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A PROFESSORINHA

The Marquis and the Miss


Clarice Peters

O marquês Richard de Jarred descobriu, surpreso, que


era amor a deliciosa perturbação que a moça esguia, de
longos cabelos castanhos e olhos azuis, lhe causava.
Não a esquecia um só instante. Olivia Anthony também

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se apaixonou pelo marquês assim que fitou seus
expressivos olhos negros. Mas precisava enfrentar a
realidade: quando Richard de Jarred soubesse a
verdade sobre o misterioso Jack, por quem ela sofria
tanto, seu amor iria se transformar em ódio.

Digitalização e correção: Nina


Revisão: Amanda

Título: A professorinha
Autor: Clarice Peters
Título original: The Marquis and the Miss
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991

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Publicação original: 1989
Gênero: Romance histórico

CAPÍTULO I

— Vamos, podem entrar! Eu ainda não morri! — bradou


o sr. Augustus Bramwell, do sofá ao lado da lareira,
onde estava, enrolado em dois cobertores. — E vocês
não vieram depressa, como mandei— resmungou,
vendo que os rapazes aproximavam-se devagar,
hesitantes. — Há tempos não aparecem!

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Eram muito atraentes. Roland, o mais velho, alto de
ombros largos, e Dorian, um pouco mais baixo, com ar
sério de estudioso. Ambos tinham os magníficos olhos
verdes dos Howell.
— Peço desculpas, tio Brammie, mas eu ando me
sentindo meio indisposto — explicou Roland, que todos
chamavam Roly.
— Será que sua indisposição tem cabelos loiros? —
perguntou o velho senhor, rindo.
Roly corou e Dorian procurou esconder o riso.
— Sentem-se!
O cavalheiro indicou aos irmãos, com a bengala de
punho de prata, onde deviam sentar e eles
obedeceram, à espera de saber o motivo do chamado
urgente.
O sr. Bramwell tomou um pouco de água e largou o
copo numa mesinha, sobre a qual já se encontravam
uma garrafa, um frasco de remédio e um relógio de
ouro.
— Recentemente — começou, afinal. — Andei
meditando sobre para quem deixaria meu dinheiro.
Os sobrinhos se entreolharam. O tio possuía fama de
muito rico e, apesar de não se tratar de um avarento,
não gastava muito. Os costumeiros divertimentos dos
cavalheiros em Londres não o atraíam: não jogava, não
frequentava casas de mulheres e não tinha
propriedades.
— É uma pena que nunca tenha me casado — suspirou
o velho senhor. — Entretanto, se vocês e seu primo
Richard quiserem herdar meu dinheiro, terão de se
casar!
— Teremos de casar? — Dorian engasgou, espantado.
— Isso mesmo; e não será com uma fulaninha qualquer
— sentenciou o sr. Bramwell, balançando a cabeça. —
Já falei com Richard e eu é que vou indicar as moças.

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— Sem se preocupar com os protestos dos irmãos,
deu-lhes algumas folhas de papel. — O dinheiro será
dividido em três partes. Se casarem com um moça da
lista, receberão um terço de minha fortuna. Se
recusarem, o dinheiro irá para uma instituição de
caridade, que já escolhi. Pegou o jornal, o que era sinal
que os rapazes podiam retirar-se.
— Pobre tio Brammie — lamentou Dorian à saída. —
Pensei que ficaria lúcido até o fim, mas parece que ele
anda um pouco esquisito.
— Pelo menos, recusamos suas ordens — contrapôs
Roland, acenando para uma carruagem de aluguel.
— Ele não se deu por entendido — observou Dorian,
indicando o endereço ao cocheiro.
— Provavelmente está se tornando surdo. — Roland
bocejou. — Pobre tio... — Depois de uma noite à mesa
de jogo, o rapaz não via a hora de voltar para casa. —
E quem são as moças que ele escolheu para nós?
— As srtas. Eugênia Meredith, Perdíta Meredith e Olívia
Anthony — anunciou o irmão depois de consultar os
papéis recebidos. — Por Júpiter, Roly, aqui não
constam apenas os nomes. Há uma página inteira de
informações sobre elas e suas preferências. Como é
que tio Brammie conseguiu?
—Deixe para lá. Gostaria de saber como é que ele
descobriu meu caso com a moça loira! Leia essas
informações.
— A srta. Eugênia Meredith tem vinte anos, é ruiva de
olhos verdes, tem um metro e sessenta, é admirável
amazona, gosta de esportes, pesca de anzol e escala
montanhas. Até pratica tênis, esse jogo novo que acaba
de aparecer.
— Admirável amazona, você disse? Hum! E as outras?
— A srta. Perdita Meredith tem um ano a menos que a
irmã, é loira de olhos verdes, se aperfeiçoou em

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música, toca três instrumentos e compõe. — Dorian
levantou os olhos, impressionado. — E pinta! Além
disto, atuou em várias peças de teatro amador.
— Quem sabe, pode se tornar outra sra. Siddons. —
Roland bateu a mão sobre o joelho. — Bom, parece
muito claro, Dory. Esta é para você. A outra para mim.
— Espere, tem mais uma — falou Dorian, achando
graça. — A srta. Olívia Anthony, prima das precedentes,
é um pouco mais velha. Tem vinte e seis anos.
— Parece perfeita para Richard.
— Talvez ele não pense a mesma coisa. Escute só:
inteligência apurada, fala fluentemente três idiomas,
sabe dirigir uma casa cheia de criados, é previdente e
organizada; um tanto mandona; cuidou das primas.
— Mandona, é? É disso que Richard precisa! —
comentou, rindo, pensando nas respostas cortantes que
Richard costumava dar.
— E que tal é ela?
— Aqui diz que em Wiltshire não há moça mais bonita.
Roland caiu na gargalhada. Se a tal senhorita não
merecia sequer descrição de sua beleza física, mas
apenas de suas qualidades, e era considerada uma
rainha de beleza, como seriam as outras duas? Não
deviam ter atrativo algum.
— Nosso querido tio está caduco — concluiu.
Pegou os papéis da mão de Dorian e jogou-os fora.
Num outro ponto da Inglaterra, Richard, marquês de
Jarred, aguardava alguém, impaciente e preocupado,
na sala de visitas da "Escola de Miss Payne para
Senhoritas". Ao voltar a Londres, depois de um mês em
Jarred, sua propriedade rural, encontrara três cartas da
escola requisitando sua presença. Pensara
imediatamente na possibilidade de Zelda, sua pupila de
treze anos, ter fugido outra vez.

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Correu os olhos pela decoração espartana da sala,
surpreso de não ver mocinhas no jardim. Em geral,
quando visitava a garota, havia bandos de adolescentes
aos gritinhos querendo espiá-lo. O marquês desde o
nascimento se acostumara aos privilégios de sua
condição social e à própria aparência, agradável. O
nariz aquilino lembrava o dos primos Howell, a altura e
o queixo pronunciado impunham respeito. Exibia-se
elegante, sem exageros, com as pontas do colarinho
modestas e a gravata com um impecável nó à l'Oriental.
Muitas mulheres suspiravam à ideia de passar os dedos
entre os negros cabelos encaracolados, nem que fosse
por um instante. Tais características se revelariam
suficientes para deixar qualquer um convencido, no
entanto, quem conhecia Richard sabia que se tratava
de uma pessoa sem qualquer afetação.
Ao ouvir uma porta se abrir, voltou-se e viu uma jovem
loira e miúda, provavelmente aluna, a caminhar
absorvida em leitura. Estava tão distraída que só viu o
marquês ao tropeçar nele.
— Oh! — exclamou, deixando cair o livro.
Ele o apanhou e leu o título: Poemas de um Poeta
Anônimo.
— Perdão, não queria assustá-la — desculpou-se.

— Quem é o senhor? O que está fazendo aqui? — Os


olhos verdes se abriram como os de um animalzinho
espantado.
— Sou Jarred. Gostaria de ver a srta. Payne.
— O marquês? Esperávamos resposta às nossas
cartas. Mas não pode falar com a srta. Payne. Terá que
conversar com Livy. Irei chamá-la. — Ato contínuo, a
moça se retirou.

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Curioso de saber quem seria Livy, ele se virou quando a
porta principal se abriu. Entrou uma jovem ruiva, de tez
rosada, com um caniço às mãos.
— Boa tarde — ela cumprimentou, bem-humorada. —
Quem é o senhor?
— Jarred — repetiu e ficou surpreso com a reação.
A ruiva abriu um largo sorriso e soltou o caniço.
— Verdade? Que maravilha! Perdy pensava que o
senhor não viria e isto estragaria nossos planos.
— Planos?
— Sim! Livy não explicou?
— Receio que não. Encontrei uma jovem que lia
poemas.
— Minha irmã, Perdy. Ela sempre lê poemas. Para mim,
são como grego, mas ela também lê grego. Não tenho
paciência para isto — ela confidenciou, abaixando a
voz. — Então, Livy me encarregou de ensinar equitação
e coisas assim às moças.
— A senhorita não tem disposição para o estudo? —
ele perguntou, com simpatia.
— Nenhuma! — Ela soltou uma gargalhada gostosa. —
Mas acho que o senhor quer falar com Livy. — Ergueu
uma fieira de peixes e o marquês descobriu a origem do
odor que sentia. — Preciso entregar isso à cozinheira,
para o jantar. Não quer ficar e jantar conosco?
Antes que ele pudesse responder, a moça já
ultrapassara a porta.
— Será que aqui ninguém sabe responder a uma
simples pergunta? — resmungou o marquês. — Elas
não parecem malucas, entretanto... E quem será Livy?
Ouviu um riso suave, voltou-se e deparou com outra
jovem, esta, de grande beleza. Mais alta que as outras
duas, tinha pele rosada, nariz empinado, olhos azul-
escuros e cabelos castanhos, que caíam nos ombros.
Inconscientemente, o marquês respirou fundo ao vê-la.

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— Sou eu — ela disse, calma. — E o senhor é Jarred,
como minha prima Perdy informou. — Estendeu-lhe a
mão e ele voltou a respirar fundo. — Imagino, pela seu
expressão, que o senhor já tenha visto Eugênia. Muitas
vezes ela deixa as pessoas de olhos vidrados. Queira
desculpar. — Com um gesto, indicou-lhe uma cadeira.
— Não o esperávamos hoje. Estava ensinando Zelda
como fazer arranjos com rosas.
— Quer dizer que ela não fugiu?
— Não! Por que deveria? — a moça perguntou,
surpresa.
— Quando cheguei de viagem, encontrei em casa três
cartas da escola pedindo-me para vir com urgência!
— Meu Deus, recomendei a Perdy que escrevesse sem
alarmar ninguém.
— A senhorita fala como se dirigisse a escola — ele
observou. — Onde está a srta. Payne?
— A srta. Payne morreu há dois anos, milorde — ela
respondeu com tristeza. — Foi muito bondosa e me
legou a direção das escolas. Minhas primas e eu a
dirigimos.
— A senhorita informou aos pais e aos tutores das
alunas sobre a mudança da direção?
O marquês sentia-se muito curioso sobre por que uma
jovem tão distinta se tornara professora de uma escola.
E onde conseguira aquela cor de olhos?

— Não — ela negou, corando. — Achamos mais


oportuno não falar durante um ano. Temíamos que os
pais nos julgassem jovens demais para dirigir a escola e
levassem as moças para outro colégio. No segundo
ano, quando os convidamos para uma visita, contamos

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a verdade. A maioria deles compreendeu que somos
capazes de dirigir um internato.
— Agora que sei que a senhorita comanda a escola há
dois anos, compreendo por que Zelda não fugiu.
— Obrigada, milorde. Isto, em parte, reflete a situação.
O senhor poderia se ocupar de Zelda por duas
semanas?
— Ocupar, como?
— Levando-a consigo para onde estiver indo. Só por
duas semanas. Todos os pais e tutores das outras doze
alunas concordaram, quando explicamos que
desejávamos fechar a escola durante duas semanas e
que as moças precisavam de uma mudança de
ambiente. Resta apenas Zelda.
— A senhorita não pode simplesmente fechar a escola!
— Pretendemos reabri-la em duas semanas — repetiu
Livy. — E o senhor tem de mandá-la de volta para nós.
— Minha cara senhorita. Afinal, como é seu nome? Não
posso chamá-la de Livy, não é?
— Anthony. Olívia Anthony.
— Estimada srta. Anthony, também tenho planos para
as próximas duas semanas e eles não incluem pajear
uma garota de treze anos.
— Espero que não — ela respondeu com amabilidade.
— Zelda acharia a companhia de uma garota de treze
anos extremamente tediosa. Afinal, o senhor deve
saber que ela tem dezesseis anos!
O marquês arregalou os olhos. Possuía um memória
péssima, mas, ainda assim, a moça devia estar
brincando.
— Percebo que o senhor não lembrava de tal detalhe —
continuou a srta. Anthony. — Não gostaria de insistir no
assunto, milorde, por que sei que o senhor deve ter
compromissos; no entanto, Zelda é sua pupila. O
senhor não a vê há algum tempo e esta poderia ser

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uma boa oportunidade para conhecê-la. Zelda é uma
jovem dama cheia de graça e de espírito.
Ele aceitou a censura sem protesto. O pai de Zelda,
Lionel Curry, um de seus melhores amigos, apesar de
ser mais velho. Alguns anos antes, Lionel e a esposa
tinham falecido num acidente, e o marquês descobrira,
surpreso, que fora nomeado tutor em testamento. E se
Zelda contava dezesseis anos, chegara realmente a
hora de começar a pensar no futuro da mocinha.
— A senhorita conseguiu que os outros pais e tutores
se sentissem culpados como eu me sinto? —
perguntou, amável.
— Quase todos — ela admitiu, com os olhos risonhos.
— Afinal, no próximo ano Zelda será uma debutante e o
senhor tem de começar a se ocupar disso! — Riu ao
verificar a expressão surpresa e algo contrafeita. — Não
será tão ruim — observou, levantando-se para ir buscar
Zelda. — Verá que encanto é a sua pupila, quando a
conhecer melhor.
Quando ela saiu, ele acompanhou a elegante silhueta
com olhar atento e respirou fundo.
— Só existe uma mulher que quero conhecer melhor,
querida Livy — e murmurou. — E é você!

CAPÍTULO II

— Quer dizer que seu marquês finalmente apareceu?


— perguntou a sra. Fielding, esposa do pastor,
oferecendo a Livy uma travessa cheia de bolinhos

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recém-tirados do forno. A jovem quase se engasgou
com o chá.
— Céus. sra. Fielding, ele não é o meu marquês!
— Mas é o personagem que vocês estavam esperando,
não é? O tal lorde Jarrow, ou será Jerrow?
— O nome é Jarred, sra. Fielding. Sim, estávamos à
espera dele para que levasse a pupila e cuidasse dela
nas próximas duas semanas. Assim, poderemos ver
Helen em Londres.
Helen, uma ex-colega, se tornara lady Galway.
— Você realmente merece um descanso, Livy,
trabalhou muito nestes últimos dois anos. — A sra.
Fielding suspirou. — E quem poderia imaginar que
Helen se casaria com lorde Galway? Um fino
cavalheiro, pelo que ouvi falar. Talvez vocês encontrem
amáveis cavalheiros durante sua estada em Londres.
Livy riu. A sra. Fielding era uma casamenteira
incorrigível.
— Tenho sérias dúvidas — comentou, animada. —
Deixei Perdy e Eugênia discutindo sobre o que
deveriam levar. Uma quer tudo que guarda em seu
armário e a outra acha que basta levar um único
vestido. Vim me despedir da senhora e deixar o
endereço de Helen. Se alguém nos procurar.
O sorriso da senhora murchou. Compreendeu que Livy
se referia ao meio-irmão, Jack. Que lástima ela ainda
esperar revê-lo, desde que ele desaparecera, em
combate no Continente. Seus olhos se encheram de
lágrimas.
— Querida...— começou.
— Por favor, não chore, sra. Fielding. Sei que as
probabilidades são mínimas, que é difícil Jack ainda
estar vivo, mas a última vez que nos vimos foi aqui, na
escola, e não queria viajar sem deixar o endereço com
a senhora.

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— Sim, claro. — A esposa do pastor enxugou os olhos.
Enquanto voltava para casa, Livy pensava no irmão.
Tratava-se do verdadeiro motivo de sua ida a Londres,
onde esperava obter alguma informação. Não falara a
respeito com Perdy e Eugênia, porque ambas
pensavam que ela já se conformara com a perda de
Jack, pois não falava nele, embora continuasse a usar o
medalhão que ele lhe dera de presente antes de partir.
Em casa reinava o caos. Todos os vestidos das primas
estavam amontoados sobre a cama, e as irmãs
discutiam.
— Livy! gritou Eugênia. — Diga a Perdy que não
podemos levar tudo isso.
— Claro que não, só temos duas valises para as três.
— Estou tentando explicar a Eugênia que precisa levar
algo a mais que uma roupa de montaria e um vestido!
— Só quero cavalgar no parque e visitar o museu de
cera e a torre. Para que muita roupa?
— Mas eu quero ir à Hookham, ver exposições e o
museu. A coleção Elgin de mármores está lá. E se
conseguir conhecer alguém do grupo de Portman
Square.
— Chega de discussões. Levem alguns vestidos de
passeio e de gala. Afinal, não queremos parecer
camponesas ao lado de Helen! — a mais velha das três
comandou.
Durante o jantar Perdy confessou sua curiosidade a
respeito do marido da ex-colega.
— Conhecendo Helen, acho que deve ser um
cavalheiro de aparência distinta — comentou Livy. —
Você pescou estes peixes, Eugênia? São excelentes.
— É o molho da cozinheira que é excelente —
respondeu a jovem. — E o marido de Helen não pode
ser melhor que o marquês de Jarred. Vocês viram o
cavalo baio dele?

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— Todo mundo sabe que o marquês é um notável
cavaleiro — concordou Livy. — O que achou dele,
Perdy?
— Parece uma pessoa amável e polida. Só o vi por um
instante no saguão. Tem feições clássicas, atraentes.
— O que interessam as feições? — questionou
Eugênia.
— Fiquei feliz em vê-lo levar Zelda — comentou Livy e
se serviu de mais peixe.
Quando o marquês de Jarred se afastava da escola
naquela mesma manhã, em companhia de Zelda,
descobriu que viajar com uma mocinha se revelava
complicado. Em primeiro lugar, ela falava pouco, em
contradição à expectativa dele, que esperava que ela
dissesse algo mais que "sim, milorde" ou "não, milorde"
a qualquer pergunta. Quando chegaram a Sharron, a
propriedade rural de lorde Collingsworth, onde pretendia
passar alguns dias, teve o desgosto de saber da
presença da srta. Sylvia Ashton, criatura que ele evitava
encontrar.
— Você não me disse que ela estaria aqui, Thomas! —
protestou com o amigo.
— Se eu falasse, você não viria. E, sinceramente, ela
me surpreendeu. Chegou com minha cunhada,
Ernestine. — Collingsworth suspirou. — Parece que
pretendem partir amanhã.
— Esplêndido! — exclamou, aliviado.
Considerava a srta. Ashton a mais fútil e egoísta de
todas as mulheres que conhecia. Ficar sob o mesmo
teto que ela por uma noite era o máximo que poderia
aguentar. Subia com Zelda para seus aposentos
quando a moça apareceu. Com vinte e três anos, muito
loira, Sylvia Ashton parecia uma bela valquíria.
— Milorde! cumprimentou, sorrindo com afetação. —
Não sabia que ia encontrá-lo aqui.

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— Srta. Ashton, permita-me apresentar minha pupila,
Zelda Curry. — Em seguida explicou que a adolescente
estava cansada e conseguiu se afastar.
— O senhor a conhece bem? — perguntou Zelda. —
Ela é muito bonita!
— De fato. Mas gostaria que não estivesse aqui.
Thomas disse que vai embora amanhã. Ainda bem! —
Sorriu e mudou de assunto: — Você ainda gosta de
pescar?
— Muito. Pesco sempre com a srta. Eugênia.
— Neste caso, deve ser boa de pescaria. Agora,
refresque-se e descanse. Nos veremos na hora do
jantar.
Depositou-lhe um beijo na face e ficou estupefato
quando Zelda o abraçou e insinuou um beijo nos lábios.
Valha-me Deus!, pensou. A menina está apaixonada
por mim!
O jantar não foi dos mais agradáveis. Zelda exibia uma
expressão sonhadora, e Sylvia Ashton, sentada ao lado
do único convidado masculino, não parava de falar um
minuto. Lady Collingsworth, muito simpática e alegre, se
desdobrava para variar os assuntos, sem sucesso. Por
fim, as senhoras saíram da mesa, deixando os homens
a saborear em paz o clarete, até que o marquês ouviu a
voz irada de Zelda: — Não interessa o que podem
pensar. A senhorita é grosseira, mal-educada e muito
menos bonita que a srta. Livy!
A srta. Asthon ia responder quando percebeu os
cavalheiros, que haviam acorrido. Lorde Collingsworth
interviu: — Ernestine — pediu à cunhada. — Não quer
tocar harpa?
— Que harpa? — perguntou Ernestine. — Não temos
harpa!
Enquanto isso, o marquês dirigiu a pupila, agitada e
corada, para o terraço.

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— O que aconteceu? — perguntou, exasperado.
— Ela é horrível! — exclamou Zelda. — Foi
desagradável comigo e nunca falaria assim na presença
do senhor!
— O que foi que ela disse, afinal?
— Me tratou como uma caipira, elogiando
exageradamente meu vestido. Sei que está fora de
moda, a srta. Perdy e eu o fizemos, um anos atrás!
Depois, quis me explicar quem era Napoleão, como se
eu não soubesse. Então, eu disse que não era uma
criança, mas quase uma mulher adulta, e ela respondeu
que esperava que não, porque neste caso seria
inconveniente o senhor ser meu tutor!
— Você não deveria ter lhe dado ouvidos, Zelda!
— Ela é detestável!
Zelda começou a chorar, e o marquês colocou um
braço em seus ombros.
— E não vou pedir desculpas! — proclamou a mocinha.
Atravessou a sala a correr, subiu a escada e bateu a
porta de seu quarto. O tutor sabia que a srta. Ashton
gostava de cutucar vespeiros e se começara a insinuar
sobre ele e Zelda, estava na hora de tomar
providências. Não podia expor a menina aos
comentários maldosos. Era melhor levá-la de volta para
a escola. Os planos da bela srta. Livy teriam de incluir
Zelda. Se necessário, pagaria dobrado.
— Céus! — O rosto rechonchudo de lady Collingsworth
indicava perplexidade. — Quer que fale com ela,
Richard?
— Não, Mary. Deixe que chore. — Virou-se para a srta.
Ashton, que o observava, atenta. — Peço desculpas
pelo comportamento de minha pupila.
— Depois de tantos anos de escola, pensei que fosse
mais educada. Ela me ofendeu, Mary! Você ouviu. E,

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para desculpá-la, milorde, o senhor terá de me fazer um
favor.
— Qual? — ele perguntou polidamente.
— Uma valsa no Almack's, da próxima vez que estiver
em Londres — ela anunciou com um brilho nos olhos
azuis.
O anfitrião quase engasgou. Dançar uma valsa com
Sylvia Ashton sob os olhares das maiores
mexeriqueiras de Londres provocaria comentários. E
não podia recusar!
— Será um prazer — respondeu, com frieza.
— E agora, que tal umas mãos de uíste? — perguntou
lorde Collingsworth alegremente, e todos concordaram.
Quando o jogo terminou, o convidado pediu para falar
com os anfitriões em particular e anunciou que ele e
Zelda partiriam na manhã seguinte. O casal ficou
decepcionado, mas era óbvio que o marquês agia no
interesse da garota.
— Não quero que pense que a menina teve culpa —
comentou lady Collingsworth, preocupada. — A srta.
Ashton a provocou.
Os três subiram para se recolher e foram interceptados
por Ernestine, que anunciou à irmã ter conseguido
convencer Sylvia Ashton a permanecer por mais uma
semana.
Lorde Collingsworth soltou um grunhido.
— Aposto que amanhã de manhã arrumara as malas,
ao descobrir que você já partiu --- murmurou para o
amigo e ambos deram uma boa gargalhada.
— Este é o caminho para voltar à escola. É para lá que
nos dirigimos? — perguntou Zelda, quando a
carruagem começou a percorrer uma paisagem familiar.
— Sim Acho melhor que você fique com a srta. Livy, por
enquanto preciso pensar em seu futuro, Zelda. Você

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não é mais uma criança talvez ela tenha ideias a
respeito.
Zelda emudeceu, diante do que lhe parecia um castigo,
até chegarem à escola. Estava fechada. O criado de
estrebaria confirmou que a srta Livy e as primas haviam
partido para Londres.
— Londres? Pensei que iam a um seminário
acadêmico!
— Não sei, milorde. A sra. Fielding, a esposa do pastor,
deve ter mais informações.
A sra. Fielding recebeu Zelda muito bem e deu o
endereço de Livy ao marquês, que ficou satisfeito com o
fato de a diretora da escola ir se hospedar em casa de
amigos dele: conhecia lorde Galway desde Eton.
Durante o chá que serviu, a sra. Fielding comentou: —
Se alguém merece um descanso, é a srta. Livy. Teve de
trabalhar muito e nunca se queixou.
— Ela não tem família? É tão bonita! Parece incrível
que ninguém a tenha pedido em casamento.
— Vem de excelente família, milorde. É neta de um
visconde e seus parentes faleceram. Apresentei-lhe
vários cavalheiros, mas confesso que não eram do
mesmo nível, e acho que a srta. Livy nem quer pensar
em casamento desde que o capitão Jack Springer
morreu na guerra. Ela o amava muito.
— Lamento por ela.
— Era mais que um irmão — completou a senhora.
O marquês depreendeu das palavras da anfitriã que o
capitão conquistara o coração da jovem. Agradeceu o
chá, os bolinhos e se despediu, decidindo continuar
viagem até Londres. Procuraria a srta. Livy de qualquer
maneira. Não sabia se poderia pedir que cuidasse de
Zelda, enquanto estivesse hospedada com os Galway,
mas ao menos requisitaria conselhos sobre o que fazer
com sua pupila. Assim. poderia revê-la.

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CAPÍTULO III

Livy, Perdita e Eugênia estavam se acostumando


depressa com os ruídos e as imagens de Londres. Ao
chegarem à sóbria e muito respeitável residência dos
Galway, na Cavendish Square, Helen as recebera com
gritinhos de alegria e depois permanecera com elas
metade da noite trocando confidências, em especial
sobre seu atraente marido.
— Vocês não acham que ele é a mais maravilhosa
criatura? — perguntou Helen durante o desjejum,
enquanto o marido implorava que parasse de dizer tais
coisas.
— Helen tem todo o direito — interferiu Livy, rindo. —
Se tivesse um marido como milorde, faria o mesmo.
— Sei que não se deve dizer estas coisas; acontece
que me sinto a mais feliz das mulheres, e agora estou
mais feliz ainda porque estão aqui.
— Ao contrário, Helen, a bondade é sua por nos
convidar, e não queremos atrapalhar — disse Livy. —
Continuem sua vida normal.
— Continuaremos, mas também vamos mostrar
Londres a vocês, não é, querido?
— Hum... é claro. Estamos à disposição. O que
gostariam de fazer?
— Cavalgar no parque — disse Eugênia. —E talvez
assistir a uma peça em Drury Lane?

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— Isto é muito simples — anuiu lorde Galway,
indulgente. — E a srta. Perdita?
— Não tenho certeza, milorde. O senhor conhece
alguém do grupo de Portman Square?
— Acho que sim. Lady Einifred Bowling, foi anfitriã de
Madame de Stael em Londres, anos atrás.
— Verdade? Que honra!
— Vamos encontrá-la no sarau musical de lady
Henning, amanhã à noite, não é, Helen?
— Acho que sim, querido, Perdy poderá conhecê-la e a
todos os outros também. Minhas queridas! — Helen
sorriu para o marido e para as amigas: — Estou
realmente feliz!
Mais tarde Perdy e Eugênia saíram com lorde Galway
para dar uma volta na cidade. Helen e Livy ficaram em
casa.
— Você realmente parece muito feliz, Helen —
observou esta enquanto arranjavam flores na sala.
— Mais do que pensava ser possível. Às vezes me
belisco, porque não consigo acreditar!
— Seu Henry parece um homem maravilhoso.
— É e espero que você, Perdy e Eugênia consigam
encontrar alguém tão bom como Henry.
— Você fala como a sra. Fielding. Estava cheia de
esperanças, porque achava que íamos fazer sucesso
no Almack's. Não tive coragem de decepcioná-la.
— Eu também não acreditava — murmurou Helen. —
Mas pode acontecer.

— Tenho coisas mais importantes a fazer do que


procurar marido. Aliás, vim a Londres também por um
outro motivo. Pode me emprestar sua carruagem?
— Sim, claro. Quer ir a algum lugar?
— Prometi à sra. Fielding ver parentes dela. Não vou
levar mais de uma hora.

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— Arnold conhece toda Londres e é de confiança.
Poderá também protegê-la contra salteadores.
— Salteadores, em Londres? — surpreendeu-se Livy.
— Ainda não atacaram ninguém na cidade, mas pode
acontecer a qualquer momento. Não ficaria surpresa.
Arnold, o cocheiro, um escocês robusto que servia lorde
Galway desde a adolescência, se prontificou a auxiliar a
visitante. Demonstrou surpresa quando ela anunciou o
destino.
— O Ministério da Guerra, madame?
— Sim. Preciso ver alguém lá, Arnold. Sabe onde fica?
— Sim, senhorita.
— Então, leve-me para lá, por favor.
Meia hora depois, quando Livy saiu do Ministério,
Arnold notou-lhe a decepção. De fato, ninguém em todo
o Ministério fornecera qualquer informação sobre o
capitão Jack Springer. Havia uma lista enorme de
militares desaparecidos, possivelmente falecidos, Jack
era um entre muitos.
Arnold não era um criado mexeriqueiro, mas julgou ser
sua obrigação informar o patrão do que fizera a srta.
Anthony. Lorde Galway, surpreso, interrogou a esposa.
Os olhos de Helen se encheram de lágrimas.
— Esperava que Livy estivesse conformada, mas não.
É tão bonita! Eu queria tanto que ela se interessasse
por alquém enquanto se hospeda conosco! Então, não
esqueceu Jack, o capitão Jack Springer ... Ele está
desaparecido. — Perdy e Eugênia achavam que ela
nunca ia se recuperar, eles eram tão unidos! Mais que
irmão, realmente. Ela foi ao Ministério atrás de notícias
dele. Isto é muito cruel! A lady começou a chorar, e seu
marido, preocupado, decidiu não tocar mais naquele
assunto nem com as hóspedes.
O senhor Roland Howell, sentado na biblioteca em sua
casa na Albemarle Street, chegou a uma conclusão

21
assustadora: pagando o que devia, em grande parte
despesas de sua atual amante, ficaria praticamente a
zero durante o próximo trimestre. O irmão, consultado,
refez as contas; chegou à mesma conclusão e viu que
também teria de fazer economia.
— Como assim? Você não ganhou uma aposta de
quarenta libras? — indagou Roly, preocupado.
— Ganhei, mas ontem fui ao Watier...
— Dory! Nem adianta perguntar o que aconteceu.
Quanto?
— Perdi mil libras.
— No Watier o cacife é sempre muito alto. Se precisar
posso lhe adiantar as mil libras.
— Você está numa situação difícil, igual a minha.
— Não. É diferente. Estou acostumado a ter dívidas.
Você não. Eu poderia pedir um empréstimo a Winifred.
— Winifred? Sabe o que ela pensa de suas amiguinhas.
— Talvez ela esteja certa.
— O quê?
— Olhe, uma chere amie é muito dispendiosa. Amélia
está me pedindo mais uma carruagem. Acho que não
posso mais me dar esse luxo.
— Não quero seu dinheiro, Roly. Irei falar com Winifred.
Nossa irmã pode me emprestar o suficiente para pagar
minhas dívidas.

Dirigiram-se para a Portman Square, onde a irmã


morava e tiveram uma surpresa: a presença do
marquês de Jarred. Chegara há uma hora, com Zelda, e
colocara a pupila sob a proteção da prima.
— É claro que você foi muito rigoroso com ela, Richard
— foi o comentário quando Zelda se retirou para seu
quarto. — Trata-se de uma criança!
— O problema é que não é mais uma criança —
retrucou o marquês. — Quer cuidar dela para mim?

22
— Com muito prazer. Teria sido mais lógico que os pais
confiassem a mim a tutela, não acha?
Tal assunto ainda a irritava, porque os Curry tinham
sido muito mais amigos dela do que de Richard.
— Pois pode tomar a si a responsabilidade, por
enquanto. — O marquês olhou para a prima, sem jeito:
— A menina está apaixonada por mim!
A revelação não teve qualquer efeito.
— Não me espanta. Você é um homem bonito.
— O que devo fazer a respeito?
— Nada. Isso termina com o tempo. Acho que você é o
único homem que a pobre Zelda, aluna interna, viu em
muitos anos. Está apaixonada por você porque não
conhece outros. — O marquês achou graça porque
Winifred ia sempre direto ao assunto. — Vendo-o com
mais frequência, ela compreenderá que seus
sentimentos são ridículos. E foi corajosa ao colocar a
srta. Ashton no devido lugar. Sabe que essa mulher
apostou que conquistará você até o fim da estação?
— A srta. Ashton está sonhando!
— Estão falando em quem? — perguntou Roland,
entrando na sala acompanhado do irmão.
— Deve ser de alguma herdeira — arriscou Dorian. —
Richard está querendo pedi-la em casamento?
— Não é uma nova herdeira, é uma velha herdeira —
retificou a irmã. — A srta. Ashton, a Sylvia.
— A que morre por Richard? — Roland perguntou,
rindo.
— Não me faça enrubescer. — O marquês fez uma
careta. — O que vocês dois andaram aprontando?
— Nada de bom — avisou Dorian.
— Já imaginava — comentou Winifred. — Caso
contrário, não viriam me visitar.
— Você é injusta, Winifred. — Dorian sentou ao seu
lado. — Todos gostamos muito de você.

23
— Gostei de seu livro, Dorian — ela comentou.
— Obrigado. Também gosto, mas ninguém compra.
— Deveria ter colocado seu nome na capa. Eu não
gosto de autores anônimos — sentenciou a irmã. —
Que sentido tem escrever algo e não receber o devido
crédito?
— Publicou um livro, Dorian? — perguntou o marquês.
— Apenas poemas, sem importância.
— Têm importância, sim, senhor — afirmou Winifred. —
Não vejo por que se esconde, Dorian.
Apanhou um livro numa mesinha e o entregou a
Richard, que leu o título: Poemas de um Poeta
Anônimo.
— E você, o que anda fazendo, Roly? — ela perguntou.
— Aquela criatura loira ainda é sua protegida? Mande-a
se vestir um pouco mais; com aquelas roupinhas
transparentes pode apanhar pneumonia.
— Ela tem saúde de ferro — respondeu Roland, bem-
humorado. — E é muito dispendiosa.

— Você parece surpreso, Roly. A estas alturas, deveria


saber que algumas mulheres são sempre dispendiosas.
— Ela abriu crédito em todos os lugares e me manda as
contas. Dentro de pouco tempo estarei mendigando.
— Neste caso, só tem de se casar com uma das moças
da lista do tio Brammie e suas preocupações chegarão
ao fim — falou Winifred com calma.
Os três cavalheiros a observaram, estupefatos.
— Winifred, você ajudou?
— Como é que você...
— Que plano infernal!
Winifred ficou a observá-lo, calma, e por fim disse: — É
claro que eu sabia, titio mandou me chamar e pediu
minha opinião. Respondi que achava o plano tolo.
Vocês nunca levaram em conta meus conselhos, por

24
que iriam fazer o que ele desejava? Imagino que os três
recusar a oferta.
— Sim — confirmou Richard. — Um absurdo. Nem
fiquei o tempo suficiente para saber que moças tinha
escolhido.
— Três moças do Wiltshire — informou Dorian. — Uma
estudiosa, uma esportiva e a terceira um pouco mais
velha que as outras.
Roly e eu decidimos deixá-la para você.
— Ela está fazendo suas últimas orações? — perguntou
Richard secamente.
Nesse instante a conversa parou porque foi anunciada
a visita de lady Galway e da srta. Perdita Meredith.
— Entre, querida Helen, entre. — Winifred se dirigiu ao
encontro das visitantes. — Não se assuste com os
cavalheiros. São meus parentes e estão aqui para ouvir
admoestações. Roland, Dorian, Richard, vocês
conhecem lady Galway?
Os três se curvaram. O marquês já conhecera a jovem
Perdita e perguntou sobre a irmã e a prima.
— Foram visitar a torre — ela explicou, intimidada.
— E não quis acompanhá-las? — perguntou Roland.
— Não. — Olhou para Winifred. — Helen disse que viria
visitar a senhora e eu li suas obras. Preciso dizer que
as achei admiráveis.
— Obrigada, minha querida. — Winifred sorriu. — Seu
nome é... Helen lembrou sua obrigação.
— Peço desculpas! Esta é a srta. Perdita Meredith, uma
amiga do Wiltshire.
Dorian e Roland se mostraram tão surpresos que o
último chegou a entornar o sherry sobre a própria
roupa.
— E já conhecia lorde Jarred? — perguntou Winifred.

25
— Nós nos conhecemos na escola da srta. Payne —
ele explicou. — Zelda é aluna da escola. A srta.
Meredith, sua irmã e sua prima dirigem a escola.
— Não diga! — Winifred exclamou. — Desenvolvi
teorias rigorosas sobre a importância da educação. Por
que não senta ao meu lado? Vou explicá-las à
senhorita.
Pouco depois os irmãos da anfitriã se despediram.
— Nem cheguei a falar com Winifred a respeito do
dinheiro — queixou-se Dorian, enquanto iam para casa.
— Talvez não seja necessário. Você não ouviu o que
disse lady Galway? A srta. Meredith, sua irmã e sua
prima são suas convidadas por duas semanas. E você
nem se lembrou do plano do tio Brammie! Ambos o
achamos absurdo, mas a moça Meredith é uma
criaturinha cativante, não acha? Tímida, mas numa
mulher isto é virtude.
— Escute, Roly! — Dorian parou de repente. — Você
acha que me casaria com alguém para conseguir o
dinheiro de tio Brammie?
— Não! Mas como ela está em Londres, que mal há em
conhecê-la melhor? Até poderia chegar a gostar dela e
pedi-la em casamento com a consciência limpa, não
acha?
— E você, o que vai fazer?
— Vou conhecer a srta. Eugênia Meredith que, se está
lembrado, é esportista. — Deu um sorriso maroto.
Roland a conheceu naquela mesma noite, em casa de
lady Beecham, tia de Galway. Ele e Eugênia trocaram
ideias sobre pescaria e, enquanto dançavam, o rapaz
descobriu que ela entendia muito de cavalos e de
remédios para cascos inflamados, uma moléstia que
afligia uma de suas montarias.
— Cascos inflamados! — exclamou Livy, mais tarde
arregalando os olhos. — Dá para imaginar?

26
— O assunto não importa — disse Helen. — Parece
que Roly ficou muito impressionado e isto importa.
Duvido que qualquer outra moça saiba algo a respeito.
Quanto a Perdy, não se preocupe: parece que já
conquistou o jovem Dorian.
— Só porque dançou uma vez com ela?
— Não. Eles se encontraram esta tarde na casa de lady
Winifred e conversaram bastante.
— Espero que não tenha sido a respeito de cascos
inflamados!
— Acho que foi sobre o método correto de compor um
soneto — respondeu Helen e riu, depois admirou sua
amiga, num belo vestido de seda cor de flor de
laranjeira, que usara apenas uma vez e emprestara a
Livy. — Dorian e Roland são excelentes rapazes. —
Sem olhar, Livy adivinhou o que Helen estava pensando
e riu. — Já aconteceram coisas muito esquisitas —
insistiu. — Fui para Bath em férias e conheci Henry.
Não queria ir para Bath, mas sim para Worthing! Pense
como teria sido minha vida se tivesse feito isto!
— Seria diferente, sem dúvida — riu Livy.
— Sim, tive sorte. Deixei-me convencer por minha
amiga Clarissa, que me convidou para ir a Bath. E
quando vi Henry pela primeira vez, entendi que se
tratava do homem do meu destino. Ele acha que Dorian
e Roland são ótimas pessoas.
Livy aceitou tal opinião com reservas. Já sabia que
lorde Galway era incapaz de ver algo desabonador em
qualquer pessoa. Mas o marquês de Jarred se
aproximava naquele momento e todo o resto perdeu
importância.
Ao conhecê-la, no Wiltshire, com roupas simples, o
marquês a julgara a mais bela mulher que já vira. Com
o elegante vestido emprestado por Helen, ele a achou

27
deslumbrante. Cumprimentou-a e convidou-a para
dançar, pedindo licença a lady Galway.
Se eu a encontrar mais vezes, ele pensou, vou cair
direto na armadilha do casamento!
Não tiveram tempo para dançar muito. Foram
interrompidos pela chegada de um casal esbaforido,
ainda sob o efeito de uma aventura "angustiante", nas
palavras deles.
Alguns convidados lançaram chacotas sobre lorde
Donaldby, duvidando de sua habilidade com as rédeas.
O lorde fungou, amparando a esposa que ameaçava
desfalecer pelo susto.
— O que foi, afinal? — perguntou lady Beecham. Ela
detestava cenas dramáticas. Preferia que convidados
atrasados entrassem discretamente, sem chamar a
atenção.
— Fomos atacados por salteadores! — contou lorde
Donaldby.
— Eram dois! E tivemos sorte de ter escapado com
vida!

CAPÍTULO IV

— Eram selvagens — queixou-se lady Donaldby. —


Levaram nossas joias e nosso dinheiro. Perdi um
broche de diamantes, presente de noivado de
Donaldby.

28
— E me tiraram o relógio, com a corrente preferida, e
meu anel — acrescentou o marido.
— Tiveram muita sorte porque ainda estão vivos! —
exclamou um senhor gorducho, ao lado de Livy. —
Muita gente morreu e nunca soube por quê.
— Concordo! — rematou outro cavalheiro, afetado. —
Um primo meu não quis entregar o dinheiro e o
passaram pela espada.
— Estes não tinham espadas, mas pistolas — corrigiu
lady Donaldby. — Pensei que era o fim!
— Um cálice de vinho do Porto vai reanimá-la. Venha
comigo — insistiu lady Beecham, sua velha amiga.
— Deve ser a mesma dupla de ladrões que sempre
ataca na floresta de Epping e as autoridades não
conseguem apanhá-los — resmungou lorde Sefton. —
Alguém deveria fazer alguma coisa. — Houve um
murmúrio de consenso. — E seria oportuno ficar longe
da floresta! — Lorde Sefton retirou-se com lorde
Donaldby.
— Pobre velho Donaldby, ainda bem que não teve um
derrame pelo susto — comentou Roland, ao lado do
marquês.
— Obrigada pela valsa, milorde — murmurou Livy.
— Foi muito curta, infelizmente. Vou pedir outra em
nosso próximo encontro, srta. Anthony — falou o
marquês, sorrindo, e o pulso de Livy acelerou.
— Richard, precisamos tomar uma atitude e tenho um
plano. As autoridades não fazem nada — insistiu o
primo.
O marquês ergueu um sobrancelha. Conhecia o
companheiro, seu entusiasmo por aventuras e sabia
que os planos de Roland nunca davam certo. Ficou a
conversar com ele, na esperança de dissuadi-lo.
Na manhã seguinte, Perdita e Livy, escoltadas por
Dorian, se dirigiram à livraria Hookham. O rapaz se

29
mostrou muito atencioso, indicando os livros adequados
para uma dama.
— Prefiro algo menos conveniente — comentou Livy,
rindo. — Vou levar o último livro do sr. Scott, um da
srta. Austen e um daqueles folhetins de biblioteca
circulante, apesar de sua desaprovação.
Enquanto ela mandava embrulhar os livros, Dorian saiu
à procura de Perdy e a encontrou entre livros de
poesias.
— Gosto demais de poesia — ela explicou. — Li
praticamente tudo de Byron, mas estou arrependida.
Parece que não há mais nada para ler.
Dorian viu seu livro numa prateleira e pegou-o.
— Talvez aprecie isto — murmurou. — Claro, não é
Byron, mas acho que concordará que este poeta leva
jeito com os sonetos. — Perdy olhou para o título e
franziu o nariz. — Não? Garanto que li e gostei —
explicou o autor, sem se identificar.
— Eu também li e não gostei. Posso dizer que prefiro
Aristóteles, que é tedioso, a estes versos enfadonhos.
— Enfadonhos? — Dorian quase engasgou.
— Imagens batidas — continuou Perdy, sem perceber
que o rapaz corava. — O autor fez bem em permanecer
anônimo. Comparar as faces de uma moça a um
pêssego e os olhos a lagos cristalinos... francamente!
— Encontrou alguma coisa para ler, Perdy? — Diante
da negativa da prima, Livy continuou: — Não posso ler
Scott e Austen ao mesmo tempo. Enquanto leio um,
você pode ler o outro, está bem?
As moças voltaram para casa acompanhadas por
Dorian, bastante contrafeito, que as deixou em
Cavendish Square e voltou a seus próprios aposentos
em Albermale Street, para meditar sobre os defeitos de
sua obra. Nem conseguiu prestar atenção a Roland,
que desejava expor seu plano para capturar os

30
bandidos. Ele só conseguiu encontrar apoio na tarde
daquele mesmo dia quando saiu com Eugênia, que
achou o plano interessante.
— Acha que poderia-funcionar? — ele perguntou,
animado.
— Ah, sim, acho excelente sua ideia de ir para a
floresta para ser assaltado! Sabe onde isto costuma
acontecer?
— Sim, falei com Donaldby e com outras vítimas.
— E pretende sacar sua pistola enquanto o assaltam?
Mas eles são dois, portanto são duas pistolas que terá
de enfrentar. Já pensou nisto?
Roland se sentiu encabulado por ter errado a tática e a
estratégia.
— Já sei o que vou fazer. Irei com o senhor — anunciou
Eugênia sem dar ouvidos aos protestos espantados. —
Escute como faremos: levarei uma amiga... — Eugênia
explicou o plano.
— Isso pode ser perigoso!
— Tolice! Serviremos de isca. O senhor fica escondido
e quando eles nos assaltarem, poderá dominá-los.
Roland teve de admitir que a estratégia de Eugênia era
melhor do que a dele.
— Mas a ideia original foi do senhor! — ela declarou
generosamente e durante o resto do passeio ficaram a
discutir detalhes.
Dois dias depois, uma carruagem com o brasão do
marquês de Jarred entrou naquela parte de Londres
conhecida como floresta de Epping. Os dois salteadores
mascarados, de tocaia, assaltaram a carruagem depois
de uma curva. Tiraram as joias e o pouco de dinheiro
das duas moças. O bandido mais jovem se comoveu,
aparentemente, com os protestos de Zelda ao ter que
se separar de um brochinho de pouco valor, mas de
muita estimação, e isto levou o mais velho dos

31
salteadores a dizer que, como a escolha estava feita,
ficaria com Eugênia para se divertir um pouco. Roland
apareceu nesse momento e rendeu os bandidos,
ordenando que jogassem fora as armas. Depois exigiu
que tirassem as máscaras. Eles obedeceram e foi aí
que o plano fracassou. Eugênia soltou um grito
lacinante.
— Jack!
Surpreendido, Roland desviou o olhar e foi suficiente
para que o salteador que Eugênia chamara de Jack o
desarmasse, aplicando-lhe um soco que o deixou
inconsciente, depois impediu que o outro desse um tiro
no rapaz caído. Os salteadores montaram, mas, antes
de se afastar, o mais velho jogou uma pedra nos
cavalos da carruagem, que saíram em disparada e só
arrefeceram a corrida muito adiante, quando o veículo
ficou entalhado entre duas árvores.
— Não conseguimos muito desta vez, Justin, meu
rapaz! — Sharkes, o mais velho, examinava o produto
do assalto.
— Foi um truque! Ela estava com medo e gritou um
nome qualquer.
— Achei o rosto dela familiar — divagou Justin. — E
precisava assustar os cavalos?
— Está perdendo a coragem, Justin? Não seria a
primeira vez.

Justin corou. Entendeu a alusão. Mas aquela moça era


familiar e a outra, a mais nova, o impressionara como a
coisinha mais linda que vira em toda sua vida.
— Não comece a ter dó das pessoas que assaltamos —
avisou Sharkes, mordendo um balangandã de ouro. —
Acabará se prejudicando. Milorde pode comprar mais
uma parelha e uma carruagem nova, fique sossegado.

32
Se começar a ter escrúpulos, acabaremos presos e
enforcados, não se esqueça.
— Sei quanto devo a você — murmurou Justin.
— Será que sabe mesmo? Às vezes acho que você tem
péssima memória.
— Péssima? Você não sabe o que está dizendo,
Sharkes. Não sabe o que é não lembrar de nada, olhar
para algo familiar e não saber o que é. Às vezes acho
que vou enlouquecer. Deveria ter me deixado morrer,
em vez de me arrastar para a floresta.
— Chega, não se preocupe mais. Você é um bom
parceiro. Aprendeu o ofício num instante. Se não
consegue se lembrar de nada, paciência. Aconteceu
com muita gente que esteve na guerra. Não
conseguimos muito, mas escolha o que quer.
— Quero a pulseira.
— Você não entende o valor das coisas. O balangandã
vale muito mais — riu o comparsa.
— E quero a metade do dinheiro.
Quando voltou para sua cabana, Justin estava com
forte dor de cabeça, como sempre acontecia quando
tentava se lembrar. Só sabia que acordara na floresta e
Sharkes lhe dissera que era um desertor. Não gostava
de viver na floresta, mas os desertores eram fuzilados.
Ficou a olhar para a pulseira e tentou não pensar na
moça que o chamara de Jack. E nem na outra, tão
linda. Sharkes estava certo: às vezes, era preferível não
lembrar.

CAPÍTULO V

33
— Roly, estou com vontade de esganá-lo. O conserto
da carruagem levará pelo menos uma semana e um
dos meus melhores cavalos galeses está manco! — O
marquês de Jarred caminhava pela biblioteca, tentando
se controlar.
— Foi para isto que me pediu a carruagem
emprestada?
— Você mesmo disse que alguém precisava fazer
alguma coisa e capturar aqueles bandidos!
— Você achou que poderia fazê-lo e ainda arrastou
Zelda e a srta. Meredith para a floresta!
— Era um bom plano, Richard, e quase conseguimos
capturar a dupla — protestou o primo.
— Olhe, Roly, sei que você tem apenas vinte anos, mas
assim mesmo já deveria...
— O plano era ótimo, Richard — insistiu o rapaz. —
Queria livrar a sociedade de uma ameaça. Sinto muito
pelo cavalo e pela carruagem, mas consegui que
tirassem as máscaras e posso dar uma boa descrição
às autoridades.
— Neste caso, a perda não foi total. O que roubaram?
— Meu relógio com corrente e balangandã, meu sinete,
duzentas libras e as joias das moças.
— E como elas se portaram?
— Muito bem. Caminharam cinco milhas sem um pio.
Se Eugênia não tivesse gritado. Depois, Zelda só falava
nos olhos lindos do salteador mais novo!
— Não se preocupe, são coisas da idade.
Ao notar que o primo ainda estava com a roupa suja, do
assalto, mandou-o para casa. Depois decidiu ir ver se
Zelda e Eugênia estavam bem. Talvez conseguisse até
trocar algumas palavras com Livy.

34
Naquela mesma horas, na casa dos Galway, Livy subiu
até o quarto da prima para repreendê-la severamente.
— Finalmente, Livy! Por que demorou tanto? —
exclamou Eugênia e fechou a porta. — Não imagina o
que aconteceu!
— Helen me contou. Detesto repreendê-la, mas passou
dos limites!
— Ao diabo meu comportamento! Ouça, Livy, eu vi
Jack!
Notando a palidez da prima, chocada, pediu: — Não
desmaie, por favor! Não deveria ter falado deste jeito.
Sente-se.
— Você viu Jack?
— É! Eu o reconheceria em qualquer lugar, embora
esteja um pouco diferente.
— Diferente, como?
— Mais velho, eu acho. E um pouco esquisito, como
que ausente. Sei que parece uma tolice, mas quando
gritei seu nome ele se aproximou, como se quisesse
falar comigo, então o outro homem o arrastou para
longe.
— Que outro homem?
— O outro bandido. Jack era um dos salteadores.
— Isto é um absurdo! Pensei que tivesse visto Jack na
rua. Você quer dizer que estava com os bandidos?
— Livy, querida... Jack é um dos bandidos.
— Impossível! — ela exclamou e se levantou.
— Entendo você não acreditar mas, eu o vi! Queríamos
capturar os bandidos, Roland idealizou um plano,
conseguiu que tirassem as máscaras e reconheci Jack.
Pasmada, gritei seu nome. Roland se distraiu e levou
um soco. Deu-me trabalho para recobrar os sentidos.
Os bandidos fugiram.
— Ele se machucou? Jack disse alguma coisa?

35
— Não. Roland apenas levou um soco sem maiores
consequências, e Jack não permitiu que o outro
bandido atirasse nele. E protestou quando o outro
mostrou ter intenções pouco agradáveis para comigo e
com Zelda. Aproximou-se de mim e disse:"Você me
chamou de Jack", como se não fosse o nome dele!
— Não posso compreender. Eu tinha a intuição de que
ele estava vivo, mas na floresta? Um assaltante? Você
deu alguma explicação a Roland e Zelda?
— Não disse nada, Roland estava bastante preocupado
por causa da carruagem do marquês, toda amassada.
Pensei em justificar meu grito, por fim decidi não falar.
Será melhor para Jack se ninguém souber que é um
dos salteadores.
— Sim. Não me importo se for bandido, só quero ter
certeza que está vivo. Você falou com Perdy?
— Não. Achei melhor falar com você.
— Ótimo. Não gosto de manter coisas em segredo,
contudo quanto menos pessoas souberem, melhor.
— O que pretende fazer?
— Quero encontrar Jack e dizer a ele que ainda tem um
lar conosco. Não sei o que aconteceu para torná-lo um
bandido. Há algum mistério nisso tudo. No Ministério da
Guerra ouvi uma conversa sobre feridos que perdem a
memória.
— Pobre Jack!
Perdy entrou naquele momento: — Livy, Helen está a
sua procura. Lorde Jarred chegou e quer saber se
Eugênia está bem.
— Era só o que faltava! — exclamou Livy, consciente
de que usava um de seus vestidos mais velhos; não
havia tempo para trocá-lo. Venha comigo, Eugênia.
Os olhos do marquês se iluminaram ao vê-la, e Livy
ficou a se perguntar por que seu coração batia tão
depressa.

36
— Vejo que a srta. Eugênia está bem — ele comentou
depois dos cumprimentos. — Repreendi Roly pela
loucura.
— Espero que não tenha sido muito severo — disse
Livy. — Porque Eugênia se meteu nisso
voluntariamente.
— Não vou censurá-la, srta. Eugênia. Acredito que
aprendeu a lição, aliás, como Roly. Ele me disse que
pode descrever os homens e, se a senhorita ajudar, as
autoridades poderão compor um retrato para identificar
e prender os bandidos.
— Um retrato? Ah, tenho certeza de que Eugênia ficará
muito feliz em ajudar — respondeu Livy, notando o
olhar expressivo da prima. A descrição seria muito
diferente de Jack.
— Excelente! Quem sabe, poderá ajudar a prender esta
dupla perigosa, levá-la à força e as pessoas desta
cidade não precisarão mais temer por suas vidas.
Lady Galway mandou trazer o chá e começou a servi-lo,
ajudada por Eugênia. O marquês aproveitou para falar
com Livy e soube que iria à festa de lady Jersey no dia
seguinte.
— A senhorita me acharia muito atrevido se lhe pedisse
para dançar a primeira valsa da noite comigo?
— Não, sem dúvida — ela respondeu um pouco
confusa.
Por que se comportava como uma adolescente?
— Então, está combinado.
Ele aceitou a xícara de chá que Helen lhe oferecia, e
todos se envolveram em comentários sobre a nova
monstruosidade arquitetônica que o Regente mandara
construir em Brighton, repleta de minaretes e de
cúpulas.
O marquês se despediu pouco depois, alegando
precisar ir até Portman Square para ver Zelda.

37
— O que foi que eu disse, Livy? — murmurou Helen
com um risinho, abandonando a bandeja do chá. —
Você conseguiu conquistar este homem e não negue!
— Que exagero, Helen! Trata-se apenas de uma
pessoa educada.
— O cavalheiro está se apaixonando por você, Livy, e
se você quiser, será marquesa!
— Livy não teceu comentários; a perspectiva,
entretanto, não lhe soava desagradável, até que um
detalhe lhe aflorou à mente: o que diria a sociedade ao
saber que o irmão da "marquesa" era um bandido?
A notícia de mais um assalto na floresta de Epping se
espalhou pela cidade e as mulheres mais medrosas
decidiram não mais sair de casa até que os bandidos
fossem presos. A maioria confiava que isto aconteceria
dentro de um prazo razoável. O marquês de Jarred
compartilhava desta opinião, mas achou que as
autoridades apreciariam uma pequena ajuda na caçada.
Ofereceu um prêmio para estimular as buscas.
Explicava isto a Galway no clube, onde o lorde se
refugiara ansioso por companhia masculina
— Quando Helen sugeriu que convidássemos suas
amigas da escola, nunca imaginei que seriam tantas.
— São apenas três, Henry — observou o marquês.
— Três? Às vezes tenho a impressão de que se trata de
uma dúzia. São simpáticas, mas Eugênia insiste que a
leve para ver a rainha ou uma luta de boxe, dá para
imaginar? Perdy acampou na biblioteca, onde escreve
coisas que não mostra a ninguém, onde não posso
mais ficar, e Livy...
— O que há com Livy?
— Costuma sair sozinha a cavalo ou pede a carruagem
emprestada. Quase não consigo usá-la e é novinha!
— Para quê?

38
— Meu criado contou que uma vez foram ao Ministério
da Guerra. Ela procurava notícias daquele seu capitão.
Não deveria lhe contar isto, porque Helen me disse que
Livy não deseja falar no assunto. Acho que eram
namorados e ela nunca se conformou com a morte dele
porque não encontraram o corpo.
— Uma lástima.
— Na verdade, não é o fato de ela usar a carruagem...
É que, desde que chegaram, quase não consigo trocar
uma palavra a sós com Helen e estamos casados só há
dois meses!
— Deve ser uma mudança radical, comparada com sua
vida de solteiro — murmurou o marquês, escondendo
um sorriso.
— À mesa, só se fala em recepções ou vestidos —
continuou Henry. — Mas breve voltarão para o
Wiltshire.
O marquês de Jarred recusou novo cálice de vinho e se
dirigiu à sala de leitura, mas depois de ler três vezes o
mesmo parágrafo, sem entender o sentido, abandonou
a revista. Pensou no que o amigo dissera sobre a breve
partida das moças. Descobrira, desde o primeiro
encontro, que Livy reunia todas as qualidades que
desejava numa esposa: carinho, sabedoria e beleza.
Mas ela o aceitaria? Existia a lembrança do tal capitão...
Um homem como ele, considerado um dos melhores
partidos, não teria dificuldade em eliminar qualquer
rival, em condições normais. Contudo, como se impor,
quando o rival vivia apenas na lembrança da moça que
um dia o amara?

39
CAPÍTULO VI

Livy puxou as rédeas do cavalo, na floresta de Epping,


percebendo profundo silêncio a seu redor. Só ouvia o
chilrear de pássaros nas copas das suores. Continuou a
cavalgar, controlando seus receios.
Imaginava se fora uma boa ideia levantar cedo e sair,
sem dizer para onde ia. Mas queria falar com Jack a
sós. Um mascarado apareceu, de repente, de trás de
um arbusto.
— Está longe de casa, minha bela. Pare aí mesmo.
Os olhos acima da máscara eram castanhos. O
parceiro, ela pensou.
— Estou à procura de alguém — disse. — Um salteador
como você. Tem vinte e sete anos, olhos azuis e é
educado.
— Não há gente educada na floresta.
— Ele e seu parceiro assaltaram ontem a carruagem do
marquês de Jarred. — E notando a mudança de
expressão nos olhos castanhos, exclamou: — Você
conhece Jack!
— Pare onde está! — gritou o homem, nervoso.
— Preciso falar com ele, por favor. Eu o conheço...
Trouxe dinheiro — continuou, vendo a hesitação do
homem.
— Mostre o dinheiro. — E o homem lhe arrancou o
maço de notas das mãos. — Aqui não há Jack nenhum,
mocinha! — gargalhou Sharkes, enfiando o dinheiro na
camisa. — É uma boa quantia, sem esforço. O que
mais tem aí? Ah, o medalhão!
Livy levantou a mão para protegê-lo, mas o homem
arrancou a correntinha de seu pescoço. Eugênia estava

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certa: tratava-se de um brutamontes. Como podia ser
parceiro de Jack?
— O que está fazendo, Sharkes? — perguntou uma
voz.
Livy se virou depressa. Era seu meio-irmão!
— Jack! — gritou e avançou.
— Cuidado, Justin. Ela está perguntando a seu
respeito. Acho que é uma armadilha.
— Não há nenhuma armadilha — protestou Livy. —
Eugênia me contou sobre ontem.
— Eugênia?
— Jack, você não se lembra? Sou sua irmã, Livy.
— Livy? — ele repetiu, como em transe.
— Não há nada para ele lembrar — interferiu Sharkes.
— Vamos voltar para a cabana, Justin.
— A dama da carruagem — murmurou Jack. — Ela
também me chamou de Jack. Ela se chama Eugênia?
— Sim. Ela é nossa prima.
— E a outra dama que a acompanhava também é uma
prima?
— Outra dama? Ah, Zelda. É minha aluna, na escola da
srta. Payne.
— A escola da srta. Payne.
— Jack, o que há com você? — Livy tinha vontade de
sacudi-lo.
— Não me reconhece? Não lembra de Eugênia e
Perdy?

Jack a fitava com um olhar vago e um calafrio correu


pela espinha de Livy. Seu irmão se mostrava diferente,
o rosto mais magro, os olhos desprovidos de brilho e de
alegria de viver.
— Não, não lembro — respondeu Jack, batendo o
punho no tronco de uma árvore. — Não consigo

41
lembrar. Você me parece familiar, como a dama de
ontem, mas não sei!
— Seu nome é Jack Springer — disse Livy, calma. —
Você é meu meio-irmão, mais velho. Nossa mãe se
casou duas vezes. Eu sou Livy.
Ele voltou a repetir o nome devagar, sem resultado.
— Você me deu aquele medalhão antes de partir para a
guerra — ela continuou, apontando para o medalhão na
mão de Sharkes.
Jack o arrancou do parceiro e comprimiu o fecho da
mola. Observou os retratos de duas crianças no interior.
— Foram feitos numa quermesse, quando éramos
pequenos — explicou Livy.
— Não adianta — ele falou, sombrio, devolvendo-lhe o
medalhão.
— Na minha cabeça só há névoa. Desde...
— Desde a batalha? — ela arriscou, e ele assentiu.
— Você diz que é minha irmã e não poderia negar nem
que afirmasse que é minha esposa. Gostaria de poder
acreditar. Seria uma alívio saber quem sou.
— Você está cansado e doente. Tem de vir comigo.
— Para onde? — Sharkes a interrompeu.
Livy não precisou pensar muito. Não podia levá-lo para
a casa dos Galway.
— Para a escola — informou. — Vou encontrar um
médico, e você poderá recuperar a memória.
— Ele não quer recuperar a memória — disse Sharkes.
— Fique fora disto, Sharkes — avisou Jack.
— Foi só ela chegar e você ficou neste estado —
rosnou o comparsa e cuspiu no chão. — Não vou
permitir!
— Ele é meu irmão e o lugar dele não é aqui — afirmou
Livy.
— Não sei como conseguiu transformá-lo num
criminoso, mas não vou deixar que isto continue!

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— Não vai deixar? — Sharkes coçou os pelos do
queixo. — Eu salvei a vida dele. Vamos, Justin, conte a
ela.
— É verdade. — Jack fitou Livy nos olhos. — Não
poderia sobreviver sem a ajuda de Sharkes.
— Você quer dizer sobreviver assaltando as pessoas
que atravessam a floresta, Jack. Volte para casa
comigo.
— Ele fica — declarou o companheiro.
— Não. Agora ele sabe quem é. — Pegou as mãos do
irmão. — Quando pensei que estava morto, quase morri
também!
— Livy... — Ele disse, apertando as mãos dela.
— Comovente — observou Sharkes. — Se realmente
gosta de seu irmão, como diz, vai deixá-lo em paz, ou
ele morre enforcado, moça!
— Ninguém sabe que ele é um bandido — ela retrucou.
Sentia que a culpa era toda de Sharkes.
— Justin...
— O nome dele é Jack!
— Não o chamaria assim, se fosse você. Deve haver
gente procurando pelo capitão Jack Springer, do Oitavo.
— Por quê?
— Por ter desertado em ação, mocinha. Esta maravilha
de rapaz deu as costas, fugiu, e o exército não gosta de
desertores. São fuzilados.
— Não acredito em uma só palavra — proclamou Livy.
Em seguida olhou para Jack e se assustou. O homem
podia estar dizendo a verdade. Jack, um desertor? Não
parecia possível.
— Nunca mais será o capitão Jack Springer. Se
abandonar a floresta, estará condenado à morte. Seja
boazinha e fique longe dele.
— Fale com ela, Justin.
— Sharkes está certo. — Jack se mostrava arrasado.

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— Vamos encontrar um jeito, Jack.
— Não sou o seu Jack. Ele era um desertor, abandonou
seus homens. Justin é apenas um bandido. — Pulou na
sela e se embrenhou na floresta.
— Deixe as coisas como estão — recomendou o
homem que ficara e seu olhar mostrava um pouco de
compaixão. — Garanto que esta não é uma boa vida,
mas é uma vida. Se ele sair daqui, estará morto em
pouco tempo! — E também sumiu.
— Isto não se parece com o bandido! — exclamou
Perdita segurando os esboços.
— Não sabia que a senhorita viu os bandidos na
floresta — retrucou Dorian friamente.
Sua irritação começara na casa de Portman Square, ao
ouvir as críticas de Zelda. Perdita enrubesceu.
— Não estive na floresta, mas Eugênia me deu as
indicações. E também confirmou que meus esboços
saíram bem. — Mostrou seu bloco de papel. — Pode
reparar que os seus não se parecem com os meus. —
E sobre isto não havia qualquer possibilidade de
discussão. — O senhor está menosprezando minha
habilidade de desenhista? — a jovem se insurgiu.
— De jeito nenhum. Tenho aqui meus desenhos
originais, anteriores às correções exigidas por Zelda.
Entregou os desenhos a Eugênia, que chegara há
instantes, que ficou pasmada: Roland fizera excelente
retrato de Jack.
— Receio que Zelda esteja certa... O senhor Ronald...
— continuou a recém-chegada. — Levou uma pancada
na cabeça quando caiu e devo dizer que a memória de
Zelda na descrição dos homens é melhor que a minha.
Assim, a semelhança no desenho de Dorian é um
pouco mais fiel do que no seu, Perdy.

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Esta saída diplomática pareceu acalmar os dois artistas
antagônicos. Após a saída de Dorian, entretanto, Perdy
ainda se mostrava irritada.
— Sujeitinho indigesto! Juro que estava com vontade de
bater na cabeça dele com o bloco de desenho!
— Não exagere — recomendou Eugênia. — Os
desenhos dele se revelaram bem-feitos.
— Ele não precisava falar como se eu fosse uma idiota.
— Ele não fez isto, Perdy.
Não adiantou, de qualquer forma. Dorian entrou para a
lista negra de Perdy, onde permaneceria por muito
tempo.
— Não posso acreditar que uma criaturinha doce como
a srta. Perdy consiga ficar tão brava por muito tempo —
comentou Roland mais tarde, quando Eugênia explicou
o acontecido.
— Em geral, não — ela concordou, afagando o pescoço
da égua castanha que montava. — Acontece que se
orgulha, e muito, de sua habilidade de desenhista.
Dirigiam-se para o parque, onde Roly exibia sua mais
recente montaria. Este esperou um comentário de
admiração de Eugênia, no entanto esta não parecia ter
percebido a novidade. Finalmente, impaciente, chamou
a atenção dela para o animal.
— Seu novo cavalo? O senhor comprou um? Que bom!
Esse aí parece ter aprumo anterior muito aberto.
— Estou montado em meu cavalo novo! — explicou o
rapaz, depois de ficar quase mudo pela indignação.
— Não brinque!
— De jeito nenhum. Custou-me quinhentas libras!
Eugênia franziu a testa, preocupada.
— Creio que foi péssimo negócio.
O sr. Roland Howell empurrou seu chapéu para trás.
— Acho que fiz um excelente negócio.
— Não está falando a sério!

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— O que está vendo de errado?
— Para começar, o casco direito dianteiro está
desgastado e as espáduas desequilibradas. Quanto ao
dorso, parece arqueado.
— A senhorita é maluca!
— Maluca, eu? Não fui eu quem comprou esse
pangaré.
— Comprei este excelente cavalo de sir Garry Jeeves, e
é filho de um árabe premiado! — declarou Roland,
tentando se controlar.
— Bom, até os árabes, de vez em quando, têm crias
péssimas. Não precisa ficar furioso por isto.
— Não estou furioso!
— E tome cuidado para não correr muito com o animal,
porque poderia quebrar essa perna pelo esforço!
— Não vai quebrar! — retrucou Roland, que parecia
estar com vontade de quebrar a cabeça de Eugênia.
Quando Livy voltou para a Cavendish Square, Eugênia
já esquecera o pangaré. Levou a prima para seu quarto.
— Então, encontrou Jack?
— Vi o homem que você pensou que fosse Jack — Livy
respondeu, desanimada. — Não é ele.
— Livy! Poderia ter jurado...
— Sim, é muito parecido. — Não gostava de mentir,
especialmente a Eugênia, mas ninguém devia saber da
deserção de Jack. — Porém não é o nosso Jack.
Considerando bem, não era uma mentira total.
— Sinto muito, Livy, não devia ter falado...
— Não se preocupe. Já me recuperei da decepção.
Vamos pensar nos vestidos para esta noite.
Perdy as encontrou examinando vestidos. Estivera com
lady Winifred e um bom número de poetas.
— Todos quase tão ruins quanto o "Poeta Anônimo" —
explicou.

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— Deixe para lá e veja que roupa vai usar — falou Livy,
sem entusiasmo.
— O vestido verde — decidiu Perdy. — Helen disse que
lady Jersey vai nos permitir a valsa.
— Que honra! E ainda nem estivemos no Almack's.
— Não entendo o motivo de tanta cerimônia — interferiu
Eugênia. — Não gosto de valsar. Sempre piso no pé do
meu parceiro.
Perdita e Livy trocaram um olhar. A habilidade de
Eugênia no salão de baile, de fato, era muito inferior à
de amazona.
— Não se preocupe, apenas deixe-se guiar.
— Mas eu faço isto!
— De qualquer forma, vamos abafar!
— De onde tirou esta expressão?
— Dos convidados de lady Winifred. Você nem sabe
quantas coisas aprendi, Livy!
— Priminha, sua revelação me deixa preocupada. Por
favor, conte-me tudo!

CAPÍTULO VII

Quando o marquês de Jarred entrou no salão de baile


de lady Jersey, naquela noite de segunda-feira, muitos
ergueram as sobrancelhas. A própria anfitriã se
declarou encantada com a presença de um recluso
notório.
Impecável em sua casaca preta, camisa branca de
babados e gravata com nó à Ia Mathématique, o

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marquês parou, observando os casais que dançavam.
Viu logo outra reclusa notória, sua prima Winifred,
sentada entre Roland e Dorian, ambos muito sérios.
Ficou com vontade de apostar que estavam expondo
suas precárias situações financeiras. Winifred não
frequentava festas; encontrava-se ali para observar as
srtas. Meredith e a srta. Anthony em ação. Ao perceber
sua presença, Winifred acenou para ele se aproximar,
com visível alívio. Não havia vestido seu melhor traje de
gala em seda cor de lavanda apenas para ouvir as
lamúrias dos irmãos.
— Como vai a caça aos bandidos, Richard? — ela
perguntou.
— Entreguei os desenhos de Dory às autoridades, para
afixá-los próximo à floresta e veremos se dará
resultado.
— Perdita Meredith acha que os esboços não são fiéis
aos traços dos salteadores — observou lady Winifred.
— Perdita Meredith é uma cabeça oca — sentenciou
Dorian, ácido.
Sua irmã ergueu uma sobrancelha, surpresa.
— Céus, isto não é verdade. A mocinha tem bom
senso, é muito culta. É quase uma intelectual.
— É teimosa como o diabo. Nisto é que dá desperdiçar
tempo dando instrução às mulheres! — Mal terminou e
o leque de Winifred se abateu sobre sua mão.
— Dorian, você é um tolo!
— Não me referia a você, Winifred.
— Ainda bem. De fato, como mulher instruída que sou,
decidi não dar-lhes aqueles empréstimos que pediram.
— Winnie!
— Não, Dorian. Nós, as mulheres instruídas, somos
solidárias. Richard, ouvi que você ofereceu uma
recompensa. Gostaria de aumentá-la. Que tal, mais
quinhentas libras?

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— Você é muito generosa e acho que a quantia
suscitará bastante interesse — confirmou o primo. —
Com a condição de que Dorian e Roland estejam
excluídos, entenderam? — Enquanto falava, o marquês
não perdia de vista os convidados.
— Lady Helen Galway é muito bonita, contudo nunca
ouvi dizer que fosse pontual nas festas — observou
Winifred. — Calma... Ela vai chegar com suas
hóspedes, meu caro.
— Minha impaciência é tão evidente? — sorriu ele.
— Só para mim. E vou aproveitar a oportunidade para
lembrá-lo que dançar com Livy mais de três vezes
deixaria a cidade fervendo com os boatos.
— Eu sei. — Ele suspirou. — É bobagem, porém...
Franziu o cenho de repente: em vez de Livy, viu entrar
Sylvia Ashton.
— Ora, ela voltou — murmurou Winifred surpresa. —
Sally Jersey disse que lhe mandara um convite, mas
que ela continuava no campo. Deve ter voltado de
repente.
— Pois é — concordou o marquês, com vontade de
desaparecer.
Tarde demais, Sylvia Ashton já se aproximava, num
vestido muito bonito, azul brilhante, decotadíssimo, com
a barra bordada de pérolas.
— Srta. Ashton — cumprimentou-a Winifred e,
adivinhando o desejo de Richard, convidou-a: — Sente-
se aqui ao meu lado e conte-me tudo de suas férias
agrestes.
A srta. Ashton se sentou, muito satisfeita de se integrar
ao grupo familiar, que também incluía o marquês.
— Foi um tédio. — Reparou nas sobrancelhas erguidas
do homem que desejava seduzir e lembrou que era
muito amigo dos Collingsworth. — Quero dizer, lorde e
lady Collingsworth são uns amores, mas depois de

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algum tempo o campo se torna maçante, não acha,
milorde?
— Hum... sem dúvida — ele respondeu e voltou a
observar a entrada.
— Não esqueci o favor que me prometeu — continuou
Sylvia Ashton, sem perceber que ele não prestava
atenção.
— Um favor? — Lady Winifred lançou um olhar ao
primo.
— Uma valsa — explicou a srta. Ashton.
O marquês não ouviu, porque finalmente via entrar os
Galway com seu grupo. Pediu licença e se afastou
depressa.
— Fique, Sylvia — convidou lady Winifred, decidida a
criar obstáculos à moça em sua perseguição ao rapaz.
— Roland estava falando de seus planos de
reorganização das cocheiras. Ele gostaria de ouvir sua
opinião, não é mesmo, Roly?
— Ah, sem dúvida!
A recém-chegada teve de ouvir, muito a contragosto, as
vantagens e desvantagens de usar garanhões árabes
para as éguas do sr. Roland. Enquanto isso, o marquês
conseguira atravessar depressa o salão, olhando para
Livy, muito linda num vestido de seda abricó. Lady
Galway, que o observava, reconheceu imediatamente
os sinais de um homem apaixonado.
— Então, Sally Jersey conseguiu desentocá-lo,
Richard? — gargalhou lorde Galway.
— Henry... — interrompeu Helen. — Vamos dançar.
— O quê? — perguntou lorde Galway escandalizado.
Mas a esposa o agarrou firme pelo cotovelo e o afastou.
Perdita e Eugênia compreenderam a manobra de Helen
e também se afastaram para conversar com Dorian e
Roland. Livy se sentiu perturbada pela ação, muito

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óbvia, de deixá-la a sós com o marquês. Comentou,
corada: — Eles não deveriam inventar desculpas!
— Fico muito satisfeito que o tenham feito — retrucou o
marquês, com aquele sorriso que deixava a jovem com
dificuldades de respiração. — Pode não ter sido uma
desculpa.
— É... Minha prima na certa quer atormentar mais o sr.
Roland...Eugênia só fez arrasar a nova montaria de seu
primo. Achou que tem pernas abertas.
— Foi o que eu disse a ele, há uma semana.
— Com a diferença que vocês são primos e Eugênia
pode ser considerada, no máximo, uma amiga.
— Sabe, srta. Anthony, aposto que posso encontrar um
bocado de assuntos mais interessantes do que o prumo
do cavalo de Roly.
— Sem dúvida. De toda maneira, já foi melhor que a
discussão que mantiveram sobre cascos infectados.
Riram, enquanto ele a acompanhava até algumas
cadeiras.
— Como é que a srta. Eugênia sabe tanto a respeito de
cavalos?
— Desde criança tem verdadeira paixão pelos cavalos e
na escola sempre encontra jeito de ficar na estrebaria.
— A escola deve dar muito trabalho, não é?

— Gostamos de ensinar. É difícil imaginar minha vida


sem a escola. É muito importante para mim.
— Mas a vida pode mudar, não é mesmo?
— Pode, sim.
De repente, ela se lembrou de Jack. O marquês
percebeu a mudança de disposição e ficou a pensar o
que poderia ter provocado isto. Lady Jersey se
aproximou, com olhar de cumplicidade.
— Richard, sabe que música é esta?

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— Uma valsa, sem dúvida — respondeu o marquês,
perplexo.
— Adivinhou. — Bateu no braço dele com o leque. —
Mandei que a orquestra a tocasse. Srta. Anthony, faça o
favor de dançar com este cavalheiro, para ele ficar feliz!
— E se afastou, rindo.
— Lady Sally Jersey é incorrigível — explicou ele. —
Mas a senhorita me prometeu uma valsa, está
lembrada?
— Prometi, sim — começou Livy, interrompendo-se ao
ver uma loira escultural surgir ao lado e colocar uma
mão no ombro do marquês.
— Vim reclamar minha valsa, milorde — anunciou a
srta. Ashton e o marquês se virou sem sorrir.
— Srta. Anthony, esta é a srta. Ashton. Srta. Ashton, a
srta. Anthony.
— Encantada — falou a recém-chegada, sem prestar
atenção. — A valsa que me prometeu em Sharron,
milorde.
Ele ficou irritado. Logo esta valsa?
— Os homens são tão esquecidos — confidenciou a
srta. Ashton a Livy. — Têm péssima memória. Aposto
que ele marca e esquece uma dúzia de compromissos
por semana.
— É mesmo? — comentou a jovem, polida.
— Já sei! — A srta. Ashton fez um muxoxo. — Também
lhe prometeu uma valsa, não é? Milorde é impossível!
— Nem tão impossível como a senhorita — ele
respondeu amavelmente. — De fato, prometi-lhe uma
valsa quando nos encontrássemos de novo em
Londres. A srta. Anthony me prometeu esta valsa. E
não quero que ela esqueça o compromisso. Portanto,
serei eu a não manter a promessa. É claro, vou dançar
uma valsa com a senhorita mais tarde, se desejar.

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Pegou a mão de Livy e a conduziu para a pista. As
testemunhas que ouviram tal troca de palavras,
observaram avidamente a "Bela", enquanto esta
enrubescia furiosamente.

CAPÍTULO VIII

Livy sabia que precisaria ser caridosa com a srta.


Ashton, parada do outro lado do salão e visivelmente
furiosa. A música e a dança, entretanto, lhe subiam à
cabeça; sentia-se feliz por estar entre os braços do
marquês. E pensar que achara graça ao ouvir dizer que
a valsa era uma dança ousada!
— O que está pensando? — ele perguntou.
— Que foi ótimo Helen ter se casado com lorde Galway.
— Não é mesmo? — ele concordou, sorrindo. — Eu
pensava que foi ótima ideia ter mandado Zelda para sua
escola.
— Na época não era minha e sim da srta. Payne. Se o
senhor soubesse que eu e minhas primas dirigíamos a
escola, teria ido buscar sua pupila correndo.
— Pode cuidar de Zelda e de qualquer outra criança de
minha responsabilidade — ele murmurou com olhar
expressivo.
— E por falar em Zelda, como é que ela está? —
perguntou Livy.

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— Não me pareceu muito abalada depois da aventura
do parque; de qualquer forma, espero que aquela dupla
seja capturada.
— Está falando dos bandidos que assaltaram Zelda,
Eugênia e o sr. Roland, não?
— É. Minha carruagem ficou toda amassada. Não quero
que pensem que este desaforo sairá barato.
— Pelo que vejo, preocupa-se com sua reputação.
— É hereditário. Meu pai foi um cavalheiro de grande
integridade e pretendo viver nos mesmos moldes. —
Como ela não fez qualquer comentário, explicou que
Winifred estava aumentando a recompensa. — Os
bandidos descobrirão que assaltar só leva a um fim: a
forca.
— Salteadores são sempre condenados à forca? —
perguntou Livy, pálida.
— Quase sempre, embora alguns tenham evitado o
castigo, através de parentes importantes. — O marquês
fez uma careta. — O poder da influência.
— O senhor estranha um parente interceder por um
criminoso?
— Acho que todo criminoso deve ser punido. Escolher o
crime significa um desprezo absoluto pelos laços
familiares. Se algum parente meu, vamos dizer, Roly,
se dedicasse ao furto, me recusaria a ajudá-lo.
— O senhor é muito rigoroso! — Ela tentou não pensar
na reação dele ao saber que seu irmão era um bandido.
— Podem existir circunstâncias atenuantes.
— Vamos mudar de assunto, acho que este a
entristece. Queria lhe propor um passeio a Hampton
Court, na próxima semana. Ainda não esteve lá,
verdade?
— Não. E gostaria muito de ir.
— Eu também — ele respondeu, com aquele sorriso
que lhe aquecia o coração.

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A valsa terminou e ele foi saber se a srta. Ashton ficaria
satisfeita com a quadrilha.
— Livy, você provocou um verdadeiro reboliço! — Lady
Galway estava radiante. — Lady Jersey disse que o
marquês de Jarred dificilmente dança em festas!
— Ele quase dançou com a srta. Ashton.

— E foi muito habilidoso em recusá-la. Se olhares


matassem, vocês não teriam sobrevivido a esta valsa.
— Livy achou graça. — Mas agora ela está se
acalmando, parece...
Lorde Galway chegou acompanhado pelo major Hardin,
que a convidou para dançar a quadrilha já começada.
— Pode ir — encorajou Helen. — Jarred não vai
devorar nenhum dos dois.
Livy ficou chocada com a ousadia da amiga, mas
aceitou a mão do major.
— Estou feliz que lorde Galway tenha me apresentado
à senhorita — disse o cavalheiro. — Preciso demais
falar-lhe.
— A respeito de quê?
— A respeito de seu meio-irmão, Jack. Servimos no
mesmo regimento — ele explicou. — Falava muito
sobre a irmã. Quando soube da sua presença, decidi
falar com a senhorita.
— Major, falar em meu irmão é muito doloroso. O
senhor deve saber que ele morreu.
— Ouvi boatos.
— É verdade, meu meio-irmão está morto. Não quero
falar disto. O senhor vai desculpar se eu não terminar a
dança?
— Sim... Não queria perturbá-la. — O major a seguiu
para fora da pista. — Estive com ele na última batalha.

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— Major Hardin! — exclamou Livy, que não queria ouvir
falar na covardia de Jack. — Por favor não diga mais
nada. O senhor apenas me aflige.
— Sinto profundamente — murmurou ele, curvando-se,
e saindo do salão de baile.
— Que dança mais curtinha — observou lady Galway e
se assustou ao ver sua amiga tão pálida. — O que
aconteceu?
— Nada. Ele queria falar de Jack...
— Que grosseria! Não é assunto para um baile! Vamos
comer uma empadinha de lagosta. Lady Jersey disse
que costumam desaparecer numa questão de minutos.
Sempre acho aconselhável comer alguma coisa quando
estou desanimada.
O marquês, que dançava com a srta. Ashton, também
percebeu a interrupção da dança. Ficou preocupado a
ponto de não ouvir o que a parceira dizia.
— Perdão...
— Perguntei há quanto tempo conhece a srta. Anthony?
— Há uma semana, talvez, mas parece mais tempo...
— E ficou surpreso com a própria resposta.
— Ela é do interior?
— Acho que sim.
— O que está fazendo em Londres?
O marquês se irritou com a pergunta, mas respondeu
que a srta. Anthony era uma convidada de lady Galway.
— Que também é do interior...
— Acredito que lady Galway tenha sido professora na
escola da srta. Anthony, no Wiltshire. Como, aliás, as
srtas. Meredith. E não acho nenhum desdouro ser do
interior.
— Como sempre, milorde, é excessivamente caridoso
— sentenciou a moça, sem saber qual seria o resultado
de suas palavras. — Basta notar como se vestem e

56
como se comportam, para ver como estão distantes de
uma dama de sucesso.
— Prefiro-as como são — respondeu o marquês, sem
rodeios. — A srta. Anthony, especialmente, é minha
amiga, e não gosto de seus comentários.
— Então, desculpe! Não sabia que estava interessado a
tal ponto.
A quadrilha terminou, pondo um fim aos comentários, e
o marquês foi perguntar a lorde Galway o que
acontecera.
— O tolo Hardin a deixou perturbada.
— Vi isto. Por quê?
O lorde hesitou. Sabia que o marquês se interessava
muito pela moça e não tinha certeza sobre como
reagiria à menção do homem que ele também julgava
ter sido o amor de Livy.
— Fale logo — exigiu lorde Jarred. — Se ele a insultou,
vou ter de desafiá-lo.
— Calma, não foi isto. Parece que o major era do
mesmo regimento daquele capitão, o que morreu...
Helen disse que Hardin foi um tolo em mencionar o fato.
Espero que ela não me julgue responsável. Apresentei
Hardin a Livy e nem me passou pela cabeça indagar
sobre os motivos dele.
— Trata-se daquele Jack pelo qual ela estava
apaixonada?
— Sim. Helen diz que eram mais unidos que irmãos.
Ele lhe deu um medalhão, em forma de coração, que
ela sempre usa. Hardin não deveria ter falado.
O marquês se afastou com expressão enigmática. Seria
possível que Livy ainda chorasse o perdido amor?
Enquanto refletia, seu primo, Roland, lutava para
controlar o método pouco ortodoxo de Eugênia de
enfrentar a valsa. A cada dois passos, pisava
regularmente em seu melhor par de botas.

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— Desculpe mais uma vez — ela suspirou, sem jeito.
— Não faz mal. — Roland parecia conformado.
— Não consigo seguir o compasso.
— Seria mais fácil se apenas seguisse meus
movimentos, em vez de querer dançar por conta
própria.
— Não adianta, é melhor parar. Estou na maior
confusão.
— Como quiser. Gostaria de uma taça de champanhe?
— Não, obrigada, quero apenas me sentar. Vá dançar
com alguém que saiba.
Roland não seguiu a sugestão. Dirigiu-se à sala de
jogos, onde encontrou o irmão. Saíram de lá, duas
horas depois, lá deixando uma boa quantia.
— Foi uma besteira — resmungou Roland no terraço.
— Estou devendo mais duzentas libras ao Finley.
— O Randolph tirou de mim mais ou menos a mesma
quantia. Para não falar nos outros credores— comentou
Dorian.
— Poderia vender um de meus cavalos de caça —
resmungou Roland. — Mas não quero.
— Foi uma pena Winnie ter tomado aquela atitude.
Achei que ia conseguir dobrá-la.
— Que nada! E se conseguíssemos capturar os
bandidos, o prêmio não seria suficiente para pagar as
dívidas.
— Neste caso — sentenciou Roland, depois de um
breve silêncio. — Vamos ter de dizer ao tio Brammie
que estamos prontos para nos casar com as irmãs
Meredith. Talvez ele solte um adiantamento.
— Com apenas uma promessa não conseguiremos
nem um tostão. Vamos ter de casar mesmo.
— Isto não é tão fácil. Pelo jeito, o único que verá a cor
do dinheiro do tio Brammie é Richard, que parece
progredir bem com sua corte.

58
— Mas você e a srta. Perdita pareciam se dar muito
bem!
— Chegou a discutir poesia com ela? — perguntou a
Dorian e gargalhou.
— Eu, não! Por acaso ela disse algo contra seu livro?
— Ela teve a ousadia de criticá-lo — declarou Dorian,
furioso.
— Mas ela não sabia que o autor era você — insistiu o
irmão. — Se soubesse, teria elogiado. Precisa aprender
a ser sincero com a moça!
Dorian não respondeu. Do seu ponto de vista, o
casamento com a jovem não tinha qualquer atrativo.
Ela, provavelmente, colocaria no lixo metade dos livros
que se encontravam na biblioteca. No entanto, teria de
aceitar tal destino, se não descobrisse outra solução
para pagar suas dívidas.

Os irmãos decidiram voltar para o salão e quase


colidiram com Sylvia Ashton, parada à porta do terraço.
Pediram desculpas e ela se afastou logo, para não dar
a impressão de que estava bisbilhotando. Mas estivera.
E ouvira uma história fantástica, pensou com maliciosa
satisfação. Então provinha daí o motivo do interesse do
marquês pela srta. Anthony.
Sylvia sabia que o sr. Bramwell era riquíssimo. Riu
baixinho, ao lembrar as insinuações jocosas ouvidas
durante a noite, sobre o óbvio interesse do marquês por
Livy. Era uma delícia saber a verdade! O que o movia
passava distante de sentimentos como amor ou mesmo
desejo: era apenas cobiça. E sentiria imenso prazer em
informar à srta. Anthony sobre as verdadeiras intenções
do marquês, no momento oportuno.

59
CAPÍTULO IX

Enquanto Livy e as primas tomavam um desjejum


tardio, comentando o baile, uma jovenzinha se dirigia a
cavalo para a floresta de Epping, covil de ladrões e
salteadores.
Naquela manhã Zelda levantara cedo e, durante o
desjejum, se divertira com os relatos de lady Winifred,
sobretudo sobre o incidente entre a srta. Ashton e Livy.
Depois, assustou-se ao ouvir sua anfitriã mencionar a
recompensa oferecida por lorde Jarred e por ela, para a
captura dos bandidos.
Zelda não perdeu tempo. A floresta de Epping logo se
encheria de aventureiros à caça de salteadores.
Precisava avisar o moço de olhos azuis.
Na floresta, dirigiu-se à clareira do assalto. Apeou e
levou o cavalo pela trilha estreita. Um pássaro trinou da
copa de uma alentada árvore... seria um sinal?
Seu cavalo relinchou ao farejar água. Zelda deixou cair
as rédeas e ficou a observá-lo, enquanto bebia num
regato. Um galho seco estalou. Virou-se com o coração
na garganta. Era o bandido mais moço.
— Você! — Jack tentou lembrar o nome da mocinha e
se comoveu ao ver que o narizinho dela estava sujo de
terra. — Você é Zênia, não é?
— Zelda. Como é que você sabe?
— Foi pela outra dama, Livy.
— Você conhece Livy? — Zelda arregalou os olhos. —
Também a assaltou? Céus, você não pode continuar a
fazer isso!
Jack riu e se sentou ao lado dela.

60
— Eu não a assaltei. Ela me procurou e conversamos,
diz que sou meio-irmão dela.
— Mas ele está morto! — Zelda ouvira boatos na
escola.
— Ainda não estou morto, embora muita gente pense
que deveria estar.
— Eu sei! — exclamou Zelda. — Vim para avisá-lo. Há
uma recompensa para capturá-los.
— Sharkes disse que isto poderia acontecer. — Não
parecia alarmado. — Às vezes, penso que seria um
alívio se tudo isto terminasse.
— Não fale assim! — Os olhos de Zelda se encheram
de lágrimas. — Não aguento pensar em você preso ou
pior...
— Menina, por favor, não chore — ele pediu e colocou
um braço nos ombros dela.
Quando Zelda ergueu os olhos molhados, sentiu o
braço apertá-la. Jack, sabendo que era uma loucura, a
beijou nos lábios.
— Não devia ter feito isto, é imperdoável! — disse em
seguida, afastando-se. — Perdi a cabeça. Pensei que
nunca mais teria oportunidade de beijá-la. E você é tão
linda, tão novinha!
— Tenho dezesseis anos e são suficientes para saber
que amo você — proclamou Zelda, sem medir
consequências.
— Dezesseis? — Jack passou um dedo na face dela. —
Anjo, você ainda é um bebê!
— Não sou mais! — Ela bateu o pé. — Você fala como
a srta. Ashton.
— Quem é? Mais uma de suas professoras?
— Não. É uma mulher horrível, que diz coisa
desagradáveis, e eu a detesto.

61
— Neste caso, eu também a detesto. — Voltou a
abraçá-la. — Já pensou que nada sabemos um do
outro?
— E não basta saber que nos amamos? — ela
perguntou com tanta simplicidade que Jack prendeu o
fôlego. Depois se aninhou nos braços dele. — Você é
Jack, irmão da srta. Livy!
— E sua família? Só sei que seu nome é Zelda.
— Sou Zelda Curry, órfã — ela explicou. — Meu tutor é
o marquês de Jarred.
— Jarred? Aquele janota que levou um soco?
— Não, aquele era o primo dele, Roland — ela disse,
rindo, e ganhou mais um beijo. — Fizemos um plano
para capturar os salteadores e pedimos a carruagem
emprestada; ela ficou toda amassada e lorde Jarred,
furioso. Mas não se preocupe, ele não vai deixar de
gostar de você por isto.
— Gostar de mim é o de menos, Zelda. Lorde Jarred é
seu tutor. Se eu tivesse uma pupila tão linda, como
você, não permitiria que se casasse com um criminoso.
— Então, vamos fugir. Encontraremos algum cantinho
tranquilo, mas não na floresta. Muita gente vasculhará
esta região ao saber da recompensa.
— Zelda, amor, você não pode fugir comigo. —
Segurou-a pelos ombros. — Não pode, entende?
— Por que não? Susan Grady, aluna da escola antes
de mim, fugiu para Gretna Green. Foi um escândalo, a
princípio, depois todo mundo esqueceu.
— Nem falar! Você é menor de idade, e eu não devo
pensar nisto. Deve se casar com alguém em boa
situação, que possa levá-la a bailes e festas.
— Tolice! Nunca liguei para festas; além disso você
esqueceu que é irmão de Livy? Seu avô era visconde. E
lorde Jarred gosta de Livy!
— Estão comprometidos? — perguntou Jack.

62
Cada informação que ela lhe fornecia fazia surgir um
novo obstáculo.
— Lady Winifred, minha anfitriã, contou que ele vai
pedi-la em casamento tão logo encontre coragem.
Isto significava que sua irmã seria marquesa. Jack se
levantou.
— Preciso voltar a minha cabana. É perigoso
permanecer no mesmo lugar por muito tempo.
— Então, vamos — Zelda anuiu, limpando a saia.
— Você não deve ir comigo — ele disse, alarmado. — É
muito arriscado. Não posso comprometê-la.
— Já me comprometeu, não acha? Beijou-me... só que
ninguém viu... Gostaria de saber onde você mora.
— Não quero que você veja onde moro. — Tinha a voz
áspera. — Você deve ir embora. E não volte.
— Mas quando vou vê-lo de novo?
— Melhor não nos vermos mais, compreenda. — Notou
os olhos dela se encherem de lágrimas; soltou um
gemido e a apertou contra o peito, abraçando-a com
força. — O que estou dizendo... — murmurou entre os
cabelos dela. — Só penso em você desde que a vi.
Encontrá-la foi a primeira coisa boa que aconteceu
comigo desde que entrei nesta maldita floresta.
— Está tudo bem, Jack — Zelda acalmou-o, com uma
sabedoria que superava a pouca idade. — Não se
desespere. Você tem de sair daqui, abandonar esta
vida e ir morar com Livy.
— Não posso, você não entende! — Zelda esperou, no
entanto, ele não conseguiu confessar a terrível verdade:
que ela amava um desertor, um covarde. — Não posso
explicar.

— Acho que está viciado nesta vida de aventura. Deve


ser excitante agir como bandido. Mas terá de continuar

63
numa outra floresta. Quando tomar a decisão, mande-
me um recado a Portman Square, onde ficarei mais
uma semana. Vamos voltar para Wiltshire. Você lembra,
não é? A escola da srta. Payne.
— Lembro, sim. Não sei quando vou mudar
— Não faz mal. Eu espero — ela respondeu de forma
tão singela que ganhou mais um beijo apaixonado.
— Preciso ir embora... — murmurou ele, triste.
Zelda permaneceu ali até se convencer de que ele não
voltaria. Atravessou a floresta e seu coração cantava
como os pássaros nas árvores. Amavam-se e ele
encontraria um outro lugar para viver. Com o tempo,
abandonaria aquela vida irregular. Se ela não
conseguisse convencê-lo, srta. Livy conseguiria.
Precisava falar com ela agora mesmo; queria partilhar
sua felicidade. Dirigiu-se à residência dos Galway e
encontrou um faéton alto e familiar à porta. Lorde
Jarred!, pensou.
Seu tutor jogava bilhar com lorde Galway, a srta. Livy
saíra com lady Galway e a srta. Perdita se encontrava
na Portman Square. Pediu licença para subir e falar
com a srta. Eugênia. Encontrou sua professora
trocando de roupa.
— Ah, Zelda! — exclamou Eugênia, aliviada. — Por
favor, ajude-me com estes botões.
A garota começou a fechar os botõezinhos de prata,
enquanto Eugênia passava uma escovas nos cabelos
revoltos.
— Foi passear a cavalo? — perguntou, ao ver Zelda em
sua roupa escarlate de amazona. — Também queria
dar uma volta, mas o marquês chegou e...
— Srta. Eugênia — disse Zelda, de repente — É a
primeira pessoa a sabê-lo. Estou apaixonada.
— Que maravilha! Por quem?

64
— Por aquele salteador que vimos no outro dia. Ele
também me ama e queremos nos casar, se o marquês
consentir. Mas Jack acha que não será possível pela
sua profissão.
— Está falando daquele bandido que nos assaltou? E
por que o chama de Jack? — Eugênia estava atônita.
— Porque é o irmão da srta. Livy... e seu primo!
Eugênia sacudiu a cabeça, desmanchando o penteado.
— Não, querida. Há um mal-entendido. Jack está morto,
e que Deus o tenha em paz.
— Não está morto. Estive com ele ainda agora. Admito
que ele me assustou quando disse que seria preferível
se estivesse morto, mas garanto que se encontra muito
bem!
Eugênia sentiu necessidade de se sentar. Se Jack
estava vivo, por que Livy não dissera?
— Receio que se viciou na vida que leva — continuou a
jovem apaixonada. — Com a ajuda das senhoritas,
talvez eu consiga convencê-lo a abandonar essa vida
de crime.
— Talvez... — murmurou Eugênia.
Por que Livy dissera que Jack estava morto?, pensou.
Não confiava mais nela? Precisava tirar isto a limpo.
— Escute, Zelda — disse Eugênia. — Não fale de Jack
a ninguém.
— Só com a senhorita, a srta. Livy e a srta. Perdy?
— Não, não pode mencioná-lo para Perdy. Ela não
sabe e não pode saber. Isto é muito importante, você
me entende?
— Não vou falar com ninguém. Nem com lorde Jarred.
— Especialmente com o marquês — concordou
Eugênia.

65
CAPÍTULO X

Henry ganhou as duas primeiras, mas estou decidido a


ganhar a terceira partida — disse o marquês às moças.
— É a primeira vez que consigo ganhar dele — brincou
lorde Galway. — Mas Richard só olha para a porta!
— Se a srta. Anthony não chegar logo, vou perder a
confiança em minha habilidade no bilhar.
— Roly vai mesmo correr contra Finley hoje? —
perguntou o lorde.
— É verdade! Quase esqueci — respondeu o marquês.
— Mandei-lhe uma echarpe minha para a corrida —
comunicou Eugênia.
— Que corrida é esta? — perguntou Zelda.
— Apenas uma aposta tola: quer ganhar de Finley
numa volta ao redor da Serpentina — explicou-lhe o
tutor.
— Espero que não monte aquele animal de pernas
abertas — comentou Eugênia.
— Também espero. Dorian o acompanhará e talvez o
bom senso dele prevaleça.
Livy e lady Galway chegaram em seguida e Eugênia
interceptou a prima antes que se dirigissem à sala de
bilhar.
— Vejam o que um dos gêmeos de lady Germaine fez!
— disse Livy, mostrando uma rodela molhada na sua
saia.
— Livy, preciso falar com você — murmurou Eugênia.
— Zelda acaba de chegar da floresta e viu Jack. Sabe
que é seu irmão. Por que mentiu para mim?
— O que está dizendo?

66
— Entendo que mentiu porque queria manter segredo.
Entretanto é tarde demais. Zelda sabe. Felizmente, está
apaixonada por Jack e jurou não falar.
— Apaixonada! Ela é apenas uma criança!
— Não, não é mais. E parece que ele também está
apaixonado por ela.
— Que confusão! Só espero que ela fique de boca
fechada.
— Não se preocupe. Todas sabemos o que Jack
significa para você.
Falavam murmurando, enquanto caminhavam para a
sala de bilhar e quase colidiram com o marquês, parado
à porta. Cumprimentou-as com expressão séria. Ouvira
as últimas palavras, que para ele confirmavam o amor
de Livy pelo capitão morto.
— Já soube do pequeno incidente com os gêmeos de
lady Germaine — disse, escondendo a decepção.
— Pois é... — confirmou Livy. — Quem diria... parecem
anjinhos.
— Às vezes, as aparências enganam — comentou
Helen, rindo.
— E não apenas quando se trata de crianças —
rematou o marquês, e a anfitriã notou a expressão
grave.
Pareceu-lhe óbvio que ele desejava trocar algumas
palavras em particular com Livy, enquanto o marido se
aprestava a saborear um vinho do Porto. Com
habilidade que deixou lorde Galway estupefato, Helen
conseguiu afastar Zelda e Eugênia, mandando-as para
a sala de bilhar, depois levou o marido para que
ensinasse o jogo a ambas. O marquês percebeu a
manobra e sorriu.
— A senhorita não quer se juntar às outras e aprender a
jogar? —perguntou a Livy.

67
— Conheço o jogo. — Parecia um pouco
desconcertada.
— Neste caso, precisamos jogar uma partida
— Quando quiser, milorde.
Naquela manhã o marquês decidira abandonar
qualquer prudência e falar com Livy, que considerava
dona das qualidades da esposa ideal. O cochicho de
Eugênia, ouvido involuntariamente, o fez hesitar. Ao
notar que a conversa parecia difícil, Livy colocou a mão
no frasco de vinho e o interrogou com o olhar. Ele
assentiu: quando ela inclinou o frasco, a mão masculina
se mexeu e o líquido escorreu pelo pulso.
— Como sou desajeitada — ela exclamou, corando.
— A culpa foi minha, não se preocupe — ele disse,
enxugando-se com um lenço.
— Sou até pior que os gêmeos de lady Germaine — ela
insistiu. — Há uma mancha em seu colete.
— Não se preocupe — ele repetiu e inventou: — Passei
algumas horas no Weston, esta manhã, e encomendei
meia dúzia de coletes novos.
Ela tentou limpar a mancha com um guardanapo; para
isto, teve de se aproximar, e o marquês aspirou-lhe o
perfume dos cabelos, a lembrar madressilvas.
— Pronto — ela disse olhando para cima. — Acredito
que consegui.
Viu o rosto dele se aproximando, chegando mais perto,
com olhos que pareciam carvões e uma expressão
diferente da de alguns minutos atrás. Ela começou a
abaixar as pálpebras e no mesmo instante ouviram uma
voz alegre na entrada.
— Há alguém em casa?
Livy abriu os olhos e o marquês se afastou, um instante
antes da aparição da srta. Perdita.
— Vocês estão sozinhos? — ela perguntou, abanando-
se com o chapéu de palha.

68
— Os outros estão por aí — respondeu Livy, depressa.
— Na sala de bilhar.
O marquês, para tomar uma atitude, apanhou um
biscoitinho que não estava com vontade de comer.
— O que fazem na sala de bilhar?
— Henry está dando aula à srta. Eugênia — explicou o
marquês.
— Para quê? — Perdita arregalou os olhos. — Ela sabe
jogar. Todo mundo aprendeu com Jack! — exclamou e
no mesmo instante, lembrou que não devia pronunciar
tal nome.
Pela expressão de ambos, viu que cometera uma gafe.
Mudou logo de assunto.
— Que biscoitinhos são esses? — perguntou.
— Deliciosos, experimente — confirmou o marquês,
que também percebera a expressão magoada de Livy.
— Estou faminta e com calor. Lady Winifred me levou a
uma porção de lugares. Eu só queria ver onde Byron
morava, mas juro que ela me acompanhou a todos os
lugares onde ele dormiu pelo menos uma vez. E isto
despertou meu apetite.
— Não quer um pouco de limonada? — ofereceu a
prima. — Infelizmente, despejei a maior parte do Porto
sobre o colete do marquês.
— Que esquisito! — comentou a jovem examinando o
colete. —Livy nunca faz nada errado. Eugênia e eu
somos desajeitadas.
— Pensei ter ouvido sua voz — constatou Helen
entrando. — Vamos, Perdy. Estamos jogando bilhar,
venha comigo.
— Espere. Estou comendo.
— Pode terminar de comer na sala de bilhar — afirmou
lady Galway. — Deixei-me levar sua limonada.
No momento de apanhá-la, foi interrompida pelo
marido.

69
— Oh, Jarred! Que bom que ainda esteja aqui, queria
pedir sua opinião a respeito daquela gruta que pretendo
construir. Você já viu a gruta de lorde Haskell, não é? O
que acha daquelas conchas?
Apesar dos olhares da esposa, o lorde envolveu o
amigo numa demorada discussão sobre a tal gruta.
Finalmente, percebendo que Helen se preparava para
uma nova investida, o marquês decidiu ir embora.
— Infelizmente tenho um compromisso — explicou. —
Mas espero vê-los no Almack's, amanhã à noite.
— Iremos, sem dúvida. Os convites já chegaram.
— Posso vê-los? — pediu Perdita.
E quando Eugênia também manifestou curiosidade, a
anfitriã as levou consigo. O casal enamorado voltou a
ficar a sós.
— A senhorita guardará uma dança para mim? —
perguntou o marquês.
— Sem dúvida — ela respondeu, rindo. — Só espero
que não se já a mesma que a srta. Ashton guardará
para o senhor!

CAPÍTULO XI

— Teria conseguido — insistiu Roland. — Não fosse


pelo maldito lenço!
— Mas você estava se sentindo como um cavalheiro
antigo — brincou Dorian.

70
Rolando bufou e soltou alguns comentários poucos
cavalheirescos sobre qualquer coisa que lembrasse a
Cavalaria.
— Mandar um lenço daquele tamanho, que idiotice!
Quase me enforquei com ele.
— Seja justo. Aquele seu cavalo... não é lá estas
coisas.
— Você falou com Eugênia!
— Não preciso falar com ninguém; enxergo
perfeitamente.
— Perdita nunca mandaria um lenço!
— Mas também não entende nada de corridas —
murmurou Dorian.
— É uma mulher inteligente, que não atrapalha. Não é
como Eugênia. Aliás, esta não foi a primeira vez. Teria
capturado aqueles salteadores se ela não tivesse
berrado.
— Você é muito severo com ela. Acho-a encantadora.
— No entanto, eu perdi mais quinhentas libras e vou ter
de entregá-las a Finley até o fim de semana.
— Eu também perdi cem.
— Sinto muito. Seu editor talvez possa lhe adiantar
alguma coisa por conta do livro, Dory.
— As vendas estão péssimas. Um destes jornais novos
publicou uma crítica negativa. O idiota que se assina
"Crítico Anônimo" achou minha obra grosseira e
desprovida de imaginação. Ele vai ver o que é
grosseiro, se eu o encontrar!
— Mas não o mate! — exclamou Roland, preocupado
com o tom do irmão. — Richard não aprovaria.
— Poderíamos fugir para a floresta e virar bandidos.
Alguns bons assaltos resolveriam a situação.
— Não esqueça a forca!
— Minha dúvida é escolher entre a forca e o
casamento!

71
— Estamos falando muito em casamento, ultimamente.
— Pensei que você tivesse excluído tal solução.
— As circunstâncias mudaram — sentenciou Dorian.
— Você pediria Perdita em casamento?
— Não foi o que combinamos? Eugênia para você e
Perdita para mim?
Roland balançou a cabeça e ambos silenciaram diante
da perspectiva de um futuro partilhado com as srtas.
Meredith.
A primeira pessoa que o marquês viu quando entrou no
Almack's, na noite de quarta-feira, foi Livy, vestida de
seda celeste, com os cabelos presos num gracioso
penteado à Anglaise. Achou que era a mais bela entre
todas as damas.
— Seu sorriso é muito misterioso — falou alguns
minutos depois, enquanto dançavam.
— Verdade?

Ela não conseguia parar de pensar no que poderia ter


acontecido no dia anterior, sem a repentina chegada de
Perdita. Era difícil esquecer a boca do marquês se
aproximando da sua.
— Estava pensando a mesma coisa a seu respeito —
disse, desviando os olhos, perturbada.
— Deveria enrubescer diante deste elogio! Não há nada
de misterioso em mim — contrapôs lorde Richard.
— Entretanto, julga que há algo misterioso em mim?
— Sim, num certo sentido — confirmou ele.
— Assim, comova Monalisa? — insistiu a jovem.
— Exatamente! — ele riu. — Lembra-se que prometeu
visitar Hampton Court comigo? Gostaria de ir amanhã?
Podemos fazer um piquenique nos jardins.
— Que boa ideia! — ela concordou, mas logo ficou na
dúvida se deveriam ir a sós ou acompanhados.

72
— Suas primas e lady Galway são bem-vindas — ele
acrescentou e decidiu também que o romance que ela
tivera com o capitão não ia impedi-lo de se declarar.
— Gostaria que fôssemos só nós dois — ela murmurou.
O marquês ficou tão radiante, que lady Jersey, ao vê-lo,
perguntou-se se ele estaria se declarando à srta.
Anthony.
A srta. Ashton, enquanto tomava sua terceira taça de
champanhe, pensava no que faria a professora se
soubesse o verdadeiro motivo da corte do marquês. Tal
pensamento a reanimou, e sorriu friamente.
— O marquês e a srta. Anthony formam um belo par —
sentenciou com voz melosa, para que os curiosos
ouvissem.
Perdita dançava com Roland e tentava acalmá-lo por
causa da famigerada echarpe. Perdita era a única
pessoa a mostrar simpatia, todos os outros riam da
derrota. Quando a valsa terminou, Roland se preparou
para dançar com a outra srta. Meredith, mas esta
recusou.
— Dorian explicou que não preciso dançar — disse
Eugênia. — Sempre pensei que precisava dançar
quando me convidam e não gosto.
— Neste caso, posso lhe trazer uma taça de
champanhe?
— Gostaria disto, obrigada.
Mais tarde, Eugênia contaria que aquela fora a festa
mais agradável de que participara. Dorian permanecera
o tempo todo com ela, servindo-lhe copos de limonada,
pratinhos de doces, e conversando sobre livros.
— Você deve ler muito, Dorian — ela exclamou,
admirada.
— Leio sempre, quando não estou escrevendo.
— Você é um autor?
— Publiquei um volume de poemas, sem importância.

73
— Deve ser importante — retrucou Eugênia e ele
enrubesceu. — Nunca consegui compor um soneto e
você compôs o bastante para um livro. É fantástico!
— Não, não é.
— Posso ver seu livro qualquer dia?
— Vou lhe mandar um, se quiser. Ou melhor, vou lê-lo
para você. Às vezes o sentido fica mais evidente
quando o próprio poeta lê os versos. Quero dizer, se
não se importa.
— Você realmente é muito bom, Dorian. Devo
confessar que, às vezes, fico um pouco confusa quando
leio poesias.
Eles se fitaram, sorrindo.
Livy sentia-se lisonjeada pelo interesse do marquês,
embora não conseguisse deixar de pensar em Jack. O
que diria, ele ao saber que seu meio-irmão era um
bandido?
Enquanto subiam para a ceia, lorde Nickelby pediu urna
palavra com o marquês.
— Jarred, lorde Donaldby deseja falar com você. Sobre
os salteadores, acho.
O marquês pediu licença a Livy e o seguiu até uma
antecâmara, onde Nickelby sumiu. Estranhou, mas
compreendeu logo: a pessoa que o esperava era outra.
— Entre, milorde — convidou a srta. Ashton.
— Perdão. Estou procurando Donaldby.
— Não seja obtuso — ela riu. — Donaldby está jogando
desde que chegou. Eu quero lhe falar.
— Então, vamos para o salão. Lá poderemos conversar
por quanto tempo a senhorita o desejar. Sempre
acreditei que uma mulher deve cuidar de sua reputação.
— Eu dispenso. Entretanto, se milorde se preocupa
com a própria reputação, saiba que sairei em seguida.
O marquês reparou que os olhos dela brilhavam de jeito
anormal; devia ter bebido bastante.

74
— O que deseja?
— A srta. Anthony é uma jovem encantadora, não é?
Está especialmente bonita esta noite.
— Já disse uma vez que não admito críticas à srta.
Anthony! — ele respondeu, áspero.
— Não seja tolo. Não a criticava, embora deva admitir
que seu vestido está fora de moda, o penteado poderia
ser melhor. Mas ninguém pode criticar o bom caráter da
moça.
— De fato.
— Eu diria até que ela é romântica... E também sei por
que milorde me rejeita — ela terminou, calma.
— Eu a rejeito? — repetiu ele, estupefato. — Não está
exagerando? Acho que este assunto de mau gosto e
pode se tornar aflitivo para ambos.
— Não me interessa se o assunto o aflige — a srta.
Ashton retrucou, com a agressividade de quem
exagerou na bebida. — Você não poderia encontrar
mulher mais bela que eu em toda a Cristandade —
declarou, liberando-se das regras da conveniência e
tratando-o com intimidade.
— Sua beleza é famosa — ele concordou, apesar de
prever uma cena desagradável.
— Ainda não é tarde demais — ela suspirou, apertando
o braço dele. — Poderia lhe perdoar o fato de ter me
colocado numa situação ridícula na semana passada.
Ele livrou o braço.
— Não tive qualquer intenção de colocar a senhorita
numa situação ridícula e, se aconteceu, peço
desculpas. Mas, se tiver lembrança destas últimas
estações, terá de concordar que frequentemente fui
alvo de conjecturas por causa do que a senhorita fez ou
disse a meu respeito. Por favor, peço-lhe licença.
— Não! — Ela quase cuspiu a palavra. — Não é justo!
Eu fui a primeira a vê-lo!

75
O marquês olhou para trás, mas a música e o
burburinho do salão encobriam as palavras dela.
— Srta. Ashton, não gosto de machucar alguém à toa,
no entanto, pelo jeito será impossível evitá-lo. Acho seu
comportamento execrável e sua audácia revoltante.
Durante estes anos, em vez de mesentir atraído pela
senhorita, achei-a repelente. E garanto que não há
nada que possa fazer para modificar minha opinião.
— Homem abominável!
Ela empalideceu e lhe deu um tapa. O marquês sequer
piscou.
— Espero que este gesto acabe com seus
ressentimentos, mas quero avisá-la, não tente outra
vez.
— Se eu tivesse um irmão...
— Ele estaria na mira de minha pistola amanhã, ao
alvorecer. — A resposta saiu rápida e friamente. — Mas
não tem irmão, portanto, esqueça.
— Eu sei por que está cortejando aquela caipira — ela
insinuou, maldosamente.
— Pelo mesmo motivo que outros o fazem: a srta.
Anthony é encantadora, tem um comportamento correto
e é de excelente família.
— É mesmo? Então, seu tio, o sr. Bramwell, teve a mão
muito feliz em escolhê-la para o senhor!
— Que tolice é esta?
— Não desconverse, lorde Jarred, isto não lhe assenta
bem. Ouvi seus primos conversando, na noite passada.
Seu verdadeiro motivo para pedir a srta. Anthony em
casamento é a fortuna do sr. Bramwell. Só herdará sua
parte se estiver casado com ela. Este é o motivo dessa
"corte ardorosa". O que diria sua professorinha se
soubesse a verdade?
Sem esperar resposta, ela se dirigiu ao grupo no qual
se encontrava lorde Nickelby e pretextou enxaqueca.

76
O marquês permaneceu parado no mesmo lugar e
Roland quase colidiu com ele.
— Foi bom você ter aparecido, preciso falar-lhe.
— Não quero outro sermão, Richard. Vou para a mesa
de jogo. Minha sorte ainda pode virar.
— Preste atenção, poderá se revelar mais vantajoso —
retrucou o primo. — Você disse que tio Brammie lhe
deu uma lista de nomes de noivas para nós?
— Sim. E sem conhecer as senhoritas, Dorian escolheu
Perdy e eu Eugênia. Não é uma boa piada?
— E o prazo era de dois meses?
— Não Richard, de três, e você é um felizardo. Estava
dizendo a Dorian que provavelmente você será o único
a herdar o dinheiro do tio.
— Então, o terceiro nome era o de Livy?
— Pensei que você soubesse! E você gosta dela!
— Eu não gosto dela, bobo, eu a amo. Acha que me
casaria com alguém só para herdar a fortuna do tio?
— Então, que diferença faz?
Ia responder, mas refletiu. Qual era, de fato, a
diferença? Por um capricho do destino, tio Brammie
decidira que Livy se tratava de uma moça que valia a
pena cortejar. Sábio tio, e Roland estava certo. Soltou
uma gargalhada.
— Você está bem, Richard? — perguntou o primo,
preocupado.
— Estou ótimo, Roly! — exclamou e voltou ao baile.

CAPÍTULO XII

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Na manhã seguinte, a caminho da Cavendish Square, o
marquês parou para trocar uma palavrinha com o tio.
Este já estava acordado e lia Aristóteles, perto da
lareira.
— Ah, é você, Richard? Sente-se ali. Estou surpreso
em vê-lo.
— Tenho um pedido a lhe fazer, tio.
— Ah!
— Queria pedir-lhe para mudar seu testamento.
— O quê?
— Sim. Por favor, tire-me da lista dos herdeiros.
— Muita gente gostaria de entrar na lista e você quer
sair? Sabe quanto tenho?
— Ouvi dizer que é muito rico, mas não importa.
— Bom, sei que você também tem uma bela fortuna,
mas diga: estamos brigando sem que eu o saiba?
— De jeito nenhum. Antes de morrer, meu pai me
confidenciou que o senhor o ajudou a se recuperar de
suas perdas e isto lhe trouxe sorte.
— Foram ninharias. Recomendei a seu pai não
mencionar isto a qualquer pessoa.
— Ele não poderia deixar de falar comigo, não é? Só
posso ter o maior respeito e a maior gratidão para com
o senhor... Lembra que recomendou a mim e a meus
primos que pensássemos em casamento? E que o
senhor escolheu as moças?
— Escolhi os nomes de três jovens damas muito
recomendáveis. E você está apaixonado por uma delas.
— Como é que o senhor sabe?
— Por Winifred. — O velho riu. — E através do Morning
Post e do Gazette. Até agora você nunca dedicou
atenção especial a qualquer moça, Richard, nunca
iludiu ninguém. Agiu corretamente. Agora, se interessa
ostensivamente por alguém e os boatos estão

78
crescendo. Só não entendo por que está tão nervoso,
se está apaixonado pela srta. Anthony.
— Tio, pense no que a srta. Anthony diria se soubesse
que casando-me com ela, herdaria parte de sua fortuna.
— Está preocupado com isto? Nunca considerei a
questão por este prisma. — O velho esfregou o queixo.
— Ela poderia achar que você quer se casar por uma
questão de interesse. Muito bem, mandarei chamar
meu advogado para modificar o testamento. Lembre-se:
não terá outra oportunidade!
— Não pretendo mudar de ideia. Dorian e Roland
podem ficar com a minha parte. Só quero mais uma
coisa, tio: por que um solteirão empedernido como o
senhor se preocupa tanto que seus sobrinhos se
casem, e como conseguiu os nomes?
— Solteirão empedernido! Tentei me casar duas vezes,
sempre com a mesma moça. Quando era muito jovem,
os pais dela não me consideravam à altura da filha. E
quando já tinha boa parte de minha fortuna, foi ela
quem não me quis. — O marquês observou-o, surpreso.
— Ela já ultrapassara os trinta e achava que eu deveria
escolher uma moça jovem, capaz de me dar filhos. Não
consegui convencê-la que não me importava com filhos,
queria a ela! Às vezes era tão teimosa!
— E ela também nunca se casou?
— Nunca. Nem sei por que lhe conto isto; talvez lhe
sirva de lição.
Depois que o sobrinho se despediu, o sr. Bramwell
apanhou um pequeno porta-retrato oval de uma gaveta
e fitou-o, sorrindo.
— O primeiro já está no papo, querida — murmurou. —
E os outros dois estão a caminho!
Hampton Court, tão famosa pelos jardins e seu labirinto,
estava esplendorosa sob o sol. Livy e o marquês
passearam como muitos outros casais.

79
— Já está com apetite? — ele perguntou, à certa altura.
— Aquele relvado mais adiante me parece um lugar
agradável.
— Estou mesmo com fome — ela admitiu. — Embora
uma dama nunca devesse confessá-lo.
— Prometo que não vou repeti-lo a ninguém.
Livy esticou o cobertor e o companheiro começou a tirar
as iguarias da cesta: coxas de frango, presunto,
pastelão de rins, uvas, morangos, vários queijos e
limonada.
— Como chegou a ser professora na escola da srta.
Payne? — perguntou ele enquanto comiam.
— É uma história comprida...
— Temos tempo.
— Não sei o que o senhor já sabe a meu respeito.
— Através de Eugênia, soube apenas que seu avô era
visconde.
— É verdade, mas perdeu sua fortuna e tinha seis
filhas. Minha mãe se casou pela primeira vez por amor.
Teve um filho, meu meio-irmão. Quando seu marido
morreu, numa epidemia de gripe, minha mãe procurou
um pai para o filhinho. Casou-se de novo, com meu pai.
Este só tinha condição de cavalheiro e a reputação de
grande jogador.
— Seu pai era Anthony, o Maluco?
— Vejo que conhece sua fama e seu apelido.
— Não o conheci pessoalmente, mas ele foi um mito.
Sei que gostava muito de brincadeiras.
— Sim. Morreu de repente, num acidente, e deixou
muitas dívidas. Mamãe só conseguiu pagar algumas e
fomos morar com parentes.
— E seu meio-irmão?
— O pai dele lhe deixou uma herança. Não era muito e
de qualquer forma ele não podia nos ajudar. Um tio dele

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administrava seu patrimônio e recusou-se a adiantar
qualquer coisa antes que fosse maior de idade.
— É uma história triste.
— Não deve pensar isto. Mamãe era encantadora e
sempre fomos bem recebidas, em qualquer lugar. Acho
que fomos mais felizes com os pais de Perdy e
Eugênia. Mamãe morreu quando eu tinha dezesseis
anos. Como não queria viver à custa de parentes, decidi
ser professora na escola da srta. Payne. Nos demos
muito bem e fiquei ali. Briguei com meu meio-irmão,
porque ele não queria que eu trabalhasse. Em teoria,
ele era meu tutor, mas eu tinha idade suficiente para
viver sozinha. Chamou-me de teimosa, mas fiz o que
queria.
Livy tomou um gole de limonada. Em outros tempos,
teria louvado Jack, seu charme, sua coragem; agora
quase não ousava falar nele. O marquês poderia fazer
perguntas mais abrangentes e ela precisava ocultar que
o irmão era um desertor.
— O que aconteceu com seu irmão?
— Escolheu a carreira militar e morreu em combate.
— Sinto muito. — Ele colocou uma mão sobre as de
Livy.
— Perdi um meio-irmão e ganhei duas primas — ela
disse, sorrindo. — Três anos atrás meus tios faleceram
num acidente. A srta. Payne sempre foi muito carinhosa
comigo e consegui convencê-la a contratar minhas
primas, embora a escola não comportasse quatro
professoras. Helen ainda estava conosco.
— E depois da morte da srta. Payne tudo ficou em suas
mãos?
— Alguém precisava dirigir a escola. Já tinha
experiência suficiente e assumi. E esta é minha história.

81
Ela não mencionara seu capitão Jack e a omissão
deixou-o pensativo. O devaneio foi interrompido pela
voz de Livy.
— Agora é minha vez — ela disse. — Como foi que se
tornou o tutor de Zelda?
— De surpresa. O pai de Zelda era um grande amigo
meu. Quando ele e a esposa morreram, descobri que
deixara a garota aos meus cuidados. Minha prima
Winifred, que também era amiga do casal, nunca
perdoou a sir Lionel Curry por não tê-la escolhido como
tutora da filha.
— Zelda gosta muito do senhor!
— Sei. E a senhorita poderia ter me avisado.
— De que jeito? Nem o conhecia!
— Parece que ela superou esta fase. Desconfio que
está apaixonada; só espero que não seja por alguém
impossível.
— Quem seria impossível?
— Por exemplo, um rapaz de nível social inferior. Ou
um libertino. Ou um jogador. — Viu o ar preocupado de
Livy e exclamou: — Não vamos falar em Zelda. Quero
saber quem a senhorita escolheria para si.
— Acho que desejo o que toda moça quer. Um
cavalheiro.
— Um cavalheiro, é claro — ele concordou. — Alguém
com posição social?
— Talvez. Mas não é essencial.
— Seria apenas algo a mais?
— De fato — ela respondeu sorrindo. — Sobretudo,
alguém que me amasse.
— Que a amasse e adorasse — ele corrigiu.
— Alguém que não brigasse comigo por motivos fúteis.
— Que apenas discordasse polidamente — ele
prometeu. Sua mão segurou o queixo dela. — Livy,

82
querida Livy — murmurou e a beijou levemente nos
lábios.
Logo o beijo se tornou mais ardoroso, ele a abraçou, e
Livy o surpreendeu, reagindo com paixão.
Rapidamente, contudo, ela se controlou e se afastou.
Era loucura!
— Livy, me perdoe — ele pediu, beijando as mãos dela.
— Não poderia censurá-la se me desse um tapa.
— Não seja tolo. Minha responsabilidade é igual a sua.
Ele quis abraçá-la mais uma vez, mas ela se esquivou.
— Milorde, por favor, não me entenda mal.
— A culpa é minha. Sou um tolo. Não tenho o hábito de
roubar beijos, embora deseje ardentemente os seus.
Deveria ter feito primeiro meu pedido. Não me leve a
mal!
— O senhor não entendeu.
Ele segurou ambas as mãos dela e as apoiou em seu
próprio peito.
— Livy, querida, quer se casar comigo?
O coração de Livy gritava "sim", batendo furiosamente.
Casar-se com o marquês significava ter um marido que
a adorava, uma posição social destacada e riquezas
que jamais sonhara possuir. Mas até quando? A
qualquer instante o sonho poderia explodir como uma
bolha de sabão. Ao descobrir a verdade sobre Jack, o
amor dele se transformaria em ódio. Nenhum homem
em sua posição poderia tolerar um cunhado bandido e
desertor. Não, ela amava lorde Jarred, amava-o demais
para oprimi-lo com o fardo de suas próprias
dificuldades.
Ele observava atentamente as emoções que se
refletiam no rosto dela. A hesitação só podia ter um
motivo: Jack! Sentiu-se frustrado e furioso. Ela não
podia continuar a amar um morto! Controlou-se, afinal.

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— Não precisa me responder — disse, falando baixo. —
Vejo a resposta em seus olhos. Podemos juntar os
restos de nosso piquenique?
Ela assentiu, grata. Viu quando ele reuniu as migalhas e
as deixou para os pássaros. Seus olhos se encheram
de lágrimas: ele se lembrara dos pássaros e ela nem se
lembrara de agradecer seu pedido!
— Não chore, amor — ele murmurou.
— Ah, lorde Richard! — As lágrimas escorriam
enquanto ele a abraçava. Livy apoiou o rosto no ombro
dele. — Honrou-me com seu pedido e eu reagi assim.
— Não diga nada, não é necessário.
Ele riu triste, e enxugou-lhe o rosto com seu lenço.
— E não agradeci seu pedido! — terminou ela.
— Não quero agradecimentos — ele respondeu, com a
voz embargada. — Quero que diga sim, que se case
comigo.
Ela o fitou, aflita. Mais uma vez ele a abraçou e não
resistiu à tentação: beijou-a com paixão redobrada. O
encontro dos lábios de ambos, demorado, provocou
nela a impressão de que estava para perder os
sentidos. O marquês Jarred parecia disposto a avivar
mais uma vez o fogo percebido antes.
— Livy, Livy — ele murmurou, com tanta tristeza que as
lágrimas voltaram a correr pela face dela.
Depois de apertá-la contra si mais uma vez, ele a
soltou.
— Não acha que poderia aprender a me amar um
pouquinho? — ele perguntou, desanimado.
Livy não aguentou vê-lo tão infeliz. Levantou-se e
começou a correr para se afastar dele, sem olhar para
onde ia. Ele conseguiu alcançá-la um instante antes
que ela tropeçasse na raiz de uma árvore.
— Não corra. Prometo que não farei mais nada que
possa afligi-la. Quer ver mais um pouco dos jardins?

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— Prefiro voltar para a Cavendish Square — ela
murmurou, e foram para a carruagem.

CAPÍTULO XIII

Em sua aflição, Livy se alegrou de ver a residência dos


Galway, como o oásis que almejara durante o silencioso
percurso desde Hampton Court. Ao aceitar a mão de
lorde Jarred para descer do veículo, descobriu que o
oásis se revelava muito barulhento. Vozes ressoavam
através das janelas.
O marquês tencionava deixar a companheira à entrada,
mas mudou de ideia ao reconhecer a voz de Dorian,
irritada. Entre os membros da família, Dorian era o mais
pacífico, e o lorde queria saber por que se mostrava
furioso.
Perdita, com as mãos na cintura, enfrentava Dorian.
— O que há? — perguntou Livy em voz baixa.
— Estão discutindo poesias! — respondeu Helen,
perplexa. — Estas poesias... — E mostrou um volume
do Poemas de um Poeta Anônimo. — Os quatro saíram
de carruagem e voltaram para tomar chá.
Dorian se lembrou do volume que trouxera para
Eugênia e Perdita criticou a escolha.

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— Você não reconheceria bons versos nem que
Shakespeare escrevesse um soneto em sua presença!
— afirmava Dorian naquele instante.
— Imagino que pensa que sou apenas uma moça tola
que nunca deveria ter aprendido a ler — ironizou
Perdita.
— Não disse isto. Até uma professorinha do Wiltshire
tem de saber ler!
O tom condescendente a enfureceu mais. O marquês
franziu a testa: havia quatro professoras do Wiltshire na
sala! A jovem mostrou que não precisava de ajuda.
— Já leu a London Reviewl — perguntou, suavemente.
— Claro que sim. — Dorian fitou-a com atenção. —
Todos os interessados em poesia a conhecem.
— Talvez até tenha lido a coluna do "Crítico Anônimo"?
— Li — admitiu Dorian, emburrado.
— Pois então — anunciou Perdita Meredith — saiba
que eu sou o "Crítico Anônimo"!
Dorian deu um passo para trás, roxo de vergonha.
— Sabia disso? — murmurou o marquês ao ouvido de
Livy.
Ela sacudiu a cabeça, negando. Interiormente, exultava:
se os artigos de Perdy eram aceitos por um periódico
de tanto prestígio, significava a glória!
— A senhorita é quem escreve as críticas? — indagou
Roland, enquanto o irmão se fechava num silêncio
furioso.
— Nos últimos dois meses eles publicaram três artigos
meus — explicou Perdita. — Em geral, seria mais
modesta, mas depois de se revelar, achou que não era
o caso.
— Imagine só, Dorian, publicaram as críticas da srta.
Perdy! — exclamou Roland. — Deve reconhecer que
não existem muitas moças tão talentosas.

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— Não reconheço nada! O "Critico Anônimo" não faz
nenhum sentido, sobretudo no que se refere aos meus
versos.
— Que versos? — Perdy o fitou, surpresa.
— Eu sou o Poeta Anônimo — anunciou Dorian,
provocando espanto geral.
— O senhor sabia? — Livy perguntou a lorde Jarred,
que parecia se divertir a valer, e ele assentiu.
— O que significa isso, Dorian? — perguntou Eugênia.
— Sou o autor dos poemas do livro que lhe trouxe, o
qual sua irmã não gostou!
— Mas foram publicados! — Eugênia bateu palmas. —
Como você é inteligente, Dorian! Mal posso esperar
para ler.
— Terá de esperar muito para satisfazer a uma
intelectual pretensiosa que ambos conhecemos —
respondeu Dorian, olhando para Perdita, emudecida.
— Não tem motivo nenhum para passar
descomposturas, Dory — interferiu Roland, carrancudo.
— Compreendo o choque causado pelo anúncio de que
a srta. Perdita é o tal crítico, mas ao menos ela tem
ideias sensatas. Não manda echarpes para quem
deseja ganhar uma corrida, ou grita, "Jack, Jack!"
quando é assaltada por bandidos.
O marquês notou a expressão alarmada de Livy. O que
dissera Roly? Um bandido chamado Jack?
— O que quer dizer com isto? — perguntou, e seus
primos o olharam, surpresos.
— Está aqui desde quando? — perguntou Dorian.
— Desde que descobri que preciso cumprimentar a
srta. Perdita pelos seus artigos. Gostaria de saber da
srta. Eugênia se o que Roly disse é verdade. O nome
do bandido.
Livy, Perdy e Eugênia trocaram um olhar assustado.

87
— Receio que a memória de Roland não seja muito
boa. Não foi um nome — explicou Eugênia. — Acho
que gaguejei "Ack!" por causa do susto.
— Que susto? — indignou-se Roland. — A senhorita
achou que aquilo era uma grande piada!
— Eu estava assustada! — insistiu Eugênia.
— É claro que sim. — O marquês tratou de acalmá-los,
mas era difícil imaginar Eugênia assustada em qualquer
circunstância. — Tem certeza? Esse poderia ser mais
um indício para descobrir o culpado dos assaltos na
floresta.
Eugênia insistiu em sua versão, não o suficiente,
entretanto, para contentar o inquiridor. Ele apostaria um
cavalo como ela estava mentindo. Levou consigo os
primos e Roland percebeu que ele não demonstrou
muita severidade. Parecia preocupado com outro
assunto.
O marquês pensava, naquele instante, em Livy e no tal
Jack. Eugênia não sabia mentir: ele não morrera. A
intuição lhe dizia, e poderia apostar toda sua fortuna
nisto, que Jack era um dos salteadores da floresta de
Epping. O que também explicava o interesse de Livy no
castigo reservado aos bandidos.
Livy! A lembrança dos beijos fazia pulsar o sangue em
suas têmporas. Não ia desistir dela sem lutar. Queria
ver esse Jack que ainda a dominava. Detestava admiti-
lo, mas sentia-se curioso. Se o malfeitor se escondia na
floresta, ele, marquês de Jarred, iria lá.
Seu criado, Walter, encontrou-o procurando roupas e
sapatos nos armários e colocando algumas peças numa
sacola. Manifestou surpresa.
— O que milorde está fazendo?
O marquês encontrara um velho sobretudo preto, todo
embolorado, e o vestiu enquanto Walter o observava
consternado.

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— Serei obrigado a me demitir — anunciou afinal. —
Não poderei superar esta vergonha. Todo mundo sabe
que eu escolho as roupas para o senhor!
— Eu sei, Walter. É humilhante. — Enrolou um lenço no
pescoço e se olhou ao espelho, satisfeito. — Mas não
se demita. Ninguém me verá. Espero que César esteja
pronto.
— César? Iremos a cavalo?
— Eu irei, Walter. Você fica aqui.
E, pensou o lorde, vou resolver o mistério de Jack
Springer.

CAPÍTULO XIV

— Dez libras adiantadas por uma semana — falou o


estalajadeiro quase desdentado, observando o homem
barbudo, torto e maltrapilho.
— Mas é um assalto — queixou-se este.
Deixou cair uma moeda sobre o balcão, e o homem a
experimentou com os poucos dentes que lhe restavam.
— É ouro mesmo — exclamou. — Assine aqui —
continuou, empurrando o registro para a frente.
— Não assino.
— É necessário. É a lei.
— A única lei que conheço é a do dinheiro. — Mais uma
moeda tilintou sobre o balcão.

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— Está bem — concordou o outro, embolsando a
moeda. — Vou lhe dar um nome a meu gosto. Sir
Ignoto. Último quarto, no fim do corredor de cima,
milorde. — Gargalhou alto.
O homem barbudo, com a sacola nas costas, subiu a
escada com esforço. Quando fechou a porta do quarto,
endireitou-se com um suspiro.
O capitão Jack Springer, ex-morador da floresta de
Epping, farejou o ar. Sentia mau cheiro. Talvez fosse
dele mesmo. Lavou-se energicamente e vestiu roupas
limpas. Logo se sentiu melhor. Estava, finalmente, livre
de Sharkes, da floresta e não lamentava ter partido sem
se despedir. Não perdera tempo, depois de saber da
recompensa. Só a meio caminho da cidade se lembrou
que não tinha planos. Seria difícil retomar sua
verdadeira identidade: como Justin, era um bandido,
como capitão Springer, um covarde e um desertor.
Possuía dinheiro suficiente para viver algum tempo.
Afiou a ponta de uma pena de ganso. Queria informar
Zelda que se encontrava em Londres. Depois de
escrever o bilhete encontrou urn garoto de rua e o
encarregou com a promessa de uma moeda de ouro, de
entregar a mensagem.
Na tarde da sexta-feira seguinte, por volta das duas
horas, Zelda parou a égua Petúnia perto do rio
Serpentine. Sentia-se decepcionada: contornara o
Serpentine duas vezes, sem ver Jack. Amarrou as
rédeas num arbusto perto do lago, observando as
crianças que brincavam com barquinhos. Viu um
homem alto, parado, fitando-a com insistência. Quando
ele começou a se aproximar, arrependeu-se de ter
saído sozinha.
— Zelda? — falou o homem.
Ela o examinou com atenção.
— Jack? Jack, é você! — Jogou-se nos braços dele.

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— Não admira que você não me tenha reconhecido,
mas não quis me arriscar — ele explicou.
— Pensei que se tratasse de algum homem sem
escrúpulos e ia gritar! — Riram e ele beijou-lhe a ponta
do nariz.
— Como é bom revê-la, Zelda. Estava com medo que
tivesse me esquecido, que não viesse.
— Oh, Jack, como poderia esquecer você?
— Você dever ter muitos cortejadores, aqui em
Londres.
— Sou muito nova para ter cortejadores.
De braços dados, foram para a barragem coberta de
grama.
— Quando você chegou? E onde se hospeda? —
perguntou a jovem.
— Zelda, preste atenção: nem Livy sabe que me
encontro em Londres. Apenas você e não deve contar a
ninguém. Preciso cuidar de algumas coisas primeiro.
Jack não explicou mais nada. Não podia dizer que o
capitão Springer, desertor, não devia procurar a irmã.
— Você não mudou de ideia, não é? A meu respeito?
— Oh, Zelda! — Beijou-a para apagar as dúvidas. —
Amo-a! Meus problemas nada têm a ver com você. Não
quero que Livy saiba que estou aqui porque preciso de
tempo para pensar como sair desta confusão. Se ela vai
casar com o marquês, não gostaria que eu
atrapalhasse, não acha?
— Você está certo. Quero vê-lo sempre, enquanto
estiver em Londres.
— Nos encontramos todos os dias a esta hora — ele
prometeu.
— O parque fica quase deserto, enche apenas mais
tarde. Tomei um quarto na Estalagem Vermelha, mas
você não deve ir lá. Estou falando a sério — avisou,
vendo que ela queria protestar. — Fica localizado no

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lado ruim da cidade, onde só vão pessoas indesejáveis,
entendeu?
— Conheço um bocado de pessoas indesejáveis que
visitam a casa de lady Winifred — ela respondeu, rindo.
— Hoje ela trouxe um revolucionário. Acho que não
existe ninguém mais desprovido de escrúpulos que
essa gente que quer destruir a própria sociedade.
— Você me deu uma ideia. Na estalagem estou
registrado como sir Ignoto e vou deixar transparecer
que sou um revolucionário. — Apertou-a contra o peito.
— Seu tutor se oporá a um revolucionário como se
oporia a um bandido.
— Mas você é irmão de Livy — ela exclamou, satisfeita.
— E nós a teremos do nosso lado. E ele a adora.
— Então, haverá casamento?
— Sim, lady Winifred acha que ele não demorará em
pedi-la. No último baile não se largaram nem por um
instante.
— Talvez no próximo ano poderemos ir a bailes.
— No próximo ano nós nos casaremos. Acho que Livy
há de se casar ainda este ano. Quanto a nós,
poderemos ficar noivos. Será por um ano inteiro, você
não se importa? Precisarei de tempo para conseguir o
consentimento de Jarred.
— Depois, vamos viver com quê? — ele perguntou,
rindo.
— Eu sou muito rica
— Verdade? — Jack revelou surpresa. — Não sabia.
— Pelo pouco que Jarred me explicou, possuo uma
fortuna respeitável.
— Você não a terá até o casamento e não podemos
nos casar sem o consentimento do marquês. Não gosto
da ideia de viver com o dinheiro de minha esposa.
— Ora, não sei por quê! Muitos cavalheiros procuram
uma esposa rica. Pelo menos, não vou precisar me

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preocupar para saber se me ama por mim ou pelo meu
dinheiro. — Apoiou-se nele. — Não se preocupe, Jack.
Vai dar tudo certo!
Embora Jack soubesse que ela era pouco mais que
uma criança, sentiu-se reanimado pela confiança de
Zelda. Pouco depois voltaram para onde se encontrava
a égua Petúnia. Ele a beijou mais uma vez.
— É bom que esta não seja a hora do passeio — ela
murmurou. — Os bisbilhoteiros logo começariam a falar.
— Deixe-os falar. — Ele sorriu: — Amanhã, à mesma
hora.
— Sim — ela prometeu.
A contragosto, se afastaram em direções diferentes.
Zelda não reparou numa amazona, montada numa
égua branca, parada atrás de uma árvore.
A srta. Sylvia Ashton observou a mocinha que se
afastava com expressão pensativa. Aparentemente, a
pequena malcriada esquecera sua paixão por lorde
Jarred. Ela, Sylvia, cuidaria de informá-lo na primeira
oportunidade. O marquês haveria de gostar de saber
que sua pupila se apaixonara por alguém que não era
um cavalheiro.
A bela Ashton ficou realmente irritada, nos dias
seguintes, ao ver frustrados todos os seus esforços de
encontrar o lorde. Seu único consolo foi ver que a srta.
Anthony também parecia decepcionada pelo mesmo
motivo.
O marquês, de fato, não se encontrava em condições
de frequentar festas ou concertos, após dois
desconfortáveis dias na floresta.
Suas roupas, velhas mas limpas, começavam a se
esfrangalhar. No primeiro dia topou com dois rapazes
de Cambridge, Nichols e Bertie, animados com a
recompensa e à procura dos bandidos. As noites frias,
com o chão como única cama, logo arrefeceram o

93
entusiasmo dos rapazes. Na segunda-feira se
despediram do marquês, que não lamentou a
separação. Ele não estava na floresta para brincar,
pensou ao deixar seu cavalo amarrado. Penetrou mais
um pouco entre a vegetação. Precisava ter cuidado: o
Jack de Livy tinha o costume de assaltar e matar.
O trinado de um pássaro o fez olhar para a copa das
árvores. Logo depois ouviu estalar um graveto.
Imobilizou-se, agarrando a pistola, e se virou. Um
homem com barba grisalha examinava um monte de
objetos obviamente roubados. O marquês se aproximou
com cuidado e saiu de trás de uma árvore, apontando a
pistola.
— Como é patrãozinho? — gritou, de repente.
Sharkes se virou depressa e tentou sacar a arma, tarde
demais. Estava na mira do invasor e permaneceu
imóvel.
— O que quer? — perguntou. — Aqui é meu território.
— Não é mais. Pretendo ficar.
— Isso é o que você pensa — rosnou Sharkes e lançou
uma faca que levava na cintura.
A lâmina penetrou no ombro do marquês, e logo o
bandido saltou-lhe em cima, tirando a faca do ferimento,
querendo enfiá-la em algum ponto mais vital. As
pistolas de ambos caíram longe, na confusão de corpos
a rolar pelo chão. O malfeitor portava ainda a faca, no
entanto, teve a mão imobilizada antes de usá-la. Um
murro potente e certeiro, afinal, o pôs a nocaute.
Segurando a faca e a pistola, Jarred aguardou que o
outro estivesse em condições de falar.
— Quero respostas a algumas perguntas — comandou.
— Não vou responder.
— Onde está seu parceiro?
— Em lugar nenhum.

94
O marquês atirou, e Sharkes afastou convulsivamente o
pé. O tiro entrara no chão ao lado de sua bota.
— Da próxima vez, não pretendo ser tão caridoso. Diga
onde está seu parceiro, o tal Jack.
— Não sei. Ele foi embora. Quando voltei para a
cabana, na outra noite, ele partira. Não se despediu e
levou todos os seus pertences. — Cuspiu. — Foi o que
ganhei por ter cuidado dele.
— E para onde ele foi?
— Como é que vou saber? O diabo que o carregue.
— Para onde pensa que ele foi?
— Não sei, mesmo! Talvez tenha ido se juntar a ela.
— Ela, quem? — A voz do inquisidor soava gélida.
— A moça que veio procurá-lo. Uma dama — disse
Sharkes com um olhar malévolo. — Olhos azuis.
Bonitinha. Esteve aqui há uma semana e o deixou
confuso, lembrando o passado dele. Deve ter ido viver
com ela naquela escola.
— Escola? Que escola? — perguntou Jarred, com ar
feroz.
Sharkes o observava, levemente preocupado.
— Foi o que ela disse! Uma escola.
O marquês não teve mais dúvidas sobre a identidade
da moça que mantinha relacionamento com um homem
chamado Jack.
— Ela lhe deu um medalhão, uma coisa sem valor —
continuou o bandido. — Que recebeu dele dez anos
atrás, com a promessa de que voltaria, e agora ele terá
de usá-lo até que possam voltar a ficar juntos!
Enquanto o marquês refletia sobre esses fatos, que se
encaixavam muito bem com suas próprias suposições,
Sharkes viu uma oportunidade, nunca saía só com uma
faca. Puxou a segunda da bota e a lançou contra o
marquês, que só percebeu a dor da lâmina penetrando
em sua carne e caiu.

95
A última coisa que viu, antes de fechar os olhos, foi
Sharkes apontando a pistola. Ouviu o estampido com
os olhos já fechados.

CAPÍTULO XV

— Srta. Anthony! Peço licença para conversar com a


srta. Eugênia, para pedi-la em casamento.
Livy servia o chá e quase deixou cair o bule de
Limoges.
— Eu ouvi casamento, sr. Roland? — perguntou,
colocando o bule na bandeja.
A palavra "casamento" pronunciada por uma outra
pessoa deixou o pretendente pálido, mas ele não
esmoreceu.
— Exatamente. A senhorita é a parente mais próxima
de Eugênia e seria impróprio se eu falasse com a srta.
Perdita.
— O senhor está certo. Ainda assim, confesso que para
mim tal situação é novidade. Não sei o que dizer.
Talvez devesse lhe fazer perguntas sobre sua
possibilidade de sustentar uma esposa.
— Este realmente é meu problema — respondeu
Roland e corou. — Não quero enganá-la ou à srta.
Eugênia. Minhas economias se esvaíram neste último
mês. Contudo, se ela se casar comigo, estará tudo
resolvido.

96
— Parece-me que sustentar uma esposa apenas
aumentaria suas despesas — observou Livy e parou de
sorrir.
— Se eu me casar com a srta. Eugênia, receberei uma
parte da fortuna de meu tio, Augustus Bramwell, que
sugeriu que eu e Dorian deveríamos nos casar e até
nos deu os nomes de suas primas. Se ela se casar
comigo, ficarei sem qualquer preocupação. — Vendo
que não havia resposta, tratou de explicar: — Meu tio
Brammie é rico como Creso. — Parou de novo e ficou
esperando.
— Aprecio muito sua franqueza, sr. Roland —
respondeu ela, afinal. — Mas confesso que não gosto
da ideia de um homem se casar com minha prima para
receber dinheiro do tio!
— Céus, srta. Livy, não é assim! Tenho o maior respeito
pela srta. Eugênia!
— Quer dizer que sente um certo afeto por Eugênia —
comentou Livy e tomou um gole de chá já frio.
— Sem dúvida — ele afirmou, com sinceridade.
— Mas o senhor a ama?
—Para dizer toda a verdade, gosto das três: da srta.
Eugênia, da senhorita e da srta. Perdy. — Roland era
fundamentalmente honesto. — Espero que não se
oponha ao meu pedido.
Livy não precisou pensar muito. A franqueza
surpreendente do rapaz não o desabonava e talvez
pudesse mesmo amar Eugênia com o tempo.
— Não vou interferir nas decisões de minha prima, que
é maior de idade. Ela decidirá e o senhor tem de falar
com ela.
Levantou-se para chamar a prima, o que provocou em
Roland uma espécie de pânico: teve vontade de dar as
costas e fugir.

97
— O que ele quer, Livy? — Eugênia, a meio de uma
partida de bilhar com a irmã, não queria parar.
— Ele precisa falar com você, na sala verde. Não o
mantenha esperando, querida. Vou jogar em seu lugar
— e apanhou o taco.
— O que é que Roland quer conversar com Eugênia?
— perguntou Perdita, medindo a distância de uma bola.
— Será que...
— Exatamente. Eugênia ouvirá o primeiro pedido de
casamento.
— De Roland? — exclamou Perdita com emoção que
Livy julgou excessiva.
— De quem mais? — perguntou.
Perdy não respondeu, Livy errou a tacada e pediu para
encerrar a partida. Eugênia voltou logo. A prima e a
irmã pararam de jogar.
— É a minha vez? — ela perguntou, estendendo a mão
para o taco.
— Desejo-lhe muitas felicidades — cumprimentou
Perdita, observando atentamente a irmã.
— Qual foi sua resposta? — questionou a prima, não
mais contendo a curiosidade.
— Você sabia o que ele queria me dizer, Livy? —
perguntou Eugênia, levantando os olhos da mesa de
bilhar.
— Sim, sabia. Imagine que ele achou que devia pedir
primeiro minha permissão.
—- Neste caso, por que não o desencorajou?
— Quer dizer que recusou o pedido? — indagou
Perdita.
— É óbvio que recusei — confirmou a jovem, tranquila.
— Seria o marido errado para mim, Perdy!
— Achei que vocês poderiam se dar muito bem —
comentou a irmã.

98
— Não. Estaríamos eternamente em pé de guerra. Isto
pode ser tolerável entre amigos, mas num casamento
se revelaria fatal. Não acha, Livy?
— Sim — esta anuiu depois de superar a surpresa. —
Só quero saber se você o recusou por convenção:
algumas moças costumam recusar o primeiro pedido e
aceitar o segundo.
— Não sou tola, Livy.
— Mas é possível que ele volte a pedi-la...
— Não quero ouvir outro pedido — murmurou Eugênia.
— Pelo menos, não de Roland — interrompeu-se e viu
que ainda segurava o taco. — Vamos fazer mais uma
rodada?
Dorian Howell ouviu os passos do irmão na entrada e
saiu do gabinete. Perseguidos por credores insistentes,
tinham decidido, na base da cara ou coroa, qual deles
seria o primeiro a obedecer às injunções do tio. Roland
perdera o lance. Dorian agora segurava uma garrafa de
champanhe para celebrar.
— Ela não aceitou, Dory.
— O que me diz? Está falando de Eugênia?
— De quem mais? Quem mais poderia me recusar?
Perdita é para você... não foi o que combinamos? A
boba disse que não aceitava meu pedido e acrescentou
algumas besteiras, como ser ela a última mulher da
Cristandade que eu deveria pedir em casamento,
porque estaríamos sempre em guerra!
— Na verdade, acho que ela está certa — comentou
Dorian. Então largou a garrafa de champanhe e
ofereceu ao irmão um pouco de vinho do Porto. — De
qualquer forma, pode tentar mais uma vez, dentro de
alguns dias.
— De jeito nenhum. Haversham está querendo seu
dinheiro e Finley também. Poderia ir para o Continente.
Dizem que lá pode-se viver com muito pouco.

99
— Eu talvez fosse com você, quem sabe...
— Você não iria gostar, Dory! E tem probabilidades com
Perdita, que é uma moça de bom senso. Aceitará seu
pedido sem pensar. Não é como a irmã! — Roland
bufou. — A tola teve coragem de recusar meu pedido!
— Olhou para o irmão, que o observava com uma
expressão esquisita. — Não é tão ruim, Dory — disse
para animá-lo. — Existem homens casados que até
gostam do casamento!

O cavalheiro deitado num sofá da estalagem campestre


mexeu-se levemente pela primeira vez em vinte e
quatro horas. A esposa do estalajadeiro, sentada a seu
lado, largou as agulhas de tricotar e colocou-lhe a mão
sobre a testa. Constatou que não tinha mais febre.
As pálpebras se ergueram e os olhos negros
examinaram com curiosidade a simpática matrona.
— Onde estou? — ele perguntou. — Quem é a
senhora?
— Sou a sra. Cotter. O senhor se encontra na
Estalagem do Veado Branco. Seus dois amigos
trouxeram o senhor ontem, em péssimas condições.
Felizmente, o dr. Hudson afirmou que o senhor tem
uma constituição invejável, porque, não fosse assim...
— Ela sacudiu a cabeça. — O ferimento de faca, no
ombro, não foi profundo e a bala só o atingiu de raspão.
Mas agora precisa descansar — ela disse, vendo que
ele se erguia, com uma leve careta de dor.
— A senhora falou em dois amigos?
— Sim, embora eles não conheçam seu nome, não é
esquisito? — Pela primeira vez pareceu contrariada. —
Mas vi que o senhor é um cavalheiro e posso imaginar
o que aconteceu.
— Diga-me, por favor.

100
— O senhor foi caçar os bandidos pelos quais
prometem uma recompensa. Encontrou um deles, ficou
ferido... Não foi assim?
— Mais ou menos. E meus amigos ainda estão aqui?
— Estão na sala do café. Irei chamá-los — ela se
ofereceu e saiu.
Os dois rapazes de Cambridge apareceram em
seguida.
— O senhor está melhor? — perguntou Nichols.
— Quase o perdemos! — acrescentou Bertie.
— Como me trouxeram até aqui? — perguntou o
marquês de Jarred.
Soube então que os rapazes, depois de ouvir o
estampido, levaram algum tempo para encontrá-lo, sem
sentidos e sangrando. Bertie improvisara uma
bandagem, com sua gravata, e ambos o haviam
arrastado até a estalagem mais próxima.
— Não sabíamos se o senhor resistiria — comentou
Nichols. — Ainda bem que conseguiu.
— De fato — confirmou lorde Jarred e estendeu a mão.
— Nem sei como agradecer. De qualquer forma, vou
lhe dar outra gravata, Bertie. É o mínimo que posso
fazer.
— Não foi nada — respondeu Bertie, sem jeito. —
Tivemos uma pequena dificuldade com o estalajadeiro,
porque não sabíamos seu nome.
O marquês se apresentou imediatamente.
— O quê? Realmente? — Nichols se sentou ao lado do
ferido. — Foi o senhor que uma vez participou de uma
corrida de York até Londres, com uma mão amarrada
atrás das costas?
— Sim — anuiu o marquês.
— E é o mesmo lorde Jarred que uma vez apostou que
poderia ficar três dias sem dormir?

101
— O mesmo — confirmou e ergueu a mão como a parar
aquela enxurrada de reminiscências.
— Senhor — interferiu Bertie, apertando vigorosamente
aquela mão. — É um prazer enorme conhecê-lo!
— Não poderia ser maior — concordou seu amigo.
Diante da perspectiva de reviver todas as loucuras
juvenis, o paciente fechou os olhos. Mas não adiantou.

CAPÍTULO XVI

Como todo mundo, Livy fazia conjecturas sobre a


ausência de lorde Jarred. Não imaginava que se
ressentiria por não vê-lo. Permanecia em casa durante
o dia, esperando pela visita. Explicara às primas que
andava cansada de passear pela cidade, mas lady
Galway adivinhou o motivo de sua aflição.
— Jarred virá logo que voltar — observou certa manhã,
enquanto Livy a ajudava a colocar rosas amarelas nos
vasos.
— Não estou pensando nele, Helen — murmurou Livy,
desejando que sua amiga fosse menos perspicaz.
Não contara a ninguém que ele a pedira em casamento.
Ela própria mal podia acreditar que acontecera e que
ela o recusara.
Lady Galway, preocupada, falara com o marido,
entretanto, também ele desconhecia o paradeiro do
marquês.

102
— Pensei que o veria no Tattersall, para o leilão de um
cavalo árabe — explicou o lorde. — Mas ele não
apareceu.
— Vou responsabilizar Jarred se Livy morrer de coração
partido — ela ameaçou.
— Você não disse que Livy era a mais sensata de suas
amigas?
— Todas as mulheres apaixonadas tendem a se tornar
insensatas — falou Helen e, de repente, sorriu: — Já
sei o que farei. Amanhã vou levá-la a comprar um
vestido novo.
— Você disse que vão embora dentro de uma semana.
— Galway se mostrou perplexo. — Para que vestido
novo?
— Porque comprar vestido é um excelente remédio
contra a saudade!
Na manhã de terça-feira, Helen conseguiu arrastar a
amiga até o ateliê de Fanchon, porque Livy se sentia
culpada ao ver os esforços da anfitriã para distraí-la.
— Você acha que preciso de mais um vestido? —
perguntou. — E logo da Fanchon? Ela é caríssima!
— Não precisa ser um vestido de baile. Encomende um
vestido de passeio, poderá usá-lo na escola.
Livy percebeu que esquecera a escola. Como era
possível? Durante os últimos quatro anos, a escola
absorvera sua atenção. Algo diferente ocupava seus
pensamentos. Seria lorde Jarred?
Entrou no ateliê com Helen e começaram a examinar os
tecidos expostos nas mesas e a discutir as várias cores.
No fundo da sala, madame Fanchon admirava a srta.
Ashton, com a última criação da casa, em cetim
amarelo-ouro.
— Vestido sem graça! — declarou a srta. Ashton.
Tivera um encontro desagradável com suas duas
melhores amigas, que haviam insinuado maldades

103
sobre o desaparecimento do marquês. Sylvia sentira
ímpetos de estapeá-las, mas Penélope era filha de um
conde, e Jennifer estava noiva do segundo filho de um
duque. Sem poder se desforrar, e fervendo de raiva, ela
decidira implicar com a costureira.
— É insípido — rematou, ainda se olhando ao espelho,
despertando a ira de madame Fanchon.
— Insípido! — repetiu esta, e logo soltou uma torrente
de protestos em francês.
Felizmente a srta. Ashton não possuía talento para
idiomas e ignorou o brilho ameaçador nos olhos da
costureira.
— Já disse, insípido — insistiu a Bela, encontrando
defeitos onde não existiam. — A gaze é fina demais e
esta renda é grosseira, não pode ser de Norwich.
— Se mademoiselle não gosta do vestido, não precisa
ficar com ele — explicou madame Fanchon,
carrancuda. — Outras gostarão dele, com pequenas
alterações.
— Terá de refazê-lo por inteiro. — A srta. Ashton riu
depois de tirar o vestido amarelo para vestir o seu. — O
vestido de baile cor de safira estará pronto na quinta?
— Não, mademoiselle. Não estará pronto.
— Dei instruções a respeito e a senhora prometeu! —
exclamou a Bela, irritada.
— Cest vrai. Mas não vou fazê-lo. Não posso criar nada
para a senhorita. O vestido amarelo é uma obra-prima!
Não pretendo criar nada para quem não sabe apreciar!
Mademoiselle, por favor, saia. E não volte. Não quero
vê-la mais!
Sylvia Ashton ficou escarlate.
— Vai se arrepender! — ameaçou.
Os olhos da costureira lampejaram.
— Não. Mademoiselle é quem vai se arrepender!
— Vou contar isto a todas as minhas amigas!

104
— Ótimo. Se elas pensam que minhas criações são
insípidas, escolherão outra costureira.
A srta. Ashton já se arrependera. Fanchon era
temperamental, mas tratava-se da melhor costureira de
Londres. Na quinta-feira pretendia ir à festa de lady
Coverly e precisava de um vestido novo.
— Está bem, vou levar o amarelo — falou. Contudo, era
tarde demais.
— Bom dia, mademoiselle — respondeu madame
Fanchon e se encaminhou para a frente da loja.
Mesmo furiosa, a srta. Ashton pegou o vestido e seguiu-
a. Comprando-o, acalmaria a costureira.
— Não! — exclamou madame Fanchon quando a srta.
Ashton apareceu na loja com o vestido no braço. —
Não vou vendê-lo à senhorita. — E tentou pegar o
vestido amarelo-ouro.
As vozes iradas atraíram a atenção das outras clientes.
— Mas eu o quero! — gritou a srta. Ashton, puxando-o
com raiva e o tecido delicado rasgou.
— Que pena! — disse Helen. — Um vestido tão bonito!
— Posso fazer outro igual, mas ela nunca o vestirá. —
A costureira declarou. — Ela o chamou de "insípido"!
— Uma pena — murmurou Livy, passando a mão sobre
o vestido. — É maravilhoso. Nunca vi nada igual.
A costureira a mediu com os olhos.
— Venha para a sala dos fundos e experimente-o —
convidou. — Posso trocar a manga rasgada sem
dificuldade.
— Não posso me dar a este luxo — protestou Livy. —
Vim comprar um vestido de passeio.
— A senhorita poderá ficar com este pelo preço de um
vestido de passeio.
— Não pode perder tal oportunidade — sussurrou
Helen, empurrando-a.

105
Sem saber como, Livy vestiu a obra-prima amarelo-
ouro.
— Precisa poucas modificações — sentenciou
Fanchon. — A senhorita é mais alta... ficará perfeito!
Com ele, será o sucesso da estação. Aquela outra —
continuou, olhando para a porta. — Ficará com vontade
de arrancar seus olhos!
— Ah, ela já quer fazer isto — Helen confidenciou a
madame Fanchon.
A costureira sorriu, com a boca cheia de alfinetes.
— Uma rival? Que ótimo. Ela ficará louca de ciúme. O
vestido estará pronto amanhã.
Livy saiu da loja um pouco zonza pela rapidez dos
acontecimentos. Queria um simples vestido de passeio
e possuía um maravilhoso vestido de baile.
— Ninguém pode recusar uma oportunidade destas,
Livy — explicou Helen. — Sylvia Ashton ficará verde de
inveja.
— Pois é isso que me preocupa!
Helen não lhe deu ouvidos e quis comprar uma bolsinha
e sapatos para o vestido de Livy.
— Uma das vantagens de estar casada com Henry é
poder gastar! Quero que aceite estes complementos de
presentes.
Passaram a manhã vendo bolsas e experimentando
sapatos até que ao saírem de uma sapataria,
encontraram a srta. Ashton parada à porta, com os
olhos lançando chamas.
— Fanchon me disse que você roubou meu vestido!
— Estava rasgado! — explicou Livy, estupefata. —
Madame Fanchon queria vendê-lo, a alguém.
— E você se apoderou dele, como pensa que se
apoderou de Jarred, não é?
— Sra. Ashton! — exclamou lady Galway, vendo que
alguns pedestres estavam a olhá-las.

106
— Ainda não conseguiu seu precioso marquês!
— Por favor, deixe-me passar.
Livy não desejava brigar, mas a srta. Ashton segurou-
lhe o braço.
— Quando seu marquês a pedir em casamento,
pergunte a ele que porção da fortuna do tio vai herdar,
casando-se com você. — Largou o braço de Livy, às
gargalhadas: — Ele só tem um motivo para cortejá-la:
ganância!
— Você está com ciúme! — protestou Helen. — Jarred
gosta mais dela que de você e todos sabem disto!
— Sylvia Ashton está com ciúmes — continuou Helen
quando já se encontravam acomodadas na caleça. —
Não lhe dê ouvidos. Há muito tempo ela decidiu que
conquistara o marquês Jarred, e não desanimou até
agora.
— Livy não ouvia as palavras de consolo da amiga:
pensava em Roland e nas palavras do rapaz explicando
porque queria casar com Eugênia. Poderia Jarred estar
movido pela ganância e não pelo amor?
— Existe um sr. Bramwell? — perguntou, e Helen
confirmou. — Ele é o tipo de Jarred e de Roland? —
Helen assentiu. — E é muito rico?
— Sim, mas não dê ouvidos à Sylvia Ashton. Ela está
fora de si, de inveja e ciúme!
— Mesmo assim, não acha esquisito que um homem
cobiçado como Jarred prefira uma professorinha de
província?
— Pare com isso, Livy! — Helen ficou irritada. — Você
não é uma bonitinha qualquer, é uma beleza e todos
reconhecem isto. E que diferença faz se é do Interior?
— Está bem, vamos esquecer o assunto. Sabe o
endereço do sr. Bramwell?
A amiga não sabia. Mais tarde, em casa, Livy perguntou
a lorde Galway que, sozinho praticava tacadas.

107
— O sr. Bramwell? Se está falando do velho Augustus
Bramwell, ele mora na Saint James Street. Fui vê-lo
uma vez. No n° 9 ou 10? Não lembro exatamente, mas
tem uma cabeça de leão na porta de entrada. Por quê?
— Porque Roland o mencionou recentemente. Continue
a praticar. Se Helen perguntar por mim, diga, por favor,
que fui fazer uma comprinha.
— Vocês não voltaram das compras agora?
— Sim, mas esqueci das luvas.

Vinte minutos depois, Livy se encontrava sentada na


sala do sr. Augustus Bramwell, estupefata com a
própria ousadia. Visitar um cavalheiro, mesmo idoso
como o sr. Bramwell, sem estar devidamente
acompanhada. Contrariava a etiqueta. Ele não pareceu
chocado, apenas surpreso e curioso.
— Srta. Anthony, estou realmente encantado. Ouvi falar
muito na senhorita.
— O senhor está com a vantagem — ela respondeu,
séria. — Não sei nada sobre o senhor, a não ser que é
tio do marquês e dos primos dele.
— E é verdade. Sou tio dos três. Qual é o motivo de sua
visita?
— Vim por causa das minhas primas. Seu sobrinho,
Roland, pediu a mão de Eugênia. Contou-me, em
particular, que sua situação financeira ficaria melhor
depois do casamento com ela, por causa de uma
determinada disposição no testamento do senhor.
— Duvido que ele tenha falado de maneira tão
diplomática. Mas pode ficar tranquila: Roland herdará
boa parte de minha fortuna ao se casar com sua prima.
E a mesma coisa vale para Dorin, se ele se casar com
sua outra prima.

108
— Sr. Bramwell, não consigo entender. Sei que o
senhor não conhece minhas primas. Apesar disto,
deseja que seus sobrinhos se casem com elas.
— De fato, não as conheço, srta. Anthony, mas sei que
possuem ótima reputação, como a senhorita, aliás!
— E com seu outro sobrinho, o marquês de Jarred,
herdará também se ele se casar comigo?
— Não. Nem um tostão furado.
— O quê?
— Sei que a senhorita não procura um marido rico,
então me sinto à vontade para lhe dizer que o nome de
Jarred estava em meu testamento, mas que ele insistiu
para que eu o tirasse. Não queria que a senhorita
duvidasse dos sentimentos dele ao pedi-la em
casamento.
— Entendo — murmurou Livy.
— Confesso que leio os jornais todos os dias,
procurando a notícia do noivado de vocês e estou um
pouco surpreso. Quinta-feira, quando ele esteve aqui,
parecia um homem que tomara uma decisão.
Quinta? O dia do piquenique. Ele não a pedira em
casamento por causa da fortuna do tio, e sim porque a
amava o bastante para desprezar uma herança
considerável. Tratava-se de um homem bom. E ela o
recusara.
— Meus sobrinhos são homens correios, srta. Anthony
— afirmou o sr. Bramwell. — Espero poder
cumprimentá-la em breve como um membro da família.
E o mesmo vale para suas primas.
— O senhor é muito amável.
— Não sou, não. Sou um velho intrometido.
Depois que Livy saiu, ele se recostou no sofá com um
sorriso maroto.

109
— Ela é tão bela como você disse, querida —
murmurou, olhando para o retrato oval sobre a mesa. —
Acho que ela e Richard serão muito felizes.
Começou a rir. Quem poderia imaginar que na velhice
ele se divertiria tanto, bancando o casamenteiro!

CAPÍTULO XVII

— Mais vinte libras? — protestou o capitão Jack


Springer, observando a sujeira da mão estendida. —
Deve estar maluco. Ainda ontem, pediu dez!
— Maluco nada! — cacarejou o estalajadeiro. — Muitos
revolucionários gostariam de um refúgio como este.
— Nem um tostão a mais — declarou Jack.
Bancar o revolucionário não fora uma boa ideia.
— Como quiser, sir Ignoto. — O estalajadeiro soltou
uma cusparada no chão. — Não diga que não avisei.
Jack estava saindo, farto daquele lugar. Precisava
discutir o assunto com Zelda, pensou, enquanto se
dirigia ao encontro diário. Na realidade, talvez devesse
falar com Livy, como a jovem aconselhara. Sorriu ao
pensar nela: sua namorada, de apenas dezesseis anos,
se mostrava coberta de bom senso e a cada dia sentia-
se mais apaixonado por ela.
Entrou no parque e amarrou o cavalo num arbusto.
Ainda era cedo: por uma vez, ela não precisaria esperar
por ele. Foi até a beira do lago. Ouviu então um
relincho. Devia ser Zelda! Subiu correndo até o topo do
aterro.

110
— Ora veja, Justin, meu velho companheiro! — Sharkes
sorria. — Finalmente o encontrei!
— O que quer? — perguntou Jack. Olhou ao redor e só
viu crianças.
— Quero você — respondeu Sharkes de dedo em riste.
— Partiu sem se despedir. Coisa feia!
— Não quero falar com você.
— Como é? — O companheiro virou os olhos para o
céu. — Salvei sua vida, ensinei-o a sobreviver na
floresta, e você não quer falar comigo.
— Volte para a floresta, Sharkes. Eu ficarei aqui.
— Não posso voltar, companheiro. Apareceu um sujeito
fazendo perguntas que eu não queria responder.
Quando o esfaqueei, pensei em você.
— Ele morreu?
— Provavelmente. Não fiquei para confirmar.
— Como era esse homem? — indagou Jack, aflito.
— Parecia um cavalheiro e procurava por você, Justin,
por causa da recompensa. Acho que você me deve
muito!
— Não tenho dinheiro nenhum. — Jack estava com
vontade de apagar aquele sorriso de mofa no rosto de
Sharkes.
— Aposto que aquele estalajadeiro ladrão tirou tudo de
você. Quando ele o chamou de "sir Ignoto", soube que
era o meu Justin. Demos boas gargalhadas, tomando
vinho. Provavelmente você não tem mais dinheiro, mas
sua irmã deve ter.
— Não tenho irmã! — disse Jack, fechando os punhos.
— Acho que tem. Deve lembrar da dama que apareceu
na floresta, procurando seu belo irmão. Com certeza ela
pagará uma boa quantia para evitar que amigos
londrinos saibam que o irmão tem mais uma morte nas
costas.
— Você o matou e não pode me envolver nesse crime.

111
— Não entende as leis da floresta, rapaz! Você é meu
parceiro, Jack. Meus crimes também são seus.
— Isso acabou!
— Você não está cooperando! Precisa de uma lição.
A lâmina cortou o ar e Jack pulou. Conhecia a perícia
de Sharkes. Viu quando ele jogou a faca para a outra
mão e atacou. Esquivou-se e o bandido desequilibrou-
se, então o rapaz derrubou-o com um soco num ombro.
Quando Jack se aproximou, viu que a imobilidade era
apenas um ardil. O velho bandido chutou o tornozelo de
Jack e este começou a cair. Colocou as mãos para trás,
para se proteger, sem sucesso: bateu a cabeça numa
pedra do aterro e perdeu os sentidos.
Zelda chegou poucos minutos depois e começou a
procurar Jack. Ouviu uma voz assustada.
— Senhorita! — Era um garoto ruivo chamado Felix. —
O cavalheiro seu amigo está machucado.
Ela ergueu as saias e subiu o aterro correndo. Ao ver
Jack imóvel, seu coração quase parou de bater, e seus
olhos ficaram cheios de lágrimas. Percebeu um
movimento.
— Não está morto? — perguntou, incrédula, ao garoto.
— Não! Machucou a cabeça ao cair ou o outro bateu
nele. Um velho horroroso, com uma cicatriz no rosto.
Sharkes, pensou Zelda. Sentou-se ao lado de Jack, e
com esforço conseguiu apoiar a cabeça dele no colo.
— Jack — ela implorou. — Abra os olhos, por favor.
— Só mais um minuto — ele sussurrou.
Finalmente abriu os olhos e tentou se erguer.
— Fique quieto — ordenou Zelda. — Estou aqui e tudo
está bem. Um garoto me avisou. Foi Sharkes?
Jack voltou a abrir os olhos e viu um belo rosto, muito
jovem. Jovem demais para ser uma debutante, pensou.
— Onde estou? — perguntou, vendo que sua cabeça
estava apoiada no colo da moça.

112
— No parque. Está melhor, agora?
— Quer dizer que estou em Londres, ora esta!
— Você não lembra que saiu da floresta?
— Que floresta? Estou na Inglaterra, não é? Engraçado,
hoje mandaram ficar de prontidão, para uma grande
batalha. — Viu suas roupas: — Por que não estou
fardado?
— Jack, a batalha aconteceu há anos! A guerra
terminou. Wellington derrotou Bonaparte em Waterloo!
— ela exclamou.
— Você não me reconhece?
— A guerra terminou? Fantástico! E sinto muito, menina
linda, não sei quem é. Como é seu nome?
— Zelda.
— Um nome bonito. Este é seu irmãozinho?
— Não senhor, não sou irmão dela. — O garoto,
preocupado, olhou para Zelda: — Devo ir procurar um
médico?
— Não. Pode voltar a brincar, mas espere!
Tirou uma moedinha de ouro da bolsa e deu-a ao
garoto. Quando ele se afastou, ela examinou Jack.
Parecia diferente. O que fazer com ele?
— Pode se levantar, apoiando-se em mim? —
perguntou.
Devagar, passo a passo, ela o levou até o cavalo.
— Pode montar? — indagou, solícita.
— Claro que posso. Este animal é tão manso! Não sei
como me derrubou!
— Não foi o cavalo, foi Sharkes, pelo menos foi o que o
garoto disse.
— Quem é Sharkes?
— Por favor, não faça perguntas. Monte e segure-se.
— Vou fazer o possível. — Jack achava engraçado
receber ordens daquela pessoinha tão jovem.
— Iremos ver Livy — ela declarou.

113
— Boa ideia — concordou Jack com um sorriso. — Mas
Livy não se encontra em Londres, está longe daqui.
— Não. Está em Londres — explicou Zelda, montando
Petúnia. — E espero que fique feliz em vê-lo.
— Vim para dar uma boa notícia — comentou o
marquês de Jarred. — O médico disse que já posso
viajar. Quero agradecer por tudo que a senhora fez por
mim. — E lhe entregou um gordo rolo de cédulas.
— Isto é demais, senhor! — protestou a sra. Cotter.
— É pouco, acredite. E quero lembrar à senhora que se
precisar de ajuda em Londres, é só me avisar.
A mulher se atrapalhou com os agradecimentos,
compreendendo toda a importância daquela promessa.
Quando o marquês atravessou o pátio para montar seu
cavalo, encontrou os dois rapazes de Cambridge.
— Está realmente voltando para casa, milorde? —
perguntou Nichols. — Podemos acompanhá-lo?
Lorde Jarred ficou satisfeito com isto e saíram da
estalagem. Os dois rapazes o ladeavam, conversando
continuamente, impedindo-o de pensar. Sabia que
ainda amava Livy e que tentaria mais uma vez
conquistá-la, ao menor sinal favorável.
— Marquês, o senhor não ouviu o que eu disse? —
perguntou Nichols.
— De fato, estava distraído, desculpe. Que outra
façanha de minha mocidade discutiam?
— Não é isto, não, senhor, apenas queria lhe pedir um
favor. Meu tio, lorde Dumbarton, é o executor do
testamento de meu pai, o guardião do dinheiro. Não sei
por que meu pai o escolheu. Ele é terrivelmente pão-
duro.
— Conheço Dumbarton e concordo com você —
comentou Jarred com simpatia.
— Será que pode falar com ele a meu respeito,
milorde?

114
— De que forma?
— Meu tio julga que sou um vadio, apenas porque não
virei um estudioso. Se o senhor pudesse explicar a ele
que me portei bem...que o senhor tem uma boa opinião
de mim.
— Já entendi — o marquês ficou com vontade de rir. —
Admito que tenho uma excelente opinião de quem é
capaz de atar a gravata em Trone d'Amour, como a sua.
Nichols se sentiu muito satisfeito com o elogio de
Jarred, um homem reconhecidamente elegante.
— Levei uma hora para fazer este nó! — gabou-se,
corado.
— Duas horas! — corrigiu Bertie. — E amassou três
gravatas antes de conseguir com a quarta.
— Na primeira oportunidade vou falar com Dumbarton,
para explicar que você é um cidadão tão sério e sólido
que ele pensará que você está destinado ao presbitério!
— prometeu o marquês.
— Não exagere, senhor. — Bertie se divertia com a
ideia. — Nichols quer apenas uma mesada maior.
— E, Bertie, há algo que possa fazer por você?

— Já que está perguntando... há, sim. O senhor


conhece o famoso Gentleman Jack, não é? — Viu lorde
Jarred assentir. — Poderia me dar uma recomendação
para ele? Sei que apenas dá instrução a pessoas bem
recomendadas. Não sou um principiante, e gosto muito
de boxe!
— Está feito. Quer que recomende você também,
Nichols? Sei que posso convencer Jackson a receber
ambos.
— Se não for pedir demais.

115
CAPÍTULO XVIII

Ao entrar na sala azul, Livy viu que Zelda, se


movimentava agitada, estava a ponto de fazer cair o
biombo chinês. Conseguiu segurá-lo por um milagre.
— Zelda, querida, acalme-se, por favor!
— Graças a Deus, srta. Livy! Receava que não
estivesse em casa. Ou que lorde Galway estivesse! Por
favor, não pense que sou tola, mas não sabia para onde
ir!
— Livy, preocupada, colocou a mão sobre a testa de
Zelda, para ver se revelava febre.
— Srta. Livy, por favor, não podemos perder um
segundo! Jack está aqui, na rua. Está fora de si ou
talvez devesse dizer que voltou a si, depois que
Sharkes bateu em sua cabeça. Agora ele sabe quem é,
sabe quem é a senhorita. Mas precisei explicar-lhe que
a guerra acabou, e ele não se lembra de outras coisas.
Não sabia para onde levá-lo.
— Está machucado?
— Sim, na cabeça.
— Agiu certo. Felizmente, lorde Galway não se
encontra. Se Helen chegar de repente... Agora, vá
buscar Jack!
Não foi necessário. Perdita e Eugênia entraram
apressadas, sustentando o primo.
— Veja só, Livy, ele voltou para casa! — anunciou
Perdita, com olhos que brilhavam pela excitação.
— Fale baixo, querida.

116
A moça fitou a prima, surpreendida com a reação. Livy
sabia que precisava dar muitas explicações a Perdy,
mas agora queria abraçar o irmão.
— Livy, querida, tudo é tão esquisito — falou Jack rindo
e beijando-a. — Achei que ficaria exultante. Parece que
todo mundo pensava que eu tinha morrido. Foi o que
disse a jovem senhorita. Ah, aqui está ela! — Sorriu
para Zelda. — Pensei que tivesse ido embora! — Virou-
se mais uma vez para Livy: — E desculpe por aparecer
sujo como estou.
— Como foi que você voltou para Londres? —
perguntou Eugênia, segurando um braço dele.
— Juro que gostaria de saber — respondeu Jack. —
Sei que estava no meio da luta e, de repente, acordei
no parque, em Londres. A única pessoa que sabe
alguma coisa é a srta. Zelda.
— Meu nome é Zelda — ela corrigiu com voz irritada.
Eugênia e Perdy trocaram um olhar preocupado.
— Está bem, Zelda — repetiu Jack sem se alterar.
Observou aquele rosto. Uma coisinha tão linda, que
ainda ia crescer e que com o tempo se transformaria
numa verdadeira beleza.
— Esta é a sua casa, Livy? — perguntou, admirando a
sala de visitas azul, com seu belo mobiliário
Chippendale.
— Não, pertence a Helen, lady Galway. Não é o caso
que ela ou lorde Galway vejam você nestas condições.
Suba, Eugênia e Perdita o acompanharão. Preciso falar
com Zelda. — Recomendou às primas não deixar que
alguém visse Jack. Virou-se para Zelda em seguida: —
Querida, quer me contar o que aconteceu?
Zelda contou tudo, inclusive a luta com Sharkes.
— Céus, então aquele homem está aqui? — Livy ficou
preocupada: Jack poderia ser identificado como um dos

117
bandidos. — Vamos inventar uma justificação plausível
para os Galway. Ao menos, ele recuperou a memória!
— Não sei se isto é muito bom — observou Zelda, à
beira do desespero. — Ele não se lembra mais de mim.
— Não chore!
— Ele nem lembra meu nome. Zelda! Não é meu Jack,
o Jack que eu amava. Está tudo acabado. Eu o perdi!
— exclamou com expressão trágica.
— Ele parece apenas um pouco confuso. Não se
desespere. Logo, ele se lembrará de você. Ele a ama!
— Talvez — foi o comentário de Zelda e enxugou os
olhos. — Sou uma tola. Ele me chamou de coisinha
linda e achou que montava muito bem. Mas continuou a
me chamar de criança!
— Quem faria uma coisa dessas? — Helen entrava.
— Oh, Helen — exclamou Livy. — Precisava mesmo
vê-la. A situação está confusa, e você é a única pessoa
que pode endireitá-la!
— Segurou o braço da amiga e levou-a para o corredor.
— Vou embora, srta Livy. Lady Winifred deve estar
preocupada. Despeça-se dele por mim — pediu a
mocinha.
— Não se preocupe, Zelda. No fim tudo dará certo.
— Despedir de quem? E por que ela está chorando?
— É por causa de seu primo, Helen. — Tomou o braço
da amiga, obrigando-a a subir a escada. — Lawrence
Finch!
— Mas eu não tenho primos... sou órfã e sem parentes!
— Agora você tem um primo, Helen... Pelo amor de
Deus, onde vai? — perguntou Livy a Jack, que saía de
um quarto, apesar dos esforços de Eugênia e Perdita.
— Acho que irei ver Gentleman Jack e depois ao
Manton's. — Estava impaciente para voltar aos velhos
hábitos londrinos. — E não posso me mostrar nestas

118
condições: pretendo ir até Weston ou Davidson e
encomendar alguns trajes.
— Não pode.
— Por que não?
— Por que levou uma pancada forte na cabeça e não
pode andar por aí, simplesmente. Terá de esperar.
— Então, irei amanhã.
— Não. Precisa adiar por tempo indeterminado. Você
não pode ser visto na rua, Jack. E, Helen, este é seu
primo Lawrence Finch.
Jack protestou por dez minutos contra os planos da
irmã, que julgava desmiolados. Livy deixou que falasse.
Quando o rapaz se calou, contou-lhe, com calma, como
o reencontrara.
— Eu, um salteador? — ele não podia acreditar. — Está
dizendo que eu assaltava carruagens?
— Sim, e foi Zelda quem o fez desistir.
— Zelda? Ah, sei. Ainda está aqui? Não? É muito
novinha para se aventurar desacompanhada pela
cidade. E mesmo se fui um bandido, não vejo por que
devo fingir ser o primo de Helen.
Jack era, por natureza, franco e aberto, o que tornava
ainda mais difícil convencê-lo da necessidade de tantos
subterfúgios. Desconhecia o detalhe da deserção. Livy
precisava ser enérgica e deixar claro que devia
permanecer escondido.
— Os salteadores são enforcados — argumentou. —
Você não pode arriscar ser reconhecido na rua. Existe
uma recompensa por sua cabeça.

— Devo ter sido um salteador muito audacioso —


comentou Jack. — Quem ofereceu a recompensa?
— O marquês de Jarred.

119
— Provavelmente, um sujeito barrigudo, com três
papadas, que perde constantemente os botões do
colete.
— Ora! — Livy se mostrou escandalizada. — É
considerado um dos homens mais atraentes de
Londres. E pare de desconversar! Helen consentiu em
fingir que você é seu primo Lawrence Finch e lembre-se
disto!
Quando lady Galway se encontrou a sós com Livy,
manifestou dúvidas sobre sua própria capacidade de
atuação.
— Helen, por favor, é necessário! Prometo que não
será por muito tempo, só até que se esqueçam dos
salteadores.
— É tão difícil mentir, Livy! Por que não podemos contar
tudo a Henry?
— Impossível! Ele poderia dar com a língua nos dentes,
sem querer. Prometa que não vai lhe contar nada. Seria
o fim de Jack.
— Meu Deus, não quero isto! Está bem. Só espero
conseguir convencer Henry dessa história maluca!
Mais tarde, quando explicou ao marido as
circunstâncias peculiares da chegada do "primo",
começou a ter medo.
— Você diz que ele apareceu sem avisar? — perguntou
lorde Galway, estupefato. — Que falta de educação!
— Não avisou, mas é uma pessoa polida.
Lorde Galway, que já se sentia pouco à vontade com
tanta gente se movimentando em sua casa, não se
alegrou com a chegada de mais um.
— Não sabia que você tinha parentes.
— De fato, não tenho, exceto Lawrence. Não fique
zangado!
— Estou apenas contrariado, não zangado. Não
consegui aquele cavalo baio que queria.

120
— Pobre Henry! Quer um pouco de clarete? Gaston
está preparando seu pastelão preferido de carneiro.
O cálice de vinho e a perspectiva de um excelente
jantar o apaziguaram.
— De onde é seu primo?
Helen não sabia o que dizer. Não recebera sugestões
nesse sentido: — De lugar nenhum — improvisou. —
Esteve viajando.
— Não diga? Onde?
— Acho que na África ou será que foi à América? Não
sei ao certo.
— Preciso perguntar. Até que não é má ideia ter mais
um homem em casa, confesso que começava a me
sentir um pouco sufocado pelo elemento feminino.
Talvez ele queira ir comigo ao White's esta noite.
— Ah, ele não pode — disse Helen, sem pensar, depois
começou a procurar uma justificativa.
— Por quê? — insistiu o marido, contrariado.
O que havia com Helen esta noite?, pensou.
— Porque ele é um jogador. Viciado, mesmo. Não deve
chegar nem perto de uma mesa de jogo.
— Está brincando?
— Não. Ele se sente atraído pelo jogo e quer se livrar
do vício. Foi por isto que permiti que ficasse. Ah, sim,
Henry. Há uma coisa que pode fazer por ele: emprestar-
lhe algumas roupas.
— Roupas? — Lorde Galway engasgou com o vinho. —
Ele não tem?
— Não. Vendeu tudo para pagar suas dívidas. Isto me
convenceu da seriedade de seus propósitos.
O dono da casa admitiu, a contragosto, que talvez
pudesse encontrar algumas peças de vestuário para o
primo da esposa.
— Como é mesmo o nome dele?
— Lionel — informou ela, distraída.

121
— Lionel? Você não disse Lawrence?
— Disse, mas às vezes o chamo de Lionel. Uma
brincadeira da infância — falou Helen, quase histérica.
— Você acha que poderia encontrar alguma coisa para
Lawrence usar ao jantar?
Lorde Galway escolheu algumas peças para emprestar
a Lawrence. Mais tarde, teve de reconhecer que
aquelas roupas caíam melhor em seu hóspede que nele
mesmo. E, sem saber por que, se surpreendeu ao
reconhecer que o primo de Helen era alto, bonito e
simpático. Notou que sorria muito, especialmente para
as mulheres, e até para Helen.
— Fale-me da América — pediu o anfitrião, dando uma
garfada de seu pastelão preferido. Vendo a surpresa do
outro, de garfo no ar, continuou: — Você não viajou por
lá? Foi o que Helen disse!
— Ah, não, estive na Índia. Helen deve ter confundido,
é claro — e sorriu para a anfitriã. — A Índia, senhor —
explicou a Henry. — Tem duas características
principais: o calor e as vacas.
— Vacas?
— Pois é. O gado tem liberdade de ir para onde quiser.
É impossível sair de casa sem trombar com uma vaca.
— Que estupidez!
— Concordo plenamente. Foi por isto que vim embora.
Livy se apressou a mudar de assunto e começaram a
falar na festa de lady Coverly, na quinta-feira.
Quando as damas se retiraram, Jack permaneceu com
lorde Galway para experimentar um conhaque.
— Excelente, realmente de primeiríssima qualidade —
apreciou o convidado e lorde Galway ficou envaidecido.
— O que se bebe na Índia? — perguntou.
— Toma-se chá, sobretudo. Mas também clarete,
quando há, e sherry. De qualquer forma, as bebidas, ali,
não se comparam com o clarete e o sherry que Helen

122
me fez experimentar esta tarde. — Lorde Galway teve a
impressão de que sua adega estava a ponto de ser
esvaziada.
— Como você e Helen são primos?
— Como todo mundo. Temos um avô em comum.
— Mas são primos-irmãos ou primos em segundo grau?
— Confesso que não sei — respondeu Jack, bem-
humorado. — Nunca entendi a técnica de calcular estes
graus. Por exemplo, o filho de um primo-irmão vem a
ser um primo em segundo grau ou um primo afastado?
— Um primo-irmão afastado.
— Tem certeza?
— Ah... Não, não tenho — admitiu lorde Galway.
— Está vendo? — Jack abriu um sorriso radioso. —
Confesso que não estou disposto a me aventurar nesse
labirinto.
— Mas você deve saber se são primos-irmãos!
— Não somos primos-irmãos. Talvez, primos em
segundo grau. Ou terceiro, quem sabe? — Jack ergueu
os ombros. — Acredito que até Helen concordaria que
nossa árvore genealógica é um pouco confusa.
— Nem sabia que havia uma árvore genealógica!
— E não está satisfeito, agora que a descobriu?

Quando se reuniram com as damas, Jack conseguiu


convencer Perdita a tocar o piano e começou a valsar
com Eugênia. Ao vê-lo, ninguém poderia imaginar que
aprendera a nova dança com Livy, poucas horas atrás.
— Só precisa praticar um pouco, Eugênia — declarou
ele, alegre. — E poderá dançar a valsa com perfeição.
— Com você parece simples — ela admitiu.
Lorde Galway quis dançar com a esposa, e Livy se
sentiu aliviada: a primeira noite parecia ir muito bem.
Depois houve uma troca de parceiros. Lorde Galway
teve a impressão que o hóspede apertava sua esposa

123
um pouco demais que o permitido, mesmo entre primos.
Ficou tão aborrecido, que perdeu o compasso e pisou
no pé de Eugênia.
— Preciso admitir que dói — confessou Eugênia a Livy,
mais tarde, quando iam dormir.
— Não é grave! Estranho! Henry não costuma ser
desajeitado.
— Ele está com ciúme de Jack — afirmou Perdita. —
Estão casados há apenas dois meses e, às vezes, os
cavalheiros recém-casados tendem a interpretar as
coisas de forma errada.
— Era só o que faltava — suspirou Livy.
Foi falar com o irmão, chamando-lhe a atenção por
causa do comportamento.
— Sempre me comportei direito, Livy, em toda minha
vida, exceto quando era salteador! — ele protestou.
— Quieto, pelo amor de Deus! Seja prudente,
especialmente com Henry. — Apanhou um colete cor
de violeta. — Você vai usar isto?
— De jeito nenhum. Se entrasse com isto no White's,
todo mundo morreria de rir. Mas fale-me de Zelda, Livy.
— É pupila de lorde Jarred e aluna da escola da srta.
Payne — resumiu a moça.
— É muito novinha.
— Tem dezesseis anos. Completará dezessete antes
do fim do ano.
— Uma criança! — Jack sacudiu a cabeça.
— Zelda é uma jovem dama que, em várias ocasiões,
mostrou uma notável presença de espírito.
Livy então contou como a menina o ajudara na floresta,
avisando-o de que havia uma recompensa pela sua
captura.
— Ela fez isto? Ah, sim, passou-me a impressão de ser
destemida e decidida. A caminho, mandou-me calar a
boca todas as vezes que queria falar. Mas o tutor de

124
Zelda, imagino, não aprovaria se um bandido se
interessasse por ela, não é?
Livy refletiu que ambos se encontravam presos na
armadilha do passado dele, de salteador. O marquês se
oporia, sem dúvida, a um relacionamento entre sua
pupila e um ex-bandido, e também não estaria disposto
a se casar com a irmã deste. E havia a deserção.
— Encontrei o medalhão que lhe dei antes de partir —
comunicou Jack. — Não consigo entender como estava
comigo, de qualquer forma ficará melhor no seu
pescoço que no meu! — Fechou a correntinha na nuca
de Livy.
— É tão bom que esteja aqui, Jack — ela murmurou,
emocionada.
— Apesar da confusão? — ele perguntou.
— Apesar de tudo. — Ele a beijou com um estalo na
fase e consultou-a sobre qual paletó de lorde Galway
deveria usar.

CAPÍTULO XIX

Quando o marquês de Jarred chegou em casa, seu


criado pediu para ser dispensado.
— Todos sabem que cuido do senhor e se o senhor
insiste em se mostrar em público deste jeito, sou
obrigado a me esconder pela vergonha! — exclamou,
apanhando as roupas para levá-las ao incinerador.

125
— Gostaria que reconsiderasse, Walter — pediu o
patrão na manhã seguinte.
— Já fiz isto, senhor — respondeu o criado. — Não
será necessário queimar as botas. Podem servir para
pescarias.
— Muito seco! Disse que está muito seco? — Lorde
Galway ficou imóvel, segurando a caixinha de rapé.
— Sim, senhor. Está um pouco seco — repetiu Jack,
depois de farejar cuidadosamente a pitada de rapé que
segurava entre dois dedos.
— Engano seu — afirmou o lorde, inalando uma porção
gênero sa sendo tomado por violento ataque de
espirros.
— Viu? — exclamou o hóspede. — Um tiquinho mais
úmido e não estaria espirrando agora.
Lorde Galway agitou a mão e fechou a caixinha de
Sévres com um estalido seco.
— Cuidado! — avisou Jack, alarmado. — Parece uma
caixinha muito preciosa.
— O senhor não precisa me informar sobre o valor do
que está em minha casa. E isto vale também para
Helen.
— Helen?
— O senhor acha que sou tolo? Passou a manhã inteira
louvando a beleza e amabilidade de minha esposa.
— Palavra, foi apenas um elogio!
— Pois achei uma impertinência!
Jack se lembrou das recomendações de Livy e se
calou. Detestava qualquer tipo de impostura. Antes de
ter tempo de pensar numa resposta apropriada, sem
revelar sua precária situação, chegou lorde Jarred. O
marquês logo percebeu a tensão no ar. Desculpou-se
por chegar numa hora inoportuna.
— É bem-vindo! — exclamou lorde Galway. — Quando
chegou?

126
— Ontem à noite. — Observou Jack com discreta
curiosidade, e o anfitrião o apresentou.
Jack achou graça em conhecer o homem que
prometera uma recompensa pela sua captura. Sua
curiosidade aumentou quando soube que ele viera na
esperança de ver Livy, que infelizmente fora às
compras com Helen.
— O senhor conhece Livy há muito tempo? —
questionou, assumindo seu papel de irmão mais velho.
O marquês, levemente surpreso, respondeu que não.
— E o senhor a conhece? — perguntou, observando
atentamente aquele rapaz jovem e bonito.
— Sim, eu a conheci, e também suas primas, por
intermédio de Helen, na escola. É encantadora.
— Sim — concordou o marquês. — Como não está, irei
embora, Henry. Nos vemos esta noite no Almack's.
— É provável. Saio com você... Vou ao clube.
— Deixo-o lá — ofereceu o visitante. — Quero ir até
Portman Square para ver Zelda.
— O senhor está falando de Zelda, sua pupila?
O marquês observou Jack por cima do ombro, irritado
ao notar que este os acompanhara até o hall.
— Sim. Imagino que, sendo tutor dela, tenho o direito
de visitá-la, não acha? — Desta vez, Jack ficou mudo.
— Sujeitinho presunçoso — resmungou Galway,
enquanto ambos caminhavam. — Me desculpe pela
presença dele. Não tinha o direito de interrogar você!
— Ele parece muito interessado no bem-estar das
pessoas que dependem de você, Henry. Ele é primo de
Helen?
— Foi o que ambos me disseram.
— E você tem dúvidas?
— Tenho. Quando nos casamos, ela afirmou que era
órfã, sem qualquer parente. E agora surgiu este primo.

127
— Por que Helen afirmaria que é primo dela, se não é?
— o marquês Jarred perguntou, suavemente.
Lorde Galway, apesar de carrancudo, ainda não estava
a ponto de confiar seus receios a respeito da esposa.
— Não sei, mas não gosto da história, nem dele!
O marquês o deixou no clube e continuou até a
Portman Square, onde Winifred se revelou
ocupadíssima com os preparativos do baile a fantasia
de sexta-feira. Disse, animada: — Já que você voltou,
conto com sua presença!
— Se você convidou Livy, virei com o maior prazer.
— Estou tentando avaliar até que ponto seria chocante
se permitisse que Zelda participe do baile — refletiu a
prima.
— Zelda?
— Por favor, Richard, não tome atitudes estúpidas
comigo. Estou organizando a festa em parte por causa
dela. Ela me parece estranha!
— Acha que está para aprontar alguma coisa?
— Não, isto seria fácil de controlar. É algo que não
consigo definir. E não me chame de mulher suscetível.
— Não ousaria. — O marquês respeitava muito as
intuições da prima. — Perguntou a ela se há algo
errado?
— Indiretamente. As perguntas devem ser cautelosas.
— Hum. — Ele se lembrou do sr. Finch. — Onde ela
está?
— Praticando piano.
Na sala de música, Zelda o abraçou com alegria. O
tutor notou o "algo diferente" de que falara Winifred.
— Conte-me tudo — pediu o marquês quando a prima
se afastou. — Por que está preocupada?
— Não estou preocupada, milorde.
— Você já tem idade para me chamar de Richard.

128
— Só conto dezesseis anos — ela informou, com um
sorriso triste.
— O que é isto? Só dezesseis? Há poucos dias você
achava que era idade suficiente para se sentir caduca.
Agora fala como se fosse um nenezinho.
— Algumas pessoas acham que sou.
Ele esperou que ela se abrisse, mas Zelda se calou.

— Vejamos, talvez esta notícia possa alegrá-la.


Winifred oferecerá um baile. Se você for capaz de
colocar um sorriso em seu rosto, poderá dançar
também. Se continuar trágica, terá de ficar em seu
quarto!
— Lorde Jarred! Richard! É verdade mesmo? —
exclamou a jovem batendo palmas.
— Claro que é verdade.
— Vou usar uma fantasia! Meu primeiro baile! Posso
dançar a valsa? — Seus olhos brilhavam pela
excitação.
— Claro que vai dançar a valsa e vai me reservar uma.
Sabe dançá-la?
— Sim, a srta. Livy nos ensinou na escola. O senhor é o
melhor tutor do mundo! — Abraçou-o com entusiasmo.
Ao sair da casa da prima, o marquês foi à academia de
Gentleman Jack, para avisá-lo da chegada de dois
rapazes.
— Os dois de Cambridge já chegaram, milorde —
confirmou Jackson sorrindo e acenou para um canto,
onde Nichols e Bertie se exercitavam. Espero que não
sejam verdes demais.
— Já tive piores... — respondeu Jackson, sempre
diplomático. — Vieram com o cartão do senhor.
— Sou-lhe muito grato. Acenou para os rapazes e saiu.
Resolveu comprar mais um par de botas, para que

129
Walter não se sentisse diminuído. Ia ao Hoby's quando
viu duas senhoras saindo de Fanchon.
Os caracóis castanhos e encantador chapeuzinho de
palha não conseguiam esconder um rosto que ele
conhecia muito bem. Livy!
Acelerou o passo e as alcançou no momento em que
subiam à caleça. Livy reconheceu a voz que lhe
desejava bom dia. Virou-se com um sorriso a lhe
iluminar o rosto. Ele também sorriu, com uma vontade
enorme de tomá-la nos braços. Então, viu o medalhão.
O sorriso se apagou como a chama de uma vela.
Aquele era o medalhão de seu antigo amor... Jack! Só
podia significar uma coisa: ela fizera a escolha. Preferia
o outro.
— Lorde Jarred, que bom vê-lo. — cumprimentou
Helen.
Ele teve de se controlar para manter a compostura.
— E também à senhora, lady Galway, e sua amiga, a
srta. Anthony. — A voz saiu fria e calma, como se
estivesse discutindo o tempo.
Livy sentiu-se desalentada diante daquele tom que não
combinava com o sorriso radioso de antes. Um segundo
atrás ele parecia feliz em vê-la, agora parecia detestá-
la.
— Pensamos que tivesse abandonado Londres pelo
resto da estação — continuou Helen.
— Negócios urgentes requeriam minha presença.
Felizmente, consegui resolver tudo e voltar para a
frivolidade.
— Voltou só por isto? — murmurou Livy, e ele não
soube se a pergunta era para ele ou para ela mesma.
Cada fibra de seu corpo doía pela vontade de abraçá-la,
mas o medalhão representava um obstáculo
intransponível.

130
— Não — ele conseguiu dizer, contendo-se. —
Fabersham tem um cavalo que pretendo comprar e
poderá substituir o árabe que foi leiloado na minha
ausência.
— O senhor parece muito exigente no que se refere aos
cavalos.
— Sou exigente a respeito da maioria das coisas que
aprecio — ele respondeu, fitando-a de maneira
expressiva.
Livy enrubesceu e se calou. Uma de suas mãos agarrou
o medalhão, como a procurar conforto. O sorriso de
lorde Jarred se tornou rígido. Helen tentou salvar a
situação.
— Henry é igualzinho. Ficou muito perturbado porque
meu primo, que veio me visitar, se apoderou de suas
pantufas preferidas ontem à noite.
— Henry já me contou isto — o marquês sorriu.
— Vocês se encontraram?
— Sim, estive hoje cedo na Cavendish Square e
conheci seu primo. As senhoras não se encontravam.
— Madame Fanchon é uma perfeccionista. Insistiu em
mais uma prova para o vestido que fez para Livy.
— Deve ser uma ocasião muito especial — ele
comentou, observando a caixa no assento da caleça. —
Fanchon é terrivelmente dispendiosa.
— Dispendiosa demais para uma professora? —
perguntou Livy, com certa ironia.
— Eu não queria insinuar... — ele começou, confuso.
— Melhor assim — ela interrompeu. — Porque não
estou interessada em suas insinuações. — Subiu na
caleça e se sentou, de frente para Helen. — Bom dia,
lorde Jarred.
— Bom dia — ele respondeu com as costas rígidas.
Livy não sabia por que tomara aquela atitude. Por dias
a fio imaginara o momento de revê-lo, e ouvir-lhe a voz

131
a deixara feliz. Ele também parecia feliz até que, num
instante, tudo mudou. Tornara-se frio. Por quê?
— Vai ver, foi apenas uma questão de veneta —
justificou a amiga quando consultada a respeito. — Às
vezes, quando um cavalheiro percebe que está ficando
mais apaixonado, luta contra. Ele deve estar se
preparando para pedir sua mão.
— Não creio que seja isto — respondeu Livy, mal-
humorada. — Ele já pediu minha mão.
— Já o fez? — Helen gritou tão alto que os cavalos,
nervosos, ameaçaram empinar. — Quando?
— Antes de sair de Londres.
— E você não disse nada! Se ele pediu sua mão, por
que está desse jeito? Livy, não... Você recusou?!
— Como poderia aceitar, sabendo o que Jack fazia? E
não passa dia sem que me arrependa de ter recusado o
pedido. Eu o amo, mas ele nunca compreenderia o que
aconteceu com Jack. Achei que se pudesse explicar.
Não adianta. Você viu como ele se mostrou frio.
— A recusa o deixou arrasado — comentou Lady
Galway. — Por isto foi embora e voltou, para conquistá-
la.
— Não acredito!
— Esteve em casa, logo cedo. Para ver você, é claro!
— Provavelmente queria falar com lorde Galway.
Quando chegaram à casa, entretanto, ela soube pelo
irmão que o marquês estivera ali para vê-la.
— Ele gosta de você, Livy. Conheço os sinais. Como
sou seu irmão mais velho, gostaria de saber mais sobre
ele.
— Pelo amor de Deus, Jack! Sou uma mulher adulta! —
ela protestou, guardando o vestido novo.
— Você o ama?
— Não é da sua conta! — retrucou Livy, irritada. — Não
quero discutir lorde Jarred.

132
— Acho que ele ama você.
— Por que pensa assim, Jack?
— Porque ficou muito decepcionado quando Henry
disse que você tinha saído e todo agitado quando o
interroguei sobre você.
— Como foi fazer isto? — ela gritou. — Por quê?
— Sou seu irmão.
— Está bem, mas ele ignora o parentesco. Deve ter
achado muito esquisito o primo de Helen fazer
perguntas.
— Eu não o interroguei de verdade. Só perguntei há
quanto tempo ele a conhecia e tive de explicar que
conheci você na escola, quando fui visitar Helen.
— Uma excelente ideia — ela murmurou com ar
ausente.
Pensava no que Jack dissera. Era possível que seu
irmão estivesse certo? lorde Jarred ainda a amava?
— Que lástima não poder ir com vocês ao Almack's
esta noite — continuou Jack, esperançoso.
— Ao Almack's? Nem pensar! É muito perigoso. Sei que
para você é um grande sacrifício ter de ficar em casa,
mas precisa ser discreto. E por que queria ir ao
Almack's? Você sempre fez pouco deste tipo de
reunião.
— Jarred irá.
— Tem certeza?
— Ouvi quando ele falou com Henry. Por falar em
nosso anfitrião, ele parece muito mal-humorado comigo.
Praticamente me enxotou da biblioteca.
— Muitos homens consideram as bibliotecas seu
refúgio.
— Ele não se incomoda quando Perdita está lá.
— Você fez alguma coisa para irritá-lo?

133
— Não. Elogiei seu vinho, sua esposa e sugeri que não
deixasse secar tanto o rapé. Creio que o marido de
Helen não gosta de mim!

CAPÍTULO XX

O relógio bateu onze vezes e Livy perdeu a esperança


de ver o marquês de Jarred. Ninguém, nem o próprio
lorde Wellington, podia entrar nos salões do Almack's
depois das onze.
— Poderá vê-lo amanhã — confortou-a Helen. — Lady
Coverly é a madrinha dele e não poderá faltar à festa.
Aqui, qualquer homem fica encabulado, sob os olhares
dos curiosos, enquanto o baile na casa da madrinha é
diferente. Você usará seu vestido novo da Fanchon,
como planejamos. Só um cego não o veria!
Livy sentiu-se grata por tais palavras, sobretudo porque
sabia que Helen estava aborrecida. Lorde Galway, que
sempre permitia à esposa dançar com os amigos, desta
vez a proibira. E ele mesmo, um bom dançarino, fora
para a sala de jogo.
— Com certezas lorde Galway não se importaria se
você dançasse com Roland ou com Dorian — comentou
Livy ao ver os dois irmãos.
— Não quero me arriscar. Nunca pensei que ele fosse
teimoso e não quisesse me ouvir. Tem uma ideia
ridícula sobre Jack, pensa que... é um flerte meu. Tudo

134
isto é idiota. Você não sabe o que eu faria para contar a
verdade.
— Só mais alguns dias — pediu Livy, acabrunhada pela
aflição da amiga.
— Espero que sim. — Helen soltou mais um suspiro. —
Não sei o que será do meu casamento, nestas
condições!
Helen não dançou com os dois irmãos. Roland notou o
progresso de Eugênia na valsa e não mediu elogios,
irritando-a.
— Ele fala como se antes eu dançasse feito um cavalo
— bufou.
— Por que não lhe pisei os pés, para ensiná-lo?
— Quieta — comandou Perdita. — Dorian está vindo e
imagino que não terei escolha. Vou ter que dançar com
ele!
Eugênia observou a irmã se afastando com o atraente
sr. Dorian Howell e lamentou que Roland não fosse
parecido com o irmão.
Dorian tivera razões para convidar Perdita, razões que
relutava a admitir. Nas graves circunstâncias em que se
encontravam, ele ou o irmão teriam de se casar
conforme o desejo do tio, para satisfazer os credores. O
pedido de Roly tivera um resultado negativo. Agora era
a vez dele.
— Ocorreu-me... — ele disse de repente. — Aliás, não,
pensei muito e não se trata de capricho. Preciso me
manifestar. — Ao ver a expressão perplexa da moça,
continuou: — Quer me conceder a honra de se casar
comigo?
— Casar? — repetiu Perdita e perdeu o compasso. —
Oh, Dorian! Seja sensato!
— Estou sendo sensato! — exclamou Dorian,
contrafeito.

135
— Não está, se pensa que me casaria com você. Que
ideia mais maluca! Brigaríamos continuamente. Você
sabe que é incapaz de guardar suas opiniões.
— Minhas opiniões?
— Você diz que não sei escrever uma crítica decente.
— Será que você precisa repetir a mesma coisa? Não
estamos falando em suas críticas. Aceita meu pedido?

— Não aceito, e você poderia ter escolhido, um


momento mais oportuno para fazê-lo!
— Se eu tivesse um pingo de juízo, não teria feito!
— Você recusou Dorian? — exclamou Livy quando
Perdita relatou o acontecimento.
— Está louca? — insurgiu-se Eugênia.
— De jeito nenhum — negou Perdita. — Meu juízo está
perfeito e foi por isto que o recusei.
— Perdy, Dorian é um rapaz brilhante! — disse
Eugênia.
— Muito brilhante! — Perdy franziu o nariz. — Roland e
Winifred também o acham brilhante, mas eu não o
quero para marido. Brigaríamos por tudo, até pelo uso
da biblioteca!
Num outro canto do salão de baile, os dois irmãos ainda
discutiam o assunto.
— Como foi que ela não aceitou? — resmungava
Roland. — Você tem certeza?
— Claro que tenho certeza! Não diria isto se não fosse
verdade.
O relato, palavra por palavra, deixou Roland agastado.
— Ela não quis dizer isso — concluiu, finalmente. — É
uma moça muito inteligente o que, às vezes, deixa as
mulheres um pouco esquisitas. Lembre-se de Winifred.
— Pois eu gostaria que tio Bramwell não tivesse feito a
escolha. Gostaria de nunca ter ouvido falar nela.

136
— Eu poderia afirmar a mesma coisa de Eugênia. Se
quiser, amanhã posso falar com Perdita sobre você.
— Amanhã? O que vai acontecer amanhã?
— Eu não avisei? Amanhã ela fará meu retrato,
montado em meu novo cavalo de caça. Iremos ao
parque cedo, quando a luz é mais favorável. Posso dar
uma palavra a seu favor!
— Então, transmita-lhe o meu adeus! — bufou Dorian.
Os dois rapazes saíram do baile e, pouco depois, o
grupo dos Galway também voltou para casa. Entre eles
só havia uma pessoa que tivera um sucesso: lorde
Galway ganhara cem libras no jogo e para ele isto
confirmava uma velha superstição popular: os
desafortunados no amor tinham sorte no jogo.
— Zelda, querida, você prefere ser um anjo ou uma
princesa dos contos de fadas? — interrogou lady
Winifred, olhando para a moça sentada a seu lado, com
o Morning Post no colo.
— Como assim? — perguntou Zelda, distraída.
— Para o baile a fantasia! Ambos os vestidos são
brancos e têm asas. Acho que a única diferença está
em saber se você prefere uma auréola ou uma coroa.
— O que a senhora achar melhor, lady Winifred.
— Neste caso, será Titânia, a rainha das fadas. É
melhor ser rainha que princesa. Titânia — continuou
lady Winifred, pedindo a atenção de Zelda que lia a
coluna dos mexericos. — É uma personagem de uma
peça de Shakespeare, Sonho de uma noite de verão.
— Aquela que se apaixona por alguém que usa uma
cabeça de jegue?
— Sim, mas não precisa se preocupar com isto —
tranquilizou-a lady Winifred. — Ninguém virá ao baile
usando cabeça de jegue. Pelo menos, eu espero!
Zelda não respondeu. Descobrira um pequeno
parágrafo interessante, encaixado entre as colunas de

137
mexericos sociais: na noite de terça-feira um homem
fora morto durante urn assalto na Estalagem Vermelha.
O ladrão era de meia-idade, altura, um metro e setenta,
e tinha uma cicatriz na face esquerda.
O estalajadeiro fora preso e depois liberado pela polícia,
por se tratar de um evidente caso de legítima defesa.
Ela leu a notícia duas vezes. Só podia ser Sharkes.

Agora, finalmente, Jack poderia se livrar de seu


passado de salteador. Precisava avisá-lo logo, porque
mesmo que ele tivesse lido a notícia, não se lembraria
de Sharkes e nem do nome da estalagem onde se
hospedara.
— Lady Winifred, a senhora precisa de mim para ajudá-
la nos preparativos? — perguntou. — Se não se
importa, gostaria de ir visitar a srta. Livy.
— Deixe-me ver, será melhor a sopa de tartaruga ou o
creme de agrião? — murmurou lady Winifred. — Visitar
Livy? Claro, querida, pode ir e leve um abraço meu.
Lembre a todos do baile a fantasia.
Zelda teve sorte, porque encontrou apenas Jack. A
casa dos Galway se mostrava quase deserta: Perdy
saíra-com Roly. Dorian, aproveitando a ausência da
moça, lia seus versos para Eugênia; Helen, depois de
mais uma desagradável discussão com o marido, se
deitara, acometida de enxaqueca, e Livy ainda dormia,
após a frustração da noite anterior.
— Sou o único a circular nesta casa — Jack anunciou,
alegremente, a Zelda. — Espero que não se importe!
— Não. Queria falar com você mesmo. Leia isto — e lhe
entregou a página do Morning Post.
— O nascimento da quarta filha dos Morrow? O que eu
tenho a ver com isto?
— Ali, não. Aqui. Era Sharkes, Jack. E está morto.

138
— Quem? Ah, o homem que Livy disse ser meu
parceiro?
— Vocês não eram parceiros. Ele forçou-o a ajudá-lo e,
quando você partiu, seguiu-o. Foi ele que o feriu na
cabeça, mas agora está morto e ninguém poderá ligá-
los.
Naquele momento, Jack via apenas um par de olhos
negros cheios de lágrimas pela emoção. Tirou do bolso
um dos bonitos lenços de seda de lorde Galway para
enxugá-los.
— Não chore, menina — murmurou emocionado. —
Estou muito grato por me trazer- esta notícia e por
todas as outras coisas que Livy falou que você fez por
mim. — Colocou um dedo sob o queixo dela e viu que
aqueles olhos eram ainda mais bonitos do que pensava.
— Serei eternamente grato, Zelda. E você é tão
novinha!
— Não quero sua gratidão e não sou tão novinha assim
— retrucou Zelda com paixão.
De repente, puxou Jack para si. Este, surpreso, abriu os
braços e Zelda ficou exatamente entre eles. O rapaz só
pretendia lhe dar um beijinho, como a uma criança, mas
ela não pensava assim. O beijo foi apaixonado,
demorado, e teve o efeito de um trovão: Jack lembrou
de outros beijos iguais.
— Zelda, agora consigo lembrar! — exclamou ele,
agitado. — Um córrego na floresta, você a cavalo...
— Sim!
— ...e depois no parque! Nos encontrávamos ali... para
nos beijar.
— Jack, estou tão feliz, você lembrou!
Voltou a beijá-lo. E continuaram assim por mais alguns
minutos.

139
Pela primeira vez, em muitos anos, o capitão Jack
Springer soube quem era e o que fazia. E Zelda teve a
certeza de que se lembrava dela e ainda a amava.
— E não é tudo — exclamou ele. — Lembro que
falamos em casamento! Precisamos cuidar disto logo,
antes que alguém me dê outra pancada na cabeça e eu
esqueça.
— Você esqueceu de lorde Jarred, meu tutor!
— Não, não esqueci. Conheci-o ontem. Um homem
atraente. Vou dizer a ele que não poderá se casar com
Livy, a não ser que eu me case com você!
E começou a planejar o estratagema a usar com o
marquês.
Numa outra sala, Dorian terminou de ler sua última
composição poética para Eugênia.
— Dorian! — suspirou a moça. — Que lindo!
— Também achei bom — ele concordou, satisfeito.
— Deve ter levado pelo menos uma semana para
compor!
— Não, apenas uma noite.
— Escreveu esse soneto em apenas uma noite? —
Eugênia arregalou os olhos.
— Vou confessar: escrevi dois sonetos. Não sei por que
senti necessidade de colocar as palavras no papel.
— Suas emoções por Perdy foram a inspiração!
— Perdy? — Dorian a fitou. — Por que Perdy? Ah, sei.
Ela contou...
— Sim. E se você mostrar seus poemas a Perdy, talvez
ela mude de ideia. São versos apaixonados!
— Não quero mostrar os versos a Perdy! Não os
escrevi para Perdy! Eu os escrevi para você, Eugênia!
— Mas são versos de amor, Dorian!
— Eu sei. Receio que estou apaixonado por você.
Eugênia percebeu que acontecia o que julgara
impossível: estava entre os braços de um homem que a

140
beijava e, em vez de repeli-lo, como teria feito com
Roland, correspondia. De fato, gostava muito daquele
beijo. Dorian foi quem falou primeiro:
— Ontem à noite, me senti furioso com Perdy e ao
mesmo tempo aliviado. Quando me sentei para
escrever, tudo ficou claro. Via você em minha mente!
Amo você, quero você e terei de agradecer a meu tio
por isto.
— Que tio?
Então, ele contou toda a história.
— Faço questão de afirmar que se pedi em casamento
Perdita pensando no dinheiro, quero você como esposa
porque a amo. Não pensei no dinheiro nem por um
minuto!
— Eu sei. No entanto, reconheço que há de ser um
bonito presente de casamento. A única coisa que me
preocupa, Dorian, é como explicaremos a Roly e
Perdy?
Ficaram a conjecturar como poderiam comunicar as
novidades. No mesmo instante, o outro casal se
encontrava no parque, feliz com sua proximidade.
Perdita, com seu bloco de desenho e o carvão, tentava
reproduzir no papel a essência de Roland, que se
vestira com especial magnificência para a ocasião.
Trabalhava com afinco há quase duas horas, quando
ele pediu licença para descansar, porque seu pescoço
doía.
— Céus! — ela exclamou, largando o bloco de
desenho. — Deve estar rígido, não está?
— Um pouco — ele admitiu, dando alguns passos. —
Minha perna está dormente, mas se caminhar um
pouco, passará.
— Vou massagear seu pescoço — sugeriu a jovem, e
ele se sentou na grama a seu lado.

141
Ela limpou os dedos sujos de carvão e passou a
massagear-lhe a nuca, após a remoção da gravata e a
abertura do colarinho.
— Está melhorando? — ela perguntou, sem
interromper.
— Ah, sim, muito melhor — respondeu Roland,
admirando os esboços. — Meu Deus, você me
desenhou como um daqueles cavaleiros nos
monumentos!
— Você é tão bonito como eles!
— Eu bonito? Você me deixa envaidecido. Dorian é o
mais bonito dos dois.
— Sim, Dorian é atraente, mas prefiro você, que é muito
mais acessível, eu acho. E o admiro por ter
permanecido duas horas no lombo daquele animal, sem
piscar. Seu irmão teria protestado depois de meia hora.
— É verdade, Dorian às vezes é um pouco difícil. Ele
me contou que você ontem recusou seu pedido de
casamento. Estava uma fera, resmungando que é a
moça mais insensata que conheceu em toda a sua vida.
Falei que isto era besteira, porque a considero a moça
mais sensata do mundo!
— É, mesmo?
— Claro que sim. Você tem inteligência e espírito. E
também é muito bonita.
— Não sabia que havia reparado em mim!
— Como poderia não reparar? Especialmente com
aquele vestido verde-maçã de ontem à noite. Deveria
usar mais essa cor. Realça seu colorido.
— Vou lembrar-me disto.
— Não quero impor as minhas opiniões.
— Mas eu gosto de suas opiniões. Se fosse Dorian
querendo me impor alguma coisa... Bom, acho que
ficaria com vontade de bater nele. Gosto da ideia de
aceitar suas opiniões, Roland.

142
Ele se virou. Seu pescoço não doía mais, entretanto,
desejava que ela continuasse a massageá-lo. Enquanto
a fitava, teve a impressão de que os olhos dela o
convidavam. Seria possível? Perdita Meredith, o "Crítico
Anônimo" em pessoa, não desejaria ser beijada num
parque!
Sentindo a cabeça muito leve, decidiu arriscar: apertou-
a entre os braços. Perdita também o abraçou com força
e a paixão presente naquele beijo os deixou trêmulos.
— Meu Deus, Perdita! Não queria fazer isto!
— Está arrependido?
— Não! — ele respondeu com toda sinceridade e, ao
notar o brilho nos olhos dela, sorriu. — Quero mais —
disse e encostou os lábios nos dela, encontrando-os
dispostos a cooperar.

CAPÍTULO XXI

Zelda e Jack invadiram o quarto de Livy, que tomava o


desjejum na cama, para mostrar o jornal e dar a boa
notícia de que ele recuperara a memória.
— Agora que Sharkes está morto — ele explicou. —
Posso reassumir minha verdadeira identidade: capitão
Jack Springer e esta é a futura sra. Springer.
— Céus, como você é apressado — exclamou a moça,
abraçando Zelda.

143
— Precisa nos ajudar a convencer Jarred, Livy! — pediu
Zelda.
Ela voltou a pensar na deserção de Jack. Ainda não
sabia de que maneira mencionar o assunto com o
irmão. A situação continuava desesperadora.
— Receio que minhas opiniões já não têm o mesmo
peso com seu tutor.
— Vocês brigaram?
— Não sei o que foi. Mas parece que ele mudou
comigo.
— Então, terá de dar um jeito e voltar como antes. Não
admito que minha irmã tenha o coração partido!
— Calma, Jack, não é isto. A situação ainda não está
segura. Não pode se mostrar em público, alguém
poderia reconhecê-lo. Estou falando de suas vítimas.
— Por quanto tempo teremos de manter esta farsa?
Detesto enganar Galway!
— Eu também, mas é só por mais alguns dias. Espero
que volte comigo para o Wiltshire. Pode ficar conosco
na escola e iremos alterar sua aparência. Talvez uma
barba.
Zelda gostou muito da ideia de Jack morando na
escola, e Livy desceu, deixando os dois a fazerem
planos. No salão de visitas dos Galway, recebeu a
notícia da nova formação de casais entre suas primas.
Naquela manhã, Cupido soltara um bocado de dardos!
Ao ouvir os relatos de Perdita e de Eugênia, ambas
felizes, afinal, com suas escolhas amorosas, Livy sentiu
uma ponta de inveja.
— Três casais num dia só! — exclamou Helen, mais
tarde. — E logo num dia destes estou com enxaqueca!
— Suas enxaquecas desaparecerão logo — a amiga a
consolou. — Voltaremos para o Wiltshire na segunda-
feira. Depois do que aconteceu, confesso que me sinto
feliz em retornar.

144
— Está pensando em lorde Jarred, não é?
— Anda lendo meus pensamentos, Helen?
— Não, mas gostaria de ler os pensamentos dele. Não
entendo o que aconteceu.
— Talvez tenha se apaixonado por uma outra moça —
respondeu Livy, fingindo indiferença. — Garanto que
ficarei muito ocupada num futuro próximo, preparando
os casamentos de Eugênia e de Perdita. E Jack estará
conosco.
Lady Galway, contudo, não se deixou enganar por
aquelas palavras.
O cavalheiro sentado perto da lareira, na sala de leitura
do White's, parecia inquieto: movimentava-se
continuamente, e só de vez em quando olhava para o
jornal. Voltou a soltar um suspiro e foi interpelado pelo
outro ocupante da sala.
— Está preocupado, Henry? — perguntou o marquês
de, Jarred.
— O quê? — lorde Galway pareceu surpreso de ver
outra pessoa. — Não queria perturbá-lo, Richard.
Desculpe.
— Parece que você não está se interessando muito
pelos jornais do turfe, e estranhei. O que há?
— Notei sua ausência no Almack's ontem. Helen e Livy
pensavam que você iria.
— Não tive a possibilidade de ir.
E por que iria?, pensou. Que adiantava ver Livy tão
bonita e inacessível? Devia se portar como cavalheiro e
se conformar com a situação.
— Mas você parece preocupado, Henry — continuou.
— Não diga que o primo de Helen continua usando
suas roupas?
— Não são apenas as roupas. Aquele demônio! Ele vai
usar minha mulher também. Nunca deveria ter me
casado!

145
— Que besteira! — observou o amigo, pasmo diante de
tais revelações. — Há uma semana você parecia o mais
feliz dos homens. Seu casamento não pode ter
naufragado tão rápido.
— Pois foi o que aconteceu. Agora tudo mudou para
pior, Richard. Não sabia o que sei agora.
O marquês, alarmado com a expressão do amigo,
tomou uma pitada de rapé.
— O que é que você sabe agora? — perguntou.
— Helen ama... aquele primo! Ela nega, no entanto, não
sou cego! Livy sabe e as outras também. Quando entro
na sala, elas silenciam.
— Helen não parece uma mulher que engana o marido.
— Sei o que sei, Jarred — afirmou Henry e soltou uma
risadinha. — Imagine só, contou-me que se trata de um
primo, Lawrence Finch. Na maioria das vezes, nem se
lembra do nome que inventou para ele. Uma vez disse
que era Lionel e ontem à noite o chamou de Jack!
— Jack! — O marquês se endireitou. — Tem certeza?
— Olhei para ela e disse que pensava que o nome dele
era Lawrence. Ela corou e se desculpou pela distração.
Aconteceu de novo após o jantar. Livy ajudou-a a
encobrir a confusão. Ele não é primo de Helen, deve ser
seu amante!
Seria possível que o falso primo de Helen é Jack, o
amor de Livy, fossem a mesma pessoa?, pensou o
marquês de Jarred. Sim, era possível que Helen
estivesse fazendo um favor à amiga.
— Você se engana, Henry — disse em voz alta. —
Helen não pode amar aquele homem. Sempre foi
apaixonadíssima por você.
Lorde Galway pareceu se animar um pouco, mas logo
se enfiou mais profundamente na poltrona.
— Isto era antes. Você só viu o rapaz uma vez, Richard.
É bonito como o diabo e tem muito charme. —

146
Suspirou. — Não sei o que fazer. Nunca tivemos um
divórcio em família.
— Divórcio? — repetiu o amigo, assustado.
— Não tenho escolha, não é mesmo? Desculpe, não
queria amolar você com minhas mágoas.
— Quando Livy voltará para Wiltshire? — perguntou o
marquês, para mudar de assunto.
— Na próxima semana segundo Helen me informou.
Pensei que ficaria feliz em ver todas elas irem embora,
porque teria minha esposa só para mim, mas ainda não
sabia...
— Anime-se, Henry. Por algum motivo misterioso, acho
que quando Livy for embora, o rapaz irá também.
Os dois homens se despediram, e o marquês voltou
para sua casa, onde Roland e Dorian chegaram em
seguida.
— Richard, você não vai adivinhar o que aconteceu! —
desafiou Dorian enquanto entravam.
— Falem logo! Estou morrendo de curiosidade.
— Vamos nos casar...
— Com Eugênia e Perdita.
— Como assim? — perguntou o primo. — No outro dia,
você, Roly, disse que Eugênia recusara seu pedido, e
você, Dorian, fez a lista de todos os defeitos de Perdita.
Você quer dizer que ela o aceitou, Dorian?
— Não, ela me aceitou — declarou Roland sorrindo.
— Você!
— Sim, Richard. Roly se casará com Perdita e eu me
casarei com Eugênia — explicou Dorian, rindo ao ver a
expressão do outro.
— Por Júpiter! — O marquês bateu a palma da mão na
testa. — Isto parece uma comédia do Drury Lane!
— Não é mesmo? Mas tudo entrou nos trilhos quando
compreendemos quem gostava de quem. Sabe? Você
está olhando para nós com a mesma expressão de

147
Winifred! Aliás, quando recuperou a palavra, ela contou
que, no começo, estava pronta para apostar que você
se casaria primeiro!
— Ela se enganou. E vamos celebrar com champanhe.
— Tocou a sineta. — Já falaram com o tio?
— Iremos vê-lo em seguida. Aposto que ficará satisfeito
— afirmou Roland, todo feliz.
Augustus Brarhwell ficou mais que satisfeito. Proibido
de tomar champanhe, brindou a ambos com vinho do
Porto.
— Quero que sejam muito felizes!
Os irmãos agradeceram, e Roland quis tirar uma
dúvida.
— Como foi que o senhor as escolheu para nós, tio?
— Tenho meus métodos, meus caros. Talvez um pouco
primitivos, mas bem-sucedidos, de qualquer maneira —
respondeu o sr. Bramwell, com um sorriso.
— Não sei, não... Eu poderia ter me casado com
Eugênia, se ela tivesse aceitado meu pedido.
— Contudo, ela não aceitou, não é mesmo? Eu não
expliquei a vocês que elas eram moças sensatas?
Agora me digam, como andam as coisas com Richard?
— Não muito bem — informou Roland, trocando um
olhar com o irmão.
— Na realidade, não sabemos — explicou Dorian. —
Ele não costuma discutir este assunto conosco. Uma
hora atrás, parecia muito indiferente.
— Espero que não estrague tudo — resmungou o sr.
Bramwell, irritado.
Quando os sobrinhos saíram, apanhou a miniatura na
moldura oval.
— Parece que ser casamenteiro é mais difícil do que eu
pensava, querida. Dois já se encontram a postos, o
terceiro, entretanto, se mostra arredio. O caso é mais
complicado do que eu pensava.

148
O marquês de Jarred não estava com vontade de ir ao
baile de lady Coverley, contudo, não queria magoar a
madrinha. Decidiu chegar cedo, cumprimentá-la e
desaparecer.
— A senhora está esplendorosa, madrinha — elogiou,
quando viu a aristocrática senhora de sessenta anos
com os cabelos tingidos de azul amontoados no topo da
cabeça, em forma de colmeia.
— Quis me pôr parecida com Maria Antonieta, que tal?
Para que dar tanto crédito aos franceses? Por que não
Maria, Rainha da Escócia?
Lady Coverley se afastou, rindo, e o marquês se
encaminhou para o salão de baile.
Num canto viu lorde Dumbarton, com alguns amigos, e
num outro espaço, Bertie e Nichols, sorridentes. Antes
que pudesse chegar até eles, foi interceptado pela srta.
Ashton.
— Boa noite, milorde! — cumprimentou a Bela, em seu
elegante modelo de seda azul, confeccionado por outra
costureira em apenas vinte e quatro horas.
Ele respondeu friamente, para indicar que não
esquecera o último encontro.
— Sua ausência foi muito demorada — ela murmurou,
abanando-se com o leque. — Seus amigos estavam
preocupados.
— Neste caso, terei de tranquilizá-los — ele respondeu
com a mesma frieza e ela corou.
— Uma amiga em especial — continuou a srta. Ashton.
— Durante a última festa no Almack's, a srta. Anthony
parecia definitivamente doente de preocupação.
— Que esquisito — começou o marquês ao enxergar
Livy naquele exato instante, bela como uma rainha em
seu vestido de cetim dourado. — Neste caso, a
recuperação dela foi milagrosa. Absolutamente não
parece doente.

149
A srta. Ashton empalideceu; ainda assim, não desistiu.
O marquês para ela era um caso perdido e queria
desfechar sua última maledicência. Perguntou se já vira
sua pupila. Ele assentiu, secamente.
— Da próxima vez, pergunte-lhe quem é o jovem que
ela costuma encontrar perto do rio Serpentine. Parece
um indesejável, talvez um revolucionário. Terá de
intervir depressa e dar um paradeiro na história
enquanto está em tempo! — E se afastou, com um
sorriso maldoso.
O marquês bufou. Queria poder revidar, mas tal atitude
seria de mau gosto na festa de sua madrinha.
Sobretudo, suspeitava que o mexerico sobre Zelda era
invenção de Sylvia para irritá-lo.
Livy, como muitos outros, observara a conversa
particular. Pela expressão que ele exibia no momento,
convenceu-se de que não podia estar interessado na
srta. Ashton. O lorde, por sua vez, precisou de muita
força de vontade para não se aproximar dela, e teve um
sorriso irônico ao ver outros cavalheiros se
acotovelando ao seu redor. Enquanto a observava
dançando com lorde Colbey, lorde Dumbarton se
aproximou.
— Foi tudo inútil, Jarred, tudo inútil — falou, agitando
um dedo no ar.
— O quê? — Dumbarton não podia estar falando em
Livy!
— A sua recompensa pela dupla da floresta de Epping.
Ambos desapareceram.
— Não me admira. Talvez tenham se arrependido ou,
quem sabe — continuou com um sorriso sarcástico. —
Se redimiram com a ajuda de uma boa mulher.
— Teria gostado de vê-los processados — resmungou
Dumbarton. — Mas não podemos ter tudo na vida, não
é?

150
O marquês não respondeu. Viu Nichols mais adiante e
lembrou-se de sua promessa. Elogiou o rapaz tão
eloquentemente que Dumbarton se mostrou surpreso
em saber que tinha um sobrinho tão sensato e
responsável. Winifred se aproximou e informou, ao
ouvido do primo, que lhe fizera um favor: reservara a
primeira valsa de Livy para ele. Richard Jarred não
queria dançar com ela, mas a lady se manteve firme.
— Se não quiser dançar com ela, vá informá-la
pessoalmente — falou, em tom cortante. — Não
entendo estes seus melindres, está com medo?
Jarred lançou um olhar enfurecido à prima, entretanto,
não vislumbrou saída. Foi dançar com Livy, sentindo o
perfume de seus cabelos e notando o brilho do
medalhão à luz das velas. Sentia-se irritado com
Winifred, tão intrometida!
— Disse alguma coisa, milorde? — perguntou Livy.
— Não. — Depois a fitou. Como sempre, os olhos dela
estavam misteriosos.
— Foi o que pensei — ela falou, decidida a não se
deixar intimidar pela frieza dele. — Mas não tinha
certeza e quis me certificar.
— A senhorita me acha menos falante do que seria
desejável?
— Recentemente, sim. Apesar de o senhor não ter a
reputação de ser um falastrão.
— Talvez tenham esgotados os assuntos.
— Pois é, talvez... — ela concordou e se lembrou do
que ele dissera em Hamptom Court.

Achou tolice dançar com alguém que obviamente não


desejava fazê-lo, alguém, que por motivos
desconhecidos a segurava com aversão.
— Sua propriedade de campo estava em ordem? —
perguntou, desconversando.

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— Não estive no campo e sim na floresta de Epping.
— Oh! — Ela controlou o susto.
— Pois é. Queria capturar um certo salteador e entregá-
lo à justiça. Procurei durante dois dias, mas encontrei
apenas o parceiro dele e o patife me comunicou que o
bandido que eu procurava não se encontrava mais na
floresta, que se arrependera dos crimes e havia partido.
Com sua amada — ele acrescentou de repente,
esperando uma reação.
Livy curvou os lábios num meio sorriso. Talvez Zelda
pudesse ser considerada a amada de Jack.
Para o marquês, tal aceno de sorriso possuía um
significado: ela sabia do que ele estava falando.
— Conheço seu segredo — ele murmurou,
suavemente. — Sei que é Jack. — Teve de segurá-la
para que não caísse. — Sei que ele é o salteador que
estávamos procurando.
— E o que vai fazer? — ela perguntou, sem conseguir
protestar ou se defender.
— Nada. Não vou entregá-los, pois sei até que ponto
você o ama — ele disse, com surpreendente violência.
— Jack não sabia o que fazia, quando assaltava — ela
tentou explicar. — Ele não é assim! — O sorriso de
Jarred era quase um esgar. — Como o senhor
descobriu?
— Não levei muito tempo, depois de conhecer os fatos.
O primo de lady Galway? — Sacudiu a cabeça. — Nem
Henry poderá acreditar nisto por muito mais tempo.
— Voltaremos em breve para o Wiltshire. — O sorriso
dele endureceu. — Gostaria que o senhor conhecesse
Jack.
Ela se assustou com a reação.
— De jeito nenhum! — foi a resposta dele.
Parecia tão zangado que ela se arrependeu de ter
falado. Não adiantava, pensou. Ele nunca se casaria

152
com a irmã de um bandido e ela não tinha o direito de
ficar desapontada.
A valsa terminou e lorde Jarred a fitou nos olhos.
— Apenas lamento, querida, que você o tenha preferido
a mim.

CAPÍTULO XXII

O relógio do hall bateu três horas Livy se virava na


cama, sem poder dormir. Jarred sabia que Jack era o
salteador, mas manteria o segredo e não se casaria
com ela, porque era irmã de um bandido. Sua própria
posição também era clara: nunca abandonaria Jack.
Não podia culpá-lo de toda aquela situação.
Sobrevivera milagrosamente aos perigos da floresta, e
ela apesar do que ouvira de Sharkes, não conseguia
acreditar que o irmão desertara do exército. Melhor nem
pensar nisso.
Voltar para a escola, para suas obrigações,
representava a solução mais sensata. Estivera feliz no
Wiltshire e voltaria a ser feliz ali.
O marquês passara a noite em claro: depois do baile da
madrinha, fora jogar no Watier. O céu clareava quando
retornou à casa, onde se fechou na biblioteca. Sem
vontade começou a ler o jornal do dia anterior,
esperando o desjejum
O mordomo anunciou um certo sr. Aubrey, um
estalajadeiro pouco amigo do asseio.

153
— Queria falar comigo? — perguntou o marquês, altivo.
— Quero, se o senhor é o marquês de Jarred. Vim
buscar a recompensa pelo salteador de Epping.
Quinhentas libras.
— Capturou o bandido?
— De certa forma, senhor. Sharkes está morto. A
notícia foi publicada no jornal de ontem.
— Não li o jornal. Conte o que aconteceu.
— Foi assim, senhor: o homem chegou na estalagem e
tomamos um trago. Queria visitar o quarto de um
hóspede. Não deixei. Começamos a discutir. Quando
ele puxou a faca, me defendi. As autoridades
reconheceram legítima defesa. O homem pretendia
roubar o que estava naquele quarto. Os pertences dos
hóspedes que desaparecem me cabem de direito.
— Sr. Aubrey, parece que o senhor realmente faz jus à
recompensa.
Aubrey sorriu, satisfeito. O marquês parecia um homem
generoso. Quem sabe pagaria mais.
— Tem um outro detalhe, senhor. O parceiro de
Sharkes não assaltará mais ninguém.
— Não diga que o matou, também!
— Não, senhor, foi Sharkes. Ele me disse, entre um
trago e outro. O parceiro queria ir embora, brigaram e o
homem o matou.
— Muito bem, sr. Aubrey, parece que o senhor tem
direito a duas recompensas.
Pouco depois, o estalajadeiro saía da casa com mil
libras no bolso. Na estrada, cruzou com lady Winifred,
que descia da caleça.
— Você conhece gente muito esquisita, Richard — ela
disse ao primo, na saleta do desjejum.
— Que bom ver você, Winifred. Deve-me quinhentas
libras.
— Está maluco?

154
— A recompensa, querida prima. Aquele personagem
esquisito veio aqui para receber. Os salteadores estão
mortos, e você não precisa me dar o dinheiro. Brincava,
apenas. Experimente um bolinho. Estão deliciosos.
— Obrigada. Vim vê-lo por causa dos planos de
casamento de Dorian e Roly.
— Já estão fazendo planos?
— Estão ansiosos. — Lady Winifred riu. — Roly quer se
casar logo, com licença especial. Dorian, que é
conservador, prefere a maneira tradicional.
— Qual é a dificuldade? Cada um a sua maneira!
— A dificuldade se encontra no fato de que as irmãs
Meredith desejam se casar no mesmo dia.
— Pare de se preocupar, Winifred. Deixe que resolvam
o assunto entre eles. Mas, já que está aqui, quero lhe
perguntar algo que se refere a Zelda. Ouvi um boato.
— Sobre Zelda? O que é?
— Parece que foi vista em companhia de um
indesejável.
— Ridículo! — insurgiu-se Winifred. — Quem ousa
caluniar uma menina inocente?
— O boato me foi referido pela srta. Ashton, e eu o
menciono porque, talvez, não tenha cumprido a
contento minhas obrigações de tutor.
— Richard, você sabe que Sylvia Ashton só quer
prejudicá-lo, quer se vingar desde o momento que
percebeu que você se interessava pela srta. Anthony.
O marquês descansou o garfo no prato. Winifred
esperou, mas o primo não abocanhou a isca.
— Sirva-se de mais um bolinho, Winifred — ele
ofereceu e ficou evidente que não queria discutir Livy.
— Uma pena você não ter mencionado antes o que
essa criatura disse. Teria evitado convidá-la. Tive de
fazê-lo porque se trata de pessoa muito conhecida.
Contudo, se eu soubesse, não a convidaria.

155
— Talvez ela não apareça. Eu também não estou com
vontade de ir.
— Você não pode fazer isto! Prometo que não o forçarei
a dançar com a srta. Anthony. E Zelda está tão
excitada! Ficará arrasada se você não for.
— Não pode ser tão importante para ela!
— Aos dezesseis, tudo é importante — sentenciou
Winifred. — Prometa, Richard! Por Zelda!
— Está bem, mas, cuidado — avisou o marquês. —
Não arraste Livy para perto de mim, senão...
— Não poderia fazê-lo nem que quisesse — Lady
Winifred riu.
— Todo mundo portará máscaras e ninguém conhecerá
ninguém.
As fantasias mais desencontradas circulavam pelos
salões de lady Winifred: imperadores romanos,
princesas, dominós. Zelda era uma encantadora Titânia;
Helen, Cleópatra, arrastando um marido fantasiado de
Marco Antônio. Livy, Perdita e Eugênia eram musas
sem nome, porque Eugênia achava difícil lembrá-los.
Sabia que Dorian ia se fantasiar de Remo e levou uma
hora a procurá-lo. Livy circulava tentando adivinhar
quem era quem. Reconheceu lady Winifred fantasiada
de Medusa, com a cabeça cheia de cobras, e tinha
certeza de que a mocinha que parecia uma fada
tratava-se de Zelda. Falou com ela e tirou a dúvida.
— Mas prometa que não contará a ninguém — pediu
Zelda.
— Prometo. Está se divertindo?
— Sim, demais! Dois cavalheiros já me convidaram
para dançar e aceitei. Também valsei. Jarred me deu
licença.
— Ele está aqui?
— Ali, está vendo? O dominó preto. Eu o reconheci
imediatamente por causa dos ombros. Só lamento a

156
ausência de Jack — continuou Zelda, observando Livy,
que olhava para os ombros do dominó. — Mas descrevi
minha fantasia e prometi contar tudo amanhã.

Zelda não precisou contar nada. Logo depois um


homem alto, fantasiado de elfo, desembarcou de uma
caleça de aluguel e entrou na mansão. Sentia-se
protegido pela máscara e tencionava partir antes da
meia-noite. Começou a procurar Titânia e viu que
dançava com um dominó preto. Sorriu ao bater no
ombro do parceiro de Zelda.
— Acho que esta dança é minha, senhor.
— Oh? E quem é você? — lorde Jarred perguntou,
soltando Zelda.
— Sou Oberon — revelou Jack. — Espero que o senhor
conheça bem Shakespeare. Titânia?
— Pode ir, altiva Titânia — disse o marquês, com um
sorriso que desapareceu ao ver as três musas sentadas
ali perto.
Zelda contara sobre a fantasia de Livy, e ele se sentia
contrariado, porque não conseguia deixar de olhar para
aquele lado. Afastou-se sem reparar na srta. Ashton,
uma Circe.
Zelda e Jack rodopiavam alegremente, embora ela se
sentisse na obrigação de censurá-lo.
— Isto pode ser perigoso!
— É o seu primeiro baile e não podia ficar longe — ele
explicou, com simplicidade.
— Sua fantasia é ótima. Como conseguiu?
— Com um velho colete e uma velha calça de Galway.
— É tão bom que esteja aqui! Mas não pode ficar muito.
— Ninguém descobrirá quem sou. Irei antes da meia-
noite. Não se preocupe, amor. Vamos dançar.

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Ao terminar a dança, se dirigiram ao bufê. Muita gente
se concentrara ali, entre outros a srta. Ashton.
— Chega de bolo, Zelda. Comi demais — disse Jack.
A srta. Ashton aguçou os ouvidos. Então, a fadinha era
Zelda? Transferiu para ela uma parte do rancor que
alimentava pelo marquês.
— Também comi demais. É que tudo parece tão
delicioso!
A srta. Ashton continuava a ouvir. A voz do
acompanhante lhe pareceu familiar. Quem seria?
— Vamos embora — sugeriu Zelda. — Não queremos
que alguém o reconheça. Poderia ser expulso, sem
convite!
A srta. Ashton continuou a mastigar sua coxinha de
lagosta. Então, o admirador de Zelda poderia ser
expulso, não é? Seria divertido! Com um risinho
maldoso, lembrou das palavras insultantes da mocinha,
no Wiltshire. Hora da desforra! Teria enorme prazer em
revelar que seu acompanhante era um indesejável.
Saindo do bufê, viu o casal parado e se aproximou.
Convidou Oberon a dançar e ele olhou para Zelda.
— Pode ir, é só uma dança — ela respondeu.
— Venha, Oberon — insistiu a srta. Ashton. — Sou
Circe.
— Ah, sim. Cantada por Homero. Costumava
transformar os homens em porcos.
— Correto.
A srta. Ashton pensou que não poderia ter escolhido
uma fantasia mais apropriada. Estavam se aproximando
da outra extremidade do salão, onde lorde Jarred
conversava com Galway.
— Devo receá-la, Circe? — brincou Jack.
— Vai descobri-lo num minuto. — Sorriu e arrancou a
máscara de Jack com um gesto tão violento que o
deixou chocado. Livy, sentada perto, gelou.

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— Perdy, é Jack — sussurrou Eugênia e o marquês
ouviu.
Levantou a cabeça. Livy se aproximava depressa, para
evitar que a srta. Ashton, que também tirara a máscara,
criasse um escândalo.
O marquês de Jarred a seguiu.

Livy temia que a qualquer momento alguém


reconhecesse Jack e lutava para abrir caminho entre as
pessoas. Lady Donaldby se encontrava a pouca
distância dele e o observara com sua lorgnette. Zelda já
se postava ao lado de Jack, tentando levá-lo dali.
— Aposto que você não quer que o vejam — disse a
srta. Ashton. — Especialmente seu tutor!
— Você não sabe o que diz! — retrucou Zelda.
— O que está acontecendo? — gritou alguém mais
afastado.
— Um penetra! — respondeu outra pessoa.
— Só isto? — gargalhou um janota. — Tragam-no aqui
para tomar champanhe!
Zelda ficou aliviada quando Livy apareceu entre os
curiosos.
— Srta. Livy... — começou a dizer, mas foi
interrompida.
— Ah, a srta. Livy — exclamou a srta. Ashton com um
sorriso malicioso. Está chegando no momento exato.
Pode ajudar a explicar quem é este indesejável.
— É um primo de lady Galway — respondeu Livy, altiva.
— Lady Winifred o incluiu em seu convite a lorde e lady
Galway, e não vejo o que a senhora tem a ver com isto!
— Está mentindo! — respondeu a srta. Ashton. — É um
indesejável. Eu ouvi quando ele conversava com Zelda!
— Quer dizer que, além de sua abominável grosseria, a
senhora também é bisbilhoteira? — perguntou Jack,
refeito.

159
— Venha — convidou Livy e tomou o braço dele. — A
srta. Ashton parece ter feito muita confusão por nada.
— Ele provavelmente é um criminoso — insistiu a srta.
Ashton.
— Se for, é um criminoso diabolicamente atraente —
gargalhou uma dama por perto.
Livy continuou a arrastar Jack. Esperava que ninguém
desse atenção à srta. Ashton e que não os parasse.
Teve de passar ao lado do marquês e evitou olhá-lo,
porque precisava puxar Jack para longe de Donalbdy.
Já se encontravam perto da saída quando mais um
obstáculo surgiu à porta: o major Hardin,
resplandecente em seu uniforme de gala.
— Jack! Jack Springer! — gritou e se aproximou.
Livy procurou desesperadamente uma saída. Hardin
não devia revelar Jack como desertor diante de Jarred e
de todo mundo. Colocou-se decidida na frente do major,
tentando pará-lo.
— Por favor, major Hardin, eu imploro... Se tiver um
pouco de caridade cristã...
— Caridade cristã? — O homem revelou perplexidade.
— Não entendo o que quer dizer, srta. Anthony. —
Olhou para Jack: — Sei que este é o capitão Springer e
que me sinto contente por revê-lo. Vejo que está bem e
em boa saúde. Poucos sobreviventes de nosso
regimento podem dizer a mesma coisa!
— Major Hardin, por favor! — implorou Livy.
— Já tinha desistido da esperança de revê-lo —
continuou Hardin. — Muitos bons homens
desapareceram na guerra.
Livy reteve o fôlego, à espera das palavras que
marcariam seu irmão como covarde na frente de todos.
— Estou feliz que um homem corajoso não tenha
morrido — declarou Hardin e apertou o rapaz num

160
abraço, que Eugênia mais tarde descreveria como
"esmagador".

CAPÍTULO XXIII

— Nunca vi nada igual! — proclamou o major Hardin


diante da audiência interessadíssima. — Este
cavalheiro é um herói. Lutou com valor, encorajando os
medrosos e recolhendo os feridos. Até perseguiu os
covardes que queriam desertar. A última vez que vi
você, Jack, perseguia aquele covarde do Sharkes!
O alívio de Livy foi imenso, enquanto o major dava
palmadinhas nas costas de Jack. Então, Sharkes era o
desertor e Jack o perseguira. Na luta, Jack batera a
cabeça, perdendo a memória. Sharkes se aproveitara
para convencê-lo de que o desertor era ele.
Tudo isso, de qualquer forma, representava o passado.
Sharkes estava morto e ninguém ia reconhecer Jack
como o salteador da floresta de Epping. Interrompeu o
relato do major para também abraçar Jack. Lorde
Jarred, que observara a cena, teve a impressão de
receber uma facada no peito. Virou as costas e se
encaminhou para o lado oposto do salão. Lady Winifred
abriu caminho entre os grupos, irritada porque alguns
convidados seguiam o exemplo da srta. Ashton e
arrancavam as máscaras de outras pessoas.
— Já informei a srta. Ashton que não é mais bem-vinda
em minha casa — explicou lady Winifred, sacudindo a

161
cabeça cheia de cobrinhas de barbante. — Agora,
gostaria que alguém me explicasse o que aconteceu.
— Lady Winifred — falou Livy, sorrindo. — Gostaria de
lhe apresentar meu meio-irmão, o capitão Jack
Springer.
— Meio-irmão! — exclamou lady Winifred. — Ora, ora!
— E meu noivo — interferiu Zelda.
— Seu noivo? — Lorde Galway, já bastante confuso
pela transformação do primo de sua esposa no meio-
irmão de Livy, ficou pasmado diante desta nova
revelação. — Então, ele não tinha nada com você? —
perguntou a Helen.
— Pelo amor de Deus, é claro que não — protestou
Helen. — Venha, vou lhe contar todos os detalhes. — E
o levou embora.
— Até que enfim tudo está às claras — disse Jack à
namorada.
— Ainda não — ela contestou. — Vamos ter de falar
com lorde Jarred. Estou decidida a me casar com você
e acho bom que meu tutor o conheça agora.
Encontraram o marquês ouvindo Bertie falar da luta
entre Black Bart e o Grego. Ao ver sua pupila chegar, o
marquês franziu levemente a testa. Porque Zelda se
agarrava com tal intimidade àquele sujeito?
— Você não pode falar a sério! — exclamou, quando
soube que eles pretendiam se casar.
— Mas, sim — retrucou Zelda, que já esperava por esta
reação. — Sei que o senhor pensa que sou muito
jovem, no entanto, sei o que quero. Amo Jack. E ele
também me ama.
— Então, é assim? — perguntou o marquês, incrédulo,
ao rapaz a sua frente. — Já pensou o que deve a Livy,
que ficou a esperar tanto pela sua volta? Como pode
abandoná-la?

162
— Jarred! — exclamou Zelda, escandalizada, mas Jack
não se abalou.

— O que o senhor diz é verdade, contudo, não creio


que abandono seja a expressão adequada. Sei que
devo muito a minha irmã e gosto muito dela. Entretanto,
pretendo viver minha vida!
— Sua irmã? — exclamou o marquês, e uma veia
começou a pulsar em sua têmpora. — Você disse, sua
irmã?
— É claro, minha irmã! — repetiu Jack, com a vaga
impressão de que o tutor de Zelda devia ser um pouco
maluco. — Na verdade é minha meia-irmã.
— Livy é sua irmã! — rugiu Jarred, descontrolado.
— Ela é — confirmou Jack para o nada.
O marquês já virara as costas e procurava a mulher que
amava. Encontrou-a ocupada em retirar as cobras da
cabeça de lady Winifred.
— Não são exatamente cobras — explicava esta. —
São feitas de barbante, que tingi e pintei.
— O efeito é ótimo, parecem verdadeiras, milady.
— Jarred! — exclamou lady Winifred, erguendo os
olhos. — Ainda está aqui? Pensei que tivesse ido
embora. O que lhe aconteceu? — perguntou. — Parece
desvairado!
Jarred agarrou ambas as mãos de Livy, que ainda
segurava uma cobrinha.
— Jack é seu irmão — disse ele. — Seu meio-irmão?
— É claro que sim — ela respondeu. — Deus do céu, o
que está fazendo, lorde Jarred? — exclamou, quando
ele a abraçou e a beijou.
Lady Winifred sorriu, satisfeita, e sugeriu ao primo que,
para namorar, poderia encontrar um lugar mais discreto.
E indicou uma saleta.

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— Por que você chegou à conclusão de que Jack era
meu amante? — perguntou Livy mais tarde, sentada,
com a cabeça no ombro dele.
— Foi uma ideia que começou a crescer — ele
explicou. — A sra. Fielding, no Wiltshire, aludiu a uma
grande dor em seu passado. Depois, Galway
mencionou um tal Jack, cuja morte partira seu coração.
O que mais poderia pensar? Cheguei à conclusão de
que se tratava de seu amante! — Beijou-a com carinho.
— E havia o medalhão que você usava. Fui um tolo!
— Nem tanto. Você descobriu que Jack era um dos
salteadores — falou Livy.
— Não era, não.
— Richard, você sabe que era! — ela arregalou os
olhos.
— O que sei é que uma dupla de bandidos Sharkes e
seu parceiro Justin, que estavam sendo procurados, se
encontram mortos. Posso provar que paguei a
recompensa prometida. Já notifiquei as autoridades. E
este é o fim da história.
— Você fez tudo isto, apesar de achar que Jack era
meu amante? Por quê?
— Não queria que você fosse infeliz. E, por falar nisso,
meu futuro ainda tem perspectivas muito precárias, até
que responda a uma pergunta.
— Então, pergunte — ela disse, sorrindo.
— Livy, meu amor — ele murmurou, fitando-a nos
olhos. — Pela segunda vez: quer se casar comigo?
Responda que sim porque não pretendo perguntar pela
terceira vez.
— Não será necessário, Richard, meu amor. — Livy
suspirou de felicidade. — A resposta, agora e em
qualquer momento, é sim!
— Então, você me ama um pouco? — ele perguntou,
com um sorriso que terminou num beijo.

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— Acredito que sim; milorde — foi a resposta comedida.
— Então, precisamos fazer planos. Temos casamentos
em ambas as famílias. E o que fará com a escola? Ou
tenciona ser a única marquesa a dirigir um instituto de
ensino?
— Já pensei nisto — ela respondeu, alegremente. —
Acho que vou encarregar Eugênia e Dorian da direção.
Há alguns dias, Eugênia me falou de novas teorias
educacionais de Dorian, e sei que ele gosta demais das
meninas. Será uma excelente solução.
— A escola da srta. Meredith para jovens damas?
— Não, meu amor. A escola da sra. Howell.
Uma semana depois, a Gazette publicou a notícia dos
próximos casamentos, do sr. Dorian Howell com a srta.
Eugênia Meredith, do sr. Roland Howell com a srta.
Perdita Meredith e de Richard, marquês de Jarred, com
a srta. Olívia Anthony. A leitura daquele parágrafo
trouxe um sorriso aos lábios de um velho casamenteiro.
Apanhou o pequeno retrato na moldura oval.
— Está vendo, srta. Payne? — murmurou. — Parece
que as jovens damas chegaram a um excelente
resultado.

FIM

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