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Beijo de Fogo

(Kiss Of Fire)
Charlotte Lamb

Lionel não a esquecera... mas agora queria apenas vingança!

Suzy fechou o livro com força, horrorizada. Como Lionel tivera coragem de escrever
com tanta frieza sobre a tragédia que marcara suas vidas? Nunca soubera por que tinham
se separado três anos antes, mas agora encontrava a resposta: ele jamais a perdoara
pela morte de Mark...
Olhou de novo para a capa do romance, onde o desenho de um carro em chamas a
fez retornar ao passado. "Não foi minha culpa, Lionel", murmurou entre lágrimas. "Meu
amor por você era mais forte do que tudo..."

Digitalização: Vicky
Revisão: Paula Lima
BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

NOVA CULTURAL

Leitura — a maneira mais econômica de cultura, lazer e diversão.

Copyright: Charlotte Lamb


Título original: Kiss of Fire
Publicado originalmente em 1987 pela Mills & Boon Ltd.,
Londres, Inglaterra

Tradução: Brigitte Baum


Copyright para a língua portuguesa: 1989

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.


Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3 andar
CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil Caixa Postal 2372

Esta obra foi composta na Editora Nova Cultural Ltda.


Impressa na Divisão Gráfica da Editora Abril S.A.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

CAPÍTULO I

Suzy Froy olhou indecisa para a estante repleta da livraria da estação de trem.
Entrara ali porque queria comprar uma revista para se distrair durante a viagem até
Romney Marsh. Entretanto, não encontrava nada de interessante. Talvez se adquirisse
um bom romance...
Enquanto percorria com o olhar os diversos títulos e capas coloridas, Suzy
pensava no fim de semana prestes a começar. Três dias no interior poderiam lhe fazer
muito bem e, com certeza, estaria bem animada se as circunstâncias fossem outras...
— Posso ajudá-la?
A voz do balconista interrompeu-lhe os pensamentos. Suzy olhou-o com um sorriso
cortês.
— Não, obrigada. Quando me decidir, eu o aviso.
O rapaz se afastou e, depois de alguns instantes, a capa de um livro sobre o
balcão de lançamentos chamou-lhe a atenção. Nela, um desenho muito bem-feito
mostrava dois carros que pareciam estar vindo na direção do leitor. Um deles, quase
tombado no acostamento da estrada, começava a pegar fogo.
Sem dúvida, apenas a capa já servia de incentivo para quem gostasse de histórias
de ação. Contudo, Suzy só conseguia prestar atenção ao nome do autor.
Tomando o volume entre as mãos, ela fixou os olhos azuis no nome escrito em
letras grossas no alto da capa. Não ouvira falar dele havia muito tempo e sempre tivera
curiosidade de saber o que Lionel Moor andava fazendo. Então ele conseguira realizar o
antigo projeto de escrever um livro, ela concluiu com um sorriso.
— O trem das seis e quarenta com destino a Romney Marsh se aproxima da
plataforma seis...
A voz do alto-falante a trouxe de volta à realidade. Suzy consultou o relógio de
pulso: precisaria embarcar naquele trem dentro de poucos minutos.
Pegou uma revista e já se afastava até o caixa quando hesitou, olhando de novo
para o livro deixado sobre o balcão. Beijo de Fogo... Não sabia se lhe faria bem comprá-
lo. A simples visão do nome do autor evocara-lhe a imagem daquele homem. Era como
se o visse outra vez diante de si, com os penetrantes olhos cinzentos, o sorriso aberto, o
corpo atlético. No entanto, a lembrança de Lionel trazia consigo o amargor da culpa e
Suzy não estava disposta a experimentar esse sentimento de novo. Não podia mudar o
passado mas talvez fosse melhor evitar recordações tão traumáticas.
Apesar de tudo, acabou retornando ao balcão de lançamentos. Era tolice temer
simples lembranças. Além disso, não havia nada de mal em ler aquela história. Não
passava de um romance como qualquer outro e o fato de conhecer o autor não alteraria
em nada a qualidade da narrativa. E seria interessante saber se Lionel era tão talentoso
quanto determinado.
Pegou um exemplar e chamou o balconista com um gesto discreto. Ele se
aproximou e, quando Suzy lhe entregou o livro e a revista, abanou a cabeça num gesto de
aprovação.

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— Escolheu muito bem, senhorita. Beijo de Fogo tem recebido críticas excelentes!
Vendemos tanto que logo nosso estoque vai acabar. Três semanas depois do
lançamento, e já é um sucesso!
Um pouco mais tarde, quando o trem deixou a estação, Suzy começou a ler o livro
e compreendeu de imediato as palavras do balconista. Queria apenas dar uma olhada
nas primeiras páginas mas o estilo de Lionel era contagiante. Ele dava vida à narrativa,
era possível quase ver as cenas descritas. Suzy prosseguiu na leitura, ansiosa, e nem se
deu conta dos subúrbios de Londres pelos quais passou em direção à região ensolarada
do litoral. Ignorou as outras pessoas do vagão e até as breves paradas nas estações ao
longo do caminho.
Porém a leitura não lhe causava nenhum prazer. Ao contrário, sentia a mágoa
crescer-lhe por dentro a cada página que virava. Nunca poderia imaginar que aquele
fosse um romance autobiográfico. A capa não significara nada para ela. Parecera-lhe
natural Lionel usar um tema como corridas de automóvel; afinal, ele conhecia muito bem
aquele meio. Contudo, apesar da maneira envolvente como os fatos eram relatados, Suzy
reconhecia-se na heroína da narrativa e não perdoaria nunca Lionel por isso. Como ele se
atrevera a revolver as cinzas de ódio e destruição que ela conseguira enterrar com tanto
sacrifício?
Quase perdeu a estação onde devia descer, tão entretida estava na leitura. Apenas
no terceiro e último aviso do alto-falante reparou já ter chegado ao seu destino. Pegou a
bagagem, apressada, perguntando-se como não vira o tempo passar.
Lionel continuaria fazendo sucesso, com certeza, pois ninguém sabia como aquela
história havia ocorrido, ela pensou, revoltada, ao desembarcar do trem. Para os outros
leitores, todos os fatos descritos no romance não passariam de mera ficção. Só ela
conhecia todas as verdades e mentiras contidas naquelas páginas...
Sara Stevenson a esperava no saguão. Suzy logo a reconheceu na multidão por
causa dos cabelos longos e ruivos, inconfundíveis. Sara lhe acenou, entusiasmada, e ela
retribuiu o cumprimento, afastando a indignação trazida pelo livro de Lionel.
— Como vai nosso doente? — Suzy indagou, depois de beijar Sara no rosto.
— Meio ranzinza, mas isso passa logo. Não está sendo nada fácil para ele ficar o
dia inteiro sem fazer nada... Você fez boa viagem? É meio cansativo vir para cá, não?
O marido de Sara, Alex Stevenson, contraíra um vírus desconhecido durante as
filmagens de uma história de guerra em Hong-Kong, algumas semanas antes. Como
secretária particular de Alex, Suzy o acompanhara nessa viagem. Coubera a ela ligar para
Sara e avisá-la da doença imprevista. Ao mesmo tempo, precisara assumir às pressas a
função de diretora de cinema enquanto o substituto de Alex não chegava da Inglaterra.
Foram dias difíceis para Suzy. Além de acumular responsabilidades inesperadas
no trabalho, precisara dar todo o apoio a Sara, que se perturbara bastante com a doença
do marido. E não era para menos: Alex delirava quase o tempo todo e nem sequer havia
reconhecido a esposa quando ela chegara ao hospital.
Durante vários dias Alex correra risco de vida. O sofrimento da expectativa acabara
por promover entre Sara e Suzy um grande companheirismo. Embora só tivessem se
encontrado algumas vezes antes disso, quando Alex pudera ser transportado para a
Inglaterra as duas já se consideravam velhas amigas.
— Ontem ele estava meio impaciente quando me telefonou — Suzy comentou,
entrando no carro de Sara.

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— Às vezes ele fica inquieto, não vê a hora de voltar ao trabalho. Você sabe como
Alex gosta do que faz. Mas o médico quer deixá-lo em observação por mais uma semana,
no mínimo. Nesse meio tempo, ele não pode fazer nenhuma extravagância. Se nada
acontecer, poderá retomar as atividades normais, mas muito devagar. Suzy sorriu com
ironia.
— Aposto que Alex está adorando essa parte da história!
— Ele diz que vai ficar louco se continuar assim.
Sara entrou numa rua estreita, ladeada por cercas vivas cuja folhagem balançava
de leve ao sabor da brisa. A paisagem era plana e calma, e Suzy a observava encantada.
Nascida em Londres, ela nunca morara em outro lugar. Crescera rodeada por
buzinas, arranha-céus e vitrines sempre iluminadas. O campo a fascinava; o contato com
a natureza a acalmava é ajudava a esquecer a agitação do dia-a-dia na cidade grande;
entretanto, jamais se habituaria a morar num lugar como aquele. Gostava de Londres e
mesmo as desvantagens da cidade não lhe pareciam tão graves.
Sara, ao contrário, adaptara-se muito bem à tranqüilidade da cidade pequena. Ia
pouco a Londres e não parecia sentir falta disso.
— O sr. Jonas acha que Alex deve estar louco para voltar ao trabalho... — Suzy
comentou, distraída.
— E o pior é que ele está certo. Alex não entende que não pode voltar ao estúdio
nesse estado. Quero convencê-lo a passar duas semanas tomando sol num lugar bem
longe, mas se o sr. Jonas não lhe der permissão de se afastar daqui, ele não vai nem
amarrado...
— Tenho certeza de que o sr. Jonas não vai fazer nada para atrapalhar o
restabelecimento de Alex. Ele até mandou alguns scripts para Alex ler... Assim ele não
insiste tanto para voltar antes do tempo.
— Ainda bem que ele pensa assim...
Sara era uma pessoa simpática e bem-humorada. Tinha uma beleza incomum,
acentuada por um par de olhos verdes fascinantes e um corpo muito bem-feito.
Entretanto, não valorizava tais qualidades em excesso, pois se vestia com simplicidade e
quase nunca usava maquilagem . Apesar do gênio calmo, era segura e determinada e
nunca desistia de um projeto antes de tentar todas as possibilidades.
— Conforme Alex pediu, eu trouxe uma pilha de cartas comigo e um telex do sr.
Jonas — Suzy anunciou. —- Ele está em Los Angeles mas voltará na terça-feira e virá
visitar Alex no próximo fim de semana.
— Talvez ele ajude a convencer Alex que uma viagem só poderá lhe fazer bem...
Nesse momento, Sara estacionou o carro diante de um chalé branco à beira-mar. A
casa, com dois pavimentos, era um exemplo do estilo de vida do casal. Ampla e arrojada
nas linhas arquitetônicas, não se assemelhava em nada com as mansões dos outros
diretores da Empire Films. Não se encontrava ali nenhum luxo supérfluo, tudo era muito
simples e funcional, privilegiando o conforto.
— Que vista bonita! — Suzy comentou, encantada, olhando para o azul infinito do
céu entre o horizonte e o mar.
Realmente, Alex não escolhera aquele lugar por acaso. Aquela paisagem tinha
tudo a ver com o temperamento dele. Sensível e de humor um tanto instável, Alex
ocultava um grande coração por trás da aparente indiferença.

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Ao descer do carro, Suzy respirou fundo, sentindo a brisa suave envolver-lhe os


cabelos loiros. Queria encher os pulmões com aquele ar fresco e puro, uma das
vantagens em que nenhuma cidade grande superava o litoral.
As duas caminharam em silêncio em direção à entrada principal. Quando
passaram pelo jardim, o som da vitrola tocando Mozart chegou até elas, denunciando a
presença de Alex no andar de baixo. Sara ficou séria ao ouvir a música e seguiu depressa
para a sala ampla, onde o marido, deitado no sofá de couro bege-claro, sorriu para Suzy.
— O que você está fazendo aqui? — Sara o interpelou. — Deveria estar na cama,
como o médico recomendou.
— Eu queria receber minha secretária aqui em baixo. Estou feliz por vê-la, Suzy.
Só espero que você não faça parte do complô que armaram para me afastar do serviço.
Daqui a pouco, esse vírus vai morrer contagiado pelo meu tédio!
— Eu estou totalmente neutra nessa questão, meu caro.
— Sim, claro, você é muito diplomática — Alex ironizou, estendendo-lhe a mão. —
Isso é um presente para mim? Muito gentil da sua parte. Era exatamente o que eu
gostaria de ler; um bom romance.
Só depois de alguns instantes, Suzy entendeu que Alex se referia ao livro de
Lionel. Estivera todo aquele tempo com o volume nas mãos e nem se dera conta disso.
— Eu estava lendo no trem e...
— Não me conte o fim — ele interrompeu, animado. — Beijo de Fogo... Li muitas
críticas favoráveis sobre esse livro e queria mesmo comprá-lo. É o primeiro romance
desse autor, ele conhece muito bem o tema central. Parece que foi piloto de corridas
antes de sofrer um acidente terrível anos atrás...
Suzy não teve coragem de desmentir o pequeno engano. Alex estava muito
abatido, com olheiras fundas ao redor dos olhos castanhos, agora mais escuros por causa
da palidez da pele. Até os cabelos, antes claros e brilhantes, pareciam opacos e sem
vida. A perspectiva de ler o romance o deixara feliz e, naquelas circunstâncias, isso era
muito importante.
Ela entregou-lhe o exemplar, sorrindo diante do contentamento dele ao começar a
folheá-lo. Se Alex soubesse da verdadeira história daquela narrativa, talvez não ficasse
tão interessado, pensou com amargura. Mas ela nunca mencionara nada sobre sua vida
pessoal a Alex e não pretendia fazê-lo agora. Gostava muito dele mas, antes de tudo,
Alex era seu patrão. Não valia a pena misturar amizade e vida profissional.
— Você trouxe a correspondência? — ele quis saber, ainda folheando o livro.
Em resposta, Suzy tirou da mala uma pasta cheia de envelopes e recados. Sara
sorriu para o marido e foi até a cozinha preparar um café para os três. Suzy olhou-o por
um momento, indecisa. Alex estava com um aspecto muito cansado para trabalhar.
— Que tal se eu desse uma lida nisso e depois lhe passasse o mais urgente? —
sugeriu, sentando-se numa poltrona com a pasta no colo.
Alex, entretanto, fez um gesto de pouco caso com a mão.
— Não vejo nenhuma razão para não lê-las eu mesmo. Sara falou com você no
caminho, não é? Não precisa se preocupar, só ela não vê que eu já posso voltar à
atividade normal. Estou me sentindo muito melhor, por isso chamei você aqui para
trabalhar. Preciso manter algum contato com o escritório, senão depois vamos ter de nos
desdobrar para dar conta de tanta coisa!

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Suzy soltou um suspiro resignado. Alex não se conformaria nunca a fazer um


pouco de repouso.

Ainda era bem cedo quando Suzy acordou no domingo de manhã com o grasnar
das gaivotas na praia. Bocejando, ainda ficou na cama observando a luz do sol
atravessando as cortinas azul-claras.
Pensava em Alex e Sara, de certo modo surpresa por não estar sendo tão difícil
quanto imaginava os dois enfrentarem um problema como aquele. Apesar de ter
protestado um pouco, Alex concordara em não trabalhar demais no dia em que ela
chegara. Depois de meia hora lendo cartas e recados, Sara o convencera a se deitar e ele
permanecera no quarto até a noite.
Na véspera, sábado, ele descera para o almoço e passara um bom tempo tecendo
comentários entusiasmados sobre o livro de Lionel Moor. Aproveitara o interesse de Suzy
pelo assunto para ficar na sala um pouco mais antes de se recolher de novo.
Embora não deixasse transparecer, Suzy sentia uma ponta de orgulho diante dos
elogios de Alex. Ela sabia da intenção de Lionel de escrever um livro desde quando o
conhecera, três anos antes. Entretanto, sempre julgara o temperamento dele agitado
demais para tal atividade.
De fato, Lionel parecia ter um talento especial para praticar esportes. Dedicava-se
a várias modalidades esportivas quando não se encontrava nas pistas de corrida e era
bem-sucedido na maioria delas. Competitivo por natureza, parecia estar sempre testando
a si mesmo, como se fosse fundamental superar os próprios limites.
Era difícil imaginá-lo se dedicando a alguma coisa que não exigisse dele um
desempenho muscular. Ficar sentado entre quatro paredes ou diante de uma máquina de
escrever durante horas seguidas não combinava com seu estilo de vida. Mas, mesmo
assim, a surpresa de Suzy ao ver o romance no balcão da livraria logo passara. Lionel
sempre conseguia tudo o que queria, não importava o quanto custasse a ele mesmo ou a
quem o rodeasse...
Suzy sentou-se na cama, inquieta com aqueles pensamentos. Depois de alguns
instantes, levantou-se, decidida. Precisava de um café forte para afastar a preguiça. Não
se deixaria abater pelas lembranças de Lionel. Aquilo tudo fazia parte do passado,
imagens remotas de uma fase superada de sua vida.
Depois do primeiro impacto, já conseguia analisar a situação com frieza. Lionel
escrevera um amontoado de calúnias a respeito dela, mas isso não devia perturbá-la. Na
certa, nem ele próprio tinha consciência de tê-la retratado. Já ouvira vários autores
afirmarem que um personagem era a soma de várias pessoas, com traços de
personalidades diferentes. Talvez Lionel, ao criar a heroína do romance, tivesse se
inspirado um pouco nela, mas também em outras mulheres. Devia encarar o fato pelo
lado positivo. Afinal, não fora de todo esquecida e realmente significara algo importante
na vida dele...
Era estranho perceber que ninguém desconfiava da ligação entre o romance e seu
passado comum com Lionel. Mas esse segredo deveria permanecer guardado para
sempre. Jamais o revelaria, nem mesmo aos amigos mais próximos.
Suzy sempre fora muito reservada com seus assuntos pessoais. Bem-humorada e
independente, parecia nunca ter problemas graves. Pelo menos, essa era a opinião da
família e dos que conviviam com ela.

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Talvez o fato de ser a filha caçula e a única ainda solteira contribuísse muito para a
maneira de Suzy encarar a vida. Ela crescera pensando nos próprios problemas como
questões de menor importância e isso a ajudava a superá-los com maior facilidade. A
mãe se orgulhava dessa qualidade da filha mais nova, assim como do fato de Suzy estar
realizada profissionalmente com apenas vinte e cinco anos de idade.
Ao contrário das duas irmãs mais velhas, que haviam optado por se casar cedo,
ela preferira dedicar mais tempo aos estudos e à carreira de secretária. Assim, não fora
difícil vencer a concorrência e ficar com a vaga de secretária de Alex. As qualificações
obtidas por anos de estudos e pelo desempenho em outras firmas haviam-na tornado a
candidata perfeita.
A mãe de Suzy não escondia o entusiasmo pelo sucesso da filha e colecionava os
cartões enviados por ela durante as várias viagens que fazia com a equipe de filmagem.
Era óbvio que desejava ver Suzy casada um dia, mas ainda lhe parecia cedo para que a
carreira fosse negligenciada por causa disso. Além do mais, para a sra. Froy, homem
algum merecia sua filha por esposa.
— "Uma moça de ouro" — Suzy repetiu enquanto descia a escada, sorrindo ao se
lembrar das palavras da mãe.
Entrou na cozinha o mais silenciosamente que pôde. Não queria acordar Sara, na
certa exausta após tantas semanas cuidando de Alex. Suzy admirava essa dedicação e
reconhecia que Sara tinha bons motivos para tratar o marido com tanto carinho. Alex era
um parceiro apaixonado e fiel e, embora se mostrasse às vezes genioso e
temperamental, na maior parte do tempo a convivência dos dois causava inveja a muitos
conhecidos do casal.
Depois de preparar o café e tomá-lo com uma torrada, decidiu tomar uma ducha no
pequeno banheiro do andar térreo, assim não correria o risco de acordar o casal.
Entretanto, mal terminara de entrar no chuveiro, Suzy escutou alguém tocar a
campainha. Surpresa, ela saiu do boxe depressa. Se o barulho continuasse, com certeza
Sara e Alex acordariam. Havia um roupão felpudo pendurado atrás da porta; devia ser de
Alex, pelo tamanho. Mas Suzy vestiu-o assim mesmo, preocupada em atender logo o
visitante. Tomara fosse um assunto que pudesse resolver sozinha.
Ao passar pela sala, não ouviu nenhum ruído no andar superior. Com um suspiro
de alívio, caminhou até a porta e abriu-a, segurando a gola do roupão.
Por um momento, Suzy ficou sem ação. Incrédula, pensou estar sonhando ao ver-
se diante daqueles olhos penetrantes.
Lionel não mudara quase nada com o tempo. O cabelo escuro e um pouco
despenteado lhe conferia um aspecto juvenil, em contraste com o corpo esbelto e
másculo. Apenas trocara as roupas descontraídas do passado por um sofisticado terno
cinza-escuro, acompanhado por uma belíssima camisa, de seda como a gravata.
De repente, porém, Suzy percebeu ter se enganado na primeira impressão.
Alguma coisa em Lionel havia se transformado. Ela nunca vira no rosto dele aquela
expressão, a boca se curvando num sorriso de desdém e um brilho cínico nos olhos. A
jovialidade de antes, que o tornava tão simpático a todos, fora substituída por um ar
severo, denunciado por uma ruga fincada entre as sobrancelhas. O acidente de três anos
antes não havia deixado nele marcas aparentes, mas uma sombra no olhar mostrava que
ainda não se curara das feridas interiores causadas pela tragédia.
Suzy sorriu, tentando readquirir o autocontrole.
— Sem dúvida, essa é uma bela surpresa para um domingo de manhã!

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Lionel, porém, não retribuiu o sorriso.


— O que você está fazendo aqui?
— Eu? Estou passando o fim de semana... E você?
— Com Stevenson?
Suzy não gostou do tom da pergunta e o encarou com firmeza.
— É claro! Sou secretária do sr. Stevenson.
— Fico contente em saber que você está tão bem empregada. Afinal, não é todo
dia que se encontra um patrão que se preocupe desse jeito com o lazer dos funcionários!
Lionel lançou-lhe um olhar de cinismo enquanto falava; demorando-se
significativamente sobre o roupão no corpo dela, Percebendo-lhe a intenção, Suzy sorriu
com frieza.
— Você está tirando conclusões precipitadas. Alex não é assim tão caridoso... Ele
me chamou aqui para trabalhar.
— Mas que explorador! Você deve ter se cansado muito! Acho que é muito boa no
que faz, aposto que enfrentou uma concorrência enorme para ficar com a vaga. Muitas
garotas adorariam trabalhar com Alex Stevenson e ele teve bons motivos para escolher
você, tenho certeza...
— Muito melhores do que você imagina!
Suzy resolveu manter a calma e fazer o jogo de Lionel. Quanto mais desmentisse,
mais ele insistiria no assunto para irritá-la.
Lionel esboçou um sorriso mordaz, deixando em Suzy a impressão absurda de
estar diante de outro homem. Podiam ser idênticos na aparência, mas aquele não era o
Lionel que ela conhecera.
— Faço o máximo possível para corresponder à confiança de Alex. Estou contente
com o emprego e acho que ele não tem motivos para se arrepender da escolha.
— Oh, eu posso imaginar que não... Por falar nisso, onde ele está?
Suzy o encarou com ar ingênuo.
— Alex ainda está na cama... Com a esposa dele. — Foi um prazer ver o cinismo
desaparecer do rosto de Lionel, dando lugar a um desaponto indisfarçável. — Alex é
casado com Sara, uma ótima pessoa. Como Alex está doente há algum tempo, pediu
para eu lhe trazer a correspondência atrasada. E eu aproveitei para ver se Sara estava
precisando de ajuda. — Suzy fez uma pausa, já preparando outra resposta para a
próxima insinuação maldosa de Lionel. Entretanto, ele se limitou a baixar um pouco a
cabeça. — Perdão, Lionel, mas o que disse mesmo que veio fazer aqui?
— Alex me ligou ontem à noite e me pediu para vir.
Suzy não entendeu a atitude de Alex de telefonar para Lionel sem comentar nada
com ela. Talvez os dois já se conhecessem e não quisessem revelar isso a ninguém.
— Engraçado, ele não me disse nada...
— E ele conta tudo a você? Há quanto tempo trabalham juntos?
— Um ano, e quase sempre ele discute comigo as decisões importantes. Bem,
talvez não seja o caso dessa conversa com você.

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— Escute, será que poderia avisá-lo de que estou aqui? Saí muito cedo de Rye e
tive de fazer um desvio enorme no meu caminho para vê-lo. Seria horrível se perdesse a
viagem e, além disso, tenho um compromisso em Londres na hora do almoço.
Os pais de Lionel moravam em Rye e, com certeza, ele os estivera visitando. Suzy
nunca chegara a conhecê-los, embora Lionel tivesse prometido várias vezes levá-la à
casa deles, uma antiga propriedade à beira-mar para onde haviam se mudado após a
aposentadoria do sr. Moor.
Lionel era filho único, por isso mesmo recebia dos pais atenção toda especial. A
mãe se preocupava muito com os riscos constantes da profissão dele, jamais conseguira
assistir a uma corrida do filho com medo de um desastre. Por ironia, quando ele sofrera o
único acidente grave de sua carreira, não fora nas pistas...
— É melhor você entrar. Vou chamar Sara para saber se Alex pode recebê-lo.
— Mas ele está me esperando, eu já disse que me chamou aqui!
Lionel fechou a porta e seguiu Suzy até a sala, onde ela abriu as cortinas para
deixar entrar a luz do sol. Enquanto o fazia, sentiu o olhar dele seguir-lhe todos os
movimentos.
— Vocês já se conhecem? — perguntou, fingindo-se desinteressada.
— Não, vamos nos ver hoje pela primeira vez. Ele entrou em contato com meu
editor e Bill lhe deu o número do telefone da casa de meus pais. Bill sabia que eu estava
passando o fim de semana em Rye e achou que eu não me importaria em falar com
Stevenson sobre negócios...
De repente, Suzy se deu conta de algo aterrador: Alex devia estar interessado em
transformar o livro de Lionel em filme! Isso já era de se esperar. Alex estava sempre em
busca de um bom argumento...
Maldisse o momento em que voltara ao balcão de lançamento da livraria da
estação de trem. Se tivesse resistido à curiosidade, talvez Lionel não se encontrasse de
volta em sua vida, revivendo emoções que ela julgara superadas...
— Stevenson não falou com você a esse respeito? Suzy encolheu os ombros.
—-Deve ter esquecido... Sente-se, por favor, vou chamar Sara. talvez você tenha
de conversar com Alex no quarto. Ele ainda não está recuperado.
— Eu ia mesmo perguntar se Stevenson já sarou dessa doença misteriosa... Ainda
demora muito para ele voltar ao trabalho?
— Não fazemos idéia. Segundo as previsões do médico, um mês, talvez menos, se
não houver nenhuma complicação... Agora, com licença, vou avisar Sara.
Suzy saiu da sala atônita. Ainda não conseguia acreditar no que acontecera nos
últimos minutos. Nem mesmo seus piores pesadelos se igualavam àquela situação
estranha. E o pior de tudo era suportar a hostilidade de Lionel, o modo acusador como ele
a olhava.
Então, as coisas terríveis que ele escrevera no romance eram mesmo sobre ela,
concluiu, horrorizada. Lionel quisera retratá-la ao criar a heroína da história, daí aquela
rispidez no tratamento... Mas de onde tirara uma versão tão deturpada dos fatos? Como
ele podia julgá-la capaz de tanta baixeza?
Enquanto subia a escada em direção ao quarto, Suzy pensava numa maneira de
se livrar da armadilha que o destino lhe preparara. Talvez a única alternativa fosse contar

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a Alex e Sara toda a verdade. Teria de romper um silêncio de três anos, mas, pelo menos,
evitaria o suplício de conviver com Lionel.
Não havia mesmo outra escolha para ela, Suzy pensou, angustiada. Se Alex
fizesse um filme baseado no livro, ela o veria com muita freqüência, pois, com certeza,
Lionel seria convidado a colaborar no script, Esse era o procedimento normal e Alex não
mudaria seu esquema de trabalho em função dos problemas pessoais de uma
funcionária.
Já fora um choque ler o livro por causa do amontoado de mentiras forjadas por
Lionel sobre ela. Como poderia suportar ver tantas calúnias transformadas em filme?
Como poderia assistir a uma atriz representando a deformidade à qual Lionel lhe reduzira
o caráter? E, ela sabia muito bem, Alex não desistiria do projeto, nem mesmo se
soubesse da verdade...
Quando parou diante da porta do quarto de Alex, Suzy já havia tomado uma
decisão. Não presenciaria, impassível, Lionel tornar pública toda aquela lama. Pediria
demissão do emprego, iria para longe de Londres. E o quanto antes, melhor.

CAPÍTULO II

Suzy respirou fundo e bateu à porta de Alex, num gesto decidido. Apesar de
receber a resposta de uma voz sonolenta, ainda demorou algum tempo até que Sara
viesse atendê-la.
— Algum problema, Suzy?
— Sinto muito acordá-la, mas é que Alex tem visitas...
— Não são repórteres, são?
— É Lionel Moor. Disse que Alex telefonou para ele ontem à noite e pediu para vir
aqui...
— Lionel Moor? Mas quem...
De dentro do quarto, a voz de Alex soou, aflita.
— Meu Deus, eu me esqueci disso por completo!
Sara virou-se para o marido, desolada e irritada ao mesmo tempo.
— Por que fez isso, Alex? Depois de tanto sacrifício para manter seu repouso, você
convida uma pessoa para vir aqui, ainda por cima de manhã?!
Suzy não estava muito interessada nas explicações de Alex. Além disso, na certa o
casal queria um pouco de privacidade para discutir aquele assunto.
— Ele está esperando na sala, está bem? Agora, com licença, vou me vestir...
Nesse momento, Alex se aproximou da porta já vestindo o robe de seda sobre o
pijama.
— Não quero abusar de você, Suzy, mas poderia servir um café a Lionel? Eu
desço num minuto...

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— Alex, você me apronta cada uma! — Sara protestou.


Ele sorriu para a esposa, com uma expressão marota, depois beijou-a com ternura.
— Não vou tratar de negócios, querida. Chamei Moor aqui só para trocar algumas
idéias... Ao que eu saiba, o médico não me proibiu de conversar.
Suzy reprimiu um sorriso, perguntando-se por quanto tempo Sara resistiria ao
charme do marido.
— Vou preparar o café assim que me vestir — ela anunciou, já tomando a direção
de seu quarto.
Ao fechar a porta do aposento atrás de si, sentiu uma mistura estranha de medo e
excitação. Não era fácil apagar tantas lembranças evocadas pela simples presença de
Lionel. Apesar da hostilidade dele, não podia negar a emoção intensa de vê-lo
novamente.
Tentando dominar tais sentimentos, escolheu de propósito a roupa mais discreta
que havia trazido, uma saia preta e uma blusa de seda rosa-clara. Escovou os cabelos
com simplicidade mas, naturalmente volumosos, os fios ainda úmidos foram se anelando
em caracóis soltos e dourados. Ao se olhar no espelho antes de sair do quarto, Suzy ficou
um tanto descontente. Se houvesse planejado aquela aparência angelical, não a teria
conseguido com tamanha perfeição... Com certeza, Lionel acreditaria que ela se arrumara
daquela forma apenas para impressioná-lo...
Foi até a cozinha e preparou o café, com uma rapidez muito maior do que
desejaria. De fato, precisava de um pouco mais de tempo para controlar o nervosismo
imposto pela situação. Por isso, parou diante da porta da cozinha antes de seguir em
direção à sala de estar. Tinha de dominar a emoção, não deixar transparecer o quanto
Lionel ainda a perturbava.
Respirou fundo e aproximou-se finalmente da sala. Alex já havia descido, sua voz
soava bastante amigável, embora as respostas de Lionel fossem breves e reservadas. O
visitante parecia estar tomando o máximo cuidado com o que dizia, como se quisesse
saber o motivo real daquele encontro.
Lionel tinha razões de sobra para ser tão cauteloso, ela pensou. Devia estar
surpreso por Alex em pessoa ter tomado a iniciativa de procurá-lo. Nas negociações dos
direitos autorais para uma filmagem, em geral se usavam agentes como intermediários. O
autor só entrava em contato com a companhia bem mais tarde, quando o negócio estava
quase acertado.
Alex sabia disso e sempre procedia dentro das regras de praxe. Mas estava tão
ansioso para fazer alguma coisa depois de semanas de completa inatividade, que não
conseguia esperar o desenvolvimento usual da burocracia. Não queria perder a
oportunidade de fazer aquele filme e, se a Empire Films não se apressasse, outras
companhias na certa se interessariam por um acordo com Lionel. Então, as negociações
ficariam ainda mais complicadas e morosas.
Quando Suzy entrou na sala com a bandeja nas mãos, Alex estava deitado no
sofá, sem dúvida a pedido da esposa. Lionel, de pé em frente à janela, não escondia uma
certa desconfiança diante das propostas do cineasta. Ao vê-la, caminhou na direção dela,
fitando-a com uma expressão irônica e provocante enquanto lhe tirava a bandeja das
mãos. Ela retribuiu com frieza o insulto silencioso contido naquele olhar e já ia saindo
quando Alex a chamou.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

— Tome um café conosco, Suzy. Lionel, esta é minha secretária, Suzy Froy, a
mais recente descobridora de talentos da companhia... Foi ela que me chamou a atenção
para seu livro, me fez presente de um exemplar na sexta-feira.
Lionel colocou a bandeja sobre a mesa de centro, encarando-a com espanto. Mas
Suzy evitou-lhe o olhar, detestando Alex pelo comentário. Para livrar-se do
constrangimento, começou a servir o café.
— Logo que li o livro, tive a certeza de que daria um filme maravilhoso... Se
conseguirmos transformar o que você escreveu num bom script, é claro — o cineasta
prosseguiu. — Isso não é tão fácil quanto parece. Se seu agente falar com meu pessoal,
resolveremos os detalhes burocráticos primeiro, depois eu gostaria que me fizesse um
esboço rápido do roteiro...
Suzy estendeu-lhe a xícara, irritada. Por que Alex cismara com aquele romance?
Havia milhares de bons escritores implorando uma chance todos os dias no escritório dele
sem obter sequer uma entrevista! Além do talento, Lionel tinha uma sorte incrível!
— Como prefere o café, sr. Moor? — perguntou, com uma polidez forçada.
— Puro e sem açúcar, por favor.
Ela não tinha necessidade de fazer tal pergunta e Lionel sabia disso, no entanto,
fora a única forma que encontrara para deixar claro estar escondendo de Alex que já o
conhecia. Murmurou um pedido de licença, mas Alex a reteve mais uma vez.
— Quero que esteja presente nessa discussão — ele afirmou. — Lionel nunca
escreveu um script antes e vai precisar de ajuda. Carina poderia lhe dar algumas dicas,
você não acha?
Suzy recriminou-se por ficar tão contrariada com a idéia. Carina Davis era membro
do departamento de roteiros da companhia, muito requisitada para corrigir os scripts de
outros escritores que não tinham ficado a contento. Era uma mulher atraente e sofisticada
e, embora desconhecida fora dos meios cinematográficos, freqüentava os mesmos
círculos de muitos astros de cinema.
Suzy conhecia Carina muito bem. Pelos romances anteriores que a roteirista
mantivera com pessoas famosas, Lionel tinha todos os requisitos para conquistá-la. Era
atraente, jovem, ambicioso e, com certeza, precisaria apenas de um empurrãozinho para
se tornar tão conhecido como escritor quanto já era como desportista. Envolver-se com
ela seria comprar uma passagem para o sucesso.
— Carina vai ficar encantada, tenho certeza — ela afirmou. Alex olhou-a por um
momento, depois sorriu.
— Você e Carina se dão bem, não é, Suzy? Poderia arranjar um encontro entre ela
e Lionel o mais cedo possível? Assim, quando o contrato for fechado, já teremos feito
alguma coisa em relação ao roteiro.
— Vou telefonar para ela amanhã mesmo.
— Até que eu volte ao trabalho, Lionel, você pode ficar em contato comigo através
de Suzy. Minha mulher insiste em passar alguns dias nas Bahamas, acho que duas
semanas... Mas procure Suzy no meu escritório para tudo que precisar, é o mesmo que
falar comigo. Você mora em Londres?
— Sim, próximo ao centro.
— Ótimo, isso facilita muito as coisas. Suzy vai providenciar o encontro, depois
entra em contato com você... Vai estar em boas mãos enquanto eu estiver em férias.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

Lionel encarou Suzy por alguns segundos, mas ela fingiu não perceber.
— Tenho uma idéia — Alex disse de repente. — Você está voltando para Londres,
não é, Lionel? Será que poderia dar uma carona para Suzy? Ela queria voltar hoje à
tarde, mas acho uma pena desperdiçar tanto tempo numa viagem de trem se pode ir de
carro.
Suzy sorriu, tentando disfarçar o choque.
— Não precisa, Alex. Posso muito bem ir sozinha...
— Não seja orgulhosa, menina! Viajar de carro é muito mais confortável!
— Não se trata disso. Eu não quero dar trabalho ao sr. Moor...
— Trabalho nenhum. Além disso, de carro chegaremos a Londres em uma hora, no
máximo...
Suzy ia continuar protestando, mas desistiu. Insistir na recusa poderia despertar
suspeitas em Alex. Forçou-se a sorrir de novo, embora fuzilasse Lionel com o olhar.
— Se é assim... Eu só levo um minuto para aprontar minha bagagem, sr. Moor.
Lionel retribuiu o sorriso, cínico.
— Pode me chamar de Lionel. Afinal, vamos trabalhar juntos daqui em diante... e
isso será um grande prazer para mim.
Suzy fez um gesto de agradecimento com a cabeça e retirou-se da sala. Como
Lionel podia ser tão sádico?! Poderia muito bem poupá-la do último comentário, sabendo
o quanto estava sendo difícil para ela encenar aquela farsa diante de Alex. Era óbvio que
se divertia em apanhá-la numa mentira. Isso reforçava a imagem que fazia dela, no
romance e na vida real...
Atravessava o corredor, furiosa, a caminho do quarto, quando encontrou Sara.
— Se essa conversinha não terminar dentro de quinze minutos, eu mesma vou
encerrá-la, e não me importa o que Alex vai dizer — a amiga assegurou, irritada. — Afinal,
ele não me falou que tinha convidado esse homem! Eu não lhe disse que se não sairmos
daqui logo, Alex vai voltar ao trabalho em menos de uma semana?!
Suzy esqueceu-se por completo da própria aflição e fitou Sara, solidária. Depois de
tantas semanas de preocupação e angústia por causa da doença de Alex, ela devia estar
esgotada. Talvez precisasse daquela viagem muito mais do que Alex.
— Não, você está enganada, Sara. Alex disse agora há pouco na sala que estava
planejando ir para as Bahamas com você, e acho que falou sério...
O rosto de Sara se iluminou com um sorriso.
— Ele disse isso mesmo?! Espero que Alex não esteja delirando de novo!
— Tenho certeza que não... Agora preciso arrumar a mala. Sara ficou observando
a hóspede entrar no quarto, apressada, tirando as roupas do armário e das gavetas para
acomodá-las na valise.
— Por que está com tanta pressa? Seu trem não e às quatro e meia?
— O sr. Moor vai me dar uma carona, vamos embora daqui a pouco.
Sara abraçou Suzy, num gesto impulsivo.
— Obrigada, Suzy, eu sabia que você ia inventar uma desculpa para afastar esse
homem daqui. Só lamento que precise ir também... Não sei o que teria feito nessas
últimas semanas sem a sua ajuda! Suzy sorriu com tristeza.

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— Agradeça ao seu marido, porque a idéia foi dele. Na cena, quer poupá-la de
outra viagem a cidade...
Terminando de arrumar a bagagem, Suzy desceu até a sala, onde Lionel a
esperava. Alex ainda lhe deu as últimas instruções sobre o trabalho no escritório e cerca
de vinte minutos depois ela acenava da janela do carro enquanto Lionel guiava pela
estrada à beira-mar. O barulho das ondas e o grasnar das gaivotas ainda os acompanhou
por algum tempo até pegarem a rodovia principal para Londres.
Lionel dirigia em silêncio. Os dois nem sequer se olhavam e isso contribuía para
fazer crescer o clima de tensão. Apesar de manter uma aparência despreocupada, Suzy
sofria cada minuto daquela situação, como se fosse uma tortura interminável.
— Que tal um pouco de música? — ele perguntou de repente. — Escolha uma fita.
Estão no porta-luvas.
— Você tem alguma preferência?
— Não, gosto de todas.
Suzy escolheu uma música suave, mas nem isso a ajudou a relaxar. A atitude
hostil de Lionel a incomodava, embora ela se esforçasse para não deixá-lo perceber. Em
cada olhar, em cada gesto dele havia uma acusação velada. Era como se ela fosse a
responsável por tudo de ruim que acontecera três anos antes.
— Imaginei que você estivesse casada a esta altura — Lionel comentou.
— É, mas não estou.
A resposta soou como um desafio, embora não fosse essa a intenção. Afinal, o
casamento não fazia parte dos planos dela, pelo menos não fazia mais. Não desejava
compromissos ou envolvimentos amorosos para não ser magoada outra vez.
— Mas você tem namorados! Não me diga que não há nenhum, não vou acreditar.
— Se não vai acreditar, não vou perder tempo tentando convencê-lo... E você?
Também não se casou?
De repente, ocorreu a Suzy que talvez houvesse uma mulher apaixonada
esperando por ele em Londres, quem sabe até um filho. Seria natural, todos acabavam
por seguir esse caminho, disse a si mesma. Entretanto, o coração contraiu-se dentro do
peito ante essa idéia.
— Não — ele respondeu por fim. — Também continuo sozinho.
Suzy sentiu um alívio enorme ao ouvir aquilo, apesar de deplorar tal sensação.
Devia estar louca por nutrir tais sentimentos em relação a Lionel...
Soltou um suspiro resignado e olhou, distraída, pela janela. Precisava dar tempo a
si mesma, ter paciência. Poucas horas antes, a imagem de Lionel guardada na memória
era a de um homem gentil, carinhoso, companheiro. Demoraria algum tempo para se
habituar com o novo comportamento dele, diferente em tudo da pessoa que conhecera.
— Você não contou a Stevenson que nos conhecemos, não é?
— Não.
— Ele sabe que...
— Ele não sabe nada sobre minha vida particular e eu prefiro assim.
Lionel sorriu, mas não fez nenhum comentário. Depois de alguns instantes,
encarou-a com ar sombrio.

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— A mãe de Mark morreu faz alguns meses — disse.


— Eu não sabia...
— Eu a dispenso de dizer que sente muito. Detesto hipocrisia!
Lionel pisou mais fundo no acelerador, na certa querendo se desfazer da tensão
que o dominava. Mais uma vez, um silêncio constrangedor se interpôs entre os dois como
um abismo intransponível.
Mark fora o melhor amigo de Lionel. Conheciam-se desde a infância e estudaram
juntos até a universidade. Embora fossem inseparáveis, havia entre eles uma eterna
competição, tanto nos estudos quanto nos esportes. Mas a amizade dos dois encontrava-
se muito além das vitórias ou fracassos de cada um, mesmo que a disputa nunca
cessasse.
Suzy nunca conseguira compreender os motivos para competirem entre si daquela
forma. Provavelmente, nem mesmo Lionel saberia explicar.
Pensando sobre isso, ela quase não se deu conta de haverem parado diante do
prédio onde morava, cujo endereço dera a Lionel na saída de Romney Marsh. Depois de
estacionar o carro, ele insistiu para carregar a valise até o apartamento e Suzy acabou
por aceitar o oferecimento, surpresa com a repentina gentileza.
Quando chegaram à porta, ela o convidou a entrar por simples cortesia, entretanto
ele aceitou de imediato.
O apartamento ficava no segundo andar e era bem pequeno. Apesar disso, Suzy o
decorara com bom gosto, aproveitando cada centímetro do espaço disponível. Isso
somado à vista bonita dos jardins públicos diante da enorme janela da sala contribuía
para tornar o ambiente aconchegante e bonito.
Lionel colocou a valise no chão e olhou em torno com ar de aprovação. Suzy
permaneceu perto da porta, tentando achar uma maneira de fazê-lo ir embora.
— Charmoso — ele disse, ainda observando ao redor. — Foi você mesma quem
decorou?
— Fui eu mesma... Escute, é melhor você não deixar o carro tanto tempo
estacionado lá fora...
— Não vi nenhuma placa indicando estacionamento proibido...
— Mas podem roubá-lo, ou aos acessórios... Lionel encarou-a por um momento
com ar sombrio.
— Minha presença a incomoda tanto? Suzy sorriu com frieza.
— Não, claro que não. Por que deveria me incomodar?
— É verdade, por quê? Afinal de contas, estamos no coração de Londres, à luz do
dia e somos pessoas adultas, civilizadas... Isso elimina a possibilidade de fazermos uma
loucura qualquer...
Os olhos de Lionel, entretanto, desmentiam-lhe as palavras. Um brilho estranho,
mistura de ódio e desespero, refletia-se neles quando pousaram sobre Suzy. Em vão, ela
tentou identificar o terceiro componente daquela expressão, algo dolorido e poderoso
como um sofrimento muito profundo. Seria culpa de tudo o que acontecera três anos
antes?
Antes de conseguir obter uma resposta, Lionel se aproximou e segurou-a pelos
ombros.

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— Você não mudou nada, parece um feitiço o que a conserva desse jeito. Esses
olhos grandes e inocentes devem enganar a todos, como me enganaram. Aposto como
tem nas mãos todos os homens que deseja, não é? Quantos existiram depois de mim?
Ela o encarou por um momento, pálida: o rosto dele parecia uma máscara de
ressentimento. Na voz, havia uma amargura indisfarçável e os olhos chamejantes a
devoravam com intensidade.
— Não me diga que tem se comportado como uma freira, eu não vou acreditar —
ele prosseguiu. — Isso só seria possível se você tivesse remorso, mas só sentem culpa
pessoas que possuem consciência!
— Ou quem tem razões concretas para sentir. Sinto muito. Lionel, mas não estou
em nenhum dos casos. Ele sorriu, mordaz.
— Não esta mesmo? Mas que modo conveniente de pensar. Tudo aconteceu
porque tinha de acontecer, não houve culpados, não é assim? A quantos outros envolveu
com essa carinha de anjo, Suzy? Deve ser fácil para você se livrar deles, já que pensa
assim!
— Minha vida particular não lhe diz respeito, Lionel! — Suzy exclamou, indignada.
— Com que direito você entra em minha casa me fazendo acusações? Eu não sou sua
propriedade e não lhe dou o direito de me cobrar pelo que quer que seja!
— Nisso tem razão, você não é minha, nunca foi, aliás... Só não compreendo por
que mentiu e me fez sentir que teríamos uma chance de sermos felizes...
— Lionel, por favor! Você não está em condições de discutir isso e eu...
— Você usa as pessoas, Suzy! Seus sentimentos são apenas um disfarce
conveniente para chegar aonde quer. Pois bem, agora, vou ser rico e famoso, você ouviu
seu patrão dizer isso... E estou com muita saudade da época em que você me convencia
de que me amava. Não quer tentar de novo?
As mãos de Lionel desceram, acariciantes, para a cintura de Suzy, até que num
movimento brusco ele a puxou para si. Em seguida, inclinou a cabeça e acompanhou-lhe
o contorno dos lábios com a língua febril. Ao mesmo tempo, explorava-lhe o corpo com
carícias tão insolentes que, por um momento, Suzy pensou estar diante de outro homem.
Lionel sempre fora um cavalheiro, jamais a tocara com tanto atrevimento!
Passado o primeiro impacto, porém, desvencilhou-se dele num gesto rápido.
Indignada e magoada com o tratamento injusto, encarou-o por um instante e, erguendo o
braço, deu-lhe uma bofetada com toda a força da revolta que sentia.
— Saia já daqui, Lionel! Você não tem o direito de me tratar dessa maneira, como
se eu fosse uma qualquer! Se eu mereço ser condenada por alguma coisa, é por me
envolver com gente como você!
Ele a encarava desnorteado, como se o tapa o houvesse despertado de um sonho.
Depois, recompondo-se, reassumiu a expressão de cinismo e deu um passo na direção
de Suzy, fazendo menção de dizer alguma coisa. Entretanto, desistiu da réplica e, depois
de olhá-la com desdém, fez meia-volta e saiu batendo a porta.
Por um instante, Suzy ficou sem ação, de pé no meio da sala. Não podia acreditar
no que acabara de acontecer, não fora Lionel quem fizera tudo aquilo! Aquele era um
estranho, alguém cujo único objetivo era humilhá-la... Mas, por quê?
Deixou-se cair no sofá, perplexa. Também não reconhecia a si mesma por
esbofetear Lionel, por expulsá-lo, por manter tanto sangue-frio numa ocasião tão tensa. E,

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principalmente, desconhecia em si própria a capacidade de odiar alguém com tanta


intensidade como odiava Lionel naquele momento.

CAPÍTULO III

Suzy quase não conseguiu dormir naquela noite. Tinha vontade de desistir de tudo,
de ligar para Alex e pedir demissão por telefone mesmo. Só assim estaria certa de se ver
livre de Lionel e das lembranças amargas que ele insistia em lhe trazer de volta.
Ao mesmo tempo, entretanto, ela não se sentia no direito de fugir. Alex ainda
estava se recuperando de uma doença grave... Se o abandonasse naquele momento,
com certeza ele teria de voltar ao trabalho mesmo sem ter condições físicas para isso.
Era preciso suportar aquela situação, pelo menos até Alex voltar, ela concluiu por
fim, após horas de indecisão. Havia muitos assuntos que só ela poderia resolver na
ausência do patrão. Se deixasse o emprego, ele não poderia mais viajar para as
Bahamas e, se alguma coisa grave acontecesse a ele por causa disso, Suzy jamais se
perdoaria.
Abandonar o cargo implicava, também, contar toda a verdade a Alex. Ele não se
conformaria com um pretexto qualquer para uma decisão tão radical, conhecia-a muito
bem para saber que apenas um motivo muito grave a faria abrir mão de suas
responsabilidades profissionais.
Suzy não desejava revelar seu segredo a ninguém. Se ela própria não o fizesse,
duvidava que Lionel tivesse tal coragem. Ele também se sentia culpado, mais do que ela
talvez, apesar de negar isso em todas as atitudes. Ele não aprendera a conviver com as
lembranças e, com certeza, elas se tornavam ainda mais dolorosas por causa disso...
Não havia outra saída para ela senão continuar com aquela farsa, Suzy concluiu
desanimada, levantando-se da cama assim que o dia amanheceu. Pelo menos por
enquanto, até que Alex estivesse em condições de reassumir por completo suas funções,
teria de tratar com Lionel todos os detalhes do roteiro. Mas faria isso por telefo ne. Quanto
menos o visse, mais se pouparia de aborrecimentos desnecessários.
Logo ao chegar ao escritório, Suzy telefonou para Carina Davis. A voz quente e
sedutora tomou um acento de desconfiança ao perceber com quem estava falando.
— Olá, Suzy, não me diga que Alex achou outro defeito naquele script...
— Não... Na verdade dessa vez ele quer outro favor. Quando Suzy começou a
explicar o motivo do telefonema, o tom de voz de Carina mudou por completo.
— Lionel Moor? Claro que sei quem é! Já o vi pilotar e, por coincidência, estou
lendo o livro dele, Beijo de Fogo. Diga a Alex que vou adorar esse trabalho. Por falar
nisso, como ele está?
— Bem melhor.
— Que bom. Escute, por que não me dá o número do telefone de Lionel Moor?
Você deve ter mais o que fazer do que ficar marcando encontros para nós... Posso muito
bem fazer isso sozinha.

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— Ficaria muito grata se fizesse isso, Carina. Realmente, tenho muita coisa para
fazer.
Apesar da indiferença que tentou demonstrar, Suzy sentiu-se triste e ressentida.
Lionel e Carina se dariam muito bem, era óbvio, e isso a pouparia de vê-lo com
freqüência. No entanto, ao dar o número para Carina, parecia perder algo muito
importante, sem o que não poderia ser feliz.
Quando Carina desligou, entretanto, Suzy já havia recuperado o senso prático.
Lionel a odiava e ela devia, no mínimo, manter-se indiferente a ele. O que lhe importava
se ele saísse com outra mulher? Talvez fosse até melhor pois, assim, ela o esqueceria
com maior rapidez.
Mas, em seu íntimo, havia um sentimento louco e inexplicável, adormecido durante
muito tempo e que viera à tona quando vira Lionel no dia anterior. Agora, seria muito difícil
sufocá-lo outra vez...
Suzy tentou afastar tais pensamentos e concentrar-se no trabalho. Precisava
telefonar para o departamento de direitos autorais e avisá-los da intenção de Alex em
adquirir os direitos sobre o livro de Lionel. Estava tão entretida em procurar o número na
agenda que não percebeu a aproximação de alguém.
— Como você está bonita! — disse uma voz.
Suzy teve um ligeiro sobressalto e olhou para a porta. Depois, forçou um sorriso ao
constatar quem era o recém-chegado.
— Obrigada, Joe, e bom dia. Mas não estou tão bem assim por dentro...
Joe, um rapaz alto e moreno, a observou por um momento com os olhos negros e
um tanto tristes.
— Posso muito bem imaginar por quê. Você foi passar o fim de semana com Alex,
não foi? Ele deve ter se comportado como um leão na jaula; esses diretores são fanáticos
por trabalho. Vejo sombras no fundo desses lindos olhos azuis; mas não se preocupe, sei
exatamente do que você precisa. Um bom almoço no El Sombrero, regado a muito vinho
e uma longa conversa.
Ela riu, abanando a cabeça.
— Seu bobo!
— Vou fingir que não ouvi nada. Espero você à uma hora, lá embaixo.
— A idéia não é má, Joe, mas...
— Por favor, aceite. Também estou precisando conversar com alguém. Poderemos
consolar um ao outro. — Joe encarou-a com um ar triste antes de prosseguir. — É que
Linda foi para a Espanha hoje de manhã. Nem se preocupou em como eu estava me
sentindo. Apenas pegou a câmera e a bagagem e foi embora. As filmagens começam na
próxima semana e vão durar uns cinqüenta dias. Isso significa que só a verei de novo
daqui a dois meses! Eu devo ser muito masoquista para me apaixonar por uma mulher
tão fanática pelo que faz!
— Eu não sou a pessoa mais indicada para dar conselhos sobre isso, Joe. Não
consigo dar um jeito nem na minha vida amorosa...
— Eu não sabia que você tinha vida amorosa — ele disse, surpreso.
— Muito obrigada pelo elogio!

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— Desculpe, não quis ofendê-la. É que você é uma pessoa tão bem-humorada.
Nunca pensei que tivesse problemas desse tipo... É alguém que eu conheço? Se eu
puder ajudá-la em alguma coisa, é só falar... — De repente, Joe ficou sério. — Suzy, não
é...
— Não, Joe, não é Alex! Deus do céu, era só o que me faltava! Ele baixou a
cabeça, encabulado.
— Está bem, desculpe...
Apesar de estar com quase trinta anos, Joe parecia bem mais jovem. Isso se devia,
em parte, ao rosto de traços suaves, mas em especial ao espírito jovial e brincalhão.
Trabalhava no setor de administração da Empire Films, mas não estava contente com o
emprego. Considerava o serviço muito limitado e enfadonho e só não o deixava por ter
esperança de ser transferido para outro departamento.
Faltava a Joe um pouco mais de arrojo para realizar seus projetos. Isso explicava,
em parte, sua paixão por Linda. Ela começara na empresa como simples assistente de
fotografia e apenas com muito esforço chegara ao cargo atual de assistente de direção.
Aos vinte e nove anos, possuía tanto talento e originalidade quanto Joe, apenas com uma
pitadinha mais de coragem.
Linda e Joe namoravam há bastante tempo e Suzy se perguntava por que ela não
se decidia de uma vez. Fosse qual fosse a resolução, seria melhor que deixar Joe sempre
na expectativa, sofrendo a cada despedida, como naquele momento. Talvez a garota
gostasse dele, mas tivesse medo de assumir um relacionamento definitivo por causa da
carreira...
— Então, vamos almoçar juntos? — ele insistiu.
Suzy sorriu, incapaz de recusar. Talvez ele tivesse razão: ambos precisavam se
distrair e almoçar juntos poderia ajudá-los nisso.
— Está bem, Joe.
— Então à uma hora, na entrada principal.
Quando Joe saiu da sala, mais animado, Suzy ligou para o departamento de
direitos autorais. Como esperava, os responsáveis pela seção ficaram irritadíssimos com
a atitude de Alex de se antecipar a eles e falar diretamente com o autor.
— Agora estamos de mãos amarradas — um dos chefes do departamento
argumentou, nervoso. — O autor e seu agente sabem do interesse de Alex pelo livro e
vão aumentar muito o preço para fechar contrato! Alex sabia muito bem que isso
aconteceria!
— Sinto muito, eu sei que tem razão, mas não posso responder pelo
comportamento do sr. Stevenson.
Do outro lado da linha, o homem fez uma pausa em suas lamentações.
— Não sei o que o sr. Jonas vai dizer...
— Quando o sr. Jonas voltar, tenho certeza de que ele e o sr. Stevenson vão
acabar se entendendo. Por isso, se eu fosse o senhor, daria entrada nos papéis agora
mesmo...
Suzy compreendia a situação do homem e não estava zangada. Mas não podia
admitir servir de bode expiatório para as atitudes do patrão.
Suzy trabalhou como nunca naquela manhã. Havia diversos assuntos pendentes a
ser resolvidos, alguns dependendo apenas de um palpite ou permissão de Alex, A notícia

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de que o diretor se ausentaria por mais tempo na certa se espalhara, pois todas as
pessoas envolvidas em alguma transação com ele a procuraram. Por sorte, tinha
perguntado a Alex a direção a ser dada a cada caso e, por isso, resolveu tudo com
bastante desembaraço.
Ao descer para o almoço, Suzy bendisse a hora em que aceitara o convite de Joe.
Ele era uma ótima companhia para saborear a deliciosa comida mexicana e o vinho leve e
gostoso. No restaurante, após terem esvaziado a primeira garrafa, Joe insistiu em pedir
outra. Em poucos minutos, estava tão de bom humor que acompanhava a música
romântica dos alto-falantes, chamando atenção dos outros fregueses com sua voz
desafinada.
Após várias xícaras de café forte, entretanto, Joe foi ficando deprimido e Suzy
achou melhor levá-lo de volta ao escritório. Durante todo o trajeto e mesmo no elevador,
ele falou sem parar de suas amarguras com Linda, comovendo-se até às lágrimas com o
próprio relato.
Chegando a sua sala, Suzy acomodou-o numa cadeira e foi fazer outro café. Joe
começou a cantarolar uma música triste, e Suzy fechou a porta que dava para o corredor.
Não queria chamar a atenção das pessoas que voltavam do almoço.
Quando se aproximou dele com a xícara de café, Joe encostou a cabeça à cintura
dela, com um ar de criança desamparada.
— Você não teria coragem de fazer isso com um homem apaixonado, não é, Suzy?
Você é uma garota legal... Por que não amo você ao invés daquela ingrata?
Suzy acariciou-lhe os cabelos, rindo.
— Vamos, Joe, coragem! Você precisa voltar ao trabalho e eu lambem...
Nesse momento, alguém abriu a porta. Erguendo a cabeça Suzy deparou-se com o
olhar frio de Lionel a observá-los.
— Desculpe interromper — ele murmurou.
— Quem é este? — Joe perguntou. — Nunca o vi por aqui antes...
Lionel voltou-se para Suzy, com ar de espanto.
— Ele está bêbado?
— Ninguém está bêbado aqui. — Joe ergueu-se cambaleando. — Repita isso, se
for homem!
— Sente-se, Joe! — Suzy ordenou, impaciente, estendendo para o amigo a xícara
de café. — Tome isso, por favor, e fique quietinho enquanto eu converso com este
senhor.
Com um gesto de cabeça, ela pediu a Lionel para segui-la. Já era muito
desagradável vê-lo de novo depois do incidente do dia anterior, e as circunstâncias atuais
contribuíam para piorar ainda mais a tensão existente entre os dois. Quando se veria livre
daquele pesadelo?
Suzy se fazia essa pergunta, angustiada, ao entrar na sala de Alex. Ao se voltar,
Lionel fechara a porta e, encostado a ela, a observava, calmo. Suzy odiou a si mesma por
achá-lo tão atraente com aquela jaqueta de couro escura e calça de lã preta. Como
poderia esquecê-lo, se não conseguia se desfazer daquela atração?
— Se Stevenson souber dessas pequenas comemorações na ausência dele, na
certa vocês dois vão precisar de um outro emprego com urgência.

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Suzy respirou fundo, decidida a não aceitar a provocação.


— Falei com Carina Davis e ela vai procurá-lo logo, sr. Moor.
— Já conversei com ela, combinamos um almoço para quarta-feira.
Suzy sorriu, para esconder a sensação desagradável que a notícia lhe provocara.
— Não me diga que veio aqui só para me dizer isso. Poderia tê-lo feito por
telefone...
— Poderia, se você não fosse almoçar conosco. Não fica bem convidar alguém por
telefone. É falta de educação, sabe?
Suzy conteve a custo a irritação.
— Obrigada pelo convite, mas acho que vocês se sentirão bem mais à vontade se
estiverem a sós.
— Não é um convite, são as determinações do seu patrão. Ele quer que você seja
o contato entre eu e a srta. Davis.
— Não. O senhor entendeu mal. Ele quer que eu sirva de intermediária entre vocês
dois enquanto ele estiver nas Bahamas.
— Pois não foi isso o que ele me disse. Falei com Alex por telefone hoje de manhã
e ele afirmou que seria muito bom se você estivesse presente nesse primeiro encontro.
Afinal de contas, eu e a srta. Davis não nos conhecemos ainda. Sua presença vai facilitar
muito as coisas...
Suzy o encarou, disfarçando a sensação de raiva e impotência por ter de aceitar
aquele papel ridículo. Carina também não ficaria nada feliz em tê-la por perto e isso só
contribuiria para tornar sua posição mais constrangedora. De repente, a voz de Joe ecoou
na sala ao lado.
— Suzy, onde você está? Preciso tanto de você... Lionel lançou-lhe um olhar duro.
— Ele precisa de você — repetiu, irônico.
Suzy se aproximou da mesa de Alex e pegou um bloco de anotações.
— A que horas será esse almoço e onde?
— No Savoy, às doze e trinta... Foi a srta. Davis quem escolheu o restaurante.
Acho que ela tem gostos meio caros e não abre mão deles. Você deveria tê-la prevenido
de que eu sou um escritor pobre... por enquanto.
— Não me cabe fazer esse tipo de comentários — ela afirmou, com frieza. — Sou
apenas a intermediária entre vocês dois.
Joe chamou-a de novo na outra sala e Lionel virou-se em direção à porta. Suzy se
aproximou para sair também mas, de repente, ele se voltou num gesto brusco,
bloqueando-lhe a passagem. A ironia desaparecera por completo do rosto dele, deixando
apenas uma expressão de sofrimento e ódio.
— O que você viu num sujeito desse?
Tentou segurá-la pelo braço, mas Suzy escapuliu, rápida.
— Não ponha as mãos em mim! Quanto a minha vida particular, posso muito bem
cuidar dela sem a sua interferência!
— Mesmo?! Eu só gostaria de saber por que você sempre escolhe homens fracos.
Por acaso tem medo dos independentes, que podem exigir muito mais do que a sua

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piedade? Homens como esse aí ao lado, ou como Mark, não pedem muita coisa, não é?
E, em troca, dão tudo, até a própria vida...
Suzy retesou todos os músculos do corpo ao ouvir aquilo. A ausência total de
remorso no rosto dele a fez tremer de raiva. Não queria um confronto direto com ele, não
desejava magoá-lo com a verdade. Por que, então, Lionel insistia em atormentá-la com
acusações mentirosas? Nada neste mundo a obrigaria a suportar calada tais calúnias...
Fitou-o nos olhos com firmeza, o rosto pálido de indignação.
— Eu não matei Mark, Lionel. Mas se você acha que fiz isso, deve se lembrar de
que não foi sozinha...
A voz saiu-lhe rouca da garganta, ecoando como uma maldição dentro dela
própria. Lionel afastou-se, o rosto rígido tomado de repente por uma palidez intensa. Suzy
passou por ele e foi para a outra sala, onde Joe a aguardava.
— Onde você estava? — o amigo perguntou, ao vê-la entrar. Nesse instante,
Lionel atravessou a sala a passos largos e saiu, batendo a porta atrás de si. Joe olhou-a,
confuso, enquanto ela tentava lhe sorrir.
— O que foi isso? — ele perguntou.
— Um furacão... Escute, você precisa ficar sóbrio e voltar depressa ao trabalho
antes de alguém dar pela sua falta. Vou fazer outro café, mas depois você precisa ir
embora, Joe.
Suzy foi para a cozinha, aproveitando a oportunidade para ficar a sós. Estava com
uma dor de cabeça terrível, as têmporas latejavam como se fossem estourar...
Minutos depois, serviu a Joe um café ainda mais forte que o primeiro. Observou-o
tomando a bebida fumegante mas, na verdade, não o via. Diante dos olhos, voltava-lhe
sempre a imagem do rosto lívido e contraído de Lionel, ao ouvir-lhe a acusação.
Não quisera magoá-lo, mas ele não lhe deixara alternativa. Não suportava mais as
constantes insinuações, o modo acusador como ele a olhava. Preferiria jamais ter dito
aquilo pois, de alguma forma, magoara a si mesma por fazê-lo. Falara apenas a verdade
e Lionel sabia disso. Entretanto, só aprofundara o abismo existente entre eles, tornando-o
ainda mais intransponível.
Joe logo se recuperou depois do segundo café forte. Quando ele voltou para sua
sala, Suzy se preparou para terminar o dia de trabalho.
Ao contrário da manhã, a tarde foi calma. A maioria das pessoas já sabia que
deveria tratar com ela todos os assuntos durante a ausência de Alex. Isso as acalmara e
ninguém mais tinha tanta pressa em resolver os problemas.
Suzy aproveitou a calmaria para pôr o escritório em ordem. Sem Alex por perto
para requisitá-la a todo momento, foi possível colocar o arquivo e a correspondência em
dia. E assim, no fim de poucas horas, conseguiu dar conta do serviço acumulado havia
meses.
Às cinco e meia, quando já se preparava para ir para casa, o telefone tocou. Ela
atendeu, torcendo para não ser um problema de última hora. Só queria chegar ao
apartamento, tomar um banho e descansar um pouco...
— Suzy? — uma voz agitada perguntou. — Escute, eu sei que está cansada. Não
lhe pediria isso se tivesse outra pessoa a quem recorrer... mas a mocinha que costuma
ficar com as crianças está com catapora, a mãe acabou de ligar dizendo que ela não
poderia vir. O pior é que Derek precisa ir a esse jantar. É a primeira vez que o presidente

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da empresa o convida, se não formos vai parecer desfeita... Então, Derek pode dizer
adeus à promoção deste ano!
— A que horas você quer que eu esteja aí? — Suzy perguntou, aproveitando a
pausa que a interlocutora fizera para tomar fôlego.
Logo no início da conversa, tinha reconhecido a voz de Clarrie. A crise doméstica
era típica da irmã, cujos planos sempre estavam ameaçados por algum imprevisto.
— Obrigada, Suzy! Você poderia chegar às sete horas? Temos de estar lá às sete
e meia, só Deus sabe como vou me aprontar... Ainda não dei banho no bebê, o cachorro
fugiu para o campo de golfe, vai voltar coberto de pó e vou ter de dar banho nele
também!... Espero que não tenha de cancelar nenhum compromisso por minha causa,
querida. Você está saindo com alguém? O que aconteceu com aquele rapaz de orelhas...
— Estarei aí às sete em ponto e cuido do cachorro se ele ainda não tiver voltado,
não se preocupe. Não vou cancelar nenhum compromisso e não sei o que quer dizer com
"aquele rapaz de orelhas". Que eu me lembre, todos os meus namorados tinham orelhas,
um par delas...
— Mas não tão grandes quanto as dele, espero... William, não bata no seu irmão
com isso, vai quebrá-lo desse jeito! Está vendo, seu teimoso?! — Clarrie fez uma curta
pausa, durante a qual Suzy ouviu uma palmada e um choro. — Vejo-a daqui a pouco,
Suzy. Você é um anjo!
Suzy desligou o telefone rindo. Cuidar dos sobrinhos não era uma tarefa fácil.
Agitados e cheios de energia, deixavam qualquer um exausto após poucas horas. O
membro mais calmo da família Coran era a pequena Anna, um bebê de apenas sete
meses. Depois de bem alimentada, dormia tranqüila sem incomodar ninguém.
De qualquer forma, estar envolvida na agitação de cuidar das crianças era bem
melhor do que ficar em casa, amargando lembranças desagradáveis. Suzy pensava nisso
ao chegar à residência da irmã. Derek, o cunhado, encontrava-se no hall, olhando para o
elogio com ar de preocupação. —Sinto muito, estou atrasada? — Não, mas sua irmã
está... Clarrie?
O grito fez aparecer duas cabecinhas por cima do corrimão, na sala ao lado.
— Oi, tia Suzy. Anna está com dor nas gengivas e mamãe não consegue fazê-la
dormir — William explicou, justificando o choro vindo do andar superior.
—- Clarrie, precisamos sair já! —- Derek tornou a gritar. Nesse momento, Clarrie
apareceu no topo da escada, impondo silêncio com o dedo sobre os lábios.
— Estou quase conseguindo, mas pare de gritar!
— Pode ir, Clarrie, eu cuido dela — Suzy ofereceu.
A irmã aceitou a sugestão e começou a descer a escada, mas Derry, o garoto de
quatro anos, agarrou-se à mãe implorando para ir também.
Suzy ergueu-o no colo, tentando acalmá-lo com a promessa de ler uma história
para ele depois de fazer Anna dormir. Derry continuou gritando, vermelho de raiva e
lágrimas, enquanto William descia a escada escorregando pelo corrimão. Derek pegou o
braço da esposa e apressou-se em direção à saída. Antes de se retirar, Clarrie ainda
tentou dar algumas instruções.
— Os remédios para dor de barriga e de ouvido estão no armarinho do banheiro...
Dê uma mamadeira às dez e meia se ela acordar, mas...

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— ... não a acorde só para isso, eu sei! Já passei por isso duas vezes, com os
garotos, lembra?
Enfim, quando Derek conseguiu levar a esposa para fora da sala, Suzy fechou a
porta e virou-se para os sobrinhos.
— Quem quiser ouvir uma história bem bonita, vai ter de me ajudar a fazer Anna
dormir.
Não foi preciso falar duas vezes: os dois subiram a escada correndo e entraram no
quarto em algazarra. William começou a balançar o berço da irmã, entretendo-a por
algum tempo. Suzy aproveitou para colocar Derry na cama e, quando voltou para pegar
William, Anna já havia adormecido.
Suzy leu uma longa história para os dois antes de desligar as luzes e descer a
escada em silêncio. Deixou-se cair numa poltrona e olhou para o relógio de pulso. Eram
oito horas e ela teria no mínimo três de espera. Olhou para a televisão mas logo desistiu
da idéia. O barulho despertaria os sobrinhos e eles se recusariam a ficar no quarto com o
aparelho ligado na sala.
Nesse momento, Anna começou a chorar de novo. Suzy subiu a escada e logo
descobriu ter companhia para consolar o bebê, pois os dois garotos haviam saído da
cama.
Suzy pegou a garotinha no colo e caminhou de um lado para outro do quarto,
tentando fazê-la adormecer. Quando conseguiu, precisou de muito carinho e alguma
autoridade para convencer os meninos a voltar a suas camas.
Às nove, a casa finalmente mergulhara em completo silêncio e Suzy desceu a
escada, não sem antes se assegurar de que os sobrinhos dormiam realmente. Na
verdade, achara tudo aquilo divertido mas, para Clarrie, não devia ser nada fácil. Ficar
entre aquelas quatro paredes, correndo o dia inteiro sem descanso, era muito pior do que
aturar Alex ou qualquer outro chefe no escritório. Pelo menos para ela havia um final de
expediente, quando podia ir para seu apartamento e descansar...
Suzy sentou-se numa poltrona da sala, recostando a cabeça no encosto. Fechou
os olhos só para descansar um pouco, pois a qualquer momento o bebê podia acordar
com fome e reclamar a mamadeira das dez.
Pensando nisso, ela tentou abrir os olhos para consultar o relógio de pulso, mas
não teve coragem de fazê-lo... Em poucos minutos, havia adormecido...
— Suzy! Suzy, acorde!
A voz chegava-lhe misturada a ruídos terríveis: a explosão de metais e vidros,
gritos, o ranger de pneus, o fogo queimando, destruindo tudo... Suzy voltou a si, pálida e
assustada, deparando-se com o rosto apreensivo da irmã a observá-la. Por um momento,
não teve consciência de onde estava nem do que acontecera.
— Você teve um pesadelo — Clarrie explicou, abraçando-a. — Parecia um sonho
horrível!
Derek ainda estava na porta, com um ar apreensivo. — Vou fazer um chá para nós
— ele anunciou, já saindo em direção à cozinha.
Suzy tentou controlar o próprio tremor. As imagens começaram a se diluir, voltando
para o mundo das lembranças, onde ficariam bem guardadas.
No início, aqueles sonhos haviam sido freqüentes, repetindo-se todas as noites nas
primeiras semanas. Com o tempo, porém, foram rareando devagar, até cessarem por
completo. Na certa, o contato com Lionel os trouxera de volta.

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— Eu pensei que você já tivesse superado isso — Clarrie observou, preocupada.


Suzy também pensara assim. Estava tão certa de haver se curado que já nem se
lembrava mais dos pesadelos. Se soubesse da possibilidade de uma recaída, jamais teria
comprado o livro de Lionel.
— Eu falei alguma coisa enquanto dormia? — indagou, angustiada.
— Você estava gritando o nome de Mark...
Suzy sabia exatamente o significado daquilo. Era sempre o mesmo sonho: o carro
capotando, explodindo em chamas, ela chamando por Mark em desespero...
— Suzy, já faz tanto tempo! Quase três anos... foi em março, não foi? Ainda me
lembro como estava frio...
Suzy se lembrava também. Um magnífico dia de inverno, o céu límpido, sem
nuvens... Ela se ergueu da poltrona, tentando evitar as perguntas de Clarrie, mas a irmã a
seguiu, segurando-a pelo braço.
— Você continua tendo esses sonhos? Já devia ter esquecido tudo aquilo! Estou
preocupada com você. Eu sei que a morte de Mark foi um choque terrível, mas pilotos de
automóveis estão sujeitos a isso... Você devia saber disso quando ficou noiva dele. Não
pode ficar lamentando o resto da vida, é muito nova para viver do passado, Suzy! Procure
alguma ajuda para se livrar dessas lembranças, um tratamento, talvez, mas não destrua a
sua vida!
— Não tenho esse sonho há meses... É tarde, Clarrie, e estou cansada. Se não me
apressar, perco o último trem...
— Nem pense nisso, Derek vai levá-la em casa. O metrô não é nada seguro a essa
hora...
— É isso mesmo, eu vou levá-la, mas antes tome um pouco desse chá. Vai ajudá-
la a relaxar.
— Obrigada, mas estou com pressa.
— Você deve estar mesmo exausta depois de ter cuidado dos três — Derek
comentou. — Eu sei que eles são impossíveis!
— É claro que não, eles foram uns anjos — Suzy mentiu.
— Pois eu não acredito, mas obrigado pela ajuda. Esse jantar foi muito importante
e acho que tudo saiu da melhor maneira possível.
Suzy pegou o casaco e Derek ajudou-a a vesti-lo.
— Durma aqui hoje, Suzy. O quarto de hóspedes está pronto... — Clarrie pediu.
Mas Suzy não se deixou convencer. Precisava ficar sozinha, refletir sobre o rumo
estranho que sua vida estava tomando nos últimos dias.
Chegando em casa, foi logo se deitar e não demorou muito a adormecer. Dormiu a
noite inteira, um sono pesado e sem sonhos. Pelo menos, não havia nenhuma imagem
retida em sua mente quando acordou pela manhã. Entretanto, as olheiras que ela
disfarçou com cuidado quando se maquilou revelavam-lhe a tristeza e a preocupação.

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CAPÍTULO IV

Quarta-feira amanheceu um dia frio e chuvoso. Por isso, quando Suzy entrou no
hall principal do Hotel Savoy, não estranhou encontrar muitos hóspedes reunidos ao redor
da lareira. Sentados nos confortáveis sofás de couro, usufruíam do calor agradável, tão
diferente da umidade das ruas de Londres.
Sem saber ao certo para onde ir, dirigiu-se ao balcão de informações. Um
empregado uniformizado logo se ofereceu para ajudá-la, com modos respeitosos e
formais.
— Srta. Davis? Pois não, ela está no bar do restaurante, ao lado da entrada
principal.
Após receber todas as indicações do funcionário, Suzy encaminhou-se para o local
indicado. Instantes depois, via Carina sentada sozinha numa mesa, com um copo de
bebida nas mãos.
Suzy parou para observá-la a distância, tomando cuidado para não ser notada.
Sem dúvida, Carina era uma mulher bonita e sabia usar na medida certa a elegância e a
sofisticação.
Naquela tarde, por exemplo, o toque ousado na elegância da roteirista era o
chapéu de marta preto a cobrir-lhe parte dos cabelos escuros. O detalhe formava um
belíssimo contraste com o conjunto vermelho-escuro de lã, cujo corte insinuava-lhe as
formas do corpo bem-feito, realçando-as sem, no entanto, moldá-las. Para completar o
efeito, a maquilagem acentuava-lhe os pontos mais bonitos do rosto, os olhos negros,
grandes e expressivos e os lábios sedutores, cobertos por um batom no tom da roupa.
Carina chamava a atenção de muitos homens presentes no bar. Alguns a
admiravam abertamente, outros de modo mais discreto. Entretanto, ela não parecia muito
preocupada com os olhares insinuantes, distraída em observar o gelo derretendo dentro
do líquido alaranjado de seu copo.
Suzy aproximou-se da mesa, consciente do contraste da própria aparência em
relação à de Carina. Era um duelo de belezas e personalidades opostas, onde se tornava
impossível dizer quem era a vencedora.
No entanto, Suzy não estava ali para participar de uma competição. Por isso
mesmo, escolhera um discreto vestido de veludo azul-anil, que se assentava muito bem
às formas graciosas do corpo esguio. Sempre fora considerada mais bonita que as irmãs
mais velhas, Emily e Clarrie, mas nunca dera grande importância a isso. Em sua opinião,
a beleza era um acessório secundário e ela nunca se deixara impressionar pelo fato de
ser requisitada pela aparência física.

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Carina sorriu ao vê-la chegar, mas Suzy percebeu uma ponta de decepção no
rosto da outra mulher ao cumprimentá-la.
— Onde está Lionel? Não me diga que ele não vem...
— Pelo que sei, ele vem, sim — Suzy assegurou, sentando-se. Acontece que Alex
pediu para eu estar presente ao primeiro encontro de vocês.
— Mas por que ele achou isso necessário? Nunca precisei de intermediários para
tratar com meus clientes.
Suzy sorriu, percebendo o ciúme da outra. Na certa, estava mais ressentida por
sentir a confiança de Alex em Suzy do que por não poder falar com Lionel a sós.
— Talvez ele queira um relatório sobre todos os detalhes dessa conversa...
— Eu poderia muito bem fazer isso. Suzy ainda procurava uma justificativa
convincente para estar ali quando, de repente, a expressão de Carina se transformou num
grande sorriso de boas-vindas. Não precisou olhar para trás para saber que Lionel se
aproximava. Um alvoroço, misto de angústia excitação, dominou-a inteira ao sentir-lhe a
presença.
— Você é Lionel! — Carina exclamou, estendendo-lhe as duas mãos. — É um
prazer enorme conhecê-lo pessoalmente. Sempre acompanhei sua carreira de corredor e
foi uma surpresa muito agradável para mim descobrir o escritor talentoso que você é! Vai
ser ótimo trabalharmos juntos!
A voz de Lionel soou profunda e insinuante ao cumprimentá-la. Suzy não ergueu
os olhos para ver se a expressão do rosto dele condizia com o charme do tom. Ao invés
disso, procurou concentrar se no cardápio de bebidas e decidiu-se, por fim, por um
vermute seco. Quando voltou a prestar atenção nos dois, a conversa já estava adiantada.
— Sou novato nesse assunto, você vai precisar de muita paciência comigo —
Lionel dizia. — Vamos ter de começar da estaca zero...
— Não acredito nisso, mas ficarei feliz em lhe ensinar tudo o que sei.
Suzy sentiu uma dor estranha, indefinida, ao notar o modo insinuante como os dois
se fitavam. Havia algo no olhar de Lionel naquele instante que já pertencera só a ela.
Repartir esse tesouro com outra pessoa lhe parecia a pior das traições.
E Carina, por sua vez, não se fazia de rogada. Retribuía as atenções de Lionel na
mesma moeda, envolvendo-o e deixando-se envolver naquele jogo de sedução. Eram
pequenos toques, olhares intensos, palavras dúbias, tudo isso somando-se para formar
uma grande promessa, um desafio tentador...
Suzy participava o mínimo possível da conversa. Não desejava tornar público o
próprio sofrimento e o silêncio era o único meio de ocultá-lo. Foi um alívio quando Carina,
seguindo o exemplo de Lionel, deixou de pedir-lhe a opinião sobre um assunto ou outro.
Enquanto analisava o cardápio, Suzy escutava instruções de Carina a Lionel.
— Um roteiro deve ser bastante resumido, querido. Mas, por isso mesmo, cada
palavra é importante. Por exemplo, naquela cena do livro em que o herói encontra a
garota antes da corrida, você usou três páginas para descrever os pensamentos dele e o
diálogo dos dois. No filme, isso vai se resumir a uma troca de olhares e talvez quatro
linhas de diálogo, contanto que o conteúdo seja mantido.
Nesse momento, Suzy chamou-lhes a atenção para o garçom que esperava os
pedidos com paciência. Pouco depois a refeição era servida numa mesa luxuosa do
restaurante, para onde os três haviam sido encaminhados.

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Já saboreavam o delicioso peixe gratinado com aspargos quando Lionel quis saber
se precisaria mudar alguma coisa no caráter dos personagens.
— Não, eles estão ótimos! — Carina respondeu, com ênfase. — São todos bem
reais, convencem o público. Principalmente a garota, um autêntico demoniozinho
disfarçado. Eu mesma já conheci muitas assim, pessoas frias e calculistas que se
divertem com os sentimentos alheios. Por trás de carinhas lindas e inocentes, escondem
as mentes mais maquiavélicas...
Suzy observava a paisagem cinzenta através da janela, sentindo sobre si o olhar
arguto de Lionel. — O que acha, srta. Froy?
Ela voltou-se para ele com um sorriso calmo.
— Prefiro não arriscar uma opinião, sr. Moor. Comecei a ler o livro, mas ainda não
terminei...
— Como você conseguiu essa proeza?! — Carina admirou-se.
Eu não o larguei até chegar ao final! Adorei tudo no livro. Na minha opinião, Beijo
de Fogo é o melhor do ano, sem dúvida!
Suzy voltou a olhar a paisagem, desejando estar em outro lugar. Mais uma vez,
fora vítima da vingança sórdida de Lionel. Com que prazer mórbido ele a olhava quando
Carina tecia aqueles comentários sobre a personagem do romance, maldosamente
baseada nos fatos ocorridos três anos antes.
Lionel também usava Carina em seu ódio descabido. A moça não sabia nada a
respeito do passado dos dois e deixava-se levar pelo charme dele. Suzy compreendia
muito bem os sentimentos da outra mulher em relação a Lionel. Ela própria já passara por
aquilo...
Enquanto os dois escolhiam a sobremesa, Suzy olhou para as árvores do jardim do
hotel, cujos ramos pareciam encurvados pelo peso das gotas da chuva. Se pudesse voltar
atrás no tempo, jamais teria comprado o livro de Lionel na estação de trem. Se pudesse
adivinhar as conseqüências...
E pensar que tudo começara com um passeio inocente num dia de verão!
Na época, Suzy trabalhava no escritório de uma imobiliária e um dos corretores
insistia para que saíssem juntos havia muito tempo, finalmente ela resolvera aceitar o
convite para assistir a uma corrida de automóvel. Ao final da prova, talvez para
impressioná-la, o rapaz fizera questão de apresentá-la a um dos vencedores, Mark
Culloch.
Mark era um homem fascinante e Suzy ficara fascinada por ele. Loiro, alto,
extrovertido e muitíssimo charmoso, impressionara-a desde o primeiro aperto de mão. A
atração fora mútua: o olhar de Mark não escondera o interesse por ela.
Os organizadores da competição ofereceram uma festa em homenagem aos
vencedores e Mark convidara Suzy e seu acompanhante. Durante a noite inteira,
monopolizara-lhe a atenção, cobrindo-a de gentilezas. Ao fim da recepção, marcaram um
encontro para o dia seguinte.
— Não conte a ninguém — Mark pediu. — A imprensa toda vai ficar atrás de nós
quando souber, perderemos nossa privacidade por completo. Vamos nos ver às
escondidas, pelo menos por enquanto. Aliás, fica tudo mais gostoso quando se faz em
segredo...

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Suzy riu da brincadeira, sem estranhar o pedido. Afinal, Mark, como um dos pilotos
mais destacados da temporada, era o assunto preferido dos jornalistas esportivos, em
especial quando Lionel Moor participava das mesmas corridas.
A disputa entre os dois já se tornara famosa. Eles alimentavam o mito dessa
rivalidade por brincadeira; divertiam-se com as notícias publicadas a respeito e não
pretendiam alterar uma amizade tão antiga em função das vitórias ou derrotas nas pistas.
Entretanto, a competição entre os dois não era assim tão inocente, Suzy logo
percebeu. Ambos gostavam de vencer, mas Mark não suportava ser derrotado, nem
mesmo pelo melhor amigo.
Com o passar do tempo, os encontros entre Mark e Suzy foram se tornando mais
freqüentes. O mero passatempo transformara-se em compromisso de verdade.
Aos poucos, foi se tornando claro para Suzy o verdadeiro motivo de Mark para
manter o relacionamento em segredo. Não era perseguição dos repórteres que ele queria
evitar, mas um confronto direto com a mãe.
Possessiva ao extremo, a sra. Culloch encarava o filho como propriedade dela.
Talvez por ter ficado viúva muito cedo ou por Mark ser o único filho, sempre concentrara
nele todo carinho e afeição. Vivia em função do rapaz e exigia dele reciprocidade
absoluta, mesmo depois de Mark ter se tornado adulto.
Mark temia contrariar a mãe. O fato de ela sofrer do coração e não poder passar
por aborrecimentos não passava de um pretexto para manter as coisas como estavam.
Na verdade, ele se curvava sempre as vontades maternas por comodismo. Sempre fora
mimado em excesso e criara com a mãe um vinculo de dependência capaz de superar
qualquer outro sentimento.
Suzy se viu obrigada a manter uma farsa permanente. Só podia encontrar-se com
Mark às escondidas, em restaurantes desconhecidos ou no pequeno chalé de Lionel, fora
da cidade. Quando cobrava de Mark uma atitude, ele lhe pedia paciência, prometendo
resolver a situação dentro de pouco tempo.
Mas enquanto isso não acontecia, o único a saber do compromisso entre os dois
era Lionel. Suzy também revelara o segredo à irmã, Clarrie. Precisava desabafar com
alguém, mas temia se abrir com os pais. Na certa, eles não aprovariam o fato de ela viver
uma vida dupla, fingindo para si mesma e para os outros.
Na presença da mãe de Mark, Suzy ficava sempre com Lionel, para não despertar
suspeitas. O arranjo, provisório como Mark prometera, foi se prolongando por meses, sem
que nenhuma atitude fosse tomada para esclarecer o equívoco.
Quando Mark começou a falar em casamento, Suzy ficou preocupada.
— Sua mãe pensa que estou namorando Lionel! — ela reclamou. — Vai me
considerar uma leviana quando falarmos em casamento! Não se preocupe, vou contar
tudo a ela no momento certo.
Apesar de Suzy conhecer a covardia de Mark, ela o amava e compreendia o
quanto era difícil contrariar a sra. Culloch, depois de haver recebido dela apenas carinho e
dedicação. Além disso, não queria ser a responsável se alguma coisa acontecesse à
senhora. Por isso, aguardava a iniciativa de Mark.
Não tardou para que todos passassem a encarar Suzy e Lionel como namorados.
Os dois estavam sempre juntos nos lugares públicos e o tradicional "bons amigos" não
aplacava mais os comentários. No entanto, esses boatos não incomodavam Mark, cuja
diversão predileta era iludir os outros.

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Suzy tornava-se mais triste e inquieta a cada dia. A esperança de acabar com a
encenação foi sendo substituída por insegurança e frustração crescentes. Isso não
passou despercebido a Lionel, que também se sentia apreensivo com a situação. Um dia,
ele desabafou a Suzy sua desaprovação ao comportamento do amigo:
— Mark está se portando como um covarde. Ele devia contar a verdade à mãe ao
invés de continuar alimentando esse relacionamento neurótico. A sra. Culloch ainda é
jovem e poderia muito bem casar de novo, se não achasse que Mark precisa dela. Os
dois estão se destruindo...
A opinião de Lionel assumira para Suzy um valor especial. Ela sabia o quanto ele
gostava da sra. Culloch e de Mark, apesar dos defeitos de ambos. Convivera com eles
desde criança e criticá-los tinha o mesmo peso que achar falhas na própria família.
— Eu tenho pena dela — Suzy suspirou. — Com aquele problema cardíaco...
— Está na hora de você saber de uma coisa, Suzy: a mãe de Mark é tão cardíaca
quanto eu ou você.
Suzy o encarou, incrédula.
— Quer dizer que Mark mentiu?! Mas por que ele fez isso?
— Ele tinha medo de perder você se lhe dissesse a verdade. Sabia que você
acabaria se cansando de esperar por uma decisão. Na verdade, Mark tem vergonha de
depender tanto da mãe e achou que uma doença grave justificaria sua atitude... Sinto
muito, Suzy, mas eu não agüentava mais vê-lo enganar você.
— Fez muito bem, Lionel, agradeço por ter me contado. Só não entendo por que
não fez isso antes.
—- Mark me pediu segredo, prometeu dizer a verdade assim que pudesse... Mas
eu tenho outras razões para não suportar mais esconder as coisas de você...
Suzy, chocada com a revelação, nem percebeu um tom especial na voz de Lionel
ao pronunciar a última frase.
— Você está apaixonada por ele de verdade? — ele quis saber, ao fim de um
longo silêncio.
Ela o encarou por um instante, admirada. A resposta parecia óbvia demais. Qual
outra razão senão o amor a faria agüentar por tanto tempo aquela encenação?
— É claro que sim!
— Que pena... — Lionel lançou-lhe um olhar intenso e profundo e, como se
obedecesse a um impulso incontrolável, beijou-a na boca de modo envolvente, sensual.
Passado o primeiro momento de surpresa, Suzy o afastou de si, horrorizada. Lionel
ainda a fitou de uma maneira ardente antes de baixar a cabeça. Depois retirou-se, sem
uma palavra sequer para justificar aquele gesto.
Após esse incidente, o relacionamento entre Lionel e Suzy mudou por completo.
Não havia mais a amizade espontânea e natural entre eles. Em lugar disso, surgia um
sentimento perturbador, uma inquietação misturada à alegria e angústia sempre que
Lionel se aproximava dela.
Suzy implorou a Mark para resolver logo a situação, mas ele não lhe deu ouvidos.
A cada dia, a atração por Lionel aumentava, a despeito de seus esforços para evitá-la. Ela
se sentia cada vez mais enredada naquela armadilha sem saber, contudo, como livrar-se
dela.

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O constrangimento foi desaparecendo de modo gradativo. Lionel e Suzy


recuperaram um pouco do companheirismo, mas baseavam esse sentimento numa
cumplicidade secreta, em tudo diferente da simpatia natural dos primeiros tempos.
Suzy passou a detestar festas. As luzes fracas, a música suave, ela nos braços de
Lionel, em contato íntimo com o corpo dele... Tudo a incitava a pensamentos proibidos e,
tinha certeza, Lionel sofria do mesmo mal. Tentavam disfarçar as emoções um do outro,
mas um simples olhar bastava para destruir todos os esforços.
Suzy já sabia que não estava com Mark por amor; o sentimento por Lionel a fizera
compreender nunca tê-lo amado de verdade. A princípio, deixara-se envolver pelo
fascínio dele e, agora, queria ajudá-lo a se desfazer daquela insegurança doentia. Se
revelasse estar apaixonada por Lionel, iria mergulhá-lo para sempre num emaranhado de
complexos.
Em vão Suzy esperava um momento propício para uma conversa definitiva com
Mark. Ele parecia pressentir quando ela desejava tocar no assunto e se mostrava mais
dependente e apaixonado. Isso roubava-lhe a coragem e ela adiava mais uma vez a
própria libertação.
Fora num final de temporada de corridas que a situação se agravara ainda mais.
Numa festa para comemorar uma das competições finais, um piloto francês se interessara
por Suzy e a perseguira a noite inteira, ignorando quando ela afirmava ser comprometida.
A presença da sra. Culloch impediu Mark de reagir. Furioso, ele teve de assistir
calado às investidas do colega, pois Lionel não estava presente. Quando o amigo chegou,
Mark segredou-lhe algo no ouvido e foi o quanto bastou para Lionel de aproximar de Suzy
e do piloto, que dançavam, separá-los e iniciar uma discussão acalorada com o rapaz.
O incidente foi passageiro, pois logo os presentes se encarregaram de apaziguar
as duas partes. Mas Suzy quis ir embora em seguida, envergonhada. Lionel, como
sempre, levou-a para casa e, quando chegaram, ela o encarou, furiosa, mal entraram na
sala.
— Nunca mais faça uma cena dessas! Eu não sou propriedade de ninguém!
— Mas Mark...
— Se Mark não gosta de me ver dançando com outro homem, ele mesmo devia
estar dançando comigo! Estou cansada desse jogo de esconde-esconde! Se Mark me
amasse, já teria contado a verdade à mãe há muito tempo.
— É por isso que você estava flertando com François na festa? Para fazer ciúme a
Mark?
— Não seja tolo. Eu não teria porque fazer ciúme a Mark!
Embora ambos soubessem disso, nenhum dos dois jamais tocara no assunto
antes. Entretanto, Suzy não se arrependeu e decidiu encarar a verdade ao menos uma
vez.
— Estou farta de fazer parte das fantasias de Mark! Ele está me usando, quer se
casar comigo para fugir ao domínio da mãe! Você sabe muito bem que ele não gosta de
mim e eu também não...
Lionel tapou-lhe os lábios com as mãos, nos olhos um brilho intenso de desejo.
— Não diga, por favor — ele pediu com voz rouca. — Mark é meu melhor amigo,
ele confia em mim, mas como o odeio, às vezes... Ele não tinha o direito de me colocar
nessa situação... Mas a culpa também é minha, eu nunca deveria ter concordado em
participar dessa farsa. — Ele retirou-lhe as mãos dos lábios, acariciando-lhe o rosto com

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suavidade. — Só Deus sabe o quanto tentei evitar o que sinto por você, mas é mais forte
do que eu...
— Mark nunca vai desafiar a mãe, nós dois sabemos disso. Ele nunca me amou,
nem eu a ele... Ah, Lionel, só agora descobri como é amar alguém realmente.
— Você tem certeza, Suzy? Não está se iludindo de novo? Ela fez um gesto
afirmativo com a cabeça, experimentando uma emoção intensa quando Lionel a abraçou.
Queria-o como nunca quisera a Mark, sem medida ou restrição.
— Eu a desejo há tanto tempo! — Lionel sussurrou. — Estava ficando louco,
querendo abraçá-la, tocá-la assim... — Suas mãos moveram-se sobre o corpo dela,
buscando-lhe os seios numa carícia ousada. Suzy soltou um gemido de prazer e ânsia e,
fechando os olhos, entregou-se sem hesitar.
Lionel a ergueu nos braços e levou-a para o quarto. Fizeram amor de um modo
urgente, naufragando na paixão represada havia tanto tempo...
Suzy mal pudera acreditar quando, na manhã seguinte, acordara abraçada a
Lionel. Tudo parecia um sonho, mas logo fora obrigada a encarar a realidade quando ele
a encarara com ar sombrio.
— Não devíamos ter feito isso, Suzy. Como vamos contar a Mark?! Teremos de
esperar até a próxima semana para conversar com ele. A corrida de domingo é a mais
importante da temporada.
Se revelarmos tudo agora, estaríamos reduzindo as chances dele de vencê-la...
— Mas vamos mesmo contar tudo depois da corrida, não é?
Lionel concordou, mas foi impossível cumprir a promessa. O fato de ter vencido
Mark na corrida tirou-lhe a coragem de revelar-lhe uma verdade tão dolorosa. Seria
demais para o espírito altamente competitivo de Mark ser derrotado pelo melhor amigo
tanto na profissão quanto no campo afetivo.
Logo depois, Mark partiu para uma longa viagem com a mãe e isso mais uma vez
adiou os planos de felicidade de Suzy.
Ao retornar, ele telefonou para Suzy. O tom alegre e jovial ao marcar o encontro
dava a entender que nada mudara entre os dois. Foi então que Suzy se decidiu de uma
vez. Não poderia levar avante aquela mentira, sentia-se desonesta e leviana naquela
posição. Lionel tinha razões para estar hesitante, mas ela não suportaria namorar os dois
amigos ao mesmo tempo.
Chegara ao chalé de Lionel preparada para tudo e tentara dar a notícia com todo o
tato, mas de nada tinha adiantado.
Mark a ouviu do começo ao fim sem pronunciar uma sílaba sequer, pálido como
um fantasma. Quando ela acabou de falar, ele se ergueu do sofá, desnorteado pelo ódio.
— Eu vou matar aquele traidor! — exclamou, a voz abafada, já caminhando em
direção à porta.
Suzy ainda tentou impedi-lo de sair, mas ele a afastou do caminho com um violento
empurrão, partindo em seguida sem se voltar. Foi o último encontro entre ela e Mark.
Nesse dia, Lionel estava treinando numa estrada abandonada. Já se preparava
para voltar a Londres quando Mark o alcançou, dirigindo como um louco, forçando-o a
parar no acostamento...

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Suzy jamais soubera o que eles haviam dito um ao outro. No inquérito aberto para
apurar as razões do acidente, Lionel afirmara que Mark havia ficado zangado com uma
brincadeira e quisera provar ser melhor piloto do que ele.
Lionel encerrava a discussão entrando no carro e indo embora, mas Mark o
perseguira, fazendo diabruras no volante para provocá-lo. Lionel tentara se esquivar como
pudera, mas a disputa fora se tornando cada vez mais perigosa.
De repente, o carro de Mark derrapara numa mancha de óleo no asfalto. Perdendo
o controle, batera na mureta de proteção do acostamento e explodira...
Mark teve morte instantânea. Suzy, presente ao inquérito, ouviu a descrição
detalhada do acidente, o carro explodindo em chamas. Nos sonhos dela, entretanto, Mark
nunca estava morto. Em meio a um mar de fogo, ele a chamava, acusando-a.
Suzy viu Lionel pela última vez no tribunal e soube de imediato que o romance
entre os dois terminara ali. O modo acusador como ele a olhava não deixava dúvidas:
considerava-a culpada pela morte de Mark. Ao contar toda a verdade, praticamente
provocara o desastre fatal.
No livro, Lionel contava apenas uma parte da história, alterando algumas
circunstâncias e omitindo personagens cuja participação fora, na verdade, fundamental. A
mãe de Mark, por exemplo, não aparecia na narrativa, e o acidente envolvendo os dois
amigos acontecia num autódromo e não numa estrada.
O triângulo amoroso também sofrera uma séria desfiguração. Os dois pilotos
apareciam como vítimas de uma mulher mesquinha e egoísta que, iludindo ao mesmo
tempo um e outro, satisfazia a própria vaidade. Seu beijo de fogo os levara à destruição...
Suzy olhou as grossas gotas de chuva escorrendo pela vidraça do restaurante.
Depois de tanto tempo, aquelas lembranças ainda lhe doíam...
— Você quer café? — Carina perguntou.
— Como?
A outra mulher sorriu.
— Perguntei se quer café... Puxa, você estava mesmo longe! É a terceira vez que
pergunto...
— Quero, sim, obrigada, preto e sem açúcar...
Suzy olhou para Lionel ressentida. Na certa, ele próprio exigira sua presença
naquele encontro para fazê-la compreender o quanto a culpava pela morte do amigo.
Usara Carina como porta-voz dos sentimentos dele, talvez para atenuar o próprio
remorso.
— Então começaremos a trabalhar na sexta-feira de manhã — Carina disse. — Na
minha casa, às dez horas.
A voz dela era suave, provocante, e Lionel retribuiu a promessa velada.
— Esperarei ansioso pelo fim da semana.
— Estou vendo que você vai ser um bom aluno...
— O melhor que você já teve.
Carina riu, espalhando uma estranha eletricidade no ar.
Suzy tomava o café em silêncio, sentindo o gosto amargo da revolta e do ciúme
impregnar-lhe a alma. Lionel insistira na presença dela para provar-lhe o quanto ela

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significava pouco, agora. Talvez quisesse vingar-se de algo que nem mesmo ele saberia
definir. Nesse sentido, igualava-se a Mark, vivendo e morrendo sem um motivo real.
Mas por que aceitar ser a vítima, o alvo da vingança de Lionel? Já não bastava ter
servido como tábua de salvação para Mark? Não, dessa vez seria diferente. Ela não se
submeteria aos caprichos de Lionel, não ganharia nada por isso nem conseguiria salvá-lo
dele mesmo!
— Meu Deus, como estou atrasada! — Carina exclamou, consultando o relógio de
pulso. — Tenho outro compromisso; se não correr vou perder um excelente contrato. Até
sexta, Lionel. Suzy, até amanhã.
Suzy ergueu-se também quando Carina retirou-se apressada, mas Lionel segurou-
a pelo braço.
— Espere um pouco — ele pediu. — Estou de carro e se você esperar eu pagar a
conta, posso lhe dar uma carona até a empresa.
Suzy encarou-o com frieza, farta daquela falsa cortesia.
— Acontece que não vou voltar para o escritório. Vou direto para casa, tenho
outros assuntos para resolver...
— Namorado novo? — ele zombou.
Suzy não respondeu e a ironia do rosto dele foi substituída por um ar soturno.
Lionel preencheu o cheque em silêncio, observando-a de modo disfarçado. Logo, os dois
deixaram o restaurante e ela observou que a chuva cessara e, por entre as nuvens, já
surgiam alguns pedaços de céu claro.
—- Acho melhor nos despedirmos aqui — ela afirmou, parando na calçada. — Vou
tomar um táxi.
— Esse seu novo namorado é tão ciumento assim? Afinal, eu a conheço muito
antes dele...
— Mas você não me conhece, Lionel, nunca me conheceu direito, aliás.
Lionel fingiu espanto.
— Acha mesmo? Com base em quê afirma isso?
— Você sabe muito bem. Você me crucificou no seu livro, fez uma caricatura do
meu caráter, distorceu tudo o que aconteceu de verdade...
— Se é assim, como ficou sabendo que a heroína da história tinha alguma coisa a
ver com você?
Suzy sorriu com amargura.
— Vamos deixar de hipocrisia, Lionel. Eu vivi aquela história, não se lembra? Sua
heroína tem tudo a ver comigo, sou eu, pela sua visão! Mesmo que você nunca admita, é
daquela forma que você me enxerga! Por isso mesmo, vou lhe dar um conselho de amiga:
procure um médico. Você está muito doente por dentro, precisa de ajuda!
Suzy deu-lhe as costas e, sem esperar resposta, fez sinal para um táxi, contendo a
custo as lágrimas.

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CAPÍTULO V

Recostando-se no banco do táxi, Suzy tentou em vão conter as lagrimas. Não se


conformava com o julgamento injusto de Lionel a respeito dela. Mil vezes perguntara-se
de onde ele tirara uma visão tão deturpada.
Não esperava que Lionel se livrasse da própria culpa, pois isso lhe parecia
impossível, mas ele não tinha o direito de humilhá-la como fizera durante aquele almoço!
Ao escrever o romance, ele lhe infligira o pior dos castigos, pois lhe negara o direito
de defesa. Lionel parecia muito consciente disso e o fato se explicava pela segurança em
suas atitudes. Nem por um momento demonstrava hesitação ou arrependimento, como se
tosse um dever puni-la por tudo o que acontecera.
Três anos antes, Suzy supusera estar apaixonada por ele mas, agora, não podia
ter certeza. Não diante desse homem calculista e impiedoso, tão diferente do que fizera
amor com ela...
O verdadeiro motivo para Lionel convidá-la para aquele almoço tora o de torturá-la.
Quisera provar que o único modo de ela se defender seria admitindo a culpa. Mas isso ela
não faria nunca! Jamais iria admitir ter um caráter tão mesquinho e degradado quanto o
da heroína do romance. Aquele segredo morreria entre os dois!
Quando o táxi estacionou diante do prédio, Suzy avistou o carro de Lionel parado
do outro lado da rua. Soltou um suspiro e enxugou do rosto os vestígios de lágrimas. Não
daria a Lionel o prazer de vê-la humilhada.
Ia abrir a porta do veículo quando ele se aproximou e, num gesto de gentileza,
tomou-lhe a dianteira. Suzy saltou sem olhá-lo e caminhou depressa em direção à entrada
do edifício. Entretanto, Tonel interceptou-lhe o caminho.
— Agora que já começou, por que não diz tudo o que pensa a meu respeito? — ele
a desafiou.
— Isso demoraria demais!
Suzy afastou-se dele e tentou continuar andando, mas Lionel a perseguiu,
colocando-se de novo diante dela.
— Não tem importância, eu tenho a tarde inteira.
— Mas eu não tenho!
Ele encolheu os ombros, indiferente.
— Não faria mal nenhum ao seu namorado esperá-la um pouco. Afinal, vocês se
vêem todos os dias no escritório, não é?
Suzy encarou-o por um momento, irritada. Se ainda o conhecia um pouco, ele seria
bem capaz de cercá-la ali durante horas. Além disso, talvez fosse melhor esclarecer tudo
de uma vez. Não queria arrastar aquela guerra de nervos indefinidamente.
— Está bem, vamos subir, mas só por um minuto — concordou com um suspiro. —
Já disse que tenho assuntos para resolver ainda hoje...
Fizeram o resto do trajeto num silêncio tenso. Suzy já não achava uma boa idéia
ter concordado com aquela conversa da qual, na certa, sairia ainda mais magoada. Além

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disso, a presença de Lionel ainda a perturbava muito, a despeito de todo o ressentimento


existente entre os dois. Estar a sós com ele a fazia sentir-se vulnerável e, portanto,
ameaçada.
Fez o possível para não demonstrar inquietação ao abrir a porta do apartamento.
Ao ver o modo calmo e relaxado como Lionel entrava na sala e se sentava no sofá, uma
mistura de irritação e tristeza a dominou. Aquela tranqüilidade demonstrava apenas o
quanto ela significava pouco para ele. Se era assim, ele faria melhor se a deixasse em
paz!
— Você tem alguma coisa para beber? Um conhaque, talvez...
— Não tenho nada. Isso aqui não é um hotel. Vamos acabar nosso assunto de
uma vez, se é que ainda temos alguma coisa para conversar.
— Antes que você comece a dizer o que pensa a meu respeito, ajudaria muito
tomarmos uma bebida forte...
Suzy tirou a capa de chuva e jogou-a numa cadeira, com displicência.
— Na verdade, eu já disse tudo o que tinha a dizer. Por mim, essa conversa não
existiria.
— Quer dizer que tudo o que você desejava era me chamar de louco...
Suzy soltou um suspiro de impaciência.
— Você não perde a mania de deturpar tudo o que eu digo! Eu só afirmei que você
precisa de ajuda médica para resolver certos problemas...
— Você chama de problema enxergar o que está por trás das intenções dos
outros? Pois eu acho isso uma virtude! Pelo menos a gente não se deixa levar pelas
mentiras das pessoas por muito tempo...
Suzy o encarou por um momento, esforçando-se por controlar a irritação. Era
melhor acabar com aquela brincadeira de gato e rato de uma vez por todas. Lionel era
bom demais nos jogos de palavras e ela não pretendia ficar em desvantagem.
— Muito bem, Lionel, vamos conversar como adultos — decidiu, sentando-se na
poltrona diante dele. — Já estou farta de ser caluniada por meias-palavras, vamos pôr as
cartas na mesa. Eu gostaria de saber por que você escreveu aquele amontoado de
infâmias no seu livro.
— Infâmias? Fui honesto ao escrever aquilo, o máximo que pude! Você pode dizer
a mesma coisa do seu comportamento?
— E por que não? Examine bem as suas atitudes e veja se tem direito de julgar as
minhas!
— Tenho, sim, todo o direito! Posso ter cometido muitos erros, mas nunca usei
ninguém como você fez comigo. Fui apenas um joguete nas suas mãos, confesse! Você
queria que Mark a pedisse em casamento e decidiu que ter um caso comigo era o meio
mais rápido de conseguir isso. Afinal, você o conhecia bem, sabia o quanto ele era
ciumento... Na certa, queria que isso fosse o empurrãozinho para fazê-lo contar tudo à
mãe!
Suzy por um instante ficou muda de espanto e indignação.
— Você realmente enlouqueceu! — exclamou, por fim. — Negue que foi assim!

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— Isso é loucura! Você deturpou tudo o que aconteceu! Pouco me importava se


Mark contasse ou não sobre mim à mãe dele quando houve o acidente! Eu não o amava
mais há muito tempo!
— Você me disse isso naquela época e eu acreditei. Não percebi que era tudo
parte do seu plano para se casar com Mark. Você tinha bons motivos para isso, não é?
Afinal, com todo o dinheiro da mãe dele...
— Dinheiro? Mas do que está falando, Lionel?
Ele soltou uma gargalhada, cujo som encheu os ouvidos de Suzy, ferindo-a como
um insulto.
— Ora, mas depois de tanto tempo, você ainda representa muito bem! Aposto que
o próximo passo é jurar que não sabia que Mark era sustentado peia mãe... Ele teria de
abandonar a carreira se os dois rompessem de verdade!
Suzy o olhou, chocada, atônita com a revelação e, ao mesmo tempo, com tamanha
injustiça. A expressão de espanto no rosto dela, contudo, irritou-o ainda mais.
— Você mesma pediu para jogar aberto, então não faça essa cara de inocente!
Tanto sabia da fortuna de Mark que tentou resolver dois problemas de uma só vez. Deixar
Mark com ciúme o faria desistir de correr e anunciar o noivado de vocês. A sra. Culloch
não a aceitaria no começo, mas, com o tempo, lhe seria muito grata por ter feito Mark
abandonar a profissão. Então, ela perdoaria vocês dois pelo casamento... Um plano
quase perfeito, devo admitir.
— Mas nada disso é verdade! O que fez você pensar que eu tenha sido tão
maquiavélica?
O rosto de Lionel se contraiu numa expressão de raiva.
— Pelo amor de Deus, pare com essa pantomima! Mark me contou tudo pouco
antes do acidente. Ele me disse que ia renunciar às corridas e contar toda a verdade à
mãe para vocês dois poderem se casar. Contou também que tinha sido você a impor
essas condições... e que você havia me usado para deixá-lo com ciúme.
— E você acreditou nele?
O espanto de Suzy havia se transformado, de repente, em amargura e decepção.
Olhava para Lionel e se perguntava como pudera amar uma pessoa capaz de julgá-la tão
mal.
— No começo, eu não queria acreditar — ele murmurou, após um longo silêncio.
— Tivemos uma discussão terrível e ele me seguiu dirigindo como um louco. Não tive
outra saída senão correr mais ainda, para tentar fugir... Ele estava fora de si, queria
mesmo me matar! No final de tudo, Mark morreu e eu bati num paredão da estrada.
Acordei no hospital, ameaçado de ser preso como assassino do meu melhor amigo!
Lionel fez uma pausa, como se procurasse forças para evocar tantas lembranças
desagradáveis.
Foi o seu comportamento mesmo que me fez aceitar as afirmações de Mark como
verdade. — Ele lançou-lhe um olhar acusador. — Onde você estava enquanto eu passava
por tudo isso? Nem se dignou a fazer uma visita, nem uma carta, telefonema, nada! Eu
era apenas o meio mais fácil para você atingir Mark e, depois da morte dele, não tinha
mais utilidade na sua vida!
— Você está falando sobre o que não sabe! Eu não pude ir ao hospital visitá-lo
porque estava em estado de choque! Entrei em depressão profunda e passei meses
dormindo à custas de calmantes... Mesmo assim, tentei vê-lo assim que me recuperei um

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pouco. Fui várias vezes ao hospital, mas sempre me diziam que as visitas estavam
proibidas. E quando você recebeu alta, mandou dizer que não estava todas as vezes que
eu liguei para sua casa!
— Na certa, por remorso, nada mais.
O olhar de Lionel era frio e distante, como se o sofrimento dela pouco importasse.
— Por amor, Lionel — ela o corrigiu, magoada. — Foi a única coisa que eu disse a
Mark no nosso último encontro: que eu não poderia casar com ele porque amava você!
Não fiz nenhuma exigência, só deixei claro que queria a minha liberdade!
— E Mark reagiu exatamente como você esperava. Ele era tão possessivo quanto
a mãe e você sabia que nunca a deixaria trocá-lo por outro. Fazendo-o pensar que a
perdera de verdade, você usou a única arma capaz de prendê-lo... Uma tática muito
inteligente, não resta dúvida!
— Isso é uma infâmia! — Suzy ergueu-se da poltrona, agitada demais para ficar
sentada. — Você não pode estar falando sério, não pode acreditar que eu faria amor com
você para conseguir um casamento rico! Você foi o primeiro homem com quem eu fui
para cama, e devia ter uma razão muito especial para isso...
— Mas foi mesmo por uma razão muito especial!
Ele havia se erguido também e se postara diante dela, um ar cínico no rosto. Suzy
fitou-o nos olhos, procurando algo que desmentisse aquele ódio. Mas só encontrou a
confirmação de todas as acusações.
— Saia da minha casa — ela ordenou, a voz abafada pela indignação e pela
revolta.
— Tem certeza de que quer que eu saia? — A voz dele assumira um tom
acariciante, bem diferente do incêndio de desejo que os olhos agora refletiam. Num gesto
lento, Lionel estendeu a mão e tocou-lhe o rosto, descendo devagar para o pescoço. — E,
apesar de tudo, eu ainda a quero — murmurou, com voz rouca. — Parece uma maldição,
mas não posso evitar desejá-la!
Pressentindo a ameaça daquele contato, Suzy tentou recuar, mas Lionel segurou-a
pelos braços. Aconchegando-se a ela, acariciou-lhe os cabelos quase com ternura e,
como se obedecesse a um impulso incontrolável, tocou-a nos seios com movimentos
leves, sensuais.
Suzy prendeu a respiração, incapaz de pensar. Também ela o desejava como
nunca e as mãos dele lhe despertavam uma voragem de paixão na qual ela própria
naufragava e se perdia...
Mas quando Lionel puxou-a mais para si, buscando-lhe a boca com avidez, todo o
desejo transformou-se em mágoa, revolta, humilhação. Não podia entregar-se a quem
fazia dela um conceito tão baixo. Não haveria prazer nem realização naquele ato, apenas
vergonha e ressentimento.
Recuou outra vez, agora recuperada por completo da insensatez momentânea.
— Nossa conversa acabou, Lionel, agora e para sempre — afirmou com frieza.
Lionel a encarou por um instante, como se despertasse de um sonho interrompido
de repente. Depois de uma breve indecisão, pegou a capa sobre o sofá e retirou-se,
batendo a porta atrás de si.

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Sozinha e amargurada, Suzy deixou-se cair sobre a poltrona. Ainda ouvia o eco
das palavras de Lionel e perguntava-se, perplexa, se tudo aquilo não fora um pesadelo.
Se ele quisera feri-la, havia conseguido muito mais do que isso.
O dia transformou-se mais cedo em noite, pelo menos para Suzy Sem forças ou
vontade para esboçar qualquer movimento, continuou sentada na poltrona, mergulhada
na escuridão. Por fim, exausta, adormeceu deitada no sofá.
Despertou assustada, quando o amanhecer inundava a sala de uma luz rosada,
como se o incêndio do carro no sonho se propagasse até o horizonte. As lembranças
amargas do dia anterior voltaram-lhe à mente, fazendo-a cair num pranto convulsivo e
prolongado.
Quando, porém, as lágrimas secaram, Suzy foi tomada por uma calma estranha.
Era como se todos os sentimentos, bons ou ruins, tivessem secado. Nada mais restava
dentro dela senão a paz de um grande vazio.
Era melhor assim, concluiu, enquanto se aprontava para trabalhar. A vida ficava
bem mais fácil sem emoções extremas e violentas. Talvez não fosse tão interessante
viver sem o alvoroço da paixão mas, sem dúvida, seria muito mais seguro.
Suzy chegou cedo ao escritório naquela manhã e trabalhou com disposição. Já se
preparava para almoçar quando uma visita inesperada apareceu.
— Olá, Suzy, como vai?
— Muito bem, obrigada! Que surpresa, sra. Jonas!
Leah Jonas sorriu enquanto entrava no escritório e fechava a poria atrás de si.
— Sei que estou interrompendo seu horário de almoço, mas prometo não demorar
— ela disse.
Suzy se levantou e ofereceu uma cadeira à recém-chegada.
— Não tem importância, sra. Jonas, não estou mesmo com muita fome... Alex está
bem melhor, mais alguns dias e poderá trabalhar de novo.
— Eu sei disso, meu marido foi visitá-lo hoje. Na verdade eu vim falar com você
sobre outro assunto...
— Pois não, estou às suas ordens... Aceita um café?
— Se não for incômodo...
— Incômodo nenhum. Eu volto já.
Suzy deixou a sala, pensativa, estranhando a presença da esposa do presidente
da empresa. As duas já haviam tido oportunidade de se conhecerem quando Leah
desenhara o figurino de um dos filmes de Alex, mas nunca haviam tido um contato íntimo.
Suzy nutria por Leah um respeito reverente, tanto pela qualidade do trabalho da estilista
quanto pela retidão de caráter. Apesar de seus quase setenta anos, Leah mostrava uma
energia e vitalidade invejáveis e Suzy a admirava por isso.
Leah, por sua vez, sempre demonstrara por Suzy uma simpatia especial. Mesmo
assim, era de se estranhar que deixasse de lado iodos os compromissos para lhe fazer
uma visita de cortesia...
— Pensando nisso, voltou à sala com duas xícaras nas mãos. Estendeu uma delas
à visitante, sentando-se em seguida.
— Em que lhe posso ser útil, sra. Jonas?

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A senhora tomou um gole de café, como se procurasse um modo de iniciar a


conversa.
— Eu gostaria que você me falasse um pouco desse rapaz, Lionel Moor...
Suzy ergueu a cabeça, espantada.
— O que a senhora quer saber sobre ele? Leah sorriu, lançando-lhe um olhar
sagaz.
— Para falar a verdade, quero saber se vocês dois já se conheciam antes de Alex
se interessar pelo romance dele.
Suzy hesitou por um momento. Se Leah fazia uma pergunta tão direta, era porque
já sabia a resposta. Negar só iria criar uma situação embaraçosa e, além disso, seria
inútil.
— Sim, nós já nos conhecíamos — respondeu com firmeza. — Como a senhora
soube disso?
— Eu os vi jantando juntos num restaurante há alguns anos. Um amigo meu e de
Leonard, presente na ocasião, admirava muito o sr. Moor como desportista e passou mais
de meia hora falando sobre a carreira dele... Foi isso o que me fez olhar para vocês e eu
sou muito boa fisionomista. Nunca comentei isso antes porque me pareceu um detalhe
sem importância. Não gosto de me intrometer na vida das pessoas, a menos que seja
necessário.
— E, agora, a senhora acha necessário?
— Minha querida, Alex contou a meu marido que foi você quem chamou a atenção
dele para o livro. Leonard está muito preocupado por Alex estar passando por cima de
todos os procedimentos do departamento de direitos autorais para fazer esse filme.
Parece até que a empresa vai ter de pagar bem mais pelos direitos do que o usual... Se
seu nome aparecer nessa história, vai ser péssimo para sua carreira dentro da
companhia...
— Ora, mas por quê?
Leah abanou a cabeça com tristeza.
— Porque as pessoas são maldosas, minha querida. Talvez não saiba, mas você
tem um futuro brilhante aqui dentro e ninguém suporta isso! Se souberem que é
namorada do sr. Moor, vão dizer que você induziu Alex a se interessar pelo romance para
tirar partido disso. Eu sei que não há nada de ilegal em alguém usar de influência para
conseguir o que deseja. Mas vai ser muito negativo para a sua imagem... Especialmente
porque nem mesmo Alex sabe do envolvimento entre vocês dois; eu falei com ele por
telefone sobre isso.
Suzy pousou a xícara sobre a mesa, o rosto pálido de espanto.
— Tem razão, Alex não sabe de nada. Não vi necessidade de contar porque não
há mais nenhum compromisso entre Lionel e eu, inclusive não nos víamos fazia muito
tempo. Quanto ao romance, Alex se interessou por ele por coincidência. Eu havia
comprado o livro e Alex pensou que fosse um presente para ele... É claro que a senhora
não precisa confiar na minha palavra mas, se dependesse de mim, jamais veria Lionel de
novo!
A sra. Jonas observou-a com atenção, depois sorriu.
Não é na sua palavra que vou confiar, querida, mas nos seus olhos. Em toda
minha vida, nunca fiz um julgamento errado sobre o caráter das pessoas e sempre

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simpatizei muito com você... Ainda ama esse moço, não é? Suzy baixou a cabeça, sem
saber o que dizer.
— Desculpe-me, querida. Essa deve ser uma questão delicada e, infelizmente, não
posso fazer nada para ajudá-la nesse sentido. Mas posso lhe dar um conselho: conte tudo
a Alex o mais cedo possível. De uma forma ou de outra ele vai descobrir e pode ficar com
a impressão de que foi usado. Depois, se quiser, peça transferência para outro
departamento, mas não perca o contato comigo. Eu tenho muitos planos para o seu
futuro...
Suzy fez um gesto afirmativo com a cabeça.
— Obrigada por tudo, sra. Jonas — murmurou, emocionada. — Acho que vou fazer
isso mesmo.
A idéia de mudar de setor não lhe era muito agradável, mas, pelo menos, isso a
afastaria de Lionel. E, naquele momento, desejava apenas uma coisa: nunca mais
precisar vê-lo de novo.

CAPÍTULO VI

Suzy não teve mais condições de trabalhar naquela tarde. Sentia-se confusa
demais para se concentrar no serviço. Felizmente não havia nenhum assunto importante
para ser resolvido, pois a ausência de Alex permitira-lhe colocar em dia todas as tarefas
acumuladas.
Foi para casa, tomou um longo banho, comeu alguma coisa, mas nem por um
segundo conseguiu esquecer os problemas que a atormentavam. Uma coisa era certa:
depois da discussão da véspera tornara-se impossível continuar vendo Lionel com tanta
freqüência. Sofreria demais com isso, mesmo sabendo que ele não merecia.
Por outro lado, não queria aceitar os favores da sra. Jonas. Apesar da boa intenção
da estilista, Suzy se sentiria mal em continuar na empresa apenas por ser a protegida da
esposa do presidente. Se tivesse de deixar o cargo de secretária de Alex, seria melhor
procurar emprego noutro lugar.
Restava ainda uma questão, talvez a mais difícil de todas: precisava revelar a
verdade a Alex, mas como? Não lhe parecia correto tratar de um assunto tão delicado por
telefone. Uma carta seria o indicado, mas poderia dar a entender que ela estava evitando
enfrentar a situação.
Depois de pensar muito, Suzy decidiu esperar pela volta do patrão. Dali a duas
semanas ele e Sara chegariam a Londres, onde passariam dois dias antes de
embarcarem para as Bahamas. Então ela teria tempo de sobra para esclarecer todo
aquele mal-entendido.
A idéia de adiar a conversa não a agradava em nada, mas não lhe restava outra
saída. Alex estava só esperando um bom pretexto para interromper o repouso. Se ela
fosse até Romney Marsh e contasse suas intenções, daria a ele a chance de voltar ao
trabalho. Decerto, também a viagem às Bahamas seria adiada e isso jogaria por terra
todos os esforços de Sara para convencer o marido a tirar férias.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

Tal resolução já deixou-a mais tranqüila e ela voltou à rotina na manhã seguinte
com disposição renovada. O resto da semana pareceu passar depressa e no sábado,
como havia combinado, foi à casa de Clarrie tomar conta dos sobrinhos.
Ficou surpresa quando a irmã a recebeu sem grande entusiasmo, descontente por
Suzy não ter nenhum programa para aquela noite.
— Você devia sair com alguém ao invés de servir de babá para mim.
— E quem ficaria com seus filhos hoje se eu fosse passear também?
— Você sabe muito bem o que estou querendo dizer! Não é normal continuar com
essa mágoa, vivendo como uma viúva...
Suzy fez um gesto de pouco caso.
— Não seja exagerada, Clarrie!
— Não se trata de exagero, estou dizendo que namorar um pouco não lhe faria mal
nenhum. Duvido que não haja na Empire Films um rapaz interessante solteiro.
— Há, sim. Saí com um deles na semana passada...
Suzy pensou que, usando o almoço com Joe como prova, estaria satisfazendo
Clarrie. Entretanto, só conseguiu despertar-lhe a curiosidade.
— Quem?! Vocês estão namorando? Suzy encarou-a, impaciente.
— Ora, vá assistir ao seu filme e me deixe em paz! Você sabe que eu não gosto de
fazer esse tipo de comentários...
Nesse momento, Derek apareceu na porta da sala e livrou Suzy da insistência da
irmã.
— No que fez muito bem... — ele apoiou, piscando um olho para a cunhada, com
ar maroto. — Clarrie, se não sairmos agora, vamos perder a última sessão e eu vou ficar
de mau humor o resto da semana. Faz meses que estou querendo ver esse filme.
Clarrie saiu, resmungando contra a injustiça de ser considerada intrometida por se
preocupar com a irmã. Como as crianças já estavam dormindo, Suzy assistiu a alguns
programas de televisão.
Fora uma boa providência não contar a Clarrie sobre Lionel, pensou, enquanto
preparava um chocolate antes de deitar. Se o tivesse feito, também a irmã estaria
sofrendo com a volta dele...
Apesar da pequena diferença de idade entre as duas, Clarrie sempre considerara
obrigação tomar conta da irmã mais nova. Isso irritava um pouco Suzy, mas, em geral,
elas se davam muito bem. Sempre podiam contar uma com a outra em caso de
necessidade e, quase sempre, pensavam de maneiras semelhantes sobre a maioria dos
assuntos.
Na manhã seguinte, Suzy acordou cedo e saiu para passear com os sobrinhos,
deixando a irmã e o cunhado dormirem um pouco mais. Derek havia levado Clarrie para
jantar depois do cinema, por isso tinham chegado tarde na noite anterior.
Ao voltar para casa, Suzy preparou o almoço com a ajuda das crianças, um jeito
divertido de mantê-las ocupadas. A refeição estava quase pronta quando Clarrie apareceu
na cozinha, ainda sonolenta.
— Bom dia, querida, o cheiro está delicioso. Espero que meus filhos tenham
deixado seus nervos intactos!
Suzy sorriu.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

— Não se preocupe, nós sempre nos entendemos muito bem.


— Eu sei, por isso mesmo os deixo com você... O almoço já está pronto? É melhor
eu dizer a Derek, senão ele demora horas debaixo do chuveiro...
— Não há pressa, ainda vai demorar um pouco para assar a torta de galinha. Você
dormiu bem?
— Como uma pedra.
Suzy sentiu um pouco de inveja da irmã. Não conseguia ter um sono tranqüilo
havia dias, atormentada pelo pesadelo do acidente. Quando não era isso, Lionel lhe
aparecia em sonhos, envolvendo-a numa onda de desejo e prazer. Essas fantasias,
maravilhosas e terríveis ao mesmo tempo, a faziam despertar sentindo-se culpada. Como
podia querer tanto alguém que só nutria por ela ódio e ressentimento?
O domingo foi alegre e calmo. Suzy não revelou a Clarrie sua intenção de
abandonar o emprego para não preocupá-la. Além disso, a irmã não iria aceitar tal
decisão sem saber os motivos... exatamente como Alex faria. Por isso mesmo, seria tão
difícil ter uma conversa íntima com ele.
A semana seguinte começou sem novidades. Suzy tinha pouco trabalho no
escritório, pois eram raras as pessoas que apareciam para interrompê-la. Lionel também
não deu notícias, mas isso não foi surpresa depois da discussão entre os dois.
Na quarta-feira ela recebeu um telefonema do funcionário do departamento de
direitos autorais. A conversa era sobre alguns detalhes referentes a um filme anterior de
Alex, mas acabaram falando sobre as negociações com Lionel.
— Tem sido uma dor de cabeça — o rapaz desabafou. — Ainda bem que o sr.
Jonas resolveu cuidar do caso pessoalmente...
— Eu não sabia disso.
— Segunda-feira os dois almoçaram com o agente de Moor, só falta acertar alguns
detalhes... Você sabe quando o sr. Stevenson vai voltar ao trabalho?
— Daqui a um mês, no mínimo.
— Dê-lhe a notícia quando ele voltar; com certeza vai gostar. Afinal, todo o esforço
dele foi recompensado.
Suzy despediu-se e desligou o telefone, pensativa. Se o presidente da Empire
Films em pessoa resolvera intervir nas negociações, na certa tivera motivos muito fortes
para fazê-lo. Talvez aquela atitude fosse uma demonstração de força e queria dizer que
ele não aceitaria intervenções alheias em seu trabalho. Com certeza, o sr. Jonas tomara
conhecimento da intenção de Leah de proteger Suzy e não concordara com a idéia...
Suzy não desejava mesmo aceitar a ajuda de Leah e agora o único remédio para a
situação era demitir-se da empresa. Não haveria clima para continuar ali, mesmo se Alex
acreditasse em suas explicações para tantos equívocos.
Se por um lado estava triste por deixar o emprego, por outro considerava sair da
Empire Films um grande alívio. Pelo menos isso a pouparia do dissabor de ver Lionel
enquanto durassem a preparação do roteiro e as filmagens. E, mesmo antes da conversa
com Alex, ela evitaria ao máximo qualquer contato com ele. Lionel estava fora de si por
causa do sentimento de culpa em relação à morte de Mark. Ela só poderia esperar dele
rancor e ressentimento.
De repente, porém, uma idéia a fez rever tal decisão. As negociações sobre o livro
ainda se encontravam em aberto... Não havia garantias de que a compra dos direitos

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autorais realmente se concretizasse. Era bem possível que Alex pensasse ter sido usado
por ela e Lionel e, se isso acontecesse, na certa aconselharia o sr. Jonas a desistir do
negócio.
Talvez fosse bom avisar Lionel sobre esse perigo, ela pensou, inquieta. Não seria
justo deixá-lo sem saber da possibilidade de perder aquela chance por causa de questões
pessoais.
Para piorar a situação, todas as evidências estavam contra os dois. A grande soma
envolvida na transação justificava uma tentativa de golpe. Lionel poderia ganhar uma
fortuna se o filme fosse feito. Além da quantia paga pela Empire Films, a publicidade
usual em torno das filmagens aumentaria a vendagem do livro. Com isso, além de rico,
ele ficaria famoso.
Suzy relutou muito antes de decidir ligar para Lionel naquela tarde. Por fim, achou
melhor fazê-lo do que ficar com remorsos mais tarde por haver se omitido.
No final do expediente, discou o número dele, mas não houve resposta. Ela
esperou vários minutos, ouvindo o aparelho tocar sem ninguém atendê-lo. Estava quase
desistindo quando alguém tirou o fone do gancho e ela ouviu um murmúrio confuso do
outro lado da linha.
— De onde falam? — ela quis saber, intrigada.
Em resposta, a voz rouca resmungou alguma coisa, mas ela não conseguiu
entender. Não podia ser Lionel, pois o homem com quem talava parecia bêbado!
— É da casa de Lionel Moor?
— Vá para o inferno! — a voz gritou, antes de interromperem a ligação.
Convencida de ter discado o número errado, Suzy tentou de novo. Mais uma vez,
demoraram para atender ao chamado e, por fim. a mesma voz estranha soou do outro
lado da linha.
— Quero falar com Lionel Moor — ela insistiu.
— É ele mesmo.
— Lionel? Aqui é Suzy... Você está bem?
— Escute, você mesma disse que não tínhamos mais nada a conversar. Portanto,
me deixe dormir!
Ele desligou, sem lhe dar tempo para argumentar. Mas o que estaria acontecendo?
Lionel nunca se embriagava, na verdade nem costumava beber! Porém a voz dele ao
telefone estava tão diferente... Parecia bêbado... ou em delírio!
Suzy ficou sem saber o que fazer. Talvez as lembranças de Mark tivessem se
tornado insuportáveis depois da discussão entre os dois. Ou, quem sabe, o sr. Jonas já
desistira de fechar negócio com ele... Alguma coisa o havia aborrecido muito e o fizera
beber além da conta.
Aquelas hipóteses pareciam-lhe absurdas, mas havia uma possibilidade bastante
inquietante: Lionel podia estar doente. Afinal, fazia uma semana desde que o vira pela
última vez. Como ele morava sozinho, ninguém poderia ajudá-lo se precisasse de alguma
coisa...
Reagiu contra esse pensamento. Já decidira não encontrar-se mais com ele e não
pretendia voltar atrás. Além disso, talvez ele tivesse apenas dormido tarde na noite
anterior, na certa passeando com Carina...

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Ao mesmo tempo, entretanto, essas suposições não a tranqüilizaram. Não


desejava encontrar-se com Lionel mas, ao mesmo tempo, não suportaria continuar
naquela incerteza. Se ele não queria atender o telefone, o jeito era ir até o apartamento
dele.
Suzy tomou um táxi e, minutos depois, desceu na porta de um restaurante chinês.
Conforme o endereço escrito num papel pelo funcionário do departamento de direitos
autorais, Lionel morava no prédio sobre o estabelecimento. Da calçada, podia-se ver a
janela do apartamento, cujas cortinas estavam fechadas.
Ainda hesitava, sem saber se devia ou não subir, quando uma moça chinesa
apareceu na porta do restaurante e sorriu para ela.
—- Está procurando alguém?
— Sim, o sr. Moor.
O sorriso da garota aumentou e ela se aproximou de Suzy com um ar de simpatia.
— Você é amiga do sr. Moor? Que bom ter vindo. Ele está muito doente, sabe?
Faz três dias que não se alimenta. Queríamos chamar um médico, mas ele não deixou...
Minha mãe está muno preocupada...
— Sua mãe está?
— Não, ela saiu por um momento. Mas se esperar um minutinho, posso ir buscar a
chave para você entrar...
— Seria ótimo se me fizesse esse favor.
A garota entrou no restaurante e Suzy mais uma vez olhou para as cortinas
fechadas. Não sabia se agia certo, mas, se Lionel estava doente, não era o momento de
guardar rancor.
A garota voltou com um molho de chaves nas mãos. Abriu a porta lateral e, com
um gesto, indicou uma escada estreita, que levava ao andar de cima.
É lá no final do corredor.
— Obrigada. Quer vir comigo?
— Sinto muito, mas preciso tomar conta do restaurante. Mas se precisar de alguma
coisa é só chamar.
Ela estendeu uma chave a Suzy e sorriu. Suzy agradeceu a colaboração e
começou a subir a escada.
O prédio era velho e modesto e a escadaria em madeira escura contribuía para
reforçar o aspecto triste do local. Tudo naquele lugar era sombrio e melancólico,
semelhante à vida de Lionel nos últimos anos...
Suzy percorreu o corredor estreito, até chegar a uma pesada porta de madeira
escura. Ao abri-la, deparou-se com um pequeno hall carpetado de marrom, formando um
belo contraste com as paredes bege claras.
— Lionel? — chamou.
Mas a voz ecoou pelo apartamento, sem encontrar resposta. Ela entrou indecisa na
sala ampla e olhou, curiosa, a enorme estante de livros da parede em frente à porta. Ao
lado da janela, uma escrivaninha abarrotada de papéis parecia ser o local de trabalho do
dono da casa.
Suzy não sabia direito para onde ir. Atravessou a sala, deixando a bolsa e o
casaco sobre o sofá de couro e abriu uma porta do lado oposto ao da janela. Entrou na

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cozinha pequena, em cuja pia se amontoava um caos de copos e xícaras usados,


contrastando com a ordem existente na sala. Fechou a porta e, caminhando para o outro
lado, relutou um pouco antes de empurrar a porta encostada.
Ao entrar no quarto envolto na escuridão, ouviu a respiração penosa de Lionel,
embora só depois de alguns minutos tivesse conseguido divisar-lhe o vulto sobre a cama
envolta em sombras.
— Lionel?
Ele não se moveu e Suzy atravessou o aposento com cautela, abrindo uma fresta
na cortina para enxergar alguma coisa. Lionel se virou na cama, murmurando uma
reclamação enquanto protegia os olhos com um dos braços.
Suzy aproximou-se da cama e observou-lhe os cabelos revoltos, o rosto semi-
oculto sobre o travesseiro. O corpo dela servia de anteparo para a luz da janela e Lionel,
descobrindo o rosto, encarou-a com os olhos brilhantes e febris.
— Lionel... O que está sentindo?
— Você de novo... Será que não consigo parar de sonhar com você?
Suzy inclinou-se sobre ele e, pousando-lhe a mão na testa, assustou-se com a
temperatura. Ele ardia em febre!
— Lionel, como você se sente? — insistiu. Ele riu, segurando-lhe a mão com força.
— Muito bem. Por que não vem comprovar por você mesma? Suzy desvencilhou-
se dele com certa facilidade, o que a deixou preocupada. Lionel devia estar mais
enfraquecido do que ela supusera a princípio.
— É melhor chamar um médico — murmurou, apreensiva. Ele ergueu o tórax nu e
apoiou-se sobre os cotovelos para observá-la. Sua expressão perplexa era um sinal de
que estava voltando à consciência.
— Suzy? Mas o que você está fazendo aqui? Pensei que estivesse sonhando....
— A mocinha do restaurante lá embaixo me deixou entrar. Parecia preocupada
com você.
— Ann Ling?
Ela não me disse o nome... Vim aqui porque liguei duas vezes e você me atendeu
de um modo estranho...
Então você telefonou mesmo? Me lembro de ter falado com você como num sonho,
acho que estava um tanto fora de mim... Desculpe se lhe dei um susto.
— Pelo telefone não pude saber se você estava bêbado ou doente...
— Um pouco das duas coisas. Andei tomando um pouco desse remédio para
resfriado...
Ele indicou o criado-mudo com um gesto de cabeça e Suzy viu uma garrafa de
uísque e um copo vazio.
— Mas que falta de juízo! Isso não é um resfriado, é uma gripe bem forte e pode se
transformar em pneumonia se não for curada! Qual é o telefone do seu médico?
— Eu não quero médico nenhum, não há necessidade. Infelizmente, você não está
em condições de decidir nada.
Suzy pegou a garrafa de uísque e levou para a cozinha. Em seguida, foi até a sala
e procurou na agenda de endereços ao lado do telefone o nome e o número de um

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médico. Ligou para o consultório e a recepcionista garantiu que o doutor ia fazer a visita
ainda naquele dia.
Ao desligar, Suzy ouviu passos na direção do banheiro e logo depois o barulho da
porta sendo fechada. Foi até o quarto e, encontrando a cama vazia, aproveitou a
oportunidade para retirar os lençóis amarrotados, Pouco depois, olhou para a porta e viu
Lionel observando-a, encostado no umbral. Ele havia vestido um roupão felpudo e parecia
não agüentar ficar em pé por muito tempo.
— Eu termino de arrumar a cama em dois minutos — ela avisou. — Onde estão os
lençóis limpos?
— Na parte de cima do armário.
— E os pijamas?
— Eu não uso... Olhe, quero voltar para a cama...
Lionel estava trêmulo e com um ar cansado. Deu um passo em direção a uma
cadeira próxima à porta mas cambaleou. Suzy se apressou em ajudá-lo e, ao se
aproximar, sentiu o calor febril do corpo dele, mesmo através do tecido grosso.
— Sente-se aqui até eu terminar.
— Onde está meu uísque?
— Você não acha que já bebeu demais? Está precisando mesmo é de um leite
quente e um antitérmico...
— Por que as mulheres são sempre tão desmancha-prazeres? Suzy fez um
movimento para se afastar, mas ele a reteve, abraçando-lhe a cintura. Aninhou o rosto de
encontro a ela, parecendo desamparado como uma criança.
— Eu devo estar muito doente — queixou-se, baixinho — Vê como estou
tremendo?
De fato, tremores convulsivos percorriam-lhe o corpo a todo instante. Enternecida,
Suzy afagou-lhe os cabelos com carinho.
— Sossegue, isso não é nada. Num instante eu acabo de arrumar a cama e lhe
trago um comprimido. Você vai melhorar logo depois disso.
Ela se soltou e retomou o trabalho, fingindo não notar o olhar de Lionel
acompanhando-lhe cada movimento. Quando terminou de colocar os lençóis limpos,
encarou-o por um momento.
— Não acha melhor colocar um pijama para o médico examiná-lo? Onde estão?
— Na gaveta de baixo.
Lionel firmou os braços no assento da cadeira e tentou se levantar e Suzy se
apressou em ajudá-lo a chegar na cama. Quando ele se sentou sobre o colchão, Suzy
tentou se afastar, mas ele a impediu.
— Acho que você escolheu a profissão errada, Suzy. Daria uma ótima enfermeira...
— E você daria um péssimo paciente, pelo menos se reagisse como agora. Quer
me soltar, por favor?
Mas Suzy não esperou que ele atendesse a seu pedido: empurrou-o com força e
ele cedeu, deixando-se cair sobre os travesseiros.
— Eu estou completamente inofensivo, hoje. Com essa dor de cabeça e esses
tremores, não conseguiria oferecer nenhum perigo...

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— Ainda bem.
Suzy foi até a cômoda e tirou um pijama, jogando-o na direção dele. Em seguida,
foi para a cozinha esquentar o leite.
Apesar de seus esforços para reagir à situação com naturalidade, era muito difícil
ter Lionel tão próximo. Havia entre os dois uma espécie de magnetismo, capaz de superar
todas as mágoas e ressentimentos. Ela ainda sentia o calor febril do corpo dele, as mãos
lhe acariciando as costas em movimentos sensuais. E, apesar da vergonha que isso lhe
causava, um prazer enorme a inundava quando isso acontecia.
Um desespero terrível tomou conta dela ao admitir tais sensações. Devia estar
louca para continuar desejando um homem que a desprezava, pior que isso, para
continuar a amá-lo!
Não conseguia mais enganar a si mesma: amava Lionel. ainda e sempre, e desejá-
lo era só uma conseqüência disso. Caso contrário, não sofreria tanto com os insultos dele.
E, apesar da mágoa causada por essa hostilidade, ainda tentava entendê-lo, justificar-lhe
o comportamento. Acima de tudo, não estaria ali, correndo o risco de sofrer novas
humilhações, apenas para salvar-lhe a carreira.
Mas deveria haver um meio de se livrar daquela maldição, ela pensou,
desesperada. Um dia, iria se libertar de Lionel para sempre e só restariam dele
lembranças amargas, esquecidas com o tempo... Mas, então, o que seria dela? Como
poderia preencher o enorme vazio que a ausência de Lionel deixaria em sua vida?
Suzy afastou tais pensamentos ao retornar ao quarto levando a xícara de leite.
Quando estendeu-a a Lionel, ele fez uma careta de desagrado.
— Preciso mesmo tomar essa coisa? Detesto leite, ainda mais quente!
— Precisa, sim. Dissolvi um antitérmico nele, para baixar sua febre.
Ele segurou a xícara, relutante.
— Você poderia ter dissolvido no uísque.
— Daria uma combinação e tanto, hein? Depois era só chamar uma ambulância...
— Leite faz bem para criancinhas e eu não sou mais criança já faz tempo.
— Então, pare de se comportar como tal!
Ao vê-la perder a paciência, Lionel se calou e tomou o leite de uma só vez. Quando
acabou, Suzy pegou-lhe a xícara das mãos e caminhou em direção à porta.
— Tente descansar um pouco. Eu vou ficar aqui até o médico chegar.
— Então você poderia me fazer um favor? Ligue para Carina e avise que não
poderei me encontrar com ela. Diga que eu ligo ainda esta semana.
Suzy procurou disfarçar o ciúme.
— Está bem — disse apenas.
Quando saiu do quarto e fechou a porta, entretanto, não foi fácil controlar a raiva.
Sentia-se usada e não conseguia se conformar com isso. Ao final de alguns segundos, já
mais calma, foi até a escrivaninha de Lionel procurar o número de Carina na agenda de
telefones.
Depois de discar, não foi preciso uma longa espera para a voz sensual atender do
outro lado da linha.
— Alô? Residência de Carina Davis.

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— Carina? Aqui é Suzy. Tenho um recado de Lionel para você. Ele não vai poder
comparecer ao compromisso de hoje, mas entrará em contato assim que for possível.
— Mas que pena! Justo hoje que eu tinha preparado uma surpresa tão bonita para
ele... Você não sabe por que ele não virá?
— Não sei. Acho que foi um imprevisto qualquer, mas ele não me contou.
As duas se despediram com frieza e, antes de Suzy sair da sala, o telefone tocou
de novo. Certa de que era Carina querendo saber se Lionel desmarcara mesmo o
encontro, tirou o fone do gancho. Fosse qual fosse a surpresa que ela preparara, iria ter
de esperar outra oportunidade. Sentindo-se um pouco vingada, Suzy foi para a cozinha.
Acabava de colocar a louça no escorredor depois de lavá-la quando o médico
chegou. Suzy o acompanhou até o quarto e quando entraram, encontraram Lionel
adormecido, o rosto pálido, coberto de suor. Acordou assustado quando o doutor se
inclinou sobre ele para examiná-lo. Suzy saiu do aposento em silêncio, fechando a porta
para deixá-los mais à vontade.
Dez minutos depois, o médico voltou à sala e sorriu para Suzy, tranqüilizador.
— E só uma gripe. De qualquer forma, a fase crítica já passou. Ele precisa tomar
esses antibióticos para cortar a inflamação da garganta. Mas é importante terminar o
tratamento senão haverá risco de recaída. Dê-lhe bastante líquido e uma dieta leve,
embora por um ou dois dias ele não vá ter muito apetite.
Ele lhe estendeu a receita e Suzy sorriu, mais aliviada, enquanto o acompanhava
até a saída. Depois, retornou à sala e leu a receita. Precisava providenciar os remédios o
quanto antes. Se Lionel começasse a ser medicado ainda naquela noite, melhoraria muito
mais depressa. Foi até o quarto e, como ele já havia adormecido, desceu ao restaurante.
Apesar de o estabelecimento estar apinhado, Ann Ling veio ao encontro dela tão
logo a viu.
— Como está o sr. Moor? — quis saber. — Parece melhor. Ele pegou uma gripe
forte, mas o médico disse que o pior já passou.
— Que ótimo! Fico bem mais tranqüila...
— Está um pouco difícil cuidar dele, Lionel reclama de tudo... A mocinha sorriu,
complacente.
— Ele não deve estar acostumado a ficar doente.
— Preciso achar uma farmácia aberta. Você sabe se há uma aqui por perto?
— No outro quarteirão, nessa mesma calçada... Você vai ficar com ele?
— Não sei, ainda vou decidir.
Suzy se despediu e foi embora, apressada. Estava se perguntando a mesma coisa
desde que o médico partira, mas ainda não tomara nenhuma decisão. Não queria deixar
Lionel sozinho naquele estado. Entretanto, não era fácil ficar ali...
Lionel tinha o hábito de interpretar mal todas as atitudes dela. Na certa, pensaria
que ela estava usando a doença para forçar uma reaproximação. O pior era que, se ele
tentasse alguma coisa, Suzy não garantia conseguir repeli-lo. Acima de tudo, ela o
amava, bem mais do que seria sensato para resguardar a própria dignidade.

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CAPÍTULO VII

Eram dez horas quando Suzy se inclinou sobre Lionel para acomodá-lo. Sentiu
pena de fazê-lo, pois ele dormia um sono calmo e profundo, mas era preciso dar-lhe o
remédio conforme as recomendações do médico.
Tocou-lhe de leve o ombro e ele abriu os olhos com dificuldade, como se aquilo lhe
custasse um grande esforço.
— O que é isso? — quis saber, quando Suzy aproximou-lhe dos lábios a colher
com o medicamento.
Sem dar importância à reclamação, ela colocou-lhe a colher entre os lábios, num
gesto firme.
— Só engula isso, vai lhe fazer bem. Lionel obedeceu, mas fez uma careta.
— Que gosto horrível! Você está me envenenando?
— Não, mas até que eu gostaria.
Ela apagou a luz e saiu do quarto, levando para a sala cobertas para improvisar
uma cama no sofá. Como teria de acordar às quatro horas para dar a Lionel outra dose de
remédio, telefonou para o serviço de despertador e pediu para acordá-la àquela hora. Em
seguida, estendeu sobre o sofá os lençóis e uma colcha, improvisando um travesseiro
com uma almofada.
Ao contrário do que esperava, adormeceu logo, caindo num sono profundo. Só se
deu conta disso quando despertou assustada com o telefone tocando. Eram quatro da
madrugada. Ergueu-se ainda sonolenta e foi até o banheiro lavar o rosto em água fria
antes de levar o remédio para Lionel.
Desta vez, encontrou-o acordado, o abajur aceso sobre o criado-mudo. Suzy parou
na porta, surpresa.
— O que aconteceu? Perdeu o sono?
Lionel recostou-se no travesseiro, observando-a com curiosidade.
— Acordei quando o telefone tocou e ouvi alguém andando pela casa... O que está
fazendo aqui às quatro horas da manhã?
Suzy aproximou-se da cama devagar.
— Você não lembra do que aconteceu ontem à noite? — Claro que lembro, mas
quero saber por que ainda está aqui... Suzy mostrou-lhe o vidro de remédio e a colher.
— Para você tomar isso na hora certa.
Lionel a observou em silêncio enquanto ela destapava o vidro e despejava na
colher o líquido amarelado. Quando Suzy a estendeu em direção aos lábios dele, Lionel
engoliu o conteúdo sem reclamar. Em seguida, ela estendeu a mão na direção do abajur
para desligá-lo, mas ele a impediu, segurando-lhe o pulso.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

— Não, deixe acesa.


Em vão Suzy tentou soltar-se dele.
— Você deveria estar dormindo...
— Eu dormi até agora, só acordei por causa do telefone. Quem telefonou para cá a
essa hora?
— Foi o serviço de despertador. Eu pedi para ligarem por causa do seu remédio. O
médico disse para eu lhe dar de seis em seis horas, e fiquei com medo de não acordar.
— Você dorme bem, não é?
Na voz dele havia uma amargura que a deixou irritada.
— Não comece com isso de novo!
Suzy desvencilhou-se e caminhou para a porta.
— Pois faz três anos que eu não consigo dormir bem. Eu sempre acho que já
superei tudo, mas as lembranças voltam mais cedo ou mais tarde. Parecem crises de
uma doença incurável que, quando menos se espera, voltam a atacar...
A tristeza na voz de Lionel a fez desistir de ir embora. Quando se voltou para
encará-lo, o rosto dele perdera o rubor ocasionado pela febre. Pálidas, as feições
estampavam uma tensão contida, um sofrimento inconfesso.
— Você não pode esquecer alguma coisa quando está sempre pensando sobre ela
— Suzy observou, num tom ameno. — Torturar-se desse jeito não vai mudar o que já
aconteceu. Mark está morto e nenhum de nós teve culpa, nem mesmo ele. Ele estava
acostumado a fazer loucuras no volante, nunca sofreu um acidente sequer... Poderia ter
acontecido durante uma corrida e, no fundo, todos nós sabíamos que isso era possível.
— Mas eu desejei a morte dele, entende? Quando Mark me disse que vocês dois
iam mesmo se casar, eu quis matá-lo! O fato de ele ter se acidentado não muda nada. É
como se eu o tivesse assassinado...
Lionel estava trêmulo, transtornado. Os punhos crispados refletiam um desespero
agudo, como se tudo acabasse de acontecer. Suzy deixou o vidro de remédio sobre a
cômoda e, aproximando-se dele, sacudiu-o pelos ombros como se quisesse despertá-lo
de um pesadelo.
— Mas você não matou Mark! Ele mesmo se matou e teria matado você se
pudesse. Ele foi atrás de você para isso, começou a persegui-lo para isso... Mark era
mimado e egoísta, sempre teve na vida tudo o que quis e não suportava ser contrariado.
Ficou fora de si quando eu disse que te amava, Lionel, mas não por amor. Na verdade,
me considerava uma propriedade dele, por isso não queria me perder. Mark nunca se
importou comigo de verdade, ele nem me conhecia... Só conseguia pensar em si mesmo,
por isso fui deixando de amá-lo...
Lionel a escutou em silêncio mas, de repente, ela se deu conta de estar perdendo
tempo. Desanimada, soltou-lhe os ombros e afastou-se.
— Por favor, tente dormir — murmurou, desligando a luz. --Você não vai sarar
nunca se não descansar.
Suzy fechou a porta, angustiada. Lionel nunca compreenderia suas tentativas de
ajudá-lo. Havia se fechado para tudo que lhe contrariasse as opiniões e ninguém o
convenceria a encarar a vida de outra forma...

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

O dia estava quase amanhecendo quando Suzy conseguiu adormecer de novo.


Mas nos sonhos agitados, viu Mark saindo do carro em chamas, olhando-a acusador...
mas era o olhar de Lionel!
— Suzy!
A voz grave chegou de muito longe, mas tudo voltou ao normal quando ela abriu os
olhos, deparando-se com o rosto angustiado de Lionel.
— Você estava tendo um pesadelo — ele murmurou, aflito. Suzy tentou controlar o
nervosismo, escondê-lo de Lionel. — Sinto muito por tê-lo acordado de novo.
— Eu não estava dormindo.
Lionel pousou-lhe as mãos sobre os ombros, carinhoso, mas Suzy se encolheu ao
contato, na defensiva. Como havia tirado o vestido para não amarrotá-lo, estava apenas
de calcinha e sutiã. Sentia-se em perigo, não só por Lionel mas por si mesma.
Reunindo todas as forças, contudo, segurou-lhe os pulsos e afastou-os de si.
Entretanto, Lionel sentou-se na ponta do sofá, bloqueando-lhe os movimentos.
— Como eu poderia dormir sabendo que você está aqui, na sala? — ele perguntou,
num murmúrio.
— Você precisa voltar para a cama. Sua febre ainda não baixou. Lionel não
respondeu. Apenas lançou-lhe um olhar ardente antes de se inclinar e beijar-lhe o
pescoço e os ombros, segurando-a com firmeza quando ela tentou escapar. Alarmada,
Suzy sentiu-o aninhar o rosto entre os seios dela e fechou os olhos, um estremecimento
de desejo percorrendo-a inteira.
— Lionel, por favor, não!
— É a febre, não sei o que estou fazendo — ele brincou. Deslizando a mão sob a
colcha, Lionel explorava-lhe os quadris e as coxas num ritmo sensual e excitante. Depois
afastou-lhe o sutiã, acariciando-lhe os mamilos rosados com a ponta da língua,
enlouquecendo-a de prazer.
Suzy ainda tentou levantar, mas ele a impediu, deitando-se na ponta do sofá e
aconchegando-se ao corpo dela. O pior era não poder controlar a excitação, todo o seu
ser desejando entregar-se, consumir-se nas lavas da paixão...
Mas era preciso reagir, dizia-lhe a razão. Se ela se deixasse levar, jamais se
perdoaria. Lionel a julgava capaz das piores baixezas e, na certa, a desprezaria ainda
mais se a possuísse. Pensaria que ela estava interessada no dinheiro e na fama trazidos
pelo livro e pelo filme.
Suzy ficou rígida, impedindo-se de corresponder às carícias. Notando-lhe a frieza,
Lionel fitou-a por um momento e ela enfrentou-lhe o olhar, desafiadora.
—- Muito bem, Lionel, faça o que quiser. Afinal, você é mais forte do que eu... Mas
não espere de mim nenhuma reação, pois está me usando.
No mesmo instante, o brilho dos olhos dele transformou-se num incêndio de
revolta.
— Você não tem o direito de falar em ser usada. Por acaso não foi isso o que fez
comigo?
— Não é verdade, Lionel, nunca usei você. Tudo o que lhe contei aconteceu
mesmo. Mark mentiu para você, assim como mentiu para mim sobre a doença da mãe
dele para me fazer aceitar aquela farsa absurda. Ele queria nos separar e conseguiu... Sei

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que você nunca vai acreditar nisso. Fica mais fácil suportar a culpa quando se tem
alguém para dividi-la.
Lionel afastou-se dela com um ar sombrio no rosto. Sentou-se numa poltrona em
frente, enfiando os dedos nos cabelos despenteados
— Mas você também se sente culpada pela morte de Mark. Estava sonhando com
ele, gritou o nome dele enquanto dormia... Foi a primeira vez ou tem esses pesadelos
sempre?
— De uma certa forma, eu me culpo, sim, mas não pela morte dele. Durante muito
tempo, achei que nós tínhamos errado muito e a conseqüência foi o acidente. Mas hoje
eu sei que nosso maior erro foi aceitarmos calados todas as vontades de Mark.
Criticávamos tanto a mãe dele por mimá-lo e acabamos cometendo o mesmo erro. Ele
estava acostumado a ter tudo o que queria, e nós o fizemos acreditar que poderia
continuar sendo assim. Quando a situação se tornou insuportável, tentamos reagir, mas
ele não estava preparado para isso.
Lionel a ouviu em silêncio, uma expressão impenetrável no rosto. Por fim, levantou-
se e foi até a porta do quarto, mas voltou-se antes de entrar.
— Por que você veio ate aqui?
— Eu já disse, liguei para cá e o achei estranho... Fiquei preocupada.
— E por que você ligou?
— Vou ter de contar a Alex que já nos conhecíamos. Talvez isso prejudique as
negociações com os direitos autorais do seu livro. Achei melhor você ficar sabendo
Lionel franziu a testa, intrigado.
— Mas por que isso faria diferença para ele? Não estou entendendo...
— Ele pode pensar que combinamos tudo para fazê-lo se interessar pelo romance.
— Você não está se preocupando à toa? Stevenson se interessou pelo livro porque
gostou dele. Não acredito que um homem como ele se deixe influenciar pela opinião dos
outros, principalmente quando há tanto dinheiro em jogo... A não ser, é claro, que ele
esteja apaixonado por você.
Suzy olhou-o por um momento, incrédula. Depois fez um gesto de impaciência.
— Não seja ridículo, ele ama a esposa!
— Então por que ele ficaria tão chocado ao saber que já nos conhecíamos?
— Porque ele pode se sentir enganado, você não entende?
— Não, para mim isso só teria sentido se vocês estivessem tendo um caso e ele se
deixasse convencer por você a fazer um negócio comigo.
— Eu não tenho nada a ver com isso! Nem sabia das intenções de Alex sobre seu
livro. Quando vi você na casa dele. quase morri de susto!
— Então me explique por que Stevenson mudaria de idéia ao saber de nós.
— Porque fui eu quem levou o seu livro à casa dele. Claro que foi tudo um mal-
entendido, mas ninguém pode provar que não foi tudo um plano para ficarmos ricos. A
sra. Jonas me alertou para esse perigo. Disse que o marido dela está desconfiado de
alguma coisa nesse sentido. Talvez por isso ele mesmo esteja tratando desse assunto...
Suzy contou a conversa com Leah Jonas e Lionel encolheu os ombros, indiferente.

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— Se Stevenson é tão paranóico, é melhor mesmo você contar tudo. Mas acho
melhor fazer isso logo, pois vamos assinar o contrato na semana que vem.
— Lionel, sinto muito. Tomara que tudo dê certo! Vai ser horrível se, por minha
causa, você perder uma chance como essa.
Ele a olhou por um momento e saiu sem dizer nada. Suzy continuou deitada no
sofá, sentindo-se deprimida. Amava-o, não havia como negar, e no entanto não poderia
nunca ser feliz com ele. A sombra de Mark se cravara entre os dois como uma maldição e
Lionel não superaria os próprios remorsos por teimosia. Se a ouvisse, haveria uma
esperança para os dois. Mas ele perdera a confiança nela e, por isso mesmo, ela também
não conseguia perdoá-lo.
Depois de meia hora sem conseguir pegar no sono, Suzy resolveu tomar um banho
e se vestir. O quarto de Lionel estava às escuras e não se ouvia ruído algum lá dentro.
Devia estar dormindo, mas ela não teve vontade de averiguar.
Mesmo sem apetite, tomou um café com torrada. Decidiu ficar ali até as dez horas,
quando daria a última dose do remédio de Lionel, depois iria embora. Ele já estava
melhor, a febre cedera, portanto a presença dela começava a incomodá-lo, Suzy pensou,
com amargura.
Acabava de colocar a sala em ordem quando a campainha toou. Foi atender,
pensando ser Ann Ling. Entretanto, encontrou uma senhora miúda e elegante, de feições
jovens apesar dos cabelos grisalhos.
— Como ele está? — a mulher perguntou, ansiosa. — Fomos à casa de uns
amigos ontem à noite e chegamos muito tarde. Estávamos prontos para dormir quando
ouvimos o recado na secretária eletrônica e, como já era quase madrugada, deixamos
para vir hoje, cedinho.
Enquanto falava, a mulher entrou no hall, atravessando a sala logo em seguida
como se estivesse em casa. Suzy a acompanhou, pensando que ela houvesse batido no
apartamento errado.
— A senhora está falando de Lionel Moor? Se for, ele está dormindo e acho que
não tem condições de receber visitas hoje...
Mas a mulher já entrava na cozinha, seguida por Suzy.
— Que cheiro bom de café! Estou precisando mesmo de uma xícara. A viagem foi
muito cansativa, ou talvez eu esteja ficando velha... Pensei que encontraria o pessoal do
restaurante aqui, Lionel sempre fala neles, diz que são muito simpáticos...
— São mesmo, sra...
— Valerie Moor. Sou a mãe dele, eu não disse? Mas que distração a minha!
A sra. Moor serviu-se de café e sorriu para Suzy, como se esperasse que ela
também se apresentasse. Mas o sorriso desapareceu por completo quando Suzy disse
quem era.
— Suzy Froy? — ela repetiu, pasma. — O que você está fazendo aqui? Pensei que
Lionel nunca mais a tivesse visto.
Suzy não se espantou diante da hostilidade que surgia nos olhos da outra mulher.
Era óbvio que a sra. Moor sabia de alguma coisa. Lionel devia ter contado aos pais a
versão na qual ele próprio acreditava.

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— Eu precisei tratar de negócios com ele — Suzy explicou com polidez. —


Trabalho com Alex Stevenson e foi por isso que liguei para Lionel. Mas percebi que ele
estava doente e vim ver se poderia ajudá-lo em alguma coisa...
— Você veio ver se podia ajudar... — a sra. Moor repetiu, com ironia. — Três anos
atrás, nós esperamos que você fizesse isso...
Suzy enfrentou com tranqüilidade o olhar de acusação da mãe de Lionel.
— Três anos atrás, eu também precisava de ajuda, mas não havia ninguém em
casa quando eu telefonava...
A sra. Moor encarou-a com frieza, mas atenuou um pouco o tom de voz ao
perguntar:
— Há quanto tempo você está aqui?
Suzy sorriu com ironia, percebendo muito bem o sentido oculto daquelas palavras.
— Não muito, mas o suficiente para chamar um médico e dar o remédio receitado
nos horários certos. Agora, o pior já passou, mas Lionel podia ter uma recaída se não
fosse medicado ontem mesmo...
Apesar de não ter essa intenção, sua voz soava um tanto acusadora. Não
pretendia dar a ninguém o direito de julgá-la, fosse quem fosse. O que acontecera no
passado era um assunto entre ela e Lionel e tudo já estava complicado demais sem a
interferência de outras pessoas.
Mas compreendia a posição da sra. Moor. Lionel devia ter sofrido muito por
ocasião do acidente e, para ela, como mãe, isso devia ter sido um grande choque. Lionel
sempre dizia como os pais se mostravam ansiosos para vê-lo casado e feliz, longe da
carreira perigosa de corredor. E o pouco que via da senhora naquele momento lhe dava
certeza de que, se não fossem as circunstâncias tão desfavoráveis do encontro, as duas
poderiam ter se entendido muito bem.
Mas agora não havia muito para lamentar. Não havia mais nada entre ela e Lionel,
jamais poderiam retomar qualquer relacionamento. Aquela noite viera a provar o que Suzy
já sabia: Lionel não era mais o mesmo homem por quem ela se apaixonara. Insistir em
ficar perto dele só a faria sofrer.
— Bem, agora que a senhora está aqui, eu posso ir embora — Suzy concluiu com
naturalidade. — Tenho certeza de que há muitas coisas que a senhora quer conversar
com Lionel em particular... A ultima dose do antibiótico deve ser dada às dez horas, uma
colher de sopa. O vidro está em cima do criado-mudo. Até logo, foi um prazer conhecê-la.
Ao sair da cozinha, porém, encontrou Lionel no corredor, vindo em sentido
contrário.
— Quem está aí? — ele perguntou, curioso.
Antes de Suzy responder, a sra. Moor apareceu na porta da cozinha, sorrindo para
o filho.
— Sinto muito não estarmos cm casa ontem à noite quando você ligou.
Encontramos o recado na secretária eletrônica, mas já era muno tarde para viajar... Como
você se sente? Está abatido, meu filho!
Suzy observou e deu razão a sr. Moor. Lionel estava pálido e magro; a barba por
fazer e o pijama sob o roupão acentuavam-lhe o aspecto doentio.
— Eu não a esperava tão cedo. — Lionel sorriu com carinho para a mãe. — Você
deve ter saído de casa de madrugada para chegar aqui a essa hora! Não havia motivo

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para isso, sinto muito por ter dado a impressão de estar morrendo. Foi só uma gripe forte,
mas eu me sentia horrível quando liguei...
— Você não devia ter saído da cama. Volte já para lá!
A sra. Moor seguiu Lionel até o quarto e fechou a porta atrás deles. Suzy ficou no
corredor, olhando com tristeza para a porta fechada. Podia bem imaginar o que a mãe de
Lionel dizia para ele naquele momento: o que Suzy estava fazendo ali, o que havia entre
eles, lembrando-o do que acontecera três anos antes... como se ele precisasse ser
lembrado!
Ela foi até a sala, apanhou suas coisas e saiu em silêncio. Não havia necessidade
de despedidas, mesmo porque nem mãe nem filho pareciam interessados nessas
formalidades.
Ao chegar à rua, fez sinal para o primeiro táxi que apareceu. Queria sair dali o mais
rápido possível, voltar para casa, onde poderia chorar sem testemunhas.
Quando os Stevenson voltassem a Londres, seria preciso contar-lhes quase toda a
história para que compreendessem que ela não tivera nada a ver com o interesse de Alex
pelo livro de Lionel. Não seria uma tarefa muito fácil.
Todavia, mesmo se Alex acreditasse nela, Suzy não queria mais continuar
trabalhando na Empire Films. Não suportaria ter de colaborar para a representação de
todas aquelas calúnias. Além disso, não queria mais ver Lionel. Precisava lutar pela
própria felicidade e, perto dele, isso seria impossível.
Mas enquanto o táxi percorria as ruas da cidade, Suzy percebeu ser inviável
passar uma borracha no passado, como se nada houvesse acontecido. Para qualquer
lugar aonde fosse, teria de aprender a viver com as lembranças, as boas e as ruins. Era
preciso aceitar que amava Lionel, apesar de todos os esforços contra isso, acima do bom
senso e da razão...
Ela fizera de tudo para esquecê-lo, mas fora inútil. Talvez, se enfrentasse sem
medo os próprios sentimentos, teria uma chance de viver de um modo mais tranqüilo...

CAPÍTULO VIII

Naquela manhã, Suzy estava sentada à escrivaninha trabalhando quando de


repente, ao erguer a cabeça, deparou-se com Alex.
Ao ver-lhe o ar surpreso, ele soltou uma gargalhada. — Não me olhe assim, não
sou um fantasma! Você sabia que eu viria aqui hoje, não sabia?
Suzy sorriu.
— Sabia, mas mesmo assim não acredito no que estou vendo. Você está ótimo! Da
última vez que nos encontramos, achei que ia demorar para se restabelecer.
De fato, Alex parecia outra pessoa, bem diferente do homem pálido e cansado com
quem ela conversara duas semanas antes. O rosto estava corado e os olhos traziam o
brilho habitual. Assim era o Alex que ela conhecia, inquieto e cheio de energia, capaz de
mantê-la ocupada durante todo o expediente.

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— Sara deve estar bem mais tranqüila... Ela veio com você?
— Sim, ela está em Londres, mas aproveitou para fazer compras enquanto eu
vinha aqui. O pior é que não consegui inventar nenhuma desculpa para impedi-la. Na
certa, vou estar falido daqui a duas horas... Mas ela bem que merece fazer essa
extravagância. Afinal, Sara me aturou todo esse tempo. Está bem mais sossegada agora,
que eu já estou saindo de novo.
— Mesmo assim, você vai viajar, não é?
— Sim, eu prometi a Sara. É por isso que ela está fazendo compras; são algumas
roupas que deseja levar. É sempre a mesma história: ela gasta todo o meu dinheiro em
roupas e quando chega lá, só usa jeans, shorts e camisetas! Acho que Sara entra nas
lojas só por mania! Logo que chegamos a Londres, ela ficou maluca para ir aos shopping
centers...
Suzy riu mas, na verdade, seu pensamento estava longe. Tentava achar uma boa
maneira de contar a ele sobre Lionel. Notando-lhe o ar preocupado, Alex sentou-se diante
da escrivaninha e a observou por um momento.
— Você está muito pensativa. Existe alguma problema, ou é impressão minha?
Ela fez uma careta.
— Você parece ler meus pensamentos! Na verdade, eu preciso lhe contar uma
coisa meio desagradável...
— Posso imaginar o que seja. É sobre Lionel Moor, não é?
— Você já sabia? Quem lhe contou?
— Tive uma conversa muito comprida com o sr. Jonas por telefone na noite
passada. Ele achou que eu deveria saber de tudo antes de deixar Lionel assinar o
contrato...
Suzy esboçou um sorriso irônico.
— Do jeitinho que eu imaginei! A sra. Jonas conhece muito bem o homem com
quem se casou...
— E você não conhece nem um pouco o homem com quem trabalha! — Alex
afirmou, zangado. — Eu nunca ouvi tanta bobagem junta! Vou repetir para você
exatamente o que eu disse ao sr. Jonas. Decidi comprar os direitos do livro de Moor
porque gostei da história e achei que daria um bom filme. Gosto do tema, do modo como
Lionel trata a trama romântica, da ambigüidade da personagem feminina... Não sei se vai
gostar disso ou não, mas não consigo pensar naquela mulher como sendo você. Não sei
direito o que aconteceu entre você e Moor. Mas quando o sr. Jonas sugeriu que a
personagem era baseada em você, eu não pude concordar.
— Mas não sou eu — Suzy garantiu, com firmeza. — Ele usou apenas alguns
aspectos da minha personalidade, não todos. Eu não tenho tanto sangue-frio quanto
aquela garota...
— Escritores às vezes compõem seus personagens baseados em pessoas de
verdade. Talvez Moor nem tenha se dado conta de ter se inspirado em você...
Suzy não fez nenhum comentário. Lionel tinha feito aquilo em plena consciência e
ela sabia. Era parte da vingança dele atacá-la em público sem dar-lhe chance de se
defender.
— Mas isso não vem ao caso... Voltando ao assunto, Suzy, você devia ter me
contado que conhecia Moor, não vejo razão para não ter feito isso. Você não tinha nada a

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ver com minha decisão de transformar o romance em filme e, francamente, acho essa
suposição muito ofensiva. Não sou nenhum débil mental para me deixar manipular dessa
maneira. Antes mesmo de você me dar o livro, eu já estava interessado nele, só de ter
lido algumas críticas. Depois de lê-lo, fiquei encantado com o potencial da narrativa, mas
isso não tem absolutamente nada a ver com você. Se não tivesse me dado o livro, eu
mesmo o compraria. Suzy soltou um suspiro de alívio.
— Bem, eu não quis mesmo enganar ninguém, mas a sra. Jonas me afirmou que o
marido dela...
— O sr. Jonas não a conhece tão bem quanto eu. Eu disse isso a ele também e ele
reconheceu que se precipitou. Não se preocupe, Suzy, eu não quero saber nada, sua vida
particular não me interessa. E Moor vai assinar o contrato, conforme combinamos.
— Ainda bem, eu não queria ser responsável por Lionel perder a chance de fazer
esse filme. É uma coisa importante para qualquer escritor.
— Ele vai ficar muito rico. Parece que os editores daqui e dos Estados Unidos
estão planejando o lançamento de outra edição de Beijo de fogo para a época em que o
filme for lançado. Eu só vou poder começar as filmagens daqui a um ano no mínimo. O sr.
Jonas garantiu um orçamento bem generoso, mas a fase de planejamento vai demorar
pelo menos uns seis meses, ou até mais.
— Estou contente que você me compreenda e que tudo tenha dado certo... Mas
mesmo assim eu vou pedir demissão, Alex. Não posso mais continuar trabalhando aqui.
Ele se inclinou sobre a mesa e franziu a testa, intrigado. Por quê?
— Por várias razões...
— Enumere-as. Você é uma boa secretária e eu não quero perdê-la. Portanto,
estou disposto a atender qualquer reivindicação, razoável, é claro.
— Não se trata disso, Alex. São razões pessoais e eu prefiro não discuti-las.
Alex andou em silêncio pela sala por algum tempo, as mãos nos bolsos e a cabeça
baixa, pensativo. Depois, parou diante dela, com um ar sério.
— Devo presumir que essas razões tenham alguma relação com Lionel Moor.
— Têm, sim, mas ele não é o único motivo.
— Muito bem, não vou aceitar sua demissão agora; quero que pense bem no
assunto neste fim de semana. Sara e eu embarcaremos na segunda-feira à tarde. Você
poderá me ligar até segunda de manhã para dizer o que decidiu... E eu espero que
desista da demissão até lá.
Leonard Jonas ligou para Suzy naquela mesma tarde. A voz grave soava bastante
insegura, fato muito fora do comum.
— Eu preciso me desculpar, srta. Froy. Alex ficou aborrecido comigo. Achou um
absurdo eu suspeitar de um golpe da senhorita e do sr. Moor tanto quanto imaginar que
alguém pudesse influenciá-lo em suas decisões...
Suzy riu.
— De qualquer maneira, fico feliz que tudo tenha ficado esclarecido. Por favor, não
se preocupe mais com isso. Eu compreendi porque o senhor ficou preocupado.
—- Alex não, acho que desta vez o ofendi de verdade. Duvidei da independência
intelectual dele e isso é imperdoável.

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— Mas eu tenho certeza de que ele vai esquecer logo. Alex não é de guardar
rancor; essa é a qualidade dele que eu mais admiro. É até bem compreensivo para um
egocêntrico.
O sr. Jonas riu um pouco da observação.
— Você é muito otimista e, espero, tenha razão... Só me diga uma coisa: você já
chamou Alex de egocêntrico na frente dele alguma vez?
— Sim, mas não usei esse termo...
— Escute, quando Alex e Sara voltarem, eu e minha esposa ofereceremos uma
pequena recepção em nossa casa, só para os amigos mais íntimos. Queremos
comemorar a recuperação de Alex e esperamos contar com sua presença.
Suzy mal pôde acreditar no que ouvia. Nunca fora convidada para as legendárias
festas na casa dos Jonas, que sempre aconteciam nos vastos jardins da mansão do
casal. Cheias de convidados famosos, essas recepções ocupavam as colunas sociais
durante dias.
— Obrigada, o convite me honra muito — respondeu. Entretanto, não comentou
que não estaria mais trabalhando na empresa quando Alex voltasse de férias.
Uma sensação de desânimo a invadiu ao desligar o telefone. Agora, quando estava
começando a fazer parte da Empire Films de verdade, teria de sair. Um convite pessoal
do presidente significaria muito para qualquer funcionário, de um modo especial porque
as festas dos Jonas eram freqüentadas apenas por pessoas muito especiais.
Suzy deu de ombros e voltou ao trabalho. Mesmo se não se demitisse, achava
melhor não ir àquela festa. Com certeza Lionel estaria lá e, dali em diante, ela pretendia
evitá-lo o máximo possível.
Aquela situação duraria por pouco tempo, só até o término do mês de aviso prévio
estipulado por seu contrato. Então, estaria livre para sempre daquele olhar acusador.
Entretanto, ao contrário do que seria natural, isso não causava nela nenhuma alegria...
Ao final do expediente daquela tarde, Suzy encontrou Joe no elevador. O rapaz
mostrava-se ainda desanimado, dizendo sentir cada vez mais a falta de Linda.
— Por que você não tira uma semana de férias e vai vê-la na Espanha? — Suzy
sugeriu, tentando confortá-lo. — Deve estar lindo lá nessa época do ano. A primavera é
sempre a melhor época para se visitar os países do Mediterrâneo.
O amigo encolheu os ombros com tristeza
— Não sei se essa é uma boa idéia no meu caso Ouvi dizer que Linda está saindo
com um dos técnicos... Se eu aparecer ela pode não gostar da surpresa
Suzy o encarou, incrédula.
— E você dá ouvido para esse tipo de fofoca? Pode ser apenas um amigo dela,
como eu e você! Francamente, Joe, eu não esperava isso de você!
— Talvez você tenha razão... vai fazer alguma coisa nesse fim de semana, Suzy?
Poderíamos nos encontrar e discutir melhor esse assunto...
Suzy inventou uma desculpa para não aceitar o convite e saiu, apressada, em
direção ao metrô. Gostava muito de Joe, mas precisava ficar sozinha para decidir sobre
seu futuro. Além disso, os problemas de Joe eram muito semelhantes aos seus, e discuti-
los com ele era sofrer duas vezes.

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Clarrie não precisaria dela naquele fim de semana para tomar conta das crianças,
pois ela e Derek iam levá-las para visitar os avós em Wales.
Suzy tinha o fim de semana só para si e aproveitou para fazer coisas que havia
muito tempo não tinha oportunidade. No sábado pela manhã, fez compras com calma e, a
tarde, tratou das unhas e cabelos com maior cuidado. Isso contribuiu para relaxá-la das
tensões acumuladas durante duas semanas de aborrecimentos consecutivos.
Naquela noite, foi ao teatro assistir a uma comédia musical com alguns amigos.
Após o espetáculo, foram todos jantar num restaurante italiano, num clima agradável e
cordial.
Já era quase uma hora da manhã quando Suzy chegou em casa.
Sentia-se leve e bem-humorada e dormiu muito bem, um sono calmo e profundo.
Acordou mais tarde no domingo e estava tomando café quando a campainha tocou.
Mesmo antes de abrir a porta, alguma coisa lhe dizia quem era o visitante. Por isso
mesmo, não se surpreendeu ao ver Lionel diante de si.
— Nós não temos mais nada para conversar — ela disse com frieza.
— Talvez você não, mas eu sim.
— Seja lá o que for, eu não quero ouvir!
Suzy pretendia manter-se irredutível naquela decisão, mas a expressão no rosto de
Lionel a fez mudar de idéia. Ao invés da arrogância fria e hostil de alguns dias antes, os
olhos dele emanavam uma calma doce, semelhante ao tempo em que ela o conhecera.
Apesar de todo o esforço para não se deixar levar pela mudança repentina, Suzy acabou
por recuar um passo, dando-lhe passagem.
Lionel entrou na sala devagar e, depois de um momento, voltou-se para olhá-la.
Ela odiou a si mesma mas foi-lhe impossível não reconhecer o quanto ele estava
atraente, vestindo calça cinza e um suéter branco. Quando conseguiria esquecê-lo para
sempre?
— Em primeiro lugar, quero agradecer por você ter cuidado tão bem de mim
quando estive doente.
—- Tudo bem, qualquer um teria feito o mesmo. Ela fechou a porta e ficou diante
dele. Por um momento, nenhum dos dois soube como continuar a conversa.
— Acho que não fui um paciente muito fácil — ele murmurou por fim. — É que eu
estava delirando quase o tempo todo...
A afirmação soou como um pedido de desculpas por ter tentado fazer amor com
ela. Suzy sabia disso, mas fingiu não entender e sorriu, para desfazer o constrangimento.
— Ora, não foi uma das piores experiências da minha vida.
— Ainda bem que você pensa assim...
— Eu estava tomando café. Você me acompanha?
— Sim, obrigado.
Suzy levou-o até a cozinha e, depois de servi-lo, sentou-se à mesa para terminar
sua xícara de café. Lionel pegou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.
— Por que pediu demissão do emprego, Suzy? — perguntou de repente.
Suzy sentiu vontade de matar Alex. Por que ele havia contado a Lionel?

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— Tenho minhas razões e não quero discutir nenhuma delas — respondeu


apenas.
— Uma dessas razões sou eu, não sou? Você não quer trabalhar comigo?
Perguntei a Stevenson se ele queria que você ficasse e ele disse que sua demissão só
vai lhe atrapalhar a vida. Sem você, ele se sente perdido...
— Foi muito gentil da parte dele. — Suzy ficou admirada e feliz ao ouvir aquilo.
Alex era uma pessoa muitíssimo exigente e não tinha por hábito distribuir elogios. Apenas
algo extraordinário merecia sua atenção.
— Você não quer dificultar a vida de Alex, não é?
— Não, mas, mesmo assim, eu vou sair.
— Talvez esteja querendo dificultar a minha vida, então. Suzy o encarou, incrédula.
— E como eu faria isso?
— Irritando Stevenson. Ele está furioso com essa história de demissão e acha que
a culpa é minha.
—- Você é muito engraçado, Lionel! Primeiro, inferniza minha vida vinte e quatro
horas por dia e, agora, quer que eu fique na empresa para salvar seus interesses?
—- Eu infernizei a sua vida? Como?
O ar de inocência no rosto dele a irritou ainda mais.
— Você sabe muito bem! Cada vez que nos vemos, faz questão de lembrar coisas
desagradáveis e acabamos sempre nossas conversas numa discussão inútil e sem
sentido! Eu não tenho nervos para isso! Estou cansada de carregar a sua culpa por você!
Não quero vê-lo mais, devo lhe dar os parabéns: você conseguiu estragar minha vida pela
segunda vez. Está satisfeito?!
Lionel deixou a xícara sobre a mesa e se levantou. Aproximou-se da janela
devagar e olhou para fora, dando as costas para Suzy. — Não estou, não — ele
murmurou.
Suzy ficou calada. Pela primeira vez não estava arrependida das palavras
cáusticas que dissera. Em ocasiões anteriores, os insultos saíam-lhe da boca e
magoavam muito mais a ela própria. Mas agora já estava ferida demais e se tornara
quase insensível.
— Três anos atrás, quando perdi a esperança de receber sua visita no hospital,
fiquei muito amargurado. Comecei a acreditar em Mark, a odiar você por ter me usado.
Odiava-a pela morte de Mark, pela culpa que eu sentia e, aos poucos, transformei-a num
bode expiatório para toda a situação. Mas nem assim eu me livrei do remorso. Por isso
mesmo meu primeiro impulso quando a vi de novo foi magoá-la como eu próprio me
sentia magoado. Era como se eu tivesse um veneno dentro de mim que, se não
expelisse, acabaria me matando. Não conseguia ouvir ninguém capaz de me trazer de
volta à razão, por isso não a ouvia... — Ele fez uma pausa e, soltando um suspiro, voltou-
se para Suzy. — Foi a sua coragem diante do meu ódio que me trouxe de volta à
realidade de novo. Você resgatou minha razão e eu lhe sou grato por isso... Só mesmo
um louco não veria que você estava falando a verdade. Se Mark não tivesse morrido, eu
nunca acreditaria naquela história. Eu o conhecia tão bem quanto a mim mesmo. Era
mimado, egoísta, tão possessivo quanto a mãe, capaz de qualquer trapaça para não
perder o que queria... Sinto muito por todo mal que lhe causei, Suzy. Tenho me
comportado como um crápula e nem vou lhe pedir para me perdoar. Só peço que não
deixe seu emprego por minha causa. Eu já a fiz sofrer demais, não quero arruinar sua

62
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vida outra vez. Se realmente não suporta mais me ver, eu não assino aquele contrato e
não haverá filme nenhum. Mas não vou aceitar que se sacrifique por minha causa.
Suzy o encarou, surpresa. Havia sinceridade no rosto dele, não havia como duvidar
das suas palavras.
— Eu também não quero seu sacrifício, Lionel. Não quero que perca a chance de
ver seu livro transformado em filme. Somos pessoas adultas, podemos chegar a um
acordo...
— Pois o único acordo possível é uma promessa minha de não lhe causar mais
nenhum problema. Você nunca mais vai me ouvir mencionar o nome de Mark ou nosso
relacionamento no passado. Vamos esquecer que nos conhecíamos antes, vamos nos
ver como dois estranhos de agora em diante. Não vou mais ameaçar sua tranqüilidade.
Suzy ouviu-lhe a promessa com uma estranha dor corroendo-a por dentro. Não
duvidava da sinceridade das palavras de Lionel, tampouco desconfiava da intenção dele
de honrar aquele compromisso. Estava certa de poder dar a Alex uma resposta positiva e
isso lhe garantiria a realização profissional.
Devia estar feliz e, no entanto, só conseguia se sentir vazia. O fato de Lionel
desejar esquecer o passado para sempre significava também o fim de qualquer
esperança de reconciliação. Ele a esqueceria, como parte de todas as lembranças
desagradáveis
Seriam como estranhos, Suzy repetia para si mesma, muito tempo depois de Lionel
haver partido. Nunca mais veria estampado no rosto dele o desejo contido, misto de raiva
e dor...
Desejara isso por tanto tempo e, agora, se sentia derrotada. Em vão tentava reagir.
Se Lionel era capaz de encará-la como uma estranha, ela também seria, prometia a si
mesma. Só não podia prometer, sob hipótese nenhuma, matar dentro de si o amor forte e
persistente que nutria por Lionel.

CAPÍTULO IX

Na segunda-feira pela manhã, a primeira coisa que Suzy fez ao chegar ao


escritório foi telefonar para Alex. Queria comunicar a ele a decisão de ficar no emprego.
Como de costume, Alex não demonstrou grande entusiasmo com a notícia. Sem
perder tempo com elogios, logo passou a ditar as tarefas mais urgentes a serem
executadas durante sua ausência.
Suzy anotou as instruções com rapidez, concentrada. Conhecia bem o patrão e
sabia que a novidade o deixara satisfeito, apesar de não ter havido nenhuma
demonstração efusiva de alegria. Se ela tivesse pedido demissão como pretendia, no
entanto, ele sofreria bastante até encontrar outra pessoa para substituí-la. Suzy já fazia
parte da vida profissional e pessoal de Alex, era mais uma amiga que uma secretária.

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— Não quero que sinta tédio enquanto eu estiver viajando — ele disse, em tom de
brincadeira. —- Você bem que poderia trabalhar com Lionel, ele vai precisar de uma
datilógrafa... Por favor, Suzy, ele só consegue usar dois dedos para bater à máquina!
Vamos precisar de meia dúzia de cópias do roteiro para quando eu voltar e o trabalho
renderá muito mais se você o ajudar. Na certa, não poderemos aproveitar quase nada,
mas, pelo menos, teremos onde nos basear...
Irritada, Suzy começou a protestar.
— Mas, Alex, eu não quero...
— Eu preciso desligar, Suzy, Sara está esperando por mim. Até a volta e divirta-
se...
Ao ouvir a ligação ser interrompida, Suzy teve vontade de chorar de raiva. Alex não
tinha o direito de fazer aquilo! Colocou o fone no aparelho, tentando se controlar, mas
sem grande resultado. E, além de tudo, ele ainda caçoava dela com aquele "divirta-se"!
Como podia ser tão cínico?!
Mas uma atitude como aquela era bem típica de Alex, ela pensou, nervosa.
Quando pressentia que ia ser contrariado, simplesmente fugia da situação. Na certa, não
se comoveria nem um pouco com a falta de vontade dela em trabalhar com Lionel. Prático
como era, limitar-se-ia a ignorar o seu desagrado e a trataria como se nada estivesse
acontecendo...
No fundo, ele estava certo, Suzy pensou, já mais calma. Ela era uma profissional e
devia encarar aquele encargo com frieza. Além disso, Lionel prometera se comportar
como um estranho quando a encontrasse de novo. Seria uma boa oportunidade para
verificar se ele cumpriria a palavra...
Suzy passou alguns dias ansiosa, esperando que Lionel aparecesse a qualquer
momento. No entanto, até quarta-feira à tarde ele não se comunicara com ela nem
mesmo por telefone. Na certa, não pretendia aceitar a oferta de Alex.
Trabalhando com Carina, ele não precisaria de uma datilografa. Aquela mulher
parecia perfeita em tudo, Suzy pensou, enquanto fazia os serviços de rotina do escritório.
Carina também fora secretária quando saíra da universidade, mas não por muito tempo.
Inteligente e habilidosa, obtivera uma boa colocação nos estudos e, graças a isso,
conseguira um emprego no departamento de roteiros da Empire Films. Em pouco tempo
conhecera algumas pessoas famosas, cuja influência a ajudara a ter uma ascensão mais
ou menos rápida dentro da companhia. Apesar disso, continuava desconhecida fora dos
meios cinematográficos e se ressentia disso. Carina não fazia segredo de seu desejo de
se tornar famosa. Faria qualquer coisa para atingir esse objetivo, até mesmo usar as
pessoas. Com certeza, acabaria conseguindo realizar seu sonho.
Talvez Lionel fosse de grande utilidade para ela nesse sentido. Suzy não
conseguia parar de pensar sobre isso mesmo depois de chegar em casa. Era bem
provável que aquilo não fosse nenhum sacrifício também para ele pois, parecia, o
relacionamento entre eles era bem mais do que profissional. Portanto, o sucesso do filme
de Lionel seria proveitoso também para Carina, pois a enorme Publicidade em torno dele
com certeza os tornaria o novo casal perfeito do cinema...
Suzy afastou o prato de sopa fumegante, num gesto de desânimo. Aqueles
pensamentos haviam lhe roubado o apetite. Detestava sentir ciúme de Lionel daquele
jeito, mas não conseguia se controlar. O pior era viver naquela incerteza, sem saber ao
certo se ele estava ou não tendo um romance com Carina. Se fosse verdade, ela na certa
já estaria sabendo. Notícias como essa, em especial quando se tratava de gente famosa,
espalhavam-se pela empresa com espantosa rapidez...

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De repente. Suzy se deu conta do quanto a própria curiosidade era inútil. Se não
fosse Carina, outra mulher despertaria o interes-se de Lionel, depois outra, até ele
encontrar alguém para casar, ter filhos... Ela precisava se acostumar com essa idéia,
sabia disso muito bem... mas. ainda assim, o coração quase parava quando pensava
nisso.
Na manhã seguinte, quando foi tomar café, Suzy ficou sabendo que Linda Black
sofrera um acidente na Espanha. Segundo os comentários, ela caíra de um penhasco
durante as filmagens e quebrara uma perna. Por isso, estava voltando para a Inglaterra
para ser substituída por outro técnico.
Suzy logo pensou em avisar Joe, e ao voltar ao escritório ligou para ele. Mas como
o rapaz estava em reunião e não podia ser interrompido, não teve outro remédio senão
deixar um recado, pedindo-lhe para entrar em contato com ela o mais depressa possível.
Para Joe, o assunto era muito urgente e Suzy podia entender como ninguém os
sentimentos do amigo. No entanto, observando a situação dele do lado de fora, conseguia
ver um aspecto positivo. Linda devia estar deprimida por ter perdido o trabalho e
precisaria de alguém para confortá-la. Só Joe poderia fazer isso e, talvez, aquela fosse a
oportunidade ideal para ele demonstrar o quanto a amava. Quem sabe não era o
momento de os dois começarem um relacionamento mais rico e gratificante?
Depois do telefonema, Suzy começou a selecionar a correspondência daquela
manhã. Estava feliz por poder ajudar Joe a se entender com Linda. De certa forma, isso a
compensava um pouco da tristeza de ter perdido Lionel para sempre...
Como de hábito, a manhã estava muito atribulada. O telefone tocou sem parar
durante toda a hora seguinte e, como se não bastasse, o sistema de computador entrou
em pane. No final do período, Suzy, já exausta, pensou em almoçar mais cedo para dar
tempo aos técnicos de localizarem o defeito. No entanto, uma chuva forte desabou
quando ela se aprontava para sair e, sem coragem de enfrentá-la, resolveu fazer um
lanche rápido ali mesmo. Assim aproveitaria para esperar por Joe e contar-lhe as
novidades.
Mal tirara o casaco quando Joe entrou no escritório com um ar aflito estampado no
rosto.
— O que você quer falar comigo de tão urgente? Alguma notícia desagradável?
Quando Suzy contou o acidente de Linda, ele sentou-se na ponta da escrivaninha
com um suspiro de alívio.
— Uma perna quebrada? Meu Deus, quando recebi seu recado, imaginei as piores
coisas... Tinha certeza de que era alguma novidade sobre Linda... Jura que foi só isso?
Suzy riu da ansiedade do amigo.
— Você acha pouco?! Isso estragou o trabalho dela e deve ser horrível ter de
abandonar uma atividade desse jeito. Ainda mais para Linda, que é tão responsável...
— Não deve ser fácil mesmo, mas não tem outro remédio. Eles estão trabalhando
com um cronograma muito rigoroso porque cada dia de atraso custa uma fortuna para a
empresa... Linda deve ter ficado chateadíssima por não poder ficar até o fim! Quando ela
volta? Acho que um sorriso de boas-vindas e um buquê de flores podem ajudá-la a
esquecer os aborrecimentos...
— Concordo, mas você vai ter de descobrir o dia da chegada de Linda no escritório
do sr. Jonas. Eu só soube do acidente porque ouvi trechos de comentários, não deu para
me inteirar de todos os detalhes.

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— Tudo bem, vou falar direto com a secretária do sr. Jonas. Ela deve saber
informar...
Suzy reprimiu o riso diante da agitação de Joe.
— Não ria de mim, Suzy! Já estou muito inseguro e preciso de toda a minha
autoconfiança para pedi-la em casamento.
— A secretária do sr. Jonas?
— Não se faça de engraçada, sabe muito bem que estou falando de Linda. — Ele
segurou a mão de Suzy, como se procurasse apoio. — Você acha que ela vai aceitar?
Ela encolheu os ombros, indecisa. — Como é que vou saber, Joe?
— Você é mulher, deve entender melhor do que eu os sentimentos de Linda. Só
me diga uma coisa: acha que eu devo arriscar? Se ela disser não dessa vez, vou desistir.
Não posso passar o resto da minha vida correndo atrás dela...
Suzy o encarou, melancólica, sem saber se deveria ou não encorajá-lo. Ainda
pensava numa maneira de animar o amigo sem iludi-lo demais. Entretanto, nesse
momento, Lionel entrou. Olhou para ambos, parecendo surpreso diante da cena,
enquanto Joe soltava depressa a mão dela e murmurava, um tanto embaraçado:
— Mais tarde continuamos essa conversa.
— Está bem — Suzy respondeu com naturalidade.
Ficou observando Lionel se afastar para dar passagem a Joe. Notou a expressão
irritada do amigo ao sair. Na certa, ele não ficara nada contente com a interrupção.
Lionel fechou a porta quando Joe saiu e a encarou, tentando disfarçar o ar de
recriminação.
— Desculpe ter entrado assim — falou, meio desconcertado. — Alex disse que
você poderia datilografar algumas coisas para mim... Espero que não seja pedir demais...
Suzy suspirou, detestando o modo formal como ele a tratava.
— Tudo bem, este é meu trabalho.
Lionel colocou sobre a mesa uma pasta cheia de papéis.
— Escrevi as trinta primeiras páginas do roteiro. Será que você poderia dar uma
olhada? Talvez não entenda a minha letra...
Suzy pegou uma das folhas e, logo ao ler as primeiras linhas, encontrou
dificuldades. A caligrafia dele, de traços fortes e seguros, tinha características muito
pessoais. Era quase impossível entendê-la.
— Está muito difícil? Bem que eu imaginei, minha letra é mesmo terrível!
Suzy ergueu os olhos e o encarou por um momento, achando-o muitíssimo
charmoso com o suéter azul e calça de veludo preta. Lionel encolheu os ombros, como se
desculpando pelo transtorno. Ela esboçou um sorriso, baixando os olhos de novo para o
manuscrito.
— Vou me acostumar com ela mas, enquanto isso não acontece, precisarei de
ajuda... O que está escrito nessa linha?
Apontou para um parágrafo bastante ilegível e Lionel, solícito, pegou uma cadeira e
puxou-a para perto. Logo em seguida sentou-se, esbarrando de leve no joelho dela.

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— Deixe-me ver... Oh, sim, isto é um "t", eu esqueci de passar o traço. — Ele
suspirou, olhando para a folha com ar de lástima. — Sinto muito por lhe dar tanto trabalho
mas... escute, talvez seja mais rápido eu ditar para você.
— Agora?!
— Você está muito ocupada? Tem algum compromisso? — Ele a fitou ansioso.
Parecia reparar em cada detalhe da maneira como ela penteara o cabelo, aplicara a
maquilagem e escolhera um vestido alegre e vistoso. Por ironia, Suzy havia feito tudo
aquilo tentando desviar um pouco os próprios pensamentos das lembranças de Lionel. —
Você está muito bonita... — ele comentou, baixando os olhos.
Suzy sorriu.
— Obrigada, mas eu poderia...
O telefone começou a tocar e ela interrompeu-se para atendê-lo. Enquanto anotava
outro recado para Alex, sentiu o olhar de Lionel fixo nela, numa observação insistente.
Seria impossível trabalhar com aquele homem, pensou, angustiada. Suportar o
tratamento impessoal que ele lhe dispensava, e ao mesmo tempo tê-lo tão próximo, era
algo bem acima de suas forças!
Alguns momentos depois, ela desligou o telefone e voltou-se para Lionel,
simulando indiferença.
— Se você quer me ditar, à tarde seria mais fácil para mim. De manhã tenho o
trabalho do escritório e não daria para conciliar as duas coisas. Mas enquanto Alex não
volta de férias, não tenho muito o que fazer depois do almoço.
— Às tardes, então. Aqui?
Neste instante, uma moça entrou na sala. Era Jill, secretária como Suzy e que
trabalhava no mesmo andar. Ela lançou um olhar curioso para Lionel antes de se
aproximar.
— Você tem a pasta de Balynsky para emprestar para Hector? — perguntou. — Eu
a devolvo em meia hora.
Suzy levantou-se e foi até o arquivo do outro lado da sala. Não demorou muito a
encontrar a pasta e estendeu-a à recém-chegada, que lhe sorriu agradecida.
— Obrigada, Suzy, e desculpe por interromper. — Depois, olhando para Lionel,
continuou: — O senhor está substituindo o sr. Stevenson? Eu sou Jill, secretária de
Hector Williams.
Lionel sorriu para ela de um modo insinuante, erguendo-se da cadeira para
cumprimentá-la. Jill recebeu a gentileza com um ar simpático, fingindo não perceber
nenhuma segunda intenção. Na certa, pensava que Lionel era namorado de Suzy e não
queria entrar em conflito com a colega.
Suzy assistia à cena, sem entender a atitude de Lionel. Ele estava querendo
provocá-la, era evidente, mas por quê? A idéia de se tratarem como dois desconhecidos
partira dele mesmo, não dela.
— Então, você é o piloto. — Jill apertou-lhe a mão com entusiasmo quando ele se
apresentou. — Eu soube que iam transformar seu livro em filme... Está trabalhando com
Suzy no roteiro? Vai ficar muito bom, tenho certeza.
— Obrigado — Lionel agradeceu, sorrindo.
Suzy apertou os dentes, irritada, quando Jill lhe lançou um olhar malicioso

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— Você tem muito bom gosto — a garota segredou, piscando para ela. — Joe e
que não vai gostar nada dessa historia.
Saiu rindo, antes de Suzy poder esclarecer o mal-entendido.
— Joe não vai gostar — Lionel repetiu. — Parece que a notícia já se espalhou pelo
prédio inteiro... É melhor dar a resposta logo a ele, senão vai ficar difícil sair dessa
enrascada.
Suzy o encarou, confusa.
— Mas do que você está falando?
— Ele estava pedindo você em casamento quando eu entrei, não é? Se eu fosse
você, pensaria bem antes de dar um passo tão sério Talvez ele seja um rapaz atraente,
mas não está a sua altura. Você é muito inteligente, tem um futuro brilhante dentro da
empresa, qualquer um enxerga isso. Trabalhando junto com ele, logo surgiria o ciúme
profissional.
Suzy riu, perplexa diante da imaginação de Lionel, e preparava-se para desfazer o
engano quando o telefone tocou de novo. Enquanto atendia a chamada, porém, desistiu
de desmentir tudo. Lionel não acreditaria e, depois, ele não tinha nada a ver com a vida
dela. Ele próprio escolhera assim.
Quando desligou o telefone, Lionel estava recolhendo as folhas do roteiro com ar
impaciente.
— Assim não vai dar certo!
Suzy o observou, indiferente. Por baixo de toda aquela cordialidade, devia existir
ainda muito ressentimento. Era difícil fingir o tempo inteiro, ser gentil e delicado com quem
se odiava, pensou com amargura. De qualquer forma, não havia nada a lamentar, se ele
não a procurasse mais. Ela sofreria muito, era verdade, mas uma separação definitiva
seria melhor do que estar ao lado dele e, ao mesmo tempo, afastada por um abismo
intransponível.
— Eu sinto muito — murmurou.
— Eu é quem peço desculpas, mas não vai ser possível trabalhar aqui. Seríamos
interrompidos a cada cinco minutos. Só agora já paramos quatro vezes. Neste ritmo,
faremos uma página por dia, se tanto!
— Podemos trabalhar em outra sala, mas não posso garantir que isso resolva o
problema.
— Tenho uma idéia melhor. — Lionel consultou o relógio de pulso. — Já é quase
uma hora... Por que não discutimos isso enquanto almoçamos?
Suzy aceitou, resignada. Lionel não desistiria mesmo da idéia de os dois
trabalharem juntos. A indiferença dele diante da situação chegava a ser um insulto para
ela...
Enquanto ele a ajudava a vestir o casaco, Suzy pensava num modo de ver o lado
positivo daquela armadilha que o destino lhe preparara. A frieza de Lionel acabaria por
matar dentro dela aquele sentimento louco, capaz de resistir ao tempo e à distância. Mas
isso seria bom? Quando deixasse de amar Lionel, só lhe restaria um vazio insuportável...
Soltou um suspiro melancólico ao sair do escritório e fechar a porta atrás de si.
Enquanto não conseguisse esquecê-lo, teria de conviver com ele, vê-lo com freqüência,
sentir-lhe a proximidade, até mesmo o toque... Um contato casual, como minutos antes, o

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roçar de joelhos sob a mesa, bastava para evocar lembranças proibidas, queimar-lhe o
corpo e a alma num inferno de desejo.
Suzy apressou o passo, a pretexto de alcançar o elevador, cuja porta estava
prestes a se fechar. Mas, na verdade, queria afastar-se um pouco de Lionel, que lhe
segurava o braço com gentileza.
—- É melhor nos apressarmos, senão teremos de comer comida fia — brincou,
para justificar sua atitude.
Quando chegaram do lado de fora do edifício, Suzy tomou a direção de um
pequeno restaurante onde costumava almoçar. Entretanto, Lionel fez sinal para um táxi e,
quando este parou diante deles, abriu a porta para ela.
— Conheço um bom restaurante não muito longe daqui — explicou, depois de
entrar no automóvel. — Assim passeamos um pouco pela cidade...
— Um bom restaurante não terá sequer uma mesa disponível a essa hora.
Lionel sorriu e piscou, com ar maroto.
— Esse terá, com certeza.
Aquele sorriso fez Suzy voltar três anos no tempo. Sem querer, reviu a maneira
carinhosa como Lionel a tratava antes de descobrirem que estavam apaixonados um pelo
outro. Doces imagens surgiram-lhe de novo diante dos olhos, fazendo a realidade parecer
ainda mais difícil de aceitar. Nunca mais se apaixonaria por ninguém, jurou a si mesma,
afastando da memória aquelas recordações. Lionel esgotara dentro dela todo o amor, não
havia como ser feliz sem ele.
— É que eu conheço o dono desse restaurante — Lionel estava explicando. — Ele
é meu primo, um sujeito muito simpático, você vai gostar dele. Chegou dos Estados
Unidos faz pouco tempo, depois de morar muitos anos lá. Precisou voltar para ficar junto
da mãe, que está muito velhinha. Henry é filho único, como eu. Ambos sofremos muito
com nossas mães...
Suzy riu, lembrando do modo carinhoso como a mãe dele o tratara quando ele
estava doente.
— Não seja injusto! Conheci sua mãe no seu apartamento e ela o trata como um
rei. Está se queixando de barriga cheia!
De repente, ele ficou sério, observando-a em silêncio por alguns instantes.
— Sinto muito, ela não foi muito simpática com você naquele dia...
— É natural, ela estava do seu lado.
— É, acho que você disse tudo. Minha mãe sempre fica a meu favor, mesmo
quando estou errado. Ela não consegue ser imparcial... Mas vou contar como as coisas
aconteceram de verdade da próxima vez que a encontrar...
Nesse momento, o táxi parou na frente de um pequeno restaurante. O lugar era
alegre e informal, com a fachada revestida de madeira e algumas plantas ornamentais na
porta. Através das vidraças amplas, podia-se ver as mesinhas de madeira, cobertas por
toalhas vermelhas, a mesma cor do estofado das cadeiras de vime.
Como Suzy previra, todos os lugares se encontravam ocupados. Porém, um
homem vestindo um impecável terno escuro logo os viu e se aproximou, cumprimentando
Lionel com ar animado.

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— Por que não ligou antes de vir, meu velho? Não temos nenhuma mesa digna do
meu primo! Mas, pode deixar, eu dou um jeito nisso num instante. — E acrescentou,
olhando para Suzy com ar insinuante: — Não vai me apresentar a moça bonita, Lionel?
— Acho que não tenho outra saída, embora seja contra os meus princípios. Ainda
me lembro daquela garota que lhe apresentei numa festa... Ela nunca mais quis sair
comigo depois disso.
— Meu Deus, Lionel, isso foi há quase dez anos! Como pode guardar rancor por
tanto tempo?
Henry Moor tinha mais ou menos a mesma idade de Lionel. Muito alto e magro, os
cabelos tão escuros quanto os olhos, possuía no rosto um certo ar de tristeza, mas,
mesmo assim, era muito charmoso. Quando Lionel apresentou Suzy, ele segurou-lhe a
mão, fitando-a nos olhos.
— Suzy — ele repetiu. — Um nome charmoso para uma garota linda...
— As intenções dele são suspeitas, Suzy — Lionel avisou. — Não confie muito.
Tudo mentiras. O que uma garota inteligente como você está fazendo com um
sujeito antipático como esse, Suzy? Devia trocar por alguém mais calmo, mais sociável...
— Pare com isso! Você nos prometeu uma mesa, lembra-se, primo? Por que não
aproveita e traz o cardápio também? Podemos escolher enquanto esperamos.
— Ele não tem coração, mesmo — Henry disse a Suzy, com um falso ar de
sofrimento.
Henry os levou para um pequeno bar, localizado ao lado do salão onde ficava o
restaurante. Embora não muito espaçoso, o ambiente era bastante simpático, graças à
decoração informal com pequenos sofás em torno das mesinhas de madeira.
Lionel sentou-se num deles e Suzy acomodou-se ao seu lado. A proximidade
trouxe de volta um certo desconforto entre os dois, afastado por alguns momentos pelas
brincadeiras de Henry. Foi um alívio para ela quando Henry trouxe as bebidas
encomendadas, interrompendo o silêncio.
Suzy escolheu uma sopa de frango e limão, seguida por salada de legumes. Henry
sorriu, com ar de aprovação.
— Escolha perfeita, você é uma pessoa de muito bom gosto. Em que trabalha?
— Sou secretária.
— Minha, por acaso — Lionel interrompeu, tenso. — E pretendemos discutir alguns
negócios, se você nos der licença, claro...
— Ele sempre foi um grande egoísta — Henry justificou, ao ver Suzy lançar a
Lionel um olhar de reprovação. — Mas, no momento, estou muito mais interessado na
beleza de seus olhos, Suzy. Sempre achei um charme especial nas mulheres loiras de
olhos azuis, mas você é muito mais que especial. Parece uma atriz dos filmes de
Hitchcock; linda, distante, misteriosa... Ele adoraria conhecê-la!
Suzy riu, depois fez uma careta, lembrando os filmes desse diretor a que assistira.
— Muito obrigada, Henry. Só espero ter um destino bem mais ameno que o das
garotas dos filmes! Ele tinha uma imaginação meio macabra.
— Você também gosta de cinema? Que ótimo! Precisamos ver um filme juntos
qualquer dia desses...

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— Henry, por favor! — Lionel interveio, impaciente. — Estamos com fome, com
pressa e eu, particularmente, sem nenhuma paciência!
O outro encolheu os ombros e retirou-se, resignado. Suzy fingiu não perceber a
expressão irritada no rosto de Lionel. Se a situação fosse diferente, ela poderia pensar
que ele estava com ciúme.
— Você tinha razão, seu primo é muito simpático — comentou com naturalidade.
— Ele adora me provocar, isso sim. Qualquer dia, eu perco a paciência com essas
brincadeiras. Que falta de respeito dar em cima de uma garota acompanhada!
— Não fique tão zangado, Lionel. Henry deve ter percebido que sou apenas sua
secretária...
— Isso não justifica! Mesmo que você fosse minha irmã, não ficaria bem um
comportamento tão descarado.
Suzy esboçou um sorriso, mas achou melhor não responder. Não reconhecia em
Lionel a mesma pessoa que compartilhara com Mark a farsa do noivado. Ficou
imaginando se ele aceitaria a incumbência de se passar por namorado dela em lugar de
outro homem agora. Era quase certo que não e, mesmo se tentasse, não conseguiria
fingir tão bem quanto na primeira vez...
Nesse momento, Henry retornou sorridente.
— A mesa está pronta.
Ele os acompanhou, conversando com Suzy sobre cinema. No entanto, ela achou
melhor não contar onde trabalhava. Lionel não estava nada interessado na conversa,
talvez por não querer despertar a curiosidade do primo para o fato de seu romance estar
sendo transformado em filme.
Logo o garçom trouxe o primeiro prato, uma terrina fumegante de onde exalava o
aroma delicioso da sopa. Henry retirou-se em seguida, não sem antes receber calorosos
elogios de Suzy sobre a comida ao experimentá-la.
— Você não contou a Henry sobre o filme? — ela quis saber.
— Se fizesse essa bobagem, ele não me daria mais um minuto de sossego —
Lionel segredou, inclinando-se um pouco sobre a mesa — Por falar nisso, o que acha de
repassarmos o roteiro no meu apartamento?
Suzy fingiu indiferença, embora a idéia não a agradasse. Todas as lembranças das
horas passadas lá quando ele estivera doente voltaram-lhe à mente. Contudo, se iam
trabalhar juntos, precisava encarar a situação com naturalidade.
— Não tenho nenhuma objeção — disse.
— Pelo menos não seríamos interrompidos... Eu pago todas as suas despesas, o
táxi, por exemplo. Quando pode começar?
— Amanhã mesmo. Está bem para você?
— Ótimo. Agora, não deixe essa sopa maravilhosa esfriar. Eu não disse que a
comida aqui era muito boa?
Lionel estava certo, pois os outros pratos servidos eram tão saborosos quanto o
primeiro. Alguns copos de vinho ajudaram Suzy a se acostumar a idéia de conviver com
Lionel tão de perto. Já não achava isso uma tragédia, o que atenuou um pouco a tensão
entre os dois. Lionel ajudou bastante, mantendo uma conversa amena. Entre outras
coisas, contou a Suzy episódios pitorescos da vida dele nos últimos três anos, inclusive

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suas inúmeras viagens. Por fim. começou a relatar como decidira escrever "Beijo de
Fogo".
O mais difícil foi começar. Há muito tempo eu queria fazer isso, mas sempre
arranjava uma desculpa para adiar. Na verdade, eu tinha um pouco de medo de fracassar
na primeira tentativa e nunca mais ter coragem de escrever nada. Ainda bem que tudo
correu bem: quando comecei a trabalhar no romance, era como se eu estivesse dentro
dele.
Suzy tomou um gole do café forte, servido momentos antes, lançando a Lionel um
olhar irônico. Para ele, fora mesmo muito fácil escrever o livro. Inventara aquele enredo,
na ficção e na vida real. Queria se ver livre da culpa que sentia em relação à morte de
Mark e o romance fora um meio de criar uma realidade favorável para isso. Ao contar a
história, desejava reafirmar a própria versão dos fatos, não só para o público, mas diante
de si mesmo. E, segundo parecia, o truque funcionara muito bem. Tanto que, enquanto
falava, parecia esquecer que ela própria fizera parte da trama do livro.
Terminada a refeição, Lionel pagou a conta e Henry fez questão de acompanhá-los
até a porta.
— Volte outras vezes, Suzy, foi um grande prazer conhecê-la. — Ele lhe apertou a
mão num gesto caloroso. — Quanto a você, Lionel, veja se consegue melhorar um pouco
seu senso de humor, que nunca esteve tão ruim!
Lionel não respondeu nada, embora não tivesse recebido o comentário com muita
simpatia. O táxi estava esperando pelos dois e Lionel insistiu em levar Suzy de volta ao
escritório antes de ir para casa. Quando o motorista estacionou diante do prédio da
Empire Films, ele ainda reteve Suzy por alguns instantes, segurando-a pelo braço.
— Amanhã à tarde, então. Às duas horas?
O dia seguinte amanheceu quente e ensolarado. Suzy passou a manhã inteira
tensa mas, quando tomou um táxi em direção ao apartamento de Lionel, uma mistura de
angústia e alegria a invadiu.
Exatamente no horário combinado, tocou a campainha e Lionel a recebeu com a
mesma cordialidade da véspera. Depois de uma breve conversa, indicou-lhe a mesa ao
lado da janela, sobre a qual colocara a máquina de escrever portátil.
Enquanto explicava a ele os procedimentos usuais em relação aos roteiros, Suzy
sentou-se diante da máquina, preparando-se para começar quando ele quisesse. Estava
ali para isso e não queria dar tempo a si mesma para lamentações inúteis.
— Vamos começar já? — sugeriu, com um sorriso. — Assim faremos algumas
páginas até as cinco horas...
— Está bem. Por favor, me avise quando eu estiver falando depressa demais. Não
quero cansá-la à toa.
— Não se preocupe, estou acostumada...
Suzy se julgava preparada para se deparar com a visão deturpada de Lionel a
respeito do que acontecera três anos antes. Porém, quando ele começou a ditar, as
lembranças tomaram forma, e só a custo ela conseguiu esconder a sensação dolorosa de
estar de volta ao passado.
A primeira cena descrevia com exatidão impressionante o dia em que ela e Lionel
haviam se conhecido. Era como se cada palavra a fizesse reviver todos os segundos
cujas conseqüências tão bem conhecia. Ela passara três anos tentando esquecer o que,
naquele instante, voltava-lhe com tanta intensidade.

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Lionel a encarou quando ela parou de datilografar por um momento. Depois,


caminhou em silêncio para o outro lado da sala e a esperou corrigir alguns erros na
primeira página. Para se ocupar de alguma coisa, tirou um livro da prateleira e o folheou,
num gesto nervoso.
— Isso não deve estar sendo fácil para você — comentou, tenso. — Foi idéia de
Alex, não minha, e eu a admiro por ter concordado. Por favor, faça de conta que é só
mais uma história, outro roteiro. Esqueça que isso foi pessoal um dia.
— Ainda é, mas isso não importa.
— Foi, não é mais! Eu me livrei de todos os ressentimentos quando terminei de
escrever esse romance, parei de me atormentar. Passou a ser só um conto sobre
pessoas desconhecidas, não a nossa história! Suzy o encarou com frieza.
— Não foi essa a impressão que eu tive quando abri a porta para você na casa de
Alex.
— É que eu ainda não tinha me dado conta das bobagens que estava fazendo...
Estava viciado em meus ressentimentos.
Suzy abanou a cabeça com um sorriso triste. Ela vivera todos aqueles anos do
vício de amá-lo e, parecia, não se livraria desse hábito tão cedo. Concentrou-se no
trabalho, sentindo-se vazia e cansada. De repente, tudo perdera o sentido, o presente e o
passado. Restava apenas uma profunda melancolia, uma inexplicável indiferença quanto
ao futuro.
— Sinto muito, Suzy. Se não quiser continuar, eu vou entender... Apesar da
gentileza das palavras, havia nelas uma formalidade fria, como se Lionel tentasse
consolar uma pessoa estranha.
— Não há porque parar. Não estou me incomodando com nada disso.
Suzy estava sendo sincera. O roteiro mostrava uma imagem tão distorcida dela
que era fácil encarar a personagem como sendo outra pessoa.
— Tem certeza?
— Claro. Podemos continuar? — Suzy pousou os dedos no teclado da máquina de
escrever, pronta para reiniciar o trabalho. Lionel, entretanto, ainda hesitava. — Quero
deixar uma coisa bem clara: essa mulher não é você. É apenas uma invenção minha, não
tem nada a ver com a realidade...
Suzy sorriu, num misto de ironia e complacência.
— Não se culpe, Lionel. Para mim, não faz diferença. Ela queria encerrar o assunto
o quanto antes para não obrigá-lo a mentir mais. Talvez a personagem não fosse uma
descrição sua em todos os sentidos, mas ambas possuíam semelhanças demais para ser
simples coincidência. Ela ia e vinha entre imagens falsas como se estivesse diante de um
espelho mágico. Lionel jamais conseguiria convencê-la de que não a usara como
inspiração.
Os dois quase não conversaram mais durante o resto da tarde. Dedicaram-se
apenas ao trabalho e, por volta das cinco e meia já haviam terminado o manuscrito que
Lionel levara ao escritório.
— Isso é maravilhoso! — Ele folheou as páginas datilografadas, animado. —
Nesse ritmo, conseguiremos terminar o roteiro bem antes da volta de Alex.
Suzy levantou-se da cadeira, e ele a olhou com um sorriso de simpatia.
— Está cansada?

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

— Um pouco.
— Escute, deixe eu preparar alguma coisa para comermos antes de você ir
embora. Já está mesmo quase na hora do jantar e, modéstia à parte, faço um risoto bem
gostoso... Assim você não precisa se preocupar com a comida quando chegar em casa.
Por que não vê um pouco de televisão enquanto eu preparo tudo?
— Não quero lhe dar trabalho — Suzy hesitou.
— Trabalho nenhum; eu ia fazer o risoto de qualquer jeito, e com companhia vai
ficar muito melhor... Se não está com vontade de ver televisão, escolha um livro qualquer.
O importante é que fique sentada e que relaxe, está bem?
Ele saiu e Suzy deu um suspiro. Estava mesmo cansada demais para atravessar a
cidade na hora do rush e a perspectiva de ir para a cozinha quando chegasse em casa
não era nada animadora. Depois de olhar os livros da estante por alguns momentos,
escolheu um guia ilustrado sobre os países do Mediterrâneo. Acomodou-se numa
poltrona e ficou vendo as fotos, sentindo-se relaxada e tranqüila.
Quando Lionel voltou, ela havia adormecido, as pernas pousadas sobre a mesinha
de centro e a cabeça apoiada numa almofada. Ele observou-lhe o sono por um curto
instante e se aproximou devagar. Suzy despertou, assustada, quando ele afastava-lhe as
mechas loiras do cabelo que lhe pendiam sobre o rosto. — Pensei que você estivesse
dormindo...
Ao ver-lhe a expressão um tanto culpada, Suzy sorriu.
— E estava mesmo. Foi só fechar os olhos por alguns minutos e peguei no sono.
— É que o risoto está pronto. Lionel a conduziu até o outro lado da sala, onde unha
arrumado os pratos e talheres com simplicidade, mas muito capricho, sobre a mesa onde
haviam trabalhado. Ao centro, fumegava uma travessa de risoto cujo aroma se espalhava
pela sala.
A refeição estava deliciosa e Lionel abriu uma garrafa de vinho para acompanhá-la.
Suzy exagerou um pouco e só notou o efeito do álcool quando começou a ficar sonolenta
de novo. Lionel levou-a para casa e, no trajeto, ela adormeceu, acordando com a cabeça
deitada no ombro dele quando o carro parou diante do prédio onde morava.
Suzy o encarou por um instante, com a estranha sensação de estar fora da
realidade. Estivera sonhando com Lionel e a paixão ainda se refletia em seus olhos
confusos.
— Você devia estar na cama — ele brincou.
Ela, um tanto encabulada, despediu-se rapidamente antes de descer do carro.
Lionel acenou um adeus e partiu em alta velocidade.
Depois de ver o carro desaparecer no fim da rua, Suzy caminhou prédio
desanimada. Nas últimas semanas, odiara o conflito com Lionel, renovado a cada
encontro. Mil vezes desejara jamais ter comprado aquele romance. Pagara um preço
muito alto pela própria curiosidade. E, como se abrisse uma porta para o passado,
trouxera de volta uma série de problemas que julgara superados para sempre.
Naquele momento, entretanto, já não sabia o que era pior. se a hostilidade de
Lionel ou aquela polidez fria, distante. Pelo menos, antes antevia uma emoção poderosa
por trás de toda a raiva, algo só comparável ao amor de três anos antes. A emoção se
convertera na mais completa indiferença quando Lionel se convencera da inocência dela
na morte de Mark. Por ironia, acabara por condená-la, ao mesmo tempo, à solidão,
forçando-a a encarar a felicidade como um sonho cada vez mais distante.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

CAPÍTULO X

Em poucos dias, tornou-se rotina para Suzy ir todas as tardes ao apartamento de


Lionel. Devagar, ela foi se acostumando com a presença dele. O coração já não
disparava mais quando ele lhe sorria, mas alguma coisa terrível substituiu o alvoroço do
primeiro dia. Era um sofrimento forte, intenso e, ao mesmo tempo, calmo, paciente. A
paixão conturbada de antes transformava-se em amor, profundo, adulto e, ela sabia,
eterno.
Ocultava isso de Lionel como se guardasse dentro de si um tesouro proibido. O
relacionamento de três anos antes fazia parte do passado e o fato de ele não a odiar mais
não significava que pudesse reconquistá-lo. Ao contrário: apesar de se encontrarem todos
os dias, Lionel não demonstrava por ela nenhum interesse especial. Tratava-a como a
uma secretária cuja função era ajudá-lo a executar aquele trabalho da melhor maneira
possível.
Pelo menos nesse sentido, estabeleceu-se entre os dois uma harmonia
surpreendente. Enquanto ele se ocupava da criação, Suzy cuidava dos detalhes técnicos,
amoldando-lhe as idéias à forma exigida pela empresa. Fazia isso sem precisar de
palavras e, às vezes, bastava um simples olhar de Lionel para ela saber os termos que
ele estava buscando.
Com o passar do tempo, o roteiro foi tomando forma e Suzy percebeu uma
mudança na trama do enredo. No começo, as alterações foram quase imperceptíveis: um
enfoque diferente numa cena, correções sutis na fala de um dos três personagens
principais.
Com o tempo, porém, as modificações se tornaram mais palpáveis e todas elas
somadas faziam o roteiro muito diferente do livro. E não eram apenas as transformações
necessárias para se adaptar o romance às imagens do cinema. Lionel promovia também
mudanças radicais no conteúdo da história.
Apesar de o enredo ainda ter por base o triângulo amoroso, Suzy não reconhecia
mais na personagem principal uma caricatura grotesca de sua personalidade. Lionel dava
agora à garota um caráter mais real, mais humano, com características positivas e
negativas. Ao mesmo tempo, a descrevia com mais simpatia e menos preconceito,
tornando-a uma simples heroína de romance, desvinculada por completo de Suzy.
A princípio, Suzy não se deu conta de como ele estava conseguindo aquelas
transformações. De repente, entretanto, reparou que a personagem do filme era uma
pessoa, com fala e sentimentos próprios. No livro, ela não passava de uma sombra, um
retrato visto pelos olhos de dois homens apaixonados. A função dela dentro da narrativa
era quase a mesma de um objeto, o princípio gerador da tragédia que arruinara a vida dos
dois. Ao criá-la, Lionel não se esforçara nem um pouco por focalizar a situação do ponto
de vista dela, nem mesmo pensara em analisar-lhe os sentimentos.
No roteiro, entretanto, ele corrigia tal erro e considerava os fatos pela ótica dos três
personagens, dando força e intensidade à narrativa. Não havia mais culpados, apenas
três seres humanos buscando a felicidade e lutando como podiam para consegui-la.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

Suzy ficou feliz ao perceber tais modificações, mas não comentou nada com
Lionel. Aquilo era doloroso demais para os dois e ela achou melhor dar o assunto por
encerrado para sempre. Além disso, o fato de ele ter superado o ressentimento não
alterava em nada o relacionamento entre ambos. A hostilidade havia de fato desaparecido
mas, em seu lugar, um gélido constrangimento se interpunha entre eles. Suzy se
certificava a cada dia de que nem ela nem Lionel teriam forças para superar as mágoas
do passado. Qualquer tentativa só serviria para aprofundar ainda mais o abismo já
existente.
Como de hábito, Lionel parou de ditar por volta das cinco e meia naquele dia.
Começou, então, uma revisão minuciosa das páginas produzidas durante a tarde. Depois
de reler tudo, reescreveu um ou outro parágrafo e, ao final, restaram oito ou nove folhas
datilografadas. Se mantivessem esse ritmo de trabalho, acabariam o roteiro antes de Alex
voltar, Suzy calculou, ao encerrar as atividades.
— Espero que não esteja sendo muito cansativo — Lionel disse, observando-a
fechar a máquina de escrever.
— Não, está tudo bem.
Suzy terminou de arrumar a mesa em silêncio. Entre ela e Lionel existiam agora
longos silêncios, mas isso não a perturbava. Tratava-se de algo natural, uma
comunicação onde as palavras não faziam nenhuma falta. Ela consultou o relógio de
pulso com um suspiro quando terminou de juntar as folhas datilografadas.
— Meu táxi já deve estar chegando...
Ainda lhe custava se despedir de Lionel. Por isso mesmo, sempre pedia a um
taxista para apanhá-la no final da tarde. Isso evitava que ele se oferecesse para levá-la
em casa e, assim, prolongasse por mais tempo a doce tortura do adeus diário.
— Recebi dois cartões de Alex esta manhã — Lionel comentou,
— Na certa, ele dá algumas sugestões para o roteiro, mas eu não consegui decifrar
uma palavra do que escreveu.
Suzy riu.
— Eu também tive dificuldade de entender a letra dele no começo, mas já me
acostumei... Quer que eu dê uma olhada?
— Seria ótimo se você pudesse.
Lionel foi até o armário, voltando em seguida com dois cartões coloridos na mão.
Suzy só demorou um instante para decifrar a caligrafia intricada de Alex. De fato, ele dava
instruções detalhadas sobre o roteiro e Lionel esboçou um sorriso irônico quando Suzy
lhe perguntou se queria ouvi-las.
— Acho que não estamos precisando de conselhos nesse momento. Já dá muito
trabalho reduzir a história ao mínimo sem tirar as falas dos personagens principais. É bem
mais difícil do que eu imaginei...
— É que um filme é feito mais de imagens do que de diálogos — Suzy explicou,
devolvendo-lhe os cartões.
— Eu sei, Carina insistiu muito nisso quando conversamos. Suzy fitou-o nos olhos,
muito calma.
— Pensei que você continuaria trabalhando com ela.
— Ela é uma mulher muito inteligente... Mas me pareceu que, se eu não tomasse
cuidado, acabaria sem lugar para assinar o roteiro final...

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— Não seja exagerado!


— Pode ter certeza disso. Aliás, seria bem mais cômodo, mas eu prefiro aceitar o
desafio. Certo ou errado, quero fazer esse roteiro por minha conta.
Para Suzy, não era surpresa ouvir aquilo. Lionel sempre fora muito determinado e
lutava para obter cada conquista na vida com o mesmo empenho com que vencera
inúmeras corridas durante todos aqueles anos.
Nesse instante, o som de uma buzina de automóvel lá tora os apressar as
despedidas.
As previsões de Suzy estavam corretas. Poucos dias depois Lionel e ela
terminaram o roteiro e, para comemorar, ele a convidou para jantar no restaurante chinês
embaixo de seu apartamento.
Quando chegaram, o restaurante estava quase totalmente lotado mas, mesmo
assim, os donos conseguiram um bom lugar para acomodá-los. A garota, amiga de Lionel,
logo trouxe flores frescas para decorar a mesa e acendeu a pequena lâmpada chinesa,
cuja luz cálida reforçou o ar exótico do ambiente.
Suzy experimentou uma sensação de bem-estar invadi-la enquanto conversava
com Lionel e estudava o cardápio generoso. Ambos sentiam-se realizados. Tinham
trabalhado muito mas, como recompensa disso, o roteiro não ficara nada mal. Passar
parte da noite juntos num lugar calmo como aquele era um desfecho perfeito depois de
semanas inteiras de esforço.
Diante de todas as delicias oferecidas pelo menu os dois não conseguiram fazer
uma opção definitiva. Para facilitar a escolha, o dono do estabelecimento trouxe uma
enorme quantidade de tigelinhas brancas, cada qual contendo uma iguaria diferente.
Enquanto se serviam, Lionel contou a Suzy passagens da viagem que fizera a Hong-
Kong. Na época, ele conseguira um emprego de meio período como repórter em um
jornal inglês e viajava por quase todo o pais. Nas horas vagas, escrevia o romance e
travava contato com pessoas e lugares diferentes, buscando elementos para criar seus
personagens.
Suzy também relatou a viagem que fizera com Alex, quando conhecera algumas
cidades chinesas. Comentou sobre a súbita doença de Alex e os momentos terríveis que
compartilhara com Sara na sala de espera do hospital, sem saber se a enfermidade era
grave. — Graças a Deus, tudo não passou de um susto — concluiu Alex é muito saudável
e isso o ajudou a superar tudo Houve um momento de silêncio, quando ambos
saboreavam a te deliciosa refeição
— Quando você acha que Alex vai começar a rodar meu filme? Lionel quis saber
de repente.
— Impossível dizer. — Suzy encolheu os ombros, como se pedisse desculpas. Não
poderia assegurar nada. Talvez demorasse dois anos ou mais para começar as
filmagens, mas também tudo poderia acontecer dentro de poucos meses. Dependia de
sorte e, na certa, Lionel não gostaria nada de saber disso.
— Você está certa, isso não é hora para falar em negócios. — Ele ergueu o copo
de vinho, sorrindo. — Quero brindar ao trabalho que você fez e pelo qual agradeço muito.
— E eu, a esse jantar maravilhoso.
Realmente, aquela noite estava sendo especial para Suzy. Ela procurava guardar
na memória a imagem de um Lionel sorridente, com um brilho especial nos olhos
cinzentos enquanto descrevia algumas ruas de Hong-Kong. Segundo contava, podia-se
gastar uma fortuna em jade e marfim em minúsculas lojas de aparência despretensiosa.

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— Nem sempre as coisas são como aparentam — ele comentou, distraído, mas
logo se apressou em completar, ao encará-la: — Isso não foi uma observação sarcástica,
Suzy.
Lionel mudou de assunto depressa e Suzy sorriu para ele com naturalidade,
embora uma certa tristeza a invadisse. Não havia chance de os dois recomeçarem
qualquer espécie de relacionamento. Restaria sempre um desconforto entre eles,
acentuado pelo fato de Lionel não amá-la mais. Cada palavra, cada gesto precisaria ser
explicado para não haver mal-entendidos e isso não combinava com a cumplicidade
exigida pelo amor. Não havia mais confiança entre os dois, o que os condenava a agir
sempre como dois estranhos...
Quem os visse juntos naquele momento na certa imaginaria que eram apenas
conhecidos. E, de certo modo, era verdade, Suzy pensou com tristeza, enquanto
continuava ouvindo Lionel relatar, entusiasmado, suas aventuras em Hong-Kong...

Na manhã seguinte, mal Suzy entrara no escritório, Joe lhe telefonou quase não
cabendo em si de contentamento.
— Adivinhe o que eu fiz! — ele a desafiou.
— O quê?
— Falei com Linda e ela disse sim! Suzy, eu nem conseguia acreditar, fiquei
boquiaberto, mas ela estava falando sério... Nós vamos nos casar logo, Linda não quer
festa mas você vem ao casamento assim mesmo, não é?
— Mas é claro que sim! Estou muito feliz por vocês, Joe. Não podia começar
melhor o dia!
— Obrigado. Acho que vamos ser muito felizes. Já combinamos tudo: vamos morar
no apartamento de Linda porque é maior do que o meu...
Suzy ouviu com atenção os planos do casal para o futuro. Pelo jeito. Linda era
muito mais prática e, com habilidade, daria um novo rumo à vida de Joe, até então um
tanto desorganizado. Não havia dúvida, o casamento seria uma combinação muito
proveitosa para ambos. Linda era uma mulher inteligente e audaciosa, Joe possuía um
temperamento amável e sonhador. Na opinião de Suzy, formavam um casal perfeito. Com
certeza, Linda daria um jeito de incentivar Joe a direcionar seus sonhos de uma maneira
mais produtiva. Ele, por sua vez, a ajudaria a ver a vida de uma forma mais amena.
Colocando o fone de volta no aparelho, Suzy olhou para a janela. Chovia muito e
nuvens densas no céu davam a impressão de que o mau tempo perduraria por muitos
dias. Na certa, Alex já chegara a Londres, pois deviam ter embarcado na noite anterior.
Como Leah queria homenageá-los com uma festa de boas-vindas naquele sábado, o
casal se hospedaria no apartamento na cidade e só voltaria para Romney Marsh na
semana seguinte.
Suzy não esperava vê-los antes da festa. Com certeza, iam querer descansar
depois de uma viagem tão longa e extenuante. Ao olhar de novo para a chuva escorrendo
pela vidraça, perguntou-se se Lionel iria à recepção com Carina. Seria tão difícil vê-los
juntos... Tentava se desfazer da imagem dos dois dançando, abraçados, quando alguém
colocou-lhe as mãos sobre os olhos, numa brincadeira muito conhecida para ela.
Ela se virou, espantada ao ver Alex sorrindo, sentado na ponta da escrivaninha
como de costume.

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— Você não pode mesmo viver sem mim, não é? — ela brincou, abanando a
cabeça. — E voltou bronzeado desse jeito só para me fazer inveja!
— A culpa não é minha, cobre isso de Sara. Ela não me deixou fazer nada além de
nadar e tomar sol. Só de vez em quando eu conseguia ler alguma coisa.
Suzy o observou, satisfeita: Alex voltara ao normal, estava inquieto e cheio de
vivacidade.
— Então eu apelei para a chantagem: ameacei voltar correndo para essa cidade
cinzenta e úmida se ela não parasse com a vigilância. Sara teve de ceder e se contentou
em me controlar apenas vinte e três horas por dia! Só na volta, quando entrei no avião,
me dei conta de como Sara conseguiu me distrair. Para ser sincero, nem pensei em
trabalho durante todos esses dias..
— Não há dúvida: suas férias foram maravilhosas!
— É verdade, mas agora estou louco para voltar ao trabalho... Por falar nisso,
Lionel terminou o esboço do roteiro?
— É claro! Eu datilografei e guardei uma cópia para você. Ela foi até o armário e
tirou a pasta onde guardara o roteiro.
Alex a esperava, sem esconder a ansiedade. Quando começou a 1er, surgiu-lhe no
rosto um ar de satisfação.
— Está muito bom. — Ele fitou Suzy com um ar de admiração. — Carina é mesmo
uma excelente profissional. Bem se vê que ela trabalhou muito com Lionel para conseguir
isso!
Suzy reprimiu o riso e achou melhor ficar calada. Com certeza, Alex pensaria que
Lionel recusara a ajuda de Carina para não magoá-la e isso a colocaria na posição nada
lisonjeira de ser ciumenta e vingativa. Mas seria muito engraçado se Alex soubesse o
julgamento de Lionel sobre o trabalho de Carina!
— Não quero saber de cartas e recados por enquanto — Alex anunciou, erguendo-
se da mesa. — Prefiro deixar tudo isso para segunda-feira, assim posso me concentrar no
roteiro por algum tempo... Como você vai à festa amanhã? Já tem carona ou quer que eu
vá apanhá-la?
— Se não for atrapalhar vocês, seria ótimo se me apanhassem Alex foi embora
depois de combinar com Suzy de ir buscá-la em casa às sete horas na noite seguinte.
Apesar de não estar muito animada para a festa, não havia como escapar ao
compromisso. Se inventasse alguma desculpa para não ir, Lionel pensaria que ela o
estava evitando e Suzy não queria isso. Portanto, não havia outro jeito senão se preparar
para a ocasião.
Na manhã seguinte, Suzy comprou um vestido novo, em seda preta com um
decote profundo nas costas, cujo corte insinuava-lhe as curvas do corpo bem-feito. Era
bem mais ousado que os outros trajes de seu guarda-roupa, sem dúvida, mas na medida
certa para quem, como ela, queria mudar de estilo. Talvez tosse um bom começo para
alterações mais profundas e importantes que pretendia fazer em si mesma.
Começou a se aprontar bem cedo: antes das seis já estava mergulhada numa
banheira de espuma. O corpo logo relaxou em contato com a água quente e perfumada,
mas a mente se recusava a fazer o mesmo. Suzy estava preocupada: aquela festa
prometia muitas surpresas, nem todas muito agradáveis, com certeza. Veria Lionel e
Carina juntos e teria a confirmação definitiva se eles estavam ou não apaixonados. Os
dois poderiam fingir a todos, menos a ela, que conhecia tão bem o incêndio que se
espelhava nos olhos de Lionel quando ele amava alguém de verdade. Lembrar de quando

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

aquele olhar era só dela, devorando-a em segredo, fazendo-lhe promessas desvairadas,


a levava a preferir a incerteza a uma realidade tão cruel...
Suzy estava saindo do banho quente quando a campainha da poria tocou. Não
podia ser Alex, era cedo demais. Só se ele tivesse decidido chegar um pouco antes dos
outros convidados para falar com o sr. Jonas sobre o roteiro de Lionel.
Não seria de se admirar; era típico de Alex tomar decisões repentinas, Suzy
pensou, vestindo às pressas o robe branco depois de acabar de se enxugar. Alex teria de
adiar um pouco a conversa com o anfitrião e isso seria motivo para um belo sermão...
Como vocês estão adiantados! — ia dizendo ao abrir a porta mas, de repente,
interrompeu-se ao ver Lionel diante dela.
Alex me pediu para apanhá-la. Ele queria ter uma longa conversa com o sr. Jonas
antes da festa. Já deve estar lá a essa altura...
Suzy sorriu, procurando disfarçar a inquietação. Precisava se acostumar com
situações como aquela.
Trabalhavam na mesma empresa, mais cedo ou mais tarde teriam de enfrentar a
presença um do outro sem se perturbar por estarem a sós.
E Alex parecia decidido a contribuir para isso acontecer o mais rápido possível,
Suzy pensou, com raiva. Embora ele não soubesse de toda a verdade, devia ter
imaginado o quanto seria desagradável para ela ir àquela festa com o ex-namorado!
— Ainda demoro um pouquinho para ficar pronta... — Tudo bem, eu espero. Suzy
não teve outro remédio senão afastar-se e deixá-lo entrar. Sentiu raiva de si mesma por
achá-lo tão atraente no smoking negro.
— Eu posso muito bem pegar um táxi. Na verdade, não vou demorar só um
pouquinho... Por que você não vai na frente e...
— Eu estava mesmo querendo falar com você — ele interrompeu com voz calma e
ela o encarou, surpresa.
— Sobre o quê?
— Será que não podemos sentar por um segundo? — ele disse, como se fosse
tocar num assunto desagradável e não soubesse bem por onde começar.
Inquieta, Suzy procurava adivinhar qual seria a razão de toda aquela seriedade. De
repente, sentiu um aperto no coração: na certa, o assunto se relacionava com Carina,
talvez eles tivessem decidido se casar.
Em silêncio, ela se acomodou numa poltrona e indicou o sofá a Lionel. Quando se
sentou, Lionel olhou-a com uma expressão de piedade estampada no rosto moreno. Em
retribuição, Suzy sorriu, embora isso lhe custasse grande sacrifício. Preferia morrer a ser
objeto da compaixão de Lionel! Se não podia ter o amor dele, também não passaria pela
humilhação de só lhe merecer a pena!
— Há uma coisa que eu acho que você devia saber antes de irmos à festa. Vão
anunciar algo muito importante esta noite... Um casamento...
Um súbito zunido encheu os ouvidos de Suzy. Aquela situação se assemelhava a
um pesadelo, do qual ela rezava para acordar a qualquer momento.
— Alex acabou de me contar — Lionel hesitou por um instante antes de prosseguir.
— Ele parecia não saber o quanto isso era importante para você... Acontece que me
lembrei do nome do rapaz que está sempre com você e pensei que...

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Suzy não conseguiu conter o riso ao perceber que Lionel estava se referindo a Joe.
— Se você não quiser mais ir à festa...
— Ora, Lionel. Há muito tempo eu já sabia que Joe ia se casar com Linda!
Lionel ergueu as sobrancelhas, num ar incrédulo.
— Mesmo assim você saia com ele?
— Eu saí com Joe, sim, mas não da maneira que está pensando. Ele é meu amigo,
só isso. Joe e Linda namoram há muito tempo e estão apaixonados um pelo outro.
— Não foi essa a impressão que eu tive. Pensei que vocês dois...
— Como sempre, você tirou uma conclusão precipitada, Lionel. Suzy se levantou e
caminhou em direção à porta do quarto, mas
Lionel a seguiu, segurou-a pelos ombros, fazendo-a encará-lo. Suzy ficou surpresa
ao ver no rosto dele uma expressão de dúvida e sofrimento.
— Não minta para mim — ele murmurou, aflito. — Sei muito bem como esses
canalhas agem. Não precisa fingir que ele não se dizia interessado em você. Eu estava
entrando no escritório um dia e ouvi quando ele perguntou se teria alguma chance. Não
proteja aquele almofadinha, Suzy, ele não merece. Sei muito bem que ele queria alguma
coisa de você...
Aquela pose de irmão mais velho deixou-a furiosa.
— Um conselho, era isso que ele queria de mim! Joe estava falando de Linda,
queria saber se eu achava que ele tinha alguma chance com ela. Estava em dúvida se
devia ou não pedi-la em casamento.
Vendo a indignação estampada nos olhos dela, Lionel soltou-lhe os ombros,
dando-se conta de repente da atitude impensada que tomara. Toda a tensão
desapareceu-lhe do rosto, dando lugar a uma expressão de ironia.
— Ele perguntou a você se deveria pedir outra mulher em casamento?
— Ele estava muito inseguro, já disse! Precisava de uma amiga, alguém para
aconselhá-lo com sinceridade. Os dois estavam separados há alguns meses, e Joe
pensou que ela o havia esquecido... — E você não está triste? — É evidente que não!
Estou muito feliz por eles, torço para que dê tudo certo entre os dois!
Lionel pousou-lhe de novo as mãos sobre os ombros mas, desta vez, o toque
assumiu algo de mágico, envolvente como três anos antes. Confusa, Suzy se perguntava
quais seriam os pensamentos dele naquele momento. Era preciso resistir a qualquer
envolvimento com aquele homem, proteger-se da própria paixão, pensou, enquanto se
afastava.
— É melhor eu ir me vestir. — Temos muito tempo para chegar à festa... A voz de
Lionel soava como um pedido e um convite ao mesmo tempo. Quase por instinto. Suzy
recuou outro passo em direção ao quarto, na tentativa de fugir dele. Mas Lionel a seguiu,
fitando-a olhos de uma forma intensa, insinuante. — Não adiantou — ele disse, num
murmúrio. — Eu sempre soube que estava me iludindo.
— Do que está falando, Lionel? Ele a alcançou e a abraçou pela cintura, num misto
de ternura e desejo.
— Você sabe muito bem do que estou falando. Não poderíamos nunca agir como
se não nos conhecêssemos. Eu tentei me convencer de que poderia vê-la casando com
outro homem sem me consumir de ciúme, mas estava mentindo para mim mesmo.

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BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

Suzy se esforçava por manter o controle. Lionel estava contundindo os próprios


sentimentos e cabia a ela fazê-lo compreender isso. Aquilo não passava de medo de
perder alguém que, ele julgava, ia amá-lo para sempre. Segura disso, abanou a cabeça
com tristeza.
— Não é nada disso, Lionel. Não vamos nos magoar ainda mais, por favor. O que
houve entre nós já acabou, não tem mais jeito de reviver... É melhor você ir embora.
Desvencilhando-se dele com delicadeza, saiu do quarto, foi ate a porta da frente e
a abriu. Depois de alguns momentos de hesitação, Lionel a seguiu em silêncio. Suzy
segurava a porta, rezando para acabar logo com aquela tortura, calando a custo o pedido
para ele ficar.
Por um instante que pareceu uma eternidade Lionel fitou-a nos olhos, uma
expressão indefinível e intensa estampada no rosto moreno. Depois, num gesto lento,
fechou a porta e, erguendo-a no; braços com doçura, seguiu em direção ao quarto. Suzy
fechou os olhos, impotente. O passado não tinha nenhum significado em relação a todo
amor que sentia por Lionel, naquele momento e para sempre.
Ele a deitou na cama com carinho, ajoelhando-se ao lado dela. procurando-lhe a
boca com avidez. Mas Suzy virou a cabeça, numa tentativa desesperada de manter a
razão.
— Não daria certo, você sabe disso — sussurrou. — Nunca conseguiríamos nos
libertar das lembranças de Mark e de tudo o que aconteceu. Com o tempo, nossa vida se
transformaria e passaria mos a nos odiar... Melhor continuarmos como estamos
— Eu não suporto mais essa situação, Suzy, você não entende? Eu a amo mais do
que qualquer coisa neste mundo! Foi necessário todo esse tempo para eu encarar isso
com tranqüilidade porque me sentia culpado. Não me conformava de continuar amando
você mesmo depois da morte de Mark. Então, comecei a acusá-la de uma série de tolices
mas, no fundo, eu sabia que nada daquilo tinha fundamento. Era apenas uma maneira de
tirá-la da minha cabeça! Quanto mais eu me esforçava para odiá-la mais crescia meu
amor por você. Foi então que decidi ficar ao seu lado, tentando me mos trai indiferente...
E isso foi se transformando num martírio terrível! Estar perto de você, vê-la todos os dias
e não poder abraçá-la, acariciar seus cabelos, sua pele... Tudo isso era morte para mim!
Suzy o ouvia em silêncio, tentando ainda escapar ao toque ar-dente dos lábios dele em
seu pescoço, a incendiá-la de paixão. Ai balbuciou uma súplica quando Lionel soltou-lhe o
cinto do robe. Mas palavras e pensamentos perderam o sentido ao contato da mão dele a
lhe explorar a pele macia.
Entreabrindo os olhos, Suzy fitou-o demoradamente antes de Lionel inclinar a
cabeça para beijá-la nos lábios de um modo ardente, sensual. O futuro não importava
mais, ela precisava tê-lo, corresponder àquele beijo...
Lionel tocou-lhe os seios com a língua e Suzy gemeu baixinho. Fechou os olhos de
novo, o corpo inteiro ardendo na febre do desejo. — Eu a amo, Suzy... — Lionel começou
a desabotoar a camisola. — Mais do que no começo. Nos magoamos demais tentando
fugir disso, mas agora esse sofrimento acabou. Não há sentido nenhum na minha vida
sem você... Quer se casar comigo?
A emoção foi grande demais para que ela pudesse responder. Seus olhos
encheram-se de lágrimas e então, transbordando de felicidade, Suzy abraçou-o,
ajudando-o a tirar a camisa.
— Também te amo, querido, pensei que já soubesse disso! Eu sou, sempre fui
apenas sua...

82
BD 436.1 – Beijo de fogo – Charlotte Lamb

Lionel livrou-se depressa do resto da roupa. Na penumbra, Suzy observava-lhe o


corpo atlético, trêmula de desejo. Fechou os olhos quando ele se inclinou sobre ela,
querendo fazer o tempo parar, tornar eternos aqueles momentos de loucura. A longa
separação não significava nada, como se apenas um segundo tivesse se passado desde
a última vez em que haviam estado juntos.
Lionel a amou de um modo pleno, intenso, explorando-lhe ao máximo a
capacidade de dar e receber prazer. Na magia do prazer supremo, deixaram para trás as
mágoas e ressentimentos, ambos purificados pelo fogo da paixão...
Os dois ficaram ainda longo tempo com os corpos entrelaçados, como se afastar-
se um do outro lhes custasse enorme sacrifício.
— Não estou com vontade nenhuma de sair daqui — ele afirmou por fim, quase
num lamento.
Suzy sorriu, tocando-lhe os ombros fortes, depois deslizando os ledos nos cabelos
escuros para acariciá-los com ternura.
— Eu também não, mas nós prometemos ir à festa...
— Você acha mesmo que o sr. Jonas vai notar a nossa ausência?
— Acho que sim... O que não nos impede de chegar atrasados porque ficamos
presos no trânsito...
Lionel se inclinou e beijou-lhe a ponta do nariz, com um sorriso de aprovação.
— Brilhante! Só tem um problema: ninguém vai acreditar em nós, tenho certeza.
Estamos com caras muito felizes para quem saiu de um engarrafamento...
Suzy aconchegou-se ao corpo dele, puxando-o para junto de si num gesto sutil.
— Eu não me importo muito com o que as pessoas vão pensar. Em todo caso,
podemos improvisar umas olheiras...
Lionel assumiu uma expressão de falsa seriedade, a paixão brilhando de novo nos
olhos cinzentos.
— E você tem alguma idéia de como conseguiremos fazer isso? Suzy abraçou-o
com um sorriso significativo.
— Milhares!

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