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Esposa Proibida

Laurel Ames

Clássicos Históricos nº 76

Copyright © 1995 by Barbara J. Miller


Publicado originalmente em 1995 pela
Harlequin Books, Toronto, Canadá.
Título original: Playing To Win
Tradução: Elizabeth Hallak Neilson
EDITORA NOVA CULTURAL
uma divisão do Círculo do Livro Ltda.
Alameda Ministro Rocha Azevedo, 346 — 2º andar
CEP 01410-901 — São Paulo — Brasil
Copyright para a língua portuguesa: 19,96 CÍRCULO DO LrVRO LTDA.
Fotocomposição: Círculo do Livro Impressão e acabamento: Gráfica Círculo.

PROJETO REVISORAS

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.


Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Disponibilização: Nutri.Rosangela
Digitalização: Palas Atenéia
Revisão: Edith Suli

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Ela enfrentou o grande desafio de conquistar aquele homem:
seu próprio marido!

Londres, 1815

Movido por profundo sentimento de honra, lorde Anthony


Cairnbrooke se recusava a consumar o casamento com Vanessa
Barclay. Descobrindo-se herdeiro de vultosa dívida, só faria
Vanessa sua mulher de verdade após pagar o que devia ao dono
do banco: o pai dela!
Apaixonada e vibrante, Vanessa correria qualquer risco para se
aproximar de Anthony, que lhe entregara o coração, mas lhe
negara o direito de viver a plenitude do amor. E teve de se valer
de artimanhas cada vez mais ousadas.

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Um

Londres, setembro de 1815

Uma névoa densa se espalhava pela clareira, envolvendo homens e


cavalos num manto úmido e penetrante. Apenas o roçar de arreios e o
resfolegar dos animais rompia a quietude sombria. Os padrinhos de Tony
Cairnbrooke e os de lorde Vonne terminavam de inspecionar as pistolas.
Estava frio para aquela época do ano.
— Ele concordou em vinte passos. Um tiro cada. — Pelo menos uma vez
na vida Winwood, primo de Tony, tinha uma expressão séria no rosto.
— Já está claro o suficiente? — Tony indagou desinteressado, preocupado
apenas em colocar um ponto final na disputa. Duelar era uma coisa tão
estúpida.
— Dentro de mais uns cinco minutos teremos toda a luz necessária — Win
retrucou, os olhos fixos no horizonte.
— O que Vonne disse quando você o procurou com meus pedidos de
desculpa?
— Ah, você fez amor com a esposa dele! Não pode esperar que um
simples pedido de desculpas resolva a questão.
— Eu sei. Mas eu estava bêbado. Bêbado! Completamente fora de mim!
— Você é um exímio atirador e sabe que pode vencer Vonne quando
quiser. Você está sóbrio agora, não está?
— O bastante!
Winwood afastou-se e foi ao encontro de um pequeno grupo que
conversava sob as árvores. A chuva havia parado e tão logo a névoa se
dissipasse o dia seria agradável para qualquer um, menos para ele, Tony
pensou amargo. Apesar do nascer do sol ainda estar longe, as primeiras luzes
da manhã afastavam a escuridão.

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Lorde Vonne andava calmamente para lá e para cá, como se a situação
em que se encontrava agora fosse rotineira. O que de certa forma o era. No
curto espaço de tempo em que estava casado com Madeleine, já havia duelado
com três homens.
Com um breve aceno de cabeça Tony e o duque cumprimentaram-se e
tomaram posições, um de costas para o outro, iniciando imediatamente a
contagem dos passos. Mas Tony não precisava de tempo para decidir o que
fazer. Sabia muito bem qual atitude tomar.
Quando chegou o momento, virou-se devagar, ergueu a pistola para o alto
e atirou no ar. Afinal a culpa era sua.
Vonne aguardou um instante, como se o comportamento de seu oponente
não o surpreendesse. Então mirou no alvo e atirou. Tony vacilou, ameaçando
perder o equilíbrio. Havia uma queimação estranha na altura de seu ombro. O
zumbido em seus ouvidos era ensurdecedor e os olhos recusavam-se a
enxergar com clareza.
O silêncio ao redor tornara-se palpável. Ao tentar dar um passo para
frente, ele caiu de joelhos.
— Tony foi atingido — Winwood gritou, correndo para amparar o primo.
O sol brilhava agora sobre a saleta dos Barclayv depois de uma noite
chuvosa e uma manhã marcada pelo nevoeiro.
— Ouvi dizer que o jovem Cairnbrooke foi baleado — lady Jane Stanley
comentou.
— Que pena. Espero que sobreviva — respondeu Vanessa Barclay sem
grande entusiasmo.
Observando o rosto de sua protegida, lady Stanley analisou os detalhes
das feições juvenis. Olhos grandes e castanhos, cabelos sedosos da mesma
cor, o nariz um pouquinho aquilino talvez, mas em perfeita harmonia com as
linhas da face.
— Por que você está olhando para mim? — indagou Vanessa, rindo diante
da expressão compenetrada de sua velha amiga.
— Você o conhece?
— Quem? Tony Cairnbrooke? Sim, eu o vi numa reunião. Mas ele sequer
olhou duas vezes na minha direção. Parecia enxergar somente lady Vonne.

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— Sim, minha querida. Foi por causa dela que o coitado levou um tiro.
— Essa mulher é um tipo cruel. Os homens parecem ser incapazes de
perceber a verdade. Se alguém tem muitos amantes, de fato não gosta de
nenhum.
— Homens podem ser bastante inteligentes no que diz respeito a assuntos
financeiros e completamente ignorantes em relação a outros temas. Sinto pena
daquele rapaz.
— Ele já não é um rapaz e devia saber onde estava se metendo.
— As vezes os homens fazem coisas idiotas. Espero que a bala de Vonne
tenha servido para colocar um pouco de juízo dentro da cabeça de
Cairnbrooke.
— Vonne será indiciado?
— Suponho que o conde esteja aguardando o desenrolar dos
acontecimentos pois mandou a esposa para fora da cidade. Mas o paradeiro
dela é desconhecido.
— Como é que você fica sabendo de tantas fofocas? — Vanessa perguntou
sorrindo.
— Tenho muitos amigos, querida. Sou convidada para todas as festas,
chás e reuniões importantes. Foi por isso mesmo que seu pai me pediu para
apresentá-la à sociedade.
— Sim, eu sei. — Vanessa suspirou fundo e arqueou as sobrancelhas,
perdida nos pensamentos. — Então Von-ne também é uma vítima.
— O que você acha dele?
— De Vonne? Eu o vi apenas.
— Não, tolinha, do jovem Caimbrooke — lady Jane a interrompeu,
impaciente.
— É um homem muito bonito, de incríveis olhos azuis. Embora na última
vez em que o vi, no teatro, tenha me parecido quase desesperado.
— Acredito que esteja sofrendo muito por causa da morte do irmão. Pelo
menos é o que diz sua mãe.
— O irmão morreu durante os conflitos da Bélgica?
— Sim.
— Eu não sabia. Você pertence ao círculo de amigos íntimos dos

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Caimbrooke? Por favor, transmita-lhes minha simpatia.
— Você gostaria de fazer-lhes uma visita amanhã?
— Não creio que a família esteja com vontade de receber visitas, com um
dos filhos morto e o outro… Espere um momento — Vanessa falou de repente,
cheia de suspeitas. — Aposto que você está planejando alguma coisa.
— Talvez uma visita seja um tanto prematura — lady Jane murmurou para
si mesma, andando de um lado para o outro da sala —, mas convidá-los para
um pequeno jantar seria perfeitamente aceitável.
— Convidar quem?
— Os Caimbrooke, claro, e Anthony. Você não está me ouvindo, menina?
— Ah, entendo. Outra vítima.
— Um marido em potencial não deve ser rotulado de “vítima” por uma
jovem dama já passada dos vinte anos.
— Recomendo que você não faça plano. Ainda é muito cedo.
— Por que não? Por acaso você tem aversão pelo Caimbrooke?
— Não sabemos sequer se ele sobreviverá.
— Não há motivos para sermos tão frias a respeito do assunto.
— Estou apenas sendo realista. Além do mais esse Anthony devia estar
realmente envolvido pelos encantos de lady Vonne ou não se arriscaria a
morrer por causa deste amor. Será bastante improvável que ele demonstre
qualquer interesse por mim, não importando quanto dinheiro meu pai possa
ter.
— Não seja mercenária. Não se trata de dinheiro. Não neste caso.
Vanessa deu de ombros e serviu-se de mais chá. Sendo filha de um
banqueiro, aprendera a vestir uma couraça quando a questão era homens.
Nestes últimos três anos havia sido tão cortejada, em conseqüência da fortuna
do pai, que deixara de ter fé no sexo masculino.
O que mais a irritava era que todos fingiam gostar dela quando tinham
olhos apenas no seu dote. Nem sempre era fácil descartar aqueles tipos
nojentos, porém preferia aborrecer-se agora do que casar-se com algum
mentiroso e interesseiro. Em se tratando de Caimbrooke, tinha medo de tentar
pois um sexto sentido lhe dizia que poderia vir a se apaixonar perdidamente.
O dia seguinte amanheceu chuvoso e Vanessa decidiu aproveitar as horas

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livres para comprar alguns itens que Marie, sua costureira francesa, julgava,
indispensáveis a um guarda-roupa elegante. O interesse de Marie era
inestimável e ela não se cansava de percorrer as lojas da moda em busca do
que pudesse favorecer a figura de sua jovem patroa.
— Mademoiselle terá somente que experimentar para ter certeza de que é
perfeito — a costureira falou entusiasmada, subindo na carruagem.
Provavelmente Marie tinha razão, Vanessa admitiu. Quando alguém
elogiava um vestido seu, por exemplo, ela simplesmente agradecia e dava o
crédito ao talento de Marie. O fato é que a não ser os figurinos usados nas
peças teatrais que tanto apreciava, roupas pouco lhe interessavam. Fora seu
pai quem lhe despertara o gosto pelas artes em geral, quando ainda era
menina, e chegara a convidar Armand Travesian, um ex-ator agora
transformado em dono de teatro, para pertencer ao círculo de amigos íntimos
da casa. Desde então Vanessa começara a participar da produção das peças e
no momento dedicava-se a escolher o figurino para a próxima montagem, The
Count Recounts, enquanto dava os últimos retoques no roteiro.
Finalmente chegaram à loja. Desta vez Marie queria lhe mostrar um
chapéu cinza-claro que seria perfeito para compor o novo traje de montaria.
Pequeno, ajustado à cabeça, uma das pontas caída sobre a sobrancelha e uma
pluma não muito grande como único enfeite. Um acessório de extremo bom-
gosto.
Quando estava pronta para ir embora, Vanessa descobriu que a dona da
loja também apreciava roupas antigas e que, por acaso, guardava um baú no
sótão cheio de perucas além de um vestido de baile com mais de trinta anos e
pouquíssimo uso. Vanessa nem pensou duas vezes antes de comprar o tal baú
e mandar levá-lo para a carruagem.
— Vamos parar no teatro antes de irmos para casa — ela avisou à
costureira. — Armand deve estar fazendo testes com os atores para a
montagem de The Count.
O Atenas, na rua Stanhope, não era um teatro novo, porém havia sido
inteiramente reformado graças a generosidade de Vanessa. Tratava-se de uma
construção alta e estreita, com camarotes, balcões e cadeiras forradas de
veludo dourado. Talvez tudo fosse apenas uma questão de ilusão, mas ao

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aproximar-se do palco tinha-se a impressão de estar penetrando num
ambiente mágico, iluminado por dezenas de candelabros invisíveis.
O escritório e os aposentos de Travesian ficavam no andar superior
enquanto os camarins haviam sido construídos sob o palco elevado para
aproveitar todo o espaço disponível. Com quatrocentos lugares, o Atenas
estava longe de ser o menor teatro de Londres. Entretanto somente nesta
última temporada, com a montagem de Lady Mellefleur’s Boudoir, começara a
dar lucros. Até então, se não fosse a ajuda de Vanessa, não haveria dinheiro
sequer para pagar os salários e figurinos.
— Vamos ter que cortar a luta com espadas — Travesian reclamou,
observando os dois homens que treinavam no palco.
— Mas a luta é essencial para o desenrolar da cena — Vanessa ponderou.
— O fato é que não consigo encontrar um ator que saiba esgrima.
— Bobagem. Você sabe esgrimir.
— Porém sou muito grandalhão para o papel de De-Vries. Você poderia
fazer o personagem melhor do que eu. A propósito, por que?
— Não seja absurdo. Tenho que servir de ponto aos atores. Não posso dar
conta de tudo sozinha.
— Calma, eu estava apenas brincando.
— As vezes é difícil saber se você está brincando ou falando sério. Que tal
contratar um professor de esgrima que saiba interpretar?
— Na sua opinião ele faria o papel de quem?
— O vilão não tem muitas falas. Contrate um ator para o conde e um
professor de esgrima para o vilão. Assim a luta parecerá equilibrada.
— Talvez valha a pena tentar. Agora venha comigo, quero que conheça
alguém.
Armand conduziu-a até um dos camarins onde um rapaz estudava o script
sem se importar com a confusão e o barulho ao redor.
— Conde DeVries! — Vanessa exclamou no mesmo instante.
— Se você pensa assim, então é melhor nós o contratarmos logo.
— Albert Brel — o homem apresentou-se, um leve sotaque marcando a
voz grave.
— Esta é Vanessa Barclay, uma de minhas patronas. Mas a posição dela é

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para ser mantida em segredo.
— Claro — Brel concordou, surpreso pela demonstração de confiança.
— Prazer em conhecê-lo. — Vanessa sentou-se num banquinho e
preparou-se para ouvir o jovem ator ler uma cena. Embora precisasse de
muito ensaio, tinha certeza de que tratava-se da pessoa indicada para fazer o
personagem. Travesian acertara mais uma vez.
— E o que você está estudando hoje, menina? — Barclay indagou,
entrando na biblioteca. O sorriso amoroso no rosto marcado pelas rugas
mascarava a mente arguta e voltada para os negócios.
— Estou apenas olhando alguns livros, papai. Vamos para Gott Farm
passar a semana?
— Devo mesmo estar negligenciando-a, filha, se já se sente entediada
com a vida na cidade.
— Nunca fico entediada.
— Mas você quase não sai de casa, exceto para visitar livrarias ou galerias
de arte.
— Tolice. Vou ao teatro várias vezes por semana.
— Sempre ao Atenas. Sempre a mesma peça.
— Travesian fez uma bela montagem e não me canso de assisti-la. Espere
só até ele lhe contar sobre a próxima produção. Eu o convidei para jantar
conosco no domingo.
— Quase me arrependo de tê-lo apresentado a, você, minha filha.
— Não é verdade. Você também o acha uma pessoa divertida.
— Como Henrique VIII sim, mas nem sempre como convidado.
— Ele é capaz de animar a festa mais chata do mundo.
— Exatamente! Você não deveria estar sendo obrigada a organizar
jantares enfadonhos para mim e sim indo a bailes, festas, chás beneficientes.
Você deveria estar se encontrando com pessoas da sua idade, querida.
— Mas eu vou a bailes e festas com lady Jane e me encontro com pessoas
da minha idade.
— Verdade?
— Vamos, papai, pode ir direto ao assunto. Sei que você está querendo
me dizer alguma coisa. Pare de fazer rodeios.

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— Sinto ter subestimado sua perspicácia. O que eu queria era que você
organizasse um pequeno jantar para alguns amigos meus.
— Por que não me disse logo? Adoro entreter seus amigos. Quem são
eles? O sr. Southey ou talvez lorde Grenville?
— Não não. Desta vez meus convidados serão lorde e lady Cairnbrooke e
o filho deles, Anthony. Lady Jane também estará presente.
— Oh. — Vanessa fingiu surpresa. — Aposto que a idéia partiu de lady
Jane.
— Bem, ela sugeriu o encontro. Além do mais está empenhada em lhe
arranjar um marido adequado.
— Sim, eu sei. E com certeza o coitado do Cairnbrooke ainda está muito
enfraquecido para escapar à armadilha.
— Garanto-lhe que ele virá de livre e espontânea vontade.
— Deve ser por isto que seus pais o estão acompanhando. A mãe para lhe
dar apoio moral e o pai apon-tando-lhe uma arma para a cabeça.
— Fique tranqüila, não é assim. O rapaz não vai se casar porque esteja
precisando de dinheiro e sim para pôr um ponto final no falatório envolvendo
os Vonne. Trata-se de uma ótima família e você terá um título. O pai de
Anthony e eu conversamos e…
— Até onde os arranjos foram feitos?
— Como assim?
— Estou querendo saber se vocês apenas trocaram idéias sobre a
possibilidade de um casamento ou se a sra. Cairnbrooke já mandou a notícia
do noivado para o The Post?
— Digamos que as conversas estejam adiantadas.
— Suponho que terei que me casar algum dia mesmo. O fato é que
sempre pensei que acabaria me casando com um banqueiro ou advogado, não
com uma figura romântica como Cairnbrooke.
— Você parece estar se divertindo às custas dele.
— É porque ainda não descobri para que serve a alta sociedade de
Londres. As pessoas que a freqüentam costumam fazer coisas tão estúpidas.
Embora às vezes me surpreendam.
— Você não tardará a descobrir que lorde Cairnbrooke é um homem de

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muito bom senso.
— Deve ser por isso que ele esteja querendo se livrar do filho causador de
problemas assim como você quer se ver livre de mim.
— A verdade é que os Cairnbrooke desejam ver o filho casado com uma
boa moça, na esperança de que o casamento lhe dê responsabilidade e um
novo interesse pela vida.
— Mas e se ele não se interessar por mim?
— Não vejo por que isso aconteceria — Barclay respondeu muito sério. —
Você é bonita e feminina. Ninguém iria imaginar que trata-se de uma
intelectual, interessada apenas em livros.
— Obrigada — Vanessa falou sorrindo de maneira afetada.
— Você entendeu o que eu quis dizer.
— Entendi sim, papai. Muito bem. Farei isso por lady Jane.
— Como assim?
— É óbvio que ela nunca se casará com você até me ver sossegada ao
lado de um marido.
— Sua danadinha. Eu deveria ter imaginado que seria impossível esconder
qualquer coisa de você. Então vou escapar das garras de uma para cair nas de
outra. Ah, as mulheres!
— Para quando devo marcar o jantar?
— Para o próximo sábado. Porém não precisa se incomodar, já cuidei do
assunto.
— Pai! E se eu tivesse me recusado?
— Eu sabia que podia contar com o seu bom senso. Você nunca me
decepcionou.
Depois que o pai saiu, Vanessa tentou se concentrar na leitura do The
Times, entretanto tudo em que conseguia pensar era nos olhos mais azuis que
jamais vira. Esse Tony despertava-lhe uma simpatia profunda e inquietante.
Bem que gostaria de ter o poder de fasciná-lo, porém não estava acostumada
a lançar mão de certos artifícios femininos. Acabaria apenas rindo de si
mesma, como tantas vezes rira de outras mulheres.

— Você gostaria de dar uma olhada no contrato de casamento? Asseguro-

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lhe que Barclay foi muito generoso. — Lorde Cairnbrooke tomou o resto do
conhaque, os olhos fixos no papel sobre a mesa.
— Não. Tenho certeza de que está tudo certo. Você é bom nesse tipo de
coisa, pai. — Tony respondeu com uma ponta de ironia.
Sem saber se o comentário era um insulto ou elogio, Cairnbrooke sorriu e
esfregou as mãos satisfeito.
— Onde está sua mãe? Amanda? — ele gritou sem sair do escritório. —
Vamos chegar atrasados! — Voltando-se para o filho, continuou: — Nmguém
espera que você a peça em casamento esta noite. Simplesmente trate-a de
maneira agradável e gentil. Se a moça mostrar-se muito difícil de lidar, claro
que ainda poderemos voltar atrás.
— Oh, não, ela não é difícil de lidar. De fato é mais respeitável do que
qualquer um de nós. Talvez seja até um tanto austera.
— Bom Deus, espero que não seja um tipo metida a intelectual.
— Não é isso. De fato lembro-me de que tem um belo sorriso e um cabelo
maravilhoso.
— Eu não sabia que você a conhecia. É uma atitude louvável a sua.
— Nem tanto. Infelizmente ela já me viu fazer papel de tolo, o que anula
qualquer vantagem.
— Não deixe que isto o incomode. Amanda! — Lorde Cairnbrooke gritou
de novo, sem ao menos virar a cabeça.
— Lady Cairnbrooke os está aguardando na carruagem, senhor —
informou-os um servo, entrando no escritório.
— Típico dela não nos avisar.
Tony estava muito bonito, Vanessa pensou, apesar da palidez e do braço
imobilizado numa tipóia. O jantar foi excelente, a conversa nem tanto. Não
pela primeira vez em sua carreira de anfitriã, Vanessa viu-se obrigada a
amenizar o choque entre convidados com interesses tão divergentes. Seu pai
gostaria de falar apenas sobre finanças, lorde Cairnbrooke não demonstrava
outros interesses que não fossem cavalos e caçadas. Talvez os dois
encontrassem um ponto em comum na política, porém Vanessa decidiu não
arriscar, Além do mais o assunto excluiria lady Amanda e lady Jane, além de
Tony, que demonstrava não se importar com nada. O que não era de se

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admirar, pois apesar dos esforços para manter uma expressão tranqüila, ele
parecia ter febre e sentir muita dor.
— A renda da toalha é belga, querida? — lady Amanda indagou, num dos
intervalos da conversa.
— Sim. É uma das poucas coisas que eu trouxe comigo de lá.
— Você esteve na Bélgica? Quando? — Tony perguntou, mostrando
interesse genuíno pela primeira vez.
— Na primavera. — Vanessa respondeu hesitante, preferindo não fazê-lo
recordar do irmão. — Pensamos que seria seguro alugar uma casa para a
temporada. Eu não tinha idéia que as férias se tornariam tão excitantes.
— Eu nunca deveria tê-la deixado lá para atender negócios urgentes aqui
— Barclay falou arrependido.
— Foi escolha minha ficar. Na época ninguém levava Napoleão muito a
sério.
— Você ficou presa lá, por causa da batalha? — Tony voltou a indagar.
— Não. Suponho que poderia ter saído do país a qualquer momento, mas
preferi não fazê-lo. O suspense era terrível. Queria estar a par da situação.
Felizmente vencemos, mas…
— O preço foi terrível — Tony completou, desviando o olhar.
— Sim. Minha criada ficou escandalizada quando rasguei vários vestidos
para fazer ataduras.
— Você o quê? — perguntaram lady Amanda e lady Jane ao mesmo
tempo.
— Não poderíamos nos desfazer dos lençóis. Eram necessários para os
feridos.
— Quer dizer que eles levaram feridos para a nossa casa? — Barclay mal
conseguia disfarçar o assombro diante do relato da filha.
— Não, Marie e eu carregamos os feridos para a nossa casa. As ruas de
Bruxelas estavam cheias deles. Devo dizer que nunca tive as damas da
sociedade em grande consideração, mas não houve uma só delas, nem a mais
bonita e delicada, que se recusasse a ajudar os feridos. Essa atitude e a
coragem dos soldados me encheram de admiração.
— Eu não fazia idéia — murmurou Barclay atônito. — Quanto tempo durou

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tudo isto?
— Algumas semanas, acho. Estávamos tão ocupadas que perdi a noção do
tempo.
— Eu deveria tê-la trazido comigo.
— Não. Sinto-me feliz por ter ficado.
Tony brindou-a com um sorriso cativante, como se ao cuidar dos soldados
houvesse de certa forma ajudado seu irmão.
Foi somente ao ouvir lady Jane clarear a garganta que Vanessa conseguiu
desviar a atenção daqueles incríveis olhos azuis.
— Senhoras, vamos passar para a saleta?
Lady Jane aproveitou a oportunidade e convidou lady Amanda para
conhecer o jardim de inverno enquanto recomendava a Tony não deixar de ver
as aquarelas que Vanessa havia feito durante sua viagem à América. A
tentativa de juntar o casal era evidente, porém nenhum dos dois demonstrou
haver percebido a manobra. Vanessa apanhou um candelabro e levou Tony até
a sala ao lado, apontando para uma das paredes.
— Aqui estão as aquarelas. É melhor você dar uma olhada, mas não se
sinta obrigado a elogiá-las. Foi a vaidade de meu pai que as mandou
emoldurar, não a minha.
— As aquarelas são bastante boas — Tony comentou verdadeiramente
surpreso.
— Em outras palavras, muito melhores do que você imaginava.
Ele riu.
— Se você consegue ler mentes, então já sabe por que estou aqui.
— A essas alturas, até os empregados que trabalham na cozinha já sabem
por que você está aqui. Meu pai quer se livrar de mim para casar-se com lady
Jane.
— Meu pai também quer se livrar de mim.
— Quer dizer que, no final nas contas, temos algo em comum.
— Você se oporia a casar-se comigo?
— Não, de jeito nenhum. Mas antes tenho uma confissão a lhe fazer.
— Confissão?
— Sim. É que não posso viver longe dos livros. As vezes passo noites

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inteiras sentada à escrivaninha, escrevendo poesias.
— É tudo? Suponho que eu deva lhe dizer o pior a meu respeito.
— Não há necessidade.
— Você já ouviu o suficiente então?
— Apenas o que lady Jane me contou. Mas são águas passadas. Queria
somente que você me prometesse não ser baleado outra vez.
— Vou fazer o possível. Você quer que eu a peça em casamento numa
outra oportunidade ou…
— Provavelmente acabaríamos sendo obrigados a agüentar mais um
jantar como este.
— Neste caso, aceita casar-se comigo?
— Sim.
Tony teve um pouco de dificuldade para tirar o anel de dentro do bolso do
paletó por causa da tipóia.
— Pertenceu à minha avó — ele falou, tomando a mão delicada entre as
suas.
— É lindo — Vanessa murmurou, admirando o brilhante solitário. Ao sentir
os lábios masculinos tocarem os seus, ela teve certeza de que não cometera
um erro. Outros homens já a tinham beijado, porém jamais experimentara
emoção alguma. Tony era o homem de sua vida. O instinto lhe dizia isto.
— Vamos participar o noivado às nossas famílias?
— Não agora. Vamos deixá-los em dúvida tanto quanto possível. Veja só o
que nos fizeram passar.
Foi somente quando os Cairnbrooke estavam de saída que Vanessa exibiu
o anel no anular direito.
— Vocês, seus impostores! Por que não nos disseram logo? — Barclay
exclamou, sorrindo de orelha a orelha.

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Dois

A cerimônia de casamento foi simples e reservada. Somente lorde e lady


Cairnbrooke, o pai da noiva e lady Jane estiveram presentes, além de
Winwood, que veio de uma festa no campo especialmente para a ocasião.
Vanessa o achou charmoso, apesar de um tanto tolo.
Tudo havia sido preparado tão às pressas que Vanessa não pôde evitar
uma sensação de irrealidade ao dizer os votos diante do padre. Aquelas
palavras não eram simples falas de uma peça, mas promessas que deveriam
ser cumpridas ao longo da vida.
— Bem mais simpático do que o uso de pistolas — Winwood comentou
observando o primo segurar a faca para cortar o bolo. Embora Vanessa
julgasse o comentário inoportuno, Tony pareceu não se incomodar e apenas
sorriu.
— Talvez devêssemos ter ido passear pelo continente como seu pai
sugeriu — Tony falou de repente, enquanto a carruagem os levava na direção
do sul da Inglaterra.
— Mas eu gosto de Brighton.
Ele sabia que sua noiva era uma mulher muito viajada e teria sido
agradável explorar outros países ao lado dela. Porém Vanessa estava certa ao
se decidir por uma lua-de-mel curta. Ainda não inteiramente recuperado do
ferimento no ombro, não se sentia capaz de enfrentar longas distâncias e
trajetos intermináveis. Além do mais a estrada para Brighton já era difícil de
tolerar, mesmo numa carruagem confortável. Procurando ajeitar-se de forma a
proteger o ombro, Tony decidiu conversar com a noiva para passar o tempo.
De fato ela o surpreendia de muitas maneiras. Espirituosa, inteligente e
parecia adivinhar o que ele estava pensando. Claro que já havia visto mulheres
mais belas, porém nenhuma tão cheia de classe e elegância. Uma vez que se
chegava a notar aqueles olhos escuros, a boca generosa e o nariz ligeiramente
aquilino, era impossível esquecê-los. Mal podia esperar o momento de ver os

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cabelos castanhos e sedosos caídos sobre os ombros delicados. Comparada a
lady Vonne, Vanessa seria descrita como um tipo bonito mas sem nada de
especial, entretanto sentia-se satisfeito por tê-la como esposa.
Aquela história envolvendo os Vonne havia sido terrível. Só não se
lembrava como tudo acontecera. Na verdade depois da morte de Charlie a vida
perdera bastante a importância e Madeleine lhe oferecera simpatia e
compreensão. Pena que a demonstração de simpatia tomara rumos perigosos.
Ao perceber que a noiva o fitava, uma expressão preocupada no rosto, Tony
sorriu, perguntando-se se seus pensamentos eram assim tão fáceis de serem
lidos.
— Desculpe-me se não estou sendo uma boa companhia de viagem.
Vanessa estivera a ponto de indagar se o ombro dele doía muito quando
mudou de idéia, certa de que não seria a coisa adequada a dizer.
— Será que as pessoas o interpretarão mal por ter se casado enquanto
ainda está de luto pela morte de seu irmão?
— Não, uma vez que nosso casamento foi uma cerimônia íntima. Além do
mais, se todas as pessoas que estão de luto na Inglaterra pela perda de
alguém no conflito da Bélgica resolvessem não se casar, não haveria
casamento algum. De qualquer forma não deve ter sido muito agradável para
você a ausência de festas ou comemorações.
— Eu não iria querer um show. Casamentos devem ser reservados, não
uma peça a ser encenada diante de estranhos.
— Que coisa estranha para se dizer. — Tony sorriu, encorajando-a.
— Sim, em especial levando-se em consideração minha paixão pelo
teatro. Mas o palco é o lugar adequado para gestos grandiosos e discursos
eloqüentes. A vida real é algo bem diferente.
— Fico feliz que um de nós tenha os pés firmemente plantados no chão.
Estes últimos meses têm sido um verdadeiro pesadelo para mim. Até
encontrá-la.
— Por causa de seu irmão.
— Sim. Ainda bem que você é capaz de compreender. Ele pensava que
tudo não passava de uma farsa, de uma brincadeira, e que logo voltaria para
casa. É duro não saber sequer como meu irmão morreu ou onde foi enterrado.

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— Como você se sentiria se ele tivesse sobrevivido?
— Vivo outra vez.
— Finja que você é seu irmão. Viva a vida que ele teria vivido.
— Fingir não é uma coisa que eu saiba fazer. Mais cedo ou mais tarde o
peso da realidade tornaria a me esmagar, o vazio da alma continuaria a me
atormentar.
— Então procure se convencer de que o sofrimento pela perda de alguém
irá terminar quando seu ombro sarar. Se a dor é tão profunda quanto eu
imagino, levará algum tempo, porém há chances de recuperação.
— A dor causada pela morte jamais terá fim — Tony falou num tom baixo
e angustiado. — Nunca me esquecerei.
— Não, acho que não.
— Você não sabe o que é perder alguém. Eu… desculpe-me sua mãe…
— Não cheguei a conhecê-la. Mas vi muitos homens morrerem.
— Em Bruxelas?
— Sim. Eram todos tão resignados, incapazes de reclamar, mesmo
quando sabiam.
— Você não deveria ter passado por isto.
— Não. Sinto-me feliz por haver ficado, ainda que na maioria dos casos
pouco conforto eu pudesse oferecer. Pelos menos demonstrei que alguém se
preocupava com eles.
— Você teve a sorte de estar no meio do conflito. Não foi obrigada a
suportar a espera.
— Mas há uma coisa que você pode fazer agora e eu não.
— E o que é?
— Trabalhe para que não haja uma outra guerra como esta. Perdemos
parte de toda uma geração. O país não agüentará sacrifício semelhante tão
cedo.
— Uma carreira política? Espero que você não alimente este tipo de
ambição para mim. Além do mais, por que você se preocuparia com assuntos
sérios?
— O fato de eu ser mulher não significa que não possa pensar em tais
coisas.

18
— Então você é mais incomum do que imaginei a princípio.
Ao chegarem a Brighton, logo descobriram que Marie e Stewart, o criado
pessoal de Tony, já haviam levado a bagagem de ambos para o hotel e
estavam prontos para atendê-los. Embora não fosse o hotel da moda, o Old
Ship era extremamente confortável e elegante, o melhor que conseguiram
reservar num curto espaço de tempo. Apesar de preferir dar um passeio na
praia, Vanessa insistiu que descansassem até a hora do jantar, com da
desculpa de que a viagem fora cansativa. De fato preocupava-se com o bem
estar do noivo.
Tony ficou aliviado por não ter sido arrastado imediatamente para a
cidade. O ombro doía muito e algumas horas de sono seriam bem-vindas.
Ao sair do quarto, Vanessa encontrou Stewart no corredor.
— Por acaso lorde Cairnbrooke conseguiu dormir? — indagou esperançosa
do contrário.
— Sim, mas posso acordá-lo se a senhora quiser.
— Não ouse fazer isto! Mesmo uma viagem curta é um tremendo esforço
para alguém cujo ferimento ainda não cicatrizou. Nós deveríamos ter ficado em
Londres.
— Meu lorde é um homem forte — o criado respondeu, surpreso com a
perspicácia de Vanessa.
— Eu sei, mas pelo menos por enquanto devemos tentar fazê-lo descansar
o suficiente. Você não lhe dirá que saí para dar um passeio, não é?
— Não, claro que não.
— E deixe-o acordar sozinho. De repente tomei um gosto estranho por
jantares tarde da noite.
— Sim, minha lady — Stewart falou com um sorriso.
Tony chamou a atenção de Vanessa por não tê-lo acordado, entretanto o
tom era de brincadeira já que se sentia renovado depois da longa soneca. O
jantar foi servido no restaurante do hotel e ele procurou escolher os pratos que
mais agradassem a noiva. Ela fez perguntas sobre a infância e adolescência de
Tony que falou ser reservas sobre suas aventuras de criança, vividas em Oak
Park. Após a refeição, os dois resolveram caminhar pela King’s Road até a
Marine Parade.

19
O passeio foi bastante agradável e Tony contava um pouco da história da
cidade enquanto mostrava as construções mais antigas. Foi quando estavam
voltando para o hotel que um rapaz afastou-se do grupo de amigos com quem
conversava e aproximou-se.
— Meu nome é Wentworth. Não nos conhecemos, porém eu queria saber
se você esteve na Bélgica.
— Não, não estive — Tony retrucou friamente.
— Na Península então? Eu só queria saber por que…
— Faça suas perguntas sobre a guerra à minha mulher. Ela esteve em
Bruxelas. — Virando-se de costas, Tony afastou-se sem esperar pela esposa.
Embora não concordasse com o comportamento do marido, Vanessa
permaneceu onde estava.
— Desculpe-me — Wentworth murmurou desajeitado. — Eu não quis
ofender ninguém. Apenas presumi que…
— Uma suposição natural, eu sei. Mas você acabou irritando-o. Meu
marido foi ferido num duelo e não é uma boa idéia contrariá-lo — Vanessa
correu atrás de Tony, largando o rapaz plantado no meio da rua.
— E então? Você o colocou a par das últimas notícias?
— Não, mal falei com ele. Achei-o bastante presunçoso.
Tony não lhe ofereceu o braço desta vez e ambos caminharam em silêncio
para o hotel. Chegando lá, separaram-se no corredor e cada qual rumou para
o próprio quarto sem dizer uma palavra. Uma saleta de visitas fazia a ligação
entre os dois aposentos e Vanessa ficou ali sentada, durante algum tempo, na
esperança de que o marido aparecesse. Porém Tony não deu sinal de vida.
Infelizmente ela o tinha magoado, não porque fizera alguma coisa errada hoje
e sim porque revelara sua participação no conflito acontecido na Bélgica.
Somente agora lhe ocorria que Tony sentia-se abatido por não haver
tomado parte da batalha. Seu marido era um homem estranho e como não
sabia o que dizer para fazê-lo sentir-se melhor, decidiu ficar calada. Não se
tratava de uma solução para o problema, contudo evitava maiores dissabores.
— Talvez o ombro dele ainda o incomode — Marie ponderou na manhã
seguinte, enquanto Vanessa, os olhos vermelhos e inchados, debruçava-se
sobre uma xícara de chá sem ter ânimo para bebê-la.

20
— Sim, talvez seja isto. Não é de se estranhar que ele tenha passado a
noite em claro, bebendo, tentando minimizar a dor. Suponho que tenha sido
uma idéia idiota vir para a lua-de-mel sem que o noivo esteja plenamente
recuperado. O problema é que lorde Cairnbrooke insistiu na viagem, achando
que seria bom nos ausentarmos de Londres durante alguns dias. — Só não
sabia se a atitude do sogro visava o bem estar de ambos ou a vontade de
contribuir para que os boatos envolvendo os Vonne tivessem um fim.
Vanessa ainda não estava apaixonada por Tony, mas sentia que amá-lo
seria mera questão de tempo. Embora não soubesse exatamente o que
esperava da noite de núpcias, com certeza jamais lhe passara pela cabeça que
seria ignorada de forma tão contundente.
Apesar do desaponto, obrigou-se a engolir os sentimentos feridos e
aguardar o marido calmamente, bebericando uma xícara de chá. Ao surgir na
saleta, a aparência de Tony não podia ser pior. Os olhos azuis estavam sem
brilho e a expressão cansada do rosto sugeria uma terrível dor de cabeça.
— Eles trouxeram café também. Gostaria de tomar um pouco? — Vanessa
indagou, fazendo questão de mostrar-se tranqüila e de bom humor.
— Não, obrigado. — Tony apanhou o jornal e começou a ler as notícias,
como se preferisse não encará-la. Eles haviam conversado com tanta facilidade
antes do casamento e mesmo durante a viagem e o jantar da noite anterior.
Por que agora essa sensação de estranheza? Instintivamente Vanessa sabia
que uma explosão de raiva ou lágrimas serviria apenas para piorar a situação.
Assim partiu para outra tática.
— O que gostaria de fazer hoje?
— Qualquer coisa que você quiser — ele retrucou sem interesse, como se
fosse seu dever atender aos desejos da esposa.
— Talvez pudéssemos dar um passeio e apreciar a cidade.
— Sim, claro. Tão logo você esteja pronta. — Apesar da resposta rápida,
Tony sequer ergueu a cabeça do jornal.
Vanessa terminou a refeição em silêncio, engolindo os pedacinhos de
torrada com extrema dificuldade. Sabia-se estar enfrentando uma situação
difícil e uma palavra errada poderia pôr a perder o futuro daquele casamento.
Quando enfim julgou já haver comido uma quantidade razoável, levantou-se

21
para colocar o chapéu e as luvas. Propositalmente demorou alguns minutos a
mais, querendo dar ao marido a chance de ficar a sós. Ao voltar, sentiu-se
recompensada. Tony pelo menos tomara uma xícara de café.
Eles caminharam pela Marine Parade em silêncio, sob o sol tépido de
setembro. O ar tinha o delicioso cheiro do mar, fazendo-a pensar em Bruxelas.
Quando estava para comentar a beleza do dia, Tony falou de repente:
— Suponho que Wentworth e seus amigos estejam rindo de mim.
Foi então que Vanessa viu o grupo de rapazes do outro lado da rua.
Wentworth olhava para Tony, claramente sem saber como agir. Ela fez um
breve sinal com a cabeça, querendo mantê-lo a distância.
— Eles não me parecem inclinados a risos. O mais provável é que
Wentworth esteja tentando decidir se deve arriscar um pedido de desculpas ou
manter-se distante para evitar uma situação perigosa.
— Sobre o que você está falando? — Tony perguntou, os olhos fixos no
grupo de rapazes.
— Quando informei a Wentworth que você havia sido ferido num duelo,
ele ficou paralisado e mal encontrava palavras para se desculpar. Com certeza
deve ter pensado que seu oponente levou a pior.
— O quê?
— Ele com certeza achou que você havia ido pegar as pistolas no hotel
quando nos deixou plantados no meio da rua. Aposto que neste momento um
dos amigos de Wentworth o está aconselhando a vir lhe pedir perdão enquanto
o outro deseja apenas que todos nos dêem as costas e saiam correndo em
disparada.
Por um instante Tony não soube o que responder, indeciso entre ficar
irritado com Vanessa ou rir de toda a situação. Por fim escolheu a segunda
alternativa.
— Como é que você foi deixar aquele rapazinho estúpido pensar que sou
uma personalidade desvairada?
— Não contei nenhuma mentira. Você acha que ele encurtaria as férias
aqui por medo de ser desafiado para um duelo?
— Não, acho que não. O que, exatamente, você lhe disse?
Como Tony ainda continuasse rindo, ela respondeu sem hesitar.

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— Disse apenas que era tarde demais para um pedido de desculpas, pois
você já se considerava ofendido.
— Estou chegando a conclusão de que você é a mais perigosa de nós dois.
— Eu? Que mal eu poderia causar?
De repente a expressão do rosto de Tony mudou, a beleza máscula
transformando-se numa máscara de pedra. Os olhos azuis estavam fixos numa
jovem mulher que se aproximava, acompanhada de dois cavalheiros.
Ela era loura e incrivelmente bonita, Vanessa admitiu, embora a
maquiagem pesada e as roupas muito enfeitadas estivessem mais de acordo
com o palco.
Tony hesitou. Ou atravessariam a rua ou dariam meia-volta para evitar o
trio. Percebendo o desconforto do marido, Vanessa decidiu tomar a iniciativa.
— Aquela é lady Vonne, não é? Vamos acabar nos encontrando mais cedo
ou mais tarde. Talvez seja melhor resolvermos o problema de uma vez por
todas.
— Você sempre vai de encontro aos seus problemas?
— Muitas vezes a estratégia funciona. — Ela riu e começou a caminhar,
obrigando o marido a segui-la. Não lhe passou despercebida a reação irritada
de lady Madeleine Vonne ao avistar Tony acompanhado, embora estivesse de
braços dados com dois cavalheiros, dos quais nenhum era lorde Vonne. Tony
encarregou-se das apresentações.
Lorde Meade e sir Randall Yates se portaram com a máxima educação.
Lady Madeleine, entretanto, mediu Vanessa de alto a baixo, não
conseguindo disfarçar o ciúme. Só de imaginá-lo fazendo amor com aquela
coisinha insignificante tinha vontade de gritar de ódio.
— Ouvi dizer que você havia se casado com a filha de um homem do
povo, Tony, e posso constatar que é a mais pura verdade. — Tanto lorde
Meade quanto sir Randall ficaram boquiabertos ao escutar o insulto. Tony
empalideceu, porém a risada de Vanessa pegou a todos de surpresa.
— Bem que Tony me falou de seu senso de humor, lady Madeleine. Mas
isto supera todas as expectativas. Tal verve é uma qualidade rara. Espere só
até eu contar a lorde Grenville que meu pai foi chamado de homem do povo.
Ele vai morrer de rir.

23
— Você conhece lorde Grenville? — Madeleine indagou inquieta.
Vanessa escolhera o nome de um dos amigos íntimos de seu pai
propositalmente porque se tratava de uma das pessoas mais influentes da
Inglaterra. Não era à toa que lady Madeleine parecia assustada agora.
— Nós costumamos recebê-lo em casa com bastante freqüência. Mas
confesso-lhe que estou um pouco cansada de ouvir todas aquelas conversas
sobre política, pois é o que venho fazendo quase desde o berço.
— Quer dizer que você desempenha o papel de anfitriã na casa de seu
pai? — indagou sir Randall.
— Sim. Era um verdadeiro desafio, porque eu precisava me manter
informada a respeito de vários assuntos para ser capaz de conversar de
maneira inteligente durante os jantares. Você sabe que meu pai está de
casamento marcado com lady Jane Stanley? Suponho que ela acabará
convencendo-o a se candidatar a uma cadeira no Parlamento. — Vanessa disse
a última frase como se o fato do pai seguir ou não a carreira política não
fizesse a menor diferença. Os dois cavalheiros a fitavam inteiramente
fascinados enquanto Madeleine mal escondia o pavor.
— Oh, então seu pai é Barclay, o banqueiro — lorde Meade falou afinal.
— Ele está praticamente aposentado agora, embora ainda goste de
manter-se envolvido nos negócios. Bem, foi um prazer conhecê-los. —
Tomando o marido pelo braço, Vanessa afastou-se, deixando os três parados,
no meio da rua.
— O comportamento de Madeleine foi terrível, mas você esteve soberba!
— Tony comentou, cheio de admiração pela esposa.
— Quer dizer que agi bem ao levar o comentário na brincadeira? Às vezes
é a única maneira de impedir uma discussão séria entre os convidados de meu
pai. Lady Jane me ensinou como agir para evitar que as pessoas acabem
pulando nas gargantas umas das outras. Nunca pensei que seus ensinamentos
pudessem ser de tanta importância.
— Eu não fazia idéia que você tivesse tamanha experiência e traquejo
social.
— Apenas entre os cidadãos do povo, claro.
Tony riu com prazer, algo raro nos últimos meses.

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— De agora em diante será mais fácil encontrá-la, não? — Vanessa
perguntou.
— Nunca será fácil. Mas pelo menos será suportável.

Se Vanessa pensou que dali em diante conseguiria vencer a relutância de


Tony em fazer amor, não tardou a desapontar-se porque ele jamais foi
procurá-la em seus aposentos. Na tentativa de descobrir se estava fazendo
alguma coisa errada, Vanessa abordou o assunto com Marie, porém a criada
garantiu-lhe que damas inglesas não têm o costume de ir atrás dos maridos.
Apesar disto, ou talvez exatamente por este motivo, a convivência de ambos
foi se tornando menos espinhosa. Como não ouvisse recriminações ou
cobranças de qualquer tipo por parte da esposa, Tony começou a relaxar e a
agir de modo natural.
Eles ocupavam as horas do dia passeando pela cidade e pelas praias.
Certa vez Vanessa alugou um trole e os levou para um piquenique no
campo. Tony ficou admirado diante de mais esta habilidade da mulher, tendo
ela vivido toda a sua vida na cidade.
— Eu costumava guiar um trole na fazenda — ela explicou.
— Fazenda?
— Gott Farm. O lugar onde meu pai gosta de passar os fins de semana,
perto de Dorking. Na verdade não é bem uma fazenda, pois a propriedade mal
chega a trinta acres. Mas é o suficiente para ele exercitar sua grande paixão:
plantar árvores frutíferas.
— De repente me dei conta de que não sei nada sobre seu pai e menos
ainda sobre você.
— Cresci em Gott Farm até ser mandada para uma escola em Londres,
porém sempre gostei mais da fazenda do que da cidade. Lá meu pai e eu nos
sentimos mais próximos.
— E quanto às árvores frutíferas? — Tony indagou, encostando-se num
tronco caído no chão.
— O pomar está maravilhoso. A casa em si é até pequena, pouco maior do
que um chalé. Mas papai construiu várias outras casas que são a inveja dos
vizinhos. Aliás, os vizinhos são um capítulo a parte. Eles vivem fazendo

25
permuta dos vegetais de suas hortas, discutindo insetos e outras pragas.
Tenho que me manter atualizada para participar das conversas.
— Nunca pensei que seu pai tivesse interesses tão variados.
— Além do banco, ele se interessa por outros assuntos como política,
teatro. Mas acho que ao se aposentar irá dedicar-se à agricultura.
— E no que você tem interesse?
— Em tudo e em nada.
— O quê? — Tony riu com prazer, terminando de comer um sanduíche de
queijo, os olhos fixos na esposa. Ajoelhada diante dele, as fitas do chapéu
dançando ao vento, ela parecia mais jovem ainda do que de fato era.
— Vivi minha vida cercada de livros e de tudo li um pouco, do drama à
geometria, porém não consegui descobrir nenhum assunto que me
apaixonasse de verdade. O que de certa forma me torna inútil, exceto como
anfitriã, já que posso falar sobre os temas mais variados. Bem, pelo menos
sinto-me capaz de fazer perguntas interessantes. Os homens se chateiam com
facilidade quando descobrem que uma mulher sabe mais do que eles sobre um
determinado assunto.
— É uma qualidade excepcional. Pense em todas as festas chatas que
você conseguiu animar.
— Em geral minha preocupação é manter a paz entre os convidados.
Homens costumavam perder a cabeça com facilidade quando discutem
finanças e política. E quanto a você? Quais são seus interesses?
— Falando em ser inútil.
— Você dirige uma parelha, não é? — Vanessa apressou-se a perguntar,
querendo distraí-lo dos pensamentos sombrios. — Acho que eu seria incapaz
de fazê-lo.
— Claro que sim! Posso lhe ensinar. Você sabe montar?
— Sim. Meu cavalariço me ensinou. Posso manter Chadwick comigo, não
posso? Ele conhece bem meus cavalos.
— Quantos cavalos você tem?
— Apenas dois e não são como os seus. Ambos estão ficando velhos e sei
que deveria trocá-los por animais mais jovens, porém não tenho coragem de
vendê-los depois de terem me servido durante anos.

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— É somente uma questão de tempo e se eles já não servem para mais
nada.
— Você tem um pasto ou um outro lugar qualquer onde meus cavalos
possam viver o resto de suas vidas em paz? Seria bom para eles viverem
soltos em vez de fechados num estábulo.
— Você está apenas adiando. — Percebendo o olhar suplicante de
Vanessa, Tony achou melhor satisfazê-la. — Está bem, pode deixar seus
animais numa das fazendas de meu pai, se quiser.
A recompensa de sua oferta foi um abraço e um beijo da esposa. Ele
retribuiu o abraço rindo e Vanessa não pôde deixar de se perguntar se algum
dia conseguiria ser amada por aquele homem que já havia despertado a sua
paixão. Tempo era a única coisa que contava a seu favor. Tempo e paciência.
Eles já estavam em Brighton há quase duas semanas e Tony planejava
sugerir que ficassem mais alguns dias para aproveitar o clima perfeito, quando
receberam uma carta de lady Cairnbrooke. Amanda devia estar fora de si
quando escrevera a carta, pois a letra parecia ilegível. Incapaz de entender a
escrita da mãe, Tony pediu a Vanessa que tentasse decifrá-la.
— A única coisa que posso dizer com certeza é que alguém está doente.
Seu pai, acho. Creio que devemos voltar para Londres imediatamente. Se não
fosse nada sério sua mãe nunca teria nos incomodado aqui.
— Você não conhece minha mãe. Ela pode ser muito possessiva.
— Tem razão, não a conheço, mas na minha opinião não vale a pena
correr qualquer risco. Suponha que alguém esteja mesmo seriamente doente.
— Muito bem, se é o que você deseja fazer, vamos voltar para casa.
As palavras de Tony soaram tão frias e distantes que Vanessa se
perguntou se os pequenos progressos na difícil tarefa de aproximar-se do
marido haviam ido por água abaixo.
— Não, não é o que desejo fazer. Tenho sido mais feliz aqui do que jamais
pensei ser possível.
Tony a fitou incrédulo, sabendo que quase nada fizer para agradar a
esposa.
— Você está coberta de razão. Precisamos ir embora. Vou dizer a Stewart
para arrumar a bagagem.

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Eles chegaram a Oak Park naquela mesma tarde, pouco mais de uma hora
depois do pai de Tony morrer devid a um derrame. Lady Amanda estava
prostrada e Vanessa viu-se obrigada a assumir a direção da casa o que, aliás
lhe era de direito.
Tony parecia perdido nas semanas que se seguiram passava horas
cavalgando pelos campos, tendo por companhia apenas o cachorro. Vanessa
tentava não se preocupar com as ausências prolongadas do marido,
procurando respeitar a necessidade de solidão.
O aspecto pouco agradável da situação era que estando todos de luto,
Vanessa não podia esperar que Tony se mostrasse afetuoso. Assim seus planos
para conquistá-lo tiveram que ser adiados. Para compensar, resolveu dedicar-
se à tarefa de alegrar a sogra.
Lady Amanda venceu a depressão muito mais depressa do que o filho e
demonstrava prazer nas conversas com a nora, especialmente durante o café
da manhã. Tony, por outro lado, quando não estava cavalgando trancava-se
no escritório, sempre às voltas com uma pilha de papéis e documentos.
— Meu pai ainda não esfriou na sepultura e minha mãe só fala
banalidades — ele reclamou quando Vanessa veio lhe trazer uma xícara de
chá.
— Acho que estas conversas lhe fazem bem. Ela não pretendia aborrecê-
lo.
— Como é que você pode ter tanta paciência?
— É uma experiência nova para mim, ter uma mãe.
— Não deve ter sido fácil para você crescer apenas na companhia do pai.
— Serviu para me tornar mais independente.
— Minha mãe não vai morar conosco para sempre, você sabe.
— E por que não?
— Porque não consigo aturá-la muito tempo seguido — Tony respondeu
exasperado, fazendo a esposa rir. — Pode dizer que sou um filho desnaturado.
— Um filho desnaturado e bastante sincero. — Vanessa abraçou o marido
com tanto carinho que ele retribuiu beij ando-a nos cabelos e apertando-a com
força de encontro ao peito. Os dois só se separaram quando ouviram passos
no corredor.

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— Ah, finalmente encontrei-a, Vanessa. O que você acha deste tecido para
forrar o meu quarto? Tony, querido, estou surpresa que você ainda esteja em
casa, já que costuma sair cedo para cavalgar, mesmo com mau tempo.
Vanessa examinou o tecido antes de opinar enquanto o marido voltava a
sentar-se atrás da escrivaninha e debruçava-se sobre a papelada, um brilho
impaciente no olhar.
— Muito sombrio para o seu quarto. Vou mandar vir algumas amostras de
Londres e escolheremos a mais bonita.
O fato de Vanessa e lady Amanda passarem quase todas as horas do dia
juntas acabou por uni-las. As duas mulheres pareciam decididas a melhorar o
humor de Tony e a poupá-lo das pequenas chateações do dia a dia. Vanessa
ocupava-se da administração da casa e usava o próprio dinheiro para resolver
pequenos imprevistos, como a compra de uniformes extras para os
empregados ou melhorar o abastecimento da despensa. Contudo quando uma
das criadas veio procurá-la aos prantos, dizendo-se grávida, Vanessa não
soube como agir. Jamais lidara com uma situação parecida antes e não hesitou
em levar o caso para lady Amanda.
— O que vamos fazer? — indagou à sogra.
— Ela deve se casar o mais breve possível.
— Mas meu namorado não quer-choramingou a criada.
— Então vamos denunciá-lo à polícia.
— Podemos fazer isto? :-Vanessa quis saber.
— Sim. É o que meu marido teria feito. Somos responsáveis pelas moças
que trabalham nesta casa e Jo-shua é um dos nossos cavalariços há anos.
Kerry e Joshua estavam casados no final do mês, o noivo considerando a
alternativa muito melhor do que uma temporada na prisão.
O natal em Oak Park foi triste e sombrio. O pai de Vanessa e lady Jane,
agora casados, haviam ido para Paris e somente os vizinhos, quase todos da
idade do falecido lorde Cairnbrooke, vieram participar da ceia. Falou-se tanto
em pobreza e miséria que no dia seguinte Vanessa mandou alguns
empregados distribuírem uma enorme quantidade de pães e legumes aos
necessitados das redondezas. Não demorou muito para que Tony ficasse a par
das atividades da esposa.

29
— Ouvi dizer que você andou comprando comida para os pobres.
— Você diz isto como uma acusação.
— Não se pode alimentar a todos.
— Mas posso alimentar os que estão mais próximos. Gostaria que nossos
vizinhos seguissem o exemplo e trocassem as palavras bonitas pelos atos.
Tony fitou-a em silêncio.
— Pode dar certo — Vanessa falou na defensiva.
— São pessoas orgulhosas. Não vão gostar de você só por causa desta
caridade.
— E por que eu esperaria que gostassem de mim em troco de algumas
batatas e cebolas? Quero apenas que não morram de fome.
— Não posso pagar tudo isto.
— Estou usando meu dinheiro. Portanto posso fazer o que quiser.
As palavras da esposa o atingiram como um raio.
— Tem razão. O dinheiro é seu. Faça como quiser.
— A menos que você esteja precisando dele.
— Não! De jeito nenhum.
De repente Tony se deu conta de que nunca tendo enfrentado dificuldades
financeiras, Vanessa não fazia idéia de como ele se sentia. Entretanto jamais
teria coragem de aproveitar-se da generosidade da mulher.
Ele deixou-a no escritório e passou o resto do dia longe de casa, mesmo
depois que uma chuva forte e inesperada começou a cair no meio da tarde.
— Tony deve ter se abrigado em algum lugar — lady Amanda procurou
acalmar a nora, enquanto preparava-se para deitar. — Provavelmente está na
companhia de um amigo, aquecendo-se diante da lareira de uma pousada
qualquer.
— Imagino que sim. De qualquer maneira quero terminar de ler este livro.
Subo depois.
Já passava da meia noite quando Tony finalmente entrou em casa.
Vanessa experimentou uma alegria tão grande ao vê-lo são e salvo que
correu para abraçá-lo.
— Você está bem?
— Estou bem, muito bem — ele respondeu numa voz pastosa.

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— Venha, há um fogo gostoso ardendo na saleta. Vou mandar que lhe
preparem o jantar.
— Não se dê ao trabalho. Provavelmente eu não seria capaz de manter a
comida no estômago. Uísque demais.
— Você deveria comer alguma coisa.
— Não quero nada. Agora, por favor, pare de tentar controlar minha vida.
— Tony deixou-se cair sobre a poltrona mais próxima e esforçou-se para tirar
as botas molhadas sem muito sucesso.
— Sinto ter arruinado sua vida — Vanessa falou, ajudando-o com as
botas.
— Eu disse controlar, não arruinar. Mas no fim dá tudo na mesma.
Vanessa desviou o olhar, esforçando-se para esconder a mágoa.
— Desculpe-me, não quis dizer isto. Fui eu quem arruinei sua vida. Você
fez um mau negócio, minha querida, porém nada disto foi idéia minha.
— Pois fique sabendo que a idéia de nos casarmos tampouco foi minha —
ela explodiu.
— De quem foi então? Não consigo me lembrar.
— De lady Jane.
— Quem é lady Jane? — Com muito custo Tony conseguiu tirar as botas,
embora a visão estivesse embaralhada.
— A nova esposa de meu pai. Já lhe contei que os dois queriam se casar
há anos. Infelizmente eu estava no meio do caminho.
— Eu pensei que você queria se casar.
— Não, não particularmente.
— Mas por que eu? Com certeza você teria conseguido algo melhor. —
Tony apontou para si próprio enquanto lutava para ficar de pé.
Vanessa sorriu através das lágrimas.
— Lady Jane achou que eu seria capaz de evitar que você acabasse sendo
morto num outro duelo.
— Suponho que meus pais tivessem a mesma idéia em mente. Por que
você concordou com uma coisa dessas?
— No princípio eu não tinha a menor intenção de ceder aos apelos de lady
Jane. Achava tudo uma tolice, até que o conheci. Gostei tanto de você e

31
parecíamos nos entender tão bem julguei ser possível dar certo.
— Quer dizer que tomou a decisão baseada apenas um único encontro?
— Sim.
— Você é uma mulher ingênua.
— Por que você concordou?
— Eu estava me sentindo deprimido e culpado a respeito de tudo.
Simplesmente não conseguia pensar com clareza.
— Entendo. Você estava abalado.
— E ainda estou,
— Continua se sentindo culpado?
— Em relação a você mais do que nunca.
— Pois pode parar com isto. Pare de se sentir culpado em relação a mim
porque me casei com você de olhos bem abertos. Pare de se sentir culpado em
relação ao seu pai, já que nada poderia ter sido feito para salvá-lo. E saiba que
continuo gostando de você.
— Não é bem assim. Nunca fui muito ligado ao meu pai até que ele
morreu. Agora é tarde demais.
— Seu tolo. Você não percebe que todos nós experimentamos esse tipo de
arrependimento? Só que algumas pessoas preferem ignorá-lo.
— Como assim? Não estou entendendo — Tony falou, abrindo a porta do
quarto.
— Elas apenas não dão ouvidos à consciência e continuam a levar suas
vidinhas sem grandes complicações. Você não acha que já se puniu o
suficiente?
— É isto o que tenho feito?
— É só o que você tem conseguido fazer.
— Quisera ser capaz de enxergar as coisas com tanta clareza quanto você.
— Quisera que fosse tão fácil conversar com você enquanto estivesse
sóbrio como está sendo agora, enquanto está bêbado. Provavelmente amanhã
de manhã você nem se lembrará dessa nossa conversa e voltarei à estaca
zero.
Tony riu.
— Tentarei ficar mais sóbrio e ser mais fácil de conversar. Você também

32
tem minha permissão para reproduzir esta conversa durante o café da manhã.
Sei que sua memória é prodigiosa.
— Você ficou tão pálido de repente.
— É porque estou à beira de passar mal. Agora vá e deixe que Stewart me
ajude.
— Com prazer. Não vou me esquecer de lembrá-lo deste mal estar caso
você se sinta inclinado a beber outra vez.
— Você é uma mulher sem coração — Tony resmungou enquanto Stewart
o ajudava a entrar no quarto.
Tony apareceu tarde para o café da manhã e contentou-se com uma
xícara de chá para aquietar o estômago.
— O que vamos fazer hoje? — perguntou à esposa.
— Talvez devêssemos dar um passeio. O ar fresco é bom para dor de
cabeça.
Lady Amanda parecia surpresa com a conversa entre os dois, mas preferiu
ficar em casa e deixá-los a sós. Também seria uma boa oportunidade para
começar a redecorar o quarto.
Lady Amanda estava tão entretida com a arrumação de seus aposentos
em Oak Park que teria ficado por lá atei fevereiro se Tony não anunciasse sua
intenção de voltar para Londres. Por insistência de Vanessa, a velha senhora
decidiu acompanhá-los, especialmente porque sentia que algo não ia bem
entre o casal e queria dar todo o apoio necessário à nora. As vezes Tony
achava difícil lembrar-se de que era um homem casado. Vanessa parecia uma
irmã e quanto mais tempo passava sem que consumassem o matrimônio, mais
lhe parecia estranho vir a fazê-lo. O problema era que sentia-se desconfortável
perante a esposa depois que descobrira nos papéis do pai a prova de que lorde
Cairnbrookei arranjara aquele casamento para se salvar do desastre financeiro.
Felizmente Vanessa desconhecia este pormenor.
Tony estava enganado se pensava que Vanessa gostaria de ficar em Oak
Park. De fato ela estava cansada de fingir ser sua esposa e sentia falta da vida
que levava em Londres. Se não era possível ter um casamento de verdade,
pelo menos tentaria distrair-se com outras coisas. Também ficaria distante da
criada grávida, uma lembrança constante daquilo que não podia ter.

33
Três

A casa dos Caimbrooke em Londres acompanhava o estilo elegante da


vizinhança ao redor de Portman Place. Pé direito alto, sobriedade nas linhas e
quartos ensolarados na parte de trás. O mais importante era a existência de
um estábulo particular, assim Vanessa pôde finalmente rever seus cavalos,
Casius e Ivy, e também o cavalariço, Chadwick, que a acompanhava desde
criança.
Tony acabara de chegar de um encontro inquietante com um antigo
administrador do pai quando descobriu a esposa fazendo agrados a dois
cavalos desconhecidos.
— Estes animais são seus? — ele indagou secamente.
— Sim. Parece que ambos foram bem cuidados durante o inverno, não é?
— Você não vai manter estes dois bichos velhos e acabados aqui.
Vanessa o fitou atônita, porém o marido não estava brincando.
— Mas eu tenho Ivy e Casius desde que era pequena. Não posso vendê-
los.
— Bem, não pretendo permitir que tomem espaço nos meus estábulos.
Tão logo Tony saiu, deixando-a só na companhia dos cavalariços, Vanessa
pensou que pela primeira vez na vida iria se debulhar em lágrimas. Entretanto
inspirou fundo, ergueu a cabeça e pediu ao cavalariço-auxiliar que selasse
Casius e pusesse um arreio em Ivy.
— Quero que você, Chadwick, leve Casius e Ivy para Gott Farm. Meu pai
não está lá no momento, mas todos da fazenda o conhecem e tenho certeza de
que cuidarão de meus cavalos para mim. Vou lhe dar dinheiro para a viagem.
— Sim, senhora. Se meu lorde perguntar o que fiz com os animais…
— Diga-lhe a verdade. Se ele ficar irritado o suficiente para demiti-lo, eu
lhe darei emprego na fazenda de meu pai.
— Não estou preocupado com isto. Devo estar de volta amanhã a tarde.
Vanessa nada falou ao marido sobre o assunto e fingiu que não houvera

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nenhum contratempo entre os dois. O instinto lhe dizia que chorar e emburrar
serviria apenas para piorar a situação.
Tony, é claro, arrependia-se por haver perdido a paciência, contudo não
admitiria que a esposa fizesse uso de montarias tão velhas. Ela merecia um
puro-sangue jovem e resistente. Foi apenas na manhã seguinte que deu pela
falta do cavalariço-chefe.
— Estou mandando dois cavalos para Tattersall’s hoje. Você sabe onde
está Chadwick, Vanessa? Quero que ele monte um dos animais para mim.
— Mandei-o resolver um problema. Ele só estará de volta no final da
tarde.
— Sei que Chadwick é seu cavalariço, mas você podia ter trocado uma
idéia comigo antes. Por acaso ele foi vender seus cavalos?
— Claro que não! — Vanessa respondeu, surpresa que o marido a
conhecesse tão pouco. — Chadwick os levou para um lugar seguro. Eu nunca
venderia ou me disporia de amigos queridos somente porque ficaram velhos.
— Um lugar seguro? Então está com medo de me dizer onde? — A voz de
Tony traía a irritação crescente. — O que você acha que eu iria fazer com os
pobre-coitados? Estripá-los?
— Eu já não sei o que você iria fazer. — Vanessa tinha as mãos agarradas
no espaldar da cadeira, um sinal claro de nervosismo.
De repente Tony se deu conta de que a esposa o temia, embora o
enfrentasse. Não deveria perder o controle outra vez. Vanessa não merecia
isto.
— Se você quer mesmo saber, mandei os cavalos para a fazenda de meu
pai. É o lugar onde nós todos fomos criados. Poderei vê-los quando e se eu for
até lá para uma visita.
— Você os faz parecer verdadeiras pessoas. Não teve amigos quando era
pequena?
— Não. Ninguém que pudesse brincar comigo. Sei que tenho o péssimo
hábito de falar com os cavalos, como se eles fossem capazes de me entender.
Tentei parar com isso, porém não consigo.
— Eu não tinha idéia que os coitados significavam tanto para você. Mas
são apenas cavalos.

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— Jamais abro mão daquilo que é meu. Sou fiel até o fim.
— Ainda bem que não tenho essa sua natureza sensível. Terei que abrir
mão de muita coisa boa se quiser manter esta casa.
— Por que você não me disse? — Vanessa aproximou-se do marido,
perguntando-se se deveria ou não oferecer-lhe ajuda em dinheiro. O problema
é que temia ofendê-lo ou deixá-lo irritado.
— Você não deve se preocupar com isto.
Foi o que bastou para Vanessa ficar ainda mais preocupada. Se Tony a
considerasse uma verdadeira esposa, não hesitaria em partilhar os problemas
que o afligiam.
— Alguns dos empregados também terão que ser despedidos e pelo
menos um dos cavalariços. Mas pode ficar sossegada, não será seu precioso
Chadwick. O homem é muito competente.
— Há uma outra maneira de resolvermos o problema?
— Poderíamos vender a casa.
— Acho que não seria o momento ideal para sua mãe sofrer mais esta
perda.
— Ainda nos restaria Oak Park.
— E se apenas alugássemos esta casa e nos mudássemos para um outro
lugar? Pelo menos temporariamente.
— Não tinha pensado nesta possibilidade. Tenho uma casa menor, ao sul
de Saint James, perto dos campos Tothill. Não é a localização da moda…
— A casa tem um estábulo?
— Sim. Em Marsham Street, logo depois de Horseferry Road.
— Estou gostando da idéia cada vez mais.
— Não haveria grandes festas. Não teremos salão de baile.
— Durante este período de luto não estaremos recendo muitos
convidados, portanto não vejo nenhum problema. Tem espaço para os meus
livros?
— Imagino que sim. Por que está perguntando?
— Sou uma espécie de colecionadora. Não quis lhe dizer nada antes
porque a biblioteca de Oak Park já está lotada e tampouco há espaço para
mais livros aqui.

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— Quantos livros você tem? — Tony indagou desconfiado.
— Eu diria que não mais do que sete ou oito centenas.
Por um instante ele ficou em silêncio, simplesmente perplexo.
— Eu lhe avisei que era assim… estudiosa.
— Sim, porém pensei que se tratasse de mera força de expressão. — Tony
sorriu de repente. — Suponho que agora já não há nada que eu deva saber a
seu respeito. Tem certeza de que não possui uma coleção de arte que precisa
ser estocada em algum lugar?
— Não. Bem, tem McDuff.
— Deixe-me adivinhar. Um criado idoso.
— Algo parecido. Talvez você não vá gostar dele, mas como lady Jane
também não o aprecia, pensei que deveria trazê-lo para cá.
— E quando ele chega?
— Amanhã.
— Ótimo. Ele pode nos ajudar a preparar a a mudança.
— Duvido que McDuff vá ser de alguma ajuda, contudo prometo mantê-lo
fora do caminho.
— Sem dúvida.

Vanessa e Marie estavam no quarto de vestir, arrumando a bagagem.


— Eu devia ter lhe dito que não valia a pena desfazer um dos baús
quando chegamos de Oak Park. Só posso usar cinza e malva durante o período
de luto.
— Os vestidos ficam muito amarrotados se não os dependurarmos —
Marie respondeu, dobrando cuidadosamente um vestido de seda rosa.
— De qualquer forma estes dois baús aqui vão direto para o sótão assim
que pusermos os pés em Marsham Street. Não preciso deles.
Marie estava resmungando alguma coisa em francês quando ouviu-se um
rosnado e uma praga vindo do quarto de dormir. Vanessa levantou-se a tempo
de ver Tony jogar McDuff para fora da poltrona com força suficiente para
aleijar o cachorrinho no momento da aterrissagem.
— Por que você não de disse que McDuff é um cachorro? — ele indagou
vermelho de raiva, a mão enrolada num lenço.

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— Eu não sabia como você ia aceitar o fato.
— Seu quarto não é lugar para um animal. Se pretende mantê-lo, mande-
o para a cozinha.
— Não vejo que diferença isto poderia fazer para você, já que nunca vem
ao meu quarto.
Tony empalideceu e saiu batendo a porta, sem falar por que viera
procurá-la.
Vanessa sabia que acabara de dizer a pior coisa possível e arrependeu-se
de ter perdido o controle. O cãozinho fora presente de Armand e costumava
comportar-se como uma criança mimada, cheia de dengos.
Em momentos como aquele chegava a lamentar haver se casado com
Tony, entretanto ele sempre tentava desfazer a má impressão através de
alguma atitude gentil e inesperada. Não se tratava de um pedido de desculpas
verbal, mas era impossível resistir ao charme do marido. Onde será que o
casamento de ambos iria parar? Provavelmente acabaria se transformando
num relacionamento frio e cortês, mais uma relação de negócios do que um
envolvimento amoroso. Talvez fosse isto o que Tony desejara desde o
princípio.
Como uma maneira de restaurar o clima de tranqüilidade entre os dois,
Tony convidou a esposa para cavalgar tão logo chegaram a Marsham Street.
Vanessa estava agradavelmente surpresa com a casa. Não era pequena como
imaginara e os aposentos ensolarados compunham um ambiente alegre e
aconchegante. Havia até um pequeno jardim. Ao ver a esposa e a mãe
entretidas numa conversa interminável sobre como pretendiam decorar o
lugar, Tony as interrompeu impaciente, ordenando que Vanessa fosse se
trocar.
— O que temos para a lady, Chadwick?
— Eu gostaria de montar aquela égua — Vanessa pediu. — Ela me parece
esperta e Jeffers disse que é treinada para saltar.
— Sele o animal.
— Qual é o nome dela? — Vanessa indagou, tirando as luvas para
acariciar o focinho aveludado.
— Tansy.

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Durante todo o passeio pelo Saint James’s Park, Tony manteve os olhos
fixos na esposa, não sabendo que a mulher com quem se casara era uma
exímia amazona. De acordo com seu ponto de vista, Vanessa não cometeu
qualquer erro sério, exceto, talvez, o de conversar com a égua o tempo inteiro.
Mas apesar do fato o incomodar um pouco, sabia que o animal se distrairia
com o som da voz e portanto teria menos chances de tentar algum truque
perigoso. Quando um cachorro surgiu de repente, Vanessa apressou-se a
acalmar Tansy, evitando que a égua se assustasse. Foi um passeio cansativo
para Tony, que a todo momento temia ver a esposa ser atirada para fora da
sela. Nunca antes acompanhara uma dama inexperiente numa cavalgada e a
responsabilidade o deixava nervoso.
Vanessa, por sua vez, estava se divertindo tremendamente, adorando o
entusiasmo com que Tansy se lançava à aventura. Há séculos não se sentia
tão satisfeita.
— Cansada? — o marido indagou, ajudando-a a desmontar e
acompanhando-a até a casa.
— Nem um pouco. Será que podíamos cavalgar todo dia?
— Se você quiser, desde que Chadwick ou Jeffers a acompanhe quando eu
não estiver presente. Agora quanto à égua, tenho minhas dúvidas.
— Mas ela é um amor. Um tanto brincalhona talvez, porém ansiosa para
agradar.
De repente Tony percebeu que Vanessa poderia usar aquelas mesmas
palavras para se descrever. Ela fazia tudo o que estava ao seu alcance para
agradá-lo, agüentando, inclusive, seus mau-humores e silêncios inexplicáveis.
Nunca deveria ter se casado com Vanessa Barclay. Não poderia ser um marido
de verdade enquanto o dinheiro dela os mantivesse separados.

Choveu quase a semana inteira, o que lhes deu tempo para organizar a
casa na Horseferry Road. Quando enfim voltaram a montar juntos, Tony
mandou que selassem um cavalo castrado para a esposa. Bastou uma olhada
para Vanessa ter certeza de que o animal estava longe de ser uma criatura
ativa.
— Será que não posso montar Tansy? — pediu.

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— O quê?
— Aquela égua que montei outro dia.
— Eu a vendi, juntamente com outros animais.
— Vendeu-a? Por quê? Eu gostava tanto dela.
— Ela não era bem treinada e mais ou cedo ou mais tarde acabaria lhe
causando problemas ou atirando-a para fora da sela.
— Vender Tansy não foi obra do acaso — Vanessa o acusou. — Você a
vendeu de propósito. Por quê?
Tony já havia lhe dito o motivo e preferia não ser obrigado a confessar
que não confiava em suas qualidades como amazona.
— Não precisa me responder — ela falou amargurada, dando-lhe as
costas. — Você a vendeu porque eu gostava dela.
— Não seja estúpida. Agora monte no cavalo.
— Não estou com vontade de montar hoje, ou qualquer outro dia, com
você. — Vanessa caminhou calmamente na direção da casa, indagando-se se
passara dos limites. O fato é que adorava andar a cavalo na companhia do
marido, porém ele deixava tão claro que a atividade o aborrecia que era
melhor desistir de uma vez. Tudo o que fazia para tentar se aproximar de Tony
parecia afastá-los ainda mais. Sentia-se tão cheia de raiva com o incidente
envolvendo Tansy, que se pudesse pediria o divórcio imediatamente. Amá-lo
estava se tornando muito perigoso e desgastante.
Tony sabia como ela se sentia em relação a cavalos, como se apegava a
eles, entretanto não hesitara em vender sua égua favorita. Será que agira
assim de propósito, apenas para colocá-la no seu devido lugar? Ou então
sequer levava em consideração seus desejos? Essa alternativa era muito mais
deprimente do que a primeira, pois significava uma total indiferença.
A última coisa que Vanessa queria naquele momento era encontrar-se
com Marie. Caso fosse obrigada a explicar por que não havia saído para a
cavalgada matinal, tinha certeza de que acabaria chorando. Era uma pessoa
muito orgulhosa para perder o controle na frente da criada. Por isso resolveu
procurar refugio no aposento que escolhera para montar a biblioteca. Alguns
livros já estavam arrumados em longas prateleiras, como velhos e
reconfortantes amigos. Vanessa fechou os olhos e apoiou-se na parede,

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dominada por uma visão súbita do marido arrancando as páginas de cada
volume. Que pensamento absurdo! Tony jamais tomava atitudes violentas. Ele
sempre engolia a raiva, como se alguma coisa o estivesse impedindo de dizer o
que realmente lhe passava pela cabeça.
Ao ouvir os passos do marido subindo a escada, três degraus de cada vez,
Vanessa escolheu um de seus livros favoritos e sentou-se à escrivaninha,
esforçando-se para recuperar a calma. Dali a cinco minutos ele abria a porta
da biblioteca e a enfrentava.
— Eu devia arrastá-la para fora daqui e obrigá-la a montar naquele
cavalo.
— Suponho que sim. Mas você não gosta de montar na minha companhia,
portanto seria uma idéia idiota. Você não gosta de fazer nada na minha
companhia. Por que então gostaria de cavalgar comigo?
— Você ainda é minha esposa. Não vou permitir que faça uma cena por
causa de algo tão estúpido quanto um cavalo.
— Se existe alguém que fez uma cena este alguém é você. E cavalos não
são estúpidos. Pelo menos Tansy não era. Agora nunca mais vou saber o que
aconteceu com a coitadinha… Talvez ela seja espancada ou maltratada. Oh,
você não se interessa mesmo. — Sabendo-se à beira das lágrimas, Vanessa
inspirou fundo e apertou o livro que segurava com força.
— Se você gostava tanto da égua, deveria ter me dito.
— Então é culpa minha ela ter sido vendida?!
— Estou apenas dizendo que nada disso teria acontecido se…
— Não sou nenhuma criança e gostaria que você parasse com estes
joguinhos tolos. Se você não gosta de mim, não há nada que eu possa fazer a
respeito. Prefiro que me odeie abertamente do que usar estes artifícios cruéis
para me atingir.
Tony dava a impressão de ter sido atingido por um balde de água fria. As
palavras da esposa o surpreenderam tanto que foi incapaz de esboçar qualquer
reação ao vê-la sair da biblioteca. Onde será que Vanessa havia ido tirar a
idéia de que a odiava? Que noção absurda! E tudo por causa de um maldito
cavalo.
Com certeza agora teria que comprar o animal de volta. E pensar que só

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estivera tentando proteger a esposa. Mas odiá-la? Nunca!
Um homem com um pouco mais de experiência em relação ao sexo
feminino teria ido atrás da mulher e tentado explicar-se. Entretanto uma
atitude assim significaria um pedido de desculpas e Tony não acreditava ter
agido de maneira errada, pelo menos não de propósito. Decidido a consertar o
erro, foi para o estábulo, atrás de Chadwick.
— Vá até Tattersall’s, procure descobrir para onde levaram aquela égua e
compre-a de volta.
— Quando devo pagar pelo animal? — o cavalariço indagou impassível.
— A quantia que for necessária — Tony respondeu entregando ao
empregado o maço de dinheiro que acabara de receber pela venda de quatro
cavalos. — Não volte para casa sem a tal égua.
— Sim, senhor.
Como em muitas de suas brigas, não houve uma reconciliação de fato.
Eles simplesmente não voltavam a tocar no assunto, como se nada houvesse
acontecido. Cismada de estar atrapalhando a vida do casal, lady Amanda
procurou a nora certo dia, depois do café da manhã, e anunciou sua intenção
de partir.
— Oh, por favor, não nos deixe agora. Não vou ter ninguém com quem
conversar quando Tony estiver de mau humor ou zangado.
— Não sei o que está acontecendo de errado com meu filho. Ele era tão
alegre, não essa pessoa irritadiça em que se transformou.
— Ele tem muitas preocupações. Espero que se livre de todas elas o
quanto antes. Mas esteja certa de que não é culpa sua. Na verdade é um alívio
tê-la aqui.
Lady Amanda acabou aceitando as explicações da nora e para alegrar a
ambas, Vanessa resolveu que deveriam passar a tarde fazendo compras. Como
detestava a idéia de deixar os cocheiros de Tony esperando-a durante horas na
rua, ela resolveu usar um coche de aluguel.
Agora podiam contar apenas com os serviços de Jeffers, Chadwick e um
cavalariço-aprendiz para cuidar dos es-tábulos. Os empregados da casa
também haviam sido reduzidos pela metade. Felizmente os inquilinos de Oak
Park haviam se mostrado ansiosos para contratar os demais servos. Ninguém

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ficara desempregado.
Rayburn, o mordomo, quando consultado por Vanessa quanto às suas
preferências, dissera que gostaria de variar o cenário. Fora ele quem
supervisionara a mudança para Marsham Street, e com tal zelo e dignidade
que parecia estar dirigindo uma retirada temporária, não uma mudança
provocada por dificuldades financeiras. Rayburn agira com tanto
profissionalismo que evitara embaraço para a família e também fora
fundamental na hora de contratar os poucos empregados que trabalhariam na
cozinha.
Tony realmente admirava a lealdade do homem. Entretanto o que mais
pesara na balança no momento de se decidir, fora a simpatia que o velho
mordomo sentia pela nova senhora. Juntando algumas informações que Marie
deixara escapar às suas próprias observações, não fora difícil para Rayburn
concluir que as coisas entre os jovens lorde e lady Cairnbrooke não estavam
como deveriam. Então resolvera fazer tudo o que estivesse ao seu alcance
para amainar as dificuldades entre os dois. Na opinião de Marie, Rayburn era
um ótimo aliado para Vanessa, especialmente se comparado ao reservado
Stewart, que sempre colocava a lealdade a Tony em primeiro lugar. Com todos
os empregados da casa conspirando contra ele, lorde Cairnbrooke acabaria
entrando na linha e se comportando como um verdadeiro marido. Apesar de
perceber o apoio silencioso dos servos, Vanessa achava que só agiam assim
porque era ela a responsável direta pela criadagem. No trajeto até as lojas,
Marie foi fazendo todo tipo de comentários espirituosos sobre as roupas das
damas que encontravam pelo caminho, arrancando risos de lady Amanda.
Finalmente pararam em Oxford Street e estavam para entrar numa loja
quando ouviram o som irritante de gargalhadas vindo de um coche próximo.
Instintivamente as três olharam na direção do ruído. Era Madeleine Vonne. A
visão não teria sido tão preocupante se o homem que a acompanhava, e a
fazia rir, não fosse Tony.
Por um longo instante Vanessa ficou imóvel, os pés pregados no chão.
Como é que seu marido podia olhar para a ex-amante daquela maneira, como
se ainda estivesse enfeitiçado? Como, se quase fora morto num duelo? Lady
Amanda abriu a boca para dizer qualquer coisa mas foi incapaz de pronunciar

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uma palavra sequer. Tomando a iniciativa de superar o incidente desagradável,
Vanessa puxou a sogra para dentro da loja enquanto Marie pagava o cocheiro.
Ainda em atenção a lady Amanda, ela recusou-se a comentar o assunto,
mesmo quando as vendedoras da loja cochichavam às suas costas. Só pedia a
Deus que Madeleine já houvesse desaparecido dali quando voltassem à rua.
Até o momento em que vira Tony com Madeleine, Vanessa o julgara tão
abatido pela perda do irmão e do pai que seria impossível imaginá-lo feliz. Fora
por isto que não o pressionara em direção a um casamento normal. Entretanto
lá estava o marido, rindo e conversando em público com a criatura que quase
o arruinara. Nunca, em toda a sua vida, Vanessa se sentira magoada assim. A
humilhação era insuportável. Na sua maneira de pensar, não considerava Tony
um modelo de sensatez, porém até então jamais tivera motivos para duvidar
de sua sanidade. E se lorde Vonne os tivesse visto? E se soubesse do
acontecido? Era o tipo de fofoca que se espalhava com facilidade e provocava
danos irreparáveis.
Ao voltarem para casa, Vanessa arrependeu-se de não haver deixado lady
Amanda dar vazão a toda sua raiva em frente à loja de Oxford Street porque a
sogra resolveu interrogar o filho durante o jantar. A discussão entre os dois foi
terrível. Tony acusou a mãe de interferir onde não devia e a Vanessa de
espioná-lo.
— Não posso simplesmente ignorar lady Vonne, posso? — ele indagou à
esposa, a voz baixa vibrando no silêncio da sala. — Posso? — tornou a insistir.
— Não — ela respondeu, tentando descobrir aonde o marido queria
chegar. Muitas vezes ele esbravejava por causa de coisas que nada tinham a
ver com o verdadeiro motivo de sua raiva. Portanto não fazia sentido discutir.
Os dois ficavam ridículos, isto sim. Tony saiu de casa sem jantar, o que tirou o
apetite de Vanessa também.
— Acho que agora só me resta partir — lady Amanda anunciou.
— Claro que não! — Vanessa falou ainda trêmula, porém mais controlada
do que a sogra e o marido. — Tenho certeza de que amanhã ele já terá
esquecido tudo. Tony costuma ficar irritado quando sabe que cometeu um erro
e fará algo para nos agradar. É sua maneira de pedir desculpas.
— Era assim que Edwin agia.

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— Talvez Tony o esteja imitando.
— Espero que não — lady Amanda falou com tal intensidade que Vanessa
teve medo de perguntar por quê. O fato de sua sogra mostrar-se tão indignada
com o comportamento do filho deixava evidente que considerava o casamento
de ambos bastante estranho. Outras pessoas deviam pensar o mesmo,
especialmente se Tony continuasse encontrando-se com Madeleine Vonne.
Vanessa poderia muito bem abandoná-lo, já que possuía dinheiro suficiente
para viver por conta própria. Podia até levar lady Amanda consigo. Foi a
certeza de que havia uma alternativa para aquela situação dolorosa o que a
manteve acordada e chorando durante grande parte da noite. A verdade é que
não tinha coragem de abandoná-lo porque o amava desesperadamente.
Portanto só lhe restava uma alternativa. Iria conquistá-lo a qualquer preço ou
pelo menos distraí-lo tanto que não lhe sobraria energia para cortejar
Madeleine.

Vanessa não deu pela falta de Chadwick por um ou dois dias. Se ela
tivesse perguntado ao marido o paradeiro do cavalariço, talvez ficasse sabendo
que o empregado havia ido atrás de Tansy, porém como a esposa nada lhe
perguntara, Tony tampouco lhe oferecera informações. Se Chadwick não
conseguisse trazer a égua de volta, não valia a pena permitir que Vanessa
alimentasse falsas esperanças.
A vida havia retomado a rotina normal na casa dos Cairnbrooke. Vanessa
não era em nada como lady Vonne, que só deixava uma briga se esgotar
quando forçava Tony a se desculpar. Vanessa dava a impressão de já ter
esquecido a história do cavalo e Tony perguntava-se se não fora precipitado ao
mandar o cavalariço atrás do animal.
Desde o primeiro dia de casados, Tony desenvolvera o hábito de ler o The
Times durante o café da manhã. Vanessa tinha fortes suspeitas de que era
apenas para evitar qualquer tipo de conversa.
— Diz aqui que lorde Haye discursou no Parlamento ontem — ela fingiu ler
na primeira página do Morning Post. — Acho que falou sobre o fim das
guerras… a proibição da caça em Hampshire e no centro do país — Vanessa
completou sem conseguir despertar a atenção do marido.

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Raybum colocou uma xícara sobre a mesa com mais força, obrigando o
patrão a erguer os olhos.
— Foi onde você caçou no ano passado, não foi? No centro do país?
— Humm… — Tony murmurou.
Vanessa sorriu para o mordomo que permaneceu imóvel, uma expressão
indecifrável no rosto.
— Nas notícias sobre a sociedade, parece que os cachorrinhos pequenos
estão fora de moda. Pelo menos três damas da nata londrina resolveram criar
macacos como animais de estimação. Você acha que eu deveria ter um
também?
— Sim, se você quiser. — O The Times estremeceu, mas Vanessa pensou
que o marido estava apenas virando uma página do jornal.
Rayburn tentou, em vão, disfarçar o resmungo com uma tosse discreta.
— Você está doente? — Tony indagou ao mordomo, os olhos frios e
distantes.
— Não, meu lorde.
— Sim, acho que um macaco seria particularmente divertido numa mesa
de café da manhã, você não acha?
— Sim, claro — Tony retrucou sem mover um músculo da face.
— Embora não se possa fazer quase nada com um macaco, a não ser
alimentá-lo. Talvez eu devesse comprar um cavalo no lugar do tal macaco. Se
você não puder me acompanhar numa visita à feira de animais, Chadwick
poderá fazê-lo. Ele é um bom conhecedor de cavalos, não é?
— O quê? Sim, claro.
— Ótimo. Então está decidido. — Vanessa sorriu triunfante para Rayburn
que apressou-se a se retirar para a cozinha.
Tony tomara por garantido que ao casar-se iria continuar a ler o The
Times à mesa do café da manhã sem ser importunado, exatamente como seu
pai costumara fazer. Mas agora perguntava-se se não havia sido o hábito do
pai, o de isolar-se numa leitura, o que encorajara sua mãe a falar sem parar, a
respeito de tudo e de nada.
Depois de noites inteiras passadas jogando cartas, Tony não se sentia
com muita vontade de conversar durante o café da manhã. Entretanto ao

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descobrir que suas respostas secas haviam dado permissão a Vanessa para
transformar o maior aposento da casa numa biblioteca particular, começara a
prestar um pouco mais de atenção no que a esposa dizia, ainda que o orgulho
o impedisse de mostrar-se mudado.
Se ao menos Vanessa lhe pedisse algo simples, como um chapéu novo,
por exemplo. Muitas vezes via-se obrigado a esconder o riso por trás do jornal,
enquanto escutava os mais ridículos arroubos de fantasia. Quem sofria era
Rayburn, que precisava fingir não ouvir os disparates de Vanessa.
Felizmente a própria Vanessa descartava suas idéias malucas, como a
aquisição de um macaco. Ela estava longe de ser a moça mimada que julgara
a princípio. Muito pelo contrário. Tratava-se de uma mulher inteligente e
criativa, que esforçava-se para obter a atenção do marido. O fato de ser
incapaz de lhe dar ao menos um pouco de atenção incomodava-o mais do que
gostaria de admitir. Entretanto via-se obrigado a mantê-la distante até que seu
débito fosse saldado. Somente quando nada mais devesse à esposa iria se
sentir livre para agir como um marido de verdade.
Tony sabia que o velho Rayburn o censurava por manter-se tão distante
da mulher e realmente não podia culpar o criado por pensar assim. Na maioria
do tempo não concordava com a maneira que escolhera para lidar com o
problema. Entretanto a cada dia fazia novos progressos na direção de sua
independência financeira e Vanessa parecia paciente o bastante para suportar
um casamento apenas no papel.
Talvez ela nem se desse conta de que o casamento de ambos fosse uma
relação estranha, já que não tinha amigas com quem conversar sobre o
assunto. Mas então Tony lembrou-se de Marie e daqueles olhos penetrantes
que pareciam querer matá-lo. Só Deus sabia o que a criada francesa colocava
dentro da cabeça de Vanessa.

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Quatro

Ao descobrir que Chadwick não estava em lugar algum, Vanessa quase


entrou em pânico. Sua primeira reação foi pensar que o marido o havia
demitido, Felizmente Jeffers esclareceu que o cavalariço-chefe estava fora,
resolvendo um problema. Se por um lado a explicação lhe trouxe alívio, por
outro causou-lhe enorme ansiedade. A feira de animais em Tattersall’s
costumava acontecer apenas nas segundas-feiras àquela época do ano e se
não comprasse um cavalo hoje, seria obrigada a esperar mais uma semana
inteira.
— Já sei. Você vai comigo comprar um cavalo.
— Eu? — Jeffers indagou surpreso.
— Afinal Tony me falou que você entende tanto de cavalos quanto
Chadwick, talvez até mais.
— Mas lorde Cairnbrooke está acostumado a comprar seus próprios
animais.
— Acontece que este cavalo é para mim. Tenho certeza de que você será
capaz de me ajudar. Agora sele aquele animal horrível e vamos embora.
— Para onde vamos? — o cavalariço perguntou desconfiado, enquanto o
ajudante selava dois animais.
— Para Tattersall’s.
— TattersalTs não é um lugar para damas, minha lady.
— Bem, eu não pretendo ir até lá. É você quem irá.
— Se é assim, por que a senhora quer cavalgar comigo?
— Porque vou querer experimentar o cavalo tão logo o negócio seja
fechado. De qualquer forma estaremos perto de Hyde Park.
Ao chegarem a TattersaH’s, Vanessa simplesmente cavalgou até a arena
onde havia sido armada a exposição e chamou um dos cavalariços para tomar
conta de seu cavalo.
— Mas a senhora disse que não ia entrar, minha lady — Jeffers protestou.

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— Eu não vou participar do leilão. Aliás, a venda dos animais só deve
começar daqui a uma, duas horas. Enquanto isto pretendo dar uma olhada
para decidir o que quero.
Indiferente aos olhares curiosos, Vanessa percorreu todos os estábulos
sem demonstrar a menor pressa. Foi um cavalo de pêlo avermelhado que
acabou lhe chamando a atenção. Atendendo a um pedido de sua lady, Jeffers
abaixou-se para examinar as patas do animal e quase levou um coice. Vanessa
falou com o bicho com uma voz tão baixa e ameaçadora que o cavalariço
quase não podia acreditar que tal tom viesse de uma criatura delicada e
feminina como lady Cairnbrooke.
De fato alguns truques aprendidos no teatro tinham seu uso. Ao ouvir
aquele som estranho, o garanhão aquietou-se, como se tentasse descobrir de
onde vinha a nova voz.
— E então? — Vanessa indagou a Jeffers.
— O cavalo me parece em bom estado, porém a senhora não deve nem
considerar a hipótese de comprá-lo. Lorde Cairnbrooke me arrancaria a cabeça
fora se eu permitisse a compra deste animal.
— Vamos ver o que mais eles têm para nos oferecer. Mas Vanessa não
estava nem um pouco interessada em examinar outras possibilidades, agora
que o garanhão avermelhado ganhara sua simpatia. Ainda lembrava-se bem
de como Casius costumava ser arisco e orgulhoso quando novo. Nisto Tony
tinha razão. Ela precisava de um cavalo mais jovem. Há tempos não
experimentava o desafio de medir suas forças com um animal teimoso.
— A que horas deve começar o leilão? — ela indagou.
— Não sei. Poderíamos ficar aqui o dia inteiro.
— Como já lhe disse, não pretendo ficar. Aqui está o dinheiro para a
compra daquele cavalo. Ofereça até duzentas libras. Depois desta quantia, use
seu bom senso para julgar se vale a pena ou não aumentar o lance. Enquanto
isto, vou cavalgar pelo parque.
— Minha lady! Não posso deixá-la cavalgar sozinha!
— O que poderia me acontecer se o pobre coitado deste animal no qual
estou montada mal consegue trotar? Ou você fica e faz os lances ou fico eu.
Estas são suas alternativas.

49
O cavalariço parecia tão preocupado que Vanessa sentiu pena.
— Confie em mim, Jeffers. Sei o que estou fazendo — falou, procurando
acalmá-lo sem muito sucesso.
Pouco mais de uma hora depois Jeffers aparecia no parque, conduzindo o
garanhão pela rédea.
— Você conseguiu! Vamos, coloque minha sela nele!
— Acho melhor o levarmos para casa primeiro. A senhora poderá montar
amanhã — o cavalariço sugeriu, sabendo que lorde Cairnbrooke daria um jeito
de dissuadir a esposa.
— Bobagem — Vanessa retrucou, adivinhando o que se passava pela
cabeça do empregado. — Agora é o melhor momento para montá-lo, quando
ainda está cansado por causa da viagem até Tattersall’s. Sei como selar um
cavalo e se você não quiser fazê-lo, darei conta do recado sozinha.
Jeffers não teve outra escolha a não ser obedecer a ordem. Com certeza a
jovem lady acabaria sendo morta e ele levaria a culpa. Entretanto não estava
preocupado consigo mesmo. Embora estivesse a serviço dos Cairnbrooke há
anos, a situação patética de Vanessa despertara suas simpatias. Infelizmente
podia ver que lorde Cairnbrooke vinha se tornando um tirano como o pai o
fora.
Vanessa manteve o cavalo a passo para mostrar a Jef-fers como sabia
controlar o animal.
— Vamos experimentar um pouco de galope — ela anunciou por sobre o
ombro.
— Não, eu lhe imploro!
Vanessa deixou o garanhão galopar por alguns minutos até aproximarem-
se de uma fileira de árvores. Então puxou as rédeas. O cavalo tentou se
rebelar contra o comando, porém ela manteve a pressão, obrigando-o a
obedecê-la. Jeffers nunca havia visto sua lady montar antes e agora
perguntava-se como seu lorde achara que uma égua mansa já seria um
desafio para a esposa.
— Seguro o suficiente em espaços abertos — Vanessa comentou. — Como
será que se comportará entre as árvores?
Durante o leilão Jeffers ficara sabendo que o garanhão havia sido treinado

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pelo major Kurtland e que participara de algumas batalhas. Que tipo de maus
hábitos o animal adquirira na cavalaria?
De repente o cavalariço se deu conta de que lady Cairnbrooke corria em
disparada na direção das árvores. Oh, Deus, ela ia sofrer um acidente terrível
pois o bicho parecia fora de controle. Entretanto quando estava a poucos
metros das árvores, Vanessa puxou a rédea esquerda e atingiu o garanhão na
orelha com uma chicotada. Imediatamente o animal abaixou a omoplata
direita, como se quisesse jogá-la no chão. Mas Vanessa pulou para fora da sela
antes, pegando-o de surpresa.
— Sim, seu tolo, eu venci. Este é o truque mais velho que um cavalo
jamais inventou. Não tente bancar o engraçadinho comigo outra vez.
A voz estranha, baixa e penetrante, com certeza estava vindo de Vanessa.
Assim como o animal, Jeffers olhava sua lady com renovado respeito.
— A senhora está ferida?
— Não, claro que não. Também acho que não feri o cavalo na boca ao
puxar a rédea com tanta força. Eu jamais trataria um potro desta maneira,
mas este bicho aqui estava pedindo um tratamento duro. Vou só fazê-lo trotar
um pouco e podemos dar o treino de hoje por encerrado.
— Quer dizer que a senhora está pensando em voltar a montá-lo agora?
Acabei de me lembrar dos comentários que ouvi no leilão. Este animal veio dos
estábulos do major Kurtland e chama-se Satã.
— Não, acho que Cetim seria mais apropriado. Cetim Vermelho. É claro
que vou montá-lo no trajeto para casa.
— Lorde Cairnbrooke vai ficar apavorado se a vir montada neste animal.
— Você acha? Então compramos o cavalo certo. A propósito, você sabe
quando Chadwick estará de volta?
— Ele não foi despedido. Apenas teve que se ausentar durante algum
tempo, apesar de não ter dito para onde ia. A senhora podia perguntar a lorde
Cairnbrooke.
— Sem saber a resposta de antemão, a pergunta torna-se perigosa. Como
quase todas as perguntas. Tony é um homem de atos, não de palavras. As
vezes é difícil me comunicar com ele. Nunca sei o que o está preocupando.
Jeffers ficou em silêncio e seguiu Vanessa, conduzindo o outro animal pela

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rédea. Só pedia a Deus que lorde Cairnbrooke hão os visse até que tivesse
chance de prepará-lo para receber a novidade.
Ao entrar em casa, entusiasmada por causa da cavalgada e cheia de
planos para tentar ganhar a atenção do marido, Vanessa descobriu Armand
Travesian sentado na sala de estar na companhia de lady Amanda. O incrível é
que lady Amanda estava rindo, as faces enrubescidas! Mas Armand era mesmo
capaz de encantar qualquer pessoa.
— Você andou tão ocupada em se casar e depois mudar de endereço que
acabou me negligenciando — ele reclamou abraçando-a e beijando-a no rosto.
— Como é que está indo sua peça? — Vanessa indagou sentando-se numa
cadeira para deixá-lo ao lado da sogra, no sofá.
— Razoavelmente. Eu poderia fazer bom uso de um toque feminino.
Estamos tendo problemas com o figurino.
— Vou mandar Marie procurá-lo no Atenas. Logo ela colocará tudo em
ordem.
— Armand me contou que você tem interesse no teatro.
Vanessa não sabia muito bem como interpretar o comentário da sogra. De
fato era dona de metade do Atenas. Nem seu pai tinha conhecimento disso e
não era possível que Armand houvesse sido tão indiscreto a ponto de
mencionar este detalhe.
— Todo mundo deveria se interessar pelo teatro, se esperamos que boas
peças sejam encenadas — Vanessa saiu pela tangente.
— O mundo do teatro deve ser fascinante — lady Amanda exclamou
entusiasmada. — Qual é seu personagem favorito? Afinal além de diretor, você
é ator também, não é Armand?
— É difícil dizer. Em toda minha carreira, já devo ter interpretado mais de
uns cinqüenta papéis principais.
— Qual destes papéis ele faz melhor? — lady Amanda apelou para a nora
que se servia de uma xícara de chá.
— Sem dúvida, o personagem que ele desempenha melhor é o de Armand
Travesian — Vanessa respondeu piscando o olho. — Os outros personagens se
transformam em sombras pálidas quando comparados à força desta
personalidade vibrante.

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— Devo tomar o comentário como um elogio?
— Tenho certeza de que você seria capaz de transformar qualquer
comentário em elogio.
— Você está em grande forma hoje, querida Vanesa, e, se me permite
dizer, com este rubor nas faces quase tão adorável quanto lady Amanda.
Lady Amanda enrubesceu ainda mais e Vanessa sorriu para Travesian,
certa de que nenhum homem conseguia fazer uma mulher se sentir tão
especial.
— Não estou confusa assim a ponto de me esquecer que você é um ator,
e portanto acostumado a distribuir elogios com facilidade — lady Amanda falou
tentando ficar séria, embora sem muito sucesso.
— Não, querida madame. Sou um homem constante. Pergunte à sua nora,
que me conhece há anos.
— Verdade — Vanessa respondeu com um sorriso brincalhão. — Há uma
eternidade ele vive dizendo o quanto me ama.
— Basta ver a minha idade para saber que se trata de um amor paternal,
não a afeição madura que sentiria por…
Tony entrou naquele exato momento e Vanessa apressou-se a fazer as
apresentações. Depois da chegada de lorde Cairnbrooke, Armand não se
demorou muito. Foi lady Amanda quem o conduziu até a porta e então subiu
para seus aposentos, cantarolando satisfeita.
— Quem era aquele homem, afinal?
— Um amigo de meu pai. Eu o conheço desde os meus quinze anos.
— Isto não é desculpa para convidá-lo para uma visita.
— Ele simplesmente esteve aqui de passagem. Porém se em questão de
dois minutos você já decidiu que não o aprecia, esteja certo de que jamais o
convidarei para jantar.
— Eu não disse que não gostei dele.
— Não disse, mas demonstrou. Uma pessoa de natureza menos generosa
teria ficado ofendida.
— Não creio que Travesian possa se sentir ofendido com alguma coisa.
— Talvez você tenha razão — Vanessa falou, surpreendendo-o. Aquela
conversa não iria levar a lugar algum e por que discutir com o marido quando

53
podia encontrar-se com Armand no Atenas? — É verdade que já vi Armand
transformar os insultos mais cruéis em piadas. Acho que aprendei o truque
dele.
O comentário da esposa fez Tony lembrar-se do encontro dos dois com
lady Vonne, em Brighton. E mais recentemente, quando Vanessa o vira na
companhia de Madeleine diante de uma loja de roupas femininas. Qualquer
pessoa poderia ter interpretado o fato de maneira errada, assim como ele
também poderia estar interpretando mal uma simples visita de cortesia.
— Quer dizer que você não gosta do tal Armand de maneira especial? —
Tony perguntou inseguro.
— Eu o respeito naquilo que ele sabe fazer bem, que é produzir e dirigir
peças teatrais. Não o convidarei à nossa casa se você se opor a tanta
demonstração de jovialidade. Muitas pessoas se sentem incomodadas e
consideram o comportamento alegre algo forçado. É preciso se lembrar de que
Armand é um ator e tende a representar cada cena com um certo exagero.
— Se ele aparecer para visitá-la, suponho que não há nada que você
possa fazer para evitá-lo.
— Sim, seria rude negar que estou em casa e provavelmente a mentira
não daria resultado. Além do mais, Armand consegue fazer sua mãe rir, o que
é raro.
— Como foi que seu pai o conheceu? — Tony indagou interessado.
— Ele bancou uma das peças de Armand, e com muito sucesso, devo
acrescentar. — Vanessa teve vontade de contar ao marido que também já
havia bancado algumas produções e que nesta última montagem seu interesse
ia além do financeiro. Entretanto teve receio de irritá-lo, agora que o mal-estar
gerado pela visita de Armand parecia ter se dissipado.

Como sempre, logo após o jantar, Tony saiu de casa sem dizer para onde
ia. Embora se esforçasse para não dar asas à imaginação, Vanessa só
conseguia pensar que talvez o marido estivesse na companhia de lady Vonne,
ambos na cama. Se não fosse assim, por que então ele não lhe contava onde
passava a noite?
Na manhã seguinte, odiando-se por se deixar abater pelo ciúme e

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insegurança, Vanessa queria apenas anestesiar a angústia que a consumia.
Sentia-se cansada de lutar contra sombras. Tudo o que precisava naquele
momento era esquecer os problemas que a consumiam e uma boa cavalgada a
ajudaria a arejar a cabeça. Sem se importar com a possível reação de Tony,
mandou que Jeffers selasse Cetim.
— Talvez lorde Cairnbrooke vá querer acompanhá-la hoje — o cavalariço
falou esperançoso.
— Sem chance. Ele chegou tarde em casa e creio que só estará de pé à
hora do almoço. — Vanessa olhou para as janelas cerradas do quarto do
marido enquanto aguardava que lhe trouxessem o cavalo. Se seu desejo fosse
ter barulho suficiente para acordar os mortos, poderia considerar-se satisfeita.
Cetim relinchou de prazer ao vê-la e bateu os cascos no chão, o ruído
estridente do metal sobre pedra ecoando na manhã silenciosa.
De repente a janela foi aberta e Tony apareceu, os cabelos revoltos, uma
expressão cansada no rosto.
— Que diabo de barulho é este? — ele indagou, tentando convencer-se de
que estava sonhando ao ver a esposa, tão frágil e dócil, montada no cavalo de
aparência mais feroz que jamais vira na vida.
— Bom dia, Tony — ela o cumprimentou sorrindo.
— De onde diabos surgiu este animal?
— Comprei-o ontem — Vanessa respondeu calmamente antes de
pressionar a barriga de Cetim com os pés e incitá-lo a sair na mais desabalada
correria.
Tony quase caiu da janela. Arrancando o pijama, gritou para que Stewart
selasse seu cavalo.
— Depressa, homem! Minha mulher enlouqueceu. E Jeffers também!
Mexa-se!
Quando Tony desceu as escadas rumo ao pátio, minutos depois, Stewart
já o aguardava. Por Deus, lady Cairnbrooke havia conseguido superar o
marido, o cavalariço pensou divertido. Em primeiro lugar, ela devia ter tido
permissão para montar Tansy. Por nada deste mundo iria perder o desfecho da
história, Stewart decidiu correndo de volta para os estábulos sem se importar
de ainda não haver tomado o café da manhã.

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Por medida de segurança, Vanessa manteve Cetim a passo enquanto
cavalgava pelas ruas. Porém ao chegar a Saint Jame’s Park, disparou num
galope acelerado. Dois cavalheiros que exercitavam seus animais pensaram
estar testemunhando uma fuga e até cogitaram na possibilidade de sair ao
encalço da dama desconhecida, já que o cavalariço vinha muito atrás.
Mudaram de idéia somente quando a viram parar junto às árvores para
esperar pelo empregado. Entretanto não foram capazes de resistir à tentação
de conhecer uma dama tão bela e ousada.
— Não creio que já tenhamos nos visto antes. William Falcrest — o mais
velho dos cavalheiros se apresentou, tocando a ponta do chapéu numa
saudação gentil.
— E eu sou Clive Falcrest. Por acaso este cavalo não pertence a Kurtland?
— Não mais. Sou lady Cairnbrooke. Desculpe-me, mas não posso deixar o
cavalo parado e temo que vocês não consigam me acompanhar.
Outra vez Vanessa saiu em disparada, para o prazer completo de Cetim
que encontrara na dona a companheira ideal para seus galopes desenfreados.
Sentindo-se desafiados, os Falcrest lançaram-se atrás de Vanessa,
embora desistissem de alcançá-la ao vê-la entrar em Hyde Park parecendo
cavalgar com o vento.
— Então aquela é a esposa de Tony. É difícil acompanhá-la — Clive
comentou, massageando as pernas dormentes.
— Graças a Deus Marissa não está conosco. Não diga à minha esposa que
fomos vencidos por uma mulher ou ela falará sobre o assunto por toda a
eternidade — William pediu ao irmão.
De repente Tony surgiu do meio das árvores e aproximou-se dos
cavalheiros, o rosto pálido, a camisa aberta no peito, dando a impressão de
alguém que caíra da janela.
— Hyde Park — os dois disseram um uníssono.
Vanessa, seguida de perto por Jeffers, finalmente voltou para casa. Dillon,
um dos cavalariços aprendizes, recebeu-a com satisfação, contente por lady
Cairnbrooke se mostrar à altura de um animal voluntarioso como Cetim
Vermelho. De seu lorde, ele só foi ter qualquer notícia dali a meia hora.
— Minha esposa e Jeffers? — Tony indagou ansioso.

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— Chegaram meia hora atrás, meu lorde.
— Em segurança?
— Claro que sim — o empregado retrucou como se a pergunta fosse um
insulto.
Vanessa estava esperando pelo marido no quarto, parada junto a janela.
Porém como ele custasse a chegar, seu estado de ansiedade havia alcançado
proporções estratosféricas. Temia que Tony tivesse sofrido uma queda e se
machucado. Seu pavor era tanto que já pensava em mandar Jeffers procurá-
lo. Ao vê-lo atravessar o pátio, experimentou um alívio tal que lágrimas
vieram-lhe aos olhos.
Como podia amá-lo assim quando Tony a considerava somente uma
esposa de conveniência? Com certeza ele estaria morto de ódio agora e não
seria nada fácil enfrentar tamanha raiva. Oh, Deus, devia haver uma outra
maneira de chamar a atenção do marido, mas não sabia qual. A verdade é que
considerava-se uma mulher corajosa apenas sobre a sela ou no palco.
— Então você está bem? — ele indagou baixinho, aproximando-se.
A reação de Tony não era bem como esperara. Por que ele não estava
gritando? Por o tom de quase desespero?
— Por que você fez isto? Poderia ter sido morta. Não pensou nos riscos
que corria?
— Claro que pensei.
Seu marido ainda não havia feito a barba e a extrema palidez do rosto
acentuava a expressão do mais puro cansaço. Somente os olhos azuis tinham
vida.
— Talvez minha morte teria sido a melhor coisa a acontecer. Não posso
pedir o divórcio, mas se eu me fosse, você ainda teria o dinheiro e a liberdade
para agir como quisesse. — Aquilo não era exatamente o que planejara dizer,
entretanto suas palavras pareciam haver causado uma impressão fortíssima
em Tony, que a fitava como se a visse pela primeira vez. — Só não consigo
imaginar Madeleine Vonne como sua companheira. Não seria seguro.
Num impulso incontrolável, ele tomou-a nos braços e apertou-a com força
de encontro ao peito.
— Você se sente tão infeliz assim? Como pôde pensar numa coisa dessas?

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— O dia estava tão lindo — Vanessa murmurou, os olhos brilhando por
causa das lágrimas reprimidas. — E Cetim provou não ser perigoso como
parece. Eu me diverti cavalgando, mas quando você demorou a voltar para
casa comecei a ficar preocupada.
— Preocupada comigo? Sou eu quem deveria estar me preocupando com
você. Como posso mantê-la em segurança se você não me deixa fazê-lo?
— Eu tampouco sou capaz de mantê-lo em segurança.
— Prometa-me que daqui em diante você irá cavalgar apenas comigo. Não
sei de onde saiu aquele monstro avermelhado, mas…
O som de cascos de cavalo no pátio chamou-lhes a atenção. Vanessa
correu para a janela.
— Olhe! É Tansy. De onde será que ela surgiu?
— Não sei. Chadwick tem estado à procura dela durante toda a semana.
— Você o mandou buscá-la para mim? — Vanessa indagou incrédula.
— Eu disse a Chadwick que só voltasse para casa quando a encontrasse.
— Oh, Tony, eu te amo tanto! — Ela beijou-o com tal fervor que o fez
estremecer. Depois saiu correndo para o pátio, ansiosa para ver Tansy de
perto.
O marido foi encontrá-la cuidando de um ferimento na boca da égua.
— Coitadinha! Vou lhe preparar uma papa de aveia.
— Pode deixar que eu a levo para o estábulo, minha lady — Jeffers
ofereceu-se enquanto Vanessa voava para a cozinha.
— Onde você a encontrou? — Tony indagou a Chadwick.
— Na propriedade de lorde Axminster, a uns sessenta quilômetros daqui.
Ele havia comprado Tansy para a esposa, mas mudou de idéia assim que a
égua atirou lady Axminster no chão. Então expliquei que Tansy tinha sido
vendida por engano e comprei-a pelo mesmo preço pago anteriormente. Só
não cheguei aqui mais cedo porque sei como miss Vanessa detesta ver os
animais pressionados além do limite.
— Estou começando a pensar que sua chegada aconteceu na hora certa.
Venha ver o monstro que lady Cairnbrooke comprou durante a sua ausência.
Chadwick examinou Cetim cheio de admiração.
— Muito bonito. Ela sempre teve um bom olho para cavalos.

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— Onde foi que minha esposa aprendeu a montar daquela maneira? —
Tony indagou ao cavalariço.
— Miss Vanessa nem sempre esteve às voltas com animais velhos. Ela
teve um cavalo indócil e voluntarioso. Eu mesmo a ajudei a treiná-lo.
— E o que aconteceu com o animal? Ela jamais teria sido capaz de vendê-
lo.
— Eu o encontrei morto certa manhã.
— O bicho morreu de quê?
— Acho que foi atingido por um raio durante a noite. Miss Vanessa culpou-
se pelo acontecido, claro. Dizia-se que nada teria acontecido se não o tivesse
deixado solto no pasto.
— Ela deveria ter comprado um outro cavalo. É a melhor maneira de
superar a perda.
— Eu sei. E tentei convencê-la a fazer isto. Porém minha lady disse que
não agüentaria se apegar a um animal outra vez, sabendo que poderia perdê-
lo.
— Não é de se admirar que a perda de Tansy a tenha magoado tanto.
Obrigado por trazer a égua de volta.
De repente Tony descobriu-se interessado em Tansy de uma maneira que
jamais julgara possível. Aquele animal simbolizava a fidelidade e afeição de
que sua esposa era capaz. Vanessa dissera que o amava. Será que ela iria
querê-lo para sempre, independente de quantos erros estúpidos já houvesse
cometido?

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Cinco

Ao montar Cetim pela primeira vez, Tony chegou a conclusão de que há


anos não se divertia tanto. O animal oferecia todo o tipo de desafio que um
cavaleiro experiente pode desejar. O prazer de cavalgar era tanto que acabou
esquecendo-se de preocupar-se com Vanessa, que o seguia de perto montada
em Tansy. Os dois juntos, voando pelo parque, atraíam os olhares de todos.
Não demorou muito para que encontrassem os Falcrest, desta vez
acompanhando uma mulher de cabelos escuros e feições simpáticas. William
apressou-se a apresentar sua esposa, Marissa, a Vanessa.
— William me contou que você comprou um dos cavalos de Kurtland. Fico
satisfeita que o animal tenha ido parar num bom estábulo, já que meu marido
recusou-se a comprá-lo para mim — Marissa falou enquanto trotavam
devagar.
— Está vendo, Tony? — Vanessa indagou, virando-se para fitar o marido.
— Eu lhe disse que uma dama era capaz de controlar Cetim.
— Mas isto não significa que você irá montá-lo de novo.
— Sim — William concordou. — Uma dama montada neste garanhão,
voando pelo parque desacompanhada, com certeza irá dar margem a certos
comentários.
— Você acha? — ela indagou inocentemente.
— Os homens podem ser tão aborrecidos — Marissa reclamou. — Se
ninguém puder acompanhá-la, basta me mandar um bilhete e cavalgaremos
juntas. Não me importa em que cavalo esteja montada.
— Então logo as duas serão alvos de falatórios — William avisou.
— E qual é o problema? Somos ambas mulheres casadas. Não tem
importância o que possam dizer a nosso respeito.
— Sério? — Vanessa perguntou deliciada.
— De fato minha mãe ficaria bastante chateada se ouvisse fofocas a seu
respeito — Tony ponderou. — Ela tem se preocupado tanto em apresentá-la à

60
sociedade.
William aproveitou a deixa para fazer coro ao amigo.
— Tony tem razão. Embora já esteja casada, Vanessa ainda precisa ser
aceita pela sociedade de Londres.
— Qualquer um que se recuse a aceitá-la será cortado ao meio pelos
irmãos Falcrest — Clive a reassegurou.
— Não há motivos para se preocupar, querida — prometeu Marissa. —
Você deve levar lady Amanda para tomar um chá conosco. Faz quase um ano
que não a vemos.
Momentos depois o pequeno grupo se separava. Imediatamente Vanessa
quis saber por que o marido não lhe contara ter amigos tão simpáticos.
— Talvez tenha me sentido um pouco embaraçado diante da possibilidade
de encontrá-los depois do papelão que fiz meses atrás.
— Eles parecem entender.
— Sim. Na verdade estou feliz por tê-los visto. São meus amigos mais
chegados.
Vanessa mal tivera tempo de trocar a roupa de montaria por um vestido
comportado quando Rayburn veio avisá-la de que lady Jane a aguardava na
sala, juntamente com lady Amanda.
— Onde está papai?
— No banco, claro. Mal acabamos de chegar e os negócios já foram
colocados em primeiro lugar. Eu disse a ele que era mais importante virmos
vê-la.
— Papai sabia que eu entenderia. Vocês devem vir jantar conosco esta
noite.
— Como está Paris? — lady Amanda perguntou.
— Quase a mesma, exceto pela quantidade de ingleses que resolveu se
mudar para lá. As estradas continuam precárias, mas de qualquer forma nunca
foram bem cuidadas. Comprei alguns chapéus.
— Apenas chapéus? — Vanessa indagou com um sorriso cúmplice.
— Espere só até ver meu novo guarda-roupa. Vou acabar lançando moda.
— Você está elevando as expectativas para esta noite, querida lady Jane.
— Falando em expectativas, fiquei surpresa com a sua mudança para esta

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parte da cidade. Distante de quase tudo, exceto dos campos de Tothül…
Realmente, Vanessa!
— Gosto daqui! Temos um estábulo e estamos perto de Saint James’s
Park. Oh, você precisa ver minha biblioteca!
Quando Vanessa informou ao marido que seu pai e lady Jane viriam
jantar, ele concordou em ficar em casa naquela noite.
— Lamento o que aconteceu com seu pai, meu rapaz. Eu gostava dele —
Barclay falou, apertando a mão de Tony com força.
— Só ficamos sabendo do acontecido quando regressamos a Londres —
lady Jane explicou. — Suponho que suas cartas tenham se extraviado, Vanessa
querida.
— Pensei que fosse encontrá-los morando em Portman Place — Barclay
comentou.
— Decidimos nos mudar.
— Se vocês estiverem enfrentando quaisquer dificuldades…
— Fui eu quem preferi viver numa casa menor — Vanessa interveio,
temendo que o pai, embora bem intencionado, pressionasse Tony além da
conta. — A residência em Portman Place era assustadora, longe dos parques e
sem lugar para meus livros. Há dezenas de quadros em cada parede.
— Tenho uma surpresa para vocês — lady Amanda anunciou de repente.
— Armand Travesian virá jantar conosco.
Pelo olhar espantado da esposa, Tony teve certeza de que ela nada tinha
a ver com o arranjo. Travesian não tardou a chegar em todo o seu esplendor e
dominou a conversa durante o jantar, falando sobre o sucesso da última
temporada teatral e reclamando a ausência de Vanessa nos ensaios. Afinal
alguém precisava tomar o texto dos atores.
Assim que surgiu uma oportunidade para mudar de assunto, Vanessa
indagou ao pai sobre a viagem ao continente. Qualquer coisa, mesmo falar
sobre a guerra, seria melhor do que suportar as indiretas de Armand e a
expressão cansada, embora paciente, de Tony.
— Uma coisa terrível, esta guerra. Serão necessários anos até que tudo
volte ao normal na Europa. Os assuntos financeiros estão começando a ser
regularizados agora, mas o caminho a percorrer é longo. É impossível não dar

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ouvidos às conversas de que alguém, aproveitando o conflito na Bélgica, tenha
provocado pânico deliberado no mercado financeiro para lucrar. Alguém que
sabia o que iria acontecer e quem sairia vencedor.
— Seria este alguém Nathan Rothschild? — Travesian perguntou para a
surpresa de Tony. Aquele homem era muito mais astuto e inteligente do que
imaginara — Rothschild deve ter lucrado mais de um milhão de libras.
— Mas como Rothschild pôde saber o que se passava no continente com
tanta antecedência para planejar a jogada no mercado financeiro? — Tony
indagou, a voz controlada traindo certa tensão. — Quem seria seu informante?
E de que meios dispunha para receber as notícias com tamanha rapidez?
— Se a história que se ouve por aí é verdade — explicou Barclay —,
Rothschild contava com um sistema eficiente de trânsito de informações para
favorecer o lucro pessoal.
— Rothschild arruinou meu pai. Chego a pensar que seja responsável,
pelo menos indiretamente, pela morte dele.
— Oh, filho, com certeza não é assim — murmurou lady Amanda.
— Não se preocupe, minha querida — Travesian interveio. — Se houve má
fé, o culpado deverá ser punido.
— Como? — perguntou Tony. — Onde encontrarei as provas?
— Se descobrirmos os meios, também seremos capazes de encontrar as
provas — Barclay falou com firmeza.
— E de que adiantará? — Quis saber Vanessa. — O que ele fez sequer é
ilegal, embora seja anti-ético.
Tony surpreendeu-se com a colocação da esposa. Como é que Vanessa
podia estar a par de um assunto marca-damente masculino?
— Se não é ilegal deveria ser — Tony respondeu.
— Concordo com você, meu rapaz. Desculpe-me ter lançado uma luz
sombria sobre a noite.
Quando os convidados se retiraram, Vanessa procurou falar a sós com o
marido, que já se preparava para sair.
— O que você está pensando fazer?
— Ainda não sei. Mas não se preocupe. Não pretendo passar por tolo.
— Cuidado, Nathan Rothschild é um homem muito poderoso.

63
— Então você o conhece?
— Já fui convidada para algumas festas na casa de Rothschild e também
já o recebi para jantar na casa de meu pai.
— Como é ele?
— Quando rodeado de pessoas entre as quais se sente confortável, é
jovial e despreocupado. Porém basta colocá-lo na presença de um estranho, de
alguém em quem não confie, para mudar completamente de comportamento.
Não é homem que deixe transparecer nada, seja através de atos ou palavras.
Mantém sempre o rosto impassível e não demonstra qualquer sentimento ou
emoção, embora não perca um detalhe do que se passa ao redor. Tony colocou
o chapéu e caminhou até a porta.
— Por favor, tenha cuidado. Você me fez uma promessa.
— Que promessa?
— Antes de nos casarmos você prometeu que não seria baleado outra vez.
— Engraçado você lembrar-se disso agora.
— E como poderia esquecer?
Ele beijou a esposa rapidamente e saiu.
Vanessa não conseguiu pegar no sono até ouvi-lo chegar.

Estando em Londres, lady Jane não negligenciou Vanessa ou Amanda e


fez questão de visitá-las freqüentemente em Marsham Street, fosse para
deplorar a localização da residência dos Cairnbrooke, fosse para levá-las a um
passeio pelas lojas da moda. Depois da cavalgada matinal ao lado do marido,
Vanessa não se importava muito como empregava as horas do dia, já que
podia dedicar a noite inteira ao roteiro do The Count.
Certa tarde as três resolveram visitar os Falcrest. Ma-rissa e a sogra não
estavam em casa, porém o mordomo conduziu-as até o jardim de inverno, de
onde vinham sons de risadas e correria. Parecia-lhes óbvio que estavam
interrompendo algum tipo de brincadeira entre um homem louro, usando um
tapa-olho, uma garotinha e um cachorro. Uma mulher jovem, também loura,
levantou-se imediatamente para cumprimentá-las.
— Elizabeth! — lady Amanda exclamou satisfeita. — Que bom vê-la! Esta
é Vanessa, minha nora.

64
— Olá, Vanessa. Olá, lady Jane. Quero lhes apresentar meu marido, Jason
Weir, e minha sobrinha, Amy.
Elizabeth devia estar no final da gravidez e irradiava beleza, Vanessa
pensou. Os olhos azuis, os cachos de cabelos dourados e a pele brilhante
compunham uma imagem de saúde maternal.
— Este é Arf— Amy informou-os. — Jason, devo sair da sala agora que
temos visita?
— Não necessariamente querida. Mas é o que pretendo fazer.
— E por que você deveria sair? — Vanessa indagou. — Não vamos nos
demorar nada.
— O problema é que Arf não sossega e alguém tem que levá-lo embora
daqui.
— Eu gosto de cachorros e como Amy também gosta, sei que seremos
amigas. Se ela gostar de cavalos, então…
— Eu gosto, eu gosto! — gritou a garotinha, pulando no sofá para cima e
para baixo. — Vou ganhar um pônei ainda este ano.
A conversa passou a girar em torno de cavalos, crianças e cachorros.
Quando Jason desculpou-se, dizendo que estava na hora de ir para o hospital,
onde fazia especialização em cirurgia, as três senhoras aproveitaram para
partir, certas de que haviam passado uma tarde deliciosa.
Depois de deixarem lady Amanda em casa, Vanessa e Jane resolveram
conhecer uma nova loja de chapéus. Lady Jane passou o tempo inteiro
deplorando o estilo inglês, enquanto Vanessa a provocava experimentando um
chapéu de cetim roxo, enfeitado com um punhado de plumas amarelas.
Quando Vanessa virou-se para fitar a madrasta, uma expressão
brincalhona no rosto, percebeu que lady Madeleine Vonne havia acabado de
entrar.
Sem demonstrar qualquer reação, Vanessa tirou o chapéu ridículo da
cabeça, pensando que talvez fosse um acessório adequado ao figurino de uma
das personagens de sua nova peça, lady Rue. Causaria um efeito e tanto sob a
iluminação certa.
— A senhora se importa de me emprestar o chapéu um instante? —
indagou uma das vendedoras.

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— Oh, claro. — Só então Vanessa se deu conta de que Madeleine
pretendia experimentar o chapéu. Aquela figura loura e muita branca parecia
ter adquirido uma cabeça extra sob a cor berrante e o exagero de plumas.
— Vou levá-lo — Madeleine anunciou, para surpresa de todos na loja.
De súbito Vanessa percebeu que Madeleine quisera o chapéu apenas para
impedi-la de comprá-lo, coisa que não tinha a menor intenção de fazer. Depois
de uma olhada rápida ao redor, Vanessa decidiu-se por um chapéu cor de
cenoura, adornado por um véu preto e uma pena de pavão. Algo simplesmente
pavoroso. Bastou tocá-lo para ouvir a voz de Madeleine dizendo à vendedora
que queria experimentá-lo. Seu plano dera certo.
— Vou levar este aqui também — lady Vonne falou, os olhos fixos em
Vanessa. — É preciso saber o que se quer neste mundo e ir atrás.
— Então é bom que homens não sejam chapéus ou você teria um armário
cheio deles. — No mesmo instante Vanessa arrependeu-se da resposta
mordaz, porém as palavras haviam escapado de sua boca sem que
conseguisse evitá-las. Madeleine saiu da loja pisando duro, incapaz de conter a
fúria.
— Sinto muito, minha lady — desculpou-se a vendedora, mal a outra dera
as costas.
— De fato eu estava interessada apenas nas plumas para a confecção de
um arranjo para a cabeça. Vocês têm plumas brancas?
— Tenho certeza que sim.
— A audácia daquela mulher! Comprar os chapéus somente porque você
os estava olhando! — explodiu lady Jane. — Você não está achando que ela vai
usar aquelas coisas?
— Espero que sua modista a impeça.
— Não, querida, você espera exatamente o contrário — lady Jane a
acusou rindo.
— Quase odeio a idéia de encerrarmos a temporada de Lady Mellefleur —
disse Travesian.
— Não podemos manter as duas montagens simultaneamente — Vanessa
ponderou. — Os cenários são muito diferentes.
— Mais duas semanas então. Grande parte da sociedade ainda não voltou

66
das férias. Eu preferiria uma estréia em grande estilo para The Count.
— Seus atores podem aproveitar o adiamento da estréia para intensificar
os ensaios. Alguns não me parecem tão preparados quanto deveriam estar.
— Quando eles não estão preparados tornam-se meus atores. Será que
preciso lembrá-la que você divide comigo os lucros e as perdas deste projeto?
— Não, eu sei, e penso nisso a cada vez que vejo uma das pessoas da
companhia sendo descuidada com velas ou lamparinas. Acontecem mais
incêndios em teatros do que em qualquer outro lugar. Gostaria que vocês lhes
chamasse a atenção sobre o assunto outra vez.
— Você sempre fica assim antes da estréia de um espetáculo.
— Sempre! Esta é apenas a segunda peça que escrevo. E se o público
odiar?
— Isto não vai acontecer. É uma comédia.
— E se eles não rirem?
— Garanto-lhe que vão rir até rolarem da cadeira. É uma pena não
podermos dizer a verdade sobre a identidade do autor. As pessoas vivem
querendo conhecê-la.
— Você está querendo dizer que elas desejam conhecer monsieur Encrier.
— Sim. Segundo os boatos, você é um tipo recluso ou talvez inválido.
— Pois eu encorajaria o público a acreditar nesta história. Seja lá o
possam dizer de mim, que meu pai me comprou um título, que me casei com
Tony porque era minha última oportunidade. Nada disso importa. O que jamais
podem saber é que eu sou Encrier. Tony jamais me perdoaria.
— As pessoas realmente já disseram todas essas coisas de você?
— Sim, eu as escuto cochichando nas bibliotecas e nas lojas. Ainda bem
que não saio muito.
— Só espero que você tenha o bom senso de não dar ouvidos às fofocas.
— O que não me impede de me sentir magoada. Tony deve estar
escutando os mesmos comentários, ou até piores.
— O problema é que você acabou se apaixonando por aquele seu marido.
A peça já não a interessa tanto assim.
— Qual é o problema de eu amar Tony?
— Ele a afasta de mim, criança, do homem que sempre a amou e a fez

67
desabrochar, transformando-a de pequeno botão em esplendorosa rosa. Eu a
ensinei a amar e agora você me trai assim.
— São falas de Chansons d’amour, mas não consigo me lembrar de qual
ato.
— Sempre foram minhas falas favoritas — Armand suspirou. — E podem
ser aplicadas admiravelmente neste caso. Seu marido a distrai de sua
verdadeira vocação, que é o teatro.
— Não posso evitar amá-lo. Com certeza o pai de Tony deixou os negócios
em péssimo estado e ele está fazendo o máximo para colocar as finanças em
ordem. O diabo é que ele não se abre comigo nem com a mãe, como se
fôssemos duas mulheres inúteis. O que não é verdade.
— Você não precisa me convencer disto. Quantas vezes já me salvou a
pele?
— É ótimo conviver com você e trabalhar na montagem das peças, mas
dia virá em que talvez não possa ajudá-lo. Muito bem, vamos falar de
trabalho. Precisamos desco-brir o que faremos a respeito dos figurinos. Devo
ordenar que madame Gilbert faça o resto dos trajes? Posso adiantar o dinheiro
necessário.
— Serviria para apressar as coisas.
— Se Marie terminar de tirar as medidas, tomarei as providências
amanhã.
Vanessa estava subindo e descendo a escada, tão preocupada em arrumar
os livros que não ouviu o barulho de passos vindo do corredor. De repente
alguém abriu a porta da biblioteca e chamou seu nome, fazendo-a perder o
equilíbrio e cair.
Tony cruzou o espaço que o separava da esposa com uma única passada,
o pânico transformando-se em alívio ao segurá-la a salvo nos braços.
— Você pesa como uma pluma — ele murmurou baixinho, estranhamente
relutante em afastar-se. — Tem certeza de que está bem?
— Sim — Vanessa respondeu ofegante, procurando desfrutar ao máximo a
sensação de ter os braços do marido passados ao redor de seu corpo. — Você
me surpreendeu. Por um instante pensei que fosse seu pai.
— Mas por quê? Ele está morto.

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— Eu sei. Só que o tom de sua voz soou muito parecido ao dele. E então?
O que quer?
— Esqueci — ele falou, em vez de reclamar da cozinheira, como
pretendera. — Você não devia estar fazendo isto.
— Não me importo. Todos os empregados estão ocupados com seus
afazeres.
— Deixe-me colocar os volumes na prateleira superior. — Ao olhar
rapidamente os títulos, Tony surpreendeu-se com o interesse da mulher por
assuntos variados. — Você já leu todos?
— Não todos. Às vezes alguns livros nos parecem mais interessantes
antes de os abrirmos. O que você costuma ler?
— Jornal. Você escreve muitas cartas também, não é?
— Sim. Mantenho cinco correspondentes regulares. São amigos de meu
pai que por um motivo ou outro quase não vêm a Londres. Afinal esta cidade,
por melhor que seja, não é o centro do universo.
— Amigos de seu pai? Homens?
— Sim. A maioria mais velha do que meu pai. Os idosos sabem tão mais
do que os jovens. Basta conseguirmos fazê-los falar.
— Então você considera as pessoas idosas interessantes?
— Sim. Sua mãe, embora longe de ser uma mulher idosa, é uma fonte
rica de informações.
— Minha mãe?
— Sim. Ela, por exemplo, é capaz de resolver qualquer problema ligado à
administração doméstica em geral e ao trato com os empregados.
— Eu não fazia idéia.
— Eu a admiro especialmente por ter administrado uma residência tão
grande sem que seu pai sequer desconfiasse das dificuldades surgidas ao longo
dos dias. Não fique surpreso. Sei que os homens não imaginam os problemas
que podem aparecer dentro de uma casa, desde uma criada solteira grávida
até um cavalariço bêbado.
Tony virou-se para fitá-la tão bruscamente que quase caiu da escada.
— O que foi? — Vanessa indagou sem entender o espanto do marido.
— Estamos com uma criada grávida?

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— Não, não aqui. Tivemos uma em Oak Park.
— Como vocês lidaram com o problema?
— Sua mãe sugeriu que a levássemos diante do juiz para que a moça
dissesse o nome do responsável. Estou surpresa que você não tenha ouvido
nada sobre o assunto.
— Joshua Trent?
— Sim. Ele viu-se obrigado a casar-se diante da ameaça de passar algum
tempo na prisão. Lady Amanda foi implacável. Ela pode ser uma mulher dócil,
mas quando furiosa torna-se uma adversária de respeito. Joshua tem emprego
fixo, portanto não havia motivo para recusar-se a sustentar a moça e o bebê.
Tony estava perplexo. É verdade que depois da morte do irmão e do pai
sentira-se emocionalmente afastado de tudo e de todos, porém não fazia idéia
de que a mãe e a esposa o poupassem de tantos aborrecimentos diários.
— Estes são os últimos livros. Os outros deverão ficar nas prateleiras de
baixo. Eu mesmo poderei arrumá-los.
— Tenho certeza que sim, mas prefiro ajudá-la.
Vanessa sentiu-se feliz com o oferecimento. Se Tony viesse a amar seus
livros, talvez tivessem a chance de partilhar uma existência confortável, com
algum interesse em comum.
Devido à distância do centro da cidade, eles não recebiam muitas visitas
em Marsham Street. A exceção era Marissa Falcrest e posteriormente Winwood
Cairnbrooke, recém-chegado de Paris, onde fora passar algum tempo na
companhia da mãe. O primo de Tony era alto e magro, com cabelos castanhos
e rebeldes. Sentado numa poltrona da sala de estar, parecia muito à vontade.
— Tony, meu caro, a última notícia que corre a seu respeito é que você
tem estado mais perigoso do que nunca. É verdade que ameaçou o jovem
Wentworth em Brighton só porque o coitado dirigiu a palavra a Vanessa? O
rapaz mal saiu da escola e não é páreo para alguém implacável como você.
Vanessa sorriu e Tony gemeu alto enquanto revirava os olhos.
— Se eu não o conhecesse tão bem — Winwood continuou —, teria tido
minhas dúvidas em vir até aqui. Se você for mesmo um marido ciumento,
ninguém terá sossego ao aproximar-se de sua mulher.
— Não sou ciumento! — Tony protestou. — Isto é…

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— Não precisa dizer mais nada. Fico feliz em poder vir visitá-los
impunemente.
— Claro que você pode vir nos ver sempre que quiser.
— Sem dúvida — Vanessa confirmou. — Você faz parte da família.

— O que você achou de Win? — Tony indagou à esposa tão logo ficaram a
sós.
— Charmoso e bem humorado. Ele convidou sua mãe e eu para irmos ao
teatro hoje a noite. Você se opõe?
— De forma alguma. Mas se quiser, eu mesmo poderei levá-las.
— Você poderia vir conosco.
— O que vocês vão assistir?
— Lady Mellefleur’s Boudoir.
— Já assisti esta peça.
— Eu também. Qual a sua opinião? — Vanessa indagou da maneira mais
casual possível.
— Se me lembro bem, foi bastante engraçada, embora eu não estivesse
numa fase boa naquela época.
— Venha conosco, então.
— Nem mesmo Win conseguirá arrumar bons lugares em tão curto espaço
de tempo.
— Você está se esquecendo de que conheço o administrador do teatro?
— Travesian?
— Sim. Ele é dono do Atenas.
— Não sei se gosto de vê-la na companhia daquele homem em público.
— Oh, Tony! Você é um esnobe!
— Não é isto, mas ser vista no camarote dele…
— Já fui vista no camarote de Travesian uma centena de vezes. Tarde
demais para se preocupar com essas bobagens. Você vem conosco?
— Não. Tenho um compromisso.
— Está bem.
Win foi convidado para jantar antes do teatro. Vanessa esforçou-se para
que a refeição fosse perfeita em atenção ao primo do marido. Para

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acompanhar o peixe, os melhores vinhos da adega foram servidos. Win não se
fez de rogado e mais bebeu do que comeu. Quando estavam prontos para sair,
ela teve a impressão de que Tony mostrava-se pesaroso em não poder
acompanhá-los. De fato não parecia nem um pouco entusiasmado para
enfrentar o “compromisso” que dissera ter. Um comportamento estranho para
alguém em vias de se encontrar com a amante.
Era a última semana em cartaz de Lady Mellefleur e Vanessa realmente
queria assistir a apresentação de sua peça mais uma vez. Pelo visto sua
opinião era partilhada por várias outras pessoas, pois podia reconhecer muitos
dos rostos na multidão. Era gratificante observar aqueles espectadores rindo e
se divertindo com o que acontecia no palco, ainda que o desenrolar da trama
já não fosse novidade.
Se até então ninguém havia sido ousado o suficiente para visitar o
camarote de lady Cairnbrooke, sempre acompanhada de lady Jane e Marie
durante suas incursões noturnas, a presença de Win tinha um efeito contrário.
Durante os intervalos, o rapaz atraía os conhecidos como se fosse um imã.
Lady Falcrest e sua sogra, Victoria Falcrest, foram algumas das muitas
pessoas que estiveram no camarote dos Cairnbrooke.
— Esta é a primeira temporada que compramos um camarote no Atenas
— Marissa comentou. — A peça é tão boa que eu seria capaz de assisti-la
todas as noites.
— Oh, obrigada, isto é, fico muito satisfeita. — Vanessa retrucou
lisonjeada.
— Olha, eu queria lhe dizer que conhecemos Tony há muito tempo e
ficamos felizes ao vê-lo sossegado ao lado de uma mulher como você. Não é
que eu esteja fazendo críticas à vida anterior de Tony, mas ele é como se fosse
da família.
— É bom saber que meu marido tem amigos como vocês. Este último ano
foi muito difícil para ele?
— Sim. Várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Clive e Jason
procuraram ajudar na busca do irmão de Tony, sem sucesso algum. Acho que
a morte de Charlie o abalou profundamente.
— Pelo que pude perceber, o pai de Tony não ofereceu o apoio necessário

72
ao filho.
— Tony e o pai nunca se entenderam bem — Marissa falou baixinho para
que lady Amanda não pudesse ouvir.
— Não?
— Principalmente por causa de Charlie. Aquele sim, era um filho que dava
grandes despesas.
— Como assim?
— Charlie adorava uma mesa de jogo e vivia cheio de dívidas. Era Tony
quem tirava o irmão das enrascadas. De certa forma, foi uma sorte Charlie não
ter voltado, pois seria comido vivo pelos credores.
— Mesmo assim eu preferiria que ele não tivesse morrido. Meu marido e o
irmão eram tão unidos.
— Quando vimos o que a morte de Charlie causou em Tony, desejamos
que o pior não tivesse acontecido. De qualquer forma, caso o mais velho dos
Cairnbrooke houvesse sobrevivido, alguém teria que saldar suas dívidas.
— Charlie poderia ter mudado.
— Suponho que alguns homens mudem, mas nunca para melhor.
Vanessa sorriu, dizendo a si mesma que citaria a frase de Marissa numa
de suas próximas peças.
No segundo intervalo, foram William e Clive Falcrest quem surgiram para
uma visita de cortesia.
— Fiquei satisfeito ao ver que você acabou se decidindo pela égua —
William falou, sentando-se ao lado de Vanessa. — Aquele cavalo enorme
realmente me deixava preocupado com a sua segurança.
— Era um presente para Tony, mas quis experimentá-lo primeiro.
— Por que Tony foi correndo atrás de você? — Clive indagou.
— Porque ele não costuma levantar cedo e perdeu a hora.
— Aposto que agora ele levanta cedo o suficiente.
— Sim. Meu marido gosta de montar Cetim.
— E quem não gostaria? — perguntou Marissa. — Trata-se de um belo
animal.
Finalmente quando os Falcrest voltaram para seu próprio camarote, um
novo visitante apareceu. Wentworth, o rapaz de Brighton. Win reagiu com

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frieza às apresentações.
— Eu só queria lhe oferecer minhas desculpas, caso tenha causado algum
problema, Isto é…
— Não precisa se desculpar de nada — Vanessa retrucou sorrindo. — E
Tony me prometeu não desafiá-lo.
Os olhos de Wentworth pareciam ter saltado das órbitas e Win mal
continha a curiosidade.
— Estou brincando, claro. Meu marido não tem o hábito de duelar. Aliás,
foi um incidente que todos nós preferiríamos esquecer.
— Tem razão.
— Você pode nos visitar quando quiser. Moramos em Marsham Street.
— Sim, eu sei. Vai ser um prazer visitá-los. Wentworth despediu-se e
saiu, o rosto iluminado por um enorme sorriso.
— Que bando de admiradores você conquistou — Win falou surpreso. —
Em geral isto só acontece quando a mulher já tem uns três ou quatro anos de
casada.
Embora o comentário houvesse sido feito com um sorriso, Vanessa sentiu-
se de certa forma criticada. Será que Tony mandara o primo acompanhá-la
com o único objetivo de criticá-la? Se ele tinha dúvidas quanto ao seu
comportamento, devia se certificar por conta própria, sem intermediários.
Quando a peça terminou Travesian foi ao camarote dos Cairnbrooke
cumprimentá-los. Winwood mostrou-se chocado ao presenciar a aparente
intimidade com que o diretor teatral tratava Vanessa e Lady Amanda.
Percebendo a desaprovação estampada no rosto de Win, Vanessa decidiu
convidar Travesian para jantar na noite seguinte, no que foi prontamente
apoiada por lady Amanda.
Vanessa e a sogra fizeram todo o trajeto de volta para casa comentando a
peça enquanto Win fechava-se num silêncio estranho e mau humorado.
— Obrigado pelo jantar de ontem — Winwood falou ao encontrar-se com
Tony no Boodle’s.
Tony parou de contar o dinheiro que acabara de ganhar na mesa de jogo
e fitou o primo com uma expressão cansada.
— Não há necessidade de me agradecer. Você já jantou em minha casa

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muitas vezes.
— Sei que você deve ter herdado as adegas de seu pai, mas não precisava
escolher as melhores garrafas apenas para me servir. Aposto que a
extravagância acabou lhe custando uma pequena fortuna. Eu preferiria não lhe
dar prejuízo.
— Não tema. As contas de minha casa estão em dia — ele respondeu,
perguntando-se se havia motivos para preocupações naquele setor.
— Se é assim, ótimo. Que tal um jogo de cartas?
— Não, agora não. Estive jogando o dia inteiro e não agüento mais.
— Como quiser. A propósito, se eu fosse você teria uma conversa com
Vanessa sobre as pessoas com quem ela se relaciona. Não há nada de errado
com os Falcrest, claro, exceto a tal da Marissa. Não consigo gostar dela.
Parece-me ousada demais para uma mulher. Talvez Vanessa decida imitá-
la. E também o jovem Wentvvorth…
— Wentwort? Oh, não tem importância — Tony falou aliviado. — Ninguém
seria capaz de levar o rapaz a sério.
— Ele pode balbuciar como um menino na presença de Vanessa, porém é
impossível não perceber como só falta beijar o chão onde ela pisa. Você acha
que com tão pouco tempo de casada Vanessa já devia estar flertando?
— Vanessa? Flertando? Você deve ter entendido mal a situação, primo.
Minha esposa não é desse tipo.
— Você deve saber. Afinal a mulher é sua. Mas o dono do teatro… Como é
mesmo o nome dele?
— Travesian.
— Eu colocaria um paradeiro naquela história. O homem trata sua esposa
com muita intimidade. Ela chegou a convidá-lo para jantar.
— Travesian já jantou conosco antes.
— Com a sua aprovação?
— Não exatamente. Porém Vanessa tem liberdade de convidar quem
quiser.
— Se você não tiver cuidado, sua casa acabará tomada por um bando de
atores. Enfim, cada um sabe de si.

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— Vanessa, preciso falar com você.
— Sim. — Ela seguiu o marido até o escritório e logo reparou nas várias
folhas de papel sobre a escrivaninha. Como calculara que aquela conversa
acabaria acontecendo mais cedo ou mais tarde, tivera o cuidado de estar com
as respostas e explicações na ponta da língua.
— Precisamos conversar sobre a administração da casa.
— Mas é Rayburn quem toma conta disso. Ele se ofereceu para a tarefa e
resolvi concordar, achando que seria conveniente. A menos que, na sua
opinião, eu mesma deva cuidar de pagar pessoalmente os empregados e fazer
todas as compras para abastecer as despensas.
— Não, não é bem assim. Mas como podemos oferecer jantares como o de
ontem a noite sem que fiquemos devendo aos fornecedores?
— Por acaso você acha que estamos devendo a alguém? — Vanessa
perguntou com o ar mais inocente do mundo.
— Não recebi conta alguma.
— Então tudo deve estar sob controle. Deixei uma pequena quantia nas
mãos de Rayburn, caso precisássemos de algo especial.
— Você não devia ter feito isto.
— Oh, Tony, nem pense que Rayburn não seja digno de confiança. Ele
nunca pediu dinheiro extra além do que eu dou. — O que Vanessa não
mencionou foi o valor da “pequena” quantia. Algo em torno de cem libras.
— Sim, claro que Rayburn é de confiança.
— Então devemos concluir que a sra. Teale também sabe comprar usando
o bom senso.
— Você não devia estar gastando um dinheiro que é seu nas despesas da
casa.
— Há tão pouco que eu queira comprar para mim — Vanessa falou
honestamente. — Não preciso de roupas novas. Resta apenas minha paixão
por livros. Mas você sabe onde esta paixão pode levar.
— Sim eu sei — Tony respondeu, pensando no tamanho da biblioteca da
esposa e na falta de espaço para acomodar todos os livros.
— Alguma coisa mais que você queira me dizer?
— Não. Sim. Win me disse que você teve muita companhia no camarote

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ontem a noite.
— Sim. Alguns amigos de Win pararam para dizer alô, além dos Falcrest.
— Alguém mais?
— Sim. O jovem Wentworth. Ele continua com medo de você, não importa
o que eu diga.
Tony sorriu diante da simplicidade da esposa. Ela realmente não era o tipo
dissimulado.
— Por acaso Travesian também foi cumprimentá-la?
— Sim. Ontem foi a última apresentação de Lady Mellefleur’s Boudoir.
Semana que vem será a estréia de The Count Recounts. Nós o convidamos
para jantar hoje a noite para comemorar o sucesso da temporada.
— Se é uma ocasião especial, então…
— O que você está querendo dizer? Que prefere não recebê-lo nesta casa?
— Apenas receio que uma ligação com Travesian possa diminuir suas
chances de ser aceita pela sociedade.
— Se os Falcrest me receberam de braços abertos, não vejo por que
possa haver problemas futuros. Aliás, é bem provável que as pessoas prefiram
receber Travesian em seus lares do que eu, simples filha de um “cidadão
qualquer.”
— Eu estava me esquecendo de seu passado humilde, minha querida —
Tony respondeu com um sorriso seco.
Vanessa riu com vontade.
— Não é nem um pouco engraçado. Eu simplesmente não quero minha
esposa metida com gente de teatro.
— Estou metida com Armand Travesian desde meus quinze anos de idade.
Ele é como um tio para mim, alguém que me ajudou a abrir os olhos para o
mundo.
— Não vou sequer perguntar o que isto significa.
— Porque você tem os horizontes estreitos ou prefere fingir que seja
assim — Vanessa o provocou. — Na verdade está morrendo de curiosidade de
saber o que Travesian me ensinou.
— Não estou não! — Tony retrucou, recusando-se a deixar-se arrastar
para aquele tipo de discussão.

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— Pois não lhe contarei nada.
— Depois do jantar de hoje a noite, não quero voltar a ver aquele homem
nesta casa.
— Muito bem, direi a Travesian para aparecer por aqui somente quando
você estiver ausente.
— Não é isto. Eu simplesmente não quero que você torne a vê-lo.
— Então lhe direi para aparecer quando eu não estiver em casa.
— Mas se você não estiver presente, por que o homem se daria ao
trabalho de nos fazer uma visita?
— Você não supõe que ele venha me ver, não é? É sua mãe o centro do
interesse de Armand.
— Minha mãe?! — Tony não poderia estar mais surpreso.
— Ela pode ser sua mãe, mas ainda é uma mulher e bastante atraente por
sinal, mesmo trajando as roupas sóbrias de luto. Acho melhor você ir se
acostumando com a idéia de vê-la voltar a casar-se algum dia.
— Travesian está dando motivos para falatório, não importando quem ele
venha ver.
— O único que fala mal de Armand é Winwood. Posso entender porque
seu primo sinta inveja de Armand e também porque prefira falar pelas costas,
já que não tem coragem de enfrentá-lo. Me surpreende que você dê ouvidos a
tamanhos disparates.
Aproveitando o breve instante em que o marido parecia haver perdido a
fala, Vanessa saiu, já planejando uma maneira de fazer Win pagar pelas
fofocas cheias de más intenções. Da próxima vez que o encontrasse, daria um
jeito de colocá-lo em seu devido lugar.
O jantar não foi um acontecimento exatamente confortável naquela noite.
Tanto Vanessa quanto lady Amanda passaram quase o tempo inteiro discutindo
a nova peça com Travesian, o que acabou por excluir Tony e Win da conversa.
Os dois primos fizeram questão de adotar um ar entediado, para desagrado de
Vanessa, que não suportava o fato do marido apoiar Win.
Quando enfim o jantar terminou, Travesian despediu-se, dizendo que
precisava voltar ao Atenas para assistir à prova dos figurinos. Tony e Win
saíram logo em seguida, sem mencionar para onde iam.

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— Você parece agitada esta noite — Vanessa comentou, observando a
sogra andar de um lado para o outro da biblioteca.
— Estou começando a me preocupar com Tony. Não sou boba, querida, e
sei que você também anda preocupada com o meu filho. Onde acha que ele
costuma ir todas as noites?
— Tenho medo de lhe perguntar e peço-lhe que não o faça.
— Você por acaso supõe que ele esteja saindo para jogar?
Vanessa sorriu tristemente.
— Se o problema fosse apenas este.
— Você não entende, querida. Entre Charlie e Edwin, as cartas e os dados
quase nos arruinaram a todos nós.
— E na sua opinião Tony pode estar sucumbindo ao mesmo vício?
— Não sei. Que outra explicação poderia haver…? Isto é…
— Estou tentando decidir se prefiro ver meu marido arruinar-se numa
mesa de jogo ou se perder nos encantos de lady Vonne. Nenhuma das duas
alternativas me atrai.
— Com certeza Tony jamais voltaria para os braços daquela mulher.
— Ele não tem medo de lorde Vonne, o que é uma pena. Mas creio que se
Tony estivesse envolvido com Madeleine, nós já teríamos ouvido insinuações e
comentários. Com certeza Win, o maior dos fofoqueiros, se encarregaria de
espalhar os boatos.
— Win jamais trairia meu filho.
— Espero que não — Vanessa murmurou quase que para si mesma. — De
qualquer forma, não é um assunto que eu me sinta à vontade para abordar
com Tony sem correr o risco de provocar uma explosão.
— Eu me sentiria mais tranqüila se voltássemos para Oak Park. O lugar
oferece menos perigo.
— Não creio que Tony seja como o irmão ou o pai. Estou começando a
confiar nele.
— Claro que você deve confiar nele. É sua esposa.
— Algo me diz que Tony não está me enganando e prefiro não colocá-lo
numa posição em que se sinta obrigado a mentir para justificar suas ações.
— Você sabe o que faz, querida. Aliás, tem se saído muito melhor do que

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eu jamais consegui.
— Apenas porque posso contar com os seus conselhos. Sei que não é
muito comum apegar-se à sogra, mas estremeço só de pensar o que seria
minha vida sem a sua presença. — Vanessa levantou-se e beijou lady Amanda
no rosto. — Agora venha, vamos deitar cedo e amanhã sairemos para fazer
algumas compras. Isto sempre a anima.

Apesar de seus planos de dormir cedo, Vanessa não conseguiu pregar os


olhos. Por volta da meia-noite, uma idéia maravilhosa para a peça veio-lhe à
mente. Pulando da cama, vestiu um robe, acendeu algumas velas e sentou-se
à escrivaninha do quarto. De repente uma batida à porta surpreendeu-a.
— Entre, por favor.
— Vi claridade e pensei que talvez pudéssemos conversar um instante.
Sobre hoje a noite…
— Foi horrível, não foi? — Vanessa indagou com sinceridade.
Tony fechou a porta e sentou-se num banco ao lado da cama.
— A culpa foi minha, não de Travesian — ela confessou, sentando-se ao
lado do marido. — Win recusava-se a lhe dirigir a palavra e me senti na
obrigação de manter a conversação. Se fosse um dos jantares de meu pai, eu
poderia ter falado sobre finanças ou política, dois assuntos que Travesian
domina muito bem.
— Mas Win não — Tony completou.
— Há algum assunto sobre o qual seu primo seja bem informado?
— Duvido. Embora ele consiga não fazer feio durante uma conversa.
— Meu pai sempre gostava de convidar Travesian ou um outro ator,
artista ou poeta para evitar que a noite se transformasse num tédio mortal.
— E costumava dar certo?
— Sim. As pessoas gostam de estar com alguém ligado ao meio artístico,
nem que seja para criticá-lo. Se você quiser, não tornarei a convidar
Travesian.
— Não, não seria justo. — Tony tomou a mão da esposa entre as suas e
fitou-a carinhoso. — Esta casa é sua também e não posso esperar que você
abra mão da companhia de seus amigos apenas porque Win os desaprova.

80
— Travesian pode vir jantar conosco quando convidarmos meu pai e lady
Jane. Mas tampouco creio que Win vá se sentir à vontade no meio deles.
Tony riu até que um pensamento lhe ocorreu, fazendo-o ficar sério.
— Um dia você não me disse que costumava receber Rothschild na casa
de seu pai?
— Sim. Ele foi jantar em nossa casa umas duas vezes, na companhia da
esposa.
— Então Rothschild é casado?
— Sim. Aliás, sua esposa é uma senhora muito simpática. Só espero que
lady Jane mantenha o relacionamento. Não devemos deixar as pessoas
pensarem que as convidamos para jantar apenas por causa dos negócios.
— Mesmo que seja verdade?
— Especialmente se for verdade.
— Você o consideraria um homem implacável?
— Rothschild? É difícil dizer. Mas devo confessar que o respeito bastante.
— E por quê?
— Ele se manteve ao lado do governo durante toda a guerra. Não sei se
teríamos vencido sem o apoio financeiro de Rothschild. Eu o admiro por isso,
pelos riscos que correu.
— Não acho nada de admirável no homem. — Tony soltou a mão da
esposa, uma expressão dura no rosto.
— Ele bancou o país — Vanessa insistiu, apesar de perceber que o breve
momento de intimidade estava se esvaindo. — Se houvéssemos perdido,
Rothschild não teria seu dinheiro de volta.
— Então você o vê como um herói? Se houvéssemos perdido, ele poderia
estar agora numa situação pior do que a maioria. Entretanto não é difícil saber
em que lado apostar quando se conhece o resultado do jogo.
— Eu não tinha pensado nisto. Você ainda o culpa pelo que aconteceu ao
seu pai?
— Sim. Embora as histórias sobre o assunto sejam desencontradas. O fato
é que provavelmente Rothschild retinha certas informações confidenciais e
usou-as para manipular a bolsa de valores, comprando ações que se
valorizaram da noite para o dia. Claro que houve pânico. Um jornalista francês

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escreveu sobre o caso.
— Por que um francês iria se interessar em escrever sobre a bolsa de
valores inglesa?
— Não sei, mas descobrirei a verdade a qualquer custo.
— Há uma maneira simples de descobrir.
— Como?
— Pergunte a Rothschild. Se ele não tiver nada a esconder, fará uma boa
piada sobre o caso. Se for o contrário, vai se fechar como uma ostra.
— Pode ser que funcione, mas prefiro não jogar esta cartada tão cedo.
— Se você descobrir algo, o que vai fazer?
— Se ele manipulou o mercado, deveriam existir leis que impedissem um
comportamento tão anti-ético.
— E eu pensava que você não estava interessado numa carreira política.
— Estou começando a perceber que me interesso por muitas coisas —
Tony falou. — Agora acho melhor você descansar um pouco.
Vanessa levantou-se devagar, perguntando-se se não havia um modo de
convidar Tony para ficar sem parecer muito desesperada. Infelizmente um
homem não devia pular de assuntos financeiros para a cama da esposa num
piscar de olhos, em especial quando nunca agira assim antes.

Lady Amanda e Marie costumavam abandonar Vanessa na livraria


Hookham’s enquanto faziam compras pelos arredores. Ela estava tão
concentrada na leitura de alguns jornais naquela manhã, que assustou-se ao
ouvir a voz do marido.
— Você os conseguiu então? — Tony indagou ao sr. Dean.
— Sim. Um dicionário de alemão e outro de hebraico. E não foi fácil.
— Quanto lhe devo?
— Cinco libras e dez xelins.
Vanessa permaneceu onde estava, confusa com a estranha seleção de
leitura do marido. Temendo dar a impressão de estar espionando-o, aguardou
que os livros fossem pagos e embrulhados antes de se dar a perceber.
— Olá, Tony.
— Vanessa? Você aqui? Isto é, você está aqui sozinha?

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— Marie não deve demorar.
— Então vou lhe fazer companhia até a chegada de Marie. Você não deve
sair desacompanhada.
Um tanto nervoso, e tentando em vão esconder o embrulho de livros,
Tony tomou a esposa pelo braço. Os dois subiram e desceram a rua várias
vezes, aguardando a criada. Quando enfim Marie apareceu, ele despediu-se e
afastou-se depressa.
Do outro lado da rua, dentro de uma carruagem parada, Win conversava
com Madeleine Vonne, ambos com os olhos fixos no casal Cairnbrooke, que
havia acabado de se separar após a chegada de Marie.
— Pelo visto nosso Tony está se tornando um marido devoto — Win
comentou.
— Como ele pôde fazer uma coisa dessas comigo?
— Não se preocupe. Tony casou-se apenas por dinheiro.
— Como é que você sabe?
— Sou primo dele, esqueceu-se? Antes do casamento, eu estava correndo
sério risco de herdar apenas uma montanha de dívidas.
— E continua correndo este risco, pelo menos até que os Cairnbrooke
tenham filhos.
— Sim. Fico me perguntando se isso será possível.
— O problema é Tony?
— Não, Vanessa. Ela é fria como gelo.
— Foi a mesma impressão que eu tive. Coitado do Tony.
— Sim, coitado do Tony.

O correio do dia seguinte trouxe um convite endereçado a Vanessa e lady


Amanda para um chá e recital na casa de lady Parmiter. Embora fosse um
convite quase de última hora, Vanessa resolveu aceitá-lo. Para sua alegria,
entre as outras doze convidadas estavam lady Marissa Falcrest e Elizabeth
Weir.
— Minha mãe acha escandaloso que eu ainda saia para fazer visitas —
Elizabeth comentou, sentando-se entre lady Amanda e a nora. — Mas estou
tão bem disposta que seria uma vergonha ficar em casa.

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— E por que você não deveria sair?-Vanessa indagou.
— Talvez porque as pessoas sintam-se pouco confortáveis na minha
presença. Elas me olham tanto.
— Apenas porque têm inveja da sua barriga. Você está linda grávida.
— É o que Jason diz, mas maridos às vezes falam certas coisas só para
nos agradar.
— Neste caso é a pura verdade.
— Concordo plenamente — lady Amanda emendou. — É raro ver alguém
com o rosto tão rosado quanto o seu. .
O chá estava começando a ser servido quando Madeleine chegou,
acompanhada de dois cavalheiros. Depois de passear os olhos rapidamente
pela sala ela aproximou-se de Vanessa, para espanto geral.
— E como vai Tony? — indagou num tom arrogante. — Inteiramente
recuperado — Vanessa respondeu erguendo a cabeça, um sorriso radiante nos
lábios. — E como vai lorde Vonne?
— Bem. Você não se ressente de Vonne ter atirado em seu marido?
— Naquelas circunstâncias, não havia outra alternativa. Mas de qualquer
forma Tony estava fora de si na ocasião. Perder o irmão foi um golpe violento
sobre seu equilíbrio.
Madeleine ficou vermelha de raiva diante da insinuação de que somente
enlouquecido Tony a teria cortejado.
— Creio que Tony não estava, muito preocupado com a possibilidade de
ser morto — Vanessa continuou. — Lorde Vonne foi gentil ao tê-lo apenas
ferido.
— Sorte de Tony.
— Tenho certeza de que sorte não tem nada a ver com o fato — Elizabeth
ponderou. — Afinal seu marido não é um assassino.
— Como é que você pode saber? Ninguém… — Madeleine parou no meio
da frase, dando-se conta de que havia outras pessoas presentes e atentas ao
que se passava. Disposta a levar a conversa para um terreno menos perigoso,
Elizabeth mudou de assunto.
— Você tem um filho, não é?
— Sim, Davi. Ele tem três anos e é muito inteligente.

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— Deve ser uma grande alegria para você.
Com a ajuda de Marissa Falcrest, todas prosseguiram falando sobre
crianças até que a crise passou.
Vanessa considerou o encontro com lady Vonne um acontecimento
positivo. Dali em diante, seria capaz de enfrentá-la em qualquer situação sem
o menor embaraço. Aliás, quem devia se sentir embaraçada era Madeleine,
que traíra o marido tão abertamente.
O único problema era que se dera conta do alto poder de atração de lady
Vonne. Ela era um tipo indefeso, dependente e coquete, que sem dúvida
agradava boa parte dos homens. Se Tony apreciava mulheres assim, então
jamais teriam chance de serem felizes juntos, pois se considerava o oposto.
Durante o trajeto de volta para casa, Vanessa continuou enumerando
mentalmente os defeitos de Madeleine. Até que, de repente, começou a rir.
Ela, Vanessa Barclay, estava morta de ciúmes. Entretanto era esposa do
homem que desejava e em vez de sentir-se insegura devia fazer de tudo para
conquistá-lo.
— Eu estava perguntando o que é tão engraçado — lady Amanda repetiu,
conseguindo capturar a atenção da nora.
— O quê? Oh, nada. Marissa Falcrest nos convidou para visitá-la amanhã.
Você gostaria de ir comigo?
— Sim, claro. Aprecio muito aquela família e acho que todos gostam de
Tony de verdade. Quando Charlie desapareceu em Waterloo, eles ajudaram na
busca e percorreram cada hospital da cidade e arredores. Inclusive foram a
Bruxelas com Tony, tentar descobrir alguma notícia.
— E nunca conseguiram nada?
— Não. Creio que Elizabeth ficou bastante abalada, pois na época me
parecia interessada em Charlie. Fico feliz de vê-la bem casada agora.
— Gosto muito de Elizabeth, assim como de Marissa e lady Victoria.
— Conheço Victoria Falcrest há décadas e sempre sonhei encontrar uma
nora com quem pudesse me entender da maneira perfeita como Victoria se
entende com Marissa.
— E encontrou?
— Você sabe que sim, querida.

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Na manhã seguinte, lady Amanda e Vanessa estavam prontas para sair
quando lady Jane apareceu para uma visita. Lady Jane decidiu acompanhá-las
até a casa dos Falcrest. Infelizmente Win também resolveu surgir e oferecer-se
para levá-las, apesar de reclamar o tempo inteiro sobre o tédio das visitas
matinais.
— Por que as faz então? — lady Jane indagou. — Encontro você em todos
os lugares onde vou.
— Está na moda ficar entediado. E estou sempre na moda.
— Olá, Vanessa — Marissa falou sem se levantar da escrivaninha onde
terminava de fazer uma lista.
— Marissa, querida, se você tivesse boas maneiras já teria se levantado
para receber nossos convidados. — Victoria abraçou Amanda com afeto. —
Que bom você ter trazido Vanessa e Jane. Por favor, sentem-se. Tony tem se
comportado?
— Sim, quero dizer, até onde eu saiba, Isto é — Vanessa remexeu-se na
cadeira e olhou para Elizabeth, como se pedisse auxílio.
— Não precisa responder à mamãe — Elizabeth interveio. — Ela está
sempre reclamando de nossas maneiras e então faz essas perguntas incríveis.
— Bem, se fosse Madeleine quem me tivesse perguntado, eu diria que
Tony não tem se comportado bem apenas para irritá-la.
— Maravilha! — Marissa exclamou sorrindo. — Então lady Vonne ficaria
morta de ciúmes. Não fique aí parado junto a porta, Winwood. Você está
parecendo um mordomo mau humorado.
— Eu não sabia que seria atirado no meio de um bando de mulheres. Só
Deus sabe que coisas horríveis vocês podem decidir conversar.
— Já falamos bastante sobre gravidez e crianças por hoje. Portanto pode
se considerar moderadamente a salvo — Elizabeth falou.
— O que você acha de uma festa a fantasia, Winwood? Está fora de moda
ou não? — Marissa quis saber, examinando a lista que continuava a escrever.
— Uma festa ou um baile?
— Uma festa.
— Sua lista já conta com mais de cinqüenta casais — Victoria ponderou. —
Com tanta gente, só pode ser um baile.

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— E então, Winwood? — lady Jane perguntou.
— Ou se é uma seguidora de moda, como lady Jane, ou uma lançadora de
moda, como lady Falcrest — ele falou, curvando-se numa mesura.
— Muito bem, Win. Vou colocar seu nome na lista. Todos vocês já estão
convidados, claro. E têm um mês para pensar na fantasia.
— Eu ainda acho que não deveríamos estar dando festas, considerando o
estado delicado de Elizabeth.
— Mamãe, estou saudável como um cavalo! E já abri mão de tantas coisas
que gosto, como montar, por exemplo. Preciso encontrar maneiras de me
divertir.
— Não vou dar opinião neste assunto — Win apressou-se a dizer,
percebendo que Marissa o olhava.
— Mas, como a maioria dos homens, você demonstra certa timidez diante
de uma mulher grávida. Por quê?
— O problema é a gravidade — ele respondeu, surpreso com sua própria
sinceridade.
— Como assim?
— A força que atrai os objetos pesados para o centro da terra. A gente
fica com medo de que o bebê vá aparecer a qualquer momento.
Elizabeth ria sem parar, no que foi prontamente seguida pelas outras
mulheres.
— Se fosse assim tão fácil — ela conseguiu dizer entre as risadas. — Pois
asseguro-lhe que é preciso muito esforço para trazer o bebê ao mundo,
mesmo quando ele quer vir.
— Como é que você sabe que é menino?
— Eu disse “ele” apenas para trazer sorte. Mas ficarei igualmente feliz se
for uma menina.
— É melhor que seja um menino — avisou Victoria. — Qualquer menina
criada nesta casa acabará ficando um pequeno terror como minha neta Amy.
A porta foi aberta e Jason Weir entrou, satisfeito ao se deparar com uma
outra companhia masculina. Depois de cumprimentar a todos, foi sentar-se ao
lado da jovem esposa.
— Você não acha que deveria estar descansando agora, querida?

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— Por quê? Vamos sair esta noite?
— Oh, deixe Jason levá-la lá para cima ou ele não terá sossego —
aconselhou Marissa.
Lady Amanda aproveitou a oportunidade para levantar-se anunciar que
estavam de partida, fazendo questão de convidar os Falcrest para uma visita
em Marsham Street.
Vanessa voltou contente por haver encontrado pessoas amigas enquanto
Win condenava o jeito de Marissa.
— Por que então você a chamou de lançadora de moda? -Vanessa
perguntou irritada com a desonestidade do rapaz.
— Eu não mencionei que tipo de moda.
— Realmente é bem do seu tipo — lady Jane comentou. — Cumprimentar
uma mulher pela frente e criticá-la pelas costas.
— Aqui em Londres todo mundo fala de todo mundo.
— Sim, e eu adoraria saber o que os Falcrest estão falanda a seu respeito
agora, meu caro Win — Vanessa revidou, pensando como seria bom não ter
que agüentar a companhia daquele irresponsável nunca mais.

88
Seis

— Brel o quê? — Vanessa indagou alterada, atraindo a atenção não só dos


outros atores mas também dos carpinteiros que terminavam de montar o
cenário.
— Ele torceu o tornozelo ao cair da escada — Travesian explicou.
— Então Christopher Graden terá que fazer o papel. Sei que será a noite
de estréia, porém.
— E em quem você acha que Brel aterrissou ao cair?
— Quais são nossas chances de contornar o problema? Já lançamos as
propagandas do espetáculo. Não podemos voltar atrás agora. Graden ficou
muito ferido?
— Teve o nariz quebrado. Acho que seremos obrigados a adiar a estréia
por mais uma semana.
— Só que Drury Lane estará estreando uma peça também. Teremos
metade do público esperado.
— A menos que…
— A menos quê? — ela repetiu nervosa.
— A menos que você faça o papel do conde.
— Eu? Você enlouqueceu, Travesian?
— Você sabe todas as falas. Aliás, o que era de se esperar, uma vez que
as escreveu.
— O conde é homem. Caso ainda não tenha reparado, sou mulher.
— Você sabe fazer voz de homem quando quer. Já a ouvi ensaiando com
os atores. Além do mais, tenho certeza de que interpretaria o papel do conde
com mais garra e convicção do que Brel ou Graden.
— Mesmo presumindo que eu pudesse fazê-lo, o público iria notar quando
Brel reassumisse o personagem.
— Contaríamos a verdade. Diríamos que Brel sofreu um pequeno acidente
e que um outro ator foi chamado para substituí-lo.

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— Mas as pessoas vão me reconhecer.
— Você estará usando peruca, além de um tapa-olho. Com a maquiagem
pesada, ninguém a reconhecerá.
— As roupas não me servirão.
— Marie pode dar um jeito nelas.
— Não vai dar certo. Se Tony descobrir será o caos.
— Seu marido nunca vem ao teatro. Bem, quase nunca.
— Como você pode saber o que ele faz a noite?
— De fato não sei. A única coisa que posso lhe dizer é que ele não
costuma passar as noites perambulando pelo Atenas.
— Esse substituto tem que ter um nome. Não posso usar o de Graden.
— Não é problema. Basta pensarmos. Meu Deus!
— O que foi?
— Um toque de gênio! — Travesian respondeu sem falsa modéstia. — Às
vezes eu me surpreendo comigo mesmo.
— Fale logo.
— Você fará o personagem como se fosse Encrier representando.
— O autor? Por quê?
— As pessoas estão querendo conhecê-lo. Agora terão a chance de ouvi-lo
dizer os diálogos que escreveu. Que chamariz de público isto não vai ser!
— Você tem mesmo certeza de que ambos os atores estão machucados?
Eu não descartaria a possibilidade de que tudo não passasse de um plano seu.
— Juro! Brel e Graden não têm condições de subir ao palco.
— Não vai dar certo. O público vai querer se aproximar de Encrier e as
dificuldades estarão apenas começando.
— Mas meu plano é tão perfeito!
— Nada é perfeito, Armand, e muito menos seu bom senso. Há centenas
de falhas no bendito plano.
— Mas a ironia da situação!
— Seria apreciada apenas por nós dois e ninguém mais.
— Oh, está bem. Vou pensar num nome. Você quer que seja um nome
francês?
— Atores franceses estão disponíveis em qualquer lugar — Vanessa falou

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levantando-se. — Faça-me italiano. Podemos alardear que trata-se de minha
primeira incursão nos palcos ingleses.
— O que não seria mentira.
— Droga! Esqueci-me das lutas de espada. Vou precisar de horas para
ensaiar. Como conseguirei dar conta de tudo? Poderei até falar para minha
sogra que estarei ajudando com os figurinos, porém enganar Tony não é nada
fácil.
— Diga-lhe que precisará experimentar algumas peças de roupas numa
nova loja. Nada irrita mais um homem do que passar horas aguardando a
esposa diante de uma loja feminina.
— Suponho que valha a pena tentar.
— Você poderá vir amanhã de manhã?
— A parte da tarde é melhor, ou mesmo a noite. Tony nunca chega em
casa antes das duas horas da madrugada.
— Amanhã a tarde então. Você poderá praticar com a espada e
experimentar o figurino. Aposto que nem os outros atores irão reconhecê-la.

Na manhã seguinte Vanessa observou que o marido parecia muito


satisfeito consigo mesmo, apesar de não haver nenhum motivo aparente para
aquela demonstração incomum de bom humor.
— Parece que os Herbert estão dando um baile — Tony falou de repente.
— Você vai?
— Oh, não.
— Por que não? Win poderá levá-la, se eu não estiver livre.
— Eu não fui convidada.
— Bobagem. Com certeza deve ter se esquecido do convite.
— De qualquer forma, não me interessa ir.
— Por quê?
— Eu não conheceria ninguém, à exceção de lady Jane e uma meia dúzia
de outras pessoas.
— Se não quer mesmo ir, não vou forçá-la.
— Nós vamos sair para cavalgar hoje?
— Hoje não. Tenho alguns assuntos que preciso resolver.

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— Então vou começar a escrever minhas cartas. — Vanessa pediu licença
e saiu da sala depressa, deixando a refeição quase intocada no prato.
— Não sei por que ela se casou comigo se sequer se interessa em
ingressar na sociedade.
— Não é que ela não se interesse. O fato é que não tem sido mais
convidada — lady Amanda saiu em defesa de Vanessa. — Exceto pelos Falcret.
— O que você está querendo dizer com “não tem sido mais convidada?”.
— No início ela e eu recebíamos alguns convites, porém como quase
nunca comparecíamos, além de não podermos retribuir, as pessoas
simplesmente foram deixando de nos chamar.
— Vanessa poderia ter ido às festas com Win.
— Nós fomos juntos uma ou duas vezes. Tudo o que é excessivo acaba
gerando falatório. A propósito, você já percebeu que nunca aparece em público
na companhia de sua esposa? As pessoas pensam que você sente vergonha
dela.
— Que coisa ridícula.
— Não. Costumo ouvir comentários.
— Com certeza Win nunca fez nada.
— Claro que não, mas outras pessoas não sabem disso.
— Não posso falar ou me preocupar com o assunto agora. Tenho um
encontro importante.

Embora Vanessa tivesse conseguido dormir durante uma hora naquela


tarde, sentia-se nervosa e agitada. As noites de estréia sempre a deixavam
com os nervos à flor da pele, especialmente quando além de autora da peça,
participava da produção.
Tony, por sua vez, tivera uma tarde bastante proveitosa, pelo menos em
termos financeiros. Seus investimentos recentes haviam dobrado de valor.
Portanto mais um passo dado para zerar o débito feito pelo pai.
— Pensei que poderíamos ir à estréia do The Count esta noite. Comprei
um camarote — Tony anunciou sorrindo.
— O que foi que você disse? — Vanessa indagou horrorizada.
— O Atenas estará estreando uma nova montagem. É…

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— Eu sei o que é, mas não posso ir esta noite.
— E por que não?
— Não estou me sentindo bem.
— É uma indisposição um tanto repentina, não é? — Tony falou irritado. —
De fato, o tipo de coisa que só acontece quando eu quero sair.
— Mas hoje é a primeira vez que você me convidou.
— E poderá ser a última se tentar brincar comigo. Qual é o motivo da sua
indisposição? Um encontro com alguém?
— Não — ela retrucou corando. — Já lhe disse. Estou me sentindo mal.
— Sei quando você está mentindo, minha cara.
— Você sequer me conhece. — Vanessa levantou-se da mesa e correu
para o quarto, tendo o cuidado de trancar a porta. Porém se esperava que
Tony corresse atrás, ficou desapontada.
— Eu sabia que ela era fria e reservada, mas nunca pensei que fosse
maliciosa.
— Filho, sobre o que você está falando? — lady Amanda indagou.
— Sobre a ótima esposa que você me arranjou.
— Sua mulher está doente, o que não seria difícil perceber caso lhe
prestasse um pouco de atenção. Ela passou parte da tarde na cama e quase
não jantou.
— E a culpa é minha?
— É culpa sua ter gritado com Vanessa sem necessidade. Você está
ficando mais parecido com seu pai a cada dia que passa. E Vanessa não é fria.
Apenas tenta não se mostrar magoada pela maneira como o marido a trata.
— O que ela quer de mim?
— Muito pouco, e nem isto você é capaz de lhe dar. Minha paciência está
se esgotando diante do seu comportamento.
— Como é que eu podia adivinhar que Vanessa estava doente? Quis
apenas lhe fazer uma surpresa.
— E não deu certo. Isto é motivo para ameaçar não convidá-la para sair
nunca mais? Por que tem sempre que ser agora ou nunca? Se a tratar dessa
maneira na cama… Oh, Tony, será que ela está grávida?
— Não, de jeito nenhum.

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— Como é que pode ter certeza?
— Deixa para lá. E pare de interferir na nossa vida.
— Vanessa não acha que eu interfira na vida de vocês dois. Aliás, quando
pensei em me mudar daqui, ela me implorou para ficar. Sabe por quê?
— Não posso nem imaginar.
— Porque assim ela teria alguém com quem conversar. Não é estranho?
— Então a culpa é minha — Tony falou, reconhecendo que errara.
— Não, é minha — lady Amanda respondeu cheia de ternura e
compreensão. — Eu estava tão preocupada em ensinar a Vanessa como ser
sua esposa, que acabei não percebendo que talvez você não soubesse como
ser um marido.
— Algo me diz que a gente acaba aprendendo através de amarga
experiência. Acho melhor eu ir me desculpar.
— Se eu fosse você, deixaria para me desculpar quando Vanessa estiver
melhor. Será mais fácil se entenderem.
A sós, Tony tentou se convencer de que tudo o que fazia era por Vanessa,
entretanto, bem no fundo de si mesmo, sabia que não era verdade. O fato é
que todas as suas energias estavam canalizadas para o pagamento da dívida
assumida por seu pai. Somente quando limpasse o nome dos Cairnbrooke,
sentiria-se livre para ser um marido. Mas será que seu comportamento frio e
distante não beirava a crueldade? Por outro lado, Vanessa fora filha única,
portando devia estar acostumada a ficar só. O que ela fazia para preencher as
horas do dia, além de ler e escrever aquelas cartas quilométricas?

Vanessa continuou a sentir-se cansada durante toda aquela semana,


porém a indisposição prolongada da esposa não era a única preocupação de
Tony. Ele recebeu um bilhete de Madeleine que fez Rayburn erguer as
sobrancelhas como se tocasse um inseto venenoso ao entregar o envelope ao
patrão. Tony não podia recriminar o velho criado quando também desprezava
a pessoa que o escrevera. E pensar que um dia chegara a acreditar estar
apaixonado por Madeleine. Ao entrar no escritório, sua primeira providência foi
atirar o bilhete sobre a lareira, sem se dar ao trabalho de abri-lo. Por outro
lado Madeleine não lhe escrevia há meses, portanto o motivo devia ser sério.

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Talvez ela estivesse esperando um filho seu! Com a maré de má sorte que o
perseguia, era bem possível que uma única noite juntos gerasse conseqüências
indesejáveis. Impaciente para resolver logo o problema, abriu o envelope,
odiando o perfume adocicado impregnado no papel.

Tony, preciso vê-lo. É da maior importância. Encontre-me no camarote do


Atenas esta noite. Não falte ou se arrependerá.
Madeleine.

A nota, como sempre, nada dizia. Ela sempre tivera a mania de


transformar assuntos banais em emergências. Entretanto estava disposto a
comparecer ao teatro apenas para deixar claro que não queria mais ser
incomodado e que não voltaria a atender nenhum chamado.
Madeleine estava particularmente bonita naquela noite e Tony se
perguntou se seria para impressioná-lo ou aos dois cavalheiros que a
acompanhavam. Esperaria o intervalo para ir ao camarote de lady Vonne
esclarecer a situação de uma vez por todas. Enquanto aguardava o momento
de abordá-la, Tony deixou-se envolver pelo que se passava no palco. Uma
coisa tinha que admitir: Travesian sabia como montar um espetáculo. DeVries,
embora jovem para haver passado por todas as aventuras que descrevia ao
amigo Fortenue, era um personagem fascinante.
E o ator que o interpretava possuía uma presença forte e carismática, com
uma voz bem modulada, capaz de chegar aos quatro cantos do teatro. O
estranho é que a figura lhe parecia estranhamente familiar.
Durante o intervalo Tony não teve outra alternativa a não ser ir até o
camarote de Madeleine, que no momento estava sozinha.
— Eu sabia que você viria. Eu sabia — ela falou num tom ardente de
apaixonado.
— Provavelmente vai acabar me custando caro ser visto aqui. Portanto é
melhor que o assunto seja importante.
— É tão importante quanto minha própria vida.
— Quer dizer que você está morrendo? — Tony indagou impaciente.
— Estou morrendo de amor, ou da falta dele. Precisava saber se você

95
ainda se importa comigo o suficiente para arriscar ser visto na minha
companhia. E já tive minha resposta.
— Não tire conclusões precipitadas. O que aconteceu entre nós está morto
e enterrado. Sou um homem casado e aventuras não me interessam.
— Casado, mas infeliz.
— O que a leva a dizer isto?
— Seus olhos não escondem a verdade. Sei que está sofrendo também.
— Não estou. Você apenas me deixou preocupado com aquele bilhete.
— Você se importa comigo então!
— Sim. Não! Vim até aqui para dizer-lhe que não pretendo mais responder
suas cartas. Adeus.
Tony saiu do teatro sem esperar o segundo ato. A encenação de
Madeleine fora o bastante para tirar o prazer da noite. Sua vida já tinha drama
suficiente.
Albert Brel havia aprendido bem suas falas, porém Travesian não estava
cem por cento satisfeito com o desempenho do rapaz. Brel assistira a todas
cinco apresentações de Vanessa e agora ensaiava na casa de Marsham Street
para reassumir o personagem na semana seguinte.
Lady Amanda não se incomodava nem um pouco em receber o ator e de
certa forma admirava a nora por vê-la tão à vontade no mundo das artes. Era
impossível não gostar do pessoal do teatro. Travesian era tão bonito e jovial,
Brel um modelo de seriedade e educação.
— Comece a ler na página trinta e um, onde as últimas mudanças foram
feitas — Vanessa aconselhou. — Pode caminhar um pouco de um lado para o
outro. Acho que o movimento irá ajudá-lo. Como está o tornozelo?
— Quase de volta ao normal. Preciso apenas ter cuidado nas cenas de
luta.
Ao entrar em casa, a primeira coisa que Tony ouviu foi uma voz
masculina, profunda e poderosa.
— Me surpreende que eu possa amá-la tanto e você tão pouco a mim —
Brel recitou. — O que eu posso amar, se você não tem coração? Não a beleza
de seu rosto, pois o tempo irá apagá-la. Não suas formas generosas ou suas
maneiras agradáveis.

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— Um momento! — Vanessa o interrompeu enquanto Tony aproximava-se
da sala. — Não se trata de uma lista de compras, senhor. É preciso mais
veemência, mais emoção. Deixe-me tentar.
Parado junto à porta entreaberta, Tony tentava entender a situação.
Vanessa estava falando com um homem na presença de sua mãe. Não, ela não
estava falando e sim lendo! Claro! O rapaz devia ser um dos atores de
Travesian.
— O que eu posso amar, se você não tem coração? Não a beleza de seu
rosto, pois o tempo irá apagá-la. Não suas formas generosas ou suas maneiras
agradáveis, pois nem sempre você é gentil comigo.
Apesar de não estar interpretando as falas com sua força habitual,
Vanessa causou enorme impressão no marido. Tony achava difícil acreditar
que uma voz tão grave pudesse pertencer à esposa.
— Alguma coisa pequenina, a menor parte de você, é o que eu amo. De
vez em quando você me sorri e procura me agradar depois de semanas de
completa indiferença. E me pergunto se existe uma chance de você ser
humana afinal. Então você vai embora e distribui os seus favores com outros,
deixando-me a imaginar se sua gentileza não passa de uma brincadeira
maliciosa, de uma tortura sutil com o único objetivo de me dominar e me
obrigar a idolatrá-la. É isto?
Com um sinal, Brel pediu a lady Amanda que lesse a parte de lady Rue. O
que aliás a dama fez com muita ênfase e empenho.
— Se você ama apenas uma parte pequenina de mim, talvez não seja eu
quem esteja brincando, senhor.
— Uma resposta superficial para uma pergunta tão séria — Vanessa
continuou. — Temo que você seja uma dessas criaturas incapazes de pensar,
sentir ou amar profundamente. Não é da sua natureza entregar-se aos
sentimentos. Eu espero, não sei bem por que, que um dia, ao se ver
abandonada pelos amigos e admiradores cansados de sua futilidade, você
procure consolo em meus braços. — Vanessa devolveu o script para Brel.
Ao ouvir o diálogo, Tony não pôde deixar de identificar-se com o vibrante
conde DeVries e Madeleine parecia haver inspirado a frívola lady Rue. Porém
ao escutar Vanessa dizer as falas do conde, uma certeza repentina viera-lhe à

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mente. Sua esposa era DeVries. Ele ouvira aquela voz no teatro, quando fora
ao encontro de Madeleine. Vanessa o enganara. Como pudera ser tão cego?
Irritado ao extremo, Tony subiu as escadas e encerrou-se no quarto.
Que tipo de mulher lançaria mão de tal artifício? Vanessa lhe mentira
deliberadamente durante toda a semana, subindo ao palco com a única
intenção de rir às escondidas do marido. Até onde ia a influência de Travesian
sobre sua esposa, para convencê-la a fazer parte de um plano fantástico e
ousado? Ou teria sido idéia de Vanessa?
De fato nunca a considerara uma criatura dissimulada ou mesmo
aventureira. Entretanto os acontecimentos recentes apontavam na direção
contrária. Embora estivesse furioso, não iria confrontá-la agora. A vingança
seria lenta e completa. Esperaria o momento certo para desmascará-la. A
próxima noite em que Vanessa se dissesse indisposta, ele também ficaria em
casa. Então a observaria desesperar-se com o arrastar das horas. Se preciso
fosse, passaria a noite inteira no quarto da esposa apenas para impedi-la de
comparecer ao teatro.
— Muito bem-Vanessa — cumprimentou Brel.
— Marie e eu iremos ao Atenas esta tarde para vê-lo ensaiar. Amanda,
você quer ir conosco? Será um ensaio geral e eu gostaria de ouvir sua opinião.
— Eu também — Brel apressou-se a dizer.
— Não entendo nada dessas coisas.
— Pelo contrário, uma pessoa tão sensível merece ter suas opiniões
levadas a sério — Brel insistiu.
— Então eu adoraria ir.
Depois que o jovem ator saiu, lady Amanda continuou a bordar em
silêncio durante alguns minutos antes de perguntar à nora:
— Seu relacionamento com Tony parece-se com o descrito na peça?
— Não. Tony é bem mais gentil do que lady Rue e tampouco me sinto
desesperada. O tempo é meu aliado. Não tenho que conquistá-lo ou perdê-lo
dentro de umas poucas horas. Vou acabar conseguindo tirá-lo dela.
— De Madeleine Vonne?
— Talvez a beleza de lady Vonne já esteja começando a desbotar. Você
notou como ela está magra e abatida? Além do mais, é dez anos mais velha do

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que eu. E para completar, a passagem do tempo pouco pode alterar um rosto
sem graça como o meu. Ou pelo menos, ninguém notará muito as mudanças.
— Você está sendo injusta consigo mesma. Eu a considero adorável.
— Adorável é uma palavra usada para descrever a personalidade de uma
mulher. Faço questão de ser sincera comigo mesma e neste aspecto não tenho
queixas de Tony. Ele jamais mentiu para mim. Esteja certa de que pretendo
conquistá-lo, nem que me consuma uma década de esforços.
— Você não deve imaginar que sua situação seja sem esperanças. Meu
filho tem sido bastante atencioso nesta última semana.
— Sim. Uma boa dose de culpa faz maravilhas no comportamento de um
homem.
Vanessa mandou avisar Travesian que estaria na platéia, caso Brel não se
sentisse bem o suficiente para ir até o fim da peça. No intervalo do segundo
ato, Travesian veio pedir-lhe que assumisse o personagem, pois Brel forçara
demais o tornozelo e estava mancando outra vez.
— Vou ter que deixá-los durante este ato — Vanessa informou Win e lady
Amanda. — O rapaz que toma o ponto dos atores ficou rouco e assumirei seu
lugar.
— O quê? — Win exclamou chocado. — Não me diga que você vai se
meter naquele cubículo sob o palco?
— Não, claro que não. Ficarei nas coxias seguindo o script. Com certeza
minha ajuda nem será necessária.
O intervalo levou alguns minutos a mais do que o, habitual enquanto
Marie ajudava a patroa a vestir a roupa do conde.

Nenhum dos freqüentadores regulares do Boodle’s apareceram naquela


noite. Entediado, Tony quis saber onde estavam todos, já que faltavam-lhe
parceiros para o jogo de cartas.
— No Atenas — um dos irmãos Falcrest o informou. — Você não tem
ouvido as pessoas falarem sobre o The Count?
— Sim, tenho.
— Eles estrearam a peça com um substituto para oi papel principal —
Clive Falcrest esclareceu. — Um tall de Campanello. Albert Brel deverá assumir

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o personagem hoje e todo mundo foi conferir se o rapaz é tão bom quanto o
italiano.
— Por que vocês não estão lá como todos?
— Já fui ver a peça duas vezes — William respondeu —, e achei-a ótima,
divertida. Clive e eu estamos pretendendo dar um pulo no teatro ainda hoje
para assistir o final da apresentação.
— Como é que você tem passado sem Charlie? — Clive indagou. — Deve
estar sendo difícil.
— Sim. Logo depois da morte de meu irmão, passei a beber tanto que
vivia num verdadeiro torpor. Felizmente hoje sinto-me recuperado, com os pés
no chão.
— Ainda bem que você se casou com uma mulher feito Vanessa. Ela é
inteligente e devotada à sua mãe. A paz dentro do lar é o mais precioso dos
bens.
— Fico satisfeito que vocês gostem de Vanessa.
— Bem, acho que vamos indo para o teatro agora, encontrar com Marissa
e nossa mãe.
— Talvez eu vá com vocês. Possivelmente Vanessa também estará lá.
— E deixar todo este movimento aqui? — William indagou, mostrando o
salão.
— Este lugar me dá tédio.
— Então por que você joga tanto?
— Porque estou tentando recuperar a fortuna da família.
— Como é que consegue dormir a noite, sem saber se acordará rico ou
pobre?
— Não costumo dormir a noite — Tony respondeu com um sorriso. — E
nunca arrisco mais do que posso perder. É simples matemática.
— Então não é o prazer de jogar que o traz aqui noite após noite?
— Não. Trata-se de negócios.
— Admiro sua coragem e sangue frio. Não sei se eu seria capaz.

— Onde está Vanessa? — Tony perguntou desconfiado, sentando-se ao


lado da mãe e do primo. — Win, você deveria estar de olho na minha esposa,

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não?
Tony perdeu a fala ao ver a mulher entrar no palco, dominando a cena de
uma maneira avassaladora. Se não tosse filha de um banqueiro, com certeza
Vanessa teria tido uma carreira brilhante nos palcos. Sem esperar pelos
aplausos finais, ele levantou-se, determinado a cercar a esposa nos bastidores.
Tão logo avistou o marido, Vanessa correu para o camarim.
Felizmente Tony foi atrasado por Travesian, que lhe deu o tempo de
trocar-se e arrumar os cabelos. Ao se ver frente a frente com Vanessa, Tony
não pôde deixar de admirar a serenidade com que ela o enfrentava.
Entretanto, apesar de nada dizerem, ambos sabiam que se passava na cabeça
um do outro.
— Vou levá-la para casa agora. Não quero que você volte a pisar neste
teatro outra vez, a não ser na minha companhia.
— Está bem. Se é assim, preciso lhe dizer uma coisa.
Win mal conseguia disfarçar a curiosidade.
— E o que é?
— Parte do Atenas me pertence e confesso que ando um pouco cansada
de assumir tantas responsabilidades. Você conhece alguém que estaria
interessado em comprar minha parte?
— Quanto?
— Não tenho idéia do valor.
— Não. O que eu quero saber é quanto você possui do Atenas.
— Metade. Tony, você está se sentindo bem? Está tão pálido. Sabe, estou
cansada de me preocupar a cada vez que um ator fica com dor de garganta ou
os figurinos não são entregues dentro do prazo. Talvez eu deva vender minha
parte para Travesian, embora não saiba se ele será capaz de me pagar algum
dia.
— Eu acho, sinceramente, que você deve vender sua parte, mesmo se
Travesian demorar séculos para pagar-lhe.
— Está resolvido, então.
Durante todo o trajeto para casa Tony permaneceu em silêncio, pensando
nos últimos acontecimentos. Num impulso, pegou a mão de Vanessa entre as
suas e apertou-a com força. Se ao menos pudesse dizer o quanto a amava

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sem despertar expectativas que ainda não se sentia capaz de preencher. Ela
retribuiu o aperto com um ternura tal que o emocionou até o fundo da alma.
Sem palavras, Vanessa havia deixado claro que o amava.

No dia seguinte tudo parecia ter voltado ao normal na casa dos


Cairnbrooke.
— Você gostaria de sair hoje a noite? — Tony perguntou à esposa durante
o jantar.
— Sim. Será que nós poderíamos ir assistir ao The Count outra vez?
— Sim. Porém você já não viu aquela peça o suficiente?
— Mas eu ainda não a assisti na sua companhia.
— Todo mundo está comentando a peça.
— E o que dizem? — lady Amanda indagou curiosa.
— Que Encrier, o autor, é um gênio da comédia, especialmente sendo tão
jovem. E que também parece ter sido influenciado por Diderot.
— Você andou estudando um pouco da história do teatro — Vanessa falou
orgulhosa.
— O tal de Campanello também tem sido muito elogiado — Tony a
provocou, um brilho divertido no olhar. — As pessoas mal podem esperar para
comparar o desempenho de Brel ao do italiano.
— Brel é um ator ainda desconhecido do grande público. É assim que
Travesian poupa dinheiro, dando chances a atores novos.
— E quanto às atrizes? — Tony insistiu.
— Infelizmente os bons papéis vão todos para os homens. O público em
geral também vai ao teatro para ver o ator de sua preferência. As atrizes, na
sua vasta maioria, só despertam interesse quando são extremamente bonitas
e beleza nem sempre vem aliada a boa voz ou talento.
— Você parece saber bastante sobre o assunto.
— Talvez porque o teatro me interesse mais do que tudo.
— E por que o teatro a interessa tanto assim?
— Porque no mundo real eu não tenho controle sobre quase nada. Já uma
peça é algo seguro e sei como terminará.
— Quer dizer que você só vai assistir a uma peça quando conhece o final

102
da história?
— Sim. E deve ter um final feliz, claro. Nunca assisto tragédias, a menos
que sejam de Shakespeare. Não tenho paciência para tragédias modernas.
— Verdade? Você tem tanta paciência comigo e com certeza sou uma
verdadeira tragédia — Tony falou, fazendo lady Amanda rir com vontade.
— Não deboche. Os personagens de tragédias devem ser estúpidos,
loucos ou dissimulados. Numa comédia a única dificuldade é conduzir os
personagens de tal maneira que passem a maior parte do tempo tendo
problemas de comunicação.
— De fato. Então você torce para finais felizes?
— Sempre.
— E por que os homens têm as melhores falas? Oh, suponho que seja
porque a maioria das peças seja escrita por homens.
— Sim, é provável que seja isto.
Ao trocar-se para sair, Vanessa só conseguia pensar na conversa que
tivera com o marido. De repente deu-se conta de que em suas peças os
homens também tinham o papel principal porque, para seu horror, ela possuía
uma visão masculina do mundo.
Os anos de convivência com os amigos do pai, a falta de uma presença
feminina, os livros que costumava ler, tudo isto contribuíra para que adotasse
uma postura profundamente racional em relação mundo.
Sua próxima peça teria como personagem central uma mulher jovem,
porém não o tipo de heroína fraca e tola. Ela lutaria para conquistar seu herói
e venceria.

103
Sete

— Onde está seu cachorro? — Tony indagou entrando no quarto da esposa


antes de saírem para o teatro. Ele abominava chegar atrasado. Se era para
assistir uma peça, tinha que ser do princípio ao fim.
— McDuff já se foi há semanas — Vanessa respondeu com uma risada,
enquanto ajeitava o cabelo.
— Ele morreu? — Tony perguntou esperançoso.
— Não, mandei-o para Gott Farm. O jardineiro sempre gostou de
cachorros e tenho certeza de que cuidará do meu com boa vontade.
— Você não precisava se livrar do bicho por minha causa.
— Bem, eu não ia querer que McDuff o mordesse.
— Você estava com medo de que eu fizesse alguma coisa contra o cão,
por isso o mandou embora, para mantê-lo a salvo. Foi a mesma história com
os cavalos.
— Não é verdade. Estava preocupada com você.
— Por acaso pensou que eu pudesse estrangular o coitado ou algo
parecido?
— Não, não foi nada disso.
— Você não confia em mim.
— Procurei apenas agradá-lo — Vanessa exclamou, à beira das lágrimas.
— Por que você faz questão de distorcer tudo?
— Não se magoe para tentar me fazer sentir culpado porque de nada
adiantará.
— Não costumo agir assim.
— Costuma sim.
— Vanessa, você está pronta? — lady Amanda perguntou, batendo na
porta do quarto.
— Eu não sei se nós vamos sair — ela respondeu chorosa.
— Bobagem, claro que vamos! Tony não voltaria a desapontá-la!

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— Nós vamos? — Vanessa murmurou para o marido.
— Você quer ir?
A situação era quase como um teste. Se dissesse “não” e passasse a noite
chorando e sentindo pena de si mesma, acabaria provando que Tony estava
certo e correria o risco de perdê-lo para sempre.
— Sim — ela falou afinal, torcendo para que tivesse dado a resposta certa.
— Então nós iremos.
A única outra coisa que ameaçou estragar a noite foi a presença de lorde
e lady Vonne no camarote oposto ao dos Cairnbrooke.
— Droga! — Tony praguejou baixinho.
— O que foi? — Vanessa quis saber.
— Os Vonne estão aqui. Talvez fosse melhor irmos embora.
— Irmos embora? Mas acabamos de chegar.
— Lorde Vonne está olhando na minha direção.
— Sim, claro. Porém é impossível evitar que nos encontremos numa
cidade como Londres, onde a sociedade freqüenta os mesmos lugares. Sabe? A
localização deste camarote é ótima, além de ser bem próximo ao dos Falcrest.
— Pensei apenas que talvez você preferisse não ser objeto de tanto
interesse.
— Alguns olhares insistentes não me incomodam. Além do mais, sei que
lorde Vonne não lhe mete medo.
— Sim, tem razão. Eu deveria ter imaginado que você não fugiria de uma
situação incômoda. — Tony levou a mão da esposa aos lábios e beijou-a.
Vanessa sorriu e então ambos deixaram-se envolver pelo que se passava no
palco, sem dar importância à expressão ameaçadora de lorde Vonne ou à
inveja estampada no rosto de Madeleine.
À medida que a peça ganhava ritmo, Tony entregava-se ao prazer de
assistir a uma boa montagem, rindo e se divertindo como toda a platéia que
lotava o teatro. Observando a reação do marido, Vanessa teve vontade de
contar que o texto era de sua autoria, porém achou melhor calar-se, temendo
irritá-lo. Já era suficiente vê-lo alegre e relaxado.
A voz de Brel arrastou a atenção de Vanessa para o conde DeVries:
— Por que estou lhe dizendo tudo isto, Charles?

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— Talvez porque você ache que eu seja capaz de compreender. Sendo um
homem vivido, também passei grande parte do tempo procurando uma mulher
digna.
— Digna de você, é isto?
— Claro, DeVries. O que mais poderia ser?
— Charles, com a sua reputação, eu diria que qualquer mulher de rua
seria digna de você.
— Eu seria um homem melhor se encontrasse uma mulher melhor.
— Melhor? Como? Moralmente falando?
— Sim.
— Você estaria disposto a mudar? A se regenerar?
— Bem, não, agora que você perguntou. Estou apenas dizendo que não é
culpa minha que eu seja assim.
— Então é culpa delas, Charles? Das mulheres que você amou?
— Eu não diria que realmente tenha amado qualquer uma delas.
— Acho que recebemos o que merecemos. Se nós nos aproximamos das
mulheres com o único objetivo de manter um relacionamento superficial,
atraímos o tipo de mulher superficial também, que não deve ser levada a
sério.
— Mas e a alternativa?! Quem iria agüentar um bando de damas sérias
correndo atrás de si?
— Mas não é isto o que acontece. Uma mulher virtuosa deve ser
procurada. Onde, não sei. Sei apenas que elas não vivem correndo atrás dos
homens.
— Tem certeza de que é isto o que você quer? Seria essa mulher um tipo
interessante e espirituoso?
— Não tenho a menor idéia, Charles. Jamais encontrei uma mulher assim.
— E existem tais criaturas?
— Não fale sobre elas como se fossem uma outra espécie humana. Claro
que existem. Têm que existir. Minha única esperança é encontrar essa mulher.
— E casar-se com ela?
— Se eu for digno dela.
— Aceite meu conselho, DeVries. Não o faça. É melhor uma paixão sem

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esperanças do que a fria realidade do casamento.
— Como você pode saber?
— De certa forma, estive casado.
— Charles, ou se é casado ou não. Não há meio termo. Não é algo que se
faça em etapas, como ficar bêbado, por exemplo.
Embora Vanessa percebesse que Tony se remexia na cadeira
desconfortavelmente, ela manteve os olhos fixos no palco, como se nada
notasse.
— Você sabe o que estou querendo dizer, DeVries. Quando uma mulher
sente-se muito segura a respeito do parceiro, fica relaxada.
— Sobre o que você está falando?
— Elas já não nos parecem tão adoráveis à luz da manhã quanto na
penumbra de um salão de baile.
— Tampouco eu… Também já o vi de manhã bem cedo, antes que uma
xícara de café forte lhe traga um pouco de cor ao rosto abatido. Você não é
nenhum galã, Charles. Tampouco eu o sou.
— E se essa esposa virtuosa tiver o hábito de rezar antes de ir para cama
com você? Conheço alguém que passou por essa situação incômoda. O que um
homem pensaria disso?
— Talvez devesse se sentir satisfeita com a ajuda vinda dos céus.
— Minha querida lady Rue, estávamos falando de você.

De volta para casa, Vanessa e Tony passaram o tempo inteiro


relembrando os momentos mais divertidos da peça e rindo até ficarem com os
olhos cheios d’água. Tony gostara tanto do espetáculo que não hesitou em ir
ao quarto da esposa indagar sobre uma determinada fala especialmente bem
elaborada. Vanessa repetiu a tal frase, fazendo-o rir outra vez.
— Como é que você pode se lembrar tão bem? — ele perguntou, tentando
parar de rir.
— Tenho uma cópia do script. Aqui está. Pode ler se quiser.
— Sim, claro. Você precisa de uma cópia para tomar o ponto dos atores.
— Não faça isso.
— Fazer o quê?

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— Não estrague tudo.
— Oh, a noite. Eu realmente pareço ter um talento para estragar as
coisas, não é?
— Sim, e não sei por quê.
— Mas eu sei. Estraguei sua vida inteira. Não mereço voltar a rir nunca
mais.
— Só que eu também estraguei sua vida. Não era eu quem estava
apaixonada por outra pessoa quando nos casamos.
— Não se trata de um concurso, Vanessa, porém se fosse, infelizmente eu
seria o vencedor. Sei que sou difícil e estou sempre preocupado com assuntos
relacionados a negócios. Muitas vezes digo coisas impensadas e só percebo
que magoei alguém quando já é tarde demais.
— Eu também deveria controlar melhor o meu gênio.
— Não, você deveria extravasar sua raiva com mais freqüência. Pelo
menos assim eu saberia quando fiz algo errado. Além do mais, gosto de vê-la
irritada, com os olhos brilhantes e os cabelos desalinhados. Quase me faz
ceder a tentação de provocá-la.
— Espero que você não o faça de propósito. Seria desprezível.
— Ainda não desci tão baixo.
— Tudo o que você faz tem uma importância tão grande para mim. As
vezes sinto-me pisando num terreno desconhecido, em que basta uma palavra
sua para me fazer desatar em risos ou em lágrimas.
— Sinto muito por fazê-la sentir-se insegura. Vou tentar ser uma
companhia melhor daqui para a frente.
Cedendo a um impulso incontrolável, Tony beijou-a nos lábios com
sofreguidão, aspirando o perfume do corpo que o enlouquecia. Somente o
profundo sentimento de honra o impediu de ir até o fim. Ainda havia um longo
trabalho a ser feito antes de livrar-se do compromisso que o ligava a Vanessa.
Somente depois de quitar a dívida, estaria livre para desempenhar o papel de
marido. Sufocando o desejo, soltou a esposa e saiu do quarto.
Vanessa precisou apoiar-se na mesa para não cair, ainda atordoada pelo
calor daquele beijo. De uma única coisa tinha certeza: nunca abriria mão do
marido, nem que o casamento de ambos jamais chegasse a ser consumado.

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Preferia contentar-se com pouco do que perder Tony para sempre.

Tony fez questão de levar a esposa ao baile de lady Herbert, porém mal
haviam chegado à mansão aristocrática ele desapareceu no salão de jogos e
largou-a na companhia de Win.
Por um instante Vanessa sentiu-se abandonada, como se o marido tivesse
vergonha de ser visto ao seu lado. Depois concluiu que se fosse assim, ele não
teria se dado ao trabalho de levá-la a um baile onde toda a alta sociedade de
Londres estaria presente.
— Olá, Vanessa! — Marissa cumprimentou-a aproximando-se e trazendo
Elizabeth pela mão.
— Por favor, Vanessa, venha dar uma volta comigo enquanto Marissa
dança com o marido — Elizabeth pediu. — Sinto-me muito mais confortável
caminhando do que sentada num sofá, feito uma galinha choca.
— Como tem sido sua gravidez? — Vanessa perguntou, admirando a
barriga da outra com uma pontada de inveja.
— Terrível e maravilhosa.
— Terrível quando você se sente à mostra?
— Sim. É como fazer parte de uma exposição em que o público se sente
no direito de apontar, comentar e dar palpites.
— E quando é maravilhosa?
— Quando estou com Jason.
— Eu deveria ter adivinhado. Nunca vi um casal tão apaixonado. Você
soube que iria amá-lo desde o primeiro instante em que o viu?
— Sim — Elizabeth respondeu, uma expressão sonhadora no rosto. — Foi
assim com você também?
— Sim. Mas infelizmente Tony leva, levou nosso relacionamento de uma
maneira mais superficial.
— Ele não se apaixonou por você à primeira vista?
— As vezes eu me perguntava se os homens se apaixonavam de verdade.
Agora conheço pelo menos três que de fato amam suas mulheres.
— Quem são?
— Jason, William e lorde Vonne.

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— Foi Tony quem lhe disse não se importar de ser morto por lorde Vonne
por ocasião do duelo?
— Não. Apenas cheguei a esta conclusão juntando alguns pedaços de
informação. É verdade?
— Sim, acho que sim. Quando o irmão de Tony desapareceu, ele ficou fora
de si, completamente transtornado. Madeleine aproveitou-se daquele estado
de confusão emocional para envolvê-lo numa rede de sedução.
— Fico feliz que você e sua família o tenham apoiado. Ele nunca confiou
na mãe como deveria e tampouco entendia-se com o pai.
— Foi tudo culpa de Charlie. Tony estava sempre pronto para defendê-lo,
sem se importar com os atos estúpidos que o irmão pudesse cometer. Foi por
isto que mandaram Charlie para o exército, para transformá-lo num homem.
— Você não fala de Charlie como se ele houvesse sido o centro de seu
interesse.
— Nunca o amei, se é isto o que você quer saber. Meu desespero era fruto
de um sentimento de culpa.
— Você sentia-se culpada?
— Não deixe que minha aparência inocente a iluda. Charlie e eu havíamos
ficado noivos secretamente. Idéia dele, claro. Não sei por que concordei.
Talvez porque achasse que seria fácil romper o noivado quando a guerra
acabasse ou…
— Ou então que ele nunca mais voltasse. Aposto que foi usando este
argumento que ele conseguiu convencê-la a ficar noiva. Como alguém pôde
agir assim?
— Obrigada por me entender. Mas veja, quando ele não voltou da Bélgica
senti-me aliviada e muito culpada.
— Você contou a Jason?
— Quando já não conseguia mais suportar o tormento sozinha. Foi assim
que começou a caçada desesperada por Charlie. Oh, nós teríamos ajudado
Tony a procurar o irmão de qualquer maneira, porém, para mim, foi uma
época marcada pelo terror. Se ele fosse encontrado, e estivesse ferido, eu
teria me sentido na obrigação de casar-me.
— Sacrificar seu amor por Jason ou fazer um amigo infeliz. Que escolha

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dura!
— Olhando para mim, sei que você acha difícil me imaginar tomando
decisões difíceis. Mas já fiz coisas desesperadas.
— Por acaso tem algo a ver com Jason?
— Sim. E era uma questão de vida ou morte.
— Espero encontrar este tipo de coragem se algum dia Tony estiver em
perigo. Comparada à situação que você enfrentou, a minha parece risível. É
incrível pensar que estou tentando seduzir meu próprio marido.
— E está dando certo?
— As vezes acho que sim. Às vezes ele me olha como se eu fosse a coisa
mais importante do mundo e então se afasta de novo.
— Tony anda diferente ultimamente. É como se agora tivesse um objetivo
na vida.
— Infelizmente este objetivo não é apenas me fazer feliz. Ele tem um
outro objetivo e recusa-se a me contar qual é.
— Não creio que seja algo relacionado a lady Vonne. Se fosse, ela teria
uma aparência mais feliz.
— Aqui estão vocês! — Jason exclamou, entregando um copo de limonada
à mulher. — Olá, Vanessa, você gostaria de um pouco de limonada também?
— Não, obrigada. Não estou com sede.
— Você está com calor, querida? — Jason indagou à esposa. — Ou talvez
com um pouco de frio? Há um vento insistente vindo da varanda.
— Estou ótima.
— Você acha que ela deveria ter vindo ao baile? — Jason perguntou a
Vanessa.
— Sinto muito, mas não entendo nada do assunto. Tenho certeza de que
Elizabeth sabe o que está fazendo.
— Jason, querido, você é um marido admirável e um dia será ótimo
cirurgião, mas no momento está se preocupando à toa e me distraindo a
atenção.
— Você quer que eu vá embora?
— Quero que se divirta. Que jogue cartas ou faça qualquer outra coisa que
os homens casados costumam fazer em bailes.

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— Não tenho a menor idéia do que seja.
— Então dance com Vanessa.
— Você promete ficar quietinha num lugar, onde eu possa vê-la?
— Vou me sentar aqui e aguardá-los, tomando uma deliciosa limonada.
Vão logo para o meio do salão, a música já vai começar.
— Você está muito preocupado? — Vanessa indagou, os dois perdidos no
meio da pequena multidão que se movia ao som da melodia.
— Estou terminando a residência num dos melhores hospitais de Londres
e sei como é arriscado ter um bebê. Uma série de coisas pode dar errado.
— Tenho certeza de que Elizabeth também conhece os riscos. Não há
motivo para ficar falando sobre o assunto.
— Eu simplesmente não sei o que faria da vida se perdesse Elizabeth
agora. Eu a amo demais para suportar o baque.
— O amor nunca é demais.
— Você não tem medo de ter filhos?
— Talvez algum dia eu venha a ter. Mas acho que vale a pena correr o
risco.
— Todas as mulheres pensam assim?
— Não sei. Sei apenas como me sinto.
De repente Vanessa notou lady Vonne. A loura estava envolta em rendas
e brocados, uma figura realmente maravilhosa. Porém o que a deixou sem fala
foi perceber que Tony estava ao lado de Madeleine, embora não conseguisse
imaginar por quê.
— Aquele com quem você estava conversando era Rothschild? — Tony
indagou a Madeleine.
— Sim. Nathan Rothschild. Por que pergunta? Está com ciúmes?
— Não tenho por que estar. Você o conhece bem?
— Não tão bem quanto conheço você — ela respondeu provocante.
— Como é ele?
— Nunca sei se o homem está sorrindo ou zombando.
Aquela havia sido quase a mesma definição que Vanessa fizera do
banqueiro. Ao pensar na esposa, Tony sentiu uma onda estranha de ternura
invadir-lhe o coração. Pela primeira vez os olhos absolutamente maravilhosos

112
de Madeleine e seu perfume erótico não tinham qualquer efeito sobre seus
sentidos.
— Você o apresenta a mim?
— Qual é o problema? Você não está falido, está?
— Não, não preciso de um empréstimo. Quero apenas conhecê-lo.
— A princípio eu achava que o relacionamento de Vonne com Rothschild
baseava-se em interesses financeiros, depois descobri que os dois só falam
sobre aqueles pássaros.
— Pássaros?
— Pombos de corrida. Agora dance comigo — Madeleine ordenou.
— Seria algo perigoso de ser feito.
— Ou corajoso.
— Você vai me apresentar a Rothschild?
— Prometo que sim, se é o que você quer.
— Está bem — Tony concordou, já que a dança era apenas uma quadrilha.
— Vonne a tem tratado melhor?
— Não, pior. Ele me vigia o tempo inteiro, ele ou um de seus homens. Sou
praticamente uma prisioneira.
— O que Vonne diz sobre as atenções que Rothschild lhe dispensa?
— Você está confundindo as coisas. Rothschild não é meu amigo, mas de
meu marido. Ele até passou alguns dias em nossa casa de campo.
— É mesmo? Onde fica sua casa de campo?
— Em Wingham Court, a leste de Canterbury. Você devia ter se tomado
amigo de Vonne, talvez então…
— Isto não impediria que ele atirasse em mim. Aliás, mereci a bala.
— Você não faz idéia de com fiquei agoniada, temendo ser a causadora de
sua morte.
— Verdade? — Ele indagou sem muito interesse.
— Claro que sim! Como é sua esposa?
— Estudiosa.
— Como assim?
— Tem paixão por livros.
— Que conveniente para você.

113
— Ela sabe ocupar o tempo.
— Preciso vê-lo outra vez.
— Não vamos nem discutir esta possibilidade. A música está quase
terminando. Você vai me apresentar a Rothschild?

— Madame, uma palavra com a senhora.


Vanessa desviou o olhar do par formado por Tony e Madeleine para
enfrentar a expressão sombria de lorde Vonne. Ele era alto e magro, olhos
escuros e dentes muito brancos, contrastando com o bigode e cavanhaque.
— Não fomos formalmente apresentados, entretanto não creio que este
detalhe deva nos impedir de conversarmos — Vonne falou, tomando-a pelo
braço e conduzindo-a ao centro do salão, de onde saíram valsando.
— Não, desde que você não parava de me fitar.
— Não tanto quanto você fitava Cairnbrooke. Um aviso, minha lady: se
não conseguir controlar seu marido melhor, acabará ficando viúva.
— Entendo — Vanessa respondeu sem demonstrar o menor sinal de
espanto, como Vonne esperava. — Mas você deve admitir que o que aconteceu
esta noite não foi inteiramente culpa de Tony. Se Madeleine o tivesse ignorado,
meu marido teria se mantido distante.
— Minha esposa não lhe dirigiu a palavra. Eu a estive observando.
Madeleine não fez nenhum sinal.
— Oh, ela fez sim. Olhou-o de uma maneira que teria derretido um bloco
de gelo. Qualquer homem, impelido por tal olhar, aproximaria-se de
Madeleine.
— Você parece lidar com a situação com uma certa complacência.
— A primeira vez que eu a vi, peguei-a de surpresa, impedindo-a de
mostrar as garras. Porém hoje devo reconhecer que sua esposa é uma atriz
consumada e portanto precisa ser levada mais seriamente.
— Como você pode aceitar o fato de que Cairnbrooke não a ama e sim a
Madeleine?
— Não aceito o fato. Estou dolorosamente consciente dele.
— Como todo mundo em Londres.
— Fico feliz em ter fornecido matéria de entretenimento para tantos.

114
— Bem, ele casou-se com você por causa de seu dinheiro.
— Não é verdade. Tenho certeza de que não é verdade. Ele estava apenas
tentando fechar a porta do passado e também agradar aos pais.
— Então eles fizeram o filho casar-se por causa de seu dinheiro.
— Não, para salvar a vida de Tony, como estou tentando fazer — Vanessa
respondeu impaciente.
— Não vou tolerar ser traído outra vez.
— Isto não vai acontecer. Se nós quatro formos vistos conversando
polidamente, logo os boatos serão esquecidos, mas não se você insistir em nos
olhar dessa maneira agressiva.
— O quê? Quer dizer que devo sorrir enquanto Cairnbrooke valsa com
minha esposa apenas para tornar a situação socialmente aceitável?
— Somos nós quem estamos valsando. Quis apenas dizer que o embaraço
desapareceria caso nos comportássemos de maneira civilizada!
— Embaraço! Você tem um talento raro para falar as coisas de modo
delicado. Ele foi para a cama com minha esposa!
— Reconheço o seu direito de ficar zangado, mas acho que ter acertado
uma bala em meu marido é mais do que suficiente para reparar o orgulho
ferido.
— Você tem umas idéias estranhas a respeito do casamento, se pensa que
um dia serei capaz de esquecer o que houve. Vou avisá-la de novo. Segure seu
marido com rédeas curtas ou da próxima vez o matarei.
— E de que adiantaria? Madeleine simplesmente usará outro homem para
torturá-lo.
— Ela ficará aterrorizada e se comportará bem daí para a frente.
— Não duvido que sua esposa faça uma cena, porém não creio que tenha
medo de você. Acho que ela quer apenas deixá-lo enfurecido.
— Não preciso que você venha me dar conselhos sobre como conduzir
meu casamento, quando o seu está em ruínas.
— Posso conquistar Tony, mas só se o tempo estiver do meu lado.
— Se você acha que uma gravidez iria enternecê-lo, pode esquecer. Será
então que, muito provavelmente, ele procurará a companhia de outra mulher.
— Não era isto o que eu tinha em mente.

115
— É uma possibilidade.
— Não, não é. — Vanessa desviou o olhar, mordendo os lábios.
— Não é uma possibilidade? Mas ele faz amor com você, não faz?
Ela corou, não de embaraço e sim de raiva, por haver permitido que o pior
inimigo de seu marido conhecesse um detalhe de sua intimidade.
— Meu Deus. Nem mesmo isto. Você deve amá-lo de fato.
— Assim como você ama Madeleine.
— Não é verdade. Às vezes sinto que seria capaz de matá-la.
— Amor e ódio são duas faces de uma mesma moeda. A única coisa difícil
de suportar é a indiferença.
— Mal a conheço, minha lady, porém ninguém até hoje havia suspeitado
que eu pudesse amar Madeleine. Todos acham que a considero apenas minha
propriedade.
— Por que não conversa com ela? Se sua esposa se importa com você…
— Nós não conversamos. Nossas tentativas sempre acabam em
verdadeiros duelos verbais. É algo que não podemos evitar. Assim como você
também não pode evitar a situação em que se encontra metida. Se algum dia
teve a chance de conquistar seu marido, acabou de perdê-la agora.
— Aposto que posso conquistá-lo — Vanessa o desafiou, sabendo que
somente uma demonstração de ousadia impressionaria Vonne.
— Como? Ele não a ama.
— Mas tem ciúmes de mim. Basta ver como está nos olhando neste
momento. Não, não vire para trás.
— Você não pode me usar desta maneira, para despertar ciúmes em seu
marido. Seria muito óbvio.
— Entretanto conheço um ou dois homens que poderiam me ajudar.
— Cuidado, é um jogo perigoso. Nunca dará certo.
— Prefiro correr o risco.
— O que está em jogo é a vida de Cairnbrooke — Vonne falou com uma
selvageria quieta e contida.
— Eu sei.
— Um mês então.
— Isto não é justo.

116
— É todo o tempo que irei tolerar. Mesmo assim ainda poderei ter
problemas em manter a barganha.
— Você não se arrependerá.
— E quanto a você, minha querida? — Vonne sorriu e beijou a mão de
Vanessa antes de afastar-se, deixando a todos que assistiram a cena curiosos
sobre o que aquele estranho par poderia ter estado conversando.
— Sobre o que você andou conversando com lorde Vonne? — Tony
perguntou à mulher.
— Sobre a arte de representar. Ele conhece muito mais sobre o assunto
do que alguém poderia imaginar.
— Verdade?
Tony fez questão de permanecer ao lado da esposa dali em diante,
embora acompanhasse os movimentos de Madeleine a distância. Ela ainda não
havia lhe apresentado Rothschild e preferia aguardar a oportunidade do que
envolver Vanessa na história com o banqueiro. De repente Tony percebeu que
Madeleine procurava chamar sua atenção.
— Vou buscar algo gelado para você beber — ele ofereceu à esposa e
afastou-se antes que ela tivesse tempo de responder.
Para seu alívio, Madeleine apresentou-o a Rothschild da maneira mais
natural possível, como se o encontro dos três fosse obra do acaso. Nunca
pudera imaginar que lady Vonne fosse capaz de tamanha sutileza.
— Então você se casou com Vanessa Barclay? — o banqueiro indagou com
o mais puro sotaque germânico.
— Sim, no outono.
— Ótima família.
— Sim, eu sei.
— Suponho que você gostaria que eu lhe contasse alguns pequenos
segredos. Que ações comprar, por exemplo?
— Não — Tony respondeu desinteressado.
De repente um mensageiro aproximou-se e entregou uma carta selada a
Rothschild que, sem qualquer cerimônia, rompeu o selo e começou a ler, não
se importando com quem estivesse ao redor. A única coisa que Tony notou era
que estava escrito em alemão.

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— Diga a Cohen para não se preocupar — o banqueiro falou ao
mensageiro, dobrando a carta e guardando-a no bolso. — Não há nada que
possa ser feito, pelo menos até amanhã de manhã.
— Algum problema? — Tony perguntou calmamente.
— Meu assistente… sempre tão impaciente. Tudo para ele tem que ser
agora, nada pode ficar para depois.
— Entendo.
— Ouvi dizer que você é um jogador excepcional.
— Costumo jogar bastante. Em festas como esta, é a única alternativa de
diversão.
— Minha esposa gosta de vir.
— É por este motivo que também estou aqui.
— Ajuda a manter a paz entre o casal.
— Nem sempre.
Embora procurasse aparentar tranqüilidade e sorrisse muito para quem
quer que olhasse em sua direção, Vanessa estava arrasada. Se ao menos um
dos Falcrest viesse socorrê-la! Entretanto a expressão de desolamento em seu
rosto era tão evidente que Vonne tomou a iniciativa de aproximar-se outra
vez.
— Onde está seu marido?
— Mandei-o buscar um pouco de limonada gelada — ela mentiu.
— Oh. — Vonne sentou-se ao seu lado no sofá.
— Você não conseguirá manter um ou outro debaixo de suas vistas
eternamente. Cedo ou tarde teremos que confiar neles. — Vanessa desejou
que suas palavras tivessem sido ditas com mais convicção. Talvez assim se
convencesse a si mesma.
— Eu seria capaz de confiar mais numa cadela no cio do que em minha
esposa quando rodeada de admiradores.
Vanessa riu com vontade, apesar de preocupada.
— Então é Madeleine a razão de sua desconfiança, não Tony?
— Não confio no bom senso de homem algum quando sob a influência de
minha esposa. Ela tem um jeito especial de persuadi-los a fazer as maiores
bobagens.

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— Mas não você.
— Jamais me deixei influenciar.
— Pelo menos uma vez na vida você deve ter se curvado à influência de
Madeleine, ou não teria se casado com ela.
— Nosso casamento foi adiado três vezes, por causa das brigas. Eu
deveria ter imaginado que seria um casamento difícil. Ela é impertinente,
egoísta e mimada.
— E ainda assim você a ama?
— Você tem idéia por que será?
— Estou começando a pensar que as mulheres nem sempre são o que
parecem. Num homem, a imagem de força muitas vezes não passa de ilusão.
O mesmo se aplica à imagem de fraqueza associada às mulheres. Ela é capaz
de usar todo um arsenal de malícia e astúcia para obter o que quer. Madeleine
tem conseguido mantê-lo ao lado dela, e fiel, eu acredito, durante anos,
mesmo envolvendo-se com outros homens. Se ela fosse uma mulher fraca,
não teria sido capaz de manejar uma situação tão delicada.
— Você está dizendo que ela usa os admiradores para me deixar neste
estado de constante ansiedade?
— Talvez Madeleine aja por instinto, mas parece que tem dado certo até
agora. Se ela fosse um tipo de esposa dócil, teria conseguido manter acesa a
chama de seu interesse ou você já teria se afastado?
— Eu não sei — Vonne admitiu, depois de um instante de reflexão.
Foi então que Madeleine apareceu, sozinha, do outro lado do salão, os
olhos azuis percorrendo o ambiente. Ao notar o marido junto a Vanessa, ela
reagiu imediatamente, uma expressão de raiva e ciúme toldando a beleza do
rosto pequenino.
— Pelo jeito minha mulher não pode suportar o gosto do próprio veneno
— Vonne comentou, aproximando-se mais de Vanessa e tomando o leque dela
nas mãos para abaná-la com delicadeza, como se o calor estivesse
insuportável.
— Você está pensando em fazer o jogo de Madeleine, senhor?
— Se for necessário para lhe ensinar uma lição.
Vanessa estava impressionada com a transformação ocorrida em Vonne.

119
Se antes ele lhe parecera ameaçador e perigoso, agora mostrava-se atencioso
e sedutor.
— Ela está vindo para cá — Vanessa sussurrou.
— É mesmo? Eu estava esperando que minha esposa fosse atrás de um
de seus admiradores.
— Quero ir para casa — Madeleine anunciou. — Estou com dor de cabeça.
— Deve ser o calor — Vanessa sugeriu. — Quem sabe você não se senta
um pouco?
Depois de uma breve hesitação, Madeleine sentou-se na beirada do sofá.
Foi então que Tony apareceu. A surpresa ao se deparar com aquele
estranho trio foi tanta, que quase deixou o copo de limonada cair no chão.
Percebendo o embaraço geral, Vanessa tomou o copo das mãos do marido
e entregou-o a Madeleine dizendo:
— Talvez você esteja precisando disto mais do que eu.
Assim que Madeleine terminou a limonada, Vonne levantou-se e deu o
braço à esposa, despedindo-se dos Cairnbrooke com um breve aceno de
cabeça.
— Não consigo entender aqueles dois — Vanessa falou. — São um
verdadeiro mistério.
— Nunca soube de Vonne sentar-se e conversar com alguém numa festa.
Em geral ele passa o tempo inteiro no salão de jogos.
— O que você sabe realmente a respeito dele?
— É um homem que atira bem. — Tony sorriu e massageou o ombro
esquerdo.
— Que mais?
— Trata-se de um desportista, mais do que um fazendeiro. Tem dinheiro
suficiente para criar cavalos de corrida, colecionar armas antigas.
— E manter belas mulheres.
— Em se tratando de mulheres, é uma questão de gosto. Não creio que
Madeleine seja tão bela assim ou que vá envelhecer bem.
Vanessa mal pôde disfarçar o espanto. Ou Tony era um ator consumado
ou não dava a mínima para Madeleine. Estava longe de parecer um homem
fascinado pelos encantos da ex-amante.

120
— O que foi? — ele indagou, percebendo o silêncio da mulher.
— Todo mundo está olhando para nós.
— Então vamos dançar, vamos dar a eles algo de concreto para olhar. Um
homem dançando com a própria esposa é uma visão rara para a sociedade
londrina.

Ao chegarem em casa, tarde da noite, ele a beijou com tamanha


voracidade que Vanessa pensou desmaiar. Tony fez questão de mostrar o
quanto a queria e a urgência de seu desejo. O clima de paixão era tão grande
que ela não teve dúvidas de que o casamento seria consumado. Entretanto,
depois de murmurar palavras doces e carinhosas, ele deixou-a sozinha e
trancou-se no outro quarto.
Vanessa foi perfeitamente capaz de enfrentar o marido, à mesa do café da
manhã, sem demonstrar o menor sinal de desaponto. De fato acostumara-se a
sufocar as frustrações, a calar os sentimentos. Aprendera a ficar em silêncio
enquanto o observava ler o jornal, um ritual que se repetia os sete dias da
semana. Sem ter com quem conversar, aproveitava o tempo para criar novos
diálogos e cenas interessantes. Tony ficaria chocado se descobrisse o que se
passava pela cabeça da esposa durante o café da manhã. Na verdade Vanessa
não pensara em escrever outras peças depois de casada, porém se Tony
pretendia continuar sendo seu marido apenas no nome, precisava se entreter
com outras coisas, arranjar uma maneira de dar vazão ao espírito apaixonado
e aprisionado num corpo ainda virgem.
Em geral Vanessa costumava ficar na biblioteca, escrevendo, até a hora
de ir para a cama, então subia em companhia de lady Amanda, como se
realmente planejasse dormir. Mas a não ser que estivesse muito cansada,
levantava-se tão logo Marie saía do quarto e sentava-se à escrivaninha para
trabalhar durante uma ou duas horas, até que ouvisse Tony chegar. Numa
certa sexta-feira, ele não voltou para casa. Vanessa procurou entreter-se com
seus livros e textos, esforçando-se para se convencer de que o marido
chegaria a qualquer momento. Porém quando o relógio bateu quatro horas, ela
entrou em pânico. Finalmente ouviu sons de vozes debaixo de sua janela.
— Foi um bom trabalho o desta noite, Chadwick — Tony estava dizendo

121
enquanto se despedia do cavalariço junto à porta da frente. — Veja se
descansa um pouco.
O alívio ao escutar a voz do marido foi tão grande, que Vanessa apanhou
um castiçal e correu para o corredor escuro.
— Vanessa! O que você está fazendo acordada a uma hora dessas?
— Estava morta de preocupação por sua causa. Oh mas você está
imundo. Parece que andou vasculhando um viveiro.
— Boa tentativa — Tony respondeu abrindo a porta do quarto.
— Você não pretende me contar o que andou fazendo?
— Não, querida, e por favor, não interrogue Chadwick sobre este assunto.
— Devo chamar algum empregado para lhe trazer água quente?
— Pedirei a Stewart que me traga água de manhã.
— Mas já é de manhã.
— Verdade. Então durma bem, querida.
Delicadamente Tony acompanhou a esposa até a porta e despediu-se com
um beijo rápido. Depois de lavar o rosto e as mãos, sentou-se à escrivaninha e
tirou um monte de pedaços de papel do bolso. Todos estavam amarrotados e
sujos, alguns até com pedacinhos de penas grudados nas beiradas. Munido de
um dicionário de alemão, entregou-se à árdua tarefa de decifrar os papelotes.
Na verdade não era exatamente o que estava escrito que o interessava e
sim o estilo. Sem dúvida tratava-se de uma mensagem enviada a Rothschild e
embora não estivesse em código, havia sido elaborada de maneira tal a não
fazer sentido caso caísse nas mãos de alguém que não dominasse o alemão.
O problema real era saber em nome de quem a mensagem devia ser
mandada. O costume ao se usar pombos-correios consistia em colocar apenas
a inicial daquele que enviava. Portanto se escolhesse a inicial errada, a
mensagem logo seria classificada como suspeita. Talvez valesse a pena pingar
uma gotinha de água sobre o papel, como se a tinta houvesse sido exposta à
chuva. Quando em dúvida sobre alguma coisa, seja vago. Finalmente tinha nas
mãos os meios de pegar Rothschild. Faltava-lhe a oportunidade. Portanto
restava-lhe esperar.

— Qual é o problema? — Vanessa indagou no dia seguinte, quando o

122
marido entrou apressado na biblioteca.
— A câmara derrotou a nova lei sobre o imposto de renda — ele
respondeu, atirando-se na poltrona mais próxima.
— Mas isto é desastroso! Como pôde acontecer?
— Não sei. Às vezes eu mesmo não consigo entender o que está
acontecendo.
— Ninguém conhece uma maneira fácil de colocar a economia nos eixos,
porém é impossível não enxergar que o débito precisa ser zerado.
— Imagino que Rothschild esteja ansioso para emprestar dinheiro ao
governo.
— Sim. O que faríamos sem ele?
— É verdade. O que faríamos sem ele? — Tony concordou.
— Eu esperava ouvi-lo dizer que o país inteiro havia caído nas mãos de
banqueiros oportunistas.
— Quanto mais estudo Rothschild, mais aumenta minha certeza de que
não teríamos vencido sem o auxílio dele. Se Rothschild não houvesse
sustentado os exércitos de Wellington… bem, a Inglaterra teria perdido a
guerra.
— Então finalmente você desistiu de sua campanha pessoal contra
Rothschild?
— Oh, não, ainda pretendo vingar o que o homem causou ao meu pai,
embora de maneira involuntária. Também faço questão que ele saiba quem o
desmascarou.
— Tony… — Vanessa reclamou, sentando-se no braço da poltrona onde
estava o marido.
— Não se preocupe. Ficarei a salvo.
— Mas o que deve ser feito?
— Em relação a que? — ele perguntou, os olhos fixos na linha elegante
dos seios da esposa.
— Em relação ao país.
— Oh, isto! Encontrar uma maneira de cobrar os impostos. Infelizmente
parece que ninguém chega a um acordo sobre o assunto.
— O dinheiro tem que sair de algum lugar.

123
— Se ao menos os membros do parlamento fossem tão razoáveis quanto
você, Vanessa querida.
— E como poderiam? São todos homens.
— Assim como eu — ele murmurou, cedendo ao impulso de puxá-la para o
colo.
— Sim, só que você é o melhor de todos.
— Se ao menos fosse verdade.
— Meu pai diz que você se sairia muito bem no mundo dos negócios.
— Ele me tem dado ótimos conselhos — Tony respondeu, deixando-se
intoxicar pelo perfume da mulher. Dentro de mais alguns segundos, se não
tivesse muito cuidado…
— Meu pai gosta muito de você.
— Posso saber qual o motivo de tantos cumprimentos?
— Eu estava pensando que talvez pudéssemos convidar papai e lady Jane
para uma visita quando fôssemos para Oak Park.
— Claro que pode convidá-los. Não há necessidade nem de me comunicar.
— Talvez, então…
— Oh, não, não Travesian, se é isto o que você ia pedir.
— A idéia o incomoda tanto assim?
— Me incomoda muito. Temos que fazer uma triagem.
— Fazer uma triagem? — Vanessa falou chocada, levantando-se e
afastando-se do marido. — Se Travesian não é bom o suficiente para
freqüentar Oak Park, eu também não o sou. Não precisa sequer se preocupar
em receber meu pai na sua preciosa residência.
— O quê? Não gosto de Travesian porque ele a arrastou para o meio
daquela gente de teatro. O homem não presta.
— Uma companhia muitíssimo melhor do que Winwood, aquele fofoqueiro.
— Sobre o que você está falando? — Tony perguntou levantando-se
também.
— Você mandou Winwood me espionar, não foi?
— Pedi-lhe apenas que tomasse conta de você.
— Não sou estúpida, Tony. E se você não fosse tão cego quanto aos
defeitos de seu primo, perceberia que ele não é amigo de nenhum de nós dois.

124
— Winwood? Você deve estar louca. Ele jamais faria algo que pudesse nos
ferir.
— Então você sequer cogita esta possibilidade?
— Não, claro que não.
Vanessa saiu da biblioteca quase correndo, irritada com a cegueira do
marido. Mas, principalmente, estava irritada por haver perdido a calma e
incomodado Tony com aquela conversa sobre o primo. Ele já possuía
problemas suficientes para ter que ouvir histórias sobre o caráter duvidoso, e
perigoso, de Win. De qualquer forma, agora já não havia como voltar atrás e
retirar o que dissera.

Tony continuou sentado na biblioteca, o corpo ainda ardendo de desejo


pela mulher, a mente tentando compreender o que dera errado na conversa de
minutos atrás. O problema fora Travesian, concluiu. Opusera-se à idéia de
convidar o ator porque sempre se sentia excluído nas conversas dele com sua
esposa e não porque o considerasse uma pessoa inferior.
Talvez devesse ir atrás de Vanessa e se explicar, ou mesmo desculpar-se
por ter se expressado mal. Porém acabou decidindo dar a ela tempo de
acalmar-se. Quantas vezes a magoara nestes meses de casados sem que
Vanessa pensasse em revidar? Pelo menos agora ela estava reagindo,
enfrentando-o. Mal conseguia esperar ver-se livre do débito monstruoso
assumido pelo pai. Então seria um marido de verdade e a conquistaria para
sempre.

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Oito

Foi numa de suas agora raras visitas ao Atenas que Vanessa, através de
Travesian, descobriu uma maneira de tentar resolver seus inúmeros
problemas.
— Eu gostaria que você, pelo menos, mandasse dizer àquela gente que se
sente pesarosa por não poder aceitar os vários convites que recebe. Estou
cansado de inventar desculpas.
— Quem são eles?
— Os Holcroft, grandes admiradores de seu trabalho — Travesian
respondeu, entregando-lhe um convite endereçado a Encrier.
— Talvez eu aceite este aqui. Por acaso Christopher Graden está no teatro
hoje?
— Ninguém é capaz de mantê-lo afastado do Atenas. Estou até pensando
em deixá-lo fazer o papel do conde DeVries uma vez por semana. É um ator
tão estudioso e esforçado. A propósito, o que você quer com ele?
— Vou lhe oferecer trabalho. Estou certa de que não recusará um dinheiro
extra.
— O que você está planejando, menina?
— Quero que Christopher se faça passar por Encrier.
— Que história é esta?
— Há tempos você vem desejando que Encrier apareça em público. Pois
bem, a festa dos Holcroft seria a ocasião perfeita, isto é, caso lady
Cairnbrooke, como a patrona do escritor, também seja convidada. De fato
Encrier está loucamente apaixonado por lady Cairnbrooke, desde que os dois
se conheceram, anos atrás, na França. O jovem escritor pertence a uma
família nobre, que perdeu tudo em decorrência do tumulto que varre a França.
Fui eu quem o encorajou a escrever e o apresentei a você.
— Meu Deus, até que faz sentido.
— É uma história bastante plausível, sem grandes arroubos de

126
imaginação.
— Mas e seu marido? Ele não ficará zangado? E por que você quer que
Graden se finja apaixonado?
— Por favor, Armand, não seja obtuso. Tony sente-se muito seguro a meu
respeito e acha que nenhum outro homem iria me desejar, por isto não tem
pressa de nada.
— Você não me disse que as coisas estavam indo bem ultimamente?
— Sim, exceto por um probleminha que tivemos ontem. Só que um
relacionamento fraternal não me interessa. Quero muito mais de Tony.
— Nunca consegui compreender vocês dois.
— Também não consigo nos entender. Sei apenas que está na hora de
aumentar a pressão sobre Tony.
— Você acha que dará certo?
— Se não der, pensarei em outra coisa. Porém creio que valha a pena
tentar. Graden é tão discreto quanto Brel?
— Ele a idolatra e com certeza não desprezará a oportunidade de ganhar
dinheiro extra. Só temos um problema. Graden é desconhecido do público
agora, mas e se um dia tornar-se famoso? As pessoas poderão lembrar-se de
já tê-lo visto com outra identidade.
— Oh, não tem importância. Que pensem que Graden e Encrier sejam um
só.
— E quanto a ausência de sotaque francês?
— Os pais dele são franceses, porém Encrier foi criado na Inglaterra por
medida de segurança. Oh, será que vou ter que pensar em tudo sozinha?

Enquanto o dia da festa dos Holcroft não chegava, Vanessa e Tony


resolveram aceitar o convite de lady Parmiter para jantar. Para surpresa deles,
os Vonne também estavam presentes.
— Agora entendo por que lady Parmiter nos convidou — Vanessa
comentou com o marido. — Ela adora um escândalo e já preparou o campo de
batalha. Mas estou disposta a desapontá-la. Você consegue representar?
— Não tão bem quanto você, porém vou fazer o máximo.
Não passou despercebido a Vanessa o olhar cúmplice trocado entre lady

127
Parmiter e Win. Era como se os dois estivessem torcendo para que houvesse
uma cena, especialmente quando a anfitriã fez questão de colocar Vanessa ao
lado de Vonne e Tony junto a Madeleine. Com certeza a distribuição de lugares
fora feita de maneira deliberada e provocadora.
Em vez de se deixar intimidar ou mostrar-se embaraçada, Vanessa logo
iniciou uma conversa com lorde Vonne, para espanto dos outros convidados.
— Ouvi dizer que você adora esportes. Onde fica sua casa de campo?
— Wingham fica perto de Canterbury, não muito longe da costa.
— É uma região boa para cavalgar?
— Sim, embora não seja das melhores para a caça. Mantenho meus
pássaros lá.
— Faisões?
— Não, pombos.
— Lorde Vonne tem alguns dos pombos mais rápidos de todo o país —
Tony esclareceu para surpresa tanto de Vonne quanto de Vanessa. Lady
Parminter, então, estava à beira de um ataque de raiva diante de toda aquela
demonstração de cortesia e civilidade.
— Sei que pode parecer uma pergunta idiota, mas como é possível induzir
um pombo a apostar corrida com outro? — Vanessa perguntou, fazendo Vonne
rir com prazer e apressar-se a explicar.
— Os pássaros são todos soltos a uma certa distância e o momento da
chegada de cada um é cronometrado.
— E onde é que eles devem chegar?
— Aos seus respectivos pombais. Eles sempre voltam para casa. Por isto é
que tempo e distância são tão importantes.
— Suponho que não seja tão interessante quanto assistir a uma corrida de
cavalos, porém deve haver algum suspense na espera dos pássaros.
— Especialmente numa corrida envolvendo grandes distâncias, como
noventa ou cem quilômetros.
— Tanto assim?— Vanessa indagou polidamente.
— Os pombos podem voar distâncias ainda maiores, como cento e
cinqüenta, cento e sessenta quilômetros — Tony adiantou.
— Eu não sabia que você se interessava pelo assunto — Vonne comentou,

128
como se se dirigisse a um velho conhecido.
— Uma paixão recente.
— Estou planejando organizar uma corrida de cento e sessenta
quilômetros no ano que vem.
— É impressionante pensar que os pombos sempre voltam para casa —
Vanessa falou, brindando Vonne com seu melhor sorriso.
— Ainda assim, suponho que você continue preferindo corridas de cavalos.
— De fato seus pássaros possuem qualidades admiráveis, contudo o
espetáculo oferecido por uma corrida de cavalos é mais empolgante.
— Tenho tentado convencer Tony a colocar Satã contra meu garanhão
negro — Win falou.
— O nome é Cetim.
— Bem, o animal chamava-se Satã antes de você comprá-lo. Na sua
opinião, Satã teria alguma chance de vencer Raven, Vanessa?
— Se Tony o estiver montando, sim.
— Oh, não, vamos usar jóqueis para contrabalançar o peso.
— Win, sei que você não é um exímio cavaleiro, porém acho que nós
dois…
— Estarei muito ocupado recolhendo as apostas, primo. Não poderei
montar.
— Então não vai dar certo. Tony não seria capaz de deixar um rapazinho
montar em Cetim. Passaríamos horas procurando o corpo do menino.
Tony riu, observando as expressões de choque nos rostos das pessoas.
— Que história é essa, Vanessa? — indagou Win.
— Cetim tem alguns truques — Tony explicou. — Ele gosta de correr no
meio das árvores para tentar derrubar quem o monta. Garanto-lhe que as
cavalgadas ficam bastante dinâmicas.
— Fico pensando se você deveria manter um animal tão perigoso assim —
Madeleine o repreendeu.
— Mas não fui eu quem o comprou. Foi Vanessa.
— Você? — Vonne mal podia conter o espanto. — O que lhe deu na
cabeça?
— Trata-se de um cavalo excepcional — Vanessa assegurou. — Comprei-o

129
como um presente de casamento. Você já viu a linda égua que Tony me deu
de presente?
Finalmente o assunto envolveu todos os outros convidados e a conversa
girou em torno de cavalos durante o resto do jantar. Tudo transcorreu na
santa paz de Deus, para desespero de lady Parminter.
Vanessa estava admirando uma coleção de pinturas na sala de estar,
quando Vonne aproveitou a oportunidade para lhe falar a sós.
— Tem alguma coisa que você queira me dizer? — ela perguntou,
percebendo a irritação do outro.
— Tem uma única coisa que quero lhe dizer, madame, e é para segurar
seu marido com rédeas firmes.
— Mas eu acho que estamos atravessando a noite de maneira
incrivelmente positiva, considerando o fato de que nós quatro fomos
convidados apenas para que alguém se divertisse às nossas custas.
— Quem? Não Madeleine, embora ela seja íntima de lady Parminter.
— Se é assim, é melhor segurar sua mulher com rédeas firmes, senhor.
— Se eu descobrir que aqueles dois estão coniventes com esta situação…
— Caso você se lembre, Madeleine enrubesceu quando nos viu chegar.
Mesmo ela, com seu pendor para o melodrama, não seria capaz de fingir
embaraço ou sugerir meu nome para uma lista de convidados.
— Também tenho certeza de que não foi você.
— Não tenho dúvidas de que foi Winwood.
— O primo de Cairnbrooke?
— Sim. A princípio pensei que se tratava apenas de um homem tolo,
porém a cada dia que passa percebo que suas atitudes são sempre maliciosas.
— Eu já havia ouvido dizer que ele adora brincadeiras de mau gosto,
porém há um limite.
— Sim, e estou certa de que Win costuma usar as pessoas… Tony,
Madeleine, até mesmo lady Parminter. Observe como ele ainda está se
divertindo, embora lady Parminter já não me pareça tão à vontade.
— Mas Winwood não a usa.
— Porque não me conhece o suficiente. Se for necessário, abrirei os olhos
de Tony sobre o caráter verdadeiro do primo.

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Vonne fitou-a com respeito e admiração redobrados.
— Enquanto isto, você finge que gosta dele e até o recebe em casa.
— Sou muito boa em fingir que gosto das pessoas. Explica por que os
jantares de meu pai sempre foram um sucesso. Oh, não me olhe assim. Eu
realmente gostava da maioria dos amigos de meu pai.
— E quanto aos amigos de Tony?
— Em geral, são criaturas inofensivas. E bem mais divertidas do que
banqueiros e advogados.
— Você finge quando está comigo?
— Não. Na verdade nos entendemos melhor do que a maioria dos casais.
— Vanessa o fitou seriamente. — Temos pouco tempo para conversar e
quando o fazemos, nossa única preocupação é a mesma: preservar nossos
casamentos.
— Eu gostaria de tê-la encontrado antes de conhecer Madeleine.
— Mas não foi o que aconteceu. Você se apaixonou por ela e eu por Tony.
— E eles se apaixonaram um pelo outro. É como viver um inferno.
— Bobagem. Você está ficando tão melodramático quanto sua esposa.
Talvez Tony ainda não esteja apaixonado por mim, mas tampouco acho que
continue interessado em Madeleine.
— Você é uma otimista incurável. Se o deixássemos a sós, logo estariam
nos braços um do outro.
— Não acredito nisto nem por um segundo.
— Posso mandar vigiar Madeleine as vinte e quatro horas do dia, mas é
impossível você seguir os passos de seu marido.
— Tem que haver uma solução. Precisamos apenas descobrir qual é.
— Já pensei no assunto milhares de vezes. Em geral uma bala no ombro é
o bastante para desencorajar um homem.
— Você deve ser um exímio atirador para ter mantido a cabeça fria sob
aquelas condições.
— O sentimento de culpa de meu oponente conta como ponto a meu
favor. Por acaso seu marido lhe contou que ele atirou para o ar?
— Não. Tony nunca falou sobre o assunto.
— O que você está planejando fazer daqui para a frente?

131
— Pretendo conquistá-lo.
— Como?
— Não com a minha beleza.
— Por que você diz isso? — Vonne indagou, fitando-a com um olhar
francamente apreciativo.
— Comparada com Madeleine?
— Entendo. — Vonne reparou que a esposa estava sentada no sofá, entre
Winwood e um outro admirador. Tony encontrava-se bem mais distante, uma
expressão estranha no rosto.
— Madeleine é alguns anos mais velha do que Tony, não é?
— Sim, mas continua tão bela quanto no dia em que a conheci.
— Foi o que pensei.
— Lembre-se de nosso trato. Você tem menos de um mês para conquistar
seu marido ou terei que agir.
Vanessa assentiu. Embora tentasse odiar este homem, que poderia vir a
ser o carrasco de seu marido, não conseguia. Nunca em sua vida encontrara
um espírito tão torturado, exceto, talvez, Tony.
— Continuo desejando tê-la conhecido antes de Madeleine — Vonne
repetiu muito sério.
— Então o senhor teria que começar a me cortejar desde o berço. Afinal,
se não estou enganada, você tem idade para ser meu pai.
— Talvez eu seja seu pai.
Vanessa riu com prazer, no que foi prontamente acompanhada por Vonne.
Tony os fitava sem esconder a irritação, enquanto Madeleine parecia em
estado de choque. Nunca em sua vida, ela experimentara o gosto do ciúme e
agora não sabia o que fazer para arrancar aquela sensação horrível de dentro
do peito.
O resto da noite foi passado no salão de jogos. Lady Parminter fez
questão de arranjar as duplas para o carteado e não hesitou em colocar Tony e
Madeleine jogando contra Vonne e Vanessa. Embora Tony fosse um jogador
excepcional, não havia muito o que pudesse fazer, já que Madeleine
simplesmente parecia incapaz de raciocinar. Entretanto quando ele e Vanessa
formaram uma parceria, tornaram-se invencíveis. Era como se um antecipasse

132
o pensamento do outro, tamanha a sintonia de suas mentes.
No caminho de volta para casa, Tony permaneceu em silêncio.
Acostumada àquelas mudanças súbitas de humor, Vanessa não disse nada.
Seu marido não era um homem fácil de ser entendido e talvez por isso a
interessasse tanto. Mas adorava um desafio e não iria abrir mão de sua
felicidade por nada deste mundo.

Ela se esqueceu de mandar Rayburn dizer que não estava em casa e viu-
se obrigada a receber Win. Pelo menos desta vez ele havia chegado depois do
café da manhã.
— Lady Parminter está se encontrando com Fautley.
— Contando com Fautley, já são quatro — Vanessa respondeu sem
levantar os olhos do papel. — Por mais que eu desgoste dela, não creio que
lady Parminter fosse capaz de manter quatro casos amorosos ao mesmo
tempo. Se eu… se alguém escrevesse uma peça sobre o tema, ninguém iria
acreditar.
— As mulheres têm uma capacidade igual à dos homens. Por acaso você
não se pergunta aonde Tony vai todas as noite? — Win indagou, cheio de
malícia. — Pois deveria. Nenhuma mulher é tão ingênua a ponto de acreditar
que o marido passa noites inteiras divertindo-se inocentemente.
— E é da sua conta o que Tony faz a noite?
— Eu me interesso por você, Vanessa, muito mais do que Tony, o que,
aliás, é óbvio. Se ele se interessasse, passaria as noites em casa, fazendo-lhe
companhia, e não deitado na cama de Madeleine.
— Isto não é verdade!
— Então onde mais ele poderia estar?
— Não sei. Mas um dia saberei.
— Ou você é uma ingênua ou uma completa tola.
— E você um criador de problemas — ela retrucou levantando-se. — Eu
costumava pensar que você fofocava apenas sobre as outras pessoas, porém
agora estou certa de que fala muito mal de nós também. Provavelmente conta
mais mentiras a meu respeito do que posso imaginar.
— Com quem você andou conversando?

133
— Clive Falcrest. Ele me contou que você gosta de fazer apostas sobre
qualquer coisa.
— Tudo mundo age assim. E o que isto tem a ver com…
— Ele também me contou que você apostou na volta de Tony para
Madeleine.
— O homem devia estar bêbado.
— E estava, claro, ou não me teria dito a verdade.
— Bem, e se eu fiz essa aposta? Não vai ser difícil perder, do jeito que
Tony está indo.
— Pois então esse ganho serviria para compensar as outras perdas.
— Que perdas? — Win perguntou vagamente.
— Por exemplo, apostar que Tony venceria o duelo com Vonne.
— Foi Falcrest quem lhe contou?
— Sei que é verdade, ou William não teria tentado fazer o irmão calar-se.
— E se for verdade? Pelo menos apostei em Tony, não contra ele.
— Você não vê nada de errado neste tipo de comportamento? Nada
mesmo?
— Não, não vejo, e você não tem direito de me chamar a atenção. Você
não é minha mãe ou parente minha, portanto não tem o direito de me dizer
nada.
Tony entrou em casa naquele momento e atirou o chapéu sobre a mesa
do hall. Os sons de discussão vindos da biblioteca de Vanessa já não eram
novidade e ele sorriu enquanto caminhava até lá.
— Win, a única coisa que o salva de ser completamente mau intencionado
— Vanessa falou em alto e bom som —, é sua completa tolice.
— Tolo, eu? — Win devolveu no instante em que Tony abria a porta.
Vanessa foi a primeira a ver o marido e corou até a raiz dos cabelos.
— Olá, primo, nós não o ouvimos chegar — Win falou muito calmo.
— Não estou surpreso, considerando o barulho. — Tony serviu-se de uma
xícara de chá e sentou-se. — Por que Win é tolo?
— Porque ele aposta em tudo — Vanessa explodiu, tentada a contar ao
marido os boatos envolvendo o casamento dos dois.
Tony riu, como se o fato não tivesse a menor importância.

134
— Um homem entediado sempre faz apostas, seja sobre o tempo ou sobre
o desfecho da guerra, ou ainda se um velho será capaz de atravessar a rua
sem ajuda.
— Quer dizer que você não vê nada de errado com esse tipo de
comportamento? — Vanessa estava tão chocada que sentia dificuldade para
manter-se calma e controlada.
— É um passatempo inofensivo.
— Pois a mim me parece cruel e insensível.
— Talvez você esteja certa, minha querida.
— Não concorde comigo neste tom de voz! — Vanessa bateu com um livro
sobre a escrivaninha, levando Tony e Win a se entreolharem de maneira
conformada.
— Então você preferiria que eu discordasse?
— Sim, qualquer coisa seria melhor do que essa sua atitude
condescendente. Você diz “sim, querida” como se estivesse dando um tapinha
amigável na cabeça de uma criança, quando sei que, nem por um momento,
está me levando a sério.
Win continuou a rir, mas Tony ficou sério e fitou a esposa, percebendo
que fora exatamente assim que agira.
— Estou cansada de vocês dois.
Vanessa juntou a papelada com que estivera entretida e saiu da
biblioteca, procurando refúgio no silêncio de seu quarto. Para aliviar a raiva e a
sensação de impotência diante dos fatos, decidiu continuar escrevendo as falas
mais ridículas para Win dizer. Uma vez que pôde ouvir sua audiência
imaginária rindo dele, sentiu-se finalmente satisfeita e vingada. O único
problema era a estupidez de Win. Uma criatura com o cérebro do tamanho de
uma noz acabaria tendo dificuldades para se reconhecer no personagem
Dinwood.

135
Nove

Vanessa simplesmente não conseguia ficar zangada com Tony. Amava-o


demais para alimentar a raiva. Tampouco pensou em desculpar-se pela cena
na biblioteca. Na manhã seguinte, serviu-o de café em silêncio.
Ele aceitou a frieza com que estava sendo tratado de bom humor, pois
estava começando a se dar conta de que a esposa tinha razão. Embora
gostasse de Win, não podia negar que algumas de suas atitudes e brincadeiras
eram de extremo mau gosto.
— Diz aqui no jornal que a temporada do The Count é um sucesso e que o
público continua comparecendo em massa, apesar de diferentes atores já
terem se revezado no papel principal. Fico satisfeito que você esteja fora disso
— Tony falou sorrindo.
— Sim, eu também — ela respondeu sem perceber a indireta embutida no
comentário. — Você acha que precisamos nos encontrar com Win com tanta
freqüência assim? As vezes ele é uma chateação.
— Chateação maior do que Wentworth ou algum de seus outros
admiradores matinais?
— Sim, porque Win vem aqui diariamente.
— Só até que a temporada de bailes e festas termine. Então deverá ir a
Paris, visitar a mãe.
— Quer dizer que você não o convidou para passar alguns dias conosco
em Oak Park?
— Não. E não o farei, se você não quiser.
— Oh, por favor, não o convide!
Tony riu diante do empenho da esposa.
— Então está decidido. Win está fora de cogitação.
— Você acha que ele acabará aparecendo em Oak Park, mesmo sem ser
convidado?
— Não. Oak Park fica um tanto distante de Londres e meu primo é um tipo

136
preguiçoso. Além do mais, durante os meses de inverno, costuma ser muito
requisitado para animar festas chatas. Aliás, seria até difícil para Win arranjar
uns dias livres para nos visitar em Oak Park, caso o convidássemos.
— Ótimo. Mal posso esperar para sairmos um pouco de Londres.
— Por quê? Sente-se tão aborrecida assim?
— Esta cidade se tornou complicada. Uma mudança de ares só nos fará
bem.
— Você gostaria de cavalgar agora de manhã? Mas vou lhe avisar que
provavelmente pegaremos chuva.
— Não me importo.
Somente a chuva forte os fez deixar Hyde Park e voltar para casa. Ambos
pareciam felizes e relaxados, o desentendimento do dia anterior contornado.
Vanessa tirou o traje de equitação ensopado e tomou um banho quente.
Depois vestiu uma roupa confortável e sentou-se à escrivaninha. Estava
começando a perceber uma maneira de viver ao lado de Tony em relativa
harmonia. Apesar de não ser fácil, bastava continuar sufocando o amor que
sentia por ele, pelo menos durante algum tempo. Mas o sentimento era forte
demais e precisava ser extravasado de alguma forma. Quem sabe se sentiria
aliviada se colocasse no papel tudo aquilo que ansiava dizer a Tony? Uma
paixão tão ardente quanto a sua poderia soar estranha aos ouvidos de um
marido pouco receptivo. Entretanto necessitava falar com alguém, desabafar,
nem que sua única testemunha fosse uma anônima folha de papel.
Estava tão absorta em sua tarefa que assustou-se quando Rayburn veio
lhe comunicar que Travesian a aguardava lá embaixo. A visita do velho amigo
realmente era inesperada, a não ser que eleja houvesse encontrado tempo
para ler as primeiras cenas de Lady Tarmiter.
— Não me olhe assim — Travesian falou mal a viu entrar na biblioteca. —
Eu tinha que vir. Li as primeiras cenas e são absolutamente maravilhosas.
Suas anotações sobre os gestos e maneirismos dos personagens são tão
minuciosas que os atores de outras companhias, quando comparados aos
nossos, parecerão marionetes.
Vanessa sorriu diante do entusiasmo de Travesian.
— Você escreveu um personagem para mim… Lorde Tarmiter.

137
— Claro que sim.
— Josette é você, não é?
— De certa forma sim. Mas não espere que eu vá interpretá-la. Você
conhece alguma atriz indicada para o papel?
— Temos nove meses para encontrar a pessoa certa. Brel será Fabrel, isto
é óbvio.
— E quem fará Dinwood? Alguém tolo o suficiente para ser convincente
talvez seja estúpido demais para memorizar as falas.
— Você não tem o primo de Tony em alta consideração, não é? Ainda bem
que o rapaz faz parte da família, ou acabaria tendo problemas comigo. Quando
a peça estará terminada?
— Provavelmente antes que eu vá passar uma temporada em Oak Park.
Quero colocar tudo no papel enquanto as cenas estão frescas na minha
cabeça.
— Diga-me uma coisa. Fabrel é Tony, não é?
— Sim. Você acha que ele se reconhecerá? — Vanessa indagou pensativa.
— É difícil dizer. Seu marido é muito mais perspicaz do que julguei a
princípio.
— Eu também tenho mudado minha opinião a respeito de Tony. Ainda
assim, continuo esperando demais dele. Afinal, é apenas um homem e como
tal não pode entender realmente as mulheres.
— Sou homem e entendo as mulheres.
— Você acha que sim e ninguém nunca o contradisse. Mas basta ver a
freqüência com que discordamos a respeito de vários assuntos.
— Você não pode presumir que todos os homens sejam estúpidos.
— Não, claro que não. Vamos apenas dizer que muitas vezes eles são
incapazes de perceber o óbvio.
— O que você está querendo dizer com isto?
— Diga-me como a peça terminará, se se julga um homem esperto e
inteligente.
— Terá um final feliz, claro. Aposto que lorde Tarmiter descobrirá as
malvadezas da mulher e a banirá para a casa de campo. Josette e Fabrel
perceberão que Dinwood vem mentindo para ambos há tempos e se

138
reconciliarão.
— Não, não será tão simples e fácil assim. Fabrel terá que fazer algo
inesperado.
— Dar um fim em Dinwood, claro.
— Sim, porém ele precisará compreender as necessidades de Josette. Só
assim a terá de volta.
— Então ele lhe jurará amor eterno. — Travesian ajoelhou-se e beijou a
mão de Vanessa, num gesto teatral.
— Não é suficiente.
— O que mais é necessário?
— Até que você seja capaz de responder a esta pergunta, não pode ser
considerado um homem que entende as mulheres.
— Não me deixe em suspense. O que é?
— Acho que vou deixá-lo em suspense. Vai ser interessante ver se você
consegue adivinhar.
— Jóias, um colar de diamantes?
— Por favor! Agora preciso trabalhar. Vejo você outro dia.
Observando Vanessa afastar-se, Travesian concluiu que se a
compreendesse, também seria capaz de resolver a charada de Josette.

— Olá, Tony, você está procurando o pote de tinta? — Vanessa indagou ao


descobrir o marido debruçado sobre sua escrivaninha.
— Na verdade sim, mas acabei descobrindo outras coisas no lugar.
— O quê?
— Poemas… Poemas de amor.
— Oh, isto. Eu lhe disse que…
— Quem os escreveu? Travesian?
— Travesian? Claro que não.
— Vonne, então? Me diga. Talvez Wentworth. Aquele rapaz está sempre
atrás de você e ele é poeta.
— Wentworth está escrevendo uma peça. Algo bem diferente de poesias.
Qual é o problema com você? — Vanessa não conseguia entender por que
Tony se mostrava tão alterado com os versos que ela mesma escrevera.

139
Suas mãos, cruzadas, imóveis, me fascinam e
atraem com uma força inesgotável,
De repente ganham vida. Escrevem. Gesticulam.
Seguram as rédeas de um cavalo;
Às vezes se estendem para mim, mas apenas num
gesto de polida indiferença,
Nunca com a ansiedade com que as minhas
buscam uma carícia esquecida.

— Que asneira é esta? — Tony indagou descontrolado.


— Não é asneira! — Vanessa respondeu, tentando pegar os papéis de
volta.
— Wentworth costuma ler estes versos para você quando se encontram
secretamente?
— Ele não lê verso algum e tampouco nos encontramos secretamente.
Apenas tomamos chá aqui, durante a tarde.
— E você acha que faz alguma diferença a que hora do dia Wentworth lhe
faz declarações de amor?
— Mas ele não fala de amor. É apenas um rapaz tolo.
— Suponho que você se sinta envaidecida ao ouvir tantas palavras
bonitas.
— Quando não se está acostumada…
— Não espere coisas do gênero vindas de mim. Não sou um poeta. Vou
lhe mostrar o que penso de Wentworth. — Tony rasgou os papéis ao meio.
— Estes versos não são de Wentworth.
— Então só podem ser de Encrier. Sim, faz sentido.
— Encrier sequer… — Ao perceber que Tony não estava apenas irritado,
mas também morto de ciúmes, Vanessa achou que não era hora de confessar
a verdadeira identidade de Encrier. A revelação serviria apenas para deixá-lo
fora de si.
— Sim, foi Encrier quem os escreveu — ela admitiu corando.
Imediatamente Tony colocou os papéis sobre a chama de uma vela,

140
ansioso para vê-los queimar.
— Não, não faça isto — Vanessa pediu, arrancando os papéis das mãos do
marido, arriscando-se a queimar os dedos.
— Você o ama tanto assim que não se importaria de queimar as mãos
para ter os versos de volta?
— Estes versos são tudo o que eu tenho.
Tony saiu da biblioteca sem dizer mais uma palavra. Sentia-se derrotado.
Sua esposa havia deixado de amá-lo, cansada de aturar a farsa que o
casamento dos dois se tornara.
Entretanto bastava olhar para dentro de si mesmo para perceber que
nada do que vivera antes importava. Seu envolvimento com Madeleine, por
exemplo, parecia-lhe ridículo e sem sentido. Madeleine era uma pálida figura
de mulher, comparada à paciência, à constância e a força de Vanessa. Sua
esposa era seu maior tesouro. Será que a tinha perdido para sempre?
Como Vanessa podia compreendê-lo tão bem quando ele não conseguia
ler o que se passava na alma feminina?

No dia seguinte, o café da manhã foi uma refeição ainda mais silenciosa
do que de costume. Lady Amanda bem que tentou manter a naturalidade,
porém suas tentativas de iniciar uma conversa serviram apenas para piorar a
situação.
— Você queimou os dedos, minha filha?
— Não foi nada — Vanessa murmurou.
— Mas ela conseguiu salvar os poemas — Tony retrucou irritado.
— Que história é esta?
— Aquele autor francês de peças teatrais está mandando poemas de amor
para minha esposa e provavelmente fazendo declarações por trás das minhas
costas.
— Qual o problema? — lady Amanda indagou muito séria. — Alguém
deveria estar enviando versos a Vanessa sim, e flores também.
— Trata-se de minha esposa e não vou tolerar isto.
— Não fale de mim como se eu não estivesse presente, como se eu fosse
uma coisa e não uma pessoa.

141
— Muito bem, você é minha esposa!
— E você um idiota! — Vanessa levantou-se da mesa e correu para o
quarto, sem se importar com a xícara de chá derramada sobre a toalha de
renda.
— O que ela quer de mim? — Tony perguntou à mãe.
— Com certeza não quer discursos bonitos, mas uma palavra carinhosa de
vez em quando faria toda a diferença do mundo.
— Você sempre toma o lado de Vanessa.
— Observo vocês dois irem tomando o mesmo caminho que seu pai e eu
percorremos anos atrás e me entristeço. Pelo menos Vanessa me ouve, dá
atenção aos meus conselhos. Mas ela nada pode fazer sobre certas coisas.
Para este casamento ser salvo você deve parar de se encontrar com
Madeleine.
— Eu não estou me encontrando com Madeleine! — Tony gritou tão alto
que os empregados todos ouviram.
— Exatamente como seu pai, sempre gritando. Ninguém gosta disso.
Ele saiu de casa enfurecido.

Essa história de correr para o quarto em prantos era muito cansativa.


Vanessa não estava acostumada a comportar-se como manteiga derretida.
Portanto obrigou-se a descer para a biblioteca e escrever uma carta divertida a
sir Timothy. Quando estava quase terminando, Rayburn a informou de que as
senhoras Falcrest e lady Weir haviam acabado de chegar para uma visita e que
lady Amanda pedia que fosse depressa lhes fazer companhia na sala de estar,
onde o chá seria servido.
— Vanessa, querida, você me parece cansada — Victoria exclamou.
— Não, ela andou chorando — Marissa interveio. — Basta ver estes olhos
vermelhos.
— Não foi nada de importante — Vanessa desconversou. — Sobre o que
vocês estavam falando tão animadas?
— Acho que sabemos quem é Encrier! — Marissa mal podia conter a
excitação.
— Como assim? Encrier é Encrier.

142
— O que Marissa está querendo dizer é que o viu, perto do Atenas —
explicou Elizabeth.
— Vanessa, você já o viu? — quis saber Marissa.
— Sim, claro. E o que há de tão surpreendente no fato?
— Você deve ser a única pessoa em Londres que pode se gabar de
conhecer Encrier. Descreva-o para nós.
— Quanta bobagem em torno deste escritor — lady Victoria falou. —
Duvido que consigam convencê-lo a aceitar o convite para o baile de
máscaras.
— Ele tem estatura mediana, é bonito, possui cabelos castanhos e olhos
da mesma cor, acho — Vanessa respondeu, tentando lembrar-se com exatidão
do rosto de Graden. — Talvez eu esteja enganada, afinal a iluminação do
teatro é sempre deficiente.
— Mas como é ele? — insistiu Elizabeth.
— Educado e nada arrogante. Muito mais observador do que parece.
— O sr Cairnbrooke — anunciou Rayburn com aquele tom desanimado que
sempre reservava para Winwood.
Acostumado a dominar a conversação, Win hesitou ao ver tantas mulheres
reunidas. Infelizmente teria que disputar a atenção de Vanessa com as
Falcrest.
— Você está atrasado hoje, Win — lady Amanda comentou.
— Eu tive um ou dois…
— Não repreenda o rapaz, Amanda — Marissa apressou-se a dizer. — Há
dias em que ele demora um pouco mais para estar a par de todas as fofocas.
Ou talvez então não haja novidade alguma hoje.
Elizabeth procurava segurar o riso enquanto perguntava:
— Onde você fica sabendo de tantas coisas, Winwood?
— Nos clubes que freqüento.
— Eu devia imaginar — murmurou Marissa. — Sempre achei que os
homens são mais fofoqueiros que as mulheres.
— E que os homens sabem mais a respeito de tudo.
— Se é assim, você deve saber onde Encrier mora.
— Quem?

143
— Encrier, o escritor — explicou Elizabeth. — Com certeza você assistiu o
The Count.
— Claro que sim. Por que eu iria me preocupar com o lugar onde o autor
vive?
— Todo mundo quer saber quem é Encrier, qual é a sua história.
— Bem, pois eu não.
— Vanessa, se você descobrir o endereço de Encrier, por favor me avise
— pediu Marissa. — Quero convidá-lo para o baile de máscaras. Tenho certeza
de que a festa será um sucesso se o misterioso escritor comparecer.
— Por que você não manda o convite para o teatro, aos cuidados de
Travesian? Ele se encarregará de fazer o convite chegar às mãos de Encrier.
— Onde foi que você conheceu este tal de Encrier? — Win perguntou a
Vanessa. — Não, não precisa nem me dizer. Tenho certeza de que foi no
maldito teatro. Com certeza Travesian se encarregou de apresentá-la.
— Encrier está trabalhando numa nova peça e um dos personagens
chama-se Dinwood — Vanessa falou. — Não consigo imaginar onde Encrier
possa tê-lo conhecido Win, mas devo avisá-lo de que é bom preparar-se para
ser satirizado.
— Ele não se atreveria!
Todos riram com vontade e Win aproveitou para despedir-se, lembrando-
se, repentinamente, de um compromisso inadiável.

No dia seguinte, enquanto realizava um trabalho de pesquisa para a nova


peça, Vanessa recebeu a visita inesperada de Win, que entrou na biblioteca
sem sequer ser anunciado.
— Bom dia, Win.
— É boa tarde. Você está fazendo alguma coisa?
— Bem, o que lhe parece? — Vanessa indagou guardando um volume de
Diderot e descendo a escada.
— Quero dizer, você está fazendo algo importante?
— Sim, estou. O que você quer? — Ela sentou-se e obrigou-se a dar um
pouco de atenção ao primo do marido.
— Quão característico de você, Vanessa querida. Ficar em casa

144
calmamente, lendo um bom livro, enquanto Tony se diverte fazendo amor com
Madeleine.
— Ele não está fazendo nada disso e você prova não ser amigo de Tony
mentindo desta maneira.
— Não estou mentindo.
— Como você mesmo disse, estamos no meio da tarde. E impossível que
meu marido esteja na companhia de Madeleine agora.
— Eu estava me referindo à maneira como ele passa as noites.
— Se é assim, por que usou a palavra “agora”?
— Será que eu vou ter que falar a verdade com todas as letras? Seu
marido está obrigando-a a fazer papel de tola.
— O único tolo aqui é você.
— Como é que pode falar comigo dessa maneira quando minhas intenções
ao lhe abrir os olhos são as melhores?
— Então por que está tentando me jogar contra meu marido? Você não
ganha nada com o fato, exceto…
— Você devia saber o que as pessoas estão dizendo às suas costas.
— Provavelmente apenas aquilo que você meteu dentro da cabeça delas.
Você não pode fazer com que uma coisa seja verdade apenas porque deseja
que seja assim.
— Vanessa, eu lhe quero bem. Muito mais do que pode imaginar.
— Exceto que se Tony e eu nos separarmos, não haverá nenhum herdeiro
e você acabará herdando o patrimônio dos Caimbrooke — ela murmurou quase
que para si mesma.
— Aquela montanha de dívidas?
— Talvez já não seja uma montanha. Sabe, acho que sei no que Tony
anda metido. — Vanessa tornou a subir a escada, à procura do segundo
volume de Diderot.
— Querida, eu a quero demais — Win falou apaixonadamente, segurando-
a pelas pernas e ameaçando o frágil equilíbrio da escada.
Sem hesitar um segundo, Vanessa atirou o livro na cabeça de Win,
fazendo-o cair de joelhos no chão. Então aproveitou o breve instante de
confusão para descer da escada e afastar-se.

145
— Por que você me atingiu? — Win indagou petulante.
— Por que você se sentiu no direito de me assediar? Por acaso pensou que
eu seria um alvo fácil para as suas investidas?
— Tony não a quer.
— Mas tampouco quer ver minha reputação arruinada.
— Ele me deu licença para tomar conta de você.
— O que não significa lhe dar licença para tentar me seduzir. Suas
intenções eram apenas destruir meu casamento ou fazer com que eu gere um
filho seu? Afinal qualquer uma dessas duas alternativas serviria para o seu
propósito, pois até o momento, você é o herdeiro de Tony. — Vanessa não
sabia se a palidez de Win era devida à inocência do rapaz ou ao fato de ter
sido desmascarado. — Talvez eu esteja enganada — ela continuou —, mas
acho que foi você quem envolveu Charlie com os agiotas, arruinando-o.
— Nunca tive más intenções.
— Talvez não, porém as conseqüências de seus atos foram terríveis.
— Suponho que de agora em diante você não vai querer me ver mais.
— E deixar Tony descobrir que o primo gosta de apunhalar pelas costas?
— Dificilmente faremos companhia um ao outro daqui para a frente.
— Bobagem. Sua companhia pode ser bastante divertida. Simplesmente
não confio em você.
— Nunca conheci uma mulher com tanto sangue-frio.
— Sangue-frio? — Tony indagou entrando na biblioteca. — O que Vanessa
fez agora?
— Deixei cair um livro na cabeça de Win — ela apressou-se a dizer. —
Quase o matei. Por que você não procura Marie, Win querido? Ela é ótima para
tratar de ferimentos.
— Prefiro que meu criado cuide do galo na minha cabeça.
— Sua biblioteca é um lugar perigoso — Tony falou tão logo o primo saiu.
— Você nem imagina o quanto.

146
Dez

Depois daquela demonstração de ciúmes do marido, Vanessa decidiu


continuar com o plano de colocá-lo frente a frente com Encrier. Assim aceitou
o convite para a festa dos Holcroft, no sábado seguinte.
— Será que Win não pode levá-la? — Tony indagou ao saber do interesse
da esposa pela tal festa. — Aposto que ele não tem nada melhor para fazer.
— Acho que você deveria ir, filho — lady Amanda o aconselhou. —
Vanessa sequer conhece a maioria das pessoas que estarão lá.
— Tampouco eu conheço. Os convidados dos Holcroft costumam ser
intelectuais ou gente ligada ao meio acadêmico.
— Então é isto. Não creio que Win tenha sido convidado — Vanessa falou,
satisfeita por haver encontrado uma desculpa para excluir Win.
— Como é que você sabe? Meu primo é convidado para tudo.
— Ele sempre me fala sobre os convites que recebe e não mencionou a
festa dos Holcroft. Além do mais, não é convidado para tudo.
— Win talvez seja um tanto relapso em assumir responsabilidades, mas é
um membro destacado da sociedade. As pessoas gostam de estar perto dele.
— Porque sabem que ficarão a par das últimas novidades.
— Como assim?
— Seu primo é um fofoqueiro, Tony. Charmoso, talvez, porém dono de
uma língua afiada e maliciosa.
— Talvez. Entretanto ele ficou ao meu lado quando precisei.
— Será mesmo?
— Sim. Jamais duvide disso. Então, quando será a festa dos Holcroft?
— Sábado, às oito horas da noite.

Vanessa vestiu-se com extremo cuidado para a ocasião. O vestido


prateado de mangas compridas e decote acentuado marcava cada curva do
corpo bem feito, como se quisesse desnudá-lo em vez de cobri-lo. Como

147
únicos enfeites, apenas colar e brincos de pérolas.
Lady Amanda levou um verdadeiro choque ao ver a nora.
— Querida! Não é possível que você pretenda sair com esta roupa!
— Pretendo, sim.
— Se você fosse minha filha, eu não permitiria que aparecesse em público
vestida dessa maneira. Jamais interferi na sua vida antes, mas esta roupa…!
— Você acha que conseguirei chamar a atenção de Tony?
— Esteja certa de que chamará a atenção de todos os presentes,
especialmente dos homens. Tony ficará uma fera.
— Espero que sim. Odeio pensar que me arrumei com especial cuidado
para nada.
— Mas você está revelando coisas que somente um marido deveria ver.
— Então Tony verá mais de mim do que já viu até agora.
— Oh, quer dizer que aquele assunto continua na mesma?
— Sim.
— Bem, se você conseguir fazê-lo sentir ciúmes, as chances de conquistá-
lo também aumentam.
Ao ouvir o marido chamá-la, Vanessa atirou a capa sobre os ombros e
desceu as escadas, torcendo para que seu plano desse certo.
Ao chegarem à casa dos Holcroft, Tony ajudou a esposa a tirar a capa e
mal conseguiu sufocar um murmúrio de surpresa. Há tempos tinha consciência
de que Vanessa possuía um corpo bonito, porém ela nunca lhe parecera tão
sensual ou desejável. E pelo visto ele não era o único a pensar assim. Bastava
reparar como lorde Holcroft a examinava da cabeça aos pés enquanto lhes
davam as boas vindas.
— Preciso falar com você — Tony sussurrou mal se afastaram dos
anfitriões.
— Agora não.
— Agora sim! Este vestido é uma vergonha!
— Bobagem! Tem o mesmo estilo das roupas das outras convidadas e não
chega a ser tão revelador quanto a de Madeleine.
Tony olhou ao redor e foi forçado a admitir que Vanessa tinha razão.
Ainda assim não conseguia aceitá-la expondo-se aos olhares masculinos.

148
— É melhor você ir para casa e trocar de roupa. Espero-a aqui.
— E deixá-lo sozinho numa festa em que Madeleine Vonne está presente?
De jeito nenhum!
— Por quanto tempo mais você pretende usar aquele velho escândalo para
conseguir o que quer?
— Até que você pare de vê-la. A decisão não é minha.
Desvencilhando-se da mão do marido que insistia em segurá-la pelo
cotovelo, Vanessa foi ao encontro de Graden, um sorriso radiante iluminando o
rosto bonito.
Tony não teve outra alternativa a não ser segui-la. Ela apresentou Graden
como sendo Encrier, ansiosa para observar a reação do marido. Entretanto
Tony manteve-se impassível e até elogiou, embora sem muito
entusiasmo, a montagem de The Count. Olhando de um para o outro, Vanessa
começou a perceber qual era a falha de seu plano.
Até conhecer Tony, sempre julgara todos os homens mais ou menos
iguais. Porém seu marido era um tipo extremamente seguro de si mesmo e
com certeza não se sentia ameaçado com facilidade. Sem dúvida a figura de
“Encrier” não o impressionara. Disposta a levar o plano adiante, apesar das
possíveis dificuldades, Vanessa ignorou Tony e deixou-se conduzir por Graden
até junto de Marissa, que recebeu-a com efusivas demonstrações de afeto.
Ao perceber a presença de Travesian do outro lado do salão, Tony foi ao
seu encontro.
— Eu deveria imaginar que você estaria aqui. Pelo menos minha esposa se
divertirá na companhia de intelectuais e dessa gente de teatro.
— Eu o vi no Atenas, na semana passada. Aparentemente você aprecia
mais o trabalho de Encrier do que a própria personalidade do homem.
— Ele me parece um rapazinho imberbe. É difícil levar alguém tão jovem a
sério.
— É justamente por ser tão jovem que ele impressiona tanto. Os anos
servirão apenas para torná-lo ainda melhor como autor. Posso entender por
que Vanessa o admira.
— Falando em minha mulher, eu gostaria de saber qual é, exatamente, o
relacionamento de vocês dois.

149
— Diria que é único, ou era. Não nos vemos com a mesma freqüência de
antes.
— Isto não é resposta. Ela já esteve apaixonada por você?
— Talvez pelo meu Petrucchio, talvez pelo meu Macbeth, mas não, não
por mim, por Travesian. Ela mal passava de uma menina e estava apaixonada
pelo amor, pelo romance, pelo que se passava no palco. Você devia ver como
os olhos de Vanessa brilhavam a cada nova representação.
— Ela não pertence ao mundo do teatro. Eu me oporia a qualquer
tentativa de arrastá-la de volta àquele tipo de vida depois de termos tido tanto
trabalho para torná-la aceita pela alta sociedade.
— Então me diga qual é a diferença entre estes dois mundos, meu lorde.
Pelo menos o que se vê no palco é drama de boa qualidade. O que se vê nesta
sala tampouco é real. Toda esta gente está representando, dizendo frases ocas
e sem sentido, fingindo parecer o que não são. Você a trouxe para o mundo
real, onde existe menos verdade, menos nobreza e menos amor.
— Não preciso que você me ensine como tomar conta de Vanessa.
— Você me perguntou o que significávamos um para o outro. Eu a amo,
mas não da maneira que você deveria. Talvez eu seja apenas um mentor.
— E o que você a ensinou a ela?
— A procurar a perfeição, a não aceitar nada a não ser a forma mais pura
do amor. Você pretende fazê-la esquecer meus ensinamentos?
— Não! — Tony respondeu irritado. — Mas também espero que você lhe
tenha ensinado paciência. Posso dar tudo a Vanessa, mas não agora, não
neste momento.
— Não faria mal se ela soubesse disso.
— Vanessa sabe que eu a amo.
— Não, não sabe.
— Este lugar pode ser falso, como você diz. Então por que aceitou o
convite dos Holcroft?
— Olhe ao redor. Este é o lugar onde o dinheiro está.
— Isto, pelo menos, é verdade. — Tony pediu licença e dirigiu-se para o
salão de jogos.
Vanessa e Graden estavam se portando da maneira mais convincente

150
possível. Um não saía de perto do outro, embora a conversa entre os dois
fosse a mais inocente do mundo.
— Tony já deixou o salão de jogos? — Vanessa indagou, notando a
presença de Travesian.
— Apenas uma vez. Parecia querer matá-la com o olhar.
— Oh, ótimo. Ele vai ouvir comentários durante dias a fio.
— Você acha que foi mesmo uma boa idéia? — Graden perguntou. — De
certa forma não me parece justo.
— O amor raramente é justo — Travesian citou Lady Mellefleur.
— Realmente, Travesian, você não pode me enganar com uma de minhas
próprias frases. Me incomoda um pouco manipular Tony, mas meu tempo é
curto.
— Como assim? Você está enfrentando algum tipo de pressão?
— Eu não deveria ter dito nada.
— Vamos, menina, pode confiar em nós. Aliás, já nos confiou sua
reputação.
— O problema é lorde Vonne. Ele jurou matar Tony se eu não o mantiver
longe de Madeleine.
— O homem estava falando sério? — Graden indagou surpreso.
— Creio que sim. De qualquer forma não precisam se preocupar. Sei lidar
com Vonne. A propósito, você já leu as primeiras cenas de minha nova peça,
Graden?
— Ainda não. Qual é título?
— Lady Tarmiter — Travesian respondeu. — Soa quase igual a Parmiter.
Aposto que não se trata de mera coincidência. Teremos uma sátira. E sátiras
costumam arrastar multidões ao teatro.
— De fato resolvi mudar o título para A Esposa de Lorde Tarmiter, como…
— Como se ela não fosse uma verdadeira dama — ofereceu Graden.
Os três riram com prazer. Era difícil dizer pela expressão de Tony, que se
aproximava depressa, o que o desagradava mais naquela cena.
— Vim buscá-la, pois o jantar já vai ser servido. A menos que você tenha
outros planos.
Por um momento Vanessa sentiu-se tentada a dizer que seus planos para

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o jantar eram outros, porém achou melhor não pressionar Tony além do
razoável.
— Você pretende passar a noite inteira grudada no homem? — ele
indagou furioso, conduzindo-a até a sala de jantar.
— Não estou entendendo a sua irritação. Não posso fazer nada se o tempo
passou tão depressa. Encrier é divertido e culto.
— Para não dizer bonito e espirituoso.
— Oh, você acha? — Vanessa perguntou inocentemente.
— Quase compensa sua baixa estatura.
— Não o considero baixo.
— Você deveria ter se levantado depois de alguns minutos de conversa.
Seria a coisa mais educada a fazer. As pessoas acharão muito estranho você
ter monopolizado Encrier quase a noite toda.
— Não me importa o que as pessoas pensem. Provavelmente esta foi
minha única oportunidade de conversar com Encrier face a face. E não
pretendia desperdiçá-la.
— Estou surpreso que você não o tenha convidado para visitá-la em nossa
casa.
— Você deixou bem claro que meus amigos não são bem-vindos lá.
— Sinta-se à vontade para convidar quem quiser, desde que a pessoa não
cheire a teatro.
— Não sei por que a implicância, uma vez que você mesmo convive com
um ótimo ator, embora ele não ganhe a vida nos palcos.
— Quem é esta pessoa?
— Você conhece a identidade do fofoqueiro dissimulado.
— Acho melhor irmos para casa logo depois do jantar. O vinho lhe subiu à
cabeça.
— Mas não bebi nada.
— O vinho é a única desculpa para o seu comportamento devasso.
— Devasso? — Vanessa fitou o marido de maneira tão desafiadora que
Tony não disse mais nada.
Quem era ele para dar lições de moral à esposa quando fizera as coisas
mais estúpidas meses atrás? Ainda agora deixava-a acreditar que continuava a

152
ter um caso com Madeleine. Nada mais distante da verdade.

Sem se dar ao trabalho de bater na porta, Tony entrou no quarto da


esposa. Uma outra mulher estaria penteando os belos cabelos, ou apreciando
as jóias que usara horas antes ou admirando o próprio rosto no espelho.
Vanessa, entretanto, estava sentada à escrivaninha, as longas tranças caídas
sobre o papel.
— Outra carta? — Tony perguntou.
— Para lorde Morisee. Você quer ler?
— Não. — Ele corou ao lembrar-se dos poemas. — Tenho certeza de que é
uma carta interessante. Se você está ocupada, acho melhor me retirar.
— Não estou ocupada! O que você quer?
— Nós nos casamos em circunstâncias difíceis, num período
extremamente penoso para mim. Sentia-me atordoado. Se eu tivesse um
pouco de bom senso… Qual é o problema?
— Você não teria se casado comigo — Vanessa concluiu, as lágrimas
correndo livres pelo rosto.
— Não, claro que não. Isto é, sim, eu teria me casado com você. — Num
impulso, ele tomou-a nos braços e abraçou-a com força. — Jamais quis
magoá-la e nunca me arrependi de ter me casado com você a não ser uma ou
duas vezes — Tony falou, lembrando-se da noite terrível que acabara de
passar.
— Mas você não me ama.
— Sim, eu te amo. Só que ainda não posso amá-la da maneira que você
quer. Além do título, você obteve muito pouco deste casamento.
— Mas eu nunca quis um título.
— Não? Então por que concordou em se casar comigo?
— Ah, você não se lembra, não é? Eu lhe disse por que, naquela noite que
você chegou bêbado em Oak Park.
— Se me lembro bem, estive bêbado durante todo o período que
passamos em Oak Park.
— Aceitei o pedido de casamento porque gostei de você e percebi que não
havia espaço para mentiras no seu caráter. Você não tentou me enganar.

153
Achei que com o tempo acabaríamos vindo a nos amar.
— Outros já mentiram para você?
— Todos eles. Apenas queriam…
— Sim, eu sei, o seu dinheiro — Tony falou amargo.
— Não meu. O dinheiro de meu pai.
— Se você soubesse o trato que meu pai fez com o seu, ficaria chocada.
— Mas eu sei. Meu pai sempre discutia esses assuntos comigo.
Tony afastou-se no mesmo instante.
— Ouça, por favor, não tem importância — ela suplicou.
— Tem importância para mim. Não se pode comprar amor. Você pode até
ter me comprado, mas não me possui. Lembre-se disto.
Ele saiu batendo a porta. Ambos passaram a noite em claro, cada qual
dominado pelo medo de perder o outro e sem saber o que fazer para consertar
o estrago.

No dia seguinte Tony não desceu para o café da manhã. Vanessa sentiu-
se rejeitada, pois o marido deixara claro que não pretendia levá-la para a
cavalgada matinal.
Oh, Deus, por que não podiam ser pobres como Elizabeth e Jason, com
nada a impedi-los de se entregarem ao amor? Por que tudo tinha que ser tão
difícil?
Instintivamente, como sempre fazia ao sentir-se confusa e angustiada, ela
jogou alguns vestidos numa valise e preparou-se para ir para casa, a fazenda
onde passara os melhores anos de sua infância.
— Para onde você vai? — Marie perguntou, entrando no quarto.
— Para a fazenda, por alguns dias. Vou alugar um coche, assim apenas
Chadwick precisará me acompanhar. Acho que você deve ficar aqui, caso
Armand necessite de sua ajuda com o figurino da peça.
— Mas o que eu vou dizer a ele? Ao meu marido?
— Pretendo falar com lady Amanda antes de partir. Ela saberá lidar com
Tony.
Bastou lady Amanda fitar os olhos vermelhos da nora para perceber que
algo muito sério acontecera.

154
— Vou passar alguns dias na fazenda de meu pai. Preciso respirar, me
afastar de Tony um pouco.
— Entendo. O que você está planejando fazer lá?
— Nada de especial, exceto caminhar e descansar à sombra das
macieiras.
Ao sentar-se à mesa do jantar, naquela noite, Tony deparou-se somente
com lady Amanda e Win.
— Onde está Vanessa? — indagou à mãe.
— Ela saiu. — A voz de lady Amanda soava triste, embora sem qualquer
traço de histeria.
— Saiu? Para onde?
— Sua esposa foi embora.
— Quer dizer que ela me deixou? — Furioso, Tony levantou-se.
— Não quero preocupá-lo, primo — Win intrometeu-se —, mas vi sua
esposa num coche, na companhia de um homem desconhecido.
— Não posso acreditar que Vanessa tenha me deixado sem me dizer uma
palavra sequer.
— Não creio que minha nora vá tomar alguma atitude definitiva, pelo
menos nos próximos dias.
— Você estava louca, mãe? Por que não a impediu de partir? E se alguma
coisa lhe acontecer?
— Eu não poderia tê-la segurado a força. Se não fosse por você e Charlie,
eu mesma teria abandonado seu pai. Por que você gritou com Vanessa ontem
à noite?
— Não gritei com ela!
— Era impossível não ouvir sua voz, ainda que as paredes sejam bastante
espessas.
— Win, Vanessa estava com alguma criada?
— Infelizmente não deu para ver.
— E quem era o homem?
— Também não sei. A única coisa que pude notar foram os cabelos
grisalhos.
— Seria Travesian? Ou Vonne?

155
— Não, nenhum dos dois. Quem sabe um dos atores do Atenas?
— É fácil descobrir. Basta checar qual deles desapareceu.
Tony saiu da sala e bateu a porta com força, fazendo as paredes
tremerem.
— Preste atenção no que vou lhe dizer, Win — lady Amanda começou,
uma expressão decidida no rosto. — Se você contar a alguém o que aconteceu
aqui esta noite, esteja certo de que levarei aos ouvidos de sua mãe o esforço
que Tony precisou fazer para salvá-lo daquela confusão em que você se meteu
em Bath.
— A senhora não teria coragem!
— Experimente. Portanto mantenha a boca fechada, ou pagará caro pela
indiscrição.
— Sim, tia Amanda.
Para a infelicidade de Brel, foi ele a primeira pessoa sobre quem Tony pôs
os olhos ao entrar no Atenas.
— Quero saber onde Vanessa está — Tony indagou sem preâmbulos, os
olhos faiscando de raiva.
— Não sei. Há dias não a vejo.
— Não acredito. Você está escondendo alguma coisa. — Furioso, ele
passou um braço ao redor do pescoço de Brel, pressionando-o de encontro a
parede. — Vamos, me responda!
— Talvez ele fosse capaz de responder se você não estivesse a beira de
sufocá-lo — Travesian sugeriu friamente.
Tony largou o rapaz e virou-se.
— Você viu Vanessa?
— Não, uma vez que você a proibiu de vir aqui.
— Algum de seus atores desapareceu do dia para a noite?
— Não, estão todos presentes. Por acaso você está me dizendo que não
sabe o paradeiro de Vanessa?
— Ela me abandonou. — Tony murmurou, sem tentar esconder a angústia
e o desespero.
— Abandonou-o? Impossível. Ela o ama.
— Vanessa me ama?

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— Como é que você pôde ser tão tolo a ponto de não perceber a verdade?
Então vocês brigaram?
— Não. Sim, ontem a noite. Mas Vanessa me deixou sem uma palavra
sequer. Oh, Deus!
— O que foi?
— Encrier. Aquele homem a seduziu!
— Acredite-me, você não tem nada a temer neste aspecto. Na minha
opinião, Vanessa decidiu passar alguns dias no campo.
— Oak Park?
— Onde? Não. Gott Farm, a fazenda do pai. Vou fazer um mapa e lhe
explicar como chegar lá. Tente dormir um pouco e parta amanhã de manhã,
porque é difícil encontrar a localização certa à noite, especialmente numa
viagem de quatro horas.
— Você acha que o sr. Barclay estará em Gott Farm?
— Não. E não é para ver o pai que Vanessa partiu para a fazenda.
— Por que então?
— Vá e descubra por si mesmo.
Para Tony, aquela foi sua segunda noite em claro. Embora tivesse aceito o
conselho de Travesian e decidido partir no dia seguinte, não conseguira deitar-
se. Imagens de Vanessa nos braços de outro ameaçavam consumi-lo num
desespero mudo. E se ela não estivesse lá? Não podia nem considerar essa
possibilidade.
Mal o dia clareou, ele já estava no estábulo, ordenando que seu cavalo
fosse selado. Sua angústia era tanta que sequer reparou na ausência de
Chadwick.
Depois de uma jornada tensa, Tony finalmente aproximou-se de Gott
Farm. Ao ouvir o barulho de cascos, Chadwick saiu da casa.
— Onde está ela? — Tony indagou ansioso.
— Provavelmente paparicando Casius e Ivy.
Ele seguiu para o pasto que Chadwick indicara. Uma mulher delicada
alimentava dois cavalos enquanto conversava com os animais.
— Mais maçãs? O senhor comeu todas, seu guloso. Rosas? Não, cavalos
não comem rosas.

157
Aliviado, Tony riu, fazendo a esposa virar-se na direção do som.
— Tony, como foi que você chegou aqui?
— Quero que volte para casa comigo — ele falou muito sério.
— Alguma coisa errada?
— Alguma coisa errada? Como acha que me senti sem saber para onde
você tinha ido ou se pretendia voltar?
— Mas com certeza lady Amanda sabia que eu pretendia voltar.
— Não, e nem para onde você havia ido. Para completar, Win ainda veio
me dizer que a viu partindo na companhia de um homem mais velho.
— Homem mais velho? Oh… Chadwick. Mas como foi que você me
descobriu aqui? — Vanessa indagou, tentando imaginar por que lady Amanda
preferira não contar sobre o seu paradeiro ao filho.
— Travesian. Por mais que ele me deteste, percebeu o quanto eu estava
desesperado.
— Sinto muito. Não quis lhe causar nenhum transtorno. Gott Farm é o
único lugar para onde costumo ir e presumi que ninguém se preocuparia. Claro
que eu pretendia voltar.
— Da próxima vez, não deixe de me avisar sobre seus planos de viagem.
— Você virá comigo?
— Se eu puder.
Mais uma meia promessa, Vanessa pensou. Entretanto melhor do que
nada.
— Você virá para casa comigo então? — Tony insistiu.
— Sim, mas seus cavalos devem estar cansados e você parece não ter
dormido ou comido há dias. Vamos entrar, deve estar na hora do almoço.
Eles almoçaram sozinhos, sem sequer o The Times como companhia.
— Fugir dos problemas não é uma característica sua — Tony falou afinal.
— Eu também não pensaria que você pudesse vir atrás de mim ou que
desse pela minha falta. Acabei descobrindo que de fato não o conheço.
— Você pode buscar refúgio aqui, porém é impossível voltar a ser a
criança despreocupada de anos atrás.
— Bem, tampouco posso continuar dessa maneira, casada sem estar
realmente casada.

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— Pensei que você não se importasse muito com isto… que eu teria
tempo.
— Faz um ano que seu irmão morreu e oito meses desde que seu pai se
foi. Está na hora de superar o sofrimento.
— Não é isto.
— O que é então?
— Não posso lhe dizer.
— Estou acostumada a viver sozinha, mas não a ser ignorada. Não posso
fazer nada se não sou Madeleine.
— E nem eu queria que fosse.
— O que você quer que eu seja?
— Nada.
— Nada? Como assim?
— Não quero nada diferente de você.
Vanessa baixou o olhar, sentindo-se mais só do que nunca, a sensação de
intimidade espatifando-se diante da rejeição.
Entretanto Tony tentara apenas dizer que não a queria diferente do que
era. Pena que fora interpretado de maneira errada.
— Vou para casa agora e quero que você venha comigo.
— E se eu decidir não voltar hoje? O que você fará?
— Nada, suponho, mas quero que voltemos para Londres juntos.
— Por quê? Para salvar o seu orgulho ou o meu? — Vanessa perguntou
baixinho.
— Você acha que alguém com o meu passado preocupa-se com orgulho
ou aparências? Não é por este motivo que estou lhe pedindo para me
acompanhar.
— Por que então? Você não me deseja. É óbvio.
— Mas eu a desejo mais do que tudo no mundo. É apenas muito cedo.

No caminho de volta, os dois permaneceram em silêncio durante um longo


tempo. Foi Vanessa quem tomou a iniciativa de puxar conversa.
— O que você estaria fazendo hoje se não tivesse vindo atrás de mim?
— Não sei. Jogando cartas talvez. — A resposta soou idiota até mesmo

159
aos ouvidos do próprio Tony.
— Você deve gostar de jogar.
— Não. E o que você estaria fazendo?
— Compras.
— Você gosta de fazer compras?
— Não. Detesto!
— Ambos estamos fazendo coisas de que não gostamos. Por que será que
tudo está sendo tão difícil?
— Não sei. Não sei o que eu esperava do casamento, mas não imaginei
que fosse complicado assim. As coisas me parecem banais, não são reais como
nas minhas… — Vanessa fez uma pausa, pensando nas peças que escrevia.
— Como no quê?
— Nos livros que costumo ler.
— Algum dia nossa vida em comum será real. Você tem que confiar em
mim. Um ano, preciso de mais um ano.
— Você me pede para confiar, quando nunca confiou em mim. Não é
justo.
— É tudo o que posso fazer agora.
— Por que não me conta qual é o problema? Talvez eu possa ajudá-lo.
— Não a quero envolvida nesta história. É melhor que não saiba. Acredite,
minha intenção é protegê-la.
— Não sou criança. Não preciso de proteção.
— Uma única coisa lhe asseguro: não tem nada a ver com Madeleine.
— Como podemos ser marido e mulher de verdade se guardamos
segredos um do outro?
— Me dê mais um pouco de tempo. Estou perto de resolver todos os meus
problemas. Tenha paciência comigo. Confie em mim. É tudo o que eu lhe peço.
— Está bem — ela falou afinal. — Vou confiar em você, porque não há
mais nada que eu possa fazer.

160
Onze

— Ei, você aí! Esta esquina é minha! — uma voz jovem e dura reclamou
às costas de Vanessa que, vestida com roupas masculinas já bem usadas,
postara-se diante da porta do clube de Tony.
— Como é? Sua esquina?
— Isso mesmo. Caso algum cavalheiro precise de um coche ou de uma
outra coisa qualquer… É meu trabalho.
— Estou apenas aguardando lorde Cairnbrooke.
— Empregado dele, hein?
— Na verdade sou criado da esposa dele. Lorde Cairnbrooke não sabe que
o estou seguindo. É que minha lady preocupa-se com a segurança do marido,
andando sozinho por estas ruas desertas, tarde da noite.
— Pois será uma longa espera. Lorde Cairnbrooke não costuma sair antes
de uma, duas horas da manhã. É um homem muito educado e sempre me dá
gorjeta, embora eu jamais tenha tido oportunidade de servi-lo.
Vanessa sentou-se num degrau de pedra, vencida pelo cansaço. Nunca
julgara-se capaz de adormecer num lugar daqueles, porém ser casada com
Tony era bem mais desgastante do que julgara a princípio. Entretanto qualquer
sacrifício valeria a pena para descobrir como o marido passava as noites. Já
não suportava imaginá-lo na cama com Madeleine Vonne.
— Ei, acorde. — O porteiro cutucou Vanessa devagar. — Ele está saindo
agora.
— Bom dia, Peter — Tony falou.
— Dia, senhor. A sorte o bafejou esta noite?
— Sim — respondeu lorde Cairnbrooke, dando uma moeda ao porteiro. —
Quem é seu amigo aí?
— Ele está apenas esperando alguém.
Tão logo o marido afastou-se alguns passos, Vanessa levantou-se e pôs-
se a segui-lo, tendo o cuidado de manter uma distância razoável para não

161
despertar suspeitas.
Tony atravessou Saint Jame’s Place e já contornava o parque quando
ouviu passos atrás de si. Porém ao virar-se para encarar quem o perseguia,
um vulto saiu do meio das sombras, bem à sua frente, empunhando um
pedaço de pau nas mãos.
— Cuidado, Tony! — Vanessa gritou desesperada. Imediatamente Tony
voltou-se para o agressor. Mas era tarde demais para evitar que um golpe
violento o atingisse no ombro esquerdo. Ele urrou de dor e agarrou-se ao
desconhecido, derrubando-o no chão. Gritando a plenos pulmões para chamar
a atenção de quem estivesse nas imediações, Vanessa correu ao encontro do
marido. A essas alturas, o atacante, em pânico com a chegada de uma terceira
pessoa, saiu em disparada.
— Que diabo você está fazendo aqui? — Tony indagou ao reconhecer a
esposa.
— Depois eu conto. Agora vamos para casa, por favor.
Os dois seguiram para Marsham Street em silêncio.
Mal entraram em casa, Marie veio encontrá-los e despejou uma torrente
de palavras em francês. A criada realmente estava a beira de um ataque de
nervos.
— Sim, tem razão — Vanessa concordou. — Ele está sangrando. Onde
você está ferido?
— Foi só uma pancada na cabeça — Tony respondeu dando-se conta, pela
primeira vez, de que não era suor e sim sangue o que lhe escorria pelo
colarinho da camisa.
— Vamos chamar o médico — Vanessa anunciou.
— Não preciso de médico algum — Tony falou petulante. — É um corte a
toa.
— Neste caso, não há o que preocupar. Mas o atacante o atingiu no ombro
esquerdo também, como se soubesse tratar-se de um ponto fraco, já ferido a
bala.
— Talvez o homem estivesse tentando me atingir no queixo. — Ele
relutava admitir que a agressão fora um pouco estranha, especialmente por ter
acontecido tão perto de casa, como se o marginal estivesse de tocaia. — A

162
propósito, você ainda não respondeu minha pergunta. O que estava fazendo
na rua, àquela hora da noite?
— Seguindo-o, claro.
— Me seguindo? Por quê?
— Você deveria saber. Agora fique quieto, vou limpar o corte da sua
cabeça e colocar anti-séptico.
— Não é preciso. O que está doendo de verdade é o ombro. É
impressionante como um ferimento antigo pode incomodar tanto.
— Oh, se ao menos você tivesse pedido desculpas a Vonne e evitado o
duelo.
— Assim que fiquei sóbrio, tentei me desculpar. Era a única atitude
honrosa a tomar. Mas Vonne não quis me ouvir. De fato não posso culpá-lo.
Nada além de sangue iria satisfazê-lo. Agora, por favor, vá chamar Stewart.
O criado ajudou Tony a subir as escadas enquanto Vanessa contentava-se
em ir para o próprio quarto. Sozinha. Porém não conseguia relaxar e muito
menos pensar em deitar-se. Tão logo ouviu Stewart deixar o quarto do marido,
minutos depois, ela correu para lá.
Tony já estava dormindo. Dominada pela ternura, Vanessa sentou-se na
beirada da cama e acariciou o rosto bonito. Num impulso, meteu-se debaixo
das cobertas e aconchego se ao corpo viril. Se ao menos ele pudesse aprender
a amá-la.
A sensação de não estar só acabou por fazer Tony acordar.
— Vanessa — ele murmurou surpreso.
— Eu não quis deixá-lo. Você esteve um pouco febril durante a noite —
Vanessa apressou-se a dizer, temendo ser rejeitada. — Agora que tudo
passou, vou para o meu quarto.
— Não, fique. Ainda estou esperando uma explicação.
— Sobre ontem?
— Se me lembro bem, você estava vestindo roupas de homem e Marie
parecia esperá-la, convenientemente plantada junto à porta da cozinha. Por
acaso você está tendo um caso e precisa entrar às escondidas?
— Eu? Claro que não! — Vanessa riu diante da idéia absurda. — Já lhe
disse que o estava seguindo.

163
— Para ver onde costumo passar as noites. Por que não me perguntou?
— Eu precisava saber se Win tinha razão, se você continuava apaixonado
por Madeleine.
— Você não confia mesmo em mim. Porém não posso culpá-la.
— Não, eu não confio é em Madeleine. E tampouco em Win.
— Por que Win iria lhe encher a cabeça com essas bobagens envolvendo
Madeleine?
— Não sei. Afinal o primo é seu.
— Mas Win sabe muito bem onde costumo passar as noites.
— Então por que ele tentou lançar suspeitas sobre o seu comportamento?
— Ainda não sei, contudo esteja certa de que vou descobrir. Agora acho
melhor você ir para o seu quarto ou serei incapaz de dormir tendo-a tão perto.
Vanessa levantou-se e cobriu o marido com extremo carinho.
— Prometa-me que não sairá mais de casa sozinha, especialmente a
noite.
— Você me faria a mesma promessa?
— Não posso. Não ainda.
— E por quê?
— Também não posso lhe dizer agora.
— É estranho como há coisas que não podemos dizer um ao outro, coisas
que não aprovaríamos. Bem, prometo-lhe que não sairei mais de casa a noite,
mas peço-lhe que leve Jeffers ou Chadwick com você.
— Vou pensar — Tony respondeu sorrindo.

Vanessa surpreendeu-se ao ver o marido descer para o café da manhã na


hora habitual. Ele não dormira mais do que cinco horas e com certeza a cabeça
ainda devia doer por causa do ferimento e da perda de sangue.
— Você me prometeu ontem a noite que não andaria pelas ruas sozinha
outra vez. É importante para mim que essa promessa seja mantida. Não serei
capaz de me concentrar se tiver que me preocupar com você.
— Manterei minha promessa apenas se você usar a carruagem para ir ao
clube ou levar um dos criados junto.
— Está bem — ele concordou sem muito entusiasmo.

164
— Oh, estava quase me esquecendo. Chegou o convite dos Falcrest para o
baile de máscaras, no próximo sábado.
— Você vai querer ir? — Tony indagou, como se realmente quisesse
acompanhá-la.
— Sim, gostaria muito de ir.

— Você conseguiu fazer contato com o tratador dos pássaros de Vonne? —


Tony indagou a Chadwick, os dois sozinhos no estábulo.
— Sim, um homem de nome Sands. Precisei rodar todos os bares da
cidade para encontrá-lo.
— Ele aceitou encontrar-se comigo?
— Sim, no próximo sábado, à meia-noite, perto da casa dos Falcrest.
Como estará acontecendo um baile de máscaras, será mais fácil passar
despercebido nas redondezas.
— Acho que então será melhor fazer Vanessa desistir de comparecer à
festa. Odeio desapontá-la outra vez, porém não posso correr o risco de
envolvê-la no assunto.
— Minha lady saberia guardar o segredo.
— Sim, eu sei, mas as coisas podem se tornar perigosas.
— Meu lorde teme que Rothschild tente atacá-lo?
— Sim. Tenha cuidado você também, Chadwick.
— Terei.
— Estive pensando sobre o baile de máscaras e cheguei a conclusão de
que talvez não devêssemos ir — Tony anunciou.
— Por que não?
— Não é uma atmosfera respeitável, apesar dos Falcrest serem gente de
bem. Homens e mulheres disfarçados são sempre sinônimos de problemas.
— Se você não quiser ir, poderei pedir a Win para me levar.
— Estou lhe dizendo que não quero vê-la num baile de máscaras.
— Por que Madeleine estará lá?
— Não seja estúpida.
— Então me diga por quê.
— Não vou lhe dizer nada. Quero apenas que me prometa manter-se

165
longe da casa dos Falcrest no próximo sábado.
— Lady Cairnbrooke não estará presente ao baile de máscaras — Vanessa
falou afinal, uma expressão indecifrável no rosto.
Sim, lady Cairnbrooke não iria ao baile de máscaras, mas Encrier com
certeza estaria lá.
Vestida com um dos trajes do conde DeVries, Vanessa chegou à festa dos
Falcrest com o único propósito de descobrir o marido entre os convidados.
Estava certa de que Tony preferiria ir sozinho para passar a noite ao lado de
Madeleine sem ser importunado. Entretanto por mais que olhasse ao redor,
não conseguia vê-lo.
— Você me parece familiar — Madeleine falou melosa, aproximando-se de
Vanessa. — Você é um dos atores do Atenas, não é?
— De certa forma sim — ela respondeu no tom de voz grave que
costumava usar no palco.
— Por acaso é Brel?
— Não, embora já me disseram que somos um pouco parecidos. Os olhos,
acho.
— Então é outro. Graden, não é este o nome?
— Também não.
— Já sei! Você só pode ser Encrier! Eu o vi na casa dos Holcroft!
Vanessa riu.
— Sim, de fato sou Encrier.
— Estou surpresa que lady Cairnbrooke não esteja dependurada no seu
pescoço.
— Ela não está aqui. Pelo menos não a vi.
— Fico feliz que Tony não a tenha trazido.
— O quê? Lorde Cairnbrooke está aqui?
— Não sei, mas não se preocupe. Posso dançar com quem eu quiser. Você
vai dançar comigo, não vai?
— Não, isto é, não posso.
— Não pode dançar? — Este tal de Encrier realmente estava começando a
intrigá-la, agindo de uma forma tão imprevisível. Determinada a dobrar a
relutância do rapaz, Madeleine insistiu:

166
— Vamos ao jardim. Vou lhe mostrar como se valsa.
— Mas eu… Mas você vai acabar estragando o vestido, a grama está
molhada — Vanessa falou num último esforço para dissuadir Madeleine. Nunca
esperara enfrentar esse tipo de problema na pele de Encrier.
— Não tem importância. Agora me dê sua mão esquerda e apóie a direita
no meu quadris.
De repente, tomada pelo ridículo da situação, Vanessa começou a rir.
— O que há de tão engraçado?
— Você não é como eu pensava.
— E como esperava que eu fosse? Não costumo comer os homens, sabia?
Pelo menos aqueles tão jovens quanto você.
— É mesmo?
— Eles apenas me intrigam. São tão maleáveis.
— Você gosta de se sentir superior.
— Gosto que me adorem, que me admirem.
— Há tantos homens no mundo. Por que você gosta de se envolver com
os casados?
— Eu não gosto. Oh, já sei, você está se referindo a Tony. Mas ele não era
casado quando fomos amantes.
— Ele é casado agora.
— Porém continuamos a nos amar.
— Como pode ter tanta certeza disso?
— Claro que ele me ama e não à esposa. Lady Cairnbrooke não tem
nenhum direito sobre o marido porque ele se casou apenas por dinheiro.
— Não sei por que lady Cairnbrooke a incomoda tanto. Ela está apenas
tentando salvar o casamento.
— Por que aquela mulher deveria ser feliz com Tony se sou tão infeliz?
— Infeliz? Como é possível ser infeliz tendo um marido como Vonne, um
marido que a adora?
— Não passo de uma prisioneira.
— E você adora cada momento disso. Se Vonne a mantivesse
acorrentada, iria gostar ainda mais. É este o tipo de mulher que você é.
— Não sou — Madeleine respondeu afastando-se. — Quero ser livre.

167
— Para quê? Para destruir a vida de outras pessoas? Você não ficaria nada
feliz se Vonne pedisse o divórcio. Não é confortável viver sem honra, creia-me.
— Divórcio?
— Onde pensa que essa história toda irá acabar um dia? Até quando
Vonne irá tolerar seus casos antes de juntar provas suficientes para se livrar
de você?
— Ele não faria uma coisa dessas!
— Talvez não na próxima semana, mas no ano que vem, sim. Acredite-
me; ele tem um filho em quem pensar.
— O menino é meu filho também,
— Quanto tempo você passa ao lado de seu filho? Você é como aquelas
borboletas, lindas e inquietas, que pousam de flor em flor, atraídas pela beleza
das cores e pelo perfume forte. E, como elas, seu tempo também será curto.
Basta ver como os homens com quem você se envolve são sempre mais jovens
e já não a levam a sério.
— Tony me ama.
— Não creio. Vejo dois caminhos à sua frente. Um conduz a uma vida
solitária, depois que a idade chegar e os admiradores se forem. O outro leva a
uma beleza madura, à felicidade ao lado de um marido que a ama e do filho
que aprenderá a amá-la. Será interessante observar qual destes dois caminhos
você escolherá. Talvez eu escreva uma peça sobre isto, se o final não for triste
demais.
— Eu o odeio! — Madeleine ergueu a barra da saia e correu para o salão.
— E eu sinto pena de você.
Minutos depois Vanessa deixava o jardim, decidida a procurar Tony no
salão de jogos, caso houvesse um.
— Encrier! Então você decidiu sair de seu refúgio outra vez! — Travesian
exclamou aproximando-se.
— Eu não sabia que você tinha sido convidado.
— E por que a bondosa lady Cairnbrooke não está presente?
— Tony não quis me trazer — Vanessa murmurou, temendo chamar a
atenção dos outros convidados. — Você o viu por aí?
— Não. É difícil reconhecer as pessoas por causa das máscaras e

168
fantasias.
— Verdade. Meu marido vai ficar uma fera se me descobrir vestindo as
roupas do teatro. Oh, céus, o que devo fazer?
— Sinto não poder aconselhá-la, menina, mas também estou enfrentando
dificuldades amorosas.
— Lady Amanda?
— Sim, ela insiste que não há qualquer empecilho para o nosso
casamento, porém continuo hesitando em tocar no assunto com o seu marido.
— Não vejo por que Tony deva se intrometer na vida particular da mãe.
Bem, acho melhor eu ir para casa agora
— Sozinha? Espere mais uns dez minutos e poderei acompanhá-la.
Primeiro vou me despedir de alguns conhecidos.
Vonne escolheu exatamente aquele momento para aproximar-se.
— Eu o conheço? — ele indagou, segurando o braço de Vanessa de leve.
— Você me parece familiar, entretanto…
— Me solte — Vanessa pediu num tom de voz normal.
— Lady Cairnbrooke!
— Fale baixo, Vonne, ou alguém poderá ouvi-lo.
— Mas pensei que…
— Eu sei o que você pensou, o que, aliás, explica os inúmeros duelos em
que acabou se metendo sem necessidade.
— Você não deveria estar vestida assim.
— Esta é a última de minhas preocupações. Você viu Tony?
— Não. Por que resolveu se vestir dessa maneira?
— Não sei. Na verdade já nem penso antes de me lançar em aventuras
malucas. Você acha que alguém me reconhecerá?
— Talvez não, desde que permaneça calada.
— Isto não é problema. Basta eu usar minha voz de palco.
— Por favor, vá embora agora.
— Por quê?
— Sua reputação.
— Já não tenho reputação, graças a Winwood.
— Quer dizer que é ele quem anda espalhando boatos a seu respeito?

169
— Sim.
— Aposto que você não me reconhece — Win falou orgulhoso, parando na
frente de Vonne e esvaziando a décima taça de champanhe.
— Cairnbrooke, claro — Vonne acertou de imediato.
— Só não sei quem é você. — Win apontou para Vanessa.
— Encrier, a seu dispor — Vanessa respondeu numa voz tão grave e com
tão perfeito sotaque francês, que Vonne deu um passo para trás, incapaz de
esconder a admiração.
— Já ouvi falar de você — Win afirmou, tropeçando nas palavras.
— E eu de você. Espero que não se incomode ao se ver retratado numa de
minhas peças. Um dos personagens será um tipo que gosta de dar com a
língua nos dentes.
— O senhor está me insultando.
— O senhor insulta a todos nós — Vanessa disparou no auge da irritação.
Win simplesmente afastou-se, sem nada responder.
— Você não ficou com medo de que ele a desafiasse para um duelo, ou
uma briga?
— Winwood? De jeito nenhum. Pessoas covardes sabem atacar apenas
pelas costas. Posso lhe fazer uma pergunta?
— Sim, claro.
— Por que não aceitou o pedido de desculpas de Tony antes do duelo?
— Ele não quis se desculpar.
— Não é verdade. Parece que Win simplesmente enganou vocês dois.
— Lembro-me bem de que Winwood afirmou ser decisão do primo não se
desculpar sobre o que acontecera. Mas por que ele mentiria, quando poderia
ter evitado o duelo?
— Conhecendo Win, eu diria que ele já fizera várias apostas e também
que estaria interessado na morte de Tony, pois herdaria o título.
— Eu o julgava apenas tolo, porém jamais me passou pela cabeça que
fosse perigoso. Você falou a seu marido sobre essas suspeitas?
— Tony é incapaz de acreditar que o primo seja uma criatura desprezível.
Acho que vou ter que resolver o problema ao meu modo.
De repente Vanessa viu o marido do outro lado do salão, caminhando na

170
direção dos jardins. Ele não estava fantasiado e sequer usava máscara. Sem
pensar duas vezes, resolveu segui-lo.
— Encrier, não é? — Tony perguntou, surgindo do meio das sombras.
— Sim — ela respondeu com sua voz de palco. — Como conseguiu
adivinhar?
— Quem mais usaria a roupa do conde DeVries além dos atores do
Atenas?
— Você é muito sagaz.
— Sagaz o suficiente para saber que você anda atrás de minha mulher.
Quero lhe dar um aviso: é melhor que saia de Londres.
— É isto o que sua esposa quer?
— É meu dever protegê-la.
— É seu dever ser um marido de fato — Vanessa deixou escapar.
— Ela lhe falou sobre isso?
— Sua esposa precisa ter alguém em quem confiar. Nós nos conhecemos
há muito tempo. Encontramo-nos em Bruxelas, mas infelizmente o sr. Barclay
não me aprovava.
— Tenho certeza que sim. Se você se importa com minha mulher, deixe-a
só.
— Da maneira que você faz, noite após noite?
— Vanessa prefere que seja assim.
— Talvez ela dê essa impressão para não pressioná-lo. Mas duvido que
prefira ficar só.
— Será que Vanessa não prefere sua companhia à minha? — Tony
indagou para testar a reação do outro.
— Não há nada entre nós dois, a não ser o interesse pelo teatro e uma
boa amizade.
— Então por que você insiste em lhe mandar poemas de amor? Está
tentando seduzi-la?
— Não, porque de nada adiantaria. Infelizmente sua esposa o ama.
— Por que eu deveria acreditar em você?
— E por que eu lhe mentiria? Ouça, ainda não é tarde demais. Você e
Vanessa podem ser felizes juntos.

171
— Encrier! Finalmente! — Travesian os interrompeu. — Estou pronto para
partir agora. Espero que o rapaz não o tenha incomodado, lorde Cairnbrooke.
Ele fala muito quando bebe um pouco além da conta.
— Não, estávamos tendo uma discussão interessante a respeito de minha
esposa.
Travesian puxou Vanessa pela mão e os dois desapareceram na escuridão
da noite.
Tony resolveu ir para o lugar onde combinara encontrar-se com Sands, os
pensamentos voltados para a conversa que acabara de ter com a esposa. Claro
que a reconhecera de imediato. Que homem não reconheceria a própria
mulher?
Às duas horas da madrugada Tony estava de volta em casa, depois de
esperar por Sands em vão. Agora teria uma conversa séria com Vanessa. Ela
não poderia continuar se expondo daquela maneira, correndo riscos
desnecessários. A vida de ambos estaria resolvida em pouco tempo, de um
jeito ou de outro. O caso com Rothschild não demoraria muito a chegar ao fim
e se tudo corresse como imaginava, sua dívida estaria saldada em menos de
um mês.
Ao perceber a porta da biblioteca entreaberta, Tony rumou para lá.
Contudo em vez da esposa, descobriu apenas algumas folhas de papel sobre a
escrivaninha e uma xícara de chá pela metade. Disposto a esperá-la, sentou-
se. Para sua surpresa, as tais folhas não eram parte de uma carta inacabada
como supusera a princípio e sim cenas de uma peça; cenas inéditas.

Josette (irritada)
— Não me fale sobre compaixão e compreensão, senhor. Já tive o
bastante de ambas. Sua compaixão pode ser gasta com o seu cachorro. O
pobre animal bem que precisa. Quanto a sua compreensão, é melhor empregá-
la no trato com seus filhos, que pelo o que ouvi dizer, são muitos. Quero algo
bem diferente. E se não puder tê-lo, não quero nada de você, e muito menos
suas palavras mentirosas.

Fabrel

172
— Quando foi que lhe menti? Nunca!

Josette
— Talvez não, mas você tem feito rodeios em torno da verdade com
impressionante entusiasmo. Que verdade é tão terrível assim que o impeça de
se abrir comigo, sua própria esposa?

Fabrel
— Uma mulher não deve se sobrecarregada com certos fardos.

Josette
— Então ela deve ser sobrecarregada com preocupações e angústias?
Posso lhe assegurar que é um fardo bem mais pesado do que você possa
imaginar. Nada se compara à desconfiança. Pensei que o conhecia. Agora vejo
que estava errada. Você é como um outro homem qualquer.

Fabrel
— Diga-me o que quer de mim! Meu amor? Pois você já o tem!

Josette
— Quero a única coisa que os homens recusam-se a dar às mulheres.
Quero…

Tony examinou as outras folhas, ansioso para descobrir o resto do texto.


Entretanto as anotações paravam por ali. De súbito ele se deu conta de que
Vanessa não estava copiando trechos de algum lugar e sim escrevendo-os.
Vanessa era Encrier! Como não percebera antes? Os poemas! Todos escritos
com a mesma letra. Isto explicava tudo! Não era um outro homem quem
consumia o tempo da esposa e sim aquelas peças, palavras capazes de fazê-lo
rir, emocionar-se, olhar para dentro de si mesmo.
O que será que Josette queria e que Vanessa também desejava?
Determinado a viver um final feliz na vida real, Tony deixou os papéis
sobre a escrivaninha e subiu para o quarto. Precisava pensar numa maneira de

173
agir.

— Você se distraiu ontem a noite? — Tony indagou durante o café da


manhã.
— Não muito — Vanessa respondeu desanimada. — E você? Oh, esqueci-
me de que costuma jogar cartas por obrigação, não por prazer.
— Fui até a casa dos Falcrest.
— E quem estava lá?
— Não o homem com quem eu precisava conversar.
— Homem?
— Sim. Deveria ser um encontro de negócios por assim dizer. Foi por este
motivo que preferi não levá-la. Desculpe-me. Ah, também conversei com
Encrier.
— O que você acha dele?
— É jovem o suficiente para ser tolo, se juventude justifica tamanha
tolice. O rapaz está loucamente apaixonado por você, sabia?
— Ele não pode ter lhe dito isto.
— Como é que pode saber o que ele me disse ou não?
— Porque não. O que foi que Encrier lhe disse?
— Ele me avisou que eu poderia perdê-la. E não quero que isto aconteça.
— Você jamais me perderá — Vanessa prometeu sorrindo.
— Espero que não. Hoje não será possível acompanhá-la na sua cavalgada
matinal, mas chegarei em casa a tempo para o jantar. Teremos a companhia
de lady Jane e seu pai, certo?
— Sim. Você se lembrou.
— Não sou inteiramente estúpido, embora às vezes aja como tal.

Tony pretendia ir atrás de Sands pessoalmente e encontrou-se com Win


quando estava para subir no coche.
— Quer ir a Canterbury comigo, Win?
— Hoje? Para quê?
— Preciso conversar com um homem a respeito de pássaros. Estarei de
volta na hora do jantar.

174
— Não, obrigado. O trajeto é muito longo para ser feito num único dia.
— Então suba. Posso deixá-lo no clube ou em qualquer outro lugar.
— Não vou a lugar algum. Pretendia ficar em sua casa.
— Acho que precisamos conversar seriamente — Tony falou de repente,
puxando o primo para dentro do coche. — Por que você disse a Vanessa que
eu estava me encontrando com Madeleine?
— E não é verdade? — Win indagou com o ar mais inocente do mundo.
— Não! Mas mesmo se fosse verdade, você não tinha o direito de contar.
— Vanessa é uma mulher sensata e não se incomoda com essas
bobagens. Quis explicar a ela como essas coisas funcionam.
— E o que você explicou? — Tony controlava a raiva crescente com
enorme dificuldade. Win não passava de um mentiroso.
— Expliquei que um homem pode ter uma amante e continuar
verdadeiramente interessado pela esposa.
— Canalha! Não percebe o tamanho de seu erro?
— Não. Afinal foi você quem teve um caso com lady Vonne.
— Eu não era casado na época.
— Mas Madeleine era.
— Saia do meu coche agora! — Tony gritou, puxando as rédeas dos
cavalos.
— Eu não queria ir a Canterbury com você mesmo.
— E não volte para minha casa. Fui claro?
— Claríssimo. Por acaso você vai tomar a estrada de Gravesend? — Win
indagou, ajeitando a gravata como se nada tivesse acontecido.
— Sim. Por quê?
— Por nada.
Tony saiu em disparada, furioso com Win e consigo mesmo. Apesar de
frívolo, Win o atingira em cheio ao mencionar o caso com Madeleine. Se algum
outro homem fizesse amor com Vanessa, como ele havia feito com a esposa de
Vonne, enlouqueceria de ódio. Só não entendia por que Vonne não lhe metera
uma bala na cabeça em vez de atingi-lo no ombro.

— Tony está muito atrasado, querida. Ele lhe disse onde ia?

175
— Não. Disse apenas que voltaria à hora do jantar. Espero que não tenha
havido nenhum acidente com o coche.
— Estou ouvindo o barulho de uma carruagem.
— É apenas Win — Vanessa falou desapontada ao ver o primo do marido
entrar na sala.
— Boa noite a todos. Onde está Tony?
— Ainda não chegou — lady Amanda respondeu. — Vanessa, querida, será
que não deveríamos mandar servir o jantar? Nossos convidados devem estar
com fome.
— Vamos esperar até as oito horas. Tenho certeza de que meu pai e lady
Jane não se importarão de aguardar mais alguns minutos.
Tony apareceu depois que a sopa já havia sido servida. A expressão de
espanto no rosto de Win foi tamanha que Vanessa não soube como interpretá-
la. Entretanto Tony sentou-se à mesa e presidiu a refeição com naturalidade,
embora os olhos permanecessem sombrios.
Felizmente, devido ao adiantado da hora, os convidados retiraram-se
quase logo após o jantar.
— Meu filho, como você pôde chegar tão tarde quando outras pessoas o
esperavam?
— Por favor, não diga nada — Vanessa pediu à sogra. — Você não vê que
ele está sentindo dor? Algo sério deve ter acontecido. Foram os cavalos, não
foram?
— Luce sofreu um ferimento no jarrete.
— E Jasper?
— Morto.
— Oh, querido, sinto muito. — Num impulso, Vanessa abraçou o marido.
Para seu espanto, ele deixou escapar um murmúrio de dor ao ser tocado no
braço. — Você foi jogado para fora do coche?
— Não é nada. Stewart já cuidou disso.
— Talvez devêssemos chamar um médico — lady Amanda sugeriu.
— Não. Preciso apenas descansar. Boa noite senhoras.

— Você deveria ter me dito — Vanessa o repreendeu enquanto o servia de

176
café.
— Dito o quê? — Tony indagou deixando o jornal de lado.
— Que tentaram lhe meter uma bala.
— Oh, foi só um arranhão.
— Tenho certeza de que nossa concepção de “arranhão” é muito diferente.
— Quem lhe contou?
— Obriguei Chadwick a me dizer a verdade. Oh, Tony, por favor, tenha
cuidado. Por que não saímos de Londres durante algum tempo?
— Ainda preciso resolver assuntos importantes.
— Está bem — Vanessa concordou. — Eu não tinha percebido o quanto
Rothschild pode ser implacável e cruel.
— Não sei se o atentado que sofri foi a mando de Rothschild, portanto não
devemos acusá-lo.
— É verdade. Como é que ele poderia saber que você ia tomar aquela
estrada, se quase nunca passa por lá?
— É mesmo — Tony comentou, pensando nas poucas pessoas que
conheciam os seus planos. — Deve ter sido um acidente.

Win apareceu no meio da manhã, um tanto apreensivo. Vanessa recebeu-


o na biblioteca, sem disfarçar a falta de entusiasmo pela visita.
— Tony está?
— Não. Você sabe que ele sempre sai a esta hora para cuidar dos
negócios.
— De fato eu queria mesmo falar com você.
— Comigo?
— Precisamos contar a Tony sobre nós dois.
— Que história é esta? — Impaciente, Vanessa levantou-se e fitou-o séria.
— Antes que ele ouça de uma terceira pessoa.
— Não há nenhum nós, Win!
— Temos passado os últimos três meses aparecendo juntos em todos os
lugares. O que as pessoas irão pensar?
— Você deve estar louco.
— Você tem que contar a Tony sobre nós dois ou ele acabará descobrindo.

177
— Este “caso” existe apenas na sua cabeça ou você se encarregou de
espalhar os boatos também?
Win sorriu e Vanessa teve vontade de esganá-lo. Porém ela obrigou-se a
manter o controle e levar a conversa adiante.
— Foi o que pensei. Só que você está se esquecendo de um pequeno
detalhe. Não dou a mínima para o que as pessoas pensam a meu respeito. A
única opinião que me interessa é a de meu marido.
— Tony vai acreditar em mim, como sempre — Win a desafiou.
— É o que você acredita.
— O que você espera, mulher estúpida? Se eu disser a Tony que somos
amantes, tenho certeza de que ele não duvidará da minha palavra.
— Talvez ele fique irritado comigo a princípio, mas depois pensará melhor
e acabará vindo me pedir desculpas. Como tentou fazer com lorde Vonne…
Win corou violentamente.
— É esta a desvantagem de nunca dizer a verdade, Win — Vanessa
continuou. — Depois de um certo tempo, todas as mentiras começam a vir à
tona.
— Nada poderia ter evitado o que aconteceu.
— Você quase fez com que Tony fosse morto e jamais irei perdoá-lo.
Embaraçado e não sabendo o que dizer, Win deu-lhe as costas e saiu.
Vanessa havia vencido aquela batalha verbal.

178
Doze

— Os Vonne vão passar o verão em Wingham — Tony anunciou certa


manhã, à mesa do café.
— Por causa das escapadas de Madeleine?
— Provavelmente. Os Rothschild também foram convidados. Contudo não
importa a desculpa que Vonne dê; as pessoas sempre pensarão que ele não
consegue controlar a própria esposa.
— Gostaria de ajudá-lo de alguma maneira.
— Ótimo. Você se acha capaz de conseguir que nós dois sejamos
convidados para um fim de semana?
— Você quer ir por causa de Rothschild, não é?
— Sim. Mais do que isto não posso lhe dizer. Vanessa ficou em silêncio
durante alguns minutos, considerando a proposta do marido. Então decidiu
concordar.
— Vou dar um jeito para que sejamos convidados. Afinal seria uma forma
de demonstrar publicamente como todos nós somos felizes no casamento.
— O convite para Wingham, senhor. — Vanessa entregou o envelope ao
marido, uma expressão conspiratória no rosto. — Vonne irá fazer uma
demonstração com os pássaros que pretende vender a Rothschild. Fomos
convidados para assistir ao final da corrida.
— Ótimo. Quando devemos partir?
— Na quinta-feira pela manhã. Passaremos todo o fim de semana em
Wingham.
— Perfeito! Terei tempo suficiente.
— Você não vai me contar o que está planejando, vai?
— Não ainda, mas breve você saberá de tudo, querida.
— Infelizmente Win também foi convidado. Madeleine fez de propósito,
apenas para me provocar.
— Droga!

179
— De qualquer forma ele não poderá viajar conosco, pois estaremos
levando meu pai e lady Jane. Não terá lugar na carruagem.
— Ótimo. Podemos ser obrigados a agüentar meu primo em público,
porém não há nada que nos force a suportá-lo em particular.
— Soube que Encrier também estará lá — Vanessa comentou,
estranhando a reação do marido em relação a Win.
— Encrier? Mas ele… — Tony parou no meio da frase, sem saber se devia
continuar.
— Ele tornará o fim de semana ainda mais interessante — ela o socorreu.
Tony gostaria de perguntar à esposa como ela conseguiria ser duas
pessoas ao mesmo tempo ou se então planejava pedir a um ator amigo que
desempenhasse o papel de Encrier. Mas o instinto dizia-lhe que Vanessa
saberia contornar a situação com o brilho e a criatividade de sempre.
De repente, a caminho do estábulo para uma conversa com Chadwick,
Tony deu-se conta de que a esposa queria algo além de seu amor. Ela queria
ser respeitada, ser levada a sério, ser tratada de igual para igual, não com
condescendência. Da mesma forma como ele buscava a confiança da mulher,
Vanessa buscava a sua admiração. Quantos casais atingiam aquele nível de
confiança e respeito? Poucos, muito poucos. Era um homem de sorte por haver
encontrado uma esposa capaz de lhe mostrar o verdadeiro sentido do
casamento.
— Chadwick, tenho um trabalho para você. Vou adiantar que não se trata
de uma tarefa fácil.
— E o que é, meu lorde?
— Preciso tomar emprestado um dos pombos de Rothschild sem que
ninguém perceba. Mas não sei como fazê-lo.
— Tomar emprestado? Então não será roubar?
— Devolveremos o pássaro dentro de alguns dias.
— Para quando meu lorde irá querer o pombo?
— Para antes de quinta-feira.
Chadwick sorriu, certo de que daria conta da tarefa.
— Naquele mesmo dia à tarde, Chadwick estava de volta, trazendo o
pássaro numa gaiola.

180
— Aqui está a mensagem — Tony falou entregando ao empregado o
pequeno frasco que deveria ser atado à perna do pombo.
— Será que chegarei à França a tempo de soltar o pássaro?
— Não será necessário viajar até a França. Pode soltar o pombo daqui
mesmo, na sexta-feira de manhã. Então vá ao encontro de meu procurador a
aguarde instruções.
O risco que Tony estava em vias de correr era imenso, porém fora a única
maneira rápida que descobrira para atingir seus objetivos. Decidira comprar
ações de um navio, .negócio no qual Rothschild estava seriamente envolvido.
Quando Rothschild fieasse sabendo, através da mensagem entregue pelo
pombo-correio, que o Vespa fora a pique, ele não hesitaria em vender as
ações, o que provocaria uma corrida à Bolsa, todos ansiosos para seguir o
exemplo do banqueiro. Dali a uma semana o Vespa chegaria ao porto são e
salvo. E Tony seria o dono de todas as ações e metade da carga.
Se as coisas saíssem como planejadas, a fortuna dos Cairnbrooke estaria
restabelecida dentro de poucos dias e Vanessa teria seu dote reembolsado. Se
por outro lado o Vespa de fato afundasse, Tony seria lançado de volta à estaca
zero. De uma forma ou de outra tudo estaria terminado até o fim da semana.
Porém ainda que falhasse, Vanessa de nada saberia e continuaria a amá-lo.
Eram quatorze pessoas para o almoço: os Vonne, os Falcrest, os
Cairnbrooke, os Rothschild, os Barclay, Win-wood, lady Parmiter, o jovem
Wentworth e Encrier, desta vez na pele de Christopher Graden. A lista de
convidados parecia uma disputa de forças entre lorde e lady Vonne, Vanessa
pensou.
Para cada casal respeitável que o marido convidara, Madeleine
encarregara-se de contra-atacar com uma figura pouco simpática a Vanessa.
Depois do almoço, Vonne convidou aqueles que gostavam de cavalgar
para um passeio pela fazenda enquanto a esposa encarregava-se de distrair a
outra parte do grupo numa caminhada pelos jardins e pomar.
Vonne e Tony cavalgavam lado a lado. Winwood, Encrier e o jovem
Wentworth seguiam logo atrás. Vanessa e Marissa, mantendo os cavalos
emparelhados, conversavam sobre Elizabeth e o bebê recém-nascido.
Felizmente mãe e filho estavam passando bem.

181
Ao pararem junto a um riacho para dar de beber aos animais, Tony
aproximou-se rapidamente da esposa. Vendo-os conversar e sorrir, os olhos
fixos um no outro, Vonne deu-se por satisfeito. Sem dúvida Vanessa cumprira
a palavra e conquistara o marido.
O jantar foi esplêndido, claro. Rothschild elogiava a qualidade do vinho e
cada prato servido com o entusiasmo de um connoisseur. Vanessa nunca o vira
com tamanho bom humor e por um instante quase sentiu pena do banqueiro.
Porém Rothschild era riquíssimo e não seria uma manobra de Tony o que
afetaria a solidez daquela fortuna. Foi inevitável que o jovem Wentworth
acabasse falando sobre literatura e fizesse perguntas a Encrier sobre sua
última peça. Graças aos conselhos de Travesian, Graden havia lido as
primeiras cenas de A Esposa de Lorde Tarmiter e sentia-se seguro o suficiente
para conversar sobre o assunto.
— É verdade que você me colocou numa de suas peças?
— Win perguntou a Graden sem disfarçar a irritação.
— Por acaso está se referindo ao personagem Dinwood?
— Certas pessoas considerariam um cumprimento serem retratadas numa
das peças de Encrier — disse Tony.
— Não se a intenção for me atingir — rebateu Win.
— Agora isto seria algo difícil de se conseguir — Vanessa deixou escapar.
— Acho que podemos confiar em Encrier para expor a verdade sobre seu
caráter — Tony completou calmamente.
Win ficou vermelho, os olhos brilhando de raiva.
— Vou processá-lo — ameaçou.
— Por causa de uma obra de ficção? — Vanessa o provocou. — Serviria
apenas para chamar a atenção sobre as possíveis semelhanças entre você e o
personagem.
— Que ninguém se atreva a me retratar numa peça
— lady Parmiter avisou.
— Tarde demais — devolveu Vanessa. — Quem não deseja ser alvo de
sátiras deveria levar uma vida mais discreta.
— O que você está querendo dizer com isto?
— Minha querida lady — interveio Graden —, se você me processar, meu

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sucesso será total.
— O que você fez comigo? — a mulher perguntou, totalmente fora de si.
— Oh, nada, apenas uma cena passada à mesa do jantar.
— Oh, qual é mesmo o nome da peça? — Tony indagou, sabendo muito
bem qual seria a resposta.
Graden fez uma pausa para efeito antes de anunciar em alto e bom som:
— A Esposa de Lorde Tarmiter. Indignada, lady Parmiter levantou-se e
saiu da sala enquanto Vonne tentava, em vão, sufocar um providencial acesso
de tosse. Foi lady Jane quem salvou a situação, sugerindo que as mulheres se
retirassem para a sala ao lado e deixassem os homens entreterem-se com um
bom conhaque.
Madeleine deu um jeito de abordar Tony e puxá-lo para o corredor escuro.
— Preciso falar com você!
— Não tenho nada a lhe dizer, exceto agradecer-lhe pelo delicioso jantar.
— Mas e quanto a nós?
— Já lhe disse antes, sou um homem casado agora e finalmente me
entendi com Vonne. Não pretendo reabrir velhas feridas.
— Como é que pode me abandonar assim? Se não me escutar, farei algo
desesperado.
— É o que você sempre diz.
Tony voltou para o salão onde todos os outros convidados estavam
reunidos. Minutos depois Madeleine reaparecia, o rosto pálido, uma faca
voltada contra o próprio peito.
— Eu lhe disse que faria algo desesperado — murmurou, os olhos fixos em
Tony.
Por um instante ninguém se moveu. O choque fora tamanho que as
pessoas pareciam ter perdido a capacidade de reagir. Vanessa tomou as
rédeas da situação.
— Não, não — ela falou aproximando-se de Madeleine e tirando-lhe a faca
das mãos. — Lady Macbeth faria uma entrada diferente. Você se esqueceu de
tudo o que lhe ensinei. Acho que vamos precisar ensaiar um pouco mais.
Venha comigo.
Vanessa conduziu Madeleine para fora, agindo da maneira mais natural

183
possível. Vonne ameaçou segui-las, mas um olhar de Tony o fez mudar de
idéia.
— Por mais que eu tente, não consigo manter minha esposa afastada do
teatro — ele comentou tranqüilo. — Parece que vamos ter uma encenação
amadorística esta noite.
— E tudo por culpa de Travesian — interveio Barclay. — Quase me
arrependo de tê-lo apresentado a Vanessa.
— Oh, não se trata de um mau sujeito — Tony arrematou.
— Eu sabia que você era tola, porém nunca pensei que chegasse a esse
ponto — Vanessa falou. — Por acaso está se esforçando para que Vonne sofra
um enfarte?
— Não me interessa Vonne. Quero Tony.
— Você quer Tony apenas porque ele não está a disposição. Se fosse um
homem livre, não iria interessá-la mais.
— Não é verdade. Amo Tony.
— Pois eu o amo também e não pretendo abrir mão de meu marido. Se
Tony não estivesse atravessando uma fase tão difícil meses atrás, e
bebendo tanto, provavelmente não teria se envolvido com você.
— O problema é que nada aconteceu — Madeleine choramingou. — Ele
pegou no sono. Os homens são incapazes de fazer amor quando bebem muito.
— O quê?
— Tony e eu nunca fizemos amor.
— Quer dizer que você deixou um inocente arriscar a vida num duelo por
causa dessa sua vaidade ridícula? Não sei se algum dia você conseguirá parar
de mentir para si mesma, mas vou lhe dar um aviso: fique longe de meu
marido. Se se aproximar de Tony outra vez, não hesitarei em lhe dar um tiro.
Aposto que essa sua pele branca não ficará assim tão bonita depois de ganhar
uma cicatriz.
— É impossível que ele não me ame.
— Não creio que ele a odeie tanto quanto eu, embora tenha motivos para
tal. Não seja estúpida, mulher. Olhe à sua volta. Você tem um marido que a
adora e um filho que anseia amá-la. Não jogue fora a chance de ser feliz.
No dia seguinte bem cedo, Tony e Vanessa saíram para a cavalgada

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matinal, felizes com a oportunidade de estarem sozinhos.
Vanessa montava a mesma égua do dia anterior e como tratava-se de um
animal bem treinado, não hesitou em galopar pelos campos verdes antes, o
marido seguindo logo atrás. Porém no instante em que se preparava para
saltar uma cerca, a égua refugou, atirando Vanessa no chão. Felizmente ela
teve a presença de espírito de rolar para o lado, evitando ser pisoteada. Ao ver
a esposa cair, Tony gritou desesperado e em questão de segundos tomava o
corpo trêmulo nos braços.
— Você está bem? — indagou aflito.
— Sim, foi apenas um susto.
— Tem certeza de que consegue ficar de pé?
— Claro. Só não consigo entender por que Chelsea recuou no último
instante quando ontem pulou esta mesma cerca sem nenhum problema.
Depois de certificar-se que a esposa estava bem, Tony examinou a cerca,
à procura de algo que pudesse explicar o comportamento estranho da égua.
— Oh, meu Deus! — ele exclamou baixinho.
— O que foi? Uma corda? Quem teria colocado uma corda do outro lado
da cerca? Ainda bem que Chelsea percebeu antes de pular ou não sei como
teria sido o tombo.
— Provavelmente o animal teria caído em cima de você, esmagando-a.
— Só que você costuma pular as cercas antes de mim. Portanto a
armadilha visava pegá-lo. — A voz de Vanessa soava tão baixo agora que
quase não se podia ouvi-la.
— Bobagem. Deve ter sido brincadeira de alguma criança. Vou falar com
Vonne.
— Pare de fingir. Alguém está tentando matá-lo e não é Vonne.
— Nunca suspeitei que fosse.
— Rothschild então? — Vanessa indagou.
— Também não. Win.
— O que você vai fazer agora? Por favor, tenha cuidado.
— Confrontá-lo. Mas não se preocupe, querida. Meu primo não passa de
um covarde.
Win assustou-se quando a porta de seu quarto foi aberta com um safanão.

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— Tony!
— Surpreso ao me ver vivo?
— Não sei sobre o que você está falando.
— O marginal que me perseguiu pelas ruas da cidade. O tiro que me
pegou de raspão. Obras suas, não foram? Na verdade pouco importância dei
àqueles incidentes, mas hoje foi diferente. Você quase matou minha esposa.
— O quê? — Win ficou pálido e apoiou-se na cômoda, como se o chão
fugisse sob seus pés.
— Vanessa pulou a cerca primeiro.
— Ela não está…?
— Não, ela sobreviveu à sua armadilha.
— Não sei sobre o que você está falando.
— Tarde demais, Win.
Sentindo-se acuado, Win tirou uma pistola da gaveta e apontou-a para o
primo. Mas Tony agiu rápido e segurou-o pelo braço, desviando a trajetória da
bala.
O barulho do disparo fez Vonne correr na direção do ruído.
— Então você sabe agora o que é estar louco de ciúmes — Vonne
comentou, certo de que a briga entre os Cairn-brooke tinha um único motivo:
Vanessa.
— Não se trata apenas disso — Tony respondeu. — Tentar me matar é
uma coisa, mas colocar uma armadilha num lugar por onde todos passam é
algo desprezível, indesculpável.
— Armadilha?
— Win esticou uma corda junto a cerca que pulamos ontem para espantar
o cavalo.
— Meu Deus, você poderia ter causado a morte de qualquer um de nós!
— Foi apenas uma brincadeira.
— Quero que você saia da minha casa agora — Vonne explodiu,
controlando-se para não esmurrar Win.
— Você está me mandando embora sem me dar tempo de ao menos
tomar o café da manhã.
— Isso mesmo.

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— Quero que você saia do país — Tony exigiu —, ou vou denunciá-lo à
polícia. É melhor planejar uma longa visita à sua mãe, na França, pois não
pretendo vê-lo nunca mais.
Tony e Vonne desceram juntos para o café da manhã.
— Você sabia que Win estava tentando seduzir Vanessa? — Vonne
perguntou.
— Sim, mas minha esposa é uma mulher cheia de recursos e sabe tomar
conta de si mesma.
— Eu o invejo, Cairnbrooke.
— Obrigado. Sinto não retribuir o cumprimento.
— Então seu primo mentiu para nós dois, não é? Eu não tinha necessidade
de atirar em você.
— Com certeza a bala serviu para me fazer recobrar a razão.
— Talvez não tenha sido a bala, mas a influência de Vanessa.
Enquanto os outros convidados tomavam o café da manhã, Win partiu,
levando lady Parmiter consigo. Também o primeiro dos pombos-correios
chegava, anunciou entusiasmado um dos rapazes que trabalhava nos
estábulos. Rothschild e Vonne imediatamente tomaram o caminho do pombal.
Vanessa passou o resto da manhã em companhia do pai, lady Jane, sra.
Rothschild e Marissa. O assunto girou em torno de jardins e plantações, como
não poderia deixar de ser. Madeleine apareceu à hora do almoço,
estranhamente calada e pensativa. Após a refeição, os cavalheiros dirigiram-se
à biblioteca para ler os jornais recém-chegados de Londres. Tony foi o único a
optar por uma caminhada pelo bosque. De repente nuvens escuras e pesadas
esconderam o sol e ele achou melhor voltar para casa antes que desabasse a
tempestade. Foi então que o barulho de uma carruagem chamou-lhe a
atenção.
— Preciso falar com você — Rothschild declarou, abrindo a porta da
carruagem.
— Você vai partir sem sua esposa? — Tony indagou afável, um sorriso
amistoso no rosto.
— Estarei de volta amanhã, portanto não há motivos para obrigá-la a
fazer esta viagem. A propósito, um pombo-correio acabou de chegar… de

187
Londres.
— Verdade?
— Você andou brincando comigo, rapaz?
— Não estou entendendo — Tony retrucou fingindo inocência.
— Seu pássaro, isto é, meu pássaro chegou de Londres. Eu jamais deveria
ter deixado os negócios nas mãos de Cohen, nem mesmo por três dias. Ele
recebeu sua mensagem, pensando que fosse minha, e agiu imediatamente.
Você deve ter lucrado pelo menos umas oitenta mil libras numa simples
transação.
— Verdade.
— Então…
— Você não deveria ter deixado os negócios nas mãos de Cohen.
— Não. Se fosse eu, teria esperado a confirmação do naufrágio do Vespa e
da conseqüente perda da mercadoria antes de vender as ações.
— Aliás, foi assim que você recebeu a notícia sobre a vitória de
Wellington? Através de seus pombos-correios?
— Sim. Sands estava na França para me manter informado sobre o que
acontecia. Mas minha primeira preocupação não era obter lucro financeiro e
sim ajudar a Inglaterra a derrotar Napoleão. Cumpri o meu dever.
— Causando pânico na Bolsa?
— Não! Não vendi ações e nem pressionei ninguém a fazê-lo. As pessoas
simplesmente me viram com um ar preocupado e acharam que estava para
acontecer algum desastre. Nada mais distante da verdade. Você é um tipo
ousado e corajoso, Cairnbrooke. O único que desvendou minha manobra. Por
que não trabalha para mim?
— Oh, não, obrigado. Tenho minhas próprias idéias quanto ao futuro e à
maneira como pretendo empregar o dinheiro que ganhei. Antes preciso de
tempo para dedicar à minha mulher e aos filhos que teremos juntos.
— Se você mudar de idéia, procure-me. Um homem com os seus talentos
seria uma aquisição preciosa para minha firma.
— Vou pensar — Tony respondeu, despedindo-se de Rothschild com um
aceno.
A única pessoa com quem Tony queria encontrar-se agora era com a

188
esposa. Mas Vanessa não estava no quarto. Depois de vasculhar a casa inteira,
um dos criados informou-lhe que vira lady Cairnbrooke entrar no celeiro. Ele
correu para lá.
Em poucas palavras, colocou-a a par de tudo o que ocorrera, inclusive da
oferta de emprego feita por Rothschild.
— Oh, querido, estou tão orgulhosa! Só espero que Rothschild não tente
se vingar de você.
— Não precisa se preocupar. Apenas usei os mesmos métodos
empregados pelo banqueiro, que, aliás, são perfeitamente legais. Agora vamos
para casa. A tempestade está piorando e tenho uma surpresa para você.
De mãos dadas, os dois entraram no vestíbulo, as roupas encharcadas, os
rostos molhados e felizes.
— Mamãe, eles estão sujando o chão de barro — o pequeno Davi
anunciou, agarrado à saia de Madeleine. — Eu nunca pude entrar em casa com
os pés sujos de lama.
— Tudo bem, querido, eles são nossos convidados.
— Você tem razão, Davi — Vanessa falou, limpando os pés no capacho.
— Desculpem-me por ontem a noite. — Apesar do embaraço, Madeleine
fez questão de fitá-los com dignidade. — Acho que exagerei no vinho à hora do
jantar.
— Sei como é isto — Tony concordou generoso.
— Agora venha me mostrar onde estão aqueles seus gatinhos, Davi
querido.
— Estão na cozinha, mamãe. Venha, vou lhe mostrar.
Vanessa tirou a roupa molhada e vestiu um robe, pensando em arrumar-
se depois que os cabelos já estivessem secos. Minutos depois Tony entrava em
seu quarto, pela porta de comunicação, vestindo um roupão também.
— Eu não planejava contar-lhe nada disto agora, mas — ele começou,
consultando uma das cartas que trazia nas mãos.
— Oh, o correio já passou.
— Sim. E você pode começar a pensar em empacotar todos os seus livros
outra vez.
— Oh, Tony. Nós não perdemos a casa de Marsham Street, perdemos?

189
— Não, querida, é que vamos voltar para a mansão da família Cairnbrooke
no final do ano. Eu queria que fosse uma surpresa.
— Mas vamos poder sustentar aquela casa enorme? As despesas serão
muitas.
— Agora temos condições de arcar com o custo.
— E poderei ter minha biblioteca?
— Sim, tudo o que quiser. Eu queria lhe dar o mundo inteiro.
— Vou sentir saudades de nossa pequena casa em Marsham Street.
— Você pode visitar minha mãe lá sempre que quiser.
— Lady Amanda vai morar sozinha?!
— Não, Travesian lhe fará companhia.
— Não me diga que aqueles dois fugiram juntos? — Vanessa indagou
chocada.
— Sim. Esta outra carta aqui é de mamãe e ela parece decidida a casar-se
com Travesian.
— Você não me parece sequer zangado, querido.
— Não sou cego e esperava que as coisas acabassem chegando a este
ponto. Acho que a casa em Marsham Street será um ótimo presente de
casamento, não?
— Você é maravilhoso! Só não estou entendendo essa riqueza súbita.
— Meus negócios estão em ordem e ganhei muito dinheiro na transação
envolvendo o Vespa. E para você, querida, um cheque.
— Um cheque?
— Sim. É o dinheiro de seu dote que faço questão de devolver. Não
devemos mais nada um ao outro.
— E o que é que vou fazer com esse dinheiro?
— Não sei. Financiar uma peça, talvez. Ou deixá-lo para os seus filhos. —
Tony a provocou.
— Filhos? Que filhos?
Rindo, Tony voltou para o seu quarto e começou a preparar o cenário.
Cerrou as cortinas, tirou a colcha da cama, disposto a iniciar uma família
naquele mesmo dia, e apagou as velas. Porém antes que tivesse tempo de ir
atrás da esposa, ouviu a porta de ligação entre os dois quartos sendo

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trancada. Só restava a escuridão.
— Você deveria ter mostrado um pouco mais de confiança — soou uma
voz grave e baixa.
— Encrier! — Tony exclamou dramático, fingindo-se surpreso. — Eu
estava convencido de que minha esposa não o quer.
— Vanessa o ama, não a mim. Lembra-se daqueles poemas que você
tentou queimar? Foi Vanessa quem os escreveu, porque não tinha coragem de
se declarar apaixonada.
Aproveitando-se de um momento de distração, Tony agarrou a esposa
pelo braço e puxou-a com força de encontro ao peito.
— Vanessa! Onde está Encrier? — ele indagou, dando-lhe oportunidade de
dizer a verdade.
— Eu sou Encrier.
— Estou …
— Chocado? — Vanessa sugeriu.
— Bem, sim.
— Que eu tenha sido capaz de escrever as peças ou de que ousei fazê-lo?
— Sua criatividade e iniciativa sempre me surpreenderam. Você pretende
continuar a escrever peças? — Tony apoiou as mãos nos ombros delicados e
deslizou-as lentamente, até tocarem os seios firmes. Vanessa estremeceu e
fechou os olhos por um momento, dominada pela emoção.
— Não se você não quiser.
— Depois do que a fiz passar, não sei nem por que você levaria minha
opinião em consideração.
De repente Tony tocou-a entre as coxas e beijou-a no pescoço, sugando a
pele quente e macia com sofreguidão. Depois roçou o membro enrijecido sobre
o ventre aveludado da esposa, obrigando-a a sentir o tamanho de sua ereção.
— Agora eu a choquei, não é? — ele perguntou baixinho.
— Não. Já li sobre isto — Vanessa respondeu num murmúrio.
— Pois trata-se de um assunto em que a leitura não chega nem aos pés
da realidade.
— Era essa a minha esperança.
— Eu te amo, querida. E mais ainda, te respeito.

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Aquelas eram exatamente as palavras que Vanessa sempre sonhara ouvir
do marido.
— Devo avisá-la de que a primeira vez é sempre dolorida.
— Talvez não. Aquela membrana se rompeu quando eu tinha dez anos e
caí do cavalo. Foi uma queda feia. Sangrei tanto que pensei que ia morrer.
— Deve ter sido difícil enfrentar uma situação tão delicada sem poder
contar com o apoio e a compreensão da mãe.
Tony penetrou-a devagar e excitou-a de todas as maneiras possíveis.
Somente quando a percebeu à beira do orgasmo, foi que pensou no próprio
prazer e plantou a semente da vida no corpo da mulher. Um outro homem
poderia ter se sentido enganado com a revelação da esposa, ou mesmo
duvidado das explicações. Entretanto Vanessa merecia seu respeito e
confiança. Nada abalaria o amor que sentiam um pelo outro.
— Meu pequeno Tinteiro — ele falou acariciando-a.
— Como é que você sabe o significado de Encrier em inglês?
— Procurei no dicionário.
— Oh, Tony, você sabia a verdade o tempo inteiro. Nunca consegui
enganá-lo. Por que não me pressionou, não me obrigou a confessar a farsa?
— Porque achei que você tinha seus motivos para manter-se à sombra de
um pseudônimo. Não me achei no direito de interferir.
— Foi por este mesmo motivo que me mantive afastada da história
envolvendo Rothschild. Você devia saber o que estava fazendo.
— Nunca mais lhe esconderei coisa alguma.
— Eu também não.
Os beijos de Tony eram cheios de promessas e ardor. Vanessa não
precisava de mais nada para ser feliz.



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LAUREL AMES, embora goste de escrever histórias passadas no início do
século dezenove, escreve pór experiência própria. Ela, o marido e cinco
cavalos moram numa fazenda. Entre as várias construções destacam-se o
lugar reservado para defumar alimentos, outro construído junto a uma
nascente, para manter os alimentos em baixa temperatura, e também o local
onde ficam guardadas as carruagens. Sobre seus personagens, Laurel diz: “A
exceção dos cavalos, meus personagens, tanto masculinos quanto femininos,
bons ou maus, são uma parte de mim e de ninguém mais.”

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