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A IDEN T ROWSDALE FOI PREPARADO para assumir o ducado desde que nasceu.
Ele foi criado para ser um duque, foi treinado para ser um cavalheiro, um
nobre, um homem respeitável na sociedade. Com o falecimento de seu pai,
dois anos atrás, ele herdou o título e se tornou o 13º Duque de Shaftesbury,
um dos títulos de nobreza mais antigos da Inglaterra.
A morte do pai não lhe trouxe apenas o ducado. Aiden também precisou
lidar com coisas para as quais não estava tão preparado assim, como as
mulheres da casa. Enquanto ele estudava e se formava com distinções,
treinava todos os esportes e se destacava em qualquer atividade masculina,
estava afastado de casa, da mãe e da irmã mais nova. Ao assumir o título e as
propriedades, as coisas ficaram reais e as responsabilidades não eram mais
hipotéticas.
Sua irmã, lady Agatha, nunca fora uma jovem difícil. Ao contrário, era
dócil e gentil, mas a morte do pai a transformou no demônio de saias. Como a
mãe era uma mulher doente que nunca saía da propriedade de verão da
família, a residência em Londres estava quase sempre desamparada, e a irmã
aprontando das suas. A quarta governanta tinha acabado de se demitir, apesar
do tentador salário que lhe fora oferecido, e Aiden não sabia mais o que fazer
para conseguir uma mulher para administrar sua casa e Agatha, já que a mãe
não fazia um bom trabalho.
Ele precisava se casar, essa era a opção mais esperada. Um homem na sua
posição e com sua idade já deveria estar casado e, preferencialmente, com um
herdeiro a caminho. Mas Aiden nunca desejou casar-se, apesar de saber que
deveria fazê-lo. O problema era que casamento exigia um esforço que ele não
estava interessado em empregar. Tinha que escolher uma noiva, cortejá-la,
ajustar os trâmites com a família dela, e todas as demais formalidades que
envolviam o enlace matrimonial entre a aristocracia. Aiden não conseguira
nem passar da primeira etapa, já que a maioria das damas eram lindas e
agradáveis, mas não o interessavam.
Todos os planos que ele não pretendia cumprir foram interrompidos pela
epidemia de escarlatina que, de uma hora para outra, se alastrou por Londres.
Aiden preparou as carruagens, mandou a irmã na frente e, depois de deixar
tudo organizado na Casa Trowsdale, seguiu para Kent, onde ficava Thanet
Bay. O litoral, com seu ar fresco, deveria ser o melhor lugar para se esconder
até que as coisas estivessem melhores na capital. A irmã não o deixaria em
paz durante esse período, ele já sabia. A caminho de Kent, sua carruagem
subitamente parou no meio do caminho e um dos criados que o
acompanhava, Geoffrey, desceu para falar com ele.
— O que houve, Geoffrey? Por que paramos?
— Vossa Graça… o cocheiro avistou a carruagem de sua irmã.
Aiden colocou a mão na porta e a abriu, saindo do transporte. Estavam no
meio do nada em uma estrada provavelmente muito utilizada como rota de
fuga dos nobres e que deveria estar repleta de ladrões esperando para arrancar
até as botas dos aristocratas que por ali passavam. A preocupação de que algo
tivesse acontecido com Agatha o fez esquecer a prudência e lançar-se para
fora e dar alguns passos na direção de um pátio iluminado, até ver a
carruagem ainda parada na frente de uma estalagem.
— Céus, o que ela aprontou desta vez?
— Vossa Graça deseja que eu vá verificar?
— Não, vamos encostar. Estou mesmo precisando de uma boa dose de
uísque, está muito quente e úmido.
O duque voltou para dentro da carruagem, que se movimentou por mais
alguns metros até parar ao lado da outra. Havia um burburinho incessante
vindo do lado de dentro e Aiden suspeitou que todos ali também estariam
fugindo. Provavelmente não haveria muitos nobres no lugar, que parecia não
ser o mais adequado para sua irmã tomar um chá ou jantar. Em alguns
quilômetros eles estariam em casa e poderiam desfrutar do tratamento digno à
aristocracia. Por que raios ela não esperou mais um pouco?
Assim que entrou, percebeu que tinha razão. Apesar de bem vestidas, as
pessoas daquele lugar não eram nobres. Talvez burgueses endinheirados que
tinham adquirido propriedades nos arredores de Kent, mas não possuíam
títulos a ostentar. Logo encontrou sua irmã conversando com uma dama
qualquer.
Não. Aiden estava enganado, não era uma dama qualquer. Ele olhou para
sua irmã, mas tudo que viu foram os cabelos louros, meio acobreados, que
engoliam a luz de todas as velas acesas naquele salão. Eles emolduravam o
rosto mais delicado e os olhos mais transparentes de toda a Inglaterra. Não
havia nada nela que não parecesse uma pintura renascentista, mas Aiden
podia jurar que os renascentistas não eram tão talentosos.
Ele percebeu que algo estava errado com ela. Sua face empalideceu
quando ela o viu, como se fosse um fantasma que tivesse vindo para
assombrá-la. Seu corpo começou a desmoronar como um castelo de cartas
mal feito e ele só teve tempo de se aproximar para segurá-la em seus braços e
impedir que caísse ao chão.
CAPÍTULO SEGUNDO
B ATIDAS À PORTA fizeram com que Elizabeth abrisse os olhos. Ela quis
levantar, mas não conseguiu. Seu corpo insistia em ficar deitado por causa da
dor e da febre. Sua garganta arranhava. A luz do dia já estava entrando pelas
janelas e iluminando o quarto onde ela estava, a cama onde estava
acomodada. Ao lado do duque.
Aquilo fez com que ela erguesse o corpo em um salto. Havia um homem
ao seu lado e ele dormia profundamente, relaxado e suando muito. Gotículas
de suor brilhavam em sua testa, escorriam por seu pescoço e por seu tórax nu.
Ele estava nu. Ela passou a noite ao lado de um homem nu.
Passou a mão em seu corpo, ela também não estava completamente
vestida. Elizabeth sentiu um calor imediato, e não era da febre, ao imaginar
que aquele duque a despira e a vira em suas roupas de baixo. Se ela soubesse
que seria desnudada por um nobre, teria vestido alguma seda. Não que ela
tivesse seda para vestir. Por mais que ela soubesse que aquilo era um
escândalo e que não haveria sobreviventes quando as fofocas começassem,
ela não conseguia se importar muito.
— Vossa Graça. — A voz veio da porta. — Sou eu, Davies.
O médico. Elizabeth levantou de uma vez, sentindo seus ossos estalarem,
e se enrolou na coberta. O duque virou para o lado e grunhiu, agarrando-se ao
seu cobertor. Mesmo doente e febril, aquele grunhido era sensual. Aquele
homem era sensual.
Abrindo uma fresta da porta, Elizabeth se apresentou ao doutor. Ele
colocou a mão na madeira e a empurrou sem pressa, entrando no quarto.
Estava com um pano à frente do rosto e suas mãos cobertas por borracha.
— Preciso examiná-los, senhora. — O médico apoiou uma maleta preta
sobre o aparador. Ele era baixinho e estava ficando calvo, um homem na
meia-idade. Vestia-se com roupas bem cortadas e costuradas, indicando que
sua posição social era elevada. — Onde está o Duque de Shaftesbury?
— Vossa Graça está dormindo. Ele teve muita febre, ontem.
— Certo. Vou examiná-la primeiro, então. A senhora poderia…
O doutor Davies fez um gesto indicando que ela precisava se desenrolar
da coberta. Uma corrente fria a fez tremer da cabeça aos pés, assim que o ar
entrou em contato com as finas camadas do tecido que pouco a cobria. Tudo
que vestia era uma camisola e calçolas.
Não precisou de muito esforço do médico para identificar a doença.
Elizabeth tinha manchas rosadas por todo o torso e braços, também
espalhadas pelas pernas. Sua garganta estava inflamada e a febre era alta,
ainda. Depois, ela conduziu o médico até o quarto, onde estava o duque, e foi
acender a lareira.
Elizabeth sempre acendia sua própria lareira. A casa onde morava com os
filhos era um sobrado simples e gelado, com chão de terra e alguma umidade.
Patrick vivia adoecendo por causa disso, sempre espirrando e tossindo. Para
evitar o frio, até no verão, ela mantinha a lareira acesa, o que também ajudava
a secar as paredes. Carregar madeira e fazer fogo nunca foram mistério para
ela. Naquele momento, no entanto, ela sentia dor e ajeitar a lenha no
compartimento foi uma tarefa árdua.
Feriu o dedo com uma farpa e arranhou o braço com um pequeno tronco
mais rebelde. Depois de algum esforço, o fogo estava finalmente queimando
e ela pôde se acomodar na poltrona ao lado.
— Senhora. — O médico retornou. — A infecção é mesmo escarlatina,
mas parece uma forma mais branda. Só o tempo dirá. Não há muito que eu
possa fazer, além de recomendar banhos frios para baixar a febre, repouso e
muita sopa. Deixarei um tônico de acônito para a infecção que pode ser muito
útil, e recomendarei láudano, se a febre causar euforia.
— Podemos ir para casa? — ela perguntou, ansiosa.
— Recomendo que fiquem em isolamento para evitar que essa doença se
alastre. Sei que as condições são… impróprias. — Ele pigarreou e frisou a
última palavra, indicando que a permanência de um duque, em um quarto,
com uma viúva, causaria a ruína da reputação dela. — Mas informarei aos
criados e pedirei vigilância.
Elizabeth assentiu antes de o médico deixar a saleta. Ela suspeitava que o
duque não fosse um cavalheiro preocupado com sua virtude e aquilo podia
rapidamente transformar-se em um escândalo impossível de se reverter. Ele
estava dormindo sem roupas ao seu lado. Ela não o vira nu, apenas seu peito
descamisado, mas a sua calça estava pendurada em uma cadeira próxima à
cama. Um homem sem calças é um homem nu.
Ele também a despira e a deixara em suas roupas de baixo. Ela não sabia
se estava mais frustrada por não ter impedido ou por não ter sentido as mãos
firmes do duque em seu corpo. Céus, ele tinha mãos enormes.
— Sra. Collingworth?
A voz grave e masculina veio do quarto. Elizabeth reuniu forças para
respondê-lo, preferindo se levantar e ir até o duque. Se ela conhecia bem os
nobres, ele provavelmente daria algumas ordens a ela, mesmo que não fosse
sua criada. Nobres adoravam dar ordens para pessoas como ela, adoravam
mandar e ser obedecidos.
— Pois não, milorde?
Ele estava sentado na cama e, por Deus, como era lindo. Elizabeth não
sabia como conseguira dizer qualquer coisa diante daquela escultura
masculina que terminava de abotoar as próprias calças. Com os pés descalços
e peito descoberto, ela podia ver o bronzeado natural de sua pele e os
músculos proeminentes por todo o corpo. Como aquele homem, um
aristocrata, poderia ter tantos músculos? Ele não fazia trabalhos braçais,
nunca deveria ter costas tão largas, ombros tão firmes e uma barriga tão…
As palavras faltavam para defini-lo.
— Acredito que vamos passar alguns dias presos, aqui. — Ele lhe sorriu e
ela quase desmontou em seus joelhos, como se aquele sorriso estivesse
mergulhado em láudano e pudesse anestesiá-la. — Pode abandonar os
tratamentos formais. Como a senhora está se sentindo?
— Dolorida. — Ela se sentou novamente, em uma cadeira. O mais longe
que podia daquele pecado em forma masculina. — Se vamos nos tratar por
nomes informais, senhor, pode me chamar de Elizabeth.
Um homem e uma mulher, desconhecidos, nunca se tratariam por
primeiros nomes. Nem os conhecidos faziam aquilo, era indecoroso, mas
Elizabeth precisava sempre lembrar que ela não era uma dama da sociedade e
que aquelas regras não foram feitas para os miseráveis plebeus.
— É um nome muito bonito. — O duque se levantou e sua altura era
ainda maior à luz do dia. Ele todo era maior, e melhor, com o sol reluzindo
em sua pele e cabelos. Nem as manchas da escarlatina conseguiam deixá-lo
menos lindo. — Vou dar algumas orientações ao meu criado. Se a senhora
quiser, pode tomar um banho.
Tomar um banho. Elizabeth notou a banheira próxima à outra lareira, que
já estava acesa antes, um pouco afastada da cama. Também havia um balde
de metal e uma bica de água. Aquela não era uma estalagem modesta e
aquele não era, definitivamente, o quarto pelo qual ela fora cobrada, antes. As
instalações eram caras demais para hospedar uma trabalhadora como ela.
O médico dissera que banho frio era bom para a febre. O corpo cansado
de Elizabeth pedia por aquela banheira, pedia por uma água morna que lhe
banhasse a sujeira de um dia inteiro de fuga inútil. Suas roupas estavam um
pouco encardidas por fuligem e poeira da estrada e seu cabelo cheirava a
fumaça. Ela adoraria deitar naquela banheira e lavar a cabeça, ficar cheirosa e
limpa para que o duque a visse…
Ele não a veria de forma alguma, como estava sendo tola. Homens como
Aiden Trowsdale não notavam plebeias como ela, provavelmente nem
mesmo para deitarem em sua cama.
Perdida nos devaneios, ela se pôs a preparar o banho. Deixou a água
esquentar no fogo da lareira, pegou a pedra de sabão que estava em uma
caixa de madeira e o tecido que servia de toalha, para se enxugar. Olhou para
a porta que separava o quarto da saleta e suspirou — não havia porta. A voz
imponente do duque ecoava por todo o espaço e ela considerou como, afinal,
iria entrar naquela banheira.
De uma vez só, fora a decisão. Apressada, na velocidade que a doença lhe
permitia, Elizabeth tirou a roupa, deixando-a ao lado, jogou o balde de água
quente e completou com água fria. Entrou na banheira e soltou uma blasfêmia
quando encostou na água quase gelada. Era o que o médico recomendou,
então era o que faria.
Seu corpo começou a tremer, mas ela resistiu. Encolheu-se, agarrando os
joelhos com os braços e ficou ali por quase um minuto inteiro. Esfregou o
sabão, limpou as impurezas da pele, mas não lavou os cabelos. Também não
percebeu quando a voz do duque cessou e tomou um susto quando sentiu a
sua presença ali.
— Esse banho não parece estar sendo muito agradável.
O coração de Elizabeth saltou duas batidas e ela tentou não olhar para ele.
O que aquele homem estaria fazendo ali, se ele sabia que ela iria se banhar?
Não deveria manter-se na sala, por decoro? Ou será que ele era um duque
devasso, libertino, daqueles que não tinham nenhuma decência? A fama do
Duque de Shaftesbury era de um homem que quase não se socializava, mas…
ele podia realizar orgias em sua casa. Oh.
— Está gelado. Ou eu estou muito quente, não sei dizer. Mas o médico
recomendou.
— Isso parece mais tortura do que tratamento.
Fingir que ele não estava ali não era uma possibilidade. Ele emanava
calor e fazia com que o coração dela disparasse. Elizabeth tremia de frio e
com a tensão daquele corpo masculino a menos de um metro de distância
dela. Um corpo masculino diferente de tudo que já tinha visto, porque ela não
estava acostumada a homens como aquele. Sem que esperasse, Aiden se
aproximou mais e, pegando a toalha em suas mãos, colocou sobre os ombros
dela.
— Você parece estar se sentindo melhor — Elizabeth murmurou. Não
esperava que sua voz saísse tão fraca e trêmula, mas foi o que ela conseguiu
fazer, agarrada à toalha enquanto seus dentes trincavam.
— Sou um duque, ficar doente não é bem algo a que estou acostumado.
Ele sorriu e ela cometeu o erro de olhar. Aquela era a boca mais perfeita
que existia e ela só conseguiu pensar que ele poderia beijá-la. Não fazia
sentido querer ser beijada pelo duque quase desconhecido, mas ela queria. O
sorriso dele se transformou em uma linha fina e sua expressão assumiu
contornos densos, sombrios. Algo o incomodou.
— Acho que a senhora deveria sair dessa água fria — Aiden disse. —
Não quero que morra sob meus cuidados.
Dando dois passos na direção da banheira, seus pés firmes encostaram no
metal e ele colocou as duas mãos nos ombros dela. Elizabeth sucumbiu a toda
espécie de sensação: calor, frio, ansiedade, fraqueza, medo, desejo. O simples
toque displicente daquele duque com poucos limites disparou todos os alertas
dentro dela. Ele a fez levantar, puxando-a para cima com delicadeza e
enrolando a toalha em seu corpo para que permanecesse coberto.
Ela parou de respirar e engoliu o ar. Aiden virou de costas para que
Elizabeth pudesse deixar a banheira e se vestir, desaparecendo em seguida
pela saleta. Bateu à porta e falou mais alguma coisa com seu criado. Seriam
mais alguns dias naquela tortura. Como ela pretendia resistir a um homem
como aquele?
CAPÍTULO QUARTO
J Á FAZIA três dias que Agatha estava em Thanet Bay e ela ainda não tivera
notícias de Aiden. O irmão estava confinado em uma estalagem, no meio do
caminho para Londres e os criados apenas disseram que ele continuava dando
ordens e mandando como um duque. Bem, era o que ele era, mas Agatha o
enxergava de outra forma. A maturidade a fez compreender o irmão e
perceber que ele era, no fundo, uma alma solitária que não sabia muito bem
como se aproximar das pessoas. Então ele usava sua autoridade sobre elas.
— John — ela interpelou o criado no jardim. O sol em Kent estava
agradável e o ar era limpo. As flores brancas e amarelas cobriam quase todo o
arredor da enorme casa e o gramado estava de um verde vivo esfuziante. —
Preciso que prepare a carruagem, vou ver o duque.
— Lady Agatha, temos ordens expressas de Vossa Graça para que a
senhorita não saia da propriedade.
— Bem, se você não preparar a carruagem, vou montar em um cavalo e
vou assim mesmo. — Ela colocou a mão na cintura e encarou o criado, que
esfregou a cabeça com desânimo. — Entenda, eu preciso de notícias dele.
Preciso falar com ele. Não vou fazer nada arriscado.
John fez uma reverência e saiu. Era muito difícil convencer lady Agatha
de qualquer coisa quando ela não queria ser convencida. Logo, a carruagem
estava pronta, esperando-a, e conduziu a lady e sua dama de companhia até
onde Aiden Trowsdale estava. Ela entrou na estalagem e, antes de chegar até
à casa dos fundos, foi interpelada pelo estalajadeiro. O homem pequeno e
barrigudo arrumava os bigodes enormes com os dedos. Ele tinha uma
aparência horrível, parecia um enfeite de jardim mal feito e mal pintado.
Ele queria lembrá-la que a conta do irmão estava alta e que ele temia que,
com a morte do duque, não recebesse o que lhe era devido.
— Meu irmão não vai morrer, isso eu lhe asseguro.
— Mas a escarlatina é uma doença grave, milady — o homem insistiu. —
Por que não fazemos o seguinte: a senhorita me paga o que o duque deve até
agora e depois ajustamos o restante. Claro que terá que pagar a parte da
mulher também, já que ela parece não ter onde cair morta.
— O senhor é uma pessoa odiosa. — Agatha moveu os ombros e olhou
para sua criada, com desânimo. — Mais interessado pelo dinheiro do que
pela vida das pessoas. Não se preocupe, eu pagarei o que o senhor tem a
receber. Dou a minha palavra.
Mesmo com a promessa, o estalajadeiro seguiu Agatha. Para ele, a
palavra de uma mulher não valia nada. Claro que, se Aiden morresse, ela não
seria sua herdeira, mas Agatha tinha certeza de que o irmão garantira a ela e à
mãe uma forma de subsistência, por testamento. O esperado era que ela se
casasse e tivesse uma confortável vida ao lado de um nobre endinheirado,
mas Agatha preferia acreditar que o irmão não contara com a sorte e deixara
um testamento a seu favor.
Geoffrey estava na porta do quarto com as costas recostadas na madeira.
— Milady. — O jovem criado levantou-se ao ver Agatha se aproximar,
marchando firme com o estalajadeiro e uma criada atrás dela.
— Como está o duque, Geoffrey?
— Em silêncio, milady. Desde ontem, ele não bate na porta nem atende
aos meus chamados. Já insisti e insisti e nada. Eu troquei com o Granger,
mandei o menino descansar e estou aguardando ser solicitado por Vossa
Graça. Mas confesso que estou preocupado.
Agatha não disse nada, apenas bateu delicadamente à porta. Como não
obteve resposta, bateu mais forte. Por fim, esmurrou a madeira na intenção de
ser ouvida, sem muito sucesso. Não havia um som vindo de dentro do quarto.
— Preciso entrar — ela disse, virando-se para o estalajadeiro. — Faça
valer o dinheiro que receberá e abra esta porta.
— O quarto está em isolamento, senhora. Não devemos entrar até que…
— Eu pareço preocupada com isso? Apenas pegue uma chave reserva e
abra esta porta, ou pedirei que meu criado a arrombe.
U M DIA PASSOU sem que o duque sucumbisse ao desejo inadmissível que seu
corpo sentia por aquela mulher. Ele tentou afastá-la de todas as formas,
buscando se convencer de que ela era inadequada, uma plebeia, viúva. Que
ela não poderia oferecer a ele nada além do que todas as outras já lhe tinham
oferecido, mas isso não surtiu efeito. Toda vez que ela respirava perto dele,
Aiden relembrava o beijo breve que compartilharam e desejava beijá-la
novamente.
O último dia de isolamento começou com Elizabeth chateada. Ela não
levantou cedo da cama, como fizera das outras vezes, nem perambulou pelo
gramado exterior. Não preparou o desjejum nem se incomodou em deixar o
quarto. Aiden deveria comemorar não precisar resistir à tentação dourada que
o provocava a cada segundo desde que seus olhares cruzaram naquela
estalagem, mas havia algo errado com aquela reclusão.
Já passava do meio-dia quando ele decidiu fazer alguma coisa. Um
Trowsdale raramente fugia de uma dificuldade e ele fora ensinado a enfrentar
todos os desafios. Dobrou as mangas da camisa, abriu alguns botões no
colarinho e decidiu preparar ovos com presunto. Ele já a vira fazer aquilo por
três vezes, não devia ser tão difícil.
Era quase impossível.
As duas primeiras tentativas representaram ovos queimados. Aiden
também não obteve muito sucesso preparando um chá, já que ele não sabia
como fazer a infusão. Ferveu água, mergulhou as ervas, e aquilo não parecia
certo. Já estava se sentindo frustrado e com sua virilidade ferida por não
conseguir superar as mínimas habilidades de uma mulher quando ela abriu a
porta e apareceu.
— Está tentando colocar fogo na casa?
A voz dela estava embargada, porém, divertida. Elizabeth estava enrolada
em um cobertor e tinha os cabelos despenteados. Não havia nenhum
resquício de vaidade feminina naquela figura pálida que se mostrava para
Aiden, mesmo assim, ele nunca vira nada tão belo à sua frente.
— Não creio que eu seja capaz, já que não consegui nem mesmo ferver
um chá. Aparentemente, colocar fogo em qualquer coisa é uma tarefa
complexa demais para um duque realizar.
Ela se aproximou e mexeu o chá que ainda estava em infusão. Provou um
pouco e franziu a testa, encarando o duque com uma expressão que o deixou
apreensivo. Era surreal que ele tivesse expectativa pela aprovação daquela
mulher, que ele desejasse fazer qualquer coisa certa para que ela gostasse.
— Basta coar, agora. O sabor muito bom, é camomila?
— Sim, há muitas flores logo aqui perto. Eu gosto bastante de camomila.
— Ora. — Ela ergueu as sobrancelhas em uma expressão surpresa. —
Vossa Graça colheu flores?
Apesar da aparente normalidade que o olhar dela transmitia, Aiden
pressentiu que Elizabeth não estava bem. Aquela mulher tinha se mostrado
forte e lutadora durante a doença, mesmo sucumbindo à febre. Ela cuidou
dele, ele cuidou dela, os dois compartilharam momentos intensos demais e
aquilo deu a ele conhecimento sobre coisas que não pretendia conhecer. A
frequência de sua respiração, o som de sua voz, o olhar altivo e sempre alerta.
Algumas dessas coisas estavam diferentes.
— A senhora está se sentindo bem?
Aiden continuou insistindo em preparar os ovos, enquanto aguardava que
ela lhe respondesse. A quarta tentativa deveria ser a da sorte.
— Não estou — ela, por fim, confessou, longos segundos depois. —
Tenho saudade dos meus filhos. E não tenho nada para vestir.
Os ovos que estavam nas mãos de Aiden caíram na frigideira, com casca
e tudo. Ele bateu no cabo de metal quente e queimou a mão, derrubando tudo
pelo chão. Virou-se repentinamente para a mulher enrolada em um cobertor.
Ela estava nua por baixo daquele tecido grosso? Não havia nenhuma peça de
roupas entre eles? Se havia um jeito de distraí-lo e causar um incêndio na
casa, Elizabeth tinha descoberto sem muito esforço.
— Suas roupas não secaram?
Ele tentou recolher a bagunça e ela se abaixou para ajudar, tentando
segurar o cobertor com uma mão, apenas. As pernas dela ficaram expostas e
Aiden jogou o corpo para trás, batendo a cabeça no fogão à lenha.
— Secaram, mas estão cheirando a… não sei, estão com um cheiro
horrível. E minha camisola estava muito antiga, acabou rasgando quando
tentei lavá-la, hoje cedo.
O duque não acreditava que nada dela pudesse ter um cheiro horrível. Ali,
naquele instante, a proximidade fazia com que ele sentisse o aroma de sabão
que exalava do corpo de Elizabeth. E tinha as malditas gardênias, de onde
aquele cheiro surgia?
— Vou mandar que lhe tragam roupas limpas. — Aiden levantou. —
Apesar de… eu não tenho como chamar os criados daqui. Isso pode ser um
problema.
— Está tudo bem. — Ela sorriu e tomou a frigideira da mão dele,
recolocando sobre o fogão. Depois, pegou um pano escurecido e umedeceu
em água para limpar o chão, que era de pedra. Tudo aquilo com uma mão
segurando aquele cobertor enrolado nos ombros. — Amanhã estaremos
liberados para seguir nossos caminhos. Deixe-me fazer isso.
Ela parecia realmente disposta a cozinhar naquelas condições. Aiden não
impediria, já que tinha fome, mas ele podia ajudá-la de alguma forma.
F OI ALGO RÁPIDO , mas que durou um ano inteiro. Elizabeth estava de costas
para o duque, equilibrando-se para manter sua dignidade enquanto tentava
cozinhar nua. Não estava tecnicamente nua, já que havia um grosso tecido
sobre ela, mas aquele tecido cobria apenas sua pele desnuda. Talvez aquela
condição a deixasse mais vulnerável, porém, foi capaz de sentir com
exagerado entusiasmo a aproximação de Aiden.
Ele foi silencioso como um fantasma e ficou cinco segundos parado atrás
dela antes de tomar uma atitude. Cinco segundos em que o coração dele
martelou oito vezes. Elizabeth parou de respirar quando Aiden colocou as
mãos em seus cabelos soltos e desarrumados e juntou os fios com os dedos,
elaborando uma trança frouxa. Aquelas mãos eram habilidosas demais para
um duque. Ele não mentiu quando disse que sabia trançar cabelos.
Depois, segurou o cobertor com as mãos grandes e seus dedos tocaram a
pele dela, no pescoço e na clavícula. Elizabeth fechou os olhos enquanto os
ovos estalavam na frigideira.
— Confie em mim — Aiden sussurrou, bem próximo ao ouvido dela.
Elizabeth quis gritar que sim, ela confiava, apesar de não ter motivos para
aquilo. O corpo dela inteiro retumbava com a mera proximidade do duque.
Não havia certeza maior em sua realidade — ela queria ser tocada por ele.
Elizabeth soltou o cobertor. O duque o manteve firme no lugar e,
juntando as pontas, deu um nó na altura do pescoço dela. O tecido caiu
frouxo por seu corpo, não a cobrindo como deveria. Se ela se movesse, o
cobertor também se moveria e partes dela ficariam expostas. Mas, ao menos,
permitia que ela tivesse as mãos livres.
— Vou me sentar ali atrás.
O duque se afastou e ela sentiu um frio repentino, como se uma corrente
de ar lhe atingisse. A presença dele a envolvia em calor e fazia tempo desde a
última vez em que se sentira daquela forma. Provavelmente Elizabeth nunca
percebera que sentia falta ou que precisava daquele tipo de calor, mas Aiden
Trowsdale estava causando nela um efeito problemático. Estava fazendo com
que ela desejasse coisas que não poderia ter.
Cozinhar se tornou mais fácil. Os ovos ficaram com uma aparência ótima
e o pão, que ela havia feito no dia anterior, ainda estava macio. Passando um
braço pela própria cintura para evitar uma exposição desonrosa, Elizabeth
levou a comida até a mesa e se sentou, tentando manter os olhos afastados do
duque.
— É sua vez de contar uma história — o duque disse, cortando o pão com
as mãos. Ela tentou evitar os olhos dele, o que não fez nenhuma diferença.
Qualquer parte do corpo de Aiden despertava os sentidos de Elizabeth. —
Fale-me dos sonhos de Elizabeth Collingworth.
Ela riu. Claro que tinha que rir, mulheres como ela não tinham sonhos.
Ao menos ela não tinha mais sonhos, eles foram despedaçados, pisoteados e
incinerados quando tinha quatorze anos. Tudo pelo que foi criada virou pó
aos seus pés e ela precisou encarar outra realidade — a de trabalhar por seu
sustento e de viver em uma sociedade muito diferente daquela que deveria
acolhê-la.
— Quando eu era uma menina, e minha mãe me ensinava coisas sobre o
futuro e sobre como eu deveria me portar… quando minha tutora me dava
orientações sobre a sociedade e a nobreza… eu tinha um sonho. Era uma
coisa tola, mas eu por vezes sentia que poderia atingi-lo.
— E que sonho tolo era esse? Vamos, a senhora não pode começar uma
história e não a terminar.
— Meu sonho era se casar com um duque.
Aiden engasgou com o pedaço de pão que levou à boca. A expressão
resoluta de Elizabeth indicava que ela esperava aquela reação.
— Parece o sonho de uma dama — ele disse, depois de beber um pouco
de chá. Não, ele virou uma xícara inteira de chá enquanto Elizabeth o fitava,
preocupada. Aiden tinha a voz rouca, ela não sabia se era por algum
incômodo em sua garganta ou se ele estava constrangido com o sonho dela.
— Acontece que eu não sou uma dama. Não mais. Eu tive sonhos, mas
Vossa Graça pode perceber que hoje eu apenas luto pela sobrevivência.
Naquela época, eu era uma menina e eu fui criada para me casar. Hoje eu sou
uma mulher adulta e sei que há coisas mais importantes na vida do que
escolher maridos aristocratas.
— A sua família, ela… tinha ascendência?
— Não. Mas eu podia conquistar um nobre, claro. Um baronete, talvez,
até um visconde poderia ter interesse em desposar uma moça rica com um
dote excelente. E eu era refinada, fui treinada para ser uma anfitriã perfeita,
uma esposa dedicada. Seria fácil transitar comigo nas festas e bailes, eu não
tinha estirpe, mas tinha classe. O duque era apenas um sonho, mesmo.
Nenhum deles se interessaria por mim. Eu não era boa o bastante.
Elizabeth tinha certeza de que jamais se casaria com um duque. Era um
título alto demais, havia pretendentes muito melhores do que ela. Duques se
casavam com mulheres nobres, filhas de condes ou outros duques. Eles não a
escolheriam, por mais que ela fosse a escolha perfeita. Ainda assim, ela
sonhava. Ela sonhou. Aquilo tinha ficado no passado.
— E então o seu pai perdeu tudo.
Ele não precisava de muito esforço para entender a situação.
— E eu perdi meu dote. Sem estirpe e sem dote, a minha vida miserável
me conduziu a outros caminhos.
— Lamento. A senhora certamente daria uma ótima esposa para qualquer
homem na minha posição.
— O senhor não pode saber disso. — Ela o encarou. Nunca tivera tanta
proximidade com um homem a ponto de conversar abertamente com ele
sobre aquelas tolices sentimentais. Primeiro, porque nenhum homem queria
realmente conversar sobre aqueles assuntos. Segundo, porque ela não se
sentia confortável em falar deles. — Só me conheceu em posição de
subserviência, como uma criada. Talvez possa acreditar que eu seja uma boa
ama de companhia, ou tutora, ou até mesmo governanta. Mas, esposa?
Aiden riu e terminou de comer o que havia em seu prato. A luz da vela
que estava sobre a mesa bruxuleava em seu semblante rígido, amenizado por
um breve sorriso nos lábios perfeitos.
— Tem razão. Mas eu suspeito que minhas impressões estejam corretas.
CAPÍTULO NONO
Q UANDO E LIZABETH ENTROU pelos fundos e viu seus filhos, ela teve vontade
de chorar. Além da saudade que apertava seu peito, eles estavam parecendo
pequenos aristocratas. Nunca eles tiveram roupas tão belas e bem talhadas
como as que estavam vestindo. Peter veio correndo e a abraçou, gritando
mamãe. Patrick, mais contido, se aproximou com cuidado. Ela afagou a
cabeça do filho mais velho e o beijou na testa.
— Vocês se portaram bem?
— Sim, mas Peter não quis dormir na cama dele.
— Aquela não é minha cama — o menino resmungou, com o nariz
enfiado na saia da mãe. — Você vai nos levar para casa agora, mamãe?
— Ainda não podemos. — Elizabeth ajoelhou-se e fez com que os
meninos olhassem para si. Ela costumava conversar com eles de forma que
seus olhos estivessem na mesma direção. — Eu fui contratada por essa
família, portanto, ficaremos aqui pelo verão. Será bom, quando voltarmos, a
cidade estará livre da doença. E temos um quarto confortável para ocupar.
Sabiam que na propriedade há um poço dos desejos?
Não havia testado fazer desejos naquele poço, mas os meninos poderiam
fantasiar um pouco. Talvez algum pedido deles fosse atendido, por que não?
— Vamos nos mudar para cá? — Patrick não estava convencido.
— Não, será temporário. Mas o quarto em que vamos ficar é melhor do
que a nossa casa inteira. Vocês adorarão.
Ela estava arriscando, mas provavelmente estava certa. Ambos
concordaram. Elizabeth levantou-se e os encarou. Tanto Patrick quanto Peter
vestiam um conjunto de linho e lã, com bermuda, camisa branca e colete. As
meias cobriam as pernas e os sapatos eram novos. Tudo era novo.
— Quem lhes vestiu dessa forma, Patrick? — Ela precisava perguntar.
— Lady Agatha nos deu roupas novas. Muitas roupas; uma mulher
chegou aqui com caixas e mais caixas de roupas e nós experimentamos e ela
ajustou.
Oh. Elizabeth nunca seria capaz de recompensar a bondade daquelas
pessoas. Talvez devesse trabalhar sem receber um salário, para ser justa, mas
ela precisava do dinheiro e o aceitaria de bom grado.
— Nós dissemos obrigado, mamãe — Peter complementou.
— Fizeram bem. Agora, eu preciso conversar com os empregados, vocês
devem voltar a fazer o que vinham fazendo até agora.
Os garotos correram para fora da casa e foram brincar no quintal.
Elizabeth notou que o gato que o duque alimentara estava rondando a casa e
miando. Ele disse que não havia animais domésticos naquela região, talvez as
coisas estivessem para mudar.
John a estava aguardando para explicar sobre o serviço. Ela fora tutora de
lady Charlotte, naquela casa ela teria funções mais domésticas. Coordenar as
criadas, a cozinha, cuidar da aparência dos aposentos. Não precisaria fazer
serviços pesados, porém, teria toda a responsabilidade do funcionamento das
engrenagens. E responderia apenas ao mordomo.
Aquilo parecia um bom emprego, melhor do que trabalhar servindo
cervejas em uma taverna qualquer ou ser obrigada a prostituir-se. Aquela
seria, definitivamente, sua última opção, porém, ela nunca deixaria seus
filhos sem ter o que comer ou vestir. Faria de tudo que estivesse ao seu
alcance. Por sorte do destino, o trabalho que lhe ofereceram era digno.
— Lady Agatha pediu que a senhora fosse vê-la ao chegar. Ela ainda não
acordou, porém, a criada subiu para apagar a lareira e abrir as cortinas.
— Eu servirei seu desjejum, então. Obrigada pelo acolhimento, John.
O mordomo era um homem grande e esguio, com cabelos descoloridos
pela idade. Sua dicção era muito boa, o que indicava que ele também tivera
boa educação. Depois que ele se retirou, Elizabeth procurou as cozinheiras,
Gretha e Loretta, para se inteirar dos procedimentos regulares. A casa parecia
bem-cuidada, apesar da insistência do duque de que eles precisavam de uma
governanta. Ela ainda teria que conferir todos os aposentos, mas faria aquilo
depois que todos acordassem.
Levou as duas cozinheiras para inspecionarem a despensa e fazer um
inventário do que havia para ser utilizado. Não se decepcionou com a fartura
de comida e logo se sentou para elaborar um cardápio que serviria para a
semana. Como as cozinheiras garantiram que sabiam ler, ela pediu papel e
tinta para escrever e até mesmo considerou algumas receitas que duvidava
que fossem servidas naquela residência.
A criada de lady Agatha informou que ela tomaria seu desjejum no salão
e que o irmão lhe faria companhia, portanto, ela deveria servir comida para
dois. Aquilo não parecia nada bom. Era ainda muito cedo para rever Aiden
Trowsdale. Ela estivera com ele por vários dias, por tempo demais — e ainda
assim parecia muito pouco. Se fechasse os olhos podia sentir as mãos dele
sobre ela. Em lugares que não estava acostumada a ser tocada.
Maldito fosse aquele duque.
Equilibrando uma bandeja e seguida por duas outras criadas, que eram
assistentes da cozinha, Elizabeth entrou no salão principal sem nem ter
trocado ainda de roupa. Ela usava sua saia de lã crua que cheirava como um
cachorro molhado e sua blusa amarrotada que estava amarelada pela água
suja do poço. Seus cabelos estavam razoavelmente trançados porque pedira
ajuda a Moira, a criada privada de Lady Agatha. Ela tinha olheiras por dormir
mal e seu corpo todo tremia de fadiga. Mesmo assim, manteve uma altivez
esperada de sua posição. Não que ela fosse ser notada, as criadas não eram
comumente vistas.
— Elizabeth! — Lady Agatha agitou-se ao vê-la. — Que bom que esteja
curada. Fiquei muito preocupada quando meu irmão precisou trazê-la quase
desmaiada em seus braços.
— Estou como nova, milady. Obrigada por tudo que fez por meus filhos.
Eu jamais poderei pagar-lhe de volta.
Enquanto servia a comida, Elizabeth não conseguiu deixar de antecipar a
chegada dele. Apenas a jovem Agatha e sua presença entusiasmada estavam
ali, falando bastante sobre tudo que acontecera na casa durante o período de
confinamento. Aparentemente, ela não se importava em conversar com os
criados, ou considerava Elizabeth algo além de uma criada.
— Eu gostaria que viesse comigo à vila — lady Agatha por fim disse. —
Preciso fazer duas visitas e a senhora poderia me acompanhar.
— Será muito bom poder ajudá-la, milady. Eu apenas tenho algumas
tarefas que…
— Que podem ser negligenciadas, se for para que Agatha tenha a melhor
companhia.
A voz. Se Elizabeth não estivesse preparada para ouvi-la, teria desabado
sobre as próprias pernas. O que havia naquela voz que causava tanto impacto
sobre ela? Não ouvira o duque falar durante dias? Não o ouvira poucas horas
atrás? Por que ele ainda estava causando tanto rebuliço em seu corpo a ponto
de seu coração disparar e sua respiração travar?
— Aiden, pensei que precisaria tirá-lo da cama. — Lady Agatha abraçou
brevemente o irmão. — Então você me empresta Elizabeth? Sei que a
contratou como governanta, mas eu me sinto muito sozinha aqui, minhas
amigas ficam muito distantes e mamãe não sai do quarto!
— A Sra. Collingworth pode acompanhá-la sempre que quiser. As tarefas
da casa são importantes, porém, fazer com que você tenha companhia
qualificada é ainda mais. Quem sabe assim você não se torna uma dama
respeitável?
O Duque de Shaftesbury sentou-se à mesa. Ele também tinha sinais da
convalescença, mas estava magnífico. Tinha se banhado e barbeado. Usava
um conjunto de colete e paletó azuis sobre uma camisa branca. O lenço em
seu pescoço estava perfeitamente ajustado e preso com um alfinete perolado.
— O que o faz pensar que ela é capaz de me transformar em uma dama?
— Lady Agatha riu. A criada serviu-lhe ovos, presunto e torradas. Elizabeth
levou até ela uma xícara fumegante de chá.
— Ela fez um bom trabalho com a Srta. Pensington, pelo que sei.
Charlotte Pensington era uma excelente referência. A jovem era
completamente desqualificada para a sociedade quando fora tutelada por
Elizabeth e terminou noiva de um lorde francês. Agatha Trowsdale era muito
mais amável e adequada do que a jovem lady Charlotte, seria muito mais
simples moldá-la aos propósitos casadoiros do irmão. Mas, será que era isso
mesmo que Elizabeth deveria fazer?
Por algum motivo, desde que fora obrigada a enfrentar o desemprego, a
fuga, a doença e o desejo carnal mundano, ela começou a duvidar de algumas
coisas.
— Vossa Graça deseja chá? — ela perguntou, sem virar-se para esperar
uma resposta. Aiden assentiu com os lábios comprimidos e não disse nada em
voz alta. Mas Elizabeth sabia o que ele tinha dito. Ou querido dizer.
Providenciou uma xícara de chá de camomila e adoçou com uma pedra de
açúcar e um pouco de leite. Mesmo que o duque conversasse com a irmã,
Elizabeth não conseguia prestar atenção nas palavras, apenas na voz e no
calor que emanava dela. Aproximou-se com cuidado para que ninguém
percebesse o quanto suas mãos tremiam e colocou a xícara à frente do
homem.
— Obrigado.
A proximidade era um veneno, então Elizabeth afastou-se bruscamente da
mesa.
— Estarei na cozinha. Quando desejar sair, milady, avise para que eu me
vista adequadamente.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO
L ADY A GATHA ESTAVA no jardim tomando seu chá quando lady Caroline
Eckley chegou em sua carruagem elegante, ornada em preto, dourado e
vermelho. Fazia bastante tempo que Caroline não visitava Thanet Bay. Ela
passara meses no continente com a família e se afastara do Duque de
Shaftesbury, mas o tempo não fez com que seu interesse nele esmorecesse.
Ao contrário, ela tinha certeza de que desejava se tornar a nova duquesa,
mesmo que não fosse a mais qualificada pretendente.
Aiden não era um homem que se prendesse tanto às tradições. Na maioria
das vezes ele as desprezava, e era com isso que Caroline contava. Eles eram
bons amantes e ela sabia que o satisfazia. Suas chances eram poucas, mas ela
se agarraria a elas como um caçador à sua presa.
Ela estava ali para revê-lo. Escolheu um vestido de cetim amarelo e
prendeu os cabelos escuros com tiaras ornamentadas em fitas de veludo.
Parte dos seus seios estava à mostra, mesmo que o acabamento de renda
atrapalhasse um pouco a visão. Poucas mulheres tinham noção plena do
poder que os decotes exerciam sobre os homens, mas Caroline sabia bem que
eles dificilmente resistiam a belos seios expostos.
Sua chegada não fora programada porque nunca era. A forma como a
jovem Trowsdale a encarou deu a dimensão de que sua presença ali não era
bem-vinda. O que também era comum. Caroline costumava ser pouco
desejada nos espaços da sociedade, o que lhe permitia trânsito fácil era o fato
de ser sobrinha de Granville. Tendo se tornado órfã de pai e mãe ainda
criança, o Marquês assumiu sua criação e, com isso, possibilitou que ela
transitasse pela sociedade. O que ele não conseguiu prover a ela foi uma
criação dentro das regras da feminilidade. Por vezes, Caroline parecia um
homem.
— Olá, querida.
Lady Eckley acenou para Agatha, que não demonstrou nenhuma
satisfação ao vê-la.
— Caroline! Que prazer revê-la, como foi sua viagem pelo continente?
Claro que aquele encantamento era fingido.
— Ah, foi ótima! Aprendi muita coisa com outras sociedades, inclusive
que a nossa é a mais elegante de todas. Os italianos são ótimos, mas os
vestidos… que horror! Muito espalhafatosos.
Os franceses eram muito melhores, mas Caroline achou melhor não
comentar sobre todos os hábitos que faziam os franceses mais interessantes
que os italianos.
— Um dia teremos que combinar um chá para que me conte todas as
fofocas. Preciso saber se é verdade que os homens italianos podem se casar
com mais de uma mulher ao mesmo tempo.
— Por que não começamos essa conversa agora? — Caroline se sentou
em um banco de mármore para os convidados, sem conseguir evitar que seu
olhar divagasse pela propriedade. Ela sabia exatamente em que janela estava
o quarto do duque, mas não havia nenhum sinal dele em lugar algum.
A anfitriã chamou a criada e pediu mais uma xícara para Caroline.
— Seria mais simples se você dissesse logo que deseja ver meu irmão. —
Agatha esticou para ela um olhar de quem sabia, e reprovava, as suas
intenções.
— E ele está? Ele já se recuperou?
— O duque está recolhido em seus aposentos — lady Agatha disse, com
o olhar ainda sobre o semblante de Caroline. A jovem Trowsdale era como
uma águia que não deixava passar nenhuma expressão. — Ele precisa
repousar, ainda mais depois de receber uma visita do Conde de Cornwall.
— Claro que precisa.
Caroline sorriu e decidiu que não aceitaria ser enxotada de Thanet Bay. A
família de Aiden tinha bons motivos para saber do envolvimento indecoroso
entre eles, mas ela não se importava. Queria vê-lo, estava ali para isso.
Continuou sentada com Agatha por mais algum tempo, distraindo a jovem
lady com assuntos frívolos da sociedade francesa e das mulheres que
arrancavam os pelos do corpo com cera e pinças, até ter certeza de que não
havia nenhum movimento estranho na casa.
Fingindo que ia embora, Caroline despediu-se de Agatha e entrou em sua
carruagem. Ao invés de deixar a propriedade, contudo, mandou que o
cocheiro desse a volta e parasse na entrada dos fundos. Ela espreitaria a casa
até que escurecesse o suficiente para escapar pela entrada lateral. Por sorte,
ela sabia alguns caminhos para chegar ao quarto do duque.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
H AVIA coisas que os empregados sempre sabiam em uma casa. Uma dessas
coisas era a presença de visitantes inesperados e pessoas passando pelas
passagens escondidas que eram utilizadas por eles. Quando lady Eckley
entrou na casa, ela acreditava que estivesse protegida pelo anonimato, mas as
cozinheiras sabiam quem ela era e o que ela fazia perambulando pelas
escadas laterais da mansão em Thanet Bay.
Quando Elizabeth entrou na cozinha naquela noite, o assunto que estava
na roda de fofocas das empregadas era exatamente o retorno da amante do
Duque de Shaftesbury.
— Já disse que ela não é amante dele. — Gretha parou de cortar o pedaço
de carne e empunhou a faca na direção de Loretta. — Amantes são mantidas
pelos nobres. Eu até as entendo, o que as motiva. Essa daí não, ela é apenas
uma imoral.
— Não importa o nome que dão. Sei que ela está de volta para a cama de
Vossa Graça depois de desaparecer. Será que ela teve criança e escondeu?
Será que o duque tem um bastardo perdido por aí?
— Por Deus, espero que não!
— O que está havendo? — Elizabeth interferiu, porque não entendera
nada do que as cozinheiras falavam. Algo sobre uma mulher na cama do
duque e filhos bastardos fez com que ela se interessasse pelo assunto. —
Estão fofocando sobre a vida privada dos patrões?
— Não é fofoca — Loretta sussurrou, virando-se para Elizabeth na
intenção de poder falar bem baixo. — É que uma das amantes do duque
estava no quarto dele, mais cedo.
— Não é amante. — Gretha manejou a faca na direção da outra,
indicando sua insatisfação com a escolha imprudente das palavras.
— De quem estão falando? Quem é essa amante?
— Lady Caroline Eckley. Ela é sobrinha de um marquês, mulher fina e
sempre com vestidos tão elegantes. Mas não tem nenhuma moral, nunca vai
se casar porque nenhum homem quer uma mulher como ela.
— Ela sempre frequentou a casa — Gretha explicou. — Sabemos que ela
e o duque…
A mulher fez um sinal da cruz indicando que não pronunciaria o ato em
voz alta. Elizabeth raramente se envolvia com aquele tipo de mexerico de
empregadas, porém, a ideia de que uma amante de Aiden estivesse rondando
a casa a incomodou. O duque estava ferido e repousando, não era possível
que ele estivesse recebendo mulheres em sua cama. Ela não se surpreenderia
com nada que viesse dos homens. Talvez a melhor estratégia fosse manter-se
afastada e atenta, observando os fatos.
— Avisem-me imediatamente se virem essa mulher na casa — ela
ordenou às cozinheiras.
— Sim, Sra. Collingworth. Alguma outra orientação?
— Vamos conferir o cardápio do jantar.
Elizabeth aproximou-se do fogão para conferir o que estava sendo
preparado e se tudo estava conforme suas instruções. A presença de uma
dama do passado de Aiden, no entanto, a deixou incomodada e com um
desejo ridículo de tirar satisfações com ele. Quase riu mais de uma vez por
sequer considerar cobrar qualquer coisa do duque. Ele nunca lhe prometera
nada e ela recusara a proposta que ele fizera.
Sua relação com ele era profissional, apenas.
F ICAR na cama era a maior punição que Aiden poderia sofrer por sua
inconsequência. Foram dois dias parados, sem poder descer as escadas,
esperando cumprir as ordens da governanta. Desde que lady Eckley deixou
seu quarto, a única pessoa que viu foi o criado Geoffrey. Agatha esteve em
seu quarto logo depois do chá, mas ele fingiu que estava tudo bem e ela não
retornou. E Aiden ficou ali, pensando em caçadas, bailes e casamento.
A caçada era sua parte preferida. Adorava se embrenhar na floresta e
fazer uma atividade coletiva e social que não representasse uma interação
muito delicada, já que Aiden tinha péssimo jeito com as palavras. Os bailes,
ele organizava mais por causa de sua mãe. Era a única ocasião em que a
duquesa aparecia em público, mesmo que por pouco tempo. Não que ele
adorasse bailes, mas às vezes ficava feliz em ao menos ver a mãe.
Já o casamento, aquele ele gostaria de poder esquecer.
Aiden não queria se casar. A próxima temporada parecia perto demais,
nenhuma das damas solteiras que ele conhecia o interessavam. Talvez
houvesse alguma que ele não conhecesse, provavelmente a ideia de Edward
era boa — naquele período do ano, havia moças de todas as partes da
Inglaterra espalhadas por Kent, era possível que Aiden encontrasse alguém.
Ou o problema podia ser que ele já tivesse encontrado.
Mesmo que ninguém o tivesse visitado, além de Caroline Eckley, a única
pessoa que ele quis ver fora Elizabeth. Estava insatisfeito porque Geoffrey
lhe banhara, mesmo sabendo que era aquela a função do criado. Estava
insatisfeito porque ela não apareceu mais para fazer uma inspeção fingida nos
aposentos, usando aquela desculpa para vê-lo. Estava insatisfeito porque seu
corpo sentiu falta dela, assim como sua mente.
A pior parte de tudo foi espreitá-la do lado de fora. Por duas vezes,
acompanhada por Hodges. O que diabos o cavalariço queria com a sua
governanta? Alguma coisa ferveu dentro dele e tudo que ele pode fazer fora
desejar transformar o homem em sua caça, levá-lo até o galpão e surrá-lo,
mas não faria nada daquilo. Aiden Trowsdale não perdia a linha por causa de
uma criada.
Naquele dia, quando acordou cedo demais porque não aguentava mais
dormir, ouviu o barulho das crianças. Aiden ainda não tinha notado a
presença dos filhos de Elizabeth naquela casa, mas eles gritavam do lado de
fora e aquilo aguçou a curiosidade do duque.
Não chamou o criado, apenas levantou-se e vestiu a calça e a camisa
branca. Dispensou o colete e o casaco, pressentindo o calor do lado de fora, e
desceu. Quando Geoffrey o viu, ficou agitado e preocupado, já que o duque
não havia solicitado sua presença.
— Vossa Graça precisa de algo? Devo mandar servir seu desjejum?
— Está tudo bem, Geoffrey. Eu só precisava sair da cama, estou me
sentindo ótimo. Onde está minha irmã?
— Dormindo ainda, milorde. Ela pediu que avisasse que hoje terá amigas
para o chá das cinco e que solicita os serviços da Sra. Collingworth para si,
durante todo o dia.
Ah, mas ele não estava nada interessado em passar outro dia sem ver
Elizabeth. Só não podia deixar que percebessem.
— Certo. Peça à Sra. Collingworth que venha me ver e traga a comida.
Conversarei com ela.
O criado assentiu e moveu-se na direção da cozinha. Aiden se sentiu
subversivo e decidiu dar um passo além.
— Geoffrey.
— Pois não, milorde.
— Mudei de ideia. Vou comer na sala privativa. Peça que meu desjejum
seja servido lá, e que eu não seja incomodado.
A sensação de que faria algo proibido, algo muito secreto, encheu seu
peito de ansiedade. Por mais que Aiden tivesse sido criado de uma forma
menos convencional por seu pai, mesmo que ele não fosse um daqueles
nobres que zelasse pela moralidade imaculada, ele não costumava fazer
muitas coisas erradas. Ele tinha sua quota de libertinagem porque podia. Ele
era um duque, era um homem, ele poderia ter vinte amantes espalhadas pela
Inglaterra e pela Escócia e ninguém criticaria sua moral.
Fora isso, Aiden era correto. Ele se esforçava para levar adiante o legado
de seu pai. Os desejos de sua mãe doente, que não eram poucos. As loucuras
de sua irmã. Mas ali, enquanto se dirigia à sala privativa, seu espaço
particular, onde estavam seus livros mais queridos e o sofá já tinha a marca
de seu corpo, o duque se sentiu como um menino travesso.
Minutos depois que se sentou e abriu um livro, apenas para fingir que não
estava antecipando demais a chegada dela, Elizabeth entrou na sala com uma
bandeja. O cheiro de camomila preencheu o ambiente, porém, Aiden preferia
gardênias.
— Vossa Graça deseja me falar? — ela perguntou, enquanto colocava a
comida sobre uma mesa redonda. A lareira da sala não estava acesa, mas
fazia muito calor naquela manhã. Ou era apenas o duque que se sentia quente,
ainda.
— Minha irmã precisa de seus serviços hoje. Peço que a atenda. A
senhora… está bem acomodada na casa?
Elizabeth serviu o chá, colocou o açúcar e o leite. Ela não se virou nem
olhou para ele enquanto servia um prato com torradas e geleia fresca. Fazia
tempo que Aiden não comia geleia.
— O quarto que ocupamos é melhor do que merecemos. Vossa Graça foi
muito gentil.
Fechando o livro, Aiden levantou-se e sentiu uma pequena fisgada no
ferimento. Aproximou-se da mesa, ou dela, não tinha certeza, e sentiu quando
Elizabeth travou os músculos. Ele não queria que ela o repelisse. Precisava
que ela tivesse sentido falta daquele contato tanto quanto ele.
Segurando a xícara, ela se virou. Parecia uma tentativa não muito
eficiente de colocar alguma coisa entre eles. Aiden pegou o objeto com as
duas mãos e depositou sobre a mesa. Depois, levou os dedos até o queixo de
Elizabeth e ergueu sua face. Ela finalmente olhou para ele, o azul mais
límpido que ele já vira. Nenhuma paisagem do lado de fora concorria com
aquele brilho.
— Seu chá vai esfriar — ela murmurou.
— Esperei te ver, durante esses dias — ele confessou. — A senhora
esteve no meu quarto quando me feri, então pensei…
— Milorde. — Elizabeth baixou novamente o olhar. — Eu pensei que
estivéssemos de acordo sobre isso. Que eu não serei sua amante.
— Estamos de acordo — ele fingiu concordar. Aquela tinha sido uma
decisão dela que ele respeitava, porém esperava que Elizabeth mudasse de
ideia. — Ao mesmo tempo, eu ansiei pela senhora. Quis ouvir histórias.
Saber mais sobre sua vida. Fiquei observando pela janela enquanto a senhora
cuidava de tarefas que não são suas. Geoffrey comentou sobre como a
senhora é cuidadosa e respeitosa. Eu a vi caminhar com Hodges e brincar
com as crianças. Não sei como cumprir esse acordo se eu não estou
conseguindo parar de pensar em…
Ah, o proibido. Era difícil até mesmo completar as frases. Nem ele, nem
ela, conseguiam ser explícitos naquilo que não compreendiam.
— O senhor esteve ocupado nesses dias. Não seria prudente interromper.
— Ocupado? — O duque ergueu uma sobrancelha enquanto analisava a
expressão da governanta. — Eu passei dois dias na cama, por sua orientação.
Não havia nada…
Elizabeth o interrompeu. Ela tinha aquela mania inaceitável de
interrompê-lo, porém, ele não se aborrecia com isso.
— Os criados sabem tudo que acontece em uma casa. Não é porque nos
silenciamos que não saibamos. Eu não ousaria retornar ao seu quarto e
deparar-me com uma mulher em sua cama.
Maldição. Ela sabia sobre Caroline, e sabia tudo. Certo que as camareiras,
as cozinheiras, as arrumadeiras fofocavam. Ele só não tinha considerado que
Elizabeth era uma delas e acabaria descobrindo seus segredos não tão
secretos.
— Não havia esse risco — o duque confessou, por fim.
— Ela não é sua amante? — A suavidade da voz dela não escondeu a
crudeza da pergunta. Nem a latente mágoa em sua face. — Não é uma mulher
que compartilha sua cama e…
— Elizabeth. — Foi a vez de ele a interromper. Aproximou-se e segurou
a mão dela, colocando-a sobre seu peito. — Eu e Caroline, o que tenha
havido entre nós ficou no passado. Ela não demonstrou ter entendido isso,
portanto, precisei ser mais claro. Ela esteve em meu quarto, mas foi embora
logo em seguida.
A governanta olhou para baixo. Por alguns segundos fez-se tanto silêncio
que era possível ouvir as respirações dentro da sala.
— Não há nada entre nós — Aiden reforçou sua afirmação. Elizabeth não
parecia acreditar no que ele dizia. Não havia motivos para que ela acreditasse.
Ele sempre fora um devasso. Qualquer mulher que se aproximasse seria
rotulada de amante. Ainda mais uma que invadia seu quarto sorrateiramente.
— Se houvesse, não seria de minha conta. — Ela ergueu o olhar e havia
uma nota de desapontamento no azul translúcido que encarava o duque. —
Eu não deveria questionar o que ocorre em sua vida privada. Quanto ao
ferimento, o senhor está bem?
Aiden quis gritar que não. Ele não estava bem porque um mal-entendido
atrapalhou o momento que ele planejara. A presença indesejada de lady
Eckley fora notada pelos empregados. Por Elizabeth. E ele estava ali, como
um jovem tolo tentando se explicar para sua governanta sobre as mulheres
que não frequentavam mais a sua cama.
Aquilo estava errado. Aiden era um duque, não devia satisfações a
ninguém, mas queria ajoelhar à frente dela e implorar que ela acreditasse
nele.
— O ferimento foi superficial. A senhora exagerou nas recomendações
— Voltou a sangrar depois que saí?
— Apenas quando me levantei à noite, logo parou.
— Não parece tão ruim. Eu fiquei preocupada.
Ali estava a rendição que ele esperava. Que ele desejava, quando pediu
para que ela fosse conduzida à sala privativa. O duque queria saber se
Elizabeth pensou nele. Se ela se preocupou com ele. Não apenas porque viu
uma mulher de moral duvidosa se esgueirando pela casa. Ele estava tão
próximo dela que sentia a respiração morna de Elizabeth, que parecia
hesitante.
— Eu pedi que viesse aqui porque eu precisava te ver. Se quiser, eu me
afasto e a senhora retorna para suas tarefas.
Ela não se moveu. Não disse nenhuma palavra, não resistiu à
proximidade, não deu um passo para trás. Ao contrário, colocou as duas mãos
na camisa que ele vestia, ajustou o lenço no pescoço e fechou um botão que
estava aberto. Depois, ergueu o olhar e quase foi engolida pela escuridão.
Aiden sabia que a encarava com desejo demais, só não conseguia evitar.
— Desculpe, Vossa Graça, mas eu não sei como fazer isso.
— O que seria isso? — Aiden levou a mão até a cintura dela e a puxou
para perto. Os corpos trombaram, o cheiro dela era tudo que ele conseguia
sentir. A outra mão retirou uma mecha de cabelo da testa de Elizabeth.
Desceu pela face, deslizando os dedos pela tez macia e suave até os lábios,
que estavam vermelhos. Intensidade, era aquilo que ele admirava tanto nela.
Tudo em Elizabeth pulsava como se ela inteira fosse um vulcão prestes a
entrar em erupção. Consciente apenas do seu desejo, o duque levou sua boca
até a dela.
Não fora um beijo, apenas um roçar de lábios. Ela ficou imóvel, a
princípio.
— Isso — Elizabeth murmurou novamente. — Não sei como fazer isso.
— Parece que sabe muito bem.
Ele a beijou. Daquela vez, Elizabeth segurou-o pela camisa e forçou o
contato mais íntimo de seus corpos. A boca dela se abriu para receber a
língua quente que a invadia. A sensação de beijá-la era algo que Aiden ainda
não sabia descrever, talvez algo que ele nunca sentira antes. Ela tinha uma
textura única, um gosto singular, um toque indescritível. Era como se ele
estivesse beijando pela primeira vez.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
A PAZ em Thanet Bay tinha acabado. Ao menos foi o que Myrtle Trowsdale,
a duquesa viúva, determinou enquanto se aproximava da janela para ver o
que significava aquela algazarra. Ela odiava barulho e odiava ainda mais
barulho de crianças. Não havia crianças na mansão, ela sempre deu ordens
expressas aos criados para não permitirem que os filhos dos arrendatários
chegassem a menos de um quilômetro da casa, mas não tinha dúvidas, aquela
gritaria indicava que suas ordens não eram mais cumpridas.
O motivo ficou claro quando percebeu Aiden no meio da confusão. A
doença deveria tê-lo prejudicado intelectualmente, pois o ranzinza do seu
primogênito não era dado àquele tipo de atividade. Também não era dado a
crianças. Ela tinha certeza de que Aiden só lhe daria um neto pela extrema
necessidade de produzir um herdeiro.
— Emma — a duquesa chamou e a criada entrou no quarto em menos de
dois segundos. — Quem é essa mulher com meu filho?
A criada não entendeu o que dizia a duquesa. Ajeitou a touca e passou a
mão na saia, nervosa.
— Que mulher, milady?
— Venha aqui e veja, sua inútil.
Mais do que depressa, a criada se aproximou da janela e viu a governanta
conversando com o duque. A forma como estavam dispostos era bastante
incomum entre um patrão nobre e uma empregada, mas Emma não se
surpreendia mais com nada naquela casa. Os Trowsdale não eram muito
tradicionais.
— É a Sra. Collingworth, a nova governanta. Vosso filho não lhe
informou?
— Não estou sabendo de governanta alguma. Por que ele a contratou? De
onde surgiu essa mulher?
Emma explicou à duquesa sobre o confinamento do duque e da Sra.
Collingworth durante a doença, sobre ela estar desempregada e sobre os
filhos que precisavam de abrigo. Falou sobre a experiência com os
Pensington e estava até mesmo entusiasmada em contar sobre como a
governanta geria bem a cozinha e tratava bem os empregados.
— Quero conhecer essa mulher — a duquesa disse, mais para si mesma
do que para a criada.
— Vossa Graça deseja que mande chamá-la?
— Não, eu vou descer para o chá de minha filha, hoje. Avise a lady
Agatha que estarei presente, mas não conte à governanta. Não quero que ela
saiba, prefiro surpreendê-la.
Com um aceno de concordância, a criada tratou de deixar o quarto da
duquesa o mais rápido possível. Aquele era o covil do diabo, ninguém
gostava de passar mais tempo do que o necessário. Logo, o próprio demônio
iria sair para passear, o que era muito incomum — a duquesa não saía de seu
quarto a não ser nos poucos bailes oferecidos pelo filho.
Ela precisava descobrir sobre a mulher que estava em sua casa. Durante
cinco ou dez minutos, ela viu seu filho reluzir como o sol e não era pelo astro
rei que brilhava imponente no céu. Ela era uma mãe, claro que sabia tudo
sobre seus filhos. Não era difícil perceber que Aiden estava flutuando ao
redor daquela criada e aquilo era muito preocupante. Myrtle tinha que tomar
alguma providência e não podia esperar mais um dia.
— E U CONVIDEI LADY A NNE , lady Sarah e lady Madeline para o chá das
cinco. Elas são divertidas, mas um pouco travessas. Aiden não gosta muito
delas, na verdade… ele não liga para Anne, mas acha Sarah e Madeline muito
atrevidas. “Não chame essas Westphallen para a casa, elas são irritantes”.
A jovem Agatha tagarelava enquanto finalizava seu desjejum, na
companhia da governanta. Elizabeth tinha habilidades de tomar notas mentais
das tarefas que precisava cumprir, mas precisava que elas fossem ditadas com
um pouco menos de rapidez. Frear a irmã do duque, no entanto, parecia uma
difícil missão. Agatha tinha a jovialidade dos seus filhos.
— Mas a senhorita as convidou assim mesmo, porque o duque não lhe diz
o que fazer. Certo, milady?
— Certíssimo. A senhora compreende as coisas rapidamente, gosto disso.
— A dama sorriu. — Quero que mande preparar bolos e biscoitos para o chá.
Quando estamos apenas nós, as mulheres, podemos comer sem que critiquem
nosso apetite. Ah. E quero que me ajude na organização das brincadeiras para
o baile. Sei que Aiden está programando uma caçada, e o baile é quase um
evento de negócios. Ele e Edward adoram reunir gente para falar coisas sobre
política, investimentos e outros assuntos masculinos, mas eu e as mulheres
podemos nos divertir. Pensei em alguns jogos para nos entreter e precisarei
de ajuda.
Eram muitos eventos em tão pouco tempo, mas Elizabeth estava
acostumada. Chá naquele dia, baile, jantar — e uma casa cheia de
convidados. Pensava que teria paz naquele dia de afazeres, porém, não
conseguia se desconectar de nenhum dos momentos vividos ao lado de Aiden
Trowsdale. Nem quando alimentou seus filhos, ou mandou que eles fossem
para o quarto se lavar depois de um dia inteiro jogando rounders com os
vizinhos. Nem quando ajudou as cozinheiras a fazer uma receita nova de
biscoitos, ou a arrumadeira a fazer um inventário das almofadas dos quartos
de hóspedes, que poderiam ser ocupados em breve. Ela só pensava no dia na
praia ao lado do duque. Também não conseguia parar de sentir as mãos dele
ao seu redor ou os lábios dele em sua pele nem quando ajudou Granger, o
jovem criado que tanto lhes auxiliou na estalagem, a carregar lenha para
dentro da casa.
Elizabeth não precisava fazer muitas das coisas que fazia, mas ela tinha
que se ocupar para não sucumbir à tentação de procurar o duque. Ou de
sonhar com ele enquanto estivesse acordada. Antes do horário do chá, ela se
lavou e vestiu roupas limpas. Lady Agatha havia solicitado sua presença no
período em que suas convidadas estivessem na casa, então ela precisava estar
apresentável. Colocou sua melhor saia xadrez com sua camisa branca de
babados e prendeu os cabelos debaixo da touca de renda.
Não havia ninguém que lhe trançasse os cachos dourados, então pensara
em Aiden outra vez. Em como ele segurou seus cabelos entre os dedos e os
ajeitou em tranças frouxas durante aqueles dias confinados.
As convidadas de lady Agatha chegaram por volta das dezesseis e trinta.
Uma carruagem preta com ornamentos dourados e dois cavalos também
pretos e magníficos trouxe as irmãs Westphallen. Outra carruagem, toda preta
e cinza, carregava a Srta. Anne Brighton. Elas eram falantes e animadas e
espalharam as enormes saias rodadas e bordadas pelos sofás e poltronas do
salão de chá. Elizabeth abriu as portas para o jardim de inverno e permitiu
que o sol do final da tarde iluminasse o ambiente.
A surpresa da tarde ainda estava por acontecer, contudo. Sem anúncio
prévio, a duquesa desceu até o salão de chá e se juntou às damas. Ela era uma
mulher pequena, muito magra e de cabelos ralos e prateados, mas ostentava
poder e glória. Mesmo que seu corpo demonstrasse sinais de fraqueza, ela
exalava força. Seus olhos castanhos capturavam tudo ao seu redor. Quando
chegou, as damas fizeram uma reverência.
— Que honra ter a companhia da senhora! — Lady Sarah estava
entusiasmada.
— Faz tempo que não tomo chá em companhia de jovens damas, nem que
tenho a oportunidade de discutir sobre o casamento do meu filho.
As mulheres se entreolharam. Elizabeth sentiu a boca seca e a língua
grossa, como se tivesse consumido láudano. Permaneceu impassível e
aguardou ser solicitada, mesmo que aquela não fosse sua função. Sua
curiosidade se aguçou pelo assunto inusitado.
— O que tem para conversar sobre o casamento de Aiden? — Lady
Agatha estranhou.
— Vamos ver seu irmão, Agatha? — Madeline Westphallen perguntou,
curiosa. — Ele está na propriedade?
— Duvido que o duque vá aparecer aqui. — Lady Anne bebericou um
pouco do chá que lhe fora servido. — Os homens raramente se interessam em
conversar com as damas. Eles preferem companhias masculinas.
— Eu espero que ele prefira minha companhia, em breve — Madeline
prosseguiu. Elizabeth ouvia a conversa de pé, próxima a um janelão, apoiada
no parapeito. — Ouvi dizer que ele pretende escolher sua noiva na próxima
temporada.
— Ele vai escolher — a duquesa interrompeu. — E vai aparecer aqui. E
talvez a noiva que ele escolha possa estar nesta sala.
As damas não tentaram segurar o espanto com a fala da duquesa. Olhos
arregalados e bocas abertas indicaram que nenhuma delas esperava por
aquela revelação.
— Aiden precisa mesmo se casar. — Lady Agatha suspirou. Os olhos
dela vagaram até Elizabeth e ela espiou a governanta por sobre a xícara de
chá. — Quem sabe uma esposa não resolve aquele mau humor permanente
dele?
A conversa aborreceu Elizabeth. Ela se virou para a janela e observou o
lado de fora por alguns instantes. A beleza do céu de verão a distraiu por
segundos enquanto seus ouvidos se desligavam do assunto Duque de
Shaftesbury. Não queria saber com qual das Westphallen ele se casaria nem
como uma esposa lhe faria bem.
As coisas pareciam bem ajustadas, de certa forma. A duquesa, que ela não
conhecera antes, estava determinada a decidir pelo filho sobre o casamento.
Aquela era a prática mais comum dentre a nobreza — quando não eram os
pais que escolhiam as noivas e maridos dos filhos, eles tinham grande poder
de persuasão naquela decisão.
Por um momento, naquele dia, durante a manhã, ela sonhou que poderia
ter algo com o duque. Que ela poderia significar algo para ele. Que os
momentos que compartilharam construíram algo entre eles. Mas ela estava se
iludindo. O duque se casaria com uma dama da sociedade e a melhor chance
que ela teria de se manter próxima a ele seria aceitando uma proposta
indecorosa que já havia rejeitado. Era melhor parar de se enganar, mas ela
sabia que falharia naquilo, também.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
— M ILORDE .
John entrou no escritório do duque, depois de confirmar que ele estava
ali. Aiden acordara mais cedo do que gostaria, com a cama vazia e fria. Ele
não vira Elizabeth por um dia inteiro e aquilo o estava deixando ansioso. Não
sabia como ela reagiria depois do que houve, já que ela fora sempre tão
resoluta em negar que seria sua amante.
Talvez fosse possível negar. O que eles fizeram não foi sexo. Foi? Aiden
era homem, para ele o sexo era bem mais do que ele compartilhara com a
governanta. Ele precisava estar dentro dela. Sobre ela. Ela não era,
tecnicamente, sua amante. No fundo, ele sabia que nenhum jogo de palavras
mudaria a realidade.
— Diga, John.
— O criado do Conde de Cornwall trouxe uma mensagem para Vossa
Graça. É o convite formal para o jantar em sua residência, amanhã.
Aiden ergueu a cabeça e pegou o papel da mão do mordomo. A
mensagem, escrita em linho e com caligrafia bastante elegante, convidava a
família Trowsdale para o tradicional jantar realizado na casa em Greenwood
Park.
Era uma festa para poucas figuras da aristocracia que estavam em Kent.
Dois marqueses, um conde e um duque, além dele, eram convidados, com
suas respectivas famílias. E, claro, as Westphallen. Por que diabos Edward
cismou que ele iria querer se casar com uma daquelas mulheres
desagradáveis? Também estariam presentes os Fairfax e os Oglethorpe, duas
famílias burguesas que não ostentavam título de nobreza, mas tinham muito
dinheiro e negócios de interesse do conde.
— Certo. Por favor, envie Geoffrey com a confirmação, diga que vamos.
A Sra. Collingworth, peça que venha me ver.
Com um movimento de cabeça, John se retirou e deixou Aiden pensativo.
Ele gostaria que Elizabeth fosse àquele jantar. Adoraria vê-la vestida em seda
e renda, usando um vestido que fizesse justiça à sua beleza angelical ao invés
das roupas cruas e sem graça dos criados. Mas não podia levá-la. Ela era sua
governanta. Também não a levaria como dama de companhia de Agatha, essa
não era uma prática comum em eventos como aquele. Aquilo o aborreceu em
dobro. Ele era um duque que tinha tanto poder e, ao mesmo tempo, nenhuma
decisão sobre a própria vida.
Voltou a analisar os documentos que tinha em mãos por alguns minutos
até que a porta se abriu e ela entrou. Cabelos que reluziam com o sol e um
brilho perfeito no olhar.
— Mandou me chamar, milorde?
— Sim. Eu queria te ver.
Ah, ele poderia falar bobagens tolas o tempo todo apenas para ver o rubor
que tingia as bochechas dela. Elizabeth limpou as mãos no avental que estava
pendurado em sua saia e sorriu, ajeitando uma mecha teimosa de cabelo para
dentro do gorro que usava.
— Quer que eu traga seu desjejum?
— Já comi. Eu realmente só queria te ver.
Ela sorriu mais uma vez e suas bochechas estavam quase vermelhas.
Aiden adorava levar cor àquela face linda. A timidez de Elizabeth fazia com
que ela se parecesse ainda mais jovem. Era quase impossível acreditar que ela
tinha um filho de sete anos.
— Apesar de grata pela lisonja, nós não podemos continuar fazendo isso.
Eu… O Sr. Hodges pediu permissão para me cortejar. E eu dei.
Aquela frase atingiu Aiden no meio do peito, como uma espada prestes a
romper seu coração. Por mais que ele soubesse que havia algo suspeito na
interação dela com o cavalariço, desejava que não fosse nada além de um
flerte tolo. Se Hodges fosse um homem esperto, ele jamais deixaria uma
mulher como aquela lhe escapar. E não havia como competir com ele. Era
ridículo que um duque se considerasse em posição de desvantagem em
relação a um criado, mas o cavalariço poderia oferecer a Elizabeth um status
que ele, Aiden, não tinha condições de fazê-lo.
— Bem, ele pode cortejá-la, mas vocês não possuem nenhum
compromisso. Estou enganado?
— Não temos um compromisso. Ele não me pediu em casamento, se é
isso que Vossa Graça quer dizer.
— Então, enquanto não houver compromisso, significa que podemos nos
ver.
Aquela era uma atitude que lhe cabia bem. Aiden não costumava deixar
aquilo que era de seu apreço sem esgotar todas as suas possibilidades de
mantê-lo. Elizabeth era de seu apreço. Ele daria qualquer coisa para que ela
mudasse de opinião sobre sua oferta.
— Tudo bem, o senhor tem um bom argumento. Agora que estou aqui, se
quiser pode me contar em que está trabalhando. Eu sempre acreditei que
aristocratas não trabalhavam.
Aiden riu e levantou. Pegou um documento nas mãos, considerou se
deveria compartilhar com ela aquelas informações. Não eram segredo, mas a
maioria das pessoas não o compreenderia.
— Não trabalhamos. Mas eu não acredito que a saúde financeira da
nobreza vá durar muito tempo. A Inglaterra é agora dos investidores, dos
negociantes, de quem movimenta a indústria. Esses homens estão
acumulando o dinheiro e nós, os nobres, apenas gastando nossas posses. Em
pouco tempo, seremos engolidos por essa classe média que sonha em chegar
ao nosso posto.
Os olhos dela brilharam. Elizabeth estava interessada no que ele falava,
então o duque indicou que ela deveria sentar em um sofá próximo. Depois,
sentou ao lado dela e entregou o documento que segurava.
— Essa é uma teoria e tanto. Acredita mesmo que ela vá se concretizar?
— Talvez sim, talvez não, mas não ficarei esperando para ver se estou
certo ou errado.
Ela fixou a atenção nos papéis. Aquele era um contrato de investimento
com um industriário importante e muito rico, que estava construindo prédios
novos em Londres. Eram regiões empobrecidas que estavam sendo renovadas
e atraindo a atenção da burguesia e dos americanos. Já havia hotéis e lojas
abertas, convidando as pessoas de dinheiro a frequentarem os arredores
afastados de Mayfair.
Elizabeth sabia. Ela era uma observadora, Aiden já notara, e a região mais
afetada por aqueles contratos ficava próxima de Shadwell, o bairro em que
ela morava.
— Vossa Graça vai investir com esse homem, então. Não é arriscado?
— Um pouco. Por isso começarei com um investimento de média monta,
para não me descapitalizar muito. Com o tempo, posso investir mais, só
depende dele.
A luz que refletia no azul límpido dos olhos dela indicava seu fascínio
pelo assunto, mesmo que ele entediasse, ou confundisse, a maioria das
damas.
— Parece uma decisão muito inteligente. Cada vez mais percebo a cidade
crescendo na vertical, as docas recebendo mercadorias e turistas, e enviando
nossos produtos para fora. Não sei se acredito que os nobres perecerão, mas
eles já precisam dividir espaço com um novo grupo de pessoas que, até pouco
tempo, não era admitido nas rodas sociais.
— E amanhã, dois negociantes estarão na festa do meu amigo conde. Um
deles é o homem que subscreve esses papéis na sua mão. Eles já estão entre
nós.
Aiden gostaria de encerrar a pequena distância entre eles e beijá-la. Ele
não estava satisfeito. O prazer infligido, duas noites atrás, não serviu para
aplacar o desejo que ele sentia por ela. Ao contrário, fez com que ele se
intensificasse. A vontade de estar com Elizabeth era maior do que antes,
principalmente porque ela compreendia — e apoiava? — as decisões que ele
vinha tomando. Mas ele não fez isso porque o escritório foi invadido por uma
Agatha agitada e animada demais.
— Aiden, preciso sair para visitar minha estilista. Edward, aquele
tratante, enviou esse convite em cima da hora e não tenho um vestido
adequado para…
Ela percebeu os dois sentados no sofá. Elizabeth levantou-se, um tanto
constrangida, assim que a porta se abriu, mas Agatha era perspicaz. Parecia
que o destino de Aiden era estar cercado de mulheres sagazes que não
deixavam de notar nada ao redor.
— Você tem mais vestidos do que pode usar, Agatha. Mas, se precisa de
um novo, vá à estilista.
— Certo. — Agatha os olhava com curiosidade. A irmã desconfiava de
algo, claro que sim, mas ele não fazia ideia do que aquilo significava. —
Então vou levar Elizabeth comigo.
Aiden quis dizer que ela não deveria fazer aquilo, que a governanta tinha
outros serviços, mas havia garantido que a irmã era a prioridade sempre. Não
deveria voltar atrás. Concordou e suspirou por mais uma vez passar o restante
do dia sem poder ver Elizabeth.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
A INOCÊNCIA de lady Agatha era tocante. Elizabeth engasgou duas vezes com
a própria risada nervosa durante uma conversa bastante constrangedora em
que a lady insistia que Aiden Trowsdale gostava dela e poderia se casar com
ela. Claro que o duque não se casaria com ela, em nenhuma das vidas que ela
tivesse vivido. Se houvesse vinte vidas possíveis, ainda assim, o duque não
desposaria uma mulher como ela.
— Milady, por mais que eu me sinta honrada com sua aprovação, seu
irmão jamais desposará uma plebeia. Ele é um duque, tem responsabilidades
a cumprir.
A jovem deu uma risada divertida e terminou de soltar o espartilho. Foi
bom voltar a respirar, Elizabeth não estava acostumada a ser tão apertada.
Aquilo era coisa que tinha ficado na sua adolescência.
— Vamos ver. Deixe-me seguir com o plano. Você não gostaria de ser
cortejada por um duque? Sei que ele é meu irmão, mas Aiden é um homem
bonito. Ele é meio mandão todas as vezes, mas tem um bom coração.
Ah, ela sabia muito bem o quanto o duque era bonito. E o quanto ficaria
feliz em ser publicamente cortejada por ele. Não mais por causa de um sonho
de juventude, mas porque ela gostava de Aiden. Poderia continuar negando e
fingindo que sentia apenas desejo pelo homem, mas a verdade era que
Elizabeth gostava da companhia do duque, muito mais do que deveria.
Ele era divertido e falava coisas com ela que nenhum outro homem
falaria. Tinha ideias progressistas demais para um duque e pensava no bem-
estar das pessoas menos afortunadas. Ele tratava bem os empregados, mesmo
que agisse como um nobre quase sempre. Aqueles detalhes, que ela percebeu
no pouco tempo ao lado dele, faziam de Aiden um nobre incomum. Ele a
notara e ele a reconhecera como pessoa, enquanto nenhum outro aristocrata o
fizera.
Aquela situação criada por lady Agatha, contudo, era absurda. Se ela
deixasse que o plano prosseguisse, por melhores que fossem as intenções da
jovem, apenas um coração sairia ferido — e era o dela. Elizabeth não podia
ser tão inconsequente. Mesmo assim, ela nada fez para impedir. Não recusou
o vestido nem os sapatos nem o convite para ir à festa, mesmo que aquela
informação só fosse ser revelada para Aiden no dia seguinte, poucas horas
antes do jantar.
— Eu irei aos festejos do conde — Elizabeth concordou, já arrependida
de tê-lo feito. — Mas a senhorita não pode provocar seu irmão a me tirar para
dançar nem inventar uma história mirabolante sobre mim. Minha família já
foi burguesa e frequentou eventos sociais com a nobreza. Não é preciso ser
muito criativo para contar uma história.
— Combinado! — Lady Agatha bateu as palmas das mãos. — Estou
muito excitada, quase poderia gritar de euforia.
Não dava para compreender por que aquela jovem estava tão empolgada
em casar seu irmão com uma mulher de fora da sociedade. Um casamento
daqueles representaria a exclusão de Aiden Trowsdale de todos os círculos
sociais que ele conhecia. Deixaria de ser convidado para bailes e eventos e
seria motivo de chacota nos clubes de cavalheiros.
Também não dava para entender por que Elizabeth concordou em deixá-
la prosseguir com aquela loucura, sabendo dos riscos e das consequências.
Talvez ela quisesse, afinal, ter um dia de realeza e frequentar um baile na alta
sociedade, na aristocracia.
Se não fosse sua vestimenta de criada e seu caminhar sempre dois passos
atrás da lady, talvez ela até pudesse acreditar que passar a tarde na vila fosse
um programa de uma dama. Quando retornaram para casa, a jovem ordenou
esconder todas as compras em seu quarto e determinou que, no dia seguinte,
Elizabeth deveria estar disponível para se arrumar quando faltassem três
horas para o jantar. Greenwood Park ficava próximo de Thanet Bay, então
elas não precisavam de muito tempo.
Aquele era um plano que a deixou agitada. Mesmo já deitada, na cama,
com as crianças dormindo, Elizabeth não conseguia pegar no sono. Olhava
fixamente para a chama de uma vela que queimava solitária em uma
arandela, sonhando com um salão de baile iluminado por muitos candelabros
e cheio de cavalheiros elegantes, com casacas pretas, cartolas e bengalas, e
damas com vestidos bordados e cheios de babados.
A CONDESSA ERA uma mulher elegante e com uma expressão austera, para
quem Elizabeth não fora apresentada antes do jantar. Ela estava em uma das
pontas da mesa e o conde em outra. Ele tinha mais outros três irmãos,
homens, que estavam em partes espalhadas da mesa. Eram solteiros, do que
Elizabeth desconfiou pela quantidade de damas que disputavam a atenção
deles. A irmã mais nova também estava espalhada entre os convidados.
A mesa era muito grande, quase poderia acomodar toda a população de
Kent. A louça e a prataria estavam impecavelmente dispostas. Elizabeth
sentiu um prazer secreto em ver uma mesa tão bem-posta, aquele era um
serviço que ela apreciava. O lugar que lhe tinha sido destinado era ao lado de
Aiden Trowsdale. O mais cobiçado dos lugares para uma dama solteira.
Ao ver Agatha e Edward se cumprimentarem sutilmente à distância,
Elizabeth teve certeza de que eles estavam juntos naquela armação. Por que
aquelas pessoas tinham decidido que o Duque de Shaftesbury deveria cortejá-
la? Claro que eles não tinham ideia do que já acontecera entre eles. E de
qualquer forma, com tantas damas solteiras, ela deveria ser a última opção
para retirar o duque da solteirice. Se houvesse uma lista, ela nem estaria nela.
— A senhora sabe que eles fizeram isso de propósito, não sabe? — Aiden
sussurrou para Elizabeth, depois que estavam sentados e sendo servidos.
— Desconfio que tenham feito. Mas não entendo por que fizeram.
— Nem eu. Prefiro aproveitar o momento a tentar desvendá-lo.
Sim, ela também. Se gastasse seus esforços tentando compreender as
pessoas, acabaria perdendo boas oportunidades de se divertir. O serviço em
Greenwood Park também era tão surpreendente quanto a decoração. A
comida era muito bem coordenada e as bebidas harmonizavam perfeitamente
com cada prato.
Como uma dama não comia muito, ela se controlou para aceitar apenas
pequenas porções e levou bastante tempo com cada bocado, movendo a
cabeça em atenção às conversas da mesa. Todas elas giravam, de certa forma,
sobre negócios, construções, empreendimentos. A vida em Londres estava
mudando e ela considerou que Aiden tinha razão: em breve, a Inglaterra seria
comandada pela burguesia.
— E Vossa Graça, quando deixará essa vida libertina para trás e
sossegará com uma esposa? Está na hora de encomendar um herdeiro, não?
— um homem de cabelos permeados por fios prateados disse. Elizabeth não
tinha sido apresentada a ele, também. — O meu já está a caminho, dessa vez
será um menino.
— Você disse isso nas outras três vezes, Lockwood — Edward provocou.
— Pretendo escolher uma noiva na próxima temporada — o duque disse,
mas não havia nenhuma emoção ou entusiasmo em sua voz. Ele parecia
querer apenas encerrar o assunto, não deixar que aquela conversa se
prolongasse.
— Se for sortudo como seu pai, terá logo um filho. O homem era uma
máquina de produzir herdeiros.
Elizabeth franziu a testa e olhou para o semblante de Aiden. Ele estava
tenso e aquele homem que falava parecia não saber muito sobre limites. O
que ele quis dizer com aquilo? O duque tivera apenas dois filhos e um deles
era lady Agatha, uma menina. Ou ela estaria enganada?
— Vamos esperar que eu seja como meu pai. Detestaria precisar
engravidar minha esposa tantas vezes apenas para conseguir produzir um
varão.
— Senhores, por favor, vamos falar de assuntos mais agradáveis — a
condessa interveio. — Por que não conversamos sobre o baile e a caçada que
o gentil Duque de Shaftesbury nos oferecerá em breve?
O tema da conversa mudou e logo todos estavam falando dos eventos que
teriam em Thanet Bay. Elizabeth sentiu Aiden ainda tenso. Depois ela
perguntaria por que aquela discussão o incomodava e o que ela significava. O
peso da necessidade de se casar não deveria incomodar tanto um duque,
deveria?
Ela preferiu apenas observar durante o restante do jantar. Estava em uma
posição complicada no meio dos nobres, agindo como se não fosse uma
criada. Elizabeth queria acreditar que não estavam mentindo a seu respeito, já
que ela não foi apresentada como uma dama, mas não podia se enganar —
ninguém ali queria acreditar em quem ela era de verdade.
Ao final, as mulheres saíram para outro salão, coberto com papéis de
parede de tons pastéis e muitos quadros, enquanto os homens permaneciam à
mesa para tomar um vinho do porto. Aquela seria a melhor hora para
Elizabeth voltar para Thanet Bay, mas lady Agatha insistiu que ela deveria
ficar.
— Sei que Aiden te pediu uma dança — ela sussurrou.
— Mas não tem ninguém dançando, milady. Nem música tocando.
— Terá. Em breve. Apenas espere e ouça.
Esperar era perigoso, principalmente quando algumas das damas
presentes pareciam interessadas nela. Ou quando a conversa sobre o clima,
sobre vestidos e sobre maridos futuros estava tão enfadonha. No meio das
mulheres trabalhadoras, da classe mais baixa de Londres, os assuntos eram
bem mais variados. Ainda assim, ela esperou, e se surpreendeu quando a
música realmente começou a tocar.
Eram cordas, ela reconheceria o violino e o violoncelo em qualquer lugar.
Aliás, eram os violinos, e eles tocavam obras clássicas que Elizabeth
aprendera a admirar na infância. A condessa apareceu no salão onde as damas
tomavam chá e as convidou para o salão de baile, de onde vinha a música.
Seria muito assustador acreditar que aquela mudança repentina no evento
decorresse das intenções do duque em dançar com ela. Claro que Edward
McFadden já tinha uma orquestra planejada desde o início, ele não
conseguiria músicos para tocar em evento se decidisse por tal no meio dele.
Se estivessem em Londres, talvez, mas ali? Não. Era apenas coincidência,
mas a coincidência às vezes podia ser a mãe de todas as tragédias.
Assim que pisou no salão de baile, ela o viu. Aiden estava como que a
esperando e como se ninguém mais existisse naquele ambiente. Mil homens e
mulheres poderiam estar naquela sala, mas Elizabeth só conseguia vê-lo. A
forma como ele a olhava fazia com que ela se sentisse a única mulher daquele
salão.
— A senhora me prometeu a sua primeira dança. — Aiden segurou-a pela
mão enluvada.
— Se eu me lembro, o senhor exigiu que eu lhe prometesse minha
primeira dança. — Ela riu e suas bochechas coraram. Ficaram no tom de rosa
do vestido, dando àquela pele clara o tom de quem estava constrangida.
— Se não fosse inadequado, todas as suas danças seriam minhas. — O
duque a encarou com seriedade. Os olhos, dois globos escuros que a
devoravam com ansiedade, indicavam que ele não estava brincando. — Não
vou gostar que nenhum outro homem aqui coloque as mãos na senhora.
— Ninguém mais vai me tirar para dançar.
— Acredito que a senhora se surpreenderá, então.
O duque conduziu-a para o centro do salão. Alguns casais já iniciavam a
dança e Elizabeth temeu não se recordar dos passos que aprendeu ainda
muito jovem. Ela nunca fora convidada para os bailes, apenas conseguia ver
as danças quando elas aconteciam na casa dos Pensington. Aiden, porém, era
um exímio dançarino. Com a mão na cintura dela e a outra segurando seus
dedos trêmulos, ele fez um movimento com a cabeça indicando que ela
deveria apenas segui-lo e passou a rodopiar pelo salão como se os pés dele
fossem feitos de nuvens.
Elizabeth segurou a saia e tentou fingir que estava relaxada e
aproveitando a dança. Ela estava, mas a presença de Aiden, em um evento
social como aquele, depois de algum tempo sem que pudessem ao menos se
ver, a deixou desorientada.
— Eu gostaria de elogiar minha irmã e dizer que Agatha fez um ótimo
trabalho com a senhora, hoje —ele disse. — Mas seria injusto, mesmo que
verdadeiro. A sua beleza não precisava de retoques.
— Vossa Graça, eu…
— Aiden. — Ele sorriu.
— Eu não mereço elogios tão exagerados.
— Não há nenhum exagero nas minhas palavras. — Os olhos indicavam
mais uma vez que ele dizia a verdade. — Minha vontade, agora, era de girar
com a senhora para fora deste salão e encontrar um local com privacidade o
suficiente para que eu pudesse beijá-la.
Ela corou, a face rubra pelo desejo que estava estampado em cada
expressão vinda do duque. Temeu que as pessoas pudessem notar. Que todo
mundo ali percebesse que ela estava apaixonada pelo Duque de Shaftesbury e
que nada bom poderia vir daquilo.
CAPÍTULO VIGÉSIMO
A IDEN NÃO LIGAVA PARA BAILES NEM FESTEJOS SOCIAIS . A CHAVA DANÇAS
muito entediantes e preferia discutir negócios com os homens em espaços
menos excêntricos. Mas ali, naquele momento, tudo que ele queria era dançar
com Elizabeth Collingworth. Mostrar para todos que ela concedera a sua
primeira dança para ele, demarcar seu território de alguma forma.
Desde que ela chegou, ele mal conseguia disfarçar que não tirava os olhos
dela. Se Agatha havia planejado aquilo para constrangê-lo em público, ela
tinha conseguido atingir seu objetivo. O mais absurdo era que Aiden não
conseguia entender o que sentira ao ver Elizabeth chegar, vestindo seda e
renda, produzida como uma dama, impactando com sua presença suave,
porém, marcante.
Ela estava mais linda do que quando a viu pela primeira vez, na
estalagem? Ou mais perfeita do que quando a despiu em seu quarto? Estaria
Elizabeth mais digna de sua admiração apenas porque vestia roupas elegantes
e tinha o cabelo empoado e penteado? Não. Ele duvidava que aquela
produção toda fosse a razão de seu coração bater fora de um ritmo razoável.
Por que ele sentia aquele aperto no peito e tanta dificuldade para respirar
enquanto giravam pelo salão de baile ao som de Handel e conversavam sobre
bobagens?
— A Srta. Westphallen está enciumada de nossa valsa — Elizabeth
murmurou, movendo sutilmente a cabeça para o lado. O duque notou a figura
de lady Madeline segurando uma taça de champanhe com força demais
enquanto os observava.
— Ela não tem motivos para ter ciúme.
— Não tem?
— Não. Eu nunca prometi nada a ela, nem dei nenhuma esperança de que
tenho algum interesse nela. Todos os meus negócios com os Westphallen
envolvem o pai, que é um nobre negociante, como eu.
Elizabeth respirou profundamente e ele não soube dizer se aquela reação
se deu pela resposta dele ou porque a música estava prestes a acabar.
— A senhora entende que eu devo dançar com as outras damas, não
entende? — Aiden perguntou, assim que os últimos acordes da valsa
terminaram. — Inclusive, com lady Madeline.
— Assim como eu não devo recusar o pedido de outros cavalheiros. —
Ela o seguiu para o canto do salão, deixando o centro para os próximos casais
que já se posicionavam para a próxima dança. — Mas eu acho que devo
voltar para Thanet Bay, milorde. Continuar aqui é…
— Justo, para a senhora. Uma tortura, para mim. Eu gostaria de pedir que
me espere, que vá para casa comigo.
— E isso não seria inapropriado? Se nos virem saindo juntos, vão
comentar. Já estão comentando.
Claro que iam comentar, mas Aiden suspeitava que fariam isso de
qualquer jeito. Já havia várias fofocas sobre uma mulher que passou dias
trancada com o duque, e como ele foi desonroso com ela, como ele a
arruinou. Depois da presença de Elizabeth em Greenwood Park, todos
acabariam associando a misteriosa mulher à visitante desconhecida que
estava hospedada na propriedade ducal. Deixar a festa com ela seria apenas
mais um combustível à fofoca, que ele não pretendia fomentar pelo bem da
honra de Elizabeth.
Aiden pouco se importava que o considerassem um libertino. Ele não era,
mas ganhara fama por não demonstrar nenhum interesse em se casar ou
cortejar uma dama. Só que Elizabeth não merecia ser o centro do escárnio da
maldosa sociedade inglesa. Mesmo que ela não fosse uma dama. Mesmo que
ela não fosse uma virgem que ele pudesse arruinar. Se ele pudesse evitar que
ela fosse atirada aos leões, então o faria.
— Tem razão. — Aiden beijou os nós dos dedos dela, por cima do tecido
fino da luva. Eles ainda estavam trêmulos. — Aguarde algumas poucas
músicas e volte para casa, se assim desejar. Nos vemos em outra
oportunidade.
D URANTE TODO O trajeto para Thanet Bay, Elizabeth tentou aceitar o que
significavam as palavras de Aiden ao despedir-se dela. Era uma promessa,
mas uma promessa futura. Eles se viriam, aquilo aconteceria um momento ou
outro, mas seria depois. Depois daquela noite. Depois daquela valsa. Apenas
depois.
Passadas algumas músicas e duas valsas dançadas com homens a quem
ela fora apresentada pouco antes, Elizabeth escapuliu pela porta lateral do
salão. Fora acobertada por lady Agatha. A jovem não concordou muito com a
fuga, mas parecia tão satisfeita com alguma coisa que a auxiliou a sair sem
ser notada.
Ele quer te ver. Uma voz ecoava no vazio da mansão em que todos
dormiam. Não havia nenhum som humano produzido nos espaços comuns.
Todos os criados já tinham se recolhido, os filhos dela dormiam
profundamente em suas camas e a duquesa estava em sua clausura regular.
Espere por ele, a voz insistia. Mas onde? Sentada como um espectro em uma
sala qualquer?
Elizabeth fechou a porta dos fundos, deixando-a destrancada para que o
cocheiro pudesse entrar quando chegasse e olhou para a escuridão. Acendeu
uma vela e tomou uma decisão — ela esperaria por Aiden até que ele
chegasse, mesmo que demorasse muito. O esperaria da forma como gostaria
que ele a visse.
Cada passo dado na escada que conduzia aos quartos foi uma sentença
que a condenava a uma vida de pecado. Era uma resolução importante — a
aceitação de que o desejo que sentia por Aiden Trowsdale era mais forte do
que o medo de partir seu coração. Que a paixão que experienciava precisava
de vazão.
Em silêncio e tremendo como se seus músculos estivessem virando
pudim, Elizabeth entrou nos aposentos do Duque de Shaftesbury e começou a
acender todas as velas que havia em sua vista. Logo, o quarto estava
iluminado, aquecido e aconchegante.
O ambiente era ricamente decorado. Aquela era a primeira vez que ela
realmente notava os aposentos do duque — aquele espaço ainda nem mesmo
tinha sido inventariado por ela. Papéis de parede com padrões sóbrios e cores
pastéis, uma cama de mogno imponente, com um enorme dossel que subia
até o teto e cortinas de seda, em tom verde-claro com bordados, que se
embolavam ao chegar ao chão. Havia duas janelas grandes, uma de cada lado
da cama, e uma lareira com lenha queimando na parede da esquerda. Tudo ali
era masculino e cheirava a Aiden. Era como se cada parte daquele lugar
estivesse impregnado de sua presença.
Elizabeth começou a retirar suas roupas — ao menos as partes que ela
conseguia alcançar. Desfez o penteado, retirou a maquiagem do rosto com
um pano úmido, arrancou os sapatos e puxou as meias pelas pernas. Também
retirou as calçolas e permaneceu apenas com os impossíveis botões do
corpete e das saias. O coração dela martelava em batidas tão altas que ela
teve medo de acordar a duquesa. Sentou-se em um sofá próximo à lareira e
esperou, temendo que precisasse esperar demais. Talvez Aiden não fosse
chegar logo e, se chegasse, estaria com lady Agatha. E se a lady visse a
claridade vinda do quarto do irmão? Ela, ainda assim, queria arriscar.
Duas horas inteiras se passaram até que ela ouviu os cavalos e uma
carruagem parou no pátio frontal. Seu coração disparou mais uma vez, mas
Elizabeth não se moveu. Manteve-se ali, sentada, tentando parecer não estar
ansiosa em invadir o quarto de seu patrão no meio da madrugada. Quando a
porta se abriu e ele entrou, todas as suas dúvidas viraram certezas. No
instante em que ele a viu, a forma como os olhos dele capturaram os dela, fez
com que tudo aquilo parecesse a coisa certa a se fazer. Sem dizer uma
palavra, Aiden deu alguns passos na direção dela, puxou-a para cima pelas
mãos e a beijou.
— Eu sonhei em encontrá-la aqui — ele murmurou, com os lábios ainda
colados aos dela. Elizabeth levou a mão até o pescoço dele e entrelaçou os
dedos em seus cabelos. — Estou sonhando, ainda?
— Eu não deveria estar aqui — ela disse. — Mas não é como se eu fosse
uma virgem sendo arruinada por um duque libertino.
Elizabeth afastou-se alguns centímetros e enxergou a confusão divertida
nos olhos dele.
— Eu vim porque eu… — Ela tentou complementar, mas ficou sem
palavras para explicar o óbvio. Estava ali porque desejava Aiden Trowsdale
de forma proibida e não sabia como fazer para evitar aquele sentimento.
O duque entendeu que ela precisava de ajuda e voltou a clamar por sua
boca, silenciando-a.
N ÃO ERA PRECISO PALAVRAS . Qualquer coisa que fosse dita poderia estragar a
perfeição daquele momento. Eles ficaram ali por muitos minutos, deixando
que seus corpos se aquecessem.
Não era amor. Não tinha nada a ver com amor, mas era o suficiente.
Quando a luz das muitas velas se extinguiu e apenas a lareira iluminava o
quarto, eles estavam abraçados sob os lençóis. Elizabeth apoiava a cabeça no
peito firme do duque e traçava os contornos de seu abdômen com a ponta dos
dedos. Mesmo na penumbra alaranjada era possível notar o quanto ele era
lindo. Ele acariciava seus cabelos e suas costas. Em silêncio, não havia
nenhum ruído que não fossem os insetos e animais do bosque ao redor da
propriedade.
— Eu preciso ir.
Foi uma afirmação duvidosa, quase soada em tom de pergunta.
— Sim, precisa. Mas eu não quero que vá. — Ele a estreitou mais forte
entre os braços. — Sou o Duque de Shaftesbury, será que não posso decidir
nem mesmo quem pode dormir ao meu lado?
Ela deu uma risada.
— Talvez Vossa Graça possa. — A saudação formal tinha um tom
zombeteiro e ele percebeu. Elizabeth levantou-se e se sentou sobre as suas
coxas, deixando que seus dedos passeassem por uma extensão maior daquele
corpo que ela adorava. — Mas, se eu ficar mais tempo aqui, talvez nenhum
de nós vá dormir, exatamente.
— E a senhora pretende me deixar acordado como?
Havia luxúria no brilho escuro dos olhos dele. Elizabeth sentiu sua
garganta arranhar, mas ela não tinha como voltar atrás. Estava ali, com aquele
homem à sua disposição, e ele a autorizava brincar com ele. Talvez brincar
não fosse uma boa palavra, mas foi a que veio à sua cabeça. As mãos então
passearam pelo tórax, pelo abdômen e encontraram os quadris firmes. Ela se
afastou um pouco e tocou a base da ereção que pulsava à sua frente.
Era a primeira vez que ela prestava atenção naquela parte do corpo de um
homem. O seu marido era tímido e não gostava de luz quando iam para a
cama. Ela quase nunca vira Gregory nu. Já o duque, ele era bastante
depravado. Ele a beijou em seu sexo, tocou sua intimidade com a língua, fez
com que ela sentisse prazeres pecaminosos, e não se importava em exibir sua
masculinidade para que ela pudesse… tocar. Então, ela tocou.
Segurou-o com as duas mãos, passou o polegar pela ponta úmida,
deliciou-se com o gemido que ele soltou. Depois, levou as mãos para cima e
para baixo, simulando os movimentos que ele fazia dentro dela. Ele gemeu
mais, fechando os olhos e arqueando as costas. Foi quando ela pensou, talvez
também fosse bom se ela o beijasse ali. Afinal, ele fizera aquilo com ela e foi
uma das melhores sensações de sua vida. Por que ela não poderia dar o
mesmo a ele?
Elizabeth segurou com cuidado o pênis em sua mão e tocou a ponta com
os lábios. Aiden gemeu e abriu os olhos, o desejo pulsando em sua face. Ela
lambeu, passando a língua em toda a sua extensão, e o encarou. Havia uma
certa súplica em seu olhar, para que ele dissesse se gostava daquilo. Para que
ele a orientasse como fazer.
— Você pode colocá-lo na boca, se quiser — Aiden murmurou e ela
atendeu.
O gosto era ácido e o toque era macio, muito macio. Com cuidado, ela
envolveu o membro rígido em sua boca e o engoliu. O duque gemeu, se
retorceu, segurou-a pelos cabelos e a fez movimentar-se sobre ele. Ela
percebeu que não era apenas ele que estava gostando, mas ela também.
— Elizabeth — Aiden gemeu mais. — Eu não vou aguentar.
— Não seja exagerado. — Ela riu. — Mas fico feliz que tenha gostado.
— Eu estou gostando. Suba em mim, deixe-me entrar em você. Venha.
Ele a puxou pelas mãos e ela se acomodou com a ereção em sua barriga.
Outra coisa a qual não estava acostumada, toda aquela proatividade. Aiden
lhe permitia o comando e ela estava adorando. Atendendo ao seu pedido, fez
com que ele entrasse completamente dentro de si. Ah, a sensação de
preenchimento era sempre fantástica. E o controle também, porque ela adorou
cavalgá-lo até que ele não resistisse mais, virasse por sobre ela na cama e
terminasse conduzindo-os ao ápice mais uma vez.
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO
O BOM HUMOR de Aiden se esvaiu quando ele soube que sua mãe estaria
presente no desjejum. Alguns meses atrás, ele adoraria tê-la como companhia
para as refeições. Enquanto o pai ainda era vivo, sua admiração pela mãe era
imaculada, mesmo que ela nunca lhe dirigisse uma palavra de afeto. Desde o
falecimento do duque, porém, tudo que a mãe fazia era aborrecê-lo,
principalmente no trato com Agatha. E ele estava começando a se fatigar
disso.
— Vossa Graça, há um mensageiro aguardando — Geoffrey disse,
enquanto ajudava o duque a se vestir. — Ele diz que traz um convite do
Visconde de Whitby.
— Certo. Pode descer e dizer a ele que me aguarde.
O criado assentiu e retirou-se, deixando Aiden sozinho e pensativo. Ele
mal tinha acordado e ainda sentia o calor do corpo de Elizabeth sob o seu.
Sentia o gosto dela em sua boca e céus, era como se ele ainda pudesse sentir
os espasmos do prazer que ela lhe proporcionou. O desejo que nutriu pela
mulher, desde que a conhecera, não amenizou apenas porque ele a possuiu.
Ao contrário, se intensificou.
Seus compromissos não o deixariam divagar sobre o rompante da noite.
O criado de Miles Westphallen portava um convite para uma tarde de
cavalheiros e incluía os investidores. Os planos para a revitalização das
docas, construção de navios e indústria ferroviária não estavam mais somente
no papel. Em breve, a primeira fábrica de locomotivas seria inaugurada e
Aiden estava certo de que ela instauraria uma nova era para a nobreza
inglesa. E ele ainda precisava enfrentar a duquesa.
— Bom dia, mamãe. — O duque fez uma reverência e beijou a mão da
senhora franzina que estava sentada à mesa. — Vejo que anda disposta,
descendo com frequência para as refeições.
— Quero as novidades do jantar. Como foi sua dança com lady
Madeline?
— Foi uma dança. — Aiden sentou-se e aguardou ser servido. — Minha
irmã já acordou?
— Ainda não, milorde — disse o criado.
— Eu exigi que fosse a primeira, Aiden. E eu exigi que ela significasse o
início de um cortejo. Não era para ser “uma dança” apenas.
— Mamãe, eu fiz exatamente o que prometi. Mas devo lembrá-la que a
senhora não exige nada nesta casa. Eu sou o Duque de Shaftesbury.
A duquesa não demonstrou nenhum abalo pela autoridade do filho. Ela
não acreditava que ele fosse desobedecê-la porque ele nunca o fizera. Aiden
sempre tentou agradar a mãe, ainda mais depois do nascimento de Agatha e
de sua reclusão pela doença, mas ela estava começando a extrapolar limites.
Ou ele estava incomodado por saber que precisava cortejar e noivar uma
mulher que não fosse aquela que frequentou sua cama na noite anterior.
Depois de alguns minutos, Agatha desceu para o desjejum e tratou de
ocupar a mãe com assuntos femininos. Isso deu ao duque a oportunidade de
retirar-se.
— John, vou ao meu escritório. Peça que a Sra. Collingworth me encontre
para as orientações do dia.
— Estou bem aqui — a duquesa se manifestou. — Posso muito bem
cuidar dos afazeres da governanta.
— A senhora não cuida de nada, há anos. — O sorriso na face de Aiden
não suavizava a dureza de suas palavras. — A governanta sabe que responde
a mim, portanto, prefiro continuar mantendo o bom funcionamento da casa.
O duque ignorou os resmungos da mãe e fez aquilo que se propôs.
Enquanto selecionava documentos para a reunião na casa do Visconde de
Whitby, pensava em como resolver os problemas que estava causando.
Envolver-se com a plebeia por quem estava apaixonado era a pior decisão
possível — e nunca parecera tão adequada. Ele sabia que não devia, mas não
conseguia evitar.
Quando ela entrou pela porta, trajando suas roupas simples de criada,
Aiden sabia que estava com problemas. Seu coração parou de bater por
alguns segundos e ele sorriu.
— Vossa Graça mandou me chamar?
O brilho azul dos olhos dela estava mais cintilante pela luz do sol que
penetrava pela janela aberta. Aiden apoiou os documentos na mesa e quis ir
até ela, pegá-la nos braços e beijá-la. Limitou-se a expirar uma grande
quantidade de ar para dentro de seus pulmões.
— Preciso que organize a casa para o final de semana. Vamos receber
muitos convidados e já enviei mensageiros para os quatro cantos de Kent. —
O duque serviu-se de um conhaque. — Também gostaria de saber como a
senhora está.
Elizabeth corou. O rubor rosado em suas bochechas fazia com que ela
ficasse exatamente como na noite anterior.
— Assim que eu tiver a lista de convidados em mãos, farei a melhor
distribuição de quartos e organizarei os lugares à mesa. O senhor pode se
tranquilizar, eu tenho alguma experiência com jantares e eventos da nobreza.
— Tenho plena confiança em sua competência, Elizabeth.
Aiden se aproximou dela e levou uma das mãos para cuidar de uma
mecha de cabelo que caía para fora do gorro que ela sempre usava para
trabalhar. O polegar deslizou pelas bochechas e ela baixou o olhar, não
conseguindo encará-lo. O duque levou sua boca até a dela e a beijou. Não foi
erótico, não foi intenso, foi apenas um carinho com os lábios.
— Preciso passar o dia fora, estarei com Miles Westphallen. Não deixe
que minha mãe a aborreça, mesmo que ela tente.
— Terei muito trabalho por esses dias. Manterei distância da duquesa.
Aiden sorriu e a dispensou. Assim que Elizabeth deixou o escritório, ele
se deu conta de que estava sorrindo e sentindo seu coração bater no ritmo. Ele
gostava tanto da presença daquela mulher e se permitia ficar tão feliz quando
conversava com ela, ou simplesmente a tocava, que não imaginava mais
passar um dia sem vê-la. Ele a queria ainda mais depois da noite anterior, se
aquilo fosse possível.
M ESMO SABENDO que nada bom sairia de seu relacionamento com o Duque de
Shaftesbury, Elizabeth se sentiu muito bem quando ele disse que a desejava.
Melhor ainda porque ele disse que era dela. Ele pertencia a ela, mesmo que
não pertencesse. Aquilo significava mais do que um simples desejo carnal.
Sentada na banheira de metal ao lado da lareira, com água cobrindo seus
ombros, ela olhava para a chama flamejante enquanto seu pensamento
divagava. Não sentiu a aproximação dele até que mãos firmes tocassem sua
pele sensível. Aiden segurou os cabelos dela e os ajeitou com as mãos,
deixando a nuca desnuda. A respiração dele aqueceu a pele exposta e logo foi
substituída pelos lábios quentes. Elizabeth sentiu um calafrio lhe percorrer a
coluna.
— Eu vou cuidar de você agora.
Ela sorriu. Naquele momento ela não era mais senhora. No breve tempo
que passavam juntos, não eram necessários pronomes de tratamento. Depois
que ele declarou pertencer a ela, não havia mais hierarquia entre o que
sentiam um pelo outro.
— Preciso voltar para a casa. Se derem por minha falta…
— Você é a governanta. — Ele colocou sabão nas mãos e as enfiou na
água. Elizabeth se contorceu ao toque dos dedos longos em sua barriga, seus
quadris, suas coxas. — Não tem que atender a chamados de madrugada.
Ainda tem muito que eu queira fazer esta noite.
— Vossa Graça é muito mimado.
Elizabeth deitou a cabeça na borda da banheira. Aiden massageava a parte
interna das coxas dela e roçava a ponta dos dedos em sua abertura feminina.
— Eu sou. Mimado, devasso e estou morrendo de desejo.
Aquilo foi o suficiente para que ela risse, mas o riso se transformou em
um gemido baixo quando ele acariciou-a no ponto mais sensível do seu sexo.
Elizabeth abriu-se para que ele pudesse tocá-la melhor. Mais profundamente.
Enquanto Aiden usava os dedos para estimulá-la, beijava seu pescoço, seu
ombro, mordiscava o lóbulo da orelha.
Os sons que ela não conseguia evitar a deixariam constrangida antes, mas
o duque libertou o seu lado mais impudico. Ele demonstrava satisfação em
fazê-la gemer, provocando-a e excitando-a ao máximo. Os carinhos cessaram
e ela abriu os olhos querendo protestar. Viu Aiden crescer em seu campo de
visão e entrar na banheira com ela.
— Aiden. — Ela se encolheu, dobrando as pernas. — Não há espaço para
nós dois.
— Da forma como eu planejo ficar, há bastante espaço.
O duque riu e acomodou-se, erguendo-a pela cintura para fazer com que
ela se sentasse sobre suas pernas. A água esfriando não importava. A
compreensão daquele corpo nu e excitado no qual ela estava apoiada fez com
que ela desejasse ser possuída. Imediatamente.
Ele não tinha mais o sorriso em seus lábios. Olhava para ela com desejo e
reverência, passando as mãos espalmadas pelos seus braços, pernas, barriga.
A expressão dele era perturbadora e capaz de confundi-la.
A posição era incômoda, mas não atrapalhou que Elizabeth segurasse o
membro rígido do homem e se sentasse sobre ele, permitindo uma penetração
profunda. Daquela vez, ele não tinha pressa. Com as mãos apoiadas nos
ombros dele e os joelhos dobrados dentro do espaço reduzido, ela o cavalgou
lentamente, enquanto ele esfregava seu botão rosado com o polegar.
Assim como da primeira vez, Aiden não permitiu que ela atingisse o
clímax. Ergueu-se da banheira, derramando água pelo chão, e jogou-a sobre o
colchão macio da cama pronta que esperava por eles. Depois, forçou os
joelhos dela abertos e levou a boca até o centro de sua intimidade. Elizabeth
praguejou e se contorceu com a língua dele em suas partes íntimas. Não era a
primeira vez. Ela já sabia que não era ilegal, ao menos para as leis britânicas,
e as sensações foram mais inebriantes. Talvez porque ela o desejasse mais, ou
porque ele já a havia estimulado o suficiente. Todo o interior dela pulsava e
ansiava por um contato mais profundo.
— Aiden, por favor — ela disse, a voz embargada pelo prazer iminente.
O duque lambia e chupava o feixe de nervos intumescido e protuberante em
sua feminilidade e quase lhe tirava os sentidos. — Por favor, me possua.
— Não agora, minha querida. — Ele a penetrou com os dedos para
proporcionar algum alívio. — Como eu disse, ainda há muito o que eu queira
fazer. Vamos nos divertir muito esta noite.
Ela quis dizer que eles não tinham muito mais tempo, mas foi silenciada
pela boca dele. Aiden a beijou, sugou os lábios, depois desceu a língua pelos
mamilos tesos. Segurou um com o dente e mordiscou enquanto acariciava-a
entre as pernas. Toda vez que Elizabeth sentia que iria explodir em um prazer
inebriante, ele retrocedia e começava tudo novamente.
Ele demorou, mas a atendeu e a penetrou, enquanto mantinha os
estímulos na zona mais sensível da sua intimidade. Elizabeth cravou os dedos
nos lençóis e arqueou os quadris para receber o orgasmo mais intenso de sua
vida. Ela não tinha experiência naquelas sensações. Depois de conhecer
Aiden ela teve certeza de que nunca tivera nenhum tipo de prazer como
aquele durante o ato sexual. O duque fazia com que ela desejasse ser tocada,
penetrada e manipulada. Fazia com que ela quisesse passar um dia inteiro
sendo beijada e possuída por ele.
A MULHER ERA DELICIOSA . Vê-la gozar em sua boca, em sua mão, enquanto
ele a possuía, dava a Aiden uma sensação de poder que ele não achava já ter
sentido outras vezes. Havia algo diferente nela. Podia ser a resistência da
governanta em ceder às suas propostas de tomá-la como amante. Mulheres
difíceis eram sempre mais intrigantes. Ele suspeitava, contudo, que era algo
mais do que a sedução pela caçada. Por mais que o duque gostasse de ser
desafiado, não era apenas o desafio que o atraía.
Ele estava olhando para ela havia vários minutos. Era tarde, muito tarde, e
até os ruídos do bosque estavam silenciosos. Os dois já tinham feito amor três
vezes desde que chegaram à casa do poço e Elizabeth cochilava nos braços
dele. Os cabelos loiros e cacheados estavam desgrenhados, ela tinha as
bochechas rosadas e a respiração suave. A imagem fez com que o coração
dele pulasse algumas batidas. Todo o corpo dela era de uma beleza que ele
ainda não vira. A pele era branca e macia como se uma porcelana pudesse ser
estofada com algodão. Os seios eram fartos, os mamilos rosados e do
tamanho perfeito. Para ele. Ela era perfeita para ele.
Elizabeth guardava algumas marcas de quem ela era. Pequenas cicatrizes,
calos nas mãos, notas de que sua pele fora castigada pelo tempo sem os
cuidados merecidos. Nada que diminuísse sua beleza. Ao contrário, aquelas
marcas davam a ela personalidade. Elizabeth era única.
Aiden aconchegou-se ao lado dela, garantindo que a mulher não
acordasse, e adormeceu. A exaustão do dia e da noite fizeram com que ele
dormisse profundamente até os primeiros raios de sol penetrarem pelo vidro
da janela, fazendo-o despertar.
— Volte para a cama.
Ele se ajeitou entre os lençóis quando viu Elizabeth saindo da banheira.
Ela já tinha acordado, tomado banho e estava pronta para voltar para a vida
real. E a vida real não permitia que eles ficassem juntos.
— Bom dia. — Ela lhe sorriu. — Está na hora de retomar minhas
atividades. Os criados vão questionar onde estive e terei que inventar
mentiras. Meus filhos já devem ter acordado e vão me questionar. Eu não
deveria ter dormido tanto.
Aiden se levantou, vestiu suas calças e a interceptou no meio do quarto.
Ajudou-a a abotoar as saias e ordenou que ela se sentasse à frente do espelho.
Ele também queria ajudá-la com os cabelos. O duque adorava os cabelos de
Elizabeth.
— Não tenho nenhuma vontade de voltar. Gostaria de ficar aqui pelo dia
inteiro. Talvez o final de semana. Mas aguardarei que você saia para que não
sejamos vistos juntos.
Ela lhe sorriu e ele não resistiu. Fez com que se levantasse e a beijou na
boca. Elizabeth se abriu para recebê-lo, a língua tocando a dele como se fosse
veludo e seda.
D AVIES ERA UM BOM MÉDICO E E LIZABETH NÃO TINHA MOTIVOS PARA NÃO
acreditar nele. Se ele dissera que seu filho estava bem, então não havia nada a
temer. Pouco antes do doutor chegar, Patrick acordou assustado. Estava
agitado e precisou da mãe para ser contido. O médico o examinou e
encontrou uma concussão apenas, nada grave. Pediu repouso, muito líquido e
compressa para a dor.
A situação fez com que Elizabeth precisasse considerar algumas coisas.
Desde o momento em que segurou o corpo inerte de seu filho, ela se culpou.
Se estivesse em casa para protegê-lo, aquilo não teria acontecido. Patrick
teria ido até ela, se sentiria seguro com a mãe. Ela lhe explicaria que a
duquesa era uma mulher amarga e cruel, que ele não deveria se sentir
diminuído pelo que ela falasse.
Elizabeth passou a vida trabalhando e estando ausente. Tinha que estar
ausente ou não levava comida para casa. Os filhos ficavam mais tempo com
estranhos do que com ela. Aquilo tinha que acabar. Ela não toleraria mais
uma vida de faltas. De não ter o que comer, ou de precisar se submeter aos
trabalhos mais degradantes. Isso dava a ela duas opções: casava-se com
Hodges e se tornava dona de casa, ou se entregava ao duque e sua proposta
indecente. Era como se não houvesse escolha.
Por mais digno que James Hodges fosse, ela não sentia nada por ele além
de respeito e admiração. Um homem de certa instrução, devotado a seu filho.
Ela poderia tê-lo como marido, mas se sentira impura se pensasse no duque
toda vez que se deitasse com Hodges.
Ser amante de alguém nunca passou por sua cabeça. Tanto por não achar
que seria sequer considerada por um nobre endinheirado quanto por não
aceitar tamanha humilhação. Mas, seria mesmo tão humilhante assim ser
cuidada por um homem a quem ela amava? Ludibriar as rígidas exigências de
uma sociedade impiedosa para viver ao lado do homem por quem seu
coração clamava parecia mais uma forma de rebeldia do que uma vergonha.
O DUQUE ESPEROU POR E LIZABETH , MAS ELA NÃO APARECEU . S ABENDO QUE
não deveria continuar sendo tão indiscreto em relação a ela, tentou não a
procurar pela casa durante a noite. Deu atenção aos seus convidados, mas só
conseguia pensar em tê-la nos braços. A frustração quando a manhã chegou
sem que ela o tivesse visitado foi grande o suficiente para fazer com que ele
deixasse o quarto, irritado.
Claro que ela não iria até ele. Com um filho se recuperando de um
acidente e tantos escândalos pela casa, Elizabeth não seria imprudente. Ela
nunca era. Saber disso não aplacava a irritação de Aiden. Precisava socar
alguma coisa, bater em alguém, quebrar uma parede. Vestiu-se precariamente
e foi até o galpão dos fundos. Para sua sorte, Edward estava lá. O conde
treinava esgrima e parou ao ver o amigo.
— Você está péssimo.
Edward apontou para as olheiras que Aiden exibia. Passara a noite em
claro sem conseguir acalmar o desejo que fazia seu corpo desconfortável.
— Tive uma noite ruim. Está disposto para um desafio?
— Eu estou, mas não lutarei novamente com você enquanto estiver tão
desfocado. — O conde jogou um rolo de ataduras para cima do duque, que
deixou o objeto cair. — Vamos socar alguma coisa, assim essa ansiedade
diminui.
— Não estou ansioso — Aiden mentiu.
Enfaixou as mãos para não se ferir com o saco de areia, enquanto o amigo
fazia o mesmo. Depois, desabotoou a camisa e a pendurou em um cabide.
— A Sra. Collingworth saiu — Edward disse, segurando o saco de areia
para que Aiden pudesse socá-lo. — Acordei cedo e fui até a cozinha
incomodar as criadas. Ela estava vestida e de saída com Granger. Os dois
meninos dela são crianças muito bonitas.
— Ela levou os filhos? — Aiden desferiu alguns socos e sentiu uma
fisgada no pulso. Cansaço, mas ele submeteria seu corpo à exaustão absoluta
para livrar-se daquele sentimento que o impelia a ficar com Elizabeth em seus
braços por um dia inteiro.
— Sim, saíram todos de carruagem. Acho que ouvi dizerem que iam
comprar provisões.
— Vou levá-la para Hampshire.
— É uma boa ideia. Vai ter uma casa para ela em Londres, também?
O conde empurrou o duque para o lado e trocou de posição com ele.
— Eu quero que ela esteja onde eu estiver — Aiden confessou, enquanto
ajudava o amigo a treinar. — Não é assim que as coisas são com as amantes,
certo? Estou fazendo alguma coisa errada, não estou?
— Amantes não são esposas, Aiden. Você está satisfeito com os arranjos
que fez com a Sra. Collingworth? Ela está? Acha mesmo que isso vai dar
certo?
— Eu cuidarei dela, ela terá o luxo de uma princesa, os filhos estudarão
em boas escolas. Em troca, eu a terei em minha cama. Por que raios não
estaríamos satisfeitos?
Edward deu um soco mais forte no saco e Aiden cambaleou para trás.
— Porque você não está sendo você mesmo desde que se conheceram.
Nunca te vi passar a noite sem dormir e treinar tão desatento. Todo mundo
está percebendo que tem algo errado, Aiden. Por que não resolve isso e casa
logo com essa mulher?
O segundo soco fez com que Aiden caísse sentado no chão. Ele não
saberia dizer se o que o nocauteou foi a força do golpe de Edward no saco de
areia ou se foram suas palavras.
Ele já tinha cogitado casar com Elizabeth. Claro que tinha. O desejo que
sentia por ela era tanto que, para tê-la, ele faria a proposta. Quando ela o
aceitou como protetor, fez com que a loucura de desposar uma plebeia sem
origem não precisasse ser levada a cabo.
— Eu não posso fazer isso, Edward. Elizabeth nunca seria aceita na
sociedade, ela seria massacrada. E eu tenho minhas responsabilidades. Não
posso estar no meio de um escândalo.
— Você não liga para a sociedade. Não liga para escândalos. Você sequer
deve ter perguntado à mulher a opinião dela. Então, continue com suas
desculpas para não enfrentar seus sentimentos por ela.
O conde ofereceu a mão para que o duque se levantasse. Depois de bater
a terra da calça de camurça, ele ouviu a carruagem retornar. O barulho das
crianças. Uma partida de rounders foi organizada próxima ao galpão onde
estavam. Enquanto desenfaixava a mão, considerou que atividade ao ar livre
seria mais proveitosa do que se esconder do sol.
— Vamos ensinar a uns moleques como que se segura um bastão?
U MA DAS DAMAS QUASE DESMAIOU . Foi amparada por uma criada e terminou
sentada em um canapé. O burburinho voltou e Elizabeth conseguia ouvir
tudo, mas não reagia a nada. Depois de piscar algumas vezes, a imagem que
seus olhos viam ainda era a mesma. Em sua frente estava o Duque de
Shaftesbury segurando uma caixa de veludo com um anel obsceno. Para ela.
O anel. O homem. A proposta. Era tudo para ela.
— Nós não podemos nos casar — ela murmurou, tão baixo que mal
conseguiu ouvir a si mesma. — A sociedade, eles nunca me aceitariam. Isso
te afetaria.
— Para o inferno com a sociedade! O problema é meu título? Então eu
abro mão dele. A partir de agora, não sou mais o Duque de Shaftesbury.
O comentário fez com que o burburinho das damas se intensificasse.
Ninguém se movia, todas querendo saber o desfecho daquele momento.
— Você não pode abrir mão do seu título, Aiden.
— Então eu continuo sendo um duque, mas não deixe que isso nos
impeça, Elizabeth. Case comigo. Seja minha esposa.
— E os negócios? As responsabilidades como membro do Parlamento?
Vai colocar tudo em risco por minha causa?
— Eu não me importo mais com nada disso. Eu me importo com você e
com os meninos. Eu te amo. Você me disse, um dia, que homens como eu
deveriam poder se casar por amor. E é você que eu amo, Elizabeth. Você é a
mulher que eu amo.
Ele era o homem que ela amava.
— Sim, Aiden. Eu ficarei honrada em me tornar a sua esposa.
Ela não sabia como conseguira dizer uma frase completa com a voz
embargada e os olhos cheios de lágrimas. O duque se levantou e a tomou nos
braços, selando com um beijo o compromisso que acabavam de firmar no
meio das damas, na frente da condessa. O maior escândalo que a sociedade
teria que enfrentar.
NOITE DE NÚPCIAS
C OM E LIZABETH DE REPOUSO , OS RECÉM - CASADOS NÃO PUDERAM CONSUMAR
o casamento logo após a celebração na capela da vila, em Kent. Não que eles
precisassem, pois já tinham consumado o amor várias vezes antes de
contraírem núpcias. Mas as regras precisavam ser cumpridas.
Eles estavam em Londres. Apenas um mês depois da primeira cerimônia,
foram para a capital para tratar de assuntos de interesse do duque e agilizar
alguns preparativos para o casamento na Igreja de São Jorge. Os meninos
ficaram em Thanet Bay, aos cuidados dos criados.
Elizabeth conheceu a Trowsdale House em Mayfair. A casa do Duque de
Shaftesbury era então a sua casa. Os empregados receberam a nova duquesa
com entusiasmo, mas ficaram um pouco chocados quando ela dispensou uma
camareira para ajudá-la a tomar banho e se vestir. Ainda não tinha se
acostumado aos vestidos que começaria a usar e a ter criados à sua disposição
para qualquer a fazer.
— Você precisa visitar uma estilista — Aiden disse. Eles estavam nos
aposentos ducais, depois de jantarem em casa. Como era esperado, a nobreza
virou as costas para o Duque de Shaftesbury. As fofocas se intensificaram e
alguns convites para eventos sociais foram retirados. Apenas os amigos mais
antigos e os burgueses, sem sangue azul, mantiveram o relacionamento de
antes.
Elizabeth temia que aquilo tudo afetasse lady Agatha e atrapalhasse um
casamento. Mas a lady sozinha dava conta de destruir suas chances de
arrumar um bom marido, preferido viajar pelo continente a frequentar a
próxima temporada londrina.
— Sei que preciso, mas não tenho nenhuma vontade. — Ela pediu ajuda
ao marido para desabotoar o vestido e retirar o espartilho. Desde que
conhecera Elizabeth, uma das coisas que mais dava prazer ao duque era
despir sua esposa. — Adoro os vestidos lindos e cheios de camadas, mas
estou tão acostumado às roupas mais simples que…
— Você pode usar a roupa que quiser. — Aiden beijou-a nos ombros que
acabara de desnudar. — Ou não usar roupa alguma, o que é ainda melhor.
Ele a virou para si e reivindicou a sua boca. Elizabeth desmontou nos
braços do marido, recebendo com satisfação a língua que procurava uma
abertura em seus lábios.
— Em Londres, eu preciso me portar de forma adequada — ela
murmurou, sem descolar a boca da dele. — Já arruinei sua vida social, se me
vestir como uma plebeia miserável, nunca vão parar de nos julgar por
ficarmos juntos.
— Shhhh. — Aiden a silenciou com um beijo intenso. O vestido que ela
usava já estava no chão, embolado em uma pilha aos pés deles. O duque
ainda trajava suas calças e a camisa branca de linho. — Diga-me, o doutor
Davies pediu quanto tempo de resguardo?
Elizabeth afastou-se alguns centímetros e segurou a face do marido nas
mãos. A expressão dele confundia desejo com antecipação.
— Trinta dias.
— Trinta dias da data do nosso casamento ou trinta dias de quando…
Sem conseguir terminar a frase, Aiden deixou no ar sua dúvida.
— O prazo dele acabou ontem.
O duque entendeu que ela estava zombando dele. Homens apaixonados
não eram razoáveis, principalmente se estavam há tanto tempo sem poder
fazer amor com suas esposas. Eles estavam casados, por Deus, e ele ainda
não pudera fazer com ela tudo que desejava.
Naquele instante, o duque segurou sua esposa e a jogou sobre a cama.
Saber que podia amá-la sem causar riscos à sua saúde despertou nele toda
devassidão contida, e Elizabeth adorava a versão devassa do marido. Nua e
esparramada sobre os lençóis, ela o observou abrir os botões da camisa e
arrancá-la pela cabeça. Depois, abrir a calça e descartá-la no chão do quarto.
Ela adorava ainda mais vê-lo despido e se dar conta do quanto o corpo dele
demonstrava o desejo por ela.
— Minha duquesa, agora que somos casados, eu prometo que não terei
nenhuma restrição. Eu quero fazer amor com você a noite inteira, se me
permitir. E cada vez eu serei mais ousado, sendo que cada vez você gostará
mais.
— Tem como ser mais ousado do que…
Ela se surpreendeu. Recordou as vezes em que ele a beijara em sua
feminilidade, usando a língua para penetrá-la e conceder-lhe prazer. Para ela,
aquela era a coisa mais absurda que um homem poderia fazer com uma
mulher na cama, e estava enganada.
— Pode ter certeza de que tem. — Ele riu. — Mas não se preocupe. Eu só
farei o que você gostar, e farei bem feito.
Claro que ele faria. Aiden era um amante espetacular e ela duvidava que
outro homem fosse capaz de proporcionar tanto prazer a uma mulher.
Dizendo aquilo, o marido subiu na cama e a beijou. Colocou uma perna entre
as dela, fazendo-a se abrir para receber seus dedos habilidosos.
Sempre que ele a beijava daquela forma, o turbilhão de sensações quase
naufragava Elizabeth em mar aberto. Ela se sentia tão à deriva das emoções e
dos sentidos que mal conseguia perceber algo que não fosse o toque dele. Os
lábios dele nos dela. A língua procurando a dela. Os dedos abrindo-a em sua
intimidade e circulando seu botão rosado até fazer com que ele inchasse.
A carência de contato mais íntimo fez com que os dois estivessem muito
ansiosos por alívio. Cobrindo-a com seu corpo musculoso, o duque forçou
espaço entre as pernas da esposa e a penetrou devagar. Encostou a testa na
dela e moveu os quadris uma, duas vezes, tão lento que parecia estar sendo
muito difícil se controlar. Até que ele se soltou e passou a investir contra ela.
Forte. Profundo. Ele tinha o ritmo que a levaria à loucura e foi assim que
Aiden seguiu até que Elizabeth se entregasse à libertação do orgasmo. Não
levaram duas estocadas para que ele buscasse o próprio alívio dentro dela.
Foi rápido, mas ele tinha prometido mais.
— Céus. Depois de tanto tempo, não sei como resisti tanto.
Ele riu, puxando-a para si. Elizabeth recostou em seu peito nu, sentindo
as gotículas de suor lhe umedecerem a pele. Ela também estava exaurida.
— Espero nunca mais precisar passar tanto tempo sem você, Elizabeth.
— O duque beijou seus cabelos. — Estou embriagado pelo desejo e pela
paixão, eu passo o tempo contando as horas para estar com você. Sou um
empreendedor inútil, uma vergonha para os homens.
— Não há qualquer vergonha em amar. — Ela se apoiou nos cotovelos e
o encarou. Havia tanta sinceridade no escuro profundo daqueles olhos que ela
não tinha como duvidar do quanto ele a amava. Era real. — Eu estava prestes
a aceitar uma vida de imoralidade porque amo meus filhos e porque amo
você de tal forma que seria capaz de vender minha alma ao diabo, se isso
fosse fazer com que fôssemos uma família. Mesmo que não fôssemos.
— Eu sinto muito por tê-la feito passar por isso. — Aiden beijou-a na
boca. — Mas agora você é a minha mulher. E eu nunca deixarei que se
esqueçam disso, ou que você se esqueça do quanto eu te amo.
Elizabeth sorriu. Ela poderia ouvi-lo dizer que a amava o tempo todo,
porque era quase tão prazeroso quanto o sexo. Quase. Deixou que seus dedos
passeassem pelo corpo do marido e seguissem a trilha que conduzia até seu
pênis. Aiden soltou um gemido ao senti-la tocando-o enquanto ainda estava
recuperando as forças.
— Você prometeu ser muito devasso esta noite.
Ela o encarou com um brilho indecente no olhar. Sim, ele seria o mais
despudorado dos maridos e Elizabeth estava pronta para se tornar a mais
corrompida das esposas.
PRÓLOGO
Caro Edward,
É injusto que eu continue vinculada a nosso compromisso quando
tenho uma proposta muito mais rentável na Alemanha. O arquiduque
que deseja me desposar acrescentará muito mais ao patrimônio da
minha família e sua incomparável saúde financeira foi
definitivamente um requisito para que meu pai tomasse essa decisão
junto comigo. Espero que você não se importe por ele não sentar
para negociar os termos do nosso rompimento, porém, a viagem para
Londres seria extenuante para ele. Um advogado o procurará em
breve.
Lady Bridget.
Uma carta! Sua noiva escrevera uma maldita carta, de poucas palavras,
para dizer que não haveria mais casamento. A batida sobre a mesa de mogno
chamou a atenção de outras pessoas na casa. Lorde Isaac McFadden entrou
no escritório do irmão com uma expressão confusa de quem não entendera o
barulho. O conde era uma pessoa calma e contida quase sempre. Era difícil,
quase impossível, vê-lo perder a paciência.
— Algum problema, Ed?
— Sim. Muitos problemas. Uma tonelada deles. — O conde sacudiu o
papel que segurava, sem entregá-lo ao irmão. — Lady Bridget, minha
estimada noiva, decidiu que era uma ideia brilhante escrever-me uma carta
para romper nosso noivado!
— Romper?
Lorde Isaac foi até o bar e serviu duas doses de conhaque. Sabendo que o
humor do irmão não melhoraria logo, escolheu algo que poderia acalmá-lo,
mesmo que precariamente.
— Sim. Romper. Veja você mesmo.
O conde entregou a carta ao irmão. O papel estava amassado, mas a letra
desenhada da dama era inconfundível.
— Isso é uma afronta, Edward. — O lorde devolveu o papel ao irmão e se
sentou. — Você deveria processá-los, eles merecem ser processados.
— E tornar isso um escândalo? Céus, não. — Edward também sentou e
passou as mãos pelos cabelos loiros. Os fios estavam compridos demais, todo
ele estava desalinhado e amarrotado. Aquela era uma versão ruim de si
mesmo. Já fazia dias que não sentia interesse em se arrumar, e não era por
causa da carta. — Isaac, com o afastamento de Aiden, eu estou
sobrecarregado. Nossos negócios sobreviveram a um duque casando-se com
uma plebeia respeitável, mesmo que isso tenha custado a vida social dele,
mas não sei o quanto sobreviveriam a uma disputa minha contra minha ex-
noiva. É patético demais.
Ele desabafou para o irmão, que o ouviu com paciência. Desde que
Elizabeth, a Duquesa de Shaftesbury descobriu que estava grávida, seu
marido não fazia quase nada pelos negócios. Aiden vivia em casa com a
esposa, cuidando dela e do futuro herdeiro que estava a caminho. Talvez
fosse porque ela já havia sofrido uma perda antes, ou porque Aiden era um
boboca apaixonado.
Apaixonado. Quanta bobagem era pensar que um homem como ele
poderia se casar por amor. Edward e o amor eram bastante incompatíveis.
— E o que fará?
— Esperarei o advogado. A quebra desse contrato vai custar uma fortuna
para eles, porque Bridget também não pode suportar nenhum escândalo.
Depois que eu arrancar do pai dela todos os bens que conseguir, procurarei
outra noiva.
— Vai dar trabalho. — Lorde Isaac finalizou sua bebida. — Você levou
bastante tempo cortejando lady Bridget.
— E quem disse que vou cortejar minha próxima noiva? — O conde
bateu o copo de vidro na mesa. — Agora, eu só caso por negócios. Quero um
casamento padrão da sociedade inglesa, com o menor grau de envolvimento
pessoal possível.
O lorde encarou seu irmão por alguns segundos. Ele duvidava que
Edward estivesse falando a verdade. Naquele momento, o conde estava ferido
e se sentindo traído, sofrendo com o abandono. Claro que ele jamais admitiria
nada disso, mas lorde Isaac sabia que seu irmão, apesar de tudo, queria ser
amado.
O irmão não era como todos os outros homens que ele conhecera. Edward
fora retraído, tímido e tratado como um soldado pelo pai. Enquanto todos os
filhos tiveram amor, cuidado e carinho, Edward recebia ordens, instruções e
treinamento para assumir uma função. Isaac sentia até mesmo alívio em ser o
segundo filho. Por mais que o conde insistisse em apresentar uma carapaça
impenetrável, ele precisava ser cuidado por alguém. Amado por uma mulher.
T ODAS AS FORÇAS da natureza gritavam que ele não deveria fazer aquilo. Vá
embora daí, Edward McFadden. Não adianta discutir com ela, você sempre
perde. Apenas volte para os negócios. Ele não ouviu as vozes que tentavam
afastá-lo. A estranha sensação que teve ao vê-la descer as escadas lhe
surpreendeu. Meses atrás, Edward se lembrava de ter acompanhado o amigo
duque até o porto para despedir-se da irmã mais nova. Uma jovem
impertinente que deveria ter sido devolvida pelos americanos em poucas
semanas. Ela se foi como uma garota magra demais, uma pilha de ossos
ambulantes, ornamentada com laços e flores em excesso. Ela voltou depois
de ter ficado tempo demais no outro continente.
Edward não sentira falta dela até vê-la outra vez. Agatha não era mais
uma menina aborrecida que insistia em descumprir todas as regras da
sociedade. Ela tinha se tornado uma mulher. Estava encorpada, com os olhos
mais vibrantes e os cabelos mais brilhantes. Não usava flores ou laços, mas a
simplicidade da seda e do veludo com cores sóbrias que a deixavam com um
aspecto maduro.
O conde não deveria enxergar a irmã do seu melhor amigo como uma
mulher. Ela era, no máximo, uma dama que ele respeitava e por cuja honra
zelava. Da mesma forma que Aiden cuidaria de Wilhelmina se fosse preciso,
Edward deveria ser o porto seguro de Agatha.
O que ele estava fazendo ali, então? Sentado com ela em uma parte
remota do jardim, tocando-a na face com uma mão sem luvas?
— Você está chorando, Agatha? — Ele tinha que saber. Mesmo que ela
tentasse manter a altivez de sempre, a luz peculiar que brilhava dentro de
Agatha estava apagada. Ela estava mais linda, uma mulher de curvas e formas
desejáveis, mas seu interior parecia vazio. — O que houve nessa viagem que
te deixou assim?
Quando ela se virou para ele, havia confusão e fúria nos olhos verdes. Ao
mesmo tempo que ela parecia ansiar por ser protegida e entendida, ela o
estava mandando embora. Vá, Edward. A voz ignorada continuava dando
ordens que não seriam cumpridas.
— Nada que seja da conta de ninguém.
— Você era tão intrigante, sempre desafiadora, nunca media palavras
para falar com as pessoas. Isso ainda está aqui em você, mas é como se você
estivesse interpretando um papel. Eu olho para você e vejo um pedido de
ajuda.
— Não seja ridículo, milorde.
Ela quis virar o rosto, ele não deixou. Os dedos dele não pararam de tocá-
la. Ao contrário, Edward acariciou-a com o polegar e permitiu que sua mão
se acomodasse de forma a segurar a face de Agatha nas mãos. Ela não o
repeliu, permaneceu encarando-o com ferocidade e… ele podia apostar que
era desejo.
Seus olhos vagaram para o pescoço dela, descendo para o colo despido,
onde repousava uma gargantilha de diamantes. A renda do vestido fazia
sombra sobre o decote, que subia e descia com a respiração acelerada dela.
Edward voltou a encará-la e seu corpo assumiu uma proatividade que ignorou
a razão. Sem perceber como, ele se pegou baixando a cabeça e levando sua
boca até a dela.
Não que ele pretendesse beijar alguém. Menos ainda, ele não pretendia
beijar Agatha. A visão da boca dela, rosada como um morango e entreaberta
na busca por ar, fizeram com que todo o uísque que bebera durante o dia
assumisse o controle. Ela hesitou por dois segundos e agarrou a lapela do
casaco dele, puxando-o para mais perto. O beijo, que iniciou como um toque
de lábios, ficou intenso. Edward pressionou a boca contra a dela, forçou sua
língua até penetrá-la e surpreendeu-se ao perceber que ela era mais experiente
do que sua aparente ingenuidade sugeria.
Os corpos se aproximaram. As camadas de saias da lady estavam por
sobre as pernas dele, o joelho dela perigosamente próximo de uma zona
muito sensível. Edward abafou um gemido e enfiou os dedos por entre os
cabelos dela, desalinhando-os. Nenhum dos dois estava nas posses de suas
faculdades mentais plenas. Entregues ao momento, não perceberam as vozes
que aumentavam a cada segundo. Também não ouviram os passos de
calçados no assoalho de madeira, depois de pedra, indicando que o jardim era
ocupado por outras pessoas que não deveriam pegá-los naquela situação.
— Oh.
Um ganido agudo despertou Edward do transe e ele levantou a cabeça
para ver de onde ele vinha. Seus olhos azuis capturaram as figuras
assombradas de lady Madeline, lady Sarah e lorde Brandon com sua esposa.
Em um impulso, ele puxou Agatha contra seu peito e ela enfiou a face por
dentro do casaco dele.
— Parece que interrompemos algo importante — lorde Brandon
pigarreou e comentou, fazendo com que a esposa virasse para o outro lado.
— Vamos ver se há outro lugar da casa em que possamos ver as constelações,
senhoritas.
As quatro pessoas saíram do jardim da mesma forma que entraram, sem
dizer mais nada. O coração de Edward estava disparado e ele mal conseguia
respirar. Aquela era uma situação fora do seu controle. Depois que a noiva
decidira terminar com ele por uma maldita carta, nada mais esteve em seu
controle. O olhar que lady Madeline lhe dedicou enquanto saía indicava que
ela não mediria esforços para fazer a fofoca circular o mais rápido que
pudesse.
CAPÍTULO TERCEIRO
A ESCURIDÃO NÃO ERA NEM SILENCIOSA NEM FRIA . F AZIA MUITO CALOR E
Agatha conseguia ouvir todos os ruídos de uma cidade grande. Era como
Londres, porém, mais barulhenta. Ela estava de olhos abertos, mas não via
nada. De repente, uma dor excruciante fez com que ela caísse ao chão. Um
líquido morno e viscoso saía do meio das pernas dela. Ela tentou se arrastar
pelo lugar e seu corpo não se movia. O ruído ficou mais alto.
Ela então gritou. Chamou por ajuda, mas ninguém apareceu. Gritou mais
alto, não conseguiu ouvir a própria voz. Estava desesperada, sentindo o
sangue esvair de dentro de si quando foi resgatada. Continuava escuro
demais, mas Agatha sabia que estava sendo carregada por alguém. Sentia as
mãos fortes ao seu redor. Sua cabeça repousou na maciez firme de um peito
masculino. Não temeu o estranho que a confortava, apenas aproveitou o
alento que seus braços lhe causavam.
— Vai ficar tudo bem. Shhh.
A voz murmurava em seu ouvido e ecoou suave até que ela adormeceu
novamente. De todos os seus pesadelos, era a primeira vez em que era
resgatada da escuridão.
A GATHA NÃO PASSOU BEM A NOITE . Ela quase não dormiu, rolando pela cama
e tendo pesadelos. Cenas do período em que esteve nas Américas a
assombraram, como toda vez. A figura brilhante de Edward a assombrou. Ela
teve medo do passado recente, teve medo do futuro. Quando a exaustão fez
com que sucumbisse, ela apagou. Só foi despertar quando um barulho alto do
lado de fora estremeceu o quarto.
Aquela era Londres. O “lado de fora” era sempre ruidoso demais, mesmo
que eles estivessem em Mayfair. Sentindo o corpo cansado e a cabeça
dolorida, Agatha se levantou e chamou uma criada para ajudá-la a se banhar e
se vestir. A McFadden Garden tinha uma casa de banho completa que atendia
apenas à suíte principal e que, naquele momento, estava vazia.
A jovem dama se enfiou na água morna até o pescoço, temendo que o
banheiro fosse invadido a qualquer tempo. Ela não fazia ainda ideia da hora.
— Milady, onde a senhora deseja tomar seu desjejum? — a criada
perguntou, ajudando-a a lavar os cabelos.
— Onde o conde costuma tomar o dele?
A pergunta não era incomum, principalmente porque eram recém-
casados. A criada compreenderia que ela queria ficar perto do marido
quando, na verdade, era o contrário.
— Lorde McFadden costuma fazer as refeições no salão principal,
milady. Mas ele não está em casa, ele já saiu.
Agatha fingiu surpresa.
— Ah. Mas eu também farei meu desjejum no salão.
— Mandarei servirem.
A criada levantou e pediu autorização para sair. A dama preferia terminar
seu banho sozinha, mesmo que ela não conseguisse se vestir adequadamente
sem ajuda. Para sua sorte, quando retornou ao quarto, encontrou Moira
esperando por ela.
Mesmo que tivesse solicitado a presença de sua camareira pessoal,
Agatha imaginou que teria que esperar mais. Ficou feliz ao ver um rosto
conhecido e acabou demonstrando entusiasmo demais ao abraçar a criada.
Aquele era um comportamento típico dos Trowsdale. Casar-se com um
McFadden não faria com que ela mudasse sua atitude.
— Depois que eu comer alguma coisa, precisamos sair — Agatha disse,
sentada à frente de um espelho. Moira estava arrumando seus cabelos em um
coque sobre a cabeça. — Preciso de vestidos novos. Desde que voltei não
comprei nada ainda e não sei nem mesmo como está a moda em Londres.
Não posso desfilar em trapos.
— Certamente que não, milady. A senhora é uma condessa, agora.
Ela sorriu, mesmo que isso não fosse planejado. Não queria se sentir feliz
pelo ocorrido, não sentia nada além de confusão e dor de cabeça, mas sorriu.
— Então precisamos de roupas dignas de uma condessa.
Moira terminou o penteado e acompanhou sua lady até o salão. O
desjejum já estava sendo servido e Agatha descobriu que teria companhia.
Sentado à mesa, folheando um jornal, com a pose de uma estátua grega, lorde
Isaac estava concentrado em alguma notícia. Como ela não foi notada, a lady
se sentou na cadeira indicada pelo criado que a recebera. O movimento fez
com que lorde Isaac fechasse o jornal e a encarasse, enigmático.
Agatha quis sorrir. Aquele era certamente o homem mais lindo que ela já
tinha visto. Os homens McFadden eram deslumbrantes.
— Oras, minha nova irmãzinha resolveu dar-nos o prazer de sua
presença. Teve uma boa noite, milady?
— Bom dia, lorde Isaac. Eu dormi muito bem, obrigada.
Agatha não teve como saber se ele acreditou ou não na mentira dela. Os
olhos estavam um pouco caídos e havia aquelas manchas arroxeadas debaixo
deles. Não havia compressa que as escondesse.
Os criados serviram torradas com manteiga, ovos, presunto e bolos com
cobertura. Agatha não estava com muita fome, mas se esforçou para aceitar o
que colocaram no prato. Bebericou do chá e ergueu o olhar para perceber que
seu cunhado a espreitava por cima do jornal que tinha voltado a ler.
— Meu marido, o conde, saiu cedo? — ela perguntou, porque quis
demonstrar interesse.
Em verdade, ela estava curiosa para saber por que o conde não estava em
casa. Agatha sabia que ele e o irmão tinham atividades matinais, mas aquela
era a primeira manhã após o casamento. As pessoas pensavam que ele estava
em lua de mel. Por que sair cedo e dar a impressão errada?
— Edward foi até a fábrica. Ele a visita todas as manhãs, você se
acostumará em breve. Ele não tem uma rotina como a dos outros nobres, está
sempre trabalhando.
— Sei que pareço bastante ignorante fazendo essa pergunta, mas essa é a
fábrica que seria aberta quando viajei?
Edward, Aiden e o Visconde de Whitby tinham se unido com negociantes
e investidores para revitalizar uma região degradada em Londres. A primeira
iniciativa para tornar isto real era abrir uma fábrica, e eles pretendiam
também se envolver com exportações, com hotelaria e no mercado
imobiliário. Empregar as pessoas e garantir a elas um salário mais digno era a
maior proposta que eles tinham. Todos ganhariam. O conhecimento de
Agatha sobre os assuntos masculinos acabava aí.
Lorde Isaac a olhou com alguma incredulidade, já que nenhuma mulher
costumava se interessar sobre negócios. A maioria sequer falava sobre aquilo.
Não era considerado elegante.
— Sim, ela mesma. Está aberta e em pleno funcionamento.
— Ela fabrica o quê?
— Peças navais. Em breve, eles pretendem se envolver na construção de
navios. Edward e Aiden são meio… como dizer? Insaciáveis.
Agatha se engasgou com o pãozinho que levara à boca. A forma como
lorde Isaac falou levava a uma compreensão dúbia sobre a expressão
insaciável. Pelo que ela ouvira, eles eram impossíveis de satisfazer em tudo.
Não era à toa que o irmão engravidara Elizabeth em tão pouco tempo. Duas
vezes.
Não tendo como continuar a conversa sem parecer interessada demais no
marido que queria rejeitar, ou sem ficar admirando o cunhado que era mais
belo do que deveria ser, a lady manteve silêncio enquanto terminava de
comer. Lorde Isaac mal tocou na comida, ele deveria estar acordado há mais
tempo e ali apenas fazendo companhia a ela. Aquela família era tão estranha
quanto a sua. Os homens não aceitavam a realidade da nobreza, insistiam em
trabalhar para ficarem ainda mais ricos.
— Milorde, peço licença para me retirar. — Ela se levantou, assim que
terminou de comer. — Vou à modista encomendar alguns vestidos.
Lorde Isaac riu, finalizando seu chá. Colocou o jornal sobre a mesa e a
encarou.
— Claro, uma condessa precisa de novos vestidos. Antes, no entanto,
teria uns minutos para mim?
— Certamente. O que deseja?
— Sente-se novamente. Prometo que não vai demorar.
Agatha saiu da mesa e se sentou em um sofá. Ajeitou as saias e fingiu que
não se preocupou com o que o cunhado falaria. Ela tinha medo de ser óbvia
demais e de que todos desconfiassem do seu passado. Ou do seu presente.
— Imagino que não se importe com minha ousadia, milady, mas eu amo
meu irmão a ponto de ser intrometido. — Lorde Isaac levantou-se e serviu
um conhaque. — Edward é um homem muito bom. Mas também é um
homem que não acredita no seu potencial.
— Arrogante do jeito que ele é? — Agatha riu. — Desculpe se acho
difícil de acreditar, milorde. Seu irmão é um poço de pedantismo.
— Ele é, mas essa é apenas a imagem que ele precisa passar. Edward se
inspirou no seu irmão para construir quem ele é, hoje. Insolente, presunçoso,
irritante. Não acha que eles são bem parecidos?
Agatha assentiu com a cabeça.
— Mas eles são totalmente diferentes — ela concluiu. — E por que está
me contando isso, milorde? É um pouco inadequado que fale da intimidade
do seu irmão dessa forma.
— Você é a esposa dele. Eu não sei se concordei com esse casamento,
milady. Não por não a aprovar, mas porque Edward é um homem que precisa
ser amado. Ele foi abandonado por sua noiva, jurou que só se casaria
novamente por conveniência, e logo em seguida a comprometeu. Temo,
inclusive, que ele tenha feito isso propositadamente. Mas ele não será feliz
sem amor. Ele não acredita que é capaz de ser amado, mas anseia por isso.
Você notou, Agatha, que o seu quarto foi arrumado? O dossel está reformado
e as cortinas são novas. Assim como a roupa de cama é de uma cor
específica.
Verde.
— Sim, notei. Eu apreciei o gesto, é claro.
— Exatamente. O que talvez não tenha sido contado a você: Edward fez,
ele mesmo, todas as reformas no quarto, dois dias antes do casamento. Ele
queria perfeição para quando a sua esposa chegasse. Ele é perfeccionista,
costuma fazer tudo por si próprio. E ele fez coisas por você que não fez por
ninguém, até agora. Estou sendo claro?
Ela quis dizer que não estava entendendo nada, mas seria mentira. Lorde
Isaac estava alertando que seu marido era um homem que precisava do amor
de uma esposa. O amor que ela não podia dar. Ficou intrigada que ele
parecesse saber bem disso.
— O amor é superestimado, milorde. — Foi o que conseguiu dizer. Não
porque acreditava nisso, mas porque era o que não a comprometeria. —
Podemos ter um casamento confortável sem a necessidade de nos perdermos
em paixões.
— Foi exatamente isso que Edward me disse quando puxei esse assunto
com ele. — Lorde Isaac riu e caminhou na direção da porta. — Bem, eu
tenho atividades para fazer. Obrigada pela conversa, milady. Nos vemos no
jantar.
Ele saiu, deixando a jovem lady preocupada com as expectativas sobre
ela. Agatha não era a mulher que amaria Edward e o faria realizado no amor.
Ela poderia apenas servir como uma esposa adequada à sociedade. Nada além
disso.
O CONDE RETORNOU PARA CASA POR VOLTA DAS VINTE HORAS . A GATHA
esteve entediada durante o dia, depois de retornar da fábrica. A sogra e a
cunhada já tinham retornado para Greenwood Park, afirmando que não
ficariam na casa importunando os recém-casados. Apenas lorde Isaac
permanecia em Londres. Sendo final de julho, quase todos os nobres já
tinham se retirado para passar o verão e o outono em suas casas de campo ou
praia. A cidade estava entregue aos negociantes e aos menos afortunados.
As amigas de Agatha também tinham saído de Londres e isso a deixava
com quase nada para fazer. Pegou um ou dois romances para ler, mas não se
divertiu com nenhum deles. Eram as mesmas histórias sobre donzelas em
apuros resgatadas por nobres valorosos. Ela queria que outras tramas fossem
contadas, em que as mulheres não fossem donzelas, nem precisando da ajuda
de cavalheiros, e que os homens não fossem tão nobres, porque ela sabia bem
que a maioria deles era canalha.
Visitar Elizabeth também estava fora de cogitação. Ela adoraria se
divertir com Peter e Patrick, já que os meninos estavam de férias da escola,
mas a cunhada estava próxima de ter o bebê. Naquela fase da gestação, nunca
se sabia bem quando o parto iniciaria. Se ela fosse até a Trowsdale House,
ficaria nostálgica e teria que explicar por que não dormira com seu marido.
Claro que Elizabeth notaria. Ela notava tudo.
Quando o conde retornou do trabalho, cheirando a óleo queimado e
tabaco, com os cabelos desalinhados e as botas sujas de fuligem, ela se
excitou. Quis brigar com ele por deixá-la sozinha, ao mesmo tempo que quis
pedir que ele lhe fizesse companhia. Estava tão aborrecida que chegou a
pensar em pedir para lorde Isaac jogar xadrez com ela, mas não queria
assustar o cunhado. As damas como ela não deveriam saber nada sobre jogos
masculinos.
— Como passou o dia? — Edward cumprimentou-a, assim que a viu no
salão principal.
— Você sempre sai cedo e volta nesse horário? — ela rebateu a pergunta,
sem vontade de dizer que estava muito entediada.
— Sempre, não. Mas, com o afastamento do seu irmão, é necessário que
eu tenha uma presença mais regular. O Visconde de Whitby nunca pode ficar
em Londres fora da temporada, ele tem esposa e três filhas para cuidar. — O
conde afrouxou a gravata e começou a subir as escadas em direção ao quarto.
Agatha se levantou e foi atrás dele, quase tropeçando nas camadas das saias.
— Por que pergunta, milady? Sentiu falta da minha companhia?
Ele estava zombando dela, o que a deixou com vontade de atirar nele um
ornamento de cerâmica qualquer. De preferência, um bem pesado que fosse
causar uma grande dor.
— Estou apenas me adaptando a essa vida nova. Vocês, homens de
negócios, prendem suas esposas em Londres. O mesmo aconteceu com
Elizabeth, que precisará ter seu bebê na cidade, já que não pode viajar mais.
Assim, ficamos sem nada muito interessante para fazer.
O conde entrou em seu quarto e ela parou na soleira da porta. Ela poderia
entrar atrás dele, mas sabia o que ele faria em seguida: tiraria as roupas e
tomaria um banho. Não era de sua vontade ver o marido despido. Talvez
fosse. Agatha pouco conhecia da anatomia masculina. A sua única
experiência com homens nus fora um total horror, mas ela sabia o suficiente
para entender que Edward era um espécime diferenciado.
— Elizabeth teve outras duas crianças em Londres. Ela sabe como fazer
isso. E você pode ir para Greenwood Park, já disse. Suas amigas estão quase
todas em Kent e você terá muita ocupação.
— Mas eu não quero deixar Londres enquanto meu sobrinho não nascer
— ela falou, da porta semicerrada. Ouviu alguns barulhos dentro do quarto e
esperou.
— Minha esposa, eu vou tomar um banho. — Ele reapareceu na porta e
colocou parte do tronco para fora. Estava sem camisa, os ombros suados e
empoeirados. — Ou você entra ou me aguarda descer para o jantar. O que vai
ser?
Ela queria entrar. Respirou fundo e aceitou que precisaria esperar mais
um pouco para ter qualquer conversa com Edward. Com uma expressão de
desânimo, se afastou do batente e indicou que ele podia fechar a porta.
— Você sabe que há bastante espaço na banheira para nós dois, não sabe?
O conde deu um sorriso provocante e ela quis bater nele outra vez.
— Sei, mas dispenso o convite. Aguardarei na sala privativa.
Ela desceu as escadas com pressa incomum. Não que Agatha não fosse
agitada e acelerada, ela sempre estava correndo pela casa ou andando mais
rápido do que as damas de sua idade. Naquele momento, ela sentiu que
precisava ficar o mais longe possível do conde. Alguma coisa a provocava a
quebrar com suas próprias regras e aquilo seria o seu fim.
O C ONDE DE C ORNWALL fora rejeitado duas vezes por sua esposa. Se alguém
soubesse daquilo, sua reputação estaria arruinada para sempre. Edward nunca
fora rejeitado antes, por ninguém. Ele deveria desistir daquela mimada e
concentrar seus esforços em outras mulheres, mas não conseguia.
Desde que soube que ela retornou, mesmo bêbado demais para perceber,
ele quis vê-la outra vez. Desde que a viu, sabia que precisava ficar com ela.
Por tempo demais, Agatha foi a menina que implicava com ele. Até ela se
tornar adulta e Edward entender que seus sentimentos para com ela eram
pecaminosos demais. Era a irmã de Aiden. Ele a vira nascer. E ela era agora
sua esposa. Talvez se ele tivesse planejado, não tivesse saído tão certo.
Como ela era resistente, dizendo não ao mesmo tempo que seu corpo
gritava sim. Enquanto Edward rolava na cama sentindo o desejo o dominar,
ela estava realmente gritando.
Era a segunda noite, a segunda vez que ele despertava com os berros da
esposa. Edward pulou da cama, sem se preocupar em vestir-se, e se colocou
ao lado dela. Agatha chorava, as lágrimas escorrendo pelos olhos fechados, e
esperneava na cama. Dormindo, ela parecia ter um pesadelo horrível.
— Shhhhh, minha querida. — Edward segurou-a em seus braços. Ela
ficou tensa, mas parou de se debater. — Acalme-se, Agatha, eu estou aqui.
Edward não sabia o que que era aquilo que fazia a esposa ter pesadelos
tão reais. Acomodou-a em seu colo, deitou-a em seu peito, e acariciou seus
cabelos. Ela acalmou, relaxou ao encontro do corpo dele.
— O que está acontecendo com você? — o conde sussurrava nos ouvidos
da esposa, que parava de chorar aos poucos. — O que te deixa tão nervosa,
tão agitada no sono?
Agatha balbuciou palavras que ele não conseguiu entender. Parecia uma
canção de ninar ou algo que uma mãe diria a um filho. Não acordou, apenas
foi se acalmando até que o único ruído no quarto eram as duas respirações.
Na noite anterior, Edward se deitou ao lado dela e ficou até que ele
precisasse sair. Ela não percebeu que ele estivera ali. Naquela noite, faria o
mesmo. Agatha não estava bem e precisava do cuidado dele. Recostado nos
travesseiros, Edward deslizou para baixo, com ela nos braços, e se ajeitou na
cama. Se ela acordasse e o expulsasse, pelo menos ele saberia que ela estaria
se sentindo melhor.
CAPÍTULO OITAVO
A GATHA MANTEVE distância do marido por dois dias inteiros. Evitou-o como
se ele estivesse com uma doença contagiosa. Foram dias tranquilos,
principalmente porque ela dormiu bem durante todas as noites. Teve sorte
também porque lorde Isaac não ficou muito tempo em casa e ela só precisou
confraternizar com pessoas no jantar. Apesar de estar em segurança, ela
estava solitária quando chegou a noite do jantar oferecido pelo Sr. Riderhood.
Estava segura porque não corria o risco de cair nos encantos de sedução
de Edward, e solitária porque ansiava por gente nova, por mulheres
interessantes que pudessem conversar assuntos diferentes com ela. Ela
ansiava pelo próprio marido, de quem estivera fugindo.
Moira ajudou-a com um vestido que trouxera das Américas. Os que
encomendara da modista ainda não estavam prontos e ela decidiu não a
apressar. Ninguém em Londres tinha visto aquele, então ela podia ir a um
evento que não estava sendo organizado pela alta sociedade. Olhou-se no
espelho e gostou do que viu. Os cabelos presos no alto da cabeça com uma
tiara de pérolas, brincos de pérolas, um pouco de pó no cabelo, uma
gargantilha de pérolas. Tudo combinava com o vestido amarelo e dourado
que tinha três camadas, bordado, seda, tule e renda.
Ela não parecia uma garota inocente e sentia-se bem assim.
Quando desceu as escadas, encontrou Edward esperando por ela. Ele
usava roupa de noite completa, mas não estava de fraque. Calça cinza, colete
preto com um bordado que parecia brilhar à luz, uma gravata branca
impecável e presa com um único alfinete perolado. Claro que ele sabia a
roupa que ela usaria, os criados devem ter contado para que ele se arrumasse
de forma a combinar com ela.
— Milady.
O conde segurou-a pela mão e beijou os nós dos dedos. Ele tinha a boca
quente e macia e ela quis sorrir para aqueles olhos azuis que pareciam ser
sempre verão.
— Seu irmão vai conosco? — ela perguntou, sendo conduzida para a
carruagem que os aguardava.
— Não, Isaac foi na frente. — Edward ajudou-a subir e sentou-se em
frente a ela. Bateu no teto para indicar que o cocheiro poderia seguir. — Você
está ciente de que esse evento não é como os que está acostumada? Que as
pessoas lá não são as damas da sociedade, e os cavalheiros não são tão
cavalheiros assim?
— Não estou — ela confessou, ajeitando as saias. O conde era muito
grande e as pernas dele encostavam nela. — Mas estou preparada para me
surpreender.
— Tente não sair de perto de mim.
O tom da voz dele era severo. Agatha quase podia acreditar que ele se
importava, que não agia daquela forma porque, entre os comuns, a
infidelidade era algo muito ruim. Eles estariam entre os plebeus e Edward
certamente preferia agir como eles.
Não havia ninguém para recebê-los na porta. O clube de Thomas
Riderhood era o mais exclusivo de Londres e contava com sócios muito ricos,
mas a maioria era da burguesia britânica. A nobreza já tinha perdido muita
riqueza e, como dizia Aiden, o mundo era dos investidores e negociantes.
Mesmo assim, a fama do clube garantia muito dinheiro para seu proprietário
e muita discrição para os sócios. A fachada de mármore, composta por
colunas imponentes, lembrava uma obra romana. Agatha se deslumbrou por
um momento, enquanto o marido a conduzia com relativa indiferença. Ele já
estivera ali tantas vezes que não se importava mais com a magnitude do
lugar.
— Bem-vindo, milorde.
Um empregado do clube os recebeu já dentro do hall de entrada. Edward
entregou a cartola a ele. Ajudou a esposa a tirar a capa e demorou dois
segundos olhando para ela, antes de suspirar.
— Obrigado, Anthony. Vá à minha carruagem depois, há algumas caixas
para você.
O homem, que tinha aparência de meia-idade, sorriu e agradeceu com um
gesto. O casal de nobres entrou no salão e Agatha se deslumbrou mais uma
vez com a beleza do lugar. Era mais amplo e decorado do que a maioria dos
salões das casas de Mayfair. Tinha candelabros pendurados e lustres que
ajudavam a manter o espaço muito bem iluminado, e estava repleto de
desconhecidos.
— Que caixas trouxe para o criado? — Ela demonstrou curiosidade.
— São doações. Algumas roupas que a esposa pode remendar para ele e
para os filhos mais velhos. Anthony é uma boa pessoa, mas os salários que
pagam aos criados são sempre muito baixos.
Agatha sorriu timidamente. A família McFadden era parecida com a dela.
Não era à toa que eram tão amigos.
— Vou apresentá-la a dois cavalheiros que estão com suas esposas —
Edward disse, chamando a atenção de Agatha. — Depois, elas se encarregam
de apresentá-la às outras damas. Nenhuma das duas é nobre, mas você pode
encontrar algum rosto conhecido por aqui.
— Acho que já encontrei. — Ela indicou um grupo de cavalheiros e uma
dama bastante eloquente entre eles. Edward riu. Era lady Caroline Eckley.
— Ela sempre está nesses eventos, adora a atenção masculina. Não mais
do que adora a si mesma. Desde que perdeu seu irmão, ela procura
incessantemente um protetor rico.
Agatha quis perguntar por que ela não se casava, mas já sabia a resposta.
Nem todas as mulheres foram feitas para o casamento, ela entendia. Lady
Eckley era uma mulher livre e não se importava com escândalos. Agatha a
admirava e a repudiava pelo mesmo motivo.
L ADY C AROLINE E CKLEY não era a companhia preferida de Agatha, mas foi
ela quem salvou a jovem da conversa tediosa da Sra. Fancy Thompson. A
mulher de meia-idade só sabia falar sobre as qualidades de seu marido e
sobre as riquezas que ele estava conquistando. Quando lady Eckley as
interceptou e arrastou Agatha para um canto, com uma desculpa qualquer, ela
suspirou de alívio por não precisar mais aguentar o discurso verborrágico da
esposa do Sr. Thompson, o relojoeiro.
— Com o tempo você se acostuma. — Lady Eckley ofereceu à Agatha
uma taça de champanhe. — Beba, fica mais fácil transitar entre os assuntos
menos divertidos.
A jovem bebericou um gole da bebida borbulhante e seus olhos
passearam pelo salão de baile. Oval, com piso quadriculado de preto e
branco, ornamentado com papel de parede em alto relevo e cheio de janelas,
o espaço era notável. Seu marido, no entanto, não estava à vista.
— Obrigada por me salvar — Agatha agradeceu. Ela detestava o
comportamento de lady Eckley, repudiando a forma libertina como ela se
portava, principalmente quando ela insistira em um relacionamento com
Aiden. Mas, depois de uma viagem para as Américas, havia muito do
comportamento de Caroline que Agatha passara a compreender. — A Sra.
Oglethorpe é divertida, mas…
— Ninguém aguenta ouvir Fancy Thompson por muito tempo. —
Caroline riu. — Então, Agatha… você voltou com tudo. Devo lhe dar os
parabéns pelo casamento.
— Obrigada, novamente.
As duas mulheres ficaram em silêncio por um minuto inteiro. Agatha
preferia não conversar, ela tinha muito a observar, mas não era possível
impedir Caroline de falar.
— Dentre todos os bons partidos de Londres, eu nunca imaginei que você
escolheria Edward McFadden. Ele é muito certinho para você. Mas, bem, já
deve ter descoberto que ele é um amante maravilhoso.
Agatha se engasgou com o champanhe e não deixou ninguém perceber.
As palavras de Caroline a atingiram no meio do peito como uma espada
afiada. Não, ela não descobrira que o marido era um “amante maravilhoso”
porque ela não se deixaria tocar por ele daquela forma. Também não fazia
questão de saber que Edward já estivera na cama com Caroline Eckley. A
sobrinha do marquês já deveria ter dormido com todos os homens de Londres
e Agatha preferia ignorância sobre a lista de seus amantes.
— Eu sou a filha de um duque, ele é um conde. Foi um bom negócio para
ambos. E eu não o escolhi, houve uma situação que nos conduziu ao
casamento.
Caroline riu. Ela devia saber que Edward não pretendia se casar com
Agatha antes do escândalo.
— Não quero ser sua inimiga, Agatha. Eu sou uma mulher de sangue azul
que despreza a aristocracia e faz tempo que percebo que você tem muito mais
afinidade com as pessoas comuns do que com a nobreza. Como eu. Sua
família é pouco tradicionalista, eu diria até progressista. Mulheres como nós
precisam se unir, temos que caminhar juntas para mudar algumas coisas.
— Mudar o quê?
Caroline quis prosseguir, mas fora interrompida pela chegada de dois
homens. Eles eram conhecidos dela e foram apresentados à Agatha como
Finley e Gregor. Daquela forma simplória, primeiros nomes, sem cerimônias.
Finley era loiro como palha de milho e Gregor tinha belos cabelos ruivos,
mas nenhum dos dois era bonito. Agatha era casada com o homem mais belo
daquele salão. Nenhum outro acabava lhe chamando a atenção.
Eles se aproximaram com clara intenção de cortejar as damas, já que
nenhum deles conhecia Agatha e não sabia que ela era comprometida. Ao
segurar a sua mão enluvada para beijar os dedos, Gregor notou o anel e deu
um sorriso torto. Mesmo assim, continuaram a conversar com animação,
principalmente com Caroline. O assunto dos homens era bem menos irritante
do que o de Fancy Thompson, e lady Eckley tinha fluência nos temas que
eles discutiam.
A conversa fora interrompida pela chegada do Conde de Cornwall. Com
uma presença masculina marcante e cheiro de tabaco, Edward colocou a mão
na cintura da esposa e sorriu. Sem dizer uma palavra, indicou que não
gostava daquela aproximação.
A MALDITA MULHER com quem ele tinha se casado o deixaria louco antes de
uma semana. Edward precisava seduzi-la e consumar o casamento. Precisava
prová-la para se livrar daquela tentação. Assim que ele dormisse com ela,
tinha certeza de que ficaria bem. Nunca precisou de uma mulher por mais do
que uma noite. Era o que lhe bastava.
O plano de viajar de carruagem transcorria bem, só que Edward suspeitou
que os ventos não estavam a seu favor. Ele queria puni-la e aproveitar o
momento para seduzi-la. Em uma viagem rápida, em um vagão cheio de
gente, não haveria oportunidade, mas Agatha fazia jogo duro. Mesmo que ela
já tivesse se rendido aos seus beijos, que ela quase o tivesse levado a um
orgasmo no meio da carruagem. Quando ele tentava ir adiante, ela se
esquivava, mas eles iriam passar aquela noite juntos. O conde já tinha
planejado ficar em uma boa estalagem, garantindo que o quarto deles tivesse
apenas uma cama de casal. Seria uma boa cama, ela não teria como escapar.
Durante o restante da viagem ela não falou mais nada. Depois de comer
os sanduíches que Edward levou para servir de almoço, Agatha cochilou por
quase uma hora. O conde ficou em silêncio vendo o céu escurecer e a noite
chegar. Ele a observava. Uma vez, dobrou o corpo sobre ela e ajeitou uma
almofada sob sua cabeça. Ela sorriu. Outra vez, retirou uma mecha de cabelo
de sua face. Voltou a lhe massagear os pés, garantindo que ela não o tocasse
em locais inapropriados. Quando a carruagem parou pela última vez, na
estalagem do Sr. Wakefield, ele estava exausto de resistir para não a
devassar.
— Venha, querida — sussurrou no ouvido de Agatha, provocando-a a
acordar. Ela estava sonolenta. — Chegamos.
— Chegamos aonde?
— Em qualquer lugar que tenha uma cama macia e uma comida quente.
Venha, deixe-me ajudá-la.
Edward passou o braço pelas costas da esposa e levantou-a. Depois, fez
com que ela esperasse sentada em um sofá enquanto negociava o quarto com
o estalajadeiro. O Sr. Wakefield era um velho conhecido do conde, que
sempre se hospedava ali quando precisava ir a Hampshire. O quarto que ele
escolheu, daquela vez, era mais elegante e bem aparelhado do que os que
geralmente ficava. Ele tinha uma esposa para acomodar.
— Eu preciso me lavar — ela disse, ainda zonza de ter sido despertada
subitamente.
— Vou pedir que mandem água quente e que tragam a banheira portátil.
Verei também o que tem para comer.
O conde deixou a esposa no quarto e desceu. Ele também estava exausto
e adoraria uma refeição quente, mas tinha que cuidar dela primeiro. Solicitou,
na recepção, que preparassem um banho para Agatha e reservou a sala
privativa para que pudessem jantar. Escolheu algumas opções de pratos e
voltou para o quarto.
As criadas estavam saindo com baldes vazios. Deram alguns risinhos
quando passaram por Edward, um comportamento ao qual ele já estava
acostumado. Entrou no quarto e Agatha deu um salto, quase virando a
banheira e derramando toda a água pelo quarto.
— Edward, saia já deste quarto — ela esbravejou, tentando se cobrir com
os braços. A banheira era pequena, mas a acomodava quase que por inteira.
Mesmo assim, ela estava com os ombros de fora e os seios expostos.
— Não seja tola, eu nem estou prestando atenção em você. Quero
descansar, me lavar e comer.
Arrancando as botas e jogando-as de lado, Edward fingiu que não olhava
para a esposa e deitou-se na cama. Ela continuou parada por um minuto
inteiro, emitindo alguns sons que pareciam rosnados de fúria, até decidir
continuar seu banho. Enquanto esperava, o conde acabou pegando no sono.
Acordou com um toque macio e úmido em sua face. Piscou algumas
vezes e rosto apreensivo de Agatha apareceu em seu campo de visão. Edward
se sentou e viu que ela estava usando uma combinação de seda e uma camisa
por cima. Branco, rosa e lilás se misturavam naquela pele clara como marfim
e os olhos cintilavam sobre ele.
— Preciso de ajuda para me vestir — ela disse. — Não consigo ajustar o
espartilho e…
Edward piscou algumas vezes e se ajeitou na cama.
— Você não precisa de espartilho. Vou pedir que sirvam o jantar aqui em
cima.
Aquela era a melhor decisão. Depois de vê-la com as roupas de baixo,
pedir que ela se vestisse era um absurdo. Agatha cruzou os braços e fez uma
careta.
— Certo. Acho que está na hora de ir para seu quarto, milorde.
Edward deu uma risada. Ele ainda estava sonolento e morrendo de fome,
mas a ingenuidade de Agatha sempre o alegrava.
— Este é meu quarto, milady. Somos casados, acha que vou dormir em
outra cama, em uma estalagem qualquer?
Ela achava, claro. Agatha não queria nem mesmo imaginar que o marido
dormiria na mesma cama que ela por uma noite inteira. A expressão de
Edward indicava que ela não tinha escolha, a não ser que decidisse dormir na
recepção.
— Vou pedir que sirvam o jantar aqui e me lavar.
O conde saiu do quarto e voltou minutos depois, seguido de algumas
criadas com baldes de água quente. A banheira foi esvaziada e enchida
novamente e, depois que as mulheres saíram, ele começou a se despir.
Agatha se encolheu na cama. Ela nem mesmo tinha trazido um livro para
fingir que lia. Edward tirou a blusa, exibindo suas costas musculosas, e
deixou a calça cair ao chão logo em seguida. Ela sentiu a boca seca e seu
coração disparou. Aquela era a primeira vez que via um homem nu. Mesmo
com sua experiência horrível em Nova Iorque, quando foi deflorada por um
aproveitador que a enganou e se aproveitou de sua ingenuidade, tudo
acontecera no escuro. Ela não o vira e estava afetada pelo álcool.
Naquele momento, Agatha estava muito consciente da nudez do marido.
Edward tinha pernas bem torneadas, cobertas por pelos, assim como seus
braços eram. Ele tinha pelos por todo o corpo, bem diferente dela. Sua bunda
era perfeita. Por sorte, ele estava de costas e não a percebeu admirando-o.
Quando ele entrou na banheira e se cobriu, ela foi preenchida por frustração.
Agatha precisava se lembrar de que ela não podia ter Edward.
— O que faremos em Hampshire? Você disse que precisa inspecionar
uma propriedade — ela disse qualquer coisa, querendo distrair-se.
— Fica ao lado de Crystal Place. Preciso confirmar se a floresta pode ser
utilizada para extrair madeira, se o corte das árvores pode ser feito de forma a
atender nossa demanda. Há um especialista lá, esperando por mim. Enquanto
isso, você pode passear pela vila.
— Ah, claro que não. — Ela se encolheu na cama, olhando fixamente
enquanto Edward se lavava. A forma como ele passava as mãos ensaboadas
pelo corpo. Os dedos entre os cabelos loiros, a espuma escorrendo para fora
da banheira. — Eu vou com você, eu quero participar de tudo.
O conde abriu a boca para protestar no instante em que bateram à porta.
Agatha pulou para atender as criadas que traziam o jantar. Olhando para o
marido nu na banheira, ela mandou que deixassem as bandejas no corredor,
sobre o carrinho do serviço. Ela mesma se encarregou que colocar a comida
para dentro e dispor tudo em uma mesa redonda, coberta por uma toalha
ensebada.
A toalha não era tão ruim assim. O lugar era simples, mas adequado. Ela
estava apenas nervosa pelo que estava por vir. Se ao menos pudesse
conversar com Elizabeth. Se pudesse obter alguma orientação. Ela tinha
certeza de que, se passasse a noite ao lado do marido, ela não resistiria às
investidas de Edward.
Quando decidiu virar para o lado dele, o conde já tinha saído da banheira
e enrolado uma toalha de banho ao redor da cintura. Ela estava com a boca
seca e acabou bebendo um gole longo demais do vinho branco que tinha
acabado de servir. Percebendo que ele a incomodava, Edward virou de costas
e vestiu sua calça. Agatha foi preenchida com alívio, mesmo que a figura dele
úmido, despenteado e sem camisa não fosse muito alentadora.
O jantar seguiu em silêncio. Ela não quis insistir sobre ir com ele
inspecionar a propriedade. Ele não discutiu reafirmando que ela não ia. A
comida era simples, composta por uma sopa consistente e pão, uma carne e
batatas. Agatha brincou com a comida por mais tempo do que deveria. Ela
tinha fome, mas também tinha angústia. Parte porque ela desejava Edward.
Parte porque ela não entendia desse desejo. Parte porque ela tinha medo dele.
Ela podia até lutar com o que sentia, mas tinha carinho demais pelo
insuportável e arrogante conde que a impedia de jogar tudo para o alto.
A GATHA DORMIU uma noite inteira sem pesadelos. O conde não a deixou por
nem um minuto durante a noite. Ele a embrulhou no lençol, como se ela fosse
um bem precioso, e a manteve em seus braços durante toda a madrugada.
Quando a manhã chegou, ele pouco tinha dormido e estava exausto de lutar
contra o desejo de possuí-la.
Claro que ele se importava com virgindade, mas não o suficiente para que
ele deixasse de querer a sua esposa. Edward não entendia quando aquele
sentimento aflorou. A desilusão com o abandono de Bridget não o deixou
vulnerável. Edward não era vulnerável. O que ele sentia por Agatha não
podia ter surgido em uma semana.
Quando Isaac sugerira que ele nutria sentimentos pretéritos pela irmã do
melhor amigo, Edward riu da cara dele. Ele estava errado, completamente
equivocado. No entanto, ele ainda não entendia o que havia ali. Naquela
cama. Naqueles dois corpos que estavam próximos e, ao mesmo tempo, tão
distantes.
Vestiu-se com roupas de cavalgada e desceu para conferir os cavalos.
Usava calça de camurça bege e botas, camisa branca e colete. No restaurante,
encontrou seu contato em Hampshire esperando por ele. Chal Wareham,
como preferia ser chamado, era filho de pai cigano e mãe nobre. Uma jovem
lady que se encantara pelo homem moreno e sedutor que cruzou seu caminho.
Ela fugiu para se casar com o rom, mas morreu no parto do segundo filho.
Chal, cujo nome gadjo era Gerard, viveu entre dois mundos distintos por
muito tempo.
Mesmo que a família da mãe a tivesse deserdado, um tio quis conhecer a
ele e ao irmão. Os dois foram acolhidos pelo Visconde de Lockley e
frequentavam alguns eventos sociais. Chal era muito bom com negócios e
administrava de forma exemplar as propriedades que herdara do tio, por
testamento. Ele tinha sido o indicado para auxiliar o Conde de Cornwall com
a aquisição da propriedade em Hampshire e com o corte e plantio de árvores.
— Bom dia, milorde. — O cigano fez uma reverência forçada ao ver
Edward chegar.
— Bom dia, Sr. Wareham. O senhor pode me acompanhar hoje até o
terreno? Preciso verificar a viabilidade de meu empreendimento com alguma
pressa. Meus fornecedores estão sendo especialmente difíceis.
— Eles sempre são, milorde. Pretende ir a cavalo? A distância é
desafiadora, mas o acesso de carruagem é prejudicado. Como o senhor está
adquirindo a propriedade, creio que deverá providenciar muitas reformas no
casario principal, nas estradas e reconsiderar a permanência dos
arrendatários.
Edward sabia que o proprietário anterior detestava arrendatários. O
homem morreu desprezando as pessoas que julgava inferiores a ele e acabou
que suas terras não afetadas ao título foram todas leiloadas por causa das
dívidas deixadas. Ele pretendia mudar aquilo.
Um criado trouxe chá e bandejas com um desjejum para duas pessoas. O
estalajadeiro já sabia como Edward gostava de seu desjejum e era por aquele
motivo que o conde sempre se hospedava no mesmo lugar. Ele apreciava
rotina e estrutura.
— Vamos comer — Edward decidiu. — Depois, encaramos o trajeto a
cavalo. Aproveite e me mostre os arredores. Eu não conheço todos os
caminhos para a propriedade.
Chal concordou e os homens comeram a refeição sem conversar muito.
Edward não era falante, o cigano parecia desconfiado. Depois de dois pratos
de ovos, presunto e carnes, e três pães, o conde estava alimentado o suficiente
para a tarefa que o aguardava.
— Sr. Wareham, peço que me aguarde no pátio. Preciso falar com minha
esposa, antes.
— Fiquei sabendo que se casou recentemente. Minhas felicitações.
O conde agradeceu e voltou para o quarto. Ele pretendia sair sem falar
com Agatha e evitar um confronto, mas não conseguiu. O bem-estar dela o
preocupava. Ele tinha que saber se ela já estava acordada e se estava bem.
O RUÍDO da porta fez com que Agatha se sobressaltasse. Ela esperava vestir-
se e encontrar o marido no andar de baixo, mas ele apareceu no quarto antes
que ela pudesse terminar de se lavar e arrumar o vestido.
Estava envergonhada pela noite. Sua vulnerabilidade fez com que ela
agisse de forma impulsiva com o marido. Ficara sensível demais depois de
revelar a verdade sobre seu infortúnio nas Américas, mesmo que não tenha
sido toda a verdade. Achou desnecessário falar sobre o bebê. Edward nunca
descobriria que ela já tivera uma criança, um natimorto. Ela não precisava
revelar aquela dor. Agatha sabia que era como a mãe. Ter filhos não seria
uma tarefa fácil para ela.
Quando ele entrou no quarto, com os cabelos impecavelmente penteados
e o colarinho com dois botões abertos, ela sentiu calor. Suas bochechas
ficaram rosadas pelo fluxo excessivo de sangue naquele local.
— Bom dia. — Edward lhe sorriu. Ele carregava uma bandeja, que
apoiou sobre a mesa. — Trouxe seu desjejum.
— Não precisava fazer isso, eu pediria a uma criada.
— Sei que não precisava. — O conde andou até ela e assumiu a função de
ajustar o espartilho. A ideia de estar quase nua na frente dele à luz do dia a
constrangeu. — Mas eu quis saber como estava antes de sair.
Edward terminou de ajustar as faixas do espartilho e afastou-se, fazendo
com que ela sentisse sua ausência. Não era digno sentir desejo por ser tocada,
mesmo que aquele homem fosse seu marido. Havia ainda segredos entre eles
que não podiam ser revelados e que os manteriam afastados, no final de tudo.
— Você não vai mesmo me levar, Edward? Eu não quero ficar aqui
sozinha. Quis vir para Hampshire para participar dos eventos.
— Minha querida, o que vou fazer agora não é uma atividade para uma
dama. Vamos de cavalo até a propriedade, é um trajeto longo e difícil.
— Quero ir mesmo assim. Eu tenho calças, Edward. Comprei nas
Américas. Eu posso cavalgar muito bem.
A expressão do conde era indissolúvel. Ao mesmo tempo que ele não
pretendia deixá-la ir, ele parecia não saber como impedi-la. Agatha não era
uma mulher fácil de dissuadir.
— Minha mulher não vai sair por aí usando calças — ele rosnou. — Eu
sou um conde, um nobre que já não tem muito respeito da sociedade por
causa das minhas amizades. Se não consigo controlar nem a minha esposa…
— Você não consegue me controlar. — Ela cruzou os braços, entrando na
frente dele. — Por favor, leve-me com você. Deixe-me ao menos me vestir
para que possa ver como fica.
Agatha não esperou que ele concordasse. Abriu a mala e pegou as roupas
de cavalgada que trouxe das Américas, vestindo-as com alguma velocidade.
A vantagem daquele tipo de vestimenta era a praticidade. Sem as saias que
prejudicavam o equilíbrio e sem o excesso de laços e enfeites. Quando o
marido olhou para ela, abriu a boca em estupefação.
— Céus. — Edward se engasgou duas vezes antes de conseguir falar. —
Você definitivamente não irá conosco nesses trajes.
O conde passou as mãos pelas bochechas dela. Agatha estava irritada,
mas o toque a fez sentir a eletricidade percorrendo suas veias. Com um
sorriso, ele depositou um beijo breve em seus lábios.
— Estarei de volta assim que puder. Vá visitar a vila. Temos coisas a
conversar, minha querida, mas eu preciso resolver essas questões, primeiro.
Ele saiu do quarto, deixando-a indignada pelo desdém com suas boas
intenções. Agatha nunca entenderia Edward e seu comportamento ambíguo.
Um homem ora gentil e sedutor, ora insuportavelmente arrogante. Mas ela
iria atrás dele. Primeiro comeria o desjejum, depois conseguiria um cavalo e
um guia.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO
D OR FEZ com que Edward mantivesse os olhos fechados, mas ele estava
desperto há minutos sem saber onde estava ou o que tinha acontecido. Um
pouco desorientado, piscou algumas vezes e quis levantar o corpo, mas foi
impedido por mãos suaves. Ele tinha certeza de que era Agatha quem o
amparava, até porque a voz lírica dela brincava em seus ouvidos.
— Calma — o sussurro fez com que os pelos de sua nuca se arrepiassem.
— Não se agite.
Agatha falava com suavidade. Não parecia a jovem irritante que
cavalgara até a floresta, acompanhada de um criado qualquer, apenas para
desafiá-lo. A delicadeza do seu toque o fez voltar a fechar os olhos. Ela
passava o pano úmido pelo peito dele, pela barriga, limpando-o e
refrescando-o. Edward se sentia quente.
— Onde estamos? Na estalagem?
A voz dele saiu baixa, grave demais.
— Não. Quando te vi desacordado, trouxe você para Crystal Place. Este é
meu quarto, você está na minha cama. Não é um problema, afinal, somos
casados.
— Você me trouxe?
— Claro. Quem mais se importaria com sua saúde a ponto de cavalgar
com um homem desacordado?
Ela sorriu e ele virou o pescoço para vê-la. Havia uma mancha roxa na
testa de Agatha. Estava inchada e marcada com uma linha avermelhada que
parecia ser sangue. Edward quis erguer o braço para tocá-la, mas ela o
segurou.
— Também fui atingida. Isso não é nada, nem está doendo.
— Você podia ter morrido, Agatha! — Edward rosnou, a dor de cabeça se
mostrando insuportável ante o ato. — Por isso eu a queria segura na
estalagem. Ai.
A esposa estava limpando muito perto do ferimento que ele tinha na
cabeça. A boca dela estava fechada em uma linha fina, enquanto se
concentrava no que fazia.
— Vou pegar láudano para você. O médico deve chegar daqui a pouco.
— Não quero me dopar. Quem vai cuidar de você? E não preciso de
médico.
Agatha não ouviu, ou fingiu não o ouvir. Ela se levantou e voltou com
uma garrafinha de vidro cheia de líquido marrom com cheiro alcoólico. A
mão nos quadris indicava que ela não tinha a menor intenção de se importar
com a vontade dele. Sua expressão dizia “beba”.
Com cuidado, a esposa ajeitou alguns travesseiros nas costas dele.
Edward foi erguido e acomodado por uma mulher que era a metade do seu
tamanho, mas que demonstrava serenidade e força. Ela entregou a garrafinha
de láudano e o fez beber todo o conteúdo. Aos poucos seus músculos
relaxaram e a dor ficou mais tolerável. Ele então ergueu a mão direita e
tocou-a no ferimento da cabeça.
— Ai — Agatha reclamou e segurou-o pelos dedos.
— Dói. Você mentiu, disse que não doía.
— É porque você tem a mão pesada. Parece um bruto. Vou pegar algo
para você comer.
Ela saiu de perto dele, deixando-o confuso pelo ópio e solitário. Edward
fechou os olhos e esperou até que ela retornasse, despertando quando o ruído
de metal em louça precedeu ao cheiro delicioso de uma sopa.
Ele quis olhar para Agatha e confirmar que a única mácula nela era
aquela ferida na testa. Sua esposa usava um vestido simples de seda verde-
esmeralda com renda, sem espartilho. Ela tinha o cabelo castanho preso em
um coque alto e alguns fios escapavam pelas laterais. Sua expressão era de
exaustão.
— Você vai comer e descansar. Fui informada pelo criado que o médico
não poderá vir hoje. Ele chegará amanhã, então precisa recuperar suas forças.
Dando ordens como um general, ela se sentou quase no colo de Edward e
passou a alimentá-lo. Ele não tinha opinião ou escolha, apenas obedecia.
Abria a boca, aceitava o que ela oferecia, se encantava com a doçura e a
firmeza que ela conseguia fazer naturais quando juntas. Talvez Edward
estivesse fascinado, naquele momento. O vinco no meio dos olhos dava a ela
uma expressão séria. Os cabelos caindo pelos ombros era uma visão sensual.
Enquanto ela limpava a boca dele ao final da refeição, Edward quis jogá-la na
cama e beijá-la. Ele nunca quis tanto beijar alguém quanto ele queria beijar a
sua esposa naquele momento.
Só que não podia. O láudano o derrubou depois de meia hora. A última
coisa que Edward viu foi Agatha puxando as cobertas sobre ele.
A MANHÃ CLAREOU o quarto e Agatha despertou cedo demais. Era noite ainda
quando os pesadelos a acordaram. Edward dormia profundamente, arrebatado
pelo láudano, e ela se sentiu solitária. Vê-lo não a acalmava. A escuridão
fazia com que ela respirasse com dificuldade e seu coração disparasse.
Sentou-se à janela e ficou observando o céu se tingir de rosado até o sol
nascer.
Desistindo de não fazer nada, ela se levantou e se lavou. Rosto, pescoço,
examinou o ferimento na testa. Parecia mais feio do que era. Não doía muito,
ela não sentira nada demais. A lesão de Edward era mais grave, a marca roxa
na cabeça dele estava muito intensa. Agatha se aproximou dele na cama e
tocou os cabelos dourados como os raios de sol. A infinidade de matizes
naquelas mechas fazia com que fossem ainda mais belas. Então ele acordou.
— Ainda aqui — Edward provocou, ao vê-la sentada sobre os joelhos,
olhando para ele.
— Parece que não tenho muita coisa para fazer. Como se sente? Muita
dor?
— Estou bem. — Ele se ajeitou na cama e apalpou a cabeça. — Você
dormiu, Agatha?
Seus olhos deviam estar rodeados por marcas escuras que denotavam a
privação de sono adequado. Ele perceberia por ser muito perspicaz. Edward
sempre prestou muita atenção em tudo ao seu redor.
— O suficiente.
— Pesadelos? — ele perguntou, ela respondeu com um gesto de cabeça.
— Podemos aproveitar que estamos os dois sem nada para fazer no momento
e conversar sobre o que você me contou.
Os olhos azuis eram dois globos que continham o verão inteiro dentro
deles. Eles a encaravam querendo respostas. Ele tinha o direito de saber.
Mais, tudo, a história toda. Talvez ela nunca contasse, mas ele insistiria em
chafurdar até descobrir o máximo de informação. Ela precisava tentar
satisfazê-lo com respostas ou convencê-lo a devolvê-la ao irmão. Como
Edward era um cavalheiro e melhor amigo de Aiden, ele não faria escândalo.
O casamento acabaria por motivos que ele jamais esclareceria.
Agatha o via ali, na cama, pouco vestido, ferido e vulnerável. Tão lindo
como um anjo caído. Era quase possível ver as labaredas que o
acompanhavam. Ela estava no inferno com ele e não queria sair dali.
— Não é um assunto que me agrade, Edward. — Agatha tentou desviar o
foco. — E eu já te contei as partes importantes. O que mais quer saber?
O marido levou a mão até o rosto dela. Afastou algumas mechas de
cabelo e acariciou sua bochecha.
— Eu quero tanto matar o maldito que fez isso com você, que sou capaz
de pegar um navio para as Américas só para poder arrancar a cabeça dele
fora. Depois, eu penduraria as partes dele pela cidade para que todo mundo
soubesse que ninguém deverá nunca mais chegar perto de você — Edward
disse, sério. — Mas não farei isso. Eu só preciso… entender.
— Não há muito o que entender. Eu estava alcoolizada. Ele me desonrou,
depois me deixou lá, como se eu fosse uma das prostitutas que eles estavam
acostumados a ter.
Edward puxou-a para mais perto e Agatha recostou em seu peito nu.
Deitou a cabeça nos músculos firmes e fechou os olhos, ouvindo o coração
dele bater. O conde acariciou seus cabelos por alguns minutos, em total
silêncio.
— Isso nunca deveria ter acontecido, Agatha. — Ele levou a boca até o
topo da cabeça dela e beijou. — Eu não vou deixar que nenhum outro mal te
aflija. Vou protegê-la de agora em diante.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
F AZIA tempo que Agatha não se divertia tanto. Era bobagem, mas rir de
coisas não importantes era algo que ela sempre fizera e que o sofrimento lhe
havia roubado. A vontade de rir cessou no instante em que ela foi aprisionada
pelo olhar ferino de Edward. Ele estava com a camisa desgrenhada e úmida,
os cabelos despenteados, a calça encharcada, sem sapatos e a encarava como
se estivesse faminto. Como se ela fosse o jantar.
Talvez Agatha devesse sair correndo de novo, fugir dele enquanto
pudesse, mas o que ela fez foi gravitar na direção dos braços que a
capturavam e se render quando ele a pressionou contra a dura superfície de
pedra no exterior da torre. A chuva caía sem piedade e a boca de Edward a
devorava com desejo.
O toque de seda da língua do marido fez com que ela abrisse os lábios
para recebê-lo. Agatha poderia facilmente se acostumar a ser beijada por
Edward. Ele fazia aquilo muito bem, mesmo que ela não tivesse muitos
exemplos de comparação. Não era preciso comparar porque era impossível
que pudesse ser melhor do que aquilo. Como se ele tivesse muitas mãos, a
segurava pelos quadris, firmava sua nuca e acariciava seus cabelos. Agatha
estava sustentada pelo corpo masculino, que a incendiava com a mera
proximidade. O beijo era intenso e quase violento. Ela passou os braços pelo
pescoço do marido e o manteve o mais perto possível. Não havia espaço entre
eles.
Edward desceu a boca para o pescoço dela, traçando a linha da
mandíbula. Agatha tombou a cabeça para oferecer a ele mais espaço, mas o
conde parecia insaciável. A boca dele deixava traços de fogo onde a água
esfriava. Ele levou as mãos até as costas dela, puxou-a contra si, desfez os
laços que seguravam o espartilho no lugar e abriu alguns botões do vestido
que ela usava. Os seios dela se libertaram e foi fácil para que ele os
alcançasse pelo decote.
Para um homem experiente como Edward, aquela tarefa era simplória.
Desenhando o contorno da renda no colo de Agatha, ele acariciou a pele
exposta com cuidado. O conde rosnou contra a boca dela e puxou o vestido
para baixo. Ela gemeu quando ele segurou um seio na mão e o acariciou.
— Céus. — A voz dele saiu esganiçada. — Eu quero você. Eu quero
muito você. — A boca desceu, lambeu a água que escorria pelo colo até a
ponta de um mamilo e o sugou. Ela arqueou as costas e não quis fugir
daquela vez. Seus dedos cravaram nos ombros do marido, que não se
demorou nas carícias. Ela tinha os joelhos bambos e não sabia dizer como
estava de pé. — Me aceite, Agatha.
Ela não sabia como respondê-lo. Cada centímetro de sua pele, cada nervo
em seu corpo queria Edward — pedia por Edward —, mas, assim que ela
fechava os olhos, a escuridão a engolia. Ela se perdia em memórias
desagradáveis que obnubilavam o momento.
— A-agora? — A voz saiu trêmula.
— Não, por Deus, claro que não. — O conde colocou as mãos por dentro
das saias que ela vestia. Agatha sentiu o toque quente dos dedos dele em suas
coxas e nádegas. — Nem agora, nem aqui. — Ele a beijou novamente e a
puxou contra sua ereção. Seu corpo arremetia contra o dela mesmo que não
fosse intencional. — Mas eu não vou parar de te querer hoje. Eu te quero
amanhã, daqui a uma semana, quanto tempo precisar. Só preciso saber que
você me aceitará. Eu te desejo tanto que chega a doer.
— Dói? — Ela se distraiu enquanto a língua dele brincava com o lóbulo
de sua orelha. Edward pegou a mão de Agatha e levou à sua virilha. Ela se
assustou, mas deixou que seus dedos se amoldassem à forma rígida que
desafiava o espaço dentro da calça.
— Aqui. — Ele riu com a estupefação dela.
— Não sabia que causava dor para vocês, homens, também.
Edward soltou-a e passou as mãos pelos cabelos de Agatha. Salpicou
beijos breves em sua boca e bochechas.
— É uma dor simbólica. — A língua dele procurou espaço e os beijos se
aprofundaram. Ela não entendia como ele podia falar enquanto fazia aquilo.
— Eu garanto que, quando acontecer, você só terá boas sensações.
Agatha queria muito experimentar aquelas sensações. Ela cresceu
aprendendo que mulheres não sentiam prazer, que era pecaminoso. Que
deveria apenas abrir as pernas e deixar seu marido fazer o que queria. Sabia
que com Elizabeth e Aiden era diferente, e Edward lhe fazia promessas que a
tentavam. Era bem provável que ele estivesse falando a verdade. Ali, debaixo
da chuva, enquanto eles se beijavam, ela estava incapacitada pelo desejo.
Ainda assim, tinha medo. Não o medo racional da descoberta da perda da
virgindade, mas um medo visceral que a impedia de se entregar por
completo. Ela precisava aceitar a consumação do casamento. Se havia uma
certeza que Agatha tinha naquele instante, era de que não desejava mais ficar
afastada do seu marido.
F AZIA ALGUM TEMPO QUE E DWARD NÃO PASSAVA O DIA COM OS IRMÃOS .
Isaac estava trabalhando com ele na fábrica, mas Nathaniel estivera viajando
pelo continente para se especializar. Eles se espalhavam por Londres e Kent e
o conde era um nobre com muitos afazeres. Por sorte, os irmãos ajudavam na
administração das propriedades. Naquele dia, forçado a ficar em casa por
causa do ferimento na cabeça e da chuva, acabou tendo a oportunidade de
fumar e beber com eles.
Depois do almoço, que foi um momento agradável com convidados
inusitados, os homens se reuniram na sala privativa do Duque de Shaftesbury,
sem o próprio duque em si, para conversar. Deixaram as mulheres e a criança
cuidando de outros assuntos e se refugiaram em um espaço masculino.
— Como estão as coisas em Greenwood Park? — Edward perguntou,
acendendo um charuto. Ele estava se aproveitando em excesso da
hospitalidade de Aiden e nem se importava com isso.
— Tivemos algumas dificuldades com dois arrendatários — Nathaniel
explicou. — Mas acredito que o problema tenha sido resolvido. Eles queriam
compensação pela perda de uma colheita.
— Nate é bom negociador. — Isaac serviu uísque para os três. — Ele
deveria ser considerado na fábrica.
— Deus me livre de empregar toda a minha família na fábrica. Preciso de
alguém nas propriedades, não consigo me dividir em dois.
— Ainda mais agora, recém-casado — Isaac provocou. — Como anda a
lua de mel?
— Não seja indiscreto — Nathaniel repreendeu o irmão. — Mesmo que
esteja na cara que nosso irmão está ridiculamente apaixonado por sua esposa,
não devemos perguntar sobre sua intimidade.
— Eu e Agatha temos um casamento contratual, como deve ser —
Edward se defendeu. A sugestão do irmão de que ele estaria apaixonado pela
esposa era tão absurda quanto impossível. — Agora parem de falar bobagens
e vamos discutir sobre os arrendatários que estão dando problemas.
— Ele finge bem, mas nós sabemos exatamente a natureza desse
casamento — Isaac falou com Nathaniel, como se o irmão conde nem
estivesse ali.
— Não vejo os motivos pelos quais fingir. — Nathaniel finalizou seu
conhaque. — Edward sempre teve esse lado romântico, por que não dar
vazão a ele com a própria esposa?
— Vocês dois — o conde rosnou —, parem de falar do que não
entendem. Não há romance nem paixão. Agatha e eu somos um casal nobre
comum. Temos poucas afinidades e não estamos apaixonados. Encerrem esse
assunto.
Isaac e Nathaniel se entreolharam. Nenhum dos dois acreditou no que
disse o irmão. Isaac tinha restrições quanto ao casamento de Edward porque
sabia, sempre teve certeza, de que ele tinha sentimentos confusos para com
Agatha. Mesmo que o irmão insistisse que o beijo nos jardins fora um acaso,
Isaac não acreditava. Fora um acaso conveniente. Agatha, por sua vez, era
livre, determinada e insubordinada demais. Ela podia despedaçar o coração já
muito machucado do irmão. Só não adiantava pressionar Edward. O conde
era tão teimoso quanto sua esposa. Eles eram parecidos o suficiente para
darem conta um do outro.
Continuaram a conversa sobre os negócios em Greenwood Park até serem
chamados para o jantar. O mordomo os acompanhou até o salão. A mesa
menor tinha sido posta, como no almoço.
As mulheres chegaram em seguida. Caroline continuava de vermelho, sua
cor preferida. Ela provavelmente só usava tons de vermelho, Edward não se
recordava de tê-la visto usando outras cores. Quanto a Agatha, o conde não
estava preparado para vê-la tão linda. Sua esposa vestia azul real e renda
branca, com tule e babados. Era um vestido simples, ela não costumava usar
roupas exageradas, mas a cor e o modelo destacavam suas formas físicas. O
decote era quase indecente. Edward olhou para os irmãos, querendo garantir
que eles não estivessem olhando para a pele exposta de Agatha. Eles eram
seus irmãos, mas a possessividade do conde, naquele momento, não poupava
ninguém. Os cabelos dela estavam presos e decorados com flores.
Ela o olhava com a intensidade de um raio e a inocência de um filhotinho.
Sentou-se ao lado dele na mesa, mas não trocaram uma palavra. Edward e
Agatha sempre conversavam, e muito. Sobre tudo e todas as coisas. Aquele
silêncio significava alguma coisa que ele ainda não sabia.
— Ed, o filho de Aiden já nasceu? — Nathaniel perguntou, já pelo
terceiro prato.
— Ainda não. Há um banco de apostas sobre o sexo da criança.
— Há apostas? — Agatha se surpreendeu.
— Sim, e só Aiden aposta em um menino — Isaac respondeu. A troca de
olhares entre ele e Agatha fez com que Edward sentisse ciúme outra vez.
Aquilo era demais. Ele precisava reivindicar aquela mulher, porque ele nunca
sentira ciúme de ninguém. Estava claro que se tratava de um caso de desejo
não satisfeito. — Eu apostei duas libras.
— Eu apostei três. — Caroline deu uma garfada no faisão. — Mas acho
que vamos perder, aquele duque é muito sortudo.
— Só espero estar em Londres quando a criança nascer. — Agatha
suspirou. — Não esperava esse contratempo.
— Amanhã retornaremos — Edward determinou.
— O médico disse…
— Minha querida, eu pulei em um riacho, salvei um cão e tomei chuva.
Uma viagem em um trem confortável não me fará mais mal do que nada
disso.
Os convidados riram. Agatha quis protestar, mas ela sabia que o marido
tinha razão. Não havia motivo para que continuassem em Hampshire,
principalmente se ele estava disposto a renunciar à longa viagem de
carruagem para se render à modernidade irresistível das locomotivas.
— Vamos nos encontrar com o Sr. Wareham amanhã — Edward disse
aos irmãos. — Depois, partimos de volta.
N AQUELA NOITE , Agatha descobriu que o conde cumpria suas promessas. Ele
havia prometido que faria com que ela se sentisse como na primeira vez. Não
mentiu, não exagerou. Aquilo que ela experimentou não era como nada que
tivesse vivenciado antes. No momento em ele estava dentro dela e perguntou
se ela confiava nele, Agatha entendeu que ela sempre confiou. Que ela
colocaria a vida nas mãos de Edward, até mesmo antes de se casarem.
A união dos corpos foi transcendental. Ela não quis se afastar dele.
Passou as pernas pelos quadris, prendeu-o na posição em que estavam para
que pudessem permanecer ali. Edward a beijou como se saboreasse o fruto
proibido, até que ela se sentisse satisfeita.
Ao acordar de manhã, Agatha se frustrou porque o marido não estava ao
seu lado na cama. Ela percebeu que não estava satisfeita. O cheiro dele
continuava nos lençóis e o calor do corpo de Edward ainda não tinha se
dissipado. Havia ruído de conversa do lado de fora, pessoas e crianças
falando. E risadas.
Agatha se levantou, enrolou-se em um roupão e foi até a janela. Edward,
Isaac e Nathaniel jogavam rounders com Patrick e outras crianças. Ela
reconheceu o menino que estava no riacho no dia anterior. Os homens
estavam com as camisas largas, colarinhos abertos e mangas dobradas. Ela
prendeu a respiração por um minuto quando Edward se aproximou de Patrick
para ajudá-lo com a pegada no taco.
Batidas à porta chamaram a atenção dela. Era Caroline Eckley com a
criada.
— Bom dia, milady. Viemos ajudá-la a se arrumar.
— Você, inclusive? — Ela estranhou a presença de Caroline.
— Sem minha ajuda e minhas dicas, querida Agatha, você é uma mulher
comum. Eu posso transformá-la em uma sedutora que arrasa os corações
masculinos.
A expressão sincera de Caroline indicava que ela acreditava realmente no
que dizia. Em si, no seu potencial, e no que era melhor para Agatha.
Curiosamente, ela não queria seduzir. Nem arrasar. Ela estava confusa com a
noite e com tudo que ela representou. O casamento fora consumado, parte
dos traumas que trouxera das Américas fora superado. As marcas foram
substituídas por outras. Poderosas. Indeléveis. Edward estava nela, por todos
os lugares.
A criada foi preparar o banho enquanto Caroline revirava os vestidos que
estavam na mala. Não tinha nada especial ali, mas aquele era o quarto de
Agatha. Um enorme guarda-roupa continha vestidos mais antigos, alguns que
ela nunca sequer usara, e outros acessórios. Enquanto decidiam cores e
tecidos, ela esfregava as mãos pelo corpo tentando arrancar dali as provas de
que fizera sexo com seu marido.
Não era pecado, ao contrário, era esperado que acontecesse, mas ela não
pretendia compartilhar aquilo com Caroline. Nem ninguém. Porém, uma
dama livre sempre parecia saber daquelas coisas.
— Estava ficando preocupada com você — Caroline disse. Agatha retirou
a camisola e entrou na banheira.
— Por que motivo se preocuparia comigo? A lesão na testa?
— Não. Você parecia muito alheia a Edward como homem. Eu vi, na
festa de Riderhood, que havia algo faltando, uma peça solta, e era essa
conexão que eu percebo agora.
— Você está divagando, milady. — Agatha riu. — Não faço a menor
ideia do que está falando.
— Claro que faz. É por isso que preciso te ajudar a ficar linda e sedutora.
Homens sempre tendem a escapar dos nossos dedos. Mantenha-o sempre
interessado em você.
Aquilo não fazia sentido para Agatha. Ela nunca quis interessar a um
homem apenas por seus atributos físicos. Nem mesmo ligava para eles.
Arrumava-se para cumprir um ritual da sociedade, preferia roupas mais
confortáveis e cabelos menos espalhafatosos. O homem com quem ela se
casaria a amaria porque ela era espirituosa, ousada, desafiadora, inteligente e
bem-humorada. Nem tão bem-humorada, era verdade, mas Caroline tinha
certeza de que ela também precisava ser linda.
Ela se lavou, se vestiu e se penteou como a sua nova amiga sugeriu.
Assustou-se em saber que passava de meio-dia e que os homens já tinham se
reunido com o cigano Wareham. Mais, eles esperavam apenas por ela para
retornar a Londres.
Agatha não dormia tanto desde antes de viajar para as Américas. As duas
mulheres desceram para o desjejum, que estava sendo servido no salão.
Comeram sozinhas e apenas Caroline falou. Ela contou sobre alguns planos
que estava tramando e para os quais queria a ajuda de Agatha. Planos
extravagantes. Caroline pretendia oferecer educação a moças, mas não aquela
tradicional das escolas de damas. Ela queria algo muito mais ambicioso.
— Se eu… quero dizer, se nós construirmos essa escola para jovens
damas, elas serão ensinadas a coisas muito mais interessantes do que casar e
criar filhos. Você é como eu, Agatha, não acredita que essa seja a única
vocação de uma mulher.
— Mesmo que eu concorde, que pai ou tutor, gozando de suas faculdades
mentais, matricularia sua filha em uma escola gerida por nós duas? — Agatha
mordeu um pãozinho. A ideia era sedutora, mas parecia fadada ao insucesso.
— Sou sobrinha de um marquês e você é uma condessa. Ao menos as
burguesas virão a nós. Elas podem aprender muito mais do que costurar e
fazer a lista de compras.
Caroline tinha razão. Agatha pretendia cuidar de um orfanato ao retornar
para Londres e construir uma casa para filhos de mães trabalhadoras
passarem o dia. Uma escola de jovens damas acrescentava muito às tarefas e
não a deixaria com nenhum tempo livre. Provavelmente, era perfeito.
— Pensarei em sua proposta. Podemos discuti-la mais vezes em alguns
encontros.
A refeição foi interrompida pela chegada dos homens. Eles estavam com
roupas limpas e impecáveis, indicando que tinham se lavado depois da
brincadeira. Patrick estava com eles, os olhos brilhando de satisfação por
andar com os adultos.
— As carruagens de aluguel chegaram. Se pretendemos chegar a Londres
antes do sol raiar no dia seguinte, devemos partir. A estação está sempre tão
cheia neste período do ano… Posso pedir que os criados recolham suas
malas? — o conde perguntou às damas, mas os olhos estavam sobre Agatha.
Ela sentiu a respiração pesada pela simples presença dele. A ideia de
passar mais algumas horas em uma carruagem com ele a excitava e
apavorava, na mesma intensidade. Ao menos, ela não estaria sozinha.
Com a concordância delas, eles saíram do salão e foram organizar a
viagem de volta. Quando chegassem em Londres, tudo para Agatha estaria
diferente. Medos e culpas a estavam abandonando e ela precisava encontrar
outra coisa para preencher o tempo.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
A QUELA FOI a segunda vez que ela dormira nos braços de Edward. A segunda
que ela se recordava, pois ele a havia visitado de madrugada antes. Mas ela
só dormiu. Ele cumpriu a promessa, a acomodou em seu peito e acariciou
seus cabelos até que ela pegasse no sono. Ela não esperava que ele a
acordasse. Cedo demais. Sacudindo-a pelos ombros.
— Minha querida, acorde.
— Céus, Edward — ela resmungou, sonolenta. — Isso não é muito
romântico.
— Não quero ser romântico, quero te acordar. Vamos, o seu sobrinho vai
nascer.
A informação a fez sentar subitamente na cama. Sentiu uma tontura que
logo passou e encarou o marido. Ele estava glorioso como um dia de sol,
reluzindo com os cabelos loiros úmidos e penteados, uma camisa branca
impecável e colete azul. Edward deveria ser proibido de usar azul. Os olhos
dele ficavam absurdos.
— Como assim?
— Granger veio aqui avisar. Patrick foi correndo com ele, mas imagino
que você também queira estar com sua cunhada.
Claro que ela queria. Agatha ainda não tinha despertado plenamente, mas
sabia que precisava estar ao lado de Elizabeth quando o bebê nascesse. Ela
pulou da cama e se arrastou para a casa de banho. O marido foi atrás dela e a
ajudou a preparar um banho, depois a secar-se e a vestir-se. Foi tudo muito
rápido e não houve tempo nem para ela pensar em se arrumar muito. Aquele
não era um momento que pedia uma produção elaborada.
A carruagem os aguardava na entrada. A Trowsdale House ficava no final
da rua, mas seria mais rápido do que ir a pé. Durante o curto trajeto, Agatha
esfregou as mãos e não escondeu o nervosismo. Ela estava ansiosa para o
nascimento do filho de Aiden, nervosa por Elizabeth.
Aiden estava sentado no salão quando eles chegaram. Segurava um copo
de conhaque em uma mão, um charuto em outra e tinha a aparência de quem
acabara de chegar da guerra. Agatha deu uma risada ao ver o estado do irmão.
— Vocês chegaram! — Ele se levantou. Bebeu o conhaque, fumou,
apagou o charuto, passou as mãos pelos cabelos. — Elas dizem que está tudo
normal, mas não posso ficar no quarto.
— Claro que não pode. — Agatha abraçou o irmão, acariciando sua face.
— Homens não entendem nada de nascimentos, eles só atrapalham. Quem
está com ela?
— A Sra. Ferguson. Ela não quer um médico, diz que já fez isso outras
duas vezes.
— Ela já fez. Fique com Edward, vou subir e fazer companhia à
Elizabeth. Quando minha sobrinha nascer, eu volto.
— Sobrinho. Elizabeth vai parir meu herdeiro — Aiden rosnou.
— Pelo bem de sua fortuna, esperemos que sim.
Rindo do desespero do irmão, Agatha subiu as escadas, apressada. Do
corredor, ela pôde ouvir os barulhos vindos dos aposentos ducais. A porta se
abriu e uma mulher saiu com um monte de toalhas brancas. Elas estavam
molhadas de um líquido viscoso. O coração de Agatha saltou algumas
batidas. Ela entrou no quarto e ele quase parou de bater.
A cena era totalmente diferente, mas ainda assim muito igual à que ela
vivera, meses atrás. Elizabeth estava sobre a cama, usando uma camisola
branca, com as pernas dobradas, recostada em travesseiros. Sua tez branca
estava corada e seus cabelos suados. A Sra. Ferguson limpava as mãos com
algum líquido que Agatha desconhecia.
— Você chegou! — Elizabeth estendeu os braços e pediu que a cunhada
se aproximasse. Foi preciso uma força sobrenatural para que os pés de
Agatha fossem até ela. O ar do quarto estava impossível de respirar. Ela
pensou que fosse desmaiar. — Não deve demorar muito agora. É meu
terceiro filho.
— Quando começaram as dores?
— Há umas quatro horas. Mas as águas já desceram. Ela está vindo.
— Já consigo ver a cabeça. — A parteira se abaixou e olhou entre as
pernas de Elizabeth. — Você precisa ajudá-la agora.
Elizabeth acenou com a cabeça e pegou a mão de Agatha. Ela segurava
com muita força enquanto gritava pela contração. A jovem dama precisou se
concentrar para não sair correndo. Mesmo com o coração disparado e as
pernas tremendo, Agatha se manteve firme enquanto Elizabeth colocava no
mundo o primeiro filho do Duque de Shaftesbury.
E LA NÃO PRETENDIA FICAR emotiva nem agir como uma tola, mas a conversa
do jantar a deixou nervosa. Talvez fosse cedo para ter filhos. Só que fora ela
quem estivera obcecada por crianças nos últimos dias. Se não tivesse tão
envolvida com os filhos dos outros, era provável que o conde não falasse
nada.
Retirando-se para o quarto, Agatha pediu ajuda de Moira para despir o
vestido, desfazer o penteado e vestir uma camisola. Dispensou a camareira e
aguardou que o mal-estar passasse. Algumas lágrimas rolaram por sua face,
outras ela conseguiu reprimir com sucesso. Apesar de saber que não era
possível evitar chorar, costumava se esforçar bastante para isso. Não teve
muito tempo para ficar sozinha com sua dor, logo a porta do quarto se abriu e
o marido apareceu. Segurava uma garrafa de champanhe e duas taças.
Edward não disse nada. Abriu a garrafa e serviu uma taça. Entregou o
líquido borbulhante para ela e se sentou à cama, ao seu lado.
— Não vamos falar sobre coisas que te aborreçam. Traga as crianças que
quiser para casa. Vamos adotar todas que desejar. Quanto aos nossos filhos,
podemos nos divertir no processo de produção e deixar que Deus decida o
que acontecerá.
Agatha bebeu um gole do champanhe e riu. Ele sempre dizia coisas
engraçadas que a faziam sorrir, mesmo quando estava chateada, e ela não
andava merecendo muito o carinho dele.
— Desculpe-me, Edward. — Ela bebeu outro gole. — Não sei dizer por
que tenho agido assim. Eu quero que tudo dê certo entre nós. Quero mesmo.
Mas acho que eu não tive tempo de sofrer, de processar meu sofrimento. Sei
que estou sendo uma péssima esposa.
— Não está. — Ele serviu mais champanhe e bebeu da taça dela. — As
coisas entre nós nunca foram simples. Mas, agora que estamos casados,
descobrimos que podemos melhorá-las.
Agatha riu e sentiu um alívio imediato em suas costas. Ela parecia
carregar o mundo nelas, até descobrir que Edward era mais do que o melhor
amigo irritante do irmão. Edward era o homem que a resgatava. Naquele um
minuto em que olhou para ele, por sobre uma taça borbulhante, ela se
lembrou de todas as vezes em que ele a ajudara. Em que ele a resgatara. Em
que ele a fizera se sentir melhor, mesmo com a carranca habitual e os braços
cruzados no peito. Depois de casados, ele a fazia sentir melhor de outras
formas. A excitação fez com que ela sentisse as entranhas revoltas.
— O que significa exatamente se divertir no processo de produção dos
filhos? — ela disse, provocativa. O conde a encarou e exibiu um sorriso
perfeito. Agatha nunca o vira sorrir daquela forma. Parecia diabólico.
— Que vamos passar muito tempo tentando fazer com que minha
semente seja plantada em seu ventre.
Ela bebeu o restante do líquido cheio de bolhas. Elas desceram fazendo
cócegas em sua garganta e o álcool subiu à cabeça, mas não o suficiente para
não sentir as mãos do marido em seu corpo e a boca dele sobre a sua. Edward
se moveu como um gato e logo estava se posicionando sobre ela, beijando-a.
Claro que Agatha sabia como bebês eram produzidos. Sabia, inclusive,
que já poderia ter um crescendo dentro de si. Aquilo a assustava na mesma
medida que a encantava. Apesar de todo o trauma que vivenciou, ela não
recusava a semente de Edward. No fundo, queria filhos — apenas morria de
medo de tê-los —, mas sim, o processo de produzi-los era bem prazeroso.
Naquele momento, ela se deu conta do quanto sentiu a falta dele. O tempo
com as crianças, na casa de Aiden e Elizabeth, fora um tempo de fuga. O
parto desencadeou alguma coisa dentro dela, algo que não sabia explicar, mas
ali, enquanto Edward pressionava seus lábios contra os dela e empurrava o
corpo dela contra o colchão, percebeu que precisava daquilo. Precisava dele.
As mãos de Agatha agarraram o colarinho da camisa branca que ele vestia
e o puxaram para mais perto, aceitando satisfeita a língua dele embolada à
sua. Do colarinho, passou aos botões e começou a abri-los. Ela detestava
estar em desvantagem em relação ao marido. Detestava que ele a pegasse de
camisola, ou com menos roupa, enquanto estivesse totalmente vestido.
Daquela vez, ela queria despi-lo com suas próprias mãos. Edward não
resistiu. Continuou a beijá-la, deslizando os lábios pelo queixo, para o
pescoço, até a parte sensível atrás da orelha. Estava difícil se concentrar na
tarefa de abrir botões enquanto ele a distraía com tanta habilidade, mas ela
conseguiu. Fez com que a camisa saísse pela cabeça dele e o empurrou contra
o colchão.
— O que quer fazer? — ele perguntou, erguendo-se e ficando de pé ao
lado da cama. Ela se ajoelhou sobre a superfície macia, ficando de frente para
ele e o beijou. Passou as mãos pelas costas musculosas e desceu até
posicioná-las sobre a bunda dele. Edward estremeceu com aquele toque e se
afastou ligeiramente. — Agatha…
— Um libertino como você não pode ser um puritano. — Ela riu. — É
incompatível.
— Não sou puritano. — Ele atacou a boca dela novamente. — Apenas
estou surpreso que você…
— Shhh.
Ela fechou os lábios do marido com os dedos. Edward estava surpreso,
mas sorrindo, o que a encorajou a prosseguir. Ela suspeitava que ele tinha se
magoado por sua permanência por tanto tempo na casa do irmão. Precisava
deixar claro o quanto o desejava para que ele entendesse que ela o queria. A
melhor forma de fazer aquilo era mostrando a ele.
Tímida e inexperiente, ela distribuiu alguns beijos no torso despido do
marido. Beijou os ombros, depois desceu para o peito. Edward grunhiu,
emitindo um som gutural de satisfação, e não a impediu. Ao contrário, ele a
segurava pelos cabelos com apenas uma das mãos e ajudava, conduzindo-a
pelo percurso.
Mais atrevida, Agatha continuou beijando a barriga e levou as duas mãos
aos botões da calça. Foi especialmente desafiador abrir o que ficava
escondido, porque o volume da ereção esticava o linho e atrapalhava, mas
não desafiador o suficiente para impedi-la.
— O que eu devo fazer? — ela perguntou, erguendo o olhar enquanto
acariciava o membro masculino em suas mãos. Edward estava muito
excitado, toda a sua extensão parecia, ao mesmo tempo, mais dura e mais
suave. A forma como ele a encarava a deixou com ainda mais desejo.
O marido não disse nada, mas seu olhar ditava instruções claras. Agatha o
beijou pela pele macia que pulsava em suas mãos. Ele era mesmo grande,
tinha um cheiro masculino irresistível e ela não segurou a vontade de passar a
língua da sua base até a cabeça. Edward continuava olhando e, segurando-a
pelos cabelos com força, indicou que ela deveria engoli-lo.
A inexperiência de Agatha não a impediu que obedecer. Os lábios
envolveram o membro do marido e ela lambeu e sugou o que conseguiu
colocar na boca. Com um movimento da pélvis, Edward se inseriu um pouco
mais, fazendo com que ela abocanhasse a maior parte de seu pênis. Ele urrou,
um gemido tão primitivo que a deixou duas vezes mais excitada. Ela queria
fazê-lo sentir o mesmo prazer incomparável que ele lhe proporcionava.
Queria vê-lo se dissolver em suas mãos, em sua boca.
Aquilo parecia ser muito poderoso. Ela se sentia poderosa.
Prestando atenção aos movimentos e às expressões dele, ela prosseguiu.
Ergueu os olhos e o percebeu com os olhos fechados, a boca entreaberta e o
pescoço tombado para trás. Era uma posição que indicava que Edward estava
gostando. Ela continuou a sugá-lo enquanto se deleitava com o sabor
masculino — salgado, ácido e muito afrodisíaco.
— Agatha. Pare.
Edward gemeu o nome dela e segurou firme seus cabelos, querendo
mantê-la parada. Ela o segurou pelos quadris, os dedos fincados nas nádegas,
e se afastou apenas o suficiente para conseguir falar.
— O que acontecerá se eu não parar?
— Eu não vou mais conseguir segurar. — O marido gemeu mais quando
ela recomeçou a chupá-lo. — Céus, mulher, eu estou falando sério. Eu vou…
— Então não se segure. — Ela riu, passando a língua pela ponta do
membro. — Vai me fazer mal? Eu vou ficar doente?
— Não… eu acho que… — Edward gemeu mais, ela não parava. —
Nunca fez mal a ninguém… que eu…
— Então isso é algo que se faz? Entre um homem e uma mulher?
— Sim, é, mas…
Não havia mais argumentos para convencê-la. Agatha queria ver até
aonde aquilo os levaria e o que acontecia depois. Continuou agarrada a ele, a
boca engolindo o pênis como se simulasse o momento da penetração. Edward
quis se afastar mais de uma vez, chegou a puxá-la pelos cabelos, mas depois
cedeu. A expressão de prazer e os sons que ele emitia indicavam que ele
estava gostando. Até que, com um gemido alto, ele estremeceu todos os
músculos e chegou ao clímax, aliviando-se.
— V OCÊ É …
Edward não conseguia acreditar naquilo. Sua esposa, tão inocente,
acabara de conduzir uma fantástica sessão de sexo oral, algo que ele
raramente recebera de qualquer mulher. Por mais prazeroso que fosse, a
maioria delas não sabia fazer nem queria tocar em seu pênis, acreditando que
o ato em si era impuro ou pecaminoso. Talvez fosse, mas ele estava pouco se
importando. Era algo pelo que valia a pena pecar.
Agatha estava tão orgulhosa de si mesma, olhando para ele com aquele
verde brilhante e sedutor, que ele desistiu de falar qualquer coisa. Pegou-a
pelos ombros, ergueu-a e possuiu sua boca com uma voracidade que não
chegava nem perto do desejo que estava sentindo por ela. Ele não estava
satisfeito. Jogou a esposa na cama e pressionou o corpo dela contra o
colchão, forçando sua entrada com o membro já rígido novamente. Queria
mais, queria outro orgasmo e queria fazer aquilo vendo-a gozar. Agatha
recebeu-o com surpresa. Estava tão molhada que Edward simplesmente
deslizou para dentro dela sem nenhuma resistência.
Não era comum para ele continuar duro depois de um orgasmo tão
intenso. Edward era um pervertido e tivera muitas mulheres, mas geralmente
não durava muito mais do que uma vez. A força do desejo por Agatha era tão
grande que ele não conseguia parar.
Beijou-a, enfiou a língua em sua boca, mordiscou os lábios, desceu para o
pescoço e capturou um mamilo entre os dentes. Agatha gemeu. Edward
colocou o polegar entre as pernas dela e começou a acariciá-la no feixe de
nervos que estava pulsante e inchado. Arremeteu com força contra ela,
entrando e saindo com vigor.
Esperou que ela atingisse o ápice. Ergueu o corpo e continuou a tocá-la
enquanto movia os quadris em um frenesi primitivo. Precisava que ela
chegasse logo ao clímax porque não estava aguentando mais.
— Goze, Agatha — murmurou, dobrando o corpo novamente sobre ela.
— Goze para mim, por favor.
Ela o encarou e o agarrou pelo pescoço, puxando a boca dele para a dela.
O beijo despertou algo que fez com que ela o obedecesse. Em minutos, os
músculos internos da esposa estrangularam seu pênis e ela convulsionou
debaixo dele, mordendo-o no lábio inferior com força demais. O som que ela
emitiu foi a coisa mais erótica que ele já ouvira.
O segundo orgasmo dele foi quase mais intenso do que o primeiro.
Edward empurrou contra ela uma última vez e derramou o que restava de sua
semente dentro da esposa, satisfeito momentaneamente. Desabou sobre ela,
girou na cama e fez com que Agatha se acomodasse em seu abraço.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO
M ESMO SABENDO que podia sair do quarto a hora em que quisesse, Agatha
não saiu. Foram quatro dias inteiros na cama com Edward. Quatro dias em
que eles nem mesmo se vestiram. Não saíram da suíte principal. Comeram na
pequena mesa redonda que ficava na antessala do quarto e se amaram ao
ponto da exaustão.
Ele, contudo, não estava exausto. Ao contrário, descobria coisas novas a
cada vez. Desbravar sua esposa era como abrir a caixa de Pandora, com a
diferença que ele não liberara o mal sobre a Terra, mas uma reação absurda
sobre ele próprio. Edward não deixaria que ela soubesse o quanto de poder
passara a exercer sobre ele. Caso contrário, estaria totalmente arruinado.
Durante aqueles dias, receberam várias visitas recusadas. Caroline Eckley
e as irmãs Westphallen estiveram na casa. Aiden Trowsdale esteve na casa. O
duque chegou a ir até a porta da suíte incomodar o casal. Depois de ser
ameaçado de morte, caso não fosse embora, prometeu voltar depois de alguns
dias para garantir que a irmã ainda estaria viva.
— Temos que voltar à vida social — Agatha disse, levantando e se
enrolando no roupão. Ela parou em frente à janela e olhou para o parque que
ficava do outro lado da via. O sol se pondo dava a Londres um ar
melancólico e esfumaçado.
— Não sei por quê. — Edward foi até ela e a abraçou por trás. — Aqui
está quente, confortável e temos comida. Posso ficar nessa cama por um mês.
Agatha virou-se para o marido e colocou as duas mãos no peito dele.
Havia um lampejo de malícia nos olhos inocentes.
— Você é um devasso. — Ela riu, beijando a pele nua. — E está me
transformando em uma. Há vida além de ficar na cama com você, Edward.
— Há. — O conde puxou a boca da esposa e a beijou. — Mas não é tão
gostosa.
Ela se desvencilhou dele e voltou para a cama.
— Então aproveite esta noite, amanhã voltamos à rotina. Temos uma vida
inteira para dormirmos juntos, para que gastar tudo agora?
Descartando o roupão e abrindo os braços, ela o chamou. Edward juntou-
se à esposa na cama com a intenção de demovê-la da ideia de encerrar a lua
de mel. Ele pretendia ficar com ela por uma semana. Naquele momento,
decidiu fazê-la sentir um prazer tão intenso que a faria reconsiderar, mas o
que conseguiu foi expressar o seu arrebatamento sem controle.
A sensação insuperável de estar dentro dela, as carícias das mãos de
Agatha em suas costas, o cheiro da pele dela enquanto os corpos se amavam.
Aqueles ingredientes inebriavam Edward a ponto de ele perder a razão.
Depois de tanto tempo perdido em sua esposa, ele acabou sendo dominado
pelos sentimentos.
— Meu Deus — ele rosnou, com a boca abafada no pescoço dela quando
chegou ao clímax. O corpo convulsionou sobre ela, que o prendia com as
pernas cruzadas em seus quadris. A boca quente de Agatha beijava-o no
ombro e apenas fazia com que o prazer fosse maior. — Como eu amo você,
Agatha… como eu…
Ele congelou. O sangue em suas veias espalhou cristais de gelo por todos
os músculos quando ele percebeu o que acabara de dizer. Ela ainda o beijava,
então não ouvira. Claro que não ouvira, ele sussurrara muito baixo e o ruído
das respirações era alto demais. Ela não ouviu — não podia ter ouvido —,
mas ele disse. Sem querer, sem perceber, sem raciocinar sobre as palavras
que saíam de sua boca. Ele a amava. Era ruim o suficiente porque era
verdade.
Edward prometera a si mesmo que não se apaixonaria. Ele acreditava que
fosse apaixonado por Bridget e sofrera com o abandono. Não era. Nunca
sentiu por Bridget o que sentia naquele momento. Se entregasse seu coração
de verdade, não saberia lidar com a rejeição. E era bastante óbvio que Agatha
não o amava em retorno. Por que ela o amaria?
Sem contar que a paixão deixava os homens idiotas. As reminiscências do
pai, austero e determinado, o inundaram. O pai garantira que ele não era
digno de receber amor. O reprimiria por desejar ser amado, já que o amor era
fraqueza. O amor era tolice, deveria ser guardado para os tolos. O Conde de
Cornwall não era um tolo e nunca seria como Aiden. Ele não invejava o
amigo. Preferia manter sua razão acima de qualquer coisa e não podia ser
racional se estivesse apaixonado.
Saindo de dentro dela, ele se acomodou na cama sentindo fisgadas nos
músculos. Sentia uma súbita dor na cabeça pela consciência dos seus
sentimentos. Ele amava a sua esposa. Isso deveria ser bom, ele deveria estar
feliz, mas tudo que ele sentia era o coração aberto e sangrando.
A CARRUAGEM que a levara até o Butterfly’s era pequena e aberta, ideal para
os dias quentes de agosto. A cafeteria era frequentada pelas damas da
sociedade, que sempre usavam o espaço para pequenos eventos durante o dia.
Poucos eram os cavalheiros que costumavam comer por ali, ou marcar
encontros. A própria Caroline Eckley não era uma frequentadora assídua,
pois ela não tinha mais assuntos com as damas.
Agatha não se importava se era uma afronta levar a sobrinha do marquês
para o lugar mais exclusivo que conhecia. Sua nova amiga era uma pessoa
extravagante, com seu gosto peculiar para roupas e cabelos. Sempre de
vermelho, sempre com os cachos soltos sobre os ombros. Ela era a figura de
uma libertina, o que apenas a tornava mais interessante.
— Adorei receber seu convite — Caroline a cumprimentou, segurando-a
nas mãos enluvadas. — Espero que seja porque pensou em minha proposta.
— Sim, pensei. — Agatha pediu que servissem um chá completo. Ela mal
comera desde que acordou e estava com muita fome. — Conversei com
Edward, também. Quero fazer parte disso, acho que devemos construir essa
escola.
Caroline bateu as mãos em uma atitude entusiasmada.
— Excelente! Já vi alguns lugares, eles parecem ideais para começarmos
e…
— Mas você terá que me ajudar com meu projeto — Agatha interrompeu
o jorro de ideias que certamente seria despejado sobre si. — É uma troca.
— Qual seria seu projeto? Não me diga que é outro orfanato.
— Não é.
A condessa explicou sua intenção de construir uma casa para abrigar
filhos de mães empregadas. Crianças que precisavam de acolhimento
enquanto suas mães trabalhavam. O lugar ofereceria educação, cuidados
básicos e, o mais importante, carinho. As crianças seriam bem tratadas, ao
contrário do que acontecia na maioria das famílias.
— Parece bem intrigante.
O chá chegou e as interrompeu. A criada serviu as xícaras, a de Agatha
com leite e a de Caroline com duas pedras de açúcar.
— Temos um acordo, milady — Caroline concordou, mordendo um
bolinho. — Confesso que estou bastante empolgada em fazer algo com minha
vida que não seja correr atrás de maridos que nunca terei.
— Não pensa em se casar? — A curiosidade fez com que Agatha jogasse
a pergunta invasiva.
— Já pensei. Talvez ainda pense. Mas nunca me casarei. Eu sou uma
mulher que já teve vários homens. Não tenho nenhuma virgindade para valer
como virtude e não há homem nesta Londres que não saiba disso. Mesmo
com meu dote, eu dificilmente fisgaria um marido. Se houvesse um
desesperado por dinheiro, haveria uma chance. Mas, sinceramente? Não vale
a pena. Não será um como Aiden. Ou como Edward. E não desejo abrir mão
de minha liberdade por um marido. A masculinidade precisa ser
constantemente reafirmada e não estou disposta a exercer este papel.
As imagens inconvenientes de Edward e Caroline em uma cama, fazendo
as coisas que ele passou as últimas noites fazendo com ela, causaram uma
reviravolta no estômago de Agatha. Labaredas acenderam seus olhos e ela
sentiu a fúria de doze mares revoltos enquanto apertava um guardanapo entre
os dedos. Sua irritação irrompeu como uma represa que não conseguia conter
o fluxo de água. As comportas de sua raiva se abriram e Agatha despejou sua
frustração em Caroline.
— Talvez seja ótimo que não se case. — Ela mordeu uma torrada. A fúria
fez com que o alimento se esmigalhasse. — Afinal, para que servem os
homens se não para te fazerem de boba? Para te iludirem com palavras de
amor e depois procurarem outras para satisfação?
— Oh. — Caroline franziu a testa e um vinco se formou entre suas
sobrancelhas. — Espero que esse discurso não seja sobre o seu marido.
— Claro que é sobre meu marido. Aquele… aquele devasso. Ele foi até o
Riderhood ontem, de madrugada, e teve a desfaçatez de chegar só hoje de
manhã!
— Eu o vi lá. — A sobrinha do marquês continuou tomando seu chá. Ela
agia como se nada a abalasse. — E posso afirmar, minha querida, ele é um
dos homens mais comportados daquele lugar. Todos os homens traem, eu
duvido que o seu te trairá.
Agatha pousou as mãos cheias de migalhas sobre a mesa e encarou
Caroline Eckley. Ela queria muito acreditar no que a amiga dizia. Precisava
acreditar.
— Você o viu.
— Sim, eu frequento a casa. E Edward jogou, bastante, a noite toda.
Estava endiabrado, como se Belzebu em pessoa estivesse sentado ao lado
dele ditando o que fazer. Nunca vi o homem jogar com tanta fúria. Mas foi só
isso. Jogou, bebeu, fumou, jogou mais. Até a hora que eu saí, e isso já foi de
manhã, o conde não deixou que nenhuma mulher sequer se aproximasse dele.
O silêncio que se seguiu foi eloquente. Caroline fitava Agatha por sobre a
xícara de chá, intrigada. Era provável que traições e episódios como aquele
não a chocassem ou incomodassem. Ela era imune ao ciúme.
— Bem, ainda defendo que casamentos não são tão interessantes assim
— Agatha rosnou. — Vamos tratar de temas menos estressantes. Conte-me
tudo sobre o que já começou a resolver para que possamos construir nossa
escola.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
E DWARD PODIA AGIR como um canalha, mas ele sabia que, se colocasse regras
e controlasse seus sentimentos, todo mundo ganharia. Naquela noite, foi cedo
para a casa de jogos e apostou apenas o que sabia que poderia perder. Ele
nunca perdia demais, mas também não arriscava. Antes, fizera o que um bom
marido deveria fazer. Tratou de sua esposa com cuidado. Ofereceu a ela
prazer e satisfação e tentou cumprir a promessa de dar filhos a ela. Mais do
que isso era pedir muito. O conde não estava preparado para dar seu coração.
Mesmo que, por suas contas, aquele fosse um caminho sem volta.
— Quem é o cavalheiro novo? — Sawbridge perguntou ao crupiê.
Edward não tinha notado ninguém novo no salão, nem mesmo na cidade. Ele
andava com a cabeça fora do ar. Naquele mesmo instante, estava distraído
olhando para os dados que rolavam na outra mesa sem nem se lembrar da
aposta que fizera.
— É americano, senhor — o crupiê respondeu, sem se distrair das cartas.
— Veio pela primeira vez hoje, ninguém sabe nada sobre ele, ainda.
— Em breve, Riderhood deve ter um relatório completo para nos passar.
— Sawbridge apostou algumas fichas. — Ninguém entra neste clube sem que
ele saiba tudo antes. Por enquanto, ficarei de olho. Não gosto desse pessoal
das colônias.
— Não seja preconceituoso, Sawbridge. — Edward também apostou.
Aquele era seu limite, ele não ganhara nada naquela noite. — Mas eu também
tenho motivos para desconfiar do tipo.
Ele tinha um motivo muito sério. Agatha fora enganada por americanos,
que arrancaram dela a virtude de forma violenta. Se Edward visse um
daqueles irmãos, certamente o mataria com suas mãos, mas nem todo
americano merecia seu desprezo.
O crupiê deu mais cartas e Sawbridge recolheu as fichas. O filho da mãe
estava com sorte.
— Essa é minha deixa. — Edward virou o restante do uísque. — Já perdi
o suficiente, não quero deixar mais uma promissória nas mãos de Riderhood.
O colega o cumprimentou com um aceno. O conde ajeitou o colete e saiu,
passando pelo tal americano pelo caminho. O homem o olhou e sorriu, mas
Edward sentiu um calafrio, uma sensação ruim. Se fosse dado às crendices
populares, diria que era a sensação de um fantasma lhe soprando as orelhas.
Fosse o que fosse, estava ligado àquele estrangeiro.
C HEGAR DA FÁBRICA , MIMAR A GATHA , FAZER AMOR COM ELA , JANTAR COM A
esposa e ir para a casa de jogos. Aquela vinha sendo a rotina estabelecida
pelo conde e ela era fantástica. Durante o dia, morria de saudade da esposa.
Chegava em casa e a encontrava quase sempre carrancuda ou cheia de
histórias para contar. Aquela era a melhor parte, quando ele precisava
arrancar o mau humor dela, ou silenciá-la. E, depois de ficar com ela, as
atividades masculinas não o faziam pensar em tolices como o amor.
Tudo estava perfeito, mesmo que ele sentisse algo estranho no ar.
— Edward. — Agatha o puxou para si quando ele tentava se levantar.
Estava um pouco tarde, mas ele insistiria em sair todas as noites. A rotina
deveria ser mantida. — Não vá. Precisamos conversar.
O conde sentou-se na cama e fitou a esposa. Ela parecia sempre mais bela
depois do sexo. As bochechas rosadas e os cabelos soltos transformavam
Agatha em uma deusa pagã, um objeto de luxúria. Era impossível que ele a
desejasse tanto, mesmo tendo acabado de tê-la, mas ele desejava.
— Não pode esperar até amanhã?
— Não quero esperar um dia inteiro para falar com você. — Ela
emburrou e cruzou os braços à frente do corpo. — É sobre Lavinia.
Edward não fazia ideia de quem era Lavinia. Agatha era mesmo esperta,
ela sabia que o faria curioso se revelasse algo intrigante. O conde recostou
nos travesseiros e se dispôs a ouvi-la.
— E quem é Lavinia e por que ela seria um assunto importante a essa
hora?
— Estive no orfanato. Eu vou lá todos os dias. — A esposa pulou sobre
ele e se sentou sobre suas pernas. Edward se distraiu um pouco com a posição
dos corpos, mas logo voltou a prestar atenção no que ela dizia. — Essa
garotinha, Lavinia, é diferente das outras crianças de lá. Ela me lembra
Patrick, mas é bem mais nova. Eu gostaria de…
Ela baixou o olhar. Fazia algum tempo que ele não precisava lidar com a
timidez da esposa, então ela deveria realmente estar constrangida com o
pedido.
— Gostaria de…
— Trazê-la para McFadden Garden. — Agatha disparou como uma arma
de fogo. — Ah, Edward, ela é linda e tenho certeza de que você a adoraria.
O conde levou as mãos aos cabelos da esposa e ajeitou as mechas
rebeldes que caíam em sua face branca. Acariciou-a nas bochechas com o
polegar e puxou-a para um abraço. Ela tinha o coração acelerado e a
respiração ofegante. Aquele assunto a excitava.
— Pensei ter dado autorização para que enchesse a casa de crianças.
— Foi uma autorização genérica. Agora que pode se tornar verdade, eu
quis te consultar, antes.
O sorriso que nasceu nos lábios de Edward foi involuntário. Ele não
conseguia evitar se maravilhar com a alegria e entusiasmo de Agatha. Como
podia sequer suspeitar que pudesse afastar o que sentia por ela com aquela
rotina masculina? Enquanto estavam juntos, ela o arrebatava sem que ele
tivesse chance de se defender.
— Bem, estou dando uma autorização específica agora. Quero conhecer
essa pequena órfã que te encantou.
— Obrigada. Você é maravilhoso.
Ela se ajeitou em seu colo e a fricção fez com que Edward se contraísse.
Logo, Agatha estava posicionada sobre sua masculinidade agitada. Na
empolgação, passou os braços pelo pescoço do conde e o beijou. Começou
com um roçar de lábios e uma pressão suave. Assim que ela percebeu a
ereção contra a barriga, o beijo se tornou feroz.
Com a língua se enroscando na dele. Agatha movia os quadris e isso o
provocava ao máximo. Edward rosnou algumas palavras incompreensíveis,
agarrou-a pelas nádegas e a forçou contra sua ereção. Mesmo que ela
estivesse pronta para ele desde o início da noite, o atrito da carne quente
envolvendo seu membro fez com que Edward estremecesse. Ele a desejava de
uma forma tão visceral que se assustava. Era para que esse desejo
amenizasse, mas ele só crescia.
Naquela noite, ela conseguiu prendê-lo à cama. Edward não conseguiu
sair mais dali. Não ofendia seus planos burlar uma vez ou outra a rotina
estabelecida, mas ele começou a acreditar que o plano iria por água abaixo.
O DIA seguinte foi de ansiedade para Agatha. Ela queria fazer aquilo. Queria
levar uma criança para casa. Encher a McFadden Garden de vida e alegria.
Sem Isaac, que estava em Kent, e com Edward passando a maior parte do
tempo fora, ela precisava de ocupações. Até que o marido resolvesse a
questão da propriedade que pretendia adquirir junto a Caroline para construir
a casa para os filhos de mães trabalhadoras, ela não podia fazer muita coisa.
Também esperava que Caroline finalizasse a compra da casa para a escola.
Eram duas atividades de tamanho monstruoso, mas que Agatha não
poderia iniciar sozinha. Ser mulher casada gerava alguns inconvenientes,
pensou. Dependia do marido para tudo, dependia da autorização e do dinheiro
dele. Agatha não gostava de pedir e, ainda assim, precisava fazê-lo. Mesmo
que Edward não lhe negasse nada, ela sempre teria que pedir.
Tentou não se concentrar em nada daquilo porque iria ao orfanato
conversar com a diretora e levar Lavinia para casa. Não entraria ainda com o
processo de adoção. Agatha achava melhor levar a menina para passar um
tempo com eles. Precisava garantir que tudo fosse sair bem, porque ela queria
que a primeira criança da casa fosse querida e desejada. Uma filha adotiva
não tinha os mesmos direitos nem prerrogativas dos filhos legítimos, mas isso
não a impediria. Uma vida com conforto e carinho era melhor do que uma
vida institucionalizada, mas nem tudo era simples como parecia.
— Receio que não possamos permitir que leve a menina, milady. É
preciso uma autorização do departamento responsável pelos menores.
A resposta a diretora era a mesma há uma hora. Agatha já insistira de
todas as formas, mas, sem a tal autorização, não era possível levar Lavinia
com ela.
— Serão apenas algumas semanas. Ela é órfã, quem vai reclamá-la? Sem
contar que não é como se eu fosse fugir com a menina. Sou a Condessa de
Cornwall, meu marido tem cadeira no Parlamento. Todo mundo sabe onde
moramos.
A expressão da diretora, impassível, indicava que ela não se importava
com o título de Agatha. Ela insistia: sem autorização, Lavinia ficaria no
orfanato. A condessa espremeu a sombrinha nas mãos, nervosa. Não esperava
que fosse encontrar aquele tipo de obstáculo.
— Sra. Havisham, meu marido e meu irmão são benfeitores deste
orfanato. Minha família mantém a instituição há décadas. Precisarei mesmo
incomodar o conde para que ele obtenha esse documento, sendo que meu
pedido é perfeitamente razoável?
— Lamento, milady. Pode vê-la, se quiser. Mas não posso deixar que a
leve.
— Certo. Providenciarei a documentação, se ela é assim tão importante.
Agatha saiu da sala da diretora bufando como um animal indomado. Ela
costumava achar que, por ser filha de um duque, podia fazer tudo. Então ela
se tornou a irmã do duque e, depois, a esposa de um conde. Aquela
compilação de títulos dos homens em sua vida fazia com que Agatha se
considerasse quase invencível. Mesmo assim, não pretendia passar por cima
da lei. Apenas não conseguia compreender a dificuldade em levar a menina
com ela. Se Edward estivesse junto, ele certamente teria saído vencedor no
argumento. Ninguém costumava levar mulheres a sério. Nem mesmo as
outras mulheres. Aquilo deixou Agatha possuída por uma fúria não domável.
Pediu ao cocheiro que a conduzisse até a fábrica. Moira corria atrás dela,
tentando acompanhar os passos de sua ama. A jovem condessa pisava com
força no calçamento de pedra, quase a ponto de estragar as botas, e passou o
curto trajeto até Shadwell esbravejando e reclamando por precisar requisitar o
marido para tudo que fazia.
Para agravar seu estado de espírito, Edward não estava na fábrica.
— Ele não veio trabalhar? — ela disse, desconfiada. Estava no escritório
de Aiden, que decidira não arriscar uma viagem para o interior com os bebês
e permaneceria em Londres, mesmo fora da temporada social.
— Veio, mas precisou sair para uma reunião. Ele e Miles Westphallen
foram a Wattford, devem voltar à noite. Aconteceu alguma coisa?
Aiden era muito sensível às variações de humor de Agatha. Ele sempre
pressentia quando algo com ela não ia bem.
— Sim, eu pretendia… ah, não deveria te contar isso.
O duque cruzou os braços no peito e esperou. Ela não conseguiria se
safar.
— Tem essa menina, Lavinia. Eu me apaixonei por ela e Edward disse
que posso levá-la para casa.
— Céus, Agatha. — Aiden deu uma risada nervosa. — Você falou como
se ela fosse um cachorrinho que viu na loja e decidiu comprar. Tem a vaga
noção de que estamos falando de uma criança?
— Claro! — A jovem se sentiu ofendida. Ela podia ser tola às vezes, mas
tinha total consciência do que era ser mãe. Mesmo que ela tivesse sido
privada do exercício da maternidade, no seu ventre já crescera um filho. Ela
adorava crianças, sempre esteve cercada delas. — Aiden, eu estou mais do
que preparada para isso. E Lavinia nem é um bebê, ela tem quatro anos. Mas
não pude levá-la comigo porque é preciso uma autorização.
— Sim, é. Eu poderia providenciá-la agora mesmo, mas…
— Mas seria melhor que meu marido fizesse isso. Afinal, será nossa
criança, é preciso que ele se envolva.
O duque riu e puxou a irmã para um abraço. Ela envolveu o corpo quente
e acolhedor de Aiden com os braços e se sentiu em casa. Parecia estranho
estar sempre dividida entre duas famílias. Por sua sorte, ela nunca precisaria
escolher.
— Está ficando cada dia mais esperta, irmãzinha. Converse com Edward
quando ele chegar, amanhã ele providenciará essa autorização para você. Seu
marido é muito influente nesses assuntos, ele tem um trânsito melhor do que
o meu no Parlamento.
Esperar nunca fora o forte de Agatha, mas ela sabia que precisava.
Deixou a fábrica um tanto insatisfeita, aceitando que não poderia fazer nada
até o dia seguinte.
A S VIAGENS com Miles eram divertidas, mas só até certo ponto. Edward
gostava de ouvir o amigo visconde e suas histórias, mas, quando o assunto
chegava às filhas, ele se entediava. Lady Madeline o irritava bastante. A falta
de noção e de bom senso da filha mais velha do Visconde de Whitby era
assunto recorrente entre os homens, sempre quando Miles não estava por
perto.
Madeline Westphallen era uma daquelas damas caçadoras de maridos
nobres, com títulos importantes. Antes que Aiden se casasse com Elizabeth,
ela forjou uma situação em que ele a comprometeria, acreditando que, assim,
o forçaria a um casamento para reparar sua honra. Não contava com a
presença sempre inusitada de Caroline Eckley para desmascará-la.
Por ser bem mais velho do que ele, o visconde tinha casos interessantes
para narrar, mas acabava retornando no assunto da família e não havia como
evitar. Eles foram e voltaram de Wattford. Por algumas horas ficaram apenas
os dois na carruagem. Edward descobriu sobre a precocidade de Sarah, sobre
os pretendentes de Madeline, mesmo que eles não existissem, e sobre o
quanto a viscondessa era sortuda em ter um marido tão viril. Isso porque ela
estava grávida do quarto filho, uma criança temporã que poderia ser o
desejado herdeiro dos Westphallen.
— Jamais deixarei minhas propriedades para primos! — Miles rosnava.
— Desta vez, minha esposa vai parir um menino.
— Se tiver a sorte de Aiden, poderão ser dois meninos.
Edward provocou, mas Miles adorou a ideia.
— E você, meu caro conde? Quando vai decidir inseminar sua esposa?
Não deixe para começar a produzir herdeiros muito tarde.
Ele já a estava inseminando. Edward poderia passar duas viagens a
Wattford contando sobre a devassidão que performava no quarto principal em
McFadden Garden, mas ele jamais exporia a intimidade de sua esposa.
Preferiu voltar a falar de negócios, até porque o assunto sobre bebês o estava
fatigando. Era como se todos os homens ao seu redor tivessem decidido
procriar.
No retorno a Londres, o conde estava exausto, faminto e morrendo de
saudade da esposa. A melhor decisão seria ir para casa ficar com ela, mas
acabou aceitando o convite de Miles para o Riderhood. Pretendia ficar apenas
um pouco, mas acabou perdendo a hora entre um copo de uísque e outro, uma
rodada de carteado e outra.
— Se eu perder outra libra, minha esposa vai comer minhas entranhas —
Oglethorpe reclamou, jogando duas fichas sobre a mesa.
— Parando de apostar, parará de perder — o visconde desdenhou do
amigo, pagando a aposta. — Eu estou me sentindo com sorte, hoje.
— Acho que precisamos de outro drinque. — Edward ergueu o copo e
pediu mais uma dose para cada homem da mesa. — O dia de hoje foi bem
cansativo. Precisa parar de me levar em negociações, Miles.
— Se eu parar, você não aprenderá, meu caro amigo.
— Quem quer aprender a negociar é Sawbridge. Prefiro administrar as
propriedades e os empregados.
Edward jogou suas fichas na mesa e o crupiê distribuiu as cartas. Sua
mente estava dominada pelo álcool, já que ele continuava sem comer.
Pensava no jogo, em Agatha, imaginava se ela já levara a menina para casa.
Ele não processara a ideia de adotar uma criança, apenas autorizara a esposa a
fazer o que queria. Enquanto estava distraído com questões variadas, ela
chegou.
Ela, a mulher mais fatal de toda Londres. Enquanto alguns acreditavam
que fosse Caroline Eckley, Edward sabia que a sobrinha do marquês era mais
solitária do que perigosa. Mas aquela não, ela devorava homens como uma
viúva negra. Serviria as cabeças dos aristocratas no desjejum, se canibalismo
fosse uma prática tolerável. Fazia algum tempo, estava obcecada pelo conde.
Antes de se casar, Edward frequentou a cama da Marquesa de
Cunningham. Constance Laroche era a prima distante do Duque de
Cambridge e a maior conquista de Joseph McLelland, o marquês. Com
cinquenta e dois anos, era mais velho e enrugado que alguns homens de mais
idade, e alguns diziam que era impotente. Tivera três filhos homens com o
casamento anterior e não precisaria casar-se novamente, se não estivesse
falido. O dote de Constance garantiu ao marquês a retomada de sua saúde
financeira, mas ele estava longe de satisfazê-la. A marquesa estava sempre
faminta.
Edward chegava a temê-la. Depois que se casou, Constance manteve uma
agradável distância que ele considerou um alento. Ela teria encontrado outro
objeto de diversão. Estava enganado. Naquela noite, enquanto bebia um
pouco além da conta e sentia os efeitos do álcool com mais intensidade, ela
decidiu que o queria.
— Protejam suas bolas — Sawbridge alertou. — Constance está com cara
de quem veio para caçar.
— Ela já escolheu sua presa. — Oglethorpe deu dois tapinhas no ombro
do conde. — Boa sorte, meu amigo. Vai precisar, para enfrentar essa serpente
na cama.
— Não vou para a cama com ela. — Edward chacoalhou qualquer
imagem mental que representasse ele e uma deusa loira e fatal em uma cama,
fazendo todo tipo de depravação.
— Ah, não vá me dizer que também decidiu ser fiel à sua esposa? —
Miles deu uma gargalhada. — Por Deus, Edward. Isso é coisa de burgueses!
— Assim me ofende — Oglethorpe resmungou. — Eu sou fiel porque
amo minha esposa. E porque, se não for, ela me matará enquanto durmo.
— Você também ama sua esposa, Edward? — Sawbridge provocou.
— Vão se foder, os três. Apostem ou caiam fora.
Os amigos ainda riam quando Constance se aproximou da mesa. Ela
usava um vestido preto com detalhes em amarelo. Ninguém usava preto,
apenas as mulheres de luto. A marquesa não se importava. Preto realçava a
cor de seus cabelos, dizia.
— Ora, se não é meu quarteto preferido. — Sorriu para a mesa e ocupou
um espaço entre Edward e Oglethorpe.
— Não atrapalhe o crupiê, Constance — Miles reprovou. — Estamos
ocupados.
— Percebo que sim. Mas adoro vê-los jogar, são sempre tão
competitivos.
A assistente do diabo debruçou-se sobre a mesa e exibiu os fartos seios
quase saltando do decote. Edward desviou o olhar. Ela pendeu para o lado
dele e recostou-se em seu ombro. O cheiro de rosas, adocicado demais,
incomodou suas narinas. Ele deveria ter saído dali enquanto podia, mas o
uísque o deixou lento. Enquanto o jogo transcorria, Constance tombava cada
vez mais sobre si. Até que, quando percebeu, ela estava com uma perna sobre
as suas.
— Constance, hoje não — ele rosnou, próximo aos ouvidos dela. — Por
favor, não me provoque a fazer uma cena. Afaste-se.
— O que houve, meu conde querido? — A carrasca de Hades se virou e o
enlaçou pelo pescoço. Edward retirou-lhe os braços, a expressão impassível.
Mesmo que ele não a desejasse e estivesse incomodado com a proximidade, o
corpo feminino provocava sua masculinidade. — Não está pensando que vai
se livrar de mim, está?
— Estou casado agora.
— E desde quando o casamento te deixou impotente? — Constance levou
a mão ao meio das pernas de Edward, tocando-o em seu membro quase
rígido. Ele se afastou bruscamente e quase caiu da cadeira em que estava
sentado. — Pelo visto, seu mastro está pronto para hastear a bandeira, meu
querido.
O conde proferiu alguns insultos que nenhuma mulher respeitável deveria
ouvir. Não queria uma cena, mas acabou não conseguindo evitar. O problema
não estava nos amigos que o observavam com expressões diabólicas, mas na
outra plateia. Enquanto se ajeitava para expulsar Constance de vez ou voltar
para casa, Edward se virou e congelou onde estava. Seus músculos viraram
granito quando, parada logo na porta do salão, estava sua esposa.
Dois homens falhavam em retirá-la do lugar. Ela segurava um xale nas
costas e olhava diretamente para ele. Não dava para saber quanto ela viu, nem
o que a cena lhe pareceu. No meio segundo em que Edward hesitou para ir
até ela, Agatha marchou para fora do prédio.
CAPÍTULO VIGÉSIMO
P OR HORAS A FIO , o Conde de Cornwall girou por seu quarto sem conseguir
pregar o olho. Encheu um copo de uísque, depois o atirou na parede,
espalhando vidro estilhaçado por todo o chão. O valete apareceu para ver o
que acontecia, mas foi dispensado. Edward abriu e fechou a porta mais de dez
vezes. Decidia ir atrás da esposa, depois o juízo o convidava a desistir. Sabia
que, se fosse atrás dela, apanharia. Fizera algo imperdoável.
Não por causa da marquesa, Edward tinha a consciência limpa quanto
àquilo, mas Edward rejeitara o sentimento por Agatha. Ela ouviu. Ela sabia
que ele dissera que a amava e depois agira de forma incompatível com isso.
Para completar o cenário de um teatro de horror, ele ainda a acusara de não
ter se casado virgem.
A irritação e a bebedeira fizeram com que batesse a cabeça na parede
várias vezes. De propósito. Quando a luz do sol entrou pelas janelas e o céu
alaranjado coloriu a cinzenta Londres, Edward decidiu fazer alguma coisa.
Chamou o criado pessoal, lavou-se e vestiu-se. Depois, arrancou de Brett os
motivos que levaram Agatha até Riderhood naquela madrugada. Ao descobrir
que fora por causa da criança, foi ao orfanato.
Passou no departamento de menores e conseguiu a documentação
necessária para levar a menina para sua casa. Depois de explicar várias vezes
a mesma coisa e precisar expor seu título para três pessoas diferentes, a
papelada ficou pronta e ele pôde prosseguir.
Sua aparência era a de um homem que não dormira. Se tivesse sido
atropelado por uma horda faminta ou um séquito de carruagens estaria em
melhor forma. Os cabelos, mesmo penteados, tinham arrepiado no topo da
cabeça. A gravata estava mal arrumada. Edward sentia calor, fome e uma
maldita dor de cabeça. A voz estridente da diretora do orfanato em seu
ouvido não o fazia sentir-se melhor.
— Sra. Havisham, eu só preciso que traga a criança até mim — o conde
falou, apontando mais uma vez para o documento sobre a mesa. — Não é
necessária uma aula sobre responsabilidades. Tenho quatro irmãos, sei muito
bem sobre responsabilidades.
— Tenho plena certeza de que o senhor…
— A criança, Sra. Havisham. — Edward estava no limite entre pedir com
educação e atirar a mulher pela janela. Ele jamais bateria em uma dama, mas
estava prestes a reconsiderar sua educação.
A diretora, não satisfeita por ser silenciada, deu a ordem para que
buscassem Lavinia. Edward não a conhecera antes, mas entendeu os motivos
pelos quais Agatha se encantou pela pequenina no instante em que ela chegou
à sala da diretoria. Era uma garotinha magra, muito branca e de olhos
enormes, dourados como os cabelos dela. O conde nunca vira olhos como
aqueles. Ela estava maltrapilha, com roupas gastas e sapatos rotos, mas
mantinha uma aura angelical que o deixou desarmado.
— Lavinia, esse é o Conde de Cornwall — a diretora disse. — Ele vai
levá-la para conhecer a casa dele. Você gostaria de ir?
Edward ajoelhou-se e olhou para a menina diretamente. Ela o fitava com
curiosidade.
— Eu sou o marido da Agatha. Você a conhece, não é mesmo?
A menina assentiu com a cabeça e segurou a mão do conde. Ele sorriu.
Mesmo em frangalhos, aquele toque cuidadoso da mãozinha de Lavinia fez
com que ele se sentisse aquecido por dentro.
— Não a devolva, milorde — a diretora insistiu. O pesar em seus olhos
indicava que ela realmente se importava com aquela criança. Não era algo
comum de se ver. As crianças em orfanatos eram comumente exploradas e
maltratadas. — Esses pequenos já sofreram muito. Se ela passar pela
experiência de uma família e for devolvida, não sei se poderá se recuperar.
— Não temos a intenção de devolvê-la.
Conduzindo a garota pela mão, Edward a levou para casa. Tinha alguma
dúvida sobre os motivos que o levaram a buscá-la. Queria fazer algo para
aplacar a ira de Agatha, impedir que ela fosse embora. Queria mostrar para a
esposa que se importava. Depois de ter se mostrado um ogro insensível, ele
precisaria levar o orfanato inteiro consigo para se redimir.
L AVINIA ERA uma criança quieta e introspectiva. Durante o dia que passaram
juntas, ela pouco interagiu com o ambiente. Na intenção de fazê-la mais
ativa, Agatha decidiu levá-la para comprar coisas para o quarto que estavam
ainda montando.
A condessa mobilizou todos os empregados da casa para arrumarem um
dos quartos para a menina, mas nada em McFadden Garden era adequado a
uma criança. As coisas antigas de Wilhelmina estavam em Kent, não havia
brinquedos ou roupas de menina em Londres. Apesar do lindo quarto e das
cortinas cor-de-rosa, aquele espaço não parecia pertencer a uma garotinha.
Agatha queria que Lavinia tivesse de tudo. O que ela teve e o que ela não
teve — o amor de uma mãe. Se arrumou, pegou a menina pela mão e saiu,
com a companhia de Moira. Foram até a algumas lojas encomendar vestidos,
bonecas e outros brinquedos que Lavinia gostasse. O conde havia dado a ela
tanto dinheiro que talvez não pudesse gastá-lo todo em uma vida, então quis
fazer as vontades de sua filha.
Filha. Era isso que Lavinia seria. A criança que a ajudaria a extravasar
aquele arrobo maternal que não passava. Ela precisava da menina mais do
que a menina precisava dela.
No retorno para casa, Agatha pediu que o cocheiro as levasse ao Hyde
Park. Já estava tarde, mas a luz do dia ainda demoraria a se esvair. Mesmo
que fosse bastante incomum uma condessa andar pelas ruas em longos
passeios com sua filha adotiva, Agatha não gostava de ser comum.
— Ah, eu adoro as flores no verão — Agatha decidiu falar para provocar
a atenção de Lavinia. Ela iria trabalhar a dificuldade de fala da menina com
profissionais, se fosse preciso. — São tão coloridas e cheirosas. Gosta de
flores, Lavinia?
A garotinha balançou a cabeça positivamente. Agatha recolheu algumas e
colocou no cabelo dela.
— Pronto, agora ficou ainda mais linda. Céus, você é tão loira e perfeita
que parece até a filha de Elizabeth.
Moira riu, caminhando atrás dela. A condessa gargalhou de sua própria
tolice. Continuaram caminhando até que um mau pressentimento fez com que
Agatha levasse a mão à nuca. Uma dor aguda a estremeceu por completo e
fez com que virasse o rosto para o lado. Então ela o viu.
Agatha reconheceria aquele rosto em qualquer lugar. Mesmo em uma
multidão de homens, ela saberia que era ele. Só nunca imaginara que o veria
novamente. Precisava manter a maior distância possível daquele demônio.
Por um segundo, quis correr. Seus pés não obedeceram, nem quando o sorriso
diabólico de Colton Bristol reluziu sob o sol fraco do final de tarde. Ele vinha
na direção dela.
Não era possível que ele estivesse em Londres. O coração de Agatha
retumbou uma sinfonia desafinada e ela apertou a mão de Lavinia. Moira se
aproximou, pressentindo também algo errado.
— Ora vejam, se não é a minha flor do campo.
A voz dele afetou-a. Agatha começou a suar, as luvas ficaram úmidas.
Quis gritar, mas não podia. Aquele era seu maior, pior e mais hediondo
segredo.
— O que está fazendo aqui?
— Vim por você, queridinha. — Colton tentou tocá-la nas mãos, mas
Agatha cruzou-as nas costas. — Meu irmão está com a sensação louca de que
te ama e quer se casar com você. Reparar sua honra, entende?
Os olhos de Colton desceram para Lavinia, que o encarava sem qualquer
constrangimento.
— Gareth está aqui, também? — Agatha tentou falar de forma tranquila,
mas estava tremendo. Seu corpo parecia prestes a colapsar.
— Essa é a bastarda? — Colton não a respondeu. — É uma menina? Não,
não pode ser. Ela teria que ser um bebê.
Lavinia escondeu-se atrás das saias de Agatha. A cor sumiu do rosto da
condessa. Não havia quase nada de sua dignidade para salvar naquele
momento.
— Moira. — A voz saiu esganiçada, mas ela precisava reassumir o
controle. — Leve Lavinia para a carruagem.
— Senhora, eu não acho que…
— Agora, Moira. Pegue-a e leve-a para a carruagem. Eu preciso ter uma
conversa com esse senhor.
A criada não quis se mover. Agatha a encarou com irritação. Um misto de
sentimentos a deixava confusa e nervosa. Ela queria matar Colton Bristol.
Quando o vira se aproximando, teve medo, o ar faltou aos seus pulmões,
então o medo se transformou em estupefação. Ela não acreditava que o diabo
em carne e osso estivesse em Londres. No momento em que a estupefação
virou ódio, ela agradeceu a Deus por não ter uma pistola em sua bolsa. Se
estivesse com uma arma, ela atiraria em Colton. A sangue frio. Se regozijaria
em vê-lo sangrando até a morte.
— Acho melhor obedecer a sua senhora — o homem desprezível disse.
— Ela virá comigo para um passeio.
Moira decidiu afastar-se um pouco. Pegou a criança no colo e foram olhar
as flores do outro lado. Continuava à vista, porém, não podia ouvir o que
conversavam Agatha e Colton.
— Não vou com você a lugar algum. E aquela não é sua filha. O filho que
você colocou dentro de mim morreu no parto. Sua semente ruim não vingou.
Os olhos do americano cintilaram. Havia fúria em sua expressão
debochada.
— Melhor. Eu detestaria ter que encarar o bastardinho toda vez que a
família se reunisse.
— Colton, não sei que tipo de doença mental você e seu irmão têm. Mas
eu não farei parte de sua família, nunca. Eu estou casada, sou a Condessa de
Cornwall.
— Casamentos podem ser anulados. O seu marido nobre já sabe que você
está arruinada? Sabe que você carregou um bastardo na barriga?
— Edward me ama. Ele sabe tudo e prometeu nunca deixar que nada
mais aconteça comigo. Também prometeu matá-lo. Se eu fosse você, iria
embora de Londres no primeiro navio de volta. Meu marido raramente deixa
de cumprir uma promessa.
Agatha disse aquilo sem perceber a profundidade de suas palavras. Ela
disse o que sabia, o que sentia. Edward a amava sim e ele mataria Colton com
as mãos nuas se fosse para protegê-la. Como ela fora tola em achar que ele a
trairia naquele antro de Riderhood. Caroline sempre esteve certa, mas a
insegurança de Agatha a fez ficar cega.
— Veja bem, florzinha. Eu não me importo com você, nem com seu
marido. Mas meu irmão te quer. Convença-o a desistir dessa burrice e vamos
embora. Não há diversão nesta cidade, já estou ficando entediado.
— Eu não vou falar com Gareth nem convencer ninguém. Não fiz
nenhuma promessa a ele. O maldito do seu irmão deixou que você me
violasse!
— Não faça uma cena, florzinha. Você virá comigo, por bem ou por mal.
Colton sacou uma pistola da cintura. O sangue de Agatha congelou pela
segunda vez. Olhou ao redor e não viu ninguém além da criada e da filha
adotiva. Como não havia ninguém no Hyde Park àquele horário? Talvez, se
ela gritasse, aparecesse socorro, mas foi tudo muito rápido. O americano a
segurou com pelo braço e a arrastou. Agatha quis protestar e começou a se
debater, fazendo com que ele batesse nela.
— Por Cristo, cale a boca.
Colton Bristol acertou a pistola na cabeça de Agatha, fazendo com que
ela ficasse tonta. Continuou arrastando-a para dentro de uma carruagem
alugada, enfiou-a pela porta e ordenou ao cocheiro que seguissem para a
hospedaria. O americano passara o dia negociando em Londres e alugara uma
casa para que tivessem mais privacidade. Pegaria as coisas, arrumaria uns
dois criados e levaria Agatha com ele.
Ela tinha certeza de que Colton não se importava com ela — não se
importava com nada —, mas insistia em sequestrá-la, em conduzi-la para um
lugar qualquer contra a sua vontade, apenas porque o irmão assim desejava.
Um pouco atordoada pela pancada, sem conseguir reagir direito, Agatha
não impediu quando ele amarrou as mãos dela. Ou quando colocou um pano
em sua boca para que não gritasse ou pedisse por ajuda. Naquele instante, ela
teve medo porque entendeu que Colton era louco. Não podia ser apenas um
maldito desprezível, ele tinha que ter perdido completamente o juízo.
Quando Edward descobrisse que ela havia sido raptada por ele, Agatha
sabia que o marido o mataria, e ela não faria questão de pará-lo.
J OHN AGUARDAVA ansioso a chegada do Duque de Shaftesbury. Parado na
porta, pretendia interceptar seu patrão antes que ele entrasse na casa.
Precisava contar a ele o que acontecera. John sabia que havia algo errado com
aquele homem procurando pela condessa. O barulho da carruagem foi um
alívio para o mordomo. Bastou o duque pisar na soleira para ser surpreendido
pelo criado.
— Vossa Graça, há algo que preciso lhe contar.
Aiden sentiu o coração falhar uma batida. Aquela atitude de John fez com
que pensasse que algo acontecera com Elizabeth, com os bebês, ou com os
meninos. Ele tinha muita gente para cuidar, iria envelhecer dez anos em um.
— O que houve, John?
— Hoje um cavalheiro esteve no portão procurando por lady Agatha
Trowsdale.
— Um cavalheiro? Que cavalheiro?
— Ele não deu o nome, Vossa Graça. Mas ficou bastante abalado quando
disse que ele deveria procurar a Condessa de Cornwall. Pelas vestes e pelo
sotaque, ele parece americano.
Problemas. Aiden tinha certeza de que John lhe trazia problemas. Um
homem americano batendo à sua porta, depois de Agatha ter passado um ano
nas Américas, só podia significar coisas com as quais o duque não queria
lidar. Ele sabia que havia algo que sua irmã escondia. Sabia que algo
acontecera em Nova Iorque e seus investigadores não foram capazes de
descobrir o que foi. Aquele homem podia ser parte do mistério.
— Certo. Vou contar isso a Edward. Ele está em Riderhood, por favor,
avise à duquesa que vou me atrasar para o jantar.
— Ela certamente compreenderá vossas razões.
— Deus te ouça.
John sorriu e Aiden foi até o estábulo. Pegou seu cavalo e galopou para a
casa de jogos de Riderhood. Se confrontasse Agatha sobre o misterioso
homem, ela mentiria para ele. Agatha vinha escondendo coisas desde que
chegara das Américas e não seria naquele momento que ela decidiria se abrir.
Conversaria com Edward e deixaria que o marido dela resolvesse a questão.
Antes mesmo de entrar no clube de Riderhood, Aiden percebeu a
comoção do lado de fora. Os criados iam de lá para cá, e o motivo era a briga
que acontecia no bar. O duque chegou a tempo de arrancar seu amigo conde
de cima de um homem antes que ele o matasse.
— Mas o que diabos está acontecendo aqui?
Aiden agarrou Edward pela camisa e o puxou para trás. O duque era
muito grande e forte e, ainda assim, precisou se esforçar para separar o conde
do resto humano que jazia no chão. O homem, desfigurado, tinha uma massa
amorfa de sangue e pele no lugar do rosto. Os olhos estavam inchados e
fechados. Ele parecia inconsciente.
— Solte-me, Aiden. Solte-me porque eu vou matar esse desgraçado.
— Quem é ele? Por que precisa matá-lo de forma tão brutal?
— Porque esse é o canalha que…
Edward se aprumou de repente e virou-se para o duque. Havia sangue na
camisa, no colete e na gravata do conde, que já se havia transferido para a
roupa de Aiden. Suas mãos estavam vermelhas e ele suspeitava que tivesse
quebrado algum osso. O duque percebeu que ele se refreou para não contar
alguma coisa e ele não toleraria mais ser enganado.
— Ele é o canalha que fez o quê? — Aiden olhou ao redor. — Alguém
neste lugar vai abrir a boca e me contar o que esse monte de ossos fez para
tirar o sempre comedido Edward McFadden, o Conde de Cornwall, de seu
regular comportamento. Quem é esse coitado?
— O nome dele é Gareth Bristol — Sawbridge disse, pegando um
conhaque para os dois. — É americano.
— E os senhores decidiram deixar que o conde o matasse de pancada por
quê…
— Porque ele merece morrer — Riderhood foi quem intercedeu daquela
vez. — Não gosto de brigas no meu estabelecimento e raramente permito
esse tipo de espetáculo. Mas esse patife falou coisas da condessa que, se fosse
da minha esposa, eu já o teria metido debaixo de sete palmos de terra.
Aiden estava começando a fazer as conexões. Aquele deveria ser o
americano que esteve em Trowsdale House procurando por Agatha.
— O show acabou. — Aiden indicou que os homens deveriam dispersar.
— Alguém pegue gelo para as mãos de Edward. Até eu descobrir o que
houve, ninguém toca no desgraçado que estava sendo espancado. E sirvam-
nos mais conhaque.
O movimento da casa de jogos voltou ao normal, como se nenhuma briga
tivesse acabado de acontecer. Os homens que estavam no salão de jogos
retornaram para ele. O barman encheu os copos do duque, do conde e de seus
amigos, Sawbridge e Miles Westphallen. Um segurança de braços roliços
parou ao lado de Gareth Bristol, que gemia e se retorcia.
— Contem-me.
Aiden se sentou próximo ao homem e cruzou os braços, encarando os
amigos. Edward tremia por completo e seus olhos não saíam do americano. O
duque tinha certeza de que, se não tivesse tirado o conde de cima do coitado,
ele o teria matado.
— Não adianta mais esconder. Todas as pessoas ouviram esse traste
dizer. — Edward virou seu drinque em um gole. O álcool desceu rasgando a
garganta. — Quando esteve em Nova Iorque, Agatha se apaixonou por ele.
O conde apontou para Gareth e contou o que sabia sobre a história. Ele
prometera à esposa que nunca falaria daquilo para ninguém, mas o próprio
homem tinha aberto a boca e exposto toda a intimidade dela. Enquanto
falava, Edward quis matá-lo mais três ou quatro vezes. Manteve-se sob
controle, mas não podia confirmar por quanto tempo se seguraria.
— E você sabia disso. — Aiden demorou minutos para formular uma
frase. — Sabia e não me contou quando te perguntei?
— Não era meu segredo para dispor, Aiden. E Agatha é minha esposa.
Cabe a mim lidar com essas coisas, agora.
O duque olhou para o chão. Gareth tentava sentar e passava as mãos pelo
rosto. Os olhos estavam fechados, havia dentes trincados e o rosto estava
amassado. Depois, olhou para as mãos de Edward. Sangravam por cortes nos
nós dos dedos e por lesões causadas pelos dentes do homem que ele surrou.
— Estava lidando muito bem, como um animal irracional. Parabéns, você
é oficialmente um tolo apaixonado por sua esposa.
— Cale a boca.
— Não seja infantil. Assuma o que sente, porque ninguém quase mata de
pancadas um homem pelo que esse daí nem fez se não fosse por amor. Onde
está Agatha agora? Ela sabe que esses trastes estão em Londres?
— Não sabe. Preciso ir até ela.
O conde se levantou e ajeitou a camisa. Não havia muito o que fazer, ele
tinha sangue por todos os lados. Passou as mãos avermelhadas pelos cabelos,
limpou as manchas do rosto com um pano úmido e deixou algumas moedas
sobre o balcão para pagar a conta e cobrir os estragos com o homem.
— Vou com você. Preciso garantir que chegue inteiro até McFadden
Garden. Você está em frangalhos, meu amigo.
— O que fazemos com ele? — Sawbridge perguntou.
— Por mim, que apodreça. — Edward cuspiu sobre as roupas de Gareth
Bristol. — O irmão dele ainda receberá uma visita minha amanhã.
Os dois amigos saíram da casa de jogos em direção à casa do Conde de
Cornwall. Cada um em seu cavalo, trotaram rápido demais pelas ruas mal
iluminadas de Londres. Mesmo em Mayfair, a iluminação noturna não era a
melhor para garantir a segurança de quem transitava.
Chegaram até a McFadden Garden com rapidez. Edward estava nervoso e
agitado. Não sabia como contar a Agatha o que acontecera. Que os irmãos
Bristol estavam em Londres. Que Gareth revelara todos os seus segredos.
Pior. Ele não sabia como perguntar a ela por que diabos ele dizia que tinha
com ela um filho bastardo. O motivo pelo qual o homem disse, para todos
naquele bar, que Agatha e ele tiveram um filho juntos.
Não teve tempo de decidir o que fazer. Assim que chegou à sua casa,
descobriu que sua esposa não estava. E ninguém sabia aonde ela tinha ido.
CAPÍTULO VIGÉSIMO SEGUNDO
— C OMO ASSIM , ela não está em casa? — Edward perguntou pela terceira
vez, sem dar a ninguém a chance de uma explicação. Ele girava pelo salão, e
nem mesmo Aiden conseguia acalmá-lo.
— Se você parar com esse espetáculo, vamos descobrir — o duque
rosnou, já irritado. — Moira, conte tudo, desde o início.
— Aquele homem horrível levou a condessa com ele. Ela me mandou
afastar, mas eu fiquei perto o suficiente para ver. Sei que ela não foi de boa
vontade, ele a arrastou para uma carruagem.
— Que homem? — Edward parou na frente da criada. Seus olhos
estavam flamejando pelo ódio por Gareth Bristol e pelo pavor em saber que
Agatha fora interceptada por um homem qualquer cuja identidade ignorava.
— Eu não sei, milorde. Nunca o vi, antes. Mas ele chegou falando coisas
horríveis com a condessa. Chegou a perguntar se… se… — Moira olhou ao
redor e sussurrou: — Se Lavinia era a filha bastarda dele. Não sei o que isso
significa, milorde. Sei que a senhora estava muito nervosa.
Edward pressionou as têmporas, nervoso. Só de pensar que Agatha estava
em qualquer lugar com Colton Bristol, o irmão que a violentou, fazia com
que ele desejasse arrancar algumas cabeças. E, novamente, aquela história do
bastardo. Fosse o que fosse, ele precisava recuperá-la. Se ela estava com o
maldito, então ela estava em perigo.
— Para aonde eles foram?
— Não vi, milorde. Quando ele a fez entrar na carruagem, eu voltei
correndo para casa para avisar Brett.
— Maldição! — Edward bateu na parede com as duas mãos. Apoiou a
testa e ficou ali por alguns segundos, respirando com dificuldade. Seu arrobo
assustou Moira, que soltou um soluço alto. Ele não queria que os criados
pensassem que estava ficando louco, mas ele estava. — Vou voltar ao
Riderhood. Tenho que descobrir onde esses animais estão hospedados.
— Acha que ele a levou para uma hospedaria? — Aiden estava atordoado
com toda a história. Ele não conseguia reagir normalmente. — Parece
arriscado demais e eles devem ser covardes.
— Eu não sei o que achar. Mas eu vou até o inferno procurando aquele
maldito.
— Então vamos logo. Se ele encostou um dedo na minha irmã, terá que
me segurar para que eu não o mate primeiro.
Os dois homens pegaram seus cavalos e voltaram à casa de jogos. Se o
próprio Gareth Bristol ainda estivesse lá, eles o fariam falar. Se não estivesse,
Riderhood teria a informação. Não havia sócio daquele clube que não tivesse
a vida investigada. Estrangeiros podiam participar temporariamente do clube,
mas precisavam deixar endereço em Londres. Eles descobririam onde
encontrar Colton, por bem ou por mal.
A HOSPEDARIA indicada por Riderhood era uma das melhores de Londres. Os
irmãos não fariam um escândalo por lá. O estalajadeiro era um homem
respeitável e que nunca tolerou desordem em seu estabelecimento. Edward
sabia que eles não manteriam Agatha cativa se estivessem por lá. Tanto que,
quando chegaram, foram informados que os irmãos tinham encerrado a conta
e saído da hospedaria naquele dia.
— O senhor deve saber para aonde foram — foi o duque que perguntou,
esforçando-se para ser educado. O conde estava a ponto de revirar todos os
quartos e arrancar todas as pessoas de dentro deles. — Quando fecharam a
conta, não contaram nada? Esses homens são falantes, gostam de contar
histórias.
— Lamento, Vossa Graça, mas tudo que sei é que um deles estava
procurando casas para alugar. Aparentemente, passariam um tempo mais
longo em Londres e preferiam privacidade. Mas… — O estalajadeiro parou
por um minuto e chamou uma pessoa com um gesto. Aiden e Edward se
viraram e uma criança se aproximou. — Eles contrataram o pai de Gillie para
trabalhar com eles. Talvez ela saiba.
Edward ajoelhou-se à frente da menina e colocou as duas mãos nos
ombros dela.
— Gillie, precisamos saber onde seu pai está trabalhando. Os homens que
o empregaram estão com a minha esposa e eu preciso buscá-la.
A menina olhou para o estalajadeiro, que assentiu para que prosseguisse.
— Não sei dizer onde fica, mas posso mostrar.
— Poderia nos levar até eles?
Gillie balançou a cabeça afirmativamente. Nem Aiden nem Edward
gostariam de levar uma criança para a confusão que estavam prevendo, só
não havia opção. Para evitar problemas, pediram à mãe da garota, que era
empregada da hospedaria, para acompanhá-los. Iriam em uma carruagem
aberta e fariam as duas retornar a salvo assim que encontrassem a casa.
Quanto mais os segundos passavam, mais Edward ficava nervoso. Ele
pegou o relógio do bolso várias vezes e contou cada volta do relógio por
quinze intermináveis minutos. Quando se puseram em movimento na direção
indicada pela menina, ele ficou ainda mais nervoso.
Não sabia o que faria quando encontrasse Agatha. Ele provavelmente
mataria os dois irmãos, isso se Aiden não os matasse antes. Apesar da
aparente elegância e contenção do duque, Edward sabia que havia um
monstro assassino dentro do amigo. Aiden era educado, polido e gentil até ser
provocado. Se alguém que ele amasse estivesse em perigo, ele não mediria
esforços para eliminar os riscos. Edward, não era muito diferente. O
sentimento que crescia em seu peito misturava medo, ansiedade e desespero
com fúria. Ele queria abraçar sua esposa e colocá-la a salvo tanto quanto ele
queria exterminar os Bristol como se fossem insetos.
A casa indicada ficava na Hanover Square. Os homens pediram ao
cocheiro que parasse alguns metros antes para que o barulho dos cascos dos
cavalos não alarmasse quem nela estivesse. Edward dobrou as mangas da
camisa, mesmo que ela já estivesse desgrenhada demais para fazer alguma
diferença. Aiden arrancou a gravata e repetiu o gesto do amigo.
— Vou pelos fundos, você bate na porta da frente. Assim, eles ficam
cercados.
O duque indicou a estratégia. Sussurrava, já na calçada da residência,
notando que havia iluminação interior.
— Para o inferno com as estratégias, Aiden. Quero minha mulher de
volta.
Edward enfiou o pé na porta principal. A madeira se partiu em um
estrondo. Não havia dobradiça forte o suficiente para segurá-lo.
— Bristol! — o conde gritou, rugindo como um leão. — Apareça,
covarde, e me enfrente!
Um criado escondeu-se na parte dos fundos. Edward olhou ao redor para
reconhecer o lugar. Paredes decoradas com papéis de parede damasco,
quadros e objetos pontiagudos. Sofás, uma lareira acesa e muita iluminação.
Passos pelo andar de cima chamaram a sua atenção. Aiden correu para as
escadas enquanto o conde pegou uma espada que fazia parte da decoração.
Colton apareceu, descendo as escadas. Segurava Agatha à sua frente e
uma pistola apontada na direção dela.
— Ora, vejam, é o marido. E, pelo visto, trouxe um ajudante.
— Ajudante? — Aiden cruzou os braços no peito e encarou o irmão
Bristol. Era fácil perceber que ele tremia enquanto segurava a arma. Podia ser
arrogante, mas Colton não estava acostumado a ameaçar condessas com uma
pistola, nem a enfrentar dois nobres vigorosos. — É a isso que me reduzi?
Fique sabendo, Sr. Bristol, que sou o Duque de Shaftesbury. Também fui o
Marquês de Hedley, o Conde de Norfolk e o Visconde de Bradbury.
— Precisa recitar todos os seus títulos neste momento? — Edward
reclamou
— É bom que o homem saiba ao menos o nome de quem vai arrancar as
tripas dele pela boca.
— Calem-se, os dois — Colton berrou. — Eu quero que saiam da minha
casa, ou terei que devolver a belezinha aqui com um furo no meio dos olhos.
Os olhos de Edward se estreitaram. Ele também percebeu que o homem
tremia. Havia cheiro de álcool no ar, indicando que Colton bebera. Enfrentar
um homem desesperado era uma coisa. Um desesperado e bêbado, era outra.
Exigia estratégia, algo que Edward não estava disposto a traçar. Ele estava a
ponto de enfiar a espada no coração de Colton antes que o maldito pudesse
firmar o dedo no gatilho.
— Agatha, você está ferida?
Ela balançou a cabeça, negando. Continuava com as mãos amarradas e a
boca coberta por um pano.
— Solte-a, Bristol. Seja homem e me enfrente como um. — Edward
pegou outra espada da decoração e estendeu a ele.
— Edward… — Aiden murmurou, preocupado com o que viria a seguir.
— Só um covarde como você se esconde atrás de uma mulher. Vença-me
e poderá sair de Londres. Caso contrário, você será caçado até o final dos
tempos. E tenha certeza, eu vou te achar.
O conde tinha uma postura impassível. Ele não tremia um músculo, não
piscava nem escorria de sua pele uma gota de suor. Apesar de o cabelo
despenteado e das mãos inchadas de tanto socar Gareth Bristol, Edward
estava inabalável.
— Entregue-a para mim. — Aiden se aproximou dois passos. — Prometo
não interferir, e sou um duque. Duques sempre cumprem suas promessas.
— Fodam-se seus títulos. — Colton deu uma gargalhada. — Vocês não
podem ferir meu irmão impunemente. Vou sair agora desta casa e levarei a
princesinha comigo. Não tentem me impedir.
Edward e Aiden se olharam. Precisavam de uma armadilha para impedir
que o americano passasse por eles. Não podiam pular sobre ele enquanto o
cano de uma pistola estivesse apontado para Agatha. A sorte lhes acenou no
instante em que um barulho no andar de cima chamou a atenção de todos.
Bastante lesionado e com os olhos excessivamente inchados, Gareth
Bristol pendurou-se nos balaústres que cercavam os corredores superiores e
chamou o irmão. Foi uma fração de segundo. Colton olhou para cima e
afrouxou o dedo do gatilho, a pistola deslizou para o lado. Nesse instante, o
duque pulou sobre ele e fez com que a arma voasse para o lado.
Aiden puxou Agatha para si e a soltou do seu captor. Desarmado e sem o
trunfo da condessa sob seu controle, Colton recolheu a pistola no chão e
tentou correr para os fundos. Era sua chance de fugir. Edward foi atrás dele.
Enquanto isso, o duque soltou as mãos e descobriu a boca da irmã.
A porta dos fundos estava trancada. As janelas, naquela direção, também
estavam. Colton acabou preso na cozinha. Não havia para onde escapar. O
conde parou na porta que ligava o cômodo ao restante da casa e encarou o
americano, que estendia o braço e lhe apontava a arma.
— Você só tem um tiro, Bristol. Se parar para carregar, eu te mato. Então,
é melhor me matar primeiro.
Agatha gritava na sala, mas ele não iria ouvi-la. Não podia ouvi-la ou ela
tentaria impedi-lo de fazer o que tinha que ser feito. Trêmulo, Colton Bristol
mirou e atirou, mas ele não foi preciso o suficiente. O tiro acertou o ombro de
Edward. O chumbo ardeu quando penetrou a carne e o impacto fez com que
ele virasse o corpo para o lado. Isso não o demoveu. Assim que o tiro foi
proferido, o conde deu cinco passos na direção de Colton e o acertou com um
direto.
O americano cambaleou para trás, o nariz ensanguentado. Edward chutou
a pistola para longe enquanto o homem passava pela porta e tentava voltar
para o mesmo lugar de onde veio. O sangue tornou difícil para que ele
enxergasse e fez com que tropeçasse algumas vezes. O conde o encontrou
novamente no salão. Aiden estava na frente da porta principal.
D E TODAS AS loucuras que Caroline presenciou em sua curta vida, aquela fora
uma das mais loucas. E ela passara meses em um sanatório, cuidando de uma
suposta doença mental depois de ter atentado contra a vida de Lady Madeline
Westphallen.
A dama sentou-se em sua poltrona de veludo vermelho, com botões
acolchoados, e encarou o fundo do copo de vidro. Ela precisava beber mais.
Acabara de dispensar uma noite de amor ardente com Isaac McFadden. Ele
era o homem mais lindo que ela conhecia. Provavelmente, um dos homens
mais lindos de toda a Inglaterra. Quando ele saiu do escritório, ela gastou
bons segundos admirando-o afastar-se. Um traseiro perfeito, esculpido pelo
próprio diabo para tentar as mortais como ela.
E Caroline dissera não para aquele traseiro e todo o seu conjunto. Encheu
o copo com mais do líquido âmbar e virou um gole. O álcool ardeu em sua
garganta e ela tentou compreender o que acabara de acontecer. O homem era
virgem. Nunca estivera com uma mulher e escolheu a ela para acabar com o
celibato. Porque, Caroline não sabia. Mas os motivos que a levaram a recusar
eram claros.
Ela não era uma prostituta. Ao contrário do que os salões londrinos
contavam, os homens com quem ela se deitara se contavam nos dedos. Ela
precisava usar as mãos e os pés, mas, ainda assim, eles cabiam nos dedos de
apenas um ser humano. Caroline alimentava as fofocas porque sabia que não
adiantava combatê-las.
E, se Isaac quisesse dormir com ela, teria que fazer o mesmo que os
outros homens. Seduzi-la. Provocá-la. Fazer com que ela o desejasse.
Com mais um gole, a sobrinha do marquês terminou sua bebida e decidiu
sair. A noite estava apenas no começo para quem apreciava a companhia dos
dados e das cartas. E, apesar de damas não serem muito bem-vindas no clube
de Riderhood, ela tinha entrada livre a qualquer hora do dia.
— Violet. — Chamou a camareira, que estava de prontidão do lado de
fora. Seus criados eram de confiança, mas adoravam espiar pelas portas
fechadas. — Ajude-me a ajeitar o cabelo, eu vou sair.
— Devo mandar preparar sua carruagem, milady?
Caroline assentiu e subiu até seu quarto. Deixou que Violet ajeitasse as
madeixas, que eram mais lisas do que a da maioria das inglesas, em um
penteado qualquer. A conversa com Isaac a deixou agitada, ela precisava
extravasar seu espírito de alguma forma. Depois de pronta e satisfeita com
sua aparência, a lady pegou a carruagem até o clube do amigo Riderhood.
Seus nobres favoritos não estavam presentes. Eles não passavam mais as
noites em clubes de cavalheiros. Caroline precisava substituir Aiden e
Edward de alguma forma, não podia ficar sonhando com os maridos de suas
amigas. Porque, mesmo que Elizabeth e Agatha resistissem, elas eram suas
amigas. Agatha era sua sócia. Ela precisava de outras distrações. Era cada
vez mais difícil acreditar que recusara o segundo filho dos McFadden.
A presença dela não causava nenhum constrangimento no clube. Os
homens estavam acostumados a Caroline Eckley e ela a eles. Nenhum deles
tentava nada que ela não autorizasse primeiro. E eles não se escandalizavam
mais com seu comportamento não convencional.
— Chegou tarde para me ver esvaziar os bolsos do barão.
Sawbridge bateu no tampo de um banco vazio ao seu lado, indicando que
Caroline deveria sentar-se ali. Ela inspecionou a mesa, antes. Jogavam cartas
o empresário, o Barão de Attwood e um estrangeiro que ela não conhecia.
— Sabe que não gosto de frequentar a mesa de estranhos. — Ela aceitou
o convite. — Como estão as apostas?
— Sawbridge está limpando todas as nossas fichas. — Attwood
reclamou.
O empresário moveu os ombros para cima e para baixo, indicando que
não podia ser responsabilizado por sua sorte.
— Considerando que minha cama estará vazia essa noite, estou fazendo
jus ao ditado. Feliz no jogo…
— Não seja ridículo, Grant. A sua cama nunca está vazia. O seu coração,
talvez. Mas eu suspeito que você não tenha um coração. — Caroline jogou
algumas fichas indicando que cobria a aposta, fosse qual fosse. — Apresente-
me seu amigo. Ele fala inglês?
— Claro que fala, ou não estaria jogando conosco. Lorde Ignazio é
italiano, ele e o pai estão fazendo negócios em Londres. Acabou a era da
nobreza indolente, minha querida.
O lorde italiano pegou a mão de Caroline para cumprimentá-la. Espantou-
se ao vê-la sem luvas. Mal sabia que aquela era a menos convencional das
damas a quem ele seria apresentado.
— Piacere, milady.
Ela sorriu. Italianos eram muito sensuais. Não era sem motivo que Lorde
Isaac tinha se interessado por uma dama italiana. Aquilo era uma
coincidência intrigante.
— Vamos acabar com essa coisa melosa e continuar nosso jogo. O crupiê
já está com teias de aranha.
As cartas foram dadas e a jogatina prosseguiu. Depois de várias rodadas,
a sorte de Sawbridge já tinha virado e quem enchia as mãos com as fichas era
Lady Eckley. O barão desistiu algumas rodadas depois e o italiano
abandonou a última mão blasfemando palavras que ninguém no salão
entendeu. Quando o jogo parecia encerrado com apenas dois jogadores e
Sawbridge decidido a não perder mais, outro par de mãos surgiu para
participar.
Isaac McFadden.
Ele estava com as mesmas roupas que estivera na casa dela. Os cabelos
perfeitamente penteados e os olhos brilhando como se absorvessem a luz de
todas as lamparinas do salão. Caroline se incomodou com a presença dele. E
se incomodou por se incomodar.
— Ora vejam, se não é o menino McFadden. — Sawbridge bateu nas
costas do lorde.
— Menino. — Ele riu, erguendo a boca sutilmente. — Diga isso quando
assinar uma promissória para engordar minha conta bancária.
— Se não for atrevido, não é um dos garotos McFadden. Mas informo
que sua adversária, hoje, é Caroline. Ela está possuída pelo diabo.
A lady estreitou os olhos para o amigo empresário e depois encarou Isaac.
Ele olhava diretamente para ela, sem qualquer pudor ou constrangimento.
Aquele homem sempre fora assim? Desinibido e descarado? E lindo? E ela
nunca percebeu?
— Imagino que esteja.
Isaac pagou a aposta e o jogo continuou. Mão após mão, carta após carta,
fichas após fichas, eles protagonizaram uma disputa interessante. Sawbridge
cansou de perder e passou apenas a observar. Por volta das quatro horas da
manhã, Lady Eckley desistiu. Ela raramente desistia, mas o lorde estava
implacável.
— Acho que bebi uísque barato demais. — Ela pegou suas fichas e
colocou dentro de uma sacola de veludo vermelho. — Thomas precisa servir
uma bebida mais qualificada nesse estabelecimento.
— Meu uísque é o melhor de Londres, milady. — O próprio Riderhood
surgiu atrás dela. — Não difame meu malte porque a sorte a abandonou.
— Quando retornar, quero que abra aquele conhaque que fica guardando
para os figurões da indústria. A nobreza perdeu prestígio no seu clube, mas
eu não sou qualquer lady.
Riderhood fez uma reverência e Caroline deixou a mesa despedindo-se
dos homens. Ela não bebeu demais. Nem o uísque era de baixa qualidade. A
sorte talvez a tivesse abandonado. Porém Lady Eckley suspeitava que o
problema fosse um certo par de olhos azuis que a distraiu.
Lorde Isaac nunca a distraía. Ela não o notava muito, na verdade. Quando
notava, achava-o irritante. Ele era muito correto, cheio de valores e
princípios. Ela não suportava homens como ele. Mas a presença dele ali,
depois de ter ido até ela com uma proposta absurda, não era acidental. Ela já
estava quase de volta a sua carruagem quando girou no próprio eixo e voltou
para dentro do clube. O cocheiro ficou confuso, porém todos se acostumavam
com a impetuosidade de Caroline.
Ela caminhou até onde estava Lorde Isaac, sentado no bar. Não, ela
marchou, como um soldado. Segurou-o pelo braço e o arrastou até um lugar
com mais privacidade. Caroline conhecia bem os locais privados daquele
clube. E ela nem estava se importando em chamar a atenção.
— O que o senhor está fazendo aqui?
Os olhos escuros e ferinos enfrentaram o mar azul que parecia confuso ao
encará-la na pouca luz do corredor onde estavam.
— Jogando e bebendo. Sou sócio do clube e o frequento desde os dezoito
anos, milady.
— Veja bem, Isaac, eu sei que falei que poderíamos nos esbarrar por aí,
mas…
— A senhorita disse que eu deveria seduzi-la, milady. — Ele sorriu. —
Pois bem. Passarei semanas em Londres e voltarei a Kent apenas no final da
temporada social. Durante esse tempo, esforçar-me-ei para fazer com que
aceite minha proposta.
— O senhor está obcecado! — Ela esbravejou. As mãos viraram punhos e
a voz de Caroline saiu esganiçada demais. — Encontre uma prostituta e
satisfaça seus desejos, milorde.
— Nunca fui rejeitado por uma mulher, milady. Foi minha primeira
tentativa e foi desastrosa. — O olhar dele ficou sério e intenso. Era como se
os olhos de Isaac derramassem um líquido quente sobre ela, fazendo com que
tudo fervesse. — Não gostei da sensação da rejeição. Posso aprender muito
com a senhorita. Considere isso como uma boa ação. Afinal, a senhorita não
se tornará tutora em uma escola?
Ela ia. Não seria tutora exatamente. Caroline era a dona da escola,
juntamente com Lady Agatha Trowsdale. As coisas saíram mais devagar
porque Agatha era casada, e precisava que o marido fizesse tudo por ela. E
porque ela engravidou e teve uma bebê. Isso atrasou o cronograma, mas a
escola seria inovadora. Caroline em si não tinha nenhuma moral para atrair
moças para seu empreendimento, porém Agatha certamente facilitaria as
coisas. Muita gente acharia interessante colocar a filha para estudar na escola
de uma condessa.
— Escola de jovens damas! — Caroline virou de costas para Isaac.
Qualquer posição era melhor do que continuar encarando aquele olhar. — O
senhor não é uma jovem dama, pelo que me consta.
— Não, eu não sou. — Ele riu novamente e ela o sentiu, mesmo de
costas. — Creio que precisarei mostrar isso à senhorita.
Isaac segurou Caroline pelo braço e fez com que ela se virasse.
Subitamente, prendeu-a pela cintura e deitou sua boca sobre a dela.
A lady sobressaltou-se e colocou as duas mãos no peito dele. Assustou-se
ao tocar uma superfície sólida, dura e quente. Músculos definidos e muito
firmes estavam sob aquele monte de tecido que cobria o corpo de Isaac
McFadden. Caroline desistiu de resistir quando percebeu que ele a beijava
com uma inexperiência encantadora.
A boca dele estava fechada sobre a dela. Isaac parecia nunca ter beijado
uma mulher. Aquilo era ridículo. De repente, ela precisou mostrar a ele o que
era um beijo. Com algum talento e muita experiência, ela acariciou os lábios
dele com a língua. E fez com que ele os abrisse em um susto. As mãos dele
deslizaram pelas costas dela, posicionaram-se na nuca de Caroline e a
seguraram com força e suavidade. Ao mesmo tempo.
Ela não esperava que um virgem tivesse uma boca tão macia. Nem uma
língua tão sedosa. Quando Isaac aceitou as investidas dela e retribuiu o beijo,
desajeitado, Caroline deixou que ele a invadisse com aquele sabor masculino
de uísque e tabaco. E ela o envolveu com os dois braços e colou seu corpo no
dele.
Aquilo era totalmente inusitado. E durou bem menos do que ela desejava.
— Tenha uma boa noite, milady.
Ele se afastou. Repentinamente, Caroline estava sozinha. Desorientada,
extasiada, arrebatada. E sozinha. Aquele lorde tinha o péssimo hábito de sair
dos lugares encerrando a conversa sem que ela estivesse encerrada. Lady
Eckley se acostumara a ter a última palavra. E, pelo visto, Lorde Isaac
McFadden também. Aquelas seriam semanas longas, das quais ela não
poderia fugir. Tinha que cuidar dos preparativos para a inauguração da escola
de moças e não poderia se retirar para o litoral antes do final da temporada.
Caroline nunca enfrentara uma situação como aquela. Precisava de
orientação. Ela tinha que ver Anthony.
E RA APENAS UMA LIÇÃO. Caroline estava decidida a mostrar a Lorde Isaac que
o pedido dele representava mais do que uma noite de prazer. Ela nunca
conseguiu se envolver sexualmente com um homem sem que isso também
representasse um envolvimento emocional. Não que ela fosse uma romântica.
Não havia nenhum romance na vida de Caroline Eckley. Mas ela acabava
desejando mais contato, mais intimidade com os homens com quem realizava
seus intercursos sexuais.
Não havia motivos para acreditar que seria diferente com Lorde Isaac. O
problema era que nenhum dos dois tinha interesse em mais envolvimento do
que o sexo. Ele tinha um objetivo, ela tinha mais de um - e nenhum deles
envolvia um marido ou um amante. Em um futuro próximo, Caroline seria
uma empreendedora, não uma esposa. Ao decidir seguir com um projeto
novo, ela precisava se afastar dos desejos de matrimônio.
Por isso, ela iria beijá-lo. Mostrar como poderia ser um encontro de bocas
digno de uma libertina. Quando os lábios se tocaram, ela o ouviu suspirar e
retesar, fazendo com que segurasse sua lapela para mantê-los conectados.
Caroline subiu as mãos pelos ombros do lorde e o enlaçou pelo pescoço.
Isaac quis mostrar algum protagonismo. Posicionou as mãos na cintura
dela e a puxou para mais perto. Não precisou de muito para que ele
compreendesse como estabelecer um ritmo adequado. Caroline indicou que
ele deveria abrir os lábios e ele demonstrou mais compreensão do momento
do que na primeira vez. Assim que as línguas se encontraram, ele ficou mais
ávido e dobrou o corpo sobre ela.
Com as duas mãos espalmadas no peito dele, Caroline pretendeu
interromper o contato. Mas os dedos delicados delinearam as ondulações dos
músculos sob as três camadas de tecido e ela afrouxou suas defesas. Permitiu
que ele a deitasse no banco. E então ela sentiu como seria se sucumbisse à
vontade dele. Ao menos, em parte.
— Isso, — ela murmurou enquanto ele se permitia uma breve exploração.
— é um beijo, meu querido lorde.
— Parece um pouco mais íntimo do que um beijo. — Ele buscou o ar e
depois enfiou o nariz no espaço entre o pescoço e o ombro de Caroline. A
barba arranhou, fez cócegas em sua pele fina. Ela riu.
— Beijos são íntimos. Todos eles. Se não for de corpo e alma, é só um
toque de lábios que demonstra afeto. Eu só sei beijar assim. Por inteiro.
Caroline deslizou as duas mãos para dentro do casaco do lorde e
acariciou-o por cima do colete. Isaac estremeceu sobre ela quando as mesmas
mãos desceram para seus quadris e forçaram um encaixe perfeito. Nem todas
as camadas de tecido que os separavam conseguiram impedir o encontro do
calor que os corpos produziam naquele momento.
Ele gemeu. Ela o empurrou e fez com que se sentasse. Depois, ajeitou os
cabelos soltos, o decote do vestido e as saias.
— Se fizer sempre assim, vai agradar bastante as damas que beijar.
— A partir de agora, pretendo beijar apenas minha futura noiva. Mas não
creio que ela apreciará esse entusiasmo todo.
— Claro que não — Caroline riu. — Ela é uma virgem, como você. Deve
morrer de medo de se deitar com um homem. Ou está extremamente curiosa.
Descubra o que ela pretende e dê a ela. Já que vai mesmo se casar…
— As negociações não estão tão avançadas assim, milady. Eu vou apenas
cortejá-la. É um período de conhecimento. Se tudo der certo, ficaremos
noivos.
A lady voltou para seu assento e recolocou a mesa de madeira entre eles.
Seu coração estava disparado, o fluxo de sangue intenso fazia com que ela
sentisse uma vertigem ainda desconhecida. Caroline não entendia o efeito que
Isaac exercia sobre ela e não decidiu se gostava dele ou não.
— Depois de um beijo desses, milorde, talvez devêssemos abandonar os
tratamentos formais. Meu nome é Caroline.
— Não sei se me sinto confortável tratando a senhorita com tanta
intimidade.
— Bem, eu gosto de intimidade. Tratarei o senhor por seu nome de
batismo, a partir de agora.
— Não vai causar falatório?
— A minha vida inteira é um grande falatório, Isaac. Já me acostumei.
Caroline agitou uma sineta de prata e o criado retornou à cabine. Ela
pediu que ele atendesse Isaac no que fosse de seu desejo, porque iria
recolher-se para descansar por meia hora. Sem dizer mais nada, deixou a
cabine social e recolheu-se em seu espaço mais privado. Ela tinha mais coisas
para refletir do que simplesmente se ocupar de um jovem inocente como
aquele.
A VIAGEM até Dover foi rápida, mas não o suficiente. Depois que Caroline
deixou a cabine, Isaac refletiu por vários minutos sobre o que acabara de
acontecer. Questionou suas decisões desde o primeiro momento. Não
precisava perder a virgindade antes do casamento. Estava se deixando levar
pelo comportamento masculino depravado que ele não queria reproduzir. Sua
esposa seria tão inexperiente quanto ele e os dois chegariam a entendimentos
mútuos. Aquilo era romântico.
E Isaac era um tolo romântico.
Não precisava ter ido atrás de Caroline Eckley, a mulher mais
despudorada que ele conhecia. E a mais louca. Nada de bom poderia vir
daquele contato, mas ele não conseguiu evitar. E, quando ela o desafiou a
seduzi-la, foi como acordar cedo e mergulhar em um rio gelado. A melhor e a
pior sensação da vida. Juntas, ao mesmo tempo.
Por sorte, Greenwood Park exigiria muito esforço e não deixaria espaço
para frivolidades. Ele não teria tempo nem para se arrepender de ter feito uma
proposta indecorosa a Caroline, nem de insistir nela.
— Como vai chegar à sua propriedade?
A voz doce do demônio o tirou de suas conjecturas. Isaac enfrentou os
olhos escuros e determinados de Caroline assim que desembarcaram na
estação de Dover. Até aquele momento, ela ficara reclusa em outra parte do
vagão privativo.
— Uma carruagem me espera. Obrigada por me permitir viajar em sua
companhia, milady.
Ele segurou a mão dela e beijou os dedos. Caroline ainda estava sem
luvas, o que tornou o episódio bastante escandaloso. Isaac apenas passou a
acreditar que a dama era movida por escândalos.
— Ainda vou cobrar esse favor. Até breve, Lorde Isaac.
Com uma reverência breve, Caroline afastou-se bailando por entre saias e
babados. Seu caminhar era quase um giro de valsa. Quem a via, com a
sombrinha aberta e o movimento sutil dos quadris, diria que ela era uma
dama. A melhor coisa que Isaac faria seria deixar para lá a ideia de tê-la
como parceira amorosa. Se tudo desse certo, ele esqueceria aquele desafio,
ela se envolveria demais com suas tarefas e eles não teriam mais que lidar
com nada constrangedor.
Mas seu corpo gravou as memórias dela com muito cuidado. Durante o
trajeto para Greenwood Park, Isaac sentiu o gosto de Caroline. O cheiro, a
maciez da pele, o calor. Ele estava desafiado a seduzi-la e completamente
arrebatado pelo processo.
Passou pelo pórtico de entrada da propriedade litorânea dos McFadden
considerando que nunca deveria ter saído dali. O aroma da maresia que
impregnava seus cabelos era delicioso. Tudo em Greenwood Park era
agradável e o fazia sentir-se em casa. Mesmo que não admitisse
publicamente, Isaac preferia ficar em Kent do que em Londres.
A propriedade ficava em uma zona produtiva. Com o crescimento
industrial da Inglaterra, as grandes propriedades passaram a exigir
investimentos e tecnologia para se manterem autossuficientes. A cultura da
terra também perdeu espaço e muitas propriedades passaram a criar animais
de corte e leite. A mecanização e a pecuária já eram realidade em Greenwood
Park, o que fazia com que ela se mantivesse satisfatoriamente.
— Isaac. — Wilhelmina, a irmã mais nova, o recebeu assim que entrou
na mansão. — Fiquei confusa quando o cocheiro saiu para buscá-lo.
Aconteceu algo?
— Problemas em Cornwall. Nate precisou ir, eu precisei voltar.
A jovem de dezesseis anos o fitou com as mãos na cintura. A irmã era a
única filha de George e Pauline McFadden. Herdara os cabelos loiros que
eram típicos da família, mas tinha olhos escuros como o ébano. Era muito
bem-educada e já estava se preparando para debutar na sociedade, no ano
seguinte.
— Edward virá no final da temporada?
— Sim, ele virá. Eloise precisa de ar puro e o litoral fará certamente
muito bem para a bebê.
— Aconteceu alguma coisa, sim. Você está me escondendo algo, Isaac.
O lorde não queria ter aquela conversa. A jovem petulante que era sua
irmã sempre sabia como ele se sentia. Até quando nem ele mesmo sabia. E a
confusão de sentimentos e sensações que arrebatava Isaac era inconveniente e
inadequada. Ele não queria falar sobre aquilo, menos ainda com sua irmã.
Decidiu ignorá-la e subiu para seus aposentos. Os quartos da família
McFadden ficavam todos na ala lesta de casa, no terceiro andar. Os quartos
da ala oeste eram para visitas. No segundo andar ficavam salas de jogos, a
biblioteca, salões de artes e os aposentos dos criados de cargo mais elevado.
Aquela era uma residência moderna, com suítes para todos os membros da
família. Isaac pediu que seu valete lhe preparasse um banho. Depois, que lhe
trouxesse os relatórios da semana.
Claro que ele poderia lê-los no dia seguinte. Mas preferia ocupar a mente
com números e informações sobre vacas, porcos e galinhas a ter que ficar
pensando no que fazer em relação a Caroline Eckley.
CAPÍTULO TERCEIRO
E RA verdade que Caroline já vira uma boa quantidade de homens nus. Quase
todos eles, excitados e prontos para o ato sexual. E, quase sempre, na
proteção escura da noite, onde os detalhes viravam sombras no bruxulear das
lamparinas a gás ou do fogo da lareira.
Nada era como aquilo que vinha do mar em sua direção. Se ela se
surpreendeu com o toque no peito firme e sólido de Isaac, no primeiro beijo
que trocaram, aquela visão a abalou completamente. Não durou mais do que
alguns segundos. O homem saiu da água, deu alguns passos e vestiu suas
calças muito rapidamente. Mesmo assim, ela viu toda a cena bem devagar,
registrando cada detalhe para que sua mente inquieta a torturasse depois.
Ele tinha músculos definidos, indicando que fazia muitos exercícios. Os
pelos eram distribuídos pelo corpo inteiro como se tivessem sido
cuidadosamente dispostos por alguma mão artista. Molhado e reluzindo sob o
sol, era a visão de um deus dourado. Isaac parecia banhado a ouro.
Levou algum tempo até Caroline perceber que ele já segurava o cão
agitado com os dois braços e que não havia mais perigo para sua cachorra.
— Pronto, milady. Ele vai se comportar agora. Não vai, Lorde?
O Setter se sentou ao lado de Isaac e latiu duas vezes. Caroline acariciou
a cabeça de Marquesa, que lamuriava ao seu lado.
— Muito bem. De onde surgiu esse… animal?
— Edward pediu que o abrigássemos temporariamente. Mas, milady, eu é
que devo questionar o que a senhorita faz na minha propriedade.
Caroline sorriu. Abriu novamente a sombrinha para proteger-se do sol e
começou a tirar a sapatilha.
— Eu sempre nado aqui. Adoro a privacidade dessa enseada. Nunca
percebi que fica em Greenwood Park. Tem certeza que ela não pertence aos
Eckleys?
— Tenho bastante certeza disso, milady.
Isaac sabia que ela estava troçando com ele. Caroline tinha plena
consciência dos limites da propriedade de sua família, tão explorada por ela
na infância. E ela adorava nadar ali, porque a praia particular dos McFaddens
era muito divertida. Com a presença masculina ao seu lado, ficou duas vezes
mais interessante.
Ela terminou de tirar as sapatilhas e correu para a água. Marquesa ganiu,
protestando por seu afastamento, mas a cadela nunca entrava no mar. Era
elegante e fina demais para aquele comportamento mundano, o de se
encharcar com água salgada. Caroline pisou com cuidado nas ondas que
espumavam e fez uma careta ao ver o quanto a água estava fria. Mesmo
assim, deixou-se molhar até os joelhos.
— Não vai mais nadar? — Ela se virou e viu o lorde sentado entre os dois
cachorros.
— Prefiro evitar que esses dois briguem. Não sabia que tinha um cão.
— Cadela. O nome dela é Marquesa.
Isaac deu uma risada. Exibiu dentes brancos e perfeitos que podiam ser
vistos à distância. Era antinatural um homem ser tão bonito quanto ele.
Principalmente quando ela se propunha a resistir a qualquer processo de
sedução vinda dele.
— Talvez eles se entendam bem, então. — Isaac se levantou e caminhou
na direção da água. — Minha irmã esteve comentando hoje sobre um evento
que acontecerá em Granville House. Pretende ficar em Kent mesmo durante a
temporada social?
— Sim. Foi ideia de Anthony e acredito que seja uma boa ideia reunir
algumas famílias para apresentar a elas a escola. Conto que a condessa possa
vir.
O lorde entrou na água. Tinha dobrado as calças até os joelhos e tentou
evitar molhá-las, sem muito sucesso. As ondas batiam em suas pernas e
respigavam no tecido marrom.
— Tenho dificuldades em entender como Agatha pode ter aceitado uma
amizade com a senhorita. Depois de tudo que fez, do tanto que importunou o
duque, do quanto fornicou com meu irmão…
— Pensei que ela resistiria mais à minha aproximação. — Caroline
deixou a água cobrir-lhe os quadris. — Mas entenda, milorde, que mulheres
foram criadas para aceitar que seus maridos tenham aventuras sexuais.
— Agatha não aceita isso de Edward.
— Agora não. Eu a entendo, se fosse ela também prenderia aquele conde
comigo e não o deixaria gastar sua energia com outras. Mas, ainda assim,
fomos condicionadas a perdoar, e até mesmo justificar, todas as aventuras
sexuais pretéritas dos homens. Vocês podem tudo, a nós cabe aceitar.
Fez-se silêncio. Havia apenas a arrebentação do mar e o barulho das
gaivotas, que disputavam peixes e moluscos nas pedras da enseada. Os cães
se entreolhavam inamistosos, mas tranquilos. Isaac molhou as mãos na água e
passou nos cabelos. Ela se perdeu naquele movimento por breves segundos.
— Não entendo muito bem sobre mulheres. Talvez possa me instruir em
alguns assuntos.
O brilho dos olhos dele era pura malícia. Talvez Isaac não tivesse
experiência com mulheres, mas a capacidade de sedução não lhe faltava. O
talento dos McFaddens era inato.
— Posso te instruir, sim. — Caroline sentou-se na arrebentação. As ondas
iam e vinham, molhando-a com alguma bruteza. — Sobre como mulheres
podem ter assuntos interessantes. Sobre como não somos apenas receptáculos
para a semente de vocês. Sobre o motivo pelo qual temos o direito de receber
a mesma educação que os homens porque temos a mesma capacidade
intelectual. Já leu Wollstonecraft, milorde?
— Não, eu não li. O que ele escreveu.
— Ela. Wollstonecraft é uma mulher inglesa que ousou escrever sobre
direitos femininos. Recomendo que procure, também, John Stuart Mill. Ele
escreveu sobre mulheres com muita sensibilidade. Serão ótimas formas de
começar se instruindo sobre mulheres.
Ele se sentou ao lado dela. Ficaram olhando para o horizonte onde o sol
se punha. Caroline fincou as mãos na areia. As ondas cobriam e descobriam
seus dedos até que o calor da pele de Isaac fez com que ela se sobressaltasse.
A mão dele estava sobre a dela. O contato era íntimo demais, inadequado até.
Mas nada entre eles havia sido adequado até aquele momento.
— Onde aprendeu todas essas coisas? Isso é tão… diferente do que se
ensina às meninas. Mesmo hoje em dia, em que tudo está tão moderno.
— Fui criada livre, cercada de homens em um mundo masculino. Mas
aprendi essas coisas no sanatório. Com uma enfermeira chamada Marianne.
Ela logo descobriu que eu não era a louca que diziam que eu era e começou a
conversar muito comigo. Marianne me deu livros para ler. E nada está tão
moderno, milorde. Não enquanto o casamento nos transformar em objetos e a
solteirice for um fardo pesado demais.
— É isso que pretende ensinar em sua escola? Nada como bordado, como
servir o chá, como dar festas inesquecíveis, como organizar boas soirées?
— Toda menina de quinze anos sabe essas coisas. Nem se ensina mais
isso nas escolas tradicionais, milorde. De certa forma, nossa escola ensinará
tudo que as damas precisam saber. Mas também permitirá a elas leituras
interessantes. Conhecimentos que elas não adquiririam com suas tutoras em
casa. Essas moças precisam de mais. Precisam de uma educação…
— Como a sua? — Ele desafiou.
— Haveria algum problema se elas fossem como eu?
Caroline virou-se para ele. Isaac colocou os dedos entre os dela,
aprofundando o toque.
— Considerando que a senhorita nunca se casou e não teve filhos, se toda
mulher for assim, a humanidade estará extinta em breve.
O contato entre eles se desfez. Caroline levantou-se e bateu a areia da
roupa de banho. Ajeitou a saia de lã e deu uma última olhada para o lorde aos
seus pés. Ele estava na posição que ela preferia os homens. Quando podia vê-
los debaixo dela.
— Se os maridos fossem melhores e insistissem em se apegar a leis
antigas que apagavam nossa existência depois do casamento, duvido que
alguma mulher, mesmo instruída, teria objeção ao matrimônio. Mas, com
homens desagradáveis como o senhor, fica difícil defender a instituição.
Estava irritada. Marchou pela areia fofa, pegou sua sombrinha e suas
sapatilhas nas mãos e rumou na direção da propriedade Granville.
— Vamos, Marquesa. — Chamou a cachorra, que se levantou e esnobou
Lorde. — Não devemos perder a hora do almoço.
E LE NÃO TEVE certeza do que foi fazer na casa de Caroline Eckley. Queria
entregar flores a ela e aquilo não parecia fazer tanto sentido. Queria pedir
desculpas, dizer que foi um idiota imbecil ao desprezá-la como se ela fosse
uma mulher disponível para atender às suas vontades mundanas. Isaac não
queria uma prostituta, mas tratou Caroline como se fosse uma.
Mas ele continuava interessado em seduzi-la. Mesmo sabendo que isso
significava iniciar o processo de um envolvimento romântico, porque Isaac
era romântico. Porém, as coisas estavam sendo naturais demais entre eles.
Depois do chá irreverente com os Eckleys, Isaac convidou Caroline para ir
com ele ao festival, o que fora aceito prontamente.
Durante o jantar, em Greenwood Park, a mãe fez companhia a ele e
Wilhelmina. Sem o irmão Nathaniel para contar em número, Isaac ficava
rendido às mulheres. Era inacreditável que ele soubesse tão pouco sobre elas,
no geral.
— Eu gostaria de ir ao festival, amanhã. — Wilhelmina disse, depois que
serviram o terceiro prato. Os almoços eram informais, mas Pauline
McFadden, a condessa viúva, insistia que os jantares deveriam ser os mais
tradicionais possíveis.
— Você ainda é muito jovem. — A mãe indicou. — Mas cabe a seu
irmão decidir se é adequado ou não. Na falta do conde, creio que Isaac possa
representar a vontade dele.
— Eu vou ao festival. — O lorde afirmou. — Podemos ir juntos. Mas
concordo com mamãe, você é muito jovem. Irá com uma acompanhante e
ficará sob minha supervisão.
Wilhelmina assentiu e deu um sorriso de aprovação. Ele tinha certeza que
ela apostaria suas fichas na concordância dele, porque Isaac e ela sempre
foram cúmplices em suas bobagens. E duvidava que ele fosse supervisioná-la
muito de perto.
— Isaac, você está cortejando Lady Eckley?
A pergunta o surpreendeu e fez com que ele se engasgasse com a comida.
Bebeu um gole de vinho para esconder o assombro e fitou a irmã com uma
expressão de incredulidade.
— De onde tirou esse absurdo? Eu pedi autorização ao pai de Lady
Francesca, o italiano que esteve em nossa casa. Não posso cortejar duas
mulheres ao mesmo tempo.
— Eu sei, isso não é atitude digna de um lorde. Mas não sei, você poderia
ter mudado de ideia.
— Não mudei.
— Certo. Apenas fiquei intrigada com sua visita a Rhode Port hoje.
Isaac poderia fuzilar a irmã com o olhar. Há segundos ele fora gentil com
ela e aceitara acompanhá-la a um evento para o qual ela não tinha idade. E ela
o apunhalava com aquela conversa sobre Caroline.
— Fui cumprimentar o marquês e conversar com ele sobre a criação de
animais.
A irmã fingiu que acreditou nele e o jantar prosseguiu com a discussão
apenas de assuntos banais. Alguma coisa que fora lida nos jornais e fofocas
sobre a temporada em Londres. Mas Isaac não conseguiu parar de pensar que
estava sendo óbvio demais. Ele precisava tomar cuidado para que as pessoas
não interpretassem equivocadamente suas intenções para com Caroline
Eckley.
De fato, elas não deveriam interpretar nada. Ninguém deveria saber que
ele pretendia seduzi-la. Isso seria difícil, porque ali todo mundo prestava
atenção em tudo. Poderiam relevar. Não se importar. Apoiar. Mas não ignorar
o fato de que ele pretendia passar muito tempo na companhia da lady.
CAPÍTULO QUINTO
C ÉUS , Caroline Eckley era linda! No instante em que a camisola branca dela
caiu ao chão, ele entendeu por que as lamparinas acesas. Vê-la ali, despida,
em suas formas perfeitas e frágeis, já era suficiente para fazê-lo desejá-la
além do decoro. Seus olhos se perderam por segundos nos seios redondos e
que cabiam perfeitamente em suas mãos. Depois, desceram para o triângulo
de pelos entre as pernas, o lugar que ele tocou enquanto estavam na praia.
A boca dele salivou. Ele quis beijá-la em todo lugar.
— Duvido que seja fácil assim toda vez.
Isaac olhou para a pilha de roupas no chão. Ele queria jogá-la na cama e
colocar um fim ao seu tormento, mas ela disse que deveriam ir devagar.
Caroline era a mestra ali. Ela comandaria o espetáculo.
— Na noite de núpcias, provavelmente será. Ela vai se preparar para estar
na sua cama. Mas eventualmente você enfrentará botões, espartilhos, roupas
íntimas, meias e muito tecido para chegar ao que deseja.
O que ele desejava estava ali à sua frente. À distância de um braço. Ela
sorriu ante a indecisão dele e segurou-o pela mão. Puxou-o para a cama,
deitando-se sobre o colchão e se esticando nos lençóis brancos. Como uma
deusa pagã, disponível para ele.
— Venha.
Ela estendeu os braços e ele se deitou por sobre ela. O coração de Isaac
martelava no peito, quase a ponto de abrir um buraco e sair. Teria sido dessa
forma se ela tivesse atendido ao seu pedido quando ele a visitou em Londres?
Aquela ânsia, aquela sensação de que todos os sentidos do corpo convergiam
em apenas uma parte específica? Isaac duvidava.
Ele a tomou na boca outra vez, acomodando-se de forma a colocar um
joelho entre as pernas dela. Caroline deslizou as mãos pelas costas dele e
segurou-o pelas nádegas. Isaac gemeu e apoiou a testa na dela. Ofegante. Seu
membro dolorido de tanto desejo pulsava naquela região quente e úmida do
corpo dela.
— Isaac. — Caroline murmurou, beijando-o no pescoço. — Deixe seu
corpo guiá-lo. Não há nenhum mistério, é puro instinto. Só há um lugar onde
você queira estar agora. Qual é? Tome posse dele.
Posse. Sim, ele queria possuí-la naquele momento. Ajeitou os quadris
sobre ela e se moveu, conduzindo sua ereção impaciente na direção da carne
macia. Ele foi devagar, temendo machucá-la, temendo se perder pelo
caminho. Caroline não era virgem, mas ele estava muito ansioso. Ela arqueou
as costas e levou seus quadris de encontro ao dele. Isaac não resistiu e
penetrou-a o mais profundamente que pode.
Com um rosnado gutural, vindo do fundo de sua alma, ele reivindicou a
boca dela. A sensação de estar dentro daquela mulher era ridiculamente
deliciosa. Caroline mantinha as mãos nos quadris dele e provocou-o a se
mover. Ela tinha razão, era instinto. O corpo sabia o que queria, e ele queria
entrar e sair, ir e vir, mergulhar no fundo da feminilidade dela e voltar à tona.
Uma vez, duas vezes, três. Até que fosse muito difícil parar.
Não foi como nas vezes em que ele procurou alívio escondido na casa de
banho, por vezes dentro da banheira para abafar qualquer ruído. O prazer
solitário o permitia esperar, mas ele duvidava que fosse se satisfazer sozinho
depois de ter experimentado aquilo. Os músculos de Caroline o envolviam
com tanta força e maciez que ele poderia realmente ter se perdido dentro dela.
Com as sensações mais intensas, ele foi mais rápido e mais fundo até ser
engolido pelo orgasmo.
Seu corpo trêmulo precisava descansar. Ele não queria sair de dentro dela,
não queria soltar o peso de seu corpo sobre ela. Caroline pareceu
compreender sua hesitação e girou sob ele, fazendo com que Isaac deitasse as
costas no colchão. Subitamente ela estava por cima, as pernas entrelaçadas,
apoiada por inteiro no peito dele.
— Eu… — O lorde quis dizer algo. — Não deveria ter esperado tanto. É
por isso que os homens são tão devassos, porque é…
— Sim, eu sei que é. — Ela riu, a boca encostada nele.
— Você sente o mesmo? É… assim para vocês, mulheres, também?
— Ah, sim. É quase igual, eu acredito.
Isaac a abraçou. Ele quis puxá-la para bem perto, ficar ali apenas agarrado
a ela, sentindo o cheiro do que acabaram de fazer. Tinha cheiro. Pungente,
salgado, de suor e fluídos corporais. Mas sua cabeça estava girando em várias
direções. Seria difícil para ele simplesmente fechar os olhos e relaxar.
— Caroline. — Ele murmurou sobre a cabeça dela. Beijou-a nos cabelos.
— Isso que fizemos não foi arriscado? Quero dizer, você… pode engravidar?
Ela ergueu os lindos olhos castanhos e o encarou. O cabelo desgrenhado e
as bochechas rosadas a deixavam ainda mais linda.
— Sim, mas eu tomei precauções. Tinha certeza que seria impossível para
você se retirar na hora, então eu usei uma esponja. Aliás, eu preciso me
levantar.
A mulher se ergueu, preguiçosa, e caminhou até uma porta que Isaac não
teve tempo de perceber. Ele ouviu água sendo despejada em uma bacia.
— Eu ainda tenho muito que aprender. O que é uma esponja?
Caroline respondeu de dentro do banheiro.
— É um método contraceptivo. É comum para as mulheres embeber uma
esponja com limão e usar para matar a semente do homem. Mas não podemos
deixar muito tempo aqui dentro.
— Aqui dentro…
— Para onde acha que vai sua semente, Isaac? Não fique pensando muito,
essa é uma tarefa da mulher. Existem formas dos homens se prevenirem
também, podemos conversar sobre elas.
Ele se ajeitou com os braços atrás da cabeça. Olhou para o dossel acima
de si. Também não havia percebido que estavam em uma cama com dossel.
Cortinas de seda desciam de uma construção imponente de madeira escura.
Estavam bem amarradas para permitir que a cama ficasse bem iluminada.
Caroline retornou, muito à vontade com sua nudez, e se deitou ao lado dele.
— Com o tempo você aprende mais. Eu ensino. Quanto tempo tem para a
dama italiana retornar a Kent?
— Assim que a temporada social terminar. Por quê? O que quer dizer?
— Decidi que posso ensiná-lo o que sei. — Ela beijou-o rapidamente nos
lábios. — Temos três semanas, então. Talvez um pouco mais. Nesse tempo,
você pode compartilhar a cama comigo e eu te ajudo a não ser um homem
inexperiente na sua noite de núpcias.
A EXCENTRICIDADE da casa Eckley fez com que Isaac não se sentisse muito
mal por usar roupas inadequadas. Sentado em uma poltrona próxima à lareira,
segurando um copo de uísque na mão, ele viu o médico chegar. Depois, viu
uma criada descer. A criada subiu novamente, carregando algumas ervas.
Virou a bebida toda em um gole e serviu-se de mais. Por ordens da marquesa,
um criado deixou a garrafa em uma mesinha ao seu lado.
Passou meia hora até que o médico descesse, conversando com a
marquesa. Lady Granville era uma mulher peculiar. Sua beleza era singular,
não comum às outras que Isaac conhecia. Ela parecia tão distinta que era
compreensível que tenha retirado do mercado o maior libertino de Londres.
E ele já deveria ter ido embora. Garantira que o médico atenderia
Caroline. Não deveria esperar por notícias dela. Poderia receber essas
notícias depois de ter se lavado, vestido e almoçado. Mas continuou ali, as
mãos apertando o copo de vidro, desejando que a marquesa não notasse sua
ansiedade.
— Milorde. — Rosamund foi até ele, que se ergueu, desajeitado. Sentia-
se quase despido sem colete, com o colarinho aberto e as mangas dobradas.
— Fique tranquilo, o médico disse que não foi nada grave. Mas Caroline
precisará repousar. Quer vê-la?
Sim, ele queria. Mas era melhor que voltasse para Greenwood Park.
— Não vou incomodá-la. Por favor, transmita a Lady Eckley minhas
estimas.
A marquesa sorriu e Isaac se afastou. Sair de Granville House foi mais
difícil do que ele esperava. Ele quis subir as escadas, colocar-se ao lado de
Caroline, fazer alguma coisa para confortá-la. Quis desculpar-se por ser
autoritário e exigir a presença de um médico. Não estava arrependido, mas
entendia que agira contra a vontade dela. Quis apenas voltar a ficar na
companhia daquela mulher que o intrigava tanto.
Só que não faria nada disso. Não naquele dia. Precisava retornar para
casa, para seus afazeres e para uma ordem diária à qual estava acostumado.
Assoviou para Lorde, que estava nos jardins ao lado de Marquesa, e os dois
foram juntos, caminhando, para a propriedade dos McFaddens.
Ao chegar em casa, o engenheiro o estava aguardando.
— Diga-me que está tudo bem, Sr. Richmond.
Isaac interpelou o homem, levando-o para o escritório de Edward. Serviu
mais bebida, uma dose dupla para si mesmo, e sentou-se à cadeira do irmão.
Ele não fazia nenhuma questão de ser conde, mas adorava envolver-se nos
negócios.
— Não está, milorde. — O engenheiro colocou alguns papéis sobre a
mesa. — A estrutura está mesmo comprometida e não temos como reforçá-la
até a colheita.
— Não podemos colher os grãos se não existir um silo, Sr. Richmond. —
Isaac bebeu o uísque e pressionou as têmporas com as mãos. Esperava que os
problemas de Cornwall estivessem sendo menos desafiadores do que os de
Kent. — Qual é a alternativa?
— Escoras. — O homem coçou a cabeça. — Se apoiarmos essas colunas
aqui e aqui, a estrutura aguentará até que os grãos tenham sido vendidos.
— Será arriscado?
— Há riscos. Mas é mais seguro do que manter a estrutura como ela está.
Claro que era. Isaac não tinha muito o que pensar. A colheita dos grãos
seria em uma semana e ele não podia simplesmente deixar os arrendatários
sem lugar para armazená-los.
— Farei uma reunião amanhã. Quando poderemos iniciar as obras?
— No mesmo dia.
— Então aguarde meu retorno. Mandarei um mensageiro assim que
conversar com os arrendatários.
O engenheiro agradeceu e saiu. Isaac olhou para si mesmo. Sujo,
encardido, cheirando a suor e feno. E uma nota de jasmim. Caroline estava
finalmente usando perfume? Ele não notou aquela diferença mais cedo,
quando a encontrou. Talvez estivesse muito preocupado. Mas ali, naquele
momento, tudo que Isaac queria era arrancar a camisa para levá-la ao nariz e
cheirar Caroline mais um pouco.
Alguma coisa estranha estava acontecendo com ele.
Estou bem, porém devo repousar por mais um dia. Detesto o ócio
compulsório, mas a experiência do láudano é intrigante. Gostaria que
inventasse uma desculpa qualquer para me ver amanhã.
E LE ESTAVA HÁ cinquenta e três horas e vinte e oito minutos sem ver Caroline
Eckley. Naquele intervalo de tempo, trocaram bilhetes secretos tendo seus
cachorros como mensageiros. Ele fez uma reunião com seus arrendatários e
decidiu pedir ajuda ao Marquês de Granville para o armazenamento dos
grãos. Trabalhou, suou, respondeu às correspondências. E nunca sentiu tanto
desejo por uma mulher quanto naquela maldita tarde.
Isaac sabia que não poderia extravasar o que sentia. Primeiro, porque
Caroline estava ferida e ele não sabia se ela já se recuperara. Segundo, porque
ainda era dia, o sol continuava a brilhar, descendo no horizonte em
Greenwood Park, e ele tinha uma reunião com o primo dela. O mesmo que
ameaçou sua masculinidade com palavras educadas.
Mesmo assim, ele tomou banho e se vestiu com um traje completo para a
noite. Calças cinza, camisa branca, colete e casaco pretos. Garantiu que o
lenço em seu pescoço estivesse bem ajustado e os cabelos penteados. Ajeitou
a barba na frente do espelho. Já pensara em tirá-la, mas gostava da barba. Ela
estava na moda e Caroline disse que era macia. Ele não manteria a barba
apenas por causa de Caroline, mas não negava que ela era um incentivo a
mais.
— Dewitt, vou sair. — Isaac disse para seu valete, antes de dispensá-lo.
— Avise que não jantarei com mamãe e Wilhelmina.
— Sim, milorde. Devo mandar preparar a carruagem?
— Não, vou a cavalo. Porém não sei que horas retornarei.
O valete fez uma reverência e se afastou. Isaac foi até os estábulos, pediu
que selassem seu cavalo e montou. Lorde veio correndo atrás, latindo. Depois
do tanto que os cachorros o estavam ajudando, ele não teria coragem de pedir
que o animal ficasse em casa. Aceitou a companhia e trotou para a
propriedade dos Eckleys.
Na Granville House, foi recebido pelo mordomo que o conduziu ao
escritório do marquês. Tinha negócios a tratar, antes de tudo.
— Sente-se, Isaac. — Anthony Eckley acendeu um charuto e ofereceu um
a Isaac. — Quando recebi sua mensagem fiquei preocupado. Em que posso
ser útil?
— Serei direto. Estamos com um problema de estrutura nos silos e temos
uma colheita em menos de uma semana. Os silos de Rhode Port são capazes
de armazenar pelo menos parte da nossa produção em Greenwood Park?
O marquês saboreou o charuto e observou a fumaça por alguns instantes.
Ele não tinha aquela aparência de autoridade mofada e imponência arrogante
de muitos nobres de alto título. Anthony Eckley era de uma nova geração da
nobreza inglesa. Apesar de não ser visionário como Edward, tinha uma boa
noção de que a indolência dos pares não conduzia a um futuro próspero.
— Creio que será possível acomodar parte dos grãos de seus
arrendatários. Você teria que conversar com meu administrador. Eu não tenho
um conhecimento muito profundo dessas questões.
— Nós pagaremos o preço que for necessário.
Isaac sabia que era mais justo que pedisse ajuda remunerada. O marquês
ergueu uma sobrancelha e o fitou.
— Não será necessário me pagar. Será um prazer ajudá-los. Somos
vizinhos há muitos anos. Meu pai era amigo de seu pai. Apenas converse com
o administrador e ajuste as questões operacionais.
— Obrigado. As obras no silo começarão logo, porém não será possível
concluí-las antes da colheita.
— O seu engenheiro é de confiança? — Perguntou o marquês. — Se
quiser, posso pedir que enviem uma equipe de Londres. Se bem que eu
aposto que Edward conseguiria uma equipe ainda melhor do que a minha.
— Creio que o Sr. Richmond seja muito competente. Ele vem realizando
serviços para a família há bastante tempo. E também foi cauteloso em suas
recomendações.
— Certo, então. Amanhã avisarei ao administrador que você irá procurá-
lo.
— Agradeço, milorde. — Isaac terminou seu charuto e levantou-se.
— Ficará para o jantar, não é mesmo?
— É um convite irrecusável, porém não estou vestido adequadamente.
O marquês riu e também se levantou. Pegou uma garrafa de conhaque e
serviu duas doses.
— Está mais bem vestido do que eu quando vou ao Parlamento. Não se
preocupe com essas bobagens, não fazemos jantares formais quando estamos
apenas nós. Creio que o ver fará bem a Caroline. Ela está duas vezes mais
difícil nesses últimos dias.
Encurralado, Isaac não conseguiu negar o convite. Não desejava
participar de eventos familiares com Caroline presente. Ansiava por vê-la
novamente, mas preferia poder estar em um espaço mais íntimo. Onde ele
tivesse privacidade para tocá-la. Onde poderia beijá-la. Ali, sentado à mesa
com os Eckleys, tudo que ele conseguiria seria ser analisado e examinado,
pois era como se sentia desde que fora procurar Caroline em sua residência
londrina. Ele temia que, a todo minuto, fossem desvendar suas intenções.
— Será um prazer jantar em sua companhia, milorde.
O marquês tocou a sineta e o mordomo apareceu na porta para receber a
notícia de que haveria um convidado para o jantar. Depois de finalizarem o
conhaque e conversarem sobre algumas trivialidades, os homens saíram do
escritório e foram para uma sala privativa da família. Lá encontraram as
mulheres, Rosamund e Caroline.
O que Isaac sentiu ao ver a lady depois de dois dias foi uma reação
patética de seu corpo ansioso por ela. O coração disparou e a boca ficou seca.
Precisou se concentrar para não sorrir como um garoto e ir diretamente até
ela. A etiqueta indicava que, primeiro, ele cumprimentasse a marquesa.
— Ah, teremos companhia para o jantar? — Rosamund se animou. Isaac
segurou a mão dela e beijou rapidamente os dedos sob a luva de seda.
— Precisei obrigá-lo. — O marquês também se aproximou e beijou sua
esposa nos lábios. — Espero que não se importem.
— Eu, me importar? Sabe que adoro convidados!
Isaac não prestou atenção no que a marquesa disse. Ele já estava
segurando a mão descoberta de Caroline Eckley e o toque na pele dela,
mesmo que ele estivesse com suas luvas de pelica, fez com que ele sentisse
seu estômago borbulhar. Ela estava linda, com um vestido vermelho e os
cabelos trançados. Como estava de pé, Isaac imaginou que estivesse liberada
do repouso.
— Como você está?
— Bem melhor. Não sinto mais dores.
— O que disse o médico? A lesão foi muito grave?
— Foi uma contusão, Isaac. — Caroline sorriu timidamente. Ela não era
tímida, então ele estava enganado. Foi um sorriso, apenas. — Estou ótima,
agora.
O silêncio fez com que ele percebesse que o salão estava subitamente
vazio. O marquês e sua esposa não estavam mais ali. Nem os cachorros
pareciam à vista. Era como se todos tivessem combinado em desaparecer para
que eles compartilhassem daquele momento a sós. Homens e mulheres de
respeito não ficavam a sós. Para sorte de Isaac, aquela casa não parecia se
importar tanto com as regras de decoro.
Porque ele queria, muito, beijá-la. Não importavam os motivos. Ele
apenas precisava tê-la nos braços e tomá-la como sua. E, sem considerar os
riscos que estava correndo, Isaac simplesmente segurou Caroline pela cintura,
puxou-a para perto e colou sua boca na dela.
CAPÍTULO DÉCIMO
F AZIA ALGUM TEMPO QUE E DWARD NÃO TINHA UMA BOA MÃO . E STAVA
enferrujado, sem jogar a quase um ano. Mas aqueles três reis o fizeram
desejar blefar um pouco. Fingir que estava com a melhor das mãos
vencedoras e instigar os amigos a apostarem bem alto. Ele não podia negar
que adorava a adrenalina das apostas.
A mesa no Riderhood era das mais favoráveis. Estavam ali seu melhor
amigo, Aiden Trowsdale, seu outro melhor amigo, Grant Sawbridge, seu
sócio e feliz pai de um herdeiro - finalmente! - Miles Westphallen, o
Visconde de Whitby, e seu outro amigo e milionário, Virgil Oglethorpe. Eles
jogavam cartas toda semana na casa de Thomas Riderhood, outro amigo. O
conde, pela primeira vez em muito tempo, estava de volta aos clubes de
cavalheiros.
— Riderhood. — Sawbridge gritou. — Traga aquele conhaque especial.
Temos que celebrar o retorno de Edward à vida masculina.
— Pensávamos que tinha perdido suas bolas. — Oglethorpe provocou. —
Depois que se casou você abandonou a vida noturna.
— Minha esposa estava grávida. E vocês sabem o que aconteceu aqui na
minha última vez.
Edward rosnou e jogou algumas fichas na mesa, cobrindo a aposta que
Aiden acabara de cobrir.
— Acalme-se, homem. Todos aqui são casados e comandados por suas
esposas. — O duque deu um tapinha nas costas do amigo. — Menos
Sawbridge, mas ele é um bastardo insensível. Não se importe com ele.
— Fale por si mesmo. Minha esposa não me comanda. — O Visconde de
Whitby também cobriu a aposta. — Vamos logo com isso, mostre sua mão,
Edward.
O conde resistiu em apresentar suas cartas. Riderhood chegou com uma
garrafa especial de conhaque e abriu, atrapalhando a jogatina. Enquanto os
homens eram servidos e esperavam para um brinde, o grupo ganhou um
acréscimo. Lorde Ignazio, o italiano amigo de Sawbridge, chegou. Ele vinha
frequentando o clube desde que a família se mudou para a Inglaterra a
negócios. Sua irmã estava sendo cortejada por Isaac, ou, ao menos, havia
uma proposta nesse sentido.
Mas o italiano não estava satisfeito. A sua expressão era de indignação e
a forma como ele segurou o copo de conhaque que lhe fora oferecido deu
certeza que o homem estava louco de vontade de esbofetear alguém.
— Dê-me cartas.
Lorde Ignazio pediu, colocando suas fichas sobre a mesa. Os homens
terminaram a rodada anterior, que Edward venceu, e receberam novas mãos.
O italiano, ao invés de olhar para suas cartas, encarava o conde. Jogou uma
rodada, perdeu, continuou a encará-lo. Jogou mais uma, os olhos
permaneciam em Edward.
— O senhor tem algo a me falar. — O conde resolveu dizer alguma coisa.
Não estava acostumado a ser confrontado sem um confronto real.
— Talvez milorde tenha algo a me falar. Meu pai recebeu isso ontem.
Apoiando as cartas na mesa, Lorde Ignazio retirou um papel do bolso do
casaco e jogou sobre o feltro verde. Os presentes pararam o que faziam.
Riderhood se aproximou novamente - ele estava sempre atento a tudo em seu
clube, principalmente se envolvia seus amigos e um estrangeiro que ele
pouco conhecia.
Edward pegou o papel na mão e o desdobrou. Havia um resquício de cera
e ele reconheceu parte do brasão dos McFaddens. Aquela correspondência
vinha de sua família. Todos aguardaram que o conde lesse o conteúdo, o que
ele fez sem verbalizar uma só palavra.
Era uma carta de Isaac. Seu irmão estava avisando ao Barão Capovilla
que não tinha mais interesse em cortejar Lady Francesca, sua filha.
— Não tomo as decisões por meu irmão, milorde. — Edward devolveu o
papel ao italiano, que o fitava com os olhos semicerrados. — Ele é adulto e
cuida da própria vida.
— Seu irmão é um ingannatore! — Lorde Ignazio esbravejou. — Ele
iludiu minha irmã com promessas de interesse. Ela passou boa parte da
temporada esperando que ele retornasse e desejando reencontrá-lo.
— Sinto muito por sua irmã. Mas, se quiser confrontar alguém por causa
disso, deve falar com Isaac. Ele está em Greenwood Park, se precisar eu
posso lhe indicar a direção.
Ao ver que o conde não se abalaria com a notícia, nem se justificaria em
nome do irmão, o italiano jogou as cartas sobre a mesa, pegou as fichas que
lhe restaram e saiu. Os homens levaram alguns segundos para se
reorganizarem.
— Bastante temperamental. — Miles Westphallen ajeitou-se na cadeira.
— Deus nos livre de sermos governados por italianos, eles são muito
exagerados.
— Posso entender que ele esteja inconformado. — Edward pegou suas
cartas novamente e descartou duas. — Mas fiquei preocupado. Isaac parecia
bastante interessado na moça. Ele voltou para Kent e desistiu dela?
— Talvez ele tenha conhecido outra moça. — Aiden sugeriu, apostando
algumas fichas.
— Ou talvez uma moça antiga tenha atraído sua atenção…
O duque e o conde olharam, ao mesmo tempo, para Sawbridge. O
industriário jogou algumas fichas na mesa e fingiu que não percebia que
estava sendo escrutinado.
— O que você sabe, Grant? — Aiden pediu que um garçom trouxesse
outra rodada de bebidas.
— Posso estar enganado, claro. E não gosto de fazer fofocas. Acho que
devo ficar quieto.
Edward virou-se para o amigo e colocou as duas mãos no colarinho dele.
Ajeitou o lenço em seu pescoço e inspirou profundamente.
— Fale.
— Não tenho medo de você, Edward. Você pode ter degolado o
americano e ainda assim eu acabo com você sem uma espada e com uma mão
amarrada. Mas eu posso ter visto seu irmão em uma conversa um tanto
quanto interessante com Lady Eckley.
— Uma conversa?
— Posso ter visto um beijo, também.
O conde colocou as mãos nas têmporas e inspirou outra vez.
— Todos nós já beijamos Caroline e isso não foi um problema para
ninguém.
— Eu nunca a beijei. — O visconde cobriu a aposta.
— Nem eu. — Oglethorpe pagou. — Ela é minha investidora no hotel,
não costumo misturar negócios com prazer.
— Não importa. A questão é que, se Isaac teve um caso com Caroline
isso não necessariamente pode ser considerado um problema. Afinal, ela não
se envolve com ninguém a ponto de fazer um homem desistir de um cortejo a
uma dama decente.
O silêncio na mesa precedeu à jogada final. Daquela vez, o Duque de
Shaftesbury levou as fichas com dois pares de reis e valetes.
— Edward. — Sawbridge bebeu seu conhaque em um gole e pediu mais.
— Seu irmão já esteve com mulheres, não esteve?
— Claro que sim. Eu acho que sim. Por que não? Você sugere que ele
seja… virgem?
Mais silêncio, que durou segundos intermináveis. Apenas se ouvia as
cartas sendo embaralhadas pelo crupiê.
— Bem, se era, ele certamente não é mais. Se beijou Caroline Eckley,
duvido que tenha parado por aí.
— Não existem homens virgens. — Aiden deu uma risada. — Só garotos.
— Eu posso estar mais uma vez enganado.
Ele poderia, mas Edward sabia que Sawbridge era perspicaz como uma
cobra. Ele não costumava errar e não atirava no escuro. Se fez aquelas
perguntas, se sugeriu que havia um envolvimento entre Isaac e Caroline, é
porque deveria haver realmente alguma coisa. E aquilo era um problema com
o qual Edward precisaria lidar. Não podia deixar seu irmão se relacionar com
a sobrinha do marquês.
— Preciso ir a Greenwood Park. — Edward jogou algumas fichas na
mesa, apostando em suas cartas. — Vocês dois conseguem dar conta da
fábrica por dois dias?
— O que vai fazer lá, Ed? — Aiden colocou a mão no ombro do amigo.
O conde estava nervoso, mesmo que fingisse não se abalar com aquela
conversa.
— Preciso conversar com Isaac e tirar essa história a limpo. Se ele deixou
de cortejar a italiana por causa de Caroline, percebe que tenho um problema
para lidar?
O duque, e todos os homens presentes, concordaram com um movimento
de cabeça. Edward estava decidido. Ele pegaria o primeiro trem para Kent no
dia seguinte e descobriria o que estava acontecendo com seu irmão. Agatha
compreenderia a necessidade de resguardar o bem-estar da família. Isaac
precisava de ajuda e ele sairia em seu resgate.
O RGANIZAR EVENTOS ERA TEDIOSO . Caroline adorava participar deles, mas
estava descobrindo que a parte por trás dos salões decorados, orquestras e
mesas cheias de comida eram bastante desinteressantes. Claro que ela nunca
se ocupava de organizar nada. Quando havia um evento na Granville House,
a anfitriã era a marquesa. Quando era convidada para algum baile ou jantar,
não precisava se envolver em nenhuma atividade que não dançar, comer e
encantar os outros convidados.
Porque Caroline era encantadora. Quando ousavam convidá-la, sabiam
que ela iria para que todos os homens prestassem atenção nela. Se não a
convidassem, ela acabava aparecendo nas festas de qualquer jeito. Era a
sobrinha do marquês e fora amante de muitos homens. Poucos tinham
coragem de destratá-la e ninguém jamais ousou expulsá-la de um evento.
Só que ela daria uma festa. Um final de semana para seduzir mulheres,
não homens. Damas, não cavalheiros. Precisava convencer a sociedade que
estava redimida. Ou convencer a burguesia que seu passado maculado era
irrelevante. E precisava de uma desculpa para manter-se ocupada e não
pensar em Isaac McFadden.
Não era uma decisão fácil. O homem era difícil de não se fazer presente.
Ele teve a audácia de convidar a família dela para ir à praia. E Caroline teve
que fingir compromissos para se esquivar do convite. Mas, ao ver Rose e as
crianças retornarem, ao pôr do sol, felizes e sorridentes, ela desejou ter ido.
Se fosse, iria se encantar por Isaac. Se isso acontecesse, ela acabaria cedendo
ao que ele queria. Mesmo que ela realmente não soubesse o que ele queria.
Ela dormiu outra vez no chalé de hóspedes. Esperava por ele, que não
aparecia há quatro noites. Teve um sono ruim, inconstante, quase não fechou
os olhos. Sentiu calor, mas depois sentiu frio porque apagou a lareira. Estava
escuro, mas ficou muito claro quando acendeu uma lamparina. A camisola
fez com que sua pele coçasse. Quando o sol nasceu, ela agradeceu pelo dia e
se arrastou para fora da cama.
— Ele vai ter que pagar caro por me fazer rolar na cama a noite toda.
Caroline disse, enquanto tomava seu chá no terraço. Marquesa estava
sentada ao seu lado, ouvindo atentamente as lamentações da lady. Era uma
ouvinte excelente, que nunca contestava nem criticava. E não colocava seus
próprios lamentos à frente dos de Caroline. Como a casa ainda dormia, ela
podia falar livremente sem risco de ser ouvida.
— Espero que esteja com mais sorte com seu namorado. — A lady
mordiscou uma torrada. — Porque o meu é muito complicado.
Marquesa latiu. Caroline arregalou os olhos e encarou a xícara de
porcelana decorada. O terraço ficava na lateral da casa, com vista para um
belo jardim florido e muito bem cuidado. Era silencioso e o aroma das flores
com a maresia suave fazia com que ela se sentisse sempre em casa. Ela
geralmente adorava tomar chá ali, mas estava perturbada por seus
pensamentos. Não estava enganada, acabara de chamar Isaac de namorado.
Conversando com a cachorra. Depois de terem dormido juntos apenas duas
vezes.
— Marquesa, veja que estou perdendo meu jeito. Não é possível que eu, a
rainha do pecado, a musa da perversão, use a palavra “namorado” para definir
o homem que está na minha cama. — Ela bebericou o chá e a cachorra se
aproximou, apoiando a cabeça na perna dela. — Você tem razão, ele não está
na minha cama e eu não usei a palavra exatamente, não é mesmo? Sabe o
problema, Marquesa? Eu não posso deixar que ele controle a situação. Se eu
quero fazer amor com Isaac McFadden, então eu devo ir atrás disso.
Maldição! Eu sou Caroline Eckley, eu não faço amor.
A lady depositou a xícara sobre o pires sem fazer nenhum ruído.
Levantou-se, ajeitou as saias e tocou a sineta. Sua camareira veio
imediatamente, acompanhada de outra criada.
— Violet, vou sair.
— Preciso fazer algo pela senhorita, milady?
— Apenas informe aos meus parentes, quando eles acordarem, se
perguntarem por mim. Não tenho hora para retornar.
O TRAJETO até Greenwood Park era curto, então ela decidiu fazer a pé.
Marquesa acompanhou-a, arrastando sua pelagem impecável pela grama e
pelas pedras, quando seguiam por trilhas mais civilizadas. Para evitar ser
vista por muita gente, Caroline preferiu tomar alguns desvios que acabaram
por deixar a barra de seu vestido ornamentada com pequenos galhos e folhas
secas. Enquanto seguia em busca de seu objetivo, pensava.
Não tinha muita certeza do que faria ao encontrar Isaac. Prometeu a ele
que não se veriam durante o dia, mas ele não queria as noites. Tinham que
chegar a um meio termo porque ela ainda tinha muito o que ensinar a ele.
Talvez estivesse indo ao lugar errado. Era cedo, ela deveria procurá-lo em
casa. O homem nem deveria ter acordado ainda. Ela mesma só despertara por
causa dele. Por não conseguir dormir. Mas, ao ver Marquesa disparar na
frente e ouvir os latidos de Lorde à distância, teve certeza que seguia no
caminho certo.
A construção decadente do silo de grãos apareceu à sua frente. Uma
estrutura de madeira e pedras muito antiga e que gritava por socorro. Caroline
não viu ninguém por ali, mas ouviu barulho vindo de todos os lugares.
Apressou-se para ver os dois cachorros correndo e brincando na parte frontal
do prédio.
— Isaac?
Ela chamou, sem se preocupar que fossem achar escandaloso que ela se
referisse a ele pelo primeiro nome, sem o pronome de tratamento adequado.
Lorde entrou latindo pela parte inferior da construção e voltou em seguida.
Caroline não precisou esperar muito, a voz de Isaac ecoou pelo vazio.
— O que houve, garoto? Por que está me chamando?
A silhueta esguia e musculosa do lorde surgiu na penumbra da estrutura
condenada. Ele estava sem camisa, o maldito. Havia suor em sua pele,
fazendo com que seu torso assumisse um aspecto brilhoso. Como se estivesse
encerado. Polido, para que ela o admirasse. Seus cabelos, desgrenhados,
estavam também suados e grudados na nuca. Ele secava a mão com um pano
quando a viu.
— Caroline.
Foi uma constatação. Ela entrou, mesmo sabendo que aquelas paredes e
tudo o mais não forneciam segurança alguma.
— O que está fazendo aqui? Pensei que esse prédio estava condenado.
— Está. O engenheiro deve começar a trabalhar amanhã. Estamos
esvaziando… havia homens aqui comigo… este não é um lugar para damas.
— Por sorte eu não sou uma dama.
Eles estavam há alguns metros de distância. Caroline não percebeu
quantos passos deu na direção dele, mas Isaac não se movera. A penumbra a
envolveu e ela sentiu cheiro de feno e mofo.
— Você é uma dama. Espere lá fora, eu vou me recompor e podemos
conversar.
— Não quero conversar. — Ela disse, um pouco desorientada. O
ambiente estava carregado de masculinidade. Suor, mato, estrume, aromas
desagradáveis da fazenda que, misturados com aquele ar marítimo, a
deixavam confusa. Ou era apenas Isaac que a confundia. — Quero chegar a
algum entendimento. Não podemos continuar fugindo um do outro. Eu passei
a noite esperando você.
— Você tem ideia de que, para chegarmos a um entendimento,
precisamos conversar?
— Não estou acostumada a conversar com homens. Eu geralmente os
entretenho com outra coisa. De toda sorte, precisava dizer que senti sua falta
nesses dias. Estou disposta a abrir uma exceção e aceitar vê-lo durante o dia,
em algumas…
Antes que conseguisse terminar, foi interrompida por mãos que a
puxaram, braços que a envolveram e uma boca que a devorou. Isaac deu dois,
três passos na direção dela e a arrebatou. Quando Caroline percebeu o que a
atingira, estava com as costas contra uma coluna de madeira, sucumbindo a
um beijo que quase a fez perder os sentidos.
Isaac segurou-a pelos cabelos soltos, puxou-os para trás e fez com que ela
dobrasse o pescoço. Saboreou-a com a língua, desceu a boca em uma trilha
de beijos até a orelha, depois desceu até o decote. Caroline quis tocá-lo, mas
nunca experimentara uma euforia como aquela. Ela costumava estar sempre
no protagonismo. Naquele momento, estava sendo devorada pelo homem que
ela considerava um tolo inocente.
As mãos de Isaac seguraram-na pelos quadris e puxaram para perto. Ela
gemeu ao senti-lo tão rígido e quente que nem as camadas de saias foram
capazes de protegê-la.
— Meu Deus. — Ele rosnou de encontro à pele dela, a boca espalhando
ondas de calor por sobre os seios, aquela parte exposta no decote. — O que é
isso que você fez comigo?
— Não fui eu. — Caroline riu, mas deixou os braços pendurados, sem
força, enquanto ele subia com os dedos para os botões do vestido dela. —
Você se reprimiu por muito tempo, milorde.
— É você, sim. Eu nunca quis devassar uma mulher dessa forma, menos
ainda no meio da palha, debaixo de um prédio condenado que pode desabar.
Ela deu uma risada, mas estava nervosa. Isaac era muito sincero. Ele
falava o que queria e o que sentia, sem muitas restrições. Isso era porque
homens não precisavam se conter. Se eles falassem bobagens, eram
excêntricos. Ou apenas homens. As damas tinham que adotar
comportamentos irretocáveis. Constrição não se aplicava aos cavalheiros. Só
que aquele arroubo dele somado à falta de sono dela, indicavam que eles
estavam reféns um do outro. Ela o desejava, ele a desejava, e aquele desejo
não era como ela já sentira antes.
Os beijos dele ficaram mais intensos e o corpete dela cedeu. Os seios
saltaram do decote frouxo e ele passou a língua de um até o outro. Capturou
um mamilo entre os lábios, sugou, mordiscou, sugou novamente. Caroline já
não enxergava direito. O sol, que entrava por algumas frestas, criava
mosaicos no teto alto do prédio, e as formas giravam fazendo com que ela
não soubesse se estava zonza ou atordoada.
— Eu estou louco. Passei esses dias pensando em vê-la se contorcendo de
prazer nos meus braços.
— Isaac…
— Não fale. Apenas me deixe ter isso mais um pouco.
Caroline não pretendia fazer com que ele parasse. Mas eles estavam se
arriscando muito. Aquele não era um lugar privado.
— Hoje à noite. — Ela colocou as mãos nos ombros dele. Deslizou pela
nuca, segurou-o e acariciou-o nos cabelos. Isaac repousou a cabeça no peito
dela. Caroline pôde sentir a respiração dele pesada, densa. — Venha me ver.
Vamos conversar como quiser.
Ele concordou. Isaac parecia ainda muito afetado quando começou a
ajudá-la a arrumar as roupas. Prendeu os botões do corpete, ajeitou o decote,
passou as mãos pelas saias, que estavam amarrotadas e cheias de sujeira. A
respiração deles estava acelerada. O coração de Caroline batia como uma
orquestra em seu peito.
— Eu chego às dez. Deixe a porta aberta!
O lorde beijou-a novamente e se afastou. Ela nunca teve reações como
aquelas. Sem olhar para trás, arrastou-se para fora daquele prédio e voltou
para a luz solar. Precisava voltar para casa e tomar um banho frio, ou não
aguentaria até a noite.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
O CONDE não podia ficar mais tempo em Greenwood Park. Não contou a
Agatha o que faria, nem tinha uma desculpa para deixar seus afazeres na
fábrica até o final da temporada. Para impor a Sawbridge a permanência em
Londres, ele tinha que cumprir sua parte no acordo e trabalhar bastante. Mas
estava preocupado com Isaac. O irmão estava enfeitiçado.
Durante o jantar, eles quase não se falaram. Edward sentou-se à
cabeceira, sua mãe na outra ponta, e Isaac e Wilhelmina em laterais.
Acomodaram-se no salão menor, a mesa não era grande demais para mantê-
los afastados. As mulheres não sabiam da discussão e nem desconfiavam dos
motivos. Os McFaddens não eram muito comunicativos à mesa, então não
viram nada estranho no silêncio.
— Trarei Agatha e as crianças para cá em duas semanas. — Edward
disse, quando já serviam a sobremesa. — Eu terei que voltar constantemente
a Londres, mas elas precisam de ar fresco e sol.
— Finalmente conhecerei minhas netas. — Pauline McFadden
resmungou. — Pelo menos algum de meus filhos me dará netos. Os outros
estão enrolando demais, se demorarem como você, Edward, eu não verei as
crianças.
— Não faça drama, mamãe. — Wilhelmina deu uma risadinha. — Os
meninos são jovens, e a senhora está tão bem!
— Espero que você se case logo. — A condessa viúva lançou um olhar
terno para a filha. — Não estou ficando mais jovem, quero ver meus filhos
todos encaminhados.
— Eu cuidarei de Wilhelmina, mamãe. Não acha mesmo que deixarei
minha irmã desamparada, não é? — O conde franziu a testa. — E o dote dela
é tão obsceno que teremos que afastá-la dos pretendentes.
— Aposto que vocês farão isso muito bem. Espero que não assustem os
pretendentes com reais interesses.
A jovem estava sorrindo. Ela parecia bastante animada com a perspectiva
de debutar na sociedade. Wilhelmina era uma moça criada de forma
tradicional, com valores adequados para ser o objeto de desejo de todo nobre
solteiro ou viúvo. Apesar disso, Edward não a empurraria para um homem
decrépito ou endividado. Também não a faria casar-se sem que estivesse um
pouco apaixonada, pelo menos. Não forçaria sua irmã a um casamento de
conveniência porque ela não precisava - nem eles.
Queria que ela fosse feliz como ele era. Queria que todos os irmãos
fossem felizes.
— Não tem nada a dizer, Isaac?
— Estou me sentindo mal. — Ele baixou os talheres sobre o prato. —
Tomei sol demais, preciso descansar. Se me dão licença, vou me recolher.
O lorde levantou-se e saiu do salão. Seu humor fez com que a mãe se
preocupasse. Isaac nunca reclamava nem demonstrava indisposição para
nada. Ele já ficara doente e, mesmo assim, continuava realizando suas
atividades sem questionar.
— Wilhelmina, você tem notado algo estranho em seu irmão? — Pauline
perguntou. — Ele anda trabalhando demais. O segundo filho de um conde
não deveria trabalhar tanto.
— Isaac gosta de estar em atividade, mamãe. Sempre tão ativo! Mas eu
creio que haja algo mais por trás desse comportamento dele.
— O que seria?
Foi Edward quem se ajeitou na cadeira para ouvir a teoria da irmã.
Wilhelmina era muito próxima de Isaac, eles conversavam sempre quando ela
era mais nova. Depois que o irmão assumiu a administração de Greenwood
Park eles se afastaram um pouco, mas o afeto entre eles não diminuiu.
— Não devo fofocar. — Ela levou um pedaço do pudim à boca. — Mas
Isaac pode estar sofrendo por questões sentimentais.
Fez silêncio no salão. Os criados que estavam acompanhando o jantar
pareciam estátuas, de tão quietos. Por mais que eles soubessem do que se
tratava, eles não diriam uma palavra sobre Isaac. Todos ali o respeitavam
demais.
— É aniversário dele amanhã. — Pauline retomou o diálogo. —
Deveríamos oferecer um jantar.
— Não tem ninguém importante em Kent. Creio que o jantar ficaria
vazio, sem convidados. — O conde disse. — Entendo que seja melhor
celebrarmos com um evento de encerramento de temporada, quando os
amigos dele e pessoas da sociedade pudessem atender ao convite.
— Ah, Edward, não podemos fazer isso. Haverá o evento de Caroline
Eckley na Granville House! Temos que comparecer, Isaac se comprometeu a
me acompanhar!
O conde não se lembrava desse evento. Provavelmente, era algo que sua
esposa estaria ciente, e pelo qual não tinha nenhum interesse.
— Comprometeu-se? Interessante.
— Eu quero ir. Haverá moças de toda Londres, muitas que não conheço.
Podemos fazer um evento depois, Isaac nunca se importou mesmo em
celebrar o seu aniversário.
— Acalme-se, irmã. Você pode ir ao evento, não me oponho. — Edward
levou a mão até a da irmã e a segurou com ternura. — Mas preciso que me
ajude. Se você está certa sobre Isaac, ele pode estar se envolvendo em
problemas.
— Que problemas? — Pauline ergueu o olhar.
— Como assim, se envolvendo? — Wilhelmina apoiou os talheres no
prato.
— Tenho razões para acreditar que precisamos ficar de olho em Isaac. Se
algo estranho acontecer, vocês duas me reportarão?
A condessa viúva chamou sua camareira com um aceno de cabeça. Um
criado se colocou atrás dela e puxou a cadeira para que levantasse.
— Edward, se seu irmão tem problemas, eu conversarei com ele. Isaac é
meu filho, no final das contas.
— Mamãe…
— Não estou discutindo isso, estou comunicando. Tente continuar em
harmonia com seu irmão, eu não quero meus filhos brigando. Vamos tomar
chá, Wilhelmina?
A jovem pediu licença ao conde e saiu com a mãe. Edward não desejava a
mãe se envolvendo naqueles assuntos, mas talvez fosse bom. Isaac daria
ouvidos a ela.
— A SENHORA PRETENDE MESMO CONVERSAR com Isaac? — Wilhelmina
questionou a mãe, depois que estavam sentadas no salão privativo da
condessa viúva, tomando chá. — Porque eu não entendi o que Edward quis
dizer.
A condessa viúva ajeitou-se no sofá e olhou para uma imagem na parede.
Havia fotos da família naquele quarto, todas devidamente emolduradas a
pedido dela. O antigo conde, seu marido, posava imponente ao lado de seus
dois filhos mais velhos.
— Seu pai nos deixou muito cedo. Edward teve que assumir o condado
ainda muito jovem e cuidar de negócios importantes. Ele tem essa ideia de
que precisa ser um pai para vocês. Garantir que os meninos se mantenham na
linha e que você se case bem. George sempre foi muito duro com ele.
— Isso diz sobre Edward. E Isaac?
— Não vou falar nada com ele. — Pauline bebericou seu chá. — Disse
aquilo para que seu irmão achasse que estamos observando. Mas Isaac é
adulto, não cabe a mim me meter em suas confusões.
— Ele é seu filho. — Wilhelmina insistiu. — Ele é quem mais cuida de
nós.
— E é por isso mesmo que eu devo deixá-lo livre. Wilhelmina, somos
mulheres. Não devemos nos intrometer nos assuntos dos homens a não ser
que seja necessário. Não vejo necessidade de fazer isso. Edward está
exagerando.
A jovem dama aquiesceu. Estava acostumada a ouvir o mesmo discurso
de sua preceptora, de suas professoras, de todas as mulheres com quem
convivia. Tinha que lembrar sempre disso para não cometer falhas em seu
debute na sociedade. Os assuntos masculinos deveriam se manter entre os
homens.
Mas ela estava curiosa em saber por que Edward se importava com o caso
de Isaac. Ela sabia o que estava acontecendo, não era tola. Conhecia bem
Isaac para entender que ele estava tendo um romance com a dama de
vermelho. Mas também sabia que o irmão era inteligente demais, ele não
pedira Caroline em casamento nem o faria se isso significasse problemas. Ela
chegou a sugerir que ele a cortejasse, mas Isaac era muito adequado para se
envolver seriamente com uma mulher libertina. Wilhelmina gostava de
Caroline, mas sabia que ela não era bem vista na alta nobreza. Casar-se com
ela rebaixaria Isaac e era provável que Edward tivesse medo que seu irmão
não soubesse separar um caso amoroso de um casamento.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
D EPOIS QUE I SAAC desabou ao seu lado na cama, Caroline sabia que ele tinha
ultrapassado vários limites. Depois de uma briga em uma taverna, um olho
inchado e alguns pontos, ele estava ferido demais para a diversão sexual.
Ainda havia o láudano, que deveria incapacitá-lo parcialmente. Ele não
pareceu nada incapacitado ou com alguma dificuldade quando se colocou
sobre ela. Mas, naquele momento, a dor o abatera.
Ela puxou o roupão que estava sob ele e se limpou precariamente, apenas
para poder levantar. Foi até o banheiro e voltou com uma bacia de água
fresca e uma toalha limpa. O ferimento sobre o olho menos inchado de Isaac
estava sangrando e ela precisava garantir que o esforço não causara o
rompimento de pontos.
— Estou bem. — Ele virou para ela, querendo pegar a toalha. —
Faminto, mas bem.
— Pedirei que sirvam o jantar aqui no quarto. Mas você precisa
descansar, Isaac. Deixe-me fazer as coisas, tudo bem?
Ele provavelmente concordou com ela, pois permitiu ser limpo, virado e
coberto. Caroline voltou ao banheiro, lavou-se e vestiu um roupão grosso de
veludo, que cobria até quase os seus pés. Sentindo-se adequada para receber
um criado, foi para a antessala da suíte e tocou a sineta. Havia criados
permanentes nos andares das pessoas endinheiradas, fossem elas nobres ou
não. Uma jovem, vestida impecavelmente, apareceu na porta.
Caroline pediu que ela trouxesse sopa, pães e uma garrafa de vinho. Se
Isaac não fosse beber, ela iria. Voltou para o quarto e o encontrou
adormecido, os ferimentos no rosto não interferindo em nada em sua beleza
angelical.
Claro que hematomas e sangue afetavam a beleza de qualquer pessoa. Até
um deus do Olimpo seria menos belo se estivesse combalido. Mas não fazia
nenhuma diferença para ela. Talvez ele estivesse ainda mais perfeitamente
lindo e desejável depois de ter brigado com o brutamonte barbudo, se isso
fosse possível. Aquele maldito aniversário passara a representar mais
problemas do que diversão.
Depois que o jantar chegou, ela o despertou e fez com que se alimentasse.
O láudano finalmente o abateu, forçando-o a adormecer novamente logo
depois. Caroline deveria dormir, também, mas estava com muitos
pensamentos que tornavam difícil relaxar. Ela estava um rebuliço. Cada
minuto de cada hora de cada dia com Isaac McFadden fazia com que ela
desejasse mais dele e isso a assustava bastante.
E então ela se deitou ao lado dele, envolveu-o com um abraço e puxou as
cobertas sobre eles. Levou algum tempo sentindo o aroma pungente da pele
masculina, a maciez rígida dos músculos relaxados e o inflar dos pulmões
dele enquanto respirava. Caroline não se viu adormecer, mas acordou
relaxada como se ela também tivesse ingerido uma quantidade moderada de
láudano.
Espreguiçando-se enquanto abria os olhos para perceber o seu arredor,
Caroline notou Isaac sentado em uma poltrona próxima à cama. Ele estava de
calça e sapatos, usava a camisa desabotoada e com os punhos abertos. Tinha
o cabelo úmido, indicando que se banhara, e olhava para ela com a
intensidade de um tornado.
Apesar do tormento aparente naquele azul límpido que eram os olhos de
Isaac, ele tinha a expressão suave.
— Bom dia. — Ela se espreguiçou e se sentou na cama. — Você parece
bem melhor, agora.
— Eu estou melhor, obrigado. Pedi que sirvam nosso desjejum. Nós
precisamos conversar, Caroline.
Sim, eles precisavam, porém ela não desejava estragar, com palavras, o
que eles tinham de tão bom. Qualquer conversa serviria para colocar questões
no relacionamento deles. O que era simples se tornaria complexo. Caroline
não queria discutir por quês nem racionalizar demais sobre os sentimentos
que ela sabia que estavam ali, gritando, entre eles.
Caroline se levantou e foi ao banheiro se lavar. Ela nunca fora tão
asseada, mas a imundice da noite anterior permanecia no odor fétido das
roupas amontoadas em um canto do quarto.
— Podemos conversar enquanto comemos? Estou faminta, a sopa de
ontem à noite não serviu para aplacar meu apetite.
Isaac surgiu na porta do banheiro e recostou no batente de madeira.
Aquele cômodo era lindamente decorado, com azulejos coloridos e pintados à
mão, bordas douradas, e lamparinas de metal polido. Os componentes do
banheiro eram de louça branca. A banheira de cobre era grande o suficiente
para duas pessoas. Por um momento, Caroline desejou que eles iniciassem a
conversa nus, ensaboados e mergulhados na água morna.
— Todos sabem que dormimos juntos. — Isaac disse, cruzando os
braços. — Nós estamos brincando com fogo há algum tempo. Precisamos
tomar uma atitude quanto a isso.
— Não será a primeira vez que dormi com um homem. Todos sabem,
também.
— Eu não sou como os homens com quem você se relacionou até agora.
Não quero que falem que eu sou seu amante para dar mais motivos para
falarem de você.
Ela entrou na água e começou a se esfregar.
— As pessoas falam de mim desde que tive meu debute em Londres. O
que pretende fazer para silenciá-las?
— Eu pretendo conversar com o Marquês de Granville e casar-me com
você.
Caroline parou o que estava fazendo, como se a água da banheira tivesse
congelado subitamente. Seu corpo travou. A tranquilidade na voz dele foi
ainda mais assustadora do que a ideia surreal de que eles se casassem. Era o
que ele realmente pretendia. Não se sentia ameaçado, nem compelido a fazer
algo que não desejava.
— Você perdeu o pouco juízo que tinha. Essa proposta é ainda mais
irrazoável do que a primeira que me fez.
— Acha irrazoável que eu deseje me casar com você?
— Sim. — Os movimentos voltaram e ela saiu da banheira. Enrolou-se
em uma toalha felpuda e o encarou. — Principalmente para reparar uma
honra que eu não possuo. Eu não sou uma dama cuja virtude precise ser
resguardada. Parece que você não me conhece há tantos anos, milorde.
Ele foi até ela e pegou a toalha, ajudando-a a se secar. Ela estava muito
sensível e a proximidade a fez manter a guarda baixa.
— A coisa certa a se fazer é nos casarmos. — Ele a enrolou na toalha e a
puxou para um abraço. — Depois de ontem, depois do que compartilhamos
nesses dias, você pode acreditar que seríamos um casal tão improvável?
Era difícil resistir a Isaac. Caroline afundou o nariz na dureza do peito
dele e respirou fundo.
— Não somos improváveis. Apenas não vou me casar, Isaac. Eu vou abrir
uma escola, eu tenho negócios e investimentos. Não vou estragar tudo isso.
Por mais que a lei me permita manter meus negócios, nós dois sabemos que
maridos controlam suas mulheres.
— Eu jamais faria isso com você. Eu deixaria você continuar tendo sua
própria vida.
— Você não pode me julgar por não acreditar. — Caroline afastou-se
dele e voltou para o quarto. Naquele instante, bateram à porta e entraram com
o café da manhã. O barulho dos criados arrumando uma mesa na sala anexa
distraiu-a um pouco. — Eu não vou abrir mão da minha vida por um marido.
— Mas você já quis fazer isso. — Isaac seguiu-a. — Já quase matou para
se casar com Aiden Trowsdale.
— Eu mudei de perspectiva. E eu achava que o amava, estava
desorientada.
— Se você me amasse, seria diferente?
Ela não respondeu. Tentava arrumar-se para o dia, enfiando-se em peças
de algodão e seda sem a ajuda de uma camareira. Quando Isaac se aproximou
para ajudar, ela se afastou, mas acabou aceitando que ele amarrasse os laços,
prendesse os ganchos e fechasse os botões. Na noite anterior, Violet mandara
uma maleta com roupas para Caroline e para Isaac, que foram obtidas de
forma subliminar na casa dos McFaddens. Os criados se comunicavam e se
ajudavam, dependendo da necessidade.
Era fato que todos já sabiam que eles passaram a noite juntos. E, por
todos, estavam incluídos os criados de Greenwood Park.
— Não faça isso, Isaac. — Ela se virou para ele e colocou as duas mãos
nas bordas abertas da camisa. — Está tudo tão bem entre nós. Você não está
satisfeito com nosso arranjo?
— Minha satisfação nunca será plena se nosso arranjo servirá para
continuar perpetuando coisas maldosas sobre você.
Ela levou sua boca à dele e o beijou. Os lábios estavam menos inchados,
o corte ali já quase cicatrizado. O hematoma no olho dele também reduzira,
mesmo que ainda indicasse que ele se envolvera em uma contenda. Os pontos
na testa pareciam secos. Ele parecia bem melhor, como dizia estar. Precisava
apenas tirar aquelas ideias da cabeça.
— Vista-se, vamos comer e depois voltar para casa. Não pense mais
nisso.
P OR DOIS DIAS , Caroline foi a mesma mulher de sempre. Seu humor ácido e
seu temperamento mantinham os criados afastados dela. Era como se a sua
imoralidade fosse contagiosa. Muitas criadas se recusavam a olhar para ela,
apenas cumpriam as ordens que recebiam porque precisavam do emprego. A
única que a tratava com algum respeito era Violet, sua camareira. Mas
Caroline não se importava tanto. Ela se acostumara a ter o desprezo da
sociedade e de todos com quem socializava. Tirando sua família, todas as
pessoas conviviam com ela por serem obrigadas.
Os preparativos para o evento se intensificaram. Ela recebera diversas
confirmações, a maioria de famílias burguesas. Jovens damas com muito
dinheiro que desejavam maridos com títulos para ascender socialmente.
Naquela época, ainda havia muitas famílias nobres que insistiam em viver de
renda, pois julgavam o trabalho degradante. E, com o crescimento
exponencial da indústria e da tecnologia, a maioria já estava endividada até
os últimos fios de cabelo. Caroline sabia disso e contava com a necessidade
de ambos os lados em se unirem.
Rosamund estava empenhada em auxiliá-la. Como boa anfitriã,
respondeu alguns convites que fizera a mulheres nobres com filhas jovens,
dentro da idade esperada por Caroline. O silêncio da condessa, no entanto, a
desanimava. Sabia que Agatha tinha restrições quanto a ela, mesmo que
tivesse aceitado uma amizade e a sociedade. Mas, no fundo, ela esperava ser
perdoada. Não por ser livre e tomar decisões contrárias ao recato, mas por
não ter entendido o lado das mulheres que eram diferentes dela.
No terceiro dia, no entanto, ela não conseguia mais dormir. Rolava na
cama a noite toda e chegara a tomar láudano para ver se a droga a derrubava.
Não teve muita sorte, apenas náuseas. Violet fez alguns chás para ajudá-la a
descansar, mas, no final, Caroline parecia um fantasma com manchas
arroxeadas debaixo dos olhos. Exausta e irritadiça, ela precisava manter-se
afastada das pessoas.
Claro que seu primo não a deixaria em paz. Mesmo depois de ela ter dado
ordens aos criados que não aparecessem perto dela nem se fossem chamados,
porque ela não queria destratar ninguém, ele foi até ela na biblioteca com
uma bandeja de doces. E uma garrafa de vinho.
— Vamos hastear uma bandeira branca, Caroline. Você está com suas
regras mensais? — Anthony serviu duas taças e entregou uma para ela.
— Não. Mas elas não demorarão. Minha barriga dói e estou muito
aborrecida com tudo. E você não deve me fazer essas perguntas. Não é
inadequado falar de partes do corpo e de questões femininas?
— Desde quando você se importa com decoro e com o que é adequado?
Vamos, beba. Pode te ajudar. Converse comigo, como andam os
preparativos?
Caroline ajeitou-se em uma chaise longue e bebericou o vinho.
— Rose está sendo fantástica, eu quase não preciso fazer nada. Ser
marquesa faz dela praticamente a comandante de um império. Mas estou
preocupada, nunca ofereci eventos dessa magnitude. E se falhar tentando
apresentar meu projeto?
Anthony sentou-se próximo a ela, apoiou a taça em uma mesinha e
segurou as mãos dela nas suas.
— Estaremos aqui para te ajudar. Você está com saudades dele?
— Saudades de quem?
— Dele, Caroline. Isaac McFadden, seu lorde romântico.
— Anthony. — Ela esticou a coluna e se sentou ereta no estofado,
soltando as mãos do marquês. Encarou-o com sua expressão mais
assustadora. — Ele não é meu lorde e por que eu teria saudades dele? Isaac
mal se foi.
— Não sei, pensei que isso pudesse contribuir para seu humor
insuportável. Mas, se está dizendo que Isaac não tem nada a ver com isso, eu
acredito.
O marquês continuou bebendo, mas em silêncio. Caroline enfiou um
bolinho na boca, mastigou, mas não se satisfez com o sabor dos morangos.
Estavam frescos, o creme era delicioso, mas faltava alguma coisa. Estava
faltando alguma coisa e ela até sabia o que era, porém recusava-se a admitir.
Não podia admitir.
— Anthony, diga-me uma coisa. — Caroline recostou novamente nas
almofadas e encarou a luz flamejante das lamparinas que clareavam a sala. —
Como foi que você descobriu que estava apaixonado por Rose?
O maldito primo tentou esconder um sorriso quando se virou para encará-
la. Um sorriso. Ele estava rindo dela. Ou da sua confusão. Caroline sempre
soube que Anthony era um vilão. Ela queria bater nele por imaginá-lo
fazendo troça de seus problemas.
— Desde o primeiro momento em que eu a vi. Mas foi apenas quando ela
me mandou para o inferno e jogou uma taça de champanhe sobre mim que
tive certeza que a amava. Mas você já sabe essa história.
— Sei a história de como vocês se conheceram. Paris, café, champanhe,
festa, todos os detalhes. Estou falando agora de sentimentos. Você era um
libertino. Não tinha mais honra do que um cão de rua. E então se apaixonou?
Foi dormir um dia querendo acordar todas as manhãs ao lado dela?
— Mais ou menos isso. — Anthony deu uma risada e mudou de lugar.
Sentou-se ao lado de Caroline. Ela se ajeitou para que ele se acomodasse. —
Apenas para corrigi-la, eu sempre tive muita honra. Nunca matei, nem feri
ninguém deliberadamente. Nunca roubei ou explorei as pessoas. Nunca fui
avarento e sempre tentei levar o bom nome dos Eckleys adiante. Eu era um
libertino no que toca às liberdades sexuais, apenas isso.
— E decidiu que queria ficar com Rose.
— Eu amo minha esposa, Caroline. Não há explicação racional para esse
sentimento. Você sempre pensou muito sobre tudo. Não dá para pensar muito
sobre amor. Você o sente, bem aqui. — O marquês levou a mão
cautelosamente até o meio do peito dela e tocou-a onde era possível sentir as
batidas do coração. — Se estiver apaixonada por alguém, seu próprio corpo
te dirá. O ar vai faltar sempre que você estiver próximo a ele, ou também
quando estiver longe. Suas pernas tremem, suas mãos suam, você fica um
pouco tola querendo estar com ele o tempo todo. E o desejo, ah, o desejo…
você provavelmente notará que o ato sexual é muito mais prazeroso com ele.
Ela não disse mais nada, apenas continuou a beber e a encarar os objetos.
O marquês continuou ao seu lado enquanto ela refletia sobre o que ele disse.
Anthony sempre acabava falando de sexo ou outras perversidades, só que ele
tinha razão. E ela tinha um problema. Se aqueles eram os sintomas, o que ela
sentia por Isaac poderia ser classificado como paixão.
E Deus sabia que ela não pretendia se apaixonar. Não mais. Não enquanto
ela tinha tantos planos. Porque todas as suas paixões a levaram à ruína.
Caroline sempre escolhia os homens errados, fossem eles canalhas ou
apaixonados por outras. Mas Isaac não era um canalha.
Ele também não estava apaixonado por outra, mas pretendia casar-se. E
com outro tipo de mulher. Ele queria uma esposa tradicional, ela jamais seria
uma. Ele precisava de alguém como a dama italiana: que fosse calma,
resiliente e disposta a lhe encher de filhos. Caroline era um furacão que
derrubava todas as estruturas dos lugares por onde passava.
— Ele disse quando volta? — Anthony perguntou, tirando-a dos
devaneios.
— Não, ele disse que daria notícias e… de quem estamos falando
mesmo?
— Acha que consegue me enganar, Caroline? Eu sou aquele que cuida de
você desde que chegou nessa casa, indefesa e assustada. Estamos falando de
Isaac McFadden, a causa dessa conversa que acabamos de ter. O homem por
quem você está apaixonada - e morrendo de medo de seus sentimentos.
— Ah! Mas eu não tenho medo dos meus sentimentos! — Ela se levantou
rapidamente, ajeitando as saias que estavam amassadas. — Eu sequer tenho
sentimentos, Anthony Eckley. Não invente coisas onde elas não existem.
— O menino é um cavalheiro, Caroline. Ele tem intenções nobres para
com você.
— O problema não é ele. — Ela se sentou em outra poltrona, de frente
para o marquês. — Eu não quero ser podada por um marido, Anthony. Por
nenhum marido.
— Duvido que ele seja um tirano com você.
— Ele é maravilhoso, mas ainda não tem a autoridade sobre mim. E
quando tiver? E se ele mostrar uma face que nunca exibiu para ninguém,
antes?.
— Tudo bem, minha cara. Entendo suas dificuldades em confiar nos tipos
como eu. Espero apenas que Isaac não desista de você facilmente. Vá se
lavar, vamos jantar em breve.
Da mesma forma súbita que entrou, o marquês saiu da biblioteca e deixou
Caroline ali, pensativa. Ela encheu novamente a taça de vinho e se encolheu
na frente da lareira. Iria se atrasar para o jantar, mas estava confusa, cansada
e ansiosa por alguma coisa que não compreendia bem. Imaginou estar ali nos
braços dele. Conversando. Podendo ler alguns trechos de seus livros favoritos
para ele. Ouvir como estavam sendo as coisas em Cornwall. Recebendo
carinhos e beijos suaves.
Isaac não oferecia a ela apenas noites de prazer. De uma forma ou de
outra, ele era capaz de preencher seus dias. Ele era presença, enquanto os
outros foram ausência. Ele esteve ali para ela quando os outros preferiram
não estar. A decisão de ter aquilo para toda a vida parecia muito simples de
tomar. Se ela não fosse perder nada no processo que culminaria na destituição
de todo o seu patrimônio. Talvez Anthony tivesse razão e ela estivesse sim,
apaixonada por Isaac McFadden. Aquele jovem romântico e ingênuo que, no
final, se mostrava masculino, atraente, sedutor e muito maduro. Mas ela
precisava confiar nele para ceder a ele. Paixão não parecia suficiente em troca
de tudo que ela poderia perder.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
I SAAC LEVOU minutos para se recuperar. Deitado em sua cama, ele segurava
Caroline em seus braços e não fazia nada além de sentir a respiração dela em
sincronia com a sua. Eles estavam abraçados e emaranhados, em silêncio
enquanto seus corpos descansavam da atividade sexual. Ele desejou tomá-la e
possuí-la desde que a viu no salão, valsando com outro homem. E ali,
naquele quarto, enquanto compartilhavam momentos de intimidade, ele se
sentia poderoso. Quase invencível. Poderia fazer aquilo toda noite. Dormir ao
lado dela e acordar com Caroline em seus braços todo dia.
Ele tinha que se casar com ela. Não havia mais nada que desejasse tanto.
Mas ela tinha outros planos, e o silêncio indicava que era melhor adiar
uma conversa até o dia seguinte. Disposta a passar outra noite ao lado dele,
Caroline logo adormeceu entre os lençóis, nua, perfeita sobre a cama. Isaac
levantou-se, lavou-se, ajeitou uma colcha sobre ela, deitou-se novamente ao
seu lado e também adormeceu. Ele costumava dormir muito mais cedo que
seus pares em Londres. A exaustão de trocar os dias pelas noites cobrava
invariavelmente seu preço.
Durante a madrugada, eles despertaram algumas vezes. E fizeram amor
em todas elas. Mesmo que eles fossem apenas sombras, que a nebulosidade
do sono ainda pairasse sobre suas vistas, o desejo conduziu um até o outro.
Isaac pode tocá-la mais, senti-la mais, beijá-la mais - e se deleitar com os
gemidos de prazer que ela soltava só para ele.
Quando a luz do sol penetrou pelas janelas ainda abertas do quarto, ele
despertou ao perceber o vazio ao seu lado. Caroline não estava no quarto.
Isaac quis levantar-se e procurá-la, mas a dama logo retornou enrolada em
um roupão. Os cabelos longos e escuros estavam úmidos.
— Seu encanamento é fascinante. Nunca havia usado um chuveiro,
sempre preferi a banheira. Estou revendo meus conceitos.
Ela sorriu e pulou sobre a cama, colocando-se ao lado dele.
Definitivamente, Isaac poderia fazer aquilo todo dia.
— Os prédios recentemente construídos são muito modernos. Por isso
quis comprá-lo. Também porque eu queria um lugar para chamar de meu.
— Preciso me arrumar e voltar para o hotel. Anthony tem alta tolerância
para minha falta de decoro, mas eu não posso exagerar.
Caroline levantou-se e começou a procurar suas peças de roupa. Não
parecia razoável que ela saísse de seu apartamento vestida com o vermelho da
noite.
— Deixe que eu mande Dewitt buscar roupas adequadas para você. Sua
criada pode vir ajudá-la a se arrumar. Não vou atrasá-la muito mais e será
menos desonroso do que desfilar pelo dia com as roupas de ontem. Enquanto
esperamos, podemos conversar.
— Ah, conversar. — Caroline recostou-se na cabeceira da cama. —
Certo, pode dar seguimento ao seu plano. Diga a seu criado que procure
Violet, ela providenciará tudo que preciso.
Isaac assentiu. Saiu do quarto, chamou seu valete e pediu que Dewitt
cumprisse algumas tarefas. Entre elas, que trouxesse comida de uma padaria
muito conhecida que ficava próxima ao apartamento. Tudo levaria mais de
uma hora para ser resolvido, então ele teria aquele tempo para discutir alguns
detalhes importantes com a mulher em sua cama.
— Temos algum tempo, agora. — Ele disse, se colocando ao lado de
Caroline. — Eu sei que deixei Kent subitamente e não resolvemos algumas
pendências. E que você não quis casar-se comigo. Mas tenho outra proposta
agora, Caroline. Eu quero cortejá-la.
A expressão assombrada de Caroline poderia ser interpretada como uma
ofensa, mas Isaac duvidava que sua masculinidade pudesse sofrer mais.
— Cortejar? Depois dessa noite, depois de todas essas noites, ainda
acredita que isso é necessário?
— Claro que é. Nós temos intimidade física, mas não somos um casal aos
olhos públicos. Eu quero que sejamos. Quero cortejá-la em festas, em
passeios, em eventos, visitá-la formalmente. E, só depois, propor-lhe
casamento.
O assombro deu lugar à consternação. Isaac poderia jurar que os olhos
dela estavam úmidos. Mas demonstrar emoções não era o ponto forte de
Caroline Eckley. Ela parecia mais dura do que uma rocha. Mesmo assim,
com carinho, ela levou a mão direita até ele e tocou-o na face.
— Ah, Isaac. Você é o homem mais romântico que conheço. Eu adorarei
aparecer em público com você, além de encontros casuais às escondidas.
Preciso confessar que eles não estão me satisfazendo. Eu quero mais de você.
— Mas isso é excelente! — Ele se exultou. — Isso significa que…
— Ainda assim, eu não pretendo me casar. — Ela o interrompeu. — Não
posso me casar agora. Nós não podemos continuar com nosso arranjo
inicial? Como amantes?
— Céus, não! — Isaac levantou-se repentinamente. Passou as mãos pelos
cabelos, nervoso com a dificuldade que ela colocava ao relacionamento deles.
Para ele, era tudo muito claro, muito óbvio. Ele estava apaixonado por ela.
Era ridículo que estivesse, mas não adiantava negar e dizer que não. Mas
Caroline impunha obstáculos intransponíveis a qualquer proposta digna que
ele fizesse. — Certamente não podemos ser amantes. Eu não quero nada tão
indigno. Sem contar as implicações. Nunca poderemos ser uma família,
Caroline. Você não quer filhos? Mesmo que eu não precise providenciar
herdeiros para os McFaddens, eu gostaria de ter os meus filhos. E ainda há os
riscos, pois você pode engravidar mesmo que tomemos todas as precauções.
Ele disse tudo rápido demais. Estava nervoso com todos os obstáculos
que ela insistia em colocar ao relacionamento deles. Caroline queria o
mínimo, ele só se satisfaria com o máximo. Vendo que ele parecia fora de
controle, ela se levantou e foi até Isaac. Passou a mão pela face dele, pelos
ombros, pelo peito despido.
— Sei de todos os riscos. Mas você não entende, você jamais entenderia.
Eu quis ser uma dama como todas as outras, mas nunca fui. Quis ter um
marido como todas as outras, mas os homens só me desejaram por motivos
fúteis. Eu servia para dar-lhes prazer, nunca para ser a esposa. E então eu
passei por tudo aquilo em Thanet Bay, fui internada como louca e me
redescobri como pessoa. Como mulher. Foi preciso um choque para me
transformar, Isaac. Eu não vou abrir mão de quem eu sou, hoje, para me
casar. — Ela levou a boca até ele, beijou-o no lugar onde batia o coração. —
Eu gosto muito de você. Mais do que deveria. Mas, no fundo, você é apenas
mais um homem como todos os outros. Vai tentar me controlar e me podar
assim que nos casarmos. Não posso fazer isso. Não posso deixar que faça
isso.
— Eu jamais podaria você, Caroline. — Ele a abraçou, puxando o corpo
pequeno e trêmulo para si. — Eu me apaixonei pela mulher que você é. Por
que eu mudaria qualquer coisa em você?
— Ainda assim, não posso. — Caroline ergueu o olhar. Havia um brilho
úmido em seus olhos castanhos que indicava que ela estava emocionada. — É
difícil para um homem entender que, quando se tem tudo a perder, não se
pode ceder nada. Quero você. Mas não vou me casar.
Isaac fechou os olhos. De todas as fraquezas que ele já demonstrara na
frente dela, chorar seria a mais vergonhosa de todas. Ele não costumava
chorar, apesar de se considerar um homem sensível. Aquelas vulnerabilidades
eram femininas demais para que ele demonstrasse sem se sentir diminuído
perante seus iguais. Mas ele estava prestes a derramar algumas lágrimas pela
constatação de que não teria a mulher que desejava.
Não teria Caroline. Ela o recusou de todas as formas possíveis. Um
homem não podia ser rejeitado tantas vezes e sair ileso. Ele precisava dar um
fim àquilo, porque senão seria tarde demais.
— Não posso ter você pela metade. Não é a coisa certa a se fazer, não é
justo conosco.
— O que faremos sobre isso, então?
A pergunta dela ecoou no fundo de sua alma. O que ele faria? Ela estava
decidida, não seriam suas declarações que a fariam mudar de ideia. Caroline
não era uma dama manipulável nem influenciável. Tudo que ela foi antes,
tudo que se falou a respeito dela, não era mais. E era aquele o motivo de ele
desejá-la tanto. De querer tanto ter mais tempo com ela, passar a vida com ela
para descobri-la todo dia. Com Caroline, ele suspeitava que os dias nunca
seriam tediosos ou mornos.
Mesmo assim, ele precisava deixá-la ir. Com cuidado, Isaac afastou-a de
seu peito e beijou-a nos lábios. Foi rápido, úmido e suave.
— Preciso encontrar-me com Nathaniel e Edward. O problema de
Tyntesfield fora causado por um administrador desonesto e estamos
resolvendo isso de forma a não gerar escândalos. Logo suas roupas chegarão.
Fique o quanto quiser, Dewitt trará também comida e preparará um desjejum
para que desfrute da manhã.
— Você está indo embora. — Ela constatou.
— Por enquanto, eu estou.
A voz estrangulada foi sucedida do afastamento. Isaac não podia
continuar naquele quarto ou não sairia mais dali. Acabaria cedendo e fazendo
todas as vontades de Caroline, porque ela sim, o dominava. Porém, precisava
ser razoável. Ela não merecia que ele aceitasse aquela proposta. Assim como
ela não aceitou a sua primeira, de tirar-lhe a virgindade. Ambas eram
indecorosas, injustas, e não representavam a dimensão dos sentimentos dele
por ela.
Ele pegou uma camisa branca, seu casaco e saiu. Terminaria de se vestir
em outro cômodo e manteria uma distância razoável de Caroline enquanto
tentava descobrir uma forma de fazê-la confiar nele. Ela precisava confiar.
Isaac não estava pronto para abrir mão dela, para desistir. Mas não podia
dizer sim e permitir que continuassem como amantes.
A SSIM QUE A PORTA de madeira se fechou, Caroline sentiu seu corpo falhar.
Não conseguiu manter as pernas firmes, acabou sentada na cama com os
membros trêmulos. Outros homens já haviam deixado sua vida. Todos eles.
Nenhum de seus amantes ficou. E ela não quis que ficassem. Alguns, ela
desejou que voltassem. Outros, ela precisou expurgar como a uma doença.
Mas aquele… daquele homem ela precisava.
Não, Caroline não precisava de maridos ou amantes. Ela queria amigos.
Pessoas que se importassem com ela e que não a tentassem mudar. Estava
cansada de depender de quem a magoaria no final. Mas a voz dentro dela
gritava que estava enganada. Que Isaac nunca seria outro Robert Langdon.
Porque todos os homens, até então, eram iguais ao miserável que a deflorou e
a abandonou. Só que aquele ali era diferente. Por que era tão difícil para ela
confiar?
Ela não sabia o que fazer. Pela primeira vez, Caroline ficou sem reação.
Batidas à porta precederam à entrada de uma criada que carregava uma
bandeja com comida. Ela saiu e voltou com uma valise contendo um vestido
e os acessórios que Caroline precisava para sair com dignidade do
apartamento de Isaac.
— Milady deseja ajuda para se vestir?
A criada perguntou, vendo a dama apática à sua frente. Caroline assentiu
sem dizer nada. Estava com a sensação de quem engolira um bolo de pelos.
Sua voz sumiu, sua garganta estava áspera. Deixou-se vestir e arrumar pela
jovem moça desconhecida e se sentou à frente da bandeja, que continha um
bule de chá, biscoitos e bolinhos com cobertura.
— Milorde pediu para garantir que a senhorita comesse tudo. — A criada
disse, com um sorriso. — Ele mesmo escolheu os doces, milady. Lorde Isaac
é muito atencioso.
Sim, ele era. Caroline sabia e já experimentara bastante daquela atenção.
E ela já estava se acostumando a tê-la. Acostumando-se a saber que aquele
homem estava ali para ela. Afogada em pensamentos confusos, ela mordeu
um bolinho e descobriu que era recheado de morangos. As lágrimas vieram
sem que ela conseguisse impedir. Sozinha novamente, Caroline chorou pelas
decisões tomadas e pela perda que acabara de sofrer.
Isaac foi embora. Ele não iria voltar. Nenhum homem, nem ele, aceitaria
tantas rejeições. O mais difícil era que Caroline não pretendia rejeitá-lo. Ela o
desejava tanto, o queria tanto, mas acreditava que seria possível mantê-lo sem
a necessidade do enlace matrimonial.
E não era. A comida adquiriu um gosto amargo e desagradável. Ela
deixou tudo ali, o chá pela metade e os biscoitos intocados, e decidiu voltar
para os Eckleys. Não adiantava chorar por Isaac. Ela tinha que tomar atitudes.
Caroline sempre foi uma mulher de ação. Precisava organizar os pensamentos
e decidir. Afinal, o que ela queria?
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO
I SAAC ESTAVA SONHANDO . Era um sonho estranho e pouco usual, em que ele
sentia muita dor e estava preso. Amarrado, com pés e mãos acorrentados. O
barulho ao redor era vezes ensurdecedor, vezes uma calmaria tranquilizante.
Não sabia onde estava. A escuridão o engolia mesmo de olhos abertos. Não,
ele não conseguia abrir os olhos por mais que se esforçasse para fazê-lo. Mas,
assim mesmo, ele sabia que ela estava ali. Por perto, procurando por ele.
Foi então que as correntes foram arrancadas de seus membros e ele estava
liberto. Imóvel, porém, em liberdade. A luz ardeu suas pálpebras, forçando-o
a piscar algumas vezes.
— Isaac?
A voz de Caroline era música em uma tarde de verão. Como os pássaros
cantando nas árvores. A mão dela segurava a dele, mas ele não conseguia vê-
la. Tudo estava muito turvo, borrado, cinzento. Isaac abriu bem os olhos,
tinha certeza de tê-los arregalados - e, ainda assim, Caroline não passava de
um borrão.
— Deixe-me examiná-lo, milady.
Aquele era Davies. O que o doutor fazia em seu sonho?
— O senhor não me afastará dessa maca, doutor. Faça o seu melhor.
Ele quis sorrir e não soube afirmar se seus lábios se moveram. Era como
se tivesse recebido uma grande quantidade de morfina, mas sentia dor demais
para estar drogado.
— Preciso de espaço para trabalhar. Se milady se preocupa com ele,
sente-se naquela cadeira por alguns minutos, ao menos para que eu o
examine.
Não, não se afaste. Isaac quis gritar, sua voz não saiu. Ele estava tão
confuso, o sonho parecia tão etéreo e tão real. Nervoso, ele tentou protestar,
tentou agarrar alguma coisa, tentou acordar. O esforço o deixou cansado e
tudo ficou escuro, quieto e silencioso por muito tempo.
A S MÃOS de Caroline tremiam depois que ela saiu do quarto de Isaac. Ele não
devia ter descido e se esforçado tanto. Ela precisou convencê-lo a subir e
beber um pouco de láudano para a dor - que ficou evidente um pouco depois
que ela aceitou o pedido de casamento. Depois que o lorde, seu futuro
marido, adormeceu, ela precisava voltar para Granville House e continuar seu
evento. Apesar de ter se decidido pelo casamento, Caroline também estava
decidida a convencer Isaac que nada mudaria significativamente em relação
aos seus negócios.
Mas ela estava muito nervosa, ainda. Pelo que aconteceu no dia anterior e
pelas regras que chegaram desavisadamente. Por um lado, era bom ter que
lidar com aquele inconveniente feminino - ela não estava grávida. Apesar de
estar acostumada ao sexo, Caroline nunca fora tão inconsequente quanto
estava sendo com Isaac. E tudo aquilo fazia com que ela estivesse à beira da
exaustão.
Ela ia embora quando foi atraída para o escritório de Edward. O conde
estava ali, com sua esposa, conversando alguma coisa sobre alguns papéis.
Ao vê-la passar, chamou-a para juntar-se a eles. Caroline não sabia se
deveria. Ela se impôs aos McFadden como fez aos Trowsdales. Decidiu que
eles seriam seus amigos, porque ninguém mais lhes dava qualquer
importância. Apesar de tudo que acontecera entre eles, nem Elizabeth nem
Agatha a desprezavam. Ao contrário, até a duquesa, que tinha motivos de
sobra para detestá-la, tratava-a com educação e respeito.
Caroline agiu muito mal, antes de ser internada em um sanatório. Ela
tinha um relacionamento de rivalidade com outras mulheres. Demorou a
entender que fazia aquilo porque não conseguia ser como elas e se
atormentava com inveja. Parte do seu processo de mudança e do perdão que
precisava angariar restava na necessidade de mostrar para Agatha que ela era
uma pessoa melhor.
E ela faria parte da família. Isaac era um irmão querido e certamente
haveria muitos encontros e reuniões, como aquela em Greenwood Park. Ela
não fugiu de Agatha antes, por que estava preocupada naquele momento?
— Caroline, beba conosco. — Agatha ofereceu a ela uma taça de vinho
branco. — Vou ajeitar algumas coisas e acompanhá-la até Granville House.
A escola também é minha, preciso participar de tudo.
— Ah, mas milady ajudou muito ontem. Não posso pedir que deixe sua
família novamente.
— Não está pedindo, estou oferecendo.
— Obrigada! Representa muito para mim que tenha me perdoado pelos
erros do passado.
— Eu também preciso do seu perdão, Caroline. — Foi Edward quem
disse. Ele virou uma dose de conhaque de uma só vez, indicando que aquele
assunto o incomodava. O conde não costumava desculpar-se por nada. —
Quando soube do envolvimento de Isaac com você, julguei mal suas
intenções. Eu pensei que…
— Que eu estava interessada em usar seu irmão. — Ela bebeu um gole de
vinho. — Eu estava. Não nego que uma parte de mim quis se aproveitar de
um jovem tão viril quanto ele. Mas meus sentimentos são verdadeiros. Eu me
apaixonei por Isaac.
— Consigo perceber. Ninguém se enfiaria em um buraco e arriscaria a
própria vida se não fosse por amor.
— Você não se importa de ele ser mais jovem? — Agatha demonstrou
curiosidade.
— Nem um pouco. Pensei que ele se importaria de eu ser mais velha,
porém isso não aconteceu. Nunca conheci um homem como Isaac. Eu seria
uma tola completa se deixasse que essa pequena diferença de idade nos
afastasse. Meus motivos para resistir foram outros. Eu sou muito
independente.
— Os homens McFadden não prendem suas mulheres. — Edward olhou
para sua esposa com ternura. — Meu pai nunca demonstrou afeto por mim,
mas eu aprendi com seu exemplo. Minha mãe tinha muito mais liberdade do
que qualquer mulher de sua época. Talvez por isso sejamos tão bobos, fomos
ensinados a nos casar por amor.
— Ainda bem, pois eu só aceitaria um casamento se pudesse me
apaixonar por meu marido. — Caroline riu. — Eu te perdoo, Edward, porque
sei quem eu fui e que reputação eu tenho. Você é um idiota, mas não tinha
como saber que eu não pretendia ferir os sentimentos do seu irmão.
A lady terminou de beber seu vinho e foi até a varanda. Não encontrou
nenhum outro McFadden, o que era revigorante. Não sabia se conseguia ter
aquela mesma conversa pela quarta vez. Estava acostumada a famílias
grandes, foi criada com cinco primos, mas ficava exausta de se repetir. Pediu
a um criado da residência que informasse à condessa que precisava partir, e
que a aguardava em Granville House.
Ela foi caminhando para Greenwood Park, voltou caminhando para casa.
Marquesa e Lorde a viram partir e a seguiram, latindo e brincando um com o
outro. Caroline olhou ao redor e sentiu-se melhor do que em qualquer outro
dia de sua vida. Mesmo que uma cólica desconfortável a fizesse praguejar em
silêncio, nada tiraria seu bom humor naquela manhã de verão. Mas ela teria
que fazer outra exigência ao marido. Eles teriam que morar em Kent.
CAPÍTULO VIGÉSIMO QUARTO
N ÃO FOI fácil acreditar que a propriedade dada a ele era a sua favorita durante
toda a sua infância. Isaac sempre adorou estar perto do mar e a casa em
Sunnyside Bay ficava ridiculamente perto da praia. A brisa marinha entrava
pelas janelas o dia inteiro e, da suíte principal havia uma vista perfeita para o
mar de Thanet.
Depois de passarem duas horas cumprimentando todos no brunch, Isaac e
Caroline escaparam sem serem vistos e foram de carruagem até a
propriedade, que não ficava muito distante da casa principal em Greenwood
Park. Ele nunca pensou que, um dia, levaria sua esposa para lá. Quando
chegaram, havia um criado para recebê-los.
— Seja bem-vindo, milorde. Sou Taylor, seu mordomo.
— Muito prazer, Taylor. Creio que meu irmão tenha escolhido você.
— Sim, o conde foi muito gentil em me dar esse emprego. Posso
apresentá-los aos criados agora ou milorde preferirá…
— Podemos fazer as apresentações amanhã. — Isaac entregou seu chapéu
de castor ao mordomo. — Agora, eu preciso fazer com que minha esposa
conheça a vista.
— Cuidarei para que não sejam incomodados, milorde.
Como todo criado dos McFadden, aquele certamente era muito bem
treinado. Taylor desapareceu pelo corredor e Isaac conduziu Caroline pelas
escadas. Ela estava muda até então, deixando que o olhar vagasse por todos
os detalhes da casa. O lorde parou no meio do caminho e virou-se para a
esposa, que parecia bastante dispersa.
— Estou sendo autoritário. — Ele disse, passando as mãos pelos cabelos
dela. — Você quer conhecer os criados? Conhecer a casa toda agora?
Cômodo por cômodo?
— Não. Estou apenas um pouco assustada, Isaac. Nunca fui uma esposa
antes. Sei gerenciar negócios, mas nunca precisei cuidar de uma casa. E essa
casa maravilhosa… bem, tenho medo de falhar.
— Você não falhará, Caroline. Você nunca falhou em nada do que fez.
Tenho plena confiança que, logo, você terá todo o controle da situação.
Ele deu um passo na direção dela e, com um puxão, segurou-a em seus
braços. No colo. Desde que sua visão retornara praticamente por completo,
ele também recuperou a confiança e a força muscular. Ela deu um gritinho e
se agarrou no pescoço dele para manter o equilíbrio.
— O que é isso?
— O marido deve levar a mulher nos braços para o leito nupcial.
— Isso é definitivamente muito tolo.
— Sou tolo e sou romântico. Você terá que aprender a lidar com isso.
Isaac subiu o restante das escadas, abriu a porta do quarto com um pé e
fechou com o outro, e depositou sua esposa sobre a enorme cama de dossel
que ficava bem no meio da suíte. Depois, foi até as duas janelas que ficavam
ao lado da cama e abriu as cortinas para revelar a mais esplêndida visão de
Thanet. O mar da enseada, já na penumbra, sendo engolido pela escuridão da
noite.
— Oh meu Deus, Isaac. — Caroline pulou da cama e foi até a janela. —
Isso é lindo. É quase como estar no Paraíso.
Sim, era. Ele se aproximou por trás e começou a soltar os grampos dos
cabelos dela. Enquanto Caroline apreciava a vista que desaparecia diante de
seus olhos, absorvida pela beleza, ele beijava-a no pescoço enquanto soltava
seus cachos do elaborado penteado feito por Violet. Havia pouca iluminação
no quarto, mas naquele momento ele queria apenas sentir. O cheiro de
jasmins, a maciez da pele, a pulsação naquela zona sensível no pescoço dela.
Caroline apoiou as duas mãos na janela. Isaac desceu os carinhos para os
botões perolados do corpete. Aquele era o vestido de noiva mais lindo que ele
já vira. Era a primeira vez que ela não usava vermelho. Mas também não era
branco, era de um tom de creme que fazia com que Caroline parecesse uma
sobremesa a saborear. Com os cabelos soltos, ela poderia ser um manjar
esperando ser devorado. Isso fazia com que ele não tivesse muita paciência
com os botões.
Ainda assim, Isaac não os arrancou. Abriu um a um enquanto beijava-a
nos ombros e se deliciava com os sons que ela emitia a cada toque. O corpete
afrouxou e cedeu. Depois de terminar os botões da saia, o vestido inteiro caiu
aos pés de Caroline.
Ele já fizera aquilo outras vezes. Já a despira e já a possuíra de muitas
formas. Mas, naquele momento, ela era sua esposa. Ela era dele. E parecia
bem satisfeita com aquela condição. Isaac trabalhou nas fitas do espartilho e
retirou cada peça de roupa que cobria aquele belo corpo feminino. Depois,
abraçou-a por trás, forçando sua ereção contra suas costas.
— Você ainda está vestido. — Ela murmurou, sentindo-o deslizar as
mãos para o centro de suas pernas.
— Não teremos uma consumação formal de casamento. — Ele provocou,
virando-a para si. As costas de Caroline bateram contra o vidro da janela. —
Então eu posso me divertir fazendo as coisas que você se propôs a me
ensinar.
— Pelos céus, quando você se tornou tão arrogante assim?
Ela riu, mas a risada saiu estrangulada. Isaac arrancou os tecidos do
caminho deles e se ajoelhou, colocando uma das pernas de Caroline sobre
seus ombros.
— Eu sempre fui, milady. Mas agora eu sou um arrogante com
experiência.
Isaac acariciou os cachos castanhos que cobriam o objeto de seu desejo e,
com os polegares, expôs o sexo de sua esposa. Envolveu-a com a boca e
lambeu-a suavemente. Caroline gemeu e se contorceu enquanto ele segurava
o clitóris entre os lábios e sugava.
— Parece que você aprendeu muito bem. Acho que sou uma professora
muito eficiente.
Ele riu e continuou a beijá-la ali. Sim, Caroline era uma professora muito
boa. Não porque entendia do ato sexual, mas porque colocava significado
nele. Ela o ensinou a compreender seus gemidos, a entender cada movimento
de seu corpo, a perceber quando ela estava desesperada de desejo e prestes a
explodir no clímax. Dar prazer a ela era uma das coisas que ele mais se
deliciava em fazer.
Antes que Caroline chegasse ao orgasmo, ele parou. Ela ameaçou
protestar, mas ele levou as mãos às suas roupas e arrancou-as, quase com
pressa demais. Caroline segurou seu membro rígido nas mãos e ele grunhiu.
— Estou sem você há semanas. Se você não tomar cuidado, duvido que
eu possa durar muito.
— Pois eu quero que dure o máximo de tempo que puder. — Ela
conduziu-o para sua entrada, molhada e inchada, esperando por ele. — É a
primeira vez que farei sexo com um marido, estou achando isso muito
excitante.
Era excitante. Isaac penetrou-a com intensidade demais e fez com que ela
batesse no vidro novamente. Caroline riu e ele sabia que ela não se opunha a
um pouco de virilidade. Ela o enlaçou com as pernas e Isaac passou a mover-
se lentamente, beijando-a. Segurava-a pelos quadris, com as mãos debaixo
das nádegas, e percorria seus lábios, seu pescoço, ia até os seios, mordiscava
os mamilos. Enquanto ela gemia e murmurava seu nome, ele entrava e saía
dela e estimulava-a com o polegar acariciando o clitóris.
Aquela foi outra coisa que ele estava aprendendo. Ela podia atingir o
ápice enquanto ele estivesse dentro dela, se tivesse ajuda. Percebendo o que
ela dizia e como ela o envolvia com seus músculos apertados, Isaac ia e vinha
enquanto a acariciava onde ela mais gostava até que ela colapsasse em seus
braços chamando por ele.
Encontrando seu próprio alívio, Isaac investiu mais algumas vezes contra
Caroline e a abraçou, permitindo mais uma vez que sua semente a
preenchesse. Daquela vez, pelo menos, não havia risco algum. Eles eram
marido e mulher. Eles pertenciam um ao outro.
Eu não costumo escrever notas, mas esse livro pede alguns comentários, não
pede?
Quando comecei as pesquisas para escrever romances de época, eu já
sabia um pouco sobre a realidade das mulheres nos séculos passados: sem
direitos, tratadas como propriedade dos pais, irmãos e maridos, sem
autonomia, sem que suas potencialidades pudessem ser desenvolvidas. Isso
porque eu tinha acabado de terminar meu doutorado em Direitos e Garantias
Fundamentais e temas como desigualdade de gênero e violência contra a
mulher foram os que mais estudei durante 5 anos inteiros.
Eu também já havia notado que os romances de época traziam suas
discussões sobre essa realidade. E foi aí que tive a ideia de criar Caroline
Eckley, uma mulher que destoava dos padrões, que recusava os estereótipos e
que era desrespeitada e rejeitada por isso. Caroline foi descrita como louca,
insana e desagradável no primeiro livro, mas isso foi proposital - mulheres
diferentes do padrão eram comumente consideradas loucas e internadas em
sanatórios.
Uma das partes interessantes da pesquisa se relacionou ao Married
Women’s Property Act de 1882, a lei britânica que concedeu às mulheres o
direito de manter propriedades e de existir como seres em separado de seus
maridos, depois do casamento. Até aquele ano, quando as mulheres se
casavam elas deixavam de existir. Marido e mulher viravam uma pessoa
única e apenas o marido despontava. A personalidade da mulher era apagada
por completo e seu patrimônio (caso ela tivesse) era absorvido pelo marido.
Quando Caroline se tornou adulta, a Married Women’s Property Act
estava se tornando realidade. Mas, apesar de existir no papel e valer para toda
a Inglaterra, Gales e Irlanda, a lei não mudou os costumes. Era incomum que
uma mulher efetivamente conseguisse gerenciar seu patrimônio depois que se
casasse. Mesmo que ela não fosse mais absorvida por seu marido, ela ainda
era controlada e submissa a ele.
A rejeição ao casamento podia ser uma forma de rebeldia a essa
realidade. O que não era uma decisão fácil, já que mulheres solteiras eram
mal vistas pela alta sociedade - ganhavam a denominação “solteironas” e
eram consideradas mulheres infelizes e incompletas.
Fico frustrada por ver que, hoje em dia, ainda há mulheres que se sejam
colocadas na posição de escolher constituir família pela via do casamento ou
seguir suas carreiras profissionais. Estamos no Século XXI e ainda
precisamos nos manter vigilantes quanto aos direitos pelos quais algumas
mulheres morreram para conquistar por nós.
Os livros que Caroline menciona são A Vindication of the Rights of
Women, de Mary Wollstonecraft e Subjection of Woman, de John Stuart Mill.
São obras fundamentais para se compreender a luta de mulheres por direitos
antes que os movimentos sociais se consolidassem, por volta de 1960.
Recomendo!
Beijo grande e até o próximo livro!
PRÓLOGO
U MA SEMANA ERA o tempo que levava uma viagem para as Américas. Talvez
um pouco mais. Certamente, um pouco mais. Era possível cruzar o oceano
em um navio naquele tempo, mas não era possível planejar um casamento.
Mesmo que Wilhelmina contasse com um exército de mulheres, ela ainda
estava com uma missão além de suas forças.
Elizabeth Trowsdale, a Duquesa de Shaftesbury, juntou-se às suas
cunhadas, Agatha e Caroline, para ajudá-la. A duquesa era esposa de Aiden,
o melhor amigo do Conde de Cornwall, e irmão de Agatha. Ela era uma
mulher mais experiente, mãe de cinco crianças e muito sensata.
A Srta. Trimmes também participou da equipe. Ela era uma mulher
relativamente jovem, de cabelos vermelhos como o pecado e uma aparência
bela. Não disse nada, mas Wilhelmina suspeitava que ela fosse a amante de
alguém. E era mãe - parira uma criança bastarda há seis anos. Wilhelmina
não tinha motivos, mas sentiu incômodo ao saber que ela trabalhava todo dia
com seu futuro marido. Era uma mulher bonita demais para passar
despercebida pelo Sr. Sawbridge. Não seria surpresa se a criança bastarda
fosse filha do industriário.
Não, aquela especulação era absurda.
Depois de passarem o dia andando por Londres e comprando o que
faltava para o enxoval, as mulheres levaram as compras para a residência do
Sr. Sawbridge na Grosvernor Square. A casa era quase tão grande quanto a
McFadden Garden, e ficava no reduto da nobreza, em Mayfair. Em dois dias,
aquela casa seria sua nova residência.
— Arthur, não fique parado. — A Srta. Trimmes bateu as mãos,
chamando a atenção do mordomo. Ele parecia fascinado com a invasão
feminina na casa. Provavelmente era incomum que mulheres frequentassem o
lugar. — Oriente os empregados na retirada das caixas da carruagem. E peça
que sirvam chá com bolinhos, as ladies devem estar exaustas. Temos uma
duquesa entre nós, seja rápido.
Arthur assentiu e girou nos calcanhares, desaparecendo pela porta da
frente. Eram muitas as caixas que precisavam ser trazidas para dentro.
Mesmo que Wilhelmina não considerasse precisar de um item ou outro, ela
preferiu pecar pelo exagero. A secretária conduziu as damas para um salão
amplo e arejado, apresentando cada cômodo que elas cruzavam.
— O Sr. Sawbridge é um pouco espalhafatoso. Ele gosta de obras de arte
e a casa é cheia delas, como podem ver. Para ele, dinheiro gasto em quadros e
objetos de arte nunca é mal investido. O escritório dele parece um museu.
Enquanto a secretária tagarelava e encantava as outras mulheres com
histórias sobre um castiçal ou uma estátua, Wilhelmina estava silenciosa
observando a decoração. Parou em um corredor grande para examinar uma
fotografia pendurada na parede. Era um retrato de família, grande e elegante.
Tinha um casal e um jovem posando para as câmeras. A imagem mostrava
uma família simples, mas os sorrisos eram sinceros. Com exceção do jovem.
Ele não sorria, nem demonstrava nenhuma alegria em estar ali.
Ela se juntou às amigas no salão, cujas paredes eram cobertas por quadros
ou estantes com livros. Uma mulher vestida de uniforme preto e branco veio
servir o chá e logo elas estavam sozinhas novamente.
— Wilhelmina, sua mãe está vindo para o casamento?
Elizabeth perguntou, aproveitando-se de um momento de silêncio.
— Sim, Vossa Graça. Ela chega amanhã, Nathaniel foi buscá-la. Os
homens não confiam que ela possa transitar sozinha de um lugar para o outro.
— Todos super protetores. — Agatha resmungou. — Mas são filhos
excelentes.
— Talvez possamos aproveitar o momento e conversar com Wilhelmina
sobre o que esperar do casamento.
Caroline disparou. A Srta. Trimmes baixou a xícara um pouco rápido
demais, fazendo-a bater no pires. Wilhelmina parou com um bolinho a
caminho da boca.
— Pode ser uma boa ideia. Quando Pauline chegar, estará exausta para
conversar. E somos todas mulheres casadas, podemos ajudar.
— Sem contar que Pauline é antiga. — Caroline provocou. — Ela tem
uma visão ultrapassada do casamento. Wilhelmina precisa ser orientada por
mulheres como nós.
— Orientada sobre…
— Basicamente, sobre a noite de núpcias. — Elizabeth sorriu para ela. —
Essa é a parte mais difícil para uma dama como você, minha querida.
— Bem, vou deixá-las a sós. — A Srta. Trimmes levantou-se, um pouco
atarantada. — Esse é um assunto para a família.
As mulheres suspeitaram que ela estava assustada por falar daquele
assunto, dada a velocidade em que a secretária se ausentou do salão. Ficaram
ali as duas cunhadas de Wilhelmina e a duquesa, que era, sem dúvidas, a mais
versada em casamentos. Talvez ela fosse muito boa para conversar sobre
assuntos difíceis. Elizabeth era uma mulher tradicional, que respeitava ao
máximo as regras da sociedade. A diferença entre elas era, além da idade, a
origem. A Duquesa de Shaftesbury era uma plebeia e vivia na pobreza antes
de conhecer o duque.
— Então, o que eu devo saber?
— Primeiro, diga-nos o que já sabe. — Agatha determinou.
— Sei que o marido procurará a mulher em seu quarto e se deitará com
ela. E que isso se repetirá por algumas vezes para garantir que a mulher
engravide.
— Certo, agora diga-nos até onde Grant foi com você.
Wilhelmina corou. As bochechas receberam um fluxo enorme de sangue
e ela ficou vermelha como uma maçã. Sentiu um calor súbito e precisou
buscar um leque para se abanar. A verdade era que Sawbridge não fizera nada
com ela além de beijá-la de forma muito indecente. Eles mal se conheciam e
provavelmente trocariam apenas algumas palavras até a noite de núpcias.
Mas ela não podia contar aquilo. O plano era fingir que o cavalheiro no
jardim era o seu futuro marido.
— Como assim, até onde ele foi?
— Minha querida, vocês foram vistos em uma posição um tanto…
indecorosa. — Agatha segurou a mão da cunhada mais jovem. — Então,
sabemos que houve mais do que alguns beijos, não houve?
Ah, sim. Houve. Mas nada que deveria ser próximo do que acontece em
uma noite de núpcias. Isso ela tinha certeza. Não dera muitas liberdades para
o cavalheiro. Na verdade, quando ele tentou tocá-la por baixo das saias, ela o
estapeou e se afastou. Era uma pena que essa informação fora omitida do
folhetim. O Royal Gossip não era muito fiel à verdade, preferia contar as
histórias que satisfaziam a sede de escândalos de seus leitores.
— Foi uma situação bem menos indecente do que aquele jornal maldoso
fez parecer. — Ela respondeu, por fim. — Eu não lhe permiti ir muito além.
— Bem, então você provavelmente não sabe muito do que é necessário,
mas fique tranquila. Imagino que seu futuro marido seja experiente o
suficiente para te orientar durante a noite de núpcias.
— Assim como os maridos da maioria de nós, Grant é um libertino. —
Caroline bebericou o chá. — Mas é bom que Wilhelmina saiba o que esperar.
Assim ele não poderá desapontá-la.
— Há alguma coisa para esperar? Quero dizer, ele chegará no escuro, eu
estarei despida, ele me deflorará e voltará para seu quarto. Não é isso?
— Céus, isso parece com as cláusulas de um contrato. — Caroline deu
uma risada.
— É isso, mas não será assim tão frio e distante, minha querida. —
Agatha tentou amenizar a conversa. — Existe um processo de sedução
envolvido. Seu marido fará com que você deseje o envolvimento carnal com
ele.
Wilhelmina não saberia dizer se conseguiu esconder sua expressão de
desprezo e desgosto pela ideia de desejar o Sr. Sawbridge. Ela não estava se
casando por isso, não amava o noivo nem pretendia amá-lo. Mas estava
cercada por mulheres apaixonadas. Mesmo depois de anos de casamento,
aquelas damas ali ao seu redor eram completamente dedicadas a seus
maridos, que também se dedicavam exclusivamente a elas. Como explicaria
que seu casamento era pura conveniência?
Não explicaria. Era mais fácil continuar fingindo na frente das amigas.
— Entendo. E eu devo esperar ser seduzida, então. Não significa que eu
deva fazer nada.
— Ah, mas é desejado que faça! — Elizabeth riu. — É muito mais
interessante quando a mulher também seduz.
— Sim, certamente. Edward costuma dizer que eu o seduzo, e não o
contrário.
— Quando ditamos as regras no quarto, o ato sexual é muito mais
prazeroso.
As mulheres continuaram a falar e Wilhelmina passou a ser uma mera
espectadora. Ela não tinha como contribuir com aquela discussão e não
queria participar.
Era curioso que ela tivesse se descoberto tão conservadora. Quando mais
jovem, era destemida e curiosa. Depois, tornou-se amarga e frustrada. Sua
mágoa com as regras sociais que a impediam casar-se com o amor de sua
vida se transformou em obsessão. Wilhelmina defendia rigorosamente o
cumprimento delas, mesmo depois de ter estudado na escola mais liberal da
Inglaterra. Claro que ela esperava que as regras fossem cumpridas. Afinal, ela
estava se afastando do seu amor, da pessoa que a fazia sentir-se especial e
querida. Não parecia justo que outros subvertessem os costumes para seu
benefício.
Isso fez com que ela se chateasse com a própria família. Por três longos
anos, tentou ser uma boa dama, perfeita, a fim de conseguir um marido que
pudesse levá-la para um lugar de conforto e tranquilidade. Mas, no fundo, ela
esperava mais dos cavalheiros. Não conseguira afastar toda a influência que
recebera das cunhadas que eram felizes em seus casamentos. Não conseguia
impedir-se de desejar mais.
CAPÍTULO TERCEIRO
E RA SÓ O QUE FALTAVA . Ele teria que levar a esposa para a reunião com um
parceiro comercial porque ela gostava de negócios e porque ela duvidava que
ele a respeitaria por isso. Era uma maldição que a aristocracia acreditasse tão
veementemente na diferença entre as pessoas. Homens e mulheres, nobres e
gentios, patrões e criados. Sawbridge não podia se importar menos com essas
bobagens. Ninguém valia mais ou menos do que ninguém, mesmo que umas
pessoas fossem ricas e outras pobres.
— Com quem vamos nos encontrar?
Wilhelmina rompeu o silêncio que se estabelecera desde que ele dissera
que preferia uma esposa inteligente.
— O nome dele é Albert Carlisle. É um visionário americano que está na
Inglaterra para convencer os novos ricos pós-revolução a investirem nas
Américas.
— E o senhor pretende investir com ele?
— Parece promissor. Mas é arriscado.
Wilhelmina remexeu-se no assento. As saias dela farfalharam e os quadris
tocaram a lateral do corpo de Sawbridge. Ela era uma pequena provocativa
que não fazia ideia de sua capacidade de atormentar um homem que estava
celibatário por tempo demais. Sawbridge não lembrava da última vez que
passou uma semana sem uma mulher em sua cama.
— O senhor não assume riscos.
Foi uma afirmação. O industriário viu o prédio do King’s Head à sua
frente. Eles estavam próximos de chegar ao destino.
— Eu assumo muitos riscos. Casar-me com você foi um dos maiores, até
o momento. Mas eu geralmente pondero se os riscos valem à pena.
Ela virou-se para ele com os olhos piscando. Cílios longos e castanhos
emolduravam as írises coloridas e iluminadas pelo sol. Maldição, ela era
muito mais bonita do que deveria ser. Ele não precisava se casar com uma
dama que fosse bonita. Bastava ser rica e capaz de gerar e parir seus filhos.
— Creio que isso signifique que eu valho à pena.
Sawbridge parou o cabriolé repentinamente. A rua era movimentada, mas
ele deixou o veículo parado na porta do hotel. Sabia que alguém viria e, por
algum dinheiro, removeria o inconveniente dali. Depois de pular de seu
assento, foi até onde ela estava sentada e ajudou-a a descer.
— Estou começando a desconfiar que sim.
A forma como ela corou ao ouvi-lo fez com que ele a desejasse. Não era
nada incomum que Sawbridge desejasse mulheres bonitas, portanto era
esperado que se comportasse como um animal. Ele apenas não gostaria que
seu pênis enrijecesse no momento em que o corpo dela escorregou próximo
ao dele, na descida do veículo.
O King’s Head não era um hotel de luxo. Para negociantes e burgueses,
era suficiente. O maldito americano aguardava por Sawbridge na recepção,
lendo o jornal que fora cuidadosamente passado a ferro pelos empregados.
Ele tinha cabelos castanhos fartos, barriga proeminente e usava roupas que
não combinavam.
Os dois homens se cumprimentaram e Carlisle indicou que deveriam ir
para a sala de chá.
— A dama pode esperar aqui enquanto tratamos de nossos assuntos no
salão de jogos.
— Creio que não será possível. — Sawbridge disse, segurando os dedos
da esposa que estavam segurando a dobra de seu cotovelo. — A Sra.
Wilhelmina Sawbridge veio para me acompanhar e ela ficará muito frustrada
se perder a conversa.
— Ah! — Carlisle deu uma risada. — Ela ficará entediada com o que
falaremos. Mas, se insiste…
— Eu insisto. — Wilhelmina falou, com a voz baixa e os olhos
expressivos.
Rendido, Carlisle assentiu. Eles ocuparam uma mesa, pediram café preto
e começaram a conversar. A esposa permaneceu sentada com as costas eretas,
as mãos apoiadas sobre as saias fartas, e o olhar fixo nos homens à sua frente.
Sawbridge queria prestar mais atenção no parceiro, mas foi difícil concentrar-
se nele. O espécime feminino que o acompanhava era demasiado intrigante.
Como prometido, ela não falou nada. Claro que ela não acreditou nele
quando disse que preferia uma esposa inteligente. Homens nunca queriam
mulheres que pudessem conversar de igual para igual com eles em nenhum
contexto, embora ele não estivesse mentindo.
Depois da reunião, eles não tinham mais nada para fazer. Nada que
adiasse os momentos de solidão conjunta de um casal recém-casado. Aqueles
momentos aguardados pelos apaixonados e evitados pelos que se uniram pela
conveniência. Já passava de duas da tarde e eles ainda precisavam enfrentar
uma viagem de carruagem por pelo menos meia hora até a casa do
industriário.
Ottis esperava o patrão na porta de casa. Ele já colocara as bagagens nos
quartos, todas as malas na suíte. Era de se esperar que um casal em lua de
mel aproveitasse o tempo juntos. Tudo aquilo estava ficando constrangedor
demais. Eles não estavam apaixonados. Era difícil fingir sentimentos quando
ele sequer estava acostumado a senti-los.
— Sejam bem-vindos, senhor e senhora Sawbridge.
O empregado fez uma mesura. Não era sempre que ele tinha a
oportunidade de ver uma lady. Nenhuma das pessoas que conhecia Grant
Sawbridge imaginaria que ele fosse sequer se casar. Quanto mais com uma
lady.
— Ottis, obrigado por seus serviços. Não preciso mais de você por hoje,
tire uma folga.
— Pois não, senhor. A cozinha está abastecida, mas a Sra. Crowle virá
amanhã preparar alguns pratos.
Com a pesada porta de madeira fechada, a casa repentinamente ficou
pequena demais para ele a esposa. Ela tinha cinco quartos, dois salões, uma
cozinha e escritório. Não precisava de mais, pois Sawbridge raramente ia ao
País de Gales - e quase nunca ficava tempo o suficiente para usufruir da casa.
Wilhelmina girava pelo salão observando a decoração. Quadros, estátuas,
miniaturas - tudo era um pouco exagerado, mas ele adorava aquela
ostentação. Ela parou diante de uma estante e examinou as estatuetas. Pegou
uma com as mãos, olhou, devolveu para o lugar.
— O que faremos agora?
Seria muito indecente dizer o que ele queria fazer. Depois de um dia de
intimidades com sua esposa, Sawbridge só conseguia pensar em jogá-la sobre
uma superfície qualquer e possuí-la. Sabia que precisava ser cuidadoso,
delicado e suave - mas tinha certeza de que não conseguiria. Ele era bruto. A
sutileza de sua aparência e vestuário era incompatível com a rudeza do seu
espírito.
— A praia fica a metros daqui. Se quiser, podemos ir até lá.
— Eu adoraria caminhar na areia. Gosto do oceano, deve ser porque fui
criada em Thanet. O senhor me indicaria onde posso me trocar por um
vestido mais adequado?
Claro que ela iria querer andar na praia. Uma virgem como Wilhelmina
não estaria considerando fornicar no meio do dia. Ela nem deveria saber o
que era fornicar, talvez nunca tivesse sido tocada de forma imprópria, nem
pelo patife do jardim.
Sawbridge conduziu-a até o quarto. Esperou que ela se trocasse e ajudou-
a a fechar os botões - malditos botões - do vestido azul claro com rendas.
Depois, os dois saíram pela porta dos fundos da casa, que conduzia a uma
trilha diretamente para o mar. O oceano em Amlwch era lindo e gelado. Ele
nunca colocou os pés na maldita água, mas ela tirou as sapatilhas e correu
para a areia, também gelada. Ele a acompanhou, tirando os sapatos e
dobrando as calças no meio das canelas.
Foi ridículo sentir-se como um homem velho enquanto sua esposa era
uma criança brincando na praia. Sawbridge tinha apenas trinta e cinco anos,
estava em pleno vigor físico e mental, apenas não ligava para muitas
atividades que não envolvessem ganhar dinheiro, jogar, beber, fumar ou
foder. Olhando para Wilhelmina, abaixada para pegar conchas e sorrindo
enquanto os lábios iam ficando azuis pelo frio, ele sentiu que não gostava de
muitas coisas.
— Venha. — A voz dela fez com que ele parasse de divagar. — Veja
essas conchas, elas são lindas. Nunca as vi na Inglaterra.
— As águas aqui são mais geladas. — Sawbridge blasfemou
internamente por enfiar o pé na água fria. — E eu acho que vir à praia foi
uma ideia ruim, já que o clima não está favorável.
— Não seja tolo, o sol está brilhando. Dê-me seu chapéu, quero coletar as
conchas.
— Vai molhar e estragar o feltro.
— O senhor deve ter outros chapéus.
— E nós poderemos voltar à praia depois, com um recipiente adequado.
Wilhelmina virou-se para ele e estendeu um braço. Ela não aceitaria um
não como resposta. Enquanto ela estava ali, de pé, com as meias úmidas e um
sorriso jovial nos lábios, ele decidiu que já adiara demais o momento. Ele
precisava tomá-la como sua.
— Certo, pegue o chapéu. Mas não vamos nos demorar aqui. Decidi que
tenho outros planos para nós, essa tarde.
CAPÍTULO SÉTIMO
T UDO AQUILO ERA INDECENTE DEMAIS . Ele era seu marido, ela sabia que
deveria entregar-se a ele, mas o conhecimento não tornava nada mais fácil.
Ali, naquele momento, ela tinha plena consciência do que iria acontecer, mas
não do que deveria fazer.
— Certo. — O marido disse, enquanto ela lutava para manter-se vestida e
evitava vê-lo. — Vamos mais devagar, então. Que tal se nos deitarmos
vestidos?
Aquela parecia uma ótima proposta. Se estivessem deitados, talvez ele
ficasse muito excitado e desistisse de despi-la. Wilhelmina abriu os olhos e se
deixou conduzir para a linda cama de dossel que ficava exatamente no meio
do quarto. Era uma cama grande, macia e com os lençóis brancos, como ele
prometera.
Ela se deitou, acomodando a cabeça em um travesseiro. Sawbridge
engatinhou sobre ela como um leão analisando a presa. Mesmo que
mantivesse suas calças, muito dele estava exposto. O peito masculino, os
braços firmes e o cheiro de bergamota e madeira ela já conhecia. Seus olhos
vagaram pelo corpo dele e notaram sua ereção por baixo do tecido.
Ele era grande. Muito grande. Ela se casara com um homem viril que
estava ali para mostrar sua potência. E, com outro beijo, Sawbridge a
arrebatou.
— Mantenha os olhos fechados. Vou tocá-la de duas formas. — Ele
murmurou de encontro à boca dela. — Você me dirá qual prefere.
Ela obedeceu e balançou a cabeça, concordando. Sentiu o corpo dele
deslizar sobre ela e um toque quente em seus tornozelos. O tecido de sua
camisola subiu um pouco e a boca dele mordiscou-a na coxa, por cima da
seda.
— Prefere assim… — Sawbridge subiu mais a camisola e colou os lábios
no lugar onde mordiscara. — Ou assim?
A língua dele circulou a pele e Wilhelmina descobriu que todos os nervos
conduziam espasmos para o mesmo lugar.
— Assim.
Ela gemeu e se envergonhou da forma como sua voz saiu, estridente e
distorcida. Ele sorriu e ela soube, mesmo que não estivesse olhando.
— Muito bem. — Ele então arrastou os lábios por sobre a feminilidade
dela. Wilhelmina contraiu os músculos e agarrou os lençóis com os dedos. —
Agora você prefere assim… — Sawbridge continuou subindo com a seda da
camisola e os lábios dele subitamente a beijaram ali, no meio de suas pernas.
Ela estremeceu e viu estrelas piscando no escuro de seus olhos fechados. —
Ou assim?
Não dava para responder àquilo. Ela sequer entendia o que ele estava
fazendo naquele lugar. A falta de reação fez com que o marido insistisse.
Wilhelmina sentiu que ele usava os dedos para abri-la e, sem seguida, sua
língua morna a tocou em um lugar que ela mesmo ignorava ser tão sensível.
Uma dama bem-criada não reagiria da forma como ela reagiu. Ao menos,
era o que aprendera com sua tutora, antes de ter a oportunidade de conhecer
um outro lado do prazer feminino - apresentado por suas cunhadas. Mas o
toque bruto e molhado da boca daquele homem em sua feminilidade fez com
que Wilhelmina se retorcesse e soltasse uma imprecação alta. Ele riu outra
vez.
— Vou entender que você prefere assim, minha querida.
Ele não parou. Voltou a lamber e beijar a intimidade dela, usando os
dedos para manter suas pernas afastadas o suficiente. Wilhelmina quis sentir-
se indiferente, mas era impossível. Cada vez que a língua de seu marido
deslizava sobre a sua carne quente, ela sentia mais espasmos pelo corpo
inteiro.
Depois de alguns minutos de uma doce tortura, ela decidiu entregar-se ao
abandono. Os espasmos foram ficando mais constantes. Calor subiu por seu
baixo ventre e ela viu uma explosão de luz quando seu corpo recebeu uma
descarga de prazer indescritível.
O gemido que ela soltou enquanto ele a estimulava com a língua foi
vergonhoso. Logo, ele estava com os quadris pressionando os dela. Mesmo
vestido, a fricção causou mais uma vez aquele atrito prazeroso. O marido
abocanhou um seio e mordiscou o mamilo. Depois, sugou-o com delicadeza.
— Agora, minha esposa… você prefere que seja assim? Ou assim?
O homem ergueu toda a camisola, expondo os seios ao ar morno do
quarto. Não houve tempo para que ela pensasse - o outro seio foi também
abocanhado, mordido e sugado. A língua dele circulou o mamilo sem
nenhuma delicadeza. Sawbridge era ríspido em suas carícias, mas nenhuma
delas gerou desconforto. Ao contrário - Wilhelmina estava assustada com
suas reações àquela sedução.
De todas as formas, era melhor quando eles estavam pele com pele. Ela
abriu os olhos e levou as mãos aos botões da camisola, pretendendo abri-los.
Toda a seda rendada se resumia a um emaranhado de tecido embolado em
seus ombros. Ao perceber o que ela pretendia, o marido assumiu a tarefa e
rasgou a camisola, ignorando que ela fosse feita para ser usada mais de uma
vez.
Os olhos dele estavam intensos sobre os dela. Sawbridge ergueu o corpo e
se sentou, apoiando os quadris nas pernas da esposa.
— Você é linda. — As mãos dele percorreram todo o corpo dela.
— Agora você… também vai…
— Sim, eu vou.
Claro que ele ia. Wilhelmina tinha a opção de continuar olhando para ele
ou enfiar um travesseiro no rosto. A segunda opção era a melhor decisão, mas
ela não resistiu em espiar. Quando ele levou as mãos ao cós de suas calças,
ela imaginou ver um brilho perverso naqueles olhos azuis transparentes. O
marido sentia prazer em constrangê-la, de qualquer forma.
A imagem do homem completamente nu era ainda mais perturbadora do
que a imagem dele vestido. Ele se levantou, tirou as calças e voltou para
sobre ela, mas ficou de pé tempo o suficiente para que ela o visse.
Além dos músculos longos, a projeção de sua masculinidade era
intimidante. Wilhelmina não era absolutamente inocente em relação aos
detalhes de um ato sexual, tinha alguma noção do que aconteceria. Talvez
uma noção equivocada, já que esperava poder fazer aquilo vestida, mas não
fora preparada para aquela visão.
Contra toda a decência, ela quis tocá-lo. Quis estender as mãos e segurar
aquele membro rígido entre os dedos, sentir sua textura seu calor. Mas não o
fez. Ele lhe deu a oportunidade, mas ela permaneceu estarrecida, encarando-
o.
— Dói. — Sawbridge aproximou-se dela, apoiando-se nos cotovelos. —
Não sei dizer o quanto, mas todos nós sabemos que dói, não é mesmo? Mas
uma coisa eu posso garantir: a dor não é permanente. O seu corpo vai se
acostumar ao meu e a dor dará lugar ao prazer. Confie em mim.
Ele a beijou. Wilhelmina não sabia se confiava naquele homem com
quem se casara, mas suas dúvidas pareciam irrelevantes enquanto ele a
possuía com a língua daquela forma.
Sawbridge ajeitou-se por entre as pernas dela e conduziu o pênis para a
sua abertura. Segurou-a pelos quadris com mãos firmes e forçou-se contra
ela. A boca dele causava distração suficiente para que a dor não a
incomodasse. Ele se afastou e investiu outra vez, com mais força, fazendo-a
sentir como se sua carne se dilacerasse. Era uma sensação estranha e os beijos
perderam o efeito. Quando ele investiu pela terceira vez e a penetrou por
completo, a dor fez com que ela visse mais estrelas.
O marido soltou um gemido gutural e permaneceu imóvel. Colou a testa
na dela, mantendo os olhos fechados. Suor escorria pelos cabelos ruivos dele.
Wilhelmina soltou os lençóis e percorreu os músculos das costas dele com os
dedos. Será que doía para os homens, também? Mas Sawbridge não era
virgem.
— Sinto muito. — Ele sussurrou nos ouvidos dela. — Não tem como ser
de outra forma, mas não vai demorar muito.
Ele então se apoiou nos braços e começou a mover os quadris. Entrava e
saía dela em um ritmo cadenciado. Seu rosto assumira uma expressão
contorcida, indicando que ele segurava alguma coisa e que logo buscaria a
libertação. Mas ele estava errado - a dor não ficou menor com o tempo. Cada
estocada fazia com que ela sentisse as pontadas de uma faca cutucando-a.
Como se o marido estivesse ali com um instrumento perfurante, pinicando-a
por inteiro.
Para ele, estava prazeroso. Os gemidos que Sawbridge soltava eram
diferentes dos dela e a forma como ele intensificava os movimentos indicava
que o alívio estava próximo. A força que o movia estava prestes a se soltar - e
isso aconteceu em uma última estocada, um último gemido.
Sawbridge deitou-se sobre ela, deixando que o suor de seu corpo a
molhasse. Wilhelmina quis sentir algo diferente, quis demonstrar alguma
satisfação no ato, mas não conseguiu, imediatamente. Foi uma experiência
absurdamente íntima e, de certa forma, libertadora, mas ela definitivamente
não pretendia sentir aquela dor uma outra vez.
CAPÍTULO OITAVO
F AZIA MUITO TEMPO QUE ELE NÃO TINHA UM ORGASMO TÃO INTENSO .
Sawbridge estava tão acostumado ao sexo que raramente algo novo acontecia
para empolgá-lo. As mulheres eram todas iguais e os estímulos que elas
ofereciam eram todos iguais. O ato sexual virou uma rotina, como as
refeições diárias: o corpo pedia e ele o satisfazia.
Mas nada naquele momento foi comum. Desde que ele se propôs a
seduzir sua esposa até o momento em que despejou sua semente dentro dela,
nada foi como ele esperava. Talvez fosse porque fazia muito tempo que ele
não ejaculava em uma mulher, só que não tinha certeza. Tudo que sabia era
que foi bom. Muito bom.
Mas foi bom apenas para ele. Sua esposa não aproveitou o momento nem
se entregou ao êxtase depois de perder a virgindade. Talvez ele não se
importasse. Ele certamente preferia não se importar, só que vê-la ali, deitada
e segurando os joelhos com os braços, mexeu com alguma coisa dentro dele.
Se Sawbridge tivesse coração, ele poderia dizer que estava tocado.
— Diabos. — Esbravejou para si mesmo, enquanto enchia uma bacia com
água morna. — Toda virgem passa por isso, maldição. Ela não é especial.
Claro que ele poderia tentar se convencer disso, mas, no fundo, sabia que
estava errado. Ela era sua esposa e, por algum motivo que ele desconhecia,
ela era importante para ele. Vê-la se contorcer de dor durante o ato sexual fez
com que ele quase desistisse.
Quase. Afinal, em algum momento ficaria bom para ela também.
Sawbridge voltou para o quarto com a bacia e uma toalha branca.
Wilhelmina estava encolhida, deitada de lado. Havia sangue pelos lençóis.
Ele precisaria trocar aquilo antes de dormirem.
— Eu já estou grávida?
Ela perguntou, surpreendendo-o. O industriário sentou-se na cama e
colocou a bacia no chão. Molhou a toalha, torceu e fez com que a esposa
virasse de barriga para cima.
— Não sei, mas provavelmente, não. É… muito cedo.
— Precisa de muitas vezes?
— Às vezes, eu não sei bem. — Sawbridge passou a toalha úmida pelas
pernas dela, subindo em direção à sua vulva. Wilhelmina manteve as pernas
bem fechadas, como se ele pudesse feri-la. — Você está desesperada para ter
um bebê?
— Não. Talvez. Eu só não queria passar por isso outra vez.
Ele respirou fundo. Aquele drama virginal era parte do pacote, Sawbridge
deveria saber. Com cuidado, forçou as pernas dela até que se abrissem um
pouco. Passou o pano por ali, limpando a mistura de fluidos e sangue que
ficara na intimidade da esposa. Seria mais fácil se ela tomasse um banho, se
entrasse em uma banheira de água morna e se lavasse mais adequadamente,
mas era uma tradição que o homem limpasse a mulher que ele deflorou.
— Você vai querer passar por isso de novo, minha querida.
— Duvido. É… é como tortura.
— Porque foi a primeira vez. Estava como uma tortura antes de eu
penetrá-la?
— Não. — Ela confessou, virando o rosto para o outro lado.
— Na próxima vez, será indolor. Você só sentirá prazer.
— É doloroso para os homens, também? A primeira vez?
Wilhelmina virou-se para ele novamente, apoiou o rosto na mão e o fitou.
Ela era curiosa.
— Geralmente, não. Alguns homens possuem um obstáculo que pode
fazer doer.
— Como nós?
— Sim, como vocês.
— Você tinha esse obstáculo? — Os olhos dela fitaram o pênis flácido de
Sawbridge. Ele não se importava em ser visto nu. Era um homem bem-
dotado e a maior parte das mulheres o parabenizava por possuir um membro
avantajado.
— Não. Eu nunca senti dor no ato sexual. — Ele colocou a toalha dentro
da bacia e cobriu a esposa com o lençol. — Você está com fome?
Ela assentiu a cabeça dizendo que sim. Sawbridge enfiou-se em um
roupão e desceu. Apesar do estado de Wilhelmina o incomodar, ele estava
estranhamente satisfeito e faminto, disposto a comer tudo que estivesse na
cozinha e a fazer qualquer coisa para que ela o quisesse outra vez.
Preparou uma bandeja com tudo que achou. A comida estava fria - mas a
cozinheira era esperta e preparou alimentos que pudessem ser consumidos
sem esforço. Pernil defumado, pães e torta. Wilhelmina iria querer chá, ele
precisava ferver água. O jantar ficaria mais complicado do que o esperado.
S ERIA correto que ele levasse a esposa de volta para a cama e lhe desse prazer
de verdade, sem dores. Não se esperava que homens da aristocracia, que se
casaram por conveniência, se ocupassem de satisfazer suas mulheres, mas ele
tinha uma reputação a zelar - e estava longe de ser um aristocrata. Só que ele
não faria isso, não naquela noite.
Wilhelmina estava resistente a suas investidas cavalheirescas e ele
também não era um cavalheiro, era verdade. Deixaria a esposa em paz pelo
dia e, naquela bendita noite, ele apenas dormiria. Seria prudente dormir em
outro quarto, longe dela, só que isso seria ceder ao que ela queria. E não, ele
estava decidido também a atormentá-la, pelo menos um pouco.
Que péssimo marido ele era.
Depois do jantar, que foi nada além de um lanche, os dois subiram as
escadas. Ela se trancou no banheiro e demorou meia hora para sair. Por que
havia fechadura naquela porta? Sawbridge precisava providenciar a retirada
delas, se houvesse alguma em sua casa de Londres. Enquanto esperava, olhou
para o teto do dossel e deixou-se perder em pensamentos.
Mas então ela saiu e toda a sua atenção foi atraída pela figura feminina de
aroma de frutas silvestres que vestia outra camisola de renda. Maldição.
— É provável que eu esteja dormindo quando o senhor… quando você
retornar. Estou muito cansada. Tenha uma boa noite.
Sawbridge assentiu e foi ao banheiro se lavar. Arrancou o roupão e o
deixou embolado em um canto do chão. Olhou-se brevemente no espelho e,
depois, levantou o pênis para observar seu saco. Era bom que estivesse no
lugar, mas ele suspeitava que perdera suas bolas, porque estava começando a
agir como um bobo com aquela mulher.
Abriu as torneiras e deixou a banheira encher. Apesar do dia preguiçoso,
ele também estava exausto. Era acostumado a eventos muito mais
empolgantes do que conversar com um americano maluco e passear na praia
com sua mulher, mas sim, ele só pensava em fechar os olhos e dormir até o
dia seguinte raiar.
A água morna fez com que Sawbridge relaxasse ainda mais e isso o levou
a acelerar o banho ou acabaria dormindo na banheira. Esfregou-se, retirou os
resquícios de aroma feminino que estavam impregnados em sua pele, molhou
os cabelos e decidiu voltar para a cama. Ele dormiria como mais gostava - nu.
Esperava que sua esposa não se incomodasse com aquela característica sua.
Só que ela estava, mesmo, dormindo.
— Você ainda vai me dar algum trabalho, não vai?
Ele disse para ela, mesmo sabendo que não ouviria. Wilhelmina estava
adormecida, com o rosto apoiado sobre as duas mãos. Os cabelos dourados
davam a ela uma aparência angelical.
Estava certo de que ele ainda teria muitas dores de cabeça com sua
mulher. Era o preço que plebeus pagavam por se misturar com o sangue azul.
E LE NÃO ESTAVA MENTINDO . Quando o marido disse que não haveria dor,
Wilhelmina apostou que fosse uma farsa para convencê-la a aceitá-lo outra
vez. Grant Sawbridge parecia um homem que faria algo do tipo. Mas não era
mentira. Ela não sentiu dor e ainda experimentou um prazer físico que
pensava ser inatingível.
E, quando ele encontrou seu alívio e se deitou por sobre ela, molhando-a
com suor, Wilhelmina o envolveu com seus braços e não o permitiu afastar-
se. Foram minutos até que ele conseguisse rolar para o lado e, ainda preso em
seu abraço, acomodasse-a em uma posição menos incômoda.
— Descanse. — Ele beijou seus cabelos.
— É muito cedo. O sol mal se pôs.
— Não temos nada melhor para fazer.
— Mesmo assim. Eu poderia ler…
— Prefere se encontrar com o Sr. Rochester a ficar comigo nessa cama?
Wilhelmina ergueu o olhar e ele a encarava com uma expressão
indecifrável. O calor dos braços dele era aconchegante. Claro que ela estava
resistindo a ficar ali porque não admitia que se sentia tão acolhida e protegida
com seu marido. Não era para ser daquela forma. Mas ela não tinha nenhuma
intenção de sair daquela cama. Ah, não tinha mesmo.
— Talvez eu prefira ficar aqui mais um pouco.
Ele a acomodou nos braços e puxou o lençol por sobre eles. Wilhelmina
adormeceu logo depois, sem conseguir resistir ao cansaço que a acometeu.
Durante o sono, sonhou com flores, primavera e o sol de Kent. Sentia
saudades de casa, da casa que ela conheceu quando criança, do lugar onde foi
criada. O calor do sol em sua pele era real quando abriu os olhos e percebeu
que já era dia.
Era dia o suficiente. O sol estava brilhando intenso do lado de fora e o
relógio que fazia tic-tac ao lado da cama marcava nove horas da manhã. Ela
dormira por quase vinte horas! Grant não estava ao seu lado e ela teve certeza
de que ele voltara para seus negócios. Provavelmente o casamento seria
daquela forma. Eles dormiriam juntos, ele passaria o dia envolvido com o
trabalho, ela seria uma esposa rica. Logo, uma mãe.
Passou a mão na barriga. Poderia estar grávida? Ela não fizera nenhuma
conta sobre seu período mensal. Esteve tão desorientada nas últimas semanas
que só saberia quando as regras viessem. Se elas viessem. Talvez a gravidez
fosse uma coisa boa, ela teria como ocupar seu tempo vivendo em Londres,
longe da família.
Não queria pensar em coisas tristes como o afastamento de seus irmãos.
Levantou e abriu as cortinas totalmente, revelando uma belíssima paisagem.
A janela dava para o oceano e era possível ver a praia e o mar refletindo azul
no vidro. Wilhelmina abriu as bandas de madeira para sentir a brisa marinha e
deparou-se com uma visão inesperada.
Seu marido. Ele estava parado de frente para o mar, flexionando as costas
enquanto esticava os braços para cima. Usava uma calça de linho escura, sem
sapatos e sem camisa. O sol lhe tocava a pele com cuidado, como se fosse
perigoso perturbar Grant Sawbridge. Uma fumaça suave indicava que ele
estava fumando um cigarro.
Que homem despudorado era aquele, que perambulava seminu do lado de
fora da casa? E que sensação estranha era aquela que a fazia sentir arrepios
por todos os cantos do corpo, como se a simples visão do homem com quem
passara a noite fosse suficiente para transformá-la totalmente?
Como se ele pressentisse que ela estava ali, virou o pescoço para trás e a
observou por cima dos ombros. Wilhelmina sentiu-se atingir pelos olhos
azuis e enrubesceu imediatamente. Mesmo em uma distância de muitos
metros, ele era capaz de fazê-la corar.
Ela estava muito perdida. Não fazia parte do plano, mas temia que
pudesse, no final de tudo, se apaixonar pelo homem sem coração. E não havia
mais lugar para paixões no seu próprio coração.
Um suspiro escapou de seu peito. Era uma bela carta e, ainda assim, ela
não estava satisfeita. Thomas não tinha o direito de corresponder-se com ela
de forma tão impessoal. Ele não tinha o direito de falar com ela se não fosse
para dizer que a amava e que a sequestraria para viverem um amor proibido.
Por quatro longos anos ela o esperou. Passou por três temporadas desejando
vê-lo em todos os homens que a cortejavam. Agora, estava casada e ele tinha
a audácia de parabenizá-la como se nunca a chama do amor tivesse queimado
dentro deles?
Wilhelmina não queria felicitações, não dele. Ela queria que ele invadisse
aquela casa e a sequestrasse. Não, que ele sequer permitisse o casamento.
Queria que ele invadisse a Igreja e a arrastasse de lá, jurando amá-la para
sempre. Não, Thomas não podia chegar naquele momento e agir como se
nunca nada tivesse acontecido entre eles.
A frustração fez com que ela amassasse o papel e o atirasse nas brasas.
Uma lágrima indesejada rolou por sua face, morrendo nas bochechas que
estavam ardendo pela irritação do momento.
Ela precisava libertar seu coração. Thomas pode ter sido o homem de sua
vida, mas não esteva disposto a enfrentar tudo e todos para ficar com ela.
Eles não eram como o Duque e a Duquesa de Shaftesbury. Aiden Trowsdale
moveu montanhas e aceitou perder prestígio social para ficar com a mulher
que ele amava. Wilhelmina estava disposta a abrir mão de tudo para ficar
com Thomas, mas ele nunca se colocou em uma posição de desejá-la mais do
que tudo.
Ou ele a respeitava demais para obrigá-la a uma vida de privações. Não
importava para ela. Wilhelmina queria viver o amor de sua vida - se não
pudesse, preferia enterrá-lo, sepultá-lo como se estivesse, naquele momento,
viúva.
As lágrimas vieram sem que ela pudesse mais controlá-las. Chorou pela
perda do que nunca teve e por ser tão tola de manter aquele homem em seu
coração, quando ele claramente não parecia amá-la da mesma forma. Depois
de algum tempo, vendo os raios de sol debilmente penetrando pelos vidros
transparentes das janelas, Wilhelmina decidiu voltar para a cama.
Mas não a sua cama. Exausta e frágil, ela foi diretamente para onde sabia
que seria acolhida, o quarto do marido. Com as cortinas fechadas, a
penumbra fazia o ambiente confortável. Grant dormia tranquilamente
abraçado aos travesseiros. Encolhido em um lado da cama, parecia cuidadoso
ao deixar livre o espaço que ela ocupara até aquela noite. Wilhelmina sentiu-
se subitamente ridícula por ter se afastado no dia anterior.
Ela estava tão confusa. Entregou o seu coração a Thomas e prometeu ser
eternamente dele. Nunca pretendeu ceder aos encantos de nenhum outro
homem, mesmo sabendo que, eventualmente, alguns deles se tornariam
difíceis de resistir. Ela deveria ser forte e capaz de mantê-los afastado. Seu
plano de casar-se com Grant era perfeito! Não haveria nenhum envolvimento
emocional entre eles. O que poderia ter dado errado? Em silêncio, retirou o
roupão e enfiou-se debaixo dos lençóis, ao lado dele.
O marido virou subitamente para ela, assustando-a.
— Céus! — Grant sentou-se na cama, passando as mãos pelos cabelos. —
Wilhelmina…
— Desculpe-me, não queria acordá-lo. Eu apenas…
Grant olhou-a demoradamente. Dava para ver que o gelo do azul
transparente de seus olhos derreteu e deu lugar a uma chama branda, que
ardia no fundo de sua alma. Ele esticou os lábios em um sorriso parcial e se
deitou novamente, aprisionando Wilhelmina entre seu corpo e o colchão. Ela
se assustou mais uma vez com o movimento brusco e sentiu seu coração errar
uma batida.
— Não interessa o motivo, gosto que esteja aqui.
Ele a beijou. Foi um beijo suave no início, suficiente para servir de faísca
para o fogo que passou a consumi-la lentamente. A mão dele acariciou-a nos
cabelos e a boca desceu para o maxilar e o pescoço.
— Tive uma noite ruim. Acho que há algo errado com a cama.
— Sim, há. — Ele sussurrou. — Eu não estou nela.
— Como você é arrogante…
Os protestos dela morreram na garganta quando Grant passou a traçar os
contornos de seu pescoço com a língua.
— Arrogante, sim, mas apto a satisfazê-la e deixá-la exausta o suficiente
para que durma como uma rainha.
Maldito, ele tinha razão. Foi o calor daquele corpo colado ao dela que fez
diferença durante a noite. Ela fora dormir com pensamentos confusos sobre
Thomas Caldwell, mas o que a impediu de dormir não foi o amor do passado.
Foi a ausência do presente.
Grant continuava a beijá-la, abrindo os botões da camisola e desbravando
sua pele como apenas ele sabia fazer. Wilhelmina não esperava aquilo
quando se enfiou na cama com ele. Pretendia apenas dormir um pouco. Mas
não negaria que preferia o que ele a oferecia.
Com a boca, Grant trilhou os caminhos pelos seios e pelo abdômen de
Wilhelmina até encontrar a sua parte preferida do corpo dela. Ao menos era o
que acreditava, já que ele demonstrava certa predileção por tocá-la ali,
naquele ponto de prazer incrível. E ah, como ele sabia o que estava fazendo.
Lábios e língua habilidosos chupavam e lambiam o botão intumescido da
feminilidade dela e a levavam ao delírio em poucos minutos. Ela se
envergonhava de ceder tão facilmente a ele, mas eram carinhos irresistíveis.
Depois de arrancar da esposa um orgasmo um pouco barulhento demais,
Grant deitou-se sobre ela e conduziu seu membro para sua entrada. Durante a
lua de mel o marido fora sempre lento, cuidadoso e demorado em todas as
carícias. Naquele momento, ele era rápido, quase bruto, intenso. Ela não
achou ruim, ao contrário, sentiu ainda mais prazer quando ele arremeteu
contra ela e a penetrou profundamente, soltando um gemido grave de
satisfação.
— Você não pode deixar essa cama, à noite. — Ele rosnou enquanto
investia contra ela. Wilhelmina não conseguiu responder, estava em êxtase
pelo prolongamento das sensações prazerosas. — Faça o que quiser com
aquele quarto, mas vai dormir aqui, comigo.
Uma, duas, três estocadas firmes e determinadas. Ele a encarava enquanto
falava e a mantinha cativa com seu corpo.
— Eu não…
— Você sim. — Grant a beijou. Os movimentos do quadril dele ficaram
mais rápidos. — Você sim, Wilhelmina.
As mãos dele a seguraram pelas nádegas e a ergueram da cama. Com
mais algumas investidas, ele chegou ao ápice e despejou sua semente dentro
dela com um rugido. Foi a primeira vez que ela o teve como um amante
vigoroso. Rude, forte, masculino. Quando o corpo dele pesou sobre o dela e
ele descansou a cabeça em seu ombro, Wilhelmina estava com o coração
disparado e o corpo estranhamente muito satisfeito.
E LA NÃO DORMIRIA outra noite longe dele. Aquilo não seria negociável e
Sawbridge faria qualquer coisa para manter sua esposa em sua cama. Quando
solteiro, ele fazia sexo toda noite, estava acostumado a ter uma vida sexual
ativa. E Wilhelmina era… nem ele mesmo entendia o que sentia quando
estava ao lado dela. Seu corpo reagia visceralmente, como se ele fosse um
animal submetido aos seus instintos. Ela conseguia despertar uma ereção
apenas com um olhar tímido ou um sorriso inocente. Ele a queria e não era
um desejo normal, não era nada além de primitivo, como uma necessidade
corpórea que ele pudesse satisfazer com um orgasmo.
Mesmo depois, ele queria continuar ali, abraçado a ela, mantendo-a junto
a seu corpo enquanto respiravam no mesmo ritmo. Maldição, ele estava
ferrado.
Após meia hora, ela adormeceu. Sawbridge acomodou-a na cama e se
levantou, sentindo-se finalmente relaxado o suficiente para enfrentar o dia.
Talvez ele quisesse dormir, também, ao lado dela, mas precisava trabalhar.
Tinha reuniões com investidores e comerciantes e muitas questões
profissionais a tratar.
Tomou um banho, vestiu-se e saiu, indo direto para seu escritório. Ele
tinha negócios com nobres que precisavam ser cuidados, pois boa parte da
nobreza estava rendida a seus pés. Eles jamais admitiriam que precisavam
dos plebeus ricos, mas a verdade era que, sem Sawbridge, muitos já estariam
para morrer de fome.
— Srta. Trimmes. — Chamou a secretária assim que chegou ao seu
escritório. — Consiga algo para comer e traga ao escritório. Preciso me
concentrar em uns papeis, portanto não deixe que me interrompam. E, depois,
confirme minha visita a Lorde Withmore.
A secretária assentiu e ele se fechou em seu castelo. Sim, o escritório
fazia com que Sawbridge se sentisse um rei. Dali, ele comandava um
pequeno império consistente em empresas, lojas, fábricas e até mesmo um
bairro - que construíra anos atrás. Pegou alguns relatórios para se informar
sobre números e considerou que deveria passar na fábrica. Edward e Aiden
eram excelentes amigos e muito bons gestores, mas ele ainda confiava mais
em si.
— Senhor. — A Srta. Trimmes entrou, carregando uma bandeja. — O
mensageiro que enviei à Withmore Terrace retornou informando que o
marquês viajou para Hampshire com a marquesa e seus filhos. E o Duque de
Shaftesbury deixou um convite para que almoçassem juntos. Disse que o
senhor saberia onde encontrá-lo.
— E o marquês disse se retornaria em breve?
— Não tenho essa informação, senhor. Se quiser, posso…
— Não, está tudo bem. Pode sair, Srta. Trimmes.
Maldito fosse o Marquês de Rutland. Ele sabia que Sawbridge queria
dissuadi-lo de fazer um negócio tolo com seu principal concorrente e estava
fugindo. Homens covardes não eram o seu tipo.
O industriário pegou alguns pãezinhos para comer e serviu-se de uma
xícara de café. Não gostava de chás e esperava que sua preferência não
magoasse sua esposa. Damas aristocráticas sempre faziam questão do chá das
cinco e ele pouco se importava com aquela tradição. Um sorriso sutil
distorceu sua face carrancuda e Sawbridge se incomodou. Ali, no escritório,
não era lugar de sorrir.
Como não poderia fazer o que desejava, decidiu fazer o que precisava.
Chamou seus diretores e gerentes e extraiu informações de todos. Queria
saber sobre os negócios e fez com que falassem sobre tudo - absolutamente
tudo - que pudesse parecer importante.
Depois de perturbar seus empregados, Sawbridge saiu para encontrar-se
com o duque. Se ele conhecesse o amigo, também se encontraria com o
conde, e talvez com Oglethorpe. Aqueles homens viviam juntos. Ah, e ainda
havia o jovem Isaac, que fora admitido no grupo depois de ter se casado e
tornado um respeitável administrador dos negócios de sua esposa.
O restaurante escolhido por Aiden Trowsdale era o preferido do grupo,
também. Servia pratos consistentes, com carne farta e vinho de qualidade.
Não era comum que os nobres comessem fora de suas casas, mas Aiden
estava longe de ser comum. Quando chegou, Sawbridge descobriu que estava
certo - todos já o aguardavam enquanto bebiam conhaque.
— Eis que chegou nosso amigo recém-casado. Agora, oficialmente
atrasado para os eventos por ter uma esposa à disposição em casa.
— Pelos céus, Aiden. — Edward rosnou. — Ele está casado com a minha
irmã.
— E acha que, por isso, ele deixará de vê-la como uma mulher, meu caro
amigo? — O duque riu e ergueu seu copo de conhaque. — Um brinde ao
homem sem coração que foi fisgado pelos laços matrimoniais.
— Não sou tolo como vocês, não fui fisgado por nada. — Sawbridge
reclamou. — E tome cuidado, Aiden. Ele também é casado com sua irmã.
— Não há um dia em que eu não lembre disso e queira partir a cara dele
em duas. — O duque bebeu todo o seu drinque em um gole. — Mas ela é
feliz e eles têm filhos lindos. Em algum momento, aprendemos a relevar.
— Vocês me convidaram para falar sobre filhos, sexo e irmãs?
— Meu Deus. — Isaac arregalou os olhos. — Essas três palavras não
deveriam estar em uma mesma frase, Grant.
Os homens riram. Sawbridge se sentou com eles e Oglethorpe mandou
que trouxessem mais bebida e a comida.
— Na verdade, convidamos você porque estamos em uma conversa
interessante com um dos irmãos de Granville. — Edward confessou.
— Qual deles?
— O que está nos Estados Unidos. Ele está nos tentando a investir lá.
— Leonard? Mas ele não estava no Brasil? — Isaac perguntou.
— Ele estava, no passado. — Aiden pegou um pedaço de carne e colocou
em seu prato. — Agora está mexendo com exportações nos Estados Unidos.
— Faz tempo que eles estão para nos superar economicamente. —
Sawbridge bebeu um gole do conhaque que lhe foi servido. — Mas eu não
sou muito de riscos não calculados e Leonard é bastante imprevisível. O que
vocês pretendem?
— Vamos mandar Nathaniel para lá. — Edward determinou. — Ele é
solteiro e desbravador. Certamente combinará com Leonard e sua
personalidade errante.
— E, assim que nosso enviado estiver no outro continente, ele analisará
as propostas e as possibilidades, e nos enviará notícias.
— Isso parece muito demorado. Vamos precisar de meses para
decidirmos investir. E depois, mais meses para realmente fazermos alguma
coisa. Acho que já sei o que devemos fazer - barcos mais rápidos.
— Para isso, falemos com o outro irmão, Robert. — Isaac serviu-se de
comida. — Ele está nas Índias e disse que os engenheiros deles são ótimos.
— Melhores que os nossos?
— Talvez.
Os homens se entreolharam. Ninguém acreditava que a Ásia tinha
engenheiros melhores que os da Inglaterra, ou da Europa, porém não
discutiriam aquele assunto. Preferiram comer e beber enquanto conversavam
sobre possibilidades de novos negócios e, certamente, da viabilidade de se
construir barcos mais rápidos.
Q UANDO W ILHELMINA ACORDOU , já passava de meio dia. Ela demorou algum
tempo para descobrir que estava em outro quarto, não aquele que escolhera
para si. Sentou-se na cama, nua, e riu. Por mais presunçoso que seu marido
fosse, ele tinha razão quando disse ser capaz de fazê-la dormir. Algo teria que
ser feito e ela esperava que pudesse, com o tempo, superar aquele desejo
físico, aquela vontade de estar com ele.
Depois de um banho rápido em uma banheira meio cheia, um vestido mal
abotoado - Harriet ainda não retornara para o trabalho - e um cabelo trançado,
ela estava pronta para almoçar. Não conversara com Arthur sobre as novas
regras da casa nem discutira com a cozinheira o cardápio. Precisava fazer
aquilo antes de passar na escola, ou estaria negligenciando suas atribuições
de esposa.
— Sra. Cook. — Wilhelmina entrou na cozinha e assustou a cozinheira.
— Precisamos conversar.
— Claro, senhora. — A mulher limpou as mãos em um avental. — Posso
oferecer um chá à senhora?
— Sim. Chá e torradas.
Com rapidez e presteza, a Sra. Cook atendeu à demanda da patroa, que se
sentou para comer.
— Sente-se, também. — Wilhemina indicou uma cadeira oposta à sua. —
Quero discutir as refeições na casa. Aparentemente, o Sr. Sawbridge não
costuma fazê-las nos horários adequados, mas estou convencendo-o a
repensar esse comportamento. Gostaria que pudéssemos almoçar à uma hora,
todos os dias. E jantar às sete e trinta. Não se preocupe, pelo tempo extra, a
senhora poderá ter um dia inteiro livre durante a semana. Os domingos, se
preferir.
A cozinheira arregalou os olhos.
— Seria muita generosidade, senhora. Quanto ao cardápio…
— Em dias de eventos, quando eles acontecerem, eu gostaria de escolher
o cardápio. Nos dias comuns, a senhora pode preparar o que considerar
adequado.
— Certamente.
— A senhora tem uma ajudante? — A Sra. Cook balançou a cabeça
negativamente. — Precisamos contratar uma, então. Se conhecer uma boa
jovem que possa assumir essa tarefa, traga-a para ser entrevistada. Também
desejo contratar duas arrumadeiras.
— A Joannie…
— Continuará trabalhando conosco, não se preocupe. Apenas desejo mais
empregados para dar conta de uma casa que tão grande como essa.
Wilhelmina continuou a comer enquanto a cozinheira contava sobre
algumas mulheres que conhecia e que adorariam trabalhar para o Sr.
Sawbridge. Ela descobriu que seu marido era adorado entre as classes mais
pobres. Mesmo que ele tivesse vindo de uma família rica, sempre foi humilde
com os menos favorecidos e pagava muito bem aos trabalhadores sob seu
cuidado.
Ela não conhecia esse lado dele. Edward sempre dizia que Grant não se
preocupava tanto com pessoas quanto ele. Talvez o marido fosse tão
preocupado em manter uma imagem de homem cruel e desalmado que
impedia que os amigos e parceiros o vissem como um ser humano.
Depois da conversa com a cozinheira, foi a vez do mordomo. Ele também
adorava o patrão e só tinha elogios a dizer. O mesmo veio de Joannie, a
arrumadeira. Grant Sawbridge era endeusado em sua residência, pelos que
trabalhavam para ele.
Aquilo dizia muito a respeito do homem com quem se casara. Ela olhou
no relógio e viu que passava das três. Gastou muito tempo conversando com
empregados e estabelecendo uma nova rotina. Poderia ir para a escola e
tomar o chá com as alunas e, talvez, com as cunhadas. Mas decidiu que
conheceria o ambiente em que seu marido trabalhava. Ela queria encontrar
mais pessoas que poderiam dizer coisas elogiosas sobre Grant. Decidiu que
faria isso às quatro e meia - antes, precisava responder ao menos algumas das
felicitações pelo casamento.
Ao sentar-se na cadeira de couro do marido, Wilhelmina entendeu que
precisava de um espaço só para ela. Um lugar feminino e que não cheirasse a
cigarros, pois o simples cheiro de Grant a deixou distraída por minutos.
Apesar de ser interessante estar ali, não parecia haver segredo algum que
desafiasse a sua curiosidade. Era apenas distração, pura e simples e ela não
gostava muito de ter sua atenção desviada.
Pegou a pilha de cartas e enfrentou o desafio de responder a todos os
convites e felicitações, queram muitos. Alguns de conhecidos dela, outros de
pessoas com quem ela não convivia, mas que sabia quem eram. Fazia parte
de uma boa temporada conhecer todas as boas famílias e identificar todos os
potenciais cavalheiros disponíveis para o casamento. Abriu a carta dos
Rutherford, depois a dos Olsen, e seguiu agradecendo e aceitando convites de
uns, fazendo convites para outros.
Como uma boa dama, ela sabia exatamente como separar as felicitações
que precisavam de uma resposta rápida, os convites que seriam aceitos dos
que seriam postergados, e quem seria chamado para um jantar. Teria que
negociar com Grant sobre aquilo, mas não estava preparada para ceder. Ele
teria que se tornar um homem mais sociável, aquilo não estaria em
negociação.
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO
D OIS DIAS DEPOIS , Sawbridge chegou em casa e encontrou sua esposa vestida
para sair. Ele tirou o relógio de bolso e conferiu a hora: eram sete e trinta e
dois. Dois minutos atrasados não contavam como um atraso, tinha certeza.
Capitulou mentalmente se era um daqueles dias em que eles enfrentariam um
jantar de cortesia, com visitas espalhafatosas em casa ou indo até a residência
de algum amigo que ele nunca pretendera visitar. Nada lhe veio à cabeça e
ele teve certeza que gritaria algumas imprecações à Srta. Trimmes por não o
ter avisado daquele evento. Fosse o que fosse.
— Vamos sair ou vamos receber pessoas?
Ela sorriu, reluzindo como uma pedra preciosa. Talvez ela fosse um
topázio, pelo brilho caleidoscópico dos seus cabelos à luz de velas. Também
poderia ser uma opala, pelo castanho de seus olhos, sempre atentos e
curiosos.
— Vamos sair, mas não para jantar. Faremos nossa refeição em casa,
estava esperando você.
— E depois iremos ao…
Teatro. Deveria ser teatro, pois havia uma nova peça de Shakespeare
sendo encenada no Royal Albert. Não era uma nova peça, pois Shakespeare
era encenado e reencenado pelo menos duas vezes por ano nos teatros
londrinos, mas fazia algum tempo que ninguém apresentava MacBeth.
— Riderhood.
O complemento da frase não era o que ele esperava nem em mil anos.
— Riderhood?
— Sim, o clube.
— O clube de cavalheiros, você quer dizer.
— Sim, aquele que você frequenta depois que sai do escritório à noite. —
Ela deu um sorrisinho tímido. — Faz algum tempo que você não vai ao
clube, não é verdade?
Era a mais pura e triste verdade. Desde que se casou, Sawbridge não
passara uma noite jogando e bebendo com os amigos, como fazia
rotineiramente durante o período em que foi solteiro. E, mais triste ainda, era
perceber que o motivo para aquele afastamento era a sua incapacidade de
passar uma noite sem se jogar nos braços da esposa. E ele não ficava com ela
porque tinha que ficar, mas porque queria ficar.
— Isso é irrelevante. O Riderhood não é lugar para damas.
— Caroline frequenta.
— Caroline nunca foi uma dama.
— Eu irei com você, meu marido. Duvido que alguém aja de forma
indecorosa comigo estando ao seu lado. Sua fama parece ser ainda pior que a
do meu irmão.
Desde que Edward enfiou uma espada no peito do homem que ousou
violentar sua esposa, Londres inteira morria de medo do conde. Ele ganhou
notoriedade como uma criatura sanguinária, capaz de eliminar qualquer um
que se colocasse em seu caminho - o que era uma grande bobagem. Edward,
o Conde de Cornwall, era um homem muito tranquilo e sensato. Ele matou
um agressor, o raptor de sua esposa, e agiu movido pela paixão intensa que
sentia por sua condessa.
Sawbridge considerou se ele mataria por Wilhelmina e a resposta o
deixou bastante assustado.
— A resposta continua sendo não.
Arthur apareceu na sala principal, pigarreando, e informou que o jantar
seria servido. Wilhelmina mantinha uma expressão condescendente demais
para quem recebera um não.
— Você faz parecer que eu fiz uma pergunta. — A esposa continuou a
conversa depois que ficaram sozinhos na sala de jantar. — Esse é o evento de
hoje.
— Não está em discussão. — Sawbridge bebeu um gole do vinho tinto
que foi servido. — Aquele lugar é um antro de jogatina e…
— E?
— Não me obrigue a falar.
— Prostituição? Pois saiba que eu sei o que acontece lá, não precisa
fingir. Sei que…
Sawbridge apoiou os talheres sobre o prato e fitou a mulher que estava do
outro lado da mesa. Que tolice era aquela de jantarem um em cada ponta? Por
que diabos a etiqueta dos aristocratas insistia em separar os casais o máximo
possível?
— Nunca escondi meu passado, porém disse, desde o início, que
pretendia lhe ser fiel. E eu sou.
— Não duvido disso. Vamos, termine seu jantar, eu estou ansiosa para
apostar na roleta.
— Você não vai apostar em nada.
— Claro que vou. Já inclusive escolhi as mesas em que pretendo jogar:
dados, roleta, vinte e um…
— Céus, Wilhelmina, eu não vou levá-la ao Riderhood!
— Vai, porque você prometeu que iríamos a todos os eventos que eu
agendasse.
— E você agendou uma ida ao clube de cavalheiros? Por que raios?
— Para entrar no seu mundo, Grant.
Ela disse, suave como uma dama, mas agoniada como uma mulher que
tentava se comunicar com uma parede. Como ele era insensível e incapaz de
entender o que se passava naquela cabecinha loura. Mas aquele era Grant
Sawbridge. Era incomum que permitisse que pessoas penetrassem em seu
mundo. Afastou até os pais, mandou-os para longe apenas para poder livrar-
se de interferências em sua rotina solitária. Decidiu se casar, mas esperava
um daqueles casamentos em que a esposa nem mesmo quisesse ficar na
mesma casa que ele. Bem, ele conseguira um, mas uma virada nos fatos fez
com que simplesmente precisasse ficar perto de Wilhelmina.
Tinha que dar um jeito de se abrir um pouco para ela. De permitir que ela
o compreendesse, se isso não fosse afastá-la de vez.
— Tudo bem. Eu a levo, nós vamos. Mas há regras, e eu espero que você
cumpra todas.
— Se eu não cumprir, muito provavelmente você, Edward, Isaac e
Nathaniel darão um jeito de me punir.
Sim, isso era uma certeza. Se bem que Sawbridge podia pensar em várias
formas mais interessantes de punir a esposa por mau comportamento, porém
duvidava que aquelas ideias pudessem ser consideradas verdadeiros castigos.
Eles terminaram o jantar em silêncio e saíram na carruagem do industriário.
O clube de Riderhood ficava em uma área prestigiosa da cidade, sem
riscos para os membros. Como era um ambiente frequentado pela alta
nobreza e por burgueses endinheirados, seu proprietário não queria
problemas como criminosos rondando as proximidades. Também era
localizado perto da residência de Sawbridge, o que permitiu que eles
chegassem rapidamente.
Ele desceu da carruagem e ofereceu a mão para ajudar sua esposa, que
estava radiante e empolgada com a ida ao clube. Isso o fez sentir ciúmes
novamente. Não do clube, mas de qualquer homem ali que pudesse enxergar
em Wilhelmina a beleza que ele via nela. Para garantir que ninguém lhe
dirigiria um olhar inquisitivo, ele passou o braço ao redor da esposa e seguiu
para a porta principal.
O porteiro permitiu que entrassem e Wilhelmina suspirou, arquejando,
quando viu a magnitude da construção. Teto alto, muitos lustres para garantir
iluminação perfeita no salão principal, luxo. Havia partes escuras que ele
pretendia manter afastadas dela, mas o clube de Riderhood era opulento e
extravagante.
— Vamos por ali — Sawbridge indicou o caminho de um corredor
amplo, à direita.
— Por quê? O que tem nas outras portas?
— Acesso a lugares que uma dama definitivamente não deve frequentar.
Eu a trouxe ao clube, mas vamos ficar no cassino, somente.
Ele jamais deixaria sua esposa perambular pelos lugares mais obscuros
daquele clube e ficou satisfeito porque ela não insistiu em desobedecê-lo.
Não que fizesse muita questão de uma mulher subserviente, ele preferia as
inteligentes e desafiadoras. Só que estavam no ambiente dele, no seu lugar
preferido de Londres. Ali, Sawbridge conhecia bem e podia decidir melhor
que ela.
Chegando ao cassino, ela parou na mesa de vinte e um. Riderhood não era
tolo, suas mesas tinham ímã para novatos. Pelo menos ela não se interessou
pela roleta, que representava um ralo de moedas até para jogadores mais
experientes.
— Posso observar? — Wilhelmina sussurrou no ouvido do marido. A
área do cassino também era bem iluminada, mas havia algumas partes nas
sombras. — É autorizado?
— Sim, você pode. Sente-se ao redor ou fique aqui, vou buscar uma
bebida.
Ela assentiu e ele, por algum motivo, acreditou. Afastou-se e foi até o bar,
onde encontrou quem menos pretendia naquela noite: os amigos. Mesmo que
todos estivessem já mais velhos, casados e cheios de filhos, pareciam
moleques de Eton implicando uns com os outros. Quanto maior o título, mais
insuportáveis eles eram - o que colocava Aiden Trowsdale no topo da chatice.
— Sawbridge! — O duque ergueu um copo de conhaque. — Finalmente
recebeu uma carta de liberação de sua esposa?
— Boa noite, cavalheiros. Sirva-me um, Riderhood.
— Sente-se aí, vamos conversar. Pensamos que ia levar um ano até
decidir voltar ao clube. Wilhelmina deixou que saísse de casa à noite? —
Edward perguntou.
— Não cabe a ela deixar ou não. Porém, em sua resposta…
Sawbridge apontou para a mesa de cartas e os homens seguiram a
indicação de sua mão. Todos viram a jovem absorta em suas observações.
— Céus, você trouxe a Minnie para o clube? Ficou doido?
— Não creio. — Sawbridge virou-se para o grupo de amigos e pegou o
drinque. — Sua mulher é quase membro fundador do clube e está criticando
que eu tenha trazido a minha?
— Agora ele tem um ponto, caro Isaac. — Aiden provocou.
— Ela é muito ingênua para esse ambiente. — Edward reclamou.
— E vocês mimaram demais a menina e não perceberam que ela cresceu
e se tornou uma mulher. Minha mulher.
— Ouch. — Aiden provocou mais. — Se estivéssemos em um ringue,
isso seria um cruzado de direita.
Enquanto os homens conversavam - ou se provocavam, Wilhelmina se
aproximou. Sorriu animada para os irmãos, cumprimentou a todos e colocou
uma das mãos no braço do marido.
— Quero jogar, preciso de fichas.
— Você não deveria. — Ele baixou a cabeça para falar perto da orelha
dela. — Nunca jogou vinte e um na vida. Aqueles ali são apostadores
profissionais, eles estão acostumados a perder muito dinheiro toda noite.
— Creio que o senhor, meu marido, esteja enganado quanto a isso. — Ela
deu um sorriso tímido e olhou para Isaac. O irmão moveu os ombros para
cima e para baixo, indicando que não tinha responsabilidade sobre aquilo. —
Eu já joguei praticamente tudo que envolve cartas.
— Com Isaac, suponho.
— Nós tínhamos algum tempo disponível, quando eu morava em
Greenwood Park e administrava as terras. — Justificou-se o irmão.
— E eu sempre ganhava. Vamos, Grant, deixe-me jogar um pouco.
Ele virou um gole do conhaque, sob os olhares atentos dos cunhados.
Sawbridge respirou fundo por estar sem saída. Afinal, a decisão de levá-la foi
dele, mesmo que a esposa soubesse ser bem persuasiva. Deixou-a ali, foi até
o crupiê, conversou alguma coisa e entregou algumas moedas. Depois,
chamou Wilhelmina e indicou uma cadeira para ela se sentar.
Feliz, ela o beijou na face e o crupiê deu as cartas. A expressão festiva e
juvenil desapareceu do rosto angelical da esposa - de um segundo para o
outro ela adotou uma postura ereta e focada na partida. Sawbridge não
gostava muito de cartas, e vinte e um era um jogo muito aleatório,
incompatível com seu pragmatismo. Era o que pensava, até ver Wilhelmina
jogar.
Sem sutileza, ela superou Lorde Harrington e o Sr. Campbell. A
capacidade dela em identificar as cartas e os blefes era intrigante. Logo,
Edward e Isaac se aproximaram quando perceberam que a irmã já havia
vencido três rodadas.
— Desisto. — O Visconde de Whitby baixou suas cartas e se levantou. —
Não dá para jogar contra um McFadden, nem mesmo se estiver usando saias.
— Isso quer dizer que eu ganhei? — Ela sorriu, fingindo ingenuidade.
— Você está ganhando há algumas rodadas já, Minnie. Não percebeu?
Ela sorriu novamente para Isaac e juntou as fichas que estavam à sua
frente. Sawbridge contou rapidamente mais de duzentas libras - ela só não
arrancou as calças dos oponentes porque seria indecente demais, e sua esposa
não fazia nada indecente. Mas a forma como ela colocou as fichas na bolsa de
tecido que segurava e sorriu para o crupiê, agradecendo, indicou exatamente
o que ele já desconfiava. Wilhelmina não era tão tola ou ingênua quanto fazia
parecer. Ela usava da sua aparência de dama perfeita para seduzir e
conquistar, e estava fazendo exatamente aquilo com ele.
Afinal, parecia impossível não se apaixonar por uma mulher que tomava
decisões por ela mesma e se envolvia com as decisões do marido, jogava
vinte e um melhor que qualquer homem no Riderhood e olhava para ele com
o sorriso mais gentil de todos.
CAPÍTULO DÉCIMO QUATRO
S AWBRIDGE LIA BEM as expressões nos rostos das pessoas. Como um bom
negociante, ele precisava daquele trunfo. Se percebesse quando mentiam,
blefavam ou eram sinceros, teria mais sucesso em seus contratos e
investimentos. E sua esposa tinha sido absurdamente simples de se ler,
naquele momento em que ela invadiu a sala masculina.
Mulheres não eram proibidas ali, mas ela não fora em busca de aventura
ou movida pela curiosidade. Ela precisava de alguma coisa - ele sabia, ele
sentia aquilo. Segurando-a pelo cotovelo, saiu porta afora e parou com ela no
corredor bem iluminado.
— O que houve?
Wilhelmina ergueu o queixo e olhos castanhos, avermelhados, o
encararam. Ela estava chorando? Triste? Sawbridge sentiu-se repentinamente
dominado pelo desejo de estripar alguém por tê-la entristecido. Ele mesmo
poderia merecer uma surra por colocar seus interesses profissionais à frente
da promessa feita, mas ele não a magoou. Não a ponto de fazê-la chorar.
Em um gesto impulsivo, ela o abraçou e recostou a cabeça em seu peito.
— O que aconteceu aqui, minha querida?
Ele ergueu o queixo dela outra vez.
— Pessoas cruéis. Talvez eu tenha a memória curta, pois esqueci como as
pessoas podem ser simplesmente maldosas.
— Alguém lhe fez algo?
— Não. Sim. Talvez. Algumas mulheres estavam conversando e
falaram… coisas.
— Sobre você? — Ele perguntou, ela negou. — Sobre mim? — Ela
assentiu com a cabeça e voltou a recostar no peito dele.
— Mas elas estão totalmente enganadas e eu precisava vir aqui dizer isso.
Elas estão erradas sobre você.
Sawbridge beijou-a no topo da cabeça e passou as mãos abertas pelas
costas trêmulas. Ela tremia e ele apostava que estava nervosa, não com frio.
— Eu não me importo com isso. Não me importo com o que essa
aristocracia preguiçosa e sanguessuga pensa de mim.
— Eu sou dessa aristocracia. — Ela lamentou.
— Não, não é. Sua família é diferente, sempre foi. Você é diferente. Não
é toda pessoa de sangue azul que desafia meu desprezo, meu amor. É apenas
aquela que não trabalha, não produz, explora pessoas e julga tendo tanta
sujeira enfiada debaixo do tapete Persa que decora a sala.
— Elas estão erradas.
— Provavelmente estão, ou talvez estejam certas. O que te incomodou
tanto?
— Não aceito que digam que é uma pessoa indigna. Que me rebaixou,
que eu poderia ter conseguido um marido melhor.
Ah, ela estava então sofrendo por aquilo. Sawbridge sentiu calor
percorrendo seu corpo, subitamente aquecido pelo sentimento desencadeado
por aquela frase. Claro que ela poderia conseguir um marido melhor do que
ele. Provavelmente todos os pretendentes que ela tivera eram melhores do
que ele. Sawbridge era um plebeu rude e devasso que não tinha coração.
Wilhelmina certamente precisava de um homem melhor.
Mas isso foi antes. Agora que ela era dele, não seria possível abrir mão
dela. Ele teria que servir, teria que ser suficiente.
— Está tudo bem. Não se preocupe, volte para lá e acabe com elas, se
falarem de mim novamente.
— Não estou mais com vontade de ficar nessa soirée. Nós podemos…
podemos ir para outro lugar?
— Vai deixar o evento logo no início? Não há uma etiqueta contra isso?
— Sim, há, mas não me importo, mais. Só quero falar com Agatha e
Elizabeth, depois podemos ir. Voltar para o trem, para Greenwood Park, para
Londres…
Sawbridge abraçou-a novamente. Ele certamente preferia sair com ela
dali e ir para um lugar privado, onde pudesse a despir e possuir lentamente
até fartar-se dela. Isso dificilmente aconteceria, pois ele parecia incapaz de
parar de desejar sua esposa. Mas não, ela estava aborrecida e precisava
enfrentar aquelas megeras.
— Certo, o que acha de irmos ao festival da colheita? Imagino que a vila
esteja no seu terceiro ou quarto dia de festejos.
— Eu adoro o festival!
— Portanto, vamos. Mas eu tenho duas mãos para jogar e eu não estou
acostumado a fugir de desafios. Volte para o salão, despeça de suas amigas,
espere-me que vou buscá-la.
Ele depositou um beijo rápido nos lábios da esposa. Não podia se deixar
envolver por ela ou não sairia daquela casa sem protagonizar um escândalo.
Acariciou-a na bochecha e sorriu, tentando garantir a ela alguma segurança.
Wilhelmina sorriu de volta e retornou para o salão, deixando-o com a missão
de depenar alguns trouxas antes de retomar o processo de sedução de sua
esposa.
C LARO QUE ELE ESTARIA ALI , NO FESTIVAL , EM CASA, COMO ELA . W ILHELMINA
estava tão irritada com Madeline, tão preocupada em demonstrar para Grant
que não se sentia rebaixada nem acreditava nas palavras das víboras
aristocratas e, depois, com os sentidos tão assoberbados pelas emoções que
ele proporcionava, que se esqueceu do perigo que era estar em Thanet,
principalmente a caminho da vila.
A alma penada de seu passado recente que lhe parabenizara pelo
casamento e que ela ignorara. O homem que ela amava e que a dispensou, em
uma carta sofrida, dizendo que eles nunca ficariam juntos. Que a levou a
beber e se arruinar em um jardim, que a jogou nas garras do marido. Se não
fosse Thomas, ela dificilmente teria se envolvido com o canalha do jardim e
não precisaria casar-se às pressas.
As palavras vieram todas de volta como se ela não pudesse evitá-las. As
memórias a afogaram como se fossem ondas de um mar revolto e ela não
conseguiu desviar o olhar. Ele também a vira e, como se ela não estivesse ali
com seu marido do lado, caminhou na direção deles.
No instante em que Thomas se aproximou, Grant virou para ela com o
saquinho de doces e colocou uma mão possessiva sobre seu ombro. Ela não o
viu, mas tinha certeza que o marido estava com sua mais célebre expressão de
quem poderia arrancar a cabeça de qualquer um ali sem fazer nenhum
esforço.
— Lady Wilhelmina. — Thomas fez uma mesura. — Se bem que devo
chamá-la Sra. Sawbridge, agora.
Ela não conseguiu dizer nada. Ficou ali parada, sem conseguir
cumprimentar o espectro materializado de seus sonhos e pesadelos. Também
não conseguiu fugir correndo.
— Grant Sawbridge. — O marido estendeu a mão para Thomas. — O
senhor é…
— Caldwell. Thomas Caldwell.
— Ah. O amigo da família.
Ele lembrava, mas era da mentira que lhe fora contada. Por favor,
Thomas, não o desminta - ela desejou em silêncio.
— É um prazer conhecê-lo pessoalmente, senhor, e poder agradecer o que
tem feito por nós.
Wilhelmina franziu as sobrancelhas e se virou para o marido. Ele
mantinha a expressão inamistosa, mas as linhas duras de sua face estavam
suavizadas.
— Não é nada demais. Esse lugar é… intrigante. Mantê-lo à salvo da
selvageria das cidades é um bem que faço a toda a Inglaterra.
— Do que estão falando?
— O Sr. Sawbridge é um dos investidores do Palace of the Sea. Ele
também ajuda a manter a vila para que não precisemos nos mudar e trabalhar
nas fábricas. Com o perecimento da agricultura, não restaria muito fazer por
aqui e teríamos que abandonar as terras e nossas casas.
Ela não sabia de nada daquilo. Sabia do hotel, do investimento em
turismo, as coisas que Caroline falava e pelas quais contava vantagem. Mas
não sabia que o homem com quem se casara mantinha a vila. Sequer entendia
o que isso significava.
— Meu marido é um homem muito bondoso.
Wilhelmina sorriu, inquieta. Ela era uma pilha de nervos por baixo de um
vestido de noite e esperava que a mão de Grant, ainda cuidadosamente
posicionada em seu ombro, não notasse. Era certo que a mão ali era um
indicador de pertencimento, uma forma de demarcar seu território. Os
animais urinavam para deixar seu cheiro pelo ambiente, os homens trocavam
olhares taciturnos e se agarravam às suas posses.
— Bem, foi um prazer revê-la, Sra. Sawbridge. — Thomas segurou sua
mão enluvada e a beijou. Talvez ela devesse ter fechado os olhos para evitar
que ele a encarasse daquela forma intrigante, mas não o fez. — Vou deixá-los
aproveitar nosso festival. Em breve teremos queima de fogos.
T INHA algo muito estranho com sua esposa naquela noite. Sawbridge teve
medo de que ela se arrependesse do arranjo que fizeram porque ele não
pertencia ao seu mundo. Que as mulheres daquela soirée tivessem dito coisas
que a fizessem reconsiderar as decisões que tomou para ficar com ele. Tentou
dançar com ela na frente de todo mundo para que ela tivesse orgulho de ter se
casado com ele. Tentou tirá-la de lá para um lugar mais festivo, mas ela
reencontrou aquele homem e ficou ainda mais tensa.
Thomas Caldwell. Algo não estava certo, mas ele não sabia bem o que
era. Depois que o amigo se afastou, Wilhelmina andava como se tivesse
engolido uma ripa de madeira. Ele tirou sua capa e colocou sobre ela,
pretendendo aquecê-la.
— Quer ir até o hotel? A praia em frente é iluminada.
— Eu adoraria. — Até a voz ela estava trêmula. — Nós vamos passar a
noite lá?
— Se for de sua vontade, sim.
Ela assentiu com um balançar de cabeça e começaram a caminhar na
direção do hotel. Cruzaram a via ornamentada com pequenas lamparinas
pintadas, que emanavam uma luz fraca e colorida, e encontraram outros
conhecidos. Wilhelmina parecia muito popular em Thanet - todos a
conheciam por algo que ela fizera, principalmente as crianças.
A estrutura imponente do Palace of the Sea o enchia de orgulho. Aquele
hotel era ideia de Caroline, mas, como mulher, ela não tinha credibilidade o
suficiente para fazê-lo atrair hóspedes notórios. Oglethorpe entrou com seu
conhecimento dos negócios e ele, Sawbridge, proporcionou o material
humano necessário. Seu dinheiro praticamente sustentava a vila e o comércio
ao redor enquanto a cidade se tornava um polo de turismo.
À noite, ele era muito iluminado e estendia lamparinas até a arrebentação
do mar, permitindo que os hóspedes tivessem uma experiência única de nadar
depois do pôr do sol.
— Se eu te contar que nunca estive no hotel, parecerei tola?
— Claro que não. Você morava aqui, não tinha necessidade de ficar em
um hotel.
— A lua está linda. — Ela apontou para o céu. — Podemos vê-la da
areia?
Sawbridge concordou e a conduziu até uma estrutura que permitia aos
hóspedes guardar seus sapatos enquanto exploravam a praia. Ela tirou as
sapatilhas de festa e pisou com as meias de seda na areia fria, erguendo a
barra da saia. Ele a imitou, tirando sapatos e meias e dobrando a barra da
calça. Depois, caminharam até quase onde arrebentavam as ondas, mas antes
da areia ficar úmida demais, e se sentaram sobre a capa dele.
Por algum tempo, Wilhelmina ficou em silêncio. Recostou a cabeça no
ombro do marido, abandonando o recato e o decoro, e suspirou enquanto
observava o céu.
— Desculpe-me por hoje. Eu fiquei um pouco aborrecida com a conversa
na soirée.
— Não precisa se desculpar, mas também não precisa se aborrecer. Eu
deveria protegê-la disso. Sabia que sua reputação estaria à salvo, mas as
pessoas não perdoariam você ter se casado com um plebeu como eu.
— Você tem mais dinheiro do que todos aqueles cavalheiros juntos,
Grant.
— Sei que sim, mas a sociedade não nos mede pela régua bancária. Ela
contabiliza títulos e origens, e a minha é simples.
— Bem, como nosso arranjo estabelece que não fiquemos juntos depois
que eu lhe proporcionar um herdeiro, talvez não haja o que me preocupar,
certo?
Ele virou-a para si e fez com que ela olhasse diretamente dentro de seus
olhos. Aquele era um arranjo horrível e ele definitivamente não esperava que
ela tocasse naquele ponto. Não mais. Esperava que aquilo estivesse superado
ou, ao menos, esquecido.
— Você ainda quer isso?
— Isso o que?
— Mudar-se para algum lugar e seguir sua vida sem mim, ou continuar
em Londres, mas vivendo como se não fôssemos um casal?
Sawbridge não pretendia parecer agoniado, porque ele nunca
demonstrava sentimentos o suficiente para que o compreendessem. Mas ele
ficou um pouco desesperado ao ouvi-la repetir os termos do acordo selado
algumas semanas atrás. Céus, pareciam anos atrás, porque era como se ele
sequer lembrasse do que haviam combinado. Ele não queria deixá-la ir. Não
importava que ela nunca sentisse nenhum afeto real por ele, o desejo bastava.
Muitos casamentos eram alimentados por bem menos do que aquilo.
— Não. — Ela levou a mão até a face dele e o tocou. — Eu não quero.
Mas eu cumprirei o acordo integralmente, Grant. Não imporei a você mais do
que estiver disposto a suportar.
— Sei que cumprirá. Mas não há motivos para mantermos cláusulas que
não representam mais a vontade de nenhuma das partes.
Os olhos dela estavam escuros pela pouca luz solar. Era como se a lua
tivesse se mudado para eles e as estrelas estivessem ali para saudá-la.
Wilhelmina sorriu e ele gostaria de tê-la beijado ali, naquele instante, mas
não queria causar um escândalo, já que poderiam ser vistos. Ficaram em
silêncio por mais alguns minutos. A única coisa que ouviam era o ir e vir das
ondas do mar e, Sawbridge suspeitava, as batidas do seu coração, martelando
implacável em seu peito.
Fosse o que fosse, havia um sentimento muito forte e assustador dentro
dele, e esse sentimento parecia disposto a dominá-lo. Desejo? Talvez fosse,
mas suspeitava que não. Sim, havia desejo, mas não era apenas isso.
— Você poderia me levar para dentro?
Ela virou para ele e perguntou. Plena e tranquila, o que acendeu nele um
sinal de alerta duplo. Desde que conheceu Wilhelmina ela era prática e
objetiva, mas não costumava ser tranquila.
— Pensei que gostaria de ver os fogos.
— Sim, eu gostaria. Mas acho prefiro os que você pode me mostrar.
E qualquer conversa foi encerrada, qualquer pudor abandonado à própria
sorte para morrer. Sawbridge ergueu Wilhelmina em seus braços e a levou
para o Palace of the Sea. Ele tinha alguns fogos de artifício para explodir.
L ONDRES ERA uma cidade fria e sem graça fora da temporada, ou Wilhelmina
não sabia se divertir sem os eventos festivos que a nobreza proporcionava.
Em Kent ela não sofria de tédio. Mesmo que ficasse sozinha algum tempo
apenas com a mãe e as criadas, a vida no campo era muito mais interessante
que a vida na cidade. Ao menos era o que ela acreditava, já que sempre tinha
atividades para fazer e…
E havia Thomas. Ah, o maldito Caldwell que nunca lutou por ela e que
ressurgiu das cinzas, como uma fênix diabólica, exatamente quando ela
estava se sentindo mais fortalecida no casamento que escolheu para si.
Quando ela estava em Kent, sempre havia o maldito enteado da modista e ele
causava afetação suficiente em seus nervos, ocupando muito de seu tempo.
Aquele papel agora era feito por outro homem. Era a antecipação pelos
momentos compartilhados com Grant que a estavam deixando ansiosa. Então,
Wilhelmina sabia que havia algo ali, algo além de apenas um negócio. Ela
conhecia casais enamorados demais para ser tão tola e não reconhecer os
sintomas em si própria.
Wilhelmina não saberia dizer exatamente quando ela percebeu aquele
sentimento ali. Ela se sentia muito incomodada por tê-lo ou por saber que ele
existia. Por todo tempo, seu coração pertenceu a Thomas Caldwell e, de
repente, ela o retirou de sua vida para admitir outro em seu lugar.
Não, não foi de repente. Foram anos de espera e abdicação em que
nenhuma de suas esperanças foi alimentada. O amor que sentia morreu de
inanição, mas ela não conseguia admitir isso. Foi por isso que, naquela tarde,
ela acabou falando mais do que devia.
A família McFadden não ficou muito tempo em Thanet. Eles retornaram
para Londres dois dias depois dela, pois um problema na fábrica demandou a
atenção dos sócios. E, naquele dia, Nathaniel iria para os Estados Unidos,
encontrar-se com Leonard Eckley, um dos primos errantes da esposa de
Isaac.
As mulheres estavam sentadas no salão de chá. As crianças pequenas,
Louis, Edmund e os filhos da duquesa, Lilian e Albert, os gêmeos, e a bebê
Ophelia, brincavam mais afastados, vigiados pela babá. Patrick estava em
Eton, na escola, e Peter e Lavínia costumavam desaparecer pela casa em
muitas brincadeiras. Apenas Peter falava - Lavínia continuava se
comunicando por gestos e expressões. Mesmo depois de visitar todos os
médicos da Inglaterra e quase todos da Escócia, ela continuava sem dizer
uma palavra.
As duas damas convidadas já tinham se retirado e sobraram apenas elas.
Já passava das seis, mas os maridos só chegariam para jantar às sete - e,
naquela noite, o jantar seria na casa do duque.
— Elizabeth… — Wilhelmina chamou a atenção da duquesa em um
momento de silêncio. — Você é casada pela segunda vez. Desculpe-me pela
pergunta se ela for inadequada, mas… você amava seu primeiro marido?
Agatha arregalou os olhos e Caroline quase cuspiu o chá que levara à
boca.
— Acho que precisaremos de conhaque.
A dama de vermelho, que continuava usando vermelho diariamente,
levantou-se. Ainda não havia sinais de sua gravidez recente e Wilhelmina
sabia que ela ficava ainda mais gloriosa esperando um bebê.
— Não creio que seja necessário. É apenas uma pergunta.
— Eu amei Gregory, sim. — Elizabeth respondeu, depois de apoiar sua
xícara na mesinha. — Plebeus pobres geralmente se casam por amor, minha
querida.
— E agora ama o duque.
— Ah, sim, eu amo Aiden. — Os olhos dela brilharam. — Eu o amo tanto
que quase renunciei à minha própria dignidade por ele. Ainda bem que ele
me ama o mesmo tanto, assim estamos felizes juntos.
— E como é possível amar duas pessoas dessa forma? O amor por seu
primeiro marido passou com a morte dele?
— Conhaque, definitivamente.
Caroline entregou um copo com o líquido âmbar para cada uma de suas
amigas. Agatha virou o dela em um gole só, mas Wilhelmina sabia que ela
estava mais curiosa do que nervosa pelo interrogatório. Elizabeth bebericou a
bebida e fez uma careta de quem não gostava muito de conhaque.
— Vou buscar um licor.
— Sossegue, Caroline. — Agatha puxou-a pela saia e fez com que se
sentasse. — Minnie, aonde pretende chegar com esse inquérito?
— Eu apenas estou curiosa sobre isso.
— Sobre o amor de Elizabeth ou sobre amores em geral? — Caroline
perguntou.
— Deixem a menina falar. Wilhelmina, o amor que senti por Gregory não
sumiu. Ele continua aqui. — Ela levou a mão ao peito. — Mas eu superei sua
morte e segui em frente. Mesmo que eu ainda ame Gregory, isso não me
impede de amar Aiden. O amor se manifesta de muitas formas. Também amo
meus filhos, minhas amigas….
— Se eu amasse alguém, mas não pudesse ficar com essa pessoa, eu
poderia me apaixonar por outra? Ah, acho que estou fazendo uma confusão.
— Minnie, você está falando de quem, afinal? — Caroline estava
impaciente.
— É daquele rapaz de Thanet? O enteado da modista?
Wilhelmina ficou branca como cera de vela e quase deixou o copo cair.
Não era possível que Agatha estivesse falando daquilo em público. Certo, não
era em público, estavam apenas elas em um salão de portas fechadas com um
bando de crianças que não fazia a menor ideia do que era conversado. E foi
dito em baixa voz, quase em um sussurro. Mesmo assim, ela não imaginava
que as cunhadas soubessem. Que qualquer pessoa soubesse.
— Claro! O menino Caldwell. — Caroline balançou a cabeça. — Esse
jovem retornou para sua vida, Minnie? Ele está perturbando seu casamento?
— Céus, não! — Wilhelmina encarou o líquido âmbar em suas mãos. —
Vejam, como vocês sequer sabem sobre Thomas?
— Quem é Thomas? — Elizabeth se ajeitou no sofá e esticou as costas,
demonstrando curiosidade.
— É o jovem que fingia não cortejar Wilhelmina quando ela morava em
Thanet.
— Eles pensavam que se encontravam às escondidas, mas todos nós
sabíamos. Todas nós, ao menos. Os homens são sempre muito distraídos para
as questões do coração.
— Vocês duas… meu Deus, Caroline! Agatha! — As bochechas de
Wilhelmina ardiam de nervoso. — Ninguém pode saber disso.
— Minha querida. — Elizabeth tomou o copo das mãos dela e as segurou
entre as suas. — Esse jovem está em Londres? Ele se correspondeu com
você?
— Ele mandou felicitações pelo casamento. Mas é que… eu o amava,
entende? Eu o amei e jurei que sempre o amaria. E então…
— E então Grant Sawbridge aconteceu. — Caroline disparou. — Posso
apostar algumas fichas que o maldito conquistou sem piedade esse jovem
coraçãozinho.
— Ora, mas não é maravilhoso, isso? — Elizabeth sorriu. — Estar
apaixonada por seu marido?
— Eu não sei. — Ela balançou a cabeça, negando.
— Mas vocês disseram que se gostavam, quando ele a arruinou naquele
jardim. — Agatha se intrigou.
— Nós nos gostamos! Mas eu estou falando de algo mais… profundo.
— Ah, isso é perfeito. Minha querida Wilhelmina, nós três somos
mulheres que amam seus maridos. O Sr. Sawbridge é um plebeu, como eu
era, e ele certamente esperava se casar por amor. Se ele é um bom marido e te
trata bem, amá-lo apenas fará com que tudo fique mais fácil e mais
duradouro.
O coração de Wilhelmina estava disparado. As palavras de Elizabeth
eram difíceis de aceitar, mas eram a verdade. Todas elas. Não era necessário
expulsar Thomas Caldwell de seu coração. Ela podia aceitar que o amou um
dia, mas que não o amava mais. Ou podia ainda amá-lo, mas amar também
seu marido. Ela sabia que estava, sim, apaixonada. Ela apenas não entendia
como era ser correspondida - porque Grant parecia estar apaixonado por ela,
também.
— Minnie. — Agatha atraiu sua atenção e ela soltou as mãos das de
Elizabeth. — Pare de se torturar por esse menino Caldwell. Você está casada
com um homem respeitável e que pode te garantir uma vida boa e
confortável.
— E ele está totalmente encantado por você. — Caroline disparou. —
Nunca vi Grant tão… simpático? Acho que essa palavra nem pode ser usada
em uma frase que contenha o nome dele.
— Realmente, o Sr. Sawbridge demonstra visivelmente sua afeição por
Wilhelmina.
— Visivelmente, não. — Agatha ponderou. — Mas nós somos muito
perspicazes, jamais deixaríamos de notar.
— A questão é que Agatha está correta. Você está bem casada. Isso é
importante - ele está fisgado por sua rede e essa é a receita da felicidade.
Agora só falta um bebê para completar a família perfeita.
Caroline encerrou a prosa no instante em que eles chegaram. A porta do
salão se abriu e os homens entraram, conversando animadamente sobre
algum assunto masculino. Quando viram os pais chegando, as crianças se
animaram. Eloise correu até Edward e os gêmeos pularam sobre Aiden.
Wilhelmina sorriu - aquelas eram famílias pouco convencionais para a
aristocracia. E eram famílias felizes.
Seus olhos se encontraram com os de Grant. O marido parecia exausto do
dia e tinha olheiras acinzentadas debaixo dos orbes azulados. Ainda assim,
ele se permitiu sorrir ao vê-la. Wilhelmina teve certeza de que ele era o
homem que ela queria ao seu lado. Que ela estava apaixonada por Grant
Sawbridge e estava bem com aquilo.
S AWBRIDGE ESTRANHOU um pouco as atitudes da esposa. Na verdade,
estranhou o olhar dela, desde que cruzou com o dele. Durante o jantar, ela
estava dócil e gentil, mas Wilhelmina dificilmente era uma das duas coisas.
Ela era gentil, mas não dócil. Sua personalidade firme era bem conhecida por
ele, então teve que suspeitar que a tarde com as mulheres produziu algum
efeito interessante sobre ela.
Quando chegaram em casa, ela estava sorridente e ousada. Assim que
fecharam a porta principal, colocou-se à sua frente e o beijou. Sawbridge
assustou-se por um segundo, tempo o suficiente até segurá-la nos braços e
tomá-la definitivamente nos lábios.
— Você está bem? — Perguntou, buscando o ar em uma breve
interrupção.
— Sim, acho que sim. Eu apenas estou… quente.
Wilhelmina levou a mão à testa, como se pretendesse medir a
temperatura. Sawbridge enfiou-se na dobra de seu pescoço percebendo que
sim, ela estava em chamas. Mas não parecia que tinha a ver com alguma
doença ruim - a esposa estava estranhamente excitada. E ele seria um tolo se
não se aproveitasse disso.
— Sei um jeito de resolver isso.
Ele a ergueu e subiu as escadas dois degraus de cada vez. Precisava de
um banho e pretendia tomá-lo com ela, sua esposa. A banheira da suíte era
grande o suficiente para caberem juntos.
— E você vai me contar qual é?
— Sim, minha querida. Nós vamos tomar um banho morno.
— Nós?
Os olhos dela brilhavam como se as estrelas estivessem contidas ali
dentro. Ele a colocou no chão e beijou com doçura os lábios que lhe eram
ofertados.
— Sim. Nós. Você pode precisar de ajuda para diminuir a temperatura.
O risinho dela indicou que Wilhelmina entendeu seu sarcasmo. A
ansiedade fez com que tirassem a roupa um do outro com alguma pressa.
Botões voaram pelo quarto, o lenço de seu pescoço foi parar pendurado em
uma das barras do dossel, os laços do espartilho foram arrancados com os
dentes. Depois de livrá-la das muitas camadas de tecido, Sawbridge foi
encher a banheira com água e sais de banho.
Ele não ligava a mínima para aquelas frescuras, mas sua esposa adoraria
as bolhas subindo por sua pele. Ela apareceu, enrolada em um roupão, e o fez
rir.
— Não precisa esconder o que há aí em baixo. — Sawbridge se ergueu e
foi até ela.
— Está muito claro, iluminado. Se você apagar algumas lamparinas…
— Ah, definitivamente eu quero as lamparinas. Meu amor, eu conheço
todas essas curvas — ele a puxou para si e pressionou sua ereção contra a
barriga dela — em detalhes. E garanto, quanto mais de você eu vir, mais eu
vou gostar.
As bochechas enrubesceram e Wilhelmina levou as mãos ao laço do
roupão, soltando-o. Sawbridge fez deslizar a seda pelos ombros dela e chutou
o tecido para o lado. Passou as mãos pelos braços, pela cintura e pelos
quadris da esposa, admirando-a.
— Você parece confortável estando assim, nu.
— Não me importo com a nudez. Você se sente desconfortável comigo?
Ela baixou os olhos e percorreu lentamente o corpo do marido. Peito,
barriga, coxas, pés. E parou bem ali, onde a ereção despontava um tanto
quanto desesperada para a possuir.
— Não. Eu posso… tocar?
Sawbridge deu uma risada nervosa. Eles fizeram sexo quase todas as
noites desde que consumaram o casamento. Semanas cumprindo o mesmo
ritual noturno para, depois, dormirem aconchegados um no outro. Em todas
essas vezes, ela esteve tímida e retraída. Queria o escuro, mesmo que ele
insistisse em deixar algumas lamparinas acesas. Escondia-se debaixo das
cobertas sempre que possível e não demonstrou interesse em acariciá-lo mais
intimamente nenhuma vez.
Ela era carinhosa, ele sabia. Sentia as mãos que lhe percorriam o pescoço,
embrenhavam em seus cabelos, tocavam suas costas. Mas era isso.
E estava ali, ruborizada dos pés aos fios de cabelo, encarando sua
masculinidade em toda potência. Sawbridge tinha certeza de que ela podia
fazer com ele o que quisesse. Então, ao invés de responder, segurou sua mão
direita e colocou sobre a extensão de seu membro rígido. Wilhelmina soltou
um arquejo de espanto, mas fechou os dedos ao redor.
— O prazer do seu toque é o mesmo do meu. — Ele murmurou. — Se
você gosta que do que eu faço, eu certamente gostarei do que você fizer.
Ela sorriu e o acariciou com suavidade. A mão subiu e desceu, esticando
a pele fina e expondo a glande avermelhada e pulsante. Céus, era delicado
demais para ele suportar, mas jamais a impediria. Aquele era o momento em
que ela desbravava um corpo masculino pela primeira vez, Sawbridge
precisava deixar que ela fizesse o que quisesse.
Com cuidado, Wilhelmina simulou o movimento que ele fazia ao entrar e
sair dela. Porque ele gemeu, ela se sentiu encorajada a prosseguir.
— Eu posso beijar você?
— Claro que pode, meu amor, eu…
Sawbridge não conseguiu terminar a frase. Ela o empurrou para trás,
obrigando-o a se sentar na borda da banheira, fazendo-o segurar-se para não
cair, enquanto desligava a água e se ajoelhava à frente dele. Com um olhar
divinamente malicioso, que ele nunca vira naqueles olhos castanhos
femininos, Wilhelmina segurou seu pênis pela base e beijou-o.
Os lábios quentes encostaram na pele sensível da cabeça e ele soltou uma
imprecação alta. Ela riu, mas beijou outra vez, daquela vez passando a língua
ao redor. A aprendiz de devassa estava imitando o que ele fazia com ela,
lambendo-o e sugando.
— Meu Deus, Minnie.
Ela ergueu os olhos e as sobrancelhas.
— Você nunca me chamou assim.
— Desculpe, eu… é que isso…
— Não, está tudo bem. Eu gosto do meu apelido. Estou machucando
você?
— Não, meu amor. Você está me matando de prazer. Eu não imaginava
que passar uma tarde com suas amigas te transformasse em uma pequena
diabinha.
— É, posso dizer que a tarde de hoje foi libertadora.
— Então liberte-se.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO
E LA PERDEU A HORA OUTRA VEZ . Acordou tarde, bem depois do nascer do sol,
com a cama vazia ao seu lado. Harriet aguardava no quarto de vestir para
ajudá-la a se preparar para o dia, mas ela precisava de um banho, antes. As
manchas, cheiros e gostos da noite anterior ainda estavam por sobre ela, em
todos os lugares - e pareceu muito indecente compartilhar tudo aquilo com a
camareira. Ninguém precisava saber das perversões que ela e Grant
realizavam em sua intimidade.
O relógio marcava dez horas. Grant já fora para o escritório, ou para a
fábrica, ou para alguma outra indústria ou loja que precisasse da presença
dele. Desinteressada em enfrentar a enorme casa sozinha, tocou o sino e
chamou sua criada. Com Harriet, entrou Bertrand. O pequeno miava e se
pendurava nas saias da camareira, que reclamava alguma coisa.
— Pois não, milady. Quero dizer, senhora.
— Demora a se acostumar, não? — Wilhelmina riu. — Harriet, traga meu
café aqui, por favor. Comerei alguma coisa no quarto e me arrumarei para ir à
escola.
Com um aceno de cabeça, Harriet saiu e deixou o gato. Bertrand pulou
sobre a cama, afiou as garras nos cordões da cortina do dossel e acomodou-se
sobre o travesseiro de Grant. Wilhelmina riu e olhou-se no espelho querendo
confirmar se havia um sorriso tolo em seus lábios, como aquele que percebia
nas amigas sempre que estavam suspirando por seus maridos.
Ela não queria ser uma “suspiradora”. Era prática demais para se abraçar
com seus romances e sonhar que o Sr. Rochester estava ali, para ela. Se bem
que o Sr. Rochester era imperfeito, ele tinha segredos sombrios que os
separaram de sua Jane.
A criada retornou com a bandeja de comida e uma carta.
— Senhora, o Sr. Arthur disse que essa carta chegou ontem. Veio
endereçada à Sra. Sawbridge.
Wilhelmina sentou-se à frente de uma mesinha. Estava com fome, pois o
cheiro de ovos com presunto e tortinhas doces a fez salivar. As noites de
indecências com seu marido a deixavam faminta e estranhamente relaxada
toda manhã. Comeu alguma coisa, bebeu uma xícara de chá, mas não
conseguiu desviar os olhos da carta. Intrigada, pegou a correspondência que
fora entregue com o destinatário para cima e quase congelou de pavor quando
olhou o remetente.
Ela precisava parar de reagir visceralmente a Thomas Caldwell. Quando
não estava morrendo de amores por ele, estava assustada e temerosa que a
presença dele pudesse perturbar a tranquilidade de sua vida de casada. Abriu
a carta apressada e leu o conteúdo estarrecida. O homem de seu passado
estava propondo encontrar-se com ela às escondidas.
Lady Wilhelmina,
Desde o festival da colheita em Thanet, venho sendo consumido
pela necessidade de reencontrá-la. Se for de sua vontade, também,
estou em Londres na casa do Sr. Fulton e adoraria revê-la. Aguardo-
a hoje, às cinco, para um chá, na Shaftesbury Avenue, loja seis.
T.C.
A INDA ERAM quatro e meia da tarde, mas poderia ter se passado uma semana.
Quando foi que um dia se tornou tão longo? Sawbridge adorava estar em suas
empresas, conversar com negociantes e tomar decisões importantes. O
escritório, que ficava ao lado do Banco de Londres, era seu lugar favorito.
Fechava-se lá e mal via o tempo passar. Poucas pessoas ousavam incomodá-
lo quando estava ali e, quando queria observar o movimento da cidade, abria
sua janela e deixava o ruído de pessoas, cavalos e carruagens passando entrar.
Mas estava muito incomodado, naquele dia. Levantou e sentou várias
vezes até que sua secretária entrou.
— Sr. Sawbridge, seu advogado deseja vê-lo.
— Eu marquei com ele?
— Não, senhor.
— Ele marcou comigo?
— Não, senhor. Mas ele diz que é muito importante. Pediu para frisar o
importante e o muito.
Claro que era importante. Sawbridge pedira informações sobre Thomas
Caldwell a todos os seus contatos possíveis, era provavelmente aquele o
assunto que Bowes tinha para tratar com ele. Se o advogado soubesse de
algo, viria correndo comunicar. Aquilo o fez se remexer na cadeira, nervoso.
— Mande-o entrar e traga café.
A Srta. Trimmes fechou a porta e o advogado entrou em seguida.
Carregava uma pasta preta impecável, vestia traje completo e tinha uma
expressão de quem daria uma péssima notícia.
— Sr. Bowes, o que o traz inadvertidamente até meu escritório?
O homem enrolou um tufo do bigode nos dedos e expirou profundamente.
— As novidades que o senhor procura. Tudo sobre Thomas Caldwell.
Abrindo a pasta preta, o Sr. Bowes colocou um envelope de papel
escurecido sobre a mesa de madeira. Havia uma ou duas fotografias,
documentos públicos e duas declarações.
— Não estou com paciência para ler. O que diz tudo isso?
— Talvez o senhor deva se sentar.
Sawbridge percebeu que estava ereto, apoiado com as duas mãos sobre o
tampo escuro de madeira envernizada. A Sra. Trimmes entrou com o café e
alguns biscoitos e deixou a bandeja sobre um aparador, saindo correndo em
seguida. Ela estava sempre morrendo de medo dele, como se fosse um
homem mau. Sawbridge serviu duas xícaras, uma para si e outra para o
advogado, e se sentou novamente.
— O que houve, Bowes? Quem é esse cara?
— O Sr. Thomas Caldwell é filho de Bruce Caldwell, um plebeu pobretão
meio escocês, meio inglês. Quando tinha seis anos, perdeu a mãe, o pai
mudou-se para Thanet, em Kent, e casou-se com uma mulher de lá - uma
modista. O Sr. Bruce Caldwell já faleceu de gripe, e o Sr. Thomas é hoje o
homem que sustenta a família. Ele tem vinte e nove anos e…
— E?
— E ele é amigo da Sra. Sawbridge.
Talvez o advogado esperasse um rompante de ira do industriário, mas a
informação que ele colocou levou bastante tempo para ser entendida por
Grant Sawbridge.
— Amigo da família McFadden, quer dizer?
— Não, senhor. Amigo de Lady Wilhelmina, hoje a Sra. Sawbridge.
— Homens solteiros não são amigos de damas solteiras. Isso é totalmente
inadequado.
— Sim, senhor, entendo que seja. Mesmo assim…
— Bowes, você está insinuando que esse tal Caldwell era… que ele
tinha… que ele e minha esposa…
— Não estou insinuando nada, senhor. — O advogado se sentou, suas
mãos trêmulas quase deixando a xícara cair. Sawbridge estava novamente
erguido da cadeira, dobrado por sobre a mesa como um leão prestes a atacar.
— Mas há indícios, senhor… as pessoas com quem conversamos, elas…
— Elas disseram o que?
— Que eles eram muito amigos.
— Isso é ridículo. — Sawbridge bateu na mesa e causou um estrondo. —
Quero falar com esse tal Caldwell, onde ele está? Onde ele está escondido
nessa cidade fedorenta?
— Ele tomará chá às cinco com uma dama, na loja seis da Shaftesbury
Avenue.
Sawbridge olhou para o relógio. Já eram quase cinco horas, mas a loja
ficava próxima. Era uma cafeteria frequentada quase sempre por negociantes
e algumas mulheres sozinhas também costumavam aparecer por lá. Mas eram
mulheres do tipo Caroline Eckley, não do tipo Wilhelmina McFadden.
— Como descobriu isso?
— O senhor nos paga uma quantia obscena para sabermos de tudo. Com a
quantidade certa de dinheiro, as pessoas dizem exatamente o que precisamos.
Ele sabia, claro que sabia. Havia muito pouco que o dinheiro não
comprasse, principalmente quando as pessoas estavam muito empobrecidas
pelas péssimas condições de trabalho nas fábricas. Era fácil arrancar
informações até dos criados mais fiéis se uma libra fosse balançada na frente
deles, por isso os investigadores de Sawbridge tinham fundos quase
ilimitados. Geralmente, eles descobriam informações sobre investidores e
futuros negócios. Daquela vez, ele precisava entender aquele relacionamento
entre sua esposa e um tal de Thomas Caldwell.
Relacionamento. Não, ele precisava conferir algumas coisas com os
próprios olhos.
— Certo, Bowes. Obrigado por seus serviços, eu vou sair.
De pé novamente, o industriário pegou seu chapéu e seu casaco e
marchou para a porta.
— O trajeto a cavalo é mais tranquilo, senhor.
Sawbridge respirou fundo e deixou o prédio. Sim, o trajeto a cavalo era
mais rápido, mas o deixava mais exposto. Ele não pretendia que ninguém o
visse indo espionar sua esposa por achar que ela o estava traindo. Por Deus,
ele parecia um jovem tolo dominado pelas emoções, pois o homem racional
conhecido como Grant Sawbridge jamais se prestaria a um papel ridículo
como aquele. Tentou caminhar calmamente para não chamar a atenção de
ninguém, mas seus pés quase o atropelaram.
Era por aquele motivo que estar apaixonado era uma bobagem. Homens
deixavam de ser objetivos e razoáveis por causa de mulheres. Guerras eram
travadas - e, de repente, Helena de Tróia veio à sua mente. Linda, loira como
uma deusa, e infiel. Não, Helena não foi infiel, foi raptada. Mas ela não se
apaixonou por Páris? Céus, Sawbridge estava correndo pelas ruas e
trombando nas pessoas enquanto divagava sobre a história da Guerra de Tróia
e sobre personagens mitológicos.
E então ele estava lá, na cafeteria onde Thomas Caldwell se encontraria
com uma dama. Mesmo que o patife estivesse acompanhado, Sawbridge o
abordaria e o colocaria em seu lugar. Provavelmente era sorte do canalha,
pois, se estivessem sozinhos ou em um clube de cavalheiros, Sawbrigde lhe
partiria a cara por apenas considerar escrever para sua esposa.
Ele se preparou para entrar. Ajeitou o paletó, passando as mãos abertas
pelo linho, e ajustou a gravata. Não queria parecer um homem que estivera
correndo para chegar ali. O atraso para arrumar o visual lhe foi providencial,
pois ele acabou vendo algo que o destroçaria antes que pudessem vê-lo sendo
destroçado. O maldito Caldwell estava sentado em uma mesa de canto.
Sawbridge provavelmente não o reconheceria imediatamente se não fosse a
presença de sua esposa na mesa com ele.
Wilhelmina usava um vestido laranja e marrom e estava acompanhada de
sua camareira. A jovem estava de pé ao lado de sua senhora e olhava,
distraída, para o lado de fora da cafeteria. Ela poderia vê-lo, se Sawbridge
não se escondesse atrás de uma pilastra. Toda tentativa de não parecer
ridículo, antes, esvaneceu ante a visão de sua mulher sentada com o homem
do passado, o amigo. Ele sabia que tipo de amizade seria aquela.
Não era possível ouvir o que conversavam sem se aproximar e, caso se
aproximasse, seria visto por Harriet. O coração de Sawbridge estava
disparado e ele sentiu dor no peito. Manteve os olhos na cena, querendo que
Wilhelmina se levantasse e batesse em Caldwell. Nos quinze minutos que
passou espreitando o casal, desejou secretamente que ela jogasse comida
sobre ele, que ela o estapeasse, que ela gritasse e xingasse. Claro que ela
jamais teria uma atitude tão indigna ou grosseira, mas era a única forma de
acalmar o monstro que começou a acordar dentro de si.
Mas nada daquilo aconteceu. Eles conversavam polidamente e, em
determinado momento, Caldwell levou as mãos às de Wilhelmina. Ela estava
sem luvas e não impediu que o homem a tocasse. Também não impediu
quando ele segurou seus dedos longos e macios e os levou à boca, beijando-
os. Sawbridge piscou uma vez, longamente, mantendo os olhos fechados por
dois segundos inteiros. A dor no peito aumentou enquanto uma tormenta de
pensamentos o assolava.
A ruína no jardim. O patife com quem ela não poderia se casar. A
necessidade de retribuição. A aceitação rápida demais de tê-lo como marido.
A estranha conversa sobre infidelidade. A carta recebida logo após o
casamento. A resistência em ser seduzida por ele. O nervosismo do encontro
em Thanet. Tudo aquilo estava relacionado a Thomas Caldwell - o homem do
passado de Wilhelmina, o homem com quem ela se relacionava desde antes
de se casar.
Sawbridge abriu os olhos e a cena continuava a mesma. Thomas
Caldwell, loiro, lindo e com aparência de homem pobre, segurando e
beijando as mãos de sua esposa. Parecia bastante claro que eles se gostavam.
Quase óbvio demais que eram amantes, e amantes descarados que não se
importavam em serem vistos em plena luz do dia.
Ele precisava ir para casa e beber até esquecer tudo aquilo. Esquecer o
que acabara de ver e todos os malditos sentimentos que começou a sentir por
uma mulher que nunca o quis, nunca o amou e que, desde o início, se
mostrou interessada em um casamento de conveniência por uma única razão:
retribuição. Então, endireitou a coluna e ajeitou novamente a gravata antes de
sair pisando firme da cafeteria. Quando suas mãos tocaram seu peito, por
sobre as camadas de tecido, ele pode confirmar que o espaço entre as costelas
estava vazio. Oco. Por um período, esteve doente acreditando que poderia
mudar ou ser mudado. Mas como fora tolo. Grant Sawbridge não tinha
coração, e era melhor que continuasse assim.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
A CASA FICOU grande demais para Wilhelmina. Ela levou o que pareceram
horas para retornar e depois outras horas olhando o salão em sua magnitude.
Tudo ali era tão masculino, não dominado, controlado e possuído por Grant
Sawbridge que ela não teve tempo suficiente para deixar a sua marca. As
lágrimas já estavam secas, deixando trilhas de mosaicos em sua pele clara.
Ele tinha uma amante. Como poderia, se ele dissera, desde o início que
lhe seria fiel? Ele prometeu fidelidade, ele jurou diante de Deus. Os céus
eram testemunha de que ela nunca quis nada daquilo - nem o homem, nem a
paixão, nem o envolvimento. Mas, ainda assim, ela nunca fora infiel.
Wilhelmina não ficaria ali. Ela tinha o aniversário do irmão para celebrar,
mesmo que sequer pudesse pensar em comemorar alguma coisa. Precisava ir
para algum lugar - qualquer lugar - que não tivesse aquele cheiro de uísque e
tabaco que pertencia ao homem que conquistou e despedaçou seu coração em
tão pouco tempo.
— Senhora?
Arthur a interpelou. Ele deveria estar ali há algum tempo, enquanto ela
divagava olhando para o nada. O gato já escalara suas roupas e a obrigada lhe
prestar alguma atenção.
— Arthur, eu vou viajar para Thanet. Preciso conversar com você e a Sra.
Cook.
— Pois não, senhora.
Wilhelmina indicou que os dois empregados deveriam ir até o salão de
chá. Ela ainda se arrastava pela casa, sentindo os pés pesados pelo choque de
ter encontrado seu marido na casa de outra mulher.
— O que precisa, Sra. Sawbridge? — A Sra. Cook limpava as mãos no
avental de sua saia quando entrou.
— Estou indo para Greenwood Park. É aniversário do meu irmão e
haverá uma festa. O Sr. Sawbridge não irá comigo, portanto preciso que me
ajudem nesse período em que eu estiver fora. É imprescindível que a rotina
da casa permaneça inalterada.
— Devemos continuar seguindo os horários, senhora?
— Sim, Arthur. Desjejum, almoço e jantar precisam ser servidos
rigorosamente nos horários combinados. O Sr. Sawbridge sempre levou uma
vida pouco saudável, com rotinas inadequadas e não podemos admitir que ele
retorne para esses vícios.
— A senhora vai se demorar?
Ah, ela ia. Provavelmente, talvez, não sabia dizer. Tudo estava um
borrão, confuso, mas Wilhelmina precisava retomar as rédeas de suas
decisões. Sempre foi objetiva e prática, até para escapar de um escândalo e
arrumar um marido. Não ficaria chorando pelos cantos se lamentando pelo
ocorrido. Mas, também, não tinha como saber o que seria do dia seguinte.
Precisava cuidar para que suas ordens continuassem a ser cumpridas naquela
casa.
— Provavelmente não, Arthur. Mas um dia já é suficiente para fazer com
que o Sr. Sawbridge se desvie do caminho.
O mordomo riu, contido, e logo se envergonhou da informalidade. A Sra.
Cook o cutucou com o cotovelo e fez com que Wilhelmina se divertisse, ao
menos um pouco. Ela já gostava daquelas pessoas, mesmo tendo passado tão
pouco tempo com elas.
— Tudo bem, senhora. Vamos cuidar para que ele não se desvie, então.
— Eu prepararei o que ele mais gosta de comer: carne.
— Apenas não exagere, ele precisa comer com moderação.
E manter aquela forma física maravilhosa que o marido exibia quando
despido. Ela tinha certeza que aquele corpo fora esculpido com exercícios, e
que ele estava se cuidando de outra forma depois do casamento. Maldição,
Wilhelmina não queria pensar nos exercícios que o marido fazia com ela,
menos ainda se ele fazia aquela mesma atividade com outra mulher. De
qualquer forma, Grant não deveria comer demais, apenas comer corretamente
e nos horários certos.
— Mais alguma instrução, senhora?
— Sim, organize minha correspondência e deixe separado na minha sala
privativa, no segundo andar.
— Certamente. Senhora… aconteceu alguma coisa?
Wilhelmina se espantou com a pergunta e então notou que estava
chorando. Sem perceber, lágrimas escorreram por suas bochechas e os
empregados notaram, como não notariam? Ela passou as costas da mão
enluvada no rosto e piscou algumas vezes para afastar a umidade.
— Nada demais, Arthur. Estou um pouco emotiva, porém deve ser
saudades da família.
Os empregados nada mais disseram. Pediram licença e saíram. A
desculpa era ridícula, pois Wilhelmina vivia na presença de seus familiares e
amigos. O casamento não a afastou de nada de sua vida anterior, mas o que
poderia dizer? Peguei o maldito do seu patrão na casa da secretária e agora
estou muito zangada? E isso se deu porque ele está acreditando que eu me
envolvi com um homem com quem realmente pensava me envolver, mas
mudei de ideia quando descobri que estava apaixonada pelo ranzinza com
quem me casei?
Ela deu uma risada nervosa, que se misturou às lágrimas recentes. Ela
precisava parar de chorar e acreditava que dois ou três dias em Kent fariam
bem para eles. Depois que Grant estivesse disposta a ouvi-la, Wilhelmina
retornaria e acabaria com aquele mal-entendido horrível.
W ILHELMINA NÃO FAZIA ideia dos horários de trem, nem como faria para
comprar uma passagem. Isso não a impediu de pegar uma mala com seus
vestidos e ir para a estação London Bridge. Se tivesse que esperar, esperaria.
Mas ela não queria continuar na casa, sendo assombrada por memórias de
horas antes que a remetiam ao amor e ao ódio tudo de uma só vez.
As duas mulheres estavam ali, paradas na plataforma, ao lado de duas
malas e com um gato enrolado em uma manta de lã, esperando receber
informações de um funcionário da ferrovia sobre o horário do trem. Um
homem de uniforme se aproximou das duas, Wilhelmina e Harriet, segurando
alguns papéis.
— Sra. Sawbridge. A senhora perguntou sobre o próximo trem para
Thanet, ele sai em uma hora. O seu vagão está preparado.
— Meu vagão? — Ela não entendeu.
— Sim, senhora, o vagão do Sr. Sawbridge.
— Não pretendo usá-lo.
— Senhora, temos ordens expressas do seu marido de não permitir seu
embarque em vagões comuns.
Ela ficou confusa novamente.
— Ele deu essa ordem…
— Há pouco, senhora. Disse que, quando a senhora desejasse pegar o
trem, que era para preparar imediatamente o vagão e não a deixar embarcar
em nenhum outro.
Maldito fosse Grant Sawbridge. O coração dela saltou do peito, quase
pulando pela boca, agitado ao sequer supor que aquele homem estava
preocupado com ela. Mas ele tinha uma amante. Mesmo que Wilhelmina
estivesse bastante favorável a isso quando se casaram, as coisas tinham
mudado. Ela tinha mudado, e acreditava que ele, também. Esperava que ele
honrasse a fidelidade prometida, porque disse, desde o início, que assim seria.
E não foi. Não era. Grant era amante de sua secretária e tinha um filho
bastardo. Por que, ela jamais saberia - pois não pretendia confrontá-lo nunca
mais. Mentirosa. Ela precisava apenas deixar aquela raiva passar, pois sabia
que, no fundo, os sentimentos não desapareciam tão rapidamente.
— Tudo bem, então podemos esperar no vagão?
Ela perguntou, ajeitando o gato em seu colo.
— Claro, senhora. Vamos levar sua bagagem.
O homem pegou as duas malas e indicou que elas deveriam ir na frente. O
vagão, que ela bem conhecia da viagem para a lua de mel, estava estacionado
e aberto, esperando. Depois que o funcionário saiu, fechou a porta e as isolou
do restante da estação.
Era um problema relativo estar ali, pois todos aqueles lugares a
lembravam do marido. Na ida para Anglesey, ele foi gentil, permitiu que ela
ficasse tranquila com ele e possibilitou uma abertura que ela nunca tinha
concedido a homem algum. Na volta para casa, o vagão foi testemunha do
vigor sexual de Grant Sawbridge e do quanto ela estava se tornando uma
mulher dependente dos carinhos daquele homem.
Olhar para os móveis a deixava nostálgica. O cheiro que continuava
impregnado em todo lugar a deixava nervosa. Por mais aborrecida que ela
estivesse, sentindo a traição borbulhar em suas entranhas, sentiu saudades dos
momentos que passaram ali.
— Harriet, acomode-se. Eu vou deitar e ler alguma coisa. Logo,
chegaremos a Thanet.
— Sim, senhora. Quer ajuda com o vestido, agora?
— Não, vou deitar-me assim mesmo.
A camareira foi para os aposentos dos empregados e a deixou ali.
Wilhelmina passou os dedos pelos móveis, retirou alguns livros do lugar, e
foi para o quarto. Retirou os sapatos, deitou-se na cama, abraçou com os
travesseiros e chorou até dormir.
A FAMÍLIA de Isaac chegou a Greenwood Park bem cedo, por volta das oito
da manhã. No litoral, assim como no campo, era hábito acordar cedo, mesmo
para a aristocracia. Wilhelmina, no entanto, mal dormira a noite toda. Era a
segunda noite que passava praticamente em claro, nervosa, ansiosa, sentindo
seu estômago borbulhar com a antecipação. Não era de seu feitio esperar,
gostava de resolver suas questões no momento em que elas apareciam.
Mas, primeiro, o marido não a quis ouvir. Depois, ela estava furiosa
demais para ouvir. Eles precisavam resolver aquilo, e seria naquele dia.
— Riderhood me escreveu um enigma. — Caroline reclamou, à mesa do
desjejum. — Disse que a verdade fora revelada e que Grant estava a caminho.
Entendi a segunda parte, apenas.
— Considerando que não há muitas mentiras entre nós, ele
provavelmente está falando da Srta. Trimmes. — O nome da secretária
amargou o chá que Wilhelmina bebia.
— Bem, se o homem está vindo, então precisamos esperar que chegue. —
Isaac decidiu.
Esperar, novamente, era tudo que ela não queria. A família continuou o
desjejum alegremente, falando sobre algumas questões típicas do interior.
Antes de debutar em Londres, os assuntos das propriedades a interessavam
mais, pois pertenciam à sua realidade. Era triste que as fábricas e indústrias
estivessem engolindo e destruindo aquele estilo de vida mais tranquilo. Quase
não havia mais grandes propriedades e a maioria dos arrendatários viveria em
absoluta miséria se não fosse a benevolência de alguns donos de terras. Em
Greenwood Park, parte dessas terras foi desmembrada e vendida ou doada
para alguns arrendatários maiores, mas eles também tinham dificuldade de
sobrevivência por conta da mudança causada pela revolução industrial, que
consolidou a vida urbana como padrão para todos.
Quando ela nasceu as coisas já eram daquela forma, ela apenas fora
imunizada contra a verdade. Seus olhos estavam, então, bem abertos. Tudo
que ela podia fazer era apoiar o marido e seus amigos na empreitada de
transformar a vida naquela vila, em Thanet, garantindo que se tornasse uma
estância turística.
— Meu senhor. — O mordomo interrompeu a conversa e trouxe
Wilhelmina de volta para a realidade. — Há um mensageiro pedindo para vê-
lo.
— Receba a mensagem, Peyton. — Isaac determinou. — Assim que
terminarmos o desjejum, vejo do que se trata.
— Tentei fazer isso, porém ele diz que é muito importante e precisa falar
com o senhor imediatamente.
Isaac colocou o guardanapo de tecido sobre a mesa e se levantou. A
severidade em sua expressão sugeriu que ele suspeitava que eram notícias
ruins. Wilhelmina e Agatha se entreolharam e decidiram conferir do que se
tratava. Saíram da mesa apressadas, deixando as outras mulheres para trás.
No salão principal da mansão em Greenwood Park havia um jovem com as
botas sujas de terra e homens conversavam rispidamente, indicando que
estavam nervosos.
— Mande chamar Davies e todos os homens da vila. Todos devem se
dirigir para o local do acidente.
— Que acidente? — Wilhelmina se aproximou da confusão.
— Parece que o trem sofreu um descarrilamento vindo para cá e os
vagões tombaram.
A frase de Isaac fez com que as pernas dela fraquejassem, mas ela se
manteve de pé. Colocou as duas mãos no ombro do irmão e fez com que ele
olhasse diretamente em seus olhos.
— Grant estava no trem? Nesse trem?
— Todos eles. — Isaac confessou. — Edward e Aiden também. Mas
acalmem-se, as notícias dizem que não foi muito grave.
— Como não foi grave? — Agatha bradou, a voz aguda e nervosa. — Um
trem tombou, como isso pode não ser grave?
— Acho que ele quer dizer que os homens estão bem. Certo, Isaac?
Caroline surgiu na conversa, vinda da sala de café da manhã. Pauline
seguia atrás dela, com sua camareira e fiel criada como companhia.
— Não sei, meu amor. — Ele confessou novamente, baixando a cabeça.
— O mensageiro veio a pedido do duque, foi Aiden que escreveu o bilhete.
Ele não disse nada além de pedir que fôssemos para lá.
— Então vamos.
Wilhelmina começou a sair e Agatha foi atrás dela. O irmão correu atrás
das mulheres e as impediu de deixar a casa, tentando convencê-las de que era
irrazoável ir até o lugar do acidente. Provavelmente era a coisa mais estúpida
que elas poderiam fazer, já que seus maridos poderiam estar feridos ou até
mesmo mortos. Não, eles não estavam. Ainda assim, elas seriam de pouca
valia naquela confusão toda.
— Deixe-as ir, Isaac. — Caroline abraçou o marido. — Quando você se
acidentou, não teve conde nem marquês que me impedisse de arrancar o
vestido e te resgatar. Deixe-as ir.
Isaac olhou para a irmã e a cunhada e pensou. Há quatro anos, o silo
antigo da propriedade do Conde de Cornwall desabou quando ainda passava
por reformas. Alguns homens ficaram soterrados, entre eles o administrador
da propriedade, Isaac McFadden. Naquela ocasião, Caroline e Agatha
ofereciam um final de semana de apresentação de suas escolas e um
agrupamento de damas foi até o local do desabamento para assistir a sobrinha
do marquês desabotoar seu vestido na frente de todo mundo e entrar, apenas
de roupas de baixo, em um buraco para ajudar a resgatar seu amado.
As pessoas ainda comentavam o quanto ela era louca, corajosa e
apaixonada. Caroline orgulhava-se das três coisas. Naquele momento,
Wilhelmina a entendeu totalmente, pois ela queria sair correndo para ver
como seu marido estava. O ar faltava em seus pulmões e seu coração estava
disparado, ela apenas precisava estar lá.
— Certo, vocês podem ir. Vamos na carruagem nova, ela é mais
dinâmica.
— Você deveria ficar. — Agatha disse. — Cuide das coisas para quando
retornarmos, e esteja do lado de sua esposa grávida e de sua mãe.
— Como pensam em ir até lá sem um homem?
— Somos casadas, não precisamos da companhia de ninguém. —
Wilhelmina esbravejou. — Vamos logo, estamos perdendo tempo.
Uma carruagem parou no pátio principal e elas embarcaram. Via-se o
movimento de homens a cavalo e outras carruagens; pessoas se deslocando
para ajudar os possíveis feridos. A ideia de que seu marido estivesse entre
eles a deixava enjoada.
Ela não podia perdê-lo. Não antes que resolvessem seus problemas e
conseguissem conversar sobre sentimentos. Ah, aqueles inconvenientes que
eram os sentimentos. Wilhelmina se perdeu neles uma vez e de nada adiantou
jurar que nada daquilo aconteceria novamente - ela não apenas se apaixonou
como fez isso pelo homem que não tinha coração.
Só que ela sabia que ele tinha. Grant era frio como gelo e difícil de lidar,
mas com ela era suave e gentil, sempre. Havia esperanças de que ele pudesse
cuidar dela sem destruir seu coração. Wilhelmina podia tolerar ser a única
apaixonada naquela relação se eles conseguissem chegar a um termo. O
marido não precisava amá-la, bastava que continuasse exatamente como ele
era. Porque Grant Sawbridge era fantástico e o mundo não estava pronto para
existir sem ele.
A INDA ESTAVA tudo escuro quando Sawbridge sentiu que alguém o segurava.
Não, ele estava sendo sacudido por um par de mãos nervosas que pareciam
querer desesperadamente alguma coisa. Ouvia vozes, gritos, sons estranhos
que tornaram difícil a tarefa de abrir os olhos e se localizar.
Aiden Trowsdale estava pendurado em uma janela e balançava os braços
nervosamente em sua direção. Sawbridge piscou algumas vezes e tudo voltou
subitamente à sua mente - o trem descarrilhou. Ele tentou se mexer, mas
estava preso por outro assento, que se desprendeu e o forçava a ficar sentado,
de lado, enquanto o cheiro de carvão fazia com que ele sentisse uma tontura
incômoda.
— Temos que entrar para soltá-lo. — Aiden disse para alguém. Era um
homem jovem que tinha um fio de sangue ressecado em escorrido de sua
testa. — Peça ao conde para trazer qualquer coisa que sirva de ferramenta.
— Vocês estão bem? — Sawbridge perguntou, tentando empurrar o
assento que prendia suas pernas. — O que diabos aconteceu?
— Ninguém sabe dizer. O maquinista está inconsciente, bastante ferido.
Você está bem, Grant?
Ele estava, ao menos parecia estar. Não sentia dor, tirando um pequeno
desconforto nos quadris por causa da pressão. Precisava se soltar daquela
prisão horrorosa, principalmente porque o cheiro de carvão aumentava o mal-
estar. Antes que ele conseguisse insistir mais um pouco com o assento, o
Conde de Cornwall aparece em seu campo de visão, cobrindo o sol. Os três
homens confabularam alguma coisa e Sawbridge entendeu o que pretendiam
quando viu Edward segurando um objeto pesado.
— Feche os olhos, meu amigo. Estilhaços vão voar.
Com algumas pancadas, os homens derrubaram a janela, fazendo com
que ela caísse sobre Sawbridge. O vidro pontiagudo perfurou sua pele em
alguns pontos, mas não era nada que causasse preocupação. O homem que
estava com eles era menor e entrou no vagão, que já estava vazio, para ajudá-
lo a sair. Usando uma corda e um pouco de força bruta, os homens puxaram e
bateram no assento até que ele cedesse para conceder a liberdade a
Sawbridge.
— Agora estique os braços. Vamos puxá-lo.
— Posso sair sozinho dessa lata amassada.
O duque e o conde não discutiram. Sawbridge subiu nas ferragens e se
projetou para fora do trem. Só então ele viu o estrago - dezenas de vagões
descarrilhados, muitas pessoas feridas e assustadas, mas aparentemente nada
similar a um cenário de guerra.
Carruagens e cavalos vinham de todos os lados. Barracas já estavam
montadas, lugares improvisados para que os feridos pudessem ser
examinados. A plebe miserável fazia uma fila enorme em frente a uma
barraca, podia-se ouvir crianças chorando e o burburinho era irritante. A
aristocracia, no entanto, recebia atendimento privilegiado.
— Pelos céus, Aiden. Você vai deixar que tratem as pessoas dessa forma?
— Sawbridge reclamou, descendo do vagão. Sentiu uma fisgada no quadril
ao pisar no chão, mas nada que justificasse sua atenção.
— Estava ocupado tentando salvá-lo, meu caro amigo. Mas não se
preocupe, sou o duque dessa vila. Darei ordens para que todos sejam tratados
pelos médicos. Espero que Davies chegue logo, mandei avisar Isaac e pedi
que ele tomasse providências.
O duque, no alto de sua arrogância aristocrática, ajeitou o colete desfeito
e tentou assumir uma aparência elegante antes de se deslocar para discutir
com os médicos e habitantes da vila, que estavam organizando tudo. Edward
tinha um ferimento no braço e estava sentado, tentando enfaixá-lo com uma
bandagem improvisada. Sawbridge decidiu perambular pelos vagões em
busca de pessoas precisando de ajuda e crianças perdidas de seus pais.
Depois de retirar pessoas de lugares escondidos, ajudar uma menina a
achar a irmã e resgatar dois gatos, ele se sentiu exausto e dolorido. Não
queria ser atendido ali, no meio da grama e do barro, mas suspeitou que
precisasse de algum auxílio. Havia um hematoma grande que começava a se
formar indo das suas costas até sua barriga e aquilo incomodava mais do que
ele estava disposto a tolerar.
Enquanto caminhava pela confusão, viu as carruagens dos McFaddens e
dos Trowsdales se aproximarem. Ao contrário do que esperava, não foi Isaac
que saltou da carruagem para ajudar no que fosse preciso, mas duas
mulheres. Sem dar a menor atenção para o cocheiro, que tentava auxiliá-las a
descer, Wilhelmina e Agatha pisaram no meio da terra revolvida e
começaram a olhar ao redor. Elas estavam aflitas.
Sawbridge teve vergonha de sentir-se bem ao ver a agonia nos olhos de
sua esposa. Ela estava preocupada com ele, era tudo que importava. Ela ficou
sabendo do acidente e foi até lá - esperava ele que não para confirmar a sua
morte, mas porque esperava vê-lo vivo. O desejo de correr até ela não
conseguiu superar a dor, nem a glória de perceber Wilhelmina tão nervosa.
Até que seus olhos se encontraram e ela o viu.
Naquele instante, naquela fração de segundo, ela correu o mais rápido que
alguém poderia correr. Segurou a barra do vestido e, erguendo as saias,
disparou na direção dele, que agradeceu secretamente a oportunidade de ficar
inerte. Quando se aproximou, ela estava com o cabelo trançado um pouco
desgrenhado, as sapatilhas arruinadas e a pele das bochechas rosadas como se
eles tivessem acabado de fazer amor.
E ele quis fazer amor com ela mais do que qualquer coisa que já tenha
querido antes. Sawbridge era capaz de abrir mão de sua riqueza por outra
noite com sua esposa. Céus, como homens apaixonados eram imbecis.
— Grant! — Ela parou, como se tocar pudesse quebrá-lo. — Você está
bem?
— Sim, não foi nada grave.
— Meu Deus, ficam me dizendo isso, mas veja só esse trem! Como pode
não ser grave? Você está ferido?
— Um pequeno hematoma, nada demais.
Ela levou as mãos até a camisa dele e puxou, deixando à mostra o lugar
exato onde o assento o prendera.
— Não é pequeno. Vamos ver o médico.
— Minnie…
— Não aja como se eu estivesse te dando opções. Venha comigo.
Parecendo irritada, ela o segurou pela mão e o arrastou até a barraca em
que também estavam Aiden e Edward, já com sua esposa nos braços.
C OMO AQUELE HOMEM ERA IRRITANTE ! Ela estava desesperada quando chegou
ao lugar do acidente e viu o horror com seus próprios olhos: uma massa de
ferro tombada no meio do nada, e um mar de pessoas feridas e girando para
lá e para cá. Ficou mais desesperada ainda procurando pelo marido, até seus
olhos encontrarem os dele e ela o ver saudável, de pé, encarando-a. Próxima
a ele, sentindo seu aroma de tabaco e misturado ao sangue e carvão, ela quis
beijá-lo e assassiná-lo ao mesmo tempo.
Por fazê-la preocupada, por fazê-la sofrer e chorar, e por estar glorioso
mesmo depois de sofrer um acidente de trem.
Mas ele estava ferido e precisava de atenção médica. Por sorte, Davies
chegou junto delas e estava atendendo o conde, seu irmão. Wilhelmina
conduziu Sawbridge até eles e fez com que o marido se sentasse.
— O que vocês duas estão fazendo aqui? Onde está Isaac?
— Com a mulher dele, em Greenwood Park, cuidando de tudo. — Agatha
respondeu. — Nós precisávamos vir para garantir que vocês estivessem bem.
— A presença de vocês realmente foi fundamental para que nossa saúde
fosse mantida. — O conde provocou.
— Não seja ridículo, Edward. — Wilhelmina esbravejou. — Agora deixe
de ser tolo e libere o médico para que ele examine Grant. Ele está lesionado.
— É apenas um hematoma. O seu irmão viu, eu estava preso por um
assento.
— Quando o médico disser isso, eu acreditarei.
Ela não sabia se estava furiosa porque ele tinha uma maldita amante ou
porque ela parecia não se importar com aquilo, mais. Ficou tão assustada
quando pensou que Grant estivesse ferido gravemente que agiu como se não
houvesse um passado recente entre eles. Divórcio. Mentiras. Amantes.
Parecia tudo uma grande bobagem depois que ela o viu ali, vivo, mas não era.
O Dr. Davies pediu que Grant se deitasse em uma maca improvisada e
examinou a mancha arroxeada que começava a despontar na pele clara. Não
parecia tão feia, afinal. Depois de alguns minutos, o médico se virou para ela
e ajeitou os óculos da face.
— É uma contusão, milady. Basta que o Sr. Sawbridge repouse e tome
alguns tônicos, logo ficará como novo.
O alívio despencou sobre seus ombros e o ar retornou a seus pulmões.
Wilhelmina poderia desabar ali no chão se não estivesse muito concentrada
no que precisava fazer naquela manhã - obrigar seu marido teimoso e infiel a
ouvi-la. Em um momento de distração, ele se sentou e puxou-a para si,
fazendo-a parar em seus braços. Calor, maciez e o cheiro que lhe era tão
característico a desmontaram e fizeram com que Wilhelmina não resistisse.
— Eu queria odiar você. — Ela o envolveu em um abraço, enquanto ele
apoiava a cabeça em seu peito. — Mas você tem tornado isso um pouco
difícil.
— E eu estava louco de vontade de abraçá-la, fy nghariad.
— Não fale em gaélico comigo. — Ela rosnou, beijando-o no topo da
cabeça. — A não ser que esteja pronto para me ouvir, ao invés de atirar
papéis e propriedades sobre mim como se eu fosse uma maldita caçadora de
fortunas.
Ele assentiu, esfregando a cabeça no vestido dela, indicando que sim, ele
a ouviria. Pediu privacidade, praticamente expulsou Edward e Agatha com o
olhar, mas eles não se moveram. Wilhelmina não se importava se alguém
mais fosse ouvir, ela apenas precisava falar, retirar aquele peso de seu
coração. Era aquele o momento ou não seria outro, pois, se fossem para casa
primeiro, outros eventos desviariam a atenção de todos.
— Eles não nos deixarão a sós. — Grant reclamou.
— Não importa. O que eu quero dizer é muito simples: eu não sei o que
se passa nessa sua cabeça complicada, mas eu e Thomas não temos nada. O
que você viu na cafeteria foi um homem desesperado que precisava de
dinheiro para pagar dívidas do tratamento de uma irmã doente.
Grant rosnou com a boca em contato com o vestido dela. Continuava
abraçado à cintura da esposa para evitar perder a cabeça enquanto a conversa
seguia.
— Se ele precisava de dinheiro, deveria pedir a outro homem. Nunca a
uma mulher casada. Nunca à minha mulher.
— Tem razão. Nosso encontro foi… imprudente. Mas Thomas é um
amigo do passado. Isso não é mentira.
— Não é mentira que seja um amigo?
— Não é mentira que seja um passado. — Ela respirou fundo. — Você
quer a verdade, então eu te darei a verdade. Eu amei Thomas Caldwell, ou ao
menos eu achava isso. Era jovem, encantada por um homem que me tratava
diferente dos outros. Eu acreditava que nos casaríamos, só que estava
enganada.
— Enganada que se casariam?
— Enganada que o amava.
Grant afastou-se dela e ajeitou o corpo. Ficou de pé, mas manteve-a ao
alcance de um braço. Wilhelmina quis se afastar, mas não conseguiu. Seria
mais fácil falar se ele não a interrompesse, se ele não a encarasse com aquele
azul afiado que poderia parti-la ao meio ao mesmo tempo que a enviaria ao
paraíso. Se Edward e Agatha não fingissem que estavam fazendo qualquer
coisa que não prestando atenção neles. Seria mais fácil se ela estivesse
falando para um espelho, mas não havia opção. Era ali, naquele momento, ou
não mais.
— Thomas foi um sonho, Grant. Eu não fazia ideia do que era o amor de
um homem e uma mulher, então eu o idealizei. Naquela tarde, ele só
precisava de algumas libras e eu dei a ele o que ganhei no cassino. A irmã
dele é uma menina linda, ela merece ser tratada. Mas eu não o amei, eu não o
amo, nós não somos nada além de pessoas que tiveram um passado.
— Quando descobriu que não o amava?
Uma pergunta cuja resposta era muito simples, porém dificílima de
verbalizar. Porque, para respondê-la, ela precisaria dizer, e dizer significava
não ter mais volta. Desnudar a alma era muito mais difícil do que o corpo.
— Quando descobri que amava você. — Ela não viu Agatha sorrir e
Edward arregalar os olhos em surpresa. Tudo que ela viu foi o mais profundo
azul límpido que existia no mundo. Cravados sobre ela estavam os olhos de
Grant Sawbridge e ele parecia prestes a atacá-la de alguma forma. — Tudo
ficou muito claro depois que eu descobri como me sentia em relação a você,
Grant. E então… então você partiu meu coração porque eu também descobri
que não sou a única.
Sra. Sawbridge,
Informamos a morte do Sr. Emile McFadden. Tratado como
homicídio. Investigações em andamento. Suspeito Nathaniel
McFadden detido.
CAPÍTULO PRIMEIRO
N ENHUM HOMEM ERA CONFIÁVEL , DISSE A AMA , MAS L UCILLE PENSOU QUE
ela falava apenas em relação à atitude deles com as mulheres. Para si mesma,
estava perfeitamente vestida como um deles, então não corria riscos. Como
fora tola em acreditar nisso. Depois de sondar alguns viajantes e conseguir
um grupo disposto a acolhê-la, descobriu que eles nunca duvidaram que ela
os estivesse tentando enganar.
Então, era como as coisas seriam. Ela provavelmente seria violada e
abandonada à própria sorte, ou se tornaria a meretriz daquele bando. Deixaria
de se casar com um velho interessado apenas em seu dinheiro para se
prostituir forçada por um grupo de brutamontes porque era burra. Não, claro
que não. Lucille não cortara cabelo, se apropriara de roupas do estábulo e
fugira de uma casa que mais parecia uma fortaleza para sucumbir nas mãos
daqueles homens horrorosos. Ela lutaria – e talvez acabasse morta, mas
lutaria. Porém, antes de começar a distribuir pontapés e tapas para tentar se
soltar, ele apareceu.
— Se quiser a moça vai ter que esperar até que eu acabe com ela.
O barbudo que cheirava a urina disse, quase a derrubando com seu mau
hálito. Aqueles homens não cuidavam muito da higiene, o cheiro deles
indicava que deveriam perambular pela estrada com frequência e sempre em
instalações inadequadas. Não importava, apenas que ela estava prestes a ser
salva por um patife – se ele não fosse apenas um contra três.
— Lamento, mas não posso esperar. Tenho compromissos longe daqui e
essa conversa já me fez perder bastante do meu tempo. Soltem-na e fingirei
que nada fizeram.
Os homens começaram a rir e não a deixaram. Lucille entendeu que
precisava ajudar seu pretenso salvador e começou a se debater, querendo se
livrar das garras em seus braços. Os dedos imundos que a mantinham cativa
já haviam encardido parte da manga da camisa nem tão branca assim que
usava.
— Fique quieta, docinho. — O barbudo desagradável falou bem perto de
sua orelha, fazendo com que sentisse náuseas. — Depois que acabarmos com
esse imbecil, poderá se mexer à vontade.
Um dos homens avançou sobre Nathaniel, que esquivou e o socou nas
costas. Outro pulou sobre ele, fazendo com que rolassem no chão, mas logo
as posições se inverteram e ela se assustou com o brilho prateado do metal
que reluziu sob a luz do dia. Com a elegância de um lorde e a frieza de uma
pedra de gelo, Nathaniel McFadden ergueu-se, batendo a grama de suas
roupas, enquanto o homem ficou caído, segurando uma das pernas e gritando.
O primeiro homem voltou e parou ao ver o amigo esfaqueado. Nathaniel
limpou o metal na calça preta e girou o punhal na mão, mostrando-o para os
dois homens que permaneciam de pé.
— Vocês podem descobrir se sou tão bom quanto pareço ou ajudar seu
amigo. Ele teve uma artéria seccionada e sangrará até a morte se não for
socorrido imediatamente.
Os patifes se olharam rapidamente e Lucille foi solta pelo barbudo, que
correu para cima de Nathaniel. Ela teve tempo de vê-lo revirar os olhos em
desânimo antes de atacar e golpear o homem nas costas, derrubando-o.
Depois, ajoelhou-se sobre ele, puxou um dos braços para as costas, torcendo
as articulações e o fazendo gritar. Ela ficou dividida entre a necessidade de
fugir para preservar sua vida e o desejo de ver Nathaniel McFadden, que
tinha a metade do tamanho daqueles senhores, acabar com todos eles.
Escolheu a segunda opção.
— Eu avisei para irem embora. — Ele disse, forçando ainda mais o braço
do barbudo e usando a faca para ameaçar o outro homem. — Preciso
desmembrá-lo para que entendam o recado?
O homem que permanecia de pé agarrou o esfaqueado pelos braços e
começou a arrastá-lo para a direção de um trio de cavalos, amarrados na
lateral da estalagem. Depois de uma conversa muda, Nathaniel ergueu-se e
soltou o barbudo, que correu na direção dos amigos. Eles proferiam ameaças
em alta voz, mas ninguém por perto parecia disposto a intervir, fosse para os
ajudar ou não. De toda forma, Lucille não conseguia prestar atenção em mais
nada que não o seu salvador.
Considerando a fama de Nathaniel McFadden, ela não sabia se corria
mais ou menos risco ao lado dele. Porém, já decidira entregar sua virtude a
ele uma vez, o que sugeria que não o repudiava. Ao menos ele tinha um
cheiro masculino agradável, cabelos claros que pareciam precisar ser
penteados, uma barba desleixada por fazer que lhe conferia um ar viril e... e
ela estava pensando demais nele. Aquele homem a ajudara, mas não era um
amigo.
Ainda assim, ela quase desmontou em seus braços quando ele se
aproximou, guardando a faca na em um bolso em seu colete e segurando-a
com firmeza pelos ombros.
— Eles machucaram você?
Os olhos sombrios indicavam que, se ela dissesse que sim, ele voltaria a
perseguir os seus agressores e os faria pagar por cada arranhão.
— Não, eles foram apenas inconvenientes. Eu...
— Esse disfarce é péssimo. — Nate abaixou e pegou a boina que ela
usava, que caíra durante a disputa. — Você não se parece um homem, não
fala como um nem se porta como um. Será presa fácil nessa estrada. Volte
para casa, Srta. Smith.
— Não, senhor. — Ela baixou os olhos porque encará-lo era mais difícil
do que ela esperava. — Cheguei até aqui, não voltarei atrás.
— Se queria desonra, depois de fugir de casa creio que esteja desonrada o
suficiente. Qualquer um acreditará em você.
— Minha amiga me convenceu que a desonra pode não ser suficiente.
Aparentemente, há homens tão necessitados de dinheiro que poderiam aceitar
uma mulher arruinada se o dote for suficiente. E o meu dote não é suficiente,
é obsceno.
Nathaniel riu e passou as mãos pelos cabelos desgrenhados. Era a
segunda vez que ela se pegava achando-o bonito naquele minuto e aquilo só
servia para explicar o quanto ela era realmente tola.
— Imagino que me arrependerei, mas, venha comigo, então.
Lucille piscou algumas vezes, achando difícil de entender a mudança
repentina de opinião.
— O senhor está me convidando para fugir com o senhor?
— Não, de onde tirou isso? Primeiro, não estou fugindo, estou em busca
de respostas. Segundo, não parece certo que, depois do trabalho de me livrar
daqueles animais, eu te deixe para ser atacada por outro bando.
Ele fechou novamente o casaco e seguiu para sua carroça. Não havia mais
sinais dos homens que tentaram raptá-la e nenhum movimento na estalagem
indicou que houvessem incomodado alguém. Talvez brigas e pessoas sendo
esfaqueadas fosse comum, naquele lugar. Nathaniel pulou na carroça e
indicou que ela deveria ocupar o espaço ao lado dele, mas não a ajudou a
subir. Claro, ela deveria agir como um rapaz, se quisesse, mesmo que de
longe, fingir ser um.
Os cavalos voltaram a trotar e logo eles pegaram a estrada novamente. Os
minutos de silêncio começaram a corroê-la. Lucille era falante, gostava de
conversar e costumava ter sempre pessoas dispostas a ouvi-la. Ela era rica,
filha de um milionário, a maioria das pessoas simplesmente fazia o que ela
queria ou o que achassem necessário para a agradar. Quando jovem, ela
adorava a bajulação, até descobrir que as pessoas não se importavam
realmente com ela – mas com a riqueza de sua família. E que ninguém a
desejava por ser quem era, mas por ser filha de Walter Smith.
Ainda assim, ela tolerava o excesso de atenção e nunca ficava sozinha.
Naquele momento, apesar do homem ao seu lado, ela se sentia invisível. Ele
mantinha o semblante sério e concentrado, o maxilar contraído e os olhos
fixos na estrada – e parecia ignorar completamente a sua presença.
— É verdade que aquele homem sangraria até morrer?
— Provavelmente, não, mas esperava que fossem estúpidos o suficiente
para acreditar em mim.
— O senhor tem uma pistola, por que preferiu usar um punhal?
— Sou melhor com facas. Prefiro uma luta corporal, se a senhorita me
entende.
Ela esfregou as mãos, intrigada por conseguir fazê-lo falar. Nathaniel não
olhava para ela, apenas para frente, sem perder o foco de seu caminho
nenhum segundo.
— O que o senhor está procurando? Que respostas pretende encontrar?
— Nada com o que possa me ajudar.
— Mesmo que não possa ajudar, gostaria de saber.
— Não precisamos manter uma conversa casual, senhorita. — Ele virou-
se rapidamente para ela, com olhos azuis cintilantes pelo sol. — Se terminou
o interrogatório, prefiro o silêncio. Pretendo que fique na primeira cidade em
que precisar parar.
— Gosto de conversar, mas tudo bem. Eu estou agradecida por ter me
ajudado com aqueles homens. Eles certamente não seriam gentis comigo.
— Não, não seriam. Eles provavelmente a machucariam e a largariam
jogada na beira da estrada, ou a tornariam prostituta deles – e não sei qual
destino seria pior.
As imagens do que poderia lhe ter acontecido a ocuparam por alguns
minutos da viagem. Lucille deixou de prever muitas coisas quando decidiu
fugir naquele rompante. Tudo que pensava era em sair de casa e deixar aquele
casamento forçado para trás. Depois de vinte e sete anos enrolando seus pais
com as mais absurdas desculpas para não se casar, ela precisou tomar
medidas drásticas – e isso significou sair com algum dinheiro, poucas
provisões e nenhuma dignidade.
Bem, isso não a abalaria. Ela encontraria um jeito de ir para a Inglaterra e
se refugiaria no balneário de mulheres solteiras do qual ouvira falar. Aquele
lugar era quase uma lenda em Nova Iorque, e algumas mães americanas já
haviam levado suas filhas para esconder suas desonras ou suas solteirices. Ela
queria apenas viver em paz, já que seus sonhos de faculdade estavam
frustrados – o pai jamais a permitiria estudar e ela não teria dinheiro para
fazê-lo sozinha.
O silêncio a deixou entediada e, mesmo depois de dormir em excesso,
Lucille se arrastou para a parte de trás da carroça e se aninhou sobre o
cobertor, cochilando novamente. Mesmo depois do susto, sentia-se
estranhamente segura, viajando ao lado de um notório canalha. Por algum
motivo que desconhecia, viajar ao lado de Nathaniel McFadden lhe conferia
proteção. Acordou novamente quando a carroça parou de sacolejar.
— Por que paramos? — Perguntou ao seu companheiro de viagem, que
estava soltando os cavalos.
— Não há luz o suficiente para prosseguirmos e aqui parece um bom
lugar para passarmos a noite.
Lucille arregalou os olhos, assustada com a confusão em seus
pensamentos. Olhou para cima e notou o céu rosado. Já era muito tarde, pois
naquela época do ano demorava a anoitecer. Ela dormira mais do que deveria,
mais do que seria tolerável, e agora era informada de que passariam a noite
ao relento.
— Não ficaremos em um hotel?
— Não há hotéis pelas próximas milhas e estamos tentando não chamar a
atenção, não é isso?
— Provavelmente sim, é isso.
Ela ajeitou a camisa, passando as mãos pelo tecido, e percebeu que seus
seios estavam doloridos. A faixa que usara para escondê-los, um truque
aprendido nos estudos com a tutora, estava muito apertada. Desceu da carroça
com um pouco mais de habilidade – mas nenhuma graciosidade, e olhou ao
redor. Estavam em uma área meio descampada, circundada de árvores
espaçadas e perto de um curso de água – se seus ouvidos não estivessem
também confusos. Logo, estaria muito escuro e eles estariam à mercê da
natureza, porém isso não parecia incomodar o homem que levava os cavalos
para descansar em uma área fresca.
Talvez tudo aquilo valesse a pena, pensou. Afinal, estava declarando a
sua liberdade e, livre, poderia tomar decisões e ser respeitada por quem ela
era, não em razão da família à qual pertencia. Livre, não teria nunca que se
casar com marqueses falidos e poderia começar a apreciar coisas que não
estava autorizada antes – como o cavalheiro que a acompanhava. Ele não era
um cavalheiro, mas era um homem magnífico.
— Vou armar uma tenda.
Ele disse e começou a se despir. Tirou o casaco, que colocou por sobre a
carroça, e depois o colete. Ela lembrou que, ali, guardava uma faca, e que
havia uma pistola na cintura de suas calças. Em seguida, dobrou as mangas
da camisa. Sem gravata, havia dois botões abertos que revelavam os pelos
dourados que cobriam o peito dele. Lucille sentiu a boca secar.
Sem saber se deveria o ajudar ou observar, ela escolheu a primeira opção.
— Diga o que posso fazer.
— Farei um buraco. Você manterá essa estaca firme enquanto eu a
enterrarei.
Sem mover uma linha em sua expressão, ele pegou uma pá na carroça e
começou a cavar. Toda a ação era uma exibição de masculinidade – músculos
e movimentos corporais somados a pele exposta e suor. Lucille não
conseguiu evitar arregalar os olhos assombrada pelo que sentiu – ardência na
garganta, as mãos frias e um leve tremor nos joelhos. Talvez ela soubesse o
que tudo aquilo significava, apenas repudiava que seu corpo fosse tão volúvel
e tolo.
Depois de quatro buracos cavados e enormes estacas de madeiras
fincadas, uma lona grossa foi estendida e amarrada, criando um pequeno
abrigo – suficiente para uma pessoa. Eles eram dois e ela não pretendia
perguntar como aquilo funcionaria. Provavelmente, dormiria ao relento.
— Estou ouvindo água por aqui, gostaria de... de me lavar.
Nathaniel limpou o suor de sua testa e olhou para o céu.
— Se for rápida. Logo escurecerá e eu definitivamente preciso de um
banho.
— Por favor, vá primeiro. — Ela enrubesceu apenas por imaginá-lo
tomando banho. — Creio que o senhor esteja mais...
— Suado e encardido, definitivamente.
Ele sorriu, e era a primeira vez que o via sorrir realmente. Até então ele se
mostrara debochado, entediado, aborrecido, irritado, furioso, mas nunca
alegre. Com um aceno de cabeça, Nathaniel afastou-se na direção leste e
desapareceu do seu campo de visão. Lucille encostou na carroça, sentindo os
joelhos finalmente cederem à tensão do dia.
Fugir de casa, enfiar-se na carroça do homem que a rejeitara, quase ser
raptada e violentada por homens de cheiro horrível. Aquelas foram as
aventuras que ela não esperava nunca realizar. Toda a sua vida fora
construída sobre a ideia de estudar, ajudar pessoas necessitadas, desenvolver
um ofício. Poderia aceitar casar-se com um homem que amasse. Ela queria
poder trabalhar e prover seu próprio sustento, não se tornar um bibelô de
exibição para algum nobre enfadonho. E, depois de tudo aquilo, seu coração
martelava pelo simples fato de compartilhar momentos muito estranhos com
Nathaniel McFadden.
Depois de retomar o controle de suas pernas, Lucille embrenhou-se por
entre os arbustos onde ele desaparecera. O céu escurecia a cada instante e,
mesmo que não tivesse medo de escuro, precisava se lavar. Sentia o odor
fétido dos homens que a agarraram impregnado em seus cabelos e estava
nauseada desde que fora liberta. Quando o barulho de água ficou mais forte,
ela reduziu o passo até parar completamente, ante a visão do homem seminu
que, ainda molhado, sacudia os cabelos para secá-los.
Pelo amor de Deus, se aquele era o diabo, o inferno deveria ser um lugar
muito interessante. Nathaniel estava sem camisa, com a calça desabotoada, os
pés descalços e gotículas de água escorrendo por seu peito esculpido. Todas
as histórias da ama estavam incorretas – ele não era Hades, era Adônis.
— Não precisa me espionar, senhorita. Se quiser me ver nu, basta pedir.
Ela corou imediatamente, mas não o deixaria falar daquela forma.
— Que eu me lembre, já pedi, mas o senhor se recusou.
Nathaniel pegou uma toalha e colocou nos ombros, segurando a camisa
muito branca em uma das mãos. Andou até ela com um sorriso cínico nos
lábios e parou próximo o suficiente para ela sentir cheiro de sabão.
— Estávamos em uma condição que me levava a não querer nenhuma
confusão com Walter Smith. Agora, parece que não faz mais diferença – a
senhorita já está arruinada, independente do que eu faça. — Dizendo aquilo,
Nathaniel chegou muito perto dela, levando o nariz até seu pescoço. Lucille
sentiu que seu coração fosse pular pela boca, certa de que a beijaria. Mas ele
se afastou, ainda sorrindo. — A senhorita está com o fedor daqueles
desgraçados. Trouxe alguma roupa para trocar?
Ela moveu a cabeça indicando que não e ele se afastou completamente,
indo na direção da carroça. Ela quase desabou novamente no chão. Levou
alguns segundos para se recompor, então olhou para o pequeno riacho que
despontava à sua frente. A água devia estar gelada àquela hora, sem sol, mas
precisava banhar-se. Livrou-se das roupas, retirou a faixa que escondia os
seios e entrou de uma vez no riacho, sentindo os ossos gelarem
instantaneamente. Moveu-se um pouco, deu alguns pulinhos e pegou o sabão
que Nathaniel deixara na margem – provavelmente, esperando que ela fosse
usá-lo. Mesmo que nada nele indicasse cavalheirismo, Lucille queria
acreditar que ele tivesse alguma coisa que pudesse ser salva.
Quando se preparava para sair da tortura gelada que era aquele banho,
Nathaniel surgiu em seu campo de visão. Já completamente vestido, com
colete e tudo, tinha os cabelos penteados e segurava uma camisa. Lucille
enfiou-se na água escura até o pescoço, esperando que seu corpo ficasse
devidamente protegido.
— Vou deixar aqui, a senhorita pode vesti-la. Tenho muitas camisas, a
sua pode ser jogada fora.
— Fico grata, senhor. — Ela disse, aceitando a oferta por falta de opção
melhor. — Assim que pararmos em uma cidade, posso comprar roupas e
compensá-lo por isso.
— Como eu disse, tenho camisas demais. E, quando pararmos em uma
cidade, a senhorita ficará nela.
Nathaniel afastou-se novamente e a deixou sozinha para vestir-se. Depois
de ajeitar a calça masculina, ainda um pouco grande em sua cintura, ela
segurou a faixa na mão e suspirou. Não iria ficar confinada naquilo
novamente, precisava de um descanso. Estava segura das vistas alheias
enquanto dormisse, então apenas vestiu a camisa e a abotoou de forma a
resguardar a intimidade de suas partes femininas.
E LE ESTAVA TÃO LOUCO QUANTO a mulher maluca que cruzara seu caminho
com ideias irracionais de defloramento e fuga, mas, quando a viu sendo
agredida por aqueles animais, não conseguiu ignorar. Nathaniel já se tornara
especialista em desprezar o sofrimento das pessoas e não se importar com
nada que não fosse lhe trazer ganhos e satisfação pessoal. O que acontecia de
ruim com os outros não era problema seu, não o afetava – então, por que
diabos resgatara aquela maldita mulher que só servia para atrasá-lo em sua
missão?
Não tinha nada a ver com ela ser bonita, porque ela não era. Ao menos,
nada como as mulheres com as quais Nathaniel estava acostumado. Aquela
ali tinha cabelos sempre desgrenhados, parecendo um ninho de pássaros mal
construído, quadris largos demais, e seios menores do que sua preferência.
Inferno, ele não deveria pensar novamente nos seios dela, mas foi impossível
evitar quando Lucille retornou de seu banho com uma camisa branca, um
pouco úmida, sem o artifício que estivera usando para escondê-los.
— Obrigada pela camisa. Ficou um pouco maior do que a outra, mas é
bem mais cheirosa.
— Pode ficar com ela. Está com fome?
Ele estava faminto, mas totalmente distraído. Pegou a cesta com comida e
colocou pães e frutas sobre uma toalha, oferecendo a ela uma das facas que
carregava consigo. Lucille atacou novamente os alimentos e acabou fazendo
com que ele precisasse comer, ou não sobraria nada.
— Desculpe. — Ela limpou o canto da boca com as costas da mão. —
Não estou acostumada a ficar sem comer, fazemos refeições regulares e com
horários muito rígidos na casa Smith.
— Tenho certeza que sim. A senhorita não pensa que se arrependerá de
fugir e viver sem aquele luxo e aquela fartura? Porque, mesmo que tenha
trazido dinheiro, em algum momento ele acabará. O que pretende fazer?
Lucille ajeitou-se, sentando-se sobre as pernas, e afofou os cabelos curtos
com as mãos.
— Pretendo trabalhar, senhor.
— A senhorita já trabalhou alguma vez na vida? — Ela respondeu que
não à pergunta, e Nathaniel deu uma risada cínica. — Talvez a prostituição
não seja mesmo uma ideia ruim.
— O senhor não precisa me ofender. Eu posso nunca ter trabalhado, mas
estudei em boas escolas e sou muito capaz. Com certeza aprenderei qualquer
ofício que precisar e conseguirei me sustentar até juntar dinheiro para fugir
para a Inglaterra.
— Não pretendia ofendê-la, mas sou realista e não vivo em um mundo de
contos de fadas, como a senhorita viveu até agora.
— Realista como o terceiro filho de um conde? Explique-me, senhor,
como pode um nobre ser tão realista?
Lucille o encarava com deboche e Nathaniel entendia bem aquela
expressão – costumava usá-la com frequência. Geralmente, as pessoas
achavam que ele, por ser nobre, vivia em uma redoma dourada. Era verdade,
por muito tempo a sua vida fora despreocupada – o dinheiro aparecia à sua
frente, mesmo que ele não o merecesse. Mas a sua ida para os Estados
Unidos o mudou completamente. Quase completamente.
— Não sou o terceiro filho de um conde, sou um dos diretores de um
antro de jogatina. Algumas situações nos levam ao limite, Srta. Smith, e,
quando cruzamos esse limite, perdemos todas as nossas referências.
Ela permaneceu olhando para ele com uma expressão de quem não sabia
se o entendia. Nathaniel esperava que ela permanecesse em silêncio, mesmo
que suas dúvidas persistissem. Não estava interessado em conversar, menos
ainda com ela, porque não queria admitir que Lucille Smith o afetava de
alguma forma. Ele mal a conhecia e tudo que sabia era que se tratava de uma
mulher rica, nascida nas Américas, desgostosa com um casamento por
conveniência. Mas ele nunca vira uma que fugiu de casa e abandonou a vida
que tinha apenas para se livrar desse mesmo casamento. Aquilo fez com que
ela se tornasse interessante – determinada, teimosa e audaciosa.
Mesmo com o silêncio, pelo qual agradecia, o fim da luz do dia fez com
que ele precisasse acender uma fogueira. Recolheu madeira ao redor, montou
uma contenção de pedras e usou sua pederneira para fazer fogo. Lucille
permaneceu ali, fitando-o, observando-o, olhando para a barraca, para a
fogueira e para ele próprio. Nathaniel estava acostumado a ser escrutinado
por mulheres, mas todas elas o faziam porque desejavam o levar para a cama
– e ele não fazia ideia do que pretendia Lucille.
— Há animais selvagens por aqui? — Ela perguntou, por fim.
— Creio que sim, mas eles não se aproximarão por causa do fogo.
— Entendo. E poderei usar algum cobertor para dormir? Ficarei enrolada
nele, perto da fogueira.
Ele olhou para a tenda – era muito pequena e ela sabia. Não pensava em
convidadas quando separou o que precisava para viajar. Olhou então para a
carroça, cuja extensão era satisfatória para caber uma pessoa deitada e
acomodada. Deveria mandar que ela dormisse em qualquer lugar que não o
incomodasse, mas era provável que aquela mulher o estivesse afetando mais
do que ele pretendia admitir.
— Durma na barraca. Ficarei na carroça.
— Não... quero dizer, o senhor não precisa fazer isso. Talvez eu possa
caber na barraca com o senhor.
Nathaniel deu uma risada. Ela era bastante tola se considerava que aquela
era uma opção segura.
— Srta. Smith, se dormirmos nós dois ali dentro, duas coisas acontecerão:
a senhorita conseguirá a ruína que deseja e não chegaremos a dormir,
efetivamente. Portanto, como estou exausto e preciso viajar um dia inteiro,
amanhã, creio que nosso melhor arranjo seja esse – fique sob a proteção da
tenda, eu não terei problemas em dormir com os rapazes.
— Rapazes?
— Zeus e Hades, os cavalos.
Ela arregalou os olhos e fitou os cavalos escuros, que pareciam ainda
mais pretos à pouca luz. Sem dizer mais nada e agradecendo com uma
mesura, enfiou-se dentro da tenda e o deixou finalmente sozinho para poder
refletir sobre aquele grande erro que estava cometendo. Claro que era um erro
– tanto envolver-se na fuga daquela desvairada quanto não se aproveitar dela.
Acomodou-se sobre a carroça e Zeus o cutucou com a cabeça, pedindo
que lhe coçasse atrás das orelhas. Cavalos eram mais confiáveis e
interessantes que pessoas, por isso Nathaniel sempre preferia a companhia
dos animais. Depois de subornar o equino com um torrão de açúcar, enrolou-
se no cobertor e tentou adormecer – sem sucesso. Rolou de um lado para o
outro, apertando a cabeça, na tentativa de pegar no sono, mas frustrou-se por
horas. Sentou-se, verificou se Lucille estava dentro da barraca ou se, por
milagre, decidira atirar-se em seus braços, e voltou a deitar. Ela não se
atiraria em seus braços – ele teve a oportunidade de a ter e recusou. Por que
ela o iria querer novamente?
E, por que diabos ele estava desejando que ela o quisesse? Aquela era
apenas uma mulher, uma nem tão linda, e totalmente inconveniente. Assim
que chegassem à primeira cidade, arrumaria uma prostituta para satisfazer
aquele desejo ridículo e se livraria da bagagem extra que só estava servindo
para atrapalhar.
Depois de atacar o cantil de uísque e beber mais da metade, acabou
sucumbindo ao cansaço. Despertou com Zeus lambendo seus cabelos –
aquele cavalo tinha sérios problemas com limites – e com cheiro de café.
Ergueu o corpo para espiar por sobre a contenção da carroça e vislumbrou
Lucille ajoelhada ao lado da fogueira, que ela alimentara com fogo, coando
café.
— Bom dia, Sr. McFadden. — Ela se ergueu com uma caneca de metal
fumegante em uma das mãos. — Preparei para o senhor, espero que esteja do
seu agrado.
Lucille sorria francamente e estendeu a caneca para ele. Nathaniel
acreditou que ainda não tivesse acordado, sentia a cabeça latejar e os olhos
embaçados – mas os dentes de Zeus em seus cabelos indicavam que sim, ele
estava desperto.
— A senhorita sabe cozinhar, Srta. Smith?
— Não, na verdade eu apenas sou observadora. Já vi café sendo
preparado, assim como o vi alimentar o fogo ontem. Havia comida em sua
cesta, também, portanto tomei a liberdade de preparar um desjejum completo.
Venha comer!
Nathaniel virou um gole do café quente, que estava horrível de tão ralo,
mas ela sorria ainda e, por motivos que ele sinceramente não imaginava quais
seriam, não quis magoá-la. Fez uma careta, indicando que gostara e desceu da
carroça, empurrando Zeus para o lado. O cavalo relinchou, bufando,
enquanto Hades ignorava completamente a existência de pessoas. Depois de
passar as mãos pelos cabelos, fechar o colete e dobrar os punhos da camisa
até os cotovelos, sentou-se ao lado da fogueira. Ainda era bastante cedo e ele
sentia como se não tivesse dormido nada.
— Imagino que teve uma noite boa. — Perguntou, mastigando um
pãozinho. Não sentia fome, mas aprendera a comer para manter-se resistente.
— Havia alguns mosquitos, mas, fora isso, foi uma noite agradável. Eu
agradeço sua gentileza de me permitir dormir na barraca.
Ela tinha o olhar baixo, evitando encará-lo. Nathaniel pode notar marcas
avermelhadas no pescoço dela, outras nos braços. Não foram alguns
mosquitos, talvez uma nuvem deles. Se não fosse a tenda, talvez Lucille
tivesse sido carregada pelos insetos. Ele conhecia um bálsamo bom para
picadas, mas não trouxera consigo. Não importava, precisou repetir de novo –
não importava que ela estivesse picada, ferida ou que seu sangue escorresse
pelos poros. Não deveria importar.
— A senhorita vai... quero dizer, a senhorita pretende continuar se
passando por homem?
— Creio que seja prudente. — Ela o fitou. — Uma mulher é um alvo
muito vulnerável.
— Então imagino que seja melhor... — Nate apontou na direção dos seios
dela. — escondê-los.
— Ah.
Lucille cruzou os braços na frente do corpo, visivelmente envergonhada.
Ela provavelmente não prestara atenção no quanto aquela exata parte de sua
anatomia estava evidente – e no quanto ele se via atraído para ela toda vez.
Constrangida, levantou e se escondeu dentro da barraca, provavelmente para
fazer o truque que a permitia esconder os atributos femininos. Nate
praguejou, talvez devesse ter ficado de boca fechado ou se oferecido para
ajudar – e isso não seria nada bom para sua decisão de mantê-la afastada.
Apesar do café estar ruim, Nathaniel bebeu duas canecas cheias para se
manter alerta. Eles tinham um bom pedaço de estrada pela frente e pelo
menos duas paradas seriam necessárias antes de chegarem a uma cidade.
Aquela ainda seria uma longa viagem.
CAPÍTULO QUINTO
F AZIA ALGUM TEMPO QUE L UCILLE NÃO SE DIVERTIA COM CRIANÇAS , ENTÃO
ela estava bastante feliz quando se despiu e entrou no banheiro. Não deveria
sorrir tanto ou mostrar tamanha empolgação, já que estava fugindo e não
sabia bem para onde ir, mas não conseguia evitar – era uma pessoa de bom-
humor recorrente e modos nem sempre femininos. A vantagem de passar-se
por homem era poder agir como um e experimentar a liberdade das botas, das
calças e da ausência de espartilho – ah, como ela detestava o espartilho.
Olhou-se no espelho e tentou se acostumar com o que via. Cabelos curtos e
alvoroçados, pele corada, seios enfaixados, a ausência de roupas íntimas
adequadas. Sentia-se estranhamente livre, mesmo enclausurada pela mentira.
Abriu o chuveiro e entrou, molhando a cabeleira e esperando que a água
quente a fizesse relaxar.
Depois de devidamente limpa e vestida, penteou os cabelos com cuidado,
tentou domá-los enquanto molhados e enfiou a boina na cabeça. Garantiu que
estava com a aparência adequada para sua nova realidade e desceu até o
térreo para se encontrar com seu aliado. E, contra toda a razoabilidade e
decência do mundo, entristeceu-se ao vê-lo flertando com uma garçonete.
Claro que ele estaria flertando com alguém, sua fama de canalha e libertino
não fora construída em cima de comportamentos castos. Nathaniel McFadden
era um mulherengo e ali estava uma das provas. Talvez ele pretendesse se
esconder com ela em alguma alcova e...
Lucille olhou para si mesma novamente e suspirou. Ela não o queria, mas
se incomodava que ele não a quisesse.
— Está muito bem vestida, senhorita.
Ele disse, dispensando a garçonete quando a viu. A mulher se afastou
dando risadinhas e Lucille lhe lançou um olhar de desprezo. Valorize-se,
mulher, afinal, homem algum se importa mesmo com você.
— Comprei roupas novas, poderei devolver sua camisa. Disse que queria
me falar?
— Sim, tenho novidades sobre Nova Iorque. Vamos jantar.
Nathaniel chamou o garçom e pediu qualquer coisa que estivessem
servindo aquela noite, além de uma garrafa de vinho tinto. Mulheres
geralmente tomavam vinho branco, mas ela não era uma, era? Não naquele
momento. Enquanto ele conversava com o garçom e olhava ao redor, agia
como se tudo ali lhe pertencesse. A arrogância daquele homem era intrigante,
porque ele não a tinha por ser nobre, mas por ser poderoso. E ela não sabia se
temia aquele poder ou se ele a excitava.
— O que está havendo em Nova Iorque, Sr. McFadden?
— Seu pai acredita que foi sequestrada. Meu amigo me informou que
todos os caçadores de recompensa da região estão procurando por seus
captores.
Aquela era uma notícia realmente ruim. Péssima. O vinho foi servido em
taças pouco limpas e ela virou um gole desajeitado, deixando escorrer um
pouco e sujando o colarinho. Nate estendeu um guardanapo para que se
limpasse.
— Isso significa que terei que ser mais rápida em desaparecer.
— Adoraria que fosse realmente rápida, Srta. Smith. Desde que nos
encontramos a senhorita só me atrasa.
— Não se preocupe, senhor. Amanhã nos separaremos, conseguirei outra
carona.
— Para que eu tenha que a salvar novamente?
Ele olhou para ela com divertimento, mas Lucille estava incomodada.
Não entendia por que ele a repelia e a mantinha perto, tudo ao mesmo tempo,
como se estivesse em um jogo bastante irritante.
— Não precisa me salvar, senhor. Não entendo ainda por que fez aquilo.
Nathaniel virou um gole do vinho e olhou para algum lugar, desviando-se
dela.
— Tenho uma irmã. Acho que gostaria de imaginar que um homem faria
por ela o que fiz pela senhorita. Não se engane, Srta. Smith, eu sou um
canalha egoísta. Tudo que faço é por mim e para meu próprio benefício. E o
melhor é realmente que nos separemos, ou acabarei sendo acusado de
sequestro.
Então era aquilo, ele concordava que não seguiriam mais viagem juntos.
Por um instante ela sentiu completo alívio de não precisar mais lidar com um
homem explosivo ao seu lado, mas a frustração logo a dominou. Lucille não
sabia o que era exatamente, mas parecia estar um pouco obcecada pelo Sr.
McFadden.
O jantar foi servido – sopa de vegetais e outros elementos
irreconhecíveis. Mesmo que o pão não fosse fresco e o vinho fosse barato, a
comida estava saborosa e nutritiva. Servia para mantê-la com energia
enquanto estivesse na estrada escapando de um destino horrível, e que ficaria
ainda pior se ela fosse descoberta. O silêncio a incomodou, mas era o que ele
parecia apreciar, então resignou-se e limitou-se a comer. Qual foi a sua
surpresa ao ouvi-lo retomar a conversa meia hora depois.
— Por que, dentre tantos canalhas em Nova Iorque, a senhorita me
escolheu?
Lucille ergueu o olhar e ele a estava encarando. Segurava a colher
suspensa no ar e esperava uma resposta enquanto exibia seus antebraços. O
que havia de errado com ela para admirar aquela parte específica do corpo
dele enquanto os botões do colarinho continuavam abertos, deixando parte do
seu peito à mostra? Aliás, qual era o problema daquele homem com o decoro
– por que ele parecia não ser capaz de manter-se minimamente vestido?
— Por sua fama, obviamente.
— Minha fama é de ser cruel, mas a senhorita não esperava crueldade de
mim.
— Falava da sua outra fama.
— Libertino?
— Essa também, mas a outra... aquela que diz que o senhor sabe... que o
senhor é capaz de...
Nathaniel dobrou o corpo por sobre a mesa e olhou para os lados,
sussurrando em seguida.
— Que eu sou o melhor amante de Nova Iorque, capaz de fazer mulheres
se sentirem incríveis na cama? Essa fama?
Sim, maldito fosse. Lucille sabia que o escolhera porque, se aquela fosse
sua única experiência íntima com um homem, queria ter boas memórias. Ela
não queria apenas ser arruinada, queria ser seduzida e arrebatada.
— Essa. — Ela baixou o olhar, o rubor quase a impedindo de falar. — E,
como o senhor é um maldito canalha egoísta, eu imaginei que não fosse se
sentir compelido a me desposar depois de...
— Imaginou corretamente, senhorita. — Ele sorriu, debochado, e serviu
mais vinho. — E a senhorita gostaria de descobrir se minha fama é real?
Lucille enfiou uma colherada de sopa na boca para não precisar responder
e o maldito canalha riu de seu constrangimento. Em poucos minutos ela
praguejara duas vezes e falara um monte de grosserias sobre seu em breve ex
companheiro de viagem. Aquele homem fazia surgir nela um lado desbocado
e malcriado que não existia – ou que ela sequer sabia que existia. Ele a
desorientava.
— Preciso lembrar que o senhor teve essa oportunidade e recusou? É
exaustivo que pareça me culpar por renunciar a prazeres que eu tenho certeza
de que pretendia experimentar – mas fui impedida.
O diabo finalmente deu as caras e ele exibiu o sorriso mais profano que já
existira. Nathaniel colocou mais vinho em sua taça – era o álcool que a estava
provocando a dizer coisas que não diria. Ele não falou mais nada, apenas
deixou suspenso no ar que talvez, e apenas talvez, estivesse arrependido de
não a ter deflorado naquela noite. Claro que estava, era um libertino cretino
que não podia ver uma mulher sem a tomar para si.
— Obrigada por sua ajuda até aqui, senhor. Amanhã deixarei de
atrapalhar sua busca por seu irmão.
O jantar terminou em silêncio. Apesar de ser o que queriam desde o
início, quando chegou o momento de separarem-se foi como se não o
quisessem mais. Ao menos ela, que deveria desejar distância do cretino à sua
frente.
— Há um salão de jogos por aqui. Quer me acompanhar até ele?
Nathaniel levantou-se e perguntou subitamente.
— Nunca joguei. Mulheres...
— Sim, mulheres decentes e corretas não jogam nem frequentam esses
lugares. Mas…
Ele indicou um espelho para que ela se visse e se percebesse como todos
a percebiam – um jovem rapaz. Mesmo que Lucille não conseguisse fingir
muito bem, para quem a visse, ela era um homem e sua presença não seria
estranhada em um salão de jogos. Determinada, decidiu seguir o demônio até
seu habitat natural – o inferno.
E LA DESFILAVA com calças como se estivesse usando anáguas. Os quadris
mexiam para os lados e a pose perfeitamente ereta era característica de uma
dama. Mas ali, naquele lugar escondido do mundo, ela jamais seria notada
tempo o suficiente para que descobrissem que ela era uma mulher. Uma
mulher intrigante e muito falante que o estava enlouquecendo. A melhor
decisão seria pegar uma prostituta e encurralá-la nos fundos da hospedaria,
mas não era o que ele queria.
Maldição, por que diabos rejeitou Lucille Smith naquela noite? Ela estaria
arruinada e não teria se metido em sua viagem. Mas lá estava ela, sentada em
uma mesa de vinte e um sem nunca ter jogado uma partida sequer, pedindo
cartas como se entendesse o que estava fazendo. Ela tinha dinheiro e ele seria
facilmente tomado dela por aquelas águias que a devorariam em minutos –
mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Nathaniel pegou outro uísque e foi tentar a sorte na roleta. Não gostava
muito da sorte, ela nunca lhe sorriu por tempo o suficiente, então aproveitava
uma vitória e mudava de mesa. No Gênesis ele não costumava jogar,
aprendera que não se misturava negócios com prazer. E, naquela noite, apesar
de sentir-se em casa com um copo de malte e um salão cheio de vícios, sua
atenção estava dispersa. Não, não estava. Seu foco em Lucille era excessivo e
aquilo era preocupante – porque mulheres nunca, em nenhuma hipótese, lhe
roubavam a atenção.
Ainda mais uma que só o atrapalhava. Perdeu duas rodadas na roleta e
uma nos dados até convencer-se que não deveria ter considerado jogar.
Sentou-se próximo a ela e passou a observá-la. Com o perfil sério e
concentrado, Lucille estudava todos na mesa e tentava obter alguma
informação sobre como estavam se saindo. Ela quase não tinha mais fichas,
mas continuava com a coluna esticada e observando tudo que acontecia –
desde a expressão nas faces dos jogadores até as cartas que eles pediam. De
vez em quando, movia os dedos na mesa, indicando que contava.
E ela perdeu todas as rodadas, como era de se esperar. Ao entregar suas
últimas fichas, não se intimidou pela algazarra de um jogador mais exaltado –
levantou-se, fez uma mesura e agradeceu pelas partidas.
— Aquilo foi muito divertido! — Ela tentou conter a empolgação quando
se aproximou de Nathaniel e tomou dele o uísque. — O senhor viu como
aquele homem ali joga bem? Ele quase sempre consegue um vinte ou vinte e
um!
Nathaniel pegou o copo de volta antes que ela bebesse.
— Vá devagar, não precisa mostrar que bebe para esses caras, eles sequer
a estão notando. E sim, ele joga bem porque conta cartas. A senhorita perdeu
todas, por que está tão exultante?
— Meu propósito ali não era ganhar, mas aprender algo novo.
Aquilo era, mais uma vez, inesperado. Ele não se lembrava de conhecer
alguém que valorizasse mais a aprendizagem do que a vitória. Vencer sempre
fora o desejo de todas as pessoas que entravam no Gênesis – e vencer viciava
a ponto de fazer com que perdessem tudo na busca de outra vitória.
— Então sabia que perderia, mas quis continuar jogando apenas para
aprender a jogar? Conseguiu seu objetivo, afinal?
— Duvido que tenha aprendido, porém sei um pouco mais agora do que
sabia antes. E o senhor, quase não jogou.
Ele girou o copo de bebida na mão e virou o conteúdo em um gole.
Lucille esperava uma resposta qualquer enquanto olhava com aquela
expressão vívida de novo. As pupilas dilatadas pela excitação, as bochechas
coradas, a boca vermelha. Subitamente, ele quis ser o motivo pelo qual o
corpo dela reagia daquela forma. Quis que ela estivesse excitada por ele,
enrubescida pelas obscenidades que ele falasse e com a boca vermelha do
beijo que ele daria.
— Estou disperso.
— Claro que sim, como estou sendo tola. O senhor está preocupado com
seu irmão. Mas, afinal, o que houve? Por que o acusam e por que acredita que
ele esteja vivo?
— A senhorita deveria estar preocupada também, já que seu pai está
mobilizando toda Nova Iorque atrás de seus supostos captores.
— Não mude de assunto. — Ela pegou o copo outra vez e virou o restante
do uísque. Fez uma careta e pediu mais para uma garçonete pouco vestida
que circulava as mesas no antro de jogatinas. — O senhor sempre tenta
desviar a conversa para outra coisa, mas eu gostaria de saber. O que houve?
Nem ele sabia, realmente. Foi tudo tão rápido, tão confuso e tão escuro
que acabou na mesma velocidade em que começou. Nate aceitou o drinque
que lhe fora servido e olhou para o líquido âmbar dentro do copo, tentando
decidir se contava ou não qualquer coisa para aquele bichinho curioso à sua
frente.
— Eu estava cobrando uma dívida. — A necessidade de falar qualquer
coisa sobre aquilo venceu a razão. — Meu irmão estava em Nova Iorque há
pouco tempo, mas ele não aceitava que eu estivesse trabalhando com... com o
Gênesis. Nós somos nobres, não nos envolvemos com esse tipo de atividade
ilegal, e Emile era... Emile é excessivamente moralista. Ele tentou me
dissuadir por várias vezes, até que discutimos. Naquela noite, ele foi atrás de
mim. Não sei de onde saiu aquela arma, só percebi que o devedor portava
uma pistola quando ouvi o tiro.
— O tiro acertou seu irmão.
— Ele entrou na minha frente. Depois, me atraquei com o devedor e
Emile cambaleou até a mureta, caindo dentro do oceano. Quis pular atrás
dele, mas estava escuro demais. A polícia apareceu em seguida.
— E o devedor?
A conversa terminaria ali. Nathaniel virou o uísque em um gole e se
levantou. Lucille era muito doce, inocente e imaculada para se contaminar
com a verdade. Ela não precisava saber tudo que ele fazia, não devia sequer
ter contado o que acontecera no Brooklin. Mas ela era, também, insistente, e
foi atrás dele. Segurou-o pelo braço e o fez parar.
— Espere. — Os olhos castanhos estavam avermelhados pela emoção. —
Sinto muito pelo que aconteceu. Eu espero que seu irmão esteja vivo.
A mão dela segurava seu braço com uma sutileza incomum. Lucille
parecia sincera, ela realmente estava tocada pelo que acontecera, pela história
que contara. Os olhos dele foram dos dedos que envolviam sua pele até a face
gentil da mulher e ele tomou uma decisão que lhe causaria muitos problemas.
Mesmo que ela se casasse ou encontrasse prazer em outras camas, ele seria o
primeiro a mostrar-lhe o que um homem era capaz de fazer com uma mulher.
Ela gostava de aprender coisas novas, Nathaniel estava então disposto a
ensiná-la.
Com um giro rápido, inverteu as posições e tomou a mão dela na sua,
mesmo que aquilo parecesse estranho aos olhos dos outros, conduzindo-a
apressadamente pelas escadas, enquanto Lucille murmurava perguntando o
que ele pretendia. Não sabia o que pretendia, ou sabia, mas não acreditava
que fosse realmente fazer aquilo. Ao chegarem ao terceiro andar, abriu a
porta do quarto e a empurrou para dentro, trancando-os em seguida.
— Mas o que deu no senhor? Viu algo suspeito lá embaixo?
Ele não respondeu, apenas encerrou qualquer distância entre os corpos e
puxou a boca dela até a sua.
L UCILLE PREFERIA DIZER que ficara escandalizada com as atitudes
indecorosas do homem que a sustentava com mãos firmes e a devorava com
uma boca devassa, mas era mentira. Surpresa, sim, arrebatada, certamente.
Mas escandalizada, não realmente. Ela não apenas desejava como ansiava por
aquele beijo. Não esperava ser beijada por Nathaniel McFadden, já que ele
deixou claro que não a queria, ou que não se envolveria com ela por causa de
seu pai, mas ele parecia ter mudado de ideia.
Desde o início, o toque foi suave e gentil. Uma das mãos dele apoiava sua
cabeça para possibilitar o encaixe perfeito entre as bocas, a outra estava
espalmada em suas costas, fazendo com que os corpos se unissem de forma
escandalosa. Os lábios dele acariciaram os dela delicadamente e ela sentiu os
joelhos falharem. Se não estivesse plenamente amparada naquele corpo
masculino vibrante, teria caído e se estatelado no chão como fruta madura.
Percebendo-a rendida, Nathaniel passou a ponta da língua no seu lábio
inferior e ela reagiu com um gemido despudorado. Ele se aproveitou e
aprofundou o beijo, explorando-a por lugares que sequer imaginava que
pudessem ser descobertos em um beijo.
Já era noite, logo eles iriam seguir seus caminhos em separado, então
aquela era uma despedida – e uma que tornava muito difícil despedir-se,
afinal. Ao contrário do que ela imaginava, o momento não era sôfrego ou
intenso, era suave, lento, elaborado como se ele soubesse que movimentos
bruscos poderiam assustá-la. Lucille nunca fora beijada daquela forma. Suas
experiências com homens não passaram de alguns toques pudicos de lábios –
nada envolvia língua ou corpos entrelaçados como estavam os deles.
Quando ele afastou a boca apenas alguns milímetros, ela quis protestar,
mas sua voz estava presa na garganta. Nathaniel colou a testa na dela e
inspirou profundamente. Mantinha-a cativa com os dedos embrenhados nos
cachos revoltos.
— Peça-me novamente. — Murmurou, a boca traçando os contornos do
seu maxilar tenso. — Peça para que eu a arruine, Srta. Smith.
Céus, aquele homem a confundia.
— Não posso, eu... — A mão dele deslizou por suas costas, o indicador
desenhando a linha de sua coluna. Aquela camisa não oferecia proteção
alguma e Lucille percebeu que ele estava prestes a liberar a faixa de tecido
que prendia seus seios. — Tenho algum amor próprio, senhor, e não pretendo
ser rejeitada outra vez.
Nathaniel grunhiu, beijando-a no pescoço e forçando os quadris contra os
dela. Lucille arregalou os olhos ao sentir a dureza da excitação masculina que
a provocava.
— Não parece que eu esteja apto a rejeitá-la, senhorita. Em verdade, devo
ter perdido o juízo porque eu estou prestes a jogá-la naquela cama antes que
possa perceber que eu sou uma péssima escolha.
Talvez ele fosse, mas ela o havia escolhido, afinal. De todos os homens
canalhas que ela já ouvira falar ou conhecera em Nova Iorque, ele era o mais
imoral a ponto de não recusar uma virgem para uma noite apenas. Com um
movimento de cabeça, ela respondeu o que as palavras se recusavam a dizer,
assentindo para que ele prosseguisse. Nathaniel voltou a beijá-la, daquela vez
com mais intensidade, conquistando sua boca como um desbravador toma
posse de um novo território, como os ingleses tomaram posse das Américas.
Lucille não sabia retribuir o beijo com a mesma proficiência, mas
conseguia demonstrar desejo. Agarrou-se à camisa dele para mantê-los
próximos enquanto Nathaniel tirava a dela de dentro das calças e embrenhava
as duas mãos para tocá-la de forma mais íntima. Arfou com o toque quente
dos dedos masculinos em sua carne trêmula e gemeu de alívio quando ele,
habilidoso, a libertou da prisão que escondia suas partes mais femininas.
Mas, antes que ele pudesse tocá-la ali, Nathaniel interrompeu-se. Abriu os
olhos e parou de beijá-la, mesmo que as bocas permanecessem unidas.
— Aconteceu...
— Shhh. — Ele a silenciou com um polegar substituindo os lábios e
ergueu completamente a cabeça. — Há algo estranho.
Ela não percebera nada além do seu coração martelando intensamente em
seu peito, mas Nathaniel estava alarmado. Soltou-a, caminhou até a porta e
encostou o ouvido na madeira. Lucille permaneceu ali, parada e observando
cada expressão da face dele. Os olhos semicerrados indicavam que estava
concentrado e as mãos em punhos diziam que estava preocupado. Ela
certamente não o podia conhecer bem depois de apenas dois dias, mas sentia
como se fosse muito familiar a todas as manifestações do corpo de Nathaniel
McFadden – e isso indicava que ela estava ficando louca.
Com passos vacilantes, aproximou-se e encostou-se na porta, tentando
descobrir o que atraíra a atenção dele para longe dela. Vozes alteradas e
outros sons davam a entender que havia uma briga nos andares mais baixos.
— O que é isso? — Ela sussurrou.
— Parece que os homens do seu pai nos encontraram.
O coração dela quase parou de bater quando o ar foi subitamente sugado
para fora de seus pulmões. Não podia acabar tão cedo, ela não podia ser
levada de volta naquele momento.
— O senhor tem certeza?
— Posso estar errado, mas não creio que queira esperar para descobrir. —
Nathaniel olhou ao redor e foi até a janela, debruçando-se para olhar o lado
de fora. — Vamos embora, temos como descer por aqui.
— Descer? Estamos no terceiro andar, como vamos...
— Srta. Smith, há um cano de calefação subindo por essa parede. Pegue o
dinheiro e venha, não podemos levar nada. A senhorita sabe cavalgar? — Ela
assentiu. — Então vamos, Hades e Zeus estão nos estábulos, podemos chegar
até lá sem sermos vistos.
Foi tudo muito rápido, mas ela confiou nele do início ao fim sem fazer a
menor ideia dos motivos que a levaram àquilo. Nathaniel passou os dedos
pelos cabelos e as mãos pelo corpo – garantindo que a pistola e a faca
estivessem ali onde ele sempre as mantinha. Depois, apagou as lamparinas e
pendurou-se na janela, desaparecendo na escuridão. Lucille se aproximou do
parapeito e o viu deslizar pelo cano grosso e enferrujado da calefação.
Quando aterrissou, estendeu os braços indicando que era a sua vez.
Ela estava nervosa, mas não seria pega. Respirou fundo e, confirmando
que estava com as roupas no lugar, agarrou-se no cano e começou a descer. O
ferro estava quente e ela quis soltá-lo várias vezes, mas manteve-se firme até
ser capturada pelas mãos de Nathaniel – e finalmente sentir-se segura. Sim,
ela perdera totalmente o juízo, mas não estava com tempo para questionar
suas péssimas decisões. Eles correram pelo descampado sob a total escuridão
da noite até chegarem à construção dos estábulos.
Nathaniel era silencioso como um fantasma, ela mal o ouvia mover-se
enquanto a puxava para dentro do galpão e tateava em busca de seus cavalos.
Ela se acostou com a escuridão esperando-o selar os animais e aceitou a ajuda
dele para subir em um deles.
— Esse é Hades. Ele é quieto e disciplinado, vai obedecer a todos os seus
comandos. Monte como um homem, Srta. Smith, essas selas não foram feitas
para propósitos femininos.
Com um impulso, Nathaniel a possibilitou cruzar as pernas ao redor de
Hades, que se mexeu ao receber o peso de seu corpo. O cavalo ergueu o
pescoço e foi acariciado por Nate, que logo subiu em Zeus. Ela o ouviu dizer
para segui-la e partiu. Antes que Lucille o pudesse atender, o cavalo tomou a
iniciativa e a conduziu para fora do estábulo.
CAPÍTULO OITAVO
A SSIM QUE L UCILLE subiu e fechou a porta do quarto, recostou-se nela e ficou
esperando seu coração se acalmar. A conversa durante o jantar se tornou um
pouco constrangedora, mas ela suspeitava que algo muito inapropriado
poderia acontecer assim que ambos estivessem trancados naquela habitação –
e sem ninguém para interromper, daquela vez. Era provável que ela desejasse
qualquer coisa imprópria que Nathaniel pudesse lhe fazer, porém sabia que,
em nome da decência, deveria resistir ao menos um pouco. Antes, ela
precisava ser deflorada, mas a fuga fez com que ela já estivesse arruinada o
suficiente.
Então, ela ficou nervosa. Seus ouvidos zumbiam como se um diabrete e
um anjo sussurrassem palavras de incentivo – um comandando que ela se
entregasse à devassidão, outro lembrando que ela era uma mulher cristã e que
deveria se afastar do pecado. Girou pelo quarto em passos miúdos até quase
ficar zonza e perceber que ele estava demorando demais. A ordem era para
que ficasse no quarto, ela deveria obedecer. Poderia tirar as roupas
masculinas e enfiar-se debaixo das cobertas, mas não sobraria nada para
vestir, então.
Girou mais um pouco pelo ambiente, desarrumando a cama,
reorganizando os itens no banheiro, ajeitando as toalhas perfeitamente
alinhadas, mexendo nos cabides vazios dos armários, esperando. E ele não
chegava. Vá dormir, Lucille, o anjo comandou. Vá atrás dele, Lucille, o
diabrete instigou. Como vinha se sentindo muito pouco santa há alguns dias,
ela garantiu que suas roupas estavam perfeitamente alinhadas e desceu
novamente para a recepção.
Interpelou o jovem recepcionista tentando fazer uma voz masculina – e
falhando.
— Boa noite, o senhor viu o cavalheiro que chegou comigo?
— Ele perguntou por um cassino, senhor. Não temos muitos por aqui,
mas indiquei a ele o Fallen Bridge, no final da rua.
Lucille agradeceu e decidiu que iria atrás de Nathaniel. Por qual motivo,
ela não sabia, mas sentia que deveria ir. Algo dentro dela borbulhava,
querendo impedir que ele se envolvesse em confusão ou com prostitutas.
Tentando não correr, seguiu na direção apontada pelo recepcionista até
visualizar um letreiro meio escondido, meio apagado, indicando que estava
na direção certa.
Vestida como um dos visitantes habituais do lugar, conseguiu entrar
facilmente. Estava escuro, ninguém notaria que tinha feições femininas ou
voz aguda demais. Estava com pouco dinheiro e não pretendia apostar, não
queria aprender nada, daquela vez – apenas resgatar o homem que,
provavelmente, não iria querer ser resgatado. Aos poucos, seus olhos se
acostumaram com a luz alaranjada e Lucille conseguiu distinguir as formas
ao seu redor e pode se mover com mais facilidade. Identificou um bar, com
homens bebendo uísque ou conhaque, e algumas mesas de jogos – cartas,
dados e roleta. Um arco largo em um canto indicava que havia outro
ambiente, provavelmente onde ficavam as prostitutas – e ela esperava que
fosse o pior que encontraria ali.
Nathaniel não parecia estar em lugar algum. Ela se sentiu patética estando
ali atrás dele, sabendo que nada lhe dava o direito, ou a prerrogativa, de o
procurar. Ainda assim, seus olhos não pararam de vagar e fixar em todas as
faces presentes até que ela conseguisse visualizá-lo em uma mesa de
carteado. Talvez ela não o reconhecesse se não estivesse tão focada. Nate
fumava um charuto, tinha uma garrafa de uísque de um lado e duas mulheres
um pouco animadas demais do outro. Os cabelos loiros, mais compridos do
que era adequado, já grudavam no pescoço pelo suor. Lucille não soube o que
sentir ao vê-lo, arrebatada por um misto de alívio e ciúmes que não faziam
sentido algum.
Mesmo concentrado no jogo, ele a viu. Os olhos de Nathaniel se
ergueram e a perceberam ali, olhando diretamente para os movimentos que
fazia, permanecendo inabalável. Sua expressão não poderia ser decifrada por
ninguém se ele não quisesse. Estava com os antebraços de fora e ela se pegou
definitivamente fissurada por aquela parte da anatomia dele. Com um suspiro
de resignação, Lucille aproximou-se da mesa enquanto ele sussurrava
qualquer coisa para uma das mulheres, a que estava em seu colo. A “dama”
levantou-se e desapareceu por entre as pessoas.
O jogo já começara e era uma variante de pôquer que ela não conhecia –
Lucille não tinha nenhum conhecimento válido sobre carteado, conhecia
pouco sobre baralho e só jogara algumas partidas de alguns tipos de jogos
quanto as amigas ainda eram solteiras e elas se reuniam para fazer tudo que
fosse proibido para as mulheres. Quase tudo. Nathaniel não olhou para ela
novamente, permaneceu concentrado em sua mão e olhando sutilmente para
os outros jogadores. Havia muitas fichas à sua frente e ela imaginou que ele
já tivesse ganhado alguma coisa.
Um jogador empurrou todas as suas fichas para o centro e bradou “all
in 1”. Um burburinho iniciou-se, alguns presentes elogiando a postura
arrojada, outros o considerando louco. Lucille conseguia ver as cartas desse
jogador e ele tinha um full house 2, que ela sabia ser uma mão muito boa. Dois
oponentes desistiram, baixando suas cartas e se retirando da partida.
Permaneceram três, que decidiram cobrir as apostas. Nathaniel tinha fichas
suficiente para que algumas sobrassem, mas, ainda assim, o valor em disputa
parecia bem elevado.
O crupiê solicitou que mostrassem suas cartas e o apostador principal
exibiu seu full house. O outro apostador atirou uma trinca de ases sobre o
feltro verde, levantando-se irritado. Nathaniel olhou para a mesa e para suas
cartas por longos segundos até virar, com uma elegância que ela não vira nele
ainda, um royal flush 3. A comoção foi generalizada – pelo visto, o homem
não estava acostumado a perder nem aceitaria a derrota pacificamente.
Enquanto a audiência murmurava e antecipava um confronto, o perdedor se
levantou e bateu na mesa de jogos, bagunçando as cartas e misturando as
fichas.
— O senhor certamente foi desonesto! — Esbravejou o homem, que tinha
uma aparência ébria e cabelos escuros encaracolados. — Ninguém teria
condições de bater esse full house!
Nathaniel manteve-se sentado e começou a organizar as fichas em uma
pilha. Eram todas dele, afinal.
— Há duas hipóteses para a certeza que o senhor possui. Uma, o senhor
estava fraudando o jogo e acreditava que sua mão era a melhor porque
comprou o crupiê. Outra, o senhor estava contando cartas – o que é fraude, da
mesma forma. — Ele ergueu os olhos azuis, que flamejavam à luz das velas.
— Qual das duas é a verdadeira, senhor?
O homem rosnou alguma coisa e retirou o casaco. Aquele era um sinal
claro de que pretendia brigar e a audiência se afastou, obrigando Lucille a
fazer o mesmo. Nate fez um gesto negativo com a cabeça, indicando que não
queria confusão, mas ela sabia que ele reagiria se fosse atacado. E, quando
reagisse, ele provavelmente causaria problemas. Lembrou da pistola que
ficava em sua cintura e rezou, silenciosamente, para que ele não decidisse
sacá-la.
Com um impulso, o homem se lançou sobre Nathaniel e, com os punhos
erguidos, lhe desferiu um soco. A plateia acompanhou o movimento como se
estivessem em um ringue e aquela fosse uma luta recreativa, mas Lucille
sabia das implicações drásticas daquela contenda – a polícia apareceria
naquele antro e todos eles estariam em apuros. Nate desviou do soco e se
afastou.
— Não quero brigar. Seja um bom perdedor e se afaste.
— Está com medo, forasteiro? — O homem provocou. — Acha que não
sabemos que é inglês? Com esse sotaque e essa arrogância fica evidente sua
origem. E não gostamos muito de ingleses por aqui.
Nathaniel balançou a cabeça novamente e esperou o ataque, que veio
rápido. Enquanto o homem se movia com impulsividade e velocidade, Nate
era sutil e leve como um predador cercando sua presa. Estava desarmado,
com as mãos nuas e o cabelo desfeito, mas parecia dominar tudo, como se
controlasse até mesmo o tempo. Outros socos voaram até que o homem se
atirou sobre ele e o acertou no nariz, fazendo-o cambalear para trás. Sangue
escorreu e pingou em sua camisa branca.
— Eu lhe dei uma chance. — Nathaniel pegou um lenço e limpou o
sangue. — O senhor poderia ter ido embora, ter me deixado ir embora, mas
preferiu brigar. Então, espero que esteja disposto a arcar com o resultado de
seus atos.
Retirando o casaco, Nathaniel fechou as mãos em punhos e desferiu um
contragolpe, antes de ser novamente acertado pelo seu agressor. O homem
gemeu e deu dois passos para trás, sendo novamente golpeado por mãos
firmes. Uma vez, duas vezes, três vezes, até cair ao chão. Tentou se levantar
novamente, mas foi impedido pela bota de Nate, que o manteve com as costas
grudadas no solo. A plateia estava muda.
— Eu agora sairei daqui com meu dinheiro, se não for incômodo para os
senhores.
Lucille estava assustada e extasiada. A forma como Nathaniel abateu o
agressor, limpou o sangue que ainda vertia de seu nariz e recolheu suas
fichas, enfiando-as nos bolsos, a deixou sem fôlego. Ela o seguiu à distância,
mantendo algum afastamento como todos com quem cruzavam – um
verdadeiro corredor se abria a cada passo que Nate dava. Depois de trocar as
fichas por dinheiro, aproximou-se dela e, segurando-a pelo braço, arrastou-a
para fora do cassino.
Talvez ela devesse se incomodar em ser tratada como um saco de batatas,
ou reclamar que ele não poderia a tratar daquela forma – agarrando-a,
carregando-a dos lugares, mas não conseguiu. Estava absorta no perfil duro e
masculino, cujos maxilares travados indicava que ele estava irritado. Não era
por esse motivo que Lucille se silenciara, ela não temia a irritação dele –
apesar de parecer razoável que o fizesse depois de vê-lo abater mais um
homem que tinha o dobro de sua altura. Ela estava fascinada por Nathaniel e
pela sua forma de agir, como se o mundo estivesse aos seus pés, como se ele
tivesse todo o poder dos cinco continentes dentro de seus olhos.
Era arrogante, definitivamente insolente, porém era irresistível. Lucille
nunca conhecera um homem que se portasse com tanta certeza de ser superior
aos demais, e suspeitava que toda aquela empáfia se tratava de uma proteção.
Nathaniel se protegia de algo, talvez daquilo que o transformara em um
desalmado, em um cobrador de dívidas sem escrúpulos. Ainda assim,
enquanto tudo indicava que ela deveria correr para bem longe dele, pegou-se
desejando que, depois de ser arrastada para fora do cassino, fosse jogada em
uma alcova qualquer e arrebatada por outro beijo.
CAPÍTULO DÉCIMO
L UCILLE SONHOU outra vez com Nathaniel ao seu lado. Ele fora bastante
gentil no sonho anterior, apenas abraçando-a para que o frio passasse.
Naquele, no entanto, ele mostrava sua verdadeira face – devasso e indecente,
seduzindo-a com beijos intensos e libidinosos. Despertou suada, um pouco
agitada, para descobrir que, na verdade, não estivera sonhando – ao menos
em parte. Estava com o nariz no peito despido de Nathaniel e ele a mantinha
cativa com braços e pernas.
Ambos meio vestidos, o que revelava que não acontecera nada. Mais
nada, pois o que aconteceu antes foi o suficiente para a desorientar por
completo. Ela fechou os olhos novamente e inspirou o cheiro de pele
masculina e sabão. Para ele, aquilo não simbolizava nada – Nate era um
homem promíscuo e sem apego emocional com mulher alguma. Se as outras
famas dele eram verdadeiras, aquela deveria ser, também. Mas Lucille estava
bastante afetada. Nunca fora beijada como ele a beijara, nem tocada como ele
a tocara. Ele descobriu partes dela que estavam escondidas e a apresentou a
experiências incríveis. Como poderia ser tudo igual depois daquela noite?
Não poderia. E, ainda assim, ela não deveria entregar-se a nenhuma
dúvida, pois as dúvidas a conduziriam a um abismo irracional do qual não
saberia fugir. Lucille tinha planos – fugir, escapar, tornar-se outra pessoa,
realizar sonhos. Ela mal sabia quais eram esses sonhos, mas pretendia
descobri-los. Associar-se a Nathaniel McFadden era bom pois ele a ajudaria
na fuga, e nada mais. Nenhuma outra aliança poderia ser forjada entre eles.
— Bom dia. — A voz dele ecoou no fundo de sua alma. O movimento
daquele corpo masculino a abalou e Lucille precisou abrir os olhos e afastar-
se um pouco. — Que horas são?
— Não teria como saber, o senhor está me mantendo presa à cama.
Ele riu, a risada reverberando dentro dela. Nathaniel se ajeitou na cama e
Lucille sentiu a exuberância da ereção pressionar sua barriga.
— É por isso que não durmo com mulheres. — Ele se virou e a
enclausurou debaixo daquele corpo pesado. Lucille estava zonza e a
proximidade excessiva entre eles não a estava ajudando. — Não é divertido
acordar sentindo essa necessidade de alívio, Lucy.
Os quadris dele a pressionaram contra o colchão e ela gemeu quando a
boca dele a possuiu. Não seria capaz de livrar-se daquela ameaça porque ela o
desejava, ela continuava desejando mesmo depois do que fizeram na noite
anterior. Batidas a porta a salvaram de encontrar a ruína.
— Nate?
A voz de um homem assustou Lucille e Nathaniel se ergueu, sentando-se
na cama.
— Maldição, é Leonard.
— Seu amigo? — Ela arregalou os olhos e puxou qualquer coisa que
pudesse cobri-la mais. Entregara-se ao diabo e vendera a sua alma para o
inferno, mas apenas um homem poderia vê-la seminua. — O que ele está
fazendo aqui?
— Tentando evitar que eu me meta em confusão. Acho que chegou tarde.
— Nate, abra a porta. Precisamos sair daqui.
Havia um tom de alerta na voz do desconhecido, então algo estava errado.
Nathaniel saltou da cama e foi abrir a porta, enquanto Lucille escolheu
qualquer coisa que pudesse vestir e fechou-se no banheiro. Seu coração
disparou, as batidas estavam tão aceleradas e altas que talvez pudessem ser
ouvidas no quarto vizinho. O que ela estava fazendo?
Recostou as costas na porta e jogou a cabeça para trás, fechando os olhos
e respirando profundamente. Deveria acalmar-se para não demonstrar
nenhuma fragilidade desnecessariamente. Viu sua imagem no espelho que
ficava à frente e não conseguiu se reconhecer imediatamente. Os cabelos
emaranhados e curtos, a boca vermelha e inchada, uma marca arroxeada no
pescoço e outras que deveriam estar espalhadas por partes menos pudicas.
Suas mãos ainda tremiam e ela sequer sabia se era pela tensão ou pelo esforço
de mantê-las longe de Nathaniel.
Seu coração ainda martelava nas costelas quando ouviu a voz alterada dos
homens do lado de fora.
— Há homens perguntando pela Srta. Smith na estação de trem. Temos
que ir, não podemos ser associados a ela ou acabaremos acusados de
sequestro.
— Eu acabarei acusado, Leo. — Nathaniel rosnou. — O quão grave é a
situação?
— Havia pelo menos quatro homens atrás dela. Walter Smith não é tolo,
ele deve considerar todas as possibilidades e não está economizando. Prefere
pagar capangas ao eventual resgate da filha. O melhor a fazermos é
abandonarmos a mulher e seguirmos até Norwalk.
O silêncio a incomodou, mas durou apenas alguns segundos.
— Não, eu não a deixarei. Lucille seguirá conosco até Norwalk.
— Lucille? Ela te garantiu intimidade para tratá-la pelo nome de batismo?
Ah, ela garantiu a ele uma intimidade muito maior e isso a estava
consumindo. Culpa e desejo passaram a conviver dentro dela desde que
conheceu Nathaniel McFadden e ela não sabia qual venceria o duelo.
Terminou de vestir-se, garantiu que a faixa estivesse bem ajustada e saiu do
banheiro para encontrar o seu canalha também vestido como um lorde e o
outro – o amigo Eckley. Como não o conhecia, manteve uma expressão de
desinteresse e fragilidade, aquela que todas as mulheres apresentavam
quando conheciam um homem.
Os dois viraram-se para ela. Nathaniel sorriu – e ela odiou ter gostado
tanto daquele sorriso. O Sr. Eckley a fitou dos pés à boina que escondia
parcialmente os cabelos.
— Bom dia, senhores.
— Lucille, esse é Leonard Eckley. — Ela foi apresentada, como exigia o
decoro, mesmo que nenhuma outra regra da decência estivesse sendo
observada naquela fuga. — Ele vai conosco até Norwalk.
O Sr. Eckley olhou para Nathaniel e para ela novamente, demonstrando
incompreensão.
— Céus, esse é o pior disfarce que já vi. — Ele girou ao redor de Lucille
e continuou observando-a. — Vocês não estão enganando ninguém.
— Estamos enganando quem precisa ser enganado. As pessoas veem o
que querem, Leo. Vamos, precisamos ir embora, mas temos que comer
primeiro. Você deve estar com fome, Lucy.
Nathaniel disse aquilo olhando diretamente para ela e com uma imensa
carga de sedução na voz, fazendo-a sentir as bochechas arderem de tanta
vergonha. Seria difícil seguir adiante com seus planos se ele decidisse que ela
deveria ser seduzida – porque Lucille não tinha certeza se estaria apta a
refutá-lo. Talvez a presença do Sr. Eckley fosse bem-vinda, afinal.
— Vou alugar um cavalo. Encontro vocês em meia hora nos estábulos?
— Não comerá nada?
— Já comi meu desjejum na estação.
O Sr. Eckley assentiu e saiu pela porta, deixando-os para trás. Lucille
estava mais lenta do que o seu normal, bastante zonza pelo despertar confuso
e pela presença de outra pessoa em sua fuga. Pressentindo seu desconforto,
Nathaniel levou a mão até seu queixo e fez com que olhasse para ele.
— Ele é de confiança. — Disse, com uma expressão indecifrável. —
Vamos, não podemos perder tempo aqui. Somos procurados.
A CHEGADA de Leo Eckley era um freio para sua libido, mas Nathaniel
entendia que era melhor ter alguém para o controlar. Em Norwalk ele
descobriria sobre a pista que o levaria a Emile e Lucille seguira seu caminho
para Boston. Era uma pena que ele não tivesse a oportunidade de mostrar
para ela a potência de um amante, mas os momentos compartilhados foram
suficientes. Não, não foram suficientes e, por isso mesmo, Leo seria de
grande valia – ou ele acabaria devassando Lucille Smith no primeiro arbusto
que encontrasse na estrada.
Depois de um café da manhã um tanto constrangedor, em que ela ficou
em silêncio quase todo o tempo, os dois foram aos estábulos para buscar os
cavalos. Estavam descansados, o que os permitiria viajar direto até Norwalk e
pelas vias mais difíceis de acesso – o que poderia dificultar a perseguição dos
caçadores de recompensa. Depois de montados, encontraram Leonard os
esperando na via de acesso – mas que também os conduziria para fora da
cidade, subindo para o norte.
Lucille não parecia confiar em Leo como Nate confiava. Apesar de ele ser
um grande mentecapto, era seu amigo – e fora quem o mantivera são durante
o mês que ficaram confinados naquela prisão, esperando pelo abate.
Nathaniel não queria pensar naquilo, não precisava reviver memórias de um
ano atrás, nem relembrar os motivos que o tornaram um canalha. Também
não precisava preocupar-se com mais nada, já que, em poucas horas, cada um
seguiria seu caminho.
A viagem fora silenciosa, a princípio. Leonard observava, provavelmente
intrigado pela interação íntima demais entre o amigo e a fugitiva. Nate
apreciava não ter que conversar, assim não enfrentaria novos interrogatórios
de Lucille. E ela estava visivelmente constrangida. Suas bochechas
permaneciam com aquele rubor indecente que fazia Nathaniel salivar e
endurecer ao mesmo tempo, mesmo que ele precisasse, com todas as suas
forças, manter-se concentrado. Não podia se deixar excitar por qualquer
suspiro que ela dava. Nem pelas imagens da mulher nua que sua mente
insistia em mostrar.
Por uma hora, eles se estranharam e se reconheceram. A paisagem era
constante – os black birches 1 com suas folhas exuberantes sombreando a
estrada, vegetação rasteira, uma trilha bem demarcada com saibro e o ruído
indicando que estavam próximos de um curso de água. Todas as estradas,
fossem elas muito ou pouco frequentadas, seguiam os rios. Tudo que se ouvia
eram os cascos dos cavalos e os pássaros que farfalhavam as folhas com em
seus voos e gritos.
— O que diz a pista do seu irmão? — Lucille aproximou-se dele,
emparelhando os cavalos.
— Que um homem com suas características foi encontrado na praia,
bastante ferido. Mas pode não ser ele.
— E pode ser. Espero que seja.
Ela sorriu. A sinceridade em sua alegria o desarmou. Nathaniel não estava
mais acostumado a pessoas francas. Todos que o cercavam eram jogadores –
e estavam sempre blefando, ou homens de moral e dignidade duvidosas – e
estavam sempre dissimulando ou mentindo. Aquela mulher era honesta em
tudo, principalmente nos seus sentimentos, e não parava de surpreendê-lo.
— A pessoa que deu a informação vai o encontrar em Norwalk?
Leonard olhou para trás, provavelmente estranhando a interação entre
eles. Nate era conhecido por seu humor sombrio e raramente gostava de
conversar. Não respondia questionamentos, os fazia. Seu agir com Lucille era
significativamente diferente do seu agir com as demais pessoas e isso
certamente causou estranheza em seu amigo.
— Não, Lucy, eu sequer sei quem passou a pista. A informação veio
anônima e teremos que chafurdar a cidade atrás de alguma coisa. Por isso
trouxe uma fotografia de Emile, assim poderei perguntar se ele foi visto.
— Tem uma foto de seu irmão? Ela não ficou na carroça?
— Jamais deixaria Emile em uma carroça. Está no bolso interno do meu
casaco.
Lucille sorriu novamente e aproximou mais os cavalos. Sussurrou alguma
coisa na orelha de Hades e soltou o arreio, levando a mão até os botões do
casaco de Nathaniel. Antes que ele pudesse reclamar pela intromissão, ela os
abriu e buscou o bolso interno, encontrando a fotografia. Estava curiosa sobre
Emile e demonstrava um desprendimento que não era saudável. Ninguém
podia sentir-se tão à vontade na presença de Nate, ele era intimidante e não
gostava que o tocassem sem autorização. Mas ela ignorava aqueles alertas ou
sentia que podia fazer qualquer coisa que outras pessoas não pudessem.
— Ele é tão jovem!
— Fez vinte e seis anos. É o McFadden mais jovem, se contarmos apenas
os irmãos. Eu acredito que ele esteja vivo porque Emile é um sobrevivente.
Nasceu prematuro e o médico o entregou para mamãe segurar dizendo que
ele não passaria daquela noite. Ela nunca acreditou nisso, já havia parido três
filhos e sabia como cuidar de outro bebê. Apesar de ter desafiado os médicos,
Emile sempre foi frágil. Tinha pulmões ruins, nunca brincava conosco e
tomava muitos tônicos. E, um dia, pouco depois do acidente de Isaac, ele
decidiu que precisava se curar. Não sei o que fez Emile mudar, mas ele
passou um ano na faculdade, formou-se e voltou para casa outro homem,
forte como um touro.
Ele também não sabia o que o fizera abrir seu coração daquela forma.
Não, Nathaniel não abria nada, menos ainda o coração que era duro como
pedra. Estava contando uma história para distrair Lucille porque ela gostava
de ouvi-lo e estava curiosa. Ainda com um sorriso, ela colocou novamente a
foto no bolso do casaco e deslizou a mão pelo braço dele, até segurar seus
dedos e os levar até a boca. Em um ato bastante espontâneo – e indecoroso,
ela beijou os nós de seus dedos com lábios quentes e macios, para então
retornar a segurar as rédeas do seu cavalo.
Era um gesto gentil e Nate detestava gentilezas. Desde que chegara em
Nova Iorque, toda gentileza direcionada a si era interessada – sempre queriam
mais dele, ou havia coisas que deveria fazer para merecer que fossem
educados consigo. Tudo se resumia em uma troca, em o que alguém poderia
fazer para receber algo. Não havia atos abnegados, o discurso altruísta era
uma grande bobagem.
A conversa os distraiu o suficiente para não perceberem o tempo passar.
Depois de mais algumas milhas percorridas, a cidade de Norwalk despontou
à frente. Era cedo o suficiente para que fossem diretamente procurar
informações sobre Emile, o que levou Nathaniel a emparelhar o cavalo com o
baio alugado de Leonard para traçar estratégias.
— Vamos nos separar para cobrir uma área maior. Temos alguns pontos
de interesse para perguntar sobre meu irmão.
— Estação de trem, agência postal, hospital, parque público. Há um
parque público em Norwalk?
— Sim, e tenho tudo mapeado.
Nate tirou do bolso, o mesmo onde estava a foto, um papel com as
localizações dos pontos principais onde poderiam interrogar pessoas sobre
Emile. A maioria ficava em zona de encosta.
— Sua organização continua impecável, apesar da enorme distração que
arrumou para si. — Leonard olhou para trás. — Deixe-me andar com ela um
pouco, você precisa de foco, meu amigo.
— O que o faz pensar que não estou focado?
— O fato de ter dormido com ela essa noite?
Maldição, era óbvio que Leo descobriria – não que ele estivesse fazendo
questão de esconder seu envolvimento com Lucille.
— Não dormimos juntos.
— Só havia uma cama desarrumada quando cheguei.
— Isso nunca me atrapalhou a fazer meu trabalho, Leo.
— Prometo cuidar dela. Vamos ao hospital, sabe que mulheres são muito
mais sensíveis para essas tarefas.
Nathaniel respirou fundo. Aquele diálogo era absurdo. Lucille não era
dele para que tomasse decisões a seu respeito nem para que se importasse
com sua segurança. Bem, ele se importava, mas confiava em Leo. E sim, ela
certamente era bem mais sensível do que os dois juntos.
— Mas ela não é uma mulher, é um homem, para todos os fins. Converse
com ela, não é minha essa decisão.
Leonard assentiu e os cavalos prosseguiram até a entrada da cidade. A
facilidade de viajar por estradas secundárias era, além da privacidade e do
silêncio, a possibilidade de chegar sem ser notado – isso permitiu que se
aproximassem sorrateiramente de uma pensão para viajantes. Nathaniel
entrou para registrar quartos a fim de permitir que passassem a noite e deixou
que os outros dois conversassem sobre o desenrolar do restante do dia.
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
E LA SUSPEITAVA QUE L EONARD E CKLEY NÃO GOSTAVA DELA , MESMO QUE ELES
sequer se conhecessem. Era a forma como ele a olhava, ou porque
conversava com Nathaniel sempre na intenção de separá-los de alguma
maneira. Quando ele se aproximou de Lucille, depois que os cavalos foram
entregues a um cavalariço, foi para questionar suas intenções.
— Srta. Smith, creio que precisarei de sua ajuda hoje. Importaria de me
acompanhar até o hospital e à agência postal?
O sorriso do Sr. Eckley era bem mais aberto e talvez mais encantador que
o de Nathaniel. Era como se ele não usasse máscaras nem subterfúgios e não
se escondesse atrás de nenhum papel. Mas Lucille não era tola, ela sabia que
homens não eram confiáveis e que aquele homem deveria ser menos
confiável que os outros.
— Em que poderia ajudar?
— O hospital da cidade é um lugar horrível, cheio de moribundos,
cuidado pelas freiras. A senhorita teria muito mais acesso do que eu ou Nate.
Lucille olhou para si própria e depois encarou o Sr. Eckley. Ele mantinha
o sorriso galanteador. Mesmo precisando de dois ou três minutos, ela
compreendeu o que ele queria.
— Então o senhor sugere que eu me vista de mulher, novamente?
— Sim, sugiro. Não se preocupe, senhorita, os capangas que a procuram
não irão a um hospital.
— Não tenho roupas femininas.
— Providenciaremos uma. Há lojas por aqui.
A ideia era tentadora por dois motivos. Primeiro, ela não aguentava mais
as faixas e as calças, por mais libertadoras que fossem, esquentavam o meio
de suas pernas. O motivo do calor poderia ser outro, provavelmente estaria
relacionado a um homem loiro, um par de olhos azuis e mãos provocadoras.
Mas, ainda assim, ela gostaria de usar vestidos novamente – afinal, foram
vinte e sete anos com saias e calçolas abertas, então as ceroulas a estavam
enlouquecendo. E o segundo motivo era querer ajudar Nathaniel a encontrar
seu irmão. Ele falou de Emile com tanto sentimento que a fez perceber que
era real, ele amava o irmão.
Se fosse de alguma utilidade, ela arriscaria ser reconhecida.
— Tudo bem, Sr. Eckley. Vamos.
— Perfeito. Avisarei Nathaniel que estamos indo e nos encontraremos
aqui ao final da investigação.
Lucille olhou ao redor enquanto esperava. Havia muita gente pelas ruas e
qualquer uma daquelas pessoas poderia a estar procurando, da mesma forma
que eles procuravam por Emile. Não sabia se caçadores de recompensa eram
barulhentos e anunciavam sua chegada. Era mais provável que andassem
pelas sombras e isso ampliava o risco. O Sr. Eckley retornou logo e a
conduziu para um conjunto de pequenos estabelecimentos comerciais que
ficava em outra quadra. Entraram em uma loja de roupas femininas pré-
prontas, do estilo que ela nunca usou – porque uma Smith sempre se vestia
com exclusividade.
A vendedora a conduziu para uma sala fechada e entregou diversas peças
para que experimentasse. Lucille pediu de tudo, desde roupas íntimas até
sapatos. Separou um conjunto de seda e fitas lilases e pensou se Nathaniel
gostaria deles. Depois, vestiu as meias pretas e bordadas e o imaginou
passando a mão por cima delas. Uma jovem a ajudou a fechar o espartilho e
Lucille desejou que fossem as mãos dele puxando as fitas. Depois de se
enfiar em um lindo vestido branco com corpete e mangas de renda e babado
na frente, ela ainda podia sentir como se fora Nate que a vestira. Estava
completamente fora de si e sequer sabia se era efeito do que compartilharam
na cama.
Tentando afastar as imagens tentadoras do homem que a estava
enlouquecendo, gostou do que viu no espelho. Lindos botões perolados
formavam pequenas flores bordadas pela parte superior e a gola era
delicadamente fechada no pescoço. Com um chapéu pequeno para o dia e um
ajuste nos cachos curtos, Lucille estava como uma mulher comum, porém
bem vestida.
— Agora sim, a senhorita encantará as freiras.
— Sorte a sua, Sr. Eckley, que eu costumava visitar o orfanato com
minha mãe. Conversar com freiras é quase uma especialidade minha.
Leonard Eckley ofereceu a ela o braço. Se estava vestida novamente
como uma mulher, era adequado que caminhasse pela cidade acompanhada –
e aquela companhia parecia segura o suficiente. Ele usava um traje completo
mais elegante que o de Nathaniel e tinha um porte mais altivo, como se não
carregasse o mundo sobre as costas. Pegaram um coche de aluguel até o
hospital e pediram para conversar com a diretora.
Foram recebidos em uma sala pequena. As instalações do hospital
assustaram Lucille – precárias e muito diferentes do que havia em Nova
Iorque. Talvez aquele não pudesse ser classificado como um hospital, mas
como um mero depósito de pessoas enfermas cujas doenças dificilmente
seriam curadas. Permitindo que ela falasse, Leonard Eckley entregou a foto
de Emile e manteve-se de pé, afastado.
— A senhorita está procurando este senhor? — A diretora colocou um
par de óculos pendurado na ponta do nariz — E acha que ele estaria aqui?
— Na verdade, senhora, eu não imagino onde ele poderia estar. Na última
notícia que tivemos dele, estava ferido e com risco de morte. Ele é meu primo
e minha tia está desolada.
— Entendo. Se a senhorita aguardar um minuto, levarei essa fotografia
para as salas dos enfermos e verei se ele se encontra entre eles. Também verei
se alguma enfermeira se lembra dele, mas não tenho muitas esperanças. Um
homem bonito assim seria difícil de esquecer.
Lucille sorriu e agradeceu. Ela também entendia a freira – era quase
impossível parar de pensar em Nathaniel. Se o irmão fosse parecido com ele,
também teria carisma suficiente para ser memorável. Mas havia esperança,
ele poderia estar inconsciente.
Esperaram por quase meia hora em um corredor no primeiro andar, de
onde podiam ver o pouco movimento no térreo. Quando a freira retornou, não
trouxe boas notícias.
— Infelizmente, nenhuma de nossas enfermeiras o viu. Ele também não é
um dos enfermos, nenhum dos que está aqui tem ferimentos, apenas doenças
do corpo e da alma.
— Agradeço sua atenção. — Lucille segurou as duas mãos da mulher. —
Posso deixar um telefone com a senhora? Assim, se meu primo aparecer por
aqui ou se a senhora ficar sabendo dele, poderia me contatar?
— Será um prazer ajudar.
Ela foi até Leonard Eckley e pediu que ele anotasse o telefone do
Gênesis. Não diria para a freira que era de um clube de jogos ilícitos e um
antro de prostituição, mas precisava dar a ela alguma forma de contato.
Afinal, era possível que notícias de Emile ainda chegassem aos seus ouvidos.
Depois de deixar o telefone com seu nome anotado, saiu rindo da composição
que fizera. Se era prima do desaparecido, achou por bem manter o sobrenome
dele – e se tornou Lucille McFadden.
Era cômico que usasse o sobrenome do homem pelo qual estava
ligeiramente encantada. Aquilo a fez rir de nervoso, deixando o Eckley
ligeiramente confuso. Depois de saírem do hospital, foram à agência postal,
onde havia um grande tráfego de pessoas. Lucille ficou nervosa ao chegar,
temendo que ali houvesse algum homem à sua procura. Manteve o chapéu de
lado e o rosto virado na direção do Sr. Eckley, evitando que a olhassem
diretamente.
— Não precisa preocupar-se. — Ele sussurrou próximo a ela. — Se tiver
algum caçador de recompensas por aqui, saberei.
Lucille não duvidou, aqueles homens pareciam ter um senso aguçado de
preservação que os permitia perceber tudo ao redor. Sentindo-se ainda
insegura, ela tentou se portar como era esperado de uma mulher – servindo de
decoração. Leonard Eckey circulou pelo lugar mostrando a foto de Emile a
diversas pessoas, fazendo perguntas, enquanto ela segurava na dobra de seu
cotovelo e mantinha a expressão amável. A agência postal era pequena,
portanto, passaram a circular pelas ruas, onde havia um pequeno comércio.
Viraram algumas esquinas, perguntaram a lojistas, até que pararam
subitamente.
— Há um burburinho estranho por aqui. Não somos apenas nós que
estamos procurando alguém.
— Como sabe?
O Sr. Eckley olhou para o lado e indicou, com um movimento de seu
maxilar quadrado, algumas pessoas que conversavam alguns metros distante.
Eram homens que mostravam um papel para algumas mulheres,
possivelmente uma fotografia. Lucille sentiu seu coração disparar, dominada
pelo medo.
— Mantenha a calma. Vamos sair daqui e voltar para a pensão.
Ela o seguiu, tentando não demonstrar seu nervosismo. Suas mãos
suavam dentro das luvas, que ela não usava há dias, e seus pés deslizavam
dentro dos sapatos. Esperava que o estado de sua alma não estivesse visível
para ninguém, pois ela estava bastante confusa. Tão logo saíram da frente dos
supostos caçadores de recompensa, entraram em um carro de aluguel e
rumaram para seu destino. A busca por Emile fora interrompida, mas Lucille
estava começando a suspeitar que o irmão de Nathaniel não estava por perto
para ser encontrado.
A VIAGEM para Nova Iorque seria melancólica, Isaac tinha certeza. Partira no
dia seguinte ao recebimento do telegrama que informava o falecimento de seu
irmão e mal tivera a oportunidade de despedir-se adequadamente de sua
esposa e filhos. Assim que entrou na embarcação sucumbiu à realização de
que perdera Emile e que estava na iminência de perder Nathaniel, também.
Não podia aceitar aquilo, não podia permitir que as Américas lhe levassem
dois irmãos. Acabou permanecendo trancado em sua cabine por dois dias,
saindo apenas no terceiro.
Por sorte, a riqueza de seu irmão podia financiar uma longa viagem na
primeira classe em um navio moderno. Todas as facilidades estavam à sua
disposição, inclusive uma área para cavalheiros, com mesas de jogos e bar.
Sentou-se em uma mesa e observou o ir e vir de homens que não conhecia. A
maior parte dos viajantes era composta por burgueses que tinham negócios
frequentes nos Estados Unidos e americanos retornando para casa. Pediu um
conhaque a um garçom bem-vestido e continuou observando até ver uma face
conhecida. Lorde Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Isaac ergueu o copo em cumprimento ao colega. Thaddeus estudara com
ele na faculdade e se formara com honras. Era um homem extremamente
inteligente e responsável, mas quase não frequentava Londres – preferia
viajar e conhecer o mundo.
— Oras, se não é meu maior adversário de xadrez. — O marquês se
sentou na cadeira vazia à frente de Isaac.
— É um prazer revê-lo, Thad. Não tive como expressar pessoalmente
minhas condolências pelo súbito falecimento de seu pai.
— Foi tudo muito rápido. — Thaddeus pediu um conhaque para si. —
Papai era um homem forte, apesar da idade. Não esperávamos que ele fosse
nos deixar por agora. Ao menos teve uma vida regada dos maiores prazeres
que um homem pode desejar.
Isaac ergueu o copo novamente, daquela vez propondo um brinde
póstumo.
— Que ele descanse em paz. O que o leva aos Estados Unidos?
— A salvação do marquesado. Meu pai não nos deixou em boas
condições financeiras, estimo que estejamos falidos.
— Lamento ouvir isso. Está com negócios em Nova Iorque, então?
— Meu pai tinha um negócio fechado que eu precisarei assumir. Se o
fizer, receberei dinheiro o suficiente para saldar as dívidas e permitir que o
marquesado prospere, além de resolver o problema que gira em torno da
necessidade de produzir um herdeiro.
— Não creio que tenha compreendido.
Thaddeus riu, bebendo seu conhaque em um gole só.
— Meu pai estava noivo. Iria casar-se com uma jovem americana, filha
de um industriário riquíssimo, com um dote obsceno.
A informação não chocou Isaac. Aquela ainda era uma das práticas mais
comuns, por mais que ele a condenasse. Nobres falidos, com títulos
importantes, casando-se com americanas, ou casando suas filhas com
americanos sedentos por fazer parte da nobreza.
— E você pretende assumir o lugar de seu pai nesse casamento?
— Não parece muito difícil, afinal o pai dela só tem interesse no título.
Não importa se o marquês tem sessenta ou trinta anos, não é mesmo?
— Creio que a jovem gostará mais de desposá-lo, milorde. A não ser que
ela estivesse apaixonada por seu pai.
A risada sonora de Thaddeus ecoou pelo bar. Claro que ela não estava. O
velho marquês, que Deus o tivesse, era um homem desagradável, rude e que
costumava cuspir ao falar. Dificilmente uma jovem se casaria com ele por
amor, mulheres não gostavam de ser maltratadas.
— Você tem sorte de ser o segundo filho, Isaac. — A voz do novo
marquês estava, então, cheia de ressentimento e mágoa. — Por mim, passaria
o título e seus encargos para meu irmão, ele é mais preparado para assumir o
marquesado do que eu. As obrigações que precisamos assumir para cumprir
nossos deveres são, às vezes, muito custosas.
— Não fique assim, meu caro. — Isaac colocou a mão no ombro de
Hertford. — A jovem pode ser uma boa moça, você pode acabar sendo muito
feliz.
Mesmo sem saber se era possível encontrar felicidade no casamento sem
amor, o desejo era sincero. Isaac se casou com a mulher que amava, mas seu
irmão conde também o fez. Mesmo que o casamento de Edward, no início,
parecesse um arranjo conveniente, já que ele arruinara a irmã de seu melhor
amigo em um jardim, Isaac sabia que ele sempre nutriu sentimentos por
Agatha. E eles, mesmo depois de seis anos, eram o exemplo de um casal
feliz.
Os dois colegas continuaram bebendo e contando suas histórias. Isaac
achou melhor evitar o assunto referente aos seus irmãos, já que nem ele
mesmo sabia o que acontecera. A viagem ainda duraria alguns dias e talvez a
presença de Thaddeus o ajudasse a passar o tempo fora de sua cabine.
N EW H AVEN ERA uma cidade maior do que Norwalk. Sua área costeira
impressionava e, naquela época do ano, as pessoas também ocupavam as
praias locais. Não eram prazeres aos quais Nathaniel poderia se render, então
ele ignoraria a compulsão que o litoral sempre lhe causava. Nascido em
Thanet, as praias sempre o atraíram sobremaneira. Mas havia uma missão a
cumprir, ele precisava focar nela como não fizera nos dias anteriores.
Leonard estava certo, Lucille o distraia. Não era culpa dela, nada que a
mulher fizesse ou deixasse de fazer o ajudaria a recuperar a sanidade. Se ela
se entregasse a ele totalmente, ele iria passar o tempo desejando mais. Se ela
desaparecesse de sua vida, o que aconteceria em breve, ele permaneceria com
sua memória assombrando-o. Saberia lidar com isso, mas não podia negar
que lhe causava uma dispersão inconveniente dos pensamentos.
Ao invés de irem a um hotel, daquela vez ele partiria para a busca direta
de Emile. Guiou a carroça pela cidade, indo até uma área comercial próxima
à costa. O cheiro de maresia quase o deixou embriagado.
— Vamos comer e investigar. — Ele decidiu, depois de estacionar a
carroça em um pátio destinado a esse fim. — Pretendo deixar a cidade ainda
hoje.
— Nada mais de hotéis, restaurantes e jogatinas, então? — Ela fez uma
piada. Lucille sorria sutilmente e não demonstrava irritação com ele, mesmo
depois de a ter ignorado durante toda a viagem.
— Se não quisermos ser capturados, teremos que mudar de estratégia.
Essa é uma fuga, Lucy, não um passeio de férias.
Ela concordou e pulou da carroça, já demonstrando habilidade em agir
como um homem. Vestida daquela forma e com atitudes mais masculinas, ela
enganaria olhos menos desavisados e não seria reconhecida por qualquer um.
A segurança do disfarce parecia mantê-la mais tranquila. Nathaniel
certamente estava, ele não imaginava como Leo fora tão imprudente no dia
anterior.
Comeram e interrogaram pessoas, caminhando lado a lado por várias
ruas. Perguntaram sobre Emile, sobre um homem ferido vindo pelo mar,
sobre homens com ferimentos de bala. Havia um hospital beneficente como
em Norwalk, simples e precário, que não recebia um baleado há meses.
Aquele tipo de ferida atraía o corpo policial porque precisava ser reportado às
autoridades. Homens baleados dificilmente procuravam tratamento em
hospitais públicos, mesmo que fossem pobres e não pudessem pagar por
médicos de qualidade.
A frustração fez com que Nathaniel se irritasse. Se estivesse em Nova
Iorque, iria a um ringue socar alguns narizes ou arrumaria novos devedores
para torturar. Sua dor passava com a dor alheia. Quando ele fazia alguém
sangrar por suas mãos sentia um sofrimento menor. Era como se, ao
despedaçar outras pessoas, ele os colocasse em posição de igualdade.
Pararam para dormir na beira da estrada, um pouco mais distante do curso
de água, daquela vez. Não haveria banho ou refeição quente naquela noite,
nem camas macias ou uma boa dose de uísque para o acalmar. Ao menos fora
cuidadoso de adquirir uma barraca grande o suficiente para que não
precisasse dormir por cima de Lucille – ou ele não dormiria.
Naquele dia ela pareceu disposta a lhe conceder paz. Não insistiu em uma
conversa amigável, nem fez perguntas que Nathaniel não desejaria responder.
Manteve-se distante. Observando-o, mas distante, respeitando seu espaço
individual. Todo aquele comedimento não parecia condizente com o espírito
dela, então o fazia apenas por ele. Para preservá-lo, reconhecendo sua
decepção, o desgosto de não obter êxito em sua busca.
Por isso, Nate montou a barraca sozinho, sem pedir a ajuda dela, sem
solicitar uma proximidade com a qual não saberia lidar. Só não conseguiu
parar de olhar para ela. Enquanto cavava, enfiava estacas ou estendia a lona,
observava-a conversar com Hades. O cavalo, que não gostava de ninguém,
gostava dela. Inclinava a cabeça para frente e apoiava a fronte no peito de
Lucille, mesmo que ela fosse bem menor em estatura. Agitava as patas
quando ela falava algo, relinchava. Zeus disputava atenção com o irmão
equino, mas isso não surpreendia Nathaniel. Sua fascinação se dava por ela
ter tanta habilidade em conquistar o puro-sangue mais arredio que ele
conhecera.
Era aquilo que ela estava fazendo com ele. Não, não podia ser. Ele não se
abria para ninguém, não importava quem fosse. Ele não deixava ninguém
entrar, as portas de sua alma eram trancadas e Nathaniel não fazia ideia de
onde estavam as chaves. Os cacos de seu coração ficavam guardados e
ninguém tinha o direito de sequer pensar em os remendar. Lucille Smith era
uma distração temporária e ele não podia, de jeito algum, encantar-se por ela.
E RA POR ISSO QUE ELE PASSARA QUASE DOIS DIAS SEM ABRIR A BOCA –
porque acabava falando todo tipo de bobagem na presença de Lucille. Ela o
instigava, provocava, desafiava e ele sempre era capturado na sua rede.
Contou mais do que deveria sobre sua história de vida e acabara de dizer que
poderia gostar dela. Gostar. Nathaniel não gostava nem de si próprio, como
poderia gostar de alguém?
Mas havia mais entre ele e Lucille do que simples luxúria. Se fosse
apenas isso, ele já a teria seduzido. O que o impedia de ir além era mais do
que respeito pelo pedido dela, era medo. O invencível, imbatível e inabalável
Nathaniel McFadden estava com medo de sentir qualquer coisa que fosse por
aquela mulher. Não era um temor irracional. Ela era um pouco perturbada,
com toda aquela vitalidade e aquele desejo de conhecimento. Também era
curiosa demais, falante demais, sempre se intrometendo em assuntos
masculinos. Além de não se importar em perder, o que era imperdoável. Nate
jamais poderia tolerar envolver-se com alguém que apreciava mais o jogo do
que a vitória, ele tinha certeza.
Depois de sair da água e precisar de uma força sobre humana para afastar-
se dela, Nathaniel começou a duvidar de sua sanidade. Aquela viagem
precisava acabar antes que ele não conseguisse mais finalizá-la. Precisava,
também, manter-se mais tempo em silêncio, mesmo que isso significasse
magoar Lucille. Era preferível que ela não gostasse dele, também. Que ela o
desprezasse, o achasse arrogante e mal-educado. Quanto menos a companhia
dele ela quisesse, melhor para ambos.
A viagem seguiu até Newport, onde não tiveram nenhum sucesso
procurando por Emile. Passaram por mais duas cidades até chegarem a
Plymouth. Aquela seria a última parada antes de Boston. Quando chegassem
à cidade destino, Nathaniel garantiria que Lucille estivesse em um navio e,
então, retornaria para casa. Ainda não sabia se faria mesmo a peregrinação
esperada por aldeias indígenas ou se esperaria o irmão contatá-lo. Suas
esperanças se esvaíam a cada milha percorrida, a cada não recebido, e sua
vitalidade estava se esgotando.
Ela percebeu, claro. Lucille era muito observadora e a frustração de
Nathaniel a estava contagiando. Quanto mais sombria sua alma ficava, mais a
dela escurecia.
Plymouth era uma cidade costeira muito escolhida por pescadores e
turistas. Pessoas que queriam descansar à beira-mar, famílias que queriam um
tempo afastadas da loucura que as grandes cidades estavam se tornando. O
perigo continuava rondando, mas Lucille quis ver a praia e ele não conseguiu
impedi-la. Bem, Nathaniel sabia que não a conseguiria impedir de nada, já
que ela era adulta e livre para fazer o que desejasse. Mas não fora até ali para
permitir que ela se colocasse em risco, o que significava que a acompanharia.
— Nunca foi à praia? — Ele perguntou, vendo-a retirar os sapatos e
dobrar a bainha da calça. Pés femininos e delicados tocaram a areia fina – e
provavelmente gelada, fazendo com que Nate suspirasse.
— O litoral aqui é intrigante, eu nunca viajei tão para o norte. Você não
gosta de praias, Sr. McFadden?
— Cresci em uma vila litorânea, minha vida foi à beira-mar.
— Oras, uma história. — Ela sorriu, ajeitando alguns cachos soltos para
dentro da boina. — Conte-me.
Ele não queria contar, mas acabaria falando tudo que ela desejava ouvir.
Seguiu-a até onde as ondas arrebentavam, mantendo distância segura para
não molhar mais do que pretendia.
— A propriedade preferida do meu pai era Greenwood Park, que fica na
vila de Thanet, em Kent. Quando eu era moleque, a vila era muito pequena e
nós aterrorizávamos os habitantes. Eu e Isaac éramos terríveis.
— Quem é Isaac?
— Meu irmão, ele é apenas um ano mais velho. Somos muito próximos.
Éramos. Desde que vim para Nova Iorque nós não nos falamos muito. Agora,
provavelmente não nos falaremos nunca.
Nathaniel sentou-se na areia úmida. Pensar em Isaac o fez desmoronar
por dentro e não podia permitir que Lucille percebesse. Ela abandonou o que
estava fazendo e se sentou ao lado dele, interessada na abertura que concedeu
depois de dias.
— Não diga isso. Ele saberá que você não é culpado pelo que aconteceu
com Emile.
— Se eu me sinto culpado, Lucy, por que ele não acharia o mesmo?
Havia algumas pessoas perambulando pela praia, o que impediu Lucille
de tocá-lo. Pela forma como ela ergueu a mão e depois a recolheu, Nathaniel
entendeu que ela estava se controlando para não fazer nada que colocasse seu
disfarce em risco e os expusesse. Como viajavam bem devagar, era provável
que os caçadores de recompensa estivessem sempre à frente.
— O sol vai se por. — Ele continuou. — Devemos voltar para o hotel.
Amanhã é um grande dia, você estará livre.
— Nate. Diga o que aconteceu com você. Conte para mim, já que
estamos nos nossos últimos momentos juntos. O que houve quando vocês
desistiram de negociar com o Sr. Carlisle?
Ele respirou fundo e a olhou. Talvez se contasse toda a verdade, isso a
assustasse o suficiente para fazê-la se afastar.
— Nós nos envolvemos com contrabando. Bebidas, charutos, seda, tudo
que pudesse ser contrabandeado e que rendesse dinheiro. Mas não levou um
mês para que o contrabando nos conduzisse aos jogos ilegais. Nos acusaram
de jogar sujo, porque eu conto cartas. Pensei que fosse esperto e que não
perceberiam, mas perceberam. Eu não tinha dinheiro para pagar a dívida,
Leonard não tinha, então fomos capturados por cobradores de dívidas. Eles
nos surraram todo dia, eles nos bateram e praticaram todo o tipo de tortura
que eu nem sabia que existia. Quase não temos marcas no corpo, mas eles
conseguiram nos destruir por dentro. Depois de algum tempo, o chefe
apareceu. Ele disse que pagara nossa dívida e que poderíamos pagar a ele
com trabalho.
Lucille não pareceu muito chocada.
— Quem era o chefe? Vocês o conheciam?
— Não. Ele é o dono do Gênesis e nós nos tornamos seus homens de
confiança. Aprendemos a transformar nosso trauma em outra coisa, e isso é o
que eu sou agora.
Nathaniel abriu os braços como se quisesse mostrar a ela a dimensão do
que ele representava.
— Quem era o credor?
— Isso não importa, Lucy.
— Claro que importa. Quem mandou torturarem vocês?
— Seu pai. — Ele a fitou de soslaio. — Walter Smith, foi para ele que
ficamos devendo. Mas nada disso importa mais, já paguei a dívida.
Tranquilize-se, pois amanhã estará livre. De mim, de toda essa vida.
O sorriso nos lábios dela era sincero e triste. Ele pensou que a
proximidade da liberdade a deixaria exultante, mas não era alegria o
sentimento que os envolvia naquela última parte da viagem. Seguiram sem
continuar a conversa até o pequeno hotel que os abrigaria naquela noite, uma
pequena indulgência que ele estava disposto a fazer por ela. Estava sendo
uma viagem bem pouco custosa e Lucille, cujas economias ele recusava toda
as vezes, não gastava com absolutamente nada. Sendo mulher, ele esperava
que ela fosse desejar roupas ou outras bobagens, mas ela estava
suficientemente empenhada em sua fuga.
— Vamos nos encontrar para o jantar? — Ela perguntou, antes de abrir a
porta de seu quarto.
— Não, eu jantarei aqui mesmo. Boa noite, Lucy.
Saber que a estava desapontando causava a mesma dor de um punhal
cravado no peito, ainda assim ele não conseguia evitar. Fechou a porta atrás
de si e recostou-se na madeira por um longo tempo, colocando os
pensamentos no lugar. Leonard tinha razão, sempre teve, a garota era uma
grande distração, mas ela também o afastava do abismo que o engolia pelo
desaparecimento de Emile. No dia seguinte, tudo acabaria e ele voltaria a ser
o homem taciturno e cruel que sua profissão exigia.
Tomou um banho, pediu o jantar e se deitou para esperar a comida
chegar. Seu corpo doía pelos dias sentados na carroça desconfortável, pela
falta de exercício físico e pelo esforço para não sair e ir atrás de Lucille.
Fechou os olhos e cochilou, até ser despertado por três batidas sutis na porta
– o jantar chegara.
Mas, ao girar a maçaneta a mesma imagem de dias atrás o fez reviver o
momento em que tudo começara. Lucille entrou, sem pedir licença, vestindo
um roupão. Ela tinha os cabelos penteados, cheirava a almíscar e sabão, e seu
olhar era determinado.
— O que houve, Lucy?
— Amanhã eu parto para a minha nova vida. Eu vou me lançar em uma
jornada sem saber o que há do outro lado do caminho, Nate, e mentiria se
dissesse que não estou com medo. Mas nunca tive tantas certezas em minha
vida, e devo muito disso a você.
— Você não me deve absolutamente...
Ela levou o indicador até os lábios dele e o silenciou.
— Deixe-me terminar, ou não conseguirei fazer isso. — Ela deu dois
passos para trás e sorriu. — Com você eu vivi experiências incríveis em tão
pouco tempo. E é com você que eu quero viver isso, também. — Lucille
puxou o laço que prendia seu roupão e o veludo caiu ao chão. Ela não estava
de roupas íntimas daquela vez, mas completamente nua. — Eu quero que
você faça amor comigo.
N O PRIMEIRO DIA , Lucille ficou trancada em seu quarto sem ver ninguém, o
que considerou uma sorte. Estava profundamente ferida em sua alma, tendo
perdido a chance de escapar para sempre de um destino infeliz. Também
estava profundamente triste por causa de Nathaniel McFadden, o homem que
a salvou e a levou ao inferno em apenas um dia. A imagem que se repetia em
sua mente era ele caído ao chão depois de ser alvejado por um de seus
captores. Deitada de lado na cama, abraçada com os joelhos no peito, ela
chorou por horas sem se preocupar em ser ouvida ou interrompida.
No segundo dia, o pai apareceu. Ele segurava uma toalha e ela já sabia o
que aquilo significava. Sem dizer nada, embebeu a toalha em água e mandou
que ela se levantasse. Lucille desobedeceu, pois não faria diferença. Ele a
espancaria não importava em que posição estivesse, portanto não lhe daria
mais o sabor de a controlar. Walter Smith poderia ser o dono de seu corpo,
mas jamais comandaria sua alma. Quando confirmou que ela não faria o que
mandava, o pai arrancou as cobertas que estavam sobre ela, sem se importar
com qualquer regra de decoro, e bateu com a toalha até a exaustão. Aquele
era o limite de Walter Smith – ele só parava quando estivesse cansado.
Lucille também sabia que aquele castigo não deixava marcas. Ela o vira
bater muitas vezes na mãe – sempre que planejava uma surra, fazia de forma
que ninguém percebesse a violência. A dor, no entanto, era quase
insuportável, mas ela não gritou. Não deu a ele o prazer de saber que a
machucara, mesmo que suas pernas tenham fraquejado ao final e ela tenha
terminado no chão – o lugar onde ficou o restante do dia.
No terceiro dia, a mãe a visitou. Lucille não comia nada desde que
retornara para casa, o que significava que morreria de fome ou ficaria doente
até seu noivo importante chegar da Inglaterra – o que aconteceria em breve.
Um dia? Talvez dois, e o Marquês de Hertford estaria em Nova Iorque para a
reivindicar como esposa.
— Você precisa se alimentar. — A mãe se sentou na cama, segurando
uma tigela de sopa. — Está pálida e com uma aparência adoentada, Lucy.
Ela manteve o silêncio. Estava de costas para a mãe, deitada de lado, sem
conseguir se concentrar em nada que não sua própria miséria. Precisava de
forças para fugir, para planejar outra forma de escapar do casamento
indesejado.
— Se não comer, terei que chamar o doutor.
— Não se preocupou com minha saúde quando o permitiu entrar e me
espancar. — Lucille disse, sem virar-se. — Não finja que se preocupa, agora.
Constance apoiou a tigela na mesa de cabeceira.
— O que pretendia que eu fizesse, Lucille? Ele é seu pai, você fugiu de
casa para o desafiar. Fez com que ele passasse uma enorme vergonha e...
— Cale-se, mamãe. — Ela se virou, sentando-se na cama. O corpo doía
como se ela tivesse sido atropelada por uma carruagem em alta velocidade.
— Não fiz nada, absolutamente nada, com ele. O homem que responde por
meu pai me vendeu como mercadoria barata para um nobre falido sem nunca
se importar comigo. Ele a trata pior que aos cavalos e você ainda o justifica?
Sempre permitiu que ele a agredisse e agredisse seus filhos.
— Há coisas que uma mulher não pode evitar, Lucille.
— Bem, eu não acredito nisso. Não aceito me casar com o Marquês de
Hertford e prefiro morrer tentando ser livre a aceitar passivamente esse
destino.
Virando novamente de lado, Lucille desejou apenas que a mãe se fosse,
mas ela permaneceu ali, sentada, em silêncio. As lágrimas encheram seus
olhos, mas ela as conteve, não pretendendo dar a ninguém o prazer de a ver
chorando.
— Se eu pudesse ajudar, faria algo.
— Você pode, se quiser.
— Algum novo plano para fugir e fingir seu próprio sequestro?
— Eu não fingi. — Lucille desistiu de resistir e se sentou. — Mamãe,
você entregaria um bilhete a Millicent?
A mãe endireitou a coluna e passou as mãos pela saia, demonstrando
nervosismo.
— Se pai ordenou que ficasse incomunicável.
— Se fosse para cumprir as ordens dele, não precisaria de sua ajuda. É
apenas um bilhete, eu preciso falar com ela. Milly não sabia dos meus planos,
não contei nada a ninguém.
— Certo, escreva o bilhete que providenciarei que ela o receba.
Com dificuldade, Lucille levantou-se da cama e se sentou à escrivaninha.
Seu coração batia acelerado e ela mal conseguia respirar. Se falasse com
Millicent, poderia saber notícias de Nathaniel e poderia ter uma chance de
fugir novamente – mesmo que fugir parecesse uma péssima estratégia. Mas,
daquela vez, embarcaria em Nova Iorque mesmo, e iria para o lugar mais
distante que pudesse – talvez as Índias.
Depois de escrever, leu rapidamente as palavras para ter certeza que seu
pedido ficara compreensível. Não ficou, talvez nem ela mesmo se entendesse,
mas não podia arriscar dar informações muito precisas. Apenas mencionar o
nome dos homens já os colocava em risco e tudo dependia do quanto sua mãe
estava disposta a agir por ela. Constance Smith nunca fizera nada para livrar
os filhos das punições do pai, aquela seria a primeira vez e Lucille estava
cética. Mas não havia outra forma de fazer chegar sua mensagem a Milly, os
criados não se arriscariam tanto.
Dobrou o bilhete, colocou dentro de um envelope e entregou à mãe.
— Você o lerá? — Perguntou, sincera.
— Não está endereçado a mim. Sairei hoje para visitar o orfanato e para o
clube de leitura. Antes, passarei na casa da Srta. Ryan.
O coração de Lucille continuava disparado, ribombando em suas costelas
e aumentando a dor pelas lesões que sofrera. Se Millicent recebesse o bilhete
e a ajudasse, talvez houvesse mais uma chance de escapar. Por um instante,
ela quis abraçar a mãe. Não era uma pessoa ruim, insensível – Lucille sempre
se considerou bem afetuosa. Mas não conseguiu. O mal que sofreu não foi
culpa de Constance, mas não conseguia perdoá-la por ser conivente.
Sozinha novamente, deitou-se na cama e se permitiu dormir um pouco
pela primeira vez em muito tempo. Dentro de si, acreditava que Nathaniel
estivesse vivo e sonharia em ser resgatada por ele – mesmo que ele não fosse
nenhum príncipe encantado e ela não estivesse nem um pouco interessada em
um.
E LE NUNCA SUCUMBIA , essa era uma das únicas certezas que Nathaniel
McFadden tinha. Depois do que vivera no mês seguinte à sua chegada aos
Estados Unidos, sabia que não viera ao mundo para ser abatido. Talvez uma
doença tropical ou uma besta selvagem o atacasse e ele morresse se
contorcendo em uma dor terrível, mas homem nenhum o derrubaria. Mesmo
depois de ter sido atingido pelas costas, ele se levantou e atacou seu agressor,
usando a faca no bolso de seu colete para o subjugar. Os outros dois estavam
já feridos dentro do quarto, ambos alvejados por sua pistola. Ele arrastou o
terceiro para lá, trancou a porta e correu atrás de Lucille.
Era noite e a escuridão começou a engoli-lo. Nathaniel desceu as escadas
freneticamente, gritando por ela, sob os olhares assustados dos hóspedes,
empregados e gerentes do hotel. O tempo que gastou para livrar-se dos seus
agressores custou caro – Lucille não estava em nenhum lugar para ser vista.
Maldição! Era tudo sua culpa, se não tivesse sido tão egoísta e a mantido
em Plymouth para que pudesse passar outra noite ao lado dela, Lucille não
teria sido encontrada. A imagem dela sendo arrastada por um homem
qualquer fez a bile amargar sua boca, até ele perceber que era seu sangue
escorrendo pelos lábios. Talvez Nathaniel não sucumbisse, mas, outra vez,
ele não conseguiria salvar alguém que deveria proteger e carregaria aquela
culpa para sempre.
A escuridão finalmente o derrotou e Nate desmontou no meio da rua. Os
joelhos dobraram, o corpo não resistiu aos ferimentos e ele caiu ao chão
inconsciente. Não havia dor física, não havia nada além do vazio de saber que
Lucille sofreria as consequências de sua estupidez. Por muito tempo, era
apenas aquilo, um hiato em que nada acontecia, nenhum som poderia ser
ouvido, nenhuma luz poderia ser sentida. Ele permaneceu ali, caído, imóvel,
lamentando miseravelmente a dor de sua alma, sem nem mesmo conseguir
dar um fim à própria vida. Seria fácil demais, ele merecia sofrer pelo que
causara aos outros.
E, então, ele caiu em um precipício e permaneceu em queda por um longo
tempo, até uma mão segurar a sua. Nathaniel ergueu a cabeça e se viu
olhando dentro dos olhos castanhos de Lucille. Ela sorria e estendia os braços
para ele, no instante em que acordou.
— Oh. — Uma voz feminina, que não era a dela, soltou uma interjeição
espantada. — Ele despertou, doutor.
— Isso é muito bom. — Um homem de cara redonda e bigodes se
aproximou de onde Nathaniel estava. — Como se sente, Sr. McFadden?
Antes de responder, ele quis olhar ao redor. Estava de bruços, sentindo o
peso de dois cavalos em suas costas. Não estava mais no hotel onde se ferira,
estava em Nova Iorque, em seus aposentos no Gênesis. Se voltara para a
cidade, isso significava que pelo menos um dia se passara desde que Lucille
fora capturada pelos capangas de seu pai, ou seja, que ela estava sob as garras
de um homem ruim.
— Por quanto tempo fiquei desacordado?
— O senhor estava sedado com láudano e morfina. — O homem, que fora
chamado “doutor”, começou a mexer em um curativo que estava em suas
costas. — Está em uma posição desconfortável, portanto...
— Quanto. Tempo.
Nathaniel repetiu a pergunta, trincando os dentes ao sentir a dor de mil
espadas perfurando seu corpo quando o médico descobriu o ferimento e
passou alguma substância no local.
— Três dias, senhor, mas foi necessário. O senhor foi transportado
inadequadamente de Plymouth para cá e teve uma hemorragia interna,
portanto...
— Recoloque o curativo, doutor. — Nathaniel virou o pescoço e encarou
o médico, que não soube como reagir à ordem. — Se não fizer isso agora,
levantarei sem.
— O senhor não deve se levantar, ainda precisa repousar. O ferimento...
— Vou morrer?
— Ainda há riscos, senhor.
— Certo. Recoloque o curativo, por favor. E, enquanto isso, conte-me
como diabos cheguei até aqui.
O médico não estava acostumado a receber ordens de pacientes, mas
Nathaniel não era um paciente comum – era indisciplinado e acostumado a
comandar. Depois de fazer uma limpeza no local da cirurgia, enfaixou
novamente o ombro enquanto explicava o que lhe fora pedido.
— Não sei dizer como chegou até aqui, Sr. McFadden. Mas fui chamado
para o tratar e o senhor estava em péssimas condições.
— Quem o chamou?
— Seu amigo, o Sr. Eckley.
Nathaniel se sentou. Ao menos, tentou se sentar, apoiando as duas mãos
no colchão e erguendo o corpo com alguma dificuldade. Sentiu uma pontada
aguda no braço esquerdo, jogou o peso para o direito e tombou de lado no
colchão. A enfermeira que os acompanhava tentou o ajudar e recebeu um
olhar fulminante que a preveniu de aproximar-se. A dor era excruciante.
— Sr. McFadden, se tentar se levantar, irá sangrar e não poderei fazer
nada para ajudar. Por favor, ouça minhas recomendações e fique deitado.
Precisa que chamemos o Sr. Eckley?
Ele concordou, relutante, apenas assentindo com a cabeça. Deixou o
corpo pender novamente para frente e caiu de bruços, sentindo o ombro
latejar. Como ele estava em posição vulnerável, a enfermeira sentiu-se segura
de aproximar e ofereceu láudano para que bebesse. Qualquer coisa que
fizesse aquela dor horrível passar seria bem-vinda, mas Nathaniel não queria
apagar. Precisava conversar com Leonard porque precisava de notícias de
Lucille.
Permaneceu ali, um pouco desorientado, lamentando seus infortúnios,
enquanto ouvia a enfermeira andar, o médico fechar a porta e então o
silêncio. Enquanto esperava, podia pensar no que fazer dali em diante.
Provavelmente sabiam que era ele quem estava com a filha de Walter Smith,
mas isso seria abafado para evitar o escândalo. Ninguém deveria supor que a
mulher fora sequestrada ou fugiu, todo o processo de resgate foi tratado pelos
criminosos mais sorrateiros de Nova Iorque. O pai de Lucille precisava
garantir que a sua classe social não soubesse de nada, para que nada chegasse
aos ouvidos do futuro marido da filha.
Então, Nathaniel não estava particularmente em risco, mas ele fora levado
para o Gênesis, não para sua casa. Aquilo também significava que seu amigo
não confiava que Walter Smith não fosse tentar retaliar. Eles tinham um
histórico de desavenças passadas, era de se esperar cautela de ambos os
lados.
Mas a possibilidade de deixar Lucille para trás era simplesmente absurda.
Ele não a abandonou nenhuma das vezes em que teve a oportunidade, bem
antes de se envolverem. Se ela não quisesse casar-se com o tal marquês, se
isso ainda não acontecera, ele a ajudaria a cumprir seu plano. Talvez fosse o
sentimento de culpa que o movesse – se não tivesse deixado a luxúria
conduzir suas ações, nada daquilo teria acontecido.
Tempo passou sem que ele percebesse. Deitado em uma posição
incômoda, um minuto tinha a duração de duas horas. A porta do cômodo
onde ele estava alojado se abriu e algumas lamparinas foram acesas. A luz do
dia se esvaía quando a figura taciturna de Leonard ajoelhou ao seu lado. Os
olhos escrutinadores o observaram.
— Você está péssimo.
— Preciso sair daqui, tenho que falar com ela.
Nathaniel tentou usar os braços para erguer o corpo outra vez, sem
sucesso. Sua força se esvaíra e seus músculos não obedeciam a seus
comandos – era efeito do ópio. O maldito láudano, ele precisava parar com
ele.
— Nate, não seja imbecil. Não está em condições nem se se alimentar
sozinho, quanto mais de falar com alguém.
— O que sabe dela? Você tem notícias de Lucille, Leo? Ela já... o noivo
dela já...
— O navio de Londres ainda não atracou, ela deve estar sendo mantida
em casa. O pai não arriscará outra fuga. Vou pedir que preparem um caldo,
você precisa comer alguma coisa.
Leonard saiu e Nathaniel quis gritar. Se estivesse de pé, chutaria alguns
móveis, socaria a parede e se sentiria melhor. Talvez saísse e quebrasse a cara
de algum devedor, mas não podia fazer nada daquilo. Aliás, desde que
Lucille se metera em sua vida ele não pode mais esfolar nem esmurrar
ninguém. Por isso nunca se deixava abater, pois não aguentava ficar em
posição de vulnerabilidade. O amigo retornou algum tempo depois e arrastou
uma cadeira para o lado da cama. Segurava um prato com um aroma
delicioso de qualquer coisa – com a fome que estava, não haveria comida
ruim.
— Coma. — Leo levou uma colherada do caldo à sua boca. Pela posição,
uma parte escorreu, precisando ser contida por um guardanapo. — Isso será
um desastre, mas precisamos continuar tentando.
A insistência de Leonard demonstrava que ele era um bom amigo para
Nathaniel. Os dois compartilhavam um trauma recente que poderia os ter
destruído para sempre e isso os fez bastante unidos. O Eckley tinha uma
compreensão bastante peculiar sobre certo e errado, mas isso nunca os
colocou em confronto direto. Naquele momento, agradeceu por tê-lo ao seu
lado. Quando já estava finalizando a sopa, tendo ingerido pelo menos metade
do líquido, a porta do quarto se abriu novamente e o um empregado do clube
chamou Leonard para cochichar alguma coisa.
— Não sou um inválido. O que está havendo?
— Alguém deseja me ver. — Leo apoiou o prato na mesa de cabeceira e
se levantou. — Deve ser algum problema no salão, já retorno.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO
P ISTOLAS NÃO ERAM sua arma favorita, mas era a escolha mais segura. Pelo
que Millicent o informou, havia dois seguranças permanentes cuidando da
casa dos Smith e ambos estavam armados. Neutralizá-los não seria difícil,
mas Nathaniel não queria derramamento desnecessário de sangue. Por isso,
pediu ajuda a Leonard Eckley para o acompanhar e ajudar com os trâmites.
O plano era simples – eles entrariam na casa e tirariam Lucille de lá. Pela
porta da frente, ignorando qualquer regra de convivência social que pudesse
existir. Se o acusaram de sequestro, antes, então ele agiria como um
sequestrador. A diferença era que a vítima não faria nenhuma oposição a ir
com ele – ao menos era o que esperava. Nathaniel não tinha certeza se Lucille
o acompanharia. Ela poderia não ter coragem o suficiente, mesmo que
duvidasse disso. Ela poderia simplesmente ter mudado de ideia. Mas, se
tivesse, teria mandado o bilhete?
— Você sabe que está arrumando problemas maiores do que poderá lidar.
— Leonard escondeu a pistola no cós da calça e ajeitou o colete.
— Sim, eu sei.
— E sabe que, quando o chefe descobrir, teremos que explicar por que a
filha de Walter Smith foi trazida para cá.
— Leo. — Nate fechou os botões de seu colete, depois de garantir que
seu curativo não estava machado de sangue. — Nenhuma dessas questões me
importa. Se não quiser se envolver, diga-me logo pois terei de conseguir
outra ajuda.
— Claro que vou “me envolver”. Jamais perderia um sequestro-resgate na
casa mais bem protegida dessa cidade. Apenas quero me certificar que está
fazendo isso consciente de todas as implicações.
— Eu nunca ajo inconscientemente.
Duas facas foram adicionadas ao colete, a arma preferida dele. Conferiu
no relógio, passava de meia-noite. Aquele era o horário de maior movimento
no Gênesis e os dois gerentes se ausentariam, secretamente, para cometer um
crime. Não que fosse a primeira vez, eles já fizeram aquilo antes – mas fora
sempre para cumprir ordens, nunca por decisão própria. Cavalgaram até a
residência dos Smith porque era a forma mais fácil de fugir, depois. Nathaniel
sentiu dor, bastante dor, enquanto o cavalo galopava pelas ruas irregulares,
mas a adrenalina o entorpecia – nenhum ferimento seria capaz de desviá-lo
do caminho.
Pararam os animais na lateral da casa vizinha e os amarraram com nós
frouxos. Aquela era uma região muito movimentada durante o dia, mas já
estava tarde demais para o trânsito de pessoas. Uma ou outra carruagem
transitavam, levando os endinheirados para festas, clubes e cassinos, e
ninguém prestaria atenção neles.
— A Srta. Ryan disse que os seguranças ficam dentro da casa.
Provavelmente, temos um em cada porta. Eu vou pela frente.
— E os empregados?
— Espero que estejam do nosso lado, ou que temam nossas armas.
Leonard assentiu, mas estava visivelmente preocupado. Nathaniel nunca
fazia nada sem ter um planejamento extremamente detalhado. Aquele resgate
levaria pelo menos cinco dias para ser organizado, contando com auxílio de
mercenários, suborno dos empregados, estabelecimento de uma rota de fuga
– e ele não pensou em nada daquilo. Tudo que faria seria entrar na casa e
levar Lucille embora.
A porta estava trancada, obrigando-o a arrombar. Usando um grampo de
cabelo, outro objeto que costumava carregar nos bolsos internos, destrancou a
fechadura e empurrou a porta com cuidado, esperando que a escuridão lhe
servisse de manto protetor. Seria ideal que não houvesse confronto, mas ele
estava com muita vontade de bater em alguém. Assim que botou os dois pés
na casa, viu a sombra de um homem se mover e escondeu-se, esperando que
viesse o procurar. Vestido com casaco preto e com uma pistola na mão,
aquele era certamente um segurança contratado por Walter Smith.
Nathaniel pulou sobre ele e colocou a faca encostada no pescoço do
homem, que se assustou e disparou um tiro para trás. Aquele era o alerta que
apressaria a missão. Com um golpe certeiro, ele derrubou a pistola e, em
seguida, derrubou o segurança, pisando sobre sua garganta para garantir que
ele não gritasse. Nenhuma lamparina foi acesa e Leonard apareceu, com os
cabelos desgrenhados e uma corda nas mãos, que jogou para Nathaniel.
— Amarre-o.
— E o outro?
— Tivemos ajuda. Quando entrei, ele estava derrubado com uma ferida
na cabeça. Dois criados bem grandes estavam próximos, vigiando, e me
auxiliaram a amarrar o homem.
— A Srta. Ryan tinha razão, Lucille é adorada por todos. — Nathaniel
deu dois nós para garantir que o homem ficaria imobilizado, com as mãos
para trás e os punhos amarrados nos tornozelos. — Fique aqui, vou encontrar
o quarto dela.
— Não precisa de cobertura?
— Fique de olho no corredor, então.
Os homens subiram as escadas e não enfrentaram nenhuma resistência.
Segundo informações colhidas com Millicent Ryan, o quarto de Lucille
ficava no terceiro andar, virando à esquerda no corredor. Para o quarto dos
pais, a suíte de Walter Smith, bastava virar à direita. Não havia nenhuma
lamparina acesa, eles contavam apenas com a iluminação precária da avenida,
que entrava por uma única janela no final do corredor.
Por não desejar arriscar a integridade física de ninguém, Nathaniel tinha
pressa. Pisou firme pelo piso de madeira, indo na direção indicada, chamando
por Lucille em baixa voz. Leonard ficou de guarda observando qualquer
movimento suspeito. De repente, uma das portas se abriu e ela surgiu no
corredor. Usava um vestido escuro e carregava uma pequena mala – foi tudo
que ele conseguiu ver.
— Nate.
Lucille vagou em sua direção e ele a recebeu nos braços, aliviado. Beijou-
a na testa e indicou que deveriam ir embora, mas o resgate não sairia sem
dificuldades. Quando já estavam no térreo, chegando ao salão de entrada,
lamparinas foram acesas e uma voz masculina gritou nos andares superiores.
— O que diabos está havendo aqui?
Era Walter Smith. Nate teve certeza ao ver como Lucille arregalou os
olhos ao ouvi-lo.
— Vá para a porta. Leonard espera lá fora.
— Nate…
— Prometo que não vou matá-lo.
Ele precisava prometer aquilo, ou não saberia se conseguiria confrontar o
Smith sem acabar-lhe com a vida. Como um tigre saltando sobre a presa,
Nathaniel encurralou o pai de Lucille descendo a escada e o derrubou no
chão, colocando a pistola apontada para sua testa. O homem arregalou os
olhos e tentou gritar, mas Nate apenas balançou a cabeça indicando que era
melhor que não o fizesse.
Poderia dizer que sonhou com aquela oportunidade, com a chance de
meter uma bala na cabeça de Walter Smith, mas não poderia fazê-lo. Piscou
algumas vezes e desarmou o gatilho.
— Não tente pegar sua filha de volta. Ela só retorna para essa casa se
quiser. Venha atrás dela e eu arrancarei sua pele e pendurarei para secar no
Central Park.
Como planejado, Nathaniel saiu pela porta da frente e encontrou Lucille e
Leonard com os cavalos. Era o máximo de afronta possível, apenas
lamentava que Nova Iorque inteira não fosse ver. Se um dia Nathaniel temeu
envolver-se com aquele homem, se ele desejou não ter nenhum confronto
com ele, antes, não se importava mais com aquilo.
— Vamos nos separar. — Disse, para Leonard. — Pegue o caminho pela
Quarta e eu sigo pelo Central Park.
O amigo concordou. Nathaniel segurou a mão de Lucille, que
demonstrava bastante entusiasmo em o seguir. Fez com que ela subisse em
Zeus, o cavalo que escolhera para a fuga, e montou logo em seguida. Um tiro
foi disparado no vazio, vindo da mansão dos Smith. Por sorte seu inimigo não
era um bom atirador, ou ele seria alvejado pelas costas novamente.
Zeus era rápido e Lucille precisou agarrar-se com força ao colete de
Nathaniel para manter-se equilibrada. Ele sentiu dor, sentiu o ferimento
latejar, mas não podia parar de correr.
— Para onde estamos indo? — Ela perguntou, erguendo a face para olhá-
lo.
— Para o Gênesis. É o único lugar onde posso oferecer segurança a você.
— Ele virá atrás de mim.
— Ele não ousará, eu deixei bem claro o risco que ele correria se viesse.
Apesar do que sentia, do que preferia não sentir, do que seu coração, duro
e frio como pedra, gritava, ele manteria o plano que ela traçara, antes. Se
Lucille queria fugir para a Inglaterra, ele lhe concederia aquela oportunidade.
Como uma demonstração de alívio, ela afundou a face em seu peito e o
envolveu com os dois braços.
Quando chegaram ao Gênesis, foram direto para a parte dos fundos.
Aquele era o território de Nathaniel, ele nunca seria afrontado em sua própria
casa. Ajudou Lucille a descer, entregou o cavalo para o empregado que
cuidava das montarias e a levou para o quarto andar, pela escada secreta de
acesso. Apenas eles conheciam aquele caminho e ninguém, além deles,
possuía as chaves.
O corpo foi vencido pelo ferimento assim que chegaram aos aposentos de
Nathaniel. Ele mal terminou de subir as escadas e desabou ao chão.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO
O G ÊNESIS ERA SEU IMPÉRIO , MESMO QUE NÃO LHE PERTENCESSE . E LE SEMPRE
se sentiu como um rei naquele castelo que ocupara com autorização do dono.
E, com os braços cruzados olhando para o salão, soube que encontrara sua
rainha. Lucille girava com a amiga, Millicent, por entre as mesas e parava
para assistir os mais estranhos tipos de jogos. Alguns homens as olhavam de
forma lasciva e Nathaniel quis pular sobre seus pescoços e quebrar-lhes os
narizes todas as vezes, mas sabia que, de alguma forma, elas estavam
seguras. Não era permitido prostituição no cassino - para isso havia o
segundo andar.
Isaac parou ao seu lado, segurando um copo de uísque na mão. Ele não se
lembrara de ver o irmão beber tanto, mas precisava aceitar que Isaac estava
confuso e ele não ajudara em nada a estabelecer alguma paz de espírito
depois da chegada de Londres. Durante o jantar, conversaram sobre Emile,
sobre sua esperança de o encontrar vivo, e o irmão não pareceu compartilhar
de seu otimismo. Nem ele estava mais tão crente em suas convicções, mas, se
não fossem elas, o que restaria?
— Ela me lembra Caroline. — Isaac disparou, bebendo um gole do seu
melhor malte.
— Ela não tem nada a ver com Caroline.
— Ah, meu irmão, você conhece muito pouco da minha esposa. Caroline
é muito mais do que uma libertina que joga, fuma charuto e bebe uísque. Ela
possui um espírito indomado, uma alegria constante, um jeito especial de nos
colocar as rédeas e nos guiar pelo caminho que ela deseja seguir.
— Ela é uma Eckley.
— Integralmente. — Isaac sorriu. — Sua Lucille também é assim.
— Ela não é minha, achei que isso já estivesse estabelecido.
Sim, era. Nathaniel já decidira aquilo, mas não tinha coragem de dizer a
ela, ou a qualquer outra pessoa. Mesmo que ela fosse embora - o que
aconteceria no dia seguinte, continuaria sendo dele enquanto ele existisse.
— Parece-me que você conhece bem pouco da natureza dos McFaddens,
também. Você é meu irmão, Nate. Mesmo que tenha se desviado totalmente
do caminho, ainda é o meu melhor amigo e eu te conheço bem o suficiente
para saber que você está apaixonado por ela.
— Você bebeu demais. — Nathaniel pegou o copo da mão do irmão e
colocou sobre o balcão do bar.
— Pode tentar se enganar e inventar desculpas para que a verdade seja
menos verdadeira. Eu também demorei um pouco a admitir que amava
Caroline.
— Você? — Ele deu uma risada. — Nunca vi um homem tão facilmente
capturado pelo amor, meu irmão. Você é honesto demais, sincero demais,
para se enganar por qualquer coisa.
— E quanto a você, o que o impede de ficar com ela?
— Não sou o homem certo para ela.
— Por que não acredito nisso?
Nathaniel virou-se para o irmão, os braços novamente cruzados no peito.
Ele e Isaac tinham praticamente a mesma altura, apenas um ano os separava
em idade, e, ainda assim, eram tão diferentes fisicamente. Isaac era como
uma pintura renascentista, um anjo loiro e de olhos tão azuis quanto o oceano
das Américas. Ele era perfeito, por fora e por dentro.
— Isaac, eu não me tornei um homem honrado. Eu fui treinado para ser
um soldado e minha missão não é lutar por meu país - não que eu ache
guerras de alguma utilidade. Eu sou um cobrador de dívidas e os devedores
me pagam por bem ou por mal. Meu dinheiro é sujo, cheira a sangue. Eu
matei meu irmão. O que acha que eu posso oferecer para uma mulher como
ela?
Os dois se viraram para onde Lucille estava. Ela vibrava porque
Millicent, que sentara em uma mesa de carteado, ganhou algumas fichas. A
maluca nem tinha dinheiro para fugir, mas estava apostando. Pelo menos,
estava ganhando. E, se perdesse para a casa, o dinheiro certamente retornaria
para ela.
Como se atendesse a um chamado silencioso, Lucille ergueu a cabeça e
olhou para eles. Seus olhos encontraram os dela e a sensação era de
reconhecimento. Familiaridade.
— Eu não a conheço o suficiente. Mas não deveria perguntar o que ela
quer?
Talvez ele devesse. Isaac estava sempre certo e aquilo era bastante
irritante, mas Nathaniel estava muito feliz que o irmão estivesse ali.
Acostumou-se a ter a família longe e perdera Emile na primeira oportunidade.
Não acreditava que pudesse perder Isaac.
— Ela tem planos. Sonhos. Amanhã eu garantirei que ela embarque em
um navio e alcance seus objetivos.
— Certo. Não vou insistir, Nate, mas eu te amo e não quero vê-lo sofrer.
Você poderia perguntar se, apesar dos planos e sonhos que Lucille tem, ela
não gostaria de realizá-los ao seu lado.
— Você nunca para de falar, não é mesmo?
— Não, é por isso que sou um ótimo administrador e as mulheres da
família me adoram. Mas agora estou exausto. Eu dormirei aqui, no meio do
vício e da promiscuidade, ou você me levará para sua casa?
— A escolha é sua, mas não posso tirar Lucille daqui. Fora do Gênesis eu
não garanto a sua proteção.
— Pegarei um carro e irei para sua casa. Converse com a mulher, se não
por você, mas por respeito a ela.
Isaac virou-se e descruzou os braços de Nathaniel para poder abraçá-lo. O
irmão não se importava em demonstrar sentimentos, mesmo que fizesse
aquilo à custa de sua masculinidade. Depois de o ver sair pela porta,
Nathaniel recostou em uma pilastra e voltou a observar as mulheres jogando.
Se soubesse que encontraria uma mulher como Lucille, ele nunca teria
tomado as decisões erradas que tomou. Nem teria se desviado tanto da
moralidade e da decência quanto fizera naquele ano.
Mas ele era um homem quebrado, amaldiçoado e não a submeteria à sua
vida de degradação. Por ela, ele gostaria de ser um homem melhor, mas não
era.
B ATIDAS À PORTA fizeram com que Nathaniel saltasse da cama segurando sua
pistola. Lucille continuava dormindo ao seu lado, enrolada nos lençóis. Se
houvesse um caderno de anotações de primeiras vezes, ele poderia tomar nota
de todas as vezes que aquela mulher tirara dele a virgindade e a virilidade.
Não podia afirmar que fora uma noite casta - ele a beijou até à exaustão, até
quase cansar-se da boca dela. Pensou que poderia arrancar Lucille de si à
força, esgotando-a, mas os beijos serviram apenas para o fazer desejá-la ainda
mais.
— Quem é?
— Sr. McFadden, o chefe pediu que fosse até seu escritório.
— Avise-o que estou descendo.
— Ele insistiu que fosse rápido.
O chefe sempre queria tudo em seu tempo. Esperava que não fosse
nenhum problema grave com devedores insubordinados, pois, apesar de ter
dito a Lucille que estava pronto para qualquer desafio, ele ainda se sentia
dolorido demais para enfrentar homens com seus punhos. Pretendia manter-
se afastado das cobranças por pelo menos mais uma semana.
Enfiou-se em suas calças, vestiu uma camisa branca e um colete cinza,
escovou os dentes, lavou o rosto com água fria e penteou os cabelos.
Parecendo-se demais com um McFadden, considerou que mandaria alguém
buscar seu irmão para que pudessem passar o dia juntos. Apesar do cuidado
para não acordar Lucille, ela despertou antes que conseguisse sair do quarto.
— Já vai trabalhar? — Aquela voz rouca, de quem acabara de acordar,
fez com que o corpo dele reagisse.
— O chefe precisa falar comigo, vou ao escritório dele. Continue
dormindo.
Ele não se virou para olhá-la, nem a cumprimentou adequadamente. Se
fizesse aquilo, não conseguiria sair do quarto, não conseguiria atender o chefe
no tempo exigido. A presença disponível de Lucille fazia com que ele
continuasse a desejando, mesmo sabendo que estava prestes a desistir dela.
Abriu a porta sem bater, sabendo que era aguardado, e parou subitamente
ao ver um rosto bastante conhecido - e totalmente inesperado. Sentado em
uma poltrona, bebendo o melhor conhaque do chefe, estava Thaddeus
Pinkterton, o herdeiro do Marquês de Hertford.
— O que diabos está havendo aqui?
Ele disse, sem se preocupar em cumprimentar ninguém. Gostava de Thad,
eles eram amigos e passaram bons momentos juntos, na juventude. Mas
Nathaniel não era mais o mesmo homem e não sabia se Lorde Pinkerton
também o era.
— Sente-se, Nate. Temos assuntos a tratar.
O chefe indicou uma cadeira, mas Nathaniel apenas segurou o encosto
com as duas mãos. Observando os dois homens, uma realização o atingiu
como um raio em dia de tempestade - o marquês de Lucille era Hertford. O
pai de Thad, que era viúvo há anos, e poderia perfeitamente estar à beira da
falência. Todas as informações condiziam com a história contada por Lucille,
e Hertford era realmente desagradável.
— É um prazer revê-lo, Nate. — Pinkerton ergueu a mão para
cumprimentá-lo, mas ele permaneceu imóvel. — Meus sentimentos por seu
irmão. Emile era um ótimo homem.
— O que você está fazendo aqui, Thad? Por que fui convocado para essa
reunião?
— Bem, percebo que você não está interessado em conversar. Então,
vamos aos negócios. Eu vim buscar minha noiva.
As sobrancelhas de Nathaniel se uniram sobre o nariz e ele fitou o amigo
por longos segundos. As palavras não eram críveis o suficiente para que ele
as compreendesse.
— Não faço a menor ideia do que esteja falando.
— Meu pai faleceu há dois meses. Deixou dívidas praticamente
impagáveis. Se eu quiser recuperar o marquesado, precisarei vender
praticamente todas as propriedades alienáveis e isso nos colocará em ruína
absoluta - pois não haverá nada mais para produzir lucro.
Nathaniel caminhou lentamente até o armário de bebidas e serviu-se de
uma generosa dose de conhaque.
— E você decidiu assumir o contrato de casamento de seu pai.
— Parece ser a alternativa mais razoável. Ela é jovem e carrega um dote
absurdo.
Ele olhou para o chefe, que se mantinha expectador até aquele momento.
— O que você tem a ver com isso? Por que está se envolvendo? Aliás,
como diabos você sabia que ela estaria aqui, Thad?
— Toda Nova Iorque sabe, Nate. — O chefe disse, mas Nathaniel sabia
que ele mentia. Toda Nova Iorque podia saber, mas não era aquele o motivo
de Thaddeus Pinkerton estar em sua sala. — Você garantiu que a reputação
dela estivesse definitivamente arruinada.
— Mas, pelo visto, não o suficiente para que Thad desista dela.
— Aonde ela está?
O marquês deu dois passos na direção de Nathaniel e ele sentiu que um
confronto se aproximava. Nunca vira Thaddeus resolver nada com os punhos
ou suas armas, o homem sempre fora um diplomata nato. Não se alterava,
não elevava o tom de voz, não desafiava. Mas ali, naquele momento, o peso
das acusações fez com que os dois homens se estranhassem.
Não que Nathaniel fosse se incomodar com aquilo. Ele poderia destruir
Thad com uma mão nas costas, mesmo que não quisesse ferir o amigo.
— Em algum lugar.
— Você não quer mesmo brigar comigo, Nate. — Thad colocou as duas
mãos no colarinho meio aberto de Nathaniel e fingiu que ajeitava o tecido,
mas todos sabiam que o toque significava uma ameaça. — Sabe que eu
sempre fui melhor lutador que você.
— Isso foi antes de eu me tornar o melhor cobrador de dívidas de Nova
Iorque, Thad.
Nathaniel respondeu à provocação, disposto a atacar primeiro. Mas, antes
que pudesse mandar o novo marquês para o inferno, a porta do escritório
abriu-se novamente e Leonard entrou, junto com Lucille. Ele fechou os olhos
e praguejou internamente. Tudo que não precisava era que ela estivesse ali.
Com os olhos vagueando entre as faces dos homens presentes, Lucille se
aproximou dele e o tocou no ombro. Nathaniel se controlou para não a
envolver nos braços e afastá-la do olhar de Thad, que permanecia ao seu lado
e escrutinava a mulher como se ela fosse um objeto raro em exposição. Mas
não podia fazer aquilo. Primeiro, porque as decisões sobre os homens de
Lucille deveriam ser dela própria. Segundo, porque ele precisava considerar
que Thaddeus Pinkerton seria um marido perfeito.
Ao invés de deixar seus ciúmes irracionais o controlarem, Nate pegou a
mão dela de seu ombro e, olhando sempre em seus olhos castanhos e
confusos, beijou os nós dos dedos.
— Lucille, o navio que trouxe meu irmão ontem também trouxe seu
noivo de Londres.
Ela piscou várias vezes, como se precisasse clarear a visão.
— Você me disse isso, ontem. Mas seu olhar me faz pensar que há uma
novidade em relação a essa informação.
— A novidade é que estávamos enganados. O homem com quem seu pai
tratou previamente era o Marquês de Hertford, mas ele faleceu há dois meses.
Os olhos de Lucille se arregalaram e ela o encarou com surpresa, talvez
alívio. Ninguém interferiu na conversa dos dois porque qualquer um ali sabia
do que Nathaniel era capaz para defender algo com que ele se importasse - e
certamente era bastante óbvio para seus amigos que ele se importava com
aquela mulher.
— Então, como ele veio de Londres?
— O novo Marquês de Hertford veio negociar para assumir o lugar de seu
pai. Ele é o homem que está de pé ao seu lado, segurando um copo de
conhaque.
Ele se forçou a sorrir, garantindo que ela se sentisse segura para virar a
cabeça e olhar.
O PESCOÇO de Lucille virou para a direita e ela precisou de uma força que não
sabia que tinha para evitar que sua boca se abrisse. O homem que estava de
pé, ao seu lado, prestando atenção excessiva na sua conversa com Nathaniel
era jovem, talvez por volta dos trinta anos, com cabelos escuros como os dela
e olhos tão azuis quanto o céu na primavera. Ele tinha feições masculinas,
sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Tão lindo quanto o Paraíso deveria
ser.
Lucille sentiu-se zonza quando seus olhares se encontraram. O marquês
bebeu seu conhaque e sorriu. Nathaniel hesitou, mas soltou a mão dela e deu
alguns passos para trás. Ela entendeu que ele a deixaria se apresentar ao seu
futuro ex-noivo, ao homem a quem não sabia que estava prometida.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Srta. Smith. — Ele segurou sua
mão, que ela não lembrava ter estendido, e beijou. Lucille sentiu um arrepio
em sua coluna. — Sou Thaddeus Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Ela enrijeceu ao olhar diretamente para o azul transcendental dos olhos do
marquês.
— Você não deveria ter trazido Thad aqui. — Leonard rosnou para o
chefe.
— Claro que eu deveria. Nathaniel precisa resolver essa questão e
entregar logo essa mulher antes que ele perca a cabeça de uma vez.
— Não falem de Lucille como se ela não estivesse aqui. — Nate também
rosnou. A relação entre eles não parecia de hierarquia. — E eu não vou
entregar ninguém, ela não é minha para que eu a mantenha.
— Mas você deseja mantê-la, esse é o problema. — O chefe insistiu.
— Isso não deveria ser um problema seu.
— Passou a ser quando você a trouxe para meu clube.
— Se o problema é esse, então vamos embora. Você traiu minha
confiança.
— Eu? Deveria conversar com Leonard sobre isso, afinal, como acha que
os capangas de Walter Smith a encontraram?
Lucille afastou-se da conversa e observou o que acontecia. Leonard
passou o braço na testa, limpando suor que se acumulou ali. Nathaniel o fitou
com fúria assassina, como se a confirmação daquela informação pudesse o
levar a matar o melhor amigo.
— O que isso significa?
— Eu não contei nada a Walter Smith. — Leonard murmurou, mas algo
em sua voz indicava que ele mesmo acreditava em sua traição.
— Contou a quem?
— A mim. — O chefe disse. — Ele se preocupa com você, assim como
eu. Tive de me envolver ou você acabaria causando mais confusão. Deixe-a ir
com o marquês, Nathaniel.
Ele deu alguns passos na direção do chefe e se colocou na frente dele,
agarrando-o pela camisa. Pela forma como Leonard o olhou, não esperava
aquela reação. Apesar da falta de hierarquia, havia respeito - ou medo - que
os mantinha em uma posição de resignação com tudo que o chefe fazia. Mas
as mãos de Nathaniel estavam no colarinho perfeitamente engomado de
Nolan Fitzgerald e ele quase ergueu o homem do chão. Para um homem
esguio como Nate, Lucille não achava que ele seria tão forte.
— Não diga que você contou a Walter Smith onde estávamos. Não diga
que você colocou a vida dela em risco em quase me matou, Nolan!
Outra reação surpresa de Leonard - como se falar o nome do chefe, gritar
com ele ou ameaçá-lo de, de qualquer forma, fosse mais grave do que torturar
pessoas. Lucille e o marquês apenas observavam a contenda, ela bastante
nervosa com o desenrolar dos fatos.
— Não direi, se preferir assim.
— Você é um maldito! Por que diabos fez isso? Por que ajudar aquele
animal que nos largou para morrer?
— Ele não é um animal, Nathaniel! — O chefe se soltou e ajeitou a
camisa. — Ele é um visionário e nosso principal investidor.
— Investidor? — Foi Leonard a se surpreender.
— Sim. Walter Smith empenhou muito dinheiro no Gênesis. Que pai não
teria orgulho de um filho de sucesso, como eu?
A palavra “pai” poderia ter sido mal compreendida, ou poderia se perder
entre outras, mas pareceu atingir Nathaniel como se fosse outra bala
disparada. Ele deu dois passos para trás, cambaleando, e olhou para o chefe
por longos segundos até desaparecer pela porta. Lucille quis correr atrás dele,
mas seus pés estavam fincados no chão como se tivessem criado raízes.
— Você sabe que acaba de o perder, não sabe? Que diabo é isso? Como
você pode ser filho de Walter Smith?
Leonard não pareceu importar-se em discutir aquilo na frente deles. O
marquês permaneceu em silêncio, observando.
— É um risco que precisava correr. Vocês achavam que estão vivos
porque eu enfrentei Smith? Vocês ficaram vivos porque eu pedi e ele me
permitiu mantê-los. Nunca esqueça a quem deve sua vida, Leonard.
Lucille piscou mais algumas vezes, como se o ato pudesse melhorar sua
audição.
— O que o senhor disse?
Sorrindo, o chefe se aproximou.
— Sabe de onde acha que me conhece, Srta. Smith? Se procurar nas
caixas de recordações de sua mãe, talvez descubra. Dizem que filhos
bastardos nascem muito parecidos com seus pais porque, assim, eles
carregam a lembrança constante do pecado que os gerou.
Lucille desabou na poltrona que, por sorte, estava próxima de si. As
novas verdades que foram reveladas para ela acabaram sendo intensas
demais, chocantes demais.
— Então o senhor é meu irmão. — Ela repetiu. — Sempre soubemos que
meu pai era infiel à minha mãe, mas…
— Não fiz o que fiz por mágoa de Walter Smith. — O chefe explicou. —
Não guardo nenhuma. Na verdade, esses dois só estão vivos porque eu os
quis alistar para o Gênesis - nosso pai sabe e se orgulha de meus negócios.
Ele não pode me reconhecer por uma questão legal, mas sempre disse que
sou o filho que ele gostaria de ter ao seu lado.
Certamente era. O irmão mais velho de Lucille era um homem sensível e,
quando teve a oportunidade de ir embora de casa, desapareceu praticamente
sem deixar vestígios. Ela soube que ele estava no sul, mas nunca recebera
uma carta dele e sabia que o pai o deserdara depois do casamento.
Aquele homem ali era tudo que Walter Smith desejava em um herdeiro -
força, determinação e nem uma gota de arrependimento por suas ações.
Leonard passou pela porta como um tornado e a deixou sozinha com dois
desconhecidos - nos quais ela não sabia se podia confiar. Mas sentir medo
não era uma opção.
— Milorde, eu lamento que nos conheçamos nessas condições, com
tantas revelações para perturbar esse encontro. Mas eu preciso dizer que não
tenho intenção de honrar o acordo que meu pai fez com o seu.
Lorde Pinkerton sorriu, devastadoramente lindo. Havia algo nele que a
atraía, fazia com que seus olhos se fixassem em seu rosto perfeito.
— E eu não tenho intenção de arrastá-la à força, Srta. Smith. Mas ficarei
em Nova Iorque por mais alguns dias e gostaria de ter a oportunidade de lhe
fazer a corte.
Com extrema gentileza, o marquês segurou novamente sua mão e a
beijou, permitindo que ela sentisse o calor de seus lábios, e saiu.
CAPÍTULO VIGÉSIMO
H ERTFORD NÃO PARECIA satisfeito com a cena que presenciara. Nathaniel não
podia se importar menos, mas ele se sentiu no dever de oferecer-lhe
satisfações, pelo bem de Lucille. Depois de a beijar como se aquela fosse a
última vez, ele a protegeu atrás de si e se aproximou do marquês, que os
encarava com os braços cruzados no peito.
— Nós vamos desembarcar.
— Parece-me que eu devo resistir e tentar impedir que isso aconteça.
— Não há nada que possa fazer para me impedir de descer com minha
mulher desse navio, Hertford. Encerremos isso como dois cavalheiros, aceite
a derrota. Sei que precisa salvar seu marquesado, mas Lucille merece mais
que isso, não acha?
O marquês assentiu. Claro que ela merecia e ele sabia que não poderia
oferecer a ela tudo que ela queria. Nem Nathaniel.
— Espero que saiba o que está fazendo. Não tem medo de a destruir?
— Sim, eu tenho.
E ele gastaria todos os seus dias lutando contra a escuridão para garantir
que Lucille só tivesse luz em sua vida. Esperava que o amor que sentia fosse
suficiente para mantê-lo no rumo. Segurando-a pela mão, com os dedos
entrelaçados, ele a conduziu pelo navio sob o escrutínio de Hertford e de
todos os passageiros já embarcados, enfrentou o assombro dos passageiros
subindo a rampa e o alvoroço da multidão no porto.
Hades permanecia imóvel onde fora deixado. Ele montou e ofereceu a
mão para que Lucille o acompanhasse. Assim que ela subiu no cavalo, que
demonstrou sua satisfação com um relincho, Nathaniel a segurou em seus
braços e a beijou outra vez.
— Para onde vamos, agora?
— Para casa. Minha casa. Nossa casa.
— O que o fez mudar de ideia? — Ela se acomodou no espaço entre seus
braços e deitou a cabeça em seu ombro.
— Eu nunca mudei de ideia, Lucy. Sei que, no final, não permitiria que se
casasse com nenhum outro que não eu. O que eu disse antes era mentira. Fiz
para lhe magoar, para que me odiasse e se afastasse de mim.
— E se tivesse dado certo?
— Você poderia viver feliz do lado de Hertford. — Era uma constatação
que ele se recusava a admitir.
— Não viveria, não. — Ela o beijou no pescoço e Nathaniel quase parou
o cavalo e a arrastou para uma alcova qualquer. — Eu jamais seria feliz em
um casamento sem amor. E eu jamais poderia amar o marquês porque seria
incapaz de parar de te amar, Nathaniel McFadden.
Ele sorriu. O sabor da vitória era agridoce, mas Nate queria saboreá-lo
assim mesmo. Amá-la era glorioso, ser amado por ela era como ser alçado ao
Paraíso.
— Meu pai virá atrás de mim.
— Não virá. Resolveremos esse problema hoje mesmo.
— Arruinar-me publicamente outra vez é um plano ruim. — Ela riu e o
beijou novamente, exatamente ali onde seu coração pulsava.
— Não pretendo a arruinar, pretendo torná-la minha esposa.
Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Mas ninguém consegue casar-se tão rapidamente.
— Bem, o segundo e o terceiro filhos de um conde que tem excelentes
negócios espalhados pela Europa, que fornece peças de navio para duas
empresas americanas e que está prestes a investir uma grande soma de
dinheiro na cidade de Nova Iorque, conseguem coisas que poucas pessoas são
capazes de obter. Tenho certeza de que, assim que chegarmos, Isaac estará
segurando uma permissão de casamento.
— Céus, isso é muito romântico.
Ela deu uma risada sincera. Hades trotava para casa, daquela vez sem
pressa, e eles podiam conversar. Era o que faziam melhor até aquele
momento - discutir durante viagens.
— Tem razão, não posso apenas dizer que vamos nos casar. Preciso fazer
a proposta adequadamente.
Nathaniel puxou o arreio e Hades parou no meio da Quinta Avenida.
Apeou do cavalo e desceu Lucille, segurando-a pela cintura. Garantindo que
não corriam o risco de ser atropelados por uma carruagem ou carro que
passasse, ajoelhou-se à frente dela, segurando uma mão entre as suas.
Algumas pessoas pararam para ver o que faziam.
— Qual é seu nome do meio?
— Amelia.
— Certo. Lucille Amelia Smith, você aceitaria tornar-se minha esposa?
Por favor, não seja razoável ou decente, diga sim.
Ela deu uma gargalhada sonora, jogando a cabeça para trás. Era a mulher
mais fantástica que ele já tivera a oportunidade de conhecer e tudo que ela
fazia o encantava. Faria qualquer coisa para vê-la rir todo dia. Aquela era a
maldição dos enamorados, adorar e venerar cada detalhe da pessoa amada.
— Qual é o seu nome do meio?
— William.
— Então sim, Nathaniel William McFadden. Eu aceito casar-me com
você, principalmente se for hoje ainda.
CAPÍTULO VIGÉSIMO TERCEIRO
W ALTER S MITH não podia acreditar que sua filha se casara com um pária. Ele
a prometera a um marquês, ele investira uma fortuna na criação da maldita e
ela o traíra pelas costas, apunhalando-o da forma mais vil e cruel que poderia
existir. E ainda tivera a coragem de enviar-lhe um bilhete, uma nota
informando seu casamento com o tal McFadden.
Ele sabia que aquele homem era um problema desde que o trancara
dentro daquela cela para morrer. Ninguém tão resistente à dor e à tortura
poderia ser boa coisa. Mas o filho se encantara por ele. Dizia que poderia
transformá-lo em um soldado. Em alguém que lhe daria lucro. Se Walter
Smith tivesse simplesmente matado o maldito, não estaria passando por
aquele tormento.
Sentou-se em sua mesa, sentindo aquela ardência no peito. Já eram vários
dias com uma fermentação estranha no estômago e uma dor constante que
irradiava pelo braço. O médico disse que era indigestão, passou um tônico,
mas a dor não melhorara. Tivera certeza, naquele momento, que a filha o
estava matando. E Constance, a esposa sempre servil e inútil, desaparecera.
Provavelmente estava acompanhando a desgraçada nos festejos do
casamento.
Serviu-se de uma dose de conhaque e examinou o bilhete mais uma vez.
Ele não toleraria aquela ofensa. Nenhum homem poderia desafiar Walter
Smith daquela forma - ele mataria o maldito, mesmo que isso fosse
desagradar seu filho. Pegou o telefone para ligar para seu capanga preferido.
Alguém que pudesse matar causando o máximo de dor possível, alguém que
pudesse fazer o McFadden pagar.
Não conseguiu levar o telefone ao ouvido. O aparelho caiu ao chão e a
dor se intensificou. Precisava de outro médico e de tônicos melhores.
Levantou-se para tocar a sineta e chamar os empregados, mas não deu dois
passos antes de desabar sobre o tapete persa. A cada respiração, a sensação de
ardência aumentava até que ele não conseguiu mais respirar. Quando o ar
desapareceu de seus pulmões, a escuridão o envolveu.
Walter Smith teria a sua vingança, mesmo que levasse algum tempo. Ele
veria o McFadden no inferno.
NOTAS
CAPÍTULO NONO
EPÍLOGO #1
PRÓLOGO
1 1 Deus da cura e das doenças, também conhecido pelos povos da região como o deus
oposto ao Grande Espírito. Por minhas pesquisas, é o deus que mais ouvia as preces dos
nativos e foi muitas vezes confundido com o Diabo, mas essa era uma leitura incorreta - os
povos nativos não distinguiam deuses por bem e mal, como os brancos.
2 2 Powwow é palavra algonquina para xamã, lider espiritual dos povos da região. Até
hoje, em Long Island, no território Shinnecock, há o festival Pow-wow que é aberto ao
público e festeja a cultura do povo.
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO SEGUNDO
CAPÍTULO TERCEIRO
1 10 Manitou é a palavra usada pelos povos nativos da região para indicar o divino, o
espírito dos deuses. Havia manitou em tudo que eles consideravam sagrado ou milagroso, a
natureza praticamente inteira era manitou.
CAPÍTULO NONO
Q UANDO E MILE DECIDIU VISITAR o irmão em Nova Iorque, ele queria apenas
viver novas experiências. Toda a sua vida fora regrada, controlada e
cuidadosamente planejada - e ele estava cansado de tudo aquilo. Aos vinte e
sete anos sentia como se não tivesse vivido nada. Quase todos os irmãos
estavam encaminhados, trabalhando, casados e com filhos. Todos os amigos
também estavam se encaminhando - os primeiros filhos assumiam suas
responsabilidades com seus títulos e os que eram como ele, com sangue azul
e nenhum título, trabalhavam nas empresas dos irmãos. Porque a nobreza,
falida, se rendera à burguesia e passara a conviver pacificamente com os
plebeus, desde que fosse o dinheiro que os unisse.
E ele continuava sendo visto como o menino doente da família. Emile não
era mais doente. Ele sobreviveu, cresceu e se desenvolveu. Naquela idade era
de se esperar que a família não temesse que ele fosse morrer a cada inverno,
ou que fosse se partir como cristal com qualquer toque - mas todos ainda o
percebiam como o bebê prematuro que fora desenganado pelo médico no
instante de seu nascimento.
O que ele não esperava era que seu irmão, Nathaniel, o terceiro filho de
um conde, estivesse envolvido com jogos e crimes. Esperava que Nate o
ajudasse com suas angústias, mas o encontrou submerso na devassidão e em
tudo que considerava imoral. Também não esperava que a vida bandida do
irmão o colocasse entre a vida e a morte depois de uma disputa com um
devedor.
Emile não se lembrava muito bem como seguiu Nathaniel e por que
interferiu quando ele ameaçou a vida do devedor. O que estava em sua mente
com muita clareza era o cano frio de uma pistola e o grito que se seguiu.
Emile! Seu nome, a expressão horrorizada do irmão e a queda. Ele caiu, caiu
até atingir o frio abismo do oceano e ser sugado pelas correntes escuras do
Brooklin. O cheiro de sangue e pólvora desapareceu, assim como o ar de seus
pulmões. O vazio o engoliu, a escuridão o silenciou e Emile adormeceu em
um sono profundo.
Aquele era seu destino - nascer e morrer sem viver nenhuma aventura.
Sem conhecer nada da vida real, sem explorar o mundo, sem experimentar
sabores exóticos ou conhecer o calor dos trópicos. Ele teria que aceitá-lo,
pois a morte o chamava para mais perto a cada segundo - uma voz suave que
o fazia nadar nas profundezas em direção à luz. Havia luz, um ponto pequeno
que ficava maior a cada braçada. Não, ele não estava nadando, estava sendo
conduzido pela mão misteriosa e gelada da figura que sussurrava em seus
ouvidos.
— Venha para a luz. Siga-me, venha comigo, deixe-me guiá-lo.
Aos poucos a dor cedia e os aromas voltavam às suas narinas. A morte
não parecia tão ruim, ela tinha cheiro de terra molhada e flores. A morte era
como um jardim de primavera, depois que ele e Wilhelmina se sentavam
entre as rosas e lírios da mãe e cuidavam das ervas daninhas. A morte tinha
cheiro de casa, então ele soube que tudo ficaria bem.
F ORAM quatro luas desde que Hurit encontrara o homem na costa do território
Shinnecock. Ela parou de contar depois da terceira noite sem dormir, mas sua
amiga Wapun não permitia que ela esquecesse do tempo passando. Não
choveu mais, ao contrário, fez um sol típico da primavera - mas eles estavam
entrando no outono. A cabana estava quente e o homem não podia mais ficar
enrolado no cobertor - a cada dia a febre dele diminuía e os calafrios não
eram mais frequentes. As janelas ficavam constantemente abertas, mesmo
que Hurit pensasse que, a qualquer instante, Hoobamack entraria e levaria o
homem com ele. Não, não levaria - o deus só apareceria se fosse para curá-lo.
Porque Wematin estava certo, aquele homem não morreria.
Ela saiu de casa três vezes. Foi até Kitchi, seu noivo, explicar as razões
pelas quais um homem estava nu em sua cama. A nudez não tinha, para eles,
a mesma representação que para os brancos. Era intrigante o excessivo pudor
das mulheres e dos casais invasores, eles mal podiam tocar-se durante todo o
período da corte. Quando jovem, Hurit frequentemente tinha crises de riso
com as amigas, imaginando por que as brancas usavam tantas roupas e nunca
se aproximavam dos homens. Não que elas tivessem experimentado a
liberdade vivida por suas antepassadas. A cultura dos brancos era aniquilante
- eles obrigavam os Shinnecocks a seguirem seus padrões até que, com o
passar do tempo, a maior parte de seu povo esqueceu-se de como era, antes.
Mas, na aldeia, as mulheres eram bem mais livres que na cidade.
Ainda assim, havia um homem em sua cabana e ela devia explicar os
motivos que a levaram a abrigar o inimigo. Kitchi, o escolhido para governar
ao seu lado, era compreensível mas Hurit não desejava abusar da sorte. Nas
outras duas vezes, buscou comida na horta comunitária que as mulheres
cuidavam. Nenhuma delas conversava direito com Hurit, pois a presença do
invasor não era bem vista por boa parte da tribo. Exausta, ela não tinha forças
para discutir ou chamá-las de tolas. Ninguém ali detestava mais os forasteiros
que lhes tomaram tudo do que ela, então não havia motivo para que a
desprezassem por cumprir o desejo dos deuses.
No quinto dia, a febre cedeu totalmente. Quando ela se aproximou da
cama para medir a temperatura, o corpo dele estava frio. Por um instante,
Hurit paralisou ao imaginar que ele estivesse morto, mas o sangue pulsava
nas veias do pescoço. Foi um alívio saber que ele em breve acordaria, mas
um alívio estranho. Tudo que ela queria era que o maldito branco ficasse
curado e saísse andando de sua cabana, mas outro passo na direção daquele
evento a aborreceu.
— Você talvez consiga me ouvir. — disse, enquanto passava o pano
embebido em água fresca pelo peito dele. Ainda havia resquício do suor da
noite sobre a pele lisa, cujas feridas já estavam cicatrizadas. Sobrava apenas o
ferimento maior, no abdômen, mas que também estava curando. — Isso é um
pouco constrangedor, porém continuarei falando. Não tenho mais ninguém
para conversar, já que a sua presença me afastou de toda a tribo. Você tem
um nome, Matwan. É assim que se referem a você, “o inimigo”. Talvez seja.
O que será que você fará quando acordar?
Sempre que o tocava, Matwan, o enviado dos deuses, ficava calmo e
sereno. Daquela vez, estava agitado. Queria acordar, ela sabia, mas o corpo
ainda não estava curado o suficiente. Hurit passou o pano úmido pelo rosto,
pelos olhos fechados, e colocou algumas gotas de água sobre os lábios. Ele
abriu a boca e deixou o líquido escorrer para a língua. Ela sorriu - era o
primeiro movimento voluntário que ele fazia.
— Tem sede, Matwan? Eu te darei água, mas fique calmo. Não se agite,
não tente abrir os olhos, apenas sinta e ouça.
Ele se acalmou novamente e ela continuou a gotejar água em seus lábios.
Até aquele momento, ofertara líquidos para que ele bebesse, mas a maior
parte era desperdiçada, pois ele não conseguia engolir. O corpo estava mais
magro e mais fraco do que quando chegara, então estava na hora de começar
a se alimentar.
— Prepararei um caldo para você. Fique aqui, eu continuarei falando para
que me ouça.
Não havia para onde um homem desacordado ir, mas o hábito de
conversar com ele já estava consolidado. Hurit não gostava da solidão, então
o exílio forçado estava sendo sofrido. Contando sobre como estava o dia e
sobre o que haveria para conhecer quando acordasse, ela descascou, picou e
cozinhou vegetais, que serviram para formar um caldo consistente, junto com
alguns pedaços do peixe que Amonute levara no dia anterior.
A comida cheirava bem e esfriava em um vasilhame quando Wapun
apareceu trazendo pão fresco. A amiga a visitava toda manhã e fazia a
primeira refeição do dia em sua companhia, o que diminuía a solidão.
— Ele acordou? — Wapun deixou o pão sobre a mesa na cozinha e se
aproximou de Hurit.
— Não por completo, mas está reagindo ao que falo e bebeu um pouco de
água. Preciso forçá-lo a comer, já são muitos dias sem que seu corpo receba
alimento.
— Ontem o filho de Kanti ficou doente. — A amiga se sentou do outro
lado da cama e ajudou a erguer a cabeça de Matwan. — Antes de ontem
Kitchi perguntou por você, mas eu disse que ele não deveria vir.
— Como está o menino?
Hurit não olhou para Wapun, concentrada no seu fazer. Não era fácil
forçar comida em uma pessoa desacordada, o caldo estava ainda quente e
escorria pelo canto da boca semiaberta. Ele fazia movimentos de engolir, mas
não eram suficientes para beber todo o líquido. Ainda assim, a segunda
pergunta ficou no ar e esperava resposta - por que a amiga disse ao noivo
para que não fosse à cabana.
— Está bem, sua mãe esteve com ele, é um resfriado. Quanto a Kitchi, é
melhor que ele não esteja aqui para distraí-la. Você fica muito confusa
quando ele está por perto, Hurit.
A sinceridade de Wapun era sua maior qualidade e seu maior defeito.
Não, Hurit sabia que falar a verdade era sempre uma virtude - o problema era
precisar ouvi-la. Kitchi era o seu escolhido desde a infância. Ela sempre
soube que se casaria com ele e sempre quis casar-se com ele. As famílias
eram amigas, os pais deles se animaram com a amizade entre os dois e havia
mais do que aquilo. Ele era bonito, lindo, irresistível e beijava bem. Ela
desejava mais intimidade com ele e sabia que, para um bom casamento, tudo
que se precisava era cumplicidade e desejo. Aqueles eram bons ingredientes -
o amor, esse ela não entendia bem nem o conhecia direito. Era algo
possivelmente inventado pelos brancos nos romances tolos que ela lera na
escola. Amor existia entre as pessoas, mas não aquele romântico que
compunha as narrativas de Jane Austen - a mulher que escrevera os romances
que conhecia.
Mas, depois de crescer, depois de ver o irmão assassinado e depois de
entender a dimensão da pobreza em que sua tribo vivia, Hurit não sabia mais
do futuro e passara a desconfiar de suas decisões. Ela sabia que Kitchi era a
melhor escolha e ainda o desejava, mas não conseguia sentir mais o mesmo
de antes. Ela não sentia nada, aquele era o seu problema. Fingia para todos,
porém seu peito era um grande vazio que nada preenchia.
— Quando voltar, diga a Kitchi que ele pode me visitar. — Insistiu.
— Não direi. — Wapun provocou, levantando-se e buscando um pano
para limpar o caldo que escorrera pelo peito do paciente. — Vamos comer
alguma coisa, ele não conseguirá ingerir mais nada.
Depois de acomodá-lo novamente na cama e virá-lo de lado para que não
tivesse uma indigestão, Hurit acompanhou a amiga até a cozinha. Não estava
acostumada a receber ordens de ninguém e entendeu que Wapun estava
apenas preocupada que ela mantivesse sua saúde. Aproveitando o café já
coado, sentaram-se à mesa e continuaram conversando enquanto
compartilhavam pão e ovos.
A SENSAÇÃO de dormência em quase todo o seu corpo fez com que ele
soubesse que algo estava errado. Se fosse um homem dado a bebedeiras,
poderia ser o excesso de uísque ou conhaque que o impedia de abrir os olhos
ou até mesmo de mover os membros superiores para acabar com a maldita
coceira que estava matando-o. Mas ele não bebia. Bebia? Era provável que
não, ou se lembraria. Ele deveria saber coisas como aquelas, então havia
provavelmente duas coisas erradas. Quis abrir a boca e chamar alguém, mas
não havia nenhum nome na ponta de sua língua. Ninguém que pudesse ajudá-
lo, apenas o vazio. O vazio e a coceira.
— Pare de se mexer, Matwan. Não quero ter que amarrar suas mãos.
A voz feminina era imperativa - aquela era uma ordem que ele estava
compelido a seguir. Não pela ameaça de ter as mãos amarradas, mas pela
autoridade que dela emanava. Em seguida, o frescor da chuva de primavera o
atingiu no meio da face e aliviou o calor que ardia em sua pele, escorrendo
por seu pescoço. Orvalho, terra molhada e flores do campo - todos os aromas
familiares de um passado que ele não lembrava. Era como se devesse saber o
que aquelas sensações significavam, mas não as entendia. A dormência
passou e trouxe a dor lancinante de seu corpo sendo perfurado. Aquela dor
não era conhecida. Ele se contorceu sobre a superfície que suportava seu
corpo.
— Você sente dor? — A voz perguntou. — Gostaria que pudesse me
dizer, não o compreendo quase nunca. Seria ótimo se pudesse me dizer o que
dói e onde dói.
Seria ótimo, ele adoraria contar qualquer coisa para a voz e esperar que
ela fizesse a dor parar. Porém teria que apontar para todas as partes do seu
corpo, já que não sabia bem qual era a origem do desconforto. O esforço para
dizer algo, para se mexer, foi percebido pela pessoa que estava ali, com ele.
— Está acordando e isso é bom. — Ela continuou falando. — Mas
precisa manter-se calmo. Tenho algo para diminuir seu sofrimento e você
precisa beber, então pare de se mexer para que eu possa ministrar o remédio!
Mãos firmes o seguraram sobre uma superfície macia, depois o ergueram.
Ele sentiu seu corpo contra o calor aveludado dos braços femininos, a pressão
suave de um abraço e o líquido amargo descendo por sua garganta, molhando
sua língua. Conhecia aquele sabor - era láudano. Sua mente lhe dizia que ela
era uma enfermeira e que ele estava em um hospital, sendo tratado por algum
mal físico. Sua mente, no entanto, não lhe dizia por que sentia dor, que mal
poderia lhe afligir e, mais assustador, quem ele era.
De repente, a dor deu lugar ao desespero e ele precisava saber alguma
coisa - qualquer coisa - sobre si mesmo. Quis falar, mas não conseguiu.
Tentou mover-se, mas só teve certeza do sucesso quando seus dedos se
fecharam ao redor de um braço. Fez força, apertou-o, mas não conseguiu
dizer nada.
— Ele está muito agitado. — A voz conversava com outra pessoa.
— Está resistente ao láudano. Dê mais um pouco.
— Mas ele precisa recobrar a consciência, nonôk. 2 Não quero entorpecê-
lo mais, ele tem que acordar.
As mãos suaves, em contraste com as suas, seguraram-lhe os dedos e
fizeram-no soltar o braço que segurava com afinco. Fora um toque delicado,
como era a voz dela em seus ouvidos. Ele entendera o dilema - se continuasse
sedado pelo láudano não despertaria e, se não despertasse, não se curaria. E,
por ela, pelo anjo que zelava por sua saúde com tanto cuidado, ele quis se
curar.
Resistindo ao impulso de reagir, ele se acalmou. Apoiou a mão sobre o
peito, controlou o ritmo da respiração de acordo com o som que ouvia - e
teve certeza de que era o coração dela batendo ao lado do seu. Enquanto a dor
cessava, ao menos em parte, pelo efeito do entorpecente, ela continuava a
acariciá-lo. O frescor de antes era aquilo, um pano embebido em líquido que
deslizava por sua pele descoberta, que enviava energia por todo o seu corpo.
Ele estava nu. A percepção o fez reagir, mas logo considerou que todos
ficavam nus em hospitais. Não se lembrava se já estivera em um antes, mas
era o que fazia sentido - se estavam feridos ou doentes, as roupas
atrapalhariam os cuidados.
— Parece que ele entende você, Hurit. — A voz da outra mulher era mais
alta e mais estridente.
— Wematin disse que estamos conectados. Não sei o que isso significa,
os deuses precisam parar de falar em enigmas comigo.
— Tenho medo dessa conexão. Não se esqueça de quem ele é e de onde
ele vem.
— Não tenho como me esquecer, nonôk. Tranquilize-se, eu sou imune a
esse tipo de coisa que passa em sua cabeça.
Uma risada - cínica - e uma bufada encerraram a conversa, que não
parecia travada entre duas enfermeiras. Não entendeu o que significava
aquela conexão que fora mencionada, nem como ele poderia estar ligado a
uma desconhecida. Só se ela não lhe fosse desconhecida - e ele estivesse tão
confuso a ponto de esquecer-se de… de tudo.
O silêncio o deixou reflexivo. Tudo ficou distante e quieto - não havia
mais a proximidade da mulher que lhe tratara e alimentara, nem ele podia
ouvir seu coração ou sentir sua respiração. Começou a fazer calor, seu corpo
estava fraco e débil, atordoado pelo láudano e dolorido. Alguns ruídos como
folhas farfalhando e pássaros cantando o distraíram, mas logo foi dragado
para um sono profundo e conturbado.
E NQUANTO DORMIA , ele sentiu o aroma do mar. Quase pode ouvir as ondas
indo e vindo e o calor do sol sobre sua pele. Não era uma memória, mas um
desejo que se relacionava com a proximidade do oceano. Depois de quase se
afogar, ele pensou que não estaria tão apegado à praia, mas o vazio dentro de
si deixava muito espaço para ser preenchido. Quando abriu os olhos
novamente, já havia luz entrando na cabana - e o buraco no sapé continuava
ali, fazendo com que alguns raios luminosos o atingissem.
Matwan virou-se para o lado e viu uma imagem que o fez sentir uma
pontada de dor - e não era no ferimento. Hurit, seu anjo salvador, estava
enrolada em uma coberta, no chão. Parecia haver um colchão sob ela, mas,
ainda assim, ele se sentiu péssimo por usufruir da única cama enquanto ela
dormia tão desconfortável.
Com dificuldade, ele tentou se sentar e levantar. Queria reconhecer seus
arredores e fazer qualquer coisa por aquela mulher que parecia tão abnegada
em relação a ele, mas pisou no chão e sentiu seus músculos fraquejarem. Sem
conseguir firmar-se de pé, caiu como fruta madura despencando, quase em
cima de Hurit.
Ela acordou sobressaltada com o barulho e o peso do corpo dele sobre si.
Virou-se de súbito e jogou-o de costas contra o chão.
— Pelos deuses, Matwan. O que pensa que está fazendo?
— Eu quis me levantar, não pretendia importuná-la.
Hurit não o soltou. Manteve-o preso ao chão em uma posição inadequada.
Se o pegassem ali, com ela, a situação só se resolveria com casamento. Céus,
ele não tinha forças nem para comer ou ficar de pé, não podia se casar.
— Você não precisa se levantar, peça o que quiser que eu providenciarei.
Ele não conseguiu dizer o que queria, nem mesmo se lembrar dos motivos
que o fizeram se levantar, porque alguém estava do lado de fora. A mulher,
que era muito pequena, ergueu a cabeça e encarou a porta fechada, consciente
de que um convidado chegara. Em seguida, batidas ecoaram pela madeira
pouco resistente.
— Hurit?
— Meu noivo. — Ela se levantou quase em um pulo. — Fique aí, não
tente ficar de pé novamente.
Nem que ele quisesse, tentaria. Seu corpo estava atordoado pelo que
acabara de acontecer, dolorido pela queda, pelo ferimento que latejava e pelo
contato quente com a pele de Hurit, mesmo que houvesse um grosso cobertor
entre eles. Tentando recuperar um pouco de sua dignidade, enrolou-se nas
cobertas que ela deixara e fingiu que ainda não estava acordado. Viu a porta
se abrir e um homem entrar, um homem enorme e que obscurecia o sol.
Eles falaram alguma coisa e o noivo olhou para onde ele estava. Matwan
fechou os olhos e esperou, não desejando encarar de volta aquele
brutamontes. Sua barriga emitiu um ronco perturbador indicando que ele
tinha fome, porém nada podia fazer. Era refém daquela mulher, suas vontades
estavam vinculadas às dela.
Passaram minutos que pareceram horas até que eles retornassem para a
sala. Conversavam sobre horta, pesca e algum tipo de trabalho masculino e
Hurit não parecia satisfeita.
— Não creio que precisamos de coisas brancas para sermos felizes.
— Elas são fabricadas por brancos. — O homenzarrão riu. — E você
certamente preferirá viver em uma casa mais confortável que essa quando nos
casarmos.
Ela virou-se para ele e teria protestado contra aquela afirmativa se o noivo
não passasse as mãos pelas tranças, puxasse a cabeça dela e a beijasse. Eles
estavam bem à frente de Matwan para que ele visse o beijo e pudesse achar
aquele ato uma afronta à decência. Que homem beijaria a boca de sua noiva
na frente de estranhos?
Um homem que quisesse demarcar seu território. Matwan entendeu
quando o noivo se afastou brevemente e o fitou. Havia algo naquele olhar que
indicava um alerta - não se aproxime dela. Ele quis dizer que não tinha
intenção alguma de se aproximar de ninguém, e que poderia ser transferido
para um hospital qualquer na cidade, mas suspeitava que nada daquilo fosse
verdade.
— Ajude-me a colocá-lo na cama.
O homem olhou novamente para sua noiva e sorriu, indulgente. Matwan
não gostou do sentimento que borbulhou dentro de si. Ele nem mesmo
conhecia o noivo de Hurit para não gostar dele - não conhecia a si próprio
para nutrir qualquer percepção desagradável sobre alguém.
— Claro, minha lua. O que ele está fazendo no chão?
— Tentou se levantar mas não teve firmeza nas pernas.
Com um movimento firme de cabeça, o homem deu alguns passos na
direção dele. Ao se aproximar, Matwan entendeu o que ele pretendia e
esquivou-se, encolhendo-se no canto da parede.
— Eu não preciso ser carregado como um bebê, senhor.
— Oh, ele fala.
— Por que não falaria? — Matwan deu uma risada nervosa. — Agradeço
sua intenção, mas sou capaz de me erguer sozinho.
— Não parece que seja.
O sorriso esboçado na face do homem alto, grande, de ombros largos e
dentes muito brancos fez com que ele se irritasse. Talvez aquele grandalhão
estivesse apenas sendo gentil a pedido de sua prometida, mas não havia nada
que pudesse fazer para evitar a sensação de desagrado que o preencheu.
Para provar que o homem estava errado, tentou se levantar. Apoiou as
mãos na parede e percebeu que o cobertor cairia. Sendo observado por dois
espectadores curiosos, ele não pode fazer nada quando suas pernas
fraquejaram mais uma vez.
Hurit se controlou para não correr até ele, Matwan pôde ver pela forma
desamparada como ela o observava. Havia uma intensa agonia nos olhos
escuros que estavam ainda maiores naquele momento, mas ela não deu um
passo em sua direção - deixou que o noivo fosse até ele, que o segurasse e
impedisse sua queda.
— Entendo a necessidade de mostrar força, homem branco. Entendo o
desespero, mas aceite a ajuda. Minha Hurit é a melhor curandeira de toda
essa região e ela é a única que poderá restabelecê-lo. Aceite.
Não parecia haver outra opção. Ele sorriu sutilmente e caminhou, com
dificuldade, até a cama, e deitou-se encolhido, de costas para a plateia. Pode
sentir ainda o olhar dela lhe queimando a pele, mas a presença do noivo era
intimidadora e ele preferiu fechar os olhos e esperar o tempo passar.
P EIXE DEFUMADO TINHA um sabor familiar - era nisso que Matwan pensava
enquanto comia, com pouca elegância, o almoço. Depois da saída de Hurit
ele não conseguiu resistir à exaustão e adormeceu. Viu quando ela chegou,
ouviu parte da conversa sobre o que ela fora fazer na cidade, mas permaneceu
em silêncio como se continuasse a dormir, na expectativa de ouvir mais e
compreender mais - mesmo sabendo que era errado espiar as pessoas. Seu
corpo, no entanto, o denunciou quando ela se aproximou e o tocou. Porquê,
não tinha certeza. Aquela mulher mexia com alguma coisa dentro dele, fazia
com que seu coração disparasse e uma dor aguda se espalhasse pelo
ferimento inteiro.
Mas, depois que ela deixou a comida ali e se afastou, ele não a viu mais.
Depois de comer e beber toda a caneca de chá, estava se sentindo melhor e
precisando atender ao chamado da natureza. Tomou coragem e reagiu:
sentou-se na cama, pendurou as pernas para fora, firmou os pés no chão.
Puxou o lençol da cama e o enrolou ao redor da cintura, prendendo-o com um
nó robusto. Apoiou as duas mãos no colchão e impulsionou o corpo para
cima. Daquela vez não sentiu as pernas fraquejarem, apenas uma fisgada que
ecoou dos dedos do pé até os fios de cabelo. Garantiu que o lençol estivesse
bem firme e saiu da casa, procurando onde seria o banheiro. Ainda estava
claro mas ele não encontrou o que buscava - decidiu aliviar-se em alguns
arbustos mais afastados da casa.
Quando retornou, encontrou Hurit na porta. Ela tinha olhos arregalados e
procurava por alguma coisa - ele. Os olhos imediatamente se estreitaram e ela
o fitou como se pudesse matá-lo sem precisar usar as mãos.
— Você está bem o suficiente para perambular pela aldeia?
A voz dela cortava como navalha. Matwan exibiu o seu melhor sorriso
para tentar quebrar a gélida expressão que o deixava desconfortável, mas não
foi surtiu efeito.
— Fui evitar outro acidente como o de ontem. — Ele disse, tentando não
demonstrar novamente o constrangimento do dia anterior. — E sim, parece
que estou me sentindo melhor, graças aos seus cuidados.
— Você poderia ter usado o que deixei debaixo da cama. — Hurit foi até
ele e o segurou pela mão, quase o arrastando de volta para a cama. — Sente-
se, vou examinar o curativo e lhe banhar.
Ela levou as duas mãos até o nó que prendia o lençol e ele pulou para trás
como um gato - com uma agilidade que ignorava ter. Bateu a parte de trás
dos joelhos na cama e caiu sentado sobre o colchão descoberto. Hurit cruzou
os dois braços sobre o peito e ele notou o quanto ela era bonita - mas parecia
bastante irritada com ele.
— Creio que eu possa tomar banho sozinho, também.
— Não seja tolo, Matwan. Quem você acha que lhe banhou durante os
dias em que esteve dormindo?
— Espero que tenha sido você e não o seu noivo gigante.
Estreitando os lábios, Hurit levou alguns segundos para reagir, mas
acabou rindo. Uma risada debochada, mas era a primeira vez que ele via
aqueles dentes belos e aqueles lábios se esticando.
— Kitchi não é gigante, ele é forte. E sim, eu fui responsável por todos os
seus cuidados, porque vê problema que eu continue a tratá-lo?
— Hurit. — Matwan inspirou e se colocou novamente de pé,
confirmando a segurança do nó em sua cintura. — Eu estava desacordado,
incapaz de percebê-la ou reagir à sua presença. Agora que estou consciente,
não posso concordar que continue a… céus, nós precisamos conversar mais
seriamente sobre isso. Tudo isso entre nós é tão escandaloso que nem sei por
onde devo começar a reparar sua honra.
— Não preciso que repare nada. Minha honra continua intacta, não foi
afetada apenas porque você apareceu trazido pelo mar. Vocês homens
brancos têm o hábito de se dar mais valor do que realmente possuem.
— Seu pai está de acordo com isso?
— Meu pai não queria você aqui, mas entende que é preciso. Não me faça
perder tempo, Matwan, eu ainda preciso terminar meus trabalhos de costura.
Se não quiser se banhar, tudo bem.
Ela colocou um balde de água no chão e uma pilha de panos brancos
sobre a cama. Ele se sentiu mal por ofendê-la, mesmo que não entendesse a
ofensa. Ainda assim, não podia continuar a assassinar o decoro apenas porque
estava ferido.
— Você possui uma banheira?
— Sim, no banheiro.
— Banheiro?
Matwan olhou ao redor, confuso. Hurit deu alguns passos na direção de
uma parede coberta e puxou uma cortina de tecido estampado, que escondia
outro cômodo - um banheiro completo. Apesar da simplicidade, havia um
vaso sanitário, uma pia e uma banheira. O encanamento parecia precário,
porém tudo cheirava a limpeza e estava funcional. Sentiu-se tolo por não ter
sequer considerado procurar dentro da casa e por achar que uma cortina não
poderia esconder as maravilhas da modernidade.
— Você me permite usá-lo? Assim eu posso me lavar e evitar mais um
escândalo.
Ela riu outra vez e ele pensou que poderia falar mais bobagens para fazê-
la sorrir.
— Colocarei água para ferver.
A mulher lhe deu as costas e saiu na direção da cozinha. Matwan
cambaleou para trás e parou de costas para uma parede, sentindo-se exausto.
Conversar com Hurit era quase como um combate corporal e ele perdera
todas as batalhas até aquele momento.
U M BANHO ERA o que ele precisava para sentir-se melhor, mesmo que
Matwan não soubesse disso. Depois de alguns minutos imerso na banheira,
que era um pouco pequena para ele, suas energias estavam renovadas e seu
cheiro bem mais agradável. Até aquele momento era como se ele tivesse
passado alguns dias dormindo ao lado de porcos ou rolado na lama com a
carniça de algum animal. Aproveitou enquanto a água estava morna para
lavar cada centímetro que alcançava e para arrancar aquele curativo que
estava matando-o de curiosidade. Queria ver o tamanho do estrago que o
colocara em uma situação de quase morte.
Não era um ferimento, eram dois. Havia um corte profundo em seu
abdômen, na altura do quadril, abaixo do umbigo, e outro nas costas -
aparentemente tão grande quanto, de acordo com a quantidade de pontos que
seus dedos podiam sentir. Os pontos foram dados com precisão, próximos
uns dos outros, mas a ferida ainda tinha uma aparência horrível e dolorida.
Considerando que o excesso de água poderia fazer algum mal para a
cicatrização, decidiu encerrar o melhor banho de sua vida - até porque não se
recordava de nenhum outro. Apoiou as duas mãos na borda da banheira e
ergueu o corpo de uma vez só. A euforia de fazer qualquer coisa por si só o
dominou quando se percebeu completamente de pé. Dobrou-se para frente e,
ainda apoiado na borda, passou as pernas para fora da banheira.
Hurit deixara uma toalha para ele. Havia um espelho sobre a pia e, apesar
dos vapores terem-no embaçado, Matwan quis se ver. A face que ele não
reconhecia apareceu no pedaço de vidro e ele gastou algum tempo olhando
para a barba que crescera em seu queixo - não estava tão longa, o que sugeria
que Hurit também cuidara daquele aspecto. Imaginou-se deitado e dormindo
enquanto ela o banhava, barbeava e cortava o cabelo. Não foram tantos dias,
mas a sua aparência era a de quem não fora negligenciado nem mesmo por
algumas horas.
— Matwan? — Ela chamou, do outro lado da cortina.
— Já estou saindo.
Ela enfiou a cabeça para dentro e fez uma careta ao vê-lo fora da água e
constatar que ele não a chamara. Abriu a cortina com a expressão de que o
repreenderia, porém não o fez. Com a toalha enrolada no quadril e o
ferimento exposto ele se sentia ainda mais vulnerável quando ela indicou que
deveria sentar-se na cama.
— Dói? — Hurit pressionou os dedos pequenos no ferimento, na parte da
frente.
— Bastante.
— Foi muito profundo. — Ela se virou e pegou um pote de metal que,
aberto, exalava um cheiro delicioso. — Refarei o curativo, tenho algumas
coisas para você.
Matwan não se moveu, apenas esperou que ela realizasse sua mágica.
Habilidosa, ela espalhou o unguento sobre os pontos, dos dois lados, e cobriu
com tecido limpo. Pegou uma bandagem e enrolou ao redor do quadril dele,
cuidando para livrar a toalha. Afastou-se, admirou sua obra e saiu. Voltou
antes que ele pudesse perguntar qualquer coisa, carregando uma caixa grande
de madeira. Colocou o objeto no meio da sala e pegou uma camisa branca
dentro.
— Deve servir em você. Vista-a.
— Você tem camisas masculinas escondidas pela casa?
— Eram do meu irmão, Keme. Minha mãe achou por bem dá-las a você,
sinta-se honrado em vestir qualquer coisa que tenha pertencido a ele. Keme
era um ótimo homem. Ele seria o líder da tribo, se vocês não o tivessem
matado.
A forma como ela disse aquilo o atingiu diretamente no peito. Matwan
estava passando a camisa pelos braços e quase congelou ao ouvi-la dizer que
“eles” o mataram. Não sabia quem eram eles, mas ela parecia acreditar que
ele estava envolvido.
— Nós?
— Os brancos.
— Eu sinto muito, Hurit. — Matwan terminou de vestir a camisa, que lhe
serviu quase perfeitamente. — Mas não acredita que eu tive algo a ver com
isso, acredita? Quero dizer, não lembro quem sou, mas…
— Você não teve nada a ver com isso. — A voz dela carregava dor e
raiva, sentimentos ruins que apareciam no fundo dos olhos escuros. — Sei
quem matou meu irmão e nenhum de seus assassinos pagou por sua morte,
pois os brancos não punem os seus quando a vítima é um de nós. Para seus
juízes, meu irmão provocou seus algozes ao impedi-los de espancar uma
prostituta.
Ela se agachou e voltou a remexer na caixa. Matwan tirou a camisa e
colocou-a sobre a cama, alisando o tecido para que não contivesse nenhuma
dobra. Quando ela se ergueu, segurando dois livros nas mãos, encontrou-o
novamente com o peito despido.
— Não me sinto merecedor para usá-la.
— É um presente de minha mãe. Ela ficará ofendida se recusar.
— Sua mãe trouxe essa caixa?
— Sim, são coisas que ela achou que te ajudariam a passar o tempo
enquanto se cura. Amonute é uma pessoa boa, Matwan, aceite o presente.
Hurit pegou a camisa e colocou sobre seus ombros, forçando-o a vesti-la.
Fechou cada botão com a mesma habilidade que demonstrara cuidando do
ferimento.
— Livros? — Ele afastou os olhos dos dela para evitar perder-se neles.
Pegou o que ela tinha deixado sobre a cama sem nem mesmo prestar atenção
no que era. — Sua mãe achou que eu gostaria de ler… Jane Austen?
Abrindo o livro em uma página aleatória, ele escolheu uma citação
qualquer e a leu em voz alta. “Não é o tempo nem a oportunidade que
determinam a intimidade, é só a disposição. Sete anos seriam insuficientes
para algumas pessoas se conhecerem, e sete dias são mais que suficientes
para outras.” O sorriso que abrira morreu em seus lábios no instante em que
terminou de dizer as palavras. Sete dias. Sete anos. Ele estava tão confortável
na presença daquela desconhecida, sentia-se tão bem ao lado dela que era
como se a conhecesse há anos.
— Você gosta de Jane Austen?
— Nunca a li, mas posso gostar. É uma autora feminina, imagino que
tenha escrito para mulheres. Lerei para você, em voz alta.
— Não.
— Não?
— Não gosto de romances, não os leio nem desejo que leiam para mim.
Romances são lendas, fábulas, o que precisamos na vida é solidez, confiança
e companheirismo. Livros como esse querem convencer mulheres que elas
desejam um amor romântico, mas não é disso que precisamos.
Ele continuou folheando o livro, um pouco assustado com a rudeza das
palavras dela. Hurit estava dura naquela tarde, demonstrando uma frustração
com algo que ele não identificava. Entendera que ela sofria com a morte do
irmão e não ousaria perguntar sobre o assunto, mas a revolta com o amor
estava além de sua compreensão.
— Então esse livro lhe soará adequado. Parece que a autora também tinha
suas restrições quanto ao romance. “Por mais fascinante que seja a ideia de
um único e constante amor e apesar de tudo que se possa dizer sobre a
felicidade de alguém depender completamente de uma pessoa determinada, as
coisas não devem ser assim, nem é adequado ou possível que o sejam.” Tem
certeza de que foi uma mulher que escreveu isso? Jane Austen não era um
homem disfarçado?
— Não seja tolo! — Ela tomou o livro de suas mãos. — Você não lerá
romances para mim, Matwan.
Talvez tenha sido a determinação com a qual ela dissera as palavras, ou a
expressão irritada que ficava linda em sua face delicada. Poderia também ter
sido o fato de que ele suspeitava que, em sua vida passada, fora um homem
que se divertia em provocar as pessoas. Também suspeitou que o bom humor
fosse uma de suas características. Mas, naquele instante, Matwan decidiu que
sim, ele leria romances para Hurit. Leria todos os livros que estavam naquela
caixa em voz alta, sempre quando ela estivesse em casa, e a obrigaria a ouvir
cada palavra.
CAPÍTULO QUINTO
O SOM que chamava Hurit era um lamento, não uma voz. Ela já o ouvira
antes e não conseguia saber de onde vinha. Despertada pelos lamúrios, pegou
a lamparina maior e deixou a casa.
— Quem está aí?
Perguntou para o silêncio escuro da noite. Se ela apurasse os ouvidos,
conseguiria ouvir as ondas arrebentando na praia - o mar estava agitado e o
vento sibilava entre as folhagens.
Intrigada, deu algumas voltas ao redor da cabana. A aldeia inteira dormia,
não havia qualquer sinal da presença humana em um raio de muitos metros.
O lamento ecoou novamente e ela entendeu que não era uma pessoa tentando
passar um recado.
Aquele era Hoobamack falando com ela.
Toda noite, Hurit pedia por orientação. Pedia que o espírito a guiasse e
conduzisse pelos caminhos difíceis que deveria seguir. Pedia sabedoria e
resiliência que eram necessárias para enfrentar os desafios - mas nunca fora
diretamente respondida. Ela sentia que recebia as bênçãos de Hoobamack
desde a infância, porém só o vira e ouvira uma vez.
Mas ele estava chamando-a. Hurit se sentou à beira da água e apagou a
lamparina. A escuridão a engoliu e seria difícil voltar para a cabana, mas ela
não se importou. Fechou os olhos, respirou fundo e os abriu novamente.
Havia uma serpente à sua frente.
“Você tem dúvidas.”
A serpente sibilou e Hurit compreendeu como se as palavras estivessem
farfalhando com o vento.
— Eu não sei o que estou fazendo. Por que Paumpagussit me enviou esse
homem? Por que ele está na minha vida? O que significa o lobo branco?
“Hurit leva tudo a sério desde jovem. O que disse o xamã sobre a visão
do lobo?”
— Nós estávamos brincando. Corríamos pelos campos.
“A menina Hurit parou de brincar. Talvez as respostas não venham
porque as perguntas estejam erradas. Hurit perguntou o que ela pode fazer na
vida do lobo branco?”
Ela encarou a serpente. O animal a assustaria se não fosse a representação
de um deus.
— Hoobamack me orienta a considerar que eu esteja no destino dele e
não o contrário? Que a sua quase morte foi uma provação para o branco e não
para mim?
“O destino de um pode ser feito de dois, criança. Olhe mais para dentro
de si e menos para o lado de fora. Se não encontrar as respostas é porque
talvez já as saiba.”
A serpente sibilou e rastejou para longe, desaparecendo na escuridão.
Aquela fora uma experiência intrigante, talvez a mais confusa que já vivera.
Em toda a sua vida ainda não conversara com nenhum espírito - e duvidava
que o xamã tivesse conversando com qualquer deles. Deuses não tomavam
chá com os mortais em um dia de chuva, mas Hoobamack aparecera para ela
e a fizera duvidar de suas certezas. Ao menos, ele a tentou.
Abatida pelo sono, Hurit cambaleou de volta para a cabana, tropeçando
pelo caminho, até desabar na cama e adormecer.
O SOL da manhã não a despertou. A claridade do dia não a fez saudar o sol e
se levantar para mais um dia. Com o corpo estranhamente exausto, Hurit
sucumbiu a um sono profundo até sentir uma carícia em sua face.
Ninguém a acariciava. A mãe não fazia aquilo há anos. O pai não era uma
pessoa que costumava distribuir afeto, apesar de sempre demonstrar o quanto
a amava. E Kitchi não possuía aquela liberdade - não enquanto ela estivesse
dormindo em sua própria cama.
Mas Hurit não deveria estar em sua cama. Ela dormia no chão, enrolada
próxima da janela desde que o Matwan chegara. Aquela superfície macia sob
seu corpo estava incorreta. E o cheiro de unguento com suor e pele masculina
que preencheu suas narinas a fez abrir um olho e observar ao redor.
Os dedos que lhe acariciavam a face eram os dele. Matwan lhe sorria com
os olhos mais azuis que existiam em toda a humanidade. Ainda tentando
compreender seu entorno ela abriu o outro olho. Estava deitada em sua cama,
ao lado do forasteiro, e teve imediata certeza de que dormira ali. Se não a
noite toda, pelo menos boa parte dela.
— Você está bem?
Ele perguntou com uma voz rouca que quase a fez cair do colchão.
— Estou confusa. Não sei o que pode ter acontecido.
— Você deve ter acordado e errado a cama. — Ele riu. — Dormiu bem?
— Você percebeu que eu estava aqui e não me acordou para eu voltar
para o chão?
Hurit sentou-se de súbito, indignada. Sentiu tontura, quis deitar-se de
novo, mas precisava manter-se longe daquele homem.
— Acalme-se. — Ele também se sentou. — Eu não percebi nada, apenas
acordei e a encontrei aqui. Basta fingirmos que nada aconteceu e será como
se nada tivesse acontecido.
Parecia uma boa proposta, se ela pudesse funcionar. Hurit duvidava que
seu corpo apagaria os sentidos apenas porque ela assim desejava - e todos os
seus sentidos estavam em alerta naquele momento. Com cautela, ela
escorregou para fora da cama como se ali estivesse uma doença contagiosa e
deu alguns passos para trás, quase tropeçando no colchão onde dormia. O
homem a olhava sem compreender o que a fizera acordar tão assustada - o
que nem ela mesma compreendia.
Havia limites que Hurit não podia cruzar. Evitar a proximidade com
Matwan era um dogma, uma regra que não podia se atrever a quebrar. Mas,
depois da visita estranha de Hoobamack na noite anterior, ela não sabia mais
no que acreditar e não entendia mais seu papel naquela visão do xamã. Em
nenhum momento ela se questionou sobre para quem a visão serviria. Claro
que os deuses enviariam a Wematin uma profecia que tratasse da futura líder
da tribo, não de um homem branco qualquer. Mas - e se ele não fosse um
homem qualquer?
— Terei que me ausentar agora de manhã. — Ela inventou uma desculpa
para não precisar permanecer ao lado de Matwan enquanto estava tão
confusa. — Crê que consegue passar algumas horas sozinho ou preciso
chamar Wapun?
— Apesar de me divertir com sua amiga, posso permanecer sozinho até
seu retorno.
Ele sorriu e era um sorriso perturbador. Por certo ela estava ainda abalada
por descobrir que dormira ao lado dele, em contato com aquele corpo
masculino, aquela pele quente e perfumada, aqueles músculos firmes e...
Hurit se sacudiu, nervosa com os pensamentos insolentes. Ela precisava sair
daquela cabana. Um pouco de tempo cuidando de assuntos da tribo a faria
retornar à sua forma.
CAPÍTULO SEXTO
E LA ESTAVA FORA de seu juízo. Depois que escurecesse, iria para a floresta
passar a noite nos domínios de Hoobamack para receber mais algum
esclarecimento. Sua ligação com o inimigo estava ainda mais intensa depois
de conversar com a serpente. Mesmo com Kitchi em sua casa, ela se pegara
acariciando os cabelos do homem até que ele dormisse e se sentira
responsável por tê-lo mantido de pé a ponto de causar-lhe tanto desconforto.
Depois de preparar a refeição e compartilhá-la com o noivo, deixou a cabana
e foi com Wapun coletar conchas na praia. Sem encontrar novas oferendas na
costa, daquela vez retornou para casa ao entardecer e com uma cesta cheia de
materiais para confeccionar seu artesanato.
Matwan não estava na cabana e aquilo não deveria preocupá-la muito -
afinal, para onde ele iria? Mas havia um rastro de sementes de milho pela
cama e isso a intrigou. Deixou a cesta de conchas, pegou uma lamparina e
iluminou a cabana, encontrando mais sementes espalhadas pelo chão, que
seguiam em trilha até a porta. Curiosa e confusa por não ter percebido nada
daquilo antes, Hurit investigou. As sementes continuavam espalhadas pelo
lado de fora da casa e iam na direção da floresta. Para além daquelas árvores
estava uma das praias mais escondidas da aldeia. As ondas eram fortes e
havia poucos peixes, portanto, quase ninguém ia até lá.
Havia duas hipóteses para o mistério das sementes. Um animal entrara na
casa e levara consigo um saco delas ou Matwan deixara um rastro proposital.
Na dúvida, decidiu seguir a trilha. A noite começava a cair e a escuridão
causada pela copa das árvores não a intimidava, mas tornava o trajeto um
pouco mais complicado. Quando chegou à praia, ela o viu sentado olhando
para o horizonte em tons de roxo. O sol, posto, já não irradiava mais
nenhuma luz, enquanto a lua ainda brilhava timidamente. Com um cobertor
ao redor dos ombros, ele parecia reverenciar o céu.
— Algo parecido com as lembranças do seu passado? — Ela rompeu o
silêncio.
— Não. Não é parecido com nada, que eu lembre ou não. — Ele não se
virou para ela. — Esse lugar é magnífico.
— Como você chegou até aqui, Matwan?
— Eu segui o chamado. Foi como se o oceano estivesse me atraindo para
cá, então eu vim. Deixei uma trilha para saber o caminho de volta.
— Você é mesmo um tolo. — Hurit aproximou-se e sentou-se ao lado
dele. — Nunca leu a lenda de João e Maria?
— E você leu? — Ele a encarou, surpreso.
— Temos uma biblioteca na aldeia, de onde acha que saíram aqueles
livros que você lê? Eu gosto muito de ler. Não tenho feito isso ultimamente
porque você exaure minhas energias, Matwan. — Ela se virou e os olhos se
encontraram. — Os animais comeriam as sementes e você poderia se perder.
— São sementes. Os pássaros não estão dormindo a essa hora?
— Nem todos.
— Elas serviram, afinal. Você me encontrou.
Matwan voltou a admirar o céu, que escurecia a cada minuto. As estrelas
começaram a brilhar e a lua despontou redonda, derramando sua luz sobre o
oceano melancólico.
— Eu pretendia passar a noite na floresta. Preciso de orientação
espiritual.
— Pensei que isso era responsabilidade do xamã.
— É. Mas eu sou a substituta de Wematin. Preciso conseguir conversar
com os espíritos eu mesma.
— Então vou deixá-la. — Matwan levantou-se, colocando o cobertor
sobre os ombros de Hurit. — Não quero atrapalhar esse momento.
Por um instante ela quis impedi-lo de se afastar. Quis dizer para ele ficar
e passar a noite sob as estrelas ao lado dela. Considerou deixar de lado suas
restrições e permitir-se tocar pelo homem que a perturbava desde que o
encontrara na praia. Mas era cedo demais. Mesmo que ele fosse diferente dos
outros de seu povo, mesmo que ele a respeitasse como indivíduo e não
tivesse se mostrado como superior em nenhum momento, aquele era o
homem sem memórias. O que seria dele quando lembrasse quem ele era?
Então, Hurit o deixou ir. Observou-o afastar-se até que sua silhueta fosse
engolida pelo breu da floresta e sua presença se resumisse ao calor deixado
no cobertor.
CAPÍTULO SÉTIMO
— E LE JÁ FOI ?
Matwan saiu de dentro do banheiro depois de alguns bons minutos
trancado. Não dava para se trancar em um cômodo sem fechadura - o
banheiro de Hurit não possuía nem mesmo uma porta, mas ele queria apenas
esconder-se para esquecer a cena que vira ao retornar para a cabana.
Por algum motivo, sentia que precisava caminhar e respirar ar puro. Não
se lembrava do motivo, mas tinha certeza de que seus pulmões exigiam que
ele se exercitasse. E, depois de um passeio pelo entorno e uma visita à praia
que descobrira no dia anterior, não queria deparar-se com Hurit e Kitchi em
um intercurso íntimo.
— Sim, Matwan. Está se sentindo bem? Alguma dor?
— Não. — Ele ajeitou as mangas dobradas da camisa que vestia. —
Apenas precisava me refrescar.
— Estive na biblioteca, trouxe novos livros para você. Por favor, esqueça
Jane Austen.
Ela mostrou uma pilha de livros que tinham a aparência de muito antigos
ou há muito guardados. A biblioteca talvez estivesse em lugar de pouca
ventilação e os livros estavam cheios de mofo.
— Eles precisam pegar sol. — Matwan passou os dedos pelas capas. —
Colocarei do lado de fora para poder ler.
Um movimento de cabeça indicou que ela concordava.
— São assuntos masculinos. Espero que sejam interessantes.
Matwan abriu uma capa e espiou o interior. Depois, abriu outro e o
folheou brevemente.
— Imagino que ler sobre motores a óleo e o cultivo de leguminosas seja
muito instrutivo.
Ele não conseguiu terminar a frase sem rir. Hurit resmungou alguma
coisa e sentou-se à luz. Ao lado da cadeira escolhida por ela havia um cesto
com algumas peças de roupa e outro menor, cheio de agulhas, linha e outros
itens de costura.
Matwan pegou o romance que vinha lendo em voz alta, lentamente, para
provocá-la e se sentou na cama. Levou algum tempo observando-a colocar
linha na agulha e pegar uma camisa dentro do cesto.
— O que fará hoje?
— Preciso reparar essas roupas. — Ela respondeu sem olhar para ele. —
Todas as mulheres trabalham pela comunidade, seja ajudando com a horta,
com remendos e costuras, com as crianças. Os homens sustentam a aldeia.
Hurit pegou um botão e o prendeu na camisa. Pegou outro e repetiu a
tarefa. A peça parecia sem botões - ou se tratava de roupa nova ou vestia
alguém bastante descuidado. Ele não conseguiu iniciar a sua leitura,
capturado pela graciosidade daquela mulher que parecia tão antagônica. Por
vezes uma dama, por vezes um furacão.
— Posso ler para você.
— Ou pode me ajudar a costurar, assim termino logo meu trabalho.
Hurit ergueu o olhar e sorriu. Por vezes ele jurava que aquele sorriso era
um deboche, mas ela tinha uma boca tão receptiva que era impossível se
ofender.
— Creio que nunca tenha realizado tarefas domésticas, antes. Elas são
incumbência das mulheres e das criadas.
— E você é um daqueles homens tradicionais que têm criados até para
lavar seus pés, não é mesmo? — Hurit levantou-se e se aproximou dele,
retirando o livro de suas mãos e segurando-as entre as dela. — Mas veja as
pontas dos seus dedos. Elas possuem calos que indicam que você
provavelmente já manejou agulha e linha, antes. Quer tentar?
Na verdade ele quis dizer a ela que homens não faziam trabalhos como
aquele e, por algum motivo, não conseguiu. Decidiu que aceitaria o desafio e
Hurit lhe entregou outra peça de roupa. Era uma camisa, também, que tinha
uma costura rompida no punho. Sem ensinar como fazer, ela empurrou a
cesta com linhas e agulhas na direção de Matwan e esperou que ele tomasse
uma atitude.
Como a vira fazer, Matwan pegou a agulha e enfiou a linha depois de
algumas tentativas frustradas. Ela o observava com atenção e ele não queria
decepcioná-la. Examinou a parte descosturada na peça que lhe fora entregue e
tentou costurar uma parte. Furou o dedo duas vezes, exatamente no lugar
onde havia um calo em seu dedo indicador. Era por isso que Hurit dizia que
ele já sabia coser, porque ele já tinha as marcas feitas. Arriscou outros pontos
até que conseguiu costurar toda a parte rompida. Examinou seu trabalho e o
exibiu para Hurit, que aguardava como um juiz aguarda para sentenciar um
condenado.
— Está um bom trabalho para um iniciante. — Ela riu. — Porém você
precisa costurar de dentro para fora.
Ele franziu as sobrancelhas quase até uni-las no topo do nariz. Hurit deu
outra risada e, percebendo que ele não entendeu o que ela quis dizer, virou a
camisa do lado avesso, mostrando como os pontos eram dados.
— Então se eu costurar desse lado, eles ficarão escondidos do outro? É
isso?
— Parece que você entendeu. Vai me ajudar?
— Imagino que declinar desse desafio deporá contra a minha
competência, certo? E, ainda, não quero parecer um covarde.
Hurit balançou a cabeça e afastou-se, voltando para a sua tarefa. Ele
permaneceu com a camisa e a missão de desfazer a costura errada e refazê-la
pelo lado correto. Depois de vários minutos, ele já estava com a peça de
roupa reparada. Remexeu a cesta e encontrou algumas meias que continham
furos e se pôs a remendá-las. Percebeu que muito tempo se passara quando
seu estômago reclamou de fome e seu ferimento latejou pela posição sentada
em que se encontrava.
Deixou as roupas de lado e recostou-se na cama, esticando o corpo para
evitar que a dor o atordoasse. Era possível que estivesse exagerando em
caminhadas ou se esforçando demais, porém não queria ficar mais tempo
parado. Esperava que, a qualquer tempo, suas memórias lhe fossem
devolvidas como que em uma rajada de vento. Desejava lembrar-se de si, de
tudo, ao mesmo tempo que tinha medo. Jamais revelaria a Hurit o seu temor,
porém Matwan se pegou pensando que ele poderia ser uma pessoa ruim. Um
dos homens que a atormentavam, um dos brancos que ela tanto odiava. Sim,
ele era branco, porém aquilo não representava nenhuma referência para si. A
ausência de lembranças, de um passado, o colocava em uma posição de
neutralidade - nada em sua vida poderia significar que ele já fora uma ameaça
para os Shinnecocks ou que ele representava qualquer das coisas que Hurit
desprezava.
Mas, caso ele se recordasse de tudo, assim que descobrisse quem era,
quem ele seria? O homem bom que ele acreditava ser ou apenas mais um dos
forasteiros que destruíram toda a cultura daquele povo?
— Você está bem?
Ela o notou distraído, olhando para o teto, com a mão sobre o ferimento
em seu abdômen.
— Sim, precisei me deitar um pouco.
Hurit deixou as roupas de lado e caminhou até ele. O dia estava se
esvaindo em tons rosados e cinzentos - era possível ver o céu escurecendo
pela grande janela que ficava próxima à cama e ela precisou acender as
lamparinas para garantir claridade na cabana. Com o cuidado de sempre ela
puxou a camisa dele e descobriu o ferimento, exibindo as bordas
avermelhadas e ainda não cicatrizadas.
— Não entendo por que você é tão resistente. Isso já deveria estar com
outra aparência.
— O que isso significa?
— Que seu corpo é difícil de curar. — Ela pegou uma garrafinha marrom
e jogou o líquido em um pano. Depois, limpou o ferimento com ele.
— Céus, isso arde.
— É para garantir que esteja limpo. Há estudos que dizem que feridas
sujas infeccionam e que o álcool ajuda a matar seja lá o que for que cause
essa infecção.
— E isso é álcool?
— Conhaque.
Ele deu uma risada e pegou a garrafinha da mão dela, virando um longo
gole em seguida. Era conhaque barato, Matwan lembrava-se de consumir
bebidas melhores que aquelas. Hurit tinha razão, ele provavelmente era rico e
possivelmente vivia em Nova Iorque.
Enquanto ele divagava com possíveis memórias, ela passeava com os
dedos pelos contornos de seu abdômen e aquele toque acabou por distraí-lo.
Por um momento, ele a fitou e algo na expressão de Hurit indicou que ela
apreciava colocar as mãos sobre ele. Que aquele contato lhe dava prazer.
Claro que Matwan estava delirando - a mulher não gostava dele. Por que
apreciaria tocá-lo?
— O que significa seu nome? — Matwan perguntou, desejando manter a
conexão entre eles mas precisando adicionar palavras a ela. — Você me disse
que sou o inimigo, e o seu? O que é Hurit?
— Bela.
A resposta veio sem muita reflexão, Hurit apenas disse sem pensar nas
consequências do que dizia. Não havia nenhuma grave - apenas ele passara a
saber que o nome escolhido para ela era bastante condizente.
— Bela. — Ele repetiu. — Soa bem. Combina com você.
Sem parar o que fazia, ela franziu as sobrancelhas e esboçou um sorriso.
Um leve erguer de lábios que indicava bom humor.
— Não pense que você está autorizado a me chamar assim. Meu nome é
Hurit.
— Certo, eu não a chamarei assim.
Ela então sorriu e isso fez com que o constrangimento imediatamente os
atrapalhasse. O instante terminou e a magia se esvaiu, como se ela percebesse
que estava sendo observada e se incomodasse pela reação de ambos. Dele,
por admirá-la em segredo e por encará-la com tanta veemência. Dela, por se
deixar absorver em uma tarefa que deveria causar repulsa e não prazer. Hurit
cobriu novamente o ferimento e se afastou, refugiando-se na cozinha
enquanto ele deitou a cabeça no travesseiro e voltou a olhar para o teto.
Havia alguma coisa acontecendo naquela cabana e ele sabia que teria
problemas.
A CONFUSÃO EM SUA CABEÇA O DEIXAVA MAIS ABORRECIDO POR NÃO SER BEM -
vindo entre os Shinnecock do que excitado pelas memórias que o afogaram
no instante em que o menino asmático fora mencionado por Wapun. Ele sabia
que Hurit não gostava dele, que ela tinha um desagrado profundo pelos
brancos e que não perdia a oportunidade de fazê-lo saber disso, mas não
imaginava que fosse o mesmo para toda a aldeia. Imaginara que não o
conheciam e que, depois de curado, poderia mostrar seu valor para o cacique
- e descobrira que ninguém estava interessado em conhecê-lo, afinal. Ele era
uma concessão, autorizado a ficar confinado a uma cabana porque Hurit, a
princesinha da tribo, precisava cumprir sua missão. Ele era uma maldita
missão e não sabia o que aquilo significava.
Olhou ao redor e viu paredes de barro, janelas e palha. Por que o povo
Shinnecock importava? Por que ele queria ser respeitado ou aceito por eles
quando, assim que descobrisse como voltar para casa, não pensaria duas
vezes em deixar tudo para trás? Sentou-se na cama e apoiou a face nas mãos,
permanecendo naquela posição por tempo demais até ouvir passos do lado de
fora. A porta se abriu e ela entrou. Hurit não carregava remorso ou culpa em
sua expressão, mas, naquele momento, ela parecia culpada. A forma como os
olhos dela o encararam era um pedido de desculpas ou a oferta de uma
trégua. Com um tapinha sobre o colchão, ele indicou que ela deveria sentar-
se ao seu lado. Hurit manteve-se de pé.
— Como sabia sobre o café?
— Eu tomava, já disse.
— Você não tem asma.
— Eu já tive. O menino na janela, olhando a praia, teve.
— E aquele menino era você.
— As outras crianças eram meus irmãos, eu acho. Elas não entendiam por
que eu não podia brincar com elas, me achavam arrogante. O mais velho me
defendia e dizia que eu era doente. A minha janela ficava virada para o
oceano, mas não dava para ver o mar - eu sentia a maresia, mas não via nada.
Como aqui.
— Quem é você, Matwan? Você sabe?
Ele ergueu o rosto e a encarou. Os olhos, tão diferentes, se mantiveram
um no outro enquanto ele reunia coragem para confessar o que lembrara. O
retorno de suas memórias mudaria tudo.
— Eles me chamavam Emile.
— Como você sabe que o menino é você?
— Como você sabe que suas memórias são suas?
Hurit respirou fundo e sorriu. Havia tristeza em seus lábios mesmo que
eles indicassem o contrário.
— Então eu agora devo chamá-lo Emile, também? Não sei se me
acostumarei.
— Posso providenciar um incentivo - eu te chamarei Bela sempre que
errar meu nome.
Com um rosnado no idioma nativo, Hurit resmungou qualquer coisa e foi
até a cozinha. O cheiro de café preencheu a cabana em poucos minutos,
provocando-o a segui-lo. Virada de costas, ele encontrou a mulher com as
duas mãos apoiadas sobre a bancada e a cabeça baixa, olhando para a água
descendo pelo filtro de pano. Se ele não a conhecesse, diria que ela estava
aborrecida e que as lembranças a tinham afetado negativamente. Mas aquela
era a mulher que dizia estar louca para livrar-se dele - Hurit provavelmente
celebraria quando ele finalmente fosse embora da aldeia.
Aproximando-se com cuidado, Emile parou exatamente atrás dela. Sem
pedir permissão, levou as mãos até a fita de couro que enfeitava a testa de
Hurit e ajustou o nó que estava se soltando. Os dedos deslizaram pelas
tranças macias, ornamentadas com azul e laranja, e repousaram nos ombros
dela, que expirou profundamente e se virou.
— Agora que você sabe quem é e está curado, precisamos avisar a sua
família. — Ela sussurrou. Eles estavam tão próximos que Emile precisou
prender a respiração para não encostar nela. Seu corpo reagiu ao quase
contato e ficou desconfortável dentro das calças. — Você morava perto da
praia, deve ser em Southampton.
— Eu não moro em Southampton. — Com cuidado para não assustá-la,
ele deslizou os dedos para cima até que seu polegar a tocasse nos lábios.
Hurit fechou os olhos. — Eu sou inglês. Minha casa fica em Kent, na vila de
Thanet.
— E o que estava fazendo perdido por essas águas? Quem atentou contra
a sua vida?
— Eu não sei. — Emile continuava com o polegar sobre os lábios dela,
acariciando-os mesmo enquanto ela falava. Sua respiração ofegava. — Só me
lembrei da criança que eu fui, do lugar onde cresci, mas não recordo o que
houve comigo até eu vir parar aqui.
— Ainda assim, precisamos avisar à sua família. — Ela também ofegou.
— Pode haver uma esposa e filhos procurando por você.
— Não há.
— Você não pode saber.
— Não há ninguém, Hurit. Só…
Emile estava prestes a dizer algo muito estúpido. Para quem conhecia
aquela mulher há poucos dias, ele não podia estar tão conectado a ela. O que
sentia estava relacionado ao cuidado que ela dedicava a ele, não era nada
além de uma profunda gratidão que não podia ser expressada em palavras.
Ainda assim ele diria que ela era a única mulher em sua vida porque ele
sabia, mesmo sem saber, que não havia outra.
Mas os deuses decidiram ajudá-lo e o som de passos fez com que eles se
afastassem. Emile deu alguns passos para trás e Hurit virou-se novamente
para o café, que já estava esfriando no bule. Serviu uma caneca e entregou a
ele no instante em que Kitchi entrou.
Qualquer encanto que houvesse entre eles se desfez imediatamente. A
presença do noivo dela o fez lembrar-se de mais coisas - tudo ali era
passageiro e precisaria acabar em breve. Aquela não era uma mulher com
quem ele pudesse passar alguns momentos de desfrute. Consciente de seu
lugar, Emile cumprimentou Kitchi e saiu da cabana, indo na direção de seu
refúgio na praia.
— H Á algo que você quer me dizer, velho. — Chogan pitou o cachimbo pela
última vez antes de colocá-lo ao seu lado. A noite adensava e eles
continuavam pensativos depois da saída de Hurit. — Diga.
— Pássaro Negro está cada vez mais atento. Sim, há algo que eu quero
falar, porém desejo ouvir a sua angústia.
— Como sabe que estou angustiado?
— Sempre que me chama para um momento de reflexão é porque precisa
que eu tenha respostas para perguntas que você não deseja fazer.
O cacique sorriu e suspirou, olhando para o céu estrelado. Sim, ele
precisava de respostas, porque não sabia mais o que fazer com um problema
que rondava a tribo havia meses. Algo que ele vinha mantendo em segredo,
que ele tentava evitar cair nos ouvidos dos homens para não causar novo
alarde sobre o que os brancos poderiam fazer com eles. Levantou-se, entrou
na tipi e saiu segurando um papel escrito com letra rabiscada. Era uma
proposta, uma bem indigesta que o fazia perder o apetite sempre que nela
pensava.
Desde que Southampton se tornara uma cidade interessante para turismo,
uma rede hoteleira vinha tentando construir um grande hotel no litoral de
Long Island - e desejava usar terras Shinnecocks para isso. O dono da rede
era um homem educado e que usava roupas finas e bigode, falava com
sotaque europeu e usava dólares para limpar a boca durante as refeições.
Procurara Chogan alguns meses atrás para propor a compra de parte de seu
território e oferecia uma quantia obscena. Era tanto dinheiro que poderia
garantir prosperidade imediata para a tribo por algum tempo. Mas havia dois
problemas na proposta que levaram o chefe a recusá-la: o dinheiro acabaria
em algum momento e seu povo perderia o principal sustento, pois a parte de
litoral de interesse do hoteleiro era a que tinha a maior abundância em peixes.
Eles não tinham mais caça. A maior fonte de carne que possuíam era a
pesca, que seria prejudicada pela pretendida venda. Chogan negou, disse ao
distinto cavalheiro que não podia dispor daquela quantidade de terra sem
destruir sua tribo. O homem insistia, acreditando que o dinheiro seria
suficiente para que eles se estabelecessem em outro lugar, em uma cidade.
Sim, talvez fosse. Mas o dinheiro jamais compraria a dignidade de seu povo.
Aquele território era mais do que simples porção de terra e água, era a própria
identidade Shinnecock. Estavam estabelecidos em solo sagrado - e nenhuma
quantia de dólares poderia comprar aquilo.
Chogan olhou para o papel novamente. Wematin esperava, tranquilo, que
ele expusesse o que atormentava sua alma. Ali continha outra proposta. O
hoteleiro adicionava mais dinheiro e ameaçava a tribo. Dizia que poderia
conseguir a terra sem precisar pagar nada, bastava ir à corte. O cacique não
entendia muito das leis brancas, porém não duvidava que fossem capazes de
tomar-lhes mais do que já haviam tomado.
— O hoteleiro nos procurou novamente.
— Ah. — O xamã alisou a bengala com as mãos envelhecidas. — Agora
entendo por que viemos.
— Os deuses disseram algo sobre isso?
— Não. Na verdade, eu tive novas visões antigas.
— Não é um bom momento para ser enigmático, xamã. O que isso
significa?
— Que o lobo branco e Hurit estiveram em meus sonhos mais uma vez.
Foi a mesma visão de quando ela tinha doze anos, mas agora ela estava mais
velha. Não tenho dúvidas que Matwan é o lobo.
— Isso em nada ajuda meu problema. Preciso responder à carta do
hoteleiro.
— O que Chogan deseja fazer? Que resposta é a correta para esse
homem?
— A recusa, claro. Ele nos ameaça. Ele acha que nossa dignidade está à
venda.
— Então recuse. — Wematin sorriu para o vazio. — Você não precisa de
minha ajuda.
— Queria ter certeza de que estou fazendo o que é melhor para a tribo.
O xamã tateou até segurar as duas mãos do cacique entre as suas.
— Você é o líder deles. A sua decisão será a melhor, mesmo que nem
todos concordem. Os deuses não se opõem a ela, portanto ela é adequada.
Podemos conversar sobre Matwan?
Chogan bufou.
— O que tem ele?
— Você precisa enxergá-lo como Hurit o enxerga.
— Não entendo, velho. Hoje você está especialmente enigmático.
— Sua filha vê algo no inimigo que Chogan não vê. Ela está em contato
com a essência dele, ela sabe o que fazer. Confie em Hurit, Chogan, ela sabe
o caminho.
Ele confiava, sempre confiara em Hurit. Continuava sem entender o que
dizia o xamã, mas não insistiria na discussão. Quando Wematin decidia falar
em charadas, poucos conseguiam compreendê-lo. Decidiu que era o momento
de encerrar a conversa e dormir.
M ESMO SABENDO QUE ELE NÃO ERA BEM - VINDO NA TRIBO , ELA QUERIA QUE
Emile caminhasse ao seu lado e a visse. Visse a aldeia, os seus moradores, o
motivo pelo qual ela tinha tanto cuidado com seu futuro - o futuro da tribo.
Se Emile entendesse o que tudo aquilo representava, o que mudaria?
Provavelmente, nada. Porém ela desejava, ainda assim, que ele
compreendesse a sua realidade.
— Caminhe comigo.
Disse, convidando-o para ir até a casa de Chogan.
— Pensei que não devia perambular pela aldeia, que os homens não me
queriam por aí.
— Eles não querem. Mas você precisa cruzar a aldeia para ir até Chogan,
então será uma boa oportunidade para que te vejam. Afinal, se o chefe te
aceitar aqui, você não pretende ficar?
Ele assentiu, mas Hurit sabia que ele ficaria enquanto não estivesse com a
memória plenamente recuperada. A permanência de Emile entre eles estava
vinculada à sua cura física e espiritual, o que ainda não acontecera – a qual
ela não sabia mais se ansiava. Se no início ela desejava livrar-se dele, já não
tinha tanta certeza disso.
Depois de cruzarem o riacho, Hurit escolheu um trajeto complexo para
chegar até seu destino. Passaram pela casa de Nuna e Etchemim, onde
estavam as crianças brincando na frente. Eles tinham brinquedos
improvisados e alguns construídos pelos pais ou doados por outras famílias.
Não sobrava dinheiro para comprar jogos ou bonecas ou soldadinhos, porém
nenhuma criança Shinnecock parecia preocupada com aquilo. Passaram pela
casa da família de Askook e o jovem estava batendo pregos e madeira,
construindo algum mobiliário novo. Passaram pela casa de Aranck, que se
virou e se afastou quando viu Emile. Ele era o mais resistente da tribo à
presença do branco invasor e Hurit sabia que agia daquela forma apenas por
não conhecer Emile.
A cada família visitada, a cada casa pela qual passavam, Hurit era
saudada. No início, a tribo a afastou ao saber que ela insistia em cuidar do
inimigo, mas o xamã, aos poucos, conseguiu convencer a todos que aquela
decisão era a melhor. Que ela sabia o que estava fazendo e que uma visão dos
deuses não poderia ser ignorada. Hurit não podia ser ignorada. Ela era uma
curandeira, ela ajudava a todos, ela sempre fez do propósito de sua vida
cuidar da tribo. E, apesar de ninguém desejar a presença do branco ferido
entre eles, admitiram que ela era madura para tomar decisões prudentes.
As crianças se aproximavam deles e tocavam Emile em espanto. Se ele
lhes sorria ou acenava, todas saíam correndo e gritando, como se ele fosse
uma representação de Hoobamack. Talvez, apenas talvez, parte do encanto e
do espanto se desse pela presença da águia.
Desde que eles saíram da casa a ave passou a segui-los. Emile ofereceu o
braço para que ela se pendurasse e o animal observava tudo e todos com seu
ar arrogante. A imagem do homem de pele clara e cabelos loiros não era
exótica para os Shinnecocks, mas eles nunca tinham visto um deles
carregando uma águia.
— Você quis que eu te acompanhasse para descobrir o quanto as pessoas
gostam de você?
Emile perguntou quando já estavam quase chegando à cabana de seus
pais. Os muitos olhos curiosos continuavam os espiando.
— Decerto que não. — Ela parou e virou-se para ele. — Quis que visse o
povo. Se quer ficar aqui mais tempo, não gostaria de conhecê-los?
— Não os conheço mais porque eles me rejeitam. — Emile suspirou. —
Mas estou feliz que tenha me feito caminhar pelo sol e carregar um pássaro
inconveniente, assim eu pude perceber que a tribo inteira a respeita. Eles
foram capazes de superar a raiva dos brancos pelo respeito que possuem por
você.
— Pelo xamã. Isso é obra de Wematin.
— Por você, Bela. — Ele sorriu, mas ela balançou a cabeça o
repreendendo por usar o apelido maldito.
— Vamos, Chogan detesta esperar.
Ela voltou a caminhar e o homem marchou atrás dela. O pai estava na
janela aguardando e, pela primeira vez em sua curta vida, Hurit teve medo de
enfrentá-lo.
A SENSAÇÃO de sair pela primeira vez de casa não era nova. Ele sabia que já
sentira aquilo antes, mais de uma vez, inclusive, porém não tinha certeza de
quando fora. Talvez tenha sido quando ele precisou sair. A necessidade o
estava empurrando para o desconhecido novamente. Emile precisava contar à
família que estava vivo, que estava bem e que estava sem memória. Não
sabia exatamente para onde enviar a correspondência, mas suspeitou que, se
mandasse uma carta para a vila de Thanet e endereçasse ao irmão mais velho
- o único cujo nome ele se lembrava, dariam conta de encontrá-lo. Edward
McFadden.
Segurava uma carta cuidadosamente escrita em uma das mãos. Levou
quase um dia inteiro para escrever aquelas poucas palavras e optou pela
simplicidade - não podia ser tão difícil falar com as pessoas que amava.
Porque ele as amava, o sentimento voltou no instante em que as memórias o
arrebataram. A cidade de Southampton ficava perto da aldeia, muito perto,
mas eles não conseguiriam ir à pé, então Hurit conseguiu pegar emprestado
um cavalo com o pai. Chogan ainda não aprovara totalmente a permanência
de Emile entre eles, mas decidira atender Wematin e não se opor diretamente
a isso.
Com apenas um cavalo, ele conduzia as rédeas e Hurit estava sentada à
sua frente, com as costas apoiadas em seu peito e sustentada por suas coxas.
Emile podia dizer que o trajeto até a cidade foi a definição perfeita de uma
tortura. Nem os exércitos napoleônicos seriam capazes de enlouquecer um
homem com mais eficácia do que aquele movimento cadenciado do trote, que
fazia com que o corpo dela se esfregasse no dele. Era a coisa mais indecente
que ele já fizera com uma mulher - e ele sabia que não era virgem. Toda vez
que precisava frear ou desviar o animal, ela usava uma das mãos para se
apoiar - todas as vezes, os dedos o tocavam em partes sensíveis de sua perna.
Todo o seu corpo estava à flor da pele.
Depois do beijo - dos beijos - que trocaram eles não conversaram mais
sobre aquele assunto. Sobre eles, sobre o que significava aquilo, sobre
qualquer coisa relacionada à tensão que cresceu - e ainda crescia - entre os
dois. Emile olhava para ela e seu corpo respondia exigindo que ele a tocasse,
mesmo que ele não o fizesse. Quando ela olhava de volta, ele entrava em
combustão.
Talvez, apenas talvez, Hurit estivesse se divertindo com seu desespero.
Ela mantinha as costas rígidas para evitar recostar-se nele, mas Emile
percebia os risinhos quando soltava imprecações quase silenciosas depois de
um contato involuntário.
Quando chegaram à casa postal de Southampton, Hurit desmontou e ele
precisou de um minuto inteiro até conseguir descer do cavalo. Respirou
fundo, olhou para o céu azul, pensou nos monstros das histórias que ela lhe
contara, qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a afastar o desejo de seu corpo.
— Não tenha pressa. — Ela provocou. — Podemos ficar na vila o dia
inteiro.
— Eu posso. — Ele rebateu. — Não tenho nenhum compromisso mais
tarde, estou inclusive pensando em caminhar pela cidade para conhecê-la.
Hurit deu uma risada.
— Pois divirta-se. Desejo-lhe boa sorte para retornar à pé para a aldeia.
Emile desmontou e prendeu o cavalo na lateral da casa de tijolos
vermelhos que tinha uma vitrine de vidro e placa indicando a atividade que
ali se realizava.
— Você me deixaria aqui, sozinho?
— Preciso voltar para a aldeia. Não somos bem-vindos na cidade.
— Mas os homens não trabalham aqui?
— Sim, trabalham.
Os expressivos olhos de obsidiana estavam tristes, mesmo que ela
fingisse um sorriso. Não era preciso conhecer a fundo a história entre os
Shinnecocks e os moradores de Southampton para entender a tensão que
existia entre eles. Não exatamente pela negociação de terras, mas porque os
americanos que ali moravam não consideravam os nativos como pessoas.
Durante os dias em que esteve na tribo Emile ouviu bem sobre o quanto os
brancos acreditavam que cavalos e gado eram mais valiosos do que os
nativos - e, por isso, pagavam salários inferiores aos homens do povo de
Hurit.
Sem desejar prolongar uma conversa que só serviria para magoá-la, Emile
ofereceu o braço para que Hurit o acompanhasse para dentro da casa postal.
Ele estava vestido com uma calça costurada por ela e uma camisa emprestada
que estava grande demais nele, mas ainda era um cavalheiro e não sabia agir
diferente. Ela o encarou como se o gesto fosse ofensivo.
— O que foi? — A dúvida era sincera. — Eu posso beijá-la mas não
posso escoltá-la em público?
— Você não pode me beijar. — Os olhos dela estavam gelados como o
inverno de Londres. — E não é adequado que nos vejam tão próximos.
— Mas não estamos próximos. Digo, não é costume dos americanos
escoltar as damas em locais públicos?
— Sim, Emile, é. Cavalheiros caminham com damas penduradas em seus
braços. Olhe ao seu redor e verá várias. Mas, diga-me: quantas delas são
nativas? Quantas têm fitas nos cabelos trançados e pele escura?
— Apenas uma. — Ele respondeu sem precisar pensar. — A minha dama.
Hurit fechou os olhos e permaneceu imóvel por alguns segundos. Ele
pensou em desistir, mas teve a impressão de que um McFadden não
costumava desistir, então esperou, mantendo o braço na posição para que ela
o aceitasse. Quando ela o olhou novamente estava possuída de uma
determinação que o impactou. Aquela era a Hurit que ele conheceu no dia em
que abriu os olhos. A mulher que o enfrentava e que conversava com deuses,
sonhava com serpentes e o encantava com cada franzida de sobrancelhas.
Sem dizer mais nada, ela envolveu os dedos na dobra de seu cotovelo e lhe
dedicou um sorriso tranquilizador.
Ele sorriu de volta e colocou os dedos por cima dos dela. Hurit não usava
luvas nem nenhum dos adornos das mulheres que estavam ao redor, das
mulheres que ele supunha conhecer. Talvez o contato da pele dele com a dela
pudesse ser considerado indecoroso, mas tudo que eles já compartilharam
também era. Exibindo orgulho, Emile caminhou com ela para dentro da casa
postal e pediu que a carta fosse enviada.
O lugar era pequeno, contendo um balcão e algumas estantes. O homem
que trabalhava na agência era quase calvo, com alguns ralos cabelos grisalhos
cobrindo parte da cabeça. Usava óculos com lentes grossas e suas mãos eram
manchadas de um misto de tinta e cola dos selos. Segurou a carta e
examinou-a, conferindo que o endereço estava incompleto.
— McFadden? — O homem assumiu uma expressão concentrada. —
Ontem mesmo atendi um McFadden. Ele se parecia com você.
— O senhor atendeu? Ele esteve aqui, postando uma carta?
— Sim, para o mesmo destinatário - Edward. Porém o endereço era em
Londres…
O homem afastou-se do balcão e começou a remexer algumas caixas que
estavam atrás dele. Retirou cartas e mais cartas de dentro e depois colocou-as
novamente no lugar, retornando com um envelope branco, que sacudia como
uma bandeira.
— Está aqui! O remetente é Sr. Isaac McFadden e ele se parece muito
com o senhor. São parentes?
Emile não sabia.
— Posso ver o envelope, senhor?
Sem cerimônias - nem respeito pela privacidade alheia - o homem lhe
entregou a carta e ele pode confirmar que estava realmente endereçada a
Edward McFadden. Aquele era seu irmão, ele tinha certeza - mas não se
recordava daquele endereço. Hurit espiou o envelope por cima do braço dele
e, curiosa, tomou-o nas mãos.
— A letra dele é igual à sua, Emile.
— Não é igual... mas sim, é muito parecida.
— Você não se lembra de nenhum Isaac?
Emile respirou profundamente e fechou os olhos, tentando forçar as
lembranças a virem. Seu coração batia fora de ritmo e suas mãos tremiam
enquanto segurava a carta. As crianças brincavam, Edward ralhava porque
elas implicavam com ele. Eram jovens, um deles tinha os cabelos muito
loiros e os olhos azuis, o outro era um borrão - mas ele suspeitava que
também fosse loiro. Alguém gritava, os chamava e eles corriam na direção da
voz. Havia também memórias da escola, mas não havia meninos nela -
apenas um quarto, um quadro de giz e um tutor. Faces e vozes o atingiram
como flechas vindas do inimigo - a mãe sorrindo, a irmã de fartos cabelos
longos, o pai, a babá, e…
— Eles estão hospedados aqui perto. — O homem atraiu sua atenção e o
forçou a sair de seu delírio. — Se o senhor tem dúvida se os conhece, pode
confirmar.
— Eles? — Hurit perguntou.
— Sim, o homem estava acompanhado de um casal. Eu os vi entrando na
hospedaria do outro lado da rua. Lugar chique, pelo porte eles são da
nobreza. Esses condes, viscondes e duques vêm para a América com aquela
arrogância inglesa e acabam achando que ainda mandam em nós. Alguns
esquecem que somos independentes.
— Obrigado. — Emile deixou uma pequena moeda para pagar a
postagem. Aquele não era o seu dinheiro, mas ele sabia que poderia pagar o
empréstimo, depois. — Por favor, envie minha carta.
O homem da agência assentiu e passou a atender a outra pessoa que
aguardava. Emile estava desorientado com informações e lembranças que
foram retiradas à força de sua mente e quase não conseguiu caminhar para o
lado de fora da casa postal. Hurit o auxiliou a manter-se de pé, mas não
conseguiu evitar que ele se sentasse nos degraus da pequena escada da
agência bancária, ao lado. Por alguns minutos, manteve-se íntegro para
conseguir finalizar a conversa sem parecer estar louco, mas descobrir que
outro McFadden estava em Southampton - e enviando cartas para o seu
irmão, parecia uma coincidência impossível.
Hurit sentou-se ao lado dele e pareceu ignorar a prudência e a vergonha
de que alguém os visse juntos. Colocou uma das mãos sobre sua cabeça e
acariciou seus cabelos com a ponta dos dedos.
— Acha que eles podem ser seus irmãos? Os que você não lembra, mas
acha que existem?
— É provável. — Ele não levantou a cabeça para responder, apenas
balbuciou as palavras. — Se fui ferido em Southampton, isso explica eu ter
sido encontrado na costa da aldeia.
— E suas memórias da Inglaterra?
— São antigas. — Emile ergueu o olhar e fixou-o na hospedaria indicada
pelo homem da agência postal. — Será que eles estão me procurando?
— Você pode ir até lá e descobrir.
Os olhos dele vagaram até os dela e Emile sorriu. Havia tristeza e
confusão nos lábios que fingiam alegria, porém Hurit era apenas um
incentivo para que ele fizesse o que era necessário.
Resoluto, levantou-se, bateu o pó da roupa e marchou decidido até o
outro lado da rua, sempre tendo o cuidado de manter a mulher ao seu lado,
segurando seu braço. Não prestou atenção se pessoas os observavam ou se
achavam absurdo que uma nativa e um branco caminhassem como um casal -
tudo que queria era descobrir afinal quem era Isaac McFadden.
A hospedaria era realmente elegante, mais parecida com um hotel.
Lembrou-se subitamente de um, na vila de Thanet, que era luxuoso e
hospedava as pessoas mais ricas que passavam o verão em Kent. Não, aquele
não se parecia com o Palace of the Sea, mas era bastante refinado.
Tanto que, assim que eles entraram, foram abordados por um homem em
traje completo.
— Posso ajudá-lo, senhor?
A expressão de desgosto do homem era difícil de ignorar. Emile não sabia
se ele demonstrava horror por eles estarem mal-vestidos ou por ele carregar
uma nativa pelo braço.
— Sim, eu estou procurando pelo Sr. Isaac McFadden.
— Ele espera pelo senhor?
Provavelmente não, mas era possível que sim.
— Sim, espera. Poderia dizer a ele que o Sr. Emile McFadden chegou?
Hurit sorriu e ele soube que ela aprovava sua ousadia. O homem afastou-
se e foi até um balcão, onde um jovem escrevia em um livro de registros. O
jovem balançou a cabeça para os lados e resmungou alguma coisa, fazendo
com que o homem retornasse com más notícias.
— O Sr. Isaac saiu e ainda não retornou.
— Posso esperar por ele aqui na recepção?
Olhando para eles com desdém, o homem fez uma careta antes de
responder.
— Lamento, mas não aceitamos a presença de nativos. Nossos hóspedes
são pessoas da alta sociedade e...
Emile quis interromper o dândi e esbofeteá-lo até que sua cabeça virasse
do avesso. Durante toda a sua estadia na aldeia ele ouvira os Shinnecocks
falarem sobre a forma como eram tratados pelos brancos, mas ele não quis
acreditar que fosse como descreviam. Não quis acreditar que seu povo era
arrogante a ponto de tratar como animal um outro ser humano.
E então ele se lembrou da escravidão nas colônias e do quanto o seu povo
matara e aprisionara outros povos apenas porque podia fazê-lo. Naquele
momento em que o homem arrogante encarava Hurit como se ela fosse
inferior a eles, como se ela tivesse menos valor do que um cão de estimação,
Emile quis ensinar a ele um pouco de educação fazendo-o sentir o peso de
seus punhos - mesmo que ele nunca tivesse batido em ninguém durante toda a
sua vida.
Mas nada aconteceu - eles foram interrompidos pela porta se abrindo e o
barulho de vozes masculinas preenchendo todo o salão. Por instinto, Emile
virou-se para ver a origem da balbúrdia e deparou-se com a chegada de dois
homens loiros como ele - e teve certeza de que estava olhando para seus
irmãos. As crianças borradas das memórias de Thanet.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO
P ARA H URIT , OS BRANCOS SEMPRE FORAM PARECIDOS , MAS ERA INEGÁVEL QUE
os dois recém-chegados eram parentes de Emile. Pela forma como ele
tensionou ao lado dela, com certeza também notara a semelhança
significativa entre eles - especialmente em relação ao que ostentava uma
barba bem cortada e olhos mais azuis que o céu do verão.
— Emile? — O homem disse, dando alguns passos na direção deles. — É
você?
O silêncio serviu como resposta. Emocionado, o homem segurou Emile
em um abraço apertado. Hurit soltou-lhe o braço mas percebeu que algo
estava errado.
— Isaac? — Ele arriscou, sem conseguir desvencilhar-se dos braços ao
seu redor.
— Céus, nós pensávamos que estivesse morto!
Assim que o abraço afrouxou, Emile cambaleou para trás e quase
trombou no funcionário da recepção que observava tudo como se
considerasse aquela exibição de afeto um escândalo.
— Ele pensava. — O outro homem loiro falou. — Eu sempre acreditei
que estivesse vivo.
— E, ainda assim, não conseguiu encontrá-lo.
— Não tenho culpa se suas pistas eram ainda piores que as minhas, Isaac.
Uma mulher de cabelos cacheados presos no alto da cabeça se uniu ao
grupo. Ela tinha as bochechas coradas de caminhar sob o sol e parecia
surpresa com a comoção.
— O que está havendo? Por que essa confusão no meio da hospedaria?
— Encontramos nosso irmão! — Um dos homens a segurou pela face e a
beijou nos lábios. Hurit arregalou os olhos e quis rir da mesma reação no
recepcionista. Aqueles irmãos eram mesmo escandalosos. — Ele nos
encontrou, na verdade.
A mulher assumiu uma expressão curiosa que logo se transformou em
preocupação.
— Ele não parece bem.
— Meu Deus, vocês falam demais. — Emile finalmente disse alguma
coisa, pressionando as têmporas com os dedos. — Não me lembro de serem
tão estridentes.
— Isaac é um falastrão.
— Eu preciso me sentar.
Emile cambaleou novamente e foi amparado pelos dois irmãos. Foi
quando Hurit notou que ele sangrava e estava muito pálido. Não era a
primeira vez que uma situação de conflito o fazia sangrar.
— Você está ferido.
— Ele levou um tiro, Isaac. Vou providenciar um médico.
— Eu preciso apenas me sentar. — Emile insistiu.
— Vamos conduzi-lo para um de nossos quartos. — Isaac decidiu. —
Não, ele precisa de seu próprio quarto. Sr. Simons, providencie uma
acomodação para nosso irmão.
— Não, eu não preciso disso.
Emile livrou-se dos irmãos e quase caiu ao chão. Ele parecia zonzo, como
se estivesse entorpecido pelo láudano. Vagou tropeçando até um sofá e
desabou sobre ele. Antes que alguém pudesse se aproximar, Hurit agiu.
Ajoelhou-se à frente dele e segurou as mãos de Emile entre as suas.
— Consigam-me uísque. — Ela pediu, mas ninguém reagiu. — Emile, o
que está sentindo?
— Muitas memórias, Bela. Quando eu os vi foi como se tudo voltasse de
uma vez.
— Lembrou-se de quem são?
— Lembrei-me de tudo.
Os homens a observavam com curiosidade, mas não ousaram se
aproximar. Estavam confusos com a sua presença e com a intimidade que
testemunhavam. Foi a mulher de olhos grandes e castanhos que, sorrindo,
entregou-lhe um copo com líquido âmbar e cheiro adocicado. Com um aceno
positivo de cabeça, Hurit agradeceu.
— Beba, vai ajudá-lo.
— Não quero mais láudano.
— É uísque.
Ela levou o copo até a boca dele. Emile estava com a cabeça jogada para
trás, recostada no encosto do sofá, o pescoço esticado e exposto. A forma
como eles se portavam e vestiam era inadequada para as rígidas regras de
comportamento dos brancos, mas Hurit não costumava se importar.
Confiando nela, ele aceitou a bebida. Ajeitou-se no assento, abriu os
olhos e bebeu tudo em um só gole. Pela cara de espanto do irmão Isaac, ele
não estava acostumado a ver Emile beber.
— Eu não estou entendendo nada.
O outro irmão, visivelmente mais relaxado e menos aristocrático do que
Isaac, disse.
— Talvez se vocês parassem de falar e ouvissem, pudessem entender. —
A mulher provocou.
— O que aconteceu durante esses dias, Emile? — O irmão ainda sem
nome sentou-se ao lado dele no sofá. — Por que não me procurou? Você me
culpa pelo que houve?
Dois segundos pareceram silêncio por tempo demais. Outras pessoas já
observavam a confusão e Hurit não tinha certeza se era porque havia uma
nativa ali, ou porque aqueles talvez fossem os homens mais bonitos que
existiam nos Estados Unidos da América, ou porque eles tinham o porte da
nobreza e o comportamento da ralé.
— Eu estava sem memórias. Acordei sem saber quem eu era. Nem meu
nome, nada. Fiquei dias sendo chamado de inimigo até finalmente lembrar
meu nome - e ainda me chamam inimigo.
Ele deu uma risada nervosa direcionada a ela. Hurit percebeu que ainda
segurava as mãos dele entre as suas - e que ele apertava seus dedos com
força.
— Foi ela quem te resgatou? — Isaac perguntou.
— Ela está bem aqui, você pode se dirigir a ela. Hurit não morde.
Isaac baixou a cabeça e a balançou.
— Claro. Eu lamento por minha falta de respeito. Isaac McFadden,
senhorita.
Ele fez uma mesura que deveria ter significado para a nobreza. Hurit não
conhecia nobres, aquela era uma realidade da Inglaterra, não deles.
— É um prazer conhecê-lo.
— Esses dois são Nathaniel com sua esposa, Lucille.
Hurit fez um aceno em cumprimento. Nenhum deles a olhava como os
brancos costumavam olhar. Era quase como se aquelas pessoas estivessem
demonstrando gratidão.
— Esposa? — Emile perguntou. Nathaniel riu e segurou a mão de
Lucille, beijando-lhe os nós dos dedos. — Você está casado?
— Enquanto procurava por você, o amor dessa mulher maravilhosa
cruzou o meu caminho.
— E eu estou há alguns dias tendo que suportar a falta da minha mulher
enquanto Nate se transformou no maior romântico que conheço. — Isaac
revirou os olhos.
Ela estava curiosa para conhecer aquela família, mas precisava ajudar
Emile. Abriu dois botões da camisa e levantou-a parcialmente, apenas para
conseguir ver o curativo e não violar ainda mais o decoro. Os olhares
estavam sobre ela quando soltou a bandagem e analisou as bordas
avermelhadas do ferimento. Não entendia por que ele ainda sangrava, se os
pontos pareciam intactos. Talvez, por ser muito profundo, o corte demorasse
mais a cicatrizar.
— Precisamos limpar e trocar o curativo.
— Chamarei um médico. — Isaac se movimentou.
— Não há necessidade. — Emile fez um gesto com a mão para impedi-lo.
— Hurit vem cuidando de mim desde que me encontrou, ela sabe o que fazer.
— Foi ela quem te resgatou? Onde você esteve durante esse tempo?
— Por que não continuamos a conversa em nosso quarto? — Nathaniel se
levantou. — Além de termos espectadores indesejados por aqui, Emile
precisa de cuidados. São apenas alguns andares acima, acha que consegue
subir?
Emile fez menção de se levantar também e manteve a mão de Hurit nas
dele. Sua aparência era melhor, havia outra vez cor em seus lábios e
bochechas.
— Se eu consegui sobreviver a isso — apontou para a barriga — enfrento
qualquer outro desafio. Vamos.
E MILE ESPERAVA que aquela fosse a última vez que um turbilhão de memórias
o atropelaria. Assim que viu os dois homens loiros entrando na hospedaria ele
soube quem eram - e as lembranças passaram por cima dele como uma
manada de cavalos enfurecidos. A sensação era a de estar naufragando
novamente, e ele se lembrara, subitamente, de afogar-se. Confuso e
sangrando, acabou indo parar no quarto de seu irmão Nathaniel, sobre uma
cama macia e confortável como as que ele estava acostumado antes de quase
morrer e ser resgatado pelos Shinnecocks.
Não, a cama de Hurit também era confortável. Os dias que ele passara na
aldeia foram tranquilos e nada lhe faltou, apesar da pobreza. Era injusto
sequer considerar que não tivera conforto durante aqueles dias e a ingratidão
era um sentimento que ele não nutria.
Ela estava ali, sobre ele, investigando as minúcias dos pontos que dera no
ferimento. Usara uísque para limpar o corte e tentava entender porque ele
sangrara. Os irmãos observavam com expressões variadas. Isaac mantinha o
ar de serenidade e sabedoria que lhe era comum, mas Nathaniel estava
agitado. O irmão, que era poucos anos mais velho que ele, sempre fora
inquieto e diferente, sempre se portou diferente dos outros homens da família
- e era por isso que Emile o admirava. Como ele mesmo era um renegado, um
desajustado que não sabia qual era seu lugar naquele mundo de homens
poderosos e cheios de títulos e fortunas, qualquer pessoa que pudesse lhe
mostrar como se encaixar na sociedade era alguém em quem deveria prestar
atenção.
Mas Nathaniel enveredou-se para o crime. Foi exatamente isso que levou
Emile ao Brooklin, naquela noite, e que o fez ser atingido por uma bala que
não lhe fora direcionada. Na tentativa de evitar uma tragédia e de salvar o
irmão, acabou no fundo do oceano. A forma como ele estava impressionado
com o ferimento na barriga de Emile indicava que se sentia culpado,
responsável pelo episódio, mesmo que aquilo fosse uma grande bobagem. Ele
estava vivo, era o que importava.
E havia Lucille, a cunhada que Emile não conhecia. Ela era bonita e tinha
olhos curiosos. Apoiava-se em Nate e acariciava os cabelos dele como se
estivesse muito apaixonada, o que significava que eles se casaram às pressas
e provavelmente porque o irmão fizera alguma coisa errada. Não importava,
ela parecia feliz.
— Sente alguma coisa? — Hurit fez com que ele prestasse atenção nela
ao pressionar sua carne com dois dedos.
— Não, está um pouco dormente.
— Usaremos mais ervas quando retornarmos para a aldeia. — Ela
terminou de limpar ao redor da ferida. — Você acha que consegue suportar a
camisa sobre os pontos? Não tenho outra bandagem para refazer o curativo.
— Sou mais resistente do que pareço. — Emile levou a mão até a face
dela e acariciou-a na bochecha. Hurit enrijeceu o corpo e ele percebeu que
estava sendo inoportuno. Com um movimento lento, dobrou o corpo e levou
os lábios bem próximos do ouvido dela. — Desculpe-me, estou há tanto
tempo sozinho com você que me esqueço do decoro.
Ela sorriu e baixou os olhos. Emile quis beijá-la naquele instante, mas
esse era um problema recorrente. Ele queria tomar Hurit nos lábios sempre
que a via. Talvez pudesse passar um dia beijando-a, saboreando-a, provando
do que ele sabia que ela era capaz de oferecer. Mesmo que ele estivesse ainda
atordoado pelas recentes lembranças e cercado de pessoas que deixaram de
ser estranhas apenas alguns minutos atrás, os sentimentos que afloravam em
relação a ela não se silenciavam. O ferimento estava dormente, o restante de
seu corpo, não.
— Emile, podemos conversar? — Isaac se aproximou, aproveitando o
momento em que Hurit recolhia a bandagem suja de sangue e a bacia com a
água que usara. — Em particular?
Não parecia haver espaço para uma negativa. Eles tinham assuntos
pendentes - com certeza os irmãos queriam saber o que acontecera tanto
quanto ele gostaria de contar a eles. Lucille, compreendendo que a conversa
não envolveria as mulheres, aproximou-se de Hurit e a ajudou a levar a bacia
para o banheiro. Com a desculpa de que providenciariam um chá para todos,
saíram do quarto. Emile terminou de abotoar a camisa e sentiu um pequeno
desconforto por estar com o ferimento exposto, mas não demonstrou - ele não
queria que os irmãos o vissem como um fraco. Se sempre fora assim, aquela
memória ainda estava faltando.
— Onde esteve nesses dias? — Nathaniel perguntou, servindo uísque
para os homens.
— Na aldeia dos Shinnecocks, aqui perto.
— E você não nos contatou por que perdeu as memórias, foi isso? Só
quero confirmar que não me culpa pelo que aconteceu.
Emile sorriu diante da expressão desesperada do irmão. Não desejava que
ele sofresse, mas se satisfez em saber que Nathaniel se punia pelo fato. Não
era culpa dele, porém foram os atos criminosos cometidos por Nate que o
conduziram àquela situação.
— Eu não o culpo pelo o que aconteceu. Até poucos dias eu não sabia
meu nome. Viemos à cidade hoje porque lembrava-me de Edward e decidi
escrever para ele - porém lembrava apenas que ele morava em Thanet. As
memórias quase me mataram, agora.
— E ela, Milo?
— Bela foi quem me achou na praia. Ela cuidou de mim, cuida até hoje.
— Bela?
— Hurit significa bela, então eu a chamo assim. É mais uma forma de
provocar, já que ela não gosta muito.
Nathaniel e Isaac se entreolharam. Ele percebeu que havia uma
comunicação muda entre eles e se incomodou que isso pudesse se relacionar
a Hurit. Depois do que acontecera na recepção, Emile sentia-se compelido a
protegê-la e evitar que qualquer um a magoasse com tratamentos
discriminatórios. Ela era uma das melhores pessoas que ele conhecera, não
merecia ser considerada menos valiosa apenas porque os brancos se
consideravam superiores.
De súbito, assustou-se por pensar em si mesmo como “os brancos”.
— Você parece bem próximo dela.
— Nós somos. Mas isso não interessa a nenhum de vocês. — Emile
levantou-se, ajeitando a camisa dentro da calça. — Nathaniel, o mais
proclamado solteiro que eu conhecia se casou em semanas, por que eu não
posso me afeiçoar a uma mulher nesse mesmo tempo?
— Você está ciente de que ela é indígena?
Cruzando os braços no peito ele olhou para os dois irmãos e comprimiu
os lábios para evitar falar sem pensar.
— Espero que vocês dois pensem bem antes de continuar essa conversa.
Se ela for por esse caminho, um dos dois sairá daqui de olho roxo.
Isaac arregalou os olhos e Nathaniel quase cuspiu seu drinque em uma
gargalhada incontida.
— Meu Deus, você gosta dela.
— Claro que eu gosto dela, Nate. E é por isso que não aceitarei que a
depreciem.
— O que pretende fazer? — Isaac mudou de assunto, mesmo que, em
verdade, ele ainda desejasse saber a mesma coisa.
— Ainda não sei. Mesmo que eu tenha me lembrado de quem sou, ainda
preciso me acostumar a ser essa pessoa. É como se tivesse ficado muito
tempo sem andar e estivesse reaprendendo a caminhar com minhas próprias
pernas. Depois disso, conseguirei um emprego por aqui. Southampton deve
estar precisando de advogados.
— Milo, você é irmão de um conde. Eu e Edward temos muito dinheiro e
você trabalhava conosco. Recorda-se disso, certo?
Sim, ele se recordava. As memórias estavam todas ali, esperando um
evento que o fizesse associá-las a ele. Ao pensar em trabalho, lembrou-se de
possuir dois diplomas, ambos adquiridos em Oxford. O tempo não gasto com
aventuras masculinas fora despendido em estudos. A última graduação fora
em Direito e, depois de laureado, Emile fora contratado por seu irmão mais
velho para compor e montar um corpo jurídico especializado para as
empresas. Porque eram muitas empresas. Seu irmão, Edward, ao assumir o
condado, aproximou-se de industriais e homens muito ricos com quem
poderia se associar. A nobreza estava cada vez mais decadente - mantinha seu
status - mas não podia mais sobreviver de renda como outrora. Os nobres,
titulados ou não, precisavam trabalhar e encontrar outros meios de prover o
sustento de empregados e propriedades. Edward fazia parte de uma nova leva
de aristocratas que empreendia e se mantinha nas graças da burguesia em
ascensão.
Com isso, Isaac também enriqueceu e até Nathaniel passou a fazer parte
dos planos empreendedores do conde. Isso até ele se envolver com
criminosos nos Estados Unidos, mas Emile não viu como aquela questão foi
resolvida.
— Eu me lembro de quase tudo, Isaac, mas sei que meu irmão é rico, não
eu.
— Ainda assim, você tem condições de viver bem. Seu estado atual
parece precário.
Emile olhou para si mesmo em um espelho conveniente que ocupava um
canto do quarto. Estava mais magro do que antes, mas aquilo se dava aos dias
em que esteve dormindo. Comia bem na cabana de Hurit, ao menos não
passava fome. As roupas que usava eram improvisadas e, ainda assim, ele
parecia satisfeito com elas.
— Eu estou muito bem.
— Faremos o seguinte: vou liberar o acesso aos seus fundos e você
passará a contar com algum dinheiro. Se eu conversar com o gerente do meu
banco, em Nova Iorque, ele me auxilia na transferência dos valores. Fique
conosco esta noite, vamos jantar, conversar, você nos contará tudo e, amanhã,
resolveremos o restante. Você precisa de algumas roupas e um cavalo.
Nathaniel fez uma oferta de paz que causou estranheza em Isaac - mas o
irmão mais velho nada disse. A possibilidade de ter dinheiro o animou.
— Eu tenho “fundos”?
— Você tem bastante dinheiro guardado, irmãozinho. — Nate deu uma
risada. — Nunca vi ninguém tão sovina quanto Emile McFadden. Amanhã,
quando o banco abrir, sacamos alguns dólares adiantados e depois eu resolvo
outras questões em Nova Iorque.
A proposta era tentadora. Primeiro porque ele realmente queria se colocar
a par de tudo que estava acontecendo, conhecer a esposa do irmão, saber
notícias de Londres, se eles tivessem alguma. Segundo, Emile via com bons
olhos a possibilidade de contribuir com sua estada na aldeia, de ter dinheiro o
suficiente para comprar presentes para Hurit.
Ele era tolo, mas seu primeiro pensamento foi em presenteá-la. Imaginou
que sua princesa Shinnecock fosse detestar receber presentes na mesma
intensidade que ele adoraria ofertá-los.
— Preciso conversar com Hurit sobre isso, mas concordo. Ficarei esta
noite e conversaremos sobre o que quiserem.
Nathaniel exibia um sorriso largo e sincero, mas Emile sabia que ele
estava negociando. Aquele era o melhor negociador que ele conhecia, o
irmão tinha um talento nato para qualquer tipo de transação comercial.
Assentindo com um movimento de cabeça, Emile ofereceu a mão para selar o
acordo entre eles.
R ETORNAR SOZINHA PARA CASA NÃO ERA O QUE ELA ESPERAVA - NEM
desejava. Hurit não soube que sentiria falta de Emile até apear do cavalo na
casa de seus pais e voltar para sua cabana vazia. O trajeto de Southampton até
a aldeia foi curto e veloz, ela não viu o tempo passar porque estava
anestesiada pelo súbito abandono. Mas ver sua cama desocupada e a águia
escandalosa empoleirada sobre uma cadeira a abateu.
Foi como se um furacão a atingisse, a jogasse para o alto e a derrubasse
no chão. Hurit estava zonza e precisou se sentar, mas ela nunca se sentia tão
abalada por tão pouco. A sensação de perda era tão intensa que chegava a
doer, como se lhe tivessem amputado um membro. Ela só sentira um vazio
semelhante antes quando perdera seu irmão.
Não, claro que ela não estava comparando a morte de Keme com a ida de
Emile. Seu irmão lhe fora arrancado, perdera a vida pelas mãos imundas de
dois assassinos que nunca foram punidos. Emile estaria por aí, vivendo bem e
feliz. Logo se casaria e teria muitos filhos, todos lindos e loiros como ele. A
sua missão estava cumprida, ela cuidara dele, ele estava curado, tudo parecia
perfeito.
Exceto que não estava. Hurit não entendia que raios era a missão. O que
queriam os deuses, o que dissera Hoobamack. Por que Paumpagussit lhe
enviara aquele homem? Para que ela se apaixonasse e sentisse mais uma vez
a dor da perda?
Antes que ela se desse conta da gravidade de seus pensamentos, a águia
gritou.
— Ele não veio. — Ela fitou o bicho que a encarava com o pescoço de
lado. — Ele não voltará, então você precisa se contentar comigo.
Aquela era a verdade, Hurit não tinha dificuldades em enfrentá-la. A ave
demonstrou seu desprezo e saiu pela porta saltitando, já que não conseguia
voar. Ela permaneceu ali, sentada na cama, com os dedos enrolados aos
lençóis que estavam impregnados do cheiro masculino que destruía suas
defesas e tirava seu juízo.
Naufragada pelos pensamentos, sentindo uma exaustão física que não
compreendia, deitou-se no lugar que Emile passou todos aqueles dias e
adormeceu. Não sonhou com nada, não foi chamada pelos deuses em seu
sono, apenas dormiu até não aguentar mais. Despertou horas depois com a
escuridão do lado de fora. O relógio batia quase nove horas da noite. Suas
lamparinas estavam acesas e Wapun estava na casa.
A amiga estava sentada em uma poltrona de estofado puído e a olhava
com curiosidade. A ave estava encolhida em um canto mais escuro,
dormindo, alheia aos eventos. Aquele bicho realmente não a compreendia,
apenas Emile conseguia conversar com ele.
— Onde está o Matwan?
— Em Southampton. Uma coincidência muito intrigante aconteceu,
descobrimos que dois de seus irmãos estavam na cidade e procuravam por
ele. Emile agora está com sua família.
As palavras se tornaram desnecessárias. Hurit não precisava explicar mais
nada e a voz lhe faltou assim que terminou de responder a Wapun. Precisou
de todo o seu autocontrole para não derramar nenhuma lágrima, mas seus
olhos estavam inundados. Wapun levantou-se, foi até ela e a abraçou.
Hurit era uma rocha. Sua vida inteira foi construída sobre frieza e
tenacidade. Ela não fraquejava nem se afetava pelo que abalava todo mundo.
A filha do chefe, a princesa da tribo, forte e destemida, mesmo tendo o
tamanho de uma criança. E, naquele instante, cada parede que ela erguera tão
cuidadosamente ao redor de seus sentimentos estava trincada e ruindo.
Ela não choraria por ele. Tudo acontecera como deveria.
— Então vocês se despediram? Ele não retornará?
— Por que retornaria?
Não seria por ela. Eles viviam em mundos diferentes. Tão absurdamente
diferentes que ela não poderia enumerar todas as discrepâncias que os
separavam nem em duas mãos. Emile era um nobre, ela sabia que ele tinha o
sangue azul dos ingleses quando o viu pela primeira vez. E ele estava entre os
seus.
Fingindo resignação, decidiu preparar algo para comer mesmo que não
tivesse fome. Um chá a faria sentir-se melhor.
— Agora você pretende assumir-se como xamã?
— Não sei. Conversarei com Wematin amanhã.
Hurit serviu duas canecas de água quente com ervas em infusão. Sentou-
se e indicou que a amiga deveria fazer o mesmo. A amiga estava estranha,
fitando-a com aqueles enormes olhos castanhos e se movendo lentamente
como se pudesse causar um terremoto com os pés. Wapun era muito sincera e
transparente. Algo estava errado e ela descobriria o que era.
— Você tem algo a dizer.
— Não sei se você está com o espírito certo para ouvir.
— Se for sobre Emile, saiba que está tudo bem.
— Duvido que esteja bem. — Wapun bebericou o chá. — Mas não é
sobre ele. Kitchi disse que a tomou como esposa.
O líquido que Hurit acabara de colocar na boca espirrou sobre a toalha
bordada que cobria a mesa. Ela quase se engasgou e deixou a caneca de chá
cair sobre a madeira, derramando quase todo o seu conteúdo.
— Ele disse o que?
— Exatamente o que ouviu. Ele procurou seu pai e pediu que os
proclamasse casados, pois ele a tomara como esposa alguns dias atrás. Pediu
a bênção do chefe e do pai.
— Mas Kitchi enlouqueceu? Como ele pode ter me tomado como esposa
se não houve casamento algum?
— Creio que ele esteja falando da forma antiga.
Hurit se levantou em um salto, deu um giro e desabou outra vez na
cadeira, despertando a águia. Até décadas atrás, era comum que o casamento
entre um homem e uma mulher acontecesse sem formalidades. Eles se
tornavam amantes, o homem tomava a virgindade da futura esposa e eles
estavam casados. Depois bastava apresentar a mulher para todos como sua
esposa e o cacique lhes concedia a bênção. Afinal, se uma mulher estivesse
disposta a entregar sua virgindade ao homem, era porque o desejava como
marido.
— Eu vou matá-lo.
Em outro impulso, Hurit se levantou e pegou uma faca entre seus
utensílios. Era uma faca grande e muito afiada, usada para descamar peixes.
— Acalme-se. — Wapun também se levantou e fez menção de tomar dela
o objeto. — Você terá um surto de histeria. Deixe de ser tola, não matará
ninguém. O que pode ter havido entre vocês para que ele entendesse que...
— Wapun! — Hurit a interrompeu. — Eu terminei o noivado com Kitchi!
— Oh. Agora entendo, ele está tentando te forçar a ficar com ele.
— Ninguém me força a nada! — Ela segurou a faca com mais força. —
Ninguém, não importa há quanto tempo eu conheça Kitchi. Eu o arrastarei
pela aldeia e o pendurarei estripado no meio da fogueira.
Wapun deu uma gargalhada. Por mais furiosa que Hurit estivesse, ela era
muito pequena. Batia no meio do peito de Kitchi e jamais seria capaz de
causar dor ou perigo para um homem do tamanho dele. Nem se ela se
armasse de duas facas ou se usasse a águia como suporte.
— Amanhã você conversará com seu pai e desfará esse mal-entendido.
Dê-me a faca, Hurit.
— Não houve mal-entendido, Wapun. Mal-entendidos acontecem quando
alguém entende algo errado, mas Kitchi mentiu. Ele sabe que nós... que entre
nós...
Ela não conseguiu terminar a frase. A decepção se abateu sobre Hurit
como pingos grossos de tempestade. Era a sua palavra contra a dele, e não
faltaram ocasiões em que algo mais íntimo pudesse ter acontecido entre eles.
Não havia rigor que a impedisse de receber o noivo em sua casa, de sair para
caminhadas com ele, de passar tempo sozinha com ele. Por diversas vezes
eles poderiam ter se tornado amantes, mas nada acontecera porque eles
concordaram em se casar apenas quando fosse o momento adequado.
Houve alguns beijos, mas nenhum íntimo o suficiente. Nada como o beijo
trocado com Emile, aquele de corpo inteiro que acendera todos os seus
sentidos e a fizera sentir-se viva. Céus, Hurit deu-se conta que tivera mais
intimidade em um beijo do que em todos os outros compartilhados, sonhados
ou idealizados com Kitchi.
— Não acredito que ele fez isso. — Lamentou, deixando a faca sobre a
mesa e escondendo a face quente entre as palmas das mãos. — Eu confiava
nele. Eu cria que ele era o homem ideal.
— Talvez seja. Casar-se com ele não é tão ruim, é? Quero dizer, você
faria isso de qualquer jeito, portanto...
— Eu não o amo.
— Hurit não se importa com amor.
A surpresa de Wapun era genuína e reveladora. Hurit não se importava
com o amor. Não amava nem desejava aquele sentimento romântico e tolo
que acometia as mulheres como se fosse uma doença. Mas, por algum
motivo, pareceu errado casar-se com Kitchi sem amá-lo. Ou era errado
porque ela amava outro.
— Talvez agora eu me importe.
— Passarei a noite. — Wapun se levantou, pegou a faca e devolveu para
o lugar de onde ela fora retirada. — Você não está bem para ficar sozinha.
— Não é necessário.
— Serei eu ou Amonute. — A amiga não deu chance para recusa. — E
garanto que sua mãe está bastante histérica com a notícia do seu casamento,
portanto não seria a melhor companhia.
Vencida, Hurit concordou. Suas mãos tremiam e ela duvidava que
pudesse evitar confrontar Kitchi se alguém não estivesse ali para impedi-la.
D EIXE que ela tome suas próprias decisões. Mais uma vez, os conselhos de
Isaac o atingiram e o fizeram refletir quando ele deveria ser apenas instintos.
Seria aquela uma ocasião em que ele deveria permitir que Hurit decidisse seu
destino ou estaria sua mente lhe pregando uma peça porque ele queria que ela
se entregasse a ele?
Emile não estivera com muitas mulheres - na verdade, toda a sua
experiência sexual se resumiu à cama de algumas prostitutas, mas elas eram
ótimas professoras. Ensinaram-no a usar proteção para evitar doenças e filhos
bastardos e a satisfazer uma mulher. Durante seus vinte e sete anos ele não
esteve noivo, não cortejou damas nem planejou casamento como fizera Isaac
- então aquela era a primeira vez em que ele tinha uma mulher de quem ele
gostava em seus braços. Em sua cama.
Seu corpo inteiro ansiava por possuí-la enquanto sua mente gritava que
ele não poderia desonrá-la.
Deixe-a escolher.
— Eu posso te mostrar o prazer que elas sentiram. Você quer?
Ela assentiu com a cabeça. Ele esperou.
— Eu quero.
Duas palavras mágicas. Que os deuses o perdoassem, mas ele voltaria
para o fundo do oceano se não pudesse dar a Hurit o pouco que ela pedia
dele. Com um rosnado gutural, Emile possuiu-lhe a boca com desejo,
oferecendo a mesma entrega que exigia. Não era mais um beijo sensual - era
voraz e urgente, carregado de paixão e frustração. Enquanto as línguas se
enrolavam em uma dança inominada e frenética, ele terminou de desabotoar a
camisa e a livrou da inconveniente vestimenta.
Não havia nada por baixo. Ao contrário das mulheres que ele conhecia,
que usavam duzentas peças de roupa, Hurit trajava apenas aquela camisa de
tecido grosso. Para seu deleite, o descarte da roupa representou a exposição
integral dos seios mais perfeitos que ele já vira.
Emile ficou sem ar por um momento. Ergueu o corpo para admirá-la,
deslizando as mãos abertas do pescoço para o colo e tocando de leve os
mamilos túrgidos. Ela fechou os olhos e gemeu ao contato. Não sabia se
estava envergonhada, nervosa ou apenas aproveitando a devassidão do
momento, como ele.
— Você é linda.
Murmurou, segurando os mamilos entre os dedos. Ela gemeu novamente
e Emile voltou a beijá-la. Lábios, pescoço, seios. Arrastou os lábios e a língua
por cada pedaço de pele descoberta. Testou seus limites levando um dos
mamilos à boca e sugando devagar. Como ela não gritou, não o chutou nem o
mandou parar, ele prosseguiu. Fartou-se de um seio, mudou para o outro,
arrancou dela todos os gemidos que seus ouvidos desejavam ouvir.
Sem mais conseguir permanecer passiva, Hurit cravou os dedos em suas
costas e depois atacou os botões de sua camisa. Como seria mais fácil, Emile
arrancou-a pela cabeça sem nem mesmo se preocupar se a peça se tornaria
inútil no dia seguinte. Ela abriu os olhos e o empurrou para trás, passando os
dedos por seu peito e descendo até o abdômen. Circulou a borda do curativo e
pousou a palma da mão sobre o ferimento.
— Dói?
— Não. — Emile levou aquela mão aos lábios e a beijou. — Diga-me o
que quer que eu faça. O que quer fazer.
— Eu não sei.
— Mas você sente. Prometa-me que pedirá que eu continue se gostar, que
eu pare se não gostar, e que me tocará se quiser.
— Eu estou tocando você. — Ela riu.
— Haverá muito mais de mim ainda, minha Bela.
A confusão nos olhos escuros intensificou quando ele levou as mãos aos
botões da saia e os soltou. Desfez laços e afrouxou tecido até poder puxá-la
para baixo e livrar-se de mais uma peça inconveniente - e a calçola que ela
usava teve o mesmo destino. Em minutos ele a tinha nua sob si e mal sabia se
teria tempo para tudo que ele desejava fazer com ela.
Os beijos retornaram. Emile traçou, com a língua, uma linha sinuosa do
meio dos seios até o umbigo. Demorou-se ali, acariciando-lhe a parte interna
das coxas para fazer com que ela se abrisse para ele. Salpicou beijos pela
barriga dela enquanto conduzia os dedos para cima até tocar-lhe a
feminilidade. Hurit gemeu e se contorceu. Rígida, ela o impediu de
prosseguir.
— Está tudo bem. — Ele afastou as mãos e voltou a olhá-la nos olhos. —
Não precisamos fazer nada que você não queira, Hurit.
— Emile. — Ela o segurou pela face, uma mão de cada lado. — Eu quero
cada parte de você. Mas estou nervosa. Poderia me dizer o que está
acontecendo?
— Nesse momento eu estou beijando você. — Ele tomou-lhe a boca outra
vez. — E eu pretendia continuar beijando, mas não aqui.
— Percebi que esteve beijando por todo lugar.
— Quase todo lugar. Permita-me mostrar um beijo que será ainda mais
gostoso do que esse.
Descendo a boca outra vez, ele se posicionou entre as pernas dela e as
ergueu pelo joelho. Beijou as panturrilhas, uma de cada vez, e a parte interna
da coxa. Deslizou os dedos pelos cachos femininos.
— Aqui. — Um dos dedos acariciou-a por dentro. Hurit se sobressaltou.
— É aqui que você quer ser tocada, não é?
Como ela assentiu, ele continuou. Soprou um jato suave de ar sobre a
feminilidade dela e a abriu usando os polegares. Se ela queria conhecer o
prazer, seria ele que o apresentaria.
E LE FOI ALÇADO aos céus por apenas alguns centímetros. A sensação de estar
dentro dela, mesmo que não completamente, quase o fez perder os sentidos.
Hurit mantinha os olhos presos aos dele e, proativa, cruzou as pernas em seus
quadris. Aquele era um convite para prosseguir, mas ele precisava ir devagar
ou a demonstração de todas as formas de fazer amor duraria muito pouco.
Como ela estava excitada, não foi difícil deslizar mais para dentro
aproveitando a umidade que estava ali para recebê-lo. E também não
demorou para que ele sentisse a resistência da barreira feminina que ele
jamais deveria ultrapassar.
É agora que você sentirá dor, ele quis dizer, mas preferiu substituir as
palavras por um longo beijo. Segurando-a pelos quadris para mantê-la firme,
Emile investiu contra ela e a penetrou por completo. Hurit arqueou as costas e
soltou um lamento abafado pelos lábios dele.
— Eu vou ficar imóvel. — Ele disse, sem saber se conseguiria cumprir a
promessa. — Quando você estiver confortável, eu continuo.
— O que você fará quando continuar?
— Eu vou me mover assim. — Emile se retirou inteiramente e a
preencheu outra vez, em seguida. — E assim. Várias vezes.
— E doerá em todas elas?
— Não doerá mais, eu prometo.
Ela o enlaçou pelo pescoço e o encarou. Um sorriso se formou nos lábios
inchados de tanto serem beijados e as mãos dela desceram por suas costas até
se posicionarem nos quadris. Ela o acariciou nas nádegas e empurrou o corpo
contra ele.
— Então continue.
Graças aos céus, porque ele duvidava que conseguisse ficar muito tempo
sentindo a maciez das paredes apertadas do sexo feminino sem se mexer.
Com suavidade e vigor, ele investiu contra ela uma, duas, três vezes e testou
o quanto ela estaria apreciando o momento. O que Emile entendia sobre
mulheres virgens era o que lhe havia sido contado, ele nunca tivera uma. Não
sabia realmente se a dor passava logo que a barreira era rompida ou se
precisaria de mais vezes - que eles não teriam - para que ela se acostumasse a
ele. Decidiu parar de pensar e se entregar às sensações, porque elas eram
muitas. Moveu os quadris e aprofundou a penetração a cada vez, até o
momento em que os corpos estavam plenamente unidos. Beijou Hurit em
todos os lugares que sua boca alcançava e levou o polegar até seu botão
feminino, acariciando-o com cuidado. Ela fechou os olhos e jogou a cabeça
para trás, entregando-se.
Ele gostaria que o momento durasse para sempre. Talvez a noite inteira -
e não era noite, ainda. Gostaria de permanecer dentro dela, em uma dança
íntima e sensual, por mais tempo do que seu corpo aguentava, mas Emile
estava urgente. Muito desejo represado o tornou sensível a qualquer estímulo
e os dedos de Hurit acariciando-o nas costas e cravados em suas coxas eram
incentivo suficiente para que ele prosseguisse investindo, se movendo,
entrando e saindo até que não restasse mais nada além deles dois ali. Não
havia tribo, deuses, xamãs ou destinos a serem cumpridos. Não havia
diferença entre brancos e Shinnecocks, não havia nada que os impedisse de
ficarem juntos. Para sempre. Aquele momento era a consumação do que ele
já sabia que sentia - ele estava apaixonado como nunca estivera antes e
compreendia o que significavam os rumores de que os McFaddens amavam
muito intensamente.
Percebendo que Hurit estava se rendendo a outro êxtase, Emile se moveu
mais rapidamente. Esperou que ela atingisse o clímax, esperou que ela
estivesse satisfeita, esperou enquanto seu corpo estava prestes a explodir e
então ele se retirou, deixando sua semente se espalhar sobre ela. Aquela não
era uma forma muito glamurosa de terminar o ato sexual, mas preferia
segurança ao glamour - ele não estava protegido. Nem dominado pelo desejo
Emile deixava de ser racional demais, afinal.
Eles permaneceram imóveis por algum tempo. Ela segurava os lençóis
com as mãos, repuxando o tecido enquanto o peito subia e descia em uma
respiração acelerada e ofegante. Ele precisou de um instante para se
recuperar, o orgasmo ainda atingindo-o como as ondas de um mar revolto.
Minutos se passaram até Emile conseguir se levantar. Pegou uma toalha no
banheiro e se sentou ao lado de Hurit, que mantinha os olhos fechados e um
sorriso intrigante nos lábios. Ele era um imbecil se acreditava que poderia
deixá-la depois do que compartilharam. Com cuidado, limpou os vestígios de
seu êxtase que estavam sobre ela, devolveu a toalha para o banheiro e se
deitou novamente ao lado de Hurit, aconchegando-a em seus braços.
— Ainda há outras formas que você pretende me mostrar?
Ela disse e ele deu uma risada sonora. Puxou-a para cima e fez com que
olhasse dentro de seus olhos.
— Você ainda quer mais, Bela?
— Pelos deuses, agora não. — Ela também riu. — Mas você me deixou
curiosa.
— Essa sua cabecinha não para de pensar nem um minuto. — Ele beijou
os cabelos dela e sorveu o aroma da pele feminina. Ela era ainda mais
cheirosa depois do sexo. — Descanse.
— Passei o dia inteiro dormindo. — Hurit virou-se e se acomodou quase
por cima dele. Se o sexo não tivesse sido tão bom, ele estaria em apuros
naquela posição. — Você está cansado?
— Não, estou satisfeito. É diferente, não é?
— Sim, é. — Ela o beijou no peito e a boca quente e molhada espalhou
mais sensações por seu corpo ainda sensível. — Eu também estou satisfeita,
imagino.
— Espero que sim. Hurit, olhe para mim. — Emile colocou a mão no
queixo dela e a fez mirar seus olhos. — O que a fez mudar de ideia? Por que
decidiu se entregar a mim sabendo que isso colocaria em risco tudo pelo que
você lutou a sua vida inteira?
Ela suspirou e se sentou na cama. Puxou o lençol para se cobrir,
demonstrando algum desconforto com sua nudez, e olhou para o teto
enquanto buscava as palavras exatas para responder à pergunta.
— Não mudei de ideia. Eu continuo a mesma, apesar de totalmente
diferente. Ainda sou a iluminada que recebeu a missão dos deuses de
substituir o xamã. Ainda sou a que sabe curar feridas e trazer os mortos de
volta à vida, com a ajuda de Hoobamack. Sou afilhada de Paumpagussit e
filha do cacique. Mas eu não sou só isso, sou?
— Não. — Ele a puxou para si e depositou um beijo breve nos lábios
dela. — Você não é só isso.
— Eu sou Hurit, uma mulher. Descobri que tenho sonhos, desejos e que
não adiantou me fechar contra um sentimento que eu considerava inútil - ele
me perseguiu, me deu uma rasteira e quase me afogou no mar.
— Você está falando do amor?
— Sim, Emile, estou falando do amor. — Ela o segurou com as duas
mãos, uma de cada lado de sua face, e subiu em seu colo. — Eu me apaixonei
por você. Eu me entreguei porque não queria sentir isso com mais ninguém,
só com você. Mesmo que você não me queira em sua vida, porque sei que
não fomos feitos para ficarmos juntos, eu não me importo mais. Sim, eu
tenho uma missão a cumprir, mas, por muito tempo, Wematin suspeitou que
minha missão fosse você. E se ele estiver certo?
Emile a segurou nos braços e a abraçou. Queria permanecer ali, naquele
abraço, enquanto fosse possível. Porque ele também se apaixonara por ela e
não acreditava que Wematin estivesse certo. No final, teria que desistir de
Hurit e entregá-la para cumprir seu destino, mesmo sabendo que sofreria e
que nunca estaria preparado para aquele momento.
— Não posso mais conversar com seu pai e dizer que você mentiu. Nós
tornamos sua mentira uma verdade.
— Talvez seja melhor você insistir que foi uma mentira. Se não, nós
estaremos casados.
— Quer dizer que, para a tribo, agora somos marido e mulher?
— Se você contar a todos que realmente tivemos relações sexuais, sim.
Mas podemos manter o plano e dizer a Chogan que…
— E se eu não quiser manter o plano? — Emile jogou-a sobre os lençóis
e a beijou, capturando os lábios entre os dele, confirmando que estava
subitamente viciado em Hurit. — E se eu quiser deixar que pensem que
estamos casados?
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO
H URIT QUIS DIZER que não precisava de roupas, mas os olhos amistosos de
Lucille fizeram-na desistir de negar a oferta. Seria melhor chegar para
conversar com seu pai trajando algo que estivesse limpo e passado e as suas
vestes estavam com cheiro de mofo.
As duas mulheres passaram parte da manhã experimentando e escolhendo
algo que combinasse com ela e acabaram descendo tarde para o desjejum.
Hurit escolheu uma saia xadrez cinza e uma blusa branca com babados no
decote. A saia precisou de bainha, pois Lucille era quase um palmo mais alta
que ela, mas a camisa vestiu quase perfeitamente. Quando chegaram ao salão
de refeições, escolheram uma mesa no canto e pediram que lhes fosse servido
o desjejum completo.
Antes de começarem a comer, Hurit percebeu que Lucille ficou tensa. A
cunhada de Emile olhou constrangida para alguma coisa que acontecia no
salão e parou com o garfo no ar. Em seguida, um homem se aproximou da
mesa onde elas estavam e levou alguns segundos observando Hurit até pegar
uma cadeira e se sentar, sem qualquer respeito ao decoro. Afinal, na mesa
estavam duas mulheres e não era adequado que um cavalheiro se aproximasse
se elas não o conhecessem. Foi depois que ele começou a falar que ela
entendeu que o homem não era desconhecido - e nem mesmo um cavalheiro.
— Ora vejam, minha irmã fujona reapareceu.
Havia uma aparente expressão de deboche no homem e de
constrangimento em Lucille.
— Você não tem o direito de me tratar por irmã. — Ela retrucou. — E
nunca estive desaparecida, apesar de que imagino que nada disso seja de seu
interesse.
— Provavelmente seja do seu interesse saber que nosso pai está morto.
A crueldade nas palavras de Nolan Fitzgerald atingiu as duas mulheres.
Lucille engasgou e deixou o garfo cair sobre o prato, fazendo um estridente
tilintar de metal e porcelana. Algumas pessoas olharam na direção delas mas
havia uma aparência de normalidade pairando sobre a mesa que não chamou
a atenção de ninguém. O barulho significava que uma das mulheres era
desastrada e apenas aquilo. Por impulso, Hurit levou a mão até a da sua nova
amiga e a segurou.
— O que houve? — Lucille perguntou.
— Dizem que ele morreu de causas naturais mas eu aposto que foi pelo
desgosto de ter uma filha como você e por ter sido abandonado pela mulher.
— Abandonado? O que houve com minha mãe?
— Ela desapareceu logo depois que você fugiu com Nathaniel. Não se
sabe do seu paradeiro e há uma ordem de prisão emitida em nome dela.
Assim que a encontrarem, a Sra. Smith será presa por abandono de lar e eu
garantirei que ela cumpra a pena integralmente.
— Você é uma pessoa horrível, Nolan. — Lucille manteve a compostura
mesmo estando abalada. Seus olhos estavam úmidos e a voz parecia
estridente demais, porém ela agia como se tudo estivesse normal. —Tenho
certeza de que Walter Smith era muito orgulhoso de tê-lo como filho.
— Posso ser horrível, mas não me misturo com nativos. — Os olhos de
Nolan vagaram na direção de Hurit e ela decidiu encará-lo de volta. Jamais
abaixaria a cabeça para um homem como aquele, mesmo que olhar para ele
fosse a última coisa que fizesse em sua vida. — Essa daí é sua nova criada?
— Ela é minha cunhada e, como disse, nada disso importa a você. Por
favor, deixe-nos ou serei obrigada a chamar ajuda.
— Sua cunhada? — Nolan levantou-se e recolocou o chapéu. — Imagino
que ainda nos encontraremos pela cidade. Até outra hora, irmãzinha.
Alguns minutos foram necessários para que Lucille se recuperasse da
súbita aparição do homem que monopolizou os assuntos dos McFaddens no
dia anterior e que deslocou os homens para a corte a fim de buscar
informações sobre um processo cujo teor ninguém sabia. Os bolinhos, pães e
ovos que foram servidos assumiram aparência e sabor desagradáveis e o que
poderia ser um momento animado de interação se transformou em um
velório. Duas mortes foram anunciadas e Hurit não sabia como reagiria se lhe
contassem, daquela forma abrupta, que seu pai falecera.
— Eu sinto muito. — Ela disse, mantendo a mão sobre a de Lucille. —
Quando seu marido chegar, imagino que vocês terão que retornar para Nova
Iorque.
— Tenho certeza de que Nolan cuidou de tudo relacionado ao meu pai.
Depois que a conexão entre eles foi revelada, mesmo que ele não possa ser
reconhecido como filho de Walter Smith, ele age como se fosse. Estou
preocupada com minha mãe.
— Imagina para onde ela possa ter ido? Como ela pode ter fugido?
— Suspeito que ela possa ter embarcado para Londres. Minha mãe não
era uma pessoa com contatos que poderiam abrigá-la e não imagino que ela
tenha guardado dinheiro para uma fuga, portanto, deve ter se agarrado à
oportunidade que cruzou seu caminho.
O silêncio voltou a pairar sobre a mesa e Hurit achou melhor continuar a
comer e voltar a se preocupar com os problemas de sua tribo. Estava ansiosa
por tudo que viria a acontecer, mais ainda depois de conhecer seu adversário
- que parecia um homem determinado e capaz de fazer coisas ruins para
atingir seus objetivos. A tribo a preocupava, tanto pela disputa de terras
quanto pela reação de seu pai quando ela retornasse com Emile. Eles foram
embora sem olhar para trás, passaram um dia fora e era provável que Chogan
pensasse que tivessem fugido para não mais retornar. Claro que ele teria que
ser um tolo se acreditasse que ela abandonaria tudo tão facilmente, que
deixaria levianamente para trás anos de dedicação e esforço para assumir seu
papel de xamã. Mais tolo ainda se achasse que Hurit ignoraria o chamado dos
deuses e ela sabia que Chogan não costumava agir tolamente.
Os planos de Lucille de uma tarde de passeios por Southampton não se
realizaram porque ela estava muito abalada. As duas mulheres se deslocaram
para a sala de leitura do hotel depois que Hurit foi ao quarto que ocupava e
resgatou a águia. O animal já dava sinais de melhora na asa, abrindo-a para
demonstrar que podia fazê-lo, porém ainda não se arriscava a voar e parecia
bastante aborrecido por ficar preso - mas, também, desinteressado em ir
embora. Na inusitada companhia da ave, elas ocuparam o tempo de espera
lendo livros variados e os jornais de notícias, mesmo que aquela fosse
considerada uma atitude masculina demais para que duas mulheres a
adotassem. Como a presença de Hurit era indesejada no hotel, ninguém
permaneceu no mesmo ambiente que elas e, com isso, as duas tiveram a paz
necessária para esperar.
Quando os homens retornaram já passava do horário do almoço e eles
tinham expressões resolutas. Emile segurava uma pasta e eles indicaram, com
o olhar, que elas deveriam acompanhá-los. O grupo se reuniu no quarto de
Isaac e logo havia uma mesa ocupada e cheia de papéis espalhados cujos
conteúdos Hurit não entendia.
— Antes de iniciarmos a conversa sobre isso, Lucille tem algo a dizer. —
Ela informou e todos olharam para a jovem esposa de Nathaniel, que pareceu
constrangida com a súbita atenção.
— Creio que esses assuntos sejam mais importantes.
— Não são. Você precisa conversar sobre o que aconteceu com seu
marido.
— O que diabos houve enquanto estivemos fora? — Nathaniel
empertigou-se e, com dois passos, estava de frente para Lucille. — Nolan?
Ela assentiu e contou sobre a morte do pai e o desaparecimento da mãe.
As lágrimas que ela tentava conter finalmente rolaram e Lucille chorou
abraçada ao marido que, com o consentimento do grupo, a conduziu para o
próprio quarto. Mesmo que eles precisassem de planos para enfrentar a
demanda pelas terras, aquela era uma questão da tribo e não demandaria a
presença nem o sofrimento de uma pessoa que acabara de descobrir a perda
de seus familiares.
— O que há em tudo isso? — Hurit finalmente perguntou.
— Uma petição pouco consistente e uma questão que os tribunais locais
ainda não enfrentaram. Analisei as leis de Long Island, de Nova Iorque e dos
Estados Unidos, analisei a constituição e alguns precedentes das cortes
estaduais e federais e nenhuma delas nunca tratou de questões envolvendo
terras de nativos com o devido respeito - e é nisso que o peticionário confia.
Ele não se preocupou em montar um processo robusto pois crê que o
tratamento dispensado à tribo será o usual. Porém imagino que haja duas
teses que possam ser levantadas. A primeira é a aldeia ser reconhecida como
um território independente e o povo Shinnecock como uma nação e a
segunda é a mais fácil, que vocês sejam reconhecidos como proprietários
originários. Como há esse documento aqui — Emile pegou um papel
amarelado e com aparência muito antiga e indicou que ela deveria ler a parte
que ele apontava — creio que o tribunal entenda que o povo americano
sempre reconheceu os Shinnecocks como proprietários legítimos da terra. E a
constituição não compactuará com a tomada forçada de terras de ninguém,
isso causaria uma reversão maligna nos precedentes.
Ela o ouviu fascinada. Até aquele momento, Emile era o homem que ela
resgatou, cuidou e por quem se apaixonou. Hurit viu nele potencial além do
que ele demonstrava e sabia que, logo, esse potencial se revelaria, mas não
estava preparada para a revelação, afinal. O impacto de vê-lo com
vestimentas tão elegantes, cabelos um pouco desalinhados pelo esforço e
proferindo palavras que ela nunca ouvira antes era afrodisíaco - e ela não
imaginou que pudesse achar sensual que um homem simplesmente lhe
explicasse algo que ela ainda não entendia. Remexendo aqueles papéis e
argumentando sobre teses - algo que Hurit ignorava completamente o
significado, ele assumiu uma postura tão grandiosa, tão magnífica e
intelectual que, caso ainda não a houvesse seduzido, a derrubaria no chão e
passaria por cima de suas muralhas sem qualquer dificuldade.
O próprio irmão, Isaac, parecia envaidecido pela eloquência de Emile. Ele
não entendeu o motivo pelo qual o olhavam com admiração e isso fez com
que Hurit sentisse uma pontada de dor em seu coração. Ela sempre foi
admirada e valorizada entre os seus, toda a sua existência era baseada em ser
um destaque na tribo: era a princesa, a filha do chefe, a futura xamã, a menina
que tivera uma visão de Hoobamack antes dos doze anos, um prodígio. Já
Emile teve a sua vida baseada em uma doença e era como se ele mesmo
continuasse a se perceber como deficiente, mesmo que não fosse.
— Vocês certamente detestaram a ideia. — Ele começou a juntar os
papéis.
— Deixe de ser tolo. — Hurit segurou as duas mãos dele entre as suas. —
Eu não tenho conhecimento suficiente para gostar ou não do que apresentou,
mas confio em você para saber que essa é a melhor forma de defender a tribo.
Precisamos conversar com Chogan, você está pronto para retornar?
— Estou bastante preocupado. — Ele riu, nervoso. — Se eu sair vivo de
lá, serei um homem vitorioso.
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO
Q UANDO E MILE PIGARREOU , limpando a garganta, Hurit soube que ele estava
pronto para falar perante seu povo. Não que Chogan, Etchemim e Aranck
representassem a tribo inteira, mas eles eram os homens mais influenciadores
do conselho - o cacique e seus principais apoiadores. Se ele conseguisse
convencê-los a confiar nele, toda a tribo confiaria.
— A demanda carece de fundamentos jurídicos.
A frase foi proferida com a certeza de quem sabia o que dizia. Todos,
inclusive Askook e Amonute, pararam para ouvi-lo. Alguns demonstraram
curiosidade, outros pretendiam desprezá-lo, mas todos iriam ouvir.
— Wánuks entende o que está escrito aqui? — Foi Etchemim quem
perguntou.
— Sim, eu sou graduado em Direito.
— Você fala isso como se eu devesse saber o que significa.
— Ele fez faculdade, Etchemim. — Askook interveio. — Assim como eu
gostaria de fazer. Wánuks estudou as leis.
— É exatamente isso. — Emile sorriu para o jovem, que parecia
orgulhoso demonstrando conhecimento. Hurit não conseguia compreender
Askook tão bem, mas percebeu que seu marido compreendia. — Lidar com
documentos como esses é a minha profissão, em Londres. Antes de retornar à
tribo eu fui à biblioteca e pesquisei sobre o que é pedido nesse processo e o
hoteleiro não possui respaldo nas leis de Nova Iorque nem dos Estados
Unidos.
— Isso considerando que ele possa impor sua lei sobre nós. — Aranck
bradou. — O homem branco acha que pode nos obrigar a seguir seus
governantes e não reconhece os nossos?
— Essa é uma das teses que estabeleci, a de considerar os Shinnecocks
uma nação independente e não submetida às leis americanas. Assim como
eles se tornaram independentes do Reino Unido, forçar a corte a reconhecer a
autonomia de seu povo. Porém, temo que essa seja uma das mais difíceis,
senhor…
— Aranck. — Hurit interveio, mesmo sabendo que, na conversa dos
homens, ela não seria bem recebida. Sentia-se forte ao lado de Emile porque
ele a ouvia e a respeitava desde que se conheceram, quando só tinha motivos
para desprezá-la. Naquele mesmo instante, ele segurou a sua mão entre as
dele e beijou seus dedos, demonstrando o prazer de tê-la ao seu lado. — E
Etchemim. — Apontou para o outro homem.
— Certo. Temo que seja arriscado apostar tudo que vocês têm na
compreensão da corte de que são um povo autônomo. Pelo que estudei sobre
a história da chegada dos ingleses às Américas, nunca houve qualquer
intenção de reconhecê-los como uma nação.
Um silêncio incômodo sucedeu àquela afirmação. Mesmo que ela
soubesse, que todos ali soubessem, que eles nunca foram estimados nem
mesmo como seres humanos, era difícil ouvir da boca de um jurista que
aquele reconhecimento talvez nunca acontecesse.
— E wánuks tem outra ideia? — Chogan perguntou.
— Sim. Vocês podem argumentar que são legítimos proprietários
originários e, como negociaram a terra com Southampton em 1640, houve
declaração tácita sobre o direito dos Shinnecocks sobre toda a terra que
ocupam.
— Não entendo nada dessas questões e não temos advogados entre nós.
Devo confiar no que ele diz, Hurit?
A pergunta a pegou de surpresa e foi feita por Wematin, não por seu pai.
O velho xamã, que ouvia tudo em silêncio, voltou-se para ela e a interpelou,
questionando seu julgamento sobre Emile. Pareceu, de imediato, uma
pergunta estúpida - ela seguramente confiava no homem com quem decidira
se casar e compartilhar seu futuro mas, como tudo que o velho fazia tinha
uma razão oculta, ela decidiu responder com eloquência.
— Eu confio. Também não entendo sobre leis e ele me explicou tudo com
muito cuidado. É possível compreender o que Emile diz quando lemos os
documentos e concordo que a segunda tese é a melhor para a tribo. Afinal, se
vamos competir com os brancos no território deles, devemos fazer com que
sejam obrigados a nos identificar como verdadeiros detentores dos direitos
que eles pretendem nos negar.
Emile sorriu para ela e aquela demonstração singela de afeição já servia
para garantir que Hurit falou a coisa certa. Wematin virou-se para o restante
dos homens, ciente de que todos se entreolhavam e tentavam conversar sem
palavras.
— Precisamos deliberar. — Chogan determinou. — Posso ser o cacique,
mas tomamos as decisões em assembleia. Reunirei os homens e
conversaremos sobre o que fazer e peço que esperem aqui até nossa palavra
final.
— Isso significa que posso retornar para casa?
Hurit ainda temia que o pai tivesse aceitado o casamento mas não fosse
aceitá-los na aldeia. Uma coisa era não abdicar da filha por se casar com um
branco, outra coisa era admitir que eles vivessem nas terras Shinnecock. A
possibilidade de ser exilada de sua casa e de não poder mais exercer o
xamanismo, que a amedrontava tanto quanto a fascinava, a deixaram tensa
durante toda aquela discussão sobre processos, terras e defesas. Tudo que
ocupava sua mente era saber se poderia retornar à sua cabana e se estaria
autorizada a viver na aldeia.
Percebendo a importância da resposta de Chogan, Emile a abraçou.
Envolveu seu ombro com o braço e a puxou para si, protegendo-a e
confortando-a.
— Por nossa tradição, cabe à esposa ofertar a casa ao marido. — Chogan
disse para Emile. — Hurit tem casa e ela a ofereceu a você. Sua chegada
perturbou nossa paz, homem branco, mas preciso confiar que os deuses
sabem o que fazem. A partir de hoje vocês se tornam marido e mulher pelas
leis de nossos ancestrais e seu nome será Maheegan.
A expressão de Aranck não era de agrado e Etchemim manteve-se
impassível. Como amigo de Kitchi, era compreensível que ele não desejasse
que Hurit se casasse com outro homem e, com isso, magoasse os seus
sentimentos. Wematin, no entanto, levantou-se e colocou as mãos nos ombros
dos recém-casados e indicou que os seguiria até a cabana. Uma pequena
procissão teve início na saída da casa de Chogan, pois Askook, que não fazia
parte da assembleia de homens, acompanhou o xamã. A águia ameaçou um
voo vacilante e pousou, desequilibrada, no ombro de Emile. Eles cruzaram
parte da aldeia, passaram pela grande fogueira e seguiram na direção do curso
de água até avistarem seu destino.
— Essa tradição da esposa oferecer a casa não significa que o marido não
possa fazer algumas melhorias, certo?
Emile sussurrou no ouvido dela assim que chegaram à cabana onde eles
passaram a maior parte do tempo desde que se conheceram. Hurit não podia
negar que a construção era precária - ela nunca se importou em reformar,
pintar ou consertar o telhado porque estava ocupada demais se preparando
para ser xamã, para assumir a liderança da tribo e sofrendo a perda de Keme.
Algo ainda mais grave a atingiu no momento, algo que ela ignorou
quando decidiu se entregar a Emile, se tornar sua esposa.
— O marido pode fazer melhorias. — Ela respondeu, nervosa. —
Precisamos conversar.
Emile olhou por sobre o ombro dela e suspirou diante da companhia. Ela
entendia a frustração, pois, durante vários dias, eles ficaram sozinhos e
puderam conversar e interagir sem a presença de ninguém para observá-los.
Com Wematin e Askook em seu encalço, qualquer discussão deveria manter
um nível de decoro que nenhum dos dois estava acostumado a preservar.
— Agora?
— Não importa se eles ouvirem. Não conversamos sobre onde vamos
morar.
— Estou confuso. — Emile se sentou. — Não acabei de ouvir seu pai
dizer que é a esposa que providencia a casa? Pensei que estivéssemos
retornando para nosso lar.
Ela prendeu a respiração e se sentou.
— Você é inglês e seus irmãos irão para Londres em breve. Eu vi o
quanto são unidos, creio que não tenha ainda ouvido falar de uma família
branca que demonstre tanto afeto entre si, então imaginei que você fosse
querer...
— Ah, meu amor. — Ele segurou-a pelas mãos. — Eu amo meus irmãos,
minhas cunhadas, meus sobrinhos e até o maldito burguês que se casou com
minha irmãzinha, mas não há nada em Londres que me prenda. Já você, essa
aldeia é sua casa e a tribo é o seu lugar. Se eu insistisse para que você viesse
morar em Londres comigo, estaria a arrastando para nada. A não ser que me
expulsem, essas paredes são nossa casa. Quanto à minha família, poderemos
visitá-los quando quisermos, os navios a vapor são muito velozes!
Mais uma vez ele disse o que ela queria e precisava ouvir. Mais uma vez
ela se apaixonou por ele e quis se atirar em seus braços, mas a face sorridente
de Wematin a impediu. Ainda assim, Hurit se levantou e beijou seu marido
nos lábios, tomando cuidado para que o carinho não provocasse nenhuma
reação explosiva.
Askook pigarreou e saiu da sala. A águia o seguiu porque queria pedir
comida e isso deu a eles tempo para se apreciarem por alguns minutos.
Quando o menino Shinnecock voltou, tinha perguntas a fazer.
— Maheegan poderia me dizer como é na faculdade?
— Claro que poderia, mas primeiro me diga o que significa meu nome.
Antes eu era o inimigo e agora, o que sou?
— O lobo.
— Esperado. — Emile deu uma risada.
— Farei um chá. — Hurit se dirigiu à cozinha. — Vocês homens
conversem sobre assuntos de faculdade.
T ENTANDO IGNORAR que sua vida estava fazendo curvas fechadas em alta
velocidade como se ele estivesse em uma corrida de carruagens, Emile
decidiu envolver o jovem Askook em seus planos para ajudar a tribo. Seria de
mais impacto se um nativo estivesse na corte para representar a tribo e aquele
menino parecia ideal para a tarefa. Curioso, inteligente e alto o suficiente para
se passar por mais velho, ele poderia aprender alguns termos e expressões e
se habilitar como o principal procurador da tribo.
Ele se sentou com Askook e explicou sobre a vida na faculdade, mesmo
que soubesse que a sua realidade não era a mesma do menino. Sendo filho de
um conde e com sangue azul correndo em suas veias, Emile era sempre bem-
vindo e bem tratado por todos, enquanto aquele jovem nativo passaria maus
bocados estudando com brancos arrogantes. Ainda assim, tentou focar em
suas boas experiências para não influenciar negativamente os desejos de
Askook.
O velho xamã nada disse, apenas ouviu. Ele acariciava a cabeça da águia
como se os dois fossem bons amigos e prestava atenção em todas as
conversas. Por todo o final de tarde eles se mantiveram ali, discutindo ideias
e esperando que um sinal indicasse que a deliberação da assembleia tivesse se
encerrado. Quando Wapun apareceu na casa de Hurit, tiveram esperança de
que fosse o fim, mas ela tinha um recado.
— Chogan convoca o xamã para sua casa. Vim buscá-lo, Wematin.
— Não preciso ser guiado, menina. — O velho se levantou e usou sua
bengala para chegar até a porta. — Mas pode deixar que Askook me
acompanhará. Quero que ele diga à assembleia tudo que ouviu aqui, hoje.
Wapun concordou, mas os seguiu. Depois de alguns momentos intensos,
Hurit e Emile ficaram sozinhos novamente.
— Não gosto disso. — Ela reclamou. — Chogan está agindo como um
tolo, nunca o vi ser tão teimoso em relação a algo importante.
— Ele está agindo como pai. — Emile a puxou para seu colo e a
acomodou sobre suas pernas. — E isso significa que ainda está zangado
porque eu a desviei do caminho.
— Não desviou. — Ela o beijou. — Na verdade eu jamais seria líder da
tribo, estava apenas me enganando sobre isso. O líder seria meu marido, pois
são apenas homens que deliberam. Veja se fui convidada a participar da
assembleia? Nenhuma mulher foi. Não haveria glória em ser a esposa do
cacique, prefiro ser a esposa do homem cujas teses ajudarão a aldeia a manter
sua integridade.
Ele deu uma risada e a beijou novamente, erguendo-se com Hurit no colo
e a jogando sobre a cama. Desde o primeiro beijo ele quis fazer aquilo, pois
queria que aquela cabana fosse testemunha do seu desejo. Para seu azar, antes
que ele conseguisse consumar sua ânsia de possuí-la ali, passos do lado de
fora indicaram que alguém se aproximava.
A figura que apareceu das sombras da noite que já se abatera sobre a
aldeia era Kitchi. Ao vê-lo, Hurit pulou da cama e marchou na direção do ex-
noivo, desferindo-lhe um tapa no meio do rosto. O estalo da palma da mão
dela batendo na carne dele foi tão alto que talvez pudesse ter sido ouvido do
lado de fora da cabana. Foi súbito, intenso e o encheu de orgulho. Ninguém
provocava sua mulher sem ser fuzilado em retorno.
— Vá embora. — Ela deu alguns passos para trás na intenção de afastar-
se. — Você não é mais bem-vindo nessa casa.
Kitchi passou a mão na face e suspirou.
— Hurit, seja razoável. Estou aqui para dar a você uma chance de mudar
de ideia. Ainda podemos ficar juntos, eu a aceito mesmo violada por esse
matwan.
— Maheegan. — Emile se aproximou. — Você não pode falar com
minha esposa dessa forma, ainda mais desconsiderando a minha presença.
Hurit fez a sua escolha, eu agora sou o marido dela e você, como ela disse,
não é bem-vindo nessa casa.
— Então eles te deram um nome. — Kitchi riu. — Acredita que por causa
disso será parte da tribo, forasteiro? Você sempre será um branco que todos
fingirão que aceitam por causa dela. Hurit é querida por todos, apenas por
isso sua presença nessa aldeia é tolerada.
— Engula sua vaidade. Fui objeto de escárnio por muitos e tratado como
um bibelô por outros. Estou acostumado a ser diferente, excluído e fora dos
padrões. Hurit me vê como ninguém viu ainda, portanto não importa como a
tribo lida com isso - somos casados agora.
Kitchi olhou para a ex-noiva, que mantinha uma postura impassível e
determinada. Por muitas vezes Emile a espreitou com aquela mesma pose,
como se pudesse controlar tudo e todos apenas com o olhar. A ausência de
um sorriso indicava que ela não estava satisfeita e sugeria que sua vontade
deveria ser realizada. Consciente que não adiantaria argumentar mais nada,
Kitchi decidiu recuar e ir embora.
— Lamento que seu futuro seja desperdiçado por ele. — O homem cuspiu
no chão de terra, demonstrando seu desprezo. — Chogan deseja ver vocês,
ele espera na grande fogueira.
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO
A PRAIA ESTAVA MUITO CALMA . De todas as vezes que ela estivera naquela
enseada escondida, nunca vira tanta tranquilidade em ondas quebrando
morrinhentas na areia branca e o ruído do ir e vir das águas. O cheiro de
maresia a intoxicava, mas o que a deixava mais extasiada naquela noite era a
presença ao seu lado.
Hurit suspeitava que não aproveitaria mais a praia sozinha. Talvez ela
precisasse de momentos de reflexão e solidão para se conectar com os deuses
e ouvir os espíritos, mas ela estava feliz em ter com quem compartilhar a
vista, a paz, seus pensamentos. Até aquele momento ela nunca achou que
desejaria alguém ao seu lado para sempre, e então o seu enviado, o problema
que ela não queria ter que resolver, chegou para perturbar as antes sólidas
convicções que tinha.
Sentado ao seu lado, ele estava absorto na paisagem mas sua mão se
mantinha sobre a dela, acariciando-a com o polegar e despertando sensações
esquisitas. Hurit também não estava acostumada àquilo, ao desejo - era algo
que ela esperava sentir mas que não sentira antes de conhecer Emile.
— Eu quero me casar com você.
Ele disse, pegando-a de surpresa.
— Pensei que já estivéssemos casados.
— Estamos, mas eu quero me casar pelas minhas leis. Quero que seja
minha esposa aqui, lá fora, em qualquer lugar.
Hurit deu uma risada e recostou a cabeça no ombro dele. A brisa marinha
soprava contra eles e deixava a pele grudenta e salgada, tornando qualquer
contato entre eles bastante exótico.
— Teremos que nos casar em todos os lugares do mundo então,
Maheegan.
— Parece um bom motivo para viajar. Você gostaria de conhecer o
mundo, Bela?
— Estou feliz com o mundo que conheço, mas aceito ir à Inglaterra
conhecer sua família. Não podemos fazer uma desfeita ao seu irmão mais
velho, afinal, ele é um conde. Como podemos decepcionar um conde?
— Você diz isso porque não conhece o amigo dele, o duque. Juntos, eles
são insuportáveis.
Emile deu uma gargalhada espontânea, rindo da própria troça, e ela não
conseguiu evitar segui-lo. Eles riram e, quando Hurit percebeu, estava com as
costas apoiadas no cobertor, sentindo o peso do corpo dele sobre o seu e a
maciez dos lábios dele capturando os dela. Os sentidos se concentraram
imediatamente nele, no toque dos dedos em seus cabelos, na boca que a
devorava, na fricção dos quadris que se assemelhava a uma espécie de tortura
deliciosa.
— Desculpe-me. — Ele murmurou no ouvido dela enquanto mordiscava
sua orelha. — Eu me tornei um devasso ao seu lado. Posso dizer que a culpa
é sua por me provocar?
— Não fiz nada para provocá-lo, não me responsabilize por sua
devassidão. — Ela enfiou as mãos por dentro da camisa dele e o acariciou,
arrancando-lhe alguns gemidos indecentes.
— A sua mera existência já me provoca, meu amor.
Ele a beijou outra vez e quase arrancou seu fôlego. Parecia bastante claro
por que proibiam as mulheres de conhecer o sexo antes de se casarem, ou por
que não lhes ensinavam nada sobre ele e por que proibiam livros como os de
Lady Malícia - era difícil resistir à tentação de se deixar seduzir quando a
paixão arrebatava a razão. Por sorte, ela não precisava resistir porque aquele
homem por quem estava apaixonada era seu.
— Eu amo você. — Hurit disparou. Era a primeira vez que ela dizia
aquelas palavras para qualquer pessoa. Por mais que amasse seus pais, seu
irmão, Wematin, seus amigos, ela não lhes dizia com todas as letras. Eles
apenas sabiam como se sentia e ela se esforçava para garantir que soubessem.
Emile se afastou um pouco dela e a encarou com os olhos azuis flamejantes
refletindo a parca iluminação da lua e das duas lamparinas que haviam
levado. — Eu amo você e estou muito feliz que Paumpagussit o tenha trazido
para mim.
Com um sorriso que seria capaz de derreter o gelo das montanhas e
aquecer um oceano, Emile repetiu que a amava e a beijou por toda a extensão
de seu corpo. Boca, pescoço, ombros - tudo que ele passara a descobrir
enquanto abria os botões da camisa dela para livrá-la do tecido. Hurit jogou a
cabeça para trás quando ele beijou seus seios e desceu para o abdômen,
circulando o umbigo e livrando-a da saia com uma agilidade incrível. Ela
esperava que seu marido sempre estivesse disposto a lhe ofertar aqueles
carinhos, pois duvidava que conseguiria ficar sem eles por muito tempo. Se
ela era culpada por torná-lo um devasso, o que poderia dizer dele?
Apesar da escuridão, ela desejava vê-lo e tocá-lo. Não deixou que ele se
perdesse em carícias por entre suas pernas, mesmo que impedi-lo de
prosseguir fosse quase impossível. Hurit o empurrou para cima e, com
avidez, retirou-lhe a roupa para poder apreciar o corpo masculino que a
encantava. Não importava que ela o conhecesse, ele se mostrava novo a cada
toque - e ela adorava percorrer os dedos por suas formas e músculos.
Gemendo de prazer, ele se manteve o mais quieto possível para lhe permitir a
exploração. Quando Hurit levou as mãos aos botões das calças, uma breve
hesitação a fez parar.
— Eu não sei o que fazer. — Ela ergueu o olhar para encará-lo.
— Por experiência, você não precisa saber. Basta fazer o que quiser.
— E se eu fizer alguma coisa errada?
Emile riu e segurou-a pela face, uma mão de cada lado.
— Considerando que eu estou quase explodindo e você mal me tocou,
duvido que seja capaz de fazer qualquer coisa errada, Bela. Mas não pense
demais, apenas faça.
Ela fez. Terminou de abrir os botões e expôs o restante do corpo dele que
declarava o quanto ele a queria - e se sentiu bastante orgulhosa por despertar
nele tamanho desejo. Tocou a ponta com os dedos, deslizou a mão até a base
e se deliciou quando ele, em abrupto, a segurou pelos ombros e a jogou
novamente no chão, possuindo sua boca com a fome de dez homens. Com um
gemido que dizia o quanto ela o enlouquecia, Emile pressionou os quadris
contra os dela e a penetrou profundamente. Tendo a lua e o oceano como
testemunha, eles se amaram como se tivessem a vida toda e como se fosse a
última vez.
“Criança,
Os ancestrais me chamam para junto deles e é uma convocação
que não desejo recusar. Há muito sei que meu momento de adentrar
ao mundo dos espíritos se avicinava, porém precisava da convicção
que você estaria bem, que estaria no caminho certo. Precisava saber
se o lobo estaria ao seu lado para lhe guiar, proteger e cuidar. Com
essa certeza, estou tranquilo para garantir que minha passagem seja
feita na hora certa. Hoje me despeço do meu corpo material e deixo
para você meus escritos - todas as minhas visões, todas as visões
dessas visões e todas as decisões que foram tomadas a partir delas.
Wematin podia não mais enxergar, mas os deuses escreviam pelas
minhas mãos. Deixe que eles escrevam pelas suas e saiba: o caminho
está à sua frente. Seus pés sempre a conduzirão na direção certa,
apenas siga adiante.”
A S LÁGRIMAS ESCORRIAM de seus olhos e molhavam o papel, borrando a tinta
e misturando as letras. Hurit não chorava, então ela não entendeu aquele
arrebatamento de emoções que a alvejava. Da mesma forma abrupta que ela
chegou, agarrou o diário e saiu pela porta da cabana, retornando para sua
casa. Soluçava e corria, corria e soluçava e, antes de conseguir chegar, seu
corpo entrou em colapso e ela desabou no chão. Sentindo-se miserável,
permaneceu na mesma posição enquanto se permitia chorar por uma perda
que ela não desejava sofrer.
— Hurit? — A voz ecoou em seus ouvidos mas ela não se mexeu. —
Hurit!
Emile a chamava. Ela mantinha os olhos fechados e os abriu para tentar
enxergar o marido, que se aproximava com uma lamparina. Ao vê-la ali,
correu em sua direção, ajoelhou-se no chão e a tomou nos braços.
— Meu amor, o que houve? Você se machucou? Por que saiu nesse frio?
— Eu tive uma visão.
— Foi algo ruim?
— Wematin se foi.
Talvez ele não tivesse entendido o significado de “ir”, mas não pediria
mais informações ali fora enquanto ainda nevava. Emile pegou Hurit no colo
e a conduziu de volta para casa, acomodando-a na frente da lareira acesa e
colocando água para ferver para preparar um chá. Depois que ela estava
enrolada em cobertores secos e com os pés sendo massageados por ele, as
perguntas puderam ser feitas.
— Diga o que houve.
— Ele mandou um recado por Hoobamack e não estava em sua cabana.
— Talvez ele tenha passado os festejos na casa de alguém.
— Não, Emile, ele se foi. Há uma carta para mim, o fim do ano também
marcou o fim de sua vida terrena. O velho está agora com seus ancestrais.
Ela voltou a chorar, atordoada por lágrimas e pesar e ele a tomou nos
braços outra vez até que se acalmasse. O xamã não desejaria que Hurit se
esvaísse em lágrimas porque ele estava bem - e, se estava, não havia motivos
para que ela lamentasse. Não havia perda, ele cumprira a missão que, daquele
dia em diante, passaria a ser sua.
Quando a manhã chegou, Emile reuniu Chogan, Askook e Etchemim e foi
em busca de Wematin. Ela os acompanhou porque suspeitava que fosse
conseguir guiá-los, que fosse saber para onde ele iria despedir-se dos vivos na
noite anterior. Eram quilômetros de litoral para percorrer no frio gelado do
inverno de Long Island e qualquer ajuda seria valiosa - mas ela acabou vindo
dos céus. Ao chegarem ao ponto de maior convergência espiritual, onde eles
acreditavam que podiam ouvir Paumpagussit, depararam-se com a águia
pousada sobre um tronco de madeira. Ela exibia uma pose altiva, como se os
esperasse. Poderia ser qualquer animal, porém tanto Hurit quanto Emile
sabiam que se tratava dela. Da amiga que esteve com eles por um breve
período.
Ao vê-los, ela gritou, alçou voo e pousou no braço que Emile ofereceu,
voltando o olhar para o tronco onde estava pousada.
— Deixe que eu vou até lá.
Hurit pediu aos homens e se aproximou de onde a águia indicava. As
ondas estavam fortes, a maré agitada e, agarrado ao tronco, estava o cobertor
xadrez de Wematin. Não havia sinais de seu corpo ou de mais nada - se ele
estivesse ali durante a noite, o mar o teria levado. Seu silêncio fez com que os
demais se aproximassem e confirmassem que não havia mais nada a
encontrar.
— Ele adentrou nos domínios de Paumpagussit. Podemos retornar, o
velho xamã fez a sua travessia. Tem algo a nos dizer, Hurit?
— Não. Por enquanto, apenas seguiremos o caminho.
— E para onde ele nos leva? — Askook, curioso, perguntou.
— Para frente. Foi tudo que me disseram.
EPÍLOGO #2
Olá, leitoras.
Chegamos ao fim da série Amores em Kent com um livro recheado de
pesquisas históricas que me deram muito trabalho. Como a história de
Nathaniel e Emile se passaria no nordeste dos Estados Unidos, eu precisei
inserir personagens que fossem membros de uma tribo nativa daquela região
e ainda estivesse estabelecida ali durante esse período, o que não foi nada
fácil. A maior parte das tribos nativas foi expulsa de suas terras e empurrada
para o centro-oeste do país, restando poucas delas que continuavam ocupando
suas localizações originais.
Os Shinnecocks residem desde sempre em Long Island. Em 1640 eles
negociaram com os colonizadores as terras que se tornaram a cidade de
Southampton. Isso não significa que eles não sofreram o mesmo processo de
aculturação que foi praticado com as outras tribos, muito pelo contrário. Sua
religião foi mitificada, sua língua foi apagada e seus costumes foram
substituídos - parte desse processo de colonização faz parte do pano de fundo
do nosso romance.
As palavras nativas usadas no livro são reais e foram retiradas de dois
dicionários / glossários de palavras, ambos distribuídos gratuitamente na
internet. Um deles é o A Modern Mohegan-Pequot Dictionary, que pode ser
baixado aqui, e o outro é Glossary of the Mohegan-Pequot Language,
disponível aqui. Por meus estudos, esse era o dialeto algonquiano falado pela
tribo, porém eu posso estar equivocada. Assim como havia poucas tribos
remanescentes na região, também há pouca informação acessível para mim
sobre eles.
A situação de Emile no tribunal também é verdadeira. As frases e
precedentes mencionados existem e a proteção à propriedade sempre foi uma
das grandes preocupações dos estadunidenses, principalmente durante o
período da Guerra Civil até o New Deal. Eu talvez duvide que o resultado
fosse aquele mas, no mundo de fantasia que criei, as instituições funcionam
acima dos interesses privados mesquinhos.
Espero que vocês tenham gostado da série e que estejam ansiosas para a
próxima jornada. Eu estou. Caso possam em queiram, deixem uma avaliação
sincera na Amazon, no Skoob ou no Goodreads e ajudem outras leitoras a
decidirem se querem ou não ler a série.
Gratidão!
Tatiana Mareto
NOTAS
CAPÍTULO NONO
EPÍLOGO #1
PRÓLOGO
1 1 Deus da cura e das doenças, também conhecido pelos povos da região como o deus
oposto ao Grande Espírito. Por minhas pesquisas, é o deus que mais ouvia as preces dos
nativos e foi muitas vezes confundido com o Diabo, mas essa era uma leitura incorreta - os
povos nativos não distinguiam deuses por bem e mal, como os brancos.
2 2 Powwow é palavra algonquina para xamã, lider espiritual dos povos da região. Até
hoje, em Long Island, no território Shinnecock, há o festival Pow-wow que é aberto ao
público e festeja a cultura do povo.
CAPÍTULO PRIMEIRO
CAPÍTULO SEGUNDO
CAPÍTULO TERCEIRO
1 10 Manitou é a palavra usada pelos povos nativos da região para indicar o divino, o
espírito dos deuses. Havia manitou em tudo que eles consideravam sagrado ou milagroso, a
natureza praticamente inteira era manitou.
CAPÍTULO NONO
Eu não poderia ter escrito e finalizado esse livro sem algumas pessoas
importantes que me ajudaram muito.
Minhas betas, Daiane, Fran, Verona, Nariane e Maria Beatriz foram
fundamentais para que qualquer coisa funcionasse. Eu estive insegura o
tempo tudo durante o planejamento da história e a ajuda e participação delas
no processo criativo foi de um valor inestimado. Obrigada, moças, por
acreditarem nesse projeto e caminharem comigo.
Minhas amigas Karina Heid e Sarah Summers, que tornam tudo no
universo literário mais divertido. Quando eu queria gritar, me esgoelar e
desabafar, elas sempre estiveram dispostas a me ouvir. Por mais encontros,
boas conversas e margaritas com vocês!
Minhas leitoras que me acompanharam no Wattpad e agora estão comigo
no blog e na Amazon, principalmente aquelas que esperam ansiosamente
cada livro, cada novidade. Elas acreditaram nessa proposta diferente e me
incentivaram, com comentários fofinhos e outros nem tanto, a prosseguir.
Aliás, eu adoro quando vocês surtam, gritam e querem matar meus
personagens. Obrigada!
Escrever para mim é diversão e terapia. Vocês fazem parte disso comigo.
Tatiana Mareto
SE VOCÊ POR ACASO CHEGOU A ESSE LIVRO
POR GRUPOS DE WHATSAPP, TELEGRAM OU
SITES DE PDF…