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O Primo Que Veio De

Longe
The Unexpected American

Ann Hulme

Então, aquele homem alto, de olhos cinzentos, cabelos castanhos, era Benjamin Custis
Stanton, que herdara o título de conde e a adorada propriedade da família! Harriet, a jovem lady
inglesa, não tolerava o "selvagem" americano, mas aceitou casar-se com ele. Seria seu marido só no
papei, voltaria para a América dentro de um ano e tudo seria dela. Mas ao terminar esse prazo, lady
Harriet descobriu que só queria uma coisa na vida: o amor de Ben Stanton... porém, seria tarde
demais?

Digitalização e correção: Nina


Revisão e Formatação: Samuka
Coleção Sissi 11 — O Primo que Veio de Longe — Ann Hulme

Título: O primo que veio de longe


Autor: Ann Hulme

Título original: The unexpected american

Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991


Publicação original: 1989
Gênero: Romance histórico

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Coleção Sissi 11 — O Primo que Veio de Longe — Ann Hulme

Capítulo 1

O homem passou a mão pela superfície do muro, avaliando-o, como se pretendesse transpô-
lo. Sua cabeça quase alcançava o alto, e não precisou de muito esforço para espiar por cima dele e
ver o que havia do outro lado: um denso bosque, com árvores altas, copadas, silencioso e deserto.
Deixou-se cair no chão e esfregou as mãos empoeiradas.
O muro não apresentava problema. Era construído por pedras sobrepostas, sem argamassa,
muito sólido e oferecia vários pontos de apoio para os pés de quem quisesse saltá-lo. Mas o sol
ainda não chegara a aquecê-lo, embra já fosse meio-dia, e as pedras estavam escorregadias,
levemente cobertas de geada. O homem sabia que não poderia ficar durante muito tempo ali, sem
ser visto por alguém que estivesse voltando para casa, a fim de almoçar. Não queria que ninguém o
visse, pois em lugares pequenos, no campo, uma pessoa estranha logo chama a atenção, tornando-se
objeto de curiosidade e comentários.
Precisava agir sem demora, decidiu. Pulou, agarrou-se no topo do muro e com um impulso
passou as pernas compridas para o outro lado, caindo num emaranhado de urtigas secas e mato
enegrecido pelo frio.
Sua chegada na outra banda não provocou reações de vulto. Um pássaro solitário levantou
voo e logo pousou num arbusto próximo, observando-o com olhos brilhantes e desconfiados. O
homem ficou imóvel, tentando discernir algum ruído que anunciasse perigo, porém tudo estava
calmo. Então, embrenhou-se no pequeno bosque, atravessando-o em pouco tempo. No lado oposto
viu uma ponte de pedra sobre um córrego e, mais além, uma extensão ampla de gramado em aclive,
que ia até um casarão de pedra cinza, a certa distância. A frente da casa tinha uma varanda e diante
dela encontrava-se uma caleça puxada por uma parelha de cavalos. Esta parecia de aluguel,
daquelas usadas por pessoas que não tinham carruagem e precisavam viajar. Isso demonstrava que
havia visita e talvez se tratasse de negócios, pois a caleça esperando indicava que o visitante não iria
demorar.
Viu um vulto feminino passar várias vezes diante de uma janela aberta. Franziu a testa e
recuou, ocultando-se entre as árvores, para ver e esperar.
Harriet Stanton andava de um lado para outro da sala, nervosa, com as mãos entrelaçadas,
dizendo com voz embargada:
— Pode ser legal, mas não é justo!
Seu interlocutor, um advogado, suspirou. Estava cansado; seus sessenta anos ressentiam-se
da longa viagem na caleça alugada. Tinha vontade de se aposentar e poderia fazê-lo, porém sentia-
se obrigado a concluir o caso da propriedade Stanton. Conhecia as duas irmãs desde a infância e
gostava delas, principalmente de Harriet.
— Querida menina — tentou acalmá-la —, precisamos de um pouco de otimismo, não
acha?
— Otimismo!
A moça virou-se rápida, fazendo rodar a saia de sua roupa de montaria. Seu corpo era muito
delgado, de linhas suaves, tão elegante que nessa época, em que se trocavam as anquinhas e o
espartilho por vestidos leves, muitas mulheres passavam a fazer regime depois de ver Harriet.
O sol pálido de inverno entrava pela janela e punha um halo luminoso em seus cabelos
castanho-acobreados.
— Como posso ser otimista se vão me enxotar da minha casa? — perguntou, mais

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nervosa ainda.
Olhou para o chicote em cima da mesa, ao lado do chapéu, como se estivesse tentada a
castigar quem ia fazer tal coisa.
— A vinculação da propriedade... — murmurou o advogado. — Não há meio de se passar
por cima dela, Harriet. Seu pai e eu discutimos muito esse assunto. Se existisse um meio, nós o
teríamos descoberto. A propriedade, incluindo a casa, as terras e as rendas, deve passar ao herdeiro
masculino mais próximo. Claro, se lorde Stanton tivesse tido a sorte de ter um filho, a situação seria
diferente. O herdeiro seria o rapaz ou, então, ele e seu pai poderiam desvincular a propriedade por
meios legais...
No entanto o pai de Harriet não conseguira um filho, apenas duas filhas e, depois da
segunda, os médicos tinham achado que lady Stanton não podia mais ter filhos. A situação tornara-
se desagradável: o casal não tinha rendas a não ser as da propriedade, Monkscombe, que estava
vinculada à família.
A sra. Stanton morrera antes do marido, que, embora contristado, chegara a pensar em um
segundo casamento, para tentar ter um herdeiro direto. Desistira, porém, reconhecendo que o risco
era grande. Poderia vir a ter mais filhas e deixaria uma viúva, além das filhas, se viesse a falecer.
Aí, decidira viver o mais possível, pelo menos até que as duas jovens se casassem. Mas também
esse seu desejo fora frustrado.
Visitando a cadeia, em sua função de juiz de paz, apanhara uma febre infecciosa de um
preso e falecera no ano anterior, deixando as filhas solteiras e sem meios para se sustentar.
Monkscombe passara a ser propriedade do filho de seu irmão mais novo, que emigrara para as
colônias americanas, nessa época elevadas a Estados Unidos da América.
O mais novo dos Stanton emigrara devido a uma briga familiar, e os irmãos não haviam se
correspondido. Investigações posteriores tinham revelado que ele se estabelecera em Filadélfia e se
casara. Morrera havia alguns anos, deixando um filho, Benjamin Curtis Stanton, que jamais estivera
na terra de seus antepassados ingleses. E Benjamin Curtis Stanton era, agora, o proprietário de
Monkscombe.
— Por que Curtis? — perguntou Harriet, de repente.
— Pelo que sei — respondeu o sr. Ferrar, pigarreando —, Curtis era o sobrenome da mãe, e
quiseram preservá-lo.
— Que falta de tato, considerando que a fortuna dele vem deste lado da família! —
exclamou Harriet, amarga.
— Quem poderia imaginar tal coisa, na época? — censurou-a o senhor. — Pelo que soube,
Monkscombe não é a única riqueza desse rapaz. Ele tem renda considerável de uma empresa
fundada pelo pai. É isso que me dá esperança. Afinal, se o sr... bem, agora lorde, Benjamin Stanton
não depende da herança inglesa, poderá estabelecer uma renda para as primas. Ele pode ser um
colonial... creio que deveria dizer americano, porém sou muito velho para pensar naquelas terras
como outra coisa que não uma colônia... mas podemos esperar que seja um cavalheiro. Seria
decente que fizesse algo por você e Caroline.
— Estou preocupada com minha irmã. Pessoalmente, eu poderia arranjar como me
sustentar, porém ela...
O sr. Ferrar entendia a preocupação de Harriet. Caroline Stanton, com seus dezenove anos,
era a moça mais bonita em um raio de muitos quilômetros, e sabia disso. Não existia na região
homem solteiro e aceitável que não tivesse se apaixonado por ela. Caroline estava acostumada a ser
objeto de admiração e adulação, que aceitava com encantadora indiferença. Harriet tentara
inutilmente explicar a irmã caçula que elas não tinham dote. Como morava em Monkscombe, com
quinze pessoas para servi-la, Caroline não se dera por entendida. Mesmo agora, não queria
compreender que em breve não seria a srta. Caroline Stanton, de Monkscombe, e sim apenas mais
uma moça bonita sem fortuna, provavelmente morando em um quartinho de aluguel.

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— O senhor localizou-o afinal? — quis saber Harriet, aludindo ao primo.


Olhava a ponte de pedra sobre o córrego, no qual, quando criança, remava em seu
barquinho, enlameando o vestido. Era muito doloroso saber que não lhe pertencia mais. O desespero
que sentia era tão grande, que seu estômago embrulhou-se.
— Sei que ele está viajando pela Europa — respondeu o sr. Ferrar. — Mandei-lhe cartas
para Viena, mas a cidade está ocupada pelos franceses, e é difícil receber resposta.
— Não entendo! — exclamou Harriet. — Estamos em guerra com a França, a Europa
inteira está em guerra, e ele passeia!
— Os Estados Unidos não estão em guerra com a França, Harriet, e ele pode viajar para
Viena, Haia ou Paris. Deve ter passaporte americano, e com este pode até ir visitar Napoleão, se
quiser... — O advogado achou a ideia engraçada, e riu.
— Esquisito isso — afirmou a jovem, pensativa —, porém entendo. Se ele quiser, virá à
Inglaterra, até Monkscombe, reclamar sua herança.
— Não podemos recusar-lhe a entrada — disse o advogado, colocando um pouco de rapé
nas costas da mão e aspirando.
— De fato, quanto mais cedo vier, mais cedo será possível encontrar uma solução.
— A solução, neste caso, será nos recomendar, a Caro e a mim, à caridade desse caipira
colonial, para que nos deixe morar em um par de quartos, na ala menos usada da casa que foi nosso
lar... Eu não aguentaria, acredite! E, quanto a Caroline... Bem, pensando nela, talvez me sujeitasse à
humilhação de pedir a Benjamin Curtis Stanton que nos deixe morar aqui. Mas ela não
compreenderia, continuaria a viver como sempre, como se fosse a dona,, e duvido muito que nosso
primo colonial concorde com isso!
O sr. Ferrar não chegou a responder, pois uma criada apareceu à porta.
— Um capitão de milícia está aqui e quer falar com a senhorita — anunciou.
— Mande-o entrar — respondeu Harriet. — Espero que não se importe, sr. Ferrar. Serão
apenas alguns minutos. A milícia está sempre perseguindo contrabandistas, e pede licença para
revistar as nossas terras.
O capitão entrou, com passos enérgicos. Era jovem e ostentava expressão que era mistura de
esperança, determinação e embaraço. Olhou em redor, como se esperasse ver alguém, e não
conseguiu disfarçar o desapontamento. Curvou-se diante de Harriet e pediu desculpas pela
interrupção.
— O senhor é o capitão Murray, não? — Harriet estendeu-lhe a mão. — Já esteve aqui
antes... Novamente atrás de contrabandistas?
— Não, milady, embora eu creia que os contrabandistas têm algo que ver com o caso —
respondeu ele. — Estamos procurando um espião francês.
— Santo Deus! — exclamou o advogado.
— Sim, senhor — confirmou o jovem capitão. — Sabemos que ele desembarcou neste
litoral, ontem à noite, provavelmente auxiliado pelos contrabandistas. Devem ter marcado um
encontro com o navio de guerra francês em alto-mar e trazido o espião para terra. Para eles, dinheiro
é dinheiro, não importa de onde venha.
— Malditos traidores! — bradou o sr. Ferrar, irado.
— Sim, senhor! Só ficarei satisfeito quando todos eles forem enforcados, em Bristol... Oh,
desculpe, srta. Stanton! Não queria chocá-la... Bem, de qualquer forma, o espião chama-se Lesage.
A região está sendo vigiada, e não acredito que ele tenha saído daqui, embora não tenhamos
conseguido apanhá-lo ontem à noite.
O capitão tinha a ambição de capturar o famigerado bandido, de preferência sozinho,
transformar-se em herói, com o nome nos jornais, promoção garantida... e conquistar o coração
dela. Ela ficaria impressionada com um herói.
— Capitão... — chamou Harriet.
O capitão Murray despertou do devaneio, enrubescendo.
— Madame, ele está escondido em algum lugar por perto, e as terras de

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Monkscombe seriam o ideal para isso, ficando a apenas um quilômetro da enseada em que
desembarcou. Meus homens estão a caminho. Vim na frente para preveni-las e pedir permissão para
uma busca.
— Mas é claro — declarou Harriet. — Tem uma descrição desse homem?
— Sabemos pouco, porém é melhor do que nada. Tem aproximadamente trinta anos, é
muito alto, mais ou menos um metro e oitenta, fala muito bem nosso idioma, talvez com um pouco
de sotaque. E muito astuto, desprovido de escrúpulos e, se a senhorita ou a srta. Caroline o
encontrarem, não se arrisquem!
Ao mencionar Caroline ele parecia angustiado, e o advogado observou-o, curioso.
— Avisarei os criados — sussurrou a jovem. — Muito obrigada, capitão. Era uma
despedida óbvia; contudo, o rapaz não se mexeu.
— Considero como minha obrigação avisar também a srta. Caroline.
— Transmito o aviso à minha irmã — afirmou Harriet.
— Mas... Eu deveria fazê-lo pessoalmente... — O capitão engoliu em seco. — Quero dize...
— Até que é uma boa ideia — interferiu o advogado, sentindo pena dele. — O capitão
precisa esperar seus homens e, se conversar com Caroline, você e eu podemos concluir nosso
assunto.
— É verdade — concordou a jovem. — Minha irmã está na sala de música, capitão. Um
dos criados poderá...
No entanto, o capitão já ia saindo.
— Rapaz agradável — comentou o sr. Ferrar.
— Meu caro amigo — murmurou Harriet, secamente —, se o senhor julga que sou cega a
ponto de não perceber que o pobre moço está apaixonado por Caroline, engana- se! Ele veio aqui
duas vezes para avisar que havia contrabandistas pelos arredores. Uma vez para dizer que
trancássemos bem portas e janelas, porque havia ladrões nas proximidades; outra vez para
comunicar que haviam roubado cavalos nas propriedades vizinhas; e mais três vezes por motivos
que não soube explicar... É malvadeza encorajá- lo. O senhor conhece bem a minha irmã. Ela só
gosta de flertar. Há rapazes que não ligam para isso, mas ele, não. Esse capitão leva as coisas a
sério, e Caro leva tudo na brincadeira...
O advogado fez que sim com a cabeça, e ela continuou:
— E se Caroline começasse a levar esse rapaz a sério, seria muito pior. Duvido que ele
tenha mais do que seu soldo, e ela, como nós dois sabemos, não tem nenhuma fortuna, além da
beleza... O capitão não poderia dar a Caro a vida à qual está acostumada.
— Caroline vai ter de enfrentar a realidade — afirmou o advogado, com certa aspereza. —
Precisa acostumar-se a viver dentro de certos limites.
— Ela não consegue. Imagine: Caro julga que encomendar dois vestidos de baile em vez de
três, é fazer economia! Até se declarou disposta a usar renda de Nottingham, em vez da de Flandres,
creio que por causa do capitão Murray. Ele deve ter-lhe dito que a de Flandres é de contrabando e
só enriquece os franceses.
— Nesse caso, o rapaz exerce boa influência sobre ela. — O sr. Ferrar levantou- se, com
dificuldade. — Pense seriamente nesse assunto de espião. É um homem perseguido, e quando for
preso será enforcado. É perigoso... — Fez um gesto em direção às janelas. —As terras de
Monkscombe têm muitos bosques, trechos cheios de mata fechada, onde um fugitivo poderia se
esconder.
Harriet acompanhou-o até a caleça e ficou à porta, até que o velho senhor se acomodou.
Sabia que aquela viagem era muito cansativa e sentia-se grata por ele ter vindo. Tinha sido muito
amigo de seu pai, tratava-a como uma sobrinha e principalmente era um grande amigo.
Nesse momento, o advogado enfiou a cabeça pela janelinha e declarou:

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— Você é uma moça muito mais atraente do que Caroline, e essa roupa de montaria fica-
lhe muito bem. Desculpe minha visita inesperada, que a impediu de fazer a sua cavalgada de todos
os dias.
Antes que Harriet retrucasse, segurou a mão que ela erguera e beijou-a.
— É isso mesmo. Você deve impressionar muito os homens mais moços do que eu... Não
nego, Caroline é uma moça linda, mas de uma beleza superficial, que não dura muito. Ela
impressiona à primeira vista, você atrai e cativa as pessoas quanto mais elas a conhecem. Você é a
melhor das Stanton, minha menina!
— Deus o abençoe, sr. Jonas... Durante este último ano, desde que papai faleceu, tem sido
nosso apoio.
Ele sacudiu a cabeça, emocionado. Usava peruca, à moda antiga, e Harriet não lembrava de
tê-lo visto sem ela.
— Não... — bradou o velho senhor. — Você não precisa de mim. Precisa de um homem
moço, que realmente lhe dê apoio e segurança, Harriet.
Pensou que era uma lástima aquela moça atraente não ter marido. Se ele tivesse trinta anos
menos, ou mesmo vinte e cinco... Um mando daria conforto e apoio nessa hora difícil, trataria de
resolver os problemas e proporcionaria a ela momentos agradáveis. E uma companhia masculina na
certa suavizaria seu modo de agir sem rodeios, suas atitudes bruscas, próprias de quem necessita se
defender.
Quanto a Caroline, precisava encontrar alguém que enfiasse um pouco de juízo naquela
cabecinha em que os pensamentos piscavam como vaga-lumes, que a dominasse como se faz com
uma potranca selvagem. Seria uma pena se a tendência dela de levar tudo na brinca eira afastasse
os admiradores mais sérios. O jovem capitão escocês causara boa impressão ao velho advogado,
mas Harriet não o provava e, de fato, não havendo dinheiro dos dois lados, seria um péssimo
casamento .Pena...
O Sr. Jonas Ferrar berrar ajeitou a manta sobre as pernas, firmou o chapéu e mandou o
cocheiro tocar os cavalos.
Harriet ficou olhando enquanto a caleça se afastava. Depois voltou-se e olhou a casa. Como
o nome indicava, Monkscombe, em outros tempos houvera um mosteiro naquelas paragens. Os
Stanton viviam naquela propriedade desde a Idade Média. Haviam reconstruído e reformado várias
vezes a casa, que apresentava uma mistura curiosa, bastante agradável, de estilos arquitetônicos. A
última reforma datava da época da rainha Ana e, entre outras coisas, a casa ganhara o "Passeio da
Viúva", uma estranha galeria externa, logo abaixo do beiral do telhado, de onde se via o mar quase
a um quilômetro de distância. Era dali que as esposas de comandantes de navio esperavam a volta
das embarcações que se atrasavam.
Monkscombe e a família Stanton eram parte integrante da região, de sua história e tradições.
Agora, vinha vindo um Stanton diferente. Um americano. Um homem que não tinha relação pessoal
alguma com a casa, sua história e sua importância.
— E tudo porque Caro e eu somos mulheres! — resmungou, furiosa. — Dizem que o lar de
um inglês é seu castelo, porém isso só vale para os homens. A lei deste país não tem nenhum
escrúpulo em deixar uma mulher sem lar!
Não tinha vontade de entrar em casa. Claro, devia ir à sala de música e interromper o
colóquio entre o capitão Murray e sua irmã.
"Vou dar-lhes dez minutos", pensou, "e, se os milicianos não chegarem, entro e me sento
entre os dois, interrompendo o namoro!"
Enfiou o chapéu na cabeça, amarrou o véu embaixo do queixo e se dirigiu para a ponte, sem
saber por quê. Enquanto caminhava pelo gramado, erguendo a barra da saia, recordou as últimas
palavras do advogado e corou, embora estivesse sozinha. Depois chegou à conclusão de que ele
apenas quisera ser gentil. Sentiu-se até culpada por lembrar dos elogios.
A ponte estava coberta de musgo, e a argamassa soltava-se em alguns pontos;

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precisava ser consertada. Havia muita coisa em Monkscombe esperando por conserto. Bem, a
responsabilidade não era mais dela. Cedo ou tarde teria de entrar em contato com Benjamin Stanton,
e seria necessário apontar-lhe esses fatos. Sem ele, não podia dar andamento a nada.
— Também, esse homem poderia estar aqui, antes que Monkscombe caia em ruínas, em vez
de estar se divertindo com os franceses, em Viena! — exclamou, sem notar que falava em voz alta,
de tão zangada. — Mas ele vai chegar a hora que quiser, na certa com roupas de couro e mastigando
fumo!
Essa imagem lhe deu uma satisfação cruel. Atravessou a ponte e entrou no bosque. Parou
junto ao tronco de um enorme teixo e ficou pensando em como tudo estava calmo em torno. Aos
poucos, sua mente inquieta absorvia aquela paz.
De súbito, um estampido ecoou, parecendo um tiro de rifle. Pulou instintivamente para trás,
quase perdendo o equilíbrio, quando ouviu som de galhos se quebrando. Um corpo pesado caiu
quase a seus pés. Harriet sufocou a metade do grito que lhe escapou da garganta, colocando a mão
na boca. Fez-se silêncio total. Os pássaros haviam fugido e se mantinham calados. Um
desconhecido jazia de costas no chão e parecia ter perdido os sentidos. Por instantes, em pânico,
julgou que ele estava morto. Nunca o vira. Era alto e dava impressão de força mesmo ali, caído e
inerte.
Harriet ajoelhou-se junto dele, sem pensar que ia sujar a roupa, e pôs a mão na testa do
desconhecido. Ele gemeu, e ela retirou a mão, depressa. Pelo menos, estava vivo.
Os cabelos do homem, um tanto compridos, caíam para trás, revelando uma testa alta, um
rosto magro, bronzeado, de feições marcantes. Enquanto o observava, ele abriu os olhos, de um
azul-acinzentado. Quando conseguiu focá-los e enxergá-la, o homem franziu as sobrancelhas.
A moça já recuperara a calma, levantou-se e se distanciou um pouco, enquanto ele sentava,
apalpando o alto da cabeça.
— O senhor está bem? — quis saber.
O homem gemeu, apertando os olhos para vê-la melhor. Pôs-se de pé com um movimento
brusco, e Harriet viu que era mais alto do que calculava. Parecia enorme, para uma mulher de um
metro e sessenta, como ela. Prudente, recuou mais alguns passos.
— Quem é o senhor? — indagou, com calma aparente. — Invadiu uma propriedade
particular!
— Que terras são estas? — perguntou o homem, em tom de desafio, e pronunciava as
palavras com uma inflexão estranha.
— Dos Stanton, Monkscombe — esclareceu ela, zangada.
— E quem é você? — O tom do desconhecido era rude.
— Sou Harriet Stanton! — Ela quase gritava, tal sua irritação. — Quer me dizer o que faz
aqui e por que subiu na árvore?
A situação era ridícula, embaraçosa, e piorou quando ele se limitou a observá-la, coçando o
queixo, como se pensasse no que responder. Nesse momento, uma ideia horrível passou pelo
cérebro de Harriet e a paralisou. Ele devia ser o espião francês... Lesage ou algo parecido. Qual fora
a descrição do capitão Murray? Um metro oitenta. Devia ser isso. Forte... é. Um leve sotaque... isso
mesmo.
— Realmente, o senhor não devia estar aqui, mas levou um tombo muito feio... —. afirmou
ela, cuidadosa. — Se me acompanhar até em casa, eu lhe darei um copo de vinho, para reanimá-lo.
— Muito gentil... — murmurou ele. — Obrigado, madame.
Harriet achava que teria dificuldade em atraí-lo até a casa; no entanto, ele dirigiu- se para a
ponte, decidido, em passos rápidos e tão longos, que ela precisou quase correr para se manter ao
lado dele.
— Por que o senhor estava em cima da árvore? — tornou a interrogar, deixando-se

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levar pela curiosidade.


— Porque, como Zaqueu, queria observar sem ser visto.
A srta. Stanton tivera de estudar a Bíblia, como todos da família, e replicou:
— Zaqueu era muito pequeno, por esse motivo subiu na árvore. Imagino que ele não
pesasse muito, porém, o senhor é pesado, muito alto, e principalmente, velho demais para andar
subindo em árvores. Isso é perigoso e tolo — arrematou, severa.
— Já fiz muitas coisas perigosas, srta. Harriet, esta foi a menos perigosa de todas... —
Chegavam a casa. — A caleça foi embora — bradou ele —, mas parece que há outra visita — e
apontou o cavalo que um criado segurava pela rédea, diante da porta principal.
— Não se preocupe — Harriet apressou-se a dizer, e rezou para que ele não notasse a manta
da milícia na sela. — É um rapaz que veio visitar a minha irmã.
Então, ele estivera mesmo de olho na casa! Esse era um pensamento desconcertante e até
assustador. Por que o fazia?
— Há mais alguém em casa? — indagou ele, com certa aspereza.
Parecia uma pergunta importante e Harriet respondeu, enquanto o encaminhou para uma
porta lateral, que dava no saguão.
— Apenas a criadagem. Contudo, se o senhor estiver machucado, posso mandar chamar um
médico.
— Não! — foi a resposta pronta e decidida.
— O senhor é que sabe... — concordou ela, para tranquilizá-lo, e abriu a porta da sala de
música.
O capitão Murray estava de joelhos, como se fosse fazer um pedido de casamento. Caroline,
segurando uma partitura, olhava-o com leve interesse. Ambos ergueram a cabeça quando Harriet
entrou.
— Capitão Murray! — gritou e, enquanto ele se erguia de um salto, segurou o homem por
uma das mangas, para que não fugisse.
— Encontrei este homem no bosque... ele caiu de uma árvore. Tenho certeza que é Lesage,
o espião que o senhor procura.
O capitão achava-se desarmado; seu cinturão, com a espada, fora pendurado no espaldar de
uma cadeira, e ele se aproximou dela, num piscar de olhos. Empunhou a espada, e ordenou ao
desconhecido, sem tomar fôlego:
— Explique-se, senhor, ou vou prendê-lo!
— Oh, James! — suspirou Caroline, quase impressionada.
Satisfeito, o capitão Murray acreditou que as coisas caminhavam como planejara.
— Não se mexa! — advertiu, aproximando-se do estranho com cuidado.
Caroline observou o recém-chegado com seus enormes olhos azuis, lábios entreabertos e o
rosto, lindo, emoldurado por cachos cor de cobre. Já não usava o cinza do luto, e sim um vestido
lilás, que era a cor que lhe assentava melhor.
— Quem é o senhor? — perguntou, com um sorriso encantador.
— Espere, srta. Caroline! — interferiu o capitão Murray, zangado. — Deixe-me cuidar
disso. Tem identificação, senhor?
— No meu bolso — respondeu o homem, com calma, e ia levando a mão ao bolso, mas
parou. — Ah, não quero que pense que vou pegar uma arma!
O capitão fez de conta que também pensara nisso.
— Mantenha as mãos onde eu possa vê-las! Srta. Stanton, poderia, por favor...?
— No bolso de dentro, srta. Harriet — explicou o prisioneiro, com familiaridade. — Há um
monte de papéis.
Ela retirou-os, com cuidado, e entregou-os ao capitão James Murray, porém ele não podia
manusear os papéis sem largar a espada.
— Por favor, senhorita, leia-os — solicitou.
Harriet apanhou um dos papéis, abriu-o, leu algumas linhas e soltou uma

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exclamação sufocada.
— Que foi, Harriet? — gritou Caroline, vendo a irmã empalidecer.
— Não... — murmurou a moça, com voz apagada. — Isso é impossível! — Voltou- se para
o homem e perguntou, nervosa: — De quem roubou estes papéis, seu miserável?
— Eles têm a minha assinatura — revidou o prisioneiro. — Vou trazer uma e a senhorita
poderá comparar. Não os roubei, e não sou o espião francês. Srta. Harriet, por favor, mostre os
papéis ao capitão.
Ela obedeceu, o capitão Murray examinou-os e corou, enquanto dizia:
— Estes papéis indicam que o senhor é um Stanton...
— De fato – confirmou o homem impassível. — Ben Stanton. Sei que esta é minha prima
Harriet, então você é – sorriu para Caroline, enfurecendo o capitão — a prima Caroline. E esta é a
mina casa. Alguém vai me dar as boas-vindas?

Capítulo 2

As palavras de Benjamin Stanton foram seguidas de absoluto silêncio. Afinal, Harriet, ainda
sem conseguir acreditar nos documentos, resolveu enfrentá-lo:
— Mas o senhor não pode... — balbuciou. — Quer dizer, o senhor... ele está em
Viena!
— Estava — corrigiu o rapaz. — É uma linda cidade, porém infelizmente está
apinhada de franceses. Eles ocuparam todas as casas, os bares, cafés, teatros... Alguns até que são
boa companhia, mas havia gente demais para meu gosto. O advogado, sr. Ferrar, não? Perseguiu-me
pela Europa toda com cartas, então achei que era melhor vir para a Inglaterra e passar uns dias no
campo. Claro, não imaginei que seria preso...
— Senhor! — A voz do capitão soou rouca. — Confraternizou com o inimigo!
— Não com o meu inimigo, capitão. Os Estados Unidos não estão em guerra com a França.
Temos ótima opinião dos franceses. La Fayette, lembra-se? Lutou ao lado dos rebeldes, na minha
terra.
Foi Caroline quem agitou a situação. Levantou-se, e correu para o primo e, entusiasmada,
segurou-lhe as mãos.
— Mas que aventura! — exclamou, os olhos cintilando. — Viu o Exército francês,
Bonaparte? E chegou, afinal! Estávamos à sua espera há tanto tempo! Imaginávamos como seria, e
Harriet achava que era um homem primitivo, um caipirão colonial, com roupas de couro e...
A esse ponto ela percebeu que sua indiscrição poderia ser desastrosa. Calou-se, fitou a irmã
e o capitão sem largar as mãos do primo, e sorriu, dizendo:
— Vejam! E nós, tão preocupados! Ele é gentil e completamente civilizado...
— Não quero me intrometer em assuntos de família — o capitão falava com dificuldade —,
porém, acredito que o advogado Ferrar não deve estar muito longe. Quer que tente alcançá-lo e o
traga de volta, srta. Harriet?
— Sim, capitão, boa ideia! — respondeu ela, já controlada. — Obrigada. E, Caro, largue as
mãos do... do sr. Benjamin Curtis Stanton, imediatamente!
O capitão retirou-se, apressado, e Caroline largou as mãos de lorde Stanton a contragosto.
Harriet, que não queria perder o controle da situação, pegou a irmã pelo braço e pediu-lhe que fosse
dizer à governanta que preparasse os aposentos para o recém-chegado.
Lorde Stanton aproximara-se de uma janela e olhava para fora. A moça imaginou

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se deveria atacá-lo já ou esperar pelo sr. Ferrar. Antes que pudesse decidir, seu primo começou a
falar, em voz baixa como se falasse consigo mesmo, e ela procurou esforçar- se para ouvi-lo.
— É estranho estar aqui... Meu pai falava muito desta casa. Descreveu-a tantas vezes, com
tantos detalhes, que eu tinha impressão de conhecê-la. Pode lhe parecer esquisito, mas não me sinto
deslocado aqui.
— Nesse caso, não entendo por que não veio pela frente, como qualquer pessoa normal.
Afinal, ele voltou-se para ela, hesitante.
— Não tinha certeza de como ia ser recebido. — Parecia inseguro e até um pouco
embaraçado. — Acreditei melhor ver, primeiro, como estava a situação. Durante minha viagem pela
Europa, sempre tive intenção de conhecer Monkscombe e pretendia vir incógnito, para o caso de
não ser benquisto.
Fez uma pausa e, diante do olhar interrogativo dela, continuou:
— Sei que meu pai brigou com a família, e não sabia se essa briga fora esquecida ou não.
Quando cheguei a Haia, recebi a primeira carta do sr. Ferrar e tomei conhecimento, surpreendido e
meio assustado, de que herdara a propriedade e o título da família. Julgo-me um conde muito
estranho!
Harriet sentou-se e observou-o, desconfiada.
— Não respondeu à carta — disse, fria.
Ele se afastou da janela e fitou-a, as mãos atrás das costas.
— Não respondi, prima, porque se o fizesse o sr. Ferrar ia pensar que eu viria para a
Inglaterra imediatamente. Mas não podia vir. Precisava de tempo para meditar...
— Tempo?! — exclamou Harriet, ressentida. — Meu pai faleceu mais faz mais de um ano,
e descobrimos que o senhor está na Europa há mais de seis meses! Será que entende o que é cuidar
de uma propriedade do tamanho de Monkscombe? Imaginou o que foi, uma vez que ninguém podia
tomar nenhuma decisão, porque o proprietário estava passeando pela Europa? Compreende a
responsabilidade de seu titulo e de ser dono destas terras? Pensou nos agricultores e pastores que
vivem aqui? E nos criados? Durante este ano viveram na mais amarga insegurança!
— A casa me parece em boas condições, e os criados, pelo jeito, estão todos trabalhando!
— ironizou.
— Lorde Stanton — explodiu a jovem, fora de si —, o senhor portou-se muito mal! O
mínimo que devia fazer era avisar-nos a respeito de suas intenções. Creio que não tem ideia do que
é ser conde de Monkscombe, não acredito na historinha sentimental sobre seu pai e no seu desejo de
vir nos conhecer. Não sei por que se escondia no bosque, porém, a explicação não convence.
Presumo que seja mesmo Benjamin Curtis Stanton, como alega, mas com certeza não é um
cavalheiro! É um homem malcriado e vulgar!
Enquanto falava, Harriet sabia que ele ia se zangar; ainda assim a reação a surpreendeu.
— Agora chega! — ordenou ele, com voz tão firme e sonora, que as palavras pararam na
garganta dela.
Os grandes olhos acinzentados brilhavam, ameaçadores, e o rosto moreno endurecera,
tornando-se uma máscara irada. Até os cabelos castanho-avermelhados, como os dela, pareciam
eletrizados. Apontou-lhe um dedo, com firmeza, enquanto dizia:
— Não estou brincando, Harriet. Sou uma pessoa sossegada quando se comportam bem,
porém, se for ao contrário, logo descobrem que é péssimo ter-me como inimigo. Também não sou
tolo: sei que você não me quer aqui. Sei que não quer que Monkscombe seja minha, e compreendo
que não seria o conde e o dono se o seu pai tivesse tido um filho. — Viu que ela corava. — Ah, sim,
cara srta. Stanton! Não sabia nada de mim, mas eu sei tudo de vocês. Durante todo esse tempo,
amigos ingleses de meu pai mantiveram correspondência com ele e o informaram, depois a mim,
das vicissitudes da família aqui...

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Harriet abriu a boca, porém ele a fez calar com um gesto.


— Compreendo o que sente, prima. Considera esta casa o seu lar, e vou levar em
consideração o fato de que está triste e abalada. Estou mesmo disposto a pedir desculpa por assustá-
la, caindo de uma árvore e chegando de maneira nada convencional. Resta, contudo, o fato de que
estou aqui por ser o meu direito. Esta é a minha casa, sou o patrão e o chefe desta família. Vou
tomar todas as decisões sobre o que deve ou não ser feito no futuro. Acredite, se eu resolver
esvaziar a casa e fechá-la, vou fazê-lo.
— O senhor tem obrigação de administrar a propriedade da melhor maneira possível —
revidou Harriet, pálida. — Tem essa responsabilidade.
— Eu vou assumi-la. Calculo que sei, melhor do que minhas primas inglesas, administrar
uma empresa de forma lucrativa. Sabe? Nunca dependi de dinheiro herdado. Nós, os Stanton
americanos, ganhamos a vida sujando as mãos com trabalho!
— Lucro! — Pela expressão de Harriet, parecia que ela ouvira uma palavra indecente.
— Está escandalizada, não é? Pois vai ter de se acostumar com esse conceito desagradável,
como terá também de se acostumar com muita coisa mais. Para resumir, srta. Harriet, farei o que
bem entender, e nem Caroline nem você, ninguém terá o direito de interferir. Está claro?
Ela levantou-se, tremendo da cabeça aos pés, mas tão decidida a manter a dignidade, que ele
se admirou, apesar de estar furioso. A maioria das mulheres teria desatado a chorar e saído
correndo. Sentiu uma ponta de arrependimento por ter falado de forma tão rude, porém decidiu não
ligar para isso.
— Muito claro — respondeu ela, com voz controlada. — Vou providenciar para que eu e
minha irmã saiamos daqui o mais depressa possível. Enquanto ficarmos, tentaremos não incomodá-
lo. Pode dar suas ordens diretamente à governanta, a sra. Woods, que é muito competente. O sr.
Ferrar, que deve estar chegando de volta, não é apenas nosso advogado, mas também o
administrador da propriedade, por isso poderá explicar-lhe todos os pormenores.
Lorde Stanton ergueu a mão em sinal de paz e suspirou.
— Escute, eu perdi o controle... É claro que você e Caroline ficarão aqui o tempo que
quiserem. Para onde iriam?
— Não é da sua conta, lorde Stanton.
— Pelo menos, pare de me chamar de "lorde Stanton''! — exclamou ele, irritado. — Somos
primos, pelo amor de Deus!
— Quem afirma tal é o senhor — respondeu ela.
— Não vamos discutir de novo! Espere o advogado chegar, e ele resolve tudo... — Calou-se
parecendo debater algo consigo mesmo, depois acrescentou, um tanto asperamente: — Harriet, sabe
que não posso entrar e começar, simplesmente, a dirigir a casa, com ou sem a excelente sra. Woods.
— respirou fundo — Ficaria agradecido se você permanecesse aqui e continuasse a fazer o que fez
até agora.
Considerando as circunstâncias, aquela era uma confissão elegante de incapacidade, e era
evidente que lorde Stanton se esforçara para fazê-la. Estavam num impasse e ambos sabiam disso.
Se ela se retirasse, teria de enfrentar uma situação bastante complicada. Por outro lado, as duas não
tinham para onde ir, e ele bem o sabia.
Harriet sentou-se de novo.
— Nesse caso — concordou —, vamos esperar pelo sr. Ferrar. Posso fazer-lhe uma
sugestão a respeito dele?
— Claro, por favor — respondeu ele, frio.
— Trata-se de um senhor de idade, que sofre de reumatismo e deve estar muito cansado
com a viagem até aqui. Já havia feito uma boa parte do caminho de volta e viu- se obrigado a vir de
novo. Creio que nós... quero dizer, que o senhor não deve permitir que ele regresse para Bristol
hoje. Isto é, o senhor poderia convidá-lo para passar a noite

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em Monkscombe.
— Obrigado — respondeu lorde Stanton. — Vou convidá-lo.
Ninguém dormiu bem naquela noite, em Monkscombe. Os criados tinham ficado nervosos
com a chegada do novo patrão, e a permanência do advogado fora motivo de mil conjeturas.

Na manhã seguinte, assim que acordara, o criado que levara água quente para o sr. Ferrar se
lavar dera-lhe também um recado. Imediatamente depois de se aprontar, ele dirigiu-se para a sala de
música, onde Harriet Stanton o esperava. Enquanto ajeitava a peruca, antes de entrar, o velho
advogado imaginava se não seria melhor entregar o caso para um advogado jovem. Não que
quisesse abandonar Harriet Stanton, mas a devoção da moça por Monkscombe e a preocupação com
o futuro pareciam ter redobrado com a chegada do primo. Encontrou-a vestida de azul-marinho e
notou que a moça abandonara o meio-luto. Monkscombe estava para enfrentar uma nova era.
— Então, querida? — arfou o advogado, pois o ar da manhã sempre o deixava sem fôlego.
— Sinto incomodá-lo tão cedo. Ele é mesmo Benjamin Curtis Stanton? — perguntou ela,
desconfiada. — Tem certeza?
— Absoluta, minha querida. Além dos papéis, que estão em ordem, ele se parece demais
com o pai, que você não conheceu. Recordo-me bem dele. Aliás, há um retrato do seu tio ali,
naquela parede — disse o advogado, apontando.
Harriet examinou o retrato, em uma moldura dourada, oval.
— Esse é o meu tio? Ninguém me contou isso...
— Brigas de família... — declarou o sr. Ferrar. — Percebe a semelhança?
— Percebo — respondeu ela, a contragosto. — Mas não consegui dormir e fiquei
pensando... Alguém poderia ter roubado os documentos. Ben Stanton estava em Viena, ocupada
pelos franceses... que poderiam ter se apoderado dos papéis dele para serem usados por um de seus
espiões.
— Harriet, acredite, ele é Ben Stanton!'— exclamou o velho senhor.
— Mesmo assim... — teimou ela. — ele gosta dos franceses e corresponde à descrição que
o capitão Murray fez de Lesage. Não julga que poderiam ser a mesma pessoa? Ninguém encontrou
o espião, e o sr. Murray acredita que está escondido aqui...
— Quer parar com isso, Harriet? — bradou o sr. Jonas Ferrar. — Compreendo o que sente
por esta casa, que foi um choque ver seu primo de maneira tão inesperada, porém tire essas fantasias
da cabeça. Benjamin Curtis Stanton chegou e precisa fazer um acordo com ele. Não vai conseguir
nada hostilizando-o, fazendo acusações malucas, sem pé nem cabeça. Teve oportunidade de discutir
seu futuro e o de Caroline com ele?
— Praticamente, não... Ele disse que podemos ficar aqui até quando quisermos. Mas não sei
se quero ficar, se ele também ficar. Meu primo não tem a menor ideia de como administrar a
propriedade. Parece que considera que ser um conde, proprietário de terras, é a mesma coisa que ter
uma empresa. Nenhum Stanton jamais esteve no comércio, porém Ben Stanton parece muito
orgulhoso disso. Afirma que pretende tirar lucros de Monkscombe, e eu creio que, se ficar por aqui,
não vou conseguir manter a boca fechada. Na certa irá cortar as árvores, aumentar a contribuição
dos nossos camponeses! E tem um gênio horrível! — murmurou ela, ofegante.
— Achei-o muito agradável — confessou o advogado.
— É! Muito agradável, quando as coisas são como ele quer. Detesta ser contrariado.
O sr. Ferrar observou-a em silêncio, e não pôde deixar de ficar preocupado: Harriet não
sabia lidar com um homem, era franca demais, sincera, e se atirava de cabeça contra os obstáculos.
Caroline era muito diferente, e ele não duvidava que conseguiria tudo o

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que quisesse de um homem, num instante.


— Vou conversar com Ben Stanton depois do café — revelou ele, Por fim, levantando-se e
respirando com dificuldade. — Deixe que eu trate de tudo, Harriet.
— Fique sossegado, pois não pretendo interferir na conversa dos senhores — bradou a
jovem, amuada. — Assim que terminar o café, vou sair para fazer umas visitas... muitas visitas! É
melhor usar o cabriole, é mais rápido.
— Não é um pouco cedo para isso? — perguntou o velho senhor, surpreso.
— Trata-se de uma missão importante: vou avisar a todos que o herdeiro de Monkscombe
chegou. Minha ideia é começar pela igreja e terminar com visitas. Drew. Vou ficar ausente o dia
inteiro.
— Entendo... Vai levar Henderson para dirigir o cabriole?
— Sei perfeitamente manejar a rédea! — reagiu a moça, corando.
Bem agasalhada numa capa de lã com gola de pele, Harriet dirigia o cabriole com muita
classe. Tratava-se de um veículo mais esportivo do que a charrete, comumente usado pelas
senhoras, e dirigi-lo era mais para homens. O cavalo, animal enorme, vistoso, castanho e com as
patas brancas, chamava a atenção. Quase todos se voltavam para ver a srta. Harriet Stanton
dirigindo um cabriole.
Sentiu-se melhor ao ar livre e com a ideia de que o primo talvez logo se aborrecesse de
bancar o cavalheiro inglês no campo, resolvendo voltar para os Estados Unidos. Aí, a propriedade
ficaria nas mãos de um administrador, e todos sofreriam com isso. Não havia nada pior do que um
proprietário ausente. Pronto, esse novo pensamento deixou-a aborrecida outra vez.
O primo não era o que ela esperava, porém na verdade não tinha muita certeza do que
esperava... Ao vê-lo à mesa, no café da manhã, bem barbeado, vestido com bom gosto, tivera de
admitir que era bastante respeitável, até mesmo distinto. Pelo jeito, tivera excelente educação,
viajava muito, conhecia seus direitos legais e não hesitava em tomar uma decisão. Era um
adversário temível. Talvez seria, melhor se ele fosse o caipirão que imaginara...
— E ainda não entendi o que ele fazia trepado numa árvore! —disse em voz alta, sem
perceber.
O vento frio levou as palavras e acariciou-lhe as faces, tornando-as rosadas. Os cabelos
escaparam do chapéu, que só não voou por estar bem firme, preso pelo véu amarrado sob o
queixinho voluntarioso. Quem a visse, concordaria com o sr. Jonas Ferrar: ela era, de fato, a mais
bonita das Stanton.
O pastor encontrava-se em seu gabinete, preparando o sermão de domingo. Ficou
surpreendido com a notícia, e prometeu que iria visitar o conde o quanto antes. Perguntou se por
acaso lorde Stanton se oporia ao tema do sermão que preparava: a volta do filho pródigo. E Harriet
sossegou-o, informando que seria ótimo.
A parada seguinte foi na casa do sr. Mortimer Fish, um cavalheiro muito idoso, surdo e um
tanto vago. Depois de a jovem repetir tudo por três vezes, acabou confundindo o jovem Stanton
com o pai e comentou, acompanhando-a até o cabriole:
— Eu disse que ele não aguentaria ficar na Pensilvânia. Lá só tem quacres, que não sabem
nem o que é um vinho do Porto! Tinha certeza que voltaria.
Como era quase meio-dia, quando ela terminou de visitar as demais pessoas que deviam ser
avisadas, imaginou se as srtas. Drew poderiam recebê-la. As duas eram muito pobres. Moravam em
uma casa que pertencia a Monkscombe e pagavam um aluguel baixíssimo, simbólico até. O pai
delas fora pastor e embora tivesse falecido havia trinta anos, as filhas ainda faziam o que o querido
papai teria gostado que fizessem.
— Querida srta. Harriet! — exclamou a srta. Eleanor Drew, olhando-a por cima da cerca. —
Que faz por aqui tão cedo? Aconteceu alguma coisa?
Ela explicou, e as irmãs ficaram muito excitadas.
— Vamos lá, deixar nosso cartão, não é, Mary?

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— Papai aprovaria — respondeu a outra velhinha.


— E mandaremos um pote de geleia de presente — tornou a srta. Eleanor.
— Será que o senhor conde gosta de geleia? — duvidou a srta. Mary.
— Então, vamos enviar carne em conserva. Que diz, srta. Harriet?
— Acho que ele vai adorar, srta. Eleanor.
— Bem, carne em conserva. Mas, não sei, talvez geleia seja melhor... — E olhou para a
irmã, em dúvida.
— Papai gostava mais de carne, Eleanor!
— Espere um minuto, srta. Harriet. Vou pedir a Daisy que traga um pote de carne e um de
geleia, assim poderá levar os dois. Entre um pouquinho!
Quando foi embora da casa das irmãs Drew, Harriet sentia-se um tanto triste. Imaginou que
o futuro dela e o de Caroline poderia ser parecido, se não se casassem... Vivendo de favor numa
casinha da propriedade, fazendo conservas e dedicando-se a obras de caridade.
Imersa nos pensamentos, só notou o homem que ia andando a pé, na mesma direção que ela,
quando chegou perto dele. Aí, reconheceu-se sentiu um nó no estômago. Era Aaron Pardy.
Quase toda aldeia inglesa tem uma família de "maus", que vivem à margem da comunidade.
Ali eram os Pardy. Um sobrenome bastante comum, e os Pardy respeitáveis negavam qualquer
parentesco com estes, que moravam em cabanas na praia, a certa distância da cidadezinha. Diziam-
se pescadores, porém todos sabiam que eram contrabandistas. Era uma família numerosa, muito
unida. Difícil discenir os graus de parentesco entre eles, e sempre havia um grande numero de
bebês, que eram cuidados por todos, como se a todos pertencessem. Os homens eram bonitos, mas
vulgares, briguentos e mulherengos. As mulheres, também bonitas, viviam de cara feia, eram
relaxadas, submissas e geralmente estavam grávidas.
Harriet tinha medo de Aaron, porém sempre escondera esse fato. Era um rapaz bem
apessoado, de uns vinte e cinco anos, alto, forte, não se casara, e possivelmente uma ou duas das
criancinhas imundas da família lhe pertenciam. Olhava para ela de um jeito diferente e às vezes até
lhe piscava, atrevido, sem ligar que se tratasse da srta. Stanton, de Monkscombe.
No ponto em que se encontravam, o caminho era muito estreito e Harriet precisou pôr o
cavalo a passo. Esperava que Aaron se limitasse a um cumprimento insolente, como de hábito, mas,
quando a cabeça do animal emparelhou com o seu ombro, ele segurou a rédea, junto ao freio, e o
fez parar.
— Largue meu cavalo, Aaron! — ordenou Harriet, furiosa ao ver que ele sorria.
— Oh, a srta. Stanton! Bonita como um quadro... Veio dar a notícia a todos? Então, há um
patrão novo na casa?
— Meu primo, lorde Benjamin Curtis Stanton, chegou — disse ela, secamente. — Se é o
que desejava saber, já sabe. Solte o cavalo e deixe-me passar.
Aaron continuou segurando o cavalo com uma das mãos e afagando o focinho do animal
com a outra.
— Imagino que não gostou de vê-lo — afirmou, por fim.
— Tal fato não lhe diz respeito! — esbravejou a moça. — E não é verdade.
Ficamos muito contentes por ele ter vindo.
— Não foi o que ouvi... — ele riu. — A senhorita quis entregá-lo aos soldados. — O olhar
de Aaron era astucioso.
— Como soube disso? — perguntou ela, desconcertada.
— Ouço muita coisa por aí. Gosto de saber o que a senhorita faz... Pode ser que um dia
precise de mim.
— Duvido muito — replicou ela.
Puxou a rédea, o cavalo ergueu a cabeça e recuou alguns passos, enquanto o

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cabriole balançava perigosamente.


— Um cavalo em disparada é de assustar... — murmurou Aaron, falando devagar e
observando-a. — Uma moça delicada como a senhorita não conseguiria dominá-lo.
Ela ficou apavorada, porque sabia que aquele homem era capaz de qualquer coisa. Tirou o
chicote do suporte, decidida a fazê-lo estalar no ar, para obrigar Aaron a soltar a rédea, porém, sua
pontaria foi melhor do que esperava, e a trança fina de couro atingiu o rosto barbado do rapaz. A
marca do chicote avermelhou a pele, ele praguejou, levantando a mão para evitar outra chicotada, e
largou o animal, que, assustado com o estalido, saiu em disparada.

Nos minutos seguintes Harriet sentiu um medo que nunca sentia que Aaron estava certo: não
tinha força para controlar o cavalo, e o veículo saltava devido à velocidade. Precisou agarrar-se para
não cair e ficou à espera de que o cabriole tombasse. Mas não tombou. Dominando o medo, ela
segurou a rédea, com firmeza, e puxou-a, sem resultado contudo. No meio da confusão, com o
barulho das rodas, os gritos de quem assistia à cena e o pânico que se apoderava dela, viu que um
cavaleiro, à frente, obrigava a montaria a ficar atravessada no caminho. O cavalo do cabriole
também viu e ao se aproximar do obstáculo empinou, espalhando lama e pedregulhos. O cavaleiro
segurou a rédea e o cavalo imobilizou-se, suado, bufando e espumando.
Harriet mostrou-se consternada ao reconhecer Ben Stanton.
— Machucou-se? — indagou ele, ansioso.
Ela fez que não com a cabeça. Lorde Stanton desmontou, amarrou seu cavalo à traseira do
cabriole, subiu no veículo e tirou a rédea das mãos da moça. O cavalo, cansado, obedeceu ao sinal e
se pôs a andar.
— Quer me explicar — perguntou ele — por que saiu sozinha num veículo que não lhe
serve?
— Sempre saio sozinha. O cabriole é meu e me serve muito bem — respondeu Harriet, que
já recuperara o fôlego.
— Teve sorte de não quebrar o pescoço.
— É a primeira vez que tal coisa acontece — revelou, irritada.— E não teria ocorrido se...
— parou, com vergonha, de falar em Aaron.
— Vi o que aconteceu. Quem era aquele sujeito?
— Aaron Pardy — declarou ela, contra a vontade. — Um joão-ninguém local.
— Para um joão-ninguém, julguei que a tratou com familiaridade demais! Pardy...
Será que é daquela família que mora na praia?
— É. Eles moram em dois casebres. A faixa da praia não faz parte de Monkscombe, e nada
podemos fazer.
— Pois é...o sr. Ferrar explicou-me. Aliás, ele já partiu para Bristol.
Harriet desanimou ao saber que o velho amigo não estaria em casa para apoia-la. Então,
percebeu algo rolando no chão do veículo. Apanhou era o pote de geleia. O de carne em conserva
desaparecera.
— As srtas. Drew lhe mandaram isto — sussurrou, vendo que o primo a observava.
— Deram-me também um pote de carne em conserva, mas deve ter caído... Elas quiseram lhe fazer
uma gentileza — acrescentou, com ar desafiante.
— Elas são inquilinas da propriedade, não? Examinei os livros com o sr. Ferrar.
Parece que pagam um nadinha de aluguel pela casa...
— Não podem pagar mais! — exclamou a jovem, indignada.
— Nada tenho com isso. Como você disse, devo administrar a propriedade de modo
lucrativo. Vou estudar o caso do aluguel das srtas. Drew.
— Lucrativo não significa desalmado — esclareceu Harriet. — As irmãs Drew são duas
damas, o pai delas foi pastor da nossa igreja, e são muito idosas. Não pode pensar

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em despejá-las, porque elas não têm parentes, ninguém.


— Não posso substituir a família que essas senhoras não têm, Harriet. A casa que ocupam é
boa e merece aluguel maior.
— Se você fosse um cavalheiro, saberia que há outras obrigações, além de ganhar dinheiro!
— Não sou um cavalheiro, minha cara. Sou um negociante.
Aproximavam-se de Monkscombe, e ela se calou, mordendo os lábios. Quando entraram,
vagarosamente, no pátio das cocheiras, lorde Stanton saltou agilmente e estendeu a mão, cortês,
para ajudá-la a descer.
— E mais uma coisa — bradou, com voz firme. — Quando sair de novo, leve um dos
criados para dirigir, entendeu?
— Não é preciso — respondeu ela, fria.
— Creio que é. Com espiões franceses por aí, milicianos por toda a parte e sujeitos pouco
recomendáveis pelos caminhos, essa é minha ordem.
— Não recebo ordens suas! — exclamou a moça revidando.
— Vai receber sim, em tudo o que disser respeito fora dessas paredes. Tem minha licença
para continuar dirigindo Monkscombe, no que se refere a cardápios e organização da casa, como
lavanderia, limpeza etc. Continuará orientando a sra. Woods nisso, que são coisas para mulheres.
Preocupe-se apenas com o que acontece na cozinha e arredores. Mas comporte-se de maneira
respeitável, principalmente quando sair.
— Respeitável?! — repetiu ela, quase engasgando de tanta raiva. Ia dizer qualquer coisa,
porém ele já se distanciara a passos largos.

Capítulo 3

Mais tarde, durante o jantar, como Harriet não queria continuar a discussão na presença da
irmã, limitou-se a tratar o primo com uma polidez glacial. Caroline não parou um instante de
tagarelar, fazendo mil perguntas sobre as viagens dele, e Ben Stanton respondia com paciente boa
vontade. Chegou a pedir desculpas por não entender nada a respeito de modas femininas e só poder
informar que as mulheres francesas e vienenses eram muito elegantes, que pareciam preferir a cor
branca para vestidos de baile. Pessoalmente, informou, achava que essa era uma cor sem graça.
— Todas elas parecem estar dançando de camisola! — exclamou.
Caroline riu, mas Harriet manteve os olhos fixos no prato. Uma ou duas vezes ele lançou-lhe
olhares disfarçados, porém ela sempre se manteve alheia, mesmo quando a irmã manobrou a fim de
conseguir de Bén consentimento para organizar uma reunião musical em Monkscombe, o que não
acontecia desde a morte do pai.
— Desde que papai faleceu, não tivemos nenhuma reunião, mas, é claro, estávamos de luto
— declarou Caroline, depressa, ao ver que a irmã a desaprovava. — Contudo, agora você está aqui,
Ben, e seria uma ótima oportunidade para que conheça todo mundo.
— Creio que tem razão... — concordou ele.
Caroline ficou radiante e bateu palmas, depois indagou:
— Quer dizer que posso organizar a reunião?
— Pode, prima, se isso lhe dá prazer.
Harriet foi obrigada a reconhecer que Caroline encontrara a maneira certa de lidar com lorde
Stanton, como o sr. Ferrar já previra. Ele não de ofendia quando a jovem

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cometia gafes, não perdia a paciência quando ela exigia detalhes de penteados franceses ou pedia,
pela sexta vez, que descrevesse Napoleão Bonaparte, que vira de perto em Viena.
— Ele tem boa aparência, e é de estatura mediana e dono de um olhar inteligente
— respondia, e numa das vezes acrescentara misterioso: — Mas, se ele quisesse me vender um
cavalo, eu não compraria...
Admirava o exercito francês e não fazia segredo disso.
— Tenho impressão — afirmou Harriet para provocá-lo — que um exército, no qual todo e
qualquer soldado de infantaria pode se tornar general, deve ser muito mal dirigido.
— Está enganada — contestou Ben Stanton. — É muito pior um exército que permite a
qualquer um comprar patentes de oficial, sem outras qualificações que não a fortuna pessoal e um
sobrenome de família antiga. Todos os oficiais franceses que conheci eram bem treinados. Evidente
que entre eles deve haver patifes, porém esse tipo de homem existe em todo exército. Além disso,
entre eles há muitos aristocratas franceses, porque nem todos estão se pavoneando no exílio, em
Londres ou em São Petersburgo!
Harriet não se deixou arrastar para outra discussão, e ficou calada. Na realidade, sentia-se
muito preocupada com as srtas. Drew. Eram tão indefesas, confiantes, e nunca imaginariam que o
novo senhorio poderia ser diferente do antigo. Precisava arranjar um jeito de interceder por elas,
para que o aluguel não fosse aumentado. Mas não sabia como abordar o assunto com o primo.
No dia seguinte, depois de pensar muito, decidiu que o máximo que poderia fazer era ir falar
com as duas irmãs e avisá-las do que provavelmente aconteceria. Não quis desautorizar lorde
Stanton, por enquanto, e pediu a Henderson que saísse com ela no cabriole, na tarde do próximo dia.
As srtas. Drew receberam-na com a costumeira alegria e agitação.
— Imagine só! Duas visitas importantes no mesmo dia!
— Duas?! — admirou-se Harriet, sentando-se na velha poltrona, depois de desalojar o gato
mal-humorado.
— Pois é! — confirmou a srta. Eleanor. — Lorde Stanton esteve aqui hoje de manhã e
conversou muito conosco.
— Ele esteve aqui? — Harriet imobilizou-se, com um pedaço de bolo numa das mãos e a
xícara de chá, muito fraco, na outra. — E o que ele disse?
— Agradeceu o pote de geleia e contou que o de carne se perdeu, quando a senhorita voltou
para casa. Ficamos surpreendidas com seu descuido, querida, e prometemos mandar outro pote para
ele.
— Descuido? Ele afirmou que fui descuidada? — perguntou Harriet, quase engasgando
com o bolo.
— Nós estávamos preocupadas... — murmurou a srta. Eleanor, sem responder à pergunta.
— ...por causa do aluguel — completou a srta. Mary.
— Isso... — confirmou a irmã. — Ele é muito baixo e...
— Receamos que lorde Stanton quisesse aumentá-lo!
Harriet voltava a cabeça de uma irmã para outra, à medida que falavam.
— Mas ele afirmou que não precisávamos nos afligir — bradou Eleanor, triunfante
—, porque não pretende aumentá-lo. Disse que notou o telhado estragado, meio desconjuntado,
sabe, por causa das últimas tempestades, e que vai mandar alguém para consertar antes que a água
comece a infiltrar.
— O conde parece muito com o querido pai dele — declarou a srta. Mary. — Era
encantador, apesar de um tanto rebelde. Ficamos com muita saudade dele, quando viajou para os
Estados Unidos... — sussurrou, com um suspiro.
A jovem não sabia o que dizer, e então ouviu-se um grito. Henderson, que a

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esperava no cabriole, foi visto quando passou correndo diante da janela. As três foram, depressa,
para a cozinha, onde Daisy, a criada-para-todo-serviço, berrava e gesticulava.
— Eu o vi! Eu o vi! — gritava, sem parar.
— Deixe de fazer tanto estardalhaço, Daisy, e diga o que viu! —ordenou a srta.
Eleanor Drew.
— Um daqueles demoniozinhos, um pequeno Pardy, furtando roupa do varal, bem diante do
meu nariz! O sr. Henderson o apanhou!
Nesse momento, o criado surgiu à porta da cozinha, arrastando um garoto de oito ou nove
anos, todo sujo.
— Roubar é muito feio! — repreendeu a srta. Mary, agitando um dedo diante do moleque.
— Se não tomar cuidado, você vai para o inferno!
A resposta do menino foi aplicar violento ponta pé na canela de Henderson, que soltou um
berro e deu-lhe um cascudo. O garoto rompeu em choro e gritos.
— Meu Deus! — exclamou Harriet. — Solte-o, Henderson, ele não pode sair daqui.
Que vamos fazer?
— O magistrado que fica mais próximo é o sr. Mortimer — murmurou o criado, soltando o
menino a contragosto.
Ele foi se refugiar embaixo da mesa, chorando.
— Não podemos mandar uma criança tão pequena para a cadeia — afirmou Harriet,
preocupada.
— Posso levá-lo para fora e dar-lhe uma boa surra — propôs Henderson. — Ele quase me
quebrou a canela!
— Nada disso, Henderson! – Opôs-se a jovem.
Olhou para o menino. Era feinho, sujo, e alguém cortara muito mal seus cabelos: parecia um
ouriço. Algo em sua fisionomia indicava que era um Pardy.
— Saia daí — encorajou-o a moça. — Ninguém vai machucar você. Como é seu nome?
O moleque manteve-se mudo e imóvel. As srtas. Drew estavam muito nervosas.
Então, ela decidiu:
— Vou levá-lo até Monkscombe. Quem sabe no caminho ele resolva falar comigo.
Henderson apressou-se a desentocar o menino e teve de se esforçar, pois ele lutava como um
animalzinho acuado, contorcendo-se e esperneando.
— Olhem só! — exclamou o criado. — Alguém já lhe deu uma surra! — Virou a criança e
levantou a camisa em trapos, para mostrar às senhoras as marcas nas costinhas magras. — Isto foi
feito com uma cinta!
— Está resolvido, vamos levá-lo para Monkscombe! — declarou Harriet.
O novo conde encontrava-se no pátio das cocheiras, quando chegaram. Observou- os em
silêncio, enquanto desciam do cabriole. Fitou a criança, depois Harriet, e ela contou-lhe o que
acontecera. Ele voltou-se para Henderson:
— Leve o menino para a cozinha, Joe, e faça-o comer, deve estar com fome. —
Encaminhou-se com Harriet para a casa.
— Não sabia que o nome de Henderson é Joe... Nós costumamos chamar os criados pelo
sobrenome — disse ela.
— Pode ser. Eu não tenho esse costume.
Sentindo o terreno perigoso, ela mudou de assunto:
— Gentileza sua visitar as srtas. Drew — entraram no hall e ela tirou o chapéu — e sossegá-
las a respeito do aluguel.
— Elas me lembram duas tias solteiras de minha mãe — contou ele. — Produziam
montanhas de tortas de abóbora e sabiam de coros nomes de todos os reis de Israel. — Depois, e em
tom impessoal: — Aquela casa precisa de uns consertos. Quando estiver em ordem, vou pensar no
aluguel.
— Ah! — fez Harriet, mas não se preocupou, sabendo que era apenas ameaça. —

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Coleção Sissi 11 — O Primo que Veio de Longe — Ann Hulme

E o menino? Que vamos fazer? As autoridades são muito severas com crianças. Ele é tão pequeno e
foi criado por gente dá pior espécie... Devem tê-lo mandado roubar e garanto que vai apanhar se
voltar de mãos vazias...
— Mesmo assim, ele retornará para casa correndo, assim que o soltarmos — informou Ben
Stanton. — Lar é lar, mesmo quando péssimo, e é muito triste ficar longe dos familiares. Não
adianta explicar tal coisa a um inglês, pois todos mandam Os filhos para colégios distantes, em vez
de criá-los em casa... — Suspirou e acrescentou:
— Mais tarde levo o garoto para casa, e direi a eles que devem tratá-lo melhor.
— Ninguém vai ouvir — murmurou Harriet.
— Eles não ouviriam você, porém eu posso reforçar minha argumentação com os punhos, se
for preciso.
Ao ouvir isso ela fitou-o, surpreendida, e ele percebeu que achava a ideia muito boa.
Passaram a falar nos consertos que deveriam ser feitos na casa das srtas. Drew. Foram
interrompidos bruscamente depois de alguns minutos.
A porta abriu-se com estrondo e Aaron entrou. No ambiente refinado de uma casa, ele
parecia bem mais selvagem. Numa das faces ainda se percebia a marca avermelhada da chicotada.
Com as mãos enfiadas nos bolsos da calça, lançou olhares belicosos a Harriet, depois ao conde.
— Vim buscar o moleque — rugiu. — Disseram-me, lá embaixo, que não poderiam
entregá-lo a mim enquanto o conde não desse ordem. Acontece que não sou inquilino da
propriedade Monkscombe, e não recebo ordens suas, sr. Stanton.
— Já sei quem é... — sussurrou o conde, com delicadeza. — Ontem provocou um acidente
sério, que poderia ter vitimado a srta. Stanton.
Os olhos escuros de Aaron brilharam, e ele voltou-se para Harriet, enquanto se encostava no
umbral da porta, com ar insolente.
— Não pretendia prejudicar a srta. Stanton, e ela sabe disso. De certa forma, sou amigo
dela.
— Você não é coisa alguma! — rebelou-se Harriet. — Quem surrou cruelmente aquele
menino? Foi você?
— Não sei. Apenas sei que vou levá-lo para casa.
— Ele é seu filho? — quis saber o conde.
— Não. É uma das crias de Lucy. — respondeu Aaron.
— Qualquer um deles pode ser o pai... — murmurou Harriet para o primo. — Os Pardy são
assim...
— O menino foi apanhado roubando — explicou lorde Stanton ao outro. — Desta vez,
estamos dispostos a esquecer. Pode levá-lo, mas ele não deve ser maltratado, entendeu? Lembre-se,
eu vou conferir isso!
Aaron afastou-se do umbral e deu uns passos à frente, parando diante do conde. Tirou as
mãos enormes dos bolsos e ficou imóvel, com as pernas abertas. Passou a língua nos lábios.
— Já disse — começou, com voz rouca —, não recebo ordens dos Stanton. Eles não têm a
mínima importância para mim.
— É mesmo? — perguntou Ben Stanton, gentilmente. — Nesse caso, talvez isto
tenha!
Seu punho, ao chocar-se contra o queixo de Aaron, chegou a fazer barulho. Foi um
soco tão rápido e potente, que o rapaz voou para trás e caiu estrondosamente no chão. Levantou-se
imediatamente e ficou com os joelhos levemente dobrados, à maneira dos arruaceiros quando estão
decididos a brigar. No entanto, algo na atitude ou na expressão de Ben Stanton fez com que ele
hesitasse. Endireitou-se e esfregou o queixo dolorido.
— Entendi o recado — rosnou. — Posso levar o moleque, agora?
— Mas lembre-se do que eu disse — insistiu o conde. — Vou conferir o estado do menino.
E, se resolver me importunar, pense duas vezes, porque vou metê-lo numa boa

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encrenca.
— Aaron... — interferiu Harriet, preocupada. — Cuide bem do menino... por mim!
— Harriet! Deixe-me cuidar disto! — zangou-se lorde Stanton.
Aaron sorria, satisfeito, e respondeu:
— Claro, srta. Stanton. Sabe que estou sempre pronto para fazer um favor para a senhora!
Saiu, com seu andar gingado, e o conde voltou-se para a prima, irritado:
— Não tenha mais nenhum contato com esse indivíduo! Não deve encorajá-lo, de modo
algum!
— Não o encorajei! — contestou a moça. — Só queria ter certeza, pelo menino!
— Eu já havia falado a respeito. Faça o que mandei: cuide dos menus, do rol das roupas, de
recepções, festas, limpeza da casa, e deixe o resto comigo.
Aaron foi buscar a criança na cozinha, e foram embora. Entardecia, e nessa época escurecia
rápido. O homem tinha pressa, porque durante a noite ia sair com dois de seus primos para se
encontrarem com tripulantes de um navio francês, que portava um bom carregamento de conhaque e
perfumes. O magistrado Mortimer, que não tinha escrúpulos de mandar para a forca um delinquente
de menor importância fechava os olhos quando se tratava de conhaque francês, fornecido pelos
Pardy.
O rapaz tocou o queixo que doía, depois a marca do chicote de Harriet. Estava acostumado a
resolver diferenças de opinião com violência, e teria ficado surpreso se qualquer dos Stanton agisse
de maneira diversa.
— Eu devia te esperado por isso — resmungou. — Da próxima vez, estarei pronto.
Quando se afastaram o suficiente para não serem vistos da casa, parou, agarrou o garoto
pelos ombros e sacudiu-o.
— Seu estúpido, idiota! Por que se deixou apanhar?
— Me largue! — berrou o menino. — Senão vou contar para a srta. Harriet e para o
cavalheiro o que você esconde lá em casa!
— Você faria mesmo isso, fedelho? — rosnou Aaron.
Em seguida, como acontece com homens do tipo e do temperamento dele, mudou de atitude.
Soltou uma gargalhada e largou o menino; passou a mão pelos seus cabelos revoltos, sujos, num
gesto rude, mas carinhoso.
— É tarde — sussurrou. — Se quisermos encontrar ainda o que comer, é melhor irmos logo.
Pulou uma cerca e saiu andando depressa na direção da praia. O garoto o seguiu, trotando.

Enquanto se vestia para o jantar, Harriet pensava nos acontecimentos daquele dia, vendo-se
obrigada a reformular a opinião que fazia do primo. Ele se comportava de um jeito que ela não
considerava correto, porém, reconhecia que seus métodos eram eficazes. Até aquele dia ninguém
enfrentara um Pardy. Alarmou-se ao pensar em Ben Stanton indo aos casebres para ver se o menino
estava bem. Esperava que se fizesse acompanhar por Henderson ou por alguns criados mais
robustos.
Olhou para o espelho sem se ver. Reconhecia que perdera o controle do andamento de
Monkscombe. Os menus, trabalhos de casa, providência de provisões, tudo isso continuava nas
mãos da sra. Woods, como sempre estivera, e o conde devia saber disso. Na verdade, ela nada mais
tinha que fazer, e sentia-se amargurada.
Lorde Stanton não pode fazer tudo sozinho, por mais que pense que pode, pensou.
Ele precisa de mim.
Só que não sabia como chamar a atenção do primo para esse fato. Tinha consciência de não
possuir o talento de se comunicar facilmente com os homens de sua geração. Sentia-se à vontade
com pessoas mais velhas. O sr. Jonas Ferrar era um deles.

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Demonstrava estar muito bem em sua companhia, conversava com animação e segurança. Já com
rapazes apresentava-se desajeitada, sem saber o que dizer, como agir, e acabava sempre dizendo e
fazendo as coisas erradas. A exuberância e a admiração dos jovens a irritavam. Só permitira a
aproximação de admiradores mais velhos, calmos e sérios. Mas nem mesmo eles haviam
conseguido despertar algum sentimento nela.
Então, perfilou-se no espelho e se examinou. O sr. Ferrar dissera que era bonita. Ergueu os
cabelos e observou o rosto, de um lado e de outro. Enfeitar-se e chamar a atenção de Ben Stanton
era uma ideia nova, e talvez não fizesse mal usar algumas das artimanhas de Caroline... Pegou uma
revista de moda e folheou-a, pensativa.
Quando afinal desceu, sentia-se meio tímida. Conseguira fazer um penteado alto, utilizando
uma fita azul, na qual prendera um pequeno broche de ouro e uma pluma discreta. Usava seu
vestido mais novo, que mandara fazer dois anos atrás, antes do luto. Esperava, ardentemente, não
estar com ar muito provinciano, pois o primo estivera em Paris e Viena. Jamais pensara nisso,
porém Monkscombe era, realmente, um lugar muito afastado de tudo.
— Você está linda hoje, Harriet! — exclamou Caroline ao vê-la e, como se não bastasse,
voltou-se para o primo: — Não acha que ela está muito bonita?
Ele a fitou sem sorrir, e Harriet corou, começando a se arrepender de ter cedido à tentação
de parecer na moda.
— É, está mesmo — respondeu ele, finalmente, e acrescentou, galante: — Tenho duas
primas muito bonitas!
Durante o jantar Harriet se manteve em silêncio. Teve impressão que Ben Stanton olhava
para ela, de vez em quando, com certa curiosidade, e sentiu-se desajeitada, a ponto de deixar cair o
guardanapo. Nervosa, sem perceber, massacrava o peixe no prato.
Caroline, como sempre, conversava com animação.
— James contou-me que ainda não localizaram o espião francês, porém tem certeza que ele
se encontra por aqui.
— Quando ele disse isso, e desde quando o chama de James? — indagou Harriet,
esquecendo suas preocupações.
— Sempre o chamei assim, é o nome dele... Ele me contou quando veio me visitar, hoje à
tarde.
— E quem deu licença a ele? — irritou-se Harriet, largando os talheres no prato. — Vir aqui
a serviço é uma coisa, vir visitá-la é outra. Não devia encorajá-lo, Caroline.
— Eu permiti que viesse — interferiu lorde Stanton, calmo. — Ele pediu licença, de
maneira apropriada.
— Você? — Harriet enrubesceu. — Você não é responsável por Caro!
— Mas sou, Harriet, de verdade. Sou o chefe desta família e desta casa... a minha casa... e
digo quem pode vir aqui ou não. Murray é bem-vindo. É um rapaz com a cabeça no lugar, gosto
dele, embora nunca pudesse imaginar que iria gostar de um miliciano! — afirmou, sorrindo.
— Discutiremos esse assunto mais tarde — retrucou Harriet, com um olhar furioso.
Por isso foi procurá-lo no gabinete que fora de seu pai e do qual Ben Stanton se apropriara.
Sua reação foi confusa ao vê-lo utilizar objetos pessoais do falecido lorde.
Ele se encontrava sentado perto da lareira, com as pernas compridas esticadas, e parecia
estar pensando. Harriet hesitou em perturbá-lo O gabinete achava-se pouco iluminado; havia apenas
duas velas acesas e, naturalmente, o reflexo das chamas.
Perguntou a si mesma por que o primo não mandava um criado trazer mais velas e distraiu-
se a ponto de sobressaltar-se, quando ele ergueu os olhos e convidou-a a sentar- se.
— Venha, Harriet, e diga tudo o que pensa.
Acomodou-se na poltrona diante da dele.

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— Quero falar sobre Caro. Você não conhece minha irmã como eu conheço. Ela tem
ideias... muito românticas. Não creio que esteja apaixonada por James Murray, porém poderia se
apaixonar se passarem a se ver com muita frequência. E não daria certo, de jeito nenhum. Não
preciso explicar-lhe os motivos, não é?
— São principalmente financeiros, calculo — respondeu ele. — Ou será que você não gosta
dos túnicas-vermelhas?
— Não desgosto de militares, mas julgo que todos sabem que eles ganham pouco. Por isso,
um oficial do exército precisa de renda pessoal, além do soldo, se quiser viver razoavelmente, ainda
mais se pretende se casar.
— Você não pode dirigir a vida de outra pessoa — declarou lorde Stanton.
Recostou-se na poltrona. A pouca luz bruxuleante emitida pelas velas e pelas chamas da
lareira tornava indefinidas as feições dele.
— Diga-me — continuou, com voz grave —, por que você resolveu se arrumar tão bem esta
noite?
— Sabia que seria um erro... — murmurou Harriet, desanimada. — Imagino que você me
considerou ridícula.
— Não foi o que eu disse. Aliás, acho que está mesmo muito bonita, porém não entendo por
que nesta noite. Em geral, se me permite uma opinião, você parece não se interessar pela
aparência...
— Mas me interesso! — contestou ela. — Tento estar sempre vestida de modo decente e
agradável.
— Claro que sim, e tão despretensiosa quanto uma quacre! Verdade seja dita, quando uma
mulher tem beleza esta aparece, porém gosto de ver uma moça bem-vestida e enfeitada.
— É, mesmo? — perguntou ela, sem jeito.
Não pensara numa eventual vida particular do primo, em como seria o relacionamento dele
com mulheres. Era um homem atraente, seguro de si. Talvez tivesse deixado um rastro de corações
partidos pela Europa toda. Movimentou-se, seu pé encostou sem querer no tornozelo dele, e ela
retirou-o, rapidamente. Sem que a moça visse, o conde sorriu de leve.
— Não quero que você e Caroline fiquem sem as coisas que precisam ou desejam
— bradou ele, dobrando um pouco as pernas. — Vestidos, fitas, água-de-colônia, essas coisas
todas... Acredito que as mulheres gostam de ter uma boa reserva de tudo. Encomendem o que
quiser, eu pago.
— Eu... nós... não poderíamos fazer isso — declarou ela, atrapalhada. — Sei que você tem a
melhor das intenções, mas o dinheiro é seu e não podemos gastá-lo, de jeito algum. E precisamos
pensar nas conveniências, embora sejamos primos... Algumas pessoas poderiam achar que não está
certo.
— Você pensa assim? — Ele pareceu ficar deprimido; depois de breve silêncio, continuou:
— Gostaria de tê-la avisado antes que amanhã irei a Bristol e vou ficar por lá durante alguns dias.
Talvez uma semana. Preciso esclarecer certo número de coisas com o sr. Ferrar, e não quero obrigá-
lo ao sacrifício de vir até aqui. O tempo está piorando e pode até nevar. Portanto, se quer que eu
traga algo de Bristol para você e Caroline... algo que não desperte o falatório do pessoal, é só pedir.
Farei isso com o maior prazer.
— Obrigada — sussurrou Harriet.
— Andei dando uma espiada por aí... — Movimentou as mãos, indicando a sala toda. —
Sabe, por acaso, se há um mapa da região?
Harriet não gostou da ideia do primo remexendo os livros e os papéis, que haviam sido de
seu pai. Um mapa! A desconfiança surgiu de novo.
— Claro. Há um mapa, e sei onde ele está. Mas para quê?
— Pretendo ir até Bristol a cavalo, e não quero me perder. Uma vez me perdi entre
montanhas na minha terra, quando seguia pegadas de veados. Caiu uma violenta

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nevasca, e me refugiei numa velha cabana abandonada. Nevou a noite toda... Quando acordei e
abria porta da cabana, defrontei com uma parede branca. Precisei cavar um túnel para sair.
— Você costuma fazer essas coisas? — indagou Harriet, hesitante. — Quer dizer, caçar
sozinho, seguir pegadas de animais? Tenho impressão de que isso deve ser muito difícil e perigoso.
— Um velho índio me ensinou como se faz, como se descobre e segue pegadas. A região
dos montes Apalaches é realmente muito bonita, selvagem... Fica-se sem ver pessoa alguma durante
dias... às vezes semanas até.
Pela primeira vez na vida Harriet sentiu vontade de viajar, de correr o mundo. Fora duas
vezes a Londres e, além disso, conhecia apenas Bath e Bristol. Pensou, sonhadoramente, em tudo o
que Ben Stanton já vira, nos diferentes povos que contatara, nos costumes curiosos que descobrira.
Até aquele momento o mundo dela resumia-se em Monkscombe. Mas lá fora existia um mundo
diverso, fascinante, do qual ela nada sabia.
— Imagino que Filadélfia deve ser uma cidade muito bonita — arriscou.
— Sim, é muito bonita, porém, eu não gosto de cidades grandes. Apreciaria muito mais
viver a oeste das montanhas... — Na voz dele vibrava um entusiasmo que não havia antes, e Harriet
esforçou-se para ver melhor o rosto do primo. — É um continente inteiro, Harriet, que
pouquíssimos homens brancos conhecem... Uma região imensa, entre as montanhas e o litoral oeste,
onde os espanhóis se estabeleceram. É habitada apenas por tribos de índios nômades, que seguem os
búfalos, e por um ou outro branco, caçador de peles. Há terra suficiente para quem quiser. Um
homem poderia se instalar ali e tomar posse de um pedaço tão grande, que se poderia colocar
Monkscombe inteira num cantinho dele e nunca mais encontrá-la...
— Diante dessa descrição acredito que Monkscombe não pareça grande coisa para você —
comentou ela, séria —, porém é tudo o que eu sempre tive, nela se resume a minha vida. Só saí
daqui para viagens curtas. Passei uma temporada em Londres, e não gostei. As ruas cheiram mal,
todos parecem estar sempre com pressa. Jamais conseguiria viver lá. Aqui é outra coisa. Bem, a
verdade é que os Stanton se identificam com Monkscombe — complementou ela, sem jeito.
O conde inclinou o corpo para a frente, entrelaçando as mãos que enganchou num joelho.
Seu rosto de traços bem delineados foi para o círculo de luz, e a claridade bruxuleante iluminou-lhe
o perfil. Harriet percebeu nele uma agitação interior, uma espécie de palpitação Que a levou a
mexer-se na poltrona, procurando ajeitar-se melhor.
— O que contei a respeito de meu pai, quando cheguei — afirmou Ben Stanton —, era
verdade. Você não acreditou, porém ele sempre falava em Monkscombe. Creio que o coração dele
ficou aqui, e sentia muita saudade. Não digo que desejasse voltar, mas nunca foi capaz de romper a
relação. Papai nasceu inglês e jamais esqueceu isso. Eu, contudo nasci americano, no ano da
Declaração da Independência, e me orgulho desse fato. Não consigo ver Monkscombe o jeito que
você vê, porém tal coisa não quer dizer que não saiba apreciá-la.
Ele tornou a recostar-se na poltrona e seu rosto esfumou-se outra vez nas sombras. Em
seguida, prosseguiu:
— Acho extraordinário uma família viver durante tantos séculos num mesmo lugar. Antes
de você entrar aqui, eu pensava: "Meu avô sentava-se aqui, o avô dele também... e todos os outros,
antes deles". Os móveis são muito antigos, e vi nessas estantes livros que têm duzentos anos. Nasci
num país novo. A família de minha mãe estabeleceu-se lá no máximo há cem anos. Eram os não
conformistas, que saíram da Inglaterra no tempo de Cromwell, mas devem ser considerados uma
exceção...
Fez uma pausa, ficou pensativo por instantes, depois a voz grave e profunda fez-se ouvir de
novo:
— Aqui, na sua terra, Harriet, o povo respeita um objeto, uma família, até mesmo

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dinheiro, se forem antigos. Nos Estados Unidos tudo é novo, e isso não é nenhuma vergonha. Um
homem pode apagar seu passado e recomeçar, como se nascesse naquele momento. O que vale é o
que ele fizer daquele lado do oceano, não o que fez deste lado.
Ouvindo a voz empolgante de Ben Stanton na calma daquele ambiente, ela soube que ele
não ficaria ali para sempre. Mais cedo ou mais tarde, iria embora. Já previra isso, porém por
motivos diferentes, por causa dos problemas que poderiam surgir em Monkscombe com a ausência
do proprietário. Começava a considerar secundário tal fato, e passou a encará-lo do ponto de vista
pessoal. Não conseguia definir o que sentia a respeito. Tinha a impressão de estar diante de uma
porta, ou de uma enorme janela, que se abrira deixando entrever um país estranho e envolvente. Não
apenas um país de montanhas, rios e grandes planícies, mas também um mundo de experiências
novas, das que existem apenas no coração e no espírito. E tinha a sensação de que naquela terra
havia coisas para as quais não se encontrava preparada...
A voz do novo conde despertou-a dos pensamentos, e ela estremeceu.
— Desculpe, eu não estava prestando atenção — justificou-se.
— Que você disse?
— Perguntei se posso deixar Monkscombe em suas mãos capazes, enquanto estiver ausente
na semana que vem. Pode cuidar de tudo para mim?
— Claro que sim — respondeu Harriet.
E com esforço conteve o impulso de acrescentar: "Se julgar que eu sirvo para algo mais do
que controlar menus e rol de lavanderia..." Era claro que ele não pensava assim, senão por que iria
pedir-lhe que tomasse conta de tudo? Levantou-se.
— Estou cansada... Se não se importa, vou dizer-lhe boa noite — despediu-se, um tanto
nervosa.
Ele se levantou também educadamente.
— Sim, vá descansar — bradou.
Depois, sem nenhum preâmbulo e antes que ela pudesse fazer qualquer coisa para evitar,
inclinou a cabeça e deu-lhe um beijo rápido. Não foi na testa, nem na face, o que já seria uma
ousadia, porém ainda tolerável. Foi na boca.
Harriet ficou sem respiração e recuou, com o rosto e os lábios ardendo, ao mesmo tempo
que esticava os braços para evitar que ele repetisse o gesto ou fizesse coisa pior.
— Não! Não faça isso! — balbuciou, num fio de voz. — Você não pode... não deve!
— Por quê? — quis saber ele, um riso na voz. — Não somos "primos" que se beijam, como
dizem nas montanhas? Quer dizer, pessoas que se compreendem, que se gostam?
— Oh, não! — tornou a negar a moça, com fervor. — Não somos. Tenho certeza que não
somos!
Virou as costas e, sem se preocupar com dignidade ou elegância, fugiu correndo.

Capítulo 4

Na manhã seguinte lorde Stanton partiu tão cedo para Bristol, que, quando Harriet desceu
para o café, ele já tinha saído. Sentiu-se aliviada. Não conseguia se livrar da ideia de se ter
comportado como uma tola na noite anterior. Fora apenas um beijo entre primos, e ela reagira como
uma corça assustada. Ben Stanton não tivera segundas intenções, e era muito embaraçoso saber que
não conseguira enfrentar a situação com um mínimo de

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sangue-frio. Por outro lado, refletiu tristemente, não possuía a feliz disposição de sua irmã, que
aceitava qualquer manifestação de atenção como a coisa mais natural do mundo. Caroline não teria
ficado desconcertada por apenas um beijinho, provavelmente reagiria ao beijo com entusiasmo,
afastando-se depois sem a menor preocupação.
No entanto, naquela manhã sua irmã não parecia despreocupada. Harriet, vendo-a inquieta,
descartou logo que fosse por causa da viagem de Ben, e perguntou se ela se sentia bem. A jovem
espreguiçou-se gostosamente, erguendo os braços, depois cruzou- os atrás da cabeça, numa atitude
relaxante, porém pouco apropriada para uma dama.
— É que tudo parece muito tedioso por aqui, agora que o primo Ben foi para Bristol, onde
ficará pelo menos durante uma semana. — Levantou os pés e ficou a observá-los. — Quero marcar
a data do baile para logo depois da volta dele. Lady Williams tem uma orquestrinha ótima. Talvez
poderia contratá-la, apesar de a festa não ser tão importante. Mas poderemos dançar a valsa, que é a
última moda.
— Isso ficará muito caro! — opôs-se Harriet. — Para algumas danças campesinas, serão
suficientes duas rabecas. Você se propõe a gastar o dinheiro do primo Ben, Caro, não o nosso. Não
esqueça disso!
— O primo Ben afirmou que poderia ter o que eu quisesse — replicou Caroline, teimosa. —
Disse que ia dançar comigo, e com muito gosto. Disse também para encomendar um vestido novo
para a festa... Você também, Harriet.
— Já conversei com nosso primo sobre nossas despesas — esclareceu Harriet — e expliquei
que não podemos permitir que pague nossas contas. Não estaria certo, Caro.
— Você é uma desmancha-prazeres! — Caroline se levantou de chofre, petulante.
— Sei que gostaria de um vestido novo! E eu também! Não ouviu o primo Ben dizer como você
estava bonita ontem à noite? Gosta mesmo de parecer deselegante, Harriet, e não entendo por quê.
Se o primo está disposto a pagar pelo meu vestido novo, vou deixar que o faça, ora!
Era inútil tentar raciocinar com Caroline quando estava com essa disposição, e Harriet não
insistiu, sobretudo porque havia um outro assunto que ela desejava discutir, aproveitando a ausência
de Ben.
— Gostaria de falar sobre o capitão Murray, Caro. É um rapaz muito direito, e você deveria
se comportar de modo que não o magoasse. Deveria também dizer a ele que não volte a vê-la. E, de
qualquer forma, o capitão não poderá visitá-la na ausência de Ben. Não estaria certo.
— Não estaria certo, não estaria certo, não estaria certo! — cantarolou Caroline, caçoando.
— Você é aborrecida, Harriet! Tem todas as qualidades para se tornar uma velha solteirona! Não
admira que fique sempre enfurnada com as srtas. Drew! Tenho certeza que deve se sentir muito bem
lá!
— Agora chega, Caro! — gritou Harriet, furiosa.
Mas Caroline já tinha se afastado, volteando e cantarolando uma valsa. Harriet mandou um
criado às cocheiras, para que preparassem o cabriole.
Quando desceu, ficou contrariada ao ver Henderson pronto para pegar na rédea.
— Lorde Stanton disse que deveria acompanhá-la — respondeu, quando tentou explicar que
iria sozinha.
— Sabe muito bem que sei dirigir, Joe! — exclamou Harriet mal-humorada.
Começara a tratá-lo por Joe, porque Ben tinha introduzido essa moda, e já lhe parecia
estranho tê-lo chamado pelo sobrenome no passado.
— Não posso discutir ordens, senhorita. Sei que dirige muito bem.
Contudo, o conde é o patrão, e preciso fazer o que ele mandar.
Harriet ficou pensativa e finalmente murmurou tranquila:
— Por favor, Joe, ajude-me a subir.
O bom Henderson deu-lhe a mão; mas antes que ele também conseguisse subir, Harriet fez
estalar a rédea, e o animal, surpreso, pulou para frente e saiu correndo

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fazendo o cabriole sacolejar pela alameda, deixando para trás Henderson, praguejando a plenos
pulmões.
Achou que não tinha sido gentil com o criado da estrebaria, porém dirigia aquele cabriole
desde os dezesseis anos, e não concordava que um único, infeliz acidente, ou um quase acidente, do
qual não tinha culpa, fizesse qualquer diferença. Henderson não contaria nada a Ben, para não
admitir a própria negligência.
Depois de fazer as costumeiras visitas, voltou, satisfeita. E, quando se encontrava a uns
duzentos metros do portão, ela segurava apenas molemente a rédea, deixando que o cavalo
caminhasse por si só para casa. De repente, um homem materializou-se no caminho e segurou a
rédea, perto do freio.
— Aaron! — ela exclamou, furiosa. — Espero que não faça outra estupidez das
suas!
— Não precisa se zangar — ele respondeu calmo, aproximando-se da lateral do
cabriole. — Não vou espantar o cavalo desta vez. Olhe, não quis assustá-la, então; e, para
mostrar como sinto por aquilo, trouxe-lhe uma coisa.
Ela viu que ele segurava um objeto pequeno, embrulhado em papel amassado.
Aaron o colocou no veículo e se afastou com um sorriso.
— Não importa o que é, leve-o embora. Não quero presentes de você, Aaron
Pardy!
— Mas é um bom presente — ele respondeu. — Todas as damas gostam disso! E
não pense que não sei do que as damas gostam!
Soltou uma gargalhada indecente e, antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele se
afastou depressa, pulando uma cerca, e desaparecendo pelos campos esbranquiçados de geada.
Harriet desembrulhou o pacotinho com cuidado: era um pequeno frasco de perfume, muito
caro, de contrabando. Ficou a contemplá-lo sem saber que fazer. Alguém poderia achá-lo se o
jogasse fora e, se ficasse com ele, estaria na situação de ter aceito um presente de Aaron Pardy, logo
dele! Colocou-o no bolso da capa, para devolvê-lo na primeira oportunidade.
Quando chegou em casa, depois de pedir desculpas a Henderson, Harriet levou o perfume
para seu quarto e o escondeu em seu porta lenços. Não queria que Caroline o encontrasse.
Desconfiava que sua irmã não teria o menor escrúpulo em usá-lo, apesar dos constantes sermões do
capitão Murray sobre o crime do contrabando.

O conde chegou no fim da semana. Não parecia muito bem-humorado, e Harriet pensou que
talvez tivesse recebido más notícias. Parecia preocupado e, apesar de ter lembrado de trazer
romances recém-publicados e os cinco metros de renda Honiton, encomendados por Caroline,
pouco contou da sua viagem a Bristol.
Alguns dias depois de sua volta, Harriet ficou surpresa ao vê-lo entrar a passos decididos na
saleta, onde estava ocupada em pregar a renda de Caroline, que em geral não tinha paciência com
esses trabalhos miúdos.
— Se não estiver ocupada demais, Harriet, gostaria de falar com você. Precisamos discutir
alguns assuntos. — E ficou de pé, com uma expressão truculenta, como se esperasse uma recusa.
— Mas é claro — ela declarou, e guardou o trabalho.
Ele observou-a dobrar o lindo vestido em que colocava a delicada renda.
— Isso é para você? — perguntou.
Quando Harriet explicou que era para a irmã, ele bufou, com uma expressão contrariada, e
pareceu ainda menos à vontade. Começou a dar passos pela saleta, o que não era do seu feitio.
Alguma coisa devia ter acontecido em Bristol, para tirá-lo do seu jeito sempre tão relaxado e
decidido. Finalmente Ben Stanton se aproximou da porta, que

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abriu, para ver se havia alguém no corredor, e voltou a fechá-la.


— Como você sabe, Harriet — bradou virando-se para encará-la —, encontrei-me muitas
vezes com o sr. Jonas Ferrar, e ele não se poupou para me explicar todos os detalhes relativos a
Monkscombe, à vinculação com a minha pessoa e a todas as minhas responsabilidades. — Parou e
depois murmurou: — Sim, responsabilidades. — Franziu o cenho sem fitá-la e continuou: — Olhe,
você é uma criatura racional e provavelmente já adivinhou o que vou lhe dizer, ou o que Ferrar me
disse.
— Não — afirmou Harriet, com toda sinceridade.
— Diacho, Harriet, deve saber! Mas tanto faz! — Balançou a mão, irritado. — O sr. Jonas
explanou para mim a situação, a sua e a de Caroline. Eu contei-lhe que ambas tinham um lar aqui
mesmo, em Monkscombe, e era absurdo pensar que as mandaria embora. Ele não julgou que isso
era suficiente. Contei-lhe também que estava disposto a pagar suas contas... mas que você achou
isso inconveniente. Nessa altura, o sr. Jonas começou a espirrar, me cobriu literalmente de rapé e
disse que o que estava em jogo era a reputação de uma dama. Primo ou não, eu chegara do outro
lado do oceano, e, sob todos os pontos de vista, não passava de um estranho. Descreveu sua situação
e a de Caroline, aqui em Monkscombe, como "nebulosa". Frisou que, na melhor das hipóteses,
dependia apenas de minha boa vontade e, na pior das hipóteses, as pessoas poderiam pensar que...
Ora, diacho! Ele me informou que eu deveria colocar as coisas numa base aceitável. Ao que parece,
essas coisas costumam acontecer no caso de propriedades vinculadas... A maneira de arranjar tudo...
— E neste ponto o coração de Harríet ficou apertado, porque já sabia o que ele iria dizer. é
através de um casamento. Em outras
palavras, precisaria me casar com uma de vocês. — Parou de andar de um lado para outro e
encarou-a, agressivo.
— Sinto muito que Jonas tenha dito isso — sussurrou Harriet, quando se viu em condições
de controlar sua voz trêmula. — A intenção foi boa. Sabe, ele é um pouco antiquado.
— Não, ele está certo — teimou o conde. — Um casamento tornaria uma de vocês dona de
Monkscombe, para todos os efeitos. Eu não poderia escorraçar nenhuma das duas, mesmo que
quisesse. Vocês se sentiriam em segurança. Não haveria escândalo algum se eu, por exemplo,
pagasse suas contas de costureira. O sr. Jonas vê as coisas por esse ângulo, e estou disposto a
concordar.
Nesse ponto ele deixou-se cair numa poltrona. Esticou as pernas compridas e pôs- se a
observar Harriet: era claro que esperava uma resposta. Ela refletiu, e sua reação inicial foi de achar
a coisa impraticável, mas não se esforçou para considerar a situação pelo lado prático. Isso tinha
acontecido muitas vezes, em outras famílias. O que ele dizia era verdade, na maior parte, e o arranjo
seria especialmente vantajoso para Caroline.
Se ele se casasse com Caro, e Harriet começou a gostar da ideia, o futuro da moça estaria
assegurado. Continuaria a viver nas condições confortáveis às quais estava acostumada. Haveria
dinheiro para tudo. E ela gostara de Ben desde o primeiro encontro, mostrando-se triste quando ele
teve de ir a Bristol. Ben, por outro lado, parecia gostar da bela priminha, e estava sempre pronto a
satisfazer os caprichos dela, a trazer suas encomendas e até a encher a casa de músicos e
convidados. O noivado de Ben e Caro resolveria elegantemente o problema representado por James
Murray, e este esqueceria logo a decepção. Sim, seria uma solução excelente. Harriet endireitou as
costas e bradou com entusiasmo:
— Ficaria muito feliz se Caro se casasse. Creio que seria boa esposa e boa dona de
Monkscombe. Pode parecer um pouco avoada, agora, porém é porque é muito nova... No fundo, é
muito séria.
Os olhos acinzentados que a observavam indicaram espanto.
— Caroline? E o que devo fazer com o túnica-vermelha apaixonado? Desafiá-lo a um
duelo?

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— Tenho certeza que o capitão Murray compreenderá que esse casamento é em benefício de
Caroline — murmurou ela.
— Tem certeza, minha cara? Estou muito mais disposto a acreditar que chegaria correndo
para me dar um soco no nariz! Além disso, sou um homem com quase trinta anos, e não um garoto
que começa a aprender a se barbear. Posso dispensar uma esposa de dezenove anos com uma
cabecinha apinhada de romances, de parceiros de dança e de vestidos novos. Quero alguém que
saiba dirigir Monkscombe, quando eu não estiver aqui. Como você fez na semana passada. Não. O
que quis dizer é que deveria me casar com você, Harriet.
Ela ficou branca com o impacto da proposta, e por um momento ele temeu que desmaiasse.
— Bom, posso não ser o noivo ideal de seus sonhos — declarou Ben em tom irritado —,
mas não imaginei que esta perspectiva ia lhe parecer tão péssima.
— Como você sabe — murmurou Harriet com uma voz sufocada, que nem parecia dela —,
sou apenas boa para me preocupar com cardápios e rol da lavanderia. O que aconteceria se você
tivesse de se ausentar por mais de uma semana?
— Pare de se mostrar amuada, Harriet! Você é uma moça de bom senso. Sabe que eu estava
apenas brincando, bom, não completamente, pelo menos não no começo. Queria ver até onde
chegava sua capacidade, antes de passar-lhe o negócio...
— Negócio? — protestou Harriet, assustando-o. — Monkscombe não é um "negócio". E,
ainda por cima, tem a ousadia de dizer que estava me experimentando. Está lembrado que dirigi
Monkscombe por mais de um ano, desde que papai faleceu, enquanto esperávamos por você?
— Pelo amor de Deus, mulher! — exclamou Ben, enquanto gesticulava para apaziguá-la.
— Será que não tem um pingo de senso de humor?
— Tenho um excelente senso de humor, muito obrigada! — A voz de Harriet era mordaz.
— Me parece que é você que não sabe escolher o momento certo para brincar!
— Não estou brincando, ora essa, mulher! — Ele se colocou em pé de um salto. — Estou
lhe propondo casamento! No entanto, não sou Murray e não tenho a menor intenção de me arrastar
de joelhos sobre o tapete! E mais, você conhece o sr. Jonas há muitos anos, e pensei que respeitaria
a opinião dele, apesar de fazer tão pouco da minha!
— Ele disse que eu deveria aceitar? — ela sussurrou, abismada.
— Sim. Disse também que sua cabeça estava no lugar certo, e que você veria que era a coisa
mais lógica.
Harriet começou a se sentir sufocada, acuada. Eles já tinham decidido tudo. O sr.
Ferrar, apesar de ter as melhores intenções, tinha se tornado um traidor.
— Só que eu... — balbuciou — eu não havia pensado nisso. Sabe, já estou com vinte e seis
anos, tinha... tinha afastado qualquer ideia de casamento. Veja, Caro é tão mais bonita... e muito
mais capaz de conversar com aquele jeitinho que os homens gostam. Eu... eu consigo um bom
desempenho nas coisas práticas, mas... mas não tenho muito talento para nenhuma outra coisa.
Boa parte da irritação dele pareceu se evaporar. Parou de considerá-la com embaraço,
teimosia, e se aproximou dela com um ar mais relaxado, mais normal.
— Entenda, Harriet, é uma situação bastante peculiar para nós dois, porém não tenho
vergonha de dizer que ficarei satisfeito se você concordar. É uma moça muito bonita, tem uma
cabeça notável e, sabe, ficarei orgulhoso ao ouvir as pessoas comentarem: "Ali vai a sra. Ben
Stanton!" — afirmou, sorrindo.
— Em vez de ouvir: "Ali vai a srta. Stanton" — ela ironizou, apertando os cantos da boca, e
ambos caíram na gargalhada.
Ben bateu alegremente as mãos sobre os joelhos e, com grande consternação de Harriet,
estendeu uma das mãos e beliscou-lhe familiarmente a bochecha.
— Pronto, está vendo? Creio que as coisas irão muito bem, você vai ver!

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A sensação de claustrofobia de Harriet pareceu aumentar. A surpresa e o fato de se


encontrar numa situação completamente estranha tinham afetado seu autocontrole. Por não ter
ouvido uma violenta repulsa, ele acreditava que ela concordava.
— Oh, mas eu não...! — Harriet começou a balbuciar, porém sufocou o resto ao se lembrar
que era a maneira de assegurar o futuro de Caroline.
Ele se voltara para olhar alguma coisa e parecia não ter ouvido a última frase inacabada.
— A não ser que você se lembre de algum impedimento para tal — bradou, ainda de costas
—, vou anunciar o noivado durante a festa que Caroline está organizando. Vamos reunir os vizinhos
e mandá-los de volta para suas casas de orelha em pé e com assuntos para comentar... — Virou-se
de chofre, e mais uma vez ficou a observá-la.
— Sem dúvida — sussurrou Harriet, pensando em sir Mortimer, lady Williams, o pastor, as
srtas. Drew e o resto da sociedade local. — Essa notícia deixaria todo mundo alvoroçado
É agora ou nunca, refletiu. Recuse ou deixe que ele acredite que você concorda.
Precisa tomar uma decisão.
Vou aceitar!, pensou. Teve uma dúvida repentina, ao olhar para cima e ver aquela figura alta
a dominá-la. As coisas seriam diferentes... Ser a esposa de Ben significaria muito mais que ser
apenas a dona de Monkscombe. Ela teria de se sujeitar às obrigações de uma esposa, ele exigiria
isso, porque era seu direito. Só esperava que Ben se mostrasse compreensivo e não ficasse muito
desapontado ao descobrir que ela não era uma amante satisfatória. Mordiscou o lábio e ficou a olhá-
lo, enquanto ele se dirigia para a porta.
— Ah! — voltou o conde a falar, como se só então tivesse lembrado. — O sr. Jonas me
confessou que gostaria muito de acompanhá-la ao altar, se você aceitá-lo.
— Ah... sim! — respondeu Harriet.
Viu que ele parecia aliviado, por ter-se desincumbido da tarefa sem provocar ataques
histéricos nem objeções sérias. O conde sorriu, inclinou a cabeça em sinal de despedida e saiu.
Concordaram em que o noivado não deveria ser mencionado antes da festa, especialmente,
como o conde recomendou, na presença da própria Caroline.
— Contar a Caro e pedir a ela que mantenha segredo — ele observou —, seria a mesma
coisa que contar tudo a Paul Revere, pedindo-lhe que notificasse a todos.
Intimamente, Harriet estava satisfeita com o fato de que ninguém soubesse. Todo adiamento
era bem-vindo. Contudo, seu relacionamento com Ben, sob vários aspectos, era pior que antes. Ela
sabia que muitos apaixonados escreviam bilhetes, gostavam de ficar de mãos dadas, sussurravam
pelos cantos, trocavam olhares cheios de subentendidos. Harriet, porém, existia numa terra de
ninguém. Estava secretamente noiva, comprometida a se casar com ele. Não podia recuar. Bom, até
poderia, mas uma dama não fazia isso. Por conseguinte, sentia a obrigação de se mostrar satisfeita
em vê- lo, de apreciar sua conversa e sua companhia. E na verdade, apesar de algumas reservas,
tinha começado a prezar a companhia dele, porém teria gostado sem o insistente segredo do
noivado. Receava sorrir para ele e parecer afetada ou convencida. Evitara qualquer familiaridade,
para que não pensasse que era um convite ao namoro. Ficava aterrorizada de ficar a sós com ele, e
inventava mil desculpas para sair de casa.
Quando não se debatia entre esses pensamentos penosos, atormentava-se lembrando que o
casamento não fora ideia do conde, mas do sr. Jonas Ferrar. Ele concordara, por uma questão de
responsabilidade. Ela então deveria pelo menos se mostrar grata. Mas grata por receber a
oportunidade de viver onde sempre vivera? Na ' realidade, não era uma oportunidade, e sim apenas
uma pequena e sórdida barganha, e sentia-se envergonhada por isso.

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Um dia, lorde Stanton resolveu visitar os Pardy, para ver como estava o pequeno protegido
de Harriet. Levou Henderson para acompanhá-lo.
— Os Pardy — revelou o criado, enquanto seus cavalos trotavam em direção do litoral e das
casinhas dos Pardy — são todos desprezíveis. Espero que não me considere impertinente, senhor, se
digo que não deveria descer até aquelas taperas. Aliás, mais parecem pocilgas. Confesso que não
entendo como há gente que consegue viver naquelas condições.
— Quero ver o moleque, Joe — declarou lorde Stanton.
— Nesse caso, ficaremos ao lado da cerca e chamaremos pelo menino.
— Não podemos fazer nenhuma outra coisa, Joe. A casa dos Pardy pertence a eles, e, se
entrarmos à força, poderão dizer que estamos invadindo — bradou o conde, com calma. — Vamos
permanecer ao lado do portão.
"Portão" era uma denominação otimista do acesso a duas casinhas que caíam aos pedaços, e
que eram o lar dos Pardy. Existia uma espécie de cerca, mas, o que antigamente devia ser um
jardim, agora parecia apenas um depósito de toda espécie de lixo, incrustado na lama. Um vira-latas
peludo e sujo, com uma orelha decepada, se adiantou rosnando, tentando morder as patas das
montarias, e Henderson lhe aplicou uma chibatada. O cão se afastou e ficou a latir a prudente
distância. Uma mulher jovem, maltrapilha, de cabelos ensebados, apareceu na porta, e, ao vê-los,
voltou depressa para o interior. Depois de alguns momentos apareceu Aaron, que ficou parado
diante da porta, com os polegares enfiados nas cavas do colete. Atrás dele se esgueirou uma
personagem ainda mais repugnante, de ombros largos, curvos, e braços exageradamente compridos.
— Meu Deus, que é isso? — perguntou Ben, espantado.
— Isso é Nathan Pardy — respondeu Henderson. — Eu o conheço, é um delinquente. Se
mete continuamente em brigas, e é um lutador traiçoeiro, se o senhor me entende. Já esteve muitas
vezes diante do magistrado, porém como se trata do velho sir Mortimer, sempre consegue se safar.
— Como assim? — quis saber lorde Stanton. Henderson
mudou levemente de posição sobre a sela.
— Ora, senhor, sir Mortimer é um cavalheiro de idade, de gosto apurado, e prefere um copo
de bom conhaque............................Que os Pardy gentilmente contrabandeiam e levam para a
casa dele, complementou Ben, em pensamento. E o velho cavalheiro inglês de gosto apurado
não passa de um corrupto.
— Que o traz para estas bandas, sr. Stanton? — gritou Aaron.
— Quero ver o moleque!
— E se recusarmos, que acontece? Vai lutar para chegar até aqui, ajudado por Joe
Henderson?
O primo de Aaron, Nathan, soltou uma gargalhada. Henderson praguejou.
— Fique aqui, Joe — murmurou o conde e avançou, empurrando o "portão".
O cão deu um latido e se afastou mais um pouco. Ele chegou até a porta, e ambos os Pardy
saíram de vez da frente.
— A criança, Aaron! — exclamou lorde Stanton, amavelmente.
Aaron o observou, pensativo.
— Escute, sr. Stanton, espero que veja que sou educado. Não sou amigo do senhor, mas sou
amigo da srta. Stanton. — Percebeu que o outro corava de raiva e sorriu ainda mais. — Assim,
apenas como um favor para a srta. Stanton, e espero que o senhor lhe transmita isso, vou deixar que
veja nosso Billy. Traga o moleque, Nathan!
Nathan desapareceu e voltou arrastando o moleque por um braço.
— Solte-o! — ordenou o cavaleiro. Billy, chegou mais perto. O
menino se mostrou lerdo e foi empurrado pelo tio.

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— Você está bem, Billy? — perguntou lorde Stanton. — Pode falar. Alguém
maltratou você?
Billy respondeu algo incompreensível, que foi interpretado de maneira positiva.
Depois virou as costas e retornou correndo para o interior da casa.
— Espero que esteja satisfeito, sr. Stanton — bradou Aaron. —E vamos dispensar o prazer
de sua companhia, daqui por diante.
— Isso depende — declarou Ben secamente, e fez voltar o cavalo até o portão. Os dois
primos trocaram um olhar, enquanto os cavaleiros se afastavam.
— Talvez seja necessário cuidar dele — sussurrou Nathan.
— Não se preocupe — garantiu o outro. — O cavalheiro parece ter um ponto fraco, e eu
acho que sei qual é.
Os dois cavaleiros passaram pela aldeia, ao se encaminharem para casa. Quando cavalgavam
pela rua principal do pequeno aglomerado de casas e lojas, o conde vislumbrou a distância uma
figura feminina vindo em sua direção, andando apressada por um trilho perpendicular.
— Pode continuar, Joe — afirmou, com voz contida. — Não preciso mais de você.
— Sim, senhor — respondeu Henderson, olhando para o vulto distante, e se afastou
rapidamente.
Harriet parou quando viu o cavaleiro à espera. Chegou a uma cerca baixa e passou por cima
dela, sem auxílio, embora seu primo tivesse desmontado.
— Onde esteve? — perguntou ele andando ao lado dela.
— Com o pastor, que me deu uma lista de doentes, e depois fui ver a mulher de um
camponês, que teve filho.
— Lista de doentes? Isso é necessário?
— É, sim. O pastor é solteiro e não tem quem visite as mulheres doentes ou em resguardo
de parto, por isso eu vou. O dr. Gray visita os doentes com febre...
— Não sei se gosto disso... — e apressou-se a continuar, ao ver a expressão de rebeldia nos
olhos azuis de Harriet. — No entanto, eu também me dediquei a uma boa obra. Fui à casa dos
Pardy, ver o menino.
— Você não foi sozinho, espero! — ela exclamou, alarmada.
— Não, Joe me acompanhou, e calculei que tinha uma constituição suficientemente
robusta para me cuidar. Sinto-me lisonjeado por você se preocupar por mim.
— Não há nada de lisonjeiro nisto — ela declarou. — Me preocupei porque os Pardy são
realmente perigosos e capazes de provocar brigas para se vingar. Você viu o menino?
— Sim, e aparentemente está bem, porém é uma lástima que uma criança tenha de viver em
condições tão sórdidas. — Ambos começaram a se movimentar em direção da casa, lado a lado. —
O vento está ficando mais forte e pelo jeito vai trazer chuva — ele acrescentou. — Seria uma boa
ideia se você montasse na minha garupa. Chegaríamos muito mais depressa.
— Não me importo com um pouco de chuva. Pode ir na frente —Harriet se apressou a
dizer.
— Deixando você para trás, como se fosse uma mulher índia? Sei que não me considera um
cavalheiro, mas até criaturas primitivas como eu não abandonam uma dama nestas circunstâncias.
Olhe só. — Havia um tronco caído na beira da estrada. — Serve muito bem para você subir nele e
montar.
— Não, não posso! — gemeu Harriet, consternada. — Alguém poderia ver e achar muito
esquisito!
— Seria muito mais esquisito se nos vissem caminhando sob a chuva, tendo um cavalo à
disposição. — Ele parou e montou. — Vamos, suba.
Harriet subiu desajeitadamente no tronco e estendeu os braços. Ele se inclinou

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para a frente e a puxou para a garupa.


— Está pronta? — perguntou por cima do ombro.
O cavalo se movimentou e seus primeiros passos quase fizeram Harriet deslizar para o chão.
Assustada, abraçou-o pela cintura. Felizmente não podia ver o rosto dele, porque o conde ria
baixinho. Percorreram uns quinhentos metros dessa forma, e de repente a chuva desabou. Lorde
Stanton apeou e a tirou da garupa; ambos correram até um barracão à beira da estrada, vazio e não
muito bem-cuidado, que, contudo, podia abrigá-los. Ele fez o cavalo entrar e o amarrou. Quando
olhou para Harriet, viu que passava as mãos no vestido e sacudia a saia molhada.
— Quando sair para visitas, srta. Stanton, carregue um guarda-chuva bem grande.
E não entendo por que foi a pé, com o tempo ameaçador como estava.
— Porque você levou Henderson — ela respondeu, mal-humorada. — E eu não posso sair
sozinha, se estiver lembrado...
— Hum! — Tirou o chapéu e sacudiu a água. — Talvez a chuva nos tenha feito um favor.
Podemos ficar aqui, sentados, e conversar sossegados, até que passe o aguaceiro.
— Conversar sossegados?! — ela perguntou, retendo o fôlego.
Afastou-se dele e ficou a observá-lo de olhos arregalados.— Sobre o quê?
— Afinal, somos um casal de noivos. Podemos discutir nossos planos de casamento.
Pessoalmente gostaria de uma cerimônia discreta.
— Concordo — respondeu Harriet, com entusiasmo desnecessário.
Ele encontrou um caixote vazio e o arrastou para perto dela. Limpou o pó com o lenço,
sentou-se e indicou o lugar ao seu lado para Harriet. O espaço era reduzido e tiveram de se apertar,
ficando mais próximos de quanto ela estava acostumada, em se tratando de homens. Ficou
horrorizada e consternada quando ele segurou sua mão.
— Naturalmente — ele anunciou —, vou comprar uma casaca nova. Disseram-me que deve
ser azul. E você, Harriet, se vestirá de branco?
— Sim — foi a resposta melancólica. — Mas pretendo pagar pessoalmente pelo vestido,
porque seria um absurdo que você o comprasse.
— Você é muito difícil em matéria de conveniências — ele declarou com um suspiro. —
Do meu ponto de vista transatlântico, leve e livre, não me interessa absolutamente quem é que
pagará pelo vestido.
Harriet desvencilhou a mão.
— Primo Ben, começo a reconhecer seu nível de humor. Sei que está brincando comigo,
compreendo que não pretende me magoar, porém eu não gosto disso e seria melhor que não o
fizesse.
— Sinto muito — bradou Ben. — Não tive intenção alguma de perturbá-la.
Não fez nenhuma tentativa de voltar a segurar a mão dela, mas suas coxas estavam muito
próximas e não havia espaço para se distanciar.
— Fiquei pensando a respeito do casamento com você — disse Harriet, com a voz carregada
de aflição.
— Pode mudar de ideia, é um privilégio que cabe a você. — A voz era indiferente, porém
ele observava atentamente o perfil de Harriet.
— Não. — Ela sacudiu a cabeça. — Uma dama não pode fazer isso. Não posso fazê-lo. Se
insistir, vou me casar com você. Mas realmente agradeceria muito se você me dispensasse do
compromisso.
Desta vez, o silêncio foi mais demorado. Ele se levantou e aplicou uma chicotada num
monte de sacos velhos. Um rato assustado apareceu. O conde pisou imediatamente sua cabeça e
depois chutou a carcaça para fora. O gesto violento do chicote e a eliminação cruel do animal
indicavam claramente uma emoção reprimida, que ele não desejava expressar em palavras; Harriet
se sentiu gelar e não conseguiu dizer mais nada. Ele se virou e a fitou. Seu rosto parecia de pedra.
— Por que concordou quando sugeri o casamento?

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— Para... garantir um lar para Caro e para mim em Monkscombe — ela murmurou.
— Então, nada mudou. — Aproximou-se dela; porém, ao ver que ela se retraía, como se
estivesse com medo dele, parou. — Este foi o motivo de minha proposta, e as circunstâncias ainda
são as mesmas. Pode pensar que minha proposta foi pouco séria, mas garanto que não foi. Não
estou acostumado.a ver minha generosidade recusada, Harriet. Não, não pretendo dispensá-la do
compromisso. Desista você, se quiser. Eu não vou desistir.
— Já expliquei que não posso desistir — ela sussurrou. — Uma dama não pode fazê-lo.
— Se é assim, vamos nos casar, Harriet — ele declarou bruscamente. — E fim da história.
— Chegou até a porta. — Tenho impressão que a chuva parou. Vou colocá-la na sela e levar o
cavalo pela rédea.
— Sim, é claro — ela murmurou.
Foram até a casa em silêncio.
Como era de esperar, Harriet dormiu muito mal naquela noite. A um certo ponto acordou,
sem saber a hora, sem poder explicar por quê. Procurou a vela e o isqueiro às apalpadelas, e
conseguiu acendê-la.
A luz da vela provocava sombras irregulares nos cantos do quarto, que a assustavam quando
era criança, mas não nesse momento, porque conhecia todos os meandros daquela casa, e a casa era
uma amiga. Ou assim acreditara até agora.
Levantou-se e saiu para o corredor, todo escuro e vazio. Virou-se para voltar para o quarto,
quando ouviu um estalo muito nítido no andar superior. Alguém estava acordado e caminhava lá em
cima. Durante um instante ficou gelada, e as velhas histórias de fantasmas voltaram à sua mente.
Mas logo pensou que devia ser uma criada que dormia no sótão. Tornou a ouvir passos acima da
cabeça. Cuidadosamente, chegou até a escada no fim do corredor e subiu, cautelosa, segurando a
vela e a barra da camisola.
Teoricamente, ninguém dormia no andar de cima. Havia alguns quartos, porém eram
pequenos e incômodos. E existia a porta que dava acesso ao Passeio da Viúva. Quando ela chegou à
altura do fim da escada, sentiu uma corrente de ar frio. A porta para o Passeio da Viúva estava
aberta. Alguém tinha feito isso, porque era impossível o vento fazê-lo. Silenciosa, deslizou pelo
corredor, deixou a vela num canto e continuou andando, colada à parede.
De súbito, viu a noite lá fora. A porta estava escancarada, e a silhueta de um homem alto se
destacava contra o céu estrelado. Ele observava algo ao luar, servindo-se de uma luneta apontada
para o mar. Ela prendeu a respiração, voltou-se e esgueirou-se sem o menor ruído; pegou a vela e
correu para seu quarto.
Ficou acordada até o dia clarear, procurando uma explicação plausível para a vigília
noturna, solitária e secreta de Ben Stanton.
Que estaria ele esperando?

Capítulo 5

Caroline dedicava-se de corpo e alma aos preparativos para a festa. Harriet ficou surpresa ao
ver que a orquestra estava contratada, a lista de convidados pronta e os convites escritos e
despachados. A sra. Woods foi consultada a respeito do jantar e foram preparadas enormes
quantidades de sopa, muito indicada porque, com o frio, podia ser preparada bem antes. As portas
entre a sala de visita e a sala de jantar foram abertas e

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os móveis removidos, alguns retirados, a fim de proporcionar mais espaço para o baile.
Ben, Harriet e Caroline eram obrigados a comer numa salinha dos fundos, pouco usada e
escura, e sobretudo abarrotada de móveis indesejáveis.
— Isso é muito desconfortável, Caro — observou Harriet, com doçura.
— Não atrapalhe, Harriet querida! É só por pouco tempo, e Ben, não se importa.
Pelo menos, não falou nada.
Ele, provavelmente, também estava impressionado com a atividade inesperada de Caroline.
A sociedade local prometeu comparecer, em peso. Ninguém esperava festa alguma antes do Natal, e
um baile no começo de dezembro foi recebido com entusiasmo, especialmente pela geração mais
jovem. Harriet foi incumbida de arranjar alojamento para aqueles que moravam longe. No entanto,
o entusiasmo de Caroline foi além dos meros preparativos. Aproximou-se da irmã com expressão
decidida e um brilho no olhar.
— Entenda, Harriet, não vou permitir que você apareça com um vestido velho qualquer,
parecendo um espantalho.
— Muito obrigada, Caroline. Nunca pensei que me parecia com um espantalho.
— Não há tempo suficiente para encomendar vestidos novos —continuou Caroline, sem se
abalar. — Vou usar meu vestido de seda cor de marfim. Agora, vejamos o que você tem.
Abriu a porta do guarda-roupa de Harriet e apanhou os vestidos um a um, jogando- os sobre
a cama. Finalmente Caroline ergueu-se, despenteada e corada, segurando um modelo de tafetá cor-
de-rosa, com laços de veludo em tonalidade mais escura.
— Esse não — protestou Harriet. — Jamais gostei dele. Escolhi mal. É muito sofisticado
para mim.
— Tolice, Harriet. Vista-o. Quero ver se precisa acertar alguma coisa.
Harriet se colocou diante da lareira acesa e, pacientemente, deixou que Caroline puxasse,
virasse e manipulasse o vestido em todos os sentidos, antes de declarar que estava perfeito e na
última moda. Achou que só faltaria um lindo penteado.
— Como na outra noite, quando Ben gostou muito! — Sentada na cama, entre os vestidos
descartados, Caroline explicou: — Quero que a festa seja realmente um sucesso. Sinto que será
uma ocasião muito importante.
Harriet a olhou desconfiada. Estaria sabendo de alguma coisa? Contudo, a expressão de sua
irmã era sonhadora.
— Você mandou convite ao capitão Murray? — perguntou Harriet.
— Claro que sim — Caro respondeu com ar ausente. — Mas só o vejo raramente. Vive
cavalgando pelos campos em todas as direções, procurando um francês. Ele está convencido de que
o homem está escondido perto daqui. Não sabe falar em outra coisa!
Parecia aborrecida com a falta de atenção. Harriet esperava que o capitão fosse um péssimo
dançarino. Isso não lhe traria nenhuma vantagem aos olhos de Caroline.
— Gostaria — ela disse de repente — que James pudesse pedir demissão da milícia e não
dependesse tanto do soldo. No entanto, ele tem dois irmãos mais velhos, e não há possibilidade
alguma de ele se tornar o herdeiro. Creio que não deve ser agradável o casamento com um homem
que está sempre preocupado com o dever. Não quero dizer que não o admiro, e tenho certeza que
ele é muito corajoso. Mas suas conversas estão recheadas de mosquetes e de selas, se você entende
o que quero dizer.
Harriet não sabia como interpretar essa confidência. Por outro lado, seu noivado seria
anunciado dentro de uma semana e imaginava que Ben não estaria disposto a adiar muito a data do
casamento. Começara a juntar os vestidos que Caro deixara amontoados sobre a cama, e parou.
Pensou em si mesma, deitada naquela cama, o que não era nem difícil nem alarmante. Depois tentou
pensar em Ben deitado na mesma cama, e ficou perturbada. Quando tentou pensar em ambos,
deitados juntos na cama, ficou tão horrorizada que teve ímpeto de fugir, para nunca mais voltar.
Harriet, porém, não se deixava influenciar pelas circunstâncias. Quando chegou a

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noite do baile, foi se preparar da melhor maneira possível. Ficou satisfeita com o resultado de seus
esforços. O traje de tafetá cor-de-rosa já não parecia exagerado numa casa cheia de mulheres em
vestidos de gala. Os cabelos foram ajeitados num elegante penteado, com o auxílio de vinte e três
grampos, e os brincos de pérola, herdados de sua mãe, completaram satisfatoriamente a toalete.
Procurou um lenço bonito na gaveta, e seus dedos encontraram o frasco de perfume francês.
Esquecera sua existência. Tirou a rolha e cheirou com cuidado. Era indubitavelmente autêntico, e
muito caro. Quem sabe, Aaron realmente se arrependera de ter lhe dado um susto, porém ela
precisava devolver o frasquinho... Por outro lado, se colocasse apenas duas gotas atrás das orelhas,
ninguém perceberia. Esta noite haveria muitas senhoras e moças usando perfume francês,
conseguido ilegalmente. Pingou uma gota atrás de cada orelha, tampou o frasco e o escondeu no
mesmo lugar. Então desceu, para ver se tudo estava pronto.
A casa já se encontrava cheia de gente, e as criadas corriam em todas as direções com ferros
de ondular cabelos, agulhas e linhas, para acalmar os costumeiros pânicos da última hora. Sir
Mortimer já dormia na saleta dos fundos. Na mesa havia uma garrafa e um copo, e um bilhete,
apoiado na garrafa, pedia: "Me acordem na hora do jantar".
Ao passar pelo hall, Harriet sentiu uma corrente de ar frio e percebeu que o capitão Murray
acabava de chegar. Foi cumprimentá-lo. O pobre capitão parecia preocupado.
— Este não é meu tipo de festa, srta. Stanton — ele confessou. — Caroline disse que devia
dançar a valsa, porém não consigo manter o compasso. E depois não me parece decente apertar uma
moça entre os braços, assim em público!
— Não faz mal, capitão, faça o que puder — murmurou Harriet, com um tapinha amistoso
em seu braço.
O conde havia sumido, mas uma criada explicou que ele fora para o gabinete.
Harriet bateu na porta e entrou.
Muito elegante e atraente, lorde Stanton se encontrava no outro extremo, junto da lareira,
observando as chamas. Tomada pela timidez, Harriet parou ao lado da porta. Ele pareceu aliviado.
— Finalmente chegou! — exclamou. — Quem são todas essas pessoas? Não posso ficar na
porta, cumprimentando gente que não conheço.
— Compreendo, porém ficaremos juntos, para dar as boas-vindas, e vou explicar quem são
— murmurou Harriet, reanimada.
Ele se aproximou e a examinou, com ar meio sombrio,
—Você está lindíssima — sussurrou simplesmente.
— Obrigada. O esforço foi sobretudo de Caroline, sabe?
— Estava pensando em nossa discussão do outro dia. Sei que minhas reações são, às vezes,
um pouco apressadas, e não quis parecer tão brusco como fui.
— Está bem — ela respondeu abaixando as pálpebras. — Entendi. Você fez uma proposta
muito generosa, e fui grosseira ao querer desmanchar o compromisso. Foi apenas... — parou sem
saber como explicar-se, pois não encontrou as palavras certas.
— Acho que você estava assustada... por ter assumido um compromisso.
— Sim — ela concordou, sem jeito.
— E continua assustada? — ele quis saber, muito sério.
Ela queria responder que estava aterrorizada, mas não ousou. Deu uma resposta diferente:
— Já me acostumei com a ideia, obrigada.
— Nesse caso, creio que será na hora do jantar... — bradou ele e, quando viu a expressão de
Harriet, acrescentou: — ...o anúncio de nosso noivado.
— Sim. — Harriet engoliu seco. — Julgo que é uma boa ideia. Ele
sorriu, se curvou e ofereceu o braço.
— Então, podemos sair e desempenhar nossas funções de bons anfitriões.
Harriet retribuiu com um sorriso um pouco trêmulo, sentindo-se muito mais à

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vontade. Pôs-se a refletir que fora tola ao se entregar ao medo, e que, talvez, estar casada com ele
poderia ser até bastante agradável...
O conde percebeu a mudança de expressão e pensou que, quando ela não parecia assustada,
o que acontecia sempre que ele aparecia, era realmente muito bela. Queria descobrir o que fazer
para tranquilizá-la, mas sabia que, na ideia de Harriet, era um estranho e continuaria a ser um
estranho. Como estavam a sós, a luz das velas era suave e íntima, e parecia a coisa mais natural do
mundo, ele se abaixou e a beijou.
Teve medo que, como da vez anterior, ela fugisse em pânico, porém isso não aconteceu: a
moça apenas o fitou, com assombro misturado a timidez, sem saber o que fazer, e ele sentiu seu
coração dar um pequeno sobressalto, que o deixou perturbado. Teve vontade de praguejar. A coisa
não era tão simples e bem arrumadinha como descrevera aquela velha raposa esperta, Jonas Ferrar,
quando o convencera a entrar naquele arranjo. Estava começando a acreditar que teria feito melhor
em responder às cartas do velho advogado, anunciando que era o herdeiro de Monkscombe, mas
que não estava interessado. Nunca deveria ter vindo. Seria melhor ter ficado longe, cuidando de
seus negócios, deixando as irmãs a viver em paz, sem o inconveniente de sua companhia.
Falou sem jeito, porque se sentia como um garoto que não soubesse o que dizer:
— Se não me engano, esse é perfume francês.
— Sim, porém usei só um pouquinho... — ela murmurou, sobressaltada.
— Pensei que fosse difícil encontrá-lo aqui, na Inglaterra...
O conde lembrou que sir Mortimer não dispensava seu conhaque importado e achou que
provavelmente o perfume tinha a mesma origem. Franziu a testa: a ideia de que Harriet comprasse
mercadoria contrabandeada lhe desagradava, não combinava com a personalidade dela, tão honesta
e correta. Ficou curioso.
— De onde veio? — perguntou.
— Ganhei de alguém — ela sussurrou.
— Deve ter sido há pouco — ele bradou, erguendo uma sobrancelha. — Perfumes não
recendem por muito tempo. — Uma ponta de ciúme o levou a perguntar com voz cortante: —
Quem foi?
Uma pessoa menos honesta teria respondido simplesmente: lady Williams ou um outro
nome. Ele teria se dado por satisfeito. Mas ela era profundamente honesta. Respirou fundo, como
uma criança a ponto de confessar grave travessura.
— Foi Aaron.
Ele reteve o fôlego. Teve a impressão de um balde de água gelada no rosto, porém logo seu
gênio, de inegável pavio curto, incendiou o sangue em suas veias.
— Pardy? — perguntou com a voz dura. — Aquele rufião?
— Tinha a intenção de devolver — ela balbuciou e arregalou os olhos de susto —, só que
não o vi mais...
O conde retirou o braço no qual ela se apoiava e parou.
— Você está me dizendo que ele deu esse perfume para você? Você não o comprou?
— Não. Foi um presente. Sabe, eu o vi quando vinha chegando no cabriole e...
— Tinha dado ordens que só poderia sair de cabriole com Henderson dirigindo!
— Sei, porém não foi culpa de Joe. Eu o enganei. Não deveria ter feito isso, porque ele
confiava em mim. Mas eu sempre dirigi meu...
— Eu disse que você não deveria dirigir! — ele rugiu, e Harriet ficou com medo que
pudessem ouvi-lo no corredor. — Não me interessa o que você fazia antes! Agora é diferente! Não
pode andar por aí sem uma escolta, e, por tudo quanto é sagrado, você não vai aceitar presentes de
Aaron Pardy!
Harriet era corajosa e não estava acostumada com gritos daquele jeito. Seus olhos
assumiram um brilho belicoso, e ela parou de se desculpar.

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— Não aceito presentes de Aaron Pardy, nem de nenhuma outra pessoa!


— Sei que não aceita nada de mim! — ele sibilou. — Nem pude pagar alguns metros de
tecido, porque seria um escândalo! Mas um perfume contrabandeado, dado por um dos mais
famigerados delinquentes da região, é diferente! Você tem uma ideia muito curiosa de decência.
Poderia chamar-se hipocrisia!
— Não aceito presentes de Aaron! — repetiu Harriet furiosa, batendo o pé.
— Só aceitou esse!
— Ele me pegou de surpresa, jogou o frasco no cabriole e fugiu. Não tenho culpa!
— Tem culpa sim, porque ficou com ele!
Ele berrava, mais e mais furioso, sobretudo porque não conseguia se controlar. Os cabelos
um pouco compridos, agitados, começaram a cobrir-lhe o rosto.
— Como queria que devolvesse o perfume? Indo até as cabanas dos Pardy? — ela bradou
alto.
— Não! Deveria ter mandado Joe Henderson ou esperado minha volta, para que eu o
devolvesse!
— Mas eu não queria que você soubesse! — exclamou Harriet, e depois silenciou, assustada
por tê-lo admitido: era a verdade, porém parecia um tanto ambíguo.
— Não queria, não é mesmo? — ele perguntou, friamente. — Posso imaginar. Então, deixe-
me explicar algo, para o presente e para o futuro. Até o casamento, e mais especialmente depois do
casamento, você não terá mais nada que ver com Aaron Pardy. Não irá encorajá-lo. Não aceitará
nada dele e nada lhe pedirá. Não irá nem se encontrar com ele. Entendeu?
— Vivo nesta região desde que nasci, e o mesmo vale para Aaron — ela arfou. — Não
gosto dele e não gosto dos Pardy, não quero ver Aaron e não quero os presentes dele, mas não
admito que me digam quem posso ver e quem não posso ver! E Aaron, apesar de suas muitas falhas,
pelo menos é daqui, e você não é!
Em toda a sua vida, Harriet jamais dissera algo que a deixasse mais arrependida, logo que as
palavras saíram de sua boca. Contudo, era tarde. Lamentava ter dito aquilo, e observou Ben retendo
o fôlego.
— Vá buscá-lo — ele disse, calmo.
— O quê? — ela sussurrou.
— O perfume, diacho! Vá buscá-lo e o traga aqui. Agora!
Diante daquela cólera concentrada, ainda mais assustadora porque ele tinha parado de berrar
e se controlava obstinadamente, Harriet viu que só poderia obedecer. Foi até o quarto, apanhou o
frasco e, quando o entregou a Ben, sua mão tremia um pouco.
Ele fez que não percebera, e enfiou o frasco no bolso.
— Que vai fazer? — ela arriscou.
— Vou devolvê-lo, naturalmente. Amanhã, porque hoje à noite não é possível. — Alisou os
cabelos e ajeitou os punhos. — Agora, tome meu braço e vamos ver nossos convidados.
Espero nunca mais ter de passar por uma noite como esta, pensava Harriet. Ficar de braço
com o conde, controlada e sorridente, foi um feito. Falar com os convidados, ficar de olho nos
preparativos para o jantar e ter de se preocupar com mais uma dúzia de coisas, requeria calma e
mente organizada. E ela carecia disso. Ele anunciaria mesmo o noivado? Os parabéns dos
convidados, a necessidade de parecer feliz... receava não ter forças para tais coisas. Depois olhou
para o primo e sentiu um pouco de pena: ele teria de anunciar o noivado e parecer o mais feliz dos
homens. Talvez se considerasse o mais desafortunado. Mas dissera que ia se casar com ela, e iria se
casar com ela.
Mandou um criado acordar sir Mortimer, e o jantar começou. Quando Ben anunciou o
noivado, houve gritos de surpresa e de alegria. Foi necessário berrar duas vezes ao ouvido de sir
Mortimer, que via todo o rebuliço mas não ouvia o motivo. Lady Williams

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desistiu com pesar dos planos que fizera para sua filha caçula Lavínia, que gostaria de ver dona de
Monkscombe. Caroline soltou um grito e depois começou a cantarolar: "Eu sabia, eu sabia!",
enquanto corria até a irmã e o primo.
— Tudo isso é tão romântico — declarou com um suspiro.
Harriet só queria que o chão se abrisse para engoli-la, ou que o teto desabasse. Nenhuma das
duas coisas aconteceu, e ela teve de dançar com o noivo. Movimentava-se numa névoa pontuada de
luzes, de vozes e de rostos sorridentes, que falavam coisas que ela não conseguia ouvir. Só via
dentes: dentes bons, dentes ruins, dentes de ouro e dentes falsos. Todos a parabenizavam fazendo
caretas. De chofre, viu o rosto de Ben Stanton muito perto. A voz dele parecia vir de uma grande
distância.
— Você gostaria de se sentar?
— Sim, por favor — balbuciou, e ele a levou para um lado da sala.
Alguém colocou uma taça de ponche em sua mão.
Caro apareceu com um leque de plumas de avestruz, emprestado por lady Williams, e
começou a abaná-la.
— Estão vendo?! — exclamou Caro, toda feliz. — Eu não disse que minha festinha seria
muito importante?
Quando Harriet pôde finalmente se deitar, estava exausta mas não conseguiu adormecer.
Caroline fora dormir com ela, por ter cedido seu quarto às moças Williams, e ficara falando até o
dia clarear.
Finalmente adormecera.

Harriet acordou quase ao meio-dia. A luz lhe pareceu estranha. Pulou da cama e chegou até
a janela, descalça. A neve caíra durante a noite, e tudo era branco e bonito lá fora: uma paisagem
nova e limpinha. Ficou sentada perto da janela, tremendo de frio em sua camisola. De repente,
escutou som de cascos de cavalo. Ben Stanton apareceu, montado, trotando em direção da saída. Ia
devolver o perfume. Harriet procurou se lembrar se alguma vez já se sentira tão infeliz.
Lorde Stanton movimentava-se na branca paisagem invernal. A fina e fofa camada de neve
amortecia o ruído dos cascos.
Vários animaizinhos já tinham saído de suas tocas, como indicavam as pegadas. Não havia
marcas de passagem de homens. Ele lembrou todas as histórias que seu pai lhe contava quando
criança: dos marinheiros que saíam em aventura dos portos ocidentais; dos contrabandistas; da
sublevação de Monmouth e a horrível derrota, seguida pela passagem sangrenta do juiz Jeffrey,
quando em todos os cruzamentos de estrada surgiam forcas, e os restos dos esquartejados
balançavam nas praças das aldeias; de Guilherme de Orange, cuja tentativa foi mais feliz, levando-o
para Londres e a uma coroa. Aquelas colinas solitárias eram o ponto do encontro de bandidos, que
originaram lendas. Na realidade, deviam ser rufiões ignorantes como Aaron Pardy. Aaron e seus
parentes eram os descendentes diretos daquela gente, e continuavam praticando o mesmo
contrabando. Harriet estivera certa ao dizer que Aaron pertencia àquela terra, enquanto ele era um
estranho.
Aquela não era nem poderia ser a terra de Ben, mas ele percebera sua fascinação, seu
encanto. Hoje, especialmente, não podia deixar de ver como era selvagem, desolada, varrida pelo
vento. As legiões de César tinham atravessado aquelas colinas. Antes delas, as tribos celtas haviam
executado ali seus ritos secretos e selvagens. O poder de suas divindades sinistras e mágicas ainda
encharcava aquelas terras. Existiam estranhas pedras, cômodos esquisitos, curiosas trincheiras: o
que significavam? A história escrita é apenas uma fração insignificante de quanto realmente
acontecera. Aaron, de certa forma, representava o lado mais obscuro da região ocidental, e ele, Ben
Staton, sempre seria um estranho ali.

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Aaron Pardy! O conde achava impossível que Harriet pudesse alimentar qualquer simpatia
por aquele criminoso. No entanto, coisas estranhas aconteciam. Pelos relatos de Henderson, sabia
que Aaron tinha muito sucesso com as garotas locais, mas ele, evidentemente, queria algo melhor e
olhara para a srta. Stanton de Monkscombe. Por quê? Seria um desafio? Um senso de humor
pervertido? A vontade de se vingar da sociedade que o declarava um bandido, porém o usava em
segredo? Ou seria efetivamente por atração?
Lorde Stanton não achava que o interesse manifestado por Aaron fosse desprovido de
importância. Provavelmente era mais importante de quanto Harriet julgava. Era evidente que ela
desconhecia o lado físico dos homens e a possível ferocidade de seus desejos carnais; acreditava
que podia cuidar de qualquer problema, em se tratando de Aaron. Mas não poderia...
A parte difícil seria explicar a realidade da situação a Harriet, de uma forma que não a
deixasse ainda mais apavorada diante de homens do que já estava, de uma maneira que ela
conseguisse aceitar. E ele ainda não encontrara o meio, a não ser dando-lhe ordens que ela não
obedecia e gritando com a prima.
Percorria agora o alto do costão que beirava a praia. Conhecia aquele ponto por tê- lo
examinado, do Passeio da Viúva, em Monkscombe. Através da luneta, num dia bem claro, vira o
barco pesqueiro ancorado numa pequena angra.
Ventava muito, e o cavalo tentava abaixar a cabeça. Quando pararam, tentou se colocar de
costas para o vento. Na praia, um barco sustentado por blocos de madeira era submetido à limpeza
do casco. Três homens trabalhavam com afinco, apesar do frio.
Um pouco mais adiante, um trilho estreito e íngreme, cavado na rocha, levava à praia.
Estava escorregadio por causa da neve, mas bem cuidado: por esse caminho as mercadorias
contrabandeadas eram levadas-até o alto da parede rochosa.
Ele fez o cavalo descer pelo caminho perigoso. Os cascos derrapavam, e pedras voaram para
a praia. Os homens não podiam ignorar sua aproximação, porém continuavam a trabalhar. Ouvia
seus martelos e as botas roçando sobre o casco. A uma pequena distância do fim do trilho, o cavalo
pulou na areia, e o cavaleiro quase saiu voando da sela. Quando se aproximou dos homens, eles o
esperavam. A poucos metros deles, puxou a rédea e parou. Viu Aaron e Nathan, mas não
reconheceu o terceiro; talvez fosse um parente dos Pardy.
Aaron achegou-se a uma pequena distância, encarando o conde com insolência. Ainda
segurava o martelo na mão, por acaso ou talvez não. Os outros dois homens trabalhavam, porém
mais devagar, e estavam alertas.
— Então, sr. Stanton? — perguntou Aaron. — Que é que o senhor quer desta vez?
Parece que gosta muito de me visitar!
— O que devo dizer é só para você, Aaron — respondeu Ben com voz suficientemente alta,
para que os outros dois ouvissem. Colocou a mão no bolso e tirou o frasco de perfume. — Aqui,
apanhe!
E jogou o frasco em direção de Aaron, que levantou uma mão e automaticamente apanhou o
objeto. Quando o examinou, seu rosto se fechou numa expressão ameaçadora. Fitou o conde, mas,
antes que pudesse falar, este continuou:
— Você não dará mais nenhum presente à minha futura esposa, compreendeu?
As feições grosseiras, porém atraentes, de Aaron denotaram surpresa. Teve um sorriso de
mofa.
— Então, é assim? — perguntou.
— É assim — respondeu Ben, friamente. — Fique afastado da srta. Stanton e tire da cabeça
qualquer ideia que estiver alimentando. Não irá nem cumprimentá-la, Pardy.
Virou o cavalo e trotou até onde sabia haver uma maneira mais fácil de subir.
Aaron ficou a observá-lo.
— Vamos ver, sr. Stanton vamos ver — sussurrou. — Ainda conhecemos por aqui

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alguns truques que você desconhece.

Capítulo 6

Depois que todo mundo soube do noivado, Harriet-sentiu-se aliviada, e começou a aceitar
mais facilmente a ideia do casamento. Pela lógica, deveria se sentir acuada, porém não era assim:
sentia-se feliz por não ter mais um segredo. Caroline, obviamente, não parava de falar a respeito,
achava tudo muito romântico e dizia que tinha previsto tudo. O capitão Murray, por sua vez, parecia
muito feliz: pelo jeito, acreditava que, depois do casamento de Harriet, suas possibilidades de se
casar com Caro aumentariam.
Era impossível não gostar de James. Seria fácil até se afeiçoar muito a ele e recebê-lo com
entusiasmo Ha família. Exercia boa influência sobre Caro e, apesar de estar perdidamente
apaixonado por ela, costumava repreendê-la severamente pelos seus defeitos. Mas só dispunha de
seu modesto soldo da milícia, e no campo as possibilidades de promoção eram escassas. Pensava até
em tentar a transferência para o exército. Não seria difícil: a Inglaterra estava em guerra com a
França, e durante algum tempo os combates tinham sido navais, com grande sucesso para os
ingleses. No mês de outubro o país tinha se regozijado com a grande vitória em trafalgar, seguida,
porém, pelo profundo desespero por causa da perda do herói nacional, o almirante Nelson. O grande
Exército francês, no entanto, avançava sem que as forças aliadas conseguissem detê-lo. Os exércitos
europeus estavam desorganizados, e a Inglaterra via se aproximar o dia de ter de enviar suas tropas
para lutar no continente.
A ideia de uma transferência de James para o exército deixava Harriet em pânico. A vida
nas cidades que sediavam corpos militares era pouco confortável, a companhia era frequentemente
grosseira: Caroline não estava preparada para isso. Seria até pior se a Inglaterra transferisse suas
forças para as frentes de batalha na Europa: as esposas dos oficiais costumavam acompanhar os
maridos, mas Harriet não conseguia imaginar Caro dormindo numa tenda, num país estrangeiro, ou
aboletada em alguma casa imunda, entre camponeses estrangeiros.
Estava tão apavorada pela irmã, que tentou pedir ajuda ao conde. Afinal, era um homem, e
James provavelmente estaria mais disposto a ouvir conselhos dele.
O conde ouviu-a com atenção, enquanto ela explicava por que Caro não poderia seguir o
marido durante uma campanha.
— Murray é um homem confiável e honesto. Creio que cuidaria muito bem de Caroline, se
as coisas chegassem a esse ponto. Outras mulheres seguem o marido. Ela é moça, forte e saudável.
Ia sair-se muito bem.
— Ela é uma moça criada com o maior desvelo! — exclamou Harriet, irritada com tanta
indiferença. — Sabia que seria inútil falar com você, que não iria compreender!
— Então, por que falou, Harriet? — ele perguntou friamente, e a fitou com seus calmos
olhos acinzentados.
— Porque você se dá bem com o capitão Murray, e ele parece respeitá-lo. Imaginei que, se
explicasse que isso não pode ser, ele o ouviria. Mas perdi meu tempo! — Ela lhe deu as costas,
contraria da, fazendo rodar a saia.
Ele se distraiu olhando os bonitos tornozelos, e muito a contragosto desviou a atenção deles
para continuar conversando com a noiva.
— Para lhe dizer a verdade, querida prima, concordo com você em que tal coisa não deveria
acontecer.

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Surpresa, ela voltou a se aproximar e examinou o rosto dele, animada.


— Vai falar com ele?
— Já falei. Disse que o considerava um candidato muito benquisto à mão de Caro, aliás,
acredito que não há melhor. A situação dele, porém, deixa muito a desejar. Ele a ama e, se pudesse,
daria a ela o mundo inteiro. Mas não pode, e, como é um rapaz prático, só oferece o que está dentro
de suas possibilidades: a vida como esposa de um oficial do exército.
— Você quer me dizer — Harriet sussurrou estupefata — que ele já perguntou se poderia se
casar com ela?
— De certa forma. Contudo, não se preocupe, não vou permitir que carregue Caroline para
viver em acampamentos militares, com todos os seus pertences no lombo de um burro! — Observou
Harriet com curiosidade. — Acha que você poderia fazer isso?
— Não sei — ela respondeu com franqueza. — Imagino que, se tivesse de acompanhar o
homem que amo, poderia fazê-lo.
Nesse ponto enrubesceu furiosamente, e começou a falar muito depressa num outro assunto.
O conde agora mostrava interesse pela propriedade. Trabalhava, muito, a ponto de Harriet
admirá-lo. Passava os dias a cavalo, olhando tudo, não se deixava enganar, e ela viu que os meeiros
começavam a respeitá-lo. Ele o percebia, e provavelmente isso contribuía para deixá-lo menos
agressivo e menos teimoso. Parecia mais relaxado e mais feliz. Às vezes, quando seus olhos
encontravam os de Harriet por acaso, Ben Stanton sorria levemente, o que provocava um
sobressalto no coração dela. Finalmente, ela se decidiu a responder todas as vezes com um
sorrisinho.
O Natal se aproximava. Grandes feixes de azevinho chegavam para a decoração. Henderson
trouxe uma braçada até a biblioteca e, a pedido de Harriet, deixou-a no chão, enquanto ia buscar
outra. Ela escolheu um galho cheio de frutos vermelhos e subiu numa escadinha diante de uma
estante. Viu que não era fácil alcançar o ponto que queria, e esticou-se mais um pouco. Naquele
momento ouviu a porta se abrindo e, pensando que era Henderson, virou-se para pedir ajuda. A
brusca mudança de posição fez a frágil escadinha se desequilibrar e, com um grito, Harriet começou
a cair de costas. Ao ver isso, o conde correu e segurou-a quase por milagre, mas ambos acabaram
caindo. Durante alguns instantes tentaram recobrar o fôlego. Depois, vendo que estava entre os
braços dele, Harriet entrou em pânico e pediu, com voz trêmula:
— Pode me largar, estou bem!
Virou a cabeça enquanto falava, e descobriu-se a poucos centímetros daqueles olhos
acinzentados. Viu neles uma expressão diferente, nova e alarmante. Sentiu um calafrio na espinha.
— Você não tem motivo de ter tanto medo de mim, Harriet — ele sussurrou com voz baixa
e um pouco rouca. — Acha que eu a machucaria?
— Não... não — ela admitiu.
O rosto dele estava muito perto. Podia ver as finas rugas nos cantos dos olhos. Seu olhar
desceu até a boca, e algo a deixou ainda mais nervosa. O sermão do vigário sobre as tentações da
carne parecera apenas oratória bíblica, porém, nesse momento assumia um sentido antes ignorado.
Lorde Stanton estendeu a mão e tocou-lhe a face. As pontas dos dedos dele estavam úmidas de suor,
apesar do dia frio. Ele podia senti-la tremer entre seus braços, como um potrinho assustado que quer
se afastar do cheiro e do controle do homem.
— Está tudo bem, Harriet — ele murmurou, curvando-se sobre ela, fazendo-a estremecer.
Isso pareceu acabar com o controle dele. Segurando-a pelos ombros, aprisionou- lhe a boca
com seus lábios, muito embora ela se agitasse para se desvencilhar e batesse em suas costas com
os punhos fechados. O coração de Harriet ressoava como um

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tambor, mas junto com o medo provava um estranho regozijo. Ninguém, jamais, a beijara assim!
Percebeu que estava relaxando entre os braços do noivo. Seu corpo começou a se amoldar ao dele,
até que pensou, consternada e surpresa, no que estava fazendo e entendeu que precisava parar
imediatamente, ou chegariam a um ponto que os levaria ao inevitável. O medo disso e a consciência
de algo diferente nele, o modo de segurá-la de um jeito que parecia exigir e não pedir, que se
tornava sempre mais impaciente, a deixaram rígida.
Ao perceber a tensão da noiva, o conde soltou-a e se afastou, porém continuou sentado no
chão, fitando-a. Ela distanciou-se ainda mais dele, com um ar de animalzinho acuado.
— Estava pensando — ele disse, passando as mãos nos cabelos e alisando-os para trás —
que deveria falar com o pastor, para que leia logo os proclamas. Não há motivo para adiar o
casamento.
Parecia calmo e frio. Tinha recuperado seu controle, mas seu olhar era cauteloso.
— Oh, não! — exclamou Harriet agitando um ramo de azevinho, como para afastar essa
sugestão.
— E por que não? — ele perguntou com expressão de desafio e teimosia, que ela muito bem
conhecia. '
— Porque é quase Natal!
E começou a enumerar todas as coisas que aconteciam antes e durante o Natal, as festas, os
almoços, os jantares que se sucediam nas casas de todos os vizinhos. Os doces e pudins e as tortas
estavam já sendo preparados nas cozinhas de Monkscombe. Era um trabalho enorme...
No entanto, não adiantou. O conde explicou que a cerimônia seria simples e particular, na
presença do sr. Jonas Ferrar, que viria para acompanhar a noiva ao altar e ficaria para o Natal, de
Caroline e do capitão Murray.
— O capitão vai ser meu padrinho... Por que tenho de ficar sozinho, enquanto a noiva tem
tanto apoio? Disse a Murray que qual quer dia faria o mesmo por ele.
— Julgo que não é um bom momento, pois há muito que fazer...protestou, Harriet agitada.
Enquanto gesticulava apoiou uma mão no azevinho e se feriu com os espinhos. Soltou um gritinho
de dor.
— Deixe-me ver isso — murmurou e se apoderou da mão dela.
Gotas de sangue brotavam na palma. Lorde Stanton pegou um lenço e envolveu com ele a
mão ferida com cuidado.
— Harriet, creio que você faz essas coisas para me irritar. Dirige o cabriole com um cavalo
que tem medo de sombras, anda sozinha Pelos campos, fica subindo em escadinhas não confiáveis.
É... precisa de um marido ou de alguém que cuide de você. Pelo jeito, é melhor me apressar e ir
falar com o pastor.
Ela o encarou, de olhos arregalados, e viu que estava falando sério.

Na manhã seguinte o conde foi até a igreja. Os primeiros proclamas foram lidos no domingo
seguinte. A costureira local chegou para preparar o vestido de casamento, copiado de um modelo
ilustrado no Ladies Periodical. Harriet ajudava pregando rendas; até Caroline fazia barras, cantando
enquanto trabalhava. Talvez pensasse em seu próprio vestido de noiva. Sabia que ele não possuía
dinheiro, mas tinha certeza que as finanças iam melhorar de algum modo, nem que fosse com James
se transferindo para o Exército. Harriet não interferia mais nesses sonhos: não tinha muito sucesso
nem com a própria vida, então era melhor não se intrometer nos planos da irmã.
Como o noivo não devia ver o vestido da noiva para que o casamento fosse feliz, a costura
era feita no quarto de Harriet, e ela pouco o via. No entanto, certa manhã, quando deixavam a
mesa, depois do café, ele lhe perguntou se não queria acompanhá-lo,

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dirigindo o cabriole, até uma das fazendas da propriedade. Surpresa, ela concordou, feliz por sair
um pouco e dirigir o cavalo, coisa que adorava.
— Não se importa de ir sentado a meu lado, enquanto dirijo? —perguntou, quando já
estavam a caminho.
— Não... Por quê? Deveria me importar?
— Há homens que não gostam, acham que dirigir é uma ocupação masculina.
— Você deve estar falando de cavalheiros ociosos, jovens — declarou o lorde. — Não sou
tão jovem, não sou ocioso e, como você disse, não sou cavalheiro...
Harriet corou, sem jeito.
Ele resolveu rapidamente o que era preciso decidir na fazenda. Voltavam para casa, quando,
ao passar por um trecho elevado do caminho, o conde disse, de chofre:
— Pare aqui, por favor.
Harriet puxou a rédea, e ele apontou para a casa que se via a distância.
— Olhe bem para Monkscombe, Harriet. Daqui a alguns dias você vai ser a dona absoluta
dela. É isso mesmo que quer?
— Claro que quero! — exclamou ela, imaginando se teria sido para perguntar aquilo que
ele a fizera ir até ali.
— E mais nada? — indagou lorde Stanton, com um sorriso um tanto frio.
Ela hesitou. Alguma coisa em seu interior sussurrava que havia algo mais. Contudo, como
não sabia o que era, não podia dizer. Olhou para o noivo e pensou que gostaria que as coisas fossem
diferentes, que não existisse a vinculação, que ele a tivesse convidado a sair apenas por gostar de
sua companhia e não por querer saber o que ela achava de Monkscombe.
Queria que ele gostasse de mim de verdade, disse a si mesma, que a ideia de casar comigo
tivesse sido dele e não do sr. Ferrar... Lembrou-se do beijo e estremeceu, embora estivesse bem
agasalhada na grossa capa de lã. Aquele impulso amoroso de Ben Stanton certamente nada tinha
que ver com amor: ele era moço, saudável, com os instintos normais, e ela era uma mulher. Por isso
o conde não se perturbava em casar-se com Harriet, pois em sua cabeça não existiam os
pensamentos que a atormentavam.
Percebia que ele a estava encarando, à espera da resposta. Sem saber o que dizer, fez que
não com a cabeça.
— Nesse caso — murmurou ele —, está decidido.
A voz dele soara indiferente, sem expressão, como se tivesse concluído o último detalhe de
um contrato. Apanhou a rédea das mãos dela.
— Deixe-me levar o cabriole até em casa. Também sei conduzir um cavalo atrelado.
E não falaram mais naquilo.
Na véspera do Natal, saíram da pequena igreja medieval da cidadezinha, declarados unidos
pelo matrimônio. Foram cumprimentados pelas srtas. Drew, que lhes lançaram punhados do
tradicional arroz, enquanto o coro das crianças locais cantava Sweet Lass of Richmond Hill, que a
srta. Mary escolhera por considerar a canção mais apropriada.
O almoço de casamento foi íntimo. Logo depois, chegou sir Mor-timer, o magistrado, que
em seguida se retirou para a biblioteca com o sr. Jonas Ferrar, a fim de discutirem questões
jurídicas. Caroline encaminhou-se para a sala de música, acompanhada pelo capitão Murray e a
tentativa de dueto, com a jovem ao piano, não teve muito êxito. Pouco depois reinou silêncio na sala
de música, mas se alguém apurasse os ouvidos, poderia ouvir sussurros e risinhos lá dentro.
Todos achavam que os recém-casados queriam ficar a sós, e para isso arranjaram pretextos
para se retirar, deixando-os na sala de visitas, sentados em extremos opostos, um de frente para o
outro. Junto à lareira, com o vestido branco de noiva, Harriet aguardava que o marido dissesse
alguma coisa. E ele parecia esperar por uma

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manifestação dela, que não houve.


— Julguei o sermão do pastor muito bom — bradou ele, afinal. — E gostei do coro das
crianças.
— A srta. Mary ensaiou-as para nos fazer uma surpresa — declarou ela, com voz abafada.
Começava a escurecer e foram interrompidos por um criado, que entrou com os candelabros
e acendeu as velas. Quando ele saiu, o conde aproximou-se do aparador e serviu dois copos de
vinho. Entregou um a Harriet.
— Vamos fazer um brinde ao nosso futuro... antes que sir Mortimer esgote a adega.
Ela sorriu, insegura, e apanhou o copo, esforçando-se por dominar o tremor da mão e não
derramar o vinho. Conseguiu tomar alguns goles, ao passo que seu marido colocou o copo vazio
sobre o consolo da lareira, enquanto dizia:
— Já anoiteceu... vou fazer a ronda pela casa. Quero dar uma espiada também na estrebaria.
Os criados andam com a cabeça no ar, por causa do Natal e do fim do ano. Embora confie em Joe,
os outros não são como ele... — Fitou a esposa. — Deve estar cansada, Harriet. Por que não vai se
deitar?
O tremor aumentou, e o vinho quase derramou. Ela resolveu colocar o copo junto ao dele.
— Sim, claro... — murmurou. — E você... você...
— Quer saber se irei ficar também no seu quarto? Não, Harriet. Não irei.
A voz dele soava fria e decidida. Ela reteve a respiração e o encarou, confusa.
— Parece surpreendida! — exclamou ele. — Pensou que eu iria? — perguntou, erguendo as
sobrancelhas.
— Sim... Pensei que... Acho que é costume — respondeu a moça, com esforço.
— Harriet — começou o conde e, agora, a voz era suave. — Você já tem o que queria:
Monkscombe. Eu não sei se tenho o que queria... porém sei que você não me quer. Nunca me quis
aqui. Deixou isso bem claro, demonstrou de várias maneiras que sou um intruso.
— Sinto muito... — sussurrou Harriet, num fio de voz. — Não era minha intenção... Ele
sacudiu a cabeça, dizendo:
— Você está certa. Não digo que tenha sido agradável eu descobrir isso, mas nem por esse
motivo está errada. É claro que sou um intruso, que não pertenço a este lugar. Como poderia
pertencer? Não faz mal. Não pretendo ficar por aqui mais do que um ano. Depois, voltarei para
Filadélfia.
— E que vai acontecer comigo? — quis saber ela, horrorizada.
— Vai ficar aqui, dirigindo Monkscombe — respondeu ele. — Eu lhe disse que precisava
de uma esposa capaz de fazer isso. Você vai ser sair bem, porque já tem prática.
Harriet ficou apavorada com a reviravolta dos acontecimentos, que ela mesma provocara.
Na realidade, estivera preocupada com os problemas pessoais, com as dificuldades da situação, a de
Caroline inclusive e não pensara sequer nos sentimentos de Ben Stanton. Lembrou que, de fato,
desde o começo tratara o primo de modo desagradável. Ao ter de aceitá-lo como era, mostrara
desdém por ele desconhecer os usos da terra, e nunca se preocupara em fazê-lo sentir-se bem-vindo
à casa de seus antepassados. Deixara claro ao conde que se casara apenas por motivos práticos e lá
estava o resultado de seu comportamento. Lorde Stanton cumprira sua parte no trato, tornando-a
senhora de Monkscombe. Era tudo o que ele tinha obrigação de fazer.
— Bem — começou ela, hesitante —, sinto muito ter sido tão... tão pouco amiga. Mas julgo
que sabe que foi por causa de minhas preocupações com a propriedade e porque nada sabia a seu
respeito.
— Como não sabia nada — frisou ele —, você deveria ter esperado para me julgar

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e não pensar logo o pior.


Harriet lançou-lhe um olhar súplice, porém não viu no rosto moreno, de traços marcados,
nenhum sinal que a animasse. Imaginou o que Caroline faria em seu lugar. Correria a abraçá-lo, é
claro, pedindo que lhe perdoasse. Contudo, Harriet não sabia fazer isso, e ele nem o esperava: na
certa consideraria ridículo, refletiu ela.
— Não quero Monkscombe — murmurou, contendo a agitação. — Não era assim que
pretendia me tornar dona da propriedade. Não posso aceitá-la sem... sem merecê-la. Quando disse
que me casaria com você, minha intenção era ser realmente... sua esposa. Ou, pelo menos, tentar
ser. Talvez não consiga ser uma boa esposa, talvez você ficasse desapontado comigo na... quando
estivéssemos juntos, porém posso aprender, se você for paciente. Pode acreditar, eu tentaria!
— Não diga tolices, Harriet! — exclamou ele, severo. Estava afastado do fogo e das velas,
seu rosto indefinido, na penumbra. — Que espécie de homem calcula que sou? Não imponho
minhas atenções a uma moça quando ela não quer. Muito obrigado, mas não tenho vontade de me
deitar com alguém que considera isso um sacrifício! Não pretendo participar de uma farsa, na qual
fingiríamos que nos amamos e, principalmente, não quero fingimentos na cama. Tal seria estupidez!
Há situações em que não adianta fingir e esta é uma delas.
Por instantes, ela voltou a ser a moça decidida que era.
— Estupidez, por quê? Se eu posso tentar, por que você não pode?
— Porque ninguém pode construir uma casa sem alicerce — ele quase gritou essas
palavras, enquanto lhe dava as costas. — Entre nós não há uma base sobre a qual construir, Harriet.
Um homem percebe a impressão que causa numa mulher. Vejo você fugir toda vez que entro aonde
está. Você gela quando eu a toco. Entendo perfeitamente que não confia em mim.
Fez uma pausa, ofegante, e continuou, antes que ela pudesse falar:
— Você fala em "tentar", mas tenho certeza que não conseguiria. É uma mulher bonita,
inteligente e capaz, porém não tem um pingo de sensibilidade! Despreza os afetos dos outros. Julga,
por exemplo, que os sentimentos de Caroline e Murray não têm importância. Acha que, se não se
casarem, ele "vai se conformar". Contudo, não vai, Harriet, porque esse rapaz ama a sua irmã!
Infelizmente, isso é algo que você não compreende!
A essa altura o conde gritava de tal modo, que os copos de cristal vibravam em cima da
lareira. Quando percebeu, ele se calou. Esforçou-se para se controlar, depois declarou:
— Vou dar uma olhada na estrebaria.
— Dar uma olhada na estrebaria! — exclamou ela, erguendo-se. — Você não apenas me
rejeita, mas também quer que riam de mim. Que os outros vão pensar disso?
— Esse é um assunto que diz respeito apenas a mim e a você. Não pretendo discuti-lo com
ninguém. Você pode fazer o que quiser; aliás, sempre faz o que quer. A propósito, quero lembrá-la
que deve se manter afastada de Pardy. Aos olhos dos outros, você é minha esposa. E minha esposa
deve ficar acima de qualquer suspeita!
— Você está me insultando... — sussurrou ela, com voz rouca.
— Nesse caso, é apenas um insulto diante dos muitos que recebi de você. Boa noite,
Harriet.
Ele saiu e bateu a porta. A agitação não deixava Harriet pensar. Suas pálpebras começaram a
arder, mas estava decidida a não chorar. Teve vontade de correr atrás do marido e gritar que não
precisava dele, porém refletiu e achou que ninguém deveria saber o que houvera. Seria humilhante
demais, Harriet Stanton rejeitada na noite de núpcias, classificada de fria e calculista... a mulher que
Ben Stanton não queria levar para a cama!
Sentiu-se desesperada e lamentou a própria tolice, a falta de experiência. Todas as moças
flertavam, sabiam namorar, só ela se tornava uma débil mental muda quando

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ficava a sós com um homem!


Era incapaz até de chamar a atenção do marido na noite de núpcias! Uma porta bateu em
algum lugar da mansão. O som da voz aguda de Caroline acabou com a confusão e devolveu-lhe o
bom senso. Eles vinham vindo e não deviam vê-la. Seria demais ter a irmã e o capitão Murray como
testemunhas de sua humilhação. Rápida, saiu da sala e correu para a escada, subindo correndo.
Entrou no seu quarto, trancou-se. Tirou o véu e o vestido de noiva e largou-os no chão. Jogou-se na
cama, preparada com linho e rendas, enrodilhando-se e rompendo a chorar desconsoladamente.
O conde desceu quase correndo e foi para a estrebaria, enquanto pensava, com raiva, que sua
esposa devia estar em lágrimas naquele momento. Disse a si mesmo que não era o culpado. Não
pedira para herdar aquela propriedade. Ninguém podia censurá-lo pelo fato de o tio não ter tido um
herdeiro. Começava a compreender o que afastara seu pai dali.
Aquela casa dominava os Stanton, alimentava-se deles, transformava-os em criaturas
destituídas de qualquer outro pensamento que não fosse servi-la e mantê-la. Harriet fora criada para
dedicar seus dias e suas noites a Monkscombe, desconhecendo tudo o mais. E, o que era mais triste,
até agora não percebera que havia outras coisas importantes na vida. Talvez estivesse começando a
perceber isso, porém era tarde...
O pátio das cocheiras estava às escuras e era varrido por um vento gelado, que começou a
esfriar-lhe a raiva. Pendurou a lanterna que levara em um gancho e respirou fundo o cheiro familiar,
acre e quente, dos cavalos. Cabeças ergueram-se à sua passagem e orelhas movimentaram-se,
curiosas. Passou a mão no focinho do cavalo de Harriet e bradou:
— Pois é, meu amigo... A sua linda dona e eu só sabemos brigar...
O rangido de uma porta e o rumor de passos fizeram-no voltar-se. Joe Henderson perguntou
quem estava lá.
— Oh, milorde! — exclamou, ao ouvir a resposta. — Não esperava encontrá-lo aqui. —
Aproximou-se devagar, entre as baias. —Os cavalos estão bem, não precisa se preocupar. Mesmo
no Natal não fico longe dos meus animais.
— Você é casado, Joe? — perguntou o conde.
— Eu?! Não... — respondeu o criado. — Não preciso de uma mulher atrás de mim, dizendo
o que devo ou não fazer. Os cavalos têm bom senso, mas as mulheres... — Lembrou-se que aquela
não era uma observação ideal para um recém-casado e corrigiu, depressa:
— Acredito, contudo, que as damas são diferentes.
— As mulheres, damas ou não, sempre provocam confusão, Joe — declarou o conde,
afagando o cavalo de Harriet, que encostara o focinho em seu estômago e o empurrava. — O
homem pensa que está fazendo a coisa certa com elas, porém erra sempre, não importa o que faça!
— É verdade, senhor — concordou o cavalariço. — Pode deixar, milorde, eu tranco
tudo.
Era uma indireta clara. Mesmo solteiro, Joe tinha opinião inabalável sobre o que o
amo deveria estar fazendo.
Lorde Stanton deu um boa-noite ao criado e voltou para casa, indo para seu quarto de
solteiro. Joe Henderson ficaria revoltado se visse isso, e Ben, enquanto se jogava de costas na cama
e cruzava as mãos atrás da cabeça, pensou que a situação em que se encontrava era péssima, de
qualquer ângulo que a encarasse.
As festas de Natal e de fim do ano sucediam-se, todo mundo ocupado em comer, brindar,
beber, fazer visitas, dançar, brincar. Ninguém prestava atenção nos recém- casados.
O senhor de Monkscombe participava de tudo, e ninguém ao vê-lo imaginaria que havia
algo errado. Harriet também se esforçava para aparentar normalidade e o

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conseguiu, pois não houve quem demonstrasse alguma estranheza.


Por ocasião do baile de fim de ano de lady Williams, Harriet ficou preocupada. Não podiam
recusar o convite e iriam ficar fora de casa, só os dois, por três dias. Evidente, ao organizar a lista
dos convidados, lady Williams lembrou-se de que estavam casados havia menos de uma semana e
designou-lhes um quarto de casal.
Harriet chegou a imaginar que aquilo talvez normalizasse a situação, porque desde a noite de
núpcias seu marido se mantinha fiel ao que se propusera. No entanto, agora, havia tido tempo para
pensar, ela demonstrara arrependimento, ele poderia mudar de ideia sem perder a dignidade e,
afinal, sozinhos no mesmo quarto, com uma só cama...
Mas ela subestimará a firmeza daquele homem. Ao se acomodarem no luxuoso quarto, ele
disse, em tom áspero:
— Não se preocupe, eu durmo naquela poltrona.
— Não precisa fazer isso... — respondeu Harriet, suave.
— Eu prefiro — foi a resposta decidida.
E ela olhou-o enquanto ele ajeitava travesseiros e cobertas na poltrona, depois deitou-se
sozinha na enorme cama. O conde apagou a vela com um sopro, e Harriet pôde perceber que Ben
Stanton se movimentava, desajeitado, à procura de uma posição menos incômoda para dormir. Na
primeira noite, ficou acordada por muito tempo, sabendo que ele também não dormia, à espera que
mudasse de ideia.

Na segunda noite, quando Ben apagou a vela, Harriet encheu-se de coragem e perguntou,
baixinho:
— Você está bem?
— Perfeitamente — ele respondeu, bruscamente.
Ela enfiou o rosto no travesseiro, exasperada. Era impossível, pensou, conseguir alguma
coisa de uma pessoa tão teimosa.
Ben Stanton passou praticamente duas noites sem dormir, ouvindo a respiração regular de
Harriet, refletindo como ela não tinha a menor sensibilidade, a ponto de dormir tranquilamente
numa cama enorme, confortável, enquanto ele sofria de frio numa poltrona. De vez em quando
cochilava e amanhecia com o corpo moído.
As festas de Ano-Novo terminaram, por fim, e o sr. Ferrar comunicou, a contragosto, que
devia voltar para Bristol. Explicou, também, que não lembrava de ter tido um Natal e um fim de ano
tão bons em toda a sua vida. A cozinheira de Monkscombe era uma artista, ouvir Caroline tocar e
cantar era delicioso e, principalmente, estava feliz por ver Harriet casada.
Ao ouvi-lo dizer isso, a jovem tentou disfarçar a depressão e respondeu que estava contente
por ele ter gostado tanto. Mas o contraste entre o que ela dizia e sua expressão era tão grande, que o
cavalheiro não pôde ignorar. Suspirou, depois disse, com aquele seu jeito suave e amigo:
— Querida menina, eu a conheço desde que nasceu. Que está acontecendo? Esperava vê-la
feliz, mas... afinal...
Lembrou-se de que talvez a jovem estivesse com dificuldade de se adaptar à convivência
com o marido. Não queria ser indelicado, porém era necessário reconhecer as irritantes
circunstâncias que levavam ao nascimento de bebês. Não havia acontecido com ele e com sua
falecida e saudosa esposa? A finada sra. Ferrar era uma excelente pessoa, mas não tinha atrativos
que inspirassem esse tipo de entretenimento avaliado com muito exagero por algumas pessoas. E o
sr. Ferrar nunca sentira vontade de...
Contudo, na certa lorde Stanton pensava de outra maneira, como a maioria dos jovens. E
Harriet devia inspirar muito mais ardor do que a falecida sra. Ferrar... Era possível que o flamante
marido estivesse exagerando um pouco, sem considerar que a... novidade e naturalmente também
o... hum... choque costumavam deixar as moças um

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tanto... hum... desconcertadas.


— Sei que agora você tem um marido com quem trocar ideias — afirmou o velho senhor,
cauteloso —, porém talvez ainda possa oferecer-lhe meu ombro para chorar...
O bom cavalheiro não se preparava para ver suas palavras tomadas ao pé da letra, e
assustou-se ao ver a moça desmanchar-se em lágrimas, segurando-lhe as mãos com desespero.
— Oh, sr. Jonas, nunca fui tão infeliz! — soluçou.
— Meu Deus! — exclamou o advogado, afagando-lhe o ombro, enquanto ela chorava com
a cabeça apoiada em seu peito. — Foi tão ruim assim? — E, ao mesmo tempo que pensava o que
aquele rapaz rude fizera com sua menina, acrescentou: — Querida, acredite, às vezes é preciso
tempo para se aceitar certas coisas. No começo, pode parecer uma experiência embaraçosa e
desajeitada... eu me lembro... Mas depois, acredite...
— Não! — gemeu a moça. — Não é isso...
E, num impulso, contou a história toda, entre soluços. À medida que ouvia, o sr. Ferrar ia
ficando cada vez mais consternado e aflito. Seus dedos procuraram automaticamente a caixinha de
rapé, e ele ficou a apalpá-la, distraído.
— Minha querida menina — murmurou desolado, quando ela se calou. — Que posso dizer?
Não podia imaginar... Um rapaz bonito, saudável... Afinal, que há com ele?
— perguntou, desconfiado.
— Nada — e Harriet desatou a chorar outra vez. — A culpa é minha!
— Asneira — revidou o bom senhor. — Não pode ser... O culpado, na verdade, sou eu... —
suspirou. — Esperava conseguir que todos ficassem satisfeitos, ele parecia tão recomendável e você
é tão bonita, Harriet! Na minha opinião tinha de ser um ótimo casamento!
Colocou a caixinha de rapé no bolso e prosseguiu:
— Entenda, filha, não há tolo pior do que um tolo velho! Esqueci que os jovens pensam
diferente. O conde quis apenas garantir o futuro de duas moças desprotegidas, e devemos respeitá-lo
por isso. Admito que eu sugeri o casamento. Não errei ao pedir-lhe que assumisse a
responsabilidade, e sim quando esperei que ele empenhasse o coração, também. Benjamin Curtis
Stanton é honesto, e tenho certeza que não quer despertar o seu carinho, minha querida, de maneira
leviana. — Mas era o que devia fazer, pensou, impulsivo. — Bem, bem... Precisamos pensar numa
maneira de resolver essa situação...
— Acho que não tem jeito, meu amigo... — sussurrou ela, pesarosa.
— Escute, querida — bradou o velho senhor, ajeitando a peruca e assumindo pose militar.
— As coisas começaram mal, porém podem terminar bem. Tente encorajá-lo, Harriet. Se ele tem
sangue nas veias, você não vai precisar se esforçar...
— Entenda, sr. Ferrar — declarou ela, enxugando as lágrimas e tratando de se controlar —,
feri o orgulho de Ben. Fui hostil quando o conde apareceu e disse-lhe coisas horríveis. Não sei por
que fiz isso, e ele não me perdoa. É tão teimoso!
— Nildesperanduml — exortou-a o sr. Ferrar, em latim, vendo-a desesperar-se de novo. —
Não desista! Nunca vi você desistir. Quer que eu fale com ele?
— Não! — opôs-se ela, agitada. — De jeito nenhum!
— Está bem... Não posso dizer que volto para casa feliz.
— O senhor não tem culpa... Fez o que achava melhor... — Ela levantou-se e foi até a
janela. — Sabe? Sempre acreditei que Monkscombe era mais importante do que qualquer coisa no
mundo, exceto talvez a felicidade de Caroline. E, agora, Monkscombe não me parece assim tão
importante. Esquisito, não?Eu, com a idade, esqueci demais uma coisa, pensou o velho senhor, com
os olhos marejados de lágrimas. Esqueci quanto dói amar, estar apaixonado...

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Capítulo 7

O sr. Ferrar tinha ido embora. O azevinho usado na decoração natalina ardia na fogueira
feita pelo jardineiro. Monkscombe voltara para sua aparência habitual, com a mesma rotina de ano
para ano. A situação entre Harriet e o conde ia assumindo aspecto rotineiro, e ela até já se
acostumava a ser chamada "lady Stanton". Os dois agiam de maneira polida, civilizada. Ele a
consultava sobre problemas da propriedade, e ela acreditava que devia se considerar em situação
cômoda.
Mas, na verdade, o ambiente tornava-se cada vez mais intolerável. O prolongamento daquele
estado de coisas tornava-o mais difícil de mudar. E Harriet julgou que o marido talvez achasse
aquela vida impossível, pois de repente anunciou que ia para Bristol, onde ficaria por algum tempo.
Viajaria no dia seguinte.
Apesar de ser muito cedo, ela foi para a escadaria da estrada principal e esperou que o
marido saísse da cocheira, já montado, na manhã da viagem. Ao vê-lo, aconchegou mais o xale ao
corpo e desceu os degraus. O conde fez o cavalo parar diante dela, apoiou os braços no arção da sela
e inclinou-se. O cavalo, impaciente, movia a cabeça e batia os cascos nos pedregulhos gelados. Era
um dia de inverno, cristalino e frio. A geada enfeitava os galhos como se fosse purpurina prateada, e
as teias de aranha haviam sido transformadas em delicadas rendas de prata.
— Só vim para lhe desejar boa viagem — disse Harriet, sem jeito.
Ela parecia muito frágil diante da escada e do pórtico enorme, miúda, esguia e triste. Lorde
Stanton mudou de posição e olhou a casa, atrás dela. Na luz difusa da manhã parecia um enorme
animal à espreita. Sentiu que odiava aquela casa.
— Você pode apanhar uma friagem, volte para dentro — disse.
Aos seus próprios ouvidos o tom de voz e a frase pareceram brutais. Ela deu dois passos
para trás, como se tivesse sido agredida, pensou o conde. Por um instante, sentiu vontade de esticar
o braço e colocá-la na garupa, levá-la para Bristol, sentindo os seus braços ao redor do corpo, como
já acontecera uma vez.
Mas o impulso se dissolveu e o momento mágico passou. Harriet não queria ir a lugar
algum, só se interessava por Monkscombe.
— Vou escrever e informar onde ficarei hospedado.
Assim que falou, ele puxou a rédea, assustando o cavalo e fazendo-o girar, e saiu a galope
para o portão, com o cascalho prateado erguendo-se no ar sob os cascos rápidos.

Durante alguns dias Harriet procurou agir como se tudo estivesse normal. No entanto, um
pensamento não lhe saía da cabeça: Fiquei em Monkscombe, ouço reclamações de tetos que vazam,
visito os doentes da lista do pastor e todo mundo pode perceber que meu marido me abandonou
semanas depois do casamento. Imaginava que todos deviam estar curiosos para descobrir por que o
conde se afastara. E mais, quando ele fosse definitivamente embora, dali a um ano, ela ficaria
naquela vidinha até morrer. Como pudera achar que só queria viver em Monkscombe?
Quase no fim da semana, ao voltar da cidadezinha para casa, ouviu o galope de um cavalo,
aproximando-se, e seu coração bateu mais forte ao imaginar que seria o marido chegando. Contudo,
era o capitão James Murray, que desmontou para cumprimentá-la.
— Imagino que tenha vindo para visitar minha irmã... — disse, sorrindo resignada.

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— Pedi licença a lorde Stanton — bradou o rapaz —, e ele gentilmente permitiu. — Fitou
Harriet com a espontaneidade juvenil.— Mas sei que milady não aprova, que gostaria de alguém
mais bem posto na vida para casar com Caroline, e não posso censurá-la.
— Nós gostamos muito do senhor — respondeu ela —, porém muitas vezes a vida se
resume em continhas de pences e xelins. Minha irmã nunca soube o preço de nada que quisesse.
Nosso pai era muito indulgente e meu marido assumiu voluntariamente todas as contas dela. Não
duvido do carinho que Caro sente pelo senhor, mas imagino que não saberia viver no modesto
alojamento de militares... O senhor já deve ter percebido.
— Sim, eu sei. No entanto, não posso oferecer mais nada. Preciso entrar para o Exército, se
quiser melhorar. Minha família não é daqui e não há quem me recomende: ficarei eternamente
capitão, até que o reumatismo me impeça de montar. Escrevi à minha família, na Escócia, dizendo
que pretendo casar. Meu pai respondeu que não pode me ajudar, porque meu irmão mais velho
casou-se há pouco e o do meio contraiu dívidas pesadas. Tenho de me arranjar sozinho, como
puder...
— E se vocês casassem e Caroline ficasse aqui, até quando o senhor se firmasse na carreira
militar? Seria por um ano ou dois... Poderia obter promoção nesse tempo, não?
— De modo algum! — respondeu o rapaz, fitando-a como que assombrado. — Desculpe,
lady Stanton, sei que sua intenção é boa, porém, o que adianta casar se não pudermos ficar juntos?
— É verdade — concordou ela, desanimada. — Bem, vá, Caro o espera.
Foi bobagem me casar para garantir meu futuro e o de Caroline, imaginou ela ao ficar de
novo só. Ben me disse que não se pode dirigir a vida dos outros... Ela vai casar com o capitão, terá
de se adaptar a uma vida modesta, perderá a vivacidade e a beleza. Quanto a mim, que adianta ser
dona de Monkscombe? O sr. Murray tem razão: não adianta estar casada, se não se fica com o
marido.
Às vezes, o destino providencia uma ajuda, quando o desespero está no limite. Sir Mortimer
Fish mandou um recado à lady Stanton, dizendo que iria para Bristol no dia seguinte e levaria
qualquer encomenda ou bilhete para o conde.
Harriet decidiu no mesmo instante: respondeu ao magistrado que aceitaria de bom grado um
cantinho na carruagem dele, se houvesse por bem levá-la.
— Ben vai ficar surpreendido ao vê-la — afirmou Caroline. — Já deve estar com saudade.
Eu detestaria ficar longe do meu marido, se fosse recém-casada!
Enquanto preparava uma valise, Harriet resolveu que não procuraria o marido
imediatamente, mas iria para a casa de sua amiga Susan, que na certa gostaria de vê-la. Preferia
saber o que o conde fazia antes de ir encontrá-lo, pois dessa maneira ele não teria do que reclamar e
poderia evitar a companhia dela, se assim quisesse. Não fora mais ou menos isso que ele fizera, ao
chegar em Monkscombe? Subira numa árvore para espionar Monkscombe e seus moradores.
E ela não precisaria estar fazendo tal coisa, pensou, indignada, se ele tivesse se comportado
dignamente, levando-a para Bristol ou explicando o motivo da viagem.
Para chegar a Bristol demorava meio dia, por uma estrada perigosa, principalmente no
inverno. Ela margeava o canal de Bristol, e não era agradável fazer essa viagem em companhia de
um senhor com oitenta anos, que de vez em quando tomava uns goles de uma garrafa, numa
carruagem que de tempos em tempos atolava na lama. No entanto, Harriet aguentou tudo com
paciência.
À medida que se afastava de Monkscombe, ia se animando. Talvez longe de casa
conseguisse se entender com ele. Seriam, então, apenas duas pessoas decididas a visualizar seus
problemas, longe da propriedade e da influência que ela representava. Além disso, Susan estava
casada havia mais de cinco anos e poderia aconselhá-la

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quanto ao modo de tratar o marido. Harriet chegou a Bristol cheia de otimismo.


Susan recebeu a amiga com alegria, principalmente porque seu marido, oficial da Marinha,
estava em manobras.
— Não tenho tempo para me entediar — declarou, segurando o filhinho mais velho pelos
fundilhos, antes que mergulhasse na lareira. — Corro atrás das crianças o dia inteiro. É difícil
conseguir uma boa pajem, e elas logo vão embora, para casar. O pequeno Tom completou quatro
anos e nunca se sabe o que vai aprontar... Preciso ter olhos na nuca, como você acaba de ver!
Lillian, a menina, conta dois anos e meio, e o nenê começou a andar agora. O que me falta, quando
Tom viaja, é ter alguém para conversar, depois que as crianças dormem. Espero que fique bastante
tempo, Harriet!
Naquela noite, depois de assistir às orações do pequeno Tom, para que Deus guardasse o pai
das tempestades, dos monstros marinhos, dos canhões dos franceses, dos piratas e dos tubarões, as
duas amigas desceram e, sentadas junto da lareira, esperaram que a criada servisse o chá, para então
conversar. O relato que Harriet fez de seu casamento espantou Susan.
— Como?! — exclamou, incrédula. — Nem uma vez? Nem na noite de núpcias?
— Nem uma única vez... — suspirou Harriet. — Ele acha que só me casei pela casa, e não
posso me queixar: eu é que lhe disse isso. Ben acredita que tenho o que queria, e chega. Mas não
chega, Susan. Agora sei que quero um lar como o seu, com filhos e Ben. Contudo, como vou
conseguir isso, se meu casamento continuar apenas no papel?
— Tenho de reconhecer que o meu Tom não agiria desse modo... E, se quer saber, acredito
que lorde Stanton não está gostando dessa situação. No entanto, ele se enfiou num beco sem saída
com a atitude que tomou. Os homens são muito teimosos, Harriet. Não adianta esperar que
confessem ter errado ou que fizeram tolices. —Pegou um brinquedo que estava no chão, partido, e
juntou as duas partes, para ver se dava para colar. — Às vezes — acrescentou, pensativa —, podem
ser consertados...
— O que eu gostaria de saber — disse Harriet, sombria — é se meu casamento pode ser
consertado.
— Harriet, querida! — bradou a amiga, segurando-lhe as mãos.
— Por que não? Isso não passa de um arrufo de namorados. Ele está contrariado porque
pensa que você julga a casa mais importante. Um marido gosta de saber que a mulher o acha a coisa
mais importante do mundo. Você precisa demonstrar isso ao conde!
— Mas ele não se importa comigo! — bradou a jovem, os lábios tremendo. — Não assim,
pelo menos. É muito educado, casou-se comigo para ser gentil, e não me vê como mulher. Sou
apenas Harriet, uma amolação!
— Homem nenhum se casa para fazer caridade! — sentenciou Susan, colocando mais uma
torrada no prato da amiga. — Não interessa que você pense isso. Aposto que lhe mostraria que a
ama, se você permitisse. E, se ele ainda não teve essa ideia, compete a você colocá-la na cabeça
dele!

Na manhã seguinte Harriet saiu cedinho, bem agasalhada, com um véu cobrindo- lhe o rosto.
Não quis entrar no hotel onde o marido se hospedava e ficou andando pela mesma rua, olhando
vitrinas, comprando ninharias. Quando viu lorde Stanton sair, seguiu-
o. Ele caminhava depressa, porém graças à sua altura era fácil segui-lo.
O conde se dirigiu ao cais, onde paravam carregadores e um ou outro marujo, fazia-lhes
perguntas e anotava rápido algo num caderninho. Dava uma gorjeta ao homem que interpelava e,
em seguida, dirigia-se a outro. Isso aconteceu umas cinco vezes. Depois ele passou a observar, por
meio de uma luneta, navios que estavam mais distantes do cais.

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Harriet, sem que ninguém lhe prestasse atenção, pois estavam todos muito ocupados, sentou-
se num rolo de corda. Que seu marido fazia? Por que se interessava tanto por navios? Não haviam
conseguido apanhar o espião francês... Lesage, era isso. Ben Stanton chegara à Inglaterra vindo de
um país ocupado por tropas francesas.
De repente, toda desconfiança e suspeita surgiu de novo na mente da jovem. Será que seu
marido, um Stanton, o conde de Monkscombe, era espião francês? Não podia confiar essa suspeita a
Susan, casada com um oficial da Marinha. E se falasse com o sr. Ferrar? Mas ele já lhe dissera, uma
vez, que sua desconfiança era tolice.
Enquanto se debatia consigo mesma, sem saber que fazer, ela ouviu vozes estridentes e
gargalhadas. Viu duas moças de aspecto vulgar e viçoso, que avançavam pelo cais de braços dados.
Após uma última inspeção de um navio com a luneta, lorde Stanton entrara numa taverna. As duas
moças entraram lá, também. Harriet sentiu impulso de fazer o mesmo, porém obrigou-se a se
satisfazer olhando através do vidro bastante sujo de uma janela, e não gostou do que viu. Uma das
moças estava sentada a uma mesa com Ben Stanton, e afagava-lhe o rosto. Percebeu que ambos
conversavam animadamente. De chofre, levantaram-se, e Harriet procurou um esconderijo,
acabando por se enfiar atrás de uma pilha de caixotes de chá. A porta da taverna abriu-se, dando
passagem ao conde, com a prostituta pendurada em seu braço.
Harriet ficou horrorizada ao vê-los sumir num beco. Seguiu-os, com cuidado, e olhou a viela
ao chegar na esquina. Lorde Stanton dava dinheiro a um homem mal- encarado, parado diante de
um portão. O homem colocou as moedas no bolso, Benjamin Stanton e a moça entraram. O portão
bateu.
Que miserável!, pensou a moça, furiosa. Prefere ter aventuras com... com "aquilo"! Repele-
me e vai com... com essa criatura vulgar. Espero que ela lhe roube todo o dinheiro!
Foi embora do cais trêmula de raiva, imaginando que seu marido estaria desfrutando
prazeres ilícitos.
Mais tarde, enquanto voltava para o hotel, lorde Stanton tinha uma expressão contrariada.
Do ponto de vista de negócios, sua ida a Bristol estava sendo satisfatória, porém sentia-se deprimido
pela falta de companhia naquela cidade grande, cheia de gente desconhecida e apressada. À noite
não havia nada a fazer, a não ser dormir, e então ele ficava imaginando o que Harriet estaria
fazendo.
Seus pensamentos voltavam-se com estranha frequência para Monkscombe. Devia ter
trazido Harriet, pelo menos para ter com quem conversar. Sentia saudade das duas irmãs, mas
principalmente de sua mulher. Revirava-se na cama, a pior de todas as camas ruins que conhecera.
Às vezes, esticava uma perna para o outro lado, e estremecia ao encontrá-lo vazio e frio.
Em geral, atribuía a irritação e a insônia ao jantar, que achava detestável. Acabava por
revirar toda a cama de tanto se mexer. Levantava-se, esticava os lençóis, tornava a deitar e a pensar
em Harriet. Confiava em que o maldito Pardy não ficasse à espera dela, quando fosse visitar os
doentes do pastor. Lembrava-se do vulto esguio, elegante, envolto no xale, desejando-lhe boa
viagem. Era uma lembrança quase tão insistente quanto sua preocupação de que a esposa se
encontrasse com o grosseiro contrabandista. Essa ideia o deixava fora de si e, geralmente, socava os
travesseiros, que lhe pareciam recheados de pedras. Inquieto, de novo ajeitava a cama, para se
deitar mais uma vez e ver Harriet povoando seus pensamentos, alguns deles surpreendentes. Rolava
de um lado para outro, desejando encontrar um outro corpo, muito especial, e por fim caía num
sono agitado. Sempre acordava apertando o travesseiro entre os braços.
Toda essa frustração, que ele não conseguia explicar de modo racional, tivera o desfecho
inevitável daquela tarde. Deixara-se levar pelos encantos vulgares de uma prostituta, que, por
instantes, lhe parecera engraçada e até bonitinha. Depois de satisfazer a necessidade passageira,
deveria sentir-se melhor, descontraído. No entanto,

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não fora assim. Estava pior e enojado. A moça fora competente, porém era vulgar e pouco asseada.
O quarto dela era muito sujo, e ele saíra de lá querendo tomar um bom banho, quanto antes.
Enquanto caminhava pela calçada apinhada de gente, ouviu que alguém o chamava pelo
nome. Percebeu uma carruagem parada e um cavalheiro idoso quase despencando pela janelinha da
porta, enquanto gritava e agitava a corneta acústica.
— Lorde Stanton, aqui! — esganiçou-se sir Mortimer e desandou a tossir.
O conde atravessou a rua correndo e parou junto ao veículo. Sir Mortimer, arfando, indicou-
lhe que subisse, e ele obedeceu, sentando-se diante do idoso senhor.
— Eu o vi... — frisou sir Mortimer, arquejante. — Andar na rua faz mal, está muito frio...
Tome um gole disto. — Procurou uma garrafa que tinha ao lado do assento. — Ganhei de um amigo
que tenho na Jamaica, ele é plantador de cana.
Ben tirou a rolha e cheirou. Rápido, seus olhos ficaram rasos de água.
— Céus! — exclamou. — Isto é o próprio Raio Branco!
— Espanta o frio — murmurou sir Mortimer, satisfeito. — Tome um bom gole, vamos!
Ben tomou um pequeno gole, engasgou e recolocou a rolha. O velho senhor guardou a
garrafa.
— Não aguento a vida de cidade — disse o ancião. — Muita agitação. Prefiro o campo.
O conde, então, perguntou-lhe quantos anos tinha.
— Oitenta e seis — respondeu sir Mortimer, exultante. — Nasci quatro anos depois que o
Velho Pretendente quis se apoderar do trono, e estava com vinte e seis quando o Jovem Pretendente
desembarcou. Senhor, estive na batalha de Culloden. Naquele tempo, os homens sabiam beber. O
lema de qualquer cavalheiro ou oficial era "Jamais sóbrio na sela". E quem se arriscaria a ficar
sóbrio, tendo de enfrentar uma horda de escoceses loucos e seminus, que urravam ao atacar-nos
com maças? Foi quando conheci a bebida escocesa chamada uísque. É muito boa, milorde, porém
não se compara com o conhaque francês.
Sir Mortimer pigarreou, pensando na dificuldade de conseguir conhaque francês naqueles
dias. Em seguida, continuou:
— Acredite, lorde Stanton, alcancei a idade que tenho e mantive minha excelente saúde
seguindo uma regra simples: nunca me deitei sóbrio!
— Vou me lembrar disso, sir — sorriu o conde.
— Que faz aqui em Bristol? — perguntou o ancião.
— Estou interessado em navegação, em navios cargueiros para minha empresa. Resolvi ir
ao cais e fazer perguntas, pessoalmente. Nem sempre se pode confiar em intermediários e em
folhetos de agências de despacho. Eu quis ver como se faz carga e descarga de mercado rias, como
nascem os transportes e...
— Nasce? — indagou o ancião surdo. — Já?! Bem, não será a primeira criança a nascer
antes do tempo...
— Não! Os transportes! — berrou o conde. — Nos navios!
— O quê? — sir Mortimer curvou-se, colocando a corneta acústica no ouvido. — Onde está
sua gentil esposa? Aposto que foi às compras! As mulheres adoram gastar o dinheiro dos homens.
Contudo, ela não deveria sê expor ao frio, nas suas condições; vamos apanhá-la — decidiu, pegou a
garrafa e serviu uma generosa dose numa canequinha de prata. — À sua saúde, conde!
— Lady Stanton está em Monkscombe! — urrou lorde Stanton. Sir
Mortimer tossiu e enxugou os lábios.
— Não, senhor. Eu mesmo a trouxe para Bristol. Creio que o senhor a perdeu por essas ruas
cheias de gente, milorde! Mas ela reaparece... É uma moça inteligente e vai encontrar o caminho de
casa!

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— Sir Mortimer! — berrou de novo o conde na corneta acústica, na esperança de que o Raio
Branco não lhe tivesse dissolvido o cérebro. — Tem certeza que trouxe minha esposa para Bristol?
Não foi em alguma outra vez?
— De jeito nenhum! — respondeu o ancião, com ar ofendido. — Lembro perfeitamente
que a deixamos numa rua.
— Que rua? — rugiu lorde Stanton, desesperado.
— Como é que vou saber? Pergunte ao meu cocheiro.
— É o que vou fazer! — exclamou o conde, e saltou da carruagem.

Harriet ouvia a confusão que acontecia no andar de cima. O pequeno Tom se recusava a
tomar banho, apesar dos pedidos da babá e das ameaças da mãe. Lillian gritava junto com o irmão,
imitando-o. Sentada diante da lareira, com o menorzinho no colo, ela tentava fazê-lo comer o
mingau de aveia. Ele não gostava e cuspia, tranquilamente, as colheradas que Harriet colocava em
sua boquinha. Com infinita paciência, ela voltava a dar-lhe outra colherada, e o nené mudava de
tática: ia recebendo, guardando duas ou três colheradas na boca e, então, cuspia tudo longe, de
novo.
A certa altura, além dos berros de Tom e de Lillian, de sua concentração em alimentar o
nenê, Harriet teve impressão de ouvir vozes discutindo em outro ponto da casa. Ia levantar-se para
ver o que acontecia, quando escutou uma voz familiar trovejar:
— Diacho! Vim ver minha esposa!
A porta da sala abriu-se de súbito e Ben Stanton entrou, com o chapéu na mão.
Parou, apontou para ela com o chapéu, num gesto acusador:
— Posso saber o que faz aqui? — perguntou.
— Ora, estou ajudando Susan! — respondeu ela, calma. — Como me descobriu?
— Encontrei sir Mortimer na rua, e ele me contou. Pensei que estivesse bêbado, mas ele
insistiu... Que veio fazer em Bristol?
— Vim visitar uma velha amiga — revidou Harriet. — Imagino que você não se oponha.
Ele fitou-a com insistência, um tanto perplexo. Não, não se opunha. Não havia nada demais
em visitar uma amiga. E começou a achar que a raiva devia estar fazendo com que parecesse um
tolo. Ajeitou-se e lançou um olhar severo à esposa. Escurecia, e o bruxulear dourado das chamas se
refletia no rosto de Harriet. Estava linda, apesar de... ou então por... usar um avental e estar com
uma criança gorducha no colo, cujo rostinho se encontrava todo sujo de mingau. O conde fez força
para continuar sério.
— Livre-se dessa criança! — ordenou.
Harriet tentou colocar o nenê no cadeirão, porém ele agarrou-se a ela com toda a força das
mãozinhas rechonchudas.
— Não posso — declarou ela —, ele vai chorar. Está na hora de seu jantar.
— E não há uma pajem... ou algo assim? — irritado, ele sentou-se diante dela, esticando as
longas pernas.
— Está lá em cima, ajudando Susan a dar banho nos outros dois... — Tornou a encher a
colher de mingau. — Vamos, nenê! — insistiu, carinhosa. — Uma só, para a titia Harriet...
— Se tivesse me dito que queria visitar uma amiga — bradou ele, mal-humorado —
, eu a teria trazido.
— Você não me convidou.
Ben resmungou algo, e o nenê resolveu o problema do mingau adormecendo de repente, no
colo de Harriet. Ela afastou o prato e passou a niná-lo suavemente. O conde agitou-se na poltrona e
ficou a observá-la, em silêncio.
— Eu teria gostado de sua companhia — confessou, afinal.
— É, mesmo? — ironizou ela, com ar malicioso. — Essas palavras me

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surpreendem.
— Por quê? — perguntou ele, com olhar desconfiado.
— Ah! Acredito que deve estar muito ocupado em Bristol... Que faz aqui?
— Nada que possa lhe interessar — foi a resposta seca.
— Ou algo que você prefere não discutir...
— É a segunda insinuação que você faz — disse ele, com os olhos acinzentados fuzilando.
— Que acha que estive fazendo?
— Nada tenho com isso — replicou Harriet, começando a ficar nervosa —, porém, não é
agradável ver o marido de braço dado com uma mulher da vida, à luz do dia, quando todos podem
vê-lo!
Lorde Stanton ficou muito vermelho, e depois pálido.
— Ora, quero ser... — começou, com voz rouca. — Você andou me espionando?
— Nesse caso, recebeu de volta o que você também fez — rebateu ela, altiva.
— Não admito ser espionado ou interrogado! — gritou ele, levantando-se. O
nenê abriu os olhos, assustado, e rompeu num choro sentido.
— Olhe só o que você fez! — exclamou Harriet.
— Você vai voltar para Monkscombe! — sussurrou ele, com voz surda. — Faça essa
criança parar! Vai para Monkscombe amanhã mesmo. Providenciarei uma carruagem para levá-la.
Harriet, ponha essa criança em algum lugar!
— Não vou e não ponho. Eu gosto do nenê!
— Se queria tanto uma criança — a voz do conde era cortante —, devia ter dito quando lhe
perguntei se queria algo mais além de Monkscombe. Teria providenciado para que você tivesse as
duas coisas!
— Quem você pensa que é? — disparou Harriet, louca da vida.
— Por ser um homem que jamais se aproximou da cama de sua esposa, é muito presunçoso!
— Para entrar na sua cama um homem precisaria ser surdo como sir Mortimer — fuzilou
ele —, porque você fala sem parar e sempre ameaçadora! É tão meiga e aconchegante quanto um
ouriço! Quando voltarmos para Monkscombe, talvez sir Mortimer me ceda uma garrafa de Raio
Branco e, se eu conseguir me embriagar, talvez considere sua proposta!
— Saia já daqui! — ordenou Harriet. O
nenê chorava em altos brados.
— Irá para casa amanhã, madame! — urrou o conde, pegando o chapéu e sacudindo-o. —
Amanhã, entendeu?
— Santo Deus! — soou a voz agradável de Susan. — O senhor deve ser lorde Stanton! Que
surpresa deliciosa, Harriet falou tanto no senhor!
O conde voltou-se, e Harriet se assustou ao ver como estava pálido, uma linha cinza ao redor
dos lábios apertados. Mas ele se controlou e pediu desculpas a Susan por ter invadido a casa dela.
— Não tem importância — disse a jovem senhora, aproximando-se de Harriet e pegando o
nenê. — Jane vai deitar meu filhinho, e vamos tomar um chá...
— Peço que me perdoe, madame — insistiu lorde Stanton, com a voz meio sufocada —,
porém não posso ficar. Perdoe-me mais uma vez... Harriet, amanhã!
Saiu, apressado, batendo a porta de entrada.
— Meu Deus! — bradou Susan. — Por que não me contou? Como é atraente!
— Ele está muito zangado... — suspirou Harriet, preocupada.
— Está, mesmo — concordou a amiga, satisfeita. — Só que ninguém vai me dizer que ele
não se importa com você, Harriet! Importa-se sim e como! — riu, balançando um dedo diante do
rosto dela.

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Capítulo 8

Harriet sabia que o marido era de palavra, e preparou a valise antes de se deitar. A
carruagem chegou na manhã seguinte. Por uns momentos, ela ficou tentada em mandá-la embora,
porém Susan aconselhou prudência.
— Deixe-o ganhar esta batalha, Harriet, assim ele fica menos zangado. Logo vai começar a
julgar que foi muito bruto e pensar em fazer as pazes.
Ela não ficou muito convencida, mas reconhecia que a amiga tinha mais experiência, e
decidiu voltar a Monkscombe.
O conde estava vigiando, oculto na esquina. Esperava que ela se rebelasse, e ficou surpreso
ao ver que obedecia. Na realidade, já se arrependera. De fato, Harriet não devia ter ido espioná-lo,
porém ele também poderia ter se explicado. E sentia-se culpado por obrigá-la a deixar Susan, em
companhia de quem ela parecia tão feliz. Resolveu sugerir que convidasse a amiga e as crianças
para uma temporada em Monkscombe. Isso lhe acalmou a consciência, enquanto se dirigia para o
escritório do sr. Ferrar.
Mas não se sentia à vontade. Acreditou que sua decisão fora apressada, que a presença de
Harriet até seria conveniente em Bristol, porque ele saberia que ela se encontrava a salvo, e o que
fazia. Tinha a sensação de ter perdido algo e, quando chegou ao escritório do velho advogado, não
estava de bom humor.
O sr. Ferrar ficou olhando, enquanto Ben andava de um lado para outro, no pequeno
gabinete. Procurou a caixinha de rapé e ofereceu-a ao conde, que recusou. Então, ele se serviu.
— Preciso confessar-lhe uma coisa, Ben Stanton — informou, depois de espirrar. Lorde
Stanton parou de andar e fixou os olhos no advogado.
— Receio que, quando o aconselhei, esqueci de mencionar que o relacionamento num
casamento é muito difícil. De fato, não posso me considerar um entendido — confessou, com certo
pesar. — Enviuvei há trinta anos. Antes disso, não tive um mau casamento. Minha esposa possuía
excelentes qualidades, porém carecia de paixão. Meu sogro fez fortuna com chá. Não quero dizer
que me casei pelo dote, mas digamos que ele contribuiu para eu esquecer que ela era...
insignificante. — Suspirou. — No entanto, Harriet é uma moça muito atraente...
— Sei disso — interrompeu o conde.
— Sente-se, por favor — solicitou o sr. Ferrar. — É difícil conversar com uma pessoa que
não para um minuto.
Lorde Stanton deixou-se cair numa poltrona, murmurando desculpas.
— Gostaria de saber — continuou o advogado — se alguém lhe contou os motivos da briga
que levou seu falecido pai a ir embora para os Estados Unidos.
— Não — respondeu o conde, não tentando esconder a surpresa.— Meu pai sempre falava
em Monkscombe, na região, sua história, seus costumes, porém, nunca me disse por que foi
embora. Gostaria de saber.
— Posso falar à vontade porque as pessoas envolvidas, menos uma, já faleceram.
E sei que essa pessoa me perdoará.
Lorde Stanton fitou-o, erguendo as sobrancelhas, curioso.
— Entre os dois irmãos, o primogênito e herdeiro era calmo, responsável e sério: foi o pai
de Harriet. O outro era completamente diferente: rebelde, briguento e irascível, embora bondoso e
sempre disposto a perdoar. Não era mau rapaz, apenas um tanto irresponsável, e vivia magoando a
família. Arranjou más companhias e associou-se aos Pardy daquele tempo. É estranho como
uma família, refiro-me aos Pardy, consegue

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perturbar um local por gerações... E, mais estranho ainda, eles sempre tentaram envolver um
Stanton em suas façanhas, quando puderam...
Observou o jovem conde e notou que ele não se sentia à vontade. No entanto, prosseguiu:
— Estávamos todos preocupados com o futuro do rapaz, quero dizer, do seu futuro pai.
Conhece as srtas. Drew? — A pergunta era retórica, pois o velho advogado sabia que sim. — Mary
Drew, que agora parece um camundongo ressequido, naquela época era uma mocinha linda. E
bondosa, muito tímida, dominada pela irmã mais velha e pelo pai. Jamais teve um mau pensamento.
Creio que foi por isso que cativou seu falecido pai. E acredito que, se ninguém tivesse interferido,
ela poderia ter tido boa influência sobre ele.
Suspirou, ficou pensativo por instantes e continuou:
— Mas o velho pastor, indignado ao saber do iminente namoro dos dois, foi falar com seu
avô. O conde também não gostou, chamou o seu falecido pai e explicou que não admitia que ele
destruísse a reputação de uma moça indefesa como Mary... Seu pai sentiu-se traído por todos,
porque Mary era uma filha obediente e recusou-se a continuar a vê-lo. Jurou que iria embora para
nunca mais voltar, e muito mais tarde soubemos que se encontrava nos Estados Unidos. — A voz se
calou e o silêncio pairou, pesado, até que o velho advogado tornou a falar: — Calculo que por uns
quatro anos Mary achou que seu pai voltaria para buscá-la, porém tal não aconteceu. Não sei se ele
lhe prometeu voltar... às vezes o destino muda as intenções de uma pessoa. Seu avô nunca mais quis
ouvir o nome do filho caçula. O mais velho, pai de Harriet, considerou o comportamento do irmão
censurável, e sentiu-se obrigado a cuidar das irmãs Drew de um modo que não as ofendesse; por
isso, elas continuaram pagando um aluguel ridículo pela casinha tão boa...
— O senhor não me disse nada quando pensei em aumentar o aluguel — interferiu lorde
Stanton.
— Meu amigo, acreditei que depois de conversar com elas o senhor iria deixar tudo como
estava.
— Não me conhecia — bradou o conde, seco. — Apenas imaginou que eu tivesse bom
caráter.
— E por que não teria? — perguntou o advogado, calmo. — Conheci seu pai. Era um rapaz
turbulento, mas não malvado. Por que você seria diferente? Se insistisse em aumentar o aluguel, eu
lhe contaria o que acabo de narrar.
— E por que me contou agora?
— Porque é fácil viajar e deixar as responsabilidades para trás — respondeu o velho senhor,
firme. — A muitos mil quilômetros daqui, uma pessoa pode se consolar, imaginando que os
problemas que deixou poderão ser resolvidos pelos outros. Bem, isso pode acontecer, porém não
quer dizer que o responsável não devia resolvê-los.
O conde levantou-se subitamente enfurecido, e, dedo em riste para o velho advogado,
exclamou:
— Harriet andou conversando com o senhor!
— Sou muito afeiçoado a ela — retrucou o sr. Ferrar, começando a se alterar. — A moça
está angustiada, e não gosto disso!
— Nesse caso, escute com atenção, sr. Ferrar! — O conde dobrou a alta estatura, apoiando
as mãos no tampo da escrivaninha. — O senhor disse que eu devia casar com uma das minhas
primas, e eu o fiz. Mas Harriet estava tão decidida a ficar com Monkscombe, que não conseguia
pensar em outra coisa. Não me considerou digno de ser o conde de Monkscombe, e não escondeu
isso. Então, casei-me com ela para que se tornasse a dona legítima. Fiz tudo o que vocês queriam,
agora me deixem em paz! Quero viver a minha vida! Também quero coisas, porém Monkscombe
não está entre elas. Fiz o que devia fazer aqui, e ninguém tem o direito de me pedir mais.
— Diga-me, Ben Stanton — perguntou o sr. Ferrar, inclinando-se para trás, a fim de
observar o rosto corado do rapaz—, que quer da vida?

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— Ora, quero partilhá-la com uma mulher, e não com uma casa, uma propriedade!
— respondeu ele. — Chega de discussão. Vou ficar por um ano, como prometi a Harriet, depois
voltarei para Filadélfia. Agora, com licença, que sou um homem ocupado. Não quero perder tempo
discutindo o que já está decidido. Bom dia, senhor! — e saiu quase correndo.
— Esse rapaz trocou o cérebro com o de uma mula! — exclamou o velho senhor, sacudindo
a cabeça. — Harriet também não quer a propriedade... quer você, seu idiota colonial teimoso e
burro!
Em Monkscombe, Harriet debatia-se entre emoções conflitantes. Ansiava pela volta do
marido e, ao mesmo tempo, receava-a, porque brigariam de novo. Arrependera-se de ter voltado,
pois sentira-se feliz com Susan. Quanto mais pensava nisso, mais zangada ia ficando. Jamais
alguém gritara com ela daquele jeito, sempre fora tratada com delicadeza, suas opiniões eram
respeitadas, e as ordens, obedecidas.
Aí, voltou o ressentimento contra o primo que viera de lugar nenhum, e assim mesmo
tomara conta de suas vidas. Voltou também a suspeita, porque havia muita coisa que ela não
entendia e que Ben Stanton não queria explicar.
O capitão James Murray fora jantar em Monkscombe duas vezes naquele meio tempo, e
confessara-se frustrado: seus esforços para encontrar o francês Lesage esbarravam no silêncio dos
camponeses.
— E não são apenas os camponeses, sra. Stanton — desabafara.— Todo mundo me
considera inimigo, pois não sou da região. Seria ótimo se tivéssemos um magistrado mais moço. E,
toda vez que vejo sir Mortimer, lembro-me de quantos homens bons perderam a vida na charneca de
Culloden... Sabe que o magistrado foi partidário de Billy, o Fedorento?
— James refere-se ao duque de Cumberland — explicara Caroline. — De fato, sir Mortimer
não se importa muito com a possibilidade de Bonaparte atravessar o canal da Mancha, porém tem
pavor que os escoceses desçam de novo do vale de Adriano.
— Ele é um homem muito difícil, que insiste em administrar justiça a seu modo — dissera o
capitão — e que raramente está sóbrio.
Por onde andaria o espião Lesage? indagava-se Harriet naquela manhã, enquanto voltava
para casa. Se o francês ainda estava por lá, era incrível que ninguém o tivesse visto. Um estrangeiro
chamava a atenção... E se fosse um estrangeiro que não chamava a atenção e que tivesse motivo
para se encontrar por ali? Alguém que se interessava muito por navios e os examinava do Passeio da
Viúva? Um homem que ia para Bristol sem explicar por que e... observava navios também lá? Um
homem que viajara pela Europa ocupada pelos franceses, e que não escondia sua admiração pelo
Exército da França? Seu coração quase parou de bater. Mas o sr. Ferrar rira de suas suspeitas;
então, era impossível. No entanto, e se ela estivesse certa?
Só viu a criança escondida na penumbra do espinheiro, quando quase tropeçou
nela.
— Você é William, não? — perguntou, surpreendida.
Billy Pardy saiu do esconderijo e ficou a alguns passos de distância, pronto para
fugir.
— Estava esperando a senhora... — sussurrou, com a carinha suja e séria.
— Que foi, Billy? Maltrataram você outra vez?
— Eu falei! — exclamou o menino, com raiva. — Falei para o Aaron que, se me
batessem de novo, eu fugia e contava! Queria contar para o cavalheiro ou para a senhora! O
cavalheiro não está, nesse caso... Contudo não gosto da ajuda de mulheres!
— Foi Aaron quem bateu em você? — perguntou Harriet.
Era evidente que Billy queria vingar-se de alguém, e ela não tinha disposição para enfrentar
Aaron.
— Não — Billy sacudiu a cabeça. — Ele não me amola, só diz nomes feios. É o

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Nathan quem me bate, e-eu avisei que ia contar tudo! Mas o cavalheiro viajou... — queixou-se o
menino. — Não gosto de lidar com mulheres!
Billy Pardy não falava como a criança que era, e provavelmente jamais fora uma criança de
verdade. Crescera em um ambiente promíscuo, que não tinha moral, não recebera noção do que era
certo ou errado. Tivera de aprender cedo a se defender da violência. Principalmente, o menino era
um Pardy: sabia qual o lugar e papel das mulheres; não se discutia assuntos sérios com elas, e
Harriet compreendeu que ele se esforçava por fazer uma exceção.
— Que quer me contar, Billy? — perguntou, sentando-se numa pedra, enquanto notava que,
apesar do frio, o menino estava descalço. — Dou o recado a lorde Stanton, assim que ele chegar.
— Há um homem escondido lá em casa — afirmou o garoto, depois de alguma hesitação.
— É o francês.
— Tem certeza, Billy? É verdade?
— Tenho! Nathan e Aaron saíram com os outros, de barco... com Jethro e os outros...
Trouxeram bebida, fumo... e o francês.
— Ele ainda está lá? — quis saber ela, duvidando. — Tal fato já aconteceu há algum tempo,
não?
— O francês arrebentou a perna — disse Billy. — Os soldados esperavam, tiveram de se
esconder, e ele se esborrachou todo. Está lá em casa... Agora sarou, consegue andar com um
bastão... Declarou que ia embora daqui a dois dias.
Então, era isso! Lesage se machucara e, sem a ajuda de um médico, o osso fraturado custara
a soldar. Já conseguia ficar de pé. Os Pardy, que tinham ajudado o desembarque do espião, haviam
tido obrigação de escondê-lo e, agora, ele ia fugir.
Não sabia o que fazer. O capitão Murray fora para Bath naquela manhã, voltaria dois dias
depois e, nessa altura, o francês já teria ido embora. Sir Mortimer...? Bem, afinal era um
magistrado, apesar de muito velho, surdo e quase sempre embriagado. Mas, antes de fazer qualquer
coisa, precisava saber se o menino dizia a verdade.
— Escute, Billy — bradou ela, cautelosa —, preciso ter certeza que ele está aqui, antes de
começar a agir. Vamos até sua casa, e você fará qualquer coisa para obrigar o francês a sair,
entendeu? Ele costuma sair, não?
— Agora que pode andar, ele vai à privada — respondeu Billy, e quis explicar: — Antes,
ele...
— Está bem, Billy. Vamos logo, então.
Logo chegaram às cabanas dos Pardy. Harriet escondeu-se atrás de uns arbustos, e Billy
seguiu pelo trilho até a porta de um dos barracões desconjuntados. O vento soprava frio, vindo do
mar, e Harriet esperou, impaciente e tremendo. Concentrou-se tanto no exame das taperas, que
esqueceu que podia ser vista por quem chegasse de trás. Subitamente, ouviu passos fortes e dois
braços musculosos agarraram-na pela cintura.
— Vejam só, a sra. Stanton! — exclamou a voz áspera de Aaron. —Veio me fazer uma
visita, ou está bisbilhotando?
— Solte-me, Aaron! — ordenou ela, inutilmente. — Não estou bisbilhotando — e lutou
para livrar-ser sem conseguir.
Aaron soltou uma gargalhada ao ouvir aquilo.
— Bom, nesse caso veio me ver! Eu esperava isso, apesar de você sempre ser altiva e
desdenhosa. Sabia que era fingimento!
— Seu insolente! — berrou ela, apesar do medo que sentia.
— Você é briosa... — afirmou o homem, com ar satisfeito. — Gosto disso! Creio que as
mulheres devem ficar em seu canto e falar só quando interrogadas, porém vou fazer uma exceção...
Sabe que sempre gostei de você.
— Eu sempre o julguei um patife, um rufião! — gritou ela, furiosa. — Mas não

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pensei que fosse mais do que isso. Agora, sei que além do mais é um traidor!
Nesse momento, os olhos negros perderam o brilho divertido e se apertaram, formando duas
fendas.
— Ah, é isso! Nesse caso, minha querida, você vai comigo.
Agarrou-a por um braço e arrastou-a pelo trilho até a porta de um dos barracões, que abriu
com um chute. Empurrou-a para dentro, quase derrubando-a; depois, entrou e bateu a porta.
Quando Harriet conseguiu se equilibrar e recuperar a presença de espírito, viu que se
encontrava em uma grande cozinha, com um fogareiro aberto, sobre o qual pendia um gancho;
havia uma mesa e bancos toscos. A fumaça do fogareiro evolavasse na cozinha e escapava por uma
janela sem vidro. Lucy Pardy, a mãe de Billy, uma mulher gorda e desleixada, de cabelos
engordurados, mexia o conteúdo do panelão que pendia sobre o fogo. Voltou-se com o olhar
ausente. Não havia sinal do menino.
— Sente-se aí, vamos! — ordenou Aaron, empurrando Harriet para um banco. — Lucy,
fique de olho nela e não a deixe fugir, se não será pior para você, entendeu?
O homem passou para outro aposento, do qual vinham vozes. Logo retornou com um
homem alto, que coxeava penosamente, apoiado num bastão.
— Monsieur Lesage... — sussurrou Harriet. — Então, está mesmo aqui!
Ele não se parecia nada com Ben. Era alto, devia ter mais ou menos a mesma idade, mas era
só. Apesar do perigo e do medo, ela sentiu-se feliz, e seu coração bateu mais forte. Como fora boba
e como se arrependia do que pensara!
Lesage aproximou-se, com esforço, e sentou-se diante dela.
— Sra. Stanton? Sinto muito vê-la aqui. Entende que, agora que me viu, não poderá ir
embora?
Aaron apoiava-se no batente da porta de entrada, de braços cruzados, vigiando.
— Vão notar a minha ausência — afirmou Harriet, altiva. — Virão me procurar.
— Mas não aqui, chère madame. — Lesage aproximou-se um pouco e baixou a voz. —
Milady, sinto vê-la, por dois motivos. Primeiro, porque é muito bonita e não gostaria que a
magoassem. Segundo, e isso é muito importante, seu marido é cidadão dos Estados Unidos. A
França tem ótimo relacionamento com esse país, e eu não gostaria de estragá-lo com um incidente
desagradável. Se algo acontecesse com a senhora, ele se queixaria ao governo americano. Não
acredito que se trate de um homem que aceite insulto ou injúria sem reagir.
— Não — respondeu ela, com uma firmeza que sentia em parte. — Ele não aceitaria e faria
o maior escândalo. Vocês não podem me prejudicar...
Imaginou se seria isso mesmo, porém tinha certeza da primeira parte. Lesage demonstrou
que sua dúvida tinha fundamento.
— Sra. Stanton, infelizmente não percebe como a situação é perigosa. Para essa gente, ser
apanhada significa forca. Precisam livrar-se da senhora, e creio que o farão levando-a para alto-mar,
a noite, e jogando-a fora do barco.
— Mentira! — interferiu Aaron, violento. Aproximou-se da mesa, com ar ameaçador. — E
tem mais: não sou surdo como o velho Mortimer! Ouvi o que disseram, e não vou deixar que façam
mal a essa dama!
— A senhora tem um admirador... — declarou Lesage, com uma careta. — Mas acho que
não pode confiar no cavalheirismo dele. De qualquer jeito, Aaron é apenas um. A família é que
decide.
Antes que Aaron pudesse falar, Nathan entrou na cozinha e apontou para Harriet, zangado.
— Que essa mulher faz aqui?
— Estava espionando — respondeu Lucy, junto do telhado, enxugando o suor do
rosto.
— Cale a boca! — gritou Aaron. — Senão eu a faço calar! —Voltou-se para Harriet,

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pegou-a por um braço e a fez levantar. — Você, espere aí!


Arrastou-a até a porta do outro lado da cozinha e a empurrou para dentro de um quarto,
batendo a porta. Ela percebeu que se tratava de um quarto, porque havia uma cama. Não tinha
janela, apenas uma abertura rudimentar junto ao telhado, para deixar entrar um pouco de luz. Sentiu
moles os joelhos e sentou-se na beirada da cama, tentando não pensar na sujeira dos lençóis, nas
pulgas e em outros insetos que deviam morar nas cobertas e no colchão de palha.
Vozes enfurecidas vinham através da porta. Jethro havia chegado, e os homens discutiam,
furiosos. Não conseguia entender, pegava apenas palavras soltas, porém era o bastante. Nathan e
Jethro queriam matá-la imediatamente. Lesage e Aaron eram contra. Quando os demais Pardy
chegassem, haveria uma votação, e ela sabia qual seria o resultado...
Considerou as possibilidades de fuga. Subiu na cama e olhou pelo buraco. Não era muito
grande, mas calculou que poderia escapar por ele. Embaixo havia um chiqueiro, e o grunhido dos
porcos encobriria os ruídos que porventura fizesse. No entanto, precisava esperar pela noite. Tornou
a sentar-se na cama e pensou no que o marido faria ao descobrir que ela desaparecera. Lesage se
enganara ao dizer que ninguém a procuraria ali. Era por aquele local que Ben iniciaria a busca,
meditou. O instinto o levaria diretamente a Aaron.
Entrou em pânico, não por si, e sim pelo marido. Eles iam matá-lo! Não podiam se arriscar
deixando que descobrisse o espião francês.
Ben, meu querido, pensou, desesperada, caluniei você! Eu queria tanto...
Contudo, não adiantava querer.
Por trás da porta agora reinava o silêncio. Harriet aproximou-se, pé ante pé, e mexeu no
trinco, porém estava trancada. Tornou a sentar-se na cama, e algum tempo depois percebeu passos
no outro cômodo. Alguém vinha vindo, para amarrá-la, amordaçá-la e levá-la para o barco, do qual
seria jogada na água fria e escura... A trava da porta foi acionada, ela abriu-se, e Aaron entrou.
— E daí, decidiram o que farão comigo? — perguntou ela, erguendo-se e encarando-o
como se não tivesse medo.
Aaron balançou a cabeça, e o coração de Harriet quase parou. Contudo ele não respondia à
sua pergunta, apenas confirmava algo que lhe passava pela cabeça.
— É... Você não tem mesmo medo de falar — murmurou ele. — Mas quem sabe tem um
pouco de medo de mim? — e sorriu, irônico. Harriet não deu sinal de timidez. Ergueu o queixo,
num desafio.
— Não, Aaron. Não tenho medo de você, porque o conheço bem. Você é um vadio, um
contrabandista. Meu pai foi juiz e condenou muitos dos Pardy... Lembra-se?
— É verdade. — Ele apertou os olhos. — Lembro-me dele. Era um homem muito rigoroso.
Será que Aaron tinha em mente vingar-se do pai dela?
— É por essa razão que me prendeu aqui? — sussurrou.
Ele pareceu não entender, franziu a testa, depois deu uma risada.
— Imagina que estou me preocupando com tal fato? O homem que se deixa levar para
diante de um juiz, é idiota! Ninguém me apanhou em flagrante... Eu sou esperto, sabe? — Piscou,
malicioso. — No entanto, vejo que você está um pouco assustada. Não faz mal. Isso até torna mais
divertidas as coisas, e as mulheres gostam de ser dominadas. Esperneiam, gritam, mas gostam.
Começou a aproximar-se devagar e, embora sorrisse, algo nos olhos dele apavorou Harriet.
— Você não ousaria...! — pronunciou baixinho.
— Seria uma troca justa... — declarou o canalha. — Não dê atenção ao que o francês disse.
Um dia, eu disse que você ia precisar de mim, lembra? Isso está

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acontecendo agora. Não vou deixar que afoguem você. Uma mulher linda tem uso melhor do que
virar isca para peixes... Por que não me mostra como pode agradecer por esse motivo?
Estendeu a mão e brincou com as rendas do jabô de musselina sobre a blusa de Harriet.
— Esqueceu que eu tenho um marido?! — replicou ela, indigna da, e o homem gargalhou.
— E onde ele está? — perguntou. — Em Bristol, e ninguém sabe quando vai voltar.
No entanto, você e eu estamos aqui, nascemos aqui, somos quase parentes...
Ela deu um tapa na mão grosseira do homem, afastando-a.
— Você é um criminoso! Nunca o aceitaria!
— É melhor do que virar comida para peixes... — escarneceu ele, rindo. — Garanto que
você vai gostar...
— Não! Não vou! Prefiro morrer afogada!
— Não precisamos ficar aqui, entende? — bradou Aaron. — Podemos ir para Devon, onde
ninguém nos conhece. Nós vamos nos dar muito bem, milady...
Harriet ficou horrorizada ao perceber que ele falava sério.
— Deve estar louco, se pensa que vou fugir com você!
— Por que não me experimenta, antes de recusar? — interrogou o homem, com voz suave.
— Poderá mudar de ideia.
E, sem qualquer aviso, ele deu um passo à frente, empurrando-a e fazendo-a cair de costas
na cama. Jogou-se por cima dela, que lutou desesperadamente para livrar-se, sem conseguir. Sentia-
se esmagada pelo peso dele, respirava com dificuldade e teve a sensação que ia desmaiar ou
vomitar, ou ambas as coisas. O hálito malcheiroso de Aaron queimava-lhe o rosto, e sua voz
sussurrava sugestões obscenas, enquanto tentava rasgar-lhe a roupa.
O socorro chegou quando Harriet pensou que não teria mais salvação. Alguém agarrou
Aaron por trás e o levantou. Ela sentou-se na cama, chorando, e viu Lesage com o bastão erguido.
— Deixe a senhora em paz! — gritou o espião. — A França não quer complicações com os
Estados Unidos.
— Não me interessa o que a França quer! Sei o que eu quero e isso basta! — rosnou Aaron.
— Enquanto eu estiver aqui ninguém vai molestar milady e a advertência vale
principalmente para você. Depois que eu for embora, faça o que quiser. Nesse ínterim, ninguém
chega perto dela!
Os homens saíram, e a porta foi trancada. Ela olhou para o buraco na parede e viu que eles
se haviam lembrado disso, pois estavam pregando uma tábua para fechá-lo, e o quarto ficou na
completa escuridão. Não poderia fugir. Lesage a protegeria, porém por pouco tempo. Logo ficaria à
mercê da proteção de Aaron, mas ele exigia um preço, que ela não podia e não queria pagar.

Capítulo 9

Harriet pensou que a deixavam no escuro para intimidá-la. Aaron talvez achasse que assim
ela se tornaria mais dócil, por isso respirou mais livremente quando uma criança, assustada, entrou
com um toco de vela de sebo e fugiu, rápida. A chama dançava muito e produzia pouca luz.

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Do outro lado da porta os Pardy comiam, fazendo barulho. Não esqueceram dela. Uma
moça, chamada Cherry, levou-lhe uma tigela de comida, não muito apetitosa, entregou-a, depois
limpou o nariz na saia. Harriet percebeu que a jovem estava no último estágio de gravidez e se
movimentava com dificuldade. Mais um Pardy viria ao mundo.
Ela pegou a colher e mexeu o ensopado, julgando melhor não examiná-lo com atenção.
Quando experimentou, percebeu que era de coelho, com muita cebola e batata. Imaginou se Lesage
comia com os Pardy e tentou adivinhar, divertindo-se um pouco apesar de tudo, o que ele pensava
daquilo tudo. O espião era um enigma. Não podia chamá-lo de amigo, porém ele pretendia protegê-
la enquanto pudesse.
Não podia deixar de simpatizar com o francês. Ficara naquele barracão, talvez naquele
quarto, durante semanas, sem poder se mexer, sem poder chamar um médico. A perna devia doer
muito e provavelmente ele fora cuidado apenas por Lucy e Cherry, temendo ser descoberto, tendo
de levar sua missão avante. Uma missão que fracassara no começo.
E onde Ben estaria? Ainda em Bristol? Será que chegaria a tempo de salvá-la? Se ele
chegasse, o que faria Lesage, empenhado em não ofender os Estados Unidos? Mas tudo dependia
dos Pardy... E eles pareciam divertir-se. Deviam estar bebendo. Sentiu medo outra vez.
Alguém se pôs a cantar uma balada indecente. Ouviu uma criança chorar. Felizmente, até
agora ninguém havia relacionado sua vinda ali com Billy. Sentiu frio, então encolheu-se junto dos
travesseiros, passou os braços pelos joelhos e se preparou para uma demorada espera.
O dia seguinte amanheceu nublado, porém Harriet não podia ver o tempo fora. Ben Stanton,
ao contrário, via isso bem demais enquanto cavalgava pela estrada deserta. Saíra muito cedo de
Bristol e a princípio andava rápido. Agora, a estrada estava cheia de sulcos, buracos, pois chovia e o
vento cortava como navalha. Ajeitou a capa mais perto do corpo, abaixou a aba do chapéu e
assobiou para animar o cavalo, que ia a passo, de orelhas baixas. Daquele jeito só chegaria em casa
ao escurecer.
Meia hora depois avistou uma taverna na beira da estrada, de aparência pouco convidativa,
mas que lhe pareceu um palácio. Entrou no pátio, deslizou pela sela molhada, entregou o cavalo a
um criado e entrou.
Lá dentro fazia calor, e a lareira acesa convidava ao descanso. Livrou-se da capa, sentou-se
junto dela e pediu um almoço. Esqueceu-se de que se encontrava em um país parcialmente
bloqueado para os franceses, e pediu um conhaque, para esquentar. O taverneiro assumiu um ar
furtivo e sumiu, voltando logo depois com o conhaque, colocando o copo na mão do conde, com
uma piscadela. Enquanto a bebida descia, aquecendo-o por dentro, compreendeu as tentações de sir
Mortimer e de outros que olhavam o contrabando com certa indulgência.
Aquecido, por fim, começou a cochilar, esperando pela comida. Foi acordado, sem
cerimônia, pelo taverneiro, que recolheu o copo de conhaque, avisou que eram os soldados e sumiu
nos fundos da sala. A porta da taverna abriu-se e um único túnica- vermelha, que era como
chamavam os milicianos por ali, entrou. Quando ele tirou o chapéu encharcado, o conde ficou feliz
ao reconhecer o amigo.
— James! — exclamou. — Que bom vê-lo aqui!
O capitão Murray virou-se e, ao ver-lhe a expressão séria, tensa, lorde Stanton sentiu a
alegria se esvair.
— Graças a Deus, o senhor voltou! — exclamou o capitão. — Vim por esta estrada na
esperança de encontrá-lo. O tempo está tão ruim, que imaginei que o senhor pararia aqui.
— Que houve? — quis saber o conde, alarmado.
— Não há como não acreditar na Providência... — respondeu o miliciano,
sentando-se e baixando a voz. — Eu deveria estar em Bath, mas saí para lá ontem de

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manhã. Meu cavalo começou a mancar e tive de voltar, pelo que dou graças a Deus. A sra. Stanton
desapareceu e não conseguimos localizá-la.
— Desde quando? — perguntou lorde Stanton, forçando-se a manter a calma.
— Desde ontem de manhã. Foi visitar doentes, a pé, e pretendia atravessar os campos.
— Ela sabe que não quero que faça isso!
— Soubemos que a sra. Stanton fez as visitas — continuou o capitão, aflito. — Devia estar
voltando. Chegou até um ponto onde há um espinheiro e uma pedra. Parou ali, onde encontramos a
cesta dela. Parece ter evaporado. Buscamos por todo canto, bosques, capoeiras, valetas, e nada!
Caroline está quase louca de aflição. Todos os homens válidos estão à procura dela. Caroline,
desesperada, só queria que você voltasse, por isso vim pela estrada de Bristol e iria até lá se não
nos encontrássemos. Não imagina como estou contente por vê-lo aqui!
O conde gritou ao taverneiro que não ia comer e mandou preparar o cavalo.
— Vai comigo, James? Tenho uma desconfiança sobre onde está minha mulher... Explico
pelo caminho. — Jogou a capa ainda bem úmida sobre os ombros. — Maldição! Não devia ter
deixado Harriet aqui, primeiro; e depois, não devia tê-la mandado voltar de Bristol. Sou um idiota
bronco e teimoso, James! Lembre-se de que ouviu isso de mim e quando for preciso refresque a
minha memória!
Pouco depois, puseram-se a cavalo estrada afora, em velocidade perigosa.
— Esteve nos barracões dos Pardy? — indagou o conde, aos gritos, para o capitão que
cavalgava a seu lado.
— Para quê? — respondeu o outro, também aos berros, segurando o chapéu com uma das
mãos.
— Porque Harriet está lá. Eu apostaria todos os meus bens nisso. Não me peça para explicar
agora, que é uma história longa. Mas, se quiser pegar os contrabandistas, mande vigiar os Pardy.
O caminho ficou mais difícil, e tiveram de se afastar um do outro.
— Que isso tem a ver com a sra. Stanton? — perguntou o miliciano, quando tornaram a se
aproximar.
— Ela deve ter descoberto algo e foi atraída para lá, ou levada à força. Tenho certeza que
está com os Pardy!
— Nesse caso, iremos libertá-la já! — declarou o capitão, entusiasmado. — Vou buscar o
pelotão e...
— Não! Os milicianos seriam vistos a distância, apesar da chuva; então, eles se apressariam
a livrar-se das provas e de Harriet, antes que você conseguisse entrar nas cabanas. Preciso de tempo.
Devo chegar lá sozinho e tentar retirar Harriet antes que você chegue com a milícia.
— Tal coisa é loucura! — exclamou o capitão Murray, horrorizado. — Não pode ir só! Pelo
menos, deixe-me ir também!
— Não. Quero que vá avisar sir Mortimer que fará umas prisões e que vai precisar dele. Ele
voltou de Bristol, não? Logo depois reúna seus homens e vá para lá.
O capitão puxou bruscamente a rédea, e seu cavalo parou. O conde também parou, voltou
para junto dele, e fitaram-se em silêncio por momentos, debaixo da chuva.
— Aquele velho caduco? — perguntou o capitão, por fim. — Acredita que vai colaborar na
prisão dos contrabandistas? Ele os ajuda! A mim só me cria dificuldades!
— Escute, sir Mortimer talvez tolere os contrabandistas, mas é patriota, embora amalucado.
Diga-lhe que provavelmente os Pardy esconderam o espião francês, e ele mudará de opinião. Vai
ver só!
Reencetaram a marcha e chegaram a um bosque, cerca de um quilômetro distante dos
barracões dos Pardy. As árvores bordejavam o caminho, ocultando-o. Detiveram os cavalos suados,
sujos de lama, e desmontaram.

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— Preciso de duas horas, James — afirmou lorde Stanton, arfando, enquanto levava o
cavalo para junto de uma árvore e o amarrava. — Calculo que levará mais ou menos esse tempo
para falar com sir Mortimer e reunir seus homens.
— Não gosto disso... — protestou o jovem capitão, teimoso. —Farei o que o senhor disse,
porém contrariado. Nem sequer está armado, milorde!
— Se eu fosse você, não apostaria nisso — respondeu Ben Stanton, com um sorriso duro.
— Vamos, túnica-vermelha, este americano precisa de sua ajuda!
E o capitão tornou a montar, afastando-se entre respingos de lama.
O conde olhou para o céu. Não chovia mais, o que era uma vantagem, pois a chuva manteria
os Pardy dentro de casa. Queria que saíssem, principalmente um deles. Se Aaron visse a expressão
de Ben Stanton nesse momento, ficaria preocupado.
Lorde Stanton colocou a capa sobre a sela, pendurou o chapéu num galho e tirou a gravata.
Precisava de liberdade de movimentos. Enfiou a mão no cano alto da bota direita e apalpou o
punhal, em sua bainha. Sabia como usá-lo, e em caso de necessidade não hesitaria.
— Agora, Aaron Pardy, vai ver o que é mexer com Ben Stanton!— bradou para si mesmo.
Afagou o pescoço do cavalo e saiu andando. Ia com cautela, aproveitando a proteção de todo
arbusto e árvore. As botas não faziam o menor ruído na turfa encharcada, e quem o visse teria
impressão que se tratava de uma sombra, não de um homem, tão silencioso era. Chegou perto das
cabanas, procurou um local adequado e agachou-se. Ficou oculto do lado contrário do vento, para
não ser descoberto por algum cachorro, e pôs-se a esperar com a paciência do índio que lhe ensinara
a perceber pegadas e armar tocaias... para apanhar animais ou homens.
Dentro de um dos barracões estava para acontecer algo que Ben Stanton não podia prever, e
que teria importância crucial nos acontecimentos.
Cherry Pardy entrou no quarto para levar outra vela para Harriet. Ela parecia mais lenta do
que no dia anterior. Arfava, angustiada, e seu rosto estava coberto de suor. Curvou-se para colocar a
vela no lugar da que se consumira; de chofre, soltou um grito lancinante e caiu sobre a cama,
contorcendo-se. A barriga enorme apresentava movimentos convulsivos.
— Oh, meu Deus! — exclamou Harriet.
A porta estava aberta, e ela correu para a cozinha. Jethro e Aaron, sentados à mesa, jogavam
dominó. Jethro era repugnante, mais parecia um bicho, e talvez não soubesse contar mais do que os
dedos que tinha. Aaron ganhava e assobiava, alegre. Ambos ergueram os rostos com a entrada da
moça.
— Cherry vai dar à luz! — gritou ela.
— E daí? — rosnou Jethro.
— Ganhei a partida! — declarou Aaron, juntando as peças. — É a quarta que ganho, em
seguida! Você é burro!
— Ouviram o que eu disse? Cherry está em trabalho de parto — insistiu Harriet, nervosa.
— Que quer que a gente faça? — perguntou Jethro, mal-humorado. — O problema é dela,
que se arranje!
— Vão buscar ajuda! — ordenou Harriet.
— Ela já teve uma cria, sozinha — murmurou Jethro, com indiferença. — Se quiser, ajude-
a você.
— Eu não sei como fazer! — afligiu-se ela, ouvindo os gemidos da moça, cada vez mais
altos.
— Então, vamos ter de lhe ensinar! — exclamou o homem, com uma gargalhada obscena.
— Aaron cuida disso, não é?
— Eu já disse! Vão buscar alguém para ajudar! — vociferou a moça, batendo um

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pé no chão.
Aaron fitou-a, boquiaberto depois levantou-se.
— Vou buscar Lucy... Jogar com você não tem graça, Jethro.
— Esse dominó é velho, e quase não se vê os pontos marcados! — resmungou Jethro,
justificando-se. — E não ficarei aqui ouvindo uma mulher uivar. Vou levar os cães para a reserva de
veados de sir Mortimer, para ver se conseguem perseguir um animal até cansá-lo...
Saiu, arrastando os pés, chamou os cães com um assobio e foi embora com eles. Aaron
postou-se na porta dos fundos, berrando por Lucy, que chegou correndo e enfiou- se logo no quarto.
Ele tornou a entrar, sentou-se à mesa e encheu o cachimbo com fumo.
Harriet observou-o com repugnância e foi atrás de Lucy. Viu sobre a cama uma menininha,
ainda presa à mãe pelo cordão umbilical. Estava roxinha, era mirrada, mexia vagarosamente as
perninhas, os bracinhos e a boca, da qual não saía som. A criancinha, as roupas de Cherry, os
lençóis, tudo estava ensanguentado. Não havia com que limpar a mãe e o nenê. Harriet voltou à
cozinha e se aproximou de Aaron.
— Precisamos de água.
— O poço fica lá fora.
— Então vá e traga um balde cheio.
— Isso é trabalho de mulher — esquivou-se ele. — Vá dizer a Lucy que apanhe
água.
Harriet sufocou uma exclamação e sentiu que fervia por dentro, esquecida de tudo:
do medo, da humilhação e do nojo que tinha daquele lugar. Sua zanga transformou-se em fúria.
Estendeu o braço e deu um tapa tão violento no rosto do homem que o cachimbo caiu no chão,
espatifando-se.
— Ora, seu grande vadio inútil! Uma pobre mulher acaba de dar à luz, outra tenta ajudá-la,
um nenezinho recém-nascido pode morrer, e você fica sentado aí, com o cachimbo na boca, não
querendo fazer nada?! Não tolero isso! Não vou tolerar, mesmo! Levante-se, animal estúpido, e vá
buscar água!
Aaron a fitava, estupefato, de queixo caído. Ela ficou ainda mais furiosa ao vê-lo parado.
Deu um passo à frente e aplicou outra bofetada no rosto pasmo.
— Não entendeu o que eu disse, Aaron Pardy?!
— Oh, ai! — exclamou ele, esfregando a face. — Não precisa ficar tão nervosa e tentar
arrancar minha cabeça! Eu vou buscar água... Espere aqui. — Levantou-se e foi até a porta, onde
parou, olhando para trás. — Você é uma mulher bonita — bradou, com seriedade —, mas fica
muito bruta quando zangada!
O quintal estava deserto. Os outros Pardy não haviam saído do outro barracão, a não ser
Cherry e Lucy. Os porcos fuçavam a lama furiosamente, parecendo satisfeitos. Galinhas
encharcadas empoleiravam-se na lenha cortada e tinham um ar triste, ressentido.
Assobiando, Aaron chegou ao poço e desceu o balde, recolhendo-o cheio. Apoiou- o na
beirada do poço, para desenganchá-lo, e aí sentiu a ponta de um punhal cutucá-lo atrás da orelha.
Uma voz sussurrou:
— Vire-se devagar, Pardy, e não faça barulho; caso contrário, corto a sua garganta como se
fosse a de um daqueles porcos...
Aaron largou o balde.
— Ora essa! — afirmou, admirado. — Não ouvi você se aproximar.
— Pois é, Aaron, e agradeça por eu não querer o seu escalpo, mas vou arrancá-lo se fez
algum mal à minha mulher. Onde está ela?
— Ninguém lhe fez mal... — Aaron voltou-se de frente para o conde e apontou o punhal. —
Arma esquisita para um cavalheiro!
— Não sou inglês e não sou cavalheiro, Aaron. É bom que se lembre disso — alertou-o
Ben Stanton, indicando-lhe que se distancias se do poço. — Mexa-se bem

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devagar e não tente nada.


— Você não iria chegar tão perto, se Jethro não levasse os cães embora — afirmou o
contrabandista, com ar insolente.
— Foi muita sorte dos cães. Eu cuidaria deles, também. Agora, vamos buscar minha esposa,
em silêncio.
— Por que imaginou que ela estava aqui? — perguntou Aaron, com ar zangado.
— Porque localizaram a cesta dela numa pedra perto das cabanas. Ela deve ter encontrado
alguém lá, que a convenceu ou forçou a vir até aqui. Foi você?
— Não — respondeu o homem, ainda carrancudo. De repente, seus olhos brilharam, e ele
disse: — Foi o moleque! Ele jurou que contaria tudo se Nathan o surrasse de novo. Vou esfolar
aquele fedelho!
— Não vai fazer isso. Vai, apenas, buscar Harriet — intimou Lorde Stanton.
— E quem vai me impedir de dar o alarme, quando estiver dentro da cabana? — quis saber
Aaron, rindo.
— Isso é entre nós dois — replicou o conde, com paciência. — Vim aqui por causa de
minha esposa. Observo vocês há tempo, sei quando desembarcaram o contrabando e vi quando o
trouxeram. Sei que o francês ficou escondido aqui... — Aaron olhava-o cada vez mais espantado. —
Nunca contei a ninguém, porque não tenho nada com isso. Agora, vocês manterem minha esposa
aqui... Com isso eu tenho que ver! Você me agrediu, Aaron. Vá buscá-la, já! Depois, acertaremos as
contas, de homem para homem. Nós dois.
— Sim... — declarou o homem, calmo e sorrindo. — Isso mesmo. — Passou ao lado do
conde, para retirar o balde do gancho. — Preciso disto, porque a sua dama poderá me agredir como
uma gata selvagem se não levar água.
Caminhou para o barracão e curvou-se para entrar pela porta baixa. Ben Stanton, cauteloso,
colocou-se atrás da borda do poço, para o caso de alguém tentar atirar nele. Precisou esperar um
pouco, porém não foi por culpa de Aaron.
— Como demorou! — bradou Harriet, irritada ao vê-lo entrar. — Ponha a água ali.
Que foi, não sabe pegar um balde de água?
— Sua língua é muito afiada, moça! — resmungou Aaron, deixando cair o balde e
derramando quase metade da água. — Começo a achar que vou ficar contente por me ver livre de
você. Lucy, venha pegar a água! E, sra. Stanton, venha comigo.
— Não posso — respondeu Harriet. — Estou ocupada.
— Nunca vi mulher tão teimosa! — exclamou o homem, com o rosto vermelho de raiva. —
Primeiro queria ir embora, depois começou a dar ordens como se fosse a dona, aqui! Agora, diabo,
recusa-se a ir quando quero devolvê-la ao marido! Estou começando a sentir pena desse homem, se
ficar com você!
— Ben?! — gritou Harriet. — Aaron, ele está aqui? Por favor, diga a verdade!
— É, o homem está lá fora e, se tivesse juízo, não viria buscá-la.
Saia em silêncio. Se sair correndo, aos gritos, vai atrair todo mundo para o quintal.
Mas Harriet já saíra na disparada. Atravessou o quintal e atirou-se nos braços do marido,
agarrou-se a ele, chorando de alegria.
— Ben, meu querido, eu sabia que você vinha! Queria tanto que viesse e, ao mesmo tempo,
tinha tanto medo que eles o matassem...
Ele abraçou o corpo esguio, trêmulo, que se apertava contra o seu, e compreendeu que,
apesar do que dissera ao velho advogado, jamais seria capaz de deixar a esposa. O senhor ganhou,
velho sabido!, pensou emocionado.
Aaron, que saíra atrás dela, ficara parado, observando-os. Lorde Stanton afastou a esposa,
com delicadeza.
— Ainda não terminei o que vim fazer, Harriet. Vá para casa, eu a alcanço daqui a pouco.
— Que vai fazer? — sussurrou ela, angustiada.
No entanto antes que ele respondesse, Jethro chegou, correndo, abanando o

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chapéu e berrando:
— Os milicianos vêm aí! Nathan encontrou-os do outro lado da aldeia. Eles vêm
vindo!
A reação foi surpreendente. Homens, mulheres e crianças surgiram do outro
barracão e correram em todas as direções, desaparecendo num instante. Até os porcos se refugiaram
num canto do chiqueiro. Só duas pessoas não sumiram: Lesage, que apareceu à porta com a pistola
na mão; e Aaron, que se virou para fugir, mas foi barrado por Ben Stanton, que saltou, agarrou-o
pelas pernas e o derrubou. Os dois homens rolaram na lama, lutando selvagemente, praguejando,
numa briga em que valia tudo.
Harriet olhava-os, horrorizada, com as mãos na boca, abafando os gritos que lhe arranhavam
a garganta a cada golpe violento. Afinal, os inimigos se imobilizaram junto do chiqueiro, Ben
Stanton sentado sobre o peito de Aaron, apertando-lhe a garganta com uma das mãos.
— Saia! — resmungou Pardy, meio sufocado e coberto de lama.
O conde, tão imundo quanto ele, levantou-se com esforço, erguendo o outro ao mesmo
tempo. Quando ambos estavam de pé, lorde Stanton dobrou o braço para trás, fechou o punho e
desferiu um soco devastador no queixo de Aaron, que desabou na lama.
Então, Ben Stanton foi para junto de Harriet, tentando inutilmente limpar-se e ter melhor
aparência. Não estava apenas sujo de lama: tinha um olho preto, inchado, e saía sangue de seu lábio
cortado.
— Você... você está horrível! — exclamou Harriet.
— Mas me sinto muito bem! — declarou ele, satisfeito.
— Nesse caso, pare onde está, lorde Stanton — bradou Lesage, cortês, e coxeando saiu da
porta, de onde assistira à luta. Mantinha a pistola apontada para o conde. — Espero que possamos
chegar a um acordo sem violência...
— Guarde a arma — afirmou o conde, cansado. — Eu sempre soube que o senhor estava
aqui. Não tenho nada com isso, porém quero dar-lhe um conselho e creio que deve segui-lo.
O espião francês ergueu as sobrancelhas e pediu que ele continuasse.
— Na minha opinião — prosseguiu Ben Stanton —, o senhor nada fez para ser preso. Se
tinha intenção de espionar, não conseguiu fazê-lo e teve de ficar esse tempo todo com os Pardy, o
que foi um castigo suficiente... Sugiro que fale com seus amigos contrabandistas, quando conseguir
encontrá-los, e os convença a levá-lo para o primeiro navio francês que passe por aqui. Volte para
seu país, monsieur. E que tenha mais sorte da próxima vez...
Lesage sorriu e guardou a arma.
— É lastimável conhecê-lo em circunstâncias tão desagradáveis, milorde. Mas é a guerra!
Também lastimo por milady ter ficado presa aqui. — Curvou-se cumprimentando Harriet. — Como
pode imaginar, milady, estou feliz por dispensar a hospitalidade dos Pardy. A comida —
acrescentou, com uma careta — está abaixo de qualquer crítica. E, meu caro lorde Stanton —
murmurou ao ouvido dele —, já viu as mulheres desses homens?
Apareceu uma carruagem, precedida de grande estrondo. O barulho era tão grande, que
parecia anunciar a desintegração iminente do veículo. Aaron ergueu-se com esforço, esfregando o
queixo, e olhou desconfiado para a porta da carruagem, que se abria.
— Aaron Pardy! — esganiçou-se sir Mortimer. — Venha cá, seu patife!
Aaron obedeceu e ajudou o magistrado a descer. O idoso senhor ficou ameaçando a todos
com a bengala, mal se equilibrando nas pernas trôpegas. As conversas que se seguiram foram
interrompidas pela má audição de sir Mortimer.
— Imagino que ele bebeu Raio Branco — murmurou o conde.

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— Que é isso? — indagou Harriet, baixinho.


— É aguardente de cana, que um amigo dele produz na Jamaica e manda para sir Mortimer
aos tonéis.
Aaron pegou o chapéu do magistrado de dentro da carruagem e colocou-o na cabeça do
velho senhor. Foi recompensado com uma bengalada nos ombros.
— Você é um cão, rapaz! O pior dos vira-latas!
— Sim, senhor. Se o senhor o diz...
— Claro que digo! Leve-me até aquela pedra, que eu quero me sentar. Sou um magistrado e
não admito que ninguém me diga como devo administrar a lei! Um sujeitinho, com farda de
miliciano, foi à minha casa e fez muito barulho. Logo vi que era um escocês. E não preciso de um
escocês para vir me dizer o que acontece na minha terra!
— Pobre James! — sussurrou Harriet.
Sir Mortimer, sentado na pedra, olhou em redor. A cena não era ridícula, como poderia
parecer. Era impressionante. Na paisagem desolada, aquela estranha reunião fazia pensar num
conselho tribal. Sir Mortimer parecia o ancião da tribo, com autoridade indiscutível. Até Aaron o
reconhecia, imóvel, de cabeça baixa e remexendo os pés. Todos esperavam.
O velho magistrado ergueu a bengala e apontou para Lesage.
— Quem é ele? — perguntou.
— Esse homem trouxe o conhaque — respondeu lorde Stanton, bem alto. — E vai voltar
por onde veio.
— Muito certo — aprovou sir Mortimer, que não pretendia interferir na distribuição da
preciosa bebida. — Diga-lhe que vá embora antes da chegada da horda de milicianos escoceses.
— Estou a caminho! — afirmou o francês, apressado. — Meus cumprimentos a todos... —
e começou a afastar-se.
— Ah, lorde Stanton! — bradou sir Mortimer, mudando de tom. — Harriet, querida...
— Tirou o chapéu. — Prazer em vê-la! Voltou-se de novo para o conde. — Pena que estejamos
aqui e não em minha casa. Hoje de manhã meu mordomo desencantou um Porto muito bom, um
vinho maravilhoso, mas que não pode viajar. Sabe, a carruagem sacode muito... Ah, voltemos ao
que interessa, Pardy!
— Estou ouvindo — disse Aaron, desconfiado.
— Você é bom marinheiro, não?
— Sim, senhor — concordou o homem, mais cauteloso ainda.
— Preciso de homens para a Marinha — informou sir Mortimer, com ar astuto. — Ouvi
dizer que há um grupo de recrutadores nas redondezas... — Bateu o indicador no nariz.
— Não ouvi nada a respeito — sussurrou Pardy.
— Não? — O magistrado pareceu confuso. — Então, eles virão na próxima semana. O
capitão Lomas mandou-me uma caixa de rum e um bilhete... para eu não me intrometer se parentes
dos rapazes recrutados começarem a reclamar. Aaron, você já fez muita coisa errada por aqui. Está
na hora de servir ao príncipe regente, ao seu país! Vamos, apresente-se como voluntário!
— Não quero viver no mar, comendo carne de porco salgada! — protestou o rapaz, com
medo nos olhos negros.
— Não tem escolha, meu jovem — disse o magistrado, seco. — É a Marinha, e vou cuidar
para que você seja mandado para Botany Bay... Creio que não iria gostar disso: dizem que as coisas
na Austrália são mais duras do que nos Estados Unidos. — Cutucou vigorosamente a barriga de
Aaron com a ponta da bengala. — Suma antes que a milícia chegue e o leve para a forca. E não se
esqueça: apresente-se como voluntário ou eu interfiro, hein?!

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— É... Parece que sou obrigado a ir conhecer o mundo — resmungou Aaron, encolhendo os
ombros e distanciando-se a passos rápidos.
— Parece que está tudo resolvido — murmurou o magistrado, com bom humor, esforçando-
se para se erguer, sem conseguir.
Ben Stanton e Harriet foram ajudá-lo.
— Aquele Aaron Pardy é um bandido! — exclamou sir Mortimer, enquanto se
encaminhavam para a carruagem. — Contudo, será bom marinheiro. É melhor que seja enforcado
pela Marinha, se for necessário. Assim, ninguém aqui será obrigado a fazê-lo.
Se Aaron ficasse por algum tempo na Marinha, pensou o conde, provavelmente acabaria
pendurado pelo pescoço numa das cordas dos mastros... se não desertasse no primeiro porto de seu
agrado. Os três subiram na carruagem e chegaram, aos solavancos à árvore onde estava amarrado o
cavalo do conde. Sir Mortimer despediu-se deles:
— Foi um prazer revê-lo, lorde Stanton. E também a você, Harriet querida, embora no meu
tempo uma mulher em resguardo de parto ficasse na cama. Mas, pelo jeito, você se recuperou
depressa, uma vez que anda por aí, no campo, debaixo de chuva. Essas ideias modernas me parecem
muito estúpidas, porém vocês é quem sabem! Meu caro conde, por favor, pegue sua linda e jovem
esposa, leve-a para casa e coloque-a na cama!

Capítulo 10

Era de tardezinha e o crepúsculo hibernal começava a apagar rapidamente a paisagem. Ben


Stanton colocou a esposa na sela, abrigou-a com a capa, segurou a rédea e conduziu o cavalo para a
estrada.
— Se não se importa — disse ela, hesitante —, gostaria de passar na casa do dr. Gray e
pedir-lhe que venha ver Cherry Pardy... Ela acaba de dar à luz e teve assistência muito deficiente.
Eu pago o médico.
O dr. Gray, caridoso, concordou em ir ver a pobre moça, imediatamente. Ben Stanton e
Harriet prosseguiram, em direção de casa.
Já era noite fechada e uma coruja voou por cima de suas cabeças, iniciando a caçada
noturna. Eles se deslocavam observados pelos olhos atentos de animaizinhos empenhados na luta
pela sobrevivência, o mato farfalhava quando eles passavam, velozmente. Unhas afiadas
arrancavam a terra gelada; um guincho doloroso anunciou que um animalzinho fora apanhado
pelas garras da coruja, em sua rápida investida.
Os Pardy também estavam em algum lugar, fugindo como os animais da floresta. Mas
Harriet não tinha medo, porque se achava junto do marido. Começou a desejar que nunca
chegassem a Monkscombe, que continuassem caminhando para sempre na escuridão. Às vezes, o
cavalo ficava inquieto com alguma sombra mais densa; então, o conde falava com ele, acalmando-o.
No entanto, lorde Stanton não trocava palavra com Harriet, parecendo não ter o que conversar com
ela, e isso a preocupava.
A uns duzentos metros de casa encontraram um cavaleiro, o fiel Joe Henderson que,
preocupado, saíra à procura deles. O conde mandou-o voltar ligeiro para dizer a Caroline que
estavam bem e logo chegariam.
A casa estava toda iluminada, e todos os esperavam, fora, para dar-lhes as boas- vindas.
Caroline ria e chorava, abraçando a irmã, o cunhado e de novo a irmã, dizendo que ela, James e os
criados quase tinham morrido de preocupação. A sra. Woods chorava, e a cozinheira, que era
irlandesa e bebera um bocado de vinho para resistir à aflição, começou uma ladainha louvando
todos os santos do calendário.

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Contudo; logo as necessidades práticas sobrepujaram as emoções, e os criados se


movimentaram, as moças subindo e descendo escadas, providenciando água quente para banho. Os
senhores de Monkscombe precisavam com urgência de se livrar da sujeira acumulada durante o
encontro com os Pardy.
Depois de tomar banho, com os cabelos ainda molhados, Harriet disse à sua criada de quarto
que jogasse no lixo as roupas que usava, porque receava ter trazido pulgas. Vestiu-se, penteou-se e
desceu para comer.
Haviam preparado uma mesa no gabinete, com uma refeição leve, diante da lareira. Lorde
Stanton esperava a esposa, sentado numa poltrona diante das chamas. Olhava-as, pensativo, com as
pernas esticadas, e ela lembrou-se de tê-lo visto naquela posição parecia que fazia tanto tempo!
Tanta coisa havia acontecido... Ela já não era a Harriet daqueles dias e jamais voltaria a ser. Não
sabia se Ben Stanton também tinha mudado ou se nunca o conhecera direito.
— Está tudo bem, agora? — perguntou ele, fitando-a.
— Sim... Só meus cabelos ainda estão úmidos. Espero que não se importe por eu não estar
bem penteada.
Sentaram-se à mesa, frente a frente, à luz das velas e das chamas na lareira. Mal comeram,
parecendo que não estavam com fome. Afinal, ela não suportou o silêncio.
— Creio que está zangado comigo, porque me coloquei em situação de ser capturada... Fui
até lá porque não acreditei em Billy. Não sabia quando você voltaria, e o capitão Murray também
tinha viajado...
— Não faz mal, Harriet. Já passou. Não adianta discutirmos os porquês. Quando uma coisa
foi feita e não pode ser mudada, é melhor não falar nela. Se quiser, no máximo pode tirar uma lição
disso.
— Acredita que o capitão vai conseguir pegar algum Pardy? — indagou ela.
— Duvido... — respondeu ele, amassando miolo de pão. — Não vai encontrar os homens, e
só com muita sorte localizará as mulheres e as crianças. Daqui a uns dias todos voltarão para casa,
quando a milícia desistir de procurá-los. Todos menos Aaron, claro. E acho que sir Mortimer não
fez grande favor à Marinha.
— Desde que ele nunca mais volte! — sussurrou ela, e o marido a observou.
— Sabe, Harriet? — declarou o conde, depois de hesitar um pouco. — Você não deve se
censurar muito pelo que aconteceu. Conhece Aaron desde sempre, e dizem que o costume gera o
descuido: esqueceu-se de ter medo dele.
— Sempre tive medo dele, sabia que era um homem ruim. Só esqueci o medo quando vi
que ele não dava a menor importância para o sofrimento de Cherry...
— Não. Você esqueceu o medo antes disso — bradou lorde Stanton, balançando a cabeça.
— Acostumou-se com o medo, e ele deixou de provocar em você o cuidado instintivo. Seu medo de
Aaron tornou-se tão normal, que já não punha alerta. Esqueça isso, Harriet. O passado já passou.
Ela queria dizer que jamais esqueceria sequer um detalhe daquilo tudo, porém ficou em
silêncio.
— Eu é que fui um tolo — continuou ele, pensativo, surpreendendo-a. — Não devia ter
deixado você sozinha, sem primeiro acertar as contas com Aaron. Foi o meu grande erro. Sabe? Não
consigo me expressar direito, porque nunca foi necessário... quero dizer, nunca precisei narrar
minhas intenções a ninguém. Fazia o que queria, porque isso não interessava a ninguém, a não será
mim mesmo.
Calou-se por instantes e fitou as chamas, com ar ausente, então prosseguiu:
— Nunca me passou pela cabeça que você tinha direito de saber o que eu planejava. Devia
ter me explicado desde o começo e não chegar daquele jeito, sem avisar... Devia ter lhe contado o
que descobrira sobre os Pardy... o contrabando e o francês. Devia ter contado também porque ia a
Bristol... queria me informar sobre a Marinha Mercante, por causa de meus negócios. Não estava
preparando um relatório

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naval para Bonaparte...


A voz dele assumiu um leve tom de zombaria, e Harriet enrubesceu, rezando para que ele
não percebesse. Mas, em seguida, o conde mudou a tonalidade:
— E sinto muito por você ter me visto com aquela moça... Fui com ela só uma vez.
— Não precisa me falar sobre isso — murmurou Harriet.
— Preciso, sim, porque me arrependo de tê-lo feito. Já me arrependera antes de vê-la e
descobrir que você sabia. Foi... foi uma coisa à toa. Não sei como dizer isso, Harriet. Julgo que os
homens são assim mesmo.
— É, acho que sim... — balbuciou ela.
Queria dizer: "E eu? Não desperto reações em você, nem mesmo seu instinto? Será que eu,
Harriet Stanton, sou tão fria quanto uma estátua de mármore, a ponto de você jamais sentir atração
alguma por mim?"
Ia abrir a boca para fazer essas perguntas, porém houve uma interrupção. Exausto, sujo de
lama e mal-humorado, o capitão Murray entrou no gabinete.
— Vim ver se a senhora está bem, milady... e o senhor, milorde! — Forçou a vista, tentando
enxergar melhor na penumbra. — Oh! Parece que teve uma boa briga! — exclamou, admirado. —
Eu gostaria de ter assistido a ela.
— De fato, foi uma boa briga — admitiu o conde, satisfeito —,e Harriet chegou à conclusão
de que jamais entenderá os homens!
— Duas mulheres e cinco crianças, foi tudo o que encontrei — informou o capitão,
desanimado. — Que beleza, depois de tanto trabalho! Soltei-os... As mulheres pareciam nada saber,
ou fingem muito bem. Não sei e não me interessa! — Deixou-se cair numa poltrona e aceitou o
vinho que Lorde Stanton lhe oferecia.
— Quer passar a noite aqui, James? — perguntou o conde.
— Obrigado... — O capitão Murray fez que não com a cabeça. — Não posso. Os milicianos
estão aqui, comigo. Caroline mandou que lhes dessem vinho e sanduíches. Se não os levar logo de
volta ao quartel, eles vão desaparecer por aí, como os Pardy. Querem saber de uma coisa? —
indagou, sério. — Acho que não sirvo para esse trabalho...
Tomou o vinho, depois agradeceu e foi embora.
— Pobre rapaz! — condoeu-se Harriet. — Que vai ser dele e de Caroline?
— É um homem muito consciencioso — declarou lorde Stanton. — Mas estou cansado
demais para pensar nos problemas de James agora, e creio que você também.
— Levantou-se. — Vamos, moça... vá para a cama. Amanhã é outro dia.
Embora cansado, Ben Stanton não conseguia dormir. Ficou revirando-se na cama, pensando
no que conversara com Harriet. Era fácil dizer que se deviam tomar os erros como lição, porém
como fazer isso com seus próprios erros? A que atribuí-los e, pior ainda, que fazer a respeito?
Pouca coisa, pensou. Como dissera a ela, não se pode alterar o passado, mas pode-se
aprender com o que aconteceu. Não havia vergonha nisso. Vergonha seria não aprender.
Continuou inquieto e pôs-se a meditar em James e Caroline. Harriet indagara o que poderia
fazer para ajudar o casalzinho. Tratou de examinar o problema e achou a solução. Era simples,
óbvia, e ele se entusiasmou tanto que se sentou na cama. Então, considerou que não adiantava
pensar nos detalhes, pois precisava expor a ideia a Harriet, porque sua solução exigia uma decisão
dela. E não sabia se a esposa estava disposta a tomar tal decisão. Não podia pedir-lhe que a tomasse,
porém poderia sugerir. Não... seria perda de tempo. Continuou a debater-se com os pensamentos e
descobriu que não tinha a menor possibilidade de dormir. Levantou-se. O quarto estava gelado,
porquanto o fogo na lareira se apagara. Levou algum tempo para acender uma vela, por causa de
uma corrente de ar. A casa tinha uma porção de correntes de ar que, nas noites de vento, punham
assobios e uivos nos desvãos do teto. Não podia ficar de camisolão com aquele

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frio. Vestiu calças, enfiando o camisolão para dentro e pôs as meias. Tentou reavivar as brasas que
ainda restavam na lareira, mas não conseguiu.
Com frio, calculou que talvez a lareira do gabinete podia ainda estar acesa, e desceu. Antes
de ir para o gabinete, passou por outras salas, observando tudo à luz trêmula da vela. As partituras
de Caroline no piano, o bordado da jovem sobre uma poltrona. Lembrou-se de Harriet sentada ali,
costurando uma renda no vestido da irmã. Por que Caroline não podia costurar suas rendas? Fora no
dia em que viera ali, com a proposta de casamento.
Não. Não fora a sua proposta de casamento. Fora a proposta do sr. Ferrar! Que estupidez...
que situação mais ridícula! Por que Harriet não recusara, não rira dele?
— É... Por quê? — interrogou ele, sem perceber que falava em voz alta, revirando o
bordado entre os dedos. — Por que ela não recusou?
Não recusara, refletiu, porque não confiava em si. Porque se sentia responsável pela irmã,
porque queria cuidar da casa e porque resolvera aceitar o conselho do velho amigo. Não tivera
coragem de dizer não. Mais tarde, claro, tentara desfazer o compromisso, mas de um modo tão
educado, que o irritara. Ele quisera obrigá-la, de qualquer jeito, a falar claramente, a dizer o que
sentia... No entanto, a única vez que Harriet se manifestara com segurança, com firmeza, fora
quando ele lhe perguntara sobre Monkscombe. Assim como tivera medo de Aaron só até o
momento em que decidiu ajudar Cherry. Sempre pensava nos outros, nunca em si mesma.
Exagerava no auto sacrifício, no cumprimento do que julgava ser sua responsabilidade.
Sentou-se numa poltrona, enquanto pensava. Puxou a agulha, distraído, e enfiou-a de novo
no tecido esticado pelo bastidor. Foi repetindo os movimentos sem perceber e quando notou dera
pontos enormes, a linha tinha se emaranhado misteriosamente, formando um nó. Deixou o bordado
cair, meditando na justificação que teria de dar no dia seguinte.
Pegou a vela, já bem reduzida, e tornou a subir. Tinha de passar diante do quarto de Harriet,
a caminho do seu. Parou, imaginando se ela estaria dormindo, teve vontade de entrar, lhe contar
suas ideias a respeito de James e Caroline, teve vontade de...
Franziu as sobrancelhas, sacudiu os ombros e continuou, em direção de seu quarto. Ao
chegar no extremo do corredor, parou mais uma vez e olhou para trás. A única vez que tinham
estado no mesmo quarto havia sido na casa de lady Williams, aquelas duas noites terríveis com ele
mal acomodado numa poltrona. Pensou vagamente que talvez houvesse algum problema mental na
família, algo hereditário, que começava a se manifestar nele. Via Harriet de camisola, com os lindos
cabelos castanhos, compridos, caindo pelos ombros. Era uma visão encantadora, atraente. Ergueu a
mão, seus dedos roçaram a maçaneta da porta e logo se retraíram.
Harriet...
Harriet sonhava. Era um sonho assustador. Corria pela charneca entre os Pardy em fuga.
Aaron segurava-lhe fortemente a mão e a arrastava consigo. Atrás deles, ouvia os cascos dos
cavalos da milícia de James Murray e em outro ponto, bem distante, estava Ben, que ela queria
alcançar e não podia. Acordou, ofegante e suada, o coração disparado. Por instantes, no escuro,
imaginou ainda estar entre os Pardy, porém sua mão tocou a renda na beirada da fronha de linho e
compreendeu que se encontrava em casa, em Monkscombe. Em sua casa, na sua cama... solitária.
Sentou-se e suspirou. O coração acalmara-se, mas em seu peito havia uma dor, muito vaga,
que não desaparecia. Continuaria assim para sempre, se não arranjasse um jeito de dizer a ele que o
amava. Situações desesperadas exigiam medidas desesperadas. Pelo visto, ele nunca iria procurá-la
em sua cama: então, ela iria até a cama dele. Na pior das hipóteses, o conde a mandaria embora, e
não iria se sentir pior, com isso, do que naquele momento.
Deslizou para fora da cama e, às apalpadelas, procurou o penhoar. Não o

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localizou. Devia ter caído no chão. O corredor era frio, teria de atravessá-lo de camisola, apenas.
Aproximou-se da porta, abriu-a e saiu.
Não esperava ver ninguém parado no corredor, e soltou um grito, assustada. A luminosidade
bruxuleante da vela cegou-a por um momento, e não conseguiu ver quem era. Durante alguns
segundos ficou agoniada, imaginando que Aaron tivesse vindo buscá- la.
— Sou eu, Harriet... — apressou-se a dizer lorde Stanton, ao perceber que ela não o
distinguia. — Não se assuste...
Afinal, ela conseguiu vê-lo, percebeu a expressão preocupada. Seu marido estava no
corredor, calçado apenas com meias, sem motivos aparentes.
— Que faz aqui? — mal conseguiu interrogar.
— Para dizer a verdade... — começou ele e parou; depois de hesitar, murmurou de uma vez:
— Para dizer a verdade, queria entrar no seu quarto.
Harriet arregalou os olhos. Não sabia se ouvira direito, ou se aquilo era outro sonho.
— Verdade? — perguntou, baixinho.
— É. Verdade. — O tom dele era duro, como o de quem está decidido a não demonstrar
seus sentimentos íntimos. Acrescentou, apenas: — Tive uma ideia, pensando em James e Caro,
então julguei que devia... E você, que fazia aqui?
— Eu? — Ela respirou fundo. — Eu... Oh, fazia a mesma coisa: ia procurar você!
— Diacho, Harriet! Eu... — De repente, ele largou a vela, que caiu no chão, e abraçou-a.
Ela escondeu o rosto no peito largo do marido, enquanto murmurava:
— Eu te amo, mas não sei dizer isso de modo diferente...
— Não existem modos diferentes — sussurrou ele, mergulhando o rosto nos cabelos
perfumados dela. — Perdoe-me, minha querida! Sou um idiota, um tolo teimoso! Se tivesse de
escolher entre duas alternativas, tenho certeza que escolheria a errada. Harriet, não sabe como senti
sua falta em Bristol! Queria você perto de mim, porém quando chegou mandei-a embora e senti
uma raiva louca de mim mesmo, desejando que você voltasse... Acho que fiz uma grande
confusão... — E, ouvindo-a fungar junto de seu peito, pediu: — Não chore...
— Não estou chorando, estou feliz! — protestou ela, com voz abafada.
— Venha... — murmurou ele.
Passou um braço pelos ombros da moça, pegou a vela e conduziu Harriet de volta para o
quarto dela. Quando fechou a porta, a chama do toquinho de vela aumentou, tremeu e apagou. Ele
largou o castiçal e segurou o rosto da esposa com ambas as mãos, inclinou-se e beijou-a. Ela ergueu
os braços e passou-os pelo pescoço de Ben.
— Não gosto mais desta casa, sabe? — bradou ela. — Só quero Monkscombe com você
aqui. Quero um lar como o de Susan, com crianças, confusão, desordem e muita felicidade!
— Sim — respondeu ele, com voz rouca. — Eu também quero isso. — Sentiu um corpo
macio por baixo da camisola de algodão, leve, e percebeu que ele estremecia sob suas mãos. —
Você vai apanhar uma friagem...
E, a contragosto, soltou os braços dela de seu pescoço e a levou para a cama. Harriet enfiou-
se depressa debaixo das cobertas, ouvindo, no escuro, os movimentos do marido que se livrava das
roupas. As cobertas ergueram-se, o colchão de plumas afundou e ele estirou-se a seu lado. Colocou
um braço em redor do corpo dela, que se aninhou pertinho dele, passando a mão no peito nu do
marido.
— Queria tanto que você me amasse! — balbuciou ela.
— Eu amo você... já amava você! Harriet, eu te amo desde a primeira vez que a vi. Contudo,
lutei contra isso. Como fui tolo! Se existisse um prêmio para imbecilidade, eu teria ganho! "Olhe
aqui, Ben Stanton", disse a mim mesmo, "você não precisa dela!"...

7
Coleção Sissi 11 — O Primo que Veio de Longe — Ann Hulme

Mas que nada! Como preciso de você! Não poderia ir embora e deixá-la. Sim, sei que disse que ia
embora, porém creio que nunca o faria. O que mais me irritava era ver que você me considerava um
selvagem. Doeu, sabe... mas acho que tinha certa razão...
— Não! Não tinha. Era apenas intolerante, teimosa e boba!
— E linda! — Ele procurou e encontrou os lábios dela. — E eu queria — continuou, depois
de uns momentos — que você confiasse em mim e em você mesma.
— Agora, confio — disse ela, simplesmente.
Acariciou o rosto dele com as pontas dos dedos. Não se sentia tímida ou desajeitada, como
esperara. Parecia correto e natural estar ali com ele. Por que era seu marido, porque o amava e sabia
que ele também a amava. De certa forma, era como se ambos fossem crianças e estivessem num
mundo só deles. Um novo Adão e uma nova Eva no Jardim do Paraíso, fazendo a mesma antiga
descoberta. As mãos deles tocavam o corpo do outro com certo assombro, até que os gestos dele
foram se tornando mais arrebatados do que os dela, que, ao percebê-lo, murmurou:
— Me ame!
— Oh, Harriet!... Eu jamais quis alguém como quero você! —suspirou ele.
Num ponto qualquer da velha casa, o madeirame antigo reagiu à mudança da temperatura
noturna, e estalou. Talvez a construção estivesse sentindo seus anos, talvez estivesse feliz por que
um Stanton voltara e sentisse que provavelmente pequenos Stanton povoariam a casa com gritos e
risos, a se esconder no sótão, a deslizar pelos corrimãos e a escorregar no soalho recém encerado.
Talvez percebesse que ganhara uma batalha e perdera outra. Não mais dominava Harriet, porém
ganhara Ben, que assumia sua posição de direito. Algum tempo depois, nos braços de Ben e
finalmente sua esposa, perguntou:
— Que queria me dizer sobre Caro e James?
— Ah, sim...! — Ele se ajeitou nos travesseiros, e ela apoiou a cabeça em seu ombro. — Foi
uma ideia que eu tive, porém não interessa mais. Vou ficar aqui, agora, em Monkscombe.
Ela percebeu na voz dele algo que era uma aceitação, sem nenhum pesar, e compreendeu
que deveria falar já ou nunca mais falaria.
— Eu preferia que não ficássemos aqui — confessou. — Queria que você me levasse para
Filadélfia. Gostaria de conhecer aquela terra selvagem que me descreveu, onde só há búfalos e
índios. Poderíamos construir uma Monkscombe só nossa, lá...
Ele abraçou-a com força e sua voz soou emocionada:
— Realmente, você quer isso?
— Sim. Quero muito.
— Porque eu pensei... — ele hesitou antes de acrescentar: — pensei que, se conseguisse
convencê-la a ir para os Estados Unidos comigo, poderíamos deixar James e Caroline
administrando Monkscombe. Sei que ele é capaz, e que todos o aceitarão quando casar com uma
Stanton. E Caroline ficaria aqui, onde é feliz...
— Seria perfeito! Sabia que o senhor meu marido é muito inteligente?
— Sou prático... Não sou um cavalheiro, mas entendo de outras coisas... Vamos falar só de
você e de mim, agora?
— Só de nós dois — prometeu ela. — Agora e sempre!

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