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Projeto Revisora traduções Loreta Chase -

Perfeito

Loretta Chase
PERFEITO
Irmãos Carsington, Nº 3

Disponibilização/Tradução: YGMR.
Revisão: Adma
Revisão Final e Formatação: Lívia

Projeto Revisoras Traduções

Capítulo 1

1
Projeto Revisora traduções Loreta Chase -
Perfeito
Salão Egípcio, Piccadilly, Londres
Setembro de 1821

O cavalheiro estava de costas, apoiado no marco da janela, oferecendo à concorrência uma


magnífca imagem de sua alta, proporcionada e caríssima fgura. Parecia ter os braços cruzados adiante
do peito e a vista cravada na rua, embora o grosso cristal da janela só lhe oferecesse uma imagem
imprecisa de Piccadilly.
Em qualquer caso, fcava patente que a exposição que se exibia no interior e mostrava as
maravilhas que Giovanni Belzoni tinha descoberto no Egito não tinha conseguido captar seu interesse.
A mulher que o observava dissimuladamente decidiu que era a viva estampa do aristocrata
indolente.
Muito seguro de si mesmo. Perfeitamente composto. Imaculadamente vestido. Alto. Moreno.
Nesse instante voltou à cabeça, lhe apresentando desse modo o esperado perfl patrício.
Mas não era o que ela esperava.
E a deixou sem fôlego.

Benedict Carsington, visconde do Rathbourne, afastou a vista do grosso cristal chumbado da


janela e da distorcida imagem que este oferecia dos cavalos, os veículos e os pedestres que circulavam
por Piccadilly. Conteve um suspiro e desviou seu escuro olhar para o interior do museu com sua
exibição da Morte.
«A tumba de Belzoni», uma exposição que recolhia todos os achados que tinha realizado o
explorador no Egito uns anos antes tinham demonstrado ser todo um êxito de público desde sua
inauguração, em 1 de maio. Ele tinha formado parte, contra seu bom senso, dos mil e novecentos
assistentes que acudiram aquele primeiro dia. Essa era sua terceira visita, e igual aconteceu nas duas
ocasiões precedentes, preferiria muito estar em qualquer outro lugar.
O Antigo Egito não tinha conseguido deslumbrá-lo como a muitos de seus familiares. Até o tolo
do Rupert tinha sucumbido a seu feitiço, talvez porque a situação atual do país em questão oferecia
incontáveis oportunidades para arriscar o pescoço e partir algumas cabeças. Mas Rupert não era nem
por indício o motivo pelo qual lorde Rathbourne estava passando outra longuíssima tarde no Salão
Egípcio.
O motivo estava sentado no outro extremo do salão e não era outro senão Peregrine Dalmay,
conde de Lisle, seu sobrinho e aflhado de treze anos, único flho e herdeiro de seu cunhado, o marquês
do Atherton. O jovem estava copiando com muita atenção o plano do interior da segunda pirâmide,
cuja entrada Belzoni tinha descoberto três anos antes.
Tal como diria qualquer um dos professores de Peregrine, e tal como haviam dito a seu pai em
repetidas ocasiões, a atenção não se encontrava entre as virtudes mais destacadas do jovem.
Entretanto e só no que se referia ao Egito, Peregrine era perseverante até não poder. Já levavam
duas horas na exposição e seu interesse não mostrava sinais de decair. Qualquer outro menino teria
estado frenético por retornar à rua e empreender qualquer atividade física quinze minutos após ter
pisado no museu.
Claro que, se tratasse de qualquer outro menino, Benedict não teria ido em pessoa ao Salão
Egípcio. Teria mandado um criado para que fzesse às vezes de babá.
Mas Peregrine não era um jovem qualquer.
Seu aspecto físico era o de um anjo. Tez clara e semblante franco. Cabelo loiro. Olhos cinza de
expressão inocente.
Em julho a Coroa tinha pago a um grupo de boxeadores sob a supervisão do senhor Jackson a fm
de manter afastada à rainha Carolina e seus seguidores da coroação de Jorge IV. Pois bem, só esse
mesmo grupo, não rompiam flas em nenhum momento, teria tido alguma possibilidade de manter a
paz ali por onde passava o herdeiro de lorde Atherton.
Salvo por ditos boxeadores, ou em seu defeito um enorme contingente militar, o único mortal
capaz de infuenciar nos atos do jovem lorde Lisle era Benedict. À parte, claro estava o pai de Benedict,
lorde Hargate. A verdade seja dita, o conde de Hargate era capaz de intimidar qualquer um (salvo a
sua esposa) e não costumava exercer função de babá com mucosos peraltas.
«Deveria haver trazido um livro», pensou Benedict.
Reprimiu um bocejo e cravou o olhar na reprodução de um baixo relevo realizada por Belzoni e
copiada da tumba de um faraó enquanto tentava compreender o que achava Peregrine, e muitas outras
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pessoas, tão estimulante.
O baixo relevo constava de três fleiras de fguras grosseiramente esculpidas. Uma delas era uma
fla de homens com barbas bicudas e curvadas, e os braços cruzados diante do peito. Entre fgura e
fgura havia um solitário sinal hieroglífco. Sobre suas cabeças havia mais hieroglífcos dispostos em
colunas.
A fleira central constava de quatro fguras que rebocavam uma embarcação em cujo interior
viajavam três fguras mais. A cena incluía algumas serpentes muito longas. Sobre as cabeças das fguras
havia mais colunas de hieróglifos. Estariam falando as fguras entre elas? Seria os hieróglifos a versão
egípcia dos balões que os humoristas desenhavam sobre os personagens que apareciam nas tiras
satíricas dos jornais?
A fleira inferior estava formada por outra fla de fguras dispostas sob mais colunas de
hieróglifos. Seus traços e seu estilo de penteado diferiam das anteriores. Deviam ser estrangeiros. Ao
fnal da fleira havia um deus que Benedict reconheceu de pronto: Tot, o da cabeça de íbis, o deus da
sabedoria. Até Rupert, cuja caríssima educação tinha cansado sido em vão (lorde Hargate poderia ter
jogado o dinheiro diretamente às cabras e teria obtido idênticos resultados), era capaz de reconhecer
Tot.
Para averiguar o signifcado do conjunto terei que usar da imaginação e Benedict mantinha sua
imaginação, junto com muitas outras coisas, sob um férreo controle.
Sua atenção se desviou para o outro extremo do salão.
Tinha uma vista limpa do lugar, já que para grande parte do beau monde a exposição tinha
deixado de ser uma novidade a essa altura. Até as classes inferiores preferiam passar essa preciosa
tarde ao ar livre em lugar de passear entre os conteúdos de antigas tumbas.
Assim que a viu perfeitamente.
Muito perfeitamente.
Semelhante perfeição o cegou um instante, como se acabasse de sair a deslumbrante luz do sol
depois de deixar atrás uma tenebrosa caverna.
Estava de perfl, como as fguras do relevo que havia atrás dela, observando uma estátua.
Viu que sob a borda do chapéu azul claro se sobressaíam uns cachos negros. Viu que suas
pestanas eram negras e contrastavam com uma cútis de alabastro. Viu lábios carnudos e tentadores.
Seu olhar desceu.
E sentiu um nó no peito.
Não podia respirar.
Regra: «Só os mal educados, as pessoas vulgares e os ignorantes fcam olhando com a boca
aberta», recordou-se. Obrigou-se a afastar o olhar.
A menina estava de pé, ao lado de Peregrine. Tentou fazer caso de sua presença, mas estava
bloqueando a luz. Elevou o olhar, mas voltou a cravá-la no caderno de desenho ao ponto... Embora lhe
desse tempo de perceber que a desconhecida estava observando seu desenho com os lábios franzidos e
os braços cruzados diante do peito. Conhecia essa expressão. Era a mesma que utilizavam os
professores.
A menina deve ter interpretado seu fugaz olhar como um convite, porque começou a falar.
—Perguntava-me por que tinha escolhido o plano da pirâmide — disse—. Só são ângulos e
linhas. Um desenho pouco interessante. A múmia que está no sarcófago teria sido uma opção mais
divertida. Mas agora entendo o problema. Não sabe desenhar muito bem.
De forma deliberadamente lenta, Peregrine voltou a cabeça e ergueu o olhar para a garota. A
princípio fcou muito surpreso. Tinha os olhos tão azuis que pareciam os de uma boneca, não os de
uma pessoa real.
—O que disse? —perguntou-lhe, imitando a voz gélida e educada de seu tio. Seu pai era um
marquês, um par do reino, e embora seu tio só possuísse o título de cortesia de visconde de Rathbourne
nesse momento, sabia como lançar réplicas muitíssimo mais demolidoras. Era famoso por elas. Dizia-se
que quando lorde Rathbourne esgrimia suas maneiras mais corteses era capaz de congelar um
caldeirão de azeite fervendo a cinqüenta passos.
A gélida cortesia não funcionava tão bem no caso de Peregrine.
—Há uma estupenda seção da pirâmide no livro do senhor Belzoni - continuou ela, como se lhe
tivesse pedido que seguisse tagarelando—. Não preferiria levar uma lembrança de alguma das
múmias? Ou da deusa com cabeça de leoa? Minha mãe poderia fazer uma cópia fabulosa. É uma
desenhista esplêndida.
—Não quero nenhuma lembrança - replicou com supremo desdém—. Vou ser um explorador e
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algum dia voltarei do Egito com montes de múmias.
A menina deixou de franzir os lábios. A expressão severa desapareceu de seu rosto.
—Refere a um explorador como o senhor Belzoni? —perguntou—. Ah, isso seria grandioso!
Por muito que o tentasse, Peregrine não era capaz de dissimular seu entusiasmo com o elegante
estilo de lorde Rathbourne.
—O mais grandioso do mundo - conveio—. Há quase dois mil quilômetros de terreno sem
explorar com o passar do Nilo e as pessoas que estiveram ali diz que o que se vê é só a ponta do
iceberg, porque quase todas as maravilhas estão enterradas sob a areia. E uma vez que consigamos
decifrar os hieróglifos, saberemos quem construiu o que e quando o fez. Na realidade, o Antigo Egito é
como a Idade Média: um mistério insondável. Mas eu serei um dos que descobrirão seus segredos. Será
como descobrir um mundo novo.
Os olhos azuis da menina se arregalaram.
—OH, então é como uma nobre cruzada! Vai tirar os sombrios mistérios do Egito à luz. Eu
também terei uma nobre missão. Quando crescer, serei um cavalheiro.
Peregrine esteve tentado a meter o dedo na orelha para comprovar que funcionava como era
devida. Entretanto, recordou que seu tio se encontrava nas cercanias e ao imaginar olhar que
semelhante gesto lhe reportaria, decidiu refrear o impulso. Em troca, disse:
—Sinto muito. Poderia repetir? Pareceu-me ouvir que vai ser um cavalheiro... Um cavalheiro de
armadura brilhante e tal?
—Isso é justo o que disse — respondeu ela—. Como os cavalheiros da távola redonda. O galante
sir Olivia, essa serei eu, e embarcarei em perigosas cruzadas, protagonizarei nobres façanhas, desfarei
ofensas...
—Pequena ridícula — interrompeu.
—Não — contradisse ela.
—É claro que é - insistiu Peregrine... Com suma paciência, já que seu interlocutor era uma garota
e possivelmente não tivesse a menor idéia do que era a lógica—. Em primeiro lugar, todas essas fofocas
sobre o rei Artur e os cavalheiros da távola redonda são um mito. Têm tanto fundamento histórico e
tanta veracidade como as esfnges dos egípcios e seus deuses com cabeças de íbis.
—Um mito! —Os olhos azuis se abriram ainda mais—. E o que me diz das Cruzadas?
—Eu não disse que não tenham existido cavalheiros de verdade - particularizou Peregrine—.
Existiram e existem. Mas a magia, os monstros e os milagres só são mitos, nada mais. Beda o Venerável
nem sequer menciona a Artur.
E assim seguiu, citando as diversas referências históricas sobre o líder guerreiro que talvez tivesse
dada origem à lenda do Artur. Explicou-lhe como ao longo dos séculos tinha surgido uma história
romântica adornada com criaturas místicas, milagres e outras conotações religiosas que foram
somando ao conto, porque a Igreja era o poder mais importante e obtinha que a religião impregnasse
tudo.
Depois lhe ofereceu sua particular visão sobre a religião; uma visão que tinha ocasionado sua
expulsão de uma réstia de colégios. Isso sim, em deferência ao seu cérebro feminino, muito mais débil e
inferiormente educado, lhe deu de presente a versão abreviada.
Quando se deteve para respirar, ela replicou com desdém:
—Essa é sua opinião. Não sabe com segurança. Talvez houvesse um Santo Graal. Talvez houvesse
uma Camelot.
—Sei que não havia dragões - afrmou—. Assim não poderá matar nenhum. E embora os
houvesse, não poderia fazê-lo.
—Havia cavalheiros! —gritou ela—. Posso ser um cavalheiro!
—Não, não pode —a contradisse, usando de toda sua paciência, porque a moça parecia ter as
idéias muito confusas—. É uma garota. As garotas não podem ser cavalheiros.
Arrebatou-lhe o caderno de desenho das mãos e o estampou na cabeça.
O desastre não se teria produzido se Betsabé Wingate tivesse estado atenta a sua flha. Mas não
estava prestando atenção.
Estava tentando com todas suas forças que seu olhar não se desviasse para o despreocupado
aristocrata... Para essas longas pernas cujos músculos ressaltavam as custosas calças de lã; para essas
brilhantes botas negras que faziam jogo com seus olhos; para esses quilométricos ombros que
bloqueavam a janela; para esse altivo queixo e esse insolente nariz; para esses perigosos e escuros olhos
de olhar indolente.
Betsabé bem poderia passar por uma boboca de dezesseis anos, quando na realidade era uma
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mulher séria, feita e direita, com o dobro de idade. Ou se podia pensar que nunca tinha visto um
charmoso aristocrata, quando na realidade tinha conhecido um sem-fm deles e até se casou com um...
Não estava se comportando com normalidade, não recordava nem seu nome e tampouco lhe
importava, na verdade.
Limitou-se a seguir onde estava, tentando prestar atenção aos egípcios em lugar do cavalheiro, e
se manteve alheia à realidade durante uns minutos. Tempo mais que sufciente para que Olivia
recriasse algumas das cenas mais espantosas do Apocalipse.
Betsabé inclusive esqueceu-se que tinha uma flha enquanto permanecia de pé como se estivesse
em transe e seu coração pulsava tão rápido que não lhe deixava nem tempo nem oportunidade para
respirar.
Por isso não percebeu os sinais de perigo iminente até que foi muito tarde.
Um golpe, um chiado de indignação e uma voz familiar que dizia a pleno pulmão: «É um grande
tolo!» confrmaram-lhe que já era muito tarde e ao mesmo tempo a tiraram do transe. Apressou-se a
chegar até o lugar do incidente e tirou de Olivia o caderno de desenho das mãos antes que o jogasse no
outro extremo do salão... Rompendo de passagem, por descontado, algum objeto de valor incalculável.
—Olivia Wingate - disse, procurando manter um tom de voz calmo com a esperança de não
chamar mais a atenção—, deixaste-me completamente assombrada. —Uma fagrante mentira. O único
modo de que Olivia conseguisse assombrá-la seria que passasse meia hora entre pessoas civilizadas
sem se colocar em ridículo.
Virou-se por volta do moço loiro que tinha sido a vítima mais recente de sua flha. Nesse
momento estava no chão junto a um tamborete que jazia de lado, sentado e sem a menor intenção de
fcar em pé. Observava-as com receio.
—Disse-lhe que ia ser um cavalheiro quando crescesse e ele disse que as garotas não podem ser
cavalheiros — explicou Olivia com a voz trêmula pela ira.
—Lisle, assombra-me seu fagrante desdém para uma das regras fundamentais da sobrevivência -
disse uma voz incrivelmente grave de algum lugar próximo, situado à direita de Betsabé. O som lhe
percorreu a espinha dorsal até chegar à base das costas e dali voltou a subir até lhe provocar uma
intensa vibração em uma zona especialmente sensível do pescoço—. Estou seguro de que lhe disse isso
em mais de uma ocasião - prosseguiu a voz—. Um cavalheiro jamais contradiz a uma dama.
Betsabé girou a cabeça em direção à voz. Deus, como não!
De todos os jovens do mundo, Olivia tinha que atacar a seu flho...

Era o tipo de mulher que provocava acidentes com só ao cruzar a rua.


O tipo de mulher que devia ir precedido por um monte de sinais de perigo.
À distância era arrebatadora.
E nesse momento a tinha ao alcance da mão.
Nesse momento...
Em uma ocasião e no transcurso de uma travessura adolescente, Benedict tinha caído de um
telhado e tinha perdido a consciência durante uns minutos.
Nesse instante, enquanto caía de algum lugar e aterrissava em uns olhos tão azuis como um mar
anil, a experiência se repetiu. O mundo desapareceu, seu cérebro deixou de funcionar e só fcou a
visão... A visão de uma pele de alabastro e de uns lábios carnudos e tentadores; a visão de um mar
insondável no qual estava se afogando... A visão do rubor que como a luz rosada do amanhecer tomou
por assalto essas elegantes maçãs do rosto.
O rubor. A dama estava ruborizando.
Seu cérebro recuperou o funcionamento com um grande esforço.
Executou uma reverência.
—Peço-lhe desculpas, senhora - disse—. Temo que este jovem bobo dista muito de estar
civilizado. Levante-se do chão e peça desculpas às damas por haver incomodado.
Peregrine fcou em pé com semblante indignado.
—Mas...
—Nem pensar - protestou a bela dama—. Tal como expliquei a Olivia em incontáveis ocasiões, a
violência física não é a resposta adequada para arrumar um desacordo, a menos que ocorra perigo de
morte. —virou-se para a menina, uma ruiva sardenta que não se parecia absolutamente a sua mãe, se
esse acaso era o parentesco que as unia, salvo no aspecto ocular—. Corria perigo sua vida, Olivia?
—Não, mamãe - respondeu a menina com um brilho belicoso nos olhos—, mas ele disse que...
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—Este jovem cavalheiro ameaçou-lhe de algum modo? —prosseguiu sua mãe.
—Não, mamãe - respondeu ela—, mas...
—tratou-se de uma simples diferencia de opiniões? —insistiu a dama.
—Sim, mamãe, mas...
—perdeste as estribeiras. O que disse a respeito de perder as estribeiras?
—Tenho que contar até vinte — respondeu a menina—. E então senão me acalmar devo seguir
contando até quarenta.
—Tem-no feito?
Um suspiro.
—Não, mamãe.
—Faz o favor de desculpar-se, Olivia.
A menina apertou os dentes. Ato seguido inspirou fundo e soltou o ar muito devagar. Virou-se
para Peregrine.
—Senhor, peço-lhe humildemente que me perdoe — disse—. Foi um ato terrível, abominável e
atroz de minha parte. Espero que a repentina queda do tamborete não o deixe desfgurado nem lhe
ocasione um dano permanente. Estou muito envergonhada. Não só ataquei, e possivelmente mutilei
um inocente, mas, além disso, pus minha mãe em evidencia. Tudo é por culpa de meu incontrolável
gênio, sabe? Uma afição que sofro desde meu nascimento. —prostrou-se de joelhos e agarrou uma das
mãos de Peregrine—. Senhor seria tão bom, tão generoso, tão amável de me perdoar?
Peregrine que até esse momento tinha escutado o discurso com crescente assombro, pareceu fcar
totalmente aniquilado possivelmente pela primeira vez em toda sua vida.
A mãe da menina revirou os olhos tão surpreendentemente azuis.
— Levante-se Olivia.
A menina seguiu segurando à mão de Peregrine com a cabeça encurvada.
Peregrine o olhou com o pânico pintado no rosto.
—Talvez agora compreenda o desatino que supõe contrariar uma dama — disse ele—. Não me
olhe em busca de ajuda. Espero que sirva de lição.
Posto que a mudez fosse um mal de todo alheio ao caráter de seu sobrinho, este se recuperou
rapidamente.
—Vamos, ponha-se em pé! —ordenou à menina com voz mal-humorada—. Só era um caderno de
desenho. —Ela não se moveu. Com um tom de voz mais moderado, Peregrine acrescentou—: Meu tio
tem razão. Eu também deveria pedir desculpas. Sei que se supõe devo estar de acordo com tudo o que
diga uma dama e com o que digam os mais velhos, por alguma razão me escapa. Se é que está claro.
Na realidade, ninguém me explicou a lógica desta regra. De qualquer forma, apenas me roçaste. Caí
porque perdi o equilíbrio ao me agachar. Embora dê igual. De qualquer modo, uma garota é incapaz de
fazer muito dano.
A cabeça da Olivia se elevou de pronto e seus olhos olharam Peregrine jogando faíscas... Mortais.
Ele seguiu com o seu sem dar-se conta, como de costume.
—Requer prática, sabe? E as garotas não praticam nunca. Se praticasse, ao menos conseguiria
fortalecer o braço. Por isso os professores são tão bons.
A expressão da menina se suavizou. Ficou em pé, claramente distraída pelo novo tema da
conversa.
—Meu pai me contou muitas coisas sobre os professores ingleses — disse—. Golpearam-lhe
freqüentemente?
—Caramba, todos os dias! —exclamou Peregrine.
Olivia pediu detalhes. Ele os ofereceu.
A essa altura, Benedict tinha recuperado a compostura. Ou isso acreditava. Enquanto os jovens
faziam as pazes, permitiu que sua atenção se desviasse à arrebatadora mamãe.
—Sua desculpa não era necessária — disse—. Não obstante, foi que o mais... Isto... Comovedora.
—É uma menina horrível — confessou a dama—. Tentei vende-la aos ciganos em várias ocasiões,
mas não a querem nem dada de presente.
Suas palavras o surpreenderam. A beleza raras vezes vinha ao lado da inteligência. Qualquer
outro homem teria dado meia volta nesse mesmo momento. Benedict se limitou a fazer uma pequena
breve pausa antes de dizer:
—Nesse caso, temo que não haja a mínima possibilidade de que queiram a ele. Embora na
realidade não seja meu para vendê-lo ou não. É meu sobrinho. O único flho de Atherton. Eu sou
Rathbourne.
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Algo mudou. Uma espécie de sombra que não tinha estado ali antes velou sua expressão.
Talvez tivesse tomado muita liberdade. A dama podia tê-lo surpreendido e ter certo senso de
humor, mas isso não queria dizer que tivesse por costume saltar certas normas sociais.
—Talvez haja algum conhecido mútuo no museu que possa nos apresentar como é devido —
disse enquanto dava uma olhada pelo salão. Nesse instante havia duas ou três pessoas, a quem não
conhecia nem tinha o menor desejo de conhecer. Quando olhou em sua direção, afastaram o olhar de
pronto.
Entretanto, o bom senso prevaleceu e Benedict se perguntou o que poderia contribuir uma
apresentação formal. Ela era uma mulher casada e ele tinha certas regras referentes às mulheres
casadas. Se tentasse se aprofundar na relação, acabaria violando ditas regras.
—Duvido muitíssimo que tenhamos algum conhecido em comum — replicou ela—. Você e eu
nos movemos em círculos diferentes, milorde.
—Ambos estamos aqui — particularizou-o, confrmando desse modo que sua língua se impôs às
Regras Referentes às Mulheres Casadas.
— Igualmente está Olivia — acrescentou a dama—. Salta à vista por sua expressão que em menos
de nove minutos e meio terá uma de suas idéias, o que situa a uns onze minutos de nos ver no meio do
caos. Vejo-me na obrigação de levá-la daqui.
E com isso, deu meia volta.
A mensagem foi sufcientemente clara. Tão clara como se tivesse arrojado um balde de água
gelada no rosto.
—Pelo que vejo, acaba você de me despachar — disse—. Uma reação adequada para minha
rabugice.
—Isto não tem nada que ver com rabugices — esclareceu ela sem dar sequer a volta—, e sim com
a sobrevivência. Agarrou a sua flha e partiu.

Esteve a ponto de segui-la.


Impensável.
Mas certo.
Inclusive tinha dado um passo para sair atrás da dama com o coração acelerado quando lady
Ordway saiu como um tornado por uma porta e se precipitou para ele em um torvelinho de laços,
babados e plumas. Estas últimas, devido a seu avançado estado de gestação, criavam a ilusão de uma
irada galinha poedeira.
—Me diga que não estou vendo um... Um como se chama — disse a dama—. Essas coisas que se
vêem no deserto. Não nos oásis, Rathbourne, e sim essas coisas que se vêem quando não há oásis.
Benedict lançou um olhar impassível a esse bonito rosto de expressão estranhamente boba.
—Acredito que a palavra que está procurando é «miragem».
Ela assentiu e os babados, os laços e as plumas que adornavam seu chapéu se agitaram com
alegria em torno de sua cabeça.
Tinha a sensação de que sempre conheceu lady Ordway. A dama era sete anos mais jovens que
ele e oito anos antes tinha estado a ponto de casar-se com ela em lugar de fazê-lo com Ada, a irmã de
Atherton. Não estava seguro de que as coisas tivessem tido um fnal mais feliz se houvesse feito.
Ambas se equiparavam em beleza, educação, dote e inteligência. E ambas estavam muito melhor
dotadas nas três primeiras categorias que na última.
Claro que havia pouquíssimas mulheres dotadas com o necessário para oferecer uma verdadeira
estimulação intelectual. Além disso, era muito consciente de que tinha sido ele quem falou a sua
falecida esposa e não ao contrário.
—Acreditava que era uma miragem — disse lady Ordway—. Ou um sonho. Com todas estas
estranhas criaturas ao redor, é muito fácil acreditar em metade de um sonho. —Assinalou os objetos
expostos no salão—. Mas era Betsabé DeLucey de verdade. Ou esse era seu sobrenome de solteira,
porque se casou antes que eu. Embora os Wingate jamais reconheçam. Para eles não existe.
—Que aborrecido — replicou enquanto dava voltas a uns sobrenomes que lhe eram conhecidos
—. Uma antiga rixa familiar ocasionada por alguma tolice, não tenho a menor duvida.
Estava seguro de que tinha conhecido algum Wingate no colégio. Esse era o sobrenome do conde
de Fosbury, não? Quanto aos DeLucey, não recordava ter conhecido nenhum. Embora soubesse que seu
pai tinha amizade com a cabeça da família, o conde de Mandeville. Lorde Hargate conhecia todo
aquele que valia a pena conhecer, assim como tudo o que valia a pena saber sobre eles.
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—Não são tolices muito menos — corrigiu lady Ordway—. E por favor, rogo-lhe que não me diga
que não é de bons cristãos culparem aos flhos dos pecados dos pais. Neste caso, se aceitar os flhos,
chegarão acompanhados dos pais. E, como muito bem sabe você, são atrozes.
—Até este momento nunca tinha visto à dama — disse ele—. Não sei nada sobre ela. Os meninos
estavam discutindo e nos vimos obrigados a intervir. —Olhou de esguelha a Peregrine, que tinha
retomado o desenho e parecia totalmente recuperado do incidente. A resistência da juventude...
Ele, por sua parte, ainda não tinha recuperado o fôlego.
- Betsabé. Chamava-se Betsabé.
- Que apropriado.
Lady Ordway também olhou de esguelha a seu sobrinho. Baixou a voz e lhe explicou:
—Provém do ramo malogrado dos DeLucey.
—Todas as famílias têm um — assegurou-o—. Os Carsington têm Rupert, por exemplo.
—Ah, esse patife! —exclamou com o mesmo sorriso e o mesmo tom indulgente que adotavam
quase todas as mulheres ao falar de Rupert—. Os Atrozes DeLucey são totalmente distintos de seu
irmão. Têm uma péssima reputação. Imagine a reação de lorde Fosbury quando seu segundo flho,
Jack, anunciou que ia casar se com uma deles. Teria sido semelhante à reação de lorde Hargate se você
lhe anunciasse suas iminentes bodas com uma cigana. O qual, em realidade, é o que Betsabé era, por
muito que tentassem transformá-la em uma dama.
Quem quer que tenha tentado transformar em uma dama Betsabé Wingate o tinha obtido. Ele não
tinha detectado o menor indício de vulgaridade em sua forma de falar nem em suas maneiras, e isso
que tinha um ouvido muito fno para captar os matizes que delatavam os impostores mais cultivados e
os imitadores.
Tinha suposto que estava falando com alguém pertencente a sua mesma classe social. Com uma
dama.
—Que dúvida cabe de que foi assim como puseram ao pobre Jack os grilhões do matrimônio —
prosseguiu lady Ordway—. Mas o matrimônio não encheu as arcas da família, como eles esperavam.
Quando Jack se casou com ela, lorde Fosbury o deserdou. Jack e sua esposa acabaram em Dublin. Ali
foi onde os vi pela última vez, pouco antes que ele morresse. A menina se parece com ele.
A essa altura, a dama se viu na necessidade de tomar fôlego e abanar o rosto. Quando ambas as
medidas demonstraram ser insufcientes, lady Ordway se apropriou do banco mais próximo e o
convidou a aproximar-se, convite que Benedict aceitou sem demora.
A dama era tola, emperiquitava-se muito e rara vez dizia algo que valesse pena escutar... E teria
que escutá-la, porque era uma de tantas pessoas que equiparavam monólogo a conversação. Não
obstante, era uma antiga conhecida que formava parte de seu círculo social e que estava casada com
um de seus aliados políticos.
Além disso, sua aparição tinha evitado que cometesse uma espantosa infração do bom senso e as
normas sociais.
Tinha estado a ponto de sair atrás de Betsabé Wingate.
E depois...
Depois não tinha a menor idéia do que teria podido fazer, dando-se conta do ofuscado que se
encontrava naquele momento.
Teria se rebaixado a pegá-la pelos cabelos até que lhe tivesse confado seu nome e endereço?
Teria caído na ignomínia de segui-la em segredo?
Uma hora antes jamais se teria acreditado capaz de um comportamento tão inaceitável. Essa seria
a típica reação de um jovenzinho apaixonado. Naturalmente, tinha experiente todo o leque de amores
próprios da juventude e tinha cometido as loucuras conseqüentes a semelhante estado, mas fazia
muitíssimo tempo que tinha superado esse atordoamento.
Ou isso acreditava até então.
Porque nesse momento se perguntava quantas regras básicas teria infringido. Que fosse uma
viúva em lugar de uma mulher casada não mudava as coisas. Durante um bom momento se
comportou como se não estivesse bem da cabeça, como se estivesse louco ou enfeitiçado.
Regra: «O comportamento impetuoso é próprio de poetas, de artistas e daquelas pessoas
incapazes de controlar suas paixões», recordou-se.
De modo se armou de paciência, seguiu sentado junto a lady Ordway e a escutou enquanto ela
tirava outro tema de conversação, absolutamente interessante, e logo outro mais, ainda menos
interessante que o anterior, e se disse que devia agradecer por que a dama tivesse quebrado o feitiço e
tivesse evitado que cometesse uma escandalosa estupidez.
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Capítulo 2

Betsabé esperou sair do Salão Egípcio antes de repreender sua flha. A criança como bem tinha
aprendido, eram como os cães. Se não os repreendia ou lhes impunha um castigo justo depois de
cometer uma maldade, não podia esquecer-se de fazê-lo, porque eles o faziam de pronto.
—Isso foi escandaloso inclusive para você — disse enquanto caminhavam pela transitada rua—.
Em primeiro lugar, abordou um desconhecido, coisa que disse mil vezes que uma dama não faz salvo
se sua vida correr perigo e necessitar ajuda.
—As damas nunca fazem nada interessante a menos que estejam a ponto de morrer — replicou
Olivia—. Mas podem ajudar pessoas que necessitem e isso você disse. Esse menino franzia o cenho
como se estivesse passando muito mal. Pensei que poderia ajudá-lo. Se estivesse caído em uma sarjeta,
seguro que não me teria exigido que esperasse uma apresentação formal.
—Não estava caído em uma sarjeta — recordou—. Além disso, nunca ouvi que golpear uma
pessoa com seu caderno de desenho seja um ato caridoso.
—Acreditei que se encontrava mal — replicou sua flha—. Tinha o cenho franzido, mordia o lábio
e meneava a cabeça. Bom já viu por que. Desenha como um menino pequeno. Ou como um velho com
artrite. E foi a Eton e a Harrow, pode acreditar isso, mamãe? E isso não é tudo. Também foi a Rugby. E a
Westminster. E Winchester. Todos esses colégios custam o olho da cara, como todo mundo sabe, e terá
que ser um ricaço para entrar. De qualquer forma, em nenhum desses prestigiosos colégios
conseguiram lhe ensinar a desenhar como Deus manda. Não é surpreendente?
—Não são colégios para senhoritas — ela repôs—. Ensinam grego, latim e pouco mais. Em
qualquer caso, a medula da questão não é sua educação, e sim o comportamento tão impróprio que
demonstrou. Disse mil vezes que...
Deixou a frase no ar porque nesse preciso momento um reluzente faetón negro dobrou a esquina
a tal velocidade que esteve a ponto de virar e se precipitou em linha reta para elas. Os transeuntes e os
vendedores ambulantes se apressaram a saírem da frente. Betsabé levou Olivia até a calçada com um
puxão e observou como a carruagem passava como um raio frente a elas. O desejo de arrojar algo ao
condutor, um aristocrata bêbado que ia acompanhado de uma risonha rameira, fez-lhe apertar os
punhos.
—E esse o que? Além disso, com uma cortesã ao lado — disse Olivia—. É um ricaço, não? Vê à
légua. Sua forma de vestir. Sua forma de caminhar. Sua forma de conduzir... A ninguém importa o que
fazem.
—As damas não sabem nada de cortesãs e jamais utilizam a palavra «ricaço» — corrigiu-a entre
dentes. Obrigou-se a contar até vinte em silêncio porque ainda ardia em desejos de pôr-se a correr atrás
do faetón, derrubar o condutor e lhe estampar a cabeça contra uma roda.
—Só quer dizer que é da aristocracia ou que tem muito dinheiro — protestou sua flha—. Não é
uma palavra malsoante.
—É vulgar — esclareceu—. Uma dama utiliza o termo «cavalheiro». E se aplica aos membros da
aristocracia e da nobreza rural.
—Já sei — assegurou Olivia—. Papai dizia que um «cavalheiro» era um homem que não tinha
que trabalhar para viver.
Jack Wingate jamais tinha trabalhado para viver simplesmente porque não foi capaz de fazê-lo,
mesmo que as circunstâncias o pusessem na situação de trabalhar ou morrer de fome. Antes de
conhecê-la, outras pessoas se encarregaram de pagar suas faturas, ocuparam-se de suas
responsabilidades e tinham solucionado todos seus problemas. E desde que a conheceu, ela se
converteu nessa outra pessoa até o dia de sua morte.
Entretanto, em todo o resto tinha sido o marido ideal e tinha demonstrado ser o melhor pai. Sua
flha o adorava e, o mais importante de tudo: o escutava.
—Seu pai teria torcido o gesto e lhe haveria dito: «Nem pensar, Olivia», se a tivesse escutado falar
«ricaços» — disse—. Essa palavra não se utiliza em uma conversa educada.
Oxalá Jack lhe tivesse ensinado o truque para fazer que Olivia a escutasse, pensou antes de seguir
lhe explicando a interpretação de certas palavras. O uso dessas em concreto delataria suas origens
humildes aos olhos de outros. E lhe explicou, pela enésima vez no mínimo, que esses prejuízos eram o
desgraçado pão de cada dia e que tinham umas conseqüências diretas, freqüentemente desagradáveis.
Acabou com um:
—Faça o favor de apagá-la de seu vocabulário.
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Perfeito
—Mas todos esses cavalheiros podem fazer o que lhes agrade e ninguém lhes repreende —
protestou Olivia—. Inclusive as mulheres... As damas. Bebem em excesso, apostam o dinheiro de seus
maridos nas mesas de jogo, deitam-se com homens que não são seus maridos e...
—Olivia, o que lhe disse sobre ler folhetins de fofocas?
—Faz semanas que não leio nenhum, desde que me disse que não o fzesse — respondeu sua
flha com docilidade—. Foi Riggles, o prestamista1, quem me contou de lady Dorving, que pelo visto
empenhou outra vez seus diamantes para cobrir as dívidas de jogo. E todo mundo sabe que lorde John
French é o pai dos dois últimos flhos de lady Craith.
Betsabé fcou sem palavras diante dos comentários de sua flha. Riggles era um conhecido
indesejável, além de indiscreto. Por desgraça, Olivia estava relacionando-se com esse tipo de pessoas
praticamente desde que nasceu. Sempre era Jack quem tratava com eles, porque tinha grande
experiência com prestamistas e agiotas, e sempre ia acompanhado de Olivia porque nem o coração
mais duro era capaz de resistir aos enormes e inocentes olhos azuis da menina.
Quando caiu doente e dado que ela já se encarregava de numerosas responsabilidades, foi Olivia
quem, aos seus nove anos, encarregou-se das negociações fnanceiras, levando as escassas jóias, as
peças do faqueiro que restavam, os pequenos adornos e a roupa de um lado para outro. Dava-se
inclusive melhor que Jack. Nela se mesclavam o encanto de seu pai, a obstinação de sua mãe e, por
desgraça, o talento para a fraude dos Atrozes DeLucey.
Tinham abandonado o continente e se mudaram para a Irlanda para afastar Olivia da insalubre
infuência de sua família.
O problema era que a menina se sentia atraída por personagens de duvidosa moral, por canalhas
e vagabundos, por sanguessugas e farsantes... Em defnitivo, por pessoas da índole de seus parentes
maternos. Além de sua professora e de suas companheiras de classe, poderia dizer-se que os
prestamistas eram seus conhecidos mais respeitáveis.
Reverter à educação que sua flha recebia nas ruas estava se convertendo em uma jornada de
trabalho completa para ela. Devia mudar-se para uma vizinhança melhor sem perda de tempo.
Só precisavam dispor de alguns xelins mais ao mês.
O problema era de onde tirar o dinheiro.
Das duas uma, ou conseguia mais encargos ou conseguia mais alunas para suas aulas de
desenho.
Não obstante, nem as alunas nem os encargos eram abundantes se a artista era feminina. Os
trabalhos de costura sim abundavam, mas lhe reportariam um salário insignifcante e as condições
trabalhistas lhe destroçariam a vista e a saúde. Não estava qualifcada para nenhum outro trabalho...
para nenhum respeitável, claro.
Se ela não fosse respeitável, sua flha tampouco o seria. Se Olivia não era respeitável, não poderia
casar-se com um bom partido.
Depois, repreendeu-se. Preocupar-se-ia mais adiante por seu futuro, quando sua flha se deitasse.
Assim teria algo produtivo no que pensar.
Em lugar dele.
O herdeiro do conde de Hargate, nada mais e nada menos. Não um simples aristocrata indolente,
e sim um muito conhecido.
Lorde Perfeito chamava-o as pessoas, porque jamais dava um passo em falso.
Se não se apresentasse, talvez tivesse se demorado com ele. Era muito difícil resistir a esses olhos
escuros, embora não soubesse exatamente por que.
O que sabia era que esses olhos tinham estado a ponto de conseguir que se esquecesse de sua
decisão e voltasse para o interior do museu.
Mas para que?
Uma amizade com esse homem não lhe conduziria nada bom.
Não se parecia em nada a seu defunto marido. Jack Wingate era o flho mais novo de um conde
que carecia de todo sentido da responsabilidade e que apreciava a sua família na mesma medida que
ela à sua, embora por diferentes motivos.
Lorde Rathbourne era um caso muito diferente. Embora também pertencesse a uma das famílias
mais preeminentes da Inglaterra, a sua era uma das mais unidas. Além disso, a julgar por tudo o que
tinha ouvido sobre ele, só podia tirar uma conclusão: era a comparação da nobreza, tudo o que um
aristocrata devia ser, mas que muito poucos eram. Tinha um código moral irrepreensível, um forte
1
Pessoa que se dedica a emprestar dinheiro.
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Perfeito
sentido do dever e... O que importavam esses detalhes? Seu nome jamais aparecia nos folhetins de
fofocas. Quando aparecia nos jornais, coisa bastante freqüente era para relatar algo heróico, nobre ou
valente que havia dito ou feito.
Era perfeito.
E semelhante modelo de perfeição tinha resultado diferente à imagem do chato pomposo que ela
tinha imaginado.
O único papel que podia ter ao lado de um homem assim, ou ao lado do de qualquer aristocrata
responsável, era o de amante. Em resumo: devia apagá-lo de sua mente.
Já tinham chegado a Holborn. Logo estariam em casa e tinha que comprar comida. Apenas
restava dinheiro para comprar massas e chá. Debateu se poderia guardar algo para o jantar e fazê-lo
durar até o café da manhã do dia seguinte. Semelhante idéia (junto com a lembrança de uns olhos
escuros, uma voz grave, umas pernas longas e uns largos ombros, para não mencionar a dolorosa
desilusão que a lembrança lhe provocou) fez-na falar com mais brutalidade que de costume.
—Oxalá recordasse que a diferença de lady Tal e lorde Qual, você não está em uma posição
privilegiada — disse a sua flha—. Se quiser que as pessoas respeitáveis lhe aceitem, devem ater-se as
suas regras. Já é muito mais velha para comportar-se como uma mulher-macho. Dentro de alguns anos,
estará em idade de casar. Todo seu futuro dependerá de seu marido. Que homem decente e de boa
posição quererá deixar sua futura felicidade e a de seus flhos em mãos de uma moça teimosa,
ignorante e mal educada?
A expressão da Olivia se tornou pesarosa.
E Betsabé se arrependeu de pronto. Sua flha era arrojada, vivaz, aventureira e imaginativa.
Aborrecia ter que refrear seu espírito.
Mas tinha que fazê-lo.
Com a educação apropriada, as maneiras adequadas e um pouco de sorte, Olivia poderia
encontrar um bom partido. Não um aristocrata, certamente. Embora ela não se arrependesse de haver-
se casado com o homem que amava, preferia que sua flha se livrasse dos problemas que conduzia uma
aliança tão díspar.
Suas esperanças eram bastante modestas. Queria alguém que amasse Olivia, que a tratasse bem e
junto ao qual não passasse apertos. Um advogado, um médico ou algum outro cavalheiro de emprego
similar seria perfeito. Embora um comerciante respeitável (um vendedor de tecido ou um livreiro) ou
um impressor também seriam bons partidos.
Quanto aos meios econômicos, bastaria que o matrimônio lhe evitasse as preocupações e a
desanimadora experiência de ter que esticar uns ganhos esporádicos e módicos até o impossível.
Se tudo saísse bem, sua flha jamais teria que preocupar-se com essas coisas.
Mas nada sairia bem se não mudassem para um bairro melhor sem mais demora.

Como era de esperar, lady Ordway não perdeu nem um instante em fazer correr a voz da
aparição de Betsabé Wingate em Piccadilly.
O assunto estava em boca de todos quando Benedict entrou em seu clube essa mesma tarde.
Apesar disso, fcou surpreso quando saiu do aperitivo essa noite em Hargate House.
Tanto ele como Peregrine tinham ido ao jantar familiar que celebravam os condes de Hargate e
que também incluía a seu irmão Rupert e a sua esposa, Dafne.
Quando se retiraram para a biblioteca depois da refeição, fcou pasmo ao escutar Peregrine pedir
a seu pai que desse uma olhada nos desenhos que tinha feito no Salão Egípcio e lhe dissesse se eram
aceitáveis ou não para alguém que pretendia ser um antiquário.
Benedict cruzou a estadia de forma despreocupada, agarrou o último exemplar do Quarterly
Review e começou a folhear o jornal.
Lorde Hargate raras vezes falava com rodeios com os membros da família. Dado que, igual ao
resto dos Carsington, considerava Peregrine como um membro da mesma, tampouco andou com
rodeios na hora de expressar sua opinião sobre os desenhos.
—São espantosos —disse Sua Excelência —. Rupert é capaz de desenhar melhor, e isso porque é
idiota.
O aludido pôs-se a rir.
—Só fnge ser idiota — explicou Dafne—. É um jogo para ele. Engana todo mundo, mas não
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Perfeito
acredito que o tenha enganado, milorde.
—Faz tão bem o papel de imbecil que até poderia sê-lo — replicou lorde Hargate—. De qualquer
forma, sabe desenhar como um cavalheiro. Já mostrava certo talento na idade de Lisle. —Olhou o outro
lado da biblioteca, onde se encontrava Benedict—. Rathbourne, no que estiveste pensando para deixar
que as coisas chegassem tão longe? Este jovem necessita um professor de desenho adequado.
—Isso é o que ela disse — declarou Peregrine—. Que meus desenhos não eram bons. Mas é uma
garota, como ia estar seguro de que sabia do que estava falando?
—Ela? —perguntou lady Hargate, que arqueou as sobrancelhas quando se virou para olhar
Benedict.
Rupert também o olhou com a mesma expressão, embora seus olhos tivessem um brilho risonho.
Ambos se pareciam muitíssimo a sua mãe e, salvo certos detalhes, eram muito parecidos entre si.
Os outros três irmãos, Geoffrey, Alistair e Darius, tinham herdado o cabelo castanho claro e os olhos
ambarinos de seu pai.
—Uma menina — respondeu Benedict, lhe subtraindo importância, embora tivesse o coração
acelerado—. No Salão Egípcio. Peregrine e ela teve uma diferença de opiniões. —Isso não deveria
surpreender ninguém. Seu sobrinho tinha diferenças de opiniões com todo mundo.
—Tem o cabelo da mesma cor que a tia Dafne, chama-se Olivia e sua mãe é artista — explicou
Peregrine—. Acredito que é tola, mas sua mãe me pareceu uma pessoa muito razoável.
—A mãe então estava ali — disse lady Hargate sem afastar o olhar de seu flho.
—E suponho Benedict, que nem sequer a olhou para ver se era bonita, não? —perguntou Rupert
em um tom suspeitosamente inocente.
Benedict levantou a vista do Quarterly Review com o rosto inexpressivo, como se tivesse estado
concentrado no jornal.
—Bonita? —repetiu—. Muitíssimo mais. Diria que era preciosa. —Baixou a vista de novo ao
jornal —. Lady Ordway a reconheceu. Disse que se chamava Winshaw. Ou era Winston? Talvez fora
Willoughby.
—A menina disse que era Wingate — particularizou Peregrine.
O nome caiu no aposento qual meteorito no telhado.
Depois de um breve, mas eloqüente silêncio, lorde Hargate disse:
—Wingate? Uma menina ruiva? Essa deve ser a flha de Jack Wingate.
—Deve ter uns onze ou doze anos, acredito — apontou lady Hargate.
—Me interessa mais a mãe — assinalou Rupert.
—Por que será que não me surpreende? —comentou Dafne.
Rupert a olhou com expressão inocente.
—É que Betsabé Wingate é famosa, querida. É como uma dessas mulheres irresistíveis das que
fala Homero, essas que atraíam os marinheiros até as rochas.
—As sereias — esclareceu Peregrine—. Mas são criaturas mitológicas, como as ninfas.
Supostamente, atraía os homens até sua morte com algum tipo de música, algo do mais ridículo. Não
compreendo como a música pode atrair outra coisa que não seja o sono. Além disso, se a senhora
Wingate for uma assassina...
—Não o é — repôs lorde Hargate—. Por inconcebível que pareça, Rupert utilizou uma metáfora.
Uma incrivelmente acertada.
—É uma trágica história de amor — replicou Rupert em tom zombador.
Peregrine fez uma careta.
—Pode ir à sala de bilhar — disse Benedict.
O menino saiu disparado. Em sua opinião não havia nada mais detestável e nauseabundo que
uma história de amor, sobre tudo se era trágica, e Rupert sabia muito bem.
Assim que se assegurou de que Peregrine não os escutava, Rupert contou a sua esposa como a
linda Betsabé DeLucey tinha seduzido o segundo flho e menino dos olhos do conde de Fosbury e
tinha arruinado sua vida. Era a mesma história que Benedict tinha escutado até não poder mais nesse
mesmo dia.
Todo mundo afrmava que Jack Wingate tinha estado «loucamente apaixonado». Enfeitiçado.
Enfeitiçado pelas más artes de Betsabé DeLucey. E o amor o tinha destruído. Havia-lhe custado sua
família, sua posição... Tudo.
—Assim já vê, foi uma sereia quem levou Wingate para destruição — concluiu Rupert —. Uma
história calcada de qualquer uma das que contam os mitos gregos.
—Sim parece um mito — disse Dafne com desdém—. Recorda-se que a sociedade mancha de
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monstruosidade às mulheres eruditas. E seu estreito ponto de vista pode resultar demolidor.
Ela sabia muito bem. Apesar de estar vinculada através do matrimônio a uma das famílias mais
infuentes da Inglaterra, quase todos os eruditos, todos os homens, rechaçavam suas teorias a respeito
dos métodos para decifrar os hieróglifos.
—Não neste caso — interveio lorde Hargate—. O problema acredito recorda, começou no tempo
de meu avô. Em princípios do século passado, em qualquer caso. Os DeLucey eram famosos por contar
com um herói naval mais ou menos em cada geração e Edmund DeLucey, segundo flho e bastante
competente como ofcial da Marinha, prometia converter-se em um deles. Não obstante, em um dado
momento arrumou para que o expulsassem. Abandonou à moça com a qual estava comprometido e se
arrolou como pirata.
— Está inventando isso, pai — disse Benedict. Sabia de cor a história do trágico amor do Jack
Wingate. Até esse momento não tinha ouvido nada a respeito da história dos DeLucey.
Entretanto, seu pai não estava brincando e os detalhes eram surpreendentes.
A diferença de muitos piratas, segundo lorde Hargate, Edmund desfrutou de uma vida idosa
durante a qual se casou e gerou um bom número de descendentes. Todos e cada um deles herdaram
seu caráter. Igual aos seus descendentes, que tinham um dom para atrair maridos de boa família e
moral dissipada.
—Esse ramo dos DeLucey não deu mais que embusteiros jogadores e vigaristas — prosseguiu o
conde—. Não se pode confar neles, e têm sido famosos por seus escândalos. A história se repete
geração após geração. A bigamia e o divórcio é algo habitual entre eles. Quase todos vivem no
estrangeiro... Para evitar seus credores e para viver de qualquer idiota que se fxe neles. Uma família
infame.
E Benedict tinha estado a ponto de ir atrás de um de seus membros.
Nem sequer podia livrar-se dela até depois de ter escapado de suas garras, porque estava na boca
de todo o mundo. Era uma sereia, uma mulher fatal. Mas o tinha rechaçado. Ou não?
«Não tem nada que ver com rabugices, e sim com a sobrevivência.»
Tinha-o rechaçado ou o estava tentando?
Tampouco importava. Jamais conheceria a resposta pela simples razão de que não tentaria
averiguá-la.
Sua vida amorosa tinha sido muito discreta desde antes de seu matrimônio. Uma vez casado
tinha sido escrupulosamente fel. Depois da morte da Ada aguardou um tempo decente antes de buscar
uma amante e essa relação jamais saiu à luz.
Betsabé Wingate era toda uma lenda.
A voz de seu pai o devolveu à realidade.
—E bem, Rathbourne, o que vai fazer com respeito à Lisle?
Benedict se perguntou quanta conversa perdeu, mas respondeu com tranqüilidade:
—O futuro do menino não está em minhas mãos. —E devolveu o Quarterly Review ao lugar de
onde o tinha pego.
—Não seja absurdo — replicou lorde Hargate—. Alguém deve se encarregar.
«E esse alguém devo ser eu, como de costume», pensou Benedict.
—Já sabe que Atherton é incapaz de encarregar-se de nada — recordou sua mãe—. Peregrine não
só o respeita como lhe tem carinho. Tem uma obrigação com ele. Se não intervier, esse menino vai
acabar muito mal.
«Minha vida é uma interminável cadeia de obrigações», pensou Benedict... E de pronto se
repreendeu por semelhante pensamento. Tinha muito carinho a Peregrine e ele melhor que ninguém
sabia quanto dano lhe estavam fazendo Atherton e sua esposa.
Sabia o que Peregrine necessitava o que lhe motivava. A lógica. A tranqüilidade. E umas regras
simples.
Benedict acreditava em todas essas coisas, especialmente nas regras.
Sem regras, a vida se convertia em algo incompreensível. Sem regras, as paixões e os impulsos
prevaleciam e a vida escapava a todo controle.
Prometeu envolver-se ao menos até o ponto de lhe proporcionar um professor de desenho e,
talvez ao fm de um tempo, um tutor.
Assim que esse assunto fcou resolvido, chamaram Peregrine para que voltasse.
O resto da noite transcorreu sem novidade, salvo pela discussão que Dafne manteve com seu
sogro sobre o deplorável trato que o Museu Britânico tinha dispensado ao senhor Belzoni. Ninguém
interveio, apesar de que o tom foi subindo pouco a pouco. Lady Hargate parecia achar graciosa a
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situação e Rupert observava sua esposa com patente orgulho. Inclusive Peregrine fcou calado,
pendente de cada palavra, já que o Egito era o único tema que lhe apaixonava.
Durante o trajeto de volta a casa, Benedict se perguntou por que não tinha pedido sua opinião
sobre seus desprezados desenhos.
—Porque não queria uma opinião amável — respondeu seu sobrinho—. Sabia que lorde Hargate
me diria a verdade e só a verdade. Disse que necessitava um professor de desenho.
—Encontrarei um — assegurou.
—A mãe da menina ruiva é professora de desenho — comentou Peregrine.
—Ah, sim?
A tentação se colocou frente a ele e esboçou seu sorriso mais incitante enquanto fazia gestos com
o dedo.
Já lhe tinha dado as costas em incontáveis ocasiões. Podia voltar a fazê-lo sem problemas, disse-
se.

À tarde seguinte lorde Rathbourne contemplava um pôster colocado na vitrine de uma loja de
quadros em Holborn, com o rosto impassível e o coração acelerado. Tudo por um pedaço de papel.
«Pequena ridicularia» pensou. Não tinha motivos para estar nervoso.
O pedaço de papel só informava seu nome... Ou, ao menos, da inicial de seu nome de batismo e
do sobrenome de seu defunto marido. Nem sequer era um pôster de imprensa, e sim um escrito à mão.
Com uma excelente caligrafa.

Aulas de aquarela e desenho por horas.


Professor com experiência e formação no continente.
Amostras de seu trabalho em exposição.
Para mais detalhe perguntar no interior.

B. Wingate.

Afastou a vista para olhar Peregrine.


—Aqui foi onde a menina com sardas me disse que estaria — comentou seu sobrinho—. Supõe-se
que na vitrine há um dos quadros de sua mãe. Disse que poderia julgar se sua mãe tinha o talento
sufciente para me dar aulas. Claro que não posso julgar porque, segundo ela, não sei nada de desenho!
—Franziu o cenho—. Já o suspeitava seriamente antes que me dissesse isso, e não me surpreendeu que
lorde Hargate afrmasse que meus desenhos eram «espantosos».
Enquanto o menino procurava ansiosamente o quadro da senhora Wingate entre as atrocidades
que se mostravam na vitrine da loja, Benedict desejou que seu pai moderasse suas palavras de vez em
quando.
Se tivesse sido mais benévolo com seus esforços, Peregrine não estaria tão desesperado nesse
momento para ter um professor de desenho. Morria de vontades de começar... Não havia tempo a
perder... Seus maus hábitos se consolidariam com o tempo... A dama aceitava alunos e, além disso, era
razoável e agradável, ou não?
Benedict deveria haver-se limitado a responder que Betsabé Wingate estava fora de toda questão.
Em troca, cedeu. À curiosidade.
Uma absurda amostra de tolerância.
Era certo que seu cunhado não se envolvia muito nos detalhes da educação de seu flho... Nem de
sua vida. Sua única preocupação era que assistisse a um colégio adequado e tinha deixado a milagrosa
tarefa em mãos de seu secretário.
Nesse momento, os marqueses se encontravam na propriedade que tinham na Escócia. Não
tinham intenção de retornar a Londres até o inicio do ano.
Entretanto, semelhante comportamento não diferia de que demonstrava o resto dos pais da alta
sociedade.
O problema era que Peregrine sim diferia do resto dos flhos da alta sociedade. O jovem não
encaixava facilmente no mundo no qual tinha nascido; mas estava como peixe fora da água. Sua
aspiração na vida não era a de seguir os passos de seu pai, igual a este tinha feito antes dele e assim
sucessivamente ao longo de seus numerosos antepassados.
Embora a ele jamais tivesse passado pela cabeça ser diferente, respeitava a aspiração de seu
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sobrinho e admirava o empenho que mostrava para conseguir seu objetivo.
Entretanto, isso não explicava de forma satisfatória por que se encontrava nesse lugar, em uma
das ruas mais deslustradas de Holborn, para ser exato.
Tinha toda a intenção de procurar um professor de desenho para Peregrine.
Mas não podia ser Betsabé Wingate. Atherton se plantaria ante a idéia de que seu flho recebesse
aulas de um dos Atrozes DeLucey... Sobre tudo dessa DeLucey em particular.
—Aí está! —Peregrine assinalou uma aquarela de Hampstead Heath.
Ao olhá-la, Benedict sentiu que a opressão do peito retornava. Como se um punho lhe estivesse
espremendo o coração.
Aquilo era tudo o que devia ser uma aquarela, não só nas linhas, as formas e as cores, mas
também em espírito. Como se o artista tivesse imortalizado um momento concreto.
Era preciosa até o ponto de resultar inesquecível... E a queria.
Desejava-a mais da conta.
Embora seu desejo de tê-la não tivesse a menor importância. O importante era que o artista que a
tinha pintado não podia dar aulas a Peregrine. As mulheres infames não educavam meninos
impressionáveis.
Um professor de desenho havia dito lorde Hargate, não uma professora.
—Bem? É boa? —perguntou Peregrine com ansiedade.
«Diria que é apenas passável. Vulgar. Medíocre. Diria qualquer coisa menos a verdade e poderá ir
daqui e esquecê-la», disse para si mesmo.
—É brilhante — respondeu. Fez uma pausa para recuperar a conexão entre seu cérebro e sua
língua—. Muito boa, de fato — continuou—. Não acredito que esbanje seu tempo dando aulas a
meninos rebeldes. Provavelmente esteja procurando estudantes de nível avançado. Estou seguro de
que a menina o faz com boa intenção. De certa forma, é adulador que oferecesse os serviços de sua
mãe. Entretanto...
A porta da loja se abriu para dar passagem a uma mulher que desceu a toda pressa os degraus,
levantou a vista para ele... E tropeçou.
Benedict se moveu de forma instintiva para evitar a queda e a apanhou antes que acabasse de
bruços no chão.
Reteve-a entre os braços.
E a olhou.
O chapéu tinha inclinado e tinha adotado um ângulo sedutor.
Nessa posição alcançava ver perfeitamente a cabeça e os espessos cachos negros, que a luz da
tarde arrancava refexos azulados.
Ela jogou a cabeça para trás e encontrou-se olhando uns enormes olhos azuis de insondáveis
profundidade.
Inclinou a cabeça. Entreabriu os lábios. Ele a abraçou com mais força. Ela emitiu um som, apenas
um murmúrio.
E então se deu conta de que a tinha segurado pelos braços e notou o calor de sua pele apesar das
luvas. Notou a carícia de seu fôlego no rosto e compreendeu que estavam a escassos centímetros de
distância.
Levantou a cabeça. Obrigou-se a fazê-lo com tranqüilidade enquanto se esforçava por recuperar a
respiração e o bom senso.
Tentou com todas suas forças recordar uma regra, que fosse para fazer que o mundo abandonasse
o caos e retornasse a sua ordem habitual.
Um toque de humor sempre alivia a tensão de uma situação incômoda, recordou.
—Senhora Wingate — disse—, precisamente estávamos falando de você. Um detalhe por sua
parte que se deixou cair por aqui.
Lorde Rathbourne a soltou e Betsabé se afastou uns passos para recolocar o chapéu, embora o
dano já estivesse feito. Ainda sentia a pressão de seus dedos através da capa de musselina e lã. Ainda
sentia seu fôlego nos lábios; quase podia saboreá-lo. Era muito consciente de seu perfume, desse aroma
tão viril que incitava seus sentidos. Tentou desligar-se dele e concentrar-se nos aromas muito mais
seguros do amido e o sabão.
Esse homem cheirava a limpo. Tinha passado muitíssimo tempo da última vez que esteve tão
perto de um homem tão asseado, arrumado e engomado.
E acabava de averiguar que tinha uma pequena cicatriz sob o queixo, no lado esquerdo. Uma
cicatriz fna e um tanto curva, de um centímetro e meio no máximo.
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Perfeito
Não lhe interessavam nem suas cicatrizes nem seu perfume. Não queria saber nada dele. Apenas
tinha fxado os homens durante os três anos que tinham passado da morte de Jack, e antes disso não se
fxou em nenhum salvo em seu marido. Era uma crueldade do destino que se fxasse com tanto detalhe
e cuidado em lorde Perfeito.
—Lorde Rathbourne — disse ainda sem fôlego e envergonhada a mais não poder. De todos os
braços do mundo, tinha que cair precisamente nos seus.
—Disse que não freqüentamos os mesmos círculos — recordou-o—, mas devemos fazê-lo, porque
aqui estamos.
—Sim, e devo partir — disse enquanto se virava.
—Estamos procurando um professor de desenho — prosseguiu Sua Excelência.
«Arrrgh!», grunhiu para si mesma. Virou-se de novo para olhá-lo.
—Para Lisle — esclareceu lorde Rathbourne—. Meu sobrinho. O jovem que.... Incomodou à
senhorita Wingate ontem. O jovem que me acompanha, de fato. —Assinalou o menino.
—Essa menina só me disse que meus desenhos não eram muito bons — interveio lorde Lisle—.
Não me disse quão maus eram... Mas segundo lorde Hargate são «espantoso». —Lorde Rathbourne o
olhou de forma penetrante e o jovem se apressou a corrigir—. Refro-me à senhorita Wingate. Foi muito
amável ao me oferecer sua perita opinião. Muito amável, afnal.
Betsabé compreendeu que no dia anterior se equivocou ao acreditar que Olivia teria uma Idéia
nove minutos e meio depois do percalço. Era evidente que já lhe tinha ocorrido com antecedência o
episódio e o tinha posto em marcha.
A forma em que trabalhava a mente de sua flha não tinha segredos para ela: «Aqui há um ricaço,
que tem que estar podre de dinheiro». São claro, iguais os seus ancestrais DeLucey, considerava o
jovem lorde Lisle um «alvo».
Claro que seus próprios objetivos não eram muito mais nobres. Virou-se ao escutar «Estamos
procurando um professor de desenho», não? E tinha começado a calcular quantas aulas e quanto
dinheiro pediria por elas a fm de poder mudar-se a outro bairro em menos de um mês.
—Olivia tem muitas opiniões — disse—. Embora o pior seja que adora compartilhar com outros.
—Mas isso não altera a realidade — repôs Rathbourne—. Meu sobrinho não sabe desenhar. Se
não souber desenhar, não poderá levar a cabo suas aspirações.
—Aspirações? —repetiu Betsabé, tão surpreendida que deixasse de fazer cálculos—. É que
precisa fazer algo mais que viver para conseguir suas aspirações? —virou-se para o jovem lorde Lisle
—. Algum dia será você o marquês de Atherton — disse—. Poderá desenhar pintar ou esculpir como
lhe der vontade e a ninguém passará pela cabeça sequer criticá-lo. Seus conhecidos dirão que é
«sensível» ou que tem uma visão própria da beleza. Rogarão que lhes dê de presente uma de suas
obras, que pendurarão nos estábulos ou na sala de convidados reservada para aqueles aos que querem
tirar-se de cima rapidamente. Para que quer perder tempo com aulas de desenho?
—Já sei que algum dia me converterei no marquês de Atherton — replicou o menino—. Mas
também vou ser um explorador. Vou explorar o Egito. E todo explorador que se aprecie deve saber
desenhar.
—Pode contratar a alguém que desenhe por você — respondeu ela.
—Será melhor que capte a indireta, Lisle — aconselhou lorde Rathbourne—. A dama não está
ansiosa por te aceitar como aluno.
—Não me escutou bem — falou—. Eu não disse isso.
—Mas eu a entendi — afrmou lorde Lisle—. Acredita que não vou tomar isso a sério.
—Deve certifcar-se de que vai a sério — explicou ela, obrigando-se também a meditar o assunto
com atenção e recordando certos aspectos muito difíceis da realidade que apagaram do quadro os
brilhantes montes de moedas—. Tal como seu tio terá compreendido já a estas alturas, ver-me-ia
obrigada a fazer certos acertos para lhe dar aulas. Em qualquer caso, não me parece sensato continuar
esta discussão aqui.
Permitiu-se enfrentar o olhar de lorde Rathbourne. Era alivio o que via nesses olhos escuros?
Foi apenas um instante, mas defnitivamente era algum tipo de emoção, porque o que outra coisa
podia ser?
Deveria havê-lo imaginado: se lorde Rathbourne tinha descoberto seu nome, já devia saber tudo
sobre ela. Duvidava muito de que houvesse algum aristocrata britânico que não soubesse quem era
Betsabé Wingate.
Nesse caso, não tinha a menor intenção de contratá-la. Só tinha ido até ali para contentar seu
sobrinho... E talvez para contentar a si mesmo.
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Perfeito
Possivelmente tivesse outro tipo de tarefa na memória para ela e o jovem lhe tivesse
proporcionado a desculpa perfeita.
Ninguém esperava que um homem, nem sequer um perfeito, levasse uma vida celibatária. O
mundo seguiria considerando-o a comparação da nobreza mesmo que tivesse uma amante, sempre que
fosse discreto, é claro.
—Que tipos de acertos? —perguntou lorde Lisle.
—Estamos entretendo a dama, que sem dúvida deveria estar dando aulas — interveio Sua
Excelência —. Já discutiremos o assunto mais tarde, Lisle.
—Por favor, façam-no — disse ela, elevando o queixo—. Se decidirem seguir adiante com a idéia,
podem entrar em contato comigo através do senhor Popham, o dono da loja de quadros. Bom dia.
Afastou-se apressada dali, com o rosto aceso e uma terrível ardência nos olhos por causa das
lágrimas que se negava a derramar.

Capítulo 3

Tal como Betsabé suspeitava, Olivia tinha uma idéia e lorde Lisle era seu alvo.
A idéia tinha ido tomando forma em sua mente desde que chegaram a Londres, já fazia quase um
ano.
Londres não era tão divertido como Dublin. Em Londres sua mãe lhe impunha muitas regras. Em
Londres teria que assistir a uma aborrecidíssima aula diária com uma professora de voz monótona e
cara de estaca.
Em Dublin, quando seu pai vivia, a vida era muito mais alegre. Sua mãe não era tão restrita. Ria
mais. Inventava jogos interessantes e contava histórias maravilhosas.
Tudo mudou quando seu pai morreu.
Embora houvesse dito que não chorassem sua ausência, porque segundo ele jamais tinha passado
tão bem como com sua esposa e sua flha, era impossível não sentir saudades. Olivia tinha chorado
mais do que teria gostado seu pai. Igual sua mãe.
Entretanto, já tinham passado três anos e sua mãe seguia sem ser a mesma de sempre.
E era fácil adivinhar o motivo: eram muito pobres, e os pobres estavam acostumados a serem
pessoas infelizes. Tinham fome, padeciam enfermidades e viviam em aposentos miseráveis, em asilos
ou no cárcere de devedores. Outros pobres os fraudavam, roubavam-lhes e os atracavam. Os maus
acabavam no cárcere, deportados ou enforcados; os bons sofriam tanto como se fossem maus.
Ser pobre não somente era desagradável, tampouco era respeitável.
Para os aristocratas era outro cantar. Não tinham preocupações. Faziam o que lhes dava vontade
e ninguém os prendia nem gritavam ao céu embora se comportassem mal. Viviam em casas enormes,
com centenas de criados para que se ocupassem de suas necessidades. Nunca trabalhavam. Se algum
pintava um quadro, não tinha que vendê-lo para conseguir dinheiro. Não tinham que dar aulas de
desenho às flhas consentidas e queixosas dos lojistas, como fazia sua mãe.
Entretanto, sua mãe também era uma aristocrata. Seu tataravô era um conde e o bisneto de dito
conde vivia perto de Bristol, em um lugar chamado Throgmorton, uma mansão imensa com centenas
de cridos. Além disso, a mãe de sua mãe era a flha de sir Fulanito e sua avó, a segunda prima de lorde
Menganito. Quase todos os parentes de sua mãe tinham sangue azul nas veias.
O problema era que havia dois tipos de DeLucey, os bons e os maus. E sua mãe tinha tido a
trágica desgraça de nascer no ramo mau da família.
Seu ramo era os dos Atrozes DeLucey, os que outros lordes, damas e cavalheiros fugiam por
que... Enfm, porque eram uns rufões em resumidas contas.
Mas sua mãe não tinha nenhum pingo de maldade no corpo, e essa era a maior tragédia de todas;
e também era a causa de suas horríveis desditas e de sua urgente penúria.
Tudo isso a convertia em uma rapariga em apuros, exatamente igual às que apareciam nas
histórias que lorde Lisle tinha tachado de mitos.
Embora ele não tivesse a menor idéia de nada.
Não eram mitos, e se conhecesse a história de sua mãe, não haveria dito aquelas coisas tão
estúpidas e dolorosas, o muito idiota.
Os cavalheiros existiam, embora não tivessem que usar armadura brilhante, muito menos nesses
dias, e tampouco tinham que ser homens.
Ela seria o cavalheiro que ia resgatar sua mãe.
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Perfeito
Essa era a Idéia.
Claro que ainda não tinha muito claro como pô-la em prática. O que sim tinha muito claro era
que o dinheiro era crucial.
Por esse motivo tinha decidido cultivar a amizade de lorde Lisle no museu, uma vez que passou
o arrebatamento de gênio e conseguiu pensar com claridade.
Era o primeiro aristocrata com o qual tinha podido falar da morte de seu pai. Sabendo de que
semelhante oportunidade demoraria muito em voltar a apresentar-se, tinha tentado tirar o maior
proveito à situação.
Claro que, como era de esperar, sua mãe não estava de acordo.
Na quarta-feira pela tarde voltou para casa muito zangada.
—Hoje me encontrei com lorde Rathbourne e lorde Lisle na loja do senhor Popham — disse
enquanto tirava o puído casaco.
—Lorde Rathbourne? —repetiu enquanto fngia que tentava recordar o citado.
—Sabe perfeitamente quem é — replicou sua mãe—. Atacou seu sobrinho e depois tentou
convencê-lo a juntar-se a minhas aulas de desenho.
—Ah, ele! —exclamou Olivia—. Já disse que me deu muita pena. Era claro que necessitava umas
aulas com urgência.
—E é claro que nós necessitamos dinheiro com urgência — particularizou sua mãe—. Mas o tiro
saiu pela culatra.
Olivia começou a colocar o serviço de chá sem perda de tempo. Sua mãe seguiu observando-a
com expressão severa. Não tinha bom aspecto. Tinha umas pronunciadas olheiras e estava muito
pálida. «Pobre mamãe!», pensou.
—Tem razão, mamãe — admitiu para apaziguá-la—. Todo mundo sabe que os aristocratas nunca
pagam a ninguém por seus serviços. Deveria ter compreendido que fariam o mesmo com os
professores.
—Não refro a isso — corrigiu sua mãe—. Já é bastante velha para se dar conta de qual é nossa
situação. Sabe que para a alta sociedade somos umas marginais e umas leprosas.
—Pois lorde Rathbourne não parecia estar enojado enquanto falava contigo — assinalou. Tinha-a
olhado como seu pai estava acostumado a olhá-la. E sua mãe se ruborizou!
—Estava atuando! — exclamou sua mãe—. É um cavalheiro dos pés à cabeça e um cavalheiro
sempre se comporta com educação. Mas não consentirá que dê aulas de desenho a seu sobrinho do
mesmo modo que não consentiria que seu amigo o prestamista lhe desse aula de matemática.
Pequena decepção.
Entretanto, precisaria mais de um reverso para desalentar Olivia.
Já tinha outra Idéia.

A carta chegou na quinta-feira e de forma premeditadamente oculta a fm de despertar a


curiosidade de Peregrine. O jovem criado que a passou às escondidas lhe assegurou em um sussurro
que Sua Excelência pediria sua cabeça se chegasse a inteirar-se, mas que tinha sido incapaz de dizer
não à senhorita.
Posto que fosse mais inteligente que a média, Peregrine teve pouca difculdade para deduzir a
identidade da dita senhorita depois de escutar a descrição do criado. A chegada clandestina da carta
despertou nele uma irrefreável curiosidade. Entretanto, sabia muito bem que não devia abri-la quando
houvesse alguém perto. Algum criado o veria. Quantos mais soubessem mais possibilidades tinha que
o mordomo se inteirasse. E este diria a lorde Rathbourne.
Guardou a carta no bolso interior do casaco e suportou várias horas de silenciosa tortura até que
fcou a sós em seu quarto para abri-la sem que ninguém o visse.
Estava escrita com uma letra grande, retumbante e bastante regular que ocupava grande parte do
papel.

Milorde:
É tremendamente indevida (além de descarado, acredito) que uma Senhorita lhe escreva de
forma privada a um jovem cavalheiro. Entretanto, devo fazê-lo movida por uma enorme necessidade:
confessar a verdade. Sei que me arrisco a que a opinião que tem de mim piore. Embora não me cabe na
cabeça que sua opinião pudesse piorar ainda mais, porque a esta altura você deve estar a par das
trágicas circunstâncias que me converteram em uma marginal e uma leprosa para a alta sociedade a
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Perfeito
que você pertence. Até que a maldição familiar não desapareça. Minha querida mãe me falou sobre o
encontro com você e com Sua Excelência, seu estimado tio, que teve lugar ontem na loja de quadros do
Popham. Repreendeu-me por minha audácia e me explicou que não deveria havê-lo incluído na lista
de estudantes de desenho. Além disso, me disse que jamais devo vê-lo de novo. Sei que não sou
importante para você absolutamente, já que só sou uma menina insignifcante que mal conhece nem
quererá conhecer. Entretanto, nosso encontro me deixou profundamente impressionada. Posto que
nossos progenitores decretaram que JAMAIS VOLTEMOS A nos ver, tomo a liberdade de recorrer a
esta tática furtiva para lhe dizer o muitíssimo que admiro sua honorável e valorosa ambição de
converter-se em um GRANDE EXPLORADOR em lugar de ser outro ocioso aristocrata. Desejo-lhe de
todo coração que vá bem em seu propósito de aprender a desenhar.

Atentamente,
OLIVIA WINGATE

P. D.: Por favor, não tente entrar em contato comigo. A maldição familiar acabará algum dia, e
então. Na Índia existe uma casta de pessoas conhecida como «os Intocáveis». De agora em diante deve
me considerar uma deles.

A carta era espantosa, inclusive para ser de uma menina. Tinha emperiquitado a letra com curvas
e adornos em forma de saca-rolhas. O exagerado uso das maiúsculas e os grossos sublinhados
indicavam uma propensão ao sentimentalismo, um aspecto muito romântico e um temperamento
emocional.
Os pais de Peregrine eram todas essas coisas. E seus avós paternos eram isso e muito mais. Os
Dalmay estavam acostumados a sofrer repentinos arranques melodramáticos que sempre o faziam
sentir-se culpado, embora nunca tivesse a menor idéia do por que. Claro que a lógica não parecia
formar parte do pensamento de seus parentes... Se acaso pensavam, coisa que Peregrine duvidava em
algumas ocasiões.
Essa era uma das muitas razões pelas que preferia a casa de seu tio e sua companhia. Lorde
Rathbourne era tranqüilo. Sua casa era tranqüila. Quando estava contrariado, não lhe davam ataques
passionais. Não saía como um tornado nem prorrompia em acalorados e longos discursos sem sentido.
Jamais perdia as estribeiras, embora de vez em quando sim se zangasse. Em ditas ocasiões sua
pronúncia se tornava excelente e em seu rosto aparecia tal serenidade que bem poderia pensar-se que
estava esculpido em mármore. Mas jamais montava um número. Nunca. Por nada.
Com seu tio não se passava todo o tempo em tensão, à espera do seguinte estalo. Com seu tio
sempre sabia onde estava e o que se esperava exatamente dele.
Até na quarta-feira à noite, claro.
Antes de subir a seus aposentos e arrumar-se para sair, lorde Rathbourne passou pelo estúdio
onde Peregrine estava fazendo exercícios de grego. Depois de duas correções, Sua Excelência lhe disse
que a senhora Wingate não seria «apropriada» como professora de desenho.
Surpreso e estranhando, Peregrine não pôde conter o impulso de certifcar-se da lógica de dita
decisão.
—Não o entendo senhor — replicou—. O que tem de inapropriado? Não disse que sua aquarela
era brilhante? Pareceu admirá-la muito. Pareceu achar à senhora Wingate muito agradável. Claro que é
difícil saber com segurança quando se comporta com educação porque quer comportar-se e quando o
faz porque é a obrigação de um cavalheiro. Em meu caso, a diferença é óbvia. Mas a dama não me
resultou aborrecida nem tola. Mas justamente o contrário. Não lhe pareceu que era
extraordinariamente inteligente para ser uma mulher?
Lorde Rathbourne não respondeu nenhuma de suas perguntas. Em troca, seu rosto adquiriu uma
tranqüilidade marmórea. Quando falou o fez com pronunciada meticulosidade.
—Eu disse que não é apropriada, Lisle. Não há nada mais que falar.
—Mas, senhor...
—Não me ocorre nada mais tedioso que me ver interrogado por um jovem de treze anos —
interrompeu seu tio.
Peregrine reconheceu a exagerada indiferença de sua voz. Signifcava que o tema estava
resolvido.
Isso o deixou pasmo. Por regra geral, Sua Excelência era o adulto mais lógico e razoável que
conhecia.
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Perfeito
Se não tivesse estado tão confundido, não o teria olhado tão fxamente. E nesse caso não teria
visto. Mas olhou lorde Rathbourne fxamente e viu: tinha um tic nervoso. Foi um espasmo quase
imperceptível e muito rápido que se produziu na extremidade do olho direito de seu tio.
Foi nesse momento, Peregrine compreendeu que havia um Grave Problema (tal como Olivia teria
escrito) com respeito à senhora Wingate.
Se lorde Rathbourne não estava disposto a lhe dizer do que se tratava, devia ser muito grave.
Se não estava disposto a falar com ele do assunto, nenhum outro adulto o faria. Se fosse tão tolo
para perguntar a qualquer outra pessoa, só escutaria: «Se fosse apropriado que você soubesse lorde
Rathbourne o haveria dito».
Peregrine passou na sexta-feira e no sábado tentando tirar a carta da cabeça. A moça era idiota
(«valha-me Deus, mas se quer ser um cavalheiro! », pensou) e, posto que nunca voltasse a vê-la, seus
segredos familiares não eram de sua incumbência.
O problema era que descobrir segredos se converteu em sua vocação. Tinha retomado seus
estudos de latim e grego com um entusiasmo que até então tinha sido incapaz de recavar. E tudo
porque tinha descoberto que ambas as línguas eram cruciais para desentranhar os segredos dos antigos
egípcios. A tia Dafne (não era realmente sua tia, mas a família de lorde Rathbourne completa a tinha
adotado) tinha-lhe prometido lhe ensinar copto, uma das chaves para decifrar os hieróglifos, se fosse
capaz de superar Homero com nota.
De modo que no domingo chegou à conclusão de que fcaria louco se não descobrisse por que
Olivia Wingate era uma Marginal e uma Leprosa e qual era a Maldição Familiar.
Assim no domingo à noite, muito depois que seu tio desejasse boa noite e saísse de casa, muito
depois que a maioria dos criados se deitasse, começou sua primeira carta a Olivia Wingate.

A carta de lorde Rathbourne chegou de mãos do senhor Popham, o vendedor de quadros, a


última hora da sexta-feira. Betsabé esperou até chegar a casa para lê-la. Abriu-a com mãos tremulas.
Tinha-a escrito o secretário de Sua Excelência. A mensagem que declinava seus serviços era direta
e escrupulosamente educada.
Passou um bom momento com os olhos cravados no papel antes de compreender o signifcado.
Uma gélida sensação que conhecia muito bem lhe percorreu as veias. Depois chegou o calor e, com ele,
o abrasador rubor no rosto.
Disse-se que não era o mesmo, mas a lembrança estava gravada a fogo em sua mente como se
acabasse de passar nesse instante apesar dos três anos transcorridos.
Tudo aconteceu uns meses depois de ter enterrado Jack.
Chegou uma nota de seu sogro, de punho e letra de seu secretário, acompanhada de uma
longuíssima carta que o homem tinha acreditado dela. Dita carta, que Betsabé jamais tinha escrito,
divagava sem tom nem som sobre a morte de Jack e sobre sua «amada flha Olivia». A autora da carta
procurava o perdão. E dinheiro, é claro. Era horrível. «nos reconciliemos em nome do Jack e pelo bem
de sua flha... », e muitas outras pérolas do estilo. Porque havia páginas e páginas de adulações e rogos.
Era um vergonhoso intento de aproveitar-se da morte de Jack e do sofrimento de seu pai.
E estava escrita de punho e letra da mãe de Betsabé.
Sua mãe não tinha tido a decência de tentar aproveitar-se da situação utilizando seu próprio
nome. De havê-lo feito, Betsabé jamais se teria informado, jamais lhe teria provocado a menor angustia.
Mas não, sua mãe teve que suplantá-la.
E por isso foi ela que recebeu a cortante resposta de lorde Fosbury. Por isso foi ela quem se sentiu
humilhada.
E quando escreveu a sua mãe, obteve a resposta que cabia esperar: «Fiz por ti, carinho, porque
você é muito orgulhosa e tem muitos escrúpulos».
Essa tinha sido a última carta que tinha recebido de sua mãe. Seus pais se mudaram a São
Petersburgo, onde seu pai morreu de uma doença hepática. Sua mãe voltou a se casar pouco tempo
depois e partiu sem dizer uma só palavra a ninguém, nem sequer a sua flha. Betsabé desejava poder
sentir saudades, mas não era assim. Sua infância tinha estado infestada de incidentes similares ao da
carta de lorde Fosbury. Não era de estranhar que tivesse estado disposta a suportar qualquer coisa com
tanto que tivesse uma vida diferente com Jack.
—O que aconteceu, mamãe? —perguntou Olivia.
Betsabé elevou o olhar. Não a tinha escutado entrar.
—Nada — respondeu. Fez pedaços a carta do secretário de lorde Rathbourne e a jogou no fogo.
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Perfeito
—esteve chorando — disse sua flha.
Apressou-se a enxugar as lágrimas.
—deve ter entrado cinza no olho — mentiu.
«Não passa nada», disse-se. A resposta não a tinha surpreendido. Só tinha perdido um aluno em
potencial. Encontraria outros. Isso não era nada comparado com a humilhação que lhe supôs a carta de
lorde Fosbury. Era ridículo zangar-se... E sentir-se decepcionada... Ou ferida.
A visita ao Salão Egípcio tinha sido sua primeira incursão em uma área de Londres freqüentada
pela alta sociedade. Sua conversa com lorde Rathbourne tinha sido a primeira que tinha mantido com
um cavalheiro desde o enterro do Jack. A inovadora experiência a tinha alterado um pouco, nada mais.
A explicação não era muito convincente, mas a ajudou a agüentar o que restava da sexta-feira,
além do sábado e do domingo.
Na segunda-feira deu sua aula como era habitual, na sala que tinha dois pisos alugada acima da
loja de quadros. Assim que acabou, desceu à loja como costumava fazer, para ver se alguém mais
estava interessado em somar-se às aulas de desenho.
No balcão havia uma fgura muito alta e conhecida.
Ficou plantada e boquiaberta como uma panaca a qual nunca tivessem ensinado boas maneiras.
Seu olhar passeou por esses largos ombros, desceu por essas costas tão direitas e seguiu baixando e
baixando durante o que lhe pareceram quilômetros de musculosas pernas, antes de voltar a subir por
essa fgura masculina elegantemente vestida. Seus olhos se cravaram um instante na gravata branca
que sobressaía por cima da gola do casaco, nas espessas mechas negras que se frisavam sobre a borda e
na pequena sombra que a aba do chapéu criava sobre uma orelha.
—Ah, aqui está! —exclamou o senhor Popham.
Betsabé piscou enquanto a cabeça do vendedor aparecia por um lado. A alta e aristocrática fgura
tinha oculto por completo o vendedor de quadros, muito menor.
O cavalheiro se virou. Lorde Rathbourne. Sim, é claro. Quem poderia ser tão... Perfeito inclusive
de costas? Quem ia olhá-la com semelhante compostura sem delatar nenhuma pingo de surpresa...
Nem um indício de indecoroso interesse?
E sem olhá-la boquiaberto como se fosse um imbecil.
—Senhora Wingate — saudou—, chegou bem a tempo. O senhor Popham e eu estávamos a ponto
de chegar aos punhos.
—Deus, nem pensar, milorde, asseguro! —exclamou o vendedor, muito sobressaltado—. Só era
uma mera hesitação por minha parte, porque não estava seguro... —deixou a frase no ar, como se não
soubesse o que dizer.
—Expressei ao senhor Popham meu desejo de assistir como espectador a uma de suas aulas de
desenho —disse Sua Excelência —. Ele me informou que você as dá no piso de cima.
—A aula terminou — informou ela—. Igualmente o seu interesse nela ou assim acreditei
entender. Recebi uma nota a respeito. Ou acaso sonhei?
—Está incomodada comigo — replicou lorde Rathbourne—. Está pensando que quando um
homem toma uma decisão, esta deve ser frme.
O que estava pensando era que acreditava vislumbrar o irritante indício de um sorriso na
comissura direita de seus lábios.
—O que precisa para ajudá-lo a tomar uma decisão frme de uma vez por todas? —perguntou-lhe
—. A aula terminou. A seguinte é na quarta-feira. Desejaria fazer outra incomoda viagem à face oculta
da Lua para assistir como espectador?
—Holborn não está na face oculta da Lua — disse ele.
—Não forma parte dos círculos que você freqüenta — replicou ela.
—Gostaria que embrulhasse o quadro enquanto você conversa com a senhora Wingate, milorde?
—Interrompeu-os o senhor Popham—. Assim estará preparado para quando desejar partir. Ou prefere
que o envie a casa?
—Não, eu levarei — respondeu lorde Rathbourne sem que seu escuro olhar se separasse dela em
nenhum momento.
O senhor Popham desapareceu na parte de trás da loja.
—Sua aquarela de Hampstead Heath —assinalou Sua Excelência —. Esse é o problema, confesso-
o. Isso é o que me trouxe para Holborn. Isso é o que me deixa indeciso. Não posso tirá-la da cabeça
desde quarta-feira. Duvido muito que me resulte fácil encontrar outro professor de desenho mais
capacitado que você. Os pintores com verdadeiro talento consagram seu tempo a pintar e a expor seu
trabalho. Os que carecem de dito talento ganham a vida dando aulas. Por isso me pergunto se deveria
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Perfeito
me aproveitar das circunstâncias antes que você recupere o bom senso e deixe de esbanjar seu tempo e
seu talento dando aulas a pirralhos como meu sobrinho.
Se tivesse gabado sua beleza, Betsabé o teria escutado sem sequer pestanejar. Embora saiba muito
bem que tinha deixado atrás a for da juventude, estava acostumada a receber cumprimentos dessa
natureza e não a afetava o mínimo. Ser bonita não tinha mérito algum.
Mas seu trabalho artístico sim, e tinha trabalhado muito para obtê-lo. Estava especialmente
orgulhosa da aquarela de Hampstead Heath. Lorde Rathbourne não poderia ter escolhido uma
adulação melhor.
Estava acalorada e ruborizada como uma colegial.
—Meus alunos habituais não se parecem em nada a seu sobrinho — esclareceu—. E o lugar onde
dou as aulas tampouco se parece com a sala de aula a qual ele deve estar acostumado. Além disso, com
ou sem talento, ambos sabemos que sou da mais inapropriada. Talvez você esteja disposto a fazer vista
grossa de minhas origens, mas os pais de lorde Lisle terão um desmaio.
—Os desmaios são o pão de cada dia nessa família — replicou lorde Rathbourne—. Por isso não
lhes faço o menor caso. Seria você tão amável de me mostrar a sala de aula para fazer uma idéia
aproximada de seu aspecto quando estiverem seus alunos, por favor? Não sou artista e tenho uma
imaginação bastante limitada. Espero que não tenha um número de alunos excessivo.
—As segundas-feiras tenho oito alunos — informou ela—. Se me acompanhar... —Precedeu-o
para a estreita escada e começou a subir.
—Oito alunos entram em minha capacidade imaginativa — comentou com uma voz que parecia
muito mais grave no reduzido e escuro marco da escada—. Garotas? Meninos? Ambos?
—Garotas. —Tinham que subir dois pisos e estava acostumada a fazê-lo, por isso não deveria
estar respirando com difculdade. Entretanto, agradeceu para seus botões que lorde Rathbourne não
lhe fzesse mais pergunta até que abriu por fm a porta da sala-de-aula.
A estadia, escassamente mobiliada, era espaçosa e contava com um número de janelas
adequadas.
—Como vê, a luz é boa — indicou—, sobre tudo a primeira hora da tarde. Sempre está limpa.
Várias pessoas, todas mulheres, compartilhamos o aluguel e vamos alternando o uso da sala de aula.
Temos uma mulher para limpeza muito conscienciosa. —Assinalou os cavaletes, primorosamente
empilhados em um canto da sala de aula—. Minhas alunas são flhas de comerciantes enriquecidos.
Algumas são um pouco mimadas, mas consegui lhes inculcar a importância da ordem no lugar de
trabalho.
Lorde Rathbourne se aproximou de uma das janelas, entrelaçou as mãos nas costas e deu uma
olhada ao exterior. Betsabé percebeu de que não usava chapéu. Deu uma olhada a seu redor e viu que o
tinha deixado sobre uma cadeira. Devia tê-lo tirado ao entrar na classe. Não sabia muito bem por que
isso a pegava de surpresa, nem se o que sentia podia pontuar-se de surpresa. A luz da tarde se refetia
em seu cabelo escuro, que usava limpo e sem fxador. Tinha tendência a ondular-se, característica que
resultaria mais evidente quando estivesse úmido.
«Não o imagine recém saído do banho», ordenou a si mesma.
Sua voz grave conseguiu tirá-la dos perigosos roteiros que tinha tomado sua imaginação.
—Que mais os ensina? —perguntou-lhe—. Que método utiliza?
Explicou-lhe que começava com simples naturezas mortas e que permitia que suas alunas
levassem alguns objetos de casa para dispô-los a seu desejo.
—Alguma fruta ou uma xícara com pires a princípio — seguiu—. Mais adiante, estou
acostumada a pintar uma composição com um chapéu, umas luvas e um livro. Também preparo
exercícios ao ar livre quando o tempo permite. Árvores, alpendres, fachadas de lojas...
—Não as leva a Royal Academy para que copiem os trabalhos de outros artistas? —perguntou-
lhe sem deixar de olhar pela janela.
—Esse não é o método mais efetivo para minhas alunas — respondeu—. Seu objetivo não é
converter-se em artistas. Seu desejo é o de adquirir prática e aprender as habilidades que exigem a uma
dama. Seus pais querem que subam na escala social. Eu lhes ensino a observar. Ensino-lhes a mecânica
e a técnica. Se as conseguem dominar, adquirirão a capacidade para apreciar a qualidade. O que
aprendam de mim poderão aplicar depois em outros âmbitos ou outros passatempos. —Tentou
imaginar o que poderia obter um aristocrata adolescente de semelhante instrução.
—Em outras palavras, você ensina os princípios básicos — concluiu lorde Rathbourne.
—Sim.
—Isso é o que falta a Peregrine — admitiu enquanto dava meia volta e afastava o olhar da janela.
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Perfeito
A luz do sol delineou as ondas de seu cabelo e banhou suas marcadas feições—. Carece dos princípios
básicos. Teve professores de desenho, mas parece que seus métodos não eram os adequados para ele.
Talvez o seu seja.
—Necessitará aulas particulares — advertiu ela, esmagando sem piedade o raio de esperança que
tentava abrir caminho em seu interior. Só havia dito «talvez». Uma resposta diplomática. A sala de aula
devia lhe parecer desmantelada; seus métodos, de principiante; suas alunas, insignifcantes—. Não
posso lhe dar aulas com as garotas. Sua presença causaria uma grande comoção. Faria que algumas se
mostrassem tímidas; outras, descaradas; e, em geral, nenhuma faria nada direito.
—Peregrine sempre causa uma grande comoção — particularizou lorde Rathbourne—. Não
importa com quem compartilhe seu tempo. Jovenzinhas, jovens ou adultos. Professores, familiares,
clérigos, marinheiros, soldados, deputados... Meu sobrinho é como o apóstolo Tomé. Exige que tudo
lhe seja demonstrado. É inquisitivo, argumentativo e obstinado. Perguntar-lhe-á cem vezes o porquê de
algo em uma hora. Se não triplicar, e isso no mínimo, seus honorários habituais, cometerá uma
soberana estupidez.
Não podia estar falando a sério. Triplicar seus honorários com um só aluno? Lorde Lisle não
podia ser mais difícil de controlar que Olivia por muito que o tentasse, por muito que seus pais o
tivessem mimado. Olivia tinha herdado muitas coisas do caráter dos atrozes DeLucey.
—Nesse caso, quadruplicá-lo-ei — disse.
—Conforme me hão dito, é você uma mulher sensata — replicou ele, afastando-se da janela—.
Então, estaria disposta a aceitá-lo como aluno apesar de minhas advertências?
Betsabé nem sequer piscou. Seu pai lhe tinha ensinado a jogar às cartas.
—Então, você tomou uma decisão? —perguntou-lhe.
Lorde Rathbourne deu uma olhada pela sala.
—À alta sociedade não gostará — respondeu—. Suas simpatias se inclinam para a família de seu
falecido marido.
—Deus! —exclamou ela. De repente se sentia muito cansada. Como Sísifo 2, que não deixava de
empurrar a rocha montanha acima só para que voltasse a rodar ao chegar à cúpula. A rocha era seu
passado, um passado que acabava de esmagar o raio de esperança ao lhe passar por cima. Havia se
sentido igual o outro dia, frente à loja, quando compreendeu que seu nome voltava a lhe fechar outra
porta.
—As antigas rixas e os prejuízos são tão tediosos... —acrescentou ele—. Os pais de Peregrine
terão um ataque se descobrirem que você está lhe dando aulas. Têm um temperamento excessivamente
emocional, sabe? Não podem evitá-lo. Talvez por isso não saibam o que fazer com seu flho. Sua
solução é deixá-lo a meu cargo enquanto eles descansam em seu refúgio escocês. Claro que se minha
família política o deixar a meu cargo, devem respeitar minhas decisões. —Seu olhar se cravou nela
nesse momento e o viu esboçar um sorriso—. Quão único preciso é tomar uma decisão a respeito. Sabe
que neste preciso momento tem você a mesma expressão que tinha sua flha quando se zangou com
Peregrine? Sente desejos de me golpear com um caderno de desenho, talvez?
— Isso o ajudaria tomar uma decisão? —replicou.
O sorriso de lorde Rathbourne se fez mais pronunciado e Betsabé desejou que o tivesse mantido
escondido, porque vê-lo em todo seu esplendor lhe acelerou o coração e paralisou o cérebro.
—Decidi que o moço precisa de suas aulas — respondeu—. Decidi que ele é mais importante que
as velhas rixas e os escândalos.

Benedict acreditava ter recuperado o bom senso.


Tinha sido muito consciente do momento em que ela entrou na loja, embora não deu amostras de
havê-lo feito. Tinha escutado seus passos leves, havia sentido sua presença. Tinha tomado tempo para
dar a volta porque precisava primeiro armar-se de coragem.
E depois, quando olhou, acreditou que por fm se livrou do feitiço.
Betsabé Wingate não era a criatura mais linda do mundo, tal como tinha imaginado. Aparentava
a idade adequada para ter uma flha da idade de Peregrine. O rosto que tinha tachado de inesquecível
se via fatigado e seus olhos não pareciam tão brilhantes como os recordava.
De modo que podia estar tranqüilo, porque sua escolha estaria apoiada nos ditados de sua
consciência e não se veria afetada nem pela opinião da alta sociedade nem pelas cenas que teria que
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Fundador e rei da cidade de Ephyra que depois passou a se chamar Corinto (mitologia grega)
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Perfeito
suportar se Atherton chegasse a inteirar-se. Devia escolher o melhor para Peregrine.
Assim que pronunciou as palavras, soube que tinha tomado a decisão correta.
O que não esperava era ver essa mesma conclusão refetida no semblante do Betsabé Wingate.
Primeiro lhe iluminaram os olhos, depois se suavizou sua expressão e por último desapareceu o ricto
tenso de seus lábios, deixando atrás de si o sensual indício de um sorriso. A expressão fatigada se
desvaneceu e levou consigo os sinais da idade. Esses olhos azuis adquiriram um brilho intenso e teve a
impressão de que todo seu ser resplandecia.
Se fosse um homem fantasioso, teria pensado que acabava de pronunciar um encantamento que
tinha ocasionado a surpreendente transformação.
Mas jamais se permitiu ser fantasioso.
—Pois sim que você é perfeito — confessou ela, surpreendendo-o.
Perfeito. Todos pensavam o mesmo dele. Que baixo tinham o nível da perfeição!
—Sim, é bastante aborrecido — replicou—. Deveria dizer: «Ninguém é perfeito», mas isso é ainda
mais aborrecido. Meu consolo é que se chegar a descobrir isto, as pessoas deixarão de dizer que sou
perfeito. Que emocionante! Por fm terei um defeito...
—Não sabia que fosse tão difícil adquirir um — disse a senhora Wingate—. Por sorte, veio você
ao lugar adequado. Tal como já sabe, os defeitos abundam em meu ramo dos DeLucey.
—Se necessitar outro, já sei onde acudir — assegurou.
—Recomendo-lhe que se acostume antes ao primeiro — aconselhou ela—. De momento é um
defeito secreto. Certas pessoas diriam que esses são os melhores.
—Um defeito, um segredo... —disse Benedict—. Sinto-me mais dissoluto.
—É uma honra lhe servir de ajuda — declarou ela—. Mas, voltando para os negócios, poderia
lorde Lisle vir aqui para as aulas? Sei que está muito afastado, mas talvez isso seja uma vantagem. É
bastante improvável que cruze com algum conhecido.
—Já tinha me ocorrido — assegurou—. Será fácil fazer os acertos para que venha acompanhado
de um criado. —Um discreto—. A pé, acredito.
—Mas há mais de três quilômetros até Cavendish Square! —exclamou a senhora Wingate.
—Vejo que sabe onde vivo...
—Quem não sabe? —replicou ela.
«Certo quem não sabe?», perguntou-se Benedict. A intimidade era um luxo fora de seu alcance.
—Três quilômetros não são nada — disse—. Peregrine necessita de exercício, sobre tudo agora.
Acaba de compreender que para ser um estudioso das antiguidades se requer um grande domínio do
latim e do grego. De modo que está obcecado com os autores clássicos. Se de verdade tiver intenção de
ir ao Egito, necessitará a preparação física na mesma medida que a acadêmica. E também terá que
acostumar-se a relacionar-se com outras pessoas que não se movem... Nos mesmos círculos que ele.
Permitiu-se acompanhar a frase com um sorriso. Betsabé Wingate não sabia tudo sobre sua
pessoa, nem tampouco muito sobre Londres, acreditava que Holborn lhe fosse desconhecido. Ato
seguido afastou o olhar desse admirável rosto para cravá-lo na janela e no edifício que se erguia em
frente. Estava-o fazendo por Peregrine. Não podia esquecer-se de Peregrine.
Ela não parecia ter difculdades para seguir concentrada nos negócios. Assinalou-lhe o dia e o
horário no qual a sala de aula estava disponível para as aulas particulares, anotou os utensílios que
Peregrine necessitava o nome e o endereço de seu administrador em Londres, a quem enviaria a fatura
com seus honorários.
Assim que tudo fcou claro, fcou sem desculpas para continuar ali. Dez minutos depois, tinha
recolhido a aquarela da loja do senhor Popham e se dirigia a um estabelecimento muito mais exclusivo
situado a oeste do Holborn, onde se encarregariam de emoldurá-la.
Pendurá-la-ia em seu quarto, decidiu.

Capítulo 4

Passaram dez dias, e quatro aulas. Benedict não se dignou aparecer pela porta do senhor Popham
nenhuma só vez.
A escolha mais lógica para acompanhar a Peregrine às aulas de desenho era o lacaio Thomas, a
quem tinha mandado chamar em Derbyshire. Era o único criado no qual podia confar para levar o
assunto com cautela.
Vestido com discretas roupas normal em lugar da libré, Thomas esperava em uma cafeteria
próxima enquanto Peregrine assistia a sua aula. Ao fnal do tempo estabelecido, recolhia o estudante
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Perfeito
em questão na porta da loja de quadros.
Uma tarefa simples para as habilidades de Thomas, porque Benedict tinha imposto uma só
condição a seu sobrinho:
—Irá às aulas de desenho e voltará para casa sem formar nenhum escândalo. Se ocorrer algum
incidente, seja antes, durante ou depois das mesmas, não haverá nenhuma mais. Não aceitarei
nenhuma desculpa. Expliquei-me com claridade?
—Sim, senhor — respondeu Peregrine.
Benedict o deixou partir, com a certeza de que essa regra era sufciente. Algo considerada crucial
para sua vocação, como o latim ou o grego, conseguia captar a atenção incondicional de Peregrine. A
senhora Wingate não necessitava de sua presença para conter seu sobrinho.
Era o próprio Benedict quem necessitava contenção.

O décimo primeiro dia do início das aulas, uma sexta-feira para mais informações, descobriu que
se encontrava perigosamente aborrecido e inquieto.
E tinha um sem-fm de coisas a fazer. Estava seguindo um acidentado julgamento no tribunal da
penitenciária, o Old Bailey. Tinha que preparar um discurso a favor da criação de um corpo de polícia
metropolitana. Embora a essa altura grande parte da alta sociedade tinha abandonado Londres, a
cidade não estava muito menos deserta. Tinha multidão de convites para jantares, bailes, conferências,
concertos, peças de teatro, óperas, balés e exposições.
Entretanto, estada aborrecido como uma ostra.
Tão aborrecido que essa mesma tarde se descobriu em duas ocasiões passeando de um lado para
outro, uma prática que só considerava adequada para mulheres histéricas e outras pessoas de emoções
voláteis.
Regra: Os animais enjaulados passeiam de um lado para outro. Os meninos gesticulam. Os
cavalheiros permanecem de pé ou se sentam tranqüilamente.
Benedict estava sentado muito tranqüilo em seu escritório, na poltrona localizada atrás da mesa.
Seu secretário, Gregson, fazia frente a ele. Estavam revisando a correspondência. Até esse momento
tinha estado muito aborrecido para ocupar-se desse assunto. Para falar a verdade, tampouco gostava
de fazê-lo. Não obstante, se continuasse abandonando a questão, o montinho de cartas e cartões se
converteria em uma montanha de proporções épicas. Esse era o tipo de coisas que os irresponsáveis
como seus irmãos Rupert e Darius permitiam que acontecessem.
Regra: Os cavalheiros responsáveis levam em dia seus assuntos.
—Esta carta é de lorde Atherton, senhor — disse Gregson, levantando um sobre bastante
volumoso—. Talvez prefra abri-la.
—Asseguro que não — replicou Benedict—. Porque nesse caso teria que ver o conteúdo e já sabe
que o marquês utiliza o triplo de palavras necessárias seja o assunto que for, além de um sem-fm de
exclamações e parêntese. Por favor, tenha a bondade de resumi-la ao essencial.
—É claro, senhor. —Gregson olhou a longa missiva—. «tive um encontro do mais perturbador»
— leu.
—Nada de encontros perturbadores — disse Benedict.
Gregson retornou à carta.
—«Indignou-me muitíssimo que... »
—Nada de indignações — o interrompeu.
—«A mãe de Priscilla... »
—Nada relacionado com a mãe de lady Atherton, rogo-lhe isso, Gregson. Talvez seja melhor que
resuma o conteúdo. Gregson leu com presteza as seguintes páginas.
—encontrou um lugar para lorde Lisle.
Benedict endireitou as costas.
—Que lugar?
Gregson leu essa parte:
—«Estou convencido de que o aliviará tanto como a nós saber que por fm encontrei uma solução
para meu problemático flho. “A Heriot’s School de Edimburgo o aceitou».
—A Heriot's School — repetiu Benedict—. Em Edimburgo.
—Sua Excelência enviará vários criados dentro de duas semanas para recolher lorde Lisle e levá-
lo a seu novo colégio — disse Gregson.
Benedict se levantou da poltrona e se aproximou da janela, onde se deteve. Foi capaz de manter a
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compostura porque se obrigou a contemplar o jardim e cravou o olhar nos crisântemos que se
balançavam sob a suave brisa outonal. Seu semblante não refetiu nem um indício da tormenta que
desatou em seu interior.
Certamente não expressou seus pensamentos em voz alta. Raras vezes o fazia. Apesar de contar
com anos de disciplina, seus pensamentos a respeito de seus semelhantes e suas ações estavam
acostumados ser muito pouco caridosas. De fato, em seu foro interno se comportava às vezes como
Atherton em um de seus arrebatamentos.
Entretanto, a diferença de seu cunhado, Benedict se obrigada a vociferar para seus botões.
Limitava-se a expressar sua fúria com comentários cínicos ou sarcásticos e uma sobrancelha arqueada.
Regra: A vida não é uma opereta. As cenas são para os cenários.
Benedict não passeou feito uma fúria pelo escritório enquanto amaldiçoava a cabeça oca de seu
cunhado. Limitou-se a dizer:
— Envie uma nota à lorde Atherton, Gregson. Diga-lhe que pode evitar a viagem de seus criados,
porque eu mesmo levarei o moço à Escócia dentro de duas semanas.
Meia hora mais tarde, lorde Rathbourne ia a caminho de Holborn.

Devido ao enorme engarrafamento, Benedict não chegou à loja de quadros até bem passada a
hora de saída de Peregrine, quando o menino já ia de volta a casa. A senhora Wingate também havia
partido, informou-lhe o senhor Popham.
Benedict tentou convencer-se de que o melhor era entrar em contato com ela através de uma
nota. Desprezou a idéia... Tal qual tinha feito algumas vezes a caminho dali.
Uma nota não serviria. A última que recebeu em que declinava seus serviços tinha-a ofendido.
Benedict recordou o desdém com o que se referiu a ela, o altivo gesto do queixo, o desprezo de
seus olhos azuis. Tinha sentido desejos de tornar a rir. Havia sentido o desejo de aproximar a cara desse
precioso e furioso rosto e...
E fazer algo que não deveria.
—Tenho que falar com ela — disse a Popham—. É urgente. Com relação a um de seus alunos.
Seria tão amável de me dar seu endereço?
O senhor Popham se ruborizou.
—Peço-lhe que me desculpe milorde, mas não estou autorizado p-para dar o endereço da dama.
—Não está autorizado — repetiu Benedict com voz monótona.
—N-não, Sua Ex-Excelência. Peço-lhe per-perdão, Sua Ex-Excelência. Confo em que o entenda.
Os... Isto... Problemas. De uma viúva, quero dizer, sobre tudo de uma viúva jovem que vive sozinha. Os
homens po-podem ser muito pesados. Não refro a você, Sua Excelência, é claro, isso sobra... Mas,
bom... O problema é que prometi solenemente à dama que não faria exceções... Milorde.
Benedict ardia em desejos de estender os braços, agarrar o homenzinho no cangote e estampar-
lhe a cabeça contra o balcão até que se mostrasse mais cooperativo.
O que disse em troca foi:
—Seu sentido da honra é elogiável, senhor. Entendo-o perfeitamente. Se for tão amável de enviar
uma nota à senhora Wingate lhe pedindo permissão para lhe fazer uma visita, esperarei aqui.
Dito o qual, acomodou-se em uma cadeira que havia juntado a uma mesinha e começou a olhar
uma pasta com litografas.
—Eu-eu isto-estaría encantado, Sua Excelência — gaguejou Popham—, mas há... Isto... Há um
problema. Meu ajudante está fazendo uma entrega e não posso deixar a loja sozinha.
—Pois mande um mensageiro — replicou Benedict sem levantar a vista das gravuras.
—Sim, Sua Excelência. —Popham saiu da loja. Olhou rua acima. Olhou rua abaixo. Não viu
nenhum mensageiro. Retornou à loja. Cada certo tempo voltava a sair para olhar a um e outro lado da
rua.
Era uma loja pequena. Embora Benedict não fosse um homem pequeno, tampouco ocupava tanto
espaço. Entretanto, por ser um aristocrata (uma raça praticamente desconhecida nessa parte de
Holborn), parecia ocupar muitíssimo mais espaço que as pessoas normais e comuns.
Não só dava a impressão de ocupar até o último canto da loja, mas, além disso, os clientes o
olhavam boquiabertos e se esqueciam do que tinham ido procurar. Alguns se foram com as mãos
vazias, muito assombrados e intimidados para comprar algo. Embora isso não fosse o pior.
Tinha utilizado uma carruagem de aluguel em lugar de uma das suas a fm de fazer o trajeto sem
chamar a atenção. Entretanto, tinha pago ao chofer para que o esperasse, de modo que o veículo estava
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Perfeito
parado diante da loja, o que entorpecia o tráfco. Aqueles que não tinham nada melhor que fazer se
reuniram em torno da carruagem para conversar com o chofer e também entre eles. Os choferes que
passavam expressavam sua ira aos gritos e seus impropérios se escutavam na loja. O rubor de Popham
se intensifcou ao mesmo tempo em que seu nervosismo.
Ao fnal e depois de meia hora de espera sem que o ajudante retornasse, deu o endereço a lorde
Rathbourne.

De Holborn, o chofer virou à esquerda à altura de Hatton Garden e depois à direita para entrar
em Charles Street. Uma vez ali, diante de uma hospedaria chamada O Coração Partido e que recebia
seu nome do bairro no qual se encontrava, Benedict apeou. Pediu ao chofer que esperasse rua abaixo,
onde não entorpeceria tanto o tráfco.
Cruzou a rua e se deteve na estreita entrada que conduzia ao pátio.
A vizinhança era extremamente pobre. Não obstante a diferença do que acreditava a senhora
Wingate, Benedict não desconhecia as áreas mais humildes de Londres. Levava vários anos em alguns
comitês parlamentares que se dedicavam à melhora das condições de vida das classes baixas. E não se
limitou a obter a informação necessária lendo informes.
Sua indecisão tampouco se devia ao medo ao contágio, e isso que sua esposa tinha morrido por
causa de uma febre contraída durante uma das missões evangélicas que levava a cabo em vizinhanças
como essa.
Estava indeciso porque tinha recuperado o bom senso.
Que complicações podia lhe dizer pessoalmente que não pudesse expressar por carta? Que
importava se a senhora Wingate se ofendia pela nota ou não? Acaso estava aproveitando a primeira
desculpa disponível para vê-la? Tinha deixado que o arrebatamento de fúria interior ditasse seus atos?
Essa última pergunta lhe fez dar meia volta.
Retornou a Charles Street. Caminhou a passo vivo, com os olhos cravados à frente e a mente
posta onde tinha que estar. Eram negócios. Mandaria uma nota à senhora Wingate lhe informando de
que Peregrine ia retornar ao colégio e de que não poderia continuar com suas aulas de desenho.
Também lhe diria que lhe pagaria a importância completa de todas as aulas que tinham acordado de
antemão, é claro. Agradecer-lhe-ia por tudo o que tinha conseguido ensinar ao menino. Permitir-se-ia
uma ou duas palavras de desculpa, talvez, pelo repentino da decisão...
Maldito fosse Atherton! Por que não podia ir pela vida com ordem e concerto em vez de clamar
ao céu e afrmar que seu flho era uma causa perdida dois minutos antes de...?
Interrompeu-o um som estridente que foi seguido de um pot-pourri de sensações. Em primeiro
lugar escutou o grito e depois viu os pacotes que caíam a seu redor justo antes de sentir o golpe que a
aba de um chapéu lhe atirou no queixo e o roce de uma mão que se aferrava à manga de seu casaco.
Sustentou-a, porque sem dúvida alguma era uma mulher, e soube imediatamente de que mulher
se tratava, inclusive antes de lhe ver o rosto.

Se tivesse estado olhando ao chão em lugar de olhá-lo boquiaberta, Betsabé não teria tropeçado.
Ele não a tinha visto, porque tinha os olhos cravados à frente e saltava à vista que estava pensando em
outra coisa. Se estivesse mais atenta, teria passado por seu lado sem ter feito o ridículo. Outra vez.
Viu-o abrir os olhos como pratos ao reconhecê-la e a expressão vulnerável que apareceu nessas
escuras profundidades lhe provocou uma onda de calor.
A expressão se desvaneceu de pronto, mas o calor persistiu derretendo-a até que lhe afrouxaram
os joelhos.
Lorde Rathbourne se apressou a ajudá-la a recuperar o equilíbrio. Mas foi muito mais lento na
hora de soltá-la. Era consciente da calidez que irradiavam essas mãos grandes e enluvadas que a
seguravam pelos braços. Era consciente da calidez que irradiava esse sólido corpo masculino situado a
escassos centímetros dela. Percebeu as diferenças que a lã e o fo apresentavam ao tato e notou o
contraste entre o níveo branco e o verde escuro. Inalou o aroma fresco do sabão e do amido, que se
mesclava com uma nota muito mais exótica procedente da colônia discreta e cara que usava... E, sob
tudo isso, preponderava um aroma ainda mais incitante e perigoso: seu próprio aroma.
—Senhora Wingate — a saudou—, tinha a esperança de que nossos caminhos se cruzassem.
—Pois teria sido melhor se em lugar de esperar, estivesse olhando — replicou ela—. Se não
tivesse acontecido de dar um encontrão com você, teria passado por meu lado sem ver-me.
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Perfeito
Seus dedos a apertaram com mais força. E então se deu conta de que seguia segurando-a, de que
ela seguia segurando-o pelo braço. A sensação era similar a de tocar uma cálida estátua de mármore.
Soltou-lhe o braço, afastou o olhar de seus olhos e se concentrou em seus pacotes, que estavam
esparramados pelo chão. Uma das carruagens que passava pela rua lhe tinha esmagado a cesta.
—Já pode me soltar — disse—. Eu gostaria de recolher minhas compras antes que algum
diligente ladrão as leve.
Lorde Rathbourne a soltou e a ajudou a recolher os pacotes.
Observou-o enquanto levava a cabo a vulgar tarefa com essa elegância e perfeição tão habituais
nele. As costuras de seu casaco nem sequer pareceram ressentir-se e isso porque se amoldava a ele
como se fosse uma segunda pele. Obra de Weston, sem dúvida alguma. E o que Sua Excelência tinha
pago por ela serviria para manter sua flha e ela durante todo um ano sem passar estreitezas, talvez
inclusive mais tempo.
A multidão que começava a congregar-se ao seu redor também o estava observando, embora eles
os fzessem com aberta curiosidade. Betsabé recuperou o bom senso.
—Um lacaio sem trabalho — explicou—. Um dos familiares de meu falecido marido acaba de
despedi-lo, pobrezinho.
—Pois veio ao bairro errado, senhora — disse um dos espectadores—. Quase não há trabalho
para gente comum por aqui.
—Uma lástima, não é? —interveio outro—. É um tipo forte. Os ricaços gostam dos tipos altos e
fortes, ou isso dizem. É certo, senhora?
—Sim — respondeu—. Os criados altos estão em rigor.
Quando lorde Rathbourne terminou de recolher todos os pacotes, Betsabé pôs-se a andar a passo
vivo, deixando a sua audiência para que discutisse o que signifcava em rigor.
Uma vez que dobraram a esquina e a multidão fcou bem longe, ele disse:
—Sou um lacaio?
—Não deveria ter vindo a esta vizinhança vestido assim — respondeu—. É evidente que não tem
nem idéia de como viajar incógnito.
—Nem tinha me ocorrido.
—É óbvio — replicou—. Menos mal que um de nós provém de uma longa dinastia de mentirosos
compulsivos. O fato de que seja um lacaio explica sua roupa tão elegante e seu ar de superioridade.
—Meu ar de... —interrompeu —. Vai à direção contrária. Não está Bleeding Heart Yard para lá?
Isso a deteve.
—Sabe onde vivo.
Viu-o assentir por cima dos pacotes, que lhe chegavam à altura do queixo.
—Não é culpa do Popham. Intimidei-o. Oxalá não tivesse tido que fazê-lo. Detesto-o. Mas
estava... Extremamente incomodado.
—Com Popham?
—Com meu cunhado. Atherton.
—Nesse caso, por que não intimidou seu cunhado?
—Está na Escócia. Não o havia dito?
—Milorde... —começou ela.
—Deus, um tranqüilo cemitério — disse enquanto assinalava o lugar com o queixo—. Por que
não entramos? Assim teremos um pouco de intimidade sem perder a educação.
Ela não o tinha tão claro, mas tendo em conta que tinha as mãos ocupadas pelos pacotes...
Entrou e se deteve mal passou a grade.
Ele deixou os pacotes em uma tumba.
—Vejo-me obrigado a levar Peregrine a Escócia dentro de duas semanas — explicou—. A decisão
de seu pai destroça por completo os planos que tínhamos esboçado. Sofreu um arrebatamento de
responsabilidade e decidiu matricular seu flho na Heriot's School de Edimburgo.
Betsabé conteve um suspiro.
«Adeus às moedinhas» pensou.
—Não é um bom colégio? —perguntou-lhe.
—Peregrine jamais encaixará em um dos prestigiosos colégios britânicos — respondeu Sua
Excelência com voz tensa—. Mas isso não se pode explicar a Atherton por carta. Apenas se pode
explicar nada de maneira nenhuma. É muito impaciente, impulsivo, e melodramático para refetir as
coisas.
Para surpresa de Betsabé, lorde Rathbourne começou a passear pelo atalho. O fazia com
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Perfeito
elegância, é claro, já que era perfeito, mas também com uma energia reprimida que parecia carregar o
ar que o rodeava.
—Se ao menos considerasse o assunto de um ponto de vista racional — prosseguiu—, se daria
conta de que os métodos dos colégios britânicos são totalmente contrários ao caráter de Peregrine.
Aprende-se de cor. Espera-se que se obedeça sem pigarrear, que se memorize sem entender o que se
está memorizando. Quando Peregrine insiste em saber os porquês e os como, o tacham de
desrespeitoso no melhor dos casos e de blasfemo no pior. Depois o castigam. À maioria dos meninos
basta um par de surras para saber que devem morder a língua. Peregrine não é como a maioria dos
meninos. As surras não conseguem nada em seu caso. Por que é incapaz de dar-se conta disto seu pai
quando eu, um mero tio vê tão claro como a água? —concluiu, agitando um punho.
—Talvez o pai careça da habilidade do dito tio para fcar no lugar do menino — sugeriu.
Lorde Rathbourne parou em seco. Baixou a vista a seu punho fechado e piscou. Abriu a mão.
—Bom. Enfm... Eu diria que Atherton tem a imaginação de seis homens juntos. Muita mais que
eu, certamente.
—Os pais têm uma visão muito particular das coisas — explicou ela—. Podem ser cegos em
muitos aspectos. Lorde Hargate entende você?
Sua Excelência pareceu fcar atônita durante um instante. Igual a ela, ante semelhante amostra de
emoção. Desde a primeira vez que o viu, compreendeu que o semblante desse homem jamais revelava
nada.
—Espero de todo coração que não — respondeu ele.
Betsabé se pôs a rir. Não pôde evitar. Mal tinha durado um instante (a expressão inescrutável já
havia tornado a tomar posse de seu rosto), mas nesse lapso tinha parecido um menino compungido, e
ela tinha chegado à conclusão de que teria encantado conhecer esse menino.
Uma conclusão perigosa.
Ele seguiu sem mover uns minutos, olhando-a com seu peculiar indício de sorriso. Depois se
aproximou.
—De verdade deu um encontrão comigo de propósito? —quis saber.
—Eu disse de brincadeira — respondeu—. A verdade é que não podia acreditar que estivesse em
Charles Street. Espero que a próxima vez que vier me procurar me avise. Preferiria não acabar com um
olho arroxeado depois de dar com uma marquise ou com um tornozelo quebrado porque caí na
calçada.
Estava muito perto dela, e seu olhar era como um ímã irresistível para seus olhos. Ficou presa
nesse olhar um instante, apenas o tempo que dura o batimento do coração, mas bastou para seduzi-la
ainda mais. Olhar esses olhos tão escuros era como olhar um comprido corredor em sombras. Muito
intrigante. Queria descobrir o que ocultava no fnal desse corredor, quem estava do outro lado e a
distância separava o homem que se mostrava ante ela do homem que se escondia em seu interior.
Afastou o olhar.
—Não quero dizer que tenha que vir me procurar — esclareceu—. Não era um convite.
—Sei que não deveria ter vindo — aduziu-o—. Poderia lhe haver enviado uma nota. Entretanto,
aqui estou.
Não podia permitir-se o luxo de deixar que a seduzisse de novo. Concentrou-se na tumba que
tinha atrás dele e sobre a qual descansavam os pacotes.
—Bom... Isto... Devo partir — disse—. Olivia voltará logo da escola e se não estou ali, sempre
encontra algo que fazer. Por regra geral, é algo que preferiria que não fzesse.
—Sim, é claro, que desconsiderado de minha parte. —separou-se dela e se aproximou da tumba
para recolher os pacotes—. Não deveria tê-la incomodado, e agravei minha ofensa ao retê-la muito
tempo.
Não a tinha retido o sufciente e ela não tinha descoberto nem a metade do que queria saber sobre
ele.
«Pensa em sua flha — se repreendeu—. A “curiosidade que este homem desperta é um luxo no
qual não podia se permitir.»
—Prefro levá-los, milorde — disse—. Um lacaio estaria desconjuntado em Bleeding Heart Yard.
Seria melhor que nos separássemos aqui.
Benedict não queria separar-se dela.
Queria fcar onde estava, falando com ela, olhando-a, escutando-a. Tinha-a escutado rir...
Certamente pela cômica expressão de espanto que tinha posto quando lhe perguntou se seu pai o
compreendia.
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E sua risada não se parecia em nada ao que imaginou. Era grave, rouca.
Maliciosa. Sensual.
Uma risada que pareceu acompanhá-lo futuando a seu redor enquanto retornava à carruagem de
aluguel; que permaneceu a seu lado durante o curto trajeto até sua casa; o seguiu à mansão e até ao
quarto de Peregrine.
Encontrou o moço ajoelhado no batente acolchoado da janela, absorto em uma gravura colorida
do livro de Belzoni. Uma reprodução do teto da tumba do faraó, no qual se distinguiam uma série de
estranhas fguras e símbolos dourados sobre um fundo negro, que possivelmente representassem o céu
noturno e as constelações tal como as viram os antigos egípcios.
Negou-se a meditar sobre a questão. Os antigos egípcios eram exasperantes até não poder mais.
Disse ao menino o que seu pai tinha decidido. Peregrine franziu o cenho.
—Não entendo — disse—. Papai me disse que não me mandaria a nenhum colégio. Que lhe
importava o mínimo que crescesse sem educação, como um ignorante. Que não merecia a educação de
um cavalheiro quando era incapaz de me comportar como tal. Que...
—Evidentemente mudou de opinião — interrompeu Benedict.
—É muito inconveniente — protestou seu sobrinho—. Não terminei de estudar a coleção de
Belzoni. De qualquer modo, não tem sentido partir tão logo. O curso já teria começado quando chegar
a Edimburgo. Se for ser um novato, o que menos quero começar com o resto de novatos. Agora terei
que ser o novato mais novato de todos e perderei tempo brigando com outros quando poderia estar
aqui, melhorando meu latim e meu grego e organizando minhas listas de hieróglifos.
Peregrine não se deixaria dominar. Não baixaria a cabeça ante nenhum outro jovem. Em
conseqüência, e posto que levasse uma eternidade sendo o novato ali aonde ia, passava grande parte
do tempo esclarecendo sua posição mediante os punhos.
—Sei — disse Benedict—. Mas a realidade impera: seu pai ordena e você obedece. —Não
mencionou a conversa que pensava manter com lorde Atherton.
Não deixou entrever suas intenções de devolvê-lo a Londres, se fosse humanamente possível, e
de contratar um tutor adequado, tal como deveria haver-se feito há anos.
Não queria que seu sobrinho albergasse falsas esperanças. De qualquer forma, um flho devia
obedecer a seu pai.
Regra: Os pais devem ser tratados com respeito, embora se arda em desejos de estrangulá-los.
Por muito disposto que estivesse a procurar o bem de Peregrine, não instigaria a desobediência.
—Acreditei que tinha lavado as mãos e tinha me deixado a seu cargo, senhor — disse Peregrine
—. Lorde Hargate também crê assim, porque foi a você e não o meu pai a quem aconselhou que me
buscasse um professor de desenho. E não sei o que vai acontecer agora com minha habilidade para
desenhar. Jamais conseguirei melhorar a este passo. Mal comecei a fazer progressos. Não, de verdade
— insistiu ao ver que Benedict arqueava as sobrancelhas—. A senhora Wingate acha e não me dedica
falsos elogios, sabe? «Lorde Lisle, outra vez tornou a desenhar com os pés», diz-me quando faço tudo
errado. —Sorriu—. Faz-me rir.
—Vejo — disse Benedict. Também lhe provocava o desejo de rir a gargalhadas. Conseguiu no
Salão Egípcio, com o interrogatório ao qual submeteu sua flha depois de atacar Peregrine. Tinha estado
a ponto de tornar a rir frente à loja do Popham, por causa de sua evidente surpresa quando lhe
informou das aspirações de Peregrine... E de sua reação. E tinha desejado estalar em gargalhadas nesse
mesmo dia, quando a escutou brincar sobre a topada que tinham sofrido.
Era graciosa. Dizia e fazia coisas que o surpreendiam.
Ainda podia escutar sua risada.
—Enfm, suponho que não podemos fazer nada — concluiu Peregrine, fechando o livro—. Mas
ainda restam duas semanas. Terei que aproveitar o tempo o melhor possível.
Benedict tinha se preparado para confrontar muito mais protesto. Peregrine não tinha esgrimido
nem a metade dos porquês e os como que eram habituais nele. Talvez se tivesse dado conta por fm de
que o comportamento de seu pai não estava acostumado a apoiar-se em conceitos lógicos e, portanto,
tinha deixado de pedir explicações lógicas.
Talvez estivesse maturando, aprendendo... Por fm.
—Dá-me permissão para ir amanhã ao Museu Britânico, senhor? —perguntou Peregrine—. Eu
gostaria de ver de novo o busto do jovem Memnon. Perguntei à senhora Wingate se podíamos ter uma
aula extraordinária no sábado, na loja ou no Salão Egípcio, mas não tinha tempo. Passará quase toda a
manhã em Soho Square, e também parte da tarde.
—Provavelmente lhe tenham encarregado um retrato — aventurou. Algum dos comerciantes a
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cujas flhas ensinavam devia ter reconhecido seu talento.
—Acredito que está procurando alojamento ali — esclareceu seu sobrinho.
Benedict supôs que Soho Square podia parecer uma notável melhora com respeito à Bleeding
Heart Yard. Entretanto, ambos os lugares estavam junto a vizinhanças muito pouco recomendáveis.
—Deveria desaconselhá-la a respeito — replicou—. Não é muito acertado que se mude tão perto
do Seven Dials. É tão mau como Saffron Hill ou talvez pior.
Peregrine franziu o cenho.
—Embora não seja assunto nosso onde possa ir viver — prosseguiu Benedict—. Quer visitar o
Museu Britânico. Será melhor que vá com Thomas. Não tem sentido que eu perca o tempo
perambulando por ali enquanto pratica suas técnicas de desenho.
—É claro — conveio Peregrine—. Aborrecer-se-ia soberanamente. Como é natural, para mim será
como se fosse uma aula mais. Embora veja passar um dos procuradores do museu por ali, não lhe direi
nenhuma palavra sobre o sarcófago de granito vermelho que há no pátio, esse que tem preocupado
tanto à tia Dafne... Embora seja uma verdadeira vergonha, senhor, o trato que estão dando ao senhor
Belzoni...
—Certo, certo, e cedo ou tarde Rupert começará a lançar pela janela os procuradores do museu —
vaticinou Benedict—. Você, em troca, morderá a língua.
A última coisa que precisava nesse momento era envolver-se na disputa pelos descobrimentos de
Belzoni: o que pertencia a quem e quem deveria pagá-lo. Tinha evitado com suma habilidade todos os
intentos de Dafne por arrastá-lo a essa exasperante batalha. Já tinha muitas frentes abertas. E o
principal era o concernente ao futuro de Peregrine.
—Não direi nenhuma só palavra a respeito, senhor juro por minha honra — prometeu Peregrine.
—Muito bem, nesse caso pode ir com Thomas.
Dito o qual e muito aliviado por ter resolvido um assunto tão espinhoso com tanta facilidade,
lorde Rathbourne saiu do aposento.
Alheio por completo à expressão culpada que compôs seu sobrinho assim que lhe deu as costas.

Capítulo 5

Museu Britânico, sábado 22 de setembro


Peregrine se sentia culpado pela dama chamada Wingate que não tinha mencionado a seu tio.
Concretamente, pela flha. Ambos estavam esboçando o busto de um faraó esculpido em granito
vermelho cuja coroa estava parcialmente quebrada: o busto do jovem Memnon, que Belzoni tinha
transladado do Egito.
A diferença do Salão Egípcio, o Museu Britânico raras vezes estava lotado porque era muito
difícil conseguir entradas. Dizia-se que era mais fácil obter acesso aos Salões do Almack's, o lugar de
reunião mais exclusivo da alta sociedade.
Peregrine não sabia como as tinha engenhado Olivia Wingate para consegui-las e preferia não
inteirar-se.
Embora o lugar estivesse deserto, eles falavam em sussurros e se asseguravam de não dar
descanso aos lápis.
—Não será difícil escrever a Edimburgo — assegurou Olivia nesse momento.
«Melhor que não me escreva», pensou ele. Suas cartas eram perigosas.
Não deveria estar aí com ela. Nenhum dos mais velhos aprovaria sua amizade. Em primeiro
lugar, porque era uma mentirosa. Esse mesmo dia, sem ir mais longe, havia dito a sua mãe que iria com
uma amiga do colégio e sua mãe.
Em seu caso, reconhecia que não tinha mencionado ao seu tio que iria com Olivia, mas tampouco
tinha mentido abertamente.
Entretanto, tinha certo peso na consciência. Ao contrário que ela, que parecia carecer da mesma.
Peregrine sabia que Olivia era sinônimo de problemas. Mas não podia evitá-la. Era tão irresistível
como uma história de fantasmas. Impossível de abandonar até que não se chegava ao fnal.
—No colégio lêem todas suas cartas? —quis saber ela. Peregrine negou com a cabeça.
—As da família e as dos companheiros do colégio não.
—Isso facilita as coisas — replicou Olivia—. Certamente reconhecerão a letra dos familiares,
assim fngirei ser um antigo companheiro de colégio. Utilizarei seu nome e seu endereço e escreverei
com a letra de um menino.
Uf era muito tentador! Evidentemente, suas exageradas cartas o ajudariam a escapar um pouco
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da monotonia dos dias no colégio. Mas não era um delito o que acabava de propor? Se seu tio
descobrisse...
—Está muito pálido — disse ela—. Não estou segura de que esteja fazendo sufciente exercício.
Ou talvez não esteja se alimentando bem. Se estivesse em seu lugar, eu não permitiria que a viagem a
Edimburgo me tirasse o apetite. É um lugar precioso, e nem todos os escoceses são tão antipáticos
como dizem.
—Está me propondo uma falsifcação! —exclamou em um sussurro—. É um delito capital.
Poderiam te enforcar!
—Então, o que? Deixo de te escrever? —replicou Olivia como se tal coisa.
—Talvez isso fosse o melhor.
—Talvez tenha razão. Terei que planejá-lo sozinha.
Peregrine sabia que não devia perguntar, mas era impossível não fazê-lo. Não agüentou nem
sequer um minuto antes de perguntar:
— Que detalhe? Detalhes do que?
—De minha cruzada.
—Que cruzada? —repetiu—. Não vais ser um cavalheiro até que seja mais velha.
Aprendia mais depressa do que seu tio pensava. Sabia que não devia incorrer outra vez no
engano de lhe dizer que jamais seria um cavalheiro. Com isso só conseguiria despertar seu gênio. Não
lhe preocupava que pudesse lhe fazer dano, mas sim o fato de que a briga chamaria muito a atenção.
Isso o converteria em um Incidente, e as poucas aulas de desenho que me restavam esfumariam de
repente.
—Não posso esperar crescer — confessou Olivia—. Agora que vai, mamãe e eu voltaremos para o
ponto de partida. Jamais chegaremos a nenhum lado se dependermos das aulas de desenho. Terei que
intervir no assunto e encontrar o tesouro.
A essa altura e graças às cartas clandestinas, sabia com todas as letras por que Olivia e sua mãe
eram umas Marginais e umas Leprosas. E também sabia que a Maldição Familiar era a má fama.
Conforme tinha admitido Olivia com desenvoltura, todos os Atrozes DeLucey mereciam sua
reprovável reputação; todos salvo sua mãe, que não tinha nada que ver com outros. Em todo caso, sua
mãe pecava por ser muito decente.
Peregrine tinha chegado à conclusão de que se Olivia era um dos exemplos mais moderados da
família, o adjetivo «atroz» era o eufemismo do século.
Suas cartas estavam infestadas de referências sobre os numerosos descarados que formavam sua
família. Embora jamais tenha mencionado tesouro algum.
—Que tesouro? — perguntou incapaz de conter-se.
—O tesouro de Edmund DeLucey — respondeu ela—. Meu tataravô. O pirata. Sei onde o
escondeu.

Betsabé saiu no sábado pela manhã com uma lista de possíveis alojamentos e grande dose de
otimismo.
Tinha esboçado um percurso lógico pelas ruas que chegavam até Soho Square, pelo lugar em si
mesmo e depois pelas ruas que a rodeavam.
O dia tinha amanhecido espaçoso e agradável, mas foi piorando conforme avançava. A primeira
hora da tarde se levantou uma desagradável brisa que fez descer a temperatura e umas ameaçadoras
nuvens ocultou o sol. No meio da tarde a brisa se converteu em um vento invernal e o céu estava
totalmente carregado, igual a sua expressão.
Conforme tinha comprovado, os alojamentos que podia permitir-se no Soho eram muito mais
desmantelados e reduzidos do que ocupava nesse momento. Ao menos em Bleeding Heart Yard alguns
edifícios seguiam conservando certos vestígios de seu grandioso passado. Nem todos seus enormes
aposentos tinham sido divididos e voltados a dividir com o fm de criar pequenas residências.
Além disso, a vizinhança se deteriorava assim que alguém se afastava da praça, igual acontecia
com o bairro em que ela residia. Depois de uma breve caminhada desde Soho Square se chegava a Saint
Giles, um dos bairros baixos mais famosos.
Em resumidas contas, tinha esbanjado seu sábado. Em lugar de estar iludida com a busca de seu
novo lar, sentia-se curvada pelas muitas horas desperdiçadas em uma tarefa que a essa altura lhe
parecia inútil.
Graças aos altos honorários que lhe proporcionavam as aulas de lorde Lisle, sua economia tinha
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melhorado de forma notável, mas muito temia que não o sufciente para provocar uma mudança
signifcativa em suas circunstâncias.
Londres tinha resultado ser uma cidade muito mais cara do que esperou. De modo que se
perguntou, e não pela primeira vez, se não teria cometido um engano ao mudar-se. Dublin era um
lugar mais barato e acolhedor.
Claro que a Irlanda era um país mais pobre e obter emprego no âmbito artístico tinha
demonstrado ser muito mais difícil que em Londres, onde, além disso, podia permitir uma educação
decente para Olivia.
Em menos de um ano a senhorita Smithson de New Ormond Street tinha conseguido erradicar
todo vestígio de sotaque irlandês da pronúncia de sua flha. Olivia falava como uma dama devia falar.
Oxalá fosse tão simples lhe ensinar a comportar-se como tal... Na escola, rodeada de suas companheiras
e sob o fulminante olhar da senhorita Smithson, Olivia era um modelo de comportamento. Por
desgraça, igual a muitos outros DeLucey, era um camaleão e se adaptava rapidamente a seu entorno.
Fora da escola e rodeada de pessoas pertencentes a outro âmbito social, transformava-se em alguém
muito diferente.
As coisas não melhorariam se retornassem a Irlanda.
Londres era um lugar infestado de oportunidades. Mas ditas oportunidades não eram baratas
nem fáceis de conseguir.
Estava claro que Betsabé Wingate não ia conseguir nada esse dia.
Era hora de render-se e voltar para casa.
Pegou a Meard's Court justo quando começavam a cair as primeiras e frias gotas de chuva.
Estava acostumada à chuva e ao frio, mas esse dia em concreto, desanimada e cansada como se
encontrava tudo lhe parecia insuportável.
A chuva lhe açoitava o chapéu e a parte superior do casaco. Levantou a vista ao céu e
compreendeu que logo começaria a descarregar com mais força. Quando chegasse em casa, estaria
encharcada até os ossos.
Ao chegar à esquina da Dean Street, os olhos foram por si só para a igreja de Saint Anne, em cuja
calçada havia uma parada de carros de aluguel.
Mas se gastasse mais da conta no trajeto, ver-se-ia obrigada a investir muito pouco no jantar.
Desprezou o carro de aluguel e seguiu caminhando por Dean Street, olhando sem cessar para um
lado e outro. Se estivesse olhando à frente talvez a teriam atropelado, porque a cinzenta cortina de água
a convertia em pouco menos que uma mancha escura. Entretanto, não estava olhando à frente. Estava
muito ocupada olhando a um lado e ao outro, pendente de qualquer veículo que pudesse circular,
como mandava o bom senso.
E assim foi como deu um encontrão com o homem que estava plantado na calçada.
Escutou um grunhido e sentiu que o desconhecido cambaleava um pouco. Para evitar que
acabasse no chão, agarrou-o pelo casaco com ambas as mãos. Não era a reação mais sensata, mas agiu
movida pelo instinto. Seu cérebro demorou um instante em lhe assinalar que, posto que o homem era
mais alto e mais corpulento que ela, acabaria arrastando-a consigo.
Mas então ele já tinha recuperado o equilíbrio.
—Oh, sinto muito! —exclamou, soltando o casaco. Ato seguido e seguindo um impulso maternal,
alisou as rugas que lhe tinha deixado—. Não ia atenta...
Foi nesse momento quando elevou a vista e o olhou por fm à cara. A chuva lhe golpeava o rosto
e mal havia luz, mas não teve a menor difculdade para reconhecer esses olhos negros como o carvão
que a observavam por cima de um nariz aristocrata, nem tampouco essa boca de gesto frme com seu
irritante indício de sorriso.
Limitou-se a olhá-lo fxamente enquanto afastava uma mão e deixava a outra sobre seu casaco.
—Sou eu quem deveria lhe pedir perdão — disse lorde Rathbourne—. Parece que adquiri o
incomodo costume de me pôr em seu caminho.
—Não o vi — assegurou ela, afastando a mão com brutalidade. Acaso alguma vez ia encontrar-se
com esse homem de um modo civilizado e elegante, embora só fosse uma vez? O rubor se apoderou
dela de forma repentina e abrasadora, endurecendo seu tom de voz—. Estranho encontrá-lo aqui. O
que o traz ao Soho?
—Você — respondeu—. Levo horas procurando-a. Mas não vou permitir que siga a pé sob a
chuva enquanto lhe explico meus motivos. Corramos para a igreja de Saint Anne em busca de um carro
de aluguel. Depois falaremos mais tranqüilamente.
O olhar do Betsabé voou de novo para a igreja de forma involuntária.
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Perfeito
Ah, que tentador era!
Não obstante, viajar em uma carruagem fechada com um homem que a convertia em uma
jovenzinha descerebrada era buscar problemas.
—Não, obrigado — respondeu—. Acredito que é melhor que vamos cada um para nosso lado. —
E pôs-se a andar de novo para o leste.
Apenas percebeu do grunhido que provocaram suas palavras. Entretanto, nem sequer tinha dado
dois passos quando a elevaram do chão e, antes que pudesse convencer a seu cérebro de que aquilo
estava acontecendo de verdade, encontrou-se descendo por Dean Street nos braços de lorde
Rathbourne.
Já tinham chegado a Compton Street quando recuperou o bom senso e o uso da língua.
—Solte-me — ordenou.
Ele seguiu caminhando.
Não perdeu o ritmo embora começasse resfolegar um pouco.
Betsabé se sentia muito acalorada. Os braços que a rodeavam eram tão fortes como duas barras
de ferro. O amplo peito e os ombros de lorde Rathbourne a protegiam do vento e de grande parte da
chuva. Seu casaco estava úmido, mas irradiava o calor do corpo que havia debaixo.
Embora já soubesse que era um homem atlético (o corte de sua roupa o delatava), tinha
subestimado sua força. Sabia que era alto e musculoso. Entretanto, não tinha caído na conta de quão
corpulento era.
Muito.
Até resultar avassalador.
De repente, sua mente conjurou a imagem de uns guerreiros providos com armaduras que
assaltavam castelos onde matavam todos os homens para raptar às mulheres.
Esses eram os ancestrais de lorde Rathbourne.
— Solte-me — insistiu enquanto se retorcia entre seus braços.
Quão único conseguiu foi que ele a segurasse com mais força e a colasse ao seu corpo.
Acalorou-se ainda mais e começou a lhe dar voltas à cabeça. Sabia que deveria lutar, mas sua
vontade decaía por momentos. Ou talvez fosse sua moral a que se estava desintegrando...
Ao fnal recordou o lugar no que se encontravam: em plena rua. Renovavam-se seus esforços
para que a soltasse quão único conseguiria seria chamar a atenção.
As pessoas tinham procurado refúgio nos portais. Seu único passatempo era observar os
transeuntes.
Alguém podia reconhecer lorde Rathbourne. Ou a ela. Se aquilo chegava, a saber, se...
Era melhor nem sequer pensar.
Manteve a cabeça encurvada e tentou ocupar seus pensamentos com réplicas mordazes e planos
de vingança. Descobriu que seu cérebro se foi de férias e tinha deixado seu corpo ao encargo de tudo.
Um corpo que estava aquecido e resguardado. E que desejava aproximar-se ainda mais desse
outro corpo mais forte e que irradiava calor. Queria amassar-se sob seu casaco.
Por sorte, a distância que deviam percorrer era muito curta e ele caminhava depressa. Ao cabo de
uns minutos estavam na parada de carros de aluguel.
—A dama escorregou e torceu o tornozelo — explicou lorde Rathbourne ao chofer que ocupava o
primeiro posto na fleira de veículos—. Eu gostaria de fazer o trajeto com o mínimo de paradas bruscas,
buracos e sobressaltos, se não for muito incômodo. —Deixou-a no interior da carruagem, resmungou
algo mais ao chofer e se reuniu com ela no assento.
—Sinto muito — disse quando o veículo começou a andar—. Bom, não de tudo. —Seus lábios
esboçaram um sorriso quase imperceptível.
Betsabé tentou procurar uma réplica cortante. Sua mente parecia um pouco lenta. Seu coração,
em troca, pulsava a um ritmo caótico.
—Talvez me tenha mostrado um tanto impaciente — prosseguiu ele—. Mas me pareceu absurdo
seguir discutindo com você sob a chuva. Quão único queria era lhe fazer uma proposta.
Suas palavras a puseram em alerta. Com isso sim que estava familiarizada... E muito. As
propostas não a confundiam. O calor se evaporou, deixando-a gelada, de modo que disse com toda a
gélida dignidade que foi capaz de reunir:
—Uma o que?
Lorde Rathbourne fez um gesto tranqüilizador.
—Não refro a esse tipo de proposta — particularizou.
—Tenho a impressão de que acredita que nasci ontem, milorde — replicou ela.
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—E eu tenho a impressão de que está você cega se acreditar que estou disposto a enganá-la com
algo semelhante — contra-atacou lorde Rathbourne.
—Não estou cega — afrmou.
—Não está pensando com claridade — acusou—. Tente utilizar o bom senso. Sou o primogênito
da família. Não posso me permitir o luxo de ser a ovelha negra. Esse é o trabalho de Rupert. Meu
mundo é muito reduzido e é quase impossível manter as aventuras amorosas em segredo. Entretanto,
existe a possibilidade de livrar-se dos rumores se agimos com discrição e não se atrai o interesse dos
folhetins de fofocas. Você é muito interessante. Se cercássemos uma aventura íntima, converter-me-ia
em objeto de escárnio público. Como o caso de Byron, mas pior. Os desenhistas de caricaturas estariam
encantados. Não poderia dar um passo sem ver minha imagem ridicularizada sob algum cabeçalho
desses que se consideram engenhosa. A idéia não me atrai o mínimo.
Betsabé sabia que tinham ridicularizado Byron sem piedade. Ela mesma havia visto algumas das
cruéis caricaturas.
Com lorde Rathbourne seria ainda pior. Quanto mais alto era o lugar que se ocupava no escalão
social, mais desfrutava do mundo com a queda em desgraça da vítima.
—Deus! —exclamou, abatida. E decepcionada também. Por um momento tinha acreditado deixar
lorde Perfeito tão abobalhado como ele a deixava.
—Minha proposta é respeitável — assegurou—. Sei de uns aposentos em Bloomsbury que talvez
sejam adequados para você. A caseira é uma viúva de guerra. A renda deveria estar dentro de suas
possibilidades, se não tiver calculado mal. Multiplicando um quarto dos honorários que cobra a
Peregrine pelas oito alunas que tem as segundas-feiras e...
—calculou meus ganhos? —exclamou.
Lorde Rathbourne explicou que grande parte de seu trabalho no Parlamento suportava algum
tipo de cálculo. Em conseqüência, estava familiarizado com os orçamentos e com o modo de ajustá-los.
Além disso, era plenamente consciente de que havia pessoas que tinham que viver com uns ganhos
muito limitados. Junto com alguns colegas, tinha posto em marcha iniciativas para melhorar as
condições das viúvas de guerra, dos veteranos e de outras pessoas às que nem o governo nem a Igreja
atendiam como era devida, se acaso chegavam a fazê-lo.
—Ah, sim, como não! Sua famosa flantropia! —replicou ela com o rosto aceso pelo rubor. Não
queria formar parte de seus casos de caridade.
—Isto não tem nada que ver com a flantropia, senhora — a corrigiu com frieza—. Limito-me a
lhe economizar o incômodo de encontrar a casa da senhora Briggs por sua conta, além disso, do tempo
que teria que passar perambulando por vizinhanças tão pouco recomendáveis como Soho. O resto
depende de você. Gostaria de ver o lugar?
O tom gélido de sua voz estava ideado para intimidar seu interlocutor. Mas o único que
provocava em Betsabé era o desejo de sacudi-lo. Afnal, tinha seu orgulho. Um orgulho que se rebelava
ante a idéia de que a tratasse como um ser inferior sem dois dedos de testa. Não obstante, o futuro de
Olivia era mais importante que o orgulho de sua mãe.
Assim que o engoliu.
—É claro - respondeu.
Não tinha escutado o endereço que tinha indicado ao chofer e a chuva caía com tanta força nesse
momento que o mundo parecia uma mancha disforme do outro lado da janela. Quando a carruagem se
deteve e lorde Rathbourne desceu para ajudá-la a fazer o mesmo, só pôde confar em que a estivesse
acompanhando à casa da senhora Briggs e não a seu ninho de amor.
Saltava à vista que o sangue de seus selvagens ancestrais não se diluiu nem um ápice. Saltava à
vista que estava acostumado a ordenar a outro o que fazer e que não estava nada acostumado a que lhe
contrariassem.
Entretanto, não acabava de vê-lo como um homem que arrastasse às mulheres à perdição
mediante enganos e subterfúgios.
Para isso, quão único tinha que fazer era estar quieto e transmitir ao mundo o aborrecimento que
lhe ocasionava sua própria perfeição.
Seus instintos demonstraram estar certo. A senhora Briggs resultou ser uma dama respeitável de
meia idade. Os aposentos que oferecia, embora não fossem absolutamente suntuosas, estavam limpas e
bem mobiliadas. O preço era um pouco elevado para seu gosto, mas menor de que teria pensado que
pediriam nessa zona de Londres. Acordaram todos os detalhes rapidamente e em menos de uma hora
voltava para casa em outro carro de aluguel, acompanhada por lorde Rathbourne.
Durante o trajeto, Sua Excelência lhe deu conselhos econômicos. O fato de que acreditasse uma
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incompetente nesse âmbito a incomodou em certa medida, embora supusesse que o homem não podia
evitá-lo. Estava acostumado a dirigir a vida dos menos afortunados. E, em qualquer caso, contava com
uma ampla experiência nesse campo e só um imbecil desprezaria seus conselhos.
Não obstante, surpreendeu-se sobremaneira quando o viu tirar um de seus cartões de visita e
anotar no dorso os nomes e os endereços de várias lojas às que deveria levar suas aquarelas e desenhos.
Conforme lhe disse, teria mais possibilidades de que seus quadros chamassem a atenção daquelas
pessoas com os meios para comprá-los sem se expor em Fleet Street ou na Strand Avenue. Se acaso isso
não fosse pouco, aconselhou-a aumentar o preço.
—Não valoriza sufcientemente seu trabalho — disse.
—Sou uma completa desconhecida — ela aduziu—. Não pertenço a nenhum círculo artístico
prestigioso. Há que valorizar o trabalho em função de ditas questões.
—Seu nome, tal como lhe assinalei antes, dista muito de ser desconhecido — replicou lorde
Rathbourne—. Você não é uma desconhecida, é uma ingênua.
Esteve a ponto de começar a rir. Os últimos vestígios de sua ingenuidade tinham desaparecido
antes de completar dez anos, graças a seus pais.
—Tenho trinta e dois anos e vivi em uma infnidade de lugares — disse—. Embora não tenha
visto tudo, há pouca coisa que tenha perdido.
—Não parece compreender a mentalidade de seus compradores potenciais — apontou ele—. E
isso faz que me pergunte se na realidade você pertence aos Atrozes DeLucey. Não se aproveita das
debilidades humanas mais habituais. Não lhe ocorreu explorar sua notoriedade. Parece alheia ao feito
de que quanto mais caro é um objeto, mais as pessoas o valorizam. Ao menos, assim é como funciona
na alta sociedade. Quando você quadruplicou seus honorários habituais no caso de Peregrine, meu
respeito por você aumentou de forma diretamente proporcional.
Era inútil tentar ler sua expressão. Embora o semblante de lorde Rathbourne não tivesse sido por
si inescrutável, havia muito pouca luz. De modo que não soube se estava sendo sarcástico ou não. Sua
voz soava aborrecida.
—Aconselho-a que os obrigue a coçar o bolso — prosseguiu—. Não pode mudar à alta sociedade.
E apesar de minha posição privilegiada, eu tampouco. Inclusive eu devo viver segundo as regras, tal
como já assinalei. É tedioso, mas o preço por infringi-las é excessivo. Além de inquietar minha família,
perderia o respeito de pessoas cujo apoio necessito para a aprovação de leis no Parlamento, para
algumas reforma institucionais e para me ajudar em outros projetos pessoais que dão sentido a minha
vida. Você já pagou um preço muito alto porque seu falecido marido infringiu as regras da alta
sociedade. O que deve ao beau monde? Não é ao contrário? Não está o beau monde em dívida com você?
Por que não pode pedir um preço elevado pelo trabalho com que ganha a vida e mantém sua flha?
A cuidada pronúncia poderia fazer qualquer um acreditar que o tema de conversa era aborrecido.
Sua voz soava exatamente igual aquele dia no Salão Egípcio, quando o viu pela primeira vez. Gotejava
indolência aristocrática.
Não obstante, o interior da carruagem era reduzido e estava sentada muito perto dele para não
dar-se conta de que algo não encaixava. Era uma espécie de tensão que carregava o ambiente,
possivelmente. Ou talvez fosse a posição de sua cabeça e de seus ombros. Fosse o que fosse, duvidava
muito que o homem que habitava no interior desse corpo masculino estivesse em harmonia com a
imagem que projetava.
—Talvez tenha caído no cacoete de me mostrar muito humilde — aventurou—. Meus pais
fcariam assombrados!
Seus pais não teriam duvidado em aproveitar-se das debilidades dos outros. Nenhum dos dois
sabia o que eram escrúpulos.
—Exato — conveio ele—. E, além disso, tem outro problema: não é londrina. Não sabe como tirar
proveito da cidade. Igual à maioria de meus conhecidos, você conhece a parte de Londres em que se
move, mas desconhece as infnitas possibilidades que a cidade em conjunto oferece.
—Está comparando Londres com Cleópatra? —perguntou e sorriu ao imaginar ao indolente
aristocrata fascinado com essa vasta e fumegante metrópole—. «A idade não pode murchá-la, nem o
costume faz rançosa sua infnita variedade.» Isso acredita?
Lorde Rathbourne assentiu com a cabeça.
—Conhece Shakespeare — disse.
—Mas não Londres, conforme parece.
—Isso seria impossível — assegurou-o—. Está vivendo aqui, quanto tempo? Um ano?
—Nem sequer isso.
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—Eu passei a maior parte de minha vida aqui — afrmou—. Conheço a cidade como a palma de
minha mão.
E procedeu a demonstrar-lhe oferecendo uma detalhada descrição dos arredores de Bloomsbury
em que incluiu as lojas e os lojistas que merecia a pena freqüentar, assim como os estabelecimentos
menos recomendáveis.
Chegaram à hospedaria muito antes do que Betsabé teria gostado. Poderia ter seguido escutando-
o durante muito mais tempo. Lorde Rathbourne amava a cidade, isso era indiscutível, e o quadro que
acabava de pintar a tinha transformado a seus olhos. Essa tarde tinha parecido uma fortaleza fria que
lhe fechava as portas no nariz. Ele as tinha aberto e a tinha convertido em um lugar seguro.
Embora não tudo o que tinha feito por ela acabava aí, compreendeu. Pouco tempo antes se viu
curvada pelo peso de suas preocupações. Lorde Rathbourne as tinha aliviado.
E isso era algo que jamais lhe tinha acontecido antes. Seus pais gastavam o dinheiro assim que
caía em suas mãos, e seguiam gastando-o mesmo que não restasse nada. Quando os prestamistas e os
arrendadores começavam a aporrinhar, faziam a bagagem e se mudavam a outro lugar, quase sempre
no meio da noite.
Em respeito a Jack, embora fosse muito mais respeitável, tampouco foi de grande ajuda. Tinha-a
amado com loucura, mas era um homem irremediavelmente irresponsável. Os problemas práticos da
vida cotidiana eram um pouco desconhecido para ele. Era incapaz de vê-los, muito menos analisá-los
nem resolvê-los. Não tinha a menor idéia do valor do dinheiro. O conceito de viver conforme as
possibilidades de seu bolso lhe escapavam por completo.
O homem que tinha ao lado, um homem que não a amava muito menos, tinha estudado sua
situação econômica, tinha-a acompanhado até o tipo de lar que ela procurava e lhe tinha aconselhado
como ganhar mais dinheiro e como economizá-lo. Inclusive havia dissecado Londres para ela, como se
fosse um brinquedo mecânico, e lhe tinha mostrado suas engrenagens.
A carruagem se deteve. Não estava pronta para separar-se dele, mas não tinha nenhuma
desculpa para seguir a seu lado.
—Obrigado — disse antes de soltar uma breve gargalhada—. Uma palavra da mais tola porque
nem sequer chega a descrever uma fração do que sinto. Oxalá fosse Shakespeare. Mas não sou. Em
lugar de um monte de versos inteligentes, devo me conformar com um simples «obrigado».
Sua intenção era que a breve palavra fzesse todo o trabalho.
Entretanto, sentia-se muito animada e, por um instante, teve a impressão de que tudo era
possível. Assim que se atreveu a inclinar-se para ele para lhe dar um fugaz beijo na face.
Ele virou a cabeça nesse mesmo momento, apoderou-se de seus lábios e lhe colocou uma mão na
nuca, arrastando-a para a perdição.

Benedict não deveria ter virado a cabeça. Não deveria haver-se apoderado desses lábios carnudos
e tentadores.
Mas o tinha feito e, assim que roçou essa boca, seu afamado autocontrole saiu voando pela janela.
Aferrou-a pela nuca e a aproximou para beijá-la tal como levava desejando fazê-lo desde que pôs
os olhos nela.
Percebeu-se da rigidez que a embargava. Não há perigo, assegurou-lhe uma parte recôndita de
seu cérebro. A dama lhe daria um empurrão breve, acompanhado de um mais que provável bofetão
para piorar.
A dama não o empurrou.
Ao contrário, seu corpo relaxou, rendeu-se, e começou a lhe devolver o beijo. Seu cabelo lhe
acariciava com suavidade o dorso da mão, lhe suplicando que enterrasse os dedos nele. O aroma de
sua pele o embriagava como algum perigoso efúvio e o desejo que tinha suprimido até esse momento
ressurgiu com feroz intensidade.
Seu corpo recordou as sensações que haviam se apoderado dele enquanto a levava nos braços;
quão bem tinha encaixado neles; as delicadas curvas que tinha notado contra seus músculos. Naquele
momento tinha ansiado mais e lhe tinha suposto um enorme esforço manter a posterior conversa sem
revelar o frustrado que se sentia.
Não obstante, isso formava parte do passado. Nesse instante só lhe preocupava o presente.
Segurou-lhe o rosto com ambas as mãos e a beijou com ardor. Tinha sabor de sonhos de juventude e
desejos. A uma noite de bebedeira; a muitas noites solitárias.
Claro que ele não estava bêbado nem se sentia sozinho, e sabia muito bem que não devia ter
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saudades de seus sonhos, sua juventude, nem as paixões que esta suportava. Isso tinha fcado atrás.
Muitos anos atrás. No passado.
Devia reconhecer o perigo chegado a esse ponto, devia compreender o que era aquilo que estava
brotando em seu interior e lhe pôr freio.
Embora não era momento de pensar com lógica. Foi incapaz de reconhecer que o que estava
saboreando era perigoso, razão pela qual não compreendeu por que sua chamada era muito mais
insistente que a do bom senso. Quão único tinha claro era que estava saboreando uma mulher, que
estava cheirando uma mulher e que sentia as curvas de uma mulher... Uma mulher que estava
proibida, algo que a convertia em irresistível.
Notou que lhe colocava as mãos no peito e se segurava a seu casaco. Sentiu o roce de seus punhos
e seu coração começou a pulsar acelerado pela emoção, como o de um jovem que acabasse de
conseguir o primeiro sim dos lábios de uma garota. Baixou as mãos até seu queixo para lhe desatar o
chapéu e o tirou. Passou-lhe as mãos pelo cabelo e os brilhantes cachos se enroscaram em torno de seus
dedos como ele desejava eram muito mais suaves e sedosos do que imaginou. Essa mulher em
conjunto superava tudo o que um homem podia imaginar. E ele queria mais.
Apertou-a contra seu corpo e o beijo se tornou mais apaixonado enquanto tentava descobrir os
segredos de seu sabor. Deixou que suas mãos vagassem por suas costas até alcançar sua cintura, mas
quando tentou deslizá-la pelos fancos para chegar aos seios, ela se afastou.
Empurrou-o com uma força surpreendente.
—Não! Já basta! —Deu meia volta e recolheu o chapéu do chão da carruagem. - Isto é fatal! —
colocou o chapéu com um gesto irado e atou as ftas—. Foi uma estupidez imperdoável. O que é que
me passa? Não posso acreditar que... Grande idiota! Supunha-se que devia lhe dar um chute na canela
ou um bom pisão. Vendo isto, qualquer um diria que não conheço os homens. Foi um terrível engano!
Benedict voltou a encontrar sua voz e o escasso bom senso que restava.
—Sim, foi — reconheceu.
Fez provisão de sua famosa compostura e a ajudou a desembarcar da carruagem.
O perfeito cavalheiro, como de costume.
—Adeus — disse.
Ela se afastou sem corresponder à despedida. Rapidamente tinha desaparecido na escuridão.
Benedict resmungou uma blasfêmia e se dispôs a recolher os fragmentos do que até esse
momento tinha sido seu perfeito e ordenado mundo.

Capítulo 6

Sexta-feira, 5 de outubro
Para evitar que o criado se implicasse mais no segredo, Peregrine fez uma caixa de correio
improvisada na parede traseira, tirando alguns tijolos soltos perto da grade. Ali, a própria Olivia ou um
cupincha deixavam suas cartas e recolhiam as de Peregrine. Embora fosse uma menina, movia-se por
Londres com muitíssimo mais liberdade que ele.
A diferença de Peregrine, ela não tinha nenhum criado que a vigiasse constantemente. Além
disso, dava um bom desvio de sua casa à escola e vice-versa, detalhe que jamais tinha comentado a sua
mãe e isso era algo que o horrorizava e o fascinava em partes iguais.
Meteu-se entre as sebes, onde ninguém podia vê-lo, e abriu a carta.

Queen Square
Quinta-feira, 4 de outubro

Milorde: Adeus!
Chegou a Hora de Partir atrás de minha Cruzada.

—Não — disse Peregrine—. Não!


Tinha-lhe escrito duas extensas cartas em que explicava quão equivocada era sua Idéia de
encontrar o tesouro de Edmund DeLucey. O primeiro e mais importante de tudo era que as damas (e
ela era uma dama por direito de nascimento, algo que jamais devia esquecer) não iam à aventura sem
um acompanhante. O segundo era que devia ter em conta a dor e a preocupação que causaria a sua
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mãe, uma mulher muito agradável, sensata e inteligente, qualidades pouco comuns em outros pais.
Tinha escrito um terceiro, um quarto, um quinto e um sexto ponto... Um desperdício absoluto de tinta.
—Como se tivesse escrito à cabeça do jovem Memnon — resmungou.

Asseguro-lhe, senhor, que tenho lido e meditei Todas e Cada Uma das palavras que me tem
escrito. Entretanto, a Situação Alcançou Um Ponto Crítico. Mudamos a Queen Square na segunda-feira.
Nossos novos aposentos são muito acolhedores, e me alegra muitíssimo me mudar a um lugar afastado
do asilo de Saint Sepulchre. Mesmo assim, minha mãe parece Entristecer com cada dia que passa.
Muito temo que esteja Adoecendo, vítima de uma Enfermidade Debilitante. Finge comer e dormir, mas
não é mais que uma Farsa, já que está cada vez mais pálida e magra. Alegro-me de que meu pai não
esteja vivo para vê-lo, porque lhe romperia o Coração.
Deve você admitir que não Tenho um Momento a Perder, e devo partir IMEDIATAMENTE.
Tenha por seguro que tomei Muito A Sério suas palavras e não farei esta Viagem Sozinha. Sir Olivia
viajará com seu Fiel Escudeiro, Nat Diggerby. Seu tio leva uma carroça às segundas-feiras e as sextas-
feiras ao mercado. Acertamos nos encontrar com ele na fronteira do Hyde Park Corner. Levar-nos-á até
Hounslow. Estará você de acordo que é Um Plano Brilhante.

—Pois não estou idiota — disse Peregrine—. O que vai fazer uma vez que chegue a Hounslow?
Se é que chega ali. Será que não parou para pensar que seu «Escudeiro» Diggerby poderia te entregar a
seu tio, o fanfarrão, ou a sua tia, a proprietária do bordel?
Não podia acreditar que fosse tão inocente, quando estava tão espevitada em outros aspectos.
Supunha que essa defciência em sua educação se devia a que nunca tinha assistido a um colégio
público, onde os meninos aprendiam, junto com o latim e o grego, tudo o que teria que saber sobre
fanfarrões, alcoviteiras e prostitutas.
Não podia remediar essa lacuna em sua educação. A impulsiva criatura partia esse mesmo dia.
Tinha que detê-la.

Betsabé esteve meia hora esperando lorde Lisle antes de dar-se por vencida. Era evidente que
tinha entendido mal seus planos. Acreditava ter entendido que partia no sábado para Escócia. Seguro
que disse na sexta-feira, mas não o tinha ouvido bem porque tinha a cabeça em outro lugar.
Nem sequer recordava se tinha se despedido dela ou não. Claro que por que ia acreditar
necessário um menino de treze anos despedir-se de maneira especial de um professor de desenho? Seu
tio já se despediu de boas maneiras, uns dias depois de seu último encontro. Seu secretário lhe tinha
enviado uma amável carta de agradecimento, junto com o pagamento do resto das aulas que tinham
acordado.
Recolheu suas coisas, fechou a sala de aula e se encaminhou de volta a casa: uma nova casa,
graças a lorde Rathbourne... A quem jamais voltaria a ver.
Manter-se-ia afastado e ela estaria a salvo, muito a salvo. E aborrecida e melancólica...
... Até que, um par de horas depois, tirou a toalha do aparador e encontrou a carta que Olivia lhe
tinha deixado.

Peregrine chegou ao Hyde Park Corner cansado, suarento e zangado. Perdeu-se várias vezes e
em duas ocasiões se viu obrigado a fugir de uns valentões que perceberam sua custosa aparência. Em
circunstâncias normais, teria se lançado sobre eles para fazê-los em pedacinhos. Mas não podia perder
tempo, e o fato de ter-se visto obrigado a fugir tinha de sobremaneira piorado seu humor.
Também estava zangado consigo mesmo por não ter tido o tino de apanhar uma carruagem de
aluguel e evitar assim todas essas moléstias.
Esse não era o melhor estado de ânimo para aproximar-se de Olivia, que estava falando com
umas vendedoras de doces. Junto a ela estava um menino tão robusto como um touro: Nat Diggerby,
sem dúvida alguma. A cabeça lhe saía diretamente dos ombros, sem pescoço à vista, e eram uns
ombros tão largos que teria que passar de lado pelas portas. Além do aspecto, sua postura era a mesma
do animal em questão: cabeça encurvada, observando o que acontecia a seu redor só com o movimento
dos olhos.
Peregrine endireitou os ombros, inchou o peito e se aproximou deles. Em lugar do cuidadoso e
respeitoso discurso que tinha estado ensaiando, disse:
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—Senhorita Wingate, vim para levá-la para casa.
Seus enormes e inocentes olhos azuis se abriram como pratos.
—Por quê? Aconteceu algo a mamãe?
—Não, mas a você sim — respondeu—. Inclino-me por um golpe na cabeça. É a única maneira de
explicar este plano tão absurdo.
Com o cenho franzido, o moço com pinta de touro fcou diante de Olivia.
—Ouça você, vá passear — disse.
—Vá passear você — soltou Peregrine—. Não estou falando contigo.
O tal Nat o agarrou pelo peitilho.
— Tire essa mão de cima de mim — ordenou Peregrine.
—Huy, ouviu? —zombou o outro—. Pequena galinha.
—Galinha, é seu pai — replicou Peregrine, e ato seguido lhe estampou o punho na mandíbula.

Benedict estava em seu clube quando lhe disseram que um de seus criados desejava falar com ele.
Isso não era bom sinal.
A última vez que um criado tinha ido buscá-lo o clube foi quando Ada desmaiou sem mais ao
retornar a casa depois de um de seus encontros religiosos.
Mesmo assim, entrou composto e tranqüilo na sala de espera onde Thomas esperava.
Ao vê-lo entrar, o lacaio engoliu saliva.
Um mau sinal.
Fazendo caso omisso do frio que se estendia por suas veias, Benedict pediu que lhe explicasse o
que acontecia da forma mais sucinta possível.
—Trata-se de lorde Lisle, milorde — disse Thomas, pestanejando sem parar—. Não sei onde está.
Entrou na loja de quadros como de costume. Eu fui à cafeteria para esperá-lo, como sempre faço. Saí à
hora de costume, uns minutos antes que terminasse a aula. Lorde Lisle não saiu, senhor. Esperei um
quarto de hora e logo subi à sala. A sala de aula estava fechada e ninguém respondeu quando bati na
porta. Desci à loja e perguntei ao senhor Popham se a aula de desenho tinha terminado. Disse-me que
não tinha havido aula, que a senhora Wingate partiu cedo para casa porque seu aluno não tinha
aparecido.
O frio foi se estendendo, intumescendo a seu passo as sensações. O tempo pareceu deter-se, como
se estivesse congelado.
—Entendo — disse. Ato seguido pediu que levassem seu chapéu e seu casaco e partiu com o
lacaio.
Durante o curto trajeto a pé até a casa e enquanto mantinha as emoções sob um frme controle,
Benedict serenou sua mente com a intenção de analisar o problema como se fosse um dos problemas
que diariamente lhe pediam que resolvesse:
Quando entrou em casa, milhares de inverossímeis possibilidades se reduziram a dois, muito
mais prováveis dadas as circunstâncias:

1. Peregrine tinha fugido.


2. Apesar de todas as precauções tomadas, alguém tinha averiguado sua identidade e o tinha
seqüestrado.

Subiu ao dormitório de seu sobrinho com Thomas. O registro do aposento não indicou que se
tratasse de uma fuga preparada. Não faltava roupa, disse Thomas, salvo a que lorde Lisle usava.
Entretanto, quando interrogou mais a consciência, o lacaio lhe proporcionou dois dados muito
importantes. Primeiro, o jovem tinha travado amizade com uma menina ruiva no Museu Britânico
duas semanas atrás. Segundo, tinha desenvolvido o costume de visitar o jardim várias vezes ao dia.
Benedict destruiu várias sebes e arriou várias fores antes de descobrir os tijolos soltos na parede,
muito perto da grade. Aderido a um dos tijolos havia um pedaço de lacre e um papel.
Retornou ao dormitório. Seus olhos se cravaram no batente acolchoado da janela que dava ao
jardim. Um lugar onde tinha encontrado seu sobrinho em numerosas ocasiões, concentrado na leitura.
Minutos mais tarde achou as cartas, escondidas entre as páginas do livro de Belzoni.

Lorde Lisle não demorou muito tempo em deixar um surpreso Nat Diggerby jogado a um lado
do caminho. Embora fosse mais que sufciente para congregar toda uma multidão, o que deu a Olivia a
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oportunidade de afastar-se sem que ninguém se desse conta.
A multidão chamou a atenção dos transeuntes e, em conseqüência, o tráfco se parou. Um bom
número de carruagens, cavalos e transeuntes se amontoaram a ambos os lados do caminho da
fronteira. Entre aqueles que se viram obrigados a esperar se encontrava um jovem camponês que
conduzia uma pequena carreta. Olivia se aproximou dele. Com esses enormes olhos azuis coalhados de
lágrimas. De seus trêmulos lábios brotou uma história enternecedora a respeito de uma mãe doente
que a aguardava em Slough.

Comovido, o camponês se ofereceu a levá-la até Brentford.


Olivia subiu à carreta.
Antes que pudessem passar a fronteira, lorde Lisle os alcançou correndo.
—Pirralha mal educada! —exclamou—. Não vou permitir isso
—Caramba, meu irmão! —disse ao camponês—. Está transtornado de dor. Disse-lhe que fcasse
em Londres. Está convencido de que vai encontrar trabalho. Mas...
Começou a contar a trágica história das desgraças familiares. O camponês a tragou de cabo a rabo
e disse lorde Lisle que podia unir-se a sua irmã se quisesse.
Lorde Lisle olhou a seu redor sem saber o que fazer. Um par de soldados tinha agarrado Nat
Diggerby e o levavam a rastros para a guarita do guarda.
Subiu à carreta.

Betsabé acendeu outra vela e releu a carta, porque na primeira leitura acreditou que seus olhos a
estavam enganando.
Depois de lê-la pela segunda vez a embargou a fúria.
O plano da Olivia lhe resultava muito familiar. Era o mesmo método que seus pais usavam para
lutar com seus problemas: pôr todas suas esperanças em um plano amalucado que solucionaria todos
seus problemas de um traço, em lugar de atacá-los pela raiz, um a um. Jogavam o dinheiro em uma
tiragem de jogo de dados em vez de utilizá-lo para pagar o aluguel.
Deixou a carta de um lado.
—Espere que te ponha as mãos em cima, carinho.
Claro que primeiro tinha que encontrá-la.
A carta não revelava seu destino. Embora dissesse que ia em busca do legendário tesouro de
Edmund DeLucey, e isso era uma pista muito valiosa em si mesmo.
Iria ao Throgmorton, a casa ancestral do conde de Mandeville, porque ali era onde Jack havia dito
que se encontrava o tesouro. Por que fazer caso a uma mãe aborrecida quando as histórias de papai
eram muito mais emocionantes e novelescas?
A única interrogante era a vantagem que Olivia levava. Algumas horas no máximo supôs. Se
tivesse saltado as aulas, a senhorita Smithson já teria comunicado. Com um pouco de sorte, poderia
alcançá-la em questão de horas e não de dias.
Mesmo assim, para ir atrás dela, necessitava dinheiro, o que signifcava que tinha que ir a uma
casa de penhores. Não estava segura de onde se encontrava a mais próxima. Mas a senhora Briggs
saberia. Enquanto isso tinha que encontrar algo que pudesse empenhar.
Começou a rebuscar por todos os cômodos. Esvaziou os armários e as gavetas, tirou os lençóis
dos colchões. Fez um monte meio do aposento. Estava empacotando as escassas peças do faqueiro que
ainda restavam quando alguém bateu na porta.
Levantou-se, afastou o cabelo do rosto e se aproximou da porta, rezando porque o visitante fosse
o guarda ou um agente da lei com Olivia atrás. Abriu-a.
O homem que aguardava no mal iluminado vestíbulo não era nem o guarda nem um agente da
lei.
—Senhora Wingate — disse lorde Rathbourne com uma expressão de enfastiado aborrecimento
—, acredito que sua flha fugiu com meu sobrinho.

O lugar parecia um desastre, e a senhora Wingate não se encontrava em melhores condições. O


penteado se tinha desfeito, de modo que vários cachos negros lhe caíam pela testa e lhe acariciavam o
pescoço. Tinha o rosto ruborizado, uma mancha no nariz e outra na face. Fulminou-o com o olhar.
E ele desejou estreitá-la entre seus braços e beijá-la até que deixasse de franzir o cenho.
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Viu-se obrigado a voltar para a realidade e a recordar por que estava ali: Peregrine.
Que não estava presente, tal como comprovou no curto intervalo de tempo que demorou para
registrar a habitação. Caiu-lhe a alma aos pés. Todas as provas indicavam que seu sobrinho tentaria
deter a senhorita Wingate em lugar de unir-se a ela em sua escapada.
Entretanto, Benedict levava quase duas semanas de enlouquecedor aborrecimento e fcava
impossível olhar a Betsabé Wingate, desarrumada e zangada, sem sentir-se abatido.
—Peço-lhe desculpas por não avisar de antemão — disse—. Devia pedir à senhora Briggs que me
anunciasse, mas tinha companhia. Não me pareceu prudente esperar em seu salão, incomodando seu
convidado, enquanto ela vinha lhe perguntar se gostaria de receber visitas. Eu disse que vim para
inspecionar o lugar. Posso entrar?
—Sim, por que não? —Com um gesto indiferente, a senhora Wingate se separou da porta—.
Estava a ponto de ir a uma casa de penhores, mas isto... —passou uma mão por esses lustrosos cachos
—. Lorde Lisle também desapareceu? Com Olivia? Mas se mal se conhecem.
—Parece ser que chegaram a conhecer-se bastante bem — replicou—. Levam semanas mantendo
correspondência em segredo.
Depois de uma breve explicação a respeito de seus recentes descobrimentos, tirou do bolso
interior do casaco a última carta dirigida a Peregrine e a estendeu.
Ela a leu com rapidez e depois se deteve, com o rosto avermelhado.
—«Pálida e magra», como não — murmurou—. Ah temos uma amostra de sua criativa
imaginação.
Benedict não era da mesma opinião. Embora a senhora Wingate não estivesse pálida nesse
momento, seu rosto parecia mais magro, mais marcado. Enquanto seguia lendo, ele aproveitou para
observá-la. A última vez que a viu parecia mais voluptuosa...
A última vez que a beijou.
A última vez que a tocou.
«Pensa no tempo», disse-se.
Viu-a dobrar a carta com gestos bruscos.
—Seguro que escondeu- as de lorde Lisle em algum lugar - aventurou—. Não vejo motivos para
perder tempo procurando-as. Será melhor que o empreguemos em procurá-la... E também lorde Lisle,
se é que está com ela, coisa que não posso acreditar. É um jovem muito sensato. Questiona tudo, como
você me disse. Não posso acreditar que não tenha questionado o plano de Olivia. Teria jurado que
tivesse bom senso, que não se deixaria enredar em um de seus amalucados planos.
Benedict devolveu a carta ao bolso interior.
—Sou da mesma opinião — conveio—. Não consigo acreditar que Peregrine esteja envolto no
plano. Em sua última carta, como certamente se deu conta, sua flha menciona tal Nat Diggerby como
seu acompanhante e também fala sobre as dúvidas de Peregrine a respeito de sua cruzada. Isso indica
que tentou dissuadi-la. Em cujo caso, podemos supor com relativa segurança que tentou detê-la. Vim
com a esperança de que o tivesse conseguido e houvesse a trazido para casa.
—Não poderia fazê-lo só — repôs —. Se me tivesse pedido conselho, teria lhe recomendado que
levasse um agente da lei com ele. Ou um batalhão de soldados.
«Qualquer outra mãe estaria histérica ou teria desmaiado», pensou Benedict. A senhora Wingate
nem sequer parecia nervosa. Embora sim estivesse zangada, não havia dúvida.
—Como eu não tenho treze anos, não me fará falta um regimento de soldados — aduziu—. E
tampouco me passaria pela cabeça a idéia de avisar às autoridades. A única coisa que não preciso é que
alguém se inteire disto... —Se algum membro da alta sociedade soubesse do desaparecimento, a
história correria por Londres como rastilho pólvora. Chegaria aos ouvidos de Atherton na Escócia em
questão de dias. Uma possibilidade nada aduladora—. Thomas, o lacaio, bastará para meus propósitos
— continuou—. Entre os dois estou seguro de que poderemos apanhar um par de meninos. —Fez gesto
de voltar-se para a porta.
Ela se apressou a lhe cortar a retirada. Seus olhos azuis relampejaram e quase deu um passo
atrás... Pela surpresa, claro estava.
—Está você incomodado — disse— de modo que vou desculpar seu atordoamento.
—Que vai desculpar meu o que...?
—Tudo isto é obra de Olivia — prosseguiu ela—, e Olivia é meu problema. Sei como funciona sua
cabeça. Sei aonde vai. E sou eu quem vai procurá-la. —O rubor de suas bochechas aparecia e
desaparecia—. Entretanto, pode me economizar tempo se me emprestar o dinheiro necessário para
alugar uma carruagem.
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A petição esteve a ponto de deixá-lo boquiaberto. Reprimiu o gesto a tempo.
—Se acreditar que vou fcar em casa de braços cruzados enquanto você persegue meu sobrinho,
deve ter perdido o juízo — replicou—. Porque Peregrine não é responsabilidade sua, e sim minha.
—Pois você deve estar maluco se espera que seja eu que fque em casa de braços cruzados.
—Um dos dois deve ir — particularizou-o—. E outro deve fcar. Não podemos viajar juntos.
—Evidentemente — conveio ela—, mas você está muito perturbado para pensar com claridade.
—Perturbado? —repetiu sem dar crédito—. Nunca na vida me perturbei.
—Não está usando a lógica — acusou a senhora Wingate—. Quer manter isto em segredo, não?
—É obvio que...
—Eu passarei mais despercebida que você — o interrompeu com atitude impaciente—. Não pode
fazer perguntas sobre um par de meninos sem causar falatórios. Sua simples aparência diz aos gritos
que é um aristocrata. Comportar-se-á como se estivesse aborrecido e recorrerá ao sarcasmo e à
superioridade, assumindo que está no comando. Qualquer um que o veja saberá quem é como se
tivesse escrito na testa seu título e sua linhagem.
—Sei ser discreto — replicou.
—Não sabe ser normal e comum — insistiu ela.
Como se ela pudesse ser normal e comum, pensou Benedict, com esse rosto e esse corpo. Os
homens se virariam para olhá-la em qualquer parte. A seguiriam a toda parte com a língua de fora.
Apertou os punhos. A senhora Wingate viajando sozinha em um veículo de aluguel, de noite,
sem acompanhante, sem nem sequer uma criada...
Impensável.
—Não pode viajar sozinha — concluiu em um tom gélido que qualquer outra pessoa teria
compreendido que dava por resolvida a discussão.
—Estou viajando sozinha há três anos — protestou ela.
Benedict sentiu desejos de sacudi-la. Obrigou-se a abrir as mãos. Recorreu a sua paciência.
—Ia acompanhada de sua flha — explicou—. As pessoas não tratam às mulheres que viajam
sozinhas como às mães que viajam com seus flhos.
—Isto é ridículo — disse ela, virando-se de repente—. É uma perda de tempo discutir com você.
Farei o que tinha planejado. —aproximou-se dos pertences que tinha amontoadas no chão e começou a
fazer uma trouxa.
Conforme havia dito antes, ia a caminho a uma casa de penhores.
Perguntou-se se haveria algum modo de detê-la além de deixá-la inconsciente com um golpe,
imobilizá-la com uma camisa de força ou atá-la à perna de um móvel pesado.
— Deixe-o ordenou no tom que estava acostumado a reservar para os parlamentares exaltados
—. Esqueça-se da casa de penhores. Uniremos nossas forças.
—Não podemos...
—É você tão teimosa que não me deixa outra opção — resmungou—. Prefro que me enforquem
antes de deixar que vá sozinha.

Enquanto esperava que a senhora Wingate apanhasse seu chapéu, seu casaco e qualquer outro
objeto que considerasse necessário, Benedict tentou religar sua língua e seu cérebro.
Nunca falava com as mulheres com esse tom.
Sempre era paciente com elas.
Mas essa em concreto...
Era um problema.
A coisa não melhorou quando saíram da casa, depois que a senhora Wingate se deteve um
instante para falar com a senhora Briggs.
—Um tílburi? —perguntou-lhe enquanto se detinha nos degraus para examinar o veículo que
estava junto à calçada—. Uma carruagem aberta?
—Acaso supunha que tinha escolhido uma carruagem de quatro cavalos? —perguntou Benedict
a sua vez—. Vê acertado que leve um chofer em semelhante viagem?
—Mas isto não serve — protestou—. É muito elegante.
—É alugado, necessita uma capa de pintura e tem pelo menos dez anos — assinalou-o—. Você
não tem a menor idéia do que é elegante. Suba.
A senhora Wingate se aferrou a seu braço com o olhar cravado em Thomas, que segurava os
cavalos.
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Perfeito
—Não podemos viajar com um criado — disse.
«Paciência» recordou-se Benedict.
—Alguém tem que ocupar-se dos cavalos — explicou pacientemente—. Você nem se dará conta
de que está conosco. Sentará atrás e manterá a vista na paisagem enquanto pensa em suas coisas.
Deu-lhe um puxão no braço enquanto fcava nas pontas dos pés para lhe sussurrar ao ouvido:
—Devia ter a cabeça em outro lugar quando o trouxe. Os criados são os maiores fofoqueiros do
mundo, piores que as velhas. Amanhã mesmo toda Londres saberá o que estive fazendo e com quem.
Benedict notou o seu fôlego na orelha e foi muito consciente da mão que lhe apertava o braço.
Levantou-a do chão e a deixou no assento do tílburi. Quando se sentou a seu lado, lhe disse:
—Ofender-se-ia se dissesse que estamos no século dezenove e não no nove? Este tipo de
comportamento passou de moda junto com as cotas de malha e os véus de freiras.
Thomas não perdeu um instante e ocupou seu lugar.
Benedict açulou aos cavalos antes de replicar:
—Não estou acostumado a dar explicações de meus atos, senhora Wingate.
—É evidente.
Começou a chiar os dentes. Obrigou-se a parar, e também se obrigou a recordar outra de suas
regras: «As mulheres e as crianças, possuem cérebros menores e, portanto uma capacidade de
raciocínio menor requer em conseqüência um maior grau de paciência».
De modo que lhe explicou, jogando mão da dita paciência:
—Thomas não é um criado londrino. É um homem do campo, que cresceu na propriedade que
minha família tem em Derbyshire. Seu trabalho como lacaio o faz tão competente com os cavalos como
qualquer criado de estábulos. O fz participar de minha confança faz semanas, quando Peregrine
começou as aulas de desenho. Não lhe teria confado um assunto tão delicado se não estivesse
absolutamente seguro de sua discrição.
A senhora Wingate soprou, sentou-se com as costas muito rígidas e cruzou as mãos sobre o
regaço.
—Desculpe-me por ter posto em dúvida seu bom senso — disse—. Depois de tudo, não é de
minha incumbência carecer dele ou não. Eu não sou a responsável pelo flho único e herdeiro do
marquês de Atherton. E não sou eu quem vai ver-se arrojada do pedestal quando o mundo descobrir
que não só permitiu, mas também estimulou seu sobrinho a se relacionar com pessoas questionáveis.
Eu não vou a...
—Oxalá tivesse escutado a regra «O silêncio é ouro» — a interrompeu.
—Não sou um político — aduziu-a—. Estou acostumada a dizer o que penso.
—Teria jurado que a preocupação por sua flha ocuparia por completo sua mente.
—Duvido muitíssimo que Olivia sofra algum percalço — disse—. Oxalá pudesse dizer o mesmo
daqueles que cruzarem seu caminho.

Capítulo 7

Embora o tílburi fosse um veículo muito vistoso para passar inadvertido, Betsabé teve que
reconhecer que possuía certas vantagens, como a velocidade e a mobilidade.
Detiveram-se perto de Hyde Park Córner pouco antes que os sinos das Igrejas assinalassem as
seis em ponto.
Embora não estivesse tão concorrida como estaria em pleno dia, a área não estava muito menos
deserta. O aguadeiro ainda não tinha acabado com sua tarefa e seguia levando baldes de água até os
carros de aluguel que se alinhavam na parada. Um grupo de soldados conversava sob uma luz. Uma
leiteira retornava a Knightsbridge com seus baldes vazios. O encarregado da fronteira fcaria toda a
noite por diante.
Alguns dos pressente estariam na área à tarde. Se Olivia tivesse passado por ali, havia a
possibilidade de que alguém ter reparado nela.
Portanto, Betsabé apeou enquanto lorde Rathbourne se afastava no tílburi, tal como concordou
fazer não muito cortesmente depois de uma breve, mas acalorada discussão. Esperá-la-ia um pouco
mais adiante, frente à Horse Barracks.
Em primeiro lugar falou com o aguadeiro, que lembrava- se de Olivia perfeitamente. E não foi o
único. Como era de esperar, havia feito uma cena.
Betsabé retornou ao tílburi pouco depois.
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Perfeito
—Bem? —perguntou lorde Rathbourne.
—O suposto escudeiro de minha flha, Nat Diggerby, acabou no tribunal por ocasionar um
alvoroço — respondeu—. Olivia, ao mais puro estilo DeLucey, deixou-o caído e procurou outro imbecil.
Uma vendedora de doces escutou como contava a um jovem camponês uma comovedora história sobre
sua mãe doente. —Descreveu a cena tal como tinham contado a ela e acrescentou—: Lorde Lisle deve
possuir uma veia cavalheiresca. Olivia, em troca, o teria abandonado sem pensar duas vezes. Mas
parece que alguém lhe inculcou o sentido da responsabilidade.
E tinha a frme suspeita de que esse alguém não era outro senão lorde Rathbourne. Apesar do
pouco que falava do jovem, tinha notado claramente desde o começo que entre eles havia um forte
vínculo emocional. E a ira que Sua Excelência gotejava ao falar dos métodos que lorde Atherton
empregava para lutar com seu flho deixava perfeitamente claro que seu sobrinho era muito
importante para ele. A amalucada escapada de Olivia podia pôr em perigo a relação entre tio e
sobrinho.
Típico, pensou um tanto afita. Cada vez que um atroz DeLucey aparecia em cena, a vida de
alguém mudava, e raras vezes eram para melhor...
—Embora seus pais não sejam capazes de reconhecê-lo, Peregrine é muito amadurecido para sua
idade — disse lorde Rathbourne enquanto açulava os cavalos para que entrassem em movimento—.
Para ele seria impensável deixar que uma menina de doze anos viaje sem proteção alguma.
—Entre as classes baixas se considera que uma pessoa de doze anos já é adulta em todos os
sentidos — replicou ela—. Olivia não viveu entre mimos. Além disso, herdou o talento de minha
família para sair dos atoleiros mediante mentiras e enganos. A história da mãe doente é um claro
exemplo do que lhe estou dizendo. Às vezes me pergunto para que esbanjar o dinheiro em sua
educação quando minha flha poderia estar ganhando uma fortuna escrevendo melodramas para o
teatro e para os jornais sensacionalistas.
Lorde Rathbourne a olhou.
—É impossível que você seja tão cínica e desapaixonada — afrmou—. Não acredito.
—Com Olivia não se pode permitir o luxo da compaixão — assegurou—. Se for assim, ela se
aproveitaria. É uma menina horrível. Só há duas opções: enfrentar a realidade ou mascará-la e observar
como vai direto ao inferno. E me nego a deixar que vá ao inferno. Portanto, não posso deixar que as
emoções nublem meu juízo nem fngir que é uma menina normal e comum.
Houve um silêncio. Betsabé deixou que se prolongasse. Era evidente que sua insensibilidade o
tinha escandalizado. Tanto por sua condição de aristocrata como pela de homem, não tinha a menor
idéia do que implicava a educação de um menino de caráter difícil. De fato, muito poucas mulheres de
sua classe social sabiam. Sempre havia outra pessoa ao encargo de seus flhos.
Entretanto, não o disse em voz alta. Não queria que lorde Rathbourne se compadecesse dela.
Nem sequer queria cair bem; ao menos isso pensava sua parte sensata. A Betsabé sensata se alegrava de
que a crise os tivesse enfrentado. As hostilidades os manteriam prudentemente distanciados.
Sua Excelência falou um tempo depois. Ou melhor, resmungou:
—Disse que partiram na carreta de um camponês. Averiguou a direção que tomaram?
—O camponês lhes disse que podia levá-los até Brentford — respondeu—. Suponho que o
destino de Olivia é Bristol.
—Bristol é um lugar um pouco estranho para que um pirata enterre um tesouro — replicou ele.
—Não há nenhum tesouro — assegurou—. É uma lenda, nada mais. E Edmund DeLucey
tampouco era um pirata. Expliquei a Olivia milhares de vezes. Vê-se que foi em vão.
—E qual é a verdade?
—Meu bisavô tinha a idéia de converter-se em um pirata, certo — respondeu—. Mas não
demorou a desprezá-la. Edmund era um dandi e um afetado, ou como quer que se diga naquela época.
Não demorou em descobrir que os piratas eram uns ladrões brutos, mal vestidos e sujos. Um estilo que
não ia com ele. Além disso, como tampouco eram muito preparados, era muito normal que acabassem
mutilados, desmembrados, afogados ou enforcados. De modo que Edmund pensou que o contrabando
iria melhor. Brincar de gato e camundongo com as autoridades inglesas era muitíssimo mais entretido.
O que mais gostava eram as incursões arriscadas na desembocadura de Severn, a poucos quilômetros
da casa ancestral da família.
—Deus! —exclamou lorde Rathbourne—. Tinha-me esquecido. Os... Outros DeLucey.
—Os bons — ela apostou.
—Os menos interessantes — corrigiu ele—. A casa ancestral vinculada ao título está perto de
Bristol, se não me falha a memória.
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Perfeito
—Todos os membros de minha família sabem onde está Throgmorton. Conhecem a mansão
muito bem, embora a nenhum deles ocorresse aproximar-se de menos de cem quilômetros da mesma
— disse—. Entretanto, não se cansam de alardear de Edmund DeLucey. E, talvez porque Jack também
tinha uma veia rebelde, não se cansava de escutar coisas sobre ele. Começou a relatar a Olivia quando
mal era um bebê. As contava pelas noites, como se fossem contos. Naquele tempo pensei que quando
minha flha crescesse, compreenderia que o tesouro enterrado não era mais que uma invenção, como os
contos das mil e uma noites.
—Dadas as circunstâncias, a existência de um tesouro não é descabida — replicou lorde
Rathbourne—. Um contrabandista poderia acumular uma fortuna com facilidade.
—Sim — conveio—. Mas por que ia enterrá-la?
—Certo, seria estranho — reconheceu-o.
—Não teria sentido — prosseguiu Betsabé—. Edmund era um esbanjador. Para que ia enterrá-la
se podia gastá-la? Repeti-o até não poder mais. Nós três mantivemos esta mesma discussão milhares e
milhares de vezes. Até que se converteu em um jogo que nos encetávamos antes de ir para cama.
«Onde acha que Edmund DeLucey enterrou o tesouro, mamãe?», perguntava Olivia enquanto a
agasalhávamos. «Os homens como ele não enterram os tesouros — respondia eu—. Gastam em um
abrir e fechar de olhos em bebida, jogo e mulheres.» De modo que perguntava a Jack: «Onde você acha
que o enterrou, papai?», e lhe respondia: «Justo diante do nariz de sua família. Ali o teria escondido eu
se estivesse em seu lugar. O teria enterrado em plena noite aos pés do mausoléu onde apodrecem os
ossos de seus venerados ancestrais. Os lucros de meus trabalhos enterrados em chão sagrado... “E
depois por-me-ia a gargalhadas cada vez que lembrasse». —Escutou lorde Rathbourne ofegar —. O
escandalizei, milorde? — perguntou-lhe.
Acabavam de chegar à fronteira de Hogmire Lane. Sua Excelência deteve o tílburi.
—Sim, como não vou estar escandalizado — respondeu em voz baixa—. Seu marido deitava sua
flha. Contava-lhe contos. Assombroso...

O encarregado da fronteira lhes disse que tinha visto muitas carretas para lembrar-se de uma em
particular, por muitas crianças que levasse.
De qualquer forma e como esse era o caminho habitual a Brentford, Benedict continuou. Para
maior frustração, teve que fazê-lo muito mais devagar do que teria gostado. Esse lance do caminho,
embora pavimentado e, portanto menos poeirento que o que tinham deixado atrás, era bastante mais
estreito e estava muito mais transitado.
Tentou concentrar-se, tal como tinha feito com antecedência, no manejo das rédeas, já que
conduzir de noite era sempre difícil. As lanternas do tílburi proporcionavam um pouco de luz, mas não
sufciente para iluminar o caminho. As luzes convertiam as ruas em um triste crepúsculo.
Tentou manter seus olhos e sua mente atenta ao caminho enquanto a voz de Betsabé Wingate o
envolvia.
Estava acostumado a deixar que as vozes femininas futuassem ao seu redor enquanto sua mente
refetia sobre algum assunto importante como as viúvas e os veteranos de guerra, a inefcácia dos
métodos policiais ou a complexidade da lei inglesa.
Não obstante, era incapaz de fechar sua mente à voz de Betsabé Wingate. Escutou todas e cada
uma de suas palavras. Não podia fazer ouvidos surdos a sua conversa. Era muito consciente de sua
presença no assento do tílburi. Um assento que não era bastante amplo. Quando o veículo estava em
movimento, o único modo de manter-se afastado do outro ocupante era agarrando-se à barra lateral,
coisa que faria se não tivesse as rédeas nas mãos e se não fosse ridículo, que o era...
Assim que se roçaram em mais de uma ocasião; quadril contra quadril; coxa contra coxa.
E cada um desses roce lhe recordou a última vez que se haviam tocado. O beijo que
compartilharam semanas atrás. Recordou o sabor de sua boca, o cheiro de sua pele e o irrefreável
desejo que tinha despertado nele.
Para distrair-se das reações físicas, concentrou-se no que lhe estava dizendo. E como resultado
desejou saber mais coisas sobre Jack Wingate.
A imagem que estava pintando sua viúva não correspondia com a do resto do mundo. A alta
sociedade o via como a vítima de uma sereia desalmada, como um homem destruído por uma paixão
fatal. Ele o tinha imaginado como um homem abatido, só e exilado do mundo ao qual pertencia por
direito de nascimento.
O Jack Wingate do que sua viúva falava parecia um tipo que tinha encontrado seu lugar no
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Perfeito
mundo. Seus comentários sobre o lugar onde teria enterrado o tesouro pareciam ter saído de lábios de
um atroz DeLucey. De fato, era ele quem parecia o DeLucey, não sua viúva. Intrigado, Benedict decidiu
indagar no assunto.
Era muito bom para indagar com sutileza e manipular outros quando queria surrupiar
informação. Embora só o fzesse para fns políticos. Se o utilizava para promover causas louváveis ou
para acabar com os inimigos, estava justifcado. O emprego de semelhantes métodos em uma conversa
de índole pessoal era de muito mau gosto.
Regra: «Bisbilhotar assuntos privados de outras pessoas é a ocupação preferida das mentes
inferiores», recordou-se.
Nada mais longe de sua intenção que proporcionar retalhos de sua vida privada. O único
problema era que a proximidade dessa mulher supunha uma fonte constante de irritação e distração, e
as palavras saíram de seus lábios antes que sua irritada e distraída mente tivesse oportunidade das
medir como devia.
Essa devia ser a razão pela qual pouco depois de deixar atrás Kensington House, imersos em um
engarrafamento provocado por um bom número de veículos, dissesse:
—Estou profundamente escandalizado. Sempre acreditei que são as babás as que deitam as
crianças e lhes contam contos. A diferença dos pais, cujo trabalho é a de averiguar por que atou a seu
irmão pequeno ao poste de uma cama e lhe cortou quase todo o cabelo com um canivete.
Não tinha acabado de pronunciar essas palavras quando já estava se arrependendo. Claro que
não teve tempo para preocupar-se. De repente, viu um espaço entre a sólida aglomeração de
carruagens e se apressou a açular os cavalos para sair do engarrafamento.
Embora estivesse atento a manobra, notou que ela se removia no assento e se virava para ele.
Notou seu olhar no rosto como se tratasse da carícia de uma mão... E compreendeu que tinha escutado
todas e cada uma de suas palavras.
—Por que o fez? —perguntou-lhe.
—Fingíamos estar nas Colônias Americanas — respondeu, trabalhando em excesso por empregar
um tom de voz desenvolto—. Eu era o chefe índio. —Sempre era o chefe índio porque era o mais
moreno—. Geoffrey era meu prisioneiro inglês e lhe arranquei a cabeleira.
Ela prorrompeu em gargalhadas e seu som, tão tentador e sensual, esteve a ponto de lhe arrancar
um sorriso.
—Não era um menino perfeito — comentou a senhora Wingate.
—Nem por indício — reconheceu. Tinha odiado com todas suas forças os cachos loiros de
Geoffrey, seus olhos ambarinos e seu rosto doce e angélico—. Também teria arrancado de Alistair, se
tivesse conseguido lhe pôr as mãos em cima, mas estava a salvo com sua babá em outra parte da casa.
Ela não disse nada. Ele tampouco precisava comentar nada mais, mas...
—As babás chamavam meus irmãos de «anjinhos loiros» — prosseguiu—. Não tinham nem um
fo de angélicos, mas o aparentavam.
—Também deveria ter arrancado o cabelo das babás — replicou ela—, por imbecilidade.
—Não era mais que um menino, tinha uns oito ou nove anos naquela época — disse—. Geoffrey
e Alistair eram loiros e eu era moreno. Eles eram anjinhos loiros, e eu... Não me deixaram outra opção.
—E que outra coisa ia pensar? —veio à senhora Wingate com voz sentida—. Em seu lugar, eu
teria feito exatamente o mesmo.
Benedict a olhou.
—Não, não o teria feito.
—Porque sou uma mulher? —replicou, com as sobrancelhas arqueadas.
—As meninas não se comportam assim.
—Que pouco conhece as mulheres — repôs—. Todas as crianças são pequenos selvagens, embora
sejam meninas... Ou talvez especialmente por isso.
—Nem «todos» os meninos os são contradisse—. Ou ao menos não durante muito tempo.
Certamente que não é assim no caso do primogênito. Assim que chega o segundo irmão, começamos a
ter responsabilidades. Deixamos de ser somente meninos. «Tem que cuidar de seu irmão, Benedict»,
diziam-me.
«É menor que você», acrescentavam. Ou «Deveria ser mais cuidadoso, Benedict, você é o maior»,
aconselhavam-me.
—Isso lhe dizia seu pai?
—Mais ou menos. Não recordo muito dos sermões, salvo o fnal. Sempre suspirava e dizia que
Oxalá tivesse tido flhas.
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—Isso não era mais que a exasperação própria de um pai — disse ela—. Poucos homens, e nem
um só aristocrata, desejariam ter flhas em lugar de flhos.
—Ele o dizia a sério — assegurou—. E não deixou que repeti-lo após.
—Seriamente?
—Sim.
—Por quê? Você e seus irmãos deixaram atrás a etapa mais irritante. Já são adultos.
—Não para sua inteira satisfação — explicou.
Ela se virou no assento para olhá-lo.
—Inclusive em seu caso? Inclusive sendo lorde Perfeito?
—Sou perfeito segundo o nível convencional — respondeu—. Meu pai não é convencional. Não
há nada convencional nele. Nem sequer sei se é humano. De qualquer forma — acrescentou com
presteza—, não nos contava contos quando íamos para cama. Não tinha nem a menor idéia de que os
pais fzessem algo assim.
—Então é bastante improvável que os pais de Jack o fzessem — disse ela—. Os atrozes DeLucey
devem tê-lo corrompido.
—Não necessariamente — contradisse—. Conforme disse, seu marido era um tanto rebelde.
Talvez, igual acontece a Peregrine, desejava outro tipo de vida. Talvez formasse parte de sua natureza
ser pouco convencional. E Jack Wingate devia experimentar entre os DeLucey o tipo de liberdade que
jamais teria encontrado entre os respeitáveis limites da alta sociedade. Com eles encontrou um mundo
sem regras.
—Resultou muito simples adaptar-se, verdade seja dita — replicou ela—. Embora sim soubesse
onde estava a linha entre a realidade e a fcção. Não estou segura de que minha família saiba. Tecem
uns contos engenhosos e é possível que suas mentiras resultem tão convincentes porque no fundo eles
mesmos as acreditam. Isso é o que acontece com Olivia, acredito. É a única explicação que encontro
para esta louca cruzada que empreendeu.
—Necessita de uma preceptora — disse, e conteve um juramento assim que pronunciou as
palavras. Grande estupidez acabava de soltar. Já postos, por que não sugerir alguns criados e uma casa
no campo, longe de Londres e sua perniciosa infuência?
Com o rubor lhe abrasando a cara, aguardou a mordaz réplica referente à má memória das
classes altas.
—Não poderia estar mais de acordo com você — reconheceu Betsabé Wingate, surpreendendo-o
novamente como era seu costume—. É o seguinte ponto de minha lista. A senhorita Smithson tem um
colégio muito decente, mas não é o mesmo. Eu tive uma preceptora. Uma tutora carrancuda que
aterrava inclusive a meu pai. Claro que essa era a idéia. Porque se não podia intimidar a meu pai, não
teria a menor oportunidade de intimidar a mim.
—Está dizendo que você tampouco era uma menina exemplar? —quis saber.
—Quem ia me servir como exemplo de boas maneiras? —perguntou ela a sua vez.
—Deve ter aprendido de alguém — respondeu—. É toda uma dama.
Ela se virou para cravar a vista à frente de novo e entrelaçou as mãos no regaço.
— Você é — insistiu Benedict—. É um fato inquestionável. E o diz um perito na matéria.
—Tinha que ser uma dama — admitiu a senhora Wingate com voz tensa—. Minha mãe tinha
planos muito ambiciosos para mim.
—Desde aí a preceptora carrancuda — aventurou.
—Admito que tenha planos ambiciosos para Olivia — confessou ela.
—Seu objetivo é evitar que vá direto ao inferno — disse enquanto rodeava uma calessa com um
condutor um pouco torpe—. Uma ambição muito nobre.
—Não tem por que ser tão diplomático — replicou—. Faço uma idéia do que está pensando.
—Duvido — opôs-se. Nem sequer ele mesmo sabia com certeza o que estava pensando. Em troca,
sim era muito consciente do transitado caminho e da irritação que lhe provocava a demora. Era muito
consciente da ansiedade que sentia por Peregrine e Olivia, de que o dia chegasse a seu fm e a noite
caísse sobre eles. Era muito consciente da mulher que tinha ao lado; de seu calor e de sua proximidade
física. E era muito consciente de algo que sem dúvida era o mais perigoso de tudo: a fascinação que
sentia por ela, por isso dizia e pelo funcionamento de sua mente.
De sua mente! A mente de uma mulher!
Embora não podia negar a verdade. Era muito consciente do vínculo intelectual que se estava
criando entre eles, um vínculo muito inquietante para fngir que não existia. Era muito consciente de
que havia algo no ar, ou talvez na escuridão... Ou em Betsabé Wingate, que o fazia baixar a guarda e o
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Perfeito
levava a dizer coisas que jamais sonhou sequer dizer a ninguém, muito menos a uma mulher.
Entretanto, ao mesmo tempo era consciente de que os separava uma distância tão vasta como o
oceano e de que sentia uma fúria vizinha do desespero porque estava obrigado a não cruzá-la. Talvez a
fúria fosse o que mais lhe preocupava.
De qualquer modo, a situação o afigia. Não podia pensar porque para isso necessitava ordem e
nesse momento estava imerso na desordem, no caos.
—Minha mãe estava decidida a me casar com um aristocrata — confessou ela com voz ainda
tensa e o corpo rígido—. Eu ia ser a chave que abriria as portas da alta sociedade aos Atrozes DeLucey.
Seu tom e sua postura lhe disseram muito mais que suas palavras a respeito do muito quanto lhe
havia custado a ambição de sua mãe. Tinham-lhe feito muito dano, era possível que inclusive a
tivessem humilhado, porque de outro modo Betsabé Wingate teria falado do assunto com sua habitual
dissimulação. Queria saber mais coisas sobre ela... Mas a razão lhe dizia que era melhor não fazê-lo.
Seus sentimentos por essa mulher já eram muito intensos tal como estavam às coisas.
—Todas as mães querem que suas flhas subam na escala social mediante o matrimônio — disse
com despreocupação a fm de aliviar um pouco a conversa—. Riscam planos e estratégias com uma
completa falta de escrúpulos. —Fez uma pausa—. Meu pai também o faz, por certo.
Isso a surpreendeu.
—Seu pai?
—Sim — disse ele—. É chocante. Mas meu pai não limita seus dotes manipuladores ao âmbito
político. Decidiu que todos meus irmãos deveriam casar-se com mulheres enriquecidas... E de
momento está saindo com a sua. Inclusive no caso de Rupert, a quem tinha taxado por impossível.
—E você? —quis saber ela.
—Bom, eu sempre estive à margem das vulgares considerações econômicas — respondeu—. Sou
o herdeiro.
O tema da conversa pareceu distraí-la da tristeza que havia se apoderado dela, porque sua
postura relaxou um pouco.
—Todas as mães devem ter lhe plantado suas flhas diante do nariz — disse—. Suponho que o
seguirão fazendo.
Benedict deu de ombros.
—Não estou seguro de que naquele tempo fosse consciente das mães e acompanhantes que
riscavam planos e estratégias. Agora, da distância, sim me resulta evidente. Nunca tinha pensado nisso,
mas suponho que deve ser duro para as jovens; ao menos para as que tenham um mínimo de bom
senso ou de inteligência. Embora naquela época não me fxasse muito nessas sutilezas. Fixava-me
primeiro em seus rostos e em suas siluetas, depois comprovava se suas vozes eram ou não agradáveis
e, por último, reparava em seu comportamento.
Sentiu que ela relaxava e voltava a olhá-lo no rosto.
—Está-me deixando gelada — replicou—. Pelo que conta, submetia suas candidatas à esposa ao
mesmo processo que sofre um cavalo em... Como se chama o estabelecimento onde se leiloam os
cavalos? Taver...
—Tattersall’s — supriu.
—Isso, Tattersall’s. Assim é como vêem os homens as famosas reuniões do Almack's? Acaso não
tomava em conta o caráter das moças nem suas personalidades?
—Se não fossem moças de bom caráter, não estariam no mercado matrimonial — recordou—. E, é
claro, não as teriam admitido no Almack's.
Nem sequer lhe teria passado pela cabeça procurar uma jovem que não tivesse sido admitida nos
exclusivos salões. O fato de que não estivesse obrigado a casar-se com uma herdeira não implicava que
o primogênito de lorde Hargate pudesse fazê-lo com quem gostasse. Nem quando gostasse. Benedict
conhecia as regras, sabia o que se esperava dele.
E Ada? Teria seguido as regras ou os ditames do coração? Não tinha nem idéia... E isso dizia
tudo, não é?
—Em outras palavras, eram virgens de boa família e isso era quão único precisava saber sobre
elas — concluiu a senhora Wingate—. Boa linhagem...
—Sou o herdeiro do conde de Hargate — interrompeu com certa brutalidade—. Não podia me
permitir o luxo de me apaixonar, se for a isso ao que se refere.
—Não refro a isso — contradisse—. Fala você de matrimônio, de um compromisso por toda
vida, mas o amor não forma parte do quadro.
—Que absurdo... —replicou—. Não podia vagar pelo mundo como um dos heróis de Byron, em
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busca do amor de minha vida, se é que existe tal coisa.
—E da companheira de sua vida? —sugeriu a senhora Wingate—. O que tem a amizade e o
companheirismo? Valha-me Deus, lorde Rathbourne! Como escolheu?
—Não alcanço a ver o que lhe pode importar como o fz — respondeu no tom de voz glacial que
tinha aprendido de seu pai. Um tom famoso por deixar sua vítima não só desprovida de voz, mas
também, em alguns casos, do desejo de seguir vivendo.
Ela desprezou a pergunta com um rápido gesto de uma de suas delicadas e enluvadas mãos.
—Não seja tolo — disse—. É do mais interessante. Sinto-me como um explorador em terras
longínquas e exóticas que tentasse entender o costume dos nativos. Eu não escolhi. Só tinha dezesseis
anos e me apaixonei até o último fo de cabelo sem mais. Mesmo assim, esteve mal por minha parte
interrogá-lo. Está claro que o assunto lhe é muito doloroso para falar sobre ele. —Sua voz se suavizou
—. Esqueci-me que enviuvou faz relativamente pouco tempo.
O coração do Benedict pulsava muito depressa e teve que jogar mão de toda sua força de vontade
para não transmitir aos cavalos a agitação que sentia por meio das rédeas. Por sorte, acabavam de
chegar à fronteira de Kensington. Jogando fumaça pelas orelhas, esperou a que o encarregado
agarrasse o dinheiro e abrisse a porta. Quando por fm o fez e puderam passar por ela, caiu na conta
que estavam acompanhados de Thomas. Esqueceu-se por completo da presença do lacaio, que viajava
na parte traseira. Ao recordar as confssões que tinha feito sobre seus irmãos, lhe acenderam até as
orelhas.
Deu-lhe igual que ao lacaio tivesse sido praticamente impossível seguir a conversa por causa do
constante estalo das rodas, do ruído dos cascos dos cavalos sobre os paralelepípedos, dos bufos e os
relinchos dos animais e das queixa e maldições do condutor... Benedict estava muito afito para
mostrar-se razoável.
—Não deveria ver-me obrigado a lhe recordar que não estamos sozinhos — resmungou.
—Disse-lhe que não trouxesse seu criado — replicou ela com tranqüilidade.
—Desejaria não ter trazido você — soltou—. Por que... Maldita seja! Por sua culpa me esqueci de
perguntar ao encarregado da fronteira pelas crianças. —Deteve o tílburi. Entretanto, antes que pudesse
ordenar a Thomas que se encarregasse das rédeas, a senhora Wingate desembarcou de um salto.
—Eu perguntarei — disse—. Você está muito agitado.
Sem que ninguém o ordenasse, Thomas baixou para se encarregar dos cavalos.
Enquanto isso e sem olhar atrás nenhuma só vez, a senhora Wingate seguiu caminhando para a
fronteira com um descarado rebolado de quadris que fez as delícias de todos os homens presente, que a
sua vez executaram as manobras mais tortuosas com seus veículos a fm de lhe deixar passagem.
Benedict não se deteve a observar quantos acidentes causava... Nem tampouco agarrou nenhum
homem pelo peitilho para estampá-lo contra a primeira parede que tivesse à mão, porque isso seria
uma vulgaridade e justo o que faria Rupert. Em troca, alcançou-a em algumas passadas.
—Não estou agitado — corrigiu—. Sou perfeitamente capaz de...
—Não deveria ter mencionado lady Rathbourne com tanta rapidez e tão pouca consideração —
disse —. Peço perdão.
—Os sentimentalismos sobram — assegurou—. Ada morreu faz dois anos e ela... Ela... —Exalou
um suspiro zangado—. Está bem! Era uma desconhecida para mim. Aí o tem, seu delicado coração está
contente?

Betsabé desejava não ter aberto a porta essa tarde. Lorde Rathbourne estava demonstrando ser
mais problemático do que tinha temido a princípio. Talvez tivesse sido capaz de suportar a
proximidade física com certa compostura; entretanto, a proximidade intelectual com esse homem
começava a rachar suas defesas.
—Não, não estou contente absolutamente porque não deixa de dizer bobagens — respondeu—.
Quanto tempo estiveram casados?
—Seis anos — respondeu ele.
—Nesse caso, sua esposa não era uma desconhecida. —deteve-se—. Insisto em que retorne à
carruagem. Está chamando muito a atenção.
Lorde Rathbourne deu uma olhada em direção aos veículos que transpunham a fronteira.
—Vejo isso, os curiosos são todos homens — assinalou— e todos olham a você.
—Para eles só sou um bonito pedaço de carne — replicou—. Enquanto me olham, seus cérebros
não trabalham. Acaso quer que comecem a pensar... Já perguntarem-se quem é o aristocrata que me
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Perfeito
pisa os calcanhares e me lança furiosos olhares?
Seguiu olhando-a do mesmo modo um pouco mais antes de executar uma rígida reverência,
depois da qual deu meia volta e retornou ao tílburi.
Estava esperando-a junto à carruagem, com o relógio de bolso na mão, quando ela retornou
pouco depois.
—E bem? —perguntou-lhe.
—Vamos à direção correta — respondeu. Apressou-se a subir ao assento antes que ele pudesse
subi-la de maus modos. E não porque seus imperiosos gestos a incomodassem. Mas porque gostava
muito. Gostava da facilidade com que a erguia a força e o calor que irradiava seu corpo, assim como o
toque de suas mãos.
Muito perigoso. Apesar do tempo transcorrido, ainda não tinha sido capaz de apagar as
lembranças do beijo que compartilharam semanas atrás. Recordava muito bem a sensação de sua mão
no pescoço e o que esse simples contato provocou: que sua vontade, seus princípios morais e seus
músculos se derretessem em uníssono.
Uma vez que estava sentada no tílburi, colou-se o mais que pôde ao lado do veículo sem que
resultasse muito evidente e recomeçaram a marcha. Nessa ocasião o fzeram a maior velocidade, já que
o caminho estava muito menos transitado. Enquanto lorde Rathbourne conduzia, contou o que lhe
havia dito o encarregado da fronteira.
Deu a casualidade de que o homem conhecia o camponês que lhe havia descrito. Chamava-se
Jarvis e estava acostumado a fazer o trajeto entre Brentford e Londres com bastante regularidade.
Embora não podia lhe dizer a hora exata em que tinham passado por ali, sim podia lhe assegurar que
não tinham transcorrido mais de duas horas após. Recordava vagamente que havia duas crianças na
carreta, mas não lhes tinha prestado muita atenção. Jarvis estava acostumado a ir acompanhado de
seus flhos ou dos flhos de seus vizinhos.
—Se estiver certo, não tem sentido que nos detenhamos para perguntar pelos meninos até que
cheguemos a Brentford — disse lorde Rathbourne—. Se o caminho seguir razoavelmente espaçoso de
carruagens, carretas e carros talvez cheguem pelas oito. Pode ser que a esta altura só levem uma hora
de vantagem. Temos a oportunidade de dar com eles antes que tentem encontrar outra pessoa com que
prosseguir viagem. Uma tarefa muito mais difícil em uma aldeia como Brentford que em Hyde Park
Corner. Se meu sobrinho não foi capaz de persuadir sua flha de que retorne, será consciente de que
logo o encontrarei e jogará mão de sua imaginação para atrasar seu avanço.
—Isso soa mais razoável — admitiu Betsabé—. O problema é que Olivia não é razoável.
—Tem doze anos — disse lorde Rathbourne—. Não tem dinheiro e seu acompanhante se opõe à
viagem. Embora se encontrasse em melhores circunstâncias, só poderia seguir viajando umas duas
horas mais no máximo.

Peregrine não demorou em descobrir que teria tido muito mais êxito em atrasar o avanço de
Olivia Wingate se o resto do mundo não fosse tão crédulo.
O camponês lhes disse que se deteria no Pombal, uma estalagem localizada em Brentford, onde
diria ao hospedeiro que os cuidasse e os ajudasse a encontrar alguém que fosse em direção oeste.
Peregrine decidiu que uma vez ali insistiria em comer algo. Isso lhe daria tempo para encontrar o
modo de deixar uma mensagem a seu tio Benedict.
Estava seguro de que lorde Rathbourne se teria dado conta fazia horas de que tinha
desaparecido. Por desgraça, não teria muitas pistas. Se tivesse lhe ocorrido que não seria capaz de
convencer Olivia para que desistisse da aventura, teria deixado mais pistas com o passar do caminho.
Mas não lhe tinha ocorrido.
De qualquer forma e tendo em conta quão inteligente era seu tio, seguro que não demorava em
deduzir o que tinha acontecido. Não tinha dúvida de que já estava a caminho.
Afnal, o estudo do crime era um dos passatempos favoritos de Sua Excelência. Conhecia todos
os investigadores do Bow Street e sabia muito bem seus métodos para apanhar os ladrões. Tinha
estudado numerosas pessoas de duvidosa reputação e também um bom número de criminosos durante
o transcurso de suas pesquisas parlamentares. Encontrá-los seria para ele vapt-vupt.
Se conseguisse perder tempo sufciente, seu tio os alcançaria.
O problema chegou quando Olivia não foi direto à estalagem. Primeiro se deteve um lado do
caminho e aguardou que se limpasse. Depois, para estupefação de Peregrine, tirou o vestido. Sob o
mesmo usava roupa de menino. Tirou uma boina do xale que fazia às vezes de trouxa, a colocou e
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meteu o cabelo sob ela. Ato seguido dobrou o vestido, meteu-o no xale e jogou a trouxa ao ombro.
Entretanto, quando chegaram à estalagem, não entrou. Ao contrário, deteve-se no pátio.
Perambulou pelo lugar, caminhando e falando como o faria um menino. Sabendo que seria um
tremendo engano desmascará-la em semelhante lugar, Peregrine se limitou a acompanhá-la em um
estado de horrorosa incerteza, até que averiguaram quais eram seus planos, momento que já não se
atreveu a intervir.
Olivia se aproximou de dois criados de estábulos que estavam jogando um complicado jogo de
dados e começou a conversar com eles como se os conhecesse toda a vida.
Perguntou se podiam lhe ensinar a jogar.
Peregrine não se atreveu a avisá-los. Das duas uma, ou rolariam de rir ou se encetariam em uma
briga... O que chamaria a atenção de um ofcial. Se chegasse aos ouvidos de seus pais que um ofcial o
tinha detido, jamais voltariam a deixá-lo aos cuidados de seu tio.
De modo que, no que devia ser um tempo relativamente curto embora a ele parecesse uma
eternidade, a temível Olivia conseguiu depenar os confados cavalariços e, além disso, que os levassem
a Hounslow na carruagem de seu senhor, que tinha sido reparada recentemente.

Capítulo 8

O hospedeiro do Pombal não tinha visto nenhum casal de crianças. Embora conhecesse Jarvis, o
camponês, não o tinha visto esse dia, conforme lhes disse. Jarvis deve ter retornado diretamente para
casa em lugar de desviar-se um pouco, como estava acostumado a fazer, para conversar um momento
no Pombal enquanto tomava uma cerveja.
As restantes pessoas que Benedict e a senhora Wingate perguntaram não lhes ofereceram nada
novo. Thomas teve mais sorte com alguns criados que estavam no pátio da estalagem. Quando se
reuniu com seu senhor, o lacaio relatou o encontro entre dois «jovens» e dois criados que estavam ao
serviço de uma das famílias nobres da zona.
—Um dos jovens se parecia com lorde Lisle — informou—. Da mesma estatura e com a mesma
cor de cabelo. O outro jovem era ruivo e tinha sardas.
Benedict olhou à senhora Wingate.
—Vestir como um moço estaria no papo para Olivia — ela comentou—. Pôde conseguir a roupa
por algumas moedas em uma casa de penhores ou em uma loja de segunda mão. E conseguir o
dinheiro terá sido vapt-vupt. Tem o talento dos DeLucey para os jogos de azar, e todos meus sermões
têm sido em vão.
Fosse como fosse, Olivia tinha conseguido um modo de chegar até Hounslow.
De caminho à localidade, Benedict conduziu muito mais rápido do que a precaução ditava.
Tinham perdido um tempo muito valioso com as pesquisas em Brentford. Ao menos já não tinha que
diminuir a velocidade para observar todas as carretas que passavam pelo caminho.
Eram mais de nove horas. Quando por fm chegassem a Hounslow, a maioria da população já
estaria dormindo. Mesmo assim, sabia que encontrariam bastante animação nas estalagens. O senhor
Chaplin tinha uma cavalariça pública importante em Hounslow e todo mundo se detinha ali para
trocar de cavalos. Com semelhante tráfco de viajantes, havia muitas possibilidades de obter notícias
das crianças.
Ao menos isso se dizia Benedict enquanto tentava desligar-se de uma ansiedade cada vez mais
urgente. Apesar dos comentários da senhora Wingate sobre sua flha, ele tinha saído de Londres com a
certeza de que encontraria seu sobrinho em poucas horas. Jamais acreditou que iria além de Brentford.
Negava-se a considerar a alternativa: uma busca de vários dias, durante os quais Peregrine e Olivia
poderiam topar com qualquer acidente ou malfeitor.
Enquanto isso, ele passaria os dias reprovando-se por não ter cuidado melhor de seu sobrinho.
Enquanto isso, a senhora Wingate estaria sentada ao seu lado, hora após hora, com o quadril colado ao
seu, com a coxa lhe roçando a sua e com essa voz que se metia sob a pele cada vez que falava.
Além disso, quanto mais se prolongasse a viagem, mais possibilidades teriam que se encontrasse
com alguém que os reconhecesse... E de que acabassem protagonizando o escândalo da década.
Esteve a ponto de gritar de alívio quando viu o numeroso grupo de edifícios localizado a um lado
do caminho. Hounslow. Por fm.
As numerosas estalagens resultaram estar muito concorridas. A senhora Wingate conseguiu
notícias na casa de postas, chamada Jorge em honra ao rei, enquanto um cavalariço se encarregava de
enganchar os cavalos descansados. Os dois «meninos» viajavam com um dos arrendatários de
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Cranford Park, a propriedade do conde de Berkeley. Um dos criados da estalagem, sobrinho do dito
arrendatário, indicou-lhes como chegar à casa de seu parente, onde estava convencido de que os
«meninos» passariam a noite.
A Benedict pareceu a possibilidade mais viável. A essa hora da noite o fuxo de carretas estava
caindo. Os carros de postas e as carruagens do correio não demorariam em ter os caminhos para eles
sozinhos. Este último os tinha adiantado muito antes, embora não acreditava que nem sequer a lábia de
Olivia fosse sufciente para lhes garantir um assento nele. Os passageiros eram estritamente escolhidos
e a passagem custava muito dinheiro. Além disso, tão perto de Londres, era pouco provável que nem
sequer os carros de postas tivessem espaço para mais passageiros. Ou isso esperava.
Prosseguiu a galope sempre que foi possível através de um lance solitário de caminho. Os brejos
de Hounslow se estendiam a sua esquerda, mas nenhum salteador de estradas saiu da escuridão, por
sorte para os salteadores. Levava um par de pistolas sob o assento e não estava de humor para
interrupções.
Perto de Cranford Bridge, tomou o caminho que atravessava a propriedade do conde de
Berkeley. As indicações eram muito boas, de modo que encontraram a casa sem problemas, assim como
aos dois meninos que estavam passando a noite ali. Os dois eram meninos de verdade e nenhum deles
era Peregrine.

—Conte até vinte — aconselhou Betsabé quando por fm retornaram ao caminho real. Rondava a
meia-noite, tinham perdido hora e meia e lorde Rathbourne, como caberia esperar, estava muito
furioso.
Também sabia que estava muito preocupado por seu sobrinho. Entretanto, o medo resultava uma
emoção muito perturbadora para quase todos os homens. E igual a quase todos eles, lorde Rathbourne
o ocultava sob o grosso tapete da raiva.
—Não sou um menino — replicou Sua Excelência.
—Estupendo — disse ela—, porque nesse caso não terá um chilique quando lhe disser que
devemos parar na estalagem.
—Detivemo-nos em todas as ditosas estalagens de todos esses malditos vilarejos que se atrevem a
chamar-se «povoados» — protestou lorde Rathbourne—. E o que conseguimos? Falar com um sem-fm
de tolos que nem sequer sabem articular uma frase coerente, distinguir uma menina de um menino,
nem diferenciar um menino de doze anos de um de dez. Disseram que esse menino (e aposto que
queira nem sequer tinha oito anos) era ruivo. Em troca, tinha o cabelo da mesma cor que a mi...
—Essa! —exclamou ela interrompendo-o, quando Sua Excelência passou por diante Do Cervo
Branco.
Escutou-o amaldiçoar, mas, a diferença de outros homens, não deixou que suas emoções
afetassem sua maneira de conduzir. Com sua habitual sobriedade de movimentos, fez que a carruagem
se dirigisse a entrada da estalagem.
Entretanto, foi incapaz de convencê-lo de que a esperasse na carruagem. Depois de deixar
Thomas ao cuidado do tílburi, entraram juntos na estalagem. Encontraram o hospedeiro acordado. Um
carro de postas, o Expresso, partiu fazia apenas meia hora depois que apeou uma família de cinco
membros. Essa tinha sido sua primeira viagem em carro de postas, e não tinham gostado o mínimo.
—Disse-lhes que seria exatamente igual a qualquer viaje em qualquer outra carruagem —
prosseguiu o hospedeiro—, que se não gostavam de viajar com o Fulano, Beltrano, Cicrano e seu
primo, que não se lavou desde que se banhou para celebrar a vitória de Waterloo, teriam que ter pago a
passagem na carruagem do correio ou ter alugado uma carruagem própria. Vocês querem um quarto?
Se for assim, sinto muito. Essa família fcou com a última cama, onde vão dormir os cinco.
—Meu irmão e eu estamos tentando encontrar nossos primos — disse Betsabé—. Estavam de
visita em Londres conosco. Depois de ver uma companhia de atores itinerantes, lhes meteu na cabeça
que queriam unir-se ao grupo. Acreditamos que vão para Bristol. — Olivia descreveu lorde Lisle e
comentou a possibilidade de que um ou, os dois fossem «disfarçados» de algum modo.
—Ah, esses dois! —exclamou o hospedeiro—. Disseram que voltavam para casa para ver sua mãe
doente. Ou isso foi o que o mais jovem disse ao chofer. O mais alto nem abriu a boca. Tinha o focinho
de porco avinagrado.
Lorde Rathbourne, que estava ao seu lado e fervia de silenciosa impaciência, esticou-se ao escutá-
lo e o atravessou com o olhar.
—Falaram com o chofer? —perguntou—. Subiram ao carro de postas?
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—Enfm, o chofer tinha espaço livre — respondeu o homem—. E eles tinham para pagar o
bilhete... Bom, ao menos para chegar à seguinte parada, Salt Hill.

Salt Hill estava a menos de quinze quilômetros de distância e os cavalos estavam descansados, já
que lorde Rathbourne decidiu trocá-los no Cervo Branco. A carruagem do correio poderia percorrer
essa distancia em menos de uma hora. Sua Excelência parecia decidido a conduzir à velocidade desse
veículo, algo que a Betsabé não importava o mínimo. Quanto mais demorassem a encontrar as crianças,
mais a atormentaria sua consciência. De ter utilizado seus escassos recursos econômicos com mais
acerto, Olivia teria uma preceptora a essa altura e nada disso teria acontecido.
—Está muito calada — disse ele depois de um prolongado silêncio—. Espero que a velocidade
não a assuste.
As últimas notícias pareciam ter aliviado o estado de ânimo de lorde Rathbourne. Já não tinha a
impressão de estar sentada ao lado de um vulcão a ponto de entrar em erupção.
—Estava pensando nas crianças — explicou—. Não tenho feito bem a Olivia. Dei-lhe muita
liberdade.
—A maioria das meninas de meu círculo social tem muito pouca liberdade — ele comentou—.
Não é de estranhar que muitas delas se convertam em mulheres de olhares estreitos. Lembra que me
perguntou se não me passou pela cabeça procurar uma esposa que fosse uma amiga e companheira.
Como ia encontrar uma verdadeira companheira entre essas mulheres que não deixaram de ser
meninas?
—Foi muito injusto de minha parte criticar sua escolha - disse Betsabé—. Eu não escolhi meu
marido me apoiando na lógica e certamente ele não pensou com a cabeça quando me escolheu.
—Nenhuma menina da aristocracia se atreveria a partir para uma «Nobre Cruzada», embora
talvez a alguma possa passar pela cabeça — prosseguiu lorde Rathbourne—. Nenhuma teria a mais
remota idéia de como chegar a algum lugar por si só. Temos ao menos que admirar a coragem de
Olivia. Além disso, fez que Peregrine subisse em um carro de postas. Sem ela, duvido muito que
tivesse tido a oportunidade de desfrutar dessa experiência na vida.
—Claro, imagine o que teria perdido... —replicou—. Experimentará a incrível aventura de viajar
em um veículo perigosamente sobrecarregado, sujo e com muitas possibilidades de tombar. Estará
apertado entre pessoas com uma urgente necessidade de banhar-se, de livrar-se dos efeitos do álcool ou
de ambas as coisas de uma vez. E fora não é melhor que dentro. Dentro não pode dormir porque não
deixa de se sacudir. Fora não se atreve a dormir porque se não cai. Dá igual aos companheiros de
viagem se tenha, porque um deles acabará vomitando. O cheiro é nauseabundo inclusive fora... E não
podemos nos esquecer das pulgas e os piolhos que se compartilham entre os viajantes com
generosidade.
—Peregrine é um menino — aduziu Sua Excelência —. Os meninos não se alteram pela sujeira os
piolhos, e seu sentido do olfato não é absolutamente sensível. Recorde que compartilhou habitação com
outros meninos. Os meninos são criaturas asquerosas. É provável que sua flha esteja mais incomodada
que meu sobrinho.
Olivia não era nem por indício a menina mais melindrosa do planeta, pensou Betsabé. E o casal
iria muito mais seguro no carro de postas que a pé por um caminho deserto e de noite. Mesmo assim, o
tempo passava e seguiam afastando-se de Londres.
—Estava convencida de que a estas alturas já os teríamos encontrado — disse.
—Igual a mim — conveio ele.
—O que faremos se não estiverem em Salt Hill? —perguntou.
—De madrugada e sem dinheiro não podem chegar muito longe — respondeu lorde Rathbourne
—. Sua flha contará a um dos hospedeiros uma história comovedora e conseguirá um cantinho junto à
lareira, se é que não consegue alguma das camas da criadagem. Se os hospedeiros forem duros de
coração, utilizará todos seus truques com um dos cavalariços e encontraremos nossos fugitivos
dormidos em um monte de palha. —Depois de uma pausa, acrescentou—: Quando nos disseram que
estavam no carro de postas e, portanto, relativamente seguros, dava-me conta de que estava me
preocupando com Peregrine como se fosse um menino indefeso. Nada mais longe da realidade. É um
menino muito precoce, e os meninos possuem uma resistência maravilhosa. Obriguei-me a recordar
que já tem treze anos, que é inteligente e curioso, e que jamais teve uma aventura como Deus manda.
—E você? —perguntou—. Viveu alguma aventura em sua infância?
Assim que pronunciou essas palavras, Betsabé desejou não havê-lo feito. Desejou deixar de
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misturar-se em sua vida e bisbilhotar.
Sua Excelência tomou seu tempo em responder, e ela rezou para que estivesse procurando o
modo de mudar a conversa a um tema menos pessoal.
—Vivi um monte de grandes aventuras — respondeu por fm—. Escapava a menor
oportunidade.
A resposta obteve que virasse a cabeça de pronto e olhasse surpreendida esse perfeito perfl.
—Está brincando — acusou—. Como escapa o flho de um conde? E por que ia fazê-lo?
—Se tivesse sido fácil, não teria merecido a pena — respondeu lorde Rathbourne—. Mas ganhar a
partida dos adultos era um jogo para mim. Escapava cada vez que estava aborrecido ou zangado O...
Bom, cada vez que estava farto de ser um bom menino. Em uma ocasião estive fora três dias.
Betsabé podia imaginar esse menino sem nenhum problema. Era muito fácil imaginar o brilho
travesso de um menino inquieto nesses olhos escuros.
Por isso a atraíam tanto?
Acelerou-lhe o coração.
—Olivia e lorde Lisle não estarão fora três dias — assegurou.
—Isso complicaria as coisas, sem dúvida — ele comentou.
—Que complicaria as coisas? —repetiu com incredulidade—. Seria um desastre! —Três dias
viajando com ele... Falando, descobrindo mais coisas sobre ele... Sentada tão perto, sentindo seu calor e
sua força... Escutando sua voz grave na escuridão... Contemplando esses dedos longos protegidos pelas
luvas—. Não posso passar a noite em sua companhia — prosseguiu em tom brusco—. Disse à senhora
Briggs que ia ver um parente doente e que você amavelmente se ofereceu me levar. Disse-lhe que
possivelmente voltasse bastante tarde.
—A este passo, duvido muito que retornemos antes do amanhecer, e isso por enquanto — repôs
ele—. Vamos precisar de um álibi. Faz umas semanas me disse você que provinha de uma longa estirpe
de mentirosos compulsivos. Admito que seja muito boa na matéria. Dei-me conta da facilidade com
que enganou o hospedeiro do Cervo Branco. Eu mesmo estive a ponto de acreditar que era minha irmã.
—virou-se para olhá-la nos olhos—. Estive num instante.
Sua Excelência esboçava esse irritante meio sorriso que podia signifcar algo: humor, brincadeira,
cinismo, paternalismo... Mesmo assim, distinguiu uma nota risonha em sua voz. O som foi como um
sussurro na noite; um sussurro que se deslizou por seu pescoço e lhe desceu pelas costas.
—Disse o primeiro pensamento que me ocorreu — aduziu.
—Não tenho a menor duvida de que lhe ocorrerá qualquer coisa igualmente simples e
convincente para explicar um desaparecimento mais longo — disse ele—. Ah, esse deve ser a ponte que
cruza o rio Coln.
Betsabé virou a cabeça para olhar à frente. A vista de Sua Excelência era mais penetrante que a
sua. Ela só via a insondável escuridão que reinava no caminho.
—Há uma história muito macabra em torno Da Avestruz, uma estalagem de Colnbrook — ele
comentou—. A conhece?
—É a primeira vez que escuto esse nome — respondeu.
—Caramba! Pois é muito conhecida — replicou lorde Rathbourne—. Faz alguns séculos, a
estalagem se chamava O Asilo. Os ricos comerciantes que viajavam entre Bath, Reading e Londres
estavam acostumados a hospedar-se ali. O estranho do assunto é que uns sessenta comerciantes
entraram na estalagem e nunca saíram. Desvaneceram-se no ar, junto com todos seus pertences.
Qualquer um pensaria que as autoridades o teriam visto como algo suspeito, mas não foi assim. Até
que uma noite desapareceu um rico comerciante chamado Thomas Penetre, que sempre se hospedava
ali sem o menor contratempo. A diferença de outros, ele reapareceu. Seu corpo, bem cozido, apareceu
futuando rio abaixo uns dias depois.
—Bem cozido? —repetiu Betsabé—. Fala a sério?
—Suponho que teria ouvido falar das cabeças dos malfeitores que se cravavam em lanças para
que servissem tanto de lição como de ameaça para o resto, não? —disse-lhe—. Talvez não saiba que se
costumava ferver primeiro, a fm de que se conservassem mais tempo.
—Isso é asqueroso — disse.
—segue-se fazendo no Egito — assegurou—. Meu pai recebeu este verão uma cabeça em uma
cesta enviada por Mohamed Ali, o rajá do Egito. Pertencia ao tipo que supostamente tinha matado meu
irmão Rupert. Como descobriu depois, e como era de esperar, Rupert desafou às leis da probabilidade.
Apareceu em casa, vivinho e abanando o rabo, pouco tempo depois de ter recebido a cabeça.
—Que coisas mais estranhas acontecem em sua família — disse—. Não me tinha contado que
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tentaram arrancar a cabeleira de Rupert. Também é um anjo loiro?
—valha-me Deus, não! —respondeu—. Há quem é incapaz de nos distinguir a certa distância.
Antes que pudesse lhe fazer mais pergunta impertinente, lorde Rathbourne lhe adiantou.
—Voltando para o Thomas Penetre... As autoridades acabaram investigando A Avestruz.
Descobriu-se que a cama de uma dos quartos estava em cima de um alçapão que dava diretamente a
uma enorme caldeira. Quando se ativava o dito alçapão se abria, a cama tombava e seu ocupante ia
parar nela.
—Ferveram-no? —quis saber—. Vivo?
—Sim —respondeu Sua Excelência —. Suponho que o hospedeiro e sua esposa se encarregaram
que o hóspede se deitasse muito bêbado. Desse modo não tentaria salvar-se e nem sequer poderia
gritar.
—Isso é espantoso.
—As pessoas podem fazer coisas espantosas — ele comentou—. As fazem por motivos absurdos
ou sem motivo algum. Neste caso, não obstante, impôs-se a justiça. O hospedeiro, chamado Jarman, e
sua esposa foram presos, julgados, proclamados culpados, enforcados e depois esquartejados. A partir
desse momento, o lugar passou a conhecer-se como Thomas Penetre-in-the-brook, «Thomas Penetre no
arroio».
Quando terminou de lhe contar a história, já tinham cruzado a ponte e entravam na estreita rua
de Colnbrook. Passaram frente a algumas hospedarias de nomes mais comuns: O Cervo Branco ou
Jorge, ambas em silencio a essas horas. Um pouco mais à frente estava à infame A Avestruz, onde ainda
havia luz atrás das janelas. As gargalhadas dos bêbados futuavam na escuridão da noite.
O tílburi estava a poucos metros da entrada quando a porta se abriu e por ela saíram três homens
andando em ziguezague. Um tropeçou justo diante dos cavalos e caiu de bruços. Lorde Rathbourne
freou sem alterar-se a escassos metros do corpo que jazia no chão.
—Vê se olha aonde vamos! —gritou um dos homens enquanto se aproximava de seu amigo—.
Uma puta ameaça. Poderia havê-lo matado, seu safardana.
O terceiro homem chegou tropeçando até os cavalos e agarrou a brida do que tinha mais perto.
—Já está — disse—. Daqui não se movem.
—Sou capaz de dirigir um par de cavalos — disse lorde Rathbourne sem alterar-se—. Seria
melhor que afastasse a seu amigo do caminho.
O terceiro homem o convidou com muita amabilidade a fazer algo anatomicamente impossível.
O segundo homem demonstrou ser algo mais útil. Agarrou seu amigo meio inconsciente,
separou-o do caminho e o deixou no banco que havia diante da estalagem.
Enquanto isso e alheio ao nervosismo do animal, o terceiro homem seguia aferrado a brida do
cavalo enquanto especulava sobre as insufciências sexuais de lorde Rathbourne, sobre sua predileção
pelos jovens e as ovelhas amadurecidas, e sobre o sem-fm de homens disformes e feios que poderiam
havê-lo gerado depois de deitar-se com sua mãe.
Face à provocação, Sua Excelência seguiu com sua imperturbável fachada de aristocrata.
—Pergunto-me se houver alguma imagem mais repugnante que um bêbado à uma da
madrugada — disse a Betsabé em voz baixa e enfastiada—. Ou se haverá algum ser menos razoável
sobre a face da Terra. —Em voz mais alta, acrescentou—: Peço-lhe desculpas pelos incômodos, senhor.
Não obstante, seu amigo já está a salvo. Estou convencido de que tanto você como seu outro amigo
estarão mais cômodos se sentarem com ele no banco. Enquanto os três desfrutam de um sono
reparador, encarregar-me-ei de liberá-los de nossa desagradável presença.
O terceiro homem se ofereceu a lhe dar uma mão para que metesse certa parte de sua anatomia
pela garganta.
—Suponho que estaria esbanjando o fôlego se o recordar que há uma dama presente — disse Sua
Excelência.
—E é uma dama muito boa de se ver — disse o Bêbado Número Dois, afastando-se de seu amigo
do banco—. Anda que não sei eu a classe de damas que se vêem a estas horas. —Rodeou o tílburi aos
tropicões e compôs uma expressão que Betsabé supunha que devia ser uma piscada—. Por que não
deixa este cartão caro e seu fantoche e vem comigo para passar um bom momento? Por que não te vem
comigo, preciosa? —agarrou-se à barra do assento com uma mão em quanto esfregava o sexo com a
outra—. Tenho uma coisa maior e dura que poderá agarrar.
—Esta noite não — disse Betsabé—, dói-me a cabeça.
—Afaste a mão da carruagem — ordenou lorde Rathbourne em voz baixa e ameaçadora.
—Sim, senhor, Sua Majestade — disse o Bêbado Número Dois. Soltou a barra do assento para
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agarrar o tornozelo do Betsabé—. Eu gosto muito mais disso.
Antes que ela pudesse reagir, Sua Excelência levantou. Passou por cima dela, deixando cair as
rédeas e o chicote em seu regaço, e se lançou sobre o Bêbado Número Dois, que caiu ao chão sob ele.
Lorde Rathbourne fcou em pé, levantou-o pelo peitilho e o estampou contra o banco, atirando ao chão
o primeiro bêbado, que estava tentando sentar-se.
O Bêbado Número Três soltou a brida e se lançou sobre ele. Lorde Rathbourne deu meia volta e
rodeou a carruagem. Agarrou o homem pelas lapelas da jaqueta e o jogou contra a porta da estalagem.
Foi tudo tão rápido que Betsabé mal tinha pego as rédeas quando já tinha acabado. Dois homens
jaziam junto ao banco. O terceiro estava sentado no chão, apoiado na porta da estalagem.
Olhou lorde Rathbourne boquiaberta.
Devolveu-lhe o olhar e deu de ombros.
Viu-o pôr-se a andar para a carruagem.
Nesse mesmo instante a porta da estalagem se abriu e uma multidão irrompeu na rua.

Embora lorde Rathbourne tenha estado em inferioridade numérica com os três bêbados, seus
assaltantes mal podiam pôr-se em pé, muito menos brigar. Betsabé nem sequer se moveu de seu lugar o
episódio a tinha surpreendido, e não preocupado.
Entretanto, quando viu que um punhado de tipos se lançava sobre Sua Excelência e o derrubava
ao chão, aferrou o chicote e desembarcou de um salto. Lançou-se à refrega, brandindo o chicote o
melhor que pôde. Quando comprovou que a tática era infrutífera na metade de tamanha multidão,
começou a golpear com o cabo do chicote toda cabeça que fcasse a frente.
—Se afaste dele, covarde imundo! —gritou a um enquanto aplicava um bom chute. Alguém
tentou lhe tirar o chicote, mas ela respondeu lhe cravando o cotovelo em suas partes nobres, coisa que
lhe arrancou um grito.
A surpresa de seu ataque ou talvez a fúria que demonstrava os assustou, porque todos se
afastaram o sufciente para que lorde Rathbourne se levantasse. Não obstante, assim que esteve em pé,
um dos tipos maiores se lançou sobre ele. Um instante depois outro se uniu à festa. Consciente de que
Sua Excelência podia encarregar-se desses dois brutos, Betsabé se concentrou em manter a raia os
outros.
Chegados a esse ponto, percebeu que Thomas também se uniu à refrega. Viu-o entrechocar as
cabeças de dois dos tipos e se perguntou o que teria passado com o tílburi e os cavalos. A preocupação
durou apenas um instante. Os assaltantes seguiam chegando, claramente procedentes das estalagens
frente às quais tinham passado.
Não teve tempo para analisar se tinham chegado para somar-se à briga nem para ver de que lado
estava. Alguém estava tentando tirá-la do bulício. Escapou como pôde, apertou o punho e o estalou a
esse alguém no nariz. O tipo cambaleou para trás, e levou as mãos ao nariz, pelo qual emanava sangue.
Outro tipo reclamou sua atenção nesse momento e Betsabé retornou à briga.
Era muito consciente de lorde Rathbourne, que dava golpes a torto e a direito, movendo-se tão
depressa que às vezes lhe custava vê-lo. Viu que dois ou três tipos acabavam estampados contra as
paredes ou as janelas e também escutou o ruído do vidro ao romper-se. Era muito consciente dos
homens que jaziam no chão e dos que se separavam da briga para dar de encontro com as luzes. Viu
Thomas, que estava afastando um homem do tílburi.
Também se deu conta de que os cavalos se estavam empinando e de que s pessoas se afastavam
deles. Viu que o tílburi começava a mover-se, embora ninguém o conduzisse, mas os homens das
outras posadas se aproximavam com rapidez e não podia deixar que se lançassem em turba sobre lorde
Rathbourne.
Não soube quanto durou... Alguns minutos no máximo, embora lhe parecessem que tinha estado
batalhando durante dias.
Em um dado momento, escutou que uma voz gritava por cima das demais:
—Ordeno-lhes que se dispersem em nome de Sua Majestade e que guardem silêncio enquanto o
faço. —A voz repetiu a ordem duas vezes mais e depois se fez o silêncio. A voz seguiu—: Nosso Rei e
Soberano ordena e dispõe que todas as pessoas aqui pressente se dispersem imediatamente e retornem
em paz a suas respectivas moradas ou a suas respectivas ocupações, em virtude da Lei promulgada
durante o primeiro ano do reinado do Jorge I para evitar motins e revoltas. Deus salve o Rei.
Os homens começaram a retroceder, resmungando entre eles. Os últimos a chegar foram os
primeiros a ir-se. Os que pertenciam à primeira onda e ainda seguiam em pé também se retiraram
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embora alguns fossem coxeando.
Betsabé olhou lorde Rathbourne, que estava sozinho. Tinha o casaco rasgado e tanto sua gravata
como seu chapéu tinham desaparecido. Parte de seu cabelo estava de ponta e alguns cachos úmidos se
colavam à testa. Tinha o rosto tão sujo que era impossível vislumbrar os hematomas. Sua Excelência lhe
devolveu o olhar e soltou uma breve gargalhada enquanto meneava a cabeça.
Aproximou-se dele. De modo instintivo. E também foi instintivo que levantasse a mão para lhe
acariciar o rosto.
—Está ferido? —perguntou-lhe.
Lorde Rathbourne soltou uma nova gargalhada tão breve como a anterior, agarrou-lhe a mão e a
apertou contra sua face.
—E me pergunta se estou ferido... —disse—. Criatura inconsciente. No que estava pensando?
—Na realidade não estava pensando — respondeu—. O atiraram ao chão... Não era justo. Estava
furiosa.
Sua Excelência lhe soltou a mão e lhe afastou o cabelo do rosto.
Nem pensou antes nem se deteve fazê-lo nesse momento. Inclinou a cabeça e a apoiou contra seu
peito. Também de forma instintiva.
—Tinha medo de que lhe fzessem mal — confessou em voz baixa.
—E o que passa com você, dona Insensata? —replicou ele—. Não pensou que podiam lhe fazer
dano?
—Não — respondeu—. Não me importava.
Sentiu que ele deslizava a mão até deixar-lhe na nuca. Sentiu que seu peito subia e baixava sob
sua face. Foi consciente de que seu próprio coração se descontrolava e de que seus pulmões acusavam
o esforço até o ponto de que lhe custava respirar.
E depois o escutou dizer em voz baixa e contra seu cabelo: — Acredito que o ofcial se aproxima,
o mesmo que vozeou os regulamentos públicos com tanto ênfase. Prepare-se para mentir como uma
desenfreada.

Capítulo 9

Grande parte da multidão desapareceu na escuridão da noite, ou ao menos assim o fzeram


aqueles que ainda podiam mover-se. Os três bêbados que tinham provocado à briga jaziam mais ou
menos onde tinham caído.
Tampouco se via Thomas por nenhum lado, comprovou Benedict. Esperava que o lacaio tivesse
saído atrás do descontrolado tílburi.
Posto que no momento encontravam-se sem carruagem, nem a senhora Wingate nem ele podiam
sair do meio. Não contavam com nenhum meio de transporte para abandonar Colnbrook rapidamente
e, diferentemente dos habitantes, tampouco tinham um refúgio ao que acudir.
O homem que tinha gritado os regulamentos públicos se apresentou como Henry Humber, atual
dono da estalagem O Toril e também como ofcial local. Era um tipo robusto, de uns quarenta anos e
que, aparentemente, estava encantado de poder exercer sua autoridade ali onde se apresentasse a
ocasião. Seu modo de estudar os homens que jaziam no chão, os vidros das janelas feitos pedacinhos e
os arredores antes de tomar notas em uma caderneta não pressagiava nada bom. Benedict estava
convencido de que ia lhes pôr as coisas bastante complicadas. Os dois homens que o acompanhavam,
ambos musculosos e altos, claramente estavam ali para desalentar qualquer tipo de oposição.
Evidentemente, teria sido muito simples resolver o assunto rapidamente... Se pudesse dizer a
verdade.
Quão único tinha que fazer era adotar a pronúncia excelente e a atitude gélida que utilizava para
desinfar os arrivistas e os idiotas, e dizer que estava a caminho para atender um assunto urgente.
Quão único tinha que fazer era anotar o nome e o endereço de seu banqueiro no verso de um cartão de
visita e dar ao ofcial. Não se encontravam tão longe da civilização para que não conhecessem seu
nome. E aqueles que o conhecessem saberiam quem era seu pai.
Uma vez feito isso, lhes permitiriam prosseguir caminho. Se fosse necessário, alguém se
asseguraria de lhe proporcionar um veículo e uma parelha de cavalos descansados. Ofereceria-lhe
comida e, muito possivelmente, uma desculpa pelo «mal-entendido».
Mas não podia dizer a verdade. Não podia dizer quem era nem comportar-se como o faria em
circunstâncias normais. Se estivesse sozinho, teria podido superar sem problemas o estigma de haver-
se visto envolto em uma briga com um punhado de broncos a trinta quilômetros de Londres. As
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pessoas dariam por certo que o tinham atacado ou insultado gravemente. Era de domínio público que
lorde Rathbourne, diferente da ovelha negra da família, seu irmão Rupert, não tinha por costume
brigar nem fcar em evidência de nenhum modo.
Entretanto, não estava sozinho. Estava acompanhado por uma mulher, uma mulher bonita, de
reputação infame e excessivamente interessante.
Uma mulher valente ou, louca, louca de amarrar.
Ainda não acreditava que tivesse sido capaz de saltar do tílburi para meter-se em meio da
disputa. Tinha utilizado o chicote com uma força e uma efcácia admiráveis. E, certamente, tinha
surpreendido os homens. Inclusive tinha escutado que alguns chiavam como meninas e tinha visto que
mais de um se afastava do miolo para fcar a salvo. Se não tivesse estado tão ocupado, teria rido as
gargalhadas.
Algo incrível, embora menos gracioso, era seu próprio comportamento.
Envolveu-se em uma briga, em uma disputa em plena rua, com um punhado de broncos
bêbados.
Por uma mulher.
Naquele momento acreditou agir de forma racional. Viu que os homens estavam muito bêbados.
Sabia que não se podia raciocinar com um bêbado nem se podia esperar que se comportasse de forma
razoável. Sabia que a melhor saída era afastar-se deles.
Devia ter passado por cima os insultos e as obscenidades que lhe tinham dedicado. Entretanto,
tinha descoberto que era muito mais difícil aceitar os comentários vulgares dirigidos à senhora
Wingate, embora apertasse os dentes e fez das tripas coração.
Até que esse tipo a tocou.
E decidiu que tinha que matá-lo.
Nesse momento, a senhora Wingate estava ao seu lado, aferrada a seu braço. A luz procedente
das janelas da estalagem e das lanternas dos homens bastava para espiar a crescente indignação que ia
invadindo a medida que Humber murmurava sobre quão forasteiros chegavam aos povoados
tranqüilos para provocar brigas e altercações.
Esses enormes olhos azuis se abriram como pratos para fulminar o ofcial com um brilho belicoso
enquanto seu magnífco peito subia e baixava e seus delicados lábios se abriam por causa da
indignação e o assombro.
Excitado como estaria qualquer homem que fosse testemunha dessa imagem de paixão mal
contida, Benedict demorou um instante mais da conta em lhe advertir que controlasse seu gênio.
Quando abriu a boca para dizer-lhe ela estalou:
—Não posso acreditar no que estou ouvindo! Três bêbados nos acossaram em plena noite
enquanto cruzávamos tranqüilamente o povoado. Um deles me pôs as mãos em cima. Meu marido
defendeu minha honra. Uma multidão saiu à rua e tentou matá-lo. E nós somos os culpados?
Humber replicou que saltava à vista que os homens estavam muito bêbados para manter-se em
pé, muito menos para ferir ninguém, e que as pessoas saíram à rua com a única intenção de proteger
seus amigos. Assinalou às vítimas que jaziam a seu redor e depois fez um gesto para as janelas dos
edifícios próximos. Alguns homens tinham caído sobre elas, ou alguém os tinha estampado, rompendo
assim os vidros.
Antes que à senhora Wingate ocorressem mais argumentos que esgrimir a seu favor, Thomas
surgiu da escuridão com as rédeas dos cavalos nas mãos. Ainda seguiam enganchadas ao tílburi,
comprovou Benedict com alívio, e a carruagem tampouco parecia ter sofrido sérios danos.
—É dele, não é? —inquiriu Humber - Esse é seu criado? Bem, pois ele virá com vocês e a
carruagem fcará no Toril. —virou de volta a Benedict e lhe disse—: O recuperará na segunda-feira,
uma vez que tenhamos esclarecido todo este assunto com o juiz.
—Na segunda-feira? —exclamaram Benedict e a senhora Wingate em uníssono.
—O juiz Pardew não atenderá ninguém até então — respondeu o ofcial—. Sua senhora grita ao
céu se encontrar algum malfeitor no salão os sábados e domingos.
Igual a muitos juízes rurais, o tal Pardew devia celebrar suas sessões no salão de sua própria casa.
Igual aos seus colegas, teria um conhecimento muito superfcial da lei e suas sentenças se apoiariam no
que ele pontuasse de bom senso, enfeitado com seus prejuízos e, indubitavelmente, com os de sua
esposa.
Isso não queria dizer que não repartisse justiça, coisa que a Benedict não preocupava o mínimo.
O que lhe preocupava era o nome do juiz, muito conhecido para ele, e a possibilidade de que alguém o
tivesse despertado e lhe tivesse contado da disputa. Pardew talvez estivesse a caminho nesse mesmo
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Perfeito
momento. Era um intrometido e um fofoqueiro de marca maior.
Benedict inclinou a cabeça para falar com a senhora Wingate ao ouvido.
—Não podemos perder tempo aqui — disse—. Não posso me arriscar que Pardew nos veja.
Conhece-me. — Depois disso e em voz alta, acrescentou—: Sinto muitíssimo lhe dizer que na segunda-
feira não...
—Oooh! —exclamou ela, lhe soltando o braço. Ato seguido cambaleou para Humber e desmaiou.

Em um primeiro momento, Benedict não suspeitou nada. Quando a viu levar mão à testa e
começar a cambalear, deixou de respirar e também de pensar. Entretanto, reagiu por instinto e fez gesto
de agarrá-la, mas a senhora Wingate caiu sobre Humber, de modo que foi este quem a sustentou.
Seu coração voltou a pulsar quando observou que se revolvia com dissimulação entre os braços
do hospedeiro até fcar de frente a ele, com os seios esmagados contra seu torso.
Humber não parecia muito disposto a soltá-la e ele começou a considerar a idéia de matá-lo.
Não obstante, nesse mesmo momento apareceu uma mulher bojuda com uma lanterna na mão.
Levava um casaco de cavalheiro sobre o que parecia uma camisola. Não tinha tirado o gorro de dormir,
já que aparentemente acreditava sufciente amparo para o ar da noite. Aproximou-se deles com passos
decididos e semblante sério.
—Humber — disse—, por que demora tanto?
A senhora Wingate deixou escapar um leve gemido.
O hospedeiro não demorou em deixar o voluptuoso e lasso corpo que tinha entre os braços aos
cuidados de Benedict.
—Bertha — disse—, o que está fazendo me buscando a esta hora aqui fora? Vai pegar uma
pneumonia, já o verá!
—Como queria que voltasse a dormir com toda esta animação? —replicou à senhora.
A senhora Wingate voltou a gemer.
Benedict baixou a vista para a mulher que jazia languidamente entre seus braços. Tinha perdido o
chapéu e lhe tinha desfeito o penteado. Tinha a cabeça arremessada para trás, posição que deixava
exposto seu branco pescoço e que elevava seus túrgidos e arredondados seios. Com esses carnudos
lábios entreabertos e os olhos fechados...
Sabia que a pose não era mais que uma farsa, mas não atinava a compreender nada mais. Seu
cérebro estava trabalhando muito mais devagar que outras partes de seu corpo situadas um pouco
mais abaixo.
Estava suja e desalinhada por causa da confusão, circunstâncias que pioravam a situação.
Desejava lhe arrancar até o último centímetro de tecido manchado de pó, deixá-la nua e...
Lavá-la.
Muito devagar.
Da cabeça até a ponta dos pés.
Teve que fazer um tremendo esforço, coisa que não foi fácil, para recuperar o uso da razão.
—Querida — disse com voz rouca—, me diga algo.
A senhora Wingate piscou várias vezes e começou a recuperar-se lentamente. Ou melhor, fngiu
que começava a recuperar-se.
Movido pela desesperada necessidade de recuperar a compostura, Benedict procurou um lugar
onde pudesse deixá-la.
Os Bêbados Um e Dois jaziam pacifcamente perto do banco onde tinham caído, roncando a
perna solta. Separou de um chute o Número Um e sentou à senhora Wingate no banco. Antes que
pudesse afastar-se, lhe puxou a mão.
Embora precisasse afastar-se um pouco dela, Benedict se sentou a seu lado guardando distância.
Quando recordou que se supunha que era seu marido, passou-lhe o braço pelos ombros e tentou não
pensar em lavá-la.
—Querido, acredito que minha enfermidade piora — disse ela—. Não é um bom sinal: outro
ataque justo depois do último... —Deixou escapar um pequeno soluço.
Pois claro! Estava morrendo, por fm o entendia.
—Não, nada disso. Está melhor — a tranqüilizou, lhe dando uns tapinhas na mão—. Foi à
impressão... Todos esses homens. Os gritos, a violência. Assustou-se.
Nem a metade do que se assustaram os que receberam os golpes com o cabo do chicote, disso

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Perfeito
estava muito seguro. Foi feito com endrino3 do bom.
Ela negou com a cabeça.
—Não, cada vez estou mais fraca — insistiu, demonstrando uma emotiva e maravilhosa valentia
—. Esperava poder ver minha querida Sarah antes de... Antes de... Enfm, me entende.
Benedict não entendia nada, mas fazia uma idéia aproximada e seguiu a corrente.
—A verá logo, querida, prometo-lhe isso.
—Oxalá fosse possível! —exclamou ela—. Esse é meu último desejo. Mas na segunda-feira...
Talvez já seja muito tarde. Não acredito ter forças para agüentar.
A terna cena tinha chamado à atenção do outro casal, coisa que era sem dúvida alguma o objetivo
da senhora Wingate.
—A dama está doente? —perguntou à senhora Humber antes de lançar um olhar furioso a seu
marido.
—Bom, e como eu ia saber? —protestou ele—. Pareceu-me muito... Saudável. Além disso, me
disseram que faz um momento esteve dirigindo o chicote com muito brio.
Benedict a apoiou com muita delicadeza contra a parede da estalagem, fcou em pé e se
aproximou do casal.
—Se a vissem a luz do dia, perceberia os sintomas — assegurou em voz baixa—. Não sei de onde
tirou forças para ir a minha ajuda. Foi muito arriscado por sua parte, um desatino, dada sua condição...
Mas é muito va-valente. —E deixou que lhe quebrasse a voz.
—Tem uma vitalidade surpreendente para estar doente — comentou Humber.
—Está decidida a ver sua irmã, embora saiba que a viagem pode ser fatal — prosseguiu ele—.
Aferro-me à esperança de que a guie um instinto poderoso. Talvez os doutores se equivoquem e a
reunião e a mudança de ares lhe assentem bem. É o desespero o que nos leva a viajar de noite,
entendem? Minha esposa teme não chegar a tempo para ver sua irmã.
O cenho da senhora Humber se acentuou.
—Antes não estava nem pingo de doente — afrmou o hospedeiro—. Você não estava aqui para
vê-la, Bertha.
—Vi mais que sufciente — concluiu.
—Note o que ele fez! —exclamou seu marido, assinalando com a cabeça seus enfraquecidos
vizinhos—. Além de todas as janelas quebradas. O juiz quererá...
—Rio-me do juiz! —replicou a hospedeira—. Como se preocupasse muito que seus amigos se
embebedem e partam a cabeça. Que eles paguem as janelas quebradas. Não volte a mencionar o juiz!
Não caí de uma cerejeira, sabe?
—Bertha... —disse Humber.
—Que Bertha, nem que oito quartos! —exclamou, antes de virar-se para Benedict—. Sinto muito
lhes haver ocasionado tantos problemas, senhor. Mas, em seu lugar, eu não seguiria viajando a estas
horas com a dama. O ar noturno pode prejudicá-la, por um lado. E, por outro, a estas horas não há
mais que bêbados idiotas e descarados perambulando pelas ruas. Se virem uma senhora tão bonita
como ela, é normal que percam a cabeça. Vão-se agora mesmo. Ah, e se fosse você a tampava bem.
Poucos minutos depois, a senhora Wingate, Benedict e Thomas estavam a salvo no tílburi e se
afastavam de Colnbrook.
Nenhum deles viu o juiz Pardew que cavalgava em direção contrária pelo caminho. O homem se
fez a um lado para deixar que a carruagem passasse e fcou ali, entre as sombras, observando-o com o
cenho franzido.

—Livramo-nos por um fo — disse lorde Rathbourne a Betsabé enquanto cruzavam uma nova
ponte—. Tinha pensado fazer um sinal a Thomas antes de agarrá-la nos braços e sair correndo para o
tílburi. Supus que se os pegasse de surpresa, os homens de Humber reagiriam muito tarde para nos
deter e poderíamos escapar dali sem contratempos.
—Sua idéia era melhor que a minha — ela admitiu —. Mas vi que se aproximava uma mulher e o
primeiro que me ocorreu foi me lançar aos braços do hospedeiro.
—Foi uma idéia brilhante — reconheceu lorde Rathbourne—. Valha-me Deus, foi uma cena
maravilhosa! Melhor que uma representação teatral. —trocou as rédeas à mão que sustentava o chicote
para poder lhe jogar o braço pelos ombros e abraçá-la. Betsabé sentiu que lhe colocava o queixo na
3
Endrino: tipo de arbusto
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cabeça—. Esteve magnífca — disse com uma voz tão rouca que retumbava em seus ouvidos—. Foi
uma loucura que fosse a meu resgate, mas reconheço que foi maravilhoso.
Sentiu desejos de pegar-se mais a ele. Uma vez que tudo tinha fcado atrás, descobriu que estava
tremendo.
—Tinha medo de que lhe fzessem mal — confessou.
Lorde Rathbourne a abraçou com mais força.
—Seriamente? —esclareceu a garganta—. Suponho que não tanto como esses homens quando a
viram lançar-se sobre eles. —Sua voz adotou um tom mais leve —. Grande imagem a sua!
—Tive prática — disse ela. Mas nesse momento recordou quem e o que era e se afastou dele.
Lorde Rathbourne também pareceu recuperar a compostura. Em lugar de tentar aproximá-la de
novo de seu corpo, voltou a trocar as rédeas à mão esquerda, endireitou as costas e se concentrou na
condução.
—Estive viajando pelo continente com minha família durante a guerra — explicou—. Meu pai me
ensinou a disparar e a utilizar o chicote, no caso de toparmos com algum grupo de desertores, ou essa
foi à razão que deu. Tal como foram as coisas, tivemos mais problemas com suas numerosas vítimas
que com os soldados...
—Se sua flha for à metade de engenhosa que você, já não me preocupa o bem-estar de Peregrine
— confessou ele—. Além disso, sei que é mais que capaz de defender-se se a ocasião o requer. Defende-
se bastante bem com os punhos, tal como Nat Diggerby descobriu. Em qualquer caso, no Expresso
estarão a salvo.
—A salvo sim, mas o tempo vai — advertiu—. Quanto falta até Salt Hill?
—Uns cinco quilômetros — respondeu lorde Rathbourne.
—Conduza mais rápido — disse.

Lorde Rathbourne açulou aos cavalos... Em vão.


Quando chegaram a Salt Hill, a senhora Edkins, que dirigia uma casa de postas chamada O
Moinho, disse-lhes que só apeou um passageiro do expresso. Uma dama entrada em anos que nesse
momento dormia em um dos quartos. Não tiveram que incomodar à anciã para falar com ela, porque a
senhora Edkins já lhe tinha surrupiado toda a informação possível.
A hospedeira lhes contou o que a dama lhe havia dito. O Expresso tinha recolhido em Cranford
Bridge dois jovens que retornavam de Londres com a intenção de ver sua mãe moribunda. A anciã se
compadeceu deles e lhes tinha dado algumas moedas. Não era muito, já que a senhora não estava
acostumada viajar com muito dinheiro em cima, mas cobriria o preço de dois bilhetes até o Twyford.
Betsabé olhou lorde Rathbourne.
—A que distância está Twyford? —perguntou-lhe.
—A uns vinte quilômetros — respondeu ele—. O que me aborrece. Esperava poder tomar um
banho. Parece que terei que me conformar com a fonte do pátio da estalagem.
—Açulou muito os cavalos e tiveram um acidente, não? —perguntou à senhora Edkins, olhando-
o de cima abaixo. Apesar de que tinha a cara suja, de que lhe faltavam botões, de que tinha a gravata
enrugada e manchada, as calças rasgadas e as botas arranhadas, nos olhos da mulher havia um brilho
de admiração.
—Tivemos uma topada com alguns broncos bêbados em Colnbrook — explicou ela.
—Deveria ter visto nossos competidores — disse lorde Rathbourne com esses olhos negros
reluzentes de alegria—, depois que minha mulher acabou com eles.
Ato seguido deu meia volta e enfou o estreito corredor que levava a parte traseira da estalagem.
Betsabé o seguiu com o olhar, assombrada pelo fato de que só parecesse sedutoramente desalinhado
enquanto que ela...
A idéia se desvaneceu quando seu olhar percorreu esses amplos ombros e baixou até os estreitos
quadris. Caminhava de uma forma estranha.
Apressou-se a segui-lo.
—Está ferido? —perguntou.
—É claro que não — respondeu ele sem deixar de caminhar—. Quão único preciso é um pouco
de água fria para me reanimar.
Parecia proteger o fanco direito ao caminhar.
—Está ferido — insistiu ela—. Deve me deixar examiná-lo. Poderia ter uma costela quebrada.
—Não tenho nada quebrado — assegurou lorde Rathbourne—. Não é mais que um músculo que
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protesta. O músculo que normalmente se utiliza para estampar os tipos contra as paredes estava um
pouco oxidado e débil pela falta de uso.
—Senhora Edkins! —chamou aos gritos à hospedeira.
Aludida-a não demorou em aparecer pelo corredor.
—Meu marido está ferido — disse Betsabé—. Necessito água quente.
—Não necessita nada disso — a contradisse ele—. Senhora Edkins, não tem por que incomodar-
se nem com a água quente nem com nenhuma outra coisa. —O olhar que lhe lançou lhe deixou bem
claro que não havia mais que falar—. São mais das duas da madrugada. Não vai despertar a todo
mundo nem a pôr a estalagem de pernas para abaixo porque tenho um espasmo muscular. —Ao girar-
se, fez uma careta de dor.
—Não faça conta, senhora Edkins — insistiu ela—. É um homem, e já sabe você como são.
—Certamente que sei — repôs a hospedeira—. E não é nenhuma moléstia. Estamos acordados
toda a noite porque os carros de postas vão e vêm todas as horas. Trar-lhe-ei a água quente
rapidamente. Preparo também algo de comer e beber para que o cavalheiro reponha forças?
—Não — respondeu lorde Rathbourne com sua voz mais aristocrática—. Presumo... —Deixou a
frase no ar enquanto seus lábios adquiriam um estranho ricto. De repente soltou um gemido estranho.
Betsabé o olhou, alarmada.
E nesse momento lorde Rathbourne pôs-se a rir com tal força que as paredes do corredor
tremeram.

Uma vez que começou, foi como se rompido uma represa.


Benedict não podia parar de rir. Sua mente rememorava uma e outra vez o recente episódio, e via
uma e outra vez o momento em que o Bêbado Número Dois soltou a vulgar proposta à senhora
Wingate, a qual ela replicou com esse tom de voz tão maravilhosamente composto:
«Esta noite não. Dói-me a cabeça».
Desde aí, sua mente saltava até o momento em que ela se jogou nos braços do Humber e depois
passava à cara da senhora Humber... E seu sucinto comentário:
«Vi mais que sufciente».
De modo que seguiu rolando de rir sem poder evitar.
Apoiou um braço na parede e tentou recuperar o fôlego, mas nesse momento recordou à senhora
Wingate enquanto golpeava com o cabo do chicote um homem na cabeça e nos ombros, viu como o
pobre desgraçado elevava os braços para proteger-se... E voltou a estalar em gargalhadas.
Não soube quanto tempo seguiu assim. Quão único soube foi que por fm parou o ataque que o
deixou sem fôlego e um pouco enjoado. Supôs-lhe um enorme esforço seguir em pé, enxugar as
lágrimas e sair ao pátio traseiro da estalagem, onde estava a fonte.
Era muito consciente de que as mulheres seguiam seus movimentos sem pestanejar.
Embora se limitassem a observá-lo. Não o seguiram para tentar atender suas supostas feridas
assim podia estar tranqüilo. Thomas o seguiu pouco tempo depois, mas esse era seu trabalho.
Uma vez fora, depois de haver-se liberado por fm de parte da sujeira e bastante mais tranqüilo,
Thomas lhe deu uma toalha e disse que se alegrava de comprovar que não tivesse sofrido nenhuma
ferida grave.
—Certamente — replicou Benedict—. Esses rufões não supuseram nenhum problema, salvo
quando me atiraram ao chão. Nesse momento sim poderia ter sofrido algum dano se a senhora... Isto...
Se minha querida esposa, não tivesse intervindo. —E teve que conter a risada.
—A senhora Woodhouse, senhor — informou Thomas. Aproximou-se e baixou a voz porque, tal
como a hospedeira tinha assinalado, seguia havendo certa atividade na casa de postas. O pátio em
particular era um lugar bastante mais concorrido que outras áreas da estalagem, já que havia
carruagens que chegavam a intervalos regulares durante toda a noite para trocar de cavalos. Salt Hill
era uma parada muito popular—. A senhora disse a hospedeira que vocês são os senhores Woodhouse
— explicou o lacaio—. Mas não entendi se o chamou pelo nome de batismo de John ou de George.
—Tampouco importa muito como me tenha batizado — replicou Benedict—. Iremos a um
instante.
Thomas pigarreou.
Benedict o olhou. O pátio da estalagem estava bem iluminado; entretanto, resultou-lhe difícil
decifrar a expressão do lacaio.
—O que acontece? —perguntou-lhe.
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—A senhora Woodhouse reservou um salão privado — respondeu Thomas—. Teria saído antes
ao pátio, mas a senhora me ordenou que acendesse o fogo.
—E a obedeceu — concluiu Benedict—. Embora soubesse que meu desejo era ir daqui o antes
possível.
—Sim, senhor.
—Tem medo, Thomas?
—Vi-a saltar da carruagem quando os homens o atiraram ao chão — respondeu ele—. Adiantou-
me, porque se não fosse assim, teria sido eu quem iria a sua ajuda, como está ordenado. Dá-me a
impressão de que a dama faz tudo pelo bem de Sua Excelência Quanto à pergunta de se lhe tive medo
ou não, milorde, preferiria não estar em sua lista negra. Assim acendi o fogo como ela queria.
—Entendo — disse Benedict.
—Pediu água quente, ataduras e comida — prosseguiu o lacaio com tenacidade—. Diz que deve
você comer algo... Assim que lhe examine as feridas.
—Não tenho nenhuma ferida — assegurou—. Será que já não o disse?
—Milorde, sem ânimo de ofender, as damas são muito dadas a nos dar pílulas, nos pôr
emplastros e nos enfaixar — respondeu Thomas—. Não importa se o homem o necessita ou não. O
melhor é lhes seguir a corrente, já que isso agrada a elas e nos economiza a discussão.
Apesar de que o ponto de vista do lacaio era do mais razoável, Benedict tinha muito claro que
seria uma estupidez deixar que Betsabé Wingate lhe pusesse as mãos em cima, embora fosse para
aplicar algum remédio medicinal. Seu autocontrole já mostrava grandes brechas: a confusão, o abraço
no tílburi, o ataque de risada... Nesse momento não estava muito tranqüilo e o cansaço começava a
afetá-lo, coisa que ajudaria bem pouco a seu prejudicado autocontrole.
Se ela o tocava, se aproximasse dele quando não tivesse outra coisa importante que fazer como
conduzir, nem nenhuma preocupação em mente que o distraíra de sua presença, estava exposto a
cometer um erro monumental.
Não podia seguir o conselho de Thomas.
Não podia ceder à preocupação da senhora Wingate por suas possíveis feridas nem a seu
impulso feminino de cuidá-lo.
Uma vez tomada à decisão, devolveu a toalha a seu lacaio. A falta de um pente passou a mão
pelo cabelo, que sem dúvida alguma pareceria um desastre com os cachos da ponta. Esteve a ponto de
perguntar a Thomas se estava tão mal como se imaginava, mas resistiu à tentação.
Não era justo. Tanto ele como Rupert tinham herdado a cor do cabelo de sua mãe, mas o de seu
irmão não se frisava desse modo tão ridículo nem se alvoroçava dessa maneira tão absurda.
Embora muito menos, invejava Rupert pela simples razão de que seu irmão sempre acabava
metido em alguma confusão vexatória e sua vida era um caos. Jamais entenderia como Dafne, uma
mulher lógica e inteligente, tolerava a imprevisibilidade, a desorganização e a desordem de seu irmão.
Em qualquer caso, o estado de seu cabelo carecia por completo de importância. Não estava se
arrumando para ir ao Almack's, precisamente. Não estava preparando-se para sair ao mercado
matrimonial. Não estava procurando à Esposa Perfeita.
Além disso, o Dever e a Razão lhe proibiam fazer o menor intento por mostrar-se atrativo ante
Betsabé Wingate.
Assim esperando não parecer-se muito a Grimaldi o palhaço, retornou à estalagem e se
encaminhou ao salão privado decidido a pôr as coisas em seu lugar, Betsabé Wingate incluída.

Capítulo 10

Betsabé também se poliu na medida do possível, mas de uma forma muito mais adequada para
uma dama: com a bacia e o jarro que a senhora Edkins lhe tinha proporcionado.
Entretanto, a mulher não lhe tinha dado nem espelho nem forquilhas, de modo que estava
tentando arrumar o cabelo com a difculdade que esse detalhe suportava quando a porta do salão
privado se abriu de par em par.
—Corrompeu meu lacaio — acusou lorde Rathbourne. Atou a gravata encharcada sem prestar
muita atenção ao resultado fnal. A gola da camisa sem base alguma. Tinha o casaco e o colete
desabotoados.
Sobre as sobrancelhas lhe caía uma lustrosa profusão de cachos negros, enquanto que o resto de
sua cabeça aparecia coberto pelo que pareciam ser autênticos cachos.
Não tinha se limitado a lavar o rosto, mas sim tinha metido a cabeça sob o cano da fonte, concluiu
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com desespero. Estava encharcado!
Sentiu o arrasador desejo de passar os dedos por esse desordenado arbusto de cachos negros. De
lhe arrancar a roupa úmida para acariciar certas partes que suas mãos não deveriam tocar.
E a culpa tinha sido a maldita briga em Colnbrook. A reação de lorde Rathbourne quando a tocou
o bêbado... O modo em que se defendeu do ataque em massa dos homens, lançando-os a direita e a
esquerda como se fora costurar e cantar... O perigo...
Tinha-lhe encantado.
Tinha-o achado excitante.
A típica reação de um DeLucey.
Cravou um grampo no desastroso coque que tinha conseguido fazer-se.
—Sou uma DeLucey — replicou com voz fria—. Corrompemos todo mundo.
—Pois a mim não vai corromper — isso ele assegurou—. Terá que conformar-se escravizando
Thomas e vê-lo brincar de correr de um lado a outro para obedecer cada uma de suas loucuras. Porque
eu não sou Thomas e não estou acostumado a que me dêem ordens. Vamos, temos que ir.
Isso a enfureceu.
—Pois eu tampouco estou acostumada a que me dêem ordens — repôs—. Nego-me a me mover
daqui até me assegurar de que não tem uma costela quebrada.
—Não tenho nenhuma costela quebrada — disse ele.
—Não pode sabê-lo com segurança — corrigiu—. O vi caminhar pelo corredor procurando
proteger o fanco direito.
—Tentava não rir — explicou.
—E depois seguiu caminhando de um modo estranho — insistiu Betsabé.
—Estava um pouco enjoado pelo ataque de risada — replicou.
Vê-lo e escutá-lo também tinha tido um efeito enjoativo nela. Suas gargalhadas lhe tinham
provocado um estranho baque no coração porque lhe tinham mostrado sua faceta de menino e de
libertino, uma faceta mais imperfeita e humana.
Porque era humano, tão vulnerável como outros. E os espasmos podiam ter piorado suas feridas.
—Só será um momento — insistiu—. Não pode você agradar uma...?
—Não sou idiota, senhora Win... Senhora Woodhouse — se corrigiu—. Se tivesse uma costela
quebrada, saberia. Só pela dor, evidentemente. Por muito viril e estóico que seja também sinto dor. E
sou bastante inteligente para saber quando não me dói. Agora mesmo não me dói nada.
—A reação à fratura está acostumada atrasar-se — insistiu ela—. Em ocasiões passam horas antes
que a impressão ou o nervosismo desapareçam e a dor...
—Não estou impressionado nem nervoso, e não vamos passar horas neste lugar — a interrompeu
—. Eu vou senhora. Pode vir comigo ou fcar aqui, como goste. —Deu meia volta e saiu pela porta.
Esperava que o seguisse, como se fosse um novilho.
Betsabé cruzou os braços e fulminou o vão da porta com o olhar.
Sua Excelência retornou um momento depois.
—Está sendo teimosa só para me contrariar — a acusou—. Está decidida a me desafar a menor
oportunidade. Exatamente igual fez em Londres. Pois não vai sair-se sempre com a sua.
—E você sim? —perguntou-lhe.
—Nego-me a fcar aqui, discutindo com você — respondeu ele—. É absurdo.
—Não permitirei que me trate como uma menina — advertiu Betsabé—. Será melhor que não
empregue esse tom comigo. Não vai mofar se de mim por me mostrar razoavelmente preocupada. As
costelas quebradas podem ser mortais.
A expressão de lorde Rathbourne se suavizou de pronto.
—Sim, é claro que é razoável que se mostre preocupada. Não deveria fazer-me superfcialmente.
Ela relaxou e descruzou os braços.
Sua Excelência se aproximou com uma expressão contrita no rosto.
—Pode me dizer tudo o que queira — disse enquanto agarrava sua mão—. Na carruagem.
Betsabé retrocedeu de pronto, mas ele se moveu muito rápido e a ergueu nos braços.
—Não, não e não — disse—. Não vai utilizar estas táticas das cavernas comigo. Não vai levar-me
de um lado para outro como se fosse um saco de batatas. Deixe-me. — Atirou-lhe um murro no peito.
—Tome cuidado com minhas costelas quebradas, encanto — disse com uma gargalhada.
—Não sou seu encanto, bruto troglodita — replicou enquanto tentava escapar—. Não é meu amo
e senhor. Não me...
—Está fazendo uma bonita cena — recordou lorde Rathbourne.
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Perfeito
—Nem sequer comecei — disse quando chegaram à porta—. Se der um só passo mais...
Sua Excelência se apoderou de seus lábios.

O mundo saiu de sua órbita e obscureceu. Benedict fechou com uma batida violenta e se apoiou
na porta sem interromper o beijo.
«Não! Não!», rugiu uma voz em sua cabeça. Muito tarde.
Porque notou que ela se rendia imediatamente. Notou em seus lábios e nas mãos que o
agarraram com força pelos ombros.
Rendeu-se ao beijo e se entregou às mãos cheias, embora o fzesse com uma nota desafante. A
mesma que antes tinha iluminado esses olhos azuis e que agora lhe derretia os lábios.
Sentiu-a retorcer-se entre seus braços até que a deixou no chão, mas não fez o menor gesto de
separar-se dele. Benedict seguiu saboreando a ardente umidade do beijo enquanto ela deslizava por
seu corpo e o roçar dessas voluptuosas curvas sobre seus tensos músculos o avivou.
Tinha que soltá-la. Já.
Só tinha que afastar o braço da cintura. Mas não o fez. Manteve-a colada a ele enquanto o beijo
adquiria uma tintura erótica e se convertia em um jogo, incitante, atrevido, exigente... Paixão.
A paixão não estava permitida. Jamais. A paixão era a loucura, o caos. Tinha centenas de regras
contra a paixão.
«Não. Dê-me um chute. Um pisão. Sabe como se defender», pensou.
Mas ela seguiu colada a seu corpo, obstinada ao seu braço com uma delicada mão que bem
poderia ser um grilhão.
Escutou as vozes da Razão e do Dever lhe gritando as regras, mas ela as sossegou com o simples
roçar de seus dedos sobre o dorso de uma mão; a mão que tinha colocado contra a porta com a intenção
de imobilizá-la até encontrar a força sufciente para fazer o mesmo com a outra.
Entretanto, ela só teve que lhe rodear o pulso para que girasse a mão e seus dedos acabassem
entrelaçados. A intimidade da carícia fez que o coração desse um baque, e isso por sua vez o
enfureceram. Essa mulher estava feita para ele. Por que não podia fazê-la sua?
Pôs fm ao beijo e enterrou o rosto em seu pescoço. Saboreou sua pele e inalou seu aroma, o
mesmo que com tanto afnco tinha tentado esquecer... Em vão.
A partir desse momento lhe resultou impossível deixar as mãos quietas. As levou às costas e
começou a explorar as curvas de sua cintura e de seus quadris. Sua reação foi como um desafo para
ela, ou talvez se visse invadida de repente pelo mesmo desejo avassalador que o invadiu, porque suas
mãos começaram a mover-se, desatando o caos ali por onde passavam. Deslizaram sob seu casaco e seu
colete, atormentando-o por cima da leve camisa apesar de saber, porque estava convencido de que ela
sabia que precisava sentir sobre a pele nua.
Mediu as costas do vestido, mas ali não havia botões. Estavam na frente. Demorou apenas um
instante em desabotoá-los, apartar o fno tecido da regata e colocar as mãos sob o espartilho para lhe
acariciar os seios, pele contra pele. Escutou-a ofegar.
«Diga-me que pare... Não me diga isso», rogou em silêncio.
Ela se afastou um pouco e deu uns puxões no espartilho para afrouxá-lo, depois do qual o olhou
nos olhos com expressão desafante e sedutora. Ato seguido elevou as mãos, aferrou-lhe a cabeça a
puxou para baixo. Só teve que roçar a delicada curva desses seios com os lábios para lhe arrancar um
gemido de prazer.
Até aí chegaram seus pensamentos.
A partir desse momento se impôs uma frase: «a desejo», seguida de «tenho que possuí-la», ambas
acompanhadas de uma litania de «minha, minha, minha».
A parte animal estava no comando.
Subiu-lhe as saias e o frufru das anáguas ao roçar as mangas de seu casaco o acompanhou até que
por fm encontrou uma liga; daí seguiu subindo sobre uma pele extremamente suave e se deteve o
chegar a sua parte mais feminina, cálida e úmida.
Com a outra mão fez o gesto de desabotoar as calças, mas ela se adiantou. O roçar da palma
contra seu palpitante membro o levou a enterrar a cara no ombro para conter um gemido, como se
fosse um colegial em seu primeiro encontro com o prazer.
Consumia-o a impaciência e era incapaz de raciocinar; mas, por muito impaciente que estivesse,
as brincalhonas carícias dessa mão resultavam muito prazerosas para afastá-la. Notou como lhe
desabotoava um botão e depois outro. Seu membro se esticou ainda mais contra o tecido, em busca de
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sua mão, e já estava fazendo gesto de ajudá-la (e de ajudar a si mesmo) quando a escutou gritar e se
separou dele enquanto rogava praga em francês.

Uma dolorosa espetada, isso foi o único que precisou Betsabé para recuperar o bom senso.
Separou-se de lorde Rathbourne com a mão dolorida. E lhe deu as costas, porque se tinha
ruborizado.
—O que aconteceu? —perguntou ele com voz muito rouca—. O que aconteceu?
Betsabé teria se posto a chorar de boa vontade. Ou a rir.
—A mão — respondeu—. A mão, graças a Deus. Feri-me em seus dentes, Rathbourne! Sabe que
não podemos fazer isto.
—Em meus dentes? — repetiu—. Em meus dentes? —Depois, em tom mais acalmado,
acrescentou—: O que aconteceu em sua mão?
—Acredito que rompi o nariz de alguém — explicou—. E agora me dói horrores.
—Me deixe ver.
Queria se afastar dele com a intenção de recompor a roupa e lhe dar tempo para fazer o mesmo.
Tinha o peito à vista, por cima do espartilho, as anáguas presas na cintura e as saias amassadas.
Entretanto, jamais tinha se envergonhado de seu corpo nem tinha sido tímida na hora de mostrá-
lo, e nesse preciso momento lhe importava muito pouco o que ele pudesse ver. Teria deixado olhá-la
com prazer e lhe fazer tudo o que quisesse. O teria feito de boa vontade... «Anda já! —exclamou a voz
de sua consciência—. Teria estado encantada!»
Porque estava apaixonada por esse homem e não podia lutar contra isso. Não podia lutar contra
si mesmo, uma DeLucey da cabeça aos pés, por muito que lhe pesasse.
Permitiu que Rathbourne lhe agarrasse a mão para examiná-la.
—Tem os dedos inchados — disse ele—. Disse que pegou alguém no nariz?
—Sim — respondeu.
—Por minha culpa — acrescentou ele.
—Sim, é obvio que foi por tua culpa — afrmou—. Não ia permitir que os enfrentasse sozinho. Já
que estamos, nem sequer deveria haver incomodado. Foi ridículo que montasse semelhante escândalo
porque um bêbado me agarrasse o tornozelo. Era perfeitamente capaz de lhe dar um chute se fcasse
muito pesado. Mesmo assim, foi um gesto encantador por sua parte. Muito cavalheiresco.
—Não foi nada encantador — corrigiu Rathbourne—. Foi totalmente ridículo. Se não me tivesse
comportado de uma maneira tão estúpida, ao mais puro estilo de Rupert, a esta altura haveria
empreendido o caminho e não estaríamos nem doloridos nem preocupados com as possíveis feridas do
outro. E, sobre tudo, não teríamos estado em um momento de fazer algo que ambos sabemos muito
bem que não devemos fazer.
—Bom, mas não o fzemos—o tranqüilizou. Não tentou soar aliviada. Nem sequer tinha o
controle sufciente para que sua voz não soasse decepcionada.
—Não, não o fzemos. —Rathbourne tinha a vista cravada em sua mão. Depois de inclinar a
cabeça, a levou aos lábios e beijou os nódulos, um a um. Quando a soltou, examinou-a dos pés à
cabeça. Deixou escapar um comprido suspiro—. A culpa de que esteja quase nua é minha. Assim que
me toca lhe vestir de novo.
—Posso fazê-lo — assegurou.
—Gritaste de dor tentando desabotoar um simples botão — ele recordou—. Acha que será capaz
de apertar as ftas do espartilho e de abotoar o vestido?
Boa pergunta.
Tal como tinha vaticinado, a briga tinha tido uns efeitos retardados. Mas sobre si mesma, não
sobre ele. Que lástima que não tivesse começado a lhe doer uns minutos antes. Assim não teria que
enfrentar o descobrimento de que só era uma rameira a mais, das muitas que abundavam entre os
Atrozes DeLucey.
—Suponho que demoraria horas e me custaria um bom número de gritos e maldições —
respondeu—. Talvez seja melhor que você o faça.
Cravou a vista em seu pescoço enquanto lhe endireitava o espartilho com efciência, alisava-lhe a
regata, cobria-lhe os seios e atava as ftas.
Enquanto lhe colocava as anáguas, teve que tragar saliva para dizer:
—Suponho que uma verdadeira dama não vai por aí desabotoando as calças dos homens.
—Não o fazem... —conveio ele enquanto lhe alisava o vestido—, com tanta freqüência como
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gostariam.

Embora tivessem pago o trajeto até o Twyford, Peregrine e Olivia não chegaram tão longe.
Em Maidenhead, localidade onde o carro de postas se deteve para trocar os cavalos Peregrine
desceu como pôde do assento que ocupava entre dois passageiros bastante gordos e sujos. Ditos
passageiros tinham estado dormindo quase todo o tempo sobre ele. Levava quase dez quilômetros
suportando seu asqueroso odor e seus ensurdecedores roncos. Se tivesse tido algo interessante que
fazer ou o que olhar, não lhe teria importado tanto. Mas, como não tinha sido assim, estava aborrecido
e furioso, além de cansado e faminto.
—Eu desço aqui — disse a Olivia—. Você pode fcar comigo ou seguir adiante. Dá-me exatamente
igual.
Desembarcou da carruagem, saiu do pátio da estalagem à rua e tomou uma boa baforada de ar
noturno.
Depois deu uma olhada a seu redor. Jamais tinha estado na rua tão tarde, só e em um povoado
desconhecido. Salvo pelo murmúrio procedente do pátio da estalagem, o lugar estava em silêncio. Era
muito tarde e todos estavam dormindo.
Gostava de estar em silencio para pensar. Na realidade, o que mais gostaria era ir dormir, como o
resto do mundo.
Tinha passado toda a tarde e parte da noite em um estado de nervos constante, sem saber o que
faria Olivia a seguir e perguntando-se quando os assaltaria outra calamidade.
Nesse momento se deu conta de que já os tinha assaltado. Fugir com Olivia Wingate, sem
importar quão nobres fossem seus motivos, ia acarretar umas conseqüências muito desagradáveis.
Se lorde Rathbourne já os tivesse encontrado, tal como ele supunha a princípio que aconteceria
talvez o assunto tivesse acabado sem mais. Teria bastado uma explicação para que seu tio
compreendesse por que tinha feito o que tinha feito. Tio Benedict era um homem razoável e racional.
Não obstante, já tinha passado um dia. Era sábado, o dia supostamente fxado para que Sua
Excelência e ele partissem para Escócia. Duvidava muito de ser capaz de chegar a Londres com tempo
para evitar o desastre embora pudesse permitir-se alugar um carro particular, coisa que não podia
fazer. A essa altura a criadagem de seu tio por completo saberia que algo andava mal. E assim que os
criados se inteirassem, todo mundo saberia.
Deveria ter compreendido que relacionar-se com Olivia Wingate lhe conduziria um desastre atrás
de outro. Deveria tê-la deixado sozinha com Nat Diggerby.
Claro que nesse caso teria perdido a aventura.
E a verdade era que não tinha nenhuma pressa por chegar a Edimburgo para aborrecer-se e
desesperar-se em outro colégio, do qual não demorariam a expulsá-lo.
O que lhe preocupava era a possibilidade de que lorde Rathbourne se zangasse, porque poderia
chegar à conclusão de que causava muitos problemas, e de que seus pais se inquietassem, porque cabia
a possibilidade de que em um arrebatamento de histeria lhe proibisse as visitas à casa de seu tio. Se não
fosse por isso, não lhe teria importado continuar com Olivia atrás de sua louca Cruzada. Para um
jovem que planejava navegar pelo Nilo, percorrer desse modo o caminho do Bristol seria uma
experiência muito útil.
Entretanto, tinha que pensar em lorde Rathbourne, e dado que ainda não os tinha alcançado,
decidiu que devia deter-se e deixar que o apanhassem.
Enquanto isso queria comida. E uma cama.
Maidenhead, um povoado de considerável tamanho com mercado próprio, possuía um bom
número de estalagens. Retornou ao Urso, a maior e buliçosa. Quando se aproximou da entrada, viu
Olivia, que o esperava com os braços cruzados.
—Supõe-se que é meu escudeiro — disse—. Os escudeiros são féis e leais. Não abandonam seus
cavalheiros.
—Tenho fome — replicou—. E quero dormir.
—Pois não pode fazer nada disso aqui — disse ela—. Esta é a maior estalagem de Maidenhead.
Custará uma fortuna e sabe que sem pagar não conseguiremos uma de seus custosos quartos. —
Observou os arredores com atenção—. A esta hora da noite não posso ganhar dinheiro, não acha?
—Ganhar? —perguntou—. Quererá dizer extorquir, não?
Viu-a dar de ombros.
—Seu pai lhe dá dinheiro. E eu tenho que trabalhar para conseguir o meu.
Peregrine não tinha nada claro que as ardilosas artimanhas e as descaradas fraudes que praticava
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pudessem considerar-se «trabalho», mas estava muito cansado para encetar-se em um debate
semântico.
—Pois a verdade é que meu pai sim me dá dinheiro — replicou—. E levo algo no bolso.
Olivia o olhou com os olhos entrecerrados.
—Em primeiro lugar, não é muito — esclareceu—. E em segundo, não sei a que vem esse olhar
porque nunca lhe menti a respeito.
—Não mencionaste que tinha dinheiro — disse ela.
—Não me perguntaste isso — repôs Peregrine—. Pediste-me conselho, ajuda ou opinião em
algum momento? —Em lugar de esperar a que lhe respondesse, prosseguiu—: Pagarei o jantar e talvez
uma cama se tivermos sorte, mas só se me prometer não contar a ninguém mais a história de nossa mãe
moribunda... Nem a história de toda essa gente que não existe.
—Por quê? —quis saber ela.
—Porque é injusto.
—Como?
—Que é injusto — repetiu.
—Refere-se a que é indecente — o corrigiu com certo que zombador.
Peregrine abriu a porta de um puxão.
—Refro-me a que é como o grandalhão que se mete com o fraco — particularizou—. A isso refro.
—Convidou-a a passar.
—Caramba! —exclamou ela enquanto entrava.
A partir desse momento Olivia se manteve em silêncio, coisa que a Peregrine pareceu estupenda.
Queria comer e queria dormir. Quando tivesse descansado um pouco, estaria preparado para falar... Ou
não.
E descansou, com bastante comodidade, embora a estalagem resultasse ser muito cara e
acabaram em um chiqueiro tão pequeno como um armário, em uns colchões destinados à criadagem.
Embora fosse muito mais espartano que qualquer outro lugar conhecido, colégio incluso, lorde
Lisle estava profundamente adormecido enquanto lorde Rathbourne atravessava Maidenhead às três e
meia da madrugada.

Benedict apenas reparou em Maidenhead.


Aproveitou o tenso silêncio que se apoderou deles quando empreenderam a viagem para
recuperar seu famoso autocontrole, reunir sua desfada moralidade e expulsar esse estranho espírito
que se apropriou dele e que inclusive o tinha levado a cuidá-la.
Entretanto, bastou-lhe escutá-la falar para que todos seus esforços caíssem em vão.
—Acredito que o melhor seria que nos separássemos em Twyford —disse— Levarei Olivia a
Bristol e tentarei resolver esta tolice do tesouro de uma vez por todas.
—A Bristol? —repetiu com incredulidade—. Será que em Colnbrook golpearam-lhe a cabeça além
da mão?
—Não podemos retornar a Londres juntos — explicou ela—, e sabe muito bem que deve voltar
sem perda de tempo para evitar um escândalo. Tinha pensado partir hoje para Escócia, não é assim?
—Essa não é a questão — respondeu Benedict—. A questão é que não pode viajar até Bristol
sozinha.
—Olivia irá comigo — disse.
—Não tem dinheiro — replicou.
—Resta um pouco.
—Pois deve ser pouquíssimo — comentou —. Quando fui procurar a casa da senhora Briggs,
planejava levar seus pertences a uma loja de penhores.
—Olivia e eu sempre viajamos com muito pouco dinheiro — assegurou—. Não penso alugar uma
carruagem particular. Podemos ir andando.
—A Bristol? Tornou-se louca? Está a mais de cem quilômetros daqui. —Recordou a reação que
incitou o provocador rebolado de seus quadris nos homens com os que cruzaram na fronteira de
Kensington. Propunha-se percorrer mais de cem quilômetros rebolando esses quadris por um caminho
transitado majoritariamente por homens—. Nem pensar — disse—. Não permitirei.
Ela se virou para olhá-lo no rosto e lhe golpeou a coxa com o joelho. Benedict apertou os dentes.
—Por que diabo tem a absurda convicção de que pode decidir sobre meus assuntos? —
perguntou-lhe—. Não, não me responda. Tinha-me esquecido. É seu costume a de ir soltando ordens a
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torto e a direito. Muito bem, milorde. Explique-me de forma detalhada o que posso e não posso fazer.
Prefro passar os próximos quilômetros rindo em lugar de me preocupar com minha insofrível flha.
—Diz que é insofrível e mesmo assim tem a intenção de agradá-la — disse Benedict—. O que é
que planejou exatamente? Uma visita ao mausoléu de seus familiares no meio da noite? Ocorre-me
uma interessante imagem em que as vejo cobertas por um capuz; Olivia leva uma lanterna em uma
mão e você, uma pá ao ombro.
—Igual a muitas outras propriedades, Throgmorton está aberta ao público vária dias da semana
— precisou ela—. A levarei ao mausoléu e a deixarei que veja por si mesmo quão cuidada a área está.
Assim compreenderá que se ali tivesse havido algum tesouro enterrado, os jardineiros ou os criados o
teriam encontrado faz anos. Depois, talvez nos divirtamos procurando cavernas de contrabandistas.
—Em outras palavras, de momento não tem intenção de retornar a Londres. —Deveria alegrar-se.
Assim não lhe tentaria a idéia de ir procurá-la quando retornasse da Escócia e, com o tempo, passaria
essa maldita teimosia.
—É claro que não — ela confrmou—. Você estará em Edimburgo com seu sobrinho. O que
poderia fazer eu (ou qualquer outra pessoa) em Londres se lorde Rathbourne não estiver presente?
Benedict a olhou de esguelha. Ela se virou de novo para o frente com o semblante sério, embora
alcançasse ver o brilho travesso de seus olhos.
—Está-se rindo de mim — acusou.
—Justamente o contrário, milorde — o contradisse—. Estou tentando por todos os meios reprimir
o sofrimento que me ocasiona sua iminente partida. Estou sorrindo com valentia, não estou rindo de
você. Bom... Não muito.
Face à preocupação, Benedict foi incapaz de conter o sorriso. Afnal, estava enfeitiçado.
Viu-a cravar o olhar à frente e sua expressão se tornou mais séria.
—Não riremos muito caso não tomemos cuidado — disse ela—. Sabe que devemos nos separar
assim que encontremos as crianças. E deve levar Peregrine a Escócia sem demora. Se atrasar-se dois
dias no máximo, seus pais não porão a boca no mundo.

—Seus pais sempre põem a boca no mundo — assegurou—. Embora esse seja o menor de nossos
problemas. A esta altura meus criados saberão que passa algo. Alguém dará com a língua nos dentes e
o rumor começará a circular. Necessito uma boa mentira.
—Eu também necessitarei uma para a senhora Briggs — disse ela—. Algo que explique minha
prolongada ausência.
—Mande uma nota quando chegarmos a Twyford — sugeriu Benedict—. Um parente doente a
necessita. Encarregar-me-ei de que lhe chegue sem demora. Quanto a mim... Talvez alegue que
Peregrine meteu na cabeça unir-se a uma companhia de atores itinerantes ou a uma caravana de
ciganos. Ou talvez que foi vítima dos encantos da flha de um ambulante e que foi atrás dela. É o tipo
de estupidez romântica que seus pais aceitariam sem pestanejar.
—Não conhecem absolutamente lorde Lisle, não é? —perguntou ela—. Nem eu, que o conheço há
apenas umas semanas, jamais acreditaria em algo assim.
—Eu tampouco acredito que seus pais tivessem algo que ver com sua concepção — acrescentou
Benedict—. Todos os Dalmay são propensos aos excessos emocionais e tendem a casar-se com pessoas
de temperamento similar.
—Lorde Lisle não é uma aberração — concluiu ela—. É do mais normal. Oxalá tivesse acontecido
o mesmo no caso da Olivia.
—Então Peregrine teria perdido esta aventura — protestou ele.
«E eu também», pensou.
O fnal estava se aproximando muito rápido.
—Oxalá só fosse isso — replicou ela—. Mas não o é, e não vou deixar que se saia bem. —Depois
de uma pausa, acrescentou—: O que vamos fazer se descobrirem que estivemos viajando juntos?
Semelhante possibilidade não era tão descabida. Sabia que a escuridão não lhes proporcionava
um amparo absoluto. Também era plenamente consciente de que alguém podia havê-lo reconhecido
em algum ponto desses últimos vinte e cinco ou trinta quilômetros.
Igual era da rapidez com a que se estendiam os rumores.
Recordava tudo o que havia dito de Jack Wingate em seu clube. O desdém e a compaixão das
críticas. A repugnância que tingia a voz de seu pai quando falava dos Atrozes DeLucey.
Tinha visto em incontáveis ocasiões o que acontecia quando algum pobre desventurado se
convertia na fofoca de todo o mundo: as risadas e os sussurros atrás dos leques; as caretas de desdém;
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as indiretas não muito sensíveis; as caricaturas absolutamente sutis que penduravam das vitrines das
lojas ou do guarda-chuva para que todos as vissem...
A possibilidade de converter-se na fofoca de todo o mundo não era agradável. A possibilidade de
que se ririam dela, de que a criticassem a suas costas e de que a ridicularizassem com as caricaturas era
intolerável.
—Negá-lo é a única resposta sensata — respondeu.
—De verdade acredita que seria tão simples? —perguntou ela—. Que só teríamos que dizer «Não
é verdade»?
—Não — respondeu—. Fingiremos que deram um fora. Arquearemos uma sobrancelha.
Permitiremo-nos algum sorriso lastimoso. Do mesmo modo, se as pessoas seguirem teimando,
comporemos uma expressão de soberano aborrecimento e seremos também muito educados com
respostas como «Certamente» ou «Que interessante». —Compôs a expressão adequada para que ela a
visse.
—Isso está muito bem. Mas está seguro de que bastará?
—Mais nos vale — respondeu. Distinguiu um débil resplendor ao longe, - Isso perto da margem
do caminho deve ser Twyford —disse—. Será melhor que decidamos como vamos proceder a uma vez
que encontremos as crianças.
Dedicaram esses últimos minutos a planejar os detalhes de sua iminente separação.

Foi uma experiência muito melancólica para a que não estava preparado.
Entretanto, a melancolia não durou muito porque em Twyford lhes disseram que ninguém (fora
homem, mulher ou menino) desembarcou-se do Expresso.
Repreenderam a marcha, em direção a Reading.

Capítulo 11

O céu começava a clarear quando Benedict e a senhora Wingate acabaram sua ronda pelas
estalagens mais aceitáveis de Reading. A essa altura, ela estava à beira do colapso, embora se negasse a
admiti-lo.
Encontravam-se junto ao escritório de bilhetes de A Coroa, uma casa de postas, e a senhora
Wingate não perdia de vista as carruagens que saíam e entravam enquanto discutia com ele o seguinte
passo que deviam dar.
—Isto é ridículo — disse Benedict—. Perdemos um tempo precioso interrogando hospedeiros e
criados meios adormecidos. O mesmo dá que esperemos aqui em Reading que volte o Expresso para
perguntar diretamente ao chofer.
—Faltam horas para que retorne — protestou ela—. As crianças já estarão a meio caminho de
Bristol quando voltar.
—Se pensasse com um mínimo de lógica, veria que é muito improvável que isso aconteça —
replicou com toda a paciência que foi capaz de reunir—. São apenas duas crianças sem dinheiro.
Dependem de seu engenho e da amabilidade ou ingenuidade dos desconhecidos. Nem sequer sua
flha, que você acha a semente de Satã, pode viajar muito depressa a menos que alugue uma carruagem
particular. Para permitir-se teria que assaltar aos viajantes no caminho. E, para isso, estaria obrigada a
encontrar em pouco tempo e em um lance concreto do caminho uma vítima disposta a lhe entregar um
moedeiro a transbordar, coisa bastante improvável.
A senhora Wingate o olhou com seus olhos azuis entrecerrados.
—Lorde Rathbourne, você tem a menor idéia de quão desagradável resulta quando adota esse
paciente tom de superioridade?
—O problema é que está cansada, faminta, nervosa e dói-lhe a mão — ele assegurou—. O
problema é que confava em que isto teria um fnal feliz e todas suas esperanças se esfumaram.
Logicamente, você se encontra muito desanimada para apreciar que sou um homem perfeito e que,
portanto, é impossível que resulte desagradável.
Ela o olhou um instante de cima abaixo e depois fez o percurso inverso antes de perguntar:
—Sua esposa chegou a lhe atirar algo à cabeça alguma vez?
—Não — respondeu Benedict, piscando não só pela surpresa, mas também porque tentou
imaginar Ada fazendo algo assim e foi impossível.
—Então, ela também era uma aberração como lorde Lisle? —voltou a perguntar—. Disse você
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que todos os Dalmay adoeciam de um caráter excessivamente emocional. Entretanto, nunca lhe atirou
nada à cabeça.
—Nunca o fez — assegurou—. Jamais discutimos. Fomos dois desconhecidos, tal como já lhe
disse.
—Nesse caso é impossível que fosse tão emocional como afrma — disse ela—. Talvez só
emparelhasse a seu lado. A mínima demonstração afetiva ou uma reação carente de lógica indiscutível
devem ser algo muito exagerado para um homem empenhado em exercer um férreo controle sobre
tudo.
—Houve um tempo em que pensava que exercia um razoável controle sobre minha vida —
assegurou Benedict—. Agora tenho um sobrinho desaparecido, um tremendo escândalo no horizonte
que me ameaça qual escura nuvem... E você.
E a horrível verdade era que estava divertindo-se muito.
A horrível verdade era que lhe alegrava não ter encontrado ainda as crianças.
Era uma loucura sentir algo assim. Corria o risco de perder o que mais lhe importava na vida. Era
muito consciente disso. Não se esquecia da nuvem que obscurecia o horizonte. Mas fazia muito tempo
que não fertava com o perigo e tinha esquecido quão estimulante podia chegar a ser.
—Lady Rathbourne devia ser uma mulher estóica — concluiu a senhora Wingate—. É o único
modo de que suportasse seis anos de matrimônio com você sem lhe atirar nada à cabeça.
—Encontrar-se com um Dalmay que seja estóico é tão provável quanto me sair asas — replicou—.
Mas se deseja discutir comigo sobre minha fnada esposa, minha família política ou qualquer outra
coisa, por que não fazê-lo enquanto tomamos o café da manhã?
—Não tenho fome — disse ela, passando a mão pelo cabelo enredado—. Estou muito frustrada
para ter fome.
—Se não nos detivermos a comer e descansar, Thomas não poderá comer nem descansar —
recordou.
O olhar da senhora Wingate voou até o lacaio, que estava conversando com um dos cavalariços.
Viu-a franzir o cenho.
—Leva mais de vinte e quatro horas sem dormir — disse, apelando de forma implacável a sua
consciência—. Comeu muito pouco desde que saímos de Londres, faz como doze horas. Viajou na parte
mais incômoda do tílburi. Brigou com uns rufões bêbados. Há...
—Sim, sim, já entendi — o interrompeu—. Mas não mais de uma hora.
—Duas — ele repôs.
Ela fechou os olhos.
—Talvez fosse melhor três — disse Benedict—. Está enjoada?
—Não estou enjoada — respondeu ela, abrindo os olhos—. Estava contando até vinte.

Betsabé não discutiu nem sobre sua fnada esposa nem sobre nenhuma outra coisa durante o café
da manhã. Tinha tentando bastante não fcar adormecida sobre os ovos, o bacon, as batatas, o pão e a
manteiga que lorde Rathbourne tinha pedido e que se amontoavam em seu prato.
O de Sua Excelência estava ainda mais repleto, embora o devorasse rapidamente.
Depois de tomar o café da manhã, subiu quase a rastros à habitação que lorde Rathbourne tinha
reservado e foi direta à cama. Um leito de três colchões que lhe chegava à altura dos ombros. As
arrumou como pôde para subir os degraus. Pouco depois, afundava-se em um remanso de suavidade.
Não soube nada mais até que escutou que uma garçonete lhe dizia algo e notou que o sol entrava
em torrentes pela janela. A julgar pela luz, devia ser o meio da manhã.
—Ordenou um banho, senhora — disse a moça—. O preparo?
Betsabé se levantou na cama e olhou a seu redor. Tinha estado em incontáveis posadas, mas
jamais tinha visto uma habitação tão suntuosa como essa. Alinhados ao longo das paredes havia um
jarro, uma cômoda e alguma estantes. Em lugar de uma janela, a estadia dispunha de um mirante onde
se localizava um espelho de pé, junto ao qual havia uma penteadeira com um grande espelho. Frente à
cama viu uma mesinha com suas correspondentes cadeiras. Tanto o mirante como a cama estava
adornada com cortinas de um branco níveo. Os lençóis estavam limpos e secos. O fogo crepitava na
lareira, expulsando os vestígios do frio e da umidade da noite e do amanhecer.
E ainda por cima ia tomar um banho. Com água quente e bom sabão. Em uma banheira e em um
aposento grande, ensolarado e quente. Um luxo sem precedentes para ela.
Não assim para lorde Rathbourne.
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Perfeito
«Oxalá pudesse tomar um banho... », havia dito, ou melhor, tinha murmurado, em algum
momento do café da manhã.
E ele o havia dito a Thomas, quem a sua vez havia dito a alguém, e o pedido não parecia ter
incomodado ninguém.
Nesse momento viu que entravam dois criados com a banheira. Atrás deles chegaram outros
mais, um pequeno desfle, com baldes e jarras.
Mal tinham partido, Betsabé trancou a porta e tirou a roupa.

Depois do café da manhã, Benedict e Thomas se retiraram ao pequeno cômodo destinado ao


serviço, adjacente ao quarto reservado em nome do senhor e a senhora Bennett. Deixou que a senhora
Wingate dormisse em solitário esplendor sobre o leito de três colchões e se conformou com o estreito
catre da sala contígua enquanto Thomas deitava no chão, a seu lado.
Ao cabo de um bom momento, muito mais descansado, Benedict levantou e se lavou, utilizando
para isso a enorme bacia que Thomas tinha tomado emprestada do quarto contíguo.
Nesse momento e depois de ter feito todo o possível para arrumar a roupa de seu senhor, o lacaio
estava encarregando-se de procurar uma carruagem. Posto que levasse seu tempo e ainda tinha que
pagar a conta e dar as gorjetas aos criados, Benedict decidiu que a senhora Wingate podia seguir
dormindo um quarto de hora mais.
Estava a ponto de sentar para calçar as botas quando escutou uma voz masculina que sussurrava
de forma audível no corredor:
—Não pode ser lorde Rathbourne.
—A senhora disse que era — protestou outra—. O viu no escritório de bilhetes.
—Estaria sonhando, seguro.
—E como, se não dorme nunca? Disse que era o mesmo que viu e assegurou, e que estava com
um criado. —Talvez seguisse a viagem a cavalo.
—A senhora diz que não. Diz que está aqui. E agora me toca averiguar por que não se fcou no
Urso, como sempre, e por que não parou nem para tomar o café da manhã. Agora quer saber que inseto
lhe picou para preferir A Coroa quando sempre que vem a Reading fca no Urso, igual a seu pai e toda
sua parentela.
Benedict amaldiçoou para si mesmo.
A hospedeira do Urso deveria chamar-se Argos... Essa mulher tinha olhos até no cangote.
Não deveria haver-se aproximado a menos de dois quilômetros de Reading. Era muito conhecido
na localidade, não só no Urso.
—Não esperará que pergunte a ele, não é? —disse a primeira voz.
—Não o faria nem que ela me ordenasse isso. Será que toma como tolo? Perguntarei a seu criado,
seguro que assim me inteiro.
—Se é que é seu criado... —apontou a primeira voz—. E se ela não estava vendo visões...
Benedict puxou o fecho da porta sem fazer o menor ruído antes que o homem chamasse ou
pegasse a orelha em busca de sinais de vida. Ato seguido cruzou a diminuta sala, abriu com sigilo a
porta que comunicava com o quarto contíguo e escapuliu para o interior.
Fechou a porta com muito tato.
Escutou um ofego alarmado.
Deu meia volta... E fcou petrifcado no lugar.
A senhora Wingate também fcou petrifcada no lugar, embora em seu caso estivesse se pondo de
pé na banheira para agarrar a toalha que descansava sobre uma cadeira.
Benedict recordou como usar a língua.
—Peço-lhe...
—Oooh! —exclamou ela ao ver que escorregava na banheira e cambaleava.
Benedict cruzou o quarto em plena carreira e a tirou da banheira enquanto esta balançava,
derramando água em toda parte.
A senhora Wingate estava úmida e escorregadia como uma enguia. Além disso, estava lutando...
Embora não sabia se era para agarrar-se melhor a ele ou para escapar de seus braços. Assim, tentando
não deixá-la cair, foi sentar se na cadeira. Mas a água que derramou lhe fez perder pé e acabou de
costas no chão, com ela em cima. A cadeira escorreu e quando fez gesto de agarrar a toalha, descobriu
que estava muito longe.
Ela, enquanto isso tentou levantar-se, mas como estava escarranchada sobre seus quadris, acabou
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Perfeito
lhe pondo os seios nus no rosto. Benedict a agarrou pelo traseiro. Um traseiro que estava úmido... E
completamente nu.
Estava úmida e nua por todos os lugares. Todas e cada uma de suas gloriosas curvas reluziam à
luz do sol matinal.
Deixou de mover-se de repente enquanto seus olhos azuis o atravessavam. Tinha apoiado as
mãos no chão, ao lado de onde descansavam seus braços, apanhando desse modo sob seu corpo.
A água gotejava por seu queixo e caía sobre ele.
Viu-a inclinar a cabeça...
Para lamber a gota de água que acabava de cair do queixo.
Benedict fcou imóvel.
«Isto só é uma prova de integridade de caráter — se disse—. Posso resisti-lo e resistirei. »
Ela elevou a cabeça de novo e viu que seus olhos azuis se obscureceram e o olhavam fxamente.
Benedict baixou a vista. Até certo lugar onde sua pele era suave, cremosa e... Rosada.
Rosa. Essa era a cor que tinha o corpo de uma mulher nos lugares mais interessantes.
Uma diminuta gota de água brilhava de forma tentadora sobre um rosado e erguido mamilo.
De repente esqueceu por que devia resistir.
Elevou a cabeça e lambeu a gota.
Ela estremeceu e uma nova gota lhe caiu no pescoço, procedente de seu queixo. Viu-a inclinar-se
para ele para lambê-la.
Notou a pressão de seus lábios. A gota de água estava fria, igual a sua pele úmida. Mas sua boca
estava quente e seu calor se estendeu do lugar onde o acariciava. Percebeu-o com dolorosa intensidade
na boca do estômago e também no sexo. Seu membro estava ereto inclusive antes que seus lábios se
encontrassem, trêmulos de desejo. O beijo também foi trêmulo, como se estivessem dando um primeiro
passo para um lugar proibido.
Proibido, sim, incisivamente proibido.
Mas inevitável.
O roçar e o sabor dessa boca que tão bem recordava, que lhe tinha resultado impossível de
esquecer, acabou com toda a incerteza. Assim que se lançou em vôo, como faria qualquer imbecil.
Imobilizou-lhe o rosto com as mãos e se dispôs a beijá-la com prazer. Ela se estendeu sobre ele,
deixando uma úmida estampagem sobre sua roupa que fez bem pouco por esfriá-lo e muito por
infamá-lo.
Soltou-a para poder tirar a roupa a puxões, sem lhe importar que os botões saíssem voando nem
que o tecido acabasse rasgado. Incitado pela impaciência, esteve tão nu como ela rapidamente. Ato
seguido colou-a a seu corpo, enfraquecendo-a com seu calor enquanto desfrutava da voluptuosidade,
da suavidade e da suavidade dessas curvas que suas mãos percorriam minuciosamente; da elegante
curva de seus ombros; da perfeita redondeza de seus seios; dos rosados e endurecidos mamilos...
Ela também o explorou por inteiro e com a mesma avidez e, embora se esforçasse por manter o
controle, o roçar dessas mãos fez farrapos os últimos vestígios que fcavam de sua moderação, de modo
que só pôde pensar (se acaso ao desejo mais selvagem lhe pode denominar «pensamento») em afundar-
se nela.
Não obstante, em uma parte recôndita de sua mente era muito consciente de que algo assim só
acontecia uma vez na vida e de que devia alargá-lo na medida do possível. Jamais poderia possuí-la de
novo, razão pela qual devia aproveitar-se ao máximo e lhe entregar em troca tudo o que pudesse.
Assim, utilizando as mãos e a boca, tomou posse da delicada curva de seu ventre, da distância que
separava seus quadris e do contorno de suas coxas. Estava-se aproximando muito do lugar que mais
desejava, mas foi incapaz de retroceder.
Deslizou uma mão entre suas pernas e a manteve ali com afã possessivo. Manteve-a nesse lugar
quente, úmido e feminino, e defnitivamente rosado. Um lugar que escondia entre seus encharcados
cachos uma deliciosa protuberância também rosada. E ali a acariciou, e a escutou conter o fôlego antes
que deixasse escapar um gemido e começasse a esfregar-se contra sua mão.
Chegados a esse ponto, tinha que possuí-la. Mas de uma forma completa e absoluta. Queria uma
rendição incondicional.
Acariciou as suaves dobras e se afundou em seu interior, onde sentiu a ardente pressão de sua
carne em torno dos dedos. Manteve-se sob controle e seguiu acariciando-a até que a notou estremecer-
se da cabeça aos pés e expressou sua rendição com um suave gemido.
Só então se incorporou entre suas pernas e a penetrou. Apertou-lhe os quadris com as coxas e
respondeu a seus movimentos. Quando encontraram o ritmo adequado, viu-a jogar a cabeça para trás e
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Perfeito
arquear o corpo. Não mostrava a menor inibição nem nenhum temor na hora de desfrutar do selvagem
prazer que suas investidas lhe reportavam. Consciente de que não podia saciar-se dela, entregou-se em
corpo e alma ao momento.
Estava perdido e não queria que ninguém o encontrasse. O mundo era uma casa de loucos e não
queria recuperar a prudência.
Só queria a ela. Deixou que a paixão os arrastasse e se afundou nela com uma última aposta que
os impulsionou ao êxtase. Rodeou-lhe as coxas com os braços e assim fcou durante esse doce vazio.
Ainda estava abraçando-a quando o mundo voltou para sua posição original.
Betsabé jazeu comodamente entre seus braços mais tempo da conta. Cheirava seu perfume cada
vez que respirava, o que fazia que se sentisse como se tivesse bebido muitas taças de champanha.
Jazia segura entre seus braços, com a cabeça apoiada em seu torso, uma mão em um ombro e
uma perna entre as suas. Queria fcar ali onde estava; ali onde tinha desejado estar desde que o viu pela
primeira vez, conforme parecia. Queria acreditar que esse era o lugar que lhe correspondia.
Não obstante, era muito consciente do sol do meio da manhã e da gritaria própria de um
povoado em plena atividade.
Assim que se obrigou a afastar-se. Ou tentou. Seus braços o impediram. Tentou livrar-se deles.
Mas esses músculos eram imóveis.
—Me solte — disse.
—Está se pondo sentimental — replicou ele—. Sabia que aconteceria cedo ou tarde.
—Não estou me pondo sentimental — mentiu. O pânico se apoderava dela à medida que a
abandonava a frouxidão provocada pelo êxtase. Estava arruinada. Por completo. Tinha arruinado tudo.
O futuro de Olivia estava...
—Não está pensando de forma racional — disse Rathbourne—. O noto. Está nervosa quando
deveria estar relaxada e contente. Afnal, só temos feito o que estávamos desejando fazer desde...
—Fala por você — interrompeu.
—Se minhas carícias lhe desagradassem, tem um modo muito peculiar de demonstrar zombou
ele.
—Não queria ferir seus sentimentos.
Ele soltou uma gargalhada e notou como esse amplo peito subia e baixava.
—Sim, claro, é obvio que está contente — resmungou irada—. Já conseguiste o que queria.
—E você não? —perguntou ele enquanto jogava a cabeça para trás para olhá-la aos olhos—. Se
não for assim, estarei encantado de corrigir qualquer negligência.
—Não referia a isso — assegurou—. Queria dizer que é um homem e que o fato de fazer amor
não signifca nada para você. Para mim é diferente. Não posso me virar sem mais e adormecer, muito
menos quando o mundo que com tanto esmero construí está desmoronando ao meu redor. E ainda por
cima sei que eu sou a única culpada.
Produziu-se um breve silêncio, antes que Rathbourne continuasse:
—Não sei se recordar que precisam dois para o que temos feito. Eu não me esforcei
absolutamente para me liberar de suas perfídias artes.
Betsabé recordou o que tinha feito; o irresistível impulso de lamber a gota de água que tinha
caído sobre seu pescoço... Um impulso que tinha cedido. Seria possível lançar um convite mais
descarado que esse?
Deveria abaixar a cabeça, envergonhada, mas a vergonha não ia com seu caráter.
—Certo. Não moveste nem um dedo para se liberar — reconheceu.
—Parece que adoeço de uma triste falta de moralidade — replicou Rathbourne.
—É verdade — conveio enquanto lhe acariciava o peito de forma distraída—. Claro que eu gosto
mais assim. Isso sim, vai decepcionar muitíssimo à alta sociedade. Sabe o que vão dizer, não é? —
prosseguiu de forma implacável. Se não enfrentasse os fatos em voz alta, daria asas a suas esperanças.
A suas esperanças de ter mais. De que tudo sairia bem... Quando sabia perfeitamente que as coisas só
podiam acabar mal—. Dirão que um homem com seu férreo caráter deveria ter sido capaz de resistir os
avanços de uma vulgar rameira como eu.
—Você não é uma rameira vulgar — a corrigiu com voz tensa.
—Você ganha, não sou vulgar, então uma rameira seca.
—Betsabé... —disse a modo de advertência.
Escutar seu nome de batismo pronunciado com essa voz de barítono a surpreendeu e a comoveu,
mas não tanto como o fez a fúria que refulgia nesses olhos escuros.
—Não vou permitir que ninguém diga isso de você — assegurou—. Nem sequer você mesma. —
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Perfeito
Agarrou-lhe uma mão e a levou aos lábios para depositar um beijo em cada um de seus nódulos—.
Deixe de dizer tolices — pediu enquanto levava de novo a mão ao peito e a cobria com a sua.
Era uma mão grande e cálida. O simples gesto a tranqüilizou. E então se deu conta de que já não
lhe doía a mão.
—Já tenho a mão melhor — disse.
—Isso é porque seus humores recuperaram o equilíbrio — explicou. Desviou o olhar para a cama
—. Que cômoda se vê. —Franziu o cenho—. E que duro é o chão.
—Sua cama não era cômoda? —perguntou ela—. Onde dormiste?
Rathbourne deixou de abraçá-la com tanta força e Betsabé se sentou. Ele também o fez, de modo
que ela pôde observar esse musculoso corpo com prazer... Quilômetros e quilômetros de pele nua e
muito masculina. Por uns momentos, esse corpo tinha sido todo dela. Deveria dar-se por contente, mas
voltava a futuar em muito desejo, como se fosse uma jovenzinha nas garras de seu primeiro amor.
Ai, que caro ia sair aquilo!
—Dormi — respondeu ele—. Lavei-me. — torceu o gesto—. Ao menos me livrei de parte da
sujeira antes de vir, embora minha intenção não era a de te devorar... Perdão a de que me devorasse. —
Seu escuro olhar deslizou sobre ela, atrasando-se em seus seios e provocando uma labareda que desceu
dali até a boca do estômago.
Ficou em pé de pronto.
Ele se girou para agarrar a camisa.
—Acreditei que seguia dormindo — explicou—. Tinha planejado me esconder debaixo da cama.
Mas estava aqui, surgindo qual Vênus das ondas... Permita-me dizer que a Vênus do Botticelli não lhe
chega nem à sola do sapato? —vestiu a camisa e se levantou.
A julgar por sua reação, qualquer um haveria dito que não a tinham elogiado na vida. De nada
lhe serviu recordar que tinha trinta e dois anos e que tinha dado a luz a uma flha, porque se ruborizou
como se fosse a virgem inocente que não era ao mesmo tempo em que algo muito parecido ao júbilo
revoava em torno de seu coração.
A revoada concluiu de forma abrupta quando Rathbourne lhe relatou a conversação que tinha
tido lugar entre cochichos no corredor.
—Peço, por favor, que não fque nervosa — disse ele—. A hospedeira não a viu.
Betsabé era incapaz de interpretar sua expressão. Em troca, ele parecia ler seu rosto como se fosse
um livro aberto. A inquietação que sentia se incrementou.
—Mas a você sim — comentou —. Não podemos sair juntos da estalagem. —aproximou-se da
cadeira em que descansava sua roupa. Agarrou a regata e a camisa que estavam sobre o monte e os
olhou, desolada—. Oxalá houvesse trazido uma muda de roupa intima ao menos — disse.
Rathbourne se aproximou até a janela e deu uma olhada ao exterior. A camisa o cobria muito bem
e só deixava à vista a parte inferior dessas compridas e musculosas coxas. Não obstante, conta a luz o
tecido se voltava quase transparente. Assim que se afogou no prazer e na miséria observando os
contornos desse corpo alto e fbroso de quadris estreitos e nádegas escuras...
Conteve um gemido.
—O pátio da estalagem está muito concorrido — disse ele—. No sábado é dia de mercado em
Reading. Estou seguro de que seu desejo pode fazer-se realidade.
—Está louco? —perguntou-lhe—. Não pode sair à rua a comprar roupa intima!
—Me ocorrem poucas coisas mais entretidas que essa — replicou ele, que se virou para olhá-la
com o rosto sereno, mas com um brilho jovial nos olhos—. Entretanto e dadas às circunstâncias, devo
deixar dita tarefa em mãos de outros. Direi a Thomas...
—Seu lacaio? Nem pensar!
—Direi a Thomas que procure uma criada disposta a fazer-lo.
—Se precisar, sou perfeitamente capaz de comprar eu sozinha a roupa — protestou—. Ao menos
não me conhecem no povoado. Mas não precisa.
O resultado de suas palavras foi o mesmo que se tivesse falado à cadeira. Rathbourne já tinha
localizado o cordão da campainha de serviço e acabava de puxá-lo.
—Não pode sair assim — disse—. E tampouco vai querer vestir os objetos que usava antes.
—O que eu deseje dá igual — resmungou ela—. Posso arrumar isso assim.
—Por que diabo vai fazê-lo?
Betsabé se sentia cada vez mais exasperada.
—Isso é exatamente o que Jack estava acostumado a...
Uns golpes na porta interromperam suas palavras e fzeram que corresse a ocultar-se atrás das
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Perfeito
cortinas da cama.
—Ah, Thomas! —exclamou Rathbourne depois abrir a porta apenas uma fresta. O resto da
conversa transcorreu entre sussurros, embora no caso de Sua Excelência as palavras ressoassem
bastante. Pouco depois, a porta voltou a fechar-se.
Betsabé abandonou o refúgio das cortinas.
—Demorará um momento — disse ele.
—Perdeste o juízo! —gritou—. Já fomos muito imprudentes. Perdemos um tempo precioso.
—Acredito que é hora de admitir que perdemos as crianças —declarou Rathbourne—. É possível
que os tenhamos adiantado que nos levem vantagem, que estejam no povoado ou que os tenhamos
justo debaixo do nariz, mas não os encontramos nem é provável que o façamos em um futuro imediato.
Quanto mais tempo passe, haverá mais probabilidades de nos afastar mais deles. Nossa rota, por
exemplo, não nos servirá de nada uma vez que deixemos atrás Chippenham. Poderíamos seguir
fazendo perguntas dali até Bath, mas resulta que há um caminho um pouco mais curto e direto a
Bristol. Não podemos fazer averiguações por dois caminhos de uma vez.
O coração do Betsabé pulsava muito depressa. Inclusive sem saber da rota alternativa de
Chippenham a Bristol, tinha chegado à mesma conclusão. Tinha tentado desentender-se da idéia... E do
desespero que esta suportava.
Não era de estranhar que tivesse sucumbido ao desejo com tanta facilidade. No fundo de seu
coração sabia que a causa estava perdida. O escândalo era inevitável.
—Não há por que mostrar-se tão abatida — disse ele—. Nem tudo está perdido. Quão único
temos que fazer é confrontar o problema de outra perspectiva.
Lástima que ela não queria confrontar o problema. Queria prostrar-se de joelhos e debulhar-se
em lagrimas como se fosse uma menina. Não queria seguir sendo uma adulta. Não queria seguir sendo
mãe. Não queria ver-se na obrigação de ir recompondo quão ofensivos deixavam outros e de ter que
pôr ao mau tempo boa cara.
—Vai fcar tudo bem — ordenou Rathbourne, interpretando sua expressão. Falou com voz suave
e se aproximou dela para lhe dar um abraço. Betsabé se rendeu e pôs-se a chorar.
Só foi um pequeno arrebatamento que passou em seguida, mas ele a abraçou em todo momento.
Quando se tranqüilizou, disse-lhe:
—Está cansada.
—Não estou cansada — o contradisse—. Dormi umas horas.
Rathbourne suspirou.
—Comporta-se como uma menina que necessita uma sesta.
—E você o que sabe de meninas que necessitam uma sesta? —replicou Betsabé.
Ele resmungou algo ininteligível, elevou-a nos braços e a jogou na cama.
Betsabé se levantou com muita difculdade entre os travesseiros.
—Não sou uma menina e não necessito nenhuma sesta!
—Pois eu sim — ele repôs enquanto subia à cama e deitava a seu lado.
—Pois dorme você — resmungou enquanto tentava escapulir-se, embora o comprido braço que a
agarrou pela cintura deteve seu avanço e a arrastou de volta.
—Não podemos dormir na mesma cama — recordou—. Isso é tentar ao diabo.
—Sei.
E a colocou sobre ele.

Tinha tentado com todas suas forças ser uma mulher razoável e responsável.
Mas bastava reclamá-la com essa atitude imperiosa e possessiva tão dele para que suas defesas,
ou o pouco que fcava delas, derrubassem-se.
—Não é justo — protestou com os lábios a escassos centímetros dos do Rathbourne.
—Não, não o é.
Suas bocas se encontraram, fundiram-se e Betsabé voltou a ser jovem. O sangue voltou a lhe
ferver nas veias. Beijaram-se com ânsia, paixão e desejo. E ela se entregou totalmente ao prazer do
momento; ao sabor desses lábios que a beijavam, ao roçar desse corpo, ao aroma que desprendia esse
enorme e formoso animal.
Essas mãos grandes e cálidas se moviam sobre ela, obtendo que se retorcesse sob suas carícias. As
mãos... As carícias... Acreditava morrer quando as sentia, mas quando se afastavam, ansiava sua volta e
o deleite que a alagava; a desassossegada sensação que as acompanhava.
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Apaixonada. Escravizada.
Não lhe importava.
Porque nesse instante, Benedict Carsington era todo seu. Separou-se de seus lábios para sentar-se
e agarrou suas mãos. Foi passando pelo ventre em direção aos seios, onde as deixou. Uma vez as teve
colocado onde as queria, arqueou as costas, presa de um prazer animal.
—Deus — resmungou ele—. Deus, está me matando, Betsabé. —E a aproximou de um puxão
para beijá-la.
Devorou seus lábios e depois os abandonou para fazer o próprio com seu pescoço. A impaciência
de senti-lo em seu interior a corroia, mas antes que pudesse tocá-lo, encontrou-se de costas no colchão,
com ele sentado escarranchado sobre seus quadris. Ato seguido agarrou-lhe as mãos e as imobilizou a
ambos os lados da cabeça. Esses olhos escuros de insondáveis profundidades a transpassaram
enquanto em seus lábios brincava um indício de sorriso.
—Agora me toca te matar um pouquinho — disse.
E com essas palavras o viu inclinar-se. Deixou um fo de beijos ao longo de um ombro, do braço e
da mão que ainda imobilizava. Lambeu-lhe o pulso e a sensação lhe provocou uma pontada tão intensa
que lhe encolheu o estômago. Começou a retorcer-se presa da impotência, enlouquecida de desejo.
Era uma tortura. Uma deliciosa tortura.
Rathbourne seguiu lhe torturando o outro braço e depois foi baixando pouco a pouco até que foi
impossível encontrar um adjetivo que descrevesse o que estavam fazendo seus lábios e sua língua.
Quão único sabia era que as sensações a entonteciam que a assaltavam milhares de deliciosos e
desconhecidos calafrios. Cada roçar desses lábios, dessas mãos, enviava uma estimulante mensagem
direta a seu sexo e quando sentiu que a beijava justo ali, começou a estremecer-se de modo
involuntário.
Tinha-lhe solto as mãos, assim que se aferrou ao travesseiro e tentou sufocar os gritos contra ele.
Até que por fm, quando estava à beira da loucura, quando acreditou que tinha que chiar para
não estalar em pedaços, Rathbourne se levantou. Afastou-lhe uma das mãos do travesseiro e a levou ao
seu membro. Seu tato era suave como o veludo e ardente. Parecia imenso e palpitava sob sua palma.
Segurou-o e, com um sorriso, levou-o até a entrada de seu corpo, insistiu-o a penetrá-la e esteve a
ponto de gritar de alívio quando o sentiu em seu interior.
«Por fm, por fm, por fm!», repetia sua mente.
—Sim — disse em voz alta enquanto se afundava nela.
«Sim, sim, sim!», gritou para si mesma.
Porque esse era seu destino, para isso tinha nascido; para possuí-lo, para que ele a possuísse. Não
havia capacidade para as proibições, para as obrigações. Não havia capacidade para o autocontrole
nem para o bom senso. Só importava a união. Converter-se em um só ser, render-se por completo à
paixão.
«Sim, sim, sim. Desejo-te, desejo-te, desejo-te... »
E por fm chegou o último estremecimento, o selvagem êxtase, o deslumbrante prazer.
«Sim, sim, sim... Amo-te... »

Capítulo 12

Quando despertou, Benedict descobriu impregnado de seu aroma. Betsabé estava colada a ele e
seu traseiro lhe roçava o sexo. Seu membro já percebia esse detalhe antes de despertar, porque estava
quase ereto pela espera. Uma de suas mãos cobriu um peito perfeito enquanto lhe enterrava o rosto no
pescoço. Era mau e egoísta.
A nuvem se abatia sobre suas cabeças.
Estava a ponto de ver-se envolto no escândalo da década.
Não se importava.
Era inevitável. Ambos teriam que pagar um alto preço pelo pecado.
Bem podia pecar a consciência.
Betsabé se moveu nesse instante e despertou.
—Rathbourne? —chamou-o com voz sonolenta.
—Sim, sou eu quem está te tocando o seio. Por favor, não se vire, porque estou muito cômodo.
—Devem ser as doze da manhã pelo menos — disse ela.
—Você acha?
—Quanto tempo mais vai fngir que não aconteceu nada e que não enfrentamos um desastre? —
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perguntou-lhe.
—Sei muito bem o que está acontecendo — respondeu—. O desastre se avizinha. Razão a mais
para desfrutar destes últimos momentos. «Mas, atrás de mim, sempre escuto a carruagem do tempo,
inexorável. » Sigamos o conselho do grande poeta Andrew Marvell e desfrutemos enquanto possamos.
—Acredito que já o temos feito, Rathbourne — replicou ela—. E não estou segura de que se possa
desfrutar mais.
—Para ser uma artista, sua imaginação é surpreendentemente limitada — disse.
—Mas é que também sou mãe — recordou—. Antes de despertar de tudo já estava morta da
preocupação pela Olivia e lorde Lisle.
Enfm, tinha chegado à hora de retornar ao mundo real.
Benedict não protestou quando ela se separou de seus braços e se sentou na cama. Era muito
mais sensato dar um festim visual com esse corpo nu enquanto pudesse. E nesse sentido Betsabé era
especialmente complacente. Depois de fazer amor pela primeira vez nem sequer tinha feito gesto de
cobrir-se e, em troca, seguiu movendo-se pela habitação como se nada... Até que Thomas bateu na
porta. Sorriu.
—Acho que me estou comportando como uma parva — aventurou ela.
—Em realidade, estava recordando a velocidade com que se escondeu atrás das cortinas da cama
quando Thomas bateu na porta — disse.
Escutou-a suspirar.
—Em ocasiões eu gostaria de ser uma aristocrata — confessou—. Eu adoraria poder delegar
minhas preocupações em outra pessoa.
Ele também se sentou. Cavou os travesseiros e se reclinou sobre eles com os braços atrás da
cabeça.
—Antes não estava tão preocupada — disse—. O desapego flosófco que demonstrava frente ao
desaparecimento de sua flha me impressionava muitíssimo.
—Isso era antes — ela repôs—. Quando pensava que íamos encontrá-los a alguns quilômetros de
Londres. Estava segura de que os apanharíamos antes que topassem com algum problema ou de que
caíssem nas garras de algum inescrupuloso. A princípio estava convencida de que a única
inescrupulosa em tudo isto era minha flha.
—De verdade é tão má? —quis saber.
—Passou muito tempo em companhia de pessoas que ignoram os princípios morais —
respondeu—. E sua companhia é muito mais agradável que a de uma mãe que sempre está soltando
sermões e reprimendas. Ao menos Jack era capaz de infuenciar em seu comportamento. —Soltou uma
breve gargalhada—. Sei que é difícil imaginar o irresponsável Jack ensinando maneiras e princípios
morais a uma menina. Mas era um cavalheiro dos pés à cabeça, e vivia segundo o código que os rege, e
também sabia como repreender de uma maneira que... Que... —levou a mão ao peito—. Olivia levava
muito a sério. Mas passaram mais de três anos e só recorda as aventuras que seu pai lhe contava, como
à história do tesouro. E eu não sou capaz de falar com ela do modo como ele o fazia.
«Eu sim o sou», pensou Benedict, e lhe encolheu o coração como se ela o estivesse apertando com
a mão.
—Nesse caso tem uma preocupação menos — disse—. Seja como for sua flha, não parece ser
uma menina que se deixe manipular. Aos inescrupulosos não resultará fácil enganá-la. Quanto a
Peregrine, ambos sabemos que não confa em nada nem em ninguém por bem. Isto não quer dizer que
estejam livres de perigo. Mas sim que têm muitos pontos ao seu favor.
Produziu-se um breve silêncio depois do qual Betsabé soprou com impaciência e disse:
—Rathbourne, é intolerável que diga algo tão sensato e tranqüilizador enquanto que eu me
preparo mentalmente para chamá-lo de obtuso e começar uma discussão.
—É um dom — assegurou—. E o utilizo desde que tenho uso da razão. Passo grande parte de
meu tempo solucionando problemas e tranqüilizando as pessoas, fazendo-a entrar na razão. Assim me
educaram. Assim é como meu pai se sai com a sua. Assim é como eu me saio com a minha. —Fez uma
pausa—. Claro que não me incomodaria muito discutir contigo. Resulta-se muito estimulante. Estou
quase arrependido de não ser bastante obtuso. Claro que, se tiver que vertê-las como um homem
perfeito, deve estar preparada para enfrentar esse tipo de decepções.
—Talvez tenha que te atirar algo à cabeça de vez em quando, mais que nada por uma questão de
princípios — ela sugeriu—. Não porque haja dito ou feito algo em concreto, mas sim por que...
Necessita!
Isso lhe arrancou uma gargalhada e fez que a estreitasse entre seus braços enquanto ela o beijava
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Perfeito
(e foi um beijo do mais apaixonado), mas se afastou em seguida e saiu da cama.
Benedict aplacou a desilusão, tal como a vida lhe tinha ensinado a fazer, e se concentrou no
problema para o qual não podia mostrar-se nem sensato nem tranqüilizador.

Por sorte para Betsabé, Rathbourne também saiu da cama. Vê-lo ali estendido com os braços sob
a cabeça, enquanto a tênue luz que se fltrava pela janela tingia de dourado seu musculoso torso e
arrancava brilhos de seu cabelo despenteado, era uma tentação. O mesmo se estivesse decentemente
coberto da cintura para baixo. Os lençóis enrugados lhe davam um ar indecente... E deliciosamente
desalinhado.
Se não se levantasse da cama, a teria posto em um aperto, porque duvidava muito de que sua
moral ou sua força de vontade fossem apropriadas para resistir à tentação de retornar à cama e deitar-
se junto a ele... Ou sobre ele...
Obrigou-se a afastar a vista enquanto se asseava... De novo.
E depois vestiu sua roupa suja... De novo.
—Não, não — disse Rathbourne ao vê-la agarrar as anáguas.
Betsabé o olhou.
Já tinha posto a camisa e as calças. Para ser um aristocrata, lhe dava bastante bem atender suas
necessidades sem ajuda de ninguém.
Viu-o aproximar-se do cordão da campainha.
—A esta altura já teriam encontrado algo para que ponha. Thomas é muito consciencioso. Ontem,
enquanto me preparava para partir, cheguei à descuidada conclusão de que não necessitaria uma muda
de roupa. Thomas se limitou a me olhar com toda a paciência do mundo... Como se eu fosse um
menino, porque para os bons criados isso é o que somos meninos. Depois meteu em uma bolsa camisas
limpas e não sei quantas coisas mais.
—Oxalá me tivesse feito a bagagem — replicou.
—Se encarregará de conseguir o que necessitar — assegurou.
Uns minutos depois descobriu que Thomas tinha conseguido o que necessitava e muito mais. O
criado entregou um enorme monte de roupa a seu senhor, quem tinha aberto a porta apenas uns
centímetros. Também estava disposto a obrigar uma criada a penetrar pela estreita abertura, mas
Rathbourne lhe assegurou que era mais que capaz de vestir à «senhora Bennett».
O lacaio e quem querem que tenha recrutado para a tarefa tinham comprado uma muda de roupa
completa, com vestido incluído. E um chapéu.
—É impossível que tenha encontrado tudo isto no mercado — disse Betsabé enquanto
Rathbourne lhe mostrava o vestido em busca de sua aprovação—. O mandaste a uma costureira... E me
dá medo pensar no preço, porque seguro que a mulher se viu obrigada a vender um vestido
confeccionado para outra cliente, além de lhe fazer os acertos às pressas.
—As costureiras sempre têm vestidos já confeccionados em suas lojas — aduziu ele—. Seus
clientes são mulheres, e as mulheres são conhecidas por trocar de opinião constantemente. Seguro que
lhe alegrou fazer os acertos às pressas e cobrar por fm por havê-lo confeccionado. Mas não se preocupe
por isso. Você gosta?
Era um vestido de musselina branca muito simples, o decote adornado com babados e franzidos.
Thomas, ou a criada que tinha enviado, tinha-lhe comprado, além disso, uma jaqueta de um intenso
tom azul, confeccionada com seda e cetim. O chapéu combinava com o objeto.
Não tinha posto nada tão bonito desde a última vez que seu pai teve dinheiro vivo, embora não
durasse muito.
Entretanto, não podia aceitar semelhante presente. Fazê-lo seria como proclamar que era sua
rameira.
—É precioso — respondeu.
O sorriso satisfeito que Rathbourne esboçou lhe outorgou um aspecto tão juvenil que lhe
arrancou um pedaço do coração e deixou um vazio bastante doloroso para lhe tirar o fôlego.
Mas foi uma sensação efêmera.
Não a amava, de jeito nenhum.
Tinha sido uma loucura passageira que a invadiu ao chegar ao cume da paixão, mas só era isso:
um arrebatamento, uma loucura.
Estava fascinada por ele, sim; apaixonada, também; provavelmente o estivesse desde que o viu
pela primeira vez no Salão Egípcio.
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Perfeito
Mas não era amor.
—Só nos falta saber se fca bem — disse ele. Seu escuro olhar deslizou sobre seu corpo, tão cálido
e malicioso como suas mãos.
Esse era o momento de lhe dizer: «Obrigado, mas não, não posso aceitá-lo. Obrigado, mas tenho
que me arrumar com minha roupa... A que tirei depressa e correndo e parece um fgo no chão... A qual
remendou tantas e tantas vezes que mal fca uma parte do tecido original... A que lavei tantas e tantas
vezes que mal se reconhece sua cor».
A quem queria enganar?
Deitou-se com um homem que não era seu marido. Era uma rameira.
Bem podia ser uma rameira feliz. Assim disse:
—Já me encarrego de que fque bem.
Tirou-lhe o vestido das mãos e procurou a roupa intima. Teria declinado sua ajuda, mas Thomas
tinha comprado objetos que utilizavam as mulheres das classes altas, uns objetos que não podia
abotoar sozinha. Os vestidos e os espartilhos que estava acostumado a levar se abotoavam na parte
dianteira. O novo espartilho e o vestido o faziam nas costas.
—Vou necessitar de sua ajuda com as ftas — disse depois de vestir regata e a camisa.
—Então será melhor que comece a pensar em coisas sérias — replicou Rathbourne, que soltou o
colete que estava a ponto de vestir e se aproximou dela.
—Refere-se à possibilidade de um escândalo? —sugeriu Betsabé—. Ou que há duas crianças
desaparecidas? Ou as duas coisas juntas?
—Vêm-me bem — respondeu enquanto se colocava atrás dela e colocava mãos à obra—. Será
melhor que contemplemos nossas possibilidades de maneira ordenada no referente às crianças.
O pensamento ordenado estava fora do alcance de Betsabé nesse momento. Era muito consciente
das mãos que lhe roçavam as costas, da intimidade do gesto, da estranha familiaridade que encerrava.
Por sorte, Rathbourne dirigia o pensamento ordenado com a mesma facilidade que a roupa
feminina.
—Me ocorreram várias opções — disse—. A primeira é que sigamos fazendo quão mesmo temos
feito até agora; a segunda é que retornemos ao último lugar onde soubemos deles; e a terceira é que
alertemos às autoridades e organizemos uma batida em sua busca.
—Pelo amor de Deus!
—Apertei muito as ftas?
—Não, é que... —suspirou—. Dá igual. É uma tolice nos preocupar com as dimensões do
escândalo que vamos criar.
—Não é uma tolice de jeito nenhum — contradisse ele—. As dimensões de um escândalo podem
alcançar distintos graus. Uma batida de busca organizada nos asseguraria o pior escândalo. Porque
teria efeitos fdedignos (e publicados, para piorar), e não só rumor. Negá-lo seria impossível. —
Enquanto falava, ajudou-a a vestir as anáguas—. Embora fque outra possibilidade — disse. Passou-lhe
o vestido pela cabeça—. Podemos ir a Bristol (continuar até o fnal, em outras palavras) e esperá-los às
portas de Throgmorton Park.
Teriam que escolher o pior desses quatro maus.
Colocou-se bem o vestido a fm de atrasar o momento da decisão.
—Fica bastante bem, sobre tudo considerando que não estava presente para que tomassem
medidas — afrmou.
—Aconselhei a Thomas que procurasse uma criada de uma talha similar — disse Rathbourne.
—Não sei se me sinto cômoda com a idéia de que Thomas se fxou tanto em minha fgura.
—Não seja parva — replicou ele—. Thomas é um criado, certo. Mas também é um homem. Os
únicos que não vão se fxar em sua fgura são os mortos e os cegos. Enquanto mantenham as mãos
quietas, não terei que matá-los e você não tem que preocupar-se por nada.
Surpreendida, fez gesto de virar-se para lhe ver o rosto.
Rathbourne deu um puxão no vestido.
—Não se mova — ordenou—, ainda não terminei.
Enfm, de qualquer forma ler sua expressão era como ler um texto em sânscrito... Impossível de
decifrar.
Então o obedeceu.
Assim que atou a última fta, Rathbourne se separou dela. Ato seguido olhou-a de cima abaixo e
franziu o cenho.
Algo incômoda, Betsabé se aproximou do espelho para estudar sua imagem.
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Perfeito
—Está-me um pouco folgado — reconheceu enquanto alisava a saia—, mas fca bastante bem
dadas as circunstâncias.
—Ah, sim, as circunstâncias — disse ele—. As malditas circunstâncias. Já nos desentendemos
delas muito tempo. —vestiu o colete e o abotoou—. Que possibilidade prefere das quatro?

Lorde Rathbourne não era o único que enfrentou os fatos e tinha decidido desfrutar enquanto
pudesse.
Às dez da manhã Peregrine foi consciente de que jamais chegaria a Edimburgo a tempo para
evitar a catástrofe. A única opção era pensar que seu tio se perdeu em algum ponto.
Embora a idéia de que lorde Rathbourne cometesse um engano era quase impensável, viu-se
obrigado a considerá-la. Se Sua Excelência se deteve em Maidenhead e tivesse perguntado nas
estalagens (a ação mais lógica), já os teria encontrado a essa altura.
Portanto, dado que a catástrofe era inevitável, repassou sua situação enquanto esperava a que lhe
servissem o café da manhã na taberna da estalagem.
Não queria ir a Edimburgo.
Odiava o colégio e os professores.
Dado que seus pais lhe proibiriam qualquer contato com o tio Benedict, sua vida seria
extremamente desagradável durante alguns anos.
Portanto, tinha que aproveitar ao máximo essa oportunidade.
O café da manhã chegou justo quando alcançava essa conclusão.
Uma vez que sua consciência esteve tranqüila, atacou-a com supremo gosto. A acomodação e as
refeições tinham diminuído enormemente seus limitados recursos, mas não se preocuparia por isso.
Um explorador devia ser engenhoso.
Talvez tivesse levado mais tempo alcançar esse equilíbrio mental se Olivia não tivesse mantido
seu silêncio.
Entretanto, estava muito ocupado pensando primeiro e comendo depois para percebesse desse
fato. Estava limpando o prato quando se deu conta.
—Mal disse uma palavra desde ontem à noite — disse—. Encontra-se bem?
—Estive pensando — respondeu ela.
Preferiria com muito que Olivia não pensasse, mas não tinha nem idéia de como impedir-lhe.
Assentiu com a cabeça enquanto tentava não conter o fôlego.
—Como vamos chegar até Bristol se as pessoas não nos tiverem lástima? —perguntou ela,
baixando a voz—. Se for injusto ter uma mãe moribunda, o que podemos dizer? Não pretenderá que
lhes digamos a verdade, não? Sabe perfeitamente que nos levariam de volta a Londres.
Peregrine meditou a questão. A noite anterior seu destino era Londres, não Bristol. Essa manhã,
entretanto, seu destino tinha trocado. Mas ela não sabia.
—Mas lhes contar um pouco parecido à verdade não seria injusto — assinalou—. Poderíamos
dizer que vamos a Bristol procurar fortuna.
—Isso não seria injusto? —perguntou Olivia, arqueando uma dessas sobrancelhas ruivas.
—Bom, em seu caso é verdade — respondeu—. E não faria chorar às pessoas... Como aconteceu
com essa anciã que nos deu o dinheiro para chegar até o Twyford. Isso foi vergonhoso. Talvez necessite
o dinheiro mais que nós. Como sabemos que não é pobre, que não tem que sobreviver com uma pensão
de viúva? Talvez esta semana tenha que passar sem lenha por nossa culpa.
Olivia o olhou um bom momento. Depois baixou a vista à mesa. Por último jogou uma olhada à
lotada taberna.
—Muito bem — acessou enquanto dava de ombros—. Vamos fazer fortuna. Mas será melhor que
me deixe falar, sou repelente. Seu sotaque o delata.
Não podia ocultar sua pronúncia aristocrática. A diferença de Olivia, era incapaz de trocar de
registro a vontade e de imitar o sotaque da pessoa com que estivesse falando.
—Então será melhor que venha comigo para pagar o hospedeiro.
O hospedeiro, que os examinou com muito mais parada do que lhe teria gostado, perguntou-lhes
se queriam um cavalo.
Olivia o olhou e ele negou com a cabeça. Quando saíram da estalagem, disse-lhe:
—Só restam três xelins. Eu gostaria de reservá-los para uma emergência.
Olivia se deteve na metade do caminho para olhar a um e outro lado da High Street.
—Escutei na taberna que é dia de mercado em Reading — disse—. Poderíamos tenta a sorte. Mas
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Perfeito
está a uns quinze quilômetros daqui. Andou alguma vez quinze quilômetros, milorde? —perguntou
em tom zombador.
—Não diga isso — a repreendeu ao tempo que jogava uma olhada a seu redor. Não havia
ninguém perto—. Posso andar quinze quilômetros. Sem problemas. —Não o tinha feito na vida, mas
preferia a morte antes que admiti-lo diante dela.
De qualquer modo, não teve que demonstrar sua resistência. A uns cinco quilômetros do
povoado, um jovem casal em uma caleche se ofereceu a levá-los.
Igual ao hospedeiro, a dama parecia muito intrigada por eles. Não deixava de olhá-lo. Embora
fzesse o trajeto sentado de costas a ela e falou o menos possível, seu nervosismo se foi incrementando
com o passado do tempo. Quando chegaram a Reading a impaciência por afastar-se do casal o
consumia.
Por sorte, Olivia se tinha dado conta de que passava algo, ou tinha percebido algum problema,
porque quando o casal os convidou para o chá e massas, recordou de repente que devia fazer uns
recados que não podiam esperar.
Era meio-dia e Reading era um fervedouro de atividade. Estava no papo perder seus novos
amigos entre a multidão.
Olivia o conduziu até um numeroso grupo reunido frente a uma banca onde um grisalho
vendedor vendia laços, rendas, botões e outros artigos indispensáveis para o gênero feminino.
—Terá que fazer algo com sua aparência — disse Olivia em voz baixa—. Tem toda a pinta de um
aristocrata. —Estudou-o com olho crítico—. É o perfl. Temos que encontrar um chapéu grande, ou
talvez fosse melhor um lenço. Poderíamos pôr isso no rosto, atá-lo na cabeça e fngir que lhe doem os
dentes. —Dito o qual, agarrou-o pela mão e se internou no grupo de compradores sem esforço aparente
até colocar-se à frente.
Uma mulher bojuda estava regateando com o vendedor por um pedaço de renda.
—Meu Deus! —exclamou Olivia—, não posso acreditar o que meus olhos vêem. Não é isso renda
santiamundo? Que se faz no Santiamundo, esse povoado espanhol tão pequeno, e cujo desenho passou
de geração em geração sem sair da mesma família? Onde o conseguiu? —perguntou ao homem—. Não
se pode encontrar esta renda em Londres nem por todo o ouro do mundo, porque tem feito furor entre
as damas. A duquesa do Trenton o levou a um baile no Carlton House. Li no periódico. Levava renda
santiamundino e seus famosos diamantes.
A mulher agarrou a renda, deu as moedas ao vendedor e se afastou a apressada.
O vendedor olhou Olivia. Esta lhe devolveu o olhar.
Outra cliente perguntou por uma fta. Olivia inventou outra tolice. Cada botão, cada ninharia,
tinha sua própria história. Chegada à tarde, ao vendedor restava muito pouca mercadoria.
Quando o homem desmontou a banca e começou a recolher, Peregrine e Olivia o ajudaram. Ele
lhes correspondeu convidando-os para jantar.
Comeram em uma estalagem freqüentada por vendedores e outros viajantes. O lugar estava na
penumbra e cheio de fumaça, a comida estava insípida e feita em excesso, mas Peregrine estava muito
fascinado pela companhia para notar isso.
Jamais tinha estado entre esse tipo de gente.
A alguns nem sequer podia entendê-los. Era como estar em um país estrangeiro.
O vendedor se chamava Gaffy Tipton.
—Sei que não é um menino — disse, assinalando Olivia com seu cachimbo—. O que não sei é por
que me ajudou.
Ela cruzou os braços sobre a mesa, inclinou-se para diante e disse em voz baixa:
—Meu irmão e eu vamos a Bristol em busca de fortuna. Mas está bastante longe daqui e só nos
restam três xelins. Não conhecemos nenhum ofício, mas durante um tempo ajudei o dono de uma casa
de penhores, e sei sobre vestidos, ftas e todas essas ninharias. Também que vão. Ajudei-o hoje para que
visse o que posso fazer. Ouvi que alguém dizia que vem todos os sábados de Bristol. Se nos levar de
volta com você, ajudaremos no que pudermos.
Gaffy olhou Peregrine.
—É muito tímido — disse Olivia.
—Sério? —perguntou o vendedor com tom cético.
—Sou uma boa mentirosa, mas nenhum dos dois roubou — prosseguiu ela—. Se nos levar com
você, posso voltar a me vestir de garota. Com você, ninguém nos incomodará.
Peregrine pestanejou ao escutá-la. Não lhe tinha ocorrido que pudesse estar preocupada com sua
segurança. E tampouco lhe tinha ocorrido que pudesse ser tão convincente quando dizia quase toda a
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Perfeito
verdade.
O vendedor o observou em silencio durante um momento irritantemente comprido e depois
disse:
—Muito bem, os levarei comigo.

Benedict se sentou no tílburi junto a Betsabé.


—A Bristol, então? —perguntou.
—Como muito bem disse, é impossível saber se os adiantamos, se nos levam vantagem, se estão
no povoado ou se os temos debaixo do nariz — respondeu—. Nem sequer estamos seguros de ir pelo
mesmo caminho. Quão único sabemos com certeza é que se dirigem a Throgmorton.
—Estamos correndo um risco — disse.
—Sei — replicou ela—. Mas façamos o que façamos, correremos um risco. E eles também
correrão, façamos o que façamos.
—Pois a Bristol — concluiu e açulou os cavalos para que empreendessem a marcha.

Nesse mesmo instante, Rupert Carsington estava no vestíbulo da mansão londrino de seu irmão
Benedict.
—Que não está em casa? —perguntou-lhe ao mordomo, Marrows—. Já partiu a Edimburgo?
—Não, senhor — respondeu Marrows com esse gesto indiferente que os mordomos deviam
dominar antes de aprender qualquer outra coisa.
—É possível que tenha surgido algum assunto de estado urgente — disse Rupert—. Bom, dá
igual. O verei em outro momento. Só queria me despedir do menino.
—Lorde Lisle tampouco está em casa, senhor — informou Marrows.
—Não me diga.
—Sim, senhor.
—Onde estão?
—Não posso dizê-lo, senhor.
—Sim que pode Marrows. Não tenho a menor duvida de que poderia dizer muitas coisas.
Embora pareça que prefere que dê uma volta pela casa em busca de pistas.
—Senhor, não posso lhe dizer onde estão — repetiu o mordomo.
Rupert pôs-se a andar pelo vestíbulo, deixando atrás Marrows.
—Senhor, não sei onde estão —disse este. Sua voz deixou entrever o pânico que o embargava.
—Não sabe? —repetiu Rupert—. Que interessante. —Prosseguiu para o escritório de Benedict—.
Talvez Gregson possa resolver o mistério.
Os homens que se convertiam em secretários dos aristocratas estavam acostumados a ser
cavalheiros de boa família e escassos recursos. A diferença do mordomo, Gregson poderia considerar-se
um dos confdentes de Sua Excelência. A diferença do mordomo, Gregson não acreditava que sua
posição requeresse um semblante impassível e a férrea determinação de não dar às visitas, embora
fossem da própria família, informação alguma sobre algo.
O mesmo estava sentado atrás da mesa de Sua Excelência; uma mesa que não estava tão
ordenada como de costume. Nesse momento se parecia muito a dele, decidiu Rupert. Havia cartas,
cartões e convites esparramados em toda parte. Um monte do que parecia ser correspondência sem ler
se empilhava junto ao cotovelo do secretário.
—Vá, vá que inseto picou Sua Excelência a Perfeição? —perguntou ao entrar.
—Senhor — o saudou Gregson enquanto se levantava.
— Sente-se ordenou, assinalando a cadeira.
O homem fcou de pé.
Rupert deu de ombros e cruzou a sala para olhar pela janela.
—Que demônios aconteceu ali atrás? —quis saber—. Será que meu irmão por fm vai derrubar o
jardim para que possamos jogar boliches sobre a grama, como lhe recomendei?
—O muro traseiro sofreu certas imperfeições perto da grade — explicou Gregson.
—Intrusos?
—Lorde Rathbourne.
—Meu irmão fez isso?
—É o que dizem os criados. Eu não presenciei a... Isto...
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—Demolição?
—Obrigado, senhor. Eu não presenciei a demolição.
—Meu irmão destroçou o jardim — concluiu Rupert com tom pensativo—. Isto está cada vez
mais interessante. Sabe que inseto lhe picou?
—Não estou muito seguro — respondeu Gregson—. Sua Excelência esteve se comportando de
forma bastante estranha ultimamente. Como sabe senhor, é muito minucioso na hora de me manter
informado de seus compromissos. Mas ontem pela tarde saiu sem dizer nada a ninguém.
Aparentemente, levou Thomas, o lacaio. É do mais desconcertante. Estava seguro de que Thomas tinha
saído horas antes com lorde Lisle... A uma aula de desenho, se não me equivoco. Mas ninguém viu
lorde Lisle após.
—Então Rathbourne acabou procurando um professor de desenho para Lisle... —murmurou
Rupert.
—Caramba, certamente, senhor! Lorde Lisle esteve assistindo às classes de... —O secretário abriu
um livro e procurou a folha correta—. Aqui está. O professor é tal B. Wingate, que ministra suas aulas
na Loja de Quadros Popham. —Deu-lhe o endereço de uma das áreas mais pobres de Holborn.
—B. Wingate — repetiu Rupert, esforçando-se para que seu semblante seguisse impassível.
Recordava perfeitamente a noite que Peregrine mencionou o famoso nome em Hargate House.
Benedict se acha ser o mais impassível da Terra, mas tanto sua mãe como ele tinham notado que
ali havia mato sem cachorro.
Gregson, o muito inocente, não tinha nem idéia de quem era B. Wingate, ou do contrário teria
protegido seu senhor com zelo.
Relutante a preocupá-lo, Rupert voltou a cravar a vista no jardim e conteve uma gargalhada.
Lorde Perfeito tinha respondido ao canto da sereia.
«Quando contar a Alistair... —pensou Rupert—. Quando contar...»
E justo então percebeu que seria melhor que não contasse a ninguém.
Lorde Hargate tinha ouvidos em toda parte e não lhe faria nem um pingo de graça.
Separou-se da janela com expressão sóbria.
—Gregson, agradeço por sua colaboração —disse—. Embora agora devo lhe pedir, pelo bem de
meu irmão, que se abstenha de ajudar a qualquer que venha procurá-lo.
O secretário pareceu alarmar-se.
—Senhor, asseguro-lhe que não era minha intenção...
—Rathbourne esteve submetido a muita pressão ultimamente —prosseguiu—. Isso explica que se
esqueceu de informá-lo. O tal Wingate está relacionado com assuntos governamentais. Alto segredo. É
a única coisa que sei. Mas se alguma outra pessoa perguntar, rogo que se esqueça de B. Wingate e de
que meu irmão esteve agindo de forma estranha. Há muito em jogo. Isto poderia ser a ruína de alguns
governos. Um desastre. Será melhor manter os olhos abertos e a boca fechada.
—Mas, senhor, se lorde Hargate me perguntar por lorde Rathbourne...
—Nesse caso, Gregson — aconselhou Rupert—, que você contraia uma enfermidade
incapacitante e altamente contagiosa.

Capítulo 13

—Não sabia que estava tão longe —disse Betsabé ao passar pelo fronteira de Walcot.
Embora soubesse que Rathbourne tinha conduzido tão rápido como os cavalos o permitiam, fazia
já um bom momento que tinha anoitecido. Frente a eles se encontrava a cidade de Bath, famosa por
suas águas medicinais. Bristol estava a algo mais de dez quilômetros a noroeste e Throgmorton
«andava algo mais para adiante», nas palavras do encarregado da fronteira. Por mais que insistiram, o
homem foi incapaz de lhes assegurar se esse «mais para adiante» queria dizer dez quilômetros ou
vinte.
—Seja como for, o mais seguro será acrescentar outras duas horas a nossa viagem, dependendo
do estado dos caminhos —disse Rathbourne—. Será melhor que nos detenhamos em Bath. Assim
poderemos desfrutar de uma noite de descanso como Deus manda antes de empreender a marcha pela
manhã.
—E quando chegarmos a Throgmorton, o que?
—Me pergunte amanhã —respondeu ele.
—Não posso esperar até amanhã —protestou—. Necessitamos um plano de ação. Não podemos
nos plantar às portas a esperar que apareçam Olivia e lorde Lisle. Que possibilidades tem que entrem
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pela via habitual?
—Temos muito tempo para discutir o que podemos fazer e o que não —respondeu Rathbourne.
—Já estive discutindo comigo mesma — assegurou ela—. Passei as últimas horas contando os
quilômetros e analisando diferentes planos de ação de um modo ordenado, tal como você faz.
—Nisso que estava se entretendo? —perguntou-—. Que forma mais aborrecida de viajar. E que
perda de tempo. Por que não me pediu ajuda?
Porque não queria cair no costume de deixar que fosse ele quem solucionasse seus problemas,
respondeu para si mesma.
—Parecia preocupado —disse em voz alta—. Não queria interromper suas meditações.
Sua resposta lhe valeu um olhar surpreendido.
—Não achei necessário o distrair — prosseguiu—. Eu não preciso falar constantemente. Eu gosto
de desfrutar de um momento de silêncio para pensar. E asseguro que não tenho muitos momentos
desses. Além disso, queria ser eu quem encontrasse a solução.
—É muito complacente —disse Rathbourne—. E eu estou acostumado a viajar sozinho. Não
estava te deixando de lado. Isso seria impossível. É que fugiu do pensamento. Oxalá me tivesse
recordado que devia conversar de tanto em tanto.
—Não estava aborrecida — assegurou—. Tinha muito em que pensar.
Seu comentário foi seguido de um breve silêncio que ele interrompeu.
—Não se pode dizer que sou o homem mais atento do mundo —disse.
—Tem muitas coisas na cabeça —o desculpou—. Sobre tudo neste momento.
—Não sou atento —repetiu com impaciência—. Por fm me dei conta... ainda que me custasse.
Uma conclusão muito importante... que me serviu bem pouco. Passei todo este tempo contigo, muito
mais do que estive em companhia de uma mulher desde que era menino, e apesar de que a última
coisa que gostaria é esbanjar as poucas horas que restam para estarmos juntos, tornei a cair em meus
antigos hábitos.
—Não tem a obrigação de me entreter —insistiu—. Tem que estar atento ao caminho e...
—Perguntou-me como era possível que minha esposa fosse uma desconhecida para mim —
interrompeu ele com voz tensa—. Por isso mesmo. Por falta de conversa. Por falta de... Deus, nem
sequer sei por que! Tratei-a como se fosse um móvel bonito. A ela... a uma Dalmay! A uma mulher que
precisava futuar em muitas emoções. Que necessitava atenção. Não é de estranhar que a buscasse em
outro lado.
Betsabé estava muito surpreendida pela brusquidão para falar. Limitou-se a olhá-lo sem mais.
Seu bonito perfl parecia crispado.
—Não refro a um homem —explicou ao fm de um momento—. Ao menos, não no sentido que
está pensando. Caiu sob o infuxo de um pregador evangélico. Persuadiu-a, igual fez com muitas
outras almas desencaminhadas, de que teria que levar a salvação aos pobres. E o faziam dando de
presente Bíblias e pregando a certas pessoas que o viam como uma brincadeira ou como um desprezo
para eles. Tive entendimentos com os pobres, Betsabé. Necessitam muitíssimas coisas, mas não acredito
que lhes faça muita graça escutar que são orgulhosos, vãos e licenciosos da boca de um punhado de
aristocratas vestidas à última moda.
Assaltou-a um intenso desejo de tocá-lo, de lhe pôr a mão no braço. Mas não podia fazê-lo. Sim,
era de noite, mas não estavam em um lance do caminho especialmente solitário, e sim em uma das vias
mais transitadas da Inglaterra que conduzia a um dos balneários mais famosos do país.
—Então eu estava equivocada —admitiu—. Talvez fosse uma mulher emocional, afnal.
—Oxalá me tivesse atirado algo à cabeça —seguiu ele—. Mas eu não tinha nem a menor idéia do
alcance nem da intensidade de seu... de sua paixão pela causa. Nem sequer sabia no que andava
metida. Não perguntei. Subtraí-lhe importância pensando que se tratava do típico e absurdo desejo
feminino. Deveria haver posto fm. Em troca, limitei-me a soltar um ou outro comentário mordaz que
entrava por um ouvido e saía pelo outro, e me esqueci do assunto para me dedicar aos meus, que
considerava muitíssimo mais importantes.
—Não a amava — recordou.
—Isso não é nenhuma desculpa —replicou ele com voz irada—. Casei-me com ela. Era
responsável por seu bem-estar. Maldita seja era a irmã de meu melhor amigo e lhe dava as costas! Por
culpa de minha negligência, Ada seguiu visitando os antros dos bairros baixos anunciando a
condenação eterna e os fogos do inferno, e acabou pegando uma febre que a matou em três dias.
—Jack insistiu em montar um cavalo apesar de lhe advertiram que não o fzesse —confessou
Betsabé—. O animal o atirou ao chão. Demorou três meses em morrer.
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Perfeito
—Não é o mesmo —protestou ele.
—Porque ele era um homem e sua esposa uma mulher? —perguntou.
—Seu matrimônio foi um êxito, por muito que todo mundo o condenasse—respondeu
Rathbourne—. O meu foi um desastre, por muito que todo mundo o aplaudisse.
—Mas precisam dois —repôs, recordando as palavras que ele havia dito depois de que fzeram
amor pela primeira vez—. Alguns enlaces descabelados a priori acabam bem, para o casal ao menos.
Igual acontece com muitos matrimônios acordados. Por que não ia fazer um apoiado no dever? Ou na
conveniência? Ou em uma aliança política? Não é um homem inalcançável, Rathbourne.
—Não o sou para você —resmungou ele—. Porque é diferente.
—A diferença reside em que eu cresci aprendendo a enfrentar o mau tempo - comentou—. Lady
Rathbourne e você, não. Com isto não quero dizer que não tenha parte de culpa. Devia pôr mais
empenho, mas o mesmo se pode dizer dela. Os homens são criaturas complicadas, mas há um grande
número de mulheres (até as mais tolas e carentes de vontade) que acabam lhes domesticando.
Um silêncio breve e surpreso seguiu suas palavras.
Depois, Rathbourne soltou uma gargalhada e Betsabé sentiu que a raiva e a dor contidas se
evaporavam.
—É uma víbora —a acusou—. Abro-te meu coração, revelo meus segredos mais vergonhosos e...
você leva na brincadeira.
—Porque precisava —replicou—. Pintaste seu matrimônio de uma forma muito negra. Muitas
mulheres estariam encantadas de ter um marido que as deixasse tranqüilas. É preferível que lhe dêem
as costas a que as humilhem, abandonem ou lhe batam. Não foi o marido perfeito, mas estou segura de
que fcou bem longe de ser o pior.
—Simplesmente medíocre —disse ele—. Pequeno consolo...
—Esse é o problema por acreditar que é o centro do universo —soltou.
—Eu não...
—É como o rei de seu próprio país, um país diminuto —o interrompeu—. Como utiliza seu
poder para fazer o bem, acaba sepultado em muitas preocupações. É duro ser uma comparação. E
como é perfeito, os enganos que comete te ocasionam mais angústias das que sente uma pessoa normal,
comum e imperfeita. Necessita brincadeiras. Necessita um Touchstone em sua vida.
—Um quê?
—O personagem de “Como gosta de” — explicou—. O bobo.
Rathbourne a olhou de esguelha.
—Entendo. E decidiu que você vai ocupar o posto.
«Esse e outros mais —comentou Betsabé para si mesma—. Companheira, amante e bobo
particular. Sim! Sobre tudo esse último.»
—Sim, milorde — assegurou—. E devem me deixar falar com total liberdade. Esse o privilégio
especial do bobo da corte, Majestade.
—Como se pudesse se limitar na hora de falar ou de fazer o que goste —replicou ele—.
Entretanto, devo pedir que não me chame «Majestade». Nesta ocasião não é necessário que me tratem
de milorde. Nesta ocasião preciso ser como qualquer outra pessoa. Devo encontrar um novo nome para
esta etapa da viagem. Serei... —Fez uma pausa para pensar—. O senhor Dashwood.
—E eu serei a senhorita Dashwood —acrescentou Betsabé—. Sua irmã
—Não, nem pensar —se opôs ele—. Porque na realidade não quer que durmamos em quartos
separados.
—Você não sabe o que eu quero —replicou.
—Sim sei. E todo aquele que a olhar também saberá. Ninguém engolirá que somos irmãos.
—Não seria a primeira vez — recordou.
Rathbourne fez que os cavalos entrassem no pátio de uma estalagem de aspecto humilde.
—Isso era antes —disse—. Agora é impossível que dissimule os sentimentos luxuriosos que
alberga por minha pessoa.
Se ele soubesse tudo o que estava dissimulando... A luxúria só era uma minúscula fração do
conjunto.
—Isso era antes —repetiu—. Experimentei um aberrante momento de efêmera emoção e...
—Isso está por ver-se —a interrompeu ele.
«Espera e o verá», resmungou para si mesma. Em só dois dias se permitiu afeiçoar-se muito a ele.
E Rathbourne poderia converter-se em um vício. Se quisesse ter a mínima possibilidade de afastar-se
desse homem, era imperativo que começasse já. Não fazia nem um pingo de graça, certo, mas tinha
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Perfeito
sido uma necessidade acreditar que Olivia e ela podiam chegar a ser felizes na Inglaterra.
Aonde podiam ir sem que as perseguissem os fantasmas de seu passado?
Rathbourne deteve a carruagem e dois cavalariços apareceram no iluminado pátio.
—O Cisne dista muito de ser uma estalagem elegante — explicou em voz baixa enquanto a
ajudava a apear —. Seremos os únicos hóspedes que não se dedicam ao comércio. Uma circunstância
ideal para nós. Muitos de meus familiares de mais idade residem em Bath e o resto da família os visita
de vez em quando. Por desgraça, nenhum está tão caduco para não me reconhecer.
«Familiares por todos lados», pensou ela. Aliados políticos e inimigos em cada curva. Cada
minuto que passava a seu lado punha em perigo sua posição.
Rathbourne a convidou a passar ao interior da estalagem.
Embora não tão elegante como o estabelecimento de Reading, O Cisne não estava nem muito
desmantelado nem era pequeno. Uma criada primorosamente vestida lhes fez uma rápida reverência
antes de partir em busca do hospedeiro.
—Talvez seja mais limpa, cômoda e esteja melhor administrada que as estalagem da moda —
comentou ele—, mas os que querem dar-se ares de grandeza jamais poriam um pé aqui dentro. Não
quereriam acotovelar-se com os comerciantes. Se é que sabem que este lugar existe, porque está nos
subúrbios da cidade e bastante longe do caminho de Bristol. Como vê, aprendi bem a lição em Reading.
Betsabé também tinha aprendido muito desde então.
Tinha estado indecisa sobre o que devia fazer até que ele se justifcou e lhe falou de sua esposa.
Lorde Perfeito não era infalível. Quando se casou, cometeu um tremendo engano de julgamento
que poderia ter arruinado para sempre suas possibilidades de ser feliz.
Ela não seria outro engano, um muitíssimo mais grave que o primeiro, além disso.
Embora Rathbourne não o visse assim, é obvio. Estava acostumado a tomar decisões, a dar
ordens e a carregar com a responsabilidade. Era tão cavalheiresco como exigente.
Jamais a deixaria atuar como ela sabia que devia fazê-lo.
O hospedeiro se aproximou e, tal como ele tinha prognosticado, demonstrou ser um anftrião
impecável.
Sim, tinha um quarto apropriado para o senhor e a senhora Dashwood. O senhor Dashwood teria
o fogo aceso em um momento para combater a umidade. Gostaria os senhores de retirar-se a um salão
privado onde comer e beber algo enquanto preparavam tudo?
E nesse momento Betsabé viu a solução a seu dilema.
—Eu adoraria —respondeu, olhando Rathbourne—. Estou esfomeada... e morta de sede.

Benedict não tinha previsto que a comida se prolongasse tanto. Sua idéia era despir Betsabé de
primeira.
Entretanto, ela o distraiu de seu objetivo contando histórias da vida que tinha levado junto a seus
errantes pais. Em um princípio lhe resultaram muito entretidas, porque ela transformou as numerosas
desventuras em cômicas farsas.
Não obstante, o vinho foi fuindo ao mesmo ritmo que as anedotas. E à medida que lhe soltava a
língua, o quadro que pintava sobre sua infância se tornou mais escuro e deixou de lhe fazer graça. De
repente se descobriu apertando os punhos uma e outra vez. E teve que fazer contínuos esforços por
relaxar-se.
—É surpreendente que recebesse alguma educação —comentou em um dado momento—. Pelo
que está contando, parece que não viveram em um lugar concreto durante o tempo sufciente para
assistir aula, nem tampouco teve a tranqüilidade necessária para se dedicar a estudar.
Teve que jogar mão de toda sua força de vontade para que sua voz soasse tranqüila e
despreocupada. Os pais do Betsabé eram desprezíveis. Semelhante infância era um delito! Teria dado
quão mesmo vivesse em um orfanato, a julgar pelo carinho com o que a criaram.
—Era ainda pequena quando compreendi que não podia depender de meus pais se queria
receber uma educação, fosse acadêmica ou moral —confessou ela com uma gargalhada—. Sempre
buscava um canto tranqüilo onde me sentar com um livro. Aprendi a me fazer invisível. Assim me
esqueciam e me deixavam tranqüila... até que precisavam abrandar a cabeça ou o coração de algum
pobre desventurado. E ali me levavam então, toda inocência e olhos azuis, para protagonizar uma
emotiva cena. Descobriram que era especialmente útil para tranqüilizar os arrendadores zangados. Eu
odiava, mas aprendi a não descobrir o jogo. Porque se o fazia, via-me obrigada a suportar os
intermináveis prantos de minha mãe e o monólogo completo do rei Lear sobre os flhos ingratos dos
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Perfeito
lábios de meu pai.
Levou uma mão ao coração e declamou:
—«Ingratidão, demônio com o coração de mármore mais horrível que um monstro do mar ao se
mostrar em uma flha.» —levou a taça aos lábios e bebeu.
O método não era muito diferente do que usavam os pais de Peregrine. Entretanto e por muito
desencaminhados que estivessem seus cunhados, ao menos eles sempre o faziam pensando no bem de
seu flho. Duvidada muito que os pais de Betsabé tivessem tido em conta outro bem que não fosse o
próprio.
Preencheu-lhe a taça.
—Assim memorizou Shakespeare, não? —perguntou.
—Estudei o Bardo como método de defesa própria —respondeu—. Eles só utilizavam os versos
que lhes convinham. Assim que fz eu própria. Sempre estavam atuando. Nada era sincero. Quando
interpretavam o papel de pais carinhosos, era uma farsa. —Sorriu sem afastar o olhar da taça que tinha
na mão—. Mas meu tutor sim era real. O único modelo genuíno de comportamento irrepreensível. Ah,
e Jack! Ele também era real. Muito real.
Benedict esperava que Jack Wingate a tivesse apreciado tal como ela merecia. Se não pôde lhe dar
riquezas, ao menos deveria lhe haver dado amor, devoção, ternura e gratidão. Seria tão fácil entregar
tudo isso a essa mulher...
Para qualquer um, claro estava, salvo para o primogênito do conde de Hargate, a quem só era
permitido levá-la para cama... sempre e quando não demorasse para lhe dar um chute e esquecê-la.
Viu-a inclinar a cabeça como se estivesse refetindo.
—Talvez não tivesse valorizado tanto Jack nem meu tutor se minha vida anterior tivesse sido...
menos imperfeita. —deu de ombros, ergueu a taça e bebeu.
Benedict também bebeu e pediu que lhes levassem mais vinho.
Se ele mesmo tivesse sido menos imperfeito, não o teria feito. Embora não era abstêmio, rara vez
bebia em excesso.
Betsabé, em troca, estava feita para os excessos.
E ele não estava tão livre de faltas como deveria.
Quanto mais ela contava sobre sua vida, mais ele queria saber. Talvez essa fosse sua última
oportunidade para conhecê-la.
Embora não era o conhecimento intelectual quão único perseguia.
Era um homem, afnal de contas, e seus motivos eram tão sórdidos como os de qualquer de seus
congêneres.
Se alegrando-a conseguisse sossegar os remorsos que sentia por haver-se deitado com ele e
conseguisse despi-la logo e sem que pigarreasse... Descobriu que não era tão perfeito para não pedir
outra garrafa. E outra mais.
E as anedotas continuaram. Mas quando a viu encenar a ira e o horror de seus pais ao descobrir
que Jack tinha sido deserdado, se descobriu preso do irrefreável desejo de estampar algo contra a
parede. Ou melhor alguém. O pai do Betsabé e seu sogro.
Imediatamente compreendeu que já tinham bebido muito e que a noite já não era muito jovem.
Queria-a relaxada, recordou-se. Não inconsciente.
—Já é sufciente... senhora Dashwood —disse enquanto lhe tirava a taça de vinho da mão.
Esvaziou o conteúdo e fcou em pé. A sala girou ligeiramente ao seu redor—. Hora de ir-se à cama. Dia
importante, amanhã. Decisões. —E estampou a taça sobre a mesa.
Betsabé esboçou o mesmo sorriso que devia esboçar Calipso com Ulisses para mantê-lo
enfeitiçado durante todos aqueles anos.
—Isso é o que eu gosto de você, senhor Dashwood —replicou—. Sua frmeza. Economiza-me o
incômodo de ter que pensar.
—Isso é o que eu gosto de você, senhora Dashwood —repetiu ele—. Seu sarcasmo. Economiza-
me o incômodo de tentar ser educado e encantador.
Viu-a fcar em pé. E cambalear.
—Está bêbada — disse—. Sabia que tinha que te ter parado na última garrafa.
—Sou uma DeLucey —replicou ela—. Sei agüentar muito bem o álcool.
—Isso é discutível —repôs Benedict—. Mas, em qualquer caso, aqui estou eu para a sustentar. —
Rodeou a mesa e a agarrou nos braços. Lançou os braços ao pescoço e apoiou a cabeça em seu ombro.
Como se esse fosse seu lugar.
—Muito bem, mas só um momento, enquanto recupero a compostura —disse—. Lembra que
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nossos aposentos estão no segundo andar. Se subir a escada comigo nos braços, pode acabar se
machucando.
—Posso subir a escada contigo sem problemas —assegurou— e ainda fcarão forças para
qualquer outra tarefa que me encomende.
—Mmmm —murmurou ela—.Deixe me pensar em alguma.
Tirou-a do salão... e estiveram a ponto de chocar-se com Thomas, que os aguardava no corredor.
—Ah, aqui está! —exclamou Benedict—. A senhora Dashwood está um pouco alegre e me
preocupa que possa cair ou tropeçar com alguém. —Riu entre dentes ao recordar a elegância com que
se arrojou aos surpreendidos (que não relutantes) braços do ofcial Humber.
Esfregou-lhe o pescoço com o nariz.
—O quarto —disse em um sussurro—. Prometeu que me levaria a cama.
«Ah, sim! À cama. Nua.»
—O quarto —repetiu—. Onde está o maldito quarto?

Não era tão espaçosa como o da estalagem de Reading e a cama só tinha dois colchões em lugar
de três, mas estava quente, seca e eles... a sós. Isso era o único que importava a Benedict.
Soltou Betsabé para dar uma olhada pelo aposento e quando comprovou que tudo estava em
ordem (salvo pela estranha tendência do chão a mover-se sob seus pés), disse a Thomas que fosse para
cama. Ela fechou a porta assim que saiu o lacaio e trancou.
Avançou para ele.
—Desejo-te —disse.
—Disse-lhe isso — recordou Benedict—. Mas agora dirá que é uma loucura transitiva e que...
—Cale-se —ordenou ela, agarrando-o pelas lapelas do casaco—. Ocorreram-me algumas tarefas
que te encomendar.
Uma dessas mãos baixou até chegar à parte frontal de suas calças e seu membro, já excitado,
acabou de fcar frme. Viu-a esboçar o sorriso de sereia.
De modo que a segurou pela cintura, elevou-a do chão e aproximou essa maliciosa boca à sua.
Beijou-a, mas não de forma delicada nem sedutora. Beijou-a com paixão. Ela se agarrou a seus ombros,
colocou-lhe a língua na boca e seu sabor o abrasou com mais intensidade que o licor.
Betsabé se retorceu e lhe esfregou os seios contra o torso em seu afã de subir um pouco mais para
lhe rodear a cintura com as pernas, obrigando-o a procurar algo sólido que o ajudasse a seguir de pé.
Uma vez que o encontrou e apoiou as costas, levantou as numerosas capas do vestido e das anáguas e
lhe plantou as mãos no traseiro, coberto tão só pela magra seda dos calções.
Enquanto isso, seguiram beijando-se com tal ardor que já não sabia nem como se chamava.
Nenhuma poção amorosa seria capaz de igualar a paixão dessa mulher. Deixava-o louco, o fazia
esquecer a razão, e se alegrava de que fosse assim.
Betsabé lhe afrouxou a gravata, desabotoou-lhe a camisa e introduziu uma mão sob o objeto,
deslizando-a por sua pele até deixá-la sobre seu coração. Sobre seu acelerado coração.
A mão foi descendo por seu torso e percorreu seu abdômen até deter-se no cinto das calças. E de
repente se encontrou apanhado sem poder fazer nada salvo sustentá-la enquanto ela os desabotoava e
acariciava seu palpitante e torcido membro por cima da cueca.
Gemeu contra seus lábios e ela interrompeu o beijo.
—Agora —disse—. Não posso mais. Desça-me.
Ele não teve nada que objetar ao «agora», de modo que a desceu e sofreu a tortura de sua lenta
descida por seu corpo.
Assim que esteve no chão, Betsabé o empurrou para a cama e ele se deixou cair no colchão entre
gargalhadas, um pouco desorientado e muito excitado. Observou-a enquanto elevava as saias e se
desatava os calções, que caíram ao chão. Liberou os pés do objeto, passou sobre ele e se lançou a ele.
Baixou-lhe as calças e a cueca até a altura dos joelhos.
Benedict elevou a cabeça para olhar-se. Aquilo era abafadiço. Seu membro viril se elevava com
orgulho, alheio a considerações como a dignidade.
—As botas —comentou, rindo-se—. Deixa que pelo menos me...
—Não se mova —interrompeu ela, que se colocou escarranchada sobre seus quadris—.Deixe-me
a mim.
Nunca deixava que as mulheres fzessem nada, nem sequer nesse âmbito, mas Betsabé era
diferente, e ele não podia pensar... nem queria fazê-lo.
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Nesse instante notou que uma mão suave se fechava em torno de seu membro e o acariciava de
cima abaixo. Acreditou morrer e soube que não ia durar muito.
—Vai matar-me, Betsabé —disse.
—E você está me matando —replicou ela. Elevou-se sobre seu membro e de repente se encontrou
rodeado por essa carne úmida e ardente... e por uns músculos muito perversos que se contraíam em
torno dele.
Ouviu-se gritar, mas não articulou palavra alguma, e sim algum som ininteligível, como o rugido
de um animal. Betsabé se ergueu e voltou a baixar. Seus movimentos foram lentos a princípio e
provocaram umas voluptuosas onda de prazer que o percorreram por inteiro. O ritmo foi aumentando
por momentos até converter-se em uma desenfreada cadência.
Observou esse formoso rosto enquanto ela reclamava seu corpo. Viu seu próprio desejo refetido
nele e o deleite que a embargava, muito distinto a tudo o que tinha conhecido até então. Betsabé seguiu
movendo os quadris e o prazer se apoderou dele e fuiu por suas veias para lhe chegar ao coração. Até
que o ritmo se tornou frenético e Benedict perdeu o controle, limitando-se a acompanhá-la ali onde
queria levá-lo, sem lhe importar onde fora. Chegaram aos limites do mundo, saltaram pelo bordo e ali
futuaram, durante um momento, livres e eufóricos, antes de retornar e sumir-se no sono.
Quando despertou na manhã seguinte, descobriu que Betsabé tinha desaparecido.
Igual a sua roupa e seu moedeiro.

Capítulo 14

Throgmorton, domingo 7 de outubro.


Betsabé adivinhava o que estava pensando o mordomo.
O sobrenome Wingate não lhe seria desconhecido.
O conde de Mandeville, um senhor já entrado em anos, era o dono desses contornos, o cabeça da
família DeLucey e conhecia (embora não se falassem muito precisamente) o conde de Fosbury, o pai de
Jack.
Uma pessoa razoável não culparia os bons DeLucey das ações dos Atrozes DeLucey. Não
obstante, lorde Fosbury jamais tinha sido razoável no concernente a seu flho predileto, a quem tinha
mimado de forma horrorosa e quem a sua vez correspondeu lhe destroçando o coração. Em sua
opinião, lorde Mandeville deveria ter impedido as bodas e ter disposto tudo de forma que ela acabasse
em algum lugar onde Jack não pudesse encontrá-la.
Na opinião de lorde Mandeville, lorde Fosbury era incapaz de controlar seu flho.
Daí que as famílias se mostrassem ostensivamente distantes em seu trato.
Entretanto, falavam-se, o que queria dizer que o mordomo não se atreveria a fechar a porta a uma
dama chamada Wingate... embora dita dama tivesse chegado a cavalo, sem criada nem lacaio que a
acompanhasse.
Betsabé poderia ter solto alguma mentira sobre um acidente ou algo pelo estilo, mas sabia muito
bem que os membros da aristocracia não davam explicações a ninguém, muito menos aos criados.
Assim que se limitou a olhar o mordomo com a mesma expressão de soberano aborrecimento que
tantas vezes tinha visto no rosto de Rathbourne. Seu tutor tinha lhe ensinado como fazê-lo. Mas
Rathbourne o tinha convertido em uma arte.
Pensar nele ocasionou uma dolorosa pontada que reprimiu sem piedade.
—Lorde Mandeville não está em casa — informou o mordomo.
—Nesse caso, lorde Northwick —replicou. Northwick era o primogênito do conde.
—Lorde Northwick não está em casa —respondeu o mordomo.
—Compreendo —comentou—. Devo recitar todos os nomes dos membros da família enquanto
me deixa na porta?
Isso fez que o homem piscasse. Pediu-lhe perdão. E se apressou a deixá-la a entrar.
—É um assunto muito urgente —disse com voz frme—. Estão todos os membros da família na
igreja ou há algum adulto responsável com quem posso falar?
—Verei se há alguém em casa, senhora —respondeu o mordomo.
Depois de conduzi-la a uma espaçosa sala de espera, partiu.
Levava vários minutos passeando de um lado para outro quando escutou passos. Deteve-se e
adotou novamente a expressão de Rathbourne.
Um jovem entrou na sala. Era pouco mais alto que ela e muitíssimo mais jovem. Devia ter vinte e
poucos, supôs. Era bonito e ia bem vestido, embora era evidente que pôs a elegante roupa às pressa.
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Devia haver-se levantado pouco antes. Devia haver esquecido de passar um pente por seu abundante
cabelo castanho, ou talvez o esquecimento se devesse a seu valete. Tinha os olhos da mesma cor que
Olivia, um azul intenso.
—Senhora Wingate? —disse—. Sou Peter DeLucey. Vi-a chegar pelo caminho. Peço-lhe desculpas
por havê-la feito esperar. Keble me disse que o assunto era urgente... —Deixou a frase no ar e cravou a
vista em algo que estava atrás dela.
Betsabé deu uma olhada por cima do ombro. Ato seguido, deu meia volta para observar o objeto
em questão: um retrato de corpo inteiro de um ofcial da Marinha adornado com uma peruca, estilo
que esteve muito em moda no século anterior. Poderia ter sido seu pai. E com uma peruca negra,
poderia ter sido ela mesma.
—Esse não pode ser o bisavô Edmund —disse—. Conforme tenho entendido, queimaram todos
seus retratos.
Quando devolveu o olhar ao jovem, este estava passando uma mão pelo cabelo.
—Caramba! —resmungou.
—Sou Betsabé Wingate —se apresentou.
Nem seus ancestrais caíram de seus quadros, nem o teto desabou, nem o chão se abriu para
deixar passar Belzebu, que tampouco tentou arrastar o senhor do DeLucey ao inferno.
Entretanto, Peter DeLucey parecia ter sofrido todos esses desastres. E o único que conseguiu
balbuciar foi:
—Caramba!
Betsabé o sossegou com um gesto da mão.
—Por favor, não temos tempo para recordar a história da família —disse—. Minha desobediente
flha fugiu com o herdeiro e único flho de lorde Atherton. Envolveu-o em um desenquadrado plano
para desenterrar o tesouro de Edmund DeLucey, o qual acredita enterrado no mausoléu de
Throgmorton.
—Você - tesouro —repetiu o jovem—. Mauso...
—Levo seguindo-os desde sexta-feira pela tarde — interrompeu com impaciência—, mas se
esquivaram. Throgmorton é uma propriedade muito extensa. Não há maneira de predizer como
entrarão nem por onde. E uma vez dentro, terão um sem-fm de esconderijos.
—Caramba! —voltou a exclamar o jovem—. Resulta difícil de acreditar. Sua flha fugiu com o
flho de Atherton?
—O menino tem treze anos —se apressou a particularizar—. Olivia tem doze. Não fugiram. São
crianças. Preste me atenção. Tenho um plano para apanhá-los, mas necessito sua ajuda.
Nesse momento escutou que chegava uma carruagem.
Conteve o fôlego. Não podia ser Rathbourne. Demoraria horas em encontrá-la, se acaso chegasse
a fazê-lo. Tinha tomado medidas necessárias para que assim fosse... e para que a detestasse quando o
fzesse.
Peter DeLucey correu para a porta e aguçou o ouvido.
—Agora sim que temos feito boa —disse—. Minha família voltou da igreja.

Uma hora mais tarde

Quando lhe pusesse as mãos em cima,a estrangularia, disse-se Benedict.


As conseqüências dos excessos da noite anterior ajudaram bem pouco a melhorar seu humor.
Tinha uma bigorna na cabeça e Hefesto, o ferreiro que forjava os raios de Zeus, estava golpeando-a com
seu martelo gigante.
Encaminhou-se à porta de serviço jogando fumaça pelas orelhas.
Poderia ter batido na porta principal e anunciar-se... se lhe tivesse gostado que o expulsassem a
chutes de Throgmorton e que os muito broncos ririam dele a gargalhadas quando desse com suas
nádegas no chão do outro lado da grade da propriedade.
Tinha tido que pedir dinheiro e roupa a Thomas. A roupa não fcava bem. Thomas era mais baixo
e mais corpulento que ele. Além disso, devido à escassez de recursos, viu-se obrigado a suportar uma
comprida e infeliz viagem no lombo de um pangaré que não ajudou precisamente a lhe aliviar a dor de
cabeça.
Para cúmulo dos males, tinha tido que deixar Thomas na estalagem em garantia de que
retornaria a pagar a conta que essa víbora poderia ter tido a decência de saldar.
Um golpe de sorte o tinha ajudado a transpassar a grade de entrada da propriedade. Como não
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sabia que conto tinha soltado Betsabé nem a identidade que tinha assumido, decidiu interpretar o
papel de bronco caipira e perguntou se sua senhora tinha passado por ali. Por sorte, nenhuma outra
mulher teria ido de visita a mansão, porque ninguém lhe perguntou quem era sua senhora.
Ia matá-la.
Embora primeiro teria que encontrá-la.
Na porta de serviço voltou a interpretar o papel de tonto e tampouco teve problemas para passar.
O lugar era um fervedouro de atividade.
—Assim vieste em busca da senhora Wingate —disse a governanta—. Dizem que estava muito
alterada quando chegou. Suponho que não estava de humor para te esperar. Com o senhor Keble
tampouco se mostrou de melhor aspecto. Conforme me disseram, viu-se obrigado a ceder. Joseph diz
que nunca viu nada igual. Segundo ele, a senhora teria enrolado o senhor Keble se tivesse tentado detê-
la. E o senhorzinho Peter não verá além de seu rosto e sua fgura, a quem vamos enganar?
—E merece a pena olhá-la —disse um criado, que entrou com uma bandeja de sanduíches que
nem sequer haviam tocado—. Razão pela qual o jovem é incapaz de afastar os olhos dela. Está sentado
com a boca aberta, como se nunca tivesse visto uma de sua estirpe. Coisa que espero que seja certa, já
que o tiveram mimado toda a vida e no colégio esteve rodeado de pirralhos com acne e tão saídos
como ele.
Benedict o olhou com expressão infexível. Nas dependências dos criados da família Carsington
jamais se toleraria semelhante conversação.
—Inteiraste-te que mais coisas, Joseph? —perguntou todo mundo imediatamente.
—Bom, está contando uma baboseira dessas que tanto gostam às mulheres, com meninos
perdidos, tesouros de piratas e perigos à volta da esquina —respondeu o criado—. Quanto a outros, o
que querem que ouçam, se assim que fecha o bico as senhoras começaram a cacarejar como se fossem
galinhas irritadas? Mas lorde Mandeville acaba de chegar e está que gorjeia —acrescentou com
perversa satisfação—. Apostei seis pêni com o James a que o velho carrancudo põe essa rameira de
patinhas na rua lhe dando um chute em seu precioso traseiro.
Benedict levantou da cadeira e se lançou sobre o tal Joseph.

—Fora! —gritou lorde Mandeville—. Nenhuma palavra mais. Como se atreve a manchar esta
casa...?
—Mandeville, será que não escutaste o sermão de hoje? —perguntou-lhe sua esposa—. Devemos
ter paciência e perdoar, se não recordar mal...
—Se perdoarmos a um só, outros nos depenarão. Quando morrermos, nos roubarão até a
mortalha —disse o ancião—. É um ardil e terá que ser um imbecil de muita consideração para acreditar.
O flho de Atherton, uma ova!
—Estou de acordo em que a história parece duvidosa, pai —afrmou lorde Northwick com tom
indolente. Era um homem muito charmoso de uns quarenta anos, com uns penetrantes olhos azuis que
desmentiam a indiferença de sua pose—. Mesmo assim, temos a obrigação de escutar à dama.
—Dama? —replicou seu pai com desdém—. Finge muito bem, como toda sua família. São todos
uns panacas. —Fulminou com o olhar sua esposa, sua nora e a seu neto—. Todo mundo sabe que os
Atherton estão na Escócia.
Betsabé aplacou seu gênio.
—Os marqueses de Atherton estão na Escócia —conveio—. Seu flho estava em Londres com seu
tio, lorde Rathbourne. Tal como já expliquei...
—Não tenho a menor duvida de que explicaste tudo em detalhe —resmungou o conde de
Mandeville—. Mentira sem pé nem cabeça! Mas estes não o vêem assim porque não têm dois dedos de
frente. As mulheres de minha casa deixam que seus ternos corações rejam seus cérebros, se acaso
tiverem algum, e este casal de imbecis formada por meu flho e meu neto só vê seus encantos.
—Pai, pelo amor de...
—Mas não vai me enganar, Jezebel! —prosseguiu lorde Mandeville, passando por cima as
educadas intervenções de seu flho tal como faria com os balbucios de um menino—. Já tratei antes
com gente como você e aprendi a lição. Sei todos seus truques. E o inferno se congelará antes que eu...!
Um enorme estrondo procedente do vestíbulo sobressaltou a todos.
—Que demônios foi isso? —bramou o conde—. Keble! O mordomo entrou de pronto, com o rosto
ruborizado.
—Milorde, peço-lhe desculpas pelas moléstias. Tudo está solucionado.
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Perfeito
Escutou-se outro golpe, embora nessa ocasião fcou claro que um pouco de porcelana se quebrou.
Lorde Mandeville pôs-se a andar para a porta justo quando um criado de libré entrava voando
pelos ares e aterrissava a seus pés.
Betsabé fechou os olhos. Não, era impossível. Abriu-os.
Uma fgura alta e de cabelo escuro apareceu pela porta.
Saltava à vista que a roupa que levava pertencia a outra pessoa. A jaqueta era muito curta e as
calças, muito largas.
—Quem demônios é esse? —perguntou lorde Mandeville aos grito.
Rathbourne se ergueu.
—Sou...
—Meu irmão — interrompeu Betsabé—. Meu irmão Derek, o pobre está louco.
O aludido a fulminou com o olhar.
—Não...
—É muito desobediente — voltou a interrompê-lo—. Por que não me esperaste na estalagem
como disse que fzesse? Não te prometi que voltaria assim que pudesse?
—Não, não o fez —respondeu Rathbourne. Seus olhos escuros relampejaram—.levou minha
roupa. Levou meu dinheiro. Foi sem dizer nenhuma palavra.
—Está confuso — recriminou. Olhou às damas e se levou o dedo à têmpora para lhes indicar que
estava maluco. Voltou a olhar Rathbourne e acrescentou com voz paciente—:Expliquei muitas vezes
por que não podia vir comigo.
O criado que estava no chão soltou um fraco gemido.
—E esta é uma das razões —concluiu, lhe lançando um olhar reprovador.
—Chamou-a rameira —aduziu ele como um menino contrariado.
—Perdeste os estribos —disse ela—. O que tenho dito que deve fazer para que isso não aconteça?
Produziu-se um tenso silêncio. O brilho desses olhos escuros se tornou perigoso.
—Contar até vinte — respondeu.
—Já vêem —disse aos outros em voz baixa—. É como um menino pequeno.
—Pois é um menino pequeno muito grande —comentou lorde Northwick.
—Deveria estar em um asilo! —bramou lorde Mandeville com o rosto avermelhado pela
indignação—. Fora! Fora de minha casa os dois! Fora ou farei que lhes prendam e joguem a chave fora!
Se voltarem a pôr um pé em minha propriedade, jogar-lhes-ei aos cães!
Rathbourne o olhou.
O conde retrocedeu um passo, com o rosto cinzento.
—Derek... —disse Betsabé. Rathbourne a olhou. Aproximou-se dele com o queixo erguido e as
costas muito rígida—. Lorde Mandeville está muito agitado —disse—. Será melhor que vamos antes
que lhe dê um ataque.
Encaminhou-se para a porta, deixando-o atrás, e entrou no comprido corredor. Um momento
depois escutou umas furiosas pegadas a suas costas.

Cavalgaram sumidos em um silêncio furioso até que transpuseram a grade de entrada.


—Estragou tudo! —gritou Betsabé assim que saíram da propriedade.
—«Tudo» estava estragado muito antes que eu aparecesse —a corrigiu Benedict, que teve que
apertar os dentes para suportar a dor de cabeça, a qual tinha piorado depois dos recentes
acontecimentos—. Não posso acreditar que viesse a Throgmorton, identifcasse-te de verdade e não
esperasse o rechaço e os insultos de seus parentes.
—As coisas foram bastante bem até que chegou o carrancudo do conde — assegurou—. As
damas tinham muita curiosidade para ser desagradáveis e os cavalheiros...
—Eram incapazes de olhar seus seios e pensar ao mesmo tempo —concluiu ele.
—Poderia havê-los feito cooperar, inclusive esse velho suscetível, se não tivesse brigado com o
criado —seguiu ela—. Em todo caso, não poderia havê-lo feito nas dependências da criadagem?
—O muito covarde saiu correndo —respondeu—. E não estava de um humor muito compassivo.
Se por acaso não sabe, esta manhã despertei com uma dor de cabeça de mil demônios e descobri que
alguém tinha me roubado o dinheiro e a roupa. —Inspirou fundo para serenar-se—. Mas não demorei a
compreender tudo. Embebedar-me e se aproveitar de mim formava parte de seu engenhoso plano.
Pensou que depois dos excessos da noite estaria tão mal, tão débil, que não poderia vir detrás de você.
Pensou que jamais adivinharia seu destino. Toma-me por um imbecil, obviamente.
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Perfeito
—Quão único fz a propósito foi a parte da bebedeira —particularizou—. O mal é que eu bebi
mais do que tinha pensado. Tem uma resistência incrível. Aproveitei-me de você porque estava bêbada
como uma gambá. Mas sim, acredito que é um imbecil. Deixa que a luxúria te nuble a razão. Estiveste a
ponto de dizer aos DeLucey quem é, não é? Se não o tivesse detido, os teria fulminado com um desses
olhares de superioridade tão seus e haveria dito: «Sou Rathbourne».
Imitou-o tão bem que a Benedict custou a mesma vida seguir olhando-a com o cenho franzido.
—Você lhes disse quem era —assinalou ele—. Pôs-se em perigo. Se descobrirem que não sou
Derek, seu pobre irmão louco, estará arruinada.
Quando escutou que o convertia em seu irmão louco, esteve a ponto de asfxiar-se tentando não
estalar em gargalhadas.
—Já estou arruinada —disse ela—. Estou arruinada desde que nasci.
—E o que acontecerá com Olivia? —quis saber—. O que vai ser dela?
—Na Inglaterra não poderei lhe construir um bom futuro —respondeu—. Enganei-me ao
acreditar que podia. Se quiser que tenha uma oportunidade nesta vida, devo levá-la ao estrangeiro,
onde o nome de Betsabé Wingate não signifque nada para ninguém.
—Resulta-me inconcebível que esteja pensando em dar a sua flha a mesma vida itinerante contra
a qual tanto criticou! —gritou. E se encolheu de dor, porque o grito reverberou dolorosamente em sua
cabeça.
—Isso é porque eu enfrento à realidade e você não —disse Betsabé—. Está fngindo que esta é sua
vida. Mas só são uns dias dentro de sua vida. Talvez seja uma mudança de ritmo gratifcante.
Entretanto, quão único tem feito é fugir durante um tempo, tal como fazia de pequeno. O problema é
que já não é um menino e, a diferença do que acontecia no passado, terá que enfrentar às conseqüências
quando retornar. Porque deve retornar, Rathbourne. Eu posso deixar a Inglaterra sem olhar atrás. Você
não.
—Não vai fazê-lo — corrigiu—. Não permitirei.
—Eu gostaria que tentasse recordar que não estamos na Idade Média e que não sou sua vassala
—replicou ela.
—E tampouco vou permitir que se sacrifque por mim —concluiu Benedict.
—Não ia a...
—Se não fosse o primogênito, teria me transformado em advogado —explicou—. Tal como estão
as coisas, participei de muitos casos penais. Aprendi a discernir as motivações. E a sua é evidente,
carinho. Não estou seguro de proceder de um instinto maternal mal enfocado ou do gosto dos DeLucey
pelas tragédias. De qualquer forma e seja qual for sua origem, não necessito que me proteja nem que se
sacrifque por mim. A mera idéia é absurda. Sou um homem feito, não um jovenzinho imberbe. Tenho
trinta e sete anos. Prefro que me enforquem antes de me esconder atrás de suas saias. —Lançou-lhe
um olhar eloqüente—. O que faria debaixo delas é outra questão, é claro, e estarei encantado de discuti-
la contigo em outro momento.
—Que inseto o picou? —gritou ela—. O que vai fazer se descobrem?
—O que meus antepassados fzeram em Hastings e em Azincourt —respondeu—. O que meu
irmão Alistair fez em Waterloo. Se outros membros de minha família podem enfrentar à morte sem
piscar, que dúvida tem de que eu posso enfrentar o ridículo e o desdém.
—Mas eu não quero que o faça, seu mulo!
—Sei, querida —repôs—. Dei-me conta assim que descobri que tinha levado meu dinheiro e
minha roupa. Comoveu-me enormemente seu carinhoso gesto. Mas agora quero que me devolva tudo
isso.

As damas abandonaram o salão de Throgmorton House, seguidas de pronto pelo flho e o neto
de lorde Mandeville. De modo que o conde fcou sem ninguém com quem ventilar sua ira, salvo os
criados, que também se apressaram a sair do meio. Assim podia destrambelhar a vontade.
Enquanto as damas procuravam proteção na estufa, lorde Northwick e Peter DeLucey se
atrasaram para dar uma olhada aos destroços do vestíbulo.
Havia duas cadeiras derrubadas. Um enorme dragão de porcelana da China que lorde Northwick
sempre tinha detestado estava aos pedaços no chão. Escova em mãos, duas assustadas criadas eram as
encarregadas de recolhê-los.
Joseph, ajudado por James e Keble, coxeava para a porta de acesso às dependências da
criadagem.
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Lorde Northwick levou seu flho onde não pudessem escutá-los.
—Deve ir atrás deles — disse—. Atrás da dama e seu... irmão.
Peter o olhou sem compreender.
—Agora mesmo — apressou seu pai—. Não há tempo que perder.
—Mas o avô disse... Mas você... Você não a acreditou. Sei que não a acreditou. Tinha essa
expressão...
—Mudei de opinião — explicou—. Deixa de balbuciar e presta atenção.

—Senhora Wingate! Caramba, senhora Wingate!


Benedict e Betsabé deram uma olhada por cima do ombro.
Um cavaleiro solitário se aproximava deles ao galope.
Quando estava mais perto, Betsabé disse:
—É o flho de lorde Northwick, Peter DeLucey. O que quererá?
Detiveram-se esperá-lo.
—Uma mensagem — disse o jovem sem fôlego—. De meu pai. Suas desculpas. Não podia vir em
pessoa. Prementes obrigações, sabe. Mas lhes pede que o esperem amanhã pela manhã no Brasão do
Rei. Eu os levarei a estalagem e me encarregarei de que não lhes falte nada. Meu pai diz... —Olhou-os,
indeciso—. Meu pai diz que acredita, que temos que lhe oferecer toda a ajuda possível.

«Toda a ajuda possível» incluiu a reserva de dois quartos na estalagem e o almoço, que não só
contribuiu que Benedict se recuperasse dos excessos da noite anterior, mas também a melhorar sua
opinião dos DeLucey.
Mesmo assim, a princípio acreditou que a ajuda desse DeLucey em concreto era uma desculpa
para não tirar o olho de cima de Betsabé, já que o jovem parecia incapaz de olhar para outro lugar. Nem
sequer tiveram que insistir para que almoçasse com eles.
Tampouco se apressou a partir depois da comida.
Benedict decidiu deixar cair uma indireta.
—Temo-me que devo me pôr em marcha —disse—. Nosso criado está em uma estalagem
próxima a Bath, junto com a carruagem, e tenho que ir por eles. Também devo pagar o hospedeiro.
Verá, que minha irmã partiu apressada e no estado de nervos que se encontrava, confundiu meu
moedeiro com o seu.
—Bom, eu posso me aproximar da estalagem e fazê-lo em seu nome —se ofereceu DeLucey.
—É claro que não —disse Betsabé—. Jamais lhe pediríamos algo assim.
—Estariam fazendo um favor — aduziu o moço—. Se não o fzer, aborrecer-me-ei como uma
ostra todo o dia. Os domingos em Throgmorton são mortais. O avô odeia ir à igreja, mas acredita que
deve dar exemplo. Oxalá fcasse em casa e deixasse esse trabalho às mulheres. Os sermões o põem de
um humor de cão. Além disso, sempre o entretém alguém no fnal da missa para queixar-se de algo, ou
para lhe pedir algo. Se por acaso isso fosse pouco, insiste em jejuar antes de ir a missa desobedecendo
aos conselhos do médico, que diz que não é bom a sua idade, e chega em casa com mais fome que o cão
de um cego, circunstância que faz bem pouco por melhorar seu humor. —ruborizou-se—. Suponho que
não lhes teria recebido com os braços abertos em nenhum outro momento, mas o fato de que seja
domingo talvez tenha piorado a situação.
«Bom discurso», pensou Benedict. O moço se desculpou, mais ou menos, pelo comportamento de
seu avô sem ter que deixá-lo em mau lugar e demonstrando certa compaixão para ele.
A avó paterna de Benedict tinha uma língua viperina e nem um ápice de paciência. Se tivesse
estado no lugar de lorde Mandeville, a dama talvez teria demonstrado algo mais de controle, mas não
muito mais amabilidade.
Regra: Os anciões têm direito a suas manias.
Pouco antes se viu obrigado a recorrer a essa regra. Graças a ela se conteve para não atirar lorde
Mandeville pela janela que tivesse tido mais à mão.
—É o temperamento dos DeLucey —explicou Betsabé—. Aparentemente, é uma característica
familiar de ambos os ramos. Eu estou bastante acostumada.
—Você o tem — replicou ele.
—Entretanto, eu não lancei pelos ares o criado que caiu no salão — assinalou.
—É um tipo desprezível —se justifcou Benedict—. Não penso me desculpar.
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—Talvez isso tenha sido o que lhes granjeou a simpatia de meu pai —aventurou DeLucey—.
Levava séculos querendo despedir Joseph, mas o vovô... —Deixou a frase no ar enquanto abria os olhos
de par em par—. Caramba, senhor! Depois de tudo, você não está tão mal da cabeça. —Olhou Betsabé
com desconcerto.
—Acreditei que a sua família resultaria mais fácil desculpar a loucura que o mau gênio —
explicou ela.
—Minha irmã me deixa louco em ocasiões —disse Benedict—. Descontando esses momentos, sou
um ser perfeitamente racional. E como sou racional, não vejo justifcado que você vá até Bath para
aplacar um furioso hospedeiro e aliviar a preocupação de meu fel criado. Depois teria que retroceder o
pesado caminho, durante o qual se sentiria totalmente só porque a Thomas não ocorreria falar com
você. Entretanto, se não tem pressa de retornar a Throgmorton, convido-o que me acompanhe.
—Tal parece que minha presença é desnecessária —comentou Betsabé.
Benedict piscou. Como tinha suposto que ia insistir em acompanhá-los, preparou-se para a
inevitável batalha.
Entretanto, sua habitual determinação por fazer justo o contrário do que ele queria que fzesse
tinha desaparecido. Estava pálida e abatida. As emoções do dia deviam estar lhe trazendo
conseqüências, pensou. Não só não tinha descansado o sufciente, mas sim tinha tido que agüentar o
furioso ataque de lorde Mandeville, além da frieza e a desconfança do resto de seus familiares.
Tinha agüentado o puxão, pensou Benedict. Tinha mantido a cabeça bem alta. Havia
demonstrado uma férrea compostura. Comportou-se com dignidade, como uma dama dos pés à
cabeça.
—O senhor DeLucey e eu nos arrumaremos sem você —disse Benedict—. E durante nossa
ausência, querida irmã, espero que descanse tudo o que possa. Esperam-nos uns dias exaustivos.

Dado que Peter DeLucey tinha conseguido habitações separadas para os supostos irmãos, essa foi
a última vez que Betsabé viu Rathbourne até a manhã seguinte, quando o encontrou no salão privado
do andar de baixo onde lhes tinham servido o café da manhã.
Ele fcou em pé assim que a viu entrar e sua expressão relaxou.
—Tem muitíssimo melhor aspecto que ontem —disse—. Temia que o desenfreio, os nobres
sacrifícios e os enfrentamentos com os leões em sua própria guarida acabassem pôr adoecê-la.
—É o homem mais ingrato que conheci —replicou—. Tentava o salvar de você mesmo.
Rathbourne se pôs-se a rir e se aproximou dela.
—Um detalhe enternecedor — disse. Abraçou-a, mas não a colou a seu corpo. Limitou-se a olhar
seu rosto com uma sorriso
—Eu não sou terna — corrigiu.
Beijou-lhe a testa.
—Claro que é. E perversa também. Uma combinação embriagadora.
Os passos que se escutaram no corredor fzeram que a soltasse.
Alguém bateu na porta.
—Sim, adiante — disse Rathbourne.
Thomas entrou no salão.
—Lorde Northwick está aqui, senhor.
—Sim, como não, o esperávamos. Não faça Sua Excelência esperar, Thomas. Sabe que essas não
são maneiras.
—Não queria interromper nada — murmurou o lacaio ao sair.
—Thomas também acredita que sou um ingrato — disse Rathbourne.
—Retiro tudo o que disse sobre ele na sexta-feira pela tarde — replicou Betsabé—. Thomas é um
modelo de virtudes. E um santo.
—Sim que é o pobre desventurado. Esperou-me todo o dia em trajes menores. E isso foi tua
culpa, que saiba, mas eu... Há, lorde Northwick! Bom dia, milorde.
Sua Excelência se atrasou uns instantes no vão da porta. Depois tirou o chapéu, deixando
descoberto um cabelo quase tão negro como o de Betsabé, mas frisado de cinza nas têmporas. Ia de
ponta em branco e vestido à última. Fechou a porta atrás dele.
—bom dia, lorde Rathbourne —disse—. Seria tão amável de me dizer exatamente a que vem esta
farsa, milorde?

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Capítulo 15

O mau gênio, conforme descobriu Betsabé, não era exclusivo de seu ramo da família. Acabava de
ser testemunha de que os Atrozes DeLucey não eram os únicos que sabiam fazer entradas
melodramáticas.
No dia anterior estava muito agitada. Estava convencida de que não iam acolhe-la com os braços
abertos e estava muito preocupada preparando-se para o rechaço e a frustração para estudar com
atenção sua audiência. Em qualquer caso, foi lorde Mandeville quem interpretou o papel protagonista
depois de entrar como um tornado no cenário qual invasor visigodo.
Entretanto, a presença de lorde Northwick foi muito patente em todo momento. Embora mal
dissesse nada e parecia aborrecido, foi muito consciente do intenso escrutínio ao que estava sendo
submetida. Sem lhe haver perguntado nada, conseguiu incomodá-la muito mais que a aberta
hostilidade de seu pai.
Saltava à vista que o visconde não era um idiota.
Betsabé se sentou na cadeira mais próxima com o coração acelerado. Sabia que descobririam
Rathbourne cedo ou tarde, mas sabê-lo não era o mesmo que presenciar o momento em questão.
Embora ele não parecia perturbado o mínimo.
—Ah! Então não engoliu o conto de seu «louco irmão Derek»...
—Sei que Betsabé Wingate não tem irmãos —afrmou lorde Northwick—. Sei que lorde
Rathbourne tem vários. Entre eles, um chamado Rupert, que conheci faz uns anos quando ele e um de
meus primos encetaram uma briga com uns tipos durante um combate de boxe. O senhor Carsington
jogou um de seus competidores em uma sarjeta. Assim reconheci seu estilo, além disso denuncia a
semelhança física. Agora, se você fosse tão amável de me explicar tudo isto...
—Salvo o detalhe de Derek, o louco, tudo o que disse ontem a senhora Wingate é certo —disse
Rathbourne—. Viemos em busca de meu sobrinho e de Oliva Wingate. Mas sente-se, por favor.
Suponho que não lhe incomodará tomar o café da manhã com sua prima, não é?
Um breve e ensurdecedor silêncio seguiu à pergunta. Era uma espécie de prova, talvez até
mesmo um desafo, concluiu Betsabé.
Algo típico dos homens, embora não terminasse de compreender a linguagem não verbal que
utilizavam.
Foi lorde Northwick quem rompeu o silêncio.
—Absolutamente, senhor, sempre e quando todo mundo tenha presente que confarei em mi...
prima... o dia que possa jogar ao chão uma das pedras de Stonehenge.
O rosto do Rathbourne adquiriu uma expressão infexível.
Fosse ou não uma forma de comunicação masculina, Betsabé decidiu que era hora de intervir.
—Parece-me justo —disse—. Lorde Northwick não está obrigado a simpatizar comigo nem a
confar em mim. Quão único importa agora mesmo é encontrar as crianças.
—Por isso estou aqui —afrmou lorde Northwick—. Vim porque a senhora Wingate disse que o
herdeiro de Atherton desapareceu. Sabia que o primogênito de lorde Hargate estava casado com uma
das irmãs do marquês. Assim quando você apareceu, senhor, suspeitei que era o flho do conde.
Portanto, disse-me que a história do menino perdido tinha que ser certa. Entretanto, ainda fcam
muitas perguntas no ar. Não entendo por que não se apresentou com seu verdadeiro nome. Não
entendo por que ia vestido de semelhante guisa. Não entendo seu comportamento. Nenhuma dessas
circunstâncias se ajusta ao que ouvi de lorde Rathbourne.
O lorde guardou silêncio e se limitou a olhar seu interlocutor com expressão inescrutável.
Não ia dar explicações de seus atos a ninguém, nem sequer a um homem de sua mesma fla
social.
Lorde Northwick deu de ombros.
—De qualquer forma, minha principal preocupação era, e segue sendo, o flho de Atherton. Não
me surpreende absolutamente que a jovenzinha em questão o tenha levado pelo mau caminho. Meus
queridos parentes levaram pelo mau caminho a mais de um em uma ou outra ocasião.
«Incluindo você», podia ter acrescentado, porque isso era realmente o que expressava sua cara
enquanto observava Rathbourne.
A deste, em troca, adotou uma expressão indolente.
—Acredito que o importante aqui é averiguar o caminho exato pelo qual o está levando e
encontrar o modo de interceptá-lo o mais rápido possível. Seu flho me disse que estava disposto a nos
ajudar nisso. Ou entendi mau?
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O olhar de lorde Northwick se desviou de Betsabé até Rathbourne. Esticou a mandíbula e disse:
—Acredito saber quais são minhas obrigações, senhor. Como é natural, emprestarei a ajuda
necessária.

Londres

A condessa viúva de Hargate tinha por costume deitar-se muito tarde e levantar-se muito cedo.
Dessa maneira e segundo a opinião de seus netos, conseguia inteirar-se de tudo o que teria que inteirar-
se sobre outros antes que ninguém. O volume de sua correspondência ultrapassava com acréscimo a do
rei Jorge IV, a do primeiro-ministro e a do governo... somadas todas elas. A anciã passava grande parte
do dia na cama, lendo e respondendo cartas e, mesmo assim, ainda restava tempo para fofocar com
suas amigas (às que seus netos apelidavam «as Arpías»), jogar whist e aterrorizar sua família.
A primeira hora da tarde da segunda-feira já tinha chegado à parte de sua agenda em que tocava
aterrorizar à família, de modo que mandou chamar seu primogênito.
Lorde Hargate a encontrou em seu gabinete privado, entronizada sobre um monte de almofadões
e vestida como de costume, com o estilo recarregado que se usava durante sua juventude. Um estilo
que implicava tal profusão de seda, cetim e renda para forrar a catedral do Saint Paul por dentro e por
fora... com duas capas.
Já a tinha saudado e beijado, e estava perguntando por sua saúde quando ela agitou uma carta
frente a seu rosto e exclamou:
—Deixa de frescuras! Que complicações tem feito esta vez, Hargate? Acabo de me inteirar de que
meu neto fugiu com uma rameira morena. Encetou-se em uma confusão no caminho de Bath e se pôs
em evidência!
—Seu confdente está equivocado —replicou lorde Hargate—. Rupert está a salvo em Londres
com sua esposa. Estão muito ocupados com os preparativos para sua volta ao Egito, mãe. Sabe tão bem
como eu que só fugiria com Dafne. Está completamente...
—Ele não! —interrompeu-o—. Ned, como pode ser tão obtuso? Por que ia me incomodar em
chamá-lo se fosse Rupert quem tivesse feito algo tão ridículo? Em todo caso, o teria chamado se tivesse
feito algo sensato por uma remota casualidade. Até onde sei, só se comportou com sensatez uma vez na
vida, quando se casou com essa rica e sisuda ruiva. Posto que esse milagre teve lugar faz uns meses,
não espero ver nenhum outro no que resta de vida.
—Nesse caso, não tenho a menor duvida de que seu confdente deve confundir um de meus
flhos com algum de seus primos —aventurou lorde Hargate—. Geoffrey foi ao Sussex para visitar sua
família política. Alistair está em Derbyshire, à espera do nascimento de meu neto. Darius está com ele,
prestando seu apoio em tão horrível transe. É impossível que qualquer deles estivesse perto do
caminho de Bath recentemente.
—Deixaste-te um atrás — comentou sua mãe.
—Não pode estar falando de Benedict... —disse.
A anciã lhe estendeu a carta.

Betsabé observou a seu redor com a alma nos pés.


Throgmorton era uma propriedade imensa. A casa estava rodeada por extensos jardins, tão
formais como agrestes, que davam passo a quilômetros de bosques e terras de trabalho. Assim que as
crianças penetrassem na propriedade, coisa que para Olivia seria muito fácil, poderiam passar
inadvertidos dias, inclusive semanas.
A propriedade contava com amplas áreas forestadas. Pavilhões, ruínas, mirantes, cavernas
artifciais e outros esconderijos salpicavam a paisagem. Havia uma cabana rústica que a família
utilizava no verão para celebrar lanches ao ar livre oculto em metade de um pinheiral. A margem do
lago se elevava uma cabana de pesca. Além disso, a paisagem se desenhou com objetivo ao desfrute da
família e também para dar nutridas festas. Embora lorde Mandeville e sua família passavam pouco
tempo em Londres, não se podia dizer que levassem uma vida social tranqüila. Além disso, a mansão
estava aberta aos visitantes as terças-feiras e as quintas-feiras. Era muito fácil entrar e muito fácil
ocultar-se nos arredores.
O mausoléu não formava parte do percurso habitual, e só era visível de uns pontos muito
concretos da propriedade. Embora se localiza-se em uma colina situada a sudoeste, um espesso
arvoredo o ocultava à vista das classes baixas que visitavam a mansão e os jardins que se estendiam
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pela área oriental da propriedade.
Betsabé estava nesse momento a escassa distância do mausoléu, em uma colina um pouco mais
alta, acompanhada de Rathbourne e lorde Northwick. Atrás deles se elevava uma casa de convidados
que, segundo o visconde, datava da época isabelina.
Thomas estava no mausoléu, estudando o terreno, em um ponto concreto que o deixava bem à
vista. Tal como o visconde lhes tinha assegurado, essa era a melhor localização para contemplar o lugar
de descanso eterno de seus ancestrais. Da colina se desfrutava de um bonito panorama do mausoléu,
uma construção que imitava os templos romanos, com adornados frisos e capitéis incluídos. Alguns
degraus davam acesso a um pórtico de colunas coríntias. A ampla avenida que descia do mausoléu até
o pé da colina se bifurcava em alguns caminhos mais estreitos. Um deles levava a casa de convidados,
rodeava-a e descia a colina pelo outro lado. Outro circundava a colina sobre a que se elevava o
mausoléu e dali se ramifcava em uma série de atalhos agrestes que se internavam nos bosques e
desciam até o lago para rodeá-lo.
—A construção é relativamente recente — estava dizendo lorde Northwick—. Começou a
edifcar-se alguns anos antes que Edmund DeLucey trocasse de profssão. Meu avô William, o irmão de
Edmund, estava acostumado a passar muito tempo aqui, para dar uma olhada aos construtores, ou isso
dizia.
—Percebi que é um bom lugar para marcar encontros clandestinos — disse Rathbourne—.
Citava-se seu avô com uma amante ou como a ovelha negra da família?
Lorde Northwick arqueou as sobrancelhas.
—Rathbourne é algo assim como um detetive — explicou ela—. É um perito no campo da mente
criminal.
—Não pegue no pé de lorde Northwick — admoestou ele, tratando a de você devido à presencia
do outro homem—. Sabe muito bem que não queria implicar que houvesse comportamento
repreensivo algum.
—Parece ler meus pensamentos à perfeição —replicou Betsabé.
—Porque você é um livro aberto —aduziu.
Betsabé virou a cabeça ao sentir que se ruborizava.
—Limitei-me a fazer uma observação sobre a localização —seguiu a voz grave de Rathbourne a
suas costas—. Fica fora da vista da mansão e do resto dos edifícios. Estava pensando que William foi o
primogênito. Eu, que também sou o primogênito de minha família, fui educado do berço para proteger
em todo momento meus irmãos menores. Talvez se pareça um pouco ao instinto maternal da senhora
Wingate, que nem sempre lança mão da lógica. Limitei-me a supor que William atuou por seu sentido
de obrigação ou talvez por um afeto fraternal.
—Tinham-me comentado que é você muito inteligente —disse lorde Northwick—. Suas hipóteses
são corretas. Minha avó sempre acreditou que meu avô se encontrava aqui com Edmund. Segundo ela,
para lhe emprestar grandes somas de dinheiro que ele nunca devolveu.
—Isso me parece mais plausível que a versão preferida por minha família, segundo a qual
Edmund enterrava seus tesouros em Throgmorton —repôs Betsabé.
—Quase me dá pena deter os pirralhos —confessou Rathbourne com atitude pensativa—. Eu
adoraria ver como arrumam para escavar perto do mausoléu. Seria um bom exercício prático para
Peregrine, disso não tenho dúvida. —Já tinha comentado a lorde Northwick as aspirações de seu
sobrinho no Egito.
—Devo confessar que também me intriga —acrescentou lorde Northwick—. Se não houvesse
risco de que meu pai desse uma apoplexia, lhes permitiria escavar com prazer. Eu adoraria saber como
pensam fazê-lo. Embora nesse caso teríamos que apostar gente para que os vigiasse, não fossem acabar
com um capitel na cabeça ou no fundo de algum fosso. Ontem me dava conta de que há algumas
pedras soltas que precisam ser reparadas. E esse não é o único problema que sofre a propriedade.
—Os problemas são uma constante —reconheceu Rathbourne—. Por muito diligente que seja o
administrador, sempre se vê obrigado a postergar alguma necessidade para atender outra de maior
urgência. E o número de trabalhadores não é ilimitado. Além disso, terá que amoldar-se ao tempo que
faça. Não se pode abranger tudo.
—Vejo que tem experiência na administração de propriedades —disse lorde Northwick.
Rathbourne esboçou um sorriso fugaz.
—Não me permito ter as mãos ociosas. Meu pai me ensinou a administrar as granjas a uma idade
muito precoce.
—Nesse caso, entende você minhas preocupações —replicou lorde Northwick—. Sempre há
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acidentes, por mais precauções que se tomem. O problema é que os jovens não são famosos por sua
precaução. Enquanto se movam durante o dia e se atam aos caminhos, estarão bem. Mas quando
imagino esses dois perambulando por aqui em plena noite, me gela o sangue.
—Será que você nunca fugiu em plena noite quando era jovem, lorde Northwick? —perguntou
Rathbourne.
Betsabé virou a cabeça para olhá-lo. Não estava sorrindo, mas sua voz era risonha.
—Sim, e precisamente por isso estou tão preocupado —respondeu o aludido—. Disse aos
guardas da propriedade que não soltem os cães. Adverti os trabalhadores que extremem as precauções.
Mas se as crianças despertam alguém na metade da noite, esse alguém bem poderia reagir sem pensar.
As advertências tinham formado parte das «prementes obrigações» que lhe tinham impedido de
falar com eles até esse momento. Lorde Northwick tinha posto sobre aviso a todos seus trabalhadores,
aos ofciais da área e praticamente a toda a vizinhança. Inclusive tinha enviado mensagens aos
encarregados das fronteiras que davam a Bristol.
—Tomou você todas as precauções possíveis —reconheceu Rathbourne—. Não sabe quanto me
tranqüiliza.
—Embora espere que lorde Lisle demonstre bom senso e não tente aplainar uma propriedade
privada em plena noite, ordenarei que vigiem o mausoléu do ocaso —prosseguiu lorde Northwick—.
Assim poderão descansar um pouco. Acredito que na casa de convidados está tudo preparado. —
Assinalou a casa em questão com um gesto da cabeça—. Enviarei um criado com o jantar assim que nos
sentemos à mesa. Poderá se carregar seu lacaio de todas suas necessidades ou prefere que envie a
algum criado da mansão para que o ajude?
—Não precisa se incomodar com o jantar —respondeu Rathbourne—. Podemos jantar no Brasão
do Rei na volta.
—Mas não é necessário que retornem à estalagem — disse lorde Northwick—. ordenei que
preparem a casa de convidados para que se alojem nela. É absurdo que percam tempo indo e vindo.
Asseguro-lhes que aqui estarão muito mais cômodos. perdi a conta das vezes que minha esposa e eu
nos retiramos à casa quando o ambiente da mansão se torna muito cansativo.
A mansão tinha cento e cinqüenta quartos.
Saltava à vista que o que lorde Northwick procurava era um refúgio.
Algo do mais compreensível. Até as famílias mais unidas irritavam a algum de seus membros
dependendo da ocasião.
O que resultava surpreendente era que procurasse um refúgio em companhia de sua esposa.
Lorde Northwick, compreendeu de repente, tinha uma veia romântica. E sua esposa tinha um
papel primitivo nesse romantismo.
Amava-a, e a casa de convidados era seu ninho de amor.
Mesmo assim, ia permitir que sua parente mais odiada a poluísse com sua presença.
Nem sequer teve tempo de perguntar-se por que. Peter DeLucey apareceu do nada a todo galope.
—Vêm de caminho! —gritou—. Os viram esta manhã. Na fronteira de Walcot.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair enquanto Peter DeLucey lhes assegurava que
tanto Olivia como Peregrine pareciam gozar de perfeita saúde e melhor ânimo. Viajavam com um
vendedor que o encarregado da fronteira conhecia e que se chamava Gaffy Tipton.
—Já se correu a voz — assegurou Peter—. Com sorte, um de nossos homens encontrará Tipton e
esses jovens vagabundos antes que caia a noite.
Lorde Northwick e seu flho partiram pouco depois de que este lhes comunicasse as
prometedoras notícias.
O céu acabou completamente encoberto e a chuva começou a cair com mais força. Benedict jogou
o casaco nos ombros de Betsabé, fazendo ouvidos surdos a seus protestos.
O intenso aguaceiro os obrigou a refugiar-se no interior da casa de convidados. Dava o mesmo
que estivessem dentro ou fora, porque era impossível ver nada. O mausoléu tinha desaparecido atrás
da cortina de água.
—Até aqui chegou nossa vigilância —anunciou enquanto se afastava de uma janela—. Pergunto-
me onde se colocou Thomas.
—Espero que tenha encontrado um refúgio da chuva —disse Betsabé.
—Não tenho dúvida de que percebeu a mudança de tempo e agiu em conseqüência e com
sensatez —repôs ele—. Recorda que é um homem do campo.
Betsabé tirou o casaco molhado e pôs-se a tremer.
—Acenderei o fogo —comentou ele—. Rezemos para que a lareira queime bem.
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Para seu alívio, a lareira parecia estar em perfeitas condições, igual ao resto do edifício. Já tinha
esquecido a última vez que acendeu uma fogueira. Precisava contar com todas as vantagens possíveis
para obtê-lo.
Betsabé fcou junto à janela.
No suporte da lareira havia um acendedor que abriu e olhou com receio. Mais lhe valeria que a
isca estivesse seca...
—Estará quente rapidamente —assegurou.
—Não tenho frio —replicou ela.
—Está tremendo —assinalou enquanto se dispunha a colocar a lenha e a folhagem.
—Acredito que é porque está me passando a impressão.
—Do que? —quis saber.
—Pelo que tem feito lorde Northwick, porque jamais acreditei que fosse capaz de desafar seu
pai.
—Não é nenhum menino — recordou ele—. Um homem de profundos princípios fará o correto.
Afnal de contas, deve responder ante sua consciência. Tal como você me recordou em mais de uma
ocasião, já não estamos na Idade Média. Possivelmente lorde Mandeville deseje obediência cega, mas
seu flho não está obrigado a agradá-lo.
Deixou de falar para concentrar-se no trabalho de produzir uma faísca.
—Não necessita que a presença de sua perniciosa prima polua seu ninho de amor —seguiu ela—.
E você sabe tão bem como eu que este é seu ninho de amor. Suponho que percebeu a mudança que
sofreu sua voz ao falar de sua esposa.
Benedict soprou para a isca com suavidade e se viu recompensado com uma diminuta chama.
Aproximou-a da folhagem com cuidado para que prendesse.
—Sim, dei-me conta — assegurou sem afastar os olhos da ridícula chama.
Percebeu do modo em que a voz de lorde Northwick se suavizava ao referir-se a sua esposa e
havia sentido uma pontada de inveja—. Talvez minha infnita perfeição eclipse suas infnitas
imperfeições. Ou talvez lorde Northwick percebeu o desejo com que me olha e se compadeceu de você.
—Eu não te olho com desejo —protestou Betsabé.
Virou a cabeça para olhá-la com uma sobrancelha arqueada e a viu afastar-se da janela.
—Que imaginação mais prodigiosa tem —continuou ela com o queixo erguido—. Só o acho
ligeiramente passável.
A lenha rangeu e o fogo prendeu nos troncos com rapidez. Ao fm de uns instantes, umas alegres
chamas se elevaram no centro da lareira, crepitando e chispando sobre a lenha. A chuva ainda caía
sobre o telhado e repicava nos vidros.
—É uma mentirosa adorável — acusou—. É como viver com Sherezade. Nunca sei com que
assombrosa invenção vai me surpreender.
—Não é...
—Contemplem, bela princesa! —exclamou, fcando em pé enquanto assinalava sua obra com um
forido gesto—. acendi o fogo.
Betsabé cravou o olhar na lareira. Um instante depois, seus formosos lábios esboçaram um meio
sorriso.
—Um fogo muito elegante, lorde Rathbourne. Até tem lenha. Toda uma extravagância.
—Isto é um ninho de amor — recordou—. A lenha é mais romântica. Cheira melhor que o carvão.
E não é tão extravagante aqui como seria em outro lugar. Suponho que terá percebido da grande
extensão de bosques que possui Throgmorton.
—Precavi-me de tudo —disse ela—. Sabia que Throgmorton era uma propriedade bastante
grande, mas nunca imaginei que seria tão imensa. É como um pequeno reino.
—A maioria das grandes propriedades o são — assinalou Benedict.
—Jamais percorri nenhuma a cavalo ao lado de seu proprietário enquanto este me relata sua
história e os planos que alberga para o futuro — aduziu ela—. Isso muda a perspectiva de qualquer
um.
—Lorde Northwick ama este lugar.
—Como você? —apontou Betsabé—. Você também ama suas terras?
—Refere às de Derbyshire? —perguntou ele a sua vez—. Sim, não posso evitar, embora minha
vida pareça transcorrer quase por completo em Londres. A questão é que na cidade só se tem uma casa.
No campo, em troca, a casa parece formar parte de um mundo muito mais amplo, um que se estende
ao longo das gerações. Ali onde olho, vejo o trabalho de meus antepassados.
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—Isso é o que tenho descoberto hoje —reconheceu ela—. Até hoje, sempre considerei que as
grandes propriedades são meros monumentos. Não pensava nelas como seres vivos.
—Isso é porque não tiveste a oportunidade de formar parte de uma delas — explicou.
—Mas Edmund DeLucey sim teve. E Jack. —Meneou a cabeça—. Até hoje pensava que
compreendia Edmund porque acreditava compreender Jack. Ambos eram os flhos mais novos de
importantes famílias aristocráticas que viviam à sombra de um irmão herdeiro ao título. Ambos sabiam
que jamais se fariam com a coroa do reino familiar. E pensei que os dois eram homens inquietos, mas
muito indisciplinados para suportar a vida militar, onde talvez teriam podido realizar grandes
façanhas e converter-se em heróis. Em troca, ambos provocaram um escândalo de proporções épicas.
—E agora, entretanto, não entende por que sacrifcaram tudo isto —concluiu ele enquanto fazia
um gesto com a cabeça em direção à janela, depois da qual se estendiam centenas de hectares ocultos
do outro lado da cortina de água.
—Não sei o que pensar. —Betsabé se aproximou de uma poltrona localizada a frente do fogo e se
sentou com o rosto crispado—. Se tivesse crescido em um lugar semelhante, teria sido verdadeiramente
feliz em um chiqueiro situado nos baixos recursos da cidade? Teria sido feliz enquanto nos mudávamos
de um lugar estranho a outro, tentando escapar dos credores?
—Em minha opinião —respondeu—, eu diria que depende de quem compartilhasse esse
chiqueiro contigo e de quem corresse a seu lado.
Ela ergueu a cabeça e seus olhares se encontraram.
—Não deve me olhar assim — disse.
Benedict se aproximou da poltrona e fcou de cócoras frente a ela.
—Assim como? —perguntou-lhe. Agarrou-lhe uma mão e deu um apertão.
—Como se fosse capaz de viver assim... comigo —respondeu.
—Caramba! Não poderia — contradisse—. Jamais. Não saberia como. Sempre fui o herdeiro.
Prepararam-me para muitas coisas, mas não para a pobreza. Não me prepararam para fugir, e sim para
encarar tudo. Prepararam-me para me manter frme, porque levo o peso de muitas responsabilidades,
entende? —Olhou de novo para a janela—. Como a propriedade de Derbyshire. Nosso pequeno reino.
Centenas de vidas... e não estou contando com o gado.
Ela estudou seu rosto durante um bom momento. Benedict não lhe ocultou nada. Nem sequer
estava seguro de que pudesse lhe ocultar algo a essa altura, embora o propusesse. Mas sabia que
Betsabé não acreditaria o que viam seus olhos.
Por que ia fazê-lo quando a ele mesmo tinha trabalho em acreditar?
Betsabé desistiu do empenho com um sorriso afigido, escapou de sua mão e lhe acariciou
brandamente uma face
—Não, é muito inteligente e responsável para arruinar a vida e destroçar a sua família por culpa
de uma mulher. Essa é uma das coisas que eu gosto em você, Rathbourne. Embora se arriscasse muito
para meu gosto.
Benedict virou a cabeça para lhe beijar a palma da mão.
—Mmmm, não se detenha aí... —disse-lhe—. «Inteligente» e «responsável» são só duas
qualidades. Diga-me que mais coisas você gosta em mim.
A mão que o acariciava retornou a seu regaço.
—Nem pensar. A lista de suas perfeições é muito longa... e eu estou muito cansada.
Sua réplica o inquietou e observou seu rosto com atenção. Tinha estado tão pálida durante todo o
dia? Pouco antes estava tiritando. Estaria doente?
—Acreditei que ontem à noite tinha dormido bem —disse—. Como eu não estava ali para mantê-
la desperta...
—Sim que estava —o contradisse.
—Estava preocupada comigo —replicou ele—. Quantas vezes tenho que dizer...?
—Pois deixa de dizê-lo. —fcou em pé de repente e se afastou—. É perfeito, mas tem um defeito
muito aristocrático —disse—. Não estou segura do motivo, talvez se deva a que sempre tiveste outros
que lhe aplainam o caminho. Ou talvez se deva a esse muro que o separa das pessoas normal e comum.
A riqueza e os privilégios isolam até mesmo um flantropo como você, Rathbourne.
—Já sei — assegurou—. Acaso não acabo de dizê-lo? Não estou preparado para levar uma vida
normal e comum, e muito menos sem dinheiro e sem raízes.
—Mas podem se fazer mal! —gritou Betsabé - Isso é o que não entende, e não sei o que dizer para
que seja consciente da desolação que vai sentir e da humilhação que terá que suportar. Não quero que
tenha que experimentar algo assim. Não quero que lhe façam mal por minha cul-culpa.
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—Carinho... —aproximou-se dela e a abraçou.
—Vê? —perguntou-lhe Betsabé com voz trêmula—. É um idiota. Afnal me agarraste carinho.
—Talvez um pouquinho —replicou.
—Somos muito compatíveis —aduziu ela—. Esse é o problema, por absurdo que pareça.
—É certo —conveio Benedict—. Eu gosto de sua companhia quase tanto como seu rosto e sua
personalidade. Uma circunstância da mais chocante, não tenha dúvida.
Betsabé apoiou a cabeça em seu peito.
—Não sou bastante nobre para me afastar de você quando está perto —confessou—. Deveria
haver resistido faz semanas. Sabia. Sabia que ia acarretar-me problemas. Mas quem faz, toma. —Elevou
a cabeça e o olhou com esses olhos azuis brilhantes por lágrimas. - Isso foi o que me disse ontem à
noite. O que de verdade deve nos importar agora é que nos têm descoberto, e não podemos fazer nada
para remediar a situação. O escândalo é inevitável. Mas me ocorreu uma forma de paliar os danos.
—Sei o que vai dizer —replicou ele—. Não esbanje saliva. Não penso permiti-lo.
Betsabé se afastou dele.
—Assim que encontremos as crianças, partirei com Olivia.
—Não, não o fará —se opôs Benedict.
—Pensa com lógica, Rathbourne — sugeriu—. Quanto antes desapareça, antes me esquecerão.
—Mas eu não vou esquecê-la.
—Não está pensando com claridade — acusou—. Escute-me.
Benedict apertou a mandíbula.
—Muito bem. Estou escutando.
—Assim que relacionarem nossos nomes, quase todos pensarão que tivemos uma aventura —
disse—. Entretanto, se desaparecer do quadro, só será uma aventurazinha; em seu caso, apenas dar
uma saidinha; no meu, uma amostra mais da escassa moral e do atroz caráter dos DeLucey. Haverá um
revôo momentâneo, mas morrerá assim que se desate o seguinte escândalo.
Era muito lógica, a maldita, pensou Benedict para si mesmo.
—Jamais escutei nada tão absurdo —repôs.
—Não é absurdo —protestou ela—. É do mais razoável.
—Fizemos amor, sua boba! —exclamou—. Várias vezes. Será que esqueceu que essa atividade e a
chegada dos bebês estão intimamente relacionadas? Está-me dizendo que vai partir, sabe Deus aonde,
quando é possível que leve meu flho no ventre?
—Isso é muito improvável —assegurou ela—. Utiliza a cabeça. Você é o detetive. Estive
felizmente casada durante doze anos. Só tive uma flha. O que te diz esse fato?
—Nada, na realidade —respondeu—. Eu não sou Jack Wingate.
Betsabé soltou uma gargalhada e retornou junto à janela. A chuva seguia caindo com a mesma
intensidade.
—Não teve nada que ver com Jack —disse—. Fiquei grávida várias vezes mais, mas sofri abortos
em todas as ocasiões.
—Ah...
Deveria sentir-se aliviado, por ela ao menos. Os partos eram difíceis, até para as classes
privilegiadas. A princesa Carlota, a herdeira ao trono, tinha morrido quatro anos atrás durante o parto.
O problema era que jamais tinha sido dos que enganavam a si mesmos. Sabia que era muito
egoísta para sentir-se aliviado. Sabia que estava desiludido. E também preocupado, porque lhe estavam
acabando as desculpas razoáveis.
—Não pode ir —disse—. Não é bom para Olivia.
—Tenho tudo pensado —afrmou—. Pode ser bom para ela se a levar a um lugar adequado: um
dos estados alemães, onde os professores são muito rigorosos.
—Betsabé...
—Vejo um vulto escuro —disse—. Vem alguém.
Benedict se aproximou da janela. Avistou um solitário vulto escuro. Aproximou-se da porta e a
abriu antes de que o recém-chegado tivesse tempo de chamar.
Thomas estava na soleira e a água lhe caía em cascata do chapéu até o casaco. Levava um pacote
grande envolto em papel.
—Tal parece que a chuva tem a intenção de seguir durante o que fca de dia e durante toda a
noite, milorde — anunciou—. Por isso fui à mansão em busca de provisões. Mandarão o jantar mais
tarde, mas enquanto isso trouxe sanduíches, chá e uma garrafa com uma bebida um pouco mais forte
para fornecer calor, porque a temperatura desceu grandemente desde esta manhã.
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Embora o homem não ia vestido como os investigadores do Bow Street, Olivia tinha visto muitos
detenções de ladrões para não reconhecer o tipo, inclusive sob a chuva. Observou-o sair às escondidas
do estábulo às escuras, deter-se na porta e esperar enquanto Gaffy deixava seu cavalo ao cuidado do
cavalariço.
Eles o estavam esperando sob o balcão deslocado da estalagem, resguardados da chuva.
Entretanto, logo que apareceu o estranho, Olivia agarrou Peregrine pelo braço e o arrastou de volta à
escuridão.
—O que? —perguntou ele—. O que aconteceu?
Olivia assinalou o desconhecido. Estava falando com Gaffy. O vendedor franziu o cenho, tirou o
chapéu e coçou a cabeça.
Nesse instante, o tipo lhe mostrou uma moeda.
—Corre! —disse a Peregrine—. Não pergunte e corre!

Capítulo 16

Benedict observou os fngidos intentos do Betsabé de comer os sanduíches e mais tarde o jantar.
O intervalo passou sentada no batente da janela com a vista cravada no exterior embora a chuva não
descansou e era impossível ver nada.
Entretanto, quando a viu voltar para mesmo lugar depois do jantar, decidiu que já era sufciente.
—É noite — disse—. Não verá nada embora deixe de chover.
—Lanternas — replicou ela—. Se os homens de lorde Northwick encontram aos meninos,
deverão dizer-nos trarão lanternas.
—Se devem dizer-nos baterão na porta —assinalou Benedict—. Vêem se sentar junto ao fogo em
uma poltrona cômoda e tome o chá. Deixa de preocupar-se pelas crianças. Deixa de pensar nas
crianças. Lorde Northwick tem um bom número de pessoas muito competentes que estão rastreando a
campina e também Bristol.
—Uma batida de busca — disse ela sem apartar o olhar da escuridão—. Justo o que queríamos
evitar.
O comentário fez que Benedict voltasse a inquietar-se.
—O que a preocupa? —perguntou—. Onde está a mulher beligerante que se negou a me deixar
partir sozinho em busca das crianças? Por favor, não me diga que o desagradável encontro de ontem
pela manhã com seus familiares dobrou seu espírito. Nego-me a acreditar que seja tão fácil te vencer.
Virou-se para ele e, para seu alívio, viu que o fulminava com o olhar.
—É claro que não —declarou—. Só se mostraram distantes e desconfados, justo o que esperava.
Por favor, Rathbourne! Como se isso pudesse me deprimir... —levantou-se—. Tal parece que me
confunde com uma dessas delicadas criaturas que compõem seu círculo social.
—Nem todas são delicadas — assegurou—. Deveria conhecer minha avó.
Betsabé se sentou em uma das amacias poltronas que Thomas tinha colocado diante da lareira.
—Conheci a avó de Jack e isso me bastou, obrigado —disse—. Depois de meus encontros com
sua família, um recebimento meramente antipático não é nada do outro mundo.
Viu-a servir o chá.
Benedict agarrou a xícara que lhe oferecia e se sentou na poltrona livre.
—Deveria haver imaginado —comentou—. Como não puderam fazer que Wingate mudasse de
opinião, provaram contigo.
Não lhe tinha ocorrido. O encontro com seus distantes parentes devia ter despertado velhas
lembranças absolutamente agradáveis. Não era de estranhar que estivesse abatida.
—Eu tinha dezesseis anos — explicou ela enquanto observava sua xícara como se nela
repousassem todas suas lembranças—. Cada um deles usou uma tática distinta. A avó me disse que
jamais me aceitariam na alta sociedade e que isso faria que Jack chegasse a arrepender-se de sua
decisão. Segundo ela, podia me considerar afortunada se me abandonasse. Em caso contrário, fcaria
comigo e me faria participar de sua miséria e sua amargura até que a morte nos separasse. Sua mãe
chorou mares. Seu pai fez estragos em minha consciência. Depois houve uma réstia de tios, tias, tias
avós e advogados. Estive a ponto de deixar Jack várias vezes, só para que deixassem de me atormentar.
Mas ele dizia que a vida não valeria a pena sem mim, e eu só tinha dezesseis anos. Era uma menina,
Rathbourne, só era uma menina... E o amava com loucura.
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«O que se sentiria ao ser o objeto de um amor tão grande?», perguntou-se Benedict.
Que classe de homem desejaria esse amor sabendo de que por sua causa ela teria que suportar as
mesmas penas e a mesma miséria que tinha tido que suportar quando era uma menina indefesa?
—Dezesseis — repetiu ele, esforçando-se por manter um tom despreocupado—. Parece-me que
passaram séculos desde que os deixei atrás. Naquele tempo eu era uma pessoa totalmente diferente.
—Estava apaixonado? —quis saber ela.
—É claro que estava. Quem não está apaixonado nessa idade? Não era a idade de Romeo?
Isso a fez sorrir.
—Me conte coisas sobre ela —pediu.
Não tinha pensado nos amores de sua juventude fazia muito tempo. Não se tinha permitido fazê-
lo. Tinha chegado à conclusão de que era uma insensatez comparar a vivacidade e o idealismo
daqueles dias com a aborrecida decepção que parecia impregnar sua idade adulta. E isso podia levar
qualquer um à melancolia. Ou inclusive ao desejo irracional de querer recuperar algo que já tinha
desaparecido.
Mesmo assim, a lembrança daquela época não se diluiu de tudo. Só estava esperando que a
chamasse. E o fez só por ela, como já tinha feito tantas outras coisas.
Falou-lhe da preciosa irmã de um companheiro de turma que lhe tinha roubado o coração aos
dezesseis para romper-lhe em mil pedaços, levando consigo seu desejo de viver... até um mês mais
tarde, quando conheceu outra moça muito bonita.
Descobriu que as idéias lhe esclareciam enquanto relatava essas histórias.
O amor, naqueles tempos longínquos, tinha sido algo grandioso, aterrador e fascinante. E
também muito doloroso. Dado que não se permitiu pensar em suas experiências adolescentes,
esqueceu-se da dor. As lembranças seguiam intactas, mas os sentimentos eram vagos, distantes.
Seus amores juvenis lhe pareciam muito sonhos sem substância, embora em seu momento foram
muito reais.
Tudo se atenuava, pensou.
O amor da juventude. Os sonhos infantis.
A pena também se atenuava, igual à culpa que estava acostumado a acompanhá-la.
Não tinha amado Ada. Quando se casou com ela, estava convencido de que o amor romântico só
existia na poesia e no teatro, mas não na vida real. Entretanto, nesse preciso instante se perguntou se a
causa para que tivesse deixado de acreditar no amor durante sua etapa de adulto era o não ter
encontrado à pessoa que despertasse nele esses dilaceradores sentimentos.
Apesar de tudo e embora de forma defciente, preocupou-se por sua esposa e sua morte foi um
golpe demolidor que o deixou à deriva durante muito tempo.
Quando começou a analisar a relação que tinham tido se zangou muitíssimo, primeiro com ela e
depois consigo mesmo. Não obstante, no intervalo de dois anos incluso a abrasadora culpa tinha
minguado.
O que sentia por Betsabé Wingate também se atenuaria, disse-se. O tempo que estava passando
com ela era um sonho, um parêntese em sua vida. Uns dias incríveis e emocionantes que saíam da
rotina. Uma aberração. «Uma aventurazinha», tinha-o qualifcado ela. Um amor passageiro. Uma
saidinha
Devia vê-lo dessa maneira, pelo bem dela.
E por isso fngiu que as histórias lhe faziam graça enquanto lhe contava seus devaneios juvenis.
Depois continuou entretendo-a com as catástrofes amorosas de Alistair, muito mais numerosas e
divertidas que as suas, e com as loucas escapadas de Rupert. Em contraste estava o sóbrio Geoffrey
que, a diferença de outros, tomou sua decisão ainda sendo um menino e a manteve sempre. Assim que
se casou com sua prima, coisa que não surpreendeu a ninguém.
Estava especulando em voz alta sobre o comportamento mais recente de Darius e sobre seu
futuro quando um lenho crepitou, provocando uma inundação de faíscas e sobressaltando-o até tirá-lo
de sua concentração. Perguntou-se quanto tempo levara falando.
—É uma ouvinte maravilhosa — disse, e guardou silêncio ao olhá-la. Tinha apoiado um cotovelo
no braço da poltrona e a face, na mão. Tinha os olhos fechados. Sua respiração era tranqüila.
Esboçou um sorriso zombador. Sua intenção tinha sido a de ajudá-la a dormir... Mas não dessa
maneira.
Levantou-se e se aproximou dela. Pegou-a nos braços com muito cuidado. Levou-a para cama e a
deixou sobre o colchão. Ato seguido, tirou-lhe os sapatos e a cobriu com a colcha. Betsabé apenas se
moveu.
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«A pobre está exausta», pensou. Exausta de observar, esperar e preocupar-se, por tudo e por
todos; incluído ele... Sobre tudo por ele.
Inclinou-se e a beijou na testa.
—Não se preocupe por mim, carinho — murmurou—. Arrumarei isso. Sempre o tenho feito.

Talvez fora o silêncio o que despertou, a ausência do constante repico da chuva. Ou talvez fosse a
luz. Embora esse brilho prateado não fosse do sol. O céu se limpou e descobriu-se banhada pela luz de
lua.
Estendeu a mão, mas antes de fazer já sabia que ele não estava ali. Faltava seu calor. Pôs-se a
tremer, mas não de frio. Não havia se sentido tão só desde os primeiros meses que seguiram à morte de
Jack.
—Maldito seja, Jack —murmurou—. Espero que não esteja rindo. Porque seguro que parecerá
uma brincadeira que tropece duas vezes com a mesma pedra.
Escutou um ruído no quarto contíguo. Sentou-se na cama.
Passos furtivos.
—Quem anda aí? —perguntou.
—Um bando de desertores — respondeu uma voz grave muito conhecida—. Ladrões e
assassinos. Fantasmas e duendes. —A alta silhueta do Rathbourne se recortou contra o vão da porta—.
Ou talvez só seja eu, arrasando tudo como um elefante em uma louçaria, embora acreditava que me
estava movendo sem fazer ruído.
—Está andando dormindo? —quis saber.
—Estava andando... acordado —concluiu.
—Disse-me que não me preocupasse — recordou—. Estava fazendo-o você, Rathbourne?
—Não estava passeando de um lado para outro, se referir a isso —respondeu—. Jamais o faço. Os
animais enjaulados passeiam de um lado para outro. Os cavalheiros se sentam ou fcam de pé em
silêncio.
—Não podia dormir.
—Estava tentando riscar um plano para enfrentar Peregrine... bom, a seus pais —explicou ele.
Observou-o enquanto cruzava os braços diante do peito e se apoiava na ombreira da porta. Era
uma pose tão parecida com a que adotou no Salão Egípcio quando se conheceram que fcou sem fôlego,
tal como aconteceu naquela primeira ocasião.
—Me tinha esquecido —disse—. A história da flha do vendedor já não serve, é claro.
—Estou considerando a idéia de fazer uma cena —confessou ele—. Mudar as conseqüências.
Antes que possam jogar mão de seu ridículo, começarei a passear de um lado para outro, agitando os
punhos no ar, e depois a arrancar o cabelo.
—Tem carinho ao jovem.
—Bom, sim, é claro. Por que se não ia agüentá-lo?
«Deveria ter flhos — pensou Betsabé—. Seria um bom pai.»
Ela não poderia lhe dar flhos. Do que ia lhe servir uma amante entrada em anos com uma matriz
defeituosa? O que precisava era uma esposa jovem que enchesse de crianças o aposento infantil.
—Se quiser, ajudarei a planejar essa cena amanhã — propôs—, enquanto esperamos nossos
fugitivos.
—Agora que o menciona, já é amanhã — replicou—. A última vez que olhei o relógio era uma, e
isso já faz um bom momento.
—Então já deveria estar na cama —replicou.
—Ah, ah. Isso é o que a despertou? O desesperado desejo por minha pessoa?
—Eu não chegaria ao extremo de chamá-lo «desesperado desejo» —respondeu—. Mas bem foi a
vaga sensação de que algo não andava bem...
—Vamos, que o fogo se apagou e a cama está fria.
—Pois sim —reconheceu—. Isso deve ser. Enfm... você é grande e desprende muito calor, assim
que isso solucionará o problema.
Benedict se pôs a rir.
Ah, como ia sentir falta dessa risada!
—Rathbourne —disse—, não temos muito tempo e o está desperdiçando.
Entrou no quarto, tirando a roupa enquanto isso. Rapidamente estava nu e seu corpo viril,
musculoso e grande fcou banhado pela luz da lua.
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Perfeito
Em um abrir e fechar de olhos tinha afastado a colcha e estava despindo-a com a mesma
efciência.
Betsabé acreditou que seria algo rápido e desesperado, um último arrebatamento de loucura.
Mas quando a despiu, deitou-se a seu lado e a colocou de fanco para olhá-la no rosto. Elevou as
mãos até as colocar sobre sua cabeça e foi baixando pouco a pouco por seu rosto, seu pescoço e seus
seios. Passaram sobre seu umbigo e continuaram sua lenta descida até chegar a seu sexo, onde não se
atrasaram muito, porque exploraram suas pernas e voltaram a percorrer o mesmo caminho à inversa,
como se estivesse memorizando-a.
Com os olhos cheios de lágrimas, Betsabé elevou as mãos e lhe enterrou os dedos no cabelo antes
de riscar os ângulos de seu rosto. Do nariz aristocrático e o obstinado queixo seguiram o pescoço e os
ombros. De ali desceu por esse torso musculoso que já lhe resultava tão familiar, e depois continuou
por sua estreita cintura, seus quadris e seu membro. Sorriu ao recordar a noite em que se
embebedaram; e ele também devia recordá-lo, porque o viu sorrir em resposta. Prosseguiu sua
exploração por essas longas pernas até onde facilmente pôde e logo desandou o caminho com o
coração na garganta.
«Te amo, te amo, te amo», repetiu em silêncio.
Rathbourne a estreitou contra seu corpo e a beijou. Foi um beijo quente e doce que não demorou
para tornar-se ardente e doce, antes de converter-se em um feroz e apaixonado. Enredou as pernas com
as suas e se colou mais a ele, expulsando o futuro de sua cabeça. Deixou que suas mãos o explorassem
com prazer, como se pudesse lhe deixar algum tipo de rastro embora fosse impossível: o sabor, o
aroma, o tato e o som... tudo era efêmero. Esse momento. Isso era quão único importava: o momento.
Assim o aproveitou ao máximo; embriagou-se com seu sabor e o memorizou com beijos
intermináveis e tenras carícias até que em um momento dado o escutou gemer justo antes que a
pusesse de costas sobre o colchão.
Penetrou-a com uma certeira investida e o mundo se desvaneceu. Betsabé elevou os quadris e lhe
rodeou a cintura com as pernas e os ombros com os braços. agarrou-se a ele com todas suas forças
enquanto foi possível. Ele a agarrou pela nuca para beijá-la enquanto ela se movia ao compasso de suas
investidas, obstinada ainda a seu corpo, e a paixão se apoderou deles, bloqueando qualquer
pensamento e afastando a dor, o manhã (sobre tudo o manhã) até que tudo desapareceu.
Quão único importava era o delírio de estar juntos, de modo que deixaram que os transladasse ao
êxtase e mais à frente. E com o êxtase chegou o misericordioso sono e dormiram, um nos braços do
outro, banhados pelo prateado resplendor da lua.

Ninguém bateu na porta da casa de convidados até a manhã seguinte. E quem o fez não foi outro
que Peter DeLucey, acompanhado por um criado que levava uma cesta com comida.
Era muito cedo, de modo que Benedict e Betsabé tiveram que vestir-se com muita pressa. Nem
sequer tiveram tempo para falar.
Entretanto, tiveram muita sorte de que o moço não os pegasse na cama. Thomas, que tinha se
levantado ao amanhecer como de costume, tinha avistado o flho de lorde Northwick na distância e
tinha avisado a Benedict sem perda de tempo.
De qualquer forma, tinha muito claro que era inútil proteger a reputação de Betsabé.
Lorde Northwick lhes tinha cedido seu ninho de amor, não? Nem a ele nem a ninguém que os
visse juntos fcaria a menor duvida de que Betsabé Wingate era a amante de lorde Rathbourne.
Mesmo assim, o visconde tinha feito ornamento de uma grande generosidade e cavalheirismo.
Quando lorde Mandeville descobrisse, lorde Northwick pagaria caro seu honorável
comportamento.
Esse era o problema de fazer o correto. O sofrimento que ocasionava.
Regra: Um cavalheiro faz o correto e aceita as conseqüências.
«Cago nas malditas regras», pensou Benedict.
—Peço-lhe desculpas, milorde —disse Peter DeLucey.
Benedict o olhou de forma distraída um instante e se perguntou se teria perdido algo importante
da conversa.
—Não tem por que desculpar-se —replicou—, sou eu o que estava distraído.
—Lorde Rathbourne estava pensando —explicou Betsabé com a devida formalidade—. Essa
furiosa expressão não estava dirigida a você, senhor DeLucey. Só teve a má sorte de colocar-se frente
dele. Coma algo, Rathbourne. Ninguém é capaz de concentrar-se devidamente com o estômago vazio.
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Perfeito
Thomas, Sua Excelência necessita mais café.
Todo mundo obedeceu as ordens da dama.
Presidiu a mesinha como o faria uma anftriã. Os cavalheiros se sentaram um em frente ao outro.
—Enquanto sua mente divagava, o senhor DeLucey estava explicando que seus homens
perderam as crianças ontem à noite — disse Betsabé.
Tinha estado falando do vendedor, compreendeu Benedict. O moço tinha estado falando de Gaffy
Tipton, a quem os homens de seu pai encontraram a noite anterior em O Sino, uma das numerosas
estalagens de Bristol.
—O homem disse que sabia que as crianças eram de boa família —prosseguiu Peter DeLucey—.
Supôs que fugiram. Mas não sabia de quem estavam fugindo. Tão alheio estava à história, que duvidou
inclusive da honradez dos homens de meu pai.
—Em resumo, Tipton não colaborou —concluiu Benedict.
—Teve que enviar várias pessoas mais para que corroborassem a versão de nosso homem antes
que o vendedor falasse.
—Enquanto isso, minha querida Olivia é capaz de detectar um ofcial, um credor ou um agente
da lei a um quilômetro de distância —disse Betsabé—. Uma olhada no homem de Sua Excelência lhe
bastaria para sair correndo. É totalmente compreensível.
—Valha-me Deus! Você está tomando com muita tranqüilidade —respondeu o jovem DeLucey—.
Se estivesse em seu lugar, eu estaria frenético. É assim tive que me conter para não estrangular nosso
homem. As crianças estavam a seu alcance... e os deixou escapar.
—Não os deixou fazer nada — corrigiu Benedict—. Tal como recordei à senhora Wingate faz uns
dias, nem meu sobrinho nem sua flha são crianças crédulas. Os dois são muito inteligentes. E
ardilosos.
—Meu pai estava furioso —disse o moço—.Ocultar o assunto de vovô não é nada fácil. Quanto
mais demoremos para encontrá-los, mais possibilidades tem que comece a suspeitar algo. Assim que
isso aconteça, averiguará a verdade rapidamente. E então dará um sermão de marca maior.
—Surpreende-me que não cheire algo a esta altura —assinalou Betsabé—. Lorde Mandeville não
me pareceu um velho decrépito de jeito nenhum. Tem a mente ágil e não parecia débil.
—Não, está muito bem, mas ao longo dos anos foi delegando cada vez mais assuntos a meu pai
— explicou Peter DeLucey—. Ele prefere passar o tempo caçando e pescando com seus convidados.
—Isso quer dizer que lorde Northwick está mais que acostumado a organizar sua gente —disse
Benedict. Coisa que sabia muito bem que nem sempre acontecia. Havia muitíssimos casos nos quais o
cabeça da família se empenhava em dirigir as rédeas até seu último fôlego. O que deixava o herdeiro
com muito tempo livre mas nenhum objetivo na vida, salvo esperar a morte de seu pai. O rei, em sua
opinião, ilustrava com acréscimo as desvantagens de semelhante educação.
O método de lorde Hargate, em troca, era sepultar o primogênito sob uma montanha de
responsabilidades, apoiando-se no princípio de que as mãos ociosas as carregava o diabo.
—Meu pai tem nossos homens rastreando Bristol de cabo a rabo —seguiu Peter DeLucey.
Benedict assentiu com a cabeça.
—Uma decisão lógica. O problema é que os pirralhos nunca estão onde esperamos que estejam. A
que hora os viram pela última vez?
—Gaffy Tipton chegou ao Sino a primeira hora da noite —respondeu o moço—. Mandou as
crianças refugiar-se sob o balcão deslocado da estalagem enquanto ele se encarregava do cavalo.
Conforme disse, essa estava acostumada ser a ocupação de lorde Lisle.
—De Peregrine? —perguntou Benedict—. Meu sobrinho fazia as vezes de seu cavalariço?
—Um jovenzinho muito calado, obediente e capaz, em palavras de Tipton —respondeu DeLucey.
—Calado e obediente — repetiu Benedict—. Peregrine. Acaba de me deixar petrifcado. —Olhou
Betsabé—. Você acredita que se deve à infuência de Olivia?
—Está de brincadeira? —perguntou ela.
Sem prévio aviso, reviveu a cena como se acabasse de acontecer: esse arrebatador rosto estava
elevado para olhá-lo enquanto ele se afogava nas profundidades azuis de seus olhos e lhe dizia com
voz risonha que tinha tentado vender Olivia a uns ciganos.
Foi então quando aconteceu? Já estava perdido muito antes de dar-se conta? Começou seu
mundo a trocar a partir daquele dia enquanto a estupidez o levava a afrmar que seguia sendo o
mesmo? Não era o mesmo homem e jamais voltaria a sê-lo. E o mesmo aconteceria a Peregrine.
—Tipton disse que os dois tinham trabalhado —explicou o moço—. E parecia bastante surpreso.
Ontem à noite, entretanto, foi ele quem se encarregou do cavalo por causa da chuva. Não queria
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Perfeito
arriscar-se que as crianças pegassem um resfriado. Assim que lhes disse que o esperassem sob o balcão,
resguardados da chuva. Essa foi a última vez que os viu.
Benedict analisou o que tinha escutado.
—Não há muita distância do centro de Bristol até a grade de entrada de Throgmorton —disse—.
Algumas horas a pé. E não lhes resultaria difícil que alguém os levasse parte do caminho. Embora
caminhassem um trecho ou viajassem em uma carreta desconjuntada, a estas alturas já poderiam estar
na propriedade.
—Acredita que devemos concentrar nossos esforços aqui? —perguntou Peter DeLucey.
—Eu não gostaria de dizer a lorde Northwick como fazer as coisas —respondeu—. Claro que
estou convencido de que tampouco gostaria de perder o tempo e o esforço de seus trabalhadores...
Além disso, quanto antes se livre de nós, melhor para todos.
Peter DeLucey estava a ponto de protestar como ditava a cortesia, mas Benedict o interrompeu
sem olhares.
—Se for tão amável, diga a seu pai que quero falar com ele — disse—. Logo que o permitam suas
obrigações.

Terça-feira pela tarde.

—Não podemos entrar pela porta principal —disse Peregrine. Agarrou Olivia pelo braço e
puxou-a na direção contrária antes que qualquer pessoa apostada na entrada de Throgmorton pudesse
vê-los.
—É um dia de portas abertas —assinalou ela—. Recorda o que disse o senhor Swain. As terças-
feiras e as quintas-feiras pela tarde.
Tinham passado a noite na casa de penhores do senhor Swain porque era um dos poucos lugares
que Olivia se sentia segura.
Peregrine não estava muito seguro de acompanhá-la no sentimento. Entretanto, a loja estava
quente e seca; além disso, sentia-se muitíssimo menos exposto envolto na penumbra do
estabelecimento, através de cujas portas viu entrar numerosas pessoas ensopadas e esfarrapadas com
seus escassos bens materiais.
Depois de cinco dias de viagem, eles mesmos estavam tão sujos e desalinhados como qualquer
um dos vagabundos de Bristol. Se entravam em uma estalagem ou hospedaria respeitável, chamariam
muito a atenção e levantariam suspeitas. Claro que também podiam ter escolhido um estabelecimento
pouco respeitável, embora desse modo teriam deslocado mais riscos além disso do lógico de ver-se
capturados por algum ofcial.
Uns dias antes Peregrine tinha desejado que o apanhassem.
Já não.
Nesse momento, alegrava-se de ter encontrado refúgio uma noite mais, embora dito refúgio fosse
uma casa de penhores não muito limpa e tivessem que dormir no chão.
E tudo graças a Olivia, quem aparentemente sabia tudo sobre as casas de penhores, incluindo os
nomes e os endereços das mais importantes de Londres e de todas as de Dublin. O senhor Swain e ela o
tinham passado muitíssimo trocando anedotas e intrigas; inteirar-se de todo o necessário sobre
Throgmorton foi muito fácil.
Um fato muito conveniente, já que a propriedade tinha centenas de hectares e eles não
dispunham de mapa algum. O senhor Swain, entretanto, tinha visitado a propriedade em duas
ocasiões festivas e lhes fez um plano bastante esquemático. Embora o homem não tivesse estado nunca
no mausoléu, tinha-o visto de longe e tinha ouvido dizer que se assemelhava a um templo romano,
com duas estátuas fanqueando a escadaria de acesso. Peregrine já tinha uma vaga idéia da localização
do edifício.
—Não entendo por que não podemos entrar mesclados com a multidão — se queixou Olivia.
—Porque não haverá nenhuma multidão —explicou Peregrine—. Isto não é como uma ascensão
em um balão no Hyde Park nem como uma corrida em Newmarket. Não haverá nenhuma multidão de
pessoas nas portas. Não haverá ladrões de carteira, nem corretores de apostas, nem mendigos, nem
prostitutas mesclados entre as damas, os cavalheiros e as famílias. Talvez haja alguns visitantes de
aspecto apresentável, não como nós. E isto não é como Chatsworth, a propriedade dos duques de
Devonshire, onde deixam que as pessoas acampem a suas largas. Embora consigamos atravessar as
portas sem que o guarda nos detenha, nos vigiarão constantemente... e nos jogarão à rua assim que o
horário de visita chegue a seu fm. —Enquanto falava, levou-a por um caminho estreito e marcado
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Perfeito
pelos sulcos das rodas—. Mas a grade principal não é a única entrada —prosseguiu—. Afnal, ninguém
vai permitir que o carro do esterco passe pela entrada principal... por onde também passa o rei.
—Deus nos libere — disse Olivia—. Nesse caso alguém teria que tampar o nariz de Sua
Majestade. Ou o pode tampar ele sozinho?
Peregrine não fez caso da pergunta.
—Tem que haver várias portas mais, muito mais modestas —prosseguiu—. Mas a paisagem
impedirá que se vejam da mansão, para não danifcar as vistas.
Olivia o olhou.
—Não me tinha ocorrido. Claro que nunca vivi no campo.
—É evidente —replicou ele—. Se tivesse feito... Deixa-o, não importa. O caso é que agora eu sou o
perito. O que signifca que agora se toca morder a língua e fazer o que eu diga.
Não fcou mais remédio que elogiar seu empenho. Manteve-se calada e lhe permitiu escolher o
caminho, como se fosse uma pessoa lógica e racional em lugar de uma menina irracional que
acreditava ter a possibilidade de encontrar um tesouro pirata enterrado ao lado de seus ancestrais.
Peregrine sabia que tinham tantas possibilidades de encontrar um tesouro pirata em
Throgmorton como de topar com um unicórnio. Não via o modo de aproximar-se do mausoléu sem
chamar a atenção de ninguém.
Claro que tampouco tinha acreditado que poderia ir sozinho de Londres a Bristol com apenas um
punhado de moedas no bolso e seu engenho como companheiros de viagem.
Dava igual o que acontecesse, porque seguro que seria interessante.
Uma aventura.
Teriam que passar anos antes que pudesse pensar sequer em viver outra.

Com a alma nos pés, Betsabé observou como se encobria o céu. O vento começou a aumentar, de
modo que se abrigou com a capa.
Estava muito perto da casa de convidados, na parte mais alta do atalho que descia até o
mausoléu. Essa área da propriedade estava densamente povoada por árvores e arbustos altos, de modo
que o atalho desaparecia da vista de vez em quando e voltava a reaparecer como a avenida de acesso à
recarregada tumba onde descansavam as últimas gerações do DeLucey.
As nuvens se moviam com rapidez sobre a imitação do templo romano, tornando-se mais escuras
e ameaçadoras à medida que o vento as açoitava. Em sua imaginação as nuvens eram os espectros dos
Atrozes DeLucey, dançando com desenfreio sobre as tumbas dos bons DeLucey.
Só eram algumas nuvens, mas não pressagiavam nada bom. Assim estava o céu no dia anterior
justo antes que começasse a chover de forma torrencial e se vissem obrigados a refugiar-se no interior.
Aos pés da colina e para o leste da casa de convidados se espiava o enorme lago da propriedade
entre as árvores e os arbustos que bordejavam sua margem ocidental. Na margem oposta havia uma
série de pavilhões e grutas estrategicamente colocadas para que se vissem de certos pontos do atalho.
Na margem meridional, o lago se estreitava até converter-se em uma pitoresca cascata que caía no rio
de grande altura. As turbulentas águas brilhavam quando as nuvens deixavam passar algum raio de
sol. Embora a superfície do lago estava virtualmente tão cinza como o céu.
Rathbourne, lorde Northwick e Peter DeLucey estavam conversando perto dela. De vez em
quando levantavam a vista ao céu para contemplar as nuvens.
Embora seus aristocráticos perfs não revelavam emoção alguma, duvidava muito de que a
conversa fosse otimista.
Se chovesse com a mesma intensidade do dia anterior, as crianças procurariam refúgio, e ali havia
muitos esconderijos entre os quais escolher. Se chovesse com a mesma intensidade do dia anterior, a
busca seria muito mais difícil, quase impossível.
A tarde se desvanecia. Umas horas mais e cairia a noite. Teriam perdido outro dia. «Terei outra
noite com ele», pensou.
Desejava outra noite e outra mais. Com desespero. E ao mesmo tempo não se acreditava capaz de
suportar outro dia. O passar das horas já era bastante duro.
Preparou-se para a despedida... esse dia.
Estava preparada para ser forte... esse dia.
Entretanto, não estava segura de quanto tempo mais poderia agüentar. Já tinha os nervos
destroçados por um sem-fm de falsos alarmes. Em três ocasiões as partidas de busca de lorde
Northwick tinham encurralado os flhos de algum arrendatário por engano. Em uma ocasião tinham
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rodeado com muitíssimo sigilo o que resultou ser um porco que escapou de seu chiqueiro e que estava
deitando-se sob uma sebe perto de uma «ruína» construída no século anterior.
Pela extremidade do olho viu que Rathbourne se separava dos outros dois homens e punha-se a
andar para ela. Lorde Northwick e seu flho partiram em direção contrária.
Desviou a vista às nuvens que se agrupavam sobre o pavilhão.
—Lorde Northwick vai enviar alguém para que investigue os últimos rumores —escutou que
dizia a voz grave de Rathbourne. Estava ao seu lado—. Uma das mulheres do povoado acredita ter
visto as crianças em algum ponto da cerca oriental da propriedade, não muito longe da entrada
principal. Outra testemunha diz tê-los visto perto de uma porta secundária na parte norte. Eu disse que
fcaremos aqui. Não tem sentido sairmos correndo para comprovar todos os rumores. De qualquer
modo, já é hora do chá.
—Não tenho fome — assegurou Betsabé.
—Está pálida e gelada — disse ele—. Mal tomaste o café da manhã e não tocou na comida
durante o almoço. Se desmaiar quando os flhos pródigos por fm apareçam, as pessoas a tomarão por
uma dessas delicadas criaturas que com tanto empenho negaste ser. E isso me poria em uma situação
extremamente incômoda, considerando os esforços que tenho feito para convencer lorde Northwick de
que é uma mulher decidida e de princípios.
—Esbanjaste saliva —comentou—. Jamais acreditará que os de minha índole saibam sequer o que
são princípios.
—Pois se acreditou que está decidida a abandonar Throgmorton assim que recupere sua flha —
repôs Rathbourne—. Acessou pôr uma carruagem a sua disposição.
—Uma carruagem particular? —perguntou—. Será que perdeu o juízo? Bastava-me com a
importância do carro de postas.
—Nem pensar —replicou ele—. Você não gosta dos carros de postas. Pelos vai vens, a
aglomeração, os bêbados, os vômitos e os piolhos, ou já não se lembra?
—Pois então a carruagem do correio —retifcou—. Ou um privada de aluguel, se sentir-se na
obrigação de ser extravagante. Mas, por favor lhe peço isso, não me despache em uma das carruagens
de minha família.
—Eu não a estou despachando — corrigiu—. É você que se vai. Por seus nobres princípios. Que
me vejo obrigado a respeitar, maldita seja.
Betsabé se virou para olhar esse bonito rosto, embora lhe doesse fazê-lo. Tinha a mesma
expressão indolente que exibia no Salão Egípcio, mas seus olhos escuros a olhavam com ternura. Não,
olhavam-na com afeto e isso era muito pior para ela. Se mostrasse-se indiferente e apático, não sentiria
o intenso desejo de elevar a mão e lhe acariciar a face.
—Como acredita que me sinto? —perguntou-lhe—. Tenho um charmoso e rico aristocrata
comendo na palma de minha mão e devo deixá-lo partir.
—Que te convença você isso... —disse ele—. Te acho meramente passável.
—Imagine como me sinto —seguiu Betsabé—. Se olhar para trás vejo gerações de DeLucey
carentes de moral e consciência, nenhum dos quais teria duvidado nem um instante em te arruinar a
vida e te deixar sem um xelim. Por que não posso ser como eles? Pois não, tinha que ser eu a única com
escrúpulos em toda a família.
Isso o fez sorrir.
—Jamais a perdoarei por isso, Betsabé. Por isso e por outras muitas coisas. Acredito que
guardarei... rancor... até que morra.
—Enfm, ao menos não me esquecerá —se consolou.
—Te esquecer? É tão indelével como a tosse convulsa. É tão... Maldita seja! —Elevou o rosto e as
gotas de chuva o golpearam—. Vamos entrar — disse—. É inútil que...
—Milorde! —gritou alguém de não muito longe—. Senhor! Por aqui!
Ambos se viraram para o lugar de onde procedia a voz.
—É Thomas —disse Rathbourne, antes de pôr-se a correr nessa direção.
Betsabé correu atrás dele.

Capítulo 17

Enquanto os homens de lorde Northwick rastreavam o nordeste de Throgmorton, Peregrine e


Olivia penetravam pelo extremo oposto.
A propriedade estava rodeada por uma cerca de pedra bastante alta, tal como Peregrine esperava.
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Como Swain, o proprietário da casa de penhores, havia dito que o mausoléu se encontrava no
sudoeste, essa foi a direção que Peregrine indicou. Toparam com o córrego que o homem tinha
mencionado. Devido às copiosas chuvas, as águas que em circunstâncias normais discorreriam
placidamente se viam revoltas.
Peregrine estava seguro de que haveria uma ponte e uma porta por ali perto para facilitar o
trânsito das carretas e os carros. Seguiram avançando e encontraram a ponte a poucos metros, assim
como a esperada porta que, embora estava fechada, não tinha vigilância.
Saltá-la não foi difícil.
Uma vez que estiveram dentro da propriedade, avançaram sem perder de vista o caminho
destinado ao uso das carretas, que discorria paralelo a cerca. Durante umas centenas de metros a
espessura das árvores ocultou o resto da propriedade a seus olhos, mas depois de uns minutos de
caminhada o caminho começou a ascender e Peregrine localizou a lanterna da cúpula que coroava o
mausoléu.
—Aí está! —gritou Olivia.
Um bando de pássaros elevou o vôo das árvores, grasnando pelo susto.
—Silêncio! —advertiu-lhe Peregrine—. Já o vejo. Quer que todo mundo se inteire de que estamos
aqui?
Entretanto, Olivia já ia pela metade da colina, correndo por um atalho que não parecia utilizar-se
muito. Peregrine deu uma olhada ao céu antes de segui-la. Não gostava da pinta das nuvens. Claro que
a essas alturas não tinha sentido voltar para caminho de Bristol por culpa do mau tempo.
Decidiu que poderiam refugiar-se da chuva no pórtico do mausoléu. Em caso de que se vissem
obrigados a passar a noite na propriedade, coisa bastante provável, poderiam fazê-lo em um dos
numerosos edifícios que salpicavam a paisagem. Duvidava muito de que estivessem todos fechados
com chave; embora tampouco acreditava que um simples cadeado fosse capaz de deter Olivia...
Apressou-se a alcançá-la quando a viu escorregar.
—Olhe por onde pisa! —disse-lhe—. Não vê que o chão segue jorrando? Quer romper um
tornozelo?
Ela não pareceu lhe prestar a menor atenção. Tinha os olhos cravados no mausoléu.
—É maior do que pensava — disse—. E mais bonito, também. Tem uma cúpula e uma caixinha
quadrada em cima, e ainda por cima da caixinha há uma bola. E olhe todos esses suportes de vasos ou
como se chamam que há nas quinas do telhado.
A decoração não o tinha tomado por surpresa. Embora sim se surpreendeu do isolado do lugar
quando coroaram a colina. Os mausoléus que tinha visto até esse momento se construíram para que
proclamassem sua grandeza e dominavam os arredores. Embora o que tinha diante conservava o estilo
grandioso desse tipo de edifcações, tinha um ar muito íntimo e contava com apenas um pedaço de
prado a seu redor. Além disso, fcava oculto à vista pela espessa massa de árvores e matagais que o
rodeava.
—Esta não é a parte mais bonita —disse—. Obviamente estamos vendo a parte posterior. A
entrada estará sob o pórtico. —Rodeou o mausoléu e guiou Olivia até ali—. Como pode ver, a
decoração aqui é mais elaborada.
Havia uma larga escadaria de pedra rematada por importantes balaustradas sobre cujos extremos
se elevavam duas estátuas de mais de dois metros de altura. Do pé da escadaria partia uma avenida
que descia a colina e que parecia continuar para outra colina próxima. O resto das direções, olhasse
onde olhasse, estava bloqueado pelas árvores, embora supôs que atrás deles haveria quão mesmo em
qualquer outra propriedade campestre: campos ondulados. Mas não podia estar seguro porque a
espessura tampava o resto da paisagem; só se via a avenida.
—Apostaria qualquer coisa que Edmund DeLucey enterrou seu tesouro aos pés de uma dessas
estátuas —disse Olivia, devolvendo assim a atenção de Peregrine ao mausoléu—. Mas de qual?
—Possivelmente poderíamos adivinhá-lo se soubéssemos o que representam —respondeu—.
Deuses ou semideuses, possivelmente. Não fazem graça que sejam símbolos pagãos os protetores de
nossos formais enterros cristãos? Sei de um aristocrata que construiu um mausoléu com forma de
pirâmide.
Tal como era de esperar, a Olivia não interessavam o mínimo os costumes funerais da aristocracia
britânica.
—Suponho que teremos que escavar nos dois lugares — disse enquanto dava uma olhada a seu
redor—. Duvido muito que alguém se dê conta.
Embora lhe pesasse, Peregrine teve que lhe dar razão, ao menos nesse ponto. Se Edmund
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DeLucey tinha enterrado algo ali, não lhe teria preocupado muito a possibilidade de chamar a atenção.
A família de Peregrine possuía uma propriedade muito parecida com essa, onde os elementos
paisagísticos como os pavilhões e outras construções estavam engenhosamente escondidos e só se
acessava a eles mediante os estreitos atalhos que serpenteavam entre as árvores e o mato, a fm de que
o visitante topasse com eles de forma inesperada ou os visse da distância quando estivesse em um
ponto concreto da propriedade.
A isso teria que acrescentar o fato de que os alicerces do mausoléu se elevavam quase dois metros
por cima do terreno. Seria muito difícil que avistassem alguém escavando junto à base; para isso teriam
que estar no lugar adequado.
Claro que devia ter em conta que cem anos atrás as árvores que rodeavam o mausoléu não seriam
tão altos nem a mata tão espessa. Talvez naquele tempo a colina tivesse estado cortada.
De qualquer forma, a Olivia importaria bem pouco como estavam as coisas fazia cem anos,
estaria muito ocupada pensando onde conseguir uma picareta e uma pá.
Peregrine estava inclinando-se para estudar o terreno na base do mausoléu quando notou as
primeiras gotas de chuva e se endireitou.
—Será melhor que nos ponhamos... Que sonha?
Olivia virou a cabeça ao mesmo tempo que ele.
Um homem corria caminho abaixo pela colina mais próxima, lhes fazendo gestos com as mãos e
gritando. Estava a escassos cem metros.
Peregrine olhou Olivia. Devolveu-lhe o olhar com esses olhos azuis totalmente abertos.
—Não —disse—. Para!
Justo o que ele queria gritar. Não! Não estava preparado para que o encontrassem. Ainda não.
Não tinha acabado. Bastaram-lhe uns segundos para tomar uma decisão. O castigo seria horroroso.
Assim já poderia fazer algo para merecer-lhe justamente.
Agarrou Olivia pelo braço e a afastou da escadaria quase a rastros em direção ao espaço mais
próximo que espiou entre as árvores.
—Corre! —gritou—. Não pergunte e corre!
Thomas corria caminho abaixo. Benedict o seguiu bem a tempo para ver como Peregrine
agarrava Olivia e se lançava para as árvores que tinham à direita, justo para a cara da colina que dava
ao lago. A cara mais escarpada.
Não dava crédito ao que estava vendo.
—Parem! —rugiu—. Estão loucos?
Os meninos não fzeram conta.
Calculou com rapidez o ângulo adequado para interceptá-los e se lançou por um dos atalhos
mais estreitos. Com um pouco de sorte, os apanharia antes que se afastassem muito.
Escutou os chifres de caça.
O sinal que convocava aos homens dispersos por toda a propriedade.
Benedict não se deteve.
—Olivia! —gritou uma voz.
Era a de Betsabé, chamando a sua flha.
Nem sequer olhou atrás nem esbanjou fôlego para lhe ordenar que fcasse onde estava.
Seguiu correndo, afastando ramos e saltando sobre as raízes.
O chão estava escorregadio por causa das folhas caídas e das agulhas dos pinheiros. Enquanto
avançava, desejou que Betsabé não o seguisse, mas sabia que era em vão.
Por favor, rogou para si, que não caia e rompa o pescoço.
O atalho se estreitava à medida que descia pela saia da colina em direção ao lago. As árvores
deram passo ao mato, embora os matagais eram quase tão altos como aqueles e muito mais espessos.
—Peregrine! —gritou—. Olivia!
Não obteve resposta.
Malditos meninos! Quando lhes pusesse as mãos em cima...
—Olivia! —escutou a voz de Betsabé de algum ponto situado a suas costas.
Benedict seguiu correndo. A chuva caía com mais força e o ditoso atalho ziguezagueava sem
parar, mas seguia sendo muito mais seguro correr por ele que pela folhagem amontoada no íngreme
chão do bosque pelo qual fugiam os meninos.
«Puta que pariu, quando os agarrar vou dar uma boa sova!», exclamou para si mesmo.
Esse foi seu último pensamento coerente antes que tropeçasse com uma raiz e caísse de bruços ao
chão.
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Peregrine escutava os gritos a suas costas.


Também escutava os ofegos de Olivia, que corria atrás dele, lhe pisando os calcanhares.
Parte de si mesmo lhe gritava que parasse, mas não podia fazê-lo. Seguiu correndo apesar de que
estava encharcado e de que saiu do atalho. Era difícil avançar por essa área, porque havia muito menos
árvores, mas mais matagais. A roupa se travava nos ramos baixos e estas lhe golpeavam o rosto. Seguiu
correndo.
Então a viu: uma abertura, por fm.
Irrompeu entre os ramos... mas já era muito tarde. Acabava de ver o escarpado pendente e a água
que formava redemoinhos no fundo. Tentou agarrar-se a um ramo, mas perdeu pé e acabou rodando
pelo acidentado terreno.
—Olivia! —gritou—. Cuidado!
Seguiu deslizando-se pelo pendente enlameado e acabou caindo às agitadas águas.

Olivia, que corria a muito pouca distancia de Peregrine, escutou-o gritar quando já era muito
tarde. Também acabou rodando pendente abaixo com os braços estendidos. Entretanto, quando estava
a ponto de cair à água, uma de suas mãos se topou com algo duro e rugoso e se aferrou com inusitada
força com as duas mãos.
—Socorro! —chiou. A água que formava redemoinhos a seu redor e ameaçava arrastar estava
gelada. A chuva lhe açoitava a cabeça e as mãos, que lhe intumesciam por momentos. Viu que
Peregrine brigava na água enquanto a corrente o arrastava.
—Lisle!—gritou—. Peregrine!
Sua cabeça desapareceu sob a água.

Thomas chegou um momento depois que Benedict caísse. O lacaio o ajudou a fcar em pé.
—E a senhora Wingate? —perguntou quase sem fôlego ao mesmo tempo que tirava as folhas e o
barro do rosto—. Onde está?
—Enganchou o vestido em um ramo —respondeu Thomas—. Disse-lhe que fcasse ali para
assinalar o caminho a outros e pus-me a correr antes que pudesse discutir comigo.
Nesse instante escutaram o grito de Peregrine, seguido do de Olivia.
Ambos se precipitaram nessa direção. Benedict saiu da espessura ao atalho que corria pela
margem do lago.
Não havia nem rastro de Peregrine.
Ao fm de um momento viu como emergia a loira cabeça de seu sobrinho e o coração começou a
lhe pulsar de novo.
—Ajude-o! —gritou alguém situado a sua direita.
Virou-se nessa direção e viu a menina, que estava agarrada ao ramo de uma árvore caída.
O tronco podre fcou enganchado em algo. Por isso Olivia não tinha acabado na água com
Peregrine, que lutava contra a corrente.
—Está perdendo fôlego, senhor! —disse Thomas.
Em questão de uns cinqüenta metros, cairia pela cascata... e então se romperia o pescoço se não se
afogasse antes.
Benedict voltou a olhar Olivia. A corrente arrastaria a árvore a qualquer momento.
—Sei nadar, senhor —disse Thomas.
—Não, segue pelo caminho até a cascata — ordenou enquanto assinalava com a mão—. Tenta
impedir que caia pela borda. Irei assim que possa.
Em um abrir e fechar de olhos se deslizava pelo escorregadio pendente que dava à margem, e
corria em direção a Olivia.
Thomas pôs-se a correr para a cascata.
—A mim não! —chiou a menina—. Peregrine vai se afogar!
Benedict se meteu na água e seguiu avançando. Embora estivesse gelada e arrastava lama e
multidão de ramos, não havia tanta profundidade como temeu a princípio. A água apenas lhe chegava
à cintura.
Entretanto, a corrente era fortíssima e o obrigou a avançar mais devagar do que teria gostado.
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Perfeito
Teve a sensação de que demorava horas em percorrer a distância que o separava de Olivia.
—A mim não! —chiava ela—. A mim não! Já disse!
—Tranqüila — disse enquanto afastava seus rígidos dedos do ramo. Uma vez que se soltou,
aproximou-a dele, tomou-a nos braços e retornou com muita difculdade até a margem, onde a deixou
sentada sobre a terra molhada.
—Está ferida? —perguntou-lhe, tentando não ofegar.
—N-não —gaguejou ela. Tocavam-lhe castanholas os dentes—. Se-se o hei dava-dito. Ajude
Peregrine!
Estava molhada até os ossos, a água lhe escorregava pelo rosto e tremia como uma folha. E
também estava furiosa.
Era igual a sua mãe.
—Não se mova — disse—. Fique aqui.
—Sim, sim, mas corra por ele, por favor!
E Benedict o fez.

Quando alcançou seu lacaio, Peregrine já estava perigosamente perto da cascata. Não tocava o
fundo, de modo que estava tentando nadar, mas o cansaço o tinha afetado (ou talvez estivesse ferido
ou uma mescla de ambas as coisas), por isso a corrente seguia arrastando-o para a cascata, que o
esperava a pouco mais de dez metros.
Thomas já estava a ponto de lançar-se à água, mas ele se adiantou.
—Milorde! —protestou o lacaio.
—Temos que fazer uma corrente — disse.
Não foram necessárias mais explicações.
Thomas se meteu na água. Uma vez que o agarrou pela mão, Benedict se aproximou de seu
sobrinho. Cada passo que dava o afundava mais, até que a água chegou aos ombros. A corrente esteve
a ponto de lhe fazer perder pé, mas Thomas o agarrou.
—Peregrine! —gritou, estendendo o braço. O moço tentou agarrar-se e falhou, mas o tentou de
novo de pronto.
Nessa ocasião seus dedos se roçaram e Peregrine se agarrou com força a sua mão.
Justo então passou junto a eles um ramo que girou na superfície conforme se aproximava da
cascata e acabou transpondo as afadas rochas da borda.
Lutando para não perder o equilíbrio, Benedict afastou seu sobrinho da cascata. A água tentou
arrastá-los, mas Thomas não cedeu nem um ápice apesar de que lhe tremia o braço pelo esforço.
Embora lhe parecesse uma eternidade só demorou um par de minutos em levar Peregrine até a
água mais tranqüila da margem. Uma vez ali, fez gesto de tirá-lo, mas o moço escapou de sua mão e
saiu por seu próprio pé. Arrastou-se até o enlameado atalho e se deixou cair ao chão.
Benedict saiu da água e o seguiu.
—Será melhor que o leve — disse.
— Eu o faço, senhor —se ofereceu Thomas.
—Posso andar —resfolegou Peregrine—. Só necessito um minuto para recuperar o fôlego.
—Um minuto, nada mais —replicou Benedict—. Deixei à senhorita Wingate um pouco mais
acima, tremendo como uma folha. Esperemos que não pegue uma pneumonia letal.
Peregrine se levantou e começou a tiritar. Tocavam-lhe castanholas os dentes, mas apertou a
mandíbula e passou uma mão pelo rosto.
—Sinto muito, senhor —disse.
—E mais que vai senti-lo — assegurou ele—. Mas isso será mais tarde. Agora devemos atender
sua cúmplice.

Encontraram Olivia esperando-os no mesmo lugar onde a tinha deixado. Seguia tiritando.
Benedict fez ouvidos surdos a seus incoerentes protestos, ergueu-a nos braços e empreendeu a marcha.
Estava molhada até os ossos e coberta de pestilento mato em decomposição. Peregrine não estava em
melhores condições.
E sabia que seu próprio aspecto não era muito diferente. Incluindo o odor.
—Ao-alguém deveria levá-lo nos bra-braços —disse Olivia olhando por cima de seu ombro a
Peregrine, que avançava atrás deles com muita difculdade.
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—Não é preciso —resmungou ele com voz indignada.
—Eu-eu tamp-pouco —repôs a menina, presa de uns horríveis arrepios—. Quie-quero que me-
deixe no cha-chão — disse, olhando-o com os mesmos olhos azuis de sua mãe... cheios de lágrimas—.
Qui-quero ver minha ma-mãe —seguiu com voz trêmula.
—Nem te ocorra fazer o número lastimoso — aconselhou Peregrine—. Não esbanje energia
abrindo a represa de lágrimas. A meu tio não vai enrolar com semelhantes ardil. A partir de agora te
aviso que não é como outros.
Aparentemente, Peregrine estava equivocado porque a bruxinha tinha conseguido comovê-lo e o
teria dirigido como uma marionete se não fosse por sua intervenção.
—Não tenho a menor duvida de que quer ver sua mãe —replicou, fazendo um enorme esforço
por mostrar-se indiferente—. A pergunta é se ela quererá vê-la.
Quão último Betsabé queria fazer era esperar ali de braços cruzados.
Entretanto, Thomas acabava de partir quando voltou a fcar enganchada em um ramo, e teria
caído colina abaixo se não tivesse recuperado a tempo o equilíbrio. Rathbourne não necessitava mais
problemas nesse momento.
Assim que se dispôs a esperar pacientemente e quando viu que o primeiro grupo de homens se
aproximava com Peter DeLucey à cabeça, assinalou o lugar por onde Rathbourne e Thomas partiram.
Pouco depois que os homens desaparecessem atrás da espessa mata, chegou lorde Northwick
correndo do topo da colina.
—Por ali — disse, assinalando o caminho.
O visconde virou para seguir a direção que lhe tinha indicado, mas escorregou. cambaleou
enquanto tentava recuperar o equilíbrio, mas ao fnal acabou rodando pelo chão, agitando os braços e
as pernas enquanto quebrava ramos e avançava sobre as pedras até que um enorme rododentro o
deteve uns vinte metros mais abaixo.
Betsabé ergueu as saias e se apressou a ir em sua ajuda.
Lorde Northwick jazia de lado, imóvel.
Ajoelhou-se frente dele. Tinha perdido o chapéu e tinha uma marca avermelhada no rosto,
embora não parecia sangrar por nenhum lugar.
—Milorde —o chamou, lhe roçando com cuidado um ombro.
—Maldita seja! —exclamou o visconde enquanto abria os olhos. Fez gesto de levantar-se, mas a
dor lhe fez torcer o gesto.
—Pedirei ajuda —disse ela, fcando em pé.
—Não seja ridícula —balbuciou ele, que conseguiu sentar-se com muita difculdade—. Não tenho
quebrado nada — assegurou com o rosto mudado pela dor.
—Será melhor que descanse um momento — aconselhou—.Permita-me assegurar de que não
quebrou nada. Se fraturou uma costela, é necessário que o levem a mansão imediatamente. A chuva só
piorará a situação. Será melhor que chame...
— Arrumarei isso — protestou ele—. Além do orgulho, duvido muito que tenha algo ferido.
Devo ter feito o palhaço.
—Pois me deixe dizer que se dá fatal —replicou Betsabé—. Vi como caía e lhe asseguro que não
me fez nem um pingo de graça.
—No fundo a encantou — contradisse lorde Northwick—. Seu insensível parente mordendo o
pó...
—Eu não gosto dessas coisas — assegurou ela—. Não acredito que seja insensível e, além disso,
somos parentes longínquos. Como ia desfrutar de seu infortúnio quando foi tão amável comigo? Me
deixe que comprove se tem quebrado uma costela.
—Nem pensar.
Um grito interrompeu a discussão. Peter DeLucey chegou colina acima.
—Já são nossos! —exclamou entre fôlegos—. Os estão agasalhando com umas mantas. Lorde
Rathbourne me pediu que me adiantasse para tranqüilizá-la, senhora Wingate. O lago se estreita até
formar uma corrente nessa área e aparentemente os meninos acabaram de cabeça na água.
—Mãe de Deus! —exclamou lorde Northwick—. Espero que não tenham caído pela cascata.
—Não, pai, não chegaram tão longe. Lorde Rathbourne e seu lacaio os tiraram da água. Todos
estão encharcados e mortos de frio, mas ninguém resultou gravemente ferido, tão só alguns arranhões
e hematomas. —Nesse momento percebeu a imagem que tinha diante e guardou silêncio—. Pai, o que
aconteceu?
—Caí —respondeu Sua Excelência —. E uma perna nega a me obedecer. Faz o favor de me
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ajudar, anda. A senhora Wingate ameaça comprovar o estado de minhas costelas.
—As fraturas podem ser perigosas — advertiu Betsabé—. Assim morreu meu marido. Seja
razoável, deve me deixar...
—Peter, me ajude — disse o visconde—. Quanto a você, senhora Wingate, será melhor que
descarregue sua ansiedade em sua flha.
—O senhor DeLucey diz que não está ferida — replicou—. De qualquer forma, os meninos são
mais resistentes que os adultos. Seus ossos são mais fexíveis.
—Asseguro-lhe que os dois meninos estão ilesos — disse Peter DeLucey—. Mas também estão
encharcados.
—Maldita seja, Peter, me dê a mão! —resmungou lorde Northwick.
O flho obedeceu e o visconde fcou em pé, embora o esforço lhe resultou tão doloroso que não
pôde dissimulá-lo.
—Muito melhor —disse—. arrumarei isso sozinho.
Betsabé se rendeu. Os homens eram criaturas obstinadas.
—Muito bem, mas tenha muito cuidado ao caminhar —aconselhou—. Se notar uma dor aguda...
—Outra vez à caça e captura de costelas quebradas, senhora Wingate?
Betsabé se virou em direção a essa voz grave tão familiar.
Rathbourne surgiu da mata. A chuva lhe açoitava o cabelo, já que não levava chapéu, e lhe caía
pelo pescoço arrastando o barro que o cobria. Levava Olivia nos braços, protegida sob o casaco.
—Mamãe! —exclamou ela com sua voz mais lastimosa.
A maldita parecia arrependida pela primeira vez em sua vida.
Mas Betsabé decidiu não perdoá-la tão cedo.
—Olivia —replicou com brutalidade—, está suja. —Voltou a olhar ao Rathbourne, que esboçou
um sorriso cúmplice—. Lorde Northwick sofreu uma queda horrível — disse—. Mas não quer admitir
que está ferido.
—Sofri uma queda ridícula — corrigiu Sua Excelência —. Mas isso não importa. Levemos as
crianças para casa.
Embora caminhasse com menos elegância da habitual, não parecia estar gravemente ferido. Ou
isso pensou até que chegaram ao atalho que levava a casa de convidados. Em lugar de atirar por ele,
enfou o caminho que partia em direção oposta.
—Sabia! —gritou Betsabé—. Sofre uma comoção. Sabia que se machucou muito.
Lorde Northwick se virou para olhá-la.
—Nessa colina está a casa de convidados —seguiu ela—. Está a oeste, não ao leste.
—Disse que devemos levar as crianças «para casa» —particularizou o visconde—. Referia a
Throgmorton House. Está nesta direção e esta é a direção que você vai tomar, senhora Wingate.

Capítulo 18

Fazendo pouco caso dos protestos de Benedict e Betsabé, lorde Northwick enviou seu flho para
que preparasse o conde e o pusesse a par no referente à identidade de alguns de seus convidados.
Ato seguido e ainda coxeando, Sua Excelência fcou à frente do gelado e encharcado grupo e os
conduziu a ancestral mansão, onde lorde Mandeville e as damas os observaram com estoicismo
enquanto cruzavam o vestíbulo e deixavam a sua passagem algumas fleiras de rastros enlameados e
um cheiro pouco agradável.
Embora o conde teria posto Betsabé de patinhas na rua e a sua flha, nem lhe passaria pela cabeça
fazer o mesmo com seu sobrinho e ele, pensava Benedict. Sem importar sua desarrumada e pestilenta
aparência.
Lorde Mandeville sabia qual era seu dever e o levaria a cabo, embora o fzesse com os dentes
apertados.
Regra: Um cavalheiro sempre prefere o dever a todo o resto e deixa sua comodidade em último
lugar.
De acordo com essa regra, os visitantes descobriram que tinham esquentado água para que se
banhassem e tinham preparado vários quartos na ala de convidados. Os criados se esforçaram por
atendê-los. Um médico chegou para examinar Olivia e Peregrine... e depois a lorde Northwick, por
insistência de Betsabé. Como era de esperar, Sua Excelência se opôs. Não obstante, sua esposa e sua
mãe fcaram do lado de Betsabé e se viu obrigado a claudicar, embora não sem protestar.
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Em questão de horas todos estiveram limpos, secos, aquecidos e bem alimentados.
Benedict se disse que não podia ter queixa de nada.
Embora não pudesse fazer amor com Betsabé essa noite, convenceu-se de que não estava
desiludido porque de qualquer forma não tinha esperado voltar a fazer amor com ela nunca mais. O
resto progredia muito melhor do que tinha esperado. Olivia não parecia estar doente e tanto ela como
sua mãe estavam recebendo um tratamento amável e respeitoso.
Recordou-se que já não estavam sob sua responsabilidade.
Obrigou-se a concentrar-se em Peregrine, que sim estava.
Betsabé e sua flha compartilhavam um quarto no outro extremo da ala de convidados. Embora
fosse praticamente um menino, a Peregrine tinham atribuído um enorme quarto contíguo de Benedict.
Antes de deitar-se, passou por ali para comprovar se tinha febre.
Encontrou seu sobrinho acordado, sentado no tapete frente à lareira e com a vista cravada nas
chamas. Quando o escutou entrar, fcou em pé. Estava vermelho como um tomate.
—Deveria estar dormido — disse Benedict. Sentou-se em uma das poltronas desprezadas por
Peregrine.
—Sinto muito, senhor — desculpou-se seu sobrinho—. Não podia dormir até que me desculpasse
por lhe haver causado tantos problemas. Não pude me desculpar devidamente antes, com tanta gente
ao redor. Mas se lhe digo a verdade, tal como tinha pensado fazer... Bom, a verdade é que isso é quão
único lamento. —Ergueu os ombros e elevou o queixo—. Se tivesse que repetir a experiência,
certamente faria o mesmo. Não podia deixar que Olivia fosse com Nat Diggerby. Era um idiota e um
valentão, e não me inspirava confança. Tampouco podia deixar que fosse sozinha. E o teria feito, de
verdade, porque não prestou a mínima atenção a nada do que disse, por mais que insisti. Tentei falar às
pessoas exatamente como você o faz, mas não consegui o mesmo efeito. Ninguém me faz conta.
Apenas podia me dirigir a ela... E não é que esteja lhe jogando a culpa, só explico os fatos como
acredito que aconteceram.
Estava de pé, rígido como um pau, e era evidente que estava se preparando.
Para a dor. O rechaço.
Estava preparado para receber o de sempre, nem mais nem menos.
Jamais tinha sido um menino tranqüilo e obediente. Os adultos o achavam aborrecido no melhor
dos casos e exasperante, no pior.
Benedict tentou fcar em seu lugar. Os adultos o afastavam com um tapa ou tentavam esmagá-lo.
O que sentiria Peregrine, consciente de que sempre o tinham tratado como um inseto?
—Me conte o que aconteceu — pediu—. Desde o começo.
E o menino contou, um pouco tenso a princípio, mas mais relaxado e animado quando se deu
conta de que seu tio o estava escutando, que não o estava julgando.
Quando terminou de relatar a história, Benedict guardou silêncio um bom momento. Não estava
tentando manter o menino apreensivo. Simplesmente não podia falar. Sabia de fonte segura o que esses
dias tinham representado para Peregrine e por que tinha seguido adiante, inclusive nesse mesmo dia,
quando estava rodeado e não tinha escapatória.
Mas parecia angustiado. Era uma crueldade o deixar em brasas.
Conseguiu falar apesar do nó que tinha na garganta.
—Enviarei uma carta urgente a seus pais —disse—, embora temo que a estas alturas já se
alarmaram e estarão a caminho de Londres. É impossível predizer o que vai acontecer. As coisas são...
complicadas.
Por dizê-lo brandamente.
Mas as cenas eram para os cenários. As grandes paixões e os corações quebrados que estas
suportavam eram a base dos melodramas. Não tinham capacidade na vida de um cavalheiro.
Negou-se a pensar no estado de seu coração. Suportaria, igual tinha suportado seu deprimente
matrimônio. Nada disso concernia a Peregrine. Ao contrário do escândalo que estava a ponto de
estalar.
Era impossível predizer com certeza como iriam reagir seus cunhados. Duvidava muito que
deixassem de lhe falar pelo escândalo. Depois de tudo, quase todos seus amigos eram a fofoca da alta
sociedade.
Mesmo assim, talvez preferissem que Peregrine se mantivesse afastado de seu tio enquanto este
se convertia no protagonista dos folhetins de fofocas e sua caricatura exposta nas vitrines das lojas e
dos guarda-chuva. Talvez, quando passasse a novidade, recuperasse um pouco do terreno perdido.
Talvez ainda tivesse peso nas decisões concernentes ao futuro do menino. Era um «talvez» do mais
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incerto.
Ficou em pé.
—Pensar com claridade e ser otimista é muito difícil quando se está cansado. Vá para cama, Lisle,
e pela manhã decidiremos o que vamos fazer.
A tensão abandonou o rosto de seu sobrinho.
—Sim, senhor —disse—. Obrigado, senhor.
—Embora deva dizer que não me agrada muito essa correspondência clandestina —acrescentou
enquanto o observava meter-se na cama—. É ridícula a sua idade. É absurda a qualquer idade. Há
criados indiscretos que encontram cartas ilícitas todos os dias e que logo exigem enormes quantidades
de dinheiro para que não saiam à luz. É o tipo de coisas que saem nas comédias teatrais.
Peregrine compôs uma careta.
—Sei, senhor. Sabia que devia resistir, mas não pude.
Houve um silêncio enquanto Benedict reprimia as emoções e recuperava seu sangue-frio.
—Salvo por esse detalhe, seu comportamento foi... aceitável —concluiu.
—De verdade foi? —O semblante do menino se iluminou—. Não o decepcionei?
—Tem treze anos —respondeu—. Terá que fazer concessões a sua idade. Eu as faço, ao menos. O
que te diga meu pai quando retornarmos a Londres é outro assunto...
Peregrine abriu os olhos de par em par.
—Claro que, pensando bem, não tem que preocupar-se por lorde Hargate —seguiu Benedict—.
Estará muito ocupado comigo para que reste saliva para você. —Deu uns tapinhas no ombro do
menino —. Durma e se alegre de que ainda não seja adulto.

—Lorde Fosbury alguma vez viu sua neta? —perguntou lady Northwick—. Que estupidez. É a
viva imagem de Jack Wingate.
—Salvo pelos olhos —interveio lady Mandeville—. Tem os olhos dos DeLucey.
Betsabé tinha fcado muito surpreendida quando um criado lhe perguntou se queria receber à
condessa e a sua nora.
Entretanto, uma vez que as teve diante compreendeu o motivo de sua visita. Sentiam curiosidade
por Olivia.
E Olivia, esse monstro que tinha por flha, parecia a inocência personifcada enquanto a criada lhe
escovava o cabelo. A criada estaria desfrutando, é claro, já que Olivia tinha um cabelo precioso, igual o
de seu pai. Os suaves cachos ruivos não se enredavam como os seus.
—Talvez seja melhor —disse lady Northwick a Betsabé—. Se Fosbury a tivesse visto, teria
querido tirar-lhe.
—Mas então teria crescido com todas as comodidades —interveio lady Mandeville—. Uma mãe
deve prefrir o futuro de seu flho a todo o resto.
—Acredito havê-lo feito —replicou Betsabé com voz tensa.
—Estou segura de que o tem feito — tranqüilizou a viscondessa—. Mãe, talvez tenha esquecido
que a senhora Wingate só tem uma flha. As que tem mais descendência possivelmente pudessem
ceder algum.
—Atherton abandonou seu flho nas mãos de Rathbourne —insistiu lady Mandeville—. Terá que
fazer esses sacrifícios pelo bem dos flhos. Lisle receberá uma educação muito mais acertada com os
Carsington.
—Não acredito que o tenha abandonado sem mais —assinalou lady Northwick.
—Se não o tiver feito, deveria fazê-lo —insistiu a condessa—. Os Dalmay são famosos por sua
indisciplina. O marquês seria um caso absolutamente perdido se não tivesse passado grande parte de
sua infância com a família de Rathbourne.
A anciã condessa observou Betsabé longo momento com expressão inescrutável. Depois, disse:
—Foi a mãe de lorde Hargate quem me amadrinhou durante minha primeira temporada social.
Quando me encontrei na privilegiada situação de escolher meu futuro marido entre vários bons
partidos, recomendou lorde Mandeville. Sempre me considerei em dívida com Sua Excelência.
Lady Northwick deixou escapar um suspiro. Depois, igual à maré se deixa levar pelo infuxo da
lua, levantou-se do assento que ocupava junto a sua sogra e se aproximou de Olivia.
—Não quero incomodar à família de lorde Hargate nem por vocês em uma posição incômoda
com eles — assegurou Betsabé em voz baixa à anciã—. Se não fosse pela preocupação que lorde
Northwick demonstrou pela saúde de Olivia, nos teríamos partido ontem mesmo.
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—Aonde tem pensado ir? —quis saber lady Mandeville.
—Ao continente. —Manter a voz tranqüila foi um esforço muito maior de que tinha suposto.
—Valha-me Deus, senhorita Wingate, ruge-lhe o estômago! —exclamou lady Northwick—. Mãe,
não devemos as entreter mais, têm que tomar o café da manhã.
—Não tenho pressa —disse Olivia, com uma doce vozinha—. Uma criada me trouxe uma taça de
chocolate. Em uma bandeja de prata. Com uma for. Era muito bonita.
—Que menina mais encantada —comentou a viscondessa enquanto acariciava o cabelo de Olivia.
—Não, não o é — corrigiu Betsabé—. Rogo-lhe que não se deixe enganar.
—Mamãe! —Os olhos azuis de sua flha relampejaram.
—Não vamos fcar aqui, Olivia —afrmou Betsabé—. Pode pestanejar tudo o que queira e fngir
que é tímida, doce e inocente, mas está esbanjando seu talento. Vamos e não há mais que falar.
Lady Northwick contemplou Olivia e logo fez o próprio com ela.
—Essa que vê aí é uma das Atrozes DeLucey — informou Betsabé—. Agora já saberá reconhecê-
los se encontra outro. Pode deixar de se admirar no espelho, Olivia. Já é hora de que fazer silêncio.
—Ainda não chegou essa hora — contradisse lady Mandeville—. Olivia e você tomarão o café da
manhã com a família. Quero que Mandeville conheça a menina.

—É horrível —sussurrou Betsabé a Benedict—. A esta distância não posso controlá-la. Não faz
caso de meus olhares. Ai, Deus, está passando dos limites! Está olhando-o outra vez com olhos de
cordeiro degolado, como se fosse o sol, a lua e as estrelas.

Benedict olhou o outro extremo da mesa, onde Olivia, sentada à direita do conde, olhava a Sua
Excelência sem pestanejar.
—Assim é como você me olha —murmurou em resposta—. Não pensei que estivesse fngindo.
—É obvio que estava fngindo —protestou ela—. Queria que dançasse o mesmo som que eu
tocasse. Acho-o simplesmente passável. Alcança escutar o que está dizendo?
Talvez pela presença de outras pessoas alheias à família, tomaram o café da manhã com muita
pompa no salão principal, em lugar de fazê-lo no matinal. De qualquer forma, surpreendeu-lhe tanto
como a Betsabé que a condessa colocasse Olivia à direita de seu marido, com sua nora em frente, e que
os enviasse ao outro extremo da mesa, que ocupava ela como anftriã.
A anftriã estava conversando com Peregrine nesse preciso momento. Ele também observava
Olivia, embora fzesse um grande esforço por mostrar-se educado. Peter DeLucey, que estava sentado
junto a Betsabé, parecia alheio pela primeira vez a sua presença e, em lugar de olhá-la encantado como
estava acostumado a fazer, só tinha olhos para Olivia.
Inclusive lorde Northwick mostrava indícios de estar sucumbindo a seus encantos.
Por fm compreendia o problema, pensou Benedict. Por fm entendia o temor de Betsabé que sua
flha fosse direito ao inferno. Olivia não só era inteligente e engenhosa. Também tinha um forte
magnetismo pessoal. A combinação era extremamente perigosa.
Mas não era problema dele, disse-se.
—Quão único sei é que fala com uma doce vozinha —respondeu—. É inútil tentar lhe ler os
lábios porque inclina a cabeça, de modo que os cavalheiros também têm que inclinar-se para escutá-la.
Atreveu-se a inclinar a cabeça para Betsabé. Contemplou sua sedosa pele e recordou seu aroma.
Não podia aproximar-se tanto quanto para cheirá-lo, tal como desejava. Teve que contentar-se vendo o
rubor que se estendeu por suas faces. Teve que contentar-se contemplando o cacho negro que se
enroscava por cima de sua orelha.
—Não deve me olhar como se estivesse embevecido — sussurrou ela—. Está se pondo em
ridículo, Rathbourne.
—Não me importa — repôs—. Todos os aqui pressente sabem que estou embevecido.
Ela o olhou nos olhos antes de afastar a vista com rapidez e voltar a brincar com a comida que
tinha no prato.
—Isso é uma tolice —replicou—. Se mantiver a compostura, todo mundo assumirá que somente
foi uma loucura passageira.
—Ver-me-ei obrigado a manter a compostura durante o resto de minha vida —assinalou com voz
tensa—. Acredito que tenho direito a fazer o imbecil embora só seja esta vez.
—É obvio que só são tolices! —exclamou lorde Mandeville bastante alto para sossegar o resto das
conversações—. Mas que criaturas mais fantasiosas são as mulheres.
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Benedict olhou para o outro extremo da mesa bem a tempo de ver o brilho dos olhos da Olivia.
—Meu pai dizia que havia um tesouro —replicou a menina—. Jamais me teria mentido.
—Olivia... —chamou-lhe a atenção sua mãe.
—Não são tolices. —a interpelada olhou seu anftrião com os olhos entrecerrados—. Não chame
meu pai de mentiroso! Era um cavalheiro.
Peregrine olhou à menina.
—Já estamos... —murmurou—. Agora chegarão as lágrimas...
—Todos somos conscientes de que seu pai era um cavalheiro, Olivia —comentou Benedict em seu
tom de voz mais indolente—. Entretanto, até este momento pensava que uma menina educada de doze
anos de idade saberia apreciar a diferença entre uma mentira e uma teoria ou uma hipótese. Se não for
capaz de ver a diferença, lorde Lisle estará encantado de lhe explicar isso depois do café da manhã.
Neste momento, nos permita recordar as regras básicas das boas maneiras. Como não tenho a menor
duvida de que seus pais tomaram muitos incômodos em te ensinar ditas regras, devo supor que
sofreste uma momentânea perda de memória. Talvez goste de abandonar o salão até que a recupere.
Os olhos azuis jogaram faíscas enquanto o olhavam. Depois de observá-la um momento mais
com sua expressão indolente, Benedict seguiu tomando o café da manhã.
A menina olhou sua mãe, mas Betsabé tinha os olhos cravados nele... como se fosse o sol, a lua e
as estrelas.
Olivia se desculpou com os pressente e saiu a grandes passadas do salão, com o queixo erguido.
Fez-se silêncio.
Um silêncio que foi interrompido pelas pisadas que ressonaram no vestíbulo. Benedict
reconheceu o frme repico de umas botas sobre o mármore.
Os passos se detiveram e escutou um murmúrio rouco depois da aguda e indignada resposta de
Olivia:
—Lorde Rathbourne me expulsou do salão para que recorde minhas maneiras.
A outra voz grave de novo.
Os passos voltaram a escutar-se.
O mordomo entrou no salão.
Benedict se preparou.
—Lorde Hargate —anunciou Keble, e o pai do Benedict entrou na estadia.

Depois de tomar o café da manhã, coisa que Benedict nem sequer fngiu fazer, lorde Hargate
manteve uma conversação em particular com lorde Mandeville no escritório do conde.
Duas horas depois Benedict foi convocado para que fosse ao escritório.
Encontrou Betsabé no corredor, passeando nervosamente de um lado para outro. Mas se deteve
assim que percebeu sua presença.
Igual fez seu coração antes de descontrolar-se.
—Acreditei que tinha ido —disse—. Ordenei que preparassem a carruagem. Não há necessidade
de que agüente esta... esta inconveniência.
—Não sou uma covarde —replicou —.Não tenho medo de seu pai.
—Pois deveria —disse—. A maioria dos seres inteligentes têm.
—Nego-me a sair fugindo e te deixar sozinho para que carregue com as culpas —seguiu ela.
—Nem que fosse me enforcar... —apontou—. Nem sequer me dará uma surra. Jamais nos pôs a
mão em cima. Sua língua é muito mais efcaz. Ah, e seus olhos. seu olhar equivalia a cem chicotadas.
Mas já não sou um menino. Sairei deste encontro um tanto cambaleante, mas não destroçado.
—Não permitirei que o faça infeliz —declarou Betsabé.
—Não sou uma rapariga em apuros — recordou—. Não necessito que enfrente meus dragões,
boba. Agora sei de onde tira Olivia suas loucuras.
—Quero que saia da mansão — ordenou ela—. Vá cavalgar ou dar um passeio. Deixe isto pra
mim .
—Nem pensar —recusou—. Sei o que está pensando. Crie que pode utilizar um de seus ardis do
DeLucey e enfeitiçá-lo para que acabe comendo na palma de sua mão. Não tem nem idéia do homem
ao qual enfrenta.
—Não me importa a classe de homem que seja — aduziu ela—. Não vai entrar sozinho.
—Betsabé...
Viu-a bater na porta do escritório; ato seguido, abriu-a, entrou e a fechou a suas costas.
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Escutou como virava a chave.

—Betsabé —a chamou. Levantou a mão para golpear a porta, mas se deteve.


«As cenas são para o cenário», recordou-se.
Deu meia volta e pôs-se a andar apressado pelo corredor.

Lorde Hargate fcou em pé ao vê-la entrar. Seu rosto adotou uma expressão educada. A mesma
expressão inescrutável com a que a tinha olhado durante o café da manhã. Nem sequer arqueou uma
sobrancelha ao vê-la entrar tão apressadamente no escritório e fechar a porta com chave.
Já sabia de onde tinha tirado Rathbourne sua rigidez. E sua altura e seu porte.
Embora o cabelo de lorde Hargate não fosse negro, e sim castanho e grisalho; e seus olhos eram
de um escuro tom ambarino e pareciam estar esculpidos em pedra.
O conde lhe fez um gesto para que se sentasse.
—Prefro fcar de pé, milorde —disse—. Não demorarei muito em dizer o que quero. Só queria
esclarecer que o acontecido não é culpa de lorde Rathbourne. Fui eu a que se interpôs deliberadamente
em seu caminho. Fiz tudo o que esteve em minha mão para enfeitiçá-lo.
Sua Excelência não disse nada. Seu rosto não delatou nada. Uma máscara teria tido mais
expressividade.
—Lorde Rathbourne não teve a menor oportunidade —assegurou—. Não lhe deixei nenhuma
escapatória.
—Certamente —disse lorde Hargate—. Então, organizou você o desaparecimento dos meninos?
A pergunta a pegou despreparada. Tinha ensaiado seu discurso. Tinha tido muito tempo.
Entretanto, não tinha considerado essa pergunta. Tinha estado muito agitada para baralhar muitas
possibilidades e tinha planejado tocar certos pontos... os mais evidentes. Quão único tinha que fazer
era fazer-se passar pelo que o mundo acreditava que era.
Decantou-se por não responder afrmativamente. Era uma possibilidade muito rebuscada,
inclusive para uma dos Atrozes DeLucey.
—Não, mas aproveitei seu desaparecimento para levar a cabo meu plano —respondeu.
—E esse era...
—Queria um amante rico.
—Há muitos homens que cumprem esse requisito — comentou Sua Excelência —. Por que
Benedict?
—Porque era perfeito, algo que o convertia em um desafo —respondeu—. Os Atrozes DeLucey
gostam de apostar forte.
—Isso tenho entendido —comentou lorde Hargate—. A julgar pelo que vi, ganhou. Dito o qual,
confesso que me surpreende em grande medida que atire pela amurada todo seu trabalho ao me
confessar isso.
—Acredito que o motivo é evidente —disse—. Já me aborreci com ele. Tanta perfeição é lenta.
Quero ir, mas temo que me siga e acabe convertendo-se em um incômodo.
Um golpe procedente de algum lugar próximo a sobressaltou.
Lorde Hargate se virou para a janela como se tal coisa. Atrás dos vidros havia uma escura
silhueta. De repente a janela se abriu para dar passo a Rathbourne. Uma vez dentro, fechou, sacudiu
algumas folhas e enfrentou seu pai.
—Peço desculpas, pai —disse—. Parece que acontece algo à porta do escritório. Não se abria.
—A senhora Wingate a fechou com chave —explicou lorde Hargate—. Queria me dizer que o
usou para seus próprios fns, mas que já se aborreceu de sua perfeição e deseja partir. Preocupa-lhe que
a siga e se converta em um incômodo.
—Acredito que a senhora Wingate deve ter caído e batido a cabeça —disse Rathbourne—. Faz
apenas dez minutos era eu quem lhe propunha que se fosse. Inclusive ordenei que lhe preparassem
uma carruagem. Negou-se categoricamente. Isso sim que é incomodo.
—Vim para pedir dinheiro a seu pai —explicou ela. Rathbourne a olhou.
—Betsabé... —disse.
—Quero cinqüenta libras para partir —anunciou.
Nessa ocasião lorde Hargate sim arqueou as sobrancelhas.
—Só cinqüenta? —perguntou—. A quantidade está acostumada ser bem mais alta. Está segura de
que não quis dizer quinhentas?
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—Haveria dito quinhentas se acreditasse que viaja com tanto dinheiro no bolso —respondeu—. O
problema é que não posso esperar que consiga o resto. Olivia está começando a ter Idéias. —Sobre
criados, vestidos, sapatos de seda, colchões de plumas e duas dúzias de pratos diferentes só para o café
da manhã.
—Não, o que tem Olivia agora mesmo é uma pá —replicou lorde Hargate—. Lorde Mandeville
vai levar Lisle e sua flha ao mausoléu para que escavem em busca de seu tesouro.
—Ah, não! —Betsabé se virou para o Rathbourne—. O que acontece com lorde Mandeville? Por
que não vê Olivia pelo que é?
—A menina saiu em defesa de seu pai quando acreditou que Mandeville tinha manchado sua
honra —repôs lorde Hargate—. Sua reação o comoveu muito. Acredito que tem intenção de interceder
por ela ante Fosbury.
—Não! —gritou—. Rathbourne, não deixe que o façam. Os Wingate me tirarão isso e ela é a úni-
única coisa que tenho. —Nesse momento lhe quebrou a voz e também a alma. Toda a preocupação que
havia sentido, toda a dor que tinha reprimido até então, assaltou-a de repente, fazendo que as lágrimas
que levava contendo tanto tempo caíssem por suas faces.
Rathbourne se aproximou dela e a abraçou.
—Ninguém a levará e ela não é a única coisa que tem —assegurou—. Me tem .
—Não-não é-seja obtuso —resmungou—. N-não o quero. —Separou-o de um empurrão e secou
as lágrimas apressadamente —. Que-quero cinqüenta libras. E minha flha. E depois irei daqui.
—Temo que isso não é possível — disse lorde Hargate.
—De acordo, que sejam vinte libras.
—Vinte libras? —repetiu Isso Rathbourne é tudo o que valho para você?
—Sua avó acreditou que nos custaria muitíssimo mais —disse lorde Hargate—. Consola-me saber
que estava equivocada, ao menos nisso.
—Vovó sabe o que aconteceu? —perguntou Rathbourne—. Enfm, não sei porque me incomodo
em perguntar... É claro que sabe.
—Quem acha que me informou de suas loucuras no caminho de Bath? —perguntou seu pai—.
Chegou-lhe uma carta de um dos espiões que tem em Colnbrook. Evidentemente, não acreditei em
nenhuma só palavra. Mas sua mãe sim, embora não sei por que. Fizemos uma aposta. Imagine o que
sinto ao descobrir que é verdade. Imagine o que sinto depois de descobrir de punho e letra do
fofoqueiro do Pardew nem mais nem menos que meu primogênito se encetou em uma briga (em um
caminho público!) com uns broncos na metade da noite. Isso é o que se espera de Rupert, é obvio... mas
não do primogênito... que sempre foi um modelo a seguir, tanto para seus pares como para seus
irmãos. De todos eles, acreditei que ao menos você sabia qual era seu dever, Benedict.
—Sabia até que se apaixonou por mim e perdeu a razão — replicou Betsabé.
Esse frio olhar ambarino se cravou novamente nela.
—Nesse caso, estou de acordo em que o melhor será que se vá, senhora. Entretanto, Mandeville e
eu decidimos que, para evitar outro desafortunado episódio no futuro, seria melhor que sua flha
descobrisse por si mesmo a verdade sobre o tesouro de Edmund DeLucey. Mandeville prefere que não
a leve até que tenham terminado de escavar. Minha consciência me impede de lhe dar nenhum
dinheiro até então. O mausoléu é bastante grande. Não acredito que acabem hoje.

Capítulo 19

Olivia e lorde Lisle retornaram ao anoitecer, sujos, cansados e desiludidos. Nem o banho com
sabão perfumado nem as duas criadas que a assistiram conseguiram animar Olivia. Alguns criados
vestidos com libré lhe subiram o jantar em uma bandeja de prata adornada com um crisântemo
amarelo em um jarro também de prata, mas ela se limitou a bicar sem muito apetite.
Se por acaso isso fosse pouco, não só se meteu na cama sem necessidade de repetir-lhe várias
vezes, mas sim, além disso, o fez duas horas antes do habitual com a desculpa de que estava cansada.
—Mamãe, é todo um detalhe por sua parte não me dizer: «eu te disse» —comentou isso enquanto
a agasalhava—. Mas é verdade. Disse-me isso. E lorde Lisle também.
—Aos adultos também pode dizer que certas coisas não existem ou que em alguns casos toda
esperança é vã, e de qualquer forma seguem em sua teima e se negam a perder a esperança — a
tranqüilizou Betsabé.
—Mas eu gostaria de havê-lo pensado mais atentamente — protestou sua flha—. E não haver
causado tantos problemas. Não era minha intenção. Acreditei que ia encontrar um tesouro e que assim
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poderia a converter em uma grande dama. —Esboçou um sorriso pesaroso—. E eu também, claro.
Enfm, terei que encontrar outro modo de consegui-lo.
—Há outro modo — assegurou. Contou-lhe o desejo de lorde Mandeville de apresentar-lhe a seu
avô paterno, lorde Fosbury—, Lorde Mandeville pode aplainar o caminho e talvez assim possa ter a
educação de uma grande dama —disse.
—Mas não o quero se não aceitam você também, mamãe.
—Sim o quer — contradisse Betsabé antes de proceder a relatar as vantagens de dito acerto.
Ponto por ponto.
—Não, não é uma boa idéia —insistiu Olivia—. Assim não o quero. Prometi a papai que cuidaria
de você. Minha Idéia não funcionou e a tua tampouco o fará. —Deu uns tapinhas na mão de Betsabé—.
Iremos amanhã e procuraremos fortuna em outro lado, mamãe.

Se já se pôs em ridículo, o que podia perder perambulando pelo jardim quando todo mundo
estava na cama? O que podia perder se postava-se sob sua janela?, disse-se Benedict.
E uma vez ali, o que podia perder se lançava algumas pedras contra o vidro?
«As cenas são para o cenário», recordou-se.
E as regras estavam muito bem, até certo ponto. Elevou o olhar até a janela.
Sim, é claro que era ridículo. Vê-la-ia no dia seguinte, antes que partisse para sempre. Mas
estariam rodeados de mais pessoas.
Quão único queria era vê-la uma vez mais e lhe falar uma vez mais sem que ninguém os
observasse nem os escutasse.
Não ia rondar com uma serenata melancólica. Não ia recitar lhe um poema.
E tampouco ia vê-la, aparentemente, porque os minutos passavam e Betsabé não dava sinais de
vida.
Seria melhor que desistisse. Corria o risco de despertar Olivia... e talvez lhe devolvesse as
pedras. Acompanhadas por uma cadeira.
Uma reação da mais compreensível. Em ocasiões, ele mesmo tinha sentido desejos de atirar algo a
seu pai. Os meninos necessitavam disciplina. Os mais velhos estavam obrigados a proporcionar-lhe e a
que os odiassem por isso.
Sem ir mais longe, esse mesmo dia tinha sentido desejos de atirar algo a seu pai. O que havia dito
de seu comportamento diante de Betsabé não tinha sido nada em comparação ao que tinha soltado
depois, quando se retiraram a sós ao jardim onde ninguém pudesse escutá-los nem interrompê-los.
«deixaste de ser um dos aristocratas mais respeitados e se converteste em um vulgar bobo.»
Esse tinha sido o começo e também a parte mais comedida do discurso.
A janela se abriu nesse instante e apareceu uma cabeça morena coberta por um gorro de dormir
branco.
—Betsabé —sussurrou.
Ela levou o indicador aos lábios antes de assinalar o interior do dormitório.
Não queria despertar Olivia. Já eram dois.
—Só queria dizer... —começou em voz baixa.
Ela meneou a cabeça e elevou o dedo, lhe indicando que esperasse.
E Benedict esperou.
Os minutos foram passando.
Como seguia com a vista cravada na janela, quase lhe deu um desmaio quando viu um brilho
branco pela extremidade do olho. Betsabé se aproximou sem perda de tempo, agarrou-o pelo braço e o
levou em direção aos jardins, longe da casa.
Uma vez ali, abraçou-a e lhe deu um beijo ardente e desesperado. Respondeu-lhe com o mesmo
desejo. Mas não demorou para afastar-se dele.
—Não vim para isto — advertiu—. Só para te dizer adeus. E esta vez é de verdade. Eu gostaria
que não fosse assim, Rathbourne. Muitíssimo. Mas você já sabe. Nunca fui capaz de te ocultar nada.
—Sabia —replicou Benedict—. Sabia que para ti valia mais de vinte libras.
—Carinho, para mim vale muito mais! —Pôs-lhe a mão na face, nesse gesto tão seu—. Estava
acordada, tentando te escrever uma carta porque não podia partir sem dizer a verdade. Sei que não
serve de nada, mas estou segura de que você também sente algo por mim e não posso me afastar assim
sem mais nem o ferir de nenhuma forma, embora seja uma ferida pouco profunda.
—Uma ferida pouco profunda —repetiu—. Isso é como dizer que a guilhotina arde um
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pouquinho. Isto vai destroçar-me e você sabe; mas o pior de tudo é que seremos um par de mártires, e
isso é nauseabundo. Detesto fazer sacrifícios nos altares da nobreza. Já tenho feito bastante sacrifício
por hoje, não estrangulando meu pai enquanto dava o sermão.
—Vá! Foi muito ferido? —perguntou. Tirou-lhe a mão da face, mas apoiou a cabeça em seu peito,
algo muito melhor. Porque assim podia estreitá-la com força e lhe acariciar o cabelo—. Já tinha
imaginado que se refrearia enquanto eu estivesse presente.
—De vez em quando meus irmãos deram de presente aos fofoqueiros razões para lhe dar à
língua; entretanto, e em palavras de meu pai, nunca lhes deram motivos para burlar-se deles nem para
compadecê-los.
—Ah, Por Deus!
—Meu comportamento se rebaixou ao nível do comportamento do rei e seus irmãos —seguiu—.
Como sabe, é impossível cair mais baixo. São um rebanho de dissolutos empedernidos, que esbanjam o
dinheiro de modo desprezível e que não têm nem dois dedos de testa entre todos. No melhor dos
casos, a aristocracia os tolera. No pior, aborrece-os e despreza.
A amante de um dos duques reais se forrou vendendo comissões militares e ascensões. Outro dos
irmãos do rei tinha tido dez flhos com sua amante, uma atriz a que era incapaz de manter e que,
portanto, via-se obrigada a prosseguir com sua carreira para não morrer de fome junto com sua prole.
Enquanto que um terceiro irmão desempenhava o papel do ofcial mais odiado de todo o exército, um
quarto era um violento reacionário. Mas esses detalhes e outros do estilo eram nada se comparados
com o grande melodrama da vida do rei Jorge IV.
—Segundo meu pai, minha única esperança reside no rei —continuou—. Se cometer uma nova
atrocidade, conseguirá desviar a atenção de minha pessoa; embora não está muito seguro de que seja
sufciente para reparar o dano. Enfm, em uns dias e com um só ato, consegui desfazer o bom trabalho
que levei a cabo durante a última década ou assim.
—Isso não é certo — contradisse ela, elevando a cabeça para olhá-lo nos olhos—. Nenhuma
pessoa que o conheça deixaria de respeitá-lo por um pouco tão absurdo. Porque se tenha deixado
enganar por uma mulher, embora seja a mais infame de toda a Inglaterra? Seu pai se equivoca de parte
para parte. Oxalá tivesse estado presente para dizer-lhe subestimou-te. Só os estreitos de mente e os
imbecis deixariam que um breve episódio de sua vida empanasse a visão que têm de ti e de seu
trabalho. Claro que existem muitas pessoas desse tipo no mundo, mas não deveria tratar com eles.
A conversa com seu pai o tinha deixado gelado. E não percebeu isso até esse momento, uma vez
que as palavras de Betsabé o reconfortaram, dissipando a culpa e o abafado que o sermão lhe tinha
conduzido.
Ela o tinha reconfortado desde que se conheceram. Não tinha sido consciente da desolação que o
embargava até que se precaveu da reação que lhe provocava. Não tinha sido consciente do vazio que
levava em seu interior até que ela se apropriou de seu coração e o encheu.
Olhou-a e sorriu, encantado com essa feroz demonstração de lealdade.
Recordou as valorosas palavras de Olivia durante o café da manhã enquanto defendia a honra de
seu pai.
A menina não era uma Atroz DeLucey de jeito nenhum. Era uma mescla de sua mãe e de seu pai,
e só necessitava um pouquinho de estímulo para que dita mescla desse fruto.
Ele poderia haver se encarregado disso... mas não devia pensar nisso. Não nesse momento. teria
tempo durante o resto de sua vida para dar voltas a tudo o que poderia ser e não foi. «Deus! O resto da
minha vida...», pensou.
Anos. Décadas. Sua família se caracterizava por ser horrivelmente idosa.
A condessa viúva de Hargate tinha oitenta e cinco anos. Seu marido, o anterior conde, tinha
vivido até os setenta, e muitos de seus irmãos seguiam vivos. E o ramo materno de sua família era
igual de tenaz no que a aferrar-se à vida se referia. Seus avós maternos tinham mais de oitenta anos!
Ele podia chegar a viver outro... meio século!
Sem Betsabé.
—Tem razão —admitiu—. Não quero saber nada deles. Não quero saber nada de ninguém que
zombe ou se compadeça de mim porque te amo.
Betsabé se esticou de repente.
—Que você...
—Te amo —repetiu—. Que se vão todos pentear macacos. Se ninguém quer fazer o esforço de
conhecê-la de verdade, se querem te expulsar da Inglaterra, irei contigo.

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Ela insistiu em que não iria a nenhum lado. Ele insistiu que sim.
Protegidos atrás do muro do jardim, a escassa distância do casal, três homens escutavam a
acalorada discussão. O debate se interrompeu de repente e em seu lugar se escutaram uma série de
sons que indicaram uma mudança de tática por parte de lorde Rathbourne.
Não souberam se teve êxito ou não. As vozes baixaram o volume até converter-se em meros
murmúrios. E depois chegou a despedida.
Quando os amantes por fm partiram por separado, lorde Mandeville disse:
—Tinha razão, Hargate. É o mesmo que aconteceu Jack Wingate. Mas pior, muito pior.
—É você mais observador que eu, milorde —admitiu lorde Northwick—. Não tinha percebido de
que o assunto tivesse chegado tão longe.
—É meu flho —repôs lorde Hargate—. Meu dever é conhecê-lo mesmo que atue de forma
insólita. Salta à vista que já vai sendo hora de pôr fm a esta loucura.

Rathbourne tinha prometido que tomaria duas semanas para pensar bem as coisas e Betsabé lhe
deu sua palavra de que, enquanto isso,o manteria informado de seu paradeiro.
Estava segura de que uma vez que se afastasse e ele tivesse tempo para meditar com a cabeça
fria, mudaria de opinião com respeito a abandonar sua vida, sua família, os lucros que tinha
conseguido e os que fcavam por conseguir por causa de uma mulher.
Fizesse o que fzesse, o título e grande parte das propriedades da família acabariam em suas
mãos a menos que o destino interviesse e seu pai vivesse mais anos que ele. De qualquer forma, sua
decisão romperia o coração de seus pais e seus irmãos jamais o perdoariam. Jamais o receberiam com
os braços abertos. Se abandonasse sua vida por ela, jamais poderia recuperar a honorável posição e a
confança que a aristocracia tinha depositado nele.
Mas, a diferença de Jack, Rathbourne sim acabaria arrependendo-se dessa perda, pela simples
razão de que ele tinha muito mais que perder. A diferença de Jack, Rathbourne acabaria culpando-a
pelo preço que tinha tido que pagar. Acabaria sendo um homem infeliz e amargurado, e ela se sentiria
como uma assassina.
Duas semanas fariam o milagre, ou isso acreditava Betsabé. Dar-lhe-ia tempo a acalmar-se e
também daria tempo a sua família para fazê-lo ser razoável.
Claro que ainda tinha por diante o mau do café da manhã...
Lorde Mandeville tinha requerido sua presença e a de Olivia na mesa. Se não fosse assim, teria
estado o mar de contente de tomar o café da manhã em seu dormitório. Ou em alguma estalagem do
caminho...
Nessa ocasião os comensais se reuniram em torno de uma mesa redonda no salão matinal,
circunstância pouco propícia para as conversações privadas.
Assim quando Olivia disse a lorde Mandeville que sua mãe e ela tinham planos para ir ao Egito,
todos os pressente receberam as notícias de uma vez.
—Ao Egito? —repetiram várias vozes, incluída a de Betsabé.
—Me ocorreu esta manhã, quando despertei —explicou sua flha—. Caí na conta de que se
alguém quer encontrar um tesouro, tem que buscá-lo ali onde é mais provável que o encontre. Há
muita gente procurando tesouros no Egito. Lorde Lisle me disse isso. E também me disse que algum
dia ele mesmo irá ao Egito para procurar tesouros.
—Algum dia! —recalcou o aludido—. Isso signifca que será no futuro. Não posso ir agora. —Fez
uma pausa e sua expressão se tornou pensativa—. A menos que haja um internato ao qual possam me
enviar. De qualquer forma, você não pode ir. Isso é ainda mais ridículo que a idéia de escavar
Throgmorton para procurar o tesouro de um pirata.
Os olhos de Olivia relampejaram.
—Você não sabe nada desse lugar —continuou lorde Lisle—. Não se parece com a Inglaterra nem
a nenhum outro país europeu. Mantêm às mulheres encerradas. A lei tal e como nós a conhecemos não
existe. Se tenta viajar sozinha ao Egito, a seqüestrarão imediatamente e a venderão como escrava.
—Viajar pelo Egito pode ser muito perigoso, até mesmo em grupo —acrescentou lorde Hargate
—. Por não dizer que é árduo. Claro que a recompensa é enorme para aqueles bastante intrépidos para
confrontar os desafos, embora não seja necessariamente monetária. O senhor Belzoni, por exemplo,
não encontrou a recompensa econômica que todo mundo supõe; tal como a esposa de Rupert tem a
bem me recordar uma e outra vez.
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Betsabé percebeu que o conde tinha olheiras. E o rosto crispado. Devia estar esgotado. Tinha
passado a maior parte do dia anterior em uma carruagem. E teria passado a noite acordado por causa
da preocupação por seu flho. Já encontraria o momento para tranqüilizá-lo com o passar do dia,
embora não acreditasse.
—O senhor Belzoni trouxe um monte de coisas grandes —replicou Olivia—. Estatua gigantescas,
múmias e demais. Ninguém se esclarece com respeito a seu valor. Mas eu procurarei coisas pequenas:
jóias e moedas. Sei muito bem o que valem. E também colecionarei papiros. Lorde Lisle me disse que
há uma grande demanda desses documentos, e que no Egito há centenas de milhares deles.
—Tem que arrancar de umas pessoas que estão mortas a mil anos ou mais —estava explicando
lorde Lisle—. As múmias sustentam os papiros nas mãos ou entre as pernas. Meu tio Rupert diz que o
pó das múmias tapa o nariz e que o odor é asqueroso. Terá que meter-se por uns buracos escavados no
chão e engatinhar por uns passadiços muito estreitos. Faz muitíssimo calor. E não terá criados que lhe
levem limonada e sanduíches, nem tampouco haverá ninguém para afastar a areia. Escavar ali não é
como escavar na propriedade de lorde Mandeville.
—Não vamos ao Egito, Olivia —interveio ela—. Aconselho-a que tire essa idéia da cabeça.
Olivia abriu a boca para protestar e adotou essa expressão obstinada que Betsabé conhecia tão
bem.
Rathbourne a olhou nesse momento.
Embora manteve a mandíbula apertada, sua flha apagou a expressão contrariada e, para seu
assombro, disse-lhe:
—Sim, mamãe.
—De qualquer forma, não entendo esse empenho em viajar ao outro lado do mundo —disse
lorde Mandeville—. Ainda não concluístes sua escavação aqui.
Betsabé sentiu que lhe desbocava o coração. O conde não deveria ter motivo algum para dar esse
gosto a Olivia, salvo que queria demorar sua partida. Devia haver escrito a lorde Fosbury, a quem
chegaria a missiva nesse mesmo sem mais demorar. Quanto demoraria para chegar? Um dia? Dois? Ou
era só questão de horas?
Antes que sua alarmada mente conseguisse encontrar uma negativa educada, lorde Lisle disse:
—Escavamos um fosso ao redor do mausoléu. Não entendo como poderíamos ter passado o
tesouro por alto se estivesse ali.
—Lorde Lisle estabeleceu um sistema muito metódico —explicou Olivia—. Sei que temos coberto
todo o terreno.
—Talvez não — corrigiu Sua Excelência —. Estive falando com meu flho e chegamos à conclusão
de que talvez não tenham cavado a sufciente profundidade.
—Devem ter em conta que os dias de pirata de Edmund DeLucey se remontam a mais de cem
anos atrás —disse lorde Northwick—. Com o passar do tempo se construíram edifícios e se derrubaram
outros; modifcaram-se os jardins e tornaram a plantar com outra disposição. A área que rodeia o
mausoléu se preencheu em várias ocasiões. Além disso, devemos ter presente que os jardineiros
pulverizam capas de terra e adubo de forma regular.
—Se estivesse em seu lugar, eu escavaria a maior profundidade — aconselhou lorde Mandeville
—. A menos, claro está, que se tenham dado por vencidos.
Uma inquieta Betsabé viu como o semblante de sua flha se iluminava. O rosto de lorde Lisle era
uma versão mais contida do da Olivia, embora por pouco.
Os meninos intercambiaram um olhar e a todos fcou claro que não viam o momento de agarrar
de novo as picaretas e as pás.
Mas Olivia voltou a surpreendê-la.
—Obrigado, milorde —disse—, mas devo deixar a busca do tesouro a lorde Lisle. Mamãe e eu
partimos hoje.
—Mas não é minha busca do tesouro — protestou o aludido—. É sua. Edmund DeLucey era seu
tataravô, não o meu. Me sentiria como um idiota se tivesse que cavar sozinho enquanto todos os outros
olham. Além disso, que graça teria descobrir o tesouro se você não estiver aqui? Esta era sua Cruzada!
—Não se trata somente da busca de um tesouro —particularizou lorde Hargate—. É uma cruzada
para desterrar velhos fantasmas. A menos que a questão se resolva de uma vez por todas, descartando
todas as possibilidades enquanto isso, os descendentes de Edmund DeLucey seguirão acreditando na
existência do tesouro. Assim um após o outro se empenharão em encontrá-lo. E uma vez mais
incomodarão à família e os trabalhadores da propriedade. Quantos homens tiveram que desatender
suas tarefas para ir em sua busca? —exigiu saber, olhando-os com cara de poucos amigos—. Têm a
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menor idéia da carga que têm suposto para os criados, por não mencionar os transtornos que
ocasionastes à família? O mínimo que podem fazer é terminar como Deus manda o que começastes.
—Sim, milorde —disse lorde Lisle.
—Sim, milorde —disse Olivia.
E «Sim, milorde», disse Betsabé a contra gosto porque lorde Hargate tinha toda a razão do
mundo. Algum dos Atrozes DeLucey se encorajaria ao inteirar do atrevimento de Olivia e o tentaria
por sua conta.
Terei que resolver o assunto de uma vez por todas.
E, como era habitual, ela teria que pôr ao mau tempo boa cara.

Os cavalheiros partiram com os meninos, mas Benedict fcou para trás com a desculpa de que
tinha que escrever umas cartas.
Sua intenção era a de escrever a sua mãe para lhe dizer que estava bem, mas sua mente insistia
em lhe recordar seus irmãos, a quem afetaria em maior ou menor grau, sua decisão de partir com
Betsabé.
Depois recordou que tinha prometido redigir um relatório para uma das comissões
parlamentarias, além da carta que tinha que enviar a um advogado com respeito a um de seus clientes
e das duas cartas que devia enviar ao rei, solicitando clemência para seus acusados de ter cometido um
delito bastante grave.
Devia encontrar outra pessoa que se encarregasse de suas diversas tarefas flantrópicas.
Sentou-se em uma mesa localizada na biblioteca com a pluma na mão e uma folha de papel em
branco diante.
—Rathbourne, tenho que falar contigo.
Virou a cabeça ao escutar essa voz tão conhecida.
Betsabé se atrasou um instante nas portas francesas. A brisa procedente do jardim penetrou na
estadia.
Benedict soltou a pluma e fcou em pé.
—Acreditei que tinha partido com os caçadores do tesouro — disse.
Ela fechou as portas e entrou na biblioteca, iluminando-a com sua presença.
—Deveria estar ali —reconheceu—. Deveria haver uma testemunha pertencente ao ramo familiar
de Edmund DeLucey. Mas não vão encontrar nada. Todo mundo sabe, salvo os meninos.
—Sei o que está pensando — assegurou—. Vi o pânico em seu olhar quando Mandeville lhes
disse que não tinham escavado à profundidade adequada.
—Sabe que seguirá procurando desculpas para adiar nossa partida —disse ela enquanto
passeava de um lado para outro da estadia com as mãos apertadas contra o ventre—. Hoje devem
cavar mais fundo. Amanhã os convencerá para que procurem perto da casa de convidados... Sabe que
lhe importa o mínimo desterrar velhos fantasmas ou como o tenha chamado seu pai. Lorde Mandeville
quer entregar a minha flha à família do Jack. Acredita, igual a todo mundo, que não sou uma boa mãe.
E deseja, com toda a boa vontade do mundo, que minha flha desfrute de todas as vantagens materiais
possíveis. Além disso, talvez queira propiciar a reconciliação de ambas as famílias antes de morrer.
—Já disse que não permitirei que ninguém a separe de Olivia — recordou. Cruzou a estadia para
aproximar-se dela e a segurou pelas mãos.
—Uma criança pertence a seu pai por lei e, por extensão, à família de seu pai —replicou Betsabé.
—Nesse caso, Fosbury terá que levar o assunto aos tribunais e mentalizar-se para passar os
próximos dez anos encetado em uma custosa batalha legal.
—Se esquece um detalhe —comentou ela com voz tensa—. Se for comigo, não poderá se permitir
custosos litígios legais. Se for comigo, não terá nenhuma infuência sobre lorde Fosbury nem sobre seus
simpatizantes. Já não contará com o favor do rei.
Benedict o tinha muito presente. Sabia o que ia perder.
Mas se considerava um homem inteligente e experimentado, e sabia que em um curto prazo se
lavraria um novo futuro. Uma vida feliz junto à mulher que amava e junto a uma menina pela qual já
sentia grande afeto.
—Nesse caso, terei que recorrer à astúcia e ao engenho —replicou—. levaremos Olivia em plena
noite e assunto encerrado. —Puxou Betsabé para abraçá-la—. Deixa de preocupar-se e confa um
pouquinho mais em mim. Recorda que sou perfeito...
Ela se pôs-se a rir e Benedict sentiu que a tensão a abandonava.
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Perfeito
—O problema é que eu não sou —disse Betsabé—. Não estou muito segura de que seja correto
privá-la de... Que sonha?
«Pássaros», pensou Benedict a princípio. Os grasnidos de um bando de corvos zangados.
Betsabé se aproximou das portas francesas e as abriu. O som se repetiu.
Não eram pássaros.
Era um grito.
Betsabé e ergueu a saia e pôs-se a correr. E ele a seguiu.

—MAMÃE!
—Já vou! —gritou Betsabé. Rathbourne a tinha adiantado porque contava com a vantagem de ter
as pernas mais longas e, portanto, de ser mais rápido.
—Mamãe!
Olivia apareceu por uma curva do caminho e correu para ela com os braços estendidos. Parecia
um desastre, cheia de terra da cabeça aos pés, mas podia correr e não parecia estar ferida. Lorde Lisle ia
atrás em idêntico estado.
—Tio! —gritou—. Tio Benedict!
Betsabé diminuiu a velocidade e se deteve. Rathbourne fez o mesmo.
—Mamãe! —disse Olivia entre fôlegos—. O encontramos!

Capítulo 20
O que tinham encontrado era um cofrinho muito sujo de uns trinta centímetros de comprimento
e uns vinte centímetros de alto e de largura.
Um dos jardineiros que tinha ajudado na escavação o levou até o terraço. Ali, a família e os
convidados se congregaram ao seu redor enquanto um criado se aproximava para limpá-lo. Entretanto,
Peregrine agarrou a escova e limpou o cofre ele mesmo. Embora lhe tremiam as mãos pelo nervosismo,
o fez com consciência e com supremo cuidado, como se o objeto fosse de alabastro.
Na realidade, descobriram que era de madeira coberta de couro esculpido.
Também descobriram que estava fechado a sete chaves.
—Teremos que utilizar um serrote —comentou Peregrine—. Ou forçar a fechadura. É bastante
antigo. Certamente a madeira esteja podre. Poderíamos abri-lo de um bom chute.
—Espera. —Olivia se ajoelhou para examinar a fechadura—. Talvez nos sirva qualquer chave —
aventurou—. Ou minhas forquilhas. As fechaduras não costumam ser muito complicadas.
Benedict se aproximou do Betsabé.
—Também sabe forçar fechaduras? —perguntou em um sussurro.
—Por que acha que queria me mudar a um bairro melhor? —respondeu ela—. Sabe mais da
conta.
Olivia estava tentando abrir o cofre com suas forquilhas, embora sem muito êxito.
—Tenta com isto —disse lorde Hargate ao mesmo tempo que oferecia seu canivete.
A menina o olhou com receio.
—Poderia danifcar a folha.
—Sempre se pode afar de novo.
Benedict procurou o olhar ambarino de seu pai.
E piscou.
Era impossível que o que tinha visto fosse uma piscada. Lorde Hargate jamais tinha piscado um
olho. A menina esteve um momento brigando com o canivete ao qual somou uma forquilha pouco
depois. A fechadura se abriu.
Olivia inspirou fundo antes de levantar a tampa do cofre e deixar descoberto...
Farrapos. Tirou um e o soltou com cuidado antes de tirar outro.
—Trapos velhos —disse Peregrine—. Isto é incrível! Por que dem...? —Deixou a pergunta no ar e
conteve a respiração.
Igual a todos os outros. Entre os trapos havia algo brilhante.
Fazendo ornamento da mesma delicadeza com a que tinha afastado outros, Olivia tirou o último
trapo mofado.
Um arco íris de vermelho e amarelo, de verde e azul, de prata e ouro apareceu ante seus olhos.
Moedas e jóias, cadeias e medalhões, refulgiam ao sol da tarde.
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Perfeito
—Há, Há —disse lorde Mandeville com voz resmungona—. Não lhes disse que não perdessem a
esperança?
Peregrine se aproximou mais do cofre.
—Não posso acreditar. É de verdade?
Olivia tirou um anel de rubis e o examinou com olho clínico. Comprovou o metal com a unha.
Mordeu-o.
—É de verdade —respondeu. Olhou sua mãe com uma expressão radiante—. É de verdade,
mamãe. O tesouro. Sabia que o encontraria. Agora será uma grande dama. —Seu radiante olhar posou
em lorde Mandeville—. É de minha mãe como me disse? Diga a ela ou me obrigará a dar a você.
—Nesse caso, me permita que o faça diante de todas estas testemunhas —disse lorde Mandeville
—. Você, Olivia Wingate, é descendente de Edmund DeLucey. Você e você... seu fel escudeiro correstes
grandes riscos e suportastes muitas adversidades. Inclusive trabalhastes com consciência, escavando
com suas próprias mãos. Encontraste-o. O tesouro te pertence por direito e pode fazer com ele o que
lhe agrade.
Benedict olhou os pressente. Lorde e lady Mandeville. Lorde e lady Northwick. Seu pai. Peter
DeLucey. Betsabé. As crianças. Vários criados se congregaram no terraço. Outros observavam a cena
das janelas da casa.
«As cenas são para o cenário», recordou-se.
Olhou de novo a seu pai. Lorde Hargate seguia com a vista cravada em Olivia, mas em seu rosto
havia uma expressão que ele conhecia muito bem.
Era uma expressão muito sutil. Lorde Hargate nunca delatava suas emoções. Mas Benedict o
conhecia muito bem, melhor que muita gente, e percebeu de pronto.
Era a mesma expressão que tinha durante as bodas de Alistair.
Era a mesma expressão que tinha quando Rupert voltou do Egito com sua esposa.
Uma expressão de triunfo.
Benedict a achou lógica em ambas as ocasiões. Contra todo prognóstico, e para o imenso alívio do
conde, seus rebeldes flhos menores se casaram com moças absolutamente respeitáveis e de fortunas
mais respeitáveis ainda.
Mas nessa ocasião e pela primeira vez, Benedict não entendia o motivo pelo qual seu pai parecia
tão ufano.
Enquanto Olivia tirava várias capas de terra do corpo, Betsabé procurou lorde Hargate para lhe
dizer que não necessitaria as vinte libras depois de tudo, e para acalmar suas preocupações com
respeito a seu primogênito.
Os criados lhe indicaram o caminho para a ruína gótica que se elevava na margem oriental do
lago. Tinha sido ereta não fazia muito para dar à paisagem um toque melancólico, propício para a
contemplação e a poesia.
Embora duvidasse muito de que lorde Hargate fosse um homem de inclinações poéticas,
supunha que tinha motivos de sobra para estar melancólico.
Encontrou-o observando o torreão médio ruído com o cenho franzido. Entretanto, não estava tão
distraído para não escutar seus passos.
Virou-se e inclinou a cabeça a modo de saudação.
—Senhora Wingate —disse sem delatar surpresa alguma. Claro que o homem era um perito na
hora de não delatar nada...—. Suponho que veio para me dizer que liberou meu flho de suas garras e
que logo desaparecerá de nossa vista para sempre.
Isso a fez piscar, desconcertada.
—Sim, exato. —Falou-lhe a respeito das duas semanas de prazo que tinha dado a Rathbourne
para que suas emoções se esfriassem.
Lorde Hargate tampouco reagiu.
—Não tenho a menor duvida de que é tempo sufciente para que você e sua família o façam ver
seu engano — disse Betsabé.
—Eu não vejo assim —replicou Sua Excelência.
—É claro que sim —insistiu ela—. Está muito unido a sua família. E por muito que insista em
dizer o contrário, sei que seu trabalho parlamentar e seus projetos flantrópicos lhe reportam muitas
satisfações. Sentiria saudades terrivelmente de tudo isso. Rathbourne é um bom homem, lorde
Hargate. Não é um vago nem um libertino como a maioria de seus pares. Fará muitas coisas boas pela
Inglaterra. Tem uma nobre carreira por diante. E ele sabe. Só necessita que alguém o recorde...
enquanto eu saio do meio. Confo em você para que o obtenha, milorde. Todo mundo diz que é um dos
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Perfeito
homens mais poderosos da Inglaterra. Seguro que bastarão quinze dias para impor sua opinião a seu
flho, não?
—Duvido —respondeu lorde Hargate—. Mas agora mesmo veremos até onde alcança meu poder,
porque ele vem por ali.
Betsabé deu meia volta. Rathbourne caminhava pelo atalho a grandes passadas. Não levava
chapéu e a brisa outonal brincava com seus cachos escuros. Conforme se aproximava, percebeu que
tinha a gravata torcida e de que levava um dos botões da jaqueta sem fechar.
—Não pensaria que meu flho seria incapaz de adivinhar seu seguinte movimento, não é? —
perguntou-lhe lorde Hargate—. Benedict é um político consumado. Além disso, sempre demonstrou
um insalubre interesse pelo comportamento criminal.
—Veio para me despachar de novo, pai? —perguntou Rathbourne—. Sempre está me
despachando e me dizendo adeus. Enfm, essa é sua maneira de demonstrar afeto. Além de me roubar
o dinheiro e a roupa, claro.
—Só queria tranqüilizar seu pai —replicou ela—. É evidente que não pregou olho em toda a
noite.
—Isso é porque esteve acordado tramando algo com seus camaradas conspiradores — explicou
Rathbourne.
—Tramando algo? —perguntou Betsabé.
—Querida, provém de uma larga estirpe de embusteiros e vigaristas —disse Rathbourne—.
Seguro que é capaz de reconhecer um engano assim que o vê.

Betsabé não tinha nem idéia, evidentemente.


Seu olhar o abandonou para cravar-se em seu pai.
Como se seu semblante fosse desvelar seus pensamentos..., disse-se Benedict. Obteria o mesmo
resultado se lhe pedisse explicações ao torreão que tinham atrás. O mesmo haveria dado que tivesse
tentado interpretar a expressão de um tijolo.
—Sei que toda essa cena do terraço não foi mais que uma farsa —disse Benedict, esforçando-se
por manter um tom de voz tranqüilo apesar do desconcerto e a fúria que sentia—. O que não consigo
entender é por que. Por que tomastes tantas moléstias para liberar Betsabé o antes possível? Acreditei
que tinha compreendido que não era necessário. Está decidida a me liberar, tal como ela diz.
—Acredito que minha capacidade dedutiva segue em perfeito estado —respondeu seu pai, que
levou as mãos à costas e pôs-se a andar para o lago com a vista cravada em sua superfície.
Seu olhar cruzou com o de Betsabé, que parecia desconcertada. Benedict deu de ombros. Não
demoraram para reunir-se com seu pai na borda do lago.
Produziu-se um comprido silencio.
Benedict se obrigou a esperar. Seu pai era um professor da manipulação. Era inútil tentar lhe tirar
o controle da situação.
Os passarinhos cantavam. Uma rajada de vento açoitou um monte de folhas, as pulverizando em
todas as direções.
Lorde Hargate deixou que o momento se prolongasse até o limite antes de dizer:
—Estava você equivocada, senhora Wingate. Vim a Throgmorton com uma grande soma de
dinheiro e com várias jóias, contribuição feita tanto por minha esposa como por minha mãe. Estávamos
preparados para lhe entregar uma pequena fortuna em troca de que saísse de nossas vidas para
sempre. Estava preparado para fazê-lo ontem, quando você entrou no escritório, embora já tivesse me
dado conta de que a situação era muito mais grave do que supúnhamos.
—E de que ela não era o que você pensava — comentou Benedict.
—Certo —admitiu seu pai—. Jamais me custou tanto me manter serio como quando a senhora
Wingate se ofereceu a deixá-lo por vinte libras. Morro por contar a sua avó. —Esboçou um meio sorriso
que se desvaneceu com a mesma rapidez com que tinha aparecido e continuou—: Sempre desejei ter
flhas, senhora Wingate, porque meus flhos são uma fonte inesgotável de problemas.
«Eu não —quis gritar Benedict em um arrebatamento infantil—. Por que sempre me joga a
culpa?»
—Sempre diz o mesmo —replicou, em troca—, mas não me parece razoável absolutamente. Não
te dei nenhum problema desde que era menino. —Claro que então recordou um incidente em Oxford.
E depois outro—. Bom, desde que cheguei à maior idade, ao menos.
—Meus flhos são uma fonte inesgotável de problemas, de um tipo ou de outro, senhora Wingate
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Perfeito
—repetiu seu teimoso pai—. Meu primogênito esteve triste muito tempo.
Se lorde Hargate houvesse dito que seu primogênito procedia da Lua, Benedict não teria se
surpreendido tanto.
Claro que a palavra «surpresa» não alcançava a descrever nem de longe o que sentia. O mundo
fcou de pernas pro ar.
Piscou. Várias vezes.
O penetrante olhar ambarino de seu pai o atravessou.
—Antes foi um demônio —disse lorde Hargate—. Dirigia seus irmãos em todo tipo de
travessuras. Ria freqüentemente. Faz anos que não o ouço rir.
—Pois claro que me rio —assegurou Isto Benedict é absurdo.
—Ri —disse Betsabé—. Eu o vi e também o escutei. Faz um par de noites, até acreditei que ia ter
um espasmo.
—Você o faz rir —assinalou lorde Hargate—. Vim aqui e vi o brilho travesso em seus olhos. E
também vi a felicidade que o embargava. Sei que meu primogênito não é nenhum parvo. Nunca
deixou que as mulheres o afetassem tanto como aos seus irmãos. É um bom observador. Teria
reconhecido uma oportunista, disse-me. Teria reconhecido uma aproveitadora. Apesar disso, tinha
minhas dúvidas. Inclusive o homem mais sábio pode cometer um engano garrafal no concernente a
uma mulher. Mas então veio para ver-me com esse conto tão gracioso de que se cansou dele e de que
queria vinte libras para partir. E depois ele entrou pela janela. E nesse momento fcou claro que os dois
estavam apaixonados até tal ponto que roçava a ridicularia. Lamento que minha esposa perdesse essa
cena. Ter-lhe-ia parecido altamente gratifcante. De qualquer modo, a descrevi o melhor que pude na
medida que me permitiram minhas limitadas capacidades na carta que escrevi pouco depois de que
acontecesse.
« gratifcante», repetiu Benedict para si mesmo.
Não tinha sido consciente de quão tenso estava até esse momento, quando se atreveu a respirar
de novo. Não tinha sido consciente do peso que levava sobre os homens até esse momento, quando se
livrou dele.
—Pai... —disse com um nó na garganta.
—Mas ninguém como um de meus flhos para pôr as coisas difíceis — interrompeu seu pai—.
Esperar que escolhesse uma das aceitáveis jovenzinhas que estivemos pondo diante do nariz todo este
tempo era muito.
—Nunca me disseram que fossem uns casamenteiros — disse Betsabé, olhando-o nos olhos.
—Nem sequer se deu conta! —exclamou seu pai antes que pudesse responder—. Não reparou
nas atrativas jovens de impecável linhagem. Não reparou nas formosas herdeiras. Tentamos com
sabichonas. Com jovenzinhas procedentes da nobreza rural. Tentamos tudo. Não reparou em
nenhuma! Mas teve que reparar em Betsabé Wingate, a mulher mais infame de toda a Inglaterra.
—É que as mulheres infames estão acostumadas a chamar a atenção —assinalou ela.
—Talvez se deva a esse interesse insalubre que demonstra pelas classes criminais —aventurou
lorde Hargate—. De qualquer modo, escolheu você e você o faz feliz. Você... A única mulher do mundo
que nunca por nunca, sob nenhuma circunstância, será aceita na alta sociedade.
—Não o culpo por se sentir... incomodado, pai —disse Benedict—, mas...
—Não acontecerá jamais — interrompeu seu pai—. É impossível.
—Nesse caso... — tentou de novo.
—O que o converte em um desafo importante — seguiu seu pai—. Mas se obtive que Rupert se
casasse, posso fazer algo. De qualquer modo, tivemos um golpe de sorte: Mandeville está ansioso por
aparentar nossas famílias.
—Não se eu for o vínculo — disse Betsabé—. Jamais me reconhecerá como um membro de sua
família. Detesta-me.
—A possibilidade de aparentar-se com os Carsington o tem feito mudar de opinião — explicou
lorde Hargate—. Talvez goste da idéia de deixar lorde Fosbury com um palmo de nariz. Não estou
seguro. Quão único sei é que participou de boa vontade em nossa conspiração para convertê-la em
uma mulher respeitável.
—Disse que era uma conspiração —se gabou Benedict.
—O tesouro de Olivia — disse, abrindo esses olhos azuis de par em par.
—Não há nada como uma vasta fortuna para deixar respeitável uma mulher —declarou Benedict.
—O tesouro... —repetiu ela—. Não é de Edmund DeLucey.
—Tecnicamente é dos DeLucey, ao menos em sua maior parte —explicou seu pai—. Mandeville
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Perfeito
tinha um monte de moedas antigas com a efígie de Jorge II e as comprei. Sabíamos que essas crianças
são muito preparadas e reconheceriam de pronto moedas modernas. Northwick e Mandeville
contribuíram com outros objetos da coleção familiar e eu acrescentei as jóias de minha esposa e de
minha mãe. Em conjunto não tem um valor excessivo, mas parece um tesouro e quase todos os criados
presenciaram a abertura do cofre.
—Deveria haver imaginado — disse Betsabé. Fechou os olhos—. Agora o vejo claramente. A luz
do sol refetindo-se sobre as jóias e as moedas. Uma multidão ao redor dos meninos. Não levantei a
vista, mas seguro que os criados estavam colados às janelas. —Abriu os olhos—. Os criados...
—Os criados darão com a língua nos dentes —concluiu Benedict— tal como você assinalou faz
uns dias.
—E, o que é mais importante, exagerarão o assunto — acrescentou lorde Hargate—. Quando o
rumor chegar a Londres, o cofre do tesouro de Edmund DeLucey estará repleto de rubis, safras,
esmeraldas e diamantes. As pessoas dirão que a senhora Wingate possui uma fortuna de vinte mil,
cinqüenta mil... inclusive cem mil libras. E isso, como todo mundo sabe, muda tudo.

Seu pai foi pouco depois com a intenção de seguir passeando pela beirada do lago. Seguro que
estava redigindo cartas mentalmente para o resto da família, pensou Benedict.
—Bom —disse assim que desapareceu o nó que tinha na garganta—, me alegro muito de não
havê-lo estrangulado.
—Não posso acreditar —disse Betsabé—. Quando despertei esta manhã, era uma mulher infame.
Agora sou respeitável. A única coisa que precisava era uma fortuna... tal como Olivia sempre
sustentou. Nem sequer tem que ser uma fortuna real.
Agarrou-a pela mão.
—Agora terá que se casar comigo. E teremos que viver na Inglaterra. Nada de fugir ao continente
para viver como ciganos. Nada de chiqueiros nos baixos recursos da cidade. Nada de escapar dos
ofciais. Será espantosamente aborrecido para você.
Ela o olhou com o cenho franzido.
—Essa é a proposta menos aduladora que escutei. E de lábios de um político consumado nada
menos... É capaz de fazê-lo muito melhor, Rathbourne.
Benedict pôs-se a rir e a tomou nos braços.
—Está melhor assim? —perguntou-lhe.
—Vamos melhorando — respondeu Betsabé.
—Vou levá-la a casa de convidados —disse—. Ali farei amor de forma apaixonada e em repetidas
ocasiões até que diga «Sim, Benedict, casar-me-ei contigo».
—E se não o faço?
—Fará —declarou ele.
E o fez.

Epílogo

A carta, escrita três meses antes, chegou a Peregrine em junho de 1822.

Estimado lorde Lisle:


Obrigado por sua carta, que foi muito interessante, e obrigado também pela estatueta do egípcio,
a qual me agrada lhe informar que chegou sã e salva e não em pedaços como Temia. Foi todo um
detalhe que se lembrasse de mim. Estou muito contente (minha mãe está muito contente, que é mais
importante) mas me teria encantado ir ao Egito com você e com tio Rupert e tia Dafne. Sigo sem
entender por que lorde Rathbourne e minha mãe estavam tão empenhados em nos separar. Como se
tivesse acontecido algo Terrível em nossa Cruzada a Bristol. Não cometemos nenhum Crime... Ao
menos, não cometemos nenhum Crime Capital. De fato, realizamos uma Nobre Tarefa ao unir minha
mãe e seu tio.
De qualquer forma, sigo pensando que é você quem merece o Prêmio, e que tirará mais partido
que eu. Uma idéia muito inteligente por parte da tia Dafne... e muito oportuna, além disso, porque
acredito que seu pai e lorde Rathbourne estavam por um fo de ATAR-SE A GOLPES. Coisa que
também teria sido Muito interessante. O problema é que as Mulheres teriam posto a boca no mundo, e
como minha mãe me disse depois, não era bom que sua mãe se Sobressaltasse tanto em seu Estado.
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Projeto Revisora traduções Loreta Chase -
Perfeito
Tem um irmão, por certo. Veio ao mundo faz cinco dias. Está todo vermelho e enrugado, e parece
um Macaco, mas a senhorita Velkel diz que esse é o aspecto que têm todos os Bebês quando são Recém-
nascidos. Acredito que é porque estiveram apertados sob o espartilho das damas. Sei que à idade de
seus pais é muito escandaloso, mas devemos ver o Lado Positivo. Quantos mais meninos, menos caso
nos farão. Sim, também me incluo, porque suspeito que minha mãe também está nesse Estado.
Seguindo com o Egito... Finjo, tal como disse a tia Dafne a seus pais, que está você no colégio,
salvo que agora encontrou o colégio perfeito no lugar perfeito, um lugar de que podem estar seguros
de que não o vão expulsar. (Sei que o tio Rupert brincava quando disse que o Atiraria aos Crocodilos.)
Remontará o Nilo e descobrirá Grandes Maravilha entre aulas e aulas com a tia Dafne.
Enquanto isso, eu sigo com as aulas da senhorita Velkel. É alemã e muito rígida. Mas estou
decidida a aprender, porque agora sou a enteada de lorde Rathbourne e é essencial que Aprenda a me
Comportar de Forma Adequada a minha Posição. Embora nem tudo são Aborrecidas Maneiras. Uma
vez à semana vou ver a CONDESSA VIÚVA DE HARGATE e jogamos whist com suas amigas. Sempre
estão em dia das fofocas mais suculentas e não engolem nenhum Truque. Aprendi muitíssimo delas.
Neste momento, seu principal tema de conversação é o tio Darius e O QUE SE DEVE FAZER COM
ELE. Não sei o que têm que fazer, porque o vi muito pouco. Penso nele como no Tio Esquivo, porque
não lhe vê o cabelo. Claro que é um Solteiro, e os solteiros costumam levar umas vidas pouco
ordenadas.
Estou desejando me converter em uma Solteira. Eu gostaria de levar uma vida pouco ordenada.
Estive pensando muito no futuro e já tenho várias Idéias.
Mas aqui vem mamãe para que apague a vela. Desejo-lhe o melhor em seus estudos e tomara que
descubra muitas Grandes Maravilhas. Escrever-lhe-ei logo.
Atentamente,

OLIVIA WINGATE-CARSINGTON

RESENHA BIBLIOGRÁFICA
Loretta Chase
Loretta Chase se graduou em inglês pela universidade do Clark. Trabalhou, entre outros
empregos, de administrativa e professora em tempo parcial na universidade. Conheceu seu marido
enquanto colaborava como roteirista de flmes, e foi ele quem a animou a dedicar-se à escritura a tempo
completo. Suas novelas, possuem vários prestigiosos prêmios outorgados por revistas especializadas e
pela associação de escritores norte-americanos de novela romântica.

Perfeito
Ele é um homem irrepreensível, um modelo de conduta para todos. Ela, uma viúva com uma
reputação um tanto duvidosa. Depois de Irresistível e Impossível, chega Perfeito, a terceira entrega da
série ambientada na Regência e protagonizada pelos irmãos Carsington.

Benedict Carsington, herdeiro do conde de Hargate, é o perfeito aristocrata inglês. Alto, moreno e
atraente, todos o conhecem por sua vida irrepreensível, suas maneiras impecáveis e seu elevado
sentido do dever. Têm todas as normas e jamais perde o controle... até que encontra Betsabé Wingate.

Betsabé pertence ao ramo desencaminhado da família DeLucey. Sua fama de embusteiros, vigaristas e
estelionatários a perseguiu sempre. Quando se casou, a enriquecida família de seu marido os deserdou.
Agora que fcou viúva, está decidida a oferecer a sua flha uma vida correta e estável, sem dar pé a que
ninguém fale dela... até que conhece Benedict.

Escolhida pela revista Booklist uma das dez melhores cria novelas românticas publicadas nos
Estados Unidos em 2006, Perfeito é outro dos títulos indispensáveis da Loretta Chase, uma das mais
brilhantes autoras de novela romântica de todos os tempos.

Série Irmãos Carsington


1. Miss Wonderful - Irresistível
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Projeto Revisora traduções Loreta Chase -
Perfeito
2. Mr. Impossible - Impossível
3. Lorde Perfect - Perfeito

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