficasse, poderia voltar atrás em sua
promessa de a ajudar a fugir e pedir que ela permanecesse com ele, a situação
estava de repente mais complicada. Thad não desistiria facilmente de sua
noiva e ela não estaria mais segura na Inglaterra. Em verdade, ele acreditava
até mesmo que Lucille deveria reconsiderar a decisão e casar-se com o novo
Marquês de Hertford. Juntos, eles conquistariam a Grã-Bretanha.
— Preciso de ar.
— Aonde você vai? — Leonard tentou bloquear sua passagem, mas ele
sabia bem que não deveria.
— Cuide de Isaac.
Passando pelo amigo e pelo irmão, Nathaniel cruzou o salão do Gênesis e
saiu porta afora. A luz do dia quase feriu seus olhos e a dor em seu ombro se
intensificou. O que ele queria, naquele momento, era bater em alguém, em
alguma coisa. Se entrasse em uma briga, poderia se machucar muito e Lucille
não o perdoaria. Talvez fosse ideal que ela se irritasse com ele, mas não era
isso que Nathaniel precisava. Virou a esquina, com passos apressados, e
entrou na academia do Sr. Dawson.
Ali ele também encontrava paz. Um saco de areia era uma excelente
companhia, pois poderia assumir várias formas - a face de qualquer desafeto.
Quando ele enfaixou as mãos, tirou a camisa e começou a socar, a primeira
imagem que se formou no couro foi a de Walter Smith. Ele queria matar,
esfolar, arrancar a cabeça do pai de Lucille depois de fazê-lo sofrer os
maiores horrores que um homem poderia sofrer. Ele já o odiava antes, mas o
odiava ainda mais depois que ele colocou sua filha em uma posição de não
escolha.
Depois, ele socou Thaddeus Pinkerton, o maldito marquês e seu nariz
perfeito, seus cabelos macios, seus olhos azuis como os de Isaac. Nathaniel
não era o McFadden mais bonito - todos os seus irmãos eram tão belos que
ofuscavam o nascer do sol em Thanet. Para disputar espaço com eles,
precisou ser o mais libertino. Aquele que sempre sabia satisfazer as mulheres.
Que trocava de cama três, quatro vezes por noite. Então, ele sabia que,
mesmo não sendo mais bonito que Thad, conseguiria satisfazer Lucille.
Só que o maldito marquês também era um homem por quem toda mulher
suspirava. Então, ele queria esmurrar aquele rosto bonito até reduzi-lo a uma
massa disforme, porque Thad não tinha o direito de vir a Nova Iorque
disputar a sua mulher.
Maldição! E, por fim, Nathaniel estava surrando a si mesmo, porque a sua
estupidez era sem limites.
— McFadden! — A voz de Dawson ecoou pela academia. O instrutor de
boxe segurou o saco de areia e o encarou com uma expressão irritada. —
Você está sangrando, já sujou todo o meu chão. O que diabos pensa que está
fazendo?
Nathaniel passou a mão pelo ombro e sentiu o líquido quente escorrendo
por suas costas.
— Mande limpar e me envie a conta.
— Faz semanas que você não aparece aqui. O que houve aí?
— Uma bala, mas estou bem.
— Percebo que sim. Devo chamar o médico?
— Não, retornarei ao Gênesis.
Dawson jogou uma toalha sobre ele.
— Vá tomar um banho.
Rosnando como um cão raivoso, Nathaniel recusou. Usou a toalha para
estancar o sangramento e saiu bufando pela porta.

— E LE QUER ME CORTEJAR . E o dono desse clube é meu irmão bastardo.


Lucille disparou a informação sobre sua amiga. Millicent chegou ao
Gênesis no final da manhã e foi recebida com duas granadas atiradas em sua
direção. Mas ela estava nervosa, muito nervosa, e precisava falar com
alguém. Estavam sentadas nos aposentos de Nathaniel e ela não fazia ideia de
para onde ele fora.
— Comece do início. Quem quer te cortejar, o Sr. McFadden?
Antes fosse.
— Não, o marquês.
Lembrando que Millicent não sabia que o marquês, seu prometido, era
um jovem lindo e absurdamente charmoso, explicou à amiga os
acontecimentos da manhã. A cada frase, a boca de Milly abria um pouco
mais, até o momento que a colher que usava para mexer o chá caiu no chão.
O homem que a queria desposar era lindo, poderoso e educado. Não
cheirava a tabaco e uísque, mas a sândalo e sabão de barbear. Tinha a pele
lisa e mãos que não carregavam nenhuma marca de esforço. E o homem que
Nathaniel chamava de chefe era seu irmão. Ela não sabia lidar com nenhuma
daquelas informações, não fazia ideia de como enfrentar sua nova realidade.
Não que seus sentimentos tivessem mudado. Mas, ainda assim, era muito
para entender.
— Lucy, sua vida está muito confusa. — Millicent segurou-a pelas duas
mãos. — E agora, o que fará? Ainda está disposta a fugir? Ou vai se casar,
como deseja seu pai?
— Não vou me casar. — Ela sacudiu a cabeça como um cão sacode as
pulgas. — Continuo querendo fazer algo da minha vida, não ser uma esposa
figurativa que salvará um marquesado da ruína.
— Então, precisa tomar decisões. Se você quiser ficar alguns dias na
minha casa, podemos protegê-la. Meu pai não permitirá que o seu te leve
embora se você não quiser ir.
— Não quero causar problemas para vocês. Há muito acontecendo, queria
apenas um tempo para refletir sobre tudo.
A porta do quarto se abriu e Nathaniel entrou, suado, imundo e cheirando
a sangue. A camisa estava manchada de vermelho e o semblante de quem
poderia devastar uma cidade inteira apenas com o olhar a assustou. Ela nunca
o vira daquele jeito, nem quando surrou os brutamontes que a agrediram ou o
homem no cassino.
— Céus, Nate. Você está sangrando de novo? O que houve?
— Precisava pensar, então fui à academia de boxe.
— Homens são engraçados. — Millicent ponderou. — Pensam com os
punhos, não com a cabeça.
— Socar as coisas ajuda a clarear a mente, Srta. Ryan. Preciso de um
banho, mas também preciso conversar com você, Lucille.
Ele colocou um papel sobre a escrivaninha. O envelope estava tingido de
vermelho, do sangue que escorria do ferimento nas costas, e continha um
bilhete de embarque. Ela conferiu que data, horário e destino. Como
prometera, ele lhe comprara uma passagem para a Inglaterra, no mesmo
navio luxuoso em que seu irmão viajara, para a manhã seguinte. Aquela era a
sua carta de alforria, a liberdade para ir embora de Nova Iorque de uma vez e
buscar fazer tudo aquilo que desejou e não conseguiu.
Não eram muitas coisas. Lucille queria estudar, trabalhar, ser útil, ajudar
pessoas. Ela não se importava com riqueza material - sempre teve muito
dinheiro e ele nunca lhe trouxe felicidade. Aquele bilhete de embarque
poderia ser o início da realização de um sonho.
— Você já sabe o que isso significa. — Nathaniel se apoiou na parede,
deixando uma marca de sujeira e sangue no papel de parede adamascado. Ele
parecia exausto e com dor. — Se quiser seguir o plano, prepare suas coisas.
Mas eu acho que você deveria aceitar a proposta de Thad.
— Acha que eu devo me casar com o marquês? — A voz dela saiu mais
estridente do que esperava.
— Ao menos converse com ele. Deixe que ele te leve para um
piquenique, uma cavalgada, um passeio - sei lá que tipo de bobagem significa
fazer a corte atualmente.
— O senhor não tem nenhuma objeção de que o marquês corteje Lucille,
Sr. McFadden? — Millicent questionou. Lucille virou para ela, desejando
esganar a amiga por fazer aquela pergunta.
— Por que teria? — Ele continuava encarando-a com a mesma expressão
de antes. — Lucille deve tomar suas decisões sem a necessidade da minha
intervenção. Ela já mostrou que consegue fazer isso. Apenas sugiro que
considere todas as opções, antes.
Ela se sentou e passou os dedos pelo bilhete de embarque.
— A passagem é reembolsável? Pode ser remarcada?
— Só haverá outro navio em duas semanas. Não se importe com o valor
gasto nesse bilhete, Lucy. O que você quer fazer?
Erguendo os olhos, ela o fitou demoradamente. Queria beijá-lo. Colocá-lo
em uma banheira, ajudá-lo a se lavar e, depois, beijá-lo novamente. Queria
olhar todos os livros daquela estante para procurar uma história que
pudessem ler juntos. Queria ficar ali, naquele quarto, por uma semana inteira,
até se sentir forte o suficiente para enfrentar o mundo novamente.
Mas ele não queria nada daquilo. Provavelmente, Nathaniel estava louco
para livrar-se dela de uma vez e poder retornar à sua vida normal. Se não, por
que estaria sendo tão diligente em mandá-la para a Inglaterra?
— Quero falar com o Marquês de Hertford.
Ele moveu a cabeça assentindo e Millicent deixou escapar uma interjeição
de surpresa.
— Certo, então vamos embora daqui.
— Embora?
— Sim. Não confio no homem que se apresentou com seu irmão e que eu
chamava de chefe. Esse maldito não pensou duas vezes em te entregar para o
Smith, Lucy, ou em trazer Hertford aqui. Não ficaremos mais no Gênesis.
— Vamos para a sua casa?
Nathaniel se desencostou da parede e abriu a porta novamente, indicando
que elas deveriam sair.
— Parece-me que sim, vamos para a minha casa.
Lucille pegou a mala que trouxera de sua casa e seguiu pela porta,
acompanhada de Millicent. Não sabia se aquela era a decisão mais adequada,
mas ela lhe dava mais tempo na companhia do homem que ainda não estava
preparada para deixar.

E RA INCOMUM que Nathaniel preferisse uma banheira a um chuveiro, mas,


naquele início de tarde, era o que precisava. Mergulhado em água morna e
sais de banho, estava com a cabeça recostada para trás e os olhos fechados
pensando nos muitos desdobramentos das suas últimas decisões. Deixar o
Gênesis o assustava, mas o chefe se mostrou um homem de honestidade
questionável. Como fora tolo, confiando tão cegamente em Nolan Fitzgerald
mesmo sem o conhecer. Em sua defesa, Nathaniel acreditava que o
conhecesse, que não havia segredos obscuros entre eles.
A partir daquele momento, ele não tinha mais emprego nem um lugar
para servir-lhe de referência. O seu mundo particular estava abalado,
arrasado, tornado em pedaços à sua frente - e ele podia apenas assistir, com
as mãos atadas.
Seus ouvidos captaram o abrir da porta do quarto, depois do banheiro.
Captaram os passos suaves sobre o tapete e as narinas sentiram o cheiro
feminino de almíscar que preencheu o ar assim que ela entrou. A mão
delicada e macia de Lucille tocou seus cabelos.
— Você se feriu outra vez. — Ela deixou os dedos correrem pelos fios
úmidos e o acariciou na face. — Eu sinto muito por tudo que está
acontecendo, Nate. A traição é uma dor difícil de superar.
— Apenas antecipei o que aconteceria inevitavelmente. Quando voltar a
procurar Emile, não terei tempo para me dedicar ao clube e só pretendo parar
de procurar meu irmão quando o encontrar.
Ela o empurrou e fez com que desencostasse da banheira. Pegou uma
esponja e começou a esfregar-lhe as costas, tocando suavemente no
ferimento.
— Acredito que mentir bem não seja parte dos seus talentos. — Lucille
deu uma risada baixa. — Mas aprendi que você não lida bem falando de
sentimentos. Com tudo isso acontecendo, talvez seja melhor desistir de falar
com o marquês.
Sim, por favor, desista e fique aqui indefinidamente - era o que ele queria
dizer, mas não disse. O silêncio respondeu à pergunta não feita de Lucille.
— Ele virá jantar conosco, hoje. Convidei-o para facilitar para você.
— Você está parecendo meu pai. — Ela passou os dedos pelos pontos e
ele os sentiu espetarem sua carne. — Empurrando-me para um homem que
nem conheço.
— Quero apenas isso, que o conheça.
— Por quê?
— Por que Thaddeus é honrado e será um excelente marido. Você pode
fazer o que quiser da sua vida, Lucy, mas com o apoio de um homem, tudo
ficará mais fácil.
Era mais fácil dizer todas aquelas bobagens se ela estivesse de costas para
ele. Muito mais fácil não precisar olhar dentro de suas orbes castanhas,
sempre tão aptas a revelar tudo o que ela sentia.
— E por que precisa ser agora, com esse homem? Por que não pode ser
você?
Maldição. A mão de Lucille parou sobre seu ombro, os dedos envolvendo
a pele sensível. Ela respirava tão próxima a ele que Nathaniel pensou que ela
fosse tomar a iniciativa de o beijar. Aquele era o momento perfeito, o
momento que ele esperava. Ela estava tão vulnerável, tão frágil enquanto
esperava que ele a quisesse, que qualquer coisa que dissesse poderia quebrar
seu coração em pedaços. Naquilo ele era bom, Nathaniel sempre foi bom em
machucar pessoas.
Ele se levantou da banheira, nu, sem se importar que ela fosse se chocar.
Enrolou-se em uma toalha, secou-se com outra, sacudiu a cabeça para
espalhar água por todo o banheiro, deixou que Lucille o observasse, esperasse
por ele, ansiasse pelo que iria dizer ou fazer. Depois, aproximou-se dela,
olhando diretamente em seus olhos como se ele realmente pudesse fazer
aquilo sem destruir-se no processo.
— Porque eu não quero, Lucy. — Ele passou os nós dos dedos pelo
queixo dela, mantendo-a presa em seu olhar. — Eu sou livre demais para me
envolver com seus planos. Não serei companheiro nem marido em sua
jornada, se me entende.
Nathaniel pode ouvir e sentir o soluço que veio do fundo da alma dela. Os
olhos castanhos cintilavam com lágrimas que não derramaria, com a sombra
da frustração e da traição que sentia naquele momento.
— Entendo, certamente. — A voz de Lucille estava trêmula. — Quando o
senhor me recebeu em sua cama, o senhor o fez porque não dispensa uma
mulher.
— Por certo. E a senhorita estava disponível. Assim como esteve outras
vezes.
— E o senhor… — Ela tentou baixar a cabeça e ele permitiu. Nem
Nathaniel conseguiria continuar com aquela farsa se continuasse dentro
daqueles olhos tristes. — O senhor tem me ajudado porque é altruísta?
— Não. Eu cumpro promessas, por isso sou temido. Eu lhe prometi ajuda
e venho tentando fazer isso da melhor forma que sei.
Ela se forçou a esticar os lábios, fingindo um sorriso. Passou as mãos
úmidas pela saia, tentando esconder o nervosismo, enquanto ele se mantinha
impassível, pingando água pelo corpo.
— Bem, então vou me arrumar para o almoço. Obrigada por ser tão
sincero, e por sempre cumprir suas promessas.
Ela saiu. A porta do quarto bateu delicadamente e ele caiu de joelhos no
chão, sentindo o ar ser sugado para fora de seus pulmões. Se aquela conversa
não fosse suficiente para manter Lucille longe dele, Nathaniel poderia pensar
em formas mais cruéis de feri-la, mas ele não saberia se conseguiria.
Imaginar que a fizera sofrer já o estava matando por dentro, causando mais
dor do que a bala quando lhe dilacerou a carne.
Mas que outra solução havia? Ela não seria feliz ao lado dele. Ele não
tinha perspectiva ou futuro. O que melhor sabia fazer era causar mal às
pessoas. Possuía muito dinheiro, mas de nada adiantaria ser rico se não
tivesse aptidão para o trabalho honesto. Nathaniel continuaria sendo um
criminoso e ela não ganharia nada estando com ele. Lucille merecia um
homem bom, alguém que pudesse lhe ajudar a conquistar o mundo - e essa
pessoa era Thaddeus Pinkerton.
Ele não servia para aquela mulher cheia de sonhos e planos. A melhor
forma de mostrar que se importava com ela era permitindo que ela fosse de
outro.

S E O DEFLORAMENTO não estava estampado em seus olhos, se a devassidão


que se apoderara dela desde que se deitara na cama de Nathaniel McFadden
pela primeira vez não pode ser notada por ninguém, a decepção não era tão
fácil de esconder. Bastou Lucille pisar no salão para que Millicent a fitasse
com uma expressão de quem sabia que alguma coisa estava errada com ela.
A casa de Nathaniel era cavernosa, quase tão sombria quanto a parte de
sua alma que ele deixava transparecer. Havia pesadas cortinas e móveis
escuros, muitos tapetes espalhados e pouca luz do sol penetrando em seu
interior. Era uma residência de tamanho modesto, com apenas quatro quartos,
uma sala de jantar e um salão para receber pessoas, mas Lucille suspeitou que
ele não ficava muito por ali. Tinha um mordomo, que pareceu bastante
entusiasmado em finalmente servir pessoas, e uma cozinheira.
Era uma residência que tinha a alma de seu proprietário. Mas que
recebera uma rajada de vida e luz com a chegada de visitantes - o irmão, ela,
e os amigos que estavam ali para fazer companhia pelo dia.
O tempo passou lentamente até o jantar, como se ali ocorresse um
velório. Talvez ela pudesse fazer alguma coisa, qualquer coisa, nas não
conseguia nem mesmo se concentrar na leitura. Leonard e Millicent estavam
conversando em voz baixa, com uma proximidade que ela estranhou, e Isaac,
que passara o dia fazendo ligações, tentando descobrir pistas sobre Emile e
como estavam as investigações do caso, se recolheu para seus aposentos a
fim de se preparar.
— Sr. Eckley. — O mordomo apareceu no salão. — O convidado chegou,
mas o Sr. McFadden ainda não desceu.
— Traga-o até aqui, Thad é um velho amigo.
Com uma reverência, o mordomo se afastou. Lucille não era acostumada
ao gestual da nobreza para compreender por que eles sempre pareciam estar
na presença da Rainha.
Quando o marquês foi anunciado, a sua chegada se assemelhou ao nascer
do sol em um dia de inverno. Thaddeus Pinkerton carregava um sorriso
devastador, olhos absurdamente claros e estava vestido como a realeza, com
uma gravata branca perolada e um traje de noite impecável. Se aquele homem
precisava de dinheiro para recuperar seus negócios, escondia muito bem a
falência da vista de todos.
Sua primeira ação foi se aproximar de Lucille, segurar-lhe a mão e beijar
seus dedos. Ela demorou a reagir, embevecida pela beleza do homem à sua
frente.
— Seja bem-vindo, Thad. — Leonard o cumprimentou, distraindo-a com
sua voz de barítono. — Vou deixar que conversem para achar onde se
escondeu o anfitrião.
— Não precisa. Estou aqui.
Ele entrou pela porta e Lucille pisou algumas vezes para confirmar se não
estava delirando. Nathaniel vinha com os cabelos penteados, um traje de
noite e gravata. Ela não o vira vestir nada além das camisas de botões abertos
e mangas dobradas, mas, daquela vez, ele parecia o que era - o terceiro filho
de um conde. A sua chegada obnubilou o restante de tudo que estava ali.
Não, Nathaniel não era lindo como o marquês, mas Lucille nem
conseguiu se lembrar que havia outros homens no salão. O único que a
importava era o que não a desejava.
Precisava tomar uma decisão. Iria embora, deixaria Nova Iorque por bem
e se refugiaria na Inglaterra, vivendo em paz em uma vila isolada, ou se
tornaria a Marquesa de Hertford.
Os homens se estranharam e se cumprimentaram, depois todos se
reuniram no salão de jantar. A mesa era bem menor que a da casa de Lucille,
o que fez os convidados sentarem todos muito próximos. A comida foi toda
servida em bandejas - não havia criados para aquele evento, também. Cada
um deveria preparar seu próprio prato com o que desejasse.
— Estive com seu pai, hoje. — Hertford disse, depois de um longo e
constrangedor silêncio. Na arrumação dos assentos, ele ficou ao lado dela - o
que era significativamente conveniente. — Ele pediu que retornasse para
casa.
— Oh, Walter Smith pediu? Tenho certeza de que milorde está
amenizando alguma ordem que ele tenha dado.
Hertford sorriu.
— Sim, certamente. Ele ameaçou vir buscá-la, mas eu interferi e solicitei
que me permitisse convencê-la a voltar para casa. Não é adequado que uma
mulher solteira se hospede na casa de um homem também solteiro.
— Faz algum tempo que não me preocupo com adequações, milorde.
Lucille cortou um pedaço da carne de cordeiro que estava em seu prato,
mas não tinha apetite. Seu estômago protestava, desejando comida, porém
faltava o desejo de colocar o alimento na boca e mastigar.
— Entendo. Então a senhorita pretende continuar aqui, enquanto nos
conhecemos?
— Na verdade, não. Eu pretendo tomar uma decisão até amanhã.
Dependendo do que for, vou me hospedar na casa de minha amiga Millicent.
— Esse arranjo é mais satisfatório.
A conversa prosseguiu com o tópico principal sendo as buscas por Emile
McFadden, o irmão que poderia estar vivo, mas provavelmente estava morto.
Isaac contou sobre os progressos do dia, que foram poucos, e os homens
discutiram outras estratégias. Nathaniel, no entanto, manteve-se em silêncio
durante todo o tempo. Enquanto comia, ele olhava para todos na mesa como
se sentisse raiva - principalmente quando sua atenção estava voltada para o
marquês.
Depois da deliciosa refeição, todos se reuniram no salão novamente e o
mordomo retornou para informar que alguém esperava por Nathaniel na
entrada.
— Sr. McFadden, o senhor tem visitas.
— Estou com convidados, Burton. Mande embora, seja quem for.
— Creio que não possa fazer isso, senhor. É o delegado.
Isaac levantou-se e olhou para o irmão imediatamente após ouvir o
anúncio. Nathaniel, no entanto, terminou de beber seu cálice de vinho do
porto e só então se moveu para atender à autoridade.
Todos permaneceram em seus lugares por dois minutos. Impaciente, Isaac
foi até a porta para ouvir a conversa, o que fez Lucille se unir a ele. O
delegado só iria atrás de Nathaniel por dois motivos - o crime contra Emile e
o seu sequestro. Mas o pai sabia que ela não fora sequestrada, ela jamais
deporia contra Nate.
— Sr. McFadden, recebemos uma denúncia de que o senhor está
mantendo uma donzela cativa em sua casa.
Ele deu uma risada alta e tranquila.
— Eu não tenho nenhuma donzela aqui, senhor. Bem, na verdade, há a
Sra. Millicent Ryan, mas creio que não é dela que trata a denúncia.
— Não, estamos procurando a Srta. Lucille Smith.
— Ela não está cativa.
— Mas está aqui?
— Sim.
— E não é uma donzela?
Outra risada fez com que as bochechas dela corassem. Detestou
imediatamente que Nathaniel falasse dela daquele jeito, mas acabou
entendendo que toda a encenação servia para corroborar a mentira que ele
contara e garantir sua ruína pública. Não parecia ser mais necessário, mas
Nathaniel continuava envolvido em seu papel.
— Diga logo o que quer, delegado.
— Levar a Srta. Smith de volta para casa.
— Só sobre meu corpo estirado nesse chão.
— Sr. McFadden, o senhor já tem um homicídio sobre suas costas. Sabe
que, se for preso, dessa vez, não será solto sob fiança.
— Faça seu melhor, delegado.
Lucille quase passou por cima de Isaac e Leonard para ver o que estava
havendo. Não correu para a porta porque foi impedida pelo amigo canalha.
Nathaniel virou de costas e juntou as mãos, oferecendo-se para ser levado.
Um agente, que acompanhava o delegado, colocou as algemas nos punhos
dele e ela abriu a boca para gritar, mas nenhum som saiu.
Nate moveu a cabeça dizendo para que não falasse nada. Aqueles olhos
azuis se comunicavam melhor do que suas palavras. Uma lágrima correu pela
bochecha de Lucille quando ele deu uma ordem simples para Isaac e
Leonard.
— Protejam-na.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO

E LA NÃO PODIA PERMITIR QUE AQUILO ACONTECESSE . N ATHANIEL JÁ SE


sacrificara por ela o suficiente, não deixaria que fosse preso por um crime que
não cometeu - ela não fora sequestrada, não estava ali contra a sua vontade. O
delegado não estava preocupado em resgatá-la, ou teria entrado na casa com
uma ordem para conduzi-la até sua casa. Aquilo era vingança, provavelmente
obra de seu pai para causar mal ao homem que o desafiou dentro de sua
própria casa.
Desvencilhando-se dos braços de Leonard, que a mantinha firme o
suficiente para evitar que ela corresse pela porta atrás de Nathaniel, Lucille
foi até o marquês, que acompanhava curioso os acontecimentos.
— Milorde, você precisa o ajudar.
Lorde Pinkerton bebeu o restante de seu uísque em um gole, apenas.
— Não sei se eu devo, senhorita. Nate era meu amigo, mas o que ele fez
foi desonroso. Se fosse na época de meu pai, estaríamos duelando nesse
momento.
Lucille resistiu à vontade de agarrar o marquês pelo colarinho e sacudi-lo.
— A culpa não é dele. Eu pedi ajuda, eu fugi em sua carroça, eu pedi que
ele me tirasse da casa de meu pai. Walter Smith é violento e ficou muito
irritado com minha fuga. Tudo que Nate fez foi defender-me, ajudar-me.
— Seu pai tocou na senhorita?
Uma sobrancelha erguida na testa do marquês fez com que Lucille
entendesse que conseguira sua atenção.
— Ele me espancou, milorde. Nathaniel apenas cuidou de mim durante
todo esse tempo, ele não tem nenhuma responsabilidade por nada. Eu… eu
estou pronta para tomar minha decisão. Ajude-o e eu me casarei com
milorde.
A audiência não pareceu concordar com a proposta. Isaac passou os
dedos nervosos pelos cabelos loiros e Leonard soltou uma imprecação em
voz baixa. Millicent piscou várias vezes e balançou a cabeça negativamente,
provavelmente considerando-a tola. Talvez ela fosse, sim, tola, ao acreditar
que poderia fugir daquele casamento. Mulheres não faziam seus destinos,
conformavam-se com eles. Por que com ela seria diferente?
Ao menos o marquês não era um homem horrível que a submeteria à
degradação moral e física. E ele sabia o que acontecera entre ela e Nathaniel
sem parecer importar-se tanto. Não a ponto de impedir o casamento.
— Não sei se posso fazer algo, senhorita. Como crê que eu consiga ajudar
Nathaniel?
— Meu pai só se importa que eu me case. Se milorde disser que eu estava
na casa a seu pedido, que isso faz parte da corte, que milorde propôs, ele vai
acreditar e retirar a queixa. Não havendo rapto, não há crime. Não posso
deixar que ele fique na cadeia.
— Importa-se tanto assim com ele?
Sim, claro que ela se importava! Ela o amava, pelos céus! Não suportaria
o imaginar ferido e preso por sua culpa. Por mais que Nathaniel se achasse
indigno e não merecedor de nada, ela o considerava um homem fenomenal.
Toda aquela força, aquele poder, o olhar de quem dominava o mundo e que
tinha tudo sob seu próprio controle a seduziam mais do que as carícias e
indecências que ele se propôs a fazer com ela. Não disse nada daquilo para o
marquês, preferiu fingir - afinal, ela estava decidida a casar-se com o homem
para livrar aquele que amava.
— Ele esteve comigo quando precisei. Sim, importo-me e não desejo que
ele seja julgado por um crime inexistente.
— Srta. Smith, sei que está decidida a resolver esse problema, mas creio
que eu possa fazê-lo. — Isaac, o irmão, aproximou-se dela. Só então Lucille
percebeu o quanto estava tensa, prendendo a respiração. — Irei agora para a
delegacia, a senhorita ficará com o Sr. Eckley.
— Você quer apenas proteger seu irmão, meu caro Isaac. — O marquês
colocou uma mão no ombro dele. — Mas sabe que não adiantará, a senhorita
está prometida para mim. Vamos deixá-la decidir e respeitar o que ela quer.
— O que ela quer é salvar Nathaniel, Thad, e parece disposta a qualquer
coisa para isso. Você está tão desesperado assim a ponto de rebaixar-se tanto
e casar-se com uma mulher claramente apaixonada por outro homem?
Lorde Pinkerton deu uma risada nervosa e Lucille fechou os olhos. Não
era para que todo mundo soubesse, mas ela falhara em esconder seus
sentimentos, assim como falhara em outras coisas em sua vida. Sentindo o
coração dilacerado, sabia que o marquês tinha razão.
— Sr. McFadden, entendo sua preocupação, mas estou tomando essa
decisão conscientemente. Sairei agora com meu noivo para a casa de meu pai
e, depois, providenciaremos a soltura de Nathaniel.
Leonard Eckley colocou-se à frente da porta.
— Não posso permitir que vá. Prometi a ele que a protegeria.
— Estou protegida, não estou, milorde?
Ela olhou para Lorde Pinkerton tentando não transparecer a agonia e o
desespero em voltar para o domínio de Walter Smith depois de tudo que
fizera.
— Ele não lhe fará nenhum mal, senhorita, ou terá que se entender
pessoalmente comigo. E eu garanto que o seu pai não gostará de me
enfrentar.
Talvez não devesse confiar nele, mas a certeza na voz do marquês a
tranquilizou. Nathaniel disse que ele era honrado, que era um homem bom.
Não estaria tão desesperado a ponto de permitir que ela fosse ferida, então o
pai se comportaria já que o casamento aconteceria. Leonard também pareceu
confiar nele, pois saiu da frente da porta e, mesmo com uma expressão de
discordância, permitiu que eles passassem.
— Se algo acontecer a ela, eu mesmo o matarei. — Ele disse, segurando o
braço do marquês antes que eles se afastassem totalmente.
Millicent passou pelos homens e colocou-se ao lado de Lucille. Ela a
acompanharia e talvez dormisse com ela para ajudar a garantir sua segurança.
Se tudo desse certo, Nathaniel seria solto no dia seguinte e ela se tornaria
uma esposa em poucos dias.

— N ÃO RETIRAREI A QUEIXA , o maldito McFadden raptou minha filha e me


ameaçou. Ninguém entra na minha casa e me desafia, milorde.
Walter Smith estava irredutível. Lucille exigira participar da conversa e
seu noivo autorizara. Parecia que nenhum dos Smith estava interessado em
desagradar o marquês, portanto ela estava ali, sentada no escritório, fingindo-
se muda e surda, enquanto os homens decidiam o futuro de Nathaniel.
— Sr. Smith, entendo sua indignação, mas vamos deixar o passado no
passado. Sua filha está bem, retornou para casa e em breve estará casada
comigo. E, acredite, se o senhor mantiver a queixa, eu deporei em favor dele,
do McFadden.
— Por que milorde faria isso? Ele raptou sua noiva!
— Nenhum mal foi feito, Sr. Smith. Não pretendo fazer da vingança uma
meta em minha vida, não começarei agora com um amigo.
O pai girou em seu próprio eixo algumas vezes, pensativo. Enrolava o
bigode nas pontas dos dedos e resmungava em voz baixa, como se falasse
consigo mesmo. As mãos de Lucille tremiam desde o momento em que ela
vira Nathaniel ser levado preso. Sentia frio, um frio incontrolável, e seu
estômago borbulhava como se o jantar estivesse prestes a sair por onde
entrara.
— Certo, milorde, eu farei isso. Mas entenda que não estou de acordo,
apenas decidi conceder-lhe esse pedido. O senhor fica me devendo.
— Da forma como puder pagar, senhor.
— Eu tenho uma ideia. Quero que se casem logo.
— Será em breve. Voltaremos para a Inglaterra em doze dias e…
— Não, milorde. Por logo eu quero dizer aqui, em Nova Iorque, amanhã,
se possível.
Lucille sentiu a boca secar e uma súbita onda de enjoo. Ergueu os olhos
para prestar atenção na conversa dos homens e admirou a postura de Lorde
Pinkerton. Seu noivo. Ele era bonito, mais do que seria aceitável para um
homem que ela pretendia não gostar. Talvez fosse aceitável que ela, em um
futuro, desenvolvesse afeição por ele. E a forma como ele se mantinha de pé,
íntegro, com uma postura impecável, cumprindo sua palavra, a atordoava.
Poucas pessoas se dispuseram a protegê-la durante a vida, e o marquês
parecia disposto a se tornar uma delas.
— Precisamos de tempo para os proclamas. E eu preferia me casar na
Capela São Jorge, como é a praxe da nobreza britânica. O que você prefere,
Srta. Smith?
Ela preferia não se casar, mas forçou-se a sorrir.
— Eu adoraria casar-me na Capela São Jorge. É um lugar magnífico.
— Então, Sr. Smith, eu gostaria de atender aos desejos de sua filha.
Trocarei nossas passagens para outro navio. O Splendida está vindo do Brasil
e aportará em Nova Iorque em dois dias, embarcamos nele e vamos para
Londres - creio que isso atende a todos os anseios.
Enrolando novamente o bigode nos dedos, Walter Smith concordou
silenciosamente com o plano do marquês. Aquilo dava a Lucille um pouco
mais de tempo para ficar em Nova Iorque e, esperava ela, para ver Nathaniel
livre. Apesar da dor que uma despedida causaria, não podia simplesmente
embarcar sem lhe dizer nada - ela queria explicar por que tomara aquela
decisão e garantir que estava bem consigo mesma.
Quando o pai ameaçou sair do escritório, Lucille segurou impulsivamente
a manga do casaco do marquês e o fez olhar para si. Seus olhos certamente
entregavam sua agonia, mas ela não se importava mais.
— Milorde, não o deixe dormir na cadeia.
— Falarei com seu pai, mas está tarde, senhorita. É melhor aguardarmos.
Nathaniel é forte, ele não sucumbirá por uma noite de desconforto. Tranque
sua porta quando for dormir.
Lorde Pinkerton segurou sua mão entre as dele e a beijou delicadamente.
Talvez Nate não se importasse, mas ela sofreria durante toda a madrugada
esperando pela hora em que ele seria libertado.

E LE PODIA OUVIR o burburinho de vozes. Havia alguma comoção na


delegacia, pessoas conversando, falando alto, metal batendo em metal,
homens se enfrentando. Deitado na primeira cela, porque todas as outras
estavam vazias, Nathaniel fitava as formas que o sol fazia no teto escuro. O
cheiro de urina era insuportável, mas ele já nem se importava mais - tinha
certeza de que merecia estar preso. Leonard nunca o deveria ter libertado, da
vez anterior.
Culpa o arrebatou. Estivera tão envolvido com Lucille que deixara as
buscas por Emile, parara de o procurar quando seu objetivo principal - talvez
seu único objetivo! - era encontrar o irmão desaparecido. E, ainda assim, se
pudesse voltar no tempo, provavelmente faria tudo novamente. Ele a ajudaria,
a manteria consigo e a amaria da mesma forma.
Talvez Emile o perdoasse. O mais jovem dos homens McFadden sempre
fora romântico, o mais parecido com Isaac. Escrevia poesias, declamava-as
para prostitutas, conquistava o coração das mulheres perdidas de Londres.
Acreditava naquela bobagem de amor à primeira vista, amor eterno, almas
gêmeas e outras tolices que os românticos acreditavam. Se soubesse que
Nathaniel deixou-o em segundo plano por causa da mulher que derrubou as
muralhas erguidas ao redor de seu coração e fincou ali sua bandeira de
conquistadora, ele o perdoaria.
— McFadden. — A voz do agente ecoou sobre sua cabeça. — Você tem
uma visita.
Nathaniel sentou-se, sentindo dor no pescoço, e encarou o homenzarrão
que parecia ter o cérebro do tamanho de uma ervilha. Por trás dele, surgiu
Nolan Fitzgerald.
— O que você quer aqui? Veio rir da minha desgraça?
O chefe recostou em uma pilastra de pedra e o fitou. Nathaniel pôs-se de
pé. Ele jamais falaria com outro homem em posição de vulnerabilidade.
— Não, vim dizer que darei alguns dias para que se recupere e retorne ao
trabalho. Investi muito em você para aceitar que deixe o Gênesis.
— Você me traiu. Não é diferente do maldito Smith, então finja que não
existo mais e desapareça da minha frente.
— Creio que não tenha entendido, Nate. Você não tem opção. Eu preciso
de um cobrador e não pretendo me resignar com essa sua decisão absurda.
Assim que sair dessa cela, você terá dois ou três dias para cumprir o luto da
morte de seu irmão e retornará ao trabalho.
Nathaniel agarrou as barras da cela e ficou face a face com o homem que
passara de salvador a tirano. O homem que ele admirava e respeitava e
passara a desprezar.
— Vá para o inferno, Nolan. Você me treinou bem demais para saber que
meu ódio não aceita perdões.
— Veremos.
Nolan afastou-se e o homenzarrão abriu a cela, indicando que Nathaniel
deveria sair. Ele uniu as sobrancelhas, confuso, e manteve-se no lugar.
— O senhor está livre, pode sair. — Disse o agente de polícia.
— Deve ser um engano.
— Não é. Retiraram a queixa, você não será mais acusado.
O agente escancarou a porta, esperando que ele saísse correndo e não
olhasse para trás - mas ele nunca fazia isso. Nunca corria de nada,
principalmente do seu destino.
— Quem retirou a queixa?
— O pai da vítima. Ele veio aqui e disse que foi tudo um engano. Estava
com um janota de sangue azul, esse seu tipo. Vamos, desapareça daqui.
Alguma coisa estava errada. Walter Smith jamais retiraria a queixa,
jamais permitiria que ele fosse liberado - a não ser que estivesse do lado de
fora da delegacia o esperando com uma pistola em punho. O homem podia
ser covarde o suficiente para sujar as mãos, mas tinha dinheiro para contratar
quem precisasse para livrar-se de Nathaniel para sempre.
— O que diabos você fez, Nolan?
— Eu? Nada. Meu pai tomou essa decisão sem minha interferência, mas
eu quis vir aqui garantir que você soubesse que esperarei seu retorno.
Nathaniel marchou para fora da cela e passou pelo chefe como se ele
fosse feito de ar. Não retornaria para o Gênesis nem trabalharia mais para
aquele traidor, mas lidaria com aquele problema depois - algo errado estava
acontecendo. Walter Smith não poderia ter tomado sozinho aquela decisão.
Então, se estava solto, se o homem que mais odiava se dera ao trabalho de
libertá-lo, era porque tivera um bom motivo. Sem querer criar hipóteses sobre
o que Walter Smith estaria tramando, Nathaniel foi para casa. Ele não
caminhou por Nora Iorque, praticamente correu até sua residência, sem se
importar com os limites de seu corpo, sem se incomodar com o ferimento,
que começava a latejar. Algo dizia para si que Lucille era a razão de sua
liberdade e ele não estava preparado para descobrir se aquilo era ou não
verdade.
O mordomo abriu-lhe a porta. Isaac estava em seu escritório, escrevendo
uma carta, e se levantou quando o viu chegar. Caminhou até ele e o abraçou,
aliviado.
— Aonde ela está?
— Nate, como você está? — Isaac fingiu ignorar a pergunta abrupta. —
Vou pedir que preparem uma bandeja com comida e sirvam aqui, precisamos
conversar.
— Aonde está Lucille, Isaac? — Ele insistiu. O irmão tocou a sineta sem
respondê-lo e deu ordem ao mordomo que trouxesse comida.
— Ela voltou para casa.
— E você permitiu? — Nathaniel berrou, afastando-se do irmão com as
mãos fechadas em punhos. — Como assim ela voltou para casa? Depois de
tudo? Como vocês podem a ter deixado fazer isso? Aonde está Leonard, eu
preciso falar com ele.
— Leonard a tentou impedir. — Isaac sentou-se próximo à lareira e
comandou Nate a fazer o mesmo. — Mas foi a Srta. Smith quem tomou a
decisão. Ela aceitou casar-se com Thad para que ele convencesse o pai a
retirar a queixa contra você.
Ele sabia que a mulher aprontara alguma. Não podia a deixar um minuto
sozinha que ela fazia bobagem, que ela se colocava em risco. Baixou a
cabeça até tocar os joelhos com a testa, sentindo-se impotente. Havia poucas
coisas que Nathaniel detestava menos do que não poder controlar uma
situação.
— Ainda assim, vocês não deveriam ter permitido.
— Pensei que você quisesse respeitar as decisões dela, Nate. Não pode
apoiá-la só quando ela diz o que você quer ouvir, ou faz o que você quer que
ela faça.
— Não se trata disso. Lucille corre risco dentro da casa daquele homem.
— Thad garantiu que isso não aconteceria. Não confia nele? Aliás, não
foi você que insistiu para que a mulher conversasse com ele? Que acreditava
que ela deveria casar-se com ele? Pois ela está fazendo exatamente o que
você quer. A não ser que você não queira nada disso e esteja fingindo.
Nathaniel odiava quando Isaac dizia a coisa certa, quando ele era um bom
amigo e irmão. Isso o fazia lembrar do quanto ele era péssimo e do quanto
dependia do irmão para tomar as melhores decisões. Desde que se afastaram,
tudo que Nate fez foi desonrar a família, quase morrer uma centena de vezes,
e ser preso pelo menos duas.
O mordomo chegou com o desjejum e Nathaniel decidiu comer - porque
ele pretendia beber muito e ficar bêbado até esquecer que ela fora embora.
— Então acabou.
— O que acabou? — Isaac foi pego de surpresa, crendo que a conversa se
encerrara.
— Nada importante. Preciso de um ou dois dias, depois recomeçaremos
as buscas por nosso irmão. Quando retorna para Londres?
— No próximo navio. Teremos tempo.
O irmão colocou uma mão solidária em seu ombro, talvez
compreendendo o sofrimento de sua alma. Era improvável, no entanto, que
Isaac o entendesse. Ele nunca perdera a mulher que amava.
Depois de comer, Nathaniel foi para seu quarto com uma garrafa de
conhaque. Quando aquela garrafa acabou, ele pegou outra. Quando a luz do
dia se extinguiu, ele já estava bêbado, mas pegou a terceira garrafa depois de
despejar o conteúdo de seu estômago no sanitário. Isaac tentou entrar no
quarto, Leonard tentou entrar no quarto, o chefe apareceu em sua casa - e isso
quase o fez armar a pistola e matá-lo, mas não daria a ele o prazer da morte
rápida.
No dia seguinte, ele continuava ébrio. O sol nasceu sem cor, sua cabeça
latejava e o corpo parecia destruído por um lutador de boxe. Olhou para a
garrafa de conhaque e bebeu mais um pouco, sentindo a bile amargar a boca.
Ele não tinha motivos para estar irritado ou zangado, fora ele próprio
quem empurrou Lucille para cima de Hertford - se não, eles nem estariam em
Nova Iorque naquela noite. Tentou feri-la, tentou afastá-la, mas a mulher,
ainda assim, aceitou casar-se para que Thad interferisse em seu favor.
Ela provavelmente queria casar-se. Quando pediu que ele resguardasse
sua virgindade, sabia que precisava dela para ser aceita por um marido. No
fundo, Lucille queria companhia, mesmo que também quisesse realizar seus
sonhos. Ela não se parecia com ele, não era uma solitária. Uma mulher
fantástica como ela merecia um homem fantástico. Quase arrependeu-se de
tê-la deflorado - quase.
Mas, se ele tinha tanta certeza de que fizera a coisa certa, por que raios
doía? Por que ele lutava internamente entre a necessidade de se embebedar, a
vontade de esmurrar alguém e o desejo de sair correndo atrás dela e a trazer
de volta para casa?
Desinteressado em buscar respostas, arremessou a garrafa de bebida na
parede, observando o vidro explodir em estilhaços e derramar malte por todo
o tapete. Vestiu-se precariamente e saiu de casa, pronto para resolver suas
pendências com o chefe.

N OLAN F ITZGERALD o recebeu com os braços cruzados no peito e fez uma


expressão de desgosto ao vê-lo desgrenhado, despenteado e cheirando a
bebida. Seu malte mais caro, inteiramente desperdiçado.
— Você não está pronto para retornar.
— Não vim aqui para isso. Vim comprar minha liberdade.
Nathaniel colocou uma maleta de couro e uma chave sobre a mesa de
Nolan Fitzgerald. O homem franziu as sobrancelhas e abriu a maleta,
surpreendendo-se com o conteúdo.
— O que isso significa?
— Dinheiro, Nolan. Pensei que reconhecesse notas de cem dólares
quando as via.
— Eu as reconheço, mas não entendo por que estão sobre minha
escrivaninha.
— São suas. Aí tem tudo que eu guardava em casa. A chave é do meu
cofre no banco, você encontrará mais que o dobro dessa quantia.
— Não quero seu dinheiro. — O chefe fechou a maleta. — Quero sua
lealdade e seu trabalho duro.
— Você perdeu a lealdade quando me traiu. Não trabalharei mais para
você, retornarei para Londres com meu irmão quando ele se for. Fique com
esse dinheiro maldito, sujo de sangue, pelas despesas que lhe dei. A partir de
agora, estamos quites.
Nolan levantou-se, caminhou até Nathaniel e o fitou. Apesar da ausência
de hierarquia, do tratamento informal entre ele, Leonard e o chefe, nenhum
dos dois ousava o enfrentar. Olhar nos olhos era algo que nunca fizeram.
Mas, naquele instante, Nathaniel manteve a cabeça erguida e seu semblante
sugeria que ele não fora ali para discutir.
— Então é isso que você deseja? Renunciar a toda essa vida de poder e
glória por causa de uma mulher que vai se casar com outro?
Nathaniel segurou o chefe pelo colarinho, quase o erguendo do chão. Um
dos seguranças que montava guarda no escritório sacou uma pistola, mas
Nolan ergueu uma mão, pedindo que não intervisse.
— Veja bem, seu miserável, eu direi isso apenas mais uma vez. Você me
traiu. Desde o início, quando nos resgatou das garras de Walter Smith, fez
isso sabendo quem ele era e nunca nos contou. Você nos manipulou. Eu não
sou dado a perdão, Nolan. Espero nunca mais ver a sua cara. Pode haver um
império aos seus pés, mas apenas um de nós sabe matar em silêncio. Fique
com o dinheiro e me esqueça.
O chefe soltou-se das garras de Nathaniel e ajeitou a camisa, que estava
certamente arruinada. O segurança guardou a pistola e ele rompeu pela porta
do escritório como um trovão. Não precisava, nem queria mais o dinheiro
sujo recebido das mãos imundas de Nolan Fitzgerald. Por muito tempo,
pensara que viveria para sempre sobre o jugo daquele homem misterioso que
lhe salvara a vida e lhe dera um motivo para seguir adiante. Mas havia limites
que ele não aceitava que cruzassem, entre eles estava a traição.
Nathaniel não tinha moral, mas não traía ninguém nem admitia ser
enganado. Aquela fase em sua vida estava encerrada para sempre.
A RESIDÊNCIA dos Smith nunca fora tão pacífica. Quando o pai estava
satisfeito por ter seus desejos atendidos, ele até parecia uma pessoa
agradável. Sorria e conversava com Lucille e Constance como se elas fossem
pessoas reais. Não chegava ao ponto de tratá-las com respeito, mas não as
ofendia nem agredia ou as considerava estorvos em sua vida perfeita.
Lucille viu o marquês uma vez depois da decisão tomada, quando ele fora
até ela dizer que Nathaniel estava livre das acusações. Foi atencioso da parte
dele considerar os sentimentos dela sem a julgar. Saber que Nate poderia ter
razão e que o marquês pudesse ser um bom marido aquecia seu coração, pois
ela precisava agarrar-se a alguma esperança.
Quis ir até a residência do McFadden, mas desistiu. Precisava despedir-se
dele, mas sabia que não teria coragem de o deixar, se o fizesse. Se ela visse
Nathaniel outra vez, talvez se jogasse em seus braços e pedisse para não sair
de lá nunca mais. Tão patética, apaixonada por um homem que claramente só
a vira como outra conquista, como uma forma de aquecer a cama durante
uma viagem. Ele jamais se comprometeria por ela.
— Senhorita. — Anna bateu à porta e entrou. — Sua mãe pediu para
avisar que a Srta. Ryan veio vê-la. E eu trouxe Elise para começarmos a
arrumar as malas.
Ela sorriu e desceu as escadas como se caminhasse pelos vales da morte.
Encontrou-se com Milly e a mãe sentadas na biblioteca, tomando chá. Por
sorte, o pai era sempre ocupado demais durante o dia e nunca ficava em casa,
o que lhes conferia algumas horas de liberdade.
— Fique sabendo que vocês partem amanhã. — Milly pareceu acusá-la
de omitir a informação. — Vim despedir-me e dizer que você ainda pode
desistir.
— Não vou desistir, mas estou feliz que tenha vindo.
— Ela ficará melhor indo embora de Nova Iorque, Millicent. —
Constance constatou, bebericando seu chá. — Se pudesse, eu mesma iria.
Um silêncio de cinco segundos precedeu à ideia súbita de que a mãe
deveria acompanhá-la naquela viagem. Walter Smith não merecia uma
família, então, que ele perdesse o pouco que lhe sobrara. Se Constance
desaparecesse pela Inglaterra, ele jamais poderia a encontrar.
— Venha comigo. — Lucille disparou. — Fuja comigo.
— Céus, Lucy, você só pensa em fugir?
— Considerando as alternativas, sim, fugir parece-me sempre a melhor.
Venha, mãe. Tenho certeza de que o marquês não se importará em escondê-la
conosco até que eu possa arrumar um lugar para você viver feliz, longe dele.
Constance fitou a xícara de chá.
— Eu não teria dinheiro nem um objetivo. Nunca fiz nada, apenas fui a
esposa de Walter Smith e atuei socialmente como uma boa anfitriã.
— Tudo isso pode ser ajustado. Você disse que gostaria de ter a minha
coragem, então, venha.
O sorriso triste da mãe e um balançar de cabeça encerraram a conversa.
Constance não tinha realmente a coragem de escapar das garras daquele
homem horrível. Lucille não acreditava que teria, também, mas ficou cada dia
mais forte desde que se despira e fora até a casa de Nathaniel pedir para que
ele a deflorasse.
A tristeza a derrotou. Não conseguiria salvar-se, não conseguiria salvar a
mãe, estaria presa a um casamento sem amor. Por melhor que o marquês
pudesse ser, por mais gentil e carinhoso que ele fosse, ela sabia que não
poderia amá-lo. Talvez desenvolvesse afeto por ele, mas Lucille tinha certeza
de que aquele sentimento que a corroía por dentro só acontecia uma vez na
vida.
— O navio parte que horas?
— Amanhã ao meio-dia. Minhas malas estão sendo arrumadas, nem sei
como conseguirão levar tanta coisa para o porto.
— Seu pai dará um jeito, ele conseguiu tudo que quis, até agora. —
Millicent provocou.
— Não me julgue, Milly. Você faria o mesmo pelo homem que amasse.
Constance apoiou a xícara no pires e ergueu o olhar para a filha, curiosa.
— Você ama o marquês?
— Eu nem conheço o marquês, mamãe. Ele é um homem lindo que
parece um príncipe de contos de fadas, mas troquei apenas algumas palavras
com ele.
— Então, de quem está falando?
Lucille não conseguiu dizer em voz alta o nome dele. Escondeu-se atrás
da xícara de chá enquanto olhava para o tapete, acovardando-se.
— Do Sr. McFadden, Sra. Smith. — Millicent contou. Havia mágoa em
sua voz, ela não concordava com as decisões de Lucille. — Sua filha está
apaixonada pelo homem que foi preso por seu sequestro. Para evitar que ele
responda por um crime que não cometeu, concordou em casar-se com o seu
prometido.
— Oh, entendo.
Ela não entendia. Ou talvez entendesse. Tudo que Lucille sabia do
passado da mãe era que ela se casou cedo demais e só conheceu violência da
parte do marido. Teria Constance um amor em sua juventude? Um homem
que precisou abandonar, de quem teve que desistir quando se casou com
Walter Smith?
Fosse o que fosse, os dados estavam lançados. Lucille não sabia jogar,
seria muito difícil que a sorte lhe sorrisse e ela conseguisse ganhar as fichas
apostadas. Ela costumava gostar de aprender coisas novas e nunca se
importava se venceria ou não, então aceitou a derrota antecipada e se
resignou - ela teria uma nova vida em pouco mais de uma semana.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO

N ATHANIEL ACORDOU SUADO DEPOIS DE UM PESADELO HORRÍVEL . S EUS


ouvidos zuniam como se estivesse cercado por abelhas, preso em um enxame
delas. Os lençóis estavam ensopados, sua cabeça latejava e seu corpo dava
sinais de exaustão, mesmo depois de uma noite inteira de sono.
Não, não fora uma noite de sono, mas de tormenta. Durante as infindáveis
horas, ele viu Lucille morrer de todas as formas possíveis - e, em todas elas,
esteve a um braço de distância de ajudá-la, mas nada podia fazer para evitar
que ela perecesse. A agonia se repetia vez após vez, fazendo com que ele
gritasse, se jogasse na direção dela, mas nunca conseguindo a alcançar.
Nathaniel não acreditava em premonições ou no sobrenatural, mas o sonho
fora tão real que o deixou atordoado mesmo depois de despertar.
Estava na hora de deixar de lamentar e voltar a agir como alguém de
coragem. Entrou no chuveiro quente e deixou que a água lavasse os vestígios
do pesadelo. Vestiu-se sem conseguir colocar o curativo e encontrou Isaac na
sala de refeições, lendo o jornal.
— Oras, você decidiu descer. Pensei que precisaria arrombar a porta - o
que eu faria hoje, se não saísse daquele quarto.
— Vá para o inferno, Isaac.
Nathaniel sentou-se à mesa e serviu um café preto. Talvez a bebida
servisse para tirar dele aquela sensação de quem bebera toda a adega do
Gênesis. Enquanto encarava a xícara fumegante, pensou que sua vida estava
desmoronando. Ele não tinha mais nenhuma referência - perdera o clube, o
dinheiro, a mulher, tudo. Fora traído pelo chefe, o homem que considerava
responsável por sua vida - e que, então, descobrira ser responsável por sua
quase morte. Estava com o peito repleto de ódio e, ao mesmo tempo, morto
por dentro.
— Sabe, há um navio partindo hoje para a Inglaterra.
Isaac o fez erguer o olhar e o fitar. O irmão tinha a expressão divertida e
ele queria esmurrá-lo por estar aparentemente feliz com qualquer coisa.
— Impossível. O navio já partiu, ele agora retorna em semanas.
— Não é um navio que faz o trajeto direto - ele vem do Brasil. Splendida.
— Por que está me dizendo essa bobagem?
— Porque sua Lucille estará nesse navio. É sua última chance de fazer a
coisa certa, Nate.
Ele fechou os olhos e inspirou profundamente. Não esperava que ela
fosse embora tão cedo. A ideia de perdê-la definitivamente fez com que o ar
paralisasse em seus pulmões - até aquele momento, talvez esperasse que um
milagre o ajudasse. Que os céus se abrissem e ele recebesse uma bênção não
merecida. Mas isso não aconteceria.
— Eu fiz a coisa certa, não acredita que tenha feito?
O irmão fechou o jornal.
— Não, seu imbecil, não fez. Você fez a coisa fácil, que foi desistir dela.
Está sofrendo e bebendo há dois dias e não consegue enxergar o tamanho da
sua estupidez?
— Acha que desistir da mulher que eu amo foi fácil? Você ficou louco?
O sorriso que brotou nos lábios de Isaac fez com que Nathaniel cobrisse a
própria boca com a mão. Por Lúcifer, ele disse aquilo em voz alta e parecia
tão correto que ele mesmo não acreditou que pudesse soar tão bem. Ele
amava Lucille - e, mesmo que soubesse, não estava bem certo se seria capaz
de admitir para ninguém.
— Quando você disse mesmo que parte esse navio?
Nathaniel se ergueu, quase derrubando a cadeira. Bateu o joelho na mesa
de madeira e fez com que a porcelana tilintasse.
— Eu não disse. Ele parte ao meio-dia. Você ainda consegue encontrá-la
em casa.
Sim, ele conseguiria. E ele faria, não deixaria que ela fosse embora. Que
o inferno o recebesse, mas ele não podia desistir de Lucille. Mesmo que isso
significasse arrastá-la para seu mundo sombrio, para sua vida incerta, ele
precisava ao menos dar a ela a chance de escolher - se preferia a segurança do
casamento com Thad ou se o aceitava com todas as suas imperfeições.
Ele não pensou em se arrumar. Estava com o colarinho meio aberto, as
mangas dobradas, o colete desajustado e a camisa saindo parcialmente de
dentro das calças.
— Isaac! — Chamou, antes de sair correndo pela porta. — Preciso que vá
ao gabinete do prefeito e use todo o seu charme para conseguir uma
permissão extraordinária para casamento.
— E poderia me dizer como eu conseguirei isso?
— Confio em você, irmão.
Nathaniel não pegou seu chapéu, apenas foi aos fundos da casa, selou
Hades e disparou pelas ruas de Nova Iorque até a casa dos Smith. Talvez
fosse expulso de lá ou recebesse uma bala no meio da testa, mas não haveria
morte mais dolorosa do que aquele vazio deixado por Lucille.

O RELÓGIO MARCAVA dez da manhã quando o motorista dos Smith anunciou


que o carro estava pronto para levá-la ao porto. O pai não estaria presente
para despedir-se, pois os negócios eram sempre mais importantes do que a
família, mas disponibilizou o carro, um de seus bens mais preciosos, para
conduzi-la para o primeiro dia do resto de sua vida. Claro que ele não estava
pensando nela, ou em seu conforto, senão em exibir-se para o Marquês de
Hertford.
As bagagens foram colocadas em uma carruagem, que já se dirigira para
o porto, e ela encontraria o marquês no lugar que fora previamente
combinado. Antes de sair de casa, Lucille olhou-se no espelho e quase não se
reconheceu. Em tão poucos dias ela se transformou - deixou de ser uma
mulher resignada e conformada com a vida para se tornar uma mulher que
trilhava seu próprio caminho. Mesmo que o caminho escolhido fosse, na
verdade, a ilusão de uma escolha.
Talvez mulheres nunca tivessem uma escolha real. Talvez homens
também não tivessem, afinal, Hertford estava se casando com ela apenas
porque precisava de seu dinheiro. Ao menos ele era totalmente honesto
quanto a isso e também cumpria suas promessas. A vida ao lado dele poderia
não ser tão ruim.
Mas, se fosse escolher, Lucille sabia que preferia uma vida com amor.
Não esperava se apaixonar nem se preocupava com isso quando decidiu
fugir. Só que o amor caiu em sua cabeça e a derrubou, passou-lhe uma
rasteira e a jogou no chão. O problema era que ela amava sozinha, o homem
que roubou seu coração não sentia o mesmo por ela.
— Vamos? — A mãe a despertou de seus pensamentos.
— Sim, vamos, claro. Ainda tem sua oportunidade de ir conosco, mãe.
Constance sorriu e segurou a mão da filha, sem responder à pergunta não
feita. As duas caminharam para o veículo como se se dirigissem a um velório,
mesmo que Lucille tentasse demonstrar alguma altivez. Ela não queria que
Hertford a percebesse tão desolada. Não queria começar uma vida ao lado
dele estando tão decepcionada, carregando um sentimento de perda tão
intenso.
E, quando o viu parado no ponto de encontro, ela sorriu. O marquês era
devastadoramente lindo, mas não fazia seu coração saltar batidas, nem ateava
chamas no seu corpo. Esperava que, com o tempo, isso acontecesse. Durante
a viagem poderiam conhecer-se melhor.
— É um prazer revê-las! — Hertford abriu a porta do carro e ofereceu a
mão para que Constance descesse. Fez o mesmo com Lucille, cujos dedos
teve o cuidado de beijar antes de os soltar. — Já ordenei que embarquem as
bagagens. Vocês querem subir para conhecer as cabines?
— Poderei entrar?
— Claro, um oficial de comando pode nos escoltar. Eu sou um marquês,
a maioria das pessoas está acostumada a fazer todas as vontades de um nobre
titulado.
Ele piscou para Lucille, que sorriu novamente. Sim, as pessoas faziam as
vontades dos nobres. Mãe e filha acompanharam Hertford até a rampa e
embarcaram no Splendida. Constance seria conduzida para fora quando o
navio estivesse prestes a zarpar, mas faltavam duas horas ainda para que isso
acontecesse. Teriam tempo o suficiente para passear pelo monstro da
arquitetura naval - mas Lucille acabou pedindo para ficar um pouco ali, na
proa, respirando o ar marinho.
No fundo, ela esperava que algo acontecesse e que ela não fosse obrigada
a viajar. Queria deixar Nova Iorque, queria deixar o pai e aquela casa para
sempre, mas não naquelas condições. Recostada no deque, observava a
multidão que ia e vinha na esperança de que seus desejos não verbalizados se
realizassem.
— C OMO ASSIM ELA NÃO ESTÁ ? — Nathaniel repetiu a frase dita pelo
mordomo dos Smith.
— Ela já foi para o porto, senhor. A Srta. Smith vai embora para a
Inglaterra hoje.
— Mas faltam duas horas para a partida do navio!
— Sim, senhor, mas ela já foi. O carro saiu daqui há vinte minutos, mais
ou menos.
Nathaniel não se despediu, apenas montou novamente em Hades e
galopou na direção do porto. Todas as coisas ruins que fez em sua vida
apontavam o dedo para ele, dizendo que não era digno de ter uma mulher
como Lucille. Os homens que torturou estavam rindo dele naquele momento.
Emile, ah, Emile… o irmão certamente diria que ele era um idiota de onde
estivesse. O irmão, que não concordava com sua profissão de cobrador de
dívidas, que achava que ele era melhor do que aquilo, certamente diria que
ele também merecia a felicidade. E que sua estupidez custaria caro demais,
pela segunda vez.
Ele já o perdera. A quem queria enganar, Emile estava morto. E estava
perdendo Lucille. Hades pareceu entender a agonia de sua alma e galopou
com toda velocidade que podia, desviando de carros, carruagens e pessoas
que transitavam por aquele horário. Mas, ao chegar ao porto, a aglomeração
fez com que ele precisasse frear e reduzir o galope para um trote bastante
lento.
O navio despontava gigante à sua frente. O nome Splendida, cravado em
letras douradas, chamava à atenção de quem o olhasse. Nathaniel olhou ao
redor e começou a procurar por Lucille. Aqueles cabelos lindos e cacheados,
que a tornavam ainda mais única, também a destacariam na multidão. Ela era
como o navio - impossível de não ser notada, mesmo entre todas aquelas
outras mulheres.
Depois de muitos minutos, ele não a encontrou. Pegou o relógio e
confirmou que já eram quase onze horas e os passageiros se amontoavam na
rampa para o embarque. Teria ela embarcado tão cedo? Era possível, já que
chegara com larga antecedência ao porto. Hertford, o maldito, estava mesmo
com pressa de voltar para a Inglaterra - e de roubar-lhe a mulher. O sangue de
Nathaniel ferveu por imagina que Thad poderia dizer para Lucille as palavras
que eram dele, que poderia seduzi-la e satisfazê-la quando era ele, apenas ele,
que tinha o direito de vê-la nua sobre uma cama.
O vento marinho soprou em seus cabelos e Nathaniel ergueu os olhos
para o navio. Como se anjos sussurrassem em seus ouvidos, seu olhar foi
conduzido para cima até fixar-se na mulher recostada no deque, olhando
fixamente para o horizonte.
Lucille.
Ele percebeu que estava sem respirar desde que saíra da residência dos
Smith. Uma lufada grossa de ar invadiu seus pulmões e o atordoou enquanto
tudo que ele conseguia fazer era olhar para ela. Sem sua ordem, Hades trilhou
o caminho para mais perto, tão perto que as patas do cavalo encostaram na
mureta de madeira e ferro que separava o solo do mar. O cheiro de maresia
era forte.
— Lucy! — Nathaniel gritou, mas ela não o ouviu. — Lucy! — Gritou
mais alto, porém o vento estava soprando em outra direção e o burburinho
das pessoas impedia que sua voz chegasse até ela.
Em um movimento arriscado, e provavelmente idiota, Nathaniel ficou de
pé sobre Hades. O cavalo manteve-se imóvel enquanto suportava o peso todo
de seu corpo. Apoiado em um pequeno guindaste que conduzia baús e caixas
para o navio, ele se ergueu e gritou com todos os seus pulmões.
— Lucille Smith, olhe para mim.
E ela olhou. Primeiro, Lucille enrijeceu as costas como se tivesse sido
atingida por uma rajada de vento frio. Depois, ela virou o pescoço e o viu ali.
Assim que seus olhos se encontraram ela sorriu. Nathaniel quase desabou
sobre a sela pela potência daquele sorriso.

E LE ESTAVA ALI . O maldito canalha que a seduzira e a conquistara apenas


para despedaçar seu coração estava parado sobre um cavalo preto, gritando
no meio do porto. Chamando por ela - que não conseguiu evitar sorrir.
Mesmo que suspeitasse que ele fora apenas se despedir, Lucille ficou grata
por poder vê-lo uma última vez. Poder olhar para aquele homem
desgrenhado, cujas roupas estavam longe de se parecer com as de um
cavalheiro, com seus cabelos emaranhados pelo vento.
As pessoas começaram a parar para ver a cena e não entendiam o que
estava acontecendo. Nem ela mesma entendia, então debruçou-se no deque
para perguntar-lhe o que aquela cena significava.
— O que está fazendo aqui, Nate?
— Eu vim buscar você.
Claro que ela entendera errado, portanto, precisou perguntar de novo.
— O que?
— Eu vim buscar você, Lucy! Não me importa se sou um maldito egoísta,
eu não vou deixar que você se case com Hertford. Você é minha.
As palavras a atingiram como flechas, dilacerando a pele. E, ainda assim,
eram tudo que ela precisava ouvir. Mas ele as estava gritando no meio de
tanta gente e aquilo parecia perigoso. Perigoso e excitante.
— Ficou louco?
— Talvez. Você vem comigo?
Até o inferno, ela pensou. E se houvesse algum lugar pior que o inferno,
ela o seguiria através dele, também. Por mais seguro e adequado que fosse o
casamento que ela antes desprezara, descobriu que não queria nada daquilo.
Lucille queria a excitação que apenas Nathaniel conseguia proporcionar a ela.
Ele era instável, arriscado e imoral, mas ela talvez o amasse porque, apesar
disso, ele era também um homem que dava a ela o que sempre desejou -
liberdade, uma vida além da sobrevivência.
— Preciso desembarcar.
Ela disse mais para si mesma. Nathaniel manteve-se ali, esperando por
ela, enquanto as pessoas ao redor pareciam esperar que ela tomasse uma
atitude. Mas, quando suas pernas obedeceram a suas ordens e se puseram a
caminhar, viu Hertford e sua mãe se aproximando. Sua hesitação chamou a
atenção de Nathaniel, que percebeu a chegada dos dois.
— Hades, espere aqui.
Lucille o ouviu dizer para o cavalo e agarrar-se a uma corda. Com
habilidade fora do comum, Nathaniel pegou uma faca em seu colete e cortou
um cabo que mantinha a corda presa. Aquele movimento o arremessou na
direção do navio como a flecha que saía de uma besta. Ela soltou um grito
abafado pelas duas mãos por vê-lo agarrar na rede presa ao casco e começar a
escalar. Algumas vozes diziam que ele se mataria, outras que ele estava
louco.
O marquês e sua mãe se aproximaram, mas ela não conseguiu prestar
atenção se eles falavam alguma coisa com ela. Estava debruçada no deque,
quase caindo do navio, acompanhando os movimentos do homem que, com
um felino, subia pelo navio até ela.
E, quando terminou sua subida, Nathaniel passou as duas pernas pela
proteção do deque e aterrissou no piso de madeira como se tivesse acabado
de chegar a um baile ou um sarau. Colocando-se entre ela e Hertford, ainda
empunhando a faca, Nate garantiu que ela ficasse protegida atrás de seu
corpo.
— McFadden, você enlouqueceu?
— Sim, eu enlouqueci no dia em que deixei que Lucille acreditasse que
eu não a queria o suficiente para que ela lutasse por nós. Enlouqueci no dia
em que permiti que você sequer olhasse para ela como se pudesse tê-la,
Hertford. Preciso informá-lo, você não pode tê-la.
Lucille sentiu os joelhos fraquejarem. Ele percebeu e virou-se, segurando-
a nos braços e amparando-a em seu peito duro e quente.
— Desculpe-me. Eu vim aqui para dar a você uma escolha, mas estou
fazendo tudo errado de novo. Antes de decidir se continua nesse navio e
segue para a Inglaterra com ele, você precisa saber toda a verdade.
— E qual é a verdade?
Ela se afastou um pouco, desvencilhando-se do abraço firme e o fitou nos
olhos - azuis, intensos, carregados de informações novas que ela ainda não
percebera neles.
— A verdade é que eu a amo, Lucille Smith. Eu quis me livrar de você
todas as vezes e falhei, eu quis te mostrar que eu não sou bom o suficiente,
mas eu não consegui, porque eu sou um canalha egocêntrico que não a quer
perder. — Ele respirou profundamente. — Desde que você apareceu na
minha porta eu venho tentando lidar com os sentimentos, mas sou muito ruim
com eles. E entendi que te afastar fosse melhor para você, mas eu a amo. Não
posso permitir que se vá sem saber disso.
Lucille não conseguia piscar. Ela apenas olhava para Nathaniel sem
conseguir crer nas palavras que ele proferia. Mas ele ainda não acabara.
— Eu não posso lhe dar nada. Perdi o Gênesis, perdi meu irmão, não
tenho um emprego honesto, nem dinheiro, nem um título. Hertford está
falido, mas seu dote o ajudará a recuperar suas propriedades e ele tem muitas
delas. O marquês poderá te oferecer tudo que você nem imaginou precisar, eu
só posso oferecer meu amor. Mas, maldito seja, eu sou um McFadden, e os
McFaddens só sabem amar se for intensamente. Se você ficar comigo, eu a
amarei até o último dos meus dias da forma como ninguém mais vai
conseguir lhe amar.
Uma lágrima anuviou seu olhar e Lucille quis livrar-se dela piscando
rapidamente. Uma multidão de pessoas acompanhava aquela declaração.
Havia gente no porto olhando para o navio, gente no navio olhando para eles,
e todos pareciam em suspensão, aguardando que ela dissesse alguma coisa. A
mãe parecia perplexa, cobrindo a boca com as duas mãos. Hertford baixara a
cabeça e ela entendeu aquilo como uma demonstração de resignação. Não
havia nada que ele pudesse fazer para disputar com Nathaniel.
Porque não havia disputa. Ela entregara seu coração àquele canalha e não
havia nada que pudesse fazer quanto àquilo.
— Você é um idiota. — Ela disse, sentindo que seu coração poderia saltar
fora do peito.
— Sim, eu sou. Você não é a primeira pessoa que me diz isso, hoje. Eu
sou um idiota, um imbecil, um imoral, um egoísta, mas eu ainda assim amo
você o suficiente para estar aqui.
— Eu poderia ter ido para Londres! Eu poderia ter me casado com ele!
— Não deixaria isso acontecer.
— Você não poderia saber! — Ela se projetou na direção dele, colidindo
com o corpo masculino que lhe despertava sensações mesmo enquanto estava
irritada, tentando odiá-lo. — Eu quero bater em você, Nathaniel McFadden.
— Então bata. — Ele abriu os braços, dando dois passos para trás e
oferecendo-se para que ela o acertasse com os punhos. — Bata-me, dê o seu
melhor, eu mereço. Mas, depois, desça desse navio comigo.
Maldito fosse aquele homem. Com as mãos fechadas em punhos, Lucille
se aproximou outra vez e ele fechou os olhos, esperando o contato que não
veio. Ela pressionou seu corpo contra a parede de músculos, passou os braços
ao redor do pescoço.
— Eu amo você demais para lhe ferir, seu tolo.
E colou os lábios nos dele.
Assim que percebeu o que ela fazia, Nathaniel a segurou pela nuca,
puxou seus quadris contra os dele e aprofundou o beijo. Ela se abriu para ele,
ansiosa por ser arrebatada e consumida por lábios vorazes. O burburinho
transformou-se em expressões de surpresa e reprovação. Algumas palmas,
algumas interjeições de horror. Lucille não se importava - tudo que ela queria
estava ali, exatamente em seus braços.

H ERTFORD NÃO PARECIA satisfeito com a cena que presenciara. Nathaniel não
podia se importar menos, mas ele se sentiu no dever de oferecer-lhe
satisfações, pelo bem de Lucille. Depois de a beijar como se aquela fosse a
última vez, ele a protegeu atrás de si e se aproximou do marquês, que os
encarava com os braços cruzados no peito.
— Nós vamos desembarcar.
— Parece-me que eu devo resistir e tentar impedir que isso aconteça.
— Não há nada que possa fazer para me impedir de descer com minha
mulher desse navio, Hertford. Encerremos isso como dois cavalheiros, aceite
a derrota. Sei que precisa salvar seu marquesado, mas Lucille merece mais
que isso, não acha?
O marquês assentiu. Claro que ela merecia e ele sabia que não poderia
oferecer a ela tudo que ela queria. Nem Nathaniel.
— Espero que saiba o que está fazendo. Não tem medo de a destruir?
— Sim, eu tenho.
E ele gastaria todos os seus dias lutando contra a escuridão para garantir
que Lucille só tivesse luz em sua vida. Esperava que o amor que sentia fosse
suficiente para mantê-lo no rumo. Segurando-a pela mão, com os dedos
entrelaçados, ele a conduziu pelo navio sob o escrutínio de Hertford e de
todos os passageiros já embarcados, enfrentou o assombro dos passageiros
subindo a rampa e o alvoroço da multidão no porto.
Hades permanecia imóvel onde fora deixado. Ele montou e ofereceu a
mão para que Lucille o acompanhasse. Assim que ela subiu no cavalo, que
demonstrou sua satisfação com um relincho, Nathaniel a segurou em seus
braços e a beijou outra vez.
— Para onde vamos, agora?
— Para casa. Minha casa. Nossa casa.
— O que o fez mudar de ideia? — Ela se acomodou no espaço entre seus
braços e deitou a cabeça em seu ombro.
— Eu nunca mudei de ideia, Lucy. Sei que, no final, não permitiria que se
casasse com nenhum outro que não eu. O que eu disse antes era mentira. Fiz
para lhe magoar, para que me odiasse e se afastasse de mim.
— E se tivesse dado certo?
— Você poderia viver feliz do lado de Hertford. — Era uma constatação
que ele se recusava a admitir.
— Não viveria, não. — Ela o beijou no pescoço e Nathaniel quase parou
o cavalo e a arrastou para uma alcova qualquer. — Eu jamais seria feliz em
um casamento sem amor. E eu jamais poderia amar o marquês porque seria
incapaz de parar de te amar, Nathaniel McFadden.
Ele sorriu. O sabor da vitória era agridoce, mas Nate queria saboreá-lo
assim mesmo. Amá-la era glorioso, ser amado por ela era como ser alçado ao
Paraíso.
— Meu pai virá atrás de mim.
— Não virá. Resolveremos esse problema hoje mesmo.
— Arruinar-me publicamente outra vez é um plano ruim. — Ela riu e o
beijou novamente, exatamente ali onde seu coração pulsava.
— Não pretendo a arruinar, pretendo torná-la minha esposa.
Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Mas ninguém consegue casar-se tão rapidamente.
— Bem, o segundo e o terceiro filhos de um conde que tem excelentes
negócios espalhados pela Europa, que fornece peças de navio para duas
empresas americanas e que está prestes a investir uma grande soma de
dinheiro na cidade de Nova Iorque, conseguem coisas que poucas pessoas são
capazes de obter. Tenho certeza de que, assim que chegarmos, Isaac estará
segurando uma permissão de casamento.
— Céus, isso é muito romântico.
Ela deu uma risada sincera. Hades trotava para casa, daquela vez sem
pressa, e eles podiam conversar. Era o que faziam melhor até aquele
momento - discutir durante viagens.
— Tem razão, não posso apenas dizer que vamos nos casar. Preciso fazer
a proposta adequadamente.
Nathaniel puxou o arreio e Hades parou no meio da Quinta Avenida.
Apeou do cavalo e desceu Lucille, segurando-a pela cintura. Garantindo que
não corriam o risco de ser atropelados por uma carruagem ou carro que
passasse, ajoelhou-se à frente dela, segurando uma mão entre as suas.
Algumas pessoas pararam para ver o que faziam.
— Qual é seu nome do meio?
— Amelia.
— Certo. Lucille Amelia Smith, você aceitaria tornar-se minha esposa?
Por favor, não seja razoável ou decente, diga sim.
Ela deu uma gargalhada sonora, jogando a cabeça para trás. Era a mulher
mais fantástica que ele já tivera a oportunidade de conhecer e tudo que ela
fazia o encantava. Faria qualquer coisa para vê-la rir todo dia. Aquela era a
maldição dos enamorados, adorar e venerar cada detalhe da pessoa amada.
— Qual é o seu nome do meio?
— William.
— Então sim, Nathaniel William McFadden. Eu aceito casar-me com
você, principalmente se for hoje ainda.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO

H AVIA UM PADRE ESPERANDO POR ELES NA CASA DE N ATHANIEL . I SAAC E


Leonard estavam ansiosos, girando pelo salão, e um homem de Deus
aguardava, segurando uma Bíblia e demonstrando pouca compreensão do que
acontecia. Quando o dono da casa entrou pela porta principal, os homens se
acalmaram ao vê-lo trazendo Lucille pela mão.
— Ainda bem que chegaram. — Isaac caminhou na direção deles. —
Precisei exigir, subornar e ameaçar para conseguir esse papel — Ele
chacoalhou um documento na frente do casal. — E arrastar o padre? Por certo
que Edward terá que fazer uma enorme doação para a Igreja Católica local.
— Você não ameaçou ninguém, ameaçou? — Lucille perguntou, um
pouco assustada.
— Ele não, eu fiquei com essa parte. — Leonard sorriu.
— Bem, então não vamos perder tempo. — Nathaniel virou-se para ela e
segurou suas mãos nas dele. — Lucy, eu pretendo te dar um casamento
decente, algum dia. Mas hoje, eu preciso livrá-la de Walter Smith. Se nos
casarmos imediatamente, nem Deus, nem o Diabo, levam você de mim. Não
mais.
Ela deu uma risada tímida, estranhamente feliz por vê-lo agir de forma
tão possessiva. Já fazia algum tempo que desejava que Nathaniel tomasse
posse dela. Aquele momento finalmente chegou.
— Eu não preciso de um casamento decente se estou me casando com o
homem certo. — Lucille entrelaçou os dedos nos dele. — Vamos, antes que o
padre desista de esperar pela noiva.
Isaac olhou ao redor e pegou um arranjo de flores frescas que estava
sobre um aparador. A casa de Nathaniel parecia uma residência abandonada,
mas, desde que o irmão chegara, era como se a vida tivesse retornado ao
lugar. Ele então bateu o excesso de água dos caules e entregou a Lucille.
— Toda noiva precisa ter um buquê.
— Oh, Sr. McFadden. Isso é muito atencioso de sua parte.
— Chame-me Isaac. Parece que nos tornaremos irmãos muito em breve.
E sou casado com uma dama muito pouco convencional, digamos que sou eu
quem presta atenção nos pequenos detalhes.
O sorriso dele era franco e honesto. Lucille gostara de Isaac McFadden
desde o primeiro momento em que o vira - e sabia que adoraria Emile,
também, se o conhecesse. Aquela era uma família verdadeira, não um grupo
de pessoas que se evitava o máximo de tempo possível. Ali havia amor, algo
ao que ela não estava muito acostumada.
O padre pigarreou e os noivos se colocaram à frente dele.
— Se o senhor puder pular todas as partes e ir logo para os votos, padre,
eu ficaria grata.
Isaac deu uma risada que tentou abafar. Nathaniel cruzou os braços no
peito inflado, demonstrando orgulho. No final, ela também não era muito
romântica. O padre ficou desolado por não poder sequer realizar um sermão -
o que eles, provavelmente, precisariam bastante, mas não demonstrou seu
abalo.
— Bem, os senhores ao menos possuem as alianças?
Leonard estendeu uma caixa de madrepérola para Nathaniel, que
agradeceu silenciosamente com um olhar.
— Parece-me que sim, padre.
— Então, repitam comigo os benditos votos, enquanto entregam as
alianças um para o outro.
Aquele certamente seria o casamento menos tradicional de todos. Lucille
não quis imaginar como conseguiram a permissão nem as alianças, que eram
a joia mais linda que ela já tivera a oportunidade de usar. Também não se
incomodou por trajar um conjunto de saia e blusa de viagem, sem nenhum
glamour. Ou porque seu noivo, em breve marido, sequer tiver a decência de
cobrir os antebraços.
Em toda a sua vida, ela viveu à sombra do pai abusivo, da mãe cujo
drama ela não compreendia, do irmão e das irmãs que se livraram cedo do
controle de Walter Smith. Durante todos os seus vinte e sete anos, ela viveu
pela metade, vendo as amigas alçarem voo, as mulheres realizando feitos,
mesmo que mundanos, mesmo que pequenos, enquanto ela apenas observava.
Desde que se vira afrontada pelo horror de um casamento tão ruim quanto o
que seus pais tinham, ela se libertou.
Não foi uma libertação exterior - Lucille encontrou-se dentro de si
mesma, emancipou-se. Sua transformação foi interna - ela passou a saber o
que queria, o que desejava. Entendeu que não aceitaria menos do que realizar
seus pequenos desejos. E, naquele momento, trocando olhares com Nathaniel,
ela soube que já começara a alcançá-los.
De todos os homens que ela poderia escolher, o menos ortodoxo era o que
lhe serviria. Ele não a limitava, não a reduzia e a protegia com a própria vida.
Quando ela descobriu que o amava a ponto de arriscar a própria felicidade
por ele, pouca coisa mais importou.
— Eu os declaro marido e mulher. O senhor pode beijar a sua esposa.
A frase final da cerimônia precedeu o sorriso malicioso e profano de
Nathaniel. Ele a segurou nos braços e a beijou com devassidão, invadindo-a
com a língua enquanto ajeitava sua cabeça para permitir um encaixe melhor.

E LE ESTAVA NERVOSO . Fizera tudo errado desde o início, tentando acertar e


permitir que Lucille tivesse escolhas - e ela o escolheu. Naquela noite, ele a
tornaria sua mulher, mesmo que já tivesse feito isso dias atrás. No fundo,
quando concordou, nos termos dela, em fazer amor naquele hotel, ele sabia
que estaria para sempre ligado a Lucille Smith.
Não, ele a livrara daquele sobrenome horrível. Ela era, para tudo que
importava, Lucille McFadden. E estava linda, sentada em frente à lareira,
escovando os cabelos cacheados. Vestia um roupão de seda emprestado, pois
todas as roupas dela ficaram no navio. Não desembarcaram nada,
absolutamente nada, e ela, ainda assim, parecia feliz. Ela estava feliz, o
sorriso nos lábios dela indicava isso.
Naquele momento ele realmente não se importava que ela não tivesse
roupas. Pretendia passar pelo menos uma semana sem que ela sequer se
lembrasse do que era cobrir aquele corpo lindo, que tanto o seduzia, com
tecido.
Com cuidado para não a assustar, aproximou-se, tomou-lhe as escova das
mãos e se ajoelhou ao lado dela, assumindo a tarefa da escovação. Depois de
um minuto, abandonou a escova e colocou as mãos nos ombros dela,
massageando-os.
— Mandei um bilhete para a casa Smith avisando que estou casada. —
Ela disse, rendida aos carinhos.
— Isso foi bastante audacioso da sua parte. — Ele beijou-a no pescoço.
— Gostaria de olhar a cara de meu pai quando ele soubesse que seus
planos deram errado definitivamente. Mas prefiro não ter que vê-lo
novamente. Espero que minha mãe esteja bem.
— Se ela não estiver, resolveremos isso. Mas não hoje. Hoje eu vou
cuidar de você.
— Por que até uma frase simples parece devassa quando você a
pronuncia?
— Porque eu sou devasso. — Ele desenhou a linha da coluna dela com o
indicador, levou as mãos até o laço do roupão e o desfez. Beijou novamente o
pescoço e deslizou a seda pelos ombros de Lucille, descobrindo-os. — E eu
pretendo fazer coisas bem devassas com você, agora.
— Mais do que você já fez?
— Talvez sim, talvez não. Mas ainda há muito que você precisa aprender,
Lucy.
— Então me ensine.
Ah, ele iria ensiná-la. Segurando-a pelos ombros, Nathaniel a ergueu e
virou para si, enquanto o roupão caiu completamente no chão do quarto.
Lucille ruborizou ao se ver totalmente nua à luz de tantas lamparinas, mas ele
não pretendia apagar nenhuma. Queria olhar para ela quando a beijasse,
quando a penetrasse, quando ela chegasse ao clímax gritando seu nome.
Queria vê-la, por completo, em todas as suas camadas.
Lucille levou os dedos nervosos aos botões de sua camisa e começou a
abri-los. Toda vez que a pele dela roçava na sua, Nathaniel soltava uma
imprecação baixa, tamanha a excitação que aquele gesto simples lhe
proporcionava. Suas partes baixas já estavam duras como granito e ele quase
não aguentava mais a prisão que suas calças representavam. Depois que ela
desabotoou a camisa, os dedos continuaram seu caminho e se amoldaram ao
redor de sua ereção.
— Esse é o tamanho do meu desejo por você. — Ele provocou, abrindo
os botões que mantinham a calça no lugar e livrando seu membro dolorido do
confinamento. Ela se assustou com o contato da pele rígida, lisa e quente,
mas envolveu-o em seus dedos. — A culpa é sua se fico assim quase o tempo
todo quando estamos juntos.
— Acho que estou orgulhosa de despertar um desejo tão grande.
Ela também sabia provocar. Nathaniel segurou-a pelos dois lados da face
e a beijou ternamente, os lábios sobre os dela, a língua procurando espaço até
penetrá-la suavemente, saboreando o gosto da boca que ele adorava.
Excitada, Lucille moveu os dedos para cima e para baixo e acariciou a cabeça
lisa de seu membro, fazendo com que ele gemesse e precisasse se esforçar
para não gozar antes da hora. Nunca aquilo lhe acontecera, seria uma
humilhação terrível.
Desinteressado em esperar, Nathaniel segurou a esposa nos braços e a
levou para a cama. Jogou-a sobre os colchões, terminou de livrar-se da calça
e juntou-se a ela, cobrindo o corpo feminino com o seu.
— Eu vou te dar tudo que você quiser e precisar, hoje. — Ele murmurou
em seu ouvido com uma voz rouca que a fez arder por dentro. — Mas, agora,
eu preciso estar dentro de você.
Ela também precisava dele e já estava um pouco ansiosa esperando-o
acomodar-se entre suas pernas e penetrá-la profundamente. Lucille arfou ante
a intrusão e gemeu pela sensação deliciosa de preenchimento. Apesar da
urgência, ele era delicado e se moveu suavemente sobre ela, aprofundando o
contato entre os corpos e estimulando-a com um roçar de quadris que a fez
ver estrelas sem precisar olhar para o céu.
Com um beijo intenso, Nathaniel levou uma das mãos até onde os corpos
se uniam e a tocou em sua feminilidade. Lucille sentiu calor subir por seu
ventre, uma agonia intensa arrebatando-a como as ondas de uma tormenta.
Ele a excitava por todos os lados - a boca na sua, a língua como veludo a
saboreá-la, os dedos hábeis estimulando-a onde ele sabia que ela gostava, e o
movimento dos quadris que a enlouqueceria se ela já não estivesse
acostumada a saltar.
Daquela vez, quando o êxtase a atingiu, levou Nathaniel consigo. Ela
pode sentir quando ele aumentou a intensidade das estocadas, trincou o
maxilar e a segurou pelas coxas com força e a penetrou profundamente em
uma última arremetida.
— Céus. Eu amo você. — Ele murmurou, febril, deixando que o corpo
repousasse do lado dela. Lucille virou-se para ele e o beijou no peito suado.
Percebeu, para sua satisfação, que continuavam encaixados.
— Pode ser que me acostume com isso.
— Espero que nunca. — Ele a puxou para si, acomodando-a e ajeitando
os lençóis na cama. — Porque assim eu terei motivos para te mostrar coisas
novas todo dia.

E LES ADORMECERAM LOGO DEPOIS , exaustos. Durante a madrugada, Nathaniel


acordou Lucille para fazê-la gritar seu nome mais uma vez, mas deixou que
ela voltasse a dormir. Ele se sentia intoxicado pelo cheiro, pelo sabor, pelo
som da risada dela. Não imaginou que estivesse tão apaixonado até quase
perdê-la. Quando o dia amanheceu, acomodou-a nos travesseiros, tomou um
banho longo e quente e desceu para encontrar-se com Isaac.
Teria que dizer ao irmão que eles precisavam se conformar com a morte
de Emile. Que, caso ele estivesse vivo, já teria sido encontrado. Não
adiantava mentir para si mesmo - Emile morrera por sua culpa, porque ele
fora negligente a ponto de não cuidar suficiente do irmão mais novo. E
arcaria com as consequências eternas do remorso sobre suas costas.
Mas Isaac não estava em lugar algum da casa. Nem no salão, nem na sala
de jantar. Nathaniel voltou ao quarto destinado ao irmão e o encontrou
também vazio.
— Burton! — Chamou o mordomo, que apareceu em poucos segundos.
— Aonde foi meu irmão?
— O Sr. McFadden saiu, senhor. Recebeu uma correspondência e não
tomou nem seu desjejum.
— Uma correspondência? De quem?
— Um entregador particular, senhor. Devo preparar o desjejum para o
senhor e sua senhora?
— Sim, prepare comida suficiente para quatro pessoas. Estou faminto.
O mordomo fez uma mesura e desapareceu na direção da cozinha.
Nathaniel podia estar enganado, mas ele parecia bastante satisfeito por ter
tanto movimento na casa. Intrigado com o que movera Isaac para fora da
casa, voltou para seu quarto e encontrou Lucille acordada, sentada na cama.
Linda, como uma ninfa entre sedas e algodão.
— Você não pode se levantar antes de mim. — Ela deu uma risadinha. —
Eu me assustei, pensei que tivesse sonhado.
— Meu amor, se acordasse do meu lado teria certeza de que foi um
pesadelo.
Lucille gargalhou e Nathaniel soube que não precisaria se esforçar muito
para arrancar risadas dela. Dobrou-se sobre a cama e a beijou, puxando-a para
cima e arrancando-a dos colchões para envolvê-la em um abraço. Estava
pensando em arrancar as roupas e fazer amor com ela outra vez quando a
porta subitamente se abriu e Isaac entrou, agitado e arfante, gritando seu
nome.
— Pelos céus, Isaac! — Nathaniel protegeu Lucille com seu corpo. Ela
estava rindo. — Não pode entrar no quarto de recém-casados dessa forma.
O irmão corou e baixou o olhar. Isaac devia ser o único homem na face
da terra que enrubescia.
— Desculpem-me, mas eu tenho notícias que não podem esperar.
— Certo, vamos descer. Burton está preparando o desjejum. Você nos
encontra lá, Lucy?
— Em alguns minutos, preciso apenas me vestir - e não tenho muitas
opções.
— Não se preocupe, compraremos toda Nova Iorque para você, hoje
ainda.
— Nate, bajule sua esposa depois. — Isaac chamou, aflito. — O que
tenho é bastante importante.
Certo de que mataria Isaac se tivesse que morar mais uma semana com o
irmão, Nathaniel o empurrou para fora do quarto e pela escada, levando-o até
o escritório. Percebeu que ele segurava alguns papeis nas mãos trêmulas.
— O que raios é mais importante do que minha satisfação carnal, Isaac?
— Veja você mesmo.
O irmão estendeu os papeis para Nathaniel. Eram cinco fotografias e uma
declaração escrita à mão. Decidiu ler primeiro - tratava-se do depoimento de
um pescador que descobrira um homem à beira da morte próximo do Lago
Montauk. O relato indicava que se tratava de um homem estrangeiro, usando
traje completo, porém danificado por uma perfuração de bala. E dizia que o
homem estava ferido na cabeça, inconsciente.
Nathaniel desabou sobre a poltrona que estava próxima à lareira ainda
apagada. As fotos pareciam tiradas à distância, e quem as tirou não queria ser
visto. Eram de uma jovem nativa, de longos cabelos escuros e vestes
tradicionais dos Shinnecock. Ele não conhecia muito das tribos indígenas que
se espalhavam e se escondiam pelo estado de Nova Iorque, mas sabia que
elas tinham sido quase dizimadas e aculturadas.
— O que isso significa?
— Pistas, Nate.
— Pistas do que, Isaac?
— Eu contratei um detetive particular assim que me contou sobre a
possibilidade de Emile estar vivo. Você estava tão ocupado com seus
próprios dramas que decidi agir e fazer alguma coisa. Esse detetive me
chamou, hoje, e fui até ele. O pescador reconheceu Emile da foto que
entreguei.
— E a mulher?
— Segundo o pescador, ela levou o homem ferido para a sua tribo. Eles
vivem recolhidos em uma região pouco favorecida, na divisa com
Connecticut.
A porta do escritório se abriu e Lucille entrou, vestida com as roupas do
dia anterior, apenas mais feliz.
— Por que estão escondidos aqui? Vamos comer.
Nathaniel estendeu a ela as fotografias e a fitou por longos segundos.
Céus, ele acabara de se casar e já estava prestes a pedir que sua noiva se
envolvesse em mais uma caçada pelo irmão que talvez estivesse morto. O que
podia fazer se, contrariando a sua resignação anterior, o dia trouxera uma
nova centelha de esperança?
— Essa mulher pode ter encontrado Emile.
— E quem é ela?
— Uma nativa, vivendo em uma tribo próxima do lago Montauk. Alguém
reconheceu nosso irmão por uma fotografia.
— Meu Deus! Então eu estava certa? Ele foi mesmo encontrado por
indígenas?
— Parece-me que sim, meu amor.
— Excelente! — O sorriso dela se ampliou e ela lhe devolveu as fotos. —
Então, vamos comer e partir!
— Partir? — Isaac não entendeu.
— Claro… nós vamos seguir essa nova pista, não vamos?
Levantando-se, Nate colocou tudo que tinha nas mãos sobre a
escrivaninha e passou os dedos pelos cabelos da esposa. Ela brilhava como a
luz do sol, radiante e tão cheia de vida.
— Não posso pedir que faça isso, que se envolva em mais uma de minhas
aventuras em busca de algo que pode nem existir. Essa também pode ser uma
pista falsa, Lucy.
— Mas pode não ser! — Ela repetiu o gesto dele, acariciando-o nos
cabelos. — Nate, eu me apaixonei por você em uma aventura. Eu me
apaixonei por você exatamente porque é o único que pode me proporcionar
aventuras. Acha mesmo que eu perderia a oportunidade de outra viagem de
carroça, com cavalos cheios de personalidade e banhos nos rios?
Isaac moveu os ombros indicando que não podia fazer nada - ela tomava
as próprias decisões e estava ficando cada vez mais acostumada a escolher
seu destino.
— Tudo bem, então. Vamos tomar nosso desjejum e planejar nossa
viagem de lua de mel.
Excitada pela possibilidade de mais um passeio pelas paisagens mais
selvagens do interior do estado, Lucille saiu rodopiando do escritório, indo na
direção da sala de jantar. Nathaniel pegou as fotografias e as guardou dentro
de um envelope - eles precisariam delas para identificação. Depois, passou o
braço pelo ombro de Isaac e o conduziu para fora do escritório.
Havia sol entrando pelas frestas das cortinas que estavam mal fechadas. A
claridade fez com que ele conseguisse ver as cores cintilantes dos tapetes e
papéis de parede que ornamentavam os corredores da casa que ele nunca
realmente aproveitou, desde que chegara a Nova Iorque.
Nathaniel tinha apenas uma certeza naquela manhã agitada - depois de
Lucille, ele nunca mais deixaria de ver as cores novamente.
EPÍLOGO #1

H URIT APRENDERA A VIVER UM DIA APÓS O OUTRO , MESMO QUE SUA


impaciência sempre a fizesse ouvir sermões do pai. Filha do chefe da tribo,
ela era uma espécie de princesa para os Shinnecock, na linguagem dos
colonizadores. E, naquele dia, ela desafiou todos os limites que tinha
autorização de ultrapassar ao levar um homem branco para a tribo.
Os homens estavam fora e as mulheres se aglomeraram ao redor de sua
tenda para espiar o que acontecia.
— Seu pai ficará insatisfeito, Hurit. — A mãe reclamou, enquanto
ajudava a filha a despir o forasteiro. — Onde encontrou esse branco? Por que
não o deixou para seu próprio povo cuidar?
— Não é da minha natureza empurrar meu destino para outros, ókas 1. Ele
foi trazido até mim por Paumpágussit 2, o que eu deveria fazer?
— Que Keihtán 3 esteja com você quando os homens voltarem. Vamos
ver se podemos salvar o corpo desse aqui. Vocês, espreitadoras, entrem e
ajudem.
Duas mulheres entraram na tenda para auxiliar nos cuidados com o
desconhecido. Enquanto retiravam a roupa encharcada do homem e
preparavam emplastros para cuidar dos ferimentos aparentes, Hurit se
surpreendia com os traços bonitos e bem desenhados que apareciam a cada
camada de tecido removida. Era como se Nashauanit 4 o tivesse esculpido
com suas próprias mãos.
— Ele foi vítima da crueldade dos seus. — A mãe identificou o ferimento
de chumbo que perfurara a lateral do tórax e vazara nas costas. — Perdeu
muito sangue, Hurit. Talvez não haja nada que possamos fazer.
— Talvez, ókas. Mas garantiremos, ao menos, que seu espírito ache o
caminho para a luz.
A mãe balançou a cabeça, mas continuou a cuidar do estrangeiro.
Amonute era uma das enfermeiras da tribo, ela sempre tratava das doenças e
ferimentos do seu povo - Hurit sabia que ela era a única esperança daquele
moribundo.
Depois que Amonute terminou seu ritual, expulsou as outras mulheres da
tenda e deixou Hurit sozinha com o forasteiro inconsciente. Deitado sobre
uma cama improvisada, com linho enrolado para esconder-lhe as partes
baixas, ele estava pálido e exangue. A mãe provavelmente tinha razão, o
homem morreria ainda naquele dia. Mas a beleza dele a desorientou. Seria
um desperdício se a terra tragasse aquele corpo tão bonito.
Certa de que ninguém entraria na tenda para surpreendê-la, Hurit passou
as pontas dos dedos pela cavidade dos olhos, pelo nariz e pelos lábios
grossos, que estavam sem cor, sem vida. Deslizou o indicador pela
protuberância da clavícula, pelo peito rígido e pelos mamilos descolorados.
Abriu as duas mãos sobre o ferimento e, sem tocá-lo, fez uma oração. Se
Paumpágussit lhe entregara aquele homem para cuidar, não podia o tomar
dela antes mesmo que tentasse.
Não, Hurit estava decidida a manter aquele forasteiro vivo, mesmo que
isso custasse seu bem-estar com o restante da tribo.
EPÍLOGO #2

A QUELE ERA O TERCEIRO DIA DE VIAGEM . C ONSTANCE OLHAVA PARA O


horizonte e tudo que via era água, um oceano que se colocava entre ela e
Walter Smith. A brisa marinha do final de tarde estava fria, mas ela se
acostumara a passar horas admirando o pôr do sol.
— Sra. Smith? — A voz masculina e grave do Marquês de Hertford
atraiu a sua atenção. — O comandante convidou todos os passageiros da
primeira classe para um jantar no salão especial. A senhora nos
acompanhará?
Ela se virou e encarou o homem que a estava ajudando a fugir de uma
vida de violência. Alto, esguio, com cabelos escuros e olhos azuis como o
mar, apresentava-se diante dela com um traje de noite completo, gravata
cinza e alfinete perolado. Hertford era mais do que bonito, ele transcendia os
conceitos mundanos de beleza.
E ela estava velha demais para achar rapazes de trinta anos bonitos. Ainda
mais para desejar que eles segurassem sua mão e lhes beijassem os dedos,
como o marquês fazia sempre que a encontrava.
— Creio que não seja apropriado. Eu me sinto muito mal usurpando o
lugar de minha filha nesse navio.
— Oras, não estamos cometendo nenhum crime. A passagem foi paga, e
o nome que consta nela é Srta. Smith. Apenas um equívoco quanto aos
pronomes de tratamento, não acha?
O marquês sorriu e iluminou o deque com seus dentes brancos e
perfeitamente alinhados. Ofereceu o braço para que Constance o
acompanhasse e ela aceitou. Não havia motivo algum para não aproveitar os
momentos que viveria naquela viagem - tinha certeza de que, ao chegar em
Londres, seria perseguida e presa. O marido não permitiria que ela fugisse
dele, ele nunca renunciava a suas posses.
— O senhor é um homem bom, milorde. Minha filha merece ser feliz.
Lamento apenas que não possa o ajudar com seu marquesado, eu não tenho
dinheiro nem para pagar um teto para mim.
— Seremos dois sem dinheiro, senhora. Mas eu vou me recuperar. Terei
que vender as propriedades alienáveis, mas isso não me desanimará. Com o
crescimento da indústria, tenho certeza de que logo meus novos negócios
darão bons frutos.
Os dois caminharam pelo deque até a frente do navio, conversando. Não
era a primeira vez que faziam aquilo, Hertford era bastante eloquente para um
inglês.
— A senhora tem algum plano para quando chegar a Londres?
— Não, milorde. Minha filha me revelou sobre um balneário que acolhe
mulheres solteironas e divorciadas, mas não sei se tenho condições de ir para
esse lugar.
— Entendo. Bem, até chegarmos a senhora pode decidir, mas gostaria
que considerasse minha oferta de hospedar-se em minha residência. Minha
irmã mais nova mora comigo, não haverá risco para sua reputação.
Constance riu e percebeu que fazia muito tempo que ela não ria, não
achava graça de nada.
— Ah, milorde, eu estou fugindo do meu marido. Por que me preocuparia
com isso? Mas não sei se devo aceitar, não pretendo ser um fardo para
milorde.
— Deixemos de tanta formalidade, não precisa reverenciar meu título. —
Hertford auxiliou-a a subir as escadas e a entrar no salão, onde aconteceria o
jantar. — Pode me chamar Pinkerton ou Hertford. Ainda não estou
acostumado em ser o marquês, fico mais confortável ouvindo meu próprio
nome.
— Tomarei o cuidado de manter nossas conversas o mais informais
possíveis. Sinta-se confortável para me chamar Constance.
Hertford baixou a cabeça e beijou os nós de seus dedos, fazendo-a sentir
o calor de seus lábios mesmo por sobre a luva de cetim. Constance assustou-
se pela sensação de familiaridade e pelo desejo de que aquela boca encostasse
em outros lugares de seu corpo. Estava sendo tola. Um homem como aquele
já tivera todas as mulheres que quisera, jamais desejaria uma matrona como
ela. E ela ainda era legalmente casada com Walter Smith, que homem a
levaria a sério?
Mas algo fez com que Constance passasse a prestar mais atenção no
marquês, naquela noite. Talvez fosse a forma como ele a observava, ou como
falava próximo demais ao seu ouvido, ou como segurava-a pela cintura
durante uma valsa que parecia interminável.
Eles ainda teriam cinco dias de viagem pela frente e ela precisaria de
bastante resistência para suportar a presença constante de um homem que
fazia despertar nela sentimentos nunca conhecidos. Esperava que não
precisasse resistir a nenhum deles.

W ALTER S MITH não podia acreditar que sua filha se casara com um pária. Ele
a prometera a um marquês, ele investira uma fortuna na criação da maldita e
ela o traíra pelas costas, apunhalando-o da forma mais vil e cruel que poderia
existir. E ainda tivera a coragem de enviar-lhe um bilhete, uma nota
informando seu casamento com o tal McFadden.
Ele sabia que aquele homem era um problema desde que o trancara
dentro daquela cela para morrer. Ninguém tão resistente à dor e à tortura
poderia ser boa coisa. Mas o filho se encantara por ele. Dizia que poderia
transformá-lo em um soldado. Em alguém que lhe daria lucro. Se Walter
Smith tivesse simplesmente matado o maldito, não estaria passando por
aquele tormento.
Sentou-se em sua mesa, sentindo aquela ardência no peito. Já eram vários
dias com uma fermentação estranha no estômago e uma dor constante que
irradiava pelo braço. O médico disse que era indigestão, passou um tônico,
mas a dor não melhorara. Tivera certeza, naquele momento, que a filha o
estava matando. E Constance, a esposa sempre servil e inútil, desaparecera.
Provavelmente estava acompanhando a desgraçada nos festejos do
casamento.
Serviu-se de uma dose de conhaque e examinou o bilhete mais uma vez.
Ele não toleraria aquela ofensa. Nenhum homem poderia desafiar Walter
Smith daquela forma - ele mataria o maldito, mesmo que isso fosse
desagradar seu filho. Pegou o telefone para ligar para seu capanga preferido.
Alguém que pudesse matar causando o máximo de dor possível, alguém que
pudesse fazer o McFadden pagar.
Não conseguiu levar o telefone ao ouvido. O aparelho caiu ao chão e a
dor se intensificou. Precisava de outro médico e de tônicos melhores.
Levantou-se para tocar a sineta e chamar os empregados, mas não deu dois
passos antes de desabar sobre o tapete persa. A cada respiração, a sensação de
ardência aumentava até que ele não conseguiu mais respirar. Quando o ar
desapareceu de seus pulmões, a escuridão o envolveu.
Walter Smith teria a sua vingança, mesmo que levasse algum tempo. Ele
veria o McFadden no inferno.
NOTAS

CAPÍTULO NONO

1 Quando um jogador aposta todas as suas fichas em uma rodada.


2 Full house é uma mão do pôquer composta por uma trinca e um par, representando que
todas as cartas pontuam. É uma das melhores mãos na maioria das variáveis de pôquer,
geralmente ficando atrás do five of a kind (quatro quartas iguais, uma de cada naipe, e um
coringa), do straight flush (uma sequência de cinco cartas do mesmo naipe), e do four of a
kind (um quarteto de cartas iguais, uma de cada naipe).
3 Royal flush é um straight flush (sequência de cinco cartas de um mesmo naipe) iniciando
pelo às e terminando no dez.

CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

1 Árvores típicas da vegetação do nordeste estadunidense, com caule de coloração que


simula o preto e branco.

EPÍLOGO #1

1 Mãe, no idioma tradicional dos Algonquinos.


2 Oceano, Deus dos mares.
3 Deus dos Deuses.
4 O espírito do criador.

PRÓLOGO

1 1 Deus da cura e das doenças, também conhecido pelos povos da região como o deus
oposto ao Grande Espírito. Por minhas pesquisas, é o deus que mais ouvia as preces dos
nativos e foi muitas vezes confundido com o Diabo, mas essa era uma leitura incorreta - os
povos nativos não distinguiam deuses por bem e mal, como os brancos.
2 2 Powwow é palavra algonquina para xamã, lider espiritual dos povos da região. Até
hoje, em Long Island, no território Shinnecock, há o festival Pow-wow que é aberto ao
público e festeja a cultura do povo.

CAPÍTULO PRIMEIRO

1 3 Nome dado ao deus do oceano no idioma algonquino.


2 4 Criaturas que devoraram humanos e que habitavam as florestas.
3 5 Barracas típicas dos nativos norte-americanos, geralmente em formato cônico.
4 6 Bem-vinda, bem-vindo. Uma saudação no dialeto mohegan.
5 7 Meu pai, pai, no dialeto mohegan.

CAPÍTULO SEGUNDO

1 8 Palavra mohegan para inimigo.


2 9 Minha mãe, mãe, no dialeto mohegan.

CAPÍTULO TERCEIRO

1 10 Manitou é a palavra usada pelos povos nativos da região para indicar o divino, o
espírito dos deuses. Havia manitou em tudo que eles consideravam sagrado ou milagroso, a
natureza praticamente inteira era manitou.

CAPÍTULO NONO

1 11 Palavra mohegan para homem branco.


“Os rios, de cujas águas límpidas e cristalinas se serviam esses
povos, a maioria com nomes índios, já estavam turvados pelo lodo e
pelos detritos dos intrusos; a própria terra estava sendo devastada e
dissipada. Para os índios, parecia que os europeus odiavam tudo na
natureza - as florestas vivas e seus passados e bichos, as extensões de
grama, a água, o solo e o próprio ar.”
— DEE BROWN - ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO
RIO
PRÓLOGO

O FOGO CREPITAVA NA FOGUEIRA NAQUELA NOITE FRIA DE OUTONO . A LUA ,


alta no céu, indicava que já era muito tarde - as crianças dormiam aquecidas e
aninhadas aos seus pais, dentro das cabanas. Todas as crianças menos uma -
Hurit. Seus olhos brilhantes encaravam as sombras que as mãos astutas do
xamã faziam no chão gelado, ilustrando a profecia que contava. Chogan, seu
pai, também estava sentado ao redor do fogo, enrolado em uma pele de lobo
que o fazia parecer maior e mais ameaçador. Depois de uma longa explicação
sobre águias, falcões e espíritos ancestrais, o xamã terminou sua narrativa
com as orientações dos deuses para a tribo. O chefe agradeceu e se ergueu
para recolher-se com sua família, mas o velho profeta tinha mais alguma
coisa para ela.
— Hurit. — O xamã lhe estendeu a mão. — Sente-se ao meu lado.
Chogan assentiu e permitiu que a filha ficasse. Apesar da juventude de
seus doze verões, Hurit era responsável e madura. Nasceu princesa de um
reino que não existia mais e aprendera a conviver entre dois mundos - o dos
brancos invasores e do seu povo Shinnecock. Desde muito criança
frequentava a escola das missões e era obrigada a aprender a língua deles, a
cultura deles e elevar preces ao deus branco. E, quando voltava para casa,
aprendia a língua, a cultura e a religião dos Shinnecock.
— O que há, velho sábio?
— Os espíritos falaram comigo sobre você.
— E é importante?
— Tudo que dizem os espíritos é importante, minha criança.
— Como sabe que era sobre mim?
— Porque eu sei, Hurit. Os espíritos conversam comigo e eu apenas
transmito a mensagem.
— E há uma mensagem para mim?
— Para mim, mas falando de você e de sua missão para com nosso povo.
Você já teve a visão, Hurit?
Ela estremeceu enrolada no cobertor. Aquele era um assunto que temia
enfrentar. Não porque temia os deuses, ela aprendera a respeitá-los e adorá-
los desde que aprendera a falar e a andar, mas o que a incomodava era a
responsabilidade que pesava sobre suas costas. Precisava provar-se digna
dela e não se sentia assim.
— O velho me pergunta aquilo que já sabe.
— Posso saber de tudo, mas gosto de ouvir. Prefiro quando são vocês que
tomam as próprias decisões. Sabe que não pode recusar o chamado dos
deuses, Hurit. Como veio Hoobamack 11 em sua visão?
— Uma serpente.
— O que ele disse?
— Ele não disse nada.
— Então você aguarda para descobrir a mensagem? Por isso não me
contou sobre a visão?
A jovem princesa permaneceu por alguns minutos em silêncio, fitando o
fogo alaranjado. Olhou ao redor e a escuridão da noite, que a tudo engolfava,
ajudava a esconder o que ela não gostava de ver - a tribo dividida. O que
antes era uma comunidade de homens e mulheres, de guerreiros e famílias,
tornou-se um loteamento que abrigava corpos sem espírito. Muitos dos
homens já haviam se entregado aos vícios dos brancos, alguns deles
trabalhavam na cidade e nas fábricas para ganhar dinheiro - e evitar morrer de
fome. Outros continuavam a se lançar ao mar em navios pesqueiros, mas não
traziam o produto da pesca para suas famílias. A terra, que antes era deles,
passara a pertencer ao governo dos Estados Unidos e lhes fora cedida - mas
não em sua totalidade. E a comida, que estava cada vez mais escassa, tornara-
se uma espécie de ração mensal. As raízes e vegetais abundantes foram
parcialmente substituídas pela farinha branca, quase sempre bolorenta, e que
só servia para engordar as crianças. A carne era rara e pouca.
— Eu não sei o que os deuses querem comigo. Não há espaço para novos
powwowos 22 nesse mundo, Wematin.
— Talvez sua missão não seja como a minha, Hurit. — O velho segurou
as mãos juvenis nas suas. — Você carrega o dom de sua mãe, Hoobamack
controla as doenças e suas curas, talvez este seja o seu papel nesse mundo.
Mas não era apenas isso que eu pretendia lhe dizer, menina. Há mais. Eu
também tive uma visão.
Hurit arregalou os olhos em surpresa. As profecias de Wematin eram
sempre compartilhadas primeiro com o cacique, seu pai, e ele não falara nada
naquela noite.
— Uma visão importante?
— Nela havia você. — O xamã abaixou-se e, com um graveto, traçou
alguns desenhos no chão de terra. — Você e ele, o lobo branco. — Outro
desenho indicou a presença do animal selvagem. — Vocês brincam e se
estranham, mas o lobo está com você e sob seus cuidados.
— O que significa? Os deuses me enviarão um lobo?
— Os lobos e os Shinnecocks não são inimigos. Os lobos são
adversários, Hurit. Nem sempre as mensagens são claras. — O homem
ergueu seus olhos opacos pela cegueira e sorriu. — Mas há um lobo branco
no seu futuro e, quando ele chegar, não haverá como evitá-lo.
CAPÍTULO PRIMEIRO

A FÚRIA DO VENTO FARFALHAVA A VEGETAÇÃO PRÓXIMA DO LITORAL DE L ONG


Island. A tempestade pegou desprevenido o grupo de mulheres que catava
conchas para transformar em artesanato. Ondas imensas indicavam que o mar
estava nervoso e havia risco em permanecerem na areia. Ainda assim, Hurit
não se intimidou com a ira de Paumpagussit. 1 O deus do oceano, seu protetor,
não a machucaria - ela acreditava que pretendia lhe enviar um recado.
— Hurit, vamos! — A mãe chamou, nervosa. A filha continuava próxima
à arrebentação e caminhava cada vez mais em direção às ondas. — Você vai
ser arrastada para o fundo.
— Vocês não estão vendo? — Ela apontou para uma mancha escura que
ia e vinha com a força das ondas, mas que se prendera na areia depois de
algumas investidas da maré. — Tem alguma coisa vindo do mar.
— Buscaremos os homens para descobrir o que é, então. — Amonute
insistiu, já sabendo que a filha dificilmente a ouviria. Hurit era teimosa e
obstinada. Quando decidia fazer algo, ninguém conseguia demovê-la de seu
objetivo.
— Não preciso de homens para lidar com Paumpagussit.
Ela ergueu as mãos para o oceano e proferiu um cântico devocional,
pedindo que as ondas permitissem sua aproximação. Enfrentou o vento até a
mancha, que se mostrou uma massa amorfa de tecido e cabelos até ser
identificada como uma pessoa. Um homem, mais precisamente. Um homem
branco.
Os deuses estavam fazendo troça, Hurit teve certeza. De tudo que
poderiam enviar-lhe, de todas as provações que ela poderia enfrentar,
nenhuma deveria envolver os brancos. Ela os odiava. Tinha diversos motivos
para declarar guerra a todos os brancos pelo que fizeram à sua tribo e aos
seus amigos. Pelo que fizeram ao seu irmão. Ela jamais perdoaria os
invasores de pele clara e espírito ruim. Mas ali estava um, diante dela, como
uma oferenda. O oceano lhe entregava o homem. Os braços longos e gelados
de Paumpagussit colocavam sob seus cuidados uma criatura repugnante o
suficiente para fazê-la desistir de seus votos.
Hurit era a princesa de um reino que não existia mais. Depois da morte de
seu irmão, passou a ser a única filha de Chogan, o cacique da tribo, e todos
sabiam que, assim que ela se casasse, passaria a governá-los quando seu pai
fosse ao encontro dos seus ancestrais. Mas ela era mais do que a herdeira de
uma nação que se esfacelava com o tempo, pela intrusão dos brancos. Seu
nascimento fora previsto por Wematin, o xamã, e ela fora apresentada como a
sua sucessora. Se aquela profecia se concretizasse, Hurit seria a primeira
Shinnecock que concentraria o poder de dois lados. Homens já carregaram
aqueles deveres antes; mulheres, jamais.
Por mais que honrasse a escolha, ela tinha medo de não ser capaz de
atender ao chamado dos deuses. A cada novo desafio ela se fortalecia, mas
não conseguia deixar de temer o fracasso. E o fracasso estava gritando em
sua face naquele momento. Assim que virou o homem de barriga para cima
percebeu que ele não estava se afogando - ele tinha um buraco enorme no
abdômen que fora causado por alguma arma de guerra branca. Ela conhecia
bem os Wendigos 2 e sabia que nenhum animal causaria um ferimento como
aquele. O enviado era uma vítima dos seus e ela não fazia ideia do motivo.
Sabia que homens maus, cruéis e que desafiavam a lei dos brancos eram
assassinados - aquele não parecia um caso.
— Ajudem-me! — Gritou para a mãe e para Wapun, a amiga. — Não
fiquem olhando, peguem a rede e tragam-na aqui.
Wapun moveu os ombros e correu na direção dela, segurando o tecido
grosso. As conchas caíram pelo chão e foram arrastadas pela violência das
ondas - no lugar delas, o corpo do homem foi enrolado na rede encharcada e
amarrado.
— Ele é pesado. — Wapun reclamou.
— Mas somos fortes. — Hurit começou a arrastar o corpo pela areia.
Segurando do outro lado, a amiga ajudou-a até chegarem à carroça que,
guiada por Amonute, as conduziria à aldeia.
Aldeia esta que não existia mais, não como a aldeia dos seus ancestrais e
da sua infância. Não como a aldeia que deveria ser, mas como a pálida
imitação do que um dia fora - as tipis foram substituídas por cabanas de
madeira e tijolos, com telhados de sapé ou telhas. Cada família tinha a sua
parte de terra porque elas foram ensinadas assim, com o passar do tempo.
Aquilo impedia que pudessem se dispor livremente como uma grande
comunidade. O homem branco fazia aquilo, tentava quebrar a força dos
povos nativos em suas raízes, separando-os e segregando-os para que não
reagissem. Ainda assim, eles se rebelavam e continuavam a manter algumas
tradições - a fogueira no centro, os cânticos sagrados, as cerimônias e sua
estrutura política.
Pararam na cabana de Hurit, que ficava mais afastada do centro da aldeia.
A chuva continuava forte e parte do telhado já demonstrava sinais de dano.
Arrastaram novamente o homem para dentro e fecharam a porta, como se
aquele gesto simbólico pudesse evitar que as rajadas de vento lhes
atingissem.
— Vá buscar Wematin. — Amonute ordenou para Wapun.
— Não, ajude-nos a despi-lo e aquecê-lo. Se ele sobreviver à próxima
meia hora, chamamos o xamã.
A mãe, já acostumada aos arroubos da filha, suspirou e foi até a cozinha
ferver água. Colocou lenha no fogão, uma chaleira sobre a chapa de ferro e
espiou o lado de fora, pedindo por clemência dos deuses. Eles gostavam da
chuva, precisavam dela para garantir vegetais e raízes para sua alimentação,
mas aquelas tempestades serviam apenas para destelhar as cabanas e revoltar
o mar. Levou a água quente para onde as duas jovens já cuidavam de despir o
homem. O ferimento em seu abdômen era pequeno e profundo, tendo
atravessado o corpo e vazado para o outro lado.
Enquanto limpava o corpo exangue, Hurit sentiu um arrepio em suas
costas, como se um vento muito frio lhe atingisse de súbito. Ele era mais
branco do que todos os invasores que ela já vira. Os cabelos estavam
molhados e não tinham cor, mas a pele que se revelava a cada camada de
roupa despida era tão alva que parecia não conter cor alguma. Sabia que ele
carregava a palidez da morte consigo, mas ela sabia que havia uma
mensagem por trás da brancura daquele homem. Hurit não acreditava em
coincidências.
— Foi uma arma de fogo. — Constatou. — Pistola, não rifle. Se fosse um
rifle, ele estaria morto. O chumbo saiu por aqui. — Ela indicou o buraco nas
costas, próximo ao osso do quadril. — Ele teve sorte, mas está fraco e gelado.
Se não morrer pelo tiro…
Ela não completou a frase, todas entenderam o que dizia. Depois de
despido e enrolado em um cobertor, as mulheres colocaram compressas
quentes no pescoço e na virilha, tentando elevar a temperatura do corpo.
— Quem pode ter feito isso com ele?
— Os brancos são estúpidos e violentos. — Hurit moveu os ombros.
Aquela imagem, do homem quase morto diante de si, trazia memórias
desagradáveis. Seu irmão, dois anos atrás, com um ferimento muito parecido
com aquele. Ela sabia bem o quanto os invasores podiam ser agressivos - e
usavam suas máquinas de guerra para eliminar quem os incomodasse. —
Jamais saberemos os motivos que os levam a agir assim.
— E você ficará com ele?
Hurit ergueu a sobrancelha e encarou a amiga, que colocava ervas em
infusão para preparar um chá. Wapun era ingênua e fazia perguntas cujas
respostas ela não tinha.
— Preciso conversar com Wematin. Talvez eu não tenha escolha.
— Acha que ele está relacionado à sua visão?
— A visão foi do xamã.
— Mas era sobre você.
— Pode ser que sim, ele esteja relacionado à ela. — Hurit sentou-se à
mesa e aceitou uma caneca com o chá fumegante. Seus dedos tremiam pelo
frio e por nervoso. — As visões nem sempre são claras e o xamã pode
interpretá-las de várias formas. Pode ser que ele sequer as compreenda até
que alguma outra pista aconteça. Mas sabemos que tem a ver com o lobo
branco, com o meu inimigo.
— E você concluiu que o lobo branco é um homem? Seu inimigo?
Wapun bebericou um gole do chá. A pergunta era retórica, mais próxima
de uma constatação. Aquele homem não era o inimigo, mas os brancos eram.
Ela os culpava por tudo - pelo que acontecera com as tribos, pela morte de
milhares do seu povo, pelo fim da caça, pela redução da pesca, por tê-los
transformado em agricultores e por levar os homens embora. Também os
culpava por assassinarem seu irmão. E ali estava um deles, vulnerável em
suas mãos, precisando de seus cuidados.
Amonute juntou-se a elas e serviu-se do chá.
— A chuva continua forte e o telhado está danificado. Há goteiras,
precisei colocar uma vasilha sobre o homem ferido. Vocês duas deveriam
tirar essas roupas molhadas enquanto eu preparo um tônico para o paciente.
— As ervas estão no armário de madeira.
— Acha que não sei? — A mãe sorriu. — Eu lhe ensinei direito.
Ensinara bem, Hurit sabia. Enquanto a mãe se pôs a cuidar dos
medicamentos, ela aproveitou que estava encharcada e foi até seu pai contar
sobre o forasteiro.

Q UANDO E MILE DECIDIU VISITAR o irmão em Nova Iorque, ele queria apenas
viver novas experiências. Toda a sua vida fora regrada, controlada e
cuidadosamente planejada - e ele estava cansado de tudo aquilo. Aos vinte e
sete anos sentia como se não tivesse vivido nada. Quase todos os irmãos
estavam encaminhados, trabalhando, casados e com filhos. Todos os amigos
também estavam se encaminhando - os primeiros filhos assumiam suas
responsabilidades com seus títulos e os que eram como ele, com sangue azul
e nenhum título, trabalhavam nas empresas dos irmãos. Porque a nobreza,
falida, se rendera à burguesia e passara a conviver pacificamente com os
plebeus, desde que fosse o dinheiro que os unisse.
E ele continuava sendo visto como o menino doente da família. Emile não
era mais doente. Ele sobreviveu, cresceu e se desenvolveu. Naquela idade era
de se esperar que a família não temesse que ele fosse morrer a cada inverno,
ou que fosse se partir como cristal com qualquer toque - mas todos ainda o
percebiam como o bebê prematuro que fora desenganado pelo médico no
instante de seu nascimento.
O que ele não esperava era que seu irmão, Nathaniel, o terceiro filho de
um conde, estivesse envolvido com jogos e crimes. Esperava que Nate o
ajudasse com suas angústias, mas o encontrou submerso na devassidão e em
tudo que considerava imoral. Também não esperava que a vida bandida do
irmão o colocasse entre a vida e a morte depois de uma disputa com um
devedor.
Emile não se lembrava muito bem como seguiu Nathaniel e por que
interferiu quando ele ameaçou a vida do devedor. O que estava em sua mente
com muita clareza era o cano frio de uma pistola e o grito que se seguiu.
Emile! Seu nome, a expressão horrorizada do irmão e a queda. Ele caiu, caiu
até atingir o frio abismo do oceano e ser sugado pelas correntes escuras do
Brooklin. O cheiro de sangue e pólvora desapareceu, assim como o ar de seus
pulmões. O vazio o engoliu, a escuridão o silenciou e Emile adormeceu em
um sono profundo.
Aquele era seu destino - nascer e morrer sem viver nenhuma aventura.
Sem conhecer nada da vida real, sem explorar o mundo, sem experimentar
sabores exóticos ou conhecer o calor dos trópicos. Ele teria que aceitá-lo,
pois a morte o chamava para mais perto a cada segundo - uma voz suave que
o fazia nadar nas profundezas em direção à luz. Havia luz, um ponto pequeno
que ficava maior a cada braçada. Não, ele não estava nadando, estava sendo
conduzido pela mão misteriosa e gelada da figura que sussurrava em seus
ouvidos.
— Venha para a luz. Siga-me, venha comigo, deixe-me guiá-lo.
Aos poucos a dor cedia e os aromas voltavam às suas narinas. A morte
não parecia tão ruim, ela tinha cheiro de terra molhada e flores. A morte era
como um jardim de primavera, depois que ele e Wilhelmina se sentavam
entre as rosas e lírios da mãe e cuidavam das ervas daninhas. A morte tinha
cheiro de casa, então ele soube que tudo ficaria bem.

A CABANA de Chogan era a mais iluminada de todas na aldeia. O cacique


sempre gostara de estar ao ar livre e de se banhar com o sol. Seus
antepassados viviam em tipis 3 que eram usados apenas para dormir à noite e
a ele foi transmitido o amor pela natureza e pela claridade. Naquele dia
chuvoso, o chefe apreciava a paisagem quando sua filha entrou e se anunciou.
Encharcada dos cabelos aos pés, Hurit parecia ter lutado com a tempestade e
perdido a batalha.
— Wiqômun. 4 — Chogan a recebeu. — Aconteceu alguma coisa, Hurit?
— Estávamos na praia quando a chuva começou. Antes de retornarmos
para a aldeia, Paumpagussit nos enviou uma oferta.
O homem, alto e de ombros largos como uma parede de músculos e
ossos, levantou-se e caminhou até o fogo que queimava lento no fogão de
barro. Mesmo com a oportunidade de adquirirem um fogão moderno, a
família de Hurit preferia o tradicional. Pegou o cachimbo de madeira, encheu
de fumo e o acendeu, observando a fumaça aromática se erguer e preencher
lentamente a cabana.
— Peixes?
— Não, um homem branco.
Com uma sobrancelha erguida, o pai encarou Hurit sem compreender o
que ela dizia.
— Ele veio em um barco?
— As ondas o trouxeram.
— Ele se afogou?
— Foi alvejado por uma arma de fogo. Uma pistola.
Chogan deu uma tragada longa no cachimbo e fitou mais uma vez a
fumaça. Hurit estava impaciente, deslocando o peso de seu corpo de uma
perna para a outra e tremendo de frio. Mesmo a proximidade do fogão não a
aquecia o suficiente, pois as roupas estavam molhadas e o vento que entrava
pela janela aberta gelava seus ossos.
— Você o trouxe. — Foi a observação — Ele está vivo?
— Por enquanto. Wapun e mamãe estão na cabana. Vim pedir
autorização para mantê-lo até que Wematin decida se há relação entre ele e o
lobo branco da visão.
— Aquela visão? A que indicava o momento em que você sucederia o
xamã, Hurit?
Sim, era exatamente aquela. Talvez o cumprimento das profecias
relacionadas a ela a assustassem muito, mas Hurit sabia que não podia fugir
de nenhuma delas. Até aquele momento, todas se realizaram, inclusive a que
previra a morte de seu irmão. A impotência por saber e não ter podido
interferir ou fazer nada a deixou com ainda mais medo da inevitabilidade do
destino.
— Não sei se a interpretação era essa, nohsh. 57 Cada um de vocês vê as
coisas como quer. Apenas com a chegada do lobo branco saberemos do que a
profecia se trata.
O cacique era um homem experiente que conhecia bem a própria filha.
Diante da tribo, Hurit podia apresentar-se como inabalável, mas ele sabia que,
por dentro, ela tinha medo.
— Sabe que preciso avisar ao conselho e que teremos que decidir sobre a
permanência desse homem entre nós.
— Sei, nohsh, por isso vim avisá-lo. Porém, gostaria que a decisão fosse
tomada apenas após ouvirem Wematin falar sobre a profecia.
— Ele será ouvido, tem minha palavra.
Hurit acreditava no homem que nunca descumprira uma promessa na
vida. Chogan estava além de ser um sábio, sua liderança era pautada na
justiça e na verdade. Quando ele tomava uma decisão, ela era sempre a mais
justa e a mais sincera de todas. Não havia meias-palavras nem subterfúgios
com o homem a quem chamava de pai. Se ele prometia que ouviria o xamã,
ela sabia que o profeta teria poder de influenciar o conselho.
O que a afligia era a sensação de ter seu destino atrelado a um adversário
tão detestável. Quando Wematin a colocou no colo e explicou sobre a visão,
ela era uma criança que não sentira na pele a força do ódio dos brancos.
Desde o início, Hurit sabia que o lobo era um símbolo e que sua cor
representava uma conexão com os invasores. Por algum tempo, ela acreditara
que sua missão poderia representar união entre povos, até perceber que os
invasores não queriam amizades ou harmonia. E a repulsa crescente pelo
povo que invadiu, pilhou e assassinou crianças e velhos a impedia de
enxergar com clareza o que diziam os deuses.
Sim, era possível Paumpagussit enviar o homem para fazê-la prestar mais
atenção em seus deveres. Um homem ferido, morrendo e muito bonito.
Alguém a quem ela nunca negaria ajuda, alguém que a tocaria o suficiente
para não ser rejeitado. Os deuses sabiam seu ponto fraco - e ela não os
desapontaria. Mesmo que cuidar de um branco não estivesse em seus planos,
se isso fosse parte de sua missão, ela não fracassaria.
Retornou para a cabana ainda debaixo de muita chuva. Os céus estavam
irritados - uma tempestade daquela causava mais prejuízo do que ajuda.
Encontrou sua mãe ajoelhada ao lado do corpo inerte do homem e suspeitou
que ele estivesse morto. Parecia morto.
— Aconteceu algo?
— A temperatura dele está subindo. — Amonute ergueu-se e limpou as
mãos na saia. — Acredito que vá do gelo ao fogo durante essa noite. Haverá
uma febre intensa, quer que fique para te ajudar?
— Não. — Hurit balançou a cabeça. — O fardo é meu para carregar.
Chogan está avisado do forasteiro, assim que a chuva cessar buscarei o velho
xamã.
A mãe olhou ao redor. Ela não concordava que a filha, solteira, decidisse
morar sozinha em uma cabana tão precária, mas não havia como impedir
Hurit de fazer o que queria. Havia segurança, ao menos, já que todos na
aldeia eram como uma grande família. Depois de despedir-se, saiu fechando a
porta e deixou a jovem Shinnecock com seu enviado do mar. Hurit suspirou,
sentindo a exaustão do dia pesar sobre seu corpo. Foram muitas horas
andando pela praia, muito serviço pesado e uma noite que certamente
passaria em claro. Ela precisava de um banho morno, roupas limpas e uma
boa dose de sorte para não perder seu paciente antes do raiar do dia, mas
Hurit sabia que, se ele era mesmo uma oferta de Paumpagussit, aquela
preocupação era inútil. Seu deus não lhe mandaria um desafio fácil. Aquele
homem ainda lhe daria muito trabalho - a noite sem dormir era apenas o
começo de tudo.

O TIC - TOC de um pica-pau acordou Hurit. O sol havia nascido, a chuva


acabado, o vento cessado e ela estava adormecida com o corpo dobrado e a
cabeça apoiada sobre o homem ferido. Ele respirava em um ressonar leve e
quase imperceptível que representava música para seus ouvidos. Durante a
noite, a previsão de sua mãe se tornou realidade e a temperatura do homem
subiu demais. A febre não cedera - ele continuava muito quente, mas os
pequenos delírios da madrugada cessaram. Sentindo dor até os ossos, ela
ergueu as costas e passou as mãos pelas tranças, garantindo uma aparência
adequada - mesmo que ninguém fosse vê-la. Colocou as costas da mão no
pescoço do homem e ele gemeu algo ininteligível. A febre era alta.
— Uma pena não estarmos no inverno. — Hurit ergueu-se e colocou água
para ferver. O fogo estava quase extinto, precisou jogar alguma lenha no
fogão para garantir mais chamas e calor. — Haveria neve e eu conseguiria
reduzir essa febre. Se bem que, se fosse inverno, você teria congelado no
mar.
Carregando um balde de latão, ela foi até o lado de fora da cabana e
saudou a manhã. O curso de água doce que cortava a aldeia ficava muito
próximo e ela precisou caminhar poucos metros para lavar o rosto e repor o
estoque de água fria da casa. Ajoelhada na margem do riacho, olhou-se no
espelho retorcido da natureza e sorriu para si mesma. Teria um dia cheio de
tarefas e precisava manter o espírito elevado. Aquele não era seu primeiro
desafio, não havia motivos para desanimar tão cedo.
Retornou para a cabana e sentou-se ao lado da cama, embebendo um
pedaço de pano no balde. Antes de sair para falar com o xamã, Hurit
precisava garantir que a febre diminuíra, ao menos um pouco. Colocou o
pano frio no pescoço do homem, que gemeu mais uma vez. Aquela era uma
região sensível. Preparou mais duas compressas, uma para a testa e outra para
a virilha. Ele resmungou quando ela abriu a janela e afastou um pouco os
cobertores. Era um bom sinal quando o paciente sentia e se expressava.
— Precisamos de um nome para você. — Ela voltou à cozinha e passou o
café. Hurit gostava mais do cheiro do que do sabor do café. — Não posso
continuar chamando-o de “você”. Era irritante que não carregasse consigo
uma forma de identificação.
Segurando uma caneca com o líquido fumegante, passou alguns segundos
olhando para ele. Era loiro, o cabelo seco indicava a cor do sol dourado do
verão. Os fios estavam maltratados, ressecados pelo sal e pela doença, assim
como a pele do rosto - marcada e ferida pelas horas que passara no mar até
chegar à costa. Foram horas, Hurit sabia, pois ele não suportaria vivo por
muito mais tempo. Não tivesse sido encontrado por ela, não tivesse sido
aquecido e tratado, aquele homem estaria morto. Ele suava e delirava,
murmurando alguma coisa inaudível. Os lábios rachados se mexiam e ela não
resistiu à tentação de tocá-los. Molhou o polegar na água do balde e o
deslizou pelo lábio inferior, umedecendo a pele ferida. O homem parou de se
contorcer e ficou imóvel.
Hurit puxou a mão, assustada, no instante em que a porta se abriu e a
cabana foi invadida por sua mãe, Wapun e pelo xamã. As duas mulheres
pareciam ansiosas para saber se o homem ainda vivia e foram na direção da
cama conferir os sinais vitais dele. Ela se afastou alguns passos para trás e, de
olhos arregalados, observou enquanto Wematin procurava uma cadeira e se
sentava - mesmo cego, o velho agia como se enxergasse perfeitamente.
— Descreva-o para mim, Hurit. — O xamã disse, fazendo com que ela
afastasse o espanto pelo breve momento compartilhado com o paciente.
— É um homem branco.
— Sei que pode fazer melhor do que isso, criança.
Ela fechou os olhos e atendeu ao pedido de Wematin. Também se
assustou em perceber que sua memória gravava detalhes demais sobre o
invasor. Talvez fosse porque tudo acontecera há apenas um dia.
— Ele tem cabelos loiros. São da cor dourada do sol quando ele está alto
no céu. A pele é muito branca, mas não sei se é porque perdeu muito sangue.
Ele parece alto, talvez da altura de Nootau.
— Nootau não é alto. — Wematin riu e bateu com o apoio de madeira no
chão. — Você é que é pequena como um passarinho, minha criança.
Continue.
— Não sei a cor dos olhos, ele ainda não os abriu. Seu corpo parece o de
um trabalhador braçal, pode ser um homem que trabalha na construção. Não
sei mais o que dizer, velho. Ele está todo ferido, ardendo em febre e só
podemos esperar que sobreviva por mais uma hora, depois mais outra.
O xamã se ergueu e aproximou-se da cama onde o homem jazia, ainda
imóvel desde que fora tocado por Hurit. Ergueu as duas mãos e colocou uma
sobre a cabeça, outra sobre o peito dele, tateando para encontrar o ferimento
coberto por uma faixa. Manteve o silêncio por minutos, até erguer os olhos
para o teto e entoar um cântico sagrado. As mãos começaram a tremer e o
homem agitou-se, contorcendo-se debaixo dos cobertores a ponto de quase se
descobrir por completo.
— Ele vai sobreviver. — Wematin afirmou, afastando-se. — Há muita
força vital dentro dele, mas precisará de sua ajuda, Hurit.
— Por que, xamã?
Amonute, que estava de espectadora até o momento, perguntou. O xamã
sorriu e segurou a mão de Hurit entre as suas, colocando-a em seguida sobre
a testa do homem. Assim que a mão dela o tocou, ele se acalmou. Fora o
mesmo efeito de antes, o efeito que ela observara ao colocar água nos lábios
sedentos. A mãe balançou a cabeça, compreendendo o que a própria Hurit
ainda não entendia. Por impulso, ela deslizou os dedos pela face quente, pelo
pescoço e pelo peito até pausar no abdômen ferido. Ajeitou o cobertor sobre
ele, garantiu que o curativo estivesse seco e ergueu a mão.
— Não entendo. — Confessou, percebendo que o homem permaneceu
quieto mesmo depois que se afastou dele.
— Há uma conexão entre vocês. — Disse o xamã. — Talvez ele seja o
lobo branco de minha visão, Hurit, mas pedirei aos espíritos que me ofereçam
mais esclarecimentos. Ainda assim, ele é seu para que cuide dele. Sendo ou
não a figura da visão, ele lhe foi entregue e sua missão é curá-lo para
devolvê-lo íntegro aos seus. Falarei com o conselho hoje à noite e pedirei que
permitam a permanência do forasteiro. Não devemos desdenhar da vontade
de Paumpagussit, não é mesmo?
O velho homem passou as mãos pelas tranças coloridas de Hurit e
caminhou na direção da porta. Wapun correu para acompanhá-lo, já que
ninguém gostava que o xamã caminhasse sozinho pela aldeia. A cegueira
poderia fazer com que se perdesse ou se machucasse. Mesmo depois que o
silêncio retornou à cabana, com Amonute preparando uma refeição para a
manhã, Hurit não conseguiu mover-se. Olhava para suas mãos e para o
homem que se acalmava com seu toque.
Talvez ela quisesse respostas para perguntas que não foram feitas. O
xamã falava em enigmas e ele deixou subentendido que o homem era um
caminho. Se Hurit deveria percorrê-lo, não fazia nenhuma ideia.
CAPÍTULO SEGUNDO

O CONSELHO DA TRIBO SE REUNIU COMO SEMPRE - AO REDOR DA FOGUEIRA ,


em uma parte central da aldeia. Os homens, outrora chamados guerreiros, se
sentavam ao redor do fogo em uma assembleia conduzida pelo cacique.
Chogan assumira a função de ser o líder político do grupo desde que
completara dezessete anos, quando seu pai falecera. Liderança que ele
pretendia transmitir ao seu filho Keme, cuja vida fora ceifada cedo demais
em uma briga tola com um branco.
— Temos algo importante a tratar. — Chogan disse, depois que todos
estavam acomodados. — Ontem minha filha trouxe um forasteiro para a
aldeia.
Algum burburinho indicou que nem todos sabiam da novidade. Apesar do
espírito comunitário de toda a tribo, não se fazia nenhuma espécie de fofoca.
Todos os assuntos importantes eram tratados com a relevância necessária -
assim, nem Wapun nem Amonute contaram para ninguém, além de suas
famílias, sobre a chegada do homem branco.
— Por que?
A pergunta de Etchemin representou a dúvida de todos.
— Ele apareceu na costa, ferido. Está inconsciente e na cabana dela, mas
precisamos deliberar sobre o que fazer.
— Devemos devolvê-lo imediatamente! — Aranck levantou-se, agitado.
— Os brancos dirão que fomos nós que o ferimos. Se ele morrer, seremos
acusados de matá-lo. Não podemos manter um deles entre nós sem causar
enorme discórdia entre os povos.
— Mais discórdia, Aranck quer dizer? — Etchemin provocou. —
Nenhum branco nos respeita nem nos considera humanos. Somos intoleráveis
até mesmo dentro de nossa terra, o que restou dela depois de tantos saques e
invasões. Porém você está certo. Não podemos arcar com os custos de uma
acusação dessas.
— O problema, meus irmãos, é que o homem pode ser o lobo branco da
visão do xamã.
O burburinho cresceu. Aranck continuou de pé, mas os homens
conversavam nervosos entre eles. Se o forasteiro fosse um enviado dos
deuses eles não poderiam recusá-lo.
— Velho Wematin, você confirma essa informação?
O xamã também se colocou de pé e olhou diretamente para a fogueira.
Seus olhos não enxergavam, mas seu espírito via com clareza.
— Não confirmo, mas também não nego. Paumpagussit trouxe o homem
para nossas terras e ele está conectado a Hurit. Meu tempo nesse mundo está
se encerrando, eu preciso que a menina aceite sua missão. Talvez seja essa a
forma que os deuses encontraram para fazê-la decidir-se.
— Enviando um dos nossos inimigos?
— Matwan! 1 — Etchemin nomeou. — Por que fariam isso?
— Não entendo a forma como agem os espíritos, apenas transmito as
mensagens. Vocês querem desafiar Paumpagussit? Já não temos problemas
em demasia, ainda desejam que os oceanos levem a pesca embora?
Os homens voltaram a conversar entre si. Chogan sabia que acabariam
por aceitar o inimigo, Matwan, entre eles, mesmo que temporariamente.
Entendia as implicações daquele forasteiro em suas terras, entendia que, caso
chegassem a procurá-lo, iriam acusar a tribo de causar o mal que ele sofria.
Mas não estaria em suas mãos desagradar os deuses.
— Minha sugestão, irmãos, é que esperemos. Hurit manterá o homem em
sua cabana e nos informará quando ele acordar. Assim que puder ser
identificado, enviaremos Matwan de volta para seu lugar.
— Não o queremos transitando pela aldeia. — Aranck era o porta-voz dos
que não aceitariam a presença do invasor.
— Não o terão. Avisarei Hurit das restrições.
A assembleia se dissolveu, mas os homens continuaram à beira da
fogueira, conversando e contando histórias do dia. Chogan afastou-se, sem
ser notado, e caminhou até a cabana que ficava do outro lado do curso de
água. Uma fraca luminosidade saía pela janela aberta e indicava que Hurit
ainda estava acordada. Cuidando de um doente, ele duvidava que ela
dormisse. Bateu à porta e aguardou que fosse aberta pela filha que, enrolada
em um cobertor, indicava sinais de exaustão.
Chogan sabia que ela carregava um fardo muito pesado. A tribo não
estava preparada para admitir um cacique que não fosse um homem, portanto
ela precisava casar-se com alguém de sua escolha para que, quando chegasse
o momento, ela pudesse assumir seu lugar na liderança. Wematin tinha
certeza de que ela seria a próxima xamã, o que faria Hurit concentrar todo o
poder da tribo - e isso a assustava. Não havia nada que ela pudesse fazer - ela
nascera para aquela vida e a aceitava sem reclamar.
— O conselho autorizou?
— Desde que ele não circule pela tribo.
— Ele mal vive, nohsh. Não será capaz de andar pelos próximos dias, se
não for levado pelos espíritos até lá.
— Precisa de alguma ajuda?
Ele queria entrar e conferir se tudo estava bem, garantir que Hurit tinha
provisões para si e que estava bem fisicamente, mas a filha não costumava
permitir que ninguém interferisse em seus assuntos. Sua pequena princesa
nunca fora muito boa em pedir ajuda, mesmo quando as tarefas eram difíceis
demais para ela.
— Tenho tudo em meu controle, nohsh. Sou grata por sua interferência
no conselho.
— Agradeça ao velho, ele ameaçou a todos com a ira dos deuses. Fique
bem, Hurit.
Fechando a porta, ela indicou que não precisava nem desejava a presença
de mais ninguém ali. Curioso e contrariado, Chogan retornou para sua cabana
para convencer a esposa a contar-lhe alguma coisa sobre o forasteiro.

F ORAM quatro luas desde que Hurit encontrara o homem na costa do território
Shinnecock. Ela parou de contar depois da terceira noite sem dormir, mas sua
amiga Wapun não permitia que ela esquecesse do tempo passando. Não
choveu mais, ao contrário, fez um sol típico da primavera - mas eles estavam
entrando no outono. A cabana estava quente e o homem não podia mais ficar
enrolado no cobertor - a cada dia a febre dele diminuía e os calafrios não
eram mais frequentes. As janelas ficavam constantemente abertas, mesmo
que Hurit pensasse que, a qualquer instante, Hoobamack entraria e levaria o
homem com ele. Não, não levaria - o deus só apareceria se fosse para curá-lo.
Porque Wematin estava certo, aquele homem não morreria.
Ela saiu de casa três vezes. Foi até Kitchi, seu noivo, explicar as razões
pelas quais um homem estava nu em sua cama. A nudez não tinha, para eles,
a mesma representação que para os brancos. Era intrigante o excessivo pudor
das mulheres e dos casais invasores, eles mal podiam tocar-se durante todo o
período da corte. Quando jovem, Hurit frequentemente tinha crises de riso
com as amigas, imaginando por que as brancas usavam tantas roupas e nunca
se aproximavam dos homens. Não que elas tivessem experimentado a
liberdade vivida por suas antepassadas. A cultura dos brancos era aniquilante
- eles obrigavam os Shinnecocks a seguirem seus padrões até que, com o
passar do tempo, a maior parte de seu povo esqueceu-se de como era, antes.
Mas, na aldeia, as mulheres eram bem mais livres que na cidade.
Ainda assim, havia um homem em sua cabana e ela devia explicar os
motivos que a levaram a abrigar o inimigo. Kitchi, o escolhido para governar
ao seu lado, era compreensível mas Hurit não desejava abusar da sorte. Nas
outras duas vezes, buscou comida na horta comunitária que as mulheres
cuidavam. Nenhuma delas conversava direito com Hurit, pois a presença do
invasor não era bem vista por boa parte da tribo. Exausta, ela não tinha forças
para discutir ou chamá-las de tolas. Ninguém ali detestava mais os forasteiros
que lhes tomaram tudo do que ela, então não havia motivo para que a
desprezassem por cumprir o desejo dos deuses.
No quinto dia, a febre cedeu totalmente. Quando ela se aproximou da
cama para medir a temperatura, o corpo dele estava frio. Por um instante,
Hurit paralisou ao imaginar que ele estivesse morto, mas o sangue pulsava
nas veias do pescoço. Foi um alívio saber que ele em breve acordaria, mas
um alívio estranho. Tudo que ela queria era que o maldito branco ficasse
curado e saísse andando de sua cabana, mas outro passo na direção daquele
evento a aborreceu.
— Você talvez consiga me ouvir. — disse, enquanto passava o pano
embebido em água fresca pelo peito dele. Ainda havia resquício do suor da
noite sobre a pele lisa, cujas feridas já estavam cicatrizadas. Sobrava apenas o
ferimento maior, no abdômen, mas que também estava curando. — Isso é um
pouco constrangedor, porém continuarei falando. Não tenho mais ninguém
para conversar, já que a sua presença me afastou de toda a tribo. Você tem
um nome, Matwan. É assim que se referem a você, “o inimigo”. Talvez seja.
O que será que você fará quando acordar?
Sempre que o tocava, Matwan, o enviado dos deuses, ficava calmo e
sereno. Daquela vez, estava agitado. Queria acordar, ela sabia, mas o corpo
ainda não estava curado o suficiente. Hurit passou o pano úmido pelo rosto,
pelos olhos fechados, e colocou algumas gotas de água sobre os lábios. Ele
abriu a boca e deixou o líquido escorrer para a língua. Ela sorriu - era o
primeiro movimento voluntário que ele fazia.
— Tem sede, Matwan? Eu te darei água, mas fique calmo. Não se agite,
não tente abrir os olhos, apenas sinta e ouça.
Ele se acalmou novamente e ela continuou a gotejar água em seus lábios.
Até aquele momento, ofertara líquidos para que ele bebesse, mas a maior
parte era desperdiçada, pois ele não conseguia engolir. O corpo estava mais
magro e mais fraco do que quando chegara, então estava na hora de começar
a se alimentar.
— Prepararei um caldo para você. Fique aqui, eu continuarei falando para
que me ouça.
Não havia para onde um homem desacordado ir, mas o hábito de
conversar com ele já estava consolidado. Hurit não gostava da solidão, então
o exílio forçado estava sendo sofrido. Contando sobre como estava o dia e
sobre o que haveria para conhecer quando acordasse, ela descascou, picou e
cozinhou vegetais, que serviram para formar um caldo consistente, junto com
alguns pedaços do peixe que Amonute levara no dia anterior.
A comida cheirava bem e esfriava em um vasilhame quando Wapun
apareceu trazendo pão fresco. A amiga a visitava toda manhã e fazia a
primeira refeição do dia em sua companhia, o que diminuía a solidão.
— Ele acordou? — Wapun deixou o pão sobre a mesa na cozinha e se
aproximou de Hurit.
— Não por completo, mas está reagindo ao que falo e bebeu um pouco de
água. Preciso forçá-lo a comer, já são muitos dias sem que seu corpo receba
alimento.
— Ontem o filho de Kanti ficou doente. — A amiga se sentou do outro
lado da cama e ajudou a erguer a cabeça de Matwan. — Antes de ontem
Kitchi perguntou por você, mas eu disse que ele não deveria vir.
— Como está o menino?
Hurit não olhou para Wapun, concentrada no seu fazer. Não era fácil
forçar comida em uma pessoa desacordada, o caldo estava ainda quente e
escorria pelo canto da boca semiaberta. Ele fazia movimentos de engolir, mas
não eram suficientes para beber todo o líquido. Ainda assim, a segunda
pergunta ficou no ar e esperava resposta - por que a amiga disse ao noivo
para que não fosse à cabana.
— Está bem, sua mãe esteve com ele, é um resfriado. Quanto a Kitchi, é
melhor que ele não esteja aqui para distraí-la. Você fica muito confusa
quando ele está por perto, Hurit.
A sinceridade de Wapun era sua maior qualidade e seu maior defeito.
Não, Hurit sabia que falar a verdade era sempre uma virtude - o problema era
precisar ouvi-la. Kitchi era o seu escolhido desde a infância. Ela sempre
soube que se casaria com ele e sempre quis casar-se com ele. As famílias
eram amigas, os pais deles se animaram com a amizade entre os dois e havia
mais do que aquilo. Ele era bonito, lindo, irresistível e beijava bem. Ela
desejava mais intimidade com ele e sabia que, para um bom casamento, tudo
que se precisava era cumplicidade e desejo. Aqueles eram bons ingredientes -
o amor, esse ela não entendia bem nem o conhecia direito. Era algo
possivelmente inventado pelos brancos nos romances tolos que ela lera na
escola. Amor existia entre as pessoas, mas não aquele romântico que
compunha as narrativas de Jane Austen - a mulher que escrevera os romances
que conhecia.
Mas, depois de crescer, depois de ver o irmão assassinado e depois de
entender a dimensão da pobreza em que sua tribo vivia, Hurit não sabia mais
do futuro e passara a desconfiar de suas decisões. Ela sabia que Kitchi era a
melhor escolha e ainda o desejava, mas não conseguia sentir mais o mesmo
de antes. Ela não sentia nada, aquele era o seu problema. Fingia para todos,
porém seu peito era um grande vazio que nada preenchia.
— Quando voltar, diga a Kitchi que ele pode me visitar. — Insistiu.
— Não direi. — Wapun provocou, levantando-se e buscando um pano
para limpar o caldo que escorrera pelo peito do paciente. — Vamos comer
alguma coisa, ele não conseguirá ingerir mais nada.
Depois de acomodá-lo novamente na cama e virá-lo de lado para que não
tivesse uma indigestão, Hurit acompanhou a amiga até a cozinha. Não estava
acostumada a receber ordens de ninguém e entendeu que Wapun estava
apenas preocupada que ela mantivesse sua saúde. Aproveitando o café já
coado, sentaram-se à mesa e continuaram conversando enquanto
compartilhavam pão e ovos.
A SENSAÇÃO de dormência em quase todo o seu corpo fez com que ele
soubesse que algo estava errado. Se fosse um homem dado a bebedeiras,
poderia ser o excesso de uísque ou conhaque que o impedia de abrir os olhos
ou até mesmo de mover os membros superiores para acabar com a maldita
coceira que estava matando-o. Mas ele não bebia. Bebia? Era provável que
não, ou se lembraria. Ele deveria saber coisas como aquelas, então havia
provavelmente duas coisas erradas. Quis abrir a boca e chamar alguém, mas
não havia nenhum nome na ponta de sua língua. Ninguém que pudesse ajudá-
lo, apenas o vazio. O vazio e a coceira.
— Pare de se mexer, Matwan. Não quero ter que amarrar suas mãos.
A voz feminina era imperativa - aquela era uma ordem que ele estava
compelido a seguir. Não pela ameaça de ter as mãos amarradas, mas pela
autoridade que dela emanava. Em seguida, o frescor da chuva de primavera o
atingiu no meio da face e aliviou o calor que ardia em sua pele, escorrendo
por seu pescoço. Orvalho, terra molhada e flores do campo - todos os aromas
familiares de um passado que ele não lembrava. Era como se devesse saber o
que aquelas sensações significavam, mas não as entendia. A dormência
passou e trouxe a dor lancinante de seu corpo sendo perfurado. Aquela dor
não era conhecida. Ele se contorceu sobre a superfície que suportava seu
corpo.
— Você sente dor? — A voz perguntou. — Gostaria que pudesse me
dizer, não o compreendo quase nunca. Seria ótimo se pudesse me dizer o que
dói e onde dói.
Seria ótimo, ele adoraria contar qualquer coisa para a voz e esperar que
ela fizesse a dor parar. Porém teria que apontar para todas as partes do seu
corpo, já que não sabia bem qual era a origem do desconforto. O esforço para
dizer algo, para se mexer, foi percebido pela pessoa que estava ali, com ele.
— Está acordando e isso é bom. — Ela continuou falando. — Mas
precisa manter-se calmo. Tenho algo para diminuir seu sofrimento e você
precisa beber, então pare de se mexer para que eu possa ministrar o remédio!
Mãos firmes o seguraram sobre uma superfície macia, depois o ergueram.
Ele sentiu seu corpo contra o calor aveludado dos braços femininos, a pressão
suave de um abraço e o líquido amargo descendo por sua garganta, molhando
sua língua. Conhecia aquele sabor - era láudano. Sua mente lhe dizia que ela
era uma enfermeira e que ele estava em um hospital, sendo tratado por algum
mal físico. Sua mente, no entanto, não lhe dizia por que sentia dor, que mal
poderia lhe afligir e, mais assustador, quem ele era.
De repente, a dor deu lugar ao desespero e ele precisava saber alguma
coisa - qualquer coisa - sobre si mesmo. Quis falar, mas não conseguiu.
Tentou mover-se, mas só teve certeza do sucesso quando seus dedos se
fecharam ao redor de um braço. Fez força, apertou-o, mas não conseguiu
dizer nada.
— Ele está muito agitado. — A voz conversava com outra pessoa.
— Está resistente ao láudano. Dê mais um pouco.
— Mas ele precisa recobrar a consciência, nonôk. 2 Não quero entorpecê-
lo mais, ele tem que acordar.
As mãos suaves, em contraste com as suas, seguraram-lhe os dedos e
fizeram-no soltar o braço que segurava com afinco. Fora um toque delicado,
como era a voz dela em seus ouvidos. Ele entendera o dilema - se continuasse
sedado pelo láudano não despertaria e, se não despertasse, não se curaria. E,
por ela, pelo anjo que zelava por sua saúde com tanto cuidado, ele quis se
curar.
Resistindo ao impulso de reagir, ele se acalmou. Apoiou a mão sobre o
peito, controlou o ritmo da respiração de acordo com o som que ouvia - e
teve certeza de que era o coração dela batendo ao lado do seu. Enquanto a dor
cessava, ao menos em parte, pelo efeito do entorpecente, ela continuava a
acariciá-lo. O frescor de antes era aquilo, um pano embebido em líquido que
deslizava por sua pele descoberta, que enviava energia por todo o seu corpo.
Ele estava nu. A percepção o fez reagir, mas logo considerou que todos
ficavam nus em hospitais. Não se lembrava se já estivera em um antes, mas
era o que fazia sentido - se estavam feridos ou doentes, as roupas
atrapalhariam os cuidados.
— Parece que ele entende você, Hurit. — A voz da outra mulher era mais
alta e mais estridente.
— Wematin disse que estamos conectados. Não sei o que isso significa,
os deuses precisam parar de falar em enigmas comigo.
— Tenho medo dessa conexão. Não se esqueça de quem ele é e de onde
ele vem.
— Não tenho como me esquecer, nonôk. Tranquilize-se, eu sou imune a
esse tipo de coisa que passa em sua cabeça.
Uma risada - cínica - e uma bufada encerraram a conversa, que não
parecia travada entre duas enfermeiras. Não entendeu o que significava
aquela conexão que fora mencionada, nem como ele poderia estar ligado a
uma desconhecida. Só se ela não lhe fosse desconhecida - e ele estivesse tão
confuso a ponto de esquecer-se de… de tudo.
O silêncio o deixou reflexivo. Tudo ficou distante e quieto - não havia
mais a proximidade da mulher que lhe tratara e alimentara, nem ele podia
ouvir seu coração ou sentir sua respiração. Começou a fazer calor, seu corpo
estava fraco e débil, atordoado pelo láudano e dolorido. Alguns ruídos como
folhas farfalhando e pássaros cantando o distraíram, mas logo foi dragado
para um sono profundo e conturbado.

E LE ACORDOU e voltou a dormir várias vezes. Não havia dimensão do tempo


no escuro em que estava, até que um ponto de luz o intrigou. A luz piscava e
bruxuleava como uma vela distante convidando para mais perto. Seu corpo
não se movia, mas ele sentia que se aproximava mais da claridade apenas
porque a desejava. Ela ficou tão perto, mas tão perto, que poderia tocá-la - e
foi o que ele fez. Ergueu a mão e encostou na luz, surpreendendo-se ao ver,
um pouco embaçados, seus dedos esticados em direção a um ponto luminoso.
Era uma abertura no telhado de palha que estava sobre sua cabeça. Ele
piscou várias vezes até que as imagens ficassem nítidas e pudesse enxergar a
mão apontando para cima, a luz entrando pela palha, a estrutura de madeira.
O Paraíso precisava de alguns reparos, então. Não, ele não era um homem
bom o suficiente para ir para o céu - se morresse, ficaria algum tempo no
purgatório e, talvez, conseguisse se redimir de seus pecados.
— Matwan?
A voz. Ouvi-la fez com que ele sorrisse sem conseguir evitar que seus
lábios se esticassem e seu pescoço virasse para o lado. Era bom recuperar os
movimentos do próprio corpo, mesmo que ele estivesse ainda bastante
dormente - e que a coceira permanecesse causando-lhe desconforto. Ela
estava ali - o anjo, a enfermeira, aquela que cuidara dele durante um tempo
que ele não saberia mensurar. Vê-la fez com que seu sorriso se intensificasse.
De pele escura como a terra, ela tinha tranças enormes que pendiam por
seus dois ombros, ambas enfeitadas com fitas coloridas - que também
ornamentavam o alto de sua cabeça. Trajava blusa branca e saia cinza, roupas
simples e dissonantes com a beleza do rosto que servia de moldura para olhos
vivos, brilhantes e lábios fartos. Ela o olhava com surpresa, talvez espanto,
enquanto ele parecia um tolo.
A mão dele também se virou na direção da mulher e estendeu-se para ela
que, atendendo ao chamado silencioso, sentou-se ao seu lado.
— Você está bem. — Ela tocou-lhe a testa. — A febre cedeu.
— Quem é você?
Era a coisa mais importante para saber, naquele momento.
— Ainda sente dor?
Ela o ignorou e o descobriu, colocando a mão sobre uma faixa que
envolvia seu abdômen. Ele baixou o olhar e constrangeu-se ao vê-la em um
contato tão íntimo enquanto seu corpo nem vestido estava. Com dificuldade
em coordenar os movimentos, ele segurou a mão dela entre as suas e retirou-a
de perto de suas partes baixas.
— Quem é você? — Repetiu a pergunta, aproveitando que a mulher-anjo
ficou surpresa com o contato e encarou-o nos olhos.
— Hurit. — Foi a resposta dela, no mesmo instante em que se
desvencilhou de seus dedos. — E você, quem é?
O silêncio foi constrangedor. Ele não sabia quem era. Nada lhe veio à
cabeça para dizer - nenhum nome, nenhuma história, nada. Sua mente era um
receptáculo oco, um espaço em branco cheio de lacunas que precisavam ser
preenchidas. Por um minuto inteiro ele a fitou, depois baixou o olhar.
— Eu não sei.
— Você não sabe. — Ela repetiu. — Não sabe quem é? Como alguém
pode não saber o próprio nome, Matwan?
— Esse não é meu nome?
— Não. Esse é o nome que te deram na tribo, mas é um nome ruim.
Matwan é o inimigo porque eles te consideram o mal trazido pelo oceano. Há
dias os guerreiros enviam oferendas para Paumpagussit por pensarem que ele
está irritado conosco. Oh, por que estou falando tantas coisas assim? Você
não entende.
Hurit afastou-se e ele sentiu o mesmo vazio de todas as vezes.
— Não entendo, mas você pode me explicar. Desculpe-me se não tenho
as respostas que você quer.
Sua voz ecoou no ambiente desabitado, pois Hurit já estava longe de suas
vistas. Entendeu que ela não sabia quem ele era e esperava que, ao acordar,
ele pudesse esclarecer aquele mistério - e foi quando percebeu que estava sem
suas memórias. Sem algumas delas, ao menos. Mas, para seu alívio, ela
retornou. Trazia uma gamela nas mãos, que depositou sobre uma mesinha
para fazê-lo sentar-se. Ou quase. Com algumas almofadas nas costas, ele teve
seu corpo erguido o suficiente para ficar em uma posição menos vulnerável.
— Você teve suas memórias roubadas. — Ela disse, a frustração audível
em sua voz. — Eu esperava que pudesse nos ajudar a decifrá-lo. Até o
momento não sabemos quem você é e ninguém o reclamou na vila.
— Onde estamos?
— Em território Shinnecock. — A mulher colocou um pano sobre o peito
dele com a habilidade de quem já fizera aquele movimento algumas vezes.
Uma naturalidade que sugeria que ele não era o primeiro doente que cuidara.
— Ninguém entra aqui sem nossa permissão, mas os homens trabalham na
vila ou com os brancos nas embarcações pesqueiras. Se procurassem por
você, saberíamos.
— Vocês são índios?
— Nativos. — Ela o corrigiu e, depois de provar, levou uma colher cheia
de caldo até ele. — Somos Shinnecocks.
A expressão de Hurit era dura e sua voz demonstrava a aspereza de uma
pessoa que tinha raiva - o que destoava da forma gentil como ela cuidava
dele.
— Como vim parar aqui?
— Paumpagussit enviou você. — Hurit ergueu os olhos e o fitou,
certamente identificando a dúvida em sua face. Ele não sabia quem era aquela
pessoa de nome estranho. — O oceano. Você veio trazido pelas ondas,
apareceu boiando em nossa costa.
— E por que ficaram comigo? Poderiam ter me devolvido para…
Ela ajeitou as costas e colocou a colher dentro da gamela, esperando que
ele concluísse a frase e já sabendo que ele não o faria. O olhar de Hurit
continha humor daquela vez.
— Para onde?
— Poderiam me deixar em uma cidade qualquer?
— Poderíamos, mas não fizemos. Você foi entregue a mim, Matwan, era
meu dever curá-lo. Não desdenharei dos deuses.
O interrogatório cessou. Ele estava fraco e descobriu-se faminto quando
começou a ser alimentado - tudo que queria era continuar comendo. Hurit foi
paciente enquanto o auxiliava a engolir, limpando os cantos de sua boca e
mantendo seu peito coberto. Era uma proximidade indecorosa que beirava à
indecência, mas ela parecia bem pouco incomodada - tanto com o toque de
pele quanto com o fato de estar ali, sozinha com ele.
— Seu marido está em casa?
Ela se afastou e o encarou, como se ele dissesse um absurdo toda vez que
abria a boca.
— Não sou casada.
— Seu pai?
— Tem sua própria casa e vem pouco aqui. Moro sozinha.
— Estamos apenas nós dois? Não há uma acompanhante com você, um
irmão mais velho, ninguém?
Hurit deu uma risada e passou um pano úmido em seu queixo, limpando
um pouco de sopa que sujara ali. Em condições normais ele deveria estar
muito constrangido por expor-se tão vulnerável a uma mulher que não
conhecia, mas nada ali sugeria que ele estava em uma situação normal.
— Não preciso de acompanhantes, Matwan, e não temos os mesmos
hábitos que os brancos, por aqui. Não há problema nenhum que eu fique com
um paciente em minha cabana porque todos confiam em mim, assim como
confiam em qualquer outra Shinnecock. E eu sou comprometida.
Céus, aquilo não parecia mais certo apenas porque ela dizia, porém ele
não tinha como discutir. Fraco, debilitado e sem memória, tudo que ele
poderia fazer era concordar com ela e esperar que seu corpo se restabelecesse
logo. Depois de alimentá-lo, a mulher pegou uma bacia com água e um pano
e sentou-se ao seu lado na cama. O contato do corpo dela, mesmo vestido, fez
com que o dele reagisse e se movesse, causando dor no ferimento. Hurit não
percebeu, continuou empenhada em sua tarefa de limpá-lo. Passou o pano por
seu pescoço, peito e braços, espalhando frescor e umidade por cada pedaço
descoberto de pele. Não disse mais nada, apenas cantarolou uma música em
um idioma que ele não conhecia e manteve os olhos dispersos e distantes. Ao
fim, levantou-se e saiu de suas vistas como se fosse um fantasma, um anjo
que se materializasse apenas em algumas horas do dia.
CAPÍTULO TERCEIRO

S ENTADA NA AREIA , OLHANDO O HORIZONTE PACÍFICO , H URIT TENTAVA


aliviar a mente dos pensamentos inconvenientes. Seus dedos se enfiavam
involuntariamente na areia enquanto ela revolvia os grãos grossos e as
conchas nas mãos como se o movimento a acalmasse. Ela não precisava de
nada para lhe devolver a paz de espírito há muito tempo. Não recorria ao
artifício de pedir ajuda à natureza há mais de ano - e a última vez foi quando
se livrara do luto pela perda de Keme.
A morte do irmão fora um doloroso e violento divisor de águas em sua
vida. Até aquele momento, Hurit sabia que seria a xamã e que auxiliaria
Keme em sua missão de chefe da tribo. Mas ele foi assassinado brutalmente
por um branco embriagado depois de tentar fazer o bem - e o mundo dela
ruiu, despedaçou-se e precisou ser colado à força no lugar.
Keme era bom. Havia muito manitou 1 no irmão e ela sabia que ele seria
um líder ideal. Quando se erguia, as pessoas se erguiam ao seu lado. Quando
falava, as pessoas ouviam o que tinha a dizer. Seus discursos eram sempre
carregados de verdade e sabedoria, mas os homens brancos nunca lhe deram
o devido valor. Para eles, Keme era apenas um nativo de pele escura e
cabelos longos, incivilizado e estúpido.
Os brancos os consideravam menos humanos, menos valiosos, não os
respeitavam como pessoas. Hurit sabia que os brancos não respeitavam nada,
nem eles mesmos porque também submetiam a natureza, os animais, as
mulheres e as crianças. Homens brancos praticavam violência diária contra
tudo que consideravam inferior a eles e ela passou a detestá-los cada dia um
pouco mais ao ver a degradação que praticavam em todo lugar.
Keme não teve chance contra o ébrio que o atacou com uma faca. Seu
irmão era um homem de paz e não sabia lutar - eles não precisavam lutar. Ela
foi a primeira a chegar ao bar onde ele caíra morto, sobre uma poça do
próprio sangue, e fora largado exposto às moscas porque um Shinnecock não
tinha nenhum direito.
Como ela trabalhava em uma pequena loja de artesanato próxima, ouviu a
comoção, a fofoca sobre a morte de um nativo, e saiu correndo para ver do
que se tratava. Hurit jamais esqueceria a visão de seu irmão, tão forte e altivo,
sem vida em um chão de terra, com pessoas passando por sobre ele e fingindo
que nem estava ali.
Ela não queria se lembrar de Keme. Cultuava a imagem do irmão e pedia
por ele em suas preces para os deuses, mas não gostava de pensar naquele
dia. E a presença do homem ferido a fazia reviver memórias ruins cada vez
que olhava para ele.
Mas também a fazia sentir alegria ao acordar, alívio ao segurar seu braço
e falar pela primeira vez em dias. Uma voz arranhada, como se tivesse
acabado de despertar de um sono tranquilo, mas que ela testemunhou como
uma provação intensa. Sentiu raiva ao perceber que ele não recordava quem
era, que seria obrigado a permanecer ali até se recordar e sentiu como se o ar
finalmente retornasse aos seus pulmões pelo mesmo motivo.
Precisava voltar para casa, não podia deixar o paciente sozinho por tempo
demais. Não que ele tivesse para onde ir, já que mal conseguia ficar de olhos
abertos, mas ele podia precisar dela. Recolheu suas lembranças e o cobertor
que a protegia do intenso vento do litoral e arrastou-se de volta para a cabana.
Encontrou Wapun esperando-a, segurando uma cesta com algumas latas e
vegetais dentro.
— Amonute mandou para você. — A amiga se justificou antes que Hurit
pudesse perguntar o que ela fazia com tanta comida. — Sua mãe está
preocupada com sua reclusão.
— Não há muito que eu possa fazer, mas o Matwan acordou.
Wapun ergueu as sobrancelhas em uma expressão tipicamente sua e
apoiou a cesta no chão para erguer as duas mãos para o céu.
— Essa é uma boa notícia.
A cabana estava aberta, a porta escancarada, mas ainda guardava o cheiro
da doença. Láudano e ervas curativas se misturavam no ar e faziam com que
a residência de Hurit parecesse um hospital - mesmo que ela nunca tivesse
estado em um, imaginava que ele cheirasse daquela forma. O homem estava
de olhos fechados, imóvel, e não reagiu quando as duas entraram. Falante,
Wapun continuou a agradecer aos deuses enquanto colocava os alimentos na
cozinha.
A presença da amiga aliviava a solidão causada pelo isolamento. Hurit
estava praticamente sozinha desde que recebeu autorização para cuidar do
Matwan. Parte da culpa era dela mesma, que não saía do lado dele por
praticamente razão alguma.
— Você tem coisas a tratar hoje, Wapun?
— Nada importante, apenas preciso cuidar do artesanato.
— Poderíamos fazer isso juntas? — Hurit perguntou, não muito satisfeita
em pedir ajuda ou demonstrar fraqueza. Mas ela queria companhia e a amiga
percebeu.
— Buscarei as conchas e materiais em casa e retornarei em breve.
Depois da saída de Wapun, ela acondicionou os alimentos nos lugares
adequados e colocou alguns vegetais para cozinhar. Eles comiam bastante
peixe naquele período do ano e ela recebia uma porção todo dia, de manhã,
que salgava e defumava para preservar. Se tudo corresse bem, teriam uma
farta refeição - mesmo que o conceito de fartura estivesse prejudicado ao
longo dos anos. Eles tinham o suficiente, era o que preferia acreditar.
O paciente continuou dormindo por toda a tarde. Ela sabia que, fraco
como estava, o corpo ainda precisaria de um tempo para se fortalecer - mas
era importante que estivesse sem febre. A ausência de febre a animava. Com
a presença da amiga, passou o restante do dia trabalhando naquilo que
ajudaria na renda da tribo. As mulheres começaram a fazer artesanato quando
pessoas ricas passaram a fazer visitas frequentes aos balneários de Long
Island. Elas descobriram que aquelas pessoas sempre queriam levar
lembranças dos dias de passeio e que não se importavam se essas lembranças
eram feitas por mãos nativas - em verdade, isso causava mais interesse.
Enquanto trabalhavam, elas conversavam sobre as novidades da aldeia. A
luz do sol já estava se extinguindo quando um ruído fez com que elas se
sobressaltassem - era como o ruído de algo se partindo e, em seguida, o
cheiro de óleo e fumaça. Encontraram a lamparina no chão e um pequeno
incêndio no tapete de pele que cobria parte do chão. Wapun pegou uma bacia
com água e jogou sobre o fogo, enquanto Hurit recolhia os pedaços
estilhaçados do artefato de iluminação. O acidente fora causado por Matwan,
que estava meio sentado na cama.
A CASA onde ele estava era pequena. Mesmo sem memórias ele tinha noção
das dimensões do que era considerado grande e aquela cabana estava bem
aquém de qualquer medida avantajada. As paredes pareciam se fechar sobre
ele e o teto era baixo. Ele acordou sentindo calor e um mal-estar que não
compreendia. Levou algum tempo para se acostumar à escuridão da noite que
se avizinhava, percebendo que havia iluminação de uma lamparina em outro
cômodo. Pelo burburinho de vozes femininas, ele suspeitou que Hurit não
estava sozinha.
Levou algum tempo olhando para o teto e se acostumando à temperatura
e à consciência. Havia, sim, um buraco no sapé e algumas casas de insetos na
madeira. Ele pode jurar que havia passarinhos fazendo ninho ali, também -
mas, àquela hora, estariam dormindo. Seu corpo relaxou e foi então que ele
percebeu que, durante o sono, havia urinado nos cobertores que o cobriam.
Aquilo ultrapassava o limite de vergonha que um homem poderia tolerar.
Não saber quem era, estar vulnerável em um lugar desconhecido, ser incapaz
de alimentar-se sozinho eram situações vexatórias, mas urinar nas calças era
ridículo. Pior, ele nem mesmo estava de calças!
Precisava levantar-se e limpar-se, mesmo que não soubesse como fazê-lo.
Tentou erguer o corpo, falhou, tentou novamente, agarrou-se ao mobiliário e
acabou sentado no meio da cama. Esticou-se para alcançar uma lamparina a
óleo e conseguiu segurá-la nas mãos - mas não tinha como acendê-la.
Frustrado, ainda precisou lidar com a fraqueza de seus músculos - as mãos
também falharam e ele derrubou a lamparina. O barulho do vidro quebrando
chamou a atenção das mulheres, que ficaram em silêncio. E ele, ao se assustar
com o pequeno acidente, acabou por jogar o corpo para trás, esbarrar o braço
em uma mesinha e jogar uma vela sobre um tapete.
Sim, havia coisas piores do que se molhar de urina. Quase incendiar uma
casa era uma delas.
— O que houve? — Hurit aproximou-se dele, abanando a fumaça que se
formou rapidamente. Em um impulso, tirando forças de onde não sabia, ele se
encolheu e puxou os cobertores. — Matwan, você está bem?
Não estava, porém sentia mais vergonha do que dor - e a dor era
agonizante o suficiente para atordoá-lo. A outra mulher que estava com ela,
uma que ele não conhecera ainda, apagou as poucas chamas, retirou o tapete
sujo de óleo e levou para o lado de fora da cabana enquanto Hurit se
aproximava cada vez mais. Calma, como se estivesse cercando uma presa, ela
o rodeou enquanto ele embolava os cobertores nas mãos - mas não podia
atirá-los longe ou acabaria totalmente nu na frente daquela mulher.
— Está tudo bem. — Ele mentiu, tirando a voz das profundezas de seu
ser. Ela saiu arrastada, como se ele tivesse bebido muito láudano. — Foi um
acidente.
Matwan não sabia dizer se referia-se ao fogo ou à umidade em sua cama.
Ela levou a mão até a testa dele e deslizou até o pescoço, fazendo-o ficar
imóvel. Sua respiração estava ofegante e aquilo só aumentava a dor no
ferimento.
— Você está sem febre. — Ela constatou. — Teve algum pesadelo?
Ele negou com a cabeça. Mantinha os olhos arregalados presos a ela e
segurava o cobertor com tanta força que os nós de seus dedos estavam
esbranquiçados. Quando Hurit tentou ajeitar as cobertas sobre ele, Matwan
quase caiu para trás.
— Mas pelos céus, o que está havendo com você? — Ela o segurou para
impedir que se machucasse e quase caiu com ele. O contato com o corpo
morno e o tecido molhado fez com que ela percebesse o que Matwan tentava
esconder. — Precisa tomar mais cuidado ou vai abrir todos esses pontos.
Hurit apontou para o ferimento e se afastou. Remexeu em uma gaveta na
cômoda que ficava ali mesmo, na espécie de sala e quarto que não tinha
divisão de paredes. A cabana também não possuía um banheiro interno e ele
suspeitava que não houvesse encanamento por ali. Voltou carregando uma
nova coberta, que levou ao rosto e cheirou, como se garantisse que estava
com odor agradável - e não aquele aroma horrível de fumaça que ele causara
ao quase incendiar um tapete.
Sem dizer mais nada, ela pegou o cobertor que ele segurava. Matwan quis
resistir mas viu na resistência um esforço inútil - ela já sabia o que acontecera
ali. A troca foi rápida. Na penumbra, sua nudez não foi exposta tempo o
suficiente para que alguém o visse. Quando a outra mulher retornou,
carregando uma lamparina inteira e acesa, nada percebeu.
— Você só deveria se envergonhar das coisas que faz conscientemente.
Não há porque sofrer por aquilo que está fora do seu controle.
Hurit sussurrou, ajudando-o a acomodar-se adequadamente. As mãos dela
deslizaram pelo colchão, conferindo se ele também não estava úmido, e
acabaram tocando-o por baixo do cobertor. Ele sentiu um arrepio percorrer-
lhe o corpo como um lufo de ar gelado no inverno. Com um sorriso pequeno
e sutil, ela saiu da cabana carregando o tecido sujo embolado nas mãos.
— Prepararei uma refeição para nós.
A mulher que ele ainda não conhecia disse. O constrangimento o
paralisou e ele não conseguiu dizer nada nem agradecer ou desculpar-se por
quase incendiar a casa. Hurit manteve os olhos sobre ele por alguns segundos
enquanto esperava que ele reagisse, mas acabou desistindo e acompanhou a
amiga, deixando-o sozinho na quase escuridão.
Quando as duas retornaram, ele ainda tinha os olhos arregalados e o corpo
gelado. Por alguma razão, a sensação de estar doente, incapacitado e
dependente lhe era familiar e desagradável. Quando Hurit sentou-se ao lado
dele e, sem qualquer expressão de julgamento, ofereceu-lhe comida, ele se
sentiu melhor. Cuidado e respeitado, mesmo que não tivesse realizado
nenhum ato que merecesse respeito.

E LA NÃO GOSTOU do que sentiu ao ver aquele homem de aparência forte e


viril tão constrangido, como se o episódio ocorrido pudesse emasculá-lo.
Hurit não deveria se importar se ele sofria ou tinha vergonha, se só estava se
curando. Precisava que ele se recuperasse e descobrisse quem era, precisava
entender a intenção dos deuses por trás daquela missão. Não tinha que sentir
nada pelo estranho forasteiro.
Mas ela sentiu. Wapun despediu-se depois de ajudar com o jantar e Hurit
suspeitava que a amiga tinha medo do Matwan. A tribo inteira acreditava que
ele era o mal, inclusive ela mesma, portanto não era de se espantar que
ninguém quisesse ficar perto dele. Ela não tinha escolha mas, quem tinha,
optava por ignorá-lo e isso a colocava cada vez mais em uma situação de
solidão. Tinha que contar exclusivamente com a presença do seu paciente e
ela não queria ter nenhum apego a ele.
Seria aquela parte a sua verdadeira missão? Se o velho tinha certeza de
que Matwan sobreviveria, curar a doença não era um desafio - afinal, não
fora Hoobamack que o enviara. Seria o desafio de Hurit lidar à força com o
ódio cru e bruto que sentia pelos brancos?
Segurando uma gamela com sopa, ela se sentou de frente para ele na
cama. Matwan encolheu-se e continuou olhando para cima, como se fingisse
não notá-la ali.
— Vou te ajudar a se sentar, você precisa comer.
Ele assentiu e apoiou-se nos cotovelos, mas não olhou para ela. Hurit
respirou fundo - não tinha muita paciência com teimosos e era como se eles
se multiplicassem ao seu redor. Estaria diante de outra missão, o exercício da
mansidão? Acomodou-o com almofadas nas costas e entregou a tigela de
comida para que ele a segurasse. As mãos estavam trêmulas mas pareciam
capazes. Eram mãos lindas e ela fingiu que as observava apenas para garantir
que Matwan não fosse derrubar a sopa. Os dedos ainda guardavam
ferimentos do sal e do sol, as unhas tinham rachaduras mas eram mãos
masculinas e calosas.
Um homem com aquela beleza não parecia um trabalhador que teria calos
nas mãos. Alguma coisa no porte do forasteiro indicava que ele não era uma
pessoa comum - que ele nem mesmo era americano.
— Quando eu tinha treze anos, meu irmão me descobriu escondida na
floresta. Ele estava pescando e, na volta para casa, encontrou-me. — Hurit
disse, movendo-se para uma cadeira próxima à cama. — Eu tinha ido colher
conchas e pisei em pedras pontiagudas, ferindo meus pés. Eles estavam
doendo muito e eu me sentia culpada por ter sido desatenta. Keme colocou os
peixes pendurados nas costas, me pegou no colo e me levou até a cabana do
velho Wematin. Lá ele limpou minhas feridas e perguntou porque fui até
aquelas pedras. Expliquei que havia conchas maravilhosas do outro lado, em
uma enseada escondida, e que eu queria coletá-las para fazer belos enfeites.
Keme me disse então que toda beleza vem com desafios e que quase sempre
vale a pena enfrentá-los para obter a recompensa. Que as feridas em meus pés
eram a certeza de que eu era corajosa, pois enfrentava a dor para conseguir o
que eu queria.
Ele a observava com os olhos azuis arregalados. Havia manchas sob eles
e a pele da face ainda não estava totalmente cicatrizada. Também havia
aquela barba que começava a crescer novamente e cobria seu queixo e
contrastava com a maciez dos lábios.
— Seu irmão quis fazer com que se sentisse melhor. Você se sentiu?
— Sim, porque eu me senti corajosa.
Um breve silêncio caiu entre eles. O homem levou algumas colheradas de
sopa à boca, esforçando-se para não derrubar nada. As mãos dele
continuavam trêmulas, como se o peso da gamela fosse tamanho que ele não
conseguisse suportar. Hurit levantou-se e sentou-se ao lado dele mais uma
vez e assumiu a tarefa de alimentá-lo. De súbito, pareceu que Matwan
resistiria, mas ela não lhe deu aquela opção.
— Eu não me sinto muito corajoso. — Ele confessou.
— Claro que não, você está sobre uma cama, sendo cuidado por uma
mulher desconhecida. E, se conheço seu povo, você preferiria morrer a ser
alimentado por uma nativa.
Ele franziu as sobrancelhas, quase unindo-as sobre o nariz. Fitava-a
enquanto ela soprava a sopa para esfriá-la antes de lhe oferecer mais uma
colherada.
— Não. Você está errada.
— Eu raramente estou.
Ambos riram. Hurit devia ter perdido o juízo, aquela interação com o
Matwan era indesejada.
— Eu estou envergonhado. Desculpe-me. Mas nada tem a ver com você
ser uma “nativa”. Eu talvez nem saiba o que isso significa.
— Não seja condescendente. Estou acostumada com a forma como os
brancos nos olham.
Mais silêncio. Hurit não queria ser arrogante ou agressiva com o homem
doente, mas a raiva que crescia dentro dela era mais forte que sua vontade. A
história compartilhada já perdera seu objetivo, já que ela não conseguia
controlar a língua.
— Por que me contou sobre seu irmão?
— Para distraí-lo. Ela cometeu o deslize de olhar para cima e se permitiu
ser capturada pelos olhos que flamejavam à luz fraca da lamparina. Havia
tanta intensidade dentro dele que a arrebataria como uma tempestade, se ela
deixasse. — Você estava tenso e eu precisava que você se alimentasse. Como
se sente?
— Por que você faz isso por mim?
Ao invés de respondê-la, ele fez outra pergunta. Hurit não gostava de
responder perguntas, ela preferia fazê-las. Também não gostava muito de se
expor, de falar sobre si ou de contar histórias. Todos os Shinnecocks
gostavam de conversar e contar histórias, menos ela.
— Eu disse, porque você me foi enviado pelos deuses.
— E você faz tudo que mandam os deuses?
— Você não?
Ele sorriu. Os lábios se ergueram apenas um pouco, formando uma
covinha na bochecha esquerda - a única que ela podia enxergar. Hurit quis
tocar ali e ver se os fios de barba espetavam. Os homens da tribo não
costumavam usar barba, assim como os brancos, e a de Matwan atiçou sua
curiosidade.
— Não sei, mas não parece razoável fazer tudo que nos ordenam, não
importa quem seja.
— Não faço tudo. — Ela colocou a tigela sobre uma mesinha. Sem que
ele percebesse, bebera toda a sopa. — Mas preferia que eu o tivesse deixado
para morrer na praia?
Matwan sacudiu a cabeça, negando. A resposta não era satisfatória,
apenas apelava para o sentimentalismo e fazia com que ele desistisse de se
importar. Hurit tinha certeza dos motivos que a conduziam a tratar dele -
comprometimento com seu povo. Ela seria a nova xamã. Ela seria a nova
líder e precisava garantir que todos a respeitassem, mesmo que isso
significasse receber a glória dos deuses por meio dele, do homem branco que
não parecia tão odioso assim, daquele ângulo.
Quando ela se levantou, reparou que ele estava prestes a dormir outra vez
e suspirou. Seria uma longa provação até que aquele homem estivesse pronto
para ir embora.

E NQUANTO DORMIA , ele sentiu o aroma do mar. Quase pode ouvir as ondas
indo e vindo e o calor do sol sobre sua pele. Não era uma memória, mas um
desejo que se relacionava com a proximidade do oceano. Depois de quase se
afogar, ele pensou que não estaria tão apegado à praia, mas o vazio dentro de
si deixava muito espaço para ser preenchido. Quando abriu os olhos
novamente, já havia luz entrando na cabana - e o buraco no sapé continuava
ali, fazendo com que alguns raios luminosos o atingissem.
Matwan virou-se para o lado e viu uma imagem que o fez sentir uma
pontada de dor - e não era no ferimento. Hurit, seu anjo salvador, estava
enrolada em uma coberta, no chão. Parecia haver um colchão sob ela, mas,
ainda assim, ele se sentiu péssimo por usufruir da única cama enquanto ela
dormia tão desconfortável.
Com dificuldade, ele tentou se sentar e levantar. Queria reconhecer seus
arredores e fazer qualquer coisa por aquela mulher que parecia tão abnegada
em relação a ele, mas pisou no chão e sentiu seus músculos fraquejarem. Sem
conseguir firmar-se de pé, caiu como fruta madura despencando, quase em
cima de Hurit.
Ela acordou sobressaltada com o barulho e o peso do corpo dele sobre si.
Virou-se de súbito e jogou-o de costas contra o chão.
— Pelos deuses, Matwan. O que pensa que está fazendo?
— Eu quis me levantar, não pretendia importuná-la.
Hurit não o soltou. Manteve-o preso ao chão em uma posição inadequada.
Se o pegassem ali, com ela, a situação só se resolveria com casamento. Céus,
ele não tinha forças nem para comer ou ficar de pé, não podia se casar.
— Você não precisa se levantar, peça o que quiser que eu providenciarei.
Ele não conseguiu dizer o que queria, nem mesmo se lembrar dos motivos
que o fizeram se levantar, porque alguém estava do lado de fora. A mulher,
que era muito pequena, ergueu a cabeça e encarou a porta fechada, consciente
de que um convidado chegara. Em seguida, batidas ecoaram pela madeira
pouco resistente.
— Hurit?
— Meu noivo. — Ela se levantou quase em um pulo. — Fique aí, não
tente ficar de pé novamente.
Nem que ele quisesse, tentaria. Seu corpo estava atordoado pelo que
acabara de acontecer, dolorido pela queda, pelo ferimento que latejava e pelo
contato quente com a pele de Hurit, mesmo que houvesse um grosso cobertor
entre eles. Tentando recuperar um pouco de sua dignidade, enrolou-se nas
cobertas que ela deixara e fingiu que ainda não estava acordado. Viu a porta
se abrir e um homem entrar, um homem enorme e que obscurecia o sol.
Eles falaram alguma coisa e o noivo olhou para onde ele estava. Matwan
fechou os olhos e esperou, não desejando encarar de volta aquele
brutamontes. Sua barriga emitiu um ronco perturbador indicando que ele
tinha fome, porém nada podia fazer. Era refém daquela mulher, suas vontades
estavam vinculadas às dela.
Passaram minutos que pareceram horas até que eles retornassem para a
sala. Conversavam sobre horta, pesca e algum tipo de trabalho masculino e
Hurit não parecia satisfeita.
— Não creio que precisamos de coisas brancas para sermos felizes.
— Elas são fabricadas por brancos. — O homenzarrão riu. — E você
certamente preferirá viver em uma casa mais confortável que essa quando nos
casarmos.
Ela virou-se para ele e teria protestado contra aquela afirmativa se o noivo
não passasse as mãos pelas tranças, puxasse a cabeça dela e a beijasse. Eles
estavam bem à frente de Matwan para que ele visse o beijo e pudesse achar
aquele ato uma afronta à decência. Que homem beijaria a boca de sua noiva
na frente de estranhos?
Um homem que quisesse demarcar seu território. Matwan entendeu
quando o noivo se afastou brevemente e o fitou. Havia algo naquele olhar que
indicava um alerta - não se aproxime dela. Ele quis dizer que não tinha
intenção alguma de se aproximar de ninguém, e que poderia ser transferido
para um hospital qualquer na cidade, mas suspeitava que nada daquilo fosse
verdade.
— Ajude-me a colocá-lo na cama.
O homem olhou novamente para sua noiva e sorriu, indulgente. Matwan
não gostou do sentimento que borbulhou dentro de si. Ele nem mesmo
conhecia o noivo de Hurit para não gostar dele - não conhecia a si próprio
para nutrir qualquer percepção desagradável sobre alguém.
— Claro, minha lua. O que ele está fazendo no chão?
— Tentou se levantar mas não teve firmeza nas pernas.
Com um movimento firme de cabeça, o homem deu alguns passos na
direção dele. Ao se aproximar, Matwan entendeu o que ele pretendia e
esquivou-se, encolhendo-se no canto da parede.
— Eu não preciso ser carregado como um bebê, senhor.
— Oh, ele fala.
— Por que não falaria? — Matwan deu uma risada nervosa. — Agradeço
sua intenção, mas sou capaz de me erguer sozinho.
— Não parece que seja.
O sorriso esboçado na face do homem alto, grande, de ombros largos e
dentes muito brancos fez com que ele se irritasse. Talvez aquele grandalhão
estivesse apenas sendo gentil a pedido de sua prometida, mas não havia nada
que pudesse fazer para evitar a sensação de desagrado que o preencheu.
Para provar que o homem estava errado, tentou se levantar. Apoiou as
mãos na parede e percebeu que o cobertor cairia. Sendo observado por dois
espectadores curiosos, ele não pode fazer nada quando suas pernas
fraquejaram mais uma vez.
Hurit se controlou para não correr até ele, Matwan pôde ver pela forma
desamparada como ela o observava. Havia uma intensa agonia nos olhos
escuros que estavam ainda maiores naquele momento, mas ela não deu um
passo em sua direção - deixou que o noivo fosse até ele, que o segurasse e
impedisse sua queda.
— Entendo a necessidade de mostrar força, homem branco. Entendo o
desespero, mas aceite a ajuda. Minha Hurit é a melhor curandeira de toda
essa região e ela é a única que poderá restabelecê-lo. Aceite.
Não parecia haver outra opção. Ele sorriu sutilmente e caminhou, com
dificuldade, até a cama, e deitou-se encolhido, de costas para a plateia. Pode
sentir ainda o olhar dela lhe queimando a pele, mas a presença do noivo era
intimidadora e ele preferiu fechar os olhos e esperar o tempo passar.

N ÃO PRECISOU ESPERAR MUITO . Sua melancolia foi interrompida pelo toque


de dedos delicados em seu ombro. O cheiro de primavera que ela trazia o
inebriou em dois segundos, mas ele não quis se virar.
— Trouxe seu desjejum. — Ela sussurrou. Talvez estivesse com a
impressão errada, mas ela parecia condescendente com ele. Agindo como se
sentisse piedade, e Matwan não podia tolerar aquele sentimento.
Precisava parar de agir como um coitado e assumir o controle, como
sempre fazia. Sempre. Algo o remeteu a um passado que não recordava, uma
vida que não lembrava - mas ele sabia que passara por algo parecido, antes.
Depois de alguma hesitação, virou-se para Hurit e a fitou. Segurando um
prato nas mãos, nada na expressão dela indicava pena. Alguma impaciência,
talvez.
Sentindo muita dor e fingindo que nada o abalava, ele se ajeitou na cama
e recebeu a comida de bom grado. Havia pão e ovos e uma caneca de líquido
fumegante e aromático permanecia nas mãos dela.
— É chá. — Hurit respondeu a uma pergunta que ele não fez. — Ajudará
a recuperar sua força.
Ele estendeu a mão para pegar a bebida, mas ela fez que não com a
cabeça. Em uma conversa muda, Matwan entendeu que ela ficaria ali,
observando-o se alimentar, e que o ajudaria. Era desagradável se sentir ainda
dependente, porém havia certo prazer em perceber que ela o escolhera.
Afinal, ela o havia escolhido, não havia?
— O seu noivo não se importa que eu fique aqui?
Hurit franziu as sobrancelhas até uni-las no centro da testa.
— Ele não tem motivos para importar-se.
Ele mordeu um pãozinho e foi arrebatado pelo sabor. A fome que sentia
era maior do que pensava.
— Nem mesmo com o decoro? A minha presença aqui não arruina a sua
reputação?
Com uma risadinha, ela apoiou a caneca sobre o aparador e se levantou
para abrir mais a janela que ficava sobre a cama. O dia estava ensolarado e
quente do lado de fora - quente o suficiente para fazê-lo suar.
— Nossos costumes são diferentes dos seus, Matwan. Sei que vocês
podem achar que conseguiram acabar com tudo no que acreditamos, mas,
dentro da aldeia, nossas crenças ainda valem. Não temos decoro, temos
respeito. Kitchi confia em mim, assim como todos na tribo. Na verdade, eles
estão com pena que eu tenha que lidar com sua presença.
Aquilo doeu. Com a boca cheia de ovos, ele precisou terminar de
mastigar e esperar o momento certo de falar - enquanto também mastigava as
palavras agressivas saídas da boca daquela mulher de voz tão suave.
— Eu também a respeito. — Disse, engolindo o orgulho junto com a
comida. — Jamais faria conscientemente algo para comprometê-la.
— Eu sei. — Ela se virou e levou a mão até ele. Matwan paralisou ante a
iminência do toque e fechou os olhos assim que o polegar dela deslizou pelo
canto de seus lábios. — Precisarei sair, hoje. Pedirei a Wapun que fique com
você.
Matwan levou algum tempo para reagir. Havia alguma coisa naquela
mulher que o enfeitiçava, que o deixava sem palavras. Seria ela a causa de
sua falta de memórias?
— Posso ficar bem, sozinho. Não tenho para onde ir.
— Você quase incendiou a cabana, ontem. Quis se levantar, hoje, e
desabou no chão. Não sei se posso confiar que ficará seguro sozinho. Wapun
virá.
Sem prosseguir na discussão, como se dar a última palavra fosse
constante para aquela mulher, ela lhe entregou a caneca de chá e ordenou que
bebesse.
CAPÍTULO QUARTO

E LA PRECISAVA SE AFASTAR DE CASA . D A TRIBO , DA FAMÍLIA , DE K ITCHI E ,


principalmente, do homem branco em sua cama. Hurit nem mesmo deveria
pensar em frases estranhas como aquela - um homem em sua cama. Mesmo
tendo sido enfática sobre como os costumes brancos não eram totalmente
considerados dentro da aldeia, ela jamais pensara em desafiá-los apenas
porque não via razões. As mulheres Shinnecocks não eram objetos de
decoração, mas isso não significava que deixavam de ser propriedade dos
homens.
Fazia calor e ela precisava vestir o forasteiro. Aquela era outra coisa da
qual precisava livrar-se, da nudez dele. A princípio, ela não se abalou - era
apenas mais um corpo e aquele, em especial, não lhe intrigava. Estava ferido
e doente, ela o via como alguém precisando de ajuda. Mas ele acordou,
começou a falar e a insistir em se mexer até que o cobertor não tivesse mais
nenhuma utilidade. O calor fazia com que ele suasse e a visão das gotículas
de suor na pele descoberta era perturbadora.
O Matwan não deveria perturbá-la, por isso ela daria um jeito de livrar-se
da tentação. Pegou um cavalo com seu pai e rumou para Southampton. A
cidade não era seu lugar preferido - ela mal pisara lá desde que seu irmão fora
assassinado, mas precisava de tecido para fabricar uma calça. Calças, no
plural, mais de uma, pois ela eventualmente precisaria lavá-las e não queria
mais nenhuma nudez em sua cabana.
A mãe lhe fazia companhia. Amonute vinha um pouco atrás e observava a
filha como se soubesse de alguma coisa que nem mesmo ela, Hurit, sabia.
Mesmo depois que chegaram à cidade, apearam dos cavalos e os amarraram
na lateral da loja de departamentos do Sr. Bringstone, a mãe continuava
olhando para ela com expressão duvidosa.
— Nós poderíamos ter aproveitado uma das calças de seu pai. —
Amonute disse, antes de entrarem na loja. — Ele não se importaria.
— Chogan tem poucas roupas e suas calças são muito largas. Seria muito
esforço adaptá-las.
— Ele precisará de camisas.
— Então eu lhe comprarei camisas.
Amonute sorriu e a filha soube que era tudo para provocar alguma reação
nela. A mãe fazia qualquer coisa para que ela ficasse mais leve, menos
carrancuda com seu fardo, mas era quase sempre inútil. Ela era daquela
forma, sempre fora uma criança introspectiva, uma jovem difícil e era uma
adulta quase insuportável. Por isso os deuses acreditavam que podiam lhe
enviar provações cada vez maiores.
Duas mulheres estavam na loja quando elas entraram e ambas saíram no
mesmo instante, sem lhes dirigir o olhar ou um cumprimento. A maior parte
das mulheres brancas repudiava a presença das Shinnecock e lhes virava as
costas quando elas chegavam. Aquela era a atitude mais educada que lhes
dispensavam, era costume acrescentar algumas palavras desagradáveis.
Era escandaloso que elas andassem sem as tradicionais acompanhantes,
ou que fizessem negócios sem a presença dos homens. Mesmo em uma
situação tipicamente feminina - mãe e filha em uma loja para adquirir tecidos,
elas ainda eram desprezadas por não serem como as outras damas.
Hurit não queria ser uma dama. Queria usar tranças e roupas confortáveis,
queria montar à cavalo com as pernas uma de cada lado, queria galopar
contra o vento e escolher o rumo de sua vida. Mesmo que ela soubesse que
sua existência inteira estava atrelada aos homens, ela queria ao menos poder
escolher a qual homem se uniria em matrimônio. Ela não queria ser uma
dama, queria apenas respeito por ser quem era.
— Bom dia, senhora. Senhorita. — O Sr. Bingstone as cumprimentou.
— Bom dia, Sr. Bingstone. Sabe que pode me chamar Hurit. — Ela sorriu
para o senhor de cabelos quase prateados e olhos doces. — Lamento por
nossa presença afastar suas clientes.
— Não se preocupe com isso. Elas são desagradáveis e quase não
compram nada.
— Sendo assim, preciso de tecido para costurar calças masculinas. O que
o senhor tem de resistente e que possa comprar com pouco dinheiro?
O Sr. Bingstone fez um gesto sugerindo que dinheiro não seria o
problema e as conduziu até os rolos de tecidos dos mais variados.
— Quantas calças pretende fazer?
— Duas. Quero dois metros dobrados, linha e agulha. Faz tempo que não
costuro nada tão grosso.
Enquanto o lojista cortava a metragem e separava o que Hurit pediu,
Amonute escolheu alguns itens para a fabricação de artesanato. As duas
levaram menos de uma hora para resolver tudo e deixar o simpático Sr.
Bingstone uns cents mais rico, então Amonute sugeriu que fossem até a
construção em que Kitchi trabalhava. Com a desculpa de que já o vira mais
cedo e que não gostava de importunar o noivo no trabalho, Hurit convenceu a
mãe a irem direto para a aldeia.
Não tinha nada a ver com Kitchi, ou tinha. Ela queria saber se Matwan
passara bem o pouquíssimo tempo que estivera fora. Se Wapun limpara o
ferimento e trocara o curativo - o que ela desejava que a amiga não tivesse
feito, também, por mais contraditório que aquilo fosse. Ela estava possessiva
em relação ao homem e não entendia aquele sentimento.
O retorno para casa foi tão silencioso quanto a ida para a cidade e Hurit
não entendeu a atitude de sua mãe. A sempre falante Amonute, a mulher que
adorava contar histórias, gastara boa parte do tempo apenas observando-a.
Quando estavam chegando, Hurit decidiu romper o silêncio.
— Sinto-me inútil em não contribuir com nada. — Confessou. — Desde a
chegada do forasteiro não estou nem cuidando da horta.
— A tribo entende. Se ele for o lobo branco...
— Se ele for — ela interrompeu a mãe — eu não sei o que isso significa.
Ainda assim, gostaria de contribuir com algo. Retomarei o artesanato ou
passarei a reparar as roupas e calçados dos homens.
Amonute emparelhou o cavalo com o da filha e reduziu o trote.
— Coloque o Matwan para te ajudar. Ele tem mãos calosas, já deve ter
trabalhado na vida.
Hurit deu uma risada nervosa. Ela fez a mesma constatação algum tempo
antes.
— Ele é homem.
— E pode aprender a pregar botões, colocar linha na agulha ou colar
conchas. Não é como se os homens fossem incapazes de cumprir tais tarefas,
minha filha. Eles apenas não precisam fazê-las.
— Tem razão. Será bom que tenha uma tarefa, assim sua cabeça se
ocupará com alguma coisa útil.
— Separarei algumas coisas e levarei até sua cabana mais tarde.
A conversa se encerrou, mas Hurit continuou com a sensação de que sua
mãe tinha algo a dizer ou alguma consideração a fazer. Quando voltou à sua
cabana, tudo estava calmo. Matwan dormia e Wapun bordava tecido que,
depois, seria transformado em roupa.
— O que trouxe da cidade?
— Tecido. Ele se comportou a contento? — Hurit fez um gesto
apontando para a cama. Wapun ergueu o pescoço como se, para responder,
precisasse olhar para ele.
— Dormiu quase o tempo todo. O que pretende fazer com o tecido?
— Roupas para ele.
— Oh. — Wapun esticou o pescoço novamente e deu uma risadinha
baixa. — Que desperdício será cobrir um corpo tão bonito.
— Pelos deuses. — Hurit arregalou os olhos. — Isso foi muito indecente!
Você não ficou espiando o homem, ficou?
Wapun moveu a cabeça para os lados indicando estar ofendida pela
sugestão de que teria sido indecorosa com o paciente. Hurit foi até seu
guarda-roupas e pegou a calça que ele vestia quando o encontraram na praia.
Ela estava estragada e com um pedaço cortado, porém serviria de modelo
para que ela lhe fizesse as novas.
— Ao invés de estimular pensamentos despudorados sobre o homem
ferido, ajude-me.
A amiga continuou sorrindo e a provocação irritou Hurit. Enquanto
Wapun cortava o tecido, ela preparou uma rápida refeição com vegetais e
peixe defumado, quase na mesma hora em que sua mãe apareceu com uma
caixa de objetos que ela poderia usar para fazer artesanato.
As três mulheres compartilharam o almoço e decidiram trabalhar nas
roupas do Matwan. Quanto mais rápido terminassem, menos tempo ele
precisaria permanecer desvestido - e aquela palavra nem mesmo existia. Mas
Hurit preocupou-se que ele estivesse dormindo tanto e não acordasse para se
alimentar. Enrolado até os ombros, o homem permanecia imóvel e de costas
para elas, o que a fez abandonar a tarefa por alguns instantes e conferir a
saúde de seu paciente.
Colocou a mão no pescoço dele e o sentiu estremecer. Estava um pouco
quente e suado e sua pele cheirava a doença e morte. Era curioso o quanto ela
apreciava tocá-lo, mesmo que fingisse o contrário. Seus dedos gostavam de
senti-lo, de deslizar até os cabelos claros e fartos e ela poderia se perder em
um segundo, se não mantivesse o foco. Os olhos se fixaram no batimento do
coração dele, naquele lugar sensível que representava o pulsar da vida que ele
quase perdeu. Com cuidado, Hurit apoiou dois dedos ali e fechou os olhos,
contando o ritmo suave e cadenciado. Depois de alguns segundos, as batidas
aceleraram - ele estava acordado.
Ela se afastou, dando passos para trás, e tentou sair da sala sem ser vista.
Preparou um prato com alimento e uma caneca de chá e colocou no aparador,
ao lado da cama, fugindo em seguida para refugiar-se na cozinha, onde, sobre
a mesa, Wapun e Amonute continuavam a trabalhar. As duas olharam para
ela com curiosidade.
— Ele precisa comer. — Hurit justificou o abandono da tarefa, não o
disparar de seu coração ou a sensação de que fizera algo errado.
— E eu preciso retornar para casa. — Amonute alisou um pedaço de
tecido perfeitamente cortado sobre a mesa. — Você só precisa costurar,
minha filha. Será que suas mãos conseguirão fazer esse trabalho?
A mãe segurou as mãos de Hurit entre as dela e sorriu. Ela não estava
apenas com o coração disparado, estava tremendo como se fizesse frio.
— Perfeitamente. — Ela fingiu um sorriso. — Sua ajuda será
recompensada, nonôk.
— Vou acompanhar Amonute. — Wapun decidiu. — Se precisar de
companhia, chame.
A solidão repentina fez com que ela desabasse sobre uma cadeira,
apoiasse a cabeça sobre a mesa e batesse a testa algumas vezes na madeira
sólida. O caminho trilhado pelos deuses era por demais difícil de percorrer e
ela estava na iminência de falhar.

P EIXE DEFUMADO TINHA um sabor familiar - era nisso que Matwan pensava
enquanto comia, com pouca elegância, o almoço. Depois da saída de Hurit
ele não conseguiu resistir à exaustão e adormeceu. Viu quando ela chegou,
ouviu parte da conversa sobre o que ela fora fazer na cidade, mas permaneceu
em silêncio como se continuasse a dormir, na expectativa de ouvir mais e
compreender mais - mesmo sabendo que era errado espiar as pessoas. Seu
corpo, no entanto, o denunciou quando ela se aproximou e o tocou. Porquê,
não tinha certeza. Aquela mulher mexia com alguma coisa dentro dele, fazia
com que seu coração disparasse e uma dor aguda se espalhasse pelo
ferimento inteiro.
Mas, depois que ela deixou a comida ali e se afastou, ele não a viu mais.
Depois de comer e beber toda a caneca de chá, estava se sentindo melhor e
precisando atender ao chamado da natureza. Tomou coragem e reagiu:
sentou-se na cama, pendurou as pernas para fora, firmou os pés no chão.
Puxou o lençol da cama e o enrolou ao redor da cintura, prendendo-o com um
nó robusto. Apoiou as duas mãos no colchão e impulsionou o corpo para
cima. Daquela vez não sentiu as pernas fraquejarem, apenas uma fisgada que
ecoou dos dedos do pé até os fios de cabelo. Garantiu que o lençol estivesse
bem firme e saiu da casa, procurando onde seria o banheiro. Ainda estava
claro mas ele não encontrou o que buscava - decidiu aliviar-se em alguns
arbustos mais afastados da casa.
Quando retornou, encontrou Hurit na porta. Ela tinha olhos arregalados e
procurava por alguma coisa - ele. Os olhos imediatamente se estreitaram e ela
o fitou como se pudesse matá-lo sem precisar usar as mãos.
— Você está bem o suficiente para perambular pela aldeia?
A voz dela cortava como navalha. Matwan exibiu o seu melhor sorriso
para tentar quebrar a gélida expressão que o deixava desconfortável, mas não
foi surtiu efeito.
— Fui evitar outro acidente como o de ontem. — Ele disse, tentando não
demonstrar novamente o constrangimento do dia anterior. — E sim, parece
que estou me sentindo melhor, graças aos seus cuidados.
— Você poderia ter usado o que deixei debaixo da cama. — Hurit foi até
ele e o segurou pela mão, quase o arrastando de volta para a cama. — Sente-
se, vou examinar o curativo e lhe banhar.
Ela levou as duas mãos até o nó que prendia o lençol e ele pulou para trás
como um gato - com uma agilidade que ignorava ter. Bateu a parte de trás
dos joelhos na cama e caiu sentado sobre o colchão descoberto. Hurit cruzou
os dois braços sobre o peito e ele notou o quanto ela era bonita - mas parecia
bastante irritada com ele.
— Creio que eu possa tomar banho sozinho, também.
— Não seja tolo, Matwan. Quem você acha que lhe banhou durante os
dias em que esteve dormindo?
— Espero que tenha sido você e não o seu noivo gigante.
Estreitando os lábios, Hurit levou alguns segundos para reagir, mas
acabou rindo. Uma risada debochada, mas era a primeira vez que ele via
aqueles dentes belos e aqueles lábios se esticando.
— Kitchi não é gigante, ele é forte. E sim, eu fui responsável por todos os
seus cuidados, porque vê problema que eu continue a tratá-lo?
— Hurit. — Matwan inspirou e se colocou novamente de pé,
confirmando a segurança do nó em sua cintura. — Eu estava desacordado,
incapaz de percebê-la ou reagir à sua presença. Agora que estou consciente,
não posso concordar que continue a… céus, nós precisamos conversar mais
seriamente sobre isso. Tudo isso entre nós é tão escandaloso que nem sei por
onde devo começar a reparar sua honra.
— Não preciso que repare nada. Minha honra continua intacta, não foi
afetada apenas porque você apareceu trazido pelo mar. Vocês homens
brancos têm o hábito de se dar mais valor do que realmente possuem.
— Seu pai está de acordo com isso?
— Meu pai não queria você aqui, mas entende que é preciso. Não me faça
perder tempo, Matwan, eu ainda preciso terminar meus trabalhos de costura.
Se não quiser se banhar, tudo bem.
Ela colocou um balde de água no chão e uma pilha de panos brancos
sobre a cama. Ele se sentiu mal por ofendê-la, mesmo que não entendesse a
ofensa. Ainda assim, não podia continuar a assassinar o decoro apenas porque
estava ferido.
— Você possui uma banheira?
— Sim, no banheiro.
— Banheiro?
Matwan olhou ao redor, confuso. Hurit deu alguns passos na direção de
uma parede coberta e puxou uma cortina de tecido estampado, que escondia
outro cômodo - um banheiro completo. Apesar da simplicidade, havia um
vaso sanitário, uma pia e uma banheira. O encanamento parecia precário,
porém tudo cheirava a limpeza e estava funcional. Sentiu-se tolo por não ter
sequer considerado procurar dentro da casa e por achar que uma cortina não
poderia esconder as maravilhas da modernidade.
— Você me permite usá-lo? Assim eu posso me lavar e evitar mais um
escândalo.
Ela riu outra vez e ele pensou que poderia falar mais bobagens para fazê-
la sorrir.
— Colocarei água para ferver.
A mulher lhe deu as costas e saiu na direção da cozinha. Matwan
cambaleou para trás e parou de costas para uma parede, sentindo-se exausto.
Conversar com Hurit era quase como um combate corporal e ele perdera
todas as batalhas até aquele momento.

E LE A FIZERA SORRIR e Hurit não queria sorrir. Não queria encontrar


nenhuma espécie de alegria na presença do forasteiro, apenas em sua
ausência. Queria livrar-se dele, não gostar de estar com ele. A recuperação do
homem deveria ser motivo de celebração, porém ela estava ainda mais
ranzinza do que de costume. Incomodou-a que ele recusasse o banho,
imaginando que ele não aceitava o seu toque, que ele a repudiava por ser uma
Shinnecock. Alguns brancos não aceitavam ser tocados por nativos, tratavam-
nos quase como se fossem portadores de doenças contagiosas. E imaginar
que Matwan pensava aquilo dela a magoou.
A água ferveu enquanto ela pensava em bobagens. Com o auxílio de um
pano, Hurit segurou as alças do balde e levou-o para encher a banheira. Jogou
algumas flores secas dentro e o vapor aromático se espalhou pela casa.
Quando ele apareceu na porta do banheiro, parecia uma sombra da floresta,
uma das visões que Hurit costumava ter quando era mais jovem e
Hoobamack aparecia para ela com mais frequência. Envolto em fumaça e
névoas, era como um deus das sombras, uma experiência transcendental que
apenas ela visualizava - mas era somente um banho.
Se Matwan não recobrasse logo a saúde e as memórias, ela enlouqueceria.
— Vou buscar água fria.
— Você não deveria ter que fazer isso. — Ele cruzou os braços. — Não é
trabalho para uma mulher.
— Que eu saiba, as criadas dos brancos ricos fazem exatamente isso. —
Hurit passou por ele e foi até a cozinha encher o balde. — E subindo escadas,
ainda.
Ele riu e baixou a cabeça. O sorriso fazia com que covinhas aparecessem
nas bochechas dele - e ela não deveria prestar atenção nelas.
— Obrigado.
— Não me agradeça. O bem que eu faço retorna para mim.
— Parece uma coisa boa para acreditar.
Hurit despejou mais água na banheira. Fez aquilo até enchê-la o suficiente
para cobrir o homem que se banharia nela. Talvez não fosse o bastante para
aqueles braços grandes e pernas longas. Ela fechou os olhos e proferiu uma
ofensa silenciosa por pensar em como ele ficaria dentro da água. Colocou
sabão apoiado em uma banqueta e se afastou, observando o resultado de seu
esforço. Ainda havia um problema, a borda da banheira era alta. Ele não
conseguiria entrar nela sem cair, ela tinha certeza.
— Vou ajudá-lo. — Estendeu a mão para que ele se apoiasse.
— Parece que você está disposta a me ver despido. — Ele riu, nervoso.
— Não seja tolo, apenas temo que não consiga transpor essa borda alta.
Apoie-se em mim, eu fecharei os olhos.
— Prometa não olhar.
Ela bufou e fechou os olhos sem lhe responder. O homem era insolente,
suspeitando de sua virtude apenas porque ela fora obrigada a cuidar dele sem
que dispusesse de vestes adequadas. Não que ele pudesse vestir qualquer
coisa sobre aquele curativo, antes. Deitado, desacordado, ele ficava bem
coberto e era seguro. Depois de acordar, Matwan não parava quieto, era por
aquele motivo que o cobertor deixara de servir. No mais, ela não tivera
escolha quanto a cuidar dele - o que a irritava sempre que ele sugeria que
havia alguma intenção devassa por trás da sua nudez.
Hesitante, ele soltou o nó do lençol e o deixou cair ao chão. Hurit ouviu o
tecido deslizar e tocar o piso de ladrilhos, mesmo que ela jurasse que era
impossível ouvir um som tão baixo. Seu coração disparou quando ele segurou
seus dois braços com as mãos e passou uma perna por sobre a borda. Ela
manteve os olhos fechados em uma promessa para si própria que não o
espiaria. Resistiu quando ele escorregou para dentro da água e foi soltando os
braços dela aos poucos, lentamente. Prendeu a respiração ao confirmar que
ele estava imerso na água morna e que era o momento de abrir os olhos e sair.
— Se precisar de algo, chame-me. Estarei na cozinha, mas virei ao seu
auxílio. — Ela soltou o ar e fixou os olhos na vastidão que havia além da
porta. — Não tente sair sem mim, você poderá se ferir gravemente.
— Sim, senhorita.
— Não deboche de mim, Matwan.
— Não estou debochando, Hurit. — A voz dele carregava um tom de
decepção que a fez virar o pescoço. Seus olhos por pouco não percorreram a
extensão do corpo masculino submerso na água com espuma, quase todo
coberto, e era aquele quase que estava enlouquecendo-a. Mas exercendo ao
máximo seu autocontrole, conseguiu manter o olhar preso ao dele. — Por que
pensa tão pouco de mim?
Mal sabia ele que ela temia o contrário. Que eram os brancos que
pensavam muito pouco dos Shinnecocks. Os brancos que acreditavam que a
vida deles era descartável, que era inferior. Mesmo catequizados e
aculturados, eles ainda eram os índios para aqueles invasores que chegaram e
dominaram tudo que havia pela frente.
Novamente sem lhe responder, ela deixou o banheiro antes que fosse
impossível manter sua impassividade diante dele.

U M BANHO ERA o que ele precisava para sentir-se melhor, mesmo que
Matwan não soubesse disso. Depois de alguns minutos imerso na banheira,
que era um pouco pequena para ele, suas energias estavam renovadas e seu
cheiro bem mais agradável. Até aquele momento era como se ele tivesse
passado alguns dias dormindo ao lado de porcos ou rolado na lama com a
carniça de algum animal. Aproveitou enquanto a água estava morna para
lavar cada centímetro que alcançava e para arrancar aquele curativo que
estava matando-o de curiosidade. Queria ver o tamanho do estrago que o
colocara em uma situação de quase morte.
Não era um ferimento, eram dois. Havia um corte profundo em seu
abdômen, na altura do quadril, abaixo do umbigo, e outro nas costas -
aparentemente tão grande quanto, de acordo com a quantidade de pontos que
seus dedos podiam sentir. Os pontos foram dados com precisão, próximos
uns dos outros, mas a ferida ainda tinha uma aparência horrível e dolorida.
Considerando que o excesso de água poderia fazer algum mal para a
cicatrização, decidiu encerrar o melhor banho de sua vida - até porque não se
recordava de nenhum outro. Apoiou as duas mãos na borda da banheira e
ergueu o corpo de uma vez só. A euforia de fazer qualquer coisa por si só o
dominou quando se percebeu completamente de pé. Dobrou-se para frente e,
ainda apoiado na borda, passou as pernas para fora da banheira.
Hurit deixara uma toalha para ele. Havia um espelho sobre a pia e, apesar
dos vapores terem-no embaçado, Matwan quis se ver. A face que ele não
reconhecia apareceu no pedaço de vidro e ele gastou algum tempo olhando
para a barba que crescera em seu queixo - não estava tão longa, o que sugeria
que Hurit também cuidara daquele aspecto. Imaginou-se deitado e dormindo
enquanto ela o banhava, barbeava e cortava o cabelo. Não foram tantos dias,
mas a sua aparência era a de quem não fora negligenciado nem mesmo por
algumas horas.
— Matwan? — Ela chamou, do outro lado da cortina.
— Já estou saindo.
Ela enfiou a cabeça para dentro e fez uma careta ao vê-lo fora da água e
constatar que ele não a chamara. Abriu a cortina com a expressão de que o
repreenderia, porém não o fez. Com a toalha enrolada no quadril e o
ferimento exposto ele se sentia ainda mais vulnerável quando ela indicou que
deveria sentar-se na cama.
— Dói? — Hurit pressionou os dedos pequenos no ferimento, na parte da
frente.
— Bastante.
— Foi muito profundo. — Ela se virou e pegou um pote de metal que,
aberto, exalava um cheiro delicioso. — Refarei o curativo, tenho algumas
coisas para você.
Matwan não se moveu, apenas esperou que ela realizasse sua mágica.
Habilidosa, ela espalhou o unguento sobre os pontos, dos dois lados, e cobriu
com tecido limpo. Pegou uma bandagem e enrolou ao redor do quadril dele,
cuidando para livrar a toalha. Afastou-se, admirou sua obra e saiu. Voltou
antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa, carregando uma caixa grande
de madeira. Colocou o objeto no meio da sala e pegou uma camisa branca
dentro.
— Deve servir em você. Vista-a.
— Você tem camisas masculinas escondidas pela casa?
— Eram do meu irmão, Keme. Minha mãe achou por bem dá-las a você,
sinta-se honrado em vestir qualquer coisa que tenha pertencido a ele. Keme
era um ótimo homem. Ele seria o líder da tribo, se vocês não o tivessem
matado.
A forma como ela disse aquilo o atingiu diretamente no peito. Matwan
estava passando a camisa pelos braços e quase congelou ao ouvi-la dizer que
“eles” o mataram. Não sabia quem eram eles, mas ela parecia acreditar que
ele estava envolvido.
— Nós?
— Os brancos.
— Eu sinto muito, Hurit. — Matwan terminou de vestir a camisa, que lhe
serviu quase perfeitamente. — Mas não acredita que eu tive algo a ver com
isso, acredita? Quero dizer, não lembro quem sou, mas…
— Você não teve nada a ver com isso. — A voz dela carregava dor e
raiva, sentimentos ruins que apareciam no fundo dos olhos escuros. — Sei
quem matou meu irmão e nenhum de seus assassinos pagou por sua morte,
pois os brancos não punem os seus quando a vítima é um de nós. Para seus
juízes, meu irmão provocou seus algozes ao impedi-los de espancar uma
prostituta.
Ela se agachou e voltou a remexer na caixa. Matwan tirou a camisa e
colocou-a sobre a cama, alisando o tecido para que não contivesse nenhuma
dobra. Quando ela se ergueu, segurando dois livros nas mãos, encontrou-o
novamente com o peito despido.
— Não me sinto merecedor para usá-la.
— É um presente de minha mãe. Ela ficará ofendida se recusar.
— Sua mãe trouxe essa caixa?
— Sim, são coisas que ela achou que te ajudariam a passar o tempo
enquanto se cura. Amonute é uma pessoa boa, Matwan, aceite o presente.
Hurit pegou a camisa e colocou sobre seus ombros, forçando-o a vesti-la.
Fechou cada botão com a mesma habilidade que demonstrara cuidando do
ferimento.
— Livros? — Ele afastou os olhos dos dela para evitar perder-se neles.
Pegou o que ela tinha deixado sobre a cama sem nem mesmo prestar atenção
no que era. — Sua mãe achou que eu gostaria de ler… Jane Austen?
Abrindo o livro em uma página aleatória, ele escolheu uma citação
qualquer e a leu em voz alta. “Não é o tempo nem a oportunidade que
determinam a intimidade, é só a disposição. Sete anos seriam insuficientes
para algumas pessoas se conhecerem, e sete dias são mais que suficientes
para outras.” O sorriso que abrira morreu em seus lábios no instante em que
terminou de dizer as palavras. Sete dias. Sete anos. Ele estava tão confortável
na presença daquela desconhecida, sentia-se tão bem ao lado dela que era
como se a conhecesse há anos.
— Você gosta de Jane Austen?
— Nunca a li, mas posso gostar. É uma autora feminina, imagino que
tenha escrito para mulheres. Lerei para você, em voz alta.
— Não.
— Não?
— Não gosto de romances, não os leio nem desejo que leiam para mim.
Romances são lendas, fábulas, o que precisamos na vida é solidez, confiança
e companheirismo. Livros como esse querem convencer mulheres que elas
desejam um amor romântico, mas não é disso que precisamos.
Ele continuou folheando o livro, um pouco assustado com a rudeza das
palavras dela. Hurit estava dura naquela tarde, demonstrando uma frustração
com algo que ele não identificava. Entendera que ela sofria com a morte do
irmão e não ousaria perguntar sobre o assunto, mas a revolta com o amor
estava além de sua compreensão.
— Então esse livro lhe soará adequado. Parece que a autora também tinha
suas restrições quanto ao romance. “Por mais fascinante que seja a ideia de
um único e constante amor e apesar de tudo que se possa dizer sobre a
felicidade de alguém depender completamente de uma pessoa determinada, as
coisas não devem ser assim, nem é adequado ou possível que o sejam.” Tem
certeza de que foi uma mulher que escreveu isso? Jane Austen não era um
homem disfarçado?
— Não seja tolo! — Ela tomou o livro de suas mãos. — Você não lerá
romances para mim, Matwan.
Talvez tenha sido a determinação com a qual ela dissera as palavras, ou a
expressão irritada que ficava linda em sua face delicada. Poderia também ter
sido o fato de que ele suspeitava que, em sua vida passada, fora um homem
que se divertia em provocar as pessoas. Também suspeitou que o bom humor
fosse uma de suas características. Mas, naquele instante, Matwan decidiu que
sim, ele leria romances para Hurit. Leria todos os livros que estavam naquela
caixa em voz alta, sempre quando ela estivesse em casa, e a obrigaria a ouvir
cada palavra.
CAPÍTULO QUINTO

E LA PASSOU PARTE DA NOITE COSTURANDO . D EPOIS QUE M ATWAN A DEIXOU


em paz e parou de desconcentrá-la com livros e outras bobagens, ela
conseguiu se debruçar sobre as peças de roupas que precisava reparar e sobre
as calças que foram cortadas para que ele tivesse o que vestir. Maldisse os
deuses diversas vezes enquanto furava os dedos pelo trabalho à fraca luz,
blasfemou contra toda a divindade quando seu corpo, exausto demais para
suportar continuar acordado, precisou se acomodar no chão. Mas sua irritação
passou logo, assim que ela se sentiu abraçada pelo sono e pode sonhar.
Era o segundo sonho que tinha com o lobo branco. Ele tinha o pelo macio
e os olhos intensamente azuis - manso, permitia que ela o tocasse e
acariciasse. Hurit acreditava que o lobo lhe sorria, porém era loucura - lobos
não sorriam. Durante todo o restante da noite ela correu pelos campos com o
lobo em sua companhia, em uma época em que os Shinnecocks pertenciam à
terra e a terra pertencia a eles. Em uma época em que não havia pistolas nem
máquinas nem homens brancos com suas mulheres soberbas. Ela não
conhecia aquela época, mas o sonho a transportava para lá, para longe.
Quando despertou, encontrou Matwan já acordado, folheando os livros
que sua mãe deixara. Amonute estava certa, ela deveria colocá-lo para fazer
qualquer coisa - mas ler aqueles romances não parecia a melhor opção.
— Bom dia. — Ele lhe sorriu. — Estou adorando conhecer o Sr. Darcy.
Você já foi apresentada a ele?
Matwan virou para ela a capa de couro do livro, onde se lia “Orgulho e
Preconceito”. Sim, ela conhecia o Sr. Darcy e o considerou bastante tolo por
várias razões.
— Já e não nos demos muito bem. Como passou a noite?
— Muito bem, mas estou me sentindo mal por vê-la dormir no chão. Não
há nada que eu possa fazer para remediar isso?
— Não. — Hurit pegou uma das calças que costurara de noite e entregou
a ele. — Mas ajudaria se experimentasse isso.
— Outro presente de sua mãe?
— Não, esse fui eu quem costurou. Cortamos usando suas próprias calças
como modelo, espero que fique boa. Não deixe que pegue sobre o ferimento.
Ela vagou até o banheiro, onde lavou o rosto e ajeitou as tranças.
Precisava lavar os cabelos, lavar roupas e arrumar a casa. Tinha tarefas que
ocupariam seu dia e não lhe permitiriam pensar nas tolices do homem que,
acordado, era bastante irritante. Ao chegar à cozinha, encontrou-o vestido,
remexendo nas panelas e enchendo a chaleira de água. Talvez ela não
conseguisse livrar-se dele e precisasse chamar ajuda.
Apesar da irritação que ele causava, ela não o expulsou. Deixou que
fizesse pequenas tarefas e que a ajudasse a preparar a refeição da manhã.
Matwan não falou nada, não fez nenhuma provocação nem comentário que a
fizesse se arrepender de tê-lo tratado bem até naquele momento. Ao
contrário, esperou que ela indicasse o caminho que deveria seguir, que
dissesse o que ele deveria ou poderia fazer. Prepararam raízes e ovos, coaram
café e, depois de comer, ele a acompanhou até o lado de fora ainda em
silêncio.
— Você se parece com o Sr. Darcy.
Matwan sentou-se em um banco de pedra que ficava na lateral da casa,
para onde foram. Ela pensou que se livraria do falatório e do interrogatório
dele, mas enganou-se. Decidiu apenas conversar enquanto lavava as roupas,
ao menos o tempo passaria mais rápido. Não que ela quisesse conversar, ela
queria mantê-lo por perto.
— Como eu posso me parecer com Darcy? Ele é homem e é branco.
— Ele é ranzinza. Você seria uma péssima Sra. Darcy, ele precisa de uma
dama espontânea como a Srta. Bennet. Você também precisa de alguém
espontâneo. Seu noivo, como ele é?
Hurit encheu a tina de madeira com água e colocou as roupas sujas.
Aquele assunto não era de seu interesse.
— Não interessa a você como Kitchi é. Se quiser, posso convidá-lo para
um jantar, assim pode lhe fazer essa pergunta.
— Eu aposto que ele é um homem igual a você. Sério, correto,
perfeitamente adequado. Provavelmente, o noivo ideal para a filha do grande
chefe.
— Talvez você deva retornar para a casa. Termine o livro, deixe-me
trabalhar.
— Não quero ser inconveniente, ficarei em silêncio a partir de agora.
Claro que ele não ficaria. A promessa de paz não durou mais do que meia
hora. Ela conseguira lavar uma pequena parte da roupa e estender lençóis e
algumas blusas, mas se perdia toda vez que olhava para ele. Matwan olhava
para o movimento na aldeia, olhava para a água, olhava para as árvores,
olhava para ela. Quando aquilo acontecia e os olhares se encontravam, ele
sorria. Sua tranquilidade observando tudo e todos era intrigante, como se
contemplar fosse algo que ele gostasse de fazer.
Aquilo a confundia. Os homens brancos que conhecia eram pouco
contemplativos e aquele, em especial, tinha mãos de um trabalhador.
— Você trabalha?
Ele perguntou e a fez retornar para a realidade. Hurit estava com os olhos
fixados nele, que prestava atenção no movimento da aldeia. Ela já havia
esfregado a mesma peça de roupa por algum tempo.
— As mulheres cuidam da horta, costuram, cuidam das casas e das
crianças e algumas de nós fazem artesanato e vendem para turistas de
Southampton. Muita gente vem para conhecer nossas praias e, apesar do
desprezo que sentem por nós, gostam de nossos bordados e enfeites.
— Quando você fala me parece que a aldeia é uma grande família.
— Talvez você possa pensar assim.
Quando Hurit percebeu, estava ao lado dele, tentando olhar para o mesmo
lugar que ele olhava. Matwan apontou para uma mulher carregando uma
criança.
— Quem ela é? Já a vi passar várias vezes.
— É Nuna. Ela é prima de Kitchi e tem cinco crianças.
— Cinco? — A voz dele saiu estridente. — Ela parece tão jovem para ter
tantos filhos!
— Nuna é um caso intrigante. Ela teve três gestações, em duas delas
vieram crianças gêmeas. É raro que isso aconteça por aqui. O marido dela,
Etchemin, é admirado porque consegue sustentar tantas bocas. Ele é
pescador, um dos melhores homens da cidade. Mas viaja com frequência para
o mar e a deixa muito preocupada.
Era possível que ela não percebesse seus movimentos, mas Hurit deslizou
lentamente para o banco onde Matwan estava sentado. Acomodou-se na
beirada, o mais afastado dele que poderia ficar.
— E ele?
— Askook. Tem apenas quinze anos, mas é grande como um gigante.
Estuda na cidade e é muito inteligente. Seu pai quer pagar para que ele vá
estudar na faculdade dos brancos, porém isso é motivo de conflito na família.
— O que pensa Askook?
— Ele quer estudar, mas precisa do dinheiro dos pais para isso.
Matwan observou o jovem Shinnecock em silêncio por alguns segundos.
Askook era alto, esguio, magricela. Tinha ossos largos e muita agilidade,
movendo-se entre as pessoas com habilidade. Era exímio atirador com arco e
flecha, mesmo que ninguém mais usasse aquele instrumento para nada.
Também pescava bem com a lança. Hurit pensou que ele gostaria de
conversar com o forasteiro, mas prometera a seu pai que o manteria longe da
aldeia.
— Onde fica a casa de seus pais?
— É aquela perto da grande fogueira. — Hurit esticou o braço e apontou
em uma direção.
— Não vejo uma fogueira.
— Porque ela está apagada, tolo.
Matwan riu e virou o rosto na direção dela, fazendo com que percebesse o
quanto eles estavam próximos. Ele sustentou o sorriso por alguns segundos
apenas, não conseguindo impedir que ele murchasse. Hurit baixou o braço
devagar, roçando de leve no queixo barbado de Matwan, o que fez sua pele
pinicar. Com cuidado para não fazer nenhum movimento brusco e acabar
tocando-o novamente, ela se levantou.
— Você precisa se barbear. Quando entrarmos, resolveremos isso.

E LE ESTAVA se divertindo em provocar Hurit, mas acabara provocado por ela.


A mulher estava sempre zangada e o afetava de uma forma diferente. Não
que ele tivesse muito com o que comparar, mas o episódio que acabara de
ocorrer o fez considerar que qualquer coisa que houvesse entre eles era um
problema.
Um problema que cresceu quando ele a viu organizar os instrumentos
para barbeá-lo, ou quando ela ordenou que ele se sentasse em uma cadeira na
cozinha, sem lhe permitir a oportunidade de recusar. Era problema que ele
desejasse experimentar o toque macio dos dedos dela em seu pescoço, em sua
pele, mesmo que ela agisse como dinamite prestes a explodir e estivesse
armada com uma navalha.
Ele se sentou, se acomodou na cadeira indicada e esperou. Hurit parou em
sua frente e espalhou espuma em seu rosto, causando um breve espasmo com
a sensação fria. Ela hesitou antes de levar a navalha até ele e raspar um
pedaço da barba.
— Era mais fácil com você dormindo.
— Posso deitar-me, se quiser.
— Na verdade, era mais fácil porque você não me encarava. Seus olhos
me deixam nervosa.
Como ela disse aquilo com uma nota de humor na voz, ele não
interpretou como uma ofensa. Ela não o ofenderia, tudo nela era um convite
para a provocação - mas, quando ela portava uma arma letal a milímetros de
sua garganta, Matwan achou prudente fechar os olhos e deixar que ela agisse.
As sensações se maximizaram, o que foi terrível. Sem poder ver, sem
antecipar o que ela faria, cada toque era como se os punhos de um boxeador o
atingissem no meio da face - e ele se pegou desejando o soco.
— Você já fez isso, antes?
— Duas vezes. Sua barba cresce como mato.
— Tomarei isso como elogio. — Ele se controlou para não rir, já que ela
estava passando a navalha na direção de seu nariz. — Então fui seu primeiro?
— Não tive outro homem antes de você.
A frase ficou suspensa no ar. Ela não tinha intenção de complementá-la e
o sentido empregado era perfeitamente compreensível - ao mesmo tempo que
deixava muitas coisas não ditas. Ele não era o homem dela. Ela não era a
mulher dele. Mesmo que eles estivessem ali, há poucos dias, unidos pelo que
parecia um destino irresistível, Matwan sabia que era apenas isso - ela o
enfrentava como um desafio.
Ainda assim, ele sentiu alguma glória com aquela frase. Havia uma
relação direta entre ser o primeiro de uma mulher e a virilidade masculina.
Mesmo que ele soubesse que ela estava falando exclusivamente do simples
ato de fazer uma barba.
— Posso assumir essa tarefa da próxima vez. O pincel e a navalha, você
tomou emprestado?
— Eles foram comprados novos. — Hurit continuou deslizando a navalha
pela pele e levando os pelos com ela. — Imaginei que se tratasse de um
objeto pessoal demais para ser compartilhado.
Aquilo o tocou ainda mais profundamente. Ela se preocupara com ele a
ponto de gastar dinheiro para agradá-lo, mesmo possuindo tão pouco?
— É pessoal. — Matwan abriu os olhos. — E você não precisava ter feito
isso. Por que gastar seu dinheiro comigo?
— Eu não ligo para o dinheiro dos brancos, Matwan. — Ela se afastou
um pouco e o olhou, analisando como ficara o trabalho. — Está bom,
acredito. Pode conferir no espelho do banheiro.
— Confio em você. — Ele sorriu.
— Por quê?
— Apenas confio.
Ele se levantou e sentiu mais uma fisgada no ferimento. Estava há muito
tempo fora da cama e agindo como se não tivesse quase morrido, dias atrás.
Sua expressão deixou transparecer a dor e Hurit o segurou pelo braço.
— Você precisa se deitar. — Ela o puxou para a sala. — Ainda está muito
fraco. Descanse um pouco, leia, eu cozinharei e trabalharei. Quer um pouco
de láudano?
— Não. — Ele balançou a cabeça. — Vai passar.
Hurit concordou e o ajudou a se deitar. Vestido com calça e camisa,
Matwan sentia-se melhor, menos exposto e com mais dignidade. Não estava
refém do cobertor e, com a descoberta do banheiro há poucos passos, sabia
que não teria mais acidentes como o que protagonizara antes.
Pegou o livro que usava para provocar Hurit e decidiu que o leria - mas
em voz alta, interpretando cada cena, a fim de obrigá-la a ouvir. Não
acreditava que ela odiasse romances ou repudiasse o sentimento. Ela era uma
mulher e toda mulher que conhecia sonhava com amores e príncipes
encantados. Por que Hurit seria diferente?
Ele descobriria. Pelo momento, estava satisfeito em troçar lendo Jane
Austen para a sua anfitriã.

O S HOMENS da tribo iam de carroça para a cidade toda manhã. Com o


empobrecimento da tribo e a redução forçada de seu território, muitos
Shinnecocks trabalhavam com os navios pesqueiros e nas construções. O
homem branco parecia incansável em sua sanha de aumentar cada vez mais
os prédios e destruir tudo ao redor.
Kitchi precisava do emprego com a empreiteira que dava preferência aos
homens de sua tribo. Não acreditava que o senhor simpático que lhe pagava
um salário menos miserável que os outros fizesse aquilo por pura bondade.
Acreditava que ele, assim como seus amigos, era uma força bruta e obediente
que evitava confusão e trabalhava com muito afinco.
Tirando aqueles que se perderam para o vício e passaram a ser fardos para
suas famílias, os homens Shinnecock não bebiam ou procuravam diversões
que os brancos consideravam pecaminosas. A maioria casava-se cedo e era
feliz com suas esposas. Não tinham o hábito de jogar e preferiam passar o
tempo na aldeia. Depois da morte de Keme, os Shinnecocks ficaram ainda
mais temerosos de ocupar os espaços de vícios controlados pelos brancos.
Então, eles eram escolhidos porque eram bons e faziam o serviço.
— Você pretende ir para Nova Iorque?
Etchemin perguntou assim que chegaram ao canteiro de obras.
— Sim. E você, também irá?
— Não, eu consegui dois navios pesqueiros para trabalhar nesse período.
Não devo ficar tão longe de casa, Nuna aprecia minha companhia.
— Não está pensando em fazer mais filhos, está?
— Claro que não! — Etchemin deu uma risada alta. — Nem toda
interação com minha esposa precisa resultar em bebês, Kitchi. Acho que você
deveria se casar, faça o pedido a Hurit.
Ele queria, mas sabia que ela o recusaria. Se propusesse casamento a
Hurit antes que ela estivesse pronta, ela diria não. Naquele momento, ela não
estava pronta.
— Nem eu nem Hurit temos pressa.
— Bobagem. Tome-a como mulher, vocês são prometidos desde que ela
tinha dezesseis. Forme sua família antes que fique velho para isso.
Etchemin deu um tapinha no ombro de Kitchi e saiu, deixando-o
pensativo. Havia razão naquelas palavras e ele suspeitava que estava sendo
enrolado por sua noiva. Já queria estar casado com ela, mas Hurit sempre
dizia que precisava cumprir sua missão, que precisava do lobo branco. Ela e
Wematin viviam presos àquela visão e isso sempre o colocava em segundo
plano.
O lobo branco aparecera e era bem diferente do que Kitchi imaginava.
Não era um lobo, mas um homem muito inconveniente. Roubava-lhe o tempo
com sua noiva, afastava-a dele, e o deixava enciumado. Sim, ele tinha ciúmes
do homem doente que Hurit decidira tratar porque aquele homem ocupava
mais espaço na vida dela do que ele.
E Kitchi tinha dúvidas sobre o papel daquele forasteiro na vida de sua
noiva. Tudo aquilo deixou sua cabeça confusa e anuviada, atrapalhando sua
concentração para o trabalho. Precisava dizer a Hurit que iria para Nova
Iorque trabalhar e que, quando retornasse, ele a tomaria como esposa. Não
importava se precisasse tolerar o tal lobo branco em sua casa, ao menos ele
estaria por perto para vigiá-lo.

O SOM que chamava Hurit era um lamento, não uma voz. Ela já o ouvira
antes e não conseguia saber de onde vinha. Despertada pelos lamúrios, pegou
a lamparina maior e deixou a casa.
— Quem está aí?
Perguntou para o silêncio escuro da noite. Se ela apurasse os ouvidos,
conseguiria ouvir as ondas arrebentando na praia - o mar estava agitado e o
vento sibilava entre as folhagens.
Intrigada, deu algumas voltas ao redor da cabana. A aldeia inteira dormia,
não havia qualquer sinal da presença humana em um raio de muitos metros.
O lamento ecoou novamente e ela entendeu que não era uma pessoa tentando
passar um recado.
Aquele era Hoobamack falando com ela.
Toda noite, Hurit pedia por orientação. Pedia que o espírito a guiasse e
conduzisse pelos caminhos difíceis que deveria seguir. Pedia sabedoria e
resiliência que eram necessárias para enfrentar os desafios - mas nunca fora
diretamente respondida. Ela sentia que recebia as bênçãos de Hoobamack
desde a infância, porém só o vira e ouvira uma vez.
Mas ele estava chamando-a. Hurit se sentou à beira da água e apagou a
lamparina. A escuridão a engoliu e seria difícil voltar para a cabana, mas ela
não se importou. Fechou os olhos, respirou fundo e os abriu novamente.
Havia uma serpente à sua frente.
“Você tem dúvidas.”
A serpente sibilou e Hurit compreendeu como se as palavras estivessem
farfalhando com o vento.
— Eu não sei o que estou fazendo. Por que Paumpagussit me enviou esse
homem? Por que ele está na minha vida? O que significa o lobo branco?
“Hurit leva tudo a sério desde jovem. O que disse o xamã sobre a visão
do lobo?”
— Nós estávamos brincando. Corríamos pelos campos.
“A menina Hurit parou de brincar. Talvez as respostas não venham
porque as perguntas estejam erradas. Hurit perguntou o que ela pode fazer na
vida do lobo branco?”
Ela encarou a serpente. O animal a assustaria se não fosse a representação
de um deus.
— Hoobamack me orienta a considerar que eu esteja no destino dele e
não o contrário? Que a sua quase morte foi uma provação para o branco e não
para mim?
“O destino de um pode ser feito de dois, criança. Olhe mais para dentro
de si e menos para o lado de fora. Se não encontrar as respostas é porque
talvez já as saiba.”
A serpente sibilou e rastejou para longe, desaparecendo na escuridão.
Aquela fora uma experiência intrigante, talvez a mais confusa que já vivera.
Em toda a sua vida ainda não conversara com nenhum espírito - e duvidava
que o xamã tivesse conversando com qualquer deles. Deuses não tomavam
chá com os mortais em um dia de chuva, mas Hoobamack aparecera para ela
e a fizera duvidar de suas certezas. Ao menos, ele a tentou.
Abatida pelo sono, Hurit cambaleou de volta para a cabana, tropeçando
pelo caminho, até desabar na cama e adormecer.

O SOL da manhã não a despertou. A claridade do dia não a fez saudar o sol e
se levantar para mais um dia. Com o corpo estranhamente exausto, Hurit
sucumbiu a um sono profundo até sentir uma carícia em sua face.
Ninguém a acariciava. A mãe não fazia aquilo há anos. O pai não era uma
pessoa que costumava distribuir afeto, apesar de sempre demonstrar o quanto
a amava. E Kitchi não possuía aquela liberdade - não enquanto ela estivesse
dormindo em sua própria cama.
Mas Hurit não deveria estar em sua cama. Ela dormia no chão, enrolada
próxima da janela desde que o Matwan chegara. Aquela superfície macia sob
seu corpo estava incorreta. E o cheiro de unguento com suor e pele masculina
que preencheu suas narinas a fez abrir um olho e observar ao redor.
Os dedos que lhe acariciavam a face eram os dele. Matwan lhe sorria com
os olhos mais azuis que existiam em toda a humanidade. Ainda tentando
compreender seu entorno ela abriu o outro olho. Estava deitada em sua cama,
ao lado do forasteiro, e teve imediata certeza de que dormira ali. Se não a
noite toda, pelo menos boa parte dela.
— Você está bem?
Ele perguntou com uma voz rouca que quase a fez cair do colchão.
— Estou confusa. Não sei o que pode ter acontecido.
— Você deve ter acordado e errado a cama. — Ele riu. — Dormiu bem?
— Você percebeu que eu estava aqui e não me acordou para eu voltar
para o chão?
Hurit sentou-se de súbito, indignada. Sentiu tontura, quis deitar-se de
novo, mas precisava manter-se longe daquele homem.
— Acalme-se. — Ele também se sentou. — Eu não percebi nada, apenas
acordei e a encontrei aqui. Basta fingirmos que nada aconteceu e será como
se nada tivesse acontecido.
Parecia uma boa proposta, se ela pudesse funcionar. Hurit duvidava que
seu corpo apagaria os sentidos apenas porque ela assim desejava - e todos os
seus sentidos estavam em alerta naquele momento. Com cautela, ela
escorregou para fora da cama como se ali estivesse uma doença contagiosa e
deu alguns passos para trás, quase tropeçando no colchão onde dormia. O
homem a olhava sem compreender o que a fizera acordar tão assustada - o
que nem ela mesma compreendia.
Havia limites que Hurit não podia cruzar. Evitar a proximidade com
Matwan era um dogma, uma regra que não podia se atrever a quebrar. Mas,
depois da visita estranha de Hoobamack na noite anterior, ela não sabia mais
no que acreditar e não entendia mais seu papel naquela visão do xamã. Em
nenhum momento ela se questionou sobre para quem a visão serviria. Claro
que os deuses enviariam a Wematin uma profecia que tratasse da futura líder
da tribo, não de um homem branco qualquer. Mas - e se ele não fosse um
homem qualquer?
— Terei que me ausentar agora de manhã. — Ela inventou uma desculpa
para não precisar permanecer ao lado de Matwan enquanto estava tão
confusa. — Crê que consegue passar algumas horas sozinho ou preciso
chamar Wapun?
— Apesar de me divertir com sua amiga, posso permanecer sozinho até
seu retorno.
Ele sorriu e era um sorriso perturbador. Por certo ela estava ainda abalada
por descobrir que dormira ao lado dele, em contato com aquele corpo
masculino, aquela pele quente e perfumada, aqueles músculos firmes e...
Hurit se sacudiu, nervosa com os pensamentos insolentes. Ela precisava sair
daquela cabana. Um pouco de tempo cuidando de assuntos da tribo a faria
retornar à sua forma.
CAPÍTULO SEXTO

E LA SAIU CORRENDO . D ORMIU NA CAMA AO LADO DELE E , AO DESPERTAR DE


manhã, parecia nervosa até sair apressada e deixá-lo sozinho. Ele não sabia o
que sentir, nem entendia aquela conexão com uma mulher desconhecida e
que não parecia gostar dele em nada - mas a conexão existia e o confundia.
Quanto mais autonomia conquistava, menos ela se importava com ele. Não,
não era verdade. Ela era sempre cuidadosa, garantindo que ele tivesse roupas
limpas, alimento e um lugar confortável para dormir. Mas era apenas isso, o
cuidado de uma ama ou de uma governanta.
Mas ele estava ali desejando que ela se importasse com ele como uma
mulher se importa com um homem.
Não fazia sentido. Assim que recuperasse a saúde e a memória ele iria
embora daquela aldeia e nunca mais retornaria. Hurit seria uma lembrança no
seu passado, uma história que ele contaria aos filhos e netos, quando os
tivesse. Caminhando com dificuldade, Matwan saiu da cabana e olhou para a
paisagem que pouco tivera a oportunidade de conhecer. Já era quase meio-
dia, ele levou muito tempo para conseguir se levantar, preparar uma refeição
e comer. Depois, mais outro tanto de tempo se vestindo. Uma brisa fresca e
marinha atingiu sua face como uma carícia e o aroma do mar lhe trouxe
lembranças desconectadas. As ondas do mar, crianças brincando na praia,
vozes masculinas, uma janela.
Continuava a sentir como se sempre tivesse sido daquela forma. Ele
doente, assistindo a vida acontecer à sua margem. Talvez fosse uma memória
ou seu cérebro estava lhe pregando peças.
A cabana de Hurit era pequena por fora. Parecia menor, feita de uma
estrutura precária e encrustada entre árvores e próxima de um rio. Ele sentia
calor, adoraria banhar-se naquelas águas que eram, provavelmente, muito
frias. Deu mais alguns passos para ver as outras casas, um pouco afastadas, e
um grande monumento de madeira alguns metros à frente. Não havia sinal de
ninguém por perto, nem mesmo de Hurit.
Não entendia por que ela se irritara com ele. Desde que acordara e
retomara sua consciência, tudo que Matwan queria era ver Hurit sorrir.
Quando acordou ao lado dela, teve certeza de que aquela mulher era um anjo.
Ela o fascinava e talvez aquele fosse o problema. Talvez mulheres como ela
não lidassem muito bem com a obsessão masculina. Com mais alguns passos
ele chegou ao curso de água e sentou-se na pedra escura que estava à beira.
Colocou os dois pés para dentro do riacho e fechou os olhos para aproveitar o
prazer do frescor em sua pele.
Não havia ninguém por ali, o que o autorizava a despir-se e entrar na
água. Provavelmente ele nunca faria isso em sua vida fora daquela aldeia,
mas sentiu-se ousado o suficiente para desafiar a decência. Levou a mão ao
ferimento e conferiu que ele estava com uma aparência saudável, se ele
soubesse o que isso significava. Ouvira Hurit dizer que as crostas de sangue
eram bom sinal e que os pontos não deveriam estar envoltos em bolhas de
secreção. Tendo certeza de que molhar a ferida não poderia agravá-la, decidiu
fazer a travessura de banhar-se no riacho. Ergueu-se, retirou as calças e deu
dois passos para o centro do curso de água, praguejando enquanto seu corpo
se acostumava com a súbita mudança de temperatura.
— Maldição. — Rosnou, sentindo os calafrios percorrem-lhe o corpo. O
queixo tremia e fazia os dentes baterem uns contra os outros. — Que ideia
horrível foi entrar nesse maldito rio.
— Essa deve ter sido a pior ideia que já teve na vida.
A voz de Hurit fez com que Matwan se sobressaltasse. Por sorte já estava
com água acima da cintura, ou ficaria deveras constrangido por estar nu na
presença da mulher que o vira desse jeito por diversos dias, até então.
— Não imaginei que a água fosse gelada. Está tão quente.
— Essas águas só esquentam no verão, Matwan. — Ela se sentou na
pedra que ele desocupara e o observou. — Mergulhe, pode ajudar a
acostumar-se com a temperatura.
— Você enlouqueceu. — Ele riu, nervoso. — Vire-se para que eu possa
sair, por favor.
— Não seja tolo. Mergulhe.
Ela fez um gesto com as mãos, indicando o movimento que ele deveria
fazer. Percebendo que aquilo a agradaria, Matwau decidiu obedecê-la e
enfiou o restante do corpo na água gelada, dobrando os joelhos e jogando-se
para trás. O impacto quase o fez pular de volta, mas foram segundos gastos
até que o frio se tornou suportável. Quando emergiu, ela ainda o observava e
sorria.
Sim, era aquele o sorriso que ele esperava ver e que o compeliu a sorrir
de volta. Por um breve instante, os olhares se encontraram e eles sorriram
juntos até que Hurit se percebeu vulnerável e se fechou outra vez dentro de
sua couraça impenetrável. A face alegre da mulher deu lugar às linhas duras e
rígidas das expressões que ela vinha lhe dedicando durante aqueles poucos
dias em que estava acordado. Teria sido ela tão inflexível assim enquanto ele
dormia?
— Você tinha razão, está mais suportável, agora.
— Vou deixar que termine seu banho e entrarei para preparar a refeição
do meio-dia.
Segurando uma cesta de palha nas mãos, a mulher fez menção de afastar-
se. Ele não queria que ela o deixasse ali. Sem entender se a carência era
causada pela fragilidade de seu corpo ou de sua mente, Matwan tentou
impedi-la.
— Acha que a tribo me aceitará se eu não recuperar a memória?
A pergunta impulsiva fez com que Hurit parasse e girasse no próprio eixo
para fitá-lo com as sobrancelhas unidas. Ela estava com os cabelos enfeitados
por cordões amarelos e usava uma espécie de saia amarrada no meio, que se
assemelhava a calças muito largas. Apesar da simplicidade, ela estava linda.
— Por que acha que não recuperará suas lembranças?
— Você disse que elas me foram roubadas. E se não quiserem devolvê-
las?
— Hoobamack as devolverá. — Hurit voltou a aproximar-se e apoiou a
cesta. — Sei que não confia nos meus deuses, já que sua crença é diferente da
minha. Mas confie em mim. Até agora não venho cuidando de você e
restaurando sua saúde?
— Sim, você está fazendo exatamente isso. Mas, se algo der errado,
Hurit, eu não terei para onde ir. Não saberei quem sou nem terei uma
profissão.
Ela balançou a cabeça e, em um repente, deixou-o ali. Entrou na casa e
voltou em seguida com uma toalha, que depositou sobre a pedra escura.
— Preocupe-se com um dia de cada vez, Matwan. Quando estiver curado,
pode tentar conquistar o respeito da tribo. Talvez eles possam aceitá-lo.
— E o seu respeito, Hurit? Há alguma chance de consegui-lo?
Com uma respiração profunda e lenta, ela olhou para o chão de terra e
folhas e o fitou por um minuto inteiro. Depois, virou-se novamente e levou a
cesta para dentro da cabana, sem respondê-lo. Ele não sabia o que a fizera
odiar tanto os brancos ou se o ódio no coração dela era direcionado apenas a
ele, mas Matwau duvidava que sua principal preocupação fosse mesmo com
suas memórias. O que ele queria, no fundo, era a aceitação de Hurit. Era que
ela parasse de vê-lo como o inimigo e lhe batizasse com um nome que não
indicasse desprezo.

D EPOIS DE DESPEJAR os vegetais sobre a bancada e começar a picá-los com


uma faca afiada, Hurit sentiu as pernas bambas e precisou sentar-se por
alguns minutos. Ela não se importava com a aparência física dele, nem com a
voz grave que ressoava em sua alma. Vira Matwan sem roupas, em seu pior
e, depois de quase recuperado, em seu melhor. Talvez, completamente
saudável, ele fosse ainda mais bonito e tivesse um corpo ainda mais bem
formado do que aquele que se exibia diariamente para ela. Para um homem
branco, ele era lindo.
Mas nada daquilo a perturbava de verdade. Kitchi era lindo. Havia outros
homens lindos na tribo. A beleza física era impactante, mas não determinante
para seu interesse. O que a deixava daquele jeito, desorientada, era a forma
como ele a encarava. Os olhos azuis tinham a cor do oceano e pareciam
conter Paumpagussit dentro deles. Havia manitou naquele homem e para isso
ela não estava preparada - Hurit acreditava que nenhum branco poderia
exteriorizar a divindade, mas aquele era exceção.
Por que, ela não entendia. Sua vida era simples e tranquila, estava
planejada e traçada desde o seu nascimento. Apesar dos temores, ela sabia
bem o que aconteceria - casar-se-ia com Kitchi, assumiria a liderança da tribo
quando seu pai fosse ao encontro dos espíritos ancestrais e se tornaria a nova
xamã da tribo, quando Wematin quisesse se aposentar. Teria filhos, para
quem ensinaria os valores do seu povo, e ajudaria a aldeia a se manter
íntegra. Por mais que todos dissessem o contrário ela não via grandes feitos
ou realizações, mas uma vida de paz com um objetivo bem definido.
Então, por que os deuses decidiram complicar tudo enviando-lhe aquele
maldito homem que, quando a olhava, desencaixava todas as peças em seu
interior e a fazia sentir como se pudesse desfazer-se e escorrer pelo chão? Por
que Hoobamak apareceu para ela e ofereceu mais perguntas que respostas?
Ela precisava colocar barreiras entre eles, construir cercas e erguer muros,
mas não conseguia. Ele estava sempre ali, em todo lugar, falando com ela o
tempo todo e obrigando-a a notá-lo.
Deixá-lo era difícil. Afastar-se dele era difícil. Manter-se imune a ele era
impossível.
— Eu acho que morava perto do mar.
Impossível. Hurit fechou os olhos e levantou-se, retornando à sua tarefa
na cozinha sem virar-se para vê-lo entrar.
— Não quer saber por quê?
— Você me contará de qualquer jeito. — Ela rosnou. — Está vestido?
— Faz alguma diferença?
— Pegue uma faca e ajude-me com a comida.
Hurit entregou a ele a faca e se afastou, dando espaço para que Matwan
picasse os vegetais. Ele não parecia muito habilidoso ao cortar cenouras e
batatas, mas provavelmente não causaria nenhum acidente.
— O cheiro de mar me faz lembrar de uma janela.
— E por que uma janela representa o lar, para você?
— É como se eu estivesse de um lado da janela e o mar, de outro. Há
crianças que brincam, mas eu não estou entre elas. Eu sinto como se sempre
tivesse sido um homem doente.
Ela riu. Uma risada incontida que transbordou sem querer, fazendo-a
virar-se para ele e encará-lo. Aquele homem bem formado, de músculos
trabalhados e torneados era um doente?
— Os deuses estão brincando com você. Ninguém que seja assim… —
ela desenhou-o com as mãos, indicando que se referia ao seu porte físico —
pode ter sido debilitado no passado, Matwan.
— Você quer dizer então que sou bonito demais para ter algum problema
de saúde? — Ele também riu.
— Não coloque palavras na minha boca, mas é inegável que você seja
bem formado.
— Bem formado. — Outra risada. — Estou sem memórias, mas duvido
que já tenha recebido um elogio assim. Então sou bem formado.
— Não transforme isso em mais do que é. Apenas estou dizendo que…
— Que eu sou bonito.
Ele a interrompeu e manteve um sorriso insuportável nos lábios. Mesmo
sem olhar para ela, aparentemente concentrado na tarefa doméstica da qual se
incumbira, Hurit sabia que ele debochava dela. Ao contrário do que pensava,
não irritou-se com ele, apenas quis sorrir também.
— Sim, você é bonito. Está satisfeito?
— Por arrancar de você um elogio? Sim, bastante. O que faremos com as
cenouras?
— Um assado. Conseguimos carne vermelha, Kitchi trará daqui a pouco.
A expressão dele mudou. Hurit não precisava olhar diretamente nos olhos
de mar para saber que eles estavam revoltos. O sorriso desapareceu e os nós
dos dedos dele ficaram esbranquiçados pela força com que segurava a faca.
— Seu noivo virá aqui.
— Algum problema com isso, Matwan?
— Claro que não, por que haveria?
Era mentira e ela sabia. A simples menção a Kitchi o deixava
desconfortável e ela não entendia por que. Ao invés de respondê-lo e
continuar com aquele assunto que levaria a mais provocações, Hurit optou
pelo silêncio. Terminou de picar as ervas, colocou água para ferver, cortou o
restante das batatas e ajeitou todas em uma assadeira. Jogou mais lenha no
fogão e levou os vasilhames sujos para a tina do lado de fora da cabana no
instante em que viu seu noivo despontando no horizonte.
A presença de Kitchi ali era problemática, mas não por causa de Matwan.
Era problema dele incomodar-se com o que não era de sua conta. Mas Hurit
desconfiava que seu noivo estava com alguma espécie de ciúmes pelo tempo
que ela passava cuidando do paciente. Principalmente depois que ele
acordou, levantou e passou a circular pelo lado de fora da cabana, a presença
do forasteiro passara a incomodar alguns conservadores da tribo - e Kitchi,
apesar de não ser um deles, também demonstrou sua insatisfação.
Aquele seria o primeiro confronto entre os dois. Era ridículo que ela
sequer considerasse um confronto. Dois homens adultos, mesmo
antagonistas, saberiam tratar-se com a cordialidade necessária, não saberiam?
— Meu raio de sol. — Kitchi cumprimentou-a com uma reverência.
— Chegou cedo, mas está tudo preparado na cozinha. O que temos?
— Carne de gado. Conseguimos trocar por um preço quase justo. O que
pretende fazer com ela?
— Um assado. Comerá conosco?
Kitchi sorriu e caminhou na direção da casa. Havia alguma coisa oculta
em sua expressão amistosa.
— Se for de seu agrado, raio de sol.
Ele disse e foi para a cozinha com a comida que acabara de trazer. Hurit
decidiu ir atrás dele. Apesar de acreditar que nada aconteceria, preferia não
deixar seu noivo a sós com Matwan. Ela não pretendia ter que curar mais
feridos.

S EU ABDÔMEN ESTAVA DOLORIDO . A ferida se mantinha fechada, apesar de


úmida, mas seu corpo exigia repouso. Matwan estava quase cedendo à
necessidade de deitar-se por algum tempo quando viu seu adversário
entrando pela porta. Não, ele estava enganado. Primeiro porque não havia
adversário, ele não estava disputando nada com ninguém e Hurit não era um
troféu. Ele sequer tinha o direito de pensar nela como alguém de interesse -
eles mal se conheciam. Mas, desde que abrira seus olhos e a vira, desde que
percebera que ela o desprezava, Matwan precisava conquistar a afeição
daquela mulher difícil. Segundo, tinha certeza de que aquele homem que
acabara de ocupar toda a cozinha com sua presença magistral não competia
com ninguém - ele vencia.
— Onde coloco a carne? — O homem perguntou.
— Sobre a bancada. Terminou de cortar as cenouras, Matwan?
Hurit aproximou-se dele, mas manteve uma distância decorosa. Não havia
aquela preocupação quando estavam apenas os dois, então ele entendeu que,
diante do noivo, ela agia diferente.
— Sim, espero que o tamanho esteja correto.
— Se manteve todos os dedos nas mãos, está tudo bem.
Kitchi riu e aquilo o incomodou. Hurit o provocava chamando-o de
desastrado, mas ele admitia ser ridicularizado por ela, não pelo homenzarrão
que o intimidava com um simples olhar. Ele era alto, muito alto, e grande.
Tinha ombros largos e dentes tão brancos que obnubilavam tudo como um
ponto de luz na escuridão. Os cabelos eram curtos, quase raspados, diferente
do que ele vira em outros homens da tribo. Era uma visão e tanto, um homem
que atrairia a atenção de todas as mulheres por onde passasse.
Em deboche, Matwan ergueu as duas mãos e mostrou os dedos intactos
para Hurit.
— Estão todos aqui. Preciso me deitar.
Sim, ele precisava, ou acabaria vomitando de dor no meio da cozinha - e
o vexame seria maior do que quando urinou nos cobertores. Arrastou-se para
a cama, que fora transferida para perto da janela, e jogou-se sobre o colchão.
As fisgadas no ferimento estavam fortes e irradiavam até sua coluna,
transformando sua agonia em tortura. Associou seu mau humor repentino ao
incômodo causado pelo longo tempo de pé, pelo banho de rio e pela irritação
provocada pelos confrontos com Hurit. Tudo que ele precisava era de um
pouco de descanso.
Deitado de lado e com as mãos sobre a barriga, permaneceu alguns
minutos respirando lentamente até que o toque dos anjos deslizou por seu
ombro.
— Matwan. — A voz de Hurit era doce como o mel. — Vire-se e beba
um pouco.
Ela segurava uma garrafinha de láudano nas mãos e havia preocupação
em seu olhar. Ele não resistiu em fazer o que ela pedia.
— Obrigado.
— Não agradeça, já disse.
— Sim, o bem que você faz retornará para você.
— Descanse. Você exagerou hoje.
Concordando, ele se ajeitou e manteve a posição de lado, olhando para a
janela e para a paisagem em um caixote. As mesmas lembranças do mar, com
alguma diferença no cenário. Fechou os olhos ao sentir os dedos de Hurit
acariciando seus cabelos enquanto se entregava ao torpor causado pelo ópio.

E LA ESTAVA FORA de seu juízo. Depois que escurecesse, iria para a floresta
passar a noite nos domínios de Hoobamack para receber mais algum
esclarecimento. Sua ligação com o inimigo estava ainda mais intensa depois
de conversar com a serpente. Mesmo com Kitchi em sua casa, ela se pegara
acariciando os cabelos do homem até que ele dormisse e se sentira
responsável por tê-lo mantido de pé a ponto de causar-lhe tanto desconforto.
Depois de preparar a refeição e compartilhá-la com o noivo, deixou a cabana
e foi com Wapun coletar conchas na praia. Sem encontrar novas oferendas na
costa, daquela vez retornou para casa ao entardecer e com uma cesta cheia de
materiais para confeccionar seu artesanato.
Matwan não estava na cabana e aquilo não deveria preocupá-la muito -
afinal, para onde ele iria? Mas havia um rastro de sementes de milho pela
cama e isso a intrigou. Deixou a cesta de conchas, pegou uma lamparina e
iluminou a cabana, encontrando mais sementes espalhadas pelo chão, que
seguiam em trilha até a porta. Curiosa e confusa por não ter percebido nada
daquilo antes, Hurit investigou. As sementes continuavam espalhadas pelo
lado de fora da casa e iam na direção da floresta. Para além daquelas árvores
estava uma das praias mais escondidas da aldeia. As ondas eram fortes e
havia poucos peixes, portanto, quase ninguém ia até lá.
Havia duas hipóteses para o mistério das sementes. Um animal entrara na
casa e levara consigo um saco delas ou Matwan deixara um rastro proposital.
Na dúvida, decidiu seguir a trilha. A noite começava a cair e a escuridão
causada pela copa das árvores não a intimidava, mas tornava o trajeto um
pouco mais complicado. Quando chegou à praia, ela o viu sentado olhando
para o horizonte em tons de roxo. O sol, posto, já não irradiava mais
nenhuma luz, enquanto a lua ainda brilhava timidamente. Com um cobertor
ao redor dos ombros, ele parecia reverenciar o céu.
— Algo parecido com as lembranças do seu passado? — Ela rompeu o
silêncio.
— Não. Não é parecido com nada, que eu lembre ou não. — Ele não se
virou para ela. — Esse lugar é magnífico.
— Como você chegou até aqui, Matwan?
— Eu segui o chamado. Foi como se o oceano estivesse me atraindo para
cá, então eu vim. Deixei uma trilha para saber o caminho de volta.
— Você é mesmo um tolo. — Hurit aproximou-se e sentou-se ao lado
dele. — Nunca leu a lenda de João e Maria?
— E você leu? — Ele a encarou, surpreso.
— Temos uma biblioteca na aldeia, de onde acha que saíram aqueles
livros que você lê? Eu gosto muito de ler. Não tenho feito isso ultimamente
porque você exaure minhas energias, Matwan. — Ela se virou e os olhos se
encontraram. — Os animais comeriam as sementes e você poderia se perder.
— São sementes. Os pássaros não estão dormindo a essa hora?
— Nem todos.
— Elas serviram, afinal. Você me encontrou.
Matwan voltou a admirar o céu, que escurecia a cada minuto. As estrelas
começaram a brilhar e a lua despontou redonda, derramando sua luz sobre o
oceano melancólico.
— Eu pretendia passar a noite na floresta. Preciso de orientação
espiritual.
— Pensei que isso era responsabilidade do xamã.
— É. Mas eu sou a substituta de Wematin. Preciso conseguir conversar
com os espíritos eu mesma.
— Então vou deixá-la. — Matwan levantou-se, colocando o cobertor
sobre os ombros de Hurit. — Não quero atrapalhar esse momento.
Por um instante ela quis impedi-lo de se afastar. Quis dizer para ele ficar
e passar a noite sob as estrelas ao lado dela. Considerou deixar de lado suas
restrições e permitir-se tocar pelo homem que a perturbava desde que o
encontrara na praia. Mas era cedo demais. Mesmo que ele fosse diferente dos
outros de seu povo, mesmo que ele a respeitasse como indivíduo e não
tivesse se mostrado como superior em nenhum momento, aquele era o
homem sem memórias. O que seria dele quando lembrasse quem ele era?
Então, Hurit o deixou ir. Observou-o afastar-se até que sua silhueta fosse
engolida pelo breu da floresta e sua presença se resumisse ao calor deixado
no cobertor.
CAPÍTULO SÉTIMO

A BIBLIOTECA DA TRIBO ESTAVA HÁ MUITO TEMPO PRECISANDO DE RENOVAÇÃO ,


mas eles não tinham dinheiro para comprar livros. Aqueles que ocupavam as
prateleiras empoeiradas que se espalhavam pelo pequeno cômodo foram
doação da Sra. Johnson, uma das únicas mulheres brancas que Hurit aprendeu
a respeitar. Ela era viúva e muito rica. Possuía a administração da empresa do
marido porque o filho mais velho, o herdeiro, vivia alcoolizado. Era uma
mulher admirável - e adorava fazer coisas boas para as pessoas.
Hurit estava enfiada no meio dos livros procurando novas leituras para
Matwan. Ela o mataria se ele continuasse a falar do Sr. Darcy e da Srta.
Bennet e do quanto eles eram um casal intrigante. Ela mataria alguém se
aquele clima de romance continuasse na casa, porque ela estava perdendo a
cabeça. Queria encontrar livros sobre agricultura, negócios, cultivo de
hortaliças, pesca - qualquer assunto masculino o suficiente para acabar com o
ambiente de olhares trocados, toques involuntários e pernas bambas.
Mesmo tendo passado a noite em contato com a natureza, ela não foi
chamada por Hoobamack. Não recebeu nenhuma outra orientação dos deuses,
nada que esclarecesse o que estava cada vez mais confuso. E, quando
retornou para casa, os problemas continuavam lá - tinham cabelos loiros,
olhos azuis, lindas mãos e um sorriso que a devastava.
— Você já olhou nessas prateleiras aqui do fundo?
Wapun perguntou. A amiga a ajudava a selecionar novas leituras e
aproveitava para também escolher alguns livros para si.
— Não sabia que havia uma prateleira dos fundos. — Hurit dobrou o
pescoço para espiar onde Wapun estava. — Esses livros cheiram a mofo!
— Mas são interessantes, venha ver!
Sentada no chão, Wapun remexia os livros e acabou com um exemplar
encadernado em couro vermelho e com escritos em dourado. Quando Hurit
chegou até ela, a amiga já estava com olhos arregalados lendo algumas
páginas no meio do livro.
— É um livro de mistério? — Hurit perguntou ao ver a expressão de
Wapun.
— Não, é um romance.
— Então pare! Você não pode ler o final, está trapaceando.
— Hurit, veja isso.
Ela se sentou ao lado de Wapun e correu os olhos por onde os dedos da
amiga indicavam. A página inteira tratava de uma interação bastante íntima
entre uma donzela e um pirata. As palavras estavam muito bem escritas para
camuflar toda a vulgaridade da cena. O pirata fazia coisas bastante obscenas
envolvendo braços e beijos e Hurit entendeu os olhos esbugalhados da amiga.
— Que livro é esse? — Ela virou a capa para ler o título — Nunca ouvi
falar de uma Lady Malícia, mas o nome da autora explica essa... essa...
— Indecência.
— Sim, é indecente.
— Mas também é interessante.
Hurit assentiu e elas continuaram a ler a cena. O pirata continuou a beijar
a mocinha e depois passou a fazer coisas inomináveis com ela, que já não
podia mais ser considerada donzela, afinal. Era incrível que a jovem do livro
parecesse ter gostado bastante. Assim que ela terminou quase desfalecida - e
arruinada - nos braços do seu amante, Wapun fechou o livro. As duas amigas
se entreolharam. Havia outros livros de Lady Malícia na estante, aparentando
que fossem de uma coleção. Quem esperaria que a viúva Sra. Johnson
gostasse daquele tipo de leitura?
— Não posso levar isso para Matwan. — Hurit colocou o livro de volta
na prateleira.
— Claro que não. Vou continuar procurando livros sobre criação de
ovelhas.
— Vou ali do outro lado ver se encontro algo, também.
— Mas, Hurit. — Wapun a chamou e se aproximou para sussurrar, como
se o que ela diria não pudesse ser ouvido nem mesmo pelos livros. —
Podemos voltar amanhã para descobrir o que aconteceu com a mocinha?
A amiga estava louca se achava que Hurit voltaria à biblioteca para ler
mais uma linha sequer daquele livro obsceno. Ela não se interessava pelo que
acontecera com a mocinha ou por qualquer outra coisa indecorosa que o
pirata pudesse ter feito. Ela sequer se importava com piratas, eles nem mesmo
existiam. Não podia pensar em perversões enquanto tinha que manter seu
foco no que era importante: desvendar o mistério por trás da visão do lobo
branco, compreender seu papel naquilo tudo e preparar-se para assumir-se
como xamã.
Segurando uma pilha de livros empoeirados nas mãos, Hurit quase correu
de volta para a sua cabana - tinha a esperança de que o esforço físico a fizesse
esquecer do que acabara de ler na obra de Lady Malícia. As mulheres da tribo
não eram castradas como as brancas, não havia entre eles o pudor excessivo
da cultura branca - mas isso não significava que ela soubesse o que acontecia
entre um homem e uma mulher quando eles se amavam. Ela sabia, ao menos
na teoria, como os mecanismos deveriam funcionar, como os corpos
deveriam se encaixar. Mas ler aquelas linhas intensas e apaixonadas atiçou
alguma coisa dentro dela que a deixou bastante agitada.
Kitchi a aguardava na porta e tinha um sorriso de derreter o gelo no
inverno. Ela suspeitou que seu prometido tinha ciúmes ou que precisava lhe
falar alguma coisa importante. Descobriu que eram as duas coisas assim que
ele a ajudou a entrar com os livros na cabana.
— Onde está Matwan?
Hurit não fazia ideia.
— Agora que ele caminha com as próprias pernas, nem sempre sei.
— Bom, preciso lhe falar algo importante. Tenho uma proposta de
trabalho em Nova Iorque. Gostaria que viesse comigo.
A pergunta a pegou de surpresa e a assustou. Ela acabara de ler o capítulo
de livro mais indecente de sua vida, estava com o corpo quente e a cabeça
pensando em coisas bastante indecorosas e a ideia de acompanhar um homem
até qualquer lugar lhe pareceu absurdamente intrigante. O problema era que o
homem em questão era o homem errado. Não, era o homem certo, mas ela
duvidava que ele pudesse aplacar a quentura que sentia - porque não era ele
que seu corpo queria.
— O que fará em Nova Iorque? E eu não posso ir com você, tenho
compromissos na aldeia.
Kitchi cruzou os braços na frente do corpo e a encarou em silêncio por
alguns segundos. Ela se sentiu desconfortável pela primeira vez na presença
de seu prometido.
— Parece que seus compromissos foram todos suspensos. Ao menos não
a vejo fazendo nada além de cuidar do branco.
— Porque ele precisava de mim. Já estou retomando minhas funções no
conselho de mulheres, nos cuidados com a horta, no trabalho manual...
— Hurit. — Kitchi deu dois passos na direção dela e a encurralou contra
a parede. Ela engoliu um bolo de saliva e quase não conseguiu manter os
olhos nos dele. — Você inventa desculpas para não oficializar nossa união há
meses. Há mais de um ano, na verdade. Há algo errado? Não quer mais ser
minha esposa?
Ela queria. Tudo que fazia sentido na vida de Hurit tinha aquele homem
ao seu lado e todas as suas decisões consideravam Kitchi sendo seu parceiro.
Não era nada difícil aceitar a proposta de tornar-se esposa do seu noivo, mas
alguma coisa dentro dela a mandava recusar. Primeiro, porque Kitchi não
tinha o direito de acuá-la para forçar uma decisão, mesmo que fosse algo já
esperado. Segundo, seu coração estava perturbado.
Era impossível negar os sentimentos confusos pelo homem que ela jurava
odiar. Desde que Matwan chegara em sua vida, colocara em xeque suas
convicções e derrubara alguns de seus muros pelo caminho. Casar-se e fingir
que nada daquilo acontecera era o mesmo que fugir - e Hurit não fugia de
nada nem de ninguém.
— Não há de dúvidas que pretendo me tornar sua esposa, porém farei isso
no nosso tempo. Casar-se apressadamente para o acompanhar até Nova
Iorque não parece uma decisão sábia. Por que você tem pressa? Demorará
muito por lá?
Kitchi fechou a expressão como o céu se prepara para uma tempestade.
Ela o pegara em algum conflito - ele estava mesmo com pressa.
— Não é isso, apenas me tortura saber que está presa a essas provações
que parecem nunca terminar. Quero você, Hurit, quero uma vida normal para
nós.
Ela sorriu e tentou derreter o gelo entre eles abraçando-o. Ele era tão alto
e largo que ela mal conseguia envolver seu corpanzil com as duas mãos.
Deitou a cabeça em seu peito descoberto - já que ele costumava transitar sem
camisa pela aldeia - e sentiu o aconchego da familiaridade.
— Casar-se comigo jamais lhe trará normalidade. — Ela riu. — Mas
entendo sua súplica e digo: faça seu trabalho, se quiser, e retorne.
Conversaremos sobre isso, então.
Kitchi acariciou-a nos cabelos no instante em que a porta se abriu e
Matwan entrou. Aquele era um péssimo momento para a chegada dele,
sorrindo e radiando luz como o próprio sol, como se algo muito bom tivesse
lhe acontecido naquela tarde. Ao ver Hurit abraçada ao seu noivo, ele se
constrangeu e passou por eles indo direto para a cama. Sua face também se
fechara como o céu de inverno e ela tinha, então, mais uma tempestade para
lidar.
Homens eram cansativos.

— E LE JÁ FOI ?
Matwan saiu de dentro do banheiro depois de alguns bons minutos
trancado. Não dava para se trancar em um cômodo sem fechadura - o
banheiro de Hurit não possuía nem mesmo uma porta, mas ele queria apenas
esconder-se para esquecer a cena que vira ao retornar para a cabana.
Por algum motivo, sentia que precisava caminhar e respirar ar puro. Não
se lembrava do motivo, mas tinha certeza de que seus pulmões exigiam que
ele se exercitasse. E, depois de um passeio pelo entorno e uma visita à praia
que descobrira no dia anterior, não queria deparar-se com Hurit e Kitchi em
um intercurso íntimo.
— Sim, Matwan. Está se sentindo bem? Alguma dor?
— Não. — Ele ajeitou as mangas dobradas da camisa que vestia. —
Apenas precisava me refrescar.
— Estive na biblioteca, trouxe novos livros para você. Por favor, esqueça
Jane Austen.
Ela mostrou uma pilha de livros que tinham a aparência de muito antigos
ou há muito guardados. A biblioteca talvez estivesse em lugar de pouca
ventilação e os livros estavam cheios de mofo.
— Eles precisam pegar sol. — Matwan passou os dedos pelas capas. —
Colocarei do lado de fora para poder ler.
Um movimento de cabeça indicou que ela concordava.
— São assuntos masculinos. Espero que sejam interessantes.
Matwan abriu uma capa e espiou o interior. Depois, abriu outro e o
folheou brevemente.
— Imagino que ler sobre motores a óleo e o cultivo de leguminosas seja
muito instrutivo.
Ele não conseguiu terminar a frase sem rir. Hurit resmungou alguma
coisa e sentou-se à luz. Ao lado da cadeira escolhida por ela havia um cesto
com algumas peças de roupa e outro menor, cheio de agulhas, linha e outros
itens de costura.
Matwan pegou o romance que vinha lendo em voz alta, lentamente, para
provocá-la e se sentou na cama. Levou algum tempo observando-a colocar
linha na agulha e pegar uma camisa dentro do cesto.
— O que fará hoje?
— Preciso reparar essas roupas. — Ela respondeu sem olhar para ele. —
Todas as mulheres trabalham pela comunidade, seja ajudando com a horta,
com remendos e costuras, com as crianças. Os homens sustentam a aldeia.
Hurit pegou um botão e o prendeu na camisa. Pegou outro e repetiu a
tarefa. A peça parecia sem botões - ou se tratava de roupa nova ou vestia
alguém bastante descuidado. Ele não conseguiu iniciar a sua leitura,
capturado pela graciosidade daquela mulher que parecia tão antagônica. Por
vezes uma dama, por vezes um furacão.
— Posso ler para você.
— Ou pode me ajudar a costurar, assim termino logo meu trabalho.
Hurit ergueu o olhar e sorriu. Por vezes ele jurava que aquele sorriso era
um deboche, mas ela tinha uma boca tão receptiva que era impossível se
ofender.
— Creio que nunca tenha realizado tarefas domésticas, antes. Elas são
incumbência das mulheres e das criadas.
— E você é um daqueles homens tradicionais que têm criados até para
lavar seus pés, não é mesmo? — Hurit levantou-se e se aproximou dele,
retirando o livro de suas mãos e segurando-as entre as dela. — Mas veja as
pontas dos seus dedos. Elas possuem calos que indicam que você
provavelmente já manejou agulha e linha, antes. Quer tentar?
Na verdade ele quis dizer a ela que homens não faziam trabalhos como
aquele e, por algum motivo, não conseguiu. Decidiu que aceitaria o desafio e
Hurit lhe entregou outra peça de roupa. Era uma camisa, também, que tinha
uma costura rompida no punho. Sem ensinar como fazer, ela empurrou a
cesta com linhas e agulhas na direção de Matwan e esperou que ele tomasse
uma atitude.
Como a vira fazer, Matwan pegou a agulha e enfiou a linha depois de
algumas tentativas frustradas. Ela o observava com atenção e ele não queria
decepcioná-la. Examinou a parte descosturada na peça que lhe fora entregue e
tentou costurar uma parte. Furou o dedo duas vezes, exatamente no lugar
onde havia um calo em seu dedo indicador. Era por isso que Hurit dizia que
ele já sabia coser, porque ele já tinha as marcas feitas. Arriscou outros pontos
até que conseguiu costurar toda a parte rompida. Examinou seu trabalho e o
exibiu para Hurit, que aguardava como um juiz aguarda para sentenciar um
condenado.
— Está um bom trabalho para um iniciante. — Ela riu. — Porém você
precisa costurar de dentro para fora.
Ele franziu as sobrancelhas quase até uni-las no topo do nariz. Hurit deu
outra risada e, percebendo que ele não entendeu o que ela quis dizer, virou a
camisa do lado avesso, mostrando como os pontos eram dados.
— Então se eu costurar desse lado, eles ficarão escondidos do outro? É
isso?
— Parece que você entendeu. Vai me ajudar?
— Imagino que declinar desse desafio deporá contra a minha
competência, certo? E, ainda, não quero parecer um covarde.
Hurit balançou a cabeça e afastou-se, voltando para a sua tarefa. Ele
permaneceu com a camisa e a missão de desfazer a costura errada e refazê-la
pelo lado correto. Depois de vários minutos, ele já estava com a peça de
roupa reparada. Remexeu a cesta e encontrou algumas meias que continham
furos e se pôs a remendá-las. Percebeu que muito tempo se passara quando
seu estômago reclamou de fome e seu ferimento latejou pela posição sentada
em que se encontrava.
Deixou as roupas de lado e recostou-se na cama, esticando o corpo para
evitar que a dor o atordoasse. Era possível que estivesse exagerando em
caminhadas ou se esforçando demais, porém não queria ficar mais tempo
parado. Esperava que, a qualquer tempo, suas memórias lhe fossem
devolvidas como que em uma rajada de vento. Desejava lembrar-se de si, de
tudo, ao mesmo tempo que tinha medo. Jamais revelaria a Hurit o seu temor,
porém Matwan se pegou pensando que ele poderia ser uma pessoa ruim. Um
dos homens que a atormentavam, um dos brancos que ela tanto odiava. Sim,
ele era branco, porém aquilo não representava nenhuma referência para si. A
ausência de lembranças, de um passado, o colocava em uma posição de
neutralidade - nada em sua vida poderia significar que ele já fora uma ameaça
para os Shinnecocks ou que ele representava qualquer das coisas que Hurit
desprezava.
Mas, caso ele se recordasse de tudo, assim que descobrisse quem era,
quem ele seria? O homem bom que ele acreditava ser ou apenas mais um dos
forasteiros que destruíram toda a cultura daquele povo?
— Você está bem?
Ela o notou distraído, olhando para o teto, com a mão sobre o ferimento
em seu abdômen.
— Sim, precisei me deitar um pouco.
Hurit deixou as roupas de lado e caminhou até ele. O dia estava se
esvaindo em tons rosados e cinzentos - era possível ver o céu escurecendo
pela grande janela que ficava próxima à cama e ela precisou acender as
lamparinas para garantir claridade na cabana. Com o cuidado de sempre ela
puxou a camisa dele e descobriu o ferimento, exibindo as bordas
avermelhadas e ainda não cicatrizadas.
— Não entendo por que você é tão resistente. Isso já deveria estar com
outra aparência.
— O que isso significa?
— Que seu corpo é difícil de curar. — Ela pegou uma garrafinha marrom
e jogou o líquido em um pano. Depois, limpou o ferimento com ele.
— Céus, isso arde.
— É para garantir que esteja limpo. Há estudos que dizem que feridas
sujas infeccionam e que o álcool ajuda a matar seja lá o que for que cause
essa infecção.
— E isso é álcool?
— Conhaque.
Ele deu uma risada e pegou a garrafinha da mão dela, virando um longo
gole em seguida. Era conhaque barato, Matwan lembrava-se de consumir
bebidas melhores que aquelas. Hurit tinha razão, ele provavelmente era rico e
possivelmente vivia em Nova Iorque.
Enquanto ele divagava com possíveis memórias, ela passeava com os
dedos pelos contornos de seu abdômen e aquele toque acabou por distraí-lo.
Por um momento, ele a fitou e algo na expressão de Hurit indicou que ela
apreciava colocar as mãos sobre ele. Que aquele contato lhe dava prazer.
Claro que Matwan estava delirando - a mulher não gostava dele. Por que
apreciaria tocá-lo?
— O que significa seu nome? — Matwan perguntou, desejando manter a
conexão entre eles mas precisando adicionar palavras a ela. — Você me disse
que sou o inimigo, e o seu? O que é Hurit?
— Bela.
A resposta veio sem muita reflexão, Hurit apenas disse sem pensar nas
consequências do que dizia. Não havia nenhuma grave - apenas ele passara a
saber que o nome escolhido para ela era bastante condizente.
— Bela. — Ele repetiu. — Soa bem. Combina com você.
Sem parar o que fazia, ela franziu as sobrancelhas e esboçou um sorriso.
Um leve erguer de lábios que indicava bom humor.
— Não pense que você está autorizado a me chamar assim. Meu nome é
Hurit.
— Certo, eu não a chamarei assim.
Ela então sorriu e isso fez com que o constrangimento imediatamente os
atrapalhasse. O instante terminou e a magia se esvaiu, como se ela percebesse
que estava sendo observada e se incomodasse pela reação de ambos. Dele,
por admirá-la em segredo e por encará-la com tanta veemência. Dela, por se
deixar absorver em uma tarefa que deveria causar repulsa e não prazer. Hurit
cobriu novamente o ferimento e se afastou, refugiando-se na cozinha
enquanto ele deitou a cabeça no travesseiro e voltou a olhar para o teto.
Havia alguma coisa acontecendo naquela cabana e ele sabia que teria
problemas.

C OM SEU PACIENTE DESENVOLVENDO AUTONOMIA , Hurit passou a acordar cedo


e ir até a horta comunitária, que era cuidada por todas as mulheres. Depois,
escapulia com Wapun para a biblioteca e ambas liam um capítulo de um dos
livros de Lady Malícia. Ela jurou que não retornaria mas, desde que
descobriram os livros, passaram a lê-los e a descobrir coisas intrigantes sobre
o relacionamento entre homens e mulheres. Chegou a considerar que gostaria
de experimentar o desejo e a satisfação das mulheres descritas naquelas
histórias - muito mais interessantes do que os romances tolos que permitiam
que lessem.
Naquela tarde, ao retornar para casa, seu coração quase parou de bater no
peito - descobriu que o homem branco era louco e estava prestes a se matar.
Matwan estava pendurado em seu telhado, agarrando-se à frágil estrutura de
madeira e remexendo no sapê que a cobria.
— O que você está fazendo aí em cima?
Perguntou enquanto procurava alguma coisa para ampará-lo caso caísse -
e quase derrubando os vegetais que vinha trazendo em uma cesta. Ao seu
redor não havia nada que pudesse impedir que um homem daquele tamanho
se estatelasse no chão. Ela temeu que o excesso de láudano finalmente
estivesse cobrando seu preço - a droga poderia ter cozinhado os miolos do
homem.
— Seu telhado precisa de reparos. Estou para fazer isso desde que vi as
falhas, mas não tinha forças para subir.
— Você ainda não tem forças. Desça, por favor.
Matwan agarrou-se à viga central e olhou para ela, exibindo um sorriso
arrogante. Ela quis bater nele por rir de suas preocupações, mas isso poderia
machucá-lo - e era exatamente o que ela pretendia evitar.
— Fique tranquila, Bela. Eu descerei assim que terminar de consertar
essas goteiras. Não é nada demais.
— Não te contei o significado de meu nome para que decidisse
pronunciá-lo em inglês. — Ela resmungou.
— Desculpe-me, vou continuar me esforçando para chamá-la Hurit.
Ignorando-a, ele voltou a concentrar seus esforços em remover o sapê e
depois devolvê-lo para o lugar. Se ela vivesse em uma cabana coberta por
telhas, não estaria, naquele momento, tendo que aceitar a ajuda de um
forasteiro inconveniente que não conhecia limites. O pior era que aquela nem
mesmo era a sua maior preocupação. Hurit estava morrendo de medo que ele
realmente caísse e se ferisse - e isso não era porque atrapalharia sua missão.
A missão estava praticamente cumprida, ele parecia curado o suficiente e só
não voltara para seu povo porque lhe faltavam as memórias. Hurit temia que
ele se ferisse porque ela gostava dele.
Oh, céus, como era difícil admitir sentimentos. Ela acreditava que eles
eram distrações desnecessárias e que causavam mais problemas do que
soluções. Ela amava, sim, sua família e amigos, mas não colocava
sentimentos à frente da razão. Desistira de ler romances estúpidos antes de
qualquer outra jovem Shinnecock e desacreditara totalmente no amor
romântico quando sua função - a de guiar a tribo - se tornou mais importante
do que suas vontades. Hurit era uma princesa guerreira e deveria agir como
uma, então ela não estava confortável em simplesmente gostar de Matwan.
Mas ela gostava. Maldito fosse aquele homem sorridente e sempre
presente, que insistia em gestos atenciosos e que lia Jane Austen em voz alta
apenas para provocá-la.
Por aproximadamente meia hora ela o observou mover o sapê e ajeitá-lo
sobre a madeira. Aquela era uma tarefa que ela mesma poderia fazer e que
teria feito em algum momento se não estivesse tão envolvida em cuidar dele -
porém, secretamente, gostou daquela iniciativa. Um sorriso cresceu em seus
lábios e ela quis escondê-lo. Por sorte, não havia ninguém por perto olhando
em sua direção.
Quando ele começou a descer a escada de madeira, Hurit finalmente se
sentiu mais tranquila. O maldito branco, além de ocupar todo o tempo de seus
dias, ainda fazia seu coração bater acelerado. Faltando alguns degraus, ele
escorregou e caiu, batendo de costas no chão.
O ruído foi como o de uma canoa batendo em uma pedra. Aquele barulho
lembrava naufrágio - e Hurit não aguentaria lidar com mais um.
— Matwan! — Ela deu alguns passos nervosos e ajoelhou-se ao lado
dele. — Você está bem?
Com olhos arregalados, ele se virou para ela e começou a rir. Suas
gargalhadas chacoalharam seu corpo caído e ela se irritou na mesma
proporção em que Matwan parecia divertir-se com suas preocupações.
— Eu estou ótimo, foi só um tombo.
— Para quem está com um buraco na barriga, nada é “só um tombo”!
Ela levou a mão até o ferimento e o tocou. Os dedos acariciaram a pele
lisa do abdômen dele pelo caminho, fazendo com que as risadas cessassem
imediatamente. O coração dela, que batia como o tambor dos Montaukett,
quase parou.
Matwan estava olhando diretamente para ela, Hurit sabia, mas não tinha
coragem de olhar de volta. Deveria recolher a mão e parar de tocá-lo, mas
não conseguia. Mesmo que ela já tivesse feito aquilo muitas vezes, todas as
vezes, aquela parecia diferente. Os dedos traçaram os contornos do peito,
subindo para o pescoço, até acariciarem de leve a barba que cobria o maxilar
masculino.
Ele precisava se barbear outra vez. Enquanto dormia, ela fez isso por ele,
mantendo-o impecável. Depois que acordou, Matwan parecia desinteressado
em cuidar do próprio corpo. Relaxado e inconsequente, colocando-se em
risco proposital, como naquele momento. E ela não tinha que pensar nele
daquela forma - como se o branco fosse um homem. Ele era, mas isso não
significava nada. Malditos fossem aqueles livros que ela descobrira na
biblioteca e que ficavam enchendo sua cabeça com tolices.
— Eu estou bem, Hurit.
A voz fez com que ela erguesse a mão. Olhou para ele, deitado, que a
fitava com expressão curiosa. Olhos azuis que pareciam afogá-la em um
oceano de perguntas. Com um meio sorriso, Matwan ergueu o braço e os
dedos dele a acariciaram no queixo e deslizaram pela bochecha. Era
imperativo que ela colocasse um fim naquilo.
Com um impulso, Hurit colocou-se de pé e ofereceu a mão para que ele
se apoiasse e levantasse. No mesmo instante, a voz de Wapun ecoou e
impediu que eles se reaproximassem - porque era o que sempre acontecia.
Enquanto estavam sozinhos, um flutuava na direção do outro sem que
nenhum deles conseguisse evitar.

— H URIT ! — Wapun chamava, agitada. — Hurit, sua mãe mandou chamar.


O filho de Kanti não consegue respirar e Wematin saiu com Chogan para a
praia.
— Como ele está?
Hurit perguntou. O menino tinha crises de falta de ar desde que era muito
pequeno, elas geralmente passavam com algumas ervas e exercícios.
— Cansado. Kanti já usou o tônico da última vez, mas ele continua mal.
Ela pegou sua bolsa de ervas e rumou na direção da cabana de Kanti. Sua
mãe estava lá com suas ervas defumadoras, fazendo fumaça e cantando, mas
o menino tossia muito quando chegaram. Os olhos estavam vermelhos e o
peito chiava como uma locomotiva e ela não sabia se era por causa da doença
ou pelo abafamento e pelo calor.
Dando ordens e abrindo as janelas da cabana, Hurit mandou levarem o
menino para a área aberta e pediu que a mãe parasse de defumar a casa.
Aquele tratamento antigo não funcionava, ela já compreendera que algumas
técnicas de outrora eram ultrapassadas e faziam mais mal do que bem. Assim
que se sentaram o pequeno Shinnecock em uma cadeira e um lufo de vento
fez com que ele conseguisse inalar um pouco de ar, viram Matwan vindo na
direção delas.
Todas paralisaram ao ver o homem caminhando, quase correndo.
Considerando as limitações de seu corpo convalescente, ele se aproximava
rapidamente e tinha uma expressão assustada. Era a primeira vez que Matwan
saía dos arredores da cabana e que cruzava o curso de água. Ele não era
permitido na aldeia, mas ela nunca se importou em contar-lhe - afinal, o
homem mal conseguia ficar de pé. Porém o tempo passava e, como Wematin
dizia, o tempo curava tudo - até mesmo o corpo ferido e a alma perturbada.
Hurit correu em sua direção e o interceptou.
— Volte. — Foi a ordem. — Você aqui vai causar confusão, quando eu
retornar, conversamos.
— Confusão? — Ele parou no instante em que ela o segurou pelos
ombros. — Por quê?
Os olhos azuis a enfrentavam com doçura e desarmavam as defesas que
ela construíra ao redor de si.
— Os homens não querem você na aldeia. — Confessou. — Esse foi um
acordo que fiz para o aceitarem aqui, tenho que mantê-lo na cabana.
Matwan deu dois passos para trás e olhou para as mulheres mais
distantes. Depois, viu que outros Shinnecocks o encaravam com expressões
de desagrado. Hurit sabia que ele era mal visto, indesejado, que ninguém
tinha por ele alguma consideração ou respeito. Era um homem branco e eles
já tinham feito mal demais ao seu povo. Ninguém ali confiava nos brancos.
— Eu não sabia que era indesejado. — Mais alguns passos para trás e ele
foi se afastando gradualmente. — Dê café ao menino, vai ajudá-lo. Café.
— Como sabe que pode ajudá-lo?
— Era o que eu tomava quando me sentia mal. Esse é o motivo de eu
gostar tanto de café.
Sem maiores explicações, ele se virou e seguiu novamente na direção da
cabana de Hurit, deixando-a intrigada e consciente de que o magoara. Teria
Matwan percebido que aquela era uma memória? Depois que ele desapareceu
de seu campo de visão, a jovem substituta do xamã concentrou-se em tratar
de seu pequeno paciente.
CAPÍTULO OITAVO

A CONFUSÃO EM SUA CABEÇA O DEIXAVA MAIS ABORRECIDO POR NÃO SER BEM -
vindo entre os Shinnecock do que excitado pelas memórias que o afogaram
no instante em que o menino asmático fora mencionado por Wapun. Ele sabia
que Hurit não gostava dele, que ela tinha um desagrado profundo pelos
brancos e que não perdia a oportunidade de fazê-lo saber disso, mas não
imaginava que fosse o mesmo para toda a aldeia. Imaginara que não o
conheciam e que, depois de curado, poderia mostrar seu valor para o cacique
- e descobrira que ninguém estava interessado em conhecê-lo, afinal. Ele era
uma concessão, autorizado a ficar confinado a uma cabana porque Hurit, a
princesinha da tribo, precisava cumprir sua missão. Ele era uma maldita
missão e não sabia o que aquilo significava.
Olhou ao redor e viu paredes de barro, janelas e palha. Por que o povo
Shinnecock importava? Por que ele queria ser respeitado ou aceito por eles
quando, assim que descobrisse como voltar para casa, não pensaria duas
vezes em deixar tudo para trás? Sentou-se na cama e apoiou a face nas mãos,
permanecendo naquela posição por tempo demais até ouvir passos do lado de
fora. A porta se abriu e ela entrou. Hurit não carregava remorso ou culpa em
sua expressão, mas, naquele momento, ela parecia culpada. A forma como os
olhos dela o encararam era um pedido de desculpas ou a oferta de uma
trégua. Com um tapinha sobre o colchão, ele indicou que ela deveria sentar-
se ao seu lado. Hurit manteve-se de pé.
— Como sabia sobre o café?
— Eu tomava, já disse.
— Você não tem asma.
— Eu já tive. O menino na janela, olhando a praia, teve.
— E aquele menino era você.
— As outras crianças eram meus irmãos, eu acho. Elas não entendiam por
que eu não podia brincar com elas, me achavam arrogante. O mais velho me
defendia e dizia que eu era doente. A minha janela ficava virada para o
oceano, mas não dava para ver o mar - eu sentia a maresia, mas não via nada.
Como aqui.
— Quem é você, Matwan? Você sabe?
Ele ergueu o rosto e a encarou. Os olhos, tão diferentes, se mantiveram
um no outro enquanto ele reunia coragem para confessar o que lembrara. O
retorno de suas memórias mudaria tudo.
— Eles me chamavam Emile.
— Como você sabe que o menino é você?
— Como você sabe que suas memórias são suas?
Hurit respirou fundo e sorriu. Havia tristeza em seus lábios mesmo que
eles indicassem o contrário.
— Então eu agora devo chamá-lo Emile, também? Não sei se me
acostumarei.
— Posso providenciar um incentivo - eu te chamarei Bela sempre que
errar meu nome.
Com um rosnado no idioma nativo, Hurit resmungou qualquer coisa e foi
até a cozinha. O cheiro de café preencheu a cabana em poucos minutos,
provocando-o a segui-lo. Virada de costas, ele encontrou a mulher com as
duas mãos apoiadas sobre a bancada e a cabeça baixa, olhando para a água
descendo pelo filtro de pano. Se ele não a conhecesse, diria que ela estava
aborrecida e que as lembranças a tinham afetado negativamente. Mas aquela
era a mulher que dizia estar louca para livrar-se dele - Hurit provavelmente
celebraria quando ele finalmente fosse embora da aldeia.
Aproximando-se com cuidado, Emile parou exatamente atrás dela. Sem
pedir permissão, levou as mãos até a fita de couro que enfeitava a testa de
Hurit e ajustou o nó que estava se soltando. Os dedos deslizaram pelas
tranças macias, ornamentadas com azul e laranja, e repousaram nos ombros
dela, que expirou profundamente e se virou.
— Agora que você sabe quem é e está curado, precisamos avisar a sua
família. — Ela sussurrou. Eles estavam tão próximos que Emile precisou
prender a respiração para não encostar nela. Seu corpo reagiu ao quase
contato e ficou desconfortável dentro das calças. — Você morava perto da
praia, deve ser em Southampton.
— Eu não moro em Southampton. — Com cuidado para não assustá-la,
ele deslizou os dedos para cima até que seu polegar a tocasse nos lábios.
Hurit fechou os olhos. — Eu sou inglês. Minha casa fica em Kent, na vila de
Thanet.
— E o que estava fazendo perdido por essas águas? Quem atentou contra
a sua vida?
— Eu não sei. — Emile continuava com o polegar sobre os lábios dela,
acariciando-os mesmo enquanto ela falava. Sua respiração ofegava. — Só me
lembrei da criança que eu fui, do lugar onde cresci, mas não recordo o que
houve comigo até eu vir parar aqui.
— Ainda assim, precisamos avisar à sua família. — Ela também ofegou.
— Pode haver uma esposa e filhos procurando por você.
— Não há.
— Você não pode saber.
— Não há ninguém, Hurit. Só…
Emile estava prestes a dizer algo muito estúpido. Para quem conhecia
aquela mulher há poucos dias, ele não podia estar tão conectado a ela. O que
sentia estava relacionado ao cuidado que ela dedicava a ele, não era nada
além de uma profunda gratidão que não podia ser expressada em palavras.
Ainda assim ele diria que ela era a única mulher em sua vida porque ele
sabia, mesmo sem saber, que não havia outra.
Mas os deuses decidiram ajudá-lo e o som de passos fez com que eles se
afastassem. Emile deu alguns passos para trás e Hurit virou-se novamente
para o café, que já estava esfriando no bule. Serviu uma caneca e entregou a
ele no instante em que Kitchi entrou.
Qualquer encanto que houvesse entre eles se desfez imediatamente. A
presença do noivo dela o fez lembrar-se de mais coisas - tudo ali era
passageiro e precisaria acabar em breve. Aquela não era uma mulher com
quem ele pudesse passar alguns momentos de desfrute. Consciente de seu
lugar, Emile cumprimentou Kitchi e saiu da cabana, indo na direção de seu
refúgio na praia.

C HOGAN E W EMATIN compartilhavam um tipi em uma parte específica da


floresta. Era noite e ninguém deveria perturbá-los em seus momentos de
reflexão, mas havia uma pessoa que não se importava com aqueles limites.
Enquanto os homens fumavam o cachimbo e conversavam sobre o futuro da
tribo, buscando orientação dos deuses, não tiveram como não notar a chegada
de Hurit. Carregando uma lamparina pequena, ela estava indo até eles porque
tinha questões importantes a tratar e precisava de seus líderes para isso. O
pai, chefe da tribo, e seu líder espiritual que a ajudaria a entender as
mensagens pouco claras. Com um movimento de cabeça, ela os
cumprimentou e sentou-se ao redor da fogueira, estreitando o cobertor em
torno de si.
— Só uma coisa a traria aqui a essa hora. — Wematin passou a ela o
cachimbo. — Fume conosco.
— Essa é uma tradição dos homens.
— E não há ninguém aqui para nos questionar.
O xamã insistiu. Hurit segurou o objeto sagrado em suas mãos e observou
os entalhes feitos na madeira. Pequenos e resistentes ao tempo, eles
indicavam que aquele era o cachimbo dos caciques. Ela não tinha o direito de
compartilhá-lo, mas não recusaria uma ordem de Wematin.
— Ele recuperou parte de suas lembranças.
— Então podemos devolvê-lo à sua família? — Chogan inquietou-se.
— Ele diz que mora em Kent, Inglaterra. Seu nome é Emile.
— A Inglaterra é um lugar longe demais. Esse homem não veio boiando
no oceano de lá até aqui. O que ele fazia em Nova Iorque?
— Não sabemos, ele afirma não se lembrar de quase nada. São
fragmentos de sua infância.
Os homens fizeram silêncio e fumaram. Ela quase se engasgou duas
vezes com a fumaça amarga do cachimbo e sentiu-se zonza a ponto de temer
não conseguir encontrar o caminho de volta. Depois de vários minutos de
reflexão, Chogan sabia que havia mais por trás da necessidade de revelar uma
informação que não era urgente.
— O que você quer pedir por ele, Hurit?
— Quero que ele tenha uma audiência com Chogan.
— O líder ou seu pai?
Hurit respirou profundamente e se engasgou outra vez com a fumaça
misturada da fogueira e do tabaco. Como os homens conseguiam passar
longas horas fumando aquela coisa desagradável? Olhou para cima e o céu
estava limpo e estrelado sobre suas cabeças. Naquela clareira não havia
árvores que interferissem na conexão entre eles e as estrelas, ou a lua. A
resposta para a pergunta de Chogan era óbvia - ela queria que o líder ouvisse
o que Emile tinha a dizer. Ao mesmo tempo, desejava a aceitação do
forasteiro por razões egoístas. Ela se afeiçoara a ele e não queria confessar a
ninguém.
— Chogan, o cacique.
— Então avise a Matwan que eu lhe concederei uma audiência amanhã.
Mandarei chamá-lo.
Aquela seria a maior conquista da noite. Hurit fora ensinada a atacar e a
recuar - ela estava no momento de agradecer e retornar para sua cabana.
Apesar dos Shinnecock serem excelentes contadores de histórias, eles não
viam justificativa em falar mais do que o necessário. Com um aceno
indicando concordância, ela deixou os homens e fez o caminho de volta para
a aldeia. Sua cabeça estava cheia demais - o ódio que ela nutria por anos
estava abalado. Podia enganar-se fingindo que os sentimentos por Emile eram
oriundos do tempo que passara cuidando dele, mas Hurit já cuidara de muitos
outros, antes - e sua vida não virara de cabeça para baixo por causa de mais
ninguém.
Era aquilo. Ele a desorientava, provocava, encontrava partes dela que não
sabia estarem perdidas. O pai não era a única pessoa que Hurit precisava
visitar. Quando ele retornasse de Nova Iorque, ela precisaria levar Kitchi para
um passeio pela praia e explicar para ele algumas contradições em seu
espírito. Não era justo enganar o homem que a respeitava e com quem
pretendia casar-se, por isso ela tinha o dever de dizer que seu coração estava
confuso.
Aquele era um dos motivos pelos quais Hurit detestava romance.
Detestava qualquer coisa relacionada a sentimentos românticos, porque eles
sempre - sempre - colocavam as pessoas em situações indesejadas. Ela nem
mesmo sabia o que sentia, mas tinha certeza de que aqueles sentimentos - que
não conseguia evitar - eram uma traição.
Ao chegar em casa, encontrou a cabana vazia. Lamparinas estavam
acesas, mas Emile não estava lá. Sobre a mesa de madeira estava uma
pequena cesta com pães ainda mornos. Eles pareciam ter sido sovados por
mãos pesadas demais, mas cheiravam bem. O forno também estava quente,
indicando que a comida fora feita apenas uma meia hora atrás. O bule estava
cheio de chá com aroma de camomila - e ela não se recordava de ter colhido
flores naquele dia. Correu os olhos pela cabana e encontrou um bilhete sobre
a cama. “Durma confortável, hoje”, era a mensagem. A letra masculina,
riscada, tinha marcas distintivas de pressão na caneta que representavam
borrões no papel.
Hurit sorriu. Os cantos de sua boca se esticaram e ela sorriu ao perceber
que ele organizara a casa e preparara uma refeição para ela. Não fazia ideia
de para onde aquele homem teimoso havia ido, onde ele se escondera, mas
não iria atrás dele. Aceitaria a oferta - afinal, todo bem realizado retornaria
para ele. Sentou-se à mesa, comeu os pãezinhos - que estavam deliciosos,
apesar da aparência, bebeu o chá e deitou-se na cama, enrolando-se nos
lençóis que tinham o cheiro masculino de Emile.
Céus, ela estava com sérios problemas. Esperava que Paumpagussit
tivesse uma ótima justificativa para colocá-la em uma situação tão difícil.

— H Á algo que você quer me dizer, velho. — Chogan pitou o cachimbo pela
última vez antes de colocá-lo ao seu lado. A noite adensava e eles
continuavam pensativos depois da saída de Hurit. — Diga.
— Pássaro Negro está cada vez mais atento. Sim, há algo que eu quero
falar, porém desejo ouvir a sua angústia.
— Como sabe que estou angustiado?
— Sempre que me chama para um momento de reflexão é porque precisa
que eu tenha respostas para perguntas que você não deseja fazer.
O cacique sorriu e suspirou, olhando para o céu estrelado. Sim, ele
precisava de respostas, porque não sabia mais o que fazer com um problema
que rondava a tribo havia meses. Algo que ele vinha mantendo em segredo,
que ele tentava evitar cair nos ouvidos dos homens para não causar novo
alarde sobre o que os brancos poderiam fazer com eles. Levantou-se, entrou
na tipi e saiu segurando um papel escrito com letra rabiscada. Era uma
proposta, uma bem indigesta que o fazia perder o apetite sempre que nela
pensava.
Desde que Southampton se tornara uma cidade interessante para turismo,
uma rede hoteleira vinha tentando construir um grande hotel no litoral de
Long Island - e desejava usar terras Shinnecocks para isso. O dono da rede
era um homem educado e que usava roupas finas e bigode, falava com
sotaque europeu e usava dólares para limpar a boca durante as refeições.
Procurara Chogan alguns meses atrás para propor a compra de parte de seu
território e oferecia uma quantia obscena. Era tanto dinheiro que poderia
garantir prosperidade imediata para a tribo por algum tempo. Mas havia dois
problemas na proposta que levaram o chefe a recusá-la: o dinheiro acabaria
em algum momento e seu povo perderia o principal sustento, pois a parte de
litoral de interesse do hoteleiro era a que tinha a maior abundância em peixes.
Eles não tinham mais caça. A maior fonte de carne que possuíam era a
pesca, que seria prejudicada pela pretendida venda. Chogan negou, disse ao
distinto cavalheiro que não podia dispor daquela quantidade de terra sem
destruir sua tribo. O homem insistia, acreditando que o dinheiro seria
suficiente para que eles se estabelecessem em outro lugar, em uma cidade.
Sim, talvez fosse. Mas o dinheiro jamais compraria a dignidade de seu povo.
Aquele território era mais do que simples porção de terra e água, era a própria
identidade Shinnecock. Estavam estabelecidos em solo sagrado - e nenhuma
quantia de dólares poderia comprar aquilo.
Chogan olhou para o papel novamente. Wematin esperava, tranquilo, que
ele expusesse o que atormentava sua alma. Ali continha outra proposta. O
hoteleiro adicionava mais dinheiro e ameaçava a tribo. Dizia que poderia
conseguir a terra sem precisar pagar nada, bastava ir à corte. O cacique não
entendia muito das leis brancas, porém não duvidava que fossem capazes de
tomar-lhes mais do que já haviam tomado.
— O hoteleiro nos procurou novamente.
— Ah. — O xamã alisou a bengala com as mãos envelhecidas. — Agora
entendo por que viemos.
— Os deuses disseram algo sobre isso?
— Não. Na verdade, eu tive novas visões antigas.
— Não é um bom momento para ser enigmático, xamã. O que isso
significa?
— Que o lobo branco e Hurit estiveram em meus sonhos mais uma vez.
Foi a mesma visão de quando ela tinha doze anos, mas agora ela estava mais
velha. Não tenho dúvidas que Matwan é o lobo.
— Isso em nada ajuda meu problema. Preciso responder à carta do
hoteleiro.
— O que Chogan deseja fazer? Que resposta é a correta para esse
homem?
— A recusa, claro. Ele nos ameaça. Ele acha que nossa dignidade está à
venda.
— Então recuse. — Wematin sorriu para o vazio. — Você não precisa de
minha ajuda.
— Queria ter certeza de que estou fazendo o que é melhor para a tribo.
O xamã tateou até segurar as duas mãos do cacique entre as suas.
— Você é o líder deles. A sua decisão será a melhor, mesmo que nem
todos concordem. Os deuses não se opõem a ela, portanto ela é adequada.
Podemos conversar sobre Matwan?
Chogan bufou.
— O que tem ele?
— Você precisa enxergá-lo como Hurit o enxerga.
— Não entendo, velho. Hoje você está especialmente enigmático.
— Sua filha vê algo no inimigo que Chogan não vê. Ela está em contato
com a essência dele, ela sabe o que fazer. Confie em Hurit, Chogan, ela sabe
o caminho.
Ele confiava, sempre confiara em Hurit. Continuava sem entender o que
dizia o xamã, mas não insistiria na discussão. Quando Wematin decidia falar
em charadas, poucos conseguiam compreendê-lo. Decidiu que era o momento
de encerrar a conversa e dormir.

A LUA nascia e desaparecia no mesmo lugar. Ele notara aquele padrão da


primeira noite à última, mas fazia pouco tempo que estava entre os
Shinnecocks. Quando mudasse a estação do ano, sol e lua mudariam de
posição - e ele não fazia ideia de por que estava conjecturando sobre o clima
naquela noite. Talvez porque as memórias estavam vindo, atordoando,
fazendo com que ele precisasse ocupar a mente com alguma coisa que não
fosse o passado - nem o futuro. Depois da lembrança da infância, causada
pelo menino asmático, ele foi nocauteado por outras recordações que
pareciam peças de um brinquedo de encaixar que estavam sendo atiradas
sobre si.
Olhou para a fogueira que acendera na areia e pensou que jamais
acenderia uma fogueira em sua vida nobre e confortável na Inglaterra. Ele era
nobre, filho de um conde, e o menino que o defendera era seu irmão mais
velho. Não tinha certeza de sua idade nem de seus outros irmãos - ele sabia
que eles existiam, mas não tinha nenhuma imagem clara de nenhum. Sabia
seu nome e que fora, durante a vida, um homem doente. Teve asma, teve
problemas pulmonares, era pálido, fraco e vivia dentro de casa. Todos o
consideravam um inválido. E, naquele momento, Hurit o considerava um
inválido e um estorvo.
Emile nunca fora um estorvo. Lembrou que a mãe o amava e que fizera
de tudo para que ele vivesse, a família o adorava - e ele mal lembrava deles.
Aquelas pessoas que mal o conheciam o tratavam como se ele fosse
responsável pela peste ou pela destruição de sua cultura.
Talvez ele fosse. Respirou fundo e voltou a olhar as estrelas, que
pareciam brilhar mais intensas naquela noite. Só conseguiria conquistar o
respeito daquelas pessoas se pudesse mostrar seu valor, porém não sabia
como fazê-lo. Talvez, quando se lembrasse de tudo, ele fosse mais útil.
Enrolou-se no cobertor e deitou-se na cama improvisada que fizera. Naquela
noite ele dormiu embalado pelo oceano e coberto pelo manto do céu
estrelado. Quando o dia chegou e o sol despontou no horizonte, a claridade
fez com que seus olhos se abrissem em um impulso.
Havia um animal observando-o. Emile saltou para trás, assustado, e logo
ficou imóvel - animais atacavam quando se sentiam ameaçados. Ao contrário
do que Hurit dizia, não era uma serpente ou uma criatura disforme
devoradora de gente, era um pássaro. Sua aparência de bico curvado indicava
que era carnívoro - e muito grande, mas não parecia ameaçador.
— O que você quer? — Perguntou ao pássaro, que virava o pescoço para
lá e para cá tentando enxergá-lo melhor. — Está com fome?
Remexendo os restos de seu jantar, Emile retirou pedaços de peixe que
ainda estavam agarrados na espinha e estendeu a mão. A ave gritou e abriu as
asas, fazendo-o descobrir o problema - uma delas estava ferida.
— Calma, eu não quero lhe fazer mal. Coma, é peixe.
Atirando o alimento na direção do pássaro, esperou que ele se
aproximasse novamente. Ficou imóvel, apenas respirando, aguardando, na
expectativa de que o bicho confiasse nele o suficiente. A fome venceu e o
pássaro se aproximou, atacando os pedaços de peixe e encarando Emile
quando terminou a breve refeição. Na Inglaterra não havia animais como
aquele, mas suspeitou que fosse uma águia, com garras enormes e afiadas e
um olhar suspeito.
— Você quer ir para a cabana comigo? Lá posso descobrir como cuidar
de sua asa.
A ave gritou mais uma vez e ele deu uma risada nervosa. Conversar com
os animais talvez fosse algum estágio de loucura. Sem pensar muito, retirou a
camisa que vestia e enrolou-a no braço, protegendo-o para que as garras da
águia não o ferissem. Depois, ajoelhou e dobrou o corpo na direção do
pássaro, indicando que ele deveria acompanhá-lo. Sem dizer nada, esperou
mais - a águia, em algum momento, confiaria o suficiente para subir em seu
braço. Ferida e vulnerável, ela não tinha muita escolha - e ele entendia
perfeitamente como ela se sentia.
— Sei como se sente, eu sou como você. Também estou machucado e
indefeso. Vamos nos ajudar, venha.
Mais alguns minutos de paciência e a ave subiu em seu braço, cravando
as garras na proteção - que não foi suficiente. Emile gemeu pela força com
que as unhas espetavam sua carne mas manteve-se firme. Com movimentos
lentos, recolheu o cobertor e caminhou na direção da cabana. Depois ele
retornaria para recolher o que abandonara.
A águia reclamou durante todo o trajeto, ameaçando-o. Ao menos ele se
sentia ameaçado enquanto a enorme ave abria as asas e gritava próximo de
seu ouvido como se o alertasse - faça algo de que eu não gosto e arrancarei
um pedaço de seu corpo. Com aquele bico enorme, ela poderia fazer aquilo
sem dificuldade. Assim que chegou à casa de Hurit, foi recebido por ela com
uma expressão de irritação que logo se transformou em assombro e
incredulidade.
— O que é isso? — Ela perguntou, mantendo-se imóvel.
— Ela está ferida.
— É uma águia. Como você achou uma águia?
— Ela veio até mim. Não é um animal comum nessa região?
— Há águias em todo lugar, mas eu nunca vi alguém passar a noite fora e
retornar com uma no braço.
— Prometi a ela que trataria o ferimento. Você pode me ajudar, já que é a
especialista nisso?
— Você prometeu? À ave?
O animal gritou novamente e abriu a asa ferida, como se indicasse o
problema.
— E ela parece ter acreditado em mim. Não posso desapontá-la, agora.
Hurit balançou a cabeça negativamente e indicou que ele deveria entrar.
Havia cheiro de café fresco e Emile quis acreditar que ela o esperava. A
relação entre eles era atípica e escandalosa, mas ele já sabia que os
Shinnecocks não tinham o mesmo comportamento que os ingleses. Em
nenhum momento o pai dela fora até a cabana para conferir se tudo estava
bem e obrigá-lo a casar-se com a filha - mas ele precisava lembrar que não
era considerado uma ameaça. Era um pária, um indesejado, alguém a quem
faziam um maldito favor.
Precisando livrar-se do aperto da águia, Emile convenceu-a a ficar sobre a
mesa. A ave analisou tudo que estava ao seu alcance - o lugar, os objetos, as
pessoas. Levou o bico até um pedaço de pão e o atirou longe ao perceber que
não se tratava de alimento ao qual estava acostumada.
— Preciso ver o ferimento para tratar. — Hurit aproximou-se. —
Acredito que ela não vá gostar se eu tocá-la.
— Diga o que fará. Ela parece entender.
— Uma ave não entende o que digo, Emile. Talvez ela entenda o que
você diz. Por que não conversa com sua nova amiga?
Era provável que ela estivesse zombando, mas ele decidiu fazer o que
Hurit sugeria. Explicou para a águia que ela precisava estender a asa ferida,
fazendo gestos lentos e cadenciados com o braço para não assustá-la. A ave
olhava para ele e movia o pescoço quase como se realmente o
compreendesse. Depois de algum tempo repetindo os movimentos e pedindo
que ela atendesse seus pedidos, a águia finalmente cedeu e, em meio a alguns
gritos que soavam como reclamação, abriu a asa - mas não aceitou
imediatamente que Hurit se aproximasse. Com mais paciência e muito tempo
gasto, eles conseguiram identificar o ferimento e tratá-lo com um preparado
de ervas.
— Você já comeu? — Hurit perguntou, enquanto arrumava a pequena
desordem na cozinha.
— Depois que acordei, não. E você, dormiu bem? Gostou dos pãezinhos?
Ela sorriu sem querer, logo retornando ao estado anterior, aquele de quem
não se importava com nada. Emile sabia que era apenas uma forma de defesa,
ela era uma pessoa gentil.
— Fazer pão foi uma das memórias que recuperou?
— Sim, foi. Eu não saía muito de casa, então aprendi a fazer coisas que
homem nenhum faz, como costurar - acho que isso você já sabia. Creio que
minha família não imagina que eu serei um homem completo, algum dia.
A águia desceu da mesa e saiu da cabana, andando por não conseguir
levantar voo. No mesmo instante, Hurit aproximou-se de Emile e levou uma
das mãos até a face dele, acariciando-o no maxilar e na bochecha. Ele fechou
os olhos e respirou fundo ao sentir o toque e sentiu-se tolo por isso. Ela
cuidara dele por dias, vira-o nu mais de uma vez, então um simples toque de
carinho não deveria afetá-lo - mas era provável que fosse aquilo, o carinho.
Qualquer gesto de afeto vindo dela era uma conquista que Emile não deveria
comemorar. Aquela mulher não lhe era adequada por tantas razões que ele
levaria dias para enumerar todas. Eles pertenciam a mundos diferentes e seus
projetos de vida não tinham nada em comum.
Mas ele gostava dela. Sentia-se bem ao lado de Hurit e se pegou
desejando-a mais de uma vez. De uma forma nada casta, nada honrada.
— Você já é um homem completo, Emile. — Ela disse, encerrando o
contato. — Chogan o receberá hoje. Prepararei algo para a refeição da manhã
e te conduzirei à cabana dele.
CAPÍTULO NONO

M ESMO SABENDO QUE ELE NÃO ERA BEM - VINDO NA TRIBO , ELA QUERIA QUE
Emile caminhasse ao seu lado e a visse. Visse a aldeia, os seus moradores, o
motivo pelo qual ela tinha tanto cuidado com seu futuro - o futuro da tribo.
Se Emile entendesse o que tudo aquilo representava, o que mudaria?
Provavelmente, nada. Porém ela desejava, ainda assim, que ele
compreendesse a sua realidade.
— Caminhe comigo.
Disse, convidando-o para ir até a casa de Chogan.
— Pensei que não devia perambular pela aldeia, que os homens não me
queriam por aí.
— Eles não querem. Mas você precisa cruzar a aldeia para ir até Chogan,
então será uma boa oportunidade para que te vejam. Afinal, se o chefe te
aceitar aqui, você não pretende ficar?
Ele assentiu, mas Hurit sabia que ele ficaria enquanto não estivesse com a
memória plenamente recuperada. A permanência de Emile entre eles estava
vinculada à sua cura física e espiritual, o que ainda não acontecera – a qual
ela não sabia mais se ansiava. Se no início ela desejava livrar-se dele, já não
tinha tanta certeza disso.
Depois de cruzarem o riacho, Hurit escolheu um trajeto complexo para
chegar até seu destino. Passaram pela casa de Nuna e Etchemim, onde
estavam as crianças brincando na frente. Eles tinham brinquedos
improvisados e alguns construídos pelos pais ou doados por outras famílias.
Não sobrava dinheiro para comprar jogos ou bonecas ou soldadinhos, porém
nenhuma criança Shinnecock parecia preocupada com aquilo. Passaram pela
casa da família de Askook e o jovem estava batendo pregos e madeira,
construindo algum mobiliário novo. Passaram pela casa de Aranck, que se
virou e se afastou quando viu Emile. Ele era o mais resistente da tribo à
presença do branco invasor e Hurit sabia que agia daquela forma apenas por
não conhecer Emile.
A cada família visitada, a cada casa pela qual passavam, Hurit era
saudada. No início, a tribo a afastou ao saber que ela insistia em cuidar do
inimigo, mas o xamã, aos poucos, conseguiu convencer a todos que aquela
decisão era a melhor. Que ela sabia o que estava fazendo e que uma visão dos
deuses não poderia ser ignorada. Hurit não podia ser ignorada. Ela era uma
curandeira, ela ajudava a todos, ela sempre fez do propósito de sua vida
cuidar da tribo. E, apesar de ninguém desejar a presença do branco ferido
entre eles, admitiram que ela era madura para tomar decisões prudentes.
As crianças se aproximavam deles e tocavam Emile em espanto. Se ele
lhes sorria ou acenava, todas saíam correndo e gritando, como se ele fosse
uma representação de Hoobamack. Talvez, apenas talvez, parte do encanto e
do espanto se desse pela presença da águia.
Desde que eles saíram da casa a ave passou a segui-los. Emile ofereceu o
braço para que ela se pendurasse e o animal observava tudo e todos com seu
ar arrogante. A imagem do homem de pele clara e cabelos loiros não era
exótica para os Shinnecocks, mas eles nunca tinham visto um deles
carregando uma águia.
— Você quis que eu te acompanhasse para descobrir o quanto as pessoas
gostam de você?
Emile perguntou quando já estavam quase chegando à cabana de seus
pais. Os muitos olhos curiosos continuavam os espiando.
— Decerto que não. — Ela parou e virou-se para ele. — Quis que visse o
povo. Se quer ficar aqui mais tempo, não gostaria de conhecê-los?
— Não os conheço mais porque eles me rejeitam. — Emile suspirou. —
Mas estou feliz que tenha me feito caminhar pelo sol e carregar um pássaro
inconveniente, assim eu pude perceber que a tribo inteira a respeita. Eles
foram capazes de superar a raiva dos brancos pelo respeito que possuem por
você.
— Pelo xamã. Isso é obra de Wematin.
— Por você, Bela. — Ele sorriu, mas ela balançou a cabeça o
repreendendo por usar o apelido maldito.
— Vamos, Chogan detesta esperar.
Ela voltou a caminhar e o homem marchou atrás dela. O pai estava na
janela aguardando e, pela primeira vez em sua curta vida, Hurit teve medo de
enfrentá-lo.

C HOGAN ESTAVA SENTADO no que poderia ser chamado de varanda. Os


brancos tinham vários cômodos em uma casa, mas os Shinnecocks ainda não
estavam acostumados a repartir os pequenos espaços. A área externa, no
entanto, era uma das favoritas do pai de Hurit. Dali ele podia ver quase tudo
que acontecia - acompanhar o movimento das pessoas era algo que lhe dava
prazer.
Quando sua filha chegou com o homem branco que ela estava cuidando,
havia uma pequena comoção na aldeia. O xamã estava presente - Wematin
não deixaria de acompanhar aquela audiência. Chogan se irritava porque
Wematin estava sempre do lado de Hurit e concordando com tudo que ela
fazia. O restante da tribo estava apenas curioso com a presença do branco que
voltara dos mortos - mesmo que o cacique preferisse que ele tivesse
continuado entre os espíritos.
Não era só aquilo. A missão de Hurit era conhecida de todos e o momento
em que ela substituiria o xamã em sua tarefa de guiar espiritualmente a tribo
era aguardado. E o homem que a acompanhava, além de ter sido abençoado
por Hoobamack, vinha trazendo uma águia no braço. A aldeia estava mais
curiosa para saber por que o homem branco era seguido por uma ave
selvagem do que pelo resultado daquela conversa.
— Trouxe o almoço? — Chogan perguntou, ao ver a ave.
— Ela está nos seguindo desde cedo. Cuidamos da asa ferida dela.
— E por que a ave segue o matwan? — Foi a pergunta de Wematin.
— Eles se comunicam. Acredito que ela goste dele.
Os homens se entreolharam. Wematin tentou aproximar-se da águia, mas
ela gritou e se escondeu atrás de Emile, abrindo as asas em uma atitude
protetiva. O velho xamã deu uma risada estridente, demonstrando que o
episódio o divertia. Como um homem cego podia compreender tudo ao seu
redor era sempre um mistério que Chogan não desvendaria.
— Ele tem a habilidade de encantar os animais. Diga, homem branco,
você também conversa com cavalos?
Hurit indicou que ele deveria responder. Afinal, aquela audiência fora
solicitada por Emile, ele era o motivo de se reunirem antes do meio-dia.
— Não me recordo de nada do tipo.
— Mas recorda seu nome? O que mais se lembra?
— Sinto que minhas memórias estão retornando, mas não sei dizer o
quanto me lembro. — Ele estendeu a mão para Chogan em um gesto
amistoso. — Acredito que seja educado apresentar-me, senhor Pássaro
Negro. Meu nome é Emile McFadden.
Uma breve tensão se instalou. Se Chogan aceitasse o cumprimento do
forasteiro, indicaria que estava aceitando também a sua presença. Se o chefe
da tribo não repudiasse o branco, nenhum dos Shinnecocks poderia fazê-lo.
O chefe levou segundos olhando a mão estendida à sua frente e a
expectativa era palpável. Chogan olhou para os outros presentes e para sua
filha. O silêncio era tanto que se podia ouvir uma pena cair e tocar o chão.
Antes que Emile desistisse e aceitasse a recusa, o cacique segurou-lhe a mão
e apertou-a com força.
Chogan não entendeu o alívio que Hurit demonstrou sentir pelo gesto
simbólico. O ar saiu de seus pulmões fazendo um ruído que demonstrava que
ela estava prendendo a respiração. Aquela reação indicou que a filha esperava
- desejava - que ele aceitasse o forasteiro. Ela estava emocionalmente ligada a
ele.
— E Emile McFadden é um desses senhores que roubam nossas terras,
um dos que constroem prédios e navios enormes ou um dos estrangeiros que
vem para esse país em busca de sonhos?
— Sou um estrangeiro, senhor, mas não vim em busca de sonhos. Não me
recordo o que vim fazer nos Estados Unidos. Minha família é parte Inglesa,
parte Irlandesa.
— Não sou senhor, chame-me Chogan. Minha filha Hurit disse que
pretendia ser aceito na tribo, mas não entendi por quê.
— Me incomoda ser um pária. Se eu não for bem-vindo na aldeia, prefiro
ir para a cidade. Não desejo causar mais constrangimento para minha anfitriã.
— Você não conhece ninguém na cidade. — Hurit disse, sem perceber
que aquelas palavras mostravam o que ela não pretendia revelar. — O que
pretende fazer lá?
— Também não conheço ninguém aqui. — Ele olhou para ela com um
sorriso terno. O que ele vira na filha, antes, estava vendo no branco naquele
momento. Ternura. — E, ainda assim, aqui estou. Não serei um fardo, Bela.
C HOGAN ENRIJECEU as costas e esticou-se em uma posição de desconforto.
Wematin ergueu as sobrancelhas e balançou a cabeça - o velho era mais
expressivo que qualquer um. Talvez Emile tivesse simplesmente dito algo
sem pensar, assim como ela fizera antes naquela reunião, ou talvez ele
pretendesse que todos ali soubessem que havia uma intimidade exagerada
entre eles. Por mais que a tribo soubesse que ela cuidava dele, que
compartilhavam a cabana há dias, para todos era apenas aquilo que acontecia
entre eles - Hurit cumpria um dever, mas ela detestava os brancos.
E então ele a chamara de Bela. Aquele apelido que ela tanto repudiava
era, em verdade, íntimo demais.
— Trouxe a águia para nos sensibilizar? — Chogan perguntou, rompendo
o silêncio.
— Não. Ela me encontrou hoje de manhã e eu a ajudei. Pensei que iria
embora, mas ela permaneceu atrás de mim.
— Ela confia em você. — Wematin disse. — Até se recuperar, você será
o protetor de wôpsukuhq.
— É águia em nosso idioma. — Hurit murmurou.
— Entendo. Você cuidará dela se eu me for?
— Imagino que wôpsukuhq não queira ser cuidada por Hurit, ou estaria
perto dela.
— Parece-me que você desenvolveu alguns laços afetivos com nossa
comunidade, wánuks 1. O xamã gosta de você. Minha filha gosta de você. A
águia gosta de você. Isso me coloca em uma posição difícil, porém não posso
simplesmente dizer que é bem-vindo na aldeia. Os seus já nos fizeram mal o
suficiente e, se descobrirem que está aqui, podem dizer que nós somos
responsáveis por seus males.
— Não foram vocês que me feriram.
— Lembra-se quem foi?
— Não.
— Então, sua palavra não será de grande valia para nos auxiliar,
concorda?
— Sim, Chogan, concordo. E entendo que precise proteger seu povo, por
isso procurarei abrigo em Southampton.
O cacique balançou a cabeça, assentindo, e a reunião encerrou. Wematin
esfregou os dedos em seu cajado de madeira, indicando que estava pensando.
Ela o conhecia bem, sabia que o velho xamã nunca tomava decisões
precipitadas - e que aquele gesto sugeria que ele achava que Chogan estava se
precipitando. Em nome da amizade, era provável que o xamã tivesse um
momento de reflexão com seu líder em algum momento mais tarde.
A decisão parecia ser de Emile, mas Hurit entendia que ele se sentira
pressionado. Aquele orgulho masculino não fazia sentido para ela - ele não
tinha dinheiro nem condições físicas de ficar sozinho em Southampton. Mas
marchou tranquilo de volta para a cabana, levando a águia com ele.
Algo dentro dela desencaixou. Passara dias desejando que o homem
acordasse e desaparecesse de sua vida. Que ele se curasse e fosse embora.
Pediu a Paumpagussit que lhe enviasse outra tarefa, que não a obrigasse a
cuidar de um assassino - porque ela julgava todos os brancos pelos crimes
que eles cometeram. Ela pediu a todos os deuses, inclusive ao que ele
acreditava, para que levassem Emile para bem longe - e, quando aquela
oportunidade se mostrava concreta, ela sentiu como se uma mão invisível lhe
segurasse o coração e apertasse.
O ar faltou e Hurit caminhou com dificuldade. Chegou à cabana minutos
depois dele e o viu sentado na cama encarando a águia, que o encarava de
volta. Os cabelos loiros, que tinham a cor da palha de milho, não eram como
os outros que ela já vira. Wematin estava errado - ele não era um lobo, era um
leão da montanha.
— Parece-me que amanhã terei que conhecer Southampton.
— Você é tolo, tire essa ideia da sua cabeça. Como pretende ficar na
cidade?
— Talvez alguém esteja precisando de um ajudante em troca de
hospedagem?
Hurit cruzou os braços e o fitou. As unhas cravaram na pele e causaram
incômodo, que ela ignorou, porque havia outra dor mais inconveniente
naquele momento.
— A águia precisará de você. Se ela retornar para a natureza estando
ferida, perecerá. Se ela for com você, será morta.
Emile levantou-se e deu dois passos na direção dela. Ficaram perto
demais, algo que não a deveria perturbar, já que proximidade não faltava
entre eles. Ainda assim, alguns gestos e olhares eram diferentes e ela não era
tola de não reconhecer que, ao reduzir a distância entre eles, Emile tinha o
objetivo de desestabilizá-la.
— Estou suspeitando que você não quer que eu vá.
— Não interprete erroneamente minha preocupação. Apenas não desejo
que se torne um morador das ruas de Southampton.
Ele se aproximou mais. Ela estreitou os braços ao redor do corpo, como
se eles pudessem oferecer proteção.
— Você tem certeza de que é apenas isso, Bela?
— Pare de me chamar assim. — Ela ergueu o rosto e seus olhos se
encontraram. Não era a primeira vez, mas, de novo, daquela vez parecia
diferente. — Depois de tantos dias você ainda não conhece meus propósitos?
— Conheço. — Ele deu uma risada. — E, ainda assim, às vezes eu tenho
a sensação de que eles podem estar confusos. Assim como os meus.
Erguendo o braço, ele a tocou no maxilar, forçando-a a fechar os olhos.
Hurit preferia manter-se encarando-o, demonstrando que não se afetava por
ele nem por aquele cheiro masculino, mas falhou. Oh, como ela detestava
falhar. A sensação dos dedos delicados acariciando suavemente sua pele
trêmula a fizeram entender que estava nervosa e que ele estava certo - a
confusão era sua melhor amiga desde que o encontrara na praia.
— Você está falando bobagem. — Hurit quis afastar-se, mas seu corpo se
recusou a obedecer a seus comandos. — Assim como essa ideia de ir embora
sem possuir condições de se manter minimamente. Eu sei que Chogan
mudará de ideia, Wematin crê que ele tomou a decisão equivocada.
— Você pedirá que ele mude de ideia? Intercederá em meu favor para
que eu desista de ir embora?
— Se isso for impedir que faça uma tolice dessas, sim.
— E fará isso como futura xamã, como guia da tribo, ou como a filha
dele?
— Isso não faz nenhuma diferença, Emile.
Ele deu uma risada nervosa e baixou a mão, causando uma sensação de
ausência imediata. Ela não admitia que nada relativo a ele pudesse provocar
reações como aquela, mas enfrentar a loucura de vê-lo partir para
Southampton a deixara fora de si.
— Você não percebe, Hurit? Faz toda a diferença. Traça o limite entre
ficar porque eu continuo sendo um meio para um fim ou porque você deseja
minha presença. Por qual desses motivos você conversará com Chogan?
Falará com ele como xamã ou como filha?
— Céus, vocês homens são irritantes. Eu não sou xamã, os deuses me
fazem de tola e brincam comigo. Quero que fique porque preocupo-me com
você, Emile.
A voz dela estava estridente e alta demais. Talvez aquela discussão
pudesse ser ouvida por toda a tribo, mas ela não conseguia evitar o desespero
causado pela provocação dele. Porque ele estava provocando-a com palavras
e gestos, mantendo-se próximo dela a ponto de fazer com que Hurit se
esquecesse.
De quem ela era, o que ela odiava e por que ela decidira cuidar dele.
E ela se esqueceu de tudo quando ele, depois de uma reflexão de
segundos, deslizou os dedos para sua nuca e deitou a boca sobre a dela.

E LE ERA UM IMBECIL . Um tolo, um completo canalha, mas preferia ir direto


para o inferno a subir ao céu sem provar o sabor daqueles lábios. Ela estava
irritada, nervosa a ponto de permitir que ele percebesse o tremor de seu corpo
inteiro. A discussão a aborrecia, ou era a hipótese de que ele pudesse partir?
Emile não era arrogante a ponto de achar que Hurit estava perturbada pela
possibilidade de não mais o ver. Porque ele estava e todas as ameaças de ir
para Southampton eram vazias. Ele iria, mas sofreria cada segundo desde que
deixasse a aldeia. Não podia ser tão tolo e crer que ela sentisse o mesmo. Ao
contrário, Hurit provavelmente estava ansiosa para livrar-se dele. Talvez
preocupada com aquela missão que sempre surgia nas conversas que tinham.
Mas ele a viu vulnerável e aproveitou-se disso - e que Deus o perdoasse,
mas ele não se arrependera nem um instante.
Os lábios dela eram tão macios quanto pareciam à distância. O cheiro
dela era mais intenso naquela proximidade e ele não estava preparado para
que Hurit correspondesse ao beijo. Depois de acariciar-lhe os lábios com a
língua e provocá-los a se abrirem para ele, ela passou os braços ao redor do
pescoço de Emile e levou o corpo para junto dele.
Com um gemido, ele a segurou pela cintura e pressionou-a contra si,
fazendo com que sentisse a dureza da sua própria loucura. As línguas se
tocaram como que em um encontro casual pelas ruas de Thanet e ele sentiu o
corpo estremecer ante ao sabor inesperado daquele momento.
Emile imaginou que seria inadequado e indecente girar com ela nos
braços, deitá-la na cama e conduzir as carícias a outro nível de devassidão e
prazer. Talvez ele nem mesmo se lembrasse de como fazer nada daquilo, mas
sabia que era errado, simplesmente. Se ele a tocasse com mais intimidade, só
pararia depois de garantir que estivessem completamente saciados.
Mas diabos, por que parecia tão certo? Não importava, precisava
interromper o beijo mesmo que ela estivesse rendida e abandonada a ponto de
retirar-lhe completamente o juízo. Lentamente, ele se afastou e apoiou a testa
na dela, respirando com dificuldade enquanto buscava desesperadamente por
ar em seus pulmões.
A ruptura fez com que Hurit percebesse o que acontecera. Com olhos
arregalados, ela deu um passo para trás, rompendo de forma abrupta com
qualquer contato entre eles e, depois de o encarar com completo horror, saiu
correndo pela porta.
A águia o observava virando o pescoço de um lado para o outro.
— Vai me julgar?
Com um grito estridente, a ave virou de costas e se afastou. Talvez todo
mundo ali estivesse correto e aquele pássaro metido o compreendesse. E
talvez ele mesmo o estivesse julgando. Beijar Hurit foi a coisa mais tola que
ele fizera desde que acordara da experiência de quase morte. E, ainda assim,
parecera muito certo.
Emile olhou ao redor e se deu conta de que não tinha pertences que
poderia levar para Southampton. Ele era realmente estúpido se achava que
sobreviveria por mais de um dia sem ter nenhum dinheiro, nenhuma
habilidade, nada que pudesse colocar um teto sobre sua cabeça.
Enquanto se auto depreciava, Wapun entrou na cabana. A amiga de Hurit
nunca batia - a privacidade era um conceito diferente na aldeia. Todos
pareciam respeitar a individualidade de cada um, mas as residências eram
frequentadas por quem quisesse.
— Boa tarde, Matwan. Quero dizer, Emile. Desculpe-me, ainda é novo
para mim que tenha um nome.
— Não precisa desculpar-se. Se veio procurar Hurit, ela saiu.
— Oh. Ela disse aonde ia?
— Não, ela apenas saiu.
Decerto a amiga acharia estranho que Hurit simplesmente saísse. Desde
que acordara, durante aqueles dias que compartilhara com ela, a mulher
nunca se afastava sem dizer aonde ia ou o que faria. Mas aquela não era uma
mentira, ele apenas não contara sobre o motivo da saída abrupta de Hurit.
— Então não deve demorar. Permita-me cuidar do ferimento, o curativo
precisa ser trocado.
Olhando para baixo, Emile percebeu que havia sangue tingindo a camisa
branca que usava. Ele de vez em quando ficava sem camisa, mas visitar o
chefe da tribo parecia um evento relevante o suficiente para justificar um
vestuário mais adequado para estar na presença de pessoas. O excesso de
tudo era provavelmente responsável pelo sangramento. Ele caminhara mais
rápido e se excitara como ainda não fizera antes. Baixou o olhar outra vez
para garantir que seu corpo não mantinha evidências daquela excitação. Seria
constrangedor se Wapun percebesse a forma indecorosa com a qual ele
desejava sua melhor amiga.
Depois de desabotoar sua camisa, ele permitiu que ela limpasse e tratasse
o ferimento.
— Wapun, você pode me responder uma pergunta?
— Se eu souber a resposta, certamente.
— Como funcionam os noivados na tribo?
A jovem de grandes olhos escuros como a noite o fitou com dúvida
sincera.
— Não sei se entendi. Você quer saber sobre os festejos?
— Sobre as regras. Como mulheres e homens terminam noivos, entre os
Shinnecocks?
— Ah! — Ela sorriu. — Quando eles decidem que querem se casar, eles
se reúnem com a família e anunciam o noivado.
— Simples assim? — Emile duvidou. — Não há contratos assinados
entre pais, acordos de paz entre tribos, nada que prenda os noivos uns aos
outros?
Wapun terminou de limpar o ferimento e começou a enrolar a faixa que
manteria as ervas cicatrizantes no lugar. Ela tinha mãos suaves e pequenas,
um toque delicado e preciso, mas não se comparava com Hurit. Ele não tinha
aquele direito, mas preferia que a outra cuidasse de seus males.
— Já houve muito, no passado, quando as tribos eram em maior número e
não tínhamos sido massacrados pelos seus. — Ela disse aquilo com
naturalidade, mesmo que se tratasse de uma memória desagradável. — Hoje
em dia há pouco uso para essas tradições.
— E as mulheres são livres para escolherem seus noivos?
— Sim, quase sempre. O casamento é uma honra que não deve ser
concedida levianamente. Todos escolhemos com muito cuidado nossos
companheiros. Por que a curiosidade?
Ele não poderia dizer. Queria saber se Hurit tinha escolha, se ela poderia
livrar-se de Kitchi e ficar com ele. Claro que ela não faria isso, mas ele queria
ao menos descobrir se ela poderia tomar decisões sem sofrer eternamente os
efeitos delas.
Entre as mulheres brancas, não havia poder de escolha. Elas se casavam
ou seriam para sempre dignas de pena. Se casassem, seriam submetidas ao
marido - mesmo que as leis tivessem mudado, a melhoria de vida das
mulheres era uma ficção. Naquele breve momento, Emile pegou-se
recordando de sua irmã. Ele sabia que tinha uma, mas pouco se recordara
sobre ela até então. Wilhelmina casou-se sem direito a escolha, mas ela era
feliz com seu marido.
— Se Hurit quiser ela pode romper seu noivado?
A pergunta era estúpida e ele jamais deveria tê-la feito. Wapun
desconfiaria de seus sentimentos confusos e ele não desejava que ninguém
mais soubesse.
— Claro, ela não é prisioneira de Kitchi. Mas por que ela faria isso?
Kitchi é o melhor homem, ideal para governar ao seu lado.
— Você tem razão, por que ela faria isso?
Wapun pareceu satisfeita com sua resposta aos questionamentos de Emile
e também com o curativo finalizado. Dizendo que procuraria por Hurit,
deixou a cabana e desapareceu pela aldeia, alheia à realidade que deixava
Emile desorientado.
Ele gostava de Hurit e não sabia o que fazer com aquele sentimento.
CAPÍTULO DÉCIMO

O SOL JÁ ESTAVA SE PONDO QUANDO H URIT DEIXOU A PRAIA . E LA VAGOU ATÉ


o oceano porque estava confusa, nervosa e precisava conversar com
Paumpagussit. O deus do mar não lhe ofereceria respostas, mas, como era ele
o culpado por sua atual desorientação, suspeitou que fosse justo obrigá-lo a
ouvir seus lamentos.
Ela não quis sair correndo da cabana daquela forma, parecendo fraca ou
incapaz de lidar com uma situação que lhe fugira ao controle, exceto que ela
não era capaz. Quando aquela criatura ousada, abusada e indecente que
estava sob seus cuidados decidiu beijá-la, ela perdeu completamente o
restante de juízo que lhe restava. O toque da boca dele na dela, o sabor do
hálito morno e o balé das línguas entrelaçadas a entorpeceu mais do que o
láudano - e a fez fugir desesperada.
Aquilo era errado. Emile era errado. Inadequado e impróprio de tantas
formas que ela não seria capaz de numerá-las em uma mão, nem em duas. E,
ainda que fosse, ela só conseguiu parar de beijá-lo porque ele encerrou o
contato entre eles.
Fraca. Hurit nunca fraquejava, mas aquele homem a transformava em
outra pessoa. Ela precisou sair correndo de perto dele e isolar-se em uma
enseada que poucos utilizavam para pesca porque não havia bons peixes ali.
Deveria voltar para casa e enfrentar Emile, mas seu coração a compeliu
por outros caminhos. Deixou-se conduzir até a morada de Kitchi, sabendo
que ele retornara de Nova Iorque naquele dia. Ela estava há um bom tempo
sem ver o prometido e não sentira saudades dele. Não desejara encontrar-se
com ele. Sua mente e seu corpo estavam ocupados com outras coisas e ela se
sentia imunda por enganá-lo.
— Seja bem-vinda, filha. — A mãe dele estava do lado de fora batendo
raízes e preparando farinha. — Kitchi está do outro lado com os meninos.
O outro lado era o que os brancos chamavam quintal. Não havia cercas
nem delimitações entre os Shinnecocks, mas ficava nos fundos das cabanas.
— Obrigada, Nuna. Irei até ele.
A senhora de cabelos grisalhos assentiu. Quando a viu chegar, Kitchi
mandou os dois irmãos para dentro, dizendo que deveriam se lavar para a
refeição. Era uma desculpa para ficar sozinho com a noiva - mesmo que ela
suspeitasse que ele sabia que sua presença ali indicava algo ruim.
Ela vinha sendo uma péssima companheira. Desde que o irmão morrera,
Hurit se fechara para quase tudo e pouco despertava nela o interesse. A vida
se tornara mecânica, automática e ela vivia cada momento dentro de um
planejamento rigoroso - e desprovido de qualquer emoção.
Desde a chegada do matwan, o inimigo da tribo, ela se isolara em sua
cabana e quase não compartilhou nenhum momento com Kitchi. Tirando as
poucas vezes em que ele, voluntariamente, foi até ela, Hurit agira como se
não houvesse compromisso entre eles. Inclusive naquela em que ela prometeu
que conversariam sobre casamento assim que ele retornasse.
Naquela tarde ela o traíra e tomara a decisão de suspender o noivado.
— Quando te vi pensei que estivesse aqui para saudar meu retorno. Mas
sua expressão me faz desconfiar que veio me pedir algo que eu não vá querer
conceder.
Ele disse com humor na voz masculina. Ela cruzou as mãos na frente do
corpo e respirou fundo para tomar coragem de agir.
— Não vim pedir, Kitchi. Mas preciso comunicar algo. Realmente não
vim em saudação, apesar de estar feliz por seu retorno seguro. Não tenho sido
honesta com você e desejo remediar isso. Devemos colocar um fim em nosso
compromisso.
Os olhos dele se arregalaram. Kitchi era um guerreiro, ele não
demonstrava emoções gratuitamente. Para que alguém percebesse como ele
se sentia, deveria conquistar sua confiança integral. Hurit a conquistara e ela
soube, quando disse aquilo, que o estava magoando.
— Um fim? Você está rompendo comigo?
— Sim, estou.
— Por causa dele? Do branco maldito que abriga em sua cabana?
Sim. Era por causa dele, por causa do que ela sentia ao lado dele, porque
ela não sabia se conseguiria deixá-lo ir e porque sabia que, se ele a beijasse
outra vez, responderia da mesma forma de antes - com seu corpo e sua alma
em entrega total.
Mas também era por causa dela. Hurit não podia ser feliz fazendo pessoas
infelizes. Ela não desejava trair Kitchi nem reprimir seus sentimentos - e isso
significava romper com qualquer compromisso que eles ainda tivessem.
— Muitas coisas aconteceram, Kitchi. Eu preciso de algum tempo para
refletir. A simples ideia de substituir Wematin tem me tirado o sono. Quero
ser justa com você e não mantê-lo preso a mim nesse momento.
O noivo se aproximou dela. Antes, a masculinidade dele a afetava, fazia
com que desejasse coisas indecorosas. Por muitas vezes desejou ser beijada
por aquele homem viril e enorme, por muitas vezes desejou que ele fosse
além de beijos. Às vezes ele a satisfazia com um toque mais intenso de mãos
ou a arrebatava com seus braços fortes, mas ela quase sempre queria mais.
Daquela vez ela não sentiu o mesmo quando ele levou a mão até sua face
e acariciou-a. Nem quando ele baixou a cabeça para beijá-la, fazendo com
que ela se afastasse em um impulso. Seu corpo estava tremendo, porém não
porque ela sentia desejo, mas porque estava nervosa. Kitchi percebeu.
Quando ela não correspondeu ao toque dele da forma que sempre respondia,
Kitchi soube e entendeu.
— Sabe que não pode me pedir para simplesmente desistir de você, não
sabe?
— Kitchi...
— Hurit, ele não serve para você. — O noivo deu dois passos para trás.
— Você odeia os brancos, como isso pode acontecer?
— Eu não o odeio.
Ele assentiu, mas a mágoa era visível em seus olhos de noite. Ela o ferira
sem querer, porém sabia que feriria mais se nada fizesse, se nada dissesse.
Com um aceno de cabeça Kitchi decidiu que a conversa se encerrara e a
deixou ali, devastada e arrasada.

E LE ESTAVA NERVOSO . Sua ansiedade poderia ser percebia por qualquer um


que o visse, mesmo que não o conhecesse bem, então, quando Wematin
chegou à cabana, ele soube que estava exposto. O velho sabia tudo e via tudo,
mesmo com os olhos cegos e a idade avançada. Se Emile conhecera alguém
tão sábio antes, não se lembrava. Não que ele se lembrasse de muita coisa,
mesmo.
Ele estava sozinho e entrou sem se anunciar. Sua bengala o auxiliava a
caminhar e a identificar os obstáculos, mas Emile suspeitou que o homem
nem mesmo precisasse dela.
— Hurit ainda não chegou, xamã. Ela saiu sem me dizer seu destino.
— Eu sei. Vim aqui exatamente porque sei que ela não está. Quero
convencê-lo a ficar.
Ah, aquela seria uma conversa interessante.
— Xamã, eu não posso ficar. Chogan foi honesto ao dizer que eu posso
causar sérios problemas para a tribo e não quero isso.
— Chogan mudará de ideia.
A águia retornou para a cabana e gritou ao ver o intruso. Wematin
estendeu a mão para o vazio e esperou a ave se aproximar. Depois de alguma
suspeita, ela entrou debaixo da mão e permitiu que ele a acariciasse.
— Por que?
— Há algo em você, Matwan. Algo que eles ainda não enxergaram, mas
que Hurit já começou a perceber. Você é o lobo da visão que tive quando ela
era muito jovem para entender o significado.
— Eu sou um lobo?
— É um símbolo. Vamos, sirva-me um chá. Sabe ferver água, não sabe?
Emile riu. Foi até a pequena cozinha e colocou água para ferver. Já era
noite e os insetos começavam a picar, já que ele não sabia fazer a mágica de
Hurit para evitar que os mosquitos entrassem na cabana, ou afastá-los da sua
pele. Colocou as ervas em infusão e preparou uma caneca do mais aromático
chá que ele já fizera.
O xamã aprovou o sabor com um aceno de cabeça.
— Por que deseja que eu fique?
— Tenho muito afeto por Hurit. — O velho homem fixou o semblante em
um ponto qualquer, como se ele pudesse enxergar o que estava à frente. Sua
expressão era de quem contaria uma história. — Desde que ela nasceu, eu a
considero uma neta. Não tive filhos, então eu tenho por Chogan o mesmo
apreço que teria por um descendente meu. Eu a vi florescer e murchar depois
da morte de seu irmão. O ódio que ela nutre envenena seu espírito e não a
deixa preparar-se para assumir seu papel na tribo. Enquanto ela não se
libertar dele, não encontrará seu verdadeiro caminho.
— E eu tenho algo a ver com isso?
— Você pode libertá-la do ódio. Ela gosta de você. Mostre que nem todos
os brancos são iguais e que há mais matizes no mundo do que o vermelho que
ela enxerga.
— Isso também foi simbólico?
— Sim. — O xamã riu e levantou-se. — O chá estava uma delícia. Diga
que vai pensar em ficar, ao menos até que recupere todas as suas memórias e
retorne para sua casa em Thanet.
— Eu conversarei com Hurit e decidirei. Mas, xamã, se eu me tornar um
inconveniente, irei embora no mesmo instante.
O velho deixou a cabana rindo. Emile tinha a sensação de que ele
manipulava tudo de acordo com o seu interesse e não gostava de sentir-se um
joguete nas mãos do homem - mas não negaria que o apoio dele lhe dava
motivos para permanecer na aldeia.
Minutos depois da saída do xamã, Hurit voltou. Ela tinha os olhos
distantes e quase vazios, era apenas um arremedo da mulher que ele conhecia.
Sua aparência era a mesma, mas ela carregava a expressão de quem lutava
algumas batalhas.
— Wematin estava aqui? Cruzei com ele pelo caminho.
— Sim, ele veio me pedir para ficar.
— E por ele você ficaria?
Emile deixou a breve arrumação que fazia e virou-se para ela. Sua
intenção era preparar o jantar, mas as interrupções não o deixariam seguir em
frente em seu objetivo.
— Não.
A resposta a pegou desprevenida. A sempre diligente e atenta Hurit se
surpreendeu com o que ele disse. Arregalou os olhos e as sobrancelhas e
prendeu a respiração enquanto o fitava.
— Então está mesmo decidido a nos deixar.
A frase era uma afirmação. Emile quis rir, nervoso porque ele não estava
louco, ela não queria vê-lo partir.
— Você entendeu errado. Eu disse que não ficaria por causa de Wematin.
Eu ficaria por você, Hurit. Assim como eu partirei por você, se for isso o que
te fará feliz.
O ALÍVIO que a dominou era constrangedor. Hurit não deveria querer tanto
ouvi-lo dizer que ficaria por ela, que faria qualquer coisa por ela. Não queria
sentir-se tão bem em saber que era importante na vida daquele homem a
ponto de direcionar suas decisões - ninguém deveria regozijar-se com
tamanho poder sobre a vida de ninguém, mas ela não teve nem mesmo a
decência de se sentir culpada.
— Você trocou seu curativo?
Ela desconversou, não querendo deixar transparecer o que sentia.
— Foi Wapun. Você vai fingir que não aconteceu nada, que eu não disse
nada, que nada relevante precisa ser conversado entre nós?
— Quando Wapun esteve aqui?
— Você passou o dia fora. Não mude de assunto. Onde esteve?
Hurit passou por ele e foi até o fogão colocar água para esquentar. Por
algum motivo ela precisava se lavar, precisava de um banho para acalmar-lhe
os nervos. Talvez um chá, um tônico, láudano, uísque.
— Tenho outras tarefas além de cuidar de você, mesmo que não pareça.
Se puder me conceder alguma privacidade, preciso me lavar.
— Eu não tenho direito a privacidade. — Ele moveu os ombros para cima
e para baixo. — Não pense que se livrará de conversar comigo, mulher. Eu
beijei você e, ao invés de me fazer conhecer o peso de seus punhos, você
fugiu. Não consigo te imaginar fugindo de nada. O que houve?
Ela se virou de costas para ele e apoiou as duas mãos na janela aberta.
Respirou fundo para readquirir coragem - ou sanidade. Virou-se novamente e
o encarou.
— Não sei o que quer de mim, Emile. Quer que eu diga que estive
vagando pela praia com vontade de lhe bater apenas por me fazer sentir tão
confusa? Que fui até Kitchi e suspendi nosso noivado porque não quero lhe
ser infiel nem em pensamento? Mas, como eu tenho pensado em você de
forma indecente várias vezes por dia, eu não tive outra escolha? Quer que eu
diga que estou nervosa, quente e dolorida por ter andado muito, mas só
consigo pensar no quanto gostaria que você me tomasse nos braços e beijasse
outra vez?
O controle que ela tanto admirava possuir não existia mais. Planos,
projetos, missões - Emile McFadden passou por cima deles como uma
manada de cavalos selvagens. Ela nem sabia quem ele era. Ele mesmo não
sabia. Podia ser um fora da lei, um conquistador cruel com sangue nas mãos,
mas ela não acreditava em nada disso. Construíra uma imagem perfeita e
intocável do homem cuja vida salvara - mas que parecia disposto a acabar
com os pilares da sua.
Ele levou alguns segundos olhando para ela. Os olhos azuis flamejavam
enquanto refletiam a luz do fogo e a devoravam à distância. Primeiro, fixos
no que ela dizia, no movimento de sua boca. Depois, desceram para observar
sua respiração irregular, o sobe-e-desce de seu peito e o ar que entrava e saía
pelos lábios entreabertos. E, por fim, os olhos se encontraram com os dela e
foi como se uma rajada de luz a atingisse.
— Você pensa em mim de forma indecente?
Ela bufou.
— Por favor! Com tantas revelações é realmente essa a que a mais atraiu?
— Apenas fiquei curioso. — Ele não parava de encará-la, como um lobo
rodeando a caça. — Pensei que Hurit estivesse acima desses problemas
mundanos.
— Eu não estou acima de problema algum, estou afogada neles.
— Posso te ajudar com pelo menos um deles.
Emile encerrou a pequena distância entre eles e fez o que ela pedira -
tomou-a nos braços e a beijou. Uma das mãos firmes dele a segurou pela
nuca enquanto a outra a puxou pela cintura, garantindo um beijo intenso,
impróprio e escandaloso.
Era exatamente o que ela precisava. Que cada parte dolorida e pulsante
sua fosse tocada por ele. Que a tensão causada pelas memórias recuperadas,
pela decisão de partir, pelas confissões do dia fossem arrancadas de si pelos
lábios dele.
Com suavidade, Emile ajeitou sua cabeça para ajustar o encaixe entre
elas. Talvez ele não fosse o maior, nem mais alto homem que ela conhecera,
mas havia muito dele para dar conta. Ombros largos, braços firmes, peito
sólido, e algo mais, que a tocava na região do baixo ventre com uma pujança
notável.
Ele gemeu e capturou seu lábio inferior entre os dentes quando ela
pressionou seu corpo contra aquela parte específica dele. Hurit não era tola,
sabia o que significava aquilo mesmo que nunca tivesse experimentado nada
tão vivaz em um beijo, antes.
— Céus, Bela. — Emile rosnou, proferindo as palavras sem afastar a boca
da dela. — Não faça isso.
— Estou machucando você?
— Muito pelo contrário. — Ele deu uma risada.
— Estou. — Hurit desprendeu-se do beijo e olhou para baixo. Havia uma
mancha morna de sangue no curativo recém trocado por Wapun. — Acredito
que seu corpo ainda não esteja curado o suficiente.
Emile jogou a cabeça para trás em frustração. A água já estava bastante
quente no fogão e eles não haviam preparado nada para comer.
— Vamos dividir a água. Prepararei um banho para você.
— Não. — Ele se virou de costas tentando esconder-se para que ela não
prestasse atenção naquilo que o incomodava. — Preciso de um banho frio,
realmente frio, daqueles que me fará arrepender-me de entrar na água. Vou
sair.
Depois que ele desapareceu pela porta, ela se sentou em uma cadeira e
teve uma crise de riso. De todas as reações que poderia ter, rir não parecia
adequado - mas ela não conseguiu impedir que seu corpo sucumbisse às
ondas de gargalhadas que a arrebataram.
Aquele homem virara a sua vida do avesso. Quando descobriu que ele era
um caminho, não imaginava que fosse percorrê-lo a pé, debaixo de uma
tempestade e enfrentando a fúria dos deuses.
Pior era perceber que, se voltasse no tempo e pudesse escolher
novamente, não mudaria nenhuma de suas decisões.

A SENSAÇÃO de sair pela primeira vez de casa não era nova. Ele sabia que já
sentira aquilo antes, mais de uma vez, inclusive, porém não tinha certeza de
quando fora. Talvez tenha sido quando ele precisou sair. A necessidade o
estava empurrando para o desconhecido novamente. Emile precisava contar à
família que estava vivo, que estava bem e que estava sem memória. Não
sabia exatamente para onde enviar a correspondência, mas suspeitou que, se
mandasse uma carta para a vila de Thanet e endereçasse ao irmão mais velho
- o único cujo nome ele se lembrava, dariam conta de encontrá-lo. Edward
McFadden.
Segurava uma carta cuidadosamente escrita em uma das mãos. Levou
quase um dia inteiro para escrever aquelas poucas palavras e optou pela
simplicidade - não podia ser tão difícil falar com as pessoas que amava.
Porque ele as amava, o sentimento voltou no instante em que as memórias o
arrebataram. A cidade de Southampton ficava perto da aldeia, muito perto,
mas eles não conseguiriam ir à pé, então Hurit conseguiu pegar emprestado
um cavalo com o pai. Chogan ainda não aprovara totalmente a permanência
de Emile entre eles, mas decidira atender Wematin e não se opor diretamente
a isso.
Com apenas um cavalo, ele conduzia as rédeas e Hurit estava sentada à
sua frente, com as costas apoiadas em seu peito e sustentada por suas coxas.
Emile podia dizer que o trajeto até a cidade foi a definição perfeita de uma
tortura. Nem os exércitos napoleônicos seriam capazes de enlouquecer um
homem com mais eficácia do que aquele movimento cadenciado do trote, que
fazia com que o corpo dela se esfregasse no dele. Era a coisa mais indecente
que ele já fizera com uma mulher - e ele sabia que não era virgem. Toda vez
que precisava frear ou desviar o animal, ela usava uma das mãos para se
apoiar - todas as vezes, os dedos o tocavam em partes sensíveis de sua perna.
Todo o seu corpo estava à flor da pele.
Depois do beijo - dos beijos - que trocaram eles não conversaram mais
sobre aquele assunto. Sobre eles, sobre o que significava aquilo, sobre
qualquer coisa relacionada à tensão que cresceu - e ainda crescia - entre os
dois. Emile olhava para ela e seu corpo respondia exigindo que ele a tocasse,
mesmo que ele não o fizesse. Quando ela olhava de volta, ele entrava em
combustão.
Talvez, apenas talvez, Hurit estivesse se divertindo com seu desespero.
Ela mantinha as costas rígidas para evitar recostar-se nele, mas Emile
percebia os risinhos quando soltava imprecações quase silenciosas depois de
um contato involuntário.
Quando chegaram à casa postal de Southampton, Hurit desmontou e ele
precisou de um minuto inteiro até conseguir descer do cavalo. Respirou
fundo, olhou para o céu azul, pensou nos monstros das histórias que ela lhe
contara, qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a afastar o desejo de seu corpo.
— Não tenha pressa. — Ela provocou. — Podemos ficar na vila o dia
inteiro.
— Eu posso. — Ele rebateu. — Não tenho nenhum compromisso mais
tarde, estou inclusive pensando em caminhar pela cidade para conhecê-la.
Hurit deu uma risada.
— Pois divirta-se. Desejo-lhe boa sorte para retornar à pé para a aldeia.
Emile desmontou e prendeu o cavalo na lateral da casa de tijolos
vermelhos que tinha uma vitrine de vidro e placa indicando a atividade que
ali se realizava.
— Você me deixaria aqui, sozinho?
— Preciso voltar para a aldeia. Não somos bem-vindos na cidade.
— Mas os homens não trabalham aqui?
— Sim, trabalham.
Os expressivos olhos de obsidiana estavam tristes, mesmo que ela
fingisse um sorriso. Não era preciso conhecer a fundo a história entre os
Shinnecocks e os moradores de Southampton para entender a tensão que
existia entre eles. Não exatamente pela negociação de terras, mas porque os
americanos que ali moravam não consideravam os nativos como pessoas.
Durante os dias em que esteve na tribo Emile ouviu bem sobre o quanto os
brancos acreditavam que cavalos e gado eram mais valiosos do que os
nativos - e, por isso, pagavam salários inferiores aos homens do povo de
Hurit.
Sem desejar prolongar uma conversa que só serviria para magoá-la, Emile
ofereceu o braço para que Hurit o acompanhasse para dentro da casa postal.
Ele estava vestido com uma calça costurada por ela e uma camisa emprestada
que estava grande demais nele, mas ainda era um cavalheiro e não sabia agir
diferente. Ela o encarou como se o gesto fosse ofensivo.
— O que foi? — A dúvida era sincera. — Eu posso beijá-la mas não
posso escoltá-la em público?
— Você não pode me beijar. — Os olhos dela estavam gelados como o
inverno de Londres. — E não é adequado que nos vejam tão próximos.
— Mas não estamos próximos. Digo, não é costume dos americanos
escoltar as damas em locais públicos?
— Sim, Emile, é. Cavalheiros caminham com damas penduradas em seus
braços. Olhe ao seu redor e verá várias. Mas, diga-me: quantas delas são
nativas? Quantas têm fitas nos cabelos trançados e pele escura?
— Apenas uma. — Ele respondeu sem precisar pensar. — A minha dama.
Hurit fechou os olhos e permaneceu imóvel por alguns segundos. Ele
pensou em desistir, mas teve a impressão de que um McFadden não
costumava desistir, então esperou, mantendo o braço na posição para que ela
o aceitasse. Quando ela o olhou novamente estava possuída de uma
determinação que o impactou. Aquela era a Hurit que ele conheceu no dia em
que abriu os olhos. A mulher que o enfrentava e que conversava com deuses,
sonhava com serpentes e o encantava com cada franzida de sobrancelhas.
Sem dizer mais nada, ela envolveu os dedos na dobra de seu cotovelo e lhe
dedicou um sorriso tranquilizador.
Ele sorriu de volta e colocou os dedos por cima dos dela. Hurit não usava
luvas nem nenhum dos adornos das mulheres que estavam ao redor, das
mulheres que ele supunha conhecer. Talvez o contato da pele dele com a dela
pudesse ser considerado indecoroso, mas tudo que eles já compartilharam
também era. Exibindo orgulho, Emile caminhou com ela para dentro da casa
postal e pediu que a carta fosse enviada.
O lugar era pequeno, contendo um balcão e algumas estantes. O homem
que trabalhava na agência era quase calvo, com alguns ralos cabelos grisalhos
cobrindo parte da cabeça. Usava óculos com lentes grossas e suas mãos eram
manchadas de um misto de tinta e cola dos selos. Segurou a carta e
examinou-a, conferindo que o endereço estava incompleto.
— McFadden? — O homem assumiu uma expressão concentrada. —
Ontem mesmo atendi um McFadden. Ele se parecia com você.
— O senhor atendeu? Ele esteve aqui, postando uma carta?
— Sim, para o mesmo destinatário - Edward. Porém o endereço era em
Londres…
O homem afastou-se do balcão e começou a remexer algumas caixas que
estavam atrás dele. Retirou cartas e mais cartas de dentro e depois colocou-as
novamente no lugar, retornando com um envelope branco, que sacudia como
uma bandeira.
— Está aqui! O remetente é Sr. Isaac McFadden e ele se parece muito
com o senhor. São parentes?
Emile não sabia.
— Posso ver o envelope, senhor?
Sem cerimônias - nem respeito pela privacidade alheia - o homem lhe
entregou a carta e ele pode confirmar que estava realmente endereçada a
Edward McFadden. Aquele era seu irmão, ele tinha certeza - mas não se
recordava daquele endereço. Hurit espiou o envelope por cima do braço dele
e, curiosa, tomou-o nas mãos.
— A letra dele é igual à sua, Emile.
— Não é igual... mas sim, é muito parecida.
— Você não se lembra de nenhum Isaac?
Emile respirou profundamente e fechou os olhos, tentando forçar as
lembranças a virem. Seu coração batia fora de ritmo e suas mãos tremiam
enquanto segurava a carta. As crianças brincavam, Edward ralhava porque
elas implicavam com ele. Eram jovens, um deles tinha os cabelos muito
loiros e os olhos azuis, o outro era um borrão - mas ele suspeitava que
também fosse loiro. Alguém gritava, os chamava e eles corriam na direção da
voz. Havia também memórias da escola, mas não havia meninos nela -
apenas um quarto, um quadro de giz e um tutor. Faces e vozes o atingiram
como flechas vindas do inimigo - a mãe sorrindo, a irmã de fartos cabelos
longos, o pai, a babá, e…
— Eles estão hospedados aqui perto. — O homem atraiu sua atenção e o
forçou a sair de seu delírio. — Se o senhor tem dúvida se os conhece, pode
confirmar.
— Eles? — Hurit perguntou.
— Sim, o homem estava acompanhado de um casal. Eu os vi entrando na
hospedaria do outro lado da rua. Lugar chique, pelo porte eles são da
nobreza. Esses condes, viscondes e duques vêm para a América com aquela
arrogância inglesa e acabam achando que ainda mandam em nós. Alguns
esquecem que somos independentes.
— Obrigado. — Emile deixou uma pequena moeda para pagar a
postagem. Aquele não era o seu dinheiro, mas ele sabia que poderia pagar o
empréstimo, depois. — Por favor, envie minha carta.
O homem da agência assentiu e passou a atender a outra pessoa que
aguardava. Emile estava desorientado com informações e lembranças que
foram retiradas à força de sua mente e quase não conseguiu caminhar para o
lado de fora da casa postal. Hurit o auxiliou a manter-se de pé, mas não
conseguiu evitar que ele se sentasse nos degraus da pequena escada da
agência bancária, ao lado. Por alguns minutos, manteve-se íntegro para
conseguir finalizar a conversa sem parecer estar louco, mas descobrir que
outro McFadden estava em Southampton - e enviando cartas para o seu
irmão, parecia uma coincidência impossível.
Hurit sentou-se ao lado dele e pareceu ignorar a prudência e a vergonha
de que alguém os visse juntos. Colocou uma das mãos sobre sua cabeça e
acariciou seus cabelos com a ponta dos dedos.
— Acha que eles podem ser seus irmãos? Os que você não lembra, mas
acha que existem?
— É provável. — Ele não levantou a cabeça para responder, apenas
balbuciou as palavras. — Se fui ferido em Southampton, isso explica eu ter
sido encontrado na costa da aldeia.
— E suas memórias da Inglaterra?
— São antigas. — Emile ergueu o olhar e fixou-o na hospedaria indicada
pelo homem da agência postal. — Será que eles estão me procurando?
— Você pode ir até lá e descobrir.
Os olhos dele vagaram até os dela e Emile sorriu. Havia tristeza e
confusão nos lábios que fingiam alegria, porém Hurit era apenas um
incentivo para que ele fizesse o que era necessário.
Resoluto, levantou-se, bateu o pó da roupa e marchou decidido até o
outro lado da rua, sempre tendo o cuidado de manter a mulher ao seu lado,
segurando seu braço. Não prestou atenção se pessoas os observavam ou se
achavam absurdo que uma nativa e um branco caminhassem como um casal -
tudo que queria era descobrir afinal quem era Isaac McFadden.
A hospedaria era realmente elegante, mais parecida com um hotel.
Lembrou-se subitamente de um, na vila de Thanet, que era luxuoso e
hospedava as pessoas mais ricas que passavam o verão em Kent. Não, aquele
não se parecia com o Palace of the Sea, mas era bastante refinado.
Tanto que, assim que eles entraram, foram abordados por um homem em
traje completo.
— Posso ajudá-lo, senhor?
A expressão de desgosto do homem era difícil de ignorar. Emile não sabia
se ele demonstrava horror por eles estarem mal-vestidos ou por ele carregar
uma nativa pelo braço.
— Sim, eu estou procurando pelo Sr. Isaac McFadden.
— Ele espera pelo senhor?
Provavelmente não, mas era possível que sim.
— Sim, espera. Poderia dizer a ele que o Sr. Emile McFadden chegou?
Hurit sorriu e ele soube que ela aprovava sua ousadia. O homem afastou-
se e foi até um balcão, onde um jovem escrevia em um livro de registros. O
jovem balançou a cabeça para os lados e resmungou alguma coisa, fazendo
com que o homem retornasse com más notícias.
— O Sr. Isaac saiu e ainda não retornou.
— Posso esperar por ele aqui na recepção?
Olhando para eles com desdém, o homem fez uma careta antes de
responder.
— Lamento, mas não aceitamos a presença de nativos. Nossos hóspedes
são pessoas da alta sociedade e...
Emile quis interromper o dândi e esbofeteá-lo até que sua cabeça virasse
do avesso. Durante toda a sua estadia na aldeia ele ouvira os Shinnecocks
falarem sobre a forma como eram tratados pelos brancos, mas ele não quis
acreditar que fosse como descreviam. Não quis acreditar que seu povo era
arrogante a ponto de tratar como animal um outro ser humano.
E então ele se lembrou da escravidão nas colônias e do quanto o seu povo
matara e aprisionara outros povos apenas porque podia fazê-lo. Naquele
momento em que o homem arrogante encarava Hurit como se ela fosse
inferior a eles, como se ela tivesse menos valor do que um cão de estimação,
Emile quis ensinar a ele um pouco de educação fazendo-o sentir o peso de
seus punhos - mesmo que ele nunca tivesse batido em ninguém durante toda a
sua vida.
Mas nada aconteceu - eles foram interrompidos pela porta se abrindo e o
barulho de vozes masculinas preenchendo todo o salão. Por instinto, Emile
virou-se para ver a origem da balbúrdia e deparou-se com a chegada de dois
homens loiros como ele - e teve certeza de que estava olhando para seus
irmãos. As crianças borradas das memórias de Thanet.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

P ARA H URIT , OS BRANCOS SEMPRE FORAM PARECIDOS , MAS ERA INEGÁVEL QUE
os dois recém-chegados eram parentes de Emile. Pela forma como ele
tensionou ao lado dela, com certeza também notara a semelhança
significativa entre eles - especialmente em relação ao que ostentava uma
barba bem cortada e olhos mais azuis que o céu do verão.
— Emile? — O homem disse, dando alguns passos na direção deles. — É
você?
O silêncio serviu como resposta. Emocionado, o homem segurou Emile
em um abraço apertado. Hurit soltou-lhe o braço mas percebeu que algo
estava errado.
— Isaac? — Ele arriscou, sem conseguir desvencilhar-se dos braços ao
seu redor.
— Céus, nós pensávamos que estivesse morto!
Assim que o abraço afrouxou, Emile cambaleou para trás e quase
trombou no funcionário da recepção que observava tudo como se
considerasse aquela exibição de afeto um escândalo.
— Ele pensava. — O outro homem loiro falou. — Eu sempre acreditei
que estivesse vivo.
— E, ainda assim, não conseguiu encontrá-lo.
— Não tenho culpa se suas pistas eram ainda piores que as minhas, Isaac.
Uma mulher de cabelos cacheados presos no alto da cabeça se uniu ao
grupo. Ela tinha as bochechas coradas de caminhar sob o sol e parecia
surpresa com a comoção.
— O que está havendo? Por que essa confusão no meio da hospedaria?
— Encontramos nosso irmão! — Um dos homens a segurou pela face e a
beijou nos lábios. Hurit arregalou os olhos e quis rir da mesma reação no
recepcionista. Aqueles irmãos eram mesmo escandalosos. — Ele nos
encontrou, na verdade.
A mulher assumiu uma expressão curiosa que logo se transformou em
preocupação.
— Ele não parece bem.
— Meu Deus, vocês falam demais. — Emile finalmente disse alguma
coisa, pressionando as têmporas com os dedos. — Não me lembro de serem
tão estridentes.
— Isaac é um falastrão.
— Eu preciso me sentar.
Emile cambaleou novamente e foi amparado pelos dois irmãos. Foi
quando Hurit notou que ele sangrava e estava muito pálido. Não era a
primeira vez que uma situação de conflito o fazia sangrar.
— Você está ferido.
— Ele levou um tiro, Isaac. Vou providenciar um médico.
— Eu preciso apenas me sentar. — Emile insistiu.
— Vamos conduzi-lo para um de nossos quartos. — Isaac decidiu. —
Não, ele precisa de seu próprio quarto. Sr. Simons, providencie uma
acomodação para nosso irmão.
— Não, eu não preciso disso.
Emile livrou-se dos irmãos e quase caiu ao chão. Ele parecia zonzo, como
se estivesse entorpecido pelo láudano. Vagou tropeçando até um sofá e
desabou sobre ele. Antes que alguém pudesse se aproximar, Hurit agiu.
Ajoelhou-se à frente dele e segurou as mãos de Emile entre as suas.
— Consigam-me uísque. — Ela pediu, mas ninguém reagiu. — Emile, o
que está sentindo?
— Muitas memórias, Bela. Quando eu os vi foi como se tudo voltasse de
uma vez.
— Lembrou-se de quem são?
— Lembrei-me de tudo.
Os homens a observavam com curiosidade, mas não ousaram se
aproximar. Estavam confusos com a sua presença e com a intimidade que
testemunhavam. Foi a mulher de olhos grandes e castanhos que, sorrindo,
entregou-lhe um copo com líquido âmbar e cheiro adocicado. Com um aceno
positivo de cabeça, Hurit agradeceu.
— Beba, vai ajudá-lo.
— Não quero mais láudano.
— É uísque.
Ela levou o copo até a boca dele. Emile estava com a cabeça jogada para
trás, recostada no encosto do sofá, o pescoço esticado e exposto. A forma
como eles se portavam e vestiam era inadequada para as rígidas regras de
comportamento dos brancos, mas Hurit não costumava se importar.
Confiando nela, ele aceitou a bebida. Ajeitou-se no assento, abriu os
olhos e bebeu tudo em um só gole. Pela cara de espanto do irmão Isaac, ele
não estava acostumado a ver Emile beber.
— Eu não estou entendendo nada.
O outro irmão, visivelmente mais relaxado e menos aristocrático do que
Isaac, disse.
— Talvez se vocês parassem de falar e ouvissem, pudessem entender. —
A mulher provocou.
— O que aconteceu durante esses dias, Emile? — O irmão ainda sem
nome sentou-se ao lado dele no sofá. — Por que não me procurou? Você me
culpa pelo que houve?
Dois segundos pareceram silêncio por tempo demais. Outras pessoas já
observavam a confusão e Hurit não tinha certeza se era porque havia uma
nativa ali, ou porque aqueles talvez fossem os homens mais bonitos que
existiam nos Estados Unidos da América, ou porque eles tinham o porte da
nobreza e o comportamento da ralé.
— Eu estava sem memórias. Acordei sem saber quem eu era. Nem meu
nome, nada. Fiquei dias sendo chamado de inimigo até finalmente lembrar
meu nome - e ainda me chamam inimigo.
Ele deu uma risada nervosa direcionada a ela. Hurit percebeu que ainda
segurava as mãos dele entre as suas - e que ele apertava seus dedos com
força.
— Foi ela quem te resgatou? — Isaac perguntou.
— Ela está bem aqui, você pode se dirigir a ela. Hurit não morde.
Isaac baixou a cabeça e a balançou.
— Claro. Eu lamento por minha falta de respeito. Isaac McFadden,
senhorita.
Ele fez uma mesura que deveria ter significado para a nobreza. Hurit não
conhecia nobres, aquela era uma realidade da Inglaterra, não deles.
— É um prazer conhecê-lo.
— Esses dois são Nathaniel com sua esposa, Lucille.
Hurit fez um aceno em cumprimento. Nenhum deles a olhava como os
brancos costumavam olhar. Era quase como se aquelas pessoas estivessem
demonstrando gratidão.
— Esposa? — Emile perguntou. Nathaniel riu e segurou a mão de
Lucille, beijando-lhe os nós dos dedos. — Você está casado?
— Enquanto procurava por você, o amor dessa mulher maravilhosa
cruzou o meu caminho.
— E eu estou há alguns dias tendo que suportar a falta da minha mulher
enquanto Nate se transformou no maior romântico que conheço. — Isaac
revirou os olhos.
Ela estava curiosa para conhecer aquela família, mas precisava ajudar
Emile. Abriu dois botões da camisa e levantou-a parcialmente, apenas para
conseguir ver o curativo e não violar ainda mais o decoro. Os olhares
estavam sobre ela quando soltou a bandagem e analisou as bordas
avermelhadas do ferimento. Não entendia por que ele ainda sangrava, se os
pontos pareciam intactos. Talvez, por ser muito profundo, o corte demorasse
mais a cicatrizar.
— Precisamos limpar e trocar o curativo.
— Chamarei um médico. — Isaac se movimentou.
— Não há necessidade. — Emile fez um gesto com a mão para impedi-lo.
— Hurit vem cuidando de mim desde que me encontrou, ela sabe o que fazer.
— Foi ela quem te resgatou? Onde você esteve durante esse tempo?
— Por que não continuamos a conversa em nosso quarto? — Nathaniel se
levantou. — Além de termos espectadores indesejados por aqui, Emile
precisa de cuidados. São apenas alguns andares acima, acha que consegue
subir?
Emile fez menção de se levantar também e manteve a mão de Hurit nas
dele. Sua aparência era melhor, havia outra vez cor em seus lábios e
bochechas.
— Se eu consegui sobreviver a isso — apontou para a barriga — enfrento
qualquer outro desafio. Vamos.

E MILE ESPERAVA que aquela fosse a última vez que um turbilhão de memórias
o atropelaria. Assim que viu os dois homens loiros entrando na hospedaria ele
soube quem eram - e as lembranças passaram por cima dele como uma
manada de cavalos enfurecidos. A sensação era a de estar naufragando
novamente, e ele se lembrara, subitamente, de afogar-se. Confuso e
sangrando, acabou indo parar no quarto de seu irmão Nathaniel, sobre uma
cama macia e confortável como as que ele estava acostumado antes de quase
morrer e ser resgatado pelos Shinnecocks.
Não, a cama de Hurit também era confortável. Os dias que ele passara na
aldeia foram tranquilos e nada lhe faltou, apesar da pobreza. Era injusto
sequer considerar que não tivera conforto durante aqueles dias e a ingratidão
era um sentimento que ele não nutria.
Ela estava ali, sobre ele, investigando as minúcias dos pontos que dera no
ferimento. Usara uísque para limpar o corte e tentava entender porque ele
sangrara. Os irmãos observavam com expressões variadas. Isaac mantinha o
ar de serenidade e sabedoria que lhe era comum, mas Nathaniel estava
agitado. O irmão, que era poucos anos mais velho que ele, sempre fora
inquieto e diferente, sempre se portou diferente dos outros homens da família
- e era por isso que Emile o admirava. Como ele mesmo era um renegado, um
desajustado que não sabia qual era seu lugar naquele mundo de homens
poderosos e cheios de títulos e fortunas, qualquer pessoa que pudesse lhe
mostrar como se encaixar na sociedade era alguém em quem deveria prestar
atenção.
Mas Nathaniel enveredou-se para o crime. Foi exatamente isso que levou
Emile ao Brooklin, naquela noite, e que o fez ser atingido por uma bala que
não lhe fora direcionada. Na tentativa de evitar uma tragédia e de salvar o
irmão, acabou no fundo do oceano. A forma como ele estava impressionado
com o ferimento na barriga de Emile indicava que se sentia culpado,
responsável pelo episódio, mesmo que aquilo fosse uma grande bobagem. Ele
estava vivo, era o que importava.
E havia Lucille, a cunhada que Emile não conhecia. Ela era bonita e tinha
olhos curiosos. Apoiava-se em Nate e acariciava os cabelos dele como se
estivesse muito apaixonada, o que significava que eles se casaram às pressas
e provavelmente porque o irmão fizera alguma coisa errada. Não importava,
ela parecia feliz.
— Sente alguma coisa? — Hurit fez com que ele prestasse atenção nela
ao pressionar sua carne com dois dedos.
— Não, está um pouco dormente.
— Usaremos mais ervas quando retornarmos para a aldeia. — Ela
terminou de limpar ao redor da ferida. — Você acha que consegue suportar a
camisa sobre os pontos? Não tenho outra bandagem para refazer o curativo.
— Sou mais resistente do que pareço. — Emile levou a mão até a face
dela e acariciou-a na bochecha. Hurit enrijeceu o corpo e ele percebeu que
estava sendo inoportuno. Com um movimento lento, dobrou o corpo e levou
os lábios bem próximos do ouvido dela. — Desculpe-me, estou há tanto
tempo sozinho com você que me esqueço do decoro.
Ela sorriu e baixou os olhos. Emile quis beijá-la naquele instante, mas
esse era um problema recorrente. Ele queria tomar Hurit nos lábios sempre
que a via. Talvez pudesse passar um dia beijando-a, saboreando-a, provando
do que ele sabia que ela era capaz de oferecer. Mesmo que ele estivesse ainda
atordoado pelas recentes lembranças e cercado de pessoas que deixaram de
ser estranhas apenas alguns minutos atrás, os sentimentos que afloravam em
relação a ela não se silenciavam. O ferimento estava dormente, o restante de
seu corpo, não.
— Emile, podemos conversar? — Isaac se aproximou, aproveitando o
momento em que Hurit recolhia a bandagem suja de sangue e a bacia com a
água que usara. — Em particular?
Não parecia haver espaço para uma negativa. Eles tinham assuntos
pendentes - com certeza os irmãos queriam saber o que acontecera tanto
quanto ele gostaria de contar a eles. Lucille, compreendendo que a conversa
não envolveria as mulheres, aproximou-se de Hurit e a ajudou a levar a bacia
para o banheiro. Com a desculpa de que providenciariam um chá para todos,
saíram do quarto. Emile terminou de abotoar a camisa e sentiu um pequeno
desconforto por estar com o ferimento exposto, mas não demonstrou - ele não
queria que os irmãos o vissem como um fraco. Se sempre fora assim, aquela
memória ainda estava faltando.
— Onde esteve nesses dias? — Nathaniel perguntou, servindo uísque
para os homens.
— Na aldeia dos Shinnecocks, aqui perto.
— E você não nos contatou por que perdeu as memórias, foi isso? Só
quero confirmar que não me culpa pelo que aconteceu.
Emile sorriu diante da expressão desesperada do irmão. Não desejava que
ele sofresse, mas se satisfez em saber que Nathaniel se punia pelo fato. Não
era culpa dele, porém foram os atos criminosos cometidos por Nate que o
conduziram àquela situação.
— Eu não o culpo pelo o que aconteceu. Até poucos dias eu não sabia
meu nome. Viemos à cidade hoje porque lembrava-me de Edward e decidi
escrever para ele - porém lembrava apenas que ele morava em Thanet. As
memórias quase me mataram, agora.
— E ela, Milo?
— Bela foi quem me achou na praia. Ela cuidou de mim, cuida até hoje.
— Bela?
— Hurit significa bela, então eu a chamo assim. É mais uma forma de
provocar, já que ela não gosta muito.
Nathaniel e Isaac se entreolharam. Ele percebeu que havia uma
comunicação muda entre eles e se incomodou que isso pudesse se relacionar
a Hurit. Depois do que acontecera na recepção, Emile sentia-se compelido a
protegê-la e evitar que qualquer um a magoasse com tratamentos
discriminatórios. Ela era uma das melhores pessoas que ele conhecera, não
merecia ser considerada menos valiosa apenas porque os brancos se
consideravam superiores.
De súbito, assustou-se por pensar em si mesmo como “os brancos”.
— Você parece bem próximo dela.
— Nós somos. Mas isso não interessa a nenhum de vocês. — Emile
levantou-se, ajeitando a camisa dentro da calça. — Nathaniel, o mais
proclamado solteiro que eu conhecia se casou em semanas, por que eu não
posso me afeiçoar a uma mulher nesse mesmo tempo?
— Você está ciente de que ela é indígena?
Cruzando os braços no peito ele olhou para os dois irmãos e comprimiu
os lábios para evitar falar sem pensar.
— Espero que vocês dois pensem bem antes de continuar essa conversa.
Se ela for por esse caminho, um dos dois sairá daqui de olho roxo.
Isaac arregalou os olhos e Nathaniel quase cuspiu seu drinque em uma
gargalhada incontida.
— Meu Deus, você gosta dela.
— Claro que eu gosto dela, Nate. E é por isso que não aceitarei que a
depreciem.
— O que pretende fazer? — Isaac mudou de assunto, mesmo que, em
verdade, ele ainda desejasse saber a mesma coisa.
— Ainda não sei. Mesmo que eu tenha me lembrado de quem sou, ainda
preciso me acostumar a ser essa pessoa. É como se tivesse ficado muito
tempo sem andar e estivesse reaprendendo a caminhar com minhas próprias
pernas. Depois disso, conseguirei um emprego por aqui. Southampton deve
estar precisando de advogados.
— Milo, você é irmão de um conde. Eu e Edward temos muito dinheiro e
você trabalhava conosco. Recorda-se disso, certo?
Sim, ele se recordava. As memórias estavam todas ali, esperando um
evento que o fizesse associá-las a ele. Ao pensar em trabalho, lembrou-se de
possuir dois diplomas, ambos adquiridos em Oxford. O tempo não gasto com
aventuras masculinas fora despendido em estudos. A última graduação fora
em Direito e, depois de laureado, Emile fora contratado por seu irmão mais
velho para compor e montar um corpo jurídico especializado para as
empresas. Porque eram muitas empresas. Seu irmão, Edward, ao assumir o
condado, aproximou-se de industriais e homens muito ricos com quem
poderia se associar. A nobreza estava cada vez mais decadente - mantinha seu
status - mas não podia mais sobreviver de renda como outrora. Os nobres,
titulados ou não, precisavam trabalhar e encontrar outros meios de prover o
sustento de empregados e propriedades. Edward fazia parte de uma nova leva
de aristocratas que empreendia e se mantinha nas graças da burguesia em
ascensão.
Com isso, Isaac também enriqueceu e até Nathaniel passou a fazer parte
dos planos empreendedores do conde. Isso até ele se envolver com
criminosos nos Estados Unidos, mas Emile não viu como aquela questão foi
resolvida.
— Eu me lembro de quase tudo, Isaac, mas sei que meu irmão é rico, não
eu.
— Ainda assim, você tem condições de viver bem. Seu estado atual
parece precário.
Emile olhou para si mesmo em um espelho conveniente que ocupava um
canto do quarto. Estava mais magro do que antes, mas aquilo se dava aos dias
em que esteve dormindo. Comia bem na cabana de Hurit, ao menos não
passava fome. As roupas que usava eram improvisadas e, ainda assim, ele
parecia satisfeito com elas.
— Eu estou muito bem.
— Faremos o seguinte: vou liberar o acesso aos seus fundos e você
passará a contar com algum dinheiro. Se eu conversar com o gerente do meu
banco, em Nova Iorque, ele me auxilia na transferência dos valores. Fique
conosco esta noite, vamos jantar, conversar, você nos contará tudo e, amanhã,
resolveremos o restante. Você precisa de algumas roupas e um cavalo.
Nathaniel fez uma oferta de paz que causou estranheza em Isaac - mas o
irmão mais velho nada disse. A possibilidade de ter dinheiro o animou.
— Eu tenho “fundos”?
— Você tem bastante dinheiro guardado, irmãozinho. — Nate deu uma
risada. — Nunca vi ninguém tão sovina quanto Emile McFadden. Amanhã,
quando o banco abrir, sacamos alguns dólares adiantados e depois eu resolvo
outras questões em Nova Iorque.
A proposta era tentadora. Primeiro porque ele realmente queria se colocar
a par de tudo que estava acontecendo, conhecer a esposa do irmão, saber
notícias de Londres, se eles tivessem alguma. Segundo, Emile via com bons
olhos a possibilidade de contribuir com sua estada na aldeia, de ter dinheiro o
suficiente para comprar presentes para Hurit.
Ele era tolo, mas seu primeiro pensamento foi em presenteá-la. Imaginou
que sua princesa Shinnecock fosse detestar receber presentes na mesma
intensidade que ele adoraria ofertá-los.
— Preciso conversar com Hurit sobre isso, mas concordo. Ficarei esta
noite e conversaremos sobre o que quiserem.
Nathaniel exibia um sorriso largo e sincero, mas Emile sabia que ele
estava negociando. Aquele era o melhor negociador que ele conhecia, o
irmão tinha um talento nato para qualquer tipo de transação comercial.
Assentindo com um movimento de cabeça, Emile ofereceu a mão para selar o
acordo entre eles.

A MULHER de cabelos castanhos e olhos amistosos se chamava Lucille e não a


olhava com desprezo. Hurit percebeu que ela lhe sorriu algumas vezes
durante o curto período em que esperaram pela conversa dos homens - que
pareceu demorar pelo menos duas vezes mais, porém não foi longo o
suficiente para que ela se preocupasse de que alguma coisa grave pudesse ter
acontecido com seu protegido.
Utilizando sua prerrogativa de hóspede, Lucille pediu que subissem chá e
biscoitos para os quartos ocupados pelos irmãos. Depois que algumas criadas
subiram com três bandejas cheias de iguarias e bules de chá, a mulher
agradeceu - o que não era uma prática comum entre os brancos que ela
conhecia. A família de Emile parecia tão exótica quanto ele.
— Não se incomode tanto com eles. Pelo que pude perceber, os irmãos
são estranhamente unidos e preocupados uns com os outros. Eles pensavam
que Emile estava morto, então encontrá-lo foi um choque. Como prefere seu
chá?
Lucille falou tudo de uma vez e Hurit quase não conseguiu acompanhar o
questionamento final.
— Adoçado com mel. Acredito que não tenha mel por aqui.
— Eles não enviaram, mas posso pedir.
— Não é necessário, senhora.
Ela pegou um cubo de açúcar e colocou na xícara. Segurou o delicado
objeto de porcelana nas mãos e tentou se lembrar de todas as regras de
etiqueta que a Sra. Bringstone gostava de ensinar. Hurit sempre achou uma
bobagem que tivesse que aprender modos de segurar uma louça ou que
precisasse escolher os talheres do jantar, mas sentiu-se orgulhosa em ter
prestado atenção nas lições e se lembrado do que aprendera.
— Não me chame de senhora. — Lucille também se serviu. — Você
salvou a vida do meu cunhado e contribuiu para que um peso enorme saísse
das costas do homem que amo. Eu devo minha gratidão a você.
Hurit sorriu, constrangida. Era difícil manter uma postura indiferente ou
agressiva com aquelas pessoas. Emile tinha razão quando sugeria que ela
julgava todos pelo crime de alguns - o que era o mesmo dito pelo xamã. A
verdade era que ela queria detestar todos os invasores e rejeitar qualquer
coisa que viesse deles, apenas não achava mais que estava sendo justa.
Ela detestava ainda mais a injustiça.
— Não me deva. Minha tribo acredita que o bem retorna para nós. Emile
deu sorte em ser encontrado a tempo e de ser forte.
— Entendo. É curioso que Nathaniel fala do irmão como se ele fosse
frágil e adoentado.
A risada mal contida fez com que Hurit quase cuspisse o líquido
adocicado que levara à boca.
— Emile parece ter a mesma sensação sobre si. Acho intrigante que um
homem como ele possa ser considerado frágil.
Isso porque ela não vira, em nenhum momento, fragilidade nele. Toda a
sua experiência cuidando daquele homem indicava que ele era forte,
determinado, capaz, viril. Hurit não deveria pensar na virilidade dele, mas os
beijos que compartilharam voltaram para assombrá-la no instante em que
aquela conversa tomou um rumo inesperado.
— Um homem como ele. — Lucille riu sutilmente enquanto bebericava
seu chá. — Os irmãos são muito bonitos, não é mesmo?
Sim, eles eram bonitos. Não que Hurit tivesse prestado muita atenção
neles, mas aquela não era uma beleza difícil de notar. Para sua sorte, antes
que precisasse elaborar uma resposta para a inconveniente pergunta, a porta
do quarto que ocupavam se abriu e os três homens entraram. Ela quase
deixou cair a xícara, arrebatada pelo assunto que acabara de tratar.
— Vejo que vocês já estão enturmadas. — Nathaniel se aproximou da
esposa e a beijou no topo da cabeça.
— Pedimos chá, imagino que nossos convidados estejam famintos. Eu
estou.
Emile aproximou-se dela e se sentou em uma cadeira ao lado. Havia algo
na expressão dele que significava que ele diria algo importante que fora
resolvido naquela breve conversa e Hurit suspeitava que ela não fosse gostar
muito da notícia.
— Preciso conversar com você. — Ele disse, confirmando suas
expectativas.
— E nós vamos pegar algumas coisas no quarto.
Lucille se levantou abruptamente e segurou o marido pela mão,
arrastando-o com ela. Isaac compreendeu que aquela se tratava de uma
retirada e, com a boca cheia dos bolinhos que acabara de pegar na bandeja, os
acompanhou.
Emile virou-se para ela, dobrou o corpo, fez uma careta de dor e desistiu
da posição que pretendia assumir. Segurou uma das mãos dela entre as dele,
forçando-a a apoiar a xícara sobre a mesa.
— Parece que vai me contar algo muito ruim ou vai me propor
casamento.
Era uma piada, porém o efeito causado sobre ele foi inesperado. Emile
deu uma risada nervosa e demonstrou muita ansiedade. As mãos dele
tremiam e suavam e ela não entendia aquela reação. Afinal, era certo que ele
não a pediria em casamento.
— Conversei com meus irmãos. Ficarei em Southampton hoje, temos
muito o que tratar. Nate me ajudará com os fundos que preciso e por isso
passarei a noite na cidade. Amanhã retorno para a aldeia, se ainda for
recebido lá.
Ele a olhava diretamente nos olhos. Durante a longa frase, que demorou
dias para ser pronunciada, Emile manteve o olhar sobre ela e aquele azul
sincero garantia que ele lhe dizia a verdade. Ele queria ficar e pretendia
voltar. Por algum motivo, Hurit não acreditou mesmo assim. Sabia que
aquele homem não seria dela, nem para ela, que nada os manteria juntos além
do que o destino decidira. Que sua missão era curá-lo e isso estava feito. Que
ele permanecia na aldeia por causa da falta de memória, o que não era mais
um obstáculo para o voo de Emile.
Então, ela não acreditou mesmo sabendo que ele dizia a verdade - ou o
que ele pensava ser a verdade. Aquele era um adeus, uma despedida
permanente, algo que estava além da vontade deles mesmos.
— Não precisa me explicar. — Ela sorriu. — Digo algo para sua águia?
Ela ficará curiosa com sua ausência.
— Diga que se comporte, mas ela não a compreende.
Ele sorriu mas Hurit não conseguiu sentir alegria. Sorriu de volta em uma
atitude automática, um gesto que o tranquilizaria e não o faria sentir culpa ou
mal-estar por ficar com sua família. Afinal, era por aquele motivo que eles
tinham ido à cidade, para que ele pudesse se comunicar com o irmão que
lembrava.
— Eu estou feliz que tenha encontrado seus irmãos, Matwan. — Hurit
levou a mão livre à face dele e o tocou. — Lembre-se de que você não me
deve nada.
— Eu não lhe devo nada. — Ele segurou a mão e plantou um beijo na
palma. — Mas eu não estou pronto para deixá-la, Bela.
Nem ela estava. Descobriu, de súbito, que não estaria nunca. Saber que
eles não foram feitos para ficarem juntos não fazia diferença - Hurit já estava
irremediavelmente atada a Emile e não sabia como romper a conexão entre
eles.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO

R ETORNAR SOZINHA PARA CASA NÃO ERA O QUE ELA ESPERAVA - NEM
desejava. Hurit não soube que sentiria falta de Emile até apear do cavalo na
casa de seus pais e voltar para sua cabana vazia. O trajeto de Southampton até
a aldeia foi curto e veloz, ela não viu o tempo passar porque estava
anestesiada pelo súbito abandono. Mas ver sua cama desocupada e a águia
escandalosa empoleirada sobre uma cadeira a abateu.
Foi como se um furacão a atingisse, a jogasse para o alto e a derrubasse
no chão. Hurit estava zonza e precisou se sentar, mas ela nunca se sentia tão
abalada por tão pouco. A sensação de perda era tão intensa que chegava a
doer, como se lhe tivessem amputado um membro. Ela só sentira um vazio
semelhante antes quando perdera seu irmão.
Não, claro que ela não estava comparando a morte de Keme com a ida de
Emile. Seu irmão lhe fora arrancado, perdera a vida pelas mãos imundas de
dois assassinos que nunca foram punidos. Emile estaria por aí, vivendo bem e
feliz. Logo se casaria e teria muitos filhos, todos lindos e loiros como ele. A
sua missão estava cumprida, ela cuidara dele, ele estava curado, tudo parecia
perfeito.
Exceto que não estava. Hurit não entendia que raios era a missão. O que
queriam os deuses, o que dissera Hoobamack. Por que Paumpagussit lhe
enviara aquele homem? Para que ela se apaixonasse e sentisse mais uma vez
a dor da perda?
Antes que ela se desse conta da gravidade de seus pensamentos, a águia
gritou.
— Ele não veio. — Ela fitou o bicho que a encarava com o pescoço de
lado. — Ele não voltará, então você precisa se contentar comigo.
Aquela era a verdade, Hurit não tinha dificuldades em enfrentá-la. A ave
demonstrou seu desprezo e saiu pela porta saltitando, já que não conseguia
voar. Ela permaneceu ali, sentada na cama, com os dedos enrolados aos
lençóis que estavam impregnados do cheiro masculino que destruía suas
defesas e tirava seu juízo.
Naufragada pelos pensamentos, sentindo uma exaustão física que não
compreendia, deitou-se no lugar que Emile passou todos aqueles dias e
adormeceu. Não sonhou com nada, não foi chamada pelos deuses em seu
sono, apenas dormiu até não aguentar mais. Despertou horas depois com a
escuridão do lado de fora. O relógio batia quase nove horas da noite. Suas
lamparinas estavam acesas e Wapun estava na casa.
A amiga estava sentada em uma poltrona de estofado puído e a olhava
com curiosidade. A ave estava encolhida em um canto mais escuro,
dormindo, alheia aos eventos. Aquele bicho realmente não a compreendia,
apenas Emile conseguia conversar com ele.
— Onde está o Matwan?
— Em Southampton. Uma coincidência muito intrigante aconteceu,
descobrimos que dois de seus irmãos estavam na cidade e procuravam por
ele. Emile agora está com sua família.
As palavras se tornaram desnecessárias. Hurit não precisava explicar mais
nada e a voz lhe faltou assim que terminou de responder a Wapun. Precisou
de todo o seu autocontrole para não derramar nenhuma lágrima, mas seus
olhos estavam inundados. Wapun levantou-se, foi até ela e a abraçou.
Hurit era uma rocha. Sua vida inteira foi construída sobre frieza e
tenacidade. Ela não fraquejava nem se afetava pelo que abalava todo mundo.
A filha do chefe, a princesa da tribo, forte e destemida, mesmo tendo o
tamanho de uma criança. E, naquele instante, cada parede que ela erguera tão
cuidadosamente ao redor de seus sentimentos estava trincada e ruindo.
Ela não choraria por ele. Tudo acontecera como deveria.
— Então vocês se despediram? Ele não retornará?
— Por que retornaria?
Não seria por ela. Eles viviam em mundos diferentes. Tão absurdamente
diferentes que ela não poderia enumerar todas as discrepâncias que os
separavam nem em duas mãos. Emile era um nobre, ela sabia que ele tinha o
sangue azul dos ingleses quando o viu pela primeira vez. E ele estava entre os
seus.
Fingindo resignação, decidiu preparar algo para comer mesmo que não
tivesse fome. Um chá a faria sentir-se melhor.
— Agora você pretende assumir-se como xamã?
— Não sei. Conversarei com Wematin amanhã.
Hurit serviu duas canecas de água quente com ervas em infusão. Sentou-
se e indicou que a amiga deveria fazer o mesmo. A amiga estava estranha,
fitando-a com aqueles enormes olhos castanhos e se movendo lentamente
como se pudesse causar um terremoto com os pés. Wapun era muito sincera e
transparente. Algo estava errado e ela descobriria o que era.
— Você tem algo a dizer.
— Não sei se você está com o espírito certo para ouvir.
— Se for sobre Emile, saiba que está tudo bem.
— Duvido que esteja bem. — Wapun bebericou o chá. — Mas não é
sobre ele. Kitchi disse que a tomou como esposa.
O líquido que Hurit acabara de colocar na boca espirrou sobre a toalha
bordada que cobria a mesa. Ela quase se engasgou e deixou a caneca de chá
cair sobre a madeira, derramando quase todo o seu conteúdo.
— Ele disse o que?
— Exatamente o que ouviu. Ele procurou seu pai e pediu que os
proclamasse casados, pois ele a tomara como esposa alguns dias atrás. Pediu
a bênção do chefe e do pai.
— Mas Kitchi enlouqueceu? Como ele pode ter me tomado como esposa
se não houve casamento algum?
— Creio que ele esteja falando da forma antiga.
Hurit se levantou em um salto, deu um giro e desabou outra vez na
cadeira, despertando a águia. Até décadas atrás, era comum que o casamento
entre um homem e uma mulher acontecesse sem formalidades. Eles se
tornavam amantes, o homem tomava a virgindade da futura esposa e eles
estavam casados. Depois bastava apresentar a mulher para todos como sua
esposa e o cacique lhes concedia a bênção. Afinal, se uma mulher estivesse
disposta a entregar sua virgindade ao homem, era porque o desejava como
marido.
— Eu vou matá-lo.
Em outro impulso, Hurit se levantou e pegou uma faca entre seus
utensílios. Era uma faca grande e muito afiada, usada para descamar peixes.
— Acalme-se. — Wapun também se levantou e fez menção de tomar dela
o objeto. — Você terá um surto de histeria. Deixe de ser tola, não matará
ninguém. O que pode ter havido entre vocês para que ele entendesse que...
— Wapun! — Hurit a interrompeu. — Eu terminei o noivado com Kitchi!
— Oh. Agora entendo, ele está tentando te forçar a ficar com ele.
— Ninguém me força a nada! — Ela segurou a faca com mais força. —
Ninguém, não importa há quanto tempo eu conheça Kitchi. Eu o arrastarei
pela aldeia e o pendurarei estripado no meio da fogueira.
Wapun deu uma gargalhada. Por mais furiosa que Hurit estivesse, ela era
muito pequena. Batia no meio do peito de Kitchi e jamais seria capaz de
causar dor ou perigo para um homem do tamanho dele. Nem se ela se
armasse de duas facas ou se usasse a águia como suporte.
— Amanhã você conversará com seu pai e desfará esse mal-entendido.
Dê-me a faca, Hurit.
— Não houve mal-entendido, Wapun. Mal-entendidos acontecem quando
alguém entende algo errado, mas Kitchi mentiu. Ele sabe que nós... que entre
nós...
Ela não conseguiu terminar a frase. A decepção se abateu sobre Hurit
como pingos grossos de tempestade. Era a sua palavra contra a dele, e não
faltaram ocasiões em que algo mais íntimo pudesse ter acontecido entre eles.
Não havia rigor que a impedisse de receber o noivo em sua casa, de sair para
caminhadas com ele, de passar tempo sozinha com ele. Por diversas vezes
eles poderiam ter se tornado amantes, mas nada acontecera porque eles
concordaram em se casar apenas quando fosse o momento adequado.
Houve alguns beijos, mas nenhum íntimo o suficiente. Nada como o beijo
trocado com Emile, aquele de corpo inteiro que acendera todos os seus
sentidos e a fizera sentir-se viva. Céus, Hurit deu-se conta que tivera mais
intimidade em um beijo do que em todos os outros compartilhados, sonhados
ou idealizados com Kitchi.
— Não acredito que ele fez isso. — Lamentou, deixando a faca sobre a
mesa e escondendo a face quente entre as palmas das mãos. — Eu confiava
nele. Eu cria que ele era o homem ideal.
— Talvez seja. Casar-se com ele não é tão ruim, é? Quero dizer, você
faria isso de qualquer jeito, portanto...
— Eu não o amo.
— Hurit não se importa com amor.
A surpresa de Wapun era genuína e reveladora. Hurit não se importava
com o amor. Não amava nem desejava aquele sentimento romântico e tolo
que acometia as mulheres como se fosse uma doença. Mas, por algum
motivo, pareceu errado casar-se com Kitchi sem amá-lo. Ou era errado
porque ela amava outro.
— Talvez agora eu me importe.
— Passarei a noite. — Wapun se levantou, pegou a faca e devolveu para
o lugar de onde ela fora retirada. — Você não está bem para ficar sozinha.
— Não é necessário.
— Serei eu ou Amonute. — A amiga não deu chance para recusa. — E
garanto que sua mãe está bastante histérica com a notícia do seu casamento,
portanto não seria a melhor companhia.
Vencida, Hurit concordou. Suas mãos tremiam e ela duvidava que
pudesse evitar confrontar Kitchi se alguém não estivesse ali para impedi-la.

O HOTEL em que os irmãos estavam hospedados era bastante adequado.


Emile tomou um banho completo, em um chuveiro agradável, e vestiu roupas
que lhe cabiam quase perfeitamente - um conjunto completo de noite,
incluindo gravata. Não vestia uma gravata, meias ou ceroulas há dias e não
sentira falta delas. Mas, ao olhar-se no espelho depois de completamente
vestido, viu-se perfeitamente na imagem refletida.
Mas havia algo diferente. O bronzeado de sua pele. O cabelo mais longo
do que o costume da época. Ou não era nada daquilo e a mudança estivesse
em outro lugar, mais profundo. Ele não sabia bem o que era, mas estava
diferente. Olhou a roupa que descartara sobre a cama e suspirou. Deixou os
dedos correrem pelo tecido amarrotado e sentiu a presença dela ali.
— Milo?
Isaac bateu à porta do próprio quarto.
— Estou vestido, pode entrar. Nate e a esposa já se aprontaram?
— Eles são recém casados, pode ter certeza de que não estão nem
começando a ficar prontos.
— Deus, isso é informação demais. — Emile se sentou ao lado da lareira.
Isaac serviu dois conhaques e lhe entregou um. A surpresa preencheu a face
do irmão quando ele aceitou a bebida e virou um longo gole. Ainda não
estavam acostumados com sua nova versão que gostava de destilados. —
Como foi que Nathaniel McFadden acabou fisgado?
— Você se lembra de que não bebia muito conhaque ou uísque?
— Eu bebo agora.
— Desde quando?
— Sinceramente, não sei. Talvez tenha começado entre o dia que quase
morri e o que comecei a me entupir de láudano para não morrer de dor.
Erguendo o copo, Isaac propôs um brinde silencioso. Aquele era seu
melhor irmão. O mais compreensivo, o mais educado, o mais gentil e quem
decidira guardar a virgindade para sua esposa. Isaac era o detentor da façanha
de ter se deitado com apenas uma mulher em toda a sua vida - e jurava que
estava satisfeito com aquilo, que não trocaria sua Caroline por nenhuma
outra. Se havia alguém com quem Emile poderia conversar sobre assuntos
complicados, aquela pessoa era Isaac.
— Lucille é uma ótima moça. — O irmão retomou o assunto anterior —
Nathaniel é um McFadden, afinal. Não precisou de muito quando se
descobriu apaixonado por ela.
— Como ele a conheceu?
— Enquanto procurava por você. Ela se escondeu na carroça dele e foi
como tudo começou.
Emile deu uma risada.
— Ela se escondeu? Dá para entender por que ele a ama.
— Eles se complementam. Assim como eu e Caroline, Edward e Agatha,
Minnie e Sawbridge. E quanto a você, Milo?
— O que tem eu?
— Hurit. — Isaac bebeu o restante de seu drinque. — Ela é bonita.
— Ela é uma princesa. — Emile também finalizou o conhaque. — Foi
criada para assumir muitas responsabilidades, ao contrário de mim. Ela é
forte, destemida, também o contrário de mim.
Isaac levantou-se e recostou-se no batente da janela. Manteve os olhos
observando a rua ao anoitecer, enquanto falava.
— Edward tentou interferir no meu relacionamento com Caroline. Antes
de nos casarmos, de confessarmos nosso amor, nosso irmão conde tentou nos
afastar. A última coisa que quero fazer é ser como ele, Milo. Mas eu preciso
perguntar e preciso me preocupar. Você a ama? Apaixonou-se por ela durante
esse tempo que compartilharam?
Naquele momento, o irmão já tinha se virado e o fitava com olhos
escrutinadores. Emile não sabia que Edward interferira entre ele e Caroline,
mas era esperado. O conde era controlador e Caroline era uma libertina que
pulava de cama em cama. Teria sido mais fácil evadir-se da pergunta se Isaac
não estivesse tão concentrado esperando uma resposta.
— Eu acredito que sim.
— E o que pretende fazer?
— Não sei. Até dois dias atrás eu mal sabia meu nome, agora há toda essa
questão familiar pairando sobre mim. Estou ainda atordoado e confuso. Mas
confesso que não parei de pensar nela nem um minuto desde que ela se foi.
Se Bela não estivesse tão desejosa de livrar-se de mim, eu diria a você que
ficaria com ela, apesar de tudo.
Isaac deu uma risada.
— Aquela mulher que esteve aqui, hoje, não está desejosa de livrar-se de
você, Milo. Ela estava preocupada e parecia uma leoa defendendo seu
território.
— Ela é uma princesa, Isaac. Não há nada que eu possa fazer para
mostrar-me uma opção melhor do que o prometido perfeito que ela tem, sem
contar que jamais me meteria no caminho dela. Não posso atrapalhar Hurit.
— Essa é uma decisão dela, não sua. — Isaac se aproximou e segurou o
irmão pelos ombros. — Se há algo que aprendi com Caroline é que as
mulheres são perfeitamente capazes de tomar suas próprias decisões e quase
sempre acertam.
— Acha que devo confessar meus sentimentos a Hurit?
— Dar a ela uma escolha já ajuda. Não diga o que ela quer ou precisa ou
deseja, ela é capaz de saber isso sozinha.
A conversa não prosseguiu porque o quarto foi invadido por Nathaniel e
sua esposa. O irmão não era conhecido por seus melhores hábitos de
educação, principalmente quando estava na presença dos outros McFaddens.
Aquela era a deixa para que eles descessem e fossem jantar em um
restaurante elegante escolhido por Isaac. A sensação de estar novamente com
seus irmãos foi ótima - o tempo em que Emile esteve sem memória pareceu
durar por anos, então ele sentia como se tivesse passado muito tempo distante
e não apenas algumas semanas. Principalmente porque tudo parecia diferente,
mudado, fora do padrão. Talvez fosse ele mesmo que não enxergasse mais as
coisas como elas eram antes. Mesmo assim, ele adorou sentir-se em casa, em
família outra vez e o conforto que a conversa com os irmãos causava.
Ao mesmo tempo, ele pensava em Hurit a cada minuto. Pegou-se
distante, olhando ao redor, na expectativa de que ela pudesse simplesmente
aparecer ali. Desejou tê-la convidado para ficar, mas sabia que ela não
aceitaria. Não era pelo escândalo, já que ela parecia muito pouco afetada pelo
o que os brancos pensavam dela, mas porque diria ter que retornar para a
tribo. Sentiu-se tolo, afinal não lhe dera escolhas, como Isaac sugeriu.
Decidiu por ela, como se soubesse o que ela diria ou faria, e acabara ali,
cercado de pessoas que amava mas desejando estar em outro lugar. Com
outro alguém. Fazendo outra coisa que não fosse jantar.
Céus, ele não podia pensar nela daquela forma. Hurit era uma princesa,
uma mulher digna cuja honra ele não podia macular. Sim, ele a beijara e ela
pareceu bastante empolgada em retribuir o beijo, mas foi apenas isso. Tinha
que ser apenas isso, ele não podia avançar mais limites, mesmo que cada
fibra do seu corpo pedisse por mais.
— Emile? — A voz de Nathaniel o tirou dos devaneios. Ele estava tão
perdido nos devaneios que não ouvia nada do que diziam e permanecera por
algum tempo segurando um garfo suspenso no ar. — Você está bem?
— Não exatamente. Estou cansado.
— Imagino que esteja, você parece abatido. Amanhã teremos que ver um
médico antes de voltarmos a Nova Iorque.
— Não irei a Nova Iorque e não preciso de médicos. — Ele colocou o
pedaço de carne na boca e o mastigou.
— Claro que iremos a Nova Iorque. — Nate insistiu. — Eu me casei e
não tive um minuto de paz até então. Estou arrastando minha esposa por
estradas e lugares estranhos para encontrar você, Milo, e agora eu quero
voltar para casa. Aliás, nós vamos retornar para Londres assim que
pudermos. Preciso deixar os Estados Unidos para trás.
— Concordo com tudo, Nate. Você precisa dar uma lua de mel à sua
esposa, mas eu não pretendo acompanhá-los. Pelo que me lembro, já possuo a
idade legal para decidir sozinho o que fazer da minha vida.
Isaac deu uma risada que não conseguiu segurar e foi seguido por Lucille.
Nathaniel parecia furioso com o desdém do irmão mais novo - ou com a
súbita independência que ele apresentava.
— O que houve com você durante esses dias?
— O que houve? — Emile virou um gole do vinho tinto que fora servido
com o jantar. — Por onde começar? Eu quase morri, depois fui encontrado
por pessoas estranhas, e então acordei sem memórias. Não sabia quem eu era
nem o que tinha me acontecido. E então me apaixonei por uma mulher por
quem não poderia me apaixonar porque, diferente de vocês, eu não posso
simplesmente enfrentar a sociedade para viver um grande amor. Eu preciso
enfrentar o destino.
O silêncio, que calou até mesmo a respiração acelerada de Emile, pode ter
sido causado pela quantidade de palavras que ele disparou em uma única
frase. Também pelo tom de sua voz ou pela forma como ele pronunciou cada
uma delas. Mais certo que fora porque ele disse que estava apaixonado -
como se fosse surpresa para um McFadden declarar paixão. O único
traumatizado e que tinha problemas com o amor era Edward, o conde, e
aquele trauma fora vencido anos atrás por sua esposa. Nenhum dos outros
irmãos sentia dificuldades em expressar sentimentos, mas esperava-se que ele
fosse diferente.
Porque Emile era diferente. O menino doente, o homem que se refugiava
nos estudos, que fazia trabalhos manuais porque não podia sair ao ar livre,
que descobria alternativas à medicina para tentar se curar e que quase sempre
era censurado por isso. Emile cresceu lutando contra seu nascimento
prematuro, seus problemas respiratórios e a fragilidade de seu corpo para
mostrar que não se resumia às suas doenças. Ninguém, nem os irmãos,
entendiam que ele não era um homem doente - era um sobrevivente.
— Não precisamos voltar agora para Londres. — Isaac falou, algum
tempo depois. — E, quando voltarmos, Emile não precisa nos acompanhar.
Afinal, ele é capaz de escolher seu caminho.
— Certo. — Nathaniel concordou, mesmo parecendo pouco disposto a
concordar. — Amanhã continuamos essa contenda, por enquanto vamos
apenas jantar como uma família.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO

E LA NÃO DORMIU À NOITE . W APUN INSISTIU EM PERMANECER NA CABANA ,


mas caiu no sono logo depois que as lamparinas foram apagadas. Tudo ficou
escuro e silencioso, menos as vozes que gritavam na cabeça de Hurit. Vozes e
imagens que a atormentaram durante horas e a impediram de fechar os olhos.
Incapaz de ficar confinada entre quatro paredes enquanto seu corpo parecia
prestes a se incendiar, ela vagou até a praia secreta, o refúgio que Emile
escolhera durante sua estada na aldeia, e se sentou na areia.
Quando o sol despontou no horizonte ela ainda tinha os olhos abertos e
vidrados na paisagem. Queria não ver nem ouvir mais nada. Queria esconder-
se na areia como aqueles pequenos animaizinhos que iam e vinham
ignorando a sua presença. Como não podia fugir de si mesma, blasfemou pela
chegada do dia e retornou para sua cabana. Talvez ela pudesse recuperar as
energias esfolando Kitchi e expondo suas mentiras para toda a tribo.
Havia uma pequena comoção em seu retorno. Talvez ela tivesse se
demorado um pouco demais na praia e seu costume fosse acordar bem cedo,
ou Wapun pudesse ter se preocupado com sua ausência de manhã, mas isso
não justificava que sua mãe estivesse ali conversando tão acaloradamente
com sua amiga. Nem que a águia estivesse fazendo tanto alvoroço. Hurit
espremeu os olhos e notou que a mãe olhava e apontava na direção da aldeia.
E ela então percebeu os problemas vindo a galope.
Da cabana de Chogan vinham o pai, Wematin, Etchemin e Kitchi. Os
homens estavam vestidos e pintados, preparados para uma cerimônia. Do
outro lado, da entrada da tribo, vinha um cavaleiro. Montado em um cavalo
preto magnífico, o homem que segurava as rédeas não era ninguém que Hurit
conhecia - ao menos era o que ela achava. Quando o cavaleiro se aproximou
mais, ela descobriu que era Emile galopando com o vento.
Ele vinha na direção dela e sorriu ao percebê-la ali. Amonute e Wapun
silenciaram no instante em que Hurit correu para dentro da cabana. Seu
coração martelava em um ritmo ensurdecedor dentro do peito e ela não sabia
o que fazer. Não podia entregar seus sentimentos na frente de todos, mas
estava feliz porque ele voltara. Passara uma noite miserável acreditando que
nunca mais o veria e ele estava ali.
— Hurit. — A voz da mãe a chamou. — Saia, precisamos conversar.
— Preciso de um minuto.
Os galopes ficaram mais altos e ela ouviu o cavalo frear. Hurit olhou-se
no espelho e ajeitou os cabelos desfeitos com as mãos. Havia areia em sua
saia e maresia lustrava sua pele. Aquela não era a aparência desejada para se
apresentar na frente de uma comitiva - ou do homem por quem estava
apaixonada, mas não havia tempo para que ela se arrumasse.
Saiu da casa e encontrou o garanhão parado em frente à sua cabana.
Respirou fundo e prendeu o ar antes de olhar para cima e deparar-se com
Emile. Ele vestia calças de montaria perfeitamente talhadas, botas, camisa
branca imaculada e casaco. A gravata no pescoço tinha um nó de excelência e
os cabelos estavam lavados e penteados. Sua face limpa e macia não continha
nenhuma sombra da barba grossa que ela fizera algumas vezes. Os olhos
azuis sorriam enquanto os lábios estavam comprimidos para falsear a
expressão dele.
— Você já se parece com o irmão de um conde, seja lá o que isso
signifique.
Ela provocou, porque parecia necessário que dissesse alguma coisa.
Emile sorriu largamente e desceu do cavalo em um salto, apoiando a perna
direita no chão para amortecer a queda. Hurit se perdeu no momento e
esqueceu que a mãe estava ali, que o pai vinha a poucos metros e que ela
precisava matar Kitchi.
— Imagino que você nunca tenha visto o irmão de um conde, Bela.
Emile deu alguns passos na direção dela mas não fez nenhum movimento
maior de aproximação. Ela se segurou para não estender os braços e tocá-lo.
— Deve ser alguma coisa parecida com o que você é, agora. Você voltou.
— Eu disse que voltaria.
— Não havia motivos.
— Havia todos os motivos. — Os olhares deles se cruzaram e foi como se
todos ao redor desaparecessem. — Quem cuidaria da águia?
Hurit deu uma gargalhada sonora. Fazia anos que ela não gargalhava, ela
nem mesmo costumava rir. O som que ecoou em seus ouvidos foi pouco
familiar e encantou na mesma medida que a assustou. Era errado sentir-se tão
bem e tão confortável na presença de Emile. Era errado e a faria sofrer,
porque ele iria embora. Aquele retorno depois de uma breve ausência não
significava nada, pois ele logo estaria do outro lado do oceano.
O momento foi interrompido pela chegada dos homens. Chogan
pigarreou e chamou a atenção para o grupo. A ave escondeu-se atrás de Emile
e Hurit quis fazer o mesmo que ela - mas Hurit nunca se escondia.
— Belo cavalo. — O cacique acariciou a crina do animal.
— O nome dele é Zeus. É de meu irmão, nós encontramos minha família,
ontem.
— Oras, então Matwan era mesmo de Southampton?
— Não, meus irmãos estavam na cidade à minha procura. Eles tinham
pistas e o destino nos uniu.
— Fico sinceramente feliz que tenha se reencontrado com os seus. Agora,
imagino que deixará minha filha seguir o seu caminho. Pode ficar para
assistir à cerimônia de casamento, se desejar.
Hurit respirou fundo e olhou para Emile antes de qualquer outra pessoa.
Balançou a cabeça em uma resposta muda à pergunta que ele não fez, mas
não conseguiu evitar a decepção no rosto dele. Os olhos que a fitavam foram
preenchidos de um sentimento que ela não soube reconhecer.
— Não haverá cerimônia nenhuma. — Ela disse, colocando-se à frente
dos homens. Wematin sorriu. — Talvez haja um velório, depois que eu
terminar minha conversa com Kitchi.
— Estou confuso. — Chogan franziu a testa e olhou para o ex-noivo, que
mantinha a pose altiva. Hurit não soube se aquilo a fez desejar realmente
retirar-lhe o escalpo ou se ela o respeitava por sustentar tão bem a mentira. —
Você recusa a bênção de seu casamento, minha filha?
— Não existe casamento. Kitchi enlouqueceu, ele não me tomou como
esposa. Eu o procurei e suspendi nosso noivado, não entendo por que ele
inventou essa fantasia a nosso respeito. Nunca houve nada entre nós que não
estivesse estritamente dentro de uma interação respeitosa.
Kitchi moveu-se na direção dela, levando a mão para tocar sua face. Hurit
deu dois passos para trás, tentando manter a distância entre eles.
— Meu raio de sol, você estava preocupada com sua missão. Mas veja, o
homem está curado. Nada agora nos impede.
— Pelos deuses, você realmente ficou louco.
Estendendo o outro braço, Kitchi conseguiu segurá-la e Hurit se debateu.
Emile colocou-se entre eles e, apesar de ser menor em estatura, enfrentou seu
adversário olho no olho.
— Tire as mãos dela. — Ele rosnou. — Se Hurit não quer ser tocada por
você, não a toque.
— Isso não é da sua conta, homem branco. — Kitchi esticou a coluna e
colocou as duas mãos no peito de Emile, empurrando-o. — Já atrapalhou
demais a vida dela! Não percebe que a está desviando do caminho?
— Hurit sabe qual é o seu caminho. Parece que é você quem está
atrapalhando a vida dela, agora.
Kitchi ameaçou atacar e Emile se esquivou. Hurit olhou para a camisa
branca que ele vestia e não viu nenhuma mácula de sangue, mas não podia
permitir que aqueles dois entrassem em uma luta. Seu ex prometido era
maior, mais forte, um guerreiro. O que ela sabia de Emile era que ele fora,
durante a vida, um homem adoentado. Que aquele vigor físico fora adquirido
de alguma forma, mas que estava prejudicado pelo ferimento que ainda não
cicatrizara totalmente.
Em um impulso, ela tomou a atitude mais irresponsável de toda a sua
vida. Tendo menos de um minuto para decidir, Hurit previu uma luta que
deveria evitar. As memórias quase a esmagaram e tudo que sua mente
enxergava era seu irmão caído sobre uma poça de sangue. Ela não poderia
perder mais ninguém.
Ela tinha uma chance e arriscou.
— Pare, Kitchi. — Hurit o puxou pelo braço antes que ele investisse
contra Emile. — Parem todos vocês. Não é verdade o que ele diz sobre mim e
me surpreende que acreditem que eu faria algo assim. Porém entendo que
Kitchi esteja infeliz, mas não há nada que eu possa fazer. Eu fui tomada como
esposa sim, mas por outro homem.
Todos, inclusive Emile, olharam para ela em expectativa. Hurit podia
jurar que a águia também olhou.
— Por quem foi? — Wematin, até então em silêncio, perguntou.
— Por Emile.
Era aquilo. Hurit fechou os olhos no instante em que proferiu as palavras
porque sabia que não sabia mentir - e que aquela mentira era enorme.
Dependia de Emile aceitar, se ele sequer entendesse o que aquilo significava.
Dependia de ninguém matá-lo em seguida, porque ela estava dizendo aquilo
exatamente para salvá-lo.
Afinal, se ele era seu marido aos olhos das tradições, seu pai não faria
nada contra ela e impediria que alguém o fizesse se não quisesse enviuvar a
filha. As consequências eram graves para ela, mas Hurit decidiu enfrentá-las.
Aquilo implicaria em muito mais do que ser mal vista pela tribo. Ela talvez
não fosse aceita como a xamã. Jamais poderia liderar, pois não poderia fazer
aquilo ao lado de um branco. E, quando todos descobrissem que tudo era uma
farsa, ou que Emile a abandonara, ela moraria para sempre solitária na
cabana, pois ninguém a desposaria depois de sua audácia.
Mas Hurit se sentiu esquisita e livre. Finalmente livre dos fardos que
carregava. Um pouco assustada com suas decisões e preocupada com seu
futuro, mas aliviada - e ela não deveria sentir nenhum alívio em perder tudo
que levou anos construindo.
— Estou confuso. — Emile sussurrou próximo ao seu ouvido e a fez
prestar atenção nele.
— Tire-me daqui e explico. — Ela também sussurrou.
— Você não pode estar falando sério, Hurit. — Kitchi disse, a expressão
clara da decepção. — Não posso acreditar que ele... que você...
— Está jogando fora seu futuro por causa de um branco. Um branco que
mal conhece. — Chogan também estava decepcionado.
— Tire-me daqui, Emile.
Ela repetiu e ele a atendeu. Emile montou novamente e ofereceu a mão
para que ela subisse. Para completar o cortejo, a águia deu um voo baixo e
pousou no ombro dele, indicando que ela também iria embora. Depois de
acomodá-la entre suas coxas e segurá-la com uma mão espalmada na barriga,
Emile colocou o cavalo em movimento e partiu trotando na direção da saída
da aldeia.
Ninguém os impediu. Ninguém parecia crer no que estava acontecendo.

Q UANDO ACORDOU DE MANHÃ , Emile só conseguia pensar que precisava ver


Hurit. Ele se acostumara a despertar com o cheiro do café que ela fazia e
adorava que a face dela fosse a primeira coisa que geralmente via. O enorme
quarto confortável e luxuoso que lhe fora reservado pelos irmãos era vazio e
estéril demais sem o calor que dela emanava. Tão logo se vestiu e comeu o
desjejum, convenceu Nathaniel a lhe emprestar o cavalo e galopou para a
aldeia.
Ele queria buscá-la e passar o dia com ela, mas se viu no meio de uma
confusão que não compreendeu. Depois que Hurit lhe pediu que a tirasse da
aldeia, ele apenas obedeceu e galopou de volta na direção de Southampton
sem perguntar - e sem entender.
Ela estava tensa em seu colo. Usava as duas mãos para segurar-se nele e
cravava os dedos nas suas coxas, causando um desconforto não familiar.
Emile poderia excitar-se com aquela proximidade, com os quadris dela
estimulando suas partes masculinas, mas era impossível pensar em qualquer
coisa além do motivo que a levara a fugir da própria família.
No meio do caminho ele parou. Conduziu Zeus para fora da estrada, até
uma pequena região arborizada e o fez desacelerar. A águia estava ferindo
seu ombro com suas garras e Emile não podia continuar em frente porque não
sabia para onde estava indo.
— O que acabou de acontecer?
Ele desceu do cavalo e empoleirou a ave sobre a sela. Zeus ignorou a
nova companhia e encheu a boca de mato. Hurit deslizou para baixo,
descendo amparada em seus braços.
— Kitchi mentiu para meu pai sobre nós.
— Nós?
— Não, sobre mim e ele. Ao invés de aceitar a suspensão do noivado ele
decidiu desposar-me à força e, para isso, mentiu.
As mãos de Hurit tremiam e Emile se viu tomado de uma fúria que ainda
não experimentara. Seu desejo imediato foi o de pegar o cavalo, voltar à tribo
e desafiar Kitchi para um duelo. Havia dois motivos para que não o fizesse -
não haviam mais duelos e ele fatalmente perderia o embate. Seus irmãos
eram bons com armas e lutas corporais. Edward, o conde, era um exímio
espadachim e conquistou uma fama inglória em Londres depois de vingar a
desonra sofrida por sua esposa com o sangue do agressor. Nathaniel era bom
com pistolas, Isaac era bom com qualquer coisa que fizesse - ele apenas
escolhia não usar de violência.
Já Emile era um intelectual. Não aprendera a manejar uma espada e sabia
atirar mal. Também não aprendera combate corporal porque sempre se
cansava e não conseguia terminar uma luta. Depois de tentar algumas vezes e
quase morrer sufocado por um colega da universidade, Emile passou a fazer
exercícios que exigiam de seus pulmões, como corridas, escaladas e outros
trabalhos braçais.
Seu corpo se fortaleceu, mas a mente ainda era o melhor atributo de
Emile. Se ele decidisse desafiar o ex-noivo de Hurit, teria que ser no xadrez
ou na corte - e nenhuma das duas hipóteses era possível. Mas ele queria
encher a cara de Kitchi de socos e obrigá-lo a se desculpar pelas mentiras,
que ele ainda não sabia quais eram.
— O que ele disse?
— Que nós dois tivemos relações sexuais.
Ela olhava para baixo, mas a naturalidade com que a frase saiu dela quase
fez Emile se engasgar. Apenas uma mulher que ele conhecia seria capaz de
falar relações sexuais sem gaguejar ou desmaiar de vergonha - era Caroline, a
esposa de Isaac. Como uma boa ex-libertina, Caroline mantinha o
vocabulário devasso mesmo depois de ter se casado e se tornado mãe.
— Mas vocês não tiveram.
A afirmação era uma pergunta que ele não queria fazer e para cuja
resposta talvez não estivesse preparado. Era irrelevante se ela dissesse que
sim, não faria diferença sobre o que ele sentia nem sobre qualquer
possibilidade sobre ficarem juntos. Não havia possibilidade.
— Não! — Ela pareceu ofendida em um primeiro instante, mas logo
deixou os braços caírem na lateral do corpo indicando estar exausta. — Na
nossa tradição, uma mulher que entrega a sua virgindade a um homem não
está arruinada, está casada. Não sei por que ele fez isso, mas estou cansada
demais para brigar.
Emile deu alguns passos na direção de Hurit e a segurou nos braços. Ela
colapsou em seu peito e enfiou a face em sua camisa, o corpo todo tremendo
de nervoso e cansaço. Mesmo que ela estivesse sofrendo pela traição de
alguém em quem depositava confiança, ele gostou de tê-la ali, com ele, de ser
a segurança que ela escolhera. Sustentando-a de pé, ele acariciou-a nos
cabelos enquanto aguardava Hurit se recuperar. Assim que ela deu sinais de
estar pronta para seguir a jornada, ele a puxou para si e a beijou.
Era para ser um beijo suave, lento, molhado e que demonstrasse que ele
estaria ao lado dela se ela quisesse mas, quando os lábios se encontraram,
Hurit estava tão receptiva que ele não conseguiu atingir seu objetivo. Usou o
polegar para acariciar-lhe o canto da boca enquanto mordiscava o lábio
inferior. Ela gemeu baixinho e se abriu parcialmente para recebê-lo em toda a
sua voracidade.
Com uma mão espalmada segurando-a pela cabeça e a outra a mantendo
firme em contato com seu corpo, Emile aprofundou o beijo, explorando-a
com a língua. Ele não era um exímio amante e não beijara incontáveis
mulheres, ainda assim sabia que aquele era um momento especial. Era por ele
que poetas escreviam sonetos e músicos compunham sinfonias. O encaixe, o
sabor, o calor - tudo dizia para ele que ela era perfeita para si. Perfeita.
E ele queria agarrar-se àquela perfeição para sempre. A realização quase
o fez afastar-se e sair correndo, mas seu corpo não conseguia desprender-se
do beijo. As mãos dela deslizaram por dentro do casaco e o acariciaram por
sobre a camisa e ela outra vez pressionou seus quadris contra ele. Hurit era
pura - e ele acreditava quando ela dizia que era, mas havia alguma malícia
naquele toque que a transformava em uma mulher ousada.
Se ela continuasse tão perto dele, não sairia mais tão pura daquela estrada.
— Você disse ao seu pai que eu a tomei como esposa. — Emile
conseguiu formular uma frase enquanto buscava por ar. Encostou a testa na
dela e a fitou, capturando os olhos escuros que pulsavam de desejo.
— Sim, eu disse.
— Eu só poderia ter feito isso se...
Ela mordeu o lábio inferior em uma clara demonstração de
constrangimento.
— Sim, é o que você está pensando.
O choque da mentira que ela contara o assustou a ponto de fazer com que
ele a soltasse. Emile cambaleou para trás e passou as mãos nos cabelos.
Estava nervoso pela primeira vez desde que acordara sem memórias.
Realmente nervoso.
— Bela! Eu não posso dizer que me esforcei para não desonrá-la, eu
deveria ter exigido companhia na sua casa desde o início. Mas eu não... eu
jamais faria isso.
— Jamais faria sexo comigo?
— Céus! — Ele deu uma risada estridente e assustou a águia e Zeus. —
Desde quando donzelas como você falam disso com tanta naturalidade?
— Não mude de assunto. — Ela cruzou os braços na frente do corpo,
naquela postura tão masculina, tão condizente com um líder. — Posso ser
ingênua, mas quando você me beijou deu indícios que me deseja.
— Porque eu desejo! Cristo, eu desejo tanto que nem sei mensurar. Os
céus são testemunhas do quanto eu me esforcei para não devassá-la em algum
lugar nas tantas vezes em que ficamos sozinhos. Eu passei a desejá-la como
eu preciso de ar para respirar, Bela, mas eu não posso tomar nada de você.
Sua tribo, sua missão, seus compromissos - se eu tocasse você de forma
inapropriada eu atrapalharia tudo isso. Então porque você...
— Eu queria sair de lá. Queria impedir que Kitchi te batesse. — Ela se
virou de costas para ele e apoiou a cabeça nas duas mãos. — E eu queria que
fosse verdade.
A confissão fez com que ele fechasse os olhos e as mãos em punhos.
— Não queria.
— Você não faz ideia do quanto eu queria. — Hurit virou-se novamente e
o encarou. — Mas, assim como você, sei dos meus compromissos e não
posso ser um obstáculo para seu retorno à Inglaterra. Sei que é honrado
demais.
Deixe-a tomar as decisões. A voz de Isaac ecoava em seus ouvidos mas
Emile não queria ouvir os conselhos do irmão mais experiente. Hurit estava
abalada e quaisquer escolhas seriam feitas no calor das emoções.
— Deixe-me levá-la de volta para a tribo. Conversarei com Chogan, ele
acreditará que você disse aquilo apenas para escapar.
— Sei que acreditará. Mas eu não quero voltar agora. Estou exausta, não
dormi à noite, preciso apenas descansar.
Aquela parecia uma decisão ruim, porém sem consequências
irreversíveis. Emile montou novamente e puxou Hurit consigo, ajeitando-a na
sela à sua frente para mais alguns quilômetros de pura tortura. Ele a levaria
para a estalagem e a acomodaria em seu quarto, depois a devolveria para a
tribo e acabaria com aquela confusão.

D URANTE O TRAJETO PARA A ESTALAGEM , Hurit praticamente adormeceu no


colo de Emile. Ele precisou se ajeitar para conseguir segurar a mulher e as
rédeas e equilibrar o grande pássaro em seu ombro, mas conseguiu superar
aqueles pequenos obstáculos com a ajuda de um cavalo muito disciplinado.
Na recepção, não quiseram deixá-lo entrar. Ele desceu do cavalo com
Hurit em seus braços e o impediram de prosseguir - não podia adentrar o
hotel nem com a nativa nem com a ave.
— Eu sou hóspede e estou pagando uma quantia considerável pelo quarto
que ocupo. Há regras que impedem minha entrada com convidados?
— Não, senhor, porém...
— Que eu saiba as leis locais não me proíbem de ocupar meu quarto
como desejar, desde que não cause mal-estar para os hóspedes. O senhor dirá
que minha convidada é um problema?
— Senhor, ela é uma nativa.
— O nome dela é Hurit. — Emile quase rosnou. Sua vontade era a de
esmurrar o homem que o impedia de levar sua mulher para o quarto e
depositá-la em uma cama macia e confortável. — Ela é Shinnecock, como o
senhor é americano. Teremos um problema?
— Er, e a ave? Ela não pode entrar.
A águia, que vinha no chão, caminhando como se fosse natural fazer
aquilo, gritou. Alguns hóspedes que estava na recepção olharam
escandalizados para a cena.
— Vejo que há pessoas na recepção com animais de estimação. O senhor
barrará minha convidada e meu animal de estimação?
— Mas senhor, é uma águia!
Emile baixou o olhar e observou brevemente o animal que também o
encarava, aguardando algum movimento. Wematin tinha razão, aquele bicho
parecia compreender tudo que ele dizia ou fazia. Curiosamente, ele também
acreditava ser natural conversar com a ave.
— Creio que também não haja leis que determinem quais tipos de
animais de estimação sejam aceitáveis. Se eu quiser ter um tigre, serei
proibido?
— Er, não saberia dizer. Não há tigres na América, senhor.
O recepcionista suava e usou um lenço branco para limpar as gotículas
que se formavam em sua testa.
— E é apenas por isso que eu não estou conduzindo um pela coleira. Se o
senhor me der licença, gostaria de subir.
Havia um burburinho de vozes curiosas que observavam o que Emile
fazia. Surgindo da sala de convivência, sua cunhada Lucille se aproximou e,
sorrindo, ofereceu-se para acompanhá-los - o que rendeu um suspiro de
alívio, pois Emile não queria subir para seu quarto sozinho com Hurit. Ele
não aguentava mais escândalos e havia um limite que ele não pretendia cruzar
dentro de sua cultura. A presença de Lucille preservaria o mínimo que restava
de decência em seu comportamento.
Sem ver muito o que poderia fazer para continuar argumentando com o
hóspede inconveniente, o recepcionista se afastou e deu passagem ao grupo
mais exótico que ele já vira naquele hotel.
— Essa foi uma intrigante demonstração de habilidade de argumentação.
— Hurit murmurou de encontrou à camisa dele.
— Ah, você está acordada?
— Estava ouvindo. Desculpe por fingir, mas estou confortável aqui.
Ele sorriu.
— Ela está bem? — Lucille perguntou, decidindo interferir. — Precisa de
um médico?
— Ela está exausta, emocionalmente exaurida. — Emile respondeu,
percebendo que Hurit já relaxava outra vez.
— Vai levá-la para seu quarto?
— Sim. Você poderia nos fazer companhia? Ao menos por enquanto, até
que percebam que estamos cumprindo com pelo menos algumas das
convenções sociais aceitas?
Lucille deu uma risada e balançou a cabeça em concordância.
— Passarei no meu quarto e avisarei Nate. Não se surpreenda se ele
aparecer também.
— Estou acostumado às inconveniências de meus irmãos.
Despedindo-se temporariamente da cunhada de quem já começara a
gostar, Emile abriu a porta de seu quarto com o pé e considerou que estava
fazendo tudo errado. Ele só deveria deitar aquela mulher em sua cama se
estivesse pronto para se casar com ela no dia seguinte, o que não aconteceria.
Ainda naquele dia ele a devolveria para a tribo e esclareceria tudo com
Chogan, então não era certo dar-se a ilusão de que poderia tê-la.
Mas Hurit precisava dele e ele não poderia negar a ela aquele momento
de cuidado. Afinal, fora aquela mulher que dormira no chão e passara noites
acordadas zelando por sua vida.
Como se perturbá-la fosse um crime punido com a pena capital, Emile
deitou Hurit na cama e a cobriu com os lençóis. Fechou as cortinas para
escurecer o quarto, atiçou o fogo e se jogou em uma poltrona próxima à
lareira. Percebeu que a confusão toda fez com que a manhã passasse rápido e
em poucas horas ele seria convocado para almoçar e resolver questões no
banco. Não teve tempo de pensar no que faria, além de observar o sono de
Hurit, porque o quarto foi invadido por Nathaniel e Lucille.
— Ela está doente? — O irmão disparou.
— Não, apenas precisando descansar. Vamos conversar na sala?
Nate assentiu. Os quartos que os irmãos McFadden estavam ocupando
eram grandes e luxuosos e possuíam uma antessala. Os três se acomodaram
nela e permitiram privacidade e sossego a Hurit.
— Você a trouxe para seu quarto e a colocou em sua cama. — Nate
serviu um uísque e virou a dose quase no mesmo instante. Emile percebeu
que ele estava nervoso e o irmão raramente ficava nervoso. — O que está
realmente acontecendo entre vocês dois, Milo? Vocês já...
— Não. — Ele balançou a cabeça negando, farto de que todos o
acusassem de ter relações sexuais com Hurit. Porque era como ele se sentia,
acusado. — Nosso relacionamento é casto, totalmente casto.
— Você a beijou?
— Sim.
— Então não é casto, irmãozinho. Ou você está falando daqueles
beijinhos aristocráticos em que as damas nem mesmo abrem a boca?
Emile enrubesceu, sentindo o fluxo de sangue acelerado em suas
bochechas. Aquela conversa era desnecessária e ele não queria discutir suas
intimidades com um notório libertino, ainda mais na frente da esposa dele.
— Pelos céus, Nate. Não foi um desses beijos, mas não sei o que isso
importa.
— Importa que eu recentemente estive dividindo quartos com uma
senhorita que teve sua virtude arruinada e que, por acaso, é hoje minha
esposa.
Virando outro gole de uísque, Nathaniel moveu os ombros indicando que
ele tinha um ponto. Lucille deu uma risadinha nervosa, achando divertida a
interação entre eles. Se a conversa a constrangia, não demonstrava,
— Você é um libertino, eu não.
— Eu era, meu querido irmão. Era. — Nate olhou para a esposa querendo
que ela visse a sinceridade em seus olhos. — Mas isso é desimportante. O
ponto é que, em algum momento, você comprometerá irreversivelmente a
honra dela, se já não o fez trazendo-a aqui.
Claro que ele comprometera Hurit, mas suspeitava que, para a tribo,
aquele fosse o menor dos problemas. Ele ficara na casa dela por semanas sem
que ninguém realmente se importasse - o que pesava sobre sua cabeça era a
mentira que ela contou sobre tê-la tomado como esposa. Mas, diante da sua
sociedade, das regras de decoro às quais se submetia, Emile sabia que violara
pelo menos uma dúzia delas. E que, se ele tivesse a mínima honra, a
desposaria imediatamente.
— Nada disso importa para ela, Nate. Na aldeia os comportamentos são
diferentes e, de qualquer forma, eu não posso me casar com ela. Veja quem
eu sou e quem ela é. Hurit é uma princesa, ela será a próxima xamã. Precisa
de um homem da tribo, um que possa ser seu companheiro pela vida. Não eu.
— Entendo. — O irmão segurou a mão da esposa e suspirou olhando para
os dedos delicados entre os dele. Levou-os aos lábios e os beijou, arrancando
mais uma risadinha de Lucille. A intimidade entre eles era palpável, não
precisava de muito esforço para percebê-la. — Eu me lembro de, alguns dias
atrás, ter dito a mesma coisa para essa mulher aqui. Eu a entreguei para Thad
Pinkerton.
— Thad? O seu amigo da universidade?
— Sim. Por um acaso do destino eles acabaram prometidos.
— E o que aconteceu?
— Ele escalou um navio e me resgatou.
Foi Lucille quem disse. O sorriso nos lábios dela exibia a felicidade de
quem estava ao lado do homem que amava, independentemente do que aquilo
significava. Era uma bela história, mas não era a mesma que ele poderia
contar. Os obstáculos enfrentados por Nathaniel e Lucille não eram tão
graves quanto os que ele obrigaria Hurit a enfrentar se insistisse em ficar com
ela.
— Eu não poderia trazê-la para nosso mundo. — Emile foi até o
decantador e serviu-se de uma bebida. Encarou o uísque por alguns segundos
e o virou em um gole. — Ela não seria feliz aqui, em Nova Iorque ou em
Londres.
— E você não seria feliz no mundo dela?
A pergunta de Lucille foi a mesma que ele se fez várias vezes desde que
parara de lutar contra os sentimentos que floresceram em seu peito.
— Eu não sei. Mas a tribo não gosta muito de mim.
— Bem, meu irmão, eu não quero dizer que sua escolha seja fácil. Mas
não seja muito racional. Você sempre foi muito parecido com Edward,
agindo pela razão e nunca pela emoção. Mas até nosso irmão conde se
entregou ao amor da vida dele, mesmo que isso tenha demorado algum tempo
para acontecer e tenha precisado de um empurrão do destino.
Nate se levantou e ofereceu a mão para sua esposa, que o seguiu e
terminou em seus braços. Desde a última vez que vira seu irmão ele não
mudara nada, mas sorria com mais frequência. Continuava com camisas
desgrenhadas e mangas dobradas até o cotovelo, com cabelos despenteados e
cara de quem passava muito tempo jogando e bebendo. Mas sim, ele sorria
mais e estava visivelmente apaixonado.
— Vamos nos preparar para o almoço.
— Ainda faltam algumas horas...
— Por Deus, Emile, não seja ingênuo. — Nate deu uma risada. —
Diferente de você, quando eu deito uma mulher na minha cama eu sei o que
fazer com ela.
Rindo e satisfeito por continuar sendo o irmão provocador, Nathaniel
deixou o quarto e a cabeça de Emile cheia de perguntas e nenhuma resposta.
A águia, que parara de explorar o ambiente e viera do quarto, o ignorou por
completo. Se ao menos aquele animal pudesse lhe dar alguns conselhos...
Porém Emile suspeitou que já recebera conselhos demais. Precisava decidir o
que fazer com eles.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO

E LA ACORDOU UMA VEZ E VIU TUDO NUBLADO E CONFUSO . O UVIU PASSOS ,


ruídos, e então o silêncio fez com que ela adormecesse outra vez. O corpo de
Hurit nunca estivera tão cansado e ela não sabia se era pela noite em claro ou
pelos aborrecimentos vividos pela manhã. Quando despertou pela segunda
vez, sentindo-se mais revigorada, percebeu que havia comida sobre uma
mesinha e que a águia estava empoleirada sobre uma cadeira. Observando-a.
Hurit estava sozinha. Havia um bilhete ao lado da comida, escrito com a
letra de Emile, dizendo que ele saíra para resolver questões bancárias e que
passaria a tarde fora. Sob as bandejas cobertas estava um almoço farto com
carne, purê de batata e vegetais refogados.
A ave se aproximou quando ela se sentou para comer.
— Você é muito interesseira, decide ser minha amiga quando tenho
comida. Quer dividir?
Ela deu uma risada ao perceber que estava fazendo como Emile,
conversando com o animal, mas ficou impressionada ao perceber que era
compreendida. Compartilhando pedaços da carne com a águia, Hurit
consumiu cada porção de comida que lhe fora deixada e ficou satisfeita por
não desperdiçar.
Por algum tempo ela vagou pelo quarto, explorando o luxo e a ostentação
comum aos brancos ricos e imaginou como Emile deve ter se sentido mal
vivendo tantos dias sem nada daquilo. Havia até mesmo um telefone no
quarto, além de chuveiro e banheira e lamparinas a gás - muito mais
modernas que as suas. Decidida a aproveitar um pouco daquele
esbanjamento, ela se despiu e tomou um banho demorado na enorme
banheira de louça. Não era como banhar-se no rio, mas sais de banho e
sabonete deixavam tudo mais agradável.
Sem ter muito o que fazer, ela se deitou e acabou dormindo outra vez.
Não soube quanto tempo depois seus sentidos a alertaram para movimentos
no quarto. Passos, madeira rangendo, portas abrindo e fechando, uma
respiração suave e sonora que ela também reconhecia e o cheiro característico
do homem que ela cuidara por tantos dias. Hurit quis abrir os olhos para vê-
lo, mas algo borbulhou dentro dela. O som do tecido escorregando pela pele
dele causou um rebuliço em suas entranhas. Estava na cama dele, indefesa e
ansiosa por afeto, por um toque, por mais. E ele retornara trazendo toda a
potência masculina pela qual ela ansiava.
Não estava claro quando foi que ela decidiu que o desejava e que valia a
pena enfrentar o destino para tê-lo. Talvez tenha sido quando ela começou a
ler os livros indecentes assinados pela tal Lady Malícia, ou quando percebeu
os sentimentos crescendo e começou a lutar para mantê-los dentro dos muros
de suas defesas. Pode ter sido quando ela mentiu para seu pai e aceitou as
consequências de querer um homem que não podia ter.
Talvez ela pudesse. Ou talvez as pontadas de agonia que explodiam
dentro dela não se importassem com limites.
O colchão se moveu e seu coração acelerou. Hurit resistiu a uma vontade
intensa de se mexer, de esfregar as coxas uma na outra, de abrir seus braços e
pedir que ele se encaixasse ali. Emile levou a mão até os cabelos dela e
acariciou sua face. O toque dele ardia como fogo e refrescava como a brisa
do verão.
— Bela. — A voz sussurrou seu nome em inglês e ela também precisou
resistir à vontade de matá-lo por ser tão desobediente. — Preciso levar você
de volta antes que escureça.
— Já está escuro.
— Ainda não, basta você abrir os olhos.
Ela riu e fez o que ele comandou apenas para enquadrar o rosto de Emile
em uma moldura de luz. Ele estava realmente muito bonito com o cabelo
penteado de lado e a barba completamente feita. A mão dele continuou a
acariciá-la e ela acreditou ver nos olhos azuis o mesmo desejo que ela sentia.
— Eu quero ficar aqui.
Emile suspirou e riu, nervoso.
— É uma péssima ideia. Não haverá forma de reparar sua honra se passar
a noite aqui.
— Trata-se de minha honra, não deveria ser eu a maior interessada nessa
discussão?
— Tudo bem, é a sua honra. Você se indignou com Kitchi porque ele
mentiu dizendo que vocês fizeram amor, ficou aborrecida porque duvidaram
da sua decência. Se passar a noite comigo, mesmo que não façamos nada,
ninguém mais acreditará que manteve sua virtude. Você não se importa?
— Emile. — Hurit ergueu parcialmente o corpo e se apoiou nos
cotovelos. — Eu me aborreci porque Kitchi mentiu. Se nós tivéssemos feito o
que ele fez, eu não estaria envergonhada. A verdade é a verdade, mesmo que
seja dolorosa e indesejada. Mas entendo seu dilema. Você é honrado demais
para aceitar desfrutar de mim sem assumir um compromisso e não quer esse
compromisso.
— Você entendeu errado. Tudo errado. — Emile balançou a cabeça.
— Então me faça entender o certo.
Ele suspirou novamente e atendeu a um apelo não feito. Esticou-se por
sobre a cama e a beijou. Foi suave, um toque macio de lábios, mas foi quase
o suficiente para derrubá-la. Hurit se entregou no instante em que as duas
bocas se encontraram e Emile precisou segurá-la pela nuca para que ela não
desabasse sobre os lençóis. Relutante, ele afastou a boca da dela apenas por
alguns instantes e, em seguida, a beijou como se sua vida dependesse disso.
As imagens formadas pela leitura das obras proibidas vieram todas à sua
cabeça e ela não queria pensar demais. Não queria comparar aquele momento
com os que as mocinhas de Lady Malícia experimentavam, mas foi
inevitável. Quando Emile desistiu de lutar e deslizou pela cama e por sobre
ela, pressionando-a contra o colchão macio, ela gemeu um pouco mais alto
do que qualquer decoro permitia. Quis envergonhar-se e percebeu que seria
tolice.
O corpo dele se encaixou sobre o dela sem que ela percebesse que abrira
um pouco as pernas para acomodá-lo. Uma parte muito rígida dele atritou
contra sua coxa e ela gemeu outra vez. Os livros falavam sobre aquilo mas a
realidade era muito mais excitante.
— Você entende, agora? Eu não consigo resistir a você, mas eu não posso
arruiná-la e atrapalhar seu destino. Arruinar também sua missão, seu futuro.
Foi um pouco difícil para ela se concentrar no que ele dizia, já que Emile
continuava a beijá-la e a friccionar aquela parte específica dele naquele ponto
exato que parecia prestes a derrubá-la de um precipício. Hurit enervou-se por
não saber os nomes, por não compreender a mecânica da ligação entre eles
apesar de todas as leituras que fizera. Por que as mulheres eram sempre
ignorantes sobre partes do corpo e intimidade?
— Minha vida inteira foi condicionada por uma missão. — Ela arfou
quando ele desceu a boca para seu pescoço e os dedos passearam pelos
botões da camisa que ela usava, abrindo alguns. — Eu sou disciplinada. Eu
sou dedicada. E eu estou farta dessa maldição que paira sobre mim.
— Ainda não te ouvi praguejar. — Ele riu, os lábios se esticando em
contato com sua pele. — É muito sensual.
Hurit não argumentou. Não era hora de discutir com ele, mas de
convencê-lo a aplacar aquela necessidade que crescia urgente dentro de si.
Não entendia bem o que significava nem por que os deuses a abandonaram,
mas foi a primeira vez em toda a sua vida que ela não quis saber. Nada
importava além daquele homem ali, ao seu lado. Ela o desejou antes mesmo
de entender o que desejo significava.
— Eu li um livro. — Ela murmurou. As palavras saíram cortadas porque
ela ofegava enquanto a boca dele continuava explorando partes que ela nem
sabia que podiam ser exploradas e os dedos abriam botão por botão de sua
camisa.
— Um livro.
— Eu gostaria que você me mostrasse as coisas que li.
Emile ergueu a cabeça e a fitou nos olhos.
— Espero que não seja um livro sobre leguminosas ou pesca.
— Eram romances. Eles tinham cenas... nelas as mulheres e os homens
faziam coisas... eu queria saber como é.
— Coisas assim? — Emile a beijou na boca e ela negou. — Assim? —
Ele beijou seu pescoço e ela gemeu, mas negou. — Assim? — As mãos dele
deslizaram para dentro da blusa parcialmente aberta e roçaram de leve nos
seios ainda cobertos, espalhando uma onda de sensações por todo o seu
corpo.
— Também.
— Havia mais? — Ele perguntou e ela confirmou. Emile sorriu e
pressionou os quadris contra ela. — Era algo assim, Bela? — Hurit balançou
a cabeça confirmando e ele arregalou os olhos em surpresa. — Que tipo de
livros você andou lendo, diabinha?
— Você me mostra? — Ela não se importou em haver súplica em seu
olhar. — Eu ouvi dizer sobre o que acontece na cama de um casal, mas nada
que me contaram foi parecido com o que aquelas mocinhas sentiram nos
livros. Elas sentiram...
— Prazer?
Hurit assentiu, feliz por não precisa explicar, feliz porque ele a entendia
apesar de sua dificuldade em se expressar sobre um assunto tão complicado.
Ela queria sentir prazer, mas queria que fosse com ele. Porque, em seu
entendimento, as mocinhas de Lady Malícia gostavam do intercurso sexual
porque elas estavam envolvidas emocionalmente com os mocinhos. Ela não
queria qualquer prazer, queria senti-lo com Emile.

D EIXE que ela tome suas próprias decisões. Mais uma vez, os conselhos de
Isaac o atingiram e o fizeram refletir quando ele deveria ser apenas instintos.
Seria aquela uma ocasião em que ele deveria permitir que Hurit decidisse seu
destino ou estaria sua mente lhe pregando uma peça porque ele queria que ela
se entregasse a ele?
Emile não estivera com muitas mulheres - na verdade, toda a sua
experiência sexual se resumiu à cama de algumas prostitutas, mas elas eram
ótimas professoras. Ensinaram-no a usar proteção para evitar doenças e filhos
bastardos e a satisfazer uma mulher. Durante seus vinte e sete anos ele não
esteve noivo, não cortejou damas nem planejou casamento como fizera Isaac
- então aquela era a primeira vez em que ele tinha uma mulher de quem ele
gostava em seus braços. Em sua cama.
Seu corpo inteiro ansiava por possuí-la enquanto sua mente gritava que
ele não poderia desonrá-la.
Deixe-a escolher.
— Eu posso te mostrar o prazer que elas sentiram. Você quer?
Ela assentiu com a cabeça. Ele esperou.
— Eu quero.
Duas palavras mágicas. Que os deuses o perdoassem, mas ele voltaria
para o fundo do oceano se não pudesse dar a Hurit o pouco que ela pedia
dele. Com um rosnado gutural, Emile possuiu-lhe a boca com desejo,
oferecendo a mesma entrega que exigia. Não era mais um beijo sensual - era
voraz e urgente, carregado de paixão e frustração. Enquanto as línguas se
enrolavam em uma dança inominada e frenética, ele terminou de desabotoar a
camisa e a livrou da inconveniente vestimenta.
Não havia nada por baixo. Ao contrário das mulheres que ele conhecia,
que usavam duzentas peças de roupa, Hurit trajava apenas aquela camisa de
tecido grosso. Para seu deleite, o descarte da roupa representou a exposição
integral dos seios mais perfeitos que ele já vira.
Emile ficou sem ar por um momento. Ergueu o corpo para admirá-la,
deslizando as mãos abertas do pescoço para o colo e tocando de leve os
mamilos túrgidos. Ela fechou os olhos e gemeu ao contato. Não sabia se
estava envergonhada, nervosa ou apenas aproveitando a devassidão do
momento, como ele.
— Você é linda.
Murmurou, segurando os mamilos entre os dedos. Ela gemeu novamente
e Emile voltou a beijá-la. Lábios, pescoço, seios. Arrastou os lábios e a língua
por cada pedaço de pele descoberta. Testou seus limites levando um dos
mamilos à boca e sugando devagar. Como ela não gritou, não o chutou nem o
mandou parar, ele prosseguiu. Fartou-se de um seio, mudou para o outro,
arrancou dela todos os gemidos que seus ouvidos desejavam ouvir.
Sem mais conseguir permanecer passiva, Hurit cravou os dedos em suas
costas e depois atacou os botões de sua camisa. Como seria mais fácil, Emile
arrancou-a pela cabeça sem nem mesmo se preocupar se a peça se tornaria
inútil no dia seguinte. Ela abriu os olhos e o empurrou para trás, passando os
dedos por seu peito e descendo até o abdômen. Circulou a borda do curativo e
pousou a palma da mão sobre o ferimento.
— Dói?
— Não. — Emile levou aquela mão aos lábios e a beijou. — Diga-me o
que quer que eu faça. O que quer fazer.
— Eu não sei.
— Mas você sente. Prometa-me que pedirá que eu continue se gostar, que
eu pare se não gostar, e que me tocará se quiser.
— Eu estou tocando você. — Ela riu.
— Haverá muito mais de mim ainda, minha Bela.
A confusão nos olhos escuros intensificou quando ele levou as mãos aos
botões da saia e os soltou. Desfez laços e afrouxou tecido até poder puxá-la
para baixo e livrar-se de mais uma peça inconveniente - e a calçola que ela
usava teve o mesmo destino. Em minutos ele a tinha nua sob si e mal sabia se
teria tempo para tudo que ele desejava fazer com ela.
Os beijos retornaram. Emile traçou, com a língua, uma linha sinuosa do
meio dos seios até o umbigo. Demorou-se ali, acariciando-lhe a parte interna
das coxas para fazer com que ela se abrisse para ele. Salpicou beijos pela
barriga dela enquanto conduzia os dedos para cima até tocar-lhe a
feminilidade. Hurit gemeu e se contorceu. Rígida, ela o impediu de
prosseguir.
— Está tudo bem. — Ele afastou as mãos e voltou a olhá-la nos olhos. —
Não precisamos fazer nada que você não queira, Hurit.
— Emile. — Ela o segurou pela face, uma mão de cada lado. — Eu quero
cada parte de você. Mas estou nervosa. Poderia me dizer o que está
acontecendo?
— Nesse momento eu estou beijando você. — Ele tomou-lhe a boca outra
vez. — E eu pretendia continuar beijando, mas não aqui.
— Percebi que esteve beijando por todo lugar.
— Quase todo lugar. Permita-me mostrar um beijo que será ainda mais
gostoso do que esse.
Descendo a boca outra vez, ele se posicionou entre as pernas dela e as
ergueu pelo joelho. Beijou as panturrilhas, uma de cada vez, e a parte interna
da coxa. Deslizou os dedos pelos cachos femininos.
— Aqui. — Um dos dedos acariciou-a por dentro. Hurit se sobressaltou.
— É aqui que você quer ser tocada, não é?
Como ela assentiu, ele continuou. Soprou um jato suave de ar sobre a
feminilidade dela e a abriu usando os polegares. Se ela queria conhecer o
prazer, seria ele que o apresentaria.

E LA NÃO ESTAVA PREPARADA para aquilo. Depois de soprar no meio de suas


pernas, algo que ela nunca lera em livro nenhum, Emile passou os dedos por
suas partes íntimas e quase a fez conhecer o Paraíso. Aquele era o lugar que
pulsava e ansiava por ele desde que ela o percebera no quarto, mas ela não
sabia bem o que havia ali - ao contrário dele, que se mostrou um exímio
conhecedor de sua própria anatomia.
— Você gosta que eu lhe toque aqui, Bela?
Se ela não tivesse lhe pedido para falar, teria mandado-o calar-se. Como
estava confusa e ansiosa por algo que nem entendia, queria apenas que ele
continuasse.
— Gosto.
— Vai gostar mais agora.
Ele a pegou de surpresa baixando a cabeça entre suas pernas e passando a
língua por onde os dedos estavam. Hurit quase gritou - precisou morder os
lábios para não gemer alto demais. Sentia vergonha de como seu corpo se
comportava com ele, do quanto ele despertava algo perverso e devasso nela.
Mas ela não seria louca de pedir que parasse. Que a devassidão a
consumisse, porque cada toque a fazia querer outro. Ele a beijou, envolveu
aquela parte excitada de seu corpo entre os lábios e sugou, foi intenso e suave
e fez com que uma sensação quente começasse a crescer em seu ventre. Hurit
não sabia o que era aquilo, apenas queria se entregar.
Levou as mãos aos cabelos dele e Emile entendeu como um incentivo.
Um de seus dedos provocou sua entrada e as carícias passaram a ter um ritmo
constante que apenas fez com que o calor se intensificasse. Foi quando ela
sentiu algo se aproximando, luzes piscando em seus olhos fechados e uma
vontade irresistível de se contorcer ao encontro da boca dele. Seus sentidos
colapsaram e ela foi atingida pelo maior prazer que já experimentara em sua
vida.
Emile a beijou mais algumas vezes e massageou suas coxas enquanto ela
se entregava àquela sensação desconhecida e incrível.
— Era isso que você estava procurando? — Ele se deitou ao lado dela.
Ela negou.
— Ninguém fez isso nos livros que eu li.
— Oras, então esses livros não são tão indecentes quanto pensei.
— Eu nem sabia que algo assim poderia acontecer. — Ela se aninhou no
peito dele, envolvida pelos braços masculinos, enquanto seu corpo se
recuperava do maremoto que quase a afogara. — Isso é fazer amor?
— Sim, é uma forma de fazer amor.
— Existem formas?
Ele deu uma risada e a beijou nos cabelos. Hurit detestava sentir-se
ignorante sobre qualquer coisa.
— Você não deveria estar tão eloquente assim depois de um orgasmo.
— Quero que me mostre todas, Emile.
— Eu não posso. Não sem tomar a sua virgindade.
— Você não pode tomar o que estou entregando de boa vontade. — Ela
ergueu os olhos para encará-lo. Talvez estivesse sendo muito incisiva e ele
não a desejasse tanto. Mas ela podia senti-lo rígido em contato com seu
corpo, aquilo era um indício que ele ainda a queria. — Faça amor comigo da
melhor forma que você sabe.
Emile não hesitou. Ele a deitou de costas no colchão e primeiro possuiu
sua boca com um beijo de tirar o fôlego. Penetrou-a com a língua enquanto
levava as mãos dela aos botões de sua calça e indicava que ela deveria abri-
los. Assumir responsabilidade por suas decisões - ela sabia como fazer
aquilo. Com as mãos trêmulas e o corpo ainda pulsando pelo prazer, Hurit
quase arrancou cada obstáculo que seus dedos encontraram e não conseguiu
evitar tocar no membro masculino - cuja forma ela conhecia, mas que nunca
imaginara duro e quente como o dele estava.
Empurrando o tecido para baixo, ela o deixou nu. Aquele era um corpo
com o qual tinha familiaridade, porém nunca o vira daquela forma. Como o
corpo de um homem. Ela entendeu quando ele dissera que haveria ainda mais
dele para tocar. Muito mais.
— Você vai sentir dor.
— Ouvi falar.
— Pedirá para eu parar se for demais?
— Você também não deveria estar tão eloquente assim, deveria?
Com uma risada nervosa ele a beijou novamente e posicionou a
masculinidade rija entre suas pernas. A sensação era de ansiedade e
apreensão - Hurit imaginava que aquele homem não caberia dentro dela. Mas
ele coube. Com um movimento suave e lento, Emile pressionou os quadris e
a penetrou.

E LE FOI ALÇADO aos céus por apenas alguns centímetros. A sensação de estar
dentro dela, mesmo que não completamente, quase o fez perder os sentidos.
Hurit mantinha os olhos presos aos dele e, proativa, cruzou as pernas em seus
quadris. Aquele era um convite para prosseguir, mas ele precisava ir devagar
ou a demonstração de todas as formas de fazer amor duraria muito pouco.
Como ela estava excitada, não foi difícil deslizar mais para dentro
aproveitando a umidade que estava ali para recebê-lo. E também não
demorou para que ele sentisse a resistência da barreira feminina que ele
jamais deveria ultrapassar.
É agora que você sentirá dor, ele quis dizer, mas preferiu substituir as
palavras por um longo beijo. Segurando-a pelos quadris para mantê-la firme,
Emile investiu contra ela e a penetrou por completo. Hurit arqueou as costas e
soltou um lamento abafado pelos lábios dele.
— Eu vou ficar imóvel. — Ele disse, sem saber se conseguiria cumprir a
promessa. — Quando você estiver confortável, eu continuo.
— O que você fará quando continuar?
— Eu vou me mover assim. — Emile se retirou inteiramente e a
preencheu outra vez, em seguida. — E assim. Várias vezes.
— E doerá em todas elas?
— Não doerá mais, eu prometo.
Ela o enlaçou pelo pescoço e o encarou. Um sorriso se formou nos lábios
inchados de tanto serem beijados e as mãos dela desceram por suas costas até
se posicionarem nos quadris. Ela o acariciou nas nádegas e empurrou o corpo
contra ele.
— Então continue.
Graças aos céus, porque ele duvidava que conseguisse ficar muito tempo
sentindo a maciez das paredes apertadas do sexo feminino sem se mexer.
Com suavidade e vigor, ele investiu contra ela uma, duas, três vezes e testou
o quanto ela estaria apreciando o momento. O que Emile entendia sobre
mulheres virgens era o que lhe havia sido contado, ele nunca tivera uma. Não
sabia realmente se a dor passava logo que a barreira era rompida ou se
precisaria de mais vezes - que eles não teriam - para que ela se acostumasse a
ele. Decidiu parar de pensar e se entregar às sensações, porque elas eram
muitas. Moveu os quadris e aprofundou a penetração a cada vez, até o
momento em que os corpos estavam plenamente unidos. Beijou Hurit em
todos os lugares que sua boca alcançava e levou o polegar até seu botão
feminino, acariciando-o com cuidado. Ela fechou os olhos e jogou a cabeça
para trás, entregando-se.
Ele gostaria que o momento durasse para sempre. Talvez a noite inteira -
e não era noite, ainda. Gostaria de permanecer dentro dela, em uma dança
íntima e sensual, por mais tempo do que seu corpo aguentava, mas Emile
estava urgente. Muito desejo represado o tornou sensível a qualquer estímulo
e os dedos de Hurit acariciando-o nas costas e cravados em suas coxas eram
incentivo suficiente para que ele prosseguisse investindo, se movendo,
entrando e saindo até que não restasse mais nada além deles dois ali. Não
havia tribo, deuses, xamãs ou destinos a serem cumpridos. Não havia
diferença entre brancos e Shinnecocks, não havia nada que os impedisse de
ficarem juntos. Para sempre. Aquele momento era a consumação do que ele
já sabia que sentia - ele estava apaixonado como nunca estivera antes e
compreendia o que significavam os rumores de que os McFaddens amavam
muito intensamente.
Percebendo que Hurit estava se rendendo a outro êxtase, Emile se moveu
mais rapidamente. Esperou que ela atingisse o clímax, esperou que ela
estivesse satisfeita, esperou enquanto seu corpo estava prestes a explodir e
então ele se retirou, deixando sua semente se espalhar sobre ela. Aquela não
era uma forma muito glamurosa de terminar o ato sexual, mas preferia
segurança ao glamour - ele não estava protegido. Nem dominado pelo desejo
Emile deixava de ser racional demais, afinal.
Eles permaneceram imóveis por algum tempo. Ela segurava os lençóis
com as mãos, repuxando o tecido enquanto o peito subia e descia em uma
respiração acelerada e ofegante. Ele precisou de um instante para se
recuperar, o orgasmo ainda atingindo-o como as ondas de um mar revolto.
Minutos se passaram até Emile conseguir se levantar. Pegou uma toalha no
banheiro e se sentou ao lado de Hurit, que mantinha os olhos fechados e um
sorriso intrigante nos lábios. Ele era um imbecil se acreditava que poderia
deixá-la depois do que compartilharam. Com cuidado, limpou os vestígios de
seu êxtase que estavam sobre ela, devolveu a toalha para o banheiro e se
deitou novamente ao lado de Hurit, aconchegando-a em seus braços.
— Ainda há outras formas que você pretende me mostrar?
Ela disse e ele deu uma risada sonora. Puxou-a para cima e fez com que
olhasse dentro de seus olhos.
— Você ainda quer mais, Bela?
— Pelos deuses, agora não. — Ela também riu. — Mas você me deixou
curiosa.
— Essa sua cabecinha não para de pensar nem um minuto. — Ele beijou
os cabelos dela e sorveu o aroma da pele feminina. Ela era ainda mais
cheirosa depois do sexo. — Descanse.
— Passei o dia inteiro dormindo. — Hurit virou-se e se acomodou quase
por cima dele. Se o sexo não tivesse sido tão bom, ele estaria em apuros
naquela posição. — Você está cansado?
— Não, estou satisfeito. É diferente, não é?
— Sim, é. — Ela o beijou no peito e a boca quente e molhada espalhou
mais sensações por seu corpo ainda sensível. — Eu também estou satisfeita,
imagino.
— Espero que sim. Hurit, olhe para mim. — Emile colocou a mão no
queixo dela e a fez mirar seus olhos. — O que a fez mudar de ideia? Por que
decidiu se entregar a mim sabendo que isso colocaria em risco tudo pelo que
você lutou a sua vida inteira?
Ela suspirou e se sentou na cama. Puxou o lençol para se cobrir,
demonstrando algum desconforto com sua nudez, e olhou para o teto
enquanto buscava as palavras exatas para responder à pergunta.
— Não mudei de ideia. Eu continuo a mesma, apesar de totalmente
diferente. Ainda sou a iluminada que recebeu a missão dos deuses de
substituir o xamã. Ainda sou a que sabe curar feridas e trazer os mortos de
volta à vida, com a ajuda de Hoobamack. Sou afilhada de Paumpagussit e
filha do cacique. Mas eu não sou só isso, sou?
— Não. — Ele a puxou para si e depositou um beijo breve nos lábios
dela. — Você não é só isso.
— Eu sou Hurit, uma mulher. Descobri que tenho sonhos, desejos e que
não adiantou me fechar contra um sentimento que eu considerava inútil - ele
me perseguiu, me deu uma rasteira e quase me afogou no mar.
— Você está falando do amor?
— Sim, Emile, estou falando do amor. — Ela o segurou com as duas
mãos, uma de cada lado de sua face, e subiu em seu colo. — Eu me apaixonei
por você. Eu me entreguei porque não queria sentir isso com mais ninguém,
só com você. Mesmo que você não me queira em sua vida, porque sei que
não fomos feitos para ficarmos juntos, eu não me importo mais. Sim, eu
tenho uma missão a cumprir, mas, por muito tempo, Wematin suspeitou que
minha missão fosse você. E se ele estiver certo?
Emile a segurou nos braços e a abraçou. Queria permanecer ali, naquele
abraço, enquanto fosse possível. Porque ele também se apaixonara por ela e
não acreditava que Wematin estivesse certo. No final, teria que desistir de
Hurit e entregá-la para cumprir seu destino, mesmo sabendo que sofreria e
que nunca estaria preparado para aquele momento.
— Não posso mais conversar com seu pai e dizer que você mentiu. Nós
tornamos sua mentira uma verdade.
— Talvez seja melhor você insistir que foi uma mentira. Se não, nós
estaremos casados.
— Quer dizer que, para a tribo, agora somos marido e mulher?
— Se você contar a todos que realmente tivemos relações sexuais, sim.
Mas podemos manter o plano e dizer a Chogan que…
— E se eu não quiser manter o plano? — Emile jogou-a sobre os lençóis
e a beijou, capturando os lábios entre os dele, confirmando que estava
subitamente viciado em Hurit. — E se eu quiser deixar que pensem que
estamos casados?
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO

B ATIDAS À PORTA INTERROMPERAM A CONVERSA E O MOMENTO , FAZENDO COM


que ele se dissolvesse no ar. Emile se sentou e Hurit puxou os lençóis como
se eles funcionassem como um escudo de proteção.
— Quem é?
— Lucille. — A voz do outro lado estava baixa. — Vim ver se está tudo
bem, se precisam de mim para alguma coisa.
Emile riu, os lábios esticando e formando as lindas covinhas que Hurit
tinha vontade de tocar toda vez que as via. Ela se levantou, arrastando o
lençol consigo, e foi para o banheiro, indicando que Emile deveria atender a
cunhada. Fechou a porta do cômodo e recostou-se na madeira, deixando seu
corpo deslizar até o chão. Queria ouvir a conversa do lado de fora, mas não
conseguia pensar em nada a não ser que ele não queria desfazer a mentira do
casamento.
Não era mais mentira, ela entendia. Na época de seus pais era comum que
os casamentos começassem daquela forma - um casal se tornava íntimo e
pedia a bênção do xamã, assim ninguém podia contestar sua vontade. Se as
famílias tentassem sabotar o casamento, não conseguiriam porque o homem
que tomava a virgindade de uma mulher se tornava seu marido ao assumi-la
para si. Foi com base naquela tradição que Kitchi, se aproveitando da
liberdade excessiva que Hurit gozava, tentou enganar Chogan. Da mesma
forma ela se livrou da confusão jogando a responsabilidade sobre Emile. E
então eles estavam ali, em Southampton, em um quarto elegante de hotel, e
ela havia se tornado a mulher dele.
Por um instante ela entrou em pânico. Enquanto desfrutava do prazer na
cama que era capaz de acomodar quatro pessoas, sua cabeça estava livre de
pensamentos complicados, mas eles voltaram imediatamente após a chegada
de Lucille, para assombrá-la. Emile não queria casar-se com ela, fora
compelido por sua mentira. Além de dizer ao pai que ele a deflorara, ainda
garantira que ele o fizesse, provocando-o. Nervosa, Hurit girou pelo diminuto
espaço do banheiro até se sentir zonza. Precisava se lavar, precisava se
recompor e se apresentar como a mulher impassível e que detinha o controle
de seu destino que ela sempre foi. Onde aquela Hurit se escondera? Tão
regrada, racional e objetiva, fora consumida por uma mulher apaixonada e
passional que cometia erros estúpidos sem considerar as consequências.
Livrou-se do lençol, usou a pia de louça para lavar o rosto e uma toalha
molhada para limpar o sangue - a prova de sua entrega. Ela estava tão
desorientada que os sentimentos a confundiam. Ao invés de preocupada,
estava feliz. Ao invés de lamentar a perda do juízo e do controle, ela sorria
com a alegria que a inundava como uma torrente. Alegria que ela não
experimentara ainda. Vestiu um roupão de flanela que estava pendurado em
um cabide e abriu a porta com cuidado para descobrir se era seguro sair.
— Ela já foi. — A voz de Emile a assustou. Ele também estava enrolado
em um roupão e remexia as roupas da cama. — Lucy só queria saber se você
estava bem.
— É gentil da parte dela.
— Bem, você foi deixada sozinha em um quarto com um McFadden.
Mesmo estando casada com Nate há pouco tempo, ela já deve saber da fama
da minha família.
Os lençóis se tornaram um bolo enrolado ao pé da cama e o colchão ficou
completamente descoberto. Cobertores, fronhas, tudo fora retirado e colocado
ao pé da cama.
— Eu não conheço a fama de sua família. — Hurit entrou na frente de
Emile e o fez parar. — E não entendo o que está fazendo.
— Dando a você escolhas. — Ele a segurou pelos ombros e beijou-a na
testa. — Retirei os lençóis e vou jogá-los na lareira se você quiser voltar para
a aldeia agora. Ninguém sabe o que aconteceu. Lucille dirá que esteve com
você durante todo o tempo e sua honra estará o mais intacta possível. Se você
quiser confirmar que é tudo mentira, que nada aconteceu entre nós, não
haverá nenhum vestígio de… de…
Sem conseguir completar a frase, Emile se sentou sobre o colchão. Ele
estava ofegante e parecia nervoso, tão desorientado quanto ela.
— Você quer que seja assim?
Ela o olhou e viu uma profunda agonia nos olhos azuis. Ainda assim,
naquele instante, ele a encarava com paixão.
— Não, eu não quero. — Emile suspirou e segurou as mãos dela. —
Quero enfrentar seu pai e dizer que vamos nos casar. Quero repetir o que
fizemos agora pelo menos uma centena de vezes. Quero poder acordar ao seu
lado todos os dias, mesmo que seja para você ralhar comigo por algo que eu
tenha feito errado. Quero ver a águia curada e levantando voo. Quero você,
Hurit. Mas não posso ser eu a decidir isso. Se ficarmos juntos, o que será do
seu destino?
A alegria que quase a afogou fez com que sua cabeça rodopiasse. Se
havia algo que Hurit queria ouvir mais do que aquelas palavras, ela não sabia.
Jogou-se nos braços de Emile e afundou o rosto em seu peito, querendo
esconder-se na maciez da pele dele e se embriagar no cheiro masculino.
Ergueu a cabeça e o beijou, roçando os lábios nos dele enquanto sorria.
— Meu destino dará um jeito de conciliar minha missão na tribo com
meu marido branco. Vamos recolocar esses lençóis no lugar, não quero fingir
que não me tornei sua nessa cama.

E LES LEVARAM uma hora para se aprontar. Emile encontraria os irmãos no


espaço de convivência do hotel para contar a novidade e eles passariam a
noite ali para enfrentar a tribo no dia seguinte. Talvez aquele fosse o
casamento informal mais rápido da história do Século XIX, pois ele tinha
certeza de que seria morto. Se Chogan não o matasse, Kitchi o faria. Sem
saber lutar ou atirar, fracassaria em um duelo ou em qualquer espécie de
combate não intelectual. Mas tinha certeza de que, se morresse no dia
seguinte, teria experimentado a glória do amor e morreria feliz. Quando
finalmente conseguiram sair do quarto e cruzar os corredores sem que
ninguém percebesse que estiveram fechados sozinhos naquele quarto, ele
entendeu por que Nathaniel e Lucille estavam sempre atrasados. Era difícil
tomar a decisão de se vestir quando se tinha a mulher de seus sonhos à
distância de um braço.
Os recém-casados estavam na recepção e Lucille parecia bastante
consternada com alguma coisa. Ela falava, agitada, e o marido tentava
acalmá-la segurando as mãos dela entre as dele. Emile nunca pensou que
veria seu irmão libertino, devasso e canalha demonstrar tanto afeto público
por mulher alguma, mas lá estava Nathaniel se derretendo para a esposa
como faziam Edward e Isaac pelas suas. Se ele pudesse, talvez também
estivesse agindo como um tolo na presença de Hurit.
— Você tem certeza do que ouviu? — Nate perguntou assim que eles se
aproximaram. Lucille os viu primeiro e arregalou os olhos, aumentando seu
nervosismo.
— Do que vi e ouvi. Ele está aqui no hotel e parece que com planos
bastante perversos.
— O que houve?
Eles interceptaram o casal e Nathaniel indicou que deveriam sair dali.
Com um movimento de cabeça, acenou para Isaac, que também se
aproximava, e conduziu a esposa com a mão espalmada nas costas dela.
Emile ofereceu o braço para Hurit, que o aceitou sem hesitar, daquela vez. A
comitiva deixou o hotel e caminhou pelas ruas iluminadas por lamparinas até
uma construção de tijolos vermelhos e aparência acolhedora. Como se
conhecesse tudo e todos na cidade, Nate entrou no prédio e todos o seguiram.
Era um restaurante de pequeno porte, intimista e com poucas pessoas. Eram
pessoas de renda mais baixa, Emile pode perceber pelas roupas que vestiam e
pela aparência do lugar.
Depois de uma breve conversa entre Nathaniel e o maitre, eles foram
direcionados para uma mesa grande no canto, próximo a uma janela. Havia
cheiro de maresia que indicava que o mar não estava muito distante. Com
todos sentados e servidos de uma entrada leve com vinho barato, a conversa
pode prosseguir.
— Vocês me explicarão o que aconteceu? — Isaac foi o primeiro a dizer
alguma coisa.
— Nolan Fitzgerald estava no hotel. — Lucille repetiu sussurrando, como
se alguém não devesse ouvir o que ela falava.
— Quem é esse homem?
Emile pressentiu que não se tratava de algum amigo. O irmão quase
planejou uma fuga para que eles pudessem conversar sobre o homem,
portanto tinha que ser alguém de interesse - e ele suspeitava que não fosse
gostar do deslindar da discussão.
— Meu irmão bastardo. — A cunhada continuava apreensiva.
— E meu ex-chefe.
— Aquele chefe? — Emile arregalou os olhos. — O chefe para quem
você estendia tapetes vermelhos sempre que passava?
— O mesmo miserável que colocou a vida de Lucille em risco e quase me
matou. Eu rompi qualquer laço com Nolan há dias, antes de sairmos
novamente à sua procura. Seja lá o que ele estiver fazendo aqui, não tem nada
a ver conosco.
— Talvez tenha. — Lucille sussurrou de novo. — Eu o ouvi falando com
alguém sobre terras indígenas.
Hurit deu um pequeno salto na cadeira ao ouvir aquilo. Emile segurou a
mão dela por baixo da mesa e notou os dedos frios e úmidos. Ela estava
nervosa e não era apenas por causa do que Lucille contava - ela estava
agitada com o que acontecia entre eles. Pareceu inadequado que ele a
arrastasse para fora da cama tão logo depois da intimidade que
compartilharam, que não tivesse pedido o jantar no quarto e passado o tempo
que precisasse com ela em seus braços, mas ele também estava nervoso.
Havia tanto em risco e Emile não queria que ela desistisse de nada por ele.
— Há um homem interessado em nossas terras. — Ela quase sussurrou.
Olhou ao redor como se temesse qualquer um ali e confiasse apenas nos
McFaddens. — Ele tenta comprá-las há algum tempo, mas a tribo sempre
recusa as ofertas. Não entende que a recusa não se dá por causa do valor
oferecido e cada vez coloca mais dinheiro em uma nova proposta. Não ouço
falar dele há algum tempo e nunca o vimos. Você o conhece?
— Não sei se estamos falando da mesma pessoa, Hurit, mas Nolan estava
conversando com um homem da justiça sobre uma demanda na corte para
tomar terras indígenas.
— E o que esse Nolan fez para causar tanto impacto?
Lucille pausou por um momento e Nathaniel ficou visivelmente sombrio.
Qualquer que fosse a história que eles contariam, não era agradável. A
admiração que o irmão nutria pelo chefe, e que Emile pode vislumbrar por
um curto período em que morou em Nova Iorque, desapareceu e deu lugar ao
rancor e, muito provavelmente, ao ódio. Aquele brilho vermelho nos olhos
azuis de Nathaniel era ódio em seu estado puro, algo que ele nunca sentira
antes.
— Meu pai é um homem ruim. — A cunhada iniciou sua história. — Ele
teve muitas amantes e alguns filhos bastardos, mas eu nunca conheci nenhum
deles. Quando fugi de casa para evitar um casamento que não queria e cruzei
o caminho de Nate, descobri que o “chefe” para quem ele trabalhava era um
desses irmãos - Nolan Fitzgerald. Mas ele também é um homem ruim e isso
despertou o orgulho de meu pai.
— Nolan é uma ave de rapina. — Nathaniel complementou. — Se ele
está querendo essas terras, ele fará qualquer coisa para tê-las.
— Você disse que ele foi até a corte? — Emile perguntou.
— Não posso afirmar detalhes, ouvi o que disse. Mas já fui vítima da
falta de limites de meu irmão bastardo, portanto eu me preocuparia com o que
ele pretende fazer.
Tensão permaneceu entre o grupo mesmo depois que a conversa se
encerrou. Pediram o jantar, a comida foi servida e todos comeram
praticamente em silêncio, trocando apenas palavras de cortesia. A presença
do tal Nolan Fitzgerald afetou bastante Nathaniel e Lucille e deixou Hurit
ainda mais apreensiva, sabendo que um homem ruim estava ameaçando sua
nação. Emile sentiu nela a ambiguidade que representava a vontade de sair
correndo e contar tudo para a tribo ou esperar o dia seguinte para descobrir
mais informações sobre a trama revelada. E Isaac fazia o seu melhor, agindo
como um exímio observador que, depois, teria conselhos sábios e
interferências relevantes para fazer.
Já ele, Emile, pensava em estratégias. Sua mente de jurista começou a
trabalhar no instante em que Lucille mencionou que havia uma demanda na
corte e ele estava grato por ter recuperado suas memórias. Primeiro descobriu
que ele não era um homem ruim, que ele não era um dos assassinos de Keme
- mesmo que não tivesse empunhado a faca que matou o irmão de Hurit, ele
não queria ter nenhuma participação naquela cultura que considerava os
nativos pessoas menos valiosas. Segundo, porque ele poderia ser útil naquela
situação. Se o problema estivesse nas cortes, se houvesse uma demanda
judicial para expulsar ou constranger os Shinnecocks a vender ou dispor de
suas terras, Emile saberia o que fazer.
— Você quer retornar para a tribo? — Ele sussurrou para Hurit quando já
caminhavam de volta ao hotel. Seguiam atrás dos outros, observando ao
redor.
— Não. — Ela recostou a cabeça no braço dele. O gesto era escandaloso,
mas eles fizeram coisas mais graves e continuariam a fazer. — Estou com a
cabeça tão confusa que não saberia nem o que dizer a Chogan e Wematin.
Talvez eles já saibam do problema, pois passei o dia ausente. E não
conseguirei enfrentá-los sem você, Emile.
— Hurit pedindo minha ajuda? — Ele riu e acariciou a mão que segurava
seu braço.
— A culpa de minha desorientação é sua, não se faça de desentendido. —
Ela riu. — Ajude a reparar o dano.
Ele quis beijá-la ali mesmo e dizer que não se importava em desorientá-
la, não daquela forma - mas não suportava mais escândalos. Nem se vivesse
duas outras vidas daria conta de reparar todo escândalo que protagonizou,
mesmo que fosse se casar com aquela mulher. Porque ele iria, apesar de não
saber que consequências aquilo traria.
— Então você pode passar a noite aqui, amanhã descobriremos sobre essa
demanda contra a tribo e levamos as notícias a Chogan.
— Como vamos descobrir?
— Vantagens de ser formado em Direito é saber os caminhos a percorrer,
minha querida. Com a vestimenta certa e os argumentos necessários eu
consigo acesso a qualquer demanda em qualquer corte.
Continuaram caminhando pelas ruas e, apesar da escuridão, Emile
conseguiu ver que pessoas os observavam. Ele sabia os motivos pelos quais
eram atração e não desejava que Hurit se submetesse a nada daquilo. Se
quisesse ficar com ela, teria que tomar decisões importantes e não agir como
todo marido. Retirar Hurit da aldeia mataria seu espírito e causaria sofrimento
- e Emile não seria responsável por fazê-la sofrer.
No hotel, explicou aos irmãos seus planos e pediu que o ajudassem no dia
seguinte. Pediu também que mostrassem quem era Nolan - ele gostava de
conhecer seus adversários e sempre os olhava nos olhos quando tinha a
oportunidade.

S UA CABEÇA DOÍA . Hurit não estava acostumada àquele ritmo confuso da


cidade nem a tantas emoções sobrepostas. A vida na aldeia era bem mais
tranquila, apesar de todas as responsabilidades que ela sempre assumia. Fazia
as refeições sem canhões disparando, estava sempre em contato com a
natureza e podia pedir proteção e orientação aos seus deuses sempre que
precisava. Afastada do mar e confinada entre paredes de tijolos e madeira,
todos os problemas estavam oprimindo-a sem que ela descobrisse uma forma
de resolvê-los.
Os homens estavam sentados em uma mesa redonda de tampo coberto de
verde e rabiscavam um papel como se traçassem estratégias de guerra. A sala
de jogos estava quase vazia e eles conseguiram alguma privacidade para
discutir sobre o assustador Nolan. Conversando em voz baixa, os três irmãos
debruçavam-se sobre a mesa, gesticulavam e se mostravam ainda mais
parecidos do que antes.
Lucille se sentou ao lado dela e entregou um cálice de cheiro adocicado.
— É licor. Vai te ajudar a relaxar um pouco depois dessa confusão.
Ela bebericou o líquido e fez uma careta. Lucille riu. Hurit não estava
acostumada às bebidas dos brancos, ela quase nunca bebia álcool. Aquele
sabor, no entanto, parecia reconfortante.
— Eles parecem prontos para invadir um país e declarar guerra.
Disse, concentrada nos movimentos de Emile. Empunhando uma caneta
ele parecia o líder daquele pequeno grupo e ela não teve dificuldade em
entender que seu homem era diferente dos guerreiros da tribo. Ele tinha
carisma, inteligência e sua força eram as palavras. Emile podia não ser um
contador de histórias como os Shinnecocks, mas tinha um poder de
argumentação que ela pouco vira.
— Lamento por isso. De certa forma eu me sinto responsável, pois esse
monstro é meu irmão.
— Ninguém é responsável pelas escolhas ruins de outras pessoas. Não
podemos carregar esse fardo. Por que o chamam de monstro? O que ele fez?
— Ele traiu Nathaniel. Descobriu onde eu estava e contou ao meu pai,
que mandou homens armados me sequestrarem. Os homens atiraram em
Nate, ele quase morreu. — Os olhos de Lucille encheram-se de lágrimas e ela
virou a cabeça para o outro lado, evitando encarar sua interlocutora. — Você
quer que eu durma com você essa noite? Quer que eu lhe faça companhia?
Posso mandar meu marido dormir com o irmão e...
— Não será necessário. — Hurit baixou o olhar, mas logo o ergueu
novamente. Ela não tinha nada do que se envergonhar. — Mas receba minha
gratidão pela oferta.
As duas mulheres ficaram em silêncio enquanto degustavam o cálice de
licor e observavam o desenrolar da conversa dos homens. Emile queria saber
mais detalhes sobre a possível demanda contra os Shinnecocks sem causar
alarde. Ela não entendia bem os trâmites da situação então preferia confiar
nele - o que não foi difícil para ela admitir.
— Eu também me entreguei ao Nate sem saber se ele ficaria comigo. Na
verdade eu tinha certeza de que ele não ficaria, mas eu não queria ser de
nenhum outro. — Lucille confessou, ainda olhando para o trio. Ela estava
fixada no marido. — Há alguma coisa neles que nos atrai, nos tira do rumo e
nos faz abandonar o decoro e a decência. Foi assim com você, também?
— Foi. — Hurit também confessou. — Mas eu abandonei mais do que
isso, a vida como eu conhecia não existe mais.
— Nós ainda não nos conhecemos, Hurit. — Lucille se virou para ela,
tomou-lhe as mãos entre as suas e sorriu. — Minha vida também virou de
cabeça para baixo e eu só queria dizer que não me arrependo de nada. Nate
vale a pena.
Hurit desviou o olhar outra vez para Emile. Ele terminou de escrever
alguma coisa e estava revisando o escrito quando, sentindo os olhos dela
sobre ele, virou o pescoço e a viu ali. Sorriu por impulso e falou alguma coisa
com os irmãos para, em seguida, levantar-se e vir em sua direção.
— Emile também vale.
Ela respondeu a Lucille antes de aceitar a mão que ele lhe oferecia e
segui-lo por corredores e escadarias até o quarto que ocuparam e no qual
passariam a noite. A águia estava adormecida na escuridão da antessala e os
obrigou a entrarem em silêncio. Hurit nunca vira um animal selvagem agir
como aquele e suspeitou que, mesmo depois de curada, ela não os
abandonaria por completo.
A cama fora arrumada. Ela sentiu as bochechas arderem pela recordação
das sensações experimentadas ali e pela súbita vergonha de que as camareiras
sabiam o que acontecera. Permaneceu imóvel por alguns minutos, olhando
para o espaço macio e cheio de travesseiros enquanto ouvia Emile retirar os
sapatos. Em seguida, as mãos dele tocaram-na nos ombros, ergueram suas
tranças e a boca dele a beijou no pescoço.
— Eu não deveria ter tirado você desse quarto logo depois do que
aconteceu. Foi insensível de minha parte. — Ele a virou para si e ela
espalmou as mãos sobre o peito dele, sentindo o coração pulsar. — Você está
bem, Bela?
— Noite passada não dormi. — Ela iniciou uma breve narrativa. — Tive
certeza de que você não voltaria. Quando o vi retornar, tudo que quis foi
atirar-me em seus braços e pedir que não saísse do meu lado nunca mais.
Então, agora, estou me sentindo melhor do que já estive antes.
Era verdade e, como recompensa pela verdade, ele a beijou. Apossou-se
de sua boca com suavidade e quase a fez derreter-se nos braços masculinos
que a amparavam. Os beijos de Emile tinham o poder de entorpecer e avivar
os sentidos na mesma intensidade.
— Vamos descansar. Amanhã temos que enfrentar a fúria e a confusão de
Chogan e tentar resolver essa questão das terras.
— Chogan vai se render ao fato de que eu o escolhi.
— Espero que sim, não gostaria de deixá-la viúva tão cedo.
Ela riu, escapou do abraço de Emile e se fechou no banheiro. Não havia
roupas para vestir no dia seguinte além daquela que usava, então ela a tirou e
dobrou com cuidado para garantir que não amassassem mais. Na manhã
seguinte as estenderia quando fosse tomar um banho para que os vapores
alisassem mais o tecido. Lavou o rosto, soltou as fitas e passou os dedos
pelos cabelos para destrançá-los.
Hurit gostava de seus cabelos crespos ao natural. Eles a deixavam bonita
e selvagem, mas não era hábito que os usassem soltos na tribo. Olhou-se no
espelho e, satisfeita consigo mesma, voltou para o quarto.
Nenhuma Shinnecock tinha vergonha da nudez. As pessoas se banhavam
nuas no mar e no riacho sem constrangimento e os corpos não causavam
impacto apenas por estarem nus. No entanto, a forma como Emile a olhou e a
expressão de desejo na face dele fizeram-na se sentir muito poderosa. Ele
estava terminando de retirar as calças e trajava apenas ceroulas quando se
virou para vê-la e deixou a peça de roupa que segurava cair ao chão. Hurit
enfiou-se na cama e mordeu o lábio inferior, demonstrando que ela não sabia
o que aconteceria, mas que estava pronta para o que fosse.
— Você é a mulher mais linda que existe. — Emile balbuciou depois de
alguns segundos estupefato. — Eu tenho muita sorte.
Ainda com as ceroulas vestidas, ele foi ao banheiro e a deixou ali. Sim,
ela se sentiu linda ao ser admirada por ele e aquilo lhe fez bem. Emile apagou
as lamparinas quando saiu do banheiro e deixou apenas a lareira acesa para
que o fogo brando aquecesse o quarto. Assim que ele se deitou ao lado dela,
seu corpo assumiu estado de alerta pela presença rígida do homem.
— Vai ser difícil, mas nós vamos apenas dormir. — Emile a acomodou
com a cabeça recostada em seu peito e Hurit teve certeza de que não queria
sair dali nunca mais.
— Por que?
— Você está dolorida. — Ele a acariciou na face e nos cabelos. — A
primeira vez de uma mulher causa muitos impactos físicos nela. Seu corpo
ainda não está pronto para me receber outra vez.
— Ele parece pronto. O seu também.
Emile deu uma risada e baixou os olhos para a própria ereção que os
lençóis falhavam em esconder.
— Meu corpo a deseja há mais tempo do que você imagina e, por mim,
eu passaria a noite toda fazendo coisas impróprias com você nessa cama.
Ele a beijou nos cabelos e deixou qualquer outra coisa subentendida. Pela
primeira vez desde que se conheciam, eles inverteram os papeis e Hurit foi
emoção e Emile a razão. Ouvindo as batidas ritmadas do coração que ansiava
por lhe pertencer, ela adormeceu.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO

Q UANDO O SOL PENETROU PELAS CORTINAS PARCIALMENTE ABERTAS , NENHUM


dos dois queria despertar. A noite foi silenciosa e tranquila e eles estavam
embolados um no outro. Hurit tinha o nariz enfiado na curva do pescoço de
Emile e uma de suas pernas estava sobre os quadris dele, em uma pose
provocativa e indecente. Ele estava com os braços ao redor dela e precisando
lidar com um desconforto na região da virilha. Claro que aquele problema era
quase simples de resolver - bastava seduzir a mulher ao seu lado. Com um
movimento suave, ele se virou na cama e capturou-lhe a boca com um beijo
lânguido. Hurit respondeu como ele esperava, abraçando-o, abrindo-se para
ele e pressionando os quadris contra ele.
Parecia um sonho ainda - e um pesadelo pela incerteza das
consequências. Eles sabiam que estavam brincando com o destino e logo
enfrentariam a tribo inteira, mas, naquele instante, eram apenas eles. O beijo
ficou mais sôfrego, as línguas se encontraram, as mãos dele foram para os
quadris dela e deslizaram para o meio das coxas. Hurit gemeu quando ele a
acariciou e percebeu que ela estava úmida. Então era daquela forma que um
homem casado se sentia tendo uma esposa maravilhosa toda noite em sua
cama? Era por isso que Nathaniel se atrasava e Isaac demonstrava irritação
por estar longe de Caroline? Que Edward foi domado por uma pequena
encrenqueira como Agatha? Ou aquela sensação de agonia e necessidade de
possuir Hurit era apenas porque ele estava apaixonado demais e não
conseguia racionalizar seus sentimentos?
Parecia irrelevante quando os corpos se reconheciam tão bem que parecia
terem sido feitos para se encaixarem. Ele ainda a beijava quando conduziu
sua ereção para a entrada feminina e a penetrou com mais facilidade do que
esperava. Hurit gemeu e Emile voltou a acariciá-la em seu centro de prazer.
Ao contrário da primeira vez, eles estavam entrelaçados, conectados e
preguiçosos. Ele se moveu lentamente, penetrando-a com tanta intensidade
que não era possível ver qualquer distância onde os corpos se uniam. Aquela
era uma boa forma de iniciar a manhã e mostrar a ela mais formas de fazer
amor. Mantendo-a em seus lábios, Emile se virou na cama, abraçado a Hurit,
e a colocou por cima. Ela abriu os olhos quando percebeu que não sentia mais
o calor do corpo dele sobre ela e que o encaixe mudara.
Com um movimento de cabeça ele indicou que estava tudo bem. As bocas
se reencontraram e Emile a ensinou a mover-se, erguendo e abaixando os
quadris de Hurit enquanto a segurava com firmeza. Mesmo sonolentos eles
foram intensos. O êxtase chegou à porta, conduzindo Hurit ao clímax e
fazendo com que Emile virasse e se colocasse mais uma vez por cima.
— Fique. — Ela murmurou, a voz anuviada pelo excesso de sentidos.
Porque ele pareceu não entender, Hurit explicou. — Eu sei porque você saiu,
ontem, mas eu quero que você fique.
Talvez fosse cedo e ele estivesse excitado demais, já na iminência do
êxtase, mas Emile levou algum tempo para entender o que ela dizia. Depois
que entendeu, levou outro tempo para decidir se atendia ou não o pedido. A
escolha passava por responder à pergunta: eles ficariam juntos apesar de
qualquer coisa? Gritando sim em sua cabeça, Emile voltou a beijá-la e a
investir contra ela até ser alçado aos céus e puxado de volta outra vez.
De todas as loucuras que fizera desde que conhecera Hurit, aquela era a
mais irreversível e ele sorria como um tolo quando a acomodou em seus
braços depois dos corpos desvencilhados. Ela também sorria, o que o fez ter
certeza de que eram dois tolos naquela cama.
Até que bateram à porta novamente.
— Milo?
— Desapareça, Nate. — Emile berrou e segurou Hurit com ele. A águia
gritou e veio caminhando para o quarto, anunciando a chegada de visitantes.
— Volte em meia hora. Não, uma hora.
— Temos compromissos, irmãozinho.
— Sei de todos eles, mas agora você vai voltar para o seu quarto. Tchau.
Hurit ria com o rosto enfiado em seu peito e salpicava beijinhos. Ele
poderia se distrair facilmente com aquela reação bem humorada dela, mas
Nathaniel estava certo - eles precisavam descobrir sobre o que Nolan estava
aprontando e voltar para a tribo.
— Você não precisava ter dispensado seu irmão. — Ela disse, se
sentando na cama.
— Precisava. Ontem fiz tudo errado e hoje não será assim. Vou preparar
um banho para você, vamos entrar naquela banheira enorme, eu vou te lavar e
te ajudar a trançar os cabelos e vamos descer para o desjejum. Cuidarei de
você, Hurit, em todos os aspectos a partir de agora. Você será minha esposa e
farei de tudo para ser um marido à sua altura. Eu apenas não poderei assumir
as funções que Kitchi assumiria.
Ela assentiu e ele fez como prometeu. Preparou um banho quente e a
ajudou a lavar-se, mesmo que tudo ficasse bastante confuso no processo.
Tocar Hurit, de qualquer forma, despertava nele um homem bem devasso.
— Eu ainda estou irritada com ele, mas a mentira de Kitchi causou um
cenário para que eu pudesse me decidir e tornou relativamente fácil entender
que eu desistiria de algumas obrigações por você. Outras pessoas podem
assumir a liderança da tribo, eu não poderia ser feliz sem você. Não mais.
— Não queria que você tivesse que desistir de nada por mim.
— Não é por você, tolo arrogante. — Hurit deu uma risada. Ela estava
sentada de frente para o espelho enquanto ele demonstrava excessiva
habilidade trançando-lhe os cabelos. Aquela era mais uma das coisas que o
menino doente aprendera por não poder sair de casa como os outros. — Eu
fiz tudo isso por mim, porque eu quero você. E eu sei, também, o quanto ficar
comigo impactará a sua vida.
— Minha vida precisava de um propósito. Ao contrário de você, eu não
nasci predestinado e ninguém esperou muito de mim. Você desafiou o
destino, mas eu estou muito feliz que tenha se decidido por mim.
Ele a beijou nos ombros e ambos admiraram o penteado com tranças
presas no alto da cabeça que Emile fizera. Antes que Hurit pudesse se vestir
propriamente, a águia de novo anunciou que alguém estava do lado de fora
do quarto e, daquela vez, não foi possível se livrar de Nate e Lucy. Ele vestia
um belo traje de dia, elegante o suficiente para indicar sua origem nobre e a
esposa carregava uma pilha de roupas.
— Imaginei que Hurit não tivesse trazido roupas. — Lucille explicou. —
Essas aqui são parecidas com as que ela usava - saia e camisa, simples e
sóbrias. Se alguma não servir como deveria, podemos fazer ajustes.
— E o que vocês pretendem fazer em nossa ausência?
Emile perguntou, mesmo que não estivesse receoso em deixar Hurit com
a família. Se havia algo em que ele acreditava era naquilo, na família. Os
irmãos não rejeitaram a mulher que ele escolheu mesmo que ela rompesse
com todos os padrões esperados e representasse o oposto do que um
aristocrata como ele devesse escolher. A cunhada, Lucille, também era uma
perfeita esposa McFadden até aquele momento - um pouco rebelde e com
ares de quem mandava no marido.
— Imagino que o que todas as mulheres fazem quando os homens saem
de cena. Elaborar planos de guerra e dominação, por exemplo. — Hurit disse
e ele se espantou porque ela não rejeitou a ideia de ficar com Lucille
enquanto ele saía para resolver questões que homens tinham mais facilidade
em resolver.
— Sempre suspeitei. — Nathaniel riu e beijou os lábios de Lucy. — Sei
que vocês estão em uma espécie de lua de mel, mas vamos fazer o que tem
que ser feito logo. Conheço Nolan e ele não demorará a agir. Prefiro chegar à
corte antes dele e pretendo evitar um confronto o máximo que puder.
— Não o confronte. — Lucille deixou as roupas sobre o sofá da antessala
e passou os dois braços pelos ombros do marido, envolvendo-o pelo pescoço.
— Ele desperta o que há de pior em você, deixe-o para lá.
A concordância de Nathaniel pareceu falsa, mas Emile sabia que ele faria
o que a esposa pedira. Ele, como não conhecia aquele tal Nolan Fitzgerald,
poderia enfrentá-lo se quisesse - mas preferia lidar com advogados e juízes.
Sentia-se mais confortável em seu meio, o intelectual.

O S TRÊS IRMÃOS McFadden foram para a corte em Southampton depois do


desjejum. A cidade era pequena demais e não possuía um tribunal organizado
como Nova Iorque e Londres - era apenas um juiz que respondia por todas as
questões e isso indicava problemas. Emile não gostava de lidar com cidades
pequenas por aquele motivo - os homens que cuidavam das leis não
costumavam ser justos e imparciais como deveriam.
O funcionário que os atendeu era um homem de meia idade, calvo e com
óculos pendurados na ponta do nariz. Desinteressado em fazer qualquer coisa
dentro do procedimento, ele nem mesmo solicitou identificação de Emile
para lhe permitir acesso ao processo. Pegou o calhamaço e entregou a eles,
indicando que havia um balcão onde poderiam apoiar e tomar apontamentos.
— Eles tratam todos os casos com essa leviandade? — Isaac perguntou.
— Provavelmente, sim. Por isso bons advogados são importantes, quanto
menos questões chegarem à corte, melhor para todos.
O processo era curto. Continham uma petição assinada por Gerald
Winchester que questionava o direito de propriedade dos Shinnecocks sobre a
área que denominava de ocupação ilegal. O homem tinha tanta certeza de que
sairia vitorioso que não indicou nenhum precedente a seu favor nem apontou
artigos de lei que sustentassem seus argumentos.
— Nolan não aparece nesse processo. — Emile constatou. — O
peticionário é outra pessoa.
— Ele não costuma construir nada, apenas investir. É provável que Nolan
seja apenas parte do dinheiro por trás do interesse nas terras.
— Sabemos quem é esse Sr. Winchester? — Isaac quis saber.
— Não deve ser difícil descobrir. Podemos visitar alguns bares, aposto
que homens bêbados estarão dispostos a soltar a língua com algum incentivo.
Emile concordou com a ideia de Nathaniel. O irmão era ótimo em
oferecer incentivos para que as pessoas falassem, jogassem e perdessem tudo.
Dirigiu-se ao funcionário e pediu para que ele desentranhasse o documento
que seria entregue a Chogan, intimando-o do processo.
— Um oficial de justiça levará o documento. — O homem respondeu sem
nem mesmo erguer os olhos.
— Entendo, mas eu posso simplificar o trabalho dele já que estarei na
tribo hoje.
— O que um cavalheiro como o senhor fará no meio daqueles pretos
imundos?
Emile sentiu o sangue ferver no mesmo instante em que o homem
proferiu a frase. Sua vontade era a de pular por sobre o balcão e esmurrar o
funcionário, mas Isaac interveio antes que sangue fosse derramado.
— Temos negócios com eles. Recomendo ao senhor ter mais respeito
com os Shinnecocks, afinal, nunca sabemos que tipo de influência possuem
as pessoas.
Com um sorriso constrangido, o funcionário desentranhou o documento e
entregou a eles, dentro de um envelope pardo e com o selo da justiça de
Southampton.
— Preciso anotar quem retirou esses papeis. Em nome de quem faço o
registro?
— Emile Arthur McFadden. Sou advogado em Londres.
Mais uma vez o funcionário olhou curioso para o grupo. Em poucas
horas, aquele evento seria a mais nova fofoca da cidade e todo mundo
descobriria que os irmãos estavam a favor dos Shinnecocks em uma disputa
judicial que, até aquele momento, talvez ninguém soubesse.
Não importava, pois Emile queria resolver aquilo logo.
— Preciso ir até a biblioteca local. Não conheço bem as leis americanas e
preciso estudar os precedentes sobre o caso, além das leis de propriedade
aplicáveis. Não posso chegar à tribo com mais perguntas do que respostas.
— Eles não têm advogados, Milo?
— Creio que não, Isaac, mas eu quero tomar conhecimento de tudo
mesmo que outra pessoa represente a tribo. É o futuro da aldeia que está em
jogo.
— E você se afeiçoou a eles. — Isaac confirmou, apenas. — Quando se
casar com ela, com Hurit, você se mudará para lá? Viverá entre eles?
— Espero que sim. Se me aceitarem, será lá que viveremos.

H URIT QUIS DIZER que não precisava de roupas, mas os olhos amistosos de
Lucille fizeram-na desistir de negar a oferta. Seria melhor chegar para
conversar com seu pai trajando algo que estivesse limpo e passado e as suas
vestes estavam com cheiro de mofo.
As duas mulheres passaram parte da manhã experimentando e escolhendo
algo que combinasse com ela e acabaram descendo tarde para o desjejum.
Hurit escolheu uma saia xadrez cinza e uma blusa branca com babados no
decote. A saia precisou de bainha, pois Lucille era quase um palmo mais alta
que ela, mas a camisa vestiu quase perfeitamente. Quando chegaram ao salão
de refeições, escolheram uma mesa no canto e pediram que lhes fosse servido
o desjejum completo.
Antes de começarem a comer, Hurit percebeu que Lucille ficou tensa. A
cunhada de Emile olhou constrangida para alguma coisa que acontecia no
salão e parou com o garfo no ar. Em seguida, um homem se aproximou da
mesa onde elas estavam e levou alguns segundos observando Hurit até pegar
uma cadeira e se sentar, sem qualquer respeito ao decoro. Afinal, na mesa
estavam duas mulheres e não era adequado que um cavalheiro se aproximasse
se elas não o conhecessem. Foi depois que ele começou a falar que ela
entendeu que o homem não era desconhecido - e nem mesmo um cavalheiro.
— Ora vejam, minha irmã fujona reapareceu.
Havia uma aparente expressão de deboche no homem e de
constrangimento em Lucille.
— Você não tem o direito de me tratar por irmã. — Ela retrucou. — E
nunca estive desaparecida, apesar de que imagino que nada disso seja de seu
interesse.
— Provavelmente seja do seu interesse saber que nosso pai está morto.
A crueldade nas palavras de Nolan Fitzgerald atingiu as duas mulheres.
Lucille engasgou e deixou o garfo cair sobre o prato, fazendo um estridente
tilintar de metal e porcelana. Algumas pessoas olharam na direção delas mas
havia uma aparência de normalidade pairando sobre a mesa que não chamou
a atenção de ninguém. O barulho significava que uma das mulheres era
desastrada e apenas aquilo. Por impulso, Hurit levou a mão até a da sua nova
amiga e a segurou.
— O que houve? — Lucille perguntou.
— Dizem que ele morreu de causas naturais mas eu aposto que foi pelo
desgosto de ter uma filha como você e por ter sido abandonado pela mulher.
— Abandonado? O que houve com minha mãe?
— Ela desapareceu logo depois que você fugiu com Nathaniel. Não se
sabe do seu paradeiro e há uma ordem de prisão emitida em nome dela.
Assim que a encontrarem, a Sra. Smith será presa por abandono de lar e eu
garantirei que ela cumpra a pena integralmente.
— Você é uma pessoa horrível, Nolan. — Lucille manteve a compostura
mesmo estando abalada. Seus olhos estavam úmidos e a voz parecia
estridente demais, porém ela agia como se tudo estivesse normal. —Tenho
certeza de que Walter Smith era muito orgulhoso de tê-lo como filho.
— Posso ser horrível, mas não me misturo com nativos. — Os olhos de
Nolan vagaram na direção de Hurit e ela decidiu encará-lo de volta. Jamais
abaixaria a cabeça para um homem como aquele, mesmo que olhar para ele
fosse a última coisa que fizesse em sua vida. — Essa daí é sua nova criada?
— Ela é minha cunhada e, como disse, nada disso importa a você. Por
favor, deixe-nos ou serei obrigada a chamar ajuda.
— Sua cunhada? — Nolan levantou-se e recolocou o chapéu. — Imagino
que ainda nos encontraremos pela cidade. Até outra hora, irmãzinha.
Alguns minutos foram necessários para que Lucille se recuperasse da
súbita aparição do homem que monopolizou os assuntos dos McFaddens no
dia anterior e que deslocou os homens para a corte a fim de buscar
informações sobre um processo cujo teor ninguém sabia. Os bolinhos, pães e
ovos que foram servidos assumiram aparência e sabor desagradáveis e o que
poderia ser um momento animado de interação se transformou em um
velório. Duas mortes foram anunciadas e Hurit não sabia como reagiria se lhe
contassem, daquela forma abrupta, que seu pai falecera.
— Eu sinto muito. — Ela disse, mantendo a mão sobre a de Lucille. —
Quando seu marido chegar, imagino que vocês terão que retornar para Nova
Iorque.
— Tenho certeza de que Nolan cuidou de tudo relacionado ao meu pai.
Depois que a conexão entre eles foi revelada, mesmo que ele não possa ser
reconhecido como filho de Walter Smith, ele age como se fosse. Estou
preocupada com minha mãe.
— Imagina para onde ela possa ter ido? Como ela pode ter fugido?
— Suspeito que ela possa ter embarcado para Londres. Minha mãe não
era uma pessoa com contatos que poderiam abrigá-la e não imagino que ela
tenha guardado dinheiro para uma fuga, portanto, deve ter se agarrado à
oportunidade que cruzou seu caminho.
O silêncio voltou a pairar sobre a mesa e Hurit achou melhor continuar a
comer e voltar a se preocupar com os problemas de sua tribo. Estava ansiosa
por tudo que viria a acontecer, mais ainda depois de conhecer seu adversário
- que parecia um homem determinado e capaz de fazer coisas ruins para
atingir seus objetivos. A tribo a preocupava, tanto pela disputa de terras
quanto pela reação de seu pai quando ela retornasse com Emile. Eles foram
embora sem olhar para trás, passaram um dia fora e era provável que Chogan
pensasse que tivessem fugido para não mais retornar. Claro que ele teria que
ser um tolo se acreditasse que ela abandonaria tudo tão facilmente, que
deixaria levianamente para trás anos de dedicação e esforço para assumir seu
papel de xamã. Mais tolo ainda se achasse que Hurit ignoraria o chamado dos
deuses e ela sabia que Chogan não costumava agir tolamente.
Os planos de Lucille de uma tarde de passeios por Southampton não se
realizaram porque ela estava muito abalada. As duas mulheres se deslocaram
para a sala de leitura do hotel depois que Hurit foi ao quarto que ocupava e
resgatou a águia. O animal já dava sinais de melhora na asa, abrindo-a para
demonstrar que podia fazê-lo, porém ainda não se arriscava a voar e parecia
bastante aborrecido por ficar preso - mas, também, desinteressado em ir
embora. Na inusitada companhia da ave, elas ocuparam o tempo de espera
lendo livros variados e os jornais de notícias, mesmo que aquela fosse
considerada uma atitude masculina demais para que duas mulheres a
adotassem. Como a presença de Hurit era indesejada no hotel, ninguém
permaneceu no mesmo ambiente que elas e, com isso, as duas tiveram a paz
necessária para esperar.
Quando os homens retornaram já passava do horário do almoço e eles
tinham expressões resolutas. Emile segurava uma pasta e eles indicaram, com
o olhar, que elas deveriam acompanhá-los. O grupo se reuniu no quarto de
Isaac e logo havia uma mesa ocupada e cheia de papéis espalhados cujos
conteúdos Hurit não entendia.
— Antes de iniciarmos a conversa sobre isso, Lucille tem algo a dizer. —
Ela informou e todos olharam para a jovem esposa de Nathaniel, que pareceu
constrangida com a súbita atenção.
— Creio que esses assuntos sejam mais importantes.
— Não são. Você precisa conversar sobre o que aconteceu com seu
marido.
— O que diabos houve enquanto estivemos fora? — Nathaniel
empertigou-se e, com dois passos, estava de frente para Lucille. — Nolan?
Ela assentiu e contou sobre a morte do pai e o desaparecimento da mãe.
As lágrimas que ela tentava conter finalmente rolaram e Lucille chorou
abraçada ao marido que, com o consentimento do grupo, a conduziu para o
próprio quarto. Mesmo que eles precisassem de planos para enfrentar a
demanda pelas terras, aquela era uma questão da tribo e não demandaria a
presença nem o sofrimento de uma pessoa que acabara de descobrir a perda
de seus familiares.
— O que há em tudo isso? — Hurit finalmente perguntou.
— Uma petição pouco consistente e uma questão que os tribunais locais
ainda não enfrentaram. Analisei as leis de Long Island, de Nova Iorque e dos
Estados Unidos, analisei a constituição e alguns precedentes das cortes
estaduais e federais e nenhuma delas nunca tratou de questões envolvendo
terras de nativos com o devido respeito - e é nisso que o peticionário confia.
Ele não se preocupou em montar um processo robusto pois crê que o
tratamento dispensado à tribo será o usual. Porém imagino que haja duas
teses que possam ser levantadas. A primeira é a aldeia ser reconhecida como
um território independente e o povo Shinnecock como uma nação e a
segunda é a mais fácil, que vocês sejam reconhecidos como proprietários
originários. Como há esse documento aqui — Emile pegou um papel
amarelado e com aparência muito antiga e indicou que ela deveria ler a parte
que ele apontava — creio que o tribunal entenda que o povo americano
sempre reconheceu os Shinnecocks como proprietários legítimos da terra. E a
constituição não compactuará com a tomada forçada de terras de ninguém,
isso causaria uma reversão maligna nos precedentes.
Ela o ouviu fascinada. Até aquele momento, Emile era o homem que ela
resgatou, cuidou e por quem se apaixonou. Hurit viu nele potencial além do
que ele demonstrava e sabia que, logo, esse potencial se revelaria, mas não
estava preparada para a revelação, afinal. O impacto de vê-lo com
vestimentas tão elegantes, cabelos um pouco desalinhados pelo esforço e
proferindo palavras que ela nunca ouvira antes era afrodisíaco - e ela não
imaginou que pudesse achar sensual que um homem simplesmente lhe
explicasse algo que ela ainda não entendia. Remexendo aqueles papéis e
argumentando sobre teses - algo que Hurit ignorava completamente o
significado, ele assumiu uma postura tão grandiosa, tão magnífica e
intelectual que, caso ainda não a houvesse seduzido, a derrubaria no chão e
passaria por cima de suas muralhas sem qualquer dificuldade.
O próprio irmão, Isaac, parecia envaidecido pela eloquência de Emile. Ele
não entendeu o motivo pelo qual o olhavam com admiração e isso fez com
que Hurit sentisse uma pontada de dor em seu coração. Ela sempre foi
admirada e valorizada entre os seus, toda a sua existência era baseada em ser
um destaque na tribo: era a princesa, a filha do chefe, a futura xamã, a menina
que tivera uma visão de Hoobamack antes dos doze anos, um prodígio. Já
Emile teve a sua vida baseada em uma doença e era como se ele mesmo
continuasse a se perceber como deficiente, mesmo que não fosse.
— Vocês certamente detestaram a ideia. — Ele começou a juntar os
papéis.
— Deixe de ser tolo. — Hurit segurou as duas mãos dele entre as suas. —
Eu não tenho conhecimento suficiente para gostar ou não do que apresentou,
mas confio em você para saber que essa é a melhor forma de defender a tribo.
Precisamos conversar com Chogan, você está pronto para retornar?
— Estou bastante preocupado. — Ele riu, nervoso. — Se eu sair vivo de
lá, serei um homem vitorioso.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO

E LES CHEGARAM À ALDEIA NO MEIO DA TARDE COM O SOL QUEIMANDO SOBRE


suas cabeças. Usavam chapéus emprestados e cavalgavam novamente Zeus, o
cavalo mais disciplinado de Nathaniel - ou o único que aceitava ser montado
por Emile, já que Hades desenvolveu uma visível preferência por mulheres.
A comoção teve início tão logo eles foram vistos - várias pessoas correram
para lá e para cá, entrando em suas casas ou indo na direção da casa de
Chogan, esperando que aquele fosse o destino dos recém-chegados. A
postura de ambos era a da certeza e determinação, mas Emile estava se
remoendo por dentro. Ele sentia culpa por arrastar Hurit para longe de seus
propósitos e uma imensa alegria por ela tê-lo escolhido, não importando o
quanto aquelas emoções fossem conflitantes, e se sentia responsável por tê-la
subtraído de seu povo, de sua família, para arruiná-la sobre uma cama de
hotel.
Bem, ele não a arruinara. Ele a tomara para si, da forma mais egoísta que
conhecia, e estava ali para tomá-la novamente, mas como esposa.
Zeus parou na frente da casa de Chogan e Amonute e a mãe saiu
sorridente para receber a filha. Se dependesse dela, os dois já estavam
abençoados para a vida mas Emile sabia que não dependia. Ele desceu do
cavalo e ajudou sua mulher a fazer o mesmo, não mais preocupado que a
intimidade entre eles se revelasse. Toda a verdade precisaria ser exposta antes
que eles tratassem dos assuntos sérios.
— Sejam bem-vindos. — Amonute abraçou a filha com entusiasmo. —
Estive preocupada que não fossem mais retornar.
— Haveria motivos para que eu não retornasse? — Hurit acariciou as
tranças da mãe.
— Eu esperava que não. Venham, imagino que precisem conversar com
Chogan.
— Eu preciso. — Emile retirou o chapéu e seguiu as mulheres.
— Vamos para a cozinha fazer chá.
— Imagino que Hurit vá querer acompanhar a conversa. — Ele lhe sorriu
e ofereceu a mão para que ela a segurasse. — Afinal, o assunto diz respeito a
ela.
Amonute demonstrou surpresa mas não questionou a decisão da filha em
seguir até a sala onde Chogan estava sentado olhando pela janela. O casal
chegou acompanhado da águia, que observava tudo com atenção e se
mantinha silenciosa. Parecia que aquele bicho não o deixaria e ele não negava
que já se afeiçoara à ave intrometida. Sem poder fingir que não estava
recebendo visitas, o cacique teve que abandonar sua postura de chefe
impassível e encarar a verdade que se colocava à sua frente.
— Você é bastante ousado em entrar na minha casa conduzindo minha
filha dessa forma, wánuks.
Emile olhou para as mãos deles unidas e entendeu a irresignação de
Chogan.
— Viemos por dois motivos e o primeiro deles diz respeito a Hurit. Se
puder me ouvir, gostaria de explicar o que aconteceu ontem.
— Não creio que explicações sejam necessárias, Hurit foi bem clara ao
dizer que você a tomou como esposa. Ou me dirá que isso não aconteceu?
— Aconteceu, mas não da forma como foi colocada. Sua filha queria
fugir da armadilha que lhe foi preparada, já que não pretendia casar-se com
Kitchi, e por isso mentiu. Naquele momento eu não havia feito o que ela
disse que eu fiz, eu nem mesmo sabia do que se tratava até que ela me
explicasse.
Chogan indicou que eles deveriam se sentar porque suspeitou que a
conversa seria mais longa do que ele esperava. Se dependesse de Emile, ela
duraria o dia inteiro. Fazia tempo que não se sentia tão vivo, tão disposto a
argumentar, a defender suas ideias e seus posicionamentos. Foi por gostar de
falar e discutir que se formara em Direito, mas não costumava realmente ter
grandes causas para trabalhar. Cuidar dos contratos dos irmãos era rentável,
porém nada desafiador.
— E por que decidiu ficar com ela mesmo sabendo o que isso
representava?
A pergunta do chefe tinha uma resposta muito fácil e que não precisou de
nenhum esforço para ser dita.
— Porque eu amo Hurit e, apesar de tudo, eu desejava me casar com ela.
— Emile virou-se para a mulher, que arregalou os olhos e levou uma mão à
boca para tentar esconder seu espanto. — É isso, Bela, eu a amo. Por isso a
trouxe aqui, por isso desejo que seu pai nos abençoe e que lhe permita ter um
casamento como você merece.
O cacique manteve o olhar escrutinador sobre eles. Amonute, que vinha
da cozinha, quase deixou cair as canecas de chá que carregava e Hurit
permanecia com a mão sobre a boca sem saber como reagir. Emile levou a
outra mão dela aos lábios e beijou-lhe os nós dos dedos, sorrindo para tentar
aliviar a tensão. A cabana foi subitamente invadida por Wematin, que
reclamava que Askook, o jovem inteligente da tribo, o estava atrasando - era
ele quem escoltava o xamã até a pequena conferência. Ao ver a
movimentação indesejada, a águia reclamou e se aproximou de Emile,
empoleirando-se no encosto da cadeira de madeira e se colocando atrás dele.
— Vejo que eles voltaram. — O velho sorriu e tateou até encontrar Hurit
e Emile. — Agora teremos uma cerimônia ou ainda é cedo para me vestir?
Apesar do tom jocoso, a pergunta de Wematin era carregada de
significado. Emile suspeitava, pela tensão expressa em Hurit, que a aceitação
de Chogan era muito importante para eles - que não seria possível continuar
na tribo se eles não fossem acolhidos pelo cacique. Fora por aquele motivo
que ele tivera uma audiência, dias atrás, e decidiu deixar a aldeia - sem que o
chefe determinasse que eles eram bem-vindos, eles não eram. Havia muitos
fatores envolvidos na decisão de Chogan, entre eles a certeza de que um
repúdio público do casamento da filha exporia Hurit definitivamente e a
exilaria no mundo dos brancos.
A apreensão estava tão densa que podia ser tocada no ar. Até mesmo
Askook, que estava atrasado como dizia o xamã, notou que estavam todos no
aguardo de uma palavra, uma fala, um gesto que indicasse a resposta do
cacique. Depois de alguns minutos, ele suspirou e estendeu a mão para
aceitar o chá trazido pela esposa.
— Parece-me que faltam opções. Hurit tomou a decisão dela e os deuses
previram que isso aconteceria ao colocarem o lobo branco em seu caminho.
Talvez seja para o bem de toda a tribo que ela se una a esse homem, então
não é cedo para que se arrume, velho. Hoje teremos um casamento para
celebrar na tribo.
O alívio fez com que Hurit levasse as duas mãos ao rosto e seu soluço foi
ouvido por todos. Emile se levantou e se ajoelhou à frente dela, abraçando-a e
permitindo que ela extravasasse os sentimentos represados. Mesmo que
tivesse percebido o quanto sua mulher estava sofrendo pela incerteza até
aquele instante, não havia nada que pudesse fazer para impedir o sofrimento,
apenas oferecer conforto.
— Infelizmente, há outro assunto do qual precisamos tratar e que é
significativamente mais grave do que nosso casamento. — Ele disse,
mantendo sua mulher em seus braços mas encarando o chefe e o xamã. —
Diz respeito ao homem que está tentando comprar as terras da tribo.
— Como você sabe disso? — Chogan assumiu uma postura de
desconforto e Wematin se sentou, indicando que Askook deveria fazer o
mesmo.
— Enquanto estivemos em Southampton, ouvimos comentários no hotel
em que meus irmãos estão hospedados e descobrimos informações que são de
interesse da tribo. Você quer explicar a eles, Bela?
Hurit ergueu a face. Seus olhos estavam avermelhados mas ela não
pareceu constrangida em expor sua vulnerabilidade.
— Não. Você deve explicar como fez para mim, antes. Exponha as suas
teses, seja lá o que elas signifiquem.
Ele sorriu e a acariciou na bochecha.
— Certo. Então acredito que seja hora de mostrar isso aqui. — Emile
estendeu a pasta cheia de papéis para Chogan. — Descobrimos que o
hoteleiro que deseja adquirir as terras Shinnecocks está processando a tribo
para tentar tomar a parte que o interessa de vocês.
O assunto rapidamente se tornou o centro de todas as atenções. Chogan
pediu que Amonute chamasse Etchemim e Aranck para participarem da
pequena reunião, já que ele precisava de homens de confiança ao seu lado
naquele momento. Wematin se projetou para frente para ouvir a leitura dos
documentos, que foram distribuídos entre os presentes e até mesmo o menino
Askook acabou com alguns papéis nas mãos, mas Emile suspeitou que ele
soubesse bem o que fazer com eles. A forma como o jovem segurava a
petição e o contrato e sua expressão eram familiares - era como ver-se no
espelho, Emile considerou. Ele já foi aquele menino curioso e esperto e que
destoava de todos os outros da sua idade.
Os homens discutiram e debateram sobre o que pretendia o tal Gerald
Winchester. Chogan confirmou que foi ele quem os procurou na maioria das
vezes e reconheceu Nolan Fitzgerald como aquele que passou a negociar por
último, confirmando a teoria de que os dois estavam associados. Os tribais
olhavam para a documentação do processo com curiosidade, porém
demonstravam ignorância em relação ao conteúdo que Emile sabia ser muito
complexo para a compreensão de um leigo. Depois de algum tempo, decidiu
assumir a palavra e apresentar suas propostas.

Q UANDO E MILE PIGARREOU , limpando a garganta, Hurit soube que ele estava
pronto para falar perante seu povo. Não que Chogan, Etchemim e Aranck
representassem a tribo inteira, mas eles eram os homens mais influenciadores
do conselho - o cacique e seus principais apoiadores. Se ele conseguisse
convencê-los a confiar nele, toda a tribo confiaria.
— A demanda carece de fundamentos jurídicos.
A frase foi proferida com a certeza de quem sabia o que dizia. Todos,
inclusive Askook e Amonute, pararam para ouvi-lo. Alguns demonstraram
curiosidade, outros pretendiam desprezá-lo, mas todos iriam ouvir.
— Wánuks entende o que está escrito aqui? — Foi Etchemim quem
perguntou.
— Sim, eu sou graduado em Direito.
— Você fala isso como se eu devesse saber o que significa.
— Ele fez faculdade, Etchemim. — Askook interveio. — Assim como eu
gostaria de fazer. Wánuks estudou as leis.
— É exatamente isso. — Emile sorriu para o jovem, que parecia
orgulhoso demonstrando conhecimento. Hurit não conseguia compreender
Askook tão bem, mas percebeu que seu marido compreendia. — Lidar com
documentos como esses é a minha profissão, em Londres. Antes de retornar à
tribo eu fui à biblioteca e pesquisei sobre o que é pedido nesse processo e o
hoteleiro não possui respaldo nas leis de Nova Iorque nem dos Estados
Unidos.
— Isso considerando que ele possa impor sua lei sobre nós. — Aranck
bradou. — O homem branco acha que pode nos obrigar a seguir seus
governantes e não reconhece os nossos?
— Essa é uma das teses que estabeleci, a de considerar os Shinnecocks
uma nação independente e não submetida às leis americanas. Assim como
eles se tornaram independentes do Reino Unido, forçar a corte a reconhecer a
autonomia de seu povo. Porém, temo que essa seja uma das mais difíceis,
senhor…
— Aranck. — Hurit interveio, mesmo sabendo que, na conversa dos
homens, ela não seria bem recebida. Sentia-se forte ao lado de Emile porque
ele a ouvia e a respeitava desde que se conheceram, quando só tinha motivos
para desprezá-la. Naquele mesmo instante, ele segurou a sua mão entre as
dele e beijou seus dedos, demonstrando o prazer de tê-la ao seu lado. — E
Etchemim. — Apontou para o outro homem.
— Certo. Temo que seja arriscado apostar tudo que vocês têm na
compreensão da corte de que são um povo autônomo. Pelo que estudei sobre
a história da chegada dos ingleses às Américas, nunca houve qualquer
intenção de reconhecê-los como uma nação.
Um silêncio incômodo sucedeu àquela afirmação. Mesmo que ela
soubesse, que todos ali soubessem, que eles nunca foram estimados nem
mesmo como seres humanos, era difícil ouvir da boca de um jurista que
aquele reconhecimento talvez nunca acontecesse.
— E wánuks tem outra ideia? — Chogan perguntou.
— Sim. Vocês podem argumentar que são legítimos proprietários
originários e, como negociaram a terra com Southampton em 1640, houve
declaração tácita sobre o direito dos Shinnecocks sobre toda a terra que
ocupam.
— Não entendo nada dessas questões e não temos advogados entre nós.
Devo confiar no que ele diz, Hurit?
A pergunta a pegou de surpresa e foi feita por Wematin, não por seu pai.
O velho xamã, que ouvia tudo em silêncio, voltou-se para ela e a interpelou,
questionando seu julgamento sobre Emile. Pareceu, de imediato, uma
pergunta estúpida - ela seguramente confiava no homem com quem decidira
se casar e compartilhar seu futuro mas, como tudo que o velho fazia tinha
uma razão oculta, ela decidiu responder com eloquência.
— Eu confio. Também não entendo sobre leis e ele me explicou tudo com
muito cuidado. É possível compreender o que Emile diz quando lemos os
documentos e concordo que a segunda tese é a melhor para a tribo. Afinal, se
vamos competir com os brancos no território deles, devemos fazer com que
sejam obrigados a nos identificar como verdadeiros detentores dos direitos
que eles pretendem nos negar.
Emile sorriu para ela e aquela demonstração singela de afeição já servia
para garantir que Hurit falou a coisa certa. Wematin virou-se para o restante
dos homens, ciente de que todos se entreolhavam e tentavam conversar sem
palavras.
— Precisamos deliberar. — Chogan determinou. — Posso ser o cacique,
mas tomamos as decisões em assembleia. Reunirei os homens e
conversaremos sobre o que fazer e peço que esperem aqui até nossa palavra
final.
— Isso significa que posso retornar para casa?
Hurit ainda temia que o pai tivesse aceitado o casamento mas não fosse
aceitá-los na aldeia. Uma coisa era não abdicar da filha por se casar com um
branco, outra coisa era admitir que eles vivessem nas terras Shinnecock. A
possibilidade de ser exilada de sua casa e de não poder mais exercer o
xamanismo, que a amedrontava tanto quanto a fascinava, a deixaram tensa
durante toda aquela discussão sobre processos, terras e defesas. Tudo que
ocupava sua mente era saber se poderia retornar à sua cabana e se estaria
autorizada a viver na aldeia.
Percebendo a importância da resposta de Chogan, Emile a abraçou.
Envolveu seu ombro com o braço e a puxou para si, protegendo-a e
confortando-a.
— Por nossa tradição, cabe à esposa ofertar a casa ao marido. — Chogan
disse para Emile. — Hurit tem casa e ela a ofereceu a você. Sua chegada
perturbou nossa paz, homem branco, mas preciso confiar que os deuses
sabem o que fazem. A partir de hoje vocês se tornam marido e mulher pelas
leis de nossos ancestrais e seu nome será Maheegan.
A expressão de Aranck não era de agrado e Etchemim manteve-se
impassível. Como amigo de Kitchi, era compreensível que ele não desejasse
que Hurit se casasse com outro homem e, com isso, magoasse os seus
sentimentos. Wematin, no entanto, levantou-se e colocou as mãos nos ombros
dos recém-casados e indicou que os seguiria até a cabana. Uma pequena
procissão teve início na saída da casa de Chogan, pois Askook, que não fazia
parte da assembleia de homens, acompanhou o xamã. A águia ameaçou um
voo vacilante e pousou, desequilibrada, no ombro de Emile. Eles cruzaram
parte da aldeia, passaram pela grande fogueira e seguiram na direção do curso
de água até avistarem seu destino.
— Essa tradição da esposa oferecer a casa não significa que o marido não
possa fazer algumas melhorias, certo?
Emile sussurrou no ouvido dela assim que chegaram à cabana onde eles
passaram a maior parte do tempo desde que se conheceram. Hurit não podia
negar que a construção era precária - ela nunca se importou em reformar,
pintar ou consertar o telhado porque estava ocupada demais se preparando
para ser xamã, para assumir a liderança da tribo e sofrendo a perda de Keme.
Algo ainda mais grave a atingiu no momento, algo que ela ignorou
quando decidiu se entregar a Emile, se tornar sua esposa.
— O marido pode fazer melhorias. — Ela respondeu, nervosa. —
Precisamos conversar.
Emile olhou por sobre o ombro dela e suspirou diante da companhia. Ela
entendia a frustração, pois, durante vários dias, eles ficaram sozinhos e
puderam conversar e interagir sem a presença de ninguém para observá-los.
Com Wematin e Askook em seu encalço, qualquer discussão deveria manter
um nível de decoro que nenhum dos dois estava acostumado a preservar.
— Agora?
— Não importa se eles ouvirem. Não conversamos sobre onde vamos
morar.
— Estou confuso. — Emile se sentou. — Não acabei de ouvir seu pai
dizer que é a esposa que providencia a casa? Pensei que estivéssemos
retornando para nosso lar.
Ela prendeu a respiração e se sentou.
— Você é inglês e seus irmãos irão para Londres em breve. Eu vi o
quanto são unidos, creio que não tenha ainda ouvido falar de uma família
branca que demonstre tanto afeto entre si, então imaginei que você fosse
querer...
— Ah, meu amor. — Ele segurou-a pelas mãos. — Eu amo meus irmãos,
minhas cunhadas, meus sobrinhos e até o maldito burguês que se casou com
minha irmãzinha, mas não há nada em Londres que me prenda. Já você, essa
aldeia é sua casa e a tribo é o seu lugar. Se eu insistisse para que você viesse
morar em Londres comigo, estaria a arrastando para nada. A não ser que me
expulsem, essas paredes são nossa casa. Quanto à minha família, poderemos
visitá-los quando quisermos, os navios a vapor são muito velozes!
Mais uma vez ele disse o que ela queria e precisava ouvir. Mais uma vez
ela se apaixonou por ele e quis se atirar em seus braços, mas a face sorridente
de Wematin a impediu. Ainda assim, Hurit se levantou e beijou seu marido
nos lábios, tomando cuidado para que o carinho não provocasse nenhuma
reação explosiva.
Askook pigarreou e saiu da sala. A águia o seguiu porque queria pedir
comida e isso deu a eles tempo para se apreciarem por alguns minutos.
Quando o menino Shinnecock voltou, tinha perguntas a fazer.
— Maheegan poderia me dizer como é na faculdade?
— Claro que poderia, mas primeiro me diga o que significa meu nome.
Antes eu era o inimigo e agora, o que sou?
— O lobo.
— Esperado. — Emile deu uma risada.
— Farei um chá. — Hurit se dirigiu à cozinha. — Vocês homens
conversem sobre assuntos de faculdade.

T ENTANDO IGNORAR que sua vida estava fazendo curvas fechadas em alta
velocidade como se ele estivesse em uma corrida de carruagens, Emile
decidiu envolver o jovem Askook em seus planos para ajudar a tribo. Seria de
mais impacto se um nativo estivesse na corte para representar a tribo e aquele
menino parecia ideal para a tarefa. Curioso, inteligente e alto o suficiente para
se passar por mais velho, ele poderia aprender alguns termos e expressões e
se habilitar como o principal procurador da tribo.
Ele se sentou com Askook e explicou sobre a vida na faculdade, mesmo
que soubesse que a sua realidade não era a mesma do menino. Sendo filho de
um conde e com sangue azul correndo em suas veias, Emile era sempre bem-
vindo e bem tratado por todos, enquanto aquele jovem nativo passaria maus
bocados estudando com brancos arrogantes. Ainda assim, tentou focar em
suas boas experiências para não influenciar negativamente os desejos de
Askook.
O velho xamã nada disse, apenas ouviu. Ele acariciava a cabeça da águia
como se os dois fossem bons amigos e prestava atenção em todas as
conversas. Por todo o final de tarde eles se mantiveram ali, discutindo ideias
e esperando que um sinal indicasse que a deliberação da assembleia tivesse se
encerrado. Quando Wapun apareceu na casa de Hurit, tiveram esperança de
que fosse o fim, mas ela tinha um recado.
— Chogan convoca o xamã para sua casa. Vim buscá-lo, Wematin.
— Não preciso ser guiado, menina. — O velho se levantou e usou sua
bengala para chegar até a porta. — Mas pode deixar que Askook me
acompanhará. Quero que ele diga à assembleia tudo que ouviu aqui, hoje.
Wapun concordou, mas os seguiu. Depois de alguns momentos intensos,
Hurit e Emile ficaram sozinhos novamente.
— Não gosto disso. — Ela reclamou. — Chogan está agindo como um
tolo, nunca o vi ser tão teimoso em relação a algo importante.
— Ele está agindo como pai. — Emile a puxou para seu colo e a
acomodou sobre suas pernas. — E isso significa que ainda está zangado
porque eu a desviei do caminho.
— Não desviou. — Ela o beijou. — Na verdade eu jamais seria líder da
tribo, estava apenas me enganando sobre isso. O líder seria meu marido, pois
são apenas homens que deliberam. Veja se fui convidada a participar da
assembleia? Nenhuma mulher foi. Não haveria glória em ser a esposa do
cacique, prefiro ser a esposa do homem cujas teses ajudarão a aldeia a manter
sua integridade.
Ele deu uma risada e a beijou novamente, erguendo-se com Hurit no colo
e a jogando sobre a cama. Desde o primeiro beijo ele quis fazer aquilo, pois
queria que aquela cabana fosse testemunha do seu desejo. Para seu azar, antes
que ele conseguisse consumar sua ânsia de possuí-la ali, passos do lado de
fora indicaram que alguém se aproximava.
A figura que apareceu das sombras da noite que já se abatera sobre a
aldeia era Kitchi. Ao vê-lo, Hurit pulou da cama e marchou na direção do ex-
noivo, desferindo-lhe um tapa no meio do rosto. O estalo da palma da mão
dela batendo na carne dele foi tão alto que talvez pudesse ter sido ouvido do
lado de fora da cabana. Foi súbito, intenso e o encheu de orgulho. Ninguém
provocava sua mulher sem ser fuzilado em retorno.
— Vá embora. — Ela deu alguns passos para trás na intenção de afastar-
se. — Você não é mais bem-vindo nessa casa.
Kitchi passou a mão na face e suspirou.
— Hurit, seja razoável. Estou aqui para dar a você uma chance de mudar
de ideia. Ainda podemos ficar juntos, eu a aceito mesmo violada por esse
matwan.
— Maheegan. — Emile se aproximou. — Você não pode falar com
minha esposa dessa forma, ainda mais desconsiderando a minha presença.
Hurit fez a sua escolha, eu agora sou o marido dela e você, como ela disse,
não é bem-vindo nessa casa.
— Então eles te deram um nome. — Kitchi riu. — Acredita que por causa
disso será parte da tribo, forasteiro? Você sempre será um branco que todos
fingirão que aceitam por causa dela. Hurit é querida por todos, apenas por
isso sua presença nessa aldeia é tolerada.
— Engula sua vaidade. Fui objeto de escárnio por muitos e tratado como
um bibelô por outros. Estou acostumado a ser diferente, excluído e fora dos
padrões. Hurit me vê como ninguém viu ainda, portanto não importa como a
tribo lida com isso - somos casados agora.
Kitchi olhou para a ex-noiva, que mantinha uma postura impassível e
determinada. Por muitas vezes Emile a espreitou com aquela mesma pose,
como se pudesse controlar tudo e todos apenas com o olhar. A ausência de
um sorriso indicava que ela não estava satisfeita e sugeria que sua vontade
deveria ser realizada. Consciente que não adiantaria argumentar mais nada,
Kitchi decidiu recuar e ir embora.
— Lamento que seu futuro seja desperdiçado por ele. — O homem cuspiu
no chão de terra, demonstrando seu desprezo. — Chogan deseja ver vocês,
ele espera na grande fogueira.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO

T ODOS OS TRIBAIS ESTAVAM REUNIDOS ESPERANDO OS NOIVOS . A CERIMÔNIA


de casamento Shinnecock era algo que Emile nunca vira, antes. Homens e
mulheres, usando vestes comuns e pinturas tradicionais, se aglomeravam no
centro da aldeia enquanto o cacique e o xamã ficavam ao centro. Wematin
mantinha o sorriso de sempre e Chogan não demonstrava alegria ou repúdio -
sua expressão era ilegível. Hurit foi levada por algumas mulheres, incluindo
sua mãe e Wapun, e retornou meia hora depois vestida como uma verdadeira
princesa. Os cabelos estavam trançados e amarrados em um penteado que ele
nunca vira. O vestido era de couro, colorido e ornamentado com bordados e
contas. Ele se percebeu sorrindo como um tolo ao vê-la caminhar em sua
direção e seu peito se encheu de orgulho e reverência porque ela segurou suas
mãos diante de toda a tribo.
Talvez Kitchi estivesse certo e todos ali o aceitassem apenas por ela, mas
não era por ela que ele fazia tudo aquilo? Ela era o motivo e a razão, então
não havia por que se importar com mais nada. Depois de palavras proferidas
no dialeto mohegan e alguns cânticos entoados por todos, o cacique se
aproximou com uma faca e, segurando as mãos do casal, fez um talho em
cada palma. A encenação causou euforia entre todos e representou o fim da
celebração. Com os dedos entrelaçados, eles estavam unidos
permanentemente por seus espíritos e pelo sangue. O simbolismo de tudo
deixou Emile emocionado e quase o fez desistir de dizer a Hurit que eles
também deveriam casar-se diante das leis dos brancos. Quase. Ele queria que
ela fosse sua esposa em todos os mundos que eles transitassem, seja entre os
Shinnecocks ou entre os seus.
— Não pense que estou satisfeito com esse arranjo, Maheegan. —
Chogan disse, em baixa voz, assim que a cerimônia se encerrou. — Mas a
escolha de Hurit deve ser respeitada. Agora, diante de toda a tribo, informo
que desejamos que nos auxilie na disputa iniciada pelo maldito hoteleiro que
deseja tomar nossas terras. Depositamos nossa confiança em você. Diga o
que precisa.
— Preciso que escrevam um documento me nomeando representante da
tribo. Não sou advogado nos Estados Unidos, mas as leis daqui permitem que
vocês nomeiem qualquer um como representante, portanto, estou apto. E
desejo que Askook vá comigo até a cidade para que possamos marcar uma
audiência para breve.
— Askook? — Etchemim perguntou.
— Sim, ele é jovem, inteligente e interessado na questão. É importante ter
um Shinnecock comigo além de minha própria esposa, mas preciso saber se
confiam que ele é capaz.
— Meu filho é capaz. — O pai se apresentou. — Mas ele não entende de
suas leis.
— Entende mais do que o senhor imagina. Gostaria que ele fosse meu
ajudante. Não, eu serei o ajudante dele. Askook falará pela tribo diante do
tribunal.
O burburinho que se espalhou indicou a comoção que Emile causara com
aquela afirmação, mas ele se manteria firme em suas decisões. Como alguém
de fora, ele não teria o envolvimento necessário para falar por uma dor que
não era a sua.
— Se for do desejo de Askook, ele o acompanhará.
O jovem se aproximou e confirmou que concordava com a proposta. A
multidão não se dissolveu, ao contrário - a celebração tornou-se uma grande
festa comunitária em que alguns tocavam instrumentos, outros cantavam e
outros dançavam. Hurit se esforçou para fazer com que ele aprendesse alguns
passos das danças tradicionais dos Shinnecocks e eles permaneceram entre os
tribais por mais algum tempo até se recolherem na cabana. O dia seguinte
seria cansativo e de muita tensão, portanto, eles precisavam descansar.

A PRESENÇA dos Shinnecocks causou tumulto em Southampton. Eles eram


aceitos para trabalhar em funções domésticas ou subvalorizadas, mas nunca
caminhando livremente pelas ruas na companhia de brancos - e nunca
naquela quantidade. Vários membros da tribo quiseram seguir com Emile e
Hurit até a cidade para demonstrar que eles não permaneceriam passivos
diante da tentativa de roubo de suas terras. Eles seguiram de carroça e cavalo
e postaram-se em frente ao prédio onde funcionava o tribunal. Pessoas
expressaram horror, cobriram a boca em espanto, viraram as costas em
desprezo, acenaram em cumprimento - e a polícia os interpelou quando
Emile, de braços dados com Hurit, entrou no edifício sendo acompanhado por
Askook.
Isaac e Nathaniel também estavam com eles, incluindo Lucille. Os irmãos
não queriam perder o espetáculo que aconteceria quando um deles defendesse
o direito dos nativos sobre o de um rico hoteleiro e não deixariam de prestar
apoio ao McFadden mais novo, afinal, era a primeira vez que veriam Emile
em um tribunal.
— Os senhores não têm autorização para entrar na corte. — Um dos
policiais afirmou.
— Que eu saiba, não é preciso autorização para frequentar prédios
públicos. — Emile enfiou a mão no bolso do paletó e retirou sua carteira de
documentos, felizmente recuperada com Nathaniel, e entregou um cartão de
papel ao guarda. — Sou Emile McFadden, advogado. Represento os
Shinnecocks em um processo e estou aqui para uma audiência com o
magistrado.
— O magistrado não recebe nativos.
— Se ele recebe processos contra os nativos, precisa atendê-los em seu
escritório. O senhor pouparia tempo se aceitasse que essas pessoas são
americanos e possuem direitos garantidos pela constituição.
Os policiais não ficaram satisfeitos em permitir que o grupo adentrasse,
mas não tiveram como impedir sem abusar da autoridade que tinham. Por
certo esperavam que o juiz decidisse prender todo mundo por insubordinação
ou desacato e encerrasse a situação, porém não havia nada que pudessem
fazer para evitar que eles conseguissem uma audiência. Portando o
documento assinado por Chogan, Emile apresentou-se ao escriba do cartório
e pediu para falar com o magistrado local.
Mais furdunço se estabeleceu até que ele pôde ser atendido. Não
permitiram que nenhum Shinnecock entrasse no escritório, apenas o
comentado advogado da Inglaterra que chegara para causar aquela
efervescência na pacata cidade. Em pouco tempo havia uma aglomeração de
curiosos na porta do tribunal, o que fez com que o juiz não estivesse de bom
humor - mas Emile não se importava. Ele precisava resolver aquela questão
com brevidade e parar de atrasar o retorno da família, além de poder
aproveitar algum tempo com Hurit. A confusão os mantinha juntos e
separados, felizes mas apreensivos.
— O que o senhor deseja, Sr. McFadden?
O magistrado, usando uma peruca branca demodê, o recebeu sentado por
trás de uma enorme mesa de mogno. Todo o ambiente possuía decoração
pesada e escura que fazia parecer com que eles estivessem dentro de um
caixão com a tampa fechada. A luz, proveniente de uma janela aberta,
mostrava a poeira suspensa no ar e o cheiro de mofo e artigos velhos irritava
qualquer nariz mais sensível.
— Gostaria de uma audiência imediata sobre este processo. — Emile
colocou a pasta com os documentos que carregava. — O peticionário não
apresentou fundamentos para a demanda e pleiteamos que ela seja encerrada.
— Quem o senhor representa?
— A tribo Shinnecock.
— E por que um inglês está defendendo os interesses de um bando de
nativos?
— Eles não são um bando, Excelência. São uma tribo, um povo, uma
nação. Se o senhor não quiser reconhecê-los como nação, ao menos deverá
analisar a questão de que eles possuem direitos legais originários sobre essas
terras e o estado americano não pode lhes tomar nada sem violar a
constituição que tanto defendem.
Ainda contrariado e possivelmente mais irritado, o magistrado pegou a
documentação e a examinou. Emile tinha certeza de que venceria o pleito
porque acreditava no sistema e nas instituições. Aquelas pessoas podiam ser
preconceituosas e ter atitudes horríveis, mas não desdenhariam dos princípios
que lutavam com tanto ardor para fazer prevalecer.
— Preciso ouvir os argumentos do pleiteante. Mandarei um oficial
convocá-lo para uma audiência às duas horas.
Sem nem mesmo olhar para Emile, o magistrado tocou uma campainha e
fez um gesto com a mão e indicou que ele deveria sair. A porta se abriu e um
homem calvo e de óculos entrou, carregando uma pilha de papéis, para
receber a ordem que deveria cumprir. Não havia muito mais o que
argumentar, eles teriam que esperar até a tarde - notícia que não foi bem
recebida por ninguém. Ele era calmo e acostumado a longas esperas, o que o
tornou um homem contemplativo e observador, mas descobriu, naquele dia,
que seus irmãos e sua esposa eram agitados demais para acompanhá-lo.
— Vou usar esse tempo para escrever outra carta para o conde. — Isaac
disse. — As coisas estão acontecendo em velocidade incompatível com os
correios internacionais, imagino eu.
— Não seja tolo, contamos as novidades a Edward quando chegarmos.
— Nate, eu disse na última carta que estávamos em busca de Emile e que
duvidava que o encontraríamos vivo. Não pretendo enfrentar nosso irmão
mais velho com a notícia de que Emile foi encontrado, está casado e tomou a
louca decisão de morar em uma aldeia.
— Posso ouvir vocês falando de mim. — Emile se aproximou. Eles
estavam no meio do salão de entrada do tribunal, que era uma construção
pequena e pouco arejada. A maior parte dos Shinnecocks permaneceu do lado
de fora, causando comoção entre os moradores de Southampton. — E
concordo com Isaac, avise logo Edward da surpresa, assim ele não vai se
enfurecer com vocês quando chegarem sem mim.
— Eu permanecerei aqui. Quero ver quando Nolan aparecer e descobrir
que estamos envolvidos na confusão.
Isaac moveu os ombros em desalento e saiu. Emile pegou Hurit pelas
mãos e foi até Chogan explicar quais seriam os próximos passos.

H AVIA um homem arrogante no tribunal naquela tarde e ele se chamava


Nathaniel McFadden. Apenas um outro, igualmente arrogante, poderia
confrontá-lo e a sua presença causou enorme rebuliço. Assim que Nolan
Fitzgerald pisou na entrada do prédio onde era aguardado, todo mundo
percebeu quem ele era. Trajando um terno que custava mais do que o salário
de qualquer funcionário da justiça local, até mesmo do magistrado, ele
exalava prepotência até o último fio de cabelo engomado e sorria como se o
mundo inteiro lhe pertencesse.
Lucille segurou o marido para que ele não pulasse na frente do ex-chefe e
fizesse algo de que se arrependeria. Ela sabia que o irmão bastardo era uma
pessoa cruel - sabia simplesmente porque ele era o espelho de Walter Smith,
com quem convivera por toda a sua vida. Foi Emile quem confrontou o
recém-chegado com uma petulância que raramente era vista nele, deixando
Hurit apreensiva.
— Sr. Fitzgerald. — Emile estendeu-lhe a mão, que Nolan aceitou. —
Temos contas a acertar no tribunal, podemos ir?
— Eu deveria saber que você estaria metido nisso. — O homem dirigiu-
se a Nathaniel, que era contido por uma barreira invisível construída por
Lucille. — Não teve coragem de me enfrentar, precisou destacar o seu irmão?
— Sou o advogado aqui, Sr. Fitzgerald, e espero que se dirija a mim.
Permita-me apresentar Askook, o representante formal da tribo.
O jovem Shinnecock, que fora vestido com um terno um pouco frouxo e
usava gravata pela primeira vez na vida, adotou uma postura similar a dos
outros homens e se colocou ao lado de Emile. Nolan deu uma risada
sarcástica, indicando que não levava nada daquilo a sério. Hurit teve vontade
de ela mesmo surrá-lo, mas suspeitou que fosse arriscado demais fazer
aquilo. O homem parecia perigoso.
— Vamos logo acabar com essa palhaçada. Meu sócio me espera com
boas notícias.
Os homens caminharam para a sala de audiências e uma pequena
multidão os seguiu, acomodando-se em filas de cadeiras para acompanhar o
embate. O salão não era diferente de outras dependências do prédio, mas era
mais iluminado e arejado, com bastante luz solar incidindo por sua extensão.
Havia um grande tablado de madeira onde estava a cadeira do juiz, as
bandeiras nacionais e do estado à direita e as cadeiras do juri à esquerda.
Como se tratava de uma audiência simples, não havia funcionários
trabalhando naquele momento, apenas um meirinho que anunciou a entrada
do magistrado ordenando que todos ficassem de pé. Aquela era a primeira
vez que Hurit entrava em um tribunal e via como funcionava o sistema
judicial dos brancos. Não pareceu especialmente inspirador para ela, porém a
forma como Emile reluzia com seus cabelos dourados e sua postura
masculina fez com que ela não se importasse com o aparente tédio do
processo.
Askook e Emile posicionaram-se em um dos lados e Nolan Fitzgerald,
que também estava acompanhado de um advogado, ficaram do outro. O
magistrado pediu para que o peticionário expusesse sua justificativa,
considerando que o interesse no pedido foi contestado pela tribo. Com uma
retórica cansativa e confusa, o advogado que representava os interesses do
hoteleiro discursou por quase uma hora, sendo interrompido pelo juiz que não
aguentava mais ouvi-lo.
— O contestante tem algo a acrescentar antes que eu tome minha
decisão?
Todos os presentes prenderam a respiração, inclusive Hurit.
— Sim, excelência. Gostaríamos de argumentar alguns pontos que
reforçam a contestação.
Emile pegou um papel com alguns escritos e entregou para Askook. O
jovem Shinnecock assentiu, se encaminhou para a tribuna e começou a
discorrer sobre a questão das terras.
— Meritíssimo, a proteção à propriedade é garantida pela constituição em
sua essência. James Madison disse que todo homem tem direito à sua
propriedade e Thomas Jefferson resumiu nossas vidas e liberdades na palavra
propriedade. A Suprema Corte, desde a Guerra Civil, defende a propriedade
contra ataques de terceiros por meio das cláusulas do devido processo legal.
E a quinta emenda protege diretamente a propriedade de tomadas injustas
para uso do Estado, garantindo justa compensação e interesse público. O
peticionário pretende que nossas terras sejam consideradas públicas e, com
isso, adquiri-las do Governo. Porém eu pergunto a Vossa Excelência, o que
determina que uma terra seja considerada pública? Se somos cidadãos
americanos, estamos submetidos todos à mesma constituição. Se não somos,
essa corte terá que nos reconhecer como uma nação independente e qualquer
violação de nossas fronteiras terá que ser enfrentada como um ato de guerra.
A parte final do discurso de Askook emudeceu a plateia. Hurit sabia que
ele não escrevera aquelas palavras, que Emile passara a noite preparando-as
para garantir que eles tivessem bons argumentos, mas ela o amava ainda mais
porque ele não era vaidoso. O juiz manteve uma expressão de surpresa e
estupefação porque estava em uma posição muito difícil. Nolan Fitzgerald
tinha as mãos fechadas em punhos e estava visivelmente irritado - sua certeza
de vitória fora abalada pela fragilidade de seu pleito. Toda a demanda residia
sobre o desprezo que os americanos tinham pelos nativos, porém aquele
desprezo tinha limites quando se tratava de proteger a constituição que tanto
adoravam. Emile sabia daquilo, Hurit passara a compreender naquele
momento.
Depois de algum tempo em silêncio, o magistrado disse estar pronto para
proferir sua decisão e, acolhendo a tese defendida por eles, extinguiu o pleito
movido pelo hoteleiro. Alguns presentes ficaram confusos com o palavrório
técnico, mas o sorriso de Emile e o abraço fraterno que ele deu em Askook
fez com que todos entendessem que não importava o que fora dito, eles
haviam ganhado. Tão logo o magistrado declarou encerrada a sessão, um
homem que usava chapéu de aba larga e parecia vindo do oeste entrou pelo
grande salão, fazendo com que todos olhassem para ele. Com um grande
bigode e botas pouco usuais para os habitantes da região, o forasteiro
aproximou-se de Nolan e sussurrou alguma coisa para ele e para o advogado
e se virou na direção de Emile, que já se preparava para deixar o recinto.
— O senhor é o responsável por esse circo? — Perguntou, exibindo a
mesma arrogância do irmão bastardo de Lucille.
— Não estamos em um circo, senhor, mas em um tribunal. E parece-me
que o responsável se chama Gerald Winchester, caso o senhor o conheça.
O homem deu uma gargalhada alta e afiou as pontas do bigode com o
indicador e o polegar.
— Sarcasmo, eu gosto disso. Bem, independente do que possam pensar
de mim, sou um homem que acredita no sistema de justiça. Se as terras não
estão disponíveis, construiremos o hotel em outro local.
— Não penso nada do senhor, eu não o conheço. — Emile estendeu a
mão para o ainda desconhecido. — Sou Emile McFadden e essa é minha
esposa, Hurit. — Ele a puxou para si e a acomodou debaixo de seu braço.
— Você se casou com um deles, entendo agora seus motivos. — O
homem aceitou a mão de Emile. — Imagino que saiba que sou Gerald
Winchester. Foi um prazer conhecê-lo, Sr. McFadden. Tenho muitos
negócios em Nova Iorque, espero que um dia considere aparecer para um
café. Gosto de trabalhar com pessoas como o senhor.
Como se ele mandasse naqueles que o acompanhavam, o Sr. Winchester
fez um gesto indicando que deveriam segui-lo. Nolan não parecia satisfeito,
mas não demonstrou que contrariaria o hoteleiro. Ao passar por Emile e
Hurit, no entanto, olhou-os de cima a baixo e sorriu com ironia.
— Aparentemente, não temos mais interesse nessa disputa. Vocês têm
sorte. Nos vemos por aí.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO

O CLIMA DE FESTA ESTABELECIDO PELA VITÓRIA CONDUZIU TODO MUNDO PARA


a aldeia, inclusive os irmãos McFadden. Isaac e Nathaniel haviam decidido
que, no dia seguinte, voltariam para Nova Iorque e, após descobrirem tudo
que acontecera desde o falecimento de Walter Smith, voltariam para Londres.
Lucille estava ansiosa para confirmar se a mãe havia fugido para o lugar que
ela indicou e se estava finalmente livre do jugo da crueldade. Naquela noite,
no entanto, eles comemorariam.
Celebrariam a vitória simbólica da tribo sobre o hoteleiro, a derrota da
arrogância de Nolan Fitzgerald, o autocontrole de Nathaniel por não tê-lo
assassinado com as próprias mãos, a elegância de Askook ao discursar diante
de um magistrado sendo tão jovem e inexperiente e a garantia de que, depois
daquele dia, Emile seria um nome falado pelos quatro cantos de
Southampton. Não que ele desejasse ser conhecido, mas era bom ganhar
alguma fama se pretendia trabalhar como advogado na cidade. Afinal, para
ficar com Hurit, ele tinha que continuar trabalhando no que sabia fazer e
prover a sua família sem retirá-la de perto da tribo. Havia poucas certezas na
vida de Emile e duas delas eram: ele amava sua esposa e ele faria qualquer
coisa para que aquele amor jamais a afastasse de seu povo.
— Teremos uma noite e um dia de festa. — Chogan decretou, diante da
fogueira. — E Maheegan conquistou não apenas o coração de minha filha,
mas também meu respeito. Ao contrário dos homens brancos que
conhecemos, esse possui honra e nos dá esperança de que nem todos sejam
iguais.
— Não mereço muito alarde. — Emile disse, em voz mais baixa. — O
que fiz foi usar o sistema contra ele mesmo e provocar um conflito que
conduziria o juiz a apenas uma decisão. Infelizmente, isso não quer dizer que
eles respeitam a tribo ou os Shinnecocks, apenas que estão encantados
demais com as próprias leis e julgados para reconhecer que eles possuem
qualquer falha. Eu manipulei a cabeça do magistrado, mas foi apenas isso.
O cacique colocou as duas mãos nos ombros dele e o encarou nos olhos
pela primeira vez.
— Você pode ter feito isso que disse, mas fez em nosso favor. Nenhum
branco lutou do nosso lado até hoje, portanto seja bem-vindo como marido de
Hurit e um de nós. Reconhecemos o valor de um homem e você mostrou o
seu hoje, Maheegan.
O nome ainda soava estranho, porém era melhor do que o anterior, pelo
menos significava algo bom e honrado. O lobo.
Enquanto todos comiam e bebiam, ele se sentou em um banco de madeira
mais distante e observou, como fizera durante a vida. Não era deixado de
lado, apenas não se acostumara a participar de quase nada. Era ainda o
menino na janela espreitando os outros, mesmo que aquele menino já tivesse
crescido e se tornado um homem. Percebendo-o solitário, Hurit se aproximou
e se sentou ao lado dele. Entrelaçaram as mãos, que ele levou aos lábios e
beijou.
— Essa movimentação toda não nos deu tempo nem mesmo para
compreendermos o que aconteceu entre nós. — Ela recostou a cabeça em seu
ombro.
— Lamento por isso, Bela. Porém amanhã começamos a nossa nova vida
e ela inclui nosso casamento formal. Sei que não se importa com as minhas
leis, mas eu quero que seja minha esposa em definitivo - aqui na aldeia e fora
dela.
— Eu também quero ser sua esposa em definitivo, seja lá o que isso
signifique.
Antes que pudessem iniciar uma discussão qualquer, foram interrompidos
mais uma vez - por Wematin. O velho cego sentou-se ao lado de Hurit e
segurou a outra mão dela. Havia muito ruído, música e dança, mas aquele foi
um momento em que tudo pareceu silenciar para ouvir o xamã falar.
— Você está pronta, minha filha. Em breve devo fazer minha travessia
para me encontrar com meus ancestrais e você poderá assumir meu lugar.
— Ninguém assumirá seu lugar, velho. E não acredito que encontrará
seus ancestrais tão cedo, imagino que meus filhos estejam adultos quando
isso acontecer.
Wematin deu uma risada.
— Já os ouço me chamando, criança, mas não poderia atendê-los
enquanto você estivesse precisando de mim. Porém seu lobo chegou e minha
missão se cumpriu.
— Sua?
— Claro. Você imaginava que decifrar a visão e garantir que ela
acontecesse fosse um fardo seu, menina? Ela veio a mim, os deuses
confiaram que eu fosse o guardião da visão, portanto ela era minha desde o
início. Encontrar Maheegan e garantir que vocês ficassem juntos era o que
me faltava para poder deixar o mundo dos vivos em paz.
— Pare de falar bobagens, Wematin. — Hurit se enfureceu, mas aquela
irritação era falsa. Emile sabia que, quando ela sentia algo com o qual não
podia lidar, se aborrecia. — Amanhã você acordará com outra visão e terá
mais missões para cumprir e orientações para distribuir.
— Talvez ela não esteja tão pronta assim. — O xamã falou para Emile.
— Continua teimosa e malcriada. Você terá trabalho para domá-la,
Maheegan.
— Não pretendo domá-la, xamã. Gosto dela como ela é.
— Resposta certa, meu rapaz. — O velho se levantou e passou as mãos
pelos cabelos de Emile, bagunçando-os. — Resposta certa.
Hurit manteve a carranca até o xamã se afastar o suficiente para não mais
a ver e em seguida deu uma risada baixa. A relação entre ela e o homem dos
espíritos era tão próxima que Emile a via mais conectada a Wematin do que
ao próprio pai. Eles permaneceram ali, abraçados e observando o movimento
quando foram novamente atrapalhados - daquela vez pelos McFaddens.
— Temos que ir, Milo. — Isaac estendeu a mão para que ele se
levantasse. — Amanhã cedo partiremos para Nova Iorque e, se tudo der
certo, também vamos para Londres no mesmo dia. Tem certeza de que não
irá conosco?
— Ainda podemos comprar sua passagem.
— Depois de verem o lugar maravilhoso onde morarei ainda acham que
pretendo retornar para a cinzenta e fedida Londres?
Emile provocou, tentando manter um tom de humor na partida dos
irmãos. Ele morreria de saudades da família, dos sobrinhos, até da
inconveniente e falante Caroline e do ranzinza Edward, mas não se
arrependia nem estava disposto a mudar sua decisão. Aquela aldeia se tornara
seu lar e era o marco de seu renascimento. Ali ele não era um homem doente,
um menino na janela, era o lobo, o inimigo, uma criatura ameaçadora e
encantadora ao mesmo tempo.
— Vamos nos reencontrar em breve. — Nate insistiu. — Ajeite as coisas
com sua senhora e venha à Inglaterra. Sentiremos sua falta, irmãozinho.
Mostrar sentimentos nunca foi a melhor qualidade de Nathaniel mas,
naquele momento, ele se deixou levar por um sentimentalismo inédito e
abraçou Emile com força. Isaac juntou-se ao grupo e os três irmãos se
despediram como os McFaddens faziam melhor, com piadas, risadas e
lágrimas.
— Nate! — Ele interpelou o irmão antes de ele se afastar totalmente. —
Preciso saber... devemos nos preocupar com Nolan Fitzgerald?
— Ele é movido por dinheiro. Se o homem por trás de tudo aceitou a
derrota, ele também aceitará e já deve estar à procura de outras vidas para
importunar. Mas tem uma coisa. Se ele aparecer por aqui, mate-o. Não hesite,
não tenha remorso. Nolan pode não parecer ameaçador, mas não lhe dê as
costas.
— Se ele aparecer, eu o destruirei.
Com um sorriso mórbido, Nathaniel balançou a cabeça e montou em
Hades, puxando Lucille consigo. Emile e Hurit ficaram observando os três se
afastarem até desaparecerem pela noite.
— Você está silenciosa.
— Apenas aproveitando os momentos de paz enquanto eles duram.
— Quer ir para nossa praia?
Hurit se virou e o fitou com os olhos escuros e brilhantes.
— Eu adoraria.
Enquanto o povo continuava celebrando, os dois escapuliram escondidos
pelo véu da escuridão. Emile quis prometer que eles só teriam dias tranquilos
daquele dia em diante, mas não tinha como saber se aquilo seria verdade.
Descobrira que as confusões o perseguiam - ao menos aprendera sobre como
resolvê-las.

A PRAIA ESTAVA MUITO CALMA . De todas as vezes que ela estivera naquela
enseada escondida, nunca vira tanta tranquilidade em ondas quebrando
morrinhentas na areia branca e o ruído do ir e vir das águas. O cheiro de
maresia a intoxicava, mas o que a deixava mais extasiada naquela noite era a
presença ao seu lado.
Hurit suspeitava que não aproveitaria mais a praia sozinha. Talvez ela
precisasse de momentos de reflexão e solidão para se conectar com os deuses
e ouvir os espíritos, mas ela estava feliz em ter com quem compartilhar a
vista, a paz, seus pensamentos. Até aquele momento ela nunca achou que
desejaria alguém ao seu lado para sempre, e então o seu enviado, o problema
que ela não queria ter que resolver, chegou para perturbar as antes sólidas
convicções que tinha.
Sentado ao seu lado, ele estava absorto na paisagem mas sua mão se
mantinha sobre a dela, acariciando-a com o polegar e despertando sensações
esquisitas. Hurit também não estava acostumada àquilo, ao desejo - era algo
que ela esperava sentir mas que não sentira antes de conhecer Emile.
— Eu quero me casar com você.
Ele disse, pegando-a de surpresa.
— Pensei que já estivéssemos casados.
— Estamos, mas eu quero me casar pelas minhas leis. Quero que seja
minha esposa aqui, lá fora, em qualquer lugar.
Hurit deu uma risada e recostou a cabeça no ombro dele. A brisa marinha
soprava contra eles e deixava a pele grudenta e salgada, tornando qualquer
contato entre eles bastante exótico.
— Teremos que nos casar em todos os lugares do mundo então,
Maheegan.
— Parece um bom motivo para viajar. Você gostaria de conhecer o
mundo, Bela?
— Estou feliz com o mundo que conheço, mas aceito ir à Inglaterra
conhecer sua família. Não podemos fazer uma desfeita ao seu irmão mais
velho, afinal, ele é um conde. Como podemos decepcionar um conde?
— Você diz isso porque não conhece o amigo dele, o duque. Juntos, eles
são insuportáveis.
Emile deu uma gargalhada espontânea, rindo da própria troça, e ela não
conseguiu evitar segui-lo. Eles riram e, quando Hurit percebeu, estava com as
costas apoiadas no cobertor, sentindo o peso do corpo dele sobre o seu e a
maciez dos lábios dele capturando os dela. Os sentidos se concentraram
imediatamente nele, no toque dos dedos em seus cabelos, na boca que a
devorava, na fricção dos quadris que se assemelhava a uma espécie de tortura
deliciosa.
— Desculpe-me. — Ele murmurou no ouvido dela enquanto mordiscava
sua orelha. — Eu me tornei um devasso ao seu lado. Posso dizer que a culpa
é sua por me provocar?
— Não fiz nada para provocá-lo, não me responsabilize por sua
devassidão. — Ela enfiou as mãos por dentro da camisa dele e o acariciou,
arrancando-lhe alguns gemidos indecentes.
— A sua mera existência já me provoca, meu amor.
Ele a beijou outra vez e quase arrancou seu fôlego. Parecia bastante claro
por que proibiam as mulheres de conhecer o sexo antes de se casarem, ou por
que não lhes ensinavam nada sobre ele e por que proibiam livros como os de
Lady Malícia - era difícil resistir à tentação de se deixar seduzir quando a
paixão arrebatava a razão. Por sorte, ela não precisava resistir porque aquele
homem por quem estava apaixonada era seu.
— Eu amo você. — Hurit disparou. Era a primeira vez que ela dizia
aquelas palavras para qualquer pessoa. Por mais que amasse seus pais, seu
irmão, Wematin, seus amigos, ela não lhes dizia com todas as letras. Eles
apenas sabiam como se sentia e ela se esforçava para garantir que soubessem.
Emile se afastou um pouco dela e a encarou com os olhos azuis flamejantes
refletindo a parca iluminação da lua e das duas lamparinas que haviam
levado. — Eu amo você e estou muito feliz que Paumpagussit o tenha trazido
para mim.
Com um sorriso que seria capaz de derreter o gelo das montanhas e
aquecer um oceano, Emile repetiu que a amava e a beijou por toda a extensão
de seu corpo. Boca, pescoço, ombros - tudo que ele passara a descobrir
enquanto abria os botões da camisa dela para livrá-la do tecido. Hurit jogou a
cabeça para trás quando ele beijou seus seios e desceu para o abdômen,
circulando o umbigo e livrando-a da saia com uma agilidade incrível. Ela
esperava que seu marido sempre estivesse disposto a lhe ofertar aqueles
carinhos, pois duvidava que conseguiria ficar sem eles por muito tempo. Se
ela era culpada por torná-lo um devasso, o que poderia dizer dele?
Apesar da escuridão, ela desejava vê-lo e tocá-lo. Não deixou que ele se
perdesse em carícias por entre suas pernas, mesmo que impedi-lo de
prosseguir fosse quase impossível. Hurit o empurrou para cima e, com
avidez, retirou-lhe a roupa para poder apreciar o corpo masculino que a
encantava. Não importava que ela o conhecesse, ele se mostrava novo a cada
toque - e ela adorava percorrer os dedos por suas formas e músculos.
Gemendo de prazer, ele se manteve o mais quieto possível para lhe permitir a
exploração. Quando Hurit levou as mãos aos botões das calças, uma breve
hesitação a fez parar.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar para encará-lo.
— Por experiência, você não precisa saber. Basta fazer o que quiser.
— E se eu fizer alguma coisa errada?
Emile riu e segurou-a pela face, uma mão de cada lado.
— Considerando que eu estou quase explodindo e você mal me tocou,
duvido que seja capaz de fazer qualquer coisa errada, Bela. Mas não pense
demais, apenas faça.
Ela fez. Terminou de abrir os botões e expôs o restante do corpo dele que
declarava o quanto ele a queria - e se sentiu bastante orgulhosa por despertar
nele tamanho desejo. Tocou a ponta com os dedos, deslizou a mão até a base
e se deliciou quando ele, em abrupto, a segurou pelos ombros e a jogou
novamente no chão, possuindo sua boca com a fome de dez homens. Com um
gemido que dizia o quanto ela o enlouquecia, Emile pressionou os quadris
contra os dela e a penetrou profundamente. Tendo a lua e o oceano como
testemunha, eles se amaram como se tivessem a vida toda e como se fosse a
última vez.

O S PRIMEIROS RAIOS de sol trouxeram o dia seguinte, a promessa de uma vida


maravilhosa e uma visita. Hurit despertou de um sono hipnótico que
significou um sonho que a transportou para o mundo dos espíritos e acordou
com a águia pousada ao lado de Emile. Ela o observava virando o pescoço de
um lado para o outro, querendo que ele também acordasse, e abria as asas
para mostrar que estava curada. Aquele era um animal singular e fazia com
que ela questionasse praticamente tudo que sabia sobre os brancos. Sempre
desconfiou que havia manitou em Emile e a águia confirmava que a
sensibilidade do marido era além do que se podia esperar de alguém que não
tinha nenhuma conexão com a natureza ou com os deuses.
Ela se levantou e foi até o mar. Mergulhou nas águas frias da manhã e
agradeceu a Paumpagussit por tudo que lhe acontecera, mesmo que antes não
compreendesse os propósitos de seu padrinho. Banhou-se no salgado e
retornou para a areia para encontrar o marido acordado e tentando conversar
com sua nova amiga.
— Vai dar um nome a ela?
— Não sei. — Ele acariciou a cabeça do bicho, que tentou bicá-lo em
seguida. — Quando damos nomes parece que nos apropriamos das coisas e
ela não é nossa, não é mesmo?
— Não é nossa. — Hurit sentou-se molhada ao lado dele. — Mas nomeá-
la também pode significar que são amigos e respeitam um ao outro. Ela
poderia se chamar wôpsukuhq.
— Eu jamais poderia pronunciar essa palavra. E ela não significa águia?
— Sim, assim como seu nome de batismo Shinnecock significa lobo.
— Falta criatividade em vocês para escolher nomes. O que diz, criatura,
gostaria de receber um nome?
A águia gritou, testou as asas e alçou voo. Deixou-os ali, vendo-a ganhar
os céus com a certeza de que o ferimento que a abatera estava curado. Por
instinto, Hurit olhou para o torso descoberto de Emile e levou a mão até a
cicatriz que representava a maior conexão entre eles. Não tivesse quase
morrido, eles jamais teriam se conhecido - e apenas por aquilo ela já
acreditava o suficiente que aquele homem não só estava em seu destino, mas
ele viera para mudá-lo por completo.
Era intrigante que ele parecia acreditar na mesma coisa. Que estava
seguro de que Hurit mudara o rumo de sua vida e o tirara de um futuro de
marasmo para lhe apresentar um mundo de aventuras.
— Sentirei falta dela. — Ele suspirou.
— Acredito que ela retornará quando quiser. Imagino que ela também
sentirá saudades suas. Eu tive uma visão essa noite.
Emile sentou-se de frente para ela e a encarou.
— Uma visão, como o xamã?
— Sim, porque eu sou xamã.
— Certo, e o que tinha nessa visão? Mais um lobo?
— Não. Foi a visão mais estranha que já tive, porque passei todo o sonho
percorrendo uma estrada. Por vezes ela era de pedra, outras de terra, algumas
de areia. Por um momento eu tive que nadar, mas era como se o mar também
fosse uma estrada.
— Conseguiu chegar ao final? Descobriu se havia alguém te esperando?
— Não. Quanto mais eu andava, mais havia para percorrer. Não sei o que
a visão significa, mas elas nunca vêm claramente da primeira vez. Precisamos
de mais conexão e paciência para entender o chamado dos deuses. Wematin
sempre dizia isso e eu achava que era preguiça de nos explicar o que ele
sabia, mas imagino que ele esteja certo. O velho sempre está.
— Talvez a estrada seja o nosso caminho.
— Wematin disse que você era o caminho que eu deveria percorrer.
— Bem, você acabou de dizer que ele está sempre certo. Isso significa
que somos para sempre, meu amor.
O sol já subia inteiro no horizonte e matizava o céu com os mais variados
tons de laranja. Eles se viraram para admirar a beleza do dia que chegava e do
futuro que se apresentava à frente. Por anos, Hurit foi um joguete do destino
e das missões que considerava essenciais para a felicidade do seu povo. Em
semanas, ela jogou tudo aquilo para o alto, apoderou-se de sua própria vida e
entendeu que a sua felicidade também seria a da tribo. Que ela não precisava
ser a líder para comandar e que de nada valia seguir estritamente aquilo que
ela considerava importante para todos se suas necessidades não fossem
também atendidas. Por uma mesma quantidade de anos, Emile fora um
menino doente, depois um jovem doente e, por fim, um homem que todos
viam como frágil. Ali, naquele lugar onde ele acreditava não pertencer, foi
reconhecido como um lobo, um homem forte.
Talvez ele estivesse certo e a visão fosse realmente sobre eles. No final
ele era um caminho e desviar-se por ele fora a melhor decisão que ela tomara
desde que, aos doze anos, soube que haveria um lobo em sua vida.
EPÍLOGO #1

U MA NOITE COMO AQUELA PODERIA SER DENOMINADA MÁGICA . O DIA TRINTA


e um de dezembro sempre representava muitas convergências, mas eles
estavam virando mais do que um ano do calendário - estavam mudando de
século. O ano 1900 chegaria com os Estados Unidos da América se
destacando como potência econômica, atraindo pessoas de vários lugares do
mundo. Uma nação formada por estrangeiros, que não tratava nem os seus
com respeito, mas que prometia vida próspera e dinheiro nos bolsos de quem
trabalhasse duro. Para os Shinnecocks, no entanto, aquela data representava
convergências de forças espirituais que não podiam ser ignoradas.
Hurit deveria passá-la com Wematin. Ela se acostumara a estar com o
xamã em toda virada de ano, mas, daquela vez, ele pediu para estar sozinho.
Disse que não a tiraria da companhia do marido e não a faria jejuar e congelar
na praia até a meia-noite noite. Mesmo relutante em romper com as tradições,
Hurit não se chateou em ser rejeitada pelo velho - ela adoraria celebrar o
novo século que se iniciava entoando cânticos com sua família e
aproveitando o calor de sua nova casa. Desde que se casaram, Emile se
comprometeu com a revitalização da cabana e fez aquilo com suas próprias
mãos - e uma grande ajuda dos homens da tribo. Aumentou dois cômodos,
ampliou o banheiro e colocou uma porta nele, construiu uma lareira na sala,
modernizou a cozinha e garantiu para eles o que chamava de suíte - um
quarto com uma enorme cama de casal e várias comodidades como banheira
e outra lareira.
Meses se passaram desde que a sua vida mudou completamente e ela
nunca fora tão feliz.
— Preciso sair. — Ela disse ao marido, depois que os convidados da ceia
retornaram para suas casas. — Devo estar na praia à meia-noite.
— Pensei que Wematin tivesse tentado poupá-la de enfrentar o frio lá
fora. — Emile fechou as cortinas. — Está nevando, Hurit, até o oceano deve
estar congelado.
Ela olhou pelo vidro fechado e os flocos de neve caíam suaves como
pequenas penas brancas.
— Não seja tolo, o oceano não congela. Será a primeira vez que passarei
uma noite de virada do século sem me conectar com os deuses, mas você tem
razão. Wematin quis me poupar, devo respeitar e acreditar que ele será
suficiente para convergir as energias de hoje.
— Exato. — Emile a segurou por trás e beijou-a no ombro. — Você pode
aproveitar para se conectar comigo.
Explodindo em uma gargalhada, ela se virou e beijou-o nos lábios.
Sempre parecia uma ótima ideia passar algum tempo se deixando seduzir
pelo marido - quanto mais eles se entregavam um ao outro, mais essa entrega
se tornava prazerosa. Atendendo à sugestão explícita, ela acompanhou Emile
até o quarto e deixou que ele arrancasse dela as preocupações tolas pela
passagem do ano.
Ainda assim, sua noite não foi plena e tranquila. De madrugada,
despertou com lamentos do lado de fora e barulho de madeira batendo na
janela e na porta, como se os galhos de uma grande árvore estivessem
farfalhando com o vento - porém, não havia nenhuma árvore próxima da casa
que pudesse causar aquele efeito. Emile dormia como se nenhum ruído o
incomodasse e Hurit concluiu que apenas ela podia ouvir - aquele era,
provavelmente, um chamado. Enrolou-se em cobertores, calçou botas de
couro e peles e saiu, parando no meio do quintal de sua casa, na direção do
oceano. O vento e o barulho cessaram e, para sua surpresa, a águia chegou
voando e pousando no chão bem à sua frente. Se Hoobamack queria fazê-la
sentir-se confortável, aquela era uma ótima estratégia.
“Você está preocupada.”
A águia disse mesmo sem dizer. Os olhos dela fitavam Hurit diretamente
e a atingiam como uma onda de tranquilidade.
— Por que veio?
“O velho tem um recado.”
— Wematin nunca precisou de Hoobamack para me dar recados. O que
está acontecendo?
“Ele diz que você deve seguir o caminho e que está bem, agora.”
Hurit sentiu o vento lhe golpear as costas no mesmo instante que a águia
levantou voo e desapareceu na escuridão da noite. Algo não estava certo e
não tinha a ver com a mensagem enigmática do seu deus - o xamã nunca lhe
passara mensagens por meio de visões. As visões estavam sempre ligadas aos
espíritos, aos ancestrais e isso significava que alguma coisa acontecera com
Wematin.
Imprudente e sem considerar os riscos que corria, Hurit saiu em disparada
na direção da cabana do xamã. Não pegou nenhuma lamparina, apenas guiou-
se pelos sentidos e pelo conhecimento geográfico da aldeia e deixou que seus
pés a conduzissem até onde ela esperava encontrar seu mentor adormecido. A
luz vinda da cabana era outro indício de que ela estava certa - ao entrar pela
porta, esbaforida, encontrou o lugar vazio. Cama perfeitamente arrumada,
tudo no lugar e o fogo ainda aceso como se esperasse o retorno de alguém,
mas Wematin não estava ali. Não era comum que ele levasse tanto tempo na
praia e o frio estava intenso demais para que fosse saudável permanecer ao ar
livre.
Sobre a mesa de madeira havia um livro. Confusa e nervosa, Hurit o
tomou nas mãos e folheou rapidamente, descobrindo tratar-se de um diário,
todo escrito com a letra do xamã. Na última página, datada de 31 de
dezembro de 1899, havia uma carta para ela.

“Criança,
Os ancestrais me chamam para junto deles e é uma convocação
que não desejo recusar. Há muito sei que meu momento de adentrar
ao mundo dos espíritos se avicinava, porém precisava da convicção
que você estaria bem, que estaria no caminho certo. Precisava saber
se o lobo estaria ao seu lado para lhe guiar, proteger e cuidar. Com
essa certeza, estou tranquilo para garantir que minha passagem seja
feita na hora certa. Hoje me despeço do meu corpo material e deixo
para você meus escritos - todas as minhas visões, todas as visões
dessas visões e todas as decisões que foram tomadas a partir delas.
Wematin podia não mais enxergar, mas os deuses escreviam pelas
minhas mãos. Deixe que eles escrevam pelas suas e saiba: o caminho
está à sua frente. Seus pés sempre a conduzirão na direção certa,
apenas siga adiante.”
A S LÁGRIMAS ESCORRIAM de seus olhos e molhavam o papel, borrando a tinta
e misturando as letras. Hurit não chorava, então ela não entendeu aquele
arrebatamento de emoções que a alvejava. Da mesma forma abrupta que ela
chegou, agarrou o diário e saiu pela porta da cabana, retornando para sua
casa. Soluçava e corria, corria e soluçava e, antes de conseguir chegar, seu
corpo entrou em colapso e ela desabou no chão. Sentindo-se miserável,
permaneceu na mesma posição enquanto se permitia chorar por uma perda
que ela não desejava sofrer.
— Hurit? — A voz ecoou em seus ouvidos mas ela não se mexeu. —
Hurit!
Emile a chamava. Ela mantinha os olhos fechados e os abriu para tentar
enxergar o marido, que se aproximava com uma lamparina. Ao vê-la ali,
correu em sua direção, ajoelhou-se no chão e a tomou nos braços.
— Meu amor, o que houve? Você se machucou? Por que saiu nesse frio?
— Eu tive uma visão.
— Foi algo ruim?
— Wematin se foi.
Talvez ele não tivesse entendido o significado de “ir”, mas não pediria
mais informações ali fora enquanto ainda nevava. Emile pegou Hurit no colo
e a conduziu de volta para casa, acomodando-a na frente da lareira acesa e
colocando água para ferver para preparar um chá. Depois que ela estava
enrolada em cobertores secos e com os pés sendo massageados por ele, as
perguntas puderam ser feitas.
— Diga o que houve.
— Ele mandou um recado por Hoobamack e não estava em sua cabana.
— Talvez ele tenha passado os festejos na casa de alguém.
— Não, Emile, ele se foi. Há uma carta para mim, o fim do ano também
marcou o fim de sua vida terrena. O velho está agora com seus ancestrais.
Ela voltou a chorar, atordoada por lágrimas e pesar e ele a tomou nos
braços outra vez até que se acalmasse. O xamã não desejaria que Hurit se
esvaísse em lágrimas porque ele estava bem - e, se estava, não havia motivos
para que ela lamentasse. Não havia perda, ele cumprira a missão que, daquele
dia em diante, passaria a ser sua.
Quando a manhã chegou, Emile reuniu Chogan, Askook e Etchemim e foi
em busca de Wematin. Ela os acompanhou porque suspeitava que fosse
conseguir guiá-los, que fosse saber para onde ele iria despedir-se dos vivos na
noite anterior. Eram quilômetros de litoral para percorrer no frio gelado do
inverno de Long Island e qualquer ajuda seria valiosa - mas ela acabou vindo
dos céus. Ao chegarem ao ponto de maior convergência espiritual, onde eles
acreditavam que podiam ouvir Paumpagussit, depararam-se com a águia
pousada sobre um tronco de madeira. Ela exibia uma pose altiva, como se os
esperasse. Poderia ser qualquer animal, porém tanto Hurit quanto Emile
sabiam que se tratava dela. Da amiga que esteve com eles por um breve
período.
Ao vê-los, ela gritou, alçou voo e pousou no braço que Emile ofereceu,
voltando o olhar para o tronco onde estava pousada.
— Deixe que eu vou até lá.
Hurit pediu aos homens e se aproximou de onde a águia indicava. As
ondas estavam fortes, a maré agitada e, agarrado ao tronco, estava o cobertor
xadrez de Wematin. Não havia sinais de seu corpo ou de mais nada - se ele
estivesse ali durante a noite, o mar o teria levado. Seu silêncio fez com que os
demais se aproximassem e confirmassem que não havia mais nada a
encontrar.
— Ele adentrou nos domínios de Paumpagussit. Podemos retornar, o
velho xamã fez a sua travessia. Tem algo a nos dizer, Hurit?
— Não. Por enquanto, apenas seguiremos o caminho.
— E para onde ele nos leva? — Askook, curioso, perguntou.
— Para frente. Foi tudo que me disseram.
EPÍLOGO #2

KENT, INGLATERRA. 1905


A RESIDÊNCIA DE VERÃO DO D UQUE DE S HAFTESBURY ERA UM DOS PRINCIPAIS
locais de eventos depois que a temporada social londrina acabava. Até alguns
anos atrás o duque reunia amigos e parentes para sua tradicional caçada,
porém sua esposa e filhos o impeliram a mudar o tema das festividades.
Elizabeth, a duquesa, não concordava com um monte de homens perseguindo
pobres animais selvagens e tinha a menina Lilian, sua primogênita, ao seu
lado. Com um persuasivo trabalho de convencimento, as duas conseguiram
encerrar a caça de raposas e outros bichos e inauguraram uma semana de
jogos que entrara rapidamente para a história do condado de Kent.
Naquele ano, no entanto, o duque estava honrado de receber não apenas
os convidados para os jogos mas também a família McFadden. O Conde de
Cornwall, Edward McFadden, era casado com sua irmã Agatha e tinha outros
quatro irmãos que se reuniriam em Thanet Bay uma semana antes de todos os
outros chegarem. Era a primeira vez em cinco anos que todos estariam juntos,
pois o irmão mais novo, Emile, morava nos Estados Unidos.
— Não acredito que ele finalmente está vindo. Eu nunca deveria ter
deixado que vocês dois resolvessem as coisas em Nova Iorque. — Edward
reclamou e, em seguida, recebeu um copo de conhaque servido por
Nathaniel.
— Todo ano ouvimos a mesma ladainha. — Isaac recostou-se em uma
poltrona e observou o fogo crepitando na lareira. — Você sabe que nosso
irmão não nos pertencia, não sabe? Que ele era maior de idade quando
decidiu se casar e ficar nos Estados Unidos?
— E fala como se Emile frequentasse todos os nossos eventos, antes. —
Nathaniel deu uma risada. — Deixe de ser ranzinza, daqui a pouco eles
chegam e você os receberá como? Agindo como um conde?
— Concordo com os homens. Se você ainda fosse um duque…
Aiden Trowsdale, o anfitrião, entrou no salão masculino acompanhando
de Grant Sawbridge, que revirou os olhos ao ouvir o amigo proferir seu
bordão preferido.
— Não acredito que Edward está lamentando a ausência do irmão pelo
quinto ano seguido. Gerenciar uma rede de indústrias e fábricas por toda a
Inglaterra não está te ocupando tempo o suficiente?
— Pelo visto, não. Afinal, ele conseguiu fazer outro filho…
O conde rosnou alguma coisa e bebeu o conhaque que esquentava em sua
mão. Sua esposa, Agatha, engravidara inesperadamente depois que o filho
mais novo do casal estava já com quase dez anos. Eles já tinham Lavínia,
Eloise e Edmund e acreditavam que não teriam outra criança - mas a
condessa anunciara a gravidez poucos meses atrás para surpresa de todos.
— Não provoque, Aiden. Você e Elizabeth decidiram repovoar a
Inglaterra, portanto não pode criticar a capacidade reprodutiva dos amigos. —
A voz de Caroline, a esposa de Isaac, ecoou pelo salão logo depois do
rangido da porta se abrindo. Todos olharam para ela ansiosos - não porque a
mulher estava sendo sarcástica, isso não surpreendia mais ninguém, mas
porque havia muita antecipação para os convidados de honra e qualquer
movimento diferente causava excitação. — Eles chegaram, Albert avistou a
carruagem.
Filho mais velho de Aiden e Elizabeth, o jovem Marquês de Exeter, foi
incumbido de ficar de olho na chegada de qualquer carruagem que entrasse
em Thanet Bay. As crianças estavam todas eufóricas para conversar com o tio
e a tia que chegariam de outro país e perguntar histórias sobre navios, piratas
e monstros marinhos. Mesmo que Elizabeth tivesse explicado várias vezes
que não havia mais piratas e que monstros marinhos só existiam nos livros de
contos de fadas, não ajudava muito que Peter, seu filho do primeiro
casamento, insistisse em contar lendas sobre criaturas marinhas assustadoras
com o objetivo de amedontrar os irmãos.
A notícia de Caroline fez com que os homens apagassem os charutos,
deixassem os copos de bebida sobre qualquer superfície e saíssem, um pouco
apressados, para o lado de fora da casa. As mulheres já estavam ali, junto das
crianças que ninguém conseguia mais controlar. Aquela era também a
primeira vez que Emile viajava para Londres em cinco anos. Ele esteve com a
família logo depois do seu casamento, passou alguns dias com os irmãos e
precisou retornar logo porque a esposa era importante para a sua tribo. Como
nova xamã, Hurit era demandada com frequência por seu povo para oferecer
orientações dos deuses e para curar doenças e feridas.
Quando a carruagem parou em frente à casa e o criado abriu a porta, a
primeira pessoa a sair foi uma menina pequena, de um pouco mais de três
anos, com olhos grandes e curiosos e cabelos escuros trançados. Ela quase
pulou da carruagem e só não caiu porque foi rapidamente amparada pelos
braços de Lilian e Eloise, a filha do conde. As meninas estavam no meio do
caminho e impediram que a pequena desabasse no chão.
— Eu não sei a quem essa menina puxou. — Emile saiu logo em seguida.
Seus irmãos sempre o reconheceriam, mas ele mesmo sabia que estava
diferente. A pele estava ainda mais bronzeada pelo excesso de sol, os olhos
mais azuis e os cabelos um pouco mais compridos do que era a moda para
homens. Não era apenas fisicamente que ele mudara, porém a mudança foi
para melhor. — Eu não sou ansioso assim.
Depois de pisar no chão, ofereceu a mão para Hurit descer. Os olhares da
família estavam sobre eles e a ansiedade era palpável. A menina foi levada
por Lilian e Eloise até as mulheres e encarou todas elas com espanto - elas
certamente eram muito diferentes das quais a pequena estava acostumada a
conviver.
— Seja bem-vindo, Emile. — A saudação inicial veio do anfitrião.
— Obrigado, milorde. Permita-me apresentar minha família. Minha
esposa, Hurit, e minha filha, Nadie.
As mulheres imediatamente cercaram Hurit e a puxaram para abraços,
cumprimentos e apresentações. Os homens fizeram o mesmo com Emile e as
crianças se incumbiram de voltar para a sala de jogos infantis carregando a
recém-chegada que, apesar de muito nova, não pareceu se assustar com nada.
— Não sejamos mal educados. — A duquesa interferiu. — Nossos
convidados devem estar cansados da viagem. Vou conduzi-los à suíte
preparada para eles, podemos nos encontrar no jantar.
— Realmente precisamos nos lavar e trocar de roupa. — Hurit disse. — E
temo que Nadie tenha comido doces demais.
— Então ela comerá ainda mais, se está sendo cuidada por meus filhos.
— Elizabeth deu uma risada. — A única criança educada nessa casa é Louis,
o restante enlouquece cada pobre babá. Mas venham comigo, separamos um
quarto especialmente preparado para vocês. Imagino que desejem manter a
menina em sua companhia.
— Nadie sempre dorme conosco. — Emile concordou. — Devo buscá-la?
— Não, pode deixá-la já que está animada conhecendo os primos. Ela
estava eufórica.
— Ela fala inglês? — Caroline perguntou.
— Ela fala pouco, mas compreende o inglês perfeitamente. É o idioma
que adotamos.
A duquesa conduziu o casal até o quarto que lhes seria destinado e
arrastou os curiosos para longe. Sem precisar de muitas palavras, determinou
que todos deveriam descansar também para que, antes do jantar, pudessem se
reencontrar. Por fim, orientou a uma das babás que estava por conta da
criançada que, caso Nadie requisitasse, deveria ser levada até seus pais.
Como a menina parecia maravilhada no meio dos primos e muito agitada
com as brincadeiras que eles realizavam, Elizabeth duvidou que ela fosse até
mesmo lembrar que tinha pais.
Foi por volta das cinco que os homens se reuniram novamente no salão de
jogos e as mulheres foram para a sala de artes da duquesa. Eles iriam jogar,
conversar sobre negócios e fumar charutos, enquanto elas tomariam o chá das
cinco e também conversariam sobre negócios. Afinal, todas elas tinham
empreendimentos, nenhuma era apenas a esposa de alguém.
Caroline e Agatha, a condessa de Cornwall, geriam uma escola para
jovens mulheres em Londres. A escola começou como um projeto ambicioso
de Caroline e se tornou um centro de referência para as filhas dos burgueses.
Depois que o comportamento escandaloso da sobrinha do marquês deixou de
ser lembrado sempre que a viam, a escola também passou a receber algumas
moças da aristocracia. Dentre todos os assuntos não tão femininos assim que
eram ensinados, elas se especializaram em formar as moças na arte da
subversão. Ensinavam-nas coisas que elas não deveriam aprender de acordo
com os padrões vigentes, fazendo uso de uma literatura bastante
revolucionária - sem que ninguém realmente soubesse.
Wilhelmina, a irmã mais jovem dos McFaddens, inicialmente começou a
trabalhar na escola com as cunhadas, mas também aproveitou-se da riqueza
do marido - e do fato de ele fazer qualquer coisa que ela pedisse - para
montar negócios para si. Junto com a irmã de Grant Sawbridge, Eleanor, que
se casara com sua ex-paixão da juventude, ela construiu uma casa para
abrigar jovens mães de crianças bastardas. Mesmo que ela tivesse intimado
seu irmão conde para provocar o Parlamento a alterar a lei e possibilitar o
reconhecimento de crianças nascidas “do lado errado da cama”, ela fazia o
que podia enquanto os homens não demonstravam muito interesse naqueles
assuntos.
A sensibilidade de Wilhelmina para a questão das mães de bastardos, e
das próprias crianças, começou quando descobriu que seu marido era um
filho ilegítimo e que a irmã também dele foi vítima de um homem sem
caráter que a engravidou e a abandonou. As duas, já por três anos, abrigavam
e ajudavam na colocação profissional de mulheres que a sociedade rejeitava -
inclusive, a maioria delas trabalhava para as indústrias Sawbridge ou para as
empresas dos irmãos. Ela também tinha tempo para a família: o marido e o
filho Joseph. Ela era a única dos McFaddens que tinha apenas uma criança,
mesmo que não estivesse evitando ter filhos.
A mais recente esposa dos McFaddens era Lucille, mas ela facilmente se
adaptou às outras mulheres da família. Depois do retorno para a Inglaterra,
descobriu que sua mãe se casara com o Marquês de Hertford, seu antigo
pretendente, e estava muito feliz vivendo o amor pela primeira vez. O marido
era um dos negociadores mais requisitados pelos homens em seus contratos e
ela conseguiu, finalmente, trabalhar em uma escola - passou a lecionar para
crianças dos empregados das empresas em escolas que a família construira.
Um ano depois de seu casamento, deu à luz um menino, Richard e, no ano
seguinte, nasceu Dorothy. Apesar do marido Nathaniel se orgulhar de sua
virilidade, eles ficaram mais comedidos e, até aquele momento, permaneciam
com as duas crianças - lindas, felizes e muito amadas.
Elizabeth era uma duquesa perfeita. Ela fora a causa da rejeição de seu
marido pela aristocracia - afinal, era uma criada, mas o poder do dinheiro que
ele carregava logo fez com que Aiden fosse readmitido na maior parte dos
círculos sociais. Com isso, ela se tornou referência para muitas jovens.
Ajudava na escola das amigas ensinando etiqueta e comportamento e era
sempre procurada pelas debutantes da sociedade para prestar conselhos sobre
futuros pretendentes, moda, relacionamentos e outros. Ela passou a agir como
uma espécie de “mãe” até para aquelas que tinham mães carinhosas e
presentes. Visitava orfanatos e hospitais providos pelo Duque de Shaftesbury,
realizava eventos de Natal e chás com as damas da aristocracia para arrecadar
dinheiro para causas importantes e se consolidou, naqueles quatorze anos de
casada, como uma das mais influentes duquesas da Inglaterra.
— Espero que vocês sejam menos vocês. — Caroline serviu-se de chá.
Elas haviam acabado de chegar ao salão e esperavam que a esposa de Emile
se juntasse a elas. — Vão acabar assustando a moça.
— A única assustadora aqui é você, Caroline. — Wilhelmina escondeu
uma risadinha por trás de sua xícara. — Pelo que Isaac falou, ela se parece
bastante com você, então fique tranquila.
— Não julgue a moça sem conhecê-la. — Agatha provocou. — Dizer que
ela se parece com Caroline é bastante grave.
— Ela é uma ótima pessoa. — Lucy suspirou. — Tive pouco tempo para
me tornar amiga dela, foi uma pena.
— Pois eu tenho certeza que ela adorará cada uma de nós, encantadoras
do jeito que somos. — A duquesa mordiscou um bolinho e levantou-se em
seguida ao ver que Hurit chegara ao salão. — Oh, seja bem-vinda! Estávamos
aguardando sua chegada.
— Milady. — Hurit fez uma reverência e Caroline deu uma risadinha.
— Não precisa se formalidade entre nós. — Wilhelmina pulou da cadeira
onde estava e foi até Hurit, segurando-a pelo braço e a arrastando para o meio
das mulheres. — Sou Minnie, a irmã mais nova de Emile. Aquelas são
Agatha e Caroline, nenhuma das duas tem modos. Lucy você já conheceu e
nossa anfitriã Elizabeth, também. Sente-se, quer chá?
— Vai assustá-la com seu falatório, Minnie. — Agatha cutucou a
cunhada.
— Emile falou muito de vocês todas. Ele fala mais dos homens, claro,
mas imagino como sejam as esposas.
— Lucy disse que você é uma espécie de vigário na sua tribo. Estou
curiosa, mulheres podem ser líderes religiosas nos Estados Unidos? —
Caroline se aproximou.
— Não, não podem. — Hurit bebericou o chá que lhe fora servido. —
Nós vivemos na aldeia, dentro dos costumes da tribo. Lá, mulheres podem ser
xamãs, desde que recebam o chamado dos deuses. Não é de nosso feitio
desafiar os deuses.
As mulheres concordaram, silenciosas.
— Adorarei saber mais sobre um lugar em que mulheres podem assumir
posições tipicamente masculinas. Conte-nos.
Hurit sorriu e teve a oportunidade de fazer algo que os Shinnecocks
sabiam bem - contar histórias. As cunhadas pareciam fascinadas apenas em
olhar para ela, que mesclava o estilo tradicional das mulheres brancas com
cores, bordados e fitas típicas do seu povo, então adorariam saber um pouco
sobre uma cultura bem diferente.
Enquanto ela entretinha as mulheres, os homens recebiam Emile com
abraços e resmungos - todas essas vindas do conde que não aceitava que um
de seus irmãos estivesse morando tão longe.
— Quando foi que Edward se tornou tão possessivo com a família? — O
jovem McFadden questionou, dando uma tacada na bola branca. Desafiado
para uma partida de bilhar por Nathaniel, ele descobriu que estava com
saudades de jogar e beber com seus irmãos. — E comigo?
— Eu sempre fui possessivo com você. — Edward se defendeu, porém
aquela não foi uma defesa muito digna.
— E já teve tempo o suficiente para se acostumar ao fato de que todos
nós crescemos, inclusive nosso pequeno Emile. — Isaac colocou as mãos no
ombro do irmão em um gesto solidário. — Podemos falar de outras coisas
como, por exemplo, sobre aquela nova aquisição de Sawbridge. Uma fábrica
de automóveis.
— Automóveis? — Aiden franziu a sobrancelha. — E eu estou sabendo
disso agora?
— Não sabia que éramos obrigados a contar sobre nossos negócios para
Vossa Graça. — Sawbridge provocou. — Ainda estou negociando com
alguns engenheiros, mas não pretendo ficar para trás no mercado de
transportes. Navios e trens rendem muito dinheiro, então por que não os
automóveis? Para as cidades eles são muito úteis, mesmo que ainda não
sejam muito populares no campo.
— É nas cidades onde está o lucro. — Edward concordou.
— E vocês só pensam nisso. — Nathaniel deu de ombros. — Diga,
Emile, o que você está fazendo para enriquecer como esses caras aqui?
— Nada. — Emile sorriu e deu outra tacada, encaçapando uma bola. —
Eu sou advogado em Southampton, tenho um estagiário da tribo e pego todo
tipo de causa, inclusive de pessoas que não podem pagar. Tenho meus fundos
que rendem o suficiente para garantir uma boa vida para minha família.
— Seu altruísmo chega me emocionar. — Sawbridge foi sarcástico.
— Bem, com apenas um filho, as coisas ainda…
— Em breve serão dois. — Emile também sabia provocar. Interrompeu
Isaac antes que ele pudesse concluir seu raciocínio e encaçapou outra bola. —
Hurit está esperando outro bebê.
— E você é louco de viajar com ela nesse estado? — Aiden arregalou os
olhos em espanto.
— Completamente louco! — Foi a vez de Edward protestar.
— Ela descobriu há pouco e está em ótima saúde. Não há nada na viagem
que possa causar mal ao bebê, não ajam como velhos.
Sawbridge e Isaac deram uma gargalhada e Aiden e Edward fingiram que
não entenderam o disparate.
— Talvez eles sejam mesmo velhos. — Nathaniel colocou combustível
no fogo. — Em breve teremos que nos dividir em dois grupos e deixá-los
com seus assuntos de idosos.
Antes que alguém decidisse matar alguém no meio da conversa, o
mordomo entrou no salão e os chamou para o jantar. Pelo bem da saúde de
cada um, sabiam que não deviam se atrasar ou suas esposas os fariam pagar,
depois.

N O JANTAR , todos se reuniram em uma grande mesa retangular e sem muita


formalidade. Mesmo que Elizabeth e Aiden fossem reconhecidos por oferecer
grandes recepções, aquele era um momento familiar e, como de praxe, não
haveria dúzias de criados servindo nem um monte de pratos exóticos que
talvez ninguém consumisse. Pauline McFadden se juntou ao grupo para rever
o filho, a nora e conhecer mais uma neta. As crianças jantariam no salão
infantil com exceção de Peter e Lavínia, que já eram adultos. Patrick, o filho
mais velho de Elizabeth e enteado do duque, fazia faculdade em Oxford e só
poderia se juntar à família em alguns dias.
Depois de servida a entrada de sopa e o prato principal de carne, Aiden
percebeu sua esposa observando o movimento com o garfo suspenso no ar.
Ela tinha os olhos marejados e uma expressão de alegria ao qual ele já estava
acostumado.
— Uma libra por seus pensamentos.
Ele sussurrou nos ouvidos dela e fez com que Elizabeth quase derrubasse
o garfo. Estavam sentados próximos, pois não jantaram separados nem uma
noite desde que se casaram.
— Nossa família é incrível. — A duquesa respondeu sem parar de olhar
para a animação na mesa. — Posso dizer que eles são nossa família, não
posso?
— Claro. — O duque segurou a mão da esposa entre as suas. — Nós
sabemos bem que o sangue, por mais importante que seja para as leis da
Inglaterra, não define nossos laços de afeto. Nós todos somos, sim, uma
família.
— Você consegue se lembrar de quando tudo começou?
— Sim, eu nunca vou me esquecer do momento em que minha vida
mudou completamente. — Aiden levou a mão de Elizabeth à boca e a beijou.
— Eu ainda amo você como se fosse aquele dia, minha querida.
Elizabeth corou e Agatha percebeu que ela e o marido estavam em uma
conversa íntima no meio do burburinho do jantar.
— Depois do jantar podemos planejar uma foto de família. — A condessa
se intrometeu. — Se vocês não se importarem em ter todos os McFaddens
como agregados.
— Era exatamente sobre isso que falávamos. — Com um sorriso, o duque
se levantou e bateu com um talher na taça de vinho que já estava vazia. —
Atenção a todos. Sei que estão aproveitando esse maravilhoso jantar
preparado por minhas cozinheiras, mas gostaria de anunciar que, amanhã,
faremos uma foto. Espero que nos encontremos às dez, no jardim. Caso não
estejam todos lá, mandarei buscá-los em seus quartos e arrastá-los de
ceroulas, se for preciso.
A risada foi generalizada, pois era bastante inadequado que um duque
falasse em ceroulas à mesa. Bem, era inadequado que qualquer pessoa falasse
em roupas íntimas em qualquer ocasião, mas ninguém ali esperava nada
diferente de Aiden Trowsdale. Emile aproveitou o momento e ergueu sua taça
para propor um brinde.
— Apesar de fazer tanto tempo desde nossa última vinda à Inglaterra, eu
gostaria de agradecer. Sou abençoado por ter duas famílias que se amam e se
respeitam e isso é mais do que muitos homens poderiam desejar durante a
vida. Creio que essa seja a nossa maior realização, enquanto homens.
— Brindemos à família.
O conde também se levantou e ergueu sua taça. Todos o seguiram,
inclusive as mulheres, em uma ode de gratidão pelo que tinham. Talvez
ninguém fosse dizer em voz alta porque eles mesmos não tinham certeza,
porém qualquer um ali sabia que havia apenas um motivo para aquela reunião
e que os mantinha unidos apesar das distâncias e dos percalços que tiveram
que enfrentar: eles se amavam.
We'll live forever
Knowing together
That we did it all for the glory of love
— PETER CETERA - GLORY OF LOVE
NOTA DA AUTORA

Olá, leitoras.
Chegamos ao fim da série Amores em Kent com um livro recheado de
pesquisas históricas que me deram muito trabalho. Como a história de
Nathaniel e Emile se passaria no nordeste dos Estados Unidos, eu precisei
inserir personagens que fossem membros de uma tribo nativa daquela região
e ainda estivesse estabelecida ali durante esse período, o que não foi nada
fácil. A maior parte das tribos nativas foi expulsa de suas terras e empurrada
para o centro-oeste do país, restando poucas delas que continuavam ocupando
suas localizações originais.
Os Shinnecocks residem desde sempre em Long Island. Em 1640 eles
negociaram com os colonizadores as terras que se tornaram a cidade de
Southampton. Isso não significa que eles não sofreram o mesmo processo de
aculturação que foi praticado com as outras tribos, muito pelo contrário. Sua
religião foi mitificada, sua língua foi apagada e seus costumes foram
substituídos - parte desse processo de colonização faz parte do pano de fundo
do nosso romance.
As palavras nativas usadas no livro são reais e foram retiradas de dois
dicionários / glossários de palavras, ambos distribuídos gratuitamente na
internet. Um deles é o A Modern Mohegan-Pequot Dictionary, que pode ser
baixado aqui, e o outro é Glossary of the Mohegan-Pequot Language,
disponível aqui. Por meus estudos, esse era o dialeto algonquiano falado pela
tribo, porém eu posso estar equivocada. Assim como havia poucas tribos
remanescentes na região, também há pouca informação acessível para mim
sobre eles.
A situação de Emile no tribunal também é verdadeira. As frases e
precedentes mencionados existem e a proteção à propriedade sempre foi uma
das grandes preocupações dos estadunidenses, principalmente durante o
período da Guerra Civil até o New Deal. Eu talvez duvide que o resultado
fosse aquele mas, no mundo de fantasia que criei, as instituições funcionam
acima dos interesses privados mesquinhos.
Espero que vocês tenham gostado da série e que estejam ansiosas para a
próxima jornada. Eu estou. Caso possam em queiram, deixem uma avaliação
sincera na Amazon, no Skoob ou no Goodreads e ajudem outras leitoras a
decidirem se querem ou não ler a série.
Gratidão!

Tatiana Mareto
NOTAS

CAPÍTULO NONO

1 Quando um jogador aposta todas as suas fichas em uma rodada.


2 Full house é uma mão do pôquer composta por uma trinca e um par, representando que
todas as cartas pontuam. É uma das melhores mãos na maioria das variáveis de pôquer,
geralmente ficando atrás do five of a kind (quatro quartas iguais, uma de cada naipe, e um
coringa), do straight flush (uma sequência de cinco cartas do mesmo naipe), e do four of a
kind (um quarteto de cartas iguais, uma de cada naipe).
3 Royal flush é um straight flush (sequência de cinco cartas de um mesmo naipe) iniciando
pelo às e terminando no dez.

CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO

1 Árvores típicas da vegetação do nordeste estadunidense, com caule de coloração que


simula o preto e branco.

EPÍLOGO #1

1 Mãe, no idioma tradicional dos Algonquinos.


2 Oceano, Deus dos mares.
3 Deus dos Deuses.
4 O espírito do criador.

PRÓLOGO

1 1 Deus da cura e das doenças, também conhecido pelos povos da região como o deus
oposto ao Grande Espírito. Por minhas pesquisas, é o deus que mais ouvia as preces dos
nativos e foi muitas vezes confundido com o Diabo, mas essa era uma leitura incorreta - os
povos nativos não distinguiam deuses por bem e mal, como os brancos.
2 2 Powwow é palavra algonquina para xamã, lider espiritual dos povos da região. Até
hoje, em Long Island, no território Shinnecock, há o festival Pow-wow que é aberto ao
público e festeja a cultura do povo.

CAPÍTULO PRIMEIRO

1 3 Nome dado ao deus do oceano no idioma algonquino.


2 4 Criaturas que devoraram humanos e que habitavam as florestas.
3 5 Barracas típicas dos nativos norte-americanos, geralmente em formato cônico.
4 6 Bem-vinda, bem-vindo. Uma saudação no dialeto mohegan.
5 7 Meu pai, pai, no dialeto mohegan.

CAPÍTULO SEGUNDO

1 8 Palavra mohegan para inimigo.


2 9 Minha mãe, mãe, no dialeto mohegan.

CAPÍTULO TERCEIRO

1 10 Manitou é a palavra usada pelos povos nativos da região para indicar o divino, o
espírito dos deuses. Havia manitou em tudo que eles consideravam sagrado ou milagroso, a
natureza praticamente inteira era manitou.

CAPÍTULO NONO

1 11 Palavra mohegan para homem branco.


SOBRE A AUTORA

Tatiana Mareto é sagitariana, gosta de se comunicar, adora transformar sentimentos em


palavras. Mora em Cachoeiro de Itapemirim, é professora e advogada e começou a escrever
aos doze anos, sendo autora de diversos textos não acabados, muitas poesias empoeiradas e
alguns originais publicados. Inspira-se com música e tem uma trilha sonora para todos os
capítulos – das suas histórias e da sua vida. Se apaixona com facilidade pelos próprios
personagens e coleciona crushes literários.
AGRADECIMENTOS

Eu não poderia ter escrito e finalizado esse livro sem algumas pessoas
importantes que me ajudaram muito.
Minhas betas, Daiane, Fran, Verona, Nariane e Maria Beatriz foram
fundamentais para que qualquer coisa funcionasse. Eu estive insegura o
tempo tudo durante o planejamento da história e a ajuda e participação delas
no processo criativo foi de um valor inestimado. Obrigada, moças, por
acreditarem nesse projeto e caminharem comigo.
Minhas amigas Karina Heid e Sarah Summers, que tornam tudo no
universo literário mais divertido. Quando eu queria gritar, me esgoelar e
desabafar, elas sempre estiveram dispostas a me ouvir. Por mais encontros,
boas conversas e margaritas com vocês!
Minhas leitoras que me acompanharam no Wattpad e agora estão comigo
no blog e na Amazon, principalmente aquelas que esperam ansiosamente
cada livro, cada novidade. Elas acreditaram nessa proposta diferente e me
incentivaram, com comentários fofinhos e outros nem tanto, a prosseguir.
Aliás, eu adoro quando vocês surtam, gritam e querem matar meus
personagens. Obrigada!
Escrever para mim é diversão e terapia. Vocês fazem parte disso comigo.

Tatiana Mareto
SE VOCÊ POR ACASO CHEGOU A ESSE LIVRO
POR GRUPOS DE WHATSAPP, TELEGRAM OU
SITES DE PDF…

Eu preciso dizer a você que essa forma de compartilhamento de livros não é


legal.
Não é legal porque viola a Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610 de 1998)
em seus artigos 28 e 29 e também o Código Penal (Decreto-lei 2.848 de
1940) em seu artigo 184. Isso significa que compartilhar livros sem a
autorização expressa do autor ou da autora do livro é um crime previsto na lei
brasileira.
Também não é legal porque nós, autores, vivemos do nosso trabalho, que
é escrever e vender livros. Sempre quem um livro nosso é compartilhado sem
nossa autorização, nós deixamos de receber pelo trabalho que fizemos - e
ninguém pode trabalhar de graça, não é mesmo? Para que possamos
continuar a entregar livros que vocês adorem ler, temos que ser remunerados
por nosso trabalho ou não poderemos continuar a escrever.
Por isso, se você chegou até aqui e não sabia de tudo isso, deixo uma
forma de contribuir: meu pix. Você pode enviar qualquer valor e sinalizar a
compra do livro. Beijo grande!

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