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Brincando Com O Fogo

PASSIONATE ENCOUNTER

FLORA KIDD

O pai de Caroline queria casá-la à força com um americano rico, com quem ele tinha
negócios. Revoltada, Caroline resolveu fugir de Bilbao, na Espanha, onde morava,
pensando em refugiar-se nas montanhas, na casa de sua antiga babá. Lá, ela encontrou
Pio Viroda, um homem atraente e muito estranho, que também estava ali para se
esconder de alguém. Embora Pio a amendrontasse, Caroline ficou ao lado dele. Mas,
quando Pio a beijou, ela percebeu que tinha se apaixonado à primeira vista. E agora?
Deveria confiar em Pio? Estava certo entregar-se de corpo e alma a um homem que
talvez estivesse fugindo da polícia?

Digitalização: Dores Cunha


Revisão: Samantha
Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo

Título: Brincando com o fogo.

Autor: FLORA KIDD.

Título original: PASSIONATE ENCOUNTER.


Dados da edição: Abril S. A., São Paulo, 1981.
Género: romance.

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de
pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro
não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.

Copyright: FLORA KIDD

Título original: PASSIONATE ENCOUNTER

Publicado originalmente em 1979


pela Mills Boon Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: LUZIA ROXO PIMENTEL
Copyright para a língua portuguesa: 1980
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL — SÃO PAUlo
Composto e impresso nas oficinas da
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL
Caixa Postal 2372 — São Paulo
Foto da capa: TRANSWORLD

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo

CAPÍTULO I

— Eu não vou casar com Billy Van Dorman e você não pode me obrigar!
A voz de Caroline Morondo era alta e desafiante. Seu rosto estava vermelho, os
olhos azul-escuros brilhavam e ela encarava o pai, Joseph Morondo, um industrial basco
que era também membro do serviço público. Ele estava do outro lado do elegante salón
de sua casa, nas vizinhanças da cidade de Bilbao, na Espanha.
— Eu não vou ser obrigada!
— Obrigada? — O rosto de Joseph era bonito, mas estava congestionado e
vermelho. — Obrigada? — repetiu ele, fazendo uma pausa para tomar fôlego. — Caroline,
eu sou seu pai e ordeno que você. . .
— É este o problema — respondeu a filha rebelde. — Você está sempre mandando.
Mas não tem o direito de mandar mais em mim. Não tem nenhum direito sobre mim
agora. Já estou crescida. Sou uma pessoa adulta e tenho os meus próprios direitos. Só
eu posso escolher com quem quero casar.
— Não, enquanto depender financeiramente de mim — replicou Joseph, raivoso, e
ela ficou tão pálida como se tivesse sido atingida por um tapa. — Você vai fazer o que eu
mando e casar com o homem que escolhi.
Ele se afastou, passando as mãos nos cabelos castanhos e macios que já
começavam a ficar grisalhos nas têmporas.
— Diós — murmurou. — Eu devia ter tido o bom senso de não deixar que Margareth
me convencesse a mandar você para aquela escola inglesa. Você teria ido para um
internato aqui na Espanha, onde as boas freiras lhe ensinariam como respeitar seus pais
e a obedecê-los em tudo.
— E me ensinariam também que devo casar com um homem que não amo? Duvido
muito — retrucou Caroline e ele voltou a olhá-la de frente.
— Amor? É sobre isso que estamos discutindo? Você quer me dizer que não vai
casar com Billy porque não o ama? Por Diós, nunca ouvi uma bobagem tão grande em
toda a minha vida!
— Não é bobagem. É como eu me sinto!
— Mas as pessoas não casam por amor — respondeu Joseph. — Casam por
segurança, para terem uma companhia. . .
— Foi por estes motivos que você casou com a minha mãe? — ela perguntou e
percebeu que ele empalidecia. — Sempre acreditei que você a amasse muito. Tanto, que
estava preparado para romper todas as tradições e casar com uma estranha, uma mulher
estrangeira, uma inglesa que não ia lhe trazer fortuna nem bens, apenas a beleza que ela
possuía.
— Caroline, isso não tem nada a ver com o que estamos discutindo — disse ele,
mal-humorado.
— Não tem? Oh, eu acho que tem, e muito. Você condena a minha educação e acha

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que ela é a culpada pelo meu modo de agir. Mas eu me pareço mais com você do que
pode acreditar. Não vou ser coagida a nada e não vou casar com Billy.
— Mas, querida, já está tudo combinado, agora. Os convidados podem começar a
chegar a qualquer hora! — A frase foi dita por uma voz suave, em inglês, e pertencia à
mulher que estava sentada calmamente no braço de uma poltrona, escutando a
discussão entre pai e filha. Apesar de estar com pouco mais de cinquenta anos,
Margareth Saunders, tia e madrinha de Caroline, parecia muito mais nova. Seu corpo era
esguio e o cabelo acinzentado brilhava bastante. Usava um vestido de seda bege,
enfeitado com bolinhas pretas. Os olhos eram azuis e profundos e estavam pousados na
sobrinha, com uma expressão enigmática.
— Oh, você também não me compreende! — exclamou Caroline. — Você quer este
casamento tanto quanto ele! — Olhou, desesperada para o pai e deu um longo suspiro. —
Estou tentando dizer a ambos, faz algumas semanas, que não quero casar ainda. Não
estou preparada. Há muitas coisas que quero fazer, muitos lugares para visitar, muitas
pessoas que quero conhecer.
— Você pode fazer tudo isso depois que casar com Billy — disse Margareth
suavemente. — Caroline, minha querida, isso que você está sentindo é muito normal. São
os medos que surgem pouco antes do casamento. Todos nós sentimos isso. Por que
você não vai jogar uma boa partida de ténis e arranja algumas coisas que a mantenham
ocupada nos próximos dois dias? Vai se sentir diferente quando encontrar Billy
novamente. Vocês ficaram separados por muito tempo, eu sei, mas não se pode evitar
isso. Vamos fazer um ensaio do casamento amanhã, depois organizaremos uma reunião
com danças e você vai se sentir muito melhor.
Caroline ficou olhando a tia. Será que ela acreditava mesmo no que estava dizendo?
Será que não entendia nada? Virou-se e olhou o pai. Ele a estava observando com os
olhos castanhos e frios. Ele não quer me entender!, pensou. Para ele, sou apenas um
peão no jogo dos negócios que quer fazer com o pai de Billy. Sou um peão e apenas isso,
movido para frente e para trás no tabuleiro, para pegar um rei. Não aceitam que eu tenha
nenhum sentimento próprio.
Aquelas eram as duas pessoas mais próximas dela. As únicas para as quais podia
correr na hora em que precisasse, e as duas tinham falhado. Com uma exclamação de
aborrecimento, correu para o elegante corredor, todo enfeitado com quadros caríssimos.
Abriu com força as portas do seu quarto e parou para respirar, cansada, sua mente
procurando um caminho, uma solução para o problema que tinha de enfrentar: como
evitar aquele casamento com Billy Van Dorman?
— Maria? — chamou, abrindo a porta da pequena sala que comunicava com o
quarto. Não havia ninguém lá. — Maria? — chamou novamente, abrindo a porta do quarto
de vestir. — Maria, onde você está? — Abriu a porta do banheiro e olhou para dentro.
Estava vazio.
Ótimo. Sua empregada, Maria, tinha ido conversar na cozinha, provavelmente.
Conversar sobre ela e os boatos do próximo casamento, não tinha dúvidas. Foi até o
quarto de vestir, pegou uma mala de couro, agarrou rapidamente algumas roupas dos
cabides e jogou-as lá dentro. Pegou um par de sapatos e juntou-o às roupas, fechando a
mala.
Levou tudo para o quarto, escolheu uma bolsa, onde colocou todo o dinheiro que
tinha, alguns cartões de crédito, um talão de cheques e alguns cosméticos. Olhou as
roupas que estava usando, uma saia rodada de lã estampada e uma blusa de seda rosa.
Elas serviam, mas ia precisar de uma capa de chuva. Chovia muito nas montanhas,
conforme ela se lembrava. Voltou ao quarto de vestir, escolheu uma capa clara de

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algodão, impermeável, enfiou uma echarpe rosa em um dos bolsos, jogou a capa sobre
os ombros e dirigiu-se ao quarto.
Com a mala na mão, saiu cuidadosamente para a sacada. Não havia ninguém por
perto. Pisou levemente na grade de ferro e foi descendo. No chão, dirigiu-se rapidamente
a uma porta lateral que dava entrada para a garagem, onde havia quatro carros grandes.
Entrou na garagem com cuidado, temendo que o pai ainda não tivesse saído para ir
à fábrica onde trabalhava. Se assim fosse, o chofer estaria dormindo na garagem. Para
sua sorte, havia alguns vasos grandes, atrás dos quais se escondeu enquanto examinava
o ambiente. Sentiu-se aliviada ao ver que o carro grande do pai já havia saído. Deixou o
esconderijo e caminhou para o seu próprio carro, um Mercedes esporte que o pai lhe
havia dado no último aniversário. Em poucos segundos estava manobrando e saindo em
direção aos portões de ferro da casa, com uma sensação de liberdade e até um pouco
alegre.
Dirigiu o resto da manhã e toda a tarde em direção ao leste. Era um longo caminho
até os Altos Pirineus, muito mais distante do que ela tinha pensado. Quando se
aproximou da cidade de Elbarra, próxima da passagem através das montanhas que
levava à França, sentiu-se cansada e com fome.
A chuva que tinha molhado toda a paisagem havia diminuído. Ao longe, os picos
úmidos das montanhas reapareciam com certo brilho do sol, que já despontava atrás de
uma nuvem.
O mesmo brilho se refletia nos telhados vermelhos da igreja e das pequenas casas
branquinhas da cidade, que estava situada no meio de uma plantação de milho. Também
a superfície do asfalto na estrada começara a brilhar.
Ofuscada pelo sol recém-saído de trás da nuvem, Caroline teve de frear o carro
rapidamente quando duas crianças atravessaram correndo a estrada. O menino e a
meniña ficaram olhando assustados, sorridentes e alegres. Como ela queria ser uma
criança novamente!
Mas não tinha sido por isso que ela havia escolhido aquele caminho? Não estava
procurando a alegria inocente que já tinha experimentado quando passou todo o verão na
velha casa da fazenda, perto daquela cidade, oito anos atrás?
Depois da igreja, com sua torre pontuda e seu campo de futebol uma para servir o
espírito, o outro para o corpo, pensou ela -, dirigiu-se para a rua principal, cheia de casas
velhas, telhados cobertos de limo e janelas pequeniñas. Não havia ninguém na rua àquela
hora da tarde, mas ela tinha a estranha sensação de que estava sendo observada,
através daquelas janelinhas estreitas, por habitantes que observavam e comentavam.
Quem estaria passando naquela cidade perdida em um carro tão caro? Caroline mordeu o
lábio. Não queria ser questionada, não queria que ninguém soubesse onde estava não
ainda.
A cidade ficou para trás. A estrada chegava até os pés de um morro, ia ficando cada
vez mais estreita e terminava abruptamente na beira de um barranco cheio de
castanheiros, repletos de botões corde-rosa. Caroline estacionou o carro sob alguns
galhos que pingavam água da chuva e ficou sentada, ouvindo as gotas que caíam sobre o
teto.
Não havia nenhum lugar onde pudesse esconder o carro, por isso resolveu deixá-lo
ali. Saiu, foi ao porta-malas, retirou a bagagem e começou a subir por atalhos cheios de
curvas.
A chuva tinha deixado o chão enlameado e as sandálias de couro bege dela não
eram muito adequadas para longas caminhadas. Mas decidiu não parar para trocar de
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sapatos.
Estava ansiosa para ver Mati.
Depois de chegar no topo do barranco, seguiu em direção a um pequeno bosque de
pinheiros. Os troncos das árvores eram escuros e deixavam passar a umidade; o chão
estava atapetado com as folhas secas dos últimos anos.
Quando saiu do bosque, parou um pouco e olhou para o vale que se abria à sua
frente. Um raio de sol — que fazia com que as montanhas brilhassem — se refletia nas
janelas de uma velha casa de pedra, chamada Esker Ona, em idioma basco, que significa
"obrigado de bom coração". Era ali que Mati morava com seu velho pai, Chemarc cujos
antepassados tinham sido donos daquelas terras durante gerações.
Cruzando o campo em direção à casa, Caroline passou na frente de um pombal com
suas torres e viu uma pequena árvore que esticava seus galhos em direção aos carvalhos
gigantescos. Perto havia uma pequena cabine construída com pedras, cujo telhado
estava um pouco caído. Um pouco além estavam os mastros onde, no outono, eram
penduradas as redes para caçar os pombos selvagens, na migração que faziam da
Escandinávia para o clima quente da Espanha.
Foi quando chegou perto da casa que percebeu os sinais de abandono. O branco
das paredes estava sujo e descascado em vários lugares, mostrando a pedra cinzenta
que havia embaixo. O jardinzinho onde Mati cultivava verduras e flores estava cheio de
mato e folhas secas. Não havia nenhum tamanquinho de madeira no lugar onde deviam
estar pendurados. O lugar parecia deserto. Mas havia um fio de fumaça saindo da
chaminé, indicando que alguém ainda vivia na casa.
Caroline olhou pela janela mais próxima e ficou aliviada ao ver que lá dentro havia
um fogo aconchegante e luz vinda das velas acesa nos castiçais. Então, sabendo que ali
as portas nunca ficavam trancadas, abriu e entrou. Logo o cheiro da sopa, que estava
sendo preparada num caldeirão, fez com que sua boca se enchesse de água e ela
lembrou que não tinha comido desde que saíra de Bilbao.
Colocou a mala no chão e olhou em volta. A mesa de madeira antiga, que Mati
sempre cobria com uma toalha branca na hora das refeições, estava posta para uma
pessoa, com o garfo, a colher e o guardanapo colocados diretamente sobre o tampo da
mesa.
— Mati? Onde você está? — Caroline perguntou em espanhol, a língua que ela tinha
aprendido quando criança, no colo de Mati.
— Adivinhe quem veio aqui ver você? — acrescentou, forçando um tom alegre na
voz, tentando manter longe o sentimento desagradável de desânimo que insistia em
atingi-la, sugerindo que Mati talvez não estivesse lá.
O som de passos sobre as pedras, atrás dela, fez com que se virasse de repente,
cheia de esperança, os lábios abertos em um sorriso. Mas o sorriso desapareceu
rapidamente e ela sentiu que seus cabelos arrepiavam de medo. Pois, em vez da figura
simpática e rechonchuda de Mati, o que ela viu atrás de si foi o corpo alto e másculo de
um homem de ombros largos e quadris estreitos, uma sombra escura que se projetava
contra a luz do sol poente.
Ele ficou ali parado durante alguns momentos, com as mãos na cintura. Depois
entrou e fechou a porta atrás de si. Encostou na porta, tirou sua boina basca da cabeça,
cruzou os braços e ficou olhando para ela.
Na escuridão iluminada apenas pelo fogo, não era fácil ver os detalhes. Ela teve a
impressão de que ele tinha rosto fino e nariz grãnde. Vestia um suéter de jérsei, com gola

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role, cuja cor podia ser marinho ou preta, assim como a da calça. Tinha um cigarro nos
lábios e era muito jovem para ser o pai de Mati.
Falou de repente com ela, no idioma basco, que é totalmente diferente do francês e
do espanhol.
— No entiendo — respondeu ela, colocando as mãos nos bolsos da capa, erguendo
o queixo e fingindo sentir uma confiança que não existia. Não gostava do jeito com que
ele tinha se aproximado da casa, tão silencioso. Tinha chegado não sabia de onde, pois
não havia ninguém por perto, nem nos campos que rodeavam a casa. E, principalmente,
ela não gostava do modo como ele estava encostado na porta, impedindo que ela saísse
da casa. — Eu falo espanhol, inglês e francês — acrescentou. — Onde está Mati?
— Mati? — Ele parecia surpreso.
— Sim. Mati Viroda. Ela mora aqui.
— Não mora mais. — A voz dele era rouca, talvez porque fumasse demais. — Mati
morreu há alguns meses.
— Oh! Não! — Na sua tristeza ela falou automaticamente em inglês. As lágrimas lhe
apareceram nos olhos e rolaram pelas faces. Mati estava morta e agora não havia
ninguém para ampará-la. Com as costas da mão limpou as lágrimas e suspirou. Mati,
para quem ela tinha vindo correndo na hora da confusão e necessidade de apoio, tinha
partido; já não estava mais ali para lhe alisar os cabelos e cantar velhas canções bascas.
O frio da morte tocava Caroline pela primeira vez na vida e, com um pequeno soluço, ela
cobriu o rosto com as duas mãos, sem se importar mais com aquele homem que
continuava encostado na porta, em silêncio.
— Eu não sabia — murmurou baixinho, enquanto tentava se recompor.
— Por que você veio aqui, procurando por ela? — perguntou ele.
— Eu esperava ficar com ela alguns dias. — Olhou a casa e lembrou do tempo de
paz e quietude que havia passado lá. — Mas como Mati não está mais aqui, vou embora
— murmurou, tentando pegar a mala.
Sua mão não chegou até a alça, pois ele deu um forte pontapé na mala, fazendo
com que ela deslizasse pelo chão encerado.
Atônita, com os olhos arregalados e a boca aberta, Caroline sentiu pânico. Olhou
diretamente para ele, que ainda estava encostado na porta, mas tinha tirado o cigarro da
boca e o segurava entre os dedos.
— Não ainda — disse ele friamente. — Diga-me como conseguiu chegar até aqui.
— De... carro — retrucou ela. O orgulho que tinha herdado do pai estava
conseguindo ajudá-la. Respirou fundo, ergueu a cabeça com um ar de arrogância típico
de Joseph Morondo e perguntou:
— Quem é você?
— Sou o dono da casa — respondeu ele.
— Não pode ser. Ela pertence ao pai de Mati. Onde ele está?
— Ele também morreu há alguns anos — disse com um sorriso irônico. — É um
hábito que as pessoas têm, você sabia? Elas morrem quando ficam velhas. Ele estava
com noventa e nove anos.
— Se você é o dono da casa, então você também é um Viroda — disse ela. — É um
dos sobrinhos de Mati? Ela tinha muitos, eram os filhos dos dois irmãos de Mati, Júlio e

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Pedro.
— Si. Sou um dos sobrinhos de Mati. — Novamente o sorriso irônico apareceu no
rosto dele, como se a tivesse achando muito divertida. Mesmo assim continuava
agressivo. — Onde deixou o seu carro? — perguntou.
— No fim da estrada. Andei pelos campos e pelo bosque. Não sei de nenhum outro
caminho para chegar até aqui.
— Já esteve aqui antes? — A surpresa transparecia na voz dele.
— Si, Há oito anos. Estive doente e disseram que o ar da montanha fazia bem. Mati
era a minha babá. Ela me trouxe aqui. Foi muito divertido e eu pensei... — Caroline se
interrompeu bruscamente, arrependida.
— Esperava se divertir novamente — ele acrescentou, ríspido. — De onde você
veio?
— De Bilbao — respondeu e imediatamente desejou ter dado o nome de qualquer
outra cidade. Se seu pai tivesse publicado alguma coisa sobre seu desaparecimento,
como ela achava que ele tinha feito, já teriam mencionado o caso no rádio e aquele
homem poderia ter ouvido.
— É bem longe — ele comentou. Falava em espanhol, mas com um ligeiro sotaque
norte-americano, e usava frases que não eram comuns na Espanha. — Deve estar
cansada e com fome, não?
— Sim, estou. — Ela olhou em direção da mala e uma suspeita cruzou sua mente.
Havia um sobrinho de Mati que tinha feito algo errado e tivera de sair do país há alguns
anos. Será que era este? Ele era agressivo e rebelde. Seu nome era Pio, o filho de Júlio.
Ela voltou a olhá-lo.
Ele ainda a observava, como um falcão observa um pombo.
— Há algum. . . não consigo me lembrar. Há alguma pensão na cidade, onde eu
possa ficar esta noite? — perguntou ela.
— Não há nenhuma pensão. Você pode ficar aqui — disse ele, tentando ser cortês.
— É gentil o seu oferecimento, mas não acho que deva aceitar. Não quero causar
problemas. . . — Caroline estava nervosa.
— Não será nenhum problema. Há uma cama no quarto vago onde provavelmente
você dormiu quando veio aqui. Não leva muito tempo colocar lençóis limpos nela. Sei que
não sou tão bom cozinheiro quanto Mati, mas há galinha e sopa de verduras, pão fresco e
queijo de ovelha para o jantar.
— Mas... — Caroline estava tentada pelo convite. Se não havia nenhuma pensão,
ela ia ter que dirigir de volta até Elbarra, pela estrada estreita e cheia de curvas, no
escuro, e ainda procurar acomodações quando chegasse lá. Ou então dormir no carro.
— Señorita? — perguntou ele suavemente. — Vai ficar?
— Você está morando sozinho aqui, não está?
— Estou.
— Então não posso ficar.
— Por que não? — A surpresa dele parecia autêntica e, antes que ela pudesse
pensar em algo para responder, ele riu. Um riso rouco e atraente. — Não. Não precisa
responder. Eu compreendo. Está preocupada 13
em ficar numa casa de fazenda longínqua com um homem estranho. Mas para que
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se preocupar? Quem vai saber? E quem se importa com isso? — Ele fez uma pausa e
esfregou o queixo com a mão. — Vamos raciocinar assim — continuou, sua voz se
tornando mais profunda, suave e persuasiva. — Eu estou lhe oferecendo hospitalidade
em homenagem a Mati, aquela que você esperava encontrar aqui. Se ela estivesse aqui
não iria deixá-la partir. Nem eu. Você é bem-vinda para ficar o tempo que quiser.
Ao mencionar Mati ele tinha avivado todas as suspeitas que se formaram na mente
dela. Ele era, apesar de tudo, um parente da sua babá. Ela ficaria pelo menos aquela
noite. Devia ficar, pois ali havia calor e alimento e uma cama para repousar. Não ia
conseguir o que tinha vindo procurar, o conforto dos braços de Mati e a sua sabedoria de
mulher do campo. Mas precisava descansar e pensar sobre seus problemas. Talvez até
achar uma solução para eles.
— Muito bem. Vou ficar, muito obrigada, mas deixe-me ajudá-lo em alguma coisa —
ela disse, começando a tirar a capa.
— Coloque um lugar para você, na mesa — respondeu ele. Afastando-se da porta,
ele se dirigiu para a lareira, de onde tirou dois castiçais de bronze. Caroline pendurou a
capa em um cabide atrás da porta e dirigiu-se a uma cômoda antiga. Ainda lembrava bem
em qual gaveta ficavam guardados os talheres, pois muitas vezes tinha posto a mesa
para Mati. As facas tinham cabos de marfim amarelado e alguns garfos estavam com os
dentes tortos.
Pegou uma faca, um garfo e uma colher e colocou sobre a mesa. As velas foram
acesas. Suas chamas eram perfeitas e douradas, projetando uma luz agradável sobre o
pão redondo que estava sobre uma tábua, assim como sobre a garrafa verde de vinho
que continha — ela achava — um vinho feito em casa, com as uvas cultivadas nos vales
que davam para o sul.
— Precisa também de um copo — disse o anfitrião, enquanto colocava os pratos de
sopa na mesa. Ela se dirigiu até a cômoda e pegou um copo.
Ele não se sentou antes dela e quando o fez, escolheu a cadeira de espaldar alto
onde o velho Chemarc sempre sentava, na cabeceira da mesa. Mas, ao contrário do
velho, ele não usou seu barrete basco na cabeça enquanto comia. Já o havia tirado,
deixando que aparecessem os cabelos negros, lisos e que pareciam precisar de um corte
urgente, pois caíam sobre a gola da camisa que estava usando.
Seu rosto era magro, e a pele esticada sobre os ossos acentuava os ângulos do
queixo longo. Tinha a boca grande, mas firme, o lábio inferior ligeiramente curvado e mais
cheio que o superior, um sinal de calor humano e generosidade que seu temperamento
quase não deixava transparecer.
Ao cortar fatias de pão, seus cílios longos projetavam sombras sobre o rosto.
Quando passou as fatias para ela, equilibradas na lâmina da faca, olhou-a e ela, de
repente, sentiu um choque ao deparar com o brilho dos olhos cinzentos.
— Muchas gracias — murmurou, pegando o pão e sentindo-se um pouco
envergonhada por ter sido pega observando-o. Mas, inevitavelmente, seu olhar voltou
para o rosto dele, ao vê-lo cortar algumas fatias de pão para si mesmo.
Ele não era gentil nem tinha o olhar sonhador de um pastor de carneiros que
passava os dias calmamente nas montanhas com seu rebanho. Era um homem que
conhecia o mundo. As experiências tinham-no deixado marcado. Tinham colocado
aquelas rugas na testa e nas faces, tinham dado ao olhar aquele ar de quem não se
importa com nada.
Tinham também marcado sua boca bem moldada, dando-lhe um ar irônico.

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Ele levantou os olhos novamente e, durante alguns momentos, seus olhares se
encontraram. Então, mais uma vez, embaraçada por não conseguir olhar para mais nada,
a não ser ele, Caroline pegou a colher e começou a comer.
A sopa estava deliciosa, cheia de pedaços de galinha, batatas e cenouras. Caroline
comeu muito pão e, apesar da decisão de manter os olhos baixos, seu olhar permanecia
teimoso, tentando ver o homem sentado na cabeceira da mesa. Cada vez que ela o
olhava, ele erguia os olhos e lhe devolvia o olhar, como se também estivesse sendo
impelido a isso por alguma força além do seu próprio controle.
Então, a tensão entre os dois ficou tão forte que Caroline decidiu quebrá-la,
conversando.
— Gostaria que parasse de me olhar assim — ela pediu.
— Não posso me controlar — ele respondeu, pegando a garrafa de vinho para
encher o copo de ambos. Bebeu de um só gole o conteúdo do copo e tornou a enchê-lo.
— Você também está me olhando. O que há com você?
— Eu... eu estou confusa — ela se defendeu.
— Por minha causa? — Os olhos dele se abriram, surpresos. — Por quê? —
perguntou, ríspido.
— Você não é como os outros.
— Que outros?
— Os outros sobrinhos. Eu encontrei alguns quando estive aqui antes.
— É porque eu não cresci aqui — ele replicou, sacudindo os ombros e bebendo
mais vinho.
— Então você não é um fazendeiro.
— Não. Longe disso. — Ele a olhou demoradamente e continuou: — Estive tentando
me lembrar de onde tinha visto você antes falou em inglês. — E agora me lembrei. Você é
a filha de Joseph Morondo, não é?
A pergunta a aterrorizou. Pela borda do copo de vinho ele devolvia o olhar surpreso
dela com um sorriso irônico. Não havia como negar, Caroline pensou, já tinha confessado
tudo apenas pelo espanto que demonstrara.
— Como adivinhou? — ela perguntou alegremente, falando em inglês.
— Não foi difícil, porque lembrei onde tinha visto você antes. Foi em uma fotografia,
num jornal, há algumas semanas. A foto era muito semelhante.
— Não pensei que você se interessasse por essa parte do jornal.
— Eu me interesso por todas as partes do jornal — ele respondeu. — Não sou
diferente de nenhum outro homem. Gosto de olhar fotografias de mulheres bonitas,
principalmente quando estão usando pouca roupa.
O rubor subiu às faces dela. Sabia a que fotografia ele estava se referindo. Tinha
sido tirada quando ela saía da piscina dos Van Dorman, na Flórida, e ela estava usando o
menor biquini que tinha.
— As linhas sob a foto diziam que você tinha acabado de ficar noiva do herdeiro dos
Van Dorman, mas não vejo nenhum anel de noivado em sua mão.
Caroline tinha deixado o anel na caixa, trancado em uma gaveta da penteadeira.
Não o havia usado muito. Havia alguma coisa nele que ela não apreciava. Uma certa
ostentação exagerada, fazendo com que se sentisse vendida e comprada, todas as vezes
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que o usava. Recusou-se a morder a isca que seu anfitrião lhe atirava, terminou a sopa,
pegou o copo de vinho e bebeu. O vinho era forte e saboroso.
Um pouquinho seria capaz de levá-la longe, pensou, largando logo o copo. Ele era
provavelmente resistente para dois ou três copos, mas ela, não. Olhou em volta e
novamente para ele. Com seu rosto longo, os ombros largos e o corpo magro, era um
basco típico e possivelmente tinha a paixão que todos os bascos têm por grandes
refeições, bebidas fortes e trabalho pesado. Mesmo assim, ele a intrigava.
— Você fala inglês muito bem. Onde aprendeu? — perguntou, resolvida a se distrair
e afastá-lo do assunto da fotografia. Queria também saber mais sobre ele.
— Morei nos Estados Unidos muitos anos, mas já falava um pouco de inglês antes
de ir para lá — ele respondeu friamente, passando queijo no pão.
— Você morou no Estado de Nevada? — ela perguntou. Lembrou que Mati tinha
contado que muitos membros da família Viroda tinham imigrado para os Estados Unidos e
se estabelecido em Nevada, junto com outros bascos.
— Estive lá alguns meses — ele respondeu, cauteloso. — Coma um pouco de
queijo. Está muito bom.
— Quando voltou para a Espanha?
— Há três anos.
— E ficou aqui neste vale todo esse tempo?
— Que importa isso? — O olhar indiferente dele indicou que não estava gostando
das perguntas.
— Você é muito misterioso — ela disse, acusadora.
— E você é curiosa demais. Como se sentiria se eu perguntasse por que não está
em Bilbao se preparando para o casamento?
— Oh! Como sabia que eu ia casar esta semana? — perguntou ela, surpresa.
— Eu não sabia. Apenas joguei verde para colher maduro. E deu certo — ele falou,
os lábios se abrindo num sorriso muito atraente. — O que aconteceu? Será que Billy Van
Dorman tem os pés frios? Ou você se apavorou só em pensar no casamento? Por isso
estava procurando Mati? Para chorar no colo dela e ser acariciada e confortada só porque
treme de medo antes de casar? .
A voz rouca era agressiva, deixando os nervos dela, já tensos, mais sensíveis ainda.
Caroline virou para ele com raiva, os cabelos loiros flutuando na altura dos ombros, os
olhos brilhantes.
— Não, eu não tremi de medo de casar, nem de não casar. Eu. eu... ah, você não
compreenderia.
— E Mati ia compreender, eu imagino. — Ele terminou seu terceiro copo de vinho e
serviu-se de mais, bebeu alguns goles e deu a ela um novo olhar insolente. — Será que
ela não ia ficar desapontada com você? — perguntou.
— Por que ficaria?
— Porque a garotinha que ela conhecia se transformou em uma mulher egoísta, que
sai correndo quando a vida fica um pouquinho difícil.
A crítica dele parecia um jato de água fria. O orgulho dela voltou a ajudá-la. Por que
ia aguentar aqueles comentários injustos?
— Você está bêbado! — respondeu acusadoramente.
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— Talvez esteja mesmo, porque geralmente não me meto nesse tipo de conversa
com uma mulher. — Novamente o olhar dele pousou sobre ela. — Há sempre coisas mais
interessantes para fazer. — Os olhos dele estavam semicerrados e Caroline sentiu um
estranho arrepio quando ele olhou sua boca e ela sentiu como se ele tivesse tocado seus
lábios. Embaraçada, mexeu-se nervosa na cadeira.
— É fácil para você me criticar. Não sabe dos fatos — respondeu.
— Eu gostaria de saber o que você teria feito se estivesse na mesma situação.
— Se você me contar a história toda eu talvez possa lhe dizer o que teria feito — ele
sugeriu.
Ela o olhou, cautelosa. Deveria? Poderia contar a este estranho como se sentia ao
pensar que ia casar com Billy? Podia confiar nele como confiava em Mati? Ele merecia?
— Tente — ele falou baixinho e suave, como se tivesse lido os pensamentos dela.
— O que você teria feito — ela começou, devagar — se descobrisse que estava
sendo forçado a casar com alguém que você não ama, alguém escolhido pelo seu pai? —
Ela respirou fundo e continuou em voz baixa: — Eu estou sendo usada como um peão de
um jogo nas transações de negócios. Meu pai quer que os Van Dorman façam
investimentos na Companhia de Automóveis Morondo.
— Compreendo. Mas isso é comum — ele comentou. — É um arrranjo muito usado
para que os negócios europeus se tornem filiados a uma organização americana.
Suponho que, em troca, seu pai se transforme em diretor das Empresas Van Dorman com
um grande aumento de salário.
— Sim, e eu me torno a esposa de Billy Van Dorman que, na verdade, não gosta
muito de mulheres.
Os olhos dele se arregalaram ao compreender o que estava implícito na sutileza das
palavras dela. Depois se suavizaram, com pena.
— Você disse ao seu pai que não quer casar com Billy? — perguntou gentilmente.
— Sim, muitas vezes, mas ele não quer me ouvir. Ele é uma pessoa muito decidida
e, quando quer uma coisa, ninguém faz com que mude de ideia. O único jeito de
convencê-lo a me ouvir e entender que o casamento com Billy é algo que eu não quero foi
sair de casa e me esconder durante alguns dias.
— Para chamar a atenção dele? — sugeriu, irônico.
— É o que eu espero — ela murmurou, bebendo um pouco mais de vinho. Isto fez
com que sua cabeça se tornasse pesada, mas um calor agradável passou pelo seu corpo,
dispersando a tensão nervosa.
— Pobre meniña rica — ele comentou com um sorriso irônico. — E não havia mais
ninguém na sua família que pudesse ajudá-la a convencê-lo?
— A tia Margareth estava do lado dele — ela disse e observou o reflexo dos
castiçais no copo de vinho, balançando o líquido de um lado para o outro. — Ela é irmã da
minha mãe. Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos. Algumas vezes penso que, se
ela estivesse viva, papai seria diferente, não tão duro e rude. A perda de alguém que a
gente ama pode ser uma experiência amarga, você não acha?
— Ele a amava? — A pergunta deixou-a espantada. — Não é possível que ela
também fosse apenas um peão no jogo de poder que ele estava jogando naquela época?
Ter uma esposa que era uma lady inglesa, conhecida por sua beleza e por seus parentes
aristocratas, poderia ser um grande trunfo para um homem cujo avô tinha sido apenas um

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pastor basco. Ele não perdeu muito tempo para esquecer a morte dela nos braços de
outras mulheres, não é verdade?
Caroline ficou olhando para ele, espantada. O conhecimento que ele tinha das
atitudes do seu pai e dos casos com outras mulheres não a surpreendia, mas como ele
conhecia o passado de sua mãe?
— Como você sabe tanto sobre os meus pais?
— O seu pai é uma personagem muito conhecida nesta região da Espanha — ele
replicou evasivamente. — Acho que ouvi meu pai falando sobre ele quando ainda era
pequeno. E agora, quais são os seus planos?
Ela esfregou os cotovelos. O vinho que havia tomado fazia com que se sentisse
relaxada e tonta. Já não tinha mais tanta importância o que havia acontecido com ela,
desde que pudesse encontrar uma cama e dormir.
— Eu não tenho certeza — disse. — Não tinha um plano quando saí de casa. Só
queria ir embora e pensei em ficar aqui durante alguns dias com Mati, até ser capaz de
tomar alguma decisão, saber o que fazer com minha vida.
— Está cansada da rotina de prazeres sem fim? — indagou ele, fazendo graça, mas
ela não se importou.
— Mati não teria rido de mim — reclamou. — Oh! Eu sabia que ninguém ia
compreender.
— Mas você está errada — ele disse calmamente, inclinando-se para ela através do
canto da mesa. Seu sorriso o fez parecer de repente mais jovem. O coração dela bateu
mais forte. — Você se revoltou contra a autoridade e eu sempre compreendo aqueles que
se rebelam. A causa da liberdade individual contra a opressão sempre foi a minha. Mas é
porque já nasci um rebelde.
— Você é Pio, não é? O filho de Júlio?
Ele não se moveu, mas seus olhos se abriram num olhar duro e frio. Caroline teve a
impressão de que ele parecia um gato armando o pulo. Depois relaxou e se encostou na
cadeira, soprando a fumaça do cigarro.
— Si. Sou Pio, o filho de Júlio — ele concordou. — Esqueci de me apresentar. Mati
falou com você a meu respeito?
— Um pouco.
— O que ela contou? — Ele parecia conter as palavras e ela se mexeu
nervosamente na cadeira, olhando o rosto dele. Havia linhas duras e cansadas, cheias de
hostilidade, que fizeram com que ela se arrepiasse.
— Só. . . só que você teve que sair da Espanha às pressas por um motivo. Acho. . .
acho que esteve em alguma passeata ou algo desse tipo. Ela me falou mais sobre o seu
pai. Sabe, eu imaginava por que Chemarc, o seu avô, era tão triste e por que costumava
ficar horas sentado, fingindo que lia o jornal, sem nunca virar a página. Então ela me
contou que primeiro o seu pai e depois você tinham abalado o coração dele, com seus
comportamentos rebeldes.
O olhar severo de Pio pousou no rosto de Caroline.
— Chemarc era muito conservador — ele comentou. Houve um intervalo de silêncio
e então ele acrescentou suavemente: — Tenho pena de tê-lo magoado. Que mais Mati
falou sobre o meu pai?
— Disse que ele havia se recusado a ficar aqui e ser fazendeiro. Foi para San

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Sebastian e se envolveu no movimento para a independência. Ela disse que ele ficou
preso algum tempo. Não tenho certeza sobre o que aconteceu, mas acho que ele foi
morto quando tentou fugir da prisão.
— Ele fugiu — disse Pio calmamente, olhando ao longe, como se estivesse olhando
para o passado. — Estava indo para a fronteira francesa. Sabia que estava sendo
seguido pela Guardiã Civil, mas conseguiu se esconder. Infelizmente foi traído e atiraram
nele.
— Oh! Que horrível. Deve ter sido terrível — ela exclamou. Quantos anos você tinha
naquela época?
— Mais ou menos onze. — Os olhos dele se dirigiram diretamente para ela. Então,
mudando de expressão e se tornando um pouco brincalhão, ele completou: — E você
tinha mais ou menos uns doze meses.
— Como sabe?
— Porque aconteceu há vinte anos passados.
— Você sabe quem o traiu? — perguntou fascinada, apesar de todos os detalhes
violentos da história da morte do pai dele.
— Si, eu sei — ele murmurou e novamente seu rosto ficou cruel, fazendo com que
ela tremesse. Mas a tontura provocada pelo vinho e o calor do ambiente a acalmaram.
Seus olhos estavam quase se fechando e ela tentava controlar os bocejos. Ele percebeu
e levantou-se, empurrando a cadeira.
— Se você levar uma dessas velas levo a sua mala. Vamos para cima, procurar
alguns lençóis para a sua cama. Acho que esta na sua hora de dormir — ele disse.
Era assim que Mati teria sugerido que ela fosse para a cama. Levantando-se, ela
pegou uma das velas e dirigiu-se, na frente dele para a escada que tinha sido construída
próxima da cozinha. No fim da escada estava o quarto grande, onde Chemarc, como
chefe da casa, sempre dormia. Ele ainda estava decorado com uma cama grande com
cabeceira de bronze, uma velha cômoda com gavetas e um guarda-roupas grande e
escuro. A cama estava desfeita e Caroline achou que era ali que Pio dormia.
Na extremidade do quarto havia uma lareira de pedra e, ao lado dela, duas portas,
cada uma dando passagem para um outro quarto. Durante alguns momentos ela hesitou,
sem saber qual o quarto em que tinha dormido na última vez em que tinha estado naquela
casa, há oito anos.
— O quarto vago é o da direita — ele explicou ao ver que ela estava em dúvida. — A
não ser que você prefira dormir no quarto de Mati.
— Não. Fico naquele outro quarto — ela replicou e a vela quase se apagou, soprada
pelas suas palavras. Sombras se espalharam pelo teto.
A porta do quarto rangeu quando ela a abriu e sua sombra se projetou pelas
paredes a medida em que entrava no quarto. Era um quarto estreito, com pouca mobília.
Tinha apenas uma cama de solteiro, uma velha arca e uma cadeira antiga. O teto, como
em todos os outros quartos, tinha sido construído logo abaixo do telhado e se inclinava
em direção às paredes. Em uma delas havia uma janela pequena com uma cortina florida.
Pio Viroda colocou a mala no chão e começou a abrir as gavetas da cômoda,
procurando lençóis. Encontrou alguns na última e pegou , um par deles junto com uma
fronha, colocando-os sobre a cama.
— Quer que eu arrume para você? — perguntou.

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— Não. muito obrigada. Posso arrumar sozinha. — Ela percebeu ironia na voz dele e
imaginou o que estaria pensando. Ficou um pouco irritada e respondeu: — O que pensa
que eu sou? Uma desajeitada? — indagou, desafiando-o.
— Pensei que podia ser — ele retrucou, provocante. — Afinal, vocé sempre teve
tudo que o dinheiro pode comprar, não teve? Todas empregadas, babás, cozinheiras,
sempre, desde criança. . .
— Isso não quer dizer que nunca aprendi a arrumar a cama, ou cozinhar, ou
costurar! — Ela olhava para ele, furiosa. — Na escola, na Inglaterra, tive um ótimo curso
de economia doméstica e no último ano até ganhei um prémio de culinária. Na verdade...
— Caroline se interrompeu. Por que ia dizer a ele que havia pensado seriamente em fazer
carreira com culinária? Uma ideia que seu pai logo afastou, mandando-a para uma escola
na Suíça, a fim de se aperfeiçoar para ser a esposa de um homem rico. Se ela contasse,
Pio Viroda não ia acreditar. Ele já tinha formado uma ideia sobre o tipo de pessoa que ela
era.
— Fico contente que você não seja uma desajeitada, totalmente incapaz. Acha que
está muito frio aqui? — perguntou, olhando em volta.
O ar do quarto estava gelado e ela achava que a cama estava úmida por não ter
sido arejada durante tanto tempo. Mas o orgulho não a deixou admitir isso. Aquele
homem diabólico fazia com que se sentisse amedrontada.
— Não, nem um pouco — respondeu, tentando sorrir.
— Tem certeza? Sei que há uma bolsa de água quente lá embaixo. Posso esquentar
um pouco de água para colocar nela. — Ele tinha os olhos brincalhões, agora, com um
brilho que se refletia em todo o rosto. — Tenho certeza de que Mati não ia deixá-la dormir
com frio.
— Está bem — concordou Caroline, cruzando os braços numa tentativa de diminuir
o frio que sentia.
— Você lembra onde é o banheiro, lá embaixo?
— Sim, lembro — ela falou, cansada. Ele abriu a porta como se ele fosse sair, mas
depois voltou com uma chave grande na mão e a colocou sobre a cômoda.
— Caso você esteja preocupada com as minhas intenções — explicou -, pode se
trancar por dentro e me trancar do lado de fora.
Através do espaço, que os separava o olhar dele era desafiante, mas ela conseguiu
controlar sua irritação e ele saiu.
Só uma hora mais tarde, quando estava deitada entre os lençóis, com os pés
encostados na bolsa de água quente, Caroline se lembrou do carro. Será que estava
seguro onde o tinha deixado, com as portas sem trancar? Um outro pensamento passou
por sua mente.
Será que alguém na cidade não ia descobrir o carro e avisar a Guardiã Civil, a
polícia rural que mantinha a lei naquela região do país? E será que a Guardiã local não ia
abrir a porta e olhar no porta luvas, encontrando lá o registro do carro com o seu nome?
Ela não queria que o carro fosse encontrado, porque ainda não queria ser
encontrada. Queria mais alguns dias para pensar. E o que ia fazer com o carro?
Empurrou as cobertas e saiu da cama. O ar frio fez com que sua camisola esvoaçasse, e
ela ficou arrepiada. Foi até a mala, abriu-a e lembrou, irritada, que não tinha trazido
nenhum robe. É isso que acontece quando todas as coisas são feitas por alguém,
inclusive a mala, que era sempre preparada por uma empregada. Você perde a habilidade

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de pensar e planejar por si mesma.
Sua capa de chuva ainda estava no cabide, na porta da cozinha, e ela não tinha
trazido nenhum outro casaco. Tudo o que podia colocar sobre a camisola era um chale de
crochê, que ela tinha pensado usar nos passeios à tarde pelas montanhas. Colocou-o
sobre os ombros, procurou a caixa de fósforos que Pio havia deixado ao lado do castiçal e
acendeu uma vela. Protegendo a chama com uma das mãos, saiu descalça.
A porta rangeu ao abrir e ela saiu para o quarto grande. Ergueu a vela para ver se
Pio estava na cama mas, aliviada, percebeu que o quarto estava vazio. Ainda bem, ele
ainda estava de pé.
A luz suave do fogo vinha da cozinha e foi fácil para ela ver o caminho escada
abaixo. Desceu devagarinho e, ao fazer a curva, pôde vê-lo na cozinha.
Pio estava sentado à mesa. Na sua frente havia um grande bloco de papel e ele
parecia estar desenhando. A fumaça subia do cigarro que pendia do canto de seus lábios
e havia um copo de vinho na sua frente.
Pela primeira vez Caroline teve chance de observá-lo sem que ele visse. Era bonito,
pensou, mas não do tipo de Billy. Seus traços eram mais duros, firmes, mesmo quando
sorria. Agora ele estava sorrindo, encostado no espaldar da cadeira, e o brilho dos olhos
suavizava a severidade do rosto.
Ela pisou no degrau seguinte, curiosa para ver o que ele estava desenhando. O
degrau rangeu e ele se virou, de repente. Ao vê-la, cobriu a folha de papel com o bloco,
deixando claro que não queria que ela visse o papel.
— O que você quer, agora? — perguntou, irritado. Ele amassou o cigarro, pegou o
copo de vinho, e bebeu tudo. Através dos olhos um pouco fechados ela viu que ele a
observava.
— Só agora lembrei do carro — ela disse, indo diretamente para a mesa e
colocando a vela sobre o tampo. — Você acha que está certo deixá-lo lá? Esqueci de
trancar as portas.
— Trancar as portas de um carro nesta cidade é como dizer a todos os moradores
que os acha ladrões — replicou ele, enquanto a olhava, curioso. — Mas já que está tão
preocupada, posso ir lá e trancá-lo para você. Está com as chaves?
— Elas estão no bolso da minha capa. Não é com os ladrões que estou preocupada.
Não quero vê-lo encontrado pela Guardiã Civil local.
— Por quê?
— Eles podem olhar dentro e vão saber que me pertence. E eu ainda não quero ser
encontrada.
Os olhos dele se estreitaram, preocupados.
— Humm, você tem razão. E, se a encontrarem, vão me encontrar também. E isso é
muito inconveniente.
Os olhos de Caroline se arregalaram e uma série de pensamentos passou pela sua
mente, fazendo-a chegar a uma conclusão.
— Você veio aqui para se esconder da Guardiã? — sussurrou.
— Eu vim aqui para me esconder, mas não necessariamente deles ?— replicou com
um certo humor. — E prefiro que meu esconderijo átual não fique conhecido de todo o
país basco. É o que eu acho que ia acontecer se a filha de alguém tão importante como
Joseph Morondo fosse encontrada aqui comigo. Já imaginou os títulos dos jornais?

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"Herdeira fugida é encontrada numa fazenda remota com o conhecido filho de um
conhecido pai."
— Você é conhecido?
— Muito. — Os olhos dele eram novamente enigmáticos e ela teve certeza de que
ele estava apenas se divertindo. Mas Caroline tinha uma fascinação infantil por qualquer
pessoa que estivesse fazendo alguma coisa errada. Por isso, olhou orgulhosa e disse
friamente:
— Neste caso, agradeço muito se colocar o carro em um local onde ele não possa
ser visto.
— Vou fazer o possível, señorita, para executar suas ordens. — respondeu ele
fazendo uma curvatura, como se fosse um empregado.
— Quer outro copo de vinho? — perguntou gentilmente, erguendo a garrafa e
enchendo o próprio copo. — Vai ajudá-la a dormir, se estiver com alguma dificuldade.
Ela o estudou mais de perto. Seu cabelo estava em desalinho, como se ele tivesse
passado os dedos diversas vezes por ele, e seus olhos estavam um pouco avermelhados,
como se tivesse bebido demais.
— É por isso que você bebe tanto? Para ajudar a dormir? — perguntou, numa
espécie de desafio.
— Talvez. — Ele deu de ombros com indiferença e levou o copo aos lábios.
— Você também fuma demais — repreendeu ao vê-lo tirar um cigarro do maço que
estava sobre a mesa.
— E daí? Por que essa preocupação com o fato de eu estar bebendo ou fumando
muito?
— Por nada, mas. . .
— Mas a puritana que existe em você quer privar um pobre homem de duas das
suas extravagâncias?
— Você deve saber que nenhuma dessas duas coisas faz bem à saúde...
— Por favor, señorita, dispense-me de ouvir o sermão sobre as minhas falhas. Volte
para sua cama, agora. Essa camisola que você está usando mostra muito mais do que
devia e o que ela esconde me faz lembrar todos os prazeres que estou perdendo durante
os meses que estou passando aqui, sozinho neste vale, com algumas galinhas e uma
vaca como companhia — disse ele secamente.
Caroline não teve nenhuma dúvida sobre o que ele estava querendo dizer, mas ficou
surpresa com sua falta de reação. Não fez nenhum movimento para puxar o xale para
frente, a fim de cobrir a transparência que deixava ver parte dos seus seios. O olhar dele
desceu para suas cadeiras. Ela sabia que seus quadris estavam tentadores através da
camisola. Um pensamento lhe passou pela cabeça: gostaria de ser amada por aquele
homem.
No minuto seguinte, estava chocada com sua própria ideia e, como se ele tivesse
podido ler seus pensamentos, viu-o amassar o cigarro e se aproximar dela.
— O que é que há, niña? — murmurou, erguendo as mãos até a testa dela,
afastando uns cachos que lhe caíam sobre o rosto e acariciando-a com os dedos. — O
que você quer? Um beijo de boa noite? Imagino que Mati sempre a beijava antes de
dormir.

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— Não. — Ela deu um passo para trás, mas as mãos dele a seguraram pelos
ombros e ele não teve dificuldade em puxá-la para si.
Era melhor não mostrar nenhuma resistência. Ele era imprevisível, pensou ela,
ignorando a voz interior que lhe dizia: você não está resistindo porque no fundo quer que
ele a beije. Ela queria saber como seria a sensação de ser beijada por ele.
Por isso ficou completamente imóvel enquanto uma das mãos dele lhe acariciava os
ombros, indo até o pescoço, e sentiu que ele a tocava com um dedo na base da garganta,
fazendo com que ela quase traísse a excitação que estava sentindo.
Ele pôs a mão sob os cabelos dela, que estavam embaraçados depois de tanto se
virar na cama. Escorregou-a até a nuca e Caroline percebeu que nenhuma força seria
capaz de afastá-lo dela.
Viu o brilho no olhar de Pio, cheio de desejo, e então seus lábios estavam colados
aos dela, quentes e firmes. A língua dele, com um gosto doce-amargo, um leve sabor de
tabaco misturado ao gosto do vinho, tentou penetrar através dos lábios firmemente
cerrados dela. Sentiu como se um choque tivesse sido transmitido aos seus nervos.
Queria descansar seu corpo de encontro ao dele, deixar-se levar por uma onda de paixão.
Mas, de repente, ele a afastou. Virou-se para a mesa, pegou o copo de vinho e
bebeu o que tinha sobrado. Colocou o copo na mesa e pegou um novo cigarro, colocou-o
na boca e o acendeu na chama da vela. Endireitando o corpo, olhou em volta, encostou
os quadris na mesa e ergueu as sobrancelhas, surpreso.
— Você ainda está aqui? — perguntou. — Está esperando outro beijo? Desculpe,
niña, mas o desejo de beijá-la já passou, como a chama de uma vela que se apaga ao ser
soprada pelo vento frio. Fazer amor com uma dama de gelo não é comigo. Prefiro uma
companheira mais quente e experiente. Vá para a cama. E tenha bons sonhos.
O sentimento de ter sido surpreendida desejando e, como resultado, ser rejeitada foi
forte e desanimador. Caroline virou-se e subiu correndo as escadas, batendo nas paredes
do quarto grande e escuro, pois tinha esquecido a vela lá embaixo. Entrou no seu
pequenino quarto e fechou a porta. Procurou a chave que Pio havia colocado sobre a
cômoda, mas não conseguia encontrá-la. Foi para a cama e se deitou entre os lençóis
frios. Sua mente estava tensa e preocupada com tudo o que tinha acontecido lá embaixo.
Seus dedos se apertaram contra os lábios que tinham sido tocados por ele. Durante
um longo tempo ficou pensando no enigma de Pio Viroda, ouvindo os pingos de chuva
que batiam na janela e no telhado. Por nenhum momento pensou em Billy Van Dorman e
nos convidados que já deviam estar chegando de várias partes do mundo para assistir ao
casamento que devia se realizar ainda naquela semana.

CAPÍTULO II

Caroline acordou com o brilho dos raios de sol que passavam pela janela e se

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refletiam no quarto. Abriu os olhos, viu a cortina florida esvoaçando com a brisa, lembrou
onde estava e sentiu um certo bem-estar. Tinha dormido profundamente e sem sonhos
durante muito tempo. Esticou a mão e pegou o relógio que estava na cadeira próxima.
Nove e quinze? Não podia ser! Os olhos dela estavam realmente abertos, agora.
Sentou-se, olhando o relógio. Não estava enganada. É isso que acontece quando você
não tem empregada para acordá-la: dorme-se demais!
Saiu da cama e foi até a janela. O ar fresco tinha cheiro de terra molhada. Respirou
fundo e com prazer, esticou o rosto e observou a paisagem. Algumas árvores sem folhas
se espalhavam pelas encostas dos vales, a grama era brilhante e algumas gotas da
chuva noturna ainda pingavam dos ramos e eram iluminadas pelo sol. Além dos campos
se erguia uma montanha de pedra, com blocos de granito que brilhavam como ouro,
iluminados pela luz.
Caroline tinha aprendido a amar aquela paisagem há alguns anos. Tinha sentido
muita vontade de vê-la novamente numa manhã como aquela. Tinha esperado para estar
lá, outra vez. Mas, como podia ficar ali, agora que Mati tinha partido? Como podia ficar
naquela casa com Pio Viroda? O lugar pertencia a ele e ela não tinha nenhum direito de
ficar lá.
Vestiu rapidamente uma blusa limpa, azul com margaridinhas brancas, que
combinava com a saia azul. Arrumou a cama e se olhou no velho espelho que estava
pendurado na parede sobre a cômoda.
Suas faces estavam rosadas, os olhos eram azuis e o cabelo parecia ainda mais
dourado. Ela não era realmente bonita, mas muito fotogénica e sua pele clara parecia
agradável. Os olhos tinham cílios longos, os braços e pernas eram graciosos e sempre
tinha atraído a atenção dos homens, onde quer que fosse. Por isso tinha aprendido desde
pequena a lidar com o comportamento destrutivo dos conquistadores e a aparentar uma
certa frieza, o que sempre funcionava.
Isso até a noite passada. Ela podia até ter economizado as palavras com um homem
do tipo de Pio Viroda. Ele era completamente arrogante e, na verdade, tinha sido uma
loucura ter ido falar com ele usando aquela camisola transparente. E depois, o beijo! Na
realidade, ela o tinha convidado a isso.
Mas o que não podia entender era a forma como tinha reagido ao beijo, apesar de
todos os esforços para não se abalar com ele. Nenhum homem tinha sido capaz de lhe
despertar tanto desejo, tão rapidamente. E nenhum homem tinha se afastado tão
rapidamente, sugerindo que ela não era desejável.
Os lábios de Caroline se comprimiram, os olhos se estreitaram. Ela queria se vingar
de alguma forma de Pio Viroda, vingar-se daquela impressão dada por ele, de que ela era
frígida. Não sabia como fazer, a não ser. . . a não ser. . . Sentiu um arrepio percorrê-la,
um sentimento misto de excitação e desejo. Se pudese fazê-lo desejá-la, e no último
minuto rejeitá-lo, estaria vingada.
Com uma exclamação irritada, virou-se e caminhou para o outro quarto. Abriu a
porta com cuidado e olhou dentro. Na luz do dia o quarto grande parecia sujo e
desarrumado, mas, olhando melhor, teve certeza de que ele não tinha dormido lá.
Onde Pio teria dormido? Com a cabeça apoiada nos braços, sobre a mesa da
cozinha, bêbado demais para subir as escadas? Os lábios dela se entreabriram num
sorriso.
Teve um impulso de arrumar a cama, afofar o travesseiro e esticar os lençóis. Fez
tudo às pressas. Quando a colcha estava esticada e os cantos arrumados, olhou o seu
trabalho com satisfação e desceu as escadas.
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A cozinha estava vazia, não havia fogo nem lenha. A mesa também estava vazia,
sem garrafa de vinho, copo quebrado ou sinal do bloco de papel. Não havia cinzeiro sujo
e nenhum homem bêbado dormindo espichado no chão. Qualquer pessoa que vivesse
naquela casa, já tinha saído.
Olhou a porta. Sua capa ainda estava lá, mas, ao procurar, não encontrou o
chaveiro nem as chaves. Será que Pio tinha fugido com seu carro? Ou tinha apenas ido
escondê-lo, tão bêbado que podia ter provocado um acidente?
Ficou ansiosa, precisava descobrir. Pegou a capa e colocou sobre os ombros. Já ia
abrir a porta quando o trinco se mexeu e ela teve de dar um passo para trás rapidamente,
para não ser atingida. Pio entrou, fechou a porta, virou-se, e suas sobrancelhas se
ergueram inquisitivas ao vê-la. Seus olhos verdes pousaram nela e novamente se
encostou na porta, como na noite anterior.
— Onde você estava indo? — perguntou laconicamente, em inglês.
— Eu ia procurar você. Não encontrei as chaves do carro e como você não estava
aqui, pensei que tivesse tido um acidente. Ou... Caroline hesitou, sentindo que enrubescia
ao se preparar para fazer uma acusação. — Ou talvez você o tivesse roubado — terminou
rapidamente e estendeu a mão. — Pode me dar as chaves? — perguntou, como se
estivesse dando uma ordem.
Pio não disse nada e continuou a olhá-la. Ele estava usando a mesma camisa do dia
anterior e tinha colocado sobre ela uma jaqueta leve de couro preto, desabotoada. A
sombra escura de sua barba já começava a aparecer sobre o lábio superior. Os olhos
estavam ligeiramente injetados e havia traços de cansaço neles. Parecia duro e cansado,
pensou Caroline, sentindo-se um pouco nervosa.
— Eu não estou com as chaves — disse ele vagarosamente.
— Então, onde estão elas?
— Eu as deixei na ignição do carro.
— Por quê?
— Porque sim.
— Posso saber onde o carro está?
— Eu lhe digo quando você precisar saber. Na hora em que for embora.
— Já decidi que chegou a hora — ela retrucou impetuosamente.
— Por favor, diga-me onde ele está.
Novamente ele a olhou com frieza. Um olhar que percorria o seu corpo com
insolência, parando na abertura do decote, onde aparecia o começo dos seios.
— Mas, pensei que quisesse ficar alguns dias, para pensar melhor e decidir o que
quer fazer da vida — ele respondeu, imitando as frases dela com um sotaque muito
britânico e deliberadamente provocante.
— Eu vim aqui para ver Mati — disse ela cerrando os dentes, tentando se controlar,
pois não queria ficar nervosa na frente daquele homem, — Mas Mati não está, por isso
vou embora.
— Já tomou o seu café da manhã? — ele perguntou, mudando de assunto e
deixando-a desconcertada.
— Não. Eu levantei agora.
— Bem, acho que devia comer antes de fazer qualquer outra coisa. As decisões
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tomadas com o estômago vazio são sempre erradas, foi o que descobri há algum tempo.
— Ele colocou as mãos nos bolsos e tirou seis pequenos ovos marrons. — As galinhas
pretas já começaram a botar novamente — comentou, olhando os ovos. — Aqui há o
suficiente para uma omelete, não?
— Sim, acho que sim. — Ela teve que usar ambas as mãos para ajudá-lo a levar os
ovos.
— Há um fogão a gás, no fundo da casa, como você deve saber — disse ele alegre,
ignorando as objeções dela. Cruzou a sala e dirigiu-se a uma porta do lado direito, que
conduzia à despensa, um pequeno quarto com um lavatório e um fogão. Depois de
hesitar um pouco, ela o seguiu. Colocou os ovos em uma tigela que estava sobre uma
mesinha.
— Se você quer um breakfast, pode prepará-lo — disse ela friamente.
— Você disse que tinha ganho um prémio de culinária — respondeu ele enquanto
pegava uma chaleira perto da pia de pedra.
— Isso não quer dizer que eu vá cozinhar para você.
— Bueno. Então não cozinhe para mim, cozinhe apenas para você — disse ele,
encolhendo os ombros e acendendo uma das bocas do fogão. — Esta água é para eu me
barbear e também para o café. Xícaras e mais xícaras de café bem forte para mim. — Ele
esticou os braços e bocejou, esfregou o queixo e perguntou: — Você dormiu bem?
— Sim, obrigada. Mas você parece que esteve acordado a noite toda.
— Estive mesmo — respondeu ele.
— O que ficou fazendo?
— Além de esconder o seu carro, fui ganhar a minha vida — disse e dirigiu-se para a
porta. — Você vai encontrar uma frigideira no armário e também manteiga. Volto quando
a água ferver.
— Mas. . . — ela começou e percebeu que estava falando sozinha. Parecia que
agora passava muito tempo repetindo "mas" e não conseguia dizer mais nada. Balançou
a cabeça e tirou a capa. Podia fazer o que ele tinha sugerido, preparar um breakfast
decente. E, se ia cozinhar para si, podia também cozinhar para ele. Afinal, ele não tinha
hesitado em dividir com ela o jantar da noite anterior.
Indo para a cozinha, pendurou a capa atrás da porta, ao lado da jaqueta de couro de
Pio. Era de couro de ótima qualidade e estava muito usada. Certificando-se que ele não
estava no quarto, deslizou os dedos para um dos bolsos, esperando encontrar as chaves
do carro. O bolso estava vazio. Procurou no outro, mas encontrou apenas um maço de
cigarros e duas caixas de fósforos. Pio tinha dito a verdade, as chaves estavam no carro.
A não ser que estivessem no bolso da calça.
A chaleira começou a assobiar, ela voltou e fechou o gás. Quebrou os ovos na tigela
e começou a batê-los, quando ouviu Pio chegando. Despejou a água da chaleira dentro
de um grande jarro, encheu-a novamente e tornou-a a colocá-la no fogo. Ele não disse
nada e dirigiu-se ao lavatório, fechando a porta atrás de si.
Caroline descobriu uma frigideira de ferro fundido com cabo de madeira e colocou
nela a manteiga. A lembrança de Mati fazendo omeletes era muito viva. As omeletes de
Mati eram sempre muito leves e fofas, temperadas com ervas da horta. Num impulso,
Caroline largou a frigideira, abriu a porta e foi para a horta. Em algum lugar entre o mato e
as folhas mortas, encontrou alcaparras. Tinha ido lá muitas vezes para cortar cebolinhas e
lhe parecia que estava encontrando velhas amigas. Cortou algumas e trouxe consigo.

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Ficou por algum tempo olhando as ervas e lembrando como a horta era bonita durante o
verão, há alguns anos.
Olhou na direção das montanhas verdes de picos azulados. A brisa tinha parado e o
ar estava calmo. O dia prometia ser quente e o sol já aparecia por trás de algumas
nuvens. Onde mais ela iria encontrar um lugar como aquele, tão agradável, cheio de paz
e quietude? Em nenhuma outra parte. Mas agora, como podia ficar ali com um homem tão
imprevisível como Pio Viroda?
Voltou para casa devagar, a cabeça inclinada, como se algum problema a afligisse.
Só quando chegou na porta dos fundos foi que percebeu Pio lá, de pé, descalço.
Ele estava nu até a cintura e o sol se refletia em sua pele, fazendo-a parecer de
bronze. Suas mãos repousavam levemente na cintura, uma posição que salientava os
músculos dos braços e dos ombros. Seu peito tinha pêlos pretos e nenhum sinal de
gordura supérflua. Parecia que a pele estava esticada sobre os músculos. Mas ele não
era magro, era esbelto e ágil como um gato das montanhas.
— Qualquer um diria que você nunca viu um homem sem camisa — ele caçoou,
espantado com o efeito de sua presença física sobre ela. Caroline foi para dentro. — O
que você estava fazendo na horta? — ele perguntou, fechando a porta.
— Fui colher algumas alcaparras — disse quase sem fôlego e começou a lavar as
ervas na torneira. — A horta está uma bagunça. Mati a mantinha sempre em ordem.
— Por que você não dá uma arrumada nela, enquanto está aqui? Eu não tenho
nenhuma objeção quanto a isso. Acho que a jardinagem é uma boa terapia para qualquer
um que se sinta ansioso e preocupado — ele sugeriu calmamente.
— Mas, eu já disse a você que vou embora assim que puder ela replicou,
começando a cortar as alcaparras e cebolinhas sobre uma pequena tábua de madeira.
— E para onde você vai? Voltar para o papai? — A pergunta fez com que ela
mordesse o lábio, mas continuou cortando.
— Não ainda. Talvez daqui a alguns dias.
A chaleira assobiou e Pio fez café para si próprio, em uma xícara grande. Caroline
pegou a frigideira e colocou-a sobre uma das bocas do fogão, desejando que ele fosse
embora, mas sabendo que estava sendo observada em cada movimento que fazia. Ela
tinha certeza que ele não a apreciava. Tinha aproveitado todas as oportunidades para
caçoar dela. E, apesar disso, havia aquela perturbação, como se cada um estivesse
sendo atraído pelo outro.
— Então, para onde vai quando partir?
— Não sei e não me importo. E acho que ninguém mais se importa comigo.
Ela não percebeu que ele tinha se movido, até que sentiu os dedos dele tocarem
seu queixo, forçando-a a olhá-lo. Seus sentidos ficaram perturbados pela proximidade
dele. Sentiu o cheiro de tabaco e do sabonete antigo que ele usava, misturados ao cheiro
do seu suor. Ao erguer os olhos, viu rapidamente o formato do seu maxilar sob a pele
bronzeada e o brilho dos dentes, visíveis através dos lábios entreabertos. Olhou o nariz
dele e, surpresa, percebeu o olhar calmo nos olhos cinza-esverdeados.
— É bobagem o que está falando e você sabe disso. É claro que alguém se importa
com você.
— Não agora, que Mati partiu — ela respondeu, triste. — Ela era a única pessoa que
realmente se importava comigo.

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— Escute, Caroline — ele falou suavemente, pronunciando o nome dela pela
primeira vez, enquanto lhe segurava o queixo gentilmente, como se ela fosse uma
criancinha precisando de afeto; depois a mão dele caiu para um dos lados. — Você não
precisa partir. Eu compreendo por que veio aqui. Precisa ficar calma para poder tomar
suas decisões. Eu também vim para cá por motivos semelhantes.
— Você também estava com problemas?
— Si , eu também estava com problemas. — Ele deu de ombros com um sorriso
bem-humorado.
— Que tipo de problema?
— Não importa. Não faz diferença que problema era — ele respondeu
evasivamente. — Só mencionei isso para mostrar que compreendo a sua necessidade de
ter algum tempo para si própria, para pensar.
Caroline virou para o fogão e observou a manteiga derretendo na frigideira. Mais
uma vez sua mente se perdeu em pensamentos sobre ele. Que tipo de problema teria
feito com que Pio viesse viver naquela solidão? Será que estava com problemas
relacionados ao governo do país, novamente? Provavelmente tinham permitido que ele
voltasse à Espanha, com uma porção de outros exilados, quando a monarquia foi
restaurada e teve início um regime mais tolerante. Mas, depois do seu retorno, talvez
tivesse se envolvido em alguma passeata ou coisa mais complicada. Talvez ele tivesse
voltado para organizar as passeatas! Talvez fosse um agitador político! Se tinha passado
a noite ganhando a vida — como havia dito — o que podia estar fazendo? Agitadores se
movimentam no escuro, não? E ele tinha dito também que não queria o país basco inteiro
sabendo onde morava agora; então devia estar se escondendo até recuperar as forças e
organizar novas agitações.
— Matí não teria deixado você dirigir por aí, sem saber para onde. — A voz dele
interrompeu os estranhos pensamentos dela. Ele estava encostado na pia, com os braços
cruzados e olhando-a fixamente. — Então, eu também não vou deixar. Já lhe disse ontem
à noite que pode ficar o tempo que quiser.
— Mas. . . — ela começou a protestar.
— Tudo que você tem a fazer é fingir que eu sou a Mati — ele disse com um sorriso.
— Eu não sei...
— Sei que o papel de babá é totalmente novo para mim — ele continuou, sorrindo -,
mas vou fazer o possível para desempenhá-lo bem. Não vou ser uma babá malvada.
Você pode sair para passear, colher flores e posso até ajudá-la. Vou ouvir os seus
probleminhas e tentar ajudá-la a resolvê-los. Não é isso que Mati teria feito se estivesse
aqui?
— Sim. . . acho que sim... — Caroline virou-se para o fogão onde estava a omelete.
Como ia fingir que aquele homem sensual, atraente e enigmático era Mati, a sua babá tão
afetuosa e agradável? Principalmente depois do beijo da noite anterior!
— Fique, niña — pediu ele suavemente. — Fique, prometo que não estará correndo
nenhum perigo.
Ele atravessou a cozinha e ela o ouviu subindo as escadas para o quarto. Ficar ou
partir? O que ela devia fazer? Queria ficar, mas alguma coisa lá no fundo lhe ordenava
que partisse.
Terminou de fazer a omelete, pegou um pedaço de pão, um pouco de manteiga e
pôs a mesa para dois. Dividiu a omelete em dois pedaços, um maior que o outro, e

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colocou-os nos pratos. Depois preparou duas xícaras de café, colocou-as na mesa e
dirigiu-se ao pé da escada.
— O café está pronto — anunciou.
Ela estava sentada na mesa cortando o pão quando ele desceu. Usava uma camisa
limpa e desbotada. Apesar de todas as suas roupas serem velhas, ele possuía uma
elegância descuidada, que chamava a atenção para a graça de seus músculos e os
movimentos do corpo.
— Pensei que não ia cozinhar para mim.
— A omelete era muito grande, não podia comê-la sozinha — ela respondeu. — E,
além do mais, os ovos tinham sido trazidos por você.
Pelo canto dos olhos ela o viu sorrir.
— As galinhas e a vaca foram emprestadas pelo meu primo Alfonso, senão eu ia
morrer de fome aqui. Juana, a esposa dele, assou o pão, bateu a manteiga e preparou o
queijo. Você acha que estão bons?
— Muito bons.
— Você lembra do Alfonso?
— Acho que sim. Ele é o filho mais velho de Pedro, não é?
— É. Ele herdou a fazenda do pai e agora está usando toda a terra que lhe
pertence. Vai levar para o pasto um rebanho de carneiros esta manhã, para terem o que
comer durante o verão. Prometi ir com ele. — Olhou para ela de modo interrogativo. —
Você já foi até etcholak quando esteve aqui a última vez?
— Não, nunca.
— Então sugiro que venha conosco. Está um dia lindo e a vista que terá é
estupenda — ele disse, entusiasmado.
Caroline olhou pela janela. O céu estava claro e azul, cheio de brilho. Um dia perfeito
para levar os carneiros até o etcholak, o velho abrigo construído com pedras. Era isso que
Mati lhe havia contado, dizendo que era o lugar onde o pastor vivia durante o verão, para
cuidar das ovelhas.
— É um modo bem melhor de passar o dia do que pegar o carro e sair dirigindo
Deus sabe para onde — sugeriu Pio persistente e ela percebeu que os olhos verdes dele
se tornavam mais observadores quando encontravam os dela.
— Gostaria de ir — respondeu simplesmente e sentiu uma sensação de alívio
porque tinha sido fácil tomar a decisão de permanecer mais tempo. — Mas será que
Alfonso não vai achar estranho eu ficar aqui com você?
— Encontrei com ele na noite passada e contei que você estava aqui. Ele lembra de
você e, se achou estranho que esteja aqui, não comentou nada. — Encostou na cadeira e
ficou olhando cuidadosamente para ela. — Estou contente que tenha decidido ficar. A
omelete estava muito boa. Sei que mereceu aquele prémio de culinária. Obrigada por ter
feito a minha cama. Por que teve esse trabalho?
— Ela precisava ser feita — respondeu Caroline. — Acho que você nunca a arruma.
O quarto está uma bagunça e precisa ser espanado.
— Você é uma boa dona-de-casa e eu gostaria de saber por quê.
— E por que não? — ela contestou. — Talvez por estar acostumada a viver num
ambiente limpo e agradável, eu desenvolvi uma aversão por negligência e sujeira.

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— Está bem. Aceito isso — ele respondeu, calmo. — A não ser que você esteja
procurando um caminho para atingir e amaciar o meu coração, com refeições deliciosas e
outros confortos domésticos que normalmente não tenho.
— Você é um cínico, pensando que só cozinhei para impressioná-lo e arrumei a
cama na esperança de amaciar o seu coração — ela retrucou, cheia de humor.
— Eu sou sempre cínico sobre os motivos que levam uma mulher a fazer qualquer
coisa.
— Então, só posso concluir que você conheceu alguns tipos bem desagradáveis de
mulheres — ela respondeu, vendo os olhos dele se estreitarem perigosamente. Virou de
costas, sacudiu os cabelos longos e começou a recolher os pratos usados. — Será que
você vai gostar de saber que não tenho nenhum interesse na sua pessoa? — ela disse e
ficou contente ao perceber que sua voz saía fria e indiferente. — O que há em você para
me atrair? — Fez um gesto com uma das mãos. — Você já disse que é pobre.
Obviamente, está viciado em vinho e cigarros e odeio pensar no tipo de vida que tem
levado e com que mulheres andou. Meu pai diz que pessoas como você, que organizam e
tomam parte em passeatas, são pessoas ignorantes, cheias de preconceitos. — Não. —
ela continuou, olhando-o com desprezo. — Dificilmente você conseguiria me atrair.
Ele se levantou vagarosamente e, vendo o brilho de ódio no seu olhar, Caroline deu
um passo para trás.
— Sua cadelinha esnobe! — A voz dele parecia queimar, era baixa, contida, mas
atingiu-a como uma bofetada.
Ela não reagiu. Encarou-o de frente, cheia de orgulho, olhando diretamente para os
olhos dele.
Durante alguns minutos ficaram se olhando como dois gatos prontos para o ataque.
Então, através da janela, chegou o som de guizos. Respirando fundo, para controlar seu
temperamento, Pio amassou o cigarro e o jogou no fogão.
— Enquanto estiver aqui comigo e se lembrar do que pensa sobre mim, não haverá
problemas, não é? — ele disse friamente. — Ouviu as campainhas? São os carneiros a
caminho. Logo Alfonso estará aqui. — E, olhando para os pés dela, continuou: — Só
trouxe esses sapatos? Eles não servem para andar por aqui.
— Tenho outros — disse Caroline, cansada. Ela tremia tanto que teve de colocar os
pratos sobre a mesa.
— Então vá trocá-los — ele ordenou rispidamente, com um olhar insolente. — Isto é,
se ainda quiser ir conosco. Faça o que quiser. Nunca se deixe forçar a ficar em
companhia de um simples pastor de carneiros e. . . o que mesmo você disse de mim? Ah,
sim, um ignorante cheio de preconceitos.
O sarcasmo dele era demais. Enraivecida, ela subiu as escadas e entrou no quarto.
Fechou a porta atrás de si, batendo-a com força e fazendo um barulhão que ecoou pela
casa toda. Estava ofegante e atirou-se na cama, fazendo as molas do colchão rangerem.
O esforço de dar as costas a ele não lhe tinha trazido nenhuma satisfação. Não se
sentiu triunfante por tê-lo magoado. E por que não? Porque sabia, no fundo do coração,
que não tinha dito a verdade. Sentia-se atraída por ele. Estava fascinada pela graça viril
do seu corpo, pelo olhar de quem não se importa com nada, que ele às vezes lhe dava, e
pelo sorriso de quem tinha feito as coisas mais inesperadas do mundo. Ele era diferente
de todos os homens que ela conhecia e queria ficar perto dele, ficar muito mais perto e
saber mais sobre suas atividades.
Levou as mãos aos lábios e depois ao pescoço, onde ele a tinha tocado. Oh!, Deus,
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ela não queria se sentir atraída por Pio, não queria cair na armadilha que a personalidade
perturbadora dele lhe havia preparado. Estava com medo que aquela atração explodisse
de repente e que ela não fosse capaz de controlá-la.
Então não seria melhor evitar ir com ele e o primo para as montanhas? Não seria
mais seguro ficar na casa? Ergueu-se e foi até a janela. As curvas das colinas verdes
tinham um ar misterioso, cheias de vales azulados. Eram tentadoras. Queria andar por lá
e esquecer os problemas.
O barulho da porta sendo aberta fez com que ela pulasse de susto. Pio estava lá, de
pé. Tinha colocado um suéter azul-marinho sobre a camisa e trazia na mão a jaqueta de
couro. Estava pronto para partir.
— Você vem, ou não? — perguntou ríspido, como se quisesse levá-la e ao mesmo
tempo preferisse que ela não fosse.
— Eu. . . eu. . . gostaria. . . tem certeza que não vou incomodar vocês?
— A única coisa a fazer é ficar perto de nós para não se perder — replicou
friamente. — Não conseguiu trocar os sapatos sozinha? Mati teria ajudado você?
— Não, não teria — ela respondeu, abrindo a mala e pegando um par de mocassim
inglês. Tirou as sandálias, sentou na beirada da cama e colocou os sapatos enquanto Pio
a observava da porta. Pegou a bolsa, pendurou nos ombros e ergueu a cabeça, dizendo:
— Estou pronta.
— Você não vai precisar disso — disse ele, aproximando-se e retirando a bolsa dos
ombros dela.
— Vou, sim — respondeu, segurando a alça.
— Para quê? Só vai atrapalhar.
— Aqui tem coisas que posso precisar.
— O quê?
— Coisas de mulheres. Não interessam a você — respondeu, desafiadora. Queria
levar o dinheiro porque achava que tinha chance de fugir pelo vale quando estivessem
nas montanhas. Só precisava descobrir onde ele tinha escondido o carro.
— Está bem — ele concordou. — Eu levo a bolsa para você. Com todo o dinheiro
que carrega aí, ela deve estar pesada — pendurou-a no seu próprio ombro e ela sentiu
uma certa suspeita. Tudo o que ele dizia parecia indicar que ela estava ficando já por sua
própria vontade, mas tudo o que ele fazia tornava a partida dela cada vez mais difícil.
Começou a sentir que tinha caído numa armadilha.
Lá embaixo, colocou a capa. Do lado de fora, Alfonso Viroda os escperava fumando
um cachimbo. Tinha quase a mesma idade de Pio, era mais baixo e gordo. O rosto era
redondo, a pele ressecada pelo vento e os olhos tinham um olhar inocente e calmo. As
únicas coisas que os dois homens tinham em comum eram a pele bronzeada e os
cabelos negros.
Alfonso cumprimentou-a levemente quando Caroline saiu. Logo os três estavam
seguindo o rebanho de duzentas ovelhas por um atalho que os animais já conheciam. A
traseira de cada ovelha estava pintada com tinta para marcá-la como membro do rebanho
Viroda. Eram animais delicados e graciosos, com longos chifres curvados e lã
encaracolada. Quando Caroline, que preferiu caminhar junto a Alfonso, fez perguntas
sobre o rebanho, ele lhe explicou que aquela raça se chamava manech e era criada na
região desde o tempo dos romanos.

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Subiram por inúmeros atalhos, cruzaram riachos, pularam pedras e o sol começou a
esquentar. Caroline tirou a capa e sentiu que teria sido melhor se não estivesse usando
sua calcinha de náilon, que lhe dificultava o andar.
Só à tarde chegaram ao etcholak. Era um abrigo pequenino, feito com pedras de
tamanhos diferentes. A vista era maravilhosa sobre as pastagens cobertas de sol, cheias
de flores silvestres, tendo ao longe os altos picos das montanhas.
Enquanto Pio e Alfonso estavam descarregando os sacos de provisões das duas
mulas, José, o menino pastor, levava o rebanho para as pastagens atrás do etcholak,
onde os animais se alimentariam durante o verão. Quando voltou, havia um fogo aceso na
lareira central do abrigo e o almoço já estava pronto.
Sentaram em tapetes de lã e comeram um delicioso carneiro defumado e assado,
acompanhado de queijo, pão e vinho.
Com o encorajamento de Alfonso, Caroline bebeu bastante e começou a se sentir
contente, ouvindo ao longe o riso e a conversa dos dois homens. Sentia que toda aquela
experiência lhe era familiar e tinha esquecido os atritos e a agressividade que existiam
entre ela e Pio. Decidiu contar-lhe como se sentia e ele respondeu:
— Também sinto isso. — Ele estava encostado na parede de pedra, os olhos um
pouco fechados e os longos cílios fazendo sombras sobre a face. Nos lábios, um sorriso
doce. — Lembre-se que você teve um avô que era um pastor basco — ele disse.
— E daí?
— Daí que ele deve ter vivido em um abrigo igual a este durante o verão, da mesma
forma que José vai fazer agora, e que o meu avô Chemarc fez quando era jovem. É como
todos os pastores bascos vivem desde os mais antigos tempos. E isso é algo que não sai
da memória em poucas gerações. O que eu acho estranho é que você e eu temos esta
herança em comum, quando tantas outras diferenças nos separam.
Mais uma vez seus olhares se cruzaram, mas sem raiva, agora. Havia um brilho
carinhoso nos olhos de ambos. Prendendo a respiração, Caroline virou-se e ficou olhando
a fumaça, ouvindo Alfonso e José conversarem.
Pensou nas diferenças que existiam entre eles. Ela sempre tinha vivido num
ambiente de harmonia e conforto. Pio sabia o que era passar por necessidades, andar
pelos becos escuros e se relacionar com pessoas violentas. Ela pertencia ao sistema, ele
era um rebelde. O pai dela, por meio de negócios bem-sucedidos, era um dos homens
mais ricos do país. O pai dele tinha sido assassinado a bala. E, apesar de tudo isso, havia
aquela atração entre ambos. Será que era devido à herança em comum, aos avós
pastores? Ou seria algo mais forte?
Tornou a olhá-lo. Viu que estava dormindo, com os ombros apoiados na parede e a
cabeça pendida para um lado. A noite sem dormir o deixara cansado e agora estava
relaxado sob a influência do vinho e da companhia dos outros homens. Alfonso e José se
levantaram e saíram do abrigo. Caroline ficou onde estava, estudando Pio. Dormindo ele
parecia menos agressivo, mais jovem e vulnerável. Imaginou como teria sido se o tivesse
conhecido anos atrás, antes dele ter sido forçado a abandonar o país. Surpreendeu-se
pensando que gostaria de tê-lo conhecido.
Imediatamente rejeitou a ideia, achando-a boba e sentimental. Ele tinha dez anos
mais que ela e isso os teria separado ainda mais do que agora. Há dez anos ela era uma
colegial inexperiente, que nem teria compreendido aquele estudante amante da liberdade,
se tivessem se encontrado.
Então, não haveria esta atração que havia agora. Ela não teria querido afastar os

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cabelos que se espalhavam pela testa dele, não teria querido se encostar na parede para
ficar ao lado de Pio e colocar aquela cabeça inclinada sobre seu colo. Não teria querido
dormir com ele.
Deus! O que estava pensando? Levantou-se e saiu rapidamente, enquanto ele ainda
dormia. Pegou a capa, atirou-a nos ombros e deu uma olhada para ver se Pio não tinha
acordado. Ao virar-se, encontrou Alfonso fumando seu cachimbo e observando os rolos
de fumaça.
— Pio está dormindo — ela explicou.
— Deixe-o dormir. Está cansado. Vamos esperar que acorde para voltarmos ao vale
— ele respondeu.
— Eu já vou indo — ela retrucou, cheia de determinação.
— Mas você pode se perder, niña — ele protestou. — E por que esta pressa?
Temos todo o resto do dia para voltar.
— Eu não vou me perder. Lembro o caminho muito bem — ela disse, dirigindo-se
para o atalho por onde tinham vindo.
— Pio não vai gostar que você volte sozinha — falou Alfonso, movendo-se
rapidamente, como se fosse barrar-lhe a passagem. — É melhor esperar, señorita. Por
favor, até que ele acorde. Então voltamos todos juntos.
— Mas não quero esperar que ele acorde. Quero ir agora — ela insistiu, percebendo
que parecia mimada e petulante.
Uma expressão irritada cruzou o rosto bonachão de Alfonso.
— Então vou acordar Pio — ele disse resignado, como se fosse uma pessoa velha e
tolerante tratando com uma criança malcriada. E dirigiu-se para o abrigo.
Caroline hesitou, deu uma olhada em direção ao atalho e percebeu que não ia
conseguir chegar muito longe antes que os dois a alcançassem. Rapidamente dirigiu-se a
Alfonso. Colocou a mão no braço dele, para pará-lo.
— Não, não o acorde — pediu baixinho, — vou esperar. Conte-me alguma coisa
sobre Mati.
Ele pareceu aliviado e ela suspeitou que talvez Pio tivesse avisado o primo que ela
poderia tentar fugir. Mais uma vez teve a sensação de ter caído em uma armadilha. Tinha
vindo por livre e espontânea vontade e queria poder voltar da mesma forma.
O sol estava quente e o ar completamente parado. Grandes nuvens se formavam
por trás dos picos das montanhas e, ao longe, os carneiros faziam um barulhinho
delicado, com seus guizos.
— Foi problema de coração, señorita — disse Alfonso. — Ela sempre teve uma certa
fraqueza e um dia, quando estava ordenhando as vacas, o coração parou.
— Ela não tinha muita idade.
— Tinha cinquenta e seis anos. Mas os trabalhos pesados que fazia e os cuidados
com o pai não lhe fizeram bem.
— Fiquei muito triste quando cheguei e não a encontrei em Esker Ona. Por que
ninguém me avisou que ela tinha morrido?
Ele ficou silencioso por alguns momentos, fumando, depois olhou para o céu.
— Talvez porque sentimos que você não se importava mais com Mati — disse
vagarosamente.
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— Por quê? Por que diz isso? — perguntou, sentindo lágrimas nos olhos ao
perceber que ele não a apreciava, por causa de sua fortuna e de suas atitudes esnobes.
Era tudo tão injusto! — É claro que me importo com Mati. Escrevi a ela em todos os
Natais e sempre lhe mandei presentes. Talvez pudesse ter providenciado um bom médico
para ela.
Um ar de dúvida passou pelos olhos de Alfonso, mas Caroline continuou:
— Oh, você deve achar que eu devia ter vindo vê-la mesmo que ela não estivesse
doente. Mas era impossível, meu pai me fez... -. interrompeu-se, percebendo que ia jogar
a culpa no pai, criando uma desculpa na qual Alfonso não acreditaria. — Eu entendo o
que você e Pio pensam. Acham que eu cresci e me transformei numa cadela egoísta e
mesquinha. E é verdade.
— Eu não penso isso, señoríta. — A voz dele era macia e o rosto tinha assumido um
ar orgulhoso. — Eu nunca teria usado essas palavras para descrever uma mulher. E
também não gosto de ouvir essas palavras serem ditas por uma mulher.
— Desculpe — ela murmurou. Tinha esquecido como o povo basco era puritano no
que diz respeito à linguagem e às boas maneiras. — Estou só citando o seu primo. Foi ele
quem disse que eu sou tudo isso. Conte-me onde Mati está enterrada, por favor — pediu
humildemente.
— Ela está na sepultura da família Viroda, no cemitério da igreja.
.— Gostaria de ir até lá, colocar algumas flores e fazer uma oração — disse ela,
sincera. — Por favor, mostre-me onde é a sepultura quando voltarmos ao vale?
— Peça ao Pio para lhe mostrar — ele murmurou, mostrando-se preocupado.
Ela respondeu, irritada:
— Por que devo pedir a ele? E o que ele está fazendo em Esker Ona? Não está
cuidando do lugar. Está tudo uma bagunça.
Agora ele a olhava espantado. Os olhos castanhos estavam bem abertos.
— Ele é dono de Esker Ona por direito de herança. Porque ele é o filho mais velho
do filho mais velho de Chermac. E, de acordo com os costumes bascos, a terra é dele —
explicou paciente.
— Sei disso — respondeu ela, irritada. — Mas não é por isso que ele está aqui.
Disse que veio porque estava com problemas. Você sabe que tipo de problemas?
— Não, não sei. É a vida dele. Só posso dizer que veio para o vale porque precisava
de paz e calma durante algum tempo. Encontrou tudo isso aqui. — Alfonso lançou-lhe um
olhar crítico. — É pena que você tenha vindo perturbá-lo — acrescentou rapidamente.
— Não tive intenção nenhuma de perturbar ninguém — ela respondeu. — Ele me
pediu para ficar, se eu quisesse. Por isso fiquei.
— Ele fez isso porque sabia que Mati gostava de você. Pio pediu a todos do vale
que não falássemos com ninguém sobre a sua estada aqui. Escondeu o seu carro em um
dos meus estábulos, para não ser visto por ninguém que apareça, procurando-a. Ele sabe
que ambos terão problemas se você for encontrada no vale, vivendo na mesma casa que
ele.
— Por que haverá problemas para ele? — ela perguntou, escondendo o trunfo de
que agora sabia onde estava o carro.
— Porque você é a filha de um homem poderoso e conhecido — replicou Alfonso,
evasivo. — Agora desculpe-me, señorita. Tenho que falar com José.

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Caroline achou que ele estava apenas dando uma desculpa para não ter que lhe dar
mais respostas. Controlou-se, pois queria saber como o fato de ser a filha de Joseph
Morondo podia trazer problemas para Pio.
Dirigiu-se ao córrego e ficou observando. Uma ideia lhe surgiu: esta era a chance
que estava esperando. Virou-se e viu Alfonso conversando com José. Falou:
— Vou colher algumas flores para o túmulo de Mati. Volto logo.
Alfonso sacudiu a cabeça, mostrando que tinha ouvido e aprovava. Ela se afastou,
colhendo as flores próximas ao regato. Ali, estava escondida de qualquer pessoa que
olhasse do etcholak. Virou-se e foi descendo, seguindo a corrente de água, atraída por
novas flores.
Ia colher flores até chegar ao vale, depois seguiria até a fazenda de Alfonso, do
outro lado da estrada, pegaria o carro, passaria no cemitério e deixaria as flores na
sepultura de Mati.
Seus pensamentos não iam além disso. Não sabia para onde ir quando deixasse o
vale. Só sabia que devia partir enquanto Pio estava dormindo. Não que a presença dela
no vale fosse perigosa para as pessoas, mas porque ele era perigoso. Caroline sentia o
perigo próximo e só queria escapar.
Foi descendo, os barrancos nas margens do riacho se tornavam mais íngremes e o
céu se abria de nuvens. Um pouco adiante as águas se transformavam em uma cachoeira
e, cheia de frustração, ela percebeu que não podia seguir adiante, pois havia uma parede
de pedra. Parou onde estava e olhou em volta. Próximo havia um atalho estreito e ela
decidiu caminhar por ele e cruzar a correnteza, pulando sobre algumas pedras.
Pular a primeira pedra foi fácil, mas a segunda tinha um formato arredondado e difícil
para Caroline se equilibrar. Quando decidiu pular, perdeu o equilíbrio e caiu na água,
batendo o cotovelo esquerdo nas pedras.
A dor era terrível e ela quase desmaiou. O choque da água gelada batendo em suas
faces, penetrando pelas roupas e nos cabelos, trouxe-lhe um sentimento de pânico que
aumentou ainda mais à medida que foi perdendo o fôlego e percebendo que estava sendo
levada pela correnteza, em direção à cachoeira.
Escorregando e flutuando, conseguiu apoiar um dos pés na margem. Quase sem
fôlego, agarrou-se nos galhos de uma árvore e procurou se arrastar para fora, em direção
ao barranco cheio de lama e capim molhado. Mas a dor em seu braço era muito forte. Ela
perdeu os sentidos e tornou a escorregar para dentro da água.

CAPÍTULO III

A mesma pontada de dor que a tinha feito desmaiar trouxe-a de novo à consciência.
Ela gemeu e ouviu uma voz:

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— O que aconteceu, niña ,está doendo? — A voz era familiar. Pertencia a Pio e,
pela primeira vez, ele estava preocupado com ela.
Caroline estava sentada no chão, com as costas apoiadas na parede. Primeiro
pensou que estivessem no eicholak, mas depois viu uma abertura. Não era uma porta,
mas um arco rústico, através do qual podia ver folhagens e samambaias e ouvir os pingos
de chuva pesada.
— Onde estamos? — perguntou.
— Em uma caverna, perto da cachoeira — respondeu Pio, que estava ajoelhado ao
seu lado.
— O que aconteceu?
— Você escorregou e caiu no rio. Estava desmaiada quando chegou na margem.
Seu cabelo estava molhado e gotas de água pingavam-lhe das faces, mas o resto do
corpo estava quase seco. Foi uma sorte eu tê-la seguido. Só assim pude tirá-la da
correnteza e trazê-la aqui.
— Quer dizer que eu podia ter me afogado?
— Si. — O olhar dele a percorreu. — E agora tire estas roupas — disse
rapidamente, já com os dedos nos botões da blusa dela.
— Não! Não! — Caroline o empurrou com força. — Não vou tirar a roupa aqui!
— Mas você está muito molhada e tremendo. Se não tirar a roupa pode pegar um
resfriado, até uma pneumonia — argumentou. — Aquela água é muito fria, está cheia de
neve derretida.
Ela estava tremendo inteira. Os dentes batiam, o cabelo molhado pingava e toda sua
pele parecia arrepiada.
— E o que vou usar, se tirar minhas roupas?
— Eu lhe empresto meu suéter. Ele ainda está seco.
— Mas não me cobre toda!
— É verdade — ele esfregou o queixo, pensativo —, mas cobre a parte mais
importante para que você não fique doente — explicou.
Mal tinha acabado de falar quando a caverna foi iluminada por um relâmpago e logo
depois um gigantesco trovão sacudiu as montanhas.
— Trovões em maio? — perguntou Caroline.
— Si. A temperatura está muito alta para esta época do ano. Você não viu como a
manhã estava quente e úmida? Ou estava muito ocupada colhendo flores? — Ele estava
ficando agressivo novamente. — Por que não me esperou? — Seus olhos tinham um
brilho brincalhão. — Eu a teria ajudado a colhê-las.
— Você estava dormindo.
— Eu acordei enquanto você e Alfonso conversavam. Tiveram uma conversa de
comadres, vocês dois. — Ele a olhava cauteloso, como se soubesse que tinham falado
dele.
— Ele contou que eu tinha ido colher flores?
— Sim, e quando você não voltou, decidi segui-la. Chamei-a várias vezes, mas acho
que você não ouviu por causa do barulho das águas. Não olhou para trás nenhuma vez. E
agora, tire logo essa blusa e coloque meu suéter.

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— Só vou tirá-la se você olhar para o outro lado — ela respondeu. Seus olhos se
encontraram num desafio.
— Sua modéstia me surpreende — ele respondeu. — Você não se importou em ser
fotografada com aquele biquini mínimo. . .
— Aquilo foi diferente. . . — ela replicou, furiosa — aquelas pessoas são diferentes.
— Diferentes de mim, você quer dizer. — O olhar brincalhão tinha desaparecido,
dando lugar a uma expressão amarga, quando ele se inclinou e disse: — Ver ou não ver
você sem roupas, para mim não significa nada, niña. Você não significa nada para mim. E
agora pare de ser teimosa e tire a roupa.
— Por favor, olhe para o outro lado — ela pediu. — Posso me desabotoar sozinha.
— Não, não pode. Sabe que seu braço dói quando o movimenta — ele respondeu
agressivo, ao ver que ela gemia para se desabotoar.
— O que aconteceu com ele?
— Quando escorreguei bati o cotovelo em uma pedra. — Ela tentou erguer o braço e
mais uma vez sentiu a pontada de dor. — Espero que não esteja quebrado —
acrescentou, baixinho. Nunca em toda a sua vida tinha quebrado um membro ou se
machucado gravemente. Todos os seus arranhões da infância tinham sido prontamente
curados por Mati e, mais tarde, pelas enfermeiras das escolas.
A mão de Pio segurou seu braço. Os dedos longos apalparam-no acima do cotovelo,
pressionando os músculos contra os ossos.
— Foi aqui? — perguntou, os dedos no lugar onde doía.
— Sim — ela gemeu e se agarrou ao suéter dele com a outra mão, temendo
desmaiar novamente.
— Então tire a blusa — ordenou, já com os dedos nos botões, antes que ela
pudesse protestar.
Ela estava tremendo e incapaz de reagir. Ele afastou a blusa para os ombros.
— Vou cortá-la em tiras para fazer uma tipóia — disse e ela se viu nua da cintura
para cima, com exceção do minissutiã de renda e seda que mal lhe cobria os seios
redondos e de bicos rosados.
— Está bem — ela concordou, fazendo o possível para que sua voz soasse
indiferente.
— Isso aí está molhado também? — ele perguntou, tocando a alça de seda do sutiã.
— Não muito.
Ela não conseguia olhar para o rosto dele. As batidas rápidas de seu coração
pareciam trovões e suas faces estavam em fogo.
— Você acha que quebrei o braço? — perguntou, rouca.
— Não. — Ele estava cortando a blusa em tiras. — Não senti nenhuma
protuberância do osso. Mas pode ser uma rachadura na parte superior do osso, por isso
sente tanta dor.
— Como você sabe disso?
— Estudei anatomia.
— Você estudou para ser médico? — Ele não combinava com a idéia que ela tinha
dos médicos.
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— Não, estudei arte.
Então era por isso que vê-la sem roupas não significava nada para ele, pensou. Ele
lhe ergueu o braço, colocando-o na frente do corpo, pouco abaixo dos seios. Ela já não
tremia mais. Um calor estranho a invadira e gotas de suor estavam se formando na sua
testa.
— Sente-se confortável? — ele perguntou, colocando a tipóia no braço e prendendo-
a no pescoço de Caroline. Os dedos dele roçavam sua pele. Caroline estava sem voz e
só conseguiu concordar com a cabeça. Pio avançou o rosto para amarrar as pontas atrás
do pescoço dela.
Quando o nó estava pronto, ele arrumou a tipóia, passando-a entre os seios dela.
Uma sensação perturbadora invadiu Caroline. Queria que ele a tocasse. Não friamente,
como um enfermeiro ou um médico, mas apaixonadamente e cheio de desejo sensual por
sua pele e suas formas.
Queria que ele também quisesse o mesmo. Ergueu a cabeça e olhou-o diretamente,
sabendo que ia demonstrar tudo o que sentia. Para ser ainda mais convidativa, entreabriu
os lábios. Os olhos dele estavam na mesma altura dos dela e Caroline viu que mostravam
surpresa, antes de escurecerem e adquirirem uma expressão perigosa e destruidora. O
olhar dele desceu para sua boca.
Foi um momento em que ela quase perdeu o fôlego, com tanta sensualidade.
Trovões ecoaram novamente ao longe, acentuando a tensão entre ambos. Então Pio se
moveu rapidamente. Tirou o suéter e o empurrou para Caroline, vestindo-a pela cabeça.
Espantada e cheia de desapontamento, ela enfiou um braço em uma manga e ele puxou
o resto sobre o cotovelo machucado.
Mais uma vez ela estava vestida. A lã grossa lhe fazia cócegas na pele. O calor do
suéter vindo do corpo dele agora a aquecia. Era o melhor que podia ter, já que ele não a
tinha abraçado para aquecê-la.
— Por que você queria atravessar o riacho? — ele perguntou, terminando de destruir
a paixão que ameaçava instalar-se entre eles
— Achei que se pudesse cruzá-lo, ia seguir a correnteza até chegar ao vale.
— Então queria fugir? Por quê?
— Eu. . . eu. . . eu estava com medo. Alfonso disse que minha presença aqui é
perigosa para o povo da cidade e do vale. Achei melhor ir embora.
— Por que não seguiu pela trilha dos carneiros?
— Alfonso não deixou. Disse que você não ia gostar que eu partisse enquanto você
dormia. Pediu-me para esperar, que ia acordá-lo. Por que não quer que eu parta, Pio?
Ele estudou sua face, depois inclinou-se para a frente e, com ambas as mãos,
afastou os cabelos molhados dela. Novamente uma certa tensão se formou entre os dois.
Caroline sentiu que ele sussurrou algo, percebeu que seus dedos acariciavam-lhe o
pescoço. Viu os lábios dele se entreabrirem e se aproximarem. Os olhos dela brilharam,
triunfantes. A vingança estava próxima.
— Devo estar perdendo a cabeça — ele murmurou, sua boca tocando a dela.
Caroline pressionou seus lábios aos dele e passou a mão no pescoço de Pio. Seus
lábios se abriram sobre os dela, cheios de sensualidade e erotismo, deixando-a sem
iniciativa. Os braços dele a envolveram. De repente Pio estava sentado próximo e ela
agarrada em seu peito. Deixando os lábios de Caroline, ele a beijou no rosto, nas orelhas,
no pescoço e voltou aos lábios.

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Novos trovões ecoaram, mas Caroline nem os ouviu. Esqueceu a dor no braço e o
motivo que a tinha feito atraí-lo. A intensidade e a paixão dos beijos dele tinham
despertado uma paixão semelhante nela.
Passou os dedos pelos cabelos molhados dele, pelo pescoço e pelo peito. Estava
aconchegada a ele e sentia-se lânguida; os beijos se tornaram mais intensos e o abraço
mais forte. Caroline gemeu, não de dor, mas de prazer, quando sentiu que as mãos dele
penetravam sob o suéter e, com as pontas dos dedos, lhe acariciavam os seios. Devagar
foi sentindo um desejo que era tão grande quanto o dele.
Queria ficar cada vez mais perto, até chegar a uma união completa. Era algo que
nunca tinha sentido por outro homem.
Mas, de repente, as mãos dele a afastaram. Ele se levantou e foi à entrada da
caverna. Encostou um ombro na pedra, passou a mão pelos cabelos e sacudiu a cabeça
com força, como se tentasse afastar a paixão. Tirou cigarro e fósforos do bolso.
O sentimento de ter sido rejeitada era ainda mais forte do que a noite passada.
Caroline estava sem fôlego. Levantou-se e seguiu-o. Fora da caverna tudo estava
molhado e verde. A chuva tinha parado, mas a água ainda escorria e caía das árvores.
— Pio, o que aconteceu?
Ele tinha uma expressão indiferente, cheia de hostilidade.
— Pio, o que é? Por que está me olhando assim?
— Eu não quero ser usado como um substituto.
— Substituto? — Ela estava confusa. — Não entendo. . .
— Não mesmo? Então eu explico. Agora você já teve o que estava querendo, não?
— O que quer dizer? — ela falou baixinho.
— Queria ser acariciada e confortada porque tinha se machucado. Mas não vai ter
mais do que isso. Não vou ser usado como um substituto de Billy Van Dorman, nem de
Mati.
À medida em que ela compreendeu o sentido daquelas palavras, sentiu raiva.
— Você acha que eu fingia que você era Billy e por isso deixei você me tocar
daquela maneira? Que coisa mais louca está sugerindo?
— E o que mais você podia esperar de um ignorante cheio de preconceitos? Tenho
alguma outra explicação para a sua mudança de atitude? Sabe, nem tenho certeza se
estou com a mesma mulher. Na noite passada tive a impressão de beijar uma virgem fria,
pura neve, gelada até o pescoço. Hoje à tarde. . . Uau! — Sua expressão de espanto
causou aborrecimento nela. Ele prosseguiu: — Que diferença! De repente pensei que
você queria que fizéssemos amor, que nos tornássemos amantes nesta caverna primitiva.
Por isso concluí que gostaria de estar em Bilbao e levar avante o casamento com Van
Dorman, Para não perder todas as carícias e beijos a que terá direito depois da festa. . .
— Não estou sentindo falta de Billy — ela gritou. — Fugi porque não suportei a ideia
de fazer amor com ele. Billy é repugnante! — agora ela admitia algo que há tempo vinha
sentindo.
— Então, por que queria fazer amor comigo? Só pela emoção? Você está em busca
de algumas sensações pervertidas por estar sendo seduzida neste lugar, por um homem
que não a atrai e que você acusou de levar um tipo de vida que não a agrada? — Ele
tomou fôlego e passou as mãos pelos cabelos. — Percebeu como quase chegamos a
isso? — indagou, cheio de rancor.

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— Não, não, não é porque eu. . . — Caroline se interrompe percebendo que estava
gritando com ele, contrariando todas as regras de educação e bom comportamento que
lhe tinham ensinado durante anos. Queria se proteger, não demonstrar a atração que
sentia, nem seu temperamento passional. — Por que você tem sempre que estragar
tudo? — murmurou baixinho, sem saber exatamente o que estava sendo estragado.
— Há alguma coisa para estragar? — ele indagou, andando ao redor dela. — Diós,
daqui a pouco vai dizer que se apaixonou por mim. Vamos, niña, seja realista. Encare os
fatos: você queria um homem e eu estava à mão. . .
Pleft! Ela nem sabia que podia bater com tanta força. Só percebeu quando viu
aparecer no rosto dele a marca dos seus cinco dedos.
— Pare com isso! Pare com isso! Não fale mais estas coisas horríveis. Não gosto
disso! — ela gritou.
— Não? Então gosta de quê? — ele falou ríspido, tocando o rosto com a ponta dos
dedos. Ela viu que apareciam raios de ódio em seus olhos. Ele prosseguiu: — Se não
concorda com minhas conclusões, por que me excitou tão deliberadamente para fazer
amor com você?
— Eu não. . . — ela começou a negar e parou. Seu plano de vingança tinha sido
uma armadilha para ela mesma. Queria que ele a desejasse muito, para depois recusar.
E, aparentemente, tinha conseguido, mas a que custo. Só não sabia que Pio também
podia fazer com que ela o desejasse. Agora não podia explicar seu comportamento, a
tentar ser honesta. — Pio, por favor, acredite em mim. Você. . . é o primeiro homem que
me tocou daquela forma. . . mas. . . não foi porque eu queria fazer amor com você. Foi
porque. . . Oh!. por favor, ouça-me! — Ela começou a chorar porque com uma expressão
irritada, ele tinha se virado de costas. — Eu nunca me senti daquele jeito com mais
ninguém antes de você. . .
— Cale a boca! — ele gritou. — Você é uma garota toda confusa, desorientada,
porque esteve sempre afastada de uma vida normal. Não sabe o que está dizendo. . .
—Sim, eu sei, eu sei — ela insistiu ferozmente. — Foi você que perdeu a cabeça, e
não eu. Você mesmo já disse isso — falou desesperada, tentando fazer um pouco de
humor.
— Mas, pelo menos, sei qual é o meu problema. Estou vivendo aqui sozinho há dois
meses, sem nenhum contato com mulheres atraentes. Então você chegou, com esse
corpo bonito, e começou a me olhar sob esses cílios compridos. Não é de se estranhar
que eu tenha perdido o controle. — Moveu-se rapidamente e empurrou-a com violência
para fora. — Vamos sair daqui! Alfonso deve estar imaginando o que aconteceu conosco.
O que aconteceu conosco, pensou Caroline, enquanto caminhava ao lado dele.
Suas meias estavam encharcadas, o braço doía e Pio não disse uma palavra, nem lhe
ofereceu a mão nos lugares mais difíceis do caminho. Achava que ele não queria tocá-la,
era perigoso para ambos.
O que tinha acontecido na caverna era algo que ela queria evitar. Aquela explosão
de paixão entre os dois era mais assustadora do que os trovões. Agora sabiam que
sentiam atração um pelo outro, mas algo havia se rompido quando ele se recusou a amá-
la na caverna.
"Para sentir emoções!" O tom com que ele havia dito isso ainda estava nos ouvidos
dela. Viu-se como ele a via. Uma meniña rica, acostumada ao luxo, à admiração de todos
e que apenas estava procurando novas formas de excitação. No círculo em que vivia até
dois dias atrás, Caroline havia conhecido mulheres daquele tipo. Mas não era uma delas.
Elas a deixavam nauseada.
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Quando chegaram ao etcholak o sol já tinha clareado, as nuvens estavam se
dissolvendo e revelando as montanhas de pedra brilhante. Os pássaros cantavam e havia
barulho de água por toda parte.
Alfonso estava saindo do abrigo, onde tinha permanecido enquanto chovia forte.
Quando os viu, sua expressão foi de alívio. Fez perguntas a Pio, no idioma basco,
apontando Caroline com o cachimbo. Pio respondeu rispidamente e entrou no etcholak.
— Que pena ter-se machucado, señorita. Será que pode montar a cavalo? — disse
Alfonso.
— Sim, posso ir em uma das mulas, de volta ao vale.
Ela só queria chegar a um lugar quente e seco, tomar um banho quente, enxugar
bem os pés e esquecer todos os problemas.
Pio se aproximou trazendo uma garrafa de vinho. Estendeu-a a ela:
— Beba um pouco. Vai esquentá-la e talvez adormeça um pouco os seus nervos.
— Você acha que isso cura todas as doenças? — ela brincou.
— Fique quieta e beba. Senão vai desmaiar. A dor está forte, não?
— Sim, mas prefiro tomar algumas aspirinas.
— Só que não temos aspirinas aqui. Só temos vinho. A não ser que você tenha
trazido algumas entre aquelas coisas de mulher que estão na sua bolsa — acrescentou,
com um sorriso sarcástico.
— Minha bolsa! — ela exclamou, percebendo pela primeira vez que não estava com
ela. — Onde está? O que fez com ela?
— Acho que ainda está no abrigo, onde a coloquei — respondeu ele, sacudindo os
ombros.
— Não está. Eu a levei comigo.
— Mas você não estava com ela, quando a tirei do riacho.
— Então, devo tê-la derrubado lá, quando caí — ela gemeu, colocando a mão na
cabeça e sentindo-se de repente muito fraca.
— Agora já deve ter sido levada pela correnteza até o rio Nieve. onde possivelmente
se enroscou em alguma pedra, no meio das cachoeiras.
— Será que podemos voltar lá? — Caroline perguntou, apesar de saber que não
tinha forças para voltar.
— Não agora. O mais importante é levar você a um médico.
— Mas não posso ir a lugar nenhum sem a minha bolsa. Todo o meu dinheiro, o
talão de cheques e a identidade estão lá!
— Eu avisei para não trazê-la aqui — ele lembrou.
— Oh, a culpa foi sua. Se você não tivesse me pedido para ficar, nada disso teria
acontecido.
— Está bem, ponha a culpa em mim — disse suavemente, com o brilho aumentando
nos olhos e os lábios firmes cheios de raiva. — Mas não fui eu que pedi para você vir a
este vale, esta história é muito mais antiga. Vem desde ontem quando você fugiu porque
não queria casar com Van Dorman. Comece falando assim: se não tivesse fugido. . . —
Ele a olhou e estendeu a garrafa de vinho — Agora, beba — ordenou com voz firme. —
Beba logo ou vou forçá-la a isso e deixar Alfonso todo espantado, pois ele é muito gentil e
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nunca forçaria uma mulher a nada.
— Eu acho que você. .. você é o homem mais rude que já encontrei! — Caroline
teria atirado longe a garrafa se não lembrasse que ela pertencia a José e que continha o
vinho que ele ia beber nos próximos dias.
— Mais rude do que Joseph Morondo? Tome logo este vinho e pare de resmungar!
A dor e a fraqueza acabaram com o desejo dela de resistir. Tomou o vinho e logo
sentiu-se aquecida, até um pouco contente.
— Tome mais — Pio insistiu.
— Vou ficar bêbada.
— E talvez fique menos teimosa — ele respondeu, sorrindo com os olhos. — Vamos,
beba mais. Vai tornar a viagem montanha abaixo muito menos dolorosa.
Caroline tomou mais alguns goles e dirigiu-se para a mula que Alfonso estava
puxando. Ouviu Pio rindo e virou-se para protestar. Estava tonta e confusa. De repente,
ele a ergueu nos braços e a colocou no lombo na mula. Estava com os olhos brilhantes,
sorriu e olhou diretamente nos olhos dela.
— Você está bêbada, niña — ele brincou. Pegou a mão direita dela e a colocou na
corda que estava amarrada ao pescoço da mula.
— Segure aqui com força — ordenou — e não deixe escapar. Se não você pode cair
novamente.
O vinho fez seu efeito, suavizando a descida da montanha. A cabeça dela estava
pesada quando tentou levantá-la, as nuvens pareciam distantes e o céu muito azul. Tudo
que sentia era a aspereza da corda em sua mão. Olhou ligeiramente dos lados e viu que
os cabelos de Pio estavam secando e refletindo a luz do sol.
Ela tinha tocado naqueles cabelos e sentido que eram macios. Queria tocá-los
novamente. Mas ele não ia deixar. Ia dizer que ela só estava procurando emoções novas.
Mas ia tocá-los. Estava com uma das mãos livres e a cabeça dele estava bem a seu lado.
Não ia cair. Já tinha caído o suficiente por um dia. Será que ele se importaria?
Caroline teve uma leve consciência das paredes da Esker Ono quando cruzaram o
vale. Um menino de treze anos, mais ou menos estava sentado na porta e pulou quando
viu o grupo se aproximando. Falou excitado em espanhol e deu a Pio um pedaço de papel
dobrado. Alfonso estava cheio de ansiedade e discutiu com o primo durante algum tempo.
Depois sacudiu os ombros e pareceu concordar.
Pio virou-se para Caroline, que ainda estava sentada na mula, esperando que
alguém a ajudasse a descer, pois suas pernas estavam fracas.
— Vou levá-la ao médico, agora — disse ele, bruscamente. Vamos no seu carro. —
Concorda que eu dirija?
Seria perda de tempo não concordar. Ela sabia que seu braço precisava de
cuidados médicos. Sabia também que tinha perdido sua independência quando se
machucou e perdeu a bolsa. Estava dependendo da boa vontade dele. Por isso, era
bobagem ofendê-lo. Não discutiu, apenas balançou a cabeça, concordando.
— Bueno. Então fique na mula e Alfonso irá levá-la até a fazenda onde está o carro.
Sigo você dentro de alguns minutos — respondeu com maneiras bruscas, entrando na
casa e fechando a porta antes que Caroline pudesse perguntar se podia mudar de roupa
antes de ir ao médico.
O sol se escondeu atrás de uma montanha e as sombras se alongaram. Alfonso

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puxou a mula até o fim da rua que atravessava a cidade. O menino, que parecia seu filho,
caminhou junto com ele. Passaram o campanário e Caroline pensou na mensagem de
uma velha canção que Mati tinha lhe ensinado, falando nas pombas brancas dos Altos
Pirineus, que às vezes voam para longe pensando encontrar prazer e só encontram dor.
Alfonso dirigiu a mula para uma estrada estreita e cheia de lama chegando à sede
da fazenda com seu telhado vermelho e cheio de musgos.
Uma mulher de mais ou menos trinta anos, com o rosto longo e magro e olhos
pretos brilhantes estava parada na porta. Segurava uma criança de aproximadamente
seis meses e falou duramente com o menino quando ele passou por ela e entrou na casa.
Depois olhou para Caroline com curiosidade e uma certa hostilidade fria no rosto.
— Pio recebeu meu recado? — ela perguntou a Alfonso em espanhol.
— Si.
— Então por que você a trouxe aqui? — inquiriu a mulher, olhando em direção a
Caroline.
— Ela machucou o braço. Ele vai levá-la ao médico. Vão no carro — explicou
Alfonso e a mulher pareceu aliviada.
— Graças a Deus — murmurou ela, se benzendo. — Estou contente que ele vai tirá-
la daqui. Aquele seu primo é um louco. Não devia tê-la deixado ficar, em primeiro lugar. —
Parou e deu um passo em direção a Caroline. — Eles lhe contaram o que aconteceu?
Caroline balançou a cabeça negativamente.
— Então vou contar — disse a mulher —, e talvez você possa fazer alguma coisa.
Seu pai acredita que você foi sequestrada por um grupo de terroristas. Já pediu que a
Guardiã Civil fosse procurá-la e você sabe o que significa isso. Eles vão chegar aqui com
uma porção de perguntas. É importante que a señorita fale com seu pai e diga a ele que
está segura e não foi sequestrada.
— Oh! Vou falar. Vou falar — respondeu ela rapidamente.
— Bueno, — A mulher não sorriu. Em lugar disso, deu-lhe outra olhadela hostil e
entrou na casa, batendo a porta.
— Ela não gosta de mim? Por que nenhum de vocês gosta do meu pai? — ela
perguntou para Alfonso, que tinha se aproximado a fim de ajudá-la a descer da mula.
— Eu não sei, señorita — murmurou, evasivo. — Venha sentar-se neste banco. Pio
vai chegar logo. Vou procurar algo para você comer.
Ele também entrou na casa e fechou a porta. Depois de alguns momentos, saiu com
um copo de leite e um prato onde estavam duas fatias de pão com queijo. Caroline pegou
os alimentos, agradecida, e ele levou a mula para os fundos da casa.
O sol se pôs. As montanhas ficaram arroxeadas e a lua nova começou a brilhar. Pio
chegou carregando um saco nos ombros e a mala de Caroline na mão.
— Pio — ela falou, nervosa -, preciso achar um telefone. Quero falar com meu pai e
avisar que não fui raptada.
— Então já falou com Juana, hein? — ele respondeu friamente pousando no chão o
saco e a mala. — Vou pegar o carro.
Desapareceu atrás da casa e dentro de alguns minutos ela ouviu o motor do carro.
Pio trouxe-o e parou, colocou a mala e o saco no porta-malas e disse para ela se sentar
na frente, ao lado dele. Alfonso apareceu e abraçou Pio. Depois levantou o barrete e

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disse adiós baixinho para Caroline. Em seguida, voltou para a casa.
Partiram. Ao passarem pela igreja, Caroline lembrou das flores que tinha colhido
para o túmulo de Mati. Perdeu-as ao cair na correnteza e nunca mais ia visitar o túmulo
da velha amiga. Duvidou que passasse um dia novamente por aquela cidadezinha.
As últimas casas ficaram para trás. Pio dirigia velozmente pelos caminhos tortuosos
e logo chegaram à estrada larga e asfaltada que descia da região montanhosa em direção
ao sul.
— Onde vamos? — perguntou Caroline.
— Para San Sebastián. Iremos para o oeste quando chegarmos na estrada de
Pamplona.
— Mas deve haver um médico e um telefone mais perto.
— É possível — ele respondeu. A suspeita mais uma vez passou por ela. Sentada
no carro, toda machucada, sentiu-se presa a uma armadilha e completamente dominada
por ele.
— Não acredito que esteja me levando a um médico — falou acusadora e em
pânico. — Você só disse isso para que eu concordasse em deixá-lo dirigir o carro. Estava
com medo que a Guardiã pudesse fazer perguntas. Eles iam pensar que você tinha me
raptado.
— Você está errada — ele replicou friamente. — Estou levando-a ao médico em San
Sebastián. Mas está certa, em relação à Guardiã. Entretanto, Alfonso e sua esposa vão
garantir que não viram você aqui pelo vale. Não é o que queria, que ninguém a
encontrasse?
— Será mais fácil para todos nós se me deixar falar com meu pai, por telefone, e
explicar que não fui raptada — ela murmurou.
Ele acendeu um cigarro e ela viu seu perfil marcante desenhado contra a escuridão.
— Por que você não telefona de San Sebastián?
— Mas, não vamos parar antes de chegar lá?
— Para quê?
— Para pôr gasolina. O tanque deve estar vazio. Já estava no fim quando cheguei a
Elbarra.
— Eu o enchi na noite passada.
— Você o encheu? Onde? Em Elbarra?
— Não, no caminho para Pamplona.
— Você quer dizer que foi para Pamplona com este carro, na noite passada?
— Si — ele concordou.
— Você não tinha o direito de fazer isso. Não tinha nenhum direito. Devia ter-me
pedido antes.
— Sei disso. Mas só me lembrei de pedir depois que você já tinha dormido.
— Quer dizer que saiu a noite toda. Onde esteve?
— Já lhe disse. Ganhando a vida.
A resposta dele teve o mesmo efeito de um empurrão. Ela passou a olhar para o
céu. Pamplona era famosa pela sua Fiesta de San Fermin, quando os homens e os

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meninos testam sua coragem correndo atrás de touros soltos pelas ruas. Mas a cidade
tinha também a reputação de ser um dos principais centros do movimento de
independência.
Por que Pio tinha ido lá? Todas as suspeitas de Caroline começaram a atormentá-la.
Será que ele agora tinha recebido instruções para ir a San Sebastian, e estava usando o
carro dela para a viagem que precisava fazer? Ela não podia fazer nada para impedi-lo.
Estava sendo levada pela vontade forte dele.
Chegaram a um cruzamento e ele entrou à direita. As montanhas já não estavam
mais tão perto da estrada. À distância, luzinhas das casas de fazenda piscavam, fracas.
Será que Pio a estava raptando? Não era possível. Para raptar alguém é preciso
forçar a pessoa contra a vontade dela. É preciso amarrá-la, trancá-la, não deixar que fale
com ninguém. Pio não a tinha forçado a nada. Tudo o que ela tinha feito era de livre e
espontânea vontade, impetuosamente e sem muito planejamento.
E agora estava ferida e não podia dirigir. Tinha perdido o dinheiro e não podia mais
viajar ou ficar em um hotel. Por que não tinha deixado um bilhete para o pai, antes de
sair? Agora estava envolvendo pessoas inocentes, como Alfonso e sua esposa, que
podiam ser interrogados pela Guardiã. Tudo porque seu pai acreditava que ela tinha sido
raptada.
— Que confusão eu aprontei — murmurou, enquanto as lágrimas apareciam em
seus olhos. — Oh, Pio, que devo fazer?
Virou-se para ele e descansou a cabeça em seus ombros, chorando de encontro à
jaqueta de couro. Ele encostou o carro e a tomou nos braços, e ela chorou mais, sem
saber exatamente por que motivo, mas sentindo dor, frustração e ansiedade.
Aos poucos os soluços foram passando. Ela continuou de encontro a ele, sentindo
os dedos fortes que lhe acariciavam os cabelos.
— Acho que você pensa que eu não passo de uma criança mimada que sempre
chora quando as coisas não dão certo — ela sussurrou.
— Mais ou menos — ele respondeu suavemente. — Mas sei que se machucou, está
desorientada e não sabe direito para onde quer ir.
— Pareço um cãozinho perdido — ela respondeu, sorrindo e erguendo a cabeça.
— Um gatinho perdido. . . — ele corrigiu — com unhas que arranham.
Os dedos dele escorregaram para o queixo dela. Beijou-a de um modo quente,
abaixo dos olhos, e lambeu algumas lágrimas que ainda estavam por ali. Ela sentiu o
apelo sensual, colou-se a ele e passou um braço pelo seu pescoço, procurando
instintivamente a boca de Pio.
Os lábios dele estavam ansiosos e colaram-se aos dela. Caroline sentiu um enorme
desejo dentro de si. Não se importava mais com o que Pio tivesse feito ou não. Queria
ultrapassar com amor todas as barreiras que havia entre eles. Queria amá-lo. Já o amava,
ferozmente e de um modo até protetor. Por isso o estava beijando com total abandono,
deixando que ele a acariciasse, e queimando de desejo. Queria ficar com Pio para
sempre, viver com ele.
O beijo violento chegou ao fim e devagar Caroline voltou à realidade. Dentro do
carro estava escuro e o pescoço de Pio pulsava de encontro à sua testa.
— Nunca vou ser capaz de fingir que você é Mati, depois disso — ela suspirou,
afastando-se dele.

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— Então, não finja. Eu não estava fazendo isso para substituí-la ou substituir outra
pessoa. Fiz por mim mesmo.
Ele acendeu um fósforo e segurou-o alto, observando o rosto dela. Ela pôde ver-lhe
os olhos escuros e as sobrancelhas negras.
— Mesmo quando chora, você é bonita. Seus olhos parecem miosótis molhados de
chuva — ele murmurou.
— Ninguém nunca me disse isso. — Ela estava espantada, observando a chama do
fósforo.
— Nem mesmo Billy? — ele brincou.
— Eu duvido que ele saiba o que é um miosótis — ela afirmou e Pio, sorriu,
sacudindo o fósforo para apagá-lo.
— Mas, o que vou fazer? — ela interrogou novamente. — É muito cedo para eu
voltar a Bilbao. O casamento deve ser amanhã e se eu voltar hoje à noite, o meu pai, tia
Margareth, Billy e todo mundo vão acreditar que voltei porque quero casar. Vão fazer
pressão novamente e todos os meus esforços para evitar o casamento estarão perdidos.
— Então não volte, ainda.
— Mas, onde vou, então?
— Você pode ficar comigo, no meu estúdio — disse Pio calmamente. — Fique, da
mesma forma que ficou em Esker Ona. A única diferença é o lugar. Pode ficar até se
sentir melhor e ser capaz de dirigir novamente. Então o seu pai vai entender o que você
pretendia quando fugiu.
— Mas... — começou ela.
— Tem outra sugestão? Há algum outro lugar para onde você possa ir? Tem algum
amigo que lhe ofereça abrigo e não conte ao seu pai onde você está?
— Não, não tenho. Não tenho ninguém, agora que Mati partiu. Mas, Pio, por quê?
— Por que o quê?
— Por que você está me oferecendo abrigo novamente? Sei que antes foi uma
homenagem a Mati, que teria me convidado para ficar. Mas agora já não estamos mais
em Esker Ona.
Ela esperou a resposta com o coração batendo, ansiosa. Talvez ele dissesse agora
que se sentia atraído por ela. Talvez dissesse que a amava e a fantasia de viver com ele
— que tinha surgido quando se beijaram — virasse realidade.
Ele não respondeu logo, mas ficou olhando pela janela e fumando.
Depois inclinou-se para a frente, puxou o cinzeiro e esmagou o cigarro.
— Não tenho nenhuma razão para fazer isso — explicou Pio olhando para os vidros
do carro. — Tudo o que posso dizer é que desenvolvi uma estranha ligação a você. É
como eu me sentiria em relação a um gatinho abandonado, com pêlo dourado e olhos
azuis do qual não quero me separar ainda — falou suavemente. — agora, por que você
não se enrosca toda e dorme um pouco, gatinha? Ainda temos muito caminho pela frente.
Não tinha sido a resposta dramática e romântica que ela esperava, mas era melhor
do que ser rejeitada como das outras vezes em que ele sempre negava a atração entre
ambos. Caroline ajeitou-se no banco, encostou a cabeça no apoio e ficou pensando.
Quando telefonasse ao pai, não ia contar onde estava. Só ia dizer que não tinha sido
raptada e pedir que ele mandasse parar a busca. Era um alívio saber que agora tinha um

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lugar para ficar nos próximos dias, talvez até nas próximas semanas. Se quisesse, para
sempre. Ah!, se esse sonho pudesse virar realidade!
Logo pegou no sono e não acordou até que o carro estacionou em uma avenida
arborizada e bem-iluminada. Sentindo-se melhor, esfregou os olhos e o pescoço.
— Aqui é San Sebastian? — perguntou.
— É. Você já veio aqui antes? — perguntou Pio.
— Sim, mas era pequena. Meu pai tinha uma casa de verão em uma praia perto
daqui. Minha mãe gostava de ficar lá comigo e com Mati. Mas papai vendeu a casa, não
sei por quê. Parece que está ventando bastante esta noite, não?
— Primeiro vamos ao médico — disse Pio.
— Mas, não é muito tarde? Os médicos têm horário para atender seus clientes.
— Este vai nos atender.
— Qual o nome dele?
— O nome dela é dra. Caterina Spinoza.
— Que idade tem? — Para seu próprio espanto, Caroline estava com ciúmes e sabia
que Pio tinha percebido, pelo olhar que ele lhe deu.
— Uns cinco anos mais do que eu.
Ele devia ter muitos amigos, ela pensou. Era um homem bonito, muito viril e tinha
um certo charme que devia atrair as mulheres, principalmente as mulheres mais velhas.
Meu Deus, ele podia até ter uma esposa! E ela, ali, pensando em ir morar no
apartamento dele. Devia estar muito enfeitiçada. Na verdade, estava completamente
enfeitiçada desde que tinha entrado na cozinha de Esker Ona.
Entraram em uma ladeira cheia de casas grandes e muros altos. Na metade da rua,
Pio entrou com o carro por um portão de ferro que estava aberto e estacionou em frente a
um sobrado em estilo de fazenda.
— O que devo dizer à doutora? — perguntou Caroline, impaciente, enquanto ele
tentava ajudá-la a abrir a porta.
— Sobre o quê?
— Como machuquei o braço.
— Diga a verdade. Mas não se preocupe. Ela não vai fazer muitas perguntas. Por
isso eu a trouxe aqui.
— Ela pode me reconhecer, da mesma forma que você.
— Se isso acontecer, resolveremos depois. Agora, saia.
Uma mulher baixa e gordinha, usando um avental branco sobre o vestido preto,
apareceu quando Pio tocou a campainha.
— A doutora está em casa, Emília? — perguntou Pio.
— Si, señor Viroda. — O sorriso da mulher era de boas-vindas, mas desapareceu
rapidamente quando viu Caroline, dando lugar a um ar de surpresa. — Entrem, por favor
— ela convidou.
Entraram e ela fechou a porta atrás dos dois.
— Vá direto ao salón, señor. A doutora vai ficar contente em vê-lo.

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— Eu imagino — respondeu Pio com ironia e dirigiu-se para a porta que ficava em
frente.
Um sentimento de vergonha tomou conta de Caroline, porque ainda estava com os
sapatos molhados, a saia úmida e rasgada e usando o suéter de Pio, que era muito
grande. Ela o seguiu por um longo corredor com janelas dos dois lados e quadros
grandes nas paredes.
Na sala, um tapete persa vermelho cobria todo o chão. Havia sofás cor de marfim, e
quadros de desenhos abstratos cobriam as paredes.
Uma mulher estava em um desses sofás. Olhou para cima e jogou no chão o jornal
que estava lendo. Ficou de pé e dirigiu-se a Pio com as mãos estendidas, abraçando-o
afetuosamente.
— Onde esteve se escondendo? — ela exclamou. — Onde ficou nos últimos dois
meses?
— Vivendo uma vida simples, cortando lenha, ordenhando as vacas, alimentando as
galinhas, pastoreando as ovelhas, vivendo na natureza — disse Pio, sorrindo.
— E melhorou muito com isso — disse a mulher. Ela era alta, tinha um corpo bem-
feito e usava uma saia longa, colorida e uma blusa branca. Seu cabelo negro estava todo
puxado para trás, mostrando um rosto longo e muito angular, de olhos profundos e
sobrancelhas muito negras. A boca parecia estar sempre sorrindo, o que suavizava todo o
resto.
— Você não parece tão... tão...
— Gasto? — sugeriu Pio.
— Eu não ia dizer isso, mas já que você disse. . . Sim, você não parece tão gasto —
respondeu ela, sorrindo. — Mas será que era preciso sair de cena assim tão
dramaticamente para melhorar de aparência? Marco e eu ficamos preocupados.
Soubemos que tinha sofrido ameaças por causa daquilo. . . — Caterina se interrompeu no
meio da frase e olhou Caroline, que estava encostada na porta. Parou por alguns
momentos, como se não acreditasse no que seus olhos estavam vendo. — Diós mio! —
ela murmurou, levando a mão ao queixo. — No que você está metido agora, homem
diabólico?
Pio virou-se e olhou Caroline, sorrindo.
— Esta é Caroline Morondo — falou friamente.
— Sei disso — disse ela, impaciente. — A fotografia dela está nos jornais de hoje.
Dizem que foi raptada na noite passada e o rádio deu que o pai acredita no rapto. Onde a
encontrou?
— Eu não a achei. Foi ela quem me achou — replicou Pio, com os olhos cheios de
hostilidade.
— Você a raptou? — A voz de Caterina era cortante.
— Não. Não raptei.
Caroline achou que era hora de falar. Não gostava que ficassem falando dela
quando estava presente.
— Saí de casa por minha livre vontade, no meu próprio carro e estou aqui por minha
vontade. Como você pode ver, machuquei o braço. Por isso Pio me trouxe aqui, para vê-
la. Acho que você é a dra. Spinoza, não?

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Catarina olhou fixamente para Caroline. Estava ressentida pelo modo como a moça
se dirigira a ela. Olhou para Pio, confusa, e ele sorriu.
— Caroline está dizendo a verdade — ele disse. — Assim, por favor, examine o
braço dela agora, veja o que aconteceu e talvez possamos tirar uma radiografia dele
amanhã.
— Aqui no hospital? — perguntou a médica.
— Sim, claro.
— Mas, você não está. . . — A médica virou-se para Caroline. — Minha querida,
você não vai voltar para Bilbao?
Caroline olhou Pio hesitando sobre o que responder, pois seus planos futuros o
envolviam. Para seu alívio, viu que a expressão de hostilidade já não estava mais nos
olhos dele. Pelo contrário, ele a olhava com intimidade, como se estivessem guardando
um segredo juntos. Sorriu e o perdoou, ergueu o rosto para ele, como se esperasse ser
beijada. Os olhos de Pio se estreitaram, o sorriso endureceu um pouco, mas ele não
desviou o olhar e respondeu à pergunta da médica:
— Não. Caroline não vai voltar a Bilbao. Ela vai ficar comigo disse calmamente.
A doutora respirou fundo, olhou-a cuidadosamente e seu rosto assumiu um ar
profissional, como se ela tivesse colocado uma máscara sobre ele.
— Compreendo — disse calmamente. — Espero que saiba o que está fazendo.
Espero que vocês dois saibam e já tenham pensado no que Joseph Morondo pode fazer
quando encontrar os dois. — Ela se dirigiu à porta. — Venha comigo, querida, vou
examiná-la no meu consultório. Pio, por favor, espere aqui.
— Sim, eu espero.
— Então, sirva-se de um drinque. Voltamos dentro de alguns minutos. Tenho muitas
coisas para lhe contar.

CAPÍTULO IV

O consultório da médica era do outro lado da casa. Estava bem iluminado e


mobiliado com uma grande mesa e várias cadeiras de couro, um divã para exames, um
armário e algumas cômodas com portas de vidro. A dra. Spinoza ajudou Caroline a tirar o
suéter de Pio e a desamarrar o nó da tipóia improvisada.
— Quem fez esta tipóia para você? — perguntou friamente.
— Pio.
— Hum, ele fez um bom trabalho. Agora mostre onde dói.
Os dedos da médica eram longos e frios. Apalpavam gentilmente e logo o exame

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terminou.
— Não está quebrado. É só uma rachadura, eu acho. Deve tirar a radiografia para
ter certeza, mas isso só será possível amanhã. Por enquanto, deve descansar. Logo tudo
estará bem, você é jovem e saudável. Importa-se de me contar como se machucou?
Espero que Pio não tenha sido o culpado. Ele é muito rude, às vezes.
Os olhos negros dela não se despregavam de Caroline e tinham o mesmo ar hostil
que os da esposa de Alfonso. Ali estava uma outra pessoa que, por algum motivo, não
gostava dela.
— Eu caí num riacho — respondeu, enquanto a médica pegava algumas ataduras
em um dos armários.
— Espero que Pio não a tenha empurrado — comentou a médica. — Onde era o
riacho?
— No vale das Pombas, perto de Elbarra.
— Ah! Então foi lá que ele esteve escondido todo este tempo — comentou Caterina
Spinoza, começando a enrolar o braço de Caroline. — Mas, por que você foi lá?
— Eu queria fugir do. . . do meu pai — murmurou Caroline. — Eu tinha que ser eu
mesma por algum tempo. Sabe, tudo estava preparado para o meu casamento, esta
semana.
— Eu sei. Li nos jornais — disse Caterina Spinoza, prendendo as pontas das
ataduras com prendedores de metal. — Então você entrou em pânico e fugiu. — Os olhos
dela se tornaram mais suaves e ela quase sorriu. — Deve ter precisado de muita coragem
para desafiar seu pai. Mas por que escolheu o vale das Pombas?
— Eu fui lá à procura de Mati. Não sabia que ela tinha morrido. — Caroline fez uma
pausa, compreendendo que a médica não iria entender do que ela estava falando.
Acrescentou: — Mati Viroda. Ela foi minha babá. Era tia de Pio.
— E minha também — respondeu Caterina.
— Sua? Você é prima de Pio?
— Não, eu sou a sua única irmã. Ele não lhe contou?
— Não. Ele não fala muito sobre si mesmo.
— Então é por isso que você... — Caterina parecia chocada, balançando a cabeça
de um lado para o outro. — Acho que não entendi bem. Você esteve com ele em Esker
Ona na noite passada? — Ela pegou o suéter e começou a virá-lo do lado direito.
— Sim. Ele me convidou para ficar porque eu estava muito aborrecida com a morte
de Mati.
— Que estranho ele ter feito isso — disse Caterina, sorrindo. — Acho que sentiu
pena de você. Percebeu que precisava de ajuda. Mesmo assim, você não sabe nada
sobre ele.
— Ah, eu sei quem é o pai dele e sei que está no vale porque se meteu em algum
problema — disse Caroline, vestindo a manga do suéter no braço que não estava ferido.
Caterina estava com o rosto sério e Caroline perguntou: — Que tipo de problema?
A médica se virou, olhou para o outro lado, puxou uma cadeira e disse:
— Sente-se, señorita. — Pegou alguns papéis e continuou: — Um problema do tipo
que nosso pai costumava ter. Mas não tão grave. Não tão grave como estar envolvido no
rapto de uma herdeira. Quem mais, senão Pio, iria aparecer com esta ideia de levá-la

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para que fique com ele?
Olhou de modo penetrante para Caroline. Tinha os olhos brilhantes e fizera o
comentário sobre o irmão, cheia de ironia.
Caroline se sentiu pouco à vontade, mas fez o possível para manter uma aparência
de orgulho e autocontrole.
— Pio tem sido muito compreensivo — disse, e os olhos de Caterine se abriram,
surpresos. — Diga-me realmente, por que ele estava en Esker Ona? Teve problemas com
alguma passeata contra o governo?
— Passeata? — Novamente os olhos de Caterina estavam espantados. — Dios mio!
— disse ela, com um sorriso na voz. — Pio já não participa mais disso. Tem métodos
muito mais sutis para mostrar que não está contente com a opressão, as más condições
dê vida das pessoas pomposas e cheias de poder. Você nunca viu suas caricaturas?
— Você quer dizer que ele desenha? — perguntou Caroline, espantada e confusa.
De repente lembrou-se de Pio em Esker Ona, sentado bebendo e tendo diante de si um
bloco de papel.
— Si, seus cartoons estão todos os dias nos jornais — respondeu Caterina. — Mas
acho que você não se interessa por esta parte do jornais.
Caroline lembrou-se de uma frase semelhante a essa, em que Pio havia lhe
respondido que se interessava por todas as partes dos jornais. Só agora compreendia o
que tinha feito. Ousara acusá-lo de ser um ignorante.
— Seus desenhos estão sempre nas páginas dos editoriais — comentou Caterina -,
onde são feitas as críticas ao governo. Eles aparecem nos principais jornais da Espanha e
Pio desenhou muito também quando estava no México. Ficou tão popular que há três
anos foi convidado para voltar à Espanha e desenhar aqui. O convite foi feito pelo meu
marido, que até pouco tempo era o editor do jornal de San Sebastian. Só assim Pio
conseguiu mostrar sua verdadeira vocação, que é de pintor de murais. Agora já está
estabelecido como pintor e ganha a vida com sua arte.
— Os cartoons são assinados por ele?
— São assinados só com o primeiro nome. Mas todos sabem que são dele, o filho
de Júlio Viroda, que morreu porque acreditava na teocracia — disse Caterina com um
orgulho silencioso.
Assinou alguns dos papéis que tinha sobre a mesa e voltou a olhar Caroline de
modo frio e hostil.
— Você nunca viu os cartoons, viu? — perguntou.
— Não, nunca. Mas vivi muito tempo fora do país e não leio muito bem em espanhol
— explicou Caroline.
— Você nunca ouviu seu pai falar do nosso pai?
— Não, nunca. . . mas, sabe. . . — Caroline decidiu prosseguir rapidamente — meu
pai e eu não conversamos muito. Foi algum cartoon desse tipo que causou problemas a
Pio?
— Si. Um dos que trazia críticas fortes demais sobre uma figura pública importante.
Apareceu junto com um editorial do meu marido, Marco Spinoza, falando da mesma
pessoa. Os donos do jornal foram ameaçados com um processo se não parassem de
publicar os cartoon de Pio. Meu marido se demitiu e agora é editor de um outro jornal, em
Pamplona. É um pouco longe daqui e temos que viver separados durante a semana toda.

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— Caterina deu de ombros. — Mas é possível que ele logo volte a ser editor do antigo
jornal, quando toda esta confusão se acalmar.
— E os cartoons de Pio serão publicados novamente?
— Sim, se ele for cuidadoso. Mas não precisava ter ido se esconder no vale das
Pombas. Podia continuar vivendo aqui, como sempre. Nunca pensei que ele fosse
desaparecer apenas porque estivesse atravessando uma crise emocional — disse
Caterina, lançando a Caroline um olhar penetrante. — Ele não mencionou nada a você,
não foi?
O que ele devia ter mencionado? Caroline sentia uma espécie de intuição. Queria
saber tudo.
— Ele estava muito abalado quando as coisas aconteceram. Sabe, alguém a quem
ele estava muito ligado se suicidou. Nada teria acontecido se tivesse agido de modo
diferente. Então, sentiu-se culpado.
— Essa pessoa era uma mulher — replicou Caroline com timidez, sentindo-se
novamente com ciúmes.
— Sim, era uma mulher — respondeu Caterina. — E agora, señorita Morondo, que
mais posso fazer por você?
Caroline olhou para o telefone e pediu:
— Posso usar o seu telefone? Quero avisar meu pai de que não fui raptada e pedir
que ele pare com as buscas. Não quero a Guardiã Civil fazendo perguntas a todas as
pessoas.
— Boa ideia. Espero que não diga a ele que está com Pio.
— Não, só vou dizer que estou segura.
— Bueno. — Caterina sorriu pela primeira vez e saiu da sala. Caroline pegou o
telefone e não conseguiu discar. Estava relutando em falar com o pai. Sabia o que a
esperava. Mas, não precisava falar muito, decidiu, discando o número da telefonista. A
ligação demorou alguns minutos, mas logo a companhia soou do outro lado da linha. Uma
vez, duas vezes. Ela quase desligou, de tão nervosa que estava. Então alguém atendeu e
ela ouviu a voz do pai, rouca e autoritária:
— Aqui é Joseph Morondo falando. Você tem mais alguma notícia? Caroline respirou
fundo e falou, sem ter certeza de que ele iria reconhecer sua voz.
— Papai. . . sou eu... Caroline...
— Graças a Deus! — respondeu ele em inglês. — Onde aqueles diabos a
esconderam? E o que eles querem? — A voz dele soava como se estivesse quase sem
fôlego.
— Papai, por favor, escute. Não estou com nenhum diabo e não fui raptada — ela
falou, procurando soar o mais claro possível. Saí de casa por minha própria vontade.
— Não acredito em você. Eles a estão fazendo dizer isso, não estão? Alguém está
aí com você, fazendo ameaças para que você diga isso. — Ele se interrompeu,
engasgando com a própria raiva e falando de modo difícil de ser compreendido. Caroline
de repente se sentiu ansiosa e preocupada com ele.
— Papai, você está bem? Oh!, por favor, quero que me escute. Não há ninguém
aqui comigo. É verdade. Saí de casa ontem no Mercedes porque você não quis me ouvir.
Você não quer acreditar no que eu digo, mas é verdade. Não quero casar com Billy e
agora estou telefonando a você. . .

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— Onde você está? É um chamado de longa distância, não é? — Ele a interrompeu.
— Diga-me, onde você está?
— Não digo até você avisar a todos que não fui raptada e mandar parar a busca.
Não sei onde foi buscar essa ideia de rapto.
— E o que eu devia pensar? — ele replicou. — Você desapareceu sem me deixar
um bilhete, sem dizer a ninguém onde ia. Onde foi?
— Fui ver Mati Viroda.
— Mas ela morreu há meses.
— Você não me disse nada — ela respondeu, acusadora.
— Onde está agora?
— Ela. . .
— Onde você está agora? Responda!
— Primeiro prometa que vai mandar parar as buscas e dizer à Guardiã que não fui
raptada.
— Caroline, eu posso descobrir de onde está telefonando. Logo posso encontrar
você, onde estiver.
— Você não vai fazer isso. Se prometer fazer o que estou pedindo, eu digo onde
estou.
— Está bem, está bem. Eu prometo. Vou avisar à Guardiã para parar de procurá-la.
E agora, onde está?
— Estou em San Sebastian, na casa de uma médica. Eu. . . eu. . . machuquei o
braço e me trouxeram para cá.
— Diós! Quem a levou aí? — exclamou ele.
— Não posso dizer. Mas estou bem.
— E qual é o nome da médica?
Claro que ela podia dizer o nome. Seu pai não ia ligar o sobrenome Spinoza ao dos
Viroda.
— Dra. Caterina Spinoza.
— Diós mio! — Ele estava horrorizado e ela ouviu um som, como o de quem derruba
o receptor do telefone.
— Você está bem? O que aconteceu?
— Nada. — Ele estava respirando com força novamente. — Caroline, fique onde
está, aí na casa dessa médica. Eu preciso ver você. vou procurá-la amanhã, logo de
manhã.
— Mas, eu não quero. . . — Ela parou de falar ao perceber que ele tinha desligado.
Devagar, desligou também. Atrás de si, a porta do consultório se abriu e apareceu o rosto
de Caterina.
— Conseguiu falar com seu pai? — perguntou a médica.
— Sim, consegui.
— E o que ele disse sobre a suspeita de sequestro?
— Concordou em mandar que parem com as buscas se eu dissesse onde estava.

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Disse que podia descobrir de onde estava sendo feita ligação se eu não contasse.
— É muito possível. Ele deve estar bastante ansioso — disse Caterina.
— Eu tive de contar a ele que estava aqui. Espero que não se importe. Ele disse que
vem para cá amanhã, para me ver. Não consegui fazer com que desistisse da ideia
porque desligou o telefone. Agora, não sei o que fazer. O que ele pode fazer se chegar
aqui e não me encontrar? Pode causar problemas a você, se não disser a ele onde
estou?
— Isso pode ser resolvido facilmente, minha querida. Você está convidada a passar
a noite aqui e esperar até que ele chegue. Acho que é o melhor caminho, na situação
atual — disse Caterina calmamente.
— O melhor para mim ou para Pio? — respondeu Caroline, sentindo o ciúme invadi-
la novamente. Na verdade, era uma bobagem sentir ciúmes da irmã dele, mas Caterina
conhecia Pio há muitos anos, devia dividir com ele as experiências da infância e saber
muito sobre o relacionamento com aquela mulher que tinha se suicidado.
— Para os dois — replicou Caterina, e sentou-se na beirada da mesa, inclinando-se
para a frente.
— Eu não sei o que aconteceu entre você e o meu irmão — falou baixinho —, mas
posso imaginar. Ele sempre sente pena das pessoas, principalmente de alguém que ele
acha que foi maltratado. Foi por isso que a, convidou para ficar com ele. Estou
preocupada por que, associado a você, ele pode ter sérios problemas. Seu pai é um
homem muito poderoso e sabe-se que ele tira conclusões rápidas, com resultados
trágicos. O rapto é um crime grave e acho que Joseph Morando não vai hesitar em acusar
o meu irmão, se encontrá-la no estúdio de Pio.
— Mas há o meu testemunho em contrário — argumentou Caroline. — Posso dizer
que fui para lá por minha livre vontade.
— Pode dizer isso, mas duvido que alguém acredite em você, em todo o país.
Lembre-se, señorita, que uma garota espanhola de classe social alta não vai viver com
um homem, a não ser que esteja casada com ele. Mesmo nos dias de hoje, os sexos não
se misturam muito antes do casamento. É fácil imaginar a reação do seu pai ao descobrir
que esteve com Pio e que ainda está com ele. Você quer magoar Pio desse jeito? É muito
melhor que seu pai a encontre aqui, em minha casa.
Caroline olhou para o chão. Percebia o sentido da sugestão de Caterina e sabia que
ela estava tendo bom senso. Mas não queria pensar que, na verdade, Pio não a queria
com ele. Que só sentia pena dela, como se fosse um gatinho perdido que ele decidisse
abrigar por uma noite.
— Você teve um dia cansativo, minha querida — falou Caterina com simpatia. —
Está sentindo dores e está confusa. Tenho certeza de que gostaria de um banho quente.
Emília pode ajudá-la. — O olhar dela passou pelos cabelos de Caroline e pelas suas
roupas rasgadas. — Tem outras roupas com você?
— Estão no carro.
— Então, quer tomar um banho?
— Sim, por favor, mas...
— Não precisa dizer mais nada. — Caterina sorriu e ergueu a mão. — vou chamar
Pio e pegar suas roupas. Emília virá ajudá-la. Enquanto estiver tomando banho, pode
pensar na minha sugestão para passar a noite aqui.
Quase uma hora depois, com os cabelos mais uma vez brilhando, Caroline se olhou

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no grande espelho do quarto para onde Emília a tinha levado. Estava usando a saia
estampada e a blusa de seda rosa que já tinha vestido no dia anterior. Agora parecia mais
com Caroline Morondo, cheia de graça e orgulho. As mudanças que tinham ocorrido em
sua mente não estavam aparecendo.
Emília tornou a arrumar a mala e a acompanhou enquanto descia as escadas.
Colocou a mala perto da porta da frente e Caroline foi para o salón. Pio e Caterina estava
lá. Pio estava com um copo cheio na mão e Caterina se mantinha de pé, à sua frente.
Pareciam discutir de modo violento, com muitos gestos e os olhos brilhantes. Ela parou de
falar quando percebeu que Pio não estava ouvindo mais, nem prestando atenção, pois
seu olhar permanecia preso ao rosto de Caroline.
— Ah! Assim está muito melhor! — ela exclamou. — Tenho certeza de que vai
querer alguma coisa para comer e beber. Vou pedir a Emília que traga alguns alimentos
em uma bandeja para você.
Ela saiu da sala e Caroline se aproximou suavemente de Pio, que estava novamente
enchendo seu copo. Quando ele se virou e a viu, seus olhos se estreitaram um pouco.
— Como está o seu braço? — perguntou, de modo educado.
— Ainda está doendo, mas a dra. Spinoza disse que vai me dar alguns comprimidos.
— Ela o observou bebendo e continuou: — Ela me disse que é sua irmã. Falou sobre o
marido e os problemas editoriais que tiveram com o seu cartoon. — Fez uma pausa e
esperou que ele dissesse alguma coisa, mas Pio parecia mais interessado em beber. —
Você estava desenhando um cartoon na noite passada?
— Sim, e peguei seu carro emprestado para levá-lo ao meu cunhado em Pamplona
— respondeu ele, sorrindo. — Você pensou que eu estivesse envolvido em algo muito
mais perigoso do que isso, Caterina me contou.
— Não pude evitar. Você parecia tão misterioso! Não queria me contar nada sobre si
mesmo.
— Então soltou sua imaginação — ele brincou. Colocou mais um pouco de uísque
no copo e dirigiu-se a um dos sofás, pegou sua jaqueta de couro que estava lá e voltou
para perto dela.
— Está bem diferente agora — disse suavemente. — Não parece tanto com uma
gatinha abandonada. Já está pronta para ir ao meu estúdio? É no bairro dos pescadores,
em Martinez, próximo daqui e de Bermeo.
Caroline reconheceu o nome do bairro. Sabia que muitos artistas moravam lá.
— Você quer que eu vá? — ela perguntou, desafiante. Se ele dissesse que sim,
pensou, iria com ele, sem considerar os avisos de Caterina, sem se importar com seu pai
e com as convenções antiquadas da rígida sociedade espanhola.
Pio inclinou-se, colocou as mãos nos bolsos das calças e olhou-a de modo muito
fixo, os olhos brilhantes.
— Não importa o que eu quero, niña — respondeu, evasivo. Importa o que você
quer. Agora, não temos alternativa. Caterina se ofereceu para deixá-la ficar aqui. Ela
disse que seu pai vem aqui amanhã para vê-la. — Pio sacudiu os ombros e seu rosto
assumiu uma expressão cínica. — Ela acha que seria mais inteligente se você ficasse
aqui e não comigo. Mas, não costumo aceitar conselhos de ninguém, entretanto, neste
caso, acho que ela está certa.
Como ela tinha pensado, Pio, na verdade, não a queria. O desapontamento tomou
conta dela como uma enorme onda, fazendo com que se sentisse vazia e inútil. Mas não

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queria que ele soubesse como estava se sentindo. Ergueu a cabeça, empinou os ombros
e falou friamente:
— Estou de acordo. Vou ficar aqui esta noite.
— Bueno. — Sua voz também soou fria e distante. Tirou do bolso as chaves do
carro e lhe estendeu: — Fique com isto.
Ela pegou as chaves. Seus dedos se encontraram por alguns momentos.
— Como você vai chegar a Martinez? — perguntou. Separar-se dele estava sendo
mais difícil do que tinha pensado.
— Se sair logo, posso pegar o último ônibus — respondeu ele indiferente,
caminhando em direção à porta.
— Pio, será que não podemos ser amigos? — ela perguntou impulsivamente, vindo
atrás dele.
— Não.
— Por que não?
— Temos muitas diferenças.
— Oh, sim, eu tinha esquecido. As diferenças. . . — replicou cheia de sarcasmo,
tentando disfarçar sua mágoa. — Mas as diferenças podem ser superadas. ,
— Você é rica. Eu sou pobre. Esta não pode ser superada. . .
— Mas não tão pobre quanto me fez acreditar — respondeu rapidamente. — Você
pode não ser um artista famoso, mas já é muito conhecido como cartunista. Não sei por
que não podemos nos encontrar de vez em quando em San Sebastian, em Bilbao ou em
Martinez. Podemos tomar um café, jantar juntos, conversar. . .
— Não! — Pio interrompeu-a rudemente, olhando-a de modo exasperado. — Não
sei o que se passa na sua cabeça, mas quero deixar isso bem claro: agora que você já
tem um lugar para ficar, o nosso encontro terminou. Aqui, agora, esta noite. Vou voltar
para minha própria casa e levar minha própria vida. Amanhã você volta com seu pai para
Bilbao. Não há motivos para que nos encontremos novamente. Nossos caminhos são
muito diferentes para se cruzarem.
— Mas. . .
— Buenos noches, señorita — ele falou friamente. — Tenho que pegar o ônibus. —
Virou-se e foi até a porta.
— Pio, por favor! — pediu Caroline.
Ele virou-se, viu a expressão do rosto dela e seu olhar se suavizou Voltou, inclinou-
se para a frente e seus olhos escureceram. Beijou Caroline devagar, de modo provocante,
sem toma-la nos braços, tocando-a apenas com os lábios.
Por alguns momentos ela sentiu que flutuava no espaço. Estendeu a mão livre e o
abraçou. Só então os braços dele a envolveram devagarinho. Com o rosto colado ao dela,
murmurou "Adios" em seu ouvido e a soltou. Caroline abriu os olhos a tempo de vê-lo
saindo da sala e dizendo alguma coisa para alguém na entrada. Depois, ouviu o barulho
da porta sendo fechada violentamente.
Ela virou-se depressa quando Caterina entrou. Não queria que a médica visse suas
lágrimas.
— Então, você decidiu ficar? Estou tão contente. Trouxe alguma coisa para você
comer. Sente-se aqui.
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Sentaram no sofá. Caroline comeu um pouco e bebeu um copo de vinho. Quando
terminou, Caterina lhe deu alguns comprimidos contra a dor e Emília a acompanhou até o
quarto de hóspedes, ajudou-a a despir-se e cobriu-a com acolchoados confortáveis.
Para seu alívio, as pílulas fizeram efeito imediato, tirando a dor da cabeça e do
braço. Logo sentiu-se sonolenta e dormiu.
Foi despertada pelo som de uma voz:
— Señorita Morondo, acorde! Seu pai está aqui. Ele quer vê-la. Acorde, acorde,
señorita!
Durante alguns momentos sentiu como se ainda estivesse em Esker Ona e seu pai a
tivesse seguido até lá, encontrando-a com Pio. Talvez Pio já estivesse preso por tê-la
raptado. Então abriu os olhos e viu o rosto de Emília. As lembranças voltaram rápidas. Pio
tinha partido, estava em segurança. Não havia possibilidade de seu pai acusá-lo de rapto.
— Vamos, señorita, levante-se. Vou ajudá-la a se vestir. O señor Morondo está
muito ansioso para vê-la e ter certeza de que não corre nenhum perigo.
Não havia como evitar o encontro com o pai, pensou, enquanto lavava o rosto.
Rezou para ter forças suficientes e resistir às pressões que ele ia fazer, a respeito do
casamento com Billy. De volta ao quarto, Emília a ajudou a se vestir com uma roupa
macia e confortável, em estilo cigano, florida e cheia de cores alegres. Caroline colocou o
braço na tipóia e foi para o salón.
Seu pai estava de pé, próximo a uma das grandes janelas, olhando uma das
fotografias de uma prateleira. Quando a ouvia entrar, colocou a foto no lugar e caminhou
para ela. Seus braços a apertaram forte, por alguns momentos. Ele tinha cheiro de fumo
caro, de perfume caro, e suas roupas eram elegantes e macias.
— Caroline, passei o diabo nestes últimos dois dias. Você está bem? — ele
perguntou, enquanto se afastava um pouco para estudar o rosto dela. O rosto dele já não
tinha a aparência saudável de sempre. Parecia acinzentado e ela ficou amedrontada.
Nunca o tinha visto tão triste.
— Estou ótima, com exceção deste braço bobo — ela respondeu. — Oh! Não fique
assim. Estou bem e não fui raptada.
— Então, o que está fazendo nesta casa? Quem a trouxe aqui? Está sozinha?
— Papai, por favor, não fique tão nervoso. Você chegou muito cedo. Como veio?
— Vim de avião, esta manhã. Queria ver você.
— Se veio tentar me persuadir a casar com Billy hoje, já posso dizer que perdeu seu
tempo. Não vou casar com ele!
Ele lhe lançou um olhar furioso e começou a andar pela sala. Depois, voltou-se e
encarou-a.
— O casamento foi adiado — disse friamente.
— Adiado?
— Si. Margareth e eu tínhamos que fazer alguma coisa quando você desapareceu,
sem deixar sinal. Tínhamos que evitar que os convidados viessem. Adiamos o casamento
indefinidamente. Também suspendi os negócios com Van Dorman até que tenhamos
resolvido este problema entre você e Billy. — Ele veio até ela e tomou a sua mão,
segurando-a firmemente. — Eu tinha que fazer alguma coisa, querida, para mostrar que
me importo com você — disse suavemente. — Admito que não fui o melhor dos pais. —
Ele fez uma pausa e olhou nos olhos dela, sorrindo. — Nós perdemos contato um com o

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outro, não foi, querida? Isso aconteceu quando sua mãe morreu. Eu... — A voz dele
terminou em um soluço. — Por favor, diga-me onde estevi e o que fez desde que saiu de
casa — disse ele calmamente. — O que fez quando descobriu que Mati não estava mais
lá?
— Por que você não me disse que ela tinha morrido? — Carolim perguntou,
sentando-se um pouco afastada dele.
— Pensei que tivesse contado. . . pensei que alguém tivesse contado. Pedro, o
irmão dela, me escreveu contando que ela tinha morrido e que não era mais preciso lhe
enviar o dinheiro da pensão. Você estava fora, nessa época, na casa dos Van Dorman, na
Flórida. Tenho certeza de que pedi a Alvarez que lhe escrevesse dando a notícia.
Alvarez era o secretário particular de seu pai e cuidava da correspondência. Era um
homem frio e eficiente, que sempre tinha parecido muito distante a Caroline.
— O que fez quando descobriu que Mati não estava lá? — perguntou ele mais uma
vez e ela percebeu que ia ser difícil lhe dizer qualquer coisa que não fosse verdade.
— Fiquei na casa em que ela morava. — O olhar dele estava cheio de suspeitas.
— Sozinha?
— Não.
— Quem estava lá?
— Um dos sobrinhos de Mati.
— Por acaso era o irmão da médica que é dona desta casa? O rosto dele estava
cada vez mais pálido. — Era Pio Viroda?
Ela ficou surpresa que ele conhecesse Caterina e Pio. Alisando os cabelos para trás
das orelhas, enfrentou o olhar frio dele.
— Como adivinhou?
— Apenas um dos sobrinhos de Mati tem o direito de morar naquela casa: o filho
mais velho do filho mais velho do pai dela. E Pio Viroda é o único filho de Júlio Viroda. —
Os olhos dele estavam ainda mais carregados de suspeitas. — Ele a forçou a ficar lá!
— Não! Ele apenas me convidou.
— Então ele a convidou para ficar! — repetiu ele cheio de sarcasmo. — Não lhe
ocorreu recusar o convite?
— Sim, mas era muito tarde. Eu estava cansada e não queria sair guiando em busca
de um lugar para dormir. Por isso aceitei. Não vi nenhum problema nisso.
— Você passou a noite numa remota casa de fazenda com um artista de conhecida
má reputação, não apenas pelos seus cartoons, mas pelos casos que tem com as
mulheres, e achou que não teria problema? — Joseph Morondo estava ficando cada vez
mais verinelho. — Meu Deus, Caroline, você precisa ser muito inocente para ter pensado
assim.
— Eu não sabia nada sobre ele! — Ela se colocou na defensiva. — Como podia
saber?
— Você não precisava saber. O seu bom senso devia ter sido maior. E se ele tiver
encostado um dedo em você. . .
— Ele não fez nada — Caroline o interrompeu rapidamente. — Mesmo se tivesse
feito, o problema seria meu. Ele não fez nada contra a minha vontade.

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— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que, quando machuquei o braço, ele fez uma tipóia para mim — ela
respondeu, encarando o pai. — Ele tentou me ajudar da mesma forma que Mati teria feito,
se estivesse lá. Por isso você não precisa ir tirando suas conclusões precipitadas. A dra.
Spinoza disse que você faria isso. E eu não. . . — Caroline se interrompeu e mordeu os
lábios. Quase tinha dito ao pai que podia ter passado a noite com Pio. Mas ele pareceu
não perceber a hesitação dela, pois seu olhar estava preso no braço machucado.
— Como está o seu braço? Não o quebrou, espero.
— Não, mas preciso tirar uma radiografia.
— Como se machucou?
Ela explicou rapidamente, não mencionando tudo o que tinha acontecido na gruta.
Ele a observava, cheio de irritação, e sua expressão estava confusa.
— Mas, não compreendo. . . para onde você estava indo por aquele caminho?
— Fui colher flores. Queria levá-las ao túmulo de Mati quando fosse ao cemitério.
Depois que tirasse o meu carro do estábulo de Alfonso e...
— Você ia voltar para Bilbao? — ele perguntou, esperançoso.
— Não, não. . . bem. . . isto é, não ia voltar tão cedo — explicou rapidamente. —
Mas, depois que machuquei o braço, as coisas ficaram muito complicadas e então Pio se
ofereceu para me trazer à médica.
— Por que ele não a levou até Bilbão? — ele perguntou, cheio de suspeitas
novamente.
— Porque ele sabia que eu não queria voltar antes de hoje. Você ia querer que eu
casasse com Billy.
— Você tem certeza de que ele não a forçou a ficar lá?
— Certeza absoluta! E você, pare de pensar que ele me raptou ou me forçou a fazer
alguma coisa que eu não queria. — Ela abaixou os olhos. — Ninguém precisa saber que
estive com ele, não é? Não vou contar a ninguém e você também não precisa.
— Não preciso? — Ele estava furioso. — Então o que você sugere que eu diga para
a Guardiã? O que você sugere que eu diga a toda imprensa?
— Pode dizer que se enganou. Que eu tinha ido passar alguns dias com uma amiga
no campo. Não precisa fazer nenhum comentário — ela disse alegremente. — É o que eu
vou dizer para qualquer um que me perguntar.
— E suponha que alguém pergunte ao Viroda? Como podemos saber o que ele vai
dizer? Meu Deus, que confusão. E eu não posso evitar de pensar que ele a manteve lá
deliberadamente, a fim de fazer justiça.
— O que você quer dizer com fazer justiça? — Os olhos dela estavam angustiados.
— Vingança — murmurou ele.
— Vingança do quê? — ela perguntou, sentindo um frio repentino.
— Da morte do pai dele.
Um choque atingiu os nervos de Caroline. Lembrou-se do rosto de Pio quando
contou que sabia quem tinha denunciado seu pai.
— Foi você então que. . . que. . . — Caroline não conseguiu terminar.

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— Então ele contou a você! — disse o pai, defensivo.
— Não. Ele disse apenas que sabia quem tinha traído seu pai ela murmurou.
— Foi um erro. O pior de todos que já cometi em toda a minha vida.
— Mas, o que aconteceu? Você conhecia Júlio Viroda?
— Não. Eu só tinha ouvido falar dele e o admirava muito por sua coragem. Mas
nunca o encontrei. Se eu o tivesse conhecido, teria lembrado dele quando o encontrei em
Martinez, naquela noite, com sua mãe. Eles estavam conversando e rindo como velhos
amigos. Alguma coisa explodiu dentro de mim. Durante os dois anos em que tínhamos
estado casados, sua mãe nunca tinha conversado e rido daquele jeito comigo. Achei que
eram amantes. Num ímpeto de raiva e ciúmes, ordenei que ele saísse da casa. Sua mãe
tentou falar comigo, mas eu estava furioso e não quis ouvir. Júlio pediu desculpas por ter
causado tantos problemas e saiu. Foi direto para a armadilha que tinham preparado para
ele. Só soubemos alguns dias mais tarde que ele tinha sido morto.
— Mati sabia disso? — perguntou Caroline, completamente gelada.
— Si. Mati sabia. Toda a família Viroda sabia.
Por isso havia tanta hostilidade no modo como a tratavam. Isso explicava o
comportamento de Pio.
— Mas foi tudo um engano, não foi? Você não fez aquilo planejadamente?
— Sim, foi um engano. Tenho pago por ele das maneiras mais diferentes. Por isso
fiquei preocupado quando soube que você estava aqui, na casa da filha de Júlio. Um dos
modos de me fazerem sofrer seria magoando você. Não confio em Pio Viroda.
Principalmente depois do escândalo da ex-esposa dele.
— O que. . . que escândalo? — Caroline estava com dificuldade para falar.
— Uma garota americana. Ela apareceu no ano passado, no estúdio, para vê-lo.
Parece que houve uma briga. Ela partiu muito agitada e foi encontrada, no dia seguinte,
na praia, afogada.
Ele estava atravessando uma crise emocional. Uma mulher tinha morrido e ele
estava se sentindo culpado. Estas tinham sido as palavras de Caterina na noite passada.
Elas passaram rapidamente pela mente de Caroline, que sentiu saudades de Pio.
— Como sabe disso? — perguntou, devagar.
— A investigação sobre a morte dela esteve em todas as primeiras páginas dos
jornais. Parece que ela era filha de um milionário americano e se apaixonou pelo Viroda
quando ele esteve dando aulas em um colégio da Califórnia. Fugiu com ele e se casaram
contra a vontade dos pais dela. Entende, querida, por que fiquei preocupado com você?
— Sim. Compreendo. Mas não precisava ficar. Pio não gosta de mim, porque sou
sua filha. E a irmã dele, a dra. Spinoza, insistiu para que eu ficasse aqui esta noite e
esperasse. Ela não queria vê-lo envolvido em problemas. Tenho certeza de que ela não
tinha nenhuma intenção de se vingar, magoando você através de mim. Como poderia
fazer isso?
Ele estudou o rosto dela com olhar ansioso.
— É o que vamos ver. É o que vamos ver — repetiu, devagar. — E agora, o que vai
fazer? Quer voltar para Bilbao comigo?
— Só se você me prometer que não toca mais no assunto de Billy.
— Mas, Caroline, temos que discutir isso e você mesma vai dizer a ele que não quer

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casar. Não posso fazer isso por você.
— Ele está... em Bilbao?
— Não. Ele não veio. Consegui que adiasse a viagem até que tivéssemos notícias
suas.
— Então, acho que vou voltar para casa. Sabe, não tenho nenhum dinheiro. Perdi
minha bolsa quando caí no riacho. Não posso comprar gasolina nem ficar em um hotel.
Não posso dirigir com o braço desse jeito. Você terá que dirigir.
Ele sorriu e passou um braço ao redor dos ombros dela.
— Vou ficar muito contente em fazer isso, querida.
Quando o carro estava se aproximando de Bilbao, atravessando os subúrbios e a
zona industrial, Caroline descobriu que tinha apanhado um resfriado. Sua garganta doía e
ela sentia arrepios de calor e de frio. Os ouvidos doíam e as amídalas estavam
inflamadas. As amídalas a tinham feito sofrer desde a infância. Por causa delas, tinha ido
pela primeira vez a Esker Ona, com oito anos de idade.
A casa de seu pai parecia não ter mudado nada. Os carros estavam na garagem e
ela pensou se teria mesmo ficado ausente ou se tudo não passava de um sonho.
Mas a dor de garganta não tinha nada de sonho, muito menos sua temperatura
elevada. Tia Margareth ainda estava em casa e insistiu que ela fosse direto para a cama.
Chamaram o médico da família e, quando ele veio, o diagnóstico foi amidalite. Receitou
alguns remédios, repouso absoluto e proibiu todas as visitas.
Só depois de uma semana ela conseguiu engolir sem dor, mas o médico insistiu
para que não parasse com o repouso. A garganta ainda estava inflamada e ela sabia que
tinha sido por causa do pouco sono e da grande ansiedade por que passara.
Tia Margareth desistiu de ir para sua própria casa e ficou cuidando de Caroline,
levando-a ao hospital quando precisava tirar radiografias. Uma delas mostrou que a
rachadura no seu braço estava soldando. Mais uma semana de repouso e alguns
exercícios especiais e ela estaria com o braço novamente em ordem.
Apesar de tentar afastar o cansaço que tinha se apoderado dela desde que voltara,
Caroline não conseguiu sucesso. Todas as suas antigas atividades já não a atraíam, pois
estavam ligadas a esportes e só podiam ser praticadas quando o braço estivesse
completamente são. Só podia sentar nas arquibancadas e assistir suas poucas amigas
espanholas jogarem ténis. Aos poucos, desistiu disso também, pois o tênis lhe lembrava
Billy e ela não queria pensar na possibilidade de mudar de ideia e casar com ele. Não
ainda.
Mas seu pai não tinha intenções de evitar o assunto. Muitas vezes se aproximou
dela e a conversa terminava sempre numa discussão feroz, com ambos perdendo o
controle.
A última discussão tinha terminado de modo abrupto. Coagida pelos argumentos do
pai, Caroline tinha explodido:
— Gostaria de não ter voltado! — ela gritou. — Nada mudou. Você continua
querendo dirigir a minha vida!
— Quero que seja feliz — Joseph gritou para ela, com o rosto arroxeado de raiva. —
Estou tentando fazer o melhor para você, estou cuidando do seu futuro. Como esposa de
Billy, você estará financeiramente segura. Poderá continuar vivendo no mesmo nível de
vida a que está acostumada.

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— Você não percebe que não me importo com isso? Ser uma menina rica não é
fácil. Não tenho o amor que preciso e estou procurando. Na verdade, prefiro amor ao
dinheiro. Queria que você perdesse todo o seu dinheiro. Como eu queria que fôssemos
pobres!
— Caroline, isso é a coisa mais estúpida que já ouvi! — O rosto dele tinha
empalidecido assustadoramente, mas Caroline estava furiosa demais para perceber.
— Se eu não fosse sua filha e se você não fosse rico, não estaria tentando me
proteger e me casar com um homem rico. Se eu não fosse sua filha, teria que trabalhar
para ganhar a vida. E seria capaz de viver com quem eu gostasse. Se não fosse sua filha,
Pio não teria sentido raiva de mim, teria querido que eu fosse ficar com ele, em vez de me
deixar na casa da irmã. E eu não teria que voltar para casa. Em vez disso.. .
— Ah! Diós mio! — A exclamação do pai interrompeu suas palavras. Ele estava
caído na cadeira, olhando para ela com uma expressão horrorizada. Ela deu um passo à
frente.
— Papai? O que foi? O que foi que eu fiz? — falou, apressada.
— A vingança! — murmurou ele. — É isso, a vingança.
— Papai, você está doente! — Caroline estava preocupada, agora. — vou chamar o
doutor Alvarez. Por favor, deite-se.
Ele a segurou pelo braço e ela viu que o orgulho mudava sua expressão,
endurecendo-a.
— Não é nada. Já vai passar — disse friamente. — Vá para o seu quarto. Se é
dessa forma que você se sente, não podemos mais conversar. E já que se sente tão
atraída pelo Viroda, é melhor dizer que quer morar com ele, mas não volte correndo para
mim, quando ele a mandar embora.
— Papai, desculpe-me — ela disse, desesperada —, perdi o controle. Não queria
dizer. . .
— Mas já disse, não é? A verdade já foi dita e Viroda conseguiu se vingar.
Conseguiu me atingir. Ele seduziu você, minha única filha. Diós mio, não aguento pensar
nisso.
— Não, não é verdade. Oh!, por favor, ouça-me!
— Já escutei e decidi que não quero ouvir mais nada — disse ele com veemência,
saindo da sala.
Caroline foi para seu quarto. Sentou-se e escreveu para Billy, dizendo que não
queria casar com ele. Levou muito tempo para terminar a carta. Quando acabou, decidiu
colocá-la na caixa do correio.
Ao voltar para casa, foi até o escritório do pai e pegou uma pilha de jornais. Levou-
os para o terraço, onde o ambiente era perfumado pelas flores.
Recostou-se em uma espreguiçadeira e começou a folhear os jornais, precisava
arranjar um emprego. Só assim seria capaz de ganhar sua própria vida e sair daquela
casa. Já não podia mais se submeter à vontade do pai e não esperava que ele a
sustentasse.
Siua intenção era olhar a seção de empregos mas, virando as páginas, acabou
encontrando um cartoon de Pio. Estava junto com os editoriais do jornal, pio fazia
caricaturas de duas conhecidas personagens políticas e ela não conseguiu segurar o riso.
— Então, você está aí, querida — Tia Margareth entrou no terraço. Estava vestida

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com a elegância de sempre e foi dizendo: — Que bom ouvi-la rindo. Parece que voltou a
ser você mesma. Há algo interessante no jornal? — Seus olhos vivos e azuis eram
interrogativos.
— Não, nada — disse Caroline, fechando o jornal rapidamente, antes que a tia
percebesse que ela estava olhando o cartoon. — Você sempre está tão chique, tão jovial.
Sempre parece ter uns dez anos a menos.
— Mas é que você não sabe quantos anos eu tenho — respondeu Margareth, com
seu rosto cheio e alegre, sentando-se em uma cadeira próxima. — Que dia lindo está
hoje. Estive conversando com Benjy, no telefone. Ele disse que está chovendo em
Londres e que estará no aeroporto à noite, para me encontrar. Sharon virá para casa na
próxima semana, depois de passar seis meses naquela clínica médica, na África.
— Eu também gostaria de ter estudado para ser enfermeira ou médica. Para fazer
alguma coisa útil — disse Caroline. — Pedia sempre a papai para continuar estudando,
mas ele nunca quis me ouvir.
— Sei disso. Ele é muito espanhol, nesse aspecto. Acha que o lugar da mulher é em
casa — confirmou Margareth. — Ele sempre achou que estava fazendo o melhor para
você, quando arranjou o seu casamento com Billy, você sabe disso.
— Sim, eu sei. Ele vive me dizendo isso. Mas não funcionou. Casar com Billy seria
terrível. Ele só ia casar comigo para acobertar suas outras atividades. — Caroline olhou a
tia, que se mantinha impassível. — Billy não gosta mesmo de mulheres, você sabe disso.
— Hum, eu tinha percebido qualquer coisa — respondeu Margareth.
— Mesmo assim, você queria que eu casasse com ele. Chegou até a incentivar meu
pai quanto ao casamento!
— Minha querida — disse Margareth —, até outro dia, eu não tinha a menor ideia do
que você sentia por Billy. Não pensei que soubesse que ele era homossexual! — Ela
passou a mão pelo rosto e seus olhos brilharam, cheios de humor. — Você já disse a ele
que não quer casar?
— Sim, acabei de escrever uma carta, agora.
— E que razão apresentou?
— Disse apenas que ainda não estou preparada para o casamento.
— Acho que ele vai ficar bem aborrecido. Apesar de todos os problemas que tem,
acho que gosta muito de você.
— Eu odeio esta palavra! — disse Caroline, cerrando os dentes.
— Que palavra?
— Gosta. É tão. . . tão boba. Eu não quero que um homem case comigo só porque
gosta de mim. Quero que ele me ame apaixonadamente, além de qualquer outro
sentimento — declarou Caroline com entusiasmo.
— Meu Deus, como você é romântica! — comentou tia Margareth.
— Parece a sua mãe quando tinha essa idade!
— Ela era assim?
— Se era! Gillian estava sempre esperando aquele príncipe encantado que ia
chegar um dia e levá-la nos braços para sempre. — A alegria era transparente na voz de
tia Margareth. — Depois de esperar muitos anos, ela desistiu e preferiu a segurança
financeira que seu pai lhe ofereceu. — Fez uma pausa e seus olhos azuis se fecharam

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um pouco, como se ela estivesse vendo algo que tinha acontecido no passado. — Mas o
príncipe encantado acabou chegando, finalmente. Muito tarde, infelizmente, para ambos
— terminou, com tristeza.
— Tia, você está tentando me dizer que minha mãe não amava meu pai e estava
apaixonada por outro homem? — perguntou Caroline, impaciente. A imagem, construída
durante anos, de sua mãe como uma lady gentil e graciosa que não podia fazer nada
errado estava saindo do pedestal e se arrebentando em pedaços.
— Acho que estou sim, querida — disse tia Margareth, virando o rosto para olhá-la
melhor. — O que deixou você chocada? Saber que ela não era nenhuma santa e apenas
um ser humano como todos nós? Gillian era amorosa e muito afetuosa, gostava de ser
amada, tanto quanto você, e naqueles dois anos de casamento sofreu muito.
— Mas meu pai a amava. Ele me disse isso.
— Talvez amasse. Mas, no início, ele estava tão inseguro dos seus sentimentos que,
por orgulho, acabou escondendo esse amor. Ele a deixava muito tempo sozinha. Estava
sempre ocupado, sempre tentando ganhar mais dinheiro. Só assim podia mante-la.
Mesmo depois que você nasceu, ela continuou sozinha. Não gostava de Bilbao, nem das
pessoas com quem era obrigada a conviver. Costumava passar meses naquela casa de
praia, perto da costa.
— Onde Júlio Viroda costumava ir visitá-la — disse Caroline, devagar.
— Você sabe! — exclamou Margareth.
— Papai me contou como encontrou Júlio e minha mãe rindo juntos, uma noite, e
pediu que ele saísse da casa. Disse que eram amantes. Eram mesmo, tia Margareth?
Você sabe? — perguntou Caroline, ansiosa.
— Você quer saber se iam para a cama juntos? — perguntou Margareth, de modo
realista. — Não, não sei disso. E nunca ninguém vai saber. Mati talvez soubesse, mas
nunca ia dizer nada contra o irmão. Ela tinha a forte ligação basca de lealdade de família.
Foi por intermédio de Mati que eles se encontraram. Júlio foi lá uma vez visitá-la e ela o
apresentou a Gillian. Ele era um homem atraente. Tenho a intuição de que Gillian adquiriu
o hábito de lhe contar seus problemas. Ela encorajou as visitas a Mati, assim podia vê-lo
novamente.
— Mas, e a esposa dele?
— Ele era viúvo. Estava muito ocupado dando aulas na universidade. Costumava ir
a Martinez apenas para descansar. Deve ter encontrado um pouco de paz lá, senão não
teria voltado tantas vezes.
— E durante todo esse tempo, meu pai não desconfiou de nada?
— Acho que suspeitou de que alguma coisa estava acontecendo. Senão não teria
aparecido de repente naquela noite. Infelizmente, escolheu o dia em que Júlio fazia sua
última visita. Ele ia partir para a França. Tinha parado lá apenas para se despedir de
Gillian e da irmã. Possivelmente estava também se escondendo da Guardiã. Joseph
contou o que aconteceu depois?
— Sim, contou.
— Não compreendo por que ele contou a você.
— Ele estava muito preocupado quando soube que eu tinha estado com Pio Viroda,
o filho de Júlio — disse Caroline, em voz baixa. — Pensou que Pio talvez quisesse se
vingar e fosse atingi-lo através de mim.

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
— Pobre Joseph — murmurou Margareth. — Sua consciência o tem atormentado
muito durante estes anos. Já sofreu muito por causa do que aconteceu. Gillian nunca
mais foi a mesma para com ele, você sabe. Culpou-o da morte de Júlio. Mas, como o filho
de Júlio ia se vingar através de você?
— Papai acredita que Pio me seduziu quando ficou comigo naquela noite — disse
Caroline, em voz baixa.
— Ah, entendo. E ele a seduziu?
— Não, claro que não!
— Não por atos, talvez, mas certamente por intenções — sugeriu Margareth, com os
olhos azuis brilhando de expectativa.
— O que quer dizer? — exclamou Caroline.
— Quero dizer que você foi seduzida sem saber disso. Que se apaixonou
perdidamente por Pio Viroda, não foi?
Caroline olhou a tia com espanto.
— Como você adivinhou?
— Você se entregou, minha querida -— dise Margareth, pegando o jornal e
apontando a página. — Não é seu costume se interessar por editoriais de jornais da
Espanha. E, como sua mãe, você tem a tendência de rir do que gosta. Bom, preciso ir
embora. Querida, conte-me o que está pretendendo fazer, se quiser. E se decidir partir
em busca do que gosta, por favor, deixe um bilhete para Joseph, dizendo onde vai. Será
muito melhor.
Caroline não pôde deixar de rir. Sua tia tinha senso de humor e era sempre muito
alegre.
— Gostaria que você não tivesse de partir, tia Margareth — disse ela. — Vai ficar
muito triste aqui, enquanto espero que meu braço sare. Não tenho companhia e nada
para fazer. — De repente, foi como se ela estivesse vendo o futuro próximo, cheio de dias
vazios, preenchidos apenas pela lembrança de Pio. Escondeu o rosto nas mãos — Oh, tia
Margareth, o que vou fazer, o que vou fazer? — perguntou, angustiada.
Margareth ficou parada alguns momentos, olhando para os cabelos loiros da
sobrinha. Seus olhos se encheram de emoção.
— Acho melhor você vir comigo — disse ela com seu modo prático. — Tenho
certeza de que posso comprar outra passagem para a Inglaterra. Diga para sua
empregada fazer as malas, enquanto converso com Joseph e fazemos os últimos acertos.
Tenho a impressão de que seu pai vai ficar muito aliviado em saber que você está indo
para longe, principalmente para fora do alcance de Pio Viroda.

CAPÍTULO V

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo

Joseph Mprondo concordou. Achou uma boa ideia Caroline ir para a Inglaterra e ficar
com a tia durante algumas semanas. Deu dinheiro para as despesas da filha e, apesar
dos seus modos reprimidos, acompanhou-as ao aeroporto e beijou-as na despedida.
— Já escrevi a Billy — sussurrou Caroline quando o beijou no rosto.
— Então está tudo resolvido. — Ele deu de ombros, mas seu olhar era amargo. —
Divirta-se na Inglaterra.
— Vou tentar.
— Talvez você devesse ir conosco, Joseph — sugeriu tia Margareth. — Você não
me parece muito bem. Precisa descansar também.
— Estou perfeitamente bem. E não tenho tempo para descansar. Estão chamando
seu avião. Vamos nos despedir.
Apesar de preocupada com a discussão que tinha tido com o pai, Caroline logo
esqueceu seus problemas, na casa agradável de Hamshire, onde seus tios moravam.
Depois da casa elegante, mas muito fria, onde morava com o pai, aquela velha casa de
fazenda, em estilo Tudor, era muito aconchegante. Tinha uma atmosfera de calor humano
que a casa de Bilbao nunca chegara a possuir.
E havia muito para fazer. Sharon, a garota alegre e bem-disposta que estava nos
últimos anos do curso de medicina, tinha muitos amigos e logo Caroline se viu cercada de
jovens, saindo todas as noites e passando os fins de semana em veleiros. Os dias alegres
e quentes de junho passaram. Seu braço estava curado. Ela já podia montar e cavalgar
em New Forest. Podia jogar ténis novamente. Escreveu ao pai duas vezes, pedindo que
fosse encontrá-la e duas vezes recebeu como resposta uma recusa formal, escrita pelo
señor Alvares, dizendo que seu pai estava muito ocupado no momento e não podia sair
de Bilbao.
Tentou não pensar mais em Pio. Muitas vezes não conseguiu. Um cartoon visto em
um jornal inglês fez com que ela se lembrasse dele. Algumas vezes, na cama, à noite,
fechava os olhos e o visualizava, deixando que o desejo de estar com ele a invadisse
completamente. Muitas vezes tinha vontade de fazer o que o pai havia sugerido: voltar
para a Espanha, procurar Pio e lhe oferecer o seu amor.
Mas tinha medo de ser rejeitada. Achava até que as suspeitas de seu pai estavam
certas: Pio a tinha mantido em Esker Ona durante aquela noite esperando vingar a morte
do próprio pai.
Já estava na Inglaterra há um mês quando recebeu a notícia de que seu pai tinha
sofrido um grave ataque do coração e estava internado no hospital de Bilbao.
Voltou depressa, de avião, e passou as duas semanas seguintes indo e voltando do
hospital, permanecendo ao lado dele. Seu coração estava angustiado. Ele não falava, não
podia se mover e não conseguia reconhecê-la.
— Ele vai melhorar? — perguntava e todos diziam que sim. Mas que também podia
se recuperar apenas parcialmente.
Devagar, com muitos medicamentos, ele foi readquirindo seu próprio controle.
Apesar de ainda não falar, já podia reconhecê-la e sempre sorria quando ela chegava.
Um dia conseguiu sentar-se e, no dia seguinte, deu alguns passos com a ajuda de uma
enfermeira.

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
Dois dias depois sofreu um novo ataque, que o colocou em coma, e do qual nunca
se recuperou. Morreu na noite do quarto dia e os convidados que não tinham vindo para o
casamento, em maio, vieram para os funerais, em julho.
Abalada pela tristeza da sua morte, e, muitas vezes incapaz de acreditar que ele
tinha sido forçado a deixá-la aos quarenta e nove anos, no auge da sua vitalidade e
entusiasmo pelo trabalho, Caroline foi obrigada a entrar em contato com as pessoas que
trabalhavam na companhia, a fim de cuidar dos problemas financeiros.
Depois dê ter assistido a uma reunião, sentindo-se exausta e desligada, descobriu
que seu pai estava falido e não tinha o dinheiro que todos pensavam. Ela não era herdeira
de nada.
— Por que ele não me disse nada? — perguntou, espantada, a tia Margareth,
sacudindo a cabeça. — Ah, aquele orgulho sempre atrapalhou tudo.
— Qual é a sua situação, querida? — perguntou a tia.
— Pelo que sei, ele perdeu o dinheiro recentemente, fazendo maus investimentos.
Em vez de cortar os gastos, começou a jogar violentamente na Bolsa de Valores.
— Sabia que ele estava preocupado com alguma coisa — admitiu Margareth. —
Mas não adiantava perguntar nada. Eu era apenas uma mulher e não ia entender seus
problemas — disse secamente.
— O que eu não entendo é que ele continuou a gastar tanto dinheiro comigo, com a
minha educação naquela escola suíça. Me mandava uma mesada enorme para roupas e
viagens. Tia, ele não podia pagar nada daquilo. Estava com dívidas até as orelhas.
— Era tudo encenação, eu acho — disse tia Margareth. — Ele queria lhe arranjar um
marido rico, para que tivesse segurança quando ele morresse. Sabia que não ia poder lhe
dar tudo o que todos esperavam que lhe desse. Já tinha acontecido antes. Primeiro com
Gillian e depois com você.
— Dar-me uma segurança que eu não queria — murmurou Caroline e começou a
chorar. — Oh, se ao menos eu não tivesse dito tudo o que disse a ele. Eu não sabia. Se
ao menos nós tivéssemos conversado antes de ele morrer! Sua morte foi culpa minha. Eu
o deixei doente. Foi tudo culpa minha e de Pio.
— Não, não foi — respondeu Margareth com sinceridade. — E você não vai ficar
pensando isso. Os ataques são muito estranhos. Ninguém sabe quando acontecem, nem
por quê. Mas tenho certeza de uma coisa: uma pessoa não tem um ataque e morre só
porque alguém lhe disse algumas palavras ríspidas. Agora, pare de se culpar, Caroline.
Precisa pensar no que vai fazer. Há muitas dívidas para pagar?
— Sim. Há empresas e ações. Algumas coisas podem ser vendidas para ajudar a
pagar os débitos.
— Esta casa pode pegar um bom preço — explicou Margareth, olhando em volta. —
Há muitos quadros e antiguidades.
Assim começou o processo de venda dos bens de Joseph Morondo.
Caroline ficou com tia Margareth, na casa grande, durante a semana seguinte, até
que tudo estivesse vendido, com exceção de alguns móveis que ela decidiu guardar para
si. Nada restou para herdar.
Ela aceitou a situação calmamente. Pelo menos uma das diferenças entre ela e Pio
tinha desaparecido, pensou um dia, quando estava arrumando a mala e se aprontando
para partir para a Inglaterra no dia seguinte. Já não era mais uma menina rica — e neste
momento a lembrança de Pio voltou, forte. Caroline viu o suéter dele na mala que havia

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sido arrumada por Emília, que tinha pensado que a roupa era dela.
Ergueu-o e colocou a lã contra as faces, lembrando o momento em que ele a tinha
abraçado na caverna. Se fechasse os olhos podia vê-lo. Seus cabelos caíam na testa,
uma sobrancelha era um pouco mais alta que a outra, os olhos cinzentos brilhavam com
humor ou escureciam de sensualidade quando ele se inclinava para beijá-la.
E ele tinha sentido vontade de beijá-la, lá na caverna. Não adiantava ter dito que a
beijara apenas porque Mati teria feito aquilo, porque ela estava machucada, perdida e
confusa. Pio tinha sentido vontade de beijá-la como um amante. Tinha acariciado seu
corpo até ele ficar cheio de desejo. Ele a tinha desejado e ela o tinha desejado. Ela o
amava. Não podia partir da Espanha sem vê-lo novamente.
Não parou para pensar se estava fazendo a coisa mais acertada. Colocou o suéter
numa sacola de papel e logo estava em seu carro, que ainda não tinha sido vendido.
Deixou um bilhete para a tia, dizendo que ia fazer compras e telefonaria mais tarde.
Logo estava na estrada. Apesar do tráfego de verão, Caroline conseguiu chegar
rapidamente às montanhas, tomando o caminho para San Sebastian. Na rua em que
Caterina Spinoza morava as árvores estavam floridas.
Os portões estavam abertos, mas não havia nenhum carro na garagem. A casa
parecia deserta. Se não houvesse ninguém lá, o que ela ia fazer? Como podia descobrir
onde Pio morava?
Tocou a campainha. A porta se abriu e apareceu Emília. Quando viu Caroline, seus
olhos se abriram, espantados.
— Señorita Morondo, o que está fazendo aqui?
— Desculpe-me perturbá-la. A doutora está em casa?
— Não. Ela e o marido estão viajando, em férias. Posso ajudá-la?
— Pode me dizer onde é o estúdio do señor Viroda? Sei que é em Martinez, mas
não sei o endereço certo. Tenho algo que pertence a ele e gostaria de devolver.
— Ah! Deixe-me pensar. Não sei o nome da rua onde ele mora. É um bairro
pequeno, onde todos se conhecem. — Emília ficou sorrindo, como se acreditasse que
seria fácil para Caroline achar Pio, depois das indicações que havia dado.
— Obrigada — respondeu Caroline. — Você ajudou muito. Ela voltou pela estrada
costeira. Martinez era no caminho para Bermeo. Era só seguir a costa e chegaria lá.
Dirigiu durante quase uma hora até que viu uma cruz dourada no topo de uma igreja.
Um sinal na beira da estrada lhe mostrou que estava próxima de Martinez. Logo se
encontrou em uma rua estreita, tendo em um dos lados o mar. As casas eram
pequeninas, todas pintadas de branco, com sacadas e floreiras cheias de gerânios.
Alguns barcos pesqueiros estavam amarrados no porto. Grupos de pescadores
usando o barrete basco pegavam mariscos e tiravam limo do fundo dos barcos,
preparando-os para pinturas e reformas.
Do porto saía uma ruela que subia a montanha, onde edifícios estreitos se
espalhavam. Como estavam na estação turística, havia carros por todos os lados, vindos
de diferentes pontos da Europa. Pessoas com roupas coloridas se espalhavam pela rua e
pelas pequenas lojas.
Vendo uma vaga, Caroline acomodou rapidamente o carro. Durante alguns
momentos ficou pensando onde poderia perguntar sobre Pio. De repente, viu uma placa:
Galeria de Artes.

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O sol estava quente. Uma brisa fez sua blusa flutuar e desmanchou os cabelos
loiros. Ela estava muito bonita, com uma saia em estilo cigano, blusa e sandálias brancas,
de saltos bem altos. Sua pele era cor de pêssego e chamava a atenção de muitos
homens. Alguns falaram com ela, outros assobiaram.
Dentro da galeria estava quieto e fresco. Havia muitas pessoas olhando quadros e
objetos de arte. O proprietário, um homem baixinho, de bigode e óculos, conversava com
um casal. Caroline ficou por lá olhando os quadros.
A galeria estava dividida em duas partes, uma com quadros diversos e outra
expondo um único artista.
Quando entrou na segunda seção, deu de cara consigo mesma. Deixou escapar
uma exclamação de espanto e olhou em volta para ver se as pessoas tinham percebido.
Rapidamente se aproximou do seu retrato.
Não, não estava enganada. Era ela, da cintura para cima, usando apenas o sutiã de
renda. O cabelo estava solto e a cabeça inclinada para trás. Os olhos eram azuis e os
lábios estavam ligeiramente entreabertos. Era um quadro impressionista e a pele dela
parecia brilhar contra o fundo negro. Sob o quadro estava um cartão onde constava o
nome da obra e do artista. Estava escrito simplesmente: "Moça na Caverna — autor:
Viroda".
Outras pessoas estavam entrando e ela saiu depressa, esperando que ninguém
percebesse a semelhança entre ela e a pintura.
O casal que tinha estado conversando com o proprietário havia saído. Ele se
aproximou, perguntando:
— Señorita, posso ajudá-la? Quer comprar um quadro?
— Sim, o da moça na caverna. Quanto custa?
— Ah, desculpe. Aquele não está à venda. Muitas pessoas o têm admirado e já
quiseram comprar. Na maioria rapazes. Parece romântico para eles. É a garota dos seus
sonhos se oferecendo a eles.
— Eu não vi nada disso — respondeu Caroline, irritada. — Quero dizer. . . sendo
mulher, não poderia mesmo ver isso, não é? — disse rapidamente. — Mas, por que está
em exposição se não é para vender?
— Pedi ao señor Viroda que mandasse mais quadros para a exposição, pois já havia
vendido muitos. Ele é muito popular. Seus quadros vendem bem, mas ele não faz
quadros pequenos. Prefere pintar grandes murais. Ele me mandou aquele e mais outros
dois com a condição de não vendê-los até que cheguem os outros.
— Onde posso encontrá-lo? — perguntou Caroline. — Talvez possa convencê-lo.
— Hum, agora ele está na igreja — disse, devagar.
— Na igreja?
— Si. Foi contratado para pintar uns afrescos na igreja. Os velhos foram destruídos
pelo fogo. Agora teremos novos. Vão ficar estupendos! Todo mundo do país basco virá
vê-los, pois as cenas religiosas estão misturadas com cenas da vida do nosso povo. Você
sabe, naturalmente, que o pai do señor Viroda foi morto aqui perto e está enterrado no
cemitério da igreja, não é, señorita?
— Não, eu não sabia — murmurou Caroline.
— Ele era um grande homem... um herói.

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— Mas, quando o señor Viroda não está na igreja, onde pode ser encontrado?
— Ah, no seu estúdio, eu acho. É no andar mais alto daquela casa velha que dá
para o porto, do lado norte. Mas terá dificuldades em vê-lo. A velha señora Zobel, que
também é a dona da casa, o protege de visitantes. Vai precisar de uma boa história para
que ela a deixe passar.
— Obrigada, señor. Ajudou muito.
— De nada, señorita. É sempre um prazer ajudar uma moça bonita. Se não
conseguir persuadir o señor Viroda, posso lhe vender outros quadros. Volte e escolha um.
Deve haver algum que a atraia.
Que atrevimento o de Pio, pintá-la daquele jeito! A irritação fez com que andasse
depressa em direção à igreja. O edifício já estava quase terminado. Lá dentro, pôde ouvir
o canto suave dos padres, ajoelhou-se entre duas pessoas e olhou, cautelosa, em volta.
Perto de uma parede estava uma escada de ferro. Subiu até o ponto mais alto, onde
a parede estava coberta com pinturas modernas e brilhantes. Pio não estava lá.
Permaneceu alguns momentos com a cabeça curvada, como se estivesse rezando,
tentando compreender por que ele tinha pintado aquele retrato dela. Será que era para
esquecer tudo o que tinha acontecido na caverna? Ou será que ela tinha ficado tão
presente em sua lembrança, como ele ficara na dela? Isso não queria dizer. . . Ou será. . .
Não havia respostas. Tinha que encontrá-lo e fazer a ele as perguntas.
Saiu da frescura da igreja e foi para o sol. Andou pelo porto e viu alguns pescadores
discutindo. Seguiu a curva do mar em direção à casa grande perto do farol.
Um portão azul e estreito dava entrada ao jardim da casa. Sentada em um banco,
estava uma mulher de meia-idade com cabelos grisalhos, usando uma roupa preta.
Tricotava um xale, mas quando viu Çaroline colocou o tricô sobre os joelhos e a olhou
atentamente com seus olhos negros.
— Onde pensa que vai, señorita? — perguntou, áspera.
— Vim ver o señor Viroda. Ele está? — disse Caroline friamente.
— O que quer com ele? — perguntou a mulher, cheia de suspeitas. Veio em direção
a Caroline e parou na frente do portão.
— Sou amiga dele — respondeu ela, sem saber se a mulher ia acreditar.
— Foi isso que a outra também falou. Disse que era amiga dele, mas estava
mentindo. Não era uma amiga verdadeira. Trouxe problemas para ele. — Os olhos negros
se fixaram em Caroline. — Você é parecida com ela, alta e com cabelos loiros. Como se
chama?
— Caroline Morondo. Mas não sei por que. . .
— Morondo? — As sobrancelhas da mulher se ergueram, com surpresa. — O
homem que vendeu esta casa para o meu marido também se chamava Morondo. Você é
parente dele?
— Meu pai era Joseph Morondo e ele tinha uma casa por aqui.
— Era esta á casa — exclamou a mulher. — Eu sou Teresa Zobel, meu marido era
Gabriel e ele sempre falava do señor Morondo. Ele vendeu esta casa por muito menos do
que tinha pago por ela. Disse que lhe trazia más recordações.
Caroline olhou a casa. Era ali que sua mãe costumava ficar, onde ela própria tinha
estado quando era um bebê. Era a casa onde Júlio Viroda tinha ido visitar sua mãe. E de

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onde Joseph Morondo, atacado de ciúmes, o expulsara para a morte. Era onde o filho de
Júlio morava agora.
Olhou novamente para a señora Zobel. Não havia dúvida de que a atitude da mulher
havia mudado.
— Señorita, estou muito contente em conhecê-la — disse a mulher. — Costumava
me lembrar com carinho do seu pai. Não sabia que era amiga do señor Viroda, ele nunca
me disse. Ele mora lá no último andar. Quando Gabriel morreu, a casa ficou muito grande
para mim, e decidi alugar uma parte dela. Nesta época o señor Viroda estava procurando
um estúdio. Chegamos a um acordo. Ele paga um bom aluguel e eu cuido da casa para
ele.
— Ficaria muito agradecida se me deixasse vê-lo — disse Caroline — Não vou
demorar muito. Tenho algo que pertence a ele e quero devolver. Gostaria também de
discutir a compra de alguns quadros.
A señora Zobel sorriu.
— Agora sei que não é como a outra. Suba as escadas, señorita e seja bem-vinda.
Caroline subiu devagar. Sua mente estava ansiosa. Como ele ia olhá-la? Como
estaria ele? O que ia lhe dizer?
Em algum lugar, uma porta se abriu e bateu, fechando. Passos delicados e
femininos soaram nos degraus e Caroline viu uma figura pequenina e magra, com cabelos
encaracolados, descendo a escada. A jovem passou por ela e parou para respirar. Tinha
o rosto queimado de sol e olhos grandes.
— Se veio procurar emprego como modelo, ainda há vaga. Pio fez o anúncio há uma
semana, mas é difícil ser modelo dele. Antes era ótimo. Agora ele acha que nada serve.
A jovem desceu o resto da escada, gritou alguma coisa para a señora Zobel e saiu.
A porta que a moça tinha batido não ficou fechada totalmente. Pelo vão da abertura,
Caroline viu uma janela alta. Cuidadosamente, em purrou a porta e entrou em um grande
quarto.
Não havia tapetes e a madeira do chão estava à mostra. Também não havia muitos
móveis, a não ser uma mesa redonda e algumas cadeiras que estavam na outra
extremidade do ambiente. Um divã antigo, coberto com uma toalha vermelha, estava
encostado em uma parede. Uma cômoda em um canto servia para aparar os pincéis e as
tintas. Telas e molduras se espalhavam por todos os lados. Havia uma janela imensa e
uma tela em um cavalete.
Outra porta, do outro lado do quarto, estava parcialmente aberta e ela pôde ver uma
cama desarrumada. Ficou ouvindo e percebeu que alguém se movia lá. Tossiu,
esperando atrair a atenção da pessoa, mas nada aconteceu. Deu um pontapé na porta e
ela se abriu completamente.
— Pensei que lhe tinha dito para não voltar mais. Você é uma péssima modelo! —
era a voz de Pio, irritada. Interrompeu-se quando chegou na porta e viu Caroline. Foi um
momento de silêncio absoluto. Seus olhos estavam arregalados, como se não
acreditasse. — Espere um momento — ele disse, voltando ao quarto e fechando a porta
atrás de si.
A visão dele tinha sido suficiente para deixar o coração de Caroline batendo forte.
Para se acalmar, foi até o cavalete e ficou observando a tela. Para ela, a pintura parecia
composta de nuvens de cor. Não sabia o que representavam e ficou imaginando o que ele
queria dizer com aquilo, quando a porta se abriu e ele apareceu novamente. Não tinha

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mudado muito. Estava vestido com jeans e camiseta e seus músculos chamavam muito a
atenção. Ele parou e cruzou os braços.
— O que quer? — perguntou friamente. — Por que veio aqui? Para se fazer de
boba?
Esta atitude hostil fez com que Caroline perdesse o controle. Caminhou em direção
a ele e atirou a sacola de papel aos seus pés.
— Vim devolver seu suéter — respondeu. — Achei que, como você é um homem
"tão pobre", podia precisar dele quando o inverno chegar.
— Obrigado — Pio respondeu, olhando-a com calma. — É só isso?
— Não. Não é — respondeu, com raiva. — Hoje eu vi um quadro seu na galeria de
arte daqui. É um retrato meu. Quero comprá-lo.
— Por quê?
— Para destruí-lo. Como você se atreveu a me pintar daquele jeito, dando um
espetáculo para o mundo ver?
— É difícil o mundo todo ir a uma galeria de arte em uma pequena cidade basca e
olhar meus quadros — respondeu secamente. — O mundo não vai reconhecer você
naquela moça. O quadro não está à venda e, se veio só por causa disso, pode ir embora.
Buenos tardes, señorita. A porta é ali. Por favor, não bata quando sair.
Ele se inclinou para pegar o pacote do chão. Caroline não se moveu. Não podia.
Estava paralisada no lugar, cheia de desapontamento pelo modo como ele a havia
tratado. Quando Pio se endireitou, ela ainda estava lá. Seus olhos se encontraram e
nenhum dos dois conseguiu desviar.
— Meu pai morreu de repente — ela murmurou.
— Eu sei.
— Ele estava falido.
— Também sei disso. — Ele parecia sorrir e olhou para o pacote que tinha nas
mãos. — Veio aqui por causa disso, apenas? — perguntou, indeciso. — Ou está
procurando cama e comida, agora que está sem dinheiro?
O desapontamento era cada vez maior. Furiosa com as palavras dele, Caroline ficou
nas pontas dos pés e lhe deu um tapa no rosto. Ele a segurou pelo pulso e torceu-lhe o
braço. A dor foi tanta que ela gritou.
Agora estavam muito próximos, com o peito e as coxas encostados. Cheios de raiva,
olharam um nos olhos do outro.
— Você é um bruto! — ela gemeu. — Oh, é cruel e bruto!
— Por que tento me defender das suas garras? — respondeu, com raiva. — Não
quero perder um olho.
Ela tentou se libertar, mas só conseguiu se aproximar mais. Sem fôlego,
descabelada e suada, olhou-o novamente.
— Por que não vende o quadro para mim? Por que o quer? — perguntou. Ele
relaxou o aperto do braço dela, suas mãos se encontraram e seus dedos se entrelaçaram.
— Ele me faz lembrar a garota adorável que encontrei um dia em uma caverna —
respondeu com os olhos escurecendo e as pálpebras se fechando suavemente.
— Deixe-me ir, Pio — ela sussurrou, porque o contato com ele tinha produzido um

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efeito forte, derrubando todas as suas resistências Mas sua voz não tinha nenhuma
convicção. Queria sentir o abraço forte dele em todo o corpo, sentir o rosto dele
novamente, cheio de calor, o cheiro de almíscar que ele exalava, o gosto de sua boca
agridoce, beijando-a novamente.
— Não deixo, agora que estamos assim tão perto — ele respondeu calmamente,
com a voz ligeiramente rouca. Encostou-se contra a parede e puxou-a sobre seu corpo
vibrante. Seus lábios se encontraram com força e suas coxas se entrelaçaram. Com um
braço em volta da cintura dela, Pio a segurava, enquanto seus lábios desciam gentilmente
para o pescoço. — Você sabe tanto quanto eu como esperei com saudades, niña! —
murmurou.
— Eu também senti saudades — ela concordou alegremente, passando as mãos
pelos músculos dos braços dele, acariciando a pele aveludada, erguendo o rosto para que
ele a beijasse. Mas Pio não beijou seus lábios novamente. Em vez disso, beijou-lhe a
base do pescoço, com a língua fazendo-lhe cócegas no pescoço e nas orelhas.
— Preciso ter tempo de arrumar a cama — murmurou baixinho, com os lábios
quentes próximos do ouvido dela. Caroline sentiu uma excitação estranha passar-lhe pelo
corpo. Ele mordeu seu pescoço, dizendo: — Não quero que vá embora sem me dar o que
queria dar, já que teve tanto trabalho em vir aqui — disse rapidamente.
Havia algo de errado naquilo, mas Caroline não conseguia saber o que era. Seus
pensamentos não conseguiam mais se coordenar. Estava enfeitiçada pelo ardor que
sentia em Pio. Podia perguntar o que ele estava querendo dizer, mas, quando sua boca
se abriu para falar, foi sufocada pela dele, num beijo silencioso, cheio de desejo, que a
deixou completamente entregue. O desejo parecia fluir como lava de uma erupção
vulcânica, derretendo tudo que tentava resistir a ele. Quando Pio a ergueu com facilidade
em seus braços e a carregou para o quarto, chutando a porta atrás de si, ela não resistiu.
Compreenleu que não conseguia controlar o que sentia por ele.
O quarto era alto e cheio de sol, calmo, e parecia um paraíso secreto, ideal para
trocar intimidades. Deitado ao lado dela na cama coberta com lençóis azuis, Pio continuou
com seus beijos firmes e longos, enquanto suas mãos apalpavam a blusa dela, afastando
o tecido dos ombros e dos seios.
— Diós, como você é bonita — murmurou, rouco. — Mais bonita do que eu
imaginava, com seu cabelo cor-de-ouro e a pele como um fogo dourado. Não pude vê-la
direito na caverna, só imaginar o seu corpo. A pintura é apenas a impressão que tive de
você. Nem chega perto da realidade.
A boca de Pio estava presa à dela. Caroline sentiu a nudez do corpo dele. Pio
murmurava o seu nome, e ela o dele, usando expressões carinhosas que nunca tinha
usado para ninguém. Estava sendo levada por uma tempestade de paixão que havia
explodido além do controle de ambos. Ela confessou que o amava, com voz rouca e cheia
de desejo, apertando-o cada vez mais.
Era por isso que tinha vindo. Era o que ela queria e ele sabia disso, mesmo quando
tinha tentado mandá-la embora. Cada nervo, cada músculo do corpo de Pio a queriam
cada vez mais perto. Ele também a amava. Então, não podia haver nada de errado em se
entregar à paixão. Tudo o que importava agora é que estavam juntos e as diferenças
entre ambos tinham sido superadas.
— Sonhei tanto em ficarmos juntos assim. Sem mais nada entre nós — ele
murmurou, provocante.
— Eu também.
— Vou tentar não magoá-la, querida. — Aquela imensa ternura dele, depois de ter
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sido tão rude, atingiu o coração de Caroline.
— Não me importo. Não me importo porque estou com você. — Ela colocou toda
sua sinceridade naquelas palavras.
— E tem certeza que é isso mesmo que quer? — ele perguntou mais uma vez. Ela
estranhou a persistência das perguntas, abriu os olhos e viu o rosto dele banhado de sol,
os olhos escuros de sobrancelhas franzidas e, nos lábios, um sorriso cínico. De repente
comprendeu que Pio estava inseguro sobre o desejo dela. Só o que queria naquela hora
era lhe provar que o queria mais que tudo.
— Oh, sim, por favor — sussurou, erguendo os braços e puxando-o para mais perto
de si. — Quero você, Pio, muito. Muito mesmo. Por isso vim aqui hoje. Não podia partir da
Espanha sem vê-lo outra vez.
— Sem deixar comigo apenas um quadro como lembrança. Acho que devo me sentir
orgulhoso — comentou, com os lábios mergulhados nos cabelos dela.
— O que quer dizer? — ela perguntou, percebendo que alguma coisa não estava
indo bem. Havia uma barreira invisível entre ambos.
— Não tem importância. Nós dois vamos fazer o que queremos nesta tarde e depois
nos despedimos, está bem?
De repente o corpo quente dele estava se movendo contra o dela. Todos os sentidos
estavam despertos, mas a voz fria da razão falou mais alto. O corpo de Caroline foi
percorrido por um arrepio e ficou tenso. Pio não a amava tanto quanto ela o amava! Ele
ainda a via como tinha visto na caverna, uma garota rica e cheia de homens, que queria
ter algum prazer e o havia escolhido para sua primeira aventura sexual.
Com grande frustração e desapontamento, ela o empurrou com força. Seus pulsos
bateram no nariz dele, que gemeu de dor e rolou para longe dela. Pegando as roupas,
Caroline saiu correndo do quarto para estúdio, batendo a porta atrás de si. Vestiu
rapidamente a saia, a blusa, calçou as sandálias, pegou a bolsa e abriu a porta do
estúdio, e atrás de si a porta do quarto se abriu e ela o ouviu dizendo, quase sem fôlego:
— Caroline, espere... — Não ouviu mais nada, pois saiu batendo a porta.
Nos primeiros degraus lembrou-se da modelo bronzeada que tinha encontrado ao
chegar. Agora sentia simpatia por ela. Pio era um cínico. Nos degraus seguintes, lembrou
que a señora Zobel estava lá em baixo. Prestou atenção para ver se a porta do estúdio se
abria novamente. Será que ele viria atrás dela? Podia querer alguma explicação. Ela lhe
diria tudo o que estava pensando. Que ele era um depravado e atrevido por pensar que
ela tinha vindo apenas para dormir com ele, um atrevido em pensar que ela estava
apenas procurando uma aventura.
Mas ninguém a seguiu. A claridade do sol fez com que ficasse ofuscada, as paredes
das casas brilhavam, assim como o mar azul e as folhagens de um verde escuro. Caroline
procurou seus óculos de sol.
— E Encontrou o señor Viroda? — perguntou a señora Zobel alegremente. Estava
ainda sentada no banco, tricotando com rapidez.
— Sim, falei com ele. Muito obrigada — respondeu Caroline, imaginando se um dia
ia conseguir perdoá-lo.
Nunca, mas nunca mais mesmo, ia voltar àquele lugar, jurou a si mesma, dirigindo-
se ao portão azul. Tinha a cabeça erguida e o corpo ereto. Nunca mais ia fazer o que
tinha feito naquela tarde. Não ia mais se entregar aos beijos de um homem, como tinha
feito com Pio. Nunca ia dizer a um homem que o amava. Nunca se entregaria novamente

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ao desejo de amar Pio e ser amada por ele. O amor era apenas uma fonte de decepções.
Quando chegou à rua, estava quase sem fôlego. Entrou num café com mesinhas na
calçada e pediu uma limonada gelada. Ficou observando as pessoas que passavam, sem
ver nada.
Não devia ter vindo. Não devia ter seguido seu impulso. Devia obedecer apenas ao
seu orgulho. Podia ter mandado o suéter pelo correio. Não podia ter Pio, ele não era para
ela.
E, mesmo assim, por alguns momentos ela tinha acreditado que Pio a amava. Que
sentia por ela o mesmo que ela sentia por ele.
Estava escrito no modo como a olhava, cheio de alegria e surpresa antes de
entrarem no quarto. Lá, então, ele tinha mudado de atitude. Logo que ficaram próximos,
ele passou da rejeição para uma grande ternura. Tinha até admitido que sentira saudades
dela durante o tempo em que estiveram separados. E, acima de tudo, tinha acariciado seu
corpo com tanta gentileza, murmurando frases carinhosas, admirando a pele dela, seu
cabelo. Só ao lhe tocar os lábios tinha sido cruel Tinha dito que ia tentar não magoá-la e
perguntou se ela queria aquilo mesmo. Tudo o que Pio fez parecia o comportamento de
um homem que ama e não está apenas tendo um caso passageiro.
Então, por que tinha dito aquelas frases cínicas? O que havia acontecido que tinha
provocado tudo aquilo, dado a ele a ideia de um encontro rápido, sem consequências?
Durante um longo tempo ela tentou achar as respostas, até que o garçom veio
perguntar se queria mais alguma coisa. Decidiu ir embora. Pagou e foi em direção ao
carro. O sol estava se pondo, projetando seus raios nos telhados. A casa onde Pio
morava, onde sua mãe e o pai dele tinham se encontrado, estava banhada de sol. O porto
de Martinez brilhava, iluminado pelo sol poente, assim como todo o estuário do rio que
vinha de Guernica.
Quando ela chegou a Bermeo, uma bonita cidade de pescadores, cheia de casinhas
limpas e minúsculas, os barcos já estavam bem arrumados, lado a lado no porto. O sol
estava vermelho-fogo, fazendo com que o mar também brilhasse com esta cor. O
contraste com as casas era exótico e, ao longe, as montanhas estavam escuras e
pareciam fantasmagóricas.
Amanhã ela ia partir da Espanha para sempre. Ia para a Inglaterra e, com a ajuda de
tia Margareth, haveria de encontrar algum trabalho. Já estava pensando no que podia
fazer. Falava fluentemente três idiomas. Tinha ouvido falar de uma escola em Londres
que treinava pessoas bilíngues e trilíngiies para serem secretárias ou intérpretes em
companhias internacionais. Podia conseguir um emprego interessante, viajando pelo
mundo.
Sim, essa podia ser a resposta para aquela sensação de desespero. Não queria
mais pensar que o homem que amava considerava-a apenas um objeto sexual. Queria se
afastardele. Uma mulher não precisa de nenhum homem para se divertir e levar uma boa
vida. Os corações partidos, assim como os ossos, logo se recuperam. Ela estaria com o
coração funcionando bem assim que esquecesse Pio. Enquanto pensava, ia dirigindo
bem devagar atrás de uma carroça de fazenda puxada por um burro, que ocupava toda a
estrada. Olhou no espelho retrovisor e viu um carro pequeno vindo em sua direção, dando
sinal de luz, querendo ultrapassá-la, envolvido em uma poeira vermelha, que indicava ter
saído pelo acostamento. Ela tentou avisar que ia sair do caminho, mas queria avisar
também o homem da carroça. Tocou a buzina e apertou o acelerador. Ouviu vagamente a
buzina do carro de trás, mas era muito tarde. Tinham chegado a uma lombada e os faróis
fortes a ofuscaram. Tarde demais! Tentou pisar nos freios e entrar novamente atrás da

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
carroça. O carro vindo em direção contrária a atingiu em cheio. O carro de Caroline virou
de um lado e saiu fora da estrada, caindo em uma ribanceira.
Capotou diversas vezes e foi terminar no fundo do precipício. Caroline sentiu que a
direção estava forçando suas costelas, a testa tinha batido no vidro e, de repente, viu tudo
negro.

CAPÍTULO VI

Havia momentos em que ela tomava consciência de uma dor muito aguda e de
vozes conversando nervosamente em espanhol. Percebeu que alguém tentava tirá-la do
carro. Depois teve certeza de ouvir a voz de Pio, rouca e concentrada. Mas, quando abriu
os olhos e tentou ver se ele estava lá, ficou ofuscada pelas luzes e fechou os olhos
rapidamente.
— Ela está viva. Acabou de abrir os olhos — disse uma voz autoritária.
— Graças a Deus — era a voz de Pio novamente. Mas será que Pio estava ali? Ele
não a tinha seguido, não se importava o suficiente com ela para segui-la. Devia estar
imaginando que era a voz dele, porque tinha vontade que ele estivesse ali.
— Señorita, pode ouvir-me? Se puder, balance a cabeça — era a voz autoritária
novamente.
Caroline balançou a cabeça.
— Bueno — disse a voz. — Você está presa atrás da direção. Mas vamos tentar tirá-
la daí. Sou médico e vou lhe dar um anestésico para que não sinta muita dor. Está
pronta?
Caroline tentou responder alguma coisa. Sentiu a picada de uma agulha e depois
mais nada, até que percebeu estar deitada em uma cama dura. Sentia o cheiro de
antissépticos e achou que estava em um hospital. Abriu os olhos com cuidado, não
querendo ser ofuscada novamente. Através dos cílios, viu que as luzes não eram fortes,
que podia abri-los totalmente.
Estava em um pequeno quarto parecido com aquele em que seu pai tinha estado.
As cortinas verdes estavam fechadas. Virou a cabeça e viu alguém sentado ao lado da
cama. A luz suave iluminava os cabelos loiros, sob um chapeuzinho preto.
— Tia Margareth, como chegou aqui?
— Até que enfim, querida! Como se sente? — perguntou tia Margareth.
Caroline pensou um pouco. Sentia dores nas costelas e o rosto parecia inchado.
Ergueu a mão e viu que o olhar da tia a acompanhava.
— Tem alguns arranhões no rosto. Nada para se preocupar, graças a Deus. Eles
desaparecerão com o tempo — falou gentilmente.
— E aqui? — perguntou Caroline, tocando o peito.

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— Há uma costela trincada e nada mais. O médico disse que você teve sorte,
considerando as proporções do acidente. Mas, querida, o que estava fazendo? Onde
tinha ido?
A mente de Caroline estava toda enevoada. Tentou lembrar o que tinha feito antes
do carro bater.
— Acho que tentei pegar o impossível. Mas não era para mim — murmurou, com
sono. — Devo ter-me machucado quando tentei.
— Então feche os olhos e tente dormir — disse tia Margareth gentilmente. Ela nunca
parecia surpresa com nada que alguém lhe dissesse. Caroline seguiu o conselho e fechou
os olhos.
Os médicos que a visitaram no dia seguinte disseram que ela ia poder respirar e
falar sem sentir dor na costela dentro de uma semana. Só então poderia sair do hospital.
Tia Margareth resolveu ficar em Bilbao e ir ao hospital todos os dias. Sabendo que a tia
não dirigia e não havia ônibus nem táxis perto do hospital, Caroline ficou preocupada e,
no terceiro dia, tocou no assunto.
— Já deve estar cansada de mim. Por que não volta para a Inglaterra?
— Porque quero ter certeza de que você está bem. Assim podemos até viajar juntas
— replicou a tia. — Você vai se sentir um pouco zonza quando sair daqui e precisar de
companhia para ir a Londres. Vou ficar até o médico lhe dar alta.
— Mas devemos entregar a casa dentro de três dias. Onde está hospedada?
— Estou em um hotel no centro da cidade. Não se preocupe, é muito confortável.
Seus móveis já foram despachados para a Inglaterra e suas roupas estão no meu quarto,
no hotel.
— Deve ser muito aborrecido, para você, vir aqui todos os dias. Tem encontrado
táxis?
Margareth deu uma olhada estranha antes de responder:
— Não. Um jovem me traz em seu carro. Ele gostaria de vir vê-la e eu prometi que
lhe perguntaria se aceita sua visita...
— Um jovem? Não... não é Billy? — perguntou Caroline, levando a mão ao peito.
Sua exaltação tinha feito com que sentisse dor na costela.
— Não. Não é Billy. É alguém que você viu recentemente — disse Margareth com os
olhos brilhando de intensidade.
— Pio? — murmurou Caroline.
— Sim.
— Mas como... o que ele está fazendo em Bilbao?
— Ele viu seu acidente, querida. Ele a seguiu desde Martinez, mas só conseguiu
encontrá-la depois de Bermeo. Ele a viu sair de trás da carroça para ultrapassá-la e
tentou avisar, com os faróis, que havia uma lombada adiante.
Então a voz de Pio não era apenas imaginação sua. Ele tinha estado lá. Mas por
que a seguira? O que esperava fazer? Tudo que tinha acontecido no estúdio voltou à sua
lembrança. Sentiu novamente raiva e frustração. Gemeu e virou o rosto para a parede.
— Não quero vê-lo — murmurou. — Diga a ele para ir embora. Não quero vê-lo
nunca mais.
— Tem certeza, querida? — Tia Margareth não mostrava nenhuma surpresa,
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novamente.
— Sim, tenho certeza — disse Caroline, firme.
— Está bem. Vou dizer a ele que você não quer sua visita. Espero que ele entenda.
Volto amanhã. — Ela se levantou e beijou Caroline,
Os dois dias seguintes seguiram a rotina. Caroline decidiu descansar o máximo e
manter-se longe de Pio para sempre. Conseguiu se recuperar logo e os médicos lhe
deram alta antes do tempo previsto, podia sair do hospital, mas não podia praticar
nenhuma atividade violenta ou agitada, nas próximas semanas.
Quando tia Margareth chegou, Caroline lhe deu umas boas notícias.
— Ótimo. Então vou voltar ao hotel, pegar algumas roupas para você e deixá-las
aqui. Assim podemos sair logo amanhã de manhã — disse ela, toda prática.
— Podemos ir para a Inglaterra amanhã? — perguntou Caroline.
— Claro que sim, se você quiser.
— Sim, é exatamente o que quero.
Naquela noite Caroline não dormiu muito. Ficou pensando no dia seguinte. Ia sair da
Espanha para nunca mais voltar. Ao partir daquele país, onde tinha nascido, ia deixar
para trás o seu passado. Era ali que ela tinha passado a infância toda. Muitos anos em
companhia de Mati Viroda. Tinha vivido uma vida turbulenta com seu pai. Conhecia tão
pouco sobre ele e tinha conseguido magoá-lo tanto. Era ali que ela tinha encontrado Pio.
Um encontro de paixão atormentada, com um estranho que ela parecia conhecer há
muitos anos.
Resmungando, virou a cabeça no travesseiro. As lágrimas desceram
silenciosamente. Tinha feito tudo que não queria fazer. Agora pensava muito em Pio. Ele
dominava completamente seus pensamentos. Ela queria não ter dito aquilo à tia
Margareth, que não queria vê-lo. Queria muito vê-lo outra vez. Queria perguntar por que a
tinha seguido. Queria estar com ele, tocá-lo... Oh, Deus, será que ia conseguir esquecê-
lo, um dia?
Na manhã seguinte, cansada e cheia de desânimo, depois da noite sem dormir,
Caroline vestiu uma saia cinza e uma blusa de seda azul, calçou sandálias pretas bem
altas e disse adeus às enfermeiras e médicos. Andava devagar, bem ereta, acompanhada
de uma enfermeira. Entrou num elevador e, no térreo, seguiu por um corredor até a
entrada do hospital.
O sol estava brilhante. Algumas pessoas estavam sentadas nos bancos, mas ela
não conseguiu ver tia Margareth. Já ia dizer à enfermeira que ninguém tinha vindo buscá-
la, quando uma pessoa se aproximou.
Tinha os ombros largos e os quadris estreitos, o cabelo negro caído na testa e cílios
negros que escondiam um olhar brilhante. O rosto era longo e cheio de preocupações.
Estava de jeans e camiseta azul marinho.
Caroline deu uma olhada rápida em volta, esperando ver tia Margareth, mas olhou-o
diretamente nos olhos, quando ele parou à sua frente.
— Por que está aqui? — perguntou friamente, apesar de sentir que seu coração
batia rápido e com força.
— Vim buscá-la. Está pronta para sair?
Antes que Caroline pudesse responder, a enfermeira ao seu lado se despediu e lhe
desejou melhoras rápidas, entrando novamente no hospital. Pio pegou a mala que tia

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Margareth tinha trazido com suas roupas e tornou a falar:
— Está pronta para irmos?
— Não com você. Onde está tia Margareth?
— Acho que, neste exato momento, ela já deve ter chegado em Londres. Saiu bem
cedo esta manhã. Eu a levei ao aeroporto — disse friamente, apesar de estar com os
olhos cheios de alegria.
— Ela partiu sem mim? — exclamou Caroline.
— Si.
— Por quê?
— Eu não sei por quê. — Ele sacudiu os ombros. — Vamos para o carro, agora? —
Colocou a mão casualmente no cotovelo dela, para ajudá-la. — Ela me pediu para vir ao
hospital buscar você e levá-la onde quiser ir.
— Mas eu disse a ela que não queria vê-lo, que não queria vê-lo nunca mais. O que
ela disse a você? — Caroline se recusava a entrar no carro.
— Si. Ela me disse tudo isso. Tivemos uma longa conversa sobre você. Ela é uma
mulher muito sábia, gostei muito dela. Margareth tem o que nós aqui na Espanha
chamamos gracia: encanto, charme e um grande senso de humor, que reduz a risadas
todas as bobagens que você e eu fizemos. E agora, quer entrar no carro?
Com um último olhar desesperado para a entrada do hospital, Caroline entrou no
carro que Pio lhe indicava.
— De quem é este carro? — perguntou.
— Pedi emprestado a um amigo, para seguir você quando você saiu de Martinez
naquele dia — ele disse. Estendeu o braço e tocou a marca no rosto dela. — Isto logo vai
desaparecer, querida — disse suavemente -, e então estará bonita como sempre. Ah,
Diós, quando vi seu rosto, depois que conseguimos tirá-la do carro, quase chorei, estava
com medo de que estivesse mais ferida. Estava com tanto medo de que morresse! E tudo
por minha culpa.
Ela o olhou, confusa. Sabia que muitas pessoas estavam indo e vindo pelas
alamedas do hospital e percebeu que o sol brilhava nos vidros dos edifícios, refletindo nos
carros das ruas.
— Mas não foi sua culpa — protestou. — Foi culpa minha. Eu não estava prestando
atenção no que fazia. Foi um erro meu.
— Se eu não tivesse dito coisas que a deixaram aborrecida, você não teria ido para
a estrada daquele jeito, não teria me agredido, nem ficado triste comigo. — As
sobrancelhas dele estavam franzidas.
— Mas eu não estava... — começou. — Oh, você está pensando que eu sou como
ela, não está?
— Como quem?
— Como a moça americana que veio ver você no ano passado e e depois foi
encontrada afogada. Bem, eu não sou como ela. Sou eu mesma... faço coisas bobas às
vezes... como me apaixonar por um homem rude como você. — Determinada a se afastar
dele, Caroline virou-se rapidamente, tentando sair do carro, esquecendo que lhe haviam
dito para fazer as coisas com calma durante algumas semanas. Tropeçou e viu tudo
enevoado. Por alguns momentos, esteve prestes a cair.

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
— Quem lhe contou sobre Sílvia? — Pio tinha vindo ajudá-la, e sua voz estava
ríspida. — Diós mio, você não vai desmaiar, não mesmo? Por favor... — A voz dele
mudou do tom arrogante para um pedido gentil. Colocou os braços em redor dela.
— Não, não, acho que não. — ela disse, empurrando-o, mas sem condições de
andar sozinha. — Estou um pouco fraca, faz muito tempo que não fico de pé. Ele a tomou
nos braços e tornou a colocá-la no carro.
— Pio, por favor, deixe-me. Estou bem.
— Fique quieta — ordenou. — Você já falou muito. Nós dois falamos demais. Se não
tivéssemos falado tanto, teríamos nos amado, naquele dia...
— Foi bom termos conversado, pelo menos percebi que a sua atitude comigo
mudou. Agora, por favor, chame um táxi para mim Quero ir ao aeroporto.
— Não vou chamar nenhum táxi. Vou fazer o que prometi a sua tia. Vou levá-la onde
quiser ir.
Pio desceu do carro para buscar a mala que tinha ficado ao pé da escada.
Caroline olhou em volta e viu que próximo dali havia um ponto de ônibus. Ia pegar
um ônibus, não importava o que acontecesse. Tinha dinheiro suficiente na bolsa, tia
Margareth tinha deixado. Depois podia descer do ônibus e pegar um táxi. Ia fazer
qualquer coisa para evitar Pio.
Pio já estava voltando. Ela correu para o ponto de ônibus. Em poucos segundos
sentiu que alguém a segurava pelo braço, virou-se e deu de cara com Pio.
— Nunca vi alguém tão teimosa quanto você — ele disse.
— Não vou com você — ela respondeu, tentando soltar o braço. — Eu o odeio!
— E daí? Eu odeio você, também.
— Então, deixe-me ir.
— Não.
— Por quê?
— Porque não quero... Oh, diabos! — A impaciência fazia com que ele quase
gritasse. — Porque eu a amo, eu acho — berrou, inclinando-se para a frente e esperando
que ela não tivesse dúvidas sobre o que havia sido dito.
— Mas você acabou de dizer... Pio, isso não faz sentido — argumentou.
— E quem disse que é preciso algum sentido para se amar uma pessoa? — ele
respondeu. — Eu odeio você! Eu amo você! É tudo parte de um sentimento bobo e
maluco. Eu a odeio porque a amo. Agora, por favor, venha comigo.
Ele ainda estava gritando e ela percebeu que as pessoas olhavam ao passar, com
curiosidade e espanto. Muitos carros estacionados com pessoas dentro serviam de
plateia para o espetáculo que os dois estavam dando.
— Está bem, eu vou. Leve-me ao aeroporto — disse, baixinho.
Em poucos minutos ela deu uma olhada na bolsa para ver se estava com a
passagem e, pelo canto dos olhos, observou Pio. Ele tinha os lábios cerrados com firmeza
e olhava a estrada. Parecia tão teimoso quanto ela e Caroline percebeu que tinha
encontrado uma vontade mais forte que a dela.
— Você está me levando ao aeroporto, não está? — perguntou friamente.
Ele olhou para os lados, mas não disse palavra. Havia muito tráfego na parte central
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da cidade e ele não queria começar uma discussão naquele momento.
Olhando pela janela, Caroline viu algumas fábricas soltando fumaça e poluindo o
céu azul. Se estivessem indo para o aeroporto, a nuvem de fumaça deveria estar atrás
deles, e não na frente. Ela percebeu que ele estava se dirigindo para a estrada costeira.
— Eu já disse que quero ir ao aeroporto. Não é esse o caminho — ela disse,
imperiosa.
Novamente ele não respondeu, mas acelerou mais para sair logo daquele tráfego
pesado.
— Pio, o que você está fazendo?
— Estou levando você para um lugar onde possamos conversar. Não posso deixá-la
ir para a Inglaterra, sem antes...
— Oh, por favor, não dirija assim tão depressa! — Ela colocou ambas as mãos na
frente dos olhos. Sentiu um aperto no estômago. Tinha esquecido que a última vez em
que andara de carro tinha acontecido aquele acidente. Agora ele estava tentando uma
ultrapassagem que lhe trouxe de volta as lembranças de todo o horror em que tinha sido
envolvida. Estava enjoada. — Por favor, ande mais devagar. Estou muito nervosa —
implorou.
— Não me surpreende. Vi o acidente e não quero nunca mais ver nada daquele tipo
— ele disse, diminuindo a velocidade.
— Por que você me seguiu naquele dia?
— Eu não a segui logo. Ia deixá-la partir, ia ser rude e cínico até o fim. — A ironia
estava presente em sua voz.
— Eu só queria ter sabido antes que você era tão cínico — ela murmurou. — Por
que não confia em mim?
— Preciso de tempo para mudar — ele disse, em voz baixa. — Para me ajustar à
situação de ter uma nova pessoa em minha vida. Durante muito tempo me recusei,
emocionalmente. Não deixei que nenhuma mulher conseguisse me impressionar. Tive
muitos casos, mas nunca entreguei meus sentimentos. Consegui construir uma concha
que protegia minhas emoções.
— Por causa de Sílvia? — Novamente ele franziu as sobrancelhas.
— Como você sabe sobre ela? Quem lhe contou? — perguntou, desta vez não tão
irritado.
— Parece que todo mundo, menos você, me falou sobre ela. Todos queriam que eu
soubesse — respondeu rapidamente. — Primeiro foi a sua irmã...
— O que ela disse?
— Disse que alguém que você conhecia muito intimamente tinha se suicidado. Disse
que você se sentia culpado, pois acreditava que se tivesse se comportado de modo
diferente, isso não teria acontecido. Acho que ela estava tentando me dissuadir de passar
aquela noite com você.
— E conseguiu, não foi? — ele disse secamente. Diminuiu a marcha do carro e
entrou por uma estrada estreita que ia fazendo curvas em torno de rochas. Em poucos
minutos o sol poente refletido na água do mar aparecia na frente deles.
A estrada terminava em uma praia rochosa. Alguns bangalôs de telhados vermelhos
se erguiam em volta da baía. Havia redes de pescadores secando e a brisa do mar era

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
pura e refrescante.
Pio parou o carro de frente para o mar. Desligou o motor e abaixou o vidro da sua
janela. Podiam ouvir o som das ondas, indo se arrebentar nas rochas.
— Quem mais lhe falou de Sílvia?
— Meu pai.
— Como ele sabia?
— Ele tinha lido nos jornais. Disse que você tinha se envolvido em um escândalo
relacionado com a morte da sua ex-esposa. Ele estava preocupado quando soube que eu
tinha estado com você em Esker Ona. Disse que você tinha uma péssima reputação e
temia que tivesse me seduzido.
Ele piscou para ela de modo irônico e pegou um cigarro no bolso da camisa.
— E tinha uma boa razão para se preocupar. Quase aconteceu na gruta.
— Você era casado com Sílvia?
— Si. Fui casado com ela durante seis meses, há oito anos. Acendeu o cigarro e
soprou a fumaça. — Mas você não precisa se preocupar com ela.
— Não concordo. Se o seu relacionamento com ela afeta suas atitudes para comigo,
então devo me preocupar — argumentou Caroline. — Você a amava muito?
— Não.
— Então, por que casou?
— Eu era um bobo — a voz dele estava ficando rouca. — E agora, podemos mudar
de assunto?
— Ela era muito bonita? — continuou Caroline, ignorando o pedido dele.
— Era, tinha um jeito selvagem, um pouco depravado e não vou negar que sentia
muita atração física por ela — respondeu ele friamente. — Nós tivemos um caso. Depois
terminamos. Eu saí do colégio onde ela era minha aluna. Estava lecionando pintura.
Então fui viver numa comunidade de artistas no sul da Califórnia. Sílvia me seguiu até lá.
— Por quê?
— Ela disse que estava grávida e o bebé era meu. Olhe, Caroline, esta história do
meu passado não é muito agradável. Nenhum homem gosta de mexer em velhas cinzas,
principalmente quando tem que admitir que foi enganado — falou, com amargura.
— Você acreditou nela?
— Si. Eu acreditei nela. Era possível que fosse verdade, você sabe como são essas
coisas. — A voz dele era ríspida, enquanto tentava fazer humor consigo mesmo.
— Ela insistiu para que casassem?
— Ela me pediu, disse que estava com medo do pai. Fiquei com pena dela e casei.
Foi um casamento meio louco, que ela mesma improvisou e depois me disse que era
legal. Sendo um estrangeiro e estando boquiaberto com a liberdade daquele país, eu
concordei. Então vieram os problemas. Ela contou ao pai.
— Ele não aprovava?
— Não muito. Acusou-me de estar dando o golpe do baú e cortou a mesada dela
quando Sílvia se recusou a me abandonar. Eu não me importei, mas Sílvia não gostava
de viver como pobre. Depois de seis meses ela voltou para a casa do pai.

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— E o que aconteceu com o bebé?
— Não havia nenhum bebê — a voz dele estava amarga novamente —, ela só me
disse aquilo para que casasse com ela.
— Por quê?
— Porque eu tinha feito algo que Sílvia não podia perdoar. Eu a tinha deixado. Ela
era mimada, você sabe, daquele tipo que costuma ter todos os homens que quer. Mas,
em todos os seus casos, era ela sempre quem terminava. Não estava acostumada a ser
deixada de lado por um homem.
— O que você fez quando ela voltou para a casa do pai?
— Mudei para o México e comecei a desenhar cartoons. Ela se divorciou de mim
com muita facilidade e pensei que nunca mais fosse vê-la. Fiquei muito surpreso quando
apareceu aqui em Martinez. Ela disse que tinha vindo para a Espanha com o terceiro
marido, diretor de cinema. Havia uma exposição dos meus quadros na galeria de arte da
cidade. Ela soube da exposição, foi vê-la e descobriu onde eu morava. Pensou que seria
uma boa ideia ir me visitar, Deus sabe por quê. — Ele respirou fundo e soltou a fumaça
para o alto, depois apagou o cigarro no cinzeiro. — Foi uma confusão — terminou,
indeciso.
— Por quê?
— Ela estava terrível. Tinha perdido toda a beleza. Não conseguia parar quieta e
seus olhos tinham um brilho estranho.
— O que havia de errado com ela?
— Estava viciada em um tipo de droga. Eu lhe pedi que fosse embora, mas Sílvia
não quis. Contou que estava muito infeliz no casamento, que já era o terceiro. Tinha sido
infeliz com o segundo marido, também. Nada parecia ter dado certo para ela, desde que
tinha me deixado. Foi embora e voltou várias vezes ao estúdio. Então, um dia me disse
que tinha provas de que o terceiro marido a estava traindo e ia pedir o divórcio. Só assim
podia casar comigo outra vez. Fiquei furioso. Disse que fosse embora e não voltasse
mais. Dois dias depois foi encontrada afogada na praia ao norte de Martinez.
— Mas não foi sua culpa! — Caroline protestou.
— Talvez não, mas fiquei pensando que, se a tivesse tratado melhor, ouvindo o que
ela queria dizer, talvez pudesse ajudar e... Diós, pensar nisso traz tudo de volta à minha
mente! — A voz dele foi abafada num soluço. Quando falou novamente, já estava
controlado. — Tinha que procurar um lugar onde pudesse encontrar paz para pensar
melhor. Queria ficar sozinho. Já estava me recuperando quando você apareceu, linda,
perdida e confusa. — Ele a olhou, cheio de ternura. Caroline sentiu-se arrepiada. — Eu
me apaixonei assim que a vi. Sem mais nem menos. Não tinha razões nem motivos para
isso, foi tudo além do meu próprio controle.
— Eu não tinha imaginado isso — respondeu Caroline, espantada.
— Não queria que você soubesse. Estava com raiva de mim mesmo por ter sido
pego tão desprevenido. Tinha certeza de que não devia me entregar. Mas queria ajudá-la,
cuidar de você, protegê-la. Ficava o tempo todo dizendo a mim mesmo que você era filha
da mulher que tinha traído meu pai...
— Minha mãe não traiu seu pai — ela protestou, olhando-o, ofendida.
— Como não? — respondeu ele, amargo. — Eu acho que ela o traiu. Ela usou toda
sua beleza e charme para enfeitiçá-lo e fazer com que ele fosse sempre visitá-la. Ela o
deixou tão enfeitiçado que, em vez de ir direto para a França, onde era esperado por

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amigos, veio até Martinez para se despedir dela.
— Mas ela não planejou isso — objetou Caroline, sentindo-se infeliz, consciente da
pior diferença que existia entre os dois, a mais difícil de ser superada. O relacionamento
de Pio com Sílvia não tinha nenhuma importância, comparado com este problema. Agora
estava envolvida a lealdade de família. — Ela era solitária e infeliz — continuou
defendendo a mãe.
— Ele também. Ele era um homem muito sentimental. Não podia ver ninguém
sofrendo, que sempre tentava ajudar. Deve tê-la escutado e conversado com ela. Se não
tivesse ido lá se despedir estaria vivo até hoje. Seu pai não o teria encontrado lá, nem
tirado conclusões rápidas.
— Meu pai se enganou — replicou Caroline —, ele mesmo me disse isso. Ele a
amava muito e ficou louco de ciúmes quando a viu com seu pai. Acreditou que eram
amantes. Mas não sabia que era o seu pai, não o reconheceu, não sabia quem ele era.
— E nem se preocupou em perguntar — disse Pio, amargo.
Caroline abriu a boca para gritar com ele, mas fechou-a rapidamente. De que
adiantaria? A mágoa deixada pela morte do pai era muito profunda. Ela já tinha idade
suficiente para saber o que tinha acontecido e isso havia influenciado toda a sua atitude
em relação aos pais. Mas não podia ficar ali sentada naquele carro e deixá-lo puni-la pelo
que tinha acontecido.
Saiu, batendo a porta. O vento fez com que seus cabelos esvoaçassem, soprou sua
saia e a blusa de seda. Seus saltos altos escorregaram pelas pedras e ela foi andando,
desajeitada, pelo caminho que levava até uma faixa estreita de areia, longe do carro.
Ouviu bater a outra porta do carro e os passos de Pio a seguiram.
— Onde você vai? — perguntou ele.
— Para longe de você — ela respondeu. — Se você não pode perdoar e esquecer o
que aconteceu ao seu pai, não adianta conversarmos. Já aconteceu há muito tempo e
meu pai pagou caro por seu erro. Sua consciência sempre o acusou, porque ele admirava
seu pai. Admirava a coragem que ele tinha para defender aquilo em que acreditava.
Quando minha mãe morreu, ele sofreu muito. Sabia que ela não o tinha amado como
amara seu pai. Se isso melhora as coisas para você, pode ficar contente, pois conseguiu
se vingar... através de mim.
Ela correu para longe dele e continuou a andar pela areia. Dois barcos pesqueiros,
branquinhos, balançavam na água. No céu, um grupo de pássaros voava e mergulhava,
tentando pegar peixes.
Apesar das dificuldades causadas pelas pedras, Caroline continuou andando. Não
sabia o que fazer. Olhou para o relógio e viu que faltavam quinze minutos para o seu
avião. Mesmo se voltasse para o carro e insistisse para que Pio a levasse ao aeroporto,
teria que esperar muitas horas, até resolver o problema da troca de passagem para outro
horário e conseguir sair do país.
E, na verdade, ela não estava segura se queria partir, agora que o tinha visto de
novo, agora que sabia que ele tinha se apaixonado à primeira vista, do mesmo modo
louco que ela se apaixonara por ele.
Um amor além de qualquer raciocínio. Não era assim tão diferente, principalmente
considerando o comportamento do pai dele e da mãe dela. Tinham se amado e criado um
triângulo de tragédia. Mas não é verdade que este tipo de amor sempre leva à tragédia?
Tentava se equilibrar sobre os saltos altos, mas estava ficando cada vez mais difícil.

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Sabrina 94 – Flora Kid – Brincando Com Fogo
Tirou as sandálias e carregou-as na mão, sentindo a umidade da areia contra os pés. A
brisa levantava pequenas ondas que deixavam uma linha de espuma na praia.
Ao chegar ao local onde as pedras avançavam para dentro da água, ela se sentou
em uma delas e ficou observando o mar. Nem ela nem Pio estavam preparados para
fazer concessões um ao outro. Eram muito orgulhosos para admitir qualquer erro.
Virou o rosto para olhar o caminho por onde tinha vindo e seu coração pulou. Ele a
estava seguindo, devagar, era verdade, com as mãos nos bolsos, parando de vez em
quando para olhar o mar e pegar alguma concha.
Veio até onde ela estava sentada, encostou-se à rocha e ficou olhando o mar.
— vou levá-la ao aeroporto, agora — disse friamente e acendeu um cigarro.
— Já perdi o avião — disse Caroline, aborrecida. Seria sempre assim, se ela ficasse
com ele, pensou. Pio sempre ia ser capaz de magoá-la, dizendo exatamente o oposto do
que ela queria ouvir.
— Haverá outros — ele respondeu. — Você tem mesmo que ir para a Inglaterra?
— Não há nada na Espanha para que eu fique. Não tenho parentes aqui e preciso
achar um meio de ganhar a vida.
— O que vai fazer?
— Um curso de secretariado, acho. Falo três idiomas. Devem ser de alguma
utilidade — respondeu, cheia de dúvidas.
— Você deseja ser independente há muito tempo, não é?
Ela tinha que admitir que não. O pensamento de ter de ir trabalhar para alguém de
quem não gostasse, de ficar presa ao relógio e a um horário rígido não a atraía nem
representava exatamente uma independência. Ela sempre tinha sido uma rebelde contra
os horários e sabia que não ia aguentar um chefe muito rígido e exigente.
— Na verdade, não — disse, desanimada. — Mas não tenho outra escolha, senão
morro de fome.
— Você pode ficar e viver comigo — disse Pio casualmente. Ela quase perdeu o
fôlego. Virou-se para olhá-lo. Ele ainda observava o mar e ela não pôde ver em seu olhar
o que ele queria dize com aquela sugestão.
— Por quanto tempo? — perguntou, tentando soar tão desinteressada quanto ele.
— Por quanto tempo quiser.
— Pio, não entendo por que você está falando isso, mas se é porque está com pena
de mim, ou porque tem medo de que eu me comporte do mesmo modo que Sílvia...
— Não estou com pena de você, nem acredito que faça o mesmo que Sílvia — ele
respondeu, virando de frente para ela. — Agora sei que você não se parece em nada com
ela. Você tem mais inteligência, mais orgulho, muito mais orgulho, como o seu pai. Você
não admite quando está vencida.
— E você?
Eles estavam olhando um nos olhos do outro, da mesma forma como se olharam
naquele dia, em maio, na cozinha de Esker Ona.
— Sim, eu admito. Já fiz isso — ele murmurou. — Fiz isso quando a segui, no dia
em que você saiu do meu estúdio. — Ele passou as mãos pelos cabelos, afastando-os
dos olhos. — Segui você, mas não para impedi-la de fazer alguma bobagem. Levou
alguns momentos para acontecer, mas aconteceu, e quando entendi por que você tinha
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partido, entendi também que a queria de volta. Compreendi que tinha ficado contente ao
vê-la lá, de pé, contra o sol, naquela tarde. Quase não acreditei nos meus olhos. E de
repente tinha partido.
— Por que não me disse tudo isso? Por que foi tão rude e desagradável comigo?
— Era o meu modo de me defender. Meu orgulho também estava presente. Estava
tentando não me envolver, estava em uma guerra comigo mesmo. Diós, por que eu tinha
de me comportar daquele modo? — ele gritou para ela. — Eu não me atrevia a esperar
que você voltasse. Não me atrevia a pensar que podia me amar. Nem tinha certeza que a
amava, mas, por Diós, eu a queria naquela tarde. Meu instinto superou a razão, qualquer
razão que eu tinha inventado para não amá-la. Até que você disse que tinha ido me ver
porque estava partindo da Espanha.
— E o que havia de errado em dizer aquilo? Era verdade — ela respondeu. — Não
podia partir sem vê-lo de novo.
— E sem ir para a cama comigo. Foi o que me pareceu, de repente — ele falou, com
voz amarga. — Eu disse o que pensei. Você me agrediu e partiu. — Ele fez um gesto de
desamparo. — Eu não a condeno por ter feito aquilo. Provavelmente eu teria feito o
mesmo, se me encontrasse na sua situação.
— Se você ao menos me tivesse impedido, se ouvisse o que eu ia dizer depois...
— Eu disse que nós, os dois, estávamos falando muito — murmurou ele. — O que
você ia dizer?
Caroline tinha que explicar seus pensamentos e o amor que sentia. Tinha que
reprimir seu orgulho. Não havia como esquecer as palavras raivosas dele. Ela tinha que
ultrapassar essa barreira, ou se arrependeria pelo resto da vida.
— Eu ia dizer — começou vagarosamente — que não podia partir da Espanha sem
vê-lo novamente porque eu... eu... te amo. Aconteceu comigo da mesma forma que com
você, sem nenhum motivo, em Esker Ona. Tentei dizer-lhe lá na gruta, mas você não quis
me acreditar. Estava muito apegado ao seu cinismo e a este estranho modo de encarar
as mulheres.
— Estava com medo de acreditar em você — disse Pio, em voz baixa e profunda.
— Com medo de ser enganado?
— Si.
— Então por que não me pediu para ficar com você em Martinez, quando saímos do
vale?
— Primeiro para ajudá-la e depois porque eu a queria tanto que não me importava
com as consequências que uma ligação com você pudesse me trazer — respondeu ele.
— Mas depois mudou de ideia.
— Mudei? — Ele se virou para ela. — Pensei que você tivesse mudado depois de
conversar com a minha irmã e de ela ter explicado as complicações que podiam surgir se
você fosse encontrada comigo. Por isso fiquei muito intrigado quando você apareceu no
meu estúdio em Martinez. — Atirou longe uma pedrinha. — Então estou aqui, agora,
fazendo o convite outra vez. Vem comigo?
— Quer que eu vá?
— Si, quero que venha. Quero muito — ele respondeu, dizendo o que o coração
dela queria ouvir há tanto tempo.

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— E se eu não for? — ela desafiou, em uma espécie de teste. Queria saber o que
ele ia responder.
— Então vou acabar raptando-a, finalmente — respondeu Pio, com os olhos
sorridentes. Estendeu ambas as mãos, pegou os cabelos dela e os colocou lado a lado
das faces, fazendo uma moldura para o rosto de Caroline. — Vou raptar você como
qualquer ignorante preconceituoso faria, como você me acusou, naquele dia —
respondeu suavemente.
— Desculpe-me tê-lo chamado assim — sussurrou ela. — Não teria feito isso se não
tivesse sentido medo de você.
— Estava com medo de mim?
— Sim. Com medo de me apaixonar e amá-lo demais. Quero viver com você e
dividir todas as coisas. Não me importo com as diferenças que existem entre nós. Se nos
amarmos o suficiente, seremos capazes de superar tudo. Já tentei lhe dizer isso antes,
mas não quis me ouvir ou não acreditou — Caroline disse, confiante.
A resposta dele foi um beijo que durou alguns minutos. Ela se sentiu flutuando no
espaço, com estrelas em volta. Com os braços de um ao redor do corpo do outro, eles
ficaram alguns momentos observando o mar e os pássaros.
— Você acha que é suficiente acreditar no que dizemos para sermos felizes juntos?
— Pio murmurou. — Então tem que me acreditar agora: quero que fique comigo para
sempre.
Caroline se afastou um pouco de Pio, mas ainda estava abraçada a ele. Olhou no
seu rosto.
— Tem certeza disso? — perguntou.
— E você tem certeza suficiente para querer casar comigo? — disse ele
calmamente.
— Casar com você? — As palavras saíram confusas, ela estava incapaz de
controlar a própria voz, depois da surpresa. — Por quê?
— Porque é costume neste país, quando um homem convida uma mulher para
morar com ele, que esta união seja legalizada pelo casamento — disse ele muito sério,
com um brilho de humor no canto dos olhos.
— Mas, você não precisa casar comigo.
— Por que não? Você tem alguma objeção em se casar? Ah! Tinha me esquecido.
Foi porque você ia se casar que fugiu para procurar Mati — ele falou, fechando um pouco
os olhos. — Então, muito mal — considerou, dando de ombros. — Não podemos fazer
mais nada. Vou levá-la ao aeroporto.
Espantada pela direção que os acontecimentos tinham tomado, Caroline observou-o
se afastar. O que tinha acontecido de errado, agora? O que tinha dito para ofendê-lo,
desta vez? Oh, ela nunca ia saber em que situação estavam, nunca ia saber se devia
concordar ou não. Então, para que ir morar com ele? Mas seria uma vida com alguns
momentos de alegria. Muitos mais do que se tivesse casado com Billy. Ela sabia que
podia chegar ao êxtase nos braços de Pio.
As beiradas afiadas das conchas cortaram seus pés, quando ela correu atrás dele.
Agarrou seu braço e o abraçou com tanta força quanto Pio a tinha abraçado quando ela
havia tentado fugir no hospital. Ele parou e a olhou.
— Tem mais alguma coisa a dizer? — ele perguntou, de modo educado e frio. —

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Pensei que tínhamos terminado nossa conversa.
— Sim, tenho uma coisa a perguntar! Por que não posso viver com você se não
casarmos?
— Vou explicar — disse Pio, com gestos exagerados de cortesia. — É o costume
deste país. Se não casarmos, as pessoas vão dizer uma série de coisas desagradáveis
sobre nós. Você vai ser hostilizada pelas outras mulheres da cidade e eu a amo muito
para deixar que isto aconteça. Do modo como me sinto em relação a você, acho que logo
surgirão bebês se formos morar juntos. Quero que estes bebês sejam filhos de uma união
sólida, de um casamento...
— Oh! Pare, pare com isso! — ela gritou, colocando sua mão sobre os lábios dele.
— Não diga isso nunca mais. Acontece que eu estava sendo forçada a casar com um
homem que não amava. Por isso me revoltei. Eu o amo e serei muito feliz com você. Mas
pensei que não quisesse se casar mais, depois da experiência com Sílvia.
Algumas lembranças de sua infelicidade deixaram um brilho amargo nos olhos dele,
durante alguns momentos, mas aquilo logo passou.
— Aquilo não foi um casamento, no sentido certo da palavra disse ele, devagar. —
Foi um desastre, e é melhor que esqueçamos logo. — Novamente Pio emoldurou o rosto
dela com suas mãos e fixou os olhos de Caroline. Os olhos dele foram se fechando,
transmitindo a ela um calor sensual que lhe penetrou na espinha.
— Sabe, querida, não mereço ser amado por uma mulher tão linda e rebelde como
você. Vou criar todas as dificuldades se um dia quiser me deixar. Quero amarrá-la a mim
para sempre e há apenas dois modos. Um deles é casar com você.
— E o outro? — cochichou ela, encostando seu corpo ao dele e sentindo-se
perigosamente próxima de Pio.
— Fazer amor com você tantas vezes quanto possível, lhe assegurar que você é
amada e que preciso de você, assim não irá procurar outra pessoa, como sua mãe fez —
ele murmurou, tocando-lhe os lábios levemente.
— Agora já sei que tia Margareth esteve conversando com você — disse Caroline
acusadora, passando a mão por trás do pescoço dele.
— Ela conversou — admitiu ele —, e eu entendi muito melhor o que tinha acontecido
entre meu pai e sua mãe. Ela me falou muito de você, nas vezes em que a levei e a
trouxe do hospital. Foi ideia dela me deixar ir sozinho ao hospital hoje, para buscá-la. Ela
é muito sábia. Mas diga-me, querida, você vem a Martinez casar comigo? Quando? Não
tenho muito para lhe oferecer.
— Tudo o que quero é você — ela respondeu, erguendo os lábios para que ele a
beijasse, desta vez com paixão e abandono. Pio a carregou nos braços, de volta para o
carro.
Logo estavam indo a grande velocidade de Bermeo para Martinez. À esquerda
tinham o mar azul-profundo e quente, de agosto; à direita, as montanhas verdes, escuras
e misteriosas.
Feliz como estava, Caroline só pensava em como tinha demorado a chegar este
momento, em que, com Pio, voltava para a velha e enorme casa em Martinez. Caroline
nem se lembrou de que tinha esquecido as sandálias nas pedras perto do mar.

Fim

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