Você está na página 1de 69

A Vingança

Violet Winspear

Copyright: VIOLET WINSPEAR


Título original: ”THE VALDEZ MARRIAGE

CAPÍTULO I

Darcy esperou, na quietude morna da tarde que fazia até as cigarras se calarem. Apesar
do dia estar terminando, o calor sufocante ainda permanecia no ar.
A pequena estação estava deserta e silenciosa e não havia ninguém ali esperando por ela.
Como tinha que aguardar que viessem buscá-la, Darcy foi abrigar-se à sombra de uma
palmeira, com a sensação de que tudo aquilo era irreal.
Apertou a alça da bolsa onde estava guardada a carta, cujas palavras eram bem reais:
”Meu irmão Ramón deseja muito vê-la, por isso você tem que vir a San Solito
imediatamente. Eu, Júlio Valdez, acho que você lhe deve alguma obrigação pelo que lhe
causou e não vou aceitar recusa de sua parte...”
Darcy deu um leve suspiro. Desde o momento que abriu o envelope e viu a assinatura no
fim da página, sentiu uma espécie de condenação. O tom da carta era tão autoritário que
ela sabia que, se não aceitasse as ordens de Júlio Valdez, com certeza ele iria à Inglaterra
para arrastá-la até a Espanha.
Ela e Ramón tinham se conhecido quando eram estudantes na escola superior de música,
onde ficaram amigos. Mas quando o espanhol confessou estar loucamente apaixonado
por ela, Darcy sorriu e procurou evitar se envolver emocionalmente com ele.
Eles tinham saído a passear no pequeno carro dela e, como Darcy ficou o tempo todo
ocupada em afastar a mão que ele insistia em colocar nos seus joelhos, não conseguiu
evitar a colisão com um carro que lhe cortou a frente.
Ramón ficou gravemente ferido e, tão logo foi possível, sua família o levou de volta para a
Espanha. Esperavam que lá ele se recuperasse. Mas, na carta, Júlio informava que Ramón
estava preso a uma cadeira de rodas, com pouca esperança de andar novamente
A notícia era chocante. Ramón estava correndo o risco de se tornar um inválido!
Darcy passou nervosamente a mão pelos cabelos que caíam numa onda suave sobre a
testa. Os olhos cor de mel, sombreados por cílios castanhos, contrastavam com o tom
escuro dos cabelos. O nariz era fino e um pouco arrebitado. Sem ser exatamente uma
beldade, era bastante atraente. E a decisão de vir a San Solito bem demonstrava sua força
de caráter e bondade.
Respondeu à carta de Júlio Valdez dizendo que iria o mais breve possível ver Ramón. Mas
não disse que o que sentia por ele era somente piedade e que não tinha sido inteiramente
culpa dela que ele tivesse ficado paralítico.
Esbelta, usando um vestido de linho e uma echarpe em volta do pescoço, Darcy se
mostrava calma e serena. Por dentro, no entanto, era um feixe de nervos. Pensava na
distância que a separava da Inglaterra e nos poucos amigos que sabiam que ela tinha
vindo à Espanha para uma visita. Sua mãe, a quem ela gostaria de contar seus receios,
estava morando agora na África do Sul com o segundo marido.
O que havia naquela carta que a fazia sentir-se tão nervosa? Era somente imaginação sua,
o que parecia uma ameaça, uma insinuação e vingança?vingança ela pensou, nervosa. A
vingança de um latino, que dizem ser impiedosa.
O céu avermelhado anunciava o crepúsculo. Escurecia aos poucos quando ela ouviu o som
de pneus no calçamento de pedras. Olhando para o lado da estação, viu um carro entrar
rápido no pátio. O homem que o dirigia saiu e veio encontrar-se com ela.
Ao ver Júlio Valdez à sua frente, ela percebeu imediatamente que jamais o havia
esquecido. Moreno, alto, o rosto másculo de feições um pouco duras e os olhos, dos quais
ela se lembrava tão bem, fixos nela.
- Quer dizer que estamos nos encontrando outra vez, srta. Beaudine. Ele falava bem o
inglês, com um ligeiro sotaque espanhol.
Darcy lembrou-se da última vez que o tinha visto. Ele vestia um terno cinza de listras finas
e, com uma expressão fria e orgulhosa, tinha feito com que ela se sentisse uma garota
irresponsável, irritando-a profundamente. Agora, no entanto, aqueles olhos a faziam
sentir-se bem mulher e isso a deixou intranqüila.
-Muy buenas, senhorita.
Ele apertou a mão dela. A pressão forte dos seus dedos fez com que uma estranha
sensação percorresse todo o corpo de Darcy. Assustada, tentou retirar a mão. Ele então
apertou-a mais forte, como a dizer que agora ela era prisioneira da família Valdez e que de
forma alguma poderia escapar.
-Como a senhorita tem passado, desde o acidente?
-Bem, obrigada.
A mesma voz, forte e dominadora, pensou ela. E agora aquele olhar insistente que a
deixava ainda mais nervosa. Lembrava-se dele no corredor do hospital quando, furioso,
ele a acusou de guiar o carro como uma irresponsável, incapaz de guiar até um carrinho
de feira. Darcy tinha pensado que ele ia processá-la pelo acidente, mas em vez disso a
família Valdez levou Ramón para a Espanha e ela nunca mais teve notícias dele... até a
chegada da carta de Júlio.
Antes eu pudesse dizer o mesmo de Ramón! Mas agora o que ele mais quer na vida é
casar-se com você.
Darcy sentiu o coração bater mais forte e olhou horrorizada para aquele homem, que a
informava tão friamente de que ela não estava lá somente para uma simples visita a
Ramón.
Era impossível acreditar no que estava ouvindo... era ridículo e até cômico.
- Parece que a senhorita não trouxe muita coisa ele disse, olhando para a única mala que
ela carregava.
Eu... eu não vou ficar aqui por... muito tempo ela gaguejou.
Acha que não? Com os olhos semicerrados ele a olhou com ironia. Bem, não se preocupe
quanto ao vestido de casamento. Temos lá na fazenda uma boa costureira, que poderá lhe
fazer um.
- Mas o que é isto? Darcy estava assustada. Eu não vim aqui para me casar com ninguém!
- Não? Não leu nas entrelinhas da carta, srta. Beaudine? Eu escrevi a palavra ”obrigação”,
não foi?
- Sim, mas isso é um absurdo! Ela engoliu em seco. Mesmo que Ramón e eu tivéssemos
planejado tal coisa, sempre ouvi dizer que vocês, espanhóis, são contra casamentos com
pessoas de outras raças.
Desde os tempos da invasão árabe o povo andaluz tem sido forçado a tolerar tais
casamentos. Em Ramón a gente não percebe isso, mas olhe bem para mim.
Era exatamente o que Darcy estava fazendo, pois ele estava muito próximo dela. Moreno,
sensualmente belo, ela viu naqueles olhos ardentes a natureza inflexível de um aristocrata
árabe. Isto fez com que sentisse um medo que até então desconhecia.
-Como a senorita já deve ter percebido, eu não gosto de ser contrariado quando decido
fazer alguma coisa. Seu sorriso não era muito amigável.
- Mas eu é que não aceito essa idéia louca de me casar com Ramón, só para satisfazer um
desejo seu.
- Seria mais certo dizer para satisfazer a ele, senorita. Ele me disse que vocês já eram
amantes quando ocorreu o acidente.
- Nós nunca fomos amantes! Darcy respondeu, furiosa. Aquilo era uma afronta. Ramón
não tinha o direito de dizer uma coisa dessas!
Bem, é a sua palavra contra a dele, e ele foi bem claro quando disse que vocês estavam
apaixonados.
- Nós éramos só bons amigos Darcy insistiu. Nós nos conhecemos na escola de música e
assistimos a algumas aulas juntos. Nossos alojamentos ficavam próximos um do outro,
mas nós nunca tivemos um caso. Eu... eu não sou o tipo de pessoa que você está
pensando!
Apesar de não se considerar nenhuma santa, Darcy não gostava de ser comparada com o
tipo de moça que se entregava a um homem só para se divertir. Ela tinha se dedicado
demais à música, e não houve tempo para se envolver seriamente com nenhum dos
estudantes. Não era justo Ramón dizer uma coisa dessas a respeito dela.
Júlio Valdez olhou intensamente para ela, tentando talvez perceber sinais de experiência
amorosa em seu rosto.
- As mulheres europeias nos dias de hoje não são muito recatadas Júlio disse com ironia.
Talvez eu não tenha entendido bem meu irmão. Pode ser que ele quisesse dizer que vocês
se apaixonaram um pelo outro sem, no entanto, irem mais longe.
- Você pensa assim porque eu não sou uma andaluza. E acho estranho você me considerar
suficientemente respeitável para merecer seu irmão!Principalmente quando é tão rápido
em concluir que eu sou do tipo fácil.
- Eu não disse isso, senorita.
- O senhor insinuou, o que é a mesma coisa. Nem todas as moças inglesas são assim, tão
vulgares. Algumas de nós ainda são românticas.
- Romântica! Ele lançou-lhe um olhar melancólico. Palavra evocativa, não? Creia-me, srta.
Beaudine, não sou assim tão rígido a ponto de não admitir as tentações de uma grande
paixão. Pelas informações de Ramón, imaginei que vocês não puderam resistir a seus
sentimentos, e como em seu país os costumes são bem diferentes dos nossos no que diz
respeito a namoro...
- E o meu orgulho, senor? Ou será que só a mulher espanhola possui tal coisa?
Um breve silêncio se estabeleceu entre eles, enquanto o céu acima parecia se abrir como
um enorme leque colorido, enfeitado pelo sol poente.
Os últimos raios marcavam os traços firmes do rosto de Júlio Valdez e, por um momento
interminável, pareceu a Darcy que ele pairava sobre ela como um falcão prestes a carregá-
la.
Era uma imagem absurda, e Darcy pensou que talvez aquele calor a tivesse deixado de
cabeça tonta. Desviou o olhar, tentando recobrar a calma.
- Espero que você seja corajosa ele disse. Não vai ser fácil casar-se com um homem
inválido.
- Você... você sabe que não seria fácil. Não sei por que continua insistindo nisso. Darcy
continuou sem olhar para ele.
- Por que, senor, é tão cruel e vingativo?
- Eu gosto muito do meu irmão, e ele parece muito atraído por você. Foi essa atração que
o levou à situação em que se acha agora...
- Oh, mas isso não é justo...
- Você estava guiando o carro e não foi rápida para evitar a colisão. Vai negar isto?
- Não... mas... Darcy não pôde continuar. Como poderia contar o que tinha acontecido?
Como podia explicar que Ramón estava tentando abraçá-la quando a caminhonete lhe
cortou a frente? Ramón já tinha sido bem castigado e ela não queria que, ainda por cima,
sua família viesse a saber que ele, com seu comportamento vulgar, tinha sido
indiretamente o causador do acidente.
- Você se interessa por meu irmão, não é, senorita?
Darcy olhou para Júlio um tanto confusa, sabendo que tinha que responder alguma coisa.
Havia uma ameaça e uma ordem em cada traço do rosto dele.
- Você acha que eu teria vindo até aqui se não me importasse com Ramón? Darcy falou
com segurança, para que ele não percebesse que ela tinha ido a San Solito praticamente
obrigada. E que, na verdade, estava sentindo um medo horrível.
- Talvez você tenha percebido que, se não viesse voluntariamente eu a teria ido buscar.
Seus olhares se encontraram desafiadoramente no momento exato em que o sol se punha
no céu ainda claro. Darcy sentiu um frio repentino que a fez tremer.
- Venha! Vou colocar sua bagagem no carro.
Depois de guardar no banco de trás a única maleta que ela havia trazido, ele a convidou a
entrar no carro. Darcy hesitou e Júlio, num gesto impaciente, ordenou:
- Entre!
Ao sentar-se no banco ao lado dele, Darcy lançou-lhe um rápido olhar, e instintivamente
encolheu-se para que nem mesmo a saia do vestido tocasse nele. Nunca ninguém a tinha
feito sentir-se assim tão cautelosa ou curiosa. Nunca havia sentido tão intensamente a
presença de alguém como a daquele homem tão estranho!
- Você não está dando a impressão de estar querendo ver o seu namorado. Seu tom de
voz a irritava profundamente.
- Eu... eu não gosto de mostrar meus sentimentos ela disse, com uma vontade louca de
abrir a porta do carro e sair correndo de volta para a estação. O que devia fazer para que
aquele homem teimoso e autoritário entendesse que ela jamais ia se sujeitar àquele
casamento?
- A gente ouve falar muito do temperamento reservado dos ingleses. Ele torceu a direção
do carro numa curva e em poucos segundos deixaram a estação para trás. Mas acredito
que as coisas devem ter mudado também por lá, srta. Beaudine. Agora a gente só ouve
falar da imoralidade reinante nas escolas, principalmente nas universidades. Diga-me,
qual o instrumento musical que a senhorita estava estudando?
- O mesmo de Ramón: violão Darcy respondeu sem entusiasmo, pois lhe pareceu que
todos os seus planos para uma carreira musical estavam ameaçados. Eu também canto
um pouquinho.
- A senorita está se subestimando, pelo que Ramón me disse. Júlio Valdez olhou de
relance para ela. Ou será impressão de apaixonado quando ele afirma que você tem um
modo encantador de cantar músicas folclóricas?
- Acho que há muitas moças que sabem cantar e tocar violão melhor do que eu. Enquanto
falava Darcy pensava que, se tivesse ido para a África do Sul, poderia ter a possibilidade de
tornar-se uma cantora profissional. Ela não tinha grandes ambições, como por Exemplo a
de ter discos nas paradas de sucesso, mas talvez conseguisse um contrato numa rádio,
principalmente se fosse ajudada pelo atual marido de sua mãe, um homem influente.
Darcy adorava tocar e cantar, mas era muito orgulhosa para aceitar a ajuda de seu
padrasto ... o mesmo orgulho que não lhe permitia pedir coisa alguma ao homem sentado
ao lado dela naquele reluzente Mercedes.
Também não haveria, da parte dele, nenhum interesse em atender aos seus pedidos. Ele
estava resolvido a fazer com que Ramón se casasse com ela e Darcy suspeitava que ele a
arrastaria ao altar se fosse necessário, pouco se importando com as conseqüências.
Costumes da Espanha, o casamento arranjado entre um homem e uma mulher, mesmo
sem amor!
Recostou-se no banco, deixando escapar um leve suspiro. Estava sendo levada velozmente
para Ramón.
- Você fez uma viagem longa e deve estar cansada ele disse de repente. Um banho morno
e um jantar a esperam lá no rancho.
De que tamanho é o rancho? ela perguntou, pois Ramón nunca tinha falado muito sobre
sua casa, interessado demais em Londres e nas suas distrações. Ele tinha mencionado uma
irmã gêmea que estava agora casada, e sobre seus pais, já falecidos, tinha falado muito
pouco, dando a entender que era seu irmão Júlio quem controlava os bens da família.
- Os domínios da família Valdez se estendem por muitas centenas de quilómetros ele
respondeu. Nós criamos cavalos árabes que têm participado das mais importantes
corridas na Europa. Temos também nossa adega, com vinho feito das uvas que crescem
em nosso valle de viria dorada.
- O vale dos vinhedos dourados murmurou Darcy, impressionada com o nome, embora
não quisesse ir para aquele lugar. O senhor parece ser muito ocupado.
- Sim, muito mesmo. Com pouquíssimo tempo de sobra para achar uma esposa para mim.
Darcy sabia que ele não era casado, e isto a surpreendia um pouco. Ele parecia ser do tipo
do espanhol orgulhoso em perpetuar uma dinastia, a dos Valdez, muito antiga e
importante em toda a Andaluzia. Ele mesmo tinha dito que seu nome estava ligado à
ocupação moura, o que se confirmava não somente na aparência física de Júlio como
também na maneira implacável como ele estava forçando um casamento entre ela e
Ramón.
Darcy olhou por um momento as mãos fortes que seguravam a direção do carro e sentiu
um ligeiro tremor só de pensar no que elas seriam capazes de fazer caso ela ousasse
desobedecer às ordens dele.
- Faz muitos anos que não temos casamentos lá no rancho ele disse. A irmã gêmea de
Ramón se casou no Brasil.
Darcy mal pôde se conter quando o carro fez uma curva fechada e começou a subir por
uma estrada estreita e sinuosa.
- Eu... eu espero que Ramón esteja passando bem. Darcy tinha que falar sobre alguma
outra coisa, do contrário ficaria louca.
- Acho que ele vai se sentir melhor depois de vê-la ele disse em tom de caçoada. Ele só
pensa em sua bela srta. Beaudine.
- Não sei por quê. Darcy mordeu o lábio. Eu não sou bela.
- É verdade. Nem um pouco ele respondeu. Você tem a boca grande e voluntariosa e não
tem a perfeição do rosto das mulheres espanholas. Mas tem muito charme e eu estou
certo de que sabe disso. Você soube usá-lo com Ramón.
- Eu nunca quis seduzir seu irmão.
- Para sair com uma mulher que ainda estava aprendendo a dirigir um carro, ele deve ter
sido mesmo seduzido. Isso é uma coisa que eu jamais faria!
- Disso eu tenho certeza Darcy falou, seca. Você se considera importante demais para
arriscar sua dignidade. Você e Ramón são tão diferentes... tanto no físico quanto no jeito.
Eu percebi isso logo que nos encontramos na Inglaterra pela primeira vez.
- Ah, então você se lembra de mim?
Como se fosse possível esquecê-lo!
- Eu sou nove anos mais velho que Ramón. Um leve sorriso apareceu em seus lábios. Ele é
o tipo do rapaz latino, mimado e até estragado por minha tia, que é agora a senhora do
rancho. Foi por insistência dela que permiti que ele fosse para a Inglaterra aperfeiçoar
seus estudos musicais. Eu devia ter seguido minha intuição e insistido para que ele ficasse
em casa, como meu sócio na direção da propriedade. Se Ramón tivesse ficado aqui na
Espanha, não teria sofrido o acidente.
- O senhor não está sendo nada bondoso em colocar toda a culpa do acidente sobre mim.
Darcy sentiu um aperto na garganta e teria sido um alívio chorar, mas jurou que jamais
faria isso na frente daquele homem sem coração.
- Se você tivesse deixado Ramón guiar o carro, talvez o acidente não tivesse acontecido.
- Uma opinião bem machista! Darcy lançou-lhe um olhar cheio de raiva. Em todo o caso,
acho que, vivendo num país de influência árabe, você só pode considerar as mulheres
como enfeites ou objetos.
- Não é de sua conta como eu considero as mulheres, senhorita. Você veio a San Solito
apenas para satisfazer um desejo de Ramón. Esta é a única razão pela qual foi convidada a
nossa casa, e eu a aconselho a não esquecer disso nem por um instante.
Darcy se sobressaltou. Havia nas palavras de Júlio algo profundamente inquietante, que a
deixava nervosa... Será que ele estava pensando que talvez ela o achasse mais insinuante,
mais viril que Ramón, agora seriamente limitado pela invalidez? Estaria ele dando a
entender que um antagonismo mútuo pode às vezes se transformar em atração mútua,
caso eles vivessem sob o mesmo teto?
- Eu não fui exatamente convidada para ir à sua casa ela falou com voz tensa. E se pensa
que estou interessada em sua opinião sobre as mulheres...
- As mulheres têm uma certa curiosidade em relação aos homens que conhecem... e eu a
aconselharia a não tentar bater-me com essa bolsa de couro, pois acabaríamos tendo um
outro acidente.
Darcy sentiu o rosto em fogo oh, sim, ele conhecia bem as mulheres! Tinha adivinhado seu
impulso de mandar-lhe a bolsa na cara, o convencido, o demônio arrogante!
- Os homens também têm curiosidade em relação às mulheres
ele murmurou. É o instinto animal em todos nós.
Acho que alguns de seus instintos são bem cruéis. Você parece me considerar um simples
brinquedo para distrair Ramón.
- Sim, claro, se é assim que você prefere considerar-se. Console-se com o fato de que
somos uma família rica e importante e você terá tudo aquilo que as mulheres adoram. Vai
adquirir status como membro da família Valdez.
- E o amor? Onde fica? Ela se arrependeu imediatamente de suas palavras, pois não queria
que ele soubesse dos seus sentimentos.
- Está falando do amor físico? ele perguntou sem nenhuma emoção.
Darcy abaixou a cabeça, sentindo um calor no rosto,
- Sinto muito, senhorita, mas vai ter de reprimir todos os desejos dessa natureza. Apenas a
parte superior do corpo de Ramón está viva. Os nervos da espinha foram esmagados,
deixando-o seriamente incapacitado. Ele não sente absolutamente nada da cintura para
baixo. Como você sabe, ele era um homem fisicamente perfeito e capaz antes do
acidente... e agora, graças à sua estupidez e às suas idéias feministas de que as mulheres
são tão capazes quanto os homens, ele está com metade do corpo inutilizado. Existe uma
enorme diferença entre o homem e a mulher, e eu acho que agora você vai se
compenetrar disso como nunca!
- Oh, como você é cruel! Darcy falou com dificuldade. Você realmente sabe como ferir
uma mulher!
- Você feriu meu irmão, srta. Beaudine. Roubou-lhe a virilidade e agora ele jamais poderá
ser amante ou pai. Acredite-me, para um homem andaluz, nada pode ser pior do que isso.
- Eu... eu acredito em você ela falou tristemente. Mas você não quer acreditar quando
digo que o acidente não foi somente culpa minha. Eu poderia ter freado o carro muito
antes se...
Darcy decidiu calar-se. De que adiantava continuar tentando explicar a Júlio Valdez o que
havia acontecido? A expressão dura de seu rosto denunciava que a decisão já estava
tomada e, se tudo dependesse dele, ela ia ter uma vida amorosa arruinada para sempre,
como a de Ramón. Era esta a sua vingança... as alegrias naturais do casamento lhe seriam
negadas ao unir-se a Ramón.
Amor completo... entrega apaixonada, de corpo e alma. Nada disso ela teria, se
dependesse dele. Darcy sentiu que seu corpo inteiro tremia. Ela nunca deveria ter vindo à
Espanha; seu instinto lhe dissera que envolver-se com Júlio Valdez significava perigo. No
entanto, tinha vindo. E agora era tarde... tarde demais!

CAPÍTULO II

Darcy nunca tinha visto um rancho espanhol, e agora não tinha o menor desejo de passar
por tal experiência. Seria diferente se ela estivesse em San Solito a passeio, como hóspede
da família.
Sentia-se tensa, sentada ali ao lado do irmão de Ramón. Ao olhar novamente para as
mãos fortes e queimadas de sol que seguravam o volante do Mercedes escuro, notou que
no dedo mínimo da mão esquerda havia um anel de ouro, onde estava gravado o mesmo
brasão que encimava o papel da carta que ele lhe havia escrito. Júlio tinha a aparência
orgulhosa do fidalgo; um ar de privilégio e de poder que era como uma armadura onde
poucos ousariam tentar penetrar. Um homem sem coração disso Darcy estava
convencida.
Em dado momento, sem que ela percebesse, o carro atingiu o topo da colina de onde se
descortinava o imenso vale já mergulhado nas sombras do crepúsculo.
O valle de viria dorada anunciou Júlio, com uma ponta de orgulho na voz profunda. Aqui
crescem as uvas douradas de onde tiramos o vinho que leva nosso nome. O vale se
estende até o mar e nos pertence inteiramente, a mim e a Ramón.
Darcy estava boquiaberta ao contemplar a imensidão do vale. Entendeu então o porquê
daquele orgulho e altivez nos homens cuja herança é a terra. Percebeu que Júlio amava
suas terras de uma maneira profunda e até primitiva, coisa que não acontecia a Ramón.
Para Júlio, tudo o mais estava em segundo plano.
Chegaram finalmente ao rancho, atravessando o imenso portão ladeado por duas
enormes colunas de pedra e iluminado por lanternas de ferro fundido.
Para além de um enorme pátio ficava a mansão de pedra branca, em estilo espanhol. Fora
construída séculos atrás e suas paredes sólidas haviam resistido a todas as tempestades,
guardando os dramas de amor e ódio de todos os que levavam o nome dos Valdez. O ar
parecia vivo, impregnado da história daqueles homens do deserto que haviam mesclado a
sua selvageria sensual com as paixões ardentes das mulheres do sul. Homens que tinham
trazido para a Andaluzia o amor dos pátios internos e das fontes, e das mulheres
submissas envoltas em véus.
O carro parou em frente à porta principal, mas Darcy permaneceu sentada, imóvel,
sentindo o coração bater depressa. Ela não queria passar por aquela porta, pois, no
momento em que isso acontecesse, ela se tornaria prisioneira de um amor que não
queria. O amor de Ramón!
Tensa, sentiu uma mão apertar-lhe fortemente o braço. Júlio não disse uma palavra, e ela
entendeu que não teria chance alguma de escapar ao destino que a trouxera àquela casa.
Levantou os olhos para ele, procurando desesperadamente ver em seu rosto algum sinal
de condescendência, mas foi forçada a recuar ante o olhar implacável e a expressão dura
das feições de Júlio Valdez.
- Pouca coisa resta agora que pode fazer Ramón feliz ele disse. É melhor que você se case
com ele, se este é o desejo dele. Eu lhe fiz essa promessa e vou cumpri-la!
- Você faz suas próprias leis... e castigos ela disse, desesperada. Duvido que haja alguém
mais impiedoso que você...
- Por favor, deixe-me conversar com Ramón e ver se podemos chegar a um entendimento.
Não me trate como um réu que tenha de aceitar a sua idéia de justiça. Isso não está
certo... não é justo!
- Também não é justo, srta. Beaudine, que meu irmão tenha que ficar preso a uma cadeira
de rodas. Você não acha que lhe deve alguma coisa?
- Minha vida! ela murmurou. Você acha que é isso o que lhe devo?
- Sim, se é isso o que ele deseja.
- Isto faria feliz somente a você, senor Valdez.
- Acredita seriamente nisso, senorita!
Darcy não conseguia parar de tremer e queria desaparecer da frente dele o mais rápido
possível, mas ele a impediu, segurando a porta do carro.
- Acho que seu coração é feito de ferro ela balbuciou. Você pouco se importa com meus
sentimentos porque considera as mulheres somente para seu uso, submissas à sua
vontade, como as que provavelmente foram mantidas prisioneiras desta casa
antigamente. Mas eu não fui criada, como as mulheres andaluzas, para aceitar com
docilidade as ordens de um homem! Eu não obedecerei prontamente a um simples gesto
seu!
- É com Ramón que você vai se casar, não comigo. Enquanto ele falava assim, Darcy podia
senti-lo tão intoleravelmente próximo que ela não ousava mexer-se. Não podia desviar os
olhos dos dele, que a fitavam com um brilho estranho.
- Eu sei que esse casamento não será fácil para você... nem para mim.
As palavras dele tinham o mesmo significado que seu olhar. Ele a media de alto a baixo,
detendo-se às vezes em seu peito, que arfava, agitado. Era como se flechas de fogo
penetrassem seu corpo. Nesse momento percebeu que algo no mais profundo do seu ser,
até então intocado, fora violentamente arrebatado. Sentiu também o que significava Júlio
Valdez para ela. Ele era um homem saudável e viril, na posse completa de sua força física,
e ela era uma mulher jovem que iria residir sob o mesmo teto que ele, como a esposa de
um homem que jamais poderia amá-la completamente.
- Não se atreva nunca... Darcy falou com dificuldade não tente jamais tocar em mim!
- Então, nunca me dê motivos que me obriguem a tocá-la ele respondeu num sussurro
ameaçador.
- Isso nunca vai acontecer!
E o que me diz da noite? Ele ergueu as sobrancelhas com ar de zombaria. - Quando o luar
ilumina suavemente os jasmins, srta. Beaudine, sentimos necessidade de procurar braços
mornos, lábios que correspondam ao nosso desejo de beijos ardentes.
- Pare com isso... deixe-me sair deste carro! Darcy tentou afastar os dedos dele do trinco
da porta, mas subitamente retirou a mão, como se tocasse em brasas.
- Como vê - ele soltou uma gargalhada, não vai ser assim tão fácil. Sem que percebamos,
estamos reagindo a instintos tão velhos quanto os de Adão e Eva.
- Você está enganado se pensa que desperta tanto assim os meus instintos! Darcy lançou-
lhe um olhar de desdém. Você é autoritário, egoísta e adora impor suas ordens aos
outros. Você não tem um pingo do encanto de Ramón...Sim, eu prefiro mil vezes Ramón.
assim como ele está, a você!
- Pois então mantenha essa promessa, senorita, se é que você sabe o que lhe convém.
Darcy permaneceu silenciosa... ela não tinha querido fazer promessa alguma a qualquer
um dos Valdez.
- Vou vigiá-la constantemente para ter certeza de que Ramón esteja sempre satisfeito...
tão satisfeito quanto possível nas suas condições!
- Posso imaginar o prazer que isso lhe dá! Você quer fazer da minha vida um inferno!
- Você foi a culpada pela infelicidade dele. Darcy encolheu-se ao ouvir aquelas palavras.
Você nunca o amou! Só quis se divertir com ele!
- Nunca fiz nada para enganá-lo. Só procurei ser uma boa amiga. Eu gostava muito dele,
um rapaz atraente, uma companhia agradável...
- Sim, uma ótima companhia, srta. Beaudine, que não anda mais, não monta a cavalo, nem
pode dançar. Ele agora é um meio homem e você vai pagar por isso, mesmo que seja às
custas de sua própria felicidade... ou da minha!
- Sua? Não venha me dizer que isso vai afetar seus sentimentos ou sua consciência... o
senhor não tem nenhuma, senhor Valdez. O seu desejo de vingança está acima de tudo...
- Se é assim que você pensa, senorita...
- Sim, é assim que eu penso. Darcy afastou o cabelo que lhe caía sobre os olhos. - O
deserto está em seu sangue... você me poria contra uma parede e me atiraria pedras se
pudesse fazê-lo. Como não pode, quer me fazer escrava de seu irmão.
- Vamos, não seja tão melodramática. Ele riu cinicamente. Meu irmão não é do tipo que
escraviza mulheres.
- Não, mas você é! Darcy sentiu vontade de esbofeteá-lo, fazendo desaparecer aquele
sorriso de seus lábios. Você quer me forçar a desistir da minha liberdade, da minha
carreira, só para ficar cuidando de Ramón. Para isso vai ficar me vigiando o tempo todo.
- Eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar vigiando a senorita ele
respondeu com ar de caçoada e abriu a porta do carro, deixando penetrar uma golfada do
ar fresco da noite, perfumado de jasmins.
Darcy desceu do carro contendo a respiração. Olhou em volta e sentiu como se tivesse
sido transportada para o passado, para uma época em que o encanto e a graça se
mesclavam a uma certa selvageria. Aquelas altas paredes brancas, juntamente com o
ferro que adornava a grande porta de entrada, eram uma indicação de que as pessoas
dentro da casa eram zelosamente guardadas. Darcy tentava lutar contra aquele fascínio.
- Então, srta. Beaudine, o que acha do Rancho Valdez? Ele postou-se atrás dela, bem mais
alto que a figura esguia de Darcy.
- A casa me parece um pouco estranha Darcy falou com frieza, tentando esconder a
impressão que a atmosfera daquela casa lhe causava. Deve ser bem antiga.
- Tão antiga como algumas das mansões inglesas históricas. Venha, você precisa comer
alguma coisa, depois de uma viagem dessas.
A porta em arco se abria para um corredor de cujas colunas pendiam lâmpadas que
iluminavam o chão, todo coberto de ladrilhos decorados em arabesco. Cadeiras e plantas
em grandes vasos de pedras, dispostos em intervalos, compunham o ambiente. As
paredes de dentro da casa eram de pedra bege à qual os anos tinham acrescentado uma
jovialidade especial. Darcy entrou, junto com Júlio, para um grande hall onde se viam,
contra as paredes, cómodas enormes e arcas antigas, incrustadas de pérolas e prata,
formando desenhos orientais.
Mesmo impressionada com o que via, ela estava determinada a não deixar transparecer
seus sentimentos. Não queria que Júlio percebesse o impacto que a casa lhe tinha
causado.
Ao atravessarem o vestíbulo, Darcy ouviu o som de música flamenga que vinha de uma
das salas contíguas. Sob o ritmo marcado ouvia-se uma nota melancólica, triste.
- Essa música não é a petenera? Darcy perguntou impulsivamente.
Júlio Valdez olhou para ela, franzindo a testa.
- Você conhece a nossa música?
- Ramón me ensinou alguma coisa.
- É claro ele falou com voz mansa, mas seu olhar era ameaçador. Sempre me esqueço de
que meu irmão a familiarizou com nossos costumes, mesmo que você negue essa
familiaridade no campo do amor, não é, srta. Beaudine?
- Sim, nego, mas não vejo por que isto o aborrece tanto Darcy respondeu com um olhar de
desafio.
Por um longo momento os olhos dele fixaram-se nos dela, quase como se ela fosse uma
presa em suas mãos. Com um sacudir de ombros Júlio encaminhou-se para uma porta em
arco e abnu-a com um empurrão. Convidou-a a entrar numa sala encantadora
- Esta é a sala principal, que está ligada à sala de jantar através daquelas portas de ferro.
Ele apontou o outro lado da peça. onde lâmpadas brilhavam sobre o rendilhado de ferro.
A sala era mobiliada com móveis antigos, as poltronas e divãs, cobertos de veludo escuro.
O olhar de Darcy foi atraído por um dos quadros, um original de pintor espanhol. Era uma
figura impressionante de homem de outras épocas, vestido com uma couraça de metal e
cujo peito reluzente estava semicoberto pelas dobras da capa vermelha que lhe caía dos
ombros. Enquanto examinava o retrato, Darcy sentiu, de repente, o coração bater mais
rápido... aquele rosto poderia muito bem ser o de Júlio Valdez.
Um de meus ancestrais... um conquistador. Ele acendeu um cigarro.
- Você, com certeza, notou a semelhança. Ele era um daqueles que saíam pelo mundo,
invadindo, saqueando, e sabe Deus o quê, tudo em nome do rei da Espanha e do Século
de Ouro. Com certeza você acha que somos os dois da mesma espécie, não?
- Sempre ouvi dizer que nós somos aquilo que herdamos do passado ela disse friamente.
Traços antigos de caráter são bem mais marcantes em certas pessoas do que em outras, e
eu estou de acordo em que você poderia muito bem ter posado para aquele quadro.
Júlio riu, divertido, e indicou a parede oposta, de onde pendia o retrato em óleo de uma
mulher jovem, de expressão recatada. Tinha nos cabelos negros, partidos ao meio, uma
mantilha de renda branca. Seus olhos eram como veludo negro e tinha nos lábios um meio
sorriso.
- Lindos, não acha? O que eu mais admiro nas mulheres são os olhos. Na minha opinião, se
uma mulher tem olhos belos, ela tem tudo.
- Uma ancestral também, senor? Darcy perguntou, pensando consigo mesma que pouco
lhe interessava saber o que mais o atraía numa mulher. Não tinha a menor dúvida de que
Júlio preferia o tipo latino, de pele aveludada e olhos negros.
-A noiva do conquistador. - Ele respondeu. -Como já lhe disse, só eu ainda não encontrei
tempo para me casar. Minha tia está sempre me dizendo que o tempo passa e que eu
devo procurar uma boa moça de família, que me daria os filhos necessários e que seriam a
alegria dos nossos domínios. Não acha que é uma boa idéia, srta. Beaudine?
-Senor, duvido que a minha opinião, ou a de quem quer que seja, tenha alguma
importância para você. Entretanto, aquela pergunta a deixou meio inquieta. Ele queria
arruinar a vida dela, forçando-a a se casar com Ramón, e ainda vinha falar em noiva ideal
para si mesmo, como quem iria formar um ninho de amor. Darcy olhou para ele
longamente, achando-o intoleravelmente arrogante.
- Sei que você tem suas próprias ideias a respeito do papel das mulheres nos dias de hoje,
por isso tenho certeza de que será um choque saber que ainda há homens, como eu por
exemplo, que podem comprar suas noivas. Tudo o que tenho a fazer é oferecer aos pais
um belo cheque e eles, de boa vontade, despacharão para mim suas inocentes filhas. Sob
vários aspectos, é um arranjo bastante eficiente, pois evita-se um mundo de
aborrecimentos.
A fumaça perfumada do cigarro de Júlio fazia círculos no ar, enquanto ele a observava
com ar divertido, esperando a qualquer momento por uma explosão da parte dela.
Percebendo o que ia na mente dele, Darcy lhe disse friamente:
- Estou certa de que arranjos como esse vêm acontecendo em sua família por muitas
gerações. Por isso é que o senhor não se preocupa ao fazer o mesmo comigo e seu irmão.
Acontece, senor, que eu não saí de um convento, nem fui condicionada a aceitar a ideia
absurda de que os homens são meus senhores. Eu sou e serei sempre dona de mim
mesma, ainda que o senhor me obrigue a viver aqui como mulher de Ramón.
- Bem, com exceção da cerimónia do casamento, o assunto já está resolvido. O rosto dele
retomou sua expressão dura e hostil quando se abaixou para apagar o cigarro. O corpo de
Ramón foi duramente atingido, por isso não permitirei que seu coração também venha a
sofrer, está ouvindo? Você vai ser boa para ele, caso contrário terá de prestar contas a
mim!
- Por acaso terei também que tremer quando me faz ameaças desse tipo, senor Valdez?
- Pode estar certa, srta. Beaudine, que eu saberia como fazê-la tremer.
- Estou certa de que a sua força bruta poderia atingir-me fisicamente, mas não poderá
dobrar meu espírito, nem evitar que eu o deteste mais intensamente do que a qualquer
outra pessoa no mundo.
- Seria mais sábio de sua parte se eu lhe fosse totalmente indiferente, senorita.
- O que você quer dizer com isso? O pulso dela começou novamente a latejar.
- Ora, vamos, você não pode ser assim tão inocente!
- Você está insinuando que eu... eu o acho atraente?
- Não seria modéstia de minha parte insinuar tal coisa. Ele olhou-a com sarcasmo. Mas
nossas reações químicas podem produzir resultados inesperados... prazer e dor, assim
como desejo e desdém, estão sempre em conflito; são emoções tão interligadas que nós
nos sentimos enlouquecer se não achamos solução para uma ou outra. A verdade é que
homens e mulheres foram feitos para encontrar o céu e o inferno em seus
relacionamentos, e assim há de ser até o final dos tempos.
- Eu diria que em nosso caso a palavra ”inferno” seria a mais apropriada.
O inferno não é um lugar frio, senorita.
- É um demônio como você deve saber disso, não? Oh, não é justo que você me acuse, me
julgue... e me condene!
- Há muita coisa injusta neste mundo e Ramón é um exemplo disso.
- Ele está vivo. - Ela disse finalmente. Que aconteceria se ele tivesse morrido? Qual teria
sido meu castigo por isso, senor? O garrote, talvez?
O som dessa palavra pareceu ficar balançando no ar entre os dois. enquanto Júlio, com os
olhos fixos em Darcy, respirava fundo, prestes a dar-lhe uma resposta. Nesse momento a
porta da sala abriu-se ruidosamente.
Percebendo que estava sendo observada por outro membro da família, Darcy procurou
com o olhar a figura parada à entrada da porta... uma mulher jovem cujos cabelos escuros
emolduravam um rosto de pele dourada de sol e olhos amendoados. Ela estava vestida
com um elegante conjunto de montaria que lhe dava um ar de garoto.
Seus olhos escuros fixaram-se em Darcy e moveram-se rapidamente para a figura esbelta
de Júlio.
- Então, esta é a noiva? A voz dela tinha uma entonação infantil, que não combinava com
seu ar de sofisticação. A bela moça inglesa a quem Ramón mal pode esperar para ter nos
braços?
Sim, esta é a moça Júlio falou, indicando Darcy com um gesto da mão. Srta. Beaudine,
permita-me apresentá-la a Dorina Arandoz, nora de minha tia, que é quem dirige minha
casa.
-Prazer em conhecê-la, srta. Arandoz.- Darcy falou cortesmente, embora não lhe
estendesse a mão. Havia pressentido uma espécie de antagonismo por parte da jovem
espanhola.
- Sra. Arandoz, por favor.
- Oh, sim! Perdoe-me pelo engano, sehora. Darcy sentiu um vazio no estômago ao
imaginar como iria se arranjar no meio de tanta gente hostil. Aquela mulher já a
considerava a noiva esperada de Ramón... oh. Deus, ela já estava começando a sentir-se
presa na armadilha montada por Júlio Valdez. Ele iria dispor dela, em favor do irmão,
como bem entendesse.
- Para evitar futuros enganos, eu sou agora uma viúva. Dorina sacudiu um chicote que
tinha na mão, como se quisesse usá-lo em Darcy. Meu marido morreu há um ano, de um
derrame, o que faz de nós duas, srta. Beaudine, uma dupla trágica. Meu marido no
túmulo, e seu futuro marido preso a uma cadeira de rodas. Realmente, você deve sentir
muita pena de Ramón, para vir até aqui e tornar-se parte de um meio casamento.
Dorina fez uma pausa, analisando com o olhar a aparência de Darcy.
- Que abnegação! ela falou em tom de caçoada, dirigindo a Júlio um olhar insolente. Ela
sabe que Ramón é agora quase tão dependente quanto uma criança? Sabe de que, uma
vez colocado na cama, ele é inútil como uma pedra?
- Cale-se! Júlio lançou a Dorina um olhar ameaçador. Isso não são modos de falar. A srta.
Beaudine sabe muito bem da penosa situação em que Ramón se encontra. Ela está
preparada para tudo.
- Está mesmo? Dorina dissimulou uma certa apreensão quando olhou para Darcy. Você e
Ramón provavelmente se conheceram bem, antes do acidente, não é, srta. Beaudine?
Você sabe que tipo de pessoa ele era, mas não sabe que tipo de homem ele se tornou!
- Temo que você leve um grande choque.
Era Darcy quem estava com medo e esse terror gelava seu corpo. Sentiu novamente
vontade de fugir daquela gente, de voltar para a sua vida na Inglaterra, para seus amigos e
sua música. Nunca pediu que Ramón se interessasse por ela; foi ele quem insistiu naquela
amizade, que sem razão alguma a estava conduzindo a um casamento que não passaria de
um cativeiro.
Darcy sentia-se encurralada e queria escapar, mas Júlio Valdez não ia deixar, vingativo que
era. Era dele que Darcy tinha mais medo
- Olhe para ela Dorina falou com ironia. Ela está branca e treme como uma vara!
- O que você lhe fez, Júlio, arrastou-a da estação para o rancho?
- Não foi preciso usar essa tática. A srta. Beaudine sabe qual é o seu dever e está
preparada para se casar com Ramón.
- Desejo-lhe muita sorte, minha cara. Dorina sorriu para Júlio e Darcy viu a malícia em seus
olhos. Aquele olhar parecia sugerir que Júlio, sim, é que era um homem. A nossa família é
difícil não é, Júlio? Ela brincava com o chicote que tinha nas mãos. Principalmente você,
que nunca usou charme para conquistar uma mulher, não é?
- Eu seria o último a contradizê-la, Dorina.
De repente Darcy percebeu que aqueles dois eram um exemplo perfeito da raça
mediterrânea, temperamentais e vibrantes, com o sangue quente como o sol daquelas
terras correndo em suas veias.
Por que Dorina tinha se casado com outro homem, quando era tão evidente que gostava
de Júlio? Talvez porque ambos fossem extremamente voluntariosos, e iguais no orgulho e
na paixão para que um casamento pudesse dar certo.
Talvez eles fossem amantes, pois parecia impossível que Júlio tivesse resistido àquele
corpo sedutoramente frágil, que aqueles lábios vermelhos não tivessem provocado nele
desejos de beijos impetuosos.
Darcy desviou o pensamento, sentindo-se ligeiramente febril. Ela não costumava
alimentar pensamentos eróticos a respeito de outras pessoas. Estava horrorizada com sua
própria curiosidade. Não seria essa uma maneira inconsciente de se vingar da hostilidade
deles? De repente ela notou que Júlio Valdez a olhava com curiosidade.
-Você está bem? ele perguntou, autoritário.
-Sim.
-Então por que está com essa cara?
-Eu estou perfeitamente bem, obrigada. Darcy apressou-se em se recompor. ---Não se
preocupe comigo, senor. Eu faço parte das preocupações de Ramón, e estou certa de que
vamos ser capazes de resolver nossos problemas sem precisar da sua ajuda.
-Mas que mau gênio! Dorina exclamou. Júlio estava sendo apenas educado e solícito.
-É mesmo? Darcy tinha que aliviar um pouco aquela tensão.
-O senor Valdez não tem o menor senso de solicitude no que diz respeito a mim, e ele
sabe disso! Se pudesse, ele ressuscitaria as torturas do quemadero só para mim!
-É verdade, Júlio? Dorina tinha um ar debochado no olhar que dirigiu a ele.
-A srta. Beaudine tem a imaginação muito fértil. Se ela realmente soubesse o que é
quemadero, não teria absolutamente estômago para mencioná-lo. De fato, ela pouco sabe
a respeito de um espanhol. Desconhece que um latino não brinca com o amor; que suas
paixões são intensas demais para ela. Em outras circunstâncias, ela jamais se casaria com
um Valdez!
-Disso o senor pode estar absolutamente certo, senor Valdez!
Os olhos dela lançavam chispas.
- Eu desprezo essa sua integridade latina! Você não passa de um touro vingativo, que acha
mais fácil punir uma mulher. Por que não vai atrás do homem que causou o acidente? Por
que eu? Porque sou jovem e não tenho um pai para proteger-me de gente como você!
-Cale-se! ele ordenou. Você está histérica.
-Oh, mas estou certa de que você conhece o remédio para isso. Você me bateria no rosto
e isto lhe daria prazer.
-Água fria também cura ele disse. Aconselho-a a não me provocar demais, senorita,
porque, como o touro espanhol, eu também exalo fogo e ataco, quando incitado. Esteja
certa de seus movimentos antes de começar uma corrida comigo.
-Você tem coragem para tudo. Deve ter sido por isso que Ramón foi para a Inglaterra,
porque ele não tolerava mais esse seu autoritarismo.
- É lamentável que meu irmão tenha ido à Inglaterra, seja lá por que motivos. O rosto dele
tinha um aspecto feroz.
Darcy sentiu uma fraqueza na boca do estômago ao se deparar com a extensão da fúria e
do sofrimento de Júlio pelo que tinha acontecido a Ramón. Era como se Júlio quisesse
agarrá-la e sacudi-la como a uma boneca de trapo. Foi um alívio quando ele olhou para
Dorina.
-Quer ter a bondade de mostrar à srta. Beaudine o quarto dela?
-Claro, Júlio. Dorina pareceu não gostar muito do papel de empregada que ele lhe impôs.
Ele inclinou a cabeça e saiu da sala, deixando Darcy à mercê de Dorina, que a olhava com
ar de caçoada.
-Você tem medo dele, não tem? Ele a obrigou a vir a San Solito contra a sua vontade, não
é?
-Eu vim por causa de Ramón Darcy disse na defensiva. Ele precisava de mim e não tive
outra escolha.
-Você não deve ter tido muita escolha se Júlio decidiu que deve se casar com Ramón.
Como você sabe, ele é muito afeiçoado ao irmão mais moço, como o são todos os
espanhóis com seus irmãos. Homens como Júlio têm um forte senso de responsabilidade;
está profundamente arraigado em suas naturezas. Dorina fez uma pausa e acariciou com
os dedos a ponta do chicote Júlio Valdez é um homem e tanto, mas é necessário uma
mulher muito especial para apreciar suas qualidades. Se eu fosse você, minha cara, fugia
para bem longe em vez de casar com um paralítico.
-Se eu fizesse isso, sra. Arandoz, pode ter certeza de que seu primo iria atrás de mim.
-Se é assim, eu tentaria seduzi-lo.
-Eu não sou desse tipo. Darcy sentiu o sangue subir-lhe ao rosto só em pensar nisso.
-Você é boazinha demais. Talvez nem se importe em ser uma esposa só no nome. Eu
acharia insuportável, pois as mulheres foram feitas para o amor, como as uvas para o
vinho. Toda mulher tem exigências naturais e você pode se rebelar depois de algum
tempo. Que fará você quando descobrir que não pode viver só pelo dever e pela piedade?
-Apertarei meu cinto como uma cristã, imagino Darcy falou secamente, pois não tinha
disposição nenhuma para refletir sobre as angústias da paixão.
-Então você se considera uma espécie de puritana? Muito recomendável, mas nada
emocionante. Dorina olhava fascinada para o retrato do conquistador na parede do
grande salão. Júlio terá que se casar um dia, para que a linhagem dos Valdez não seja
interrompida; mas o casamento dele não será apenas de nome!
Os pensamentos de Dorina pareciam refletir-se no brilho de seus olhos. Será que ela
nutria a esperança de ver-se um dia na capela da família, desta vez como noiva de Júlio,
repetindo os votos ditos pelo sacerdote?
-Siga-me! Dorina falou repentinamente. Sua bagagem será levada para seu quarto.
CAPÍTULO III

Elas subiam juntas a escada quando Dorina parou de repente, alguns degraus acima de
Darcy. A curva da escada emoldurava-lhe o porte orgulhoso.
- Bem, vamos nos entender ela disse. Você pode ser virtuosa quando se trata de Ramón;
mas lhe digo para não olhar para Júlio, se não quiser levar umas chicotadas.
Darcy agarrou-se ao corrimão da escada, sentindo o coração disparar. Sentiu que Dorina
era capaz de jogá-la escada abaixo.
-Você não tem o direito de me falar assim! Darcy levantou o queixo, procurando esconder
o medo que sentia. Acho que o senor Júlio foi bem claro ao dizer o que sente por mim. Eu
seria uma tola se...
-Não estamos discutindo os sentimentos de Júlio, estamos falando dos seus. ---Não tente
me convencer de que é tão virtuosa e inocente a ponto de não notar quão provocante ele
é. Ainda não encontrei mulher alguma que resistisse às promessas dos olhos dele.
-Eu acho que você está exagerando Darcy respondeu, mas não vou discutir sobre isso,
você deve conhecê-lo muito bem.
Você se mostra indiferente Dorina falou desdenhosamente, mas, desde que chegou, não
deseja outra coisa que não seja se casar com ele.
-Você está louca! Darcy exclamou. Eu acho que ele é o mais arrogante dos homens!
-Sim, arrogante Dorina sorriu, mas homem da cabeça aos pés.Ele é o típico fidalgo Darcy
respondeu. Criado para dominar os outros. Vocês, mulheres latinas, gostam desse tipo de
homem; eu não. Ele devia viver no tempo em que as mulheres não eram mais que
escravas envoltas em véus.
-Bem, de qualquer maneira, disse Dorina, eu a aviso para ficar longe de Júlio; assim nos
daremos bem. Estou sendo clara?
-Clara demais, pensou Darcy. A moça estava caidinha por Júlio e achava que todas as
mulheres tinham de suspirar por ele. Parecia ridículo a Darcy que Dorina se mostrasse tão
abertamente ciumenta de um homem que considerava Darcy uma criminosa.
- Eu não estou interessada no senor Valdez Darcy disse em voz baixa. Vim a San Solito por
causa de Ramón, e só por ele é que vou ficar aqui, se realmente ele me quer.
- Ele só fala em você disse Dorina com os olhos semicerrados. ”Os cabelos de Darcy
brilham como raios de sol. Darcy toca violão tão bem como qualquer moça espanhola.
Darcy é tão boa e tão gentil!” Eu tenho visto o rosto de Júlio transformar-se em uma
máscara quando Ramón começa a elogiar você... você que roubou sua virilidade!
Dorina continuou subindo as escadas na frente de Darcy, depois foi até o fim da galeria,
parando em frente a uma porta.
-Este é o seu quarto. Ela escancarou a porta e Darcy pôde ver o mobiliário maciço. Até o
dia do casamento, você vai dormir aqui. Espero que não seja medrosa. Este quarto tem
uma atmosfera estranha, como você vai perceber logo.
-No começo todos os quartos são estranhos...
-Especialmente aqueles cujas paredes viram algumas cenas de violência.
Violência? Darcy perguntou. Você está querendo me assustar?
Assustar? Mas vocês, ingleses, não são tão corajosos? Dorina apontou para o interior do
quarto. Alguns anos atrás a governanta da irmã de Ramón morreu neste quarto. Ela
tomou alguma coisa... por causa de um homem...
Dorina sorriu da expressão de Darcy.
A coisa foi mantida em segredo, para que o escândalo não viesse a público. Dizem que ela
era uma mulher reservada, que raramente levantava os olhos quando falavam com ela.
Ninguém conseguiu entender como ela pôde atrair um homem. Os homens às vezes se
sentem lisonjeados por olhares tímidos e um certo ar de inocência, mas depois de algum
tempo eles se cansam disso. Dorina fez uma pausa. Acho melhor você ir desempacotando
as suas coisas. O jantar será às oito e meia.
Darcy acenou com a cabeça e entrou naquele quarto, onde as sombras pareciam abrigar a
presença de um fantasma. Seu coração batia forte e ela sentia vontade de fugir do rancho.
Por que tinha de ficar numa casa cheia de gente que não gostava dela? Ramón tinha que
compreender que ela não poderia se casar com ele sem amor. Mas como dizer isso?
- Meu apartamento fica lá Dorina apontou a porta dupla que dava entrada a quartos bem
maiores e mais suntuosos.
-Onde fica o banheiro? Darcy perguntou.
Dorina mostrou uma porta que dava para a galeria, a alguns passos do quarto de Darcy.
-Será muita sorte achar água quente. Esta casa é muito antiga e o encanamento não
funciona bem. Júlio está sempre dizendo que vai instalar um novo sistema, mas ele se
importa muito mais com suas vinhas do que com o nosso conforto. O sistema de irrigação,
lá embaixo no vale, vem em primeiro lugar. Ele pouco se importa se nós temos que tomar
banho quase frio. Ele mesmo adora os banhos frios.
-Talvez para acalmar o sangue quente Darcy disse impulsivamente.
-Sim, ele tem o sangue quente espanhol! Dorina retrucou. Mas não tente uma transfusão
dele.
Com isto ela se afastou de Darcy, deixando-a no quarto onde, um dia, uma pobre mulher
abandonada tinha se matado por amor.
Darcy acendeu a luz e se sentiu mais aliviada. Olhou à sua volta antes de fechar a porta,
experimentando um certo consolo ao Ver sua maleta de viagem encostada a um pequeno
banco aos pés da cama.
A cama enorme de madeira esculpida, coberta com uma colcha pesada de renda, já um
tanto velha, dava a impressão, juntamente com o resto do mobiliário, de ter pertencido a
um quarto destinado a empregados. Darcy caminhou até a penteadeira, onde parou para
se olhar no espelho, procurando mudanças em sua aparência.
Ela não sabia explicar por que se sentia assim, com a impressão de ter passado por
transformações. Pouco mais de uma hora atrás, tinha desembarcado naquele lugar, e
nesse espaço de tempo sentia ter passado por experiências que a haviam transformado da
jovem despreocupada que era numa mulher agitada por toda a sorte de emoções. Sentia
uma grande confusão interior. Não queria envolver-se com a família Valdez, mas isso
parecia inevitável, graças à teimosia de Júlio e à sua própria relutância em magoar Ramón,
que já tinha sofrido bastante.
Em apenas uma hora, ela parecia ter amadurecido muito, e sentia que nunca mais ia
voltar a ser a estudante de música, livre e despreocupada, que vivia só para a sua arte.
Sentimentos confusos haviam sido despertados, fazendo estremecer dolorosamente toda
a sua sensibilidade.
Pegou o crucifixo de ônix e pérola que estava sobre a penteadeira e ficou imaginando se a
imagem havia sido colocada ali com a finalidade de aliviar aquela atmosfera deprimente.
Era um símbolo de fé católica sobre o qual se faziam juramentos que jamais poderiam ser
rompidos... tal como o juramento que ela iria fazer quando se unisse ao irmão inválido de
Júlio.
Deu um gemido. Sentia o corpo todo dolorido, como se tivesse levado uma surra. Colocou
o crucifixo sobre a penteadeira e voltou-se para abrir a maleta, hesitando em frente ao
guarda-roupa antigo. Abriu as portas do móvel, imaginando se dentro dele haveria um
fantasma em uniforme de governanta. Porém o guarda-roupa continha somente uns
poucos cabides e um leve aroma de lavanda.
Enquanto desfazia a mala, Darcy passava distraidamente a mão pelo cabelo, que teimava
em lhe cair sobre os olhos. Ao tocar o tecido suave de uma de suas peças íntimas,
lembrou-se de Júlio Valdez. Ele tinha estado naquele quarto, no silêncio da noite, para se
divertir com uma pobre mulher solitária. Tinha acariciado os seus cabelos, desmanchando-
lhe o penteado severo. Deve ter mesmo sussurrado o nome dela, antes de levá-la para a
cama.
Darcy se perguntava se isso podia realmente ter acontecido. E aquela cena criada pela sua
imaginação a deixava paralisada. Um calafrio percorreu-lhe o corpo só de pensar que teria
de dormir naquele quarto. O fantasma da infeliz governanta parecia estar por toda a
parte,.. ali entre as longas cortinas, ou próximo à penteadeira de cuja gaveta ela
provavelmente havia tirado o pequeno vidro de veneno.
Agarrando sua sacola de toalete e um roupão, Darcy saiu apressadamente do quarto e foi
para o banheiro, onde se trancou. Sabia que era tudo imaginação, mas de qualquer forma
era um alívio estar fora daquele quarto.
Abriu a torneira de água quente para encher a banheira. Talvez um banho quente pudesse
acalmar seus nervos. Teve sorte: os canos começaram a vibrar com a força da água que
jorrava. Num instante, ela pôde mergulhar num banho reconfortante, que lhe trouxe uma
sensação de segurança.
Saiu da banheira com a pele corada, os fios de cabelos escuros colados no pescoço. Vestiu
o roupão e recolheu a roupa que tinha tirado. Saiu para a galeria em direção ao seu
quarto quando viu algo que a fez ficar plantada onde estava.
Júlio Valdez estava parado à porta do quarto dela, que se encontrava aberta. Quando ele a
viu, voltou-se com expressão contrariada.
Quem lhe disse para dormir aqui? ele perguntou, irritado. Foi Dorina?
- Sim... Darcy ajustou o roupão sobre o seio, sentindo o coração disparar.
Ele a olhou dos pés à cabeça, tentando adivinhar o contorno do seu corpo úmido.
- Ela não podia fazer uma coisa dessas ele disse bruscamente. Pegue suas coisas e venha
comigo, srta. Beaudine. Acho que podemos arranjar um apartamento mais confortável
para você.
Com o espírito prevenido, Darcy pensou em recusar o oferecimento dele, apesar de não
gostar nada daquele quarto. Teve vontade de lhe dizer que não se incomodasse em
arranjar outro; que ela podia dispensar aqueles cuidados. Mas, antes que pudesse falar
alguma coisa, ele entrou e, sem lançar um olhar sequer para a cama no meio do quarto,
dirigiu-se ao guarda-roupa, de onde retirou algumas peças de roupas de Darcy.
- Pegue o resto ele ordenou e venha comigo!
Ele parecia tão sombrio que Darcy decidiu não discutir. Com as mãos trémulas, abriu as
gavetas onde tinha colocado algumas de suas roupas, recolheu toda a sua lingerie e se pôs
a acompanhá-lo pelo lado esquerdo da galeria. Ele parou em frente a uma porta dupla e a
abriu ruidosamente. Ao entrar no quarto ele acendeu as luzes e fez com que Darcy
entrasse. O quarto era espaçoso e suas paredes, revestidas de madeira de um tom
vermelho-escuro, contrastavam com o bege claro dos móveis.
- Você vai dormir aqui ele disse, depositando as roupas dela sobre a cama coberta de
chiníz e guarnecida de babados.
Este apartamento é bem menos deprimente do que o outro. Darcy olhou para ele,
agarrada à sua lingerie. Ele não estava sendo atencioso... seria incapaz de ser cavalheiro
com ela. Apenas sabia muito bem que aquele outro quarto, escuro e solitário, no fim da
galeria, tinha sido testemunha da paixão e desespero de uma mulher cujo trágico fim
talvez pudesse ser atribuído a ele.
- Não fique aí me olhando com essa cara de medo ele disse, caçoando. Você não prefere
dormir aqui?
- Claro que sim... Seus olhos se encontraram e ela notou um brilho intenso em seu olhar.
Ele estava perturbado e Darcy de repente teve certeza de que ele tinha sido o amante da
infeliz governanta.
Seu magnetismo atraía as mulheres; mas com a mesma facilidade, ele as abandonava
depois de se divertir com elas.
-O sol da manhã bate em todos os quartos deste lado da galeria... E pare de me olhar
assim, srta. Beaudine. Ou está pensando que eu a trouxe para este quarto para ficar mais
perto de mim e eu poder lhe fazer umas visitinhas noturnas?
Darcy sentiu o rosto pegar fogo.
- Eu... eu estava pensando que a sra. Arandoz talvez possa se aborrecer por eu ter mudado
para este apartamento.
- Ela não tem do que se aborrecer. Esta casa é minha, senorita, e sou eu que mando.
- Mas você disse que é sua tia quem dirige a casa e eu não gostaria de aborrecê-la, de
modo algum.
-Ela apenas dirige a casa, mas quem manda sou eu. Aqui você vai dormir mais tranquila,
sem medo de fantasmas noturnos.
Darcy estava espantada com a capacidade que Júlio tinha de adivinhar os seus
pensamentos. Ele a olhou, irônico.
-Eu não sou tão velho a ponto de esquecer como é fértil a imaginação dos jovens.
Darcy não precisava ter imaginação fértil para imaginá-lo envolto em túnicas de cavaleiro
do deserto, olhos brilhantes, pele queimada de sol, arrebatando as mulheres entre os seus
braços morenos.
-Cuidado, seus olhos são um livro aberto!
Ela baixou rapidamente os olhos, tentando esconder os pensamentos.
-Eu estou sabendo que Dorina contou-lhe histórias escandalosas acontecidas naquele
quarto ele disse vagarosamente. Ela fez isso pra deixá-la nervosa. ------Aposto que você
ficou com medo de dormir lá!
Darcy sacudiu a cabeça. Era verdade, ela tinha ficado aterrorizada com a ideia de dormir
naquela cama manchada pela paixão e pela traição.
-Vou ver Ramón mais tarde?
-Claro. Ele tem que descansar algumas horas por dia, mas vai jantar com a gente. Você
está ansiosa por vê-lo, não é?
Darcy sabia que ele estava sendo irônico; ele sabia muito bem como ela se sentia em
relação àquele encontro, mas não tinha a menor intenção de se preocupar com os
sentimentos dela. E ela sofria com a sua arrogância e com a maneira como ele tentava
fazê-la dobrar-se às suas ordens!
- Olhe, você está deixando cair a sua roupa! Ele se abaixou para apanhar a lingerie que
havia escorregado das mãos de Darcy.
Ela notou nos seus olhos um brilho malicioso quando ele tocou o tecido transparente.
Darcy olhou para os lados, procurando refúgio, ao se dar conta de que estava sozinha com
ele no quarto.
-Acho que está ficando tarde ela disse.
-E você quer se vestir, não é?
O brilho dos olhos dele fez Darcy temer o charme com que ele poderia envolvê-la, caso
desejasse. Ela não conseguia desviar os olhos do rosto dele, intranquila com a maneira
como ele a encarava, fazendo-a sentir-se completamente nua. Mais do que ninguém ele
sabia como dobrar a resistência de uma mulher. Suas pernas estavam trémulas, mas ela
não queria pedir para ele sair porque poderia dar a impressão de estar com medo dele.
-Não tenha medo ele zombou. Noiva de um Valdez não vai para o altar sem a sua
virgindade.
-Você... você é cínico demais.
-Porque sei o que está pensando? Que eu possa querer atirá-la na cama para forçá-la ao
amor?
-Eu... eu não estava pensando nisso!
-Mentirosa!
-Não se atreva!
-Não?
Ele começou a mover-se na direção dela, hipnotizando-a com um fascínio perigoso. À
medida que ele se aproximava, Darcy se retesava toda, certa de que ele iria agarrá-la.
Estendeu as mãos como se quisesse afastá-lo para longe. Ele não conteve uma gargalhada.
-Provocar um espanhol, senorita, é como agitar uma capa vermelha diante de um touro.
Você tem que aprender a não estar tão prevenida; só assim poderemos viver na mesma
casa sem tensão entre nós. Você vai dormir nesta casa. vai fazer suas refeições na minha
mesa e, portanto, vai parar de me olhar como se eu fosse um carrasco de chicote nas
mãos.
-Você sabe intimidar os outros mesmo sem usar o chicote. Você foi feito para dar ordens.
-Verdade? Ele estendeu a mão e, sem que ela pudesse evitar, enlaçou-a pela cintura e
puxou-a para junto de si.
Ela estremeceu ao sentir o calor do corpo dele através do roupão leve, e o detestou pelo
efeito que sua proximidade física lhe causou.
-Sim, posso fazer o que bem entender com você. Seus olhos estavam fixos nela. -Pode
espernear quanto quiser que de nada vai adiantar. Eu a tenho presa em minhas mãos.
-Você é intolerável, solte-me antes que eu grite... por Ramón!
-Você não faria uma coisa dessas. É britânica demais. Acho que ia preferir aguentar calada.
-Com essa ideia sobre mim é que escreveu aquela carta me obrigando a vir?
Não. Apelei para o seu senso do dever ele retrucou. De qualquer modo, se você não
tivesse vindo voluntariamente, eu a teria ido buscar.
-E se eu já estivesse casada? ela perguntou, curiosa. Mudaria alguma coisa?
-Provavelmente. Ele deu de ombros. Mas o destino quis que você ainda estivesse
disponível e livre para se casar com Ramón.
-Fala tão friamente, senor, como se eu não passasse de um puro-sangue a ser
acrescentado a seus estábulos.
-Uma potranca elegante, digamos ele respondeu ao mesmo tempo em que lhe afastava
dos olhos uma mecha de cabelo. É uma pena que Ramón esteja incapacitado. Uma casa
espanhola deve ser cheia de crianças correndo por todos os lados.
-Elas terão que ser suas... Darcy mordeu o lábio após ter dito isso, pois pareceria para ele
uma observação um tanto sugestiva. Pela expressão introspectiva do olhar dele, Darcy
imaginou que deveria estar pensando em alguma mulher com quem gostaria de ter tido
filhos.
-Sim ele murmurou, a linha Valdez deverá continuar, e você e eu temos nosso dever para
com a família. Para os latinos os interesses da família são mais importantes do que os
desejos pessoais. Você vai aprender a aceitar os nossos costumes.
Ele se afastou lançando um olhar rápido para o relógio de pulso.
-Você precisa jantar e tem somente meia hora para se vestir. Ainda que estejamos numa
região agreste da Espanha, costumamos jantar com certa formalidade. Trate de se
apressar, sim!
-Vá para o diabo! Darcy murmurou sem pensar.
-Como? Cuidado para o diabo não vir atrás de você. senorita. Com esses olhos, esses
cabelos e esse gênio, você pode atrair o lado mau de um homem...
Ao encaminhar-se para a porta, ele atirou para cima da cama a peça de lingerie que havia
recolhido do chão pouco antes. A porta se fechou atrás dele, e Darcy permaneceu imóvel
por um momento, ainda com o som daquela voz em seus ouvidos e a imagem daquele
rosto em sua mente. A última coisa que ela queria era se deixar vencer pelo vigor sensual
daquele homem arrogante. Darcy queria fugir daquela casa, naquele instante.
No entanto, surpreendeu-se em frente ao espelho aprontando-se com cuidado para o
jantar no grande salão. Escolheu um vestido azul de linha simples, que complementou
com finíssimas meias escuras e sapatos de verniz. Procurou usar um perfume discreto.
Prendeu os cabelos com uma presilha de pedras, que lhe dava um ar juvenil.
Quantos seriam os Valdez? Aquela era uma casa enorme e, conforme ela tinha ouvido
dizer, os espanhóis são conhecidos por abrigarem parentes e amigos. E Júlio Valdez tinha
possibilidade para fazer isso, pois era rico e bem-sucedido.
Finalmente ficou pronta e se dirigiu para a escada, odiando o tremor que sentia nas
pernas. Começou a descer os degraus vagarosamente.
O hall estava fortemente iluminado e um grupo de pessoas conversava animadamente,
com cálices de vinho nas mãos. Darcy sentiu o coração bater rápido enquanto acabava de
descer a escada. Relutava em juntar-se ao grupo, mas sabia que, quanto mais depressa
enfrentasse aquela situação, mais depressa se livraria dela.
Na pressa, tropeçou quando chegava ao pé da escada, Ia cair quanto alguém a amparou
vigorosamente.
- Não precisa correr - Júlio disse em tom de zombaria. Há comida bastante para todos.
Darcy olhou para ele, confusa, sabendo que a tinha salvado de um fiasco. Antes de se
desvencilhar, teve que se submeter ao exame de seus olhos, que a avaliaram da cabeça
aos pés.
-Pelo menos, está apresentável para ser aceita como membro da família.
-Devo agradecer a esse elogio? perguntou com ressentimento na voz. Ela não podia deixar
de notar a elegância dele, vestido formalmente para o jantar, assim como o impacto que a
sua proximidade lhe causava.
-Você chama a isso de elogio, senorita? ele perguntou, encarando-a. Quando um espanhol
se dispõe a elogiar uma mulher, usa de uma linguagem carregada de imagens e
insinuações. Se eu usasse com você tal linguagem, você teria de corresponder com um
favor muito íntimo.
-Seria mais provável que você recebesse um tapa na cara ela respondeu, desafiadora. O
que está pensando, senor? Está querendo pôr a minha moral à prova?
-Minha opinião sobre sua moral já está formada. Creio que sua habilidade como motorista
se iguala à sua experiência em outros assuntos. Quando Ramón foi para a Inglaterra, eu o
avisei que se mantivesse longe de mulheres sofisticadas, que são hábeis em se divertir
sem ir ao extremo de romper o coração... ou a espinha de um homem.
-Se sua mão não estivesse presa, Darcy teria dado uma bofetada na cara de Júlio.
-Você é um demônio! Darcy falou baixinho, tentando soltar a mão.
-Talvez seja, em comparação com os jovens e inexperientes estudantes de música. A
verdade a incomoda muito, mas não pode ser de outro jeito.
-Não para alguém tão cruel como você, senor Valdez, que tem um prazer incrível em me
culpar pelo que aconteceu com Ramón. Acha que eu não voltaria atrás para ver Ramón
novamente como era, saudável, alegre e cheio de vida? Eu não provoquei aquele acidente
que inutilizou o seu irmão! Eu detesto ver gente sofrendo! Por isso é que me dedico à
música. Ela me leva para um mundo sem misérias.
-Gosta de fugir da realidade, senorita.
-Sim, acho que sim.
-Bem, mas não tente fugir do rancho. Estamos bem afastados de qualquer estrada e você
ia passar dias inteiros debaixo de um sol escaldante sem conseguir nunca uma carona que
a levasse até a estação.
-Você... você acha que me derrotou, não é? Ela não conseguia esconder uma nota de
desespero na voz.
-Eu jamais seria tão cruel com uma mulher.
-É uma questão de opinião! ela retrucou.
-Sua?
-Sim, minha. Tenho certeza da sua crueldade.
-Eu gostaria de saber por causa de quem você diz isso. Darcy olhou em direção à sala
-Por favor, solte minha mão. O que os outros vão pensar da gente? Desta vez você não
está lidando com uma pobre governanta.
-O que você falou? ele perguntou com voz baixa e cortante, fazendo-a compreender que
tinha dito besteira.
-Estavam nessa situação quando, repentinamente, uma porta no hall se abriu, deixando
entrar uma cadeira de rodas ocupada por um rapaz de cabelos escuros, cujos olhos se
fixaram imediatamente em Darcy.
Ela olhou para ele com o coração disparado. Júlio soltou-lhe a mão e ela se afastou dele
rapidamente para ir ao encontro de Ramón.
Ele estava bem mais magro que quando ela o tinha visto pela última vez. Seu rosto bonito
era mais cheio e seus olhos escuros tinham mais vitalidade. Ele namorava todas as
garotas, que não conseguiam resistir ao seu charme
Ele parecia pelo menos uns dez anos mais velho e tinha uma expressão triste quando ela
se aproximou. Ramón esperou que ela chegasse perto dele, e estendeu a mão para tocar-
lhe o vestido, como uma criança feliz ao reencontrar um brinquedo há muito perdido.
Darcy sentiu uma espécie de repulsa percorrer-lhe o corpo quando aquelas mãos magras
lhe tocaram o corpo.
Piedade misturava-se com terror. Ela se sentia perdida.
-Você veio para mim! Os olhos de Ramón, afundados no rosto magro, pareciam atraí-la.
Num impulso ela se abaixou para beijar-lhe a face. Sentiu nos lábios o calor febril da pele
dele e o ritmo da sua respiração acelerada.
-Sim, Ramón, eu vim para você. Uma simples palavra lhe saiu dos lábios:
-Gracias!
Darcy se comoveu com tão bela palavra, pronunciada por tão triste figura; ele não era
nem a sombra do Ramón Valdez que ela havia conhecido em Londres.
Era como se uma luz clara tivesse se apagado para dar lugar às sombras. Darcy
compreendeu que ia ser muito difícil dizer a Ramón que não poderia se casar com ele.
Esta noite não, naturalmente, e talvez nem no dia seguinte. Mas, com o passar dos dias, e
com muito jeito, ela teria que ser sincera com ele. Para o bem de ambos...
Lançou um rápido olhar para Júlio Valdez que, com muito cuidado, começou a empurrar a
cadeira de rodas em direção à sala de jantar. Seu rosto estava inexpressivo. Ao seguir
atrás dos dois irmãos, Darcy não pôde deixar de observar o contraste: um, alto e forte; o
outro, alquebrado, tendo que ser transportado em cadeira de rodas.
Sentiu uma grande tristeza e teve que morder o lábio... a piedade e a incerteza estavam
começando a confundir o seu coração?

CAPÍTULO IV

-Eu devia ter ido cumprimentá-la quando chegou, srta. Beaudine falou a senhora que
estava sentada em frente a Darcy.
Ela usava os cabelos presos num turbante, que deixava ver no alto da cabeça alguns fios
prateados. Tinha aquele ar de distinção latina e suas maneiras pareciam um tanto
reservadas. Examinava Darcy intensamente.
-Tive que sair para ir ver uma criança doente, aqui na fazenda, por isso aceite as minhas
boas-vindas um tanto atrasadas. Eu sou tia de Júlio, e soube por ele que a senorita quis
mudar de quarto.
O senor foi gentil em dar-me um outro quarto Darcy respondeu. Eu... eu não tenho
nenhuma queixa quanto ao primeiro.
-Ah, sim.
Dona Ansonia brincava com um garfo de prata, enquanto Darcy, com uma das mãos
agarrada à beirada da mesa, sentia os olhares curiosos de todas aquelas pessoas sentadas
à mesa oval, tão elegantemente decorada. Darcy tinha a sensação de estar sonhando. O
rumor da conversa vinha até ela em ondas, abafadas algumas vezes, audíveis em outras.
Ela queria acordar, estar em Londres outra vez, na segurança de seu pequeno quarto. Mas
aquela era a realidade, o resto, um sonho remoto...
Júlio Valdez estava à cabeceira da mesa e, ao seu lado, Dorina Arandoz, num vestido
vermelho-escuro, muito elegante. Uma pequena faixa de rubis prendia-lhe o penteado,
elaborado demais para uma simples refeição familiar.
Alguns dos empregados da casa começaram a servir. Era a primeira vez que Darcy jantava
numa casa onde as formalidades eram tão rígidas. Rezou para que, em seu nervosismo,
não fizesse nada errado, como derrubar comida. O pior é que, ao servir-se do prato que
uma das copeiras lhe apresentava, sentiu Júlio observando cada movimento que ela fazia.
-Você parece assustada. Ramón murmurou.
-Isto tudo é tão formal. Parece um jantar num palácio. Darcy respondeu com um leve
sorriso. Serviu-se de uma fatia de carne assada, preocupada em como iria se arranjar para
comê-la, no seu estado de nervos
-Você parece acuada disse Ramón, empurrando o pequeno pote de mostarda para ela. Eu
me lembro de como você gostava disto em seu rosbife. Não se pode negar que os ingleses
sabem fazer as coisas. É o caso das morenas de olhar frio e coração quente.
-Você, sempre lisonjeador, Ramón. Darcy disse, servindo-se de um pouco de mostarda. E
você, como está?
-Mais ou menos. Ele deu de ombros. Mas tudo vai melhorar agora que você está aqui. Eu
mal podia esperar que você chegasse, querida. Lembro-me de tantas coisas... Dos seus
cabelos irresistíveis, caindo sobre seus olhos quando você tocava violão... de tantas outras
coisas, mi amada.
Darcy olhava-o, confusa. Ele parecia ter-se esquecido de que também era culpado pelo
que havia acontecido naquele dia com o carro. Ou ele tinha esquecido realmente, ou
queria que sua família acreditasse que tinha sido ela a causadora do desastre.
-Você está me olhando com uma expressão estranha ele disse. Já lhe disse alguma vez que
seus olhos têm a cor do mel de Málaga?
-Várias vezes. Você era muito galanteador, por isso as garotas na escola o chamavam de
don Juan.
O pensamento de Ramón voltou para os dias felizes em que ele era um belo e
despreocupado estudante de música, sempre em busca do prazer. Seu sorriso morreu e
seu rosto voltou a ter uma expressão sombria.
-Isso tudo pertence ao passado. Convenci meu irmão a realizar o nosso casamento o mais
breve possível.
Darcy olhou para ele, atônita. Sentiu um frio no estômago, queria gritar-lhe que era
impossível, que ela não queria se casar com ele. Mas a piedade que ele lhe despertava
silenciou suas palavras. Cedo ou tarde ela teria de dizer-lhe, mas quando estivessem a sós.
Ele tinha que Compreender, um casamento assim não poderia fazer feliz nenhum dos
dois.
-Eu não conseguia escrever para pedi-la em casamento. Por isso Júlio escreveu, fazendo a
proposta por mim. Ramón passou a mão pelo rosto. Júlio resolve tudo.
Realmente!, pensou Darcy, levando a mão ao coração em disparada. Ele escreveu a carta
de tal maneira que ela não teve outro jeito senão vir para San Solito... E Ramón, por sua
vez, acreditava que a sua vinda era uma aceitação do pedido de casamento. No entanto,
não era isso o que a carta dizia. A sua única saída era mostrá-la a Ramón, para que ele
soubesse que ela tinha vindo como uma amiga e não como noiva.
Felizmente a carta ainda estava com ela. Darcy olhou desafiadoramente para Júlio, que
também a olhava do seu lugar. Havia em seu olhar tamanha ironia que Darcy se enfureceu
e, ao estender a mão para pegar seu cálice de vinho, acabou por entorná-lo. O vinho se
espalhou pela toalha de renda, indo formar uma pequena poça perto de uma floreira de
prata cheia de rosas.
-Como você é desajeitada! dona Ansonia exclamou, examinando horrorizada o que tinha
acontecido. A renda vai ficar toda manchada... Manuel, um pano, rápido!
Querida tia, não vá ter um ataque Júlio brincou. Assim, a srta, Beaudine vai se sentir como
uma criminosa.
-Não é isso o que ela é? a tia replicou, olhando com hostilidade para Darcy. No mínimo é
descuidada, do contrário nosso pobre Ramón não estaria assim!
-Basta! Júlio ordenou. Não vamos estragar um jantar excelente só por causa de um pouco
de vinho na toalha. O Manuel dá um jeito nisso.
Darcy queria morrer, desaparecer daquela sala, daquela casa onde se sentia tão mal.
Ninguém ali se importava com ela; mas, para satisfazer Ramón, eles estavam dispostos a
tudo.
-Não fique nervosa Ramón murmurou, acariciando-lhe o braço. Tia Ansonia é apenas uma
dona-de-casa zelosa. Não precisa se preocupar com ela.
Mas era com Júlio que Darcy se preocupava, pois, sem dúvida, quando ele cismava com
alguma coisa dificilmente desistia; e para conseguir seus intentos passaria por cima de
todos e de tudo. Por isso era preciso que Ramón lesse aquela carta o quanto antes. Assim,
ele ficaria sabendo que ela não havia se comprometido a casamento algum... que tudo o
que ela podia oferecer-lhe era apenas sua amizade.
-Você tem de cantar para nós, depois do jantar Ramón pediu a Darcy. Eu me lembro tão
bem de sua voz bonita, querida; eu ficaria muito feliz.
Eu... eu não trouxe o violão Darcy respondeu. Você vai ter que me perdoar...
-Não aceito nenhuma desculpa. Ramón tentava convencê-la. Todos estão ansiosos por
ouvi-la, e o que não falta nesta casa é violão. Vamos, meu amor, cante para mim.
-É que estou tão cansada...
-Que é isso? Ramón riu, examinando-a. Eu acho que você está tão bem. Além disso, deve
ir se acostumando a procurar satisfazer o marido. Aqui na Espanha o marido é o senhor,
não é assim, Júlio?
Júlio voltou os olhos para eles.
-Tenho certeza de que a srta. Beaudine sabe que nós somos diferentes dos homens de sua
terra. Não há dúvida de que ela vai aprender, Ramón.
Ramón estava feliz; olhava para Darcy como se ela fosse o bem mais precioso deste
mundo.
-Ela vai ser minha mulher, Júlio, por isso você pode chamá-la pelo primeiro nome. Sempre
achei que Darcy fosse nome de homem, mas, como vocês podem ver, não há nada nela
que não seja cem por cento feminino. Ela não é um encanto?
Darcy não sabia onde se enfiar, ao se tornar o foco da atenção.
-Por que não brindamos à noiva? disse Dorina, que se divertia com o sofrimento da outra.
E Júlio, como chefe da casa, é quem deve dar as boas-vindas à enamorada de Ramón.
Ficar ali sentada era um tormento para Darcy. Ela queria gritar, protestar, mas tinha de se
conter até poder conversar a sós com Ramón. Sem demonstrar qualquer emoção, Júlio
ordenou que trouxessem uma garrafa de Champanhe.
-Eu achei que você não fosse concordar com o brinde disse Dorina para Júlio, com um riso
de ironia.
E por que não, minha cara? Você tem razão, devemos felicitar o feliz casal.
Aquelas palavras foram a morte para Darcy, pois Júlio sabia muito bem que ela estava
longe de ser feliz. Com os punhos cerrados, desejou que chegasse logo o dia em que ela
pudesse se vingar dele.
-Você está pálida. Um pouco de champanhe vai lhe fazer bem Júlio lhe disse.
-São os nervos acrescentou a tia. Todas as mulheres ficam assim quando se trata de
casamento, Júlio. Não creio que a srta. Beaudine seja uma exceção. Especialmente quando
se carrega uma responsabilidade tão grande. Ramón, um anjo de paciência, veja o que ela
lhe fez!
-Não vamos falar nisso ordenou Júlio. Darcy vai pertencer à família, e se a magoarmos
estaremos magoando Ramón.
Naquele momento, o que Darcy mais queria era dizer a Júlio que ela dispensava a sua
simpatia. E pelo olhar que lhe deu, Júlio parecia ter entendido.
-Ramón é um santo dona Ansonia continuou. Depois de tudo, ela ainda vai ter o amor
dele.
-Sim, o amor é muito estranho falou Júlio com certa ironia, provocando risadas em todos.
-Eu acho que o amor é bem mais excitante depois da cerimónia de casamento falou
Dorina, lançando olhares significativos para Júlio. A mulher tem poucas desilusões, mas o
homem, apaixonado por um anjo encantado, sofre a maior decepção quando se vê na
companhia de um espantalho de olhos sonolentos... que é exatamente o que todas nós
parecemos quando acordamos de manhã!
Todos riram, exceto dona Ansonia, que tratava a nora com certa severidade.;
-Que conversa de mau gosto reprovou ela. Você está indo muito longe, Dorina.
-Não acho murmurou Dorina. Devo ter em mim uma boa dose de sangue das mouras dos
haréns. Eu gosto da ideia de ser dominada e de reagir inteiramente como mulher. Não
posso imaginar nada mais emocionante do que ser desejada por um homem e poder
agradá-lo em todos os seus desejos e caprichos.
- Você lê muito dessas novelas picantes sua sogra disse asperamente, - Tenho visto esses
pacotes de livros que lhe chegam da Inglaterra. Você gasta horas lendo todos eles,
forçando demais os olhos.
-E também a minha imaginação respondeu Dorina com uma risada maliciosa. Os livros são
divertidos, e alguns deles bem audaciosos, tenho que admitir. Eles me ajudam no meu
inglês; não acha, srta. Beaudine, que tenho um inglês excelente?
-Sim, entende-se tudo o que a senora diz...
-Dorina olhou para Ramón. Se as moças inglesas são como aquelas das novelas, acho bom
você se cuidar, meu caro. Debaixo daquela aparência elas são fogo!
-Darcy não é desse tipo Ramón replicou. E você, Dorina, trate de não ser tão maldosa.
-Quem, eu? ela perguntou com voz doce.
-Você mesma...
-Parem com isso Júlio ordenou sem muita convicção. E chega de conversa sobre
promiscuidades...
- Por que não, Júlio? Dorina perguntou sedutoramente. Faz parte da vida, e cada um de
nós pode se tornar promíscuo quando surge a oportunidade. Vai negar isso, querido?
-Eu raramente nego o que é verdade ele respondeu. Somos humanos, e em nossa
natureza existe o demónio e o anjo. Somos pecadores e santos. Aí está o fascínio da vida.
-Oh, Júlio...
Dorina o ouvia fascinada, demonstrando visivelmente sua adoração por Júlio Valdez.
Darcy desviou os olhos de Dorina, pois se sentia constrangida diante de tanta evidência.
A tensão diminuiu quando Manuel, o empregado, entrou na sala trazendo a garrafa de
champanhe envolta num guardanapo branco. Todos na mesa, com suas taças cheias,
esperavam que Júlio iniciasse o brinde. Darcy lhe lançou uma súplica muda para que ele
não fizesse aquilo. Mas ele a ignorou e levantou-se, erguendo a bela taça de cristal.
-Nós, andaluzes, sabemos como é importante e simbólico o momento em que um homem
e uma mulher participam a intenção de se casarem. Meu irmão, Ramón, a quem prezo
tanto, manifestou sua intenção de ficar noivo desta jovem inglesa. Por isso peço a todos
que bebam à felicidade dessa união.
Ele deu o exemplo, levando calmamente sua taça aos lábios, sem se importar com o que
Darcy pudesse estar sentindo.
Eu o odeio... eu o odeio, ela pensava, enquanto seus lábios pressionavam a beirada fria da
taça de champanhe. Tentou sorrir aos que a cumprimentavam, sentindo a mão de Ramón
pesada na sua como se fosse uma algema.
-Você trouxe a pulseira, Júlio? Ramón perguntou.
Júlio retirou do bolso uma caixa de veludo e entregou-a a Ramón, que a abriu, mostrando
uma deslumbrante jóia toda em brilhantes. Ele retirou a pulseira do estojo e olhou para
Darcy.
-Trocamos anéis só no dia do casamento ele disse. Gosta? Ela olhou para a pulseira,
desesperada. Recuou instintivamente
e, numa agonia silenciosa, implorou que acabassem de uma vez com aquela tortura.
Júlio parecia compreendê-la, mas, sem demonstrar qualquer emoÇão, bebeu quase de um
só gole o champanhe.
-Dê-me seu braço, querida Ramón pediu e Darcy obedeceu como se fosse um autómato.
Ele lhe pôs a pulseira no pulso e, pegando-lhe a mão, levou-a aos lábios.
-Brilhantes combinam com a cor de sua pele ele murmurou.
-Nas mulheres andaluzas ficam melhor as pérolas.
-É linda disse Darcy, olhando a pulseira. Tinha que dizer alguma coisa, pois todos olhavam
para ela. Obrigada, Ramón.
-Não acham que ela vai ser uma noiva encantadora? ele perguntou, orgulhoso. -Com a
mantilha de renda branca, ela vai parecer um anjo. Os homens vão me invejar no dia do
casamento... ainda que as mulheres achem que ela está levando a pior. Não é, Dorina?
Dorina piscou para ele, acariciando o pendente de pérola que usava.
-Ora, Ramón, eu, pelo menos, não sou assim tão cruel! Acho a srta. Beaudine uma moça
de sorte por se casar com um dos herdeiros da família Valdez. Do contrário ela ia ter de
trabalhar para viver, não é?
-Eu... eu nunca me casaria com um homem por causa de seu dinheiro Darcy respondeu,
indignada.
-Somente por muito amor, então! Dorina arrematou em cima.
-E nós, que pensávamos que vocês ingleses tinham perdido o romantismo. Não importa...
de qualquer modo é bom ter dinheiro. Com ele a gente consegue muita coisa, sem falar
nos diamantes. Não foi uma escritora inglesa quem disse que o diamante é o melhor
amigo da mulher?
-Ela também disse que os homens preferem as loiras interrompeu Júlio, olhando
ironicamente para Dorina. Nós todos sabemos que não há nenhum interesse nesse
noivado de Ramón, por isso use essa sua boquinha charmosa, minha cara, para comer sua
sobremesa.
-Estou aqui para obedecê-lo, Júlio ela respondeu de maneira coquete, levando à boca um
pedaço da torta de cerejas.
Darcy desviou os olhos para a própria torta de cerejas. Em qualquer outra circunstância
ela teria achado a sobremesa deliciosa, mas naquele momento lhe dava nojo.
- Você está comendo muito pouco, esta noite observou Ramón. Ela o olhou como se ele
fosse um estranho, alguém que ela nunca tivesse visto antes.
-Hoje estou sem apetite.
-Eu me lembro quando você comia um filé com batatas fritas com apetite de estivador
Ramón disse com uma expressão triste no olhar. Que tempos felizes e divertidos eram
aqueles! Agora bem pouco me resta. Por isso estou tão feliz que você tenha vindo para
mim.
Darcy olhou para ele, arrasada. Como ele estava diferente daquele jovem, outrora tão
cheio de energia e gosto pela vida! Agora não podia sequer ir atrás de uma mulher, seu
irmão é que tinha de arranjar as coisas para ele.
Cerrou os olhos e procurou não se lembrar daquela cena: o ruído estridente das rodas no
asfalto, o vidro estilhaçado, o baque do corpo de Ramón arremessado para fora do carro.
A ambulância os levou voando para o hospital, onde se constatou que Darcy tinha sofrido
apenas algumas contusões. Depois, já recuperada, ela tentou ver Ramón, mas foi
impedida pelas enfermeiras que tinham ordem de não deixá-la entrar no quarto do
doente. Quem ela viu foi Júlio Valdez, que lhe disse claramente o que pensava dela. Desde
então ele já acreditava que ela tinha sido inteiramente culpada pelo acidente. Ela tinha
sido um bode expiatório!
Largou os talheres no prato, sem poder continuar a comer. Estava num beco sem saída.
Jamais perdoaria Júlio Valdez pela armadilha que ele lhe havia preparado. Experiente e
astuto conhecedor das mulheres, ele percebeu que ela poderia desistir dos seus sonhos,
para se casar com um homem que outras jovens recusariam.
Darcy tinha muita pena de Ramón, mas tinha de encontrar coragem para mostrar-lhe a
carta de Júlio. Quando ele soubesse que ela tinha vindo a San Solito apenas como amiga,
ele compreenderia e ela estaria livre de qualquer compromisso. Ele se compenetraria de
que nunca poderiam ser felizes, pois Júlio havia se aproveitado de sua boa fé, e do
sentimento de culpa que ela carregava por causa do acidente de carro, ainda que na
realidade estivesse totalmente isenta de culpa.
-Venham, vamos para o salão disse dona Ansonia, levantando-se.
Quando vocês quiserem, pediremos à noiva de Ramón que cante para nós. Conforme ele
diz, ela tem uma voz agradável.
Realmente bonita ele acrescentou, sorrindo.
-Eu... eu realmente gostaria que vocês me desculpassem Darcy murmurou, nervosa. Não
tenho vontade de cantar...
-Bobagem! Um cafezinho lhe fará bem e você vai cantar para Ramón disse dona Ansonia,
indicando a cadeira de rodas com a mão cheia de anéis. Espero que não seja dessas moças
caprichosas, cheias de vontade. Isso não funciona aqui.
Darcy teve vontade de gritar que a última coisa que queria era se tornar uma Valdez... No
entanto, o máximo que pôde fazer foi acompanhar dona Ansonia em direção ao salão.
-Você vai se sentar ao meu lado ela ordenou, indicando um sofá de veludo.
Darcy sentou-se e as outras mulheres também foram escolhendo seus lugares. Dorina
acendeu um cigarro e, enquanto fumava, pôs-se a examinar Darcy, avaliando sua
capacidade de suportar tudo aquilo.
Serviram café e conhaque. Darcy notou que alguém entrou trazendo um violão. Era um
belo instrumento em madeira natural.
-Ah, esse instrumento era de Raquel, a irmã gémea de Ramón, que agora está casada e
morando no Brasil dona Ansonia explicou com ar importante, acenando para o rapaz que
carregava o violão. Carlos, traga-o para cá. A noiva de Ramón vai tocar e cantar para nós.
O moço espanhol entregou o instrumento a Darcy, examinando-a rapidamente, cheio de
curiosidade.
Don Júlio mandou-o para a senorita. Já está afinado.
O contato com o violão, de certa forma, reconfortou Darcy. Ela dedilhou suas cordas, que
vibraram melodiosamente. Ramón foi trazido para a sala. Na última vez que ela tinha
tocado para ele, seus belos olhos castanhos, fixos nela, brilhavam intensamente, cheios de
vida, como a própria música espanhola. Oh, Deus, será que ela ia ter coragem de feri-lo
outra vez? Não seria melhor uma solução mais simples? Deixar San Solito sem explicação
alguma?
-Toque celito lindo para mim, querida Ramón pediu. Afinal, todos nós ansiamos por um
pequeno céu, não é?
A observação de Ramón provocou algumas risadas, mas Darcy só enxergava o rosto
enérgico de Júlio postado ao lado da cadeira de Ramón. Apesar de ele estar na penumbra,
Darcy podia notar o brilho de seus olhos atentos.
Com um ligeiro tremor, ela começou a tocar. Mas, logo aos primeiros acordes, se
dominou. Sua habilidade musical permitia que se isolasse do ambiente, transmitindo à
música toda a sua emoção. Aquele instrumento era infinitamente superior ao seu, que
agora estava guardado numa caixa entre seus outros pertences, em seu pequenino
apartamento na longínqua Londres.
Como num sonho, Darcy chegou ao fim da música. Imediatamente todos aplaudiram,
entusiasmados com a interpretação.
Por alguns instantes ela permaneceu distante de tudo. Entretanto aquela ilusão de paz
desapareceu quando deu com o rosto de Ramón, alterado pela emoção. Sem dúvida ele
estava se lembrando de Londres, daquelas noites quando os estudantes se reuniam,
amontoados no quarto de um deles, tocando música em meio a vinho e linguiças fritas,
jovens e cheios de confiança no futuro.
Darcy sentiu um aperto no coração. Festas, alegria, tudo isto estava acabado para Ramón.
O que seria dele agora?
Os dedos dela acariciavam o violão, e se ele também estivesse convencido de que ela era
culpada? Era possível: um homem astuto como Júlio Valdez poderia conduzir as coisas
como desejasse. Ela olhou para ele, agora próximo de Dorina, que lhe sorria
convidativamente...
Darcy estava admirada com a semelhança dos dois. Pareciam feitos um para o outro.
Também imaginava como ele podia ser insensível, quando a sua aparência máscula dava a
impressão de que ele podia proteger inteiramente uma mulher. Forte e seguro, Júlio
Valdez era um homem em quem uma mulher poderia se apoiar em caso de necessidade.
No entanto, com ela, ele era completamente impiedoso.
Suspirou tristemente, olhando a seguir para Carlos, o jovem criado, quando ele se abaixou
para pedir-lhe que cantasse.
Eu... eu só sei canções inglesas ela desculpou-se. Você provavelmente prefere as canções
andaluzas...
-Absolutamente, senoríta ele falou com um sorriso simpático. A senoríta deve cantar
coisas que entende... e ama. Não é bom fazer nada contrário às nossas emoções; seria
como tentar cultivar cravos num jardim cheio de pedras.
Darcy olhou para ele, espantada.
-Você deve gostar de flores.
-É verdade, senorita. Além disso eu sou o administrador do valle de vina dorada. Meu
nome é Carlos Montoyos.
-É um prazer conhecê-lo Darcy disse, sorrindo pela primeira vez naquela noite. -O que
gostaria de ouvir, senor?
-Algo de que a senorita goste muito ele respondeu. Alguma canção de quando ainda era
criança, sem as preocupações de agora.
Ela se lembrou então de seu pai no jardim de sua casa em Braintree, no meio de flores e
verduras. Ele gostava de jardinagem e cuidava com carinho dos lilases plantados perto de
onde pendia o balanço que ele havia feito para ela.
Imersa em suas memórias, Darcy começou a tocar e a cantar uma antiga canção inglesa
que falava de jardins cobertos de lilases; a mesma que seu pai sempre assobiava quando
tratava do jardim. Darcy o amava muito e naquela época era muito pequena para
entender que ele estava doente, quase para morrer.
As lágrimas inundaram-lhe os olhos e ela sentiu que não podia mais cantar, nem
permanecer naquela sala entre estranhos que não a estimavam e que apenas a
consideravam como a moça culpada pela invalidez de Ramón.
Darcy se ergueu de repente e jogou o violão sobre o sofá. Saiu correndo com as lágrimas
correndo livremente pelo rosto. Ouviu alguém chamá-la. Sabia que era Ramón, mas não
parou, subindo a escada que a conduziria ao seu quarto. Lá, com a porta fechada, ela
estaria a salvo dos Valdez.

CAPÍTULO V

Darcy parou, ofegante, com as costas apoiadas na porta. Depois, voltando-se para trancá-
la, notou horrorizada que não havia chave. Como ia se proteger de Júlio Valdez?
Olhou à sua volta, confusa, e viu sua sacola de couro sobre o banco... Resolveu então
pegar a carta de Júlio para tê-la à mão quando chegasse o momento de mostrá-la a
Ramón.
Com mãos trémulas abriu a bolsa e começou a remexer, procurando o envelope. Não
conseguiu achá-lo! Desesperada, virou todo o conteúdo da bolsa sobre a cama... tudo
estava lá, menos o envelope!
Darcy não acreditava. A carta que ela havia guardado em sua bolsa tinha desaparecido.
Procurou em redor e lembrou-se de Júlio. Ele tinha estado no outro quarto enquanto ela
tomava banho. Poderia facilmente ter aberto a bolsa e tirado a carta.
Darcy não teve dúvidas... tinha sido Júlio. Assim, ela não tinha prova de que tinha vindo a
San Solito sem a intenção de se casar com Ramón!
Furiosa, começou a andar pelo quarto. Como ele se atrevia a fazer tal coisa? Mexer em
sua bolsa para tirar de lá coisas que não lhe pertenciam! Ela queria dizer-lhe na cara o que
pensava dele; ao mesmo tempo, preferia não vê-lo mais. Sim, ele era capaz de qualquer
coisa para conseguir seus fins. Claro, ele sabia que sem a carta ela não teria coragem de
falar com Ramón...
Darcy parou de repente em meio à agitação. Ele estava certo! Ela não ia conseguir dizer a
Ramón que não se casaria com ele, fosse qual fosse o motivo. A pulseira em seu braço era
a testemunha brilhante do compromisso assumido entre eles. Apesar de bela e cara,
aquela pulseira não passava de uma algema.
Estava assim mergulhada em seus pensamentos quando a porta se abriu bruscamente e
Júlio entrou...
Darcy se levantou e ficou olhando para ele, hipnotizada.
-Ramón me pediu para vir ele disse bruscamente. Ele ficou preocupado com o modo
repentino como você saiu da sala. Achou que você não se sentia bem.
-Estou furiosa ela falou, avançando para ele. Você andou mexendo na minha bolsa para
tirar a carta que me escreveu. Você mentiu para Ramón dizendo-lhe que tinha me
proposto casamento em nome dele. Você sabe que não vim aqui com a intenção de me
casar com ele!
-Eu sei, mas ele não sabe... e não vai ficar sabendo falou Júlio, começando a se aproximar
dela. Ele parecia ainda mais alto e ameaçador em seu terno escuro.
-Você pegou aquela carta acusou ela, não tente negar...
-Não nego ele respondeu, aproximando-se cada vez mais com um brilho selvagem nos
olhos. Se eu lhe tivesse escrito propondo casar-se com Ramón, tenho certeza de que você
teria preferido fugir a se casar com um inválido. Vai negar?
Ela não negava e seus olhos demonstravam isso. Se pelo menos ela amasse Ramón, tudo
seria diferente...
-Veja você disse em tom de zombaria em vez disso eu confiei em seu senso britânico de
justiça para trazê-la até aqui; e parece que funcionou, não é?
-Você é o próprio demónio disse Darcy, olhando para aquele rosto moreno tão
odiosamente fascinante. E quer que eu desista de tudo? De minha carreira e de minha
própria vida? Você não tem o direito...
-Não me fale em direitos! respondeu. Ramón também tinha todo o direito à vida. Há um
mês, ele apanhou o meu revólver e a estas horas estaria morto se eu não tivesse entrado
no quarto. Arranquei-lhe o revólver da mão, e também a confissão de que havia alguém
que poderia fazê-lo sentir ainda um pouco de felicidade: você!
Júlio fez uma pausa. Darcy olhava-o, boquiaberta.
-Ramón me disse que se ele pudesse encontrá-la... que ele não conseguia esquecê-la.
Você, a quem tínhamos proibido de vê-lo depois do acidente, pensando que assim seria
melhor, porque ele não se lembraria da responsável pela sua infelicidade. Bem, srta.
Beaudine, se meu irmão a queria, por Deus, eu a conseguiria para ele, custasse o que
custasse! Pensei em usar a força bruta e ir pessoalmente buscá-la. Mas Ramón se opôs a
isso, de modo que eu decidi ser mais sutil. Parece que valeu a pena, não é?
A única coisa que Darcy podia fazer era olhar para ele, incrédula diante de tanta
obstinação.
-Oh. Deus... ela disse com dificuldade. É verdade... Ramón tentou se matar?
-Sim. Ele não podia encarar um futuro vazio, sem uma mulher que o aceitasse. Disse que
antes do acidente tinha planos de se casar com você...
-Não Darcy sacudiu a cabeça vivamente, nunca falamos sobre isso. Éramos jovens e só
queríamos nos divertir. Além do mais, eu não era a única moça com quem ele saía. Você
tem que acreditar.
-Talvez acredite. Ele deu de ombros. Bem sei que Ramón gostava de garotas, e por que
não? Ele era charmoso e elas se sentiam atraídas por ele. Mesmo agora, nessas condições,
ele não é homem para viver só, sem uma mulher. E nesta noite, senorita, você aceitou
um compromisso ao permitir que ele lhe colocasse o bracelete no pulso. Você sabe o que
isso significa...
-Sim ela concordou, mas eu não podia recusar naquele momento, com tanta gente
olhando para nós. Teria sido muito cruel...
-Então você resolveu esperar para lhe mostrar a minha carta e provar a ele que você não
estava comprometida com casamento algum, não é?
-Você é diabólico ela respondeu. Para conseguir o que quer, passa por cima de tudo!
-E você parece ter um talento natural para exagerar as coisas. Como disse Dorina,
casando-se com Ramón você vai ter tudo o que quiser e mais alguns diamantes para se
enfeitar.
-Eu o odeio Darcy murmurou, acentuando as palavras. Vou contar a Ramón exatamente o
que você fez e, apesar de não ter a carta para lhe mostrar, ele vai acreditar em mim.
-Sem dúvida Júlio concordou. E na próxima oportunidade ele pegará novamente um
revólver e se matará, a não ser que haja alguém por perto para impedi-lo. Quer que isso
aconteça?
-Como você é cruel! balbuciou Darcy, atirando-se na cama e escondendo o rosto num
gesto desesperado.
Ele a agarrou pelos ombros e a sacudiu violentamente.
-Não seja criança! Você andou com meu irmão e tentou fazê-lo gostar de você. Afinal, as
consequências não são assim tão terríveis!
Darcy não queria, mas quando Júlio a tocou, mesmo de maneira violenta, ela sentiu todo
o seu corpo reagir ao contato das suas mãos viris.
Ela estava chocada diante da própria reação, mas não podia ignorá-la... era inquietante,
primitiva, como se algo perverso dentro dela procurasse corresponder ao demónio que
existia nele.
Ele a olhava intensamente; para o cabelo castanho-avermelhado que lhe cobria
parcialmente os olhos, e para o seio que aparecia através do decote parcialmente aberto
quando ele a agarrou. Darcy sentia a pulsação do próprio coração, enquanto o silêncio
pairava sobre eles.
De repente, olhando para aquele rosto másculo, ela percebeu que,se casasse com Ramón
e tivesse que viver sob o mesmo teto com Júlio Valdez, as consequências poderiam ser
inesperadas. Sua sensualidade, até então escondida, tinha se revelado diante do encanto
selvagem daquele andaluz.
-Deixe-me ela sussurrou. Eu já lhe disse para não pôr as mãos em mim.
Ele a deixou cair violentamente sobre a colcha de renda, o cabelo desfeito sobre o
travesseiro e o corpo transparecendo no vestido azul
-Eu poderia estrangulá-la se quisesse ele falou baixinho.
-Pois faça-o ela respondeu. Para mim será melhor.
-Não, você tem que se casar com Ramón!
-Se é o que você quer! ela respondeu sem resistir. Algo havia mudado, e repentinamente
a mulher que existia nela resolveu atormentá-lo. Não vou sofrer sozinha, querido
cunhado. Nós dois estaremos juntos na mesma casa, ambos nos penitenciando. Você vai
ver!
-Eu sabia! Ele rangeu os dentes, brancos e perfeitos. Senti isso quando a vi em Londres.
Será que você não veio à Espanha por minha causa?
Sem poder controlar sua fúria, Darcy se levantou da cama e avançou para ele. Júlio foi
mais rápido e, antes que ela reagisse, puxou-a contra si e começou a beijá-la com fúria,
esmagando-lhe os lábios e forçando-a a sentir a sua força viril. Ela tentou lutar, mas foi
arrastada pela própria paixão.
Seus dedos agarraram-se nos cabelos dele e depois escorregaram numa carícia suave. Ela
abriu os lábios e ele a invadiu, provocando um frémito de desejo.
Nunca em sua vida ela tinha sido beijada daquele jeito... e nem havia sonhado que
pudesse existir algo tão divino. Bruscamente ele a soltou e Darcy ficou largada na cama,
sem coragem de olhar para Júlio... No seu íntimo reinava a confusão: de um lado ela o
odiava, do outro vibrava com seus beijos.
- Olhe para mim! ele ordenou.
Darcy obedeceu e viu o rosto alterado de Júlio. Seus cabelos negros caíam pela testa
úmida de suor.
-Se deixar que isto aconteça outra vez eu a mato ele disse destacando as palavras.
-Mas... foi você... como eu podia impedi-lo? ela falou com voz rouca, sentindo que sua
dignidade tinha ido por água abaixo.
-Você me provocou ele disse num sussurro. Mas de agora em diante, moça, isso não pode
acontecer mais. Você vai se casar com meu irmão, e um espanhol com um mínimo de
honra jamais encostaria um dedo na mulher de seu irmão.
-E você vai me deixar casar com Ramón... depois do que aconteceu? Seu coração estava
tumultuado. Ela seria a esposa de Ramón, enquanto parte de seu ser ansiava por Júlio...
-Foi apenas o instinto ele disse secamente. Eu não quero... não posso magoar Ramón.
Afinal, quem é você? Ele a mediu de alto a baixo. Apenas uma mulher com um corpo
bonito e um gênio bom de se domar, tal como faço com o meu cavalo palomino em meu
estábulo. Acho que você vai gostar dele.
Ela não aguentava mais brigar com ele... pelo menos naquela noite!
-Vá para o inferno! Você, seus cavalos e o vale inteiro ela disse, desanimada.
-Como inglesa, você não imagina o quanto de autoridade este vale e tudo o que nele
existe significam para nós, senores espanhóis.
-Para mim, tanto faz ela respondeu, endireitando o vestido. Quer me intimidar estalando
o chicote, não é, senor? O hidalgo ordena e eu tenho que obedecê-lo se não quiser ser
arrastada para o altar.
-Que imaginação, minha cara! ele disse com aquele brilho de zombaria nos olhos. Você irá
para o altar de bom grado, e vai fazer tudo para Ramón ser feliz. Estamos entendidos?
-Sim ela murmurou. Ele não poderia ser mais explícito. Irei para o altar como quem
caminha para a guilhotina, mas desejo de todo o coração que você pague sua parte
também.
Júlio Valdez afastou-se silenciosamente.
-Tudo bem, sobreviverei ao massacre ele falou devagar. Ou você imagina que eu vou ficar
perambulando pela casa com a alma em pedaços só porque você se casou com o meu
irmão?
-Eu não estava me referindo à sua alma ela respondeu. Não acredito que ela se envolva
com as mulheres.
-Quer dizer então que minha alma não se envolve? ele perguntou.
-Você sabe muito bem que não. Para você, as mulheres não são nada mais que um
passatempo. Entretanto, você demonstrou ter consciência quando não permitiu que eu
dormisse no quarto que pertenceu àquela pobre mulher.
-Então você acha que estive envolvido com ela? ele perguntou, admirado.
-Tenho certeza respondeu Darcy. Se assim não fosse, por que você me mandaria sair
daquele quarto? Acho que foi por causa do orgulho dos Valdez, que não permite que se
revelem os escândalos.
-Sim, orgulho-me do meu nome, e tenho razões para isso. E toda mulher que recebe esse
nome também terá que honrá-lo.
-Contanto que se mantenham os escândalos em segredo? murmurou ela.
Os olhos dele brilhavam perigosamente.
-Eu já a avisei para não me desafiar. O que está querendo? Tentando me enfurecer para
que a expulse de San Solito?
-Você sabe que eu não pertenço a este lugar. Somente Ramón me quer aqui, e se ele
soubesse a verdade...
-É melhor você ficar de boca fechada. Eu estava com Ramón quando o médico lhe tirou
todas as esperanças e também estava lá quando ele tentou se matar. -Por isso, se
depender de mim, ele jamais vai sofrer outra vez. Se é você que ele quer, você será dele,
vestida de branco, carregando flores, mesmo que esteja no inferno.
Um silêncio pesado seguiu-se às palavras dele, e ela se sentiu muito cansada.
-Eu estou muito cansada. Por favor, deixe-me só.
-Já estou saindo, senorita, mas pense no que eu lhe disse. Ramón e eu dividimos tudo que
nos pertence, menos você. Você não significa nada para mim. Mas é tudo para ele!
Entendido? Vou dizer a ele que você está cansada e que vai dormir. Hasta manana.
-Boa noite. Darcy ficou olhando para a porta- por onde ele tinha saído. Estava exausta,
com vontade de chorar. Ansiava pelo amanhã, para poder resolver tudo.
Ele tinha falado em cavalos, muitos deles, e ela tinha aprendido a montar há muitos anos,
quando seu pai era vivo. Ele a levava à propriedade de um amigo que possuía cavalos,
junto com outras meninas de sua idade, para praticar. Ela não duvidava de que os cavalos
de Valdez fossem mais fogosos e bem mais difíceis de controlar, mas estava determinada
a tentar.
Depois de algum tempo, Darcy resolveu deitar-se. Nunca em sua vida havia dormido num
quarto como aquele, e apesar de ser verdade que como esposa de Ramón teria toda sorte
de confortos, tudo o que ambicionava era ir embora daquela casa.
De combinação, diante do espelho, os cabelos caindo-lhe pelos ombros, Darcy se
contemplava quando, através do espelho, viu a porta do quarto se abrir outra vez. Seu
coração deu um salto.
-Não costuma bater? ela falou, quase gritando.
-Por acaso tem alguma coisa para esconder? Júlio passou por ela carregando uma
pequena bandeja com um copo contendo alguma coisa fumegando. Colocou a bandeja
sobre a mesinha-de-cabeceira. Ramón insistiu para que eu lhe trouxesse chocolate quente
com canela e creme. Ele lhe deseja um bom sono e pede que você vá tomar o café da
manhã com ele, no pátio.
Darcy permaneceu imóvel, sentindo-se nua, quando ele a envolveu com os olhos.
-Você está encantadora ele disse suavemente. Posso entender por que Ramón está tão
apaixonado por você.
-Deixe-me, por favor. Ela virou-lhe o rosto, incapaz de sustentar aqueles olhos que
pareciam adivinhar as curvas do seu corpo sob a seda fina da combinação. Não queria
passar novamente pelo vexame anterior, quando tinha ficado cega com seus beijos.
Ele saiu e fechou a porta, deixando Darcy trémula. Sua boca estava seca. Era incrível como
ele podia afetá-la daquela maneira. Para aliviar a sede, bebeu o chocolate, que tinha um
sabor agradável e diferente. Depois, já menos tensa, enfiou-se debaixo dos lençóis.
Estava chocada com a descoberta de que seu corpo reagia passionalmente aos contatos
da rude virilidade de Júlio Valdez. No entanto,desprezava aquele tipo de excitamento,
bem como o homem que o provocava. Aquilo não tinha nada a ver com o amor. Júlio tinha
despertado sua sensualidade animal... e poderia acontecer outra vez se ela se casasse com
seu irmão e fossem viver debaixo do mesmo teto. Ainda acordada lembrou-se do que Júlio
havia dito sobre o cavalo palomino. De manhã bem cedo iria montar um de seus cavalos e
fugiria para bem longe do rancho. Encontraria alguém na plantação que lhe ensinaria o
caminho da estação...
Estendeu o braço para o botão do abajur e desligou-o. Ela queria dormir... dormir e
esquecer tudo.
No meio da noite, acordou sobressaltada. Sentou-se, tentando perceber o que a tinha
despertado. Com o coração em disparada, lembrou-se de Ramón. Instintivamente
percebeu que algo estava se passando com ele. Pulou da cama, calçou os chinelos e vestiu
um robe. Saiu do quarto rapidamente e atravessou a galeria fracamente iluminada àquela
hora da noite. Num instante estava no hall e, quando se dirigia para a suíte de Ramón, viu
Júlio saindo dela.
-Darcy! ele exclamou. Ramón está chamando por você e eu estava indo buscá-la!
-Que aconteceu?
-Ele tem ficado assim ultimamente... não consegue respirar; tensão nervosa, talvez. Tem
todos os sintomas de um ataque de coração, mas não é. Venha, ele quer vê-la! Desde o
momento em que você deixou a sala tão repentinamente ele ficou agitado.
Darcy correu para o quarto de Ramón. Assistido por dona Ansonia ele estava recostado
nos travesseiros, pálido, com uma expressão de cansaço no rosto. Seus olhos se
iluminaram quando Darcy entrou.
-Não vá excitá-lo demais a tia falou, ríspida. Agora que ele está começando a se acalmar.
-Eu precisava vê-la, Darcy. Ramón pegou-lhe as mãos e apertou-as entre seus dedos
febris. Achei que você estava infeliz quando saiu chorando da sala esta noite.
-Foi... foi a música. Aquela era a canção favorita de meu pai. Lembrei-me dele e daqueles
tempos felizes. Ela. forçava um sorriso. Você está bem, Ramón?
- Sim, agora você está aqui comigo.
Ele levou a mão dela aos lábios e Darcy percebeu o olhar de desaprovação da tia. Notou
também que Júlio, junto à porta, observava a cena, sabendo tão bem quanto ela que tudo
conspirava para que se envolvesse cada vez mais com Ramón, exclusivamente por
piedade. Se ele ficou assim porque ela saiu daquele jeito da sala, imagine como ficaria se
Darcy fugisse do rancho.
-Sente-se aqui ao meu lado ele pediu. Fique perto de mim.
-Lembre-se disse a tia. Não o canse demais.
-Tia ele sorriu, por que se preocupa tanto comigo?
-Porque eu o amo ela respondeu, ajeitando-lhe os travesseiros e afastando uma mecha do
seu cabelo da testa. Não sei por que ficou assim. Onde pensou que ela ia?
-Não sei, tia... Ele olhava para Darcy, com ansiedade. Você não estava pensando em fugir,
estava, querida?
Darcy sentiu o coração apertado; os olhos dele estavam tão ansiosos e tristes!
-Eu estou muito cansada, Ramón, só isso. A viagem foi longa e cansativa, e durante todo o
caminho estava preocupada com você. Na Inglaterra tínhamos sido tão bons amigos...,
-Amigos? Ele apertou-lhe a mão com tamanha força que seus dedos doeram. Éramos mais
do que isso, Darcy. Você veio justamente por isso, não foi?
Naquele momento, ela poderia negar a existência de qualquer pedido de casamento. Mas
Ramón parecia tão vulnerável, que ela resolveu calar-se. A compaixão venceu e ela
abaixou a cabeça..
Tomando uma decisão repentina, Darcy abaixou-se e beijou-o carinhosamente nos lábios.
Um beijo onde faltava todo o ardor que Júlio sabia transmitir.
-Darcy, meu amor murmurou Ramón. Sempre achei que você seria minha um dia.
Sim, ela pensou. Finalmente tinha acontecido, e as testemunhas de sua rendição tinham
sido Júlio e sua tia. Ramón disse, exultante:
-Nós nos casaremos assim que Júlio arranjar tudo! E isso não vai demorar muito, não é,
amigo?
- Tudo será providenciado prometeu Júlio.
Como conseguiu sorrir para Ramón, Darcy nunca saberia. Mas tinha de esconder de Júlio o
desespero que sentiu ao pensar que ele era o único homem com quem ela queria passar o
resto dos seus dias.
Era uma descoberta chocante, que a fazia se aproximar cada vez mais de Ramón.
Naquele momento, Darcy admitiu que iria pertencer a Ramón... que ele lhe havia sido
destinado desde aquele primeiro dia na aula de música, quando se sentou ao seu lado
sorrindo. Não era ele que Darcy iria rejeitar agora... mas Júlio Valdez, que ela tinha de
expulsar de seus pensamentos e de seus desejos.

CAPÍTULO VI

Fazia mais de uma semana que Darcy vinha tomando o café da manhã em companhia de
Ramón, numa mesa instalada no pátio, à sombra de dois abacateiros. Ramón se deliciava
com aqueles momentos a sós com ela.
As manhãs em San Solito eram lindas e agradavelmente frescas, prenúncio do calor
mediterrâneo que fazia durante o resto do dia. Apesar das circunstâncias em que se
achava naquela casa, Darcy não permanecia indiferente à beleza daquele lugar. Gostava
de sair para o jardim e explorar os arredores. Especialmente de caminhar entre as colunas
que a levavam para o pátio em estilo mourisco, com seus ladrilhos formando arabescos,
suas árvores de frutas típicas, as flores coloridas e o rendilhado de ferro dos portões e dos
gradis das janelas. O perfume dos jarmins misturado com o das flores de laranjeiras
pairava constantemente no ar.
Algumas vezes, no final da tarde, Darcy costumava atravessar o pátio e dirigir-se para
uma espécie de alcova, de paredes caiadas, com o teto abobadado de ladrilhos azuis, de
onde pendia uma lâmpada de bronze. Com uma mesa e cadeiras de ferro pintadas de
branco, aquele lugar oferecia a Darcy a solidão de que ela necessitava para pensar, pois os
planos para o seu casamento com Ramón caminhavam rapidamente.
A costureira já tinha vindo com todo o material necessário para fazer o vestido de
casamento. Dona Ansonia tinha decidido que seu vestido seria longo, de puro cetim cor de
pérola, de linhas simples para contrastar com o véu de renda antiga. Esse véu, segundo a
tia de Ramón, estava na família há várias gerações. Os motivos desenhados no véu,
representando lírios do campo, vinhas e espadas, simbolizavam as tradições da família
Valdez.
Havia romantismo em tudo o que Darcy via e ouvia, e isso a teria fascinado se não fosse
ela o centro de todos esses preparativos. El senor cura, o padre da localidade, também
tinha ido vê-la para resolver os detalhes do casamento segundo os ritos da Igreja Católica;
e para esclarecê-la sobre as implicações de um casamento com um homem incapacitado e
da obediência aos votos até a morte. Ela aceitou todas as imposições que lhe fizeram,
menos renunciar à fé protestante que tinha sido a religião de seu pai. Isso causou
objeções e hostilidades por parte de quase todos os membros da família.
Surpreendentemente, Júlio foi o único que ficou do seu lado.
Todos nós temos que aceitar nossos próprios deuses, anjos e demónios ele disse. Ela que
continue com a sua religião.
Com o passar dos dias, Darcy sentia mais intensamente o impacto da presença de Júlio.
Tinha de admitir que ele preenchia seus dias, e trazia um ar de excitamento quando
entrava numa sala. E, apesar de ser o responsável por aquele casamento, ele sempre
estava ali para protegê-la dos outros membros da família.
Às vezes um senso de culpa a invadia quando ela se arrumava melhor, já que isso
provocava um brilho diferente nos olhos dele.
Darcy tinha tentado, em vão, expulsar de sua mente a figura de Júlio Valdez, mas a sua
personalidade era marcante demais para ser ignorada. E todos os acontecimentos, por
insignificantes que fossem, a faziam lembrar dele. Um falcão negro que ela visse voando
pelo vale, uma palmeira alta batida pelo vento, transplantada naquele jardim espanhol.
Tudo levava seu pensamento àquele homem que estava para se tornar seu cunhado.
Naquela manhã o pátio estava quieto, ouvindo-se apenas os passarinhos. Como Ramón
ainda não tinha sido trazido para fora, Darcy tratou de aproveitar aqueles momentos de
paz, antes do café.
Ela sempre tinha gostado de Ramón como de um irmão, mas imaginava agora se ia ter
coragem de ficar na frente do altar e jurar fidelidade a um homem que ela realmente não
amava. Sua única compensação talvez fosse aquela casa, pois não podia negar seu
fascínio. O lugar e as pessoas começavam a envolvê-la, e a sua vida anterior em Londres
parecia estar se distanciando mais e mais, a cada dia que passava em San Solito.
À medida em que sua pele, sob o sol mediterrâneo, ia ficando morena, ela sentia uma
mudança em sua personalidade. Tinha começado a tocar músicas espanholas no violão e
já falava algumas frases em espanhol. Não lutava mais contra seu destino, e mantinha
escondidos os seus sentimentos.
Quando tocava violão, mantinha os olhos baixos, para não ver Júlio, cada vez mais
atraente. Lutava o tempo todo para ser a moça inglesa gentil e educada que usava o
bracelete de noivado. Não podia deixar transparecer o que sentia quando Dorina passeava
com Júlio pelo jardim, tentando seduzi-lo com a sua voz apaixonada. Era como se lâminas
afiadas atravessassem seu coração.
Darcy lutava contra os sentimentos que Júlio lhe despertava e, para neutralizá-los,
procurava dar mais atenção a Ramón, cantando para ele, ou lendo em voz alta os livros de
que ele gostava.
Numa daquelas manhãs em que estava sozinha, ouviu aquela voz profunda saudá-la.
-Buenos dias!
Virou-se rapidamente. Encostado contra o tronco de uma palmeira estava Júlio, vestindo
camisa de seda escura e calças de veludo marrom que realçavam seu corpo atlético. Em
seu rosto, aquela expressão de força e orgulho apaixonado.
Seus olhos se encontraram, e ele sorriu enigmaticamente para Darcy. Examinou-a, como
sempre, detendo-se nos seus cabelos avermelhados e nas curvas sinuosas de seu corpo.
Darcy sentia as batidas rápidas de seu coração... Quando ele a olhava, parecia tocá-la. E,
mesmo sem falar, Júlio dizia um mundo de coisas com aqueles olhos escuros.
-Você é o próprio retrato da primavera ele disse, tomando-lhe a mão. Por Diós! exclamou
em voz baixa, ao notar pequenas manchas roxas na mão dela. Onde arranjou isso?
-Oh... devo ter batido a mão. Eu... eu fico marcada muito facilmente ela mentiu, pois tinha
vergonha de contar a Júlio que era Ramón quem lhe fazia aquilo, quando às vezes lhe
agarrava as mãos e as apertava a ponto de fazê-la gritar.
-Deve ter mais cuidado, senorita. Numa casa espanhola, feita de pedra, ferro e madeira de
lei, a mulher é a coisa mais frágil. Espero que já esteja acostumada a San Solito.
-Oh, sim. Eu nunca tinha visto uma casa como esta. Ela é muito interessante e agradável.
O senor deve se orgulhar dela, não?
-Sim, muito. Ele se aproximou mais. Você está usando um perfume delicioso. É de cravo?
-Sim. Darcy sentia o calor que emanava dele. É presente de Ramón. Eu... eu o uso para
agradá-lo.
-Você faz tudo para agradá-lo, não é? Júlio a olhava intensamente. Não se sacrifique tanto
assim, do contrário pode ficar doente. Parece que você emagreceu.
-Eu sempre fui magra. Darcy estava sem jeito e instintivamente procurou se defender. Os
homens latinos gostam das mulheres cheinhas, com muitas curvas!
-Cheinhas?
-Não eram os mouros que costumavam alimentar as suas favoritas com tâmaras e leite de
cabra para que ficassem roliças e não pudessem fazer outra coisa a não ser ficar deitadas
em almofadas de seda?
-Você acha que esse é o meu tipo de mulher? ele perguntou com um brilho sarcástico nos
olhos. Uma gorda e lânguida senora num divã, de olhos maquilados e unhas pintadas?
Ora, vamos, acho que você já me conhece um pouco!
Darcy teve que admitir que realmente já o conhecia melhor. Ele era um homem de ação,
que gostava de ter uma mulher ao lado quando cavalgava por suas propriedades. Uma
mulher de temperamento e vivacidade, e não uma odalisca indolente.
Ele sorriu e passou levemente os dedos pelos lábios dela.
-Você deve saber que a submissão passiva numa mulher não me atrai nem um pouco.
Apesar de muitas vezes eu parecer o machão bruto, destituído de todos os bons
sentimentos.
-Acho que seus sentimentos estão bem protegidos, debaixo de uma couraça, senor ela
respondeu.
Ele continuava tocando-lhe o rosto com a mão. Ela se conteve para não demonstrar como
aquele contato a agradava. Júlio jamais deveria saber como a transtornava, fazendo-a
vibrar com uma sensualidade nunca antes conhecida.
-Você acha que eu sou um homem sem coração. Júlio adivinhava seus pensamentos E se
considera uma vítima de minha tirania! Acertei?
-Se já sabe a resposta, por que pergunta?
-Quer dizer que desempenho bem o papel de tirano.
-Que, por sinal, lhe vai muito bem. Você, como todos os homens de poder, nasceu para
este papel. Sua tia me contou que, quando seu pai morreu, a propriedade estava em
decadência.
-É verdade. E é necessário uma pequena dose de crueldade para se alcançar sucesso nos
negócios. Meu pai perdeu o interesse por San Solito depois da morte de minha mãe, num
acidente.
Até então, Darcy tinha pensado que a antiga dona de San Solito havia morrido de morte
natural.
-Ramón nunca lhe contou?
-Não. Ele não conversa muito sobre os assuntos de família, senor
Júlio passou a mão pelos cabelos e continuou:
-Como você sabe, Ramón tem uma irmã gémea, Raquel. Eles estavam com sete anos na
época, quando Ramón decidiu montar com ela no cavalo que pertencia à minha mãe, um
cavalo que corria como o vento. Era um desses dias abafados de trovoadas e isso fez o
cavalo ficar agitado. Quando minha mãe foi ao estábulo procurar o animal e não o
encontrou, um empregado contou que as crianças tinham saído com ele. Ela então
montou noutro cavalo e saiu à procura dos gémeos, percorrendo o mesmo caminho que
costumava fazer todas as manhãs com o animal. Ao chegar em frente a uma porteira
fechada, ela fez o cavalo saltar, e nisso o animal a jogou para fora da sela, diretamente no
caminho do cavalo que vinha galopando com as crianças. As patas dele a atingiram na
cabeça, matando-a instantaneamente, na frente dos aterrorizados gémeos. Quando os
trabalhadores chegaram, atraídos pelos gritos das crianças, minha mãe já estava morta.
Júlio fez uma pausa e respirou fundo. Darcy escutava, de olhos arregalados.
-Meu pai, desesperado, mandou matar o pobre animal com um tiro. Eu estava estudando
fora na época. Ramón precisou ficar trancado por muitas horas num dos quartos. Meu pai
estava quase louco e poderia matá-lo.
Darcy ficou pensativa. Anos atrás um garoto de sete anos teve que ser trancado longe do
pai, para sua própria segurança... Então era por isso que Ramón nunca falava de sua
infância, obscurecida por um sentimento de culpa. Sabe Deus o que teria se passado na
mente do menino, agachadinho por longas horas, no quarto já escuro, sozinho com suas
lágrimas... O irmão que poderia protegê-lo estava longe.
Era por isso que Júlio o protegia tanto. Para compensá-lo pelo que havia acontecido anos
atrás.
-O que nos acontece em criança tem uma enorme influência na nossa vida de adulto ele
disse. Eu tinha dezesseis anos quando tudo isso aconteceu. E quando tinha dezoito anos já
era responsável por San Solito.
-Compreendo Darcy falou baixinho, lembrando-se do que já conhecia daquele lugar. A
beleza daquela casa estava impregnada de alegrias e tristezas, e ela ia se tornar parte dela
porque Júlio, em seu amor pelo irmão, sacrificaria qualquer coisa.. até a mulher que ele
próprio poderia amar.
-Como vê, San Solito vale todos os sacrifícios ele murmurou.
-Acho que seu pai se importava mais com as pessoas do que com as coisas Darcy
observou. Espero que pelo menos Ramón tenha saído a ele.
-Eu também espero Júlio respondeu com um sorriso enigmático. A Páscoa está próxima e
então você será a noiva Valdez. Ouvi minha tia dizer que o vestido está ficando muito
bonito.
-Acho que Ramón vai gostar Darcy disse com certa angústia. Como ela não tinha ninguém,
um amigo sequer, na Espanha, tinham decidido que Júlio iria levá-la ao altar. Esse
pensamento a desesperava. Sim, o vestido ia ficar lindo, mas ela se sentia de pedra
quando a costureira vinha prová-lo. Tudo estava sendo feito para agradar Ramón... Darcy
sabia que seus próprios desejos não deviam ser considerados. Isso a revoltava,
principalmente quando se lembrava dos seus sentimentos em relação a Júlio.
-E se acontecesse um terremoto que destruísse tudo? ela perguntou.
-Eu ficaria furioso ele respondeu, mas depois começaria a reconstruir tudo de novo. As
mulheres chorariam.
-Você é grande e forte demais para demonstrar qualquer espécie de fraqueza, não é,
senor Valdez? Oh, como é maravilhoso ser assim tão invulnerável! Superior a todos!
-Diós... Eu já lhe disse para não me provocar! A expressão dele era feroz.
-Que vai fazer? Ensinar-me a me curvar diante do senor de San Solito? Vou me casar com
Ramón, mas não pretendo ser como sua tia, que vive a venerar coisas como se elas
tivessem alma. Somente as pessoas têm sentimentos, quero dizer, a maioria das pessoas.
-Você acha que eu não tenho sentimentos? ele perguntou, tenso. Que sou um autómato?
-Sim ela respondeu sem medo. Você encobriu todos os seus sentimentos com a terra
arada em San Solito, e com tudo o que ela lhe dá. Você não sabe o que é ficar acordado no
meio da noite, olhando a escuridão, com medo que o dia chegue e que você tenha de agir
como se tudo fosse normal!
Darcy tinha ido longe demais. Virou as costas para Júlio e começou a chorar. Ele a segurou
pelos ombros e a atraiu para si.
-Sei mais do que você pensa ele disse, deslizando a mão para a cintura de Darcy. Você e eu
estamos num ponto sem retorno. Chegamos a ele quando você veio para a Espanha, Você
poderia ter ido para a África do Sul, em busca da proteção de seu padrasto. Em vez disso,
preferiu vir para San Solito, e agora tem de aceitar as consequências!
-Sua carta não me deixou outra escolha disse Darcy, sem forças para se desprender dos
braços dele. O que você fez com ela, queimou?
-Sim. Eu a tirei de sua bolsa e a piquei em mil pedaços e depois joguei no fogo da cozinha.
Não sabia se você ia mostrá-la para Ramón, mas não podia correr o risco.
-Você é cruel, Júlio Valdez. Ela estava indignada, mas ao mesmo tempo seu corpo sentia a
necessidade de se entregar àquele contato físico. Ela se odiava por isso. E reagiu, quase
gritando: Nada o detém quando você quer alguma coisa!
-Você está indo longe demais ele disse, apertando-a contra si, como se fosse parti-la ao
meio. Era uma sensação alarmante, mas que a excitava.
E não é verdade? Você é um desses privilegiados que com um estalar de dedos tem todo
mundo aos seus pés. Eu não estou nesse rol. Eu não tenho medo da sua cara feia!
-Não é da minha cara feia que você tem medo. É da minha proteção.
-Além de arrogante, é convencido. Nem que você fosse o último homem...
-Será verdade? ele falou devagar. Ou existe entre nós alguma coisa que pode se tornar
muito perigosa? Você sabe disso tanto quanto eu.
-A única coisa que sei é que detestei sua atitude, desde Londres, quando implorei para ver
Ramón depois do acidente e.você disse que levar-me ao quarto dele era como acabar de
matá-lo. Você acha que depois daquilo eu poderia gostar de você?
-Nunca esperei que você gostasse de mim ele murmurou. Aliás, me surpreenderia se isso
acontecesse.
O horror repentino daquela proximidade física deu-lhe forças para afastar-se de Júlio.
Naquele exato momento ela se virou e viu Ramón, que vinha sendo trazido por seu
empregado. Ela esperou por ele com o coração em disparada.
Júlio ajeitou os cabelos e se manteve frio, como se nada tivesse acontecido. Caminhou em
direção ao irmão e tomou a cadeira de rodas.
-Eu cuido disso disse. Pode ir, Gomez, vá tomar café. Ramón olhou para Darcy.
-Como você está bonita disse, sorrindo. Não vai me dar um beijo? Não tenha vergonha de
Júlio!
-Claro que não ela respondeu e, curvando-se sobre ele, beijou-o levemente no rosto.
-Assim não! ele brincou. Nos lábios, para que o café fique mais gostoso.
Darcy não pôde recusar, consciente do olhar de Júlio sobre eles, enquanto ela fingia um
beijo mais ardoroso. Ramón deu um longo suspiro.
-Oh, como eu gostaria de ser um homem outra vez!
-Você é um homem Darcy falou calorosamente. E corajoso.
-Não... Ele sacudiu a cabeça com os olhos cheios de angústia. Não é nada corajoso
escravizar uma mulher jovem a um corpo semivivo. Corajoso seria libertá-la!
-Ramón, por favor ela pediu, segurando-lhe os ombros. Não diga uma coisa dessas!
-Como não? Eu não tenho nenhuma sensação em meu corpo, e minha cabeça está cheia
de dúvidas... Você é jovem e adorável... feita para um homem de verdade. Para alguém
como Júlio!
Darcy levou um choque ao ouvir aquelas palavras.
-Não disse, evitando olhar para Júlio. Você não pode falar assim... não tem razão
-Como não? Ele é forte e perfeito, capaz de dar a uma mulher tudo o que eu não posso. Eu
os imagino, um nos braços do outro.
-Ramón! ela exclamou, numa súplica. Vou para dentro se você não parar com isso. Você
está deixando seu irmão sem jeito.
-Quem, Júlio? Ramón olhou para o irmão com um sorriso irônico.
-Você está se comportando como uma criança Júlio disse, começando a empurrar a
cadeira em direção à mesa do café.
Ramón virou-se de modo a poder olhar para o irmão.
-Ela é tão bonita. Aposto como você gostaria que ela fosse sua, não é?
-Não seja bobo Júlio falou, seco. Você precisa é pensar menos.
-O que eu preciso é ser capaz de usar isto Ramón falou, apontando para as pernas. No
meu lugar, Júlio, você também ia ficar frustrado, cheio de desconfianças.
P-osso garantir, Ramón, que sua noiva lhe é completamente fiel. Júlio colocou uma mão
firme no ombro do irmão. Você sabe disso melhor do que eu.
Ramón olhou tristemente para Darcy, que não podia deixar de compará-los. E tal
comparação despertava-lhe ainda mais a piedade que sentia por Ramón.
-As pessoas mudam murmurou Ramón, especialmente aqui na Espanha. O sol, o perfume,
toda a atmosfera daqui mexe com a sensibilidade das pessoas. Como um homem pode
adivinhar o que vai na cabeça de uma mulher?
-Pare com isso, Ramón Júlio falou com energia. Você tem a garota que queria e vai se
casar com ela. O que mais quer?
-Júlio, sei que você me daria um braço ou uma perna, se fosse possível, mas, desde que
me deu a noiva, gostaria que não ficasse cobiçando parte dela para você.
-Ramón, pelo amor de Deus! Darcy exclamou, chocada com aquelas palavras
-Não seja tão pudica Ramón caçoou. Se agora você está tão apetitosa, imagine só no dia
do casamento, toda virginal no vestido branco. Mas tem uma coisa... -No momento em
que se tornar minha mulher, você jamais poderá se casar com meu irmão.
Darcy ficou sem saber o que dizer
-Se eu morrer Ramón continuou, vocês não poderão se casar. Na Espanha um homem não
pode se casar com a viúva de seu irmão.
-Ramón, chega! Já foi longe demais! Júlio gritou. Não sei onde foi buscar tanta besteira; é
melhor tirar isso da cabeça. Você está insultando sua noiva. Eu tenho pele grossa, mas
ela...
-Vejam, o café está chegando! Darcy interrompeu vivamente à vista do empregado que
chegava carregando uma bandeja com frutas. O café e a comida foram servidos, e quando
Darcy sentou-se sentiu que tremia um pouco. Imaginou que Júlio se retiraria, deixando-a a
sós com Ramón, mas ficou aliviada quando ele se sentou com eles, pedindo ao empregado
outra xícara.
-Acho que vou fazer companhia para vocês... a comida está com uma cara tão boa. Vamos,
Darcy, precisa comer melhor.
Júlio e Darcy se entreolharam. Ela precisava se esforçar para comer; tinha que se
comportar o mais naturalmente possível.

CAPÍTULO VII
O luar prateado iluminava os jardins da mansão Valdez. As cigarras ainda cantavam entre
as folhas das palmeiras, e os vaga-lumes voavam por entre jasmins e rosas para depois
desaparecerem no meio da vegetação. uma noite feita para o romance.
Darcy parou à beira do pequeno lago, bem no centro do jardim, admirando as flores-de-
lótus. Havia no ar uma quietude quase mágica, que acalmava o seu espírito angustiado,
como também seus sentidos confundidos pela festa que se realizava naquela noite,
véspera do dia de seu casamento. Darcy encontrou um jeito de escapar da sala, enquanto
Dorina dançava com Júlio.
A imagem dos dois perdurava em sua mente. Dorina de vestido rosa justo, com fartos
babados na barra, que revelava seu corpo perfeito. Júlio de jaqueta, calça preta e camisa
branca, segurando-a junto ao corpo, enquanto dançavam. Eles dançavam com perfeição
ao som de uma pequena orquestra contratada para aquela noite.
No dia seguinte, muitos convidados da aldeia iriam a San Solito para participar da
cerimônia do casamento. Mas naquela noite a festa pertencia somente à família. Darcy
tinha notado que Júlio estava bebendo muito e não recusou quando Dorina pediu que ele
dançasse com ela algumas músicas típicas.
Darcy assistiu àquela exibição até que, cheia de angústia, não pôde mais tolerar a visão de
Dorina tão abertamente entregue aos braços de Júlio, sem se importar com que os outros
percebessem sua intenção: conquistar Júlio para si. Fugiu, levando consigo a certeza do
ciúme que a impedia de ver a dança até o fim. Arrebatada pela dança, Dorina mostrava no
brilho dos olhos a certeza de conquistar Júlio. Eles dançavam como se fossem feitos um
para o outro, e Darcy percebeu os olhares de aprovação dos membros da família. Como
Ramón também estava concentrado no par que dançava, Darcy pôde esgueirar-se da sala
sem ser vista, saindo para o jardim até uma distância em que o ruído da festa não
chegava.
Lá fora, na noite clara, os minutos escapavam rapidamente, da mesma forma que sua
liberdade. Respirou fundo, tentando conter o desespero. No dia seguinte, ao meio-dia,
Júlio a entregaria ao irmão,
e daquele momento em diante ela se tornaria também uma irmã para ele.
Mas ela não queria Júlio como irmão... como Dorina, ela queria estar junto dele para
sentir seu corpo vibrante.
Ali sozinha, Darcy deixou que a verdade viesse à tona... Ela queria Júlio para si; estar em
seus braços naquele momento, para se proteger temporariamente dos temores do dia
seguinte.
- Idiota... sua perfeita idiota! disse alto, para si mesma,
não por causa da piedade que sentia por Ramón, mas pela paixão que tinha por Júlio.
La noche está bella.
Darcy levou um susto; virou-se e viu Júlio de pé sob o galho arqueado de uma árvore, a
sombra projetada no pátio enluarado.
Sentiu um excitamento ao vê-lo de cabelos revoltos sobre a testa e a jaqueta aberta no
peito para refrescar seu corpo acalorado pela dança.
- Por que fugiu da sala? ele perguntou. Não gosta de baile?
-Oh, sim, você dança muito bem ela disse com voz trémula.
-É que estava muito quente na sala e eu precisava de um pouco de ar fresco.
-Acho que você não gosta daquele estilo de dança. É folclórica.
-Talvez uma moça inglesa não entenda o seu significado. Foi o que pensei quando não a vi
mais na sala.
-Como notou, senor? Darcy sentia o coração disparar. Parecia tão fascinado pela dança.
-Dizem que um espanhol é capaz de dançar e tratar de negócios ao mesmo tempo. A
dança para nós é como o ar que respiramos. Você não dançou?
-Sim, mas não como você estava dançando com Dorina. Ele ergueu as sobrancelhas.
-Havia alguma coisa diferente no jeito como dançávamos?
-E não havia? Para mim parecia bem significativo, senor! Não tinha acabado de falar
quando ele começou a se aproximar dela. Darcy deu um passo para trás, esquecida do
lago. Antes que caísse, Júlio a puxou para a frente. No instante seguinte, ele a abraçava,
ofegante.
-Não! ela suspirou. Por favor, não!
Ele pousou sua boca na dela, abafando-lhe um gemido. Seus lábios forçavam os de Darcy
até que ela não teve mais força para resistir. Uma onda de desejo percorreu-lhe as veias e,
com os lábios abertos, colados aos dele, ela se abandonou.
-Júlio... não murmurou. Pare com isso...
-Não posso ele disse com a respiração alterada. Estou louco por você.
-Mas... é impossível! ela murmurou como se estivesse embriagada. Sentiu medo daquele
beijo, das mãos quentes que lhe queimavam a pele, da longa perna entre as suas. Ela não
resistiria muito tempo.
-Você andou bebendo demais... Ela tentou se afastar dele. Faz isso comigo porque Dorina
tem que ser respeitada...
-Cale-se rosnou ele. O que tem isso a ver conosco? Meu Deus, você de pé lá na sala, tão
fria e distante, enquanto eu ardo de desejo... porque o amanhã vai chegar, e todos os
amanhãs quando não poderei mais tê-la assim em meus braços! Ele correu as mãos pelo
contorno de seu corpo, com o brilho da lua nos olhos.
Darcy conseguiu forças para lutar, mas Júlio riu de seus esforços e, com redobrada ânsia, a
beijou novamente.
-Bobinha, só a lua está vendo, mas se quiser podemos achar um lugar mais escuro. Levou-
a então para a alcova no pátio, que ela conhecia tão bem. Ali, na penumbra, não houve
controle da paixão.
Quando o excitamento estava alcançando seu auge, ele se afastou de repente, segurando-
a com uma mão contra a parede fria. Ela ficou ali encostada, trémula, sentindo o desejo
queimar por dentro; o colo descoberto, afogueado pelas carícias.
-Você tem lindos cabelos ele disse com voz rouca. Eu quero possuí-la, você sabe disso!
-Quando um homem bebe demais Darcy respirou fundo, forçando as palavras, qualquer
mulher serve, não é?
-Eu devia espancá-la por dizer isso. Você queria que eu a possuísse! Não sou nenhum
adolescente que não percebe o que sente a mulher que se tem nos braços.
Com os olhos fixos nos dela, ele começou a acariciá-la novamente. Darcy permaneceu
rígida, lutando contra seus próprios impulsos de entregar-se de novo.
-Não fique tão ansiosa ele disse, rindo. Estou sob controle novamente... sei até onde
posso ir, minha amiga. O amor louco de vez em quando volta nos homens desta família,
herança dos cavaleiros árabes que procuravam meninas jovens para seus prazeres. Foi por
instinto que eu a trouxe para esta alcova moura. Ele fez uma pausa, olhando em volta.
Muitas mulheres foram seduzidas aqui.
Disso ela não tinha dúvidas, imaginando o que poderia ter acontecido ali.
Como se adivinhasse o que ela estava pensando, ele a agarrou bruscamente e a beijou
com violência, sem se importar com o fato de que na manhã seguinte ela estaria se
casando com seu irmão.
-Você está exercendo o direito de senor? ela perguntou, ofegante, entre os beijos
apaixonados.
Ele ficou imóvel, e com um movimento brusco empurrou-a para longe.
-Você tem razão, devo ter bebido muito. Você tem que me desculpar, nina.
-Nós dois somos culpados... Darcy soluçou, enquanto fugia com as pernas trémulas em
direção à casa.
Alguém a chamou no momento em que estava entrando na casa. O sangue gelou-lhe nas
veias. Com um simples olhar, Dorina ia perceber que ela tinha estado com Júlio.
-Você viu Júlio por aí? Dorina perguntou. Enquanto fui ao banheiro, ele desapareceu.
-Talvez esteja fumando em algum lugar Darcy respondeu, ajeitando os cabelos tão
naturalmente quanto possível.
-E você, onde esteve?
-Oh, olhando a lua lá fora. Queria ficar só, um pouco...
-Só?
-Sim. Darcy passou a língua pelos lábios ainda quentes dos beijos de Júlio. A lua está linda.
-E você ficou romântica? perguntou Dorina, aproximando-se de Darcy.
Ela desviou os olhos, porque se Dorina visse sua expressão, perceberia tudo.
-Oh, aquele vinho... ela falou, tentando rir. Agora é minha vez de ir ao banheiro.
Darcy subiu correndo as escadas, entrou em seu quarto e acendeu as luzes, dirigindo-se
ao espelho. Tinha medo de ver a expressão que teria nos olhos depois de ter estado nos
braços de Júlio. Podia ainda sentir o calor da pele dele, suas mãos em seu corpo. Seus
lábios estavam marcados pelos beijos dele.
Ali, no espelho, ela viu a expressão suplicante de seus próprios olhos... Como poderia ser a
esposa de Ramón vivendo na mesma casa com Júlio? Cada vez que se encontrassem, se
lembrariam daquela noite!
Desesperada, Darcy atirou-se na cama. No dia seguinte ela se casaria com Ramón e, desde
o momento em que pronunciasse os votos de fidelidade, estaria presa a ele, apesar de seu
coração ansiar por Júlio.
Incapaz de suportar tal pensamento, deslizou da cama efoi para a janela em busca de ar
fresco. Estava ali, imóvel, quando alguma coisa lhe tocou o pé direito. Pensou que fosse a
barra da cortina mas ouviu então um som sibilante.
Darcy olhou para baixo e parou, petrificada: uma cobra deslizava pelo tapete bege. Tinha
a boca aberta, com as presas de fora.
Num instante, a serpente atacou-a, enterrando-lhe as presas no tornozelo. Darcy deu um
grito abafado e fugiu em direção à porta, um fio de sangue escorrendo-lhe pela perna.
Morta de susto, correu pela galeria e desceu as escadas chamando pelo único nome que
lhe ocorria naquele momento. Júlio voltou-se, interrompendo sua conversa com Carlos.
-Júlio... ela disse com voz fraca. Eu... eu fui picada por uma cobra...
As luzes lhe ofuscaram a vista e Darcy caiu para a frente, mas Júlio conseguiu segurá-la em
tempo.
-Meu tornozelo... ela se queixou. Uma sensação de vertigem a invadiu e ela levantou o
rosto pálido e frio para Júlio. Ele falou rapidamente com Carlos, que atravessou correndo
o hall e empurrou a porta do escritório. Júlio a carregou para lá e a colocou
cuidadosamente sobre um longo sofá de couro.
Carlos abriu um armário de onde retirou uma caixa, entregando-a a Júlio. Darcy ouvia
vagamente o som de outras vozes, gente correndo de um lado para o outro. Tudo ficou
escuro quando ela sentiu a dor de uma picada de agulha. Sentiu uma dor aguda correr
pela perna toda e desmaiou.
Percebeu uma luz fraca e o aroma refrescante de colónia. Estava em sua cama e seus
olhos focalizaram a pessoa que lhe massageava as têmporas com a colónia. Era uma
jovem desconhecida, de rosto calmo e agradável. Usava uma touca branca.
-A paciente já acordou, senor falou a enfermeira, sorrindo e alisando o cabelo de Darcy. A
febre já está cedendo.
Um outro rosto inclinou-se para Darcy, mas desta vez muito conhecido. Ele tinha um
sorriso nos lábios.
-Como está se sentindo, minha pequena? ele perguntou com muita suavidade.
Fraca como estava, Darcy queria levantar a mão e tocá-lo... Ela estava viva, graças a ele. A
perna onde a cobra tinha picado latejava, porque tinha sido necessário fazer um corte
para extrair o veneno.
-Acho que ainda estou viva ela disse fracamente. Graças a você...
Ele fez um movimento com a mão.
-Isso acontece às vezes lá embaixo, no vale. Não entendo como é que a cobra veio parar
em seu quarto; os empregados estão sempre alerta em caso de alguma aparecer em
algum canto escuro. Carlos a achou debaixo de sua cama.
Darcy estremeceu. A enfermeira a ajudou a se recostar sobre os travesseiros e lhe deu um
copo com suco de frutas. Estava bom, assim como a presença de Júlio sentado na beirada
da cama.
-Eu fiquei petrificada ela contou com voz rouca. Estava em pé em frente à janela, olhando
a lua...
-A janela! Ele estalou os dedos. Então foi isso... estava aberta, não é?
-Sim, mas só uns dois centímetros mais ou menos. Você acha que ela teria entrado por
aquele vãozinho?
-Pode ser, nina. Ele tomou a mão dela entre seus dedos fortes. Esta região é semitropical,
mas cheia de animais perigosos. É melhor tomar cuidado, principalmente à noite.
Ela se encolheu toda ao se lembrar da cobra.
-Procure esquecê-la ele disse. Você está fora de perigo, mas vai ficar com uma pequena
cicatriz um pouco acima do tornozelo. Você se importa?
-Claro que não ela disse, olhando à sua volta e notando que ainda era noite. -Será que vou
estar bem... para me casar amanhã?
-Já deveria estar casada desde ontem de manhã Júlio falou, achando graça dos olhos
arregalados dela. Você desmaiou quando tive que cortar o ferimento; delirou muito e
depois caiu num sono profundo. Já se passaram dois dias... o casamento teve que ser
cancelado.
- Oh - Ela sentiu um grande alívio. O dia que mais temia tinha passado, enquanto ela
dormia por causa de uma picada de cobra.
Júlio podia ler nos seus olhos o que se passava em seu coração.
- Não entendo por que você não correu quando viu a cobra! - ele disse, virando-se depois
para a enfermeira. Poderia ir avisar meu irmão de que sua noiva já acordou e
provavelmente comerá algo daqui a pouco?
-Si, senor. Ela saiu do quarto e fechou a porta silenciosamente atrás de si.
Darcy encostou-se mais contra os travesseiros, preparando-se para ficar a sós com Júlio. A
força que emanava dele a fazia se sentir ainda mais fraca.
-Que Deus me perdoe pelo que eu a obriguei a fazer ele disse, e com um gemido beijou-
lhe a palma da mão. Sabe o que fiz, não é? Destruí a sua vida, e a minha!
-Você salvou a minha vida, Júlio...
-Salvei-a para Ramón ele murmurou com rancor. Apesar de tudo, esse casamento tem que
se realizar... não pode ser de outro modo. Ele precisa de você... e eu a desejo da maneira
como ele nunca seria capaz. Eu mesmo preparei tudo e agora não há como impedir que
esse tormento continue. Vamos ter que suportá-lo; não podemos feri-lo ainda mais, mi
amada.
-Oh, Júlio! Ela deu um suspiro que vinha do fundo do coração. Sabia que Júlio ia realmente
continuar o que tinha começado.
Não posso destruir Ramón mais do que ele já está. Ele se levantou e Darcy notou que seus
olhos voltavam a ter aquela expressão dura. Tenho que obrigá-la a isto!
-Quando? ela perguntou com um fio de voz.
-Dentro de uma semana ele respondeu. O tempo suficiente para você ficar boa.
-E... e se eu deixar a minha janela aberta outra vez?
-Não se atreva! Ele se inclinou para ela com uma expressão apaixonada no rosto moreno.
Já não é bastante o que terei de suportar deixando você para outro homem? Já imaginou
como me sinto?
-Se está sofrendo tanto quanto eu, Júlio, eu imagino.
Eles se olharam silenciosamente e a seguir Júlio a tomou nos braços e a beijou
apaixonadamente, desesperadamente, até que, com os braços dela fortemente enlaçados
em torno dele, ambos perderam a consciência de tudo ao seu redor, restando apenas o
desespero daquele abraço.
Estavam assim, tão perdidos, que não ouviram a exclamação de alguém que acabava de
entrar no quarto.
- Júlio!
Seu nome ecoou, quebrando o enlevo dos dois. Eles se separaram, confusos. Darcy levou
as mãos ao decote da camisola, enquanto Júlio procurava se recompor, afastando os
cabelos que lhe caíam na testa.

CAPÍTULO VIII

Júlio! exclamou tia Ansonia, parada à porta do quarto, com uma bandeja nas mãos e um
olhar escandalizado no rosto. Diós mio, não posso acreditar!
-Vamos, tia, não vá ter um ataque histérico ele disse, caminhando para ela. Por favor, dê-
me a bandeja antes que ela caia no chão.
Ela o olhava como se ele fosse um estranho.
-Júlio, o que esta moça lhe fez?
-A culpa é somente minha ele retrucou, tirando-lhe a bandeja das mãos. Darcy não fez
nada de mais...
-Pensa que sou idiota? Vir aqui e encontrar a noiva de Ramón em seus braços... que
comportamento infame! Vocês não se envergonham disso?
-Eu já lhe disse que Darcy não teve culpa alguma ele repetiu com voz cortante. -O que
aconteceu foi sem seu consentimento, ”entendeu? Ela estava muito fraca para me repelir.
- Mas eu vi como ela o abraçava! Ela olhou para os dois.
Darcy estava encolhida sob os lençóis, cobrindo a boca com a mão, os olhos arregalados
para dona Ansonia.
-Não tente me enganar, Júlio. Já peguei mais de uma vez você olhando para essa moça, e
sei como os homens espanhóis são quando cismam com uma mulher. -Você já devia estar
casado, para não ter que andar atrás do que pertence a Ramón. Já não basta Dorina
suspirando por você?
-Tia, feche essa porta e não fale alto! Não é preciso que todo mundo fique sabendo das
suas acusações...
-Acusações? Ela agitou as mãos num gesto dramático. Você quer dizer que estou
inventando tudo o que vi acontecendo aí nessa cama?
-Só um de nós estava na cama ele falou com rispidez, colocando a bandeja sobre a
mesinha-de-cabeceira. A pobre moça tem passado por uns maus pedaços, e eu estava
tentando confortá-la. Não significo nada para ela, e ela própria pode dizê-lo.
Darcy umedeceu os lábios ainda quentes dos beijos dele. Por causa de Ramón ela teria de
confirmar que Júlio a beijara contra a sua vontade.
-Que é um beijo? ela perguntou com voz estranha. Em meu país, fazemos isso todo o
tempo, no restaurante, na plataforma da estação, nas paradas de ônibus. Aqui na
Espanha, um beijo é considerado assim tão importante?
Tia Ansonia olhava para ela como se a visse pela primeira vez.
-Quando você se casar ela disse, não poderá beijar outro homem a não ser seu marido. Eu
já cansei de dizer a Júlio que ele precisa se casar. Ele tem obrigações para com a
propriedade e, apesar das suas próprias inclinações, sabe muito bem que não pode fazer
isso com você. Como noiva de Ramón, você já lhe pertence, como se o padre já os tivesse
casado. Estou sendo clara?
-Não vai acontecer outra vez, tia Júlio disse com voz firme. Darcy só queria um pouco de
consolo, e Ramón não está em condições de dá-lo.
-Aí está o problema, não é, Júlio? murmurou a tia. Seu pobre irmão não pode dar a esta
moça o que ela parece estar precisando. Júlio deu uma risada.
-Tia, como a senhora dramatiza tudo! Darcy foi picada por uma cobra e estava nervosa. Eu
a beijei. Isso é crime?
-Poderia ter virado um crime, se eu não tivesse entrado no quarto naquele instante. Dona
Ansonia franziu a testa e olhou-o de alto a baixo. Você é demais! Ouça meu conselho e
anuncie seu noivado com Dorina no casamento de seu irmão. Uma esposa poderá salvar
Darcy das suas garras.
Darcy, ali deitada, desejou intensamente que ele não aceitasse a sugestão. Para ela era
intolerável pensar que ele pudesse acariciar Dorina na intimidade do casamento.
-Vou pensar no assunto ele falou com decisão. Sei que minhas obrigações para com o
nosso nome vêm antes de qualquer outra coisa. Tem sido assim desde que fiquei
encarregado desta propriedade e jurei fazer dela a melhor de Andaluzia. Alguma vez me
desviei desse caminho? Dei motivos para que duvidasse da minha palavra, de minhas
intenções, de meu afeto por minha família?
Nunca dona Ansonia falou, tocando-o com um ar de posse. Um verdadeiro espanhol
coloca a honra e a família acima de qualquer capricho. Você é espanhol, Júlio, e há de
obedecer à sua consciência.
Ele inclinou a cabeça.
Tome a sopa antes que ela fique fria ele disse a Darcy. Você precisa comer e ficar forte.
Sim concordou a tia. Você não pode desapontar Ramón pela segunda vez.
Darcy não protestou. Nada mais ia importar se Júlio casasse com Dorina. e ele tinha
acabado de dizer que ia pensar sobre o assunto.
Apoiou os ombros sobre os travesseiros e ficou parada, sem tocar na comida.
Tia falou Júlio, preparando-se para sair do quarto, o que a senhora viu aqui será esquecido
e espero que não fale a respeito com ninguém. A senhora me entende?
Sim, Júlio, se você me prometer solenemente que não vai fazer seu irmão sofrer. Você
está de posse de todas as suas faculdades e pode, ir em busca dos seus prazeres, como
todos os homens fazem, mas aquele pobre rapaz...
Que está pensando? ele explodiu. Acha que não me revolta vê-lo naquela maldita cadeira
de rodas? E assim mesmo, acha que eu iria lhe causar mais sofrimento?
Você estava aqui, Júlio, com ela acusou dona Ansonia.
Ela é uma estrangeira e pouco sabe, mas você, um Valdez! Sinceramente, é um choque
para mim.
E eu lhe digo que não há razão para isso ele respondeu. Por que vocês, mulheres, dão
tanta importância a um beijo? Às vezes não passa de um impulso... Ela estava um pouco
transtornada e o tornozelo doía muito. Além disso, tive de dizer-lhe que o casamento
havia sido adiado.
Tomando-a nos braços e beijando-a? ela retrucou com um olhar malicioso. Pensa que sou
assim tão velha pra não entender essas coisas, Júlio? Esta moça é quase esposa de seu
irmão, e seria bom que você se lembrasse disso no futuro.
Se está duvidando de mim, é melhor arranjar uma dama de companhia para ela ele disse
secamente.
É possível que eu faça isso replicou a tia. E, para você, uma noiva.
Ele abanou a cabeça, rindo.
É um jeito sutil de fazer chantagem! Em troca do seu silêncio, terei que colocar o bracelete
de ouro no pulso de sua nora?
Dona Ansonia encolheu os ombros.
Por que não, Júlio? Dorina está no ponto de se casar novamente. Isso ficou evidente
quando ela dançou com você na outra noite. Ela tem tudo para ser uma boa esposa para
você. Todos estão esperando uma palavra sua.
E imagino que, se eu disser essa palavra, a senhora irá manter segredo sobre o que viu
neste quarto, não?
Seguramente.
As mulheres espanholas também sabem ser cruéis.
Sim, quando em benefício de suas famílias.
- Muito bem ele disse, lançando um rápido olhar para Darcy.
No dia do casamento de meu irmão, anunciarei que pretendo namorar Dorina. Tudo
deverá ser feito dentro do mais correto estilo espanhol, não é?
Quando as pessoas são corretas, Júlio, não se metem em dificuldades dona Ansonia disse
olhando para Darcy.
Darcy sabia o que ela estava insinuando. Ninguém que os tivesse visto acreditaria que
Júlio estava apenas confortando uma enferma. Agora eles tinham que pagar pela
temeridade.
Venha. Júlio tomou o braço de sua tia. Vamos deixar Darcy em paz.
Ao fechar a porta ele se virou para Darcy e lhe deu uma piscada, como a dizer que por
enquanto eles teriam que deixar as coisas naquele pé.
Ela colocou a bandeja de volta na mesinha e deitou-se, exausta, sentindo o tornozelo
latejar. Ela não estava certa se era amor o que sentia por Júlio; só sabia que, ao menor
contato dele, sentia vir à tona toda a sua sensualidade.
Em toda a sua vida nunca tinha encontrado ou estado com alguém como Júlio. Começou a
imaginar se estava realmente apaixonada por ele... era o amor uma sensação de
necessidade, misturada com ondas de prazer? Por Ramón ela sentia agora uma profunda
aversão. A simples ideia de se casar com ele a repugnava. Ele não poderia amá-la no mais
completo sentido da palavra. Mas, depois de casados, poderia acariciá-la e abraçá-la, com
todo o direito! Será que Júlio não tinha pensado nisso?
Ramón ia ter os direitos de marido, tê-la com ele dia e noite! Uma sensação de desespero
invadiu-a ao pensar que teria de se submeter a ele, ter seu corpo usado por Ramón a fim
de lhe dar algum alívio e conforto naquela sua condição de meio homem.
Ela ia ter que passar por isso, Júlio havia dito. Ia ter que se casar com Ramón e tornar-se
uma irmã para um homem a quem amava. Seria como estar no inferno; cada vez que
Ramón a tocasse, ela estaria lembrando das mãos fortes de Júlio a acariciá-la.
Gemeu e virou-se na cama, inquieta... não seria um pecado muito maior casar-se com
Ramón do que lhe dizer honestamente que não o amava e que jamais poderia viver com
ele?
Mas... se lhe dissesse a verdade, Júlio ficaria contra ela, e nunca mais ela iria sentir seus
beijos e abraços, que a transportavam para um mundo de amor.
De uma maneira ou de outra, ela estava numa armadilha. Casada com Ramón, não
poderia estar com Júlio; se dissesse a Ramón que não se casaria com ele, Ramón poderia
fazer alguma bobagem e Júlio passaria a odiá-la!
Oh, Deus... Para conservar uma pequena parte de Júlio para si e não vê-lo
irremediavelmente riscado de sua vida, ela teria que submeter-se ao casamento com
Ramón. De qualquer maneira, sabia que o desejo de Júlio por ela era menor que o amor
que ele nutria por Ramón. Para ele, haveria outras mulheres; Dorina, por exemplo, que
não fazia segredo nenhum de seus sentimentos. Ela ficaria radiante de se casar com o
másculo e atraente senor de San Solito, não só pelo prestígio, como por ele próprio.
Uma sensação de dor percorreu o corpo de Darcy, fazendo-a gemer em voz alta. Ela se
sentou na cama, envolvendo com os braços seu próprio corpo, como para protegê-lo da
dor que sentia.
Não podia mais fingir para si mesma. Estava apaixonada por Júlio... louca,
desesperadamente, a ponto de preferir um futuro infeliz a se afastar dele.
A dor que sentia aumentou. Ela daria tudo para ser Dorina, livre para seduzi-lo. Tão
mergulhada estava em seu triste dilema, que não percebeu que alguém tinha entrado no
quarto. Uma mão lhe tocou a testa.
Sente alguma dor, senorita? Eu lhe darei um sedativo e isso a fará dormir. Seu tornozelo
está incomodando? Não quer que dê uma olhada para ver se não há infecção?
Darcy concordou. A enfermeira afastou a colcha para o lado e examinou cuidadosamente
o ferimento.
Está começando a cicatrizar, senorita. Não vejo nenhum sinal de infecção, e não posso
entender por que esteja doendo.
Talvez seja minha imaginação. Darcy sorriu fracamente. Será que amanhã poderei me
levantar?
Veremos respondeu a enfermeira, aplicando uma nova compressa no tornozelo de Darcy.
Vai ficar apenas uma pequenina cicatriz em sua perna. Não se aborreça por isso. Pense em
seu casamento. A senorita deve amar muito o senor Valdez, não?
Você diz isso porque ele é inválido?
A enfermeira olhou atentamente para Darcy.
Somente o amor compensaria tamanha responsabilidade, do contrário seria uma carga
muito pesada. O jovem senor é bastante atraente, e quando a senorita o conheceu, algum
tempo atrás, deve” ter sido difícil resistir a ele...
Ela havia resistido a ele... mas não a Júlio, que havia posto abaixo todas as suas defesas.
Era por amor a ele que ela estava assumindo um casamento com Ramón.
Havia uma ponta de ironia quando ela falou:
Deve existir algo na natureza feminina que faz com que, por amor, a mulher faça coisas
inexplicáveis. Você acha que estou sendo insensata ao me casar com um homem numa
cadeira de rodas?
Eu não desejaria isso para uma filha minha replicou a enfermeira. Será que não há
esperança dele se recuperar?
Darcy sacudiu a cabeça.
Acho que não. Júlio o levou aos melhores especialistas, e eles não deram esperança
alguma. Você conhece algum caso em que, houve recuperação?
Acontece, às vezes, dos nervos da coluna voltarem espontâneamente ao estado normal e
o paciente começa gradualmente a ter sensações. A paralisia é, em alguns casos, o
resultado de um choque muito forte... assim, um outro choque violento pode levar à cura.
Mas não desejo alimentar esperanças, por isso acho melhor aceitar a opinião dos
especialistas. É uma pena que a sua vida tenha que ser sacrificada, senorita. Sempre
haverá a tendência de comparar seu marido com o irmão. A senorita é jovem! Darcy fez
um gesto nervoso.
Por favor, não diga isso...
A enfermeira fez um gesto tipicamente latino e acrescentou:
Aquele tem o machismo, como dizemos nós. Alguns espanhóis são assim, e eu repito: a
senorita é jovem; é natural querer aquilo que um homem pode dar.
Um calor percorreu o corpo de Darcy. Provavelmente todos iriam adivinhar que, por trás
de sua atenção com Ramón, estaria o desejo pelo irmão de que ele a jogasse sobre a cama
e a possuísse com ardor.
Como ia dizendo continuou a enfermeira, pegando a bandeja, eu não gostaria de ver uma
filha assumir um casamento que não lhe preenchesse as necessidades ou lhe desse filhos.
Um homem nessas condições é como um filho, e a mulher não terá um marido no
verdadeiro sentido da palavra. Seus pais estão felizes com o casamento, senorita?
Eu só tenho minha mãe e ela está muito longe. Mas eu já tenho idade para resolver a
minha vida sozinha.
Virando enfermeira de um homem inválido? A mulher sacudiu a cabeça, em dúvida. Sim,
ele é rico, mas dinheiro não é tudo na vida.
Não vou me casar com Ramón por causa de dinheiro disse Darcy, indignada. É isso o que
todos pensam?
Que mais poderiam pensar? A senorita é jovem e bonita, e seria melhor tomar cuidado
com o irmão, se realmente se importa com o senor Ramón.
Oh, não diga isso! Darcy sorriu com relutância. Para uma enfermeira, você é maliciosa
demais e eu não deveria estar dando ouvidos ao que os outros dizem.
Gostaria de um pouco de chocolate quente para ajudar a dormir, ou prefere um sedativo?
Chocolate quente, por favor, com uma pitada de canela.
Com canela, hein? a enfermeira falou com um brilho travesso nos olhos. Eu sabia que a
senorita gosta de um pouco de tempero. Eu disse isso a mim mesma quando vi vocês dois
juntos!
Enfermeira!
Está bem... eu lhe trarei o chocolate quente. Precisa de ajuda para ir ao banheiro?
Não, eu me arranjo.
No banheiro, após lavar o rosto e as mãos, ela penteou os cabelos em frente ao espelho.
Estava pálida e pensativa. Precisava tomar cuidado para não se encontrar novamente a
sós com Júlio. Dorina não poderia vê-los juntos, sozinhos. Ela iria correndo contar para
Ramón, e isso seria terrível. A enfermeira tinha dito que, às vezes, um choque violento
pode ocasionar uma paralisia... e curá-la!
Mas não... não dessa forma. Darcy desviou o rosto do espelho, mostrando desespero no
olhar. Os melhores médicos tinham dito que Ramón dificilmente se recuperaria. Um
choque provocado por uma atitude dela e de Júlio só iria piorar a situação dele... e Júlio
jamais se perdoaria se alguma coisa acontecesse a Ramón por sua culpa. Júlio nunca
buscaria sua felicidade às custas da de Ramón, e para punir-se ele a mandaria embora.
Provavelmente de avião para a África do Sul!
Darcy voltou para o quarto, ainda mancando um pouco, pois o pé a incomodava.
Já estava se aproximando da cama quando olhou para a porta. Júlio estava parado com
uma bandeja nas mãos.
Vá embora! ela exclamou, abafando um grito.
Está tudo bem ele disse. Convenci a enfermeira a deixar que lhe trouxesse o chocolate.
Oh, você não deveria estar aqui... Ela teve que se sentar na beira da cama. Deixe isso aí e
vá embora!
Ele colocou a bandeja sobre a mesa e inclinou-se para Darcy.
Estava preocupado com você, nina. Tinha que vê-la. Sei que foi desagradável o que
aconteceu. Eu só queria dizer que ela não vai contar aquilo para ninguém, principalmente
para Ramón...
Ramón... Ramón Darcy repetiu, amargurada. É só isso que eu ouço! Ramón sempre em
primeiro lugar, e eu... para o inferno com os meus sentimentos! Eu posso reprimi-los,
esquecê-los. Representar o papel de esposa devotada enquanto meu coração se aperta
cada vez que vejo você!
Darcy levantou os olhos para Júlio, arrasada.
- Agora... agora você já sabe.
Sei, porque você não me beijaria se não sentisse alguma coisa por mim...
Alguma coisa? Ela deu uma risada. Está bem! Eu... eu me casarei com seu irmão, mas, pelo
amor de Deus, deixe-me em paz!
Eu sabia ele murmurou. Venha, deixe-me colocá-la na cama...
Quando foi tocá-la, Darcy afastou a mão dele com violência.
Não ponha a mão em mim ela disse com voz tensa. Você sabe que quando me toca eu...
eu viro uma idiota, e isso não pode acontecer mais, ou enlouqueço! Vá embora! Vá
procurar Dorina e deixe-me em paz!
Júlio ficou imóvel, enquanto ela era tomada por um convulsivo tremor.
Não posso deixá-la assim ele disse cheio de apreensão. Se chamo a enfermeira ela vai
encher você de drogas e amanhã estará deprimida. É melhor eu ficar um pouco com você!
Não! Darcy sacudiu a cabeça. É muito perigoso... prometo que vou me sentir melhor. É
você que me deixa nervosa..,
Acho que você precisa de mim ele falou, decidido, indo até a porta. Deveria haver uma
chave nesta porta. Vou calçar a maçaneta com uma cadeira.
Darcy olhava sem dizer palavra enquanto ele procurava calçar a porta, depois seus olhos
se arregalaram quando voltou para junto dela.
Júlio, você não pode ficar aqui...
Também não posso deixá-la assim.
Vai ser um escândalo ela falou, meio sufocada. Você viu como sua tia reagiu... por favor,
Júlio, seja sensato.
Eu não vou fazer nada ele disse, estendendo para ela a xícara de chocolate. Beba antes
que esfrie... cuidado, não derrame na cama.
Está bem... ela disse, sentindo uma confortável onda de calor percorrer-lhe o corpo. Num
gesto casual ele tirou os sapatos e se sentou junto dela na beirada da cama, esperando
que ela terminasse de beber o chocolate.
Está tudo bem ele murmurou, sorrindo enigmaticamente. Minhas intenções são honestas.
Ficarei aqui até você dormir e ter um belo sonho.
Que vai virar um pesadelo se formos apanhados juntos.
Eu me escondo no guarda-roupa se alguém chegar. Seus olhos brilhavam quando ele a
envolveu nos braços.
Ela suspirou, afundando a cabeça no ombro dele, embora o resto do corpo estivesse
tenso. Estavam atentos para o menor ruído vindo da galeria. Ela não conseguia se
acalmar. Acho melhor você ir embora.
Esqueça isso e relaxe ele disse, cobrindo-a com a colcha. Neste momento, minha pequena,
não tenho segundas intenções, só quero o seu bem-estar. Você teve mãe para cuidar de
você?
Minha mãe se casou pela segunda vez e foi viver na África do Sul, quando eu tinha quinze
anos. Nessa época fui mandada para o colégio, e depois que deixei a escola fui para a
escola de música. Aliás, sempre fui capaz de cuidar de mim mesma, até... Darcy mordeu o
lábio que encontrei os irmãos Valdez!
Se sua mãe a tivesse levado para a África do Sul, nunca teríamos nos encontrado. Você
preferia não me conhecer, nina?
Darcy ficou quieta por um momento, confortavelmente aninhada em seus braços. Suas
emoções oscilavam. Entre ela e Júlio tudo tinha que ser clandestino, escondido de outras
pessoas.
Eu... eu acho que talvez tivesse sido melhor para todos nós se nunca tivéssemos nos
encontrado ela replicou. Se eu tivesse ido para a África do Sul, Ramón não teria sofrido o
acidente em meu carro, e estaríamos todos vivendo nossas vidas de maneira tão
diferente! Sei que os espanhóis acreditam no destino; acho que ele tem sido bem cruel,
não?
Ele concordou, brincando com uma mecha do cabelo dela.
Se ele não tivesse ficado inválido, neste momento eu estaria indo muito mais longe com
você!
Darcy sentia uma confusão incrível. Ela queria tanto que ele a liberasse de Ramón, mas
sabia qual seria a resposta.
Há alguma esperança de que Ramón ainda possa andar? ela perguntou baixinho.
Ele ficou sério.
Os médicos disseram que, se ele não recuperasse um pouco do seu antigo entusiasmo,
sua condição poderia piorar. E isso estava acontecendo, até que ele tentou se matar,
como lhe contei. Foi por isso que concordei em ir buscá-la. Eu me lembrava de você, uma
estudante de pernas compridas, querendo ver Ramón no hospital. Não a considerava uma
mulher e sim uma garota estabanada que arruinou a vida de meu irmão. Eu teria sido
capaz de agarrá-la pelo pescoço e sufocá-la... Mal sabia que íamos acabar assim... Mas
você tem que se casar com Ramón ele disse com tristeza. Depois de hoje não ficaremos
mais sozinhos assim. Fiquei porque achei que você estava precisando de mim. A terapia
está fazendo efeito?
Oh, sim, ela pensou, que efeito! Estar nos braços de Júlio, sentindo o calor de seu corpo...
Eu... eu ainda estou nervosa. E se alguém forçar a porta? ela disse. Que desculpa
daríamos?
Eu ia dizer que estava consolando você, e desta vez seria verdade!
Seus olhos se encontraram e Darcy teve medo do que poderia acontecer se seus lábios se
encontrassem.
Eu... eu acho que é melhor você ir, Júlio... ela disse, fazendo uma leve tentativa de se
desvencilhar dos braços dele, mas Júlio não a soltou, sabendo que, na verdade, ela não
queria que ele se fosse.
Ficarei até você dormir. Tenho esse direito.
Você não tem direito algum ela falou, rindo. Ramón sim, é quem tem, e mesmo que fosse
ele que estivesse comigo, agora, sua família ia ficar chocada. Por favor, Júlio, não torne as
coisas mais difíceis para mim!
Você quer dizer que não é agradável ficar a sós comigo?
É perigoso...
Tudo na vida é perigoso, minha pequena ele disse baixinho, acariciando-lhe o rosto.
Ela começou a sentir sono e suas pálpebras se fecharam. Permaneceu assim, sabendo que
ele a contemplava. Queria que ele penssasse que ela estava quase dormindo, quando na
verdade se sentia sensualmente acordada. Seria maravilhoso se pudesse se render a ele..
esquecer tudo na paixão, onde nada importava além daquele momento.
Isso... ele murmurou está quase dormindo.
Depois você vai embora, Júlio... promete?
- Você sabe que eu nunca quebro uma promessa, meu anjo. Sim, ela sabia. Ele jamais
quebraria a promessa que tinha feito a Ramón. Ele a tinha prometido ao seu irmão,
mesmo sabendo que desta forma estaria destruindo a felicidade dela.
Darcy devia odiá-lo, no entanto tudo o que ela queria agora era permanecer em seus
braços para sempre. A única maneira de escapar desse tormento era ceder ao cansaço e
dormir.
Sim, ela precisava dormir, e então Júlio iria embora silenciosamente e ninguém ia saber
que ele tinha estado lá, partilhando sua cama.
Fechou os olhos e lentamente mergulhou num sono profundo, os cabelos espalhados
sobre o ombro de Júlio.
Ele não fez nenhum movimento que pudesse perturbá-la... conservou os braços em volta
do corpo dela, coberto pela camisola cor-de-rosa.

CAPÍTULO IX

Darcy acordou de repente e levou um susto quando sentiu que alguém ressonava ao seu
lado. Júlio... ele não tinha ido embora como havia prometido; tinha adormecido junto
dela, com o braço ao redor de sua cintura.
Ficou horrorizada ao vê-lo ali. O rosto tranquilo de Júlio mostrava a sombra escura da
barba por fazer e os densos cílios que cobriam aqueles olhos tão perturbadores. Darcy
conteve a respiração; estar assim tão perto dele era ao mesmo tempo alarmante e
excitante Mas a luz do sol já penetrava pelas janelas e ela precisava acordá-lo. Com muito
cuidado, afastou suavemente o cabelo que lhe caía na testa. Ele se mexeu, resmungou
alguma coisa e se chegou mais perto dela.
Ela estremeceu com aquele contato e sentiu uma deliciosa sensação. Queria que aquele
momento nunca terminasse... que o mundo lá fora, além daquelas portas, não
interrompesse aquela intimidade a que eles tinham todo o direito. Se assim fosse, ela
poderia acordá-lo com beijos e ninguém poderia dizer nada.
Mas as coisas não eram assim... Darcy ia tentar acordar Júlio, quando uma súbita sacudida
na maçaneta da porta a fez parar. A cadeira que escorava a porta começou a ceder sob a
pressão exercida do lado de fora. Darcy não sabia o que fazer; estava desesperada. Vá
embora... deixe-nos em paz!, pensou.
A cadeira caiu com um baque e Júlio sentou-se na cama, assustado. Dorina apareceu na
porta em traje de montaria, com um chicote na mão. Seus olhos faiscaram quando viu os
dois. Viu os cabelos desfeitos de Darcy e a alça rendada da camisola que lhe caía dos
ombros. Olhou imediatamente para Júlio, tentando adivinhar em seu rosto o que tinha
acontecido.
Começou a falar furiosamente em espanhol. As palavras eram pronunciadas tão
rapidamente que Darcy não conseguia entender nada... Uma, ela não pôde deixar de
entender, porque Dorina a repetia furiosamente, várias vezes.
-Ordinária!
-Chega! Júlio exigiu, saltando prontamente da cama. Atravessou o quarto a passos largos e
agarrou Dorina pelo pulso, arrancando-lhe o chicote que ela tinha levantado para ele.
Pode me xingar de quantos nomes você quiser, mas deixe Darcy em paz. Seja lá o que está
pensando sobre o que se passou neste quarto, não passa de aparência. Mas como não
tenho nenhuma maneira de convencê-la, se chamar Darcy mais uma vez desse nome,
fecho a sua boca com uma bofetada. Você vai me ouvir...
-Sobre o quê? Aparências? Dorina gritou, tentando se livrar. Eu sabia que, desde o
momento em que essa mulherzinha chegou a esta casa, você ia ficar atrás dela como um
garanhão atrás da égua. Ela ficou boazinha quando você a...
-Cale essa boca imunda! Ele levantou a mão e se não fosse por um grito de Darcy teria
dado uma bofetada no rosto de Dorina, que saiu do quarto gritando:
-Ramón vai saber disso! Que vai se casar com a amante de seu irmão!
Júlio correu para a porta, tentando detê-la.
Diabo, ela vai contar, Darcy! Ela vai dizer a ele que estive a noite inteira com você, e quem
é que vai acreditar que não aconteceu nada?
Darcy se sentou na cama e ficou olhando para ele sem falar nada. enquanto Júlio
caminhava pelo quarto, estalando o chicote. Finalmente ele veio para perto dela.
Você não tem nenhuma culpa, mi amada. Eu deveria lembrar que Dorina gosta de
bisbilhotar, e agora terei que fazer tudo para convencer Ramón de que você é inocente.
-E acha que ele vai acreditar em você? Darcy perguntou com a voz trémula.
Júlio sacudiu a cabeça.
-Somos espanhóis, Ramón e eu. Se isso tivesse acontecido comigo, se minha noiva tivesse
sido encontrada na cama com outro homem, eu não ia acreditar que nada tivesse
acontecido. Por isso Dorina ficou tão furiosa. Ainda mais que você continua bonita mesmo
de manhã, quando ainda está na cama. Ela faz tudo parecer feio e sujo.
Com uma praga nos lábios ele se afastou, batendo o chicote nas pernas.
-Que espécie de homem eu sou? Sempre tive todas as mulheres que quis, mas não está
certo ficar desejando a noiva do meu próprio irmão. Meu Deus, que fui fazer!
-Júlio, você não deve se culpar assim. Darcy saiu da cama e foi para o lado dele. Eu deveria
ter insistido para você sair do meu quarto ontem à noite... Oh, Deus, que confusão! O pior
é que Dorina está apaixonada por você...
-Não... ela quer ser a senora de San Solito ele respondeu. Como minha esposa ela teria o
poder de mandar nas pessoas... mas isso não vai acontecer!
-Mas você concordou com sua tia em se casar com Dorina disse Darcy, olhando para ele,
confusa. Você não estava falando sério, Júlio?
-Como se fosse possível! ele respondeu com um sorriso irônico. É mais fácil lidar com
minha tia do que com Dorina. Eu disse aquilo só para ela não perceber o que sinto por
você.
-E o que é que você sente por mim, Júlio? Darcy perguntou, ansiosa.
Ele a contemplou longamente, da cabeça aos pés.
-Você é meiga e linda, Darcy, e você sabe que me provoca. Provoca o animal que existe
em mim.
Darcy não conseguiu reprimir um gesto de desânimo ao escutar aquilo.
-Pelo que estou vendo ela disse com voz rouca, o animal que existe em você estava manso
ontem à noite.
-Acho que sim. Ele se dirigiu para a porta, ao mesmo tempo que endireitava a cadeira que
Dorina tinha derrubado ao entrar no quarto. Vou ver Ramón. Vou tentar explicar o que
aconteceu. Espero que ele acredite em mim, e não na versão de Dorina. Fique preparada
para qualquer coisa, Darcy.
-O que você quer dizer com isso? ela perguntou, tentando esconder a decepção que
sentia.
-Pode ser que ele exija que você seja mandada embora do rancho. Se isso acontecer, terei
que tomar algumas providências. Devo colocar meu irmão em primeiro lugar.
-Claro ela respondeu. Qual é o valor de uma mulher que consegue despertar apenas o
lado animal de um homem?
Ele ficou calado e já ia saindo quando ela apontou para os sapatos que ele tinha
esquecido.
-Deixe que eu os apanhe para você, Júlio. Não quero ficar com nenhuma recordação sua.
-Gracias disse ele, pegando os sapatos, sem se importar em calçá-los. Desculpe-me pelo
que aconteceu, Darcy. Tome seu café aqui no quarto. Falarei com você mais tarde sobre o
assunto.
-É muito gentil de sua parte, senor.
Darcy estava cansada e desesperada. Sentia-se abandonada. Júlio tinha ido falar com
Ramón. O irmão sempre estaria em primeiro lugar, e ela ficaria só, como uma mulher
ordinária.
Talvez um banho quente ajudasse a limpar aquele sentimento de culpa. Porque, mesmo
que ela e Júlio não tivessem chegado às vias de fato, a intenção e o desejo sempre
existiram no relacionamento dos dois. Tirou a camisola e correu para baixo do chuveiro.
Abriu a torneira
e deixou que a água quente caísse farta sobre seu corpo angustiado. Então, aquilo era o
amor? Sentimentos, pensamentos, e sensações concentrados num só homem, como se
ela lhe pertencesse inteiramente... capaz de qualquer coisa para satisfazer seus desejos?
Se Ramón não quisesse mais o casamento, ela teria de se afastar de Júlio. E ia ser assim!
Ninguém ia acreditar que ele tinha dormido com ela sem ter feito nada.
Darcy saiu do chuveiro e se enrolou numa toalha. Amava Júlio, mas para ele ela não
passava de uma garota atraente e boa de se acariciar. Enquanto se enxugava, dizia para si
mesma que a culpa pelo que acontecera ia cair sobre ela... tinha que ser assim para Júlio
não perder a confiança de Ramón. A moça inglesa é que o tinha seduzido... Que a ré fosse
a estrangeira e não o cabeça de uma família honrada.
A solução ideal, pensou Darcy. Pelo menos ela não teria que se casar com quem não
amava... Mas não podia esconder a tristeza que sentia. Talvez, se Júlio a amasse... mas,
para ele, Ramón estava em primeiro lugar. Ele a mandaria embora de San Solito, se fosse
o que Ramón queria... Não era uma questão de Ramón ser ou não ser aleijado. Porque se
o acidente tivesse acontecido com Júlio, e ele ficasse aleijado, ela não o abandonaria.
Faria tudo o que pudesse para vê-lo feliz. Era o amor que fazia toda a diferença, e isso
nunca tinha sentido por Ramón. Para Darcy o amor tinha vindo sem que ela quisesse,
jamais teria pedido ao destino o amor de quem não poderia ter.
Darcy voltou para o quarto e estava se vestindo quando a enfermeira entrou, carregando
a bandeja com o café da manhã.
-Ah, senorita, já se cansou da cama? Como está se sentindo? Ela parecia não saber de
nada... ainda. Pois Dorina já devia ter posto a boca no mundo lá embaixo.
-Eu... eu estou bem respondeu Darcy, fechando a saia na cintura. Como está o senor
Ramón?
Como sempre respondeu a enfermeira, apressando-se em colocar a bandeja sobre uma
pequena mesa em frente da janela aberta. Ele ficará contente de saber que a senorita já
está quase boa.
-Deve lembrar-se de não deixar as janelas abertas à noite; durante o dia, com o sol
quente, as cobras ficam em estado de sonolência, mas despertam quando o sol se põe.
Venha, tome seu café e coma um pouco.
Darcy sentou-se, ainda admirada com a atitude normal da enfermeira. Procurou no seu
rosto alegre algum sinal de que ela soubesse do que tinha acontecido na noite anterior.
-Ah, antes que me esqueça a enfermeira disse, metendo a mão no bolso do uniforme e
retirando um envelope. O senor Júlio me pediu que lhe entregasse isto, senoríta. Ele disse
qualquer coisa sobre uma informação que você tinha pedido.
Darcy estranhou e tratou de aparentar calma ao pegar o envelope
-Obrigada disse, colocando o envelope ao lado da bandeja. Talvez Júlio tivesse feito
alguma coisa para silenciar Dorina por algum tempo; Darcy não conseguia imaginar o quê.
Estava ansiosa para ler o bilhete, mas teve que tomar o seu café e tagarelar calmamente
com a enfermeira.
-Você já tomou café? ela perguntou à enfermeira.
-Si, senoríta respondeu a enfermeira com um olhar triste. Vou embora do rancho para
atender um outro cliente. Eu disse ao senor Júlio que a senorita tem sido uma ótima
paciente. Esse senor Júlio... que hombre! Uma mulher teria que ser muito forte para não
se perturbar com ele.
Darcy entendia a intenção, enquanto sorria tranquilamente por causa do comentário. Era
evidente que, se Dorina tivesse cumprido sua ameaça, a casa estaria em alvoroço e a
enfermeira não teria aquela atitude. Arriscou um olhar para o envelope e teve que se
controlar para não abri-lo e ter a resposta para as suas dúvidas.
-Don Júlio é um cavalheiro Darcy disse. Não há muitos como ele neste mundo; homens
que colocam o interesse dos outros antes dos próprios.
-Isso é verdade concordou a enfermeira. Todos consideram que o desaparecimento dos
velhos costumes é um progresso e agora parece que somente nestas áreas remotas da
Espanha a vida continua
na mesma gentileza e cavalheirismo de antigamente. É mentira e todos os homens são
iguais. Há os que são diferentes, de raça antiga, com séculos de formação. Da mesma
forma como se leva tempo para formar uma raça de cavalos.
Darcy sorriu e continuou tomando o delicioso café do rancho.
-Acho que o senor ia gostar dessa comparação, ele que é criador de cavalos.
Bem, tenho que ir arrumar as minhas coisas para partir. Voltarei daqui a pouco, senorita,
para me despedir e lhe desejar felicidades pelo casamento.
Num gesto impulsivo de carinho, a enfermeira estendeu a mão e tocou levemente os
cabelos de Darcy.
-Nos dias de hoje, em que só existe o egoísmo, ainda há gente boa. Vaya con Diós, nina.
Com um ligeiro farfalhar da saia engomada ela saiu, fechando a porta atrás de si. Darcy,
que já estava impaciente, agarrou o envelope e o abriu com a ponta da faca.
”Carísima. Após uma conversa com Dorina, vou ser obrigado a anunciar o meu casamento
com ela o mais breve possível. Isso em troca de seu silêncio. É o preço que terei que pagar
em consideração a Ramón. Ao invés de ir falar com ele, ela foi me esperar no meu quarto.
Quando finalmente saiu, eu vi a enfermeira que ia levando o café para você, então lhe
pedi que entregasse este bilhete. Depois de ler, rasgue-o.”
Darcy rasgou o bilhete e o envelope em mil pedacinhos e os jogou na descarga do vaso
sanitário. Tudo acabado... do mesmo modo que desaparecia também a última esperança
de que ela e Júlio pudessem se beijar novamente.
As coisas tinham saído como Dorina queria e, para o bem de Ramón, Júlio ia se casar com
ela. Aquilo era do agrado da família, e Darcy tinha certeza de que não ia suportar viver na
mesma casa com os dois. Ajeitou o cabelo diante do espelho e decidiu usar um pouco de
blush para esconder a palidez. Ela tinha perdido Júlio para sempre, e nada mais
importava... Sabia que ia odiá-la depois que ela dissesse a Ramón que jamais poderia se
casar com ele.
Era ainda muito cedo e a casa estava silenciosa quando ela desceu as escadas. Parecia
tranquila em sua blusa azul-marinho e saia branca pregueada, mas seu coração batia
rápido. Atravessou o hall em direção à suíte de Ramón e bateu de leve na porta,
extremamente nervosa. Quando o empregado de Ramón veio atendê-la, ela mal podia
falar.
-Eu... eu desejo falar com o senor Ramón. Ele já acordou?
- Sí, senorita respondeu o homem, afastando-se para que ela entrasse na saleta do
apartamento. Estava acabando de ajudá-lo a se vestir e acho que ele vai ficar muito feliz
em vê-la.
-Quem está aí? perguntou Ramón, aparecendo à porta do quarto e manejando ele mesmo
a cadeira de rodas. Darcy! Ah. que prazer!
A alegria dele ao vê-la deixou Darcy ainda mais desesperada. Era bem mais fácil continuar
a mentir para ele, beijá-lo, e se convencer de que poderia suportar tudo aquilo, mesmo
sabendo que Júlio estaria abraçando outra mulher. Um estremecimento a percorreu e ela
ficou onde estava, sabendo que não podia suportar mais aquela situação.
Um pouco inclinado para a frente em sua cadeira, Ramón olhava atentamente para ela.
-Como estás, la chica?
-Estou muito bem, Ramón. Podemos.., conversar um pouco?
-Muy bien ele disse, olhando de relance para o empregado. Vou dispensá-lo por alguns
momentos. Vá tomar seu café, Gomez.
O criado saiu, deixando-os a sós. Eles se olharam, e Ramón estendeu a mão para Darcy.
-Venha me dar um beijo. Fiquei muito preocupado com você; foi Júlio quem me manteve
informado. Se não fosse a cobra, a estas horas já estaríamos casados. Deixe-me ver a
cicatriz... ainda dói?
Ela continuou onde estava, as mãos crispadas ao longo do corpo, reunindo coragem para
dizer a verdade que ia acabar com a alegria de Ramón. Ramón, que antes do acidente
tinha sido tão belo! Ah, se ela tivesse se apaixonado por ele! Mas ela havia aprendido que
o amor é uma emoção estranha, impossível de ser destruída; uma fonte de sofrimento e
também de intenso prazer. Ela tinha que pensar em Júlio para poder continuar o que
estava fazendo.
-Eu... eu preciso lhe falar uma coisa, Ramón, mas tenho medo de... de magoá-lo.
Ele ficou olhando para ela, impulsionando levemente a cadeira de rodas em sua direção.
Ela permaneceu imóvel e ele parou a cadeira rente às suas pernas.
-Estou acostumado com a dor ele disse. Viver se tornou doloroso para mim, por isso não
se preocupe com os meus sentimentos e fale. Você não tem coragem de se casar com um
aleijado, não é isso?
Darcy ficou pálida.
-Não é simplesmente assim, acredite. Tentei muito, mas não deu. O casamento é uma
coisa muito séria na vida da gente e eu não posso me casar com você. Sinto muito.. e lhe
peço perdão!
-Existe alguém?
A pergunta a atingiu em cheio e ela recuou. Ele a olhou com maior intensidade.
Diga-me, tenho o direito de saber! Não pode ser ninguém da Inglaterra, senão você não
teria vindo para se casar comigo...
-Eu não vim para isso ela o interrompeu, tão pálida que o blush do rosto aparecia ainda
mais. Não vim para San Solito com essa intenção. Eu... eu vim apenas para vê-lo, porque
achei que ainda éramos amigos e queria ter certeza de que você estava bem.
-Nós lhe mandamos uma proposta de casamento, Darcy, e como você veio logo depois, eu
naturalmente pensei que sentia alguma coisa por mim. O que fez você mudar de atitude?
Alguém que a interessasse mais do que... um meio homem numa cadeira de rodas? Pode
dizer...
-Essa proposta de casamento nunca existiu disse Darcy, agoniada. Na carta, seu irmão
simplesmente pedia que eu viesse para visitá-lo. Vim disposta a isso, mas, quando
cheguei, ele me disse que esperava que eu me casasse com você. Seu irmão não ia aceitar
uma recusa minha. Júlio disse que eu lhe devia alguma coisa por ter sido a causadora do
acidente ele simplesmente não quis acreditar que eu não tinha sido totalmente culpada.
Eu tentei concordar com o casamento, Ramón, mas isso não seria justo para nenhum de
nós dois. Como poderia fazê-lo feliz se não o amo?
-Quem é que você ama? ele perguntou, agarrado aos braços da cadeira. Por acaso é o
meu irmão mais velho? O belo Júlio? Você já o viu montado a cavalo ou dançando...
Tempos atrás eu podia dançar e montar assim, lembra-se? Eu podia segurar uma garota
nos braços enquanto dançava... até fazer com que seus pés deixassem o chão. E podia
possuir todas as mulheres que quisesse. Houve uma, pobre idiota, que se matou por mim;
e eu era um rapaz de apenas dezessete anos nesta época. Que acha disso, Darcy? Eu tinha
tudo. até que você me destruiu, sua ordinária!
Darcy não conseguia tirar os olhos dele; seu coração batia tanto que ela pensou que fosse
desmaiar. Sim, ele se referia à governanta que tinha se suicidado naquele quarto de cima.
Ramón, o belo jovem de dezessete anos, divertindo-se e satisfazendo seu machismo
adolescente com uma mulher bem mais velha que ele...
E ela tinha pensado que Júlio era o culpado! Darcy vacilou e se agarrou na borda de uma
mesa próxima. Sentiu-se mal de repente; queria fugir de Ramón. Ele não precisava de sua
piedade. Só queria se vingar pelo que lhe havia acontecido. O tempo todo ele tinha
enganado Júlio, fazendo-o acreditar que ela tinha sido a culpada pelo acidente de carro.
Ramón não a amava... ele a odiava!
Começou a se afastar dele em direção à porta. Mas Ramón foi mais rápido e impulsionou
a cadeira contra ela. Ele queria prenderlhe as pernas para poder agarrá-la. Darcy virou-se
e viu que as janelas que davam para o pátio estavam abertas. Correu para uma delas
antes que Ramón pudesse virar a cadeira. Pulou para fora e fugiu correndo, como se
estivesse sendo perseguida pelo demónio. Ramón, consumido pela amargura e pelo ódio,
tinha planejado tudo para se vingar dela. Até a encenação de suicídio, que tinha deixado
Júlio tão desesperado.
Sem perceber, Darcy foi de encontro a alguém, dando um grito ao perceber que dois
braços de homem se estendiam para segurá-la.
-Senorita, o que está acontecendo? De que está fugindo? Darcy ergueu os olhos para o
rosto moreno e preocupado de Carlos, o rapaz que trabalhava para Júlio.
-Eu... Oh, Carlos, você pode me levar para a estação de trem? Eu... eu tenho que ir embora
daqui! Imediatamente! Por favor!
-Mas não estou entendendo, senorita ele disse, olhando para o rosto angustiado de Darcy.
O que aconteceu? A senorita está tremendo. Se aconteceu alguma coisa, o patrão precisa
saber.
-Não! Ela abanou a cabeça, aterrorizada. Tenho que sair daqui, Carlos, o mais rápido
possível, e eu agradeceria muito se você me levasse para a estação.
Ele a segurou pelos ombros e abanou a cabeça.
-A senorita está com febre, seu rosto está vermelho. Acho que foi a picada da cobra que a
deixou um pouco fora de si. Vamos, vou levá-la para dentro.
Ele a levantou nos braços antes que Darcy pudesse protestar e voltou para o pátio por
onde ela tinha fugido. Darcy lutava para libertar-se, mas de nada adiantava. Ele era forte
demais e, além disso, extremamente leal a Júlio Valdez.
Carlos a levou para dentro da casa e a sentou numa cadeira.
-Vou chamar dona Ansonia disse, indo para uma saleta onde a tia de Júlio tomava café e
lia seus jornais.
Darcy tremia, com o olhar fixo nas portas que davam para o apartamento de Ramón. Ela
não queria vê-lo nunca mais, mas sentia que sua fuga de San Solpito não ia ser assim tão
fácil. E não poderia ser de outro modo. Tinha sido uma idiota em pensar que poderia fugir,
esquecendo que estava profundamente emaranhada na vida dos dois Valdez, presa nas
teias de suas complexas personalidades.
Um deles ela amava inutilmente... do outro, tinha medo. Apesar da bela aparência de
Ramón, Darcy sempre tinha desconfiado dele, e agora sabia por quê. Basicamente ele era
sensual e nada mais, enquanto Júlio era forte e tinha senso do dever, além de amor pela
sua terra. Ela fazia força para não chorar... ela o amava tanto, e ele ia odiá-la quando
soubesse que havia rejeitado Ramón e terminado para sempre com aquele casamento.

CAPÍTULO X

Darcy ficou gelada... A porta do apartamento de Ramón se abriu e ele apareceu,


impecavelmente vestido: camisa branca, calças escuras, os cabelos bem penteados.
Quando viu Darcy, disse qualquer coisa ao empregado que lhe empurrava a cadeira de
rodas. O empregado se inclinou e saiu da sala.
Darcy, assustada, viu-o impulsionar sua cadeira na direção dela...
-Ah, buenos dias. Júlio entrou de repente por uma das portas. Estava com o cabelo em
desordem, uma mecha caindo na testa. Está começando a chover ele disse. Espero que
não seja uma tempestade, seria ruim para as uvas. Vamos ter uma grande colheita este
ano e a produção de vinho vai ser maior.
-Você e seu vinho! disse Ramón, dando uma risada irónica. Você só pensa nisso? -Quando
é que vai arranjar uma mulher para botar na sua vida? Acho que, de vez em quando, você
também precisa de garotas, não?
Júlio franziu as sobrancelhas e Darcy notou que ele ficou tenso. Ela logo imaginou o que
ele estava pensando... Será que, apesar de tudo, Dorina tinha dito alguma coisa a Ramón?
-Não misturo dever com prazer ele disse. O que há com você, Ramón? Está esquisito.
-Em geral, os aleijados são esquisitos, especialmente se comparados com os homens
perfeitos que podem deslumbrar com seu charme. Imagino como você se sentiria, Júlio, se
tivesse que se sentar numa maldita cadeira de rodas! Francamente, acho que você não
seria capaz de suportar...
-Ramón... exclamou Júlio, preocupado, dando um passo em direção ao irmão. Que é isso,
meu velho? Por que está falando assim? Alguém o irritou... lhe disse alguma coisa?
-Oh, sim respondeu Ramón, apontando Darcy. Pergunte a ela o que foi que me disse!
Não... eu mesmo lhe direi, irmão! Ela me informou há pouco que não deseja se casar com
um inválido... que não está interessada em se tornar esposa de um homem cuja metade
inferior não serve para nada. Ela quer alguém forte e perfeito, que a faça gemer de paixão
e possa lhe dar um filho. Por isso ela resolveu desistir.
Ramón fez uma pausa, olhando para Júlio, enquanto Darcy tentava esconder os olhos
marejados de lágrimas, olhando para o lustre pendente do teto.
-Você a trouxe aqui, irmão Ramón disse pausadamente, e agora eu lhe agradeceria se
você dissesse para ela ir para o inferno.
Fez-se um silêncio, quebrado pelo estrondo de um trovão. No mesmo instante o saguão se
iluminou com a luz dos relâmpagos e a chuva começou a bater pesadamente nas pedras
do pavimento lá fora.
-Eu não gosto de tempestade! Dorina entrou correndo no saguão. Estava de saia vermelha
e blusa de seda.
Ela correu para Júlio e passou os braços dele ao redor de sua cintura. Por momentos ele se
manteve assim. Mas, de repente, a empurrou para o lado. Suas narinas estavam dilatadas
e os olhos sombreados por uma tempestade interior.
-É verdade o que meu irmão está dizendo? ele perguntou a Darcy.
Ela abaixou a cabeça sem dizer nada. Na realidade, o que Ramón tinha dito à sua maneira
era bastante verdadeiro. Ela queria Júlio... seu amor apaixonado... um filho seu...
-O que está acontecendo aqui? perguntou Dorina com as mãos nos quadris e o peito
arfante.
Ela olhou para Júlio e depois para Ramón. Teve certeza, de que Ramón tinha descoberto
tudo sobre Darcy e Júlio.
-Então você já sabe, não é, Ramón? De tudo que se passou entre eles dois?
Ramón olhou para ela sem entender.
-Esses dois! Eles têm dormido juntos... pergunte a ele! Júlio dá a ela aquilo que você não
pode lhe dar!
-Mentira! gritou Darcy, indignada. Ela não podia tolerar mais aqueles insultos. -Júlio
nunca... faria qualquer coisa que magoasse seu irmão. Ontem à noite eu estava deprimida
e por bondade Júlio veio conversar comigo. Nada de mais aconteceu! Ele acabou
adormecendo em minha cama, nada mais... Ele estava cansado... tem que carregar
sozinho todas as preocupações e problemas desta propriedade. E quem se importa com
isso? Que a carga seja pesada ou não? Vocês só vêem seu corpo forte, sem pensar se ele
se sente solitário ou cansado. Não importa o que aconteça, Júlio aguenta... sabe o que
fazer... resolve tudo!
Darcy respirou fundo e encarou Ramón.
-Júlio fez o que pôde para ajudar você, Ramón, por isso não o culpe se não quero me casar
com você. Não houve nada entre nós dois de que pudéssemos nos envergonhar. Ele
sempre quis o seu bem-estar. Ele sempre colocou a sua felicidade antes da dele.
-Minha felicidade? Ramón perguntou, golpeando as próprias pernas. Você era uma
estúpida que morria de medo de deixar que um homem pusesse a mão em suas pernas.
Por Deus, você acreditou mesmo que eu não podia viver sem você? Eu queria era me
vingar e, sabendo da idiotazinha sentimental que você era, consegui que Júlio fizesse você
vir para se casar comigo e depois virar uma enfermeira que ia ter que me aturar até o fim
da vida! Eu tenho vivido para isso, e agora...
Com um impulso, ele jogou sua cadeira para a frente, querendo atingir Darcy, mas as
rodas escorregaram no ladrilho liso do vestíbulo e a cadeira disparou, indo se chocar
contra uma parede. Ramón foi atirado longe sem que Júlio pudesse evitar.
Quando Júlio se ajoelhou para levantá-lo, Ramón o empurrou para longe, ao mesmo
tempo que a sua perna direita se movimentava...
-Ele... ele mexeu a perna gritou Dorina. Você viu... ele mexeu!
Ramón permaneceu ali, arquejando, enquanto os trovões se faziam ouvir pela casa toda e
os relâmpagos iluminavam os rostos imóveis pela surpresa.
-Meu menino... meu pobre Ramón, o que aconteceu? Dona Ansonia veio correndo em
direção ao saguão onde se achava a cadeira tombada com as rodas girando no ar.
Ramón e Júlio estavam parados, olhando-se, e a seguir começaram a rir alto. Darcy não
compreendia como os dois podiam achar divertido o que havia acontecido.
-Você mexeu a perna, meu velho! Sim, mexeu! Júlio gritava, exultante, e suas palavras
ecoavam pelo teto alto.
Darcy finalmente compreendeu o que estava acontecendo... A carga de emoção, a raiva
incontida, o choque contra o chão, tudo isso tinha afetado o sistema nervoso de Ramón, e
ele havia dado um leve sinal de que havia a possibilidade de uma recuperação.
Ela sentiu uma onda de gratidão, feliz por ver a alegria de todos. Dona Ansonia acariciava
o rosto de Ramón; Júlio ria, todo excitado, enquanto Dorina se achegava a ele. Júlio
passou o braço ao redor da cintura dela e a beijou na testa.
Aquilo pareceu o sinal que Darcy esperava; com as pernas trémulas se dirigiu para a
escada. Agora ela era realmente uma intrusa. Poderia deixar San Solito que ninguém iria
se importar com ela. No momento em que ia subir a escada, viu Carlos, que a observava.
-Agora você pode me levar para a estação, Carlos! Ele inclinou a cabeça.
-Quando quiser, senorita. Tão logo tenha se despedido...
-Não ela murmurou. Eu não ia ter coragem. Vou buscar minhas coisas e me encontro com
você na garagem. Eu... eu prefiro assim... você compreende?
-Eu ouvi tudo ele disse. E vi o que aconteceu. O patrão não vai ficar satisfeito se a senorita
sair sem avisar. Pelo menos por cortesia.
Ela sentiu um grande cansaço. Não ia suportar se despedir de Júlio. Queria sair naquele
momento, enquanto ainda podia conter as lágrimas.
-Por favor, Carlos seus olhos suplicavam, leve-me para a estação, sem avisar ninguém. Don
Júlio não vai se importar. Ele compreenderá por que não fiquei para dizer adeus.
-Está bem, senorita, como queira. Estarei esperando.
-Obrigada ela respondeu, subindo a escada. Seu tornozelo ainda doía.
No quarto, tudo era triste; a chuva ainda caía, batendo contra as janelas. Ela tirou suas
coisas do guarda-roupa e das gavetas, e as amontoou dentro da mala de viagem. Guardou
os cosméticos dentro da bolsa de mão, e olhou mais uma vez para o quarto onde Júlio
tinha ficado com ela. Saiu rapidamente.
De cima da escada, deu uma olhada para o vestíbulo. Estava vazio e a cadeira de rodas já
não estava mais lá. Sem dúvida a família estava reunida na sala, comemorando o
acontecimento... Talvez Ramón voltasse a andar e, quem sabe, com o tempo, Júlio a
perdoasse pelo que tinha acontecido. Pelo menos, tinha ajudado a despertar o sistema
nervoso de Ramón. Um dia ele voltaria a caminhar novamente e a tristeza desapareceria
de seus olhos. Talvez ele ficasse em San Solito para ajudar Júlio a dirigir a propriedade.
Darcy evitava passar pelas portas que davam para a sala. Tratou de sair por um corredor,
já em direção à garagem. A chuva tinha diminuído um pouco e ela podia sentir o cheiro
das árvores molhadas.
O carro estava estacionado junto à saída e o motorista, de uniforme branco, esperava na
direção.
-Não precisa descer ela disse, sentando-se ao lado dele e colocando sua bagagem no
banco traseiro do carro.
Sem dizer nada, ela ficou olhando para a frente, enquanto o carro começava a deslizar
suavemente pelo caminho debaixo da chuva que caía mais leve agora. O limpador de
pára-brisa começou a funcionar.
Enquanto Darcy lutava para controlar as lágrimas, a grande mansão de estilo espanhol ia
ficando cada vez mais para trás.
Ela não queria chorar, porque não ia poder parar mais. Sua voz estava trémula quando
falou para o chofer.
-É muita bondade sua me fazer esse favor. Tenho certeza de que seu patrão vai entender
por que resolvi sair assim, sem falar nada. Ele não vai culpar ninguém por isto, talvez só a
mim.
-Talvez ele se culpasse a si mesmo, minha querida, se deixasse você ir embora!
O coração dela deu um salto e, com um gemido que parecia vir das profundezas da sua
alma, Darcy se virou para ver quem estava guiando. Naquele uniforme branco de
motorista, estava alguém a quem ela amava perdidamente. Alguém que havia entrado em
sua vida sem pedir licença.
-Júlio!
-Sim... eu, sua bobinha ele disse carinhosamente. Então parou o carro, e no instante
seguinte a estava puxando para si.
Darcy não acreditava no que estava acontecendo. Através das lágrimas, ela via aquele
rosto moreno se aproximar com dois olhos negros de paixão e não teve mais controle
sobre seu corpo. Júlio a tomou nos braços e seus lábios se encontraram num beijo que
apagava tudo.
Ela correspondeu ao abraço de Júlio, seus dedos lhe acariciando os cabelos, seus lábios
abertos para os beijos dele. Darcy parecia diluída numa chama ardente e morreria se
depois daquele beijo o amor não se consumasse completamente. Ele pousou a boca no
pescoço dela
Os dois, tomados da mesma emoção, os corações num único compasso, ficaram em
silêncio, arquejantes. Então ele se moveu e deu um grande suspiro.
-A hora da verdade ele sussurrou. Eu a amo com loucura e, graças a Deus, tenho um
amigo leal que veio me dizer que a mocinha estava fugindo de minha casa com os olhos
cheios de lágrimas. Uma das razões por que Carlos e eu trabalhamos tão bem juntos é a
grande afinidade que temos; há algum tempo ele adivinhou que eu estava
desesperadamente apaixonado por você.
-Mas eu... Ela tremia. Júlio, eu não posso... não me faça...
-Meu anjo ele disse baixinho, segurando o rosto dela entre as mãos, tudo passou, está
acabado. Eu a quero só para mim.
-Mas você estava tão bravo comigo, tão furioso porque eu disse a Ramón que não podia
me casar com ele ela disse, procurando ler no rosto de Júlio.
Mas ele estava curiosamente suave, os olhos escuros iluminados por uma doçura
desconhecida. Ela sentiu um amor tão grande que seu coração parecia doer. No entanto,
será que ele a amava realmente?
-Eu pensei que Ramón estivesse sendo sincero sobre você, minha querida. Se tivesse
adivinhado o verdadeiro motivo pelo qual ele a queria, eu lhe teria torcido o pescoço. Por
Deus, Ramón tinha razão de ser revoltado, mas não daquele jeito, querendo-a só para
usá-la e consumi-la em sua vingança.
Ternamente, Júlio passou a mão pelos cabelos dela, afastando uma mecha que lhe caía
sobre os olhos. Inclinou a cabeça e lhe beijou os olhos, movendo os lábios sobre as
pálpebras trémulas. Ele a olhou profundamente, longamente, dentro dos olhos. Com um
pequeno soluço, Darcy se agarrou nele e escondeu o rosto em seu pescoço.
Ele a queria, e isso estava evidente, mas o amor que ela imaginava devia ter alguma coisa
mais... Além do desejo, o contentamento de se sentarem à frente de uma lareira de mãos
dadas, olhando para as chamas que aquecem um verdadeiro lar, cheio das pequenas
coisas que completam uma vida a dois.
-Júlio ela perguntou, respirando fundo, o que você sente por mim é somente uma coisa
física? Você disse que eu despertava... o animal que existe em você.
-E é assim mesmo ele rosnou. Animal, protetor, rival.. marido. Eu a desejo e a amo ao
mesmo tempo, minha pequena. É assim mesmo, com um homem e uma mulher. Isto é
amor, minha adorada. Diga-me, eu também não desperto a fêmea que existe em você?
Ela sentiu a pele morena do pescoço dele sob suas unhas e suavemente as enterrou nele.
-Meu bruto adorado! Você beijou Dorina! E agora o que vai ser dela?
-Ela é uma caçadora, meu amor, e vai sobreviver, tenho certeza, para conseguir algum
outro homem que lhe dê tudo o que ela quer. Júlio a olhou nos olhos, preparando-se para
beijá-la mais. Você vai ser minha mulher, amante, a doce mãe de meus filhos. Você vai ser
minha, agora e sempre. Agora, dê-me um beijo.
Darcy entregou seus lábios ao calor dos lábios dele... ardentes, excitantes, como aquela
terra molhada.
FIM

Você também pode gostar