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Outra Chance Para Amar

Heartbreaker
Charlotte Lamb

Obs: Livrinho originalmente não acompanhado de resumo


Copyright: Charlotte Lamb
Título original: "Heartbreaker"
Publicado originalmente em 1981 pela
Mills & Bonn Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: Suzana França Pinto
Copyright para a língua portuguesa: 1983
Abril S.A. Cultural e Industrial — São Paulo

Digitalização: Ana Karla


Revisão: Cris Bailey
Capitulo 1

O programa humorístico era entediante, mas Caroline estava cansada


demais para se levantar e desligar a tevê. Uma porta bateu e ela ficou tensa.
Kelly? Será que ela tinha acordado para ir ao banheiro? Houve uma época em
que Kelly costumava andar dormindo. Caroline ficara bastante preocupada,
mas nunca tentou acordá-la. Limitava-se a rodeá-la silenciosamente, até que
a menina voltasse para a cama. Depois, escondia o rosto entre as mãos e
chorava desconsolada. Que estranhas e remotas lembranças faziam com que
Kelly vagasse pela casa como uma alma penada?
Mas aquilo tinha passado. Há mais de um ano, Kelly não caminhava
durante a noite. As crianças são mais fortes do que se imagina. Passam por
cima de muita coisa que deixa cicatrizes dolorosas nos adultos.
Caroline levantou-se e desligou a tevê. Saiu da sala. Tudo estava em
silêncio, e a porta do quarto de Kelly, fechada.
Devo ter imaginado, pensou. Três anos já se passaram e eu continuo com
medo de tudo. Será assim a vida toda?
Tentou afastar os maus pensamentos. Mas nas profundezas de sua mente
haviam raízes retorcidas e horrorosas que, de vez em quando, saltavam à
superfície, chegando ao nível da consciência, perturbando-a quando menos
esperava.
Estava voltando para a sala quando escutou passos lá fora. A
campainha tocou, e ela sentiu o sangue gelar. Seria Diana? Ela sempre
aparecia à noite para pedir uma xícara de açúcar ou contar alguma
novidade das redondezas. Que bobagem, aquele medo. Abriu a porta com
um sorriso pronto nos lábios. O vento soprava forte, e seus cabelos loiros
se trançaram. Ela os empurrou com uma mão, e começou a rir.
O riso desapareceu quando viu sob a luz do hall um rosto tenso e
ameaçador. O par de olhos frios e azuis a fitou por um segundo. Num
reflexo rápido, ela soltou uma exclamação e tentou fechar a porta, mas o
homem saltou sobre ela com tal violência que Caroline foi atirada para
trás. O grito de pavor foi sufocado por uma mão poderosa. Finalmente a
porta se fechou. Mas o homem estava do mesmo lado que ela.
Caroline se encostou na parede. O rosto estava branco, os olhos
verdes imensos e arregalados, e o coração martelava pesadamente.
— Alô, Caroline — ele falou.
A voz profunda e grave era exatamente a mesma, ela a reconheceria em
qualquer lugar do mundo, embora não a ouvisse há três anos. Apesar
disso, não conseguia acreditar que era ela. Estava esperando por outros
passos, por outra voz. Se fosse mesmo ele, estava perdida. Sua cabeça
rodava febrilmente, numa mistura de confusão e medo. Abriu os lábios
com dificuldade, engolindo o terror garganta abaixo.
— O que você está fazendo aqui? Está sozinho? — sussurrou com voz
estrangulada.
A segunda pergunta tinha que ser feita. Ela estava apavorada. Os olhos
azuis se estreitaram. A boca fina, dura, se comprimiu.
— Sim, estou sozinho.
A intensidade do medo cedeu um pouco. Mas era apenas uma pausa antes
do inevitável. Ela continuou rígida contra a parede, as grandes pupilas
dilatadas e negras. Sua pele estava ainda mais branca, quase transparente.
— O que você quer? — murmurou. — Como me encontrou?
— Um detetive particular — ele falou com voz arrastada.
Caroline fechou os olhos. A idéia de que alguém a estivera seguindo,
fazendo perguntas, observando-a, dava-lhe nojo.
— Ele demorou para encontrá-la. Você foi muito esperta, conseguiu
esconder seu rastro muito bem. Não queria ser encontrada de maneira
alguma, não é?
— Como ele me encontrou?
Não conseguia imaginar como é que o detetive a descobrira. A não ser
que seu advogado a tivesse traído. Ele havia prometido que não daria seu
endereço a ninguém.
— Não tenho a intenção de lhe contar nada. — Ele sorriu, enquanto
tirava o casaco pesado que usava e o atirava sobre uma cadeira do hall.
Caroline sentiu a boca secar de repente. Desviou o olhar para que não
se detivesse por muito tempo naqueles músculos largos e fortes que
saltavam sob a camisa cara e elegante, nem nos longos cílios, escuros e
perturbadores, que emolduravam os olhos azuis.
— Não vai me convidar para entrar? — ele perguntou com desdém.
— Parece que você já entrou, mesmo sem convite. Não é bem-vindo,
sabe disso.
— Não estou acostumado a que me batam a porta na cara — ele falou
calmamente. Mas a raiva que havia por detrás daquelas palavras era clara.
Ele fazia com que o pequeno hall diminuísse ainda mais com sua
presença. Dirigiu-se para a sala, passando os dedos pelos cabelos negros e
grossos. Nick Holt era um homem extraordinariamente forte: ombros largos,
muito alto, o corpo esguio como o de um atleta. Caroline sabia que, quando
relaxado, ele era charmoso e bonito. Sua natureza selvagem e rude se
desmanchava quando seus lábios se abriam para sorrir, e os olhos azuis
adquiriam um brilho difícil de esquecer.
Mas ela também sabia que não veria nem um pouco de seu charme
naquela noite. Nick não sorria para ela há muitos anos. Bem antes de ela
ter ido embora com Kelly.
— Esta casa pertence a você? Comprou-a? — ele quis saber. Sem
dúvida ele sabia a resposta. Deus, como aquele detetive devia ter
bisbilhotado sua vida particular!
— Sim, é minha — respondeu, tentando aparentar calma. Nick entrou
na sala e ficou ali, olhando em volta com curiosidade. Não era uma sala
grande, mas parecia bastante espaçosa, pois Caroline não tinha mais
móveis do que os estritamente necessários. O tapete fora adquirido em
oferta. O conjunto de sofá e poltronas ela conseguira comprar com
desconto, pois a fábrica de móveis era cliente da firma de publicidade em
que trabalhava. Ela mesma havia colocado o papel de paredes, assim como
havia conseguido pintar um armário usado com cores claras, renovando-o.
Naqueles três anos, Caroline descobrira que era capaz de fazer muitas
coisas com as quais antes nem sonhava.
Havia uma pintura infantil na parede. Nick Holt se aproximou para
observá-la.
Caroline olhou para ele com ansiedade. Kelly havia pintado aquele quadro
há um ano. A casa com janelas pretas possuía uma força explosiva,
considerando que a filha tinha apenas seis anos. Uma sombra caía da casa
até o jardim, alcançando duas pequeninas figuras que corriam. Caroline ficou
muito perturbada quando viu o desenho, trazido pela professora de Kelly.
Ambas compreenderam que aquela havia sido a maneira encontrada pela
pequena Kelly, para mostrar suas aflições mais profundas e arraigadas.
Caroline decidira, então, pendurá-lo na parede como um símbolo do que
deveriam enfrentar, para que ela e a filha acabassem com os fantasmas.
Talvez tivesse sido aquela pintura o que havia finalmente libertado Kelly do
medo, pois em seguida ela parou de andar pela casa, à noite.
Caroline ficou nervosa ao ver Nick Holt em frente ao quadro, interessado.
Procurou distraí-lo.
— O que está fazendo aqui. Por que veio?
— O que você acha? — Ele se virou abruptamente, fitando-a.
— Escute, não quero ser rude — Caroline falou, nervosa —, mas não
tenho nada a dizer. Não quero falar.
O rosto de Nick se tornou colérico. Ele colocou as mãos nos bolsos da
calça.
— Não vou sair até ter dito tudo o que vim dizer. Foi um longo percurso
até aqui. Agora que cheguei você terá que me ouvir.
Caroline se encheu de falsa coragem, e dirigiu-se para a porta.
— Sinto muito, mas vou insistir. Não há nada a dizer.
Ele não se moveu. Limitou-se a observá-la com os olhos cheios de
desprezo.
— Meus vizinhos podem escutar qualquer ruído — ela avisou. — Um grito,
apenas, e eles virão num instante.
Ele estava a seu lado antes que ela tivesse terminado a frase. Aquelas
pernas longas eram rápidas e ágeis. Quando Caroline tentou gritar, ele tapou
sua boca com violência.
— Grite.
Ele sorria, cruelmente. A proximidade de seu corpo a perturbava, e
Caroline desviou os olhos assustados. Nenhum dos dois se moveu por algum
tempo.
Caroline estava tremendo. Ele sentia a boca macia sob a palma de sua
mão. observava os cílios cor de mel que se moviam, escondendo a expressão
dos olhos verdes.
Caroline não ousava se mexer. Aos poucos, deu-se conta de que a emoção
que tomava conta de seu corpo não era medo. Um raio gelado percorreu-lhe o
corpo. Naquele instante, ouviu um suspiro exasperado de Nick. Ele a soltou e
afastou-se. Ela quase não conseguia ficar de pé.
Sentou-se no sofá, enterrando a cabeça entre as mãos. Estava exausta.
Temia desmaiar. Seu corpo parecia envolto em gelo. Como se também
necessitasse de alguns momentos para se recuperar, Nick deu uma volta pela
sala, pegando alguns objetos, observando-os.
Caroline esperou a respiração voltar ao normal, o coração diminuir a
intensidade convulsiva das batidas. Quando conseguiu pôr as idéias em
ordem, verificou que não estava mais a salvo. Seu esconderijo havia sido
descoberto, a fortaleza devassada. Teria que pegar Kelly e fugir de novo. Fugir
para longe daquela sombra ameaçadora.
Tinha sido tão difícil construir a vida que levavam agora... Ela não sabia
se conseguiria coragem suficiente para começar tudo de novo. Só de pensar
nisso já ficava cansada.
— Helen esteve muito doente — Nick falou de repente.
Caroline sentiu o coração parar por um instante.
— Doente? — ela repetiu, fitando Nick, procurando desesperadamente
uma explicação. Será que... Deus, o que tinha acontecido?
— Pneumonia — falou Nick, breve.
Uma mistura de alívio e perturbação tomou conta dela.
— Pneumonia?
— Ela quase morreu. Pensamos que era irremediável, mas por um milagre
sobreviveu. Ainda está muito fraca, mesmo assim. E quer ver Kelly.
Ela sentiu uma dor profunda no coração. Podia ser uma armadilha, uma
mentira, mas não devia ser. O rosto dele tinha se entristecido. Caroline amava
Helen. Desejava muito vê-la de novo, mas era impossível. Sacudiu a cabeça.
— Sinto muito. Gostaria de poder ir.
— Você não só pode como vai. Prometi a Helen que levaria sua neta para
casa, e vou cumprir minha palavra.
A voz dele estava alterada, e Caroline olhou para os lados, perdida.
— Fale baixo. Estas paredes são finas. Quer acordá-la?
A última coisa que ela desejava era que Kelly acordasse e o encontrasse.
Nick se virou bruscamente, irritado, e pegou uma fotografia de Kelly que
estava sobre uma mesinha.
— Não é nada parecida com você.
Kelly tinha o rosto oval, pequeno. Seus traços eram mais delicados do que
propriamente bonitos. Possuía a pele morena, os olhos cor de âmbar, e os
cabelos lisos e negros chegavam até os ombros.
— Não — concordou Caroline. Depois hesitou um pouco. — Ela me lembra
Helen de vez em quando.
Nick lhe lançou um olhar de aprovação, através dos cílios espessos.
— Sim, achei isso. — Colocou o retrato no lugar. — Quando foi tirada a
foto? É recente?
— Sim, faz seis meses, apenas.
— Parece muito bem. Ela sempre me pareceu um pouco pálida quando
bebê, se me lembro bem.
Caroline desviou os olhos. Oh, sim, Kelly tinha sido pálida. Toda criança
possui uma antena que capta as emoções que a cercam. Mesmo as emoções
escondidas. Kelly sabia que as coisas não iam bem desde o berço. Era uma
criança muito sensível, e dolorosamente quieta. As pessoas costumavam dizer
a Caroline: "Que gracinha de criança, quase não faz barulho", mas ela não
achava que aquilo fosse motivo de alegria, pelo contrário. Kelly era quieta
demais, assustada e temerosa demais.
Agora já não podia dizer o mesmo. Durante os últimos três anos tinha
relaxado gradualmente. Ria com naturalidade, era uma garota alegre e
barulhenta como qualquer menina de sete anos. Estava confiante e feliz, por
fim, e Caroline não permitira que ela fosse assustada de novo.
— Nick — falou, calma —, não posso explicar, mas não quero levar Kelly
de volta a Skeldale, nem mesmo por Helen...
Nick o olhou com desprezo. Ele a condenava, claro, mas ela não podia se
defender.
— Peter está morto.
Caroline sentiu um vazio. Fitou-o, incrédula, sem no entanto vê-lo. Os
olhos verdes a denunciavam. Aquelas palavras, como pedras rolando por um
abismo, tinham soado rápidas demais para que ela pudesse compreender seu
significado. Aos poucos foi se recuperando. Sua mente e seu corpo chocado
pareciam ter se libertado de uma sombra que os sufocava há muito tempo. O
medo que a deixava fraca, impotente, se fora.
Havia raiva no olhar de Nick. Atirava as palavras em seu rosto como se
esperasse alguma reação.
— Bateu o carro há três meses e morreu instantaneamente. Arrebentou o
automóvel num caminhão, na estrada.
Caroline estava trêmula. Suas mãos estavam entrelaçadas sobre o colo, o
olhar vago.
Nick caminhou para ela, nervoso, o rosto transtornado de raiva.
— Meu Deus, que vagabunda de sangue-frio você é! Não consegue nem ao
menos fingir que está triste? Eu lhe digo que seu marido está morto e você fica
aí feito estátua, sem dizer uma palavra? Nenhuma lágrima, nenhuma dor,
nem mesmo uma pergunta idiota? Que tipo de mulher é você? Foi seu marido
durante cinco anos. Isso não quer dizer nada para você?
Ele tinha deslocado uma pedra da fortaleza que Caroline tinha construído
à sua volta. A maneira brutal como ele dissera aquelas palavras foi
insuportável. Caroline escondeu o rosto entre as mãos instintivamente.
Nick pegou seu queixo com violência e forçou-a a olhá-lo.
— Não tente esconder o rosto de mim — ele falou com voz perigosamente
grave. De repente, soltou-a, irritado, e foi até a lareira. — E pode parar com as
lágrimas de crocodilo. Surgiram tarde demais. Caroline, e não funcionam
comigo.
Ela limpou os olhos com mãos trêmulas. Lutava para recuperar o
controle. Agora que o primeiro choque tinha passado, estava sentindo as mais
estranhas ondas de sensações. Ele jamais a compreenderia, e ela nunca
poderia confiar nele. Procurou conversar.
— Como Helen reagiu?
— Mal — ele respondeu, sem se voltar.
Caroline bem o sabia. Helen devia ter sentido a mesma coisa que ela: um
terrível choque misturado com alívio. Só que Nick não sabia de nada. Pelo
modo como ele a estava tratando, mostrava que não sabia. Helen tinha
mantido segredo... Oh, pobre Helen. Por que coisas horríveis ela devia ter
passado! E eu não estava lá, Caroline se lastimava. Eu, a única pessoa no
mundo que entenderia Helen nesse momento difícil, a única pessoa com quem
ela poderia se abrir e conversar francamente. Ela tinha mantido as
aparências, escondido tudo dentro de si. Não era à toa que havia ficado
doente.
Os olhos frios de Nick estavam sobre ela novamente.
— Nunca mais foi a mesma desde então. Não fiquei surpreso quando ela
pegou pneumonia. Não estava tomando conta de si mesma. Não comia, não
saía, perdeu tanto peso que parecia um espantalho. Acho que queria mesmo
morrer. Foi surpreendente a maneira pela qual ela de repente se recuperou.
De alguma forma conseguiram mantê-la viva, e quero que ela continue viva. É
por isso que estou aqui. É por isso que você e Kelly vão voltar comigo, mesmo
se eu tiver que arrastá-las à força.
Caroline assentiu com um gesto de cabeça. Não havia mais razão para não
voltar.
Ele torceu os lábios num sorriso desagradável.
— Por acaso está aceitando?
— Sim.
— Você mudou de tom — falou Nick, mal disfarçando a.raiva. — Sabia que
quando lhe dissesse que Peter estava morto, mudaria de idéia.
O silêncio que se seguiu foi interrompido pelo toque do telefone
sobressaltando os dois. Caroline ergueu-se com dificuldade e atendeu-o.
— Caroline. Está tudo bem? — A voz de Diana estava meio preocupada,
meio sonolenta. — Não quero bancar a intrometida, mas pensei ter ouvido um
homem gritando aí. Está tudo bem?
— Sim, tenho uma visita, só isso. — Caroline procurou falar alegremente.
— Problemas na família, tem uma pessoa doente. Obrigada por ter ligado.
— Robin disse que era bobagem, mas, sabendo que você fica aí sozinha,
eu tinha que telefonar para ver se não aconteceu nada.
— Estou muito grata.
— Robin disse que talvez fosse Geoffrey.
Diana hesitava em desligar. Era óbvio que estava morrendo de curiosidade
de saber quem era a visita de Caroline.
— Não — disse Caroline —, não é ele.
Sentiu a presença de Nick atrás de si. Virou a cabeça. Ele estava com as
mãos nos bolsos, o rosto duro.
— Terei que viajar alguns dias — Caroline falou.
— Quer que eu fique com Kelly?
Diana estava sempre pronta para tomar conta de Kelly. Ela tinha uma
filha da mesma idade, e as duas se davam muito bem.
— É muito gentil de sua parte, mas ela vai comigo. Vamos visitar sua avó.
— Ah, sim — falou Diana, surpresa, pois Caroline jamais tinha dito uma
palavra sobre a família. — Está bem, então. Escute, dou uma passadinha aí
amanhã cedo para ver se você quer me deixar alguma tarefa.
— Muito obrigada, muito obrigada mesmo — Caroline agradeceu seguida,
desligou.
Nick a fitava com ar hostil, e ela se perturbou.
— Quem era?
— Minha vizinha ouviu-o gritar. Eu lhe disse, meus vizinhos escutam
todos os ruídos.
— Isso deve dificultar as coisas para você de vez em quando — falou. Seus
olhos gelados a mediram de cima a baixo.
Caroline fixou os grandes olhos em seu rosto, não se perturbando o
significado maldoso daquelas palavras.
— Vim de carro de Skeldale — ele falou. — Vocês podem voltar comigo.
— Obrigada — ela respondeu secamente.
Ficaram em silêncio alguns momentos. Ele estava com a testa franzida, as
mãos ainda nos bolsos.
— Helen sabe que você me encontrou?
— Ainda não.
— Por quê? — perguntou Caroline, surpresa.
Nick curvou os lábios num leve e irônico sorriso.
— Esperei até vê-la pessoalmente. Não sabia o que encontraria.
— Seu detetive particular não descobriu muito, não é? — ela revidou.
— Ele me disse tudo o que pôde. Eu não tinha certeza de que era tudo.
— Como assim? O que mais estava esperando?
— Por que você está sozinha?
— Sozinha? — ela repetiu, sem entender o motivo da pergunta.
— Sim, só você e Kelly. O que aconteceu a Stephen Ryland?
Caroline foi pega de surpresa. Do que ele estava falando, afinal?
— Stephen Ryland? — ela repetiu, encarando-o.
A frieza do rosto dele foi substituída por uma raiva crua e selvagem.
— Não finja que não sabe de que estou falando! Não foi difícil deduzir.
Você abandonou Skeldale no mesmo dia que Ryland, e Peter suspeitava de
que havia algo entre vocês dois.
Então é isso!, ela pensou, desolada. Tinha sido essa a explicação de Peter
para sua fuga.
— Eu nem mesmo sabia que Stephen tinha saído de Skeldale — ela falou,
calma.
— Não sabia? — Nick perguntou com ironia. — Meu Deus, se não a
conhecesse melhor, quase acreditaria! Esses grandes olhos verdes são
traiçoeiramente inocentes. O que aconteceu? Ele a abandonou? Ou vice-
versa? Cansou-se dele, foi?
Caroline encarou-o, pálida.
— Acreditaria em mim se eu afirmasse que nunca mais pus os olhos em
Stephen Ryland desde que saí de Skeldale, que nem sabia que ele tinha saído
de lá também, e que nunca tive o menor interesse por ele?
— Não — ele respondeu secamente.
Caroline ergueu os ombros, cansada. O que mais ela esperava? Nick havia
acreditado em tudo o que o primo Peter tinha lhe contado, e jamais acreditaria
nela. Mas nem agora podia lhe revelar toda a verdade.
— Como tem vivido? — perguntou Nick. — Como arrumou esta casa?
Deve ter custado um bocado.
— Meu pai morreu há quatro anos, e herdei uma pequena fortuna.
Ela tinha gasto até o último centavo para comprar aquela casa. Seu
salário dava para pagar as contas, a escola de Kelly e a comida. Jamais teria
condições de sustentar a si própria e à filha, se não fosse pela herança
providencial do pai. O dinheiro tinha chegado na hora certa. Nick despertou-a
dos pensamentos.
— Como consegue trabalhar em horário integral numa agência de
propaganda e ao mesmo tempo cuidar de Kelly?
— Minha vizinha leva-a para a escola e vai buscá-la de novo à tarde. Tem
uma filha que estuda na mesma classe que Kelly. Diana tem sido maravilhosa.
Não sei o que seria de mim sem ela.
— Quer dizer que seus vizinhos ficam agüentando Kelly todos os dias até
você chegar?
Caroline ficou tensa e cheia de raiva.
— Não imponho e nunca impus nada a Diana. Eu pago a ela por hora,
como pagaria a qualquer baby sitter, e em absoluto me aproveito da situação!
Ela gosta de ganhar um dinheirinho extra. Nós duas estamos satisfeitas com
essa combinação.
— Estou vendo — ele provocou.
Caroline sabia que estava com raiva, porque no fundo, não podia deixar de
sentir um pouco de culpa por aquela situação. É claro que preferia ficar mais
com a filha, mas tinha que trabalhar, não havia escolha. Seu salário era
bastante alto, elas precisavam do dinheiro. Olhou com desdém para Nick. O
que lhe importava, afinal? Não ia se preocupar com a opinião dele. Já tinha
problemas demais.
— Pode ir agora? — ela perguntou, seca. — Estou cansada. A que horas
virá nos buscar amanhã?
— As nove — ele respondeu, seguindo-a até a porta.
Caroline viu-o vestir o casaco escuro e depois arrumar a gola da camisa
com as mãos morenas e fortes.
— Boa noite — ele falou, enquanto seus olhos a mediam
despudoradamente, de cima a baixo, detendo-se no par de seios firmes, depois
nas pernas bem-feitas.
Caroline sentiu-se desconfortável e corou imediatamente. Fulminou-o com
um olhar cheio de raiva quando ele abriu a porta.
— Bons sonhos — murmurou Nick ironicamente.
Assim que a porta se fechou, Caroline pôs-se a chorar convulsivamente.
Capítulo 2
Há alguns anos o médico de Caroline tinha receitado pílulas para dormir,
mas ela nunca as tomava, com medo de não ouvir Kelly durante a noite.
Assim, havia se acostumado a dormir poucas horas. Algumas vezes quase não
conseguia pegar no sono. Naquela noite, porém, mal tocou o travesseiro e sua
consciência a abandonou. O impacto e o desgaste emocional que sofrerá,
seguido do alívio, tinham-na deixado exausta.
Antes de se deitar, passou pelo quarto de Kelly. A garota dormia
profundamente, alheia às lágrimas da mãe. Caroline beijou-lhe a testa com
carinho e arrumou as cobertas antes de ir para seu quarto. Quando acordou,
na manhã seguinte, os passarinhos cantavam no jardim. Olhou para o
despertador. Sete horas. Tinha bastante tempo para arrumar tudo. Ficou ali,
deitada, olhando para a luz outonal que enchia o quarto. Parecia impossível
que dali a algumas horas estaria de volta a Skeldale.
Escutou Kelly andando pela casa e seu corpo se enrijeceu. Como lhe
contaria as notícias? Ela era bastante precoce para a idade, mas a morte era
difícil de ser compreendida por uma criança. Estava com medo da reação da
filha.
A porta se abriu. Kelly entrou no quarto, os olhos reprovadores.
— Quase sete e meia, e você ainda não levantou? Vamos chegar
atrasadas!
Caroline estendeu a mão, sorrindo nervosamente.
— Não vai à escola hoje, querida. Venha cá, quero conversar com você.
Kelly entrou debaixo das cobertas, aninhando-se ao lado da mãe.
— Não é sábado — ela falou, hesitante.
— Tenho uma coisa para lhe dizer.
Kelly imediatamente ficou séria. As crianças, assim como os animais, têm
instintos aguçados. Ela estava captando as vibrações nervosas da mãe e não
estava gostando daquilo.
— É sobre papai — continuou Caroline, e imediatamente sentiu o
corpinho se enrijecer.
Foi difícil para Caroline encontrar as palavras certas, mas por fim
conseguiu. Não tinha muita escolha, era necessário que Kelly soubesse de
tudo antes que Nick chegasse.
A reação de Kelly foi parecida com a dela própria. A garota chorou da
mesma maneira, numa mistura de alívio e culpa. Ela também sentia que seu
medo constante se dissipava, mas ao mesmo tempo, percebia que o pai que
ela mal conhecera tinha partido para sempre.
— Papai era doente, querida — Caroline falou. — Ele era muito doente.
Era bom que Kelly chorasse. Era uma forma de deixar escapar todas
aquelas emoções que não conseguia compreender, por ser ainda muito
pequena.
Caroline se ergueu, carregando Kelly nos braços.
— Vamos visitar a vovó — contou. — Você quer ver a vovó, não quer? Nós
vamos hoje. Que tal tomar um banho enquanto preparo o café?
— Vovó? — Kelly perguntou, esquecendo-se das lágrimas. — De verdade?
Então nós vamos para Skeldale?
— Claro que é para Skeldale, onde mais poderia estar a vovó? — Caroline
levou-a para o banheiro e deu-lhe umas palmadinhas no traseiro. — Agora,
senhorita, lave-se bem e depois ponha uma roupa.
Ela ouviu Kelly ligar a torneira enquanto ia para a cozinha. Fez um ovo
quente, colocou-o na mesa sob uma galinha de lã que ela mesma tinha
tricotado, preparou algumas torradas e o café.
Kelly entrou na cozinha silenciosamente. Seu rostinho pálido parecia de
adulto. Sentou-se e olhou o prato.
— Não estou com fome, mamãe.
— Tente comer. São mais de três horas de viagem no carro.
— Nós vamos de carro?
Caroline concordou com um gesto de cabeça.
— O tio Nick vai nos levar. Lembra-se dele?
Kelly franziu a testa.
— Ele não é... aquele que morava em Skeldale também? O primo de papai,
mamãe?
— Isso mesmo, querida. Ele passa daqui a uma hora para nos buscar.
Acho bom você comer enquanto eu me visto e arrumo a mala está bem? Quer
um pouco de leite frio?
Kelly concordou e começou a comer torradas com mel. Naquele momento,
Diana deu uma batidinha na porta e entrou. Olhou com simpatia para
Caroline.
— Tudo bem?
— Sim. Olha, Diana, não sei por quanto tempo vamos ficar fora. Pode
dizer à diretora da escola que Kelly não irá alguns dias?
— Sim, claro.
— Pode também suspender a entrega do leite e do jornal?
— Sim, querida. Eu tenho a chave, posso vir sempre para regar as plantas
e ver se está tudo em ordem. Não se preocupe. Deixe o número de seu
telefone. Se alguma coisa acontecer, posso encontrá-la.
Caroline escreveu o número num papel e entregou à amiga.
— Mais alguma coisa? — Diana perguntou.
— Acho que não, obrigada. — Caroline sorriu. Sabia que a amiga estava
com pressa, pois tinha que levar a filha Sharon para a escola. — Não sabe o
quanto fico grata.
— Cuide-se bem, e ligue de vez em quando. — Olhou com carinho para
Kelly. — Boa viagem, Kelly.
— Mande um beijo para a Sharon — pediu a menina. Caroline pensou que
a filha fosse chorar, pois seu lábio tremeu, mas a menina conseguiu se conter.
— Muito bem, então tchau para vocês — falou Diana, saindo.
Caroline voou para o banheiro, tomou um banho rápido e se vestiu.
Depois, arrumou duas pequenas malas. Kelly sujava a roupa todos os dias.
Parecia atrair a sujeira como um ímã.
Telefonou para Geoffrey, o publicitário com quem trabalhava. Ele pareceu
profundamente perturbado.
— Quanto tempo vai ficar fora? O que é que eu vou fazer sem você para
me ajudar aqui no escritório?
— Sinto muito, mas não dá para ficar — ela falou.
Nunca tinha falado de seu casamento para Geoffrey, mas ele era um
homem inteligente, logo percebeu que era assunto sério. Teria que se
conformar e trabalhar sem ela algum tempo.
Kelly estava terminando de lavar seu prato quando a mãe entrou na
cozinha. A mesa estava limpa, e ela colocou o prato cuidadosamente no
escorredor.
— Muito bem, madame!
A menina tinha aprendido a ajudar a mãe nessas pequenas coisas
principalmente àquela hora do dia.
A campainha tocou.
— Deve ser o tio Nick — Caroline falou alegremente, não desejando
demonstrar nenhuma apreensão. — Por que não vai abrir a porta para ele
querida?
Caroline ouviu Kelly abrindo a porta e a voz de Nick.
— Alô, você deve ser Kelly. Está muito diferente! Cresceu, não é?
Ele jamais tinha conversado com ela daquela maneira relaxada e
agradável, pensou Caroline. Foi ao encontro deles. Nick fitou-a sem sorrir.
— São essas as malas? Deixe-me colocá-las no carro.
— Obrigada.
Nick saiu com as malas e Caroline colocou o casaco de náilon em Kelly.
Seus dedos não estavam muito firmes.
— Agora me lembro bem dele — a filha falou, excitada. — Ele, é muito
bom.
— Vá ao banheiro antes da gente sair — mandou Caroline. Ignorando o
que a menina dissera.
— Acabei de ir — Kelly respondeu. Antes que Caroline pudesse insistir, ela
saiu correndo.
Caroline colocou um casaco de lã e saiu, trancando a porta. O dia
ensolarado estava ótimo para uma viagem. O céu azul se estendia até perder
de vista. Londres se erguia no horizonte, uma massa de telhados e espigões. O
bairro onde ela morava ficava distante do centro, era bem arborizado, no alto
de um monte.
Ela respirou profundamente. Suas lembranças de Skeldale eram muito
dolorosas que ela tinha se esquecido de que a pequena cidade de Yorkshire,
próxima à vila, era encantadora. Ela ficava encravada no meio de campos com
vegetações rasteiras; as casas eram antigas e cercadas de flores. Como seria
voltar para lá, agora que não havia nenhum fantasma a temer?
Andou até o carro. Típico de Nick Holt. Era um potente carro esporte
preto. Ficou admirando-o alguns segundos, fascinada, e Nick conduziu-a pelo
braço e acomodou-a no banco da frente. Kelly estava atrás.
— Que super carro! Não é super, mamãe?
— Super — respondeu Caroline.
Nick lançou um olhar irônico para ela enquanto ligava o motor. Antes de
virarem a esquina, Caroline avistou Diana à porta de sua casa, também
fascinada com o carro bonito. Acenou para ela.
— Vamos chegar em Skeldale na hora do almoço — revelou Nick.
— A quanto por hora ele pode ir? — perguntou Kelly, metendo a cabeça
entre os dois.
Caroline olhou para aquele rostinho afogueado com apreensão. Ela já
havia se esquecido das más notícias sobre o pai. Será que não voltaria a se
lembrar e entristeceria de repente? Mas não. As crianças têm essa capacidade
de esquecer das coisas ruins. No momento, Kelly estava completamente
absorvida e maravilhada pelo poderoso automóvel de Nick Holt. Ela nunca
tinha andado num carro daquele, nem sua mãe.
— Espere até chegarmos na estrada para eu mostrar — prometeu Nick.
— Uau! — Kelly exclamou, olhando para Caroline com os olhos brilhantes.
Caroline franziu a testa. Ouviu Nick e a filha conversando animadamente.
Kelly estava explodindo de alegria. Nick falava com ela como se estivesse
conversando com um adulto, e ela adorava não ser tratada como uma criança.
Ela nunca tinha visto ninguém como ele. Já devia considerá-lo mais incrível
até do que o super-homem.
Quando chegaram na estrada, Nick acelerou. Caroline olhou de soslaio
para as mãos fortes dele, que manejavam a direção com firmeza. Fechou os
olhos, engolindo em seco. Odiava-se por aquela confusão de sentimentos, pela
atração perigosa que sentia por ele, e que ela reconhecia que já existia no
último ano que passara em Skeldale.
Nick não tinha ficado alheio à situação naquela época. Uma ou duas vezes
ele tinha percebido a expressão com que ela o olhava, e foi a partir daí que
seus olhos azuis haviam se tornado hostis e cheios de desprezo.
Claro, ele tinha achado que o modo pelo qual ela o olhava provava as
histéricas acusações de Peter. Nick a evitara sistematicamente, sem nunca ter
dito uma única palavra. Comportava-se com uma ironia amarga, estranha.
Pararam à beira da estrada para tomar um café. Kelly pediu um
refrigerante e logo saiu para a pequena área de lazer que havia fora. Caroline
tinha os olhos fixos na toalha da mesa. O café estava quente demais para
beber.
Sentia o olhar de Nick sobre si. Os raios de sol batiam em seus cachos cor
de mel, desarrumados pelo vento forte na estrada. Sem dúvida ela devia estar
horrível, e desejava que ele parasse de fitá-la. Sentia o sangue pulsar com
força nas veias.
— Está um dia lindo, não é? — ela falou, passando a mão pelos cabelos.
— Helen já sabe que estamos indo?
— Liguei para ela ontem à noite. Ela chorou.
Caroline mordeu o lábio inferior.
— Oh, pobre Helen!
— Sim, pobre Helen — ele repetiu, irônico. — Ela é muito ligada a você.
"Nem Deus sabe como", diziam aqueles olhos azuis e frios. Caroline corou.
— Gosto muito dela — murmurou, encarando-o em desafio,
— Mesmo? — ele perguntou, sem esconder a incredulidade.
— Sim!
— Tanto que nem mandou um único cartão de Natal nesses três anos —
ele falou lentamente, com uma sobrancelha erguida.
Estavam entrando num terreno perigoso. Caroline desviou os olhos. Viu
Kelly ao longe com outras crianças.
— O que você faz exatamente nessa agência de publicidade? — perguntou
Nick de repente.
— Ajudo na criação. — Seus olhos se encontraram. — Mas você já sabe
disso, não é? Claro que o seu detetive investigou meu emprego.
Nick encolheu os ombros largos, um sorriso leve nos lábios.
— Acho que ele até descobriu a marca de sabonete que você usa. Era um
homem muito meticuloso.
— Não acho nada engraçado. Você não tinha o direito de mandá-lo atrás
de mim. Detesto a idéia de um desconhecido me rodeando secretamente,
fazendo perguntinhas aqui e ali sobre minha vida particular.
— Sua vida particular manteve seus segredos — falou Nick, duro. — Ele
não voltou com nem um pouco de informação sobre isso.
— Ora, não acabou de dizer que até descobriu minha marca de sabonete?
— Mas não descobriu com quem você estava dormindo — comentou Nick
vagarosamente, divertindo-se com o rubor no rosto de Caroline.
— Que desapontamento para você — murmurou Caroline, detestando-o.
— A menos, claro, que você e seu patrão se entendessem com muita
discrição. Meu detetive disse que ele era bastante elegante.
— Não seja absurdo!
— Seria um alívio para Frey Forrester.
Caroline ficou tensa. Não podia deixar que Nick acreditasse nas mentiras
inventadas por Peter sobre Frey, que era um sujeito muito bom, e seria
desastroso para um médico ter uma fofoca dessas correndo pela cidade. A
reputação de Frey tinha que ser protegida.
— Não havia nada entre eu e Frey. Peter imaginava coisas. Eu não tinha
caso com ninguém. Não havia, nunca houve, nenhum outro homem.
Ele riu baixinho, maldoso. Seu olhar era amargo.
— É verdade — ela insistiu. — Nunca olhei para mais ninguém.
— Não, Caroline?
Havia um desprezo tão grande em sua voz e em seus olhos que Caroline
desviou o olhar imediatamente, as têmporas latejando. Ele a fazia lembrar-se
de um momento que ela julgara perdido no passado.
Estava no jardim podando algumas roseiras quando Nick surgiu com um
recado de Helen de que o chá estava servido. Era um fim de tarde outonal,
belíssimo. Caroline estava nervosa, enquanto os dois se dirigiam para a casa,
e quando um mosquito tocou seu rosto de leve, soltou um grito. Assustado,
Nick inclinou-se para ela.
— O que foi?
Ela ergueu os belos olhos verdes, assustada, meio rindo pela bobagem, e
de repente Nick a beijou. Caroline não hesitou nem um segundo. Aproximou-
se dele, passando o braço por seu pescoço, e beijou-o com paixão, sentindo
uma felicidade louca como não experimentara jamais em sua vida; aquele
momento mágico não tinha passado, nem futuro.
Então, Nick a soltou bruscamente e afastou-se, deixando-a deprimida e
zangada consigo mesma. Depois disso, ele esquivara-se todo o tempo. Nunca
mais trocaram uma palavra amena. Ele passou a olhá-la com mais desprezo e
inimizade que nunca, e era lógico que tinha certeza de que as suspeitas de
Peter possuíam fundamento. Se ela estava pronta a beijá-lo daquela maneira,
então devia ser fácil para outros homens aproximarem-se dela também.
Às vezes, Caroline se perguntava se ele tinha feito aquilo deliberadamente,
apenas para ver sua reação, e odiava-se por ter correspondido com tanto
ardor. Mas nunca, jamais diria: "O único homem para quem eu olhei foi você".
Não, aquilo era a última coisa que ela poderia dizer a Nick. Além do mais, era
provável que ele nem acreditasse. E que humilhante seria confessar aquilo!
Kelly voltou correndo e eles deixaram o restaurante em silêncio, a filha
estava excitada demais pela viagem para perceber alguma coisa, falava e ria
sem parar.
As terras planas e férteis foram sendo substituídas por pastagens
montanhosas. Aqui e ali viam-se cordeiros pastando mansamente. O outono
estava transformando as cores da paisagem; de verde muito brilhante a grama
se tornava amarela e seca. Mesmo assim, as flores insistiam em alguns
lugares, onde o verde teimava em continuar.
Kelly começava a se cansar. Apoiou a cabeça no encosto de couro,
bocejando. Caroline permanecia rígida, os olhos voltados para a paisagem.
Estava demais perturbada com a presença de Nick ali eu lado. Seu corpo
esguio, o perfil talhado em pedra, a boca apertada, atraíam-na como ímã.
Forçou-se para fixar a atenção no vôo de alguns pássaros.
O céu escureceu lentamente, e pingos de chuva começaram a cair no
pára-brisa. A chuva engrossou, o céu se tornou todo cinza, combinando com a
paisagem e a atmosfera reinante dentro do carro. Era assim que Caroline se
lembrava de Skeldale. Era o tempo perfeito para sua volta. O vento uivando
pelas janelas, as árvores farfalhando medonhamente, as folhas sendo levadas
pelo ar outonal frio.
— Bem-vinda ao lar — falou Nick com um sorriso irônico.
Em seguida acelerou o carro, fazendo-o correr pela estrada como um
bólido. Os pneus cantavam no asfalto, e logo chegaram à vila.
Skeldale ficava escondida num vale entre as montanhas, abrigada do
vento forte de inverno. Helen vivia do outro lado da vila, mas, para surpresa
de Caroline, Nick não pegou a pequena estrada que a atravessava. Ao invés
disso, tomou um caminho a esquerda.
De repente, ela se lembrou de que aquele era o caminho para a casa de
Nick.
— Por que estamos indo por aqui? — perguntou.
— Helen está passando uns tempos comigo — ele respondeu, indiferente.
— Quando ela saiu do hospital, não estava em condições de ficar só. Então,
convidei-a para ficar comigo até se recuperar.
— Entendo — Caroline falou nervosamente.
Estava horrorizada ante a idéia de ficar na casa dele, vendo-o todos os
dias.
— Vocês vão ficar em casa — Nick informou, como se tivesse lendo seus
pensamentos.
— Oh, é muito gentil, mas podemos ficar naquele hotel em Market
Square...
— Nada disso — ele retrucou.
— Mas, realmente...
— Seus quartos já estão preparados.
Caroline teria insistido mais, não fosse o olhar definitivo que ele lhe
lançou. Suspirou, resignada, afundando no assento. Bem, seria por alguns
dias apenas.
— Não precisa se preocupar.
— Não me preocupei com nada. Minha governanta cuidou de tudo.
— Você ainda está com a sra. Bentall? — Caroline perguntou, lembrando-
se vagamente daquela senhora magra e eficiente.
— Sim.
Ela olhou para trás. Kelly dormia profundamente. Sua boquinha cor-de-
rosa estava levemente aberta, e o rosto, afogueado. A viagem tinha sido
cansativa para ela. Não estava acostumada a percorrer grandes distâncias de
carro.
Nick fez uma curva e o carro passou por um portão alto de ferro. Caroline
olhou para a casa de pedra com curiosidade. Só estivera ali algumas poucas
vezes, mas lembrava-se do lugar. A grandiosidade das montanhas atrás fazia
com que a casa parecesse menor.
O carro parou em frente à entrada principal. Nick desceu e abriu a porta
para Caroline. Ela saiu, e ambos olharam para Kelly. A garota continuava a
dormir, e agora que o motor estava desligado era possível escutar sua
respiração regular.
— Mas, sra. Storr...
A voz seca, impaciente, fez com que eles se voltassem. Helen apareceu na
porta, com a sra. Bentall atrás. A governanta tentava detê-la evitando que
tomasse chuva.
— A senhora espere, que eles virão — falou ela, num tom de babá
dirigindo-se a uma criança.
Caroline correu com os braços estendidos. Helen estava com os olhos
cheios de lágrimas.
— Oh, minha querida, nunca pensei que voltaria a vê-la de novo... Onde
está Kelly? — perguntou, ansiosa.
Caroline beijou-a e abraçou-a com afeto.
— Está no carro dormindo, a viagem foi cansativa para ela.
Helen chorava, de mansinho, trêmula pelo frio que soprava das
montanhas.
— Não posso esperar para vê-la. Oh, ela deve ter mudado! Senti tanto a
falta de vocês, mas agora estão aqui, as duas, graças a Deus.
— Saia deste vento — falou a sra. Bentall. — Quer pegar outra
pneumonia, sra. Storr? Faça o favor!
Rindo e chorando, Helen dirigiu-se ao sobrinho.
— Nick, carregue Kelly para dentro! Traga Kelly, Nick!
— Ele vai traze-la — confortou-a Caroline, puxando-a pela mão. — Agora
vamos entrar, Helen, está gelado aqui fora.
Uma lareira enorme estava acesa, o fogo crepitando de modo
aconchegante na sala de carpete vermelho e poltronas antigas. As cortinas de
veludo faziam com que a sala ficasse ainda mais quente e gostosa.
— Sente-se, Helen — falou Caroline.
Mas Helen não conseguia. Tinha os olhos fixos na porta, ansiosos. Ela
sempre fora magra, mas agora aparentava bem mais que seus sessenta anos.
Os cabelos brancos, os ossos delicados saltando sob a pele fina, denunciavam
a enfermidade recente.
Nick entrou carregando Kelly, que olhava à sua volta sem compreender
bem o que estava acontecendo. Tinha o rosto corado, os olhos brilhantes e
curiosos.
— Kelly, querida — falou Helen.
Nick olhou-a severamente.
— Sente-se!
Helen obedeceu no mesmo instante, submissa, mas estendeu os braços
para Kelly, que atirou-se correndo em seu colo.

Capitulo 3
Naquela noite, depois de Kelly ter se deitado, Nick saiu discretamente
alegando que ia visitar um amigo. Caroline e Helen ficaram a sós, conversando
em frente ao fogo aconchegante. O rosto de Helen havia adquirido mais cor.
Ela observava o fogo subir pela chaminé com fascinação. Tinha passado a
tarde inteira em companhia da neta. Caroline as observou com apreensão.
Helen parecia não conseguir desgrudar os olhos da menina, e sua fraqueza
era evidente. Tanta excitação podia ser prejudicial. Agora, Caroline prestava
atenção na sogra. Se ela mostrasse sinais de exaustão, estava pronta para
mandá-la subir e descansar.
— Deveria estar na cama, Helen.
— Bobagem. — Helen fez uma careta divertida. — Não comece a me vigiar
também. Uma sra. Bentall é mais que suficiente.
— Ela está certa. Foi um dia cansativo para você.
— Estou me sentindo bem hoje, como não me sentia há semanas. Oh,
minha querida, como senti saudades de vocês. Nem posso dizer o quanto
estou feliz por tê-las aqui, comigo, de volta.
— Nós também estamos felizes em vê-la de novo. Sentíamos saudades de
você. — Caroline hesitou. — Helen, odiei ter que fugir em silêncio, sabendo o
quanto você sofreria e ficaria preocupada, mas...
— Eu sei — Helen interrompeu. — Eu entendi.
Caroline desejava não ter dito nada. Era claro que Helen tinha entendido.
— Sinto muito.
— É a última pessoa do mundo que precisa me pedir desculpas, quem
devia lhe pedir sou eu. Você agüentou até os limites possíveis a um ser
humano.
— Teria continuado, se não fosse por Kelly.
— Sim — Helen concordou, olhando para a lareira.
O vento gemia pela chaminé, a chuva lá fora continuava, e pequenas mas
verdes estouravam no fogo crepitante. O silêncio tomou da sala alguns
instantes.
— Kelly está muito diferente — Helen falou de repente. — Você conseguiu.
Eu temia que ela estivesse ferida para o resto da vida.
— Eu também.
Caroline se lembrou do quadro que havia em sua casa. A sombra negra
tinha sido expulsa da vida da filha. Kelly não esqueceria tudo completamente
— era pedir demais —, mas era capaz de conviver com a lembrança sem
problemas. Os três últimos anos de vida sadia normal tinham dado a Kelly a
segurança e o desprendimento que toda criança tem o direito de ter. Era uma
base sólida que agüentaria pelo resto da vida.
— Não sabia o que encontraria — falou Helen, interrompendo
pensamentos. — Três anos é muito tempo.
— Foi muito duro, Helen?
Caroline olhou para ela com compaixão. Helen já era nervosa antes de sua
fuga, mas agora era o fantasma da mulher que Caroline conhecera.
Seus olhos se encontraram.
— Não foi fácil — confessou Helen. — Ele foi ficando mais e mais violento,
cada vez mais fora de si. Frey procurou persuadi-lo a se internar em um
hospital, mas isso só piorou a situação. Ele odiava Frey demais para escutá-
lo, e Frey não podia obrigá-lo. Peter não queria ver nenhum outro médico.
Recusava-se a admitir que era alcoólatra. Dizia que podia parar de beber a
qualquer hora, mas para quê? Era a única coisa que o mantinha são, ele dizia.
Não iria privar de suas poucas horas de prazer.
Caroline podia imaginar o processo de degradação do ex-marido, aquilo
tinha começado há muito tempo. No começo, nem ela nem Helen perceberam
como era sério. Peter tomava o cuidado de beber às escondidas, e quando elas
compreenderam que ele estava completamente dependente da bebida,
acabaram por ajudá-lo a esconder o de todos.
Helen não conseguia encarar a idéia de que alguém pudesse descobrir a
verdade. Estava tão horrorizada que chorava pelos cantos, como uma criança.
Implorou a Caroline que não contasse nada a ninguém. Peter, comovido pela
tristeza da mãe, prometeu parar de beber. Mas em vão. Caroline tinha tentado
argumentar com ele, e foi a partir daí que a violência começou.
Sob o efeito da bebida ele bateu tanto em Caroline um dia que Helen teve
que chamar Frey, que, por sua vez, não acreditou na história de que Caroline
tinha levado um tombo nas escadas. Mais uma vez Peter jurou que mudaria
de vida, se eles o perdoassem. Parecia realmente arrependido. Tinha chorado
muito, beijado Caroline com desespero, olhando com horror para aquele rosto
arranhado e machucado.
Frey tinha pacientemente avisado Caroline, durante os meses seguintes,
de que Peter precisaria se internar.
— Ele necessita de tratamento, está doente, Caroline. Precisa de ajuda
profissional.
— Ele está tentando parar. É verdade, Frey, está tentando mesmo. Helen e
eu estamos ajudando-o.
— Sim — Frey tinha respondido com secura —, já ouvi essa história
muitas vezes. É um problema que está aumentando dia-a-dia no mundo,
mesmo em cidadezinhas como Skeldale. Minha querida menina, você e sua
sogra não podem ajudá-lo. Somente Peter pode ajudar a si mesmo, mas ele
precisa de conselho e apoio de gente que entenda seus problemas.
Eles tentaram, mas tudo deu para trás porque Frey não conseguiu
persuadir Peter de que havia algo errado. Ele sempre encontrava razões para
beber. Os negócios estavam indo mal, e ele estava deprimido. Tinha estado
numa festa e forçaram-no a beber alguns drinques. Cada vez inventava uma
nova desculpa.
Não demorou muito, e Peter descobriu o modo perfeito de encobrir a
verdade. Ele não gostava de Frey porque Frey sabia de tudo. Percebia que
Caroline confiava no médico e ficava ressentido por isso. Começou a reclamar
em voz alta, em público, e para ninguém saber do verdadeiro motivo pelo qual
odiava o médico, dizia que Caroline e Frey estavam se vendo muito.
Mesmo assim, Peter tomou cuidado para dizer abertamente que eles eram
amantes. Claro, temia represália de Frey, que poderia levar o caso à justiça.
Dessa forma, acabaria se revelando que ele era um alcoólatra. A partir daí, ele
se tornou extremamente ciumento. Começou a brigar com Caroline cada vez
que ela conversava com um homem.
Caroline se submeteu àquela loucura. Raramente saía, e evitava se
encontrar com Frey. A casa se transformou num inferno de sombras,
paranóicos, apreensão nervosa.
A última gota foi quando Peter começou a bater em Kelly. Helen e Caroline
procuravam tirar a garota de seu alcance, mas nem sempre era possível.
Caroline estava aterrorizada com o que poderia acontecer a Kelly. Então
resolveu fugir.
Seu pai tinha emigrado para a Austrália a fim de morar com a irmã logo
depois de Caroline ter se casado. Quando ele morreu, deixando considerável
quantia para Caroline, ela viu que o momento chegara. Era melhor sumir com
Kelly, antes que alguma desgraça acontecesse.
Nunca soube quando começou a deixar de amar Peter. Um dia, verificou
que seu coração estava vazio, e que tudo o que sentia era medo e dor.
Depois de viver tantos anos sob tensão, foi difícil encarar o mundo de
frente, aprender a viver e lutar sozinha, abertamente, sem medo.
— Desejava estar aqui quando ele morreu. Você ficou muito sozinha nessa
hora difícil — Caroline falou, com simplicidade.
— O pior não foi isso.
— Eu sei.
Sim, ela sabia o quanto devia ter sido difícil para Helen suportar o alívio
mesclado com dor pela morte do filho. Também tinha ido por aquela sensação,
que inevitavelmente vinha com sentimento de culpa.
— Não consigo deixar de pensar que eu podia ter feito alguma coisa —
lamentou Helen.
— Não podia. Tentamos tudo.
— Mas eu era sua mãe. Devia ajudá-lo de alguma forma.
— A única pessoa que podia ajudá-lo era ele mesmo. Frey disse isso,
lembra-se?
— Fomos muito severos com sua educação — lembrou Helen, os olhos
fixos no fogo. — Seu pai era rígido, exigente. Antiquado, suponho agora. Peter
sofria muito quando o pai batia nele.
— Nunca bati em Kelly. Nunca. Não acredito nos resultados.
— Nem eu. Mas devia ter pensado nisso antes, quando Peter era uma
criança. Naquele tempo era normal. Até os professores tinham o direito de
bater nos alunos.
— Não se culpe — falou Caroline, ajoelhando-se ao lado da sogra e
pegando suas mãos gentilmente. — Não deve ficar pensando nisso Helen. Não
acho que foi porque bateram nele, quando garoto, que Peter se tornou um...
alcoólatra. Ele era fraco, apenas.
Helen apertou seus dedos com força.
— Oh, estou feliz por você ter vindo! A única pessoa com quem eu podia
conversar era Frey, mas ele é tão ocupado, não posso tomar seu tempo.
Precisava tanto conversar com alguém. Sentia um peso tão grande no coração,
que pensei que fosse enlouquecer.
Ficaram ali mais algum tempo. Helen finalmente podia falar com alguém,
revelar suas angústias, seus medos. Caroline então soube de tudo: da loucura
de Peter, de sua autodestruição. Sim, Helen tinha passado por muitas
agruras, pensou. Sentia-se culpada por tê-la abandonado, mas não havia
outra saída. Hoje se sentiria muito mais culpada se Kelly fosse uma criança
arruinada.
O relógio da parede deu onze sonoras badaladas.
— Já é tarde! Devia ir dormir, Helen.
A velha bocejou.
— Sabe de uma coisa? Você tem razão. Estou cansada. Fiquei falando
tanto que cansei.
Caroline riu.
— Vou subir com você. Estou cansada, também. Foi uma viagem longa,
embora o carro de Nick ande numa velocidade espantosa. Eu estava morta de
medo na estrada.
— Mas Kelly adorou, não foi? Nossa, não parou de falar nisso. Ela não
sentiu nem um pouco de medo, não é? Corajosa. — Helen se calou por alguns
instantes, e depois a fitou. — Corajosa, graças a Deus.
Caroline passou a mão pela cintura da sogra e levou-a para o quarto,
antes de ir para o seu. Quando estava pronta para se deitar, foi até o quarto
de Kelly. Ela dormia profundamente. Beijou-a de leve na testa e arrumou suas
cobertas.
Saiu silenciosamente, e estava fechando a porta quando um movimento
atrás de si fez com que ela se voltasse bruscamente. Pôs a mão na boca para
não gritar ao avistar uma silhueta na penumbra. Nick a encarou com os olhos
semicerrados. Caroline soltou a respiração, aliviada, e corou.
— Não o ouvi chegar — murmurou.
O olhar dele desceu insolentemente pelo corpo dela que estremeceu. Era
como se um rastro de fogo passasse pela pele aveludada de seu pescoço,
descendo pelos seios macios e ombros semidespidos. O tecido fino da camisola
era mais decorativo que propriamente roupa. As curvas de seu corpo eram
facilmente percebidas sob a camisola. Nick continuou com sua lenta inspeção
até chegar aos pés Caroline ficou ali, parada, sentindo-se impotente.
— Esperando por mim, Caroline?
Ela tentou passar por ele, mas Nick se colocou em seu caminho. Caroline
ergueu os olhos, zangada, mas ele a silenciou com o olhar. Ela, de repente,
ficou completamente consciente da situação; a tempestade lá fora, o silêncio
dentro da casa, o isolamento deles, e seu coração batendo violentamente...
Seu peito arfava.
— Esperou muito tempo? — ele repetiu, a voz arrastada e grave. Caroline
percebeu a ironia contida naquela pergunta e estremeceu.
Os lábios de Nick se curvaram num sorriso cruel de satisfação.
— Esta com frio? — perguntou, aproximando-se até que os seus corpos
quase se tocassem.
Nick colocou o dedo na garganta macia dela e começou a escorregá-lo
lentamente por entre os seios arfantes.
— Não — ela murmurou, zangada, empurrando aquela mão morena.
Nick riu baixinho e Caroline, trêmula de raiva, ergueu a cabeça,
encarando-o sem medo. Morria de ódio daquele homem maldoso. Sua pele
estava toda arrepiada onde ele a tinha tocado, numa reação sensual, e pelo
brilho dos olhos azuis, percebeu que ele sabia disso.
Caroline passou por ele num movimento brusco, e dessa vez ele a deixou
escapar. Ela fechou a porta do seu quarto e cambaleou até a cama. Odiava-se
quase tanto quanto o odiava naquele momento, enterrou a cabeça no
travesseiro, querendo apagar aqueles sentimentos.
Quando ela desceu na, manhã seguinte, o céu estava muito azul e o sol
brilhava forte. Nick comia uma torrada, segurando o jornal a outra mão. Ele
ergueu os olhos rapidamente, e Caroline sentiu a respiração se acelerar.
— Bom dia — ela falou alegremente. — Uma manhã linda, não acha?
— Linda — ele respondeu, irônico.
Era claro que ele estava consciente do efeito que sua presença causava
nela, e divertia-se com isso. Caroline sentou-se, corada, com os longos cílios
dourados baixos.
— O que você e Helen planejam fazer hoje?
— Oh, acho que vamos deixar as coisas acontecerem — retorquiu,
enquanto servia-se de café. — ela disse que costuma ficar na cama até tarde.
— Ela tem que descansar muito.
— Claro.
Caroline esticou o braço para pegar uma torrada. Estava tão nervosa pelo
olhar atento de Nick sobre si que deixou-a cair antes de coloca-la no prato.
— Vou chamar a sra. Bentall para fazer mais torradas — ele falou
secamente.
— Oh, não se preocupe...
— Não é preocupação nenhuma — ele respondeu. — É para isso que ela é
paga.
— Mas acho que nem estou com muita fome.
Ignorando-a, Nick tocou a campainha e a sra. Bentall entrou
imediatamente, um avental branco amarrado à cintura.
— Mais torradas? Gostaria de comer mais alguma coisa, srta. Storr? Ovos
estrelados com bacon?
— Não, obrigada. — Sorriu Caroline. — Mas Kelly gosta de comer um ovo
quente no café da manhã. Ela ainda está dormindo.
— Oh, sim, deixe a garota dormir mais um pouco — assentiu com a
cabeça a sra. Bentall. — Quando ela vier, é só chamar.
Depois que ela saiu, Caroline começou a beber o café, olhando a paisagem
que se descortinava através da janela. Os morros recebiam os raios de sol em
cheio, e as cores do outono realçavam o dourado daquela luz. No horizonte
distante, uma bruma azul se esfumaçava no céu. Mantinha os olhos fixos,
consciente da insistência de Nick. Os olhos dele eram como agulhas de gelo
penetrando sua pele. Ele queria que ela sentisse aquele olhar, e Caroline se
irritava, pois era incapaz de ignorá-lo.
Nick se levantou, deu a volta na mesa e se curvou sobre ela com um
sorriso irônico nos lábios.
— Vou sair para trabalhar. Divirta-se.
Quando a porta se fechou, ela cerrou os olhos, perturbada. Seria difícil
viver na mesma casa com aquele homem que a tratava tão mal.
A manhã passou rápida. Durante o almoço, Kelly perguntou se elas
podiam ir levar os cachorros de Nick para passear, e Caroline prometeu que
mais tarde iriam.
— Frey deve aparecer hoje à tarde — falou Helen. — Oh, devo tanto a esse
homem.
Kelly arregalou os olhos.
— Mesmo, vovó? Você deve muito dinheiro?
Helen riu.
— Não, querida, não devo dinheiro.
— Mamãe, e se a gente fosse agora passear?
Caroline resolveu concordar, senão a garota a infernizaria a tarde toda.
Kelly não possuía nenhum bichinho, embora já tivesse pedido várias vezes
à mãe. Caroline não queria um, pois o animal teria ficar sozinho em casa
quase o dia inteiro. Depois de muita insistência, conseguiu convencer Kelly de
que faria mal para o bichinho. Foi uma das raras vezes em que Caroline teve
que negar terminantemente um pedido da filha.
Helen subiu para descansar, e os cães saíram correndo pelos morros com
Caroline e Kelly atrás. O sol já não estava mais tão quente. Um vento forte
assobiava pelas árvores, fazendo as nuvens deslizarem rapidamente pelo céu
azul. Caroline caminhava com prazer, sorvendo o ar perfumado de outono,
observando o céu se modificando, sentindo-se livre e sem medo. Kelly corria
atrás dos cães, excitada, dando gritinhos de contentamento.
Acabaram andando até muito longe, e na volta Kelly estava arrastando os
pés.
— Estou cansada, mamãe, me carrega, estou cansada.
— Carregar uma meninona como você? Não, não.
Nenhuma das duas tinha percebido que alguém as seguia quando
entraram no jardim, e de repente Kelly deu um pulo, surpresa, quando
alguém chamou.
Caroline parou. Reconhecia aquela voz e, voltando-se, acenou, o rosto
alegre.
— Frey!
Ele segurou sua mão entre as dele, sorrindo. Era um homem alto, loiro,
alguns fios brancos já aparecendo. Tinha um rosto bondoso, o sorriso caloroso
e confortador.
— Como vai você, Caroline?
— Bem, e você? Parece ótimo.
Frey parecia o mesmo de três anos atrás. Talvez houvesse alguns fios
brancos a mais, e algumas linhas marcando o rosto, mas o sorriso o brilho
dos olhos eram iguais. Ela estava muito contente em vê-lo.
— Tenho estado muito ocupado, como sempre — ele falou, sem soltar a
mão dela. — Você parece muito melhor do que da última vez em que nos
encontramos.
Kelly o fitava, curiosa, e ele soltou a mão de Caroline cumprimentá-la.
— Esta é Kelly? Meu Deus, que moça sadia! Com o que sua a fez crescer
tanto? Mingau e feijão?
Kelly sorriu.
— Eu gosto de mingau de aveia.
— Sabe? Eu nem a teria reconhecido. E você, lembra-se de mim?
— Não — Kelly respondeu, com sinceridade.
— Sou o dr. Forrester.
— E por que a mamãe o chamou de Frey então?
Ele lançou um olhar divertido para Caroline.
— Porque sua mãe me conhece muito bem, e Frey é meu primeiro nome.
— Nunca ouvi esse nome antes, é gozado.
— Minha mãe era norueguesa. Frey vem dos antigos nome nórdicos.
— O que quer dizer "nórdicos"?
— Ela nunca para de fazer perguntas se você der corda — falou Caroline,
rindo.
— Isso é ótimo. Como é que ela vai descobrir as coisas se não fizer
bastante perguntas?
Kelly ficou satisfeita. Aquele era um homem de quem ela gostava, Frey
pegou-a pela mão, contando-lhe algumas lendas nórdicas, enquanto
passeavam pelo caminho de pedra que os conduzia até a casa. O jardim
estava cheio de galhos e folhas ensopadas pela tempestade da noite anterior, e
já fazia bastante frio. A maioria das árvores não ostentavam mais folhas.
A casa estava quente e convidativa quando eles entraram.
— Vim ver Helen — falou Frey. — Como acha que ela está?
Caroline olhou para Kelly, depois para ele.
— Desejava que ela parecesse melhor — disse discretamente.
— Onde sua vovó está? — Frey perguntou à Kelly.
Kelly imediatamente se ofereceu para ir procurá-la, e saiu da sala,
saltitando.
Frey foi até a lareira, pensativo.
— Ela apenas acabou de voltar para o mundo — contou. — Na verdade,
pensei que já a tivéssemos perdido de vez. Gostaria de poder dizer que fui eu
quem a trouxe de volta à vida, mas foi Nick quem fez a mágica.
— Nick?
— Ele prometeu para ela que encontraria você e Kelly. Peter tinha tentado
antes, mas desistiu. Nick jurou que as encontraria, nem que tivesse de virar o
país pelo avesso. — Frey sorriu para ela. — E, claro que Nick tomou a decisão,
manteve a promessa. Aqui estão vocês.
Caroline colocou mais lenha na lareira.
— Helen vai adquirir forças agora, não vai? Ela mais parece um cadáver
ambulante.
— Seu coração não é forte, e ela não é mais jovem. Mas com o incentivo
certo, deve melhorar.
— O incentivo certo — repetiu Caroline, sorrindo.
— Kelly — concordou Frey.
— Kelly e eu não podemos ficar aqui. Tenho um emprego muito bom em
Londres.
— Sim, Nick me falou. Trabalha numa firma de publicidade, não é?
Ela assentiu com um gesto de cabeça.
— Sou muito bem paga e gosto do trabalho. Tenho uma casinha térrea
gostosa, e Kelly vai bem na escola. Não gostaria de arrancá-la de lá agora, —
Hesitou. — O problema é que minha casa tem apenas dois quartos. Acho que
Kelly e eu podíamos dividir um quarto e Helen podia ficar no outro. Daria
certo por algum tempo.
Frey considerou a idéia alguns instantes.
— Espere um pouco, Caroline, dê tempo ao tempo antes de sugerir a
Helen. No momento, o que interessa é que você e Kelly estão de volta.
Os olhos de Caroline se encheram de lágrimas e Frey soltou uma
exclamação, aproximando-se dela.
— Oh, minha menina, sinto muito, o que foi que eu falei? Que desajeitado
que eu sou, desculpe!
Ela riu, os olhos molhados, e deu um soluço. Frey puxou-a contra si
afetuosamente, e Caroline descansou a cabeça em seu ombro. Que bobagem,
chorar assim à toa. Perguntava-se o porquê de se sentir tão triste depois de
um dia gostoso daqueles.
Um movimento fez com que eles se separassem. Caroline virou a e ficou
tensa ao avistar Nick.
— Sinto interromper.
Frey corou levemente.
— Alô, Nick — falou, com alegria exagerada.
— Eu estava mesmo pensando quando é que o veria por aqui — Nick falou
com ironia.
As sobrancelhas de Frey se ergueram.
— Visito Helen quase diariamente — comentou com secura.
Caroline tinha se virado para enxugar as lágrimas com as costas das
mãos. Como Nick ousava falar com Frey daquela maneira? Seu rosto estava
vermelho, o corpo tenso de raiva.
Naquele instante, Helen entrou com Kelly e Caroline se desculpou,
dizendo que ia subir e se trocar.
Vestiu um suéter e sentou-se em frente à penteadeira, escovando os
cabelos com força.
Ouviu batidas na porta.
— Entre — mandou, esperando ver Helen ou a sra. Bentall. Era Nick.
Seus olhares se encontraram no espelho com frieza.
— Convidei Forrester para jantar. Tenho certeza de que vai aprovar.
— A casa é sua — ela respondeu, gelada.
— Achei que era bom avisá-la. — Ele correu os olhos pela imagem refletida
dela. — Estou certo de que você ficará melhor de jeans e suéter. Assim não
chamará tanto a atenção.
Ela sentiu-se tentada a atirar a escova em seu rosto. Quem ele pensava
que era, afinal?
Ele viu o brilho rebelde que tinha se acendido nos olhos verdes.
— Lembre-se apenas disso: está sob meu teto, e não vou ficar de lado,
vendo você fazer joguinhos com Forrester. Mantenha-o afastado.
— Você não tem o direito...
Nick a interrompeu com um sorriso irônico.
— Você vai descobrir que eu tenho o direito que quiser.
— Não comigo.
— Helen queria que eu convidasse Forrester. Não tive escolha. Mas não
pense, nem por um segundo, que ele está aqui para você, ou que eu vou
deixar que recomece seu caso com ele.
O rosto dela ardia.
— Já disse...
— E eu não acredito. — Os olhos azuis a fulminaram, e ela se sentiu fraca
e impotente. — Vou observá-la a noite inteira. Lembre-se disso.
Para disfarçar a perturbação, ela recomeçou a pentear os cabelos,
esperando que assim ele se fosse. Mas Nick ficou onde estava, observando-a
atentamente no espelho. Um frio percorreu-lhe a espinha. Seu rosto começou
a queimar, e ela piscou furiosamente, procurando esconder a irritação. Nick
deu uma risadinha e, como se só estivesse esperando que ela manifestasse
nervosismo, saiu e bateu a porta.
Caroline fechou os olhos, engolindo em seco. Aquele olhar tinha sido mais
um dos insultos calculados dele, e tinha atingido seu objetivo: ela estava se
sentindo miseravelmente desamparada.
Jamais seria capaz de convencê-lo de que ele se enganava a seu respeito.
Sempre a veria sob um ângulo distorcido. Estava presa numa situação
insuportável, num beco sem saída. Mas, pior do que tudo, era saber que ele a
insultaria e atormentaria o quanto quisesse. Ela nunca lhe contaria a verdade!

Capítulo 4
Caroline foi até a porta, minutos depois. Pretendia descer como estava, de
jeans e suéter, mas de repente uma onda de rebeldia tomou conta dela. Por
que diabos devo obedecer Nick?, pensou, em desafio. Andou decidida até o
armário e de lá tirou um vestido azul, clássico, aparentemente simples, mas
que escondia uma sofisticação muito especial. Vestiu-o rapidamente e olhou-
se no espelho. Seu rosto estava corado, os olhos perigosamente brilhantes. A
revolta corria em suas veias.
Passou perfume nos pulsos e pescoço. Fazia muito tempo que não se
preocupava com a aparência. Estava acostumada a se vestir depressa, de
manhã, e a última coisa que desejava que acontecesse era atrair a atenção de
algum homem na agência. Os homens tinham sido riscados de sua vida.
Quando desceu, Frey estava conversando com Helen ao lado da lareira.
Ambos se voltaram. Helen sorriu, surpresa e deliciada. Frey assobiou
baixinho, um sorriso largo nos lábios.
— Olá, olá, olá — ele falou, olhando-a aprovadoramente.
Caroline aproximou-se deles, andando sobre os sapatos brancos de salto
alto, com elegância.
— Frey vai jantar conosco — avisou Helen.
— Com muito prazer — ele completou. — A menos que eu seja chamado
para atender alguém.
— Que bom. — Caroline sentou-se com suavidade, cruzando as longas
pernas. — Kelly não estava em seu quarto, Helen. Onde é que ela está, você
sabe?
— Está ajudando a sra. Bentall. Não se importa, não é? Ela pediu para
ajudar.
— Claro que não, imagine. Sei que ela adora mexer na cozinha.
Frey tinha um copo de sherry nas mãos.
— Posso lhe servir algum drinque?
— Sherry seria ótimo — respondeu, com um sorriso.
Helen se levantou com movimentos lentos, e imediatamente Caroline fez
menção de se levantar, querendo ajudá-la.
— Fique aí! — Helen falou alegremente. — Eu posso me virar sozinha.
Estou melhor a cada dia que passa.
— Claro que está. — Sorriu Caroline, sentindo uma indisfarçável dor no
peito.
Helen atravessou a sala devagar. Frey estava servindo, o sherry, mas com
o canto dos olhos seguiu seus passos com atenção, com uma ruga na testa.
— Odeio ficar vigiando-a — murmurou Caroline baixinho, depois que a
velha senhora saiu da sala.
— Vai ficar boa — prometeu Frey, trazendo o copo para ela. — Leva um
pouco de tempo para se recuperar, sem dúvida. Roma não foi construída em
um dia!
— Você devia vir trabalhar conosco — brincou Caroline. — Meu patrão
adoraria seus clichês!
— É mesmo? Como é que você arranjou esse emprego?
— Bom, foi por sorte, acho. Trabalhava lá como secretária executiva fazia
alguns meses, quando meu patrão ficou doente. Então eu dei uma sugestão
para eles terminarem um projeto que estava sendo feito há semanas.
Gostaram. No dia seguinte, eu tinha sido transferida para o departamento de
criação. E estou lá até hoje.
— Puxa! Fiquei impressionado.
— Foi só um estalo que eu tive.
— Humm, mas que estalo oportuno, não? Aposto como começou a ganhar
mais num estalo também.
Caroline riu.
— Claro, o salário subiu bastante, mas também aumentou o esforço.
Quando você é apenas secretária, trabalha oito horas por dia e pronto, volta
para casa. Se surge algum problema na agência, de tempo ou criação, você
não tem nada a ver com isso. Mas agora sou responsável pelo que estou
criando, e freqüentemente levo trabalho para casa e passo o fim de semana
inteiro debruçada sobre o projeto.
Frey olhou-a de soslaio.
— Isso não é bom. Não deve trabalhar duro demais. Esse tipo de tensão
não faz bem para a saúde, especialmente se você tem Kelly para cuidar. Não
será nada bom para ela se você ficar com estafa ou úlcera, não acha?
— Jamais chegaria a esse ponto. Não sou ambiciosa, nem pretendo subir
na vida. É apenas um bom emprego, mas Kelly está sempre em primeiro lugar
para mim.
Frey tinha se sentado numa poltrona ao lado dela. Terminou de beber o
sherry e se inclinou para trás, com um suspiro.
— Oh, mas isso é muito agradável. Nem posso acreditar que vou conseguir
passar uma noite tranqüila, sem ninguém me chamar.
Caroline olhou-o, divertida.
— Você não é aquele cara que acabou de me aconselhar a não trabalhar
duro demais?
— Não tenho muita escolha. O outro médico da cidade já não é mais
jovem.
Naquele instante, Nick entrou na sala com ar indolente e ficou de pé, com
as mãos nos bolsos, fitando-os com frieza.
— Posso lhe servir outro drinque, Forrester?
— Não, obrigado. Tenho que me limitar a apenas um sherry, caso seja
chamado para atender alguém mais tarde.
Nick encolheu os ombros e foi até o bar. Voltou com um copo na mão e se
colocou ao lado da lareira.
— A conversa parece ter acabado — murmurou secamente, quebrando o
silêncio.
— Como vai a fábrica? — perguntou Frey.
— Ainda está chovendo? — Caroline perguntou ao mesmo tempo, e os dois
começaram a rir, levemente embaraçados pela situação cômica.
O olhar de Nick os deixava tensos.
— A fábrica está caminhando bem e ainda está chovendo — informou
Nick, com mal disfarçado desprezo.
— Caroline não está charmosa? — falou Frey, sorrindo para ela.
Nick riu brevemente.
— Não era essa a palavra que eu tinha em mente.
Que palavra seria?, perguntou-se Caroline. Encontrou o olhar frio de Nick
e adivinhou que não era uma palavra elogiosa.
Frey olhou para ela, depois para Nick.
— É um jogo? Temos de adivinhar?
Nick lançou-lhe o mesmo olhar frio, cortante. Seus lábios estavam
apertados, quando disse:
— Podem adivinhar.
Caroline sentiu o sangue subir, e virou o rosto de lado.
Frey parecia surpreso.
— Bem... jogos com palavras não são o meu forte.
— Que tipo de jogo você prefere? — perguntou Nick, sibilante.
A hostilidade dele era evidente, e a atmosfera da sala tinha mudado
completamente. Os dois estavam ali, conversando em paz, como dois velhos
amigos, e agora tudo havia se transformado. Caroline sentia uma eletricidade
perigosa no ar. Mordeu os lábios para não gritar com Nick. Não valeria a pena.
Ele não acreditaria nela, riria de suas afirmações.
Frey estava claramente intrigado. Observava Nick com os olhos cinzentos,
límpidos, procurando alguma pista que lhe desse a explicação para aquele
comportamento.
O telefone tocou, e Frey suspirou.
— Cem contra um como é para mim.
Nick tomou a iniciativa.
— Eu atendo.
Frey se reclinou de novo, seguindo-o com os olhos.
— Está difícil hoje — falou para Caroline. — Algo errado?
— Sinto muito por ele tê-lo tratado assim — respondeu Caroline, infeliz. O
que Frey estaria pensando?
— Suponho que ele seja outro que trabalhe duro demais — comentou
Frey, secamente. — Deve ser uma doença contagiosa. — Olhou de novo para a
porta. — Não é para mim. Puxa, hoje estou com sorte.
Kelly entrou na sala de pijama.
— Vim dar um beijo de boa-noite. Fiz torta de maçã com a sra. Bentall.
Vocês vão comer no jantar. Eu é que descasquei as maçãs, e nem me cortei! —
ela quase gritou, atirando-se para Caroline e beijando-a.
— Humm, eu adoro torta de maçãs. — Frey sorriu para ela. — E eu, não
ganho um beijo de boa-noite também?
Kelly voltou-se e beijou-o de leve no rosto.
— Vou subir com você — falou Caroline — Com licença, Frey.
Elas saíram, passando por Nick, que estava desligando o telefone.
Caroline sentiu o olhar frio que a seguia pelas costas. Não é nem um
pouco agradável ser olhada com desprezo, pensou, enquanto subia a escada.
Que direito ele tinha de fazer algum julgamento sobre ela? Se estava
conversando com Frey ao lado da lareira, o que ele tinha a ver com isso?
Kelly falava sem parar, excitada. Metade da mente de Caroline prestava
atenção ao que a filha dizia, metade pensava em Nick Holt. Ele estava
arruinando sua estada ali. Como é que ela podia ficar feliz em ver Helen
novamente, se a cada vez que ela se voltava sentiu aquele par de olhos gelados
sobre si?
— Boa noite, querida — falou, beijando Kelly na testa.
— Não vai me contar uma história?
Caroline não estava com a menor pressa de descer novamente. Sentou-se
na cama, no escuro, e começou a contar uma história. Antes de terminá-la,
porém, Kelly parecia ter adormecido. Caroline saiu na ponta dos pés.
— Boa noite, mamãe — Caroline ouviu a filha dizer, antes de fechar a
porta.
Quando desceu, Helen estava conversando com os dois homens. A
presença de Helen facilitava as coisas porque Nick não ousava demonstrar
sua hostilidade e mau humor na frente dela. Durante o jantar, a conversa
discorreu normalmente. Quando Frey, num momento descontraído, afastou
uma mecha loira do rosto de Caroline, o olhar de Nick se estreitou sobre
ambos. Caroline sentiu o estômago revirar, e quase deixou a comida no prato.
Esforçou-se para continuar a comer, ignorando a expressão de desprezo de
Nick.
Estavam tomando café quando a sra. Bentall entrou com discrição.
— O telefone, doutor.
— Eu sabia — suspirou Frey, erguendo-se.
— Oh, que pena — falou Helen.
Frey saiu e voltou dali a alguns instantes, já com o casaco.
— É a sra. Fraser — falou, olhando para Helen.
A sra. Fraser era uma velha amiga de Helen, uma senhora forte, com três
filhos criados.
— O que aconteceu? — Helen perguntou, ansiosa.
— Sua artrite voltou. Esse tempo úmido sempre lhe traz problemas. Vou
ter que visitá-la e dar-lhe uma injeção.
— Pobre Janet... Mande-lhe minhas melhoras, sim? Espero que não seja
sério.
— Mais doloroso do que propriamente sério — explicou Frey. Voltou-se
para Nick com olhar indefinido: — Foi uma noite muito agradável, obrigado.
Vocês devem vir jantar comigo em breve, faço questão.
Nick inclinou a cabeça cortesmente, sem dizer uma só palavra. Frey
voltou-se para Caroline:
— Boa noite. É muito bom tê-la de volta, Caroline. Espero encontrá-la
sempre.
— Claro — ela falou, dando um sorriso maravilhoso para o amigo.
Sabia que Nick os observava, e aquele sorriso era um desafio. Frey era seu
amigo, e não evitaria encontrá-lo apenas porque Nick Holt tinha ordenado que
fosse assim.
— Ele é um homem muito bom — comentou Helen, depois que Frey se foi.
— É, sim — concordou Caroline com ênfase exagerada. Nick que se
danasse!
Helen ergueu-se, bocejando.
— Acho que já vou para a cama. Estou muito cansada.
— Eu também — falou Caroline apressadamente.
— Termine seu café — mandou Nick.
Helen sorriu para a nora.
— Sim, fique e termine seu café, querida. Não precisa ir para a cama tão
cedo.
Helen se virou em direção à porta e Caroline se levantou, pretendendo
segui-la. Os dedos de Nick a seguraram pelo vestido, puxando-a para trás. Ela
se debateu inutilmente, sem ousar dizer nenhuma palavra, enquanto Helen
pudesse escutar. Estava furiosa e humilhada por não conseguir fugir.
— Deixe-me ir! — murmurou Caroline por entre os dentes, depois que
Helen saiu dali.
— Sente-se.
— Deixe-me!
— Não até você agir como eu digo — ele falou calmamente.
Por alguns segundos seus olhares duelaram em silêncio. Finalmente,
Caroline desistiu e sentou-se.
— Termine seu café.
Com os lábios apertados, ela pegou a xícara. Nick observou-a sorvendo o
líquido, os cabelos dourados balançando graciosamente conforme ela jogava a
cabeça para trás. As sobrancelhas dele se juntaram num franzido, os olhos
adquiriram o brilho metálico novamente.
— Eu não quero ver Forrester tocando-a.
Ela baixou a xícara com fúria.
— Ele não fez nada disso!
— Não? — Nick estendeu o braço e passou os dedos por seus cabelos,
como se estivesse fascinado pelo brilho dourado. — Ele fez isso. Um gesto
bastante íntimo de um médico para com sua paciente, não acha?
Caroline queria esbofeteá-lo.
— Você não podia ter falado com Frey daquela maneira. Suas palavras
foram grosseiras.
O rosto dele endureceu ainda mais.
— Talvez eu esteja meio cheio de ficar ouvindo Helen chamá-lo de santo a
toda hora. Ainda mais quando eu e você sabemos tão bem o que aconteceu
entre vocês dois, algum tempo atrás. Pelas costas de Helen!
— Nada aconteceu!
— Ora, ora...
Caroline contou até dez. Tinha que conversar com ele racionalmente, fazê-
lo ver que estava dizendo bobagens. Será que não percebia como eram insanas
as suspeitas de Peter?
— Como é que você pode acreditar que um homem como Frey Forrester
seja capaz de ter um caso com uma paciente casada? Deve saber que seria
desastroso para sua carreira. Poderia destruí-la. Frey tem muito bom senso e
decência para não se deixar envolver dessa maneira.
Os lábios de Nick rasgaram-se num sorriso maldoso.
— Tenho certeza de que ele ficou com a consciência muito pesada.
— Concordo, Frey é um cara decente, mas ele teria que ser um monge
para resistir à tentação que você lhe oferecia, e eu duvido que ele tenha
resistido.
— Não ofereci nada a Frey — ela sussurrou. — Nick, por favor, acredite-
me...
— Acreditar em você? Escute, docinho, não sou o tipo cego e idiota com o
qual está acostumada a lidar. Sei exatamente o que é, e jamais acreditarei em
uma única palavra que me disser.
— Pergunte a Frey — ela murmurou, cega de dor e ressentimento.
— Perguntar a ele? — Nick riu. — Que tipo de idiota pensa que sou,
afinal? É claro que ele vai negar. O que mais poderia fazer?
Caroline sabia que ele ia responder aquilo. Devia ter poupado seu fôlego.
Suspirou, baixando os olhos com resignação.
— Eu tive que ficar sentado, ouvindo Peter se lamentar de amor por você
— resmungou Nick, — Ele bebia para esquecê-la, e no final conseguiu
arranjar um meio de se matar. Mas, claro, nós dois sabemos muito bem quem
foi que o matou, não é?
Caroline sacudiu a cabeça, desesperada.
— Não é verdade! Não sou assim.
— Oh, não é? Bem, admito que no começo eu não pensava mesmo que
fosse. Só a conhecia pelo que via, e logo fui fisgado por seus olhos verdes e o
sorriso de santa. Duvidei do que Peter me dizia na primeira vez. Pensei que ele
estivesse louco. — Seus olhos brilharam ferozmente. — Até que você mesma
me demonstrou que ele não imaginava coisas.
Uma onda vermelha tingiu o rosto de Caroline. Ela olhou para baixo,
ruborizada e envergonhada.
Nick se inclinou para ela rispidamente.
— Fui tentado, admito.
Caroline piscou os olhos marejados e brilhantes. Nick olhava seu corpo
com tal ferocidade e desejo, que ela começou a sentir-se mal.
— Não ousa negar isso, não é? — Ele fez uma pausa. — Vamos, diga que
eu imaginei que você me convidou a avançar o sinal.
Caroline engoliu em seco.
— Não vou negar o que aconteceu. Mas eu não o convidei.
Aquilo era, pelo menos, parcialmente correto. Ela não o convidara, mas
também não o tinha rejeitado. Tendo conseguido falar aquilo, encontrou
forças para se erguer.
— E eu não queria — falou com frieza.
Nick deu um salto e a agarrou pelos ombros com brutalidade.
— Não! — gritou Caroline, enquanto ele a puxava para si.
Ele a pegou pelo queixo, forçando-a a encará-lo. Seus lábios colaram-se
aos dela, pressionando-os dolorosamente, até conseguir abri-los, ela colocou
as mãos nos ombros largos para empurrá-lo, tremendo, então a boca de Nick
se tornou macia, provocante, audaciosa. Ele a cariciava, e Caroline se
entregou a um desejo indominável, sensual.
Nick correu a mão por suas costas, apertando-a mais. Caroline estava
plenamente consciente da força masculina que aquele corpo emanava, as
coxas musculosas apertando as dela, a mão pressionando-a contra o corpo
viril. O coração de Caroline começou a bater como louco. Sem resistências, ela
fechou os olhos e mergulhou num mundo escuro, quente, que tornava
impossível o raciocínio.
Quando Nick por fim ergueu a cabeça, ela estava tonta, a boca macia
machucada pela rispidez com que ele a tinha beijado, e os ouvidos captando
sons que não conseguia identificar.
— Agora diga que você não me quis — Nick falou, com voz rouca.
Caroline estava atordoada demais para responder. Olhou para ele, sem
fôlego, trêmula, e nick leu a resposta em seu rosto. Os olhos luminosos e
verdes respondiam por ela. O modo pelo qual aquele corpo fraco e esguio se
encostava no dele, também denunciava o mesmo. A respiração entrecortada
de Caroline impedia que ela confirmasse o que seu corpo inteiro gritava. Nick
torceu os lábios de modo insolente.
— Sim — ele falou. — Você me quis.
Caroline sentiu o rosto arder em fogo, com vergonha pelo tom daquela voz.
Os dedos morenos pegaram-na pelo queixo novamente, machucando sua pele
delicada.
— Mas tenho novidades para você, querida. Eu não a quero. Oh, sim, você
é uma loirinha muito sexy, e com certeza consegue conquistar todos os
homens que deseja, mas eu não a teria por preço algum. Não vou me
embebedar para esquecê-la. Se Peter tivesse mais coragem, ele a chutaria
muito antes de você fugir. Mas você o mantinha a seus pés, tão ciumento que
nem conseguia ver as coisas com clareza, e mesmo quando ele estava livre não
conseguiu esquecê-la. — Nick a encarou com os olhos gelados. — Mas não
comigo, querida. Não vai conseguir me agarrar.
Ela já sabia de tudo aquilo, mas depois daqueles breves momentos nos
braços dele, quando percebeu o desejo e a paixão que os dominava a violência
daquelas palavras a deixou arrasada.
Nick jamais havia escondido que a desprezava, mas só agora ela tinha
noção do quanto ele a odiava. Os olhos frios e as palavras ríspidas reduziram-
na em pedaços. Queria ficar longe dele, fugir, correr, esconder-se. Tudo isso
para ver se conseguia esquecer as emoções que sentiu enquanto ele a teve nos
braços.
Manteve os olhos baixos, sem dizer nada. Travava uma luta violenta
consigo mesma para não desatar no choro. Não havia motivo algum para falar
nada. Ele não acreditaria.
— Muito bem — ele falou por fim. — Enquanto estiver sob meu teto, não
vai retomar seu caso com Forrester. Nem com mais ninguém. Está aqui única
e exclusivamente porque Helen precisava ver Kelly. Não está lidando com um
bobo fraco como Peter. Se sair da linha uma vez só, vou esbofeteá-la até
perder a razão.
Caroline ergueu a cabeça imediatamente, ultrajada.
— Se erguer um dedo contra mim eu...
— Você o quê? — provocou Nick.
Caroline soltou-se dele num movimento desesperado e correu para a
porta. Gostaria de tê-lo ferido da mesma maneira com que ele a ferira, mas
naquele instante tudo o que queria era fugir para poder chorar em silêncio.
Não deixaria que Nick Holt visse o quanto ela estava machucada.
De volta a seu quarto, ela jogou-se de bruços na cama, escondendo o rosto
entre as mãos. Sentia-se mal e suja. As palavras dele não a tinham ofendido
tanto quanto as sensações que ela experimentou em seus braços. Queimava
como veneno em sua memória, a lembrança de como havia correspondido a
ele. Tinha se entregado inteira, faminta, fraca. Entendeu que jamais
conseguiria se recuperar daquele choque. Da outra vez, ela se sentira
envergonhada e miserável, mas dessa vez queria morrer, e ser engolida pelas
entranhas da terra, de modo que os olhos sarcásticos e azuis de Nick Holt
jamais pousassem sobre ela novamente!
Cada vez que o encontrasse se lembraria daquilo, e ele também. Caroline
estava morando ali, sob o mesmo teto dele, e seria impossível evitá-lo. Cada
encontro, por mais breve que fosse, por mais casual, iria deixá-la nua, sem
forças, completamente arrasada.
Eu o odeio, pensou. Oh, Deus, o que posso fazer? A impotência reinava,
absoluta. Não podia fugir. Tinha obrigação de ficar, por amor a Helen, mas
seus dias se tornariam um inferno sem fim. Se ao menos não tivesse
correspondido ao beijo de Nick... Se ao menos não tivesse se entregado
daquela maneira, com tanto ardor... Porque não havia como esconder a
verdade de si mesma: ela o desejava. Seu corpo havia vibrado loucamente ao
sentir as carícias dele.
Fechou os olhos com força, apertando os lábios num desejo de auto
flagelar-se, em vão. Só de recordar os minutos anteriores sentia aquela
sensação vertiginosa, selvagem, que a tinha atingido dos pés a cabeça,
deixando-a fora de si de prazer.
Nunca sentira aquilo com Peter. Talvez porque tivessem casado muito
cedo; ela ainda não tinha dezoito anos, Peter era apenas alguns anos mais
velho. Eram jovens demais para saber o que estavam fazendo. Talvez fosse
essa uma das razões que levaram Peter a beber: não era maduro o suficiente
para encarar as responsabilidades do casamento, principalmente depois do
nascimento da filha. A tensão o tinha quebrado.
O sentimento que os unia era muito intenso, como o de todos os jovens
que se iniciam no amor. Olhando para trás, Caroline percebia agora que nem
conhecia a si mesma, quanto mais a personalidade complexa de Peter.
Tudo tinha sido muito fácil para eles. Helen os recebera com muita alegria
e satisfação. Caroline não poderia ter encontrado sogra mais carinhosa e
simpática. Morar com Helen, ao contrário do que todos os gracejos e piadas de
salão apregoavam, fora muito agradável. Caroline adorava tê-la por perto, e
Helen estava igualmente feliz por tê-los em casa. Peter é quem tinha começado
a se mostrar perturbado e aborrecido. Será que o casamento havia sido
frustrante para ele? Jamais saberia.
Trocou de roupa para se deitar. Seu corpo estava dolorido como se ela
tivesse sido atropelada. Sabia que não conseguiria dormir, mas mesmo assim
deitou-se debaixo das cobertas e apagou a luz da cabeceira.
Não percebeu quando dormiu, mas acordou assustada, com o inesperado
peso de Kelly sobre o estômago. Tinha dormido com os braços atrás da
cabeça. Ela soltou uma exclamação, contraindo o corpo.
— Acorde, acorde — ordenou Kelly, com um sorriso enorme no rosto. —
Olhe!
Ainda tonta de sono, Caroline olhou. O sorriso infantil estava cômico.
Havia um pequeno buraco na fila alva dos dentes inferiores.
— Caiu — anunciou Kelly, deliciada.
— Oh! — foi o máximo que Caroline conseguiu dizer, fazendo uma careta.
Seus braços estavam doloridos. Ela devia ter dormido pesadamente, sem
se mover, por horas. Com dificuldade, baixou-os ao longo do corpo. Empurrou
Kelly para o lado e sentou-se.
— Não engoliu o dente, engoliu?
Kelly estendeu a mãozinha, orgulhosa, exibindo a preciosidade.
— Vou pôr debaixo do travesseiro de noite, para a fadinha trocar por uma
moeda.
— Puxa, que sorte, hein? — Caroline olhou para o relógio e gemeu.
Sete horas! Não era à toa que estava se sentindo péssima. O dia anterior
fora exaustivo. Sua cabeça latejava. Devia ficar na cama pelo menos mais
umas duas horas, pensou, desolada. Justamente hoje o dentinho de leite de
Kelly havia resolvido cair!
Kelly tinha deixado a porta aberta, e de repente alguém a abriu
completamente.
— Algo errado? — A voz quente e masculina fez seu coração parar.
— Olhe, tio Nick! — exclamou Kelly inocentemente, pulando da cama e
correndo para a porta.
Caroline virou a cabeça. Viu a figura alta e esguia de Nick dentro de um
robe escuro, percebeu o sorriso irônico e se cobriu instintivamente.
— Oh, seu dente caiu, foi? — Nick sorriu. — Parabéns. Agora vai poder
assobiar.
Kelly ficou ali conversando com ele algum tempo. Caroline desejava gritar
com ele, expulsá-lo do quarto. A breve olhadela sarcástica que ele havia lhe
dirigido a deixara queimando por dentro. Era como se ele a tivesse tocado.
Ele se foi e Kelly voltou para a cama.
— Quando vai levantar, mamãe? Vamos tomar café? Eu estou com fome.
Está com fome também, mamãe? Acho que eu comia até um cavalo! Tio Nick
já levantou, mamãe. Por que não se levanta também?
Caroline nunca tivera vontade de gritar com a filha antes. Normalmente
era muito paciente com ela. Costumava deixá-la falar sem parar enquanto
cozinhava, arrumava a casa, costurava. Engoliu o impulso de gritar.
— Por que não vai se lavar, querida? Depois você pode se vestir e nós
descemos para o café.
Mas não até que Nick tenha saído, pensou com seus botões. De alguma
maneira tinha que atrasar Kelly até que ele fosse para o trabalho.
— Já me lavei — falou Kelly.
Caroline conhecia aquele ar culpado da filha.
— Kelly, não invente histórias.
— Bom, mas eu estou limpa — insistiu a garota. — E não vou para a
escola... — Encontrou o olhar zangado da mãe. — Eu vou me lavar — disse
atropeladamente, saindo do quarto.
Caroline riu. Kelly sempre acabava concordando, se visse que estava sem
razão. Caroline se perguntava muitas vezes se a disciplina de um pai não faria
falta à filha, e tinha conversado sempre com ela, sem usar a força. Oh, não,
nunca seria capaz de bater em Kelly. E a menina parecia corresponder
plenamente às suas expectativas.
Aquela tinha sido a primeira vez em que se contera para não perder a
paciência. Estava se sentindo tão, miserável por causa da noite anterior, que
quase esqueceu o autocontrole.
Tomou uma decisão: não pensaria em Nick naquele dia. Ele nem passaria
por sua mente. Era mais fácil dizer do que agir, claro, mas tentaria.
Demorou-se um pouco no banheiro, enquanto Kelly rodopiava à sua volta
como uma mariposa.
— Vai demorar muito, mamãe? Eu estou com fome.
— Vá para o quarto me esperar, querida.
Apesar dos longos e sonoros suspiros da garota, Caroline demorou para se
arrumar. Vestiu um suéter cor de cereja e jeans, e procurou se demorar tanto
quanto possível para escovar os cabelos.
Kelly a olhou desolada quando entrou no quarto.
— Tio Nick já foi embora. Ouvi o seu carro.
— Oh, que pena — murmurou Caroline, segurando sua mão. — Não faz
mal.
A sra. Bentall as recebeu com más notícias. Ela contava os casos com
certa satisfação.
— Desastre aéreo na Bolívia, terremoto no México, e dizem que este
inverno será muito rigoroso — falou solenemente.
— Puxa vida — comentou Caroline, mordendo os lábios para não rir.
— Ovos com bacon? — perguntou a sra. Bentall, olhando para Kelly que
comia o mingau com ar compenetrado. — E você, Kelly?
Kelly fez que sim com um gesto de cabeça.
— Sei que Kelly vai adorar os ovos, mas não tenho muita fome, sra.
Bentall. Poderia comer algumas torradas apenas?
— Como quiser — retrucou a mulher, caminhando para a porta com ar
ofendido.
Kelly terminou o mingau e deu uma risadinha excitada.
— Ela não suporta gente que não come bem — falou para a mãe.
— A sra. Bentall?
Kelly assentiu.
— Quando eu não consegui terminar o meu chá ontem à tarde, porque
estava com a barriga cheia de torta de maçã, ela me falou dos hindus
esfomeados que morriam como moscas. Disse que eu devia agradecer por ter
chá para beber,
— E devia mesmo.
— O tio Nick desperdiça a comida.
— Por quê?
Kelly tinha uma memória excepcional, e sabia imitar direitinho os trejeitos
dos adultos. Desta vez sua personagem era a sra. Bentall.
— Trabalha todas as horas que Deus nos dá e nunca se sabe a que horas
vai aparecer para comer — ela falou. Até seu pequeno rosto tinha adquirido a
expressão grave e seca da sra. Bentall. — Esse homem precisa me ouvir,
senão vai ficar doente.
Caroline não pôde deixar de rir.
— Ela também falou que tio Nick está de péssimo humor. Disse que ele é
mau; é verdade, mamãe?
— Claro que ela não quis dizer bem isso, querida.
Naquele momento a porta se abriu e a governanta entrou com uma
bandeja. Entregou as torradas de Caroline com desprezo, mas sorriu
aprovadoramente para Kelly, enquanto colocava os ovos com bacon em frente
dela.
Logo depois, Helen levantou e disse que estava se sentindo muito bem.
— Que tal um passeio pelo jardim, querida?
Caroline e ela passearam entre as árvores amarelas, de braços dados,
Helen olhou para as montanhas do vale e suspirou.
— Não dizemos freqüentemente o quanto é bom viver — falou, sorrindo
para a nora.
Caroline sorriu de volta, sentindo o coração se encher de felicidade. Por
mais que Nick a humilhasse e a maltratasse, valia a pena ficar ali, apenas
para ganhar mais vezes aquele sorriso de Helen.

Capítulo 5
Caroline começou a ficar nervosa à medida que o dia passava. De vez em
quando olhava para o relógio com apreensão. Não sabia como poderia encarar
Nick quando ele chegasse; tinha se esforçado muito para que Helen não
percebesse nada. Foi com um imenso alívio que viu a sra. Bentall anunciar às
seis horas que ele não viria para jantar.
— Vai trabalhar até tarde — a governanta falou gravemente. — Como
sempre. Ele devia diminuir um pouco o ritmo antes que queime algum fusível.
O que ele pensa que é, uma máquina?
Depois que ela saiu, Helen comentou:
— Ela está certa. Nick está mesmo trabalhando duro, pois anda cheio de
problemas. Essa recessão no mundo atinge a todos. Nick diz que tem de
trabalhar em dobro para continuar na mesma. Tem que lutar feito louco para
conseguir cada venda.
Caroline mal a escutava. Estava mais relaxada por saber que não teria
que enfrentá-lo naquela noite. Ela e Helen jantaram sozinhas.
Frey ligou para perguntar se Helen estava bem. Prometeu visitá-la no dia
seguinte, se tivesse tempo. Ele também estava trabalhando em dobro: seu
único companheiro tinha pegado uma gripe e estava de cama.
Às nove e meia, Helen disse que ia dormir. Olhou para a lareira ardendo,
hesitante, e Caroline prometeu que apagaria o fogo quando fosse para a cama.
Os dois enormes cães estavam deitados em frente ao fogo, com os focinhos
entre as patas, dormindo. Mais tarde, Caroline começou a apagar o fogo, a
mente preocupada com Helen e o futuro. Tinha pensado em várias
possibilidades, mas não sabia que decisão tomar. Virou-se em direção da
porta, suspirando, quando ouviu o motor de um carro sendo desligado. Uma
porta bateu. Os cães começaram a latir e Caroline apressou-se em alcançar a
escada antes de Nick entrar.
Os cachorros vieram com ela, excitados, abanando o rabo, e ela tentou
silenciá-los, zangada. Acordariam a casa inteira com aquele estardalhaço.
A porta de entrada se escancarou. O vento frio soprou, trazendo Nick
consigo. Os cães atiraram-se nele, aflitos para receberem bem o dono. Ele os
empurrou, sorrindo, depois lançou um olhar a Caroline, que estava imóvel no
meio do hall.
Ela observou o modo como ele acariciava os pêlos dourados dos cachorros.
Sim, ele os tratava bem, com carinho.
— Boa noite — ele falou, e foi até a escada.
— A sra. Bentall deixou alguma coisa preparada?
Caroline olhou por cima do ombro.
— Não sei. Ela se retirou para os seus aposentos depois do jantar. Se
preparou alguma coisa, deve ter ficado na cozinha.
Ele passou a mão pelos cabelos num gesto cansado.
— Estou esgotado e faminto. Não como desde a hora do almoço.
— Não pode trabalhar de estômago vazio — Caroline comentou, voltando-
se devagar.
— Trabalho melhor com o estômago vazio — Nick falou secamente. — A
mente fica mais concentrada.
Caroline hesitou.
— Vou ver se a sra. Bentall deixou comida para você — ofereceu-se, já que
ele parecia incapaz de fazer qualquer coisa.
— Obrigado — ele falou calmamente, encostado na parede, acariciando os
cães com afeto.
Caroline não tinha escolha, e foi para a cozinha. Ele a seguiu momentos
depois, trancando os cães na sala.
— Não encontrei nada — ela falou, voltando-se para ele. — Gostaria de
comer sanduíches? Ou ovos com bacon?
— Sanduíches já dão conta do recado.
Ele entrelaçou os dedos no alto da cabeça e se espreguiçou, esticando o
corpo ao máximo. Caroline observou as linhas relaxadas de seu rosto, as
sobrancelhas espessas, e desviou o olhar com o coração acelerado.
Nick observou-a fazer café e sanduíches frios de rosbife. O silêncio que
reinava na cozinha estava tão pesado, que Caroline pensou que ia gritar. Nick
não tirava os olhos dela, que começou a sentir-se como um coelhinho sendo
observado por uma cobra, hipnotizado passivamente.
Procurou algum assunto neutro para conversar. Antes de Peter envenenar
a mente do primo contra ela, existira uma relação amigável entre eles. Aquilo
parecia tão longe, outra época, outro mundo... Mas tinha existido.
— Helen me contou que sua firma está passando por um momento difícil.
Nick encolheu os ombros.
— Não diria exatamente isso. A firma está indo bem, só que é muito mais
difícil de se vender a mercadoria hoje em dia. Temos de sair e brigar por
qualquer venda.
— Está trabalhando muitas horas por dia, não está? — Caroline pôs a
xícara em frente a ele.
— Não tenho outra escolha.
Enquanto servia o café, Caroline sentiu mais uma vez que ele a observava,
e ficou furiosa com o próprio nervosismo. Quando é que iria aprender a não
ligar para o que ele pensava ou dizia?
— Devia relaxar mais — ela falou.
Nick torceu os lábios, divertido.
— É um convite?
Ela sabia que tinha ficado vermelha e odiou-se por isso. Pôs os
sanduíches na mesa e se virou para a porta, sem responder.
Nick se levantou e segurou seus ombros, puxando-a para trás, de modo
que ela se encostasse em seu corpo esguio. Caroline estremeceu ao sentir
aquela boca se movendo sobre os cabelos loiros.
— Retiro o que disse — ele falou roucamente. — Estou cansado demais
para pensar direito esta noite.
— Não devia trabalhar tanto — sussurrou Caroline, profundamente
consciente daquele corpo masculino. — E não tente pensar. Coma seu lanche
e vá para a cama, Nick. Não pode continuar a trabalhar nesse ritmo, vai
acabar tendo uma estafa.
— Talvez já tenha me estafado — ele murmurou, massageando a curva
dos ombros claros. Seus dedos eram quentes e sensuais. — Devo estar louco.
Às vezes, digo a mim mesmo para parar de pensar e apenas pegar o que
quero.
Caroline prendeu a respiração. Sentiu o coração bater com força. Os
dedos a apertaram por alguns segundos, para em seguida afrouxarem.
— Vá dormir, Caroline — ele falou com a voz lenta e grave – vá dormir
antes que eu me esqueça de todas as razões para não me envolver com você.
Caroline caminhou lentamente até a escada, muito pálida.
Quando se levantou na manhã seguinte, dormiu mal naquela noite de
novo. Para despertar, resolveu levar os cachorros para um longo passeio
matinal encontrou com Helen, a sogra sorriu aprovadoramente para as faces
coradas da nora.
— Está muito saudável — ela falou, e Frey visitou-as naquela tarde por
dez minutos, observando Helen atentamente.
— Como acha que ela está? — perguntou Caroline, enquanto o
acompanhava até o carro.
— Muito melhor. Você e Kelly estão fazendo maravilhas com ela. Muito
mais do que qualquer remédio poderia fazer. Continuem assim.
Caroline suspirou:
— Só podemos ficar uma semana.
Frey estacou e a encarou.
— Não pode ser mais?
— Na verdade, não. Tenho um emprego, lembre-se.
— Se tivesse visto Helen quinze dias atrás, Caroline, compreenderia o
quanto você e Kelly fizeram para ela. Se forem embora de novo, não posso me
responsabilizar pelo que acontecerá — ele falou gravemente, colocando pausas
entre as palavras, e Caroline sentiu-se mal.
— Oh, mas...
Frey segurou sua mão, apertando-a.
— Pense no que falei. Todos nós precisamos de alguma razão para viver.
Você e Kelly são a razão da vida dela.
Ele se foi, e Caroline ficou ali, olhando para o céu azul de outono. O que
podia fazer? Frey havia acabado de colocar em suas mãos a responsabilidade
de manter Helen viva. Ele sabia o que tinha feito. Falou com convicção, e seus
olhos limpos e cinzentos eram atenciosos e bondosos. Gostaria de poder dizer
a si mesma que Frey exagerava, mas sabia que ele não falara à toa. Ela
mesma estava notando a mudança, desde a primeira vez em que Helen vira
Kelly.
Caroline considerou as várias alternativas. Poderia encontrar uma casa
maior em Londres e manter seu emprego, ou desistir e voltar a viver em
Skeldale. Talvez, pudesse dividir o quarto com Kelly enquanto construísse
mais um em casa. O jardim ficaria menor, mas podia fazer isso.
Naquela noite, depois de Kelly ter se deitado, Caroline expôs a situação a
Helen.
Helen a ouviu, preocupada, e depois soltou um suspiro desconsolado.
— Oh, meu Deus, não queria pensar no futuro — confessou.
— Mas nós temos que pensar — falou Caroline, segurando suas mãos. —
Não há pressa para você decidir, mas precisamos discutir as possibilidades.
— Não posso ir morar com vocês, seria um estorvo — protestou Helen.
— Não faz sentido você dizer isso. Kelly e eu a queremos conosco. Como
poderíamos deixá-la aqui em Skeldale, sozinha?
— Não sei se conseguiria viver em Londres.
Nick entrou naquele instante e estacou, olhando para elas.
— Viver em Londres? Claro que você não conseguiria, quem lhe deu essa
idéia maluca?
— Eu dei — Caroline falou, calma.
Nick lançou um olhar de desprezo para ela.
— Devia ter adivinhado!
— É muito gentil da parte de Caroline — interpôs-se Helen.
— Levá-la embora do lugar onde você viveu sessenta anos? Você chama
isso de gentil?
Caroline enrubesceu.
— Caroline tem um emprego muito bom — apressou-se a explicar Helen,
vendo a tormenta nos grandes olhos verdes. — Não poderia pedir para ela
desistir do emprego por mim. Jamais encontraria uma colocação tão excelente
em Skeldale.
Nick torceu os lábios.
— Inventando novos meios de vender produtos supérfluos às mulheres?
Fazendo slogans para sabão em pó e óleo de bronzear? Oh, sim, não queremos
privá-la de uma experiência tão incrível, não é mesmo?
— Oh, você pensa sempre que é tão engraçado — exclamou Caroline. —
Estou cheia de suas insinuações sobre mim, sobre o meu trabalho. Não é da
sua conta!
— Não é, mas está ficando.
— É o que você imagina.
Helen ficou atônita. Olhou para um, depois para outro. Talvez antes não
tivesse percebido o antagonismo entre eles, mas agora estava claro. Uma ruga
de preocupação surgiu em sua testa.
— Helen pertence a Skeldale e é aqui que ela vai ficar. O que é que faria
num suburbiozinho qualquer de Londres, completamente só numa casinha o
dia inteiro, enquanto você está no trabalho e Kelly na escola? Todas as
pessoas que ela conhece moram aqui; todos os lugares, os morros, a paisagem
de que ela gosta estão aqui! E agora você vem arrancá-la de suas raízes e a
planta em outro lugar só porque lhe convém?!
Helen pigarreou discretamente, mas Caroline estava zangada demais para
perceber. Fulminou Nick com os olhos brilhantes, o rosto corado. Ele tinha
colocado em palavras o que ela secretamente temia e não tivera a consciência
de enfrentar. Mas não agradeceria por isso. Odiava-o. Ele havia fechado seu
leque de alternativas, forçando-a a encarar o inevitável. Não tinha escolha.
Os olhos dele notaram, com satisfação, que Caroline tinha perdido.
— Se é pelo emprego... pode trabalhar conosco. Eu estava mesmo
pensando em criar um departamento de publicidade na firma. Tenho pago
algumas agências como free-lancer, mas penso que é melhor ter um
departamento próprio.
Caroline sacudiu a cabeça, estonteada. Não conseguia responder.
Trabalhar para ele? Vê-lo todos os dias? Nem por um milhão de libras.
— Que idéia maravilhosa, Nick! — exclamou Helen, excitada. — Caroline
seria sua própria patroa, não é? Uma grande oportunidade para ela.
Não, pensou Caroline, olhando desamparadamente para a sogra,
enquanto continuava sem fala.
— O ar daqui seria tão melhor para Kelly, ao invés da fumaça e cheiro de
gasolina de Londres — Helen falou. — Tenho certeza de que ela ficaria mais
feliz numa escola menor, também. Aquelas escolas imensas de Londres jamais
tiveram a mesma atmosfera aconchegante e gostosa de uma escolinha de vila.
Nick tinha ficado observando Helen com divertimento indisfarçável no
olhar. Ela o fitou com o coração apertado.
— É muito bondoso de sua parte, Nick — continuou Helen,
inocentemente. — Estou certa de que Caroline será maravilhosa no emprego.
Afinal de contas, teve um ótimo treinamento.
Se Caroline conhecia Nick Holt bem, as únicas idéias que ela poderia criar
viriam da cabeça dele, e de mais ninguém. Podia se imaginar recebendo
ordens o dia inteiro. Não, nunca, ela pensou. Não vou aceitar. Mais uma
semana com Nick fitando-a daquela maneira e ela seria capaz de pular pela
janela.
— Está combinado, então — falou Nick.
Caroline ergueu a cabeça. Encontrou um olhar divertido e recebeu um
sorriso de troça antes de ele se retirar. Ficou calada, fitando o vazio.
Helen se dirigiu a ela com a voz ansiosa.
— Gostou da idéia, não gostou? Você é quem sabe, querida, claro.
— Deve agir da melhor maneira possível. Mas eu acho que para Kelly seria
muito mais interessante viver aqui do que num subúrbio de Londres.
Caroline forçou um sorriso.
— Você deve ter razão.
— Sim, claro. Tudo é tão impessoal em Londres, não é verdade? As
pessoas não conversam umas com as outras como fazem aqui, nem mesmo
nas lojas. Parece que elas não têm tempo. Agora, quando vou no açougue, o
dono sempre tem um tempinho para bater papo comigo. Aqui a gente sente
que tem um lar. Não sei se em Londres dá para sentir-se assim.
— Depende do que você está acostumada.
Helen mordeu o lábio.
— Bem, não quero pressioná-la, querida. A decisão é sua.
— Resolveria muitos problemas. — Caroline sorriu, forçando-se a parecer
despreocupada, pois Helen estava desapontada. — Vou pensar sobre o
assunto por um ou dois dias — prometeu, e Helen assentiu, suspirando.
Despedindo-se da sogra com uma desculpa, Caroline subiu para se trocar.
Encontrou Nick na escada. Ele parou, obstruindo sua passagem. Estava no
degrau de cima, e ela foi forçada a erguer a cabeça para encarar aquele olhar
insolente.
Para surpresa dela, Nick estava usando um terno imaculadamente
elegante, de noite, como se fosse sair. Seus ombros largos, a pele morena em
contraste com a camisa branca, tudo a deixava sem fala. E ela ficou mais
zangada ainda consigo mesma.
— Ainda não me agradeceu — ele falou.
— Por quê? — ela quase gritou.
Aquilo pareceu diverti-lo ainda mais.
— Pela oferta de emprego.
— Ainda não decidi se vou aceitá-lo. Não sei se quero trabalhar em
Skeldale.
— Ofertas de trabalho em Skeldale são escassas — ele falou, encolhendo
os ombros.
— Mesmo assim, posso arranjar um emprego em outra cidade próxima.
— Em York? Sim, suponho que pudesse encontrar um emprego lá, mas
seria uma longa jornada de carro todos os dias. Você gastaria muito dinheiro
com gasolina e não veria muito Kelly.
Aquilo era verdade, mas ela não se rendeu. Empinou o nariz, irritada.
Ele parecia muito alto que nunca naquele terno escuro, o ar de gozação se
tornava ainda mais irritante. Era lógico que ele estava deliberadamente no
degrau de cima, para que ela se sentisse diminuída e em desvantagem.
— Suas maneiras deixam muito a desejar — ele falou.
— Minhas maneiras?
— Ainda não me disse "obrigada".
— Obrigada. — A palavra tinha a força e o corte de uma navalha.
— Não soa muito sincero.
Caroline estava trêmula de raiva.
— Meus sentimentos são muito verdadeiros — murmurou por entre os
dentes, querendo esbofetear aquele rosto sarcástico.
— Se não estivesse com pressa, exploraria o assunto com fascinação — ele
falou, olhando para o relógio. — Teremos que adiar nossa discussão para um
momento mais conveniente.
— Vá para o inferno! — ela exclamou, trêmula, com os punhos fechados.
Nick riu baixinho, mas ela viu o clarão de ameaça nos olhos azuis e
brilhantes.
— Não se apresse em decidir sobre o emprego. Posso esperar até quando
for preciso.
Caroline sentiu um frio na espinha. Ele estava falando sério, reforçando a
ameaça. Deixou-a passar e ela correu escada acima, em pânico. Tinha a
temerosa suspeita de que realmente não conseguiria encontrar outro emprego
em Skeldale. Nick sabia muito bem disso quando fez sua oferta. Havia armado
uma armadilha para Caroline, e o pior é que ela não estava enxergando outra
saída. O sorriso com que ele se afastou era de puro triunfo.
Quando Caroline voltou para a sala, Helen contou que Nick tinha ido
jantar fora, na casa de uns amigos.
— São os Skelton — completou ela, com um suspiro.
— Não me lembro deles.
— Claro, querida, eles se mudaram para cá há apenas um ano. Henry
Skelton era um industrial na África, não me lembro em qual país. Ele se
aposentou, voltou para cá e investiu parte de seu dinheiro na firma de Nick.
Construíram uma casa mais para baixo, ali onde Joe Bond tinha um pasto,
lembra-se?
— Oh, que pena, deve ter estragado a vista de Hougham Tor — falou
Caroline.
— Estragou um pouco, sim. Acho que Joe conseguiu bastante dinheiro.
Foi melhor para ele, porque aquela terra não era fértil. Ele tinha tentado
plantar algumas coisas, sem sucesso, e foi bom Skelton ter comprado o lugar
para construir uma casa.
— É bonita?
Helen fez uma careta.
— Muito moderna para o meu gosto. Dizem que é muito bem projetada e
que é cheia de novidades. A prima da sra. Bentall, Ruby, trabalha lá e está
sempre contando vantagens da cozinha. Hazel Skelton contratou um designer
de Londres, e pelo que ela diz, essa fantástica cozinha lembra o cenário de
Guerra nas Estrelas.
— Hazel Skelton é a esposa?
— Filha. Bastante bonita à primeira vista, mas não posso dizer o mesmo
de suas maneiras. Fui apresentada a ela numa festa de Natal. Ela apertou
minha mão, disse uma ou duas palavras e foi embora. Meia hora mais tarde,
fomos reapresentadas, e quando eu ia dizer que já nos conhecíamos ela fez
tudo de novo, igualzinho! Nem prestou atenção em mim, e acho que até hoje
não me conhece!
Caroline riu.
— Que garota educada!
— Mas, sabe, Nick costuma vê-la com freqüência.
— Mesmo? Vai ver que têm algo em comum — Caroline falou, sem deixar
de sorrir.
Mais tarde, naquela noite, as duas conversavam ao pé do fogo.
— Por que não vendemos a velha casa, querida, e encontramos uma
outra, mais moderna, um novo lugar para um novo começo? Acho que
ficaríamos mais contentes em outro lugar, não acha?
Houve uma pausa de segundos, e Caroline percebeu que aquele era o
momento da escolha. Mas que opção ela tinha, afinal? Não podia abandonar
Helen, e Nick estava certo, não poderia arrancá-la de Skeldale depois de
sessenta anos.
— Você é quem sabe — disse, alegre, esperando que Helen não tivesse
percebido a breve hesitação. — Ficarei feliz com o que decidir.
— Penso que seria melhor — comentou Helen, aliviada. — Será uma vida
nova para todos nós.
Caroline concordou com um gesto de cabeça.
— E o emprego de Nick, vai aceitá-lo, Caroline? Acho que é uma
oportunidade maravilhosa para você.
— Sim, vou aceitá-lo — Caroline falou, engolindo em seco. Que remédio?
Helen beijou-a na face, depois tomou-lhe as mãos.
— Estou feliz. Obrigada, querida.
Mais tarde, em seu quarto, Caroline observava um mosquito se debatendo
desesperadamente em volta da lâmpada de cabeceira. Sabia exatamente como
é que ele estava se sentindo. Nada a deixaria mais feliz do que sair dali para
sempre, e nunca mais encontrar Nick novamente. Mas não podia fazer isso
com Helen. Estava presa a Skeldale por laços de afeição, dever e pena. Havia
fugido e abandonado Helen da última vez, e, embora tivesse desculpas mais
que plausíveis para fazê-lo, sempre se sentira um pouco culpada. Agora havia
chegado o momento de corrigir tudo.
Helen tinha passado por tanto sofrimento... Desta vez, não havia
desculpas, e, além disso, seu amor pela sogra supriria o martírio de ver Nick
todos os dias. Sabia que seria humilhada em todas as oportunidades. Ele
achava que Caroline merecia aquilo. Acreditava que ela fosse tudo o que Peter
havia dito que era, e ela não tinha meios de provar o contrário. Teria que
conviver com isso, e estava certa de que não seria uma experiência agradável.
Na manhã seguinte, durante o café da manhã, ela conversou com Kelly,
expondo as novidades devagar, sentindo as reações da criança com cuidado.
— Morar em Skeldale? — Os olhos cor de âmbar se arregalaram. — Para
sempre, mamãe?
— Para sempre é muito tempo. Com certeza, por alguns anos — Caroline
corrigiu, preocupada.
Não sabia como Kelly reagiria. Ela não tinha boas lembranças de Skeldale,
claro, e era sempre tão apavorada por causa de Peter!
Kelly mergulhou a ponta da torrada no ovo quente, e depois mordiscou-a
de leve, pensativa.
— O que acha da idéia? — perguntou Caroline.
— E a nossa casinha?
— A gente pode vender.
— Nunca mais veria Sharon — falou Kelly, com tristeza.
— Ela pode vir e ficar conosco de vez em quando, já pensou como seria
bom levá-la para passear nos morros?
— E a srta. Oldham, o que ela vai dizer?
Kelly tinha uma grande admiração e respeito pela professora, que para ela
parecia estar logo abaixo de Deus.
— Ela vai ficar com saudades. Mas se a gente for para Londres, a vovó vai
sentir muito mais saudades.
Caroline não queria jogar nos ombros de Kelly a responsabilidade do amor
de Helen, mas sabia que tinha que mostrar o fato com delicadeza para a filha.
Kelly fixou os olhos no prato.
— Vamos morar na casa da vovó?
Caroline lembrou-se do quadro que estava pendurado em Londres, em sua
casa. Janelas pretas e a sombra perseguindo as duas figuras fugitivas.
— Não, vovó vai vendê-la e comprar outra. Você pode nos ajudar a
escolher a nova.
A porta abriu e Nick entrou. Era sábado, e ele não tinha ido trabalhar.
Kelly o cumprimentou com excitação.
— Oi, tio Nick! Adivinha uma coisa... Vovó vai vender a casa e nós vamos
morar aqui para sempre!
Caroline encontrou o olhar satisfeito de Nick e virou o rosto. Cinco
minutos depois, Kelly saiu para ajudar a sra. Bentall na cozinha. Caroline
ergueu-se apressadamente.
— Onde vai? — ele perguntou, erguendo os olhos do jornal.
— Eu pensei...
— Sente-se. Quero conversar com você.
Ele dobrou o jornal, colocando-o sobre a mesa.
— Bem? — perguntou Caroline, desconfortável.
— Acho que aceitou minha oferta de emprego, não?
O rosto de Caroline estava pálido, os olhos verdes grandes e vazios.
Adoraria poder dizer não, enfrentando-o, mas estava desamparada devido às
circunstâncias. E o pior é que ele sabia disso e se divertia. Não conseguia, no
entanto, responder. Manteve o ar de segurança e as costas eretas.
— Sim ou não? — perguntou ele, com frieza.
Ela molhou os lábios trêmulos.
— Sim — sussurrou.
— Não consigo ouvi-la.
Ele estava sorrindo. Caroline odiou-o tanto naquele momento, que sentiu-
se capaz de jogar o bule de chá na cabeça dele.
— Mentiroso — ela murmurou com voz rouca. — Você me ouviu. Nem
precisava me ouvir. Sabia muito bem que eu aceitaria. Não tenho outra
alternativa, tenho?
— Nenhuma — ele respondeu com satisfação. Seus olhos se estreitaram.
— Podemos discutir as condições agora, não acha?
— Condições? — ela repetiu, sem entender.
— Claro, é comum, não?
Caroline examinou-lhe o rosto atentamente. O que ele estava querendo
dizer com aquilo? Estava temerosa pelo que ele podia exigir.
— É comum?
— Claro. — A boca de Nick se curvou num sorriso divertido. — Não
discutimos o salário, ainda, nem o horário de trabalho, para começar.
Caroline soltou um suspiro involuntário de alívio, e viu que ele assumiu
um ar ainda mais divertido. Percebera que ela tinha ficado alarmada, mas não
era propriamente pela palavra "condições". Era por causa do modo insolente
pelo qual ele a olhava, dos cabelos dourados às curvas sinuosas de seu corpo.
Ela sentia-se fraca e desamparada. O corpo masculino e viril de Nick emanava
estranhas vibrações na sala, e ela ficava atemorizada.
— Pode ir até a fábrica agora de manhã para você conhecer o espaço que
reservaremos para o seu escritório. Discutiremos as condições de pagamento
lá. Será um ambiente melhor para o assunto.
— Terei que notificar meu chefe e trabalhar ainda trinta dias em Londres
— ela explicou. — A agência precisará encontrar uma substituta neste
período.
— Sei disso. Não há pressa. Temos que fazer muita coisa até você começar
a trabalhar comigo. O lugar que pretendo transformar em departamento de
publicidade está sendo usado como depósito atualmente. Deverá ser
reformado e mobiliado ainda. — Ele se ergueu. — Podemos ir agora e dar uma
olhada.
Caroline também se ergueu devagar. Nick a observava com olhos
enigmáticos e ela prometeu a si mesma que aprenderia a esconder seus
sentimentos. Caso não fizesse isso, sua vida se tornaria um verdadeiro
inferno.

Capítulo 6
Seis semanas depois, Caroline estava trabalhando na fábrica. Ela tinha
voltado de Londres e contado as notícias para Geoffrey, poucos dias depois de
visto o depósito que Nick pretendia reformar.
Geoffrey ficou furioso.
— Onde é esse lugar? Nunca ouvi falar. Para lá do fim do mundo. Uma
firmazinha de nada, que não vai poder lhe pagar muito. Está louca? Jamais
subirá na vida num lugar desses. Quem já ouviu falar nele? Londres é o lugar
ideal para você principalmente agora, que está aprendendo as manhas da
publicidade. Skeldale. Onde, com os diabos, fica isso?
Geoffrey tinha uma vida tão agitada e urbana, que devia imaginar que o
resto da Inglaterra fosse habitado por homens das cavernas, vestidos com pele
de urso. Para este, o mundo terminava nos subúrbios de Londres.
— Sinto muito, Geoffrey, sou muito grata a você...
— Claro que é! Acho que estava com um parafuso a menos na cabeça,
quando lhe ofereci o emprego.
— Mas isso não tem nada a ver com a minha carreira...
— Que carreira? Você acabou de, jogá-la fora!
— É uma obrigação familiar — explicou Caroline.
Geoffrey a encarou, completamente atônito. Ele não conhecia aqueles
conceitos. Era um homem inteligente, sofisticado, que não tinha outra coisa
no mundo a não ser o trabalho.
— Caroline, você piorou!
— Sei disso, sinto muito. — Ela sorriu.
— Obrigação com a família! Essa é boa — ele rosnou, sacudindo a cabeça
em desaprovação.
— Você não tem família?
Pelo olhar incrédulo que recebeu, Caroline imaginou que ele tivesse
nascido dentro da agência. Ele pretendia chegar ao ápice da carreira, e nada,
jamais, o impediria de atingir o topo. O sucesso era a única palavra que ele
venerava e entendia.
— Tenho que fazer isso — Caroline repetiu, calmamente. Geoffrey desistiu
de persuadi-la, vendo a determinação estampada nos olhos dela.
— Você é uma idiota obstinada — falou, amargo. — Desistindo de uma
carreira por causa de uma velha senhora. Por um homem, eu compreenderia.
Mas por uma velha? Bobagem!
— É justamente por ela ser velha que tenho de fazê-lo. Kelly e eu somos
sua única família, e ela está velha demais para vir para Londres.
— Bem, vá então! — gritou Geoffrey, possesso, batendo a porta. Mas antes
de ela sair, ele veio conversar. Desejou-lhe boa sorte e disse que, se ela
precisasse de um emprego algum dia, que viesse procurá-lo.
— Eu posso arrumar-lhe um emprego. Se eu quiser! — completou, com
um sorriso. — Eu a mandaria para um psiquiatra antes, para ver se tem
algum parafuso solto. De qualquer maneira, você é uma garota muito criativa
e vou sentir sua falta aqui no escritório.
— Também estou triste de partir — ela admitiu com sinceridade.
A perspectiva de trabalhar com Nick não era muito atraente,
principalmente depois de ter trabalhado com Geoffrey. Ele era um homem
exigente, mas ótimo patrão.
Mas a tarefa mais difícil, mesmo, foi se despedir da casinha e dos
vizinhos. Sharon chorava desconsoladamente, trocando alguns brinquedos
com Kelly, implorando para que a amiga escrevesse e viesse visitá-la de vez em
quando.
Diana estava chocada, também. Ela e Caroline tinham se tornado grandes
amigas durante os dezoito meses em que foram vizinhas. Ela só se sentiu
parcialmente reconfortada quando Caroline vendeu a casa para uma ruidosa
família com três crianças. A mãe parecia ser muito agradável e simpática.
— Mas não será a mesma coisa — falou Diana, desconsolada. — Vou
morrer de saudades.
— Você virá nos visitar, não é? Vai gostar de Skeldale.
— Francamente, odeio Skeldale — respondeu Diana, com um sorriso. —
Arrancou vocês duas de mim, e por isso serei anti-Skeldale por um longo
tempo.
Kelly chorou sem parar dentro do táxi, no caminho para a estação.
Caroline passou o braço por seus ombros e abraçou-a carinhosamente.
— Não faz mal, você se encontrará com Sharon logo, logo — disse,
tentando confortar a filha.
— Que nada! — soluçou Kelly. — Não vou mais ver Sharon. E aposto como
nunca mais verei a srta. Oldham! — completou, desconsolada.
Caroline silenciou. No fundo, não achava que aquilo fosse tão horrível
assim. A srta. Oldham tinha cara de coelho, e uma careta feroz que podia até
amedrontar, mas naquele momento, Kelly não se lembrava mais disso. Não
existiria mais sol para a filha por algum tempo.
Aos sete anos, no entanto, a vida corre na velocidade da luz. Quando
estavam chegando em Skeldale, Kelly pulava com excitação.
— Será que o tio Nick vem nos buscar? Será que a gente vai andar no
carro dele?
— Acho que vamos tomar um táxi na estação — falou Caroline,
esperançosa.
Mas isso não aconteceu. Assim que Kelly desceu do vagão, ela acenou e
gritou:
— Tio Nick, tio Nick, estamos aqui.
Caroline seguiu-a lentamente. Os dedos fortes de Nick tomaram conta das
malas, e Caroline ergueu a cabeça, encontrando o brilho enigmático dos olhos
azuis.
— Fizeram boa viagem?
— Sim, obrigada.
— O carro está logo ali.
Ele se afastou. Kelly rodopiava à sua volta, falando sem parar. Caroline
observava o modo pelo qual ele conversava com sua filha, atencioso,
simpático. Kelly adorava-o, isso ficava bem claro pela admiração estampada
em seu rostinho.
— Helen ainda está morando comigo — Nick informou Caroline, no carro.
Caroline ficou rígida.
— Pensei que ela já tivesse voltado para a casa dela.
— Achei que era uma má idéia.
— Você achou?
Ele lançou um olhar irônico para Caroline.
— É isso mesmo. Helen, na verdade, não queria voltar para lá, e não posso
culpá-la. Aquela casa está cheia de lembranças tristes.
Nick baixou o tom de voz, voltando para olhar Kelly. A garota estava
olhando pela janela, e não parecia ter escutado.
Caroline suspirou. Nick estava certo. A casa estava cheia de fantasmas do
passado. O melhor era ficar com Nick até encontrarem outro lugar.
Quando chegaram, Kelly correu na frente para encontrar a avó. Caroline e
Nick foram para a sala e viram Helen conversando com Frey.
O médico ergueu a cabeça, com um sorriso agradável.
— Caroline! É maravilhoso vê-la de volta, e mais maravilhoso ainda saber
que veio para ficar.
— Obrigada — ela falou, beijando Helen. Deu uma rápida olhada na sogra
e ficou satisfeita com o que viu. — Você parece estar mais parecida com você
mesma — disse para Helen, com um sorriso.
— Devo muito a este homem — comentou, tocando a mão de Frey.
Nick dirigiu-se para a porta, a boca comprimida. Caroline franziu a testa.
Nick havia feito tanto por Helen, também. Tinha lhe dado um lar, encontrado
Caroline e Kelly, demonstrado uma bondade infinita. Voltou os olhos para
Helen, que estava rindo com as histórias que Kelly lhe contava.
— Tenho que sair — disse Frey. — Acompanha-me até o carro?
— Sim, acompanhe-o, querida — falou Helen.
Caroline saiu com Frey, com a testa ainda franzida.
Frey notou sua preocupação.
— Algo errado?
— Não, nada — respondeu, relaxando a testa.
Helen gostava muito de Frey, e era justa em seu julgamento. Frey era um
homem bondoso, trabalhador, que não se fazia de rogado para ajudar os
pacientes. Ele também gostava de Helen, e havia tentado de toda maneira
ajudar Peter. Tinha a capacidade de ver e compreender as ações de Peter sem
julgá-lo, e Caroline considerava isso uma virtude humana rara.
— Não está arrependida por ter desistido de seu emprego e de sua vida em
Londres?
Caroline sacudiu a cabeça negativamente.
— Era inevitável. Além disso, acho que Kelly terá melhores condições de
vida aqui.
— Tenho certeza que sim — concordou Frey — E para você também será
melhor.
— Oh, eu! — Riu Caroline.
— Sim, você. Não importa, por acaso?
— Kelly é muito importante para mim. Se ela está feliz, eu estou também.
— Caroline, não pode viver através de Kelly para sempre. É uma mãe
carinhosa, mas daqui a pouco terá que começar a viver sua própria vida.
Atônita, Caroline o encarou, com olhos arregalados.
— Não seja absurdo! Não vivo minha vida através de Kelly. Mas ela é
minha filha, devo cuidar dela, ter certeza de que está bem e sadia. É minha
responsabilidade, sempre foi.
— É sua responsabilidade, mas não sua vida, Caroline — ele disse,
entrando no carro. — No momento em que ela se tornar adulta, vai embora,
claro. É para isso que você a está educando, para se tornar uma adulta
madura e auto-suficiente. E daí? O que vai acontecer com você, então?
Caroline estava surpresa.
— Mas isso só vai acontecer daqui há muitos anos!
— Exatamente — ele respondeu, ligando o motor. — Anos da sua vida. —
Ele acenou e partiu, deixando-a intrigada.
Caroline afastou aqueles pensamentos e voltou para casa. Caiu direto nas
mãos de Nick, que apertou seus ombros com força. Ergueu os olhos
instintivamente, para protestar, e emudeceu. Nick tinha um brilho selvagem
no olhar.
— Fique longe de Forrester — falou com voz grave e baixa, de modo que
Helen e Kelly, na sala atrás, não pudessem escutar. — Não a trouxe de volta
para ficar com ele. Não vai retomar o que deixou para trás, Caroline. Não a
deixarei escapar tão facilmente.
— Sobre o que está falando? — ela perguntou, pálida. — Não tem o direito
de falar assim comigo.
— Pensou que eu me esqueceria do que você fez para meu primo?
Nick apertou-a com mais força, sacudindo-a como se ela fosse uma
boneca de pano. Ele se inclinou sobre ela maldosamente. Seus olhos tinham o
brilho do aço cortante.
— Seus dias de folga se acabaram, Caroline. Eu a peguei, e pretendo
mantê-la sob meus olhos. Vai pagar pelo que fez com Peter, vai pagar por todo
sofrimento dele!
— Está... errado — ela conseguiu gaguejar, branca.
— Não comece de novo! Nós dois sabemos que não estou errado. Você é
uma vagabunda hipócrita, amoral, promíscua, sem coração nem consciência.
Mas eu vou lhe ensinar algumas lições merecidas, ah, sim.
Os olhos azuis estavam perigosamente brilhantes.
— Começando agora!
Ele agarrou o rosto dela com as duas mãos, forçando-a para trás. Sem
equilíbrio, Caroline segurou-se nele para não cair, soltando uma exclamação
de medo. Foi silenciada por sua boca, que desceu brutalmente sobre seus
lábios. As mãos de Caroline se retorceram desamparadamente, uma corrente
elétrica percorrendo-lhe as veias. Ela se debateu debilmente, gemendo sob a
força daquele beijo. Pela camisa fina sentia a pele morna do corpo forte e viril.
O coração batia desesperadamente rápido, contra o ritmo de tambor do
coração dele.
Caroline ergueu as mãos lentamente até o pescoço moreno e passou os
dedos pelos cabelos negros e grossos. Estremeceu. Estava inteira contra
aquele corpo forte, consciente de cada fibra, cada célula. Não podia se soltar,
nem física nem emocionalmente. Estava completamente desamparada, solta
numa espiral vertiginosa de desejo, um desejo que por tantos anos tinha
reprimido e que agora explodia num milhão de fagulhas dentro dela.
Nick ergueu a cabeça, ofegante, o peito largo arfando como o de um touro
acuado.
Caroline ainda estava presa a ele, com os braços em volta do pescoço
vigoroso, seu coração latejando num ritmo sensual, coisa que ela estivera
procurando negar a si mesma desde que o vira de novo, e que agora não podia
mais. Abriu os olhos pesados. Nick olhou dentro deles fixamente.
Ele tinha o rosto convulsionado. Baixou os olhos para os lábios úmidos e
entreabertos. Depois, engoliu em seco e fitou o vazio.
— Quando Peter morreu, prometi a mim mesmo que se eu a encontrasse
algum dia, faria você pagar por tudo o que fez a ele. Você arrasou a vida dele,
e ninguém tem o direito de fazer isso com outro ser humano.
Caroline abriu os lábios para negar, protestar, mas ele a silenciou com o
olhar.
— Não, agora você vai me ouvir. Foi um erro mostrar que me deseja,
Caroline. Você me entregou minha arma numa bandeja, e pretendo usá-la.
Caroline enrijeceu imediatamente.
— Você vai ficar aqui, na minha casa, de modo que eu possa vigiá-la. Não
haverá mais homens. Nem casos. Você vai pagar, e pagar na mesma moeda.
Eu a farei relembrar, de tempos em tempos, o que está perdendo, despertando
e reprimindo seu desejo. E vou me divertir ao vê-la andando em círculos, do
mesmo modo que seu marido fez. Vou observá-la se desesperar de frustração,
e serei tão impiedoso como você, quanto foi com Peter.
Ela estava tremendo violentamente. Seu rosto branco era puro terror e
choque. As lágrimas encheram seus olhos, mas não caíram. Ela enxergava o
rosto de Nick através delas, como se ele estivesse num aquário.
Nick deu um suspiro longo, entrecortado, e empurrou-a, um sorriso nos
lábios.
— Agora você já sabe o que a espera.
Ela não conseguia dizer nem uma só palavra. Deixou-se ficar ali, o olhar
vago, tremendo convulsivamente.
— E não pense que vai poder fugir — ele completou, observando-a. —
Desta vez não vai conseguir. Terá que ficar e enfrentar tudo.
Caroline sacudiu a cabeça, procurando esclarecer o quanto ele estava
errado, como eram insanas aquelas suspeitas que Peter tinha lhe contado,
mas sua língua estava paralisada, como uma pedra de gelo.
Nick sorriu cruelmente.
— Pobre Caroline, parece que foi atropelada por um caminhão. Pensou
que tivesse me cativado, como fez com seu marido? Sinto muito desiludi-la.
Sou feito de material mais resistente que Peter. Você jamais conseguirá me
agarrar com esses olhos verdes e ingênuos e esse corpinho sexy.
Helen chamou da outra sala.
— O que vocês dois estão fazendo aí? Espero que não estejam armando
um complô contra mim. Venham cá...
Nick olhou para a porta. Ela estava quase fechada, e era claro que Helen
não poderia ter visto nada. Mas Caroline sabia que não seria capaz de entrar
lá na sala e encarar a sogra e a filha. Estava fraca, arrasada. Seus olhos
deixavam vazar o desespero e o vazio que tomavam conta de sua mente.
Nick voltou-se, examinando-a.
— É melhor que você suba. Está branca como papel. — Ele parecia
satisfeito com o que via. Sorriu cruelmente. — Vou dizer que teve uma dor de
cabeça.
Caroline não conseguia nem se mover. Nick a empurrou com força em
direção à escada.
— Vá, antes que Kelly venha procurá-la. Seu rosto está denunciando tudo.
Ela cambaleou até a escada e começou a subir os degraus lentamente,
segurando-se no corrimão para não cair. Nick ficou ao pé da escada, vendo-a
subir, depois saiu. Ela o ouviu abrir a porta.
— Caroline está com dor de cabeça — ele falou com voz natural. — Foi se
deitar um pouco.
— Oh, coitada! — exclamou Helen.
— Deve ser por causa da viagem — murmurou Nick, e a porta se fechou.
Caroline se arrastou até o quarto, jogando-se na cama. Os soluços
violentos pareciam parti-la em dois. Deixou-se ficar ali, com sua dor, inerte.
Sua vida fora despedaçada uma vez antes, e ela havia conseguido reunir os
pedaços à custa de muito esforço. Tinha tido coragem para fazê-lo, pois
precisou ser forte, em benefício de Kelly.
Quanto sofrimento mais a vida lhe reservava? Quando se esforçou ao
máximo, dia após dia, mês após mês, encarando todos os problemas e tensões
de um emprego, com uma criança para educar, uma casa para cuidar, sem o
apoio moral e carinhoso de um marido, a vida havia se tornado difícil. E de
repente com apenas um empurrão. Nick conseguiu derrubá-la.
Deitada na cama, no quarto escuro, Caroline chorou por um longo tempo,
e depois ficou em silêncio. Nick a havia jogado no chão, e ela não tinha
coragem de se levantar.
— Não posso suportar — ela sussurrou no silêncio, sentindo-se solitária e
isolada.
Não havia ninguém com quem pudesse conversar. Não poderia se dirigir a
Helen, nem falar com Frey, tampouco, porque ele conversaria com Nick, e era
capaz de ser tão acusado quanto ela própria. Estremeceu.
— Eu o odeio — falou alto, mas sua voz não tinha convicção. Sabia que
estava mentindo.
Não odiava Nick. Virou-se, aflita. Apagou da mente uma idéia que
ameaçou surgir. De repente, sentiu-se estranhamente recuperada, Era como
se um estímulo tivesse surgido do nada. Forçou-se a se levantar e acendeu a
luz.
No espelho, seu rosto refletia a palidez mortal de um cadáver. As
pálpebras estavam úmidas e vermelhas, os cílios batendo sem parar.
Lavou o rosto com água fria, penteou os cabelos desalinhados, retocou a
maquilagem e procurou afastar a dor. Quando se cai no chão, só há uma
coisa a fazer: levantar, pensou.
Havia aprendido essa lição durante os amargos anos em que havia vivido
com Peter. Vivera com tanta dor e culpa que, não fosse por Kelly, seria capaz
de se atirar embaixo de algum ônibus. Agora ela tinha não só Kelly, mas Helen
também, para proteger e cuidar. Olhou para sua imagem de novo. Mil vezes
ter o peso da responsabilidade de cuidar delas duas que ficar só. Muitas
vezes, no silêncio de seu quarto de Londres, deixava-se ficar olhando as
estrelas e sonhando. O universo era enorme, vazio, e o mundo não teria
significado para ela, não fosse Kelly. Ela era o seu objetivo, sua direção, razão
de viver. Os seres humanos são criaturas que necessitam umas das outras.
Não foram feitos para viverem sós, e têm de construir em torno de si mesmos
uma razão para viver.
Kelly e Helen eram suas razões agora. O que quer que Nick fizesse, ela
ficaria e o enfrentaria.
Nick não estava na sala quando ela se juntou a Helen e Kelly. Sorriu
alegremente para a sogra, que a olhou com preocupação.
— Como está a cabeça?
— Melhor agora.
— Parece um pouco pálida. — Helen não era cega. Percebeu o olhar
evasivo da nora.
— Não gosto de viajar de trem.
Kelly ergueu a cabeça de um livro infantil.
— Eu adoro!
Caroline riu, procurando parecer o mais natural possível.
— Que sorte, hein? — Fez uma pausa. — Onde está Nick, Helen?
— Saiu. Foi ver Hazel Skelton de novo, suponho.
Caroline olhou para o fogo. As chamas subiam e crepitavam pela chaminé
de tijolos. O cheiro acre de madeira penetrava por suas narinas.
— Está frio hoje — murmurou Helen.
— Gelado!
— Antes que a gente perceba, o Natal vai chegar.
Kelly soltou um gritinho.
— Quero uma boneca nova de Natal, com carrinho de nenê e...
— Vai ganhar o que te derem — interrompeu Caroline, e ganhou um
muxoxo de desprezo.
— Este será o primeiro Natal, em anos, que estou ansiosa para que
chegue — murmurou Helen, com voz rouca. — Será maravilhoso ter uma
criança em casa de novo.
Caroline olhou para o fogo. O último Natal que ela tinha passado em
Skeldale fora muito infeliz. Peter bebeu muito, e sua violência foi dirigida para
ela e Kelly. Uma vez, Frey havia lhe explicado que o álcool desatava as cordas
que prendem uma pessoa normal. As pessoas que bebiam demonstravam
desejos e ações que, quando lúcidas, escondiam. As inibições sumiam. Elas
diziam e agiam como sentiam.
Caroline sempre se perguntava por que Peter necessitava da violência para
se soltar. Ele costumava destruir tudo à sua volta. Por que aquela raiva e ódio
incontroláveis?
Talvez Helen tivesse dito a verdade sobre a educação severa de Peter.
Quando sóbrio, ele jamais era violento. Talvez tivesse guardado dentro de si
muitos desejos, muitas ações insatisfeitas...
— Não vai começar a trabalhar já, vai? — perguntou Helen.
— Não discuti o assunto com Nick ainda — respondeu Caroline, voltando
rapidamente para o presente.
— Espero que tenha tempo para procurar uma casa comigo.
O rosto de Helen estava mais cheio e rosado, e seus olhos tinham perdido
a opacidade e tristeza que Caroline notou com tanta apreensão quando a
reencontrou.
— Sim, claro — ela falou, espreguiçando-se. Era uma boa maneira de se
afastar de Nick, encontrar logo um lugar para morar com Helen e Kelly. —
Ótima idéia. Vamos começar a procurar amanhã — completou, entusiasmada.

Capítulo 7
Elas encontraram uma casa no centro da cidade dias mais tarde. Era
pequena, com terraço e um jardinzinho, mas tinha três quartos e estava bem
dentro do preço que esperavam.
Helen quis comprar a casa, mas Caroline insistiu em adquiri-la com o
dinheiro que tinha recebido na venda da casinha em Londres. Assim se
sentiria mais independente.
A escola pública local ficava a cinco minutos a pé, e Caroline podia pegar
um ônibus no final da rua para ir ao trabalho todos os dias.
— É ideal — falou Caroline, quando as duas estavam no jardinzinho,
olhando os fundos da casa.
— Precisa de uma pintura — sugeriu Helen.
— Mas está em bom estado.
A casa, realmente, aparentava ser bem sólida, com paredes de tijolo
vermelho, e ainda ia durar muito tempo. Os últimos donos tinham trocado as
telhas e o encanamento.
— Eu mesma posso decorá-la — ela falou à sogra.
Helen começou a rir.
— Você é uma pequena notável! Tem certeza de que pode? Não seria
melhor chamar um profissional?
— Melhor, talvez, mas muito mais caro. É claro que eu posso. A gente
consegue fazer qualquer coisa, se tentar.
Durante o jantar daquela noite, Nick escutava as novidades que Helen lhe
contava.
— Caroline mesma vai decorar a casa — Helen completou.
Nick franziu as sobrancelhas.
— Bobagem! Vai estar dando duro na fábrica. — Olhou friamente para
Caroline. — Contratarei alguém para fazer a decoração.
— Não. — Agora que ela tinha esperanças de escapar dele, podia encará-lo
com tranqüilidade. — Eu mesma decorei a casinha em Londres. Gosto de fazer
isso.
— Pedimos aos advogados que apressassem o andamento dos papéis —
falou Helen. — Estamos pagando mais por isso, claro, mas o contrato vai sair
mais rápido. Sou grata por tudo o que você fez, Nick, e prometo que não
vamos mais estorvá-lo na sua casa por muito tempo.
— Não é nada disso — respondeu Nick. — Estou feliz por tê-las em casa.
Não quero que se apressem para sair.
Helen sorriu.
— Mesmo assim...
— Caroline vai estar muito ocupada, botando o novo departamento para
funcionar — disse Nick. — Não quero que ela se prenda a problemas
domésticos nesse estágio. Sugiro que vocês não apressem os advogados.
Deixem tudo correr normalmente. Não há pressa.
— Prefiro mudar assim que puder — replicou Caroline, lançando um olhar
raivoso para ele.
Nick sabia perfeitamente que ela queria fugir de seu olhar ameaçador,
mas na frente de Helen nenhum dos dois podia mostrar o ódio que escondiam
no olhar. Caroline dizia que estava pronta para ficar longe dele, e os olhos de
Nick, por sua vez, diziam que iria atrasar esse processo o mais possível.
Ele sorriu com secura.
— Quando pretende começar a trabalhar? O escritório já está pronto.
— Oh, não imediatamente — respondeu Helen involuntariamente, e depois
corou. — Desculpe-me, Nick, estou sendo egoísta, não é? Sinto muito. Claro
que ela deve começar logo.
— Segunda-feira? — ele retomou a pergunta.
Caroline suspirou, e quase recusou. Depois, resolveu aceitar. Não
adiantava nada ficar adiando. Assentiu com um gesto de cabeça.
— Ótimo — falou Nick, levantando-se. — Vai ter bastante trabalho no
começo.
Não era à toa que ele tinha dito aquilo, pensava Caroline, na segunda-
feira, sentada em sua nova mesa de trabalho. A firma de Nick exportava
aparelhos eletrodomésticos sofisticados, e ele tinha contratado os serviços de
várias agências de publicidade antes. Ela estava examinando o trabalho feito
pelas agências e descobriu que teria que se esforçar muito para apresentar
coisa melhor. Afinal, precisava justificar a existência daquele departamento.
Ela ergueu a cabeça, colocando uma mão no queixo, e olhou pela janela.
— Não fique sonhando.
A voz seca de Nick a assustou.
— Não estava — replicou, corando, engolindo a raiva.
Nick estava encostado no batente da porta, alto, esguio, usando um terno
escuro e camisa clara. Era estranho aquele cenário fervilhante da fábrica,
mas, ao mesmo tempo, tudo parecia pequeno devido à força masculina da
personalidade dele.
Caroline respirou fundo, desviando o olhar. Ele a assustava mais que
Peter, às vezes. A violência de Peter era irracional, instável, inesperada,
completamente fora de controle. Nick Holt tinha razão para sua raiva, e o
antagonismo que ela via em seu olhar a feria fundo. Peter fazia com que ela se
sentisse temerosa. Já com Nick ela não entendia, nem queria entender, como
se sentia.
Ele se aproximou, olhando para a pasta aberta que ela tinha sobre a
mesa.
— Como está indo?
— Estou tendo uma idéia do que vocês fazem aqui, e que tipo de clientes
pretendem atingir.
— Bom — ele assentir com um gesto de cabeça. — O que você vai fazer
hoje à noite?
— À noite? — ela repetiu, pasma.
— Está na hora de conhecer os outros diretores. Os Skelton estão
oferecendo um coquetel esta noite, e você está convidada.
Ao encontrar o par de olhos azuis, ela nem tentou recusar. Ele não
aceitaria.
Eu tenho que ir, pensou, resignada.
Como se tivesse lido seu pensamento, ele sorriu, divertido.
— Use um vestido bonito. Você vai estar na vitrine, e queremos que eles
gostem do modelo. A maioria dos homens gosta, não é verdade? — Ele
segurou uma mecha de cabelo dourado, afastando-o do rosto vermelho e
delicado. — Muito tentador...
Caroline olhou furiosamente para a porta que se fechava. Será que ele
sempre tinha que tratá-la com tanto desprezo e sarcasmo? Não era fácil
agüentar aquela injustiça. As crianças, quando se sentem injustiçadas, logo
gritam, indignadas: "Não vale! Não é justo!" Mas, o que Caroline podia fazer?
Não tinha meios de provar o quanto ele estava errado. Sentia-se com as mãos
amarradas, completamente impotente.
Naquela noite ela desceu com um vestido de veludo e pelerine
combinando. Os cabelos flutuavam macios, o rosto estava levemente
maquilado. Uma fragrância suave a acompanhava. Ela tinha caprichado.
Queria parecer atraente e eficiente ao mesmo tempo, já que Nick desejava
impressionar o quadro de diretores.
Ele estava tomando um drinque ao lado da lareira. Ergueu os olhos
quando ela entrou. Por um segundo eles se fixaram nela, o rosto indecifrável,
mas depois voltou sua atenção para o copo. Deu um último gole, colocou-o
sobre a lareira.
— Pronta?
Caroline sentiu vontade de bater nele. Sabia que estava bonita, tinha se
esforçado para isso, e o olhar indiferente de Nick a enfurecia. Pensou nas
pessoas todas que trabalhavam para ele. Elas o respeitavam e admiravam,
Caroline tinha percebido isso enquanto deu uma volta pela fábrica em
companhia de Nick. Todos sorriam e conversavam com ele, respeitosos e as
mulheres olhavam furtivamente para a moça que o acompanhava. Elas
deviam vê-lo agora! O rosto rígido, os maxilares tensos, o brilho frio dos olhos
hostis... É, ele não ficava nada charmoso daquele jeito.
Eles viajavam pela estrada devagar. Os cordeiros pastavam nos campos, e,
à noite, era comum entrarem na estrada. Uma ou duas vezes Nick teve que
tocar a buzina para espantá-los do caminho.
A casa dos Skelton era grande, espaçosa, moderna. Estava toda
iluminada, e o aspecto festivo desagradou Caroline. Ouvia risos, conversa
animada, e sentiu-se levemente desconfortável. Teria que conversar e sorrir
para desconhecidos, e a tarefa não era fácil.
Nick tocou a campainha e uma garota abriu a porta. Era uma moreninha
bonita, usando um vestido vermelho, e seu rosto se acendeu ao vê-lo.
— Está atrasado. Devia matá-lo, estava contando com você para me
ajudar a entreter as pessoas.
Caroline percebeu a sensualidade que transparecia na voz grave e rouca
da garota. Hazel Skelton tinha os cabelos escuros e curtos, bem cacheados. O
rosto era redondo, e os olhos, vivos e escuros, também.
— Esta é Caroline Storr, nossa nova empregada no departamento de
publicidade — apresentou Nick.
— Alô — falou Hazel, medindo-a de cima a baixo. — Entre e fique à
vontade.
Ela sorria, mas Caroline percebeu que era um sorriso superficial, pois
nem chegava a alcançar os olhos; Hazel voltou-se para Nick, e daí seu sorriso
e seus olhos se alargaram.
— O que tem feito? Onde tem se escondido? Já sei, já sei, muito trabalho e
pouca diversão. Sabe o que vou lhe dar de Natal? Uma corrente com bola de
ferro. Isso diminuirá seu passo!
Caroline os seguiu até uma sala comprida, cheia de gente, e várias
pessoas se voltaram para eles, assentando os olhares curiosos na direção
dela.
Hazel puxou Nick pela mão.
— Venha falar com papai.
Nick se soltou dela, gentilmente.
— Num minuto — falou, virando-se para Caroline. — Caroline venha
conhecer o sr. Skelton.
Caroline não gostou do modo autoritário dele, e ergueu a cabeça,
indignada. Naquele instante reconheceu o brilho de raiva nos olhos azuis de
Nick. Não teve tempo para falar, pois alguém atrás de si a cumprimentou com
alegria.
— Caroline, isso é fantástico, não sabia que você viria. Não esperava vê-la
hoje, que surpresa!
Caroline se voltou, sorrindo calorosamente.
— Frey! Não me diga que conseguiu uma noite de folga!
— Parece que sim. Isso quer dizer que não vou ter que parar no primeiro
copo! — Seus olhos bondosos estavam divertidos. — Depois do terceiro
drinque, começo a dançar pelos lustres!
Caroline riu.
— Oh, você está usando traje adequado para a ocasião — ela notou,
elogiando seu blazer de veludo vermelho. Era um tanto inadequado para as
maneiras sóbrias de Frey, na verdade.
— E você está arrasando — ele replicou, observando o vestido de veludo
com admiração. — Estamos combinando. Devíamos ficar juntos, para todos
nos admirarem.
— Caroline não veio para se divertir — cortou Nick bruscamente. — Ela
está trabalhando. — Sob as sobrancelhas espessas seus olhos estavam
queimando como brasas. — Desculpe-me Forrester — ele, disse, pegando-a
pelo cotovelo.
Andando firme, como uma colegial rebelde, Caroline olhou para trás,
sorrindo para Frey.
— Vejo-o daqui a pouco, Frey — falou alto, deliberadamente. Nick não iria
comandar sua vida social.
Nick apertou-a mais ainda, machucando-a um pouco, e Caroline
compreendeu que logo viriam represálias àquele desafio.
O sr. Skelton cumprimentou-a vigorosamente. Era um homem que fazia
tudo com vigor, ela percebeu. Era baixo, forte, todo energia. Achava que a
Inglaterra andava devagar demais por ser muito conservadora.
— E esta cidade, então? Precisa acordar! Vai achá-la tranqüila demais
depois de ter morado em Londres, Caroline. Não tem muito movimento para
gente jovem. Hazel deve levá-la para passear e apresentá-la a alguns amigos.
Minha filha tem mil amigos, conhece todas as pessoas que merecem ser
conhecidas das redondezas.
Caroline e Hazel trocaram olhares, e o rosto moreno de Hazel não
demonstrou o menor entusiasmo. Ela já tinha considerado que Caroline não
era uma pessoa que valesse a pena conhecer, e não estava a fim de fingir uma
simpatia que não sentia.
Nick apresentou-a para vários outros homens, todos diretores da sua
firma. Quase todos eram mais velhos, e depois de um tempo era difícil
distinguir um rosto do outro. Eram bem educados, elegantes, trajando ternos
escuros, sem nenhum traço especial que ela pudesse guardar.
Escutando a conversa deles, Caroline compreendeu por que o sr. Skelton
não parava de mexer com as mãos e os olhos. Ele sozinho tinha mais energia
que todos aqueles diretores juntos.
Nick tinha sumido com Hazel e, depois de alguns momentos, Caroline
conseguiu sair do grupo de homens sem ser notada. Passou por outras
pessoas que conversavam animadamente, sorrindo aqui e ali. Pretendia se
sentar num canto da sala e descansar um pouco, mas Frey a avistou e
juntou-se a ela.
— Escapou?
Caroline sorriu para ele.
— Acertou em cheio.
Frey baixou a voz.
— Sempre me pergunto: Por que continuo a ir nessas festas?
— E por quê?
Ele encolheu os ombros.
— Minha vida social é quase nula. Quando me convidam para uma festa,
e eu não tenho que trabalhar, venho por nada. Posso lhe trazer outro drinque?
Ela assentiu com um gesto de cabeça, e momentos depois ele estava de
volta com um copo na mão.
— Helen me contou que você comprou uma casa na rua Wilverton.
— Sim, tivemos sorte de encontrar um lugar tão rápido.
Ela começou a lhe descrever a casa, e Frey escutou com atenção,
observando-a com os olhos cinzentos e pensativos.
— Você gosta de pinturas?
— Pinturas? — Caroline riu. — Sim, claro. Por quê?
— Eu pinto aquarelas — ele explicou, corando. — Vai haver uma
exposição na semana que vem em Town Hall. Gostaria de ir? São vários
expositores juntos, e haverá um vernissage na noite anterior à abertura
oficial. Ficaria muito feliz se fosse comigo.
— Não sabia que pintava, Frey — falou Caroline, surpresa.
— Não costumo espalhar isso pelos quatro ventos. Meus pacientes
provavelmente pensariam que é um hobby delinqüente. Têm uma atitude
muito suspeita em relação a arte. Se descobrissem que eu pinto nas horas
vagas, começariam a imaginar que algum dia eu me mudarei para uma ilha
deserta para pintar belas nativas nuas...
— E você gostaria?
— Hummm... talvez no ano que vem. — Ele riu. — Bem, e então, vamos no
vernissage?
— Claro, adoraria. Estou louca para ver que tipo de aquarelas você pinta.
— Posso dizer desde já: muito ruins.
— Oh, que modesto!
— Aqui estão — falou Nick atrás dela, e o copo de Caroline balançou na
mão, espirrando um pouco de bebida no vestido. — Eu adivinhei que a
encontraria com Forrester. Está na hora de irmos. Está pronta?
— Ainda é cedo... — protestou Frey, olhando para o relógio.
— Caroline tem que acordar cedo — Nick interrompeu com rispidez. — Já
são quase onze horas. Até chegarmos em casa e ela se deitar, já será meia-
noite, e ela tem que acordar às sete e meia.
— Eu também — suspirou Frey. — Esperava esquecer isso.
— Oh, sinto muito — Nick falou com indiferença, um brilho gelado nos
olhos.
— Boa noite, Frey — Caroline se despediu.
— Não se esqueça — ele lembrou. — Na próxima terça, às oito.
— Combinado.
— O que está combinado? — perguntou Nick quando ela entrou no carro.
Caroline não entendeu.
— O quê?
— Forrester disse para você não esquecer de alguma coisa que vai
acontecer na terça-feira às oito horas.
— Oh, isso — ela concordou. — É uma exposição de arte em Town Hall.
Prometi ir com Frey.
Nick bateu a mão sobre o assento, os dedos tamborilando nervosamente.
— Pensei ter lhe dito que não era para se encontrar com ele.
— Você não manda em mim — desafiou Caroline, a raiva estampada nos
olhos verdes. — Que diabos pensa que é? Está realmente acreditando que vou
deixá-lo governar a minha vida como bem quiser? Sou uma pessoa livre, e se
quiser me encontrar com Frey, vou me encontrar e pronto. Não será você que
vai me impedir. Agirei exatamente da maneira que eu quiser!
Nick olhou-a de lado, o rosto tenso, e ligou o motor. O carro saiu a toda
pela escuridão dos morros, engolindo o asfalto tão depressa que Caroline ficou
com o coração na mão.
— Vá mais devagar, está querendo nos matar?
Ele virou a direção bruscamente para evitar um carneiro na estrada e ela
segurou em seu braço, tremendo.
— Nick!
Ele diminuiu a marcha gradualmente, mas seu perfil parecia talhado em
granito. A vibração de ódio que ele emanava sufocava Caroline. Quando
estacionou em frente a casa, ela desceu apressadamente, querendo correr
para o quarto antes de ele alcançá-la.
A casa estava silenciosa e escura. Caroline sentiu que não conseguiria
escapar.
— Oh, não — ele falou com ódio, segurando-a pelos ombros. — Não, você
não vai fugir, Caroline. Temos que conversar.
— Quero ir para a cama — ela protestou, roucamente.
— Você quer! E o que acha que eu quero?
Aquela exclamação dita em tom grave, fez com que as pernas dela
bambeassem. Seus olhares se encontraram. Um sopro morno correu pelo
corpo dela e Caroline imediatamente desviou o olhar, estremecendo.
Nick riu, empurrando-a para a sala. Controlava-a facilmente, apesar de
Caroline se debater com força. Ele acendeu uma lâmpada. A lareira ainda
conservava um certo calor de brasas acesas. Ele olhou para o rosto fogueado
de Caroline.
— Eu disse, não é para se encontrar com Forrester. Está me entendendo,
Caroline? Não vai marcar encontros com ele.
— Que direito pensa que tem para me dar ordens? — Ela ergueu ia cabeça
veementemente.
— Não quero saber de direitos. Apenas não quero que você destrua
Forrester como o fez com Peter.
— Não é verdade — ela protestou, sacudindo a cabeça.
Nick observou os cabelos macios, como se estivesse fascinado. Estendeu o
braço e agarrou uma mecha, puxando a cabeça dela para trás. Os olhos de
Caroline o fitaram com temor.
— Você é linda. E eu a quero.
O coração dela parou e recomeçou a bater, violento e rápido. Seus seios
subiam e desciam freneticamente. Nick se inclinou, e ela deixou seus lábios
serem roçados por um breve instante. Mas dessa vez, ela se afastou.
— Não! — exclamou, zangada por ter sido tão tentada a se entregar.
— Não é isso que você quer dizer, Caroline — troçou ele, com voz rouca. —
Estamos jogando um de seus joguinhos? O que devo fazer agora? Cair de
joelhos? Sinto muito, mas não faz parte do meu caráter. Não aprecio
joguinhos sofisticados. Se você pensa que vai poder jogar comigo, está
enganada. Peter não conseguiu enfrentá-la, mas eu posso, e pretendo.
— Nick, você tem que acreditar... — ela começou, numa tentativa
desesperada.
Os dedos dele brincaram em seus cabelos, contornaram a curva quente de
seu rosto e desceram pela garganta macia.
— Poupe o fôlego — ele aconselhou, fitando-a. — Lembre-se: não vai
começar a sair com Forrester. Ele não vai tê-la.
— Nick...
— Vai se lamentar por isso.
A carícia de seus dedos nos cabelos e na pele a deixava cada vez mais
enfraquecida. Ergueu os olhos para ele, seus lábios tremeram, e ele começou
a respirar como um homem que está prestes a explodir o peito subindo e
descendo pesadamente.
— Não olhe assim para mim — ele sussurrou. Seu rosto tinha adquirido
uma palidez estranha, uma feição assustadora. — O que se passa atrás
desses belos olhos verdes? Estou andando em círculos tentando entendê-la,
tentando encontrar a solução. Você é um enigma. Seu rosto é tão bonito. Olho
para você e me pergunto se estou louco. Como consegue ser tantas mulheres
numa só? Desistiu de um emprego muito bem pago para voltar para cá e viver
com uma velha senhora...
— Eu adoro Helen — ela o interrompeu, indignada.
Nick respirou fundo.
— Sim — admitiu. — E ela também a ama. Sei disso, não sou cego.
Respeito Helen, juraria que ela era esperta demais para ser ludibriada, mas
creio que ela o foi.
— Foi mesmo, Nick? — indagou Caroline, fitando-o bem fundo. O rosto
dele endureceu.
— Talvez ela não seja tão esperta, afinal. Talvez seja bondosa demais para
adivinhar o que vai por trás desse belo rostinho. — Ele se moveu,
desconfortável. — E Kelly. Com ela você é sempre paciente, firme, carinhosa.
É uma ótima mãe, não posso negá-lo.
A expressão dura em seu rosto demonstrava claramente que ele desejava
poder negar, mas não tinha como.
— Como é que as coisas se encaixam? — ele continuou, segurando agora
o rosto dela entre as mãos. — Como soluciono essa equação? As vezes me
pergunto se estou perdendo o juízo, da mesma maneira que Peter perdeu.
Você está me atormentando. Está sob a minha pele como um espinhozinho
dolorido, e não consigo tirá-la.
— Nunca pensou que algumas coisas não encaixam simplesmente porque
não são verdadeiras? Será que não pode confiar no seu próprio julgamento e
parar de acreditar em cada palavra que Peter lhe disse?
Uma onda de raiva tingiu o rosto dele de vermelho.
— Ah, sim, você gostaria disso, hein? Então poderia me manejar como
quisesse.
— Nick, escute-me!
— Peter era meu primo. Confiava em mim. Ele tinha que conversar com
alguém, despejava toda sua tristeza em cima de mim quando me via. Ele só
falava em você. Seus ciúmes, os homens com quem você andava, como o traía
com pessoas nas quais ele confiava, como Forrester. — Um músculo saltou
em seu rosto crispado. — Ele jamais suspeitou de mim. Eu era a última
pessoa no mundo de quem ele desconfiaria...
Ele parou um pouco, e Caroline franziu a testa. Devo ter sido cega, falou
consigo mesma. Como é que nunca percebi como Peter se sentia?, perguntou-
se, sentindo compaixão pelo ex-marido.
— Eu desprezava Peter porque ele não conseguia segurá-la, porque deixou
que você o enlouquecesse — Nick desabafou. — E agora você está tentando
me deixar louco!
— Não estou tentando fazer nada com você, Nick. Se realmente
acreditasse no que está dizendo, não se aproximaria de mim. Me manteria à
distância...
— Não posso — ele respondeu, amargurado. — Quando fui procurá-la, em
Londres, disse a mim mesmo que iria tratá-la com o ódio e o desprezo que
merecia. Queria deixar bem claro que a detestava.
— Você deixou claro.
Nick sacudiu a cabeça, olhando para ela.
— Você é como uma imagem que se dissolve num filme. Parece se
transformar todo o tempo na minha cabeça, de um rosto para outro, e nunca
consigo me decidir por um. Não consigo parar de observá-la para descobrir
quem é, realmente. Tenho que saber. Estou confuso, e começo a compreender,
de verdade, o que aconteceu com Peter. Ele deve ter passado pelo mesmo
processo. — Respirou fundo. — Mas você não vai me enlouquecer. Não eu,
Caroline. Não vou fazer o que Peter devia ter feito: trancá-la e jogar a chave
fora. Talvez assim a imagem dele pare de me perseguir — ele completou, com
voz trêmula.
— Perseguir? — ela perguntou, atônita.
O rosto dele se tornou amargo.
— Ele não a persegue? Consegue dormir bem à noite, mesmo? Não sofre
de culpa nem de auto-reprovacão, suponho. Não a atormenta se lembrar do
que fez a ele, não é?
A suspeita que estava crescendo no coração dela finalmente desabrochou,
e Caroline compreendeu tudo.
— É você quem se sente culpado, não é? — perguntou involuntariamente.
Ele ficou chocado. Seu rosto estava quase branco, os olhos escuros de dor.
— Sim, eu me sinto culpado. Como espera que eu me sinta? Quanto acha
que me custou ouvi-lo o tempo todo quando eu o odiava porque você era a
esposa dele, e eu a desejava feito louco?
Caroline quis dizer alguma coisa para aliviá-lo daquele sofrimento que
agora enxergava. A raiva de Nick não era inteiramente voltada para ela;
grande parte era canalizada contra ele mesmo. É bem mais fácil odiar outro do
que odiar a si mesmo constatou. É bem mais fácil culpar alguém do que
culpar a si próprio.
Nick sofria por ter desejado a mulher de seu primo. Culpava-se porque
Peter tinha se rebaixado, se humilhado, e finalmente procurado a morte.
Ele não tinha, conscientemente, querido culpá-la pelo que havia
acontecido. No entanto, seu desespero só aumentava a raiva que ele sentia por
ela.
Nick parecia não conseguir suportar o olhar dela. Girando nos
calcanhares, ele deixou a sala. Ela o ouviu sair da casa, batendo a porta com
força, e logo o carro partiu, acelerado.

Capítulo 8
Frey ligou na terça de manhã. Caroline estava planejando uma campanha
de lançamento na Austrália, quando o telefone tocou. Ela voltou ao presente
com dificuldade.
— Oh, alô. Frey — cumprimentou vagamente. De repente, endireitou-se
na cadeira. — Frey? Algo errado? Helen?
— Não, está tudo bem — ele respondeu prontamente, rindo. — Está muito
tensa, Caroline. Vá devagar. Estou falando de prazer, não de negócios.
— Ainda bem — ela disse, sorrindo também.
— Apenas queria lembrá-la de hoje à noite.
Caroline franziu a testa, hesitando.
— Não me diga que não vai, ficarei muito desapontado — apressou-se a
dizer Frey, suspeitando do silêncio.
Caroline olhou para a porta. Por que devia recusar um convite para uma
inocente exposição de arte? Simplesmente para aplacar a cólera de um
homem que a odiava? Jamais!
— Claro que vou — falou calorosamente.
— Fantástico. Olhe, que tal nos encontrarmos antes? Poderíamos fazer
uma refeição rápida no restaurante que fica em frente ao Town Hall.
— Hummm, me parece uma ótima idéia, obrigada.
— Vou buscá-la às seis e meia?
— Combinado.
Frey perguntou de Helen e Kelly e depois desligou. Caroline voltou ao
trabalho, mas não conseguia mais se concentrar no que estava fazendo.
Quando Nick descobrisse que ela o tinha desafiado, na certa haveria uma
briga entre eles. Mas, além de gritar e esbravejar com ela o que mais ele podia
fazer? Sim, podia derrubá-la no chão, mas ela estava pronta para se erguer
quantas vezes fosse necessário. Não era propriedade dele, e Nick não tinha o
direito de governar sua vida particular. Ele que a ameaçasse!
Ela almoçava na cantina da firma todos os dias. A comida era muito
barata, e valia a pena. Claro, era simples, mas gostosa. Ao voltar para seu
departamento, naquele dia, viu o carro de Nick saindo da fábrica. Ele não
estava só. Hazel Skelton aparecia a seu lado. Usava um macacão verde-
prateado e um pequeno chapéu preto. Parecia muito bonita e sofisticada, e
Caroline desejou que eles tivessem um bom almoço. O humor de Nick talvez
fosse melhor mais tarde.
Horas depois, quando chegou em casa, falou que tinha visto Hazel e Nick
indo almoçar. Helen fez uma careta.
— HazeI Skelton é uma grande esnobe! Imagine se ela algum dia
almoçaria na cantina.
— Nick parece gostar dela.
— Oh, sim — suspirou Helen. — Os homens... o que eles sabem sobre as
mulheres? Você viu como ela se comporta na frente dele? Parece um docinho!
Mas na verdade ela é uma... — Helen se interrompeu, dando uma gargalhada.
— Não vou dizer. Meu marido vai se virar no túmulo se me ouvir pronunciar
uma palavra dessas!
Caroline riu também. Helen estava tão alegre! Quando ela comentou que
ia sair com Frey, então, Helen ficou tão excitada quanto uma criança.
— O que você vai usar? Gosto muito daquele vestido de veludo marrom.
Frey também. Ele falou do vestido da última vez que veio me visitar. Isso é um
ótimo sinal. Quando um homem nota a roupa de uma mulher, é porque ele
gosta mesmo!
Caroline olhou-a de soslaio. Estaria imaginando coisas, ou Helen queria
lhe arrumar um casamento? A sogra gostava profundamente de Frey. Ele era,
para ela, o modelo do homem ideal. Caroline esperava, sinceramente, que
Helen não estivesse com essas idéias na cabeça. Por mais que Frey fosse gentil
e bondoso, ela sabia que jamais sentiria por ele nada além de uma grande
simpatia. Gostava de sua companhia, isso era tudo.
— Vai usar o vestido marrom, não vai? — insistiu Helen, e Caroline
concordou.
Enquanto se vestia, pensou nos esforços de Helen para que ela se
interessasse por Frey. Sem dúvida achava que os dois formavam o par
perfeito. Pobre Helen! Na verdade, ela gostava tanto de Frey, e devia tanto a
ele, que acabava se esquecendo dos sentimentos da própria Caroline. Estava
misturando a vontade de ver Caroline feliz, com sua própria vontade de pagar
a Frey por tudo que ele tinha feito. Nick era assim, também. O ódio e desprezo
que ele lhe dispensava estavam misturados ao ódio e desprezo que tinha por
si mesmo. Sentia-se culpado por ter desejado a mulher de Peter, e achava que
ela também se sentia culpada. Ele havia acreditado em todas as mentiras de
Peter, e pensava que ela traíra o primo várias vezes. Assim, quando Nick
percebeu que ela não carregava nenhum peso na consciência, sentiu mais
ódio e desprezo ainda.
Caroline fechou os olhos. Ele devia ter uma idéia completamente
distorcida e hedionda de seu caráter. Abriu os olhos e mirou-se no espelho.
Era mais fácil entender e compreender os sentimentos das outras pessoas que
os próprios sentimentos. Ela não ousava vasculhar a própria cabeça para
saber o que sentia em relação a Nick. Preferia ignorar os sinais de perigo que
percebia toda vez que o via.
Não. Já tinha se esforçado muito, lutado muito para salvar a própria vida
durante muitos anos, e tudo o que desejava agora era paz em seu coração.
— Vai sair, mamãe? — perguntou Kelly, quando ela desceu para a sala.
— Vou, sim, querida. — Sorriu Caroline.
— Onde?
— Vou jantar com o dr. Forrester.
O rosto de Kelly se entristeceu.
— Não com o tio Nick?
Caroline apertou os olhos. Mais uma que queria formar o par perfeito!
Meu Deus, estava sendo atacada por todos os lados!
— Não com o tio Nick.
— Você gosta do tio Nick, não é, mamãe?
Kelly não podia compreender que existisse uma só pessoa no mundo que
não gostasse do seu herói. Nick a tratava com indulgência e humor, e Kelly o
adorava. Era como se fosse o sol. Ele era alto, bonito, tinha um carro incrível e
parecia saber exatamente como conversar com uma menina de sete anos.
Caroline os tinha observado, Nick fazia com que Kelly se sentisse especial. Ele
a tratava como gente grande.
Frey jamais conseguia esquecer que ela era uma menininha. Nick era
exatamente o contrário, e por isso ela o adorava.
Sim, ele é esperto, muito esperto, constatou Caroline com amargura. Com
meninas e garotas como Hazel Skelton, ele é espetacularmente charmoso, mas
não desperdiça nem um galanteio comigo.
Kelly a fitava, de boca aberta.
— Mamãe, você não gosta dele? Eu sim. Eu adoro o tio Nick, e você é má!
— Ela saiu pisando duro e zangada.
— Oh, oh — suspirou Helen. — Agora ela ficou chateada.
— Vai passar — falou Caroline, esperando que a sogra não percebesse seu
rosto afogueado.
Mas Helen não tinha olhos para Caroline naquele momento. Frey tinha
acabado de chegar, e ela o mediu de cima a baixo, sorrindo com aprovação.
— Poxa, como está elegante; ele não está bonito, Caroline?
— Sim, está muito elegante! É sua roupa de artista, não?
Frey riu, e Caroline também. Helen não compreendeu.
— Não ligue não, Helen — falou Frey. — Caroline está brincando comigo.
Helen sorriu. Gostava daquilo. Parecia uma coisa bem íntima, essas
brincadeirinhas que só eles entendiam. Seus olhos brilhavam, e Caroline
suspirou. Desejou que Frey não notasse os motivos de tanta excitação.
Ele estava estranhamente nervoso, ela notou depois. Conversava bem
mais rápido que o normal, e a calma característica de seu comportamento
tinha sumido. Caroline ficou apreensiva. Seria possível que Frey estivesse
embaraçado pela evidente alegria de Helen ao vê-los juntos? Ou pior, será que
Frey estava interessado nela? Não queria feri-lo, mas deveria dizer a verdade.
Ele não passava de um amigo.
Depois de um simples mas delicioso jantar, tomaram um cafezinho.
— Como você começou a pintar? — perguntou Caroline de repente.
Frey enrubesceu.
— Só Deus sabe. Neste instante desejaria nunca ter tocado em um pincel
na minha vida.
Os olhos verdes de Caroline se arregalaram. Ela sorriu. Então era isso que
o estava deixando nervoso! Nada a ver com ela, afinal. Como é fácil se
enganar, pensou. Tinha estado preocupada com as intenções casamenteiras
de Helen, mas Frey não pensava nisso. Parecia preocupado só com seu
sucesso como artista!
Olhou para o rosto normalmente calmo do amigo e gostou dele ainda mais
porque era humano, e não o santo que Helen imaginava, ira um médico
devotado, incansável, que se entregava totalmente aos pacientes, mas também
era um ser humano. E hoje ele estava nervoso porque se expunha juntamente
com suas aquarelas.
— Ainda não me disse que tipo de quadros pinta — ela falou.
— Aquarelas.
— Isso eu já sei! Paisagens?
Ele concordou com um gesto de cabeça, rodando o copo na mão.
— Paisagens locais?
Era como tirar água de pedra. Ele não queria falar sobre suas pinturas,
nem sobre seu trabalho. Mas estava obcecado por ele, Caroline viu, pois de
cinco em cinco minutos conferia as horas.
A exposição ficava numa sala grande e espaçosa, bem iluminada. Os
passos dos visitantes ecoavam no chão de madeira. Eles se detinham
reverentemente de tela em tela, conversando em voz baixa.
Caroline e Frey observavam os quadros, também com copos de sherry na
mão. Frey estava sorrindo, mas era um sorriso forçado. Observando algumas
aquarelas, de outros pintores, Caroline achou que ele não tinha que se
preocupar tanto. Os quadros dele não deviam ser piores do que aqueles. Não
havia muitas aquarelas, e Caroline logo encontrou uma de Frey.
Ele ficou quieto enquanto ela observava a pintura. Suas orelhas estavam
vermelhas. Caroline viu a paisagem tempestuosa, o verde e cinza
delicadamente se dissolvendo uns nos outros, os detalhes retratados com
clareza e precisão.
— Frey, é muito bom — ela falou com sinceridade, voltando-se para ele. —
Muito bom mesmo, o melhor que vimos até agora, deve saber disso. Estou
impressionada.
O rosto dele se desanuviou um pouco, mas só um pouco. Ele olhou para o
quadro, evidentemente desconfortável.
— Não consegui pintar esse céu direito. Levei dias em cima dele, mas
simplesmente não saiu do jeito que eu imaginava. Cada vez que vejo essa
droga de céu meus dedos tremem. Gostaria de fazê-lo de novo. Fico irritado ao
vê-lo. Quando você tem uma coisa na cabeça e ela começa a dar errado,
começa a ficar louco.
— Sem dúvida — ela concordou, surpresa pelo desabafo apaixonado.
Eles continuaram a andar, e haviam outras duas aquarelas dele.
Nenhuma delas era tão boa quanto a primeira, mas Frey parecia não se
importar tanto com elas. Logo ele voltou para a primeira e ficou a examiná-la
com uma careta feroz.
— Esta é a sua favorita, não? — perguntou Caroline, sorrindo.
— Não agüento nem mesmo olhá-la — ele falou, saindo, e ela o seguiu,
divertida.
Ele a apresentou para outros artistas que também estavam expondo e
ficaram conversando animadamente por algum tempo. Pegaram outro sherry,
mas Frey não precisava de álcool nenhum. Ele estava aceso, excitado, sua
calma inteiramente dissolvida, e Caroline o observava com curiosidade. Quem
adivinharia que, sob a aparência calma do médico, se agitasse esse fogo, esse
desprendimento? O paletó de veludo vermelho, as pinturas, o nervosismo,
eram um lado de Frey com o qual seus pacientes não estavam familiarizados.
Mas quem diz que uma pessoa deve ter apenas uma monótona dimensão? Por
que não explorar as próprias facetas e tornar a vida mais abrangente?
No caminho para casa, ele cantava baixinho.
— Espero que você não tenha se aborrecido, Caroline.
— Nem um pouco. Me diverti muito.
— Mesmo? Alguma vez já pensou em praticar algum hobby?
— E quando eu encontraria tempo? — ela revirou os olhos.
Frey riu, mas seus olhos estavam sérios quando falou:
— Concordo, não é fácil encontrar tempo, mas você não imagina a
diferença que faz. É como se enxergasse a vida sob outro ângulo. Só me
lamento por uma coisa na pintura: não ter começado antes.
Caroline observou seu rosto afogueado, brilhante.
— Você acha que talvez tivesse seguido essa profissão, se começasse mais
cedo?
— Não sei — ele falou, após uma breve hesitação.
Caroline percebeu que ele tinha pensado nisso antes, mas escolhera a
profissão mais segura e promissora.
— Bem, mas não foi isso que fiz. E eu adoro a Medicina. Gosto muito de
trabalhar com pessoas. Sei que está fora de moda dizer isso, mas eu aprecio
as pessoas e quero ajudá-las. Sabe, penso de uma maneira muito simples:
sinto-me mais feliz quando ajudo as pessoas então faço o que faço. Quando
elas chamam um médico, mesmo que seja por causa de uma simples dor de
cabeça, é porque estão confiando que ele vá ajudá-las. Procuro fazer o melhor
que posso, porque nada é mais recompensador do que receber um sorriso
aliviado.
Ele fez uma pausa, aparentemente por ter perdido o fôlego, e Caroline
sorriu.
— Concordo plenamente.
— Obrigado. Falei demais, não? Desculpe pelo falatório.
— Imagine. Você estava apenas dizendo coisas sensatas.
Frey estacionou em frente à porta da casa de Nick. Virou-se para a amiga
sorridente. Seus olhos cinzentos eram limpos e bondosos.
— Sabe, é fácil conversar com você. É uma ouvinte maravilhosa.
Caroline começou a rir.
— Mesmo? E como é que alguém faz isso, pode me explicar?
— Fazendo o outro sentir que está dedicando sua total atenção ao que ele
está dizendo — respondeu, sem pestanejar. — Obrigado.
— Obrigado pela noite agradável, também. Eu me diverti demais.
— Eu também — Caroline respondeu com sinceridade. — E fiquei muito
impressionada pela sua aquarela favorita, com ou sem aquele céu que você
não conseguiu pintar como queria.
— Gosto de você, Caroline Storr — ele falou, rindo. — Pode criticar minhas
pinturas quando quiser. Até logo!
A casa estava escura quando ela entrou, mas pela porta fechada da sala
passava uma réstia de luz. Escutou a voz rouca de Hazel Skelton falando em
tom sedutor.
Caroline subiu as escadas com o rosto tenso. Nick tratava Hazel Skelton
bem. Será que ele a estava afagando da mesma maneira carinhosa com que
afagava os cães? Seus dedos morenos e compridos entrelaçados nos cabelos
macios e perfumados de Hazel?
Caroline não entendeu porque quando olhou no espelho, viu um par de
olhos verdes brilhantes e zangados.
Na manhã seguinte, ela estava ocupada com muitos papéis sobre a mesa
quando Nick entrou impetuosamente no escritório, pulsando como uma
máquina. Seus olhos descarregaram uma corrente elétrica pelo corpo dela.
— Você foi, se não me engano.
— Do que está falando?
— Sabe muito bem. — Ele se inclinou pesadamente sobre ela. — Não
pense que vai sair livre desta. Não vai. Eu a avisei claramente. Agora agüente
as conseqüências!
Saiu antes que ela pudesse pensar em algo para dizer.
Caroline ficou nervosa o resto do dia, mas aquilo era absurdo. O que ele
podia fazer para ela, afinal? Tinha sido uma ameaça vazia, só isso. Mesmo
assim, o brilho dos olhos de Nick a deixou amedrontada.
No dia seguinte, ouviu dizer que a firma tinha fechado um contrato
milionário com a Arábia Saudita. A fábrica estava trabalhando numa atividade
frenética, e Nick ficou muito ocupado, pois não poderia atrasar a data de
entrega em hipótese nenhuma. Sentiu-se aliviada. Pelo menos ele não tinha
tempo para se lembrar da ameaça, por enquanto. Ele raramente chegava em
casa antes das onze da noite, e na fábrica estava por demais absorto no ritmo
de trabalho para lhe dar mais que uma breve olhada quando ela entrava de
manhã.
O inverno tinha chegado. O vento uivava, gelado, e os morros apareciam
cobertos de neve. O céu estava cinzento e triste. Helen estava muito
preocupada com o horário de Nick, e sempre pedia a Caroline que o
convencesse a diminuir o ritmo de trabalho.
— Se você tiver uma oportunidade hoje, durante o expediente, mostre-lhe
o quanto ele tem sido louco. Está chegando além dos limites desta vez.
E ele estava mesmo. Caroline via-o mover-se pela fábrica inteira, subindo
e descendo, sem parar. Observava cada setor, cada detalhe da manufatura,
acompanhando as peças durante toda a montagem. Talvez fosse por isso que
seus empregados o respeitassem tanto. A personalidade marcante e
envolvente de Nick tinha conquistado a população normalmente arredia e
desconfiada de Skeldale.
Eram comuns os comentários e fofocas sobre Hazel Skelton e ele. As
pessoas faziam apostas: umas diziam que Hazel o persuadiria a casar com ela,
outras diziam que não. Normalmente os homens aprovavam a garota, e as
mulheres, não. Os homens a consideravam sexy, bonita, atraente. Já as
mulheres não conseguiam entender como é que ele caía na conversa dela.
— Ele deve estar tão envolvido que nem enxerga as coisas direito.
Qualquer um pode ver o que ela é. E ele é um cara tão bom!
As duas datilógrafas que estavam na mesa ao lado de Caroline tinham
conversado sobre isso o almoço inteiro. Caroline tentava não escutar, mas, por
alguma razão inexplicável, captava imediatamente tudo o que se dissesse
sobre Nick e Hazel Skelton, mesmo se fosse do outro lado da sala.
Zangada, colocou tanto sal no molho que a carne se tornou intragável.
Empurrou o prato. Estava de mau humor ultimamente. Devia ser por causa
da pressão no trabalho, ela procurou se justificar. Era isso. Não tinha nada a
ver com Nick Holt. Ele a odiava, e ela não se importava com o que ele pensava.
Se quisesse casar com Hazel Skelton, boa sorte. Adoraria jogar confete nos
noivos. Até resistiria à tentação de jogar um punhado de pedras.
Naquela noite, Helen foi se deitar logo depois de Kelly, alegando dor de
cabeça. Caroline jantou sozinha. Estava aflita e irritadiça, e não conseguia
parar quieta na sala aconchegante. Tinha que sair, caminhar um pouco, fazer
alguma coisa para descansar a cabeça.
Vestiu um casaco forrado de lã, botas de borracha e saiu. Era uma noite
gelada de inverno. O vento assobiava pelos morros, fazendo as árvores secas
se curvarem e estalarem violentamente. As nuvens corriam rápidas, revelando
a luz lívida do luar de vez em quando.
Caroline andava cuidadosamente. O solo era macio e, às vezes, irregular
em alguns lugares. Em outros, havia arbustos espinhosos, que arranhavam
suas botas conforme passava. Não queria pensar. Não ousava pensar. No
minuto em que se descuidava, Nick surgia em sua cabeça como um demônio
fazendo pantomima, e naquela noite tinha que escapar dele.
Olhou para trás. A casa se erguia, fantasmagórica, entre as árvores,
sólidas e negras, apenas uma janela acesa indicando vida. Não devo ir muito
longe, pensou. Era muito fácil se perder por ali, especialmente de noite. Ouviu
um ruído de motor de carro e dali a pouco um facho de luz amarela se
aproximou da casa, sumindo atrás dela logo em seguida.
Nick tinha chegado. Ela se virou e continuou a andar pela neve. Claro que
não iria para casa enquanto ele estivesse acordado. Esperaria até de
madrugada, se fosse preciso. A casa nunca ficava trancada, pois não havia
perigo de ladrões em Skeldale.
Seguiu tropeçando, os olhos fixos na lua que, silenciosa, passeava pelas
nuvens azuladas. O luar prateado iluminava os morros por alguns instantes,
para logo depois o negrume os encobrir.
Nick tinha lhe perguntado que tipo de mulher ela era, havia dito com
rancor que não conseguia entendê-la. Mas Caroline podia muito bem lhe fazer
a mesma pergunta. Que tipo de homem era ele, que vivia sob o mesmo teto
que ela por semanas e ainda não descobrira que tudo o que Peter lhe dissera
era mentira? Ela se ressentia por isso. Todo mundo tem uma imagem de si
mesmo, na cabeça, e espera projetar essa imagem naqueles que o cercam.
Caroline sabia como ela era. Sabia que gostava de música, de cozinha, de dar
longos passeios pelas montanhas. Sabia que possuía um instinto forte de
proteção. Queria ter e proporcionar a Kelly uma vida calma, feliz. A ambição é
para aqueles que precisam dela, e ela não tinha nenhuma. Tudo o que queria,
basicamente, era ser feliz. Perguntava-se por que esse desejo tão simples
sempre lhe tinha sido negado. É injusto, pensou, andando mais rápido,
desolada. Por que a vida era tão injusta, tão complexa e desigual?
Por que não podia se apaixonar por Frey, por exemplo? Ele era um homem
formidável, inteligente, capaz de fazer qualquer mulher feliz. Oferecia um lar
seguro, aconchegante para ela. Não suspeitaria dela, nem a acusaria
insanamente. Como ela tinha se apaixonado logo por Nick Holt?
Parou bruscamente, lívida. Não me apaixonei, afirmou para si mesma.
Gosto dele, talvez. Mas amor, nunca. Tinha que estar louca. Só se fosse caso
de ir para o hospício. Sim, para muitos homenzinhos vestidos de branco
cuidarem de minha cabeça, concluiu.
Passou a mão trêmula pela testa. O vento soprava furioso pelos campos
cobertos de neve, uivando selvagemente. Queria fugir da verdade que tinha
acabado de revelar a si mesma. Queria, mas precisava encará-la, como já
havia encarado muitas coisas em sua vida.
Seu inconsciente já sabia disso há muito tempo. Durante todos os anos
em que vivera em Londres, ela não tinha se esquecido de Nick, e naquela noite
em que o vira em sua casa, havia sentido, além do choque, uma excitação
inexplicável.
Não dá para esconder uma verdade por muito tempo, constatou,
abraçando-se a si mesma. Mais cedo ou mais tarde ela arrebenta como um
dique, deixando a mente em águas turbulentas.
Não podia ficar ali a noite inteira, recebendo o vento cortante no rosto.
Recompôs a mente e começou a caminhar em direção à casa, esperando não
estar perdida. Não conseguia mais ver a janela iluminada. Talvez Nick tivesse
desligado aquela luz e ido deitar. A lua navegava atrás das nuvens,
novamente, e ela aguçou a visão sem conseguir divisar nada além da
escuridão. E agora? Que caminho tomar?
Estava gelada; seu casaco não a esquentava mais. Começou a correr. De
repente, o chão faltou a seus pés. Caiu e soltou um gemido abafado.
Aconteceu depressa demais para perceber alguma coisa. Bateu aqui e ali
contra as pontas agudas das rochas negras, seu corpo girando sem parar,
rolando e batendo até chegar ao fundo do penhasco.

Capítulo 9
A primeira coisa que Caroline ouviu foi uma vozinha chorosa,
entrecortada, falando rápido e sem fôlego.
— Não é justo, não é justo.
Ela franziu as sobrancelhas. Quem?...
Voltou de um longo sono, um sono de séculos, e estremeceu. Seu nariz
estava contra uma superfície áspera e fria, arranhando sua pele macia.
Por que eu estou deitada de bruços, e no que estou deitada?, perguntou a
si mesma, virando a cabeça para encarar o negror da noite.
Sentiu-se fria e dolorida. Quem estava falando momentos atrás? Um
gemido estrangulado escapou de seus lábios, e ela se lembrou: tinha caído,
caído, e se machucado. Devia ter desmaiado, pois só agora tomava
consciência da imensidão da dor.
Queria se levantar, tinha que se levantar. Respirou fundo, mas quando fez
um movimento para se erguer, o corpo inteiro estremeceu de dor,
empurrando-a de volta para o chão, soluçante.
Tinha quebrado o tornozelo. Havia outros ferimentos, mas ainda não era
capaz de localizá-los. Depois das lágrimas se acabarem, ficou apalpando o
corpo, para tentar descobrir alguma outra lesão. Suas costelas doíam. Mesmo
respirar era uma tarefa difícil. Seu rosto estava machucado e sangrando. O
nariz latejava, mas não parecia quebrado. Suas mãos estavam esfoladas.
Devo estar horrível pensou. Tenho que subir de novo pelo penhasco.
Não vou ficar aqui deitada até de manhã. Está um frio insuportável, e vou
morrer se ficar deitada ao relento.
Não podia se erguer sobre o tornozelo quebrado, mas podia tentar se
arrastar, com cuidado. Agarrando-se com as mãos no chão áspero, começou a
se arrastar pelo penhasco íngreme, centímetro por centímetro, lenta e
dolorosamente. Sua respiração estava difícil, e o pé ferido ficava pendurado
atrás, indefeso, enquanto o outro agüentava o peso de seu corpo.
Não saberia dizer quanto tempo levou naquela escalada louca. Teve que
parar várias vezes para respirar e descansar. A dor era uma companheira
inseparável. Sentir dor era tão normal, quanto respirar. Os últimos esforços
foram os piores. Depois, ela deixou-se estatelar de bruços na superfície plana
do topo. Começou a chorar. Não teve energia para se mover de novo por um
bom tempo. Sentiu um pingo grosso de chuva nas costas das mãos. Virou o
pescoço para olhar e ganhou mais alguns no rosto.
Chuva. Oh, sim, isso é exatamente o que eu estava precisando, ela
pensou, irônica. Que sorte. Agora vou ficar encharcada até os ossos. Quem
sabe pegue uma bela pneumonia.
Bem, chuva ou não chuva, ela tinha que voltar para casa, pois a única
alternativa era ficar ali deitada, esperando que alguém a viesse buscar de
manhã. Só que, quando amanhecesse, era provável que estivesse coberta pelo
manto gelado da morte.
Recomeçou a se arrastar. A chuva engrossou, encharcando o chão e
deixando-o tão escorregadio que ela ficava patinando em vez de ir para a
frente. Estava coberta de lama. O pior é que nem sabia se ia na direção certa.
Esforçou-se para ficar de joelho para enxergar melhor.
Esta foi a segunda vez que ela desmaiou. Quando abriu os olhos, séculos
depois, alguém estava ajoelhado a seu lado, e uma lanterna brilhava em seus
olhos. Ouvia de novo aquela vozinha dentro de sua cabeça.
— Por quê, por quê?
— Você está salva, Caroline, não chore, pelo amor de Deus, não chore
assim.
Caroline piscou, atônita, completamente tonta.
— Nick?
— Eu a encontrei, vai ficar boa.
A voz era rouca e grave, mas ela não conseguia enxergar o rosto atrás do
facho de luz.
— Provavelmente vou pegar uma pneumonia — falou em tom jocoso,
procurando esboçar um sorriso. — Que sorte, hein?
— Pare de falar.
— Desculpe.
— E não fique se desculpando!
— Desculpe. — Não se lembrava de ter pedido desculpas antes.
Nick tocou-a com as mãos, mas ela as afastou fracamente.
— Não!
— Tenho que saber onde você se machucou.
— Em todos os lugares.
— Que dor está sentindo?
— Dor que dói.
A cabeça de Caroline estava martelando. Espero não ficar doente, pensou.
Nick não gostaria. Não devo adoecer. Procurou enxergá-lo através da luz, e o
rosto dele rodava e rodava, como numa máquina de lavar. Ele parecia muito
pálido. Os olhos azuis brilhavam mais que nunca.
— Está tão engraçado — ela falou.
— Engraçado! — ele exclamou. E completou com um palavrão.
— Que feio — ela falou infantilmente, franzindo a testa. Sua cabeça doía.
Fechou os olhos. Nick era demais para ela. Estava muito fraca para pensar
nele agora.
A hora seguinte foi um pesadelo. Nick a tomou nos braços e começou a
carregá-la pelos morros. A cabeça dela estava recostada em seu ombro, o
corpo enrascado para não sentir o vento cortante. Poderia estar muito
agradável. Poderia ser o paraíso, se ela não estivesse louca de dor. Cada
movimento, cada suspiro machucava. Caroline desmaiava e acordava, e de vez
em quando gemia desesperadamente.
— Caroline, fique quieta.
— Desculpe.
Ele xingou novamente em voz baixa.
— Desculpe, não queria pedir desculpas — ela disse, e riu antes de entrar
de novo no mundo dos sonhos.
Acordou ainda com dor, ainda com frio, nos braços fortes de Nick. Ele não
dizia nem uma palavra. Seu rosto parecia talhado na pedra.
Finalmente ela se viu depositada no sofá da sala. O fogo ainda crepitava
baixinho, cheio de brasas vermelhas. Nick acendeu a luz e ela fechou os olhos
instintivamente. Ouviu-o discar o telefone e falar com voz áspera e rápida.
Sentia o corpo estraçalhado, e tremia dos pés à cabeça. Não conseguia parar
de tremer.
— Tão frio, tão frio — murmurava, quase delirando. Nick a estava
cobrindo gentilmente com mantas. Os dentes dela rangiam, e a vozinha surgiu
por entre eles: — Desculpe, desculpe.
— Oh, pelo amor de Deus! — exclamou Nick.
Ele devia estar cheio dela, furioso com ela, e as lágrimas começaram a
escorrer por sua face. Estava meio inconsciente, murmurando palavras
ininteligíveis, mas não deixava de perceber a atenção que ele lhe dedicava.
Alguém limpou suas lágrimas carinhosamente. Alguém estava inclinado
sobre ela, afastando seus cabelos molhados da testa. Seus dentes tinham
parado de bater, mas ainda estava aflita de dor.
— Nick — murmurou.
— Sim, Caroline?
A voz dele continuava áspera, mas havia algo por trás dela. Seria dor ou
raiva? Ele parecia tão estranho!
Uma vez ela abriu os olhos e viu os homenzinhos vestidos de branco.
Finalmente, vieram me buscar, pensou, e abafou uma risada na garganta.
— Agora está fácil — ela ouviu um deles dizer.
— Antes temos que tirar o casaco — alguém falou.
Caroline chorou quando a levantaram gentilmente.
— Não podem tomar mais cuidado? — exclamou uma voz zangada.
— Nick — ela gemeu. Ele ainda estava bravo.
Queria vê-lo. Forçou-se a abrir os olhos, mas viu o rosto preocupado de
Frey à sua frente.
— Alô. Frey — falou com lucidez. — Quando chegou?
— Como está se sentindo, Caroline? — Ele sorriu.
— Péssima — respondeu.
— Isso não vai doer — ele falou, uma seringa na mão.
— Quer apostar?
Caroline detestava injeção.
— Pronto — ele disse. — Logo não vai mais sentir dor, prometo.
— Querido Frey — ela falou, fechando os olhos e mergulhando num sono
profundo, sem dor.
Quando abriu os olhos estava numa cama estreita e branca, a luz
cinzenta do dia vazando pela cortina, como poeira. Uma enfermeira jovem
fitava o vazio, os olhos perdidos na janela. Era como se ela quisesse limpar
aquela poeira imaginária.
Caroline experimentou se mover para ver se sentia dor e não sentiu tanta
quanto antes.
— Oh está de volta, não é? — perguntou a enfermeira, aproximando-se
com um sorriso profissional.
— Acho que sim — Caroline era impelida a sussurrar naquele quarto.
Havia uma longa fila de camas, e todos os pacientes pareciam dormir.
— O que... — ela começou, mas a enfermeira enfiou um termômetro em
sua boca.
Silenciada, ela observou a garota segurar seu pulso e conferir o tempo no
relógio. Depois que ela tirou o termômetro, Caroline tentou de novo.
— O que há de errado comigo?
— Não se lembra?
— Eu me lembro de ter caído num penhasco — Caroline respondeu. Será
que a enfermeira achava que ela estava boba? — Quer dizer... fiquei muito
ferida?
— Não muito. Quebrou o tornozelo, trincou algumas costelas e arrumou
uns belos arranhões, mas não está nada mal.
Caroline sorvia as palavras da enfermeira.
— Dormi a noite toda?
— Está aqui há dois dias — a enfermeira respondeu pela primeira vez
olhando para a paciente. — Não se lembra de ontem? Pensei que tivesse me
reconhecido.
— Não me lembro de nada.
— Estava sob o efeito de sedativos.
— Oh — murmurou Caroline, fechando os olhos.
A enfermeira fez menção de ir embora, mas ela a chamou de novo.
— Será que eu podia tomar uma xícara de chá?
— Claro. Com açúcar?
— Sim, por favor.
Caroline ficou em silêncio, escutando o rumor dos outros pacientes: os
roncos, a respiração, os gemidos. Um relógio fazia tique-taque bem alto, e de
repente ela ouviu o ruído de um carrinho de chá. O carrinho irrompeu pelo
quarto ruidosamente, como um trem ao chegar na estação. As luzes se
acenderam e os pacientes gemeram e protestaram, cobrindo os rostos com as
cobertas. Caroline focou os olhos no relógio que ficava em cima da porta. Seis
horas? Seis horas?
Naquela tarde, quando Frey veio vê-la, ela o interpelou.
— Que tipo de horário vocês mantêm aqui? Sabe que me acordaram às
seis da manhã? — brincou.
— Impressionante, não? — perguntou Frey, sorrindo divertido.
— Admita: mantêm o hospital no horário conveniente para eles, sem
pensar no bem-estar dos pacientes.
— A rotina tem que ser seguida. O pessoal que trabalha à noite tem muito
a fazer antes de sair, então servem o café bem cedo. Pois é, o que podemos
fazer?
Caroline segurou em sua mão, embaraçada.
— Muito obrigada por ter vindo me buscar, no meio da noite. Sinto muito
ter causado tanto transtorno.
— E causou mesmo — brincou Frey, ralhando com ela. — Por que diabos
você decidiu fazer um passeio àquela hora da noite?
— Não consigo me lembrar. Acho que estava louca.
— Ah, bom, então vai ver que foi isso.
— Sinto muito. Frey, será que eles deixam Kelly vir me visitar?
— Se você melhorar — ele prometeu.
— Estou boa agora.
— Não quero discutir com você. Fique boa, é uma ordem. Daí eu vejo se
Kelly pode vir.
Helen veio naquela mesma noite. Sentou-se ao lado da cama, visivelmente
perturbada. Caroline não conseguia enxergar o que estava errado, mas havia,
com certeza, algo estranho. Helen não a encarava propriamente, desviando os
olhos a toda hora.
— Como está se sentindo, querida? Estão cuidando de você?
— Sim — respondeu Caroline, observando-a. — E você? Sinto muito por
ter lhe dado um susto.
— Foi um choque. Acordei com o barulho de vozes lá em baixo, e quando
desci havia uma ambulância, enfermeiros de branco, e você parecendo morta,
estendida numa maca!
— Devia ter me visto antes — brincou Caroline.
Mas Helen estava preocupada.
— Oh, Caroline! — exclamou, com os olhos cheios d'água — Você podia
ter... — Ela desviou os olhos, soluçando.
— Helen, sinto muito. Não deve chorar. Estou boa agora, de verdade. Vou
logo, logo sair daqui.
— Você vai ficar bonitinha aqui — ralhou Helen. — Não sabe como está.
— Oh — murmurou Caroline, desaponta. — Estou tão horrível assim?
Tinha pedido um espelho, mas a enfermeira inventara uma desculpa e
Caroline precisou se contentar em imaginar que não estava muito bonita.
Devia estar horrível. Tinham lhe dado um banho, lavado e escovado seus
cabelos e lhe fornecido uma camisola de lã cor-de-rosa que Helen enviara.
Apesar disso, sabia que seu rosto estava todo arranhado e, sob as cobertas
assépticas do hospital, seu corpo todo enfaixado e cheio de remédios. Tomou
vários sedativos, mas mesmo assim suas costelas doíam quando Caroline se
mexia. O tornozelo também estava incomodando demais.
— E Kelly? — perguntou, aflita.
— Kelly está ótima, querida — reconfortou-a Helen.
— Tem certeza? Ela costumava andar durante a noite quando estava
preocupada...
Helen franziu a testa.
— Não tenha medo. Se eu não a ouvisse, Nick ou a sra. Bentall
acordariam.
— Como vai Nick?
— Ocupado — Helen respondeu laconicamente, e logo mudou de assunto.
Caroline se perguntava por que Helen se mostrava tão arredia ao falar
sobre Nick. Será que estava bravo? Ele parecia zangado com ela naquela noite
em que a socorrera, disso ela se recordava perfeitamente. Será que ainda
estava furioso com ela? A campainha tocou e Helen se ergueu.
— Volto amanhã de novo — prometeu.
— Vai ser muito cansativo para você — protestou Caroline. — Adoro vê-la,
Helen, mas é um longo percurso de ônibus da sua casa até o hospital.
— Nick me deixa aqui. Quer que eu traga alguma coisa?
— Não, obrigada.
Helen beijou-a de leve no rosto esfolado e saiu. Caroline seguiu-a com o
olhar. Nick a tinha trazido até ali, mas não entrara. Não desejava vê-la. Aquilo
doía, e ela fechou os olhos para conter as lágrimas:
— Está sentindo dor, sra. Storr? Vou trazer um remédio.
— Obrigada — agradeceu Caroline. Esse tipo de dor, não há remédio no
mundo que seja capaz de curar, pensou.
Dois dias depois ela viu Kelly, e mesmo assim muito rapidamente. A
enfermeira ficou observando mãe e filha de longe.
— Quando vai voltar para casa, mamãe? Ganhei duas estrelas de
matemática. Sei fazer a tabuada de somar. Está com um arranhão no nariz.
Posso ver seus curativos? Você janta na cama?
Kelly queria saber de tudo, e ao mesmo tempo contar tudo o que estava
acontecendo com ela.
Caroline a observava com atenção, tentando descobrir se a filha estava
nervosa ou não. Mas ela parecia despreocupada e feliz.
— Fui ver desenho animado ontem — contou Kelly. — Tia Hazel me levou.
Eu tomei sorvete de morango e dois refrigerantes. Estava tudo escuro no
cinema, mas não fiquei com medo.
Caroline engoliu em seco.
— Tia Hazel?
— Ela disse que eu podia chamá-la de tia.
— Mesmo? — Caroline não conseguia disfarçar o tremor em sua voz. —
Quando foi isso?
— Ontem depois do colégio — respondeu Kelly. — O tio Nick veio me
buscar às cinco horas e nós fomos no cinema.
— Nós? — insistiu Caroline.
— Tio Nick, tia Hazel e eu. Fomos no carro do tio Nick. Daí voltamos para
casa e tio Nick saiu de novo com tia Hazel. Depois acordei no escuro e ele veio
me ver e ainda estava de terno, mamãe.
Caroline mordeu os lábios.
— Vai ver que ele tinha acabado de chegar, querida. Mas o que você disse
de acordar no escuro? Teve um sonho ruim, filha?
— Não — respondeu Kelly, pensativa. — Tio Nick disse que era por causa
dos refrigerantes.
— Hummm — concordou Caroline, sorrindo.
— Por causa da porcaria dos refrigerantes, ele falou.
— Não diga isso, querida! "Porcaria" é uma palavra feia.
— O tio Nick disse, ele sempre diz isso.
— Ele é um homem — defendeu Caroline.
— E tia Hazel é uma boboca.
— Por quê? — perguntou Caroline, sabendo que deveria responder a filha
por falar mal dela, mas, ao mesmo tempo, ardendo de curiosidade.
— Ela fingiu que ficou com medo quando apareceu a bruxa no cinema.
Daí agarrou a mão do tio Nick e deu gritinhos, mas eu não dei. Ela é boboca!
A sra. Bentall tinha trazido Kelly. Esperou do lado de fora para deixá-las
sozinhas, mas naquele instante entrou e disse que estava na hora de ir. Kelly
fez um muxoxo e quase subiu na cama, dizendo que queria ficar. Caroline a
beijou e prometeu que Kelly poderia vê-la no dia seguinte. A sra. Bentall
sorriu, enquanto arrastava Kelly para fora do quarto.
Caroline gostaria de ir junto também. Estava ficando cheia daquela vida
monótona e rígida do hospital. Não tinha gostado nem um pouco de saber que
Kelly havia acordado no meio da noite. E se Nick não estivesse lá para ouvi-la?
E o que ele estava fazendo, levando Kelly para ver filmes com bruxas? Sem
falar na companhia de Hazel Skelton! Quem precisa de bruxa com ela por
perto? E como ela ousava dizer que podia ser chamada de "tia" por Kelly?
— Quando posso ir para casa? — Caroline perguntou para Frey naquela
noite.
— Por que a pressa? Não gosta daqui? Uma cama confortável, boa
comida...
— Boa comida?! Você está brincando.
— O que há de errado com ela?
— Nada que uma boa cozinheira não pudesse fazer — respondeu com
ironia.
— Está tirando umas férias, não pode ver as coisas por esse prisma?
— Tenho alguma escolha? — ela perguntou, aborrecida. Quando por fim
foi para casa, uma ambulância foi levá-la. Tinha que se submeter rigidamente
a instrução de ficar na cama o dia inteiro. Mas aquilo não seria difícil, ela teve
que admitir. Suas costelas estavam doendo ainda, e seu tornozelo, enfaixado.
Dias depois, Kelly estava ao lado de sua cama conversando
animadamente. Acabara de chegar da escola e contava, tim-tim por tim-tim,
tudo o que tinha acontecido naquela tarde. A escola nova, a princípio não
havia agradado a garota, acostumada à grande escola pública de Londres. No
entanto, conforme ela ia fazendo amizades e se ajustava ao novo ambiente,
começou a se esquecer de Sharon e da srta. Hougham. Kelly enfim descobria
as vantagens de estudar numa escolinha com classes pequenas, onde tinha
aulas de pintura e botânica ao ar livre. Sempre acabava vendo um coelhinho
selvagem ou um pássaro exótico.
— Parece cansada, Caroline — Helen falou, erguendo-se. — Está na hora
do lanche, vamos Kelly.
Apesar dos protestos veementes, Kelly foi levada para a cozinha, e
Caroline fechou os olhos. Helen tinha razão, ela estava mesmo cansada. A
gente precisa de muita energia para lidar com uma criança explosiva de sete
anos, ela pensou.
Quase embarcava no mundo dos sonhos quando ouviu a porta se abrir.
Abriu os olhos preguiçosamente. Nick se apoiava no batente. Seus cabelos
negros estavam brilhantes pela chuva, as curvas de seu rosto rígidas e
agressivas. Caroline sentiu o coração disparar, e deu um longo suspiro.
— Acordada?
Ela fez que sim, esforçando-se para se sentar. Nick atravessou o quarto
com rapidez.
— Eu faço isso.
Ela prendeu a respiração quando ele se inclinou sobre ela. Estava com
cheiro de chuva e vento, e os braços fortes deslizaram sob seu corpo para
erguê-la. De repente, a proximidade de seus corpos era tamanha, o rosto dele
estava tão próximo do seu, que ela estremeceu involuntariamente.
Nick sentiu o movimento e seu corpo enrijeceu. Ainda segurando-a, virou
a cabeça para olhar dentro dos olhos dela. Caroline sentiu-se vagando por
mares de sonhos. Fitaram-se durante longos segundos.
— Por que você não me contou? — perguntou Nick com voz grave,
profunda.
Caroline estava tão abalada que não conseguia entender o significado do
que ele dizia.
— Contei?
— Sobre Peter — ele completou, impaciente. — Por que não me contou
que ele era um alcoólatra?
Caroline empalideceu.
— Como você descobriu? Foi Helen?
— Ela me disse coisas de arrepiar os cabelos — Nick falou rispidamente.
— Por que não me contou nada? — O braço que estava sob a cintura dela a
apertou com mais força.
— Está me machucando!
— Desculpe — ele murmurou, colocando-a sobre os travesseiros.
Nick sentou-se na beirada da cama com a cabeça baixa.
— Como pôde me deixar pensar que você era uma...
— Por que Helen lhe contou? — ela o interrompeu, apressada, sentindo o
rosto arder.
— Eu a obriguei.
— Não devia.
Pobre Helen, pensou Caroline. Será que ele a tinha obrigado a contar toda
a longa e dolorosa história?
— Eu tinha que saber — sussurrou Nick, rouco. — Quando você estava
delirando, naquela noite em que a encontrei nos morros, ficou falando. No
começo não fazia sentido. Não conseguia entender o que dizia, até que de
repente começou a surgir a luz, e eu fiquei tão louco que queria quebrar tudo
à minha volta. Fiquei ali, ouvindo e não sei como consegui continuar são.
— Deve ter sido um choque para você — Caroline murmurou, gentilmente.
— Um choque! — Seus lábios se comprimiram. — Uma de vocês não
poderia ter me contado? Posso entender o motivo pelo qual Helen quis manter
tudo em segredo, mas será que ela não podia confiar em mim? Será que
achava que eu correria a notícia por Skeldale? Eu a conheci a vida toda. Como
pôde me deixar no escuro?
— Ela tinha vergonha.
— Deus sabe que ela tinha motivos — murmurou Nick. — Pensei que
conhecesse Peter, mas nunca cheguei a conhecê-lo de verdade, não é? Fui
realmente enganado.
— Mas como poderia adivinhar?
— Caroline... — Ele segurou as mãos dela com os dedos longos e gelados.
— Desculpe-me. Por que você não me contou? Como pôde deixar que eu
agisse como um carrasco, crucificando-a, quando podia resolver tudo com
uma só palavra...
— Não teria acreditado — ela respondeu, seca.
O rosto dele se afogueou.
— Eu... — parou, virando o rosto. — Não. Está certa, claro. Não
acreditaria.
Houve um longo silêncio. Nick soltou-lhe a mão e passou os dedos
nervosamente pelos cabelos.
— Helen me disse que Forrester sabia de tudo. Vocês se dirigiram a ele,
não a mim — ele falou, amargurado.
— Frey soube por acaso, não contamos a ele — falou Caroline, receosa.
Nick murmurou alguma coisa, nervoso. Seria capaz de cometer alguma
violência.
— Você quer dizer, depois de Peter ter batido em você.
Caroline manteve silêncio e ele fechou os punhos, raivoso.
— Oh, se eu suspeitasse!
— Ele era doente.
— Doente!
— Pergunte a Frey, ele lhe explicará — suspirou Caroline, profundamente
esgotada.
Nick ainda estava bravo, e ela queria que ele se fosse. Queria ficar sozinha
e esquecer-se das más lembranças e dos sofrimentos por que já tinha passado
há tanto tempo.
— Já falei com Frey — ele respondeu. — Mas não engoli o que disse.
Qualquer homem que bata na mulher e na filha dessa maneira...
— Ele não sabia o que estava fazendo! Só ficava violento quando bebia.
— Mas continuou a beber, sempre — acusou Nick. — Ele se recusava a
parar, Frey me contou.
Caroline suspirou fundo.
— Ele jamais admitiu que era alcoólatra.
— Se Forrester tivesse um pouquinho de bom senso, teria chamado a
polícia.
— Helen morreria de vergonha.
— E você? — perguntou Nick, encarando-a. — E Kelly? Como Forrester
permitiu que essa situação continuasse? Ele mesmo me contou que você
estava apavorada.
— Foi por isso que fugi. Tinha que fugir antes que tudo piorasse. Eu tinha
medo de que ele pudesse machucar Kelly de verdade. Cada vez que ele batia
nela, parecia ficar mais violento. Era como se ele a odiasse.
Nick ergueu-se, agitado, indo até a janela.
— Pode imaginar como me senti quando soube de tudo? Como pôde me
esconder isso, deixando que eu visse tudo distorcido...
— Não faz mal.
Ele empalideceu.
— Não faz mal!
— Percebi o motivo pelo qual você me desprezava, mas não podia lhe
contar nada. Tinha prometido a Helen que jamais diria nada a ninguém.
— Mas depois de ele ter morrido! O que importava!
— Quando voltei para cá e encontrei Helen tão fraca e acabada, o que
devia fazer? Não podia pedir a ela para contar tudo a você, já que ela tinha
sofrido tanto em silêncio.
— Você deve ter me odiado — ele falou, rispidamente.
— Eu compreendi.
— Compreendeu? Compreendeu mesmo, Caroline?
— Peter era seu primo. Era natural que você acreditasse nele.
Nick examinou-lhe o rosto pálido atentamente.
— E o que eu pensava sobre você não interessava?
Naquele momento bateram de leve à porta. A sra. Bentall entrou.
— Dr. Forrester está aqui — anunciou, e Frey entrou atrás dela.
Caroline soltou um suspiro de alívio ao vê-lo. Ele era tão calmo e seguro!
Seus olhos cinzentos e bondosos sorriram para ela.
— Alô, Caroline.
Caroline estendeu os braços, sorrindo.
— Entre, Frey.
Nick girou nos calcanhares e saiu do quarto, sem dizer uma palavra.

Capítulo 10
Caroline não viu Nick nos dias seguintes e ficou aliviada. Não tinha
energia mental nem física para lidar com ele, ainda mais percebendo que o
rancor permanecia. Embora soubesse da verdade, ele não tinha melhorado de
humor. Era quase como se ainda a culpasse por alguma coisa. Talvez a
culpasse por não ter contado a verdade antes, apesar de admitir que não
acreditaria nela. Era lógico que, se ela não estivesse delirando, ele a
consideraria uma mentirosa. Tinha se convencido por causa da dor e do
delírio em que ela se encontrava.
Uma semana mais tarde foi autorizada a deixar o quarto. Os arranhões e
as manchas da pele já estavam bem melhores, e com um pouco de
maquilagem no rosto tudo sumia. Usando um cáftã largo de seda preta, ela
sentou-se ao pé do fogo com Helen. Conversavam sobre o Natal, que seria dali
a alguns dias.
A sala estava cheia de guirlandas douradas e púrpuras, com folhas e
frutinhos vermelhos. No alto da lareira brilhava uma grande estrela prateada.
A árvore de Natal perfumava o ambiente, com seu cheirinho resinoso de
pinho. Sob ela, pilhas de presentes embrulhados com cores diferentes e laços:
Helen estava contando que Kelly não saía de lá.
— Ela fica lendo as etiquetas e adivinhando o que há dentro dos pacotes.
— Já terminei de embrulhar todos os meus — falou Caroline.
Tinha sido um passatempo agradável. As horas se arrastavam lentamente
em seu quarto.
— O que você mandou comprar para Nick? — perguntou Helen
casualmente.
— Nada muito original. Não tinha idéia, e por fim resolvi dar um livro.
Lembra-se da pilha de livros que comprou para mim na semana passada? Um
deles era para Nick.
— Livros? Ele não costuma ler muita ficção — comentou Helen.
— Este não é ficção. É a biografia do engenheiro que construiu o primeiro
navio de aço, e que construía também pontes de aço para os trens, e... outras
coisas. — Caroline teve que rir ao ver o olhar atônito de Helen.
— Mas que idéia!
— Bom, uma vez eu vi Nick lendo com interesse um livro sobre engenharia
semelhante a este que comprei — Caroline explicou.
— Oh, mesmo? Então ele vai gostar. Mas você é muito observadora. Nunca
presto atenção nessas coisas.
Caroline não falou nada. Virou-se para o fogo, esperando que Helen não
visse o rubor em suas faces.
O telefone tocou e a sra. Bentall entrou para avisar que era para Helen.
Minutos mais tarde ela retornou à sala com um sorriso nos lábios.
— Importa-se se eu sair esta noite, querida? Era Janet. Ela me convidou
para ir até sua casa para brindarmos juntas ao Natal. Será uma festinha
íntima, só para gente velha como eu — completou, sorrindo. — Tudo bem?
— Claro — Caroline respondeu prontamente. — Tenho que ir cedo mesmo
para a cama.
— Tem certeza?
— Claro que tenho — ela falou, sacudindo a cabeça com veemência.
Naquele instante, ambas se voltaram sorrindo para Kelly, que acabava de
voltar da escola.
— Ganhei um monte de cartões e o Papai Noel foi lá e me deu uma bexiga
e um relógio de brinquedo!
Era o último dia de aula, e os professores tinham organizado uma grande
festa de fim de ano. Kelly estivera esperando ansiosamente pela festa, e agora
seus olhos brilhavam de satisfação. Um balão de gás flutuava à sua volta,
preso firmemente entre seus dedinhos.
A mãe de uma amiguinha a trouxera de carro, e Kelly correu para a
janela, para despedir-se.
— Emily é minha melhor amiga — ela disse. — Hoje.
Kelly tinha uma melhor amiga a cada dia. Ainda não tinha encontrado o
lugar certo entre as colegas, e ficava experimentando conversar com todos.
— Ainda está usando suas botas, Kelly? — perguntou a sra. Bentall
severamente.
— Ai... esqueci — Kelly falou, saindo para o hall.
Helen olhou para o relógio.
— Acho que vou tomar um banho rápido antes de me vestir. Sabe, faz
anos que não vou a uma festa, e estou louca para ir!
Sozinha, Caroline fechou os olhos. Ficava bastante preocupada com a
falta de energia que sentia desde o acidente. Fisicamente era visível que tinha
melhorado, mas sentia-se cansada o tempo todo.
Frey a tinha confortado.
— É cumulativo, Caroline. Você carregou uma tensão e um peso durante
anos, e quando sofreu o acidente foi a gota d'água. Tanto sua mente quanto
seu corpo necessitavam de um longo descanso, mas você não dava folga para
eles. Agora, têm uma desculpa perfeita para ficarem de molho.
Caroline sorrira.
— Do jeito que você fala, parece que eles estavam conspirando contra
mim!
— De certa forma, é verdade — concordara Frey. — Olha, e eu acho que
eles tinham razão de sobra para isso. Faça o favor de levar tudo com calma.
Procure nem pensar. Apenas descanse.
Mais fácil dizer que fazer. Como se pára de pensar? Seria um bom negócio,
aprender a desligar a mente; Caroline dizia para si mesma naquele momento.
A sra. Bentall entrou na sala e ela abriu os olhos, num susto.
— O que gostaria de comer no jantar, sra. Storr? O sr. Holt não estará em
casa esta noite, portanto jantará só. Posso levar a comida no quarto, se a
senhora desejar.
— Oh, sim, muito obrigada.
— O que gostaria de comer?
— Não me importo — respondeu, cansada. — Qualquer coisa está bom.
Não estava com nenhum apetite. Comeria apenas por obrigação. Na
verdade, sentia uma vontade louca de chorar.
A sra. Bentall aproximou-se para arrumar o fogo, reavivando-o
vigorosamente.
— Está mais frio esta noite — comentou. — Nevou de novo. O sr. Holt
disse que, se a neve persistir, ele construirá uma pista para Kelly atrás da
casa, para ela descer de trenó.
— Ela vai adorar — falou Caroline, sentindo as lágrimas ameaçando
explodir. — Nick vai trabalhar até mais tarde hoje? — perguntou com voz
casual.
— Não, hoje não. O sr. Holt vai jantar fora com Hazel Skelton.
Madamezinha atrevida, aquela, não sei o que ele vê nela.
Ela saiu, e Caroline sentiu uma lágrima rolar pelas faces. Enxugou-a com
as costas das mãos, zangada.
Dali a pouco escutou a voz de Helen e endireitou-se na poltrona, sorrindo
alegremente. Sabia que, se Helen desconfiasse que estava deprimida, não iria
na festa. Mesmo assim, teve que insistir bastante para persuadi-la a ir.
— Mas você está tão pálida — Helen reparou, aflita.
— Vou me deitar agora mesmo — Caroline garantiu. — E vou jantar na
cama também. Depois, é fechar os olhos e dormir!
Helen riu.
— Sim, a cama é o melhor lugar para se ficar neste tempo gelado.
Minutos depois Helen saiu. Ela foi para a festa no carro de uma amiga que
veio buscá-la. Kelly ficou conversando com a mãe, até que chegou a hora de ir
dormir.
— Puxa! Hoje nós duas vamos dormir na mesma hora! Que engraçado!
Caroline concordou com um gesto de cabeça, sorrindo. A sra. Bentall
ajudou-a a subir as escadas, e depois desceu para buscar o jantar.
Caroline olhou-o com desânimo, mas forçou-se a comer. Parecia delicioso,
mas não conseguia sentir o gosto da comida.
Desligou a luz às nove e meia. Ficou ali no escuro, esgotada e deprimida,
sem conseguir dormir. Escutava o vento uivando pelas frestas das janelas, o
relógio de parede do hall tiquetaquendo alto. Seus pensamentos flutuavam,
sem direção, e por fim ela voltou a acender a lâmpada de cabeceira. Pegou o
livro caído ao lado da cama e começou a lê-lo, procurando se concentrar nas
palavras impressas. Em vão. Era um romance de tensão e suspense, mas ela
própria estava tensa demais para entender a história. Lia cada frase várias
vezes, até compreender o sentido.
De repente, escutou passos na escada. Ficou alarmada sem saber por quê.
Esticou o braço apressadamente para apagar a lâmpada, mas sua mão
esbarrou no despertador e ele caiu ruidosamente no chão. A porta de seu
quarto foi aberta imediatamente, e Nick entrou, com rosto tenso.
— O que foi? — perguntou, correndo os olhos pelo quarto. — O que
aconteceu?
— Desculpe — ela respondeu, nervosa. — Derrubei o despertador.
Nick entrou para apanhá-lo. Caroline observou-o admirada, através das
pálpebras baixas. Estava usando um blazer escuro, mas a gravata estava
frouxa, o colarinho aberto. Seus cabelos estavam bem penteados, mas quando
colocou o despertador de volta na mesinha-de-cabeceira correu os dedos por
eles, desalinhando-os um pouco. Caroline sentiu os pulsos se acelerarem.
— Como está? — perguntou Nick.
— Bem, muito bem — respondeu, dirigindo um falso sorriso para ele.
— O tornozelo está melhor?
— Sim, obrigada.
— Forrester disse quando poderia desenfaixar o pé?
— Vai demorar um pouco ainda.
Nick enfiou as mãos nos bolsos.
— Ele veio hoje?
Ela ergueu a cabeça, encarando-o.
— Não.
Queria que ele saísse. Não conseguia suportar a presença dele sem se
perturbar perigosamente. Cada fibra de seu corpo clamava por ele.
— Posso fazer uma pergunta pessoal? — murmurou Nick.
— Pode, mas talvez não receba resposta — Caroline falou, sentindo os
músculos rígidos. Que tipo de pergunta seria?
— Vai casar com ele?
O rosto dela ficou imediatamente vermelho. Nick a observava atento e, não
recebendo resposta, insistiu:
— Vai?
— Como ele não me pediu em casamento, não posso responder a essa
pergunta — ela disse, procurando se mostrar divertida.
Nick respirou fundo.
— Muito bem então vamos reformulá-la. Está apaixonada por Forrester?
Mais vermelha ainda, ela não sabia o que dizer.
— Quantas perguntas pessoais pretende fazer, afinal? — perguntou,
zangada.
— Responda-me esta, apenas, e não lhe perguntarei mais nada.
— Por que deveria? — perguntou infantilmente, fulminando-o com os
olhos verdes e brilhantes.
Ele se moveu, desconfortável.
— Tenho que saber.
— Não é da sua conta!
Os dentes dele se cerraram, e as narinas se dilataram de fúria.
— Não me torture, Caroline!
Ela prendeu a respiração, fitando-o, duvidando dos próprios ouvidos. Ele
tinha mesmo dito aquilo?
Nick se virou bruscamente, nervoso, como se não soubesse direito como
agir.
— Quando ele chegou naquela noite em que a encontrei nas montanhas,
chamou-o de querido, sorriu para ele, e seu rosto se transformou. Você não
olha para mim dessa maneira. — A última frase foi dita com emoção
indisfarçável.
— Não mesmo, Nick? — ela perguntou, observando seus punhos fechados.
— Pelo seu bem, fiquei aliviado ao vê-lo chegar, mas por mim ficaria muito
feliz se Forrester tivesse embarcado para a China.
— Pobre Frey!
Nick virou-se de frente para ela de novo. Tinha as mandíbulas tensas, os
olhos perigosamente brilhantes.
— Está mesmo apaixonada por ele?
Caroline ficou imóvel. Seu coração batia tão rápido que ela achou que até
Nick estivesse ouvindo.
— Por quê? — perguntou com voz rouca. — O que isso tem a ver com
você?
— Sabe muito bem o que isso tem a ver comigo, Caroline. Deixei tudo bem
claro, não foi?
Nick a encarou longamente. Um leve rubor às suas faces morenas. Sua
respiração alterada era perfeitamente audível no quarto silencioso.
— Deixou? — ela sussurrou, incerta.
Nick se sentou na beira da cama, os olhos ainda fixos nela. Depois, desceu
o olhar lentamente até sua boca.
O corpo inteiro de Caroline parecia pulsar em resposta. Ela sentiu o
coração martelando violentamente.
A mão dele tocou seus cabelos, afastando-os da testa. Os dedos
acariciaram a pele macia do rosto dela, traçaram a curva do pescoço,
passaram pelos ombros. Era como se um rastro de fogo estivesse percorrendo-
lhe o corpo.
— Será capaz de me perdoar?
Com a garganta completamente seca, ela o viu aproximar-se mais dela.
Baixou os olhos, temendo que eles traíssem os sentimentos que se agitavam
dentro de si.
— Não me odeie, Caroline — ele sussurrou, correndo o dedo pela curva
cor-de-rosa de sua boca. — Devo merecer, mas por favor, não me odeie.
Comportei-me como um demônio com você, mas eu mesmo estava vivendo
num inferno, pode compreender isso? Pode imaginar o quanto eu a queria e
desejava, e o quanto negava isso a mim mesmo, pois a desprezava e odiava
racionalmente?
Caroline tremia, descontrolada. Estava profundamente consciente daquele
corpo masculino e forte ao seu lado. Não conseguia encará-lo.
— Quando você veio morar aqui, fiquei completamente desnorteado.
Quanto mais eu a via, mais a desejava, mas a desprezava ao mesmo tempo.
Simplesmente não conseguia entendê-la. Às vezes, achava que o mundo
inteiro estava ao contrário, como num espelho. Às vezes, julgava que era eu
que estava dentro do espelho. Tudo parecia distorcido, fora do lugar. Pensava
em você o tempo todo, minha cabeça quase explodia. Você me atormentava.
Eu a queria e odiava, e me dilacerava por causa disso. É um milagre não ter
matado um de nós.
— Provavelmente eu — Caroline murmurou, cheia de alegria e alívio. —
Eu constava no seu livrinho como uma bela vítima para um assassinato, não?
Nick ficou em silêncio, e desta vez ela ergueu os olhos, ruborizada, toda
trêmula, o sorriso incerto.
— Você constava no meu livrinho como a mais desejável mulher do
mundo — ele falou roucamente. Segurou o rosto dela entre as mãos. —
Caroline...
Ele se curvou para beijá-la, mas Caroline estendeu o braço, detendo-o.
— Não — disse, decidida.
Nick arqueou as sobrancelhas.
— Não? — perguntou, tenso. — Não me quer?
— Não estou certa das suas intenções — ela respondeu, secamente —
Queria mais informações sobre isso, se não se incomoda.
Os olhos de Nick soltaram faíscas.
— Minhas intenções são as mais sinceras possíveis.
Ela fez uma careta.
— Bem, então, neste caso, boa noite.
— O quê? — ele perguntou, estupefato.
— Se está me propondo casamento, quero ter tempo para pensar no
assunto — Caroline falou candidamente. — Afinal de contas, o seu currículo
para marido não é lá muito aceitável. Você há de convir que o seu humor é
instável. Além disso, é desconfiado demais. Não acredita em nenhuma palavra
que eu diga, a não ser quando descobre, uma prova irrefutável de que estou
dizendo a verdade.
Ele sorriu, resignado, demonstrando que concordava com o que ela dizia.
Depois, ergueu as sobrancelhas maliciosamente, torcendo os lábios, divertido.
— E se minhas intenções fossem as mais imorais possíveis?
— Neste caso, teria sido diferente — ela brincou.
— Posso reconsiderar minha resposta, então?
— Não. Agora você já se comprometeu.
Nick riu baixinho, achegando-se mais a ela.
— Não ganho nem um beijinho?
Caroline fez cara de quem considerava a pergunta com seriedade.
— Um bem pequenininho — concedeu, oferecendo-lhe o rosto.
Ele se inclinou como se fosse beijá-la na face, mas de repente segurou-a
pelo queixo e virou-lhe o rosto abruptamente. A boca ávida encontrou a dela
antes que ela percebesse. A doce pressão daqueles lábios contra os dela
despertou um prazer desconhecido, calmo, e Caroline gemeu enquanto
passava os braços em volta do pescoço dele, agarrando-o com paixão.
Beijaram-se longa e esfomeadamente.
Quando ele se afastou, seus olhos estavam brilhantes, o coração
martelando próximo ao dela.
— Eu a amo — ele sussurrou. — Eu a amo desesperadamente, Caroline.
Ela deixou sua cabeça pender sobre aqueles ombros largos e fortes, o
braço ainda preso no pescoço dele.
— Oh, Nick, querido, há anos que eu o amo. Não conseguia suportar essa
verdade. O amor é como um mar revolto, sobe e desce tão depressa. Eu ficava
navegando entre as ondas, completamente perdida.
— Você e eu juntos — ele falou, beijando o pescoço dela. — Eu sonhava
beijá-la assim, sempre. Seu pescoço é tão macio e alvo, e o perfume de sua
pele me deixa louco. — Afastou-se para olhá-la nos olhos. — Case logo
comigo. Não consigo esperar. Já esperei demais.
Caroline sorriu timidamente.
— Não posso casar com um pé enfaixado. Teremos que esperar até Frey
me tirar a faixa.
O sorriso de Nick sumiu. O rosto endureceu.
— Houve alguma coisa entre você e Forrester algum dia, Caroline?
— Não — Caroline respondeu, séria. — Não. Acredita em mim. Nick?
Ele a olhou apaixonadamente.
— Sim jamais duvidarei de uma única palavra sua, minha querida, jamais
me perdoarei pelas coisas que lhe disse, pelo modo que a tratei. Depois de
tudo o que sofreu nas mãos de Peter, é difícil imaginar que seria capaz de
amar outro homem algum dia.
— Pensei que seria assim. Mas durante o tempo todo em que vivi em
Londres, jamais deixei de lembrar de você. Você estava grudado na minha
mente como uma cola difícil de tirar, e por mais que eu tentasse, você
permanecia, sempre.
Nick se mexeu, desconfortável.
— Quando eu penso na freqüência com que eu escutava as histórias
malucas de Peter, sem duvidar de nada, ouvindo aquelas mentiras horrorosas
sobre você...
— Por favor, não fale nele — ela implorou, o rosto perturbado.
— Ele ainda a amedronta?
— Só quando me lembro.
Ele soltou um gemido de raiva.
— Oh, Caroline. Quando penso no que fiz, depois de você já ter passado
por tudo aquilo com Peter, fico me odiando.
— Nada disso — ralhou ela. — Você pertence a mim agora, e nada nem
ninguém vai odiá-lo. Muito menos você.
Nick riu e a beijou, afagando os cabelos dourados. Languidamente,
Caroline voltou a se deitar nos travesseiros, e ele se curvou sobre ela. a boca
quente e persuasiva, a mão acariciando seus ombros nus, seu pescoço, o vale
profundo de seus seios claros.
O desejo agitou-se dentro dela como um furacão. Era como se soltar de
velhas e esquecidas amarras. Nick pressentiu o mesmo, também, e a paixão
reprimida libertou-se, para se encontrar com a dela, num mundo de abandono
e êxtase.
Não havia mais nada à volta deles; não escutavam o vento que soprava
gelado pela janela, nem os galhos das árvores estalando. Mas, de repente,
escutaram passos subindo a escada, Nick deu um pulo imediatamente,
pondo-se de pé. Seu rosto estava afogueado, a respiração entrecortada.
Caroline ficou deitada, rindo baixinho, provocadoramente. Bateram à
porta.
— Está acordada, querida? — O rosto de Helen apareceu sorridente, mas
se transformou imediatamente ao ver Nick.
Ele estava todo descabelado, vermelho, com ar de criança culpada.
— Oh! — ela exclamou, atônita.
Caroline ficou tentada a soltar uma gargalhada, mas não fez isso. Pobre
Helen! Pois ela não estivera planejando um casamento entre a nora e Frey
Forrester desde que tinha voltado para Skeldale? A sogra permaneceu
estática, como se presenciasse algo de sobrenatural.
— Helen — Caroline falou gentilmente — tenho uma coisa para lhe contar.

Fim

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