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Anne Weale
O aventureiro Tom tinha uma vida inteira para viver, junto com a sua gente e ao sabor das águas
e do sol naquele cenário místico no mar das Antilhas. Mas a tutela de seus três sobrinhos trouxe
consigo como dama de companhia a misteriosa Sanchia, uma jovem viúva que não acreditava
mais na felicidade, pois o destino não lhe dera forças para romper com as amarras que a ligava
ao passado. Por que razão Sanchia vivia confinada naquele segredo? Que forças tinha aquele
mistério que a colocava em pleno silêncio, com medo da verdade? E que caminhos Tom teve
que percorrer para mostrar a Sanchia que o amor é a mais forte das emoções?
CAPITULO I
Alguns dias antes dos feriados do Natal, Sanchia foi convidada para jantar com Delia
Preston, a diretora do colégio. Nos últimos três anos, as duas tinham passado muitas
noites agradáveis juntas, algumas vezes nos aposentos da diretora, outras vezes no chalé
onde Sanchia morava, num lugarejo próximo.
Nenhuma das duas podia prever que aquele seria a última vez. Mesmo no fim da noite,
quando as primeiras notícias da tragédia perturbaram o sossego da reunião, Sanchia
jamais podia imaginar que aquele fato teria uma conseqüência duradoura para sua vida.
Delia era diretora há dez anos do internato para meninas, em Lingard, e estava agora
com cinqüenta e poucos anos. Sanchia não podia entender o motivo pelo qual ela não
casara, pois era uma mulher encantadora, que agradava a todas as pessoas que lhe eram
apresentadas. Entretanto, por razões que só ela conhecia, permanecera solteira, e parecia
muito satisfeita com sua condição. Embora despertasse o respeito entre as alunas e
professores do colégio, e podia ser severa quando era necessário, não havia nada de
chefona nela. Uma vez por semana, ia à cidadezinha mais próxima, onde penteava os
cabelos num estilo moderno. Tinha também um gosto excelente para vestir-se. Na
opinião de Sanchia, Delia se vestia com mais elegância que as mães que visitavam as
filhas no colégio com casacos de pele.
A sala de visita onde as duas conversavam ficava no alto de uma escada em curva, que
subia do vestíbulo do andar térreo. Essa parte do colégio parecia em tudo com uma
residência particular.
As alunas davam-se muito bem naquela escola. Muitas vinham de residências
igualmente bonitas, situadas nos arredores da cidade. Uma delas, a tímida princesa
Yasmin, morava num palácio mourisco. Outra era filha de um conde francês, e a casa
onde nascera era um dos magníficos castelos do Loire.
Sanchia nascera num sobrado modesto, de pedras cinzentas, nos arredores de Londres.
Sentia muita alegria por trabalhar numa sala revestida de madeira, com janelas altas,
que dava para um terreno amplo e arborizado.
Naquela noite — a noite da tragédia — antes do jantar, Sanchia apanhou as cartas que a
diretora ditara à tarde, selou-as e guardou as cópias no arquivo da correspondência.
Cobriu a máquina de escrever e passou a chave do telefone para a residência da diretora,
no andar de cima. Por último, foi ao armário onde guardava suas roupas e colocou as
cartas dentro de suas botas forradas. Se as colocasse na bolsa, podia esquecer de deixá-
las no correio quando fosse mais tarde para casa de bicicleta.
— Que noite tempestuosa! — comentou Delia quando sua secretária entrou na sala.
Embora as janelas estivessem fechadas com cortinas pesadas de veludo, podiam ouvir o
vento soprar com violência as folhas das faias que ladeavam a entrada do colégio,
enquanto gotas grossas de chuva batiam nas vidraças.
— Se a chuva não passar, você vai para casa no meu carro. Não pode voltar de bicicleta
com esse tempo. Você toma um sherry ou prefere um martiní seco?
— Um sherry, por favor.
Enquanto Delia servia a bebida, Sanchia aproximou-se da lareira. O colégio tinha
aquecimento central, mas, numa noite como aquela, era gostoso acender a velha lareira
de lenha e sentir o perfume delicado da madeira queimando.
De ambos os lados da lareira, espetados numa fita larga de veludo, estavam os cartões
de boas festas que Delia recebera dos amigos e conhecidos. Os cartões enviados pelos
pais das alunas estavam expostos no salão no andar térreo. Aqueles eram os cartões
pessoais, vindos de muitas partes do mundo.
Até então, Sanchia não recebera nenhum cartão de boas festas e não esperava receber
mais de meia dúzia até o dia de Natal. Durante um momento, a perspectiva de passar o
Natal sozinha deixou-a deprimida. Depois, lembrou-se de que não era a única pessoa no
mundo para quem o Natal seria um dia de solidão.
Em vez de sentir-se triste e abatida, devia dar-se por muito feliz. Muitas pessoas não
tinham nem mesmo o mínimo de conforto material e suportavam o frio e a fome, além
da solidão. Ela, pelo menos, podia desfrutar uma boa comida e uma garrafa de vinho,
sem falar que tinha livros e discos para passar o tempo alegremente. Sim — devia estar
agradecida. Para ela, o Natal seria um dia agradável.
Mesmo assim, como tudo seria diferente se...
A diretora, que estava com o copo de bebida na mão, percebeu o olhar tristonho no rosto
de sua secretária com um misto de pena e de perplexidade. Em geral, Sanchia escondia
seus sentimentos íntimos e não mencionava nunca o passado. Na maior parte do tempo,
dava a impressão de ter superado a crise que a atingira alguns anos antes, embora não a
tivesse esquecido completamente.
— Aqui está seu copo, querida. Agora sente-se no sofá e descanse um pouco. Foi um dia
muito agitado e você está com o rosto abatido.
— Ah, é? Pois olha, não estou me sentindo cansada — disse Sanchia quando as duas se
sentaram ao lado da lareira. Provou o sherry e sorriu para a mulher de idade com os
olhos castanhos tranqüilos e serenos.
Pouco depois, sentaram-se diante da mesa redonda de nogueira, onde os pratos estavam
cobertos para não esfriar. Tomaram primeiro a sopa bem quente, que foi acompanhada
por uma maionese de galinha e uma mousse de chocolate com creme fresco.
Durante o jantar, discutiram sobre o livro que as duas tinham lido recentemente.
Enquanto conversavam, Delia estava pensando consigo mesma durante quanto tempo
sua secretária levaria aquela vida isolada e solitária. Era bem moça ainda. No entanto,
sua existência era tranqüila e pacata, como a de uma mulher de meia-idade.
Depois do que acontecera, era natural que necessitasse de um período longo de
tranqüilidade para se recuperar completamente. Mas três anos não eram suficientes?
De um ponto de vista egoísta, Delia não gostaria de perder a secretária eficiente e
organizada. Entretanto, passara a gostar muito dela e, ultimamente, pensava que seria
preferível Sanchia levar uma vida mais normal, como as jovens de sua idade.
Talvez o que ela necessitava no momento era ser sacudida violentamente por alguém ou
alguma coisa. A tranqüilidade era algo desejável para pessoas de idade, mas não era
recomendável para uma moça saudável, de vinte e quatro anos, que tinha a vida toda
pela frente.
Depois do jantar, voltaram a sentar-se perto da lareira e continuaram conversando, até o
momento em que Delia olhou para o relógio e viu que estava quase na hora do noticiário
na televisão.
Enquanto aguardavam o programa, Delia desejou conhecer a história de Sanchia em
maiores detalhes. Suspeitava, às vezes, que havia algum fato importante que a moça não
contara no primeiro dia em que fora entrevistada. Talvez aquele fato — se sua opinião
era correta — fosse a chave para o coração fechado de Sanchia.
Foi então que começou o noticiário.
No primeiro momento, enquanto ouviam a notícia de um acidente ocorrido com o avião
que deixara o aeroporto de Roma, nenhuma das duas compreendeu imediatamente que o
desastre aéreo iria despertar nelas muito mais do que uma simples compaixão pelas
vítimas.
De repente, no momento em que o locutor passou à notícia seguinte, Delia sentou-se
muito ereta na cadeira.
— Ah, meu Deus... não pode ser! — exclamou com uma entonação de horror.
— O que foi? — perguntou Sanchia atônita.
— Tive o pressentimento horrível de que os pais de Jane estavam viajando nesse avião
— explicou Delia, com o rosto muito pálido. — Por favor, peça à professora Lyall para
vir aqui. Ela deve saber se eles tomaram ou não esse avião.
Sanchia correu até a porta.
— Ela deve estar na sala dos professores. Não comente o motivo do meu chamado.
Talvez esteja enganada e não queria assustar os outros à toa.
Alguns minutos depois, no entanto, quando a professora Lyall soube o motivo pelo qual
tinha sido chamada, sua reação confirmou a suspeita da diretora. As três mulheres
permaneceram em silêncio na sala, tomadas de perplexidade, mudas diante da
possibilidade terrível de que duas das melhores alunas do colégio podiam estar agora
órfãs de pai e mãe.
Delia foi a primeira a se recuperar do susto.
— Não digam nada a ninguém até termos certeza. Eric Rowland tinha de fato a intenção
de tomar esse avião, mas pode ser que tenha mudado de idéia no último momento... e
não estava com a mulher no avião que caiu. E, mesmo se os dois estivessem, não
sabemos ainda quantas pessoas perderam a vida. Talvez haja alguns sobreviventes.
Vamos aguardar o próximo noticiário.
— Não seria preferível telefonar para a companhia aérea e saber a lista dos passageiros?
— sugeriu Sanchia.
— Imagino que muitas pessoas pensaram nisso, e todas as linhas devem estar ocupadas,
o melhor seria...
A diretora foi interrompida pela campainha do telefone e atravessou correndo a sala
para atendê-lo.
— Colégio Lingard...
Após colocar o fone no gancho. Delia disse para as duas:
— Era o irmão de Eric Rowland que telefonou de Londres. Ele também ouviu o
noticiário na televisão. Não sabe nada por enquanto, mas ficou de telefonar em seguida
para cá. Já entrou em contato também com o diretor da escola de Duncan. — Fez uma
pausa e fitou os dois rostos preocupados. — Ele acredita que haverá uma longa espera
antes de termos a confirmação da notícia.
—Vou fazer um café — disse Sanchia, reunindo as xícaras vazias e levando-as até a
pequena cozinha onde a diretora preparava alguma comidinha ligeira.
Passava da meia-noite quando a professora Lyall, profundamente abalada, deixou as
duas sozinhas na sala. O locutor da estação confirmou a notícia de que todos os
passageiros do avião tinham perdido a vida no acidente.
— É melhor você ir deitar, Sanchia — disse Delia. — Está muito tarde para voltar
sozinha para casa. Durma aqui essa noite. E seria bom você tomar um dos meus
comprimidos para dormir.
— A senhora não vai se deitar?
— Não, vou aguardar mais um pouco o telefonema de Edward Rowland.
— Neste caso, vou lhe fazer companhia.
— Ah, muito obrigada. Mas não está com sono?
— Vou fazer mais café... ou â senhora prefere uma xícara de chá?
Na tarde do dia seguinte. Delia chamou Sanchia à sua sala. Parecia muito cansada e
abatida, e. no momento em que Sanchia entrou, estava tomando um comprimido para
dor de cabeça.
— A situação é realmente terrível — disse, apontando para uma cadeira. — Não sei
realmente o que fazer. As três crianças não têm para onde ir. Edward Rowland é solteiro
e mora no interior. Evidentemente não pode tomar conta dos três. A avó está com oitenta
anos e é ligeiramente caduca. Está numa clínica de repouso em Eastbourne. Uma das
irmãs está passando as férias nas Bermudas e a outra disse que não tem lugar para as
crianças no seu apartamento. Além disso, foi operada recentemente e o médico
recomendou repouso absoluto depois da operação. Na minha opinião, ela não quer ser
incomodada. Você fazia idéia que havia pessoas tão egoístas assim?
— E na família da mãe? — perguntou Sanchia. — Não há ninguém que possa cuidar
das crianças?
— Pelo visto não. Os pais de Lucy já morreram, e ela tem apenas um irmão, que está
viajando. Ninguém sabe exatamente seu paradeiro. Os advogados estão procurando
localizá-lo. Pelo que sabem, é um homem solteiro e sem residência fixa.
— O que Edward Rowland sugeriu?
— Ele não tem nenhuma sugestão. Está tão desorientado quanto eu — disse a diretora
com um suspiro.
— Podia propor uma solução imediata para o problema — disse Sanchia após alguns
momentos. — As crianças poderiam ficar comigo no chalé, enquanto não encontramos
uma solução definitiva.
— Com você? — exclamou Delia surpresa.
— Por que não? Eu tenho um quarto livre para as duas meninas, e Duncan pode dormir
no quarto da empregada. As meninas já me conhecem de vista e eu teria muito prazer
em hospedá-los neste meio tempo.
— Você está falando sério? — exclamou Delia, com um suspiro de alívio. — Ah,
Sanchia, isso seria uma solução maravilhosa. Eu ia sugerir que, em último caso, os três
fossem morar com minha irmã. Mas Londres não é um bom local para crianças
pequenas, especialmente nessas circunstâncias. Tenho certeza de que estarão muito
melhor aqui. Será mais fácil distraí-las. Pobrezinhos, devem estar muito abalados com a
notícia e não compreenderam ainda toda a extensão do drama...
— Posso imaginar. Eles não podem acreditar que seja verdade. Eu me lembro... —
Interrompeu bruscamente o que ia contar. — Bem, está combinado, então. Eles podem
ir hoje mesmo para meu chalé.
— Você é um anjo — disse Delia. — Vai ser melhor para eles e para os outros alunos.
Naturalmente, todos ficaram abalados com a notícia, mas não se pode querer que
esqueçam a alegria do Natal... seria pedir muito... Vou telefonar para a escola de Duncan
agora mesmo.
Antes de embarcar, no dia seguinte, para Londres, Delia passou no chalé onde Sanchia
morava desde que começara trabalhar no colégio.
— É uma pena você não ter telefone aqui — disse Delia no fim da visita, quando se
despediram no portão da casa. — Não vai ser muito prático você ligar para mim da
cidade. De qualquer maneira, vamos nos manter em contato. Eu pretendo passar aqui na
semana que vem para ver se está tudo bem. Adeus, minha querida. E muito, muito
obrigada por você ter me dado uma mão num momento de aperto.
Após despedir-se da diretora, Sanchia entrou em casa e começou a preparar o almoço.
Duncan e Jane estavam jogando damas na sala. Emma, a menina de nove anos, estava
armando um quebra-cabeça. Naquele momento, não davam a impressão de terem
perdido os pais recentemente. Sanchia, porém não se iludiu com a tranqüilidade
aparente. Na idade deles — Duncan tinha treze anos e Jane dezesseis — aquela
tranqüilidade era antes um motivo de preocupação.
Na tarde daquele mesmo dia, Sanchia recebeu uma carta da tia das crianças, juntamente
com um cheque. Ao ler as poucas linhas escritas apressadamente, ela sentiu uma raiva
tão grande que teve vontade de rasgar o cheque. Como alguém podia pensar que
brinquedos caros podiam consolar a tristeza de três crianças órfãs?
Edward Rowland, pelo menos, teve a delicadeza de visitar pessoalmente os sobrinhos,
se bem que passou apenas uma hora no chalé. Evidentemente nunca tivera muito
contato com os três, e era o tipo de homem que não se sentia à vontade com crianças
daquela idade.
Chegou num carro dirigido por um motorista e trouxe consigo uma mala grande com as
roupas das crianças. Era um homem pálido, frágil e meio curvado, com maneiras
reservadas e a voz clara. Sanchia sabia que era um antiquário muito conhecido em
Londres. Parecia ser uma pessoa profundamente inibida, para quem os objetos raros e
belos significavam mais que as pessoas.
Entretanto, Edward Rowland mostrou-se sinceramente preocupado com o futuro das
crianças e muito agradecido por Sanchia ter assumido aquela responsabilidade. Após
conhecê-lo melhor, porém, Sanchia concluiu que o tio antiquário era absolutamente
incapaz de cuidar dos sobrinhos.
Depois dessa visita, enquanto Jane estava ajudando Emma a lavar os cabelos, Sanchia
perguntou a Duncan: — Como é seu outro tio? O que está sempre viajando?
— Eu não me lembro muito bem dele — disse o menino, com a testa franzida. — Faz
um tempão que a gente não se vê. Eu tinha a idade de Emma quando ele apareceu pela
última vez. Por quê? Ele vai passar aqui?
— Não sabemos ainda, Duncan. Ninguém sabe onde ele está no momento.
— Mamãe sabe... — disse o menino distraidamente. — Mamãe sabia. Ele costumava
escrever para ela, mas mamãe não contava nada ao papai, porque os dois não se davam
muito bem.
— Ah, não? Por quê?
— Eu não sei exatamente o motivo. Mas papai dizia que o tio Tom era Um imprestável
e que não fazia nenhuma questão de vê-lo. Talvez meu tio seja um homem meio
esquisito, mas eu gosto dele, mesmo assim.
— Esquisito? Em que sentido?
— Ele não parece com os outros tios da gente. É uma espécie de... boêmio. A última vez
em que foi nos visitar, não escreveu antes avisando que ia chegar. Simplesmente
apareceu de um momento para o outro. Não tinha nem mesmo uma mala. Todas as suas
coisas estavam numa sacola velha. Estava com a barba crescida e os cabelos
despenteados. Eu me lembro disso porque ele me deu um beije e eu senti a barba me
espetando...
— Você não gostou de ser beijado por ele?
Duncan corou ligeiramente. — Bem, eu não era mais um garotinho. Eu tinha nove anos.
Os outros tios não costumavam me beijar. Apenas apertavam minha mão.
— Ah — murmurou Sanchia pensativa. — Foi essa a última vez que você viu seu tio?
Há quatro anos atrás?
— Foi... e ele não ficou muito tempo. Depois que nos levou para dar um passeio, houve
uma briga terrível lá em casa. Eu penso que papai o mandou embora.
— Onde vocês foram passear?
— Fomos primeiro ao cais do porto. O navio dele estava ancorado lá, o mesmo navio
em que viajara para a Inglaterra. Não era um navio de passageiro. Era um velho
cargueiro. Ele pagou a passagem trabalhando no navio. O capitão era estrangeiro... um
homem muito velho e simpático. Ele deixou o tio nos mostrar a casa das máquinas e me
deu um gole de cerveja quando almoçamos no navio. À tarde fomos visitar a Torre de
Londres e ver as jóias da Coroa... Isso foi idéia da Jane. Depois, fomos a um parque de
diversões..
— Deve ter sido um dia muito divertido...
— Se foi! Foi super legal! Voltamos bem tarde para casa e papai estava dando um jantar.
Quando chegamos, os convidados estavam indo para a mesa. Estavam todos vestidos a
rigor e olharam de boca aberta para nós três. Na volta para casa, o tio parou numa
padaria e comprou um saquinho de batatas fritas para cada um. Ele disse que era
gostoso comer batatas fritas com as mãos.
Sanchia podia imaginar o espetáculo das três crianças chegando em casa depois de um
dia inteiro passado na rua. Era natural que o pai ficasse bravo quando os filhos
apareceram diante dos convidados de cerimônia, descabelados e com as mãos
gordurosas de batatas fritas. Ao mesmo tempo, a cena devia ter sido incrivelmente
cômica, diante do contraste entre a elegância dos adultos e o desleixo das crianças
pequenas.
— Talvez seu pai ficou zangado porque vocês chegaram muito tarde — disse Sanchia.
— Estava mais do que na hora de Emma estar na cama. Que idade ela tinha? Cinco
anos?
— Não, não foi por isso — comentou Duncan. — Mamãe não ficou brava. Depois que o
tio foi embora, ela chorou no quarto da gente. Ela... — O menino interrompeu o que ia
contar e pareceu sem jeito.
Talvez Duncan estivesse arrependido de contar as histórias íntimas da família para uma
pessoa estranha.
— Acho que vou dormir — disse, após um momento, com o rosto sério.
Pelas nove da noite, depois de pôr as duas meninas na cama, Sanchia voltou novamente
à cozinha e levou um susto quando Duncan apareceu subitamente na porta.
— Desculpe... você se assustou?
Com seu pijama azul ele parecia mais uma criança do que um adolescente.
— Um pouquinho... O que foi? Você não está conseguindo dormir? Quer tomar um
chocolate quente?
— Não, muito obrigado. Eu desci apenas para dizer a você que o endereço do meu tio
está nas cartas que ele escrevia para a mamãe. Ela costumava guardá-las numa caixinha
na penteadeira.
Antes que Sanchia pudesse fazer algum comentário, o menino voltou-se e foi para o
quarto.
Na manhã seguinte — vinte e três de dezembro — Sanchia transmitiu a informação de
Duncan para Delia. Contou também a conversa que tivera com o menino a respeito do
tio.
— Eu imagino que o pai não queria manter relações com o cunhado boêmio — disse
Delia ao ouvir a história da briga. — Eric era um homem convencional e meio
antiquado. Mas talvez houvesse outros motivos para a briga. Eu vou transmitir sua
informação aos advogados. Se descobrirem o endereço nas cartas, passarão um
telegrama urgente. O problema é saber se ele vai se dignar responder... Bem, vamos
aguardar um pouco mais...
Sanchia telefonou novamente para Delia na véspera do Natal. Dessa vez, Delia tinha
algumas novidades para lhe contar. As cartas tinham sido encontradas. O tio residia nas
Antilhas, e os advogados já tinham mandado um telegrama para seu endereço.
— O endereço, porém, é da caixa postal e talvez leve algum tempo para receber o
telegrama. De qualquer forma, não creio que esse tio seja mais útil do que os outros
parentes. Talvez se dê melhor com as crianças, mas, pelo que ouvi contar, creio que não
está em condições de tomar conta dos sobrinhos.
Naquela noite, enquanto as crianças enfeitavam a árvore de Natal, Sanchia fez uma torta
e recheou o peru. Mais tarde, os quatro sentaram-se em volta da lareira, comeram fatias
da torta e beberam sidra. Emma sentiu sono e adormeceu pouco depois no sofá.
Jane comentou em voz baixa:
— Quando fomos à cidade hoje de manhã, compramos um presentinho para a Emma.
Ela costuma procurar os presentes de manhã cedo, e ficaria decepcionada se não os
encontrasse.
— E vocês dois? Não recebem mais presentes?
— Recebemos... mas não acreditamos mais em Papai Noel — disse Jane. — Mas
Emma acredita ainda. Ela é muito criança para sua idade — acrescentou Jane, olhando
para a menina que dormia com uma expressão de meiguice.
Todos os três tinham cabelos claros e olhos azuis. Duncan era bem desenvolvido para
sua idade, mas Jane era um pouquinho magra e franzina.
Como o peru era muito grande, Sanchia acordou mais cedo na manhã do Natal para
acender o forno. Por volta das sete, enquanto estava limpando a lareira, ouviu um
murmúrio de vozes no andar de cima.
— Muito obrigado pelos presentes que você comprou para a gente — disse Jane depois
do café, enquanto Emma brincava no jardim.
— Nós estamos dando muito trabalho a você — acrescentou com a voz preocupada.
— Pelo contrário. Se vocês não estivessem aqui, eu passaria o Natal sozinha. Estou
muito contente que vocês me façam companhia. E você não precisa me agradecer pelos
presentes. Eu comprei com o dinheiro que sua tia mandou. Espero ter escolhido as
coisas de que vocês gostam. Foi um pouco difícil, porque ainda não conheço as
preferências de vocês.
Sanchia tinha colocado os presentes maiores embaixo da árvore de Natal, e observou
com apreensão a reação das crianças ao desembrulharem os pacotes.
— Um microscópio! — exclamou Duncan, ao retirar com cuidado o aparelho da caixa.
Como Jane gostava de desenhar, Sanchia comprou para ela uma caixa de pintura, um
pequeno cavalete de dobrar e algumas telas pequenas.
— Ah, que maravilha! — gritou Jane com os olhos brilhantes. — Uma caixa de tinta a
óleo de verdade!
Emma adorou também seu teatrinho de marionetes. Quando os meninos a agradeceram,
Sanchia lembrou que os presentes tinham sido comprados com o dinheiro enviado pela
tia.
— Sim, mas é a intenção que conta — disse Jane. — E foi você quem escolheu os
presentes e os embrulhou nesse papel de seda. Nós também compramos um presentinho
para você. Não é nada demais, mas espero que você goste.
Ela foi apanhar o embrulho e o deu a Sanchia.
— Ah, uma caixa de talco! Meu perfume favorito. Muito obrigada' por vocês terem se
lembrado de mim.
No fim do dia, depois que as meninas subiram para o quarto. Sanchia pensou que o
Natal não fora muito triste para as crianças. Nem tampouco para ela.
No dia seguinte, de manhã, levou os três para darem um passeio. Estava muito frio, e as
nuvens cinzentas encobriam a paisagem de inverno. Se estivesse sozinha, a paisagem lá
fora teria lhe parecido triste e deprimente, mas na companhia de Emma, que corria ao
seu lado, enquanto Duncan e Jane catavam bichinhos para examinar no microscópio, ela
sentia-se alegre e bem disposta.
A tarde, sentada diante da lareira, partindo nozes e castanhas, ocorreu pela primeira vez
a Sanchia que ia acabar se apegando àquelas crianças.
— Nós vamos ficar com você até o reinicio das aulas? — perguntou Jane em dado
momento.
— Sim, espero que sim — disse Sanchia, sentindo uma pontada no coração. Quando ela
se oferecera para tomar conta das crianças não pensava que, ao procurar distrair a
tristeza delas, iria reavivar a sua própria.
Não podia evitar apegar-se às crianças. Quanto mais tempo morassem com ela, mais
falta sentiria quando fossem embora.
O chalé já tinha uma atmosfera diferente. Não era apenas porque estava mais alegre e
movimentado que antes. Era alguma coisa mais sutil, algo que iria perdurar depois que
as crianças fossem embora.
Aquela noite, Sanchia começou a ler o livro que ganhara de Delia e que, se estivesse
sozinha na casa, já teria terminado. Fizera um bom fogo na lareira e estava lendo bem
depois do seu horário habitual de dormir.
De repente, ouviu uma batida insistente na porta da frente. Deu um pulo no sofá e
voltou-se com a fisionomia espantada. Olhou rapidamente para o relógio da sala e viu
que passavam das onze. Quem podia ser? Com o coração batendo, tomou coragem e
enfiou os pés nas sandálias.
A porta da frente tinha uma fechadura antiga, e, quando alugara o chalé, mandara
instalar um trinco e uma corrente de segurança. Sanchia virou a chave é moveu a
maçaneta, mas deixou a corrente no lugar, de maneira a entreabrir apenas a porta. Olhou
pelo vão e perguntou:
— Quem é?
Nesse momento, alguns flocos de neve entraram na sala atraídos pelo ar quente. Estava
nevando lá fora. Talvez estivesse nevando desde algum tempo, por isso não ouvira os
passos na entrada e se assustara tanto com as batidas repentinas.
Uma voz masculina perguntou:
— É aqui que estão hospedadas as crianças da família Rowland? Eu sou Tom Bartlett, o
tio delas.
Sem retirar a corrente de segurança, Sanchia disse:
— Não é possível. O tio delas está nas Antilhas.
O homem murmurou algo incompreensível do lado de fora. Houve um silêncio de
alguns segundos e, logo depois, um pequeno objeto foi introduzido no vão da porta.
Sanchia apanhou a carteira profissional e leu-a na página aberta.
O nome do portador era Thomas James Bartlett. Profissão: marinheiro. Nascera em
Liverpool e tinha trinta e cinco anos. Altura: um metro e oitenta e dois centímetros.
Olhos cinza, cabelos castanho-escuros. Não tinha nenhum sinal particular.
Na página oposta estava a fotografia de um rosto magro e expressivo, muito diferente
das feições delicadas dos sobrinhos. Embora olhasse de relance para a foto, Sanchia
ficou surpresa com a aparência extremamente viril do homem.
— Muito obrigado — disse Tom com um sorriso irônico, no momento em que ela
retirou a corrente e abriu a porta para recebê-lo.
No breve instante em que olhou para fora, ela avistou as luzes de um carro estacionado
na porta de casa.
— Você me desculpe, mas eu não esperava nenhuma visita a essa hora — disse Sanchia
com um arrepio, fechando rapidamente a porta da frente. — Como você fez para chegar
tão depressa? O telegrama foi mandado anteontem...
— Eu vim de avião — disse Tom, batendo os pés no capacho da entrada. Havia flocos
de neve nos cabelos e nos ombros. Ele retirou o sobretudo e olhou em volta sem saber
onde deixá-lo.
— Pode me dar — disse Sanchia, segurando o capote grosso e indo pendurá-lo no
cabide.
Quando voltou à sala, Tom estava em pé diante da lareira, esquentando as mãos. No
momento em que ele se voltou na sua direção, a chama da lareira e a luz amarela que
vinha do abajur iluminaram o rosto queimado de sol. Sanchia sentiu uma reação
instintiva de recuo. Era uma sensação muito complexa para definir em poucas palavras.
Mas uma coisa pelo menos ela percebeu no mesmo instante. Estava diante de um
homem que tinha uma presença marcante e que não se podia esquecer facilmente.
Enquanto o observava em silêncio, uma outra coisa estranha ocorreu com ela. Levou
instintivamente a mão ao rosto, para esconder a cicatriz que havia ali, hábito que já
havia perdido há muito tempo atrás. Como o cirurgião lhe dissera, a cicatriz ia
desaparecer com o tempo, sem deixar quase nenhum sinal. Por baixo da pintura, era
imperceptível.
— Eu aceitaria de bom grado uma bebida — disse Tom de repente, como se aguardasse
esta sugestão.
— Infelizmente não tenho uísque em casa — disse Sanchia, sem jeito. — Mas posso
preparar um café.
— Não, não se incomode. Não tem importância. Eu já estou de saída. Onde posso
passar a noite? Há algum hotel aqui perto?
— O hotel perto daqui é um pouco pequeno — disse Sanchia pensativamente. — Em
geral, as pessoas preferem o outro maior e mais confortável que fica a uns dez
quilômetros daqui.
— Vou tentar o mais perto — disse Tom. Retirou o lenço do bolso e enxugou os cabelos
úmidos. — Como estão as crianças? Estão muito crescidas? Faz anos que não as vejo...
— Elas estão comigo somente a alguns dias. Têm se comportado muito bem e são muito
tranqüilas. Não posso dizer se estão diferentes do que eram... antes do acidente. Ainda
estão muito abaladas com o fato.
— Eu faço idéia... Mas talvez não vão sentir tanta falta dos pais quanto outras crianças...
— Em que sentido?
Tom balançou os ombros largos.
— Bem, os pais nunca foram muito apegados aos filhos. Quando eram menores, foram
criados por uma babá. Depois foram mandados para o colégio interno, onde passavam a
maior parte do ano. Este tipo de educação não cria laços muito íntimos...
— Não concordo — interveio Sanchia com frieza. — Centenas de crianças têm babás.
Centenas vão para colégios internos. Nem por isso gostam menos dos pais. Ninguém
pode substituir o amor materno.
— Bem, neste ponto nós dois divergimos — disse Tom com um sorriso irônico. — Seja
como for, os três perderam os pais e alguém terá que tomar o lugar deles.
— Você pretende assumir essa responsabilidade? — perguntou Sanchia com frieza. Ela
não simpatizava nada com o jeito do homem.
— Não tenho outra alternativa. Pelo que soube, ninguém mais na família se ofereceu
para cuidar das crianças.
— Eu pensei que você fosse solteiro — comentou Sanchia após um momento de
silêncio. — Você está casado agora?
— Não, continuo solteiro.
— Neste caso, como pode tomar conta das crianças?
— O que se há de fazer? — exclamou com indiferença. — São três crianças normais e
sadias... Uma vez que se adaptem à minha maneira de viver, creio que não haverá
maiores problemas...
— Que se adaptem à sua maneira de viver?
— Claro. Morar comigo vai ser muito diferente da vida a que estavam habituados. Mas
tenho a impressão de que vão se adaptar rapidamente. Afinal, eles também não têm
outra escolha — acrescentou com a mesma voz indiferente. — Estou vendo que é tarde
e seria melhor eu ir andando.
Sanchia apanhou o sobretudo no corredor com a mente confusa e alarmada. Ele falava
como se o assunto estivesse resolvido, embora parecesse interessar-se tão pouco pelos
sobrinhos quanto os outros tios.
— Amanhã eu passo aqui para conversar com mais calma. Boa noite.
Antes que ela pudesse atravessar a sala e abrir a porta, ele saiu pela noite escura, e ela
voltou a ficar sozinha na sala.
Estava frio no quarto de dormir porque levara o aquecedor elétrico para o quarto das
meninas. Sanchia trocou de roupa no banheiro e encheu o saco de água quente. Quando
entrou embaixo do cobertor, o lençol gelado provocou-lhe um arrepio.
Com os pés no saco de água quente, o robe de chambre em volta dos ombros, tentou
terminar o capítulo que estava lendo. A leitura, porém, perdera subitamente o interesse.
Um rosto moreno e enigmático interferia em sua concentração.
Um homem estranho, além do mais. Brusco e autoritário. Não correspondia
absolutamente à descrição de Duncan. Agora entendia por que Eric Rowland não
gostava dele.
Ia apagar a lâmpada da cabeceira quando ouviu alguma coisa bater na vidraça. Um
instante depois, uma segunda bola de neve espatifou-se contra o vidro.
Levantou-se da cama, passou os braços nas mangas do robe e foi espiar para baixo. No
jardim, Tom Bartlett estava fazendo uma outra bola de neve. Ao vê-la na janela, fez um
sinal para descer.
Que homem antipático! - murmurou Sanchia com raiva. Ele não percebe que horas são?
Tornou a abrir a fechadura e retirou a corrente da porta.
— Não encontrei nenhum quarto livre no hotel. Estou morto de cansaço. Se você não
fizer objeção, vou dormir no sofá da sala.
Se ele tivesse pedido desculpa por tê-la incomodado pela segunda vez e não estivesse
com a maleta na mão, certo de que ela ia aceitar seu pedido, Sanchia não teria dado a
resposta que deu.
— Sinto muito, mas você não pode dormir aqui.
— Por que não? — perguntou Tom, com as sobrancelhas levantadas. — Se não tiver
cobertor sobrando, eu posso usar meu sobretudo e uma almofada.
— Claro que não é isso. Eu não posso hospedar um homem em casa.
A princípio, ele pareceu sinceramente intrigado. Em seguida, um brilho de compreensão
atravessou seus olhos claros.
— Não há motivo para você se preocupar. Há mais pessoas em casa além de nós dois.
Fora isso, quem ficaria sabendo? A cidade está deserta. Não há ninguém na rua a essa
hora. Todos já foram dormir há muito tempo.
Sanchia sentiu um arrepio. Ela não tinha fechado a porta da frente e sua roupa de noite
não era adequada para o vento frio que soprava. Enfiou as mãos nos bolsos do robe e
olhou fixamente para ele, decidida a não ceder. Mas ele não insistiu.
— Muito bem, vou dormir no carro — disse imperturbavelmente. Estava falando sério?
Dormir no carro embaixo da neve que caía?
— Você pode me emprestar uma almofada?
— Ah, não seja ridículo! — exclamou com irritação. — Você não vai dormir no carro
sem nenhum conforto!
— Eu estou acostumado com essas emergências.
— Mas não com este frio! — Fechou a porta da entrada. — Eu vou apanhar o cobertor e
o travesseiro.
Ela tinha roupa de cama sobrando porque trouxera tudo o que era preciso do colégio
para as crianças. Ao voltar à sala, com cobertores e lençóis embaixo do braço,
perguntou: — Você já jantou pelo menos?
— Almocei em Londres. Não estou com fome. — Apanhou alguns objetos de uso
pessoal na maleta de mão. — Por favor, onde é o banheiro?
— No andar de cima. A primeira porta à esquerda.
— Muito obrigado... e desculpe incomodá-la.
O rosto dele estava sério, mas havia alguma coisa na voz dele que a levou a pensar que
estava rindo dela intimamente.
Depois de voltar para a cama pela segunda vez, ouviu a água correndo no banheiro. Ele
subira a escada tão silenciosamente que não escutara seus passos. Nem ouviu quando
tornou a descer.
Seu último pensamento, antes de adormecer, foi que ia telefonar de manhã cedo para a
diretora pedindo-lhe para vir imediatamente a sua casa. Ninguém intimidava Delia
Preston, nem mesmo esse tal de Thomas James Bartlett.
Quando abriu os olhos na manhã seguinte, o quarto estava claro com o brilho da neve
no quintal. Espreguiçou-se e bocejou na cama antes de ouvir uma batida leve na porta.
Imaginando ser uma das meninas, disse em voz alta:
— Pode entrar!
Ao ver Tom entrar com uma xícara na mão, quase deu um pulo na cama.
— Bom dia. Dormiu bem? — Colocou a xícara de chá na mesinha de cabeceira. — As
torradas vão estar prontas dentro de alguns minutos. O banheiro está desocupado. Eu
acordei as crianças há uma hora atrás.
Antes que se recuperasse do susto, ele tinha saído silenciosamente do quarto. Ao descer
pouco depois, de pulôver e calça comprida, notou que a lareira tinha sido limpa e que as
chamas crepitavam alegremente na sala. As almofadas do sofá estavam arrumadas e os
lençóis dobrados e empilhados num canto. Não havia nenhum objeto de uso pessoal fora
de lugar. A maleta de mão, colocada junto da porta, era o único indício da presença de
um hóspede em casa.
Na cozinha, as crianças estavam sentadas à mesa, comendo torradas e ovos mexidos.
Com uma toalha de prato passada em volta de cintura, Tom estava quebrando mais dois
ovos na frigideira.
Sanchia deu bom dia para as crianças, e Duncan levantou-se pari puxar a cadeira para
ela. Embora os três continuassem a tomar café em silêncio, ela notou que havia um
clima de alegria no ar.
Em geral Sanchia tomava apenas uma xícara de café com leite ou comia algumas frutas
de manhã. Embora não estivesse acostumada a comer muito depois de acordar, não se
fez de rogada e apreciou a refeição substancial que Tom tinha preparado.
Depois do café, as crianças costumavam brincar no jardim, enquanto ela lavava a louça.
Tom, porém mudou os planos do dia.
— Bem crianças, vamos ao trabalho. Duncan e Emma vão lava os pratos enquanto Jane
faz as camas. Eu vou limpar a entrada da casa. Onde você guarda a pá? — perguntou
para Sanchia.
— Está lá fora, num armário. E eu vou fazer o quê?
— Eu sugiro que você tome outra xícara de chá e leia os jornais Eles estão na cadeira de
vime da sala.
Sanchia teve vontade de dizer ao homem antipático e mandão que a casa era dela e que
não estava disposta a obedecer as ordens de ninguém. Controlou-se a tempo, porém, e
limitou-se a observá-lo com a fisionomia impassível.
Ele seguiu-a até a sala de visita.
— Não sei qual é sua opinião a respeito... mas eu acho que ai crianças devem ajudar nos
trabalhos da casa. E quanto mais cedo elas se acostumarem, tanto melhor.
— Elas ajudam — disse Sanchia com a voz fria. — Por sinal, são muito bem-educadas
para crianças dessa idade.
— Ainda bem — disse Tom, apanhando um pulôver grosso na maleta.
Na noite anterior, ele aparecera de terno e gravata. Agora estava de calça jeans e uma
camisa azul-marinho, com as mangas enrola das.
— Faz quanto tempo que seu marido morreu, Sanchia? A pergunta crua surpreendeu-a e
aborreceu-a.
— Quatro anos — respondeu evasivamente.
— Você ficou casada pouco tempo?
Fora isso exatamente que Delia lhe dissera, só que de uma maneira educada e discreta.
Mas ela sentira-se ferida mesmo assim. Qualquer referência ao marido lhe magoava. Ela
o amara muito. Sem ele, o mundo lhe parecia deserto.
Agora, no entanto, não lhe doeu pensar nele. Nenhuma dor durava para sempre. O
tempo curava o sofrimento, como tudo o mais. Restava apenas a tristeza... uma tristeza
inútil e obstinada.
— É, pouco tempo — respondeu por fim. — Eu vou à cidade, mas devo estar de volta
dentro de uns vinte minutos. Até logo.
Foi a irmã de Delia que atendeu o telefone.
— Delia está no banho. Você quer deixar o recado?
— Seria um favor. Diga a ela que Tom Bartlett chegou ontem à noite... Se for possível,
eu gostaria que ela passasse ainda hoje para conversar com ele.
— Um minuto. Vou falar com ela.
Sanchia aguardou com nervosismo, batendo com as unhas na caixa do telefone. Ao
avistar seu reflexo no vidro na cabina telefônica, ajeitou um cacho de cabelo que caía
em cima da testa. Estava muito pálida e desbotada comparada com Tom, pensou. Mas
talvez fosse apenas a pele bronzeada que lhe dava aquela aparência de vitalidade.
Ouviu uma voz no telefone.
— Delia mandou dizer que passará na sua casa na parte da manhã. Você pode esperá-la
para o almoço.
— Ah, muito obrigada. Desculpe o incômodo. Adeus. Colocou o fone no gancho com
um suspiro de alívio.
Na calçada da frente de casa, Emma estava brincando com bolas de neve. Normalmente
havia pouco movimento na rua, e, naquele dia, somente o caminhão que entregava o
leite e algumas pegadas de botas tinham marcado a neve espessa que caíra durante a
noite.
Emma correu ao seu encontro com o rosto animado.
— Sanchia, nós não vamos voltar para a escola! O tio vai nos levar para casa dele. Disse
também que mora num lugar muito bonito, onde a gente pode nadar o ano inteiro. Ele
disse que vai ensinar a gente a pescar e a andar de barco. Nós vamos para lá de avião.
Você já andou de avião, Sanchia?
— Não, Emma, eu nunca viajei de avião. Quando foi que seu tio disse isto?
— Agorinha mesmo, enquanto você estava na cidade. — Ela deu um pontapé no monte
de neve que estava amontoado na calçada.
— Esta é a última vez que vamos ver a neve. O tio disse que lá onde ele mora não neva
nunca. Às vezes, tem furacões, mas nunca faz frio como aqui.
Sanchia apertou os lábios. Ele não tinha o direito de encher a cabeça das crianças com
essas histórias, pensou furiosa.
— Olha, Emma, não faça muitos planos por enquanto. Nada ficou resolvido ainda.
— Por que não? Nós queremos ir com ele. Nós gostamos dele. Ele não é como o tio
Edward, a tia Beatrice e a tia Rhoda. Eles não gostam da gente. Tom gosta.
Gosta mesmo? - pensou Sanchia. Não foi essa a impressão que tivera na noite anterior.
Ocorreu-lhe que as crianças deviam ter uma herança para receber e que Eric Rowland
era um homem muito rico para matricular as filhas numa escola tão cara como o colégio
de Lingard. Talvez fosse por essa razão que Tom se oferecera para tomar conta dos
sobrinhos.
Ao entrar em casa, encontrou Jane passando uma vassoura na sala. Duncan estava na
cozinha engraxando os sapatos. Tom consertava alguma coisa em cima da mesa.
Ele levantou a cabeça quando ela entrou.
— Esse fio do ferro de passar está estragado. Vou encurtá-lo alguns centímetros.
— Hum — comentou Sanchia com o rosto impassível. — Eu queria conversar um
minuto com você.
Duncan deve ter percebido a entonação fria da voz. Levantou-se da cadeira e saiu em
silêncio da cozinha.
— Eu telefonei para a diretora do colégio das meninas e ela vai passar aqui na hora do
almoço. Nesse meio tempo, acho que você não devia dizer às crianças seus planos para
o futuro. Nada está decidido ainda.
— Como não? — perguntou Tom calmamente.
— Eu não conheço as condições legais do caso — disse Sanchia segurando com força
as costas da cadeira. — Mas creio que você não pode levar simplesmente as crianças
para o fim do mundo... Nem tem o direito de encher a cabeça delas com histórias de
uma vida maravilhosa à beira-mar...
Tom apanhou o maço de cigarros que estava em cima da mesa. No momento em que
pôs o cigarro na boca e riscou o fósforo, voltou-se para ela com o olhar atento.
— Ah, não? Pois olha, eu acho que lhe faria muito bem tomar um pouco de sol. —
Sacudiu o fósforo na mão e jogou-o no cinzeiro. — Você antipatiza comigo, não é
mesmo? Posso saber por quê?
— Eu não o conheço o suficiente para antipatizar ou não, mas o que ouvi contar a seu
respeito não é muito tranqüilizador.
— Ah, não? O que, por exemplo?
— Duncan me contou que você brigou com o pai dele e foi convidado a sair da casa.
— Sim, foi verdade. Mas eu saí da casa para não bater nele. Eric era um homem
insuportável. Minha irmã não devia nunca ter se casado com ele.
— Por que eu haveria de acreditar nesta versão?
— Bem, não faz muita diferença que você acredite ou não. Felizmente, sua opinião não
conta neste caso.
— Mas a opinião de Delia Preston certamente vai contar — retrucou Sanchia com raiva.
— Neste caso, vou fazer o possível para causar uma boa impressão nela. Ela está vindo
de trem? Você acha que deveria esperá-la na estação?
— Ela está vindo de carro.
— Que pena! Você vai adverti-la que sou um aventureiro perigoso?
— Eu não disse isso.
— Mas é isso que está pensando, não? Não é difícil ler seu pensamento, Sanchia. Você
suspeita de que eu seja um oportunista que está de olho na herança das crianças. Fala a
verdade
Ela corou repentinamente diante da crueza das palavras.
— O que você disse ontem à noite me levou a pensar que você não sente nenhuma
afeição especial pelos sobrinhos.
— E não sinto realmente. Tenho apenas uma obrigação para com eles.
— E você acha que isso é bastante? Você acha que as crianças necessitam apenas de
alguém que lhes dê alimentos e roupas e uma casa para morarem? Eles não são animais.
São crianças pequenas. O que necessitam é de amor e calor humano.
— Provavelmente, vou me apegar muito a elas com o tempo contanto que não saiam ao
pai, naturalmente!
— Ah, como você pode ser tão frio! — exclamou Sanchia sem se conter.
— Você está enganada, mocinha. Eu não sou frio. Eu sou simplesmente um realista.
Enquanto você é mais sentimental, pelo visto.
— O que você despreza, bem entendido. Olha, se preocupar-se com o futuro das
crianças é ser sentimental. . . então, e sou. Em minha experiência, as pessoas que se
dizem realistas dão essa desculpa para esconderem o egoísmo.
Nesse momento. Tom terminou o conserto que estava fazendo. Enrolou o fio em volta
do ferro e jogou o pedaço estragado no lixo.
— Pelo visto, nós divergimos nesse ponto — disse em voz baixa, encarando-a com
atenção. — O que vamos fazer para o almoço? Peru de novo? Talvez não seja um prato
muito apetitoso para oferecer à sua diretora... Se você não fizer objeção, vou
providenciar o almoço.
Essa foi a gota d'água.
— De jeito nenhum! Você não está na sua casa! Ou você prefere que eu me mude e vá
morar no hotel?
Ao dizer isso, saiu furiosa pela porta da cozinha e caminhou alguns minutos no quintal
para acalmar os nervos.
No momento em que entrou em casa, pela porta da frente, estava exteriormente calma.
Jane tinha terminado de varrer a sala e colocara o cavalete perto da janela para pintar a
paisagem coberta de neve.
— Sanchia, meu tio disse que as paisagens nas Antilhas são divinas para se pintar! —
exclamou Jane enquanto fazia a marcação na tela com carvão. — Os poentes no mar são
lindos. As cores são fabulosas...
— Imagino que sejam — disse Sanchia. — Depois a gente conversa com mais calma.
Agora eu vou tomar um banho, Jane.
O banho de imersão relaxou-lhe a tensão. Sentiu-se envergonhada ao lembrar a maneira
infantil como saíra da cozinha. Enquanto enxugava os cabelos, ouviu uma gargalhada
no andar de baixo e ficou curiosa por saber o que podia ser. As risadas das crianças lhe
davam alegria, mas não queria pensar que podiam se decepcionar com a confiança que
depositavam no tio. Pelo visto, ele dera a entender que tudo ia correr às mil maravilhas
no futuro. Seria terrível se isso fosse uma ilusão.
Delia chegou pouco depois da uma. As crianças estavam na cozinha com o tio, e
somente Sanchia ouviu o carro parar defronte do portão. Vestiu rapidamente o casaco e
foi lá fora encontrar-se com a diretora, antes que ela saísse do carro.
— Como vai, minha querida? — perguntou Delia abrindo a porta do carro.
Sanchia sentou-se ao seu lado e contou rapidamente os acontecimentos das últimas
catorze horas.
— Na opinião dele, está tudo decidido — terminou. — Vai levar as crianças consigo
para as Antilhas.
— Ah, sim? — perguntou Delia pensativamente. — Vamos examinar com atenção o
caso. Você me deixou curiosa para conhecer esse homem autoritário.. . Vamos entrar?
Não havia, porém o menor sinal de antagonismo no olhar que ela dirigiu a Tom quando
lhe foi apresentada.
— Como está passando? — perguntou com um sorriso encantador. — Essa foi uma
surpresa realmente agradável. Nunca pensei que fossem encontrá-lo tão cedo, nem
muito menos que teria o prazer de conhecê-lo. Você veio numa velocidade incrível...
— O mundo agora é muito pequeno — disse Tom, devolvendo o sorriso. — É mais fácil
atravessar o oceano que um pequeno Estado...
— Você tem toda razão. Eu levei mais tempo para vir de Londres aqui do que levaria
para atravessar o Atlântico! — Voltou-se para Sanchia. — Onde você está hospedado,
Tom? No hotel aqui perto?
— Não, infelizmente não tinha quartos livres. Eu passei a noite no sofá da sala. E não
posso me queixar — acrescentou, com um olhar irônico dirigido a Sanchia. — Dormi
como uma pedra.
Quando se sentaram à mesa, Delia comentou:
— Que boa idéia para aproveitar o peru do Natal, Sanchia. Você precisa me dar essa
receita. Minha irmã não tem muita imaginação culinária. Nós comemos peru frio todos
esses dias, a menos que eu me decida ir à cozinha.
— Foi Tom que teve essa idéia — disse Sanchia sem jeito.
— Ah, sim? — exclamou Delia. — Você está de parabéns. Tom. O prato está delicioso.
Você é um excelente cozinheiro. Onde aprendeu essa receita?
Tom sorriu com os dentes muito brancos. — Os homens que vivem no mar sabem
preparar alguns pratos gostosos. Eu sei também lavar e passar camisas, bem como cerzir
meias. Tenho algumas habilidades, como está vendo...
— É uma pena que todos os homens não tenham esses talentos. Por falar nisso, é uma
das críticas que faço aos homens em geral. Acho que os meninos deviam aprender essas
atividades na escola, em vez de dependerem das mulheres.
Depois do almoço, a diretora disse: — Vou fazer uma visita ao colégio para ver se está
tudo bem. Você não gostaria de vir comigo, Tom? É uma casa muito antiga e bonita.
— Com muito prazer.
Estava escurecendo quando os dois voltaram ao chalé.
— Posso conversar com você no seu quarto antes do chá? — perguntou Delia a Sanchia.
— Sim, vamos... Vou levar o aquecedor para lá — disse Sanchia, curiosa por saber a
opinião da diretora sobre Tom Bartlett.
Apanhou o aquecedor elétrico no quarto das meninas e levou-o para o seu. Após fechar
a porta com cuidado, perguntou ansiosa: — Então, qual é sua opinião?
— Eu simpatizei muito com ele. Muito mesmo.
Sanchia observou-a perplexa. — Concorda então que ele leve as crianças consigo?
— Bem, ele tem todo o direito. Quando os advogados encontraram a correspondência
de Lucy, encontraram também um envelope contendo seu testamento. O desejo da mãe
era que, num caso de acidente com ela e o marido, o irmão devia tomar conta das
crianças.
— O testamento do pai dizia a mesma coisa?
— Não havia nenhuma recomendação específica nesse sentido. Eu presumo que, na
opinião de Eric, o irmão e as irmãs deveriam cuidar das crianças. Uma vez que Tom tem
condições para assumir a paternidade, creio que os parentes não vão discutir o assunto...
ainda mesmo que desejassem.
— E a questão do dinheiro? Ele vai receber a herança?
— Na opinião de Edward Rowland, Eric deixou pouca coisa. Somente o menino vai
receber uma quantia importante quando completar dezoito anos. As meninas não vão
receber quase nada. Como muitos homens de hoje, Eric levava uma vida confortável,
mas não fazia economia.
— Tom está sabendo que as crianças não possuem nada?
— Provavelmente... Ele conversou com Edward Rowland. — O quarto estava quente
agora. Delia despiu o casaco grosso e começou a passar pó-de-arroz no rosto. — Ele me
disse que você o acusou de ser um homem oportunista. Acho que foi um pouco
precipitado de sua parte, querida. O que a levou a duvidar de suas intenções?
— Eu não o acusei — disse Sanchia. — Foi ele mesmo que sugeriu isso. Mas, de fato, a
idéia tinha me ocorrido.
— Bem, de qualquer modo, isso não tem importância... Ele ficou mais divertido do que
magoado com seu comentário. Disse que as crianças estavam em boas mãos.
— Ah, é? Pois eu acho que ele não liga a mínima para os sobrinhos.
— Não seria pior se fingisse afeição por eles? Tom mal os conhece. Só esteve algumas
vezes com eles na casa dos pais. Você não acha que está antipatizando gratuitamene
com ele, querida?
Sanchia lembrou-se do primeiro movimento de recuo quando o avistou na noite anterior.
Sim, era verdade, sua antipatia surgira antes que tivesse algum motivo justo para não
gostar dele.
— Pode ser — admitiu. — Mas ele me pareceu tão arrogante! Eu não gosto de pessoas
que pisam nos outros.
— De fato, ele é muito franco — concedeu a diretora. — Não hesitou em me dizer que
desaprova as escolas particulares.
— Provavelmente porque nunca freqüentou nenhuma.— comentou Sanchia com
agressividade.
Delia ficou surpresa com o comentário de sua secretária. Normalmente, ela jamais se
permitia uma palavra maldosa desse tipo. Provavelmente os acontecimentos da última
semana tinham-na deixado com os nervos tensos.
— Não, creio que não é isso — comentou com calma. — Embora reconheça que Tom
não foi criado com colher de prata. — Deu um sorriso. — Eu já notei que as pessoas
favoráveis a distribuição das riquezas são aquelas que ocupam posições privilegiadas na
sociedade.
— Em que sentido?
— Alguns homens e mulheres nasceram com certas qualidades que dispensam as
vantagens materiais. Neste mundo atual, a força de caráter é a única vantagem
indestrutível que temos. Tudo o mais pode vir a faltar. E Tom Bartlett tem caráter de
sobra. — Passou as mãos nos cabelos grisalhos. — Vamos descer e tomar nosso chá?
Depois do lanche, as crianças queriam jogar monopólio. Tom recomendou que
brincassem na cozinha, porque tinha um assunto muito importante a tratar com Delia
Preston.
— Posso jogar com vocês? — perguntou Sanchia da porta, julgando que Tom desejava
conversar a sós com a diretora.
— Eu preferia que você tomasse parte na conversa — disse Tom.
— O que vamos discutir também lhe diz respeito.
Ao ficarem a sós na sala, Tom acendeu um cigarro e permaneceu algum tempo junto da
lareira, com o braço apoiado na estante de mármore, enquanto as duas mulheres
estavam sentadas no sofá.
— Vou ter que viajar para Londres dentro de urna hora — disse Tom, após um
momento. — E amanhã, a essa hora, vou voltar para o Caribe.
— Tão cedo? — exclamou Delia surpresa. — Não vai aguardar a solução do
requerimento?
— As formalidades legais vão levar algum tempo. Vou encontrar-me com os advogados
amanhã para adiantar uma boa parte das papeladas. Mas não posso demorar-me mais
tempo na Inglaterra. De onde eu venho é plena temporada de férias. Não posso me
afastar dos meus negócios mais do que alguns dias.
— Quais são seus negócios lá?
— Eu trabalho com turismo — respondeu Tom evasivamente. — Ganho minha vida
como posso e onde estou. E, nesse momento, tenho algo urgente para resolver* —
Voltou-se para Sanchia. — Ê aí que você entra.
— Eu tenho certeza que Sanchia gostaria muito de cuidar das crianças no resto das
férias — disse Delia.
— Com muito prazer — concordou Sanchia.
— Não era isso exatamente que estava pensando — disse Tom.
— Eu ia pedir um outro favor seu.
— Se estiver dentro do meu alcance
— Quando as crianças viajarem de avião para o Caribe, gostaria que você fosse com
elas.
CAPITULO II
CAPITULO III
Sanchia foi acordada pelo ruído alto de um corpo caindo na água. Abriu os olhos e,
momentaneamente desorientada, piscou diante das riscas de luz que tremulavam no teto
da cabine. Um grito, seguido por outro ruído alto, fez com que se sentasse rapidamente
na cama. Sua confusão foi se desfazendo pouco a pouco. Estava a bordo do Jacarandá
e, do lado de fora, as pessoas brincavam na água.
Que horas eram? Meu Deus, oito horas! O sol tinha nascido havia muito tempo. Pulou
da cama e correu até a vigia para ver o que os outros estavam fazendo.
Deu uma exclamação abafada de surpresa e de alegria. Era um sonho que surgia diante
dos seus olhos. . . uma praia pequena, em forma de meia-lua, e uma água muito limpa e
azul que fazia espuma onde as marolas quebravam na areia. Atrás da praia levantava-se
um morro coberto de vegetação e as palmeiras balançavam as folhas compridas ao
vento.
Não podia passar os ombros pela vigia e ter uma visão completa da enseada onde
estavam ancorados, nem mesmo das pessoas que brincavam na água. Abaixou a cabeça
e tudo que avistou foram as águas cristalinas que banhavam o casco do veleiro, e os
reflexos trêmulos dos mastros na superfície.
De repente, do alto, um corpo moreno passou voando na sua frente e foi cair a alguma
distância do barco, levantando um esguicho de água. Alguns segundos depois, como não
avistava sinal do mergulhador, pensou que devia ter saído à tona fora da sua visão.
Mas não, lá estava ele — a uns vinte metros de distância, onde o mar tinha cor de água-
marinha. Era George, que sacudia a cabeça como um cachorrinho e que sorria com
todos os dentes de fora.
Quando ele se aproximou do veleiro, nadando com braçadas lentas e graciosas, avistou
o rosto de Sanchia na vigia e rumou em sua direção.
— Bom dia. A água está uma delícia. Você não vai cair?
— Vou para aí num minuto!
Tirou o pijama, vestiu o biquíni e escovou os dentes. Passou por cima dos ombros uma
saída-de-banho que tinha feito com uma toalha velha, calçou as sandálias e subiu para o
convés.
Todos estavam nadando, com exceção de Tom, que estava sentado perto da escada,
observando os outros. Mas ele também estivera na água alguns minutos antes. Seu
corpo bronzeado tinha um brilho quase metálico que acentuava os músculos dos ombros
no momento em que secava a cabeça com a toalha.
— Que lugar maravilhoso é este? — Perguntou Sanchia, logo após cumprimentá-lo.
— Lembra do que você me disse na sua casa? Que eu não devia encher a cabeça das
crianças com a esperança de uma vida idílica ao ar livre? Pois esta é exatamente a ilha
dos sonhos. . . a ilha onde Robinson Crusoé naufragou e viveu muitos anos sozinho.
— Robinson Crusoé é um personagem da imaginação de Daniel Defoe. Ele não foi uma
pessoa real.
— Agora é você que está sendo uma terrível realista — disse Tom com um sorriso.
Inclinou-se e estendeu a mão para Jane, que subia a escadinha de corda ao lado do
casco.
— Sanchia, a água está divina! — exclamou Jane. — Você pode enxergar tudo lá
embaixo. O tio vai ensinar a gente a usar acqualung. E não precisamos mais pôr o salva-
vidas, a não ser quando o mar estiver bravo, porque nós nadamos melhor do que ele
imaginava. Você não vai fazer o teste com a Sanchia, tio?
— Você está disposta a nadar até a praia? — perguntou-lhe Tom.
— Posso tentar.
— Desça pela escada — recomendou Tom. — O convés está muito alto. Eu vou com
você.
Sanchia despiu a saída de banho, foi até a borda e olhou para a água embaixo com um
pequeno gesto de nervosismo.
— Bem... lá vou eu! — disse com coragem.
Dobrou os joelhos, jogou os braços para frente e para trás e atirou-se com um pulo
descrevendo um arco. Segundos depois estava no mundo esverdeado embaixo da água.
Ela sabia, quando voltou à tona, que dera um bonito mergulho e gostaria de ver a cara
de Tom. Entretanto, no momento em que levantou a cabeça fora da água, respirou fundo
e saiu nadando rapidamente em direção à praia. Tinha nadado a metade da distância
quando Tom passou a seu lado e deixou-a para trás.
— Você não precisava nadar tão depressa assim — disse Tom quando chegaram ao raso.
— Parecia que você estava fugindo de um tubarão!
Sanchia estava sem fôlego para responder. Afastou os cabelos compridos que caíam nos
olhos e pensou que seria bom deitar-se alguns minutos na areia. Entretanto, embora não
controlasse a respiração ofegante, não queria demonstrar que estava exausta pelo
esforço.
Felizmente, Tom caminhou alguns passos e deitou-se ao comprido na praia. Ela sentou-
se ao seu lado.
— Passei no teste? — perguntou ofegante.
— Com nota dez. Você nada muito bem... mas não posso dizer o mesmo de suas
intenções.
— Em que sentido?
— Por que você fingiu que não ia conseguir?
— Você sabia que eu ia chegar até aqui?
— Claro, caso contrário não teria sugerido. Não se deve exigir das pessoas o que está
além de suas capacidades. É absurdo e perigoso. As crianças me contaram que você
dava muitas voltas na piscina.
Ela mordeu o lábio. Que homem antipático! Tinha sempre resposta para tudo.
— Se você sabia que eu nadava bem, por que você me fez passar por esse teste
estúpido? — perguntou com irritação.
— Porque queria ver com meus olhos. Conheço pessoas que nadam muito bem na
piscina, mas que não se dão bem no mar. . . o que não é seu caso.
Sanchia ouviu em silêncio e, após um momento, Tom perguntou:
— Por que você antipatiza comigo? Eu lhe dei algum motivo?
— Por que você pensa isso?
— Não se faça de ingênua, Sanchia. Você queria me dar um espetáculo... você queria
ganhar de mim diante dos outros. E, para ter essa satisfação, quase se matou
fisicamente. Reconheça que foi uma bobagem fazer isso. Agora eu vou voltar e tomar
café. . . Mas você vai ficar aqui e descansar pelo menos uns vinte minutos. Eu vou lhe
fazer sinal de lá para você voltar... nadando lentamente!
Sanchia observou-o afastar-se até a beira da água com um brilho de raiva nos olhos que
teria espantado as pessoas que a julgassem uma criatura reservada e submissa.
Não há dúvida... fora uma idiota ao se comportar daquele jeito. Mas não havia
necessidade de Tom lhe passar um sermão como se fosse uma criança. Apertou as mãos
com força e contraiu os maxilares. Ah, ele era insuportável... odioso! Coitadas das
crianças quando ficassem sozinhas na sua companhia. Ele jamais compreenderia ou
simpatizaria com os problemas da adolescência.
No momento, indiferente à areia que grudava nos cabelos molhados, deitou-se de costas
e cobriu os olhos com os braços. Quem dissera mesmo que havia uma serpente em todo
paraíso? Era verdade, pensou com amargura. Aquele lugar seria um paraíso se não fosse
a presença de Tom. Algumas semanas atrás, a diretora lhe prevenira para não ter
preconceitos no seu julgamento. Há cinco minutos atrás, Tom dera a entender a mesma
coisa. Não podia 'negar que tinha preconceitos. Desde o momento em que o avistara em
sua casa, algum instinto lhe advertira que aquele homem era perigoso e não merecia
confiança.
Por que seu instinto não seria correto? Não tinha o costume de antipatizar gratuitamente
com as pessoas. Não havia de fato algo nele que a levava a desconfiar e ser cautelosa?
Num ponto pelo menos suas suspeitas eram verdadeiras. Ele e as crianças tinham um
segredo. O que Tom contara às crianças que não podia ser revelado a ninguém, nem
mesmo a ela?
Na noite anterior, antes de dormir, meditara nesse assunto e não chegara a nenhuma
conclusão. Agora, deitada na praia, aguardando o sinal para voltar, tornou a examinar o
mistério.
Primeiro, seria pouco provável que alguém confiasse um segredo importante a três
crianças, sendo que uma delas tinha apenas nove anos. Entretanto, não havia uma
entonação de brincadeira na voz de Tom quando dissera às crianças "Ninguém pode
saber". Ele falara com a voz séria.
Fazia mais de um mês que Duncan, Jane e Emma tinham ouvido essa recomendação e
Sanchia foi forçada a concluir que o segredo era muito importante, senão as crianças
teriam acabado contando. Além do mais, a única maneira que um adulto podia obter
segredo de uma criança era dizei* que a revelação do segredo podia ter conseqüências
sérias para alguém.
Sentou-se na areia e olhou para o Jacarandá. Lembrou-se do que Jock lhe contara no
dia anterior. Nove anos antes, ele e Tom tinham comprado um pequeno barco. Agora
possuíam uma frota e a escuna, que devia ter custado alguns milhões. De onde saíra
todo esse dinheiro? Será que tinham mais do que sorte? Não seriam aquelas viagens de
porto em porto uma espécie de disfarce para atividades menos honrosas e mais
lucrativas? E se eram, que atividades seriam essas?
A resposta que lhe ocorreu no momento era tão absurda que preferiu abandoná-la
imediatamente. Antes que tivesse tempo para encontrar outra explicação mais racional,
ouviu um assobio vindo do veleiro e viu Jock acenar a mão.
Ele estava segurando a saída de banho quando ela subiu a escadinha de cordas. Passou-a
em volta dos seus ombros e comentou com voz atenciosa: — Não se queime muito no
primeiro dia, menina. É uma tentação tomar sol, mas é melhor não exagerar.
Sanchia ia dizer que não ficara voluntariamente deitada na praia, mas controlou-se a
tempo. Em vez disso perguntou:
— Onde nós estamos, Jock? Que ilha é esta?
— Chama-se Tobago. Tom não lhe disse?
— Não, ele disse apenas que era a ilha de Robinson Crusoé.
— Ah, isso é o que dizemos aos turistas... Muitos inclusive descobrem a caverna onde
Robinson morou. Você sabia que foi um marinheiro escocês que deu a Defoe a idéia de
inventar esse personagem?
— Não, não sabia— disse Sanchia, esfregando os cabelos na toalha.
— Pois foi... um tal de Alexander Selkirk. Era um marinheiro de Largo, na Escócia. Ele
passou quatro anos numa ilha deserta. Mas não nesta aqui. Foi em Juan Fernández, no
Pacífico, onde foi deixado na praia.
— De que parte da Escócia você é, Jock?
— Sou de Portree.
— Eu não conheço a Escócia. Aliás, essa é minha primeira viagem.
— Ah, sim? Há momentos em que eu também preferiria ter levado uma vida mais
sossegada... mas agora é tarde demais. A gente não pode ter tudo o que quer. Tem que
escolher entre uma coisa e outra. Eu tive a oportunidade de ter mulher e filhos, mas não
aproveitei ... e agora nenhuma mulher me aceitaria como marido.
— Não vejo por quê!
Os olhos azuis piscaram para ela. — Com minha idade? Eu não vou viver muito tempo,
menina. Mesmo quando moço nunca fui um homem muito forte. Tom, sim, é um touro
de força e resistência.
— A aparência não é importante, Jock. O que vale é a bondade. Eu tenho certeza de que
você seria um ótimo marido.
— Você diria o mesmo de mim? — perguntou uma voz irônica nas suas costas.
Ela voltou-se e avistou Tom a alguns passos dali. Corou ligeiramente e, se Jock não
estivesse ali, teria respondido um desaforo. Na presença do velho marinheiro, controlou-
se e disse apenas:
— Eu vou me vestir. Até mais tarde, Jock.
Naquela mesma manhã, George levou as crianças à praia no bote n remo. Queriam que
Sanchia fosse junto, mas ela disse que ia aproveitar para lavar as roupas.
Depois de pendurar as roupas, voltou à cabine par continuar a carta que estava
escrevendo para Delia. Descrevera o veleiro nos menores detalhes quando se lembrou
que não conhecia uma parte do barco. Tom lhe dissera que o porão fora transformado
em cabines, mas não se oferecera para levá-la até lá. Tudo que conhecia até então era a
pequena cozinha e a saleta, além das cabines onde ela e as crianças dormiam.
Lembrou-se da idéia absurda que lhe ocorrera na praia. Talvez houvesse algum
esconderijo no Jacarandá que Tom não queria lhe mostrar. Quem sabe o barco
transportava alguma mercadoria clandestina? Mas era impossível que Jock se
envolvesse com. algo ilegal, pensou no mesmo instante. Além do mais, se fosse esse o
segredo. Tom jamais o contaria às crianças.
Entretanto, a suspeita continuou a incomodar sua imaginação. Naquela tarde, deitou-se à
sombra da coberta que Jock armara especialmente para ela e observou Tom ensinar às
crianças o uso dos aparelhos de pesca submarina.
Pode ser que um homem inteligente preferisse contar a verdade AH crianças, pensou, ou
pelo menos uma versão aceitável. As crianças tinham olhos curiosos e indagadores. Se
estivesse levando algo proibido no veleiro, era preferível contar de uma vez do que
tentar esconder. Na idade delas, não julgariam o contrabando uma atividade condenável.
Pelo contrário, achariam uma aventura perigosa e excitante. Só que os contrabandistas
modernos não se dedicavam mais, como no passado, ao transporte de bebidas
alcoólicas. Agora as mercadorias eram menos românticas. . . relógios, armas e, o pior de
tudo: drogas.
— Por que você está triste? — perguntou Jock, oferecendo-lhe uma limonada gelada.
Sanchia olhou para o rosto curtido pelo sol e sentiu vergonha seus pensamentos. Como
podia suspeitar que aquele homem simples e bondoso fosse um contrabandista?
As crianças não reclamaram quando foram mandadas cedo pai a cama. Jane estava com
os ombros e o rosto cobertos de sardas Sanchia pensou que dentro de algumas semanas
os cabelos das meninas estariam tão louros e desbotados quanto os de um bebê. Todos
três estavam ansiosos para praticarem a pesca submarina, mi Tom disse que deveriam
fazer primeiro um exame médico antes usaram os apetrechos.
Emma estava quase dormindo quando Sanchia a levou para a cama. No momento em
que ela saiu do quarto das meninas, Tom surgiu de outra porta no corredor. Trancou-a e
guardou a chave no bolso.
— Gostaria de conversar um instante com você — disse Tom. Vamos até a praia. Lá
estaremos mais à vontade.
Com uma certa apreensão, Sanchia acompanhou-o pelo convés, Tom entrou primeiro no
bote e lhe estendeu a mão. Segurou-a com firmeza pelo braço enquanto ela punha o pé
no degrau da escada e ajudou-a a sentar-se no banco estreito do barco. Tomou seu lugar
soltou a corda e começou a remar lentamente em direção à pra
Quando se aproximaram do raso, Sanchia retirou as sandálias d pés e dobrou as bainhas
da calça. No momento em que o barco encalhou na areia, saltou para a água e ajudou-o
a puxá-lo para cima. A areia seca estava quente sob seus pés descalços. Sentaram-se
perto do local onde tinham estado naquela manhã e Sanchia pensou sob o que podia ser
a tal conversa. Não era certamente pelo prazer sua companhia que Tom sugerira um
novo encontro na praia. Observou-o em silêncio, com o canto dos olhos, enquanto ele
acendia cigarro e dava algumas tragadas. A noite estava tranqüila e o céu
completamente estrelado.
Tom aparentemente não tinha pressa de iniciar a conversa. Ficou deitado um momento
sobre o cotovelo, admirando as marolas q quebravam na praia com um murmúrio leve e
constante. Do morro atrás, coberto de vegetação fechada vinham os ruídos abafados
misteriosos dos animais noturnos e os pios ocasionais dos passar que perturbavam o
silêncio. Sanchia, contudo não estava com a cabeça calma para apreciar a paz e a beleza
da noite.
— O que você queria falar comigo? — perguntou por fim.
— Eu pensei que você quisesse continuar nossa conversa interrompida... Você mudou
de idéia a respeito das crianças morarem no veleiro?
— Não, não mudei. Admito que seja mais confortável que imaginava, mas isso não é
suficiente.
— Muito bem... Quais são suas objeções?
— Em primeiro lugar, as crianças necessitam de segurança... de uma residência estável.
— De fato, elas necessitam de segurança emocional, mas o que isso a ver com o local
onde moram? Estabilidade e segurança são duas coisas distintas. Morar dentro de quatro
paredes não significa ter segurança.
— Nem sempre, concordo. Mas os três não estão acostumados a essas mudanças de
ambiente. Se fossem menores, não faria objeção. Mas eles já têm uma vida estabelecida.
Se você modificar esse estilo quem sabe as conseqüências que poderão ocorrer?
Tom deu uma tragada no cigarro.
— E meu estilo de vida? Você está sugerindo que devo alterá-lo?
— Não seria possível encontrar um compromisso? Você não pode viver sempre dessa
forma. Um dia vai querer uma casa...
— Não creio. Por que haveria? Tenho tudo que desejo aqui.
— Você não pensa em casar e ter filhos?
— Isso tem importância?
— Não, se você pretende permanecer solteiro. Mas não pode querer que sua mulher
viva permanentemente num veleiro.
— Por que não? Pelo visto, nós dois temos idéias diferentes sobre o relacionamento
ideal entre os sexos. Eu penso que o homem decide onde e como o casal deve viver, e a
mulher se adapta à escolha do marido.
Não foi tanto a opinião dele quanto a maneira como a expressou que provocou um
movimento de irritação nela.
— Isso pode dar certo na teoria, mas na prática é outra coisa. O que vai acontecer se
você casar com alguém que não aprecie a vida em alto-mar?
— De duas uma. Ou bem ela teria que superar sua aversão, ou ««ríamos forçados a nos
separar.
A frieza da afirmação exasperou-a a tal ponto que, esquecendo-se de sua moderação
habitual, retrucou com raiva:
— Se essa é sua atitude, eu tenho pena da mulher com quem você se casar! O
casamento é um acordo. Quando a gente gosta de alguém deseja que o outro também
seja feliz. Pelo visto, você considera o amor uma tolice...
— De fato, o amor me parece meio superado — disse Tom com uma calma irritante.
— Você diz isso porque nunca gostou de ninguém!
— Pelo contrário, quando era mais moço e impressionável, sofri uma crise bem séria.
Durante um ano ou mais pensei que não fosse me recuperar. . .
Incapaz de reprimir sua curiosidade, Sanchia perguntou:
— O que aconteceu? Ela o deixou?
— Os pais decidiram terminar o namoro: ela tinha vinte e dois anos e não teve coragem
de desobedecê-los.
— E por que os pais desaprovaram o casamento?
— Ah, por muitas razões. Primeiro porque eu não tinha dinheiro. . . não tinha futuro.
Não jogava tênis, nem golfe. Não tinha sido um oficial do Exército. Os valores da
família dela eram semelhantes aos do meu cunhado.
— Entendo — disse Sanchia após um momento. — Como essa namorada o deixou,
você passou a não confiar mais em nenhuma mulher.
Tom deu uma risada.
— Que reação tipicamente feminina! Mas dessa vez você está redondamente enganada.
— Em que sentido? — perguntou Sanchia com a voz tensa.
— As mulheres imaginam que podem destruir a vida de um homem. Isso não é verdade.
Carol não partiu meu coração. Um ano e meio depois, compreendi que os pais dela
tinham me feito um favor. Não vá pensar por isso que eu seja um misógino. Gosto tanto
das mulheres quanto qualquer homem normal.
— Mas não o suficiente para abrir mão de sua liberdade, nem mesmo para fazer
algumas concessões — disse Sanchia com rispidez.
Tom não respondeu imediatamente e Sanchia arrependeu-se d ter sido indelicada.
— É isso que você deseja? — perguntou Tom por fim, com a voz serena. — Um homem
que sacrifique tudo por você?
A pergunta desorientou-a momentaneamente. Era como se ele tivesse entrado no seu
quarto sem bater primeiro na porta. Ninguém nem mesmo a diretora, havia invadido
desse jeito sua intimidade.
— Você se esquece que eu fui casada — disse com a voz fria.
— Mas você é muito moça ainda para ficar viúva o resto da vida.
— Nunca pensei nisso.
— Não está na hora de pensar? A vida não é tão longa que se possa desperdiçá-la
inutilmente. Na sua idade, você devia estar olhando para a frente, e não se agarrando ao
passado.
Ela respirou fundo e notou que suas pernas estavam tremendo.
— Isso é meu problema — murmurou em voz baixa. Não havia limites para a
agressividade dele?
— Eu sei disso. Mas, como você expressou sua opinião a meu respeito, eu me julguei
no direito de ser igualmente franco.
— Você não entendeu minhas palavras. A maneira como você se vê é inteiramente
alheia para mim. Eu estou preocupada apenas com o bem-estar das crianças.
— E eu não me preocupo, por acaso? Sabe qual é seu problema Sanchia? Você foi
educada com uma série de valores imutáveis. As pessoas que não se adaptam a esses
valores são automaticamente suspeitas. Você não aceita que há outras maneiras de viver,
tão boas ou melhores do que a sua.
— Não é verdade...
— Eu entendo seu ponto de vista. Poucas pessoas se dão ao trabalho de desenvolverem
uma filosofia própria de vida. A maior parte herda os valores dos pais. Você foi educada
numa escola cara e imagina que esse é o melhor início na vida. Você não tem nenhum
motivo sério para se inquietar com o futuro das crianças. O que a preocupa no momento
é que estou afastando as crianças de tudo que é importante para você...
Antes que Sanchia tivesse tempo de responder, Tom prosseguiu:
— Eu terminei minha educação na Coréia. Provavelmente, você não se lembra mais
dessa guerra. Foi há muitos anos atrás. Você devia ter a idade de Jane. Eu fui um dos
poucos que saíram inteiros da guerra. Eu vi homens serem despedaçados ao meu lado,
outros ficaram aleijados para a vida inteira, sem falar nos que sofreram toda sorte de
torturas como prisioneiros de guerra. Eu vi meninos da idade da Emma lutarem por
pedaços de comida, como se fossem cães. Certa vez, em Seul...
Tom interrompeu bruscamente o que ia contar e Sanchia nunca soube o que acontecera
há mais de quinze anos atrás que fazia os dentes dele rangerem de ódio. Quando voltou
a falar, sua entonação era distante e sem emoção.
— Depois que voltai da Coréia, aprendi que somente duas coisas eram importantes na
vida. Ter o suficiente para comer e trabalhar por prazer. As pessoas normalmente
trabalham oito horas por dia. Se não gostam do que fazem estão jogando foram um terço
de sua existência.
— Tudo isso é muito certo na teoria, mas a maior parte das pessoas não têm outra
escolha. Eu admito que há muitos homens que gostariam de levar a sua vida, mas são
obrigados a trabalhar num escritório ou numa fábrica porque têm mulheres e filhos para
sustentar. Você e Jock não poderiam ter iniciado esse negócio se tivessem dependentes.
— Está certo, somente alguns têm essa escolha. Mas há milhares de outros que
trabalham sem prazer, porque não têm a coragem de se revoltar e viver como gente, em
vez de vegetar simplesmente. As vantagens da civilização, a televisão a cores, os carros
último tipo e todos os símbolos de prestígio não valem uma vida de "desespero
tranqüilo". Você não concorda comigo?
Sanchia não podia negar que havia muita verdade no que Tom dissera. Seu próprio pai
teria sido mais feliz se trabalhasse no campo e não num escritório de advocacia.
— Muitas pessoas abandonam seus sonhos de felicidade para darem aos filhos uma
oportunidade maior... um objetivo melhor na vida — disse Sanchia.
— Pois é, e a maior parte dos sacrifícios são feitos no altar do amor-próprio —
observou Tom cinicamente. — Não é sempre e benefício dos filhos que as pessoas
lutam para obter essas vantagens. Fazem isso por satisfação própria. Mais tarde,
esperam que os filhos façam o mesmo e perpetuem esse padrão de comportamento.
Sanchia lembrou-se dos anos em que aprendera piano por insistência da mãe, embora
não tivesse nenhum talento especial para música.
— Mas você não pode negar as vantagens de uma boa educação.
— Se por educação você se refere a ir à escola, eu não creio q seja tão importante assim.
— Como você pode dizer isso? Claro que é. A educação é imensamente importante!
— Meu cunhado teve a melhor educação que o dinheiro pode oferecer. Jock saiu do
colégio aos catorze anos. Segundo um critério puramente humano, Jock é dez vezes
mais homem que Eric.
— Você odiava seu cunhado, não?
— O que você sentiria por um homem que causou a infelicidade de sua irmã? Amor? Eu
não nego que foi em parte por culpa dela. Lucy era muito moça quando casou com Eric.
Ela ficou fascina com sua posição social.
— Bem, se você acha que o amor é superado e não aprova os motivos materiais, por que
razão as pessoas deviam casar, na sua opinião?
— É necessário haver uma razão especial? O casamento é antes mais uma instituição de
ordem prática. A maior parte das mulheres necessitam de um homem que as sustente
materialmente, maior parte dos homens precisam de mulheres que cuidem da casa e dos
filhos. Não há nada mais simples. Por que complicar as coisas?
— Você está brincando! Nesse caso, qualquer um pode casar com qualquer pessoa.
— Exatamente, contanto que os dois estejam dispostos a tirar o maior proveito disso.
Esse sistema funciona tão bem quanto qual quer outro.
Sanchia não sabia se Tom estava brincando ou falando sério. Como era mais provável
que estivesse brincando, comentou com frieza.
— Segundo sua teoria, podia pedir Jock em casamento. Ele está arrependido de ser
solteiro e eu simpatizo muito com ele. Nós seríamos o casal perfeito, na sua opinião.
— Não, Jock não serviria... ele é muito velho para você. Você necessita de alguém da
minha idade. Por falar nisso, nós dois combinamos muito bem um com o outro.
No primeiro momento, ela não soube o que dizer.
— Agora eu sei que você está brincando! — disse por fim. — Não conheço duas
pessoas mais incompatíveis do que nós dois.
Tom levantou-se e lhe estendeu a mão.
— Por que você diz isso?
Fingindo que não percebera seu gesto, Sanchia ergueu-se sozinha e tirou a areia da
roupa.
— Nosso senso de humor não combina — respondeu.
Tom levou-a de volta para o veleiro remando em silêncio. Entretanto, no momento em
que ela se despediu rapidamente no alto da escada, ele chamou-a de volta.
— Escuta...
Ela voltou-se e encarou-o com o rosto surpreso.
— Espero que nossa conversa tenha deixado bem claro que não pretendo mudar meus
planos com respeito às crianças.
— Eu estou convencida.
— Ótimo. Seria uma pena se você desperdiçasse os dias a bordo com uma série de
discussões inúteis. As crianças percebem a desarmonia entre os adultos e o motivo
principal de sua vinda era facilitar esse período de adaptação. Além disso, não há pior
lugar para brigar do que num barco. Ê muito apertado e as pessoas em volta se sentem
incomodadas.
— Você não precisa se preocupar... Eu sei quando estou batendo com a cabeça na
parede. Boa noite.
Ela tinha dado alguns passos quando ele tornou a chamá-la.
— Outra coisa... — a respeito de minha teoria sobre o casamento, eu não estava
brincando. Eu falei sério. Boa noite, Sanchia.
Desta vez, foi ela que ficou parada, boquiaberta, enquanto Tom se afastava a passos
rápidos em direção à proa.
No meio da noite, Sanchia foi acordada por gritos e vozes no convés. Sentou-se na
cama, imaginando o que podia ser a causa daquela agitação, quando a porta da cabine
foi aberta repentinamete e Jane entrou correndo.
— Você não está vestida ainda? Corre! O sino já tocou há um tempão! Você devia estar
no convés em dois minutos!
— Dois minutos? No convés? O que aconteceu?
— Vamos ter que abandonar o barco. O veleiro está afundando!
— O quê? — exclamou Sanchia perplexa. — Não pode ser! Por quê? O que aconteceu?
— Pulou instintivamente da cama e começou a vestir a calça por cima do pijama.
Jane enfiou a cabeça na malha de gola rulê.
— Bem, o veleiro não está afundando realmente. É apenas um treinamento de rotina —
explicou Jane saindo às pressas da cabine.
O luar banhava o beliche com sua luz prateada. Sanchia não precisou olhar para o
relógio para saber que era de madrugada.
— Ele deve estar louco! — resmungou em voz alta.
Tom dissera de fato, na véspera, que pretendia testar as reações dos passageiros numa
situação de emergência, mas ela nunca iria imaginar que seria no meio da noite,
No primeiro momento, pensou em voltar para a cama. Depois achou que seria
impossível dormir com os outros correndo no convés. Era possível também que Tom
passasse pessoalmente na cabine a levasse à força para o convés.
Mal colocou o pé no convés, uma mão forte e pesada segurou-a pelo ombro.
— Você levou seis minutos para subir! — disse Tom com rispidez — Por que não vestiu
o pulôver? Faz frio em alto-mar à noite. Se o naufrágio fosse real, você estaria
certamente em estado de choque.
— Eu estou em estado de choque! O que você acha? Ser arranca da cama no meio da
noite... A coitadinha da Emma deve esta morta de susto.
— Pelo contrário. Está adorando a novidade. Desça e vista um pulôver grosso.
Não era uma sugestão. Era uma ordem. Sanchia obedeceu de má vontade. Quando
voltou, ao convés pela segunda vez, percebeu que Tom tinha a intenção de fazê-los
abandonar de fato o veleiro. Ajudadas por George, as crianças tinham enchido um barco
de inflar e estavam prestes a lançá-lo ao mar.
Tom não se reuniu aos outros no exercício. Permaneceu a bordo do veleiro, debruçado
sobre a corda do convés, observando Duncan e George que remavam o barco de
borracha para longe do Jacarandá.
O barco de borracha começou a jogar lentamente de um lado para o outro e, durante
alguns minutos, todos permaneceram em silêncio. Foi então que Emma perguntou com
a voz sumida:
— Não tem perigo de um tubarão morder o barco?
— Não tem tubarão nestas águas — disse George com uma risada. Emma acreditou na
explicação e ficou mais calma. Sanchia, porém refletiu em silêncio sobre a possibilidade
de haver tubarões na águas quentes das Antilhas. Tom não dissera no dia anterior que
ela tinha nadado depressa como se estivesse fugindo de um tubarão? Na primeira
oportunidade, iria perguntar a Jock se os tubarões costumavam infestar aqueles mares, e
até que ponto eram perigosos se fossem encontrados por um banhista.
Sanchia voltou a cabeça para o alto e esqueceu-se momentaneamente dos tubarões e
outros perigos do mar. Era impossível ficar indiferente diante daquele espetáculo
suntuoso. As sete filhas de Atlas e Plêione, Cassiopeia, a rainha da Etiópia, e
Andrômeda salpicavam o Armamento como grandes pedras preciosas. Ao ouvir o
assobio de Tom chamando-os de volta, ela pôde compreender a relutância das crianças
em voltar para a cama.
Jock estava à espera deles com um bule de chocolate quente e uma lata de biscoitos. As
crianças estavam tão excitadas com a aventura que Tom deu permissão para ficarem
acordadas e verem o nascer do sol.
Na luz rosada entre o dia e a noite, tomaram café com leite e comeram cachorros-
quentes. Sanchia estava com tanta fome quanto as crianças.
— Você preferia estar na cama? — perguntou Tom com um sorriso ao vê-la lamber os
beiços.
— Não, não neste momento.
— Está vendo? Mais alguns dias e vamos fazer de você uma verdadeira rainha do mar
Pouco depois, ao voltar para a cabine, Sanchia mirou-se no espelho em cima da pia. 0
que Tom queria dizer com "rainha do mar"? Que no momento ela estava por fora?
Lembrou-se das palavras de despedida na noite anterior. "A respeito da minha teoria
sobre o casamento... eu não estava brincando. Eu falei sério." Qual fora a intenção desse
comentário?
Ninguém diria que fazia uma semana que estavam em alto-mar. Emma aprendera a
cantarolar uma velha canção escocesa que Jock lhe ensinara e a repetia baixinho
enquanto polia as peças de cobre no corredor.
Sanchia ficou contente e comovida com a amizade que havia entre o velho escocês e a
menina de nove anos. Jock a chamava agora de "mascote" e os dois passavam muito
tempo juntos, conversando e brincando. Emma estava começando a adotar a pronúncia
do velho marinheiro, inclusive sua maneira arrastada e melodiosa de falar.
Tobago ficara agora bem para o sul. O Jacarandá rumava para Barbados, a mesma ilha
onde as crianças voltariam ao colégio. Por causa disso, Tom resolveu não parar na
capital, Bridgetown, e rumou diretamente para um porto menor, Speightstown, onde
conhecia um médico de confiança e onde a escuna podia abastecer-se de água e
mantimentos antes de chegarem a ilha de St. Vincent.
Sanchia, porém não achou essa explicação muito convincente. Examinou os mapas e
suas suspeitas aumentaram.
Barbados era a ilha mais a leste das Antilhas. Para ir naquela direção, de Tobago a St.
Vincent, era necessário dar uma grande volta. Aliás, pelo que podia avaliar, era o dobro
da distância.
Possivelmente havia um médico em St. Vincent. Nesse caso, por que Tom insistia em
afastar-se muitas milhas de sua rota apenas para consultar o médico em Speightstown?
Não fazia sentido, a me nos que Tom tivesse outra razão para aportar ali, um motivo que
desejava manter em sigilo.
— Quando vamos mergulhar com o acqualung — perguntou Jane aquela noite. Todas as
crianças, inclusive Sanchia, tinham feito exame médico no porto.
Tom sorriu diante da animação das crianças.
— Quando chegarmos a St. Vincent.
— E lá que você...
Emma parou bruscamente e ficou vermelha como um pimentão, Jane olhou para a irmã
com o rosto fechado. Duncan interveio rapidamente.
— Por que o médico disse que é perigoso usar borrachinhas no ouvido, tio?
— Porque a pressão pode empurrá-las para dentro do ouvido ou se saírem
acidentalmente, a pressão repentina pode perfurar o tímpano. Se a pressão causar dor de
ouvido, você pode remediar isso engolindo em seco ou soprando o ar pelo nariz.
— O que você ia perguntar, Emma? — insistiu Sanchia propositalmente.
— Ah, não era nada. Eu estava querendo saber quanto tempo vamos ficar lá — disse a
menina sem jeito.
— Isso depende — comentou Tom. — Se tudo estiver em ordem no nosso armazém,
vamos nos demorar uns dez dias, mais ou menos.
— Eu pensei que você estivesse muito ocupado nessa época do ano — observou
Sanchia. — Lembra o que você disse lá em casa?
— Como disse, tudo vai depender do que encontrar lá. Por enquanto, não há nada
urgente. Mas se surgir algum problema inesperado, pode ser que esteja muito ocupado
na semana que vem.
Naquela mesma noite, ao voltar para a cabine após um banho d chuveiro, Sanchia
encontrou Tom no corredor. Em vez de afastar-se para o lado, ele parou bem no meio da
passagem.
— Ninguém a reconheceria mais. E incrível a diferença que faz uma semana de sol.
Você está muito bem com essa pele bronzeada. Combina com seus cabelos castanhos...
Sanchia ouviu o comentário em silêncio, ligeiramente sem jeito. Ela saíra do banho com
uma toalha enrolada no corpo. Não teria se importado de encontrar Jock naqueles trajes,
mas ficou sem graça diante de Tom.
— Você já vai dormir? Eu me lembro que na Inglaterra você ia mais tarde para a cama.
— A noite que você chegou foi uma exceção.
— Ah, bom. Eu pensei que nossa conversa na praia tinha sido suficiente para criar mais
intimidade entre nós dois. Você não acha que podia confiar um pouco mais em mim? Se
eu tivesse a intenção de me aproveitar, essa seria uma boa oportunidade, não acha?
Ela recuou um passo, corando tanto quanto Emma à mesa do jantar.
— Nunca me ocorreu que você fosse fazer isso.
— Por que não? Eu sou um homem como os outros.
— Pois não parece. Com licença, vou trocar de roupa.
— Não faça cerimônia — disse Tom afastando-se da passagem com um sorriso irônico
nos olhos.
Consciente de que estava sendo observada, Sanchia correu para a cabine e fechou a
porta atrás de si. Foi só então que notou que estava trêmula e ofegante.
Não posso continuar desse jeito, pensou com determinação. Estou me comportando
como uma adolescente. Preciso terminar de uma vez com isso. Não adianta adiar mais.
Tem que ser agora.
Tomada essa decisão, vestiu-se rapidamente e voltou à procura de Tom antes que sua
coragem repentina desaparecesse.
Ele estava no leme ao lado de Jock. Quando Tom a avistou e levantou as sobrancelhas
com o rosto surpreso, sua decisão quase foi por água abaixo.
— Posso conversar um minuto com você?
— Naturalmente. — Acompanhou-a até a saleta. — O que foi? Ela respirou fundo. —
Você disse há pouco que eu parecia tensa.
Você tem toda a razão. Eu me sinto tensa. Mas não é pelo motivo que você sugeriu.
Como posso confiar em você quando sei que está escondendo uma coisa de mim?
— Escondendo uma coisa de você?
— Há um segredo entre você e as crianças, e eu não sei qual é.
— Ahhh. Há quanto tempo você suspeita disso?
— Desde lá de casa. Estava visível que as crianças tinham um segredo, mas eu imaginei
a princípio que era algo sem importância... uma brincadeira qualquer.
— E agora você julga que tem importância?
— Não sei realmente o que pensar.
— Vamos, confesse... você deve ter alguma idéia. Se você suspeitou haver um segredo
entre nós, tenho certeza de que tirou alguma conclusão. Que mulher não tiraria?
Seu tom arrogante levou-a a falar claramente.
— Está bem, eu tenho. . . e não é nada agradável. Eu não tenho certeza, mas acho que
você está praticando algo ilegal.
O ar divertido desapareceu de seus olhos.
— É mesmo? — perguntou em voz baixa. — E o que você entende por "algo ilegal"?
— Bem, você pode não chamar isso de ilegal, mas para mim é. Eu penso que você
está... transportando contrabando.
Sem afastar os olhos dela, Tom acendeu um cigarro.
— E daí? O que você pretende fazer?
— Quer dizer quer dizer que você confessa estar fazendo contrabando? — gaguejou
Sanchia, com os olhos arregalados.
— De certa forma, sim.
As pernas dela amoleceram repentinamente. Sentou-se na cadeira com o rosto branco
como cera.
— Como você pode dizer isso com tanta calma?
— Você esperava que eu negasse?
— Claro que sim — exclamou, com uma confusão horrível. — Isso me parecia a única
explicação possível, mas nunca acreditei sinceramente. Por que haveria de acreditar? Eu
gostava. . .
Interrompeu o que ia dizer com um soluço nervoso e mordeu o lábio sem jeito.
— Você gostava de mim?
Ela inclinou a cabeça e olhou para as mãos crispadas em cima dos joelhos.
— Sim... eu gostava de você — confessou em voz baixa.
CAPITULO IV
— Espere aqui. Eu vou buscar uma coisa na minha cabine. Quando Tom saiu da saleta,
Sanchia pensou no que devia fazer.
O que Delia faria numa situação semelhante?
Antes que pudesse tomar uma decisão. Tom voltou com uma caixa de metal que colocou
em cima da mesa. Tirou do interior uma caixinha de papelão presa com um elástico.
— Veja o que tem dentro.
Por mais espantada que estivesse, Sanchia estendeu instintivamente a mão para segurar
a caixinha. Retirou o elástico e levantou a tampa. No interior, entre chumaços de
algodão, estavam diversas moedas.
— Sabe o que são essas moedas?
Podia perceber que eram muito antigas, apesar de estarem brilhando.
— Dobrões?
— Não, escudos. Encontramos essas moedas no ano passado, por acaso. Este ano, no
fim da temporada, vamos voltar ao mesmo local para procurar com mais cuidado. Pode
ser que não encontremos nada ou que encontremos um tesouro no valor de muitos
milhões. Foi isso que contei às crianças. É este o segredo. Achei que seria uma distração
para elas. Eu não contei a você porque não sabia como ia reagir. Você podia ter acabado
com a alegria das crianças com seu ceticismo ou podia dar com a língua nos dentes.
Algumas mulheres não conseguem guardar segredo. Se estamos atrás de algo grande,
ninguém pode saber disso além de nós.
— Mas o que tem isso a ver com contrabando?
— As pessoas que encontram tesouros devem notificar o fato às autoridades, que
cobram uma porcentagem sobre o valor da descoberta. Apropriar-se de um tesouro
particularmente é uma espécie de atividade ilegal. Mas se nossa expedição for bem-
sucedida, posso adiantar que o governo não vai receber um tostão de mim. Eles já
recebem impostos demais sem isso. Os proprietários legítimos morreram há centenas de
anos. O que encontrarmos vai ser nosso. . . e vamos fazer o que bem entendermos.
— É isso então que você está fazendo. . . uma busca ao tesouro?
— Bem, essa é nossa única atividade ilegal, e ainda nem mesmo começamos. ..
Aliviada com a explicação, Sanchia foi tomada de uma irritação repentina pelo susto
que levara anteriormente.
— Mas você deu a entender que estava fazendo algo criminoso. Você praticamente
admitiu...
— Eu lhe peço perdão — disse Tom com a voz serena. — Agora, pelo menos, eu sei que
sua antipatia por mim não tinha raízes profundas. No convívio habitual, isso não teria
ficado claro tão rapidamente.
— Você usa recursos meio estranhos para tirar a limpo as coisas — disse Sanchia com
agressividade. — O que me surpreendeu mais foi imaginar que Jock e George pudessem
estar envolvidos numa atividade ilegal.
— E agora, qual é sua opinião?
Sanchia examinou as moedas com cuidado antes de responder.
— Onde você encontrou estas moedas? Em St. Vincent?
— Não, um pouco mais para o norte. No momento, a localização exata não pode ser
revelada.
— Você espera realmente encontrar uma fortuna da próxima vez?
— É possível. Há alguns anos, um grupo de americanos descobriu moedas antigas no
valor de um milhão de dólares.
Tom olhou de repente para seu relógio de pulso.
— Está na hora de substituir Jock no leme. Vamos conversar lá em cima.
No momento em que chegaram à casa do leme, Jock estava esfregando as mãos para se
aquecer.
— Vamos tomar um chocolate quente? — perguntou, quando os dois se aproximaram.
— Obrigado, Jock. É melhor você ir descansar um pouco. Sanchia fará mais tarde um
chocolate se ela tiver vontade. — Voltou-se para ela. — Você já segurou alguma vez no
leme?
— Nunca.
— Não fique nervosa... não é difícil. — Retirou uma das mãos do leme e afastou-se um
passo, dando lugar para ela aproximar-se da roda. Em seguida, tornou a colocar a mão
no leme, de modo que Sanchia estava no espaço aberto entre seus braços estendidos.
— Quando o leme é uma roda, dirigir um veleiro é a mesma coisa que guiar um carro
— explicou Tom. — Só que, em vez de seguir uma rua ou uma estrada, você segue a
rota apontada pela bússola. Ponha suas mãos embaixo das minhas para sentir o barco
puxando.
Seria fácil sentir o puxão do veleiro se estivesse segurando o leme sozinha. Naquela
situação, porém, em vez de prestar atenção ao leme, estava mais consciente da pressão
das mãos dele sobre as suas.
E foi pior ainda quando Tom disse junto ao seu ouvido:
— Não aperte com tanta força. Os barcos são como as mulheres. Se o homem for
delicado demais, elas tomam conta dele. Por outro lado, não gostam de uma mão pesada
demais. Firme mas leve... esse é o melhor sistema.
Depois disso Tom ficou em silêncio e Sanchia pôde concentrar-se no mostrador
iluminado da bússola. Ao sentir, de tempos em tempos, os dedos dele apertarem ou
soltarem a roda, ela começou a entender o que devia fazer para manter o veleiro na rota
certa.
Olhar para a bússola, no entanto, exercia um efeito quase hipnótico. Depois de estar no
leme durante uns vinte minutos, notou subitamente uma alteração na posição dos dois.
Ou bem tinha Tom se aproximado mais dela, ou então era ela que, inconscientemente,
tinha se apoiado no seu corpo.
Quando Tom retirou a mão da roda, Sanchia conseguiu soltar a sua. No momento
seguinte, porém, sentiu-se ainda mais apertadado que antes. Agora não era mais o caso
de apoiar-se no seu peito. A única maneira que podia evitar o contato físico era inclinar-
se para a frente, mas isso iria interferir com o movimento do leme.
Se ela estivesse certa de que Tom a apertava propositalmente, pediria para se afastar um
pouco. Mas aquilo podia ser acidental e não queria fazer um comentário que pudesse ser
mal interpretado, como acontecera no passado.
Assim, procurando ignorar que estava muito perto dele para se sentir à vontade,
comentou:
— Conte mais coisas sobre a busca ao tesouro. Você desce muito fundo? É perigoso?
Não tem tubarões por perto?
— Os tubarões raramente atacam os mergulhadores. Imaginam que são uma outra
espécie de peixe grande. Além disso, os tubarões nestas águas têm muito que comer sem
precisar atacar os banhistas. As barracudas e as enguias é que são peixes realmente
perigosos.
— Você vai levar as crianças nessa expedição?
— As meninas não. Duncan pode ajudar George se quiser. Mergulhar é um exercício
seguro, contanto que se obedeça a algumas regras básicas. A primeira de todas é nunca
mergulhar sozinho. Seus cabelos têm um cheiro gostoso.
Como esse comentário foi dito com a mesma entonação de voz. Sanchia levou alguns
segundos para reagir.
— Muito obrigada. Eu vou prender os cabelos para não baterem no seu rosto.
— Não precisa... eu gosto mais assim. De qualquer maneira, você é mais baixa que eu.
Sua cabeça bate no meu queixo. Você acha que pode segurar o leme sozinha?
Sem esperar pela resposta, soltou a roda e afastou-se alguns passos.
— Por favor, não vá embora! — exclamou Sanchia.
— Não fique nervosa. Você pode navegar sozinha. Eu vou acordar George. Está na hora
de sua guarda, mas ele não se levanta sozinho se não for chamado. Volto num minuto.
Basta manter o leme na mesma posição.
No primeiro instante, ela foi tomada de pânico com a idéia de navegar sozinha o veleiro.
Como no dia em que Barney lhe deu a direção do carro depois de ter recebido a carteira
de motorista. Naquela ocasião, como agora, sua mente atravessou um instante de
vertigem completa e a única coisa que lhe ocorria era o pavor de cometer um erro e
causar um acidente.
Entretanto, logo se recuperou do nervosismo. A roda não mexia em suas mãos. O
veleiro não mudou de rumo pelo simples fato de haver um novato no leme. Após alguns
minutos, começou a apreciar a oportunidade que Tom lhe dera de mostrar sua
capacidade.
George aproximou-se bocejando e cocando a cabeça.
— O capitão está esperando-a lá embaixo.
— Ah, sim! Já vou. Boa noite, George.
Tom estava na cozinha preparando um chocolate quente. Não perguntou como ela tinha
se saído na sua ausência.
— Diga uma coisa... Por que você concluiu imediatamente que eu estava fazendo algo
ilegal?
— Bem, eu achei que não havia outra explicação... Pode parecer bobagem — disse
Sanchia corando ligeiramente, — mas alguns detalhes me levaram a confirmar essa
suspeita.
— Quais, por exemplo?
— Jock me contou que vocês dois começaram do nada... Não entendi como podiam ter
ganho tanto dinheiro num tempo tão curto...
— O trabalho e a sorte nos ajudaram. Nós estamos levando uma vida confortável agora,
mas no começo foi muito duro. Pelo menos, até conseguirmos levantar um capital.
— Um empréstimo? Não tinha pensado nisso...
— Claro, o que mais podia ser? Aquele sistema antigo de juntar dinheiro pouco a pouco
não funciona mais hoje em dia. O sucesso começa quando você recebe crédito... quando
um banco lhe concede um empréstimo de alguns milhões. — Fez uma pausa para mexer
o chocolate. — Este veleiro está pago. Enquanto estiver navegando em boas condições,
ninguém vai passar fome.
Calou-se e observou-a com atenção.
— Qual era a outra suspeita? — perguntou em seguida.
— Você vai achar ainda mais boba que a primeira...
— Pode ser, mas não custa nada dizer, já que estamos dispostos a esclarecer as coisas de
uma vez por todas.
— Quando subimos a bordo, você não me levou para visitar o barco inteiro. Pensei que
havia certas partes que não podia ver. Fora isso, achei estranho ver você fechando a
porta a chave de sua cabine.
— Só isso? Você tem muita imaginação! Eu não imaginei que você estava interessada
em conhecer a casa das máquinas e os porões. E a razão pela qual eu fecho a porta a
chave é para as crianças não entrarem. Nunca se sabe o que elas podem aprontar...
— Bem, eu lhe peço perdão por minhas suspeitas...
— Você não tem do que se desculpar. No fundo, estou mais divertido do que zangado.
Agora entendo o motivo que sua preocupação. Imagino que não foi nada agradável
viajar num barco e suspeitar que eu estava fazendo contrabando. Aliás, eu não fui uma
presença muito agradável desde a primeira noite em que nos conhecemos... Pobre
Sanchia... Você vai respirar aliviada quando voltar para seu chalé...
Sanchia ouviu o comentário em silêncio.
— Pela maneira como as crianças se adaptaram, você poderá voltar para casa mais cedo
do que prevíamos.
— Eu não me importo em ficar o mês todo... a menos que você não queira.
— Depende unicamente de você. Podemos decidir isso no fim da semana que vem.
Deitada na cama, sem poder dormir, rememorou a conversa com Tom e compreendeu
que não tinha o menor desejo de voltar para casa. Nunca mais veria as crianças. Elas
escreveriam algumas vezes no começo, mas logo depois voltariam para o colégio e
teriam muitos programas excitantes para se distrair. Dentro de um ano, mal se
lembrariam dela.
Além disso, sua vida seria fria e sem graça depois desses dias maravilhosos em alto-
mar. O chalé estaria sempre silencioso e vazio. O trabalho no colégio parecia insípido e
melancólico.
Lembrou-se do que Tom lhe dissera na praia. A vida não era muito longa para ser
desperdiçada inutilmente. Naquela ocasião não admitiu que estivesse desperdiçando sua
vida. Agora, no entanto, compreendeu claramente que os anos que tinha pela frente
seriam tão tristes e sem objetivo como no passado.
A base de Tom em St. Vincent não era em Kingstown, a cidade principal da ilha, mas
numa aldeia de pescadores onde ele estava construindo um embarcadouro para veleiros
e barcos de recreio. Entretanto, durante os dias que passaram em St. Vincent, o
Jacarandá ficou ancorado numa enseada protegida não muito longe de Kingstown.
Enquanto Tom resolvia seus negócios na cidade, Jock levou Sanchia e as crianças para
conhecerem o litoral. Visitaram o mercado barulhento e colorido no cais e levaram um
dia inteiro para escalar o pico do monte Soufriere, com seu belo lago formado na cratera
de um vulcão.
No centro comercial de Kingstown, Sanchia comprou uma máquina fotográfica e filmes
coloridos para levar algumas lembranças das férias passadas nas Antilhas.
Embora as fotografias não dessem uma idéia exata das cores deslumbrantes do mar e do
céu, fotografou mesmo assim muitos poentes e nascentes, bem como a paisagem
montanhosa da ilha vista da escuna, além de diversas fotos do Jacarandá tiradas de
vários pontos da praia, em luzes e momentos diferentes. Bateu um rolo inteiro com fotos
das crianças brincando na praia ou posando todas juntas.
Uma manhã, no fim da segunda semana no mar, Sanchia estava vestindo o biquíni para
dar seu mergulho habitual antes do café, quando notou que havia algo diferente. A
princípio, não soube direito o que era. Depois, compreendeu que o veleiro estava
silencioso de mais.
Durante alguns segundos, tudo continuou em silêncio. Em segui da, ouviu alguns
murmúrios e rísadinhas abafadas. Caminhou na ponta dos pés até o corredor, com a
intenção de subir ao convés. A passar pela saleta, cinco vozes entoaram ao mesmo
tempo:
— Happy birthday to you... happy birthday to you... happy birthday, dear Sanchia...
happy birthday to you-o-o-o!
Preocupada com outros assuntos, tinha esquecido completamente a data do aniversário!
— Como vocês sabiam? — exclamou, quando as crianças terminaram de cantar.
— Foi a diretora que disse! — explicou Jane com um sorriso. Feliz aniversário e muitos
anos de vida!
As duas meninas abraçaram e deram muitos beijos na aniversariante.
Duncan e George apertaram sua mão e lhe desejaram muitas felicidades. Jock, no
entanto, lhe deu um beijo estalado no rosto.
Foi nesse momento que Tom apareceu. Tinha ido à cidade de manhã cedo e estava
carregado de embrulhos.
— Muitas felicidades, Sanchia. E muitos anos de vida!
— Jock deu um beijo na Sanchia — disse Emma com sua voz inocente. — Você não vai
dar?
— Ah, foi? — perguntou Tom com o rosto surpreso. — Neste caso...
Ao contrário do beijo estalado de Jock, o contato de seus lábios foi tão leve e rápido que
Sanchia mal sentiu. Mesmo assim, corou; como um pimentão.
— Você não vai abrir os presentes? — perguntou Jane.
Todos se voltaram para a mesa onde o lugar de Sanchia estava enfeitado com flores. O
primeiro presente era um par de sandálias de palha, feito pelos moradores da ilha.
Os presentes não eram caros, mas agradaram mais a Sanchia d que se tivessem custado
uma fortuna. Ficou comovida e fez um esforço para não chorar.
— Fazia muitos anos que não ganhava tantos presentes no dia do meu aniversário...
Muitos anos... — Enxugou uma lágrima inesperada. — Eu estou muito velha para fazer
anos.
— Que idade você tem? — perguntou Emma.
Jock estalou a língua.
— A gente não pergunta a idade das moças, boneca!
— Você não abriu ainda o presente do tio! — disse Jane. — Onde está?
— Está na minha cabine. Vou buscar.
No momento em que Tom saiu, Jock sentou as crianças em volta da mesa para comerem
o bolo de aniversário.
Tom voltou em seguida e deu a Sanchia uma pequena caixinha. No interior estava uma
pulseira como ela nunca tinha visto na vida. AH crianças, que sabiam do que se tratava,
não deram tempo ao tio da explicar.
Sanchia colocou a pulseira no pulso. Era feita de prata genuína, r as escamas eram
trabalhadas com arte para agradar ao gosto exigente de um turista rico.
— É muito linda — disse para Tom. — Muito obrigada.
— Eu sabia que você ia gostar — disse Tom com um sorriso misterioso.
Enquanto estavam tomando café, ouviram o ronco de um motor possante que se
aproximava rapidamente do veleiro.
— Deve ser Steve Harris. Ele vai levar vocês para esquiarem — disse Tom.
As crianças gritaram de alegria e saíram correndo em direção ao convés. O ronco do
motor tornou-se mais alto até que silenciou repentinamente quando chegou bem perto
do Jacarandá.
Depois de ser apresentada a Steve, um homem alto, de voz grossa, com o corpo
musculoso de um lutador de boxe, Sanchia foi arrumar a sua cabine. Ao retirar a
pulseira de prata do pulso, ficou curiosa em saber o motivo de ter ganho um presente tão
caro. Tom não podia ter comprado para seu aniversário porque a pulseira vinha de
Trinidad. Ele comprara provavelmente para outra mulher. Quem seria essa mulher?
Enquanto refletia sobre isso, alguém bateu de leve na porta.
— Entre! — disse Sanchia, julgando que fosse uma das meninas. Ficou surpresa ao ver
Tom aparecer na porta.
— Você tem algum vestido para usar à noite?
— Tenho... por quê?
— Porque reservei uma mesa para o jantar e marquei uma hora para você no
cabeleireiro.
— Ah, sim? Muito obrigada.
— Você pode trocar de roupa no cabeleireiro. O salão é da mulher de Steve. Os dois são
velhos amigos meus. Foi ela que sugeriu você trocar de roupa lá.
Antes que pudesse fazer mais perguntas, Tom saiu da cabine.
Há duas semanas, Sanchia se revoltaria se alguém organizasse sua vida sem consultá-la
primeiro. Agora, no entanto, ocorreu-lhe que Tom havia apenas antecipado seus desejos.
Ele devia conhecer muito bem as mulheres. Não passava em geral pela cabeça dos
homens que uma mulher não teria prazer em ir a um' jantar de cerimônia sem primeiro
marcar hora no cabeleireiro.
Ao meio-dia, as crianças já tinham aprendido a esquiar. Para s própria surpresa, Sanchia
foi a aluna mais talentosa. Conseguiu levantar-se da água na segunda tentativa e não
teve dificuldade e manter o equilíbrio em cima dos esquis. As velocidades sempre
assustavam, mesmo antes do acidente de automóvel que sofreu, mas no mar a
velocidade era uma sensação excitante e eufórica.
Sanchia nunca tivera antes nenhum talento especial, nem mesmo desejo de competir
com os outros. Quando se formou e os país sugeriram que fizesse um curso de
secretária, aceitou o conselho sem discutir.
Era estranho pensar que levara vinte e quatro anos para descobrir realmente o esporte
que gostava de praticar e era triste saber que não poderia praticá-lo quando voltasse para
a Inglaterra.
Durante a tarde inteira, o ronco do motor ecoou pela baía até quase às quatro horas,
Sanchia preparou-se para ir a Kingstown.
Jock colocou dois baldes de água doce no banheiro para ela tirar o sal do corpo antes de
vestir a roupa limpa. Tom, George e as crianças ainda estavam na praia quando ela subiu
na lancha de Steve.
— Como os outros vão para o hotel? — perguntou Sanchia a Jock.
— Nós vamos deixar Kingstown hoje à noite. Tom não falou nada?
— Não. Mas não tem importância. Adeus, Jock.
As crianças acenaram para ela da praia quando a lancha ganho velocidade.
— Amanhã você vai estar com o corpo meio dolorido — disse Steve.
— Eu faço idéia... Mas valeu a pena aprender a esquiar. Gostaria de praticar bastante,
antes de voltar.
— Por que você não fica um pouco mais?
— Pois é... mas eu tenho trabalho me esperando.
Steve contou que, além de levar os turistas para passear de lancha e esquiar, trabalhava
para Tom nas horas livres, transportando mantimentos para seus barcos.
Foi através de Steve que Sanchia ficou sabendo a história de George. Os pais do menino
tinham se mudado de St. Vincent para Granada pouco antes que um violento furacão
destruísse completamente uma parte da ilha. Em conseqüência de ter perdido o pai e a
má na infância, George tornou-se um menino problemático. Aos onze anos, teve os
primeiros conflitos com a polícia. Foi nessa ocasião que Tom ouviu falar no menino e
decidiu levá-lo consigo no veleiro. Para surpresa de todos, a recuperação de George foi
rápida e definitiva.
Emerald, a mulher de Steve, era uma moça morena, de olho grandes e cílios compridos.
Como seu marido, era muito simpática e conversadora, e as duas se deram muito bem.
O salão de beleza, embora pequeno, era bem equipado e imaculadamente limpo.
Ventiladores presos no teto tornavam a temperatura agradável e um pequeno repuxo
interno criava uma atmosfera tranqüila na sala de paredes brancas.
Enquanto Sanchia estava com o secador na cabeça, Emerald fez suas unhas e falou
sobre os problemas de beleza peculiares à região.
Sanchia calçou por último os sapatos. Depois de passar duas semanas descalças ou
somente de sandálias, até mesmo os saltos médios pareciam estranhos e inconfortáveis.
Mirou-se no espelho. O vestido era feito de um tecido leve com flores estampadas em
tonalidades turquesa, violeta e rosa-vivo.
Ouviram alguém bater na porta. Emerald olhou pela persiana.
— É o Tom que está aí. — Abriu a porta. — Entre, Tom. Sanchia já está pronta.
Tom estava com um terno cinza de verão, camisa branca e uma gravata preta de seda.
Sorriu para Emerald e voltou-se para Sanchia, admirando o penteado e o vestido azul-
turquesa.
— Estou apresentável?
— Acho que você está mais que apresentável — disse Tom com um sorriso. — Adeus,
Emerald. Até a próxima vez.
Havia um táxi esperando na calçada.
— Onde estão os outros? — perguntou Sanchia, ajeitando-se no banco enquanto o
motorista manobrava o carro. — Nós vamos apanhá-los ou eles foram na frente?
— Um jantar dançante não é um local muito indicado para levar as crianças. Elas foram
jantar com Jock numa lanchonete.
O hotel ficava no alto de um morro com vista para o mar. No momento em que Tom lhe
estendeu a mão para descer do táxi, Sanchia ouviu a música lenta e melodiosa que vinha
do salão.
— Você pode deixar suas coisas no vestiário — disse Tom quando entraram no hotel. —
É ali naquela porta.
No vestiário, uma mulher de vermelho estava se perfumando profusamente com um
vidrinho de spray. Sanchia perguntou à moça que tomava conta onde podia deixar a
bolsa. Ao ouvir sua pergunta, a mulher de vermelho voltou-se repentinamente e
observou-a com atenção.
— Eu a conheço de algum lugar. Você não é inglesa?
Sanchia balançou a cabeça afirmativamente. Lembrou-se de que a mulher tinha uma
filha que estudava no colégio em Lingard.
— Eu sabia que a conhecia de algum lugar! — exclamou a mulher de vermelho. —
Nunca fomos apresentadas, mas já nos encontramos muitas vezes no colégio em
Lingard. Você é ex-aluna?
Antes que Sanchia pudesse responder, a mulher prosseguiu:
— Ê fantástico! Nós vimos aqui todos os invernos e eu não dou dois passos sem
encontrar algum conhecido. Desta vez, no entanto, não encontrei ninguém até agora e
estou morrendo de curiosidade para saber o que aconteceu com as crianças da família
Rowland. Você deve ter ouvido falar. O assunto foi muito comentado no colégio.
— Que assunto?
— Você não sabe que Eric e a mulher morreram num acidente aéreo antes do Natal?
Saiu em todos os jornais.
— Ah, sim, eu soube.
A mulher abriu uma cigarreira de ouro e lhe ofereceu um cigarro.
— Você não fuma? — perguntou, soprando a fumaça pela boca pintada de vermelho. —
Ouvi dizer que o irmão de Lucy apareceu de repente e levou as crianças embora. Você
não conheceu Eric e Lucy?
Sanchia balançou a cabeça negativamente.
— Ah, que pena! Eu gostava muito de Eric, mas sua mulher. . . eu vou lhe contar. ..
— O que tinha ela demais?
— Bem, ela era muito bonita e simpática... mas definitivamente não era uma mulher de
classe. Não sei como os dois se casaram. Aliás, ouvi dizer que o irmão, esse que está
tomando conta das crianças, é um homenzinho terrivelmente vulgar.. . um verdadeiro
espantalho! — acrescentou a mulher com uma risada.
— Quem lhe disse isso?
— Alguém que o conheceu alguns anos atrás. Ouvi dizer que ele vive no estrangeiro. Eu
não ficaria surpresa se soubesse que Eric lhe deu algum dinheiro para ele sumir da
Inglaterra. Mas você não sabe da maior.. Fiquei sabendo que esse homem, juntamente
com as crianças, está velejando por aí. ..
— Exatamente — disse Sanchia com frieza. — Aliás, para dizer a verdade, eu conheço
as crianças e o tio que está cuidando delas.
A mulher de vermelho arregalou os olhos.
— Como? Você os encontrou por aqui? Por que você não me disse antes, querida? Você
sabe mais coisas do que eu!
— Eu sei uma versão bastante diferente da sua. Eu não sou ex-aluna do colégio em
Lingard. Eu sou a secretária da senhora Preston. Eu trouxe as crianças até aqui e vou
ficar com elas até se ambientarem completamente.
— Meu Deus! Eu não podia imaginar!
Sanchia estava com tanta raiva que quase disse um desaforo. Como secretária do
colégio, não podia tratar mal um pai de aluno, nem mesmo uma mulher que espalhava
boatos falsos e maldosos. Controlou-se com esforço e acrescentou com a voz fria:
— Se encontrar outros pais de alunos, pode dizer que o tio foi a única pessoa que se
ofereceu para tomar conta dos sobrinhos. Além disso, não é absolutamente um homem
vulgar e irresponsável como lhe contaram. É uma pessoa extremamente boa e generosa.
Na minha opinião, as crianças não podiam estar em melhor companhia e tenho certeza
de que se darão muito bem com ele no futuro.
Antes que a mulher pudesse fazer um comentário, voltou-se e saiu do vestiário. Sua
irritação era visível quando se encontrou com Tom no saguão.
— O que aconteceu? — perguntou Tom surpreso.
— Ah, nada especial...
Tom segurou-a pelo braço e conduziu-a ao salão de jantar, onde o maitre levou-os até a
mesa reservada. Um conjunto tocava no tablado ao lado da pista de dança, mas o salão
estava praticamente vazio.
Tom pediu um aperitivo ao garçom e examinou com atenção o menu.
— Por que você está com essa cara? Não está contente de jantar sozinha comigo?
— Não, não é isso. Meu mau humor não tem nada a ver com você. Foi uma mulher que
encontrei no vestiário... a mãe de uma aluna do colégio em Lingard.
— E por que você ficou tão irritada com o encontro?
— Ah, é uma mulher insuportável...
— Ela perguntou o que você estava fazendo aqui?
— Ela pensou que eu fosse uma ex-aluna. Se soubesse que era a secretária do colégio,
teria sido mais discreta.
— Bem, vamos fingir que não a conhecemos se ela aparecer de novo. Que tal dançar
antes que a pista fique repleta de gente?
— Boa idéia.
Tom levantou-se e passou o braço em volta de sua cintura. A mão dele estava fria é seca
e Sanchia rezou para a sua não estar úmida. Tom encarou-a um momento em silêncio,
com o canto da boca ligeiramente torcido.
— Ah, meu Deus! — exclamou Sanchia quando voltavam para a mesa, ao olhar a outra
extremidade da sala e avistar a mulher de vermelho que se aproximava na companhia do
marido.
Tom voltou-se na direção dos seus olhos.
— Foi essa mulher com quem você conversou no vestiário?
— A própria.
A princípio parecia que o casal ia ocupar uma mesa distante do conjunto dos músicos.
Foi então que o marido, um homem alto e bem vestido, com um bigode e maneiras de
militar, murmurou alguma coisa em voz baixa para o maitre. Mudaram de direção e
aproximaram-se do canto onde os dois estavam sentados.
A mulher de vermelho não notou imediatamente a presença dos ocupantes da mesa
vizinha. Em dado momento, porém, voltou a c beca e olhou diretamente para Sanchia.
— Ah, que coincidência! Voltamos a nos encontrar. Hugo, você está lembrado da
secretária de Delia Preston?
— Mas naturalmente — disse o marido, levantando-se da me para cumprimentá-la. Tom
ergueu-se igualmente e Sanchia os apresentou.
— Como está passando? — perguntou a mulher de vermelho, com um sorriso nos
lábios. — Meu marido e eu conhecíamos muito s irmã e seu cunhado. Ficamos
profundamente chocados com o acidente, não foi Hugo? E as crianças... já se
recuperaram do golpe?
— Um pouquinho...
—Eu fiquei tão preocupada com as crianças... Como elas estão passando? Quais são
seus planos para o futuro? Sua residência é em St. Vincent?
Sanchia olhou para a mulher com o rosto perplexo. Como era possível alguém ser tão
ávido assim de informações? ■
Antes que Tom pudesse responder, o garçom voltou para tom os pedidos.
— O que você nos recomenda, Tom? — perguntou o marido. Faz pouco tempo que
chegamos aqui. Normalmente vamos a Antígua, mas este ano resolvemos conhecer as
outras ilhas do arquipélago. Estamos chegando de Granada. Alugamos um iate lá.
— O Poinciana?
— Exatamente. Como você adivinhou? Tom roçou os joelhos por baixo da mesa nos de
Sanchia.
— Eu vi o iate chegar esta tarde. Está gostando do barco? É confortável?
— Não é nada mau, embora o piloto seja um pouco esquisito.
— Ah, sim? Em que sentido?
— Ele me pareceu meio obtuso. Uma ou duas vezes eu dei uma ordem e ele fez
exatamente o contrário.
— Sem falar que tem o mau costume de rir o tempo todo — disse a mulher.
Sanchia foi apanhada de surpresa quando o marido voltou-se para ela e perguntou com o
rosto sorridente:
— Posso tirá-la para dançar?
Quando Hugo passou o braço em volta de sua cintura, Sanchia sentiu-se profundamente
deprimida com a perspectiva de passar a noite na companhia dos dois. Arrependeu-se de
não ter contado a Tom a opinião da mulher a seu respeito. Talvez ele tivesse encontrado
uma maneira de se desembaraçar dos importunos.
— Tom me contou que você está adorando a viagem — disse a mulher quando Sanchia
voltou a sentar-se. — Imagino que você vá sentir muita saudade daqui. A paisagem
inglesa vai lhe parecer muito triste depois desta temporada no mar das Antilhas. Quando
você pretende voltar?
— Ainda não tem data marcada — disse Tom. Voltou-se para Sanchia. — Você está com
fome ou vamos dançar mais uma vez?
— Vamos dançar.
— Com licença — disse Tom com um sorriso para o casal. Desta vez, ela abandonou-se
com alegria nos seus braços.
— Não podemos dar o fora? Eu prefiro voltar para o veleiro do que passar a noite com
esses dois!
— Eu também não tenho essa intenção — disse Tom calmamente.
— Vamos mudar para outra mesa. Não acredito que eles vão nos perseguir até o fim do
mundo.
Tom aproximou-se do maitre, trocou algumas palavras em voz baixa e, poucos minutos
depois, foram conduzidos a uma mesa pequena para dois.
— A mulher vai ficar uma fera! — murmurou Sanchia. — Nem quero imaginar o que
vai dizer depois!
— Provavelmente que você e eu mantemos uma relação ilícita — disse Tom com a voz
calma.
Logo depois, o prato que tinham pedido chegou. Enquanto mergulhava a colher na
massa cremosa do abacate, Sanchia perguntou:
— O Poinciana é um dos seus barcos?
— É, e o piloto me parece um homem de toda confiança. Se desobedeceu às ordens do
tal Hugo, foi para não encalhar num banco de areia. O que a mulher disse para você no
vestiário? Mais do que você me contou, não é mesmo?
— Por que você quer saber?
— Ela me falou que você pulou em minha defesa. Com isso ela se denunciou. Suponho
que deva ter dito as piores de mim...
— Mais ou menos. Alguém contou a ela que você levou as crianças para dar um passeio
e que voltaram muito tarde para casa.
— Como você soube desse episódio?
— Duncan me contou. Ele ficou muito impressionado com o passeio.
— E você?
— Não me lembro mais qual foi minha reação. Penso que achei divertido.
— E foi por isso que você me agrediu tanto naquela primeira noite?
— Não, não foi por isso. Eu senti instintivamente que você ia perturbar minha vida...
minha paz.
— E agora? Você está arrependida?
— Foi uma experiência interessante.
— Só isso?
Ela não sabia o que ele queria ouvir como resposta.
— Vou sentir falta das crianças.
— Mas está contente de voltar?
Ela ficou na dúvida se devia confessará verdade.
— Depende do tempo que estiver fazendo — respondeu evasivamente. — Meu
bronzeado não vai durar muito na Inglaterra.
— De qualquer modo, você está com uma aparência muito melhor do que no Natal —
disse Tom, examinando-a com atenção. — Eu tive a impressão que você ia direto para o
hospital se apanhasse um resfriado. Você estava muito abaixo do seu peso. Aquela vez
que segurei no colo você me pareceu uma pena.
Ela corou repentinamente.
— Qual vez?
— Você já esqueceu? Você reagiu como se nunca tivesse sido levantada no colo por um
homem.
— Sinceramente, não lembro desse episódio — disse Sanchia com indiferença, dando a
entender que estava mais interessada no prato que o garçom trazia.
Tom manteve-se em silêncio até o momento em que o garçom afastou após servir a
lagosta.
— No dia em que vocês subiram no veleiro, lembra? A prancha estava solta e você deu
um passo em falso. Eu a levantei nos braços.
Sanchia fingiu que estava muito admirada com a lembrança.
— Puxa, que memória você tem!
— Você nunca mais pensou nisso?
Ela fingiu não perceber a ironia da pergunta.
— Não. Tinha me esquecido completamente.
— Não faz tanto tempo assim. Você esqueceu também das outras coisas que
aconteceram naquele dia?
— Todas não. Mas minha memória não é tão boa quanto a sua. Eu me esqueci de alguns
detalhes. — Fez uma pausa e acrescentou. — Ou você acha que ser levantada nos seus
braços é um acontecimento inesquecível?
Tom deu um sorriso.
— Depende de quem for.
— Eu não sou mais uma adolescente para me impressionar com essas coisas.
O rosto moreno endureceu-se repentinamente.
— Eu sei disso.
O silêncio pesado durou até terminarem a lagosta.
— Desculpe ter dito alguma coisa que o aborreceu — disse Sanchia, sem saber a que
atribuir a mudança repentina de Tom. — Você foi muito gentil de me convidar para
jantar fora. Eu adorei o passeio.
— Se você fosse uma adolescente, não haveria problema. Vamos dançar?
Passava da meia-noite quando saíram do restaurante. Durante a volta de táxi até o porto,
Sanchia tentou descobrir o que queriam dizer suas palavras enigmáticas.
— Vamos beber um último gole? — sugeriu Tom em voz baixa quando subiram a bordo
do Jacarandá.
— Muito obrigada — murmurou Sanchia tirando os sapatos para não acordar as
crianças. — Estou um pouco cansada. Vou direto para a cama. Mais uma vez, muito
obrigada pelo passeio. Foi maravilhoso.
— Não tem de quê.
— Boa noite. Tom.
— Você não esqueceu de nada?
— Do quê?
— O beijo de praxe.
Embora ela soubesse que Tom estava brincando, sentiu mesmo assim um nó na
garganta.
— Não é obrigatório, naturalmente... Se você não quiser, basta dizer. — Aproximou-se
dela, de costas para a lua, com o rosto na sombra, indecifrável.
Ainda mesmo que quisesse responder, não poderia. A voz estava presa na garganta.
Sentiu-se como um coelhinho hipnotizado pelos faróis de um carro. A sensação de
paralisia foi apenas momentânea. No momento em que ele a tocou, voltou novamente à
superfície.
Mas, então, foi tarde demais. Não havia nenhuma hesitação na maneira como a segurou
nos braços. Depois que a beijou — e o beijo durou uma eternidade —, Tom não a soltou
imediatamente. Os braços foram relaxando lentamente a pressão sobre seu corpo, até 0
instante em que ela se libertou de todo e correu para a cabine.
CAPITULO V
Ela foi acordada, na manhã seguinte, por uma leve pressão no ombro.
— Sou eu — disse Jane, com o rosto sorridente. — Trouxe seu café. O tio disse para
não acordá-la antes das dez porque vocês foram dormir tarde, ontem. Vocês se
divertiram muito?
— Sim, estava muito bom — disse Sanchia, esfregando os olhos.
— Encontraram algum conhecido? Dançaram muito? O que vocês comeram? —
perguntou Jane com animação, sentando-se na ma.
— Seu tio não contou? Não tinha idéia de quantas horas dormira. Não mais do que uma,
duas ou três, pelo sono que sentia.
— Ele contou apenas que foi uma noite esplêndida e foi até o to apanhar alguma coisa
antes de partirmos.
— A gente conversa sobre isso mais tarde, Jane. Estou com u pouco de dor de cabeça.
Vou tomar o café e talvez me sinta melhor depois de lavar o rosto e me vestir.
Depois que Jane saiu, Sanchia ajeitou o travesseiro na cama, apanhou a xícara de café e
reclinou-se na cabeceira para refletir sob; os acontecimentos da véspera.
"Uma noite esplêndida!" Ao visualizar a expressão de Tom dizendo isso — os olhos
divertidos, o sorriso meio irônico —, suas mãos tremeram, e quase derramou o café em
cima da colcha.
Durante horas permanecera acordada na cama, com raiva de Tom e de si mesma. A
verdade é que se abandonara inteiramente nos ser braços, ávida de seus beijos.
Ao olhar pela vigia da cabine, avistou apenas o mar aberto. Quando chegariam a
Granada? Havia um aeroporto na ilha? - pensou angustiada. A volta para a Inglaterra
não era apenas desejável, agora tornara-se urgente e obrigatória.
Levou a bandeja de café para a cozinha e estava lavando a xícara quando Tom apareceu.
Ele não entrou na cozinha; limitou-se a lhe dar bom-dia de passagem. Sanchia sentiu o
rosto em brasa, mas, felizmente, o corado tinha desaparecido quando ele voltou, daí a
pouco. Dessa vez paro para conversar com ela.
— Você dormiu bem?
Que homem antipático! - pensou com raiva. Seu rosto, no entanto, estava perfeitamente
tranqüilo, quando levantou a cabeça e encarou-o.
— Muito bem, obrigada. Vamos chegar a Granada hoje à noite? — Por que você quer
saber? Tomou gosto pela vida em alto-mar?
— Não, não é isso. Eu só queria saber quais são seus planos.
— Pensei que podíamos explorar outras ilhas por mais alguns dias, antes de rumarmos
para São George. Daqui a dez anos, ou menos, essas ilhas estarão repletas de turistas... e
adeus sossego! — disse Tom, saindo da cozinha. Essa breve conversa foi a única que
tiveram durante o dia.
Na tarde seguinte, ao ser informada por Jock de que havia um aeroporto em Granada,
Sanchia anunciou seu desejo de partir.
O veleiro estava ancorado numa pequena ilha desabitada que as crianças exploravam na
companhia de George. Sanchia conversava com Jock no convés. Ao perceber que o
velho marinheiro estava cochilando sob o sol quente do meio-dia, julgou o momento
oportuno para ter uma conversa com Tom.
Não foi preciso bater à porta da cabine. Ela estava aberta.
— Posso entrar? Gostaria de ter uma conversa com você.
Tom estava escrevendo numa pequena escrivaninha cuja tampa servia de mesa. Ele
afastou a cadeira.
— Entre. Estava fazendo uns cálculos. Sente-se — disse, apontando para o beliche. —
Ou você prefere sentar-se na cadeira?
Sem prestar atenção à ironia velada, Sanchia aceitou a sugestão e foi diretamente ao
assunto.
— Estive pensando no que você disse sobre minha permanência aqui. As crianças estão
perfeitamente adaptadas e não necessitam mais de mim. Podia aproveitar e tomar o
avião em Granada.
Tom refletiu um instante antes de responder.
— Está bom, então. Eu não faço objeção. Mas não há vôo direto de Granada, como você
deve saber. Terá que voltar a Trinidad.
— Sim, eu sei. Mas talvez não seja necessário passar a noite lá. Posso fazer a viagem
toda num dia.
— Talvez. Quando chegarmos a Granada, vou me informar sobre os horários dos vôos.
Surpresa com a solução rápida do assunto, Sanchia levantou-se para ir embora.
— Bem, era só isso que tinha para dizer. Vou deixar você com seus cálculos.
No momento em que se dirigiu à porta, Tom levantou-se e barrou-lhe a passagem.
— Escute...
— O quê?
— Você tomou essa decisão repentina porque a beijei ontem à noite?
— Não, claro que não! — respondeu impulsivamente. Arrependida de sua negação
veemente, acrescentou: — Por que você pergunta? O que uma coisa tem a ver com a
outra?
— Creio que você ficou um pouco abalada. Você está mais tensa, de ontem para cá.
— Você queria que aquilo me deixasse indiferente?
— Pelo menos terminou com o suspense. Não pergunte: "que suspense?" Você sabia que
isso ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Era inevitável.
— Não concordo — disse com a voz fria. — Por que tinha que ser inevitável?
Ele estendeu o braço para fechar a porta.
— Não se assuste. Estou apenas impedindo que alguém ouça nossa conversa.
— Não tem ninguém a bordo e Jock está dormindo no convés. De qualquer maneira,
essa conversa não me parece necessária. Eu já disse... o que aconteceu ontem à noite
não tem nada a ver com minha partida.
— Eu sei que você disse isso... mas não me convenceu. Sanchia concluiu que era
impossível discutir com ele nesses termos. Voltou as costas e ficou olhando
distraidamente, pela vigia, para a água cintilante e a silhueta nevoenta de uma outra
pequena ilha no horizonte.
— Você ia explicar por que foi inevitável — disse por fim, coma a voz tensa.
— Quase inevitável, na realidade — admitiu Tom, com um pequeno sorriso. —
Confesso que isso não teria acontecido se você não fosse tão atraente.
— Você tem o costume de beijar todas as mulheres que julga atraentes?
— Somente quando presumo que são mulheres normais, de sangue quente, e que não
consideram o beijo um insulto.
Ela se voltou repentinamente, com os olhos brilhantes.
— Ah, nunca encontrei ninguém tão convencido quanto você! — exclamou com fúria.
— Que direito você tem de dizer que sou diferente das outras? Qualquer mulher se
sentiria ofendida por ser trata J da daquele jeito.
— Ah, entendi... Um beijinho leve seria aceitável... Escute, Sanchia, nós não somos
mais crianças. Eu sou um homem, e não um garoto indeciso. E você também não é uma
jovem inexperiente, como tentou me convencer ontem à tarde.
Para sua consternação, ela se deu conta de que seus lábios estavam trêmulos e os olhos
rasos de água. As lágrimas inesperadas foram uma surpresa tão grande para ela quanto
para Tom. Terrivelmente embaraçada com essa crise repentina, conseguiu apenas virar a
cabeça e tentar se controlar.
— Use meu lenço — disse Tom, ao vê-la enxugar as lágrimas com | os dedos dobrados.
Ela segurou o lenço, enxugou os olhos e assoou o nariz. Com a voz rouca, conseguiu
dizer:
— Desculpe... eu não sei o que aconteceu. Eu não tenho o costume de chorar desse
jeito.
Ela ouviu o ruído de uma garrafa contra um copo, e o barulhinho característico de
líquido derramado. Tom encostou-lhe de leve a mão no ombro e voltou-a de frente para
si.
— Beba isto. Vai sentir-se melhor.
— Eu já estou bem.
— Sente-se ali e beba este gole de conhaque.
Embora falasse em voz baixa, a entonação era autoritária mesmo assim. Sanchia
obedeceu em silêncio.
— Eu me sinto uma idiota — murmurou.
— Esqueça o que aconteceu.
— Pensei que os homens ficassem apavorados diante das mulheres que choram. Será
que nada o abala?
— As cenas melodramáticas me irritam, mas não é seu caso, felizmente — disse Tom
com a voz serena. — É por isso que tenho dificuldade, ao conversar com você. Pelo
jeito, você não se encaixa em nenhuma das categorias habituais.
— As pessoas podem ser classificadas?
— Não completamente, mas até certo ponto, sim. Mas vamos conversar sobre isso uma
outra vez. Acho que seria uma boa idéia se você fosse descansar um pouco no seu
beliche. Termine o conhaque primeiro...
Depois de ter bebido o último gole da bebida forte, Sanchia devolveu o copo e levantou-
se.
— Talvez você só possa embarcar para a Inglaterra daqui a alguns dias — disse Tom. —
Eu lhe dou minha palavra que até lá...
Nesse instante, os dois ouviram uma gritaria distante que fazia pressentir que nem tudo
estava bem com as crianças na ilha.
— Você ouviu? Aconteceu alguma coisa!
Tom passou por ela às pressas e subiu correndo a escada que levava ao convés. Quando
Sanchia chegou lá no alto, presenciou uma cena dramática. George estava remando
rapidamente em direção ao veleiro enquanto Duncan e Jane seguravam nos braços o
corpo inanimado de Emma.
— O que aconteceu? — gritou Tom, quando o barco encostou no casco do veleiro.
— Emma passou mal — disse Jane, enquanto os meninos levantavam a pequena criança
nos braços. Ela não estava inconsciente, somente mole e sem força. Começou a chorar
quando se viu no colo do tio.
Tom levou-a para a cabine, seguido de Sanchia e de Jane. Emma sentira-se mal logo
depois que desceram na ilha, mas não quisera-voltar para o barco até que uma crise
violenta de enjôo a deixara prostrada na praia.
Após deitar a menina no beliche, Tom apanhou o termômetro e tomou a temperatura.
Com o rosto inexpressivo, mostrou o termômetro a Sanchia. A menina estava com febre
alta.
— Você sente alguma dor?
Emma estava de olhos fechados, tremendo e chorando baixinho. Balançou a cabeça
negativamente. Mesmo assim, Tom apalpou cuidadosamente, antes de concluir que ela
não sentia nenhuma do forte.
— Tire o maiô — disse para Sanchia. — Vamos partir imediata mente para Granada.
Vou dar algumas instruções a Jock.
— O que você pensa que seja?
— Não tenho idéia... mas não gostei da temperatura alta.
— Talvez não seja nada sério. As crianças têm febres altas quando passam mal do
intestino.
— Pode ser, mas eu não quero correr nenhum risco.
Ao entardecer daquele dia, Emma estava melhor. Continuava ainda um pouco agitada,
mas não enjoara novamente e os espasmos de tremor tinham cessado.
No meio da noite, Sanchia foi acordada por um gemido no beliche de baixo. Desceu do
seu para ajudar Emma na sua segunda crise de vômito. Como antes, a menina sentiu-se
completamente prostrada e em seguida trêmula.
Uma hora depois, quando Emma voltou a dormir, Sanchia estava sem sono e resolveu ir
à cozinha preparar um chocolate quente. Pouco antes, quando apanhara a bacia, o
corredor estava escuro. Agora, no entanto, uma luz amarela brilhava na cozinha e
alguém estava; assobiando baixinho.
Era Tom. Estava fazendo torradas e tinha posto a chaleira em cima do fogo. Como
estava de costas para a porta, não a viu imediatamente, porque os rangidos das madeiras
abafavam o ruído dos pés descalços na passagem.
A fadiga e a ansiedade tinham afastado todos os outros pensamentos da cabeça de
Sanchia. Não se lembrou da conversa da tarde nem prestou atenção à sua roupa sumária.
— O que você está fazendo acordada? — perguntou Tom, ao vê-la entrar sozinha. —
Emma passou mal de novo?
— Teve outra crise de vômito. Você acha que pode ser alguma coisa que comeu?
— Não sei. Talvez seja começo de sarampo.
— Ela já teve sarampo e as outras doenças normais da infância.
— Bem, de qualquer maneira, isso não vai atrapalhar seus planos. Há um excelente
hospital em São George, se for necessário ínterná-la.
— Não estava pensando nisso. Eu não a deixaria antes de ela melhorar.
— Você é quem sabe... mas não há necessidade de adiar sua partida.
Ele não costumava tratá-la com esse tom de cortesia indiferente, e Sanchia sentiu-se
ligeiramente irritada. Após colocar as duas xícaras de chocolate na bandeja, juntamente
com as torradas, Tom saiu da cozinha.
— Fique à vontade. Boa noite.
Sem nem mesmo olhar para ela, rumou em direção ao convés para reunir-se a quem
estava de guarda no leme.
Quando Sanchia acordou, na manhã seguinte, o veleiro estava novamente ancorado.
Como Emma continuava dormindo, desceu com cuidado do seu beliche. Preferiu não
puxar a cortina da vigia para não acordar a menina. Vestiu o robe, calçou as sandálias e
saiu da cabine para ver onde estavam.
Logo que subiu no convés, percebeu que tinham chegado. Lá estava Granada, a ilha das
ervas de cheiro e dos condimentos maravilhosos.
Jock dissera antes que a baía de São George era a mais bonita das Antilhas, e não era
exagero. Refletindo o céu da manhã, as águas da baía tinham uma cor de ametista, e os
telhados das casas, no alto do morro, eram de um vermelho vivo.
— Como passou a noite? — perguntou Jock. — Emma, melhorou?
— Ela não acordou ainda. Vou ficar mais tranqüila quando for levada ao médico.
Jock passou o cachimbo para o outro lado da boca: — Eu soube que você vai nos
deixar...
— Pois é, logo que Emma melhorar.
— Você deve ter suas razões...
— Não tenho outra alternativa.
— Não? — perguntou Jock, mirando-a com o canto dos olhos. — Eu pensei que você
tinha gostado de nossa maneira de viver.
— Gostei muito. Quem não gostaria?
— Melhor do que em casa?
— Ah, não se pode comparar... Lá é a realidade de todos os dias. Aqui parece mais com
as férias...
— Mas você trabalhou o tempo todo. Você não esteve desocupada nenhum dia. Eu creio
que o capitão gostaria que você ficasse mais um pouco...
— Por que você diz isso? Ele falou alguma coisa?
— Não, não falou nada. Estou dando apenas minha opinião. Penso que as meninas vão
sentir sua falta.
— Elas logo vão para o colégio. De que adiantaria ficar aqui?
— Ah, tem sempre lugar para alguém, num veleiro como este...
— Se vocês precisassem de gente, contratariam alguém mais útil do que eu. Agradeço
sua sugestão, Jock, mas tenho a impressão que não daria certo. Não há lugar para mim
neste barco.
Jock não respondeu e desceu pouco depois à cozinha para fazer o café. Sanchia
demorou-se algum tempo no convés, pensando nos acontecimentos da véspera. Quando
voltou à cabine, Emma estava acordada e Jane fazia companhia à irmã menor.
— Olhe! Ela está com pintas! — disse Jane, apontando para as pernas de Emma.
— Estão cocando — queixou-se Emma.
— Eu vou passar uma pomada nas pernas e, quando o médico vier, ele vai receitar um
remédio para você ficar boa.
O médico que foi a bordo aquela manhã era bem jovem e tinha muito jeito com
crianças. Confirmou o diagnóstico: era alergia, e receitou uma injeção antialérgica. Ele
suspeitou que o motivo da erupção era um prato apimentado que a menina comera
alguns dias atrás.
Tom acompanhou o médico ao porto e só voltou no fim da tarde. Trouxe algumas cartas
de Delia para Sanchia. Uma delas era a resposta à primeira carta que escrevera. A outra
chegara no dia anterior. Tinha uma passagem misteriosa que Sanchia leu e releu várias
vezes sem esconder sua perplexidade:
Se acontecer alguma coisa e você mudar de idéia quanto à data da volta, não se
preocupe; eu vou entender. Abraços e lembranças a todos, Delia Preston.
Emma ficou alguns dias de cama antes de restabelecer-se completamente. Duncan e
Jane, que tinham se mostrado carinhosos e compreensivos enquanto a irmã passava mal,
estavam mais impacientei com a convalescente. Sanchia jogava damas com a menina
menor enquanto os dois irmãos se entregavam a passatempos mais ativos. Enquanto
estavam em Granada, Tom dedicava-se ativamente a seus negócios em terra e aparecia
pouco, durante o dia, no veleiro. Uma manhã, porém, ele disse que ia tirar o dia para
levá-los a conhecerem o grande lago da cidade.
Partiram logo depois do café. As três crianças sentaram-se no banco de trás do táxi,
enquanto Sanchia e Tom iam na frente. Jock e George ficaram no veleiro.
O Grand Étang é um lago natural formado na cratera de um vulcão extinto, uma vasta
extensão de águas cristalinas tão azuis quanto o céu que se reflete na sua superfície.
Durante o passeio à reserva florestal, que era também um viveiro de pássaros, Sanchia
travou amizade com uma americana que estava visitando o local pela primeira vez.
Depois de conversarem durante alguns minutos, a mulher disse que se chamava
Marjorie Turnbull e explicou que estava hospedada numa casa de campo onde a filha
passara a lua-de-mel, no ano anterior.
Nesse meio tempo, o marido apareceu com uma máquina fotográfica pendurada no
pescoço.
— Você também está passando a lua-de-mel aqui? — perguntou Marjorie a Sanchia,
após apresentá-la ao marido.
— Não... só as férias — disse Sanchia, sem jeito.
Pouco depois, despediu-se do casal de americanos e não pensou mais no encontro.
Mais tarde, porém, naquele mesmo dia, Tom levou-os a conhecerem as famosas
cachoeiras de Granada, um dos pontos de atração turística da ilha. Um riacho caía de
uma altura de uns vinte metros, numa piscina natural de águas cristalinas. Infelizmente,
o local estava repleto de turistas que faziam piquenique e fogueiras ao ar livre. Entre os
outros visitantes, estava o casal de americanos que Sanchia conhecera de manhã. O
marido estava batendo fotografias da cachoeira e a mulher aproveitou para conversar
com seus novos conhecidos.
— Que coincidência... nos encontramos de novo! — disse Marjorie. — Eu pensei que
vocês eram recém-casados.. . Não tinha visto ainda essas três crianças lindas.
Era uma confusão natural e não havia motivo para Sanchia sentir-se envergonhada.
— As crianças são meus sobrinhos — comentou Tom, com um sorriso. — E essa moça
aqui é minha amiga.
— Ah, desculpe! — disse Marjorie, olhando sem jeito para Sanchia, que estava com o
rosto vermelho.
Mais tarde, enquanto as meninas estavam nadando na piscina natural, Tom perguntou:
— Por que você ficou envergonhada com o comentário da americana? Era natural que
ela nos tomasse por um casal com filhos. ..
— Pode ser.
— Por que você fez aquela cara?
— Não sei.
Tom mudou de assunto:
— Você já contou às crianças que vai partir em breve?
— Ainda não.
— Eu pensei que você estava impaciente para ir embora...
— Estava... estou... mas perdi a coragem. Emma ficou muito dependente de mim,
depois da doença. Eu tenho pena de deixá-la agora.
— Entendo. Mas você não vai facilitar nada, adiando sua partida.
— Eu sei disso. — Fez uma pausa. — Se a agência de viagens estiver aberta, quando
voltarmos, vou passar lá para saber o horário dos vôos.
— Eu já passei. O próximo vôo é sexta-feira.
— Sexta-feira? Depois de amanhã?
— Exatamente. Seria melhor você se despedir das crianças hoje à noite.
Depois de amanhã! Por que ela levara um sobressalto tão grande? Sabia que o tempo
estava passando rapidamente e que logo, muito em breve, tudo terminaria. Não podia
imaginar, porém, que fosse tão cedo. Ela não tinha contado as horas que faltavam.
Na viagem de volta, manteve-se em silêncio, com o rosto volta para a janela. As
crianças estavam muito animadas com o passei e não notaram nada especial.
Na hora do jantar, aquela noite, Duncan perguntou:
— Você vai estar ocupado amanhã, tio? Podemos dar outro passeio na ilha? Eu gostaria
de conhecer o farol em Ponta Salina e ver a praia de areias pretas.
— Boa idéia. Você vem conosco, Sanchia, ou vai estar muito ocupada fazendo as
malas?
Ela levou alguns segundos para entender a insinuação.
— Eu trouxe pouca coisa. Posso arrumar a mala à noite. Você acha que vai dar tempo de
fazer algumas compras de manhã? Não posso me esquecer de comprar um presente para
Delia.
Foi então que as crianças compreenderam o sentido da conversa entre os dois.
— Quando você vai embarcar? — perguntou Jane.
— Na sexta-feira. — Fez uma pausa e acrescentou: — O que vocês sugerem que dê de
presente à diretora?
Nenhum dos três respondeu. Olharam em silêncio para ela. Emma estava tão espantada
que Sanchia não teve coragem de encara-la. Jock pigarreou, como se fosse dizer alguma
coisa, mas mudou de idéia. O silêncio era tão pesado que nem mesmo Tom sabia o que
dizer para interrompê-lo.
Finalmente, Emma disse com a voz suplicante:
— Eu não quero que você vá embora.
— Eu não posso adiar minha partida indefinidamente, Emma. Tenho trabalho me
esperando. . . Além disso, a casa precisa ser arejada. Não posso deixá-la fechada muito
tempo.
— Eu não quero que você vá embora — repetiu Emma, esforçando-se para manter a voz
firme.
Sanchia lançou um olhar de socorro para Tom, que estava com a cabeça baixa, olhando
para o prato. Foi Jock que a socorreu:
— Ela não vai embarcar para a Lua, boneca. Você vai vê-la ainda muitas vezes...
— Você vai voltar? — perguntou Jane.
Sanchia conseguiu sorrir, mas não teve coragem de mentir:
— Bem, isso depende. De qualquer maneira, vou escrever para vocês e espero que
vocês respondam às minhas cartas. Eu estou curiosa de saber como vai ser a busca do
tesouro...
— Eu acho que a gente não vai encontrar nada — disse Duncan, com o rosto fechado.
— Além do mais, não vai ter graça, sem você lá.
Sanchia ouviu o comentário com surpresa; não imaginava que Duncan fosse sentir sua
falta como as meninas.
— Ah, que nada... vai ser tremendamente divertido! — disse, com um sorriso sem
graça.
— Seria mais divertido se você fosse conosco. Você não gostaria de ficar? Você
realmente tem que voltar? — perguntou Jane com insistência. — Por que você não fica
mais uns dias?
— Infelizmente não dá... Tenho trabalho me esperando no colégio. Nem mesmo os
adultos podem fazer o que têm vontade, Jane.
— Se você não quisesse voltar, a diretora dava um jeito — insistiu Jane. — Por que
você não escreve e não diz que resolveu ficar? Você pode fazer isso, não é mesmo?
Foi então que Emma entrou na conversa:
— Por que você não casa com o tio e fica com a gente para sempre? Assim você não
precisa ir embora. Você seria nossa tia a vida toda...
Sanchia teve vontade de afundar no chão e desaparecer de vista. Durante alguns
segundos — que duraram uma eternidade — parecia que todos estavam magicamente
paralisados. Ninguém se mexia, à mesa. Ninguém falava. Ninguém respirava.
Aos poucos, cada um deles foi se retirando e Sanchia ficou sozinha com Tom. Ela olhou
de relance para seu rosto. Ele a observava atentamente.
— Então, o que acha da sugestão de Emma?
Ela umedeceu os lábios, pensando numa resposta leve e despreocupada para dar. A
melhor que lhe ocorreu na hora foi esta:
— As crianças falam sem pensar. A gente não deve levá-las muito a sério.
— Pelo contrário. Eu sou inteiramente favorável à idéia.
— O que você quer dizer com isso?
— Não está claro como o dia? Estou pedindo você em casamento.
CAPITULO VI
CAPITULO VII
— Está vendo?! — exclamou Jock. — Tom vai chegar em cima da hora. Talvez seja
melhor assim. Não é bom os noivos se encontrarem antes do casamento.
— Ah, isso é uma superstição boba! — disse Sanchia com impaciência. — O que ele
está fazendo em Saint Vincent? Se está perto daqui, por que não vem hoje mesmo?
— Deve haver alguma razão...
Aquela noite foi a mais longa de sua vida. Pela uma da madrugada, como não conseguia
dormir, Sanchia foi preparar uma gemada na cozinha com uma boa dose de rum.
Repetia para si, obsessivamente: "Eu não posso aceitar isso. Eu fui uma louca de
concordar com isso".
Mas tinha concordado e agora era tarde para voltar atrás. Além do mais, tinha que
pensar nas crianças. Se não fosse por elas, não haveria casamento. Elas necessitavam
dela. Não podia dizer às crianças que mudara de idéia. Arrependeu-se amargamente de
não ter viajado na sexta-feira. As crianças sofreriam no começo, mas acabariam
compreendendo. Se partisse agora, elas jamais perdoariam. Seria uma espécie de
traição, um ato inexplicável e proposital de crueldade.
Por volta das três ou quatro da manhã, adormeceu finalmente. Às sete as meninas
levaram seu café na cama. Às oito e meia, as três se prepararam para ir ao cabeleireiro.
— E sua aliança? — perguntou Jane. — Você não vai tirá-la? Eu nunca vi ninguém com
duas alianças no dedo.
Sanchia não havia pensado nisso.
— Vou guardá-la. — Retirou lentamente a aliança do terceiro dedo da mão esquerda e
avistou um círculo de pele mais clara, ligeiramente irregular, no local onde usara a
aliança durante mais de três anos.
— Será que o tio se lembrou de comprar uma outra? — perguntou Emma.
— Claro que lembrou! — disse Jane.
Sanchia mandou as crianças saírem da cabine enquanto se vestia. Ao mirar-se no
espelho, notou que o rosto não estava abatido nem pálido com a noite mal dormida.
Mesmo assim, precisava pintar-se para ter a fisionomia alegre e feliz que é habitual nas
noivas, embora se sentisse exausta intimamente. Tinha uma ligeira dor de cabeça: e o
corpo estava moído em conseqüência da noite em claro.
As meninas ficaram encantadas com os penteados que fizeram no cabeleireiro e com os
vestidos brancos que Sanchia comprara para elas.
Passava das nove e meia quando saíram do cabeleireiro. Ao se aproximarem do
Jacarandá, as crianças deram um grito de alegria.
— Olhe, Sanchia, o veleiro está todo embandeirado! — exclamo Jane. — O tio deve ter
voltado. Vamos ver, Emma! — disse, correndo ao longo do cais, enquanto Sanchia ia
mais atrás. O veleiro estava de fato enfeitado da popa à proa com as bandeiras coloridas
que marcavam uma ocasião especial.
Aquele espetáculo alegrava o coração de qualquer um e, pela primeira vez naquela
manhã, Sanchia sorriu com animação. Mal subiu no deck, foi recebida por Jock, que a
aguardava com impaciência.
— Tom já chegou — disse Jock com o rosto sorridente. — Está tomando banho. Agora
corra para se vestir. Você não deve sair da cabine antes de ser chamada. Vamos, faça o
que lhe peço, senão vou trancá-la a chave na cabine...
Ignorando seus protestos, Jock conduziu-a às pressas para a cabine e fechou a porta.
Ela levou dez minutos para fazer a maquilagem. Estava ainda d combinação quando
ouviu uma batida na porta. Eram Jane e Emma, que queriam admirar seu vestido.
Da próxima vez que olhar para mim, pensou Sanchia diante do espelho depois que as
meninas saíram da cabine, vou me chamar Sanchia Bartlett. Lembrou-se de que tivera o
mesmo pensamento há quatro anos atrás, só que então estava alegre e sorridente,
enquanto a irmã de Barney ajeitava o véu na cabeça. Estava feliz da vida quando sua
mãe foi beijá-la e quando saiu de braços dados com o pai para tomar o carro preto e
brilhante que os levou à igreja.
As lágrimas inundaram seus olhos. Não podia chorar agora. Tinha que sorrir como na
primeira vez. "Espero que dessa vez corra tudo bem", pensou. "Por favor, que tudo corra
bem!"
— Sanchia!
Voltou-se com um sobressalto. Absorta em sua oração silenciosa não notara que Tom
tinha entrado na cabine e estava em pé atrás dela.
— Desculpe... Você se assustou? — perguntou, admirando-a da cabeça aos pés com um
sorriso nos olhos. — As meninas disseram que você estava linda e fiquei curioso para
vê-la. E você está realmente muito bonita com esse vestido verde-musgo.
— Tom... eu...
— Agora não. — Segurou-a pela mão e conduziu-a em direção à escada. — Eu vou lhe
contar tudo mais tarde. Vamos depressa. Estão esperando por nós.
Ao subir ao convés, ficou surpresa por avistar um grupo de conhecidos que estavam
reunidos no porto. Jock deu-lhe o buquê e ajudou-a a descer a prancha que levava ao
cais. Ela e as meninas entraram num dos táxis enquanto os homens e os meninos
subiram no outro.
A cerimônia civil foi tão rápida e informal que lhe pareceu mais um sonho que
realidade. Ao voltarem para o veleiro, alguns minutos depois, ela tinha a impressão que
não estava casada, embora estivesse de mãos dadas com Tom e com a aliança no dedo
— uma aliança de ouro.
Agora havia um número maior de pessoas no cais, e o táxi diminuiu a velocidade
enquanto homens e mulheres se aproximavam para ver a noiva de perto. Atiravam flores
no interior do carro pelas janelas abertas e expressavam em voz alta seus votos de
felicidade aos noivos. Sanchia tinha a impressão de que a metade da população da ilha
de St. George ouvira falar no casamento e largara todos os seus afazeres para tomar
parte na festa.
No momento em que Tom abriu a porta do carro e lhe estendeu a mão, vários flashes
explodiram em seu rosto. Havia um fotógrafo da imprensa local, um fotógrafo
profissional e um turista americano com uma filmadora na mão apontando para os dois.
Passava do meio-dia quando se prepararam para sair em lua-de-mel. Nessa altura, já
havia uma bandinha reunida na calçada de pedras do cais. Alguns conhecidos, inclusive,
dançavam no deck do Jacarandá.
— Espero que ninguém exagere — disse Tom, quando se afastaram num táxi sob
exclamações de regozijo e punhados de confete.
Emma estava sentada no meio deles e Jane no banco da frente. Os outros iam atrás, num
segundo táxi. Depois da despedida no aeroporto, as crianças iam passar o dia na praia.
— Você viu só — perguntou Tom quando o carro se afastou do cais. — Nosso
casamento se transformou numa verdadeira festa popular. — Voltou-se para Sanchia. —
Então, querida, está contente com nosso casamento?
— Muito,
Não houve tempo no aeroporto para despedidas prolongadas. Sanchia abraçou e beijou
as meninas e foi beijada, meio sem jeito, pelos meninos. Despediu-se em seguida de
Jock e dos motoristas de táxi que sorriam para ela.
— Juízo, crianças! Nada de travessuras! — foram as últimas palavras que dirigiu aos
três, que acenavam para ela.
No momento em que o avião decolou, Tom retirou o cinto de segurança e esticou as
pernas doloridas.
— Estou morto de cansaço... Posso deitar a cabeça no seu ombro? Não dormi nos
últimos dias e, se você quiser que esteja em forma hoje à noite, vou aproveitar para tirar
um cochilo.
— Descanse à vontade. Eu também vou tirar unia soneca.
Aliviada por ter adiado por algumas horas a confissão que pretendia fazer, Sanchia
descontraiu-se e virou o rosto para a janela, onde avistou a costa de Granada
desaparecendo rapidamente no horizonte, enquanto o avião rumava para o norte, em
direção a Barbados.
Tom dormiu a viagem inteira. Sanchia aproveitou para examinar à vontade o rosto do
homem com quem se casara. Se alguém no avião prestasse atenção no casal, diria que a
mulher estava olhando para o marido com muito amor e carinho. E pensaria que
somente um homem muito indiferente podia dormir no ombro da mulher com quem
acabara de se casar.
O hotel, muito simpático e gostoso, fora uma residência particular no passado. As
paredes eram caiadas de branco, havia persianas de enrolar nas janelas e um saguão
espaçoso e bem ventilado, onde as cadeiras e as mesas de vime estavam arrumadas entre
canteiros de flores e plantas tropicais.
— Você pode ir diretamente para o quarto e descansar um pouco enquanto vou
agradecer a Stuart por nos ter reservado o chalé — disse Tom na portaria. — Eu não
demoro.
Despediu-se dela e desapareceu por um corredor à procura do amigo.
— Por aqui — disse o porteiro de uniforme, que se encarregou das malas.
Vinte minutos depois de ter chegado no quarto, como Tom não tinha voltado ainda, ela
decidiu não esperar mais e saiu pela porta do quarto em direção à praia.
Havia algumas pessoas tomando sol e outras nadando, mas a praia particular do hotel
era pouco freqüentada. A maior parte dos hóspedes eram pessoas de idade, e Sanchia
ficou boquiaberta com a pequenez dos trajes de banho. Uma mulher bem cheia de corpo
e que parecia ter sessenta anos estava com um biquíni tão pequeno quanto o seu.
Fazia uns cinco minutos que estava na água quando avistou Tom aproximar-se correndo
em sua direção.
— Ah, agora sim! — exclamou Tom após dar um mergulho e aparecer ao seu lado. —
Desculpe ter demorado, mas Stuart me segurou para conversar.
— Não foi nada. Você passou um telegrama dizendo que chegamos bem?
— Já. — Tornou a mergulhar e, ao voltar à tona, nadou para mais longe.
Sanchia não mergulhou junto com ele porque não queria molhar os cabelos. Ao perceber
que Tom ia ficar ainda algum tempo na água, caminhou pela areia e voltou para o chalé.
A mala dele estava aberta. Aproveitou vara arrumar suas roupas e as dele no armário e
sentou-se na varanda para aguardá-lo.
— Você pediu alguma coisa para a gente beber? — perguntou Tom ao entrar na varanda.
— Não, eu não sabia se você ia demorar.
— Eu vou pedir. — Vestiu um roupão de banho e telefonou do quarto para a portaria do
hotel. — Você está com fome?
— Umas frutas..
Antes que Tom aparecesse de novo, ela vestiu o short.
— Agora estou me sentindo outro — disse Tom, esticando as pernas numa cadeira de
lona. — Voar é a maneira mais rápida de chegar, mas é tremendamente cansativo.
— Você ainda não contou o que aconteceu com o barco...
— O incêndio não foi tão grave quanto imaginei — disse Tom passando os dedos entre
os cabelos molhados. — O barco queimou inteirinho, mas ninguém ficou seriamente
ferido. Foi só o susto. Ainda não sabemos os motivos do incêndio. Suspeito que tenham
feito alguma imprudência. De qualquer modo, foi bom ter ido lá examinar pessoalmente
o acidente.
— E por que você passou a noite em Saint Vincent?
— Steve estava com um problema. Eu aproveitei para lhe dar uma mão. Mas eu cheguei
a tempo, não? Ah, o garçom está trazendo nossos daiquiris — disse Tom ao ouvir os
passos no caminho de pedra. — Pode entrar... estamos na varanda.
Depois que o garçom colocou as bebidas e as frutas em cima da mesa, Tom agradeceu e
deu-lhe uma gorjeta.
— Ah, isso é que é vida! — exclamou com um sorriso de satisfação, ao provar o
daiquiri.
— A lancha de Steve estava quebrada? — insistiu Sanchia, voltando ao assunto de
antes.
— Não, ele entende mais disso do que eu.
— Então o que foi?
— Ah, uma dessas coisas que acontecem quando a gente menos espera e que são muito
desagradáveis. Por favor, vamos conversar de outra coisa, sim?
— Parece até que eu sou da idade de Jane. O que pode ser tão desagradável que você
não quer contar?
— Está bem. Vou fazer sua vontade. Uma das alunas de esqui apaixonou-se por Steve.
Quando ele perdeu a paciência e mandou-a passear, a mulher ficou com tanta raiva que
o acusou de tentar seduzi-la à força. Como as pessoas adoram fofocas desse gênero, o
boato começou a circular pela cidade.
— Que absurdo! Steve adora a mulher e é um dos homens mais educados que já
conheci!
— Exatamente... mas uma mulher casada com um velho rico pode perturbar a vida de
um rapaz que não ganha por mês o que o marido gasta por dia — disse Tom
cinicamente.
— E o que você fez?
— Bem, eu fui conversar com a mulher a pedido de Steve. Expliquei a situação. A
mulher, naturalmente, fingiu que estava interessada por mim....
— E aí... você deu o fora nela?
— Mais ou menos... Eu não costumo levar desaforo para casa... Se alguém pisa em mim
ou num dos meus amigos, acaba se arrependendo do que fez...
O rosto dele, que até alguns momentos atrás estava sorridente e tranqüilo, assumiu
repentinamente uma expressão sombria. Os olhos estavam frios e agressivos e havia
uma expressão de desprezo na curva da boca. A expressão passou rapidamente, mas
Sanchia desejou não provocar nunca sua raiva.
— No fundo, as mulheres desse tipo me dão pena — acrescentou após um momento. —
A vida confortável que levam tem seus espinhos.. sobretudo quando se casam com
homens duas vezes mais velhos...
Sanchia ouviu em silêncio o comentário. Embora seu casamento não fosse comparável
com o de uma mulher oportunista, os dois tinham uma semelhança básica: eram
casamentos de conveniência e não de amor.
Subitamente, o pêssego que estava comendo pareceu ter um gosto amargo na boca.
Embora o sol estivesse de fora, sentiu um tremor de frio percorrer seu corpo.
Os casais e os grupos de banhistas que estavam na praia voltavam para os quartos do
hotel ou para os chalés vizinhos. Logo o dia terminaria. A noite desceria rapidamente.
No momento em que a praia ficou deserta, ela começou a sentir os efeitos da noite mal-
dormida. Queria estar sozinha, deitar-se na cama de casal e ver as estrelas surgirem no
céu. Não estava com a menor disposição para se vestir e jantar no restaurante, nem
tampouco para dançar e fingir que estava se divertindo. 0 pior seria mais tarde, quando
voltassem sozinhos para o chalé...
Sanchia observou-o atravessar a praia enquanto ia se preparar para o jantar e perguntou
a si mesma se Tom queria realmente dar um passeio ou se fizera aquilo para deixá-la
sozinha. Permaneceu sentada na varanda, durante alguns minutos, observando o
maravilhoso pôr-do-sol, acompanhando com os olhos o vulto moreno que se afastava
pela praia deserta, até a beira do mar. Então, com um suspiro fundo, levantou-se e
entrou no quarto.
Estava pintando os cílios, com a luz acesa, quando viu Tom aproximar-se da porta pelo
espelho do armário. Voltou-se e deu um sorriso sem graça.
— O banheiro está livre.
Antes de pintar o rosto, vestira a roupa de baixo e as meias compridas. Tom já a vira
muitas vezes com um biquíni menor que sua calcinha e sutiã. Não iria facilitar o
relacionamento dos dois se insistisse em manter um pudor exagerado.
— Você acha que esse vestido está bom para o jantar? — perguntou, com a voz
aparentemente calma.
Ele olhou para o vestido longo que estava estendido em cima da cama. Era o vestido
mais caro que ela comprara antes de viajar.
Sanchia sentiu que aquele era o momento oportuno que ela vinha aguardando há muito
tempo. Era preferível contar tudo de uma vez, antes que ele descobrisse... e ele iria
descobrir inevitavelmente.
Tomou coragem e encarou-o com os olhos fixos.
— Tom, eu queria lhe contar uma coisa...
— Outra hora, está bem? Agora estou morrendo de fome. Vou tomar um banho rápido e
depois vamos jantar.
Quando ele entrou no banheiro, ela teve vontade de chorar de frustração. Desejava
confessar um segredo que lhe pesava na consciência e Tom não lhe dava a menor
atenção.
Terminou de se vestir e foi até a sala, onde acendeu todas as luzes. Entretanto, embora
tivesse consciência de que a sala era decorada com bom gosto, não estava em condições
de apreciar a beleza dos móveis nem a pintura das paredes. Andando com nervosismo
de um lado para o outro, decidiu contar seu segredo antes de irem jantar.
Nesse momento, ouviu baterem à porta da frente. Ela foi abrir e viu um homem bonito
do lado de fora, vestido de smoking.
— Boa noite. Eu sou Stuart Morris, o amigo de Tom. Estava passando por aqui quando
a avistei na sala e pensei que fosse o momento oportuno para conhecê-la.
— Ah, sim. . Muito prazer em conhecê-lo. Entre, por favor. Tom está no banho, mas não
vai demorar.
— Tom me falou muito a seu respeito...
— Tom falou de mim? Quando?
— Ele fez os maiores elogios a você hoje à tarde. Para falar a verdade, eu não acreditei
na metade do que ele disse. Mas estou vendo agora que ele não exagerou. Quando Tom
me telefonou e contou que vinha passar umas semanas aqui, em lua-de-mel, Mary,
minha mulher, comentou que a noiva devia ser alguém muito especial. Mary conhece
Tom há muitos anos e nunca entendeu por que ele não se casava. Como você pode
imaginar, ela também está ansiosa para conhecê-la. — Fez uma pausa e olhou em volta.
— Se vocês tivessem avisado com mais antecedência poderia ter reservado um chalé
maior...
— Ah, este está ótimo... O chalé é um sonho e não podia escolher um lugar mais
gostoso para passar a lua-de-mel.
— Muito obrigado — disse Stuart, dirigindo-se para a porta. — Estamos esperando
vocês dois para tomarem um drinque lá em casa.
— Com muito prazer. Vou combinar com Tom.
— Até outro dia, então.
Nesse momento, Tom apareceu na porta, vestido para o jantar.
— Ah, ouvi sua voz do banheiro e me vesti correndo. Desculpe ter demorado.
— Sou eu quem lhe peço desculpas por essa visita inesperada. Já estou de saída. Adeus,
Tom.
— Fique mais um pouco, Stuart. Nós também estamos indo jantar. — Voltou-se para
Sanchia. — Minha gravata está bem-arrumada, querida? Eu raramente uso smoking e,
quando o visto, tenho a impressão de ir a um baile à fantasia.
Sanchia nunca o vira antes vestido a rigor e ficou admirada como a roupa combinava
bem com seu físico esportivo. Ao mesmo tempo, surpreendeu-se ao ouvi-lo chamar de
"querida".
— Está perfeita — disse Sanchia. — Vou apanhar minha bolsa.
Deixou os dois conversando na sala e foi para o quarto. Não podia contar o segredo a
Tom antes do jantar, muito menos no restaurante do hotel, diante de outras pessoas.
Apanhou sua bolsinha e apagou as luzes do quarto. Durante alguns segundos
permaneceu parada no escuro, contemplando o mar prateado pela porta aberta. Aquela
noite, porém, o céu estrelado e o mar cintilante não tranqüilizaram seus nervos tensos.
Tom lhe deu a mão quando se dirigiram para o restaurante pelo caminho de pedra. Mais
uma vez ela estava dividida entre o prazer do contato físico e a aversão igualmente forte
por um gesto que não era espontâneo. Jantaram numa mesa pequena e, durante o
primeiro prato, Tom perguntou:
— O que você ia contar? Que você dorme com esses fios de plástico nos olhos?
— Não, não era isso.
— Ainda bem! O que era então?
— Não lembro mais. Veja aquela mulher que está entrando com aquele vestido preto...
Sem voltar a cabeça, Tom comentou:
— Prefiro olhar para você.
— Ah, Tom! — O dia movimentado e tenso tinha levado suas emoções ao limite da
resistência. Não podia esconder sua irritação diante do elogio desnecessário e meio
banal.
— O que foi? Por que você está com essa cara?
— Não foi nada. Desculpe. . . Acho que estou cansada.
— Não precisamos dançar se você não tiver vontade. Logo depois do jantar vamos
voltar para o chalé.
— Ah, eu não estou tão cansada assim! — exclamou sem pensar. Tom levantou as
sobrancelhas como se fosse fazer algum comentário irônico, mas não disse nada.
Em vez disso, começou a falar sobre seus amigos Stuart e Mary, que estavam casados
há alguns anos e tinham filhos pequenos. Sanchia fez um esforço para acompanhar com
interesse a conversa. Exteriormente, tudo parecia normal entre os dois. A tranqüilidade,
no entanto, era apenas aparente.
Enquanto conversavam e dançavam, ela pressentiu que aquela era a calmaria que
antecede a tempestade. . . Não podia durar muito tempo.
Depois da sobremesa, Tom sugeriu que estava na hora de voltar para o chalé.
— Pelo jeito, os outros vão dançar a noite inteira. Você quer ficar mais?
— Não, podemos ir.
Tom levantou-se e puxou sua cadeira. Atravessaram o gramado atrás do hotel, que
estava deserto àquela hora. Quando chegaram em casa, o som da música era um
sussurro imperceptível.
Tom abriu a porta e acendeu a luz da sala. Encobertas pelos abajures de seda japonesa,
as lâmpadas davam ao ambiente uma luz dourada e tranqüila.
Sem saber o que dizer naquelas circunstâncias, Sanchia deu alguns passos e parou
indecisa perto de um vaso de flores que estava em cima da mesa. As cortinas estava
fechadas e eles não eram vistos por ninguém de fora.
Tom afrouxou lentamente o nó da gravata e desabotoou o colarinho da camisa. Colocou
a gravata borboleta em cima da mesa, juntamente com as abotoaduras de ouro. Depois,
aproximou-se dela.
Estava muito atraente com a camisa aberta no peito, e os olhos claros tinham um brilho
intenso à luz das lâmpadas amarelas. No instante em que estendeu os braços para cingi-
la, ela experimentou uma sensação de abandono e de tremor que lhe percorreu o corpo.
Suas pernas estavam tão bambas que mal podiam sustentá-la em pé.
Entretanto, no momento seguinte, estava completamente gelada, como se o corpo
tivesse recebido um choque repentino. Nos braços dele, com os lábios tocando o rosto
moreno dela, continuou rígida e indiferente, não propositalmente, mas porque, de
repente, todos os nervos do corpo pareciam paralisados. Estava literalmente incapaz de
fazer o menor movimento.
Os lábios dele não chegaram a tocar nos seus lábios. Tom sentiu antes sua rigidez. Era
natural que sentisse. Ela estava fria como uma pedra e mal respirava.
Tom soltou-a dos braços e fixou-a com impaciência.
— Vá para a cama, Sanchia. Você está exausta. Eu vou dormir no sofá.
Ela ouviu seu soluço abafado como se viesse de outra pessoa. Queria falar, mover-se,
mas as palavras não passavam pela garganta.
— Ah, pelo amor de Deus, vá para a cama! — exclamou Tom, dessa vez com
impaciência, quase com raiva.
Fez meia volta e saiu de casa. A porta bateu em suas costas. O som dos passos se afastou
e cessou por completo. Logo a casa estava mergulhada em profundo silêncio.
CAPÍTULO VIII
FIM