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PROFUNDO MAR AZUL

Anne Weale

Copyright: ANNE WEALE


Título original: "THE MAN IN COMMAND"
Publicado originalmente em 1968 pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: MARCELO CORÇÃO
Copyright para a língua portuguesa 1979
Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Composto e impresso nas oficinas da
Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Caixa Postal 2372 — São Paulo

O aventureiro Tom tinha uma vida inteira para viver, junto com a sua gente e ao sabor das águas
e do sol naquele cenário místico no mar das Antilhas. Mas a tutela de seus três sobrinhos trouxe
consigo como dama de companhia a misteriosa Sanchia, uma jovem viúva que não acreditava
mais na felicidade, pois o destino não lhe dera forças para romper com as amarras que a ligava
ao passado. Por que razão Sanchia vivia confinada naquele segredo? Que forças tinha aquele
mistério que a colocava em pleno silêncio, com medo da verdade? E que caminhos Tom teve
que percorrer para mostrar a Sanchia que o amor é a mais forte das emoções?
CAPITULO I

Alguns dias antes dos feriados do Natal, Sanchia foi convidada para jantar com Delia
Preston, a diretora do colégio. Nos últimos três anos, as duas tinham passado muitas
noites agradáveis juntas, algumas vezes nos aposentos da diretora, outras vezes no chalé
onde Sanchia morava, num lugarejo próximo.
Nenhuma das duas podia prever que aquele seria a última vez. Mesmo no fim da noite,
quando as primeiras notícias da tragédia perturbaram o sossego da reunião, Sanchia
jamais podia imaginar que aquele fato teria uma conseqüência duradoura para sua vida.
Delia era diretora há dez anos do internato para meninas, em Lingard, e estava agora
com cinqüenta e poucos anos. Sanchia não podia entender o motivo pelo qual ela não
casara, pois era uma mulher encantadora, que agradava a todas as pessoas que lhe eram
apresentadas. Entretanto, por razões que só ela conhecia, permanecera solteira, e parecia
muito satisfeita com sua condição. Embora despertasse o respeito entre as alunas e
professores do colégio, e podia ser severa quando era necessário, não havia nada de
chefona nela. Uma vez por semana, ia à cidadezinha mais próxima, onde penteava os
cabelos num estilo moderno. Tinha também um gosto excelente para vestir-se. Na
opinião de Sanchia, Delia se vestia com mais elegância que as mães que visitavam as
filhas no colégio com casacos de pele.
A sala de visita onde as duas conversavam ficava no alto de uma escada em curva, que
subia do vestíbulo do andar térreo. Essa parte do colégio parecia em tudo com uma
residência particular.
As alunas davam-se muito bem naquela escola. Muitas vinham de residências
igualmente bonitas, situadas nos arredores da cidade. Uma delas, a tímida princesa
Yasmin, morava num palácio mourisco. Outra era filha de um conde francês, e a casa
onde nascera era um dos magníficos castelos do Loire.
Sanchia nascera num sobrado modesto, de pedras cinzentas, nos arredores de Londres.
Sentia muita alegria por trabalhar numa sala revestida de madeira, com janelas altas,
que dava para um terreno amplo e arborizado.
Naquela noite — a noite da tragédia — antes do jantar, Sanchia apanhou as cartas que a
diretora ditara à tarde, selou-as e guardou as cópias no arquivo da correspondência.
Cobriu a máquina de escrever e passou a chave do telefone para a residência da diretora,
no andar de cima. Por último, foi ao armário onde guardava suas roupas e colocou as
cartas dentro de suas botas forradas. Se as colocasse na bolsa, podia esquecer de deixá-
las no correio quando fosse mais tarde para casa de bicicleta.
— Que noite tempestuosa! — comentou Delia quando sua secretária entrou na sala.
Embora as janelas estivessem fechadas com cortinas pesadas de veludo, podiam ouvir o
vento soprar com violência as folhas das faias que ladeavam a entrada do colégio,
enquanto gotas grossas de chuva batiam nas vidraças.
— Se a chuva não passar, você vai para casa no meu carro. Não pode voltar de bicicleta
com esse tempo. Você toma um sherry ou prefere um martiní seco?
— Um sherry, por favor.
Enquanto Delia servia a bebida, Sanchia aproximou-se da lareira. O colégio tinha
aquecimento central, mas, numa noite como aquela, era gostoso acender a velha lareira
de lenha e sentir o perfume delicado da madeira queimando.
De ambos os lados da lareira, espetados numa fita larga de veludo, estavam os cartões
de boas festas que Delia recebera dos amigos e conhecidos. Os cartões enviados pelos
pais das alunas estavam expostos no salão no andar térreo. Aqueles eram os cartões
pessoais, vindos de muitas partes do mundo.
Até então, Sanchia não recebera nenhum cartão de boas festas e não esperava receber
mais de meia dúzia até o dia de Natal. Durante um momento, a perspectiva de passar o
Natal sozinha deixou-a deprimida. Depois, lembrou-se de que não era a única pessoa no
mundo para quem o Natal seria um dia de solidão.
Em vez de sentir-se triste e abatida, devia dar-se por muito feliz. Muitas pessoas não
tinham nem mesmo o mínimo de conforto material e suportavam o frio e a fome, além
da solidão. Ela, pelo menos, podia desfrutar uma boa comida e uma garrafa de vinho,
sem falar que tinha livros e discos para passar o tempo alegremente. Sim — devia estar
agradecida. Para ela, o Natal seria um dia agradável.
Mesmo assim, como tudo seria diferente se...
A diretora, que estava com o copo de bebida na mão, percebeu o olhar tristonho no rosto
de sua secretária com um misto de pena e de perplexidade. Em geral, Sanchia escondia
seus sentimentos íntimos e não mencionava nunca o passado. Na maior parte do tempo,
dava a impressão de ter superado a crise que a atingira alguns anos antes, embora não a
tivesse esquecido completamente.
— Aqui está seu copo, querida. Agora sente-se no sofá e descanse um pouco. Foi um dia
muito agitado e você está com o rosto abatido.
— Ah, é? Pois olha, não estou me sentindo cansada — disse Sanchia quando as duas se
sentaram ao lado da lareira. Provou o sherry e sorriu para a mulher de idade com os
olhos castanhos tranqüilos e serenos.
Pouco depois, sentaram-se diante da mesa redonda de nogueira, onde os pratos estavam
cobertos para não esfriar. Tomaram primeiro a sopa bem quente, que foi acompanhada
por uma maionese de galinha e uma mousse de chocolate com creme fresco.
Durante o jantar, discutiram sobre o livro que as duas tinham lido recentemente.
Enquanto conversavam, Delia estava pensando consigo mesma durante quanto tempo
sua secretária levaria aquela vida isolada e solitária. Era bem moça ainda. No entanto,
sua existência era tranqüila e pacata, como a de uma mulher de meia-idade.
Depois do que acontecera, era natural que necessitasse de um período longo de
tranqüilidade para se recuperar completamente. Mas três anos não eram suficientes?
De um ponto de vista egoísta, Delia não gostaria de perder a secretária eficiente e
organizada. Entretanto, passara a gostar muito dela e, ultimamente, pensava que seria
preferível Sanchia levar uma vida mais normal, como as jovens de sua idade.
Talvez o que ela necessitava no momento era ser sacudida violentamente por alguém ou
alguma coisa. A tranqüilidade era algo desejável para pessoas de idade, mas não era
recomendável para uma moça saudável, de vinte e quatro anos, que tinha a vida toda
pela frente.
Depois do jantar, voltaram a sentar-se perto da lareira e continuaram conversando, até o
momento em que Delia olhou para o relógio e viu que estava quase na hora do noticiário
na televisão.
Enquanto aguardavam o programa, Delia desejou conhecer a história de Sanchia em
maiores detalhes. Suspeitava, às vezes, que havia algum fato importante que a moça não
contara no primeiro dia em que fora entrevistada. Talvez aquele fato — se sua opinião
era correta — fosse a chave para o coração fechado de Sanchia.
Foi então que começou o noticiário.
No primeiro momento, enquanto ouviam a notícia de um acidente ocorrido com o avião
que deixara o aeroporto de Roma, nenhuma das duas compreendeu imediatamente que o
desastre aéreo iria despertar nelas muito mais do que uma simples compaixão pelas
vítimas.
De repente, no momento em que o locutor passou à notícia seguinte, Delia sentou-se
muito ereta na cadeira.
— Ah, meu Deus... não pode ser! — exclamou com uma entonação de horror.
— O que foi? — perguntou Sanchia atônita.
— Tive o pressentimento horrível de que os pais de Jane estavam viajando nesse avião
— explicou Delia, com o rosto muito pálido. — Por favor, peça à professora Lyall para
vir aqui. Ela deve saber se eles tomaram ou não esse avião.
Sanchia correu até a porta.
— Ela deve estar na sala dos professores. Não comente o motivo do meu chamado.
Talvez esteja enganada e não queria assustar os outros à toa.
Alguns minutos depois, no entanto, quando a professora Lyall soube o motivo pelo qual
tinha sido chamada, sua reação confirmou a suspeita da diretora. As três mulheres
permaneceram em silêncio na sala, tomadas de perplexidade, mudas diante da
possibilidade terrível de que duas das melhores alunas do colégio podiam estar agora
órfãs de pai e mãe.
Delia foi a primeira a se recuperar do susto.
— Não digam nada a ninguém até termos certeza. Eric Rowland tinha de fato a intenção
de tomar esse avião, mas pode ser que tenha mudado de idéia no último momento... e
não estava com a mulher no avião que caiu. E, mesmo se os dois estivessem, não
sabemos ainda quantas pessoas perderam a vida. Talvez haja alguns sobreviventes.
Vamos aguardar o próximo noticiário.
— Não seria preferível telefonar para a companhia aérea e saber a lista dos passageiros?
— sugeriu Sanchia.
— Imagino que muitas pessoas pensaram nisso, e todas as linhas devem estar ocupadas,
o melhor seria...
A diretora foi interrompida pela campainha do telefone e atravessou correndo a sala
para atendê-lo.
— Colégio Lingard...
Após colocar o fone no gancho. Delia disse para as duas:
— Era o irmão de Eric Rowland que telefonou de Londres. Ele também ouviu o
noticiário na televisão. Não sabe nada por enquanto, mas ficou de telefonar em seguida
para cá. Já entrou em contato também com o diretor da escola de Duncan. — Fez uma
pausa e fitou os dois rostos preocupados. — Ele acredita que haverá uma longa espera
antes de termos a confirmação da notícia.
—Vou fazer um café — disse Sanchia, reunindo as xícaras vazias e levando-as até a
pequena cozinha onde a diretora preparava alguma comidinha ligeira.
Passava da meia-noite quando a professora Lyall, profundamente abalada, deixou as
duas sozinhas na sala. O locutor da estação confirmou a notícia de que todos os
passageiros do avião tinham perdido a vida no acidente.
— É melhor você ir deitar, Sanchia — disse Delia. — Está muito tarde para voltar
sozinha para casa. Durma aqui essa noite. E seria bom você tomar um dos meus
comprimidos para dormir.
— A senhora não vai se deitar?
— Não, vou aguardar mais um pouco o telefonema de Edward Rowland.
— Neste caso, vou lhe fazer companhia.
— Ah, muito obrigada. Mas não está com sono?
— Vou fazer mais café... ou â senhora prefere uma xícara de chá?
Na tarde do dia seguinte. Delia chamou Sanchia à sua sala. Parecia muito cansada e
abatida, e. no momento em que Sanchia entrou, estava tomando um comprimido para
dor de cabeça.
— A situação é realmente terrível — disse, apontando para uma cadeira. — Não sei
realmente o que fazer. As três crianças não têm para onde ir. Edward Rowland é solteiro
e mora no interior. Evidentemente não pode tomar conta dos três. A avó está com oitenta
anos e é ligeiramente caduca. Está numa clínica de repouso em Eastbourne. Uma das
irmãs está passando as férias nas Bermudas e a outra disse que não tem lugar para as
crianças no seu apartamento. Além disso, foi operada recentemente e o médico
recomendou repouso absoluto depois da operação. Na minha opinião, ela não quer ser
incomodada. Você fazia idéia que havia pessoas tão egoístas assim?
— E na família da mãe? — perguntou Sanchia. — Não há ninguém que possa cuidar
das crianças?
— Pelo visto não. Os pais de Lucy já morreram, e ela tem apenas um irmão, que está
viajando. Ninguém sabe exatamente seu paradeiro. Os advogados estão procurando
localizá-lo. Pelo que sabem, é um homem solteiro e sem residência fixa.
— O que Edward Rowland sugeriu?
— Ele não tem nenhuma sugestão. Está tão desorientado quanto eu — disse a diretora
com um suspiro.
— Podia propor uma solução imediata para o problema — disse Sanchia após alguns
momentos. — As crianças poderiam ficar comigo no chalé, enquanto não encontramos
uma solução definitiva.
— Com você? — exclamou Delia surpresa.
— Por que não? Eu tenho um quarto livre para as duas meninas, e Duncan pode dormir
no quarto da empregada. As meninas já me conhecem de vista e eu teria muito prazer
em hospedá-los neste meio tempo.
— Você está falando sério? — exclamou Delia, com um suspiro de alívio. — Ah,
Sanchia, isso seria uma solução maravilhosa. Eu ia sugerir que, em último caso, os três
fossem morar com minha irmã. Mas Londres não é um bom local para crianças
pequenas, especialmente nessas circunstâncias. Tenho certeza de que estarão muito
melhor aqui. Será mais fácil distraí-las. Pobrezinhos, devem estar muito abalados com a
notícia e não compreenderam ainda toda a extensão do drama...
— Posso imaginar. Eles não podem acreditar que seja verdade. Eu me lembro... —
Interrompeu bruscamente o que ia contar. — Bem, está combinado, então. Eles podem
ir hoje mesmo para meu chalé.
— Você é um anjo — disse Delia. — Vai ser melhor para eles e para os outros alunos.
Naturalmente, todos ficaram abalados com a notícia, mas não se pode querer que
esqueçam a alegria do Natal... seria pedir muito... Vou telefonar para a escola de Duncan
agora mesmo.
Antes de embarcar, no dia seguinte, para Londres, Delia passou no chalé onde Sanchia
morava desde que começara trabalhar no colégio.
— É uma pena você não ter telefone aqui — disse Delia no fim da visita, quando se
despediram no portão da casa. — Não vai ser muito prático você ligar para mim da
cidade. De qualquer maneira, vamos nos manter em contato. Eu pretendo passar aqui na
semana que vem para ver se está tudo bem. Adeus, minha querida. E muito, muito
obrigada por você ter me dado uma mão num momento de aperto.
Após despedir-se da diretora, Sanchia entrou em casa e começou a preparar o almoço.
Duncan e Jane estavam jogando damas na sala. Emma, a menina de nove anos, estava
armando um quebra-cabeça. Naquele momento, não davam a impressão de terem
perdido os pais recentemente. Sanchia, porém não se iludiu com a tranqüilidade
aparente. Na idade deles — Duncan tinha treze anos e Jane dezesseis — aquela
tranqüilidade era antes um motivo de preocupação.
Na tarde daquele mesmo dia, Sanchia recebeu uma carta da tia das crianças, juntamente
com um cheque. Ao ler as poucas linhas escritas apressadamente, ela sentiu uma raiva
tão grande que teve vontade de rasgar o cheque. Como alguém podia pensar que
brinquedos caros podiam consolar a tristeza de três crianças órfãs?
Edward Rowland, pelo menos, teve a delicadeza de visitar pessoalmente os sobrinhos,
se bem que passou apenas uma hora no chalé. Evidentemente nunca tivera muito
contato com os três, e era o tipo de homem que não se sentia à vontade com crianças
daquela idade.
Chegou num carro dirigido por um motorista e trouxe consigo uma mala grande com as
roupas das crianças. Era um homem pálido, frágil e meio curvado, com maneiras
reservadas e a voz clara. Sanchia sabia que era um antiquário muito conhecido em
Londres. Parecia ser uma pessoa profundamente inibida, para quem os objetos raros e
belos significavam mais que as pessoas.
Entretanto, Edward Rowland mostrou-se sinceramente preocupado com o futuro das
crianças e muito agradecido por Sanchia ter assumido aquela responsabilidade. Após
conhecê-lo melhor, porém, Sanchia concluiu que o tio antiquário era absolutamente
incapaz de cuidar dos sobrinhos.
Depois dessa visita, enquanto Jane estava ajudando Emma a lavar os cabelos, Sanchia
perguntou a Duncan: — Como é seu outro tio? O que está sempre viajando?
— Eu não me lembro muito bem dele — disse o menino, com a testa franzida. — Faz
um tempão que a gente não se vê. Eu tinha a idade de Emma quando ele apareceu pela
última vez. Por quê? Ele vai passar aqui?
— Não sabemos ainda, Duncan. Ninguém sabe onde ele está no momento.
— Mamãe sabe... — disse o menino distraidamente. — Mamãe sabia. Ele costumava
escrever para ela, mas mamãe não contava nada ao papai, porque os dois não se davam
muito bem.
— Ah, não? Por quê?
— Eu não sei exatamente o motivo. Mas papai dizia que o tio Tom era Um imprestável
e que não fazia nenhuma questão de vê-lo. Talvez meu tio seja um homem meio
esquisito, mas eu gosto dele, mesmo assim.
— Esquisito? Em que sentido?
— Ele não parece com os outros tios da gente. É uma espécie de... boêmio. A última vez
em que foi nos visitar, não escreveu antes avisando que ia chegar. Simplesmente
apareceu de um momento para o outro. Não tinha nem mesmo uma mala. Todas as suas
coisas estavam numa sacola velha. Estava com a barba crescida e os cabelos
despenteados. Eu me lembro disso porque ele me deu um beije e eu senti a barba me
espetando...
— Você não gostou de ser beijado por ele?
Duncan corou ligeiramente. — Bem, eu não era mais um garotinho. Eu tinha nove anos.
Os outros tios não costumavam me beijar. Apenas apertavam minha mão.
— Ah — murmurou Sanchia pensativa. — Foi essa a última vez que você viu seu tio?
Há quatro anos atrás?
— Foi... e ele não ficou muito tempo. Depois que nos levou para dar um passeio, houve
uma briga terrível lá em casa. Eu penso que papai o mandou embora.
— Onde vocês foram passear?
— Fomos primeiro ao cais do porto. O navio dele estava ancorado lá, o mesmo navio
em que viajara para a Inglaterra. Não era um navio de passageiro. Era um velho
cargueiro. Ele pagou a passagem trabalhando no navio. O capitão era estrangeiro... um
homem muito velho e simpático. Ele deixou o tio nos mostrar a casa das máquinas e me
deu um gole de cerveja quando almoçamos no navio. À tarde fomos visitar a Torre de
Londres e ver as jóias da Coroa... Isso foi idéia da Jane. Depois, fomos a um parque de
diversões..
— Deve ter sido um dia muito divertido...
— Se foi! Foi super legal! Voltamos bem tarde para casa e papai estava dando um jantar.
Quando chegamos, os convidados estavam indo para a mesa. Estavam todos vestidos a
rigor e olharam de boca aberta para nós três. Na volta para casa, o tio parou numa
padaria e comprou um saquinho de batatas fritas para cada um. Ele disse que era
gostoso comer batatas fritas com as mãos.
Sanchia podia imaginar o espetáculo das três crianças chegando em casa depois de um
dia inteiro passado na rua. Era natural que o pai ficasse bravo quando os filhos
apareceram diante dos convidados de cerimônia, descabelados e com as mãos
gordurosas de batatas fritas. Ao mesmo tempo, a cena devia ter sido incrivelmente
cômica, diante do contraste entre a elegância dos adultos e o desleixo das crianças
pequenas.
— Talvez seu pai ficou zangado porque vocês chegaram muito tarde — disse Sanchia.
— Estava mais do que na hora de Emma estar na cama. Que idade ela tinha? Cinco
anos?
— Não, não foi por isso — comentou Duncan. — Mamãe não ficou brava. Depois que o
tio foi embora, ela chorou no quarto da gente. Ela... — O menino interrompeu o que ia
contar e pareceu sem jeito.
Talvez Duncan estivesse arrependido de contar as histórias íntimas da família para uma
pessoa estranha.
— Acho que vou dormir — disse, após um momento, com o rosto sério.
Pelas nove da noite, depois de pôr as duas meninas na cama, Sanchia voltou novamente
à cozinha e levou um susto quando Duncan apareceu subitamente na porta.
— Desculpe... você se assustou?
Com seu pijama azul ele parecia mais uma criança do que um adolescente.
— Um pouquinho... O que foi? Você não está conseguindo dormir? Quer tomar um
chocolate quente?
— Não, muito obrigado. Eu desci apenas para dizer a você que o endereço do meu tio
está nas cartas que ele escrevia para a mamãe. Ela costumava guardá-las numa caixinha
na penteadeira.
Antes que Sanchia pudesse fazer algum comentário, o menino voltou-se e foi para o
quarto.
Na manhã seguinte — vinte e três de dezembro — Sanchia transmitiu a informação de
Duncan para Delia. Contou também a conversa que tivera com o menino a respeito do
tio.
— Eu imagino que o pai não queria manter relações com o cunhado boêmio — disse
Delia ao ouvir a história da briga. — Eric era um homem convencional e meio
antiquado. Mas talvez houvesse outros motivos para a briga. Eu vou transmitir sua
informação aos advogados. Se descobrirem o endereço nas cartas, passarão um
telegrama urgente. O problema é saber se ele vai se dignar responder... Bem, vamos
aguardar um pouco mais...
Sanchia telefonou novamente para Delia na véspera do Natal. Dessa vez, Delia tinha
algumas novidades para lhe contar. As cartas tinham sido encontradas. O tio residia nas
Antilhas, e os advogados já tinham mandado um telegrama para seu endereço.
— O endereço, porém, é da caixa postal e talvez leve algum tempo para receber o
telegrama. De qualquer forma, não creio que esse tio seja mais útil do que os outros
parentes. Talvez se dê melhor com as crianças, mas, pelo que ouvi contar, creio que não
está em condições de tomar conta dos sobrinhos.
Naquela noite, enquanto as crianças enfeitavam a árvore de Natal, Sanchia fez uma torta
e recheou o peru. Mais tarde, os quatro sentaram-se em volta da lareira, comeram fatias
da torta e beberam sidra. Emma sentiu sono e adormeceu pouco depois no sofá.
Jane comentou em voz baixa:
— Quando fomos à cidade hoje de manhã, compramos um presentinho para a Emma.
Ela costuma procurar os presentes de manhã cedo, e ficaria decepcionada se não os
encontrasse.
— E vocês dois? Não recebem mais presentes?
— Recebemos... mas não acreditamos mais em Papai Noel — disse Jane. — Mas
Emma acredita ainda. Ela é muito criança para sua idade — acrescentou Jane, olhando
para a menina que dormia com uma expressão de meiguice.
Todos os três tinham cabelos claros e olhos azuis. Duncan era bem desenvolvido para
sua idade, mas Jane era um pouquinho magra e franzina.
Como o peru era muito grande, Sanchia acordou mais cedo na manhã do Natal para
acender o forno. Por volta das sete, enquanto estava limpando a lareira, ouviu um
murmúrio de vozes no andar de cima.
— Muito obrigado pelos presentes que você comprou para a gente — disse Jane depois
do café, enquanto Emma brincava no jardim.
— Nós estamos dando muito trabalho a você — acrescentou com a voz preocupada.
— Pelo contrário. Se vocês não estivessem aqui, eu passaria o Natal sozinha. Estou
muito contente que vocês me façam companhia. E você não precisa me agradecer pelos
presentes. Eu comprei com o dinheiro que sua tia mandou. Espero ter escolhido as
coisas de que vocês gostam. Foi um pouco difícil, porque ainda não conheço as
preferências de vocês.
Sanchia tinha colocado os presentes maiores embaixo da árvore de Natal, e observou
com apreensão a reação das crianças ao desembrulharem os pacotes.
— Um microscópio! — exclamou Duncan, ao retirar com cuidado o aparelho da caixa.
Como Jane gostava de desenhar, Sanchia comprou para ela uma caixa de pintura, um
pequeno cavalete de dobrar e algumas telas pequenas.
— Ah, que maravilha! — gritou Jane com os olhos brilhantes. — Uma caixa de tinta a
óleo de verdade!
Emma adorou também seu teatrinho de marionetes. Quando os meninos a agradeceram,
Sanchia lembrou que os presentes tinham sido comprados com o dinheiro enviado pela
tia.
— Sim, mas é a intenção que conta — disse Jane. — E foi você quem escolheu os
presentes e os embrulhou nesse papel de seda. Nós também compramos um presentinho
para você. Não é nada demais, mas espero que você goste.
Ela foi apanhar o embrulho e o deu a Sanchia.
— Ah, uma caixa de talco! Meu perfume favorito. Muito obrigada' por vocês terem se
lembrado de mim.
No fim do dia, depois que as meninas subiram para o quarto. Sanchia pensou que o
Natal não fora muito triste para as crianças. Nem tampouco para ela.
No dia seguinte, de manhã, levou os três para darem um passeio. Estava muito frio, e as
nuvens cinzentas encobriam a paisagem de inverno. Se estivesse sozinha, a paisagem lá
fora teria lhe parecido triste e deprimente, mas na companhia de Emma, que corria ao
seu lado, enquanto Duncan e Jane catavam bichinhos para examinar no microscópio, ela
sentia-se alegre e bem disposta.
A tarde, sentada diante da lareira, partindo nozes e castanhas, ocorreu pela primeira vez
a Sanchia que ia acabar se apegando àquelas crianças.
— Nós vamos ficar com você até o reinicio das aulas? — perguntou Jane em dado
momento.
— Sim, espero que sim — disse Sanchia, sentindo uma pontada no coração. Quando ela
se oferecera para tomar conta das crianças não pensava que, ao procurar distrair a
tristeza delas, iria reavivar a sua própria.
Não podia evitar apegar-se às crianças. Quanto mais tempo morassem com ela, mais
falta sentiria quando fossem embora.
O chalé já tinha uma atmosfera diferente. Não era apenas porque estava mais alegre e
movimentado que antes. Era alguma coisa mais sutil, algo que iria perdurar depois que
as crianças fossem embora.
Aquela noite, Sanchia começou a ler o livro que ganhara de Delia e que, se estivesse
sozinha na casa, já teria terminado. Fizera um bom fogo na lareira e estava lendo bem
depois do seu horário habitual de dormir.
De repente, ouviu uma batida insistente na porta da frente. Deu um pulo no sofá e
voltou-se com a fisionomia espantada. Olhou rapidamente para o relógio da sala e viu
que passavam das onze. Quem podia ser? Com o coração batendo, tomou coragem e
enfiou os pés nas sandálias.
A porta da frente tinha uma fechadura antiga, e, quando alugara o chalé, mandara
instalar um trinco e uma corrente de segurança. Sanchia virou a chave é moveu a
maçaneta, mas deixou a corrente no lugar, de maneira a entreabrir apenas a porta. Olhou
pelo vão e perguntou:
— Quem é?
Nesse momento, alguns flocos de neve entraram na sala atraídos pelo ar quente. Estava
nevando lá fora. Talvez estivesse nevando desde algum tempo, por isso não ouvira os
passos na entrada e se assustara tanto com as batidas repentinas.
Uma voz masculina perguntou:
— É aqui que estão hospedadas as crianças da família Rowland? Eu sou Tom Bartlett, o
tio delas.
Sem retirar a corrente de segurança, Sanchia disse:
— Não é possível. O tio delas está nas Antilhas.
O homem murmurou algo incompreensível do lado de fora. Houve um silêncio de
alguns segundos e, logo depois, um pequeno objeto foi introduzido no vão da porta.
Sanchia apanhou a carteira profissional e leu-a na página aberta.
O nome do portador era Thomas James Bartlett. Profissão: marinheiro. Nascera em
Liverpool e tinha trinta e cinco anos. Altura: um metro e oitenta e dois centímetros.
Olhos cinza, cabelos castanho-escuros. Não tinha nenhum sinal particular.
Na página oposta estava a fotografia de um rosto magro e expressivo, muito diferente
das feições delicadas dos sobrinhos. Embora olhasse de relance para a foto, Sanchia
ficou surpresa com a aparência extremamente viril do homem.
— Muito obrigado — disse Tom com um sorriso irônico, no momento em que ela
retirou a corrente e abriu a porta para recebê-lo.
No breve instante em que olhou para fora, ela avistou as luzes de um carro estacionado
na porta de casa.
— Você me desculpe, mas eu não esperava nenhuma visita a essa hora — disse Sanchia
com um arrepio, fechando rapidamente a porta da frente. — Como você fez para chegar
tão depressa? O telegrama foi mandado anteontem...
— Eu vim de avião — disse Tom, batendo os pés no capacho da entrada. Havia flocos
de neve nos cabelos e nos ombros. Ele retirou o sobretudo e olhou em volta sem saber
onde deixá-lo.
— Pode me dar — disse Sanchia, segurando o capote grosso e indo pendurá-lo no
cabide.
Quando voltou à sala, Tom estava em pé diante da lareira, esquentando as mãos. No
momento em que ele se voltou na sua direção, a chama da lareira e a luz amarela que
vinha do abajur iluminaram o rosto queimado de sol. Sanchia sentiu uma reação
instintiva de recuo. Era uma sensação muito complexa para definir em poucas palavras.
Mas uma coisa pelo menos ela percebeu no mesmo instante. Estava diante de um
homem que tinha uma presença marcante e que não se podia esquecer facilmente.
Enquanto o observava em silêncio, uma outra coisa estranha ocorreu com ela. Levou
instintivamente a mão ao rosto, para esconder a cicatriz que havia ali, hábito que já
havia perdido há muito tempo atrás. Como o cirurgião lhe dissera, a cicatriz ia
desaparecer com o tempo, sem deixar quase nenhum sinal. Por baixo da pintura, era
imperceptível.
— Eu aceitaria de bom grado uma bebida — disse Tom de repente, como se aguardasse
esta sugestão.
— Infelizmente não tenho uísque em casa — disse Sanchia, sem jeito. — Mas posso
preparar um café.
— Não, não se incomode. Não tem importância. Eu já estou de saída. Onde posso
passar a noite? Há algum hotel aqui perto?
— O hotel perto daqui é um pouco pequeno — disse Sanchia pensativamente. — Em
geral, as pessoas preferem o outro maior e mais confortável que fica a uns dez
quilômetros daqui.
— Vou tentar o mais perto — disse Tom. Retirou o lenço do bolso e enxugou os cabelos
úmidos. — Como estão as crianças? Estão muito crescidas? Faz anos que não as vejo...
— Elas estão comigo somente a alguns dias. Têm se comportado muito bem e são muito
tranqüilas. Não posso dizer se estão diferentes do que eram... antes do acidente. Ainda
estão muito abaladas com o fato.
— Eu faço idéia... Mas talvez não vão sentir tanta falta dos pais quanto outras crianças...
— Em que sentido?
Tom balançou os ombros largos.
— Bem, os pais nunca foram muito apegados aos filhos. Quando eram menores, foram
criados por uma babá. Depois foram mandados para o colégio interno, onde passavam a
maior parte do ano. Este tipo de educação não cria laços muito íntimos...
— Não concordo — interveio Sanchia com frieza. — Centenas de crianças têm babás.
Centenas vão para colégios internos. Nem por isso gostam menos dos pais. Ninguém
pode substituir o amor materno.
— Bem, neste ponto nós dois divergimos — disse Tom com um sorriso irônico. — Seja
como for, os três perderam os pais e alguém terá que tomar o lugar deles.
— Você pretende assumir essa responsabilidade? — perguntou Sanchia com frieza. Ela
não simpatizava nada com o jeito do homem.
— Não tenho outra alternativa. Pelo que soube, ninguém mais na família se ofereceu
para cuidar das crianças.
— Eu pensei que você fosse solteiro — comentou Sanchia após um momento de
silêncio. — Você está casado agora?
— Não, continuo solteiro.
— Neste caso, como pode tomar conta das crianças?
— O que se há de fazer? — exclamou com indiferença. — São três crianças normais e
sadias... Uma vez que se adaptem à minha maneira de viver, creio que não haverá
maiores problemas...
— Que se adaptem à sua maneira de viver?
— Claro. Morar comigo vai ser muito diferente da vida a que estavam habituados. Mas
tenho a impressão de que vão se adaptar rapidamente. Afinal, eles também não têm
outra escolha — acrescentou com a mesma voz indiferente. — Estou vendo que é tarde
e seria melhor eu ir andando.
Sanchia apanhou o sobretudo no corredor com a mente confusa e alarmada. Ele falava
como se o assunto estivesse resolvido, embora parecesse interessar-se tão pouco pelos
sobrinhos quanto os outros tios.
— Amanhã eu passo aqui para conversar com mais calma. Boa noite.
Antes que ela pudesse atravessar a sala e abrir a porta, ele saiu pela noite escura, e ela
voltou a ficar sozinha na sala.
Estava frio no quarto de dormir porque levara o aquecedor elétrico para o quarto das
meninas. Sanchia trocou de roupa no banheiro e encheu o saco de água quente. Quando
entrou embaixo do cobertor, o lençol gelado provocou-lhe um arrepio.
Com os pés no saco de água quente, o robe de chambre em volta dos ombros, tentou
terminar o capítulo que estava lendo. A leitura, porém, perdera subitamente o interesse.
Um rosto moreno e enigmático interferia em sua concentração.
Um homem estranho, além do mais. Brusco e autoritário. Não correspondia
absolutamente à descrição de Duncan. Agora entendia por que Eric Rowland não
gostava dele.
Ia apagar a lâmpada da cabeceira quando ouviu alguma coisa bater na vidraça. Um
instante depois, uma segunda bola de neve espatifou-se contra o vidro.
Levantou-se da cama, passou os braços nas mangas do robe e foi espiar para baixo. No
jardim, Tom Bartlett estava fazendo uma outra bola de neve. Ao vê-la na janela, fez um
sinal para descer.
Que homem antipático! - murmurou Sanchia com raiva. Ele não percebe que horas são?
Tornou a abrir a fechadura e retirou a corrente da porta.
— Não encontrei nenhum quarto livre no hotel. Estou morto de cansaço. Se você não
fizer objeção, vou dormir no sofá da sala.
Se ele tivesse pedido desculpa por tê-la incomodado pela segunda vez e não estivesse
com a maleta na mão, certo de que ela ia aceitar seu pedido, Sanchia não teria dado a
resposta que deu.
— Sinto muito, mas você não pode dormir aqui.
— Por que não? — perguntou Tom, com as sobrancelhas levantadas. — Se não tiver
cobertor sobrando, eu posso usar meu sobretudo e uma almofada.
— Claro que não é isso. Eu não posso hospedar um homem em casa.
A princípio, ele pareceu sinceramente intrigado. Em seguida, um brilho de compreensão
atravessou seus olhos claros.
— Não há motivo para você se preocupar. Há mais pessoas em casa além de nós dois.
Fora isso, quem ficaria sabendo? A cidade está deserta. Não há ninguém na rua a essa
hora. Todos já foram dormir há muito tempo.
Sanchia sentiu um arrepio. Ela não tinha fechado a porta da frente e sua roupa de noite
não era adequada para o vento frio que soprava. Enfiou as mãos nos bolsos do robe e
olhou fixamente para ele, decidida a não ceder. Mas ele não insistiu.
— Muito bem, vou dormir no carro — disse imperturbavelmente. Estava falando sério?
Dormir no carro embaixo da neve que caía?
— Você pode me emprestar uma almofada?
— Ah, não seja ridículo! — exclamou com irritação. — Você não vai dormir no carro
sem nenhum conforto!
— Eu estou acostumado com essas emergências.
— Mas não com este frio! — Fechou a porta da entrada. — Eu vou apanhar o cobertor e
o travesseiro.
Ela tinha roupa de cama sobrando porque trouxera tudo o que era preciso do colégio
para as crianças. Ao voltar à sala, com cobertores e lençóis embaixo do braço,
perguntou: — Você já jantou pelo menos?
— Almocei em Londres. Não estou com fome. — Apanhou alguns objetos de uso
pessoal na maleta de mão. — Por favor, onde é o banheiro?
— No andar de cima. A primeira porta à esquerda.
— Muito obrigado... e desculpe incomodá-la.
O rosto dele estava sério, mas havia alguma coisa na voz dele que a levou a pensar que
estava rindo dela intimamente.
Depois de voltar para a cama pela segunda vez, ouviu a água correndo no banheiro. Ele
subira a escada tão silenciosamente que não escutara seus passos. Nem ouviu quando
tornou a descer.
Seu último pensamento, antes de adormecer, foi que ia telefonar de manhã cedo para a
diretora pedindo-lhe para vir imediatamente a sua casa. Ninguém intimidava Delia
Preston, nem mesmo esse tal de Thomas James Bartlett.
Quando abriu os olhos na manhã seguinte, o quarto estava claro com o brilho da neve
no quintal. Espreguiçou-se e bocejou na cama antes de ouvir uma batida leve na porta.
Imaginando ser uma das meninas, disse em voz alta:
— Pode entrar!
Ao ver Tom entrar com uma xícara na mão, quase deu um pulo na cama.
— Bom dia. Dormiu bem? — Colocou a xícara de chá na mesinha de cabeceira. — As
torradas vão estar prontas dentro de alguns minutos. O banheiro está desocupado. Eu
acordei as crianças há uma hora atrás.
Antes que se recuperasse do susto, ele tinha saído silenciosamente do quarto. Ao descer
pouco depois, de pulôver e calça comprida, notou que a lareira tinha sido limpa e que as
chamas crepitavam alegremente na sala. As almofadas do sofá estavam arrumadas e os
lençóis dobrados e empilhados num canto. Não havia nenhum objeto de uso pessoal fora
de lugar. A maleta de mão, colocada junto da porta, era o único indício da presença de
um hóspede em casa.
Na cozinha, as crianças estavam sentadas à mesa, comendo torradas e ovos mexidos.
Com uma toalha de prato passada em volta de cintura, Tom estava quebrando mais dois
ovos na frigideira.
Sanchia deu bom dia para as crianças, e Duncan levantou-se pari puxar a cadeira para
ela. Embora os três continuassem a tomar café em silêncio, ela notou que havia um
clima de alegria no ar.
Em geral Sanchia tomava apenas uma xícara de café com leite ou comia algumas frutas
de manhã. Embora não estivesse acostumada a comer muito depois de acordar, não se
fez de rogada e apreciou a refeição substancial que Tom tinha preparado.
Depois do café, as crianças costumavam brincar no jardim, enquanto ela lavava a louça.
Tom, porém mudou os planos do dia.
— Bem crianças, vamos ao trabalho. Duncan e Emma vão lava os pratos enquanto Jane
faz as camas. Eu vou limpar a entrada da casa. Onde você guarda a pá? — perguntou
para Sanchia.
— Está lá fora, num armário. E eu vou fazer o quê?
— Eu sugiro que você tome outra xícara de chá e leia os jornais Eles estão na cadeira de
vime da sala.
Sanchia teve vontade de dizer ao homem antipático e mandão que a casa era dela e que
não estava disposta a obedecer as ordens de ninguém. Controlou-se a tempo, porém, e
limitou-se a observá-lo com a fisionomia impassível.
Ele seguiu-a até a sala de visita.
— Não sei qual é sua opinião a respeito... mas eu acho que ai crianças devem ajudar nos
trabalhos da casa. E quanto mais cedo elas se acostumarem, tanto melhor.
— Elas ajudam — disse Sanchia com a voz fria. — Por sinal, são muito bem-educadas
para crianças dessa idade.
— Ainda bem — disse Tom, apanhando um pulôver grosso na maleta.
Na noite anterior, ele aparecera de terno e gravata. Agora estava de calça jeans e uma
camisa azul-marinho, com as mangas enrola das.
— Faz quanto tempo que seu marido morreu, Sanchia? A pergunta crua surpreendeu-a e
aborreceu-a.
— Quatro anos — respondeu evasivamente.
— Você ficou casada pouco tempo?
Fora isso exatamente que Delia lhe dissera, só que de uma maneira educada e discreta.
Mas ela sentira-se ferida mesmo assim. Qualquer referência ao marido lhe magoava. Ela
o amara muito. Sem ele, o mundo lhe parecia deserto.
Agora, no entanto, não lhe doeu pensar nele. Nenhuma dor durava para sempre. O
tempo curava o sofrimento, como tudo o mais. Restava apenas a tristeza... uma tristeza
inútil e obstinada.
— É, pouco tempo — respondeu por fim. — Eu vou à cidade, mas devo estar de volta
dentro de uns vinte minutos. Até logo.
Foi a irmã de Delia que atendeu o telefone.
— Delia está no banho. Você quer deixar o recado?
— Seria um favor. Diga a ela que Tom Bartlett chegou ontem à noite... Se for possível,
eu gostaria que ela passasse ainda hoje para conversar com ele.
— Um minuto. Vou falar com ela.
Sanchia aguardou com nervosismo, batendo com as unhas na caixa do telefone. Ao
avistar seu reflexo no vidro na cabina telefônica, ajeitou um cacho de cabelo que caía
em cima da testa. Estava muito pálida e desbotada comparada com Tom, pensou. Mas
talvez fosse apenas a pele bronzeada que lhe dava aquela aparência de vitalidade.
Ouviu uma voz no telefone.
— Delia mandou dizer que passará na sua casa na parte da manhã. Você pode esperá-la
para o almoço.
— Ah, muito obrigada. Desculpe o incômodo. Adeus. Colocou o fone no gancho com
um suspiro de alívio.
Na calçada da frente de casa, Emma estava brincando com bolas de neve. Normalmente
havia pouco movimento na rua, e, naquele dia, somente o caminhão que entregava o
leite e algumas pegadas de botas tinham marcado a neve espessa que caíra durante a
noite.
Emma correu ao seu encontro com o rosto animado.
— Sanchia, nós não vamos voltar para a escola! O tio vai nos levar para casa dele. Disse
também que mora num lugar muito bonito, onde a gente pode nadar o ano inteiro. Ele
disse que vai ensinar a gente a pescar e a andar de barco. Nós vamos para lá de avião.
Você já andou de avião, Sanchia?
— Não, Emma, eu nunca viajei de avião. Quando foi que seu tio disse isto?
— Agorinha mesmo, enquanto você estava na cidade. — Ela deu um pontapé no monte
de neve que estava amontoado na calçada.
— Esta é a última vez que vamos ver a neve. O tio disse que lá onde ele mora não neva
nunca. Às vezes, tem furacões, mas nunca faz frio como aqui.
Sanchia apertou os lábios. Ele não tinha o direito de encher a cabeça das crianças com
essas histórias, pensou furiosa.
— Olha, Emma, não faça muitos planos por enquanto. Nada ficou resolvido ainda.
— Por que não? Nós queremos ir com ele. Nós gostamos dele. Ele não é como o tio
Edward, a tia Beatrice e a tia Rhoda. Eles não gostam da gente. Tom gosta.
Gosta mesmo? - pensou Sanchia. Não foi essa a impressão que tivera na noite anterior.
Ocorreu-lhe que as crianças deviam ter uma herança para receber e que Eric Rowland
era um homem muito rico para matricular as filhas numa escola tão cara como o colégio
de Lingard. Talvez fosse por essa razão que Tom se oferecera para tomar conta dos
sobrinhos.
Ao entrar em casa, encontrou Jane passando uma vassoura na sala. Duncan estava na
cozinha engraxando os sapatos. Tom consertava alguma coisa em cima da mesa.
Ele levantou a cabeça quando ela entrou.
— Esse fio do ferro de passar está estragado. Vou encurtá-lo alguns centímetros.
— Hum — comentou Sanchia com o rosto impassível. — Eu queria conversar um
minuto com você.
Duncan deve ter percebido a entonação fria da voz. Levantou-se da cadeira e saiu em
silêncio da cozinha.
— Eu telefonei para a diretora do colégio das meninas e ela vai passar aqui na hora do
almoço. Nesse meio tempo, acho que você não devia dizer às crianças seus planos para
o futuro. Nada está decidido ainda.
— Como não? — perguntou Tom calmamente.
— Eu não conheço as condições legais do caso — disse Sanchia segurando com força
as costas da cadeira. — Mas creio que você não pode levar simplesmente as crianças
para o fim do mundo... Nem tem o direito de encher a cabeça delas com histórias de
uma vida maravilhosa à beira-mar...
Tom apanhou o maço de cigarros que estava em cima da mesa. No momento em que
pôs o cigarro na boca e riscou o fósforo, voltou-se para ela com o olhar atento.
— Ah, não? Pois olha, eu acho que lhe faria muito bem tomar um pouco de sol. —
Sacudiu o fósforo na mão e jogou-o no cinzeiro. — Você antipatiza comigo, não é
mesmo? Posso saber por quê?
— Eu não o conheço o suficiente para antipatizar ou não, mas o que ouvi contar a seu
respeito não é muito tranqüilizador.
— Ah, não? O que, por exemplo?
— Duncan me contou que você brigou com o pai dele e foi convidado a sair da casa.
— Sim, foi verdade. Mas eu saí da casa para não bater nele. Eric era um homem
insuportável. Minha irmã não devia nunca ter se casado com ele.
— Por que eu haveria de acreditar nesta versão?
— Bem, não faz muita diferença que você acredite ou não. Felizmente, sua opinião não
conta neste caso.
— Mas a opinião de Delia Preston certamente vai contar — retrucou Sanchia com raiva.
— Neste caso, vou fazer o possível para causar uma boa impressão nela. Ela está vindo
de trem? Você acha que deveria esperá-la na estação?
— Ela está vindo de carro.
— Que pena! Você vai adverti-la que sou um aventureiro perigoso?
— Eu não disse isso.
— Mas é isso que está pensando, não? Não é difícil ler seu pensamento, Sanchia. Você
suspeita de que eu seja um oportunista que está de olho na herança das crianças. Fala a
verdade
Ela corou repentinamente diante da crueza das palavras.
— O que você disse ontem à noite me levou a pensar que você não sente nenhuma
afeição especial pelos sobrinhos.
— E não sinto realmente. Tenho apenas uma obrigação para com eles.
— E você acha que isso é bastante? Você acha que as crianças necessitam apenas de
alguém que lhes dê alimentos e roupas e uma casa para morarem? Eles não são animais.
São crianças pequenas. O que necessitam é de amor e calor humano.
— Provavelmente, vou me apegar muito a elas com o tempo contanto que não saiam ao
pai, naturalmente!
— Ah, como você pode ser tão frio! — exclamou Sanchia sem se conter.
— Você está enganada, mocinha. Eu não sou frio. Eu sou simplesmente um realista.
Enquanto você é mais sentimental, pelo visto.
— O que você despreza, bem entendido. Olha, se preocupar-se com o futuro das
crianças é ser sentimental. . . então, e sou. Em minha experiência, as pessoas que se
dizem realistas dão essa desculpa para esconderem o egoísmo.
Nesse momento. Tom terminou o conserto que estava fazendo. Enrolou o fio em volta
do ferro e jogou o pedaço estragado no lixo.
— Pelo visto, nós divergimos nesse ponto — disse em voz baixa, encarando-a com
atenção. — O que vamos fazer para o almoço? Peru de novo? Talvez não seja um prato
muito apetitoso para oferecer à sua diretora... Se você não fizer objeção, vou
providenciar o almoço.
Essa foi a gota d'água.
— De jeito nenhum! Você não está na sua casa! Ou você prefere que eu me mude e vá
morar no hotel?
Ao dizer isso, saiu furiosa pela porta da cozinha e caminhou alguns minutos no quintal
para acalmar os nervos.
No momento em que entrou em casa, pela porta da frente, estava exteriormente calma.
Jane tinha terminado de varrer a sala e colocara o cavalete perto da janela para pintar a
paisagem coberta de neve.
— Sanchia, meu tio disse que as paisagens nas Antilhas são divinas para se pintar! —
exclamou Jane enquanto fazia a marcação na tela com carvão. — Os poentes no mar são
lindos. As cores são fabulosas...
— Imagino que sejam — disse Sanchia. — Depois a gente conversa com mais calma.
Agora eu vou tomar um banho, Jane.
O banho de imersão relaxou-lhe a tensão. Sentiu-se envergonhada ao lembrar a maneira
infantil como saíra da cozinha. Enquanto enxugava os cabelos, ouviu uma gargalhada
no andar de baixo e ficou curiosa por saber o que podia ser. As risadas das crianças lhe
davam alegria, mas não queria pensar que podiam se decepcionar com a confiança que
depositavam no tio. Pelo visto, ele dera a entender que tudo ia correr às mil maravilhas
no futuro. Seria terrível se isso fosse uma ilusão.
Delia chegou pouco depois da uma. As crianças estavam na cozinha com o tio, e
somente Sanchia ouviu o carro parar defronte do portão. Vestiu rapidamente o casaco e
foi lá fora encontrar-se com a diretora, antes que ela saísse do carro.
— Como vai, minha querida? — perguntou Delia abrindo a porta do carro.
Sanchia sentou-se ao seu lado e contou rapidamente os acontecimentos das últimas
catorze horas.
— Na opinião dele, está tudo decidido — terminou. — Vai levar as crianças consigo
para as Antilhas.
— Ah, sim? — perguntou Delia pensativamente. — Vamos examinar com atenção o
caso. Você me deixou curiosa para conhecer esse homem autoritário.. . Vamos entrar?
Não havia, porém o menor sinal de antagonismo no olhar que ela dirigiu a Tom quando
lhe foi apresentada.
— Como está passando? — perguntou com um sorriso encantador. — Essa foi uma
surpresa realmente agradável. Nunca pensei que fossem encontrá-lo tão cedo, nem
muito menos que teria o prazer de conhecê-lo. Você veio numa velocidade incrível...
— O mundo agora é muito pequeno — disse Tom, devolvendo o sorriso. — É mais fácil
atravessar o oceano que um pequeno Estado...
— Você tem toda razão. Eu levei mais tempo para vir de Londres aqui do que levaria
para atravessar o Atlântico! — Voltou-se para Sanchia. — Onde você está hospedado,
Tom? No hotel aqui perto?
— Não, infelizmente não tinha quartos livres. Eu passei a noite no sofá da sala. E não
posso me queixar — acrescentou, com um olhar irônico dirigido a Sanchia. — Dormi
como uma pedra.
Quando se sentaram à mesa, Delia comentou:
— Que boa idéia para aproveitar o peru do Natal, Sanchia. Você precisa me dar essa
receita. Minha irmã não tem muita imaginação culinária. Nós comemos peru frio todos
esses dias, a menos que eu me decida ir à cozinha.
— Foi Tom que teve essa idéia — disse Sanchia sem jeito.
— Ah, sim? — exclamou Delia. — Você está de parabéns. Tom. O prato está delicioso.
Você é um excelente cozinheiro. Onde aprendeu essa receita?
Tom sorriu com os dentes muito brancos. — Os homens que vivem no mar sabem
preparar alguns pratos gostosos. Eu sei também lavar e passar camisas, bem como cerzir
meias. Tenho algumas habilidades, como está vendo...
— É uma pena que todos os homens não tenham esses talentos. Por falar nisso, é uma
das críticas que faço aos homens em geral. Acho que os meninos deviam aprender essas
atividades na escola, em vez de dependerem das mulheres.
Depois do almoço, a diretora disse: — Vou fazer uma visita ao colégio para ver se está
tudo bem. Você não gostaria de vir comigo, Tom? É uma casa muito antiga e bonita.
— Com muito prazer.
Estava escurecendo quando os dois voltaram ao chalé.
— Posso conversar com você no seu quarto antes do chá? — perguntou Delia a Sanchia.
— Sim, vamos... Vou levar o aquecedor para lá — disse Sanchia, curiosa por saber a
opinião da diretora sobre Tom Bartlett.
Apanhou o aquecedor elétrico no quarto das meninas e levou-o para o seu. Após fechar
a porta com cuidado, perguntou ansiosa: — Então, qual é sua opinião?
— Eu simpatizei muito com ele. Muito mesmo.
Sanchia observou-a perplexa. — Concorda então que ele leve as crianças consigo?
— Bem, ele tem todo o direito. Quando os advogados encontraram a correspondência
de Lucy, encontraram também um envelope contendo seu testamento. O desejo da mãe
era que, num caso de acidente com ela e o marido, o irmão devia tomar conta das
crianças.
— O testamento do pai dizia a mesma coisa?
— Não havia nenhuma recomendação específica nesse sentido. Eu presumo que, na
opinião de Eric, o irmão e as irmãs deveriam cuidar das crianças. Uma vez que Tom tem
condições para assumir a paternidade, creio que os parentes não vão discutir o assunto...
ainda mesmo que desejassem.
— E a questão do dinheiro? Ele vai receber a herança?
— Na opinião de Edward Rowland, Eric deixou pouca coisa. Somente o menino vai
receber uma quantia importante quando completar dezoito anos. As meninas não vão
receber quase nada. Como muitos homens de hoje, Eric levava uma vida confortável,
mas não fazia economia.
— Tom está sabendo que as crianças não possuem nada?
— Provavelmente... Ele conversou com Edward Rowland. — O quarto estava quente
agora. Delia despiu o casaco grosso e começou a passar pó-de-arroz no rosto. — Ele me
disse que você o acusou de ser um homem oportunista. Acho que foi um pouco
precipitado de sua parte, querida. O que a levou a duvidar de suas intenções?
— Eu não o acusei — disse Sanchia. — Foi ele mesmo que sugeriu isso. Mas, de fato, a
idéia tinha me ocorrido.
— Bem, de qualquer modo, isso não tem importância... Ele ficou mais divertido do que
magoado com seu comentário. Disse que as crianças estavam em boas mãos.
— Ah, é? Pois eu acho que ele não liga a mínima para os sobrinhos.
— Não seria pior se fingisse afeição por eles? Tom mal os conhece. Só esteve algumas
vezes com eles na casa dos pais. Você não acha que está antipatizando gratuitamene
com ele, querida?
Sanchia lembrou-se do primeiro movimento de recuo quando o avistou na noite anterior.
Sim, era verdade, sua antipatia surgira antes que tivesse algum motivo justo para não
gostar dele.
— Pode ser — admitiu. — Mas ele me pareceu tão arrogante! Eu não gosto de pessoas
que pisam nos outros.
— De fato, ele é muito franco — concedeu a diretora. — Não hesitou em me dizer que
desaprova as escolas particulares.
— Provavelmente porque nunca freqüentou nenhuma.— comentou Sanchia com
agressividade.
Delia ficou surpresa com o comentário de sua secretária. Normalmente, ela jamais se
permitia uma palavra maldosa desse tipo. Provavelmente os acontecimentos da última
semana tinham-na deixado com os nervos tensos.
— Não, creio que não é isso — comentou com calma. — Embora reconheça que Tom
não foi criado com colher de prata. — Deu um sorriso. — Eu já notei que as pessoas
favoráveis a distribuição das riquezas são aquelas que ocupam posições privilegiadas na
sociedade.
— Em que sentido?
— Alguns homens e mulheres nasceram com certas qualidades que dispensam as
vantagens materiais. Neste mundo atual, a força de caráter é a única vantagem
indestrutível que temos. Tudo o mais pode vir a faltar. E Tom Bartlett tem caráter de
sobra. — Passou as mãos nos cabelos grisalhos. — Vamos descer e tomar nosso chá?
Depois do lanche, as crianças queriam jogar monopólio. Tom recomendou que
brincassem na cozinha, porque tinha um assunto muito importante a tratar com Delia
Preston.
— Posso jogar com vocês? — perguntou Sanchia da porta, julgando que Tom desejava
conversar a sós com a diretora.
— Eu preferia que você tomasse parte na conversa — disse Tom.
— O que vamos discutir também lhe diz respeito.
Ao ficarem a sós na sala, Tom acendeu um cigarro e permaneceu algum tempo junto da
lareira, com o braço apoiado na estante de mármore, enquanto as duas mulheres
estavam sentadas no sofá.
— Vou ter que viajar para Londres dentro de urna hora — disse Tom, após um
momento. — E amanhã, a essa hora, vou voltar para o Caribe.
— Tão cedo? — exclamou Delia surpresa. — Não vai aguardar a solução do
requerimento?
— As formalidades legais vão levar algum tempo. Vou encontrar-me com os advogados
amanhã para adiantar uma boa parte das papeladas. Mas não posso demorar-me mais
tempo na Inglaterra. De onde eu venho é plena temporada de férias. Não posso me
afastar dos meus negócios mais do que alguns dias.
— Quais são seus negócios lá?
— Eu trabalho com turismo — respondeu Tom evasivamente. — Ganho minha vida
como posso e onde estou. E, nesse momento, tenho algo urgente para resolver* —
Voltou-se para Sanchia. — Ê aí que você entra.
— Eu tenho certeza que Sanchia gostaria muito de cuidar das crianças no resto das
férias — disse Delia.
— Com muito prazer — concordou Sanchia.
— Não era isso exatamente que estava pensando — disse Tom.
— Eu ia pedir um outro favor seu.
— Se estiver dentro do meu alcance
— Quando as crianças viajarem de avião para o Caribe, gostaria que você fosse com
elas.

CAPITULO II

— Ir com elas? — repetiu Sanchia perplexa.


— É uma viagem muito longa para as crianças fazerem desacompanhadas — explicou
Delia. — Você não poderia voltar outra vez, Tom?
— Seria uma despesa desnecessária — disse Tom. — As crianças já estão bastante
crescidas para viajarem sozinhas. A aeromoça poderá tomar conta delas.
— Então por que você sugeriu que eu fosse junto? — perguntou Sanchia.
— Por duas razões. Primeiro porque posso estar viajando no dia da chegada ou muito
ocupado nos dias seguintes. Posso estar em alto mar, por exemplo.
— Elas não podem ir numa data em que você esteja livre?
— Infelizmente isso é impossível — disse Tom, com uma certa impaciência. — Eu não
trabalho das nove às cinco, nem de segunda a sexta. Eu chego e parto a qualquer hora
do dia ou da noite. Não posso planejar com antecedência nem reservar um dia que me
for mais conveniente.
— Nesse caso, como você vai poder cuidar das crianças? O que acontecerá se uma delas
cair doente ou tiver um acidente? Vão esperar você estar livre?
O rosto de Tom assumiu uma expressão mais dura. Talvez, se a diretora não estivesse
ali, teria respondido um desaforo.
— Nesse caso, colocaria as crianças em primeiro lugar. Eu agi assim agora, como você
deve ter percebido. Não foi por meu desejo que passei os feriados do Natal viajando.
— Foi muita atenção sua ter vindo imediatamente — interveio a diretora, tentando
apaziguar os ânimos. — Mas creio que você não entendeu a dúvida de Sanchia. Ela não
disse que você iria descuidar das crianças, mas simplesmente que tomar conta delas é
mais trabalhoso do que se pode imaginar a princípio. — Fez uma pausa. — A solução
ideal, naturalmente, seria as crianças continuarem aqui no colégio e passarem as férias
com você. Mas eu suponho que isso não seja possível...
— Não, seria dispendioso demais para mim. Além do mais, há colégios em Barbados
onde receberão uma educação tão completa quanto aqui. Eu não estou subestimando as
dificuldades, nem assumindo compromissos que não posso cumprir. Agora, se me
permitem terminar minha explicação... — disse, levantando as sobrancelhas, olhando
para Sanchia, que corou e não respondeu nada. — ... a segunda razão para você ir é que
sua presença facilitaria o período de adaptação das crianças ao novo ambiente. No
começo tudo parecerá estranho: o clima, a comida, as pessoas, os insetos. Você seria um
vínculo com o passado, alguém a quem procurariam quando sentissem saudade de casa.
Entendeu?
— Sinto muito, mas não posso ir. Eu tenho meu trabalho aqui.
— Isso não seria um obstáculo — interveio Delia. — Eu posso contratar uma secretária
provisória. Penso que Tom tem razão. Seria muito bom se você fosse com as crianças e
permanecesse lá durante uma semana ou duas. Quanto tempo você está pensando. Tom?
— Um mês... ou talvez um pouco menos — disse Tom. — Pessoalmente, acredito que
as crianças se adaptarão rapidamente à vida lá. Vou deixar que aproveitem a liberdade
nos primeiros dias, antes de providenciar um colégio para elas. Não fará muita diferença
se perderem um ano. .. — Atirou o cigarro na lareira e endireitou-se. — Sanchia, pelo
visto, ainda tem dúvidas. Muitas pessoas adorariam a oportunidade de passar um mês
tomando sol nesta época do ano.
— Eu entendo a hesitação de Sanchia — observou a diretora. — Tudo aconteceu muito
de repente. Mas confesso que não levaria muito tempo a me decidir. Nunca desejei
morar no exterior, mas teria muito prazer em dar uma fugidinha na estação das gripes e
das tosses.
— Bem, eu vou deixar vocês duas discutirem o assunto enquanto vou conversar um
pouco com ás crianças. Gostaria de ter uma resposta sua antes de embarcar.
Depois que Tom entrou na cozinha e fechou a porta atrás de si, Sanchia voltou-se para
Delia com fisionomia ansiosa.
— Como posso tomar uma decisão nessa correria? Nada está certo ainda. Os advogados
podem se opor à saída das crianças do país. Nós não sabemos ainda em que condições
ele vive lá. Por que ele faz tanto segredo em torno disso? Essas viagens em alto-mar me
parecem muito estranhas. Onde as crianças vão morar? Ele tem casa? Onde?
— De fato, concordo que ele é um pouco vago — disse Delia. — Mas essas
circunstâncias serão examinadas antes que ele receba oficialmente a custódia das
crianças.
— Eu deveria ir, na sua opinião?
— Bem, não posso dizer nada. Cabe a você decidir, querida. Você já fez mais que todos
os parentes para ajudar as crianças. Não há razão para se sentir obrigada a ir se você não
está convencida. Por outro lado, não vejo nenhum inconveniente em aceitar a sugestão
dele.
Sanchia levantou-se do sofá.
— Não sei realmente o que decidir — exclamou, andando com nervosismo de um lado
para o outro da sala.
A diretora compreendeu perfeitamente o dilema de sua secretária. Ela tem medo de ser
arrancada à força do seu refúgio. Ela se sente segura aqui. Como disse Tom, muitas
moças na sua idade aceitariam a sugestão na hora e não perderiam essa oportunidade de
viajar. Mas Sanchia estava hesitante. Ah, se ela tivesse a coragem de dar o primeiro
passo. . .
As crianças saíram da cozinha na companhia do tio.
— Eu expliquei a situação para os três. Bem como o motivo de minha partida hoje à
noite. — Voltou-se para Sanchia. — Você decidiu alguma coisa?
Ela respirou fundo e levantou a cabeça.
— Já — disse com voz firme. — Eu vou com as crianças.
A diretora aprovou no íntimo a decisão. Embora a ausência de sua secretária fosse
causar pequenos inconvenientes, as vantagens da viagem compensavam amplamente
isso, Sanchia provavelmente voltaria da viagem com mais disposição para viver.
— Ótimo — disse Tom. — Agora vou tratar de outras coisas. Vou entrar em contato
com os advogados e. no momento oportuno, eles providenciarão as passagens de avião
para você e as crianças. Basta apenas você pôr seu passaporte em dia....
— Que roupas as crianças devem levar? — indagou Delia.
— Somente roupas de verão, bem como as capas de chuva. . Não precisam levar roupas
de inverno nem os apetrechos escolares. É preferível levarem brinquedos e os livros
prediletos. Os objetos pesados terão que ser despachados de navio.
— Despachados para que endereço? — perguntou Sanchia.
— Isso eu não posso adiantar agora. Tudo depende de onde estiver no momento.
— Mas onde você mora? — insistiu ela.
Talvez ela estivesse enganada, mas julgou avistar uma expressão maliciosa nos olhos
cinzentos.
— Não se preocupe com isso. . . você não vai morar embaixo de uma palmeira. —
Antes que Sanchia pudesse fazer mais perguntas, voltou-se e despediu-se de Delia
Preston.
A despedida das crianças foi rápida e sem nenhuma emoção visível.
— Adeus, Sanchia. — Era a primeira vez que lhe dava a mão e, quando sentiu os dedos
morenos num gesto firme e decidido, Sanchia sentiu novamente a sensação indefinível
de ansiedade que lhe ocorreu na noite anterior.
— Boa viagem — disse com frieza. Antes mesmo que o ronco do motor desaparecesse
na distância, ela começou a se arrepender da decisão precipitada que tomara.
Por estranho que pareça, as crianças não ficaram tristes com a partida do tio. Naquele
momento, estava muito preocupada para notar algo estranho nos olhares que as três
crianças trocaram quando voltaram alegremente à cozinha para continuar o jogo.
Os três permaneceram no chalé durante o resto dos feriados e depois voltaram para a
escola. Sanchia sentiu muita saudade deles. Entretanto, antes do fim de janeiro, Delia
foi informada pelos advogados que as formalidades legais terminariam em breve. Uma
semana depois recebeu outra carta. Estava tudo em ordem agora, inclusive as
providências relativas à viagem. As três crianças e Sanchia deveriam embarcar para
Trinidad e permanecer num hotel, onde aguardariam a chegada do tio.
— Trinidad fica apenas a alguns quilômetros da Venezuela — disse Duncan ao voltar
aquela noite para o chalé. — Eu li algumas informações sobre a ilha no colégio. Port of
Spain, a capital, é a cidade mais cosmopolita do mundo, Você acha que vamos visitar o
lago famoso onde estão as jazidas de asfalto? Ouvi dizer que o carnaval é fantástico.
Acho que vamos estar lá para a festa.
Sanchia procurou compartilhar a alegria das crianças, mas para ela, o nome Trinidad
não evocava visões de aventuras nem de festas populares. Era apenas uma ilha distante,
onde ficaria sozinha na companhia de três crianças aguardando a chegada de Tom. Port
of Spain... a palavra tinha associação sinistra, como Macao, Hong Kong e Panamá, e
todos os outros célebres portos do mundo, onde a opulência andava de mãos dadas com
a miséria. Ela imaginou o porto à noite — a hora em que desembarcariam do avião —
repleto de ruas barulhentas e de ruelas sinistras, de cabarés e bares mal freqüentados, de
salões clandestinos, onde as pessoas fumavam ópio.
Fazia um frio terrível no dia em que Delia e Edward acompanharam os viajantes ao
aeroporto de Londres. Para não decepcionar as crianças, Sanchia ocultou sua apreensão
com um sorriso de alegria. Delia, no entanto, percebeu seu nervosismo.
— Animo querida. Você vai gostar da viagem quando chegar lá.
— Espero que sim — disse Sanchia com um sorriso sem graça.
— Eu tenho o pressentimento de que vou perder minha secretária — comentou Delia
com uma expressão misteriosa. — Quando você se habituar ao sol quente e ao mar das
Antilhas, você não vai querer mais voltar para cá... — acrescentou, apontando para as
vidraças embaçadas do aeroporto.
— Duvido muito... Espero estar de volta o mais cedo possível.
— Bem, tudo depende de como as crianças vão se adaptar. Felizmente elas não estão
assustadas com a viagem de avião.
No dia anterior, Sanchia tinha ouvido sem querer uma das conferências das crianças.
Subira ao quarto para apanhar alguma coisa e encontrou os três deitados na cama de
Jane, conversando em voz baixa. Ao perceberem sua presença, calaram a boca e
pareciam tão culpados como se estivessem aprontando alguma travessura.
— O que foi? — perguntou Sanchia com um sorriso.
— Não foi nada — disse Duncan com o rosto repentinamente vermelho. — Estávamos
conversando sobre Trinidad...
Talvez não fosse mentira, mas não era certamente a verdade inteira. Ao pensar nesse
episódio, ocorreu-lhe que as crianças sabiam alguma coisa sobre o tio que não queriam
contar a ela.
No avião, Duncan e Jane sentaram-se juntos, enquanto Sanchia e Emma ficaram atrás.
Quando o aparelho correu até a cabeceira da pista e preparou-se para decolar, Emma
apertou com força a mão de Sanchia. Entretanto, logo depois que levantou vôo, o
nervosismo da menina passou por completo e ela grudou o narizinho arrebitado na
janela para espiar a paisagem que desfilava diante de seus olhos.
Finalmente, nas últimas horas de viagem, os três adormeceram. Sanchia, porém, não
conseguiu pegar no sono. Seu corpo estava cansado e dolorido, mas a mente continuava
agitada por pensamentos e emoções confusas. Não podia acreditar que estava viajando
para Trinidad. Para onde iriam depois? As crianças se adaptariam ao novo ambiente? A
dúvida maior, contudo, dizia respeito a Tom Bartlett... O que Tom dissera às crianças
antes de embarcar? Elas tinham realmente um segredo ou era apenas imaginação sua?
Como havia diferença de horário entre Londres e Trinidad, foi somente por volta da
meia-noite que aterrissaram no aeroporto de Piarco. Verificaram, em seguida, que o
aeroporto era bem distante da cidade. Um ônibus especial transportou os passageiros até
o centro onde foram deixados em seus respectivos hotéis. Nessa altura, Emma estava
com os lábios trêmulos, como se fosse explodir no choro de um momento para outro.
Após descerem do ônibus, tiveram que aguardar alguns minutos enquanto preenchiam
os formulários na portaria do hotel. Durante a pequena espera, Sanchia estava muito
apreensiva com Emma para prestar atenção às coisas em volta. Finalmente, foram
encaminhados aos quartos no segundo andar, com portas que se comunicavam entre si.
— Agora crianças vamos trocar de roupa e ir direto para a cama — disse Sanchia.
Retirou rapidamente o casaco, pediu a Jane para abrir a mala onde estavam as roupas de
dormir e começou a ajudar Emma a despir-se. Foi então que a menininha passou os
braços em volta do seu pescoço e desatou no choro.
Ela está com saudade da mãe, a pobrezinha, pensou Sanchia, enquanto procurava
confortá-la e tranqüilizá-la.
Finalmente, quando os soluços da menina se acalmaram um pouco, estava tão exausta
que Sanchia se limitou a conduzi-la à cama.
Os outros dois observavam a cena em silêncio. Jane também estava prestes a chorar.
Mesmo Duncan estava visivelmente emocionado.
Depois de acompanhar cada um até sua cama, Sanchia pensou que os próximos dias
seriam muito difíceis para todos. Até o momento, a viagem para a América fora uma
aventura excitante. No dia seguinte, porém, quando acordassem num país estranho,
onde não conheciam ninguém, as crianças iam sentir-se inseguras e aflitas.
Pela uma da manhã, cansada demais para desarrumar as malas. Sanchia contentou-se em
apanhar um pijama e alguns objetos de uso pessoal. Após escovar os dentes e deitar-se
na cama, ouviu música que vinha do salão embaixo. Parecia apenas um sussurro
daquela distância. Fechou os olhos, puxou a coberta e dormiu instantaneamente.
— Sanchia.. . Sanchia. . . acorde!
— Humm. O que foi? — Abriu os olhos sonolentos e piscou diante do rosto animado de
Jane.
— Tem uma piscina no jardim do hotel e o dia está lindo lá fora. Podemos nadar depois
do café?
— Que horas são? — perguntou com um bocejo.
— Oito horas. Faz um tempão que estamos acordados. . . desde às sete. Posso abrir as
cortinas da janela? — Sem esperar pela resposta, Jane puxou o cordão e o sol
maravilhoso da manhã inundou o quarto. — Olhe, seu quarto tem uma varandinha
também — disse Jane abrindo a porta alta de vidro.
Sanchia afastou a colcha e pulou da cama, enfiando os pés nas sandálias. Sanchia
debruçou-se no balcão e o calor da manhã envolveu-a como uma onda inesperada de
luz. Todos os quartos do hotel tinham ar condicionado, o que mantinha a temperatura
estável, mas lá fora estava bem mais quente; tão quente quanto um dia de verão em
Londres.
— O que vamos fazer hoje? — perguntou Jane com os olhos brilhantes. — Você acha
que o tio vai passar aqui?
— Pode ser. Vamos conversar isso depois do café. Os outros já estão acordados?
— Duncan está, mas Emma continua dormindo. Você quer que eu vã acordá-la?
— Não, deixe-a dormir mais um pouco. Você e Duncan podem dar uma volta no jardim,
se quiserem. Eu vou tomar um bom banho antes de me vestir. Estou precisando me
recuperar depois da viagem de ontem.
Entretanto, só o fato de acordar num clima diferente fez com que se sentisse mais
animada e bem disposta do que habitualmente.
É o sol, pensou. Não havia um tônico melhor do que o sol. Era por isso que tantos povos
primitivos adoravam o sol. Ninguém podia sentir-se deprimido numa manhã ensolarada
daquelas.
Enquanto se vestia, depois do banho, notou que o quarto do hotel era muito mais
luxuoso que os outros onde se hospedara anteriormente. As crianças provavelmente
estavam habituadas com este padrão de conforto quando viajavam, mas ela não
imaginava que Tom fosse providenciar acomodações tão confortáveis para ela e os
sobrinhos. A menos que o hotel fosse pago com o dinheiro oriundo da herança. Nesse
caso, era uma despesa desnecessária, uma vez que a parte das crianças não era muito
grande.
Depois de vestida e penteada, foi até o quarto das meninas. Emma tinha acabado de
acordar. Esquecera completamente as lágrimas da noite anterior e estava muito animada
e bem disposta quando pulou da cama no seu pijaminha de flores. As duas desceram até
o andar térreo à procura de Jane e Duncan. Entretanto, embora examinassem em toda
parte, não viram nenhum sinal dos dois.
Sanchia perguntou na portaria se alguém tinha visto uma menina e um menino
desacompanhados. O recepcionista informou que vira os dois saírem pela porta do hotel
havia uns quinze minutos.
— Muito obrigado! — disse Sanchia com o rosto inquieto. — Vamos, Emma. Eles
devem estar por perto.
Não foram muito longe, porém. No momento em que saíam pela porta giratória para a
rua, Emma avistou os dois irmãos, que vinham entrando pela outra porta.
— Onde vocês estavam? — perguntou Sanchia com o rosto preocupado. — Vocês me
disseram que iam ficar no jardim...
— Nós fomos dar uma espiadinha na rua — explicou Jane sem jeito.
— Vocês não devem sumir sem me avisar antes aonde vão. Nós não estamos em casa!
Agora vamos tomar café.
Depois do café, enquanto as crianças correram ao andar de cima para trocar de roupa,
Sanchia passou um telegrama para a diretora. Aproveitou para perguntar ao
recepcionista quem tinha feito a reserva dos quartos. O homem não soube responder e
chamou o gerente.
— Os quartos não estão a seu contento? — perguntou o gerente, com a fisionomia
preocupada.
— Não, muito pelo contrário. São muito confortáveis. Gostaria apenas de saber se
foram reservados pelo senhor Thomas Bartlett?
— Exatamente. 0 senhor Thomas fez as reservas por telefone e recomendou que lhe
prestássemos toda assistência necessária. Se a senhora tiver algum problema, teremos o
máximo prazer em atendê-la.
— Muito obrigado. Nosso único problema no momento é saber quando o senhor
Thomas vai passar por aqui. Ele disse alguma coisa? 0 senhor tem idéia de onde possa
estar no momento?
— Infelizmente, não posso lhe adiantar nada. Ele pode estar em muitas partes. Mas, se
combinou encontrar-se com a senhora aqui, tenho certeza que virá logo que puder.
Sanchia sentiu-se tentada a fazer mais perguntas a respeito de Tom Bartlett, mas, após
uma pequena hesitação, controlou sua curiosidade. Tom podia ficar sentido se soubesse
que tomara informações a seu respeito na portaria do hotel, e não era aconselhável
irritá-lo logo nos primeiros dias da chegada. Havia outros assuntos mais importantes
para discutir com ele durante a estada em Trinidad.
Sanchia tomou banho de piscina com as crianças, mas não deixou que se demorassem
muito tempo na água.
Antes do almoço, aproveitaram para dar um passeio pelos arredores do hotel. Enquanto
caminhavam pelas ruas repletas de gente de diversas nacionalidades, os receios
anteriores de Sanchia logo desapareceram. Port of Spain não era a cidade sinistra que
fazia idéia. Era um porto alegre, barulhento, colorido e cheio de animação.
Em toda parte havia cores vivas nas lojas e nas casas particulares. 0 mercado da cidade
estava repleto de barracas de legumes, verduras e frutas tropicais. Havia pimentões
verdes e vermelhos em profusão, mangas rosadas e amarelas, pencas e mais pencas de
bananas, de todos os tamanhos e variedades.
No almoço, Sanchia achou preferível não pedir nenhum prato da cozinha típica antes de
estarem completamente adaptados ao novo clima. À tarde, as crianças descansaram um
pouco antes de irem conhecer o zoológico da cidade. Tomaram outro banho de piscina
antes do jantar e, pouco depois, estavam todos na cama.
Sanchia aproveitou o instante de sossego para escrever uma carta comprida para Delia
Preston. Às nove horas, foi ao quarto das crianças para ver se estava tudo bem e
encontrou os três dormindo.
Ela, porém não estava com sono e não tinha vontade de deitar cedo. A música que
ouvira na noite anterior estava tocando novamente no salão embaixo. Os hóspedes
provavelmente dançavam até de madrugada.
Saiu na sacada do quarto e avistou a piscina iluminada pelo luar, bem como as fileiras
de luminosos coloridos que se estendiam pelas ruas próximas. Gostaria de dar uma volta
a pé, mas tinha receio de sair do quarto e deixar as crianças sozinhas.
Entretanto, sentiu-se mais aliviada quando ouviu uma batida leve na porta. Pensou ser a
empregada e disse em voz alta: — Pode entrar!
Não era a criada, no entanto. Ouviu uma voz masculina chamar seu nome. Atravessou o
quarto e abriu a porta.
— Ah, é você! — exclamou surpresa. — Não esperava que fosse aparecer esta noite.
— Mas gostou que eu aparecesse? — perguntou Tom, encarando-a nos olhos.
— Claro que sim.. . Pensei que você fosse demorar alguns dias. . .
— Posso entrar?
Ela afastou-se da porta e Tom entrou no quarto.
— Como foi a viagem? Tudo bem?
— Sim, tudo bem. As crianças adoraram.
Contou o passeio de manhã e a visita à tarde ao zoológico.
— Elas foram dormir cedo. Estavam morrendo de sono.
— E você, também está com sono?
— Eu ia ler um pouco antes de dormir.
— É cedo ainda. Vamos tomar uma batida no bar?
— O que é isso?
— Uma especialidade do país. Não quer experimentar?
— Muito obrigada, mas acho preferível não deixar as crianças sozinhas.
— Elas estão dormindo e não vão acordar tão cedo. Fora isso, acho que não combina
com seu gênero se pedisse para trazerem as bebidas no quarto — comentou Tom com
ironia.
Sanchia corou ligeiramente. Era a desforra da desconfiança que manifestara antes por
ele?
— Bem, vamos então.
— Estou esperando por você no elevador — disse Tom saindo do quarto e fechando a
porta atrás de si.
Sanchia escovou os cabelos e passou batom nos lábios. Hesitou um instante se devia ou
não pôr um vestido de noite, mas resolveu sair com a roupa esporte que estava.
No fim do corredor, encontrou Tom parado diante de uma vitrine onde estavam expostos
objetos de prata do artesanato local.
Ela ficou na dúvida se Tom esperava que fosse trocar de roupa. Só por implicância,
alegrou-se de não ter feito sua vontade. Ele estava com um terno leve de verão, uma
camisa creme e gravata preta de seda.
Ao saírem do elevador, ele segurou seu braço e conduziu-a em direção ao bar. Os
banquinhos em volta do balcão estavam tomados, mas havia um lugar vazio no canto,
encostado à parede. A maior parte das mulheres estavam com vestidos longos e jóias
que cintilavam na penumbra da sala.
Tom pediu uma batida de maracujá para Sanchia e um cuba-libre para si. Acendeu o
cigarro e lançou um olhar rápido em volta do bar.
— O hotel é confortável?
— Muito. Deve ser um dos hotéis mais caros da cidade, não?
— Nem tanto. Eu pensei que você merecia algum conforto antes de enfrentar a vida
dura.
— O que você quer dizer com isso?
— Você vai ver pessoalmente. Amanhã, depois do café, eu vou passar por aqui para
pegar vocês. Arrumem as malas. Lá pelas dez horas.
Ela pensou perguntar "Para onde nós vamos?", mas sabia que Tom não ia responder. Em
vez disso, comentou com a voz serena:
— Duncan está muito curioso para conhecer o lago de asfalto. Haverá tempo para ir até
lá? Fica muito longe daqui?
— Fica... Na outra extremidade do golfo. É preciso um dia inteiro para ir e voltar.
Vamos visitar o lago uma outra vez. Podemos voltar aqui para o carnaval. — Fez uma
pequena pausa. — Você me desculpa um momento? Preciso dar um telefonema.
No momento em que Tom se afastou, Sanchia notou que as mulheres em volta olharam
para ele com interesse. Num ambiente onde a maior parte dos homens eram obesos,
calvos e passados, o corpo alto e esguio de Tom chamava a atenção.
Enquanto esperava por ele, bebendo a batida de maracujá e ouvindo alguns pedaços das
conversas em volta, Sanchia sentiu uma impressão estranha de irrealidade. Estava
realmente ali, num bar luxuoso de Trinidad, no outro lado do oceano? Ou era tudo um
sonho e acordaria na sua cama habitual?
— Quer outra batida?
— Não, muito obrigada. Acho que está na hora de subir para o quarto.
Fazia apenas vinte minutos que estavam no bar, mas Tom não insistiu. Talvez, pensou
Sanchia repentinamente, ele tenha telefonado para a namorada e tinha agora um
programa mais divertido para a noite.
— Você sabe nadar? — perguntou Tom diante da porta do quarto.
— Sei. Por que você pergunta?
Ele abriu a porta e acendeu a luz do quarto.
— Porque é algo indispensável nesta parte do mundo. Boa noite. Durma bem.
No dia seguinte, às dez horas em ponto, Tom passou pelo hotel para apanhá-los.
Estavam esperando no saguão, com as malas prontas.
Como ela não tinha idéia de para onde iam, vestiu uma roupa esporte e sapatos de salto
baixo. Mas no momento em que avistou Tom no saguão, percebeu tarde demais que
tinha cometido uma gafe. Tom estava de camisa esporte e com um short desbotado de
brim.
— Bom dia, dormiram bem? Estou com um táxi esperando na porta. É melhor você ir
na frente, Sanchia. As crianças podem ir atrás. Eu me encontro com vocês dentro de
alguns minutos.
Dirigiu-se à recepção e pagou a conta do hotel.
— Para onde nós vamos? — perguntou Jane enquanto esperavam no táxi.
Quer dizer que não é esse o segredo, pensou Sanchia. As crianças não sabiam para onde
estavam indo, nem onde iriam passar o segundo dia em Trinidad.
— Emma, você pode sentar no colo de seu irmão — disse Sanchia, quando Tom se
aproximou.
Alguns instantes depois, o táxi rumou em direção à cidade. As crianças foram as
primeiras a avistar o cais e adivinhar que a próxima etapa seria uma viagem por mar.
Tom saiu do carro e abriu a porta da frente para Sanchia. Retirou as malas que estavam
no interior enquanto o motorista apanhava as bagagens que estavam no porta-malas.
Havia um grande movimento no cais de embarque e desembarque de navios.
— Andem com cuidado — disse Tom para Sanchia e para as crianças, que iam na
frente.
Sanchia segurou a mão de Emma e os quatro passaram pelo meio de fardos de cereais e
caixotes de bacalhau empilhados ao longo dos armazéns. Os carregadores falavam em
voz alta enquanto descarregavam os carrinhos de mão, e não prestaram muita atenção
aos rostos corados e sardentos que passaram em seu meio. Num porto em que havia
pessoas de todas as cores, desde os negros aos amarelos, os rostos claros de europeus
não despertavam muita curiosidade.
Um homem troncudo, no entanto, com um pano amarrado na cabeça, cumprimentou
Tom com um aceno de mão.
— Bom dia, capitão. — O sorriso mostrava seus dentes brancos e fortes. O homem
percebeu o olhar de espanto de Emma e piscou o olho com uma careta, o que levou a
menina a dar um sorriso sem graça.
No fim do cais avistaram um veleiro com dois mastros, que Sanchia identificou
corretamente como uma escuna. O convés estava alguns palmos abaixo do nível do cais,
e uma prancha larga dava acesso ao barco.
Tom colocou as malas no convés e esperou pelo motorista de táxi, que vinha carregando
as outras bagagens. Agradeceu e pagou a corrida.
— É neste veleiro que nós vamos viajar, tio? — perguntou Duncan, examinando a
escuna com interesse.
— Eu nunca entrei num barco grande — disse Emma. — Será que eu vou enjoar?
Tom deu um sorriso. — Não nesta viagem, boneca.
— Ah, para onde nós vamos? — perguntou Jane. — É muito longe? Vamos chegar hoje
mesmo?
— Tom voltou-se para ela. — Você vai conhecer uma porção de lugares, Jane. Mas se
você quer saber onde vai morar, a resposta é... neste veleiro. Ele é sua casa a partir de
hoje. Enquanto vocês não voltarem para o colégio, vão morar a bordo do Jacarandá.
À primeira vista, a escuna parecia vazia. Entretanto, no momento cm que Tom terminou
de falar, alguém apareceu no alto da escada.
— Ei, George, dê uma mãozinha aqui para carregar estas malas!
0 rapaz caminhou lentamente em cima do convés. Parecia ter dezessete anos, estava de
short e alparcatas de lona. Quando se aproximou da prancha, Tom apresentou-o aos
outros.
— Este é o George, pessoal. Ele vem de Granada. Se vocês acham que sabem nadar,
esperem até ver o George dentro da água.
0 rapaz deu um sorriso sem jeito. Suas pernas eram magras e compridas, mas os ombros
eram largos e musculosos. Quando Tom atirou as malas na sua direção, George as
apanhou no ar como se pesassem apenas alguns poucos quilos. Em seguida, ajudadas
por George, as crianças atravessaram a prancha de madeira.
— Leve-as para baixo, George. Vou dar uma mão a esta moça aqui — disse Tom
estendendo o braço para Sanchia.
No momento em que ela estava com os dois pés em cima da prancha, uma marola fez o
barco virar lentamente e a tábua escorregou alguns dedos sobre o convés onde estava
apoiada. Antes mesmo que ela perdesse o equilíbrio. Tom passou o braço em volta de
sua cintura e levantou-a. Ela se agarrou instintivamente em sua camisa. Durante alguns
segundos. Tom continuou segurando-a contra seu corpo musculoso, enquanto ria de sua
confusão. Sanchia soltou-se por fim e endireitou seu casaquinho de linho.
— Muito obrigada.
— Não tem de quê. Logo você vai se acostumar ao balanço do barco... Mas não com
estes sapatos.
— Se eu soubesse para onde íamos, teria posto uma sandália — disse Sanchia sem jeito.
— Mas você estava brincando, não é verdade? Você não pretende que as crianças
morem neste.. . neste...
— Bote?
Bote fora realmente a palavra que lhe ocorrera na hora, mas não tivera coragem de dizê-
la. Por mais apertado que fosse o veleiro de dois mastros para crianças daquela idade,
não podia chamá-lo de forma alguma de bote.
— Eu não vou obrigá-los a morar aqui. Mas tenho certeza de que vão adorar a novidade.
— Pode ser... durante uma semana ou duas. Mas não permanentemente... depois que se
acostumarem à novidade.
— Bem, podemos discutir este assunto mais tarde. No momento, temos coisas mais
urgentes para resolver. Vou levá-la até seu beliche. Por aqui...
A experiência de Sanchia com veleiros limitava-se a um passeio de barco que fizera na
adolescência. Ao seguir Tom em direção à proa, notou que as cabines embaixo do
convés eram pequenas, mas funcionais e bem equipadas, se bem que fossem
inteiramente devassadas.
Sua primeira surpresa foi a escada. Em vez de ser quase vertical, de tábuas estreitas,
como fazia idéia, tinha um lance de degraus que levava a um pequeno corredor que se
estendia por todo o comprimento do veleiro.
— Esta é sua cabine — disse Tom. — Escolhi a do meio para você não sofrer muito
com as marolas. Se bem que o veleiro não joga muito, normalmente, a não ser em alto-
mar.
Ao caminhar pela passagem estreita, Sanchia teve sua segunda surpresa. As linhas
graciosas da escuna eram enganadoras. 0 casco era muito mais espaçoso do que podia
imaginar visto do cais e a cabine, em vez de ser acanhada e sem ar, era mais ampla e
ventilada que seu quarto no chalé. A luz entrava por duas vigias e, em lugar de beliche
estreito, habitual nos barcos a vela, havia um sofá-cama que era aberto à noite.
— Aqui há uma pequena pia — disse Tom abrindo a porta do armário. — Naturalmente
tem um banheiro completo na passagem. Você e as meninas podem usar o que fica perto
dos beliches, enquanto os homens vão usar o outro, no fundo do corredor.
Tom apanhou um banco de armar e colocou a mala em cima.
— Vou deixá-la arrumar suas coisas. Vamos almoçar ao meio-dia e depois partiremos
em direção ao norte.
Sanchia sentou-se no sofá e desabotoou lentamente o casaquinho de linho. Se sua cabine
era semelhante às outras, o Jacarandá tinha todo o conforto de um veleiro de grã-
turismo. Isso não mudava sua opinião de antes, naturalmente. Não era absolutamente
uma casa ideal para as crianças, mas tinha que encontrar argumentos mais convincentes
antes de discutir de novo o assunto com Tom.
Enquanto isso, pendurou o vestido no armário e vestiu uma calça azul-marinho e uma
blusa branca e azul. Depois guardou o restante das roupas no armário.
Tinha quase terminado a arrumação quando ouviu as vozes das meninas no corredor.
— Então, gostaram da minha cabine?
— Ah, coitadinha de você, ganhou sofá-cama! — exclamou Jane. — Nós dormimos em
beliches.
— E Duncan? Onde está?
— Ele saiu com o George.
— Estou sentindo cheiro de comida — disse Emma. — Vamos ver o que eles estão
fazendo na cozinha?
O aroma apetitoso que vinha do corredor levou-as até uma pequena cozinha, prática e
bem equipada. Mas não era Tom que estava provando a sopa com uma colher de pau.
Era alguém que nunca tinham visto antes. Um homem de cabelos crespos e de braços
tatuados que devia ser uns vinte anos mais velho que o tio.
Ele surpreendeu o olhar curioso das três e colocou a colher em cima da pia. Aproximou-
se em seguida da porta aberta, enxugando as mãos no avental.
— Eu me chamo Jock. Muito prazer em conhecê-las e bem-vindas a bordo do
Jacarandá.
Sanchia simpatizou imediatamente com o velho escocês.
— Está precisando de ajuda, Jock?
— Não, muito obrigado. O almoço já está pronto. E como se chamam estas duas
meninas lindas?
— Esta é a Jane e esta a Emma.
Jock apertou a mão das duas e examinou-as com atenção. Ele tinha olhos azuis por
baixo das sobrancelhas grisalhas.
— Agora, meninas, entrem um pouquinho e provem a minha sopa. Digam sinceramente
o que vocês acham. Mas sem queimar a língua. Soprem primeiro a colher antes de
provar.
— Está uma delícia — disse Jane.
— Humm, que sopa gostosa! — murmurou Emma.
— Foi exatamente o que eu pensei — exclamou Jock com um sorriso de satisfação. —
Não sei se o capitão vai concordar comigo. Por ele, a gente só fazia pratos tropicais a
bordo. Na minha opinião, porém, essas comidas daqui não se comparam com a velha
cozinha escocesa, não é verdade? Eu não digo que o capitão não saiba cozinhar. Ele é
muito entendido nessas coisas, mas ninguém me convence que peixe ensopado com
farinha é melhor do que essa minha sopa de legumes com carne. A gente não briga por
causa disso. Cada um respeita a opinião do outro.
A saleta era ao lado da cozinha. Jock passou os pratos e talheres por uma portinhola. A
mesa estava presa no assoalho e tinha banquinhos de couro em volta. Na outra
extremidade da saleta havia bancos cobertos de almofadas e algumas cadeiras de vime.
— Vamos tomar um aperitivo antes do almoço? — perguntou Tom aproximando-se,
abrindo o armário, repleto de garrafas e copos.
— O que é isso? — indagou Sanchia, quando ele lhe estendeu um copinho com uma
bebida incolor.
— É rum.
— Eu pensei que rum fosse mais escuro.
— E é realmente, quando fermentado com melado e caramelo. Tom levantou seu copo
contra a luz para que ela visse a tonalidade marrom-escura.
— O seu é rum branco, que é mais refinado. Há uma grande variedade de tipos de rum.
Cada ilha fabrica seu rum próprio.
— É gostoso — disse Sanchia dando um pequeno gole. Jane provou um gole e fez uma
careta de nojo.
— Ah, que gosto ruim! É horrível. . . tem gosto de remédio!
— Está vendo? Agora sabemos que ela não gostou — disse Tom.
— Eu sou de opinião que não se deve esconder nada das crianças. É preferível que elas
descubram as coisas sozinhas. Evidentemente, quando são muito pequenas, têm que ser
protegidas dos perigos físicos. Mas essas duas já têm idade para julgarem as coisas.
— Mas elas necessitam de alguma orientação — insistiu Sanchia.
— Eu acho que você espera muito delas. Emma tem apenas nove anos e até mesmo
Duncan não sabe se lavar sozinho, se a gente não chama sua atenção. Ou você acha que
é melhor não falar nada?
— Não, pelo contrário, se notar que ele não se lavou direito, vou jogá-lo no mar —
disse Tom com uma risada. — Eu pensei que você fosse me tratar com mais intimidade
depois que entramos no veleiro.
Sanchia afastou-se e olhou ostensivamente para as pequenas vigias.
— Você disse há pouco que o Jacarandá é uma espécie de cargueiro. É isso que você
faz normalmente. . . transportar mercadorias?
— No momento não. O barco foi construído com esse objetivo, mas atualmente, os
porões servem de cabines.
— O que você faz então?
Antes que Tom pudesse responder, as três crianças entraram na saleta. Depois do
almoço, Sanchia ofereceu-se para lavar a louça e 08 talheres.
— Não é preciso — disse Jock. — Pode descansar à vontade. Você vai estragar suas
mãos lavando pratos.
— Onde estão as luvas de borracha? — perguntou Tom. — Sanchia sabe que isso não é
uma viagem de recreio. Vamos, crianças... está na hora da primeira aula do dia. Quanto
mais rapidamente vocês aprenderem a fazer parte da tripulação, tanto melhor. Não há
lugar para turistas a bordo do nosso veleiro. Todos têm que fazer alguma coisa útil.
George vai vestir o salva-vidas em vocês.
— Nós sabemos nadar — disse Duncan. — Não precisamos vestir salva-vidas.
— A primeira aula não é de natação — disse Tom com o rosto sério. — Vocês todos vão
usar salva-vidas, quando estiverem no convés. Pelo menos nos primeiros dias.
Entendido? Isso se aplica a você também, Sanchia.
Com as orelhas vermelhas, Duncan seguiu George ao convés. Tom olhou para Sanchia,
supondo que fosse fazer algum comentário, mas ela se manteve em silêncio, com o rosto
impassível.
Jock apagou o cigarro que fumava e enfiou o toquinho atrás da orelha. Demorou-se um
momento na saleta depois que os outros saíram.
— O capitão tem razão. Muitos perderam a vida estupidamente porque tinham vergonha
de usar salva-vidas. Ê uma coisa muito útil, especialmente para as crianças. Você não
precisa se preocupar com a segurança delas com o capitão a bordo. Ele sabe tomar conta
dos passageiros como ninguém.
— Espero que sim.
O veleiro deixou o porto movido por dois motores auxiliares, somente depois de ter se
afastado alguma distância da baía que os roncos dos motores cessaram. Sanchia
imaginou, pelos gritos e vozes que vinham do convés, que os homens estavam
levantando as velas. A escuna tinha dado a volta e, pela vigia da cozinha, a única coisa
que se avistava eram as docas e a costa da Venezuela, mais ao longe.
Depois de terminar a limpeza na cozinha, Sanchia subiu ao convés para ver o que estava
acontecendo. Mal saiu, Tom aproximou-se com um salva-vidas na mão. Prendeu-o nas
costas dela e amarrou as cordas na frente.
— Aqui você vai atrapalhar a passagem. Vá para a frente e observe de lá.
— Pois não, capitão — murmurou com voz submissa, dirigindo-se para a proa. As duas
meninas estavam na casa do leme com Jock, e Duncan corria de um lado para outro,
ajudando George a esticar as velas.
A brisa soprava do mar e desmanchava seus cabelos, e ela tinha que afastá-los o tempo
todo do rosto para enxergar a paisagem em volta..
Port of Spain, com seus morros verdes, estava ficando para trás. A alguma distância dali,
na direção do porto, um navio de passageiros aproximava-se da Boca do Dragão, o
estreito que separa Trinidad da Venezuela.
Pouco depois, a escuna estava com todas as velas abertas e estufadas ao vento. A proa
mergulhava nas águas verdes e tranqüilas da barra e uma esteira branca acompanhava o
veleiro, que ganhava velocidade.
Quando se aproximaram do navio, os passageiros debruçaram-se na amurada para
observar do alto o pequeno barco a vela que singrava as águas da baía. Estavam muito
longe para serem reconhecidos individualmente, mas alguns balançaram os lenços e
Sanchia acenou de volta com a mão. Foi então que, por alguns momentos, esqueceu de
todas as mágoas anteriores e sentiu apenas uma enorme alegria interior. Não importava
para onde estava indo, nem quando chegaria lá. Tudo que contava agora era o mar
cintilante, o vento quente que soprava do sul, o céu azul, sem nuvens. Pela primeira vez,
durante anos, sentiu-se novamente jovem e cheia de vitalidade.
Às seis da tarde o céu estava avermelhado com as cores do poente. Meia hora depois a
noite desceu. A temperatura baixou rapidamente e o vento forte que soprava antes
amainou um pouco. A Lua estava de fora e traçava uma esteira prateada sobre o mar e lá
no alto, invisíveis durante o dia, as galáxias próximas e distantes brilhavam e cintilavam
no céu estrelado.
Ela estava morta de fome quando se sentou à mesa. Entretanto, no fim da refeição,
quando Jock insistiu para comer mais um pedaço de pão com presunto cru, ela balançou
a cabeça.
— Muito obrigada, Jock. Comi demais.
— Você precisa comer menina, para ficar gordinha como esta belezinha aqui — disse
Jock fazendo festa na cabeça loura de Emma.
— Você está por fora, Jock — comentou Tom com um sorriso. — As mulheres de hoje
preferem ser magras como um palito.
— Pode ser, mas os homens não preferem — retrucou Jock. — Eu prefiro ver uma
mulher cheia de corpo do que uma magricela.
— Jock não quer dizer que você seja uma magricela — disse Tom, voltando-se para
Sanchia.
— Não foi isso que eu disse — corrigiu Jock. — Sanchia é uma magrinha muito bonita.
— Muito obrigada, Jock.
Enquanto ajudava-o na limpeza das louças, Sanchia perguntou:
— Faz quanto tempo que vocês se conhecem, Jock?
— Ah, faz muitos anos. .. uns nove, pelo menos. Foi um dia de sorte aquele em que eu
conheci o capitão num bar em Kingston.
— Kingston é na Jamaica, não?
— Exatamente. Eu fui até lá num cargueiro que transportava bananas. Trabalhei no mar
a vida inteira e, quando fui dispensado da Marinha, não me acostumei à vida em terra
firme. Foi por acaso que conheci o capitão. Estava sentado num bar, meio deprimido,
quando ele entrou. Começamos a conversar e ele me perguntou se queria trabalhar em
sociedade.
— Trabalhar no quê?
— Bem, no começo tínhamos apenas um barco, um barco bem velho por sinal. Nós o
equipamos para a pesca. Os americanos adoram a pescaria em alto-mar. Logo na
segunda viagem tivemos muita sorte. O camarada que alugou o barco fisgou um enorme
marlim, o maior que já vi na minha vida. Esses peixes são uns demônios dentro da água.
Depois desse dia, tudo correu como um mar de rosas. Não faltavam clientes para alugar
o barco.
— E quantos barcos vocês têm agora?
— Vinte e um — respondeu Jock com orgulho. — Começamos nas Bahamas, mas
depois de algum tempo, decidimos ir mais para o sul e nos dedicar às viagens de recreio.
Há dois anos atrás, o capitão comprou este veleiro. Como você está vendo, é nosso
melhor barco. A tripulação dos outros barcos é de toda confiança, mas o capitão está
sempre de olho na frota toda. Passamos a temporada das férias viajando de porto em
porto, verificando se está tudo em ordem.
— Há quatro anos atrás, Tom foi à Inglaterra num cargueiro. Ele não-devia ser muito
próspero nessa época — comentou Sanchia.
— De fato, ele estava fazendo economia para comprar o Jacarandá. E uma viagem de
avião seria uma despesa inútil. Tom não gasta dinheiro consigo mesmo, embora seja
generoso com os outros.
— Quer dizer que vocês são sócios?
— De certa maneira, sim. Temos participação igual nos negócios, mas o capitão é o
cabeça da organização. Foi ele que fez tudo. Se não o tivesse conhecido, não sei o que
seria de mim atualmente.
— Você deve ser útil para ele, Jock, com sua experiência do mar.
— Bem, eu tenho utilidade... eu tenho utilidade. Agora vamos dar uma volta pelo
convés e ver como estão as coisas lá em cima. ..
O veleiro rumava para o norte. Depois do jantar, Tom foi até o leme na companhia das
crianças para substituir George. Quando Sanchia apareceu no convés, ele disse: —
Agora as crianças vão para a cama. Vamos acordar amanhã com o nascer do sol.
Depois que as crianças se despediram, ele comentou: — Dentro de quatro semanas, elas
vão dizer adeus a você.
— Pois é. — Ela ficou em silêncio durante alguns minutos. — Jock me contou a
respeito da sua frota de barcos.
— Ah, sim? Você e Jock simpatizaram um com o outro à primeira vista, não é verdade?
Só com meus sentimentos é que você não se importa — ou você acha que eu não tenho
sentimentos?
Ela não respondeu. Estava muito calma e não tinha disposição para discutir novamente
com ele. Tom não insistiu e acrescentou logo depois:
— Vou descer e ver como estão as crianças. . .
Sanchia permaneceu sozinha no convés durante alguns minutos. Lembrou-se então que
não tinha se despedido das meninas e desceu a escadinha que levava aos beliches.
Estava se aproximando da porta quando ouviu uma conversa em voz baixa:
— Tio, lembra o que você disse quando foi nos visitar aquela vez? Olha, não contamos
nada a ninguém. . . nem mesmo a Sanchia.
— Vocês fizeram muito bem — murmurou Tom. — Vamos continuar guardando
segredo. Se vocês derem com a língua nos dentes, vão estragar os meus planos. O
segredo é muito importante neste caso. Quanto menos pessoas souberem, tanto melhor.

CAPITULO III

Sanchia foi acordada pelo ruído alto de um corpo caindo na água. Abriu os olhos e,
momentaneamente desorientada, piscou diante das riscas de luz que tremulavam no teto
da cabine. Um grito, seguido por outro ruído alto, fez com que se sentasse rapidamente
na cama. Sua confusão foi se desfazendo pouco a pouco. Estava a bordo do Jacarandá
e, do lado de fora, as pessoas brincavam na água.
Que horas eram? Meu Deus, oito horas! O sol tinha nascido havia muito tempo. Pulou
da cama e correu até a vigia para ver o que os outros estavam fazendo.
Deu uma exclamação abafada de surpresa e de alegria. Era um sonho que surgia diante
dos seus olhos. . . uma praia pequena, em forma de meia-lua, e uma água muito limpa e
azul que fazia espuma onde as marolas quebravam na areia. Atrás da praia levantava-se
um morro coberto de vegetação e as palmeiras balançavam as folhas compridas ao
vento.
Não podia passar os ombros pela vigia e ter uma visão completa da enseada onde
estavam ancorados, nem mesmo das pessoas que brincavam na água. Abaixou a cabeça
e tudo que avistou foram as águas cristalinas que banhavam o casco do veleiro, e os
reflexos trêmulos dos mastros na superfície.
De repente, do alto, um corpo moreno passou voando na sua frente e foi cair a alguma
distância do barco, levantando um esguicho de água. Alguns segundos depois, como não
avistava sinal do mergulhador, pensou que devia ter saído à tona fora da sua visão.
Mas não, lá estava ele — a uns vinte metros de distância, onde o mar tinha cor de água-
marinha. Era George, que sacudia a cabeça como um cachorrinho e que sorria com
todos os dentes de fora.
Quando ele se aproximou do veleiro, nadando com braçadas lentas e graciosas, avistou
o rosto de Sanchia na vigia e rumou em sua direção.
— Bom dia. A água está uma delícia. Você não vai cair?
— Vou para aí num minuto!
Tirou o pijama, vestiu o biquíni e escovou os dentes. Passou por cima dos ombros uma
saída-de-banho que tinha feito com uma toalha velha, calçou as sandálias e subiu para o
convés.
Todos estavam nadando, com exceção de Tom, que estava sentado perto da escada,
observando os outros. Mas ele também estivera na água alguns minutos antes. Seu
corpo bronzeado tinha um brilho quase metálico que acentuava os músculos dos ombros
no momento em que secava a cabeça com a toalha.
— Que lugar maravilhoso é este? — Perguntou Sanchia, logo após cumprimentá-lo.
— Lembra do que você me disse na sua casa? Que eu não devia encher a cabeça das
crianças com a esperança de uma vida idílica ao ar livre? Pois esta é exatamente a ilha
dos sonhos. . . a ilha onde Robinson Crusoé naufragou e viveu muitos anos sozinho.
— Robinson Crusoé é um personagem da imaginação de Daniel Defoe. Ele não foi uma
pessoa real.
— Agora é você que está sendo uma terrível realista — disse Tom com um sorriso.
Inclinou-se e estendeu a mão para Jane, que subia a escadinha de corda ao lado do
casco.
— Sanchia, a água está divina! — exclamou Jane. — Você pode enxergar tudo lá
embaixo. O tio vai ensinar a gente a usar acqualung. E não precisamos mais pôr o salva-
vidas, a não ser quando o mar estiver bravo, porque nós nadamos melhor do que ele
imaginava. Você não vai fazer o teste com a Sanchia, tio?
— Você está disposta a nadar até a praia? — perguntou-lhe Tom.
— Posso tentar.
— Desça pela escada — recomendou Tom. — O convés está muito alto. Eu vou com
você.
Sanchia despiu a saída de banho, foi até a borda e olhou para a água embaixo com um
pequeno gesto de nervosismo.
— Bem... lá vou eu! — disse com coragem.
Dobrou os joelhos, jogou os braços para frente e para trás e atirou-se com um pulo
descrevendo um arco. Segundos depois estava no mundo esverdeado embaixo da água.
Ela sabia, quando voltou à tona, que dera um bonito mergulho e gostaria de ver a cara
de Tom. Entretanto, no momento em que levantou a cabeça fora da água, respirou fundo
e saiu nadando rapidamente em direção à praia. Tinha nadado a metade da distância
quando Tom passou a seu lado e deixou-a para trás.
— Você não precisava nadar tão depressa assim — disse Tom quando chegaram ao raso.
— Parecia que você estava fugindo de um tubarão!
Sanchia estava sem fôlego para responder. Afastou os cabelos compridos que caíam nos
olhos e pensou que seria bom deitar-se alguns minutos na areia. Entretanto, embora não
controlasse a respiração ofegante, não queria demonstrar que estava exausta pelo
esforço.
Felizmente, Tom caminhou alguns passos e deitou-se ao comprido na praia. Ela sentou-
se ao seu lado.
— Passei no teste? — perguntou ofegante.
— Com nota dez. Você nada muito bem... mas não posso dizer o mesmo de suas
intenções.
— Em que sentido?
— Por que você fingiu que não ia conseguir?
— Você sabia que eu ia chegar até aqui?
— Claro, caso contrário não teria sugerido. Não se deve exigir das pessoas o que está
além de suas capacidades. É absurdo e perigoso. As crianças me contaram que você
dava muitas voltas na piscina.
Ela mordeu o lábio. Que homem antipático! Tinha sempre resposta para tudo.
— Se você sabia que eu nadava bem, por que você me fez passar por esse teste
estúpido? — perguntou com irritação.
— Porque queria ver com meus olhos. Conheço pessoas que nadam muito bem na
piscina, mas que não se dão bem no mar. . . o que não é seu caso.
Sanchia ouviu em silêncio e, após um momento, Tom perguntou:
— Por que você antipatiza comigo? Eu lhe dei algum motivo?
— Por que você pensa isso?
— Não se faça de ingênua, Sanchia. Você queria me dar um espetáculo... você queria
ganhar de mim diante dos outros. E, para ter essa satisfação, quase se matou
fisicamente. Reconheça que foi uma bobagem fazer isso. Agora eu vou voltar e tomar
café. . . Mas você vai ficar aqui e descansar pelo menos uns vinte minutos. Eu vou lhe
fazer sinal de lá para você voltar... nadando lentamente!
Sanchia observou-o afastar-se até a beira da água com um brilho de raiva nos olhos que
teria espantado as pessoas que a julgassem uma criatura reservada e submissa.
Não há dúvida... fora uma idiota ao se comportar daquele jeito. Mas não havia
necessidade de Tom lhe passar um sermão como se fosse uma criança. Apertou as mãos
com força e contraiu os maxilares. Ah, ele era insuportável... odioso! Coitadas das
crianças quando ficassem sozinhas na sua companhia. Ele jamais compreenderia ou
simpatizaria com os problemas da adolescência.
No momento, indiferente à areia que grudava nos cabelos molhados, deitou-se de costas
e cobriu os olhos com os braços. Quem dissera mesmo que havia uma serpente em todo
paraíso? Era verdade, pensou com amargura. Aquele lugar seria um paraíso se não fosse
a presença de Tom. Algumas semanas atrás, a diretora lhe prevenira para não ter
preconceitos no seu julgamento. Há cinco minutos atrás, Tom dera a entender a mesma
coisa. Não podia 'negar que tinha preconceitos. Desde o momento em que o avistara em
sua casa, algum instinto lhe advertira que aquele homem era perigoso e não merecia
confiança.
Por que seu instinto não seria correto? Não tinha o costume de antipatizar gratuitamente
com as pessoas. Não havia de fato algo nele que a levava a desconfiar e ser cautelosa?
Num ponto pelo menos suas suspeitas eram verdadeiras. Ele e as crianças tinham um
segredo. O que Tom contara às crianças que não podia ser revelado a ninguém, nem
mesmo a ela?
Na noite anterior, antes de dormir, meditara nesse assunto e não chegara a nenhuma
conclusão. Agora, deitada na praia, aguardando o sinal para voltar, tornou a examinar o
mistério.
Primeiro, seria pouco provável que alguém confiasse um segredo importante a três
crianças, sendo que uma delas tinha apenas nove anos. Entretanto, não havia uma
entonação de brincadeira na voz de Tom quando dissera às crianças "Ninguém pode
saber". Ele falara com a voz séria.
Fazia mais de um mês que Duncan, Jane e Emma tinham ouvido essa recomendação e
Sanchia foi forçada a concluir que o segredo era muito importante, senão as crianças
teriam acabado contando. Além do mais, a única maneira que um adulto podia obter
segredo de uma criança era dizei* que a revelação do segredo podia ter conseqüências
sérias para alguém.
Sentou-se na areia e olhou para o Jacarandá. Lembrou-se do que Jock lhe contara no
dia anterior. Nove anos antes, ele e Tom tinham comprado um pequeno barco. Agora
possuíam uma frota e a escuna, que devia ter custado alguns milhões. De onde saíra
todo esse dinheiro? Será que tinham mais do que sorte? Não seriam aquelas viagens de
porto em porto uma espécie de disfarce para atividades menos honrosas e mais
lucrativas? E se eram, que atividades seriam essas?
A resposta que lhe ocorreu no momento era tão absurda que preferiu abandoná-la
imediatamente. Antes que tivesse tempo para encontrar outra explicação mais racional,
ouviu um assobio vindo do veleiro e viu Jock acenar a mão.
Ele estava segurando a saída de banho quando ela subiu a escadinha de cordas. Passou-a
em volta dos seus ombros e comentou com voz atenciosa: — Não se queime muito no
primeiro dia, menina. É uma tentação tomar sol, mas é melhor não exagerar.
Sanchia ia dizer que não ficara voluntariamente deitada na praia, mas controlou-se a
tempo. Em vez disso perguntou:
— Onde nós estamos, Jock? Que ilha é esta?
— Chama-se Tobago. Tom não lhe disse?
— Não, ele disse apenas que era a ilha de Robinson Crusoé.
— Ah, isso é o que dizemos aos turistas... Muitos inclusive descobrem a caverna onde
Robinson morou. Você sabia que foi um marinheiro escocês que deu a Defoe a idéia de
inventar esse personagem?
— Não, não sabia— disse Sanchia, esfregando os cabelos na toalha.
— Pois foi... um tal de Alexander Selkirk. Era um marinheiro de Largo, na Escócia. Ele
passou quatro anos numa ilha deserta. Mas não nesta aqui. Foi em Juan Fernández, no
Pacífico, onde foi deixado na praia.
— De que parte da Escócia você é, Jock?
— Sou de Portree.
— Eu não conheço a Escócia. Aliás, essa é minha primeira viagem.
— Ah, sim? Há momentos em que eu também preferiria ter levado uma vida mais
sossegada... mas agora é tarde demais. A gente não pode ter tudo o que quer. Tem que
escolher entre uma coisa e outra. Eu tive a oportunidade de ter mulher e filhos, mas não
aproveitei ... e agora nenhuma mulher me aceitaria como marido.
— Não vejo por quê!
Os olhos azuis piscaram para ela. — Com minha idade? Eu não vou viver muito tempo,
menina. Mesmo quando moço nunca fui um homem muito forte. Tom, sim, é um touro
de força e resistência.
— A aparência não é importante, Jock. O que vale é a bondade. Eu tenho certeza de que
você seria um ótimo marido.
— Você diria o mesmo de mim? — perguntou uma voz irônica nas suas costas.
Ela voltou-se e avistou Tom a alguns passos dali. Corou ligeiramente e, se Jock não
estivesse ali, teria respondido um desaforo. Na presença do velho marinheiro, controlou-
se e disse apenas:
— Eu vou me vestir. Até mais tarde, Jock.
Naquela mesma manhã, George levou as crianças à praia no bote n remo. Queriam que
Sanchia fosse junto, mas ela disse que ia aproveitar para lavar as roupas.
Depois de pendurar as roupas, voltou à cabine par continuar a carta que estava
escrevendo para Delia. Descrevera o veleiro nos menores detalhes quando se lembrou
que não conhecia uma parte do barco. Tom lhe dissera que o porão fora transformado
em cabines, mas não se oferecera para levá-la até lá. Tudo que conhecia até então era a
pequena cozinha e a saleta, além das cabines onde ela e as crianças dormiam.
Lembrou-se da idéia absurda que lhe ocorrera na praia. Talvez houvesse algum
esconderijo no Jacarandá que Tom não queria lhe mostrar. Quem sabe o barco
transportava alguma mercadoria clandestina? Mas era impossível que Jock se
envolvesse com. algo ilegal, pensou no mesmo instante. Além do mais, se fosse esse o
segredo. Tom jamais o contaria às crianças.
Entretanto, a suspeita continuou a incomodar sua imaginação. Naquela tarde, deitou-se à
sombra da coberta que Jock armara especialmente para ela e observou Tom ensinar às
crianças o uso dos aparelhos de pesca submarina.
Pode ser que um homem inteligente preferisse contar a verdade AH crianças, pensou, ou
pelo menos uma versão aceitável. As crianças tinham olhos curiosos e indagadores. Se
estivesse levando algo proibido no veleiro, era preferível contar de uma vez do que
tentar esconder. Na idade delas, não julgariam o contrabando uma atividade condenável.
Pelo contrário, achariam uma aventura perigosa e excitante. Só que os contrabandistas
modernos não se dedicavam mais, como no passado, ao transporte de bebidas
alcoólicas. Agora as mercadorias eram menos românticas. . . relógios, armas e, o pior de
tudo: drogas.
— Por que você está triste? — perguntou Jock, oferecendo-lhe uma limonada gelada.
Sanchia olhou para o rosto curtido pelo sol e sentiu vergonha seus pensamentos. Como
podia suspeitar que aquele homem simples e bondoso fosse um contrabandista?
As crianças não reclamaram quando foram mandadas cedo pai a cama. Jane estava com
os ombros e o rosto cobertos de sardas Sanchia pensou que dentro de algumas semanas
os cabelos das meninas estariam tão louros e desbotados quanto os de um bebê. Todos
três estavam ansiosos para praticarem a pesca submarina, mi Tom disse que deveriam
fazer primeiro um exame médico antes usaram os apetrechos.
Emma estava quase dormindo quando Sanchia a levou para a cama. No momento em
que ela saiu do quarto das meninas, Tom surgiu de outra porta no corredor. Trancou-a e
guardou a chave no bolso.
— Gostaria de conversar um instante com você — disse Tom. Vamos até a praia. Lá
estaremos mais à vontade.
Com uma certa apreensão, Sanchia acompanhou-o pelo convés, Tom entrou primeiro no
bote e lhe estendeu a mão. Segurou-a com firmeza pelo braço enquanto ela punha o pé
no degrau da escada e ajudou-a a sentar-se no banco estreito do barco. Tomou seu lugar
soltou a corda e começou a remar lentamente em direção à pra
Quando se aproximaram do raso, Sanchia retirou as sandálias d pés e dobrou as bainhas
da calça. No momento em que o barco encalhou na areia, saltou para a água e ajudou-o
a puxá-lo para cima. A areia seca estava quente sob seus pés descalços. Sentaram-se
perto do local onde tinham estado naquela manhã e Sanchia pensou sob o que podia ser
a tal conversa. Não era certamente pelo prazer sua companhia que Tom sugerira um
novo encontro na praia. Observou-o em silêncio, com o canto dos olhos, enquanto ele
acendia cigarro e dava algumas tragadas. A noite estava tranqüila e o céu
completamente estrelado.
Tom aparentemente não tinha pressa de iniciar a conversa. Ficou deitado um momento
sobre o cotovelo, admirando as marolas q quebravam na praia com um murmúrio leve e
constante. Do morro atrás, coberto de vegetação fechada vinham os ruídos abafados
misteriosos dos animais noturnos e os pios ocasionais dos passar que perturbavam o
silêncio. Sanchia, contudo não estava com a cabeça calma para apreciar a paz e a beleza
da noite.
— O que você queria falar comigo? — perguntou por fim.
— Eu pensei que você quisesse continuar nossa conversa interrompida... Você mudou
de idéia a respeito das crianças morarem no veleiro?
— Não, não mudei. Admito que seja mais confortável que imaginava, mas isso não é
suficiente.
— Muito bem... Quais são suas objeções?
— Em primeiro lugar, as crianças necessitam de segurança... de uma residência estável.
— De fato, elas necessitam de segurança emocional, mas o que isso a ver com o local
onde moram? Estabilidade e segurança são duas coisas distintas. Morar dentro de quatro
paredes não significa ter segurança.
— Nem sempre, concordo. Mas os três não estão acostumados a essas mudanças de
ambiente. Se fossem menores, não faria objeção. Mas eles já têm uma vida estabelecida.
Se você modificar esse estilo quem sabe as conseqüências que poderão ocorrer?
Tom deu uma tragada no cigarro.
— E meu estilo de vida? Você está sugerindo que devo alterá-lo?
— Não seria possível encontrar um compromisso? Você não pode viver sempre dessa
forma. Um dia vai querer uma casa...
— Não creio. Por que haveria? Tenho tudo que desejo aqui.
— Você não pensa em casar e ter filhos?
— Isso tem importância?
— Não, se você pretende permanecer solteiro. Mas não pode querer que sua mulher
viva permanentemente num veleiro.
— Por que não? Pelo visto, nós dois temos idéias diferentes sobre o relacionamento
ideal entre os sexos. Eu penso que o homem decide onde e como o casal deve viver, e a
mulher se adapta à escolha do marido.
Não foi tanto a opinião dele quanto a maneira como a expressou que provocou um
movimento de irritação nela.
— Isso pode dar certo na teoria, mas na prática é outra coisa. O que vai acontecer se
você casar com alguém que não aprecie a vida em alto-mar?
— De duas uma. Ou bem ela teria que superar sua aversão, ou ««ríamos forçados a nos
separar.
A frieza da afirmação exasperou-a a tal ponto que, esquecendo-se de sua moderação
habitual, retrucou com raiva:
— Se essa é sua atitude, eu tenho pena da mulher com quem você se casar! O
casamento é um acordo. Quando a gente gosta de alguém deseja que o outro também
seja feliz. Pelo visto, você considera o amor uma tolice...
— De fato, o amor me parece meio superado — disse Tom com uma calma irritante.
— Você diz isso porque nunca gostou de ninguém!
— Pelo contrário, quando era mais moço e impressionável, sofri uma crise bem séria.
Durante um ano ou mais pensei que não fosse me recuperar. . .
Incapaz de reprimir sua curiosidade, Sanchia perguntou:
— O que aconteceu? Ela o deixou?
— Os pais decidiram terminar o namoro: ela tinha vinte e dois anos e não teve coragem
de desobedecê-los.
— E por que os pais desaprovaram o casamento?
— Ah, por muitas razões. Primeiro porque eu não tinha dinheiro. . . não tinha futuro.
Não jogava tênis, nem golfe. Não tinha sido um oficial do Exército. Os valores da
família dela eram semelhantes aos do meu cunhado.
— Entendo — disse Sanchia após um momento. — Como essa namorada o deixou,
você passou a não confiar mais em nenhuma mulher.
Tom deu uma risada.
— Que reação tipicamente feminina! Mas dessa vez você está redondamente enganada.
— Em que sentido? — perguntou Sanchia com a voz tensa.
— As mulheres imaginam que podem destruir a vida de um homem. Isso não é verdade.
Carol não partiu meu coração. Um ano e meio depois, compreendi que os pais dela
tinham me feito um favor. Não vá pensar por isso que eu seja um misógino. Gosto tanto
das mulheres quanto qualquer homem normal.
— Mas não o suficiente para abrir mão de sua liberdade, nem mesmo para fazer
algumas concessões — disse Sanchia com rispidez.
Tom não respondeu imediatamente e Sanchia arrependeu-se d ter sido indelicada.
— É isso que você deseja? — perguntou Tom por fim, com a voz serena. — Um homem
que sacrifique tudo por você?
A pergunta desorientou-a momentaneamente. Era como se ele tivesse entrado no seu
quarto sem bater primeiro na porta. Ninguém nem mesmo a diretora, havia invadido
desse jeito sua intimidade.
— Você se esquece que eu fui casada — disse com a voz fria.
— Mas você é muito moça ainda para ficar viúva o resto da vida.
— Nunca pensei nisso.
— Não está na hora de pensar? A vida não é tão longa que se possa desperdiçá-la
inutilmente. Na sua idade, você devia estar olhando para a frente, e não se agarrando ao
passado.
Ela respirou fundo e notou que suas pernas estavam tremendo.
— Isso é meu problema — murmurou em voz baixa. Não havia limites para a
agressividade dele?
— Eu sei disso. Mas, como você expressou sua opinião a meu respeito, eu me julguei
no direito de ser igualmente franco.
— Você não entendeu minhas palavras. A maneira como você se vê é inteiramente
alheia para mim. Eu estou preocupada apenas com o bem-estar das crianças.
— E eu não me preocupo, por acaso? Sabe qual é seu problema Sanchia? Você foi
educada com uma série de valores imutáveis. As pessoas que não se adaptam a esses
valores são automaticamente suspeitas. Você não aceita que há outras maneiras de viver,
tão boas ou melhores do que a sua.
— Não é verdade...
— Eu entendo seu ponto de vista. Poucas pessoas se dão ao trabalho de desenvolverem
uma filosofia própria de vida. A maior parte herda os valores dos pais. Você foi educada
numa escola cara e imagina que esse é o melhor início na vida. Você não tem nenhum
motivo sério para se inquietar com o futuro das crianças. O que a preocupa no momento
é que estou afastando as crianças de tudo que é importante para você...
Antes que Sanchia tivesse tempo de responder, Tom prosseguiu:
— Eu terminei minha educação na Coréia. Provavelmente, você não se lembra mais
dessa guerra. Foi há muitos anos atrás. Você devia ter a idade de Jane. Eu fui um dos
poucos que saíram inteiros da guerra. Eu vi homens serem despedaçados ao meu lado,
outros ficaram aleijados para a vida inteira, sem falar nos que sofreram toda sorte de
torturas como prisioneiros de guerra. Eu vi meninos da idade da Emma lutarem por
pedaços de comida, como se fossem cães. Certa vez, em Seul...
Tom interrompeu bruscamente o que ia contar e Sanchia nunca soube o que acontecera
há mais de quinze anos atrás que fazia os dentes dele rangerem de ódio. Quando voltou
a falar, sua entonação era distante e sem emoção.
— Depois que voltai da Coréia, aprendi que somente duas coisas eram importantes na
vida. Ter o suficiente para comer e trabalhar por prazer. As pessoas normalmente
trabalham oito horas por dia. Se não gostam do que fazem estão jogando foram um terço
de sua existência.
— Tudo isso é muito certo na teoria, mas a maior parte das pessoas não têm outra
escolha. Eu admito que há muitos homens que gostariam de levar a sua vida, mas são
obrigados a trabalhar num escritório ou numa fábrica porque têm mulheres e filhos para
sustentar. Você e Jock não poderiam ter iniciado esse negócio se tivessem dependentes.
— Está certo, somente alguns têm essa escolha. Mas há milhares de outros que
trabalham sem prazer, porque não têm a coragem de se revoltar e viver como gente, em
vez de vegetar simplesmente. As vantagens da civilização, a televisão a cores, os carros
último tipo e todos os símbolos de prestígio não valem uma vida de "desespero
tranqüilo". Você não concorda comigo?
Sanchia não podia negar que havia muita verdade no que Tom dissera. Seu próprio pai
teria sido mais feliz se trabalhasse no campo e não num escritório de advocacia.
— Muitas pessoas abandonam seus sonhos de felicidade para darem aos filhos uma
oportunidade maior... um objetivo melhor na vida — disse Sanchia.
— Pois é, e a maior parte dos sacrifícios são feitos no altar do amor-próprio —
observou Tom cinicamente. — Não é sempre e benefício dos filhos que as pessoas
lutam para obter essas vantagens. Fazem isso por satisfação própria. Mais tarde,
esperam que os filhos façam o mesmo e perpetuem esse padrão de comportamento.
Sanchia lembrou-se dos anos em que aprendera piano por insistência da mãe, embora
não tivesse nenhum talento especial para música.
— Mas você não pode negar as vantagens de uma boa educação.
— Se por educação você se refere a ir à escola, eu não creio q seja tão importante assim.
— Como você pode dizer isso? Claro que é. A educação é imensamente importante!
— Meu cunhado teve a melhor educação que o dinheiro pode oferecer. Jock saiu do
colégio aos catorze anos. Segundo um critério puramente humano, Jock é dez vezes
mais homem que Eric.
— Você odiava seu cunhado, não?
— O que você sentiria por um homem que causou a infelicidade de sua irmã? Amor? Eu
não nego que foi em parte por culpa dela. Lucy era muito moça quando casou com Eric.
Ela ficou fascina com sua posição social.
— Bem, se você acha que o amor é superado e não aprova os motivos materiais, por que
razão as pessoas deviam casar, na sua opinião?
— É necessário haver uma razão especial? O casamento é antes mais uma instituição de
ordem prática. A maior parte das mulheres necessitam de um homem que as sustente
materialmente, maior parte dos homens precisam de mulheres que cuidem da casa e dos
filhos. Não há nada mais simples. Por que complicar as coisas?
— Você está brincando! Nesse caso, qualquer um pode casar com qualquer pessoa.
— Exatamente, contanto que os dois estejam dispostos a tirar o maior proveito disso.
Esse sistema funciona tão bem quanto qual quer outro.
Sanchia não sabia se Tom estava brincando ou falando sério. Como era mais provável
que estivesse brincando, comentou com frieza.
— Segundo sua teoria, podia pedir Jock em casamento. Ele está arrependido de ser
solteiro e eu simpatizo muito com ele. Nós seríamos o casal perfeito, na sua opinião.
— Não, Jock não serviria... ele é muito velho para você. Você necessita de alguém da
minha idade. Por falar nisso, nós dois combinamos muito bem um com o outro.
No primeiro momento, ela não soube o que dizer.
— Agora eu sei que você está brincando! — disse por fim. — Não conheço duas
pessoas mais incompatíveis do que nós dois.
Tom levantou-se e lhe estendeu a mão.
— Por que você diz isso?
Fingindo que não percebera seu gesto, Sanchia ergueu-se sozinha e tirou a areia da
roupa.
— Nosso senso de humor não combina — respondeu.
Tom levou-a de volta para o veleiro remando em silêncio. Entretanto, no momento em
que ela se despediu rapidamente no alto da escada, ele chamou-a de volta.
— Escuta...
Ela voltou-se e encarou-o com o rosto surpreso.
— Espero que nossa conversa tenha deixado bem claro que não pretendo mudar meus
planos com respeito às crianças.
— Eu estou convencida.
— Ótimo. Seria uma pena se você desperdiçasse os dias a bordo com uma série de
discussões inúteis. As crianças percebem a desarmonia entre os adultos e o motivo
principal de sua vinda era facilitar esse período de adaptação. Além disso, não há pior
lugar para brigar do que num barco. Ê muito apertado e as pessoas em volta se sentem
incomodadas.
— Você não precisa se preocupar... Eu sei quando estou batendo com a cabeça na
parede. Boa noite.
Ela tinha dado alguns passos quando ele tornou a chamá-la.
— Outra coisa... — a respeito de minha teoria sobre o casamento, eu não estava
brincando. Eu falei sério. Boa noite, Sanchia.
Desta vez, foi ela que ficou parada, boquiaberta, enquanto Tom se afastava a passos
rápidos em direção à proa.
No meio da noite, Sanchia foi acordada por gritos e vozes no convés. Sentou-se na
cama, imaginando o que podia ser a causa daquela agitação, quando a porta da cabine
foi aberta repentinamete e Jane entrou correndo.
— Você não está vestida ainda? Corre! O sino já tocou há um tempão! Você devia estar
no convés em dois minutos!
— Dois minutos? No convés? O que aconteceu?
— Vamos ter que abandonar o barco. O veleiro está afundando!
— O quê? — exclamou Sanchia perplexa. — Não pode ser! Por quê? O que aconteceu?
— Pulou instintivamente da cama e começou a vestir a calça por cima do pijama.
Jane enfiou a cabeça na malha de gola rulê.
— Bem, o veleiro não está afundando realmente. É apenas um treinamento de rotina —
explicou Jane saindo às pressas da cabine.
O luar banhava o beliche com sua luz prateada. Sanchia não precisou olhar para o
relógio para saber que era de madrugada.
— Ele deve estar louco! — resmungou em voz alta.
Tom dissera de fato, na véspera, que pretendia testar as reações dos passageiros numa
situação de emergência, mas ela nunca iria imaginar que seria no meio da noite,
No primeiro momento, pensou em voltar para a cama. Depois achou que seria
impossível dormir com os outros correndo no convés. Era possível também que Tom
passasse pessoalmente na cabine a levasse à força para o convés.
Mal colocou o pé no convés, uma mão forte e pesada segurou-a pelo ombro.
— Você levou seis minutos para subir! — disse Tom com rispidez — Por que não vestiu
o pulôver? Faz frio em alto-mar à noite. Se o naufrágio fosse real, você estaria
certamente em estado de choque.
— Eu estou em estado de choque! O que você acha? Ser arranca da cama no meio da
noite... A coitadinha da Emma deve esta morta de susto.
— Pelo contrário. Está adorando a novidade. Desça e vista um pulôver grosso.
Não era uma sugestão. Era uma ordem. Sanchia obedeceu de má vontade. Quando
voltou, ao convés pela segunda vez, percebeu que Tom tinha a intenção de fazê-los
abandonar de fato o veleiro. Ajudadas por George, as crianças tinham enchido um barco
de inflar e estavam prestes a lançá-lo ao mar.
Tom não se reuniu aos outros no exercício. Permaneceu a bordo do veleiro, debruçado
sobre a corda do convés, observando Duncan e George que remavam o barco de
borracha para longe do Jacarandá.
O barco de borracha começou a jogar lentamente de um lado para o outro e, durante
alguns minutos, todos permaneceram em silêncio. Foi então que Emma perguntou com
a voz sumida:
— Não tem perigo de um tubarão morder o barco?
— Não tem tubarão nestas águas — disse George com uma risada. Emma acreditou na
explicação e ficou mais calma. Sanchia, porém refletiu em silêncio sobre a possibilidade
de haver tubarões na águas quentes das Antilhas. Tom não dissera no dia anterior que
ela tinha nadado depressa como se estivesse fugindo de um tubarão? Na primeira
oportunidade, iria perguntar a Jock se os tubarões costumavam infestar aqueles mares, e
até que ponto eram perigosos se fossem encontrados por um banhista.
Sanchia voltou a cabeça para o alto e esqueceu-se momentaneamente dos tubarões e
outros perigos do mar. Era impossível ficar indiferente diante daquele espetáculo
suntuoso. As sete filhas de Atlas e Plêione, Cassiopeia, a rainha da Etiópia, e
Andrômeda salpicavam o Armamento como grandes pedras preciosas. Ao ouvir o
assobio de Tom chamando-os de volta, ela pôde compreender a relutância das crianças
em voltar para a cama.
Jock estava à espera deles com um bule de chocolate quente e uma lata de biscoitos. As
crianças estavam tão excitadas com a aventura que Tom deu permissão para ficarem
acordadas e verem o nascer do sol.
Na luz rosada entre o dia e a noite, tomaram café com leite e comeram cachorros-
quentes. Sanchia estava com tanta fome quanto as crianças.
— Você preferia estar na cama? — perguntou Tom com um sorriso ao vê-la lamber os
beiços.
— Não, não neste momento.
— Está vendo? Mais alguns dias e vamos fazer de você uma verdadeira rainha do mar
Pouco depois, ao voltar para a cabine, Sanchia mirou-se no espelho em cima da pia. 0
que Tom queria dizer com "rainha do mar"? Que no momento ela estava por fora?
Lembrou-se das palavras de despedida na noite anterior. "A respeito da minha teoria
sobre o casamento... eu não estava brincando. Eu falei sério." Qual fora a intenção desse
comentário?
Ninguém diria que fazia uma semana que estavam em alto-mar. Emma aprendera a
cantarolar uma velha canção escocesa que Jock lhe ensinara e a repetia baixinho
enquanto polia as peças de cobre no corredor.
Sanchia ficou contente e comovida com a amizade que havia entre o velho escocês e a
menina de nove anos. Jock a chamava agora de "mascote" e os dois passavam muito
tempo juntos, conversando e brincando. Emma estava começando a adotar a pronúncia
do velho marinheiro, inclusive sua maneira arrastada e melodiosa de falar.
Tobago ficara agora bem para o sul. O Jacarandá rumava para Barbados, a mesma ilha
onde as crianças voltariam ao colégio. Por causa disso, Tom resolveu não parar na
capital, Bridgetown, e rumou diretamente para um porto menor, Speightstown, onde
conhecia um médico de confiança e onde a escuna podia abastecer-se de água e
mantimentos antes de chegarem a ilha de St. Vincent.
Sanchia, porém não achou essa explicação muito convincente. Examinou os mapas e
suas suspeitas aumentaram.
Barbados era a ilha mais a leste das Antilhas. Para ir naquela direção, de Tobago a St.
Vincent, era necessário dar uma grande volta. Aliás, pelo que podia avaliar, era o dobro
da distância.
Possivelmente havia um médico em St. Vincent. Nesse caso, por que Tom insistia em
afastar-se muitas milhas de sua rota apenas para consultar o médico em Speightstown?
Não fazia sentido, a me nos que Tom tivesse outra razão para aportar ali, um motivo que
desejava manter em sigilo.
— Quando vamos mergulhar com o acqualung — perguntou Jane aquela noite. Todas as
crianças, inclusive Sanchia, tinham feito exame médico no porto.
Tom sorriu diante da animação das crianças.
— Quando chegarmos a St. Vincent.
— E lá que você...
Emma parou bruscamente e ficou vermelha como um pimentão, Jane olhou para a irmã
com o rosto fechado. Duncan interveio rapidamente.
— Por que o médico disse que é perigoso usar borrachinhas no ouvido, tio?
— Porque a pressão pode empurrá-las para dentro do ouvido ou se saírem
acidentalmente, a pressão repentina pode perfurar o tímpano. Se a pressão causar dor de
ouvido, você pode remediar isso engolindo em seco ou soprando o ar pelo nariz.
— O que você ia perguntar, Emma? — insistiu Sanchia propositalmente.
— Ah, não era nada. Eu estava querendo saber quanto tempo vamos ficar lá — disse a
menina sem jeito.
— Isso depende — comentou Tom. — Se tudo estiver em ordem no nosso armazém,
vamos nos demorar uns dez dias, mais ou menos.
— Eu pensei que você estivesse muito ocupado nessa época do ano — observou
Sanchia. — Lembra o que você disse lá em casa?
— Como disse, tudo vai depender do que encontrar lá. Por enquanto, não há nada
urgente. Mas se surgir algum problema inesperado, pode ser que esteja muito ocupado
na semana que vem.
Naquela mesma noite, ao voltar para a cabine após um banho d chuveiro, Sanchia
encontrou Tom no corredor. Em vez de afastar-se para o lado, ele parou bem no meio da
passagem.
— Ninguém a reconheceria mais. E incrível a diferença que faz uma semana de sol.
Você está muito bem com essa pele bronzeada. Combina com seus cabelos castanhos...
Sanchia ouviu o comentário em silêncio, ligeiramente sem jeito. Ela saíra do banho com
uma toalha enrolada no corpo. Não teria se importado de encontrar Jock naqueles trajes,
mas ficou sem graça diante de Tom.
— Você já vai dormir? Eu me lembro que na Inglaterra você ia mais tarde para a cama.
— A noite que você chegou foi uma exceção.
— Ah, bom. Eu pensei que nossa conversa na praia tinha sido suficiente para criar mais
intimidade entre nós dois. Você não acha que podia confiar um pouco mais em mim? Se
eu tivesse a intenção de me aproveitar, essa seria uma boa oportunidade, não acha?
Ela recuou um passo, corando tanto quanto Emma à mesa do jantar.
— Nunca me ocorreu que você fosse fazer isso.
— Por que não? Eu sou um homem como os outros.
— Pois não parece. Com licença, vou trocar de roupa.
— Não faça cerimônia — disse Tom afastando-se da passagem com um sorriso irônico
nos olhos.
Consciente de que estava sendo observada, Sanchia correu para a cabine e fechou a
porta atrás de si. Foi só então que notou que estava trêmula e ofegante.
Não posso continuar desse jeito, pensou com determinação. Estou me comportando
como uma adolescente. Preciso terminar de uma vez com isso. Não adianta adiar mais.
Tem que ser agora.
Tomada essa decisão, vestiu-se rapidamente e voltou à procura de Tom antes que sua
coragem repentina desaparecesse.
Ele estava no leme ao lado de Jock. Quando Tom a avistou e levantou as sobrancelhas
com o rosto surpreso, sua decisão quase foi por água abaixo.
— Posso conversar um minuto com você?
— Naturalmente. — Acompanhou-a até a saleta. — O que foi? Ela respirou fundo. —
Você disse há pouco que eu parecia tensa.
Você tem toda a razão. Eu me sinto tensa. Mas não é pelo motivo que você sugeriu.
Como posso confiar em você quando sei que está escondendo uma coisa de mim?
— Escondendo uma coisa de você?
— Há um segredo entre você e as crianças, e eu não sei qual é.
— Ahhh. Há quanto tempo você suspeita disso?
— Desde lá de casa. Estava visível que as crianças tinham um segredo, mas eu imaginei
a princípio que era algo sem importância... uma brincadeira qualquer.
— E agora você julga que tem importância?
— Não sei realmente o que pensar.
— Vamos, confesse... você deve ter alguma idéia. Se você suspeitou haver um segredo
entre nós, tenho certeza de que tirou alguma conclusão. Que mulher não tiraria?
Seu tom arrogante levou-a a falar claramente.
— Está bem, eu tenho. . . e não é nada agradável. Eu não tenho certeza, mas acho que
você está praticando algo ilegal.
O ar divertido desapareceu de seus olhos.
— É mesmo? — perguntou em voz baixa. — E o que você entende por "algo ilegal"?
— Bem, você pode não chamar isso de ilegal, mas para mim é. Eu penso que você
está... transportando contrabando.
Sem afastar os olhos dela, Tom acendeu um cigarro.
— E daí? O que você pretende fazer?
— Quer dizer quer dizer que você confessa estar fazendo contrabando? — gaguejou
Sanchia, com os olhos arregalados.
— De certa forma, sim.
As pernas dela amoleceram repentinamente. Sentou-se na cadeira com o rosto branco
como cera.
— Como você pode dizer isso com tanta calma?
— Você esperava que eu negasse?
— Claro que sim — exclamou, com uma confusão horrível. — Isso me parecia a única
explicação possível, mas nunca acreditei sinceramente. Por que haveria de acreditar? Eu
gostava. . .
Interrompeu o que ia dizer com um soluço nervoso e mordeu o lábio sem jeito.
— Você gostava de mim?
Ela inclinou a cabeça e olhou para as mãos crispadas em cima dos joelhos.
— Sim... eu gostava de você — confessou em voz baixa.

CAPITULO IV

— Espere aqui. Eu vou buscar uma coisa na minha cabine. Quando Tom saiu da saleta,
Sanchia pensou no que devia fazer.
O que Delia faria numa situação semelhante?
Antes que pudesse tomar uma decisão. Tom voltou com uma caixa de metal que colocou
em cima da mesa. Tirou do interior uma caixinha de papelão presa com um elástico.
— Veja o que tem dentro.
Por mais espantada que estivesse, Sanchia estendeu instintivamente a mão para segurar
a caixinha. Retirou o elástico e levantou a tampa. No interior, entre chumaços de
algodão, estavam diversas moedas.
— Sabe o que são essas moedas?
Podia perceber que eram muito antigas, apesar de estarem brilhando.
— Dobrões?
— Não, escudos. Encontramos essas moedas no ano passado, por acaso. Este ano, no
fim da temporada, vamos voltar ao mesmo local para procurar com mais cuidado. Pode
ser que não encontremos nada ou que encontremos um tesouro no valor de muitos
milhões. Foi isso que contei às crianças. É este o segredo. Achei que seria uma distração
para elas. Eu não contei a você porque não sabia como ia reagir. Você podia ter acabado
com a alegria das crianças com seu ceticismo ou podia dar com a língua nos dentes.
Algumas mulheres não conseguem guardar segredo. Se estamos atrás de algo grande,
ninguém pode saber disso além de nós.
— Mas o que tem isso a ver com contrabando?
— As pessoas que encontram tesouros devem notificar o fato às autoridades, que
cobram uma porcentagem sobre o valor da descoberta. Apropriar-se de um tesouro
particularmente é uma espécie de atividade ilegal. Mas se nossa expedição for bem-
sucedida, posso adiantar que o governo não vai receber um tostão de mim. Eles já
recebem impostos demais sem isso. Os proprietários legítimos morreram há centenas de
anos. O que encontrarmos vai ser nosso. . . e vamos fazer o que bem entendermos.
— É isso então que você está fazendo. . . uma busca ao tesouro?
— Bem, essa é nossa única atividade ilegal, e ainda nem mesmo começamos. ..
Aliviada com a explicação, Sanchia foi tomada de uma irritação repentina pelo susto
que levara anteriormente.
— Mas você deu a entender que estava fazendo algo criminoso. Você praticamente
admitiu...
— Eu lhe peço perdão — disse Tom com a voz serena. — Agora, pelo menos, eu sei que
sua antipatia por mim não tinha raízes profundas. No convívio habitual, isso não teria
ficado claro tão rapidamente.
— Você usa recursos meio estranhos para tirar a limpo as coisas — disse Sanchia com
agressividade. — O que me surpreendeu mais foi imaginar que Jock e George pudessem
estar envolvidos numa atividade ilegal.
— E agora, qual é sua opinião?
Sanchia examinou as moedas com cuidado antes de responder.
— Onde você encontrou estas moedas? Em St. Vincent?
— Não, um pouco mais para o norte. No momento, a localização exata não pode ser
revelada.
— Você espera realmente encontrar uma fortuna da próxima vez?
— É possível. Há alguns anos, um grupo de americanos descobriu moedas antigas no
valor de um milhão de dólares.
Tom olhou de repente para seu relógio de pulso.
— Está na hora de substituir Jock no leme. Vamos conversar lá em cima.
No momento em que chegaram à casa do leme, Jock estava esfregando as mãos para se
aquecer.
— Vamos tomar um chocolate quente? — perguntou, quando os dois se aproximaram.
— Obrigado, Jock. É melhor você ir descansar um pouco. Sanchia fará mais tarde um
chocolate se ela tiver vontade. — Voltou-se para ela. — Você já segurou alguma vez no
leme?
— Nunca.
— Não fique nervosa... não é difícil. — Retirou uma das mãos do leme e afastou-se um
passo, dando lugar para ela aproximar-se da roda. Em seguida, tornou a colocar a mão
no leme, de modo que Sanchia estava no espaço aberto entre seus braços estendidos.
— Quando o leme é uma roda, dirigir um veleiro é a mesma coisa que guiar um carro
— explicou Tom. — Só que, em vez de seguir uma rua ou uma estrada, você segue a
rota apontada pela bússola. Ponha suas mãos embaixo das minhas para sentir o barco
puxando.
Seria fácil sentir o puxão do veleiro se estivesse segurando o leme sozinha. Naquela
situação, porém, em vez de prestar atenção ao leme, estava mais consciente da pressão
das mãos dele sobre as suas.
E foi pior ainda quando Tom disse junto ao seu ouvido:
— Não aperte com tanta força. Os barcos são como as mulheres. Se o homem for
delicado demais, elas tomam conta dele. Por outro lado, não gostam de uma mão pesada
demais. Firme mas leve... esse é o melhor sistema.
Depois disso Tom ficou em silêncio e Sanchia pôde concentrar-se no mostrador
iluminado da bússola. Ao sentir, de tempos em tempos, os dedos dele apertarem ou
soltarem a roda, ela começou a entender o que devia fazer para manter o veleiro na rota
certa.
Olhar para a bússola, no entanto, exercia um efeito quase hipnótico. Depois de estar no
leme durante uns vinte minutos, notou subitamente uma alteração na posição dos dois.
Ou bem tinha Tom se aproximado mais dela, ou então era ela que, inconscientemente,
tinha se apoiado no seu corpo.
Quando Tom retirou a mão da roda, Sanchia conseguiu soltar a sua. No momento
seguinte, porém, sentiu-se ainda mais apertadado que antes. Agora não era mais o caso
de apoiar-se no seu peito. A única maneira que podia evitar o contato físico era inclinar-
se para a frente, mas isso iria interferir com o movimento do leme.
Se ela estivesse certa de que Tom a apertava propositalmente, pediria para se afastar um
pouco. Mas aquilo podia ser acidental e não queria fazer um comentário que pudesse ser
mal interpretado, como acontecera no passado.
Assim, procurando ignorar que estava muito perto dele para se sentir à vontade,
comentou:
— Conte mais coisas sobre a busca ao tesouro. Você desce muito fundo? É perigoso?
Não tem tubarões por perto?
— Os tubarões raramente atacam os mergulhadores. Imaginam que são uma outra
espécie de peixe grande. Além disso, os tubarões nestas águas têm muito que comer sem
precisar atacar os banhistas. As barracudas e as enguias é que são peixes realmente
perigosos.
— Você vai levar as crianças nessa expedição?
— As meninas não. Duncan pode ajudar George se quiser. Mergulhar é um exercício
seguro, contanto que se obedeça a algumas regras básicas. A primeira de todas é nunca
mergulhar sozinho. Seus cabelos têm um cheiro gostoso.
Como esse comentário foi dito com a mesma entonação de voz. Sanchia levou alguns
segundos para reagir.
— Muito obrigada. Eu vou prender os cabelos para não baterem no seu rosto.
— Não precisa... eu gosto mais assim. De qualquer maneira, você é mais baixa que eu.
Sua cabeça bate no meu queixo. Você acha que pode segurar o leme sozinha?
Sem esperar pela resposta, soltou a roda e afastou-se alguns passos.
— Por favor, não vá embora! — exclamou Sanchia.
— Não fique nervosa. Você pode navegar sozinha. Eu vou acordar George. Está na hora
de sua guarda, mas ele não se levanta sozinho se não for chamado. Volto num minuto.
Basta manter o leme na mesma posição.
No primeiro instante, ela foi tomada de pânico com a idéia de navegar sozinha o veleiro.
Como no dia em que Barney lhe deu a direção do carro depois de ter recebido a carteira
de motorista. Naquela ocasião, como agora, sua mente atravessou um instante de
vertigem completa e a única coisa que lhe ocorria era o pavor de cometer um erro e
causar um acidente.
Entretanto, logo se recuperou do nervosismo. A roda não mexia em suas mãos. O
veleiro não mudou de rumo pelo simples fato de haver um novato no leme. Após alguns
minutos, começou a apreciar a oportunidade que Tom lhe dera de mostrar sua
capacidade.
George aproximou-se bocejando e cocando a cabeça.
— O capitão está esperando-a lá embaixo.
— Ah, sim! Já vou. Boa noite, George.
Tom estava na cozinha preparando um chocolate quente. Não perguntou como ela tinha
se saído na sua ausência.
— Diga uma coisa... Por que você concluiu imediatamente que eu estava fazendo algo
ilegal?
— Bem, eu achei que não havia outra explicação... Pode parecer bobagem — disse
Sanchia corando ligeiramente, — mas alguns detalhes me levaram a confirmar essa
suspeita.
— Quais, por exemplo?
— Jock me contou que vocês dois começaram do nada... Não entendi como podiam ter
ganho tanto dinheiro num tempo tão curto...
— O trabalho e a sorte nos ajudaram. Nós estamos levando uma vida confortável agora,
mas no começo foi muito duro. Pelo menos, até conseguirmos levantar um capital.
— Um empréstimo? Não tinha pensado nisso...
— Claro, o que mais podia ser? Aquele sistema antigo de juntar dinheiro pouco a pouco
não funciona mais hoje em dia. O sucesso começa quando você recebe crédito... quando
um banco lhe concede um empréstimo de alguns milhões. — Fez uma pausa para mexer
o chocolate. — Este veleiro está pago. Enquanto estiver navegando em boas condições,
ninguém vai passar fome.
Calou-se e observou-a com atenção.
— Qual era a outra suspeita? — perguntou em seguida.
— Você vai achar ainda mais boba que a primeira...
— Pode ser, mas não custa nada dizer, já que estamos dispostos a esclarecer as coisas de
uma vez por todas.
— Quando subimos a bordo, você não me levou para visitar o barco inteiro. Pensei que
havia certas partes que não podia ver. Fora isso, achei estranho ver você fechando a
porta a chave de sua cabine.
— Só isso? Você tem muita imaginação! Eu não imaginei que você estava interessada
em conhecer a casa das máquinas e os porões. E a razão pela qual eu fecho a porta a
chave é para as crianças não entrarem. Nunca se sabe o que elas podem aprontar...
— Bem, eu lhe peço perdão por minhas suspeitas...
— Você não tem do que se desculpar. No fundo, estou mais divertido do que zangado.
Agora entendo o motivo que sua preocupação. Imagino que não foi nada agradável
viajar num barco e suspeitar que eu estava fazendo contrabando. Aliás, eu não fui uma
presença muito agradável desde a primeira noite em que nos conhecemos... Pobre
Sanchia... Você vai respirar aliviada quando voltar para seu chalé...
Sanchia ouviu o comentário em silêncio.
— Pela maneira como as crianças se adaptaram, você poderá voltar para casa mais cedo
do que prevíamos.
— Eu não me importo em ficar o mês todo... a menos que você não queira.
— Depende unicamente de você. Podemos decidir isso no fim da semana que vem.
Deitada na cama, sem poder dormir, rememorou a conversa com Tom e compreendeu
que não tinha o menor desejo de voltar para casa. Nunca mais veria as crianças. Elas
escreveriam algumas vezes no começo, mas logo depois voltariam para o colégio e
teriam muitos programas excitantes para se distrair. Dentro de um ano, mal se
lembrariam dela.
Além disso, sua vida seria fria e sem graça depois desses dias maravilhosos em alto-
mar. O chalé estaria sempre silencioso e vazio. O trabalho no colégio parecia insípido e
melancólico.
Lembrou-se do que Tom lhe dissera na praia. A vida não era muito longa para ser
desperdiçada inutilmente. Naquela ocasião não admitiu que estivesse desperdiçando sua
vida. Agora, no entanto, compreendeu claramente que os anos que tinha pela frente
seriam tão tristes e sem objetivo como no passado.
A base de Tom em St. Vincent não era em Kingstown, a cidade principal da ilha, mas
numa aldeia de pescadores onde ele estava construindo um embarcadouro para veleiros
e barcos de recreio. Entretanto, durante os dias que passaram em St. Vincent, o
Jacarandá ficou ancorado numa enseada protegida não muito longe de Kingstown.
Enquanto Tom resolvia seus negócios na cidade, Jock levou Sanchia e as crianças para
conhecerem o litoral. Visitaram o mercado barulhento e colorido no cais e levaram um
dia inteiro para escalar o pico do monte Soufriere, com seu belo lago formado na cratera
de um vulcão.
No centro comercial de Kingstown, Sanchia comprou uma máquina fotográfica e filmes
coloridos para levar algumas lembranças das férias passadas nas Antilhas.
Embora as fotografias não dessem uma idéia exata das cores deslumbrantes do mar e do
céu, fotografou mesmo assim muitos poentes e nascentes, bem como a paisagem
montanhosa da ilha vista da escuna, além de diversas fotos do Jacarandá tiradas de
vários pontos da praia, em luzes e momentos diferentes. Bateu um rolo inteiro com fotos
das crianças brincando na praia ou posando todas juntas.
Uma manhã, no fim da segunda semana no mar, Sanchia estava vestindo o biquíni para
dar seu mergulho habitual antes do café, quando notou que havia algo diferente. A
princípio, não soube direito o que era. Depois, compreendeu que o veleiro estava
silencioso de mais.
Durante alguns segundos, tudo continuou em silêncio. Em segui da, ouviu alguns
murmúrios e rísadinhas abafadas. Caminhou na ponta dos pés até o corredor, com a
intenção de subir ao convés. A passar pela saleta, cinco vozes entoaram ao mesmo
tempo:
— Happy birthday to you... happy birthday to you... happy birthday, dear Sanchia...
happy birthday to you-o-o-o!
Preocupada com outros assuntos, tinha esquecido completamente a data do aniversário!
— Como vocês sabiam? — exclamou, quando as crianças terminaram de cantar.
— Foi a diretora que disse! — explicou Jane com um sorriso. Feliz aniversário e muitos
anos de vida!
As duas meninas abraçaram e deram muitos beijos na aniversariante.
Duncan e George apertaram sua mão e lhe desejaram muitas felicidades. Jock, no
entanto, lhe deu um beijo estalado no rosto.
Foi nesse momento que Tom apareceu. Tinha ido à cidade de manhã cedo e estava
carregado de embrulhos.
— Muitas felicidades, Sanchia. E muitos anos de vida!
— Jock deu um beijo na Sanchia — disse Emma com sua voz inocente. — Você não vai
dar?
— Ah, foi? — perguntou Tom com o rosto surpreso. — Neste caso...
Ao contrário do beijo estalado de Jock, o contato de seus lábios foi tão leve e rápido que
Sanchia mal sentiu. Mesmo assim, corou; como um pimentão.
— Você não vai abrir os presentes? — perguntou Jane.
Todos se voltaram para a mesa onde o lugar de Sanchia estava enfeitado com flores. O
primeiro presente era um par de sandálias de palha, feito pelos moradores da ilha.
Os presentes não eram caros, mas agradaram mais a Sanchia d que se tivessem custado
uma fortuna. Ficou comovida e fez um esforço para não chorar.
— Fazia muitos anos que não ganhava tantos presentes no dia do meu aniversário...
Muitos anos... — Enxugou uma lágrima inesperada. — Eu estou muito velha para fazer
anos.
— Que idade você tem? — perguntou Emma.
Jock estalou a língua.
— A gente não pergunta a idade das moças, boneca!
— Você não abriu ainda o presente do tio! — disse Jane. — Onde está?
— Está na minha cabine. Vou buscar.
No momento em que Tom saiu, Jock sentou as crianças em volta da mesa para comerem
o bolo de aniversário.
Tom voltou em seguida e deu a Sanchia uma pequena caixinha. No interior estava uma
pulseira como ela nunca tinha visto na vida. AH crianças, que sabiam do que se tratava,
não deram tempo ao tio da explicar.
Sanchia colocou a pulseira no pulso. Era feita de prata genuína, r as escamas eram
trabalhadas com arte para agradar ao gosto exigente de um turista rico.
— É muito linda — disse para Tom. — Muito obrigada.
— Eu sabia que você ia gostar — disse Tom com um sorriso misterioso.
Enquanto estavam tomando café, ouviram o ronco de um motor possante que se
aproximava rapidamente do veleiro.
— Deve ser Steve Harris. Ele vai levar vocês para esquiarem — disse Tom.
As crianças gritaram de alegria e saíram correndo em direção ao convés. O ronco do
motor tornou-se mais alto até que silenciou repentinamente quando chegou bem perto
do Jacarandá.
Depois de ser apresentada a Steve, um homem alto, de voz grossa, com o corpo
musculoso de um lutador de boxe, Sanchia foi arrumar a sua cabine. Ao retirar a
pulseira de prata do pulso, ficou curiosa em saber o motivo de ter ganho um presente tão
caro. Tom não podia ter comprado para seu aniversário porque a pulseira vinha de
Trinidad. Ele comprara provavelmente para outra mulher. Quem seria essa mulher?
Enquanto refletia sobre isso, alguém bateu de leve na porta.
— Entre! — disse Sanchia, julgando que fosse uma das meninas. Ficou surpresa ao ver
Tom aparecer na porta.
— Você tem algum vestido para usar à noite?
— Tenho... por quê?
— Porque reservei uma mesa para o jantar e marquei uma hora para você no
cabeleireiro.
— Ah, sim? Muito obrigada.
— Você pode trocar de roupa no cabeleireiro. O salão é da mulher de Steve. Os dois são
velhos amigos meus. Foi ela que sugeriu você trocar de roupa lá.
Antes que pudesse fazer mais perguntas, Tom saiu da cabine.
Há duas semanas, Sanchia se revoltaria se alguém organizasse sua vida sem consultá-la
primeiro. Agora, no entanto, ocorreu-lhe que Tom havia apenas antecipado seus desejos.
Ele devia conhecer muito bem as mulheres. Não passava em geral pela cabeça dos
homens que uma mulher não teria prazer em ir a um' jantar de cerimônia sem primeiro
marcar hora no cabeleireiro.
Ao meio-dia, as crianças já tinham aprendido a esquiar. Para s própria surpresa, Sanchia
foi a aluna mais talentosa. Conseguiu levantar-se da água na segunda tentativa e não
teve dificuldade e manter o equilíbrio em cima dos esquis. As velocidades sempre
assustavam, mesmo antes do acidente de automóvel que sofreu, mas no mar a
velocidade era uma sensação excitante e eufórica.
Sanchia nunca tivera antes nenhum talento especial, nem mesmo desejo de competir
com os outros. Quando se formou e os país sugeriram que fizesse um curso de
secretária, aceitou o conselho sem discutir.
Era estranho pensar que levara vinte e quatro anos para descobrir realmente o esporte
que gostava de praticar e era triste saber que não poderia praticá-lo quando voltasse para
a Inglaterra.
Durante a tarde inteira, o ronco do motor ecoou pela baía até quase às quatro horas,
Sanchia preparou-se para ir a Kingstown.
Jock colocou dois baldes de água doce no banheiro para ela tirar o sal do corpo antes de
vestir a roupa limpa. Tom, George e as crianças ainda estavam na praia quando ela subiu
na lancha de Steve.
— Como os outros vão para o hotel? — perguntou Sanchia a Jock.
— Nós vamos deixar Kingstown hoje à noite. Tom não falou nada?
— Não. Mas não tem importância. Adeus, Jock.
As crianças acenaram para ela da praia quando a lancha ganho velocidade.
— Amanhã você vai estar com o corpo meio dolorido — disse Steve.
— Eu faço idéia... Mas valeu a pena aprender a esquiar. Gostaria de praticar bastante,
antes de voltar.
— Por que você não fica um pouco mais?
— Pois é... mas eu tenho trabalho me esperando.
Steve contou que, além de levar os turistas para passear de lancha e esquiar, trabalhava
para Tom nas horas livres, transportando mantimentos para seus barcos.
Foi através de Steve que Sanchia ficou sabendo a história de George. Os pais do menino
tinham se mudado de St. Vincent para Granada pouco antes que um violento furacão
destruísse completamente uma parte da ilha. Em conseqüência de ter perdido o pai e a
má na infância, George tornou-se um menino problemático. Aos onze anos, teve os
primeiros conflitos com a polícia. Foi nessa ocasião que Tom ouviu falar no menino e
decidiu levá-lo consigo no veleiro. Para surpresa de todos, a recuperação de George foi
rápida e definitiva.
Emerald, a mulher de Steve, era uma moça morena, de olho grandes e cílios compridos.
Como seu marido, era muito simpática e conversadora, e as duas se deram muito bem.
O salão de beleza, embora pequeno, era bem equipado e imaculadamente limpo.
Ventiladores presos no teto tornavam a temperatura agradável e um pequeno repuxo
interno criava uma atmosfera tranqüila na sala de paredes brancas.
Enquanto Sanchia estava com o secador na cabeça, Emerald fez suas unhas e falou
sobre os problemas de beleza peculiares à região.
Sanchia calçou por último os sapatos. Depois de passar duas semanas descalças ou
somente de sandálias, até mesmo os saltos médios pareciam estranhos e inconfortáveis.
Mirou-se no espelho. O vestido era feito de um tecido leve com flores estampadas em
tonalidades turquesa, violeta e rosa-vivo.
Ouviram alguém bater na porta. Emerald olhou pela persiana.
— É o Tom que está aí. — Abriu a porta. — Entre, Tom. Sanchia já está pronta.
Tom estava com um terno cinza de verão, camisa branca e uma gravata preta de seda.
Sorriu para Emerald e voltou-se para Sanchia, admirando o penteado e o vestido azul-
turquesa.
— Estou apresentável?
— Acho que você está mais que apresentável — disse Tom com um sorriso. — Adeus,
Emerald. Até a próxima vez.
Havia um táxi esperando na calçada.
— Onde estão os outros? — perguntou Sanchia, ajeitando-se no banco enquanto o
motorista manobrava o carro. — Nós vamos apanhá-los ou eles foram na frente?
— Um jantar dançante não é um local muito indicado para levar as crianças. Elas foram
jantar com Jock numa lanchonete.
O hotel ficava no alto de um morro com vista para o mar. No momento em que Tom lhe
estendeu a mão para descer do táxi, Sanchia ouviu a música lenta e melodiosa que vinha
do salão.
— Você pode deixar suas coisas no vestiário — disse Tom quando entraram no hotel. —
É ali naquela porta.
No vestiário, uma mulher de vermelho estava se perfumando profusamente com um
vidrinho de spray. Sanchia perguntou à moça que tomava conta onde podia deixar a
bolsa. Ao ouvir sua pergunta, a mulher de vermelho voltou-se repentinamente e
observou-a com atenção.
— Eu a conheço de algum lugar. Você não é inglesa?
Sanchia balançou a cabeça afirmativamente. Lembrou-se de que a mulher tinha uma
filha que estudava no colégio em Lingard.
— Eu sabia que a conhecia de algum lugar! — exclamou a mulher de vermelho. —
Nunca fomos apresentadas, mas já nos encontramos muitas vezes no colégio em
Lingard. Você é ex-aluna?
Antes que Sanchia pudesse responder, a mulher prosseguiu:
— Ê fantástico! Nós vimos aqui todos os invernos e eu não dou dois passos sem
encontrar algum conhecido. Desta vez, no entanto, não encontrei ninguém até agora e
estou morrendo de curiosidade para saber o que aconteceu com as crianças da família
Rowland. Você deve ter ouvido falar. O assunto foi muito comentado no colégio.
— Que assunto?
— Você não sabe que Eric e a mulher morreram num acidente aéreo antes do Natal?
Saiu em todos os jornais.
— Ah, sim, eu soube.
A mulher abriu uma cigarreira de ouro e lhe ofereceu um cigarro.
— Você não fuma? — perguntou, soprando a fumaça pela boca pintada de vermelho. —
Ouvi dizer que o irmão de Lucy apareceu de repente e levou as crianças embora. Você
não conheceu Eric e Lucy?
Sanchia balançou a cabeça negativamente.
— Ah, que pena! Eu gostava muito de Eric, mas sua mulher. . . eu vou lhe contar. ..
— O que tinha ela demais?
— Bem, ela era muito bonita e simpática... mas definitivamente não era uma mulher de
classe. Não sei como os dois se casaram. Aliás, ouvi dizer que o irmão, esse que está
tomando conta das crianças, é um homenzinho terrivelmente vulgar.. . um verdadeiro
espantalho! — acrescentou a mulher com uma risada.
— Quem lhe disse isso?
— Alguém que o conheceu alguns anos atrás. Ouvi dizer que ele vive no estrangeiro. Eu
não ficaria surpresa se soubesse que Eric lhe deu algum dinheiro para ele sumir da
Inglaterra. Mas você não sabe da maior.. Fiquei sabendo que esse homem, juntamente
com as crianças, está velejando por aí. ..
— Exatamente — disse Sanchia com frieza. — Aliás, para dizer a verdade, eu conheço
as crianças e o tio que está cuidando delas.
A mulher de vermelho arregalou os olhos.
— Como? Você os encontrou por aqui? Por que você não me disse antes, querida? Você
sabe mais coisas do que eu!
— Eu sei uma versão bastante diferente da sua. Eu não sou ex-aluna do colégio em
Lingard. Eu sou a secretária da senhora Preston. Eu trouxe as crianças até aqui e vou
ficar com elas até se ambientarem completamente.
— Meu Deus! Eu não podia imaginar!
Sanchia estava com tanta raiva que quase disse um desaforo. Como secretária do
colégio, não podia tratar mal um pai de aluno, nem mesmo uma mulher que espalhava
boatos falsos e maldosos. Controlou-se com esforço e acrescentou com a voz fria:
— Se encontrar outros pais de alunos, pode dizer que o tio foi a única pessoa que se
ofereceu para tomar conta dos sobrinhos. Além disso, não é absolutamente um homem
vulgar e irresponsável como lhe contaram. É uma pessoa extremamente boa e generosa.
Na minha opinião, as crianças não podiam estar em melhor companhia e tenho certeza
de que se darão muito bem com ele no futuro.
Antes que a mulher pudesse fazer um comentário, voltou-se e saiu do vestiário. Sua
irritação era visível quando se encontrou com Tom no saguão.
— O que aconteceu? — perguntou Tom surpreso.
— Ah, nada especial...
Tom segurou-a pelo braço e conduziu-a ao salão de jantar, onde o maitre levou-os até a
mesa reservada. Um conjunto tocava no tablado ao lado da pista de dança, mas o salão
estava praticamente vazio.
Tom pediu um aperitivo ao garçom e examinou com atenção o menu.
— Por que você está com essa cara? Não está contente de jantar sozinha comigo?
— Não, não é isso. Meu mau humor não tem nada a ver com você. Foi uma mulher que
encontrei no vestiário... a mãe de uma aluna do colégio em Lingard.
— E por que você ficou tão irritada com o encontro?
— Ah, é uma mulher insuportável...
— Ela perguntou o que você estava fazendo aqui?
— Ela pensou que eu fosse uma ex-aluna. Se soubesse que era a secretária do colégio,
teria sido mais discreta.
— Bem, vamos fingir que não a conhecemos se ela aparecer de novo. Que tal dançar
antes que a pista fique repleta de gente?
— Boa idéia.
Tom levantou-se e passou o braço em volta de sua cintura. A mão dele estava fria é seca
e Sanchia rezou para a sua não estar úmida. Tom encarou-a um momento em silêncio,
com o canto da boca ligeiramente torcido.
— Ah, meu Deus! — exclamou Sanchia quando voltavam para a mesa, ao olhar a outra
extremidade da sala e avistar a mulher de vermelho que se aproximava na companhia do
marido.
Tom voltou-se na direção dos seus olhos.
— Foi essa mulher com quem você conversou no vestiário?
— A própria.
A princípio parecia que o casal ia ocupar uma mesa distante do conjunto dos músicos.
Foi então que o marido, um homem alto e bem vestido, com um bigode e maneiras de
militar, murmurou alguma coisa em voz baixa para o maitre. Mudaram de direção e
aproximaram-se do canto onde os dois estavam sentados.
A mulher de vermelho não notou imediatamente a presença dos ocupantes da mesa
vizinha. Em dado momento, porém, voltou a c beca e olhou diretamente para Sanchia.
— Ah, que coincidência! Voltamos a nos encontrar. Hugo, você está lembrado da
secretária de Delia Preston?
— Mas naturalmente — disse o marido, levantando-se da me para cumprimentá-la. Tom
ergueu-se igualmente e Sanchia os apresentou.
— Como está passando? — perguntou a mulher de vermelho, com um sorriso nos
lábios. — Meu marido e eu conhecíamos muito s irmã e seu cunhado. Ficamos
profundamente chocados com o acidente, não foi Hugo? E as crianças... já se
recuperaram do golpe?
— Um pouquinho...
—Eu fiquei tão preocupada com as crianças... Como elas estão passando? Quais são
seus planos para o futuro? Sua residência é em St. Vincent?
Sanchia olhou para a mulher com o rosto perplexo. Como era possível alguém ser tão
ávido assim de informações? ■
Antes que Tom pudesse responder, o garçom voltou para tom os pedidos.
— O que você nos recomenda, Tom? — perguntou o marido. Faz pouco tempo que
chegamos aqui. Normalmente vamos a Antígua, mas este ano resolvemos conhecer as
outras ilhas do arquipélago. Estamos chegando de Granada. Alugamos um iate lá.
— O Poinciana?
— Exatamente. Como você adivinhou? Tom roçou os joelhos por baixo da mesa nos de
Sanchia.
— Eu vi o iate chegar esta tarde. Está gostando do barco? É confortável?
— Não é nada mau, embora o piloto seja um pouco esquisito.
— Ah, sim? Em que sentido?
— Ele me pareceu meio obtuso. Uma ou duas vezes eu dei uma ordem e ele fez
exatamente o contrário.
— Sem falar que tem o mau costume de rir o tempo todo — disse a mulher.
Sanchia foi apanhada de surpresa quando o marido voltou-se para ela e perguntou com o
rosto sorridente:
— Posso tirá-la para dançar?
Quando Hugo passou o braço em volta de sua cintura, Sanchia sentiu-se profundamente
deprimida com a perspectiva de passar a noite na companhia dos dois. Arrependeu-se de
não ter contado a Tom a opinião da mulher a seu respeito. Talvez ele tivesse encontrado
uma maneira de se desembaraçar dos importunos.
— Tom me contou que você está adorando a viagem — disse a mulher quando Sanchia
voltou a sentar-se. — Imagino que você vá sentir muita saudade daqui. A paisagem
inglesa vai lhe parecer muito triste depois desta temporada no mar das Antilhas. Quando
você pretende voltar?
— Ainda não tem data marcada — disse Tom. Voltou-se para Sanchia. — Você está com
fome ou vamos dançar mais uma vez?
— Vamos dançar.
— Com licença — disse Tom com um sorriso para o casal. Desta vez, ela abandonou-se
com alegria nos seus braços.
— Não podemos dar o fora? Eu prefiro voltar para o veleiro do que passar a noite com
esses dois!
— Eu também não tenho essa intenção — disse Tom calmamente.
— Vamos mudar para outra mesa. Não acredito que eles vão nos perseguir até o fim do
mundo.
Tom aproximou-se do maitre, trocou algumas palavras em voz baixa e, poucos minutos
depois, foram conduzidos a uma mesa pequena para dois.
— A mulher vai ficar uma fera! — murmurou Sanchia. — Nem quero imaginar o que
vai dizer depois!
— Provavelmente que você e eu mantemos uma relação ilícita — disse Tom com a voz
calma.
Logo depois, o prato que tinham pedido chegou. Enquanto mergulhava a colher na
massa cremosa do abacate, Sanchia perguntou:
— O Poinciana é um dos seus barcos?
— É, e o piloto me parece um homem de toda confiança. Se desobedeceu às ordens do
tal Hugo, foi para não encalhar num banco de areia. O que a mulher disse para você no
vestiário? Mais do que você me contou, não é mesmo?
— Por que você quer saber?
— Ela me falou que você pulou em minha defesa. Com isso ela se denunciou. Suponho
que deva ter dito as piores de mim...
— Mais ou menos. Alguém contou a ela que você levou as crianças para dar um passeio
e que voltaram muito tarde para casa.
— Como você soube desse episódio?
— Duncan me contou. Ele ficou muito impressionado com o passeio.
— E você?
— Não me lembro mais qual foi minha reação. Penso que achei divertido.
— E foi por isso que você me agrediu tanto naquela primeira noite?
— Não, não foi por isso. Eu senti instintivamente que você ia perturbar minha vida...
minha paz.
— E agora? Você está arrependida?
— Foi uma experiência interessante.
— Só isso?
Ela não sabia o que ele queria ouvir como resposta.
— Vou sentir falta das crianças.
— Mas está contente de voltar?
Ela ficou na dúvida se devia confessará verdade.
— Depende do tempo que estiver fazendo — respondeu evasivamente. — Meu
bronzeado não vai durar muito na Inglaterra.
— De qualquer modo, você está com uma aparência muito melhor do que no Natal —
disse Tom, examinando-a com atenção. — Eu tive a impressão que você ia direto para o
hospital se apanhasse um resfriado. Você estava muito abaixo do seu peso. Aquela vez
que segurei no colo você me pareceu uma pena.
Ela corou repentinamente.
— Qual vez?
— Você já esqueceu? Você reagiu como se nunca tivesse sido levantada no colo por um
homem.
— Sinceramente, não lembro desse episódio — disse Sanchia com indiferença, dando a
entender que estava mais interessada no prato que o garçom trazia.
Tom manteve-se em silêncio até o momento em que o garçom afastou após servir a
lagosta.
— No dia em que vocês subiram no veleiro, lembra? A prancha estava solta e você deu
um passo em falso. Eu a levantei nos braços.
Sanchia fingiu que estava muito admirada com a lembrança.
— Puxa, que memória você tem!
— Você nunca mais pensou nisso?
Ela fingiu não perceber a ironia da pergunta.
— Não. Tinha me esquecido completamente.
— Não faz tanto tempo assim. Você esqueceu também das outras coisas que
aconteceram naquele dia?
— Todas não. Mas minha memória não é tão boa quanto a sua. Eu me esqueci de alguns
detalhes. — Fez uma pausa e acrescentou. — Ou você acha que ser levantada nos seus
braços é um acontecimento inesquecível?
Tom deu um sorriso.
— Depende de quem for.
— Eu não sou mais uma adolescente para me impressionar com essas coisas.
O rosto moreno endureceu-se repentinamente.
— Eu sei disso.
O silêncio pesado durou até terminarem a lagosta.
— Desculpe ter dito alguma coisa que o aborreceu — disse Sanchia, sem saber a que
atribuir a mudança repentina de Tom. — Você foi muito gentil de me convidar para
jantar fora. Eu adorei o passeio.
— Se você fosse uma adolescente, não haveria problema. Vamos dançar?
Passava da meia-noite quando saíram do restaurante. Durante a volta de táxi até o porto,
Sanchia tentou descobrir o que queriam dizer suas palavras enigmáticas.
— Vamos beber um último gole? — sugeriu Tom em voz baixa quando subiram a bordo
do Jacarandá.
— Muito obrigada — murmurou Sanchia tirando os sapatos para não acordar as
crianças. — Estou um pouco cansada. Vou direto para a cama. Mais uma vez, muito
obrigada pelo passeio. Foi maravilhoso.
— Não tem de quê.
— Boa noite. Tom.
— Você não esqueceu de nada?
— Do quê?
— O beijo de praxe.
Embora ela soubesse que Tom estava brincando, sentiu mesmo assim um nó na
garganta.
— Não é obrigatório, naturalmente... Se você não quiser, basta dizer. — Aproximou-se
dela, de costas para a lua, com o rosto na sombra, indecifrável.
Ainda mesmo que quisesse responder, não poderia. A voz estava presa na garganta.
Sentiu-se como um coelhinho hipnotizado pelos faróis de um carro. A sensação de
paralisia foi apenas momentânea. No momento em que ele a tocou, voltou novamente à
superfície.
Mas, então, foi tarde demais. Não havia nenhuma hesitação na maneira como a segurou
nos braços. Depois que a beijou — e o beijo durou uma eternidade —, Tom não a soltou
imediatamente. Os braços foram relaxando lentamente a pressão sobre seu corpo, até 0
instante em que ela se libertou de todo e correu para a cabine.

CAPITULO V

Ela foi acordada, na manhã seguinte, por uma leve pressão no ombro.
— Sou eu — disse Jane, com o rosto sorridente. — Trouxe seu café. O tio disse para
não acordá-la antes das dez porque vocês foram dormir tarde, ontem. Vocês se
divertiram muito?
— Sim, estava muito bom — disse Sanchia, esfregando os olhos.
— Encontraram algum conhecido? Dançaram muito? O que vocês comeram? —
perguntou Jane com animação, sentando-se na ma.
— Seu tio não contou? Não tinha idéia de quantas horas dormira. Não mais do que uma,
duas ou três, pelo sono que sentia.
— Ele contou apenas que foi uma noite esplêndida e foi até o to apanhar alguma coisa
antes de partirmos.
— A gente conversa sobre isso mais tarde, Jane. Estou com u pouco de dor de cabeça.
Vou tomar o café e talvez me sinta melhor depois de lavar o rosto e me vestir.
Depois que Jane saiu, Sanchia ajeitou o travesseiro na cama, apanhou a xícara de café e
reclinou-se na cabeceira para refletir sob; os acontecimentos da véspera.
"Uma noite esplêndida!" Ao visualizar a expressão de Tom dizendo isso — os olhos
divertidos, o sorriso meio irônico —, suas mãos tremeram, e quase derramou o café em
cima da colcha.
Durante horas permanecera acordada na cama, com raiva de Tom e de si mesma. A
verdade é que se abandonara inteiramente nos ser braços, ávida de seus beijos.
Ao olhar pela vigia da cabine, avistou apenas o mar aberto. Quando chegariam a
Granada? Havia um aeroporto na ilha? - pensou angustiada. A volta para a Inglaterra
não era apenas desejável, agora tornara-se urgente e obrigatória.
Levou a bandeja de café para a cozinha e estava lavando a xícara quando Tom apareceu.
Ele não entrou na cozinha; limitou-se a lhe dar bom-dia de passagem. Sanchia sentiu o
rosto em brasa, mas, felizmente, o corado tinha desaparecido quando ele voltou, daí a
pouco. Dessa vez paro para conversar com ela.
— Você dormiu bem?
Que homem antipático! - pensou com raiva. Seu rosto, no entanto, estava perfeitamente
tranqüilo, quando levantou a cabeça e encarou-o.
— Muito bem, obrigada. Vamos chegar a Granada hoje à noite? — Por que você quer
saber? Tomou gosto pela vida em alto-mar?
— Não, não é isso. Eu só queria saber quais são seus planos.
— Pensei que podíamos explorar outras ilhas por mais alguns dias, antes de rumarmos
para São George. Daqui a dez anos, ou menos, essas ilhas estarão repletas de turistas... e
adeus sossego! — disse Tom, saindo da cozinha. Essa breve conversa foi a única que
tiveram durante o dia.
Na tarde seguinte, ao ser informada por Jock de que havia um aeroporto em Granada,
Sanchia anunciou seu desejo de partir.
O veleiro estava ancorado numa pequena ilha desabitada que as crianças exploravam na
companhia de George. Sanchia conversava com Jock no convés. Ao perceber que o
velho marinheiro estava cochilando sob o sol quente do meio-dia, julgou o momento
oportuno para ter uma conversa com Tom.
Não foi preciso bater à porta da cabine. Ela estava aberta.
— Posso entrar? Gostaria de ter uma conversa com você.
Tom estava escrevendo numa pequena escrivaninha cuja tampa servia de mesa. Ele
afastou a cadeira.
— Entre. Estava fazendo uns cálculos. Sente-se — disse, apontando para o beliche. —
Ou você prefere sentar-se na cadeira?
Sem prestar atenção à ironia velada, Sanchia aceitou a sugestão e foi diretamente ao
assunto.
— Estive pensando no que você disse sobre minha permanência aqui. As crianças estão
perfeitamente adaptadas e não necessitam mais de mim. Podia aproveitar e tomar o
avião em Granada.
Tom refletiu um instante antes de responder.
— Está bom, então. Eu não faço objeção. Mas não há vôo direto de Granada, como você
deve saber. Terá que voltar a Trinidad.
— Sim, eu sei. Mas talvez não seja necessário passar a noite lá. Posso fazer a viagem
toda num dia.
— Talvez. Quando chegarmos a Granada, vou me informar sobre os horários dos vôos.
Surpresa com a solução rápida do assunto, Sanchia levantou-se para ir embora.
— Bem, era só isso que tinha para dizer. Vou deixar você com seus cálculos.
No momento em que se dirigiu à porta, Tom levantou-se e barrou-lhe a passagem.
— Escute...
— O quê?
— Você tomou essa decisão repentina porque a beijei ontem à noite?
— Não, claro que não! — respondeu impulsivamente. Arrependida de sua negação
veemente, acrescentou: — Por que você pergunta? O que uma coisa tem a ver com a
outra?
— Creio que você ficou um pouco abalada. Você está mais tensa, de ontem para cá.
— Você queria que aquilo me deixasse indiferente?
— Pelo menos terminou com o suspense. Não pergunte: "que suspense?" Você sabia que
isso ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Era inevitável.
— Não concordo — disse com a voz fria. — Por que tinha que ser inevitável?
Ele estendeu o braço para fechar a porta.
— Não se assuste. Estou apenas impedindo que alguém ouça nossa conversa.
— Não tem ninguém a bordo e Jock está dormindo no convés. De qualquer maneira,
essa conversa não me parece necessária. Eu já disse... o que aconteceu ontem à noite
não tem nada a ver com minha partida.
— Eu sei que você disse isso... mas não me convenceu. Sanchia concluiu que era
impossível discutir com ele nesses termos. Voltou as costas e ficou olhando
distraidamente, pela vigia, para a água cintilante e a silhueta nevoenta de uma outra
pequena ilha no horizonte.
— Você ia explicar por que foi inevitável — disse por fim, coma a voz tensa.
— Quase inevitável, na realidade — admitiu Tom, com um pequeno sorriso. —
Confesso que isso não teria acontecido se você não fosse tão atraente.
— Você tem o costume de beijar todas as mulheres que julga atraentes?
— Somente quando presumo que são mulheres normais, de sangue quente, e que não
consideram o beijo um insulto.
Ela se voltou repentinamente, com os olhos brilhantes.
— Ah, nunca encontrei ninguém tão convencido quanto você! — exclamou com fúria.
— Que direito você tem de dizer que sou diferente das outras? Qualquer mulher se
sentiria ofendida por ser trata J da daquele jeito.
— Ah, entendi... Um beijinho leve seria aceitável... Escute, Sanchia, nós não somos
mais crianças. Eu sou um homem, e não um garoto indeciso. E você também não é uma
jovem inexperiente, como tentou me convencer ontem à tarde.
Para sua consternação, ela se deu conta de que seus lábios estavam trêmulos e os olhos
rasos de água. As lágrimas inesperadas foram uma surpresa tão grande para ela quanto
para Tom. Terrivelmente embaraçada com essa crise repentina, conseguiu apenas virar a
cabeça e tentar se controlar.
— Use meu lenço — disse Tom, ao vê-la enxugar as lágrimas com | os dedos dobrados.
Ela segurou o lenço, enxugou os olhos e assoou o nariz. Com a voz rouca, conseguiu
dizer:
— Desculpe... eu não sei o que aconteceu. Eu não tenho o costume de chorar desse
jeito.
Ela ouviu o ruído de uma garrafa contra um copo, e o barulhinho característico de
líquido derramado. Tom encostou-lhe de leve a mão no ombro e voltou-a de frente para
si.
— Beba isto. Vai sentir-se melhor.
— Eu já estou bem.
— Sente-se ali e beba este gole de conhaque.
Embora falasse em voz baixa, a entonação era autoritária mesmo assim. Sanchia
obedeceu em silêncio.
— Eu me sinto uma idiota — murmurou.
— Esqueça o que aconteceu.
— Pensei que os homens ficassem apavorados diante das mulheres que choram. Será
que nada o abala?
— As cenas melodramáticas me irritam, mas não é seu caso, felizmente — disse Tom
com a voz serena. — É por isso que tenho dificuldade, ao conversar com você. Pelo
jeito, você não se encaixa em nenhuma das categorias habituais.
— As pessoas podem ser classificadas?
— Não completamente, mas até certo ponto, sim. Mas vamos conversar sobre isso uma
outra vez. Acho que seria uma boa idéia se você fosse descansar um pouco no seu
beliche. Termine o conhaque primeiro...
Depois de ter bebido o último gole da bebida forte, Sanchia devolveu o copo e levantou-
se.
— Talvez você só possa embarcar para a Inglaterra daqui a alguns dias — disse Tom. —
Eu lhe dou minha palavra que até lá...
Nesse instante, os dois ouviram uma gritaria distante que fazia pressentir que nem tudo
estava bem com as crianças na ilha.
— Você ouviu? Aconteceu alguma coisa!
Tom passou por ela às pressas e subiu correndo a escada que levava ao convés. Quando
Sanchia chegou lá no alto, presenciou uma cena dramática. George estava remando
rapidamente em direção ao veleiro enquanto Duncan e Jane seguravam nos braços o
corpo inanimado de Emma.
— O que aconteceu? — gritou Tom, quando o barco encostou no casco do veleiro.
— Emma passou mal — disse Jane, enquanto os meninos levantavam a pequena criança
nos braços. Ela não estava inconsciente, somente mole e sem força. Começou a chorar
quando se viu no colo do tio.
Tom levou-a para a cabine, seguido de Sanchia e de Jane. Emma sentira-se mal logo
depois que desceram na ilha, mas não quisera-voltar para o barco até que uma crise
violenta de enjôo a deixara prostrada na praia.
Após deitar a menina no beliche, Tom apanhou o termômetro e tomou a temperatura.
Com o rosto inexpressivo, mostrou o termômetro a Sanchia. A menina estava com febre
alta.
— Você sente alguma dor?
Emma estava de olhos fechados, tremendo e chorando baixinho. Balançou a cabeça
negativamente. Mesmo assim, Tom apalpou cuidadosamente, antes de concluir que ela
não sentia nenhuma do forte.
— Tire o maiô — disse para Sanchia. — Vamos partir imediata mente para Granada.
Vou dar algumas instruções a Jock.
— O que você pensa que seja?
— Não tenho idéia... mas não gostei da temperatura alta.
— Talvez não seja nada sério. As crianças têm febres altas quando passam mal do
intestino.
— Pode ser, mas eu não quero correr nenhum risco.
Ao entardecer daquele dia, Emma estava melhor. Continuava ainda um pouco agitada,
mas não enjoara novamente e os espasmos de tremor tinham cessado.
No meio da noite, Sanchia foi acordada por um gemido no beliche de baixo. Desceu do
seu para ajudar Emma na sua segunda crise de vômito. Como antes, a menina sentiu-se
completamente prostrada e em seguida trêmula.
Uma hora depois, quando Emma voltou a dormir, Sanchia estava sem sono e resolveu ir
à cozinha preparar um chocolate quente. Pouco antes, quando apanhara a bacia, o
corredor estava escuro. Agora, no entanto, uma luz amarela brilhava na cozinha e
alguém estava; assobiando baixinho.
Era Tom. Estava fazendo torradas e tinha posto a chaleira em cima do fogo. Como
estava de costas para a porta, não a viu imediatamente, porque os rangidos das madeiras
abafavam o ruído dos pés descalços na passagem.
A fadiga e a ansiedade tinham afastado todos os outros pensamentos da cabeça de
Sanchia. Não se lembrou da conversa da tarde nem prestou atenção à sua roupa sumária.
— O que você está fazendo acordada? — perguntou Tom, ao vê-la entrar sozinha. —
Emma passou mal de novo?
— Teve outra crise de vômito. Você acha que pode ser alguma coisa que comeu?
— Não sei. Talvez seja começo de sarampo.
— Ela já teve sarampo e as outras doenças normais da infância.
— Bem, de qualquer maneira, isso não vai atrapalhar seus planos. Há um excelente
hospital em São George, se for necessário ínterná-la.
— Não estava pensando nisso. Eu não a deixaria antes de ela melhorar.
— Você é quem sabe... mas não há necessidade de adiar sua partida.
Ele não costumava tratá-la com esse tom de cortesia indiferente, e Sanchia sentiu-se
ligeiramente irritada. Após colocar as duas xícaras de chocolate na bandeja, juntamente
com as torradas, Tom saiu da cozinha.
— Fique à vontade. Boa noite.
Sem nem mesmo olhar para ela, rumou em direção ao convés para reunir-se a quem
estava de guarda no leme.
Quando Sanchia acordou, na manhã seguinte, o veleiro estava novamente ancorado.
Como Emma continuava dormindo, desceu com cuidado do seu beliche. Preferiu não
puxar a cortina da vigia para não acordar a menina. Vestiu o robe, calçou as sandálias e
saiu da cabine para ver onde estavam.
Logo que subiu no convés, percebeu que tinham chegado. Lá estava Granada, a ilha das
ervas de cheiro e dos condimentos maravilhosos.
Jock dissera antes que a baía de São George era a mais bonita das Antilhas, e não era
exagero. Refletindo o céu da manhã, as águas da baía tinham uma cor de ametista, e os
telhados das casas, no alto do morro, eram de um vermelho vivo.
— Como passou a noite? — perguntou Jock. — Emma, melhorou?
— Ela não acordou ainda. Vou ficar mais tranqüila quando for levada ao médico.
Jock passou o cachimbo para o outro lado da boca: — Eu soube que você vai nos
deixar...
— Pois é, logo que Emma melhorar.
— Você deve ter suas razões...
— Não tenho outra alternativa.
— Não? — perguntou Jock, mirando-a com o canto dos olhos. — Eu pensei que você
tinha gostado de nossa maneira de viver.
— Gostei muito. Quem não gostaria?
— Melhor do que em casa?
— Ah, não se pode comparar... Lá é a realidade de todos os dias. Aqui parece mais com
as férias...
— Mas você trabalhou o tempo todo. Você não esteve desocupada nenhum dia. Eu creio
que o capitão gostaria que você ficasse mais um pouco...
— Por que você diz isso? Ele falou alguma coisa?
— Não, não falou nada. Estou dando apenas minha opinião. Penso que as meninas vão
sentir sua falta.
— Elas logo vão para o colégio. De que adiantaria ficar aqui?
— Ah, tem sempre lugar para alguém, num veleiro como este...
— Se vocês precisassem de gente, contratariam alguém mais útil do que eu. Agradeço
sua sugestão, Jock, mas tenho a impressão que não daria certo. Não há lugar para mim
neste barco.
Jock não respondeu e desceu pouco depois à cozinha para fazer o café. Sanchia
demorou-se algum tempo no convés, pensando nos acontecimentos da véspera. Quando
voltou à cabine, Emma estava acordada e Jane fazia companhia à irmã menor.
— Olhe! Ela está com pintas! — disse Jane, apontando para as pernas de Emma.
— Estão cocando — queixou-se Emma.
— Eu vou passar uma pomada nas pernas e, quando o médico vier, ele vai receitar um
remédio para você ficar boa.
O médico que foi a bordo aquela manhã era bem jovem e tinha muito jeito com
crianças. Confirmou o diagnóstico: era alergia, e receitou uma injeção antialérgica. Ele
suspeitou que o motivo da erupção era um prato apimentado que a menina comera
alguns dias atrás.
Tom acompanhou o médico ao porto e só voltou no fim da tarde. Trouxe algumas cartas
de Delia para Sanchia. Uma delas era a resposta à primeira carta que escrevera. A outra
chegara no dia anterior. Tinha uma passagem misteriosa que Sanchia leu e releu várias
vezes sem esconder sua perplexidade:
Se acontecer alguma coisa e você mudar de idéia quanto à data da volta, não se
preocupe; eu vou entender. Abraços e lembranças a todos, Delia Preston.
Emma ficou alguns dias de cama antes de restabelecer-se completamente. Duncan e
Jane, que tinham se mostrado carinhosos e compreensivos enquanto a irmã passava mal,
estavam mais impacientei com a convalescente. Sanchia jogava damas com a menina
menor enquanto os dois irmãos se entregavam a passatempos mais ativos. Enquanto
estavam em Granada, Tom dedicava-se ativamente a seus negócios em terra e aparecia
pouco, durante o dia, no veleiro. Uma manhã, porém, ele disse que ia tirar o dia para
levá-los a conhecerem o grande lago da cidade.
Partiram logo depois do café. As três crianças sentaram-se no banco de trás do táxi,
enquanto Sanchia e Tom iam na frente. Jock e George ficaram no veleiro.
O Grand Étang é um lago natural formado na cratera de um vulcão extinto, uma vasta
extensão de águas cristalinas tão azuis quanto o céu que se reflete na sua superfície.
Durante o passeio à reserva florestal, que era também um viveiro de pássaros, Sanchia
travou amizade com uma americana que estava visitando o local pela primeira vez.
Depois de conversarem durante alguns minutos, a mulher disse que se chamava
Marjorie Turnbull e explicou que estava hospedada numa casa de campo onde a filha
passara a lua-de-mel, no ano anterior.
Nesse meio tempo, o marido apareceu com uma máquina fotográfica pendurada no
pescoço.
— Você também está passando a lua-de-mel aqui? — perguntou Marjorie a Sanchia,
após apresentá-la ao marido.
— Não... só as férias — disse Sanchia, sem jeito.
Pouco depois, despediu-se do casal de americanos e não pensou mais no encontro.
Mais tarde, porém, naquele mesmo dia, Tom levou-os a conhecerem as famosas
cachoeiras de Granada, um dos pontos de atração turística da ilha. Um riacho caía de
uma altura de uns vinte metros, numa piscina natural de águas cristalinas. Infelizmente,
o local estava repleto de turistas que faziam piquenique e fogueiras ao ar livre. Entre os
outros visitantes, estava o casal de americanos que Sanchia conhecera de manhã. O
marido estava batendo fotografias da cachoeira e a mulher aproveitou para conversar
com seus novos conhecidos.
— Que coincidência... nos encontramos de novo! — disse Marjorie. — Eu pensei que
vocês eram recém-casados.. . Não tinha visto ainda essas três crianças lindas.
Era uma confusão natural e não havia motivo para Sanchia sentir-se envergonhada.
— As crianças são meus sobrinhos — comentou Tom, com um sorriso. — E essa moça
aqui é minha amiga.
— Ah, desculpe! — disse Marjorie, olhando sem jeito para Sanchia, que estava com o
rosto vermelho.
Mais tarde, enquanto as meninas estavam nadando na piscina natural, Tom perguntou:
— Por que você ficou envergonhada com o comentário da americana? Era natural que
ela nos tomasse por um casal com filhos. ..
— Pode ser.
— Por que você fez aquela cara?
— Não sei.
Tom mudou de assunto:
— Você já contou às crianças que vai partir em breve?
— Ainda não.
— Eu pensei que você estava impaciente para ir embora...
— Estava... estou... mas perdi a coragem. Emma ficou muito dependente de mim,
depois da doença. Eu tenho pena de deixá-la agora.
— Entendo. Mas você não vai facilitar nada, adiando sua partida.
— Eu sei disso. — Fez uma pausa. — Se a agência de viagens estiver aberta, quando
voltarmos, vou passar lá para saber o horário dos vôos.
— Eu já passei. O próximo vôo é sexta-feira.
— Sexta-feira? Depois de amanhã?
— Exatamente. Seria melhor você se despedir das crianças hoje à noite.
Depois de amanhã! Por que ela levara um sobressalto tão grande? Sabia que o tempo
estava passando rapidamente e que logo, muito em breve, tudo terminaria. Não podia
imaginar, porém, que fosse tão cedo. Ela não tinha contado as horas que faltavam.
Na viagem de volta, manteve-se em silêncio, com o rosto volta para a janela. As
crianças estavam muito animadas com o passei e não notaram nada especial.
Na hora do jantar, aquela noite, Duncan perguntou:
— Você vai estar ocupado amanhã, tio? Podemos dar outro passeio na ilha? Eu gostaria
de conhecer o farol em Ponta Salina e ver a praia de areias pretas.
— Boa idéia. Você vem conosco, Sanchia, ou vai estar muito ocupada fazendo as
malas?
Ela levou alguns segundos para entender a insinuação.
— Eu trouxe pouca coisa. Posso arrumar a mala à noite. Você acha que vai dar tempo de
fazer algumas compras de manhã? Não posso me esquecer de comprar um presente para
Delia.
Foi então que as crianças compreenderam o sentido da conversa entre os dois.
— Quando você vai embarcar? — perguntou Jane.
— Na sexta-feira. — Fez uma pausa e acrescentou: — O que vocês sugerem que dê de
presente à diretora?
Nenhum dos três respondeu. Olharam em silêncio para ela. Emma estava tão espantada
que Sanchia não teve coragem de encara-la. Jock pigarreou, como se fosse dizer alguma
coisa, mas mudou de idéia. O silêncio era tão pesado que nem mesmo Tom sabia o que
dizer para interrompê-lo.
Finalmente, Emma disse com a voz suplicante:
— Eu não quero que você vá embora.
— Eu não posso adiar minha partida indefinidamente, Emma. Tenho trabalho me
esperando. . . Além disso, a casa precisa ser arejada. Não posso deixá-la fechada muito
tempo.
— Eu não quero que você vá embora — repetiu Emma, esforçando-se para manter a voz
firme.
Sanchia lançou um olhar de socorro para Tom, que estava com a cabeça baixa, olhando
para o prato. Foi Jock que a socorreu:
— Ela não vai embarcar para a Lua, boneca. Você vai vê-la ainda muitas vezes...
— Você vai voltar? — perguntou Jane.
Sanchia conseguiu sorrir, mas não teve coragem de mentir:
— Bem, isso depende. De qualquer maneira, vou escrever para vocês e espero que
vocês respondam às minhas cartas. Eu estou curiosa de saber como vai ser a busca do
tesouro...
— Eu acho que a gente não vai encontrar nada — disse Duncan, com o rosto fechado.
— Além do mais, não vai ter graça, sem você lá.
Sanchia ouviu o comentário com surpresa; não imaginava que Duncan fosse sentir sua
falta como as meninas.
— Ah, que nada... vai ser tremendamente divertido! — disse, com um sorriso sem
graça.
— Seria mais divertido se você fosse conosco. Você não gostaria de ficar? Você
realmente tem que voltar? — perguntou Jane com insistência. — Por que você não fica
mais uns dias?
— Infelizmente não dá... Tenho trabalho me esperando no colégio. Nem mesmo os
adultos podem fazer o que têm vontade, Jane.
— Se você não quisesse voltar, a diretora dava um jeito — insistiu Jane. — Por que
você não escreve e não diz que resolveu ficar? Você pode fazer isso, não é mesmo?
Foi então que Emma entrou na conversa:
— Por que você não casa com o tio e fica com a gente para sempre? Assim você não
precisa ir embora. Você seria nossa tia a vida toda...
Sanchia teve vontade de afundar no chão e desaparecer de vista. Durante alguns
segundos — que duraram uma eternidade — parecia que todos estavam magicamente
paralisados. Ninguém se mexia, à mesa. Ninguém falava. Ninguém respirava.
Aos poucos, cada um deles foi se retirando e Sanchia ficou sozinha com Tom. Ela olhou
de relance para seu rosto. Ele a observava atentamente.
— Então, o que acha da sugestão de Emma?
Ela umedeceu os lábios, pensando numa resposta leve e despreocupada para dar. A
melhor que lhe ocorreu na hora foi esta:
— As crianças falam sem pensar. A gente não deve levá-las muito a sério.
— Pelo contrário. Eu sou inteiramente favorável à idéia.
— O que você quer dizer com isso?
— Não está claro como o dia? Estou pedindo você em casamento.
CAPITULO VI

— Você está brincando!


— Por quê?
— Você ainda pergunta? Isso é ridículo! Só porque as crianças vão sentir minha falta...
— Essa é uma das razões... mas há outras.
— Quais?
— Eu sei que você gostaria de ficar. Você gosta tanto das crianças quanto elas de você.
Se não tivessem nenhuma outra pessoa para tomar conta delas, eu sei que você
tomaria... não por necessidade, mas espontaneamente.
— Mas elas têm outra pessoa. Têm você.
— Eu sei disso e a princípio pensei que fosse bastante. Mas agora \ mudei de idéia. Elas
necessitam de uma companhia feminina, também.
— E por isso você está disposto a casar... a sacrificar sua liberdade? Dentro de alguns
anos elas vão crescer. Serão independentes.
— Pode ser... mas nossos filhos não. — Fixou-a com atenção. — Você pensou que eu
me referia apenas a um acordo legal... a um mero convívio?
— Seja o que for, está fora de cogitação.
— Eu não estou propondo o casamento para legalizar nossa situação atual — disse Tom
ignorando aquele comentário. — A opinião dos outros não me interessa a mínima. Mas
há outras considerações em jogo.
— Evidente que há! Nós não queremos casar, em primeiro lugar!
— Essa é uma reação emocional. Você ainda não teve tempo para refletir sobre o
assunto. Eu lhe disse, uma vez, que o casamento, é uma instituição prática. Eu necessito
de uma mulher. Você, de um marido. As crianças necessitam de pais. O casamento é a
solução evidente.
— Nesse caso, por que você não sugeriu isso antes?
— Eu sugeri... indiretamente. Você já esqueceu nossa conversa em Tobago? Eu disse
então que nós dois nos dávamos muito bem. Não insisti porque não tinha certeza sobre
se você gostaria de ficar conosco. Mas você deseja isso, não é verdade? Você não
suporta a idéia de voltar para o chalé e morar lá sozinha.
— Pode ser, mas não vou fazer qualquer coisa para evitar que isso aconteça — disse
Sanchia em voz baixa.
Tom levantou-se, fechou a portinhola da cozinha, depois a porta da saleta. Foi ao
armário das bebidas e apanhou uma garrafa de rum e dois copos pequenos. Sentou-se ao
lado dela na mesa.
— Escute, não vamos perder tempo com indiretas... Você está querendo dizer,
delicadamente, que não sente desejo por mim? Que se sente mal quando eu a toco? Seja
honesta, Sanchia. Eu posso ouvir qualquer coisa.
— Não, não foi isso o que eu falei.
— Você tem certeza? Você me deu essa impressão em Kingstown...
— Não foi por essa razão. Eu sei que é uma coisa boba, antiquada, más não posso beijar
um homem assim, sem mais nem menos, e depois deixar para lá...
— Quer dizer que sua aversão era ética, mais do que física?
— Sim, eu creio que sim.
— Bem, o casamento vai eliminar seus escrúpulos nesse sentido. Que outro obstáculo
pode haver, além desse?
Sanchia fixou-o com atenção.
— Eu já disse... nós não gostamos um do outro.
Tom encheu os dois copos e empurrou um deles na direção dela. Havia impaciência na
maneira como tornou a tampar a garrafa, impaciência visível nos músculos do queixo.
— Acorde para a realidade, Sanchia! — exclamou Tom com insistência. — A vida
nunca é perfeita. O que eu lhe ofereço pode não ser o ideal, mas é melhor do que nada.
— Talvez seja... eu não sei.
— Pense nisso agora... reflita seriamente. Amanhã à noite você me dá uma resposta.
Você pode voltar para a Inglaterra ou ficar aqui para sempre como minha mulher.
Escolha.
— Como eu posso tomar uma decisão nessa correria?
Um brilho iluminou os olhos dele. — Há alguns minutos, você afastou a idéia como
ridícula. Agora você admite que seja viável...
— Não disse que era. Mas, mesmo que seja, preciso de mais tempo para decidir.
— Sinto muito, mas não é possível. Não há nenhuma vantagem em adiar mais tempo e
não seria bom manter as crianças nesse clima de suspense... Podemos conversar sobre o
assunto a noite inteira, se você quiser, mas amanhã à noite é o último prazo. Basta dizer
sim ou não.
— Se eu concordar, vou ficar sempre na dúvida sobre a decisão Pelo visto, você não se
importa a mínima com minha resposta.
— Não seja boba. Se eu não quisesse casar com você, por que haveria de sugerir isso?
— Por que você sugeriu? Por que você quer casar comigo? Somente por causa das
crianças?
— Em parte, sim... mas não apenas por isso. Eu estou cansa de relações ocasionais.
Mais cedo ou mais tarde, o homem desejo uma mulher fixa.
— Por que eu? Por que não outra mulher? Há outras que se casariam com você sem a
menor hesitação. Você comprou aquela pulseira de prata para outra mulher.
— Por que você diz isso?
— Porque você a comprou em Trinidad, antes de saber a data d meu aniversário, antes
de termos desembarcado do avião.
— Se comprei para outra mulher, isso não quer dizer que havia alguma coisa entre nós.
Podia ser para Esmerald ou para a filha um amigo meu em Barbados.
— Pode ser, mas eu duvido...
— Você quer saber se eu tenho um outro caso? A resposta é não. Está satisfeita agora?
— Eu achei que você podia ter.
— Eu não sou um homem de muitas mulheres, como você supõe. Quando me referi a
relacionamentos casuais, não quis dizer que tivesse uma porção de mulheres...
— Pode ser, mas seu comportamento é de alguém que tem experiência com as
mulheres. Se você fosse um homem tímido, ou tivesse algum defeito físico, eu poderia
entender sua sugestão. Mas há uma, porção de outras mulheres com quem você pode
casar. Talvez eu não tenha o que eu desejo... mas você pode ter. Muitas mulheres não
desejariam outra coisa senão casar-se com você.
— Mas poucas, ou nenhuma, aceitariam viver comigo neste veleiro. Se você está
lembrada, eu lhe disse, em Tobago, que minha mulher teria que aceitar minha vida.
Naquela ocasião, você achou que era uma exigência absurda. Talvez você tivesse razão.
Conosco, porém, não haveria nenhum conflito desse tipo. Você já se adaptou a esta vida.
Ou foi apenas temporariamente?
— Não, eu gosto desta vida.
— Então por que abandoná-la? — perguntou Tom, com um gesto de indiferença, ao
acender o cigarro.
— Você discute este assunto como se fosse a coisa mais banal do mundo. No fundo,
você refletiria mais se fosse a compra de um barco...
Tom jogou o fósforo no cinzeiro de cobre.
— Se você estivesse apaixonada por mim, você diria sim imediatamente, não é
verdade?
— Seria diferente.
— Claro, seu julgamento seria influenciado pela emoção. Você não se preocuparia com
minha situação financeira. Você não notaria os hábitos irritantes que tenho. Você não
pensaria no futuro. Você agiria por impulso. O impulso é mais seguro que o bom senso,
por acaso?
— A maior parte das pessoas age por impulso.
— Eu sei, e algumas vezes o instinto delas é correto, mas outras vezes é terrivelmente
falso. O fato de estar apaixonada por alguém não é uma garantia de um casamento
duradouro. A única segurança real é a compatibilidade.
— E nós temos afinidade?
— Creio que sim. Nós dois gostamos da vida ao ar livre, das atitudes espontâneas e
naturais. Nossa diferença de idade não é muito grande. Podemos divergir em pequenos
pontos, mas não há um antagonismo radical em nossas opiniões. Nós certamente não
temos ilusões a respeito um do outro. Você me viu barbado e eu a vi sair da cama com o
rosto inchado. Além de morarmos no mesmo barco, estamos vivendo como marido e
mulher desde que você subiu a bordo.
Este argumento, sem ele perceber, em vez de facilitar a decisão, serviu para aumentar a
hesitação dela. Ao pensar que ia dividir a cabine com Tom, Sanchia sentiu o coração
bater mais depressa, de excitação e apreensão, e seu julgamento foi perturbado pela
emoção.
— Para você, tudo é muito simples... Mas você sabe muito bem que, no fundo, não é tão
fácil assim — disse, abaixando os olhos para o copinho de rum.
Tom inclinou-se para a frente.
— Me dê sua mão. Após uma breve hesitação, ela obedeceu. Os dedos dele cobriram os
seus e ela sentiu na própria pele o calor e a energia que emanavam dele.
— Compare as alternativas. Se você aceitar, terá segurança e companhia, uma existência
que nunca é monótona... uma vida sadia ao ar livre. Se você partir, vai navegar sozinha,
em águas rasas, sem destino, sem a certeza de fazer uma boa ancoragem.
— Ouvindo você falar, parece até que não tenho outra escolha — disse Sanchia, com
um certo nervosismo. — Mas você não entende que não posso casar com a impressão de
ser por obrigação? Todas as vantagens estão do meu lado. O que posso lhe dar em troca?
— A mesma coisa que as outras mulheres dão aos maridos. Camisas limpas, refeições
na hora certa, meias cerzidas. ..
— Você tem tudo isso com Jock.
— Jock não esquenta minha cama quando estou de guarda no leme.
A mão dela tremeu ligeiramente e tentou soltar-se. Os dedos dele, porém, apertaram os
seus com mais força.
— Talvez eu esteja me aproveitando de você, no fundo. Se você não tivesse se enterrado
naquele colégio em Lingard, teria uma porção de coisas para me oferecer. Por que se
subestima tanto? Você é uma mulher muito atraente, Sanchia.
— Você não diria isso há dois anos — disse Sanchia, levando a mão ao rosto. — Você já
viu minha cicatriz?
— Sim, o que tem? Você ainda não se esqueceu disso?
— Às vezes não... especialmente quando encontro as pessoas pela primeira vez.
— Pois você é uma tola — disse Tom de repente. — Seus olhos e sua boca foram as
primeiras coisas que notei em você.
Durante um momento, Sanchia desejou ardentemente que Tom fizesse alguma pergunta
sobre o acidente. Teria talvez a coragem de contar a única coisa que ele não sabia a seu
respeito.
Em vez disso, Tom sorriu e comentou:
— Aliás, eu também tenho uma cicatriz, mas se você quiser vê-la, terá primeiro que
casar comigo.
Sanchia não sorriu.
— Como você pode achar graça numa coisa tão séria?
— Ah, não foi nada grave, apenas uma apendicite.
Ela retirou a mão da dele.
— Eu não falei isso! Você sabe perfeitamente a que estou me referindo.
Tom colocou o copinho de rum em cima da mesa e levantou-se.
— Vá buscar seu maiô. O carro ainda está no caís. Vamos nadar na enseada.
— Agora? |
— Agora. Não há nada como o ar puro e o exercício para ventilar as idéias e ajudar a
ver claro.
— E as crianças?
— Jock pode tomar conta delas.
Sanchia trocou rapidamente de roupa; vestiu uma calça comprida e uma blusa esporte, e
colocou o pente e o lenço de seda no bolso. Com o biquíni dobrado dentro da toalha,
uma malha em cima dos ombros, parou no corredor, indecisa sobre se devia ou não
despedir-se de Emma antes de sair. Era preferível, porém, não arriscar outra crise de
choro, sobretudo porque ouvia a voz baixa de Jock contando uma história para as duas
meninas.
Meia hora depois, estava andando descalça pela areia quente de uma praia de três
quilômetros de comprimento. Se não fosse a mais linda do mundo, era certamente a
mais bela que já tinha visto. Para o norte podia avistar as luzes de São George e, na
outra direção, havia uma fogueira acesa. Era muito longe, no entanto, e não perturbava a
tranqüilidade da praia deserta.
Tom estava nadando em direção ao fundo quando ela voltou para o lugar onde deixara a
toalha.
Estava sentada de pernas cruzadas, penteando os cabelos, quando Tom saiu do mar,
projetando uma sombra escura sobre a areia fina. Vestiu a calça comprida e passou a
camisa desabotoada em cima dos ombros.
— Podíamos ter trazido café — disse. — Eu tenho uma barra de chocolate.
Sentou-se ao lado dela, quebrou a barra pela metade e lhe estendeu uma parte.
— Você gostaria de ver o que eles estão fazendo? — perguntou, apontando para a
fogueira ao longe.
— Não, a menos que você queira.
— Pensei que você tinha curiosidade de espiar. Ficaram em silêncio durante alguns
segundos.
— Tom, você tem certeza de que seu pedido de casamento não é um gesto de cortesia?
Estive pensando nisso e me lembrei de que você costuma ajudar os outros. Jock me
contou que estaria em maus lençóis, se você não o tivesse ajudado. Depois foi George e,
talvez, outras pessoas que eu não conheço.
Tom deu uma risada.
— A inconsistência da mente feminina é surpreendente! Quando nós nos conhecemos,
você me tomou por um aventureiro que pretendia passar a mão na herança das crianças.
Agora, de repente, você me transforma num glorioso São Jorge.
— Bem, eu não chegaria a tanto... mas reconheço que você tem algumas qualidades.
— As decisões repentinas não são a mesma coisa que os impulsos. Eu não sou
completamente insensível, mas não sou também nenhum Príncipe Valente. Não há nada
nobre nos motivos que me levaram a pedi-la em casamento. São estritamente egoístas.
— Levantou-se e puxou-a para cima. Vamos, está na hora de voltar. Você precisa dormir
bem, esta noite.
Sanchia estava esquentando a panela no fogo, deu uma espiada no quarto das meninas.
A princípio, ao inclinar-se sobre o beliche de baixo, teve a impressão de que Emma
estava acordada. Ela estava dormindo profundamente, no entanto, embora as pálpebras
estivessem entreabertas. Sanchia fechou os olhos da menina e fez festa-no rosto redondo
e macio como um pêssego.
Tom estava na cozinha quando ela voltou.
Ele se levantou e acompanhou-a até a escadinha, logo depois tomarem o chá.
— Não fique acordada remoendo o assunto — disse em voz baixa. — Deixe a solução
vir normalmente. Amanhã você terá uma resposta.
— Você acha? — perguntou Sanchia, mirando-o nos olhos.
Ele deu um passo à frente e, no primeiro momento, Sanchia pensou que fosse beijá-la.
Em vez disso, roçou o queixo dela com a mão fechada, num gesto casual de carinho,
como costumava fazer com Emma e Jane.
— Tenho certeza — disse com confiança. — Boa noite.
No café da manhã, as crianças estavam tão contentes e animadas que pareciam estar
agindo sob a recomendação de Jock. Provavelmente, o velho escocês dissera às crianças
que a tristeza só serviria para tornar a despedida mais difícil.
Depois que as crianças terminaram suas tarefas da manhã e se aprontaram para sair a
passeio, Sanchia perguntou:
— Por que você não vai com elas, Jock? Tem lugar no carro, se Emma sentar no colo de
alguém. Eu me encarrego das coisas, aqui.
Antes que Jock pudesse responder, Tom interveio:
— Você não vem conosco?
— Eu tenho diversas cartas para escrever — disse Sanchia. — menos que você tenha
mudado de idéia...
Tom fitou-a em silêncio durante alguns segundos.
— Isso significa que você se decidiu? A boca estava seca, mas a voz soou firme quando
respondeu:
— Sim... sim, decidi.
Sanchia não fazia idéia da reação dele, mas imaginava que não ia demonstrar nenhum
entusiasmo exagerado. Mesmo assim, não escondeu sua decepção quando Tom virou o
último gole de café e acendeu o primeiro cigarro do dia antes de comentar casualmente:
— Sanchia e eu vamos nos casar, Jock.
— Ah, eu sabia que havia alguma coisa no ar, quando vocês saíram ontem à noite —
disse Jock com um sorriso de satisfação. — Quero ser o primeiro a lhe dar os parabéns,
capitão! — Apertou com força a mão de Tom. — E muitas felicidades para a noiva.
Espero que vocês sejam muito felizes. Posso chamar as crianças?
A alegria e a excitação das crianças comoveram Sanchia profundamente.
— Jock vai levar as crianças a Grenville — disse Tom. — Eu vou ficar aqui com você.
Nós temos uma porção de coisas para combinar.
Mais tarde, depois que se despediram dos outros, resolveram diversos assuntos urgentes.
— A primeira coisa é passar um telegrama para a diretora. Quer que eu faça isso
enquanto você termina a carta?
— Ah, seria ótimo!
— Há mais alguém que precise ser avisado?
— Não, mais ninguém.
Depois que Tom foi ao porto, Sanchia apanhou o papel de carta e sentou-se embaixo da
coberta, no convés, para terminar a carta que tinha começado para Delia Preston.
Entretanto, depois de escrever as primeiras linhas, mordeu distraidamente a ponta da
caneta, pensando na maneira quase indiferente como Tom recebera a notícia.
Meia hora mais tarde, com a carta pela metade, levantou a cabeça e avistou-o
caminhando sobre o convés. Tom trazia duas cestas nas mãos, com diversos embrulhos
e garrafas de champanhe.
— Trouxe um champanhe para comemorarmos — disse, estendendo-lhe uma das cestas.
— Tem lugar no congelador?
— Creio que sim.
Enquanto arrumava a garrafa na geladeira, Tom passou a cabeça pela portinhola da
cozinha.
— Não encontrei nenhuma aliança bonita na cidade, mas comprei um presente em vez
disso.
Sanchia abriu uma caixa embrulhada com papel de seda onde havia um biquíni azul e
branco com uma saída de banho da mesma cor.
— Ah, Tom, você já me deu presentes demais e não precisa comprar uma aliança!
— Claro que sim.
— Não é necessário.
— Não é necessário, mas é o costume.
— Mas nosso casamento não é do tipo muito habitual. Ele deu a volta e lhe colocou as
mãos em cima dos ombros.
— Escute, amor, vamos deixar uma coisa bem clara desde o início: ninguém tem que
saber que nosso casamento não é do tipo habitual. Nem precisamos também nos lembrar
disso. Uma atitude positiva é muito preferível a uma negativa. Vamos nos concentrar no
que nós temos, e não no que não temos, certo? Uma de nossas vantagens está nisto:
como não somos mais crianças, não teremos os problemas habituais do casamento. Eu
sempre levei a vida que desejava. Embora não sejamos ricos, temos tudo que
necessitamos. Eu tenho a intenção de lhe dar uma aliança e tudo o mais que me agradar,
e espero que você tenha prazer em usar meus presentes.
Ela nunca o ouvira falar antes com tanta seriedade e delicadeza. Não havia mais a
expressão irônica e impaciente que a deixava irritada e sem jeito. Entretanto, antes
mesmo que tivesse tempo para analisar seus próprios sentimentos, ele a soltou e se
afastou.
— Agora, vamos marcar a data. Quanto mais cedo melhor, você não acha? Você prefere
casar na igreja ou no civil?
— Não faço questão. Como você preferir.
— Nesse caso, penso que uma cerimônia civil seria preferível. A semana que vem está
bom? Não há vantagem em adiar mais tempo. Não temos que procurar casa para
morar...
Na semana que vem! Ela sentiu um sobressalto.
— Onde vamos passar a lua-de-mel? — perguntou Tom, sem lhe dar tempo para
responder. — Eu pensei em Barbados, onde vamos matricular as crianças no colégio, ou
você tem preferência por outro lugar?
— Não, não tenho, Barbados está ótimo para mim.
De repente ocorreu-lhe que tudo aquilo era um sonho absurdo e maluco. Ouviu
distraidamente a voz de Tom:
— Normalmente, seria impossível encontrar acomodações no litoral, nesta época do
ano. Mas o dono de um dos hotéis é meu amigo. Se entrar em contato com ele hoje à
tarde, talvez possa reservar um quarto para nós... ou até mesmo um dos chalés. Com um
pouco de sorte, podemos alugar um de frente para o mar.
— Seria fantástico!
— Você poderia escolher algumas roupas na loja onde comprei o biquíni. Inclusive seu
vestido de noiva.
Sanchia fez um esforço para voltar à realidade.
— Eu não vou precisar de muita roupa.
— Lembre-se de que vamos freqüentar o hotel, pelo menos na hora das refeições. Mas
podemos conversar sobre isso mais tarde, com mais calma. Vou ver se o champanhe já
está gelado.
Sanchia esperou-o na saleta e aproveitou o pequeno intervalo para refazer-se da
impressão de pânico que lhe ocorrera nos primeiros instantes da conversa. Tom tinha
razão quando dissera que a melhor maneira era comportar-se como um casal comum às
vésperas do casamento. Entretanto, embora Tom facilitasse as coisas com sua franqueza
habitual, sua posição era difícil mesmo assim.
— O que você disse no telegrama que mandou para Delia? — perguntou, quando Tom
reapareceu na saleta com a garrafa de champanhe na mão.
— Eu vou lhe mostrar. Fiz uma cópia do telegrama.
Enfiou a mão no bolso e retirou uma folha dobrada. Após alisar o papel, estendeu o
telegrama para ela. Sanchia leu:
— DESEJAMOS COMUNICAR MUDANÇA DE PLANOS. SANCHIA NÃO
PRETENDE VOLTAR. CASAMENTO COM DATA MARCADA. SEGUE CARTA.
ABRAÇOS DA NOIVA E DAS CRIANÇAS. TODOS BEM E FELIZES.
LEMBRANÇAS, TOM.
— Está bom? — perguntou, passando o guardanapo em volta do gargalo da garrafa.
— Está ótimo. — Fez uma pausa, depois acrescentou: — Curioso... na última carta que
Delia me escreveu, ela disse que, se eu não voltasse como estava combinado, ela
entenderia a razão. Eu não entendi na hora o que ela queria dizer com isso, mas creio
que não se referia ao nosso casamento...
— Por que não? Você disse a ela que me julgava um contrabandista?
— Não, não falei nada.
— Mas você também não fez nenhum elogio de mim?
— Não, não disse nada que lhe fosse prejudicial, nem fiz nenhuma alusão ao casamento.
Como podia fazer? Ontem, a esta hora, não podia imaginar que iríamos nos casar, um
dia...
— A notícia vai ser uma surpresa para ela. Mas não creio que fique preocupada. Delia
nunca antipatizou comigo. Pelo menos não tanto quanto você, amor.
Com que naturalidade ele acrescentou essa palavra de carinho! Uma pessoa que ouvisse
pensaria que Tom sentia realmente amor por ela, pensou Sanchia.
A rolha da garrafa saltou com um estouro e um esguicho de espuma. Tom serviu as duas
taças e estendeu uma para ela. Levantou a sua.
— À sua saúde!
— O mesmo para você.
No momento em que levou a taça aos lábios, os olhos dela se encheram de lágrimas. Ao
sentir a efervescência na língua, lembrou-se da última vez que bebera champanhe, no
dia em que se casara com Barney.
Três dias antes do casamento, Tom recebeu um telegrama urgente que o levou a xingar
em voz baixa. Ele nunca tinha feito isso antes, pelo menos na presença de Sanchia, e
pediu-lhe desculpas ao perceber a indelicadeza do ato. Explicou que ocorrera um
incêndio num dos seus barcos em Pointe à Pitre e que teria que voar imediatamente para
lá a fim de investigar pessoalmente as causas do acidente.
— Arrume minha mala, por favor, enquanto vou telefonar para o aeroporto. Isto tinha
que acontecer logo agora! Olhe, dê o telegrama a Jock. — Deixou-lhe o telegrama na
mão e correu para o porto com o mensageiro do correio.
— Onde fica Pointe à Pitre? — perguntou Sanchia, quando Jock terminou de ler o
telegrama.
— Ao norte de Guadalupe — explicou Jock, com o rosto preocupado. — Não houve
vítimas, mas estão todos no hospital com ferimentos sérios, e o barco está perdido. O
que pode ter acontecido?
— Tom pediu para arrumar sua mala. O que ele costuma levar quando viaja?
— Eu vou ajudá-la. Eu sei onde guarda suas coisas. Seria bom você preparar um lanche.
Se conseguir algum meio de transporte, embarcará imediatamente. É uma viagem
grande para fazer de barriga vazia.
Sanchia foi à cozinha e mal teve tempo de preparar uns sanduíches de galinha, quando
Tom voltou.
— Estou com sorte. O hidroavião que desceu em Pearls hoje de manhã vai me levar por
mais da metade do caminho.
— Quanto tempo você vai demorar? — perguntou Sanchia, enquanto Tom trocava
rapidamente de roupa.
— Não faço idéia. Mas vou passar um telegrama logo que tiver uma data certa. De
qualquer maneira, vou fazer o possível para estar de volta antes do casamento. Se for
preciso adiá-lo, eu a aviso por telegrama. Cuide bem de você e das crianças.
Apanhou a mala de mão e o lanche que Sanchia tinha preparado, e saiu correndo para o
porto, onde o táxi o esperava para levá-lo ao aeroporto, na outra extremidade da ilha.
Pouco depois, as crianças voltaram da cidade com sacolas repletas de frutas, verduras e
legumes. Como havia muitas quitandas em Granada, tinham podido escolher uma
variedade maior de produtos frescos do que no supermercado da cidade. Sanchia contou
às crianças o que acontecera durante a ausência delas.
— Você não ia ao cabeleireiro hoje de manhã? — perguntou Jane.
— Ah, eu me esqueci completamente. Mas não vou mais.
— Se andar depressa, ainda vai chegar a tempo — disse Jock.
Em vez de folhear as revistas enquanto estava com o secador na cabeça, Sanchia pensou
em Tom e na viagem repentina.
A razão da ida ao cabeleireiro era que pretendiam jantar no Hotel Santa Maria, que
ficava no ponto mais alto da ilha. Sanchia tinha decidido que aproveitaria aquela noite
para esclarecer um fato que pesava cada dia mais em sua consciência.
Não era um caso de omissão premeditada. Desde o dia em que ficaram noivos, esperava
com ansiedade que Tom a interrogasse sobre sua vida anterior, para que começassem o
casamento sem segredos nem mistérios. Se tivesse feito perguntas, ela teria contado, de
bom grado, tudo o que acontecera. Entretanto, além da pergunta casual sobre o primeiro
casamento, Tom não indagara mais nada sobre seu passado. Sanchia, por sua vez, não
tivera coragem de abordar o assunto espontaneamente.
Na noite anterior, ao rolar na cama sem conseguir pegar no sono, decidira revelar tudo
no dia seguinte. O fato de esconder a verdade era o mesmo que mentir, pensou consigo,
ainda mesmo que Tom não tivesse perguntado nada.
Se ele a amasse, aquilo não teria importância... nada teria importância. Mas Tom não a
amava, e aquilo podia ser importante. Ah, por que não contara tudo na noite em que
foram à praia? Por que era tão covarde na frente dele?
Aquela noite, depois que as crianças foram dormir, ela e Jock sentaram-se à mesa da
saleta para jogar gamão. Em dado momento, falando novamente sobre a viagem de Tom
a Guadalupe, Sanchia lhe perguntou:
— Vocês já perderam algum outro barco antes?
— Não, nunca. Tivemos muita sorte, até hoje. Houve apenas alguns acidentes sem
gravidade. Eu não faço idéia do que pode ter sido. O barco foi reformado recentemente
e é pouco provável que a instalação elétrica estivesse com defeito. Talvez o incêndio
tenha sido causado por descuido de algum passageiro. As pessoas costumam atirar
pontas de cigarros pelas vigias.. . Eu não sei se o incêndio ocorreu no porto ou em alto-
mar, mas vamos saber tudo isso quando Tom voltar...
— Jock, eu queria lhe perguntar uma coisa... Você acha que eu sou a mulher certa para
Tom?
Jock olhou para o tabuleiro antes de responder.
— Eu penso que sim. Por que você pergunta? Está preocupada com as mudanças que o
casamento vai introduzir na vida a bordo? Se for por minha causa, não há motivo para
preocupação.
— Ah, Jock, não foi isso o que eu pensei. Você e eu nos damos muito bem, desde o dia
em que nos conhecemos. Não é isso.
— O que é então?
— O que me preocupa é que tudo aconteceu de repente. Não houve tempo para pensar.
Tenho receio de que um de nós dois possa se arrepender, mais tarde.
— Bem, isso pode acontecer de fato. Mas eu ficaria surpreso se você ou o capitão se
arrependessem do casamento. Eu penso que vocês dois foram feitos um para o outro.
— Você acha realmente?
— O capitão nunca se casaria com uma mulher que não gostasse de viver no mar. Com
raras exceções, as mulheres desejam estabilidade, quando casam.
— Talvez eu também deseje isso. . . Nunca fui uma pessoa aventureira. Pelo contrário.
Morei com meus pais até os vinte anos. Depois que meu marido morreu, mamãe vendeu
a casa e foi morar com minha tia. Fazia três anos que estava trabalhando no colégio em
Lingard quando Tom apareceu de repente. Eu levava uma vida bem diferente... até
alguns meses atrás.
— Às vezes as pessoas levam muito tempo para descobrir sua natureza verdadeira —
disse Jock, puxando uma baforada do cachimbo. — E, quando descobrem, é tarde
demais... já não podem mais recomeçar a vida de novo. Aliás, mesmo se pudessem,
muitas não desejariam. Não há nada mais poderoso que a rotina. Não é fácil quebrar o
hábito de uma vida inteira. Seria esse seu problema? Você nasceu como um pássaro
selvagem, mas viveu muito tempo na gaiola e não sabe mais voar. Agora você quer
gozar a liberdade, mas tem medo.
— Talvez você tenha razão.
Ela desejou contar tudo a Jock, naquele momento, mas sua reserva habitual impediu-a
de se abrir completamente com o velho marinheiro.
Consolada com a opinião de Jock, Sanchia dormiu melhor, aquela noite, e acordou, na
manhã seguinte, com maior disposição para enfrentar a realidade. Entretanto, logo
depois do café, recebeu um telegrama de Tom dizendo que não podia voltar naquele dia.
— Ele virá provavelmente amanhã — disse Jock, ao notar que Sanchia estava aflita com
a notícia. — Aliás, eu achava muito difícil ele voltar hoje.
— Talvez fosse melhor adiar o casamento — sugeriu Sanchia. — Ele vai estar exausto,
quando chegar, e com vontade de descansar alguns dias.
— Nunca ouvi contar que alguém se sentisse cansado para sair em lua-de-mel —
comentou Jock com um sorriso. — Vamos aguardar até amanhã. Tom não gostaria que
você adiasse o casamento sem sua aprovação. Ele chegará para o casamento nem que
tenha que vir nadando.
Sanchia pensou dizer: "Eu tenho alguma coisa importante para contar a ele antes disso.
E não posso fazer isso algumas horas antes do casamento".
Na tarde daquele dia, Sanchia apanhou o vestido de noiva na loja recomendada por
Tom. Ao voltar para o veleiro e pendurar o vestido no guarda-roupa, não sentiu a alegria
habitual das noivas na véspera do casamento. Em vez disso, estava triste e preocupada
com os aspectos in com uns da cerimônia.
No dia seguinte, à mesa do almoço, estava tão nervosa que não podia nem mesmo
suportar a excitação das crianças. Não recebera nenhum telegrama de Tom, aquela
manhã. Às duas da tarde, tomou uma decisão.
— Vamos adiar o casamento, Jock. Tom não vai chegar a tempo.
Nessa altura, até mesmo Jock estava começando a ter suas dúvidas. Insistiu, porém, para
que esperassem um pouco mais. Às três da tarde, quando Sanchia estava decidida a ir à
cidade e adiar a data da cerimônia civil, chegou finalmente o telegrama esperado.
Tom estava em Saint Vicent e chegaria a Granada na sexta-feira, às nove da manhã,
exatamente uma hora antes do casamento.

CAPITULO VII

— Está vendo?! — exclamou Jock. — Tom vai chegar em cima da hora. Talvez seja
melhor assim. Não é bom os noivos se encontrarem antes do casamento.
— Ah, isso é uma superstição boba! — disse Sanchia com impaciência. — O que ele
está fazendo em Saint Vincent? Se está perto daqui, por que não vem hoje mesmo?
— Deve haver alguma razão...
Aquela noite foi a mais longa de sua vida. Pela uma da madrugada, como não conseguia
dormir, Sanchia foi preparar uma gemada na cozinha com uma boa dose de rum.
Repetia para si, obsessivamente: "Eu não posso aceitar isso. Eu fui uma louca de
concordar com isso".
Mas tinha concordado e agora era tarde para voltar atrás. Além do mais, tinha que
pensar nas crianças. Se não fosse por elas, não haveria casamento. Elas necessitavam
dela. Não podia dizer às crianças que mudara de idéia. Arrependeu-se amargamente de
não ter viajado na sexta-feira. As crianças sofreriam no começo, mas acabariam
compreendendo. Se partisse agora, elas jamais perdoariam. Seria uma espécie de
traição, um ato inexplicável e proposital de crueldade.
Por volta das três ou quatro da manhã, adormeceu finalmente. Às sete as meninas
levaram seu café na cama. Às oito e meia, as três se prepararam para ir ao cabeleireiro.
— E sua aliança? — perguntou Jane. — Você não vai tirá-la? Eu nunca vi ninguém com
duas alianças no dedo.
Sanchia não havia pensado nisso.
— Vou guardá-la. — Retirou lentamente a aliança do terceiro dedo da mão esquerda e
avistou um círculo de pele mais clara, ligeiramente irregular, no local onde usara a
aliança durante mais de três anos.
— Será que o tio se lembrou de comprar uma outra? — perguntou Emma.
— Claro que lembrou! — disse Jane.
Sanchia mandou as crianças saírem da cabine enquanto se vestia. Ao mirar-se no
espelho, notou que o rosto não estava abatido nem pálido com a noite mal dormida.
Mesmo assim, precisava pintar-se para ter a fisionomia alegre e feliz que é habitual nas
noivas, embora se sentisse exausta intimamente. Tinha uma ligeira dor de cabeça: e o
corpo estava moído em conseqüência da noite em claro.
As meninas ficaram encantadas com os penteados que fizeram no cabeleireiro e com os
vestidos brancos que Sanchia comprara para elas.
Passava das nove e meia quando saíram do cabeleireiro. Ao se aproximarem do
Jacarandá, as crianças deram um grito de alegria.
— Olhe, Sanchia, o veleiro está todo embandeirado! — exclamo Jane. — O tio deve ter
voltado. Vamos ver, Emma! — disse, correndo ao longo do cais, enquanto Sanchia ia
mais atrás. O veleiro estava de fato enfeitado da popa à proa com as bandeiras coloridas
que marcavam uma ocasião especial.
Aquele espetáculo alegrava o coração de qualquer um e, pela primeira vez naquela
manhã, Sanchia sorriu com animação. Mal subiu no deck, foi recebida por Jock, que a
aguardava com impaciência.
— Tom já chegou — disse Jock com o rosto sorridente. — Está tomando banho. Agora
corra para se vestir. Você não deve sair da cabine antes de ser chamada. Vamos, faça o
que lhe peço, senão vou trancá-la a chave na cabine...
Ignorando seus protestos, Jock conduziu-a às pressas para a cabine e fechou a porta.
Ela levou dez minutos para fazer a maquilagem. Estava ainda d combinação quando
ouviu uma batida na porta. Eram Jane e Emma, que queriam admirar seu vestido.
Da próxima vez que olhar para mim, pensou Sanchia diante do espelho depois que as
meninas saíram da cabine, vou me chamar Sanchia Bartlett. Lembrou-se de que tivera o
mesmo pensamento há quatro anos atrás, só que então estava alegre e sorridente,
enquanto a irmã de Barney ajeitava o véu na cabeça. Estava feliz da vida quando sua
mãe foi beijá-la e quando saiu de braços dados com o pai para tomar o carro preto e
brilhante que os levou à igreja.
As lágrimas inundaram seus olhos. Não podia chorar agora. Tinha que sorrir como na
primeira vez. "Espero que dessa vez corra tudo bem", pensou. "Por favor, que tudo corra
bem!"
— Sanchia!
Voltou-se com um sobressalto. Absorta em sua oração silenciosa não notara que Tom
tinha entrado na cabine e estava em pé atrás dela.
— Desculpe... Você se assustou? — perguntou, admirando-a da cabeça aos pés com um
sorriso nos olhos. — As meninas disseram que você estava linda e fiquei curioso para
vê-la. E você está realmente muito bonita com esse vestido verde-musgo.
— Tom... eu...
— Agora não. — Segurou-a pela mão e conduziu-a em direção à escada. — Eu vou lhe
contar tudo mais tarde. Vamos depressa. Estão esperando por nós.
Ao subir ao convés, ficou surpresa por avistar um grupo de conhecidos que estavam
reunidos no porto. Jock deu-lhe o buquê e ajudou-a a descer a prancha que levava ao
cais. Ela e as meninas entraram num dos táxis enquanto os homens e os meninos
subiram no outro.
A cerimônia civil foi tão rápida e informal que lhe pareceu mais um sonho que
realidade. Ao voltarem para o veleiro, alguns minutos depois, ela tinha a impressão que
não estava casada, embora estivesse de mãos dadas com Tom e com a aliança no dedo
— uma aliança de ouro.
Agora havia um número maior de pessoas no cais, e o táxi diminuiu a velocidade
enquanto homens e mulheres se aproximavam para ver a noiva de perto. Atiravam flores
no interior do carro pelas janelas abertas e expressavam em voz alta seus votos de
felicidade aos noivos. Sanchia tinha a impressão de que a metade da população da ilha
de St. George ouvira falar no casamento e largara todos os seus afazeres para tomar
parte na festa.
No momento em que Tom abriu a porta do carro e lhe estendeu a mão, vários flashes
explodiram em seu rosto. Havia um fotógrafo da imprensa local, um fotógrafo
profissional e um turista americano com uma filmadora na mão apontando para os dois.
Passava do meio-dia quando se prepararam para sair em lua-de-mel. Nessa altura, já
havia uma bandinha reunida na calçada de pedras do cais. Alguns conhecidos, inclusive,
dançavam no deck do Jacarandá.
— Espero que ninguém exagere — disse Tom, quando se afastaram num táxi sob
exclamações de regozijo e punhados de confete.
Emma estava sentada no meio deles e Jane no banco da frente. Os outros iam atrás, num
segundo táxi. Depois da despedida no aeroporto, as crianças iam passar o dia na praia.
— Você viu só — perguntou Tom quando o carro se afastou do cais. — Nosso
casamento se transformou numa verdadeira festa popular. — Voltou-se para Sanchia. —
Então, querida, está contente com nosso casamento?
— Muito,
Não houve tempo no aeroporto para despedidas prolongadas. Sanchia abraçou e beijou
as meninas e foi beijada, meio sem jeito, pelos meninos. Despediu-se em seguida de
Jock e dos motoristas de táxi que sorriam para ela.
— Juízo, crianças! Nada de travessuras! — foram as últimas palavras que dirigiu aos
três, que acenavam para ela.
No momento em que o avião decolou, Tom retirou o cinto de segurança e esticou as
pernas doloridas.
— Estou morto de cansaço... Posso deitar a cabeça no seu ombro? Não dormi nos
últimos dias e, se você quiser que esteja em forma hoje à noite, vou aproveitar para tirar
um cochilo.
— Descanse à vontade. Eu também vou tirar unia soneca.
Aliviada por ter adiado por algumas horas a confissão que pretendia fazer, Sanchia
descontraiu-se e virou o rosto para a janela, onde avistou a costa de Granada
desaparecendo rapidamente no horizonte, enquanto o avião rumava para o norte, em
direção a Barbados.
Tom dormiu a viagem inteira. Sanchia aproveitou para examinar à vontade o rosto do
homem com quem se casara. Se alguém no avião prestasse atenção no casal, diria que a
mulher estava olhando para o marido com muito amor e carinho. E pensaria que
somente um homem muito indiferente podia dormir no ombro da mulher com quem
acabara de se casar.
O hotel, muito simpático e gostoso, fora uma residência particular no passado. As
paredes eram caiadas de branco, havia persianas de enrolar nas janelas e um saguão
espaçoso e bem ventilado, onde as cadeiras e as mesas de vime estavam arrumadas entre
canteiros de flores e plantas tropicais.
— Você pode ir diretamente para o quarto e descansar um pouco enquanto vou
agradecer a Stuart por nos ter reservado o chalé — disse Tom na portaria. — Eu não
demoro.
Despediu-se dela e desapareceu por um corredor à procura do amigo.
— Por aqui — disse o porteiro de uniforme, que se encarregou das malas.
Vinte minutos depois de ter chegado no quarto, como Tom não tinha voltado ainda, ela
decidiu não esperar mais e saiu pela porta do quarto em direção à praia.
Havia algumas pessoas tomando sol e outras nadando, mas a praia particular do hotel
era pouco freqüentada. A maior parte dos hóspedes eram pessoas de idade, e Sanchia
ficou boquiaberta com a pequenez dos trajes de banho. Uma mulher bem cheia de corpo
e que parecia ter sessenta anos estava com um biquíni tão pequeno quanto o seu.
Fazia uns cinco minutos que estava na água quando avistou Tom aproximar-se correndo
em sua direção.
— Ah, agora sim! — exclamou Tom após dar um mergulho e aparecer ao seu lado. —
Desculpe ter demorado, mas Stuart me segurou para conversar.
— Não foi nada. Você passou um telegrama dizendo que chegamos bem?
— Já. — Tornou a mergulhar e, ao voltar à tona, nadou para mais longe.
Sanchia não mergulhou junto com ele porque não queria molhar os cabelos. Ao perceber
que Tom ia ficar ainda algum tempo na água, caminhou pela areia e voltou para o chalé.
A mala dele estava aberta. Aproveitou vara arrumar suas roupas e as dele no armário e
sentou-se na varanda para aguardá-lo.
— Você pediu alguma coisa para a gente beber? — perguntou Tom ao entrar na varanda.
— Não, eu não sabia se você ia demorar.
— Eu vou pedir. — Vestiu um roupão de banho e telefonou do quarto para a portaria do
hotel. — Você está com fome?
— Umas frutas..
Antes que Tom aparecesse de novo, ela vestiu o short.
— Agora estou me sentindo outro — disse Tom, esticando as pernas numa cadeira de
lona. — Voar é a maneira mais rápida de chegar, mas é tremendamente cansativo.
— Você ainda não contou o que aconteceu com o barco...
— O incêndio não foi tão grave quanto imaginei — disse Tom passando os dedos entre
os cabelos molhados. — O barco queimou inteirinho, mas ninguém ficou seriamente
ferido. Foi só o susto. Ainda não sabemos os motivos do incêndio. Suspeito que tenham
feito alguma imprudência. De qualquer modo, foi bom ter ido lá examinar pessoalmente
o acidente.
— E por que você passou a noite em Saint Vincent?
— Steve estava com um problema. Eu aproveitei para lhe dar uma mão. Mas eu cheguei
a tempo, não? Ah, o garçom está trazendo nossos daiquiris — disse Tom ao ouvir os
passos no caminho de pedra. — Pode entrar... estamos na varanda.
Depois que o garçom colocou as bebidas e as frutas em cima da mesa, Tom agradeceu e
deu-lhe uma gorjeta.
— Ah, isso é que é vida! — exclamou com um sorriso de satisfação, ao provar o
daiquiri.
— A lancha de Steve estava quebrada? — insistiu Sanchia, voltando ao assunto de
antes.
— Não, ele entende mais disso do que eu.
— Então o que foi?
— Ah, uma dessas coisas que acontecem quando a gente menos espera e que são muito
desagradáveis. Por favor, vamos conversar de outra coisa, sim?
— Parece até que eu sou da idade de Jane. O que pode ser tão desagradável que você
não quer contar?
— Está bem. Vou fazer sua vontade. Uma das alunas de esqui apaixonou-se por Steve.
Quando ele perdeu a paciência e mandou-a passear, a mulher ficou com tanta raiva que
o acusou de tentar seduzi-la à força. Como as pessoas adoram fofocas desse gênero, o
boato começou a circular pela cidade.
— Que absurdo! Steve adora a mulher e é um dos homens mais educados que já
conheci!
— Exatamente... mas uma mulher casada com um velho rico pode perturbar a vida de
um rapaz que não ganha por mês o que o marido gasta por dia — disse Tom
cinicamente.
— E o que você fez?
— Bem, eu fui conversar com a mulher a pedido de Steve. Expliquei a situação. A
mulher, naturalmente, fingiu que estava interessada por mim....
— E aí... você deu o fora nela?
— Mais ou menos... Eu não costumo levar desaforo para casa... Se alguém pisa em mim
ou num dos meus amigos, acaba se arrependendo do que fez...
O rosto dele, que até alguns momentos atrás estava sorridente e tranqüilo, assumiu
repentinamente uma expressão sombria. Os olhos estavam frios e agressivos e havia
uma expressão de desprezo na curva da boca. A expressão passou rapidamente, mas
Sanchia desejou não provocar nunca sua raiva.
— No fundo, as mulheres desse tipo me dão pena — acrescentou após um momento. —
A vida confortável que levam tem seus espinhos.. sobretudo quando se casam com
homens duas vezes mais velhos...
Sanchia ouviu em silêncio o comentário. Embora seu casamento não fosse comparável
com o de uma mulher oportunista, os dois tinham uma semelhança básica: eram
casamentos de conveniência e não de amor.
Subitamente, o pêssego que estava comendo pareceu ter um gosto amargo na boca.
Embora o sol estivesse de fora, sentiu um tremor de frio percorrer seu corpo.
Os casais e os grupos de banhistas que estavam na praia voltavam para os quartos do
hotel ou para os chalés vizinhos. Logo o dia terminaria. A noite desceria rapidamente.
No momento em que a praia ficou deserta, ela começou a sentir os efeitos da noite mal-
dormida. Queria estar sozinha, deitar-se na cama de casal e ver as estrelas surgirem no
céu. Não estava com a menor disposição para se vestir e jantar no restaurante, nem
tampouco para dançar e fingir que estava se divertindo. 0 pior seria mais tarde, quando
voltassem sozinhos para o chalé...
Sanchia observou-o atravessar a praia enquanto ia se preparar para o jantar e perguntou
a si mesma se Tom queria realmente dar um passeio ou se fizera aquilo para deixá-la
sozinha. Permaneceu sentada na varanda, durante alguns minutos, observando o
maravilhoso pôr-do-sol, acompanhando com os olhos o vulto moreno que se afastava
pela praia deserta, até a beira do mar. Então, com um suspiro fundo, levantou-se e
entrou no quarto.
Estava pintando os cílios, com a luz acesa, quando viu Tom aproximar-se da porta pelo
espelho do armário. Voltou-se e deu um sorriso sem graça.
— O banheiro está livre.
Antes de pintar o rosto, vestira a roupa de baixo e as meias compridas. Tom já a vira
muitas vezes com um biquíni menor que sua calcinha e sutiã. Não iria facilitar o
relacionamento dos dois se insistisse em manter um pudor exagerado.
— Você acha que esse vestido está bom para o jantar? — perguntou, com a voz
aparentemente calma.
Ele olhou para o vestido longo que estava estendido em cima da cama. Era o vestido
mais caro que ela comprara antes de viajar.
Sanchia sentiu que aquele era o momento oportuno que ela vinha aguardando há muito
tempo. Era preferível contar tudo de uma vez, antes que ele descobrisse... e ele iria
descobrir inevitavelmente.
Tomou coragem e encarou-o com os olhos fixos.
— Tom, eu queria lhe contar uma coisa...
— Outra hora, está bem? Agora estou morrendo de fome. Vou tomar um banho rápido e
depois vamos jantar.
Quando ele entrou no banheiro, ela teve vontade de chorar de frustração. Desejava
confessar um segredo que lhe pesava na consciência e Tom não lhe dava a menor
atenção.
Terminou de se vestir e foi até a sala, onde acendeu todas as luzes. Entretanto, embora
tivesse consciência de que a sala era decorada com bom gosto, não estava em condições
de apreciar a beleza dos móveis nem a pintura das paredes. Andando com nervosismo
de um lado para o outro, decidiu contar seu segredo antes de irem jantar.
Nesse momento, ouviu baterem à porta da frente. Ela foi abrir e viu um homem bonito
do lado de fora, vestido de smoking.
— Boa noite. Eu sou Stuart Morris, o amigo de Tom. Estava passando por aqui quando
a avistei na sala e pensei que fosse o momento oportuno para conhecê-la.
— Ah, sim. . Muito prazer em conhecê-lo. Entre, por favor. Tom está no banho, mas não
vai demorar.
— Tom me falou muito a seu respeito...
— Tom falou de mim? Quando?
— Ele fez os maiores elogios a você hoje à tarde. Para falar a verdade, eu não acreditei
na metade do que ele disse. Mas estou vendo agora que ele não exagerou. Quando Tom
me telefonou e contou que vinha passar umas semanas aqui, em lua-de-mel, Mary,
minha mulher, comentou que a noiva devia ser alguém muito especial. Mary conhece
Tom há muitos anos e nunca entendeu por que ele não se casava. Como você pode
imaginar, ela também está ansiosa para conhecê-la. — Fez uma pausa e olhou em volta.
— Se vocês tivessem avisado com mais antecedência poderia ter reservado um chalé
maior...
— Ah, este está ótimo... O chalé é um sonho e não podia escolher um lugar mais
gostoso para passar a lua-de-mel.
— Muito obrigado — disse Stuart, dirigindo-se para a porta. — Estamos esperando
vocês dois para tomarem um drinque lá em casa.
— Com muito prazer. Vou combinar com Tom.
— Até outro dia, então.
Nesse momento, Tom apareceu na porta, vestido para o jantar.
— Ah, ouvi sua voz do banheiro e me vesti correndo. Desculpe ter demorado.
— Sou eu quem lhe peço desculpas por essa visita inesperada. Já estou de saída. Adeus,
Tom.
— Fique mais um pouco, Stuart. Nós também estamos indo jantar. — Voltou-se para
Sanchia. — Minha gravata está bem-arrumada, querida? Eu raramente uso smoking e,
quando o visto, tenho a impressão de ir a um baile à fantasia.
Sanchia nunca o vira antes vestido a rigor e ficou admirada como a roupa combinava
bem com seu físico esportivo. Ao mesmo tempo, surpreendeu-se ao ouvi-lo chamar de
"querida".
— Está perfeita — disse Sanchia. — Vou apanhar minha bolsa.
Deixou os dois conversando na sala e foi para o quarto. Não podia contar o segredo a
Tom antes do jantar, muito menos no restaurante do hotel, diante de outras pessoas.
Apanhou sua bolsinha e apagou as luzes do quarto. Durante alguns segundos
permaneceu parada no escuro, contemplando o mar prateado pela porta aberta. Aquela
noite, porém, o céu estrelado e o mar cintilante não tranqüilizaram seus nervos tensos.
Tom lhe deu a mão quando se dirigiram para o restaurante pelo caminho de pedra. Mais
uma vez ela estava dividida entre o prazer do contato físico e a aversão igualmente forte
por um gesto que não era espontâneo. Jantaram numa mesa pequena e, durante o
primeiro prato, Tom perguntou:
— O que você ia contar? Que você dorme com esses fios de plástico nos olhos?
— Não, não era isso.
— Ainda bem! O que era então?
— Não lembro mais. Veja aquela mulher que está entrando com aquele vestido preto...
Sem voltar a cabeça, Tom comentou:
— Prefiro olhar para você.
— Ah, Tom! — O dia movimentado e tenso tinha levado suas emoções ao limite da
resistência. Não podia esconder sua irritação diante do elogio desnecessário e meio
banal.
— O que foi? Por que você está com essa cara?
— Não foi nada. Desculpe. . . Acho que estou cansada.
— Não precisamos dançar se você não tiver vontade. Logo depois do jantar vamos
voltar para o chalé.
— Ah, eu não estou tão cansada assim! — exclamou sem pensar. Tom levantou as
sobrancelhas como se fosse fazer algum comentário irônico, mas não disse nada.
Em vez disso, começou a falar sobre seus amigos Stuart e Mary, que estavam casados
há alguns anos e tinham filhos pequenos. Sanchia fez um esforço para acompanhar com
interesse a conversa. Exteriormente, tudo parecia normal entre os dois. A tranqüilidade,
no entanto, era apenas aparente.
Enquanto conversavam e dançavam, ela pressentiu que aquela era a calmaria que
antecede a tempestade. . . Não podia durar muito tempo.
Depois da sobremesa, Tom sugeriu que estava na hora de voltar para o chalé.
— Pelo jeito, os outros vão dançar a noite inteira. Você quer ficar mais?
— Não, podemos ir.
Tom levantou-se e puxou sua cadeira. Atravessaram o gramado atrás do hotel, que
estava deserto àquela hora. Quando chegaram em casa, o som da música era um
sussurro imperceptível.
Tom abriu a porta e acendeu a luz da sala. Encobertas pelos abajures de seda japonesa,
as lâmpadas davam ao ambiente uma luz dourada e tranqüila.
Sem saber o que dizer naquelas circunstâncias, Sanchia deu alguns passos e parou
indecisa perto de um vaso de flores que estava em cima da mesa. As cortinas estava
fechadas e eles não eram vistos por ninguém de fora.
Tom afrouxou lentamente o nó da gravata e desabotoou o colarinho da camisa. Colocou
a gravata borboleta em cima da mesa, juntamente com as abotoaduras de ouro. Depois,
aproximou-se dela.
Estava muito atraente com a camisa aberta no peito, e os olhos claros tinham um brilho
intenso à luz das lâmpadas amarelas. No instante em que estendeu os braços para cingi-
la, ela experimentou uma sensação de abandono e de tremor que lhe percorreu o corpo.
Suas pernas estavam tão bambas que mal podiam sustentá-la em pé.
Entretanto, no momento seguinte, estava completamente gelada, como se o corpo
tivesse recebido um choque repentino. Nos braços dele, com os lábios tocando o rosto
moreno dela, continuou rígida e indiferente, não propositalmente, mas porque, de
repente, todos os nervos do corpo pareciam paralisados. Estava literalmente incapaz de
fazer o menor movimento.
Os lábios dele não chegaram a tocar nos seus lábios. Tom sentiu antes sua rigidez. Era
natural que sentisse. Ela estava fria como uma pedra e mal respirava.
Tom soltou-a dos braços e fixou-a com impaciência.
— Vá para a cama, Sanchia. Você está exausta. Eu vou dormir no sofá.
Ela ouviu seu soluço abafado como se viesse de outra pessoa. Queria falar, mover-se,
mas as palavras não passavam pela garganta.
— Ah, pelo amor de Deus, vá para a cama! — exclamou Tom, dessa vez com
impaciência, quase com raiva.
Fez meia volta e saiu de casa. A porta bateu em suas costas. O som dos passos se afastou
e cessou por completo. Logo a casa estava mergulhada em profundo silêncio.
CAPÍTULO VIII

Sanchia acordou lentamente e, nos primeiros momentos, permaneceu deitada num


estado de sonolência tranqüila, sem nenhum pensamento na cabeça, apenas com a
consciência distante de que não estava em sua cabine no Jacarandá.
Não voltou imediatamente a si nem mesmo quando abriu os olhos e enxergou o quarto
luxuoso refletido no espelho do armário. Sabia que tinha dormido durante muitas horas
e que o sono fora profundo e reparador. Entretanto, no momento em que se espreguiçou,
bocejou e rolou na cama em direção à janela, não tinha lembrança dos acontecimentos
que antecederam as horas de sono. Notou apenas que se sentia indolente e confortável,
que lá fora o sol estava brilhando e que uma brisa leve soprava as cortinas de tule.
Foi somente quando olhou para o relógio que a lembrança da véspera surgiu
repentinamente, levando-a a sentar-se com um pulo na cama.
Onde estava Tom? Já teria acordado? Ou estava dormindo ainda na sala?
Pulou da cama, vestiu às pressas o robe de chambre e prestou atenção para ver se ouvia
algum ruído na sala contígua. Estava tudo em silêncio, porém. Abriu a porta devagar e
olhou em volta. 0 chalé estava silencioso como na noite anterior, depois que Tom saíra.
Onde ele poderia ter ido durante a noite? A que horas voltara? 0 que tinha pensado ao
deitar no sofá, enquanto sua mulher dormia sozinha no quarto? Talvez não soubesse que
ela tinha chorado ou talvez não sentisse nenhuma compaixão se soubesse. Por que
haveria de sentir? Não tinha culpa do que acontecera. Tinha todo o direito de estar com
raiva. Um homem rejeitado na noite de núpcias não podia aceitar o fato com
indiferença, mesmo que o golpe atingisse mais seu orgulho do que seu coração.
As cortinas da sala estavam abertas. O resto continuava como na véspera, com a
diferença que agora era dia. A gravata de Tom não estava mais em cima da mesa onde a
deixara, e as almofadas do sofá estavam arrumadas nos devidos lugares. Não havia nada
que indicasse que dormira ali.
Talvez não tivesse dormido no sofá... talvez não tivesse voltado para casa. Talvez
tivesse ido embora.. deixado o hotel... fugido dela. Deixara provavelmente um envelope
na portaria do hotel — um envelope com uma passagem de volta e algumas linhas
ríspidas de despedida. Ele cometera um erro... os dois tinham errado... era melhor
admitir isso agora. . . não se verem mais.
Os pensamentos que lhe ocorriam eram tão reais que ela correu até o quarto imaginando
encontrar o armário vazio, sem nenhuma roupa dele.
Mas estavam lá, penduradas nos cabides onde as colocara. Tom devia ter entrado no
quarto enquanto estava dormindo, porque o smoking também estava pendurado no
armário.
Evidentemente, não a abandonara ali. Não faria uma coisa dessas. O homem que
assumira a responsabilidade pelos sobrinhos, que tinha voado durante horas para
investigar um acidente distante, que adotara um menino rebelde e feito dele o George
que todos conheciam — um homem como esse não ia fugir na noite de núpcias. Estava
provavelmente na praia, tomando sol esquecido do episódio desagradável da noite
anterior.
Dessa vez sua suposição foi correta. Ao abrir a cortina do quarto, avistou Tom sentado à
sombra da barraca, lendo o jornal.
Tom não percebeu quando ela se aproximou. A cadeira estava de frente para o mar e os
ruídos de passos sobre a areia seca não o distraíram da leitura do jornal. Sanchia parou a
um passo da barraca.
— Bom dia.
Ela havia antecipado diversas reações possíveis, mas nunca pensou que ele fosse jogar o
jornal para o lado e perguntar, com a voz perfeitamente calma:
— Você já tomou café?
— Não... está quase na hora do almoço.
— Ainda falta uma hora. Vamos pedir café com biscoitos. O que você tem vontade de
fazer hoje?
— O que você quiser.
— Vamos dar um passeio até Bridgetown?
— Boa idéia.
Ela telefonou do chalé para a portaria e fez o pedido. Ao recolocar o fone no gancho,
disse:
— Tom, a respeito da última noite...
— Vamos esquecer o que aconteceu. Hoje é outro dia. Vamos recomeçar de novo.
— Você não entende...
— De fato, ontem à noite não entendi. Mas depois refleti melhor e acabei aceitando...
Aliás, sair de casa não foi a melhor maneira de resolver a situação, mas também não foi
muito insatisfatória. Você estava dormindo profundamente quando voltei. Eu também
estava pregado, apesar de ter dormido no avião.
— Eu estava muito cansada, realmente, mas não foi só isso.
— Eu entendo o que você sentiu. Não estou mais na idade em que a gente só
compreende as coisas de um ponto de vista egoísta...
— Não, você não pode entender...
— Claro que posso. Você não estava apenas cansada, estava nervosa e terrivelmente
aflita. Essas três coisas juntas foram a gota d'água. — Segurou-a pela mão e levou-a
para o sofá. — Eu devia ter percebido isso antes. Pensei que o jantar no hotel ia facilitar
as coisas... De qualquer maneira, você não é a primeira mulher que se sente exausta e
nervosa no dia do casamento. Ah, o garçom está trazendo nosso café. Vamos tomá-lo na
varanda?
— Não, eu prefiro conversar aqui.
Sanchia esperou o garçom servir o café e sair antes de reiniciar a conversa.
— Tom, eu tenho uma coisa para lhe contar. Eu ia contar ontem à noite quando Stuart
chegou e atrapalhou tudo. Eu devia ter contado na noite em que você me pediu em
casamento, mas não tive jeito...
— O que é? — perguntou Tom no momento em que ia servir o café na xícara.
— Eu não fui casada antes — disse Sanchia em voz baixa.
— O quê? — No primeiro instante, ela pensou que o bule de porcelana fosse escorregar
da mão dele e cair no chão. — O que você disse?
Ela apertou as mãos em cima do colo.
— Você me perguntou uma vez se tinha sido casada muito tempo. Eu disse que não.
Está lembrado? Mas eu nunca contei isso a ninguém... Meu marido comprou um carro
novo e nós pretendíamos passar a lua-de-mel viajando pelo litoral. O acidente ocorreu
no dia do casamento. Nós nos casamos ao meio-dia e às seis da tarde ele estava morto.
Passaram-se alguns segundos antes que Tom voltasse a si do seu espanto.
— Ah, que horror! — Evidentemente, seu primeiro pensamento foi para o sofrimento
dela durante a tragédia. Ele não associou imediatamente a confissão à situação de agora.
— Eu não tinha idéia... Por que você não me contou isso antes? — perguntou, com o
rosto marcado pela surpresa e pelo horror.
— Faz muito tempo que isso aconteceu. Eu tentei esquecer. Por mais que gostasse de
Barney, não podia passar a vida inteira me lembrando dele. Depois de alguns anos,
tentei reconstruir minha vida... olhar com esperança para o futuro. Foi por isso que
aceitei o trabalho no colégio de Lingard. Eu queria morar num lugar onde ninguém
soubesse do ocorrido. Mesmo um ano depois, eu começava a chorar quando alguém
falava em casamento ou acidentes de carro. — Fez uma pausa antes de prosseguir. —
Quando decidimos casar, eu pensei que você fosse fazer perguntas sobre o primeiro
casamento. Estava disposta a contar tudo o que tinha acontecido. Mas você não
perguntou nada e eu fui adiando... Eu não o enganei intencionalmente. Queria contar a
verdade e teria contado ontem se você não tivesse saído de repente de casa...
Tom levantou-se do sofá e começou a andar de um lado para o outro da sala, como se
entendesse finalmente todo o significado da confissão.
— Você está com raiva de mim? — perguntou Sanchia, sem saber interpretar sua
expressão. — Faria alguma diferença se você soubesse disso?
Ele parou no meio da sala e encarou-a um momento em silêncio, antes de responder.
— Faria uma grande diferença.
— Você não teria se casado comigo se soubesse?
Tom não respondeu imediatamente.
— Eu sei que devia ter contado antes — disse Sanchia com a voz aflita. — Você pensa
que não me senti terrivelmente mal? Eu reconheço que fiz mal... mas não tive coragem.
Eu não tenho o costume de mentir. Foi somente essa confissão que...
— Não é isso que me preocupa — interrompeu Tom bruscamente. — Não é por isso que
vou duvidar de você. Eu sei perfeitamente que você nunca mentiu para mim.
— Mas você esta com raiva. Eu estou vendo nos seus olhos...
Tom passou a mão no rosto.
— Não estou com raiva, Sanchia. Estou aterrado, só isso. Realmente, sua confissão foi
um choque. Jamais podia imaginar que você não chegou a se casar na primeira vez.
Sirva o café, por favor. Eu preciso de algum tempo para me habituar a essa idéia.
Tomou o café sentado no braço da cadeira ao lado da janela, de perfil para ela.
— Eu devia ter suspeitado! Havia alguma coisa em você que me intrigava. Nunca
entendi o que era... a explicação evidente nunca me ocorreu...
— A explicação evidente?
— Claro que você era uma mulher sem experiência sexual. Se soubesse disso, teria
entendido por que você nunca se sentia à vontade comigo. Os sinais estavam mais
visíveis em você do que nas moças de hoje, mas talvez seja porque você recebeu uma
educação tradicional...
— Se nós fôssemos como os outros casais... se gostássemos um do outro, você estaria
contente com isso!
— Pode ser, mas nós não somos como os outros casais. A experiência sexual teria
facilitado nosso relacionamento...
— Não vejo em quê. De qualquer forma, teríamos dificuldade de adaptação...
— Talvez, mas você teria pelo menos uma base de comparação.
— Isso só dificultaria mais as coisas... Se tivesse sido feliz no primeiro casamento, seria
mais difícil aceitar o segundo casamento.
Tom afastou-se da janela e colocou a xícara em cima da mesa.
— Concordo, mas havia a possibilidade de você ser mais feliz na segunda vez. Agora
você não vai saber nunca. No fundo do seu coração, haverá sempre uma dúvida.
Houve um momento de silêncio.
— Quer dizer que você não se casaria comigo se soubesse a verdade? — repetiu
Sanchia, olhando para as sandálias nos pés.
— Eu não disse isso. Talvez não casasse nessa correria.
— A espera teria alterado alguma coisa?
— Sim, teria. — Balançou ligeiramente os ombros. — Bem, como estamos casados, não
adianta discutirmos essa hipótese. Agora pelo menos estamos pisando num terreno mais
firme do que ontem, a esta hora. Você tem mais alguma coisa para me contar?
Ela teve a impressão de que havia uma certa agressividade na pergunta. Entretanto,
sentia-se tão aliviada com o fato de ter contado a verdade que nada mais tinha
importância.
— Não... mais nada.
— Nesse caso, vamos dar um passeio a pé antes do almoço. Vou vestir a camisa.
Depois do almoço — que Sanchia comeu com mais apetite que o jantar da véspera —,
ficaram deitados no terraço durante meia hora. Tom sugeriu então que fossem tomar um
banho de piscina.
Foi depois disso, quando estavam sentados num balanço coberto bebendo um refresco
de frutas, que ele voltou ao assunto da conversa anterior.
— Estive pensando no que você me contou. Sugiro que a gente esqueça que estamos em
lua-de-mel e que aproveitemos estes dias como se fossem umas férias... um período para
nos conhecermos melhor um ao outro. Eu posso dormir perfeitamente no sofá da sala.
Sanchia não soube o que responder. Se Tom houvesse sugerido isso na véspera, teria se
sentido agradecida e aliviada. Mas hoje era diferente. Hoje ela preferia enfrentar com
coragem a situação. O fato de adiar esse momento não iria facilitar nada. Pelo contrário,
tornaria o relacionamento ainda mais difícil.
— Você disse antes que a gente devia esquecer o que aconteceu ontem à noite. Mesmo
porque, quando voltarmos para o veleiro, vamos dormir na mesma cabine...
A resposta deixava bem claro que ela estava disposta a assumir suas responsabilidades.
Tom, porém, fingiu que não entendeu ou que não estava muito convencido de sua
conveniência.
— Bem, vamos conversar sobre isso quando chegar o momento. Muita coisa pode
acontecer nesses dez dias. Eu vou cair na piscina. Você vem?
— Vou... logo que terminar o refresco.
Enquanto bebia o ponche gelado, Sanchia o observou atravessar a grama em direção ao
trampolim. Só havia uma maneira de resolver todos os problemas, pensou com tristeza.
Era fazer com que Tom gostasse dela. Mas somente uma mulher muito especial
despertaria o amor em Tom. E Sanchia sabia que não era essa mulher especial. Tom
podia desejá-la fisicamente e, com o passar do tempo, tornar-se verdadeiramente
apegado a ela. Mas nunca iria amá-la de todo o coração. Nem daqui a dez dias, nem
daqui a dez meses, nem daqui...
Nos cinco dias seguintes, do café da manhã à hora de dormir, os dois aproveitaram ao
máximo as comodidades que o hotel oferecia. Nadaram na piscina, esquiaram e
velejaram na enseada. Jogaram tênis e passearam a cavalo. E, embora houvesse
momentos em que o prazer do presente fosse perturbado pelas recordações terríveis
passado, a tristeza não durava muito naquele clima e naquela paisagem deslumbrantes.
Todas as noites dançavam até tarde. Fazia uma semana que estavam no hotel quando
voltaram para o chalé à uma da manhã.
— Stuart nos convidou para almoçar amanhã — disse Tom, passarem diante do corte de
tênis iluminado pelo luar. — Podem depois fazer compras na cidade. Eu não fiz nenhum
plano para parte da manhã. Mary está nos esperando ao meio-dia. Se acordar mos tarde,
só teremos tempo para dar um mergulho na piscina.
Desde a segunda noite no chalé. Tom tinha o costume de ir primeiro ao banheiro.
Enquanto escovava os cabelos no quarto, aguardando o momento de despedir-se de
Tom, Sanchia pensou que a segunda metade das férias passava mais depressa que a
primeira. Faltavam apenas quatro dias para voltarem a Granada. Se fossem morar
sozinhos numa casa, como a maior parte dos recém-casados, o relacionamento atual
poderia prolongar-se indefinidamente. Cada um dormia no seu quarto e se viam apenas
durante o dia. As crianças porém, não entenderiam esse acordo. Muito menos Jock. Iria
concluir muito cedo que havia algo seriamente errado no casamento no que estava certo.
Era verdade que, na última semana, os dois tinham aprendido muita coisa um sobre o
outro, pelo menos no nível intelectual. Conversaram, trocaram idéias e discutiram sobre
uma dezena de assuntos, se bem que, no fundo, não divergissem tanto de opinião quanto
imaginavam a princípio.
Emocionalmente, porém, estavam ainda mais isolados que na noite de núpcias. Tom
evitava o menor contato físico com ela. Mesmo quando estavam dançando, segurava-a
nos braços como se fosse uma desconhecida e conversava o tempo todo. Sanchia estava
começando a pensar que Tom não desejava mais fazer amor com ela. Todas as vezes que
ela lhe dava a mão, ele encontrava um pretexto para soltá-la.
Se Tom fosse um homem diferente, podia acreditar que estava se vingando da rejeição
inicial. Mas tinha certeza de que ele não era um homem mesquinho ou vingativo.
Sentada no banquinho da penteadeira, Sanchia refletiu sobre a personalidade dele e
entendeu muitas coisas que a desagradavam nos primeiros dias. Tom era um homem
intensamente masculino, enérgico por natureza, dotado de uma grande força de vontade
e segurança. Era devido a essas qualidades que parecia às vezes ser duro e autoritário.
Levantou-se, colocou a escova em cima da penteadeira e puxou o cordão da cortina. A
praia estava clara ao luar. Lembrou-se da noite em que tinham ido a Grand Anse. Por
que não tomar um banho de mar agora? Não estava com sono e sentia-se cheia de
vitalidade.
Ao vestir o biquíni, ficou na dúvida se devia ou não convidar Tom. Mas ele podia estar
dormindo ou cansado de sua companhia por aquele dia. Decidiu não acordá-lo nem
incomodá-lo.
A areia estava quente sob os pés descalços. Era muito fina e, de dia, tinha uma cor
ligeiramente rosada. Afundava sob seus passos como açúcar refinado. Com os pés
dentro d'água, voltou a cabeça e avistou o hotel com algumas janelas iluminadas. Pelo
jeito, ninguém mais se sentira tentado a tomar um banho de mar à noite. A praia estava
completamente deserta.
Como uma criança, abriu os braços e correu para a água, saltando por cima das
pequenas ondas que quebravam na praia. O mar estava tranqüilo e liso como se fosse
uma folha de platina.
Nadou durante muito tempo. Estava desperta e não tinha a menor vontade de voltar para
o chalé. Caminhou até o local onde deixara a toalha, abriu-a em cima da areia e deitou-
se. Muito longe dali, na Inglaterra, as pessoas ligavam os aquecedores e os cobertores
elétricos para dormir. Naquela praia, mesmo com o maio molhado não sentia nenhum
arrepio de frio com a brisa fresca que soprava do mar.
Ficou muito tempo deitada, olhando para o céu estrelado antes de adormecer. O sono
deve ter vindo repentinamente. Num momento ela estava sozinha... no momento
seguinte, ou assim lhe pareceu. Tom estava ao seu lado, olhando fixamente para ela,
mais alto do que estava habituada a vê-lo. A princípio, como ele estava de costas para o
luar, não pôde enxergar seu rosto.
— O que você está fazendo aí?
A violência da pergunta assustou-a tanto que ficou imóvel, piscando os olhos, sem saber
o que responder.
Ele não esperou que ela acordasse completamente. Levantou-a nos braços-e antes que
tivesse consciência do que estava acontecendo, levou-a de volta para casa. Ainda estava
sonolenta quando ele a deixou no quarto e foi ao banheiro apanhar alguma coisa.
— Tire esse maio molhado e vista este roupão!
Atirou o roupão nos braços dela e ela percebeu seu rosto irritado antes de ele voltar as
costas e ficar parado, de braços cruzados, enquanto ela hesitava com o roupão agarrado
contra o corpo.
— Vamos, vista-se! Você tem um minuto!
Era uma ordem. Com a cabeça confusa, sem ter consciência do que estava fazendo,
tirou o biquíni e enfiou os braços com dificuldade nas mangas do roupão de banho. Mal
teve tempo de cobrir-se e passar o cinto quando ele se virou para encará-la.
No primeiro instante, ao vê-lo aproximar-se com o rosto fechado, pensou que fosse
bater nela e recuou instintivamente. Tom, porém inclinou-se para apanhar o maio
molhado no chão.
— Não, eu não vou bater em você — disse com frieza. — Não por que não tenha
vontade... ou porque você não mereça. Nada me daria mais prazer do que lhe dar uma
surra...
Apanhou a toalha em cima da cadeira, atirou-a sobre a cabeça de Sanchia e começou a
esfregar os cabelos molhados. Quando terminou, o couro cabeludo estava ardendo e seu
rosto estava vermelho.
— Agora vá direto para a cama! Se você me der mais trabalho esta noite, eu juro que
você vai se arrepender!
Acordou na manhã seguinte com o ruído de xícaras e talheres. O garçom estava
servindo o café na varanda e conversava com alguém, provavelmente com Tom.
Ele tinha terminado de tomar o café quando ela entrou na varanda. Estava fumando um
cigarro e lendo uma revista.
— Bom dia. — A entonação dele era normal quando se levantou para puxar a cadeira
para ela. — Vou pedir seu café.
— Muito obrigada.
Com um controle tão frágil quanto o da porcelana inglesa do serviço de café, Sanchia
sentou-se e abriu o guardanapo de linho sobrei os joelhos.
Tom voltou logo em seguida, apanhou o cigarro que deixara n cinzeiro, mas não abriu a
revista que estava lendo antes.
— Stuart telefonou hoje de manhã. Sugeriu que nós dois fôssemos pescar enquanto
você e Mary vão fazer compras na cidade...
— Boa idéia...
Tom deu uma exclamação de impaciência.
— Que desânimo, meu Deus! Assim a gente não vai se entende nunca!
— O que você está querendo dizer? Eu não estou desanimada. Simplesmente concordei
com sua sugestão.
— Escute, vamos esquecer o que aconteceu ontem à noite. Mas, por favor, não faça essa
cara de sofredora. Eu não agüento...
Ela sabia o que Tom queria dizer! Não devia abusar de sua paciência. Era uma
expressão que Jane usava às vezes. Mas preferiu fazer-se de desentendida.
— Não agüenta o quê?
— Ah, Sanchia, por favor! Vamos conversar como adultos.
— Essa é boa! E você que devia pedir desculpas pelo que aconteceu ontem à noite. Eu
estou esperando uma explicação.
— Ah, não! Você não pode ser ingênua a esse ponto! Por que não admite que fez uma
coisa completamente estúpida? Você não entende que podia ter morrido afogada?
— Afogada? Num mar manso daquele? — Dessa vez a perplexidade dela era sincera. —
Eu fiquei no raso, com a água batendo pela cintura.
— Você não precisa estar no fundo para ter uma cãibra.
— Eu nunca tive cãibra no mar.
— Mas pode ter um dia! Nadar sozinha àquela hora da noite é perigoso e arriscado.
Uma criança teria mais juízo. Se você queria nadar, por que não me chamou?
— Eu achei que você estava dormindo.
— Ah, sim... como se eu dormisse imediatamente depois de deitar a cabeça no
travesseiro — disse com sarcasmo. — Com as coisas nesse pé, isso é pouco provável,
você não acha? Você teve sorte que levantei no meio da noite, senão você não estaria
agora sentada aí. Estaria num hospital com pneumonia. Mesmo nesse clima, dormir na
praia com o maio molhado é doença na certa.
— Eu só cochilei um momento. Não pretendia passar a noite na praia.
— Você estava dormindo profundamente quando a acordei. Mesmo uma hora seria
suficiente para apanhar uma gripe séria.
O garçom entrou nesse momento com a bandeja do café. Tom não estava falando em
voz alta, mas o homem deve ter pressentido alguma coisa no ar. Sem fazer os
comentários alegres de costume, serviu rapidamente o café e saiu.
Tom continuou sentado, olhando para o mar, apertando e soltando os músculos do
maxilar.
— Desculpe. Eu não fiz por mal — disse Sanchia, interrompendo o silêncio entre eles.
No primeiro momento, ela pensou que ele ia rejeitar a desculpa. O rosto estava com a
mesma expressão sombria e implacável que a assustara no dia em que tinham chegado.
— Esqueça. Eu levei um susto quando entrei no seu quarto e encontrei a cama vazia.
— Você entrou no meu quarto? Para quê?
— Adivinhe! Nada me impede de entrar no seu quarto.
— Não, claro que não!
— Eu também ia nadar. Entrei para perguntar se você queria ir comigo.
Sanchia corou repentinamente. Pela primeira vez notou que Tom tinha falado com a
intenção deliberada de humilhá-la. No esforço para esquecer sua mágoa, disse a
primeira coisa que passou pela cabeça.
— Mesmo assim, você não tem o direito de ser rude comigo.
A escolha das palavras foi infeliz, como ela compreendeu no instante seguinte.
— Eu não encostei o dedo em você, por isso não adianta me acusar... Aliás, se fosse
você, não falaria em direitos nessa altura. Ou você se esqueceu que eu também tenho
alguns direitos?
— Não é verdade! Não fui eu que sugeri isso. Foi você mesmo! — exclamou ela com a
voz trêmula. — Pela maneira como você m trata ultimamente, estou começando a
acreditar que você fez de propósito!
— O que você sugere, então? Pôr fim a essa situação?
Antes que ela pudesse responder, ele levantou-se, puxou-a com força e apertou-a nos
braços. Diante de todos os banhistas que podiam estar presenciando a cena — e a maior
parte dos hóspedes do hotel estava na praia naquela manhã —, Tom inclinou a cabeça e
beijou-a com violência na boca.
— Você ainda acha que estou fazendo de propósito? — perguntou, com a voz rouca ao
solta-la. — Não se assuste, nada mudou em nosso acordo. Eu não quero uma mulher
obediente... Olhe, acho melhor a gente se manter longe um do outro o resto da manhã. A
gente se encontra na casa de Mary ao meio-dia, combinado?
Foi até o meio da sala, fez meia volta e encarou-a nos olhos.
— Mais uma coisa. Se você quiser que lhe beije outra vez, você terá que pedir. Até lá,
não vou tocá-la de novo... é uma promessa.
Pouco antes do meio-dia, Sanchia subiu a ladeira que levava à casa de Mary. De estilo
moderno, tinha o telhado baixo e grandes portas de vidro em todo um lado. Mary
avistou-a de longe e foi ao seu encontro.
— Ah, que bom você ter vindo! Estava ansiosa para conhecê-la. Você não está cansada
de subir essa ladeira? Vou fazer um suco de laranja bem gelado para você. Os homens
estão preparando os apetrechos de pesca na garagem. Vamos entrar...
— Que sala gostosa! — disse Sanchia ao avistar as paredes de pedra com estantes de
livros e uma profusão de quadros pendurados.
— Você gostou? A vista daqui é realmente linda. Até dois anos atrás nós morávamos
num apartamento no hotel. Mas todas as janelas davam para o morro e o último andar
não é muito bom para uma família com crianças pequenas.
— Ah, que pintura maravilhosa! — exclamou Sanchia ao ver uma marinha que estava
pendurada na parede.
— Tom não me falou que você gostava de pintura — disse Mary, colocando alguns
cubinhos de gelo em dois copos altos.
— Eu gosto, mas não entendo muita coisa.
— Mas você deve ter um conhecimento instintivo do que é bom. Nós gostamos de todos
os nossos quadros, mas nenhum artista se compara com Joe.
— Joe?
— Os amigos o chamam de Joe. Seu nome é Jonathan. Jonathan Logan.
— Isso prova que não entendo de arte. Nunca ouvi falar nele,
— Não tem importância — disse Mary com uma risada. — Joe é um homem muito
simples, embora os americanos paguem fortunas para adquirir suas telas. Você vai
conhecê-lo em breve. Joe e Sara moram em Tobago, mas passam a maior parte do ano
num veleiro em ai tomar. Tom os conhece muito bem. Você deve ter ouvido falar em
Sara. Era cantora antes de casar. Muito famosa, por sinal, mas abandonou a carreira
quando foram morar em Tobago.
— Ah, sim, eu me lembro de tê-la ouvido cantar. Tinha uma voz inconfundível... Eu a vi
num programa de televisão.
— Agora ela canta apenas para Joe e as crianças. Os filhos nasceram no ano passado...
os gêmeos mais adoráveis que já vi. Sara está grávida de novo e os dois vão passar
alguns meses em casa. Da próxima vez que você for a Tobago, lembre Tom de
apresentá-la aos dois. Vocês duas devem ter muita coisa em comum... para casar com
homens que gostam de aventuras. Sara adora o mar. Ah, lá vêm os dois chegando. Olá,
Tom. Estava dizendo a Sanchia que ela se parece com Sara.
— Olá, Sanchia — disse Stuart. — Você me desculpe ter roubado seu marido durante
algumas horas. Mary disse que sou um egoísta de marca e que fui interromper o idílio
de vocês dois...
— É mesmo! — exclamou Mary. — Não entendo como você teve a coragem de sugerir
essa pescaria. Se fosse Tom, mandaria você para o inferno!
— Qual é o homem que gosta de fazer compras com a mulher... mesmo recém-casado?
— disse Stuart com uma risada. — Eu fui uma mão na roda... Você se lembra de nossas
briguinhas no começo?
Mary deu uma risada gostosa.
— Nossa lua-de-mel não foi muito romântica! Fomos passar um mês em Paris. Deveria
ser o paraíso, mas foi terrível, vocês nem podem imaginar. Brigamos mais nos primeiros
quinze dias do que nos dezesseis anos de casados!
— Por que vocês brigavam?
Ao ouvir a pergunta de Tom, Sanchia voltou-se para ele. Fazia mais de uma hora que os
dois tinham se separado na varanda, mas uma hora não era tempo suficiente para apagar
da lembrança o beijo devastador que lhe dera. Como se tivesse acontecido há alguns
segundos atrás, sentiu-se de novo esmagada entre seus braços, a cabeça inclinada para
trás, enquanto ele cobria sua boca de beijos.
Distraidamente, ouviu Mary dizer: — Ah, por qualquer coisa. . . Não é verdade, Stuart?
A primeira briga foi por causa de uns sapatos de salto alto que me machucavam os pés.
Eu não tinha levado nenhum sapato esporte, por isso tive que comprar um par baratinho
de salto baixo. Stuart ficou furioso. Depois ele quis subir no alto da Torre Eiffel e eu
fiquei enjoada lá em cima. Houve um momento e que pensamos seriamente que
tínhamos cometido um erro em n casarmos e que nossos temperamentos eram
incompatíveis...
Mary ofereceu um drinque a Sanchia enquanto Stuart preparava outro para Tom.
— A coisa mais difícil foi adaptar nossos hábitos de dormir. E sempre dormi com o
lençol preso embaixo do colchão. Stuart, porém, se vira na cama como uma baleia que
foi arpoada. Eu levei muito tempo para me acostumar com isso, e tinha que puxar o
lençol para meu lado todas as vezes que ele se virava na cama.
— Que exagero! — protestou Stuart. — Até me casar, eu dormia como uma pedra.
Reconheço que tive dificuldades de dormir mais tarde, mas quem não teria com uma
dieta daquelas? — Piscou para Tom. — Eu comia feijão com arroz no almoço e no
jantar. Não sei como não morri de indigestão...
— Ê verdade, eu era uma péssima cozinheira quando nos casamos e Stuart teve uma
paciência de anjo... Ele comia tudo sem se queixar. Mas isso não altera o fato de que
você era, e continua sendo, um tremendo dorminhoco, querido! — Voltou-se para
Sanchia. — E Tom? Ele também puxa os lençóis quando dorme? Você acorda caindo
para fora da cama?
— Não... até agora, não — murmurou Sanchia sem jeito. Felizmente, Mary mudou de
conversa e perguntou a Tom onde o Jacarandá estava ancorado quando saíram de
Granada.
No almoço, Sanchia provou pela primeira vez o prato que os moradores da ilha chamam
"ovo de peixe". E foi somente depois de todos apreciarem a carne rosada com batatas
coradas e cebolas que Mary explicou que o prato era preparado com a carne do ouriço-
do-mar, cujos espinhos ferem os pés dos banhistas nas pedras.
Logo depois do almoço, os homens se prepararam para a pesca submarina. Enquanto
saíam de casa com os apetrechos nas costas, Tom retirou do bolso duas cartas.
— Ah, eu ia me esquecendo. Chegaram essas cartas para você — disse para Sanchia. —
Uma delas é de Jock e a outra veio da Inglaterra.
— Ah, muito obrigado. Divirtam-se!
— Você não esqueceu nada?
O que ele queria dizer? - pensou Sanchia. Esperava que lhe desse um beijo de
despedida?
— O que foi? — perguntou sem jeito.
— Você não pode fazer compras sem dinheiro. — Estendeu-lhe um maço de notas. —
Se não for suficiente, Mary pode fazer um cheque e depois nós acertamos nossas contas.
Até mais tarde.
Ao entrar no pequeno carro de Mary, Sanchia abriu as duas cartas que recebera.
— Você não se importa que eu leia agora? Estou morrendo de curiosidade para saber
como as crianças estão.
— Claro que não. Não faça cerimônia.
A carta de Granada estava escrita com a letra bem cuidada de Jock. Contava que tudo
estava bem a bordo dó veleiro e que as crianças estavam com muitas saudades. A outra
carta era de Delia Preston:

Minha querida Sanchia


Foi com sentimentos confusos — mas não de tristeza — que recebi seu telegrama. Vou
sentir muita saudade de você, querida, tanto no trabalho quanto em casa. Fiquei muito
contente, no entanto, ao saber que você vai levar uma vida mais completa e feliz na
companhia de Tom e das crianças. Eu sempre achei que o casamento era sua
verdadeira vocação. Você possui qualidades que só desabrocharão completamente no
futuro.
Fiquei surpresa, no entanto, com o que você me diz em sua carta, que seu casamento
não é por amor. Só posso concluir que, ao escrever a carta, você não estava ainda
consciente da profundidade de seus sentimentos. Talvez, por ter sofrido muito no
passado, você não quisesse reconhecer que a vida lhe dera uma nova oportunidade.
Isso eu posso entender. O que não compreendo é que você tenha dúvidas quanto aos
sentimentos de Tom.
Estava claro para mim, desde o início, que vocês se sentiam fortemente atraídos um
pelo outro. Se você não exercesse essa atração, Tom não teria pedido para você
acompanhar as crianças. Não estou dizendo que ele se apaixonou por você à primeira
vista, mas é possível que, instintivamente, desejasse conhecê-la melhor com o tempo.
Na minha carta anterior, disse que entenderia perfeitamente se você mudasse de idéia
quanto a sua volta. Eu sabia que Tom tinha a intenção de pedi-la em casamento, como
deu a entender antes de embarcar. Ele não tinha certeza se você aceitaria ou não o
pedido, mas confessou que gostava muito de sua maneira de ser e que estava decidido a
pedi-la mais tarde em casamento. Depois de conhecê-lo um pouco melhor, fiquei
convencida de que ele seria bem-sucedido. Eu prometi naturalmente guardar segredo
sobre isso. Mas sei que agora não há mais segredo entre os dois.
A carta continuava ainda algumas linhas, mas Sanchia não foi adiante.
— Não é possível! — exclamou em voz alta.
— O que foi? — perguntou Mary, surpresa. Ao voltar-se para o lado e ver os olhos de
Sanchia úmidos, parou o carro na calçada.
— Alguma notícia triste?
— Não... não, está tudo bem. Por favor, não precisa parar.
— Mas você está chorando. Aconteceu alguma coisa?
— Não... Estou chorando de alegria!
Algumas horas depois, ao voltarem para casa, ocorreu a Sanchia que Mary ia fazer mau
juízo dela. Primeiro chorara, depois caíra na gargalhada e, finalmente, na cidade, ficara
completamente louca e gastara todo o dinheiro que Tom lhe dera em roupas
extravagantes e caras.
Mary sentou-se no sofá e cruzou as pernas. Ela também trocara de roupa para o jantar.
Pretendiam ir os quatro a um clube para dançar.
— Ê estranho como as primeiras impressões são enganadoras — comentou Mary ao ver
Sanchia andando nervosamente de um lado para o outro da sala. — Eu fazia idéia, no
almoço, que você era uma pessoa calma e sossegada... Você se sente sempre intimidada
quando conhece alguém pela primeira vez?
Sanchia achou que devia dar uma explicação a Mary, mas era impossível dizer: "Depois
do almoço eu descobri que Tom gosta de mim... e que eu gosto dele".
— Não, eu não me julgo muito tímida. Eu estava um pouco cansada quando cheguei
aqui... Fomos nadar hoje de madrugada. Além disso, estava preocupada com alguma
coisa, mas a carta que recebi esclareceu tudo.
— Ainda bem! Ter uma preocupação em plena lua-de-mel...
— Pois é... mas agora passou. — Sanchia pulou do sofá. — É o carro deles?
— Então, se divertiram muito? — perguntou Mary quando os dois entraram na sala.
— Estava sensacional — disse Stuart. — Mergulhamos até não poder mais. Você
preparou alguma coisa para a gente beber, querida?
— Preparei. Você não quer tomar banho primeiro?
— Não há pressa. Tom pode usar o banheiro das crianças. Nós nos vestimos
rapidamente. Não somos como as mulheres que levam horas se pintando...
— Não é isso que estou falando, querido — explicou Mary com um sorriso malicioso
na direção do marido. — Quando duas pessoas estão casadas há uma semana, elas
sentem saudade uma da outra... mesmo após algumas horas de separação...
— Ah, sim, entendi — disse Stuart com uma expressão divertida.
— Até mais tarde, Tom.
Depois que os dois ficaram sozinhos na saía, Sanchia perguntou:
— Gostou de minhas calças bufantes?
— Gostei muito — disse Tom, mirando-a de alto a baixo.
Ele foi até o bar, serviu-se uma bebida, voltou a sentar no sofá e esticou as pernas. No
momento em que tirou um cigarro do maço, Sanchia acendeu o isqueiro e sentou-se ao
seu lado, com as pernas cruzadas em cima do sofá.
— Obrigado — disse Tom inclinando a cabeça para acender o cigarro. Segurou na mão
dela para aproximar a chama do isqueiro.
— Você não percebeu nada? Tom observou-a com atenção.
— Não, o quê?
— Mary nos deixou sozinhos na sala para eu lhe dar um beijo.
— Mary acha que nós queremos namorar? — perguntou Tom, surpreso.
— E não é verdade?
— Ah, por favor, não vamos começar tudo de novo. Nós ficamos de sair com os dois
para jantar fora. — Observou-a com os olhos apertados. — O que você quis dizer
exatamente com isso?
Sanchia tirou o copo da mão dele e deixou-o em cima da mesa. Em seguida, colocou o
cigarro no cinzeiro e ajoelhou-se no sofá, com as mãos em cima dos seus ombros.
— Lembra de sua promessa? Eu estou pedindo para você me beijar.
— Por que isso agora... de repente?
— Porque descobri que gosto muito de você. Não basta? Passou os braços em volta do
seu pescoço e beijou-o na boca.
— O que aconteceu de hoje de manhã para agora? — perguntou Tom após um
momento.
— Hoje de manhã era tudo diferente. Hoje de manhã eu não sabia que você gostava de
mim, nem que eu gostava de você. Tom, nós temos que ir com eles? Não podemos dar
uma desculpa? Eu queria muito conversar com você... a sós.
Mary entrou na sala nesse momento.
— Ah, desculpem. Eu devia ter batido primeiro. Tom, você vai tomar banho aqui ou em
sua casa?
Tom levantou-se do sofá.
— Mary, você não importa se nós dermos o bolo hoje à noite?
— Não, claro que não! Você está com dor de cabeça? Não quer tomar um comprimido
antes de sair?
— Não, obrigado. Estou meio quebrado e nós dois não estamos acostumados a dormir
tarde.
— Stuart também se cansa às vezes. Eu acho inclusive que ele vai preferir dormir mais
cedo hoje. — Sorriu para Sanchia. — Leve-o para casa e cuide bem do seu marido. Não
acredite se ele disser que não precisa de nada. Mesmo os homens fortes gostam de ser
tratados às vezes como crianças. Ah, não se esqueça de suas compras, querida! Vou
pegar para você... Quando entraram no chalé, Tom apanhou o telefone.
— Vou pedir para trazerem nosso jantar aqui. Depois vamos fechar a porta e não receber
mais ninguém. — Enxergou os embrulhos que Sanchia tinha comprado em cima da
mesa. — Não me diga que você comprou tudo isso!
— Você acha que fiz mal?
— Se você se vestir sempre como uma odalisca, não me importo que gaste todo o meu
dinheiro...
— Eles estão perguntando o que você quer, querido — murmurou Sanchia no seu
ouvido.
Tom, que costumava falar ao telefone com a voz rápida e incisiva, disse distraidamente.
— Por favor, mandem um jantar para dois.
Desligou o telefone e passou os braços em volta de sua cintura.
— Você esqueceu de dar o número do nosso chalé.
— Bolas! — Apanhou de novo o telefone, deu o número e, quando a telefonista
perguntou o que queriam para o jantar, disse: — Ah, isso fica a seu critério. Mande um
prato bem gostoso... e uma garrafa de champanhe, por favor. — Para Sanchia: — Você
deseja alguma coisa especialmente?
— Não, está ótimo. Ao desligar o telefone, voltou-se e encarou-a com atenção.
— Não entendi ainda o que aconteceu. O que causou essa transformação repentina em
você?
— A carta que recebi hoje à tarde. Por que você não disse que gostava de mim?
— Eu fiquei com medo de assustá-la. Você podia quando muito aceitar um casamento
sem amor, mas ficaria indecisa se não pudesse retribuir. Não é verdade?
— Sim, pode ser. Mas se eu soubesse que você gostava de mim, teria compreendido
muito antes que também gostava de você. O que dificultou tudo, desde o início, foi você
ser tão... atraente.
— Verdade?
— Hummm. Terrivelmente atraente. Todas as vezes que você olhava para mim, minhas
pernas tremiam...
— E isso era ruim?
— Isso me impedia de julgar se gostava de você por razões mais sensatas.
— A atração física não é tudo, mas não deixa de ter sua importância...
— Eu sei disso, mas quando duas pessoas são violentamente atraídas uma pela outra,
ficam cegas para qualquer outra coisa. Eu já tinha cometido um erro antes e não queria
correr o risco novamente.
— Que erro?
Sanchia afastou-se dos seus braços.
— Há ainda uma coisa sobre meu primeiro casamento que não contei a você. Se você
não gostasse de mim, isso não teria importância.
— O que é? — perguntou Tom com o rosto repentinamente sério.
— Vamos nos sentar ali? — sugeriu Sanchia, apontando para o sofá. — Na última vez
que conversamos a esse respeito, você disse que eu não saberia nunca se seria ou não
mais feliz com você do que com meu primeiro marido. Está lembrado?
— Sim, eu me lembro.
— A verdade é que eu não seria feliz com Barney...
— Como você sabe? Você não viveu com ele...
— Eu vou contar exatamente o que aconteceu. Eu tinha dezenove anos quando conheci
Barney. Era muito inexperiente e fazia muitas ilusões sobre a vida. Eu pensei que
gostava dele e, num certo sentido, gostava realmente. Mas, acima de tudo, eu queria
casar e ter uma família. — Fez uma pausa. — No momento em que me recuperei do
acidente, eu era uma pessoa diferente. Mais madura. Passei a olhar para a vida com
menos ilusões. Pouco a pouco, compreendi que Barney e eu não éramos absolutamente
um casal harmonioso. Isso foi a pior parte de todas. Concluí que tinha sido melhor não
estar casada com ele. Eu não desejava mais ter apenas o conforto material que ele podia
me dar. Tudo aquilo não era suficiente para justificar o casamento. Ao mesmo tempo,
sofria com esse pensamento e me sentia terrivelmente culpada, como se houvesse
desejado sua morte. Você ainda gosta de mim, depois de ouvir isso?
Tom segurou nas suas mãos.
— Eu gosto de você ainda mais. Você não deve se acusar da mudança que ocorreu.
Provavelmente, se Barney estivesse vivo você não teria mudado. Seria uma
transformação muito lenta, quase imperceptível. Todos nós mudamos com o passar dos
anos.
— Eu sei disso, mas talvez eu vá me sentir sempre culpada...
— Não, você vai acabar esquecendo. O passado não contará mais quando você aprender
a viver o presente. Talvez você leve algum tempo para superar esse problema, depois de
ter vivido tantos anos com esse peso na consciência. Todos nós fizemos alguma coisa de
que nos arrependemos. Eu quase cometi o mesmo erro com Carol. Foi a minha
experiência na guerra que me salvou.
— Aquela noite em Tobago, quando você falou em Carol, disse que o amor era uma
coisa superada e que o casamento era uma instituição prática. Lembra?
— Sim, mas eu disse também que você e eu combinávamos bem.
— Foi então que você comentou que não havia duas pessoas de temperamentos mais
incompatíveis que nós dois, e me deu o fora.
— Eu nunca dei o fora em você!
— Como não? Você estava uma fera comigo!
— Só podia estar! Você disse aquilo para me irritar.. .
— Pelo contrário, foi uma indireta que eu dei... a primeira de muitas outras.
— Você não podia gostar de mim, então. Nós mal nos conhecíamos.
— Não foi você mesma quem disse que é muito difícil saber o momento exato em que a
atração física se transforma em amor? Pois eu posso dizer exatamente quando comecei a
gostar de você.
— Quando foi?
— Na manhã em que passei na sua casa. Tivemos uma briga na cozinha e você ficou tão
furiosa que saiu batendo a porta. Foi então que me ocorreu convidá-la para viajar com
as crianças.
— Na realidade, você não precisava de mim. Foi isso que Delia me disse na carta que
escreveu.
— Ela descobriu primeiro que você era o motivo do meu convite. Se ela não escrevesse
na carta que eu gostava de você, você levaria talvez a vida inteira para entender isso.
— Não é verdade. Eu sabia que gostava de você muito antes de ler a carta dela.
Descobri isso na manhã seguinte ao nosso casamento. Procurei você pela casa toda e
não o encontrei. No primeiro momento, pensei que você tinha ido embora. Foi então
que compreendi o quanto sentia sua falta e como me sentia segura na sua companhia.
— Hoje é nossa verdadeira noite de núpcias — disse Tom, apertando a mão dela com
força. — Eu nunca vou abandoná-la, nem deixar você ir embora.
— Ah, Tom...
Ouviram uma batida leve na porta. Tom soltou sua mão e abriu a porta para o garçom.
Depois que o homem colocou a bandeja em cima da mesa e desejou bom apetite aos
dois. Tom fez menção de segurá-la nos braços.
— Mais uma coisa que eu quero perguntar a você. Uma coisa que me deixou muito
curiosa.
— O que é?
— Quando eu contei que meu casamento durou apenas algumas horas, eu pensei que
você fosse ficar contente com a notícia. Em vez disso, você quase me abandonou. Por
quê?
Uma sombra de tristeza atravessou o rosto dele. Olhou para a mesa posta.
— Não sei por que pedi o jantar. Não estou com a menor fome. Você está?
Levantou-se e foi abrir a garrafa de champagne.
— Quando sugeri o casamento, eu pensei que você ainda gostasse do seu primeiro
marido. Mas tinha certeza que, com o passar do tempo, você acabaria gostando de mim.
— Ele lhe ofereceu uma taça de champanhe. — Quando você me contou que não
chegara realmente a se casar com Barney, eu mudei de idéia. — Sentou-se ao lado dela.
— Mesmo para as mulheres que gostam dos maridos, o casamento nunca é o ideal com
que sonham. Em geral, as mulheres esperam muita coisa cedo demais. Por isso me
ocorreu que, como você não gostava de mim, havia o risco de você vir a me detestar.
— Ah, entendo. Eu não tinha pensado nisso.
— Foi meu primeiro pensamento. Agora, naturalmente, estou contente com o fato de
você não ter sido de mais ninguém. Eu não me julgo ciumento... mas prefiro mesmo
assim que você não tenha tido nenhuma experiência sexual antes do casamento. Talvez
seja irracional, mas o que se há de fazer? — Deu um sorriso para ela. — Está satisfeita,
agora?
Depois dessa conversa, a estada no chalé se prolongou por mais quatro dias. Ao
voltarem para o veleiro inesperadamente, fora da data prevista, foram recebidos com
exclamações de júbilo pelas crianças.
— Ah, que saudade eu tinha de vocês!
— Jock disse que vocês perderam o avião...
— Vocês se divertiram muito?
— Oba, vocês compraram presentes!
Finalmente, depois que a algazarra acalmou um pouco, Jock aproximou-se de Sanchia.
— Você nunca esteve mais bonita, menina. A felicidade está brilhando nos seus olhos.
— Só podia estar... Nunca pensei que fosse possível ser tão feliz...
Tom chegou perto e passou o braço em cima do seu ombro.
— O que vocês dois estão cochichando aí?
— Eu ia dizer que é gostoso voltar para casa, mesmo depois de nossa estada
maravilhosa em Barbados.
— Mesmo que amanhã a casa seja em outro lugar?
As crianças estavam distraídas abrindo os presentes que tinham ganho. Sanchia esfregou
o queixo no ombro de Tom.
— A casa é onde você está.

FIM

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