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Armadilha Amorosa

The Man at La Valaise

Mary Wibberley
Sabrina 19

Sacha fugia de uma desilusão e foi cair num cárcere nas mãos
daquele homem selvagem!

Sacha estava ansiosa para chegar a La Valaise, encantadora aldeia no sul da


França, onde esperava esquecer seu frustrado romance com Nigel. Porém, não sabia
que aquela fuga iria mudar o rumo de sua vida! Quem era Tor e aqueles outros
russos que a mantinham prisioneira em tão misteriosas circunstâncias? Sacha
tentou por várias vezes fugir. Tudo em vão... Tor, o eslavo intrigante e perturbador,
neutralizara tranqüilamente seus esforços inúteis. Mas a reconquista da liberdade
seria o bastante para ocultar as novas revelações de seu coração?

Digitalização e Revisão: m_nolasco73


Colaboração: Alice Akeru

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Copyright: MARY WIBBERLEY

Título original: "THE MAN AT LA VALAISE"


Publicado originalmente em 1974 pela
Mills & Boon Ltd., London

Tradução: DIOGO BORGES

Copyright para a língua portuguesa, 1978


Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo.

Composto e impresso nas oficinas da


Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.

Caixa Postal 2372 - São Paulo.

CAPÍTULO I
Finalmente chegou. Em um relance apareceram diante dos olhos de Sacha os
telhados de La Valaise, e no momento seguinte se esconderam novamente por detrás
do arvoredo frondoso. Mas era lá mesmo, disso não tinha a menor dúvida. Até que
enfim!
Seus lábios se abriram em um sorriso, enquanto segurava o volante do Citroën
com a maior firmeza. Este era o trecho mais sinuoso da estrada, possivelmente o
mais difícil que havia enfrentado desde que saíra do aeroporto de Nice, onde alugara
o carro. Mas, de uma certa maneira, valeu a pena, sobretudo no momento em que
surgiu o casario de telhados vermelhos, fazendo com que o cansaço da longa viagem
aérea e das horas na estrada se dissipasse. Sacha ficou a imaginar se madame Cassel
estaria lá. Algumas vezes, quando ela sabia que alguém ia chegar, esperava o
visitante com uma limonada fresca ou talvez com pão feito em casa, presunto e
azeitonas.
Sacha pegou um lenço de papel e passou-o no rosto. Estava quente, quente
demais, e era apenas o início da primavera. O céu brilhava intensamente, como se as
nuvens fossem se desfazer em chuva, e talvez isto diminuísse o calor intolerável. O
vestido úmido do suor aderia à sua pele. Oh, quem lhe dera um chuveiro frio! Esta
era uma das amenidades modernas que La Valaise ostentava — não simplesmente
um banheiro, mas um chuveiro delicioso e relaxante.
Os altos barrancos que ladeavam a estrada estreita pareciam estar a ponto de
desmoronar — mas eles tinham aquela aparência há anos e anos, desde quando
Sacha podia se lembrar, e já haviam passado oito anos quando estivera lá a primeira
vez, com apenas quatorze anos. E agora...
E subitamente o inesperado, o impossível aconteceu. Tinha voltado
ligeiramente a cabeça a fim de ver um belo pássaro que pousara em uma pedra em
cima do barranco e olhava novamente em frente. Nesse momento brecou
instintivamente, enquanto uma motocicleta parou aos trancos, desgovernou-se e
atravessou a estrada, detendo-se a alguns centímetros do automóvel.
Fez-se um silêncio mortal durante alguns momentos e Sacha voltou a respirar.
Viu um homem descendo da moto — e não tirou os olhos de cima dele, pois o
mínimo que poderia dizer era que se tratava de uma pessoa interessante. Era um
homem alto, com mais de um metro e noventa e com um corpo tão bem
proporcionado que ela se sentiu momentaneamente perturbada. Era moreno, muito
moreno, provavelmente porque queimado de sol, mas seria moreno de qualquer
maneira. Usava um calção de brim azul desbotado e uma camisa da mesma cor,
desabotoada; calçava um par de sandálias de minúsculas tiras de couro. Suas pernas
eram compridas, peludas e musculosas, o peito e os braços também, e seu rosto
fascinante Um tufo de cabelo preto lhe caía pela fronte. As maçãs do rosto eram
salientes, os olhos escuros e a boca grande ostentava uma expressão de bom humor.
Aquele rosto irradiava força e poder — e ele não estava zangado, na verdade parecia
estar sorrindo. Sacha abriu a porta no mesmo momento e desceu, postando-se
diante do homem que sorria para ela. Também era alta, quase um metro e oitenta,
mas ele a sobrepujava facilmente enquanto dizia em francês:
— Sinto muito, mademoiselle, espero que não tenha se assustado. Não
acreditava encontrar ninguém, sabe, esta estrada é particular.
— Sim, eu sei — ela respondeu em francês, mas ele a interrompeu:
— É inglesa? — Fez a pergunta em inglês.
— Sim, mas como...? — ela indagou, desarmada, não conseguindo se dominar e
esboçando um sorriso. Ele sorriu e seus dentes muito alvos contrastavam com sua
pele queimada.
— Estou reconhecendo seu sotaque. Não há como se enganar. É inglesa, não?
Uma coisa era certa. Ele não era nem inglês, nem francês, e ela ficou em dúvida
sobre sua nacionalidade. — Sim — concordou. — Sinto muito, eu também não
esperava encontrar ninguém. Pensei que esta estrada fosse dar somente em La
Valaise...
— É isso mesmo, mas então por que... — Por um rápido momento ela viu algo
perturbador em seus traços. A coisa durou apenas alguns segundos e logo se
dissipou.
— É para lá que eu vou. — E ela voltou a sorrir para ele. Era realmente um
homem bonito, de um modo viril e duro. Duro, sim, esta era a palavra mais
apropriada para descrevê-lo. Um ligeiro arrepio percorreu a espinha de Sacha, mas
ela não soube explicar a causa.
—Deve haver algum engano. — Seu sorriso desaparecera quase que por
completo. Ainda estava presente, mas sob domínio. Ele disse:
— La Valaise está ocupada por minha família e por mim. — Ela teve a
impressão de que ele fizera uma ligeira pausa antes da palavra "família". —
Continuaremos lá durante as próximas semanas, portanto... — Ele deu de ombros.
Com um gesto insinuante, mas agora ela estava perturbada demais para perceber ou
se deixar impressionar.
— Não — ela disse com firmeza. — Não, desculpe, eu tenho a carta comigo... —
Abaixou a cabeça para mexer dentro da bolsa, e quase perdeu o que aconteceu em
seguida.
Ouviu-se a voz de um homem que gritava: "Tor, prinésite mne malen".
Levantou os olhos, surpresa ao se deparar com um homem grisalho que parara a
alguns metros de distância. Viera da casa e se mantinha estático na estrada
empedrada e poeirenta, sem saber o que fazer.
O homem da motocicleta voltou-se e disse algo para ele em voz baixa, porém
irada. A língua que ele falava era estranhamente familiar e ao mesmo tempo
indefinível. O senhor levantava e abaixava os braços, com gestos de quem queria
pedir desculpas, como se quisesse dizer: "Mas eu não sabia", e então começou a
caminhar em direção a La Valaise. O homem da motocicleta voltou-se novamente
para Sacha e neste momento dois pensamentos ocorreram a ela simultaneamente.
Aquele senhor tinha um rosto que lhe fora vagamente familiar, como se ela já o
tivesse visto, mas somente uma vez... E o nome deste homem era Tor. Que nome
fascinante, Tor.
Algo mudara. No momento em que voltou a remexer na bolsa, o homem alto fez
um gesto como se quisesse dizer "Não importa", e estendeu a mão, tocando o braço
de Sacha. — Olhe — disse. — Houve um mal-entendido. Vamos até em casa e
esclareceremos o assunto, enquanto tomamos um drinque. — Ela sentiu-se quase
que compelida a olhar para ele, pois seu toque queimava como fogo, e sentiu-se
perturbada com o que viu em seus olhos. — Está um dia quente, não?
Subitamente Sacha sentiu que devia se afastar. Não sabia exatamente do que se
tratava, como se uma campainha tilintasse dentro dela, avisando-a instintivamente
de um perigo. Seu corpo inteiro tremia, enquanto ela procurava se exprimir o mais
naturalmente que podia. Subitamente pareceu-lhe muito importante falar
casualmente, para deixá-lo perceber que...
— Olhe — disse. — Talvez eu tenha me enganado. Tenho uma tia em Cannes,
posso ir visitá-la e...
— Não — disse ele com suavidade, mas isto foi suficiente para impedi-la de
prosseguir. — Acho que não. Não seria justo que você fosse embora depois de uma
viagem tão longa. Venha, vamos até em casa e mais tarde — e novamente aquele
levantar de ombros dolente e sedutor aconteceu — decidiremos. Sinto muito.
Sacha encaminhou-se para o Citroën. Se fosse necessário refazer o caminho de
volta, cheio de pedregulhos e curvas, ela o faria, pois a sensação de alarme começava
a assustá-la, sobretudo devido à beleza que os circundava, ao sol brilhante e à
natureza, com os pássaros cantando em árvores distantes. Olhou para o homem
enquanto sua mão encostava na porta, cuja janela estava abaixada a fim de deixar
entrar um pouco de ar. Sorriu para ele com grande esforço. Antes ela o tinha
considerado atraente, e ele ainda o era, a ponto de fazer seu coração disparar, mas
agora havia nele mais uma qualidade, que não sabia expressar em palavras. Estava
assustada. — Preciso ir embora — disse.
O homem chamado Tor moveu-se com agilidade, debruçou-se e tirou a chave
do automóvel. Jogou-a para cima e aparou-a, ao mesmo tempo que dizia: — Não.
Ainda não.
Sacha não hesitava diante do perigo, pois tinha coragem. Certa ocasião
dominara um jovem assaltante, ao vê-lo atacar e roubar uma velhinha. Enfrentara-o
com toda a coragem de que dispunha e subjugara-o até que correram em seu auxílio.
Mas algo lhe dizia que aquele homem não pertencia à classe dos jovens assaltantes,
além do mais, era feito de um estofo diferente. Encarou-o, portanto de cabeça
levantada, desafiadora e disse: — Não sei qual é seu jogo, mas quero já minhas
chaves de volta, por favor. — Estendeu a mão e seus olhos azuis fitavam aquele par
de olhos acinzentados, nos quais transparecia uma expressão dura.
— Jogo? — Ele sorriu ligeiramente. — Sinto muito, não compreendo. Eu apenas
desejava...
Sacha cometeu seu primeiro erro, ao avançar para pegar a chave que ele
segurava com tanta displicência. Ele segurou a mão dela com toda delicadeza, mas
com grande decisão. Ela sentiu a força que emanava de seu gesto e desvencilhou-se.
O peito arfava, devido à respiração acelerada. Um arrepio gelado, de puro medo,
percorreu-lhe a espinha; ela voltou-se, segurando a bolsa com toda força e começou
a correr pela estrada esburacada, não sabendo o que estaria para acontecer. Queria
se afastar de lá, a qualquer custo, e a estrada principal ficava apenas a uns dois
quilômetros. Seria capaz de chegar até lá? Os pedregulhos se esfarelavam e
desmoronavam ao ruído de seus passos, e ficou a imaginar se tudo aquilo não
passava de um pesadelo, se ainda estava adormecida no avião... Até mesmo quando
sentiu que a agarravam, ao que ela revidou violentamente, com pontapés, golpeando
também com os braços, o homem moreno.
Mas de nada adiantou. Ela, sabia, mas tinha que tentar. — Por favor, não lute,
você apenas vai ficar machucada. Você agora precisa vir, sabe? Se você não tivesse
visto, se você tivesse vindo em outra ocasião, e não agora... — Parou de falar, como se
tivesse dito mais do que deveria. Levou-a de volta, pela estrada pontilhada de
pedregulhos; ela tropeçou e ele a segurou com mais força. Alguém que nos visse
pensaria que estivéssemos apaixonados, pensou Sacha com amargura. Lado a lado,
com o braço em redor da cintura dela, ele ralentava o passo a fim de que Sacha
pudesse acompanhá-lo. Se as coisas fossem realmente o que pareciam ser!
— Tire as mãos de mim — disse ela, arquejante, e ele obedeceu imediatamente.
— Mas se você tentar correr novamente eu não lhe darei ouvidos,
compreendeu? — avisou ele. Agora já se avistava a casa, tão familiar, e que parecia
tão segura — sempre o fora, pelo menos até agora. E ela não ficou nem um pouco
surpreendida ao ver um outro homem na porta. Assim que chegaram mais perto ela
conseguiu percebê-lo com maior nitidez e hesitou. O homem chamado Tor
cochichou: — Tudo bem. Ele não faz mal a ninguém.
Madame Cassel não deveria estar longe. Era o único pensamento que ocupava a
mente de Sacha a única coisa a que ela se agarrava, pois sempre estava lá a fim de
tomar conta da casa, e providenciaria para que tudo desse certo.
— Por favor, entre. — O outro homem desaparecera, o que era um alívio, e o
companheiro de Sacha abriu a porta para ela. Sentindo-se como se estivesse indo de
encontro à sua própria condenação, ela entrou e teve que fazer um esforço a fim de
ajustar seus olhos à relativa escuridão, depois do sol brilhante lá de fora. Sentir o frio
das lajotas de cerâmica sob os pés era de certa forma reconfortante. Estava em La
Valaise. Talvez houvesse estranhos lá, mas a casa não mudara.
A voz dele interrompeu seus pensamentos. — Por favor, sente-se. Gostaria de
tomar chá ou café? — Tinha sede, mas uma suspeita horrível apoderou-se dela e a fez
responder precipitadamente, sem pensar.
— Só se eu mesma preparar.
Ele riu, e não havia nada de sinistro no modo como ele jogava a cabeça para
trás e na sua risada alegre.
— Quer dizer que assim eu não poderei colocar nenhuma droga dentro? Muito
bem, se é assim que você quer... Vamos. — Levou-a para a cozinha, logo ao lado da
grande sala de estar. Sacha foi em frente e ele a seguiu. Examinava tudo à sua volta,
avaliando, notando as modificações, mas tudo parecia estar no mesmo lugar de
sempre. Poderia até jurar que era ainda a mesma réstea de cebolas pendurada na
parede, próxima ao retrato vivamente colorido da Nossa Senhora com o Menino
Jesus que tinha enfeitado a parede desde tempos imemoriais. As paredes eram de
reboco, pintadas de azul, já um tanto esmaecido. O fogão e os armários eram os
mesmos, sólidos, velhos, agradáveis à vista. Sacha suspirou e olhou à sua volta. Tor
abriu um armário, tirou de dentro uma lata e destampou-a.
— Chá — ele disse. — Vocês, ingleses, gostam de chá, não é mesmo? Acho que
você prefere, não?
— Sim — respondeu ela, mas antes que pudesse pegar a chaleira ele a tirou do
fogão, foi até a pia e encheu-a de água.
Ela o observou, notando seu gesto hábil e rápido ao acender o gás e colocar a
chaleira sobre as chamas azuis. — De onde você é? — perguntou ela, ainda sentindo a
marca de seus dedos ao redor da cintura.
Ele voltou-se, olhou para ela e sacudiu a cabeça imperceptivelmente. —
Primeiro vamos tomar chá — respondeu. — Em seguida você faz perguntas.
— Mas quero saber agora — disse ela. Tinha visto um grande bastão de madeira
apoiado a uma cômoda. Se ela soubesse como brandi-lo, se transformaria em uma
arma muito eficiente, e ela não teria do de usá-lo, mas quantos homens haveria lá?
Já tinha visto dois, e ambos, ao que tudo indicava, tinham tratado de se esconder. E
aquele homem a sua frente dissera que estava lá com sua "família". Raciocinou que
ele haveria de querer que tudo tivesse a aparência mais normal possível, se
pretendesse que ela não fosse embora. E provavelmente tinha razão ao presumir que
os outros homens não se mostrariam durante um certo tempo. Mas e se eles a vissem
fugindo sozinha? O velho tinha mais ou menos uns sessenta anos. Por que seu rosto
a assustara tanto? O outro era careca e gordo demais para correr depressa. Assim
sendo... Sacha olhou novamente o bastão, mas com muita cautela, pois apesar de ele
estar vigiando a chaleira e não a ela, era esperto demais para seu gosto. Mas ela não
queria ficar naquele lugar um minuto além do necessário. Quanto mais cedo entrasse
em contato com a polícia, melhor. E onde é que ele pusera as chaves? Tentou
recapitular todas as suas ações e então se lembrou de que o vira colocá-las no bolso
traseiro do calção. Então era isto. Derrubá-lo, agarrar as chaves, levar o carro de
alguma forma até a estrada e voar para a casa de tia Marie. Chegando lá a salvo
telefonaria para a polícia e lhes falaria daqueles homens loucos em La Valaise...
Sobressaltou-se no momento em que ele se voltou e disse algo.
— O que foi?
— Açúcar? Aceita açúcar?
— Ah, não, obrigada. — De qualquer modo, não engoliria o chá, portanto não
tinha importância. Pousou a bolsa displicentemente sobre a mesa, ao lado de uma
fruteira cheia de frutos apetitosos, e voltou-se a fim de contemplar o calendário
afixado na parede. Suas mãos retesaram-se assim que se imaginou pegando aquele
belo bastão de madeira. O momento, no entanto, ainda não tinha chegado. Ele olhou
em sua direção e observou: — A água está quase fervendo. Quer colocar o chá no
bule?
— Sim. — Ele lhe deu as costas, a fim de pegar as xícaras em uma prateleira
mais alta. Chegara a ocasião. Agora. Sacha, com uma força que nascia do medo e do
desespero, agarrou o bastão de madeira e assentou-o em sua cabeça... No entanto, o
barulho que ouviu veio de seus ombros e não da cabeça, pois ele se voltara
rapidamente. Um desespero súbito apoderou-se dela, ao compreender que ele a
sentira mover-se.
No mesmo momento o bastão foi arrancado de suas mãos e atirado ao chão, e
ela enfrentou um homem pálido, selvagem e encolerizado, cujo braço esquerdo
pendia de lado...
O medo fez com que seu sangue gelasse. Arquejou e saiu correndo em direção à
porta e à liberdade... mas foi agarrada e pressionada de encontro ao corpo rijo do
homem, que disse entre dentes:
— E você tentou me fazer acreditar que era inocente! — Após este comentário
intrigante e incompreensível ela foi empurrada em direção à sala de estar.
No momento que se seguiu, viu-se sentada em uma grande cadeira de balanço,
aliás, a única da sala. Ela o olhou e viu que ele massageava o ombro esquerdo com a
mão direita. O medo começava a dissipar-se, pois ela se deu conta que se ele quisesse
agredi-la, já o teria feito naqueles poucos momentos de raiva cega na cozinha.
— Agora — ele disse —, você vai me contar quem é você e de onde vem, e terá de
dizer a verdade. Onde está seu passaporte?
— Na minha bolsa, na cozinha. — Umedeceu os lábios com a língua pois
estavam muito secos, e o ar estava mais abafado do que nunca. Sem dizer uma
palavra ele saiu, voltou com sua bolsa de palha e jogou-a sobre seu colo. — Abra e
tire seu passaporte, e mais nada. Está me entendendo?
Sem dizer uma palavra, Sacha abriu a bolsa. Sua única chance de escapar de lá
era manter-se tão calma e sensata quanto possível. Estendeu-lhe o passaporte e ficou
a contemplá-lo enquanto ele o examinava, dirigindo rapidamente o olhar para ela e
para a fotografia, como se quisesse comparar a imagem com a realidade.
— Aqui está escrito que você é jornalista. — Olhou-a e ela estremeceu
involuntariamente. Havia algo em seu tom que ela não gostava.
— Sim, mas trabalho em um jornal pequeno — ela ia dizer, mas ele não a deixou
terminar.
— Então você quer que a gente acredite que você veio aqui de férias?
Aqueles olhos acinzentados ainda estavam irados, além de exprimir outros
sentimentos. Havia uma luz perigosa neles, e ela começou novamente a sentir-se
atemorizada. O que estava acontecendo?
— Sim. Tenho a carta de madame Cassel comigo...
— Isto não tem importância. Vire a bolsa pelo avesso, por favor, mas jogue tudo
no chão.
Uma atitude de desafio tomou corpo em Sacha. — Não! Quem é você, afinal de
contas? — perguntou.
— Acho que você já sabe. Vamos, você vai abrir a bolsa ou prefere que eu abra?
— Não há nada dentro dela que possa interessá-lo — ela respondeu.
— Bem. Então, vai ser rápido. Vamos, por favor. — A última palavra, falada com
muita suavidade, continha uma sugestão de ameaça.
Sacha abriu a bolsa e derramou o conteúdo no chão. Passagens de avião, o
recibo do carro, uma carta dobrada, carta de motorista, um pacote pequeno de
aspirina e vários objetos de maquilagem jaziam amontoados sobre as lajotas
vermelhas no chão.
— É tudo? — ele perguntou.
Ela, em resposta, abriu a bolsa o mais que pôde e levantou-a de modo que ele
pudesse ver o forro cor de creme.
— Pode colocar tudo dentro novamente.
Sua cabeça começou a latejar. A mistura do temor, da raiva e do calor resultou
em uma terrível enxaqueca. Pôs tudo de volta e seus dedos começaram a tremer.
Abriu a cartela de aspirina e pegou duas.
— O que está fazendo? — Sua voz a interrompeu antes que ela pudesse colocá-
las na boca.
— Estou com dor de cabeça — respondeu, e olhou para ele. — Estou tomando
duas aspirinas. Você se incomoda?
Ele fez que não e ela notou que um músculo se retesava em sua mandíbula. Ele
esboçou um sorriso. — Talvez não doa tanto quanto o meu ombro — comentou com
suavidade. — Vamos acabar de preparar o tal chá. Vá você na frente. Prefiro que você
esteja onde eu possa vê-la.
Ficou parado no batente da porta e olhou-a encher o bule com água fervente.
Sem ter necessidade de olhá-lo, ela teve certeza de que ele era como uma mola,
pronto para saltar a qualquer gesto em falso que ela fizesse.
— Só temos suco de limão, não há leite.
— Serve. — Colocou duas colheres cheias de chá fresco e forte e adicionou suco
de limão, contido na pequena jarra azul.
— Vamos tomar aqui mesmo. Ponha as xícaras na mesa.
Ela assim o fez e ele sentou-se diante dela, abancando-se na mesa de madeira
rústica. Tirou um maço de cigarros do bolso do calção.
— Aceita um cigarro? — perguntou.
— Não fumo. — Tomou um gole de chá quente e engoliu as aspirinas, sem
deixar de olhá-lo. O que estava acontecendo? Sacha nunca se sentira tão confusa em
toda sua vida. Acariciara durante tanto tempo a idéia de chegar lá e passar três
semanas na maior tranqüilidade, pintando, tomando banhos de sol e nadando, ao
mesmo tempo que esperava tirar Nigel de sua cabeça uma vez por todas — e agora,
subitamente, não desejava outra coisa que não se afastar de lá o mais longe possível.
O pequeno apartamento de tia Marie nos arredores de Cannes agora lhe parecia um
paraíso, um lugar incrivelmente maravilhoso. E, como sempre, ela tinha prometido
visitá-la por um dia, mas agora aquela possibilidade lhe parecia assustadoramente
remota.
— Por favor — disse subitamente. — Por favor, diga-me por que está me
retendo aqui? Não fiz nada, vim somente passar as férias. — E as lágrimas lhe vieram
aos olhos. Elas eram parcialmente causadas pelo chá quente que acabara de engolir,
mas ele não poderia saber, e quem sabe isto ajudaria...
Os traços dele se suavizaram um pouco. Jogou a cinza do cigarro no cinzeiro de
vidro. O cheiro inconfundível e forte de tabaco francês encheu o quarto. — Quase que
acredito em você — ele disse após um momento. — Gostaria de acreditar em você,
pois é muito inconveniente ter você aqui. Mas não posso correr riscos. Você terá suas
férias nesta casa, dentro de alguns dias. Até lá permanecerá aqui como minha
convidada.
Ela ficou gelada na hora. Por alguns momentos sentiu-se literalmente incapaz
de falar. Assim que se julgou em condições de fazê-lo, murmurou: — Por quê? Por
quê?
— Se, como penso, você sabe, então não preciso dizer. E se não sabe, melhor
continuar não sabendo — foi a resposta enigmática.
— Não. — Ela sacudiu a cabeça e as lágrimas de verdade não tardariam, pois se
sentia cansada e faminta. Tudo aquilo estava sendo difícil de suportar, pois ocorria
logo em seguida a sua última e amarga briga com Nigel... — Não sei de nada.
Sinceramente. Madame Cassel pode testemunhar por mim. Venho aqui todos os
anos com meu pai no mês de julho. Este ano vim mais cedo... — ia quase dizer
"sozinha", mas o instinto a fez dominar-se a tempo. — Madame Cassel lhe dirá que
estou falando a verdade. Onde é que ela está?
Ele sorriu para ela. — Foi passar uns tempos com a filha dela em Fréjus...
— Não, ela nunca viaja quando alguém vem para cá... — Não prosseguiu. Ele
talvez tivesse lido seus pensamentos, pois sacudiu a cabeça.
— Não lhe fizemos nenhum mal. Ela está de verdade em Fréjus, e muito bem.
Sacha olhou para suas mãos, que rodeavam o bule. A dor de cabeça tinha
piorado, talvez devido ao que ela estava ouvindo. Mas ela tinha de ir adiante, tinha
de perguntar. — Mas ela não iria embora daqui, pois estava esperando hóspedes...
— Escreveu àqueles que viriam este mês, inclusive você, com certeza, a fim de
cancelar as reservas, por estar "doente". — Tor sorriu subitamente. — Então quer me
dizer que não recebeu sua carta?
Ela sacudiu a cabeça. — Não. Somente uma carta confirmando minha vinda.
Não entendo...
— É muito simples. — Seu dedo comprido e moreno diluiu uma gota de chá
caída sobre a mesa, e Sacha seguiu o gesto como se estivesse hipnotizada. — Disse a
ela que estava em lua-de-mel, que não queria que me atendessem ou me
incomodassem em hipótese nenhuma e dei-lhe um bocado de dinheiro. Sua alma de
camponesa ficou satisfeita. Os franceses são muito românticos e muito práticos.
— Você está em lua-de-mel?
Ele voltou a sorrir, e Sacha, apesar de tudo, ficou fascinada. Quando ele ria, seu
rosto se tornava incrivelmente atraente, e até mesmo os olhos cinza perdiam um
pouco de sua rigidez. — O que você acha? — perguntou ele.
— Acho que não. Sobretudo com estes dois homens aí... — respondeu. Seria
melhor se uma mulher estivesse lá. Subitamente Sacha se conscientizou do que
estava acontecendo. O que ele tinha dito? Pretendia mantê-la na casa por alguns
dias. Levantou-se agitada e foi até a janela, apoiando a fronte febril na vidraça fria. O
que ela deveria fazer?
— Sua cabeça ainda dói? — A pergunta foi súbita e surpreendente.
— Sim. — Ela fechou os olhos. Não devia admitir para si mesma que estava
assustada, mas que chances ela teria contra três homens? O mais velho parecia ser
bom, quase gentil, mas o calvo... Começou a tremer descontroladamente e sentiu que
Tor a tocava ligeiramente no braço. Então ele disse: — Não lhe farão nenhum mal
enquanto você estiver aqui, mas você deve fazer o que lhe disserem. — Sacha queria
tanto acreditar nele, mas não conseguia. Voltou-se, olhou para Tor e ele retirou a
mão.
— Mas por quê? Por quê? — perguntou, angustiada.
Ele contemplou-a em silêncio durante alguns segundos.
— Porque você viu, por acaso, o que não deveria ter visto. É esta a razão. Pois se
mesmo que tudo o que você diz é verdade, mesmo que eu a deixe ir embora, como é
que posso saber que você não vai contar?
— Prometo que não direi uma palavra... — ela respondeu, mas ele interrompeu-
a, sacudindo a cabeça.
— Não. O que está acontecendo é importante demais. Você veio para ficar, e de
fato vai ficar, mas durante alguns dias outras pessoas também ficarão...
— Meu pai chega hoje à noite — ela mentiu desesperada. Durante alguns
momentos se pôs a refletir, mas em seguida deu de ombros, repetindo aquele seu
gesto insinuante.
— Pois se vier será muito bem recebido. — Um sorriso ligeiramente cínico
aflorou-lhe aos lábios. — Mas acho que você não fala a verdade. Por quê?
— Pois espere e verá — ela respondeu, desafiando-o, mas não conseguiu
encará-lo. Ele levantou-lhe o queixo e ela foi obrigada a olhá-lo.
— Talvez — disse. — Você parece estar cansada. Quer tomar um banho de
chuveiro? Vou mandar buscar suas malas no carro. Espere aqui. — Enquanto ele se
afastava, ela ouviu as chaves tilintarem em sua mão. Enquanto descia as escadas, ele
falava. Ela permaneceu no mesmo lugar, pois, mesmo com um braço inativo, sabia
muito bem que aquele homem representava mais do que um desafio. Portanto,
limitou-se a ouvir, e subitamente percebeu que língua ele falava. Tomar consciência
desse dado foi algo que a inquietou ainda mais. Quando ele voltou ela estava se
sentando novamente.
— Não vai demorar — ele disse. — Quer comer?
— Você tem caviar? — ela perguntou.
— Ah! — Ele sentou-se diante dela. — Então você sabe. Fala russo?
— Não. — Era verdade, mas ela tinha reconhecido a língua, e talvez ele não
acreditasse nela.
Ele sacudiu a cabeça. — Mas mesmo assim precisamos ter cuidado com o que
dizemos, não é? — Sacha, entretanto, não estava ouvindo. Tinha cometido um
engano ao admitir que conhecia sua nacionalidade. Devia ter se dado conta antes,
pois ele tinha traços acentuadamente eslavos, maxilar saliente, olhos fundos e o
sorriso fácil de sua raça. Sabia que tinha de escapar de lá, agora mais do que nunca, e
jamais o conseguiria fazendo-o ver até que ponto estava assustada. Ela devia
aparentar que aceitava o que estava lhe acontecendo. Mais tarde, quando estivesse a
sós, no quarto, teria condições de pensar na situação.
Gradualmente e sem exageros conseguiu aparentar estar à vontade com ele.
Sobrara algum chá no bule. No momento em que ouviu o outro homem entrando
pela porta da frente, perguntou: — Posso tomar mais uma xícara de chá e comer?
Comprei alguma comida em Nice. Estou sentindo muita fome.
Tor levantou-se. — Sim. Espere aqui. — E voltou com um saco de plástico.
Ouviu passos pesados que subiam as escadas, vindos da sala de estar e voltou a
respirar. Havia algo no homem careca que lhe dava arrepios, mesmo tendo-o visto
apenas durante alguns segundos lá fora.
Tinha comprado um pão francês bem comprido, presunto e queijo. Sua fome
era tanta que seria capaz de comer somente o queijo, mas teve de esperar enquanto
ele colocava a comida sobre a mesa, inspecionando cuidadosamente o saco de
plástico, antes de dizer: — Bem. Mas primeiro, por que não toma banho? Há um bom
chuveiro lá em cima.
— Eu sei — ela respondeu. — Já estive aqui antes, lembra-se? Procurou manter
um tom ligeiro, mas isto lhe custou grande esforço. — Vou subir. Onde estão minhas
malas?
— Aqui. Vamos. Eu as levo para você.
Ela ficou a imaginar como é que ele conseguiria, com o braço esquerdo
machucado. Não que isto lhe importasse. O que lhe importava de verdade era ir
embora, o mais cedo possível, e se fosse preciso deixar toda sua bagagem lá, não
hesitaria.
— Por aqui — indicou ele com a cabeça, pois as mãos estavam ocupadas. Pegava
a mala mais leve com a mão esquerda e a outra com a direita. Mesmo assim ele ainda
dava idéia de uma mola enrolada, pronta para expandir-se em um segundo. Era
assustador.
O quarto era de frente e ela dormira várias vezes nele. Da roupa de cama
emanava o odor suave de lavanda e ele lhe trouxe uma torrente de recordações, a tal
ponto que Sacha ficou parada por um momento entre as duas camas. Nunca tinha
sonhado com uma coisa daquelas, e no entanto estava acontecendo agora — por
quanto tempo prosseguiria? Voltou-se para o homem parado junto à porta e uma
parte de suas emoções deveria ter se revelado em seu rosto, pois os olhos dele se
estreitaram.
— O que há? — perguntou ele. Seu inglês era bom, mas aquele sotaque
pronunciado estava lá. Era uma entonação inconfundível, que ela deveria ter
reconhecido imediatamente, o que não aconteceu. E mesmo que tivesse acontecido,
o fato não lhe teria trazido nenhum benefício. Sacudiu a cabeça.
— Nada. É aqui que vou dormir?
— Sim. Sabe onde fica o chuveiro? Na porta ao lado, não é?
— Claro. — Ela endireitou-se e encarou-o. — Pretende ficar aí enquanto eu me
preparo para o banho?
O sorriso alterou os traços duros de seu rosto moreno e o fez parecer ainda
mais atraente e viril. Sacha, porém, não estava com disposição para apreciar tais
detalhes. O medo ainda não a abandonara, e era difícil tentar escondê-lo. Ela, porém,
estava decidida a fazê-lo, pois sabia que isto a ajudaria. — Não — respondeu ele —,
claro que não. Mas eu lhe dou um aviso: não tente fugir de novo. Aqui há somente
uma janela pequena, pequena demais para você tentar passar por ela...
— Pensei que fosse sua "hóspede" — disse ela em atitude de desafio, levantando
o queixo. — Um hóspede dificilmente tentaria fugir, não é mesmo?
Ele voltou-se, com a mão na maçaneta da porta, e disse: — Claro que não.
Desculpe-me. — Inclinou a cabeça, curvando-a ligeiramente, com um gesto muito
russo. Seus olhos eram tão negros como pedregulhos lavados pela chuva, mas
brilharam com uma expressão estranha enquanto ele acrescentava com suavidade:
— Você fica mais bonita quando está zangada, e mesmo quando não está. — Ele
se foi e Sacha ficou parada, incomodada por suas palavras. Quem era aquele
estranho russo? E o que a deixava ainda mais preocupada — o que estavam ele e seus
companheiros fazendo em La Valaise? Por mais de um motivo eles eram estranhos
àquele lugar. Ainda perturbada Sacha curvou-se para abrir a mala. Suas mãos
tremiam e ela, por mais que tentasse, não conseguiu se dominar.

CAPÍTULO II
Sacha não viu ninguém antes ou depois de seu banho de chuveiro tão
refrescante, mas, para se garantir melhor, trancou a porta do quarto ao voltar. Era
surpreendente como se sentia melhor, como se o ato de livrar-se, através do banho,
das fadigas da viagem, tivesse também dissipado alguns de seus medos.
Sentada na cama, encarando-se no espelho do velho e pesado guarda-roupa,
escovou o cabelo escuro e macio, puxou-o para trás e prendeu-o com uma fita
vermelha. Seus olhos refletiam-se no espelho manchado e pôs-se a imaginar o que
aquele russo moreno tinha visto neles. Então lembrou-se de seu elogio, dito com
tanta casualidade, como se ele estivesse sendo sincero — e sua boca contraiu-se com
rebeldia. Quanto menos ela ouvisse coisas semelhantes, melhor. Precisava de toda
sua sagacidade, naquele momento, e isto não aconteceria se ela permitisse que
impulsos adolescentes se apoderassem dela cada vez que um homem atraente a
olhasse do jeito como ele tinha olhado.
Os olhos de Sacha eram de um azul bem claro, e o tom tornava-se ainda mais
atraente devido às pestanas e sobrancelhas negras com que fora dotada pela
natureza. O nariz era ligeiramente arrebitado, a boca era rasgada, com uma
encurvatura suave, essencialmente feminina. Sabia que era bonita, pois já lhe tinham
dito isto tantas vezes, mas o azul tão claro daqueles olhos ultimamente ficara
carregado de sombras. Tinha sido tão bom conhecer Nigel e saber que aquela atração
forte e instantânea era mútua. Tudo tinha sido maravilhoso e absolutamente perfeito
durante três meses — até aquele dia, aquele dia terrível, algumas semanas atrás,
quando um telefonema alterou toda sua vida. Foram oito palavras ditas por uma voz
anônima e rouca: "Você sabe que o seu namorado é casado?" Foi tudo, porém o
choque foi tão grande que ela não conseguiu responder. Pois ela se deu conta, graças
a um instinto feminino profundo e seguro, que aquelas palavras eram verdadeiras.
Sacha fez uma pausa, segurando o batom próximo à boca, enquanto recordava
as cenas que se seguiram às explicações de Nigel: "Eu queria lhe dizer que o
casamento já acabou, Sacha. Eu me divorciaria dela, se pudesse..." Eram as mesmas
desculpas que ouvira antes, e muitas vezes, quando seus amigos contavam suas
mágoas — palavras que ela jamais esperara ouvir, pois se considerava sensata
demais para ser enganada. E pensar que ela até mesmo tinha acalentado a idéia de
trazer Nigel para cá! Sacha ficou gelada ao formular tal pensamento. Sim, ele poderia
estar com ela naquele lugar, naquele momento, na companhia de madame Cassel, se
não fosse por aquele telefonema.
Respirou fundo, pintou-se rapidamente e levantou-se, examinando as malas
com um olhar. Em seguida, desvencilhou-se de todos aqueles pensamentos
perturbadores, trancou as malas e pôs as chaves na bolsa. Não tinha a menor
intenção de permitir que mãos estranhas vasculhassem o que lhe pertencia, e por
outro lado não poderia levá-las consigo quando fosse embora, o que aconteceria
logo, o mais breve possível, se dependesse dela...
Silêncio. A casa estava estranhamente silenciosa enquanto ela descia as
escadas, apoiando-se com firmeza no corrimão de ferro forjado, pois subitamente
tudo estava escuro. Nuvens negras se adensavam no céu e a noite mediterrânea tinha
caído rapidamente. Uma luz brilhava na sala de visitas, uma outra vinha da cozinha,
e ela encaminhou-se para lá.
A comida que ela trouxera não estava mais na mesa. Em seu lugar havia quatro
pratos, talheres. O homem chamado Tor estava junto ao fogão, e ela notou a toalha
de mesa que ele usava em torno da cintura como um avental. Dominou uma risada
que poderia ter sido um soluço.
— Muito bem, então você está pronta. Estou preparando a sopa. Gostaria de
tomar? — indagou, erguendo as sobrancelhas.
Sacha sentiu o aroma delicioso, ao mesmo tempo que perguntava: — Onde está
minha comida?
— Ah! Eu a coloquei na geladeira, aqui há muita mosca. Mas não quer tomar a
sopa primeiro? — E acrescentou, bem sério: — Eu a tomarei com você, assim você
saberá que não há nenhuma droga dentro dela.
Ela sentou-se. — Onde estão aqueles outros dois homens? — perguntou. Tentou
fazer com que a pergunta parecesse casual, como se não lhe importasse, o que não
era verdade. Se eles não estivessem por perto, logo ela teria uma oportunidade.
— Foram dar um passeio. Está escuro lá fora. — Como se isso explicasse alguma
coisa, ela pensou, e começou novamente a divagar. Mas a fome era a sensação
primordial naquele momento, e sem algo dentro do estômago ficaria fraca demais
para fugir.
— Ah, percebo. Vai chover, não é mesmo?
— Acho que sim, e logo. — Ele tinha se voltado para olhar para fora e ao se
voltar perguntou: — Quer passar manteiga no pão para mim?
— Sim. Onde é que está? — Ao se levantar, notou que o bastão de madeira não
estava mais lá. Claro... Um sorriso involuntário aflorou-lhe aos lábios. Ele seria um
tolo se o deixasse naquele lugar, para que ela repetisse o gesto. Este fato bastou para
tornar muito surpreendente o que aconteceu mais tarde.
O braço dele ainda estava machucado, o que se notava obviamente pelo modo
como ele servia a sopa quente e espessa. Sacha colocou o pão no meio da mesa. Um
impulso ligado a algo que poderia ser considerado como arrependimento por seu ato
a fez dizer, antes que pudesse pensar: — Seu ombro está doendo muito?
Ele interrompeu o que estava fazendo. — Sim. Por que pergunta?
Ela engoliu em seco. — Eu não tinha a intenção de... não pretendia... Sinto
muito se está doendo — exclamou abruptamente, horrorizada por estar pedindo
desculpas, mas totalmente incapaz de se controlar.
Ele acabou de servir a sopa, colocou a panela pesada sobre o fogão e sentou-se à
mesa. Finalmente encarou-a. — Se um homem tivesse feito o que você fez — disse,
pegando a colher — provavelmente eu o teria assassinado.
Sacha permaneceu em silêncio. Sabia que ele falava a verdade, e um arrepio
percorreu todo seu corpo, da cabeça à ponta dos pés. Quem era aquele homem?
Quem era ele?
Curvou-se sobre o prato, na esperança de que aquela sensação penosa se
dissolvesse no calor que emanava da tigela de cerâmica cinza. Pegou um pedaço de
pão e comeu-o. Não era o pão que trouxera, porém se assemelhava a ele. Havia
queijo sobre a mesa e uma cumbuca cheia de azeitonas pretas e gordas.
Estava aflita, aguardando a chegada dos dois outros homens. Imaginou se seu
carro ainda estaria no lugar onde ela o tinha deixado, mas duvidou. Lançou um olhar
para o homem do outro lado da mesa. Ele comia às pressas, mas parecia bastante
calmo. Subitamente levantou a cabeça e surpreendeu seu olhar.
— Eu a assustei quando disse aquilo? — ele lhe perguntou.
Sacha sacudiu a cabeça. — Não — mentindo.
— Muito bem. Não era minha intenção. Falei apenas a verdade. Você não deve
ter medo de mim ou de meus companheiros. Não pretendemos fazer nenhum mal.
— Como é que posso saber? — perguntou, em um tom que aparentava
despreocupação.
— Por que aqui eu sou o patrão e não brigo com mulheres — respondeu. Serviu-
se de um pedaço de queijo e sorriu para ela. — Meu nome é Nikolai Torlenkov.
Sempre me chamam Tor. E você é a senhorita Sacha Donnelly. — Seu nome parecia
verdadeiramente estrangeiro em sua boca, e ele pronunciava a palavra "Sacha" de
um modo muito russo e novo. — Posso chamá-la de Sacha? — Seu rosto demonstrava
uma certa polidez, no momento em que enunciou a pergunta.
— Não me resta muita escolha, não? — ela respondeu suavemente, sem
amargura.
— Você deve ficar conosco alguns dias, muito poucos, na verdade, mas se não
permitir que eu a chame por seu nome, não o farei.
Ele conseguiu fazer com que ela se sentisse muito ingênua, ao escutar aquelas
palavras. Sacha ficou aborrecida consigo mesma por experimentar aquele
sentimento e respondeu: — Chame-me de Sacha, se preferir. Como é que se chamam
os outros dois?
— O mais novo, aquele que a assustou, é Janos. O mais velho — e pareceu
hesitar —, chama-se Serge.
— Ah, certo. Eles não deveriam estar de volta logo?
— Sim. Logo. — Deu de ombros e em seguida consultou o relógio de pulso. Era
achatado, negro, com moldura e pulseira de prata. Sacha notou que eram quase oito
horas. A sopa estava deliciosa, cheia de pequenos pedaços de carne e vegetais
picados, além do que, muito nutritiva. Ela afastou o prato, após terminar, e começou
a formular um plano, enquanto bocejava.
— Oh, desculpe! Estou tão cansada — confessou com um sorriso envergonhado.
Tor pegou seu prato. — Você veio da Inglaterra hoje?
— Sim. — O cansaço se dissipara com o banho de chuveiro, mas ela jamais iria
admitir. Era melhor deixá-lo pensar que estava exausta e então ele não a ficaria
observando tão atentamente. — Viajar sempre me deixa sonolenta, e a viagem desde
o aeroporto também foi cansativa. Eu só estava querendo dormir cedo. — Inclinou-se
para pegar queijo e azeitonas, de modo que ele não conseguisse ver seu rosto.
— Você vai dormir cedo, é claro. — Ele tinha um jeito todo especial de falar, de
interromper as frases, que encerravam um certo encanto, como aliás tudo que lhe
dizia respeito. Sacha, intrigada, ficou a imaginar quais as razões que a levavam a
achar isto, pois ele e os outros dois homens estavam em La Valaise por algum motivo
escuso. Gelou ao formular tal pensamento. E se eles fossem criminosos?
Contrabandistas, ou coisa pior? La Valaise era suficientemente isolada para atrair
um bando que necessitava de tempo e de um esconderijo, e ela tinha somente a
palavra daquele homem no que dizia respeito ao bem-estar de madame Cassel. Pobre
madame Cassel que sempre estava lá a fim de desejar as boas-vindas aos visitantes, e
que dormia na própria casa ou em seu pequeno chalé situado a alguns metros de
distância. Os olhos de Sacha arregalaram-se no momento em que recapitulou esse
fato. Mas é claro! Por que não tinha pensado naquilo antes! Tinha de ir até o chalé a
fim de constatar, a fim de se certificar de que a velha senhora não estava amarrada
ou até mesmo... Sacha recusou-se a aprofundar suas indagações.
Foi somente mais tarde que a oportunidade se apresentou. Os dois homens
haviam regressado do passeio. Sacha pôde então vê-los mais de perto e ficou mais
intrigada do que nunca. O de nome Janos era completamente calvo, gordo, tinha uns
cinqüenta anos de idade, olhos azuis e gélidos, e nenhuma expressão no rosto. Tinha
se inclinado ligeiramente diante de Sacha, assim que entrou, e ela teve de se
controlar para manter uma expressão de calma desinteressada. Tor disse-lhe: —
Janos não fala inglês, Sacha. — Naquele momento Serge entrou e estava novamente
diferente, tão diferente que Sacha se surpreendeu retribuindo o sorriso gentil
estampado no rosto cansado de um homem que deveria ter mais de sessenta anos,
grisalho e muito magro. Seus olhos eram castanho-escuros, muito fundos, e o rosto
ligeiramente moreno. Adiantou-se, ao contrário de Janos, e estendeu a mão muito
magra e cuja pele era tão seca quanto uma folha de papel. Dirigiu rapidamente a
palavra a Tor, que disse para Sacha: — Serge sente muito que você tivesse começado
suas férias em tais circunstâncias.
— Obrigada. — Ela sorriu, mas não conseguiu dizer nada. De resto, haveria algo
a dizer? Enquanto os dois se sentavam à mesa, Sacha ficou de pé e olhou para Tor. E
agora? Muitos planos vagos passavam-lhe pela mente. Todos eram igualmente
amorfos, todos esperavam por algo que os transformasse em uma ação positiva. Ela
estava disposta a esperar e mostrar-se paciente. Seu treino jornalístico a havia
preparado para isso, e sua atitude afirmava-se cada vez mais a cada hora que
passava.
Tornou-se evidente que Tor não desejava que ela permanecesse na cozinha
agora que os homens tinham regressado. Indicou a sala de estar, disse algo para os
dois e tomou Sacha pelo braço.
— Venha. Agora eles vão comer. — Já na outra sala olhou para ela. — Você está
cansada, não é?
— Sim. — Subitamente veio-lhe uma inspiração. — Mas antes quero dar um
passeio a pé, não consigo dormir se não ando antes de ir para a cama. — Prendeu a
respiração enquanto esperava por sua resposta. Daria certo?
Ele deu de ombros. — Como quiser. Mas já esfriou lá fora. Tem um casaco?
Seu coração disparou. Não devia entretanto demonstrar o que quer que fosse,
não devia se trair. Depois do banho pusera blue jeans e um suéter azul, as roupas
mais escuras que trouxera. Esperava que tais cores não aparecessem tanto na
escuridão lá fora, pois se surgisse uma oportunidade e ela pudesse sair correndo era
melhor, para que ele não conseguisse enxergá-la.
— Vou lá em cima buscar. — Agora conseguia sorrir para ele. — Imagino que
você me acompanhará no passeio?
— Pensa que eu a deixaria ir sozinha? — disse ele, com um meio sorriso. — Em
uma noite tão escura? Acho melhor não. Você não sabe quem poderia encontrar pela
frente.
Ele se mostrava bem-humorado e ela sorriu, porque não pretendia fazer o que
quer que fosse que o contrariasse. Desistiu de dizer que, se encontrasse alguém,
dificilmente ficaria em pior situação do que naquele momento.
Alguns minutos mais tarde ele abriu a porta da frente enquanto ela passava.
Tor usava um suéter branco e Sacha sorriu para si mesma. Poderia enxergá-lo no
escuro sem a menor dificuldade.
Dirigiu-se para o chalé de madame Cassel antes que ele pudesse escolher que
direção tomariam. Os jardins eram tão diferentes à noite, soturnos e sombrios. Se
estivesse naquela propriedade sozinha, jamais sairia de casa. Trancaria as portas a
sete chaves. Mas agora era diferente. Estava preparada para andar quilômetros
através da escuridão fantasmagórica, se conseguisse escapar dele. E de modo algum
ficaria assustada, apenas aliviada. As árvores eram negras e silenciosas, o céu
coberto de nuvens. Respirou fundo o ar frio da noite, que rescendia deliciosamente a
eucalipto e pinheiro. O gramado rangia a seus pés, e de uma das árvores veio um
breve estalo. Sacha estremeceu, contente por ter trazido o casaco, e Tor disse: — Está
frio demais para você?
— Não — respondeu ela. — Ouvi um barulho. Eu... eu estou contente de ter você
a meu lado. Esta escuridão é meio fantasmagórica.
Ele riu suavemente.
— Fantasmagórica? O que é isto?
— Bem, você sabe... aterrorizante... assustadora. — Disfarçou um sorriso, se
bem que ele não teria conseguido percebê-lo. Era melhor deixá-lo pensar que sua
timidez era suficientemente grande para impedi-la de fugir, mesmo se ela pudesse!
Ele parecia muito grande ao lado dela, o que a tornava incomodamente consciente
da fragilidade de sua posição. A fim de disfarçar e manter todas as aparências
normais ela perguntou: — Há quanto tempo você está aqui? Ou é um segredo? — O
tom com que falava era perfeitamente casual, como se ela estivesse entabulando uma
conversa polida.
— Apenas alguns dias. Diga-me, Sacha, de que parte da Inglaterra você é?
Ele não queria responder a nenhuma pergunta. O que, aliás, não era de
surpreender. Os criminosos tinham muito cuidado em não sair por aí contando sua
vida a quem quer que fosse. No entanto algo a preocupava. Ele não agia como um
criminoso. Não que Sacha tivesse encontrado muitos pela frente. Mas havia nele um
ar de autoconfiança, quase de arrogância, que se casava estranhamente com sua
noção preconcebida de como um bandido devia se comportar. Ela realmente não
tinha certeza de nada.
— Moro perto de Birmingham, em um lugar chamado Walsall — ela respondeu.
— Conhece?
Já estavam se aproximando, e ele não mostrava o menor sinal de alarme ou
dava indícios de querer se afastar. Agora podia ver a casa, escura, fechada,
silenciosa, e prendeu a respiração. Teria de agir com muita astúcia.
— Não, infelizmente nunca estive em seu país. Um dia irei, pois gosto da
Inglaterra — ele respondeu.
"Ah, gosta, é?", pensou Sacha. "E costuma seqüestrar todas as inglesas que
encontra?" Mas tais palavras não poderiam ser ditas em voz alta, pois ela pretendia
se mostrar gentil com ele, custasse o que custasse.
— Acho que lá não vai sentir o mesmo calor daqui — ela disse. — Mas, às vezes,
faz frio demais na Rússia, não é mesmo?
— Às vezes, sim — ele concordou solenemente. Parou subitamente, e sua mão,
pousada no braço de Sacha, a deteve. — Espere aí — ele disse em voz baixa, e ela
gelou.
— O que foi? — ela murmurou.
— Psiu! Um barulho, ouça. — Estavam à sombra de uma árvore frondosa. A
escuridão os rodeava e os subjugava. Tudo o que Sacha conseguia ouvir era a
respiração de Tor, o ligeiro farfalhar das folhas nas árvores; o medo tocou sua
espinha com um dedo gelado e ela respirou fundo.
Então ele riu baixinho. — Ah, não! Esqueci!
— Diga o que foi — ela pediu.
— Venha, vou lhe mostrar. — Pegou-a pelo braço e conduziu-a até os fundos do
pequeno chalé de madame Cassel. Sacha viu aquelas manchas que se moviam
agilmente — e de tanto alívio seus joelhos dobraram-se em dois.
— As galinhas! — disse. — Esqueci das galinhas! — Voltou-se admirada para o
homem ao lado. — Mas quem as alimenta? Madame Cassel jamais as abandonaria. —
Devia ter se lembrado, pois o pensamento já lhe ocorrera antes.
— Eu cuido delas — ele respondeu, e sua voz mal disfarçava o riso. — Em troca,
elas nos dão ovos: é por isso que os comemos a cada refeição. Você conhece maneiras
novas de prepará-los?
— Sim. Só que hoje você não os serviu — ela observou.
— Não, mas vamos servir omeletes no jantar. Gosta?
Sacha sentiu-se arrepiada. Omelete no jantar! Que idéia!
— Não, obrigada. Para mim basta um prato de sopa. — ''Se eu ainda estiver
aqui", acrescentou para si mesma. ''Se..."
Prosseguiram e deixaram para trás o galinheiro, onde algumas aves
cacarejavam enquanto se acomodavam para dormir. A atmosfera estava pesada e
carregada de odores. Esquentara surpreendentemente, a tal ponto que Sacha tirou o
casaco e o dobrou no braço. Estavam na extremidade do jardim e pararam, pois o
mar estava ali perto. Mais próximo a eles, luzindo na escuridão da noite, notava-se
uma fileira de luzes ao longo da estrada, como um colar de diamantes pousado sobre
um estojo de veludo negro, brilhando na noite e quase competindo com as poucas
estrelas que se podia perceber através das nuvens. Sacha deteve-se e respirou fundo.
O mar nunca deixava de emocioná-la e, visto à noite, era mais belo e misterioso.
Muito ao longe, um iate navegava, todo iluminado. Ficou a imaginar quem estaria
abordo, se estavam dando uma festa, e o pensamento a fez prender a respiração e
estremecer, desamparada.
— Você está com frio. Vamos voltar. — Tor falava com suavidade. Ela quase
tinha conseguido esquecê-lo. Quase...
— Não, não estou com frio. Apenas estou olhando aquele iate. — Estendeu o
braço e o casaco caiu no chão. Antes que ela pudesse pegá-lo, ele inclinou-se e o
recolheu, mas não o entregou a ela. Sacha disse: — Pode me dar...
— Não, eu carrego para você, ou quer pô-lo?
— Não, obrigada. — Havia algo no ar que não tinha nada a ver com a noite ou
com aquilo que os rodeava. Tratava-se de algo desconhecido e perturbador que fez
com que seu coração se acelerasse, enquanto ela, subitamente, tomava uma
consciência profunda da masculinidade de Tor. Além de o achar irremediavelmente
atraente.
Deu alguns passos adiante, incomodada com a proximidade dele. Que impulso
louco a levara a dar aquele passeio com ele? Então se lembrou. Era para se certificar
de que madame Cassel não estava sendo mantida prisioneira em seu chalé — e
também para escapar de lá.
Não o olhava mais e voltou a contemplar o mar calmo e reconfortante. Que
chances ela teria de escapar daquele homem? Sacha era saudável e forte, mas tinha
plena certeza de que ele, sob todos os aspectos, era infinitamente mais forte. Isto se
notava em sua postura, em sua musculatura bem distribuída e até mesmo no ângulo
arrogante da cabeça e do queixo, como se estivessem a lançar um desafio: "Tente o
que quiser, mas corra o risco".
Se Sacha pretendia mesmo fugir, isto só se daria à custa da astúcia. E mesmo
essa perspectiva não parecia ser muito fácil de levar adiante. O homem não era nem
um pouco tolo, isto era mais do que evidente. Além do que, ele a vigiava o tempo
todo...
Sacha deu um suspiro profundo de desespero e olhou à volta, sem encará-lo.
Seria melhor esperar até que se visse só, em seu quarto, a fim de começar a pensar. A
janela não ficava muito acima do chão — e embaixo havia grama, no lugar de
paralelepípedos...
— O que foi? — A voz dele a trouxe de volta para o presente, e ela o olhou,
assustada.
— Nada. Estava pensando como teria sido diferente, se... — Fez uma pausa,
imaginando se tinha falado demais. Faria o que estivesse a seu alcance para impedi-
lo de adivinhar por onde caminhavam seus pensamentos...
— Sim, eu sei. Sinto muito. Mas não será por muito tempo. Logo...
Ela queria interrompê-lo e gritar: "Pare com isso!", mas teve de se limitar a
morder os lábios.
— Logo, tudo isto aqui ficará à sua disposição. Dentro de alguns dias...
Sacha não respondeu. Não adiantava. Não acreditava mais nele. Não sabia se
deveria acreditar no que quer que fosse. O que estava acontecendo era a tal ponto
incrível e fantástico que escapava à sua compreensão. Coisas desse tipo jamais
ocorreriam com as pessoas que ela conhecia. Aconteciam apenas nas notícias de
jornal e era um assunto para ser discutido durante o café da manhã ou talvez no
trabalho, e em seguida esquecido.
Até mesmo no escritório pensariam que ela tinha enlouquecido, se viesse com
uma história daquelas. O redator-chefe estava acostumado com assuntos tais como a
aplicação de multas a quem estacionava em lugares não permitidos, a vasos de
plantas que despencavam das janelas dos apartamentos, pondo em risco a vida dos
pedestres, ou às declarações da mãe da rainha da beleza ao correspondente,
descrevendo o cotidiano de sua filhinha — mas com isto, nunca.
— Isto é o que você diz. Mas se eu não telefonar para meu pai hoje à noite ele
vai ficar muito preocupado, e mandará a polícia até aqui. — Era uma mentira ousada
e ela a disse tão convincentemente quanto possível. Reconheceu que tinha cometido
um erro, no momento em que Tor, tomando-a pelo braço, a fez voltar-se para ele e
disse, muito calmo:
— Mas seu pai virá aqui em breve, não é?
Ela o olhou em pânico. O que a tinha levado a dizer uma coisa tão ridícula?
— Sim... isto é... mas não será somente por um dia. Tenho de lhe telefonar. Está
em Paris hoje à noite e tomará um avião amanhã para Nice. Preciso falar com ele
para saber a que horas ele chega. — Se pelo menos ela conseguisse chegar perto de
um telefone...
— Ah, percebo. Pois então telefonarei para você. Dê-me o número...
— Não! O que iria ele pensar se um homem falasse... — O toque de suas mãos
queimava como fogo. Seus dedos queimavam e a única coisa que ela desejava era
desvencilhar-se dele; no entanto, não agia. Era muito estranho.
— Ah, mas eu poderia dizer que sou o sobrinho de madame Cassel, e que você
me pediu para telefonar porque estava muito cansada...
— Não. Não vai dar certo, ele está esperando meu telefonema...
— Você está mentindo, Sacha — ele disse. — Você bem que se esforça, mas
reconheço quando alguém está mentindo. Ah, eu não a culpo, pois...
— Não me toque! — Se ele não a soltasse ela gritaria, pois já não conseguia
suportar mais.
Ele a soltou devagar e, ao que parecia, com muita relutância. — Eu a estou
ofendendo? — ele perguntou, curioso. — Acha que irei lhe fazer mal? — Agora a
indagação era feita em tom sério.
Sacha tentou respirar calmamente. Tinha de agir assim, acima de tudo
precisava manter acalma. — É que... não gosto que as pessoas me toquem —
respondeu — só isso.
Viu no escuro o brilho dos dentes dele, enquanto ele sorria. — Ah, percebo.
Vocês, ingleses, não gostam que as pessoas os toquem. Sim, sim, eu me lembro. Mas
será que nós, russos, também não somos assim?
— Talvez. Não sei. Não seria melhor voltarmos para casa?
— Se quiser. Não vai pôr o casaco? — No momento em que ele disse isto a
chuva começou a cair. Ambos olharam para o alto, espantados. Não era como a
chuva na Inglaterra, fina e penetrante, e sim suave, quase quente. As gotas eram tão
pesadas que se desmanchavam carinhosamente no rosto de Sacha.
— Oh, que maravilha... — ela disse, mas em seguida lembrou-se de algo. — Meu
cabelo! —exclamou. Tor tomou-a pela mão.
— Venha. — Ele estava rindo, e subitamente ela não se incomodou que ele
segurasse sua mão, enquanto corriam em direção ao chalé silencioso. Ele a puxou
para a varanda da entrada, da qual emanava um cheiro suave de alho e ervas
aromáticas. Disse em seguida: — O que há com o seu cabelo?
Ela sacudiu a cabeça, ao mesmo tempo que ria, pois a chuva era um bálsamo
suave que proporcionara um relaxamento mágico, oposto à tensão de alguns
momentos atrás. — Fui à cabeleireira ontem e gostaria que o penteado durasse mais
um pouco, o que evidentemente não irá acontecer, se eu ficar encharcada logo de
início. — Não sabia por que estava lhe contando tudo aquilo.
— Ah, sim, percebo. — Ele estendeu a mão e tocou seus cabelos tão macios. — É
lindo... como você, Sacha. — Ela levantou a cabeça e sacudiu-a, em sinal de protesto.
— Não — ela disse. — Não... você... — mas as palavras já não saíam mais, pois a
cabeça de Tor, muito próxima, se recortava contra a noite escura. Ele ainda segurava
seu casaco e o colocava em suas costas, mas por que se aproximava tanto? Não havia
a menor necessidade disso... Os lábios dele estavam frios com a chuva e eram muito
suaves. Sacha demorou-se neles e então, horrorizada, gemeu e tentou se
desvencilhar. Não conseguia, porém, pois as mãos dele estavam em seus ombros.
Conseguia sentir o seu calor através da lã de seu casaco vermelho.
Tor percorreu seu rosto com os lábios e em seguida seus cabelos, enquanto ela
lutava em vão, como um pássaro preso em uma armadilha. — Não! — disse, e ele riu.
— Por que não? Os ingleses também não gostam de beijar? Desse jeito vou
acabar perdendo toda vontade de ir a seu país. — Ele se divertia com o que estava
dizendo. Aquele ato não significara para ela nada além de um impulso momentâneo,
e a proximidade a que a chuva os forçara apenas aumentara a tentação. O resultado
foi aquele beijo e um abraço breve e inócuo. Isto era tudo. No entanto, o coração de
Sacha batia descompassado, seus lábios doíam depois daquele toque e isto a tornava
obscuramente enraivecida, quase assustada, não só consigo mesma, como também
com aquele estrangeiro atrevido.
Lutou a fim de manter a respiração sob controle. A varanda era escura, tão
escura que até mesmo as árvores molhadas de chuva pareciam acolhedoras. Apoiou-
se na fria parede de pedra. A porta encontrava-se à sua esquerda e pensamentos
dispersos aos poucos lhe voltavam. A chuva agora caía mais pesada, abundante,
morna, espatifando-se contra o chão para ser instantaneamente absorvida pela terra
seca. Aquela varanda escura tornou-se um abrigo inestimável. Aquilo duraria muito
tempo? Sacha moveu-se ligeiramente, sentindo a aspereza da pedra sob suas mãos, e
Tor disse: — Você tem lábios lindos. Gosto de beijá-la. Por que resiste tanto?
— Não seja tolo — ela replicou. — Por que deveria eu permitir que você, um
perfeito estranho, me beijasse só porque deseja? — Ficou surpreendida com sua
audácia; mais ainda, ficou perturbada. Nunca tinha conhecido um homem como ele,
um "criminoso", com as piores intenções.
— Você tem razão — ele disse gravemente. — Fiz muito mal. Peço-lhe mil
desculpas, senhorita Sacha Donnelly. — Inclinou-se ligeiramente, tanto quanto podia
naquele espaço escuro e acanhado.
Sacha lutou contra o impulso irracional de raiva que suas palavras despertaram
nela. Não deveria permitir que ele exercesse tamanha influência sobre ela. Era
essencial manter-se calma, se quisesse ir embora logo, pois ele era brusco demais
para seu gosto. E no entanto sua mão ainda comichava com a necessidade de
esbofeteá-lo, de apagar aquele ar zombeteiro de seu rosto.
Deu-lhe as costas, apertando as mãos a fim de impedir que o desejo se tornasse
realidade, e engoliu as palavras que tanto queria dizer. Viu que ele a olhava com ar
intrigado, mas sabia que ele podia enxergar muito pouco no escuro. Muito
cautelosamente, com a mão esquerda, ela colocou a mão na maçaneta, verificando
cuidadosamente se a porta se abriria. Ainda não tinha decidido o que faria, em caso
afirmativo. Subitamente a mão dele segurou a sua, no momento exato em que ela
segurava a maçaneta, e ele respirou ruidosamente.
— Ah! Diga-me o que está fazendo, por favor.
Sacha retirou a mão. — Nada! — disse. — Não conseguia mais me lembrar como
é que a porta abre. — Até mesmo para seus ouvidos a desculpa parecia muito fraca, e
ele começou a rir.
— Pois eu acho que não é nada disso. Você ainda não confia em mim, não é
mesmo? Agora sei por que você tinha tanta pressa em vir para estes lados. Está
achando talvez que a velha está aí dentro? — Ao sentir sua agitação silenciosa, tocou-
lhe o queixo. — Diga-me.
Aquele toque ligeiro, quase uma carícia, foi a centelha que inflamou Sacha.
Com um repelão, ela afastou suas mãos e voltou-se para ele furiosa. — Tire as patas
de mim! — esbravejou. — Pare de ficar tocando em mim o tempo todo! Já lhe disse
que não gosto. Afinal de contas, quem você pensa que é?
Ele deu um assovio quase silencioso. — Ah, assim é melhor. Esta é a verdadeira
Sacha, não é mesmo? Você estava tão quieta... achei que talvez estivesse tramando
alguma coisa — disse ele.
Suas palavras deixaram-na chocada. Era esta a impressão que ela dera? Se
fosse assim, tinha feito muito bem em explodir. Era um raciocínio muito simples,
mas ele era ainda mais astucioso do que ela imaginara. Sentiu-se tão perturbada que
suas palavras tiveram o efeito de a silenciar temporariamente, enquanto pensava no
que faria em seguida.
As palavras que se seguiram causaram uma surpresa ainda maior. Ele
vasculhou os bolsos e ela ouviu o tilintar das chaves. Por alguns segundos, ocorreu-
lhe um pensamento ridículo: será que ele iria lhe devolver as chaves do carro? Mas
não, estava introduzindo uma das chaves na porta. — Gostaria de verificar por si
mesma que madame Cassel não esta aí dentro amarrada e amordaçada? Entre, por
favor. — A porta se abriu, a luz se acendeu e Sacha engoliu em seco, piscando,
incomodada por aquele súbito jato de luz amarela.
Ficou sem se mover de onde estava, e Tor rangeu os dentes com impaciência.
— Você pretende ficar aí?
— Por que... por que ela lhe entregou as chaves? — perguntou Sacha com um fio
de voz. Agora chegara a oportunidade de ela verificar por si mesma e a dúvida a
invadiu.
— Para que eu pudesse providenciar a ração das galinhas... e também para
alimentar os peixes do aquário. — Ele sorriu maliciosamente. — Por favor, você vai
ou não vai olhar?
Sacha respirou fundo e decidiu-se. — Sim — respondeu.
Ela levou apenas dez minutos para inspecionar a casa minúscula e certificar-se
de que lá não havia nenhuma criatura viva ou mesmo morta. Ele ficou à sua espera,
na porta, e teve o cuidado de não tocar nela quando ela passou por ele a fim de sair.
Desligou a luz e trancou novamente a porta. A escuridão tornou-se mais intensa
devido àqueles breves momentos de claridade. A chuva não diminuíra, mas Sacha já
se fartara de ficar em varandas escuras ao lado daquele homem imprevisível.
Levantou o casaco e o pôs sobre a cabeça. — Vou voltar para La Valaise — disse,
acrescentando com petulância: — Quer se abrigar debaixo do meu casaco?
— Ai, ai! — ele exclamou, chocado. — Você acha que eu seria capaz de tanta
ousadia? Não, pois não quero perder meu olhos, caso encoste em você sem querer.
Sem dizer uma palavra, pôs-se a caminhar rapidamente. Não poderia imaginar
o choque que a aguardava em casa.
Os homens já tinham ido quando entraram. O odor de cigarro persistia no ar e
ela notara uma luz em um dos quartos, o maior de todos, enquanto vinha pela
pequena alameda que levava à porta de entrada — nada mais, além disso. Os pratos
tinham sido lavados e a cozinha estava na mais perfeita ordem. Sacha ficou na sala
de estar, à espera que ele lhe dissesse o que teria de fazer. Tor foi até a cozinha e a
chamou.
— Por favor — disse. — Gostaria de tomar um drinque? Ou de comer?
Talvez fosse uma boa idéia comer. Precisaria de muita energia para a longa
caminhada que ia fazer. Ela sorriu. — Vou comer um pouco do presunto que eu
trouxe com pão — respondeu. — Você também quer?
— Não, comerei uma omelete, obrigado. — Tirou o suéter branco e jogou-o
sobre uma cadeira. As gotas de chuva escorriam pelo seu rosto e cabelo. Limpou o
queixo e endereçou a Sacha um sorriso desarmante. Ela o contemplou, pensando
como ele se mostrava polido o tempo todo; de certo modo, suas maneiras eram
extremamente finas.
— Sente-se. Providenciarei tudo. Você é minha hóspede, não se esqueça.
— Não tenho a menor chance de esquecer, não é? — ela respondeu com
suavidade. Então ele se sentia mais seguro quando ela não permanecia em silêncio...
Para ela também a tensão era menor. Era difícil se manter gentil em relação a ele,
principalmente agora, após a visita ao chalé, pois tinha a sensação incômoda de que
ele estava rindo dela, e isto não contribuía em nada para melhorar as coisas. Sim, ele
tinha boas maneiras e era um demônio arrogante!
Ela sentou-se à mesa e contemplou-o. Antes de tocar na comida ele lavou as
mãos na pia e em seguida trouxe o presunto e o pão de Sacha.
— Vou fazer chá para nós, ou prefere vinho? — Arqueou a sobrancelha, em tom
de interrogação.
Mais do que nunca ela precisava se manter alerta, e o vinho sempre exercia um
efeito soporífico sobre ela, mas se ele bebesse... — Só uma gota, por favor. — Não
tinha necessidade de beber mais do que meio copo, e algo lhe dizia que se ela
recusasse ele também não tomaria. Tor trouxe uma garrafa da despensa e dois copos.
O vinho era tinto e seco, de uma qualidade barata e que se encontrava em toda a
França. Ia bem com a maior parte dos pratos.
Ele encheu dois copos e colocou um diante de Sacha. Então levantou o seu. — À
sua saúde — disse, tomando o vinho de um só gole. Ela respirou fundo e tomou um
gole bem pequeno. A coisa estava indo bem. Mais alguns copos de vinho e ele não
teria mais condições de saber para onde ela iria, ou quando.
Ela passou manteiga no pão enquanto ele quebrava alguns ovos em uma
frigideira untada com manteiga e a levava ao fogo. Assim que ele lhe deu as costas,
ela perguntou o mais casualmente possível: — Mais um pouco de vinho?
— Por favor. — Ele, porém, não se voltou. Sacha levou apenas um segundo para
pôr metade de seu vinho no copo dele e completar a dose com o que ainda estava na
garrafa. Ele não notou nada. O coração lhe batia rápido, a boca estava seca, mas ela
conseguira fazer o que pretendia.
Comeram alguns minutos mais tarde, e Sacha quase desejou ter aceito a
omelete que Tor lhe oferecera. Ele a preparara com algumas ervas aromáticas e o
leve odor que se desprendia da omelete era embriagador, delicioso. Ele acabou com o
segundo copo do vinho e ergueu a garrafa. — Aceita mais um pouco? — perguntou.
— Não, obrigada — ela respondeu. — O vinho me deixa sonolenta.
Ele olhou seu copo quase vazio. — É mesmo? Isto é muito bom, você dormirá
bem. — Então, quase casualmente, soltou a bomba.
— Sinto muito, mas acho que vou ter que ficar com você.
Ela o olhou, sem compreender.
— Ficar onde?
Ele levantou os ombros, como que pedindo desculpas. — Hoje à noite. Em seu
quarto.
— O quê! — Ela levantou-se tão bruscamente que a cadeira caiu no chão. Sacha
sentiu que todo o sangue lhe fugia do rosto enquanto ficava olhando para ele. Por um
momento absurdo pensou que tivesse bebido vinho em excesso. Não era, porém,
verdade...
— Não compreendo — conseguiu dizer afinal.
— Acho que compreende, sim. — Apontou seu copo quase vazio. — Foi muita
gentileza de sua parte me dar seu vinho, mas por que foi que você fez isto? Bastava
simplesmente dizer não quando eu lhe ofereci.
Ela ainda estava chocada demais para poder imaginar como é que ele
percebera. Olhou para sua bolsa em cima da cristaleira. Será que conseguiria
alcançá-la? A chance ainda poderia surgir, mas não seria naquele momento. Sacudiu
a cabeça, desarvorada. Encararam-se mutuamente, um de cada lado da mesa,
naquela cozinha estreita, e o ar tornou-se carregado de uma tensão indefinível,
próxima ao ponto de explosão. Sacha umedeceu com a língua seus lábios ressequidos
e olhou para o vinho que brilhava como um rubi. Agora, no entanto, ela não o
tocaria.
— Você espera realmente que eu durma no mesmo quarto que você? — ela
murmurou. — Depois do que aconteceu lá? — e apontou vagamente em direção à
casa de madame Cassel. — Você deve estar brincando!
— Eu sei. Sinto muito. — A aparência dele contradizia, porém, o que afirmava e
Sacha levantou-se zangada da mesa, tensa demais para poder se controlar. Pegou a
bolsa e atravessou a sala de visitas, abriu a porta da frente e ficou lá. A liberdade, tão
próxima, e ainda assim tão impossivelmente distante... tão próxima...
— Você sabe que não pode ir embora. — Ele estava ao lado dela, bem próximo,
não a tocava, porém, e simplesmente permanecia lá. Mas era quase como se ele a
tocasse, a tal ponto estava tensa.
— Eu me recuso a ficar com você. — Ela disse estas palavras muito lentamente e
com suficiente clareza, como se fosse importante para ele compreender.
— Você não tem escolha. — O que tinha mudado em seu tom? Tornara-se mais
duro, com uma certa inflexão metálica, e Sacha olhou para ele. Aquela força estava
lá, sem a menor dúvida. Ela a tinha sentido o tempo todo, mas agora se tornara
assustadora, pois a máscara caíra. Aquele verniz de bom humor que ela odiava tanto
caíra, e ela o viu como ele realmente era. Ficou parada a contemplá-lo, mesmo
contra sua vontade. Teria preferido olhar para qualquer outro ponto que não fosse
para ele. Tor, porém, tinha um rosto que era como um ímã. Era difícil perceber a
expressão de seu olhar, devido à luz que o iluminava por trás. No entanto seus traços
firmes e fortes estavam lá e ela soube, naquele exato momento, que ele não era um
homem qualquer. Seu poder era terrível e real e o que ele dizia era verdade. Ela não
tinha escolha.
Subitamente ela se pôs a tremer e quanto mais tentava esconder, pior a coisa se
tornava. Viu-o colocar a mão no bolso de trás, viu também o que ele retirou de lá:
uma faca da bainha. Sacha queria sair de lá, mas não conseguia. Ficou apenas
olhando, terrivelmente fascinada, enquanto ele tirava a lâmina de aço gelado da
bainha e a colocava contra a luz. Em seguida, disse com toda suavidade: — Isto é
para você, Sacha.

CAPÍTULO III
Sacha tremia da cabeça aos pés, mas agarrou a bolsa com mais força, pronta
para se defender com ela caso Tor usasse aquela faca... Ele a colocou de volta na
bainha e a estendeu para ela.
— Pegue — disse com simplicidade.
— Eu... eu... — Então ele viu seu rosto, notou a expressão de horror estampada
nele e seus olhos estreitaram-se perigosamente.
— Você achou que eu ia usá-la contra você? — perguntou.
Sacha sacudiu a cabeça. Ainda não conseguia falar, pois o choque tinha sido
violento demais. Tor tomou-lhe a mão, abriu-a e pôs a faca em sua palma, fechando
em seguida seus dedos. — É para você defender sua honra se eu tentar violentá-la —
disse. Uma sombra de sorriso acompanhou suas palavras. Sacha finalmente
conseguiu falar.
— Você está querendo dizer que... oh! — Respirou fundo e olhou para a faca.
Era comprida e ligeiramente recurvada. Tirou-a lentamente da bainha e a lâmina
tinha um brilho sinistro. Era muito afiada e assustadora. Colocou-a de volta à bainha
com um estremecimento de horror.
— Como é que você sabe que não vou apunhalá-lo a fim de poder fugir? —
perguntou.
— Você não fugirá. Eu sei. — Ele a encarou fixamente e ela não conseguiu
desviar o olhar. — Você não poderia me apunhalar a sangue-frio... esta é a expressão
correta, não é mesmo? Mas acho que, se precisasse, você se defenderia. Portanto... —
e ele deu de ombros, repetindo aquele gesto eloqüente: — Acha que eu tentaria
qualquer coisa em relação a você? Não. Comigo você está a salvo; e acho que com
isto se sentirá ainda mais tranqüila, não é mesmo?
Ela sabia o que ele queria dizer — aliás, sabia exatamente — e o que ele dizia era
verdade. Ainda assim, como era possível que ele a compreendesse tão bem ? Era algo
que não conseguia explicar.
Levou a mão aos olhos, para que ele não notasse as lágrimas que afloravam. De
que adiantava tudo aquilo? Agora compreendia muito bem que ele não a deixaria
escapar. Ficou a imaginar o que teria acontecido se Nigel tivesse vindo com ela.
Como é que ele reagiria? E o pai dela? O que estaria sucedendo? Sacha
habitualmente telefonava ou escrevia, quando chegava a algum lugar, mas ele não se
preocupava, pois quando ele se entregava à pintura, o passar do tempo tornava-se
irrelevante. Dentro de dois ou três dias ele talvez... mas até lá ela estaria livre...
— Suba — ele disse calmamente. — Vá. Daqui a pouco irei também.
Ele ficou imóvel enquanto ela atravessava a sala de estar em direção à escada,
sem olhar para trás. Ela não notou a expressão de seu rosto nem a tensão presente
em suas mandíbulas cerradas.

Sacha estava deitada de costas na cama, com a faca sob o travesseiro. Tirara as
sandálias mas permanecia com a mesma roupa, cobrindo-se apenas com um lençol,
que rescendia a lavanda. A chuva batia contra a janela aberta e uma corrente fria de
ar entrou por ela no momento em que a porta se abria lentamente. Já se passara
meia hora desde que ela subira, e a casa parecia vazia. Depois de se lavar, ela
percorrera todo o andar e mantivera-se no mais absoluto silêncio, parada diante de
uma porta, de cujas frestas emergia uma réstia de luz. De dentro dela vinham vozes,
um som abafado de música e um ruído típico, como se eles estivessem jogando
xadrez. Talvez estivessem mesmo. Os russos eram grandes jogadores e era uma
maneira de matar o tempo enquanto esperavam. Mas esperavam o quê? Sacha
ignorava, e após alguns momentos voltou silenciosamente para seu quarto,
perfeitamente consciente de que seria inútil tentar fugir, pois ouvira Tor trancar
todas as portas depois que ela o deixara, além do que os ferrolhos eram velhos,
emperrados e rangiam...
Ele ficou parado e ela sabia que ele a olhava. Continuou respirando fundo e
com regularidade e talvez enganara-o, pois logo em seguida sentiu as mãos dele se
apoiarem na cama... Em seguida ele estendeu um cobertor leve sobre ela, lentamente
e com muito cuidado, sem fazer qualquer tentativa de tocá-la... Ouviu o barulho de
suas sandálias, a outra cama rangeu e percebeu que ele tinha se deitado. Sacha
manteve os olhos fechados, ouvindo a chuva que caía e tentou se acalmar. Estava
assustada, devido ao insólito da situação. Um homem, cuja existência ela ignorava
há sete horas atrás, estava na cama a pouca distância dela. Era um estranho, um
russo, muito duro e com um temperamento difícil. Ela o sentira durante alguns
momentos, quando fizera a primeira tentativa frustrada de fugir, e tinha ficado
muito assustada com o que acontecera.
Agora ela tentava pensar, mas era difícil. A tensão resultante de tudo o que
acontecera a estava tornando extremamente cansada. Tentava permanecer acordada,
mas os olhos pesavam; a pequena quantidade de vinho que bebera começava a fazer
efeito, mesmo que ligeiro. Agora era mais fácil manter os olhos fechados e sua mão
estava na faca, pronta para usá-la se o ouvisse sair de sua cama. Acho que dentro de
um minuto ela iria...
Quando abriu os olhos a chuva tinha parado, e o clarão da lua punha um brilho
fantasmagórico em todo o quarto. Sacha olhou a sua volta, viu aquele homem que
dormia tão próximo dela que poderia se inclinar e tocá-lo. Lembrou-se de onde
estava, de quem ele era e sentou-se. Estava alagada de suor. A lembrança de um
pesadelo que acabara de ter era ainda tão forte que levou a mão à garganta, pois em
seu sonho alguém a tinha ameaçado com uma faca... Lembrou-se da que Tor lhe
havia dado e enfiou a mão embaixo do travesseiro. Ainda estava lá.
Olhou para o homem que estava a seu lado, de costas para ela. Sua respiração
era profunda e regular. A cabeça estava apoiada em um dos braços enquanto o outro,
o esquerdo, pendia da cama e quase encostava no chão. Tinha tirado a camisa e
apenas um cobertor o cobria. O clarão da lua brilhava sobre sua pele, pondo-lhe
reflexos prateados, e ela notou a mancha roxa em seu ombro, enquanto deslizava
silenciosamente da cama e dirigia-se para a porta, sem fazer o menor ruído, a fim de
não...
— Onde é que você vai? — Seu sotaque tornara-se forte, talvez por ele ainda
estar meio adormecido, e Sacha ficou gelada.
— Ao... ao banheiro — respondeu, e ficou a imaginar se ele conseguiria ouvir
seu coração que disparava furiosamente.
Ele sentou-se e ela se voltou para contemplá-lo. — Então vá, mas lembre-se:
tranquei as portas lá embaixo. Se você tentar abrir alguma delas, ouvirei e você não
conseguirá escapar.
— Nem me passa pela cabeça. — Ela saiu, lamentando não ter levado a faca.
Quando voltou, ele se deitara novamente. Foi até a janela a fim de olhar para
fora e sentir no rosto o ar fresco da noite. Eram provavelmente três da manhã e nos
grandes centros de veraneio lá por perto, tais como Nice, Cannes e outros lugares, as
pessoas ainda estariam acordadas, bebendo e dançando durante a noite inteira. Teve
até mesmo a impressão de ouvir música muito ao longe, em meio a todo aquele
silêncio, o que provavelmente se devia unicamente a sua imaginação. Sentiu-se no
entanto muito perdida e solitária. Apoiou-se ao parapeito da janela e olhou para
baixo. O chão estava tão próximo, era escuro e acolhedor. Ah, que falta lhe fazia uma
corda!
Ouviu o russo resmungar qualquer coisa, como se ele se mostrasse impaciente
para voltar a dormir, porém permaneceu onde estava. Ele que esperasse.
— Sacha — ele chamou. Ela não respondeu.
Ele repetiu seu nome e ela voltou-se lentamente.
— O que você quer? — Mediu mentalmente a distância que a separava da cama.
Ele que experimentasse tentar alguma coisa...
— Não consegue dormir?
— Não. — Agora era verdade. O sono passara completamente e ela sentia-se
desperta. — Quero ir andar um pouco lá fora — disse. O que ele pensaria daquela
idéia? Ela queria aborrecê-lo de propósito. Se conseguiu ou não, ele não deu a menor
demonstração. Simplesmente riu e disse:
— Volte para a cama.
— Não. Gosto de ficar aqui.
— É mesmo? Então irei até aí e ficarei a seu lado. Olharemos a lua juntos. Que
tal? Acho que seria simpático. — Ouviu o barulho de lençóis e voltou-se às pressas,
pois isto era a última coisa que ela haveria de querer e ele riu, como se tivesse
adivinhado. Todo o irremediável ressentimento de Sacha, frustrada o tempo inteiro
por aquele homem poderoso e imprevisível, veio à tona e ela atirou-se contra ele,
golpeando-o com os punhos fechados. Se tivesse parado para pensar no que estava
fazendo teria compreendido o quanto estava sendo tola, em mais de um aspecto. Não
o fez, no entanto, e aquele seu ato impulsivo estava condenado desde o início. Mas
mesmo assim ela tinha de tentar.
Era como se ele tivesse se preparado para enfrentá-la e ela soubesse disso. Ele
estava sempre alerta para qualquer coisa que ela pudesse fazer.
De repente, sem a menor cerimônia, Tor a puxou para si. Subitamente ela se
viu debaixo dele, aprisionada por seu corpo rijo e por suas pernas. Ele segurava suas
mãos e ela se viu completamente indefesa, como uma mosca colhida nas teias de
uma aranha.
— Agora conte-me — ele disse, parando de rir —, está gostando, senhorita
Sacha?
Ela se absteve de fazer qualquer gesto e, por mais estranho que pudesse
parecer, não achou desagradável estar naquela posição. Ele não a estava
machucando. Ela, no entanto, não parava de pensar um minuto. Concentrou-se,
refletindo sobre o que iria fazer em seguida... e onde, oh, onde estava a faca?
— Você sabe — ele prosseguiu, sem esperar a resposta que ela, de resto, não
daria —, sou faixa-preta em judô e caratê. E mesmo que eu não fosse, você acha que
uma garota poderia pretender lutar comigo?
Sacha permaneceu em silêncio. Não adiantava discutir ou dizer o que quer que
fosse. Virou a cabeça de lado e ficou esperando que ele a soltasse. Sentiu que ele
mudava de posição e sua mão tocou o rosto dela, enquanto ele murmurava: — Muito
bem, muito bem, senhorita Sacha Donnelly. Agora acho que vou... — Beijou-a, e era
um beijo muito terno. Seus lábios, entretanto, não eram nada macios, e sim rijos e
quentes. Os lábios de Sacha queimavam como fogo.
Ela sentiu-se assustada. — Oh, não, por favor... — disse. Tor a ergueu e
ajoelhou-se diante dela na cama. Sua respiração estava acelerada e havia tensão em
sua voz, enquanto ele dizia:
— Pois então não brinque com a sorte, menina. Você não sabe o que está
fazendo ou é tão inocente que não entende como é que os homens agem? Conte-me.
Subitamente afastou os lençóis e levantou-se, obrigando Sacha a fazer o mesmo
e sem soltar suas mãos. — Estou esperando pela resposta — disse suavemente. Usava
unicamente um calção e com o canto dos olhos ela conseguiu enxergar suas chaves,
bem como algumas outras, e uma carteira, em cima da cadeira, ao lado da cama.
Naquele momento, entretanto, não podia pensar naquelas coisas. Ele estava
esperando que ela falasse.
Ao mesmo tempo que segurava a mão dela, esfregava o polegar ao longo de seu
pulso, massageando-o ligeiramente, e isto lhe proporcionava um estranho alívio. —
Não sei a que você se refere — ela disse cautelosamente. — Você acha que só porque
estou aqui como sua "hóspede"... mas na verdade sou sua prisioneira, não é? Você
pode fazer tudo o que quiser. Eu o odeio. — Sua voz tremeu enquanto ela dizia esta
última frase.
— Não odeia, não. Você não me conhece suficientemente bem para me odiar.
Talvez não goste de mim, pelo que eu fiz. Ódio, porém, é uma palavra muito pesada.
Tenho certeza de que você não odeia ninguém.
Ela contemplou seu rosto, coberto de reflexos prateados, sobre o qual incidia a
luz fria da lua. — Você absolutamente não me conhece — disse ela.
— Conheço bem demais. E você não respondeu minha pergunta. Você não sabe
o que pode acontecer quando se atira em cima de um homem que está na cama?
Diga-me. Porque, se não sabe, talvez seja melhor aprender, antes de ficar em uma
situação difícil, não acha?
Ela afastou a mão dele, que a acariciava de modo perturbador e familiar.
— Não preciso que você me ensine — replicou.
— Não? — Ele deu de ombros, sorrindo. — Que pena. Mesmo assim, eu lhe dei
minha palavra... e você está com a faca. — Esboçou um gesto irônico. — Já estava
esquecendo. Seria muito perigoso eu me envolver com esta inglesinha, não é
mesmo?
Ele estava zombando dela, mas Sacha sentiu que não havia crueldade nisso.
Deu-lhe as costas e voltou para sua cama.
— Pensei que você quisesse ir dar um passeio — ele disse.
Ela respirou fundo. — Sim, mas...
— Pois então iremos os dois. Eu também não consigo mais dormir. Tomaremos
vinho, café, o que você preferir, e voltaremos para a cama.
"Do jeito como ele fala tudo parece tão simpático", pensou ela com amargura.
Como se acaso ela estivesse de férias! Sentiu-se, no entanto, intimamente excitada.
Um passeio, sob o clarão da lua, às três horas da manhã! Nunca tinha feito isto
antes. E mesmo que ela não gostasse dele, meia hora de passeio não tinha a menor
importância. Com toda certeza não conseguiria dormir naquele momento —
especialmente depois do pequeno incidente. Ficou perturbada ao recordar o que
acontecera, e desviou-se rapidamente, para não se trair.
— Está certo. Vou pegar outro suéter para colocar em cima deste. — Abriu a
mala, enquanto ele ia até a porta e acendia a luz. O quarto ficou todo iluminado e
Sacha, acostumada à escuridão, piscou os olhos.
Enfiou um pulôver bem folgado. Era branco, mas serviria — ela não se sentia
com forças para fugir naquele momento...
— Vamos? — Ele tinha posto a camisa e calçado as sandálias. Ela o contemplou.
— Não vai sentir frio?
— Meu suéter ficou lá embaixo. Vamos. — De repente ele estalou os dedos. —
Ah, a faca. Onde foi que você a colocou?
— Debaixo do meu travesseiro. Por quê? — Ela o viu inclinar-se e pegar a faca.
Um sentimento muito próximo do temor e da suspeita apoderou-se dela. — Por que
está levando? — perguntou, muito calma.
— Por quê? À toa... — Ele deu de ombros. — Porque a noite pode ser perigosa.
Venha.
Ela o seguiu escada abaixo e, ao chegarem ao último degrau, ele levou o dedo
aos lábios. — Vou pegar meu suéter na cozinha. Espere aqui, por favor. — Ela o viu se
afastar na ponta dos pés.
Alguns minutos mais tarde andavam pelo caminho pedregoso em direção à
estrada principal. Ele tinha trancado a porta com a chave grande e antiga e a
colocara no bolso.
Quando alcançaram o lugar onde tinham se encontrado pela primeira vez,
Sacha parou. — Onde está meu carro? — perguntou.
— Atrás da casa, na garagem. Está bem guardado.
— Meu material de pintura está dentro dele.
— Eu sei. Amanhã ele lhe será entregue. Você poderá pintar, se tiver vontade.
— Onde? — ela perguntou secamente. — Lá na praia?
Ele a contemplou, sorrindo. — No jardim, onde eu posso vê-la.
— Eu bem que imaginava. — Algo tinha mudado. Ela não conseguia definir com
clareza, mas algo em relação a ele se modificara. Ela não sabia dizer o que era, porém
não se tratava de algo assustador. Pelo contrário, era quase um relaxamento da
tensão existente entre eles. Achou que logo as coisas se esclareceriam.
Era difícil percorrer aquele caminho, cheio de pedregulhos, pois o clarão da lua
era enganador e não iluminava suficientemente bem. Ele, no entanto, pisava com
uma segurança incrível, e Sacha lembrou do que ele lhe contara sobre sua faixa-preta
de judô e caratê. Acreditava nele. Acreditava também nas outras coisas que ele lhe
tinha dito. Sabia que ele, em sã consciência ou de propósito, jamais a feriria
fisicamente. Fosse ele quem fosse, Sacha sentia nele o instinto do cavalheirismo,
intuía que ele jamais trataria mal a uma mulher. Isto, por um lado, era
reconfortante. Havia, porém, tantas outras coisas que a assustavam... Estas ele não
poderia ou não quereria explicar.
Ela tropeçou e agarrou-se instintivamente no braço dele, a fim de não cair. O
braço esquerdo. Sentiu-o gemer, lembrou-se da mancha roxa e mordeu o lábio.
— Você tem um estojo de primeiros-socorros em casa? — ela perguntou.
— Sim. Por quê? — Ele a contemplou intrigado.
— Vou fazer um curativo em seu ombro.
— Ora! — Ele riu e passou o braço em torno de sua cintura. — Está vendo, é
suficientemente forte para tomar conta de uma garota bonita. — Ela não se
importava mais com seu gesto, porém não queria que ele soubesse disso. Assim
sendo, ficou tensa durante alguns momentos.
Era fantástico estar lá fora, àquela hora da noite — ou da manhã, pois Sacha
nem tinha mais certeza. As nuvens haviam se dissipado, as estrelas luziam em meio
àquela escuridão de veludo, a lua muito branca e fantasmagórica flutuava bem no
alto, em paragens muito remotas. Ela olhou para cima e parou de andar. — Oh, olhe!
— exclamou. — Olhe a lua. Pensei que ela ficaria diferente, depois que os astronautas
foram lá... mas não é verdade. É a mesma de sempre.
Ele olhou para ela e sorriu, mas não disse nada. Ficaram parados durante
alguns minutos na estrada poeirenta, coberta de mato rasteiro e ladeada por altos
barrancos. Subitamente Sacha sentiu frio.
— Quero voltar para casa — sussurrou.
— Por quê? O que foi? — ele perguntou, em tom enérgico.
Ela o olhou. — Nada. É que... — Não conseguiu explicar o que lhe passava pela
mente, porém tinha consciência de que tudo se imobilizara, como se alguém ou
alguma coisa os estivesse vigiando. A impressão fora muito fugaz, durara apenas um
instante, mas a sensação perdurava e ela acrescentou: — Estou com medo.
— De mim? — ele indagou, sorrindo.
— Não. De alguma coisa. Ou de alguém. Sinto como se estivesse sendo vigiada.
— De repente notou que ele parava de sorrir. Em seguida Tor fez uma coisa estranha.
Passou o braço em torno dela e, abraçando-a, disse algo em russo. Antes que ela
pudesse perguntar o que ele estava fazendo, beijou-a para valer. Assim que
terminou, cochichou em seu ouvido:
— Aja normalmente, mantenha o braço em torno de minha cintura e
voltaremos devagar para casa. Está me entendendo?
— Sim.
Ele lhe apertou o braço. — Muito bem. Vamos.
No caminho de volta ele riu por uma ou duas vezes, como se estivessem
cochichando, e ela disse algo muito engraçado. No entanto, ela estava gelada por
dentro, pois não sabia precisar o que estava acontecendo com ele, por que ele tinha
concordado em ir dar aquele passeio. No fundo ela o desprezava.
Já dentro de casa esperou até que ele tivesse trancado a porta e se voltasse para
ela. Então levantou a mão e deu-lhe um tapa no rosto com toda a força de que era
capaz.
Por um momento sobreveio um silêncio tenso. Ele então falou, furioso: — Por
que você fez isto?
— Você sabe. É porque você acaba de me usar. Levou-me lá para fora com
algum propósito em mente... — Observou que a marca de seus dedos passava do
branco ao vermelho, em seu rosto, mas ele não fez o menor gesto, apenas olhou para
ela, ostentando um brilho perigoso nos olhos cinza.
— E se foi verdade?
— Pois saiba que não gosto. Sei que suas intenções são as piores possíveis, e
talvez quem esteja nos vigiando e a esta casa também não preste, mas não quero ser
usada. Você acha que eles pensam que eu sou sua "esposa", com quem você deve
estar em lua-de-mel? — Seus lábios tremeram com o esforço que ela fez para falar.
Ele deu de ombros. — Talvez... e talvez você imaginou que alguém estivesse nos
olhando. Vocês, mulheres, enxergam coisas onde existem somente sombras...
— Pois você também! — ela retrucou, irada. — Eu vi seu rosto mudar. E foi por
isso que você pegou a faca... — Ela levou a mão à boca, sentindo-se enjoada. Ele tirou
a faca do bolso e a estendeu para ela.
— Tome.
Ela, em resposta, deu-lhe um safanão e a faca voou de sua mão, deslizando pelo
chão. — Pode guardar. Garanto que você sabe usá-la melhor do que eu. Ai! Solte meu
braço!
Tor tinha um punho de ferro e estava zangado. — Há momentos — disse entre
dentes —, há momentos em que as coisas seriam mais fáceis se você não fosse uma
mulher...
— Não diga! Solte-me! Você faz questão de ser muito mais forte do que todo
mundo, não é mesmo? — assim que ele a soltou, esfregou o pulso e olhou-o com ar
de acusação.
— Você disse que é preciso conhecer uma pessoa antes de odiá-la. Bem, agora
eu o conheço e o odeio! — Deu-lhe as costas e subiu a escada sem olhar para trás.

Ele não voltou a deitar-se naquela noite. Sacha ficou acordada durante muito
tempo antes de conciliar o sono. Ao acordar, a luz brilhante do sol entrava pela
janela e a cama de Tor estava como ele a tinha deixado antes de darem aquele
passeio infeliz. Por um breve e angustiado momento ela pôs-se a imaginar se algo
tinha acontecido com ele e voltou a afundar a cabeça no travesseiro. Claro que não!
Sentiu o cheiro de comida sendo preparada, de mistura com o odor de ervas
aromáticas e de café recentemente moído.
O doloroso incidente da noite anterior poderia não ter acontecido nunca. A
porta do quarto estava entreaberta; uma tábua do assoalho rangeu e lá fora uma
gaivota piou, como se estivesse zombando de alguém. Sacha sentou-se a muito custo
e esfregou os olhos. Estava com fome, e esta era a única certeza que tinha. Não
podia, entretanto, simplesmente descer para a cozinha. A memória do que
acontecera voltava aos poucos e era doloroso lembrar o que tinha acontecido, o que
ela dissera e, pior ainda, o que fizera...
Rodeou os joelhos com os braços e ficou pensativa. Ouviu uma pancada na
porta e a voz de Tor, que dizia: — Posso entrar?
Sacha olhou em direção à porta, esperou, engoliu em seco e disse calmamente:
— Sim.
Trazia na mão um copo fumegante; sua voz era fria e distante, enquanto dizia:
— Bom dia. Trouxe-lhe café. Quer mais alguma coisa?
— Não. Prefiro descer, se é que posso.
— Sim, mas somente dentro de alguns momentos. Primeiro tome o café, lave-se
e em seguida pode descer.
— Muito bem. — Ela o viu aproximar a cadeira da cama e colocar o café em
cima dela. As chaves e a carteira não estava mais lá. Isto significava que ele já tinha
estado lá, mas ela não o ouvira. Olhou à sua volta, um tanto desanimada. Era sexta-
feira e suas férias apenas começavam: o tempo estava perfeito, tudo poderia ter
transcorrido em ordem. Aquele seria o dia de ir visitar tia Marie, e talvez pintar um
pouco no jardim, mais tarde. Mas e agora, o que aconteceria? Sacha começou a
tomar o café quente e adocicado. Era bom, forte e Tor tinha providenciado leite —
talvez de alguma fazenda vizinha — e o preparara do jeito como ela gostava. É claro
que ela não o deixaria saber disto.
Uma idéia começou a tomar corpo enquanto ela acabava de beber. Respirou
fundo: valia a pena tentar. Não tinha nada a perder. Ele simplesmente poderia
recusar e ela já estava preparada para isso. Assim que se sentou para tomar o café,
disse: — Prometi visitar minha tia hoje. Ela está à minha espera. É muito velha e não
quero deixá-la preocupada, caso eu não vá. Mal conseguiu pronunciar as últimas
palavras, ao ver a expressão do rosto dele. No momento seguinte ele a deixou
completamente sem fôlego.
— Muito bem. Você pode ir, mas comigo. — Ambos estavam comendo. Sacha
insistiu em preparar ela mesma sua omelete. Talvez estivesse tentando demonstrar
alguma coisa, mas não sabia exatamente o quê.
Levantou a cabeça, atônita, e ele ergueu a xícara de café com um gesto
zombeteiro.
— Você achou que eu recusaria?
— Sim — ela confessou.
— Bem, não recusei, não. E sabe por quê? Porque desta vez acreditei em você.
Você mentiu ao dizer que seu pai ia chegar, mas não sabe pregar uma boa mentira,
Sacha. Acho que o que você está dizendo agora é verdade. — Sorriu ligeiramente. —
Logo veremos, não é mesmo?
Baixou rapidamente os olhos, a fim de esconder um brilho de triunfo daqueles
seus olhos sagazes. Seu cérebro ágil começou a refletir, procurando novas
possibilidades...
— No entanto eu a previno para não tentar o que quer que seja. Vou ficar de
olho em você...
Ela tentou rir. — Deus do céu! Claro que não. Tia Marie é muito velha. Ela seria
capaz de morrer de susto. Eu jamais sonharia em... — Não completou a frase, pois
achou que estava se desculpando demais. Tia Marie podia ter idade, mas estava
muito longe de ser frágil, mesmo que parecesse. E era isto o que importava.
— Posso perguntar como é possível você ter uma tia francesa?
Agora ela desejava mostrar-se polida, e ele havia perdido aquele seu ar de fria
formalidade.
— Bem, ela não é exatamente minha tia. Meu pai tinha bons amigos na França
durante a guerra — ele esteve aqui desempenhando uma missão secreta — e tia
Marie era mãe de um deles. O amigo morreu, mas meu pai nunca deixou de manter
contato com tia Marie, visitando-a sempre. Ela tem mais de oitenta anos. — Um
pensamento súbito e quase assustador lhe ocorreu. — Você não vai... Isto é... — As
palavras lhe faltaram, no momento em que os olhos frios pousaram sobre ela.
— Sim? Você talvez esteja pensando que eu vou seqüestrá-la? — Um ligeiro
sorriso aflorou no canto de sua boca. — Acho que nesta casa não existe lugar. Não lhe
parece? E lembre-se: você deve se comportar corretamente. Está entendendo o que
eu quero dizer?
Ela compreendia perfeitamente. Compreendia até bem demais. — Estou sim —
respondeu.
— Bom. — Ele levantou-se e levou seu prato para a pia. — Você está
aprendendo a agir com sensatez. Talvez você até esteja começando a acreditar que eu
falava a verdade quando disse que não lhe pretendia fazer nenhum mal.
Sacha não quis dar nenhuma resposta a este comentário. Também levou o
prato para a pia, dizendo: — Deixe que eu lavo.
— Como quiser. Obrigado. — Foi para fora e a deixou sozinha. Viu-o afastar-se
e não conseguiu dizer como se sentia naquele momento. Estava no centro de um
turbilhão de emoções contraditórias e experimentava uma grande confusão interior.
Acima de tudo, achou que jamais poderia compreender aquele homem chamado Tor.

Pôs um vestido branco e sem mangas, muito leve, sandálias, lavou a roupa do
dia anterior e a pendurou para secar em um varal atrás da casa. O dia estava
excepcionalmente quente. O sol brilhava no céu intensamente azul e as roupas
ficariam secas em menos de uma hora. Ouviu-se ao longe o ruído de um avião. Ela
inspirou o ar que rescendia a eucalipto, ouvindo o canto inconfundível das cigarras,
que viviam em permanente algazarra de manhã até a noite. Após alguns momentos o
ouvido se habituava, mas aquilo tudo ainda era suficientemente novo para que Sacha
se divertisse. Ficou parada alguns momentos, imaginando se Tor permitiria que ela
dirigisse o Citroën, ou se insistiria em guiar ele mesmo. Estava preparada para
qualquer resposta.
Almoçaram muito cedo e saíram logo após. Tor passara bastante tempo com os
outros dois homens, conversando em voz baixa no quarto deles, enquanto ela
esperava do lado de fora, em um ponto onde ele pudesse enxergá-la.
Ele desceu as escadas e veio para a porta da frente. Tinha mudado de roupa e
apesar de não estar tão diferente assim poderia facilmente ser tomado por um outro
homem. Sacha ficou olhando para ele, admirada, e ele riu.
— Sou eu, sim. Sou eu de verdade — disse ele.
— Você sempre se fantasia quando sai? — perguntou secamente.
— Me fantasio? — Tirou os óculos escuros e o chapéu de palha todo amassado,
que faziam parte do "uniforme" apropriado para a Riviera, escolhido por ele. — Você
chama a isto de fantasia?
No entanto, era inegável que sua aparência mudara. Usava jeans desbotados,
uma camisa branca e as mesmas sandálias do dia anterior. Sacha notou o volume da
faca no bolso de trás e seus lábios se comprimiram. Não ousava porém dizer nada,
com medo de que ele se recusasse a ir.
Ele pôs novamente os óculos escuros, que eram quase sinistros, mas mesmo
assim muito atraentes. Puxou o chapéu de palha para a fronte, em um gesto
displicente, e ofereceu o braço a Sacha. — Venha — disse. Dirigiram-se para os
fundos da casa e ela ficou à espera de que ele fosse abrir a porta do Citroën. Para sua
grande surpresa ele dirigiu-se para a motocicleta.
Seu coração disparou. — Oh, não, por favor... — começou a dizer. Ele a olhou de
relance e franziu o cenho.
— E agora qual é o problema?
— Pensei que fôssemos de automóvel — ela balbuciou.
— De motocicleta é melhor, vai mais rápido. Sente-se aí atrás e passe os braços
em torno de mim.
Mordendo o lábio, Sacha sentou-se cautelosamente na traseira da moto. Ele
voltou a cabeça. — Eu disse para você me segurar pela cintura. Caso contrário irá
cair.
Ela cerrou os dentes — mas se queria mesmo ir tinha de fazer o que ele
mandava.
— Nunca andei de motocicleta — confessou.
— Não? — Ele riu. — Pois então é uma experiência de que você não se esquecerá
jamais. Está pronta?
— Sim — Sua voz saiu abafada, pois ao passar os braços em volta dele ela foi
obrigada a inclinar-se para a frente, e seu rosto estava meio enterrado em seus
ombros largos. O corpo dele era quente e rijo, e sua musculatura era desprovida de
qualquer indício de gordura. Era todo feito de músculos e ossos, e ela descobriu
horrorizada que estava gostando de segurá-lo. Estremeceu, sentindo-se culpada e
pouco à vontade. Ele não parecia notar o que estava acontecendo.
— Segure firme, Sacha. Vamos embora.
Ele acelerou o motor e ela fechou os olhos, apavorada, à espera do que ia
acontecer. Era pior do que ela imaginara. Enquanto desciam pela alameda do jardim
em direção à estrada ela agarrou-se nele com toda a força, sentindo que poderia cair
a qualquer momento. Durante alguns minutos sentiu-se como se estivesse no topo
de uma montanha-russa em um parque de diversões, naqueles segundos que
precediam a descida pavorosa, cada vez mais veloz... Finalmente chegaram à estrada
e foi muito pior, porque estava toda esburacada. Ele tinha de se desviar o tempo
todo, a fim de evitar as pedras e as valetas.
Agarrando-se a ele, como jamais fizera com quem quer que fosse em toda sua
vida, Sacha enterrou o rosto nas costas de Tor e esperou o desastre acontecer.
Então, milagrosamente, ele começou a diminuir a marcha e ela arriscou-se a
abrir um olho. Seria possível que já tivessem chegado a Cannes?
— Sacha, está gostando? Você está segurando firme, não é mesmo?
— Estou rezando — ela respondeu. Estava falando absolutamente a sério e ele
riu. Pararam, pois tinham chegado ao fim da estrada, onde ela desembocava na
rodovia principal, e ele esperava que o tráfego diminuísse um pouco.
Voltou-se para ela: — Você está mesmo assustada?
Ela não viu a menor razão para fingir. — Sim.
Ele desligou o motor. — Desculpe. Quer voltar, a fim de pegarmos o carro?
Por um momento ela achou que ele deveria estar brincando e o olhou de
relance. No entanto, seu rosto estava completamente sério e ele esperava por sua
resposta. Ela sacudiu a cabeça lentamente. — Não. Não se preocupe, daqui a pouco
estarei bem. É que eu não tinha idéia de como era.
— Garanto a você que o pior já passou. Está vendo? — Apontou a estrada por
onde tinham vindo. — Aquele caminho é péssimo. De agora em diante vai melhorar
muito, e eu não irei depressa.
Era engoliu em seco. — Sim. Estou me comportando como uma tola. Por favor,
vamos em frente.
Ele acionou novamente o motor e ela sentiu aquela energia poderosa que
escapava e que os impulsionaria para diante. Naquele momento, por mais estranho
que parecesse, não sentia mais medo, pois tinha revelado a Tor aquilo que a
atemorizava. Voltou a agarrar-se nele, mas não tão desesperadamente; Tor
aproveitou-se de um espaço deixado no fluxo constante dos automóveis e se meteu
no meio do trânsito.
A coisa melhorou muito. Após alguns quilômetros de uma estrada em perfeitas
condições e com Tor tomando cuidado para não desenvolver muita velocidade, ela
começou a se divertir, a compreender o prazer que advinha de uma máquina tão
frágil, em total oposição à segurança proporcionada por um automóvel.
Tor devia ter sentido isso, pois lhe disse, voltando a cabeça: — Agora melhorou,
não é? — Sacha ouviu as palavras antes que o vento as dispersasse e gritou:
— Sim, é maravilhoso!
Tiveram de se reabastecer de gasolina nos arredores de Cannes. Do outro lado
do posto havia um café, com mesas na calçada e guarda-sóis de cores brilhantes,
além de um pequeno jardim nos fundos. Sacha desceu da moto, com Tor a seu lado,
e suas pernas tremiam com a tensão em que estivera até aquele momento. Tor olhou
para ela.
— Quer beber alguma coisa?
Ela retribuiu seu olhar. — Vamos? Isto é, eu... — Mordeu os lábios.
Ele riu, muito simpático, por detrás daqueles óculos misteriosos. — Contanto
que você se comporte. Está me entendendo?
— Oh, sim — respondeu. Sentia uma sede terrível, teria prometido o que quer
que fosse, e estava fraca demais para correr, apesar de ele não saber disso.
— Pois então vamos. Você me dará o endereço de sua tia enquanto bebemos.
Ele pagou a gasolina e encostou a moto em um canto da garagem. Tomou o
braço dela protetoramente enquanto atravessavam a estrada e ela sentiu-se muito
pequena ao lado dele.
— Aqui, no jardim, é mais simpático, acho — disse-lhe ele, abrindo o portão
verde.
— E não tem gente — murmurou ela, porém ele ouviu e riu.
— Assim é melhor! Você está recuperando um pouco de sua sagacidade. Sabe,
Sacha — disse ele, oferecendo-lhe uma das cadeiras de ferro batido em um canto do
jardim —, já estava ficando preocupado com você. Achei que você tinha perdido um
pouco da velha chama.
— Achou mesmo? — Ela olhou em volta, pois por alguma razão obscura queria
fixar tudo aquilo na memória, mas não sabia exatamente por quê. O muro atrás deles
era feito de pedra cinza, e pequenas flores azuis brotavam por entre as fendas. No
chão, ao lado deles, havia um grande vaso de cobre, contendo uma palmeirinha e
flores amarelas. Havia um cheiro de gasolina e alho no ar, além de um perfume
suave que ela não conseguiu reconhecer, o que a deixou intrigada.
— M'sieur? — O garçom italiano era atencioso, mas não conseguia disfarçar a
pressa que tinha de voltar a servir a loira exuberante sentada sozinha em uma
cadeira na calçada. Tor piscou o olho para Sacha.
— Já escolheram?
— Alguma coisa bem fresca, por favor.
— Deux menthes avec limonade, s'il vaus plaît.
Ela fez uma cara de desagrado e Tor franziu o cenho. — Espere provar antes de
ter esta reação.
— Está bem. — Ele tirou do bolso a carteira de cigarros e lhe ofereceu um, mas
ela recusou. Olhou-o acender o cigarro e pousar o isqueiro ao lado do cinzeiro, sobre
a mesa coberta por uma toalha vermelha. Tor recostou-se e puxou o chapéu para a
frente. Sacha não conseguia distinguir seus olhos devido aos óculos, mas sabia que
ele a estava olhando, o que a deixava vagamente embaraçada. Olhou a sua volta,
porém eles eram os únicos ocupantes do jardim, sem contar o gato preto sentado
sobre o muro, espreitando uma mosca.
Sacha abriu a bolsa e procurou o espelho, pois sentia que o batom de seus
lábios já devia ter desaparecido. Notou que estava faltando alguma coisa. Franzindo
o cenho, examinou novamente o conteúdo da bolsa e ele indagou: — O que foi?
Então ela descobriu o que estava faltando e prendeu a respiração. — Meu
passaporte. Não está aqui — disse ela, encarando-o. — Você o pegou?
— Eu? — Ele parecia quase estar se divertindo. — Que razões eu teria para isso?
— Você tem mesmo que se esconder atrás desses óculos? — ela perguntou. —
Não consigo vê-lo.
Ele os tirou lentamente. — Melhorou? — Pousou-os sobre a mesa, e cada gesto
seu era estudado. — Talvez você encontre o passaporte quando voltar para casa.
— Talvez. Só que ele não caiu da minha bolsa, se é isto que você ia dizer... —
Parou, enquanto o garçom colocava sobre a mesa dois copos grandes cheios de um
líquido verde e borbulhante, com pedacinhos de laranja e limão. — O zíper de minha
bolsa é de muito boa qualidade e eu nunca o deixo aberto — prosseguiu ela, assim
que o garçom se afastou. — E você entrou no meu quarto enquanto eu dormia, isso
antes de você me trazer o café, pois notei que suas chaves e sua carteira já não
estavam mais sobre a cadeira.
— Ah — ele assentiu. — Você é observadora. Isto é muito bom.
— Você pegou? — perguntou ela, preocupada demais para beber.
— Peguei o quê?
— Meu passaporte. — Uma raiva incontrolável apoderou-se dela. Jamais tinha
encontrado um homem que a deixasse tão encolerizada. Era como se ele estivesse
levando a melhor o tempo todo, acontecesse o que acontecesse.
Ele voltou a assentir. — Sim. Mas está bem guardado e será devolvido a você.
— Por quê? — Seus olhos estavam muito abertos e ela sentia que a cor tinha
abandonado seu rosto.
— Para ver se você é mesmo aquela que você diz ser — explicou Tor.
— Mas como... — Teve de parar e tomar um gole da bebida verde e gelada, mas
estava por demais agitada para notar como era deliciosa. — Como pode fazer uma
coisa dessa?
— Há várias maneiras.
— Sou Sacha Donnelly — ela insistiu. — Olhe. — Com um movimento súbito e
desesperado pegou a medalha em seu pescoço, a mesma que usava sempre, pois sua
mãe a tinha dado havia cinco anos, pouco antes de morrer. — Abra. Veja o que está
escrito. Foi minha mãe quem me deu e é muito preciosa para mim.
Ele tomou a frágil cadeia de ouro em suas mãos e Sacha prendeu a respiração,
de medo que ela se rompesse. Ele, entretanto, mostrou-se muito cuidadoso ao abrir a
medalha. Contemplou o pequeno retrato oval da sra. Donnelly e a dedicatória
delicadamente gravada na tampa: "A Sacha, da mamãe". E a data.
Ela lhe deu tempo de ler e então a pediu de volta.
— Por favor — disse. Arrependeu-se de seu gesto impulsivo, mas agora era
tarde demais. — Você acha que forjei isto? — disse, ofegante. — Acha? — As lágrimas
afloraram-lhe aos olhos. Se ele respondesse afirmativamente ela não saberia o que
fazer.
— Não — respondeu ele lentamente. — A medalha é verdadeira.
Sacha inclinou a cabeça a fim de pôr a corrente de volta. Um pedacinho de
limão flutuava na superfície borbulhante da bebida e ela piscou os olhos várias vezes.
Seus dedos simplesmente se recusavam a ajeitar o fecho e ela prendeu a respiração.
Tor levantou-se, apartando o cabelo macio de seu pescoço, ao mesmo tempo que
dizia: — Permita-me. — Ela estremeceu, ao sentir seu toque suave, porém manteve-
se muito ereta enquanto ele prosseguia: — Mas é necessário saber. É muito
importante. — Ajeitou a corrente e voltou a sentar-se. A memória de seu toque
persistia a tal ponto que Sacha não ousou olhar para ele, enquanto dizia:
— Não vejo por quê.
— Mas logo verá. Agora, por favor, dê-me o endereço de sua tia e podemos
partir.
— É na rua Tissot, número catorze. É um grande prédio de apartamentos.
— Eu conheço — foi a resposta surpreendente.
— Estarei de volta dentro de um minuto. — Pegou a bolsa.
— Não há pressa. — Ele voltou-se e chamou o garçom. — Quer mais outro
drinque?
— Não, obrigada, mas não se prenda por mim.
Ele deu de ombros. — Não tem importância. — Ela olhou-o pagar a conta e dar
uma gorjeta. O garçom deu-lhe um sorriso convencional antes de se afastar. Sacha
mordeu o lábio. Como Tor era hábil! A gorjeta não era tanta a ponto de ele se fazer
lembrar pelo garçom e nem tão pouca para que ele manifestasse o contrário. Era
apenas o suficiente.
Ela acabou de tomar o drinque e levantou. Tor seguiu-a, colocou novamente os
óculos escuros e a tomou novamente pelo braço, enquanto atravessavam a estrada.
— Não vou fugir — disse ela com amargura. — Já aprendi que quando você está
por perto, nem devo tentar.
Ele sorriu: — Bom. Isto torna as coisas mais fáceis para mim.
Ele nunca se deixava desconcertar por uma resposta, jamais ficava confundido
com qualquer coisa que ela dissesse. Ela sabia que estava perdendo tempo, toda vez
que tentava deixá-lo preocupado.
Tor esperou que ela o segurasse firme antes de ligar o motor e deixou o litoral,
subindo em direção à região mais tranqüila de Cannes, nas colinas. Logo chegariam
e Sacha sentiu-se excitada antecipadamente. O que aconteceria?

CAPÍTULO IV
Sacha logo descobriu. Tor mostrou-se absolutamente encantador para com a
velha senhora que esperava por eles, sentada no balcão do apartamento. Levantou-se
e ficou a contemplá-lo, enquanto Sacha os apresentava. Não era possível que aquele
fosse o mesmo homem que ela conhecia. Do mesmo modo que uma ligeira alteração
no modo de vestir o modificara, assim também suas maneiras mudaram, assim que
ele entrou no apartamento.
Enquanto subiam os dois lances de escadas, pois o elevador, mais uma vez,
estava quebrado, ele disse: — Estou hospedado na casa da senhora Cassel e estou
sozinho. Entende?
— Sim — assentiu Sacha.
— Muito bem. E, por favor, não tente fazer nada. Lembre-se de que eu a estou
vigiando.
— Mas eu lá disse. Ela é uma velha senhora.
— Sim, sei. Você fala inglês ou francês com ela?
— Ambos. Ela gosta de praticar seu inglês, mas quando se cansa começa a falar
francês.
Ele sacudiu a cabeça, mas não disse nada, e ela se pôs a imaginar se tinha
cometido um erro ao vir. Tinha parecido uma idéia tão boa, no momento em que ele
concordou. Ela, porém, tinha de se mostrar muito cautelosa.
Havia uma folha de papel em branco e um lápis em sua bolsa, porque ela ainda
não tinha resolvido o que iria escrever, e era melhor que as coisas ficassem assim, até
aquele momento.
A grande esperança de Sacha era passar uma nota para Hortense, a empregada
de tia Marie, que só chegava em casa ao cair da tarde e que sabia quando devia se
calar...
A porta estava aberta. — Entrem, entrem. — Tia Marie era pequenina e gordota,
e andava com dificuldade. Ficava a maior parte do dia sentada em uma cadeira
branca de ferro forjado no balcão acolhedor, rodeada por dúzias de vasos com
plantas, o seu "jardim", como ela se referia a elas.
Seu cabelo estava sempre irrepreensivelmente preso por pentes de tartaruga e
seus olhos eram de um azul-esmaecido, mas tão vivos com os de uma menina. Sacha
nunca a tinha visto usar outros vestidos que não os de cetim preto, com um camafeu
no jabô de rendas.
Sentiu um aperto na garganta enquanto se adiantava para saudar a velha
senhora, sentando-se ao lado de sua cadeira de rodas.
— Oh, tia Marie, que bom ver a senhora novamente!
— O mesmo digo eu, ma petite! Mas quem é que veio com você? Um amigo?
— Oh, sim. Quero lhe apresentar... — Hesitou durante um segundo. — Tor. É
hóspede de madame Cassel. Tor, esta é a senhora Beauvais.
Ele aproximou-se, com o chapéu e os óculos escuros na mão esquerda, e
estendeu a mão direita para a velha senhora, que o estudava atentamente. Inclinou-
se diante dela, como se se tratasse de um fato bastante natural, e havia nele uma
dignidade que, de certo modo, deixou Sacha perturbada.
— Enchanté, madame — ele disse. Tia Marie arqueou as sobrancelhas.
— Tiens! E de onde você é, jovem? Eh? Sentem-se, sentem-se os dois. Vou ficar
com torcicolo se tiver de ficar olhando para vocês. Assim é melhor! — Isto foi dito
com a maior amabilidade, enquanto Tor levantava duas pesadas cadeiras de jantar,
como se fossem feitas de vime, e as colocava uma ao lado da outra, diante dela.
Sacha sentiu o desejo absurdo de rir histericamente. Ele, sem a menor dúvida,
tinha ido até lá esperando interrogar a velha senhora, mas no entanto era tia Marie
que parecia resolvida a conduzir seu próprio interrogatório. Sacha tinha esquecido o
quanto ela era curiosa a respeito de tudo e de todos. Eles haviam de se dar muito
bem, pensou divertida. De repente tornou-se séria. Onde estava Hortense? No
minuto seguinte esqueceu a criada, ao ouvir com espanto crescente a conversa entre
os dois.
O rosto de tia Marie tinha se iluminado. — Moscou! Ah, sim, quantas
recordações essa cidade me traz!
— Mas claro! Minha Sacha não lhe contou? Ora! Na minha infância vivi na
Rússia alguns anos, nos arredores de Leningrado. Meu pai era engenheiro na corte
do czar. — Sacha contemplou Tor. A dureza que ela observara tantas vezes tinha se
dissipado, como também se dissipara aquele sorriso fácil que não significava nada.
Ele prestava muita atenção à velha senhora, respondendo suas perguntas, fazendo as
suas próprias, paciente e polido. No meio disto tudo Sacha foi esquecida.
Quando se fez uma pausa na conversa, Sacha perguntou: — Onde está
Hortense?
— O quê? — Ambos a olharam como se ela fosse um estranho que subitamente
houvesse interferido na conversa.
— Oh, aquela tola foi a um casamento, de uma parenta distante. Vai ficar muito
sentida por não ter estado com você. Sacha, pegue ali minha caixa de fotografias,
sim, ali no canto, isso, isso mesmo, essa aí. — A velha senhora pousou a caixa sobre
os joelhos e começou a desatar o laço com dedos ligeiramente trêmulos.
— Permite-me madame? — Enquanto ele desamarrava, tia Marie olhou para
Sacha e deu-lhe uma piscada. Tor não conseguiu ver, pois estava com a cabeça
inclinada, mas Sacha conhecia aquela piscada bem demais. Cerrou os lábios. Se ao
menos a velha senhora pudesse saber! Então teve uma idéia. Levantou-se,
procurando aparentar a maior naturalidade, ainda segurando a bolsa.
— Vou preparar café, está bem, tia Marie? Enquanto isto a senhora mostra suas
fotografias para Tor. — Teria a desculpa perfeita para se ausentar por alguns
minutos...
— Mais oui, certainement! Você sabe onde estão as coisas. Hortense fez um
bolo de chocolate antes de sair. Está na travessa azul...
Sacha, concordando e sorrindo, com a bolsa sobre o braço, já estava a meio
caminho da cozinha antes que ela acabasse a frase. Seguiu um pequeno corredor,
para o qual davam a cozinha, o quarto e o banheiro. Fechou a porta. O primeiro
passo tinha sido dado com sucesso. Nunca teria sonhado que teria dado certo. Era
realmente muita sorte. Pôs a chaleira para ferver, e em seguida abriu rapidamente a
bolsa, procurando o papel...
— Quer que eu prepare o café ou corte o bolo? — Sacha voltou-se rapidamente
em direção à voz dolente que vinha da porta e com tanta precipitação que a bolsa
caiu no chão. Tor lá estava, com uma das mãos apoiada no batente da porta e a outra
na cadeira. Antes que pudesse fazer o menor gesto ele se abaixou e levantou a bolsa.
O lápis caiu, fazendo um ruído característico no chão azulejado.
— Oh, sou tão desajeitado. A ponta quebrou. — Estendeu-lhe a bolsa e o lápis.
As batidas do coração de Sacha tinham se acalmado.
— Pensei que você estava olhando as fotografias — ela disse em tom ligeiro.
— Ainda não. Madame Beauvais está escolhendo as que ela quer me mostrar.
Ofereci-me para ajudá-la. Não se preocupe, pus a mesinha ao lado dela e ela está
feliz da vida, mexendo na caixa durante alguns minutos. — Em seguida acrescentou
com suavidade: — Acha então que eu iria perdê-la de vista?
— Não sei. Que importância tem? Se quiser ajudar, o bolo está na prateleira de
cima. Os pratos estão dentro do armário. — Deu-lhe as costas, fingindo indiferença.
Ele não poderia segui-la até o banheiro, se ela fosse até lá. Teve de se controlar para
não rir, ao lhe ocorrer aquele pensamento.
Tia Marie, com muito orgulho, estava tentando praticar o seu russo precário, e,
se Tor se divertia interiormente, foi suficientemente gentil para não demonstrar.
Tomaram café e comeram o bolo de chocolate mais delicioso do mundo. A conversa
não se esgotava e Sacha ouvia com o maior interesse. Para grande surpresa,
descobriu que os detalhes da vida de Tor eram simplesmente fascinantes. Quase
podia visualizá-lo indo para a escola, percorrendo as estradas geladas no inverno,
protegido até os olhos porque o termômetro descia abaixo de zero e não havia
transporte entre a fazenda onde ele morava e a escola. Por pior que ele tivesse se
tornado, ela sabia que ele estava dizendo a verdade, e que de certo modo ele também
regredia no tempo, revendo sua vida devido àquela velha senhora, que não podia
tolerar não saber tudo a respeito de todo mundo.
Agora estavam conversando naquela língua tão pouco familiar e Sacha ouvia
absorta, contemplando-o. Não queria olhá-lo. Durante o tempo todo seu cérebro
compunha laboriosamente um bilhete para Hortense e ela não podia se distrair, mas
não conseguia evitar. Ele inclinava-se para diante e o sol batia nele em cheio,
delineando seu perfil. Examinava as fotografias que a velha senhora lhe passava, e
talvez já conhecesse todas elas — ou fotos que se assemelhavam às dela — mas
olhava cada uma delas com a maior seriedade e comentava, em russo ou francês,
fazendo com que tia Marie risse deliciada, até que as lágrimas lhe escorreram pelo
rosto.
— Você é terrível, rapaz. Não devia permitir que você me falasse desse jeito,
mas você está me fazendo bem.
Sacha já ouvira o suficiente. Encaminhou-se para o banheiro com um plano
perfeitamente delineado. Rasgou a folha de papel em dois, pois ele iria revistar o
banheiro, e provavelmente encontraria o bilhete, o que estava dentro de seus planos.
Quando ele fosse ao banheiro, ela esconderia o segundo, réplica do primeiro, na
cozinha, no lugar em que Hortense sem a menor dúvida o encontraria, logo de
manhã — o bule de café.
Sacha escreveu com muito cuidado e letra bem clara. Era difícil não dar um tom
alarmante ao bilhete, mas ela tentou, sentindo-se bastante satisfeita com o resultado
quando finalmente enfiou a primeira mensagem sob uma pilha de toalhas, dentro do
armário. Colocou a segunda no sutiã e voltou para a sala de estar, com o coração aos
pulos.
Aparentando agir muito a contragosto, Tor consultou o relógio e em seguida
olhou para Sacha. — Acho que está na hora de ir embora — disse.
O rosto de tia Marie contraiu-se como o de uma criança. — Mas vocês precisam
tomar um pouco de vinho antes de partir. Não posso deixar você ir embora sem uma
bebida, Sacha!
— Sim, claro.
A cerimônia levou alguns minutos. O vinho tinto brilhava nos copos, era doce e
delicioso e se fazia acompanhar por biscoitos e petits fours.
— Você não fuma, jovem? — perguntou tia Marie subitamente. Tor alçou a
sobrancelha, divertido.
— Sim. Mas eu...
— Pois então passe um para cá! Gosto de fumar, depois de um bom copo de
vinho! — Riu ao notar a expressão em seu rosto. — Você deve estar pensando que sou
uma megera! Ah! Você ainda não viu nada. Agora diga-me: vocês voltarão em breve
para me ver, não é mesmo?
— Para mim seria um prazer, madame — disse ele gravemente, enquanto
acendia um cigarro para ela e olhava em volta, à procura de um cinzeiro.
Sacha ficou em pé de um salto. — Pode deixar, vi um na cozinha. — Agora tinha
chegado a oportunidade, e ela tratou de aproveitá-la. Quando voltou, alguns
momentos mais tarde, seu plano já tinha sido executado e o sentimento de alívio era
tão forte que ela teve de fazer um grande esforço para se controlar.
Quando finalmente Tor foi ao banheiro, tia Marie inclinou-se a fim de tomar
Sacha pela mão e atraí-la para junto de si.
— Este homem é boa gente. Você vai trazê-lo aqui novamente? Ele me fez sentir
quarenta anos mais jovem!
Sacha engoliu em seco. Sorriu e doeu-lhe ter que dizer uma mentira. — Claro,
vou tentar.
— Não o deixe escapar, ouviu? Não há muitos como ele.
Não, não há, concordou Sacha em silêncio, odiando-se pelo que pretendera
fazer. Mas não havia escolha e tia Marie ficaria por demais chocada se soubesse
quem era na realidade aquele homem encantador.
Finalmente se despediram e já estavam saindo quando Tor apalpou o bolso e
disse algo rapidamente em russo. — Ah, meus cigarros e o isqueiro! Esqueci-os em
cima da mesa. Espere aqui. Não demoro.
Sacha saiu para a frente do prédio e olhou o balcão todo florido. Tia Marie
acenava. Ela não iria muito longe, se saísse correndo, pensou subitamente. Além do
mais o que iria pensar a velha senhora? — Ele esqueceu o cigarro — gritou.
— Ótimo. Estão aqui, sim. — Sacha entrou por um momento na portaria do
prédio e procurou controlar a respiração. Teria ele voltado para dar mais uma
espiada no banheiro? Seria possível que ele não tivesse encontrado o primeiro
bilhete? Ela tivera de usar o lápis de sobrancelha, pois o outro quebrara. Talvez ele
tivesse pressuposto que ela não se incomodaria. Sacha olhou para cima, protegendo
os olhos do sol, como se quisesse saber o que ele estava fazendo. Tia Marie estava
falando com ele e ela ouviu sua resposta, que lhe chegava abafada. Então, para seu
alívio, ele apareceu no balcão, recebendo os cigarros e o isqueiro da velha senhora e
inclinando-se para beijá-la no rosto. Seu gesto foi súbito e inesperado e Sacha
mordeu o lábio. Oh, por que ele possuía aquele encanto, aquela habilidade de fazer
coisas que quase lhe davam um nó na garganta? Voltou-se e viu um Volkswagen
tentar estacionar na vaga entre a motocicleta e um Renault. Vozes infantis se faziam
ouvir em um parque na vizinhança e de longe chegava o ruído abafado do tráfego.
Voltou a olhar para cima; ele desaparecera e tia Marie dizia: — Voltem logo.
Logo ele estava ao lado dela na calçada. Acenou, ele também, e tia Marie olhou-
os se acomodarem na motocicleta. Sacha sabia que a visita deles tinha sido um
acontecimento na vida de tia Marie. Sentiu um ligeiro temor, ao pensar no bilhete e
no que aconteceria.
Ele se manteve em silêncio, ao tomar a estrada de volta para La Valaise.
Pararam para comprar comida, e prosseguiram. Sacha segurou-o com força quando
alcançaram o desvio e preparou-se para enfrentar aquele caminho tão acidentado.
Subitamente, quando já estavam na metade do trajeto e não podiam ver nada além
dos altos barrancos, ele parou. Ela sabia por que, ou pensava que sabia, o que não
era exatamente a mesma coisa.
— Salte — ele disse, e ela assim o fez, tentando lembrar-se de que dentro de
alguns momentos teria de mostrar-se muito chocada e compungida.
— Sabe por que parei? — perguntou. — É alguma coisa errada com o motor? —
ela perguntou inocentemente.
— Algumas vezes sinto uma comichão na mão, de vontade de espancá-la. Eu
disse a você para prestar atenção no modo como age, e o que acontece? — Tirou um
bilhete dobrado do bolso e o abriu, lendo: — Hortense. Vá à polícia e diga-lhes que
sou prisioneira de três russos em La Valaise. Não conte nada para tia Marie.
Sacha. — Tinha escrito embaixo: — É urgente. Acredite em mim.
Mordeu o lábio e abaixou a cabeça. Se pelo menos conseguisse derramar
algumas lágrimas... Mas acabou dando certo. Encarou-o, com os olhos banhados em
lágrimas. — Oh, oh! — Balançou a cabeça. — Não bata em mim, por favor. — Deu um
passo atrás e fingiu estar apavorada.
Ele respirou fundo mas não parecia estar muito zangado. — Não bata em mim
— imitou sua voz e sua expressão. — Se você continuar agindo dessa forma ficarei
tentado, pode crer!
Sacha esperou e pôs-se a encará-lo. Ele tirou o isqueiro do bolso, acendeu e
começou a queimar um canto do papel. Segurou-o e ela teve a impressão de que o
papel acabaria por queimar-lhe os dedos. Ele finalmente jogou fora aquela porção de
cinzas negras.
Então, sem sequer mudar de expressão, ele tirou o segundo bilhete do bolso da
camisa. Agora olhava fixamente o rosto de Sacha e desta vez ela não precisou
representar. Começou a sentir o mundo girar à sua volta e pensou durante alguns
momentos que estava a ponto de desmaiar. Apoiou-se no banco traseiro da moto a
fim de se aprumar.
— Como... — Mal conseguia falar.
— Você acha que sou idiota? — Estava queimando o segundo bilhete e o último
pedaço de papel branco flutuava junto ao solo pedregoso. Ela o contemplou,
fascinada, viu os bordos negros e sentiu que ia passar mal.
— Suba na motocicleta — disse ele.
Ela olhou para ele desesperada. — Não!
— Vamos — disse entre dentes. — Você abusou da minha paciência até o último
limite. Estou avisando, você não vai gostar nem um pouco quando eu perder a
paciência.
— Pouco me importa. — Ela sacudiu a cabeça. E era verdade. Agora nada mais
lhe importava. Sentiu um vazio interior e olhou à sua volta, desesperada,
experimentando a terrível sensação de que aquela história prosseguiria para sempre,
para todo o sempre. Qualquer coisa seria melhor do que aquela realidade. Começou
a andar em direção à casa, pois não havia mais lugar nenhum para ir. Como seria
possível ela fugir quando ele tinha a moto e poderia segui-la, onde quer que ela
fosse?
Com um movimento enérgico ele obrigou-a a encará-lo. — Suba na moto —
disse com suavidade.
O olhar dela cruzou-se com o dele. — É uma pena que tia Marie não possa vê-lo
agora — disse ela. — Ela gostou de você. Não vou subir, não. Irei a pé para casa.
Durante alguns momentos, carregados de tensão, ficaram olhando um para o
outro, em silêncio. Sacha agora conseguia enfrentar seu olhar e ficou a imaginar,
com muita calma, o que ele faria. Naquele momento parecia-lhe que tudo aquilo
estava acontecendo com outra pessoa. Sentia-se distante, quase como em um sonho.
— Você sabe que eu poderia obrigá-la a subir, se eu quisesse, não é?
— Poderia? Então por que não obriga? — Sorriu para ele e notou um brilho em
seu olhar que fez com que seu coração pulsasse mais rapidamente.
Então ele falou. — Admiro sua coragem — disse com toda calma. Não havia o
menor traço de sarcasmo em sua voz. Estava falando a sério.
— Não tenho medo de você — respondeu ela. E era verdade. Ela assumira
alguma coisa que ficava além do medo, depois de tudo o que aconteceu.
— Nem pretendo que você tenha — retrucou, com um ligeiro sorriso. — Vá a pé,
se quiser. Eu a seguirei.
Sacha deu-lhe as costas e começou a percorrer aquele árduo caminho. O suor
começou a escorrer pelo rosto, e ela conseguia senti-lo nas costas e nas pernas. Sua
pele queimava com a intensidade dos raios do sol, e o que ela mais queria era estar
naquela cozinha tranqüila bebendo algo muito refrescante. Ouviu o motor da
motocicleta que pegava, porém não se voltou. Tinha ganho uma pequena vitória, mas
onde é que isto a levara? Ele acelerara o motor, como se estivesse à espera de que ela
caminhasse um pouco mais a fim de dar a partida. Sacha caminhava lentamente, em
parte porque o calor era intenso demais para fazer o contrário, em parte porque
tinha certeza de que isto o deixaria aborrecido.
Estava na hora do chá, ela sentia fome e ficou a imaginar o que haveria para
comer. Ovos? E onde estavam os outros dois? Esperando que ela voltasse, para que
eles pudessem se esconder no andar de cima e jogar xadrez?
Desejou subitamente não ter se mostrado tão altiva. Se estivesse na moto eles já
teriam chegado em casa. Em casa! Sorriu com amargura. Que termo ela empregara!
Ela nunca mais se sentiria em casa, naquele lugar, nunca, nunca mais. Nem mesmo
quando madame Cassel estivesse de volta, e eles tivessem partido para sempre.
Teve de parar, pois entrou um pedregulho em sua sandália. Curvou-se, tirou a
sandália, sacudiu-a e o pedregulho saiu. A moto começou a andar e ela experimentou
uma sensação de pânico, achando que iria ser atropelada. Durou apenas um
segundo, o suficiente para provocar uma estranha sensação em sua espinha. Apertou
o passo instintivamente e voltou-se para ver onde ele estava. Não viu o buraco. Ela o
evitara cuidadosamente, quando estava de carro, porque era bastante fundo. Antes
que pudesse se dar conta do que estava acontecendo caiu dentro dele; sentiu que o
chão se aproximava cada vez mais, estatelou-se e a bolsa lhe escapou das mãos,
caindo na relva ao lado do buraco. Nos primeiros momentos sentiu-se tonta demais
para saber exatamente o que tinha acontecido. O som da moto, que lhe parecia vir de
um lugar distante, aproximou-se e então ela percebeu que Tor a ajudava a levantar-
se. Examinou sua roupa, e viu-se coberta dos pés à cabeça com uma poeira cinza.
Subitamente tudo aquilo lhe pareceu excessivo, duro demais de suportar.
— Oh! — gemeu, e começou a chorar. Ele a puxou para si e passou o braço em
volta dela. Seu rosto apoiava-se no peito de Tor. Sentiu as batidas de seu coração,
lentas e fortes, e surpreendeu-se ao sentir-se tão amparada, quando na verdade era
aquele homem desprezível que lhe dava apoio. Os soluços diminuíram aos poucos e
ele perguntou: — Você se machucou? — Ela sacudiu a cabeça e a voz lhe saiu
abafada:
— Não. Acho que não. Meu vestido...
— Lava-se — ele respondeu, tentando tranqüilizá-la. — É somente pó, não deixa
marcas. — Ele ainda a segurava, só que agora levara a mão a seus cabelos.
Acariciava-lhe a nuca e era tão relaxante, o suficiente para fazê-la sentir-se
sonolenta. Ficou horrorizada ao descobrir que estava gostando e que não queria
afastar-se, mesmo que pudesse — o que, de resto, não era possível, pois ele a
segurava com toda a firmeza, e isto a chamou à realidade. Mais tarde ela analisaria
as razões de seu procedimento, mas não naquele momento.
— Pronto. Melhorou?
— Não.
— Por que não? — A voz dele estava próxima ao seu rosto. Ele falava
suavemente e beijou-lhe a orelha, após fazer a pergunta.
— Porque minhas pernas estão doendo. E eu não disse que você podia me
beijar.
— Psiu, não comece a chorar novamente. Foi só porque você ficou magoada. A
gente sempre beija as crianças quando elas caem e se machucam, você sabe disso. —
Talvez ele estivesse rindo; ela não tinha certeza, mas subitamente achou que tudo
aquilo fazia parte de uma farsa, e repeliu-o com toda a força de que era capaz.
— Por que fez isto? — Ele parecia ter ficado magoado e indignado, e Sacha se
pôs a soluçar.
— Você bem sabe! Os homens são todos iguais! — Passou a mão na orelha e
encarou-o.
— Não somos todos iguais, não! — Olhou para a sua perna, franziu o cenho,
curvou-se ligeiramente e disse: — Levante a saia.
— Como é que você se atreve... — ela começou a dizer e notou que ele ria. Tor
abaixou-se rapidamente e levantou a bainha da saia, mas isto bastou para que ela
tentasse agredi-lo. Ele deu um pulo para trás e começou a rir.
— Por favor, olhe, seu vestido está todo coberto de sangue. É só isso.
Ela então baixou os olhos e notou surpreendida o que ele tinha tentado fazer.
Seu joelho estava ralado, e uma mancha de sangue na bainha branca de seu vestido
era prova das boas intenções de Tor.
— Oh! — Acrescentou em seguida: — Você podia ter dito!
Ele levantou as mãos em um gesto de impotência. — Eu bem que tentei. Vamos,
suba aí na traseira, ouviu? Precisamos fazer um curativo nesse joelho. — Tomou
Sacha pela mão, levou-a até a moto, curvou-se, pegou sua bolsa e então ajudou-a a se
acomodar.
Um minuto depois estavam diante da garagem, atrás da casa. Sacha andava
com todo cuidado, mantendo o vestido afastado do joelho.
— Sente-se na cozinha. Primeiro vou fazer um curativo em sua perna e em
seguida você se troca.
Ela já estava cansada de lançar desafios. Tudo aquilo não a tinha levado a nada
e talvez fosse mais fácil fazer o que ele sugeria. Sentou-se e ficou à espera de que ele
trouxesse o estojo de primeiros-socorros.
— Eu mesma faço — disse-lhe, no momento em que ele se ajoelhava.
Ele levantou os olhos, encarou-a mas não disse nada. Com um pedaço de
algodão removeu as minúsculas partículas de terra do ferimento e ela o olhou,
mordendo os lábios a fim de controlar os gemidos de dor. Finalmente não conseguiu
mais se dominar. Ele a encarou e sorriu.
— Você está se divertindo, não é mesmo? — ela acusou-o. — Posso dizer, pela
expressão de seu rosto.
— Não. Mas... — Ele hesitou e levantou novamente os olhos. — A culpa é sua.
Você quis vir andando, portanto... — Deu de ombros.
— Eu só virei a cabeça porque pensei que você ia tentar me atropelar —
retrucou ela, não querendo deixá-lo sem resposta. Conseguiu atingir o alvo. Viu seu
rosto mudar e tornar-se sombrio, enquanto ele a encarava. Parou de executar o que
estava fazendo.
— Você pensou isto? Você pensou isto de fato? — perguntou. Havia
tranqüilidade em seu rosto e teria sido melhor se ele tivesse gritado, pois ela sentiu
que nascia dentro dele uma raiva explosiva. Arrependeu-se de ter dito aquelas
palavras.
Engoliu em seco. — Não — respondeu, hesitante. — Só por um momento. Não
pensei nisto a sério. Desculpe.
— Ainda bem. — Ele ainda estava zangado. Estava zangado de verdade, quase
pálido, e ela não conseguia saber por que suas palavras o tinham deixado naquele
estado. O resto do curativo foi feito em um silêncio que ela mal ousava romper. Seu
coração batia mais rápido do que de costume, e ela novamente ficou admirada ao
notar a mudança que voltava a se operar nele e o tornava tão diferente do que ele
tinha sido no apartamento de tia Marie.
Assim que ele terminou ela levantou-se. — Obrigada. Agora vou me trocar. —
Ele deu-lhe as costas sem responder e foi até a pia lavar as mãos. Sacha hesitou por
um momento e prosseguiu em direção ao quarto.
Pôs uma blusa azul sem mangas, calças que combinavam, lavou o vestido
branco na pia do banheiro e levou-o para pendurar no varal. Ao voltar para dentro
de casa não sabia o que fazer. Tor estava ocupado na cozinha e ela não queria ir lá
enquanto ele não saísse. Mas ele sairia? Ela estava com fome e com sede, porém seu
orgulho não lhe permitiria pedir o que quer que fosse a ele.
O chão estava sujo, coberto com fósforos usados e papel de bala. Sacha olhou à
sua volta. Se soubesse onde estava a vassoura, teria algo com que se ocupar.
Conseguiu finalmente achá-la e também a pá. Começou a varrer e ficou muito
entretida em sua tarefa. Tinha quase terminado quando algo a fez levantar os olhos.
Notou que Tor a contemplava, apoiado no batente da porta da cozinha.
— Preparei um pouco de chá — disse ele. — Você não está com sede?
— Sim, mas...
— Pois então venha buscar. — Ele deu-lhe as costas sem esperar por uma
resposta. Sacha pôs a vassoura e a pá junto à parede e seguiu-o. Sentou-se
docilmente à mesa, achando melhor não falar, mas suportando com dificuldade o
silêncio opressivo que se fizera. Então, incapaz de controlar-se por mais tempo,
explodiu: — Estava varrendo o chão. Parecia tão sujo...
Ele acendeu o cigarro e pôs o isqueiro sobre a mesa. — E daí?
Ela encarou-o novamente. — Achei que deveria lhe dizer.
— Agora você disse. — Foi até a janela e deu-lhe as costas, com a xícara de chá
em uma das mãos e o cigarro na outra. Ficou lá na postura de um soldado, com as
costas muito eretas e a cabeça aprumada. Sacha começou a compreender que ela não
o conhecia, que ela não sabia nada a respeito daquele homem. Veio-lhe em seguida
um pensamento perturbador: por que haveria de querer conhecê-lo?

Esquentou durante a tarde, e a temperatura tornou-se opressiva. Sacha perdera


completamente o apetite, e conseguiu comer apenas um pedaço de pão
acompanhado de queijo e uma ou duas azeitonas. Tor não fez o menor comentário,
enquanto comia omelete, pão e queijo e tomava vinho. Ela ficou imaginando o que os
outros dois homens estariam fazendo. Ouvira vozes enquanto lavava o vestido e era
esquisito, pois tivera a impressão de que eram mais de dois. Podia ter sido o rádio.
Notou que Tor também se ressentia do calor. Pôs a camisa para fora da calça e
desabotoou-a, assim que acabou de comer. Sacha pegou seu prato e levou-o para a
pia juntamente com o dela. Havia muita água quente na panela e ela não sabia o que
fazer do tempo.
Pensou como seria bom colocar um maiô e a idéia levou-a a sorrir
involuntariamente. O que ele diria se ela o fizesse? Ah, como seria bom nadar! Há
um ano que não via o Mediterrâneo, mas tinha muito presente na memória aquelas
águas azul-esverdeadas, acariciantes, claras como cristal...
— Quero ir nadar — disse subitamente, e ficou muito surpreendida consigo
mesma. Não sabia o que ia dizer, até que finalmente a frase saiu.
— Ah, quer mesmo? — Ele tinha afastado a cadeira e apoiava os pés no tampo
da mesa. Tentava fazer círculos de fumaça. Ela o olhou por um momento,
imaginando como o poderia ter considerado um cavalheiro na casa de tia Marie.
Uma sensação de desprezo apoderou-se dela. Pensar que tinha gostado de ficar em
seus braços quando caíra! Sentiu-se ruborizada ao pensar naquilo, e a pele da nuca
ardeu no momento em que ela recordou seu toque acariciante.
— Sim, quero. — Falava em tom firme. — Está quente demais para fazer
qualquer outra coisa. E não imagino que vou ter permissão para passear em Cannes
e gozar a vida noturna, não é mesmo?
— Como você é perspicaz! — Ele examinava o polegar esquerdo
cuidadosamente e Sacha teve de se controlar ao máximo para não dar um pontapé
nas pernas da cadeira onde ele estava sentado. Ele, por algum motivo, ainda estava
emburrado. Ela não tinha certeza se isto se devia a sua observação sobre a
possibilidade de ser atropelada por ele ou a alguma outra razão — e fazer-lhe
perguntas seria a última coisa no mundo que ousaria.
— Você acha que merece ir? — disse ele subitamente.
— Não. — O desafio brilhava nos olhos de Sacha. — Só sei que se você não
estivesse aqui e estragasse minhas férias, eu teria podido ir nadar quando bem
entendesse, sem ter a menor necessidade de pedir.
O rosto de Tor tornou-se tenso e ela imaginou se ele ainda estava zangado.
— Muito bem. — Olhou o relógio. — Iremos.
Não acreditou nele. Não se mexeu, apenas contemplou-o em silêncio. Ele aos
poucos abandonou sua posição reclinada e ficou de pé, muito mais alto do que ela,
fazendo a sala parecer muito menor do que era.
— Vou pegar a motocicleta, ou prefere ir a pé?
De lá até a estrada principal andava-se uns dois quilômetros, e mais cinco
minutos até a praia. O que era preferível: andar com ele, enfrentando um silêncio
pesado, ou agarrar-se a ele, na garupa da moto?
— Vamos andando. — Lembrou-se a tempo de seus maus modos. — Por favor.
— Como quiser. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente. Ela não se movia,
acreditando que tudo aquilo não passava de sua imaginação. Ele então acrescentou
suavemente: — Você costuma nadar nua?
A pergunta foi tão surpreendente que ela sentiu o sangue subir-lhe ao rosto. —
Não!
— Então por que não vai pegar o maiô?
— Oh, sim. — Saiu rapidamente da sala, sentindo-se tola e aborrecida. Ele a
seguiu após alguns momentos e ela ouviu-o no outro quarto dizendo algo para os
outros dois homens. Escutou suas vozes, que pareciam calmas e distantes. Ele então
fechou a porta e seus passos se aproximaram. Sacha dirigiu-se às pressas para a
mala, que ainda não fora desfeita, e procurou o maiô branco e uma toalha. Trancou a
porta, tirou a roupa, pôs o maiô, tornou a vestir a blusa e a calça e desceu as escadas.
Ele estava à sua espera na porta, com um paletó de brim azul no braço e uma
expressão de aparente desinteresse no rosto. Sacha subitamente sentiu-se muito
infeliz. A despeito de tudo, ele poderia ser boa companhia. Afinal, tinham se passado
apenas poucas horas desde a visita a tia Marie. As coisas até poderiam se tornar
divertidas se ele deixasse de lado aquele ar ausente e frio.
Enquanto partiam, ela perguntou-lhe: — Você não vai nadar?
— Não. —A resposta, monossilábica, foi desencorajadora, mas ela insistiu.
— Por que não?
— Porque prefiro.
— E você pretende ficar sem falar na ida e também na volta? — perguntou ela,
encorajada pelo calor, pela noite e por milhares de outras coisas que ela não
compreendia.
— Acho melhor assim. Cada vez que falamos um com o outro, brigamos.
Portanto... — ele apertou o passo e ela teve de andar depressa, a fim de poder
emparelhar com ele — ...se eu ficar quieto, não há brigas. Daí então você fica feliz.
Ela não poderia lhe dizer como se sentia infeliz naquele momento. — Está bem
— disse. — Obrigada por me comunicar. — O sarcasmo provavelmente não atingiu o
alvo, pois ele não esboçou a menor reação.
Depois disto eles não trocaram mais uma palavra. Era tão esquisito, pensou,
percorrer a paisagem mais bela da França em busca de uma praia escondida onde
pudesse nadar. Se pelo menos fosse com o homem certo, a coisa teria sido romântica
demais para ser colocada em palavras. O homem certo. Quem era ele? Com certeza
não seria Nigel — Nigel, o homem a quem ela queria esquecer, por isso viera até ali.
Bem, pelo menos isto tinha dado certo. Sim, pensou, o melhor remédio para um
coração partido é ser feita prisioneira de três russos loucos. Sua exuberância natural
aos poucos ia voltando. Por que então ele se recusava a falar? Muito bem. Pois então
ela pensaria. Tentou pensar em Nigel. O que ele estaria fazendo agora? Ele sabia
onde ela se encontrava, e provavelmente imaginou que ela estivesse se divertindo
como nunca, conhecendo pessoas e indo a festas. Teria sido quase engraçado se não
fosse tão horrivelmente falso. Nada poderia estar mais afastado disto do que aquilo
que ocorria naquele momento: ser vigiada dia e noite por aquele urso russo. Por
aquele homem orgulhoso, imprevisível, encantador e duro como o aço.
Sacha arriscou olhá-lo de soslaio. Nunca tinha conhecido um homem de
aparência tão dura, tão inconfundivelmente forte. Então começou a divagar — talvez
ele não soubesse nadar. Mordeu o lábio, a fim de não deixar escapar uma risada.
Teria sido realmente engraçado se aquele campeão de caratê fosse incapaz de
qualquer outra coisa que não ficar brincando no raso. Que outras razões teria ele
para recusar a oportunidade de nadar em uma noite tão quente, quando a lua
brilhava como um globo de prata no céu, iluminando o caminho, e o mar se
apresentava como um leito morno e acolhedor? Não perguntaria, não ousaria
perguntar, mas logo saberia a resposta. Só que, naquele momento, percorrendo
aquela trilha pedregosa, ela ainda não conseguiria imaginar o que estava para
acontecer.

A praia era minúscula, rodeada por rochedos, e se alguém não soubesse de sua
existência, seria incapaz de encontrá-la.
Desceram por uma pequena ladeira rochosa e Tor olhou em volta, mas sem
dizer nada. O momento mais difícil do passeio tinha sido cruzar a estrada principal,
de tráfego tão movimentado, e sempre pior à noite, devido à velocidade com que os
carros viajavam. Ele a tomara ligeiramente pelo braço enquanto atravessavam
aquela, mas retirara a mão no momento em que chegaram ao outro lado.
Ao chegar à praia ele falou: — Sentarei ali. — Apontou para uma pedra disposta
de tal modo que possibilitava um bom descanso para as costas. — Pode ir nadar que
eu ficarei por aqui, de modo a poder vê-la. Compreende?
— Até demais — ela respondeu. — Você tem a capacidade de se fazer
perfeitamente claro mesmo quando fala uma língua diferente da sua. — Mas se ela
tinha esperado provocá-lo, e disto não tinha certeza, ele não deu a menor
demonstração de ter sido atingido. Simplesmente sentou-se, encostou-se na pedra e
procurou o maço de cigarros.
Sacha tirou a blusa e a calça, dirigindo-se para o mar sem olhar para trás.
Esguia, bonita, de pernas muito compridas, vestia um maiô branco que quase
brilhava à luz da lua. Não tinha a menor consciência do quanto estava sendo atraente
naquele momento, e muito menos do fato de que aquele homem chamado Tor a
olhava por achar difícil demais deixar de contemplá-la.
A água envolveu suavemente seus pés, pernas e cintura, e ela estremeceu, mas
de prazer, não de frio, pois era maravilhosa, como nunca o fora. Com um pequeno
suspiro mergulhou e então ficou de costas, flutuando e olhando o céu, escuro e
cravejado de pequenos diamantes. Seu cabelo abriu-se como um leque e ela
lamentou o tempo gasto na cabeleireira. Mas isto agora não tinha a menor
importância.
Ficou de bruços e deu algumas braçadas preguiçosas. Um tufo de algas
marinhas roçou seus braços, em uma carícia molhada, e ela estremeceu.
Então viu o iate e parou de nadar, enquanto o olhava invejosamente. Estava
ancorado a meia milha de distância, feericamente iluminado, e a música, que lhe
parecera tão distante, agora podia ser ouvida com clareza. Até mesmo reconheceu a
canção, do repertório dos Beatles, ligeiramente triste: Yesterday. Havia gente a
bordo, possivelmente dezenas de pessoas, divertindo-se, bebendo, dançando,
conversando, rindo.
Sacha olhou para trás, imaginando se ele também tinha visto o iate. No
entanto, o ângulo formado pelas pedras o escondia. Foi neste momento que uma
idéia começou a germinar. Ela seria capaz? Conseguiria nadar até lá? Seria possível?
Subitamente ficou muito quieta dentro da água, batendo pernas e braços com toda
lentidão a fim de poupar toda sua energia. O plano precisaria ser muito bem
avaliado. A distância era enganadora, quando se estava no mar, principalmente ao
clarão da Lua. Aquela meia milha poderia ser muito mais. Ficou pensativa, olhando
as luzes e seu reflexo nas águas escuras e paradas, enquanto o barco adernava muito
ligeiramente. A música mudou. Agora se ouvia Bridge over Troubled Water, e isto
bastou para fazê-la decidir-se. Era tudo de que ela necessitava. Respirando fundo,
Sacha deu algumas braçadas em direção ao iate branco, seu porto na tempestade em
que ela se encontrava.
Ouviu uma voz distante que a chamava da praia e olhou para trás.
— Volte! — gritou Tor. Acenou para ele, como se tivesse realmente a intenção
de voltar, e em seguida mergulhou, nadando embaixo da água até sentir que seus
pulmões estavam prestes a estourar. Agora ela estava muito mais longe dele, o que
aliás, não importava tanto, pois ele não sabia nadar.
A música agora soava muito mais alto, ressoando através da água, difundindo-
se no ar parado e quente. Era belo e consolador ouvi-la, pois seus braços já estavam
ficando cansados e a música a animava a prosseguir. Ficou imaginando o que Tor
estaria fazendo naquele momento e fez uma pausa, olhando para trás. Ele, porém,
não estava lá. Sacha sentiu um formigamento na nuca, como se fosse um
pressentimento de perigo, e bateu somente as pernas, a fim de descansar os braços
por um momento. Então viu o mar se movimentando entre ela e a praia, observou a
cabeça escura e brilhante, a espuma branca — e no mesmo momento certificou-se de
onde ele estava.

CAPÍTULO V
Em pânico, Sacha pôs-se a nadar rapidamente em direção àquele som e àquelas
luzes acolhedoras, e seu coração quase arrebentava de tanto esforço. Agora, no
entanto, já estava mais próxima. Suficientemente próxima para ver um casal na
ponte do navio beijando-se. Eram duas figuras pequenas perdidas em um mundo só
seu. Ela respirou fundo, com uma idéia fixa a lhe ocupar a mente: prosseguir,
prosseguir sempre...
Algo roçou-lhe o braço, mas não eram algas marinhas. Sentia-se exausta
demais para gritar. A voz de Tor aproximou-se de seu ouvido; ela sentiu o corpo dele
ao lado do seu, na água, e ouviu-o dizer:
— Se você gritar, eu lhe dou um soco e a deixo inconsciente. Está me ouvindo?
— A mão dele pousara em seu pescoço; sabia que ele podia cumprir sua ameaça, se
quisesse, e ele não hesitaria, se tivesse de fazê-lo.
Seus pulmões cansados aspiraram o ar, enquanto ela se sentia afundar. Neste
mesmo momento foi puxada para cima e ouviu a recomendação: — Deite de costas.
— Não — ela murmurou. — Eu quero chegar até lá. — Fez um movimento com o
braço a fim de afastá-lo, mas era como empurrar uma muralha de pedra.
— Pare de resistir. Deite de costas, vou levar você para a praia. Flutue.
Ela sabia o tempo todo que de nada adiantava lutar, mas algo lhe dizia que
devia continuar tentando. Agora, no entanto, o esforço era demasiado. Tinha tentado
e falhado novamente, e desta vez já não tinha mais energias para insistir. Ficou de
costas, sentiu o corpo dele próximo ao seu, as mãos dele sob seus braços, e
permaneceu passiva enquanto ele agitava os pés. A força lhe voltou gradualmente.
Sacha tentou desprender-se do braço dele e nadar sozinha. Estavam já a alguma
distância do iate, a música chegava até eles abafada e de certo modo triste, e ela
afastou suas mãos.
— Deixe-me nadar sozinha. Saia de perto de mim.
Ele se afastou um pouco, nadando ao lado dela, e aproximaram-se da praia. Ela
agora nadava com a maior dificuldade. Cada movimento das pernas custava-lhe
tamanho esforço que chegava a doer; seus braços estavam em fogo e todas as fibras
dos músculos protestavam. Mas ela jamais permitiria que ele notasse isso. Inspirar,
expirar, inspirar, expirar; era quase um cântico enquanto eles se aproximavam da
costa. Finalmente ela sentiu a areia sólida sob os pés. Andou com dificuldade,
tropeçou e finalmente deixou-se cair exausta na areia branca e fina, deitando-se de
costas.
Imediatamente após, Tor debruçou-se sobre ela. Sacha sentiu seu corpo rijo
enroscando-se no dela. Seu peso era tamanho que retirava quase todo o ar de seu
corpo exausto.
— Deixe-me... — Isto foi tudo o que ela conseguiu dizer, antes que os lábios dele
esmagassem os seus, com um beijo selvagem, faminto e brutal, que acabou por
consumir o seu fôlego. Ela ficou imensamente espantada, totalmente indefesa, por
debaixo dele. Foi como da outra vez, no quarto; ela estremeceu, ao lembrar-se disso,
e tentou empurrá-lo.
— Não, Tor, pare... — Como resposta, ele lhe agarrou os cabelos, de modo que
sua cabeça não pudesse se mexer, e beijou-a novamente, com toda violência.
A excitação começou a nascer dentro dela. A despeito de tudo, sentiu um calor
traiçoeiro espalhar-se por seu corpo enquanto o toque dele queimava como fogo.
Estavam ligados um ao outro num abraço que prosseguiu por muito tempo, até que
ele teve de parar para respirar. Um resíduo de lucidez apoderou-se de Sacha; ela
abriu os olhos e soltou um suspiro entrecortado e prolongado.
Sentia-se fraca, mas teve suficiente energia para levantar a mão e cobrir a boca.
Enquanto ele tentava retirá-la, ela murmurou: — Tor, você está me machucando...
por favor...
Ele saiu de cima dela e levantou-se, pondo-a também de pé com um movimento
enérgico. Estava arquejante e a voz saiu áspera, o sotaque mais forte do que nunca,
enquanto dizia:
— Gostaria de bater em você!
Sacha livrou as mãos e friccionou o punho.
— Não era isso o que você estava tentando fazer agora há pouco. — Sua voz
tremia.
— Não. — Ele passou os dedos pelo cabelo molhado. — Agora vá se vestir.
— Mas ainda não sequei... — ela respondeu.
Ele a empurrou, com brutalidade, para o lugar onde ela tinha deixado as
roupas. Sua camisa e as sandálias estavam na areia, ao lado deles. Ele pegou a toalha
e atirou-a em cima dela.
— Não fale comigo. Não me responda. Limite-se apenas a se enxugar — ele
ordenou. — Você já fez o suficiente, hoje à noite. Acredite em mim: você se
arrependerá, se tentar opôr-se a mim, agora. — Ele parecia um gigante bronzeado,
tomado de raiva, capaz de qualquer coisa, e um arrepio de medo percorreu o corpo
de Sacha. Todo o verniz da civilização tinha se desprendido: por debaixo dele estava
o homem primitivo que a tinha atacado tão brutalmente. Sua boca e o corpo todo
ainda doíam, devido àquele abraço. Subitamente ela se deu conta de que ele também
ficara afetado, pois não conseguia ficar parado. Andava de um lado para outro,
vibrante, pronto para agir, e parecia uma mola carregada de tensão.
O pulsar de seu coração estava começando a se acalmar. Enxugou-se, contente
por fazer alguma coisa que a fizesse parar de pensar. Esfregou o cabelo, jogando-o
para trás, curvou-se para secar as pernas e os pés, quase perdendo o equilíbrio. Em
seguida largou a toalha, pegou a calça e a enfiou por cima do maio molhado.
Espirrou e começou a tremer, pois o ar estava mais fresco. Ele então lhe disse:
— Tire o maiô. Vamos ter de andar um bocado.
— Não com você aqui.
— Ficarei de costas. Faça o que eu digo.
Ela engoliu em seco e escondeu-se atrás das pedras, tirando rápido o maiô
ensopado. Ele ficou de costas para ela, olhando para o mar, inquieto. Ela pôs a blusa
e a calça e veio em direção a ele.
— Estou pronta. — Ele voltou-se lentamente.
— Então podemos ir embora.
— Você não quer se secar? — Na verdade, ela não se importava nem um pouco
com isso. Tudo o que ela conseguia sentir naquele momento era um grande
desapontamento por ter fracassado em sua tentativa de chegar ao iate. Isto e
também uma espécie de consternação crescente pelo que tinha acontecido na praia,
à beira do mar. Pois havia algo que não podia mais ser negado. Sabia que ele tinha
feito tudo aquilo para puni-la. De certa forma, os beijos representavam para ele a
única alternativa à violência física. Para ela, porém, haviam despertado algo que ela
acreditava ter morrido, depois que rompera com Nigel: uma consciência de si
própria como mulher, uma consciência de seus sentimentos.
— Não, eu me enxugarei enquanto estivermos caminhando. Vamos. — Ele
pegou a camisa e a jaqueta, pôs a faca, as chaves e a carteira no bolso traseiro e
enfiou o relógio no pulso. Sacha olhou para ele. Entre decidir ir buscá-la dentro do
mar e o ato de fazê-lo, ele tivera o cuidado de se livrar das coisas que podiam se
estragar ou se extraviar. E ela que enfiara na cabeça que ele não sabia nadar!
Deu a toalha para ele e começou a subir por entre as pedras, deixando que ele a
seguisse. Carregava o maiô numa das mãos e chegou até a estrada facilmente, apesar
de que agora lastimava não terem vindo de motocicleta.
Agora sentia menos frio, depois de ter tirado o maio molhado, e, se pelo menos
sentisse mais força nas pernas, o caminho de volta não seria tão mau. Pararam na
beira da estrada. Os carros passavam a toda hora, em ambas as direções, iluminando
a estrada escura. Passavam a mais de cem quilômetros por hora e havia de tudo:
carros esporte, elegantes Rolls-Royces e até mesmo os inevitáveis traillers com
famílias inteiras, todos com o mesmo destino: chegar a algum lugar. Ela ficou
parada, consciente do homem a seu lado, mas sem olhar para ele. Sentia-se muito
cansada, quase doente, e subitamente teve medo de não conseguir atravessar a
estrada.
— Agora, rápido. — Ele quase que a arrastou, e pararam na alameda central,
perigosa e estreita, a fim de esperar um Peugeot passar a toda velocidade. Ao
chegarem do outro lado, ele retirou a mão. Ele já estava zangado mesmo antes de
eles saírem de casa. Agora, então, como é que se sentiria? Pior, sem a menor dúvida,
e Sacha começou a ter novamente uma sensação de pesadelo. Será que tudo aquilo
teria fim?
Parecia, a cada hora que passava, que a liberdade se tornava mais remota do
que nunca.
Toda sua ambição desaparecera. Nadar até o iate tinha sido sua última
tentativa de fuga, apesar de ele não saber disto. Não conseguia andar depressa, e teve
certeza, do jeito como ele olhava para trás e a esperava, de que ele estava pensando
que agia de propósito. Sentia um grande peso nas pernas, depois de ter flutuado na
água do mar, e a única coisa de que se sentia capaz era andar compassadamente, em
direção à casa, que havia mudado radicalmente em apenas dois dias e nunca mais
seria a mesma.
Um coelho atravessou correndo a trilha e desapareceu por entre os arbustos
que a rodeavam. Ao longe, vindo da estrada, ouvia-se o som de uma buzina,
prolongado e impaciente. E foi tudo. O resto do percurso foi feito em silêncio.
Quando chegaram em casa, uma coisa estranha aconteceu. No momento em
que Tor fechava a porta, um dos homens chamou por ele, no andar de cima. Tor
olhou para Sacha, estendeu-lhe a toalha e disse: — Espere aqui. — Subiu as escadas
rapidamente. Ela ficou parada, ouvindo, escutou vozes e neste momento a porta foi
fechada, abafando o som. Era inacreditável, mas parecia que ele estava falando em
inglês. No entanto, nenhum dos outros dois era capaz de se exprimir nesta língua.
Ela foi até a cozinha, esquentou o leite e misturou-o com chocolate. A dor que
sentia internamente era em parte causada pela fome, e ainda assim não queria tomar
nenhum alimento sólido.
Depois de pôr a toalha e o maiô para secar, sentou-se à mesa e tomou o
chocolate. Em seguida ficou à espera de que Tor descesse. Vários minutos se
passaram sem que ele desse sinal de vida. Encaminhou-se para o quarto, cansada
demais para se importar com o fato de que lhe havia desobedecido, cansada demais
para tomar conhecimento de que ele iria ficar novamente zangado. Dificilmente ele
poderia agir pior do que até aquele momento.
Quando despertou não sabia onde estava. Ainda estava soluçando, após um
terrível pesadelo em que se vira completamente perdida numa terra estranha,
povoada por absurdas criaturas semelhantes a gnomos, que desapareciam se se
olhava para elas. O sonho fora tão real e vivido que ela se sentou, levando a mão a
sua fronte escaldante, imaginando que tinha ficado louca. Sua respiração acelerou-
se, enquanto lutava por voltar ao normal.
Então se lembrou. E a realidade era ainda pior do que o sonho. Olhou para a
outra cama no quarto, e Tor lá estava, olhando-a. Sacha cobriu a boca, a fim de não
deixar escapar uma exclamação de horror. Viu-o mexer-se e perguntar: — O que há?
— Nada. — Como ele fazia menção de sentar-se, disse: — Não, por favor, deixe-
me.
De repente ele se pôs de pé. — Não ia tocar em você. Ia era lhe trazer uma
bebida. Você está precisando. Você estava falando, enquanto dormia.
— Prefiro eu mesma buscar. Por favor, deixe-me.
— Muito bem. Há um pouco de rum no armário. Acalmará seus nervos.
Ela desceu descalça, acendendo todas as luzes. O relógio marcava quatro horas
e ainda estava escuro. Enquanto cruzava a sala de estar em direção à cozinha, ouviu
um barulho fora e gelou. Então olhou para a porta da frente, e estava destrancada.
Além disso, estava sendo aberta, muito lentamente.
Gritou por Tor, mas só mais tarde se lembrou de ter feito isto, e começou a
subir as escadas, correndo. Já estava na metade e Tor descia dois degraus por vez.
Ele a segurou e protegeu-a com o corpo. Então um jovem alto entrou e disse com um
sotaque inconfundivelmente americano:
— Alô! Por que todas essas luzes? Estavam sentindo falta de mim?
Ela ouviu Tor praguejar em russo. Não sabia falar russo, mas sabia reconhecer
quando alguém praguejava. O jovem americano contemplou-a, levantou as
sobrancelhas e disse: — Fiz algo de errado? Fui apenas dar uma espiada lá fora.
— Você quase fez Sacha morrer de susto — disse Tor. — Apenas isto.
Sacha sentou-se nas escadas. Suas pernas, de tão moles, não a teriam levado
nem para cima nem para baixo, e aquele lhe parecia o melhor lugar para ficar. Pelo
menos o mistério das vozes estava resolvido, mas deixava perguntas muito mais
urgentes sem respostas.
— Sinto muito, querida. De verdade. Não vai nos apresentar, Tor?
Tor voltou-se e olhou para ele. — Sacha, este aqui é Wayne O'Malley. É dos
Estados Unidos. Wayne, a senhorita Sacha Donnelly.
O americano adiantou-se e estendeu a mão. Tinha vinte e tantos anos, era tão
alto quanto Tor, de aparência agradável, com cabelos castanhos e encaracolados, e
olhos sorridentes.
— Sinto muito que a gente tenha se conhecido dessa forma, meu bem. Tenho
que dar muitas explicações, mas não sabia que isto ia acontecer às quatro da
manhã...
Tor interrompeu-o.
— Eu também acho que agora não é a hora apropriada, hein, Wayne? Ela está
cansada. Todos estamos cansados, não é?
— Espere um momento — disse Sacha. — Foi a primeira vez que ela falou,
desde que tinha gritado pelo nome de Tor em meio a seu pânico, e os dois homens
pararam de falar para olhar para ela. — Acho que agora é hora, sim — disse. — Se
vocês estão pensando que vou voltar para a cama... — Interrompeu-se.
Tor olhou para ela e franziu o cenho. Tinha posto um calção e uma camiseta
branca de meia que ressaltava mais do que nunca seus ombros largos. Estava de pés
descalços; ele mal tivera tempo de se calçar, do modo como ela tinha gritado.
— Você precisa de um conhaque. Venha, sente-se nesta cadeira. Não fique aí,
nessa escada fria. Acabará apanhando um resfriado. — Ele fez menção de tomá-la
pelo braço e ela se desviou. Desceu vagarosamente a escada, sem ter muita
consciência de sua aparência naquele momento. Seu cabelo estava todo
desgrenhado, após o banho de mar, o rosto denotava palidez e cansaço, os olhos
arregalados exprimiam o susto. Era uma figura frágil e delicada, andando com
dignidade em direção à cadeira de balanço. Estava descalça, com o paletó do pijama
completamente amarrotado, e no entanto havia nela uma feminilidade
inconfundível, que fez com que o olhar dos dois homens não se despregasse dela.
Assim que ela se sentou, Tor foi até a cozinha e voltou com três copos e uma garrafa
que ele pousou sobre a mesa.
Enquanto ele assim procedia, Sacha ficou em silêncio, com as mãos pousadas
sobre os joelhos, pensando em tudo o que ela ainda teria de suportar e se teria forças
para tanto. Tor estendeu-lhe um copo de rum.
— Para mim é muito — disse ela calmamente.
— Tome. Não há de lhe fazer mal. — Acrescentou em seguida, enquanto ela o
olhava: — Por favor, Sacha. — Já não estava mais zangado. Em seus olhos não havia
mais o menor traço da fúria anterior. Parecia quase amável, o cabelo estava todo
espetado, devido ao modo como o tinha enxugado após ter entrado no mar, e seu
rosto estava azulado, pois tinha uma barba muito espessa. O coração de Sacha
acelerou-se ligeiramente.
— Saúde, Sacha — Wayne levantou o copo. — Posso chamá-la assim? Sinto
como se a conhecesse e tenho algo a lhe dizer. Será em poucas palavras, porque
estamos no meio da noite e as explicações podem esperar até amanhã. Fiquei com
seu passaporte, mas vou devolvê-lo. Tivemos de pegá-lo e sinto muito. É que
precisávamos saber se você não estava mentindo a respeito de sua identidade.
Ela olhou para ele, mas não disse nada. Até aquele momento, as coisas não
faziam sentido. — Era tudo por causa do velho que estava aqui. Como é que você o
chamava? — Olhou para Tor. — Serge? — Tor fez que sim.
— Bem, o nome dele não é Serge. É Igor Maievsky, professor Maievsky. É um
dissidente e abandonou o país há dez dias... — Sacha, no entanto, não prestava mais
atenção. Agora sabia onde tinha visto aquele rosto. Fora nos jornais, há mais ou
menos uma semana, quando um importante cientista russo desaparecera por ocasião
de uma conferência em Berlim Oriental. Simplesmente sumira e ninguém sabia onde
ele estava, mas agora ela sabia.
— Tor e Janos ficaram aqui protegendo-o, só que Janos cometeu um pequeno
erro. Foi tomar um banho de chuveiro e o velho lembrou-se de que queria alguns
charutos. Saiu correndo ao encontro de Tor porque ouviu o barulho da moto. Foi
então que ele viu você, e você o viu.
Sacha acabara de tomar um gole de conhaque. A sala começou a girar e ela
pousou rapidamente o copo sobre a mesa. Ouviu a voz de Wayne, porém ela chegava
de muito longe. O zumbido em seus ouvidos aumentava cada vez mais e a última
frase que conseguiu ouvir foi: — Ela está desmaiando. — Não sabia quem a dissera e
pouco lhe importava.

Estava deitada na cama, sentindo um pano úmido que limpava seu rosto, até
que ela o afastou assustada. Tor estava sentado na cama, debruçado sobre ela,
cuidando dela. Desviou o rosto e rezou para que ele se fosse e a deixasse sozinha.
Seus olhos encheram-se de lágrimas.
— Sacha? — ele falou com ternura. — Você já voltou a si? — Ela não respondeu.
Ele tocou em seu rosto com todo cuidado e voltou-o em sua direção. — Você
desmaiou e agora está na cama. Não está precisando de nada?
Ela balançou a cabeça e ele ficou de pé. — Vou indo. Durma bem. — Saiu
imediatamente após e ela ficou lá, muito quieta e parada.
Sentia-se tão cansada e a tal ponto exausta que mal conseguia pensar. Uma
coisa, no entanto, parecia-lhe clara e definida: Tor não era um criminoso. E os
outros, muito menos. Tudo se esclareceu para ela com uma rapidez surpreendente.
Então recordou o toque dos lábios de Tor nos seus e aquela sensação deliciosa
apoderou-se dela novamente. Foi com esta lembrança que mergulhou no sono.

Os cinco estavam tomando o café da manhã e Janos não era assim tão mau
como ela temera a principio. Tor e Wayne estavam preparando ovos com presunto e
cogumelos recém-colhidos. Não permitiram que ela fizesse o que quer que fosse.
Estava sentada à mesa como uma rainha, com o gentil professor a seu lado. Tor
traduzia tudo o que ele dizia e a atmosfera tornara-se diferente. Antes a tensão
estivera presente em todos os momentos. Agora se dissipara. Em seu lugar
sobrevieram a calma e algumas risadas.
Tor era ótimo cozinheiro. Isto ficara evidente para Sacha assim que ela chegara,
e ele parecia gostar do que fazia. Ela comeu muito bem, sentindo fome de verdade,
depois de tudo o que acontecera.
Ela tinha penteado os cabelos para trás e eles lhe caíam pelas costas, lisos e
brilhantes. Usava bermuda branca e uma blusa de algodão azul-escura, sem mangas,
que ressaltava a cor de seus olhos. Se por acaso seu olhar encontrava o de Tor, havia
algo nos olhos dele que trazia calor para seu rosto. Aquela raiva terrível se dissipara
e agora ele estava relaxado, voltara a ser um homem diferente.
Quando terminaram o café da manhã, Wayne disse: — Podemos dar um passeio
logo mais, Sacha? Acho que há muitas explicações a serem dadas e Tor pensa que
você não vai acreditar nele. — Ele deu uma piscada para Tor, que se voltou do fogão
como se estivesse prestes a dizer alguma coisa; em seguida, pensando melhor, deu
um sorriso carregado de intenções.
— Sim, claro — concordou Sacha. — Mas primeiro devo ir arrumar minha
cama. Não demoro muito.
Estava ao lado da cama, pensando em tudo o que sucedera, e preparava-se para
alisar as cobertas quando ouviu que batiam à porta e Tor falou: — Posso entrar,
Sacha?
— Sim. — Ela voltou-se para encará-lo e ele fechou a porta. — Vim lhe dizer que
sinto muito por ter feito aquilo ontem à noite, na praia.
— Oh. — Ela desviou rapidamente os olhos, confusa, recordando-se do
ocorrido: — Não... não tem importância.
— Tem, sim. — Ele se adiantou e tocou o braço dela com muita delicadeza. —
Eu me comportei muito mal. Estava muito zangado, mas não há desculpa, bem sei.
— Agora compreendo por que era tão importante que eu não falasse a ninguém
— ela disse lentamente. — Se você me tivesse dito no começo!
— Sim, mas não podíamos. Eu não sabia quem você era, mesmo você me
dizendo. Tínhamos de ter certeza. E, até que isto acontecesse, eu tinha de vigiar você.
Foi por isso — e apontou para sua cama — que eu tive de ficar aqui. Para você
também não foi bom, eu sei, mas agora está tudo acabado. Você poderá dormir em
paz hoje à noite.
A respiração de Sacha estava muito ofegante quando ela fez a próxima e
inevitável pergunta: — Quando é que você vai embora, Tor?
Ele deu de ombros: — Assim que for possível. Assim você poderá gozar suas
férias, fazendo tudo aquilo que tiver vontade.
— Sei. — Como é que ela poderia lhe dizer tudo aquilo que lhe ia pelo coração?
Por exemplo, que as férias ali, sozinha, seriam apenas uma simples sombra do que
poderiam ter sido? Por dentro dela havia uma contração que era quase uma dor, mas
não conseguia dizer nada. — Bom — falou em tom ligeiro —, acho melhor continuar,
não é mesmo? Pode deixar que também arrumarei sua cama. Afinal, você preparou
um café da manhã delicioso. É o mínimo que eu posso fazer.
— Obrigado, Sacha. Antes que eu me esqueça: pendurei seu maiô e a toalha,
ontem à noite. Você os tinha deixado na cesta.
— Esqueci. Obrigada. — Subitamente, uma tensão insuportável pairava no
quarto, e ela não conseguiu suportá-la. Olhou para ele, e ele também tinha
consciência do fato; estava evidente em seus olhos, em seu rosto. Era uma sensação
penosa, que atingia a ambos.
Ela fechou os olhos e levantou a mão, passando-a pela fronte.
— Você está cansada?
— Um pouco — ela reconheceu. — Ficarei melhor depois de dormir um pouco.
— Sim. E eu também. Bem — ele lhe deu um ligeiro sorriso —, acho melhor ir
andando. Vou até uma loja na aldeia. Você precisa de alguma coisa?
Ela pensou um minuto e então se lembrou: — Não avisei meu pai da minha
chegada. Você poderia enviar um telegrama por mim?
— Claro. — Ele inclinou a cabeça. — Escreva que eu providenciarei. Não há
pressa, primeiro devo dar comida às galinhas. — Deu-lhe as costas e saiu.

Wayne e Sacha andaram até a casa de madame Cassel e pararam para olhar as
galinhas que bicavam a comida que Tor lhes dera.
Wayne estivera explicando a situação, e ela ouvia com muita atenção, dando-se
conta de que ela era fantástica demais para ser exprimida em palavras.
— Você vê, Sacha — ele explicou, enquanto se apoiavam contra a parede de
pedra da pequena casa de madame Cassel —, foi uma operação difícil de ser levada
adiante. Tínhamos ouvido falar que Maievsky pretendia desertar, quando foi a
Berlim Oriental a fim de participar da conferência. Tínhamos de entrar
imediatamente em ação, caso ele conseguisse realizar seu intento. Não posso lhe
contar como foi que ele escapou de Berlim Oriental, porque o meio de que ele se
serviu pode voltar a ser empregado. Ele chegou a Marselha na semana passada e foi
trazido diretamente para cá. — Fez uma pausa a fim de oferecer um cigarro para
Sacha, antes de ele mesmo se servir. — Tor e Janos são dois guarda-costas
extremamente qualificados. Tor está aqui principalmente porque fala três línguas,
ele é meio francês, como você deve saber. — Sacha não sabia, mas por nada deste
mundo o teria interrompido. — Estou aqui porque estou cuidando da próxima etapa,
que é conduzi-lo para a América. O trabalho de Tor acaba aqui e Janos virá conosco.
Ela não pôde deixar de lhe perguntar: — E Tor, o que é que ele vai fazer?
Wayne sorriu. — Voltar para seu restaurante. Ele é dono de um lugar
recomendado por todos os bons guias gastronômicos. Fica lá pelo vale do Loire,
acho. Ouvi dizer que a comida é uma das melhores coisas deste mundo. Ele veio para
cá há uns cinco anos e acho que agora é mais francês do que russo. — Ele se deteve
para dar uma pancadinha no cigarro e espalhou a cinza no chão com os pés. A
mulher dele toma conta do restaurante, em sua ausência. É um desses lugares onde é
preciso reservar a mesa com dias de antecedência. — Ele falava, ela o ouvia, mas não
se dava conta do que estava sendo dito. Tor era casado. E por que não? Ele tinha pelo
menos trinta anos. Não havia nada de extraordinário nisso. Porém sua boca e sua
garganta tinham secado, e em lugar de seu coração havia uma pedra, o que era
estranho, pois continuava batendo.
— Não sabia que ele era casado — disse muito casualmente.
— Claro. Tem também dois filhos. Não os conheço, mas essas coisas a gente fica
logo sabendo. — Então ele também era pai. Pelo menos Nigel não tinha filhos, mas
dava no mesmo. Ambos se equivaliam.
E não era uma boa coisa ela ter descoberto isso naquele momento, antes que se
expusesse ao mais absoluto ridículo? Sacha deu um sorriso contrafeito, ansiosa por
parecer normal, e perguntou: — Diga uma coisa, havia alguém vigiando, de noite?
Somente nós dois demos um passeio, de manhã bem cedinho, e eu tive a impressão
de que...
— Tínhamos dois homens escondidos perto da fazenda. Eles possuíam
binóculos, e Tor, é claro, mantinha contatos com eles pelo rádio, a maior parte do
tempo...
Ela ouviu tudo aquilo com um sorriso nos lábios, mas a dor era difícil de
suportar. Ela tinha vindo até lá para esquecer Nigel, e o tinha conseguido com muito
sucesso. O único problema era que regressaria para casa com outra dor, totalmente
diferente. Quanta ironia!
— Portanto, se eu não tivesse chegado naquele momento, se eu não tivesse visto
Serge, quero dizer, o professor, nada disso teria acontecido?
— Não. Oh, provavelmente teríamos vigiado você de perto, apenas como uma
precaução, mas não teria sido tão importante. Você simplesmente não teve sorte. Tor
me deu a impressão de que você tentou fugir, algumas vezes.
Sacha não pôde deixar de rir do modo evasivo como ele falava. — O que foi
exatamente que ele disse?
Wayne sorriu. — Nada. Não quero me envolver em complicações. Não quero
confusões com pessoas como Tor. Prefiro que fiquem do meu lado.
— Conte-me o que ele falou. Não direi nada. — ela pediu.
Ele deu de ombros e sorriu para ela. — Ele me disse, entre outras coisas, que
você tinha um bocado de força para uma criatura de aparência tão frágil!
— Oh! — Ela não sabia por que queria saber de tudo aquilo. Afinal de contas, o
que lhe interessava descobrir as coisas que Tor dissera ou fizera? — Imagino — disse
casualmente — que ele queria se referir àquela vez que eu tentei golpeá-lo com um
bastão. Só que não deu certo — acrescentou.
Ele olhou para ela francamente admirado. — Puxa vida! Imagine se tivesse! —
Assoviou baixinho. — Ele escapou por pouco! Com você não se brinca, meu bem.
— Ele disse que, se eu fosse um homem, ele poderia ter-me matado.
— E provavelmente estava falando a sério. Já o vi partir em dois uma prancha
de madeira com uma só pancada. — Em seguida acrescentou: — E você não ficou
assustada?
— Sim — ela confessou. — Apenas no início. Mas eu precisava tentar, a fim de
poder fugir. Você não percebe?
— Claro que sim, querida. Sabe, você é uma garota e tanto, Sacha! — Ele
segurou em seu braço. — Vamos voltar. Não quero que Tor fique com ciúmes!
— Isso dificilmente aconteceria — ela respondeu com desenvoltura. — Nós não
gostamos especialmente um do outro, e, afinal de contas, ele é casado.
— É mesmo. Mas vamos indo, meu bem.
Quando chegaram em casa descobriram que Tor tinha ido até a aldeia, e Sacha
ficou contente. Isto lhe dava mais tempo para se preparar. Pretendia mostrar-se
amistosa e muito à vontade e não permitiria deixar transparecer o que quer que
fosse. Talvez, depois de ele ir embora, dentro de um ou dois dias, ela estaria em
condições de esquecê-lo. Sabia, entretanto, no mais íntimo de si mesma, que não o
conseguiria.
Quando ele voltou, carregado de comida, surpreendeu-a sozinha na cozinha e
entregou-lhe um pequeno embrulho. — Isto é para você, Sacha — disse, inclinando-
se. Para ele, esse gesto era a coisa mais natural do mundo.
— Obrigada. — Ela pegou o embrulho com todo cuidado, disfarçando sua
surpresa. Era bastante pesado. — Posso abrir agora?
— Claro. — Sorriu, e o coração dela se acelerou um tanto. Será que ele estava
fazendo isso de propósito? Ele então não sabia o efeito que aquilo produzia sobre
ela?
Sentou-se e começou a abrir o pacote, muito bem feito, que continha, dentro de
uma pequena caixa, um lindo peso para papéis do tipo conhecido pelo nome de mille
fiori. Só que dentro havia unicamente uma flor, uma linda rosa de uma só folha, no
centro do vidro, aprisionada para sempre — e bela para sempre, também.
— É linda, obrigada, Tor — disse emocionada. Não queria chorar. Não devia.
Sorriu para ele, e a expressão de seus olhos fez com que o sangue lhe afluísse ao
rosto, de tal modo que teve de baixar rapidamente os olhos sobre o peso para papeis.
Passou de leve os dedos sobre a superfície fria deste.
— Vou embrulhá-lo e guardá-lo em um lugar bem seguro. Não quero que ele se
quebre — disse, colocando-o na caixa. — Com licença. — Teve de passar por ele, e ele
não se pôs de lado, como teria feito normalmente, de tal modo que seus corpos se
tocaram e o contato provocou uma reação incrível, que a percorreu toda. No
momento em que entrou no quarto e fechou a porta, Sacha tomou uma decisão.
Evitaria o mais possível ficar a sós com Tor durante o tempo que ainda lhes restava,
e se ele não compreendesse o porquê, tanto pior. Nem sequer se permitiria pensar
como ele, um homem casado, se dispunha a fazer propostas para ela, do modo como
tinha feito. Será que ele nunca experimentava sentimento de culpa? Talvez isto não
tivesse a menor importância. Os franceses eram esposos volúveis, isto era um fato
notório, e talvez, por ter vivido lá durante muitos anos e ser meio francês, ele se
enquadrasse naquela definição.
Sacha foi até o carro e tirou de lá as tintas e as telas. Tinha improvisado um
cavalete com a ajuda de uma cadeira e uma bandeja, e enquanto se dirigia para a sala
de estar, carregando-as, viu Wayne descendo a escada.
— Alô! — ele disse. — Deixe que eu a ajudo. — Sorriu para ela a tirou a cadeira e
a bandeja de suas mãos. — Para onde levo?
— Para o jardim da frente, por favor. Onde está o resto do pessoal?
— Lá em cima, organizando os planos finais. Vai ser para hoje à noite ou
amanhã de manhã, bem cedo
— Ah, sei. — E então ela não voltaria nunca mais a ver Tor. O pensamento era
terrível, mas ela teria de aceitá-lo, pois não havia outra escolha.
Ele colocou as coisas perto do material de pintura.
— Quer que eu ajeite o cavalete?
Ela sorriu para ele. — Como foi que você adivinhou?
— Não é à toa que tenho a reputação de ser uma pessoa muito esperta. Onde é
que você vai sentar?
— Em uma cadeira mais baixa, daquelas que estão na sala de estar. Pode deixar
que vou lá pegar.
Tor estava descendo as escadas. Ela o encarou.
— Você pode me emprestar seu carro amanhã de manhã, Sacha? Seu eu puder,
trarei madame Cassel de volta para casa.
— Sim, claro. Mas o que é que você vai dizer a ela? Pensei que você tivesse
alugado a casa por mais uma ou duas semanas.
— Sim, mas disse a ela que poderíamos partir antes e nesse caso eu
comunicaria o fato, devido às galinhas. Não se preocupe, explicarei a ela a confusão
com a carta que se extraviou, direi que você veio e que está tudo bem.
"Ele pensa em tudo", refletiu Sacha, com amargura. "Em tudo, menos em como
impedir uma inglesa tola de se apaixonar por ele. Quem me dera odiá-lo ainda, como
o odiava no começo. Tudo se tornaria tão mais fácil..." Mas ela não o odiava, sabia
disso agora, e talvez nunca o tivesse odiado. Lembrar-se-ia para sempre do impacto
causado pela primeira vez que o vira. Jamais esqueceria aquele gigante sorridente
caminhando em direção a seu carro, pois naquele momento ele lhe parecera
imensamente atraente. Naquele momento e agora. Ela o olhou enquanto ele se
dirigia para a cozinha, parava e lhe dizia: — Vou fazer café para todos nós. Você
toma, Sacha?
— Por favor. — Oh, sim, ele era surpreendente. Não era de se admirar que a tia
Marie também tivesse se rendido! Ele seria capaz de hipnotizar, com seu encanto,
até mesmo os passarinhos nas árvores, se tivesse vontade. Ela se lembrou de sua
resolução, pegou a cadeira e levou-a para fora. Seus olhos ficaram rasos de água e
ela, piscando, preferiu atribuir o fato à claridade do sol.
Sacha passou o resto do dia no jardim, de início ao sol, desenhando a casa, e
mais tarde, quando o calor aumentou, à sombra dos pinheiros. Assim era melhor. E
mais seguro. Nem sequer entrou para almoçar, preferindo comer sanduíches sentada
no gramado. Era melhor deixar os homens conversando entre eles, traçando seus
planos. Ela não tinha a menor participação nisso.
Quando a noite caiu, ela entrou em casa, com muita relutância, pois não podia
mais ficar lá pintando no escuro.
Os homens estavam na sala de estar, jogando pôquer, e subitamente ela
experimentou o sentimento penoso de estar completamente excluída daquele
pequeno mundo, o que era uma sensação muito perturbadora.
— Por favor, não se levantem — disse, ao notar que Tor e Wayne faziam menção
de ficar em pé. — Vou sentar e olhar um pouco.
— Quer jogar? — perguntou Tor. Ela sacudiu a cabeça.
— Sempre perco no jogo, prefiro olhar. — Sentiu um cheiro bom que vinha da
cozinha. Pousou cuidadosamente a tela úmida e as tintas a um canto da sala, de
modo que não estorvassem ninguém.
Ficou a imaginar quando e como eles partiriam e então se deu conta de que Tor
não iria com eles. Sentou-se entre Wayne e Janos, e ficou pensando em tudo aquilo.
Tor ia ficar lá, e na casa permaneceriam somente os dois.

CAPÍTULO VI
Wayne desapareceu escadas acima, após o jantar, e quando desceu, trazia o que
parecia ser um rádio transistorizado muito moderno, com botões em excesso para
ser tomado por um aparelho comum.
— Pronto — anunciou. — Estejam prontos à meia-noite. Tor, o que devo dizer a
eles?
Seguiu-se um breve diálogo em russo, após o que Tor trouxe copos e conhaque
e todos tomaram um drinque. A sala gradualmente encheu-se com a fumaça do
charuto do professor e dos cigarros, e ela sentiu-se muito sonolenta. Estava decidida
a ficar acordada a fim de despedir-se dos três homens e acomodou-se na poltrona,
deixando-os conversar entre eles. Bocejou uma ou duas vezes e ajeitou-se mais
confortavelmente. As vozes chegavam até ela cada vez mais longe e uma fumaça
azulada dançava preguiçosamente no ar. É como uma cena de um filme, pensou, e
faço parte dele... Em seguida adormeceu.
Wayne estava a lhe sacudir o braço, e ela abriu os olhos, alarmada.
— O que foi?
— Estamos indo, meu bem. É para daqui a pouco. É quase meia-noite.
Ela se levantou às pressas, piscando. — Desculpe. Acho que cochilei...
— Sei — ele sorriu —, de vez em quando acontece com todo mundo. Você
parecia estar numa tamanha paz, de vez em quando até roncava...
— Não é verdade, é? — ela exclamou horrorizada, e riu.
— Estou brincando, Sacha. Não se ouvia o menor ruído.
Estavam somente os dois na sala e ela olhou em volta.
— Estão arrumando a bagagem. Eu costumo viajar com pouca coisa. Levo
comigo o absolutamente indispensável. — Então ouviram o ruído e uma sensação
incrível percorreu o corpo de Sacha. Wayne levantou-se.
— Acho que é ele que está chegando. Venha ver.
Ela nunca tinha olhado um helicóptero de perto. Desejou subitamente ter uma
máquina a fim de fotografá-lo, pois seu pai jamais acreditaria. Um helicóptero no
jardim da frente de La Valaise!
Os homens desceram as escadas, no momento em que as lâminas rotativas se
desaceleraram e pararam. Tor abriu a porta, acenou e voltou-se para Janos e o
professor, dizendo algo em russo.
O professor Maievsky voltou-se para Sacha e estendeu a mão.
— Adeus — ela disse com suavidade —, faça uma boa viagem. — Talvez ele
tenha entendido, pois seu sorriso falava por ele. Janos sacudiu a mão dela e inclinou-
se. Wayne aproximou-se e abraçou-a ligeiramente. — Até a vista, Sacha. Já está com
seu passaporte de volta?
Tor respondeu por ela. — Está lá em cima. Eu o entregarei mais tarde.
Ela ficou parada junto à porta, vendo-os se afastar. A luz tênue da cabina do
helicóptero ressaltava o perfil do piloto. Tor foi ajudá-los a subir e vários apertos de
mão foram trocados. Ele então se afastou, enquanto as lâminas poderosas entravam
em ação e levantavam o aparelho, como se fosse um mosquito gigante, em direção ao
céu.
Estava tudo acabado. Eles tinham partido. Sacha sentiu-se
incomensuravelmente triste. Viu Tor acenando, o helicóptero inclinou-se, ascendeu
sem o menor esforço. Tor caminhou em direção à casa e ela lhe deu as costas.
Decidiu não ficar a sós em sua companhia. Agora, porém, isto seria um tanto difícil.
Passava de meia-noite e portanto agora já era domingo. Seu primeiro domingo,
desde que as férias tinham começado. Nem em sonhos lhe teria ocorrido que
pudesse ser assim.
Tor entrou e trancou a porta, dizendo em seguida: — Quer um drinque?
— Não, obrigada, estou cansada demais. Vou para a cama.
— Muito bem. Boa noite, Sacha.
— Boa noite, Tor. — Ele se tornara grave, após a partida de seus amigos.
Parecia cansado, como se também necessitasse dormir. Estava com olheiras e traços
vincados, do nariz até a boca.
Sacha começou a subir lentamente os degraus. Depois que se lavou, foi para o
quarto e com o maior cuidado trancou a porta.
Era muito tarde quando acordou. Primeiro se certificou ao olhar a posição do
sol através da janela e em seguida confirmou as horas, consultando o relógio.
Passava das dez.
A casa estava em silêncio quando ela se dirigiu para o banheiro, e ficou a
imaginar se ele também ainda dormia. Esperava que sim. Tomou banho e pôs o
vestido branco que havia usado em sua visita à tia Marie. No momento em que o
vestia lembrou-se das circunstâncias em que o usara. Agora estava livre! Livre para ir
aonde quer que lhe agradasse. Visitar a velha senhora, se assim quisesse, ir nadar,
passear, dar um pulo até Cannes ou onde quer que fosse. Olhou para a penteadeira.
O passaporte estava lá e ela voltou a sentir aquela dor. A liberdade era uma coisa
vazia, apenas algo de oco, se se amava alguém e não se era amado. Ela fechou os
olhos. Que grande loucura deixar-se envolver por um homem como Tor, um
aventureiro, um homem tão diferente de tudo o que conhecia, a ponto de parecer
pertencer a uma raça à parte.
Sentou-se à penteadeira e começou a escovar o cabelo. Tudo aquilo era ridículo,
claro. Não se tratava de amor. Era uma simples atração por um Romeu eslavo, muito
atraente, muito experiente. E quanto mais cedo superasse aquela situação, melhor.
Ele voltaria para sua mulher e para seus filhos tão cedo quanto pudesse. Escovou
vigorosamente os cabelos até as lágrimas lhe aflorarem aos olhos, passou um pouco
de batom e ouviu um carro subindo a alameda.
Foi correndo até a janela, pronta a chamar por Tor. Viu então o seu Citroën que
subia lentamente em direção à casa.
Mas claro! Ele tinha ido buscar madame Cassel! Viu-os descendo do carro. Tor
ajudava aquela pequena mulher rechonchuda que ela conhecia tão bem, quase tão
bem quanto a tia Marie. Ele trazia sua mala em uma das mãos e ambos caminharam
em direção à casa.
Sacha desceu correndo a fim de saudá-la. Passou os braços em torno daquela
figura maternal e abraçou-a com força.
— Madame, é tão bom vê-la!
— O mesmo digo eu, menina. Mais alors! O que foi que aconteceu?
Tor estava segurando a porta, com a mala na mão. Aproximou-se e disse em
francês: — Estava explicando à madame toda a confusão e como as coisas acabaram
por se arranjar. Tínhamos um convite para ir à vila de um amigo em Nice, de modo
que agora está tudo em ordem, senhorita Donnelly.
Sacha olhou para ele. Falava com tamanha convicção... Mas é que ele estava
acostumado a dizer mentiras. Já tinha uma grande experiência.
— Mas sua noiva, m'sieur, não está aqui?
Ele deu de ombros. — Ela prosseguiu com nossa bagagem. Ainda tenho de
guardar algumas coisas pessoais. Em seguida também irei embora. Apenas queria ter
certeza, antes de partir, de que a senhora estaria aqui a fim de tomar conta da
senhorita Donnelly, e das galinhas, é claro. — Ele deu um sorriso desarmante, como
o de um menino, e apontou para a mala dela ao lado da porta. — Permite que eu
carregue sua mala, madame? Sua chave está comigo.
— Sim, sim, obrigada. Mas que surpresa! Voltarei imediatamente, Sacha, para
me ocupar de você.
— Oh, não, madame, por favor, não se incomode. Pretendo ficar pintando a
manhã inteira e na realidade não preciso de nada.
— Comme vous voulez, ma chère. — Madame Cassel ficou contente por ter a
manhã livre para se dedicar a seus afazeres pessoais, o que também lhe dava um
bom pretexto para não se dedicar a Sacha. Esta, por sua vez, se sentiu confusa ao ver
a velha senhora se afastar.
Tor voltou alguns minutos mais tarde, quando Sacha preparava o café na
cozinha. Ficou parado na porta, olhando-a por um momento, e em seguida disse: —
A senhora Cassel já está de volta e agora posso ir embora.
— Você quer dizer que não teria ido se ela não tivesse voltado hoje?
— Eu não teria deixado você sozinha, não.
— Sou perfeitamente capaz de tomar conta de mim mesma, Tor. — Não se
voltou enquanto falava. Não queria ver o rosto dele.
— Acho que não se trata disso. Você esperava encontrá-la aqui quando chegou
para as férias, e agora ela está de volta.
Sacha finalmente encarou-o. — Sim. Mesmo com dois dias de atraso, ela está
aqui. Você ainda vai ter que arrumar suas coisas?
— Não. Já está tudo lá fora, na minha motocicleta. E aqui estão as chaves de
seu carro. Mandei pôr essence, isto é, gasolina, em Fréjus. — Aproximou-se dela
vagarosamente. — Sacha, gostaria de ver você novamente, por favor. Posso vir
amanhã?
Olhou para as chaves do carro pousadas sobre a mesa. Ele as tinha tirado dela,
mas há quanto tempo? Três dias? Só isso? Parecia uma eternidade. E agora ele as
devolvia e estava tudo acabado.
— Pensei que você tivesse de voltar para casa — ela disse. Se pelo menos ele lhe
contasse, as coisas melhorariam. Se pelo menos ele dissesse...
— Primeiro vou passar alguns dias em Cannes. Não tenho pressa de voltar para
casa.
Ela sentiu-se gelada por dentro. Pegou as chaves do carro e colocou-as no bolso
do vestido. Então, escolhendo muito bem as palavras, pois o que ela tinha a dizer era
penoso, falou:
— Não, Tor, você não pode vir amanhã, nem depois de amanhã, nem no dia
seguinte. Não quero mais vê-lo.
Seu rosto ficou tenso. — Posso saber por quê?
— Porque está tudo acabado. Tudo isto chegou ao fim. Já não é mais real. Eles
todos foram embora, e agora você também pode ir, e passarei as férias como
planejei, sozinha. Você não faz parte destes planos. Não fazia, quando vim até aqui, e
agora também não faz. — Custou-lhe muito esforço falar. As lágrimas lhe afloraram
aos olhos, mas ela esforçou-se para contê-las. O rosto dele mudou gradualmente
enquanto ela falava e seus olhos... durante muito tempo não esqueceria a expressão
que se estampava neles.
Ela esperava que ele respondesse, que argumentasse, o que não aconteceu. Ele
simplesmente deu as costas e saiu da cozinha. Ouviu a porta da frente se abrir, se
fechar, e ele passou diante da janela. Um minuto depois viu-o descer a alameda em
direção à motocicleta. Nem sequer olhou para trás.
Sacha começou a chorar.

Não sabia como conseguiu atravessar os dias que se seguiram. Pintou, foi de
automóvel até a praia, nadou — enfim, tudo aquilo que ansiava fazer, desde que
tinha planejado as férias. Mas havia um vazio mortal em tudo, e a recordação de Tor
pairava em todos os lugares aonde ela ia e em tudo que ela fazia.
No outro quarto ficara um vidro de loção de barbear pela metade. Sacha
aspirou-o e imediatamente sentiu-se transportada para o jardim do café em Cannes.
Fora este o cheiro que sentira naquele dia, misturado com o de alho e gasolina. Pôs o
vidro dentro da valise, para não se esquecer de levá-lo quando partisse.
Tinha mais duas semanas pela frente e começou a duvidar se seria capaz de
suportá-las. Madame Cassel não sabia o que fazer para reparar sua "defecção" e vivia
dando desculpas a cada momento. Sacha tinha vontade de tranqüilizá-la, de lhe dizer
que não se preocupasse, pois nada mais lhe importava. Dormia mal, acordava no
meio da noite e olhava aquela cama vazia a seu lado, com a lua derramando sobre ela
sua claridade fantasmagórica, dando a impressão de que alguém dormira lá... Ela
então chorava e rezava para que as férias passassem logo, pois tudo tinha ido mal,
muito mal.
No domingo que se seguiu, ela admitiu que não agüentava mais. Queria voltar
para casa. Seu pai a receberia de braços abertos, sem lhe fazer perguntas, sem
indagar se as coisas não tinham dado certo, sem insinuar o que quer que fosse.
Após tomar uma decisão, Sacha sentiu-se mais leve. Foi ao quarto e arrumou
suas coisas, levou as malas para o vestíbulo e deixou um bilhete dizendo que logo
estaria de volta, pois Madame Cassel deveria chegar dentro de mais ou menos uma
hora e estranharia.
Sacha encaminhou-se para o único lugar aonde desejava ir naquele momento —
a casa de tia Marie. A porta do apartamento estava aberta como sempre e ela
perguntou: — Posso entrar?
— Claro. Sacha? Minha querida, entre. — Tia Marie já estava vestida, mas ainda
não tinha ido para a varanda. Encontrava-se sentada em uma cadeira próxima à
janela e levantou a mão.
— O que a traz tão cedo, em um domingo? Que bom vê-la, meu bem.
Sobre a mesa havia um vaso cheio de flores belíssimas. No momento em que
Sacha a abraçava, tia Marie disse: — Veja só que belo buquê. Foram enviadas por seu
simpático admirador!
Sacha estremeceu. — O que a senhora disse? — A cor sumiu de seu rosto. Ela
teria ouvido bem? Tia Marie notou a reação, franziu o cenho e indicou-lhe que
sentasse a seu lado.
— Acomode-se e conte-me o que aconteceu. Diga para sua velha.
Sacha obedeceu, segurando com força a mão enrugada que lhe era estendida. —
Oh, tia Marie, estou indo para casa. Posso usar seu telefone para reservar passagem
no avião? — Em seguida relatou toda a história, começando com sua chegada e a
primeira visão de Tor, prosseguindo com o relato de Wayne, quando então soube que
ele era casado, finalizando com o terrível adeus na cozinha. E a velha senhora, cuja
vida também continha sua dose de tristeza, de dificuldades, e também de felicidade,
ouviu, assentindo, mas sem interrompê-la. Segurou com força a mão de Sacha, como
se quisesse lhe dar forças para narrar o acontecido.
Assim que ela terminou, tia Marie suspirou profundamente. — Oh, meu bem,
que pena que as coisas se passaram assim. Que mais posso dizer? Eu também gostei
muito dele. Que homem bonito e forte, pensei. E é também um cavalheiro. Ele tinha
os modos de um príncipe e isto nele era tão natural quanto o ato de respirar. Veja só,
estas flores chegaram há alguns dias acompanhadas de um bilhete.
Sacha não queria, mas não conseguiu evitar fazer a pergunta: — O que estava
escrito?
A velha senhora riu. — Quando ele quer, até que sabe empregar bem uma frase.
"Para a mais linda mulher de Cannes, com afeto. Tor."
Sacha sorriu e curvou-se para cheirar o lindo buquê. No centro das flores de
muitas cores achava-se uma rosa vermelha, perfeita.
— Linda. — Tocou a rosa. Ele também lhe tinha dado uma rosa, e estava
trancada para sempre em um escrínio de vidro. Jamais morreria ou murcharia como
aconteceria com aquelas flores, dentro de pouco tempo.
Voltou-se novamente para a velha senhora. — Por isso, vou voltar para casa.
Papai não fará perguntas. Ele nunca fez. Mas eu tinha de vir aqui lhe contar tudo
isso, a fim de que a senhora não se sinta desapontada se ele... — hesitou — se ele não
voltar mais para vê-la.
— Não, minha querida, não ficaria desapontada. Na minha idade, a gente já
superou isto. Vivemos apenas o dia-a-dia, e esperamos apenas o dia seguinte. E cada
novo dia proporciona pequenas surpresas. Acredite em mim, Sacha. Isto passará,
isto passará logo, minha filha.
Sacha apoiou o rosto em sua mão. — Eu sei. Obrigada por me ter ouvido. Sabia
que a senhora compreenderia, tia Marie.
Ela ficou ali durante mais ou menos uma hora, telefonou para o aeroporto de
Nice, conseguiu um lugar no vôo da noite desse mesmo dia e partiu após prometer
que escreveria assim que chegasse em casa.

Era muito tarde quando o táxi deixou-a diante de casa, em uma avenida cheia
de árvores. As luzes estavam apagadas, o que aliás não a surpreendeu, pois ela não
tinha conseguido completar uma ligação telefônica da França.
Sacha entrou e dirigiu-se imediatamente para o quarto de seu pai, deixando as
malas no vestíbulo.
— Papai, sou eu — disse em voz baixa. — Você está acordado?
— O quê? Sacha! Entre, ainda não dormi.
Ela abriu a porta e seu pai sentou-se na cama. Os cabelos grisalhos estavam em
desalinho e ele pegou os óculos na mesa de cabeceira. — Meu Deus, será que me
enganei com as datas? Pensei que você voltaria só no dia...
— Não — ela interrompeu-o, beijando-o no rosto. — Não, você não se enganou.
Eu apenas queria voltar para casa, eis tudo, e voltei.
Ele a olhou por cima dos óculos. — Ah, muito bem, e finalmente você chegou.
Está com fome?
Ela sorriu. Seu pai raramente comia durante o dia, quando estava entregue à
pintura, mas à noite ela já se acostumara a vê-lo ir à cozinha comer um sanduíche de
galinha e um pedaço de bolo. — Um pouco — ela confessou. — Vou tomar um prato
de sopa. Você também quer?
— Ah, sim, ótima idéia. Desço dentro de um minuto. É o tempo de pôr o
roupão.
Ela saiu silenciosamente do quarto e deixou-o despertar completamente, indo
para o andar de baixo. Estava contente por ter voltado para casa, mais do que
conseguia exprimir. Tor e gente como ele não tinham o que fazer ali, naquela casa
calma e luxuosa em que ela e seu pai viviam. John Donnelly era proprietário de uma
fábrica muito bem-sucedida, herdada de seu pai, o avô de Sacha, um velho
importante de quem ela se recordava muito vagamente com respeito mesclado com o
medo. John nunca quis ingressar no mundo dos negócios. O seu amor maior era a
pintura, mas atualmente ele conseguira harmonizar ambos os interesses com
bastante sucesso, provavelmente devido à sua personalidade afável e ao afeto que
conseguia inspirar em todos os seus empregados, até nos mais humildes. Sacha sabia
quanto era fácil gostar dele. E a fábrica jamais entrara em greve durante seus setenta
anos de existência, o que provavelmente era um recorde, tanto quanto ela sabia.
A cozinha era grande e as lâmpadas fluorescentes iluminavam tudo com o seu
brilho frio. Bob, o imponente cão de caça irlandês, acordou de seu sono profundo,
dentro de uma enorme cesta, em um canto ao lado do aparelho de calefação.
Espreguiçou-se, bocejou e então, dando-se conta da presença de Sacha, veio até ela,
abanando a cauda.
Sacha abaixou-se a fim de abraçá-lo. — Por que foi que você não acordou assim
que eu entrei? — perguntou-lhe. — Que belo cão de guarda você é!
Ele ganiu, como se estivesse pedindo desculpas e abanou a cauda,
suficientemente longa e peluda para espatifar no chão todos os enfeites da casa que
estivessem a seu alcance — o que acontecia freqüentemente.
Sacha atirou-lhe um biscoito e começou a preparar uma refeição ligeira.
Domingo, tarde da noite. Dentro de alguns momentos seria segunda-feira. E apenas
há uma semana Tor tinha se retirado de sua vida — ele a tinha literalmente
abandonado, sem mais esta nem aquela, sem uma palavra, sem argumentar, sem
discutir. A recordação de seu rosto, a expressão que ele ostentava, ainda a perseguia.
Ficou parada diante do fogão por um momento, com o abridor de latas na mão, e era
como se ela estivesse de volta àquela pequena casa na França. Ele nem sequer
dissera adeus, simplesmente dera-lhe as costas e saíra porta afora, para sempre. Seu
rosto empalidecera, a despeito do queimado do sol e ele exibira uma expressão
curiosamente vazia, ao mesmo tempo fechada, que não demonstrava se ficara
zangado ou se se importava com tudo o que estava acontecendo. Talvez não se
importasse.
Ouviu os passos de seu pai e começou a abrir às pressas a lata de sopa. — Já
colocarei os pratos sobre a mesa — disse em tom ligeiro. — Sente-se.
Bob apoiou a cabeça no joelho de John e sua longa cauda varria as lajotas do
chão. Sacha preparou a sopa de galinha e cortou o pão. Todos os seus atos eram
mecânicos. Tor também uma vez preparara sopa — naquele momento usava um
calção e um avental em torno da cintura... — Pare com isso — ela pensou, sem saber
que tinha falado em voz alta, e seu pai lhe observou:
— Parar com o quê?
— Oh, nada. Estava falando comigo mesma. — Voltou-se a fim de sorrir para
ele.
— Ah! Eu também tenho costume de fazer isto. A senhora Brown acha que
estou ficando senil.
— Nunca! Ela devia se dedicar mais ao trabalho, assim não teria como ouvi-lo.
— A sra. Brown vinha cinco vezes por semana a fim de cuidar da casa e preparar as
refeições de seu pai. Durante o fim de semana ficavam sozinhos. Sacha então
cozinhava e era muito divertido, pois eles se davam muito bem. Quando Sacha trazia
um namorado em casa, John Donnelly ia para a cama, pretextando que estava
cansado, e deixava-os a sós.
Ele sabia tudo a respeito de Nigel. Nunca tinha gostado dele, mas tomara todo
cuidado a fim de não deixar Sacha perceber, pois achava que aquilo não lhe dizia
respeito. Para ele não teria sido nenhuma surpresa saber que Nigel era casado, e
ficou contente por Sacha ter descoberto antes que ficasse ainda mais magoada.
Agora a contemplava enquanto ela servia a sopa. Sacha conseguiu ler seus
pensamentos, e um dia ela lhe contaria quase tudo o que tinha acontecido em La
Valaise. Não tinha dito tudo a tia Marie, evitara cuidadosamente fazer menção aos
beijos de Tor, ao modo como ele a tocara, como era capaz de despertar o desejo em
todo seu corpo. Estas coisas eram pessoais demais para serem ditas a quem quer que
fosse.
Tomaram a sopa e comeram o pão em silêncio cheio de afeto, até que seu pai se
levantou a fim de encher uma panela de leite. — Nós podíamos caprichar e terminar
a noite tomando um chocolate quente — ele disse. — Não é sempre que fazemos isto,
hein?
— Não — Sacha sorriu. — Não é sempre. — "Faremos talvez no futuro", disse
para si mesma. "Porque não quero mais saber de homens. Gato escaldado de água
fria tem medo", pensou. "E eu já fui escaldada duas vezes. Já devia ter aprendido a
lição." Levou a mão à cabeça.
— Dor de cabeça? — perguntou seu pai.
— Não, estou apenas cansada. Se você não se importa vou levar meu chocolate
para cima e tomá-lo na cama.
— Boa idéia. Vá indo. Eu subirei dentro de alguns minutos.
Não reparou que ele a contemplava enquanto ela saía e não notou a expressão
de preocupação em seu rosto. Ele sabia que alguma coisa não tinha dado certo, no
entanto jamais perguntaria.

Ela ainda tinha uma semana pela frente, antes de começar a trabalhar, e se
pudesse teria voltado a fazê-lo, mas haveria comentários e especulações em demasia.
Trabalhava em um pequeno jornal local, o pessoal era como uma família e todo
mundo sabia da vida de todo mundo.
Sacha levantou-se tarde na manhã seguinte e ficou a imaginar como ia passar a
semana. Ouviu o zumbido do aspirador de pó no andar de baixo, enquanto se vestia
em seu quarto lindamente decorado em azul e branco, com grandes armários
embutidos repletos de roupas. Pôs uma calça marrom e uma túnica de seda amarela,
pois o tempo estava fresco. Em seguida desceu as escadas, preparada para enfrentar
as perguntas indiscretas da sra. Brown, pois ela sabia que Sacha deveria ter ficado
pelo menos mais uma semana fora e com certeza se entregaria às mais tolas
especulações.
Sacha tomou o café da manhã na cozinha, ciente de que seu pai devia ter ido
trabalhar. Ele sempre aparecia na fábrica às segundas e em seguida voltava à sua
pintura. Enquanto outros diretores escapuliam para ir jogar golfe e participar de
almoços, ele fugia para casa e se refugiava no estúdio que construíra no sótão, onde
ninguém podia entrar, a não ser Sacha.
Levou Bob para dar um passeio, a fim de se livrar da presença da sra. Brown e
também por covardia. Era mais fácil evitá-la do que se envolver em um torneio
verbal de alusões e despistamentos para o que Sacha sentia não ter força suficiente.
Ao sair, enviou um telegrama a tia Marie a fim de lhe comunicar que tinha
chegado bem em casa e que lhe escreveria. Em seguida foi até o parque e sentou-se
em um banco, enquanto Bob perseguia os pombos em vão. Estava começando a
reanimar-se, agora que se encontrava em casa. Sua inteireza de caráter afirmava-se
novamente. Sabia que não havia o menor futuro em desejar em vão as coisas boas
que tinham ficado para trás.
Portanto foi com um estado de espírito inteiramente novo que ela voltou para
casa, depois de ter ficado sentada no banco do parque por mais de uma hora
pensando, rememorando tudo, reordenando seus pensamentos e emoções,
colocando-os em uma certa ordem.
Na hora do almoço telefonou para sua amiga Janet, que era secretária de um
dos advogados da cidade. Tinham sido amigas desde os tempos da escola, eram da
mesma idade, vinte e dois anos, tinham gostos semelhantes no que dizia respeito a
roupas, músicas e atitudes perante a vida.
— O que você está fazendo aqui? Esperava todo dia que o correio me trouxesse
um cartão seu — foram as palavras espantadas de Janet ao telefone.
— É uma longa história — disse Sacha. — Assim que estiver com você contarei.
É para isto que estou telefonando. O que você vai fazer hoje à noite? Estão levando
um filme de James Bond que ainda não vi.
— Ia lavar minha roupa miúda — foi a resposta divertida de Janet. — Estamos
combinadas. Você pode telefonar lá por volta das seis? Me dê tempo de comer
alguma coisa.
Sacha desligou pensativa, depois que a conversa terminou. Janet se mostrara
muito sua amiga quando ela descobrira tudo a respeito de Nigel. Não se comportara
com curiosidade, simplesmente lhe oferecera apoio e tivera um senso realista que
ajudara Sacha bastante. Será que lhe contaria a respeito de Tor e de tudo que tinha
acontecido? Não sabia. Talvez o fizesse, quando se encontrassem.

O filme era divertido, excitante, e Sacha gostou mais do que tinha imaginado.
Mais tarde foram a uma lanchonete e ficaram bebericando enquanto Janet punha
Sacha a par das últimas fofocas. Não fez perguntas relativas ao fim prematuro de sua
viagem ao estrangeiro. Talvez sentisse que alguma coisa estava errada. Finalmente,
quando voltavam para casa, lá pelas dez e meia, Sacha contou tudo.
— Puxa, Sacha! — disse Janet quando a amiga acabou. — É inacreditável.
Quero dizer, sei que é verdade porque você está me contando, mas se eu lesse em um
jornal pensaria que era fruto do excesso de imaginação de alguém. — Em seguida fez
uma pausa e acrescentou: — O tal de Tor parece fascinante. Você está sofrendo
muito?
Sacha assentiu. — Sim. — Sua voz estava embargada pela emoção e ela limpou a
garganta. — Sim, dói demais, Janet, mas eu superarei. Superei Nigel, não é verdade?
Janet assentiu. — Olhe — disse com hesitação —, vou a uma festa na quarta-
feira. Não, espere — atalhou, enquanto Sacha abria a boca. — Sei que você não quer
ir, que detestará, mas vai ter que tentar, apenas por um tempo, até que doa um
pouco menos. Você será bem-vinda, sinceramente, e gostaria muito de ir com você.
Podemos rir um bocado, como sempre rimos, se não acontecer nada de melhor, e de
qualquer modo rompi com Robert na semana passada.
— Oh, Janet, sinto muito. Por que você não me disse antes? Aqui estou eu,
falando como uma matraca sobre meus problemas, e você ficou quieta...
Janet riu. — Não tem importância, mesmo. Ele estava ficando possessivo
demais e de repente olhei para ele um dia e disse: basta! Não me vejo sentada com
você à mesma mesa, tomando juntos o café da manhã pela vida afora... — Deu de
ombros. — Terminamos o romance em muito bons termos. Talvez ele até mesmo vá
à festa!
— Mas você ia ficar noiva no seu aniversário...
— É melhor descobrir antes que seja tarde demais. E então, Sacha, o que
decide?
— Está certo. Irei. Se você pode se recuperar, eu também. Assim eu paro de
sentir tanta pena de mim mesma, não é?
Despediram-se. E assim que Sacha entrou em casa Bob veio festejá-la. Tinha
passado uma noite muito divertida. Agora tinha uma festa pela frente. Se
continuasse a levar as coisas desse jeito, talvez dentro de uma semana a dor se
transformasse em uma recordação apenas incômoda. Talvez.

Teve de se esforçar para ir à festa de quarta-feira. Ia ser na casa de um amigo


de Janet que vivia a alguns quilômetros de distância, e as moças combinaram
encontrar-se na casa de Sacha. Seu pai insistiu em que elas fossem de táxi, de modo
que ela não precisasse voltar guiando, depois de ter bebido, e Sacha mostrou-se
muito cordata. Era tão raro ele lhe pedir alguma coisa que ela não tinha condições de
recusar, e sabia também que o que ele lhe pedia era razoável.
Saíram às oito e chegaram logo. Inicialmente Sacha sentiu-se incrivelmente
intimidada ao entrar na sala muito iluminada, cheia de gente jovem dançando ao
som de um toca-discos. Esforçou-se por parecer normal. Nunca se sentira assim
antes. Olhou à sua volta e notou que os homens predominavam. Alguns já lançavam
olhares em direção a elas. Decidiu que iria se divertir para valer. Ela e Janet, ambas
muito atraentes, logo foram abordadas por dois moços simpáticos, e para sua
surpresa Sacha descobriu que era perfeitamente possível sentir-se bem na festa.
Contanto que não se abandonasse a seus pensamentos... Contanto que não se
lembrasse de uma certa casa, de um certo homem que tinha o condão de fazer seus
ossos se derreterem só de olhá-la ou tocá-la e que era radicalmente diferente de
todos que se encontravam ali, quase como se fosse alguém de outro planeta.
— Meu nome é Nick, você é Sacha, e no carnê de baile está escrito que devemos
dançar juntos a próxima música. —Houvera uma pausa na festa. Muitos tinham ido
para a outra sala servir-se de comida, e antes que desaparecesse, e Sacha tinha
permanecido onde estava, e olhando uma pilha de discos, pois não tinha a menor
fome. E de repente aquele rapaz alto debruçava-se sobre ela, pegava sua mão e se
saía com aquela.
Ela o olhou surpreendida e sorriu, pois sentiu-se atraída pela expressão de seu
rosto e por aqueles olhos azuis que a encaravam bem de frente e não disfarçavam sua
admiração.
— É mesmo? Você quer dizer que nesta festa ainda usam carnê de baile? Pensei
que isto era coisa do tempo de nossos avós.
— Muito pelo contrário — ele respondeu com firmeza, colocando na vitrola um
disco antigo de Frank Sinatra, como se ele fosse o dono da casa, o que até poderia ser
verdade, pois ela não tinha certeza de quem era a festa. A música era sonhadora,
sentimental, e antes que ela soubesse o que estava acontecendo, já estava dançando
em uma sala quase vazia, conduzida com toda firmeza por aquele jovem desenvolto
que não podia ter mais de vinte e cinco anos, mas que ostentava autoconfiança e um
certo encanto atrevido que lhe agradavam.
Ele a conduziu para o jardim e lá, na penumbra, começou a beijá-la com toda
decisão, antes que ela pudesse protestar.
Quando ele fez uma pausa para respirar, ela disse: — Um momento. Qualquer
que seja seu nome, eu não...
— Nick. É Nick Jameson. Eu já lhe disse, lá dentro. Não me diga que você
esqueceu!
— Nick. Bem, eu nunca...
Ele não deixou que ela terminasse. — Eu sei, seu problema aliás é esse. Quero
dizer, aqui estou eu, perfeitamente irresistível às mulheres, e você me ignorou a
noite toda! — Passou o braço com firmeza em torno dela.
— Nunca vi você antes... — E então, a despeito de si mesma, começou a rir.
Realmente, ele era incrível!
— Melhorou. Vamos lá dentro comer alguma coisa. Estou morrendo de fome.
Duas horas mais tarde a festa começava a chegar ao fim, mas Nick e Sacha,
entretidos em um canto, mal se deram conta do fato. Ele era espirituoso, tinha um
papo ótimo e estavam se dando muito bem, só que para Sacha ele apenas
representava alguém com quem ela podia conversar.
— Posso levá-la até em casa? — ele perguntou, consultando rapidamente o
relógio.
— É que eu vim com Janet... — Ela olhou em volta e viu sua amiga em uma
conversa muito íntima com um rapaz ruivo que, a julgar pelas aparências, parecia
estar querendo arrancar sua orelha a mordidas.
— Janet, ao que parece, está sendo muito bem cuidada — disse Nick, bem-
humorado. — De qualquer modo, vamos perguntar, certo?
Janet parecia vir de um outro mundo ao responder à pergunta de Sacha. Esta,
como já sabia interpretar muito bem as expressões de sua amiga, voltou até onde
estava Nick, que se levantou sorrindo. — E então?
— Ela, como você mesmo disse, está sendo muito bem cuidada — respondeu
Sacha. — Mas olhe, quero deixar as coisas bem claras. Eu...
— Já sei. Não precisa me dizer.
— Dizer o quê?
Ele sorriu, e na verdade era muito atraente, mas para Sacha podia até ser um
irmão, pois não sentia nada por ele.
— Devo me comportar, não guiar muito depressa, não tirar as duas mãos da
direção e nunca, repito, nunca descobrir que acabou a gasolina, quando estivermos
em uma estrada deserta, no meio do campo.
— É isso mesmo — ela respondeu. — Portanto, se você não concorda...
— Então vamos indo. Palavra de honra, serei perfeito.
Ele manteve a palavra e deteve-se diante da casa de Sacha vinte minutos
depois. — Muito bem. Quando é que nos vemos novamente? — perguntou.
— Nunca. Quero dizer, me diverti muito hoje à noite, mas não vejo por que...
— Por que ir adiante. Percebo. Você está caída por mais alguém. Quem é ele?
Sou capaz de quebrar a cara dele.
A despeito de si mesma, Sacha teve de rir. Se pelo menos ele soubesse! — Pois
é, estou caída, sim — confessou.
— Muito bem, mas deixe lhe esclarecer algo: você acaba de conhecer um
homem que está na mesma situação sua, só que no sentido contrário. Percebe o que
estou dizendo?
— Você está se referindo a si mesmo... — Ela engoliu em seco e não apreciava o
rumo que a conversa estava tomando.
— Eu, sim. Sob este exterior alegre e idiota palpita um coração estraçalhado.
Fui honesto, e não pretendia ser, confesso. Que tal sair comigo em uma base
estritamente platônica?
— Acho que tudo bem. Sim. Obrigada. — Sacha assentiu.
— Muito bem. Pois vamos dar um aperto de mãos. Ou um beijinho platônico,
de amigos?
— Um beijinho platônico, se você quiser.
O beijo dele era carinhoso e reconfortou Sacha. Olhou-o se afastar após
combinar encontrar-se com ele dois dias mais tarde, na noite de sexta-feira, para
jantar fora.
Entrou e pela primeira vez depois de uma semana conseguiu dormir bem.

Levou-a para um restaurante à beira da estrada, a alguns quilômetros de


distância, na sexta-feira. Lá podia-se comer, dançar e beber, sem precisar seguir
necessariamente esta ordem. Era um lugar grande e novo e Sacha descobriu para sua
surpresa que não estava levando nem meia hora para esquecer Tor.
Enquanto jantavam à luz de candelabros, Nick contou-lhe sua história. Sacha
ouviu atentamente, contente em poder ajudá-lo de alguma forma, pois ela óbvio que
ele precisava conversar com alguém. O próprio fato de ele se abrir com alguém podia
tornar sua mágoa menos intensa, como Sacha aliás sabia, por experiência própria.
Ele amava uma garota, tinha saído com ela durante quase um ano, mas tinham
brigado algumas semanas antes por razões que obviamente eram importantes para
ambos. Sacha sentiu, enquanto o ouvia, que Nick era um homem muito orgulhoso, a
despeito de seu modo brincalhão, e jamais aceitara o emprego a ele oferecido pelo
pai de sua namorada, um próspero homem de negócios.
A garota, Anne, não podia entender tamanha obstinação, e as discussões entre
ambos começaram a assumir tamanha proporção que eles acabaram por ter uma
briga violenta e separaram-se. — Foi assim — ele disse, pesaroso, apagando no
cinzeiro um cigarro fumado pela metade. — Anne achou que eu ficaria muito feliz em
trabalhar para o velho dela, ganhando o dobro do que ganho agora, claro. Eu, no
entanto, pretendia abrir meu próprio caminho na vida, e se ela gostasse
suficientemente de mim, teria percebido isso. Não sou cachorrinho de estimação de
ninguém.
— Vocês não poderiam se encontrar pelo menos uma vez e discutir o assunto?
Ele lhe lançou um olhar altivo. — Não pretendo rastejar aos pés dela. Além
disso, ela é duas vezes mais teimosa do que eu. Portanto... — deu de ombros, sem
ânimo.
Sacha suspirou. Não se sentia preparada para lhe falar a respeito de Tor e dela
mesma. Era estranho que ambos tivessem o mesmo nome. Tor na verdade chamava-
se Nikolai, apesar de ela nunca pensar nele com este nome.
— Vamos. — Nick tomou-lhe a mão. — Vamos dançar e nos divertir. Não vim
aqui bater papo. Sabe de uma coisa? Você é extremamente sexy e desperta na gente a
vontade de dançar. Se nossa relação não fosse estritamente platônica, eu... — Ele não
terminou a frase e apertou-a nos braços. Sacha sorriu. Ele tinha voltado ao normal.
Ela desejou ter meios de ajudá-lo. Não sabia quando se apresentaria a oportunidade.
Estavam na festa havia meia hora quando Sacha sentiu que Nick, de repente, se
tornara muito ensimesmado. Era a noite seguinte, um sábado, e ele a tinha
convencido a acompanhá-lo a uma festa.
Era na casa de um amigo muito chegado, ele dissera, e com toda certeza seria
muito boa. Mas ele não lhe disse que Anne também iria.
— Ela está aqui, não é mesmo? — perguntou Sacha com toda calma, no
momento em que se encontravam em um canto da sala apinhada de gente. Seu olhar
cruzou a sala e deparou com uma loura alta que os fitava. Antes mesmo de fazer a
pergunta certificou-se de que não tinha errado.
— Sim. — Nick parecia estar muito deprimido. — Juro que não sabia que Mike
iria convidá-la. É o fim! — disse revoltado. — Não posso ficar...
— Pode sim — respondeu Sacha calmamente. Tinha notado a expressão do
rosto da loura. Exteriormente era bela e serena, mas por dentro havia aquele vazio
desolador que Sacha conhecia tão bem. "Aquela tal de Anne está apaixonada por
Nick", pensou Sacha, "e se um olhar pudesse matar eu cairia morta neste minuto."
Ela tinha o ar de quem iria embora a qualquer momento, mas alguém a tomou
pelo braço e era tarde demais.
Cada vez que Sacha dançava com Nick ou com mais alguém notava o rosto de
Anne e seu coração doía por ela. Ela não sabia como tinha sorte, pensou Sacha; seu
romance podia endireitar, bastava apenas um empurrão. Então veio-lhe uma idéia.
Talvez não desse certo e se fosse assim Nick jamais precisaria saber. Ela, no entanto,
sentia-se na obrigação de tentar, pois ele, com aquele seu jeito encantador e amigo, a
tinha ajudado a superar os primeiros momentos difíceis, quando ela voltara para
casa.
Ficou esperando por uma oportunidade, e quando ela se apresentou, não
vacilou.
— Desculpe, Nick. — Deu-lhe um sorriso cheio de doçura. — Vou passar um
pouco de pó-de-arroz. Não demoro muito. — Colocou um prato de batatas fritas em
seu colo e subiu rapidamente as escadas. Tinha visto Anne ir para cima e estava
dando um tempo, rezando para que não fossem interrompidas.
Tudo acabou dando certo, do modo como planejara. Anne foi do banheiro para
o quarto onde estavam todos os casacos, e Sacha seguiu-a. Fechou a porta e Anne
olhou-a surpreendida. Ao reconhecê-la, foi ficando aos poucos muito ruborizada.
— Você não sabe quem eu sou — disse Sacha. — Mas vim aqui apenas para lhe
dizer que lá embaixo está alguém que a ama demais. O nome dele é Nick.
Anne ficou tensa e levantou-se do banco da penteadeira. Seus olhos brilhavam.
— Acho que não... — começou a falar.
Sacha não a deixou terminar. — Por favor, ouça — disse. — Quero ajudá-la.
Sabe, eu também estou amando um homem que não me ama. Nick e eu nos
conhecemos em uma festa, no começo da semana, e estamos saindo juntos
simplesmente para podermos chorar um no ombro do outro. Não o amo, ele não me
ama, mas gosto dele e ele é uma excelente companhia. Ele se sente muito infeliz e eu
pensei que poderia tentar ajudá-lo... — hesitou pela primeira vez — porque sei o que
significa amar alguém. Algumas vezes pode magoar... — Ficou perturbada, pois viu o
rosto de Tor à sua frente e as palavras não vinham. Subitamente compreendeu que
estava agindo de um modo absolutamente tolo. Sentou-se numa cadeira. — Desculpe
— disse. — Se estou agindo assim é porque me pareceu uma boa idéia.
— Também sinto muito — disse Anne, sentando-se a seu lado. — Eu, eu
acredito em você. Qual é seu nome?
— Sacha Donnelly.
— Anne Carline.
Subitamente ambas sorriram, apertaram as mãos e tudo se tornou diferente.
Anne perguntou com muita calma: — Que devo fazer?
— Você o ama?
— Sim. — Ela assentiu. — Oh, sim. Tenho me sentido muito infeliz desde que
rompemos. Mas quando vi você hoje à noite... — Deixou a frase em suspenso.
— Eu sei. Eu senti. Vamos lá para baixo?
— O que, o que você vai fazer? — perguntou Anne em voz baixa.
— Você verá. Confia em mim, Anne?
— Sim.
Desceram para a sala apinhada de gente e com muita dificuldade abriram
caminho até onde queriam chegar. O rosto de Nick era o próprio retrato do espanto
no momento em que as viu diante dele de braços dados. Levantou-se lentamente e
pousou o prato com batatas fritas no chão.
— Anne — disse Sacha com desenvoltura —, quero lhe apresentar um amigo,
Nick Jameson. Nick, esta é Anne Carline.
De repente ela percebeu que tinha dado certo. Estava patente nos olhos deles.
Não há como se enganar com o olhar de alguém, quando vê a pessoa amada, ela
pensou, maravilhada. O sentimento estava ali, no brilho que surgiu nos olhos de
Anne, na ternura que se refletia no olhar de Nick.
— Estou sentindo uma terrível dor de cabeça — disse Sacha. — Vou pedir um
táxi pelo telefone.
— Não vai, não — Nick voltou-se para Anne. — Vamos levar Sacha em casa? De
qualquer modo, aqui está quente demais.
— Oh, sim — concordou Anne. — Está quente demais. — Sorriu para ele. Nick
retribuiu o sorriso e Sacha sentiu-se agradavelmente emocionada.

— Vocês não querem entrar para tomar um café? — Era quase meia-noite e as
luzes estavam todas acesas na casa, o que era pouco habitual, pois seu pai ia para a
cama por volta das dez, mas talvez ele estivesse à sua espera.
Anne e Nick entreolharam-se e sorriram. Ele balançou a cabeça. — Obrigado,
Sacha, hoje à noite não. Ainda temos de conversar algumas coisas e é tarde. Mas
muito obrigado por tudo.
— Sou eu que agradeço — ela respondeu. — Você também me ajudou, quando
eu precisei. Vou sentir falta de sair com você. — Voltou-se apressadamente para
Anne, pois sentiu que seu comentário poderia parecer estranho. — Disse isto com a
melhor das intenções.
— Eu sei disso. — Anne parecia radiante. Até mesmo dentro do carro,
fracamente iluminado, ela tinha o ar de quem brilhava, de tanta felicidade. — Eu sei,
Sacha. Eu também lhe agradeço.
Nick saiu a fim de abrir a porta de trás e ajudou Sacha a descer do carro. Ao
mesmo tempo murmurou: — Vamos lhe mandar um convite para o casamento.
— Vou lhe cobrar a promessa. — Sorriu para ele. — Até logo para vocês. Agente
ainda se vê. — Mas não sabia e nem podia imaginar quando tornaria a vê-los.
Subiu as escadas da frente e acenou enquanto eles se afastavam. Então, com
um suspiro, abriu a porta. A primeira coisa que ouviu foram vozes masculinas que
vinham da cozinha. Bob veio a seu encontro, com um latido de boas-vindas e ela
ouviu seu pai dizer: — Ah, é ela quem está chegando. Voltou cedo. Não esperava... —
Ela dirigiu-se lentamente para a cozinha, interiormente perturbada. Era como se ela
soubesse o que iria presenciar. Chegou à soleira da porta e um homem ao lado do
fogão voltou-se e encarou-a.
Era Tor.

CAPÍTULO VII
Sacha teve de se apoiar com toda força na porta para não cair.
— Alô, Sacha — disse Tor calmamente.
— Alô. — Ela permaneceu onde estava. Tor e seu pai preparavam café. A cena
ficou gravada no cérebro de Sacha com tamanha nitidez que ela teve certeza de que
jamais esqueceria.
Tor estava vestido de modo totalmente diferente, com blazer azul-marinho,
calças cinza, camisa branca e gravata. Sua aparência era vital e viril e a simples
presença daquele homem alto e bonito bastou para fazer seu coração disparar.
Ouviu seu pai dizer vagamente: — Vocês me dão licença um momento.
Preciso... — Mas eles nem prestaram atenção, até mesmo quando seu pai chamou o
cão para ir com ele. Neste momento Sacha e Tor ficaram a sós.
Ela então recobrou a voz. — Como... como foi que você chegou aqui? — Falou
com voz embargada e não conseguia evitar agir diferentemente. Estava lutando para
manter o controle e em hipótese alguma desmaiaria.
— Vim de avião até Londres e de lá peguei um trem — ele respondeu. — Ontem
fui visitar tia Marie e passei a maior parte do dia com ela. Após deixá-la fui até o
aeroporto de Nice comprar uma passagem de avião, mas só consegui lugar para hoje.
Ele aproximou-se e Sacha disse:
— Por favor, não chegue mais perto. — Ainda não conseguia entender o que
estava acontecendo. Não sabia o que faria se ele a tocasse, pois suas defesas estavam
perigosamente fracas e ela queria estar era justamente nos braços dele, mas ele não
podia saber nunca disto.
— Se você pensa — ele disse — que eu vim de tão longe para ser mandado
embora, está muito enganada. Por que você não me disse em La Valaise a razão para
não querer me ver nunca mais? — Controlava cuidadosamente o sotaque e falava
com voz pausada, como se tudo que ele dissesse fosse da maior importância e
precisasse ser compreendido.
Ela respirou fundo. — Você quer mesmo saber? Será mesmo necessário que eu
diga claramente? Não costumo sair com homens casados.
— Mas não sou casado, Sacha.
Ela balançou a cabeça, com uma expressão de desprezo estampada no rosto. —
Sei que você mente com muita facilidade — disse. — Faz parte de sua profissão, não é
mesmo? Mas chegar ao ponto de renegar sua mulher e seus filhos...
— Ela é minha irmã e sou tio das crianças — ele a interrompeu. — Juro pela
memória de minha mãe. Não sou casado, nunca fui e não tenho filhos.
— Eu... eu não... — Sacha sentiu-se como se estivesse a ponto de desmaiar.
Estendeu a mão e neste momento Tor encaminhou-se para ela. Sacha não tentou
mais repeli-lo. Quando ele passou os braços em torno dela, ela voltou-se para ele e
tentou relaxar. Ele beijou-a repetidas vezes até que ambos estremeceram.
Afastaram-se e a paixão punha uma sombra em seus olhos. Sussurrou: — Sacha,
dushinka, não sabe que eu a amo com todo o coração? Sofri o que nenhum homem
sofreu desde aquele dia terrível em que você me mandou embora.
Sacha apoiava-se agora no armário e Tor estava tão próximo a ela que ela mal
podia se mover, o que, aliás, não queria. Desejava permanecer ali, com os braços dele
a rodeando, sem nunca mais precisar se afastar.
— Eu também te amo — ela murmurou. — E não és o único infeliz. Mas por
quê...? Como? Wayne me disse que...
— Wayne pensou dizer a verdade. Se pelo menos eu soubesse, enquanto
estávamos todos lá! Senti você diferente, quando voltou do passeio com ele, e eu lhe
dei aquele presente, mas sem saber por quê. Então, na manhã seguinte, você me
disse que não queria mais me ver e meu orgulho não permitiu que eu reivindicasse o
que quer que fosse. Eu jamais me abaixo perante ninguém.
Ele jogou a cabeça para trás. Sacha sentiu a presença daquela autoconfiança
arrogante e sorriu. Levantou o dedo e passou-o com suavidade por seu rosto.
Tor beijou-lhe a fronte. — Não faça isto, dushinka — murmurou. — Você não
sabe o que está fazendo comigo.
Sacha riu com meiguice. Seu coração explodia de felicidade e ele prosseguiu: —
Quando Anne, minha irmã, e eu fugimos, há muitos anos atrás, tivemos de passar
por marido e mulher. Suponha que de alguma forma Wayne ouviu esta história e
nunca ninguém lhe contou a verdade. Anne casou-se logo depois com um oficial da
Marinha francesa, e nos tornamos sócios em um restaurante muito movimentado.
Mas agora meu cunhado está se aposentando e estou pensando em vender minha
parte para ele. Eles têm um filho e uma filha, ah, sim, têm também um gato chamado
Minou que adora pegar ratos. Tenho trinta e três anos e acho que já estou velho. O
que mais gosto de fazer na vida é cozinhar. Não, cozinhar, não. O que mais gosto
mesmo é de fazer amor com você, o que acontecerá dentro em breve. — E ele riu.
Quando conseguiram se desprender um do outro e Sacha se pôs a indagar
vagamente onde seu pai tinha ido, preparou café para ambos e eles se sentaram à
mesa da cozinha, segurando as mãos apoiadas no tampo de fórmica vermelha.
— Por que você foi ver tia Marie? — ela lembrou-se de perguntar.
— Porque eu tinha prometido, e estava pronto para voltar. Graças a ela é que
estou aqui, pois ela me disse que você me amava... — Ele riu, ao ouvir a exclamação
assustada de Sacha. — Pois ela contou, sim. Aquela sua tia Marie é uma senhora
muito sábia. Em seguida ela me disse por que você tinha me mandado embora, e
havia uma expressão em seu olhar que me deixou assustado!
Ele fez uma pausa a fim de beber o café e Sacha contemplou-o, com os olhos
brilhando de felicidade.
Cada traço de seu rosto estava gravado dentro dela, sua recordação estava com
ela constantemente, naqueles dias de solidão desde que partira de La Valaise, cada
linha e cada plano estavam para sempre registrados em seu cérebro. E agora ele
estava com ela. De agora em diante só isto lhe importava.
— Disse a ela o que acabo de dizer a você, que nunca fui casado. Então, para
mim ficou muito evidente que eu tinha agido muito estupidamente. Disse a ela que
iria para La Valaise imediatamente, e já estava saindo do apartamento quando ela
me informou que você tinha vindo para casa. — Ele fechou os olhos e debruçou-se
sobre ela, beijando-a. — Você não sabe como eu me senti naquele momento, não
consigo lhe dizer. Tia Marie me fez sentar, me obrigou a tomar um pouco de vinho e
começou a me falar a seu respeito, só que eu já sabia. Oh, Sacha, ela não precisava
me dizer nada, pois eu sinto como se conhecesse você a vida inteira. Durante aqueles
dias que passamos na casa, quando eu fui cruel com você, não a deixando sair, eu me
odiei. A mim faz mal ser grosseiro com uma mulher. Eu me detestei. Foi terrível para
você, eu sei. Você conseguirá me perdoar?
— Não há nada a perdoar — ela respondeu com simplicidade. Nada mesmo.
Talvez tenha sido uma boa coisa ter acontecido esta separação. Agora sei que não
posso viver sem você...
— Quando é que podemos nos casar? — ele perguntou. — Pode ser amanhã?
Ela riu. — Oh, Tor! Amanhã! Bem que eu desejaria. — De repente, quando se
deu conta, já não estava mais sentada na cadeira e sim nos joelhos dele.

Um mês mais tarde tornaram-se marido e mulher na pequena igreja situada no


fim da rua onde Sacha morava. Foi uma cerimônia simples, unicamente com a
presença de parentes e amigos íntimos, e Janet foi a madrinha de Sacha.
O padrinho de Tor foi seu cunhado francês, Paul, que veio de avião
especialmente para a cerimônia.
Assim que saíram da igreja posaram para o fotógrafo. Sacha viu Anne, radiante,
ao lado de Nick. Ela dissera que os encontraria novamente, mas nunca, por mais
fértil que fosse sua imaginação, poderia ter previsto que fosse naquelas
circunstâncias. Acenaram para ela; Sacha notou o brilho de um diamante no dedo de
Anne e voltou-se para sorrir para seu marido. Algum dia ela lhe falaria a respeito
deles. Havia tanta coisa a ser dita, um mundo de coisas a serem descobertas. Queria
saber tudo a respeito da vida de Tor. Ela sabia por antecipação que seria um relato
fascinante, que tinha casado com um homem raro. Pensar que ele a amava tanto
quanto ela o amava era maravilhoso demais para ser expresso em palavras.
Uma única pessoa não poderia estar presente: alguém a quem eles preferiam
acima de qualquer outro convidado. Tia Marie estava velha demais para viajar, mas
ia ter uma surpresa muito em breve.
Sacha e Tor passaram dois dias e duas noites em Paris. Em seguida alugaram
um carro e tomaram a estrada principal para o sul, a N7. Pararam no restaurante de
Tor, a caminho. Lá um soberbo almoço os esperava, providenciado pela linda irmã
de Tor, que os acolheu juntamente com o marido e os dois filhos, Paul e Maria.
Sacha sabia que a taça da felicidade estava transbordando, mas o melhor ainda
estava por vir.
Na noite seguinte à visita aos cunhados, ficaram no hotel Carlton em Cannes.
Sacha estava na cama e voltou-se para contemplar o homem adormecido a seu lado.
O clarão da lua se escoava por entre as cortinas e incidia sobre ele. Era tão
semelhante àqueles outros clarões em La Valaise que ela o tocou a fim de se certificar
de que não era sonho. Ele agitou-se ligeiramente, em meio ao sono, e murmurou: —
Sacha, dushinka. — Ela sorriu para si mesma. Ele lhe ensinava o russo e ela já
conhecia a primeira palavra muito bem — dushinka, querida. Havia também outras
palavras, palavras de amor, que ela estava aprendendo, com todo o restante que ele
estava lhe ensinando, maravilhosas e íntimas demais para serem ditas.
Na manhã seguinte, conversavam:
— Você acha que ela ficará surpreendida quando nos vir? — perguntou Tor,
passando manteiga em um croissant quentinho a fim de passá-lo para Sacha.
— Sim. E é graças a ela que estamos aqui — ela respondeu. — Devemos muito a
tia Marie.
Partiram no carro alugado e tia Marie estava na varanda, como se soubesse que
eles estavam para chegar. Acenou para eles, chamando-os pelo nome e as lágrimas
lhe escorriam pelo rosto. — Queridos, subam. Ah, é tão maravilhoso!
Mas tia Marie teve de esperar. O elevador, como sempre, estava quebrado, e as
escadas escuras eram uma tentação grande demais para Sacha e Tor, que acharam
necessário e excitante beijar-se em cada canto mais escondido, enquanto subiam a
pé.
Finalmente, quando chegaram em cima tia Marie já estava à espera, na porta.
— Não sei o que vocês andaram aprontando — disse —, mas levaram séculos
para subir estas escadas. — No entanto, havia um brilho malicioso em seu olhar,
enquanto ela os convidava para entrar no apartamento, e também muitas e
agradáveis recordações.

FIM

SABRINA 21
AS ROSAS TAMBÉM TEM ESPINHOS
Sara Craven

Janna não esperava ver Rian novamente, sobretudo às vésperas de seu


casamento. Aquele homem pertencia a um passado que, a qualquer custo, ela
queria esquecer! Porém, a lembrança daquela terrível noite, que ela julgava morta
em sua memória, continuava bem viva em seu coração. Janna era jovem,
voluntariosa e perdidamente apaixonada... No entanto, o amor não impediu que
ela arruinasse a vida de Rian para se proteger! Com o tempo aprendera a viver
sem ele, mas nunca mais se sentira atraída por alguém, nem mesmo por seu noivo
Colin. Até que ponto a presença de Rian, agora casado e pai, podia representar
uma ameaça para sua suposta segurança?

SABRINA 22
FEITIÇO TROPICAL
Anne Mather

Até então Sara Robbins nunca ouvira falar de Jarrod Kyle. Conheceu-o, aos
dezessete anos, após a morte do avô que o nomeara seu tutor, a despeito de sua
vontade. Cabia agora a esse desconhecido decidir sobre o futuro de sua própria vida!
Mas a imagem que Sara fizera dele não correspondia em absoluto à realidade. Jarrod
era um belo homem, além de rico e inteligente — o oposto da figura de um tutor
convencional. Seu coração adolescente não resistiu ao charme que dele se irradiava.
Seria amor de verdade ou apenas um fascínio passageiro por um homem com o
dobro de sua idade? Como pôr fim a essa angústia que aumentava cada vez mais os
obstáculos à sua volta?

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