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ALMAS EM SUPLICIO

Titulo original “Retribution”


CHARLOTTE LAMB
BIANCA Nº113
Digitalização e Revisão - Joyce

— Já soube que sua irmã está pretendendo ir paia Paris com Sirnon Hilliard?— Quando o pai contou a novidade, Laura não
quis acreditar. Annette sempre tinha sido frívola e avoada, mas se envolver com um conhecido conquistador era demais. No
entanto, no momento em que o viu, Laura também ficou fascinada por aqueles olhos verdes enigmáticos. E acabou fazendo
um papel bem mais triste do que a irmã, porque se apaixonou loucamente por um homem que só queria usá-la para destruir
sua família. Tarde demais, descobriu que Simon odiava todos os SJoane e linha se aproximado dela e de Annette apenas por
vingança.

CAPÍTULO I

Quando estava entretida, trabalhando, Laura ficava tao distraída, que o toque do telefone, na sala ao
lado, provocou-lhe um sobressal to. O pincel escapou de sua mão, fazendo uma mancha verde na
tela no lugar errado.
— Droga!
E começando a remover o borrão, com cuidado, ignorou o chamado insistente do telefone, até
terminar a tarefa. Aquela era uma de suas qualidades: era capaz de se alhear de tudo que não fosse
seu trabalho. Sua tenacidade era invejável, pois nada parecia distrair sua atenção.
Quando, finalmente, decidiu atender, a voz do outro lado estava irritada,
— Faz mais de dez minutos que estou chamando! O que você estava fazendo?
— Alô, papai — disse Laura, sem se alterar. Já tinha aprendido, de longa data, que a melhor forma
de lidar com o pai era negar-se a responder perguntas malcriadas. — Como vai você?
Há semanas não falava com ele. George Sloane ausentava-se frequentemente da cidade e, quando se
encontrava em Londres, estava sempre muito ocupado para ter tempo de visitar os filhos.
— Tem visto Annette ultimamente?
Como Laura, George linha a habilidade de passar por cima de detalhes inúteis. Portanto foi direto
ao assunto.
Laura olhou pela janela aberta e admirou o céu. Era uma pena ficar trancada em casa, com um dia
lindo daqueles, mas tinha data marcada para entregar o livro que estava ilustrando.
— Não a vejo desde o aniversário.
— E quando foi isso? — perguntou o pai, impaciente. Laura fez uma careta.
— Há três semanas.
Ele bem que podia guardar as daías dos aniversários. Tinha só três filhos. Não era pedir muito.
— Sou péssimo para lembrar datas. Por acaso, nesse dia, ela mencionou um tal de Hilliard?
— Quem?
— Simon Hilliard, Estive falando com ela, há pouco, pelo telefone. Não consegui fazer com que
voltasse à razão. Cheguei a ficar cansado de tanto falar, mas parece que ela enlouqueceu de vez.
Meu Deus, que desmiolada!
Será que só agora ele tinha descoberto isso? Annetle sempre fazia o que lhe dava na cabeça. Era
uma característica da família, da qual só o irmão escapava. Mas Laura tinha suas dúvidas se Philip
era feliz por ser diferente.
O pai parecia furioso.
— Se ela pensa que vai casar com Hilliard, está maluca. Não quero filha minha envolvida com
um homem daqueles. É um notório mulherengo. Se for vista por aí na companhia dele sua
reputação não valerá mais nada.
— Quem é ele, pai?
—- Dirige a Silteí — disse George Sloane, como se aquilo esclare cesse tudo.
— Siltei — repetiu Laura, devagar com seus olhos azuis muito intrigados, querendo saber que
diabo significaria aquele nome. Tinha ouvido algo a respeito, mas não conseguia lembrar.
— Você deve ter ouvido falar. É uma empresa multinacional de computação de dados. Começaram
há uns sete anos e deslancharam no mercado. Hilliard é um génio em eletrônica. Já trabalhou para
mim.
Ao dizer isso George Sloane tinha um travo de amargura na voz, e Laura teve a impressão de que o
pai se arrependera de abrir mão de Simon Hilliard.
— Ele me dá úlceras — continuou o pai. — Tivemos um desentendimento por causa de
investimentos. Mas isso não tem nada a ver com o presente caso.
— Não mesmo?
O pai era bem capaz de vingança, usando razões pessoais. — Envolver-se com um tipo como ele é
bem típico de Annette. Ouça, Laura, você precisa procurar sua irmã e tentar fazer com que desista.
— Duvido que ela me ouça.
Annette nunca ouvia ninguém. Era linda, mimada e voluntariosa; o pai era o principal culpado pelos
dois últimos defeitos. Ele lhe dera mais atenção do que aos outros filhos, exibindo-a aos amigos e
até ao círculo de conhecidos nos negócios, que a acumulavam de presentes c mimos. Isso deu a
Annetie uma ideia exagerada da pró pria importância.
— Você precisa fazer com que ela a ouça! —- E mais fácil dizer do que fazer.
— Hilliard convidou-a para ir a Paris com ele. Vai haver uma. convenção internacional daqui a
umas duas semanas, e a Siltei vai ser representada. Esse porco teve a petulância de pedir a Annette
para acompanhá-lo. Pedir isso â minha filha! Tenho até vontade de estrangulá-lo!
— Foi Annette quem contou?
Laura estava perplexa. Nunca imaginou que a irmã fizesse esse tipo de confidência ao pai.
— Não, Foi Donald quem me contou.
— E como Donald soube disso?
— A moça que divide o apartamento com ela... como é mesmo o nome?
— Lucy,
— Bem, ela preveniu Donald sobre o que Annette pretende fazer,
- Muito bonito da parte de Lucy -disse Laura com ironia - Posso até imaginar, por que fez isso.
George Sloane deixou essa questão de lado.
- Eu disse a Annette para nem pensar na possibilidade, e tudo o que ela fez foi rir na minha cara
e dizer que já está bastante crescidinha para tomar as próprias decisões. E eu que pensei que era
coisa decidida ela casar com Donald. Fariam um par perfeito. Como uma filha minha pode ser tão
idiota de ter um caso com um homem como Hilliard?
Laura duvidava de que Annette tivesse parado para pensar no assunto. A irmã tinha Donald na
palma da mão e não permitia que um mero compromisso de casamento atrapalhasse seus planos,
Achava que tinha todo direito de se divertir enquanto era jovem, e Donald que não tentasse
interferir em suas aventuras.
— Estou confiando em você para enfiar um pouco de juízo na cabeça daquela maluca.
Laura não gostou do tom autoritário do pai, mas controlou-se, para não mostrar o ressentimento,
— Está bem, vou falar com ela. Mas não posso prometer nada.
Não podia mesmo, conhecendo Annette como conhecia.
— Então, está combinado. Adeus.
Sem desperdiçar tempo com cortesias supérfluas, George Sloane desligou.
Laura colocou lentamente o telefone no gancho, com uma ruga de apreensão na testa. Será que ele
acreditava mesmo que Annette ia aceitar seus conselhos? Será que já tinha tentado a interferência de
Philip, sem resultado? Imagine só se Annette ia dar ouvidos logo a Philip. O irmão era o mais
condescendente de todos eles, Aos vinte e um anos, logo após a formatura, entrou obedientemenie
para a firma da família e, pouco a pouco, subiu de posto, sob o regime ditatorial do pai. Agora,
ocupava um alto cargo executivo, mas não deixava de ser uma sombra apagada de George Sloane.
Tinha até casado com a moça que o pai escolheu para ele. Laura precisava reconhecer que,
aparentemente, era um casamento feliz. Daphne era bastante bonita, esbelta e simpática, apesar de
um tanto monótona. Nunca dava um passo em falso, nem dizia uma palavra fora de hora. Vestía-se
com esmero e era uma perfeita anfitriã. Annette não gostava de Daphne e não procurava disfarçar.
Desprezava o irmão por ter casado sob coação. Sabia que o pai tinha escolhido Donald para seu
marido e era bastante esperta para fingir que aceitava.
— Ele que vá pensando o que quiser — dissera Annette, rubra de indignação. — No fim, a escolha
será minha.
Laura examinou o jeans e a blusa azul. Devia trocar de roupa antes de ir ao apartamento de
Annette? Pareceria mais casual, se fosse vestida assim como estava,
Laura morava no andar térreo de um velho edifício da época vitoriana, para os lados de Hampstead
Heath, com vista para Golders Green. Tinha herdado algum dinheiro da avó materna quando com
pletou vinte e um anos, e comprou o apartamento para se tornar completamente independente do
pai. Ganhava o suficiente, produzindo livros infantis que lhe proporcionavam uma vida confortável,
desde que não fizesse extravagâncias.
Muito cedo, aprendeu que George Sloane usava o dinheiro como uma arma de domínio. Tanto
Philip como Annette aceitavam sua ajuda financeira, sem se dar conta de que ele os mantinha no
cabresto. Annette podia até estar se rebelando agora, mas Laura sabia que era o pai quem pagava
seu aluguel, comprava suas roupas e, ainda por cima, dava-lhe uma mesada, tornando-lhe possível
uma vida quase luxuosa, apesar do magro salário que ela ganhava como ven dedora de uma loja de
modas em Londres.
No fim, Annette teria que se dobrar à vontade do pai, se não quisesse abrir mão do estilo de vida
que tanto apreciava. Era tre mendamente esbanjadora. Não dava um passo sem tomar um táxi,
comprava perfumes e cosméticos às toneladas, e vivia numa roda-viva de atividades sociais.
George Sloane estava usando Laura como mediadora, apenas por que queria evitar um confronto
turbulento com Annette; mas, se fosse o caso, não hesitaria em usar o argumento infalível do
dinheiro. Esse expediente seria usado por último, quando se esgotassem todos os outros meios.
No caminho para a casa da irmã, Laura fez algumas compras para ter um álibi para a visita
imprevista.
Quando Annette abriu a porta, estava gemendo sob o peso da sacola cheia.
— Um cafezinho, pelo amor de Deus! Estou morta de cansaço !
- Mais que surpresa! — disse a irmã, sem entusiasmo.
As duas nunca tinham sido muito chegadas. Os seis anos de diferença que as separavam, algumas
vezes, pareciam intransponíveis.
Annette era muito alta, mas bem proporcionada. Seus cabelos pareciam uma auréola de fogo
contornando o belo rosto muito claro.
Olhou para dentro do apartamento, por sobre o ombro, e desculpou-se, com um trejeito de
desânimo:
— Não repare, isto aqui está uma bagunça! Hoje à noite vou dar uma festa e preciso me apressar
para arrumar tudo.
— Uma festa? — Laura apoiou a pesada sacola no quadril. — E por que não me convidou?
— Pensei que você soubesse. .Claro que está convidada. Annette não parecia sincera.
— Como é? Posso ou não entrar? Estou quase quebrando o braço. Com relutância, Annette deu um
passo atrás, abrindo caminho.
— Claro. Largue a sacola aí. Vou coar um cafezinho para você. Bem rapidinho, porque preciso
arrumar tudo antes das oito.
Laura não ligou para a falta de hospitalidade. Entrou e colocou a sacola no chão.
Ao olhar em torno, teve a impressão de que uma bomba tinha explodido na sala de estar. A
desordem era total. As cadeiras estavam cheias de discos e viam-se roupas espalhadas até pelo chão.
— Minha Nossa!
— Estava começando a pôr em ordem.
— Depois que eu tomar café, vou dar uma mãozinha — prometeu Laura, indo na direção da
cozinha.
Annette a seguiu.
— Oh, você é um anjo caído do céu. Não saberia por onde começar.
Laura acreditou, pois ela também não sabia por onde começar. Aquela limpeza ia levar horas.
Acabou preparando o café, enquanto Annette ficava deitada, languidamente, numa poltrona,
passando os dedos pela cabeleira ruiva,
— Donald vem à festa? — perguntou Laura, inocentemente.
— Por que você não pergunta se papai vem?
— E ele vem?
A irmã lançou-lhe um olhar atravessado.
— Claro que não! Nem ele, nem Donald, pode crer.
— Donald não está agradando?
— Nunca agradou, se quer saber.
Laura ergueu as sobrancelhas, como se estivesse muito admirada, mas ficou calada.
— Só mesmo na cabeça de papai — acrescentou Annette. Laura se fez de desentendida e passou-
lhe uma xícara de café.
— E então, você vem? — perguntou a outra, de má vontade.
— Com todo prazer. Vou trazer uma garrafa de bebida, está bem? Annette mordiscou o dedinho
mínimo.
— Tem visto papai?
— Faz meses que não o vejo.
Era verdade. Aquela conversa, pela manhã, tinha sido a primeira, desde o Ano Novo.
— E Donald?
— Nunca sei de Donald, a não ser pelos jornais, na seção financeira que, por sinal, não leio.
— Ele é um chato — disse Annette.
— Nem as orelhas se salvam — murmurou Laura.
A irmã levantou a cabeça, surpresa, e Laura continuou:
— Você reparou como são pontudas? Quando ficar careca, vai parecer um daqueles homenzinhos
verdes de Marte.
Annette deu uma risada.
— Tem razão. Nunca tinha reparado.
— Sou paga para observar coisas desse tipo.
— Vai haver alguém muito especial na festa.
— Vai? — Laura deu uma olhada no relógio de pulso, evitando o assunto de propósito. — Tome
esse café, para dar tempo de arrumar o apartamento antes que eu vá embora.
Não podia demonstrar muita curiosidade, pois isso levantaria suspeitas.
— Dá tempo de sobra. É bom mesmo que você venha. Vai gostar de Simon.
— Simon?
— Simon Hílliard. Ele é fantástico!
— Ê seu último romance? Porque o último é sempre fantástico. — Laura tomou mais um gole de
café. — Nunca vi ninguém con quistar tantos homens, tão depressa,
Annette pareceu lisonjeada.
-Ele é diferente, é especial.-Vendo o olhar de descrença de Laura, insistiu: — É "mesmo''.
— Se você diz...
— Espere até conhecê-lo. Vai ficar doida por ele.
— Espero que não.
— O que disse?
— Você não ia gostar que eu me apaixonasse pelo seu homem, não é mesmo?
Annette deu uma risadinha, sacudindo a cabeleira para trás. —- Não ia ser nada bom para você, se
isso acontecesse. Ele é louco por mim.
Laura ficou impassível, mas estudou com mais atenção o rosto da irmã. Havia uma certa
insegurança ansiosa na maneira como tinha dito aquilo, que deixou Laura apreensiva. Até então,
eram sempre os ho mens a perseguir Annette: agora, parecia estar acontecendo o contrário.
O que Lucy acha dele? — perguntou, casualmente.
Lucy Allan dividia o apartamento com Annette e Laura respeitava os julgamentos dela. Lucy era
bem mais velha do que sua irmã e bastante, inteligente.
— Ora Lucy . , . — Annette encolheu os ombros.
— Ela não gosta dele?
— Disse que é muito sexy — desconversou, evasiva.
— Mas não simpatiza muito, não é isso?
Annette pareceu se irritar. E sua resposta não foi convincente:
— O que Lucy pode saber sobre homens? Laura terminou de tomar o café e levantou-se.
Trabalharam juntas por mais de uma hora, depois Annette voltou a se esticar no sofá, só olhando a
irmã. Laura lançou-lhe um olhar divertido.
— Só espero que você não fique assim pregada, na hora da festa. E quais vão ser os comes e
bebes? fá está tudo providenciado?
— Pipocas, amendoins e salgadinhos de pacotinho.
— E as bebidas?
— Cada um trás sua cota. Ê praxe.
— Ah, sei ... Vai ser daquelas festas tipo "cooperativa"?
— Simon prometeu se encarregar do uísque.
— Quanta generosidade!
Pelo que Laura soube através do pai, Simon Hilliard estava em condições de fazer isso, e muito
mais.
- Ele é incríveí! — Annette tentou dar a maior ênfase ao comen tário. — Espere, espere só até
conhecê-lo! — Mordeu o lábio e resol veu contar a novidade. — Vou com. ele para Paris —
confidenciou, olhando para Laura.
- Só espero que faça bom tempo — disse ela, pegando a sacola e encaminhando-se para a porta. —
Pelo menos, garanta um frasco de Patou. Um fim de semana em Paris merece pelo menos isso,
Annette ficou escarlate.
— Isso não foi delicado da sua parte — protestou, amuada.
— Ora, essa não vai ser a finalidade da sua viagem a Paris? Desculpe. Eu só estava pensando onde
ouvi falar dele , . .
— O que quer dizer com isso? O que andou ouvindo? Donald deve ter falado com você.
Annette tinha subitamente levantado do sofá e parecia a ponto de lei um chilique.
— Não falo com ele há meses. Só ouvi comentários sobre a fama de Simon Hilliard com as
mulheres.
- Ah, fofoca de colunistas sociais! Mentiras deslavadas! Laura sorriu.
— Claro ... — disse, calmamente, abrindo a porta.
— E são — insistiu Annette, indo atrás dela.
— Acredito em você — afirmou, num tom de voz de quem não acredita a mínima.
— O que pensa que eu sou? Uma vestal? Por que eu não poderia ir para Paris com ele?
— Não vejo porque não. O que faz da sua vida só compete a você, querida. Eu. pessoalmente, não
gostaria de ser classificada como mais uma das conquistas fáceis de Simon Hilliard, mas talvez
você não se importe.
Saiu, enquanto Annette bufava de ódio, e apressou o passo, antes que a irmã a atingisse com alguma
malcriação.
Conhecia bem o caráter de Annette. Ela podia gostar de boa vida, podia ser inconsequente, mas era
do mesmo estofo do pai. Precisava de segurança, detestava correr riscos e se tinha em alta conta,
não admitia que rissem dela. Se chegasse a pensar que Simon Hilliard ia tratá-la da mesma forma
como tratava as outras mulheres, ou seja, conquistá-la e depois jogá-la fora como um lenço usado,
ficaria de prevenção contra ele. O problema era que sua vaidade a fazia acre ditar que Simon estava
sinceramente apaixonado. Tentar reprová-la, como costumava fazer o pai, só serviria para que se
tornasse ainda mais obstinada. O caminho mais certo era obrigá-la a raciocinar sozinha; e Annette
nunca faria isso, se desconfiasse de que Laura a censurava.
Naturalmente, havia a hipótese de o pai estar errado em seu julga mento. Talvez Simon Hilliard
realmente amasse Annette. Afinal, Geor-ge Sloane tinha uma opinião bem parcial sobre o rapaz.
Naquela noite, quando terminava de se aprontar para a festa, o telefone tocou. Seria o pai, já
querendo se certificar de que ela havia conversado com Annette?
Mas não era o pai. Por um ou dois segundos, não conseguiu reco nhecer aquela voz pausada e
grave.
— É você Donald?
— Como está passando, Laura?
Donald Foulds sempre começava as conversas de modo formal.
— Estou bem, e você?
— Ótimo — disse, inexpressivamente. — E seu trabalho, como vai indo?
Esse era um ponto a favor de Donaíd: levava seus livros infantis tão a sério como seu editor.
— Vai bem. E o banco?
Donald permitiu-se uma pequena brincadeira:
— Ate agora, não estamos perdendo dinheiro.
— Aposto que não. — Laura riu.
Depois de fazer uma pausa, indicando que ia finalmente tocar no motivo de seu telefonema,
perguntou:
— Tem visto Annette?
— Estou de saída para ir à festa que ela vai dar.
— é . .. ouvi falar nessa festa — ele admitiu, vacilante. — Posso perguntar se ... se você está indo
com alguém?
Laura podia prever qual seria a próxima pergunta, fazendo uma careta,respondeu:
— Bem. . . não, não vou com ninguém.
— Você se incomodaria se eu a acompanhasse?
Donald deu uma risada tão fora de hora, que ela chegou a se irritar. Annette não o tinha convidado;
era óbvio que não queria sua pre sença. O que ía responder? Fez uma pausa suficientemente longa
para procurar uma desculpa, mas não encontrou nenhuma.
- E muita gentileza.- Donald suspirou, aliviado.
- O problema é que eu e Annette não estamos numa boa, ultimamente. Ela tem andado por aí com
um sujeito que não simpatizo muito e tem estado um tanto arisca comigo.
- Será que ela não vai estranhar, se eu aparecer com você à tiracolo?
Donald pareceu considerar o problema por um momento.
- Mas nós dois nos conhecemos há anos! — disse, por fim, ani mado. — Por que não podemos ir à
festa juntos?
- E por que deveríamos ir? — Laura contra-atacou, imaginando se ele estava em seu juízo perfeito.
Costaria muito de dizer-lhe umas verdades. Como, por exemplo, que correr atrás da irmã daquele
jeito ia provocar um efeito diametral mente oposto ao desejado, Mas Laura não podia dirigir a vida
de lodo o mundo. Queria era sossego,
- Pois bem, venha me buscar dentro de uma hora. E não esqueça de trazer uma bebida,
— Que bebida? — perguntou, já afoito.
- Escolha você. Uísque, gim, vodca, o que quiser.
Ele apareceu com as três. E, quando exibiu orgulhosamente as gar rafas, Laura achou que Donald
não tinha o menor senso de humor.
— Ora, que elegância! — ela comentou, referindo-se ao terno muito bem talhado, mas
obviamente inadequado para o tipo de festa que a irmã planejara.
Donald tinha passado há muito dos trinta anos. Não se podia dizer que fosse bonito, mas tinha um
rosto bastante agradável. Laura ficou imaginando o que aquele homem vira em Annette, além do
óbvio. Que assunto poderiam ter os dois? Séculos os separavam. Por mais que se esforçasse, não
conseguia vê-lo casado com a irmã. Annette faría peteca dele e, com certeza, um infeliz.
Pobre Donald, pensou, olhando-o de soslaio, enquanto ele dirigia o carro em direção ao prédio de
Annette. No dia em que seus sonhos se tornassem realidade, ele teria um colapso.
Donald pigarreou, preparando-se para a pergunta crucial.
— Ela já falou com você sobre Hilliard?
— O nome veio à baila — admitiu, cautelosa.
Ele corou.
— Parece que esse sujeito não tem boa reputação com mulheres.Annette não sabe no que está se
metendo.
Laura suspeitava de que a irmã sabia bem demais, Olhou, pensativa, para o rosto ansioso do
rapaz.
— Como é ele.?
— Inteligente — Donald respondeu, sem titubear, pensando no rival em termos comerciais. —
É perito em eletrônica e exportação.
— Estou falando dele como homem.
— Ah! — Donald franziu a testa. — Como já disse, sua reputação não é das melhores. É do tipo
inconstante. Fico preocupado com Annette. Ela é jovem e parece hipnotizada por ele.
Laura olhou-o, espantada,
— Não sou bobo, Tenho consciência de ser velho demais para ela, mas Annette precisa de alguém,
que a compreenda e cuide dela,
— De acordo. Mas isso de aparecer na festa comigo não leva a nada. A não ser ...
— A não ser, o quê? —- ele ficou subiiamente esperançoso.
— A não ser que Annette pense que eu roubei você dela. Donald pareceu alarmado com a ideia.
Era um bom partido e sem dúvida, as mulheres tinham dado em cima dele no passado. Olhou
para Laura de esguelha, e ela deu uma sonora risada.
— Não, meu caro Donald, pode ficar tranquilo que não tenho más intenções com você,
Muito encabulado, ele se defendeu.
— Pelo amor de Deus! Nem pensei que tivesse.
— Só estava pensando em voz alta. Que tal darmos a Annette a impressão de que estou mesmo com
más intenções? Ele não pareceu gostar da sugestão.
— Não. Acho que não é o caso.
— Annette é extremamente possessiva. Donald ficou ofendido;
-Ora, sim senhora! Está querendo dizer que ela ia me querer só se alguém mais me quisesse?
Pelo visto, esta noite não estou brilhando pela diplomacia. Não seja tão sensível, Donald.
Vá por mim. Meu conselho é que não dê a ela antas explicações sobre sua presença na festa e não se
admire, Annette não o receber como ao príncipe Charles.
- Entendi o que quer dizer. -Ainda bem.
- E o que mais sugere?
-Fique o tempo todo grudado em mim feito sarna e procure ser o mais amoroso possível comigo, se
conseguir.
- Santo Deus!
 Já disse: se conseguir.
 Vou tentar.
- Mas não exagere. -Donald riu, e ela o encarou.
- Não vou avançar o sinal, fique tranquila — prometeu, e Laura achou que, afinal, ele tinha mais
senso de humor do que imaginava.
Como previa, Annette pareceu chocada quando deu de cara com Donald. Laura pegou a mão dele na
hora em que a porta foi aberta e sorriu alegremente para a irmã,
- Alô! Trouxemos algumas bebidas!
- O que ele faz aqui? — perguntou Annette, à meia-voz,
- Donald e eu jantamos juntos. E então, resolvi trazê-lo. - Você está muito bonita. Não acha
Donald?
Annette estava mais do que bonita. Eslava deslumbrante, numa calça de veludo que parecia ter sido
costurada no corpo e com uma blusa de seda preta. Sua aparência era realmente exuberante, os
olhos brilhavam e a cabeleira solta emoldurava o lindo rosto.
Donatd deu-lhe um rápido olhar de apreciação.
- É . , . está fantástica — concordou, e virando-se para Laura: - Mas você também está. Já lhe
disse isso antes.
Laura retribuiu com um olhar lânguido. —. Não me importo que repita.
- Melhor assim, pois pretendo continuar sendo repetitivo por muito tempo — respondeu, e Laura
ficou admirada com seu talento de ator,
Annette olhou de um para o outro, muito séria. Nesse momento, alguém do grupo, que já enchia a
sala, a chamou.
Laura arrastou Donald para o meio dos convidados. Lucy estava do outro lado da sala, preparando
drinques, e os recebeu com uma expressão de alívio, quando viu as garrafas que tinham levado.
— Chegaram em tempo. Nossa adega estava nas últimas.
Lucy era secretária de uma das maiores companhias aéreas da In glaterra. Esguia, calma e
ponderada, parecia uma estranha escolha para amiga de Annette. Muitas vezes Laura esperou que o
bom senso de Lucy influenciasse a irmã. Mas ela não dava mostras de sofrer qualquer influência
benéfica.
— Se você tivesse um pouco de juízo, não apareceria por aqui. Por que não a esquece, de uma vez
por todas? — disse Lucy, olhan do para Donald, com desaprovação.
— Já fiz isso — ele respondeu, muito tranquilo, passando o braço
pela cintura de Laura.
— Oh, desculpe, eu não sabia: — Lucy encarou Laura, perplexa,
— Bem, então divirtam-se.
— É o que vamos fazer — garantiu Donald, pegando um uísque que tomou de um só trago. —-
Vamos dançar — convidou, colocando o copo na mesa.
Laura sentiu-se como alguém que, por descuido, tivesse deixado o génio escapar da garrafa.
— Por favor, não abuse — sussurrou no ouvido dele, quando saíram abraçados para o meio da
sala.
— Estou farto! Na verdade, o que eu queria mesmo era me jogar de cabeça no rio Tamisa.
— Pobrezinho! — Laura reprimiu uma risada.
— Se você tivesse se apaixonado pelo menos uma vez na vida, não seria tão pouco compreensiva.
— É .um inferno, não é? — Laura não conseguia levar aquele amor a sério. A cara dele não
ajudava.
— Não ria! — ele zangou.
— Sinto muito.
Donald estava tentando acompanhar os movimentos graciosos da parceira, mas seu corpo não
obedecia. Olhou-a mais amuado ainda.
Laura era esbelta, com cabelos mexados, semilongos e naturalmente encaracolados, num rosto de
traços finos e bem-proporcionados. O nariz era pequeno e reto os grandes olhos, azuis e muito
expressivos, e a boca, carnuda. Parecia frágil e despertava nos homens o instinto de proteção, até
eles descobrirem o que se escondia atrás daquela aparência enganadora. E sempre acabavam
ofendidos por.ela não ser aquela criaturinha meiga e maleável que imaginavam.
Sim voz tinha um beio timbre, mas podia, às vezes, tornar-se tão zombeteira a ponto de fazer com
que alguns homens se sentissem diminuídos. Nunca tinham certeza se estava rindo deles ou não,
mas sempre temiam que estivesse, e não gostavam disso.
Laura havia crescido num lar onde as emoções eram malvistas. A mãe sempre foi severa e ausente,
e o pai, indiferente. De forma que ela aprendeu a reprimir suas emoções e a julgar a dos outros à
distância. Via as pessoas de maneira fria e racional, e os homens ressentiam-se dessa atitude.
Seu tipo ajudava a formar a imagem de mulher fria.
Para ela, apaixonar-se, como observava nos outros, era algo ridículo e doloroso, e sempre evitava
se envolver.
Olhando para Donald, ponderou a que extremos podia levar uma paixão, O amor era um sentimento
irracional e despudorado.
- Ela é tão linda — o rapaz comentou, rouco. — E agora, está com ele, com aquele nojento!
Laura deu um jeito de ficar de frente. Annette também estava dançando, com o rosto iluminado de
felicidade. Seu par, inclinado sobre ela, olhava-a dentro dos olhos. Ao vê-lo, Laura teve uma estra
nha sensação. Depois de tudo que tinha ouvido falar dele, Simon Hilliard era uma surpresa.
Seu perfil moreno e bonito não denunciava aquela espécie de fraqueza indulgente que ela esperava
ver. O nariz reto parecia cinzelado a buril e a linha do queixo era forte e voluntariosa. Mas não
hnvia nada em sua aparência que desse uma pista da melhor maneira para lidar com ele.
De repente, Simon deu risada de alguma coisa que Annette disse e jogou a cabeça para trás,
tornando visíveis seus olhos verdes e as espessâs sobrancelhas negras. Olhos verdes e zombeteiros,
com pupi las negras, raiadas de dourado.
Laura lembrou de um gato, mas não um gato doméstico — um felino selvagem, um animal
perigoso, movimentando-se com aquela graça indolente que antecede o bote fatal,
Annette o olhava como hipnotizada, e ele também a fitava com a placidez do tigre satisfeito.

CAPÍTULO II

— O que acha dele? — perguntou Donald.


— Prefiro guardar meu julgamento para mais tarde.
. — Gostaria de esmurrar aquele nariz — Donald disse por entre os dentes, com surpreendente
beligerância.
— Vamos sentar um pouco? — Laura não queria que Donald fizesse um papelão, expondo-se
ao ridículo na frente de Annette. Além disso, ele dançava muito mal.
— Sentar onde? — A sala estava superlotada.
— Por enquanto, vamos arranjar um lugarzinho encostados na parede — ela sugeriu,
empurrando-o delicadamente.
— A música está alta demais — reclamou Donald, vasculhando a sala a cada segundo, procurando
Annette.
Comunicar-se com ele já estava se tornando uma tarefa difícil. Parecia perdido dentro de seu
sofrimento, sem ter o que dizer de aproveitável.
— É um. rock da pesada — esclareceu Laura.
Ele olhou para ela, com o copo na mão, cada vez mais afogueado.
- Bonita roupa
— Obrigada.
Laura começou a rezar para que ele não ficasse totalmente em briagado. Positivamente, não se
sentia disposta a lidar com um homem naquelas condições,
- Sabe que você é uma linda moça? — Donald elogiou, num tom quase agressivo. — Muito bonita,
mesmo.
- Mais uma vez. obrigada.
Pressentiu que ele ia se tornar inconveniente. No momento, só chiava fazendo os primeiros ensaios,
mas logo passaria dos limites.
Annette surgiu de repente ao lado deles e olhou para a irmã sem grande simpatia,
— Estão se divertindo?
A pergunta era maldosa, mas Laura sorriu amavelmente.
- Muito. É uma festa fabulosa. Estamos adorando,
- Sim, fabulosa — Donald repetiu, esforçando-se para parecer sincero.
Annette olhou-o, lânguida, e sussurrou:
— Você não dançou comigo nem uma vez.
O pobre homem ficou vermelho e mudo de espanto.
— Agora, dance comigo — ela convidou, fazendo beicinho, justiça seja feita. Donald tentou
valentemente opor resistência.
Ficou tenso e balbuciou;
— .Ora ... eu ... bem . . .
Annette abraçou-o, colando o corpo ao dele.
Então, é isso? Pensou Laura. Era aquela maneira desinibida que tanto atraía Donald? Ele era tão
tímido e sizudo, que o oposto devia causar-lhe um efeito demolidor. Era um introvertido fascinado
pela extroversão de Annette e incapaz de lutar contra aquela força mag nética.
— Então, não quer dançar comigo? — Annette insistiu, com um olhar de encantador de serpentes
Donald engoliu em seco e virou-se para Laura. como um afogado prestes a submergir.
Ela decidiu deixá-lo afundar; pois, aparentemente, não tinha forças para salvá-lo do naufrágio.
— Não se importe comigo.
— Não se importe com ela — repetiu Annette, com uma doçura melosa, e o arrastou para o meio
da sala.
Laura resolveu tomar mais um drinque.
— Bem, parece que seu romance não durou muito, não é? — comentou Lucy, com um sorriso-
piedoso. — Eu podia ter prevenido que Annette odeia abrir mão do que lhe pertence.
Triste isso, não? — disse.Laura, maliciosa, e virou as costas. Alguns de seus amigos tinham
acabado de chegar e foi em díreção . dos recém-chegados, quando alguém deu um passo atrás no
momen to em que ela ia passando e derrubou seu copo. Uma mistura de gim e suco de laranja
encharcou sua saia de veludo preto.
— Droga!
-— Desculpe, fui um desastrado — disse o homem, agachando-se para verificar os estragos e
tirando um lenço do bolso para secar a saia.
Laura olhou por sobre aquela cabeça de cabelos negros, com irónica descrença.
— Pronto. Está tudo resolvido: a bebida não chegou a penetrar no tecido — garantiu e sua
expressão mudou quando seus olhares se cruzaram.
Laura o examinou calmamente, sem cerimónia. Alto e esguio, ves tia camisa e calça pretas, que
alongavam ainda mais seu corpo. Os cabelos tinham um brilho de vitalidade e estavam penteados
com displicência. Laura lembrou de Annette acariciando aqueles cabelos, enquanto dançava, há
pouco.
— Acho que não nos conhecemos, não é mesmo? — ele pergun tou, parecendo divertir-se com
aquele exame prolongado. — Se tivés semos sido apresentados, eu nunca a esqueceria.
Laura aceitou o elogio, impassível. Sabia que também se lembraria dele. Era o tipo de homem que
não passava despercebido. Agora podia entender por que Annette se agarrava a ele como um cipó.
- Sou Simon. — Analisou-a dos pés à cabeça e, no final, sorriu como se aprovasse o que via.
Laura resistiu valentemente à tentação de gostar dele.
— Eu sei.
Ele notou a frieza de sua voz e ergueu uma daquelas bem traçadas e negras sobrancelhas.
— Causei má impressão? Pois garanto que está enganada. Sou uma pessoa agradável de se
conhecer.
— Vou lembrar disso — prometeu Laura, dando meia volta.
Ele a agarrou pelo braço num aperto que, sem ser doloroso, deixava claro que não queria que fosse
embora.
— Éi! Aonde vai? Nem me disse seu nome, nem deixou cair o sapatínho de cristal para que eu
possa mandar um arauto descobrir onde você mora.
Os olhos verdes sorriam, zombeteiros, e Laura ficou vigilante.
— Ah! Você não vai precisar de um arauto. Annette pode lhe dar todos os detalhes a meu respeito.
Se não conhecesse a fama dele, por certo ficaria envolvida por seu charme. Parecia muito seguro de
si, seguro do efeito que causava nas mulheres.
— Annette é sua amiga? — Ela captou um lampejo de curiosida de nos olhos verdes. — É
manequim da loja onde ela trabalha? Você é suficientemente magra e extremamente feminina, mas
seria bastante alta para a profissão? Bem, tem uma altivez que compensa a falta de estatura.
Laura deu um sorriso entediado.
— Você já trabalhou para meu pai, não é mesmo? — perguntou, partindo deliberadamente para o
ataque.
Os olhos verdes se apertaram. Aproximando-se mais, encarou-a, sério.
— Você é Laura Sloane. Entendo ...
— Imagino que tenha se indisposto com meu pai — disse Laura, com uma cortesia convencional,
que não conseguia disfarçar inteira mente seu antagonismo.
— Ele contou? Por acaso disse qual foi o motivo? Ele queria eco nomizar no esquema de segurança
da empresa, e o índice de aci dentes era perigosamente alto.
— Não costumo me envolver nos negócios de meu pai.
Até podia ser que Simon Hilliard tivesse razão nas acusações que fazia, mas o pai nunca havia
discutido esses assuntos com ela.
— E nem está interessada, não é? — Seu olhar era de desprezo e censura. — Desde que os livros
mostrem que a firma está dando lucros, o resto não importa.
— Os lucros ou os prejuízos da empresa de meu pai não me afetam.
— Você só tem que depositar sua pensão no banco e dormir tran quila, não é assim?
— Eu não recebo pensão.
— Não recebe? -— Era óbvio que não acreditava.
— Você não tem nada a ver com isso.
— Você deve ser farinha do mesmo saco. Apesar disso, é muito diferente de sua irmã.
— Só posso agradecer — respondeu, recuperando o controle da situação.
Um estranho brilho iluminou aqueles olhos verdes. Laura não podia garantir que fosse uma
expressão de rancor.
— imagino que seu pai desaprove meu relacionamento com An nette..
— Não posso dizer que ele esteja exultante.
— Ele prefere Foulds. Naturalmente, Foulds é um tipo mais confiável foi feito para o casamento.
!— E você, não? Ele riu, cínico.
— Oh, eu, não! Fico contente que tenha percebido logo. Ela já disse que vai a Paris comigo?
Aquilo estava levando a guerra para o campo inimigo, como uma estratégia de vingança.
Laura sustentou o olhar zombeteiro com uma expressão glacial.
— Ela já contou.
— E o que você disse?
— Pergunte a ela,
— Vou perguntar. Tenho a impressão de que você desaprova. Mas ela é maior de idade. Se está
com vontade de viajar comigo para Paris, é problema dela, não acha?
— Tirou as palavras da minha boca.
O rosto dele ficou perigosamente sombrio, apesar de ainda man ter aquele sorriso arrevezado.
— Ela vai, e você sabe disso.
— Acha?
Laura estava lutando para manter a voz neutra, mas começava a ficar muito zangada. Ele tinha se
mostrado hostil desde o momento em que descobriu que era filha de George Sloane. Tinha falado
sobre desavenças relativas a problemas da empresa, mas Laura pressentia que havia algo de mais
pessoal naquilo tudo. Por quê?
— Sim, ela vai — ele repetiu.
— Se fosse você. não apostaria nisso.
— Oh, se é o caso de apostas, qual é o prémio que você oferece? Ela. corou.
— Não acho graça!
— Não pretendia ser engraçado. A sugestão foi sua.
— Não devia levar a sério frases feitas. Sabe muito bem que não tive essa intenção.
— As mulheres nunca têm intenção de dizer coisa alguma. Elas sempre falam aereamente, sem
saber o que estão dizendo.
— Eu nem sonharia em apostar se você vai ou não seduzir minha irmã. — respondeu, surpresa de
não estar conseguindo controlar o nervosismo. Ele parecia ter o dom de mexer com seu sistema
nervoso.
— E o que a faz pensar que ainda não seduzi? Laura segurou-se para não perder a compostura.
— Se fosse assim, ela não estaria se vangloriando por ir com você a Paris.
— É muito perspicaz. Tem razão. Ela não faria isso. Nem eu. — Fez uma pausa e acrescentou: —
Mas vou conseguir.
— Parece que você acha isso muito engraçado. -— Eu não usaria essa palavra.
Laura tinha uma variedade de outras palavras mais adequadas na ponta da língua, mas a raiva era
tanta que nenhuma delas pareceu bastante forte, e ficou muda.
— Vamos, coragem! — provocou. Ela o fuzilou com o olhar e ele sorriu. — Saiba que posso ler
sua mente.
— Ótimo. Assim, me poupa o aborrecimento de dizer o que penso de você.
— Vá em frente. Como a maioria das pessoas, adoro que falem de mim.
— Você é um tipo muito presunçoso, sr. Hilíiard!
— E você tem uma voz muito melodiosa. Alguém já lhe disse isso?
Aquela observação, a desarmou. Desviou o olhar, com a impressão de que aquela era exatamente
a reação que ele queria provocar.
— Muito fria e sensata. Seu olhar exprime tudo. Você é quase um iceberg, não é mesmo? Pelo
menos, na superfície.
— Devo tomar isso como um elogio?
— Foi só uma constatação. A seu modo, você é tão estonteante como sua irmã, mas, se eu não
soubesse, nunca poderia imaginar que as duas têm o mesmo sangue. Você é mais do que um
desafio.
— E é isso que as mulheres representam para você? Um desafio?
— Oh, elas têm um cantinho reservado na minha vida. Mas con fesso que me canso facilmente.
Acho que as mulheres têm um valor muito fugaz em matéria de divertimento.
Aquilo confirmava o que ela já tinha ouvido falar dele,
— E depois - que se cansa?
—- Eu lhes dou um beijo de despedida e as acompanho até a porta da rua. Sou um homem muito
ocupado, para'perder tempo com sutilezas.
Era fácil imaginar como tinha conseguido fascinar Annette. As vitórias da irmã sobre outros homens
deviam ter estimulado o de sejo dele.
— Você é uma espécie de computador do amor, não? Mas Ahn nette é muito jovem e não deve ser
ferida.
Simon ergueu as sobrancelhas, zombeteiro.
— Tenho a impressão de que não conhece sua irmã muito bem. Ela é como uma labareda. Não vai
se sentir ferida, se eu a mantiver acesa durante toda a viagem a Paris.
Laura procurou uma resposta a altura para aquele insulto, mas não encontrou.
— No seu lugar, srta. Laura Sloane, eu cuidaria da minha própria vida. Posso garantir que sua irmã
tem uma pele bem curtida, difícil de arranhar com uma só dentada.
Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, Annette apareceu inesperadamente ao lado deles.
— Ah, vocês já se apresentaram — disse, com visível desgosto.
— Você não tinha me contado que sua irmã era uma moça tão bonita.
Mas Annette não parecia ter o mesmo senso de humor.
— Vamos dançar — quase ordenou, puxando-o pelo braço. Donald estava no encalço de Annette e,
ao ver o outro homem bloqueando seu caminho, apertou os maxilares, com o rosto em brasa.
Parecia fora de si, e Laura receou que fosse fazer uma cena. Segurou o braço dele, rapidamente.
— Estou com uma forte dor de cabeça. Podemos ir embora agora? Donald pareceu não gostar da
interferência, mas estava perturbado demais para recusar o pedido.
— Claro — respondeu, desanimado, permitindo que Laura o arrastasse para longe dali.
Com muito custo, acabou por convencê-lo a deixar que dirigisse o carro.
— Não vai querer ser multado por excesso de velocidade, vai? Donald afundou no assento,
derrotado.
— Agora, você sabe o que eu queria dizer, quando falava dele.
— Se sei!
— E qual a sua opinião?
— Vamos deixar isso pra outra hora.
Donald deu um suspiro vindo do fundo da alma.
— Annette está apaixonada por ele.
— Negativo! — disse Laura, com segurança.
Ele se endireitou no banco, com a esperança brilhando nos olhos congestionados.
— Você acha que não?
— Acho.
Annette tinha muito em comum com Simon Hilliard para se apai xonar por ele. Tinha razão: ela era
uma labareda. Inflamava-se à toa, mas o fogo durava pouco. E tinha a pele bastante dura para deixar
que alguém a machucasse. Gostava demais da imagem que fazia de si mesma. Era um narcisista e
só queria namorar Simon por vaidade. Se ele tivesse um caso com ela e depois a largasse, Annette
não ficaria ferida. A não ser no amor próprio.
— Ela parece muito entusiasmada por ele — Donald insistiu.
— Não nego que ela o ache muito excitante. Mas isso não tem nada a ver com amor.
— Gostaria que ela me achasse excitante.
Laura olhou-o de lado. Por uma noite, já tinha suportado o sufi ciente. Em pequenas doses, até que
Donald era um sujeito aceitável, mas a companhia dele já estava começando a ficar indigesta, e ela
não tinha mais estômago para ouvir lamúrias.
— Eu deveria ter quebrado a cara dele!
— Isso ia ajudar muito mesmo!
Era só olhar para Simon Hilliard para saber que, se houvesse um confronto entre os dois, Donald
cairia estatelado no chão, no primei ro rounâ. E Annette adorava vencedores. Teria lançado um
olhar de piedade desdenhosa a Donald, e ficaria ainda mais deslumbrada por Simon,
Claro que não podia dizer isso ao rapaz. Seu ego já tinha sido bastante massacrado por uma noite.
— O que é que ele tem que eu não tenho?
Laura preferiu não responder. Levaria a noite inteira para explicar. Olhando-a acusadoramente, ele
se queixou:
— Você tinha dito que não gostava dele.
— Disse e sustento. — Virou na esquina da rua .onde ele morava. — Vou deixar você em casa e
ficar com o carro até amanhã. Você não se importa de ir buscar logo cedo, não é?
— Está bem. Acredito que você não goste dele.
— Detesto, se quer saber.
No dia seguinte, disse a mesma coisa ao pai. Tinham ido almo çar juntos, e era a primeira vez que o
via, depois de meses. Achou-o muito envelhecido. A roda-viva dos negócios tinha deixado marcas
profundas naquele rosto.
— Como vai a firma? Ele encolheu os ombros.
— Tivemos uns problemínhas. E quem não os tem? Cada ano fica mais difícil fazer novos
negócios. E sobre Annette, o que você está fazendo para pôr um ponto final no caso? Não vai querer
deixar as coisas como estão, vai? Bem que lhe disse que aquele homem era um canalha. Um sujeito
sem escrúpulos. Veja só a maneira como nos deixou: carregou nossos melhores técnicos em
eletrônica para mon tar a Siltel. Mas o que foi que achou dele?
— Em resumo, eu o detestei.
— Ele é esperto — disse George Sloane, com indisfarcável admi ração. — Não segue muito a
ética, quando quer alcançar seus objetívos. Tem espírito de liderança e muita energia, e conhece o
ramo de computadores a fundo. Tenho vontade de morrer, quando penso que perdi um elemento
desses.
Laura fazia ideia: para o pai, os negócios estavam acima de tudo. Por causa deles, tinha afastado
gradativamente a esposa da vida dele. Raramente estava em casa e, quando estava, tratava Mariel
Sloane com indiferença. Ele encarava tudo e todos em termos de utilidade imediata, e a esposa
havia perdido essa utilidade logo no começo do casamento.
A empresa era o que mais o interessava na ocasião. Mariel era filha única e George queria ter o
controle da firma do pai dela. Uma vez casado perdeu todo o interesse pela mulher; só a via como a
mãe de seus filhos. Pelo que Laura sabia, o pai não tinha sido infiel. Era de temperamento frio
demais para se envolver sentimentalmente com outras mulheres. Tão frio e indiferente, que levou
Mariel a uma morte prematura. George Sloane não era como Simon Hilliard que, pelo menos, se
interessava pelas mulheres sexualmente. George simplesmente, as ignorava.
Olhando para aquele rosto cansado e abatido, Laura imaginou se realmente havia algum problema
sério na firma ou se ele estava apenas envelhecendo.
— Mesmo que ele tivesse intenção de casar, eu faria tudo para impedir — disse o pai, — Hilliard
por as mãos na minha empresa! Transformaria Philip num joguete. Philip não é parada pra ele. —
Pegou o copo de vinho, tomou o restante e tornou a encher. — Para ser franco. Philip não é parada
pra ninguém — acrescentou, e Laura. de repente, sentiu pena do pai.
Percebeu que o irmão era uma decepção para o pai. Philip só fazia o que ele mandava e se isso, um
dia. tinha sido uma qualidade que apreciava no filho, agora se dava conta de que aquela
maleabilidade era mais uma falha do que virtude.
— Donald é o homem que quero para Annette. Ele vai dar um bom marido. É honesto e de bom
caráter. Donald nunca tentaria derrubar Philip. Ele o assessoraria, já Hilliard é perigoso, mas sabe
que tenho bom faro. Enquanto eu viver, Philip estará garantido. Mas no dia em que eu
morrer, não será difícil que alguém sem es crúpulos se aposse da firma.
— Mas Philip sempre estaria escorado por ser um acionista majoritário, não é?
— Hilliard o derrubaria sem muito esforço. Se ele falasse com os outros acíonístas sobre seus
pontos de vista, Philip seria descartado na mesma hora.
— Você não parece ter muita fé em meu irmão. Ele sorriu, cruzando os talheres.
— E você tem?
Laura não sabia o que dizer. O pai deu uma risada sonora, diante de sua confusão.
— Não muita, não é mesmo? Mas, seja como for, ele ainda é meu filho e quero que esteja à testa
dos negócios. Não vou entregar tudo a um arrivista, de olhos no poder e sem o mínimo senso ético.
Laura imaginou se o pai não estaria começando a caducar ou tinha mudado seus conceitos. Agora
que havia chegado ao topo, queria assegurar seu lugar e ter certeza de que o filho herdaria tudo.
Se temia tanto Simon Hilliard, a razão disso eram as inúmeras qualidades que ele possuía e que
reconhecia serem semelhantes às dele. Via o perigo no outro, porque sabia como ele próprio agiria
em seu lugar.
— Você não devia se preocupar tanto. Não acredito que Simon Hilliard tenha qualquer intenção
de casar com Annette, nem de as sumir o controle da empresa. O pai não pareceu muito confortado
com aquelas palavras.
— Então, quais são as intenções dele?
— Só se divertir.
— Desgraçado! O que vamos fazer com ele?
— Não vejo o quê possamos fazer. Annette já é adulta, pelo menos na idade.
— imagino que está apaixonada por ele.
— Nem por sonho.
O pai ergueu a cabeça, incrédulo.
— Não?
— É mera questão de vaidade. Mas você conhece Annette: não adianta tentar convencê-la,
quando quer alguma coisa.
—E ela quer Hilliard ?
— Se quer! E ele está prontinho para satisfazer esse desejo. Não ha nada, absolutamente nada, que
possamos fazer, já falei com ela. Se quiser fazer mais do que já fiz, fica a seu critério.
George Sloane jogou o corpo para trás, empurrando a cadeira.
— Deve haver algum meio de fazê-la compreender em que em brulhada vai se meter.
Laura olhou as horas..
- Preciso correr. Tenho um compromisso agora à tarde. Se tiver alguma ideia, ligue para mim. Você
sempre pode dar um tiro em Simon Hilliard.
Laura levantou e o pai lançou-lhe um olhar ressentido.
 Não duvide. Um dia, eu acabo fazendo isso.

CAPÍTULO III

Numa gostosa manhã de verão um passeio ao Jardim Zoológico era um programa agradável, mesmo
que ela tivesse que carregar todos os apetrechos necessários ao seu trabalho. Precisava de uma garça
como modelo. Fotografias não eram suficientes.
Laura apressou o passo, com uma sensação de bem-estar que não sabia explicar. Simplesmente,
tinha acordado assim, com uma vontade de viver, que fazia com que tudo lhe parecesse novo e
excitante.
A caminho do zoológico, ao atravessar uma rua de muito trânsito, por,um triz não foi apanhada
pelas rodas de um ònibus.
— Quase a peguei, hein? — gritou o motorista, rindo, mas com um dedo em riste, acusador.
— Tente amanhã de novo — respondeu, devolvendo o sorriso, pois estava de tão bom humor que
nada parecia atingi-la.
E foi com esse ânimo que entrou no parque em busca de sua garça. Quando a encontrou, numa das
lagoas, fez uma série de esboços, procurando reproduzir em todos os detalhes os movimentos da
ave.
Estava terminando o trabalho, quando viu um grupo de visitantes japoneses, com suas máquinas
fotográficas. Laura olhava para o gru po, com vago interesse, e reconheceu Simon Hilliard no meio
deles, segurando duas crianças japonesas pela mão. Ficou pasma, ao per ceber que ele falava em
japonês e devia se fazer compreender muito bem a julgar pelos risinhos que as crianças davam a
cada frase que dizia.
Assim que a viu, Simon aproximou-se, ainda acompanhado das meninas. Deviam ter cinco e sete
anos. calculou Laura, e pareciam irmãs.
- O que está fazendo aqui? — perguntou, olhando primeiro para ela e depois para o cavalete de
pintura.
- Trabalhando.
- Trabalhando? Você é uma artista plástica?
Laura não gostou muito de seu exagerado tom de surpresa.
— Ilustro livros infantis.
— E seus trabalhos são publicados?
Laura teve vontade de dar uma resposta malcriada, mas disse, apenas:
— Sim. — Fez uma pausa e acrescentou, com orgulho: -— E vendem bem.
- Que maravilha! — eie comentou, num tom sério, mas com um sorrisinho irônico,
Olhou-a de alto a baixo, parando na blusa de algodão fininha e sem alças, que aderia aos seios
pequenos e firmes. Laura corou diante daquele exame atrevido, A última coisa que queria na vida
era ser alvo das atenções de Simon Hilliard.
Uma das garotinhas sacudiu a mão dele e disse alguma coisa em japonês, apontando para os
desenhos de Laura.
— Kiri gostou — Simon explicou — e disse que no japão eles têm aves engraçadas como essa,
Laura arrancou a folha do cavalete e sorriu para Kiri.
— Se ela ficar um pouco parada, vou fazer um retrato como lembrança.
Simon traduziu a proposta e a menina abriu um grande sorriso de satisfação. Ficou quietinha,
revirando de vez em quando os olhinhos; para fiscalizar o que Laura fazia.
Quando ela terminou e lhe deu a folha de papel Kiri a a irmã caíram na risada com o desenho.
Simon olhou por cima de suas cabecinhas e também riu.
No desenho, Kiri corria ao lado de uma garça, agarrada a uma de suas asas.
— Por que será que tive a impressão de que essa ave sou eu?— Hilliard perguntou.
Laura não respondeu. Estava entretida, desenhando outra cena para a menina menor. Dessa vez, fez
a outra garotinha montada nas costas da garça, que parecia correr desabaladamente.
Muito alvoroçadas e tagarelas, as duas compararam seus desenhos e depois agradeceram a Laura
com uma série de mesuras.
— Foi muita gentileza sua — disse Simon, quando as garotas foram se sentar na grama.
— Gosto de crianças. Quando eu era menina, tive uma boneca japonesa. Acho até que ainda tenho.
Sou do tipo que guarda tudo.
— Eu sou justamente o contrário. Desfaço-me de tudo logo que posso. Não gosto de complicar a
vida com coisas de que não preciso.
— Assim como uma esposa, por exemplo. Assim que disse isso, Laura se arrependeu. Apressada
ela mudou de assunto:
— O que está fazendo com essas crianças?
— O pai delas é meu amigo. Ele está aqui, numa missão comer cial. A mulher foi fazer compras e
eu me ofereci como babá.
Aquilo não combinava muito com a imagem que fazia de Simon. Não o imaginava como um
homem que gostasse de crianças. Naquela manhã, ele estava de terno azul-claro, muito bem talhado,
com uma camisa num tom mais escuro. Por que usar uma roupa tão cara e formal para ir ao
zoológico? Talvez, para impressionar o amigo japonês, imaginou Laura. Teria sido também por esse
motivo que se oferecera para pajear as crianças?
Ficou avaliando a roupa minuciosamente e, quando levantou os olhos, deu com duas sobrancelhas
franzidas numa interrogação.
— Qual é seu veredicto? Solenemente, ela respondeu;
— Passável,
— Quanta bondade!-Pois eu tenho que confessar que você está muito atraente. O que é estranho é
que jeans ficam muito sexy nas moças principalmente quando usam uma medida menor de que seu
manequim
Involuntariamente, Laura examinou seu jeans.
-O meu não é . . . — começou a se defender mas parou bruscamente, e deu um sorriso amarelo. —
Você é muito engraçadinho, não?
As garotinhas tinham levantado e estavam muito alvoroçadas, fa-lando com um japonês sorridente,
que acabara de chegar. Ele admi rou os desenhos, antes de se dirigir a Laura e Simon.
- Yashí. Quero lhe apresentar Laura Sloane. Laura, este é Yashi Loshoto.
O homem fez uma mesura, acompanhada de um sorriso formal. Os cabelos eram tão negros e lisos
como o das filhas e tinha um rosto magro e inteligente.
- Muita gentileza sua fazer desenhos para filhas — agradeceu, num inglês pitoresco. — Filhas
ficaram muito contentes e levar retratos como lembrança viagem.
- Fico feliz que tenham gostado. Ele olhou para o cavalete.
- Senhorita pintora?
Laura explicou tudo de novo e ele ficou ouvindo, atento e muito compenetrado.
- Você também escreve as histórias? — perguntou Simon.
- Sim. Faço texto e ilustração.
- Talentosa. . . — comentou Simon. O japonês perguntou, muito polido:
-Já terminou trabalho hoje?
- Acho que sim. Pelo menos já fiz o que tinha que fazer aqui.
— Posso oferecer almoço? Crianças vão adorar.
Yashi falou com as crianças, que deram gritinhos de alegria.
— Víu? Elas esperam senhorita aceite.
Laura hesitou. Se Simon Hilliard não estivesse junto, teria prazer om aceitar, pois estava encantada
com as crianças.
— É muita bondade. . . — começou a dizer, com uma inflexão de recusa na voz.
Simon interrompeu, segurando-lhe o braço.
— Ela irá, com prazer. Por que não vai andando na frente com as crianças, Yashi? Eu irei com
Laura logo que tivermos recolhido todo o material.
O outro concordou e foi caminhando com as filhas. Quando se afastaram o suficiente, Laura
olhou para Simon impaciente,
— Por que foi dizer aquilo? Eu não pretendia aceitar.
— Eu sei. Foi por isso que aceitei em seu lugar. Yashi tem ideias muito antiquadas sobre gratidão.
Podia se ofender, se recusasse seu agradecimento depois do favor que você prestou às
crianças. Ele sairia daqui se condenando por não ter retribuído à sua gentileza e seria capaz de
guardar esse remorso por anos a fio.
Ela riu do ar compungido que ele fez.
— Não diga absurdos!
— Estou falando sério. Você não o conhece. Ele tem idolatria pelas filhas, e qualquer favor que
façam a elas é como se fizessem a ele.
— Uma bela atitude.
— Realmente, Yashi é um sujeito fabuloso e eu o admiro.
— Onde aprendeu a falar japonês? — perguntou Laura, enquanto
desmontava o cavalete.
— Tenho jeito para línguas. Aprendo só de ouvir. E um dom.
— Um dom muito útil. Eu já não tenho essa espécie de talento.
— Mas tem talento de sobra em outros sentidos.
— Não desperdice seu tempo flertando comigo,
— Não vai adiantar?
— O quê?
— Tentar derreter a rainha das neves? Você estende os braços para manter os homens à
distância, ou é justamente o contrário?
Laura sentiu-se perturbada com aquele olhar. Tudo nele emanava sensualidade, e o pior era que
despertava sua sensualidade. Teve que lutar para não ser dominada. Deu .um passo atrás, segurando
a pran cheta de desenho como se fosse sua única arma no momento.
— Você tem sempre que tirar conclusões sobre o que os outros sentem ou deixam de sentir, não é?
— É o hábito que você tem. que me obriga a isso.
— E você tem o hábito de fazer observações irrelevantes — revidou Laura, com vontade de bater
nele com a prancheta.
Simon pareceu adivinhar seus pensamentos, pois provocou:
— Se estiver com vontade, não faça cerimónia.
Ela preferiu ignorar isso, e partiu para a única evasiva disponível:
-Que hábito é esse que eu tenho?
- De provocar os outros e depois tirar o corpo fora.
- Acho que você me interpreta mal. -Não concordo.
- E faz isso de propósito —- acrescentou, encarando-o.
- Ah, é que sou realista. Você parece não conhecer seu próprio sexo; ou, então, finge que não
conhece. As mulheres são como os gatos: um homem sábio pode brincar com eles, mas nunca se
arrisca a possuir um. Dê a uma mulher a impressão de que ela esta por cima, e nos fará sofrer as
penas do inferno. Assim como o gato, a mulher gosta de usar as unhas e adora arranhar os
desprevenidos que as afagam,
- Não gosta mesmo de nós, não é verdade?
- Ao contrário, gosto muito de vocês. Tenho um fraco por coisas bonitas.
— Chauvinista!
- É melhor irmos atrás de Yashi. Ele deve estar estranhando nossa demora.
Laura seguiu-o, pensando: Até certo ponto, ele tem razão no que diz sobre as mulheres. Pelo menos,
no caso de Annette. A irmã desprezava o pobre e inofensivo Donald porque o dominava como um
gato domina um rato. Realmente, era uma reação felina. Usava as garras para feri-lo, mas vinha
ronronando, se sentia alguma ameaça a seu domínio.
Annette possuía bom senso suficiente para saber que, com Simon, não podia mostrar as unhas.
Laura tinha observado isso na festa. E era esse detalhe que fazia Simon Hilliard tão perigoso.
Encontraram Yashi e as filhas, perto do canal, olhando a passagem de um barco cheio de turistas. As
meninas acenavam para eles, aos pulos, e alguns retribuíam as saudações.
- Ah, aqui estão eles — disse Yashi. — Começava pensar tinham fugido juntos.
— Bem que passou pela minha cabeça — disse Simon, brincalhão.
— Mas não passou pela minha — Laura acrescentou, e os olhos pretos de Yashi brilharam,
divertidos.
Simon riu, mas foi um riso forçado.
O comentário feriu sua vaidade, pensou Laura. Tal como Annette, ele se achava irresistível.
Yashí e as meninas foram andando adiante e Símon ficou ao lado de Laura, olhando-a atravessado.
— Sua intenção foi me humilhar?
— Espelho meu! — murmurou Laura.
— O quê?
— Nada. Só me lembrei de uma história infantil.
— Infantil foi sua atitude em querer me rebaixar na frente de Yashi.
— Quanto drama por uma coisinha à toa!
— Não brinque comigo, moça, ou vai se dar mal. Domine seus impulsos perto de Yashi. Ele
interpreta o jogo dos sexos sob o ponto de vista oriental, e perderá a estima que tem por mim, se eu
permitir que uma mulher leve a melhor
— Jã que estamos falando em dominar impulsos, posso sugerir que faça o mesmo? Se repetir suas
insinuaçõezinhas de mau gosto a meu respeito, vai ter o que merece.
Ele parou, surpreso,
— O que há? Lições de moral pra cima de mim?
— Não estou blefando — Laura garantiu, continuando a andar. Símon logo a alcançou.
— Essa é sua vingança pelo que eu disse há pouco sobre as mu lheres?
— É meu aviso sobre o que poderá acontecer, se tentar dar a Yashi uma falsa impressão sobre
mim.
— Você é mesmo farinha do mesmo saco. Minha primeira impres são sobre você estava certa. Não
pode negar que é filha de seu pai.
— Não posso, mesmo.
— Gostaria de poder?
— Se você está querendo saber o que penso de meu pai, não gaste suas energias: eu nunca lhe diria.
— Por que não?
— Porque não é da sua conta e porque sei muito bem que não gosta dele.
Simon deu uma risada.
— Não gosto dele é bondade sua. Eu o odeio.
— Por quê?
— É uma longa história. — Foi só o que disse, e ela teve certeza de que não lhe contaria mais
nada.
Nesse momento. Laura pressentiu que, qualquer que fosse a razão da animosidade entre Simon
Hillíard e o pai, os negócios nada tinha a ver com o problema.
-É por isso que você anda caçando Annette? Ele lhe lançou um daqueles seus olhares irônicos. -
Pensei que fosse o contrário.
- Quanta modéstia, sr, HilHard!
- Ela é uma mulher, portanto deve ser vencida.
- Estou começando a desejar que Annette o derrote. Gostaria de vê-lo entregar os pontos.
- Sinto ter que desapontá-la.
- Não cante vitória antes do tempo.
— Sei o que estou dizendo.
- Pois eu acho que ela não gostaria de saber disso.
- Pois eu tenho certeza de que se sentiria envaidecida. É como ela se sente: uma presa a ser
caçada.
Será mesmo?, pensou Laura. Provavelmente. Era enervante saber que ele conhecia Annette tão bem.
Seria mais fácil, se estivesse er rado, mas tudo levava a crer que estava certo.
Annette era do tipo que não resistia à tentação de agarrar algo que desejava, e o fato daquele
homem ser tão cinicamente evasivo só o tornava mais desejável aos olhos dela. Era uma técnica que
Simon Hilliard usava; por isso. sabia o que estava dizendo.
Almoçaram a bordo de um barco que excursionava pelo canal Regent. As meninas estranharam a
comida, mas o pai tentou conven çe-las a comer.
- As crianças sempre estranham paladares desconhecidos — Lau ra comentou, quando Krri deu a
primeira garfada. — Mas acho que vão gostar dos hambúrgueres.
Kiri levantou os olhos do prato e repetiu:
— Hambúrgueres! Todos riram.
- Batata — Kiri acrescentou, entusiasmada com seu sucesso.
— Você está começando a falar inglês muito bem — disse Laura, e. Yashi traduziu, sorridente,
Kiri ficou no auge da satisfação.
A outra menina deu um profundo suspiro e Yashi olhou-a, com indulgência e comentou:
— Ela não querer comer. Mas devia experimentar. Todos nós sem pre devemos aprender a gostar
das coisas, não é?
— Você gosta da comida inglesa, Yashí? — perguntou Laura.
— Gosto ovos com bacon. Muito bom.
— Nunca experimentei pratos japoneses, portanto você ganhou de um a zero.
— Um a zero? — ele repetiu, intrigado.
— Isso quer dizer que você está com uma vantagem sobre mim — explicou Laura.
— Entendi. Então, precisa experimentar. — Yashi virou-se para Simon. — Talvez, uma noite,
possa trazer Laura jantar em casa. Mi nha mulher muito contente conhecer ela. Ainda não conhecer
muitas moças inglesas e quer fazer amizades enquanto estar aqui.
Simon olhou para ela, irónico.
— Tenho certeza de que Laura adoraria conhecer sua esposa. Pressionada, ela não teve outra saída,
senão confirmar:
— Oh. sim, eu adoraria.
— Eu sabia que sim — Simon fez questão de frisar.
Laura olhou para ele com vontade de esganá-io, mas seus lábios se abriram num sorriso meloso.
Quando desembarcaram, após o almoço, Laura começou as des pedidas.
— Tive muito prazer em conhecê-lo. Espero que aproveite bem o restante de sua estada na
Inglaterra.
— Mas nós vamos encontrar de novo. Você prometeu. Minha mulher e eu ensinar você gostar
cozinha japonesa,
Simon acompanhou o diálogo com um brilho malicioso nos olhos.
— Pode deixar, que eu a levarei. Vamos combinar esse encontro para breve. Chamo um táxi para
você, Laura?
— Vou a pé mesmo
— Não com todas essas tralhas.
— Tá estou acostumada. Sempre venho a pé para o parque.
— Mas, dessa vez, vai tomar um táxi.
Laura começou a argumentar, mas viu que ele fechou a cara e re solveu calar a boca.
Simon empurrou-a e sussurrou, por entre os dentes;
— Obrigado. Yashi espera que uma dama inglesa tenha boas ma neiras.
— Sinto desapontar Yashi, mas costumo dirigir minha própria vida, o isso inclui andar a pé, quando
estou disposta, em vez de tomar um táxí sem necessidade.
— Desnecessário ou não, eu ofereci. Se recusasse, como ficaria a minha cara?
— Parece que você está mais preocupado com sua cara do que Yashi com a dele.
— Eu o conheço. Você não. Ele ficaria horrorizado só de pensar em você carregando toda essa
tranqueira debaixo do sol forte.
— Não sou feita de açúcar.
— Yashi acredita que todas as mulheres são doces.
— Então, é tempo de ele olhar em volta e ver que não é assim. Simon deu um profundo suspiro de
aborrecimento.
— Você está começando a encher minha paciência.
Fez sinal para um táxi, que parou junto à calçada, e colocou os apetrechos de trabalho de Laura no
banco de trás.
— Seu endereço?
Laura disse, sem pensar, e só depois de ver a expressão daqueles olhos verdes é que teve uma
suspeita.
Ele repetiu o endereço ao motorista, e o táxi partiu.
Laura ficou mordiscando o lábio, sentindo um calafrio de alerta percorrendo-lhe a espinha. Não
tinha gostado do jeito como Símon Millíard sorriu ao se despedir dela.

CAPÍTULO IV

Naquela tarde, Laura não conseguia se concentrar no trabalho e ficou até chocada ao constatar que o
motivo de sua desatenção era
Simon Hilliard.
Quando a campainha da porta tocou, deu um pulo. Quem seria?
Será que não teria um momento de paz?
Encontrou Annette, languidamente encostada no batente da porta, numa de suas clássicas poses de
efeito.
Laura encarou-a, sem surpresa, e com indisfáfçado aborrecimento.
— E agora, o que é que há?
— Tenho umas coisinhas para dizer a você. — E foi entrando, sem esperar o convite.
Laura fechou a porta e seguiu-a, respirando fundo.
— O que você está pretendendo? — perguntou a irmã, com as mãos na cintura. — O que, afinal,
estava fazendo com Donald na minha festa? Você está dando em cima dele, não é?
Para ganhar tempo e pensar numa boa resposta Laura ajeitou os cabelos e perguntou:
- Aceita um chá?
— Eu fiz uma pergunta!
— Aliás, uma pergunta muito cretina.
— Só responda.
- Muito bem. Você não quer nada com Donald; então, não entendo por que está tão interessada no
que ele faz ou deixa de fazer, e com quem faz.
- Era o que eu imaginava! — Arreganhou os dentes, como uma pantera enraivecida. — Você estava
querendo fisgar Donald.
— Se eu estava, não era uma proeza assim tão difícil; senão ele não teria caído no seu laço.
Annette ficou engasgada.
- Ah . .. é assim? — Sua expressão mostrava que tentava pensar rápido e Annette não era boa nisso:
não conseguia pensar e falar ao mesmo tempo.
Agora que estava descontrolada, Laura resolveu dar o golpe de misericórdia.
— Então, pronta para ir a Paris? — perguntou, dirigindo-se para a cozinha.
— E o que tem, se eu for?
—- Nada, ora. Mera curiosidade.
— Você quer ter certeza para poder contar ao Donald, não é?
— Não, só queria saber se ganhei uma aposta.
— Que aposta?
Laura encheu a chaleira de água e acendeu o gás. Annetíe ficou rondando, toda agitada.
— Que aposta? — repetiu, os dentes cerrados. , — A aposta que fiz com Simon Hilliard.
— O quê?
— Se for tomar o chá, pode fazer o favor de pegar o leite na geladeira?
— Não acredito no que você diz. Está mentindo. Conheço muito bem como funciona essa sua
mente diabólica. Está tentando me afas tar dele.
— E por que faria isso? Se acha mesmo que estou a fim de con quistar Donald, não faz sentido
impedi-la de ir para Paris com outro homem, Annette pensou no assunto mordendo o lábio, com
uma expres são infantil de perplexidade.
— Por favor, o leite — Laura lembrou, e a irmã abriu a geladeira, automaticamente, entregando-
lhe a garrafa.
— Simon apostou com você que me levaria a Paris?
— Sujeito convencido, não acha? — Laura deu-lhe um sorriso de solidariedade. — Elé está crente
de que pode manejar você feito um fantoche.
— O quê? Ele acha isso? Que animal! E fez uma aposta com você? Tenho vontade de gritar de
tanto ódio!
— Aqui. não. Os vizinhos podem reclamar. Tome um pouco de chá.
Annette aceitou a xícara, sem sequer perceber o que fazia.
— Então, aquele miserável apostou com você que eu iria a Paris com ele?
Estava transtornada e parecia ter dificuldade para respirar.
— Ele estava muito seguro.
— Ah, verdade?
Annette perdeu o controle e a xícara voou de sua mão, espatifan do-se no chão e espalhando chá e
cacos pela cozinha. Furiosa, ela saiu do apartamento feito um furacão.
Laura olhou para os cacos e fez um esforço para não rir.
Pobre Annette! Nem precisou mentir para ela. Bastou falar a verdade.
Apesar de a irmã estar indignada, Laura teve a impressão de ter ouvido um certo alívio em sua voz.
Devia ser aquela pequena dose de bom senso, voltando à tona. Indiscutivelmente, Donald ganhava
longe em matéria de boas intenções, e Annette não era do tipo de tatear no escuro.- Um futuro
seguro e garantido era uma ideia que a atraía muito. Podia ter sido tentada pela bela aparência e
pelo mag netismo de Simon Hilliard, mas tudo que teria dele era um prazer imediato e fugaz.
Laura varreu os cacos, considerando que a perda de uma xícara era um preço muito barato para
colocar Simon fora de cena.
Voltou para o trabalho já mais serena, e, dessa vez, conseguiu concentrar-se.
Seu editor telefonou na manhã seguinte, muito animado.
— Só estou checando os progressos do novo livro. Como vai indo?
- Pare de se atormentar, Declan. Está tudo sob controle.
- Acha que vai terminar a tempo?
- Se as pessoas não ficarem me interrompendo a toda hora com telefonemas, acho que sim.
- Desculpe — disse ele, rindo. — Escute, atrapalharia muito, se você almoçasse comigo? Faz
tempo que a gente não se vê. Na próxima quarta-feira não tenho nenhum compromisso.
- E você quer preencher esse vazio da sua agenda?
Declan Neale era um dos sócios da casa editora; um homem combativo, audacioso e extravagante,
com grande senso de humor. De vez em quando, eles se encontravam socialmente, mas o relaciona
mento dos dois nunca tinha passado dos estritos limites de camarada gem e amizade.
Declan vivia num ritmo alucinante e falava pelos cotovelos, sem pre com novas ideias borbulhando
na cabeça e coragem suficiente para colocá-!as em prática.
- Gostaria de ter uma agradável conversinha com você. Estou com uma ideia maravilhosa,
— Só espero que não seja inviável — caçoou Laura, lembrando de algumas das ideias dele, sem
muito entusiasmo.
— Vamos discutir isso pessoalmente. Que tal na próxima quarta?
— Ótimo — concordou logo, sabendo que ele insistiria até que ria aceitasse. Quando Declan
enfiava uma daquelas ideias geniais na cabeça era incansável,
— Combinado!
Ele era o único sócio-diretor da firma com quem Laura tinha contato. O sócio-presidente ficava
isolado num escritório impenetrá vel. Comentava-se que, às vezes, ele deixava seu esconderijo para
cumprimentar alguns de seus autores de maior sucesso, num -gesto de condescendência imperial,
para depois voltar, à saia do trono, deí xando a Declan o encargo de tratar dos assuntos mais
mundanos.
Depois de desligar o telefone, Laura voltou ao trabalho satisfeita, Gstava de ser tratada como
profissional e não como uma mulher bonita. Esse, em parte, era o motivo de sua vida sentimental ter
sido uma série de fracassos. Os homens só se interessavam pela aparên cia; nunca pelo que pensava
e sentia. Ou então, devia atrair apenas os tipos errados.
Na verdade, nem ela sabia o que esperava do amor. Talvez, uma explosão de genuína atraçao
sexual, algo que nunca havia sentido e que, às vezes, achava que jamais sentiria.
Fez uma pausa para um almoço rápido e, em menos de uma hora, voltava ao trabalho,
Quando a campainha tocou no meio da tarde, endireitou-se, sentindo uma dor nas costas e uma
pontada na nunca.
Será Annette novamente?
Foi abrir, pensando que nova crise de nervos teria que suportar, mas quando deu com Simon
Hilliard, todo o cansaço pareceu sumir. Sentiu uma pontada de excitação e medo.
— Ah, é você!
— É disso que eu gosto: uma recepção calorosa em todo lugar que vou.
Laura barrou-lhe a entrada, e por pouco não lhe fechou a porta na cara.
— O que você quer?
— Temos que combinar nosso compromisso.
— Que compromisso? — quis saber, desconfiada.
— Com Yashi, lembra?
Laura lembrava. Tentou escapar:
— Ele foi muito amável em me convidar, mas. ..
— Sem essa de "mas". Yashi se ofenderia muito se eu aparecesse sem você. A mulher dele ficou
encantada com os desenhos que fez para as meninas.
— Que bom! Mas acontece que ando muito ocupada.
— Ocupada? Com o quê?
— Trabalho.
— À noite?
Ele estava levando a coisa na brincadeira, e Laura se divertia intimamente com aquele pingue-
pongue, mas não demonstrou.
— Trabalho em todas as horas disponíveis. Tenho um editor muito
exigente.
— Mude de editor, ora essa.
Simon empurrou a porta e forçou entrada. Antes que ela percebesse, ele já estava dentro do
apartamento.
— Espere aí — começou a dizer, mas Simon colocou-lhe um dedo sobre os lábios, sacudindo a
cabeça.
— Não seja má! Você é uma garota difícil de lidar!
Foi entrando, sem pedir licença, e parou junto da prancheta de desenho, com. as mãos nos bolsos,
numa pose displicente de quem não tinha intenção de ir embora tão cedo.
- Você é muito inteligente!
- Que magnânimo!
- O que andou aprontando com Annette? — perguntou, de re pente, num tom desafiador, que a
deixou sem ação.
- O que disse? — A evasiva lhe daria tempo para pensar numa resposta.
- Annette tinha um encontro comigo ontem à noite e não apareceu.
— Ah, é?
- Não sabia? Pensei que soubesse, pois algo me diz que tem dedo seu nessa história.
- Tenho certeza de que logo vai se consolar.
- Oh, sim, é o que vou fazer — ele respondeu, tão tranqiiilamen te, que Laura não gostou. — Mas,
só por curiosidade, como você conseguiu? Gosto de saber, dessas minúcias. . . para o futuro.
- Talvez Annette tenha simplesmente se cansado, Essas coisas acontecem. — Fez uma pausa e
sorriu. — Mesmo com alguém tão fascinante como você.
- Engraçadinha! — Seu sorriso explodiu numa gargalhada. — Mas nós dois sabemos que não foi
bem assim, não é mesmo?
— Oh, claro! Seria inacreditável uma garota se cansar de você!
Simon acariciou o rosto de Laura e aquele toque, apesar de leve, a perturbou.
—Eu podia me zangar seriamente com você — continuou ele, ainda sorrindo. — Não é difícil
adivinhar que andou despejando veneno nos ouvidos de sua irmã. Não a conheço bem, mas o
instinto mé diz que você tem algum parentesco com Lucrécia Bórgia.
— Então, é bom se cuidar, não acha? — Laura olhou acintosamen te para o relógio. — Estou muito
ocupada, sr. Hiíliard. Se não se incomodar ... — E começou a se encaminhar para a porta de saída.
— Então, que tal amanhã à noite? — ele perguntou, sem se mexer do lugar,
— Gostei muito de Yashí — disse ela, suspirando com impacien ta. — £ tenho certeza de que a
mulher dele é encantadora, mas . . .
— Você deve ser fanática pela palavra "mas". Acontece que eu não sou. Amanhã, à noite, então
— Não tente me pressionar, sr. Hiliiard.
— Venho buscá-la às sete. E deixe as armas em casa amanhã. Não esqueça que Yashi tem
ideias muito antiquadas sobre as mu lheres, além de admirar muito sua aparência angelical, Ele
estranha ria se você começasse a me bombardear durante o jantar.
Antes que ela encontrasse uma resposta ele saiu do apartamento.
Só depois que voltou, relutante, ao trabalho, percebeu que era a primeira vez em sua vida que
encontrava um homem que não se as sustava com seu génio forte e espírito independente:
Não estranhou ao saber que Annette tinha dado o fora em Simon na vespera. Só ficou imaginando
quanto tempo duraria a zanga da irmã.
Com certeza, dependeria da intensidade do amor de Annette e das oportunidades que Simon teria
para voltar a falar com ela. Logo que ele descobrisse quais tinham sido os argumentos de Laura,
poderia muito bem se justificar, mentindo.
Será que mentiria? Analisou o caráter dele, e chegou à conclusão de que Simon Hilliard não se
preocuparia em mentir. Admitiria tudo, rindo, e diria, cinicamente, que não havia passado de uma
brincadei ra. E Annette cairia nessa? Sim, era bem provável. Era bastante tola para esquecer o
assunto, enquanto estivesse deslumbrada por ele.
Laura desistiu de se concentrar no trabalho. Estava afetada demais peia visita de Simon Hilíiard.
Resolveu ir para a cozinha fazer um cafe,
Ficou tentada a telefonar a Annette .para descobrir em que ponto estavam as coisas, mas achou
mais prudente esperar.
Sentou na sala para yev um programa de televisão que. providencialmente, ia exibir um
documentário sobre o Japão, Seria útil saber alguma coisa sobre o país de Yashi.
Quando terminou o programa, o telefone tocou. Àquela hora da noite, só podia ser alguma notícia
excepcional. E, num certo sentido, era, pois quem estava do outro lado da línha era Donald, num
estado de extrema euforia.
— Ela me deu o sim!
— Verdade? — Laura pôs em ordem os pensamentos para entender o que ele estava dizendo. —
Ela concordou? Quando foi?
- Agora mesmo. Estamos aqui, tomando uma taça de champanhe para comemorar. Amanhã vamos
comprar o anel de noivado.
Parabéns, Donald. Cumprimente-a por mim.
- Nem posso acreditar!
Laura teve a impressão de que ele já tinha tomado várias taças.
- Nem posso acreditar na minha sorte! — repetiu.
O amor aprontava mais uma de suas ironias. Donald estava se congratulando por algo que poderia
se arrepender pelo resto da vida.
- Estou contente por você estar tão feliz!
- Hiliiard nunca significou nada para Annette, você sabe — ga rantiu ele, um tanto raivoso. — Ela
me contou.
— Mas que bom — disse Laura, incrédula,
Será que o tolo acreditava nisso? E esperava, de fato, que ela acreditasse?
- Eu sabia que você ia ficar contente. Quis que fosse a primeira a saber das novidades. Queria
telefonar à minha mãe mas, à essa
hora da noite . . .
Estava com a voz embargada. Laura podia até imaginar o que a mae dele diria àquela hora da noite,
ou a qualquer outra hora. Annette não era exatamente o que uma mãe sonha para o filho.
- Eu precisava contar para alguém — Donald acrescentou, emo c ionado.
- Sinto-me honrada por você ter pensado em mim. — Na verda de, sentia uma grande pena dele.
O que estaria fazendo Annette? Naturalmente, bebendo champa nhe e pensando no tamanho da
pedra do anel de noivado.
— Minha futura cunhada — disse ele, enrolando a língua. — Nunca tive uma cunhada antes!
- Bem, agora você vai ter uma. — Por quanto tempo ainda, a manteria pendurada ao telefone?
— Vai ser bom. Gosto muito de você, Laura. Tem sido muito boa
comigo. Era a primeira pessoa a quem eu queria contar . . .
— Bem, então boa noite, Donald. Obrigada pela preferência. Finalmente, ele caiu em si e se
despediu.
Laura desligou a televisão e sentou para pensar. Annette não tinha perdido tempo. Aquela pressa
até a lisonjeava. A irmã, com medo perder Donald para ela, tratou de agarrá-lo sem demora.
Pobre homem. Só esperava que Annette o tratasse bem.
Laura foi para a cama mais tarde e, no dia seguinte, nem ouviu o despertador tocar, fato raro em sua
rotina. Quando abriu os olhos, sentiu-se estranhamente indisposta e letárgica, apesar do longo sono.
Saindo da cama com relutância, sentiu a cabeça pesada e a garganta áspera e seca. Quando vestiu o
robe, deu um espirro.
Gripe. Era só o que faliava! Foi até o banheiro e olhou-se no es pelho, inquieta. O rosto estava
afogueado e os olhos, lacrimejantes. Não havia dúvida: tinha apanhado uma bela gripe. Chateação!
Aquilo ia atrasar tudo.Já era difícil trabalhar sob pressão, quando se estava em perfeita saúde, . .
Sem apetite, só tomou ura café preto. Na hora do almoço, não parava de espirrar e a garganta estava
tão inflamada e irritada que teve dificuldade para engolir.
Não tinha a mínima disposição para sair de casa e, por certo, não sobreviveria, se tivesse que
suportar todo um cerimonial japonês, durante o jantar daquela noite. Precisava avisar Simon
Hilliard de que não iria. Tentou lembrar o nome da firma onde ele trabalhava, mas não houve jeito;
estava confusa e febril. Como último recurso, decidiu telefonar a Annette.
— Oi — A irmã atendeu, transbordante de alegria. — Donny e eu acabamos de chegar da rua.
Fomos comprar o anel. É um espe táculo- O que acha disso: escolhi uma esmeralda quadrada,
emoldurada com pequenos brilhantes.
— Deve ser um estouro. Estou louca para ver. Aproveito para desejar a maior felicidade a vocês
dois. — Fez um pausa e, antes que Annette deslanchasse a falar, entrou no assunto: — Olhe, tele
fonei porque preciso falar com Simon Hilliard urgentemente.
— O quê? — interrompeu a irmã, estridente.
— Você pode me dar o número do telefone dele?
— Meu Deus! Mas que cara de pau! — berrou Annette. — Não grite, Estou com uma terrível dor
de cabeça,
— Bem feito, é o que você merece.
— Ouça, eu devia ir jantar com ele esta noite.
— Que está dizendo?
— Mas não vou poder ir e preciso avisar.
— Sei! — Annete estava transtornada demais para dizer alguma coisa coerente.
— Agradeceria se você me desse o número dele.
Dane-se! — E bateu o telefone com tanta força que a dor de
cabeça de Laura piorou.
Olhou para o fone, apreensiva, antes de colocá-lo no gancho. Bem.
não linha adiantado nada. E agora? Recorreria ao pai? Ele devia ter o telefone, Não, não seria boa
ideia. O pai podia ficar tão zangado
como Annette, por razões diferentes. A única solução seria esperar até a hora de Simon aparecer.
Vendo-a naquele estado, saberia que não estava inventando uma desculpa.
Às quinze para as sete, foi se olhar no espelho, com a intenção de se maquilar um pouco, para
disfarçar a palidez, mas decidiu ficar como estava: lívida e com olheiras profundas. Pelo menos, ao
vê-la,
Simon Hilliard daria graças a Deus por ela ter desistido. Nenhum homem teria prazer em escoltar
um fantasma.
Ele chegou na hora marcada e pareceu assustar-se,
-Sinto muito — falou Laura, fanhosa. — Não vou poder ir peguei uma gripe.
-Dá pra notar — disse ele. sorrindo. — Sua voz. . . parece um sapo coaxante.
E eu me sinto assim. Desculpe.
-Não é culpa sua. A não ser que tenha se resfriado de propósito.
-Acertou. Esta manhã, fui numa loja e comprei uma gripe ca prichada, sob medida para mim —
ironizou, entre espirros. Simon riu, os olhos verdes brilhando, brincalhões.
- Nem doente você dá folga, hein?
Olhou para ele, sizuda. Vestia um terno leve e escuro que o fazia parecer mais alto e charmoso do
que nunca. Sentiu-se como um trapo desbotadò. Na verdade, ele estava acintosamente atraente.
-Desculpe, mas é melhor você ir andando, se não vai chegar tarde — recomendou, tentando fechar a
porta.
Ele se esgueirou pela fresta, entrando no apartamento. Com ar paternal, aconselhou:
- Você precisa é de um chá de limão com uísque.
Odeio resfriados. Me deixam pálida. — E espirrou novamente. É, você parece mesmo um cadáver
ambulante. Obrigada, isso me faz sentir bem melhor. Bem, não quero pren dê-lo, sr, Hiilíard.
— Não está me prendendo. Antes, vou lhe dar uma bebida quente e esperar que se deite.
— Nada disso!
— Por què? Tem medo de se reanimar demais?
Laura tornou a abrir a porta:
— Peça desculpas por mim, a Yashi e à esposa, está certo? Sinto realmente perder essa
oportunidade de estar com "eles".
Os olhos verdes de Símon brilharam com impaciência.
— Se não estivesse gripada, eu lhe daria um beijo como lição. — Dando um passo atrás,
completou: — Mas não se assanhe, não tenho intenção de pegar um resfriado. Voltaremos a esse
assunto, quando você melhorar.
— Por favor — disse Laura, indicando a saída —, não se prenda por minha causa.
— Eu não me prendo por ninguém. Mas, se você não estivesse tão gripada, eu poderia até
reconsiderar.
Trincando os dentes, esperou que ele saísse e bateu a porta com força.
Ao voltar ao quartot sentiu o rosto quente e ficou ainda mais furiosa por saber que isso se devia, não
à febre, mas ao cinismo de Simon Hilliard.
Encheu uma bolsa de água quente para aquecer os pés gelados e, já deitada, irritou-se por ainda
estar pensando naquele homem.
Não gosto dele, disse a si mesma. Não gosto. Não gosto, mesmo. E se perguntou, zangada, por que
precisava repetir tantas vezes a mesma coisa.

CAPÍTULO V

Laura estava ainda na cama, na manha seguinte, quando tocaram a campainha. Resmungando,
levantou e vestiu o robe. Sentia-se um pouco melhor da gripe.
Entreabriu a porta e olhou pela fresta.
-Não precisa se apavorar. Não é Jack, o estripador. Laura abriu e deixou Anneíte entrar.
-Quer dizer que está mesmo gripada? — disse a irmã, mantendo distância. — Longe de mim, Não
vá me contagiar.
Não tenho intenção, Em todo caso é melhor você não se demorar.
-Saiu com Simon, afinal? — O sorriso de Ànneíte não era nada tranquilizador
-Não — respondeu Laura, dirigindo-se para a cozinha. — Você quer um refresco? Vou fazer um
para mim. Minha garganta está completamente seca.
-Sinto muito que não esteja bem. mas vim aqui para trocar ideias com você.
— Nessa troca, posso levar prejuízo, pois prefito as minhas. Tendo que engolir o sarcasmo, Ànnette
deu um sorriso maldoso.
— Você pensa que é um génio, não?
Laura espremeu um. limão na água, pôs um pouco de açúcar e ofereceu à irmã. Diante da careta de
recusa, esclareceu;
— Olhe aqui, estou muito fraca. Não me venha com discussões.
— Que impertinência! Você me fez ouvir um monte de conselhos sobre Simon.
— Nunca fiz isso. .o único conselho que lhe dei foi para conseguir pelo menos, um frasco de Patou,
se fosse para cama com ele, em Paris.
— Beleza de conselho! — Annette fungou. — Que grande irmã você é!
— O que queria que eu fizesse? Que desmaiasse, escandalizada? Como você mesma disse, já está
bem crescidinha.
— No fundo, você não queria que eu fosse, não é mesmo? Não sou boba. Você e do tipo antiquado,
e ficou horrorizada com a ideia.
— Se você diz , . .
Laura tomou a limonada aos goles sentindo um alívio refrescante na garganta
— Então, por que fica marcando encontros com eles?
— Não marquei coisa alguma.
— Mas você disse , . .
— Ele tem um amigo japonês que me convidou para conhecer a esposa. Aquilo não era
propriamente um encontro com Simon Hilllard De qualquer maneira, acabei não indo.
— Ele não é tipo para você. Deve saber disso.
— Simon não é tipo pra ninguém. Não para alguém de bom senso.
— Ele deve estar furioso comigo. Marcamos um encontro e eu não apareci.
— Ele contou.
Annette olhou-a, desconfiada.
— Que. mais ele disse?
— Quase nada.
— Espere até ele saber sobre Donald e eu.
Isso pareceu avivar-lhe a memória, e ela exibiu a enorme esme ralda sob os olhos atônitos de Lauta.
— Gostou?
— Quem não gostaria? — Laura examinou o anel, com admiração
-Se vendessem uma. maior do que essa, você não conseguiria carregava no dedo.
-Donald é muito generoso.
-Já contou a novidade a papai?
Annete sorriu, com falsa modéstia já, e ele ficou contentíssimo.
Aposto que sim. — Laura teve um calafrio. — Ouça, me des culpe mas estou péssima. Não se
incomoda se eu voltar para a cama? Annete não desgrudou dela.
-E como surgiu esse convite do amigo de Simon? — voltou ao interrogatório.
-Coincidência — disse Laura, deitando novamente. — Deixe isso pra lá, está bem?
-Acho que você está gostando dele. Não seja louca de fazer isso..
Aceito seu conselho. Mas o caso é que não estou. Ele é o últi mo homem da face da terra com o
qual quero me envolver.
-Você não está à altura dele — afirmou Annette, ofensiva, pas sando as mãos pela cabeleira ruiva.
— Não é bastante sofisticada para o gosto dele.
Laura fechou os olhos. -Até logo,
Ouviu Annette sair, batendo os saltos altos de propósito, e encolheu se embaixo das cobertas.
Com exceção do resfriado, seus problemas tinham terminado. Annete estava sã e salva,
devidamente comprometida com Donald, e o pai mergulharia novamente no mundo dos negócios,
deixando-a em paz para tratar de sua própria vida, logo que sarasse da maldita gripe.
Na manhã seguinte sentíu-se melhor, tomou um banho quente e como tinha combinado de ir
almoçar com Declan, aprontou-se com cuidado, procurando disfarçar a palidez com maquílagem.
Tomou um táxi para ir ao restaurante.
Declan estava atrasado, o que não era nenhuma novidade. Com a vida agitada que levava, o tempo
nunca era suficiente para ele atender pontualmente a todos os compromissos.
Laura sentou-se à mesa, esperando estar com uma aparência mais saudável.
Uma movimentação do lado oposto do salão chamou-lhe a atenção e viu Simon Hilliard numa das
mesas, com mais três homens. Ele fez menção de levantar, quando a notou, mas, nesse exato
segundo,
Declan apareceu e precipitou-se em sua direção como um tanque de guerra, os cabelos crespos em
alvoroço e a voz troando uma desculpa.
— Querida, sinto muito. Estou atrasado novamente. Beijou-a com espalhafato.
— Que bom vê-la! Você está maravilhosa!
Quando ele finalmente sentou, Laura olhou para o outro lado do salão. Simon a observava
apertando os olhos verdes. Ela desviou o olhar.
— E você, como vai indo, Decían?
— Atarefadíssimo; graças a Deus. E você?
— Como já disse, o livro está saindo dentro do prazo previsto. Apareceu o garçom com um enorme
cardápio de couro vermelho e Declan encomendou aperitivos para ambos, antes de escolher os
pratos.
— Qual era a. tal ideia? — perguntou Laura, quando, por fim, decidiram o que iam comer.
— Ah! Descobri um sujeito extraordinário, que escreve histórias fantásticas, mas não encontro um
bom artista que faça a ilustração à altura do tíilènto dele. Então, tive uma inspiração: que tal você?
Sem muito entusiasmo, Laura perguntou:
— Só ilustração? Nunca pensei nisso.
— Pois pense. Posso marcar um almoço para que você conheça a figura. Vai gostar dele, é um cara
divertido. É professor de escola primária, e tem um incrível senso de humor, e suas histórias são
divertidíssimas, geniais. Precisam, da ilustração adequada.
A voz de Declan elevava-se sobre o murmúrio discreto das demais mesas, numa excitação
crescente, durante todo a refeição.
— Vou entrar em contato com Henry para marcarmos um almoço de negócios. — prometeu,
quando o café foi servido. — Enquanto isso, manda o texto do livro para você analisar.
— Quando quer que eu comece, caso aceite? Não esqueça que ainda tenho muito que fazer
naquela produção dos pássaros.
Declan deu uma daquelas suas sacudidas de ombros, que quase o fez entornar o Café.
— Não há pressa . . .. não há pressa , . .
— Ainda não tem data de lançamento? — perguntou Laura, cheia de suspeitas.
Ele pareceu desconcertado.
— Bem . , .
— Já estava imaginando. Decían, não sou uma máquina. Não posso fazer as duas coisas ao
mesmo tempo.
— Mas você vai ter muito tempo. — Segurou a mão dela. — Estou perdido, Laura. Tínhamos
contratado alguém para fazer esse trabalho, mas não deu certo. O desenhista não conseguiu captar o
conteúdo do texto. Henry precisa de alguém que entende seu estilo. Precisa mos desesperadamente
do artista certo.
— Por que não disse logo? — Laura olhou para a mão que ele segurava, fazendo votos para que
continuasse inteira, depois que ele tivesse acabado de convencê-la. — De qualquer forma, não
posso começar tão já.
— Qual é sua previsão? — O rosto dele iluminou-se novamente, agora que ela começava a ceder.
— Vou pensar nisso, com carinho,
Apertou-lhe a mão, sofregamente, com extrema gratidão.
— Doçura! Eu te amo!
— Vai devolver minha mão, quando puder? Vou precisar dela, se tiver que trabalhar tanto.
Ele a libertou.
— Você salvou minha vida!
— Só espero que sua vida valha um bom dinheiro — disse ela, e viu uma névoa passar pelos olhos
castanhos de Declan.
— Ah ... — ele gemeu.
— Tem que ser uma nota firme — insistiu Laura.
Declan apressou-se em. pedir a conta ao garçom e fez alarde, fingindo-se muito ocupado em
conferir a nota.
Segurando o braço de Laura, levou-a para fora do restaurante, comentando o último filme que tinha
visto, lance por lance, até chegarem ao prédio dela. Beijou-a afoitamente no rosto e praticamente a
empurrou para fora do táxi. sem lhe dar chance de falar novamente no pagamento.
Quando entrou no prédio, Laura encontrou um ramalhete de flores junto à porta de seu apartamento.
Muito admirada, procurou pelo cartão. Era de Yashi, expressando seus sentimentos è dizendo o
quanto sentia por sua esposa não ter tido o prazer de conhecê-la. Estava de partida para o Japão,
mas esperava ter outra oportunidade, no futuro, para apresentá-la à mulher.
Laura ficou comovida com tanta delicadeza. Afinal, mal se conheciam. Era um gesto realmente
nobre da parte de Yashi.
Passou algum tempo arrumando as flores, e estava levando o vaso para a sala quando tocaram a
campainha. Foi atender, ainda com o vaso na mão.
— Isso é um disfarce ou um escudo? — perguntou Simon Hilliard.
— Foi Yashi quem mandou. Muita gentileza da parte dele, não acha?
— Ele é muito gentil. Isso deve estar pesando. Deixe-me ajudá-la. Tirou-lhe o vaso da mão e foí
entrando com ele pelo apartamento.
Laura o seguiu, indignada.
— Não me lembro de ter convidado você.
— Onde vamos colocar? — Simon ficou parado na saía de estar, olhando em volta. —- Melhor
perto da janela, não acha?
Levou as flores para lá e colocou-as numa mesinha baixa.
— É . . . aqui está bem — disse, dando um passo atrás, para apre-ciar o efeito.
— O que veio fazer aqui? — perguntou Laura, impaciente.
— Quem era o sujeito com quem você estava almoçando?
Laura corou um pouco.
— Um amigo.
— Um amigo muito confiado. Deve ser íntimo, e parecia que vocês tinham um bocado de assunto!
— Tínhamos.
Será que ele a tinha vigiado durante todo o almoço? Mas com que direito vinha pedir satisfações?
— Jante comigo hoje.
— Agradeço o convite, mas . . .
— Está na cara que você melhorou da gripe — interrompeu, antes que, ela inventasse uma
desculpa.
— Tenho um compromisso — mentiu, sorrindo meigamente,
Ele não acreditou. Seu olhar, desconfiado dizia claramente isso, mas Laura não se abalou e manteve
o doce sorriso.
— Então, vamos almoçar amanhã.
— Gostaria muito, mas receio que . .. — Encolheu os ombros.
— Está bem — ele concordou com um sorriso tão falso como o dela. — Quando vai estar livre? É
melhor assim, não é? Você escolhe a hora e o lugar..
.-Laura piscou. Estava num beco sem saída.
— Acho que não vou estar livre nunca. Quero dizer, para compromissos desse tipo. Estou com o
tempo todo tomado,
— Com aquele homem do restaurante? Resolveu concordar, para se livrar dele de uma vez.
— Sinto, mas é isso mesmo. De qualquer forma, foi muita gentileza sua me convidar.
Ele deu uma risada e, atrevido, segurou-lhe o queixo.
— Me larga! — Laura gritou, escarlate.
Tentou se desvencilhar, mas ele a reteve pelos cabelos. Perdendo o equilíbrio, foi obrigada a se
encostar nele, para não cair.
— É uma promessa que fiz a mim mesmo,. desde o dia em que nos conhecemos — disse Simon,
inclinando-se sobre ela.
Laura olhou por um segundo aqueles olhos verdes zombeteiros, antes de baixar o olhar para a boca
sensual e voluntariosa. Seu cora ção disparou, como se estivesse diante de um grande perigo.
Apertou os ombros dele, quando seus lábios se encontraram. A princípio, o contato foi leve, morno.
Então, ele escorregou uma das mãos pelas costas de Laura, apertando-a contra o corpo, e o beijo
tornou-se exigente. A mão de Simon tornou a subir para a nuca, agarrando seus cabelos
sofregamente.
Laura passou os braços pelo pescoço dele e se entregou ao prazer que sentia, esquecida de tudo e de
todos.
Quando, finalmente, ele se afastou um pouco ela estava trémula. Abriu os olhos e olhou-o, sem
entender. Aquilo nunca havia aconte cido antes. Nenhum homem jamais a tinha feito vibrar daquela
ma neira.
Simon estava ofegante, o rosto pegando fogo.
— Sim ... — sussurrou, numa voz rouca.
Laura não tinha certeza se conseguiria falar, mas tentou!
— Sim, o quê?
— Sim ... eu gostei — disse Simon, voltando a abraçá-la.
Laura ficou em pânico. Debateu-se com tal determinação, que acabou se livrando do abraço, indo
parar do outro lado da sala, protegida por uma cadeira.
— Ah, não! — disse tremula como um animai acuado. — Comigo não, sr, Hilliard! Não sou minha
irmã. Sinto muito que não tenha encontrado alguém para acompanhá-lo a Paris, mas não espere
levar sempre a melhor.
— Pois eu espero. — Mas não fez qualquer gesto para alcançá-la. — Diga-me o que você andou
falando, para fazer Annette desistir.
— Contei sobre a aposta.
— Ah! Você é muito espertinha.
— Já soube sobre o noivado dela com Donald? Laura finalmente sorriu, aliviada, ao sentir que o
coração já não batia loucamente.
— Ela me telefonou dando as boas-novas — disse ele, surpreendendo-a.
Por que Annette teria feito isso?
Ele pareceu ler seu pensamento, e falou, num tom de zombaria:
— Sua irmã é uma dessas pessoas que gostam de comer o bolo até o último pedaço.
Oh, Deus! O que Annette estaria aprontando, dessa vez? Certamente não seria tão maluca a ponto
de se envolver com Simon nova mente, depois de ter descoberto que tipo de homem ele era.
— Vocês duas puxaram muito ao pai — disse ele, com um lampejo maldoso nos olhos verdes.
— Você não perde uma ocasião para falar de meu pai, hein? Estudou a expressão de Simon,
tentando adivinhar o que o fazia parecer tão frio, toda vez que mencionava George Sloane.
— Já disse: eu o detesto.
— Por quê?
Simon apertou os maxilares.
— É uma longa história, e não muito bonita para contar. Já perguntou a ele?
— Não. Mesmo que perguntasse, não acredito que me contaria.
— Também duvido. Acho que ele preferiria morrer a contar. Laura olhou para ele, ansiosa.
— É alguma coisa tão ruim assim? Alguma coisa que meu pai fez? Negócios?
— Não são negócios. Talvez, algum dia eu lhe conte. — Virou-se para a porta. — Já que você se
recusa a jantar comigo, minha única alternativa é Annette.
— Ela acabou de ficar noiva!
— Deus do céu! Quanta ingenuidade!
Muito vermelha, Laura revidou, raivosa!
— Pode ser que você não leve essas coisas a sério, mas eu levo, e Donald também. Annette não
pode ter encontros com outros homens agora. Ela deu a palavra a Donald!
Ele pareceu se divertir.
— Não é a mim que você precisa convencer . . . é à sua irmã. Não fui eu quem telefonou para ela,
foi ela quem ligou pra mim.
— Para dizer que vai casar com Donald!
— Se você repetir isso várias vezes, é provável que acabe se convencendo. Mas, a mim, não
convence.
— Não está ligando a mínima para o fato de Donatd a adorar e poder se magoar muito, não é?
— Se Annette não está ligando, por que eu deveria ligar? Não estou noivo desse fulano.
— Quer dizer que você pouco se importa em ser o motivo do rompimento, de um noivado?
— Se fosse uma coisa séria, minha influência de pouco valeria. Se Annette o amasse de verdade,
nem pensaria em se encontrar comígo. Essa é que é a verdade. Ou pensaria?
Laura não respondeu. Gostaria de arrasá-lo com seus argumentos, mas, para sua frustração, tinha
que reconhecer que ele estava sendo coerente. Annette não amava Donaíd. essa era a realidade, nua
e crua.
Simon sorriu.
— Quer reconsiderar a resposta que ficou me devendo? Então, vai jantar comigo?
Laura aprumou-se, muito senhora de si.
— Suma! Você não vai fazer chantagens comigo, Se minha irmã é tão idiota para sair com você,
arriscando-se a desmanchar o noivado, o problema é dela.
Ele pareceu abismado com aquela reação. Por certo tinha pensado que ela ia se abalar com a
ameaça velada de rever Annette. Pois estava completamente enganado.
Simon dirigiu-se para. a saída e Laura acompanhou-o, calmamente. Antes de sair, olhou para ela,
intrigado.
— Em suma, devo supor que aquele sujeito que almoçou com você significa alguma coisa em
sua vida?
Não pôde evitar um sorriso, provocado pela lembrança de Declan. Era cômico imaginar que ele
fosse seu amante.
— Sim — confirmou, muito séria, baixando as pálpebras para esconder a expressão de
divertimento.
Houve um breve silêncio. Simon já não tinha mais aquele ar gozador. Estava sombrio, com uma
ruga cortando-lhe a fronte.
— Sujeito de sorte — disse, e foi embora.
Laura ficou tentada a telefonar a Annette e lhe fazer uma preleção sobre fidelidade, mas achou a
ideia pura perda de tempo, além de contraproducente. Sabia que uma das causas de Annette ter
procurado Simon tinha sido saber que ia sair com ele. Se demonstrasse preocupação pelo fato de a
irmã estar novamente atrás de Simon, as coisas piorariam de vez. O mais sábio era esquecer o
assunto.
Passados dois dias, foi almoçar com o pai. Ficou admirada de ele. ter lhe telefonado novamente.
Pensou que, depois de tudo resolvido, esqueceria de sua existência. . .
O pai deu-lhe o costumeiro beijo distraído, antes de chamar o garçom para pedir os aperitivos.
— Acabei de voltar do médico.
Laura levantou a cabeça, confusa com a repentina revelação.
— Algum problema?
George Sloane não usou de subterfúgios.
— Sim.
— O que foi, papai?
Pela primeira vez, sentiu uma profunda mágoa pelo distanciamento entre eles. O pai sempre tinha
sido auto-suficiente e ela aprendeu a considerá-lo quase um estranho.
— Vou ter que fazer uma operação. — Olhou para o cardápio que ela ainda estava segurando. —
Como é? já escolheu o que vai comer?
Havia irritação na pergunta. Automaticamente, Laura começou a ler a lista de pratos.
— O que há de errado com você? — Aqueles nomes franceses já não tinham mais sentido para ela.
Fechou o cardápio e encarou-o.
Ele correu os dedos pelos cabelos ralos, com o rosto lívido.
— Coração . . . coronárias ... — Olhando em torno, ficou impa ciente. — Onde se meteu o garçom?
O homem apareceu, ao chamado daqueles olhos frios, e George Sloane fez o pedido. Laura ansiava
para que o pai facilitasse as coisas, pois, mesmo numa situação como aquela, ele tornava os
contatos humanos quase impossíveis.
— Disseram que tenho cinqiienta por cento de chances. — Seu rosto não demonstrava o mínimo
sinal de. apreensão. — Esperava um prognóstico melhor do que esse.
— Mas tenho certeza de que . .,
O pai não a deixou terminar a frase, calculando que ia fazer um vão esforço para atenuar o impacto
daq uela trágica perspectiva.
— Tenho o melhor cirurgião, especialista em coração. Não corro riscos desnecessários.
.Era claro que ele não queria ser confortado. Preferia assumir aque la realidade sozinho. Ela fez
nova tentativa, estendendo a mão sobre a mesa, com a palma virada para cima,, num gesto de
aproximação afetuosa.
— Sinto muito, papai. Há algo que eu possa fazer?
George Sloane olhou para a mão da filha como se não soubesse o que fazer com ela, e deu-lhe
apenas uma palmadinha.
— Só há uma coisa. Se algo me acontecer, faça tudo para que Annette case com Donald.
Era completamente fora de hora, mas Laura teve vontade de rir.
- Claro, deixe comigo — prometeu, mas não acrescentou as palavras que estava tentada a dizer: "Se
eu puder". Naquele momento, ele não ia gostar de ouvir a verdade.
— Aconteça o que acontecer, ela nunca deverá casar com Hilliard. Seria desastroso — afirmou o
pai.
— Acho que ele não é tipo de casar.
Os lábios pálidos de George Sloane se contraíram.
— Para pôr as mãos ambiciosas na minha empresa, ele seria capaz de casar com o próprio diabo.
Uma comparação tola, pensou Laura. Perguntou, cautelosa:
— Por que ele o detesta tanto, papai?
Uma onda de sangue coloriu o rosto macilento de George Sloane.
— O quê?
— Ele o odeia, não é verdade?
Ele hesitou. Laura esperou, em silêncio, que o pai falasse. Mas ele baixou as pálpebras e disse
evasivo;
— Nunca nos entendemos. Laura percebeu que ele nunca lhe per mitiria vislumbrar o que havia por
trás daquela máscara de granito.
— Quando você vai ser operado?
— Dentro de umas duas semanas — disse, com a displicência de quem trata de um assunto sem
importância.
O garçom chegou com o primeiro prato.
— Ah! O salmão! — George Sloane anunciou, e daquele momento em diante, recusou-se a fazer
mais comentários sobre a operação.
Mais tarde, ao fazê-ia entrar num táxi, recomendou:
— Não mencione essa operação a ninguém.
Ela ficou perplexa.
— Mas você vai contar a Annette e Philip, não é?
— Não. — Diante dos protestos da filha, franziu o cenho.— Laura, não quero que transpire uma
só palavra do que conversamos. Se Hilliard chegar a saber que estou doente, vai tentar apressar
minha morte.Já andou comprando ações da companhia. Não muitas, mas se a notícia se espalhar, o
preço das ações sofreria uma desvalorização, da noite para o dia. Hilliard poderia comprar um bom
lote a baixo custo, e não quero correr esse risco.
— Mas papai,. . .
— Estou falando sério — disse, com um olhar de comando, direto e incisivo. — Annette não sabe
guardar segredos. Em cinco minutos, Londres inteira estaria sabendo.
— E Philip? Ele vai ter que saber.
- Direi a ele que vou tirar férias por uns dias. Minha secretária é de confiança, está comigo há anos.
Se alguma coisa acontecer, ela saberá o que fazer.
Laura estava horrorizada. Não era justo manter Philip e Annette afastados dos acontecimentos.
Olhou para o pai, suplicante.
— Papai, acho sinceramente que você devia falar com eles. E se acontecer o pior?
— Se eu não sobreviver à operação, será tarde demais para causar algum problema aos meus
filhos.-
— Esqueça a firma, pai. Eles são seus .filhos! Têm o direito de saber que você está seriamente
doente. Como vão se sentir, quando souberem que você escondeu tudo deles?
George Sloane deu-lhe um olhar cético.
— Annette não é de grandes sentimentos. Poderá derramar algumas lágrimas, mas logo se
conformará. Philip ... — Deu de ombros. — Esse, ficaria apavorado. Ele não tem fibra para
enfrentar a situação. Não, o melhor é ficar calado e esperar para ver o que acontece.
Fechou a porta do táxi e deu o endereço de Laura ao motorista.
Durante todo o trajeto, ela se sentiu deprimida e, ao mesmo tempo, impressionada com a coragem
do pai.

CAPÍTULO VI

De volta ao apartamento, Laura deixou-se cair sentada no sofá, muito quieta. Por que o pai a teria
procurado e se recusado a Mar com Annette e Philip? Talvez, no fundo, desejasse alguma forma de
contato humano. No entanto, quando ela tentou manifestar sua simpa tia e solidariedade, ele a
rechaçou, friamente. Era impossível com preender George Sloane.
Raramente, Laura se encontrava com Philip e a esposa. Ambos eram pessoas agradáveis, mas não
tinham quase nada em comum com ela. Os interesses de Daphne eram tão limitados! Philip, por sua
vez, era nervoso, preocupado, desiludido. Tinha vivido tempo demais à sombra do pai. Laura
receava que o pai estivesse certo, quando alegava que, se Simon Hilliard resolvesse se apossar da
empresa, Philip não oporia quase nenhuma resistência.
O que haveria por trás da animosidade existente entre Simon e George? O que seu pai teria feito,
que o tornava tão relutante em lhe contar a verdade? Será que Simon estava fazendo alguma espécie
de chantagem com ele?
A coisa era muito séria, pois os dois se transfiguravam quando se tocava no assunto. A costumeira
expressão de zombaria de Simon Hilliard transformava-se numa máscara fria e dura; o pai, por sua
vez, ficava apreensivo, quase medroso.
Que diabo podia ter acontecido?
Laura não tinha ilusões quanto ao caráter egoísta de George Sloane.
Levantando de sopetão, sentiu um impulso de ligar para Daphne. convidando-a e a Philip para
jantarem no dia seguinte.
Daphne precisou antes consultar sua agenda sócia!.
— Oh, nós gostaríamos muito, mas já temos um jantar com os Faronson. Que pena!
— Talvez qualquer outra noite, então — sugeriu Laura,
— Perfeito!
Naturalmente, não falaria sobre a operação, mas poderia, com habilidade, saber de Philip sobre o
andamento da firma e, talvez, des cobrir por que o pai se preocupava tanto com Simon Hilliard. Não
ia ser fácil arrancar alguma coisa do irmão. Não porque Philip fosse discreto, mas porque não
entenderia o que ela estava tentando escla recer. Era possível que nem soubesse de nada. Ãs vezes,
seu irmão podia ser incrivelmente obtuso.
Laura sentiu uma grande inquietação. Teve uma vontade irresistí vel de sair daquele apartamento
silencioso e andar a esmo peias ruas, para arejar todos aqueles pensamentos deprimentes.
Pegou um agasalho e saiu andando sem rumo. Ainda havia muito trânsito àquela hora da. noite.
Pensou em ir tomar um cafezinho num bar. Pelo menos, teria uma meta. Mas quando virou a
esquina, em direção à estação do metro, um carro parou junto à calçada, a seu lado.
Olhou de soslaio, muito apreensiva, e apressou o passo. A porta abriu-se do lado dos passageiros e
um vulto escorregou pelo assento. Não conseguiu ver o rosto, mas notou que era alguém muito alto
e moreno. Andou ainda mais depressa. Ouviu a porta do carro bater e o ruído de passos rápidos,
seguindo-a.
Oh, não!, pensou, começando a correr.
Aquela era uma rua de movimento e razoavelmente bem iluminada. Carros passavam a todo
instante, e Laura sabia que era um absurdo estar sentindo aquele pânico incontroiável.
Os passos se aproximaram e, então, uma mão segurou-a pelo ombro, Laura deu um salto, olhando
em tomo, com a respiração ofegante e o coração saltando pela garganta.
— Que, diabo, você está fazendo ?
— Ah, é você? — gaguejou, tão aliviada, que chegou a sentir uma tontura. Depois do alívio, veio a
raiva! — Vá assustar as pessoas assim, no inferno!
Ele estava sério até aquele momento, mas, ao ouvir sua explosão, caiu na gargalhada.
— Pensou que fosse algum maníaco sexual tentando raptá-la?
— Não tem graça nenhuma!
— É porque você não viu sua cara no espelho!
— Não brinque. Fiquei petrificada de medo.
Seu coração ainda estava, fora do ritmo e as pernas, trémulas e moles como gelatina.
Simon deu um sorriso zombeteiro.
— Bem feito, isto é para você aprender a não andar sozinha por aí, a esta hora da noite.
— Não é tão tarde assim!
— Então, porque se assustou tanto?
Laura não queria que lhe lembrassem aquele breve momento de terror, pois seus nervos ainda se
ressentiam do susto.
— Ora, desapareça! — gritou tentando livrar-se da mão que ainda segurava seu ombro. Ele
aumentou a pressão, e ela o encarou, indig nada: — Me larga!
Simon era muito alto e bem mais forte do que ela. No íntimo, Laura estava contente por ele não ser
aquele desconhecido misterioso e ameaçador, surgido de dentro da noite, que sua mente havia
criado. A ideia de ter que lutar com um estranho era apavorante. Simon, na verdade, apenas a
irritara por lhe pregar um susto tão grande.
— Vou levá-la de carro para casa — propôs, jovialmente, como se toda aquela agressividade de
Laura fosse apenas uma encenação.
Ela o mediu de alto a baixo, .com um olhar gélido.
— Não, muito obrigada. Sei cuidar muito bem de mim mesma.
— Deu para notar.
Parecia ter um grande prazer em vê-la tão atemorizada, e isso a deixou ainda mais zangada.
— Podia fazer a grande gentileza de soltar o meu ombro?
— Gosto mais de você, quando essa carinha não fica tão indiferente. Você até que pode ser muito
humana, quando deixa cair a máscara de impassividade,
Os olhos verdes deslizaram em díreção a seus lábios, lembrando a Laura o último encontro, e um
forte rubor subiu ao rosto dela. Com os dentes cerrados, ameaçou:
— Você vai ver como posso ser humana se não tirar essas mãos de cima de mim imediatamente!
Dou-lhe um tapa tão bem dado, que vai ficar ardendo por muitos dias!
— Temperamental, a garota! — comentou Simon, sorrindo, e acres centou: — Como vai indo seu
livro? Tem pintado muitos passarinhos, ultimamente?
Laura nunca tinha tido problema em conter seu temperamento. Mas agora estava a ponto de perder
as estribeiras. Contou até dez e sorriu amarelo.
— Meu livro está ótimo, obrigada.
— Por que estava perambulando por aí, a esta hora da noite? Al guma preocupação?
— Não. — Mas hesitou um pouco antes de negar, e ele era tão astuto que podia ter notado.
Portanto, acrescentou: — Gosto de andar um pouco à noite, quando estou produzindo alguma
obra.
— Um hábito perigoso. Se fosse você, deixaria esse costume. Na próxima vez, pode ser um
estranho a parar o carro.
— Vou pensar no assunto com carinho. Mas, afinai, o que está fazendo em Hampstead? Mora
nas redondezas?
— Não. Estava a caminho da casa de Annette.
— Ah, estava, é?
— Pois é. Mas, já que tivemos a feliz coincidência de nos encontrar, por que não vamos tomar um
drinque e bater um papo?
— Para falar sobre o quê?
Não acreditava que ele tivesse o topete de ir visitar a irmã, agora que ela estava noiva. Aquilo
devia ser mais um blefe,
— Vou pensar num assunto. Que tal debatermos sobre a invasão das Malvinas? Ou sobre a bomba
de nêutrons?
Laura tornou a refletir. E se ele realmente prejudicasse Annette, provocando o rompimento do
noivado, logo agora que o pai ia sub meter-se a uma operação tão perigosa e não podia ter
contrariedade?
— E então, vamos?
Laura tinha a impressão de que ele esperava que ela recusasse, mas em vez disso, deu-lhe um
sorriso açucarado e concordou: . — Está bem, vamos.
Realmente, ele pareceu surpreso, mas não comentou a súbita mudança de opinião, até que sentaram
no carro e começaram a rodar. Só então, perguntou:
— Por que mudou de ideia? Será que o charme de minha personalidade irresistível finalmente
funcionou?
— Deve ter sido isso. Olhou, sério.
— Diga a verdade. Qual foi o verdadeiro motivo que a fez voltar atrás?
— Pensei, que já tínhamos concordado que foi por causa de seu charme irresistível — disse Laura,
quando ele virou uma esquina e estacionou em frente a um dos pubs mais em moda de Hampstead.
Desligou o motor e encarou-a com olhos frios e penetrantes.
— Desconfio de que você é uma mulher muito perigosa. Por trás desses angelicais olhos azuis
existe um cérebro diabólico.
— Obrigada.
— Não confio em você nem por um momento.
— Coincidência: também não confio em você.
— Estou começando a achar que, afinal, temos algumas afinidades.
— E de que adianta?
— Nos dará assunto para o jantar — disse ele, saindo do carro. Laura também desceu.
— Jantar? Quem falou em jantar? Você mencionou um drinque.
— Isso, agora. O jantar vai ser amanhã à noite.
— Você é ligeirinho demais.
— Tenho a impressão de que vou ter que ser ligeiro mesmo, antes que você mude novamente de
ideia. — Abriu a porta do pub para ela.
O local estava cheio, mas conseguiram uma mesa de canto.
— Fale-me de seu trabalho — ele pediu esticando o corpo para trás, para vê-la melhor,
— E o que vou dizer?
— Conte como começou sua carreira.
Ela fez um breve resumo e falou sobre Declan. Simon fez perguntas tão rápidas e casuais, que ela
respondeu sem pensar, e levou um choque, quando ele perguntou:
— Declan? Um nome estranho. Não é comum . . .
— Não, realmente não é.
— É difícil alguém conhecer duas pessoas com esse mesmo nome. Ela se endireitou na cadeira,
arregalando os olhos, e ele continuou:
— Ouvi você chamar aquele cara com quem estava almoçando de Declan.
Laura pôs a cabeça para funcionar a todo o vapor.
— Sim, aquele era Declan — confirmou, com voz firme.
— Seu editor , . .
— Entre outras coisas . . .
— Sei ... — Pegou o copo e tomou o resto da bebida. - Posso pedir outro drinque?
— Não, obrigada. — Laura olhou para o relógio. — Está na hora de ir andando.
Ele não fez objeções. A caminho do apartamento, manteve-se em silêncio. O que quer que estivesse
pensando, não devia ser agradá vel, pois sua testa estava tão enrugada que as sobrancelhas
chegavam a se juntar.
— Vai me convidar para um último cafezinho no seu apartamento? — perguntou, ao estacionar.
Laura ficou em dúvida. Normalmente, quando alguém a trazia para casa, depois de um convite para
sair, era o que costumava fazer. Mas, no caso de Simon Hilliard, não saberia como controlá-lo. Ou
será que temia não saber se controlar?
— Não se apresse com esse convite — ironizou Simon diante da demora da resposta.
— Oh, claro, pode subir — disse, fazendo o possível para parecer natural e despreocupada.
— Obrigado.
Laura tentou não pensar naqueles momentos em que tinha estado nos braços dele, mas não
conseguia impedir um tremor de excitação, uma sensação completamente nova para ela. Nunca
homem algum tinha conseguido perturbá-la tanto. Era uma ironia do destino que se sentisse atraída
daquela forma incomum pelo último homem-do mundo em quem podia confiar. Simon Hilliard
devia ter. motivos de sobra para querer ver pelas costas a família Sloane. Laura só gostaria de saber
que motivos eram esses.
Enquanto ela preparava o café, Simon Hilliard ficou zanzando pela sala de estar e dando risadas a
cada achado que o divertia.
Laura sacudiu os ombros, sem dizer nada. Era a forma mais segura de agir.
— Você não me deu a impressão de estar assim, tão louca por ele.
— Não mesmo?
— Não se esquive. A pergunta é simples: você o ama? Laura sentiu-se corar.
— Você faz perguntas muito pessoais.
—- Tente responder pelo menos uma, com honestidade.
— Por que deveria responder? Que interesse você pode ter nisso?
— Ê que odeio perder meu tempo — ele murmurou, com voz suave e um novo brilho nos olhos
verdes.
Laura ficou rígida, pronta para levantar, atemorizada com aquela súbita mudança de atitude. Sentiu
a pulsação acelerar e o coração desandar.
No instante seguinte, ele já a tinha derrubado no sofá, abraçando-a pela cintura, com a boca ávida
em busca da sua. Presa sob o corpo dele não podia nem tentar reagir. O coração disparou
loucamente, quando seus lábios se entreabriram sob a pressão daquele beijo ardente e desesperado.
Nunca havia sido assaltada por uma emoção tão forte, e não sabia como combatê-la.
' Palpitante, deixou escorregar as mãos por aquelas costas musculosas até chegar à nuca, que
apertou, sentindo a tensão dos músculos do pescoço sob as palmas, que lhe provocou uma incrível
excitação.
De olhos fechados, deixou-se levar pelas sensações mais estranhas, que agora dominavam seu
corpo, provocadas pelo calor, a força e o cheiro másculo.
Os beijos de Simon pediam uma rendição total. Tentando lutar contra o desejo incontrolável, Laura
procurou uma saída racional. Aquele homem odiava seu pai, e ela estava come çando a acreditar
que detestava toda a família Sioane. Até o inofensivo Philip..
Ao apoiar as mãos no peito de Simon, numa vã tentativa de afastá-lo, sentiu uma palpitação
crescente, como se o mais, simples toque tivesse o poder de provocar- uma explosão.
Era isso que tanto receava, ao hesitar em convidá-lo a subir para o café. Não era a tentativa de
Simon de possuí-la que a assustava tanto, mas seu próprio desejo de entregar-se.
Mesmo sem ter confessado a verdade a si mesma, um lugar recôndito de sua mente já sabia há
muito tempo. Ficou excitada, desde a primeira vez que o viu. Agora, era obrigada a encarar a
realidade. Simon Hilliard tinha penetrado em sua pele. e, quaisquer que fossem as consequências
dessa invasão, ela estava dominada demais para tentar se proteger.
Foi ele quem tomou a iniciativa de se afastar, ofegante. Laura ficou de olhos fechados, tonta, mas
sentiu que ele a estava olhando fixamente. Com esforço, abriu os olhos azuis.
— Você conseguiu mexer comigo — ele murmurou, com voz insegura. — Quando a vi
pela primeira vez, na festa de Annette, pensei: ela parece fria como um iceberg, mas como será na
cama, fazendo amor?
Laura iutava para se recompor e se livrar da perigosa excitação que ainda a possuía. Então, era
aquilo que tinha pensado dela?
Na esperança de que sua voz saísse mais firme do que a dele, disse, com ironia:
— Sempre tive curiosidade de saber o que os homens pensam, além de Futebol, loteria e onde
irão tomar o próximo drinque.
. Ele piscou, surpreso com aquele comentário; depois, sorriu, malicioso,
— Agora já sabe.
— É. . . sei. Como vocês são incríveis! Ele deu uma risadinha.
— Vocês, mulheres, também são incríveis. Como se recuperam depressa!
Laura aceitou a indireta, sem pestanejar; e respondeu, muito sorridente:
— Oh, sim, mais depressa do que os homens.
— Vá para o inferno! Há um minuto, você não estava rindo desse jeito!
Simon tinha aquela expressão já familiar para ela: a do homem cujo ego tinha sido atingido. Quer
dizer que seu senso de humor não era ião elástico como parecia?
— Claro, é difícil rir, quando se está sendo beijada. O rosto dele ficou ainda mais sombrio.
— Droga! Você é mais parecida com seu pai do que eu pensava.
75
Arregalando os olhos, ela fez uma cara de inocente e perguntou:
— Não me diga que andou beijando meu pai!
Por um segundo, ele a olhou como se fosse esganá-la, mas caiu numa sonora gargalhada.
— Sua diaba! Não sei como ainda não foi estrangulada por algum admirador mais exaltado.
—- Já tentaram, . . umas duas vezes.
— Aposto que sim.
Ele afastou a cabeça e a examinou como a um espécime raro.
— Você é um enigma. Há pouco, eu poderia jurar que estava vibrando comigo, mas, em menos
de um. segundo, você desligou, como se fosse uma máquina. Não é uma qualidade muito
fascinante.
— Quem lhe disse que eu tinha intenção de ser fascinante?
— Não. gosto de mulheres com cérebros iguais a computadores.
— Pensei que os computadores fossem sua especialidade — revidou, sorrindo, e pensou estar
sonhando, quando viu uma expressão de criança amuada no rosto de Simon.
Mas logo ele se refez e, apertando os dentes, tornou-se agressivo:
— Acontece que não tenho o hábito de fazer amor com meus
computadores.
— Só espero que também não queira tornar um hábito fazer amor
comigo,
— Que lástima! Pois eu pensei que fosse justamente isso que ia acontecer. — As linhas duras de
seu rosto se abrandaram. — É uma pena que você seja uma Sloane.
Laura ficou tensa.
— Ê mesmo? E por quê?
— Ê uma raça que não gosto muito.
— Não somos todos iguais.
— Pois eu acho que você tem as marcas de fábrica. Tem uma cabeça diabolicamente racional e
fria, e não tem a mínima intenção de deixar seus sentimentos se manifestarem, não- é mesmo? Pode
ser que não seja tão implacável quanto o resto da família, mas não ponho minha mão no fogo por
você. Acho que seria capaz de degolar alguém, sem grandes remorsos.
Laura encarou-o, corajosamente.
— De quem meu pai andou cortando a garganta?
— Pode crer que não foi a minha. Ele que tente! Mas já cortou algumas, no passado, e tenho
certeza de que isso não o fez perder nem uma noite de sono.
Disso, Laura também tinha certeza. Mas a quem seu pai teria atingido, para fazer com que
Simon Hilliard o detestasse tanto?
— Por que você está comprando ações da companhia? — ela perguntou, inesperadamente.
Apanhado de surpresa, ele ficou alerta.
— O quê? Quem disse isso?
— Meu pai.
— Vocês dois andaram falando a meu respeito?
— Seu nome surgiu numa conversa.
— Foi mesmo? — Simon esticou o corpo para trás e passou as mãos pela nuca, despenteando os
cabelos negros. -— O que ele disse de mim?
— Mencionou o fato de você estar comprando ações.
— E deve ter ficado imaginando por que eu estaria fazendo isso.
— Oh, ele não ficou imaginando nada. É bastante perspicaz para saber quais são suas intenções.
— E isso o incomoda muito, não é?
Pelo modo como fez a pergunta, Laura percebeu que ele esperava que George Sloane realmente se
incomodasse com aquilo.
— Não acredito. Se você quer comprar ações, por que isso haveria de afetá-Io?
Simon deu uma risada seca.
— De fato, por quê? — Levantou. — Está ficando tarde. É melhor eu seguir meu
caminho. Obrigado peio café e pelas coisi-nhas mais.
O olhar de zombaria sublinhava as últimas palavras, mas Laura se recusou a ficar encabulada.
Também levantou e respondeu:
— Não tem de quê.
Seu tom era formal e educado, como se não tivesse entendido as segundas intenções de Simon.
— Jantamos amanhã? — ele perguntou, displicentemente, a caminho da porta.
— Tenho um compromisso.
Apesar das boas intenções de mantê-lo afastado de Annette, para poupar o pai, achou que sua
própria proteção merecia prioridade, depois do que tinha acontecido naquela noite. Era verdade que
havia se recuperado rapidamente daqueles beijos devastadores, mas tinha consciência de ter
chegado- bem perto da beira do abismo. Simon Hilliard era uma ameaça para ela, e não seria louca
de lhe dar outras oportunidades.
— Desmarque — exigiu.
Laura sacudiu a cabeça. Ele tocou seu rosto, de leve, com dedos frios.
— Que mal pode haver em jantar comigo? Não vou exigir nada corno sobremesa.
— Não costumo quebrar meus compromissos.
— Sempre há uma primeira vez.
Eía voltou a sacudir a cabeça, sorrindo.
— Então, depois de amanhã? —- ele sugeriu, num tom de quem já esperava por uma segunda
negativa.
Laura hesitou. Uma voz lhe dizia que seria uma débil mental, caso se arriscasse a vê-lo novamente.
Ouviu aquele aviso, mas ignorou-o.
— Está bem, depois de amanhã.
Sua cretina!, pensou. Por que foi dizer isso?
— Venho apanhar você às sete. — E sorriu, agradavelmente surpreendido.
Laura seguiu-o até a saída ainda se censurando intimamente. Fechou a porta e se apoiou no batente.
Haveria uma tendência suicida na família Slpane? Seu consciente enviou todos os avisos possíveis.
O que a tinha levado a dizer sim, depois de tantas advertências?
Com o rosto em brasa, não quis admitir a única resposta possível. Em vez de encarar a realidade,
saiu pela tangente, tentando se convencer de que havia cedido, só para manter Annette longe dele
pelas próximas semanas. Era uma boa e justa causa,mesmo? E se estava em busca de uma
justificativa, aquela vinha a calhar,
Nunca tinha enfrentado um conflito tão íntimo. A razão sempre vencia porque seu corpo nunca tinha
oferecido resistência. Nenhum homem a fez sentir o que sentia com Simon Hilliard. Com ele seu
sangue fervia, o coração desandava, as pernas ficavam bambas. Seria apenas uma reação física? Ou.
finalmente, suas emoções se Sibériavam?
Nao quis mais pensar nisso.
Apagou as luzes da sala e foi para o estúdio, decidida a se concentrar em seu livro em vez de
dormir.
O trabalho era uma tábua de salvação que nunca havia falhado. Mas, naquela noite, teve dificuldade
em apagar a imagem de Simon Hilliard de sua mente.

CAPÍTULO VII

Quando Simon foi buscá-la para jantar, Laura já estava mais segura, pois havia passado esse meio-
tempo fazendo uma severa auto crítica, Num piscar de olhos, Simon logo percebeu seu novo estado
de espírito.
— Você está linda!
— Obrigada — disse, imperturbável.
Tinha gasto um tempo enorme para se arrumar. Usava um vestido longo, creme, de modelo clássico,
que acentuava ainda mais sua figura esguia. No pescoço, preso a uma fita de veludo negro, um belo
camafeu, que Simon resolveu admirar bem de perto, só para deixá-la embaraçada.
— Muito bonito — disse, inclinando-se sobre eia.
Quando levantou os olhos verdes para seus lábios, com uma expressão de desejo, Laura resistiu à
tentação e afastou-se. Fazia -questão de que ele acreditasse que eia estava sob controle total.
E .estou, ora essa!, disse a si mesma, querendo acreditar nisso.
— Dá até para ler o que está escrito na sua testa — observou Simon.
— O quê? — perguntou, seguindo-o até o carro.
— O aviso: "Não me toque!"
Abriu a porta e ela entrou, sem responder, apenas tentando sorrir.
Simon levou-a a um restaurante de luxo, com vista para o rio Tamisa e de onde se avistavam as
luzes da cidade, na outra margem.
Enquanto tomavam vinho, Simon comentou a respeito de um filme, recomendando-o.
— Já viu o novo filme de Woody Allen?
— Não. É bom?
— Você gosta dele?
— Gosto.
— Ainda bem, É um tipo que ou a gente gosta, ou detesta, já percebeu? Seus roteiros sempre
provocam polémicas.-
— Annette não o suporta. Nunca entende as intenções e as piadas.
— Tenho certeza de que não.
Seus olhos se encontraram, e ambos riram.
— Ela não tem senso de humor. Nisso, é uma autêntica Sloane — disse Simon,
— Gostaria que você parasse de falar da minha família como se tosse gente de outro planeta.
— E vocês são. — Debruçou-se sobre a mesa, para tornar a encher seu copo. — Desculpe, vamos
mudar de assunto. Olhou para o prato Je Laura, ainda cheio. — Não gosta de peixe?
— Ah, sim, gosto. É que estou sem apetite.
— Também não tenho fome. Sinal de que estamos apaixonados. Laura lançou-lhe um olhar de
desdém.
— Não, eu!
— Claro que não . Tinha até esquecido que você é uma Sloane. Vai ou não parar com isso? —
disse, impaciente. — já estou enjoando dessa brincadeira. Ele sorriu,
— O problema é que fico tentando me convencer de que você é uma Sloane. Sempre que a olho.
tenho dificuldade em acreditar. Tem certeza de que sua mãe não andou traindo seu pai?
— O que disse? Foi uma piada de muito mau gosto.
— Desculpe.
— Você chegou a conhecer minha mãe?
Laura estava tendo dificuldade para falar com naturalidade. A única pessoa da família que
tinha realmente amado era a mãe. E ressentira-se profundamente com o pai, pela maneira
indiferente como sempre a tratou.
Símon encarou-a.
— Não. Como ela era? Sempre tive curiosidade de saber que espécie de mulher se
conformaria em casar com um homem como seu pai.
— Era uma pessoa muito introvertida. Raramente dizia uma palavra. Era meiga, serena e muito
sensível,
— E foi casar justo com George Sloane? Pobre criatura! Símon parecia sinceramente consternado.
Laura ficou olhando para o copo de vinho, pensativa, passando os dedos frios pela borda do crista!.
Muitas vezes ficava imaginando o que a mãe devia ter sentido. As lembranças de Laura eram muito
antigas. Mas, apesar de ser quase uma criança, na época, pôde perceber a influência nociva do pai
sobre a esposa. Tendo crescido numa casa onde as demonstrações de afeto eram quase inexistentes,
Laura tornou-se adulta muito cedo.
— Ouvi falar nela — disse Simon, e Laura deixou as tristes recordações de lado, voltando ao
presente. — Gostava muito de sua mãe?
— Muito.
— E seu pai? Gosta dele?
A pergunta era capciosa, e Laura ficou em guarda.
— Não vou discutir sobre meu pai com você!
— Ele é um assunto um tanío maçante, concordo.
O garçom aproximou-se e começou a tirar os pratos, praticamente intocados^ olhando-os com ar
ofendido.
— O peixe não estava a seu gosto, senhor?
— Tudo bem. Ê que não estamos com apetite — desculpou-se Simon, e o homem lançou-lhe
um olhar de comiseração, achando que eles deviam ser lunáticos por encomendar um prato tão caro
e não comer.
— Café? —- sugeriu Símon.
— Gostaria.
— Com açúcar, madame?
— Não. Café amargo. — Esperou que o homem se afastasse e perguntou: — O que foi que meu
pai lhe fez?
— A mim? Quase nada. Até que me pagava bem!
— Você sabe o que quero dizer. O que tem contra ele?
— Fora o fato de eíe menosprezar as medidas de segurança das fábricas, discutir sobre cada
centavo que gastava, ser mal-humorado e intolerante com os empregados e nunca esquecer uma
oíensa. . . que mais tenho contra ele? É isso que quer saber?
— Justamente. Esses detalhes não justificam a animosidade que sente.
— Não justificam? — Eie estava novamente zombeteiro.
— Não sou burra.
— Nunca pensei que fosse. É mais do que óbvio que você é inteligente.
— Obrigada. — Sua voz saiu um tanto ríspida, mas teve a impressão de que o que ele disse não foi
apenas bajulação ou ironia, e acrescentou: — Não estou sendo irónica.
— Você parece ficar melindrada por isso. Por que deveria esconder que é inteligente?
— É que, peío visto, a maioria dos homens não acha que seja uma qualidade. Já ouvi muitas
vezes dizerem que sou inteligente, mas sempre num tom de voz que demonstra que a pessoa está
ressentida por causa disso.
— Você deve conhecer uma porção de homens com complexo de inferioridade.
Ela riu,
— Pode ser. Por que nunca me ocorreu essa explicação?
-- Mas não creio que você tenha outros defeitos — disse, brincalhão.
Laura corou.
— Meu senso de, humor também parece aborrecer os homens.
— Talvez porque você o use em momentos impróprios. Pude notar essa tendência na outra noite.
Laura deu um sorriso sem graça.
— Desculpe.
— Apesar,de que aquilo foi mais uma forma que você achou para me esfriar, do que propriamente
uma graça.
— Foi mesmo? Mas estamos nos desviando do assunto.
— E qual era o assunto? Esqueci!
— Meu pai.
— Não é meu tópico favorito. Vamos esquecer? Poderia estragar
uma noite tão agradável. . .
O garçom serviu o café e ele tomou um gole.
— Por falar em agradável, aceita um pouco de licor?
— Não, obrigada.
Laura percebeu que ele não ia mais falar em seu pai.
— Quando você estava na escola, era boa em desenho?
— Não era má. E você? No que se sobressaía?
Seus olhos tornaram-se brincalhões.
—- Colecionar namoradinhas. Era meu passatempo favorito.
— Não duvido. Nada de eletrônica, então?
— Eu costumava mexer com peças de rádio. Nosso professor de ciências era um entusiasta em
comunicação e me ensinou uma porção de macetes. Chegamos a montar juntos um aparelho de
televisão para a escola.
— E funcionava?
— Se funcionava? — repetiu, rindo. — Claro que sim. Que pergunta! Agora, você me ofendeu.
Olhou em torno, procurando pelo garçom, e pediu a conta.
No caminho de voiía para o apartamento, Laura sentiu um medo percorrendo-lhe a espinha. Simon
não falava nada, e isso a apavorava ainda mais. Não sabia o que ele estava pensando, mas algo lhe
dizia que era o mesmo que ela. No carro fechado, a proximidade se tornava ainda mais
perturbadora.
Ele estacionou junto- ao meio-fio e virou-se, passando o braço por irás do banco de Laura. Ela ficou
sentada, muito tensa, sem saber se abria a porta e ia saindo como o instinto aconselhava, ou
enfrentava o perigo valentemente.
O olhar zombeteiro de Simon pouco ajudava.
— Quero agradecer por esta noitada tão agradável — disse ele, educadamente, com um formalismo
que não serviu para relaxar a tensão.
Laura não acreditava naquele cavalheirismo todo. Ele mais parecia um tigre de tocaia, movendo-se
sobre patas de seda, antes de saltar inesperadamente sobre a presa.
— A comida estava excelente — disse ela, no mesmo tom cerimonioso.
— Mesmo assim, você quase não comeu.
— O café estava ótimo — disse Laura, e ele começou a rir. — Bem, obrigada por tudo.
— E virou-se, à procura da maçaneta.
— Laura...
Ficou tensa, ainda lutando para girar a maçaneta.
— Sim?
Segurou-a pelos ombros e, sem fazer pressão, fez com que se voltasse de frente para ele.
— Não esqueceu de nada?
Laura olhou para a curva daqueles lábios, certa de que não teria salvação, e seu coração começou a
bater, alucinado. Perguntou, mais por perguntar:
— O que?
— Sua bolsa — disse ele. pegando-a no banco de trás, e entregando a ela.
Olhou para a bolsa, apatetada, e depois para ele, Simon estava seriíssímo, mas seus olhos
cintilavam, divertidos.
— Obrigada. — E saiu do carro, apressada.
Foi andando na direção do apartamento e ouviu o ronco do motor do carro, que pouco a pouco se
afastava.
Não estava com vontade de dormir. Colocou um disco e foi preparar um chocolate quente.
Recostou-se junto à janela e ficou ouvindo a canção triste, que bem combinava com seu estado de
espírito. Quando o disco terminou, tornou a tocá-lo.
Que, diabo, está acontecendo comigo?, pensou, zangada. Qualquer pessoa diria que estou chateada
por eie não ter me beijado. Eu estava apavorada, pensando que ia tentar, e. quando nada aconteceu,
senti como se debochasse de mím. Será que estou ficando maluca,?
Era mesmo uma coisa de louco sentir-se frustrada e deprimida, porque algo de terrível e de tão
temido não tinha acontecido!
Desconfiou de que Simon havia feito de propósito, para provocar aquela reação. Seus olhos não
enganavam, quando devolveu sua bolsa.
Desligou a vitrola, terminou de tomar o chocolate e foi para a cama, certa de que tinha feito papel
de idiota.
No dia seguinte, levantou cora o pé esquerdo. Dormira mal, e nos poucos momentos de sono, teve
sonhos que preferia esquecer.
Irritada e tensa, decidiu tirar Simon da cabeça e entregou-se ao trabalho, com determinação.
Declan tinha mandado o texto do livro que devia ilustrar. Ainda não tinha tido tempo de ler, mas, à
noite, já cansada pela luta que era tentar se concentrar no trabalho, com dor de cabeça e os olhos
ardendo pela falta de sono, pegou o manuscrito e resolveu ver do que se tratava.
Começou a ler, sentada no chão, enquanto comia um sanduíche. Depois de duas páginas, já ria. Ao
terminar a leitura, sentiu que estava doida para começar logo as ilustrações. Os personagens eram
todos animais com características humanas, e a história era ao mesmo tempo absurda e realista.
Ficou tão entusiasmada, que ligou para Declan, o que foi um erro crasso. Ele ficou tão satisfeito em
saber que ela ia aceitar o trabalho, que passou horas falando sobre outros livros que o autor
planejava escrever. Laura teve a impressão de que pretendiam que fizesse todas as ilustrações
futuras e que seus próprios textos logo seriam coisa do passado, se Declan insistisse no assunto,
— Ê sobre o dinheiro? — disse ela, por fim, quando não viu outro jeito de fazê-lo parar de falar.
— Ah, sím! Estou felicíssimo por você ilustrar o livro. A gente se vê na terça-feira, na hora do
almoço. — E desligou.
Esse é um método infalível para lhe fazer calar a boca, pensou
Laura, rindo.
Mas seu bom humor durou pouco diante da perspectiva de trabalhar em período integral, em obras
alheias.
Olhou para o manuscrito. Tinha que reconhecer que o sujeito era genial. Estava ansiosa para
conhecê-lo, já fazia uma imagem dele, pela leitura do livro, e queria verificar se a aparência e a
personalidade combinavam com o texto.
No dia marcado para o almoço, sentiu uma grande excitação ao ir se encontrar com Declan e com o
autor de As Férias do Morcego.
Pela primeira vez na vida, Declan foi pontual. Chegou poucos segundos depois de Laura. arrastando
algo pelo salão do restaurante, como se fosse um trofeu ganho numa batalha.
Pasma, Laura deu a mão ao sujeito magricela e baixinho que surgiu por trás de Declan, sem
acreditar que aquelas fantásticas aventuras do livro tinham saído de um crânio tão raquítico.
Ele parecia extremamente asseado e arrumadinho: unhas polidas, sapatos bem engraxados, cabeios
cuidadosamente penteados e roupas muito discretas e convencionais. À primeira vista, parecia um
caixeiro de loja, daqueles que raramente conseguem vender alguma coisa. De forma alguma,
parecia um homem capaz de fazer alguém rir até as lágrimas.
Durante a refeição, só Decian falou. Henry ficou ouvindo o tempo todo, com os olhos fixos na
toalha da mesa. Uma ou duas vezes, ajustou o nó da gravata e mexeu com os talheres. Não fosse por
isso, teria parecido uma estátua.
Já estavam no café, quando Declan avistou um amigo do outro lado do salão.
Pedindo licença, levantou para ir falar com ele.
Laura procurou alguma coisa para dizer a seu silencioso companheiro de mesa.
Sem erguer os olhos da toalha, Henry murmurou, de repente:
— Ele parece um filhote de cachorro, cujas patas são grandes demais.
Laura olhou-o, atónita.
— Um filhote?
— Que late mais alto do que você imagina.
— Quem? Declan?
Laura olhou na direção do editor, agitadíssimo, gesticulando sem parar.
— Ele é crescido para um filhote.
— É por isso que seus pés são grandes demais. Laura tornou a encará-lo.
— Você sempre compara os homens a animais? Finalmente Henry ergueu a vista, timidamente.
— Sim.
— No seu livro — começou Laura, e Henry sorriu — são todos pessoas?
— Sim.
— Santo Deus! Aquele sapo.
— È minha sogra. ..
Rindo, ela perguntou:
— E o morcego?
Henry não respondeu e tornou a baixar os olhos. Numa súbita inspiração, Laura perguntou:
— É você? — E esperou não ter ofendido o homem.
__ Sim — confirmou, orgulhoso, o que a fez rir novamente. — Isso ajuda?
Laura ficou um tanto confusa, antes de entender a pergunta.
— Quer dizer, para a ilustração? Oh, sim, ajuda muito. Eu devia ter logo percebido. Achei mesmo
que seus personagens tinham evidentes características humanas.
Henry pigarreou.
— Você se incomodaria. . . bem. . . — Interrompeu-se e deu-lhe um de seus olhares furtivos. —
Eu gostaria de ver algum esboço seu. . .
— Antes de chegarmos à decisão final?
Podia prever que teria uma trabalheira danada para trocar ideias com Henry, no futuro. Sempre
colocava reticências depois de cada frase, para obrigar aos outros a terminarem o raciocínio por ele.
— Tenho certeza de que você é. . .
— Seja como for, prefere estar garantido, não é isso?
— Se você não. . .
— 'Claro que não me importo. Que tal se eu fizesse os desenhos dós diálogos do morcego, para
começar?
— Morceguinho — corrigiu, com voz comovida. — Declan quis trocar o nome.
— Então, mando-lhe os esboços?
Henry olhou para ela com ternura e gratidão, e Laura sorriu. -— Não se preocupe. Tenho um
pressentimento de que tudo vai dar certo.
— Acredito.
Laura hesitou, mas não resistiu à curiosidade.
— Como é que você me vê? Que bicho eu seria?
— Um mangusto — disse ele, deixando-a confusa.
Esperava que a comparasse a um animal gracioso, assim como uma gazela. Explodiu numa risada.
— Pequeno e mortal — disse Henry, e completou, sóbrio: — Principalmente, para as cobras
venenosas.
— Obrigada — murmurou Laura, sem saber se Ficava'envaidecida ou horrorizada com aquela
comparação.
Declan voltou para a mesa. muito afobado, desmanchando-se em perdões, e logo depois os três
saíram.
Ao chegar ao apartamento. Laura raciocinou sobre o que Henry havia dito. Enlão. ela era um
mangusto? Pequeno e mortal. E. ao pensar nas cobras venenosas, lembrou de Simon. Falaria sobre
ele com o irmão, durante o jantar daquela noite. Philip era muito mais fácil de se pressionar do que
o pai. Poderia descobrir alguma coisa sobre o problema com Simon; a não ser que George Sloane
tivesse guardado o segredo a sete chaves, como era seu costume, e Philip não soubesse de nada. Ou
ainda, que, mesmo sabendo, tivesse medo de contar.
Laura tinha ligado para o pai pela manhã, dizendo que o irmão e Daphne iriam jantar com ela e
convidou-o para juntar-se a eles. O pai estava esquisito ao telefone.
— Sinto. Estou muito ocupado. Obrigado pelo convile. Tenham um bom jantar.
— Você está bem, papai?
— Claro que estou! Não amole! — E desligou,
Era inútil esperar que a iminência da operação o abrandasse um pouco, tornando-o mais afetuoso e
acessível. Talvez nem pensasse na operação quando estava trabalhando. Mas até ele devia parar
para meditar sobre a possibilidade de morrer. Ou será que passaria por cima dessa ameaça, como
uma coisa irrelevante que não leva a nada de prático? Nada parecia abalar aquele escudo de granito,
atrás do qual se protegia.
Laura preparou o jantar com antecedência, pois quase todos os pratos eram frios, com exceção dos
filés de salmão ao molho branco, que podiam ser aquecidos na úitima hora.
Daphne e Philip seriam pontuais. O horário era uma espécie de reiigião para eles.
Conforme o previsto, chegaram na hora exata.
Daphne carregava uma enorme caixa de bombons caros, e Philip trazia uma garrafa de vinho.
Entregaram-lhe os presentes, muito animados e sorridentes, e aceitaram tomar um sherry como
aperitivo.
----Que lindo apartamento o seu! — Daphne elogiou, olhando em torno, segurando o cálice de
sherry bem afastado, como se a bebida nãe combinasse com ela.
Seu olhar foi atraído para um quadro. Laura percebeu seu interesse,
— Que pintura interessante! Foi você quem fez?
— Na verdade, é uma reprodução de um quadro de Salvador Dali. Philip também admirou a
pintura, embasbacado.
— Aquele relógio parece que está derretendo — comentou. — Está.
— Por que será?
— Só Deus sabe. Espero que ambos gostem de salmão.
— Ob, sim, nós gostamos muito — disse Daphne. - Salmão? Ótimo! Em casa, nunca fazemos
salmão. Daphne olhou-o de esguelha.
— Fazemos, sim. Muitas vezes.
— Algumas vezes — ele contemporizou.
Ambos sorriram para Laura, como se desculpando por terem estado perto de uma discussão, e ela
imaginou se aquele casamento era realmente tão idílico como se dizia.
— Posso ajudar em alguma coisa? — perguntou Daphne, gesticulando, com o cálice ainda cheio.
— Não gosta de sherry? — perguntou Laura.
— Oh, sim, claro que gosto.
Philip abriu a boca para falar, mas depois captou um olhar de advertência da mulher e tornou a
fechá-la. Daphne tomou um gole do sherry com evidente arrepio.
— Philip, pode me dar uma mão, ajudando a trazer as coisas para a mesa? — pediu Laura,
encaminhando-se para a cozinha.
Daphne levantou para olhar mais de perto a reprodução de Dali corn ar de reprovação, e Philip
seguiu a irmã até a cozinha. Olhou em volta, atarantado.
— O que devo fazer?
— Como estão as coisas na firma? — perguntou Laura, enquanto ligava o forno.
— Bem — respondeu, com entusiasmo.
— E papai, como vai?
— Bem —- disse Philip, com menos entusiasmo.
— E você e Daphne?
— Bem. — Dessa vez. estava desanimado. Deu um risinho nervoso. — Altos e baixos. Você sabe
como é esse negócio de casamento,
— Sei. Pelo que papai me disse, tive a impressão de que há algum pequeno problema na firma.
— Pequeno — Philip foi cauteloso, tentando adivinhar, pela expressão da irmã, quanto ela sabia a
respeito.
— Papai anda preocupado com Simon Hilliard.
A expressão do irmão teve uma mudança brusca. Duas manchas vermelhas tingiram-lhe as faces.
— É. . . está. —- E você?
Ele lançou-lhe um olhar alarmado, como se tivesse caído numa armadilha. Olhou para a porta da
cozinha e foi fechá-la. Baixando a voz. disse, quase num sussurro:
— Não fale tão alto. Daphne pode ouvir.
— Ela não está sabendo? — perguntou Laura. tentando imaginar o que Daphne não sabia e que
importância tão grande teria aquilo para ela não poder saber.
— Santo Deus! — Philip ficou ainda mais vermelho. — Claro que ela não sabe!
— É claro que não — Laura concordou, fazendo um tremendo esforço de inteligência. —-- Você
não ia querer que ela descobrisse não é mesmo?
Descobrir o quê?, Laura pensou.
— Seria o fim do mundo — disse Philip, de cabeça baixa,
— Ela não ia gostar — Laura forçou, imaginando como poderia arrancar o tão esperado
esclarecimento, sem que ele suspeitasse de que ela estava por fora.
— Ela nunca me perdoaria. Você sabe, isso foi antes de conhecê-la, mas, mesmo assim, não é coisa
que se confesse. . .
— Simon Hiiliard não poderia contar? — Estava atirando perto do alvo,
Philip ergueu a cabeça bruscamente, apavorado.
— Ele está ameaçando fazer isso? Papai não me contou. Deus do céu! Isso é chantagem! HilHard
é muito vivo, mas não faria uma sujeira dessas. Quero dizer, mexer em águas passadas, depois de
tantos anos. Reconheço que não fui um exemplo de hombridade, mas, se ele quisesse me enredar, já
o teria feito há muito tempo. Não, ele
não contaria. Não tenho nada contra Hilliard. Papai é quem o detesta. Hilliard culpou a ele, não a
mim, você sabe; ele me disse isso um dia. Foi bastante rude comigo. Disse que eu não tinha espinha
dorsai, que era um covarde. — Deu uma risada amarga. — Há uma certa verdade nisso. Mas não
acredito que Hilliard conte a Daphne. O que a faz pensar que sim?
— Só imaginei — disse Laura, tentando juntar as peças daquele quebra-cabeça.
— Não, não, ele não faria isso. Naturalmente, está de olho na empresa. Sabe coisas demais. Sabe
onde foram enterrados todos os cadáveres. Entende o que quero dizer?
— Entendo — concordou, sem compreender nada.
— Papai nunca devia ter brigado com ele. Mas, depois que casei com Daphne, a bomba explodiu.
Hilliard ficou com sete pedras na mão, depois disso. É danado de inteligente, você sabe. Com ele,
não tenho chance.
Laura admirou-se de tanta sinceridade e disse, sorrindo:
— Você é muito honesto em dizer isso, Philip. Olhou para ela, pesaroso.
— Nunca consegui me entrosar naquela firma. É um trabalho estafante, que vai acabar matando
papai,
— Espero que não. — E o sorriso de Laura se apagou.
— Algum problema?
Daphne tinha aberto a porta e estava olhando para dentro da cozinha, com ar acusador.
— Desculpe! Começamos a falar e esquecemos da vida. Por favor, Philip, pode levar essa travessa
para a mesa? Já vamos indo, Daphne.
Aquela tinha sido a última chance de falar com o irmão a sós, mas, pelo que tinha ouvido, pôde
formar uma vaga ideia do mistério. Era claro que a discórdia entre Simon e o pai era de caráter
pessoal e se relacionava com aigo que Philip havia feito no passado.
A cabeça de Laura quase entrou em curto-circuito, quando tentou imaginar o irmão, tão manso,
cordato e irrepreensível, cometendo uma ação condenável.
Mas era óbvio que ele tinha feito alguma coisa.
O quê?

CAPÍTULO VIII

O pai ia internar-se no hospital alguns dias antes da operação. Laura não teria sabido de nada, se
não telefonasse. Ele informou, seco.
— Parece que precisam fazer alguns testes e exames para verificar se estou em condições de ser
operado.
— Posso ir visitá-lo?
— Não precisa.
— Mas, papai, eu gostaria de ir!
— Eles querem me manter em repouso absoluto — argumentou, e ela percebeu que o pai não
queria receber visitas,
Não adiantava discutir. George Sloane era irredutível, quando enfiava alguma coisa na cabeça.
— Em que hospital vai ficar? Gostaria de mandar umas flores.
— São proibidas flores nos quartos,
— Mesmo assim, você não pode me dizer em que hospital vai ficar? — Tentou ser persuasiva,
mas a obstinação do pai estava deixando ambos nervosos e irritados.
Com relutância, ele propôs:
— Minha secretária pode lhe dar todas as notícias que quiser. Um boletim diário, enviado por
telex?, pensou Laura, com tristeza.
Tudo muito eficiente e impessoal, como se fosse uma transação, comercial
— Boa sorte. — Esforçou-se por parecer calma e confiante. — Depois da operação, poderei visitá-
lo?
— Se eles permitirem. — E desligou, resmungando alguma coisa inaudível.
Laura tentou se concentrar no trabalho. Sua mente estava dividida. Como poderia ser criativa, com
todas aquelas preocupações com o pai, Annette e Simon?
Seu livro já estava quase pronto. Faltavam apenas umas poucas ilustrações. No momento, pensava
mais no livro de Henry. Ele já havia aprovado os esboços, e ficou definitivamente decidido que ela
faria as ilustrações.
Quanto mais pensava no livro de Henry, mais propensa se sentia a colaborar com ele. A seu modo,
Declan era um génio por ter intuído que aquela dobradinha ia funcionar. Mas Laura não tinha
intenção de lhe dizer isso, pois ele já era bastante convencido.
Laura surpreendia-se a desenhar pequenos morcegos por toda a parte nas margens das revistas, no
verso dos envelopes — todos, com aqueles dedinhos de Henry e seus olhos cómicos.
Na manhã seguinte, encontrou Donald Foulds, enquanto fazia compras em Hampstead. Ele estava
parado em frente de uma farmácia, muito absorto, e quase foi atropelado pela bicicleta de uma
garotinha. Laura chegou a tempo para empurrá-lo de lado, e a menina lançou-lhe um olhar de
frustração, como se estivesse desapontada por não ter atingido o pateta que atrapalhava seu
caminho.
Confuso, Donald pareceu cair das nuvens.
— Ora, alô! Não vi você aí. Laura sorriu.
— Esqueceu algo? Ele apalpou os bolsos.
— Eu tinha uma lista, mas não sei onde a deixei. Minha mãe precisava de algumas coisas da
farmácia e não me lembro o que é.
— Por que não telefona e pergunta a ela?
— Ela está com enxaqueca — explicou Donald, com aquchi oara cómica, que agora corava. —
Não tem passado bem ultimamente.
Desde que soube do noivado com Annette, pensou Laura.
— E como vai Annette? Donald pareceu melancólico.
— Bem. . .
Positivamente, ele não era a imagem do noivo feliz.
— Já marcaram a data do casamento?
— Annette pensou na próxima primavera. Há uma porção de providências a tomar, que não podem
ser feitas com pressa.
Laura teve a impressão de que ele estava repetindo as palavras da irmã. Ou teriam sido as palavras
da mãe?
— Ela quer um casamento pomposo — admitiu Donald, cabisbaixo. — De casaca e cartola.
Parecia horrorizado com a ideia de se expor aos olhares alheios, fantasiado de noivo. Mas,
seguramente, Annette venceria. Com certeza, tinha sido esse o motivo da enxaqueca da sra.- Foulds.
Pobre Donald! Não era à toa que estava tão deprimido!
— Bem, o principal é que vocês dois sejam felizes — disse Laura, jovialmente, e ele se esforçou ao
máximo para parecer feliz, mas. sem êxito.
— Annette quer brilhar socialmente. Assim que seu pai voltar dos Estados Unidos, ela pretende dar
uma grande festa de noivado.
Laura fez o possível para não demonstrar surpresa. Então, era aquilo que o pai tinha contado a
Annette: que ia viajar para os Estados Unidos!
— Não esqueça de me mandar um convite.
— Ora, nem tem cabimento você dizer isso — respondeu, chocado.
— O que Annette gostaria de ganhar de presente? Donald olhou para o céu, buscando inspiração.
— Ela andou fazendo umas listas.
Laura podia imaginar Annette atolada em folhas e folhas de.papel, escrevendo listas enormes com
mil coisas sem as quais não poderia, a seu ver, começar a vida de casada.
— Eu telefono e pergunto a eía.
— Boa ideia. — Pareceu mais aliviado. — Eu não sei, ela parece querer tanta coisa!
Donald está começando a conhecer Annette, pensou Laura, ao voltar para casa. Será que o êxtase
dos primeiros momentos já estava passando? Agora, ele devia estar constatando que a vida de
casado não ia ser aquele deslumbramento que tinha imaginado.
Pelo menos, enquanto Annette estivesse absorvida por aquela parafernália de listas, convites, trajes
e outros detalhes, não teria tempo nem cabeça para marcar encontros com Simon Hilliard.
Laura quis se convencer de que aquela sensação de alívio se devia exclusivamente, ao desejo de
proteger Annette e o pai, e que não tinha nada a ver com o que ela sentia por Simon.
Desde a noite em que jantaram juntos, nunca mais teve notícias dele. Garantiu a si mesma que
estava contente com isso, mas cada vez que o telefone ou a campainha da porta tocavam, tinha um
sobressalto.
Simon já estava se tornando uma obsessão.
Nem seu senso de humor, nem seu frio raciocínio, conseguiam mais vencer as emoções, contra as
quais lutava.
Era loucura sèntir-se daquela forma, sabendo que ele tinha fortes motivos para odiar toda a família
Sloane.
Gostaria de saber o que há por trás de tudo isso, pensou, quando remava terminar as últimas
ilustrações de seu livro. Nunca tinha sentido tanta dificuldade em se concentrar no trabalho. Na
verdade, não tinha certeza do que sentia por Simon Hilliard. Mas, de qualquer forma, era um
sentimento poderoso, que se tornava mais forte a cada dia.
Todas as vezes que lhe voltavam à memória os beijos dele, sentia-se febril, com as pernas fracas e
trémulas. Essa excitação parecia uma droga, da qual estava se tornando dependente, e a única
maneira de evitá-la seria evitar o próprio Simon.
Se ele tentar se aproximar novamente, pensou, vou recusar com firmeza.
Apesar de todos esses bons propósitos, quando o telefone tocou, sentiu um frio no estômago.
— Sim? — .Estava tão nervosa, que mal podia falar.
— Vamos jantar juntos?
Aquela voz fez seu coração parar, antes de voltar a bater desordenadamente.
Todos os propósitos de tratá-lo com frieza foram por água abaixo.
Nem lhe passou pela cabeça fingir não saber com quem estava falando-
— Oh. . . — balbuciou, sentindo subitamente o rosto pegar fogo.
— Sim ou não? — ele perguntou, quase agressivo.
— Quando?
— Hoje.
— Hoje?
— Sim ou não?
— Sim. — Apressou-se em dizer, antes que mudasse de ideia, pois tinha receio de que seu bom
senso vencesse.
— Vou apanhá-la às oito. Hoje tive um dia estafante e vou trabalhar até mais tarde.
Ela começou a dizer algo, mas ele desligou abruptamente. Laura recolocou o fone no gancho e
começou a xingar-se. Pareceu-lhe ter percebido uma certa hostilidade na voz de Simon. Por que a
teria convidado, se estava de tão mau humor? E por que tinha sido tão idíota em aceitar?
Naquela noite, já pronta para sair, sentiu-se como alguém prestem a entrar na jaula dos leões.
Qualquer um, com um pouco de juízo, fugiria do perigo, sem pensar duas vezes.
Durante toda semana, tinha repetido a si mesma que não veria Simon nunca mais, até o momento
em que ele ligou e ela, tola, aceitou o convite.
Estava começando a ficar assustada com sua fraqueza.
Olhou para o rosto afogueado no espelho, muito irritada. Onde tinha ido parar seu autocontrole?
Santo Deus, onde estava seu senso de humor? já tinha posto muitos homens para correr com uma
simples risada. Por que não podia rir dele também? Ou dela mesma?
Se visse acontecer aquilo com outra pessoa, duvidaria da sanidade. Será que estava ficando maluca?
Talvez esse fosse o diagnóstico certo: perda temporária da razão.
Deveria ter avaliado o perigo no primeiro beijo, e a coisa mais sensata a fazer teria sido sair na
disparada, e continuar correndo, sem olhar para trás. Por que não tinha feito isso?
Simplesmente, porque me recusei a admitir que estava em perigo, pensou, sombria.
Aprontou-se muito antes da hora marcada, e agora, sentia-se como
— Não é da minha conta o que você andou fazendo por lá.
— E não é mesmo. Não sei por quê, diabo, estou lhe dando tantas explicações...
— Não pedi .satisfações, ora essa!
O que estaria acontecendo com ele? Será que tinha tido aborrecimentos em Paris? Ou estava com
algum problema na empresa? Havia, pelo menos, uma dúzia de hipóteses para esse mau humor. Só
esperava não se deixar contagiar.
Entraram no restaurante num mutismo total.
Laura estava tão nervosa, que só pedia a Deus para não terminar a noite quebrando uma garrafa de
vinho na cabeça dele.
Simon pediu os pratos, praticamente sem consultá-la, e ficou sentado muito quieto, de olhos postos
na toalha de damasco.
Num esforço supremo, ela olhou em volta e comentou:
— Muito frequentado este restaurante.
— Hum , . . — Olhou rapidamente em torno. — Ah, sim,
— Deve ser um lugar famoso.
— Deve. — E voltou a fitar a toalha.
Laura teve a impressão de que só conseguiria chamar a atenção dele naquela noite, se fizesse um
strip-tease em cima _da mesa.
Na verdade, devia é estar dando graças a Deus por não ser alvo daqueles olhos zombeteiros. Devia
agradecer de joelhos por não ter que íutar contra o desejo de se atirar nos braços de Simon. Mas não
fez nem uma coisa, nem outra. Olhou-o, muito sentida, morrendo de vontade de dar-lhe um beliscão
por debaixo da mesa. Talvez isso o despertasse daquela abstração.
Simon tinha pedido lulas à dorê como prato de entrada, e toda sua atenção parecia concentrada
naquelas tirinhas empanadas. Laura começou a brincar com seu melão com presunto, espetando
com o garfo pedacinhos minúsculos de fruta e quebrando a cabeça para encontrar um assunto,
Ambos haviam pedido coq au vin como prato principal. Quando o garçom se afastou, depois de tê-
los servido, Simon saiu de seu mutismo e perguntou:
— Como é? Perdeu a língua? Olhou-o, atonita com aquela injustiça.
— Quem, eu?
— Faz mais de quinze minutos que não diz uma palavra!
— Até agora, não deu pra notar que você estava tao disposto assim pra conversar.
Ele olhou para a comida do prato, com fastio.
— Estou com uma coisa me esquentando a cabeça.
— O quê? Deu de ombros.
— Deixa pra lá.
— Negócios? — perguntou Laura, dando-lhe uma segunda chance. Ele hesitou por um momento e
lançou-lhe um olhar inexpressivo.
— Não. exatamente.
Houve uma longa pausa, durante a qual Laura pensou em vários desaforos para dizer, mas ele se
antecipou:
— Onde está seu pai? Ficou tensa.
— O quê?
— Presume-se que esteja nos Estados Unidos — disse Simon, levando à boca um pedaço
de galinha, com uma tal cara, que parecia que a ave ia bicá-lo.
— Presume-se? Por quê? Ele não está? — Laura saiu pela tangente.
— Não da maneira como me foi contado.
Laura mastigou alguns cogumelos, antes de responder:
— E o que andou ouvindo a respeito?
— Os boatos são contraditórios. Uma das versões é que ele estaria a caminho de um banco na
Suíça para retirar seu dinheiro e sumir da praça. Outra versão diz que teve um enfarte.
— Duas grossas mentiras!
Como teriam começado tais boatos? Será que a secretária do pai-não era de confiança? George
Sloane estava tão seguro da lealdade dela! Teria se enganado?
— Afinal, onde está ele? — insistiu Simon, ainda sem olhá-la. — Não me venha dizer que está nos
Estados Unidos, porque não está. Pelo menos, não em Nova York. Falei com várias pessoas hoje,
por telefone, e me garantiram que ele não aparece por lá, faz tempo.
—~ Foi por isso que me convidou para sair? Para arrancar informações? — Laura estava tão furiosa
que sentiu um bolo na garganta. Empurrou o prato e ficou sentada, muito rígida, olhando-o
fixamente.
— Está mesmo pensando que vou lhe dar todas as pistas sobre meu pai?
— O mercado de valores está inquieto com esses boatos - Simon explicou, sem rodeios. — Não
viu a cotação das açôes, hoje?
— Não tenho o hábito de fazer análises financeiras.
— Philip não lhe disse que os acionistas andam preocupados com o .estranho desaparecimento de
seu pai?
—- Mas ele não desapareceu!
— Parece que ninguém sabe onde se meteu.
— Você precisa estar sempre de pé atrás, não? Por que pode lhe interessar por onde meu pai anda
vagabundeando?
— Se a firma está falindo, preciso tomar providências para assumir o controle, antes que alguém o
faça.
Fez-se um silêncio pesado. Laura o encarou, os olhos azuis parecendo duas pedras de gelo. — Estou
entendendo . . .
— Faz anos que venho fazendo planos para assumir o controle — contou Simon, num tom belicoso.
— Esses rumores começaram hoje. Não sei o que os provocou, mas estão se espalhando a cada
hora. e, amanhã, a cotação das ações poderá cair assustadoramente, a não ser que seu pai reapareça,
impedindo que a tempestade desabe. — Franziu a testa e completou: — Acha que ele fará isso?
Laura pigarreou e disse, empurrando a cadeira para trás e levantando:
— O melhor que você tem a fazer é esperar para ver. Agora, vai me desculpar: vou chamar um táxi
para voltar para casa.
— Não diga asneiras! — Levantou também e segurou seu pulso. — Eu a acompanho.
— Não, muito agradecida. Termine seu jantar, e faça bom proveito.
As pessoas das outras mesas começaram a lançar olhares de curiosidade, e Laura ficou escarlate,
quando percebeu que estavam chamando atenção.
— Sente! — Simon ordenou, irritado, sem largar seu pulso. — Vou pedir a conta.
Olhou em-volta, a procura do garçom, que se aproximou, imperturbável e polido.
— Por favor, a nota — pediu Simon, num tom de voz que dispensava qualquer comentário.
Laura tornou a sentar, muito sem graça, e esperou até que Simon recebesse o troco.
Ele a guiou pelo salão do restaurante, muito altivo e seguro de si, ignorando os olhares divertidos
que os seguiam.
Já no carro, segurou o volante com ambas as mãos e, sem voltar-se, disse:
— Se você contasse o que está acontecendo, evitaríamos maiores problemas. Amanhã, terei que
tomar uma decisão importante.
— Pois tome! — respondeu, detestando-o.
Aquela era justamente a situação prevista por seu pai, quando se recusou a contar a verdade sobre a
operação. Na ocasião, achou que eie estava sendo ridículo, ou exagerado, mas agora podia constatar
que previra as consequências com muita perspicácia. Ele sabia que o mundo dos negócios entraria
em pânico, se farejasse algo anormal.
Não sabia se o pai deixaria o hospital, no caso de os boatos chegarem até ele, ou se os médicos
insistiriam em operá-lo, apesar de tudo. Fosse como fosse, aquela situação seria arrasadora para a
saúde de George Sloane.
Simon olhou para as mãos, com a cabeça pendida.
— Laura ... — murmurou, rouco — tente compreender.
— Compreender o quê? Que você está tentando se apossar da firma de meu pai?
:— Há anos estou para fazer isso.
— Então, meu pai estava certo a seu respeito: você tem sede do sangue dele e do de Philip.
Ele ergueu a cabeça morena, e ela viu seu rosto pálido e desfigurado.
— Você sabe?
Laura hesitou em fingir que sabia de toda a verdade.
— O que sei, é que você odeia os dois. Diga-me: o que eles fizeram a você?
Por um longo momento,acreditou que, dessa vez, ele ia se abrir. Seu rosto revelava um intenso
conflito íntimo.
— Não fizeram a mim. -— Então, a quem?
— Não posso contar. Se realmente quiser saber, pergunte a seu irmão.
Pôs o carro em movimento, e saíram em alta velocidade, Simon estava inclinado sobre o volante,
muito atento ao caminho, de testa franzida.
— Foi por isso que quis conquistar Annette? Vingança era tudo que queria, não é verdade?
— Absolutamente, Ela é um espécime muíto atraente.
— Fala dela como se fosse um objeto.
— É que ela tem muito pouco de humano. É uma típica Sloane.
— Obrigada pela parte que me toca.
— Você é uma degenerescência. Às vezes, acho que nem pertence à família. Deve ser uma
bastarda de alguma ancestral por parte de mãe.
— Não vá querer que eu me sinta grata por isso — disse Laura, raivosa.
— Pois eu tive intenção de fazer um elogio.
— Insultar minha família não representa uma homenagem pani mim!
— Seja honesta. Não me diga que daria um braço por eles. — Lançou-lhe um daqueles sorrisos
atravessados. — O melhorzinho daquela fauna é Philip, mas é por demais servil para meu goslo.
— Assim mesmo, você estava pronto para ter um caso com Annette —- murmurou Laura, sentindo
uma ferroada de ciúme.
Ele ficou em silêncio e entrou numa curva em tal velocidade, que os pneus cantaram. Freou
bruscamente em frente ao prédio e continuou olhando para a rua, com o rosto muito tenso.
— Naquela ocasião, eu ainda não linha conhecido vocc.
O coração de Laura deu um salto. Não sabia o que fazer. Ele estaria dizendo a verdade, ou seria uma
última tentativa para enfraquecer-lhe as resistências?
O tom de voz com que tinha dito aquilo parecia sincero, mas para ela, era difícil acreditar num
homem que era inimigo declarado de sua família e pretendia se vingar de todos, por algum fato do
passado.
Ele se mexeu, e ela teve um sobressalto, prendendo a respiração. Seus olhos se encontraram nas
sombras do carro, e ouviu que aríava. Ou seria ela própria?
— Laura , . .
Segurou o rosto dela e fitou-a bem dentro dos olhos. Depois, baixou o olhar para os lábios, com a
expressão perturbada por uma emoção que ela não sabia decifrar.
— Não consigo formar um conceito sobre você, Laura. Posso estar me iiudindo. Diga: estou
enganado?
Antes que ela pudesse responder, ele a beijou com sofreguidão, quase raivoso, com a boca sequiosa,
numa paixão tão avassaladora, que os lábios de Laura chegaram a arder e ela sentiu necessidade de
entregar-se toda.
Esqueceu a raiva, o ressentimento, a desconfiança. A única coisa que existia naquele momento era
um desejo ardente, que a fez abandonar-se inteira, com o corpo fremente, retribuindo cada beijo
com volúpia, os braços passados pela cabeça inclinada, as mãos acariciando aqueles cabelos negros.
Em meio àquele arroubo de paixão, sentiu uma profunda dor. como se receasse que aquela fosse
uma despedida.
Simon parecia sentir o mesmo. Agarraram-se um ao outro, desesperados, como náufragos, com as
bocas coladas, numa compulsão selvagem.
Com a respiração ofegante, ele mergulhou o rosto na curva do pescoço de Laura, e ela sentiu seu
corpo musculoso tremer convui-sivamente.
— Leve-me para sua casa, Laura. Preciso de você. Acho que vou enlouquecer. Vamos esquecer
tudo. Só quero que me deixe provar o quanto preciso de você.
Ela podia ter cedido. Todo seu corpo pedia isso, e sua mente tinha parado de funcionar. Estava
totalmente entregue àquele desejo, sem energias para nada, a não ser para satisfazer os próprios
impulsos. Mas um instinto imprevisto a emudeceu. Seus oihos delirantes se fixaram fora do carro, e
ia dizer "sim", quando passou outro carro pela rua, cujos faróis a ofuscaram.
Piscou e teve um estremecimento. Aquela interrupção pareceu arrefecer subitamente a paixão, e
teve uma chance para pensar.
Quem sabe ele só queria usá-la para se vingar dos Sloane? Anestesiada por aquela emoção tão forte,
como poderia chegar a uma conclusão? Toda a paixão que ele demonstrava seria autêntica?
Simon separou-se de Laura, olhando-a intensamente, as pupilas dilatadas e o rosto em brasa.
— Laura, por tudo que é sagrado, diga que sim! Quer que eu fique maiueo?
Pensou rapidamente em tudo que ele havia dito. Nem uma só vez mencionara a palavra "amor".
Tinha falado em desejo e necessidade; não em amor.
— .Eu a quero desesperadamente — ele murmurou,.apertando seus ombros, num pedido de
submissão.
- Não!
Simon gelou, olhando-a, estarrecido.
— Sinto muito — acrescentou Laura, com um sorriso forçado. — Esta noite, não.
Virou-se e abriu a porta. Antes que ele reagisse, já tinha saltado e saiu quase correndo pela calçada.
Quando colocou a chave na fechadura, ouviu o carro partir à toda, com os pneus cantando,
Sentiu o corpo lasso e se encostou na porta, tremula e com lágrimas nos olhos.

CAPÍTULO IX

Na manhã seguinte, Laura ligou para a secretária do pai.


— Esses rumores, papai já soube deles? A moça suspirou, do outro lado da linha.
— Ainda não.. Estive falando com o hospital. Ele vai ser operado amanhã, c está em completo
isolamento. Não há meios de saber o que está acontecendo, e o médico insiste que é de vital
importância que seja operado, haja o que houver com a firma.
— Já discutiu o assunto com meu irmão? Philip está sabendo da verdade?
— Sim. — A srta. Harris parecia reticente.
— Contou tudo? E ele? Ficou chocado?
A outra demorou a responder, como se estivesse refletindo sobre o que dizer.
— Acho que a notícia da doença do pai o alarmou muito. Laura teve a impressão de que a
secretária estava escondendo alguma coisa,
— O que ele pretende fazer com relação às ações?
A srta. Harris respondeu, desanimada:
— Não tenho a mínima ideia. É melhor discutir isso com ele. Só espero que o sr. Sloane não me
responsabilize peíó que aconteceu.
Laura franziu a testa.
- Como teriam começado esses boatos? —Laura quis saber.
Teria a secretária sido indiscreta? Era evidente que sim. Devia ter deixado transpirar algo com
alguém, e, em pouco tempo, os rumores se espalharam.
Mas a srta. Harris não admitia essa hipótese, pois apenas respondeu:
— Não sei dizer. — E, num tom de urgência, deu uma desculpa e desligou.
George Sloane ia ficar possesso com a secretária, quando soubesse o que tinha acontecido. Laura
estava até com pena da pobre moça. Não gostaria de estar na pele dela. Se o pai sobrevivesse à
operação. seria capaz de esfolá-la viva.
Ligou em seguida para Philip.
A secretária comunicou, muito atrapalhada, que ele não podia atender. Laura. logo imaginou que, à
essa altura, o irmão devia estar escondido debaixo da escrivaninha, morrendo de medo, sem saber
come enfrentar a situação.
— Diga-lhe que preciso faiar com ele com urgência.
— Darei seu recado — ela prometeu, mas Laura suspeitou de que ele não ligaria. Estaria atarefado
demais, procurando um buraco bem grande, onde se esconder do mundo.
Parecia que não havia nada a fazer. Philip não teria capacidade para contornar a situação e o pai não
podia ser informado. Simon ia comprar todas as acões possíveis, na baixa, e, em pouco tempo, teria
poder suficiente para sentar no lugar de George Sloane,
Simon sabia demais sobre a empresa. Cem certeza, conhecia bem todos os diretores, e .escolheria,
sagazmente, o mais indicado para seus propósitos.
Mesmo que o pai sobrevivesse à operação, iria encontrar tudo mudado, quando estivesse em
condições de voltar ao trabalho.
De fato, a srta. Harris vai se,ver em maus lençóis!, pensou preocupada.
Na noite anterior, Laura tinha chegado a se desesperar por causa de Simon, Mas, nessa manhã,
levantou- com espírito combativo, disposta a usar todo seu bom senso.
Simon não fazia segredo de sua disposição de se vingar da família Sloane. Aqueles arroubos de
paixão a tinham confundido momentaneamente, mas, à luz fria da manhã, percebia como seria
perigoso acreditar em uma só palavra do que ele tinha dito. Não permitiria fque a usasse como arma
contra seu próprio pai. Havia tentado usar Annette, e o pai logo percebeu a manobra. Ao falhar com
Ânnette,, Simon voltou sua atenção para ela.
Também, dessa vez, fracassaria.
A noite anterior tinha sido uma loucura, mas aquilo não se repetiria nunca mais.
Laura sentiu-se de mãos atadas, ali sozinha, sem saber como agir, certa de que Simon estava
tomando todas as providências para assumir o controle da empresa do pai.
De repente, lembrou de Donald e correu para o telefone.
Pouco depois, já falava com ele,
— A coisa está muito confusa, infelizmente. Estive falando com Philip e me ofereci para ajudar, na
medida do possível. Não tenho autoridade para agir, sem a concordância geral. Não. posso
começar a comprar ações, sem ter cobertura para isso. O problema é que Hilliard está na
dianteira. Na hora em que eu conseguir convencer a diretoria, pode ser que ele já tenha alcançado
seus objetivos.
— Ele já está comprando? — perguntou Laura, com o coração alvoroçado.
— Não posso garantir. Mas a cotação caiu na hora da abertura da Bolsa e, em seguida, começou
a subir. Isso é sinal de que alguém estava à espera da baixa para comprar. Poderia até jurar que se
trata de Hilliard. Se ele continuar a comprar, os preços podem se estabilizar e, talvez, até subir. Mas,
aí, será muito tarde para segurá-lo.
— Você tem alguma ideia do que Philip está fazendo? Não consegui faiar com eíe esta manhã.
Donaid não respondeu de imediato.
— Ele está inquieto — disse, sombrio.
Donald podia ser cómico na vida particular, mas, quando se tratava de assuntos profissionais, dava a
impressão de um homem seguro, que sabia exatamente o que fazia, principalmente, se houvesse
dinheiro em jogo.
— Não duvido nada de que esteja inquieto! — explodiu Laura — Papai vai matá-lo!
— É . . . acredito que sim.
— Philip está sabendo como começaram todos esses boatos?
— O quê? — Donald pareceu estranhar a pergunta.
— Ele falou alguma coisa sobre isso?
— Bem . . .
— O qiie foi que ele disse?
— Não o condene, Laura — Donald suspirou/ desolado. — Sinto
muito por ele.
Laura apertou o fone, nervosa.
— Você está querendo dizer que foi Philip o culpado?
— Ele tem consciência de que cometeu um erro irreparável. Está desesperado.
— Quer dizer que foi ele quem deu motivo a esses rumores? — Laura fechou os olhos. — Ah, não!
Como pôde ser tão estúpido? O que aconteceu?
— Ele teve um problema numa das fábricas. Uma caldeira explodiu e um operário morreu no
acidente. Naturalmente, Philip quis falar imediatamente com o pai. A srta, Harris disse-lhe
que seria impossível, e que ele precisaria resolver o caso sozinho. — Donald deu mais um profundo
suspiro. — Philip deve ter entrado em pânico, acho. Tinha um almoço com um antigo colega de
escola, e acredito que desabafou suas preocupações com ele.
— Ah, não! Ele não se deu conta do que estava fazendo?
— Parece que não. Afinal, era um velho amigo. Philip não suspeitou de que o homem pudesse dar
com a língua nos dentes.
— Quanta imprudência! Ele é um irresponsável! Donald não concordou nem discordou.
— É claro que, quando os boatos começaram a se espalhar, a srta. Harris foi obrigada a contar-lhe a
verdade sobre a operação, mas . . .
— Era tarde demais.
— Temo que sim. O ma! já estava feito.
— E agora, Philip está aterrorizado com a reação do papai.
— Ele está realmente abalado. Laura, na sua opinião, quais são as chances de seu pai? Contei a
Annette, e ela, naturalmente, ficou assustadíssima. Quis ir ao hospital, mas não estão permitindo
visitas.
— Papai disse que as possibilidades de sucesso eram de cinquenta por cento. Mas tem uma coisa:
se força de vontade ajuda, ele tem maiores chances. Nunca consegui imaginá-lo entregando os
pontos.
— Nem eu. Foi o que disse a Annette. Se você tiver um tempinlio. pode ir lá, consolá-la? Ela não
pára de chorar.
— Está bem, irei vê-la — prometeu Laura, e desligou.
Annette estava pálida e desfigurada, de tanto chorar. Com um olhar velado e sombrio gemeu:
— Ele vai morrer! Eu sei que vai morrer!
— Ele é durão demais para morrer, assim, sem lutar.
— Estou tão preocupada! E logo agora que eu ia casar! Isso não é justo!
Olhando-a, severa, Latira lembrou que ainda faltavam meses para o casamento.
— Até lá, papai já estará completa mente restabelecido.
— Se ele viver . . .— disse Annette, numa nova crise de choro. — Por que essas coisas têm de
acontecer? Eu estava tão feliz, e agora, sinto-me uma desgraçada.
— Vamos lá! Quer que eu faça um cafezinhp?
— Prefiro um drinque. Preciso de alguma coisa mais forte. Gosto muito de papai, você sabe. Não
suportarei, se acontecer alguma coisa com ele. Por que papai não me disse nada? Por que todo esse
segredo?
— Ele não quis preocupar você.
— Oh, ele é tão bom comigo! E o que vamos fazer? Quando poderemos saber se tudo correu
bem?
— Dentro de poucos dias. Uma semana, no máximo. É uma operação muito séria, Annette.
Não devia ter dito aquilo, pois a irmã recomeçou com a choradeira.
Nunca tinha sido fácil conversar com Annette, mas, naquelas circunstâncias, tornava-se quase
impossível. Os únicos assuntos que a interessavam eram os que lhe diziam respeito. Mas Laura não
estava propensa a falar sobre o casamento ou os presentes. Por outro lado, qualquer menção ao pai
provocava uma torrente de lágrimas. Ficou muito aliviada, quando pôde ir embora.
 tarde, telefonou novamente para a srta. Harris. Reticente, a moça admitiu que tinha havido um
grande movimento na venda e compra de ações. A verdade sobre a doença de George Sloane era
agora de conhecimento público, mas isso não tranquilizou o mercado. Ele era importante demais
para a companhia e ninguém levava a sério o poder de Philip.
— Sabe quem está comprando as acões? — perguntou Laura, sem mencionar Simon
A srta. Harris disse que não, mas seu tom sugeria que tinha uma ideia de quem era.
— O que a diretoria está fazendo?
— Discutindo — disse a secretária, com certo desdém. Laura desligou e foi até a janela.
Estavam discutindo . . . Isso ia adiantar muito! Simon não teria problemas com aquela cambada de
múmias! George Sloane teve a precaução de cercar-se de uma equipe de vaquinhas de presépio, mas
não calculou que homens que sempre concordam com uma pessoa podem fazer.o mesmo com outra,
se forem devidamente incentivados.
Ligou para o hospital, e informaram que o pai estava bem. que seria operado na manhã seguinte e
que lá pela hora do almoço já devia ter saído da sala de operações.
Laura tentou não se preocupar tanto. Tudo ficava ainda mais penoso por causa da barreira que a
separava do pai. As reacões normais e humanas de alguém, cujo pai corre perigo de vida, lhe eram
negadas. Para Annette. era mais fácil, Ela conseguia chorar e se desesperar. A irmã nunca exigiria
do pai mais do que ele estava disposto a dar. Ele sempre a cumulava de presentes caros, e ambos
encaravam isso como uma prova de amor. George Sloane e Annette pareciam estar sempre
interpretando uma farsa social, Só que Laura não conseguia encontrar um papel adequado para ela.
nessa comédia.
Foi dormir tarde aquela noite, emocionalmente abalada pela lembrança constante de um
relacionamento que só lhe trazia pesar.
Annette apareceu no dia seguinte, em busca de companhia.
— Não vou poder passar o dia todo sozinha,
— Você pediu um dia de foiga? Acha isso aconselhável? Não teria sido melhor manter-se ocupada,
trabalhando, para não pensar tanto em papai?
Annette pareceu escandalizada.
— Como pode ser assim, tão insensível? Eu não conseguiria trabalhar, pensando que ele pode
morrer hoje, na mesa de operação.
Mas Laura pretendia trabalhar. Sabia ,que teria que lutar o tempo todo para manter a mente
ocupada, mas também sabia que, se ficasse com Annette por perto, com todas aquelas lamúrias
pessimistas, Ia acabar tendo um colapso nervoso.
Na verdade, elas não tinham sobre o que falar. Se fossem unm família normal, poderiam distrair-se
com lembranças felizes da infancia. Mas os Sloane não tinham lembranças felizes para
comentar.
Annette tomou um café e começou a queixar-se da futura sogra,
— Fia está estragando todos os meus pianos. Vem com umas listas de convidados chatérrimos, que
nem conhecem Donald direito. O pior p que ela quer que eu vá morar com ela, alegando que ainda
sou muito moça para administrar uma casa sozinha.
Que mulher sábia! pensou Laura, imaginando como Annette se arranjaria como dona-de-casa. A
bagunça de seu apartamento era um exemplo, e Donald, pobrezinho, não se sentiria muito
confortável,
Deu de ombros e olhou para o relógio de parede.
— Acho que vou ligar para o hospital. À essa hora, já deve lei terminado a operação.
Annette foi atrás dela e ficou escutando.
Laura pediu para falar com a madre superiora, com quem já linha conversado várias vezes.
— já terminou — informou a madre. — Seu pai foi para a Unidade de Terapia intensiva.
— Ele está bem? — Laura mal teve coragem de fazer a pergunta. iNão sabia como se sentiria se a
resposta fosse negativa.
— Por enquanto, está reagindo bem — disse a freira, sem emoção — Informaremos, se houver
alguma, alteração no quadro clínico. Laura desligou e Annette disparou a fazer perguntas:
— Está tudo bem? Ele vai ficar bom? O que disseram?
— Tudo leva a crer que está bem. Por enquanto, não dá para saber muita coisa. Acho que só
teremos certeza, quando formos vísitá-lo. Pelo menos, saiu vivo da operação.
— Eu tinha certeza disso — disse Annette, muito animada. Foi o que eu lhe disse: papai é duro
demais para deixar que uma operação o derrube. — Pegou no telefone. — Vou ligar para Donald e
dar as boas-novas.
Laura ficou observando a irmã, falando numa grande exitação
— Sim, isso vai ser ótimo! — disse Annette, rindo. — Vocês nos encontram lá? Muito bem, até
logo mais.
Desligou e sorriu para Laura.
— Donaid está eufórico. Ele e Philip vao se encontrar conosco para o almoço. Estavam juntos, e
Donaid sugeriu que fôssemos todos almoçar.
-— Agora? — Laura olhou-a, com impaciência. — Não vai dar tempo de me aprontar.
— Você está ótima. Ora, não complique. Um almoço em família . . , não é uma boa pedida? — O
sorriso morreu-lhe nos lábios. — A não ser que Philip invente de levar junto aquela paspalha da
Daphne.
Para a índisfarçável alegria de Annette, Philip e Donaid estavam sozinhos, quando as duas
chegaram. Laura notou que o irmão estava lívido como um defunto.
Enquanto Annette conversara animadamente com o noivo, Laura puxou Philip de lado e perguntou
sobre as ações.
— Os preços estabilizaram?
Ele a olhou, desconfiado, e disse, vacilante:
— Donaid deve ter lhe contado tudo, não é mesmo? Papai vai ficar uma fera. Mas como eu poderia
saber? Ele não quis se abrir comigo. Imagine, que contou tudo para a secretária e, para mim, não.
Não pode nem me culpar, mas adivinhe se não vai fazer isso. Não é justo. Como eu podia imaginar
que Ted ia abrir o bico?
— O que é que você e a diretoría estão fazendo? — perguntou Laura, evitando entrar no mérito da
questão.
Philip suspirou profundamente.
— Estamos esperando para ver o que acontece. Entramos em contato com os grandes acionistas
para tranquilizá-los, mas a maioria já tinha vendido suas cotas,
— Para Simon Hilliard? Philip ficou roxo.
— Sim — murmurou. — Ainda não sabemos qual foi o montante de ações que ele comprou, mas
papai não vai gostar nada disso.
Todos tomaram lugar numa das mesas do-restaurante, e a atmosfera era um misto de apreensão e
alívio.
George Sloane tinha superado a operação, mas, na hora em que saísse do hospital e voltasse ao
trabalho, cairia de unhas e dentes sobre o filho. Donaid olhou para Philip, com ar de comiseração:
— Você acha que ajudaria, se eu falasse pessoalmente com seu pai, antes que alguém o faça?
- Acho que nada vai adiantar — disse Philip, com cara de condenado. — Ele vai me arrancar a pele!
— Você é um idiota! Bem feito pra você! — vociferou Annette. sem a mínima piedade.
— Obrigado pelo consolo.
Philip afundou na cadeira, taciturno, e seus olhos percorreram o salão do restaurante.
Laura ouviu quando ele fez um ruído de quem está se afogando. Virou-se na díreção em que olhava
e viu Simon. O choque fez com que ela também tivesse uma espécie de soluço. Rapidamente,
desviou os olhos. Mesmo assim, deu tempo para ver que ele estava acompanhado por uma mulher, e
sentiu uma pontada de ciúme. Nunca tinha visto a mulher. Era magra, elegante, de pele muito clara
e tranquilos olhos azuis.
Tornou a olhar de soslaio. Dessa vez, notou que ela estava com a mão apoiada no braço de Simon,
sorrindo-lhe de um jeito que denunciava um relacionamento mais íntimo.
Annette não os viu, Naquele momento, estava falando com Donaid sobre apartamentos.
— Quero morar em Londres, e um apartamento é mais fácil de conservar do que uma casa.
— Mas Annette ... — começou o noivo. Ela não o deixou falar.
— Não adianta, que não vou morar com sua mãe nem morta! Não dá certo morar com parentes.
Você não acha Laura?
— Não me meta nisso!
— Sabe que tenho razão. É voz corrente que esse negócio de morar com a sogra só dá briga,
Quero ter meu próprio lar.
— E por que não uma casa? — perguntou Donaid, cabisbaixo.
— Gosto de apartamentos. São muito mais práticos. — Annette passou os dedos pelos cabelos
ruivos. Podemos alugar um desses apartamentos tipo hotel, e não teríamos problemas de
manutenção.
Os ombros de Donald encolheram. Laura teve pena, mas ele havia se mostrado tão ansioso para
casar com Annette, que tinha feito a própria cama. literalmente falando. Agora, teria que deitar nela.
Annette estava determinada a vencer a luta contra a mãe de Donald Toda vez que se mencionava a
sra, Foulds, .ela fazia careta.
Laura estremeceu ao pensar no futuro de Donald, suportando aquelas duas gatas bravas, agredindo-
se a unhadas.
Não deu grande importância à conversa durante o almoço. A única coisa que lhe prendia a atenção
era Simon e sua companheira de mesa. Não os olhava díretamente, mas, o tempo todo, sentia a
presença dos dois, e, mesmo de olhos baixos, podia perceber cada movimento que faziam, ouvir as
mínimas inflexões de suas vozes e captar cada sorriso que a mulher dava a Simon.
Notou também uma certa gravidade na conversa. Simon não sorria, nem tinha a vivacidade habitual,
Era ele quem mais falava, inclinado para a moça. Por várias vezes, ela estendeu a mão para tocar-
lhe o braço.
Laura deu um jeito de analisar a outra, furtivamente, desde o finíssimo vestido de seda verde, até os
delicados brincos. Tinha que reconhecer seu bom gosto. Mas detestou-a.
Percebeu quando ambos se levantaram, prontos para sair.
Annette deu um ligeiro suspiro.
— Olhe lá, Simon! Simon! Èi, Simon!
Oh, Deus! pensou Laura, amargurada, essa desmiolada precisava fazer isso? Annette estava
acenando para ele. Laura rezou para que Simon não lhe desse atenção. Não aguentaria ter aquela
mulher a seu lado. Ouviu Simon cumprimentar, friamente.
— Como vai, Annette?
A voz parecia vir de longe, e foi com alívio que Laura o viu afastar-se.
— Ora, francamente — reclamou Annette, aborrecida. — Ele bem que podia ter vindo até aqui.
Quem era aquela que estava com ele? Não é nenhuma maravilha, não acha? E, ainda por cima,
parece bem balzaquiana.
Laura respirou fundo. Por um instante, imaginou que Simon iria até a mesa deles e sentiu-se morrer
diante da possibilidade. Agora, sentia-se morrer por ele não ter se aproximado e saído assim com
tanto descaso.
— Café, senhor?
O garçom tinha parado ao lado de Philip, que pareceu assustar-se com. sua presença.
— Oh, sím, obrigado.
Laura olhou para a figura patética do irmão. Coitado, A vida tinha sido ingrata com ele. Não era
culpado de não herdar a mente fria e calculista do pai.
Sorriu para ele.
— Vamos lá, rapaz. Não vai acontecer nada:
Tá aconteceu — disse Philip, com um fio de voz.

CAPÍTULO X

Laura despediu-se dos outros às três horas e voltou para o apartamento, que agora lhe parecia
tranquilo e repousante.
Antes de começar a trabalhar, ligou para o hospital e foi informada de que o pai ainda estava sob
efeito de anestesia.
Desligou e foi para o pequeno estúdio. Tinha a impressão de estar trabalhando nele há anos. Quanto
antes terminasse, melhor.
Às sete horas, o céu começou a ficar nublado, anunciando chuva. Laura foi até a janela e ficou
olhando para a rua, perdida em pensamentos.
Quando a campainha da porta tocou, pulou de susto. Oíhou para o relógio, apreensiva. Alguma má
notícia sobre o pai? Correu para abrir, esperando encontrar Philip ou Donald. Mas era Simon, pálido
e sério.
— Oh!
Não soube mais o que dizer. Ficou olhando para ele, sem fôlego.
— Preciso falar com você.
Ela se refez do susto e respondeu, seca:
— Pois eu não quero falar com você.
— Não me interessa. Vai ter que me ouvir, quer queira, quer não. Sua voz estava embargada e
instável,
Laura começou a fechar a porta, com as mãos tremendo, mas Simon empurrou-a e forçou passagem.
— Saia! — ela gritou, tentando controlar o tremor, que agora tomava todo o corpo.
— Não sairei, enquanto não disser tudo que tenho a dizer. Avançou pelo corredor, até a sala de
estar, e ela o seguiu, olhando-o, cheia de rancor.
— Queria ter contado há mais tempo, mas não podia fazer isso sem permissão. Não podia quebrar a
promessa que fiz a alguém para nunca mais tocar no assunto.
— Se é algum segredo, talvez seja melhor não me dizer nada. Você não devia nem estar aqui. Meu
pai está muito doente, e sei que está fazendo o possível para acabar de vez com ele. Não quero você
aqui!
— Só me escute. Sente.
— Olhe aqui, seu. . .
— Sente, pelo amor de Deus! — Os olhos verdes lançavam aquelas chispas de furor que ela
conhecia tão bem.
Laura ia começar a discutir, mas sentiu-se tolhida pela expressão deie. Sentou no sofá. Simon ficou
em pé, de frente para ela.
—- Vou começar desde o princípio — disse, ríspido. — É a história de minha írmã. Ela tinha
dezoito anos, quando conseguiu um emprego na firma Sloane. Na verdade, fui eu quem conseguiu
para ela. Nós dois somos sozinhos no mundo. Nossos pais morreram há muitos anos. Ginny era a
única pessoa com quem eu me importava, por isso preferi que ficasse sob minhas vistas. Era muito
bonita, e como conheço bem os homens, queria preservá-la, mantendo-a junto a mim, também no
trabalho. Phil e eu éramos amigos naquele tempo e costumávamos sair juntos. Éramos quase da
mesma idade e tínhamos alguns interesses comuns. Confiei nele. Nunca me passou pela cabeça que,
justamente Philip, ia causar algum mal a Ginny. Ele não tinha tipo pra isso.
Laura ficou ouvindo, de cabeça baixa, olhando para as mãos e começando a gelar por dentro. Sua
mente estava se antecipando à narrativa de Símon e não gostava do que imaginava,
— Querendo ser justo com ele, devo dizer que Philip estava sinceramente apaixonado, na época, E
Ginny era louca por ele. Lembro que tinha apenas dezoito anos, e Philip, aos olhos dela, parecia um
homem vivido, um homem da sociedade. Ele era o filho do patrão e não era de se jogar fora. Ele a
levou para passear num carro último tipo e gastou rios de dinheiro para impressioná-la. Ginny
sentia-se dona do mundo.
— Acho que você não devia me contar essas coisas — murmurou Laura.
— Mas eu preciso ir até o fim. Não há muito mais o que contar, a não ser que Ginny tentou o
suicídio e foi parar num hospital, em estado de coma.
Laura ficou estarrecida.
— Oh, não!
— Oh, sim. Estava grávida e, naturalmente, correu para contar a Philip, esperando que casasse
com ela imediatamente. Em vez disso, ele foi pedir socorro ao pai e George Sloane disse
calmamente a Ginny para ela fazer um aborto. Disse isso com aquela famosa frieza, e também
garantiu que Philip jamais casaria com ela, Você sabe como são essas coisas: minha irmã não
estava na lista das jovens elegíveis para esposa do filho de George Sloane. Em vez de enfrentar a
situação, Ginny foi para casa e tomou uma dose excessiva de barbitúricos. O que mais a magoou
não foi a atitude de seu pai, mas o fato de Philip não ter levantado um dedo sequer a seu favor. Ele
aceitou, covardemente, a decisão do pai.
— E o que aconteceu com ela? — perguntou Laura, ansiosa e revoltada.
— Naturalmente, perdeu o bebê. Depois disso, ficou doente por muito tempo. Quando se
restabeleceu, procurou emprego em outra parte. Eu fiz o mesmo, depois de dizer a seu pai o que
pensava dele e de seu precioso filho.
— Foi por isso que você foi embora da firma? Ele concordou, sombrio.
— Há tempos, tinha feito planos para me estabelecer por conta própria, mas o caso de Ginny
precipitou tudo. Eu estava tão revoltado, que tive vontade de matar seu pai na noite em que fui falar
com ele, depois de ter visto em que estado estava minha irmã. Ela parecia um cadáver ... e era ainda
tão jovem! Se tivesse me contado antes, eu teria movido céus e terras para obrigar Philip a casar.
— Ela não teria desejado isso — disse Laura. muito séria.
— Não. De fato, foi o que me disse, Preferia se jogar no Tamisa a forçar Philip a casar contra a
vontade.
— Sinto muitíssimo — murmurou Laura, angustiada, como se fosse ela a culpada por aquela
tragédia. — Gostaria de ter sabido disso na ocasião. Nem sei o que lhe dizer. Simon sacudiu a
cabeça.
— No fim das contas, até que foi melhor pra ela. Acabou casando com um bom rapaz e teve dois
filhos lindos. Mas eu nunca esqueci o que os Sloane fizeram com ela e prometi a mim mesmo que
um dia tiraria a desforra. Trabalhei como um escravo durante anos, para acabar com seu pai, e
consegui chegar a uma situação que me permite alcançar meus propósitos.
Laura não podia condená-lo, depois de ter ouvido aquela história,
— Foi então que conheci você. Ela estremeceu e olhou para ele.
— Que droga! — Simon continuou, numa voz sofrida. — Já disse a mim mesmo, milhares de
vezes, para não ser idiota. Você é uma Sloane, e não posso ser tão louco de sentirão que sinto por
alguém que tenha esse maldito sobrenome! Faz uma semana que não consigo dormir.
Laura apertou as mãos com tanta força que chegaram a doer, e os nós dos dedos ficaram brancos
como cera. Tentou controlar a respiração, mas sentia-se sufocar.
— Não posso amar você — disse Simon, com desespero. — Muito menos agora, que o maldito do
seu pai está na palma da minha mão e posso esmagá-lo como a uma casca de ovo. — Abriu e
fechou a mão no ar. — Eu o peguei, justamente do jeito que queria. Tal qua! planejei. Ele não pode
sequer levantar um dedo contra mim. Philip é um pobre coitado, sempre foi, e sempre será. A
Sloane está nas minhas mãos, como num passe de mágica.
— Você comprou ações suficientes? — perguntou Laura, com voz sumida.
— Mais do que suficientes para me garantir a presidência. Seu pai vai ficar afastado durante
meses, depois da operação; isso, na hipótese de e!e sobreviver. E, se chegar a voltar, vai me
encontrar dirigindo a empresa.
— Bem, espero que agora esteja satisfeito.
Era um pequeno consolo saber que Simon tinha passado por momentos terríveis, antes de se decidir
a continuar com sua vingança. Mas, fosse o que fosse que sentia por ela, não era bastante forte para
impedi-lo de executar a revanche.
— Satisfeita? — ele repetiu, com rancor. — O que pensa que andei fazendo nas últimas semanas?
Tentando me convencer de que nada havia mudado e de que eu ia, finalmente, destruir seu pai,
como tinha planejado há anos. — Sorriu debilmente com os largos ombros caídos, desconsolado.
— E não vai? Afinal, você comprou as ações!
— Oh, sim, comprei. E, todo o tempo, repetindo que você é um Sloane, uma maldita Sloane! —
Passou os dedos pelos cabelos. — Mas, se quer saber, não estou ligando a mínima pra isso. Só uma
coisa me importa agora.
Seus olhos cruzaram a sala, com as pupilas dilatadas, e ele quase correu para Laura, abraçando-a
com toda a força. Ela soluçou, antes que ele cobrisse seus lábios, com a boca ansiosa, num beijo
sem compaixão. Laura empurrou-o, inutilmente.
Quando, finalmente, Simon ergueu a cabeça, os lábios de Laura estavam inchados e doloridos, e seu
coração parecia querer saltar do peito.
— Eu a amo perdidamente.
Ela o afastou um pouco e deitou a cabeça em seu ombro, murmurando:
— Simon . . .
— Diga que também me ama — ele pediu, com voz trémula.
— Sim. Eu também o amo.
Por um longo momento, ficaram assim, abraçados, saboreando a doçura daquela declaração, num
silêncio que era uma mistura de dor e prazer.
Por fim, Laura disse, melancólica:
— Mas nunca poderemos ser felizes. Muitas coisas nos separam.
— Foi o que repeti a mim mesmo, um milhão de vezes. E foi por isso que precisei falar com minha
irmã e explicar a ela o que sentia por você. Era Ginny quem estava almoçando comigo.
— Oh! — Toda a hostilidade de Laura contra a desconhecida desapareceu. — Era sua irmã?
Uma bela mulher!
— Ginny é um amor de criatura. Ela entendeu meu problema e disse para ser feliz, pois já perdoou
Philip há muito tempo. Compreendeu que nunca poderia ter sido feliz com ele, como é, agora, ao
lado do marido. O casamento dela deu certo, e adora os filhos. Disse que não deseja mal a
Philip. Confesso que não morro de amores por seu pai, mas, como ela mesma disse, não vou
casar com George Sloane!
Laura olhou-o, incrédula.
— Simon, se você voltar à companhia, isso vai provocar os maiores choques com papai.
— Que não nos deixaria ser felizes juntos. — Ele deu um sorriso conformado. — Eu sei. Vou ter
que sorrir para ele e aguentá-lo, na qualidade de genro. Não vou gostar muito disso, mas darei um
jeito. Vou fingir que meu sogro é o próprio diabo.
Laura estremeceu.
-Quer dizer que não vai fazer pressão para ter o controle de tudo?
Ele sacudiu a cabeça.
— De agora em diante, não posso mais levar adiante meus planos. Seria o cúmulo começar um
casamento, assassinando o pai da noiva.
Parecia que tinham tirado uma tonelada das costas de Laura.
— Obrigada, Simon —- disse, sorrindo. Ele acariciou seu rosto.
— Quer casar comigo?
— Quero. — E sentiu o coração se alvoroçar.
— Oh, querida — murmurou, baixando a cabeça para beijá-la. Beijaram-se com desespero. Laura
estava tão certa de ter perdido Simon para sempre, que não podia acreditar no que acontecia.
— Sinto muito por sua irmã — disse, mais tarde, quando já estavam sentados no sofá, bem
juntinhos.
— Ê ... ela passou por maus bocados.
— Fico envergonhada por Philip.
— Ele é um covarde.
— E meu pai... — Laura parou, incapaz de dizer o que pensava sobre o comportamento do pai.
— Ele é um tirano — completou Simon, sem cerimonia. —- Sinto que você tenha que ouvir isso.
Eu bem lhe disse que não era uma história muito bonita.
— Não me surpreendeu. Papai nunca foi um anjo. Ele fez minha mãe sofrer muito. — E contou-lhe
suas lembranças sobre a mãe, que Símon ouviu, muito compenetrado.
— Agora sei a quem você puxou, querida.
Laura sorriu, com os olhos muito vivos e divertidos.
— Não foi a meu pai . . -
— Não, graças a Deus!
— Diga a verdade: você queria seduzir Annette, só para se vingar dele?
— O que é que há? É a hora das confissões?
— Por que não? Eu já desconfiava.
— Annette estava me dando bola e transformou meus planos em algo agradável — disse, com um
sorriso malicioso. — Eu sabia que seu pai ia ficar alucinado diante da possibilidade de eu casar com
ela. E, mesmo que eu só a seduzisse, além de ficar furioso, seu pai poderia fazer de tudo para que eu
entrasse para a firma, como genro, só para remediar o mal feito à filha. Annette era, para mim, uma
arma muito atraente, e eu pretendia fazer uso dela.
Simon fez uma cara arrependida.
— Mas, como já disse, isso foi até o dia em que conheci você.
— Então, achou que poderia juntar outra bela arma ao arsenal? Ele riu.
— Devo confessar que isso passou pela minha cabeça. Principalmente, quando percebi, para meu
espanto, que me sentia realmente, muito mais atraído e interessado por você do que por sua irmã.
Ela é uma fêmea muito sensual, mas tem miolo de galinha.
— Não é muito caridoso de sua parte, dizer isso.
— Mas é a verdade. Você tem crânio e senso de humor, e me balançou desde o primeiro momento,
Sinceramente, tive um choque, quando soube que era uma Sloane.
— Eu cheguei a notar. Sua expressão mudou da água para o vinho, quando soube quem eu era.
— Se tivesse usado um pouco de bom senso, fugiria de você como o diabo da cruz, logo depois da
festa. Mas, quando tornamos a nos encontrar no zoológico, me dei conta de que estava morrendo
de vontade de revê-la desde a noite da festa. Depois, você meteu o bedelho no meu caso com
Annette e fiquei zangado. Desejei que reco nhecesse que também estava caída por mim. Eu podia
jurar que estava . . .
— Ah, então você sabia? Os olhos verdes cintilaram.
— Vamos, confesse. Você se apaixonou por mim tanto quanto eu me apaixonei, desde o primeiro
minuto em que nos vimos.
— Não estou confessando nada — disse Laura, cheia de escrúpulos,
— Reação tipicamente feminina.
— Não generalize. Não sou nem tipicamente feminina, nem tipicamente uma Sloane. Eu sou "eu'
— Eu fico muito contente com isso — disse Simon, roçando os lábios pelo pescoço de Laura e
fazendo com que sua pele se arrepiasse de prazer.
— Meu pai não vai gostar nada desta história.
— Pois vai ter que gostar. Afinal, comprei todas aquelas açoes de Sloane. Pelo menos, nosso
casamento fará com que o patrimônio fique em família.
Laura começou a rir.
— Dê-lhe algumas semanas para pensar, e papai vai se convencer de que foi ele quem planejou
tudo.
— Pode apostar que sim,
— Annette vai ter um chilique, quando souber — disse Laura sonhadora, sem desgostar da ideia.
A irmã ia ficar furiosa, teria ataques, faria um verdadeiro escândalo, certa de que Laura tinha
planejado tudo, desde o começo. Simon olhou-a, com um sorriso zombeteiro.
— Parece que isso não a assusta. Seus olhos ficaram subitamente alertas. E o tal de Declan?
— Declan? — Laura segurou-se para não rir.
— Isso mesmo, Declan. Nunca acreditei que ele significasse al guma coisa importante para você,
mas você o usou para me deixar louco de ciúme, não foi? Queria me atormentar, sua danadinha !
— Desculpe, querido. Declan é meu editor, e ponto final. Nada mais do que isso.
— Foi o que eu desconfiei — disse Simon, desmanchando-se num sorriso de satisfação. — Quando
casarmos, você vai mudar de editor.
— Não posso fazer isso! Pobre Declan! Ainda mais agora, com Kenry e seus morcegos. Estou
ansiosa para ilustrar aquele livro!
— De agora em diante, você vai dedicar todo seu tempo a mim.
— Oh, não! Eu adoro minha profissão.
— Sei de algo que você vai adorar muito mais — alegou Simon, puxando-a para junto de si.
— Êi! Espere aí! Escute ... — começou a dizer, mas não foi adiante.
Teria continuado a protestar, se pudesse. Mas Simon calou-a com um daqueles beijos alucinantes.
Laura abandonou a luta e passou os braços pelo pescoço dele.
Posso deixar a discussão para mais tarde, pensou, entregando-se ao prazer do amor.

FIM

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