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ESPOSA COMPRADA

A scandalous bargain

Ann Hulme

O vento murmurava lá fora, derrubando as primeiras folhas secas do outono, e a lua apareceu
entre as nuvens pondo reflexos de prata nas vidraças. Emily Weston teve a perturbadora impressão de
que naquela casa não existia mais ninguém a não ser ela e o capitão Adam Harcourt. O homem que a
comprara por uma dívida de jogo! Um estranho que lhe despertava as mais contraditórias emoções.
Será que um dia conseguiria amá-lo?

Digitalização e correção: Nina


Revisão e Formatação:
Amanda
Sissi 17 – Uma esposa comprada – Ann Hulme

Título: Uma esposa comprada

Autor: Ann Hulme

Título original: A scandalous bargain

Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991

Publicação original: 1988

Gênero: Romance histórico

PROJETO 2
Sissi 17 – Uma esposa comprada – Ann Hulme

CAPÍTULO I

O vento penetrou com um assovio lúgubre por uma fresta ao lado da janela, fazendo dançar as
chamas das grandes velas de sebo, que gotejavam e soltavam fumaça. Um oficial, apoiado na parede,
próximo da fresta, se afastou um pouco do ar frio e continuou a observar os jogadores. Foi então que
um destes soltou um palavrão e jogou as cartas na mesa. Era moço ainda e atraente, apesar de suas
faces encovadas, olhos avermelhados, farda amarrotada e camisa suja. Os outros se encontravam nas
mesmas condições. Tinham sobrevivido às lutas na Península Ibérica e se encontravam acampados
numa aldeia perdida dos Pireneus, no inverno de 1813, esperando pelo avanço conjunto das forças
britânicas no território francês. Nessa aldeia de montanha cuidavam dos feridos, dos enfermos; havia
escassez de cavalos e de mantimentos: era difícil imaginar que na primavera estariam em Paris. As
comunicações eram péssimas: os estafetas do general Wellington percorriam as trilhas tortuosas de uma
serra praticamente desconhecida.
A tropa estava feliz com o descanso. Os oficiais se embebedavam com vinho local, namoravam
as mocinhas, brigavam e jogavam, perdendo o soldo antes mesmo de recebê-lo. Todos ao redor da
mesa achavam-se endividados: com o alfaiate, o sapateiro e o seleiro, na Inglaterra, com o barbeiro e
seus próprios criados, mas sobretudo com os colegas de farda. A maioria não se preocupava com isso,
porque tinha renda ou a família era rica. Quando chegassem à França, e entrassem vitoriosos em Paris,
todas as dívidas seriam pagas.
O rapaz que jogara suas cartas na mesa estava numa situação diferente. Apoiou-se no encosto da
cadeira, contrariado; os músculos ao redor dos lábios se contraíram ao apanhar a garrafa.
O homem perto da janela se aproximou da mesa, sem propósito aparente, e parou ao lado de
outro jogador. Curvou-se por cima do ombro deste, como para examinar as cartas.
— Kit está perdendo a rodo — murmurou. — Pela terceira noite seguida. E está bêbado.
O jogador não levantou a cabeça, e continuou concentrado no jogo.
— O que quer que eu faça? Que largue uma mão boa, quando estou ganhando? — perguntou
também num murmúrio.
— Você poderia levá-lo daqui. Estão no mesmo alojamento e já passa da uma. Diga que está
cansado e sugira que o acompanhe.
— E se ele não quiser?
— Não recusará, porque sempre ouve você. Pro inferno, Adam! Logo alguém recusará o vale
dele e acontecerá o diabo. Pelo menos, evite que aconteça hoje.
— Não sou responsável por ele, diacho! — Adam apertou os lábios.
— Ele é um oficial deste regimento! Se houver escândalo, estaremos todos envolvidos! Ele
respeita você, que não tem apenas obrigação com ele, mas com todos nós. Faça alguma coisa.

O capitão Adam Harcourt grunhiu algo ininteligível e se levantou. Os outros ficaram surpresos
com o movimento brusco. Era muito alto, quase encostava nas vigas do teto, das quais pendiam carnes
salgadas e garrafas. O rosto queimado pelo sol e pelo vento fazia-o parecer mais espanhol do que
inglês. Olhou para todos.

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— Cavalheiros, é tarde. Vou me deitar. Preciso levantar muito cedo amanhã. Deus queira que os
percevejos me deixem descansar.
— Kit, você me acompanha?
Em silêncio, os homens olharam para o rapaz. Este pareceu aliviado: — Sim, claro.
Bob, posso lhe dar meu vale?
O jogador ao seu lado hesitou por um segundo e todos retiveram o fôlego. Recusar o vale
significava duvidar da honra de um homem. Mais de uma vez a recusa de um vale levara a um duelo.
Entretanto, Bob assentiu e todos relaxaram. O capitão Adam apanhou sua pesada capa e desceu pela
estreita escada em caracol. Ao sair, viu que o céu estava coberto por nuvens baixas e pesadas. Nos
postos avançados havia fogueiras, acesas pelas sentinelas para se aquecer. A porta da estalagem rangeu
e Kit saiu, procurando por ele na escuridão. Juntos se dirigiram até a extremidade oposta da aldeia,
onde partilhavam um quartinho miserável, com piso de terra batida.
Quando entraram, Adam acendeu a única vela que tinham. Kit se sentou na borda de sua cama,
segurando a cabeça entre as mãos, enquanto Adam tirava o cinturão, com o sabre, e as botas.
— Estou acabado! — murmurou Kit.
— Você é um tolo — respondeu o capitão, segurando uma bota. — E não diga que não avisei,
Christopher Godfrey!
— Sei. Sou o único culpado. Bob Morton estava a ponto de não querer meu vale, eu percebi. E
não saberia o que fazer se ele recusasse. Está zangado comigo, não? Sempre está, quando diz meu
nome inteiro.
— Estou cansado de lhe dar conselhos — respondeu o oficial Harcourt e jogou a bota num canto,
pondo em fuga um certo número de ratos. — Não sou seu guardião, mas ouça:
— Fique longe do jogo, pelo menos até o fim desta campanha.
— Se é que vai ter fim! — resmungou Kit, descrente.
O capitão Adam suspirou e disse, em tom menos brusco: — Calculo que em março, ao mais
tardar, estaremos em Paris, passeando no bosque de Boulogne. Os russos já chegaram ao Reno há uma
semana. Bonaparte está acabado, você e eu estaremos de volta à Inglaterra no verão, festejados como
heróis!
— Isto vale para você — respondeu Kit, desanimado. — Nem sei como poderei voltar para casa
e contar quanto estou devendo, depois pedir a minha família que pague.
— E sua família não pode? — era uma pergunta tranquila, mas ele observava atentamente o
rapaz.
— Poder, pode, mas não é justo. Minha mãe é viúva. Teria que usar o dote de minha irmã e
comprometer o futuro dela. Está noiva de um sujeitinho miserável e avarento, que poderia desmanchar
o compromisso ao saber que o dote se foi para pagar minhas dívidas.
— Você deve tanto assim? — O capitão o observava preocupado.
— É. Noutro dia comecei a fazer contas e fiquei tão assustado, que parei quando cheguei
a oito mil libras. Talvez pudesse arranjar dinheiro com um agiota.
— Seria a maior de todas as tolices. Os agiotas cobram juros.
— Às vezes realmente gostaria de ter a coragem de encostar a pistola na cabeça e terminar
com tudo. — Caiu para trás, sobre a cama, e cobriu os olhos com o braço.
— Chega! — zangou-se Adam. — Se pensasse que você fala sério eu o desarmaria
pessoalmente.
— Não se preocupe, falta-me a coragem. — Observou o companheiro que se despia para se
enfiar embaixo dos cobertores. — Adam, o que vai fazer quando voltar à Inglaterra? Vai dar baixa?
— Acho que sim — à luz bruxuleante da vela, a figura nua do capitão, parado no centro

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do quarto, parecia de um antigo gladiador; segurava a camisa, rasgada no ombro. — Não tenho mais
uma camisa inteira! Vou ter que comprar algumas na primeira cidade que atravessarmos, na Espanha
ou na França.
— O que vai fazer depois de dar baixa? Você está bem de vida, não? Tem terras em algum lugar?
— Em Essex. E acho que vou virar camponês.
— Não consigo vê-lo assim — o rosto juvenil de Kit deixou demostrar desânimo por alguns
instantes. — Adam Harcourt passeando em seus campos de nabos, já imaginou?
— E daí? Mas minha ideia é criar cavalos de corrida. Estou com muita vontade de criar um
ganhador do Derby. Sou alto e pesado demais para montar um cavalo assim, é claro, mas seria
interessante um bom plantio. Só que, antes de qualquer outra coisa, terei que me casar.
— Não sabia. Quem é a felizarda? — Kit perguntou, surpreso.
— Eu não. Quero dizer, ela não existe. Não conheço moça nenhuma na Inglaterra. Não estive em
casa nestes últimos cinco anos; tenho a obrigação de gerar um descendente e para isto preciso de uma
esposa. Pode ser uma moça qualquer, entre os dezoito e vinte e oito anos, que seja sensata e tenha boa
saúde.
Deu uma risada amarga e continuou: — É como criar cavalos de corrida. Precisa procurar uma
boa égua, de fôlego, sem defeitos, de boa linhagem. Gostaria que não fosse feiosa como um poste e,
sobretudo, que não cantasse. Odeio ouvir mulheres uivando nos saraus. Não é que não goste de música.
Eu gosto, sim, por isso detesto quando a assassinam. — Levantou o cobertor e, com uma careta, deitou-
se sobre o colchão de palha.
— Deus, como gostaria de uma cama decente, com lençóis limpos.
— Apague logo essa vela, sim, Kit?
Kit tirou as roupas, amassou o pavio com dois dedos e, com uma exclamação de protesto, enfiou-
se na cama gelada. Voltou a falar no escuro.
— Sabe, invejo você. Tem alguma coisa a fazer.
Logo ouviu um resmungo: — Alguma coisa a fazer? Será um horror, passear pelos salões, à
procura de uma esposa conveniente. Prefiro enfrentar a artilharia francesa. Pode acreditar, se você
pudesse me poupar isto e me apresentar uma esposa sob medida, eu até pagaria todas as suas dívidas.
— Fala sério? — perguntou Kit, ansioso. — Faria isto?
— Faria, sim. — o capitão Adam virou a cabeça sobre o travesseiro. — Não diga que você
conhece uma moça assim em algum lugar?
— Conheço, sim! — Kit se sentou e começou a procurar o isqueiro, e conseguiu uma fagulha
para reacender a vela. Seu rosto jovem apareceu, animado por um novo entusiasmo.
— Conheço exatamente a moça que você procura, Adam, eu juro e não é feiosa! Pelo menos não era
quando a vi péla última vez.
— Quando foi isto? — perguntou o amigo, desconfiado.
— Deixe-me ver — Kit contou nos dedos. — Há quatro anos. Olhe que não era uma beleza,
mas agradava. E tem cinco mil libras. Sei que não é muito, mas é melhor que nada.
O capitão Harcourt virou para o lado e se apoiou no cotovelo.
— E quem é esta campeã de meios modestos e com todas as virtudes?
— A pupila de meu finado pai. Emily Weston.

— Emily! — exclamou o amigo. — Não posso passar o resto de minha vida casado com uma
mulher chamada Emily. É um nome que detesto.
— Ora, pode chamá-la por um outro nome, se quiser, aposto que ela se acostumaria. Ela é
saudável e tudo o mais. Só é um pouco tímida. Foi criada num ambiente tranquilo.

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Meus pais não eram de muitas festas. Acho que Emily e minha irmã Hester não tiveram uma vida
divertida. Se Hester tivesse tido oportunidade de conhecer mais gente, não estaria noiva daquele sujeito
de cara avermelhada. Emily nunca conheceu ninguém. Ela não costuma cantar, tocar piano ou harpa. É
uma moça muito prática: ou costura ou lê. Mas ler é ótimo, não faz barulho, e significa que você não é
obrigado a conversar. E é cheia de boa vontade, sabe sempre pronta a pregar um botão, coisas assim, e
não faria um escândalo se você chegasse em casa bêbado.
— E se eu pagar suas dívidas de jogo, você me apresentará esta moça extremamente tediosa, mas
excelente?
— Darei um jeito. Sei que mamãe deseja muito que Emily se case. Quero dizer, ela gosta muito
de Emily, que já deve ter seus vinte e seis anos, e uma moça deveria estar casada com essa idade, não
é? Honestamente, Adam, seria uma esposa perfeita, não daria o menor trabalho, só ia querer criar os
filhos e dirigir um lar harmonioso.
O sr. Harcourt se recostou com as mãos embaixo da nuca.
— Está bem, concordo. Eu lhe darei dez mil libras e você me dará essa como se chama mesmo?
Emily de Tal.
— Emily Weston. E ela vale cada xelim dessas dez mil libras. Juro, Adam, que é o melhor
negócio de sua vida.
O capitão se lembrou de ter ouvido essas palavras em outras oportunidades, em geral de
cavalheiros que desejavam lhe vender algum pangaré manco. Por outro lado, sabia que o rapaz tinha
chegado ao fim da linha, por causa das dívidas de jogo, e, se alguém recusasse seu vale, poderia até,
num momento de bebedeira e desespero, estourar os miolos. E aquela moça provavelmente ia ser tão
boa quanto qualquer outra.
— Neste caso, aqui está minha mão. Aperte — falou esticando o braço musculoso. Kit
apertou e sacudiu aquela mão com energia.
— Você não vai se arrepender. E Emily ficará encantada de se casar com um herói da Península,
condecorado e tudo o mais. Pensará que você é algo de muito especial.
— Não sei quem é o capitão Harcourt — disse Emily Weston. — Mas acho que deve ser uma
pessoa muito indelicada e sem educação. Não deveria falar assim, mas mesmo sem conhecê-lo, e
olhando para isto, eu já o detesto!
Esticou o pé e empurrou com desdém um pequeno baú, no centro do hall. Ao seu lado, Hester
Godfrey suspirou.
— É um amigo de Kit e teremos que lhe dar as boas-vindas. Só que concordo com você, Emily:
há tanto tempo não víamos Kit, e ele passou muitas dificuldades na Espanha. Mal voltou, este Harcourt
escreveu que viria para uma visita, sem dizer por quanto tempo. Mamãe está preocupada, porque Kit
diz que o capitão tem uma renda de quinze mil libras e foi para a guerra por gosto. Está acostumado a
viver muito bem em sua própria casa e aqui terá que se satisfazer com carneiro assado e bolinhos de
maçã. Ele vem a cavalo, sozinho: parece que pretende cuidar de alguns negócios no caminho. Quem
sabe quando vai chegar!
— Maçãs! — exclamou Emily. — Estava justamente querendo ir até a chácara e trazer maçãs.
— O dia está muito quente, Emily! — protestou Hester. — E não posso acompanhá-la, porque
espero a visita de George.
— Não faz mal — Emily se apressou a dizer.

Entre George e ela não havia muita simpatia. Limitavam-se a uma troca polida de banalidades,
quando eram obrigados a conversar. A cozinha do chacareiro Honeyburge, com seu chão de pedra, o
fogão sempre aceso, no inverno ou no verão, as galinhas que entravam e saíam à vontade e o
nenezinho mais recente, bem enfaixado no cueiro e pendurado num

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gancho, longe de qualquer perigo, eram muito preferíveis a qualquer conversação com George.
— Se eu me cansar — disse —, sento na beira do córrego.
Apesar de tanto otimismo, Emily reconheceu que o calor era cansativo, sobretudo porque
carregava uma cesta cheia de maçãs. Caminhava por teimosia, consciente de estar empoeirada, suada e
com os pés doloridos. Quase desejava que George Arbuthnot, o noivo de Hester, aparecesse na estrada
e lhe desse uma carona. Achou melhor descansar um pouco.
Através das árvores podia ver uma campina, atravessada por uma fileira de choupos que
margeava o córrego. A campina estava toda florida e cheirava a capim pronto para o corte. Emily a
atravessou e foi se sentar na ribanceira, abanando-se com o chapéu de palha. O céu era de um azul
profundo e ouvia-se o canto de um melro. Emily se entregou a reflexões sobre assuntos domésticos.
Desejava que este verão de 1814 fosse feliz. Kit tinha voltado para casa, em boa saúde, bronzeado, e
parecendo mais velho, a ponto de quase não o reconhecer. Estava sendo mimado por ela, por Hester e
pela mãe. Emily sempre considerara Kit um irmão, da mesma forma que pensava em Hester como
irmã. Vivia com os Godfrey desde os nove anos e praticamente nunca se afastara de lá.
Viu um pato passar, flutuando, com a correnteza: pensou que seria gostoso viajar e lembrou de
Kit, descrevendo países e povos distantes. Ele dificilmente criaria juízo. A sra. Godfrey também
pensava assim. Não dera baixa no Exército, esperava para ser desmobilizado, agora que Napoleão se
encontrava preso na ilha de Elba e pretendia receber, até lá, seu meio soldo do governo.
A vinda do capitão Harcourt ia complicar o processo de amadurecimento de Kit: parecia que o
homem exercera uma grande e nem sempre benéfica influência sobre ele. Iam reviver, dias a fio, todas
as batalhas. Leigholm ia parecer-lhe quieta e tediosa demais, sua mãe, a irmã e Emily, enfadonhas.
Começou a desejar que o amigo de Kit se envolvesse em algum acidente, não muito grave, que evitasse
sua visita. Sabia que o capitão tinha grandes e ricas propriedades em Essex e desejava criar cavalos de
corrida. Neste caso, pensou Emily, provavelmente ia se dar bem com George Arbuthnot, cuja
disposição bucólica levava a entediar todos, enumerando as vantagens do gado de raça e das porcas
premiadas.
Uma brisa fresca varreu a campina. Emily parou de se abanar, olhou para a estrada, que
continuava deserta, e tirou sapatos e meias. Enfiou os pés n'água. Estava realmente fria. Começou a
bater os pés, como uma menina e o movimento soltou os grampos que seguravam o coque no topo da
cabeça. Cachos compridos caíram sobre seus ombros.
Emily sabia que aquele maravilhoso dia de verão não poderia durar para sempre. Tinha vinte e
seis anos e ainda estava solteira. O lar dos Godfrey poderia ser seu lar até quando quisesse e a sra.
Godfrey admitira que desejava sua companhia, depois do casamento de Hester.
— Mas Emily, querida — acrescentara em seguida. — Seria muito egoísta se lhe pedisse isto,
caso haja uma possibilidade mínima de encontrar marido. Você precisa ter seu próprio lar, sua própria
família, e não fazer companhia a uma velha.
— Madame, realmente estou muito feliz aqui.
— É possível, Emily, mas não está certo. Gostaria que algum cavalheiro se interessasse por
você.
— Madame não penso nisto! — protestara Emily com veemência.
A conversa terminara, como sempre, com a sra. Godfrey tentando acalmá-la, reafirmando
que Leigholm House seria sempre seu lar.
— Mas não poderá ser — disse Emily a meia voz. — Qualquer dia Kit terá uma esposa e não
haverá mais espaço para mim.

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Estava tão preocupada com o problema que não percebeu que o chapéu deslizara para a água e
começava a se afastar com a correnteza. Ficou indignada: era um chapéu relativamente novo e não
desejava perdê-lo. Arregaçou a saia, levantou as anáguas até os joelhos e se aventurou no córrego. Era
raso, mas a corrente era rápida, e não conseguiu agarrá-lo antes que fosse para águas mais profundas.
Chegou até a curva do córrego, rodopiando no remoinho e depois se enroscou nos galhos baixos de um
chorão. Ficou desapontada.
— Ora, diacho! — exclamou, de modo não muito apropriado para uma moça.
Ouviu, atrás de si, uma gargalhada masculina e o rincho suave de um cavalo. Virou a cabeça tão
depressa que quase arranjou um torcicolo: a poucos passos da margem viu um oficial montado, com os
braços cruzados sobre o cepilho. Parecia achar a cena divertida. Emily não achou graça. Descabelada,
descalça, com a saia molhada e as anáguas arregaçadas até as coxas, colocou agressivamente as mãos
na cintura.
— Vá embora! — gritou.
— Não se zangue, querida — ele respondeu, gentilmente. — Irei buscar seu chapéu.
Os calcanhares encostaram-se aos flancos da montaria, que entrou na água. Emily ficou a
observá-lo, enquanto se aproximava do chorão. A água tocava na barriga do cavalo e molhava as botas
lustrosas do cavaleiro. Ele se curvou, apanhou o chapéu e o sacudiu, olhando para ela.
Emily saiu do córrego perto da cesta de maçãs, dos sapatos e das meias. Ouviu o cavalo saltar
para a ribanceira e escondeu as meias embaixo das maçãs. Depois se sentou, enfiando os pés sob a saia.
Ele parou o animal perto dela e desmontou. Emily achou que era o homem mais alto que já vira até
então; sua altura parecia ainda maior porque estava de pé e ela sentada no chão. Obviamente, este
pensamento ocorreu ao oficial, porque se sentou na grama. Ficaram no mesmo nível.
— Seu cavalo pode fugir — ela disse.
— Não. Ele sabe que com as rédeas pendentes deve ficar parado. Seu chapéu está um pouco
molhado. Não poderá usá-lo domingo para ir à igreja.
O tom era condescendente: devia pensar que ela era filha de algum chacareiro. Emily estendeu a
mão, mas ele não soltou o chapéu.
— Acho que mereço um prêmio — disse com olhar malicioso e seus lábios indicavam a vontade
de rir.
Emily resolveu não dizer que estava enganado. Considerando o seu estado, era melhor que ele não
soubesse quem era.
— Não pedi para buscar meu chapéu. Pode ficar com ele, se quiser — respondeu.
Ele encolheu os ombros e colocou o chapéu no chão, no lado mais afastado de Emily.
Parecia ter tomado a frase ao pé da letra.
— Se não posso ganhar um beijo, posso pelo menos pegar uma maçã? — perguntou.
— Mas é claro — respondeu Emily, imitando a pronúncia campestre, e acrescentou: — Sim,
senhor.
Ele tirou uma maçã da cesta e deu uma boa mordida.
— De onde vem? — perguntou, enquanto mastigava.
— De lá debaixo — ela respondeu apontando para os tetos distantes da chácara Honeyburge.

— Imagine que pensei ter descoberto uma náiade moderna dançando na água! Parei para deixar o
cavalo beber e quando a vi pensei que fosse mágica do sol, mas a aparição era real. Você sabe ler,
benzinho?
— Sim, senhor. Leio minha Bíblia — foi a resposta recatada.

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— Ah, hum, isto é ótimo. Não posso dizer o mesmo, mas estou errado e você está certa. Queria
saber se já ouviu falar em náiades. Acho que não, não pode ter estudado os clássicos. Eram ninfas
aquáticas que, às vezes, agarravam um viajante e o arrastavam até o fundo das águas, para ficar com
ele.
Os olhos azuis de Emily o fitaram, maliciosos.
— Acho difícil que possam fazer isto com o senhor, por causa de seu tamanho, e poderia se
livrar dela num instante.
Ele se deitou de lado e agitou uma haste de capim.
—Mas poderia não querer me livrar dela! — devolveu-lhe o olhar malicioso e piscou.
Sobre a turfa e ficou em cima dela, imobilizando-a com seu peso considerável. Antes que Emily
conseguisse soltar um grito, a boca dele apoderou-se dos lábios dela.
Ficou aterrorizada. Até aquele momento, nenhum homem fizera isso com ela. Não sabia o
que fazer e, sobretudo, não sabia se ele não iria além. As moças do campo eram consideradas presas
legítimas dos jovens cavalheiros, especialmente dos militares e dos estranhos de passagem. Talvez ele
pensasse pagar uma certa quantia se o encontro tivesse consequências. Já oferecera meia coroa a ela.
As jovens damas eram sempre tratadas com respeito, sobretudo porque seus admiradores procuravam o
prazer nas classes inferiores. As perguntas sobre a srta. Weston indicavam que ele planejava um
pequeno flerte com ela, durante sua estada, para espantar o tédio do campo, mas suas intenções com ela
eram óbvias.
Emily conseguiu livrar uma das mãos, que colocou no rosto dele e empurrou com todas as forças.
— Não faça isto — arfou, quando conseguiu falar. — Por favor, não queria provocá-lo.
Era só uma brincadeira na realidade não sou.
O peso que a sufocava ficou mais leve, graças a Deus. Ele se apoiava nos braços e a
examinava, pensativo. Emily não entendia sua expressão, mas ele parecia ouvi-la e continuou: —
Deixe-me ir. Não quero meia coroa, não quero nada, nem mesmo meu chapéu. Ele não disse nada, mas
a largou. Quando conseguiu se levantar, viu que ele se afastava um pouco. Assoviou. O cavalo,
que pastava, levantou a cabeça e se aproximou. O homem segurou as rédeas e montou com
agilidade, depois virou o animal em direção de Emily. Ela estava de pé, tentando pôr os cabelos e
as roupas em ordem. Viu que o capitão não parecia mais achar graça e, então, ela sentiu mais medo
do que quando ele a segurava no chão. Sentiu-se profunda-mente envergonhada quando o oficial
disse: — Devo-lhe meia
coroa pela informação.
Emily sacudiu a cabeça, sem poder falar.
— Você ganhou honestamente — afirmou, seco. — Não precisa mentir a respeito, se lhe
perguntarem onde arranjou o dinheiro.
Jogou a moeda, que descreveu um arco e caiu aos pés dela. Depois, despediu-se com um aceno,
bateu com os calcanhares nos flancos do cavalo, que se pôs a galope, dirigindo- se, ribanceira acima,
para a estrada.

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CAPÍTULO II

George Arbuthnot, o noivo de Hester era um jovem fleumático, já bastante encorpado e o paletó
azul abotoava-se a custo sobre uma cinta para cavalheiros. Suas feições não eram desagradáveis,
embora pesadas: os olhos azul-claros eram protuberantes. Estava um pouco contrariado porque uma
túnica militar era sem dúvida mais atraente do que o paletó azul.
Já estava farto de todas as histórias contadas pelo irrequieto Kit, desde sua chegada, e tivera que
aturar seus modos um pouco livres, por se tratar do irmão de sua prometida. Mas agora havia mais um
militar, completamente diferente: tinha uma estatura de lutador e olhava para todos com insolência. Por
outro lado, sabia por intermédio de Hester que o capitão Harcourt tinha uma renda de quinze mil libras
ao ano, uma grande extensão de terras e era primo em segundo grau de um Par do Reino: detalhes que
impressionavam muito mais que uma túnica vermelha cheia de fitas de campanhas.
— O senhor vai administrar suas terras, agora que está de volta, capitão? — perguntou,
amavelmente, como mandava a boa educação.
— Duvido. Andei chafurdando por demais na lama durante estes cinco anos — respondeu
secamente Adam.
George ficou ofendido, a sra. Godfrey pareceu um pouco chocada, Hester soltou uma gargalhada
e Kit lançou ao amigo um olhar agoniado.
— Entretanto — o capitão continuou, vendo o efeito de suas palavras. — Estou interessado na
criação de animais puro-sangue. Como ainda não dei baixa do Exército, não fiz nada, a não ser olhar
alguns animais promissores no Tattersalls.
— Cavalos de corrida? — exclamou George, com entusiasmo. —Pessoalmente estou interessado
na criação de animais de raça: suínos malhados, capitão. Gostaria de ver meu varão premiado?
— Onde está Emily? — perguntou Kit em voz alta. — Por que não está aqui? Eu esperava que
ela, quero dizer, esperava que todos estivessem aqui quando Adam chegasse!
— Ela foi até a chácara de Honeyburge — disse Hester. — Já deveria ter voltado. Aliás, tenho a
impressão de ter ouvido a voz dela há meia hora. Provavelmente ficou cansada com o calor e está no
quarto. Quer que vá chamá-la, mamãe?
— Deixe-a estar, querida, que descanse um pouco. Emily aparecerá para o jantar e tenho certeza
de que o capitão Harcourt poderá desculpar seu atraso.
O capitão, que até aquele momento parecia vastamente entediado, endireitou-se de repente.
— A chácara Honeyburge? Onde há uma série de construções que podem ser vistas da campina
ao lado do córrego?
— Exatamente — respondeu a sra. Godfrey.
— Por quê? — perguntou Kit, desconfiado.
— Pedi informações sobre o caminho a uma moça, na campina. Talvez, uma filha de
Honeyburge?

A este ponto Kit, sem se deixar enganar pelo tom displicente do amigo, ficou francamente
alarmado e fez um sinal, indicando a mãe e a irmã. O sr. Arbuthnot, vendo aquela pantomima e
entendendo perfeitamente seu sentido, chegou à conclusão de que o capitão trouxera consigo a baixa
moral da península. Não era de se admirar, mas se

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pretendia arruinar moças da aldeia, sua estada não seria muito longa. Recentemente, George fora
indicado para magistrado.
— Ele tem várias filhas — respondeu a sra. Godfrey, sem qualquer malícia. — Todas são garotas
educadas e boas. Vai jantar conosco, George?
O sr. Arbuthnot pediu desculpas por ter um compromisso e, com grande alívio de todos, exceto
Hester, explicou que não poderia ficar.
Emily passara, sorrateiramente, ao lado da porta da sala, ouvindo o murmúrio da conversa, e se
refugiara em seu quarto. Ficou sentada na beira da cama, refletindo sobre o que julgava ser o dia mais
desastrado de sua vida. E o pior ainda estava para acontecer, porque poderia ficar ali até o jantar, mas
depois teria que descer e enfrentar o capitão Harcourt. Ao reconhecê-la, ele ficaria furioso por ter sido
enganado e não aceitaria o fato de ela o ter feito de tolo. Precisaria pedir desculpas, por causa de Kit.
Era claro que ele estimava muito o amigo. Além disso, ela e Hester haviam prometido que lhe dariam
as boas-vindas.
Não deveria ter entrado no córrego descalça e, depois de descoberta, deveria ter revelado sua real
identidade. O comportamento do capitão não podia ser considerado exemplar, mas fora o que era de se
esperar naquelas circunstâncias.
Emily não era uma ingênua: alguns anos antes, uma empregada da casa recebera algumas fitas
vermelhas de um mascate, para fazer amor. O resultado fora um bebê que acabara no asilo dos
enjeitados e o mascate desaparecera. Pelo menos, me ofereceram um guinéu, e foi um cavalheiro,
refletiu Emily. Entretanto, deveria ter lembrado logo que o estranho só poderia ser o convidado de Kit e
só lhe restava rezar para que ele fosse suficientemente cavalheiro para não contar o acontecido. Mais
tarde ela pediria desculpa.
Lavou-se, pôs um vestido de musselina branca, bordada. Escovou os cabelos castanhos e os
arrumou num penteado vagamente grego. Quando a campainha tocou para anunciar o jantar, desceu.
Sua entrada foi triunfal, além de qualquer imaginação. — Emily! — gritou Kit, indo dar-lhe a mão. —
Onde esteve? Meu amigo Harcourt chegou e queria que o conhecesse. Desculpe seu tamanho, mas ele é
inofensivo! Adam, esta é a pupila de meu pai, a srta. Weston, que desejava muito conhecê-lo.
O capitão Adam e Emily ficaram parados, se enfrentando, completamente mudos. Kit percebeu
que Emily estava muito pálida, mas julgou que fosse consequência da timidez. Quando, porém, olhou
para o amigo, viu que erguera o rosto, muito vermelho, e apertava os lábios. Conhecia aquela expressão
agressiva.
— Seu criado, srta. Weston — murmurou finalmente o sr. Adam, segurou a mão de Emily e se
curvou. — Ouvi falar muito na senhorita, mas Kit não disse que era tão encantadora.
— Como está, senhor? — sussurrou Emily. — Espero que tenha feito uma boa viagem.
— Obrigado, foi excelente e repleta de aventuras!
Ele percebeu que a mão da moça tremia e compreendeu que ela receava o relato do que
acontecera na tarde. Sacudiu quase imperceptivelmente a cabeça e os olhos azuis ficaram mais calmos.
— Ótimo! — exclamou Kit. — Vamos demolir o carneiro assado! Mamãe. Hester! — Tomou o
braço de ambas e disse por cima do ombro: — Adam levará a srta. Weston até a mesa!
O capitão Adam ofereceu-lhe o braço e ela olhou ao redor. Não podiam ser ouvidos.

— Sinto muito — sibilou. — Foi uma brincadeira, não conte à Kit. Prometa!
— Não direi nada — ele respondeu secamente. — Não costumo arruinar a reputação de
damas, contando suas mais rematadas tolices!
— Não foi tolice! — A irritação substituiu a ansiedade, as feições clássicas ficaram

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coradas, lembrando as de algumas moças espanholas, como também o génio, achou o capitão. — Já
disse, foi uma brincadeira. Está bem, uma brincadeira tola, mas eu não sabia quem era o senhor.
— E não sabendo quem eu era, foi tola em querer brincar! — ele retrucou seco. — Nunca mais
faça isto!
— Que arrogância! Como ousa falar comigo deste jeito? Que direito tem de dizer o que posso ou
não posso fazer?
— Alguém deveria dizê-lo — ele explicou, calmo. — Não foi um comportamento digno de uma
dama. Tanto assim que a senhorita não gostaria que Kit ou a sra. Godfrey soubessem.
— Acredito — observou Emily, cerrando os dentes. — Que o senhor também não gostaria que
soubessem de seu comportamento. Se bem me lembro, o senhor me ofereceu um guinéu!
— Sem dúvida. E se quisesse tomar o que julgava de direito por esse dinheiro, a senhorita não
poderia ter feito nada para me impedir! — foi a resposta franca. — Eis porque a façanha foi tola e não
vai repeti-la!
— Não aceito ordens do senhor e aqui não é um quartel, capitão Harcourt. É óbvio que há tempos
o senhor não tem o privilégio da companhia de damas, apenas teve outras companhias.
— O que a senhorita sabe a respeito?
— Não sou a idiota da aldeia, capitão — afirmou Emily. — Vivo na província, mas tenho olhos e
ouvidos! E um cérebro também!
— Então, faça-o funcionar! — rosnou o sr. Adam, com um olhar furioso.
Muitos recrutas tinham tremido sob aquele olhar, mas ele se espichou em toda sua altura, o
que permitia que seu nariz alcançasse a trança dourada do meio da túnica do oficial.
— Serei educada com o senhor, capitão, enquanto estiver aqui, mas apenas como um favor a Kit
e quero que saiba disto. Gostaria de ter nascido um homem — acrescentou com severidade. — Então
poderia desafiá-lo!
— Se a senhorita fosse um homem — respondeu ele e sua carranca desapareceu. — Não teria
acontecido nada. Mas que gênio! Quase como o de uma cigana. Deveríamos entrar e comer. Se nos
atrasarmos mais, só encontraremos ossos e é muito desagradável não conseguir encher a barriga.
— Não faltará comida. Estive na cozinha e disse à cozinheira para fazer mais. Depois de
conhecê-lo, tive certeza de que comeria feito um cavalo, de acordo com seus modos de estrebaria!
Ao redor da mesa, o ambiente ficou tenso e sem graça. Kit, porém, falava sem parar. O capitão
Harcourt falava o menos possível e apenas por educação. Só uma vez deu um susto em Emily, quando
chegou a sobremesa.
— Ah! — exclamou. — Maçãs ao forno, meu prato preferido! Emily foi buscá-las na chácara
hoje, são fresquinhas — explicou Hester.
— Verdade? Agradeço de coração, srta. Weston. Madame, foi um jantar maravilhoso!
— acrescentou, olhando para a anfitriã.

A sra. Godfrey ficou contente. Estivera muito preocupada por não haver pudim. A cozinheira era
boa, mas estava acostumada apenas com o trivial e não saberia fazer um doce tão elaborado. O
capitão não falara muito e ela pensou que talvez estivesse achando o jantar inferior.

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— Nossa vida é simples — respondeu a senhora. — Espero que Christopher o tenha prevenido,
capitão. Por outro lado, acredito que na Espanha precisaram se acostumar com toda espécie de
alimentos estranhos.
O oficial sorriu, sem responder e Emily estranhou. Já percebera que ele preferia deixar Kit falar,
no entanto, não era tímido. Talvez o fizesse por não gostar de se lembrar da guerra. Ou vai ver que,
simplesmente, estava emburrado, apesar de ser um adulto. Não. Não podia ser isso. Com certeza apenas
deixava que Kit contasse as aventuras e entreveros, por saber o quanto ele gostava. Admirou-o e achou
que se o rapaz continuasse falando daquele jeito acabaria ficando tão maçante com as histórias da
península, quanto o sr. George, com as histórias dos porcos malhados.
Teve vontade de saber a idade do capitão. Devia ser mais velho do que Kit, só que não devia ter
mais de trinta anos. O ar sombrio, a pele bronzeada, o tamanho e a estrutura sólida é que o faziam
parecer mais velho do que era.
Emily mexeu-se na cadeira. Reconhecia que ele era muito atraente e, na certa, não estava
acostumado a ver recusados os seus desejos. Poderia ter insistido em obter o que julgava valer um
guinéu e ficou pasmada ao perceber que não conseguia descobrir o que a levara a tomar aquela atitude
provocante. Sentindo-se um pouco culpada, tentou imaginar como poderia ter sido.
Ele teve a percepção de estar sendo observado e a fitou. Emily achou que havia nele uma atitude
de desafio. Enrubesceu, mas um traço um pouco perverso de sua personalidade a levou a aceitá-lo.
— Por que não nos conta suas aventuras, capitão Harcourt? —perguntou num tom levemente
azedo, com uma certa ênfase na palavra "aventuras".
— Na verdade, srta. Weston — ele respondeu e havia um aviso em seus olhos escuros.
— Não pensei que quisesse ouvi-las. Tenho certeza de que Kit já contou tudo o que havia a contar.
Kit ficou indignado ao ver que seu convidado se recusava a brilhar por si mesmo e conseguiu lhe
dar um pontapé por baixo da mesa.
— Por que não conta daquela vez que nos perdemos e acabamos encontrando os irregulares
espanhóis? — perguntou.
— Quando fala em "irregulares", meu amigo Godfrey quer dizer guerrilheiros, espanhóis
refugiados nas montanhas, que atrapalhavam as comunicações francesas. Era uma turma pitoresca, mas
pouco recomendável. Não acredito que a srta. Weston ou a srta. Godfrey achassem interessante uma
descrição mais detalhada das atividades deles — declarou o capitão Adam.
— Bobagens! — protestou Kit. — Fomos naquela direção para... ahn... jantar com oficiais de um
regimento de dragões acampado perto do nosso.
Ao ouvir "jantar", as sobrancelhas de Adam ergueram-se e Emily percebeu. Na verdade, e ela
não podia imaginá-lo, aquela fora uma noite de bebedeira e de carteado com cacife altíssimo. Pelo jeito,
ninguém entre os parentes do rapaz suspeitava de sua fraqueza pelos jogos de azar. Mais cedo ou mais
tarde á verdade teria de vir à tona pois nenhum jogador livrava-se com facilidade do vício. Kit levara
um susto muito grande, mas acabaria por esquecer e logo voltaria à mesa de jogos.

— Enquanto voltávamos — dizia o rapaz. — Tomamos o caminho errado. A noite parecia um


breu, até o despontar da lua, e a chamada estrada era apenas uma trilha. De repente, deparamos com
aqueles camaradas. Confesso que levei um choque e fiquei agradecido ao luar, que permitiu que
vissem nossas fardas inglesas. Fomos logo convidados

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a tomar um trago e nos prometeram um guia. Não queríamos ofendê-los e fomos com eles até o
acampamento. Ali descobrimos que tinham um prisioneiro francês, um estafeta, captura do pouco
antes. Quando este nos viu, começou a fazer muito barulho. Eu não entendia direito as palavras, meu
francês nunca foi muito bom, mas era claro que pedia para ser tirado das mãos daquela gente.
— E estava certo — interrompeu o capitão. — Eles o matariam com certeza.
— Portanto — continuou Kit. — Explicamos que era um prisioneiro necessário aos ingleses,
mas eles não queriam entregá-lo. Adam não quis ouvir recusas. Desembainhou o sabre e os atacou,
aos gritos em espanhol. Depois libertou o prisioneiro e explicou que teriam que ir buscá-lo se o
quisessem, mas eles desistiram. Saímos de lá com o francês. O pobre chorava enquanto agradecia ao
capitão por lhe ter salvado a vida. Fiquei com uma sensação desagradável entre as espadas, até que
saímos do alcance dos mosquetes dos irregulares.
— O senhor foi muito corajoso, capitão Harcourt — disse Hester, impressionada.
— Fiz minha obrigação, srta. Godfrey. O estafeta tinha, com certeza, informações que poderiam
ser úteis. Infelizmente, os guerrilheiros destruíram sua sacola de despachos quando descobriram que
não poderiam lê-los, em vez de mandá-los à unidade inglesa mais próxima. O defeito daqueles
camaradas era este: excesso de entusiasmo e pouco bom senso.
— Mesmo assim, teve muita coragem! — comentou Emily, olhando para a toalha. Ele
hesitou, pareceu querer falar, mas voltou a emudecer.
O dia seguinte amanheceu radioso. Logo depois do desjejum Emily foi até o fundo do jardim e
refugiou-se no velho quiosque, que já estava quase caindo aos pedaços, onde brincara de casinha com
Hester quando ambas eram crianças. Não queria que Kit a convidasse para dar uma volta com o capitão
Harcourt no modesto parque da família. Ainda não sabia até quando o hóspede iria ficar. Ele
provavelmente era um homem de valor e um excelente soldado, que partilhara de muitas aventuras de
Kit, mas ela ressentia-se pela sua presença. Não sabia se teria a mesma reação se não o tivesse
encontrado na campina, perto do córrego. Chegou à conclusão de que ainda assim o consideraria
desconcertante e desejaria que ele fosse embora. Ouviu passos masculinos. O grito que lhe subiu à
garganta se transformou numa exclamação de alívio. Era Kit.
— Ah, é você, Kit!
— Por quê? — Kit se sentou ao seu lado, sobre o banco. — Quem pensava que fosse?
— Receava que fosse seu amigo, o capitão — ela confessou. — Acho que realmente não o
aguentaria hoje de manhã. Ele é seu convidado e seu amigo, mas por favor, Kit, não faça qualquer
programa, porque se o fizer, vou inventar uma enxaqueca.
— Não é possível que você sinta o que diz — ele protestou e Emily sentiu-se culpada ao vê-lo
tão desgostoso. — Você não gosta dele, Emi?
— Não gosto muito, não. Mas vou ser polida, não se preocupe.
— Por que não gosta dele? O que ele fez para aborrecê-la?
— Nada. Só que apareceu aqui tão depressa, depois de sua volta, e nós pensávamos que
poderíamos ficar só com você por um tempinho.
— É só isto? — Kit pareceu aliviado. — Então, não é não gostar! Tinha certeza de que gostaria
dele!

— Tinha, mesmo, é? — a irritação da moça crescia a cada momento. — E posso saber por quê?
— Porque todas as mulheres gostam dele — explicou Kit. E logo acrescentou: — Ouça, não
pretendo que...

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— Você não precisa explicar, Kit! — interrompeu Emily. — Sei muito bem o que quer dizer.
Não sou dessas mulheres loucas por farda e o capitão Harcourt não me interessa.
Kit ficou em silêncio por alguns momentos, depois murmurou: — Ele tem quinze mil libras de
renda por ano.
— Que bom para ele. Desejo-lhe muita sorte e uma longa vida. Apenas não quero sua
companhia.
— A maioria das mulheres pensaria que é um excelente partido! — teimou o rapaz.
— Kit! — ela arregalou os olhos azuis e ele enrubesceu. — Você não está sugerindo que eu o
conquiste?
— Não, não! De qualquer forma, isto não seria necessário. Eu sei que ele gosta de você.
— Oh! — Emily o observou, desconfiada. — Ele disse isto?
— Não exatamente. Apenas tenho certeza de que é assim. Francamente, você é um bocado mais
bonita do que me lembrava. — Kit não percebeu até que ponto era pouco amável. — Eu disse a ele que
você era uma pessoa agradável, até bonitinha. Ontem à noite, quando ficamos a sós na biblioteca, o
capitão falou que eu sou mais cego do que um morcego e que apostaria cem guinéus que você ganharia
em beleza de qualquer moça por aqui. Ele disse, "também Hester", mas foi apenas cortesia, porque ela
é minha irmã. Ninguém pode dizer que Hester é atraente. Quero dizer, ela tem um rosto simpático,
mas não faria virar qualquer cabeça, a não ser a de George Arbuthnot.
— Kit! — ela mordeu os lábios para se controlar. — Como pôde discutir minha pessoa com
aquele homem e deixar que ele falasse a meu respeito como se eu fosse um daqueles cavalos de corrida
pelos quais se interessa!
— Pare com isto, Emily! Ele quis elogiá-la e não vejo nada de errado nisto. Deveria se sentir
lisonjeada!
— Pois não penso assim — ela retrucou e quis se levantar mas ele a segurou pela
mão.
— Vamos, acalme-se, Emi! Acontece que você, até agora, nunca conheceu alguém
como Adam e nem poderia, pelo menos aqui. Não seja absurda. Queria muito que gostasse dele.
Por algum motivo inexplicável, Emily, ao observá-lo, sentiu uma ponta de medo.
— Kit! Ele tem algum poder sobre você?
— Meu Deus, Emi, que asneira!
— Desculpe se pareço tola, mas me ocorreu que você parece tão ansioso em exibi-lo e ele fica
sem fazer nada, ouvindo os elogios, como se soubesse o que você está fazendo e, mais, o que você fará
a seguir. Como se ele tivesse assistido à representação e conhecesse a peça de cor, entende?
— Emily, francamente, que imaginação! Você ficou demais isolada neste ambiente agreste.
Precisa ampliar seus horizontes. De que forma ele teria poderes sobre mim?
Kit tinha um ar tão sério, era tão parecido com o rapaz que partira anos atrás, que ela se
acalmou.

— Entenda, Kit, não estou zangada com você e nem poderia, depois de tantas preocupações por
sua vida, tantas rezas para que fosse poupado! É apenas minha absurda maneira de pensar. Prometo que
vou ser amável com o capitão Harcourt, está bem? Vou sorrir, ser simpática e fazer o que você quiser.
Só quero que prometa não me deixar a sós

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com ele.
— Eu juro, mas pode ficar sossegada, teria um comportamento exemplar. É um cavalheiro.
Você é uma boa menina e sabia que não me decepcionaria!
Sorriu para Emily e lhe deu um beijo fraternal no rosto. Ambos perceberam um movimento na
direção da porta e ouviram o rangido de botas masculinas, levantaram o olhar. Kit ainda segurava a
mão de Emily.
— Desculpem, não pretendia perturbar — falou o capitão Adam, sem qualquer expressão
especial mas seus olhos notaram a cena. — Estava a sua procura, Kit, para um passeio, mas percebo
que está ocupado.
— De jeito nenhum — exclamou Kit e se levantou de chofre. — Irei até a estrebaria para que
selem os cavalos. Faça companhia a Emily até eu voltar.
A moça ficou exasperada ao vê-lo quebrar uma promessa feita há um minuto.
— Posso me sentar? — perguntou o sr. Harcourt.
— Como quiser. — Ontem o senhor decidiu me fazer companhia sem pedir licença e não vejo
por que agora precisa de meu consentimento.
— A senhorita é realmente tão geniosa? — ele perguntou, sério.
— Não sou geniosa! — retrucou Emily. — O senhor me faz perder a paciência. Ficará por muito
tempo?
— Isto depende.
Recostou-se e esticou as pernas compridas. O banco tosco estremeceu e Emily imaginou se ele
conseguiria desconjuntá-lo. Kit não mantivera sua promessa e nem ela estava mantendo a que lhe
fizera. Precisava se esforçar mais para ser amável.
— É claro, gostamos muito que os amigos de Kit venham visitá-lo — conseguiu dizer, sem
muito entusiasmo.
O capitão franziu a testa e apertou os olhos, fitando o raio de sol que entrava pela porta aberta.
— Para ser franco, senhorita, era minha intenção procurá-la esta manhã e me desculpar pela
cena estúpida perto do córrego. Repare, não pretendo assumir toda a responsabilidade pelo acontecido,
mas a senhorita ficou tão transtornada! Não era essa a minha intenção.
O pedido de desculpas chegou de surpresa e fez Emily se sentir ainda mais culpada.
De qualquer forma, precisava aceitá-lo.
— Ambos erramos — ela concordou a contragosto — e imagino que deveríamos fazer de conta
que nunca aconteceu.
— Eu não disse isto! — Por instantes, o rosto moreno assumiu uma expressão esquisita. — Mas
a senhorita não é absolutamente como pensei, pela descrição de Kit. Não que a descrição não fosse
lisonjeira. Apenas, não foi completa.
— Estou surpresa por saber que Kit falou em mim. Por que fez isso?
Os olhos azuis de Emily o fitavam e ele lembrou que precisava ter cuidado: o raciocínio dela era
rápido. Não devia despertar sua desconfiança.
— Oh, ele falou muitas vezes na família e em Leigholm. Acho que estava com saudade e agora,
provavelmente, acha tudo muito diferente, não apenas a senhorita.
— Kit é que está diferente — ela comentou pensativa.
— Há quatro anos é um militar, lembre-se, senhorita.

—Não é apenas isto. Ele sempre foi muito franco, aberto; porém, desde que voltou, tenho a
esquisita sensação que está escondendo algo. — Para complicar mais as coisas, ela o fitou com os olhos
claros, que pareciam penetrar-lhe até a consciência, e perguntou: — O senhor, naturalmente, não sabe o
que é?

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— Jamais conto os segredos alheios — ele respondeu, com suavidade. — Nem os da senhorita,
nem os de Kit. Gosta dele?
— Sim, gosto. Fiquei preocupada quando esteve na guerra. Pensava nas coisas horríveis que
poderiam lhe acontecer.
— Ele é um bom soldado, muito corajoso, aliás. É capaz de cuidar de si próprio, não se preocupe.
— Mas isto não é tudo, não é mesmo? Aqui, nossa vida é tão tranquila! Kit também vivia
assim e quando foi embora pensei que poderia encontrar más companhias e adquirir maus hábitos, que
poderia começar a beber ou coisa assim. Não podia falar disto com a mãe ou com a irmã dele, apenas
ficava a me preocupar sozinha.
— Um soldado na guerra aproveita os prazeres onde pode encontrá-los, srta. Emily.
— O senhor deve pensar que sou tola, e quero Kit amarrado às minhas saias, mas não é assim. É
claro que ele precisa de outras companhias, não apenas de um grupo de mulheres.
— Exceto a minha? A senhorita acha que sou má companhia? — as grossas sobrancelhas pretas
se ergueram e a voz indicou que estava curioso, mas não ofendido.
— Admito que pensei assim, no começo — falou Emily, honestamente. — Cheguei até a
desconfiar que o senhor tinha algum poder sobre Kit. Perdoe-me! Ele afirma que é uma tolice e eu
concordo. Tive que mudar de opinião sobre sua amizade. Cheguei à conclusão de que o senhor é forte.
— e explicou, corando: — Não quero dizer forte como Sansão, mas que tem força de caráter. Kit é um
pouco fraco, às vezes. Suas intenções são boas, mas nem sempre consegue levá-las até o fim. E gostaria
de lhe pedir um favor, capitão.
— Peça o que quiser — ele murmurou.
— Poderia cuidar de Kit? Dito assim, pode parecer esquisito, mas não sei como poderia me
expressar melhor.
— Vou vigiá-lo — respondeu o sr. Adam, sério. — Não se preocupe, eu também gosto do rapaz.
— Obrigada — ela respondeu no mesmo tom. Ele mudou de posição e o banco rangeu seu
protesto. Ele parecia não estar muito à vontade e Emily achou que talvez a conversa fora embaraçosa, e
não insistiu.
Kit apressou o cavalo e se emparelhou com o capitão.
— Então? — perguntou, impaciente.
— Então, o quê?
O baio, acostumado a avaliar o humor do cavaleiro pelo tom de voz, percebeu que nem tudo
estava bem e agitou as orelhas.
— Você gosta de Emily? Devo dizer que ela melhorou um bocado, pelo menos é o que eu achei.
Lembrava-me dela muito mais apagada.
— Você tinha quatro anos a menos, estava acostumado a vê-la todos os dias. E, claro, não era tão
experiente. Escute, você me enganou. Não digo que foi de propósito, mas a moça não é como a
descreveu e até você o admite!
— É bem melhor, até! Não existe prejuízo. — Kit fitou o amigo, preocupado. — Ou vai me dizer
que não a quer?

O sr. Harcourt suspirou. Cavalgavam num bosque, entre carvalhos centenários. Olhou para os
galhos e para as folhas farfalhantes, para as gralhas que voavam, grasnando. Estava satisfeito de ter
voltado para a Inglaterra por muitas razões, mas às vezes ainda desejava estar nas planícies de
Salamanca. Estava pensando assim, agora.

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— Não se trata disto, Kit. É que talvez nosso trato não tenha sido uma boa ideia.
— Você quer voltar atrás — comentou Kit, meio nervoso.
— Não se preocupe, não vou querer que me devolva as dez mil libras. Você fez o que devia
fazer, me apresentou a moça. Acho, porém, que ela vai se zangar quando souber. A srta. Emily não
gosta de mim.
— Besteira! — exclamou aliviado. — Ela é tímida. Claro que gosta. Você nunca teve qualquer
dificuldade com mulheres, que eu saiba. É verdade, também, nunca o vi tão silencioso! Dei-lhe nem sei
quantas deixas durante o jantar de ontem, para que contasse alguma coisa e mostrasse como é e você
continuou mudo. A única vez que disse alguma coisa, se referiu a maçãs!
— Acho que estou um pouco enferrujado, em matéria de conversa com moças respeitáveis. Sei
muito bem como tratar as outras. — Irritado sem motivo aparente, gritou com o cavalo, quase o
fazendo empinar. Continuou: — A srta. Emily gosta de você.
— É claro — respondeu Kit, alegremente. — Sem dúvida, gosta. — Não viu a breve expressão
de fúria do amigo. — E eu também gosto muito dela, sabe? — acrescentou, generosamente.
— Mas você não se importa de dá-la a mim? — perguntou o capitão, com calma aparente.
— De jeito nenhum. Você cuidará dela. É o mínimo que posso fazer para retribuir, depois que
pagou minhas dívidas.
Maldito menino imbecil!, pensou o oficial, bravo. Deveria lhe dar uma surra, das memoráveis!
Em seguida, lembrou que ele mesmo não agira de maneira limpa. Concordara com o trato, era
igualmente desprezível ou talvez pior, porque Kit sempre fora um desmiolado e ele sempre se achara
sensato. Pobre moça, seu mundo estava prestes a ruir e ela gostava do rapaz!
Como não havia meios de explicar tudo isso, ele bateu com os calcanhares nos flancos da
montaria que se assustou e saiu a galope pela alameda.
— Eia! — gritou Kit, incitando seu cavalo. — Espere! Que loucura é esta? — Viu o capitão
dirigir seu cavalo para uma porteira de cinco barras, saltar por cima e desaparecer nos campos, fazendo
voar a turfa sob os cascos do animal.
— Diacho, esse Harcourt é maluco, mesmo! — resmungou Kit. — É verdade que a coisa não vai
indo como planejei, mas pretendo dar uma ajudazinha logo, logo.
Christopher Godfrey não tinha culpa por ter sido mimado pelas mulheres da família.
Assim que deixara as fraldas, percebera que podia conseguir da mãe tudo o que quisesse.
Nessa mesma noite, foi até o quarto dela e acomodou-se na poltrona, ao lado da penteadeira, com
o ar mais inocente do mundo.
— Não quero perturbá-la, mamãe, se estiver cansada, mas desejo muito ouvir sua opinião sobre
um assunto.
— É claro, meu querido — respondeu a sra. Godfrey e ficou lisonjeada porque o filho, com sua
túnica vermelha enfeitada de ouro, ainda procurava seus conselhos. — De que se trata? — Uma dúvida
surgiu de repente e ela acrescentou, com maior prudência: — É uma questão de dinheiro, Christopher?
Entendo que você precise dele para suas despesas, mas sabe que Hester está para se casar no ano...
Bom e...
— Não se trata de dinheiro — interferiu Kit. — O que a senhora achou de Adam?

— O capitão Harcourt? Muito agradável, eu diria muito quieto. À primeira vista, um pouco
assustador, por ser tão alto. Parece uma pessoa honesta. — A sra. Godfrey amarrou as fitas da touca
com gestos cuidadosos. — Tive a impressão de que George não gostou muito dele.

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— George que vá ao diabo — foi a resposta rude de Kit e a sra. Godfrey estalou a língua,
censurando-o brandamente. — George é um chato. Não entendo o que Hester vê nele.
— Hester está com vinte e sete anos — explicou a sra. Godfrey, tranquila. — Ela nunca foi de
sobressair na companhia de rapazes.
George tem uma renda de cinco mil libras ao ano, mora a pouca distância daqui. Hester terá uma
vida muito confortável e sei que não poderia achar coisa melhor. Pensando bem, ela teve sorte de
encontrar George — acrescentou, com franqueza maternal.
— Tanto faz. Não queria falar em George, queria falar em Adam e perdemos o fio. O fato é que
ele tem quinze mil libras ao ano, é um homem formidável e se engraçou com Emily.
— Com Emily? — exclamou a sra. Godfrey estupefata, deixando cair o anel que segurava. —
Christopher querido, não consigo pensar que as intenções dele sejam sérias.
— Pois são muito sérias. Emily, porém, não lhe dá qualquer atenção. — Ouça! — Kit se curvou,
para convencê-la melhor: — Seria uma excelente oportunidade para Emi! Sei que a senhora se
preocupa com o futuro dela e eu faço o mesmo. O problema poderia ser resolvido!
— Sem dúvida — concordou a sra. Godfrey, pensativa. — É extraordinário! Nunca poderia ter
sonhado numa coisa tão boa para Emily!
— Então, por que a senhora não conversa com ela?
— Sim, meu querido, vou fazê-lo. Meu Deus, o capitão Harcourt! Quem iria imaginar
isto?
Kit enrubesceu, mas conseguiu acalmar sua consciência. Beijou a mão da mãe e saiu,
assoviando.

CAPÍTULO III

No dia anterior, ao se afastar a galope, o capitão Harcourt quisera apenas distanciar-se de Kit
antes de perder o controle. Quando parara, afinal, percebera que na realidade desejava afastar-se
daquela situação. Era impossível e ele praguejara, irritado. O cavalo arfava, suado; então, fizera-o
continuar a passo. Ganhara aquele baio num jogo. Essa lembrança trouxera-lhe a Espanha à
memória e sentira saudade do perigo, da incerteza da guerra, da vida militar, tão organizada e simples.
Apesar da luta, sabiam o que deviam fazer. Era diferente da vida civil, tão cheia de armadilhas e de
situações imprevisíveis.
Ainda muito jovem, ao receber sua herança, ele descobrira que não era talhado para a vida de
proprietário de terras. Os tambores rufavam, chamando às armas, e entrara para o Exército. A
campanha espanhola, apesar de todos os horrores, oferecera-lhe tudo o que desejava da vida. Durante a
luta, poucos soldados pensavam no que iria acontecer depois de dominado o teimoso adversário que
continuava uma guerra que não poderia ganhar.
Achava, também, que se envolvera em um problema sem saída. Era evidente que aquela moça
estava apaixonada por Kit, que sabia e não se importava, achando que se tratava apenas de um flerte.
Surpreendera o amigo beijando Emily, no quiosque. Isso queria

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dizer que sentia algo por ela. Como era possível que a cedesse a outro? Não podia entender isso.
O capitão nunca se envolvera seriamente com uma mulher; tivera apenas casos passageiros.
Nunca se detivera para pensar que o casamento era um envolvimento definitivo, até aquela noite, ao
fazer o trato com Kit e apertar-lhe a mão. Conscientizara-se, então, de que se tratava de assumir uma
responsabilidade duradoura. Como um tolo, não pensara na moça, ponto principal daquele trato. Para
ele, era apenas um nome, uma estranha. Agora já se tratava de alguém com um rosto. Sua impressão
era a de ter ficado contemplando uma mulher de costas, por algum tempo, e de repente ela se voltara
fitando-o, tornando-se real.
Notara, então, que cavalgava ao longo do córrego e vira um garotinho no raso, enquanto dois
cavalos bebiam na beirada, turvando a água com o movimento dos cascos. O sr. Adam observara a cena
e depois jogara uma moeda para o pequeno guardião. Em seguida, a irritação voltara a dominá-lo.
Estava tudo errado. Precisava falar com Kit.
A oportunidade apresentou-se nessa noite, depois do chá e de que as damas se haviam retirado.
Ele e o jovem Godfrey estavam na biblioteca. O amigo não mencionara sua repentina fuga, naquela
tarde, de modo geral não falara muito, como era seu costume, e em certo momento desaparecera por
uns vinte minutos, antes do jantar, o que levara o sr. Adam a desconfiar que ele tramava alguma coisa.
Kit era ardiloso e as três mulheres, suas escravas voluntárias. O capitão, que praticamente não
conhecera os pais e fora criado sob a tutela de um tio severo, intolerante, observava a situação familiar
do rapaz admirado e sem compreendê-la. De qualquer forma, ela explicava algumas das facetas do
caráter de Kit, que até então lhe pareciam incompreensíveis.

Aceitou uma dose de conhaque e cruzou as compridas pernas antes de falar no que o preocupava:
— Precisamos conversar, Kit.
— Poderíamos ter conversado à tarde, se você não fugisse. O que aconteceu?
— Como já disse, você se enganou. Não quero desistir do casamento, mas sim ter certeza de
que a srta. Emily vai aceitá-lo de boa vontade. Você sabe que não estamos agindo certo. Pare de
dizer a ela o quanto sou formidável, pelo amor de Deus! Mais você me elogia, mais ela me hostiliza,
além de ser embaraçoso.
— A modéstia não lhe assenta bem, meu caro.
— Escute, essa moça não aceitará a primeira oferta de casamento que surgir. Provavelmente,
tem ideias firmes a respeito, talvez até se interesse por outra pessoa.
— Ela já passou dos vinte e cinco. Nessa idade, as mulheres ficam em pânico, param de escolher
e aceitam o que aparecer. Veja Hester, ela aceitou o George.
— Não posso opinar sobre a escolha da srta. Godfrey, mas não acredito que a srta. Weston esteja
em pânico, como você diz. É uma mulher bonita, inteligente e se não estivesse enterrada neste fim de
mundo, teria filas de admiradores. Acho que eu posso, simplesmente, me aproximar dela, informá-la
que está tudo decidido e que vamos nos casar? Ela pensará, no mínimo, que estou bêbado. Aliás, ela
acha que sou um perdulário fardado e que exerço influência perniciosa sobre você.
— Onde está a sua força de caráter, homem? — surpreendeu-se Kit. — O que aconteceu com
você? Será que é o mesmo camarada que vi galopando e urrando sob os narizes dos inimigos, de sabre
desembainhado, que passou por cima de um canhão francês?
— Isso foi muito mais fácil do que propor casamento a uma mulher que, claramente, não me
quer! — rugiu o sr. Adam.
— Já sei o que faremos! Vamos cortar um baralho. O ás é a maior carta. Se eu ganhar,

PROJETO 2
Sissi 17 – Uma esposa comprada – Ann Hulme

você pede Emily em casamento amanhã; se você ganhar, fará isso no fim de semana. — Kit
embaralhou as cartas e abriu-as em leque: — Tire uma.
O sr. Harcourt tirou um valete; o jovem Godfrey, um rei.
— Amanhã é o dia — declarou o rapaz, rindo.
A sra. Godfrey ficara tão impressionada com as palavras do filho que passara a noite quase sem
dormir, examinando todas as possibilidades. Quando clareou, ela não apenas sabia o que precisava
dizer a Emily, como também já tinha organizado o casamento, nos mínimos detalhes, e planejava idas a
Oxford, para comprar o enxoval.
Mandou chamar a moça logo cedo e conversou com ela de maneira muito comedida, segundo sua
própria opinião, enumerando as muitas e boas qualidades do capitão Harcourt, inclusive sua renda.
— Minha querida — continuou a sra. Godfrey, com um brilho malicioso, confesso que sempre
sonhei com algo assim. E acho que...
— Calou-se, surpresa ao vê-la empalidecer.
— Madame — balbuciou a moça. — Deve haver um engano.
— Absolutamente. Ele conversou com Kit, como os homens costumam fazer, e disse que gosta
de você. Agora, Emily, ouça, por favor: sei que tem sido feliz aqui e vou sentir muito a sua falta,
porque a considero minha filha, também. Preocupei-me muito com o seu futuro e acho que deve dar a
entender ao capitão Harcourt, da maneira mais digna possível, que suas atenções não serão rejeitadas.
— Mas vou rejeitá-las! Não são bem-vindas! — exclamou Emily, nervosa. — Madame, acredite,
esta é mais uma das brincadeiras de Kit e ele vai me pagar! Como ousou fazer uma coisa assim? É
inacreditável!

— Christopher está preocupado com o seu futuro tanto quanto eu e sei que ele não brincaria com
assunto tão sério! — declarou a sra. Godfrey.
Emily, então, saiu correndo e desceu, mas não encontrou os cavalheiros na sala do café, nem na
biblioteca. Tornou a subir e colidiu com uma criada que levava água quente para os quartos.
— Onde está o capitão Harcourt? — perguntou, agitada.
A criada assustou-se com a expressão feroz da senhorita e explicou que os cavalheiros haviam se
deitado tarde, mas que já levara água ao quarto do capitão. Emily esperou que a moça descesse, então
foi ao quarto do sr. Harcourt e bateu à porta.
— Capitão, preciso falar urgentemente com o senhor. Há um terrível mal-entendido e precisamos
esclarecê-lo.
O sr. Adam, em mangas de camisa, abriu a porta.
— Pare de fazer barulho! — advertiu, em voz baixa. — Desse jeito, vai alertar a casa inteira.
— Preciso falar com o senhor!
Ele examinou o corredor vazio e deu um passo atrás.
— Nesse caso, é melhor entrar, embora não seja certo. Aliás, se ninguém souber, não haverá
objeções.
Emily entrou e ele fechou a porta. Quando o bom senso prevaleceu sobre as emoções, ela viu que
mais uma vez fizera a coisa errada: estava no quarto do sr. Adam e não podia prever o que ele pensaria
disso. Ficou perto da porta, para o caso de precisar fugir. Ele percebeu, encolheu os ombros e voltou ao
lavatório, onde uma espiral de vapor subia do jarro.
— Não se importa se eu me barbear? — indagou, solícito. — A água não está muito quente e
fazer barba com água fria, posso garantir, é muito dolorido.

PROJETO 2
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— Não.
Ficou fascinada, observando-o enquanto ele ensaboava o rosto e encolheu-se ao ver a navalha
cintilante, ao ouvi-la raspar. Parecia uma coisa perigosa, dolorida.
— Por que não senta? — perguntou ele, observando-a ao espelho, enquanto esticava a pele, a fim
de raspar perto da garganta.
— Obrigada, ficarei aqui mesmo. — murmurou ela e, depois, disse: — Parece muito difícil.
— É difícil. Quando fui para a Espanha tinha um camareiro, mas precisei dispensá-lo: a mão dele
tremia demais. Desde então, adotei os serviços de ordenanças, bons rapazes, porém maçantes. Aqui na
Inglaterra, faço tudo sozinho e preciso contratar um camareiro.
— Fez uma pausa e indagou: — Por que veio, toda agitada, falar comigo?
— Ah! — surpreendeu-se ela, vendo que esquecera o propósito de sua visita. Prosseguiu,
nervosa: — A sra. Godfrey mandou me chamar. Kit disse uma porção de bobagens a ela, ontem que o
senhor gosta de mim. E o senhor precisa falar com ela imediatamente e explicar que não é verdade.
Sabe como são as velhas damas. Vivem de imaginação e adoram interferir na vida dos outros, para
ajudar. Precisa, também, dizer a ele para não dizer mais essas coisas bobas!
O capitão afastou a navalha do rosto e resmungou, em tom zangado, mas ela não entendeu o que
dissera: — O senhor se cortou? — perguntou, preocupada.
— Não! — A voz dele soou tão afiada quanto a navalha.
— Maldito garoto! Sente-se, srta. Emily. Vou terminar num instante e conversaremos com
calma.
Ela sentou-se perto da porta, enquanto ele enxaguava o rosto e o secava com a toalha felpuda.
Voltou-se, então, e Emily notou que havia sangue em seu rosto.
— Não posso dizer nada disso à sra. Godfrey! — exclamou, com raiva. — Mas, acredite, vou
dizer uma porção de coisas a Chistopher Godfrey! — Jogou a toalha numa cadeira, abaixou as mangas,
começando a abotoar os punhos e uma das abotoaduras caiu.
— Diabo!
— Dê-me a abotoadura, que eu abotoo para o senhor — disse a moça, automaticamente, e ficou
surpresa ao vê-lo rir.
— Kit me disse que a senhorita sempre reprega os botões das roupas dele.
Enfiou as mãos nos bolsos e fitou-a, pensativo. O colarinho da camisa encontrava-se aberto e
Emily via o ponto onde começavam a nascer os pêlos negros, sedosos, que desciam pelo peito
largo. Sentiu-se confusa, ignorante e compreendeu que a vida ali, em companhia de duas mulheres, não
a ensinara a lidar com os homens, muito menos com aquele homem. Ele a olhava com a mesma
expressão que tivera na beira do córrego. Ao lembrar-se do que acontecera lá, ela enrubesceu e tentou
apagar a imagem dele deitado, com o chapéu de palha cobrindo-lhe o rosto.
Ele respirou fundo, como se também expulsasse pensamentos, e falou, em tom decidido: —
Emily, srta. Weston, preciso lhe dizer uma coisa que Kit e eu deveríamos ter dito logo de começo. Peço
desculpa pela minha omissão e ele também terá de se desculpar, se não quiser levar uma surra. Mas,
por favor, prometa-me que não ficará zangada, se for possível. Bem, eu acho que vai ficar, sim.
— Continue, por favor — pediu ela, sentindo o coração pesado. — De algum jeito, as coisas têm
a ver com Kit, não?
— Sim e não.
O sr. Adam reorganizou os fatos com habilidade, escolhendo o que devia dizer e o que ela jamais
deveria descobrir. Saber o que Christopher fizera, realmente, poderia partir-lhe o coração e ele não
queria que isso acontecesse.

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— Uma noite, numa pequena aldeia dos Pireneus, varrida pelo vento gelado, Chistopher e eu
conversávamos. — começou, pigarreando. — Disse-lhe que quando voltasse para a Inglaterra
pretendia me casar, mas não conhecia nenhuma dama conveniente. Kit, então, sugeriu.
Calou-se. Não conseguia dizer a ela que o rapaz de quem gostava tanto a dera a outro ou melhor,
simplesmente a vendera.
— Ele sugeriu meu nome — ajudou-o a moça, com voz trêmula.
— Sim. Ele não queria prejudicá-la, acha a senhorita maravilhosa! — Curvou-se para a frente,
dando ênfase às palavras. — Descreveu-a de tal modo que sua imagem me pareceu ideal e, então, vim
aqui para cortejá-la. — Sorriu, acanhado. — Mas até agora só consegui enfiar os pés pelas mãos.
Emily, meio atordoada, tentou entender e disse: — Bem, não importa o que conversaram na
Península. Agora a situação é diferente. Quero dizer, estavam longe de casa, sentiam-se isolados,
tinham saudade. O senhor voltou e pode cortejar quem quiser.
— Mas vim para cá. — a voz dele soou baixa, rouca.
— Sim. Admiro sua determinação em manter a palavra que deu a Kit, mas o que quer que tenha
dito, então, não se aplica ao momento. O senhor não precisa casar comigo.
Fez-se um longo silêncio, por fim ele admitiu: — É, não preciso. Mas estou preparado para...
Quero dizer, eu me sentiria muito honrado se a senhorita quisesse considerar meu pedido. Não sou
pobre e...

— Sei disso, senhor. No entanto, jamais me casaria por dinheiro. Agradeço, capitão Harcourt,
mas vou desconsiderar. O senhor cumpriu sua obrigação, fez o que prometeu ao Kit, recusei e,
portanto, está livre. — Ergueu-se, corada, e segurou a maçaneta. — Eu sabia que ele tinha algum
segredo, sabia que a vinda do senhor aqui não era uma simples visita! Gostaria muito que fosse
embora, capitão.
— Naturalmente — concordou ele, calmo. — Tratarei de ir imediatamente. Kit poderá mandar
meu baú, depois.
— Recusou? Você o recusou? — berrou Kit, vermelho e com uma expressão de raiva que ele
jamais vira. — Não podia, não devia ter feito isso!
— Podia, sim! — teimou Emily. — E fiz! Não grite comigo, Kit. Não fui eu que agi mal. Mas
não vou dizer nada, embora você não devesse ter feito o que fez. Pelo menos, devia ter sido honesto
comigo, contando tudo. Aí eu saberia de que modo falar com o capitão Harcourt. — Ela esforçou-se
por manter a calma. — Você nos colocou em posição intolerável, sua mãe, o capitão, eu. Por que falou
com sua mãe, Kit? Bom, de qualquer jeito, eu disse a ele que gostaria que fosse embora e ele
concordou. Claro, não há condições de ficar.
— O quê?! — O vermelho da raiva desapareceu do rosto do rapaz, que ficou muito pálido. —
Ele não pode! Emily, será que não entende o que fez?
Como se as pernas não suportassem mais seu peso, o jovem Godfrey deixou-se cair numa
poltrona e cobriu o rosto com as mãos. Assustada, Emily aproximou-se, ficou de joelhos junto dele e
tentou afastar-lhe as mãos do rosto, mas ele a impediu e sacudiu a cabeça.
— Kit. O que foi? Por favor, conte-me a verdade, pois não adianta mentir. Sempre sei quando
você esconde alguma coisa e desta vez também. Diga-me o que aconteceu, mesmo.
Por fim, ele descobriu o rosto. Estava desfigurado.

PROJETO 2
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— Não posso, Emi. É horrível demais.


— Deve me contar, Kit. Vamos, pare com isso! Sabe que não sou de gritar e desmaiar. Nem vou
contar a Hester ou a sua mãe, se você não quiser.
— Elas não podem saber! — exclamou ele, apertando com força os delicados pulsos da moça. —
Não devem saber, nunca! Estou muito envergonhado, Emi! E sei que você vai ficar furiosa comigo.
— Solte-me, Kit! Está me machucando.
— Desculpe. — murmurou o rapaz e soltou-a.
Emily ergueu-se, puxou uma cadeira para perto dele, sentou-se e esperou. Por fim, ele começou,
em voz baixa: — Procure entender a situação, Emi. Entre uma batalha e ou acampávamos. Era
marchar, lutar e acampar, com sol, chuva, vento, neve, lama. Um tédio! As cidades lá são bonitas, mas
monótonas. Muito vinho barato em aldeias pobres e moças ciganas. As respeitáveis são vigiadas por
um exército de mães, tias e aias. Não há nada para distrair, só carteado.
— Você. Você jogou! A voz de Emily era quase um sussurro. — Jogou e perdeu.
— Demais — admitiu o rapaz.
— Perdeu para o capitão Harcourt?
— Não apenas para ele, o que não faria diferença: Adam jamais me cobraria. Mas os outros, não.
Depois de algum tempo perdendo, é preciso pagar. Eu sempre esperava uma noite de sorte, para me
refazer, porém ela nunca chegou. As dívidas se avolumaram. Fiquei desesperado. Muitos perdiam, mas
não se importavam: suas famílias são ricas. Nós não somos. Hester escreveu, dizendo que ia casar com
George e que mamãe ia gastar uma fortuna no casamento. Sabia que se eu pedisse dinheiro elas
mandariam, mas seria o dote de Hester.
Fez uma pausa. Baixou os olhos, não conseguindo suportar o olhar triste de Emily, e continuou:
— Você é maravilhosa, Emily, e Deus a abençoe. Nunca teria pensado em Adam e você se não
soubesse que ele é o melhor homem do mundo. Não iria dar você a qualquer um. Quando meu capitão
disse que queria uma esposa e que pagaria minhas dívidas se eu lhe arranjasse uma.
Então era isso. Não fora uma promessa, mas apenas um sórdido trato, um acordo vergonhoso.
Simplesmente, Christopher a vendera ao capitão Adam Harcourt.
— Você me vendeu — disse ela, com voz embargada, retirando a mão que ele pegara.
— Você me vendeu ao capitão!
— Não veja as coisas assim, Emi, por favor! — pediu ele, envergonhado.
— De que outro modo posso definir o trato que fizeram? E quanto foi, Kit? Quanto ele pagou por
mim?
— Dez mil libras. — murmurou o jovem Godfrey, abaixando os olhos.
— Dez? — Ela ficou horrorizada e as palavras não queriam sair de sua garganta. — Tanto
assim? Você devia tanto, Kit? — conseguiu dizer, dolorosamente.
— Sim. Harcourt cumpriu sua parte do trato, pagou. Então, tive que cumprir a minha, fazendo-o
vir aqui.
— Para buscar a "mercadoria"! — interrompeu ela, com amargura.
— Emily, sinceramente, não pensei que as coisas iam acontecer assim. Achei que você ia gostar
dele. Tinha certeza e não entendo por que não gosta!
A moça permaneceu calada. Então, o arrependimento desapareceu da voz de Christopher e foi
substituído por um tom ressentido, como se a culpa de tudo fosse dela.
— Você vai fazer vinte e seis anos, Emi, e acho que quer casar. Por aqui não há muita escolha,
pois não é Hester e jamais aceitaria alguém como George. Adam é rico, teve uma brilhante carreira
militar, é bem relacionado, as mulheres o perseguem. Por que você tem

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que ser diferente?


— Pare de querer justificar-se, Kit! — irritou-se ela. — Pelo menos ele não tentou fazer isso.
Agora, vamos ser práticos. Se eu não me casar com ele, acha que o capitão pedirá o dinheiro de volta?
— Ele garantiu-me que não. Mas é uma dívida de honra! Será que não pode entender isso,
Emily? Fizemos um trato, apertamos as mãos, ele pagou minhas dívidas. Se eu não lhe der a noiva que
prometi, serei obrigado a devolver o dinheiro, mesmo que Adam não queira. Se alguém souber que
fiquei com o dinheiro dele e não cumpri minha palavra vai ser pior do que antes, porque o capitão seria
considerado um tolo.
Tornou a segurar as mãos dela e fitou-a com um olhar implorante: — Emi, não quer
reconsiderar? Olhe, se recusar, o único jeito será pedir o dinheiro a mamãe. Isso significaria gastar o
dote de Hester e ela nunca mais se casaria! Não pode fazer isso comigo, Emi, com mamãe, com Hester!
Depois de tudo que elas fizeram por você, tantos anos, dando-lhe carinho, um lar.
Emily ouvia e a voz de Christopher Godfrey passava pelos ouvidos dela como a água quente que
removera a espuma do rosto do sr. Adam. Pela primeira vez via o rapaz como realmente era: fraco,
egoísta, estróina, pronto para pôr a culpa de seus erros nos outros, capaz de receber amor sem nada
oferecer em troca. Um garotinho mimado que se tornara um rapaz mimado e nunca mais poderia sentir
o carinho que até então sentia por ele.
Kit dizia a verdade: se tivesse que pegar dinheiro da família para devolver ao capitão, os
Godfrey seriam destruídos. E do jeito que as coisas encontravam, seria ela, Emily, a causadora dessa
destruição.
— Compreendo e não vou desapontá-lo, Kit — murmurou ela, por fim, com voz abafada.
O rosto do rapaz iluminou-se, readquirindo vida imediatamente, para assumir uma expressão
perplexa ao ouvir a irmã de criação dizer: — Engraçado. A filha de Honeyburge valia apenas um
guinéu e a srta. Weston vale dez mil libras. Gostaria de saber o valor atual que o capitão Harcourt me
atribui!
Ele abriu a boca para perguntar o que aquilo significava, mas ela virou-lhe as costas e retirou-se.
O sr. Adam Harcourt não perdera tempo em cumprir o que prometera. Seu alforje estava
pronto, no hall e ele se encontrava na estrebaria, onde Emily foi encontrá-lo conversando com o
cavalariço. O sol que entrava pelo enorme portão criava reflexos azulados nos cabelos negros do
capitão. Ele segurava uma cigarrilha acesa na mão esquerda, do mesmo tipo que o jovem Christopher
trouxera da Espanha; a fumaça azulada desprendia-se, em volutas, quando ele movimentava a mão
grande e morena, indicando o que devia ser feito.
Era muito alto, forte, de estrutura imponente; o rosto de traços marcados, de uma beleza máscula
e morena, tinha um certo ar de arrogância, de quem está acostumado a ver suas ordens imediatamente
obedecidas, a conseguir tudo o que quer, sem se deter diante de obstáculos.
Hesitante, Emily avançou com dificuldade sobre as pedras irregulares que calçavam o corredor
central da estrebaria. Quando o sr. Adam a viu reparou na expressão transtornada do rosto tenso,
pálido, colocou-se entre ela e o criado, para que este não percebesse sua aflição. Jogou a cigarrilha fora
e esmagou-a com um pé, enquanto a observava com atenção.
— Falei com Kit. — disse a moça, quase sem voz.
— Aqui não, por favor — avisou ele, com calma. — Venha comigo.
Deu o braço a Emily e guiou-a para fora, em direção à alameda coberta de cascalho que
contornava a casa, a partir da alameda que ia dar na entrada principal. Emily se deixou

PROJETO 2
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levar, sem resistir, até chegarem ao gramado, onde pararam, de frente um para o outro.
— Christopher contou-lhe tudo? — perguntou o capitão, fitando-a com intensidade.
— Sim. Contou sobre o trato. Contou tudo.
Os ombros largos do capitão se retesaram e ele cerrou os punhos. Sem querer, Emily pensou que
o rapaz tinha sorte de não estar por perto.
— Sinto muito ele ter falado. Aquele rapaz é um idiota! — A voz do capitão mostrava-se
repassada de ira; então acrescentou, com um suspiro: — Não posso dizer que me orgulho do papel que
fiz. O que aconteceu não traz nada de louvável para Kit ou para mim.e nem sequer tenho a desculpa de
que estava desesperado.
— Ele disse que deverá devolver-lhe o dinheiro, se eu não... não quiser — e a voz de Emily
sumiu.
— De jeito nenhum! — O sr. Adam ficou enfurecido. — Nem se fala nisso e eu já tinha dito a ele
que não precisa devolver nada.
— Mas Kit pensa de outra maneira. E acho que ele está certo. É uma questão de honra, senhor.
Deus sabe que se, por uma vez, Christopher Godfrey quer agir de forma honrada, não devemos
atrapalhá-lo.
— Escute — começou o capitão, constrangido. — As coisas não são bem assim como a senhorita
e ele pensam. Eu sabia que Kit estava endividado e que não tinha a menor possibilidade de pagar as
dívidas sem a ajuda de alguém. Ele começara a beber exageradamente, proclamando-se um infeliz,
dizendo que ia procurar um agiota ou, então... que ia terminar com tudo de uma vez.
Emily estremeceu ao ouvir aquilo, abriu a boca para dizer alguma coisa, porém o capitão a fez
calar-se, com um gesto da mão enorme, morena, no entanto delicada nesse momento.
— Antes que ele chegasse a esse ponto eu já decidira ajudá-lo e procurava um jeito de fazê-lo
sem ofender-lhe a dignidade, o orgulho. Kit encontrava-se desanimado, sem sorte nenhuma, sem apoio
e seria muito fácil deslizar para o abismo, na disposição com que se encontrava. Foi então que ele
mesmo teve a ideia, a partir de uma frase minha, quando lhe disse que voltando para cá pretendia
procurar uma esposa. — Ele gesticulou, meio aflito, como se quisesse apagar aquelas palavras. — Não
é que eu esteja querendo me justificar com isto, srta. Emily.
— Eu devia agradecer ao senhor por tentar ajudar — disse Emily, muito séria e pálida.
— E agradeço.
Ergueu os olhos, para fitá-lo. A brisa passou pelos longos cabelos castanhos, presos, soltando um
dos caracóis que ficou a balouçar junto à face da moça.
— Na verdade, também tentava ajudar a mim mesmo — explicou ele. — Sou muito acanhado,
quando se trata de manobras sociais. Salas de visitas, saraus musicais, bailes, não combinam comigo ou
eu com eles. Costumo derrubar as coisas, pisar nos pés das damas, dizer inconveniências. A vida
militar, companhias mais rudes são a minha preferência.
Ela percebeu que ele queria dizer que se sentia muito mais à vontade com companhias
masculinas. Imaginou que para aquele homem as mulheres significavam apenas a satisfação de uma
necessidade, quando esta se apresentava. Ele não saberia como encaixar uma mulher em sua vida de
maneira permanente e qualquer uma que tentas-se partilhá-la teria que se conformar com solidão e
omissões involuntárias. O sr. Adam jamais permaneceria em casa, sentado ao lado da lareira. No
entanto, pensou Emily, se tivesse uma casa a ser dirigida, filhos, até que sua vida poderia ser razoável.
Confortável, tinha certeza de que seria. Precisava reconhecer, de qualquer maneira, que muitas
mulheres tinham que se contentar com muito menos do que isso.

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— O senhor disse que estava preparado para se casar comigo — murmurou ela, por fim, com
grande esforço. — Ainda pensa do mesmo jeito ou já desistiu?
Ele olhou-a profunda e seriamente, antes de responder, com voz grave e um tanto presa: — Ainda
faço o mesmo pedido. Mas se a senhorita não quiser...
— Nesse caso, aceito — interrompeu-o Emily, em voz ainda mais baixa, porém firme,
determinada.
— Aceita, apenas por causa de Christopher? — indagou ele, sem conseguir esconder a irritação.
— Não é só por causa dele. — respondeu a moça e ficou calada, pensativa.
Havia Hester e a sra. Godfrey que eram mais importantes para ela do que Kit. Mas cometeu o
erro de não declarar isso, desfazendo a impressão errada que o capitão tinha a respeito, achando que ela
amava o irmão de criação.
Ela fez isso por causa do rapaz, pensou ele, e aquele vadio sem caráter não merece tanta devoção!
— Nesse caso — disse porém, afastando o pensamento. — Vamos entrar e dar a boa notícia à
sra. Godfrey.

CAPÍTULO IV

A notícia do noivado do capitão Harcourt e da srta. Emily causou verdadeira sensação. As


pessoas mais interessadas dividiram-se em dois grupos, o primeiro composto por Christopher Godfrey,
e sr. George Arbuthnot, que estavam entusiasmados, e o segundo pelos noivos, cuja felicidade
parecia estranhamente discreta.
O sr. Adam Harcourt, na opinião da sra. Godfrey, era por natureza pessoa pouco falante,
e como se demonstrasse mais calado ainda, realmente silencioso, ela começou a temer que estivesse
arrependido. A notícia, porém, além de sair no jornal local fora publicada também no Times, portanto
ele não mais poderia mudar de ideia. Aliás, a boa senhora achava aquele noivado algo bom demais
para ser verdade e imaginava se a decisão dele não teria sido causada pela euforia de voltar à
Inglaterra, pelo fato de Emily ser a primeira moça inglesa com quem entrara em contato mais
demorado, logo depois do retorno. O capitão podia ter perdido temporariamente a cabeça. Quem sabe?
Quanto a Emily, em vez de mostrar-se radiante, como ficaria qualquer moça com vinte e seis
anos, vivendo naquele cantinho esquecido por Deus, onde a única perspectiva era se tornar uma velha
solteirona, ao ver-se escolhida por um homem bonito e rico como o capitão, parecia mais uma
condenada à morte nas proximidades da execução.
Pensando nisso, a velha senhora pensou que deveria ter com a jovem uma boa conversa sobre as
realidades do casamento: tinha certeza de que o desânimo e a tristeza dela se deviam a preocupações
nesse sentido, provavelmente ligadas ao leito nupcial. Já tivera uma conversa parecida com Hester e
suas informações haviam sido estoicamente recebidas pela filha, que não fizera muitos comentários. E,
na ocasião, a sra. Godfrey pensara que não podia esperar qualquer entusiasmo por parte de alguém
prestes a se deitar

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com George Arbuthnot. Mas com o capitão Harcourt era outra coisa.
A alegria do sr. George Arbuthnot diante do noivado era de natureza diferente. Ficara surpreso.
Não conseguia entender como um homem do tipo do sr. Harcourt, primo de um Par do Reino e com um
rendimento de quinze mil libras por ano, quisesse casar com uma moça que tinha apenas cinco mil
libras como dote e gênio tão agressivo. Em várias ocasiões a srta. Weston fora rude com o sr.
Arbuthnot e embora ele houvesse perdoado, como bom cristão, não esquecera. Já havia decidido que
não aceitaria a srta. Emily Weston em seu lar se um dia Kit resolvesse casar, como teria que
acontecer, e não a escolhesse e se nessa ocasião a sra. Godfrey já tivesse morrido, como também teria
que acontecer. O sr. George achava que as coisas deviam sempre ser pensadas e planejadas com
antecedência.
Ficou decidido que o sr. Adam iria imediatamente para Essex, onde tinha sua propriedade, para
mandar pôr a casa em ordem. Voltaria a Leigholm para o casamento. Emily compreendeu que seria
dona de seu nariz por mais umas poucas semanas. Talvez fosse melhor assim. Era como precisar
arrancar um dente: quanto antes, melhor.

A conversa planejada pela sra. Godfrey acabou sendo apenas um monólogo da boa senhora, que
usara eufemismos quase incompreensíveis para explicar o relacionamento íntimo de um casal. De
modo quase cínico, Emily pensara que as atenções do marido não iriam incomodá-la muito: era claro
que ele gostava de outro tipo de mulher e a adquiria apenas com finalidade de reprodução. Quando
ficasse grávida, ele iria dedicar-se a outras diversões e ela só esperava que o fizesse discretamente.
Conseguiu não pensar nos próprios sentimentos, determinada a não levá-los em consideração.
Christopher Godfrey, como era de se esperar, pensava apenas em si, em divertir-se.
Antes de Adam ir para Essex, propôs que fossem a Oxford, para jantarem juntos.
— Vai ser nossa última saída com você solteiro, amigo! — argumentara. — Quando você voltar,
vai ter que ficar com sua noiva, namorar, exibir aquele ar apaixonado. Principalmente depois que se
casarem. Como sabe, os recém-casados têm sempre um ar bobo, meio besta, mesmo!
— Não acho — retrucou o sr. Adam, um tanto brusco. — Que a srta. Emily queira que eu a
namore. E nem saberia como fazer isso. Não diga asneiras, Kit.
— De qualquer modo, tem que ir comigo para Oxford e vai ser meu convidado para jantar —
declarou o rapaz. — Vamos esvaziar uma garrafa para brindar aos seus últimos dias de liberdade.
Acho que vamos ter que convidar George, aquele traste! Tenho certeza de que não sabe beber e que
nosso fim será carregá-lo para casa e enfiá-lo na cama.
Preocupação inútil, essa, pois o sr. Arbuthnot recusou o convite e, afinal, o sr. Adam deixou-se
convencer pelo jovem amigo. Não sentia vontade alguma de festejar, mas aquilo pelo menos era uma
desculpa para sair de Leigholm, do jantar durante o qual teria que ver sua noiva olhando para a comida
com o maior desânimo. Era melhor, mesmo, não ficar onde não fazia falta e já que ia a Oxford, o
melhor seria divertir-se.
Deixaram os cavalos na Estalagem Mitre e saíram andando pelas ruas, a fim de ver as
possibilidades. Logo descobriram que eram numerosas e que as fardas que usavam faziam todas as
portas se abrirem. Experimentaram as bebidas de uma porção de locais e quando resolveram voltar para
casa enveredaram pela Turl Street com passos trôpegos. Kit, como sempre, bebera bem mais do que
aguentava e recusava-se a ir embora, dizendo que ainda era cedo, embora meia-noite já tivesse soado
fazia tempo. O capitão amparava o amigo; se não fosse o fato de temer que Emily se preocupasse, de
manhã, ao ver que não haviam voltado para casa, preferiria ficar numa estalagem.

PROJETO 2
Sissi 17 – Uma esposa comprada – Ann Hulme

Chegavam ao local onde haviam deixado os cavalos quando um vulto feminino saiu das sombras:
os dois oficiais fardados e obviamente bêbados, tinham atraído a atenção de uma das mulheres que
percorriam as ruas de Oxford, à noite.
— Alô, amor. — disse ela a Kit, que se encontrava mais perto.
— Tão garboso e sozinho? Isso não pode ser!
— Tem razão, querida! — concordou Kit, desvencilhando-se do braço do amigo e segurando a
moça. — Vamos tomar um trago, beleza!
— Pelo amor de Deus! — exclamou o capitão. — Não dê atenção ou nunca mais nos livraremos
dela!
Ele também bebera demais, porém, ainda sabia o que fazia.
— Adoro soldados! — afirmou a mulher e agarrou-se ao braço do jovem Godfrey.
— E uma moça muito in... — e Kit não conseguiu terminar, caindo de frente, quase desmaiado.
— Que horror! — assustou-se a moça. — Este bebeu além da medida, mesmo!
— Como vê, nem se aguenta mais! Ajude-me a colocá-lo de pé — pediu o capitão, bruscamente.
— Que diabo, Kit! Levante-se! Estalajadeiro! Está me ouvindo! Mande selar nossos cavalos!
— Vão embora, mesmo? — indagou a moça, melosa, encostando-se no capitão.
Os longos e emaranhados cabelos dela, de um amarelo duvidoso, embaraçaram-se nos botões da
farda. Ele já tivera contato com muitas jovens daquele tipo, mas naquele momento sentiu uma
repugnância inexplicável e uma vontade imensa de afastá-la o mais depressa possível. Fez isso e tratou
de cuidar do amigo.
— Que pena! — lamentou-se ela. — Você é grandão, forte. Aposto como sabe gozar a
vida!
— Sei, sim, mas não agora!
O tom de voz do capitão não deixou dúvida: ela compreendeu que não havia jeito e
virou as costas para ir embora. Ele sentiu pena: com certeza a moça estava ali tentando ganhar para
viver. Pegou uma moeda e pôs na mão dela.
— Vamos, vá tratar de sua vida — disse, com mais suavidade.
— Eu não tenho tempo e ele... — olhou para Kit, sentado no chão. — Ele não está em condições,
bebeu muito.
A moça encolheu os ombros, depois se afastou. O sr. Adam e o estalajadeiro conseguiram, por
fim, colocar o jovem Godfrey na sela. Ao cair ele machucara o rosto; não era grave, mas sangrava
bastante e a dor parecia ter-lhe devolvido um mínimo de consciência, fazendo-o compreender em que
estado se encontrava. Não protestou quando o capitão, já montado, pegou as rédeas de seu cavalo e o
fez encaminhar-se na direção certa.
— Venha atrás de mim, entende? Se tiver tontura ou enjoo, grite, que eu paro. Vamos embora,
temos uma hora a cavalo pela frente.
Emily não conseguia dormir e o luar penetrava por uma fresta da cortina. Começava a se
preocupar: passava das duas horas da madrugada, Kit e o capitão não tinham voltado. Levantou-se, foi
até o banco sob a janela e ajoelhou-se nele, observando o jardim banhado pela luz da lua. Podia ver
tudo, mas como por entre uma névoa prateada, que eliminava as cores. Quando seus olhos percorreram
o caminho de cascalho que levava à porta principal, viu surgir dois vultos escuros. Abriu a janela e
debruçou-se no peitoril, perigosamente, para vê-los dirigirem-se à estrebaria. O sr. Adam ia à frente,
firme na sela, mas a postura de Kit a impressionou: parecia encolhido. Teria tido algum acidente? Ele
prometera à mãe que voltariam antes da meia-noite, mas claro, na companhia de Adam Harcourt
esquecera a promessa.
Tornou a deitar-se, mas ficou ouvindo, atenta. Percebeu-os entrar tropeçando, batendo

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em móveis, sussurrando. Ela acabou se convencendo que tinha, mesmo, acontecido, algo e, aflita,
levantou-se de novo, vestiu o robe e foi para o patamar da escada.
Ouviu um corpo pesado cair ao chão e, em seguida, uma enfiada de palavrões. O capitão
Harcourt estava xingando Kit. Metade das palavras eram desconhecidas para ela, mas o sentido estava
mais do que claro. Transtornada, ela só compreendia uma coisa: Kit, seu amigo, seu companheiro de
infância encontrava-se em apuros e, sem pensar se era sensato ou prudente, Emily fez o que sempre
fizera quando eram crianças: correu para ajudá-lo.
Desceu a escada voando e foi para o hall de entrada. As duas velas acesas, deixadas para a
chegada dos dois cavalheiros, estavam quase consumidas, mas produziam luz suficiente para revelar
uma cena alarmante: Kit sentado no chão, com o rosto banhado de sangue, e o sr. Adam, inclinado,
procurava erguê-lo, sem qualquer cuidado. Ao contrário, os modos dele eram brutais.
— Levante-se, seu idiota! Vamos! — rugia o capitão. — Se não levantar, fica aqui no chão! —
Devia tê-lo deixado na estrada!
— O que aconteceu com ele? — perguntou Emily.
O sr. Adam voltou-se e ficou estupefato ao vê-la de camisola e robe, descalça.
— Meu Deus! O que está fazendo aqui? Vá para a cama, vai apanhar uma friagem.
Ignorando-o, ela ajoelhou-se junto de Kit.
— Está machucado. O que aconteceu? O que o senhor fez com ele?
— Nada! Ele tropeçou nos próprios pés e caiu. Nesse momento, o jovem Godfrey abriu os olhos:
— Ah! Eis Emily, a moça admirável! Arranjei marido para você, viu? Onde ele está? Hum, está aqui.
Pare de balançar desse jeito, Adam!
Emily sentiu o bafo azedo de vinho e fez uma careta.
— Ele está bêbado!
— Fantástico! A senhorita percebeu! — exclamou o capitão, sarcástico. — É muito observadora.
Volte para a cama!
— E deixo Kit aos seus carinhosos cuidados? Coitadinho! Não estaria assim se não saísse em sua
companhia. Olhe quanto sangue!
— Vou buscar água e...
— Não precisa! — E o sr. Harcourt agarrou-a por um braço, sem qualquer gentileza. — É só um
arranhão e eu cuido dele. Já está parando de sangrar. Volte para a cama!
— Não! O que vai fazer com Kit?
— Pretendo deitá-lo. Saia do caminho, por favor, antes que ele faça mais barulho e acorde a mãe
e a irmã. Não quer que elas o vejam assim, não?
Era verdade. Emily adiou o que tinha vontade de dizer e ajudou o capitão a erguer o irmão de
criação e mantê-lo de pé. Subiram a escada quase arrastando o rapaz e levaram- no para o quarto dele,
que estava às escuras. Kit, então, pareceu reconhecer onde estava, pois empurrou os dois, cambaleou
até a cama e deixou-se cair sobre ela, permanecendo imóvel.
— Ele desmaiou! — assustou-se a moça.
— Está dormindo — contrapôs o sr. Adam.
Encontrou uma vela, acendeu-a. Kit jazia de costas na cama, a cabeça no travesseiro, as botas
sobre a colcha e um sorriso angelical nos lábios.
— O que vamos fazer? Acordá-lo? — sussurrou Emily.
— Ele não acordaria nem com as trombetas do Juízo Final. Vou tirar-lhe as botas e deixá-lo
dormir.
— Não posso deixá-lo dormir nessas condições! — revoltou-se ela. — Deve haver água aqui,
vou limpá-lo um pouco.

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Conseguiu, de fato, retirar a maior parte do sangue do rosto do rapaz e quando terminou, o sr.
Adam tratou de tirar a primeira bota. Puxou-a e o resultado foi irritante: ela não saía e Kit deslizava na
cama.
— Diacho! — exclamou irritado. — Sente-se em cima das pernas dele! — comandou.
— O quê? — os enormes olhos azuis abriram-se mais.
— Já que está aqui, faça algo útil. Sente-se sobre as pernas dele e mantenha-o no lugar, para eu
tirar essas malditas botas!
Sem saber o que dizer, ela obedeceu: sentou-se sobre os joelhos do rapaz inconsciente. Depois
de arrancar-lhe as botas, o capitão segurou-o pelos ombros e virou-o, fazendo-o ficar de lado; então
amontoou vários travesseiros junto às costas dele.
— O que está fazendo? — indagou ela, num sussurro.
— Ele está cheio de vinho e pode vomitar dormindo; muitos homens morreram sufocados, por
isso. Deitado de lado, nada de ruim vai lhe acontecer.
Terminou de ajeitar o amigo e endireitou-se.

— Ainda está aqui? — indagou, fitando a moça, depois deu-lhe a vela. — Vá para seu quarto,
agora. Ele vai acordar, com uma dor de cabeça dos diabos e será bem-feito! Espero que sofra bastante.
Não esperou resposta e saiu do quarto. Emily seguiu-o, fechando a porta com cuidado. Pensou que ele
fosse para o quarto, mas o capitão começou a descer a escada, procurando algo nos bolsos e
resmungando.
— Perdi minhas cigarrilhas. Esta maldita casa! Fria como um túmulo, cheia de mulheres
virtuosas como freiras!
Emily hesitou, depois não se conteve e espiou por cima do corrimão. Ele atravessou o hall, foi
para a biblioteca e fechou-se nela. Só então a moça percebeu que estava com frio e que a vela
gotejava, a cera quente quase lhe queimando os dedos. Devia ir para a cama, mas o que desejava
dizer àquele homem ainda estava entalado em sua garganta. Desceu.
Ele levara um dos tocos de vela do hall para a biblioteca e praticamente não havia luz. Emily
entrou e pôs a vela que carregava sobre uma mesinha. Iluminava um pouco mais, não muito. O sr.
Adam encontrava-se recostado no sofá, com uma garrafa de conhaque numa das mãos, um copo na
outra. Olhou-a.
— Ah! Aí está a noviça! Esta casa parece um convento dos romances da sra. Radcliffe. Aparições
fantásticas, vestidas de branco, flutuam pelas salas e corredores, gemendo. Por que ainda está andando
por aí? Parece lady Macbeth! Já lhe disse para ir se deitar! Vá embora, aparição!
— Vejo que vai beber mais — observou ela, fria. — Acha que é comportamento
adequado?
— Pouco importa.
— Se continuar, vai ficar como Kit — observou ela, exasperada. — Não pense que tenho forças
para arrastá-lo até lá em cima e colocá-lo na cama — só então reparou na inconveniência do que
dissera.
— Minha querida, não precisaria me arrastar, eu iria com a maior boa vontade! — Ele ergueu o
corpo, numa saudação. — Pode se apoderar de mim: sou todo seu.
— O senhor pensa que está sendo engraçado? — Emily aproximou-se e estendeu a mão. — Dê-
me essa garrafa, já!
— A senhorita é uma megera! — exclamou o capitão, sombrio.
— Kit mentiu! Disse que você... — esqueceu-se completam ente da boa educação, empolgado
como estava — não se importaria se eu bebesse um pouco, mas você é uma

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harpia! — suspirou profundamente e, para surpresa de Emily, entregou-lhe a garrafa.


— Pode me chamar de megera o quanto quiser — ela tratou de pôr a garrafa fora do alcance dele.
— Mas tenho umas coisas a lhe dizer, sr. Adam Harcourt. Por que deixou o pobre Kit ficar naquele
estado?
— O pobre Kit! — repetiu ele, irritado. — Não pude controlar o seu querido e pobre Kit! Além
disso, um homem tem direito de beber de vez em quando. Mulheres sensatas tapam os ouvidos e fazem
de conta que nada aconteceu — esvaziou o copo, como se a desafiasse.
— Prometeu-me que cuidaria dele.
— E cuidei. Até o trouxe para casa. Agora chega de lamúrias, moça! Deixe-me em paz!
Essas palavras a fizeram cair em si. Ele também bebera bastante e não se encontrava em
condições de ouvir sermão. Era melhor deixar para o dia seguinte.
— Por que não vai se deitar? — indagou, mais calma. — Se não, acabará adormecendo aí
no sofá. Não é confortável.
— Já dormi em lugares piores, Flor...Mas tem razão, vou me deitar. — Estendeu a mão e pediu:
— Ajude-me a levantar.
— Por quê? — Emily ficara desconfiada.

— Por educação. Vamos, ajude-me — e os olhos quase negros espelhavam inocência.


— Como vou poder ajudá-lo se... Está bem!
Emily segurou a mão dele, morena e rude, mão enxuta, firme, de homem que ficava muito tempo
ao ar livre, que cavalgava, muito diferente da mão gorducha e mole de George. Mas não teve tempo
para avaliar as diferenças.
Ele riu baixinho, rouco, puxando-a para si com força e ela voou para a frente. Sem saber
como, viu-se sentada sobre os joelhos dele.
— Solte-me! — exclamou furiosa.
Começou a debater-se, esperneando, agitando os braços e o robe que não amarrara acabou caindo
no chão. O capitão passou um braço pela cintura, segurando-lhe os dois pulsos com apenas uma das
enormes mãos, e firmou-a no lugar.
— Pare de fazer confusão, Flor. A sra. Godfrey poderá ouvir o barulho e descer para ver o que
há. Não quer isso, não é?
— Você! O senhor está bêbado! — a voz dela soou desesperada.
— Só um pouco. Vamos, Flor, passe seus braços pelo meu pescoço e me dê um beijo. Eu não
trouxe o seu precioso Kit para casa, são e salvo? Mereço uma recompensa, Flor.
— Pare de me chamar de Flor! E não quero beijá-lo.
— Não, você não quer — concordou ele, mal-humorado.
Emily corou e mordeu os lábios. Depois murmurou: — Posso ir, agora?
— Não, não pode — ele se recostou, apoiando a cabeça no encosto do sofá e fitou-a por entre as
pálpebras semicerradas. — Seus cabelos são lindos e gosto deles assim, soltos, não cheios de cachinhos
e fitinhas, como no jantar da minha chegada.
Enfiou uma das mãos entre os cabelos castanhos, fartos e macios. A jovem estremeceu e não foi
de frio.
— Aquele era um penteado grego! — reagiu, indignada.
— Moda não me interessa, as mulheres parecem gárgulas quando estão todas paramentadas.
Gosto de moças naturais, alegres.
— Deu uma palmadinha no joelho dela e sua mão ficou ali, parecendo queimar-lhe a pele através
do fino tecido de algodão. — Só um beijo, Flor. Não é impróprio, pois vamos nos casar, você sabe.
— É, eu sei.
Ao mesmo tempo pensou: Isto é horrível, mas vou ter que beijá-lo, pois se não o fizer

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não me deixará ir e ficará ofendido.


— Você beijou Kit, no quiosque, eu vi — disse ele, ressentido.
— Mas era diferente! Está bem. Mas depois tem que me deixar ir embora. Prometa!
Ele fez que sim com a cabeça e ergueu uma das mãos, como que para jurar. Ela hesitou, depois
inclinou-se, respirou fundo e, por fim, comprimiu os lábios contra o rosto dele. Sentiu que a barba feita
naquela manhã já estava crescendo e imaginou que provavelmente ele esperava que o beijasse na
boca, mas não conseguira fazer isso. Seria uma atitude íntima demais. Sozinha com o capitão,
naquela sala quase às escuras, sentia-se insegura. E um pouco assustada, talvez, mas também sentia-se
emocionada de forma inexplicável. Ele cheirava a vinho, porém, muito menos do que Kit, e a leve suor.
Cuidar de Kit, arrastá-lo, colocá-lo em cima do cavalo devia ter sido um grande esforço.
Principalmente, ele tinha cheiro de homem, não era como George, embebido em água de colônia.
O sr. Harcourt não se mexeu. Permaneceu sentado, fitando-a com expressão enigmática. Emily
ficou atônita, pois esperava que ele reagisse de algum jeito, talvez abraçando-a e beijando-a, como
fizera à beira do córrego. Ficara tensa, esperando por isso e surpreendeu-se ao verificar que se sentia
desapontada por nada ter acontecido. A tensão foi desaparecendo e, por fim, ela viu-se tomada de leve
embaraço, diante do silêncio dele.
Por fim, o capitão indagou, com voz sóbria e muito sério: — Foi muito ruim?
— O quê? — perguntou a moça, sentindo uma certa culpa.
— Ser obrigada a me beijar. Foi uma experiência terrível? Algo assim como um destino pior do
que a morte?
— Não. — ela conseguiu sussurrar.
Ele soltou a fina cintura da moça.
— Então, pode ir, agora. Cumpro minhas promessas e trato é trato. Vá. Não precisa correr que
não vou segui-la.
Na voz do capitão, além da ironia, havia uma nota de amargura que ela jamais percebera. Não
podia calcular até que ponto ele se encontrava bêbado. Sabia, com certeza, no entanto, que não tinha
vontade de se erguer dos joelhos dele e, sem entender por quê, gostaria de lhe dizer algo agradável, em
vez de criticá-lo. Não era de admirar que ele a chamasse de harpia. Estendeu uma das mãos e tocou
timidamente os alamares da túnica militar.
— Eu não queria repreendê-lo — começou, baixinho. — Fiquei assustada com Kit, aquele
sangue todo no rosto dele. Não estou acostumada com essas cenas. Acredito que você... o senhor esteja.
Talvez até com cenas bem piores.
— É. Vi cenas muito desagradáveis. Posso pedir um favor? — ela acenou que sim. — Não me
chame de "senhor".
— Está bem. O se... Você nunca fala da Espanha e Kit não fala de outra coisa.
— Não preciso: ele fala por nós dois. Não preciso tagarelar sobre essas coisas, mesmo porque
você não quer ouvi-las de mim. Prefere Christopher.
— Acha que sou mal-educada e implicante, não? — ela suspirou. — Acredite, não sou assim.
— E você acha que sou um beberrão que gosta de mulheres pouco recomendáveis. Mas isso não
é verdade.
— Desculpe — murmurou ela, em tom quase inaudível.
Os dedos de Emily deslizaram pelo galão dourado da túnica e algo fino perdeu-se sob uma de
suas unhas. Algo fino e resistente. Olhou e viu que era um fio de cabelo loiro, muito comprido. Foi
como se lhe jogassem um balde de água fria. A aflição e a meiguice desapareceram num passe de
mágica.
— Isto não é meu — disse, com voz cortante.

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— O quê? — Ele observou o cabelo. — Claro, deve ser da moça que encontramos na Turl Street.
— Encontraram uma moça? Refere-se a... a uma "daquelas" criaturas? E tenta me convencer de
que não costuma procurá-las?
Emily ergueu-se, rápida, com os olhos azuis soltando faíscas.
— Não se zangue à toa, Flor — pediu ele, com voz cansada. — Só conversamos com ela, juro
que foi só isso.
— E não lhe deram dinheiro?
— Dei, sim, dei meia coroa. — admitiu ele, novamente irritado.
— O senhor é muito generoso! Dá meias coroas a todas as moças que encontra! Adora distribuir
dinheiro, pelo jeito. Só que me parece pouco. Afinal, eram dois!
— Já disse que não tivemos os favores da moça! — exclamou o sr. Adam, endireitando- se no
sofá. — Eu estava ocupado, amparando Kit, e ele não tinha capacidade para entender qualquer coisa. Já
não dei meia coroa a você por nada, uma vez? Esqueceu disso? Não vejo por que não pode acreditar
que fiz a mesma coisa esta noite.
— Parece que está acostumado a fazer maus negócios! — retrucou ela, enfurecida.

— É, parece mesmo! — rosnou ele, erguendo-se. — Fiz um péssimo negócio na Espanha:


paguei dez mil libras por você e começo a achar que foi o pior negócio da minha vida! Agora, faça o
que quiser, que eu vou me deitar. Boa noite, prezada senhorita!
Atravessou a biblioteca com passo duro e bateu a porta ao sair. O estrondo ecoou na casa inteira,
como um trovão.

CAPÍTULO V

O capitão Harcourt resolveu voltar para Essex dois dias depois. O tempo estava péssimo,
ameaçando tempestades que não aconteciam e de repente a temperatura caiu. Emily estava parada no
início da alameda, para despedir-se dele. Depois do incidente daquela noite mal haviam trocado uma
dúzia de palavras. A fisionomia do sr. Harcourt encontrava-se tão sombria quanto o céu carregado de
nuvens. Ela achou que não ficaria surpresa se ele nunca mais voltasse, depois de classificá-la de "o pior
negócio da minha vida". Bebera mais do que o limite, era verdade, mas as palavras tinham sido
sinceras.
— Deve entrar, agora — disse ele, inclinando-se sobre a sela. — Seu vestido é muito leve e o
vento está frio, úmido.
— Sua viagem não será confortável. — murmurou a moça, com certo esforço.
— Um pouco de vento e chuva não impressionam um velho soldado — respondeu o sr.
Adam, com um breve sorriso.
— Desejo-lhe uma viagem segura e... e nós ficaremos a sua espera.
As palavras soaram falsas, mas na verdade a despedida machucava o coração de Emily. Só
conseguia lembrar o que desejava não ter dito a ele e as coisas que não dissera, mas gostaria de dizer.
Ergueu a mão, ele segurou-a e beijou-lhe os dedos, de leve.
— Voltarei dentro de um mês. Acho que não terei conseguido aprontar tudo, mas então

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você irá e poderá ajeitar as coisas a seu gosto. Entre, está começando a chover.
Ajeitou a capa de lã, grossa, acenou um adeus e tocou o baio a meio galope, afastando-se sem
olhar para trás. Não era uma separação de namorados, pensou Emily, apertando o xale ao peito. As
gotas de chuva misturaram-se às lágrimas, enquanto corria para a entrada da casa.
O sr. Adam fora embora sem se voltar porque Emily lhe parecera tão pequenina e infeliz que
sentira impulsos de dizer-lhe algo para consolá-la, porém não sabia o quê. Então, tocara o baio e mais
uma vez colocara distância entre ele e seus problemas. Achou que a moça se consolaria, pois durante
sua ausência teria Christopher Godfrey apenas para ela.
A viagem progrediu bem, apesar do mau tempo, e ao anoitecer do terceiro dia já se encontrava
numa paisagem familiar, quando notou um homem caminhando, pouco adiante, na beira da estrada. A
altura e a compleição física pareceram-lhe conhecidas. Quando ia passar por ele um raio rasgou o
firmamento e o caminhante ergueu a cabeça.
— Andrew Morris! — exclamou o sr. Harcourt, parando o cavalo e voltando. — Você não é o
filho do nosso administrador, no tempo de meu tio? — perguntou, quase aos gritos, para fazer-se ouvir
entre o assovio do vento e o matraquear da chuva.
— Sim, capitão Harcourt, sou eu mesmo — gritou o outro. — Não pensei que me reconheceria,
depois de tanto tempo.
— Como não? Fizemos tantas traquinagens e pescarias juntos! E logo você que era o único
garoto que conseguia lutar comigo.Onde vai?
— Ouvi dizer que o senhor tinha voltado da guerra e ia visitá-lo.

— Olhe, duzentos metros adiante há uma estalagem. Vou na frente, para pedir que preparem
comida quente. Espero por você lá — e saiu a galope.
Quando Andrew chegou à estalagem viu o capitão sentado junto da lareira, as roupas molhadas
soltando vapor.
— Sente-se, Andrew. Pedi uma bebida para nós dois, tome um trago enquanto esperamos a
comida. Veio de onde?
— De Londres — foi a resposta acompanhada por uma careta.
O sr. Adam observou o companheiro de infância, pensativo. Soubera que Andrew se casara, tinha
um negócio, mas pelo jeito as coisas não iam bem. Não falou nisso enquanto comiam. Depois, pediu
dois cachimbos de argila e acomodou-se mais confortavelmente em sua cadeira, perguntando o que
acontecera.
A história de Andrew era breve e triste. Depois de casar, abrira uma pequena loja com a ajuda da
esposa, que adoecera e morrera, meio de repente. Daí por diante tudo desmoronara. Por sorte não
haviam tido filhos. Ia procurá-lo para ver se lhe arranjava emprego. Sabia fazer muitas coisas.
— Sinto que esteja viúvo. Isso é triste. — comentou o capitão, penalizado.
— Sim. Com uma boa esposa ao lado pode-se enfrentar qualquer coisa. Mas um homem só...
— Estou para me casar — comunicou o sr. Adam, esvaziando o cachimbo na lareira.
— Que boa notícia, senhor! Permita-me felicitá-lo.
— Não sei se é o caso — murmurou ele, depois, em tom normal: — Vamos às coisas práticas,
Andrew. Vai trabalhar para mim. Preciso de alguém de confiança e você é o ideal, vai saber me cuidar.
— Seria uma honra, senhor — respondeu Andrew, surpreso. — Mas não sei se poderia ser criado
particular. O senhor cansaria logo de mim: sou desajeitado.
— Bobagem. Não preciso de um boneco de cabelos encaracolados, que use meu nome para ter
crédito e minhas camisas quando eu virar as costas. Preciso de um homem firme, de

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confiança, que cuide de meus negócios, de minha propriedade quando eu não puder fazê-lo
pessoalmente. Necessito de uma pessoa que seja meu braço direito, pois tenho que fazer uma centena
de coisas em menos de um mês, para então voltar a Oxfordshire, a fim de casar e trazer minha esposa
para casa. Ela não pode chegar e encontrar tudo por fazer — suspirou. — Espero que ela goste da casa,
Andrew.
— Claro, senhor! "The Hall" é a casa mais linda que já vi. Nunca a esqueci e adorava andar com
meu pai pela propriedade. Também lembro do tio do senhor.
— Eu não esqueço aquele velho tirano — murmurou o sr. Adam — Muitas vezes agradeci a
Deus por ter me feito grande e forte, caso contrário não teria sobrevivido a minha infância — encolheu
os ombros, sorrindo. — Bom, isso passou. A melhor coisa que me aconteceu desde que voltei à
Inglaterra foi este encontro com você, meu amigo!
Andrew sentiu-se intrigado ao ouvir aquilo de um homem prestes a se casar, porém nada
comentou. Pelo jeito, o capitão não estava muito entusiasmado com o casamento e ele sentiu
curiosidade em conhecer a noiva.
O sr. Harcourt chegou em casa bem mais animado do que saíra de Leigholm: as lareiras dos
principais aposentos encontravam-se acesas, tudo havia sido arejado e arrumado para recebê-lo. Havia
muita correspondência, entre a qual uma carta de seu ilustre e aristocrático primo. Começou por ela,
querendo saber o que levara o Par da Inglaterra a escrever-lhe. Não era possível que já soubesse do
noivado. Aí, lembrou-se: The Times. E, de fato, o distinto membro da Câmara dos Lordes vira a notícia
no jornal e protestava, com classe, por não ter sido avisado pessoalmente.

O restante da carta referia-se ao desejo expresso pela maioria dos franceses de ter de volta seu
"imperador" e de como ele poderia escapar facilmente da ilha de Elba, onde fora confinado. Sabia-se da
conspiração para libertar Bonaparte, cuja palavra de ordem era "O imperador voltará com as violetas",
quer dizer, na primavera de 1815. O nobre primo desaconselhava que ele desse baixa do exército e
recomendava, se possível, que adiasse o casamento. Por fim, pedia que destruísse a carta.
O sr. Adam não se surpreendeu. Era bobagem pensar que Napoleão Bonaparte, que dominara
uma nação e impusera sua vontade aos reis da Europa, permaneceria numa ilhota do mar Mediterrâneo,
acompanhado por uns poucos fiéis.
— Eu não ficaria — disse ele, em voz alta. — Tentaria mais uma vez, arriscando tudo numa
única jogada. Afinal, que mais ele pode perder?
Levantou-se e observou a carta sendo consumida pelas chamas. Não podia adiar o casamento.
Naquela noite fatídica, ao voltar para casa com o jovem Godfrey, estava embriagado, mas não o
suficiente para esquecer o que havia dito e feito. Falara com Emily demonstrando raiva, por causa da
bebida e, para ser honesto, também por ciúme. Lamentava suas palavras, mas não podia apagá-las.
Dissera-lhe que ela era o pior negócio que fizera na vida e com certeza a moça não se esquecera disso.
Se adiasse o casamento, ela pensaria que iria deixá-la e com a notícia do casamento já publicada no The
Times, a reputação dela seria prejudicada se não houvesse casamento.
Voltou para Leigholm no começo de setembro. Tudo estava pronto e a sra. Godfrey não disfarçou
a alegria e o alívio ao vê-lo chegar. Chamou a noiva e deu-lhe conselhos que eram quase ordens.
— Emily, faça o favor de mostrar mais entusiasmo, alegria ao ver seu noivo! Meu Deus, não sei
o que há com você: vai se casar com um homem atraente, excelente partido, e andar por aí com cara de
velório! O que ele vai pensar? Você está doente, menina?
— Não, senhora.
— Então, melhore esse rostinho! — disse a sra. Godfrey, um tanto irritada. — Sua

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modéstia de donzela já passa dos limites.


De fato, a moça parecia não querer ficar perto do noivo e este, por sua vez, só se mostrava
satisfeito quando estava longe dela, na estrebaria ou na biblioteca ou com o jovem Godfrey, jogando
bilhar. A anfitriã não conseguia, de modo algum, entender a nova geração. Resmungava, dizendo que
parecia haver antipatia entre aquele casal de noivos.
Kit, no entanto, sentia-se felicíssimo e demonstrava: — Que bom você ter voltado, Adam, eu
morria de tédio! Só tinha George como companhia e quanto mais o conheço, menos gosto dele. Quando
bebe dois copos, fica roxo e só sabe falar em suínos. É a primeira vez que encontro um homem como
ele, incapaz de qualquer coisa. Pobre Hester. Provavelmente... — continuou, dando uma tacada — a
atividade dele entre os lençóis não vai valer nada. E nem sequer sabe jogar bilhar!
O sr. Adam detestava a maneira grosseira com que o amigo se referia à futura vida matrimonial
da irmã. Nada comentou e tratou de perguntar, ao dar a volta na mesa: — Jogamos por um guinéu ou
coisa assim? Jogar de graça é um tédio. Sabe, não consigo fazer o George arriscar dinheiro: ele tem
medo de perder um cent, que seja!
— Foi só o que você fez? Mais nada? — perguntou o capitão, passando giz na ponta do taco.
— Não! Vou contar o que fiz — respondeu o rapaz, sem notar a ironia do amigo. — Aprendi a
valsar e isso é muito útil, sabe? As moças não se interessam por um homem que não dança a valsa.
Agora, quando falo na Espanha, parecem um tanto aborrecidas: já não é novidade. Precisa aprender,
também!

— Jamais aprenderei a dançar, pois não posso: tenho dois pés esquerdos. Onde você aprendeu?
— Aqui mesmo, ora! — Kit afastou-se e o capitão inclinou-se sobre a mesa. — Hester toca piano
e Emily se dispôs a ser minha parceira. Aprendemos os dois, bem depressa. Ela dança melhor do que eu
e sempre lhe piso os pés, quando praticamos. Hoje, depois do jantar, faremos uma exibição. Hester
tocará, mamãe e você verão o que Emi e eu sabemos fazer.
O taco, manejado pelo capitão, quase rasgou o feltro da mesa e bateu na bola com violência, ela
caiu.
— Oh! Essa foi uma tacada digna do George! — riu o rapaz. — Falei que íamos jogar por um
guinéu? Que tal dez? Você está sem prática e sem golpe de vista ou será que é alguma coisa que o
preocupa?
Quando Christopher Godfrey resolvia fazer alguma coisa era impossível demovê-lo. Depois do
jantar, levou todos para a sala de visitas, mandou a irmã para o piano e empurrou as poltronas para a
parede.
— Mamãe, sente-se aqui, e você, Adam, naquela outra. Hester, primeiro pratique um pouco, para
não errar demais.
Quando Emily percebeu as intenções do irmão de criação ficou horrorizada. Na ausência do
noivo não se importara de brincar com Kit e aprender a dançar a valsa, mesmo com ele pisando em
seus pés. Mas uma exibição pública era diferente. O sr. Adam não procurava esconder o desagrado,
através de uma expressão tempestuosa e ela não entendia a indiferença do rapaz às opiniões do amigo.
— Isso é loucura, Kit! O sr. Adam não vai gostar — sussurrou ao ouvido dele.
— Besteira — respondeu Kit, aéreo como sempre. — Ele não sabe dançar. Depois de
mostrarmos como é, vamos ensiná-lo. Ele bem que pode tentar.
— Não! — exclamou a moça, agoniada. — Ele não vai querer e nem eu quero, Kit.
Acho uma péssima ideia.

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Hester praticava escalas para aquecer os dedos, a sra. Godfrey encontrava-se junto da mesinha
onde logo um criado colocaria o chá e o capitão, de braços e pernas cruzados, lançava olhares ferozes
ao redor.
— Pronto! — ordenou Kit e enlaçou a cintura da jovem, num gesto íntimo, como a nova dança
exigia. — Comece a tocar, Hester, e pare de se torcer, Emi!
— Você está me apertando demais!
— Não é verdade!
— Está me amassando contra o seu peito e ele vai bater em você!
— Pelo amor de Deus, sou noiva dele, embora apenas pelo trato que fizeram — dizia ela
baixinho, aflita. — Mas tenho certeza de que meu noivo quer que me comporte com decência!
— Ele não se importa, você é como minha irmã. Adam, não se importa de dançarmos, não é
mesmo? — berrou Kit.
— Sei que essa dança é considerada aceitável em todos os lugares — interferiu a sra. Godfrey,
séria. — Mas na minha opinião não é muito decente. Não pode se afastar um pouquinho de Emily,
Christopher? Acho que não seguraria uma moça desse jeito, se ela não fosse da família!
O capitão Harcourt que lembrava bem das noitadas passadas com Kit, em companhia de moças
desfrutáveis, na Espanha, resolveu ir olhar pela janela.
Sem atender a mãe, o rapaz ordenou: — Ande, Hester. Comece a tocar.

Hester tocava com prazer e Kit rodopiou com Emily, que vivia um verdadeiro pesadelo.
Enquanto volteavam pela sala, um, dois, três, passaram por Hester ao piano, um, dois, três, então pelo
sr. Adam, que parecia prestes a assassiná-los, um dois três. Afinal, graças a Deus, Hester parou de
tocar e Kit deu um aperto carinhoso no ombro delicado de seu par.
— Muito bem, Emi! Eu disse a Adam que havíamos praticado muito. É fácil. Por que você não
tenta dançar com Emi? É só ir contando, um, dois, três, e seguir o ritmo, girando.
— Muito obrigado — disse o capitão, gélido. — Provavelmente pisaria na barra da saia ou nos
pés de meu par. Além disso, acho que a srta. Godfrey está cansada de tocar.
— Mas eu... — começou Hester e corrigiu depressa, ao ver a expressão negra do convidado: —
Sim, acho que prefiro descansar um pouco.
— Ah! Chegou o chá! — anunciou a sra. Godfrey e todos respiraram melhor.
— A valsa dá muita sede! — comentou Kit.
O capitão ergueu-se, aceitou sua xícara de chá e foi para a ampla porta envidraçada que dava para
o terraço, no outro extremo da sala. Parou de costas para os outros, olhando a escuridão do jardim.
Com uma certa hesitação, Emily pegou a xícara dela e foi para junto do noivo, que pareceu não tomar
conhecimento de sua presença. Por fim a moça falou: — Você ficou zangado. Acha que essa dança não
é apropriada para uma dama.
— Quem sou eu para dar opinião? A sra. Godfrey explicou que está na moda e não me oponho a
que as pessoas se divirtam.
— Eu não me diverti — disse ela, baixinho.
O sr. Harcourt colocou a xícara sobre uma mesinha: — Se não se divertiu porque não dancei com
você, perdoe-me, mas é como disse. Não sei dançar e garanto que você não gostaria. É melhor ter Kit
como seu par.
— Não foi ideia minha. — disse ela, contrariada.
— Está bem. Não estou zangado. Claro que você deve se divertir como gostar e quiser. Ele
continuou olhando para a escuridão e o silêncio se prolongou, de novo.
— Pensei — disse Emily, quase num murmúrio. — Que você não ia voltar.

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Isso chamou-lhe a atenção e ele encarou-a.


— Esperava que me considerasse um homem de palavra.
— Nunca duvidei disso. Só acho que toda essa história deve ser maçante para você e que não
deve ter pressa em se casar comigo.
O sr. Adam abriu a porta envidraçada.
— Vamos, sair, preciso de ar fresco. Além disso, podem ouvir o que dizemos aqui. A sra.
Godfrey observou-os sair para o terraço e sorriu, satisfeita.
— Que bom! — murmurou para Hester. — Eles pareciam tão... tão frios um com o outro! Agora
quiseram ficar a sós e isso é normal, entende?
— George nunca me leva para o terraço? — comentou Hester.
— Ele nem saberia o que fazer no terraço — resmungou Kit, que tentava tocar algumas melodias
ao piano, com um dedo só.
A noite de setembro estava fresca. Não chovia há dias e o chão encontrava-se seco. Os dois
desceram os antigos degraus de granito e saíram caminhando pela alameda do jardim. Pequenas formas
escuras de vez em quando esvoaçavam acima de suas cabeças. Ela olhou-as, preocupada.
São apenas morcegos, caçando insetos — explicou o capitão. — Não vão se emaranhar em seus
cabelos.
— Sim. Foi bom sairmos, Kit às vezes me irrita.
Ao ouvi-la dizer aquilo, ele ergueu as sobrancelhas.
— Mas você logo o perdoa, claro.

— É. Acho que sempre perdoei tudo a ele. Kit era terrível!


Aprontava coisas endiabradas, o tempo todo.
— Posso imaginar. Quando foi que ele perdeu o pai?
— Há muito tempo. O sr. Godfrey era vivo quando vim para cá, com nove anos, porém morreu
pouco depois. Kit foi criado entre mulheres indulgentes e acho que isso teve consequências.
— Teve, sim. Mas eu fui criado, se é que posso usar esse termo, de modo muito diferente.
Haviam chegado ao quiosque. O sr. Adam hesitou, depois abriu a porta, entraram e sentaram-se
num banco tosco. Vendo que Emily estremecia de frio, ele tirou a túnica e colocou-a nos ombros dela,
que se aconchegou em seu calor e fitou-o.
— Obrigada. Estava falando de sua infância. Kit disse-me que perdeu seus pais, como
eu.
— De fato. E foi muito cedo, porque não me lembro deles. Meu tio, irmão caçula de meu
pai, que morava conosco em The Hall, foi nomeado meu tutor contra a vontade dele, e também contra a
minha, quando cresci o suficiente para ter opiniões. Se eu fosse mais velho, quando meu pai morreu,
ele teria se acostumado a me ver como herdeiro, mas ficou furioso ao perder tudo para um neném
chorão.
— Ele não tinha direito de pensar assim! — exclamou Emily, indignada. — Era o filho caçula e
sabia que não ia herdar.
— Por quê? Ele poderia herdar se eu morresse. Ele morava em The Hall, considerava a
propriedade seu lar e, de repente, viu que tudo pertencia a um bebê pelo qual era o responsável.
Portanto, não posso censurá-lo por não gostar de mim.
— Eu posso! — retrucou a moça e ele riu.
— Fico feliz com seu apoio! Não foi uma infância agradável e não gosto de lembrar. Há coisas
que é melhor esquecer.
— Seu tio ainda vive? — indagou ela, em tom agressivo.

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— Sinto desapontá-la, pois parece belicosa, decidida a tirar satisfações com ele. Meu tio
morreu.
— Detesto pensar que alguém seja capaz de maltratar crianças ou negligenciá-las. É o pior que
pode acontecer.
— Você gosta de crianças? — quis saber ele.
— Sim, claro! O sitiante Honeyburge. — Calou-se, confusa, ao lembrar que ele a tomara por
uma filha desse homem. — Quer dizer, no sítio dele há uma criancinha nova todos os anos e eles
gostam disso. Todos crescem saudáveis. A sra. Godfrey acha que os bebês dos Honeyburge deveriam
pegar todas as doenças, mas isso não acontece. Nem aftas eles têm!
— Uma linhagem saudável, então — comentou o capitão.
— Você está pensando em cavalos de corrida! — irritou-se Emily.
— De bom fôlego e ossatura forte como eu.
— Não, eu não pensava isso. Escute, Emily, sobre a criação de cavalos, sobre meu futuro, devo
lhe dizer que recebi uma carta de um parente que participa da Câmera dos Lordes. Isto é confidencial,
portanto não conte à sra. Godfrey, nem a Hester. Há uma conspiração para tirar Bonaparte de
Elba e restituir-lhe o trono. Não sei se conseguirão, mas haverá uma tentativa, por isso pedi baixa do
Exército. Talvez ainda haja guerra.
— Isso vale também para Kit?
— Receio que sim — respondeu ele, com ar triste.
— Espero que não haja outra guerra, embora desconfie que você está com saudade das batalhas e
gostaria de fazer mais uma campanha pela Europa.
— Só até certo ponto. Perde-se bons amigos. — Ele ficou em silêncio por instantes, depois
continuou: — Espero que você goste de The Hall. Todos estão limpando, renovando, preparando tudo
para recebê-la. Temos uma governanta ótima.
— Sei que vou gostar, mas parece-me muito grandiosa e nunca dirigi uma casa de grandes
proporções.
— Sei que vai conseguir e a governanta irá ajudar muito. Só me preocupa que você fique
entediada. Aqui, tem sua família.
— Não sou parente dos Godfrey, como sabe. Meu pai era amigo do sr. Godfrey e ele se tornou
meu tutor. Além disso, você quer filhos, não é? Bem, quer pelo menos um herdeiro. Espero não
decepcioná-lo e isso irá me manter ocupada.
O sr. Harcourt ficou estupefato ao ouvi-la falar no assunto com tanta franqueza e por alguns
momentos não soube o que dizer.
— Você é mesmo extraordinária! — exclamou, afinal. — Altera-se diante de coisas que para
mim não têm a menor importância e quando acho quer vai ficar chocada, permanece impassível. Sim,
eu gostaria de ter um herdeiro. Foi o motivo principal que me levou a procurar uma esposa. — Logo
percebeu a grosseria. — Desculpe, isto não foi nada gentil.
— Não há o que desculpar. É a verdade. Acho que é sempre bom as pessoas serem honestas.
— Tem razão — concordou ele, seco. — Mas nem todos são. Essas
palavras pareciam ter um sentido que ela não conhecia.
— Não estou mais zangada com o trato que você e Kit fizeram — disse, baixinho. — Isto é,
prefiro não pensar nisso, mas já aceitei o fato e não vou mais me queixar. Você disse que eu sou uma
harpia, uma megera. Espero que esteja errado.
Na escuridão, ele procurou a mão de Emily. Estava fria e o sr. Adam procurou aquecê- la, entre
as suas.
— Kit disse que você era uma moça esplêndida e é verdade. Você é ótima, sensata, prática e
vamos nos entender bem, pode apostar.

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Emily teve a sensação de que os adjetivos "sensata" e "prática" eram como acusações.
Preferia que ele tivesse usado outros termos.
Ele deve me achar extremamente maçante, pensou. Eu gostaria tanto de saber como posso ficar
diferente. Gostaria tanto que tudo não tivesse começado da maneira errada. Gostaria... eu nem sei o
quê. É uma situação desagradável, sinto-me confusa, nada sensata ou prática.
— Farei tudo que estiver ao meu alcance — murmurou, afastando os pensamentos. Ele
segurou-lhe o queixo, com suavidade, e a fez erguer o rosto.
— Não fique deprimida. Vamos, Flor, me dê um beijo. Depois, temos que voltar para a sra.
Godfrey não ralhar conosco.
— Ela não vai ralhar — respondeu Emily, sombria. — Pois acha que devíamos estar sempre
de mãozinhas dadas e arrulhando, como tolos.
— Estamos de mãos dadas.
— É, mas acho que essa não é a maneira certa — foi a resposta impaciente da moça.
— E qual é a maneira certa? — indagou ele, achando graça.
— Não sei. — respondeu ela, com um suspiro, tentando ver o rosto dele, na escuridão. Ele via-
lhe o rosto como uma mancha clara. Inclinou a cabeça e beijou-a nos lábios,
com delicadeza.
— Não sou um canalha, Emily. Pelo menos, eu acho que não. — Fitou-a, hesitando. —
Compreendo você e sinto muito. Sei que não teria me escolhido, mas espero que, pelo menos, eu venha
a ser um bom substituto dele.

Emily não entendeu o que o noivo queria dizer e ele não explicou. Quando seus lábios se
tocaram, sentiu um arrepio na espinha e afastaram-se, ambos encabulados. Quando voltavam para casa,
ela teve a obscura sensação de um mau presságio no céu cheio de estrelas.

CAPÍTULO VI

— Como poderia imaginar que você ia se casar antes de mim? — perguntou Hester. — Quando
fiquei noiva de George, nem conhecíamos o capitão Harcourt. — Passou os dedos sobre a seda cor de
marfim. — Que vestido lindo! Deve ter sido muito caro.
— Sua mãe achou que eu devia ter o melhor.
Emily não mostrava muito entusiasmo e olhou com ar ressentido o vestido sobre o manequim,
com mangas bufantes junto aos ombros, depois justas, abotoadas, até os punhos, o corpete bordado
com pérolas e a barra, ampla, com aplicações de renda e pérolas.
— É o presente de casamento que ela me deu — acrescentou. — Dizendo que poderá ser
facilmente adaptado para a noite.
— Será que o emprestaria para mim, primeiro? — pediu Hester, tímida. — Gostaria muito de me
casar com seu vestido.
— Se quiser, posso até dá-lo a você — concordou Emily. — Pois não sei se terei outras

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chances de usá-lo.
— Terá, sim! Os amigos do capitão Harcourt devem ser muito mais elegantes do que os nossos
aqui. Vai precisar vestir-se sempre bem. Acho que as damas de Essex são vaidosas e as tonalidades do
branco continuam na moda.
— Não costumo seguir a moda — declarou Emily. — Adam disse que não gosta de mulheres
embonecadas — observou a irmã de criação, que ainda admirava o vestido. — Diga-me, gosta do
George? Quero dizer, está apaixonada por ele?
— Não — respondeu a jovem, com sinceridade. — Mas não desgosto dele.
— Não quero ser indiscreta, Hester, mas não acha que depois de certo tempo a convivência com
ele vai ser aborrecida?
— Um casamento deve ser construído, Emi! Além disso, eu não teria ninguém mais com
quem me casar. Sei que você não gosta do George, mas nós duas somos diferentes. Você sempre foi
mais atirada, acompanhava o Kit em tudo e eu ficava num canto, chorando de medo. Sabe? Foi uma
sorte o capitão ter vindo visitar meu irmão e se apaixonar por você. Deve ter sido amor à primeira vista.
— Não, não foi. Ele procurava uma esposa e examinava todos os exemplares disponíveis como
se estivesse escolhendo uma égua reprodutora. Ele entende de criação de cavalos.
— Emily! — exclamou Hester, chocada. — Como pode falar assim?
Indiferente, Emily sentou-se no peitoril da janela, encolheu as pernas junto ao peito e passou os
braços pelos joelhos. Isto não é nem metade da verdade, pensou, mas a verdade precisa ficar entre nós
três.
— Não fique aí, é muito impróprio! — censurou a outra. — Se alguém entrasse logo descobriria
que você não usa espartilho, pois se usasse não se dobraria desse jeito!
— Não me importo! Sabe, Hester? Às vezes você fala como o George.

— Nem sempre ele está errado, Emi. Sei que não é atraente como o capitão ou maluco como Kit,
mas não é culpa dele! — rebelou-se e saiu do quarto.
Emily, revoltada contra tudo e todos ficou na mesma posição. Faltavam apenas dois dias para
o casamento e todos estavam agitados. A casa vivia cheia de gente, na maior parte mulheres que
queriam ver o vestido ou o noivo e ela sentia-se à margem: um corpo para exibir o vestido ou um
apetrecho do sr. Adam.
A porta se abriu e Kit entrou, interrompendo o devaneio.
— O que faz aí?
— Estou pensando — disse, observando irritada os cabelos loiros do rapaz, que lhe caíam na
testa.
Kit tinha vinte e quatro anos, aparência de dezenove e agia como se tivesse essa idade.
— Emi, você não está contrariada por se casar com Adam, está? Está sendo bondosa comigo e
fiquei pensando que...
— Você devia ter pensado antes! Já disse que não vou mais me queixar. "Melhor aguentar o que
não se pode mudar". Vi isso num pano de parede, na cozinha dos Honeyburge.
— Por falar nisso, pretende dar um monte de filhos a Adam?
— Não é da sua conta, mas ele quer um herdeiro.
— Estou contente em ver que você aceitou a ideia. Devo dizer que ultimamente andei sentindo
remorsos por sua causa, mas vejo que está tudo bem. Foi pura sorte Adam querer uma esposa e eu estar
por perto, para sugerir você e... Ei! Pare com isso!
Emily tinha pulado do peitoril da janela e dera um sonoro tapa no rosto do irmão de

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criação.
— Eu devia ter feito isso logo que você chegou, quando descobri o que fez! Devia ter feito isso
há anos, quando você fazia suas horrorosas brincadeiras comigo e com os outros!
— Pare, não me bata de novo! — pediu ele, segurando-a pelos pulsos. — Você está nervosa,
precisa descansar. Soltou-a e passou-lhe um braço pela cintura esguia. — Calma, Emi, o grande dia
está chegando. Ei! Você não usa espartilho! Parece que a imperatriz Josephine também não usa —
beliscou-lhe junto das costelas e fugiu do quarto.
— Não uso espartilho, não estou nervosa e não quero me casar com o capitão Harcourt! —
berrou ela, descontrolada.
Olhou para o vestido. Sim. Era lindo e gostaria de poder usá-lo em outras circunstâncias.
— Não quero me casar. — murmurou, com lágrimas empanando os lindos olhos azuis.
— Não quero me casar com ninguém. Não quero me casar com alguém que me comprou como um
cavalo ou um par de botas. Eu gostaria de...
Mas não adiantava pensar nisso.
O dia do casamento amanheceu lindo e passou sem qualquer problema. Emily, aprisionada em
um espartilho comprado especialmente para a ocasião, e que a mantinha rígida, saiu da igreja pelo
braço do capitão Adam Harcourt, passando pelo arco de sabres formado pela milícia local. O almoço
foi excelente e a sra. Godfrey ficou satisfeita ao ver que não faltava comida e bebida. O bolo de
casamento, encomendado em Oxford, chegou inteiro e lindo. O capitão ajudado pela linda noiva
cortou-o com seu sabre. Afinal, passaram para o salão de baile, onde a pequena orquestra começou a
tocar. Como mandava a tradição, o noivo levou a noiva para o centro do salão.
— Já avisei que não sou dançarino — lembrou ele. — Se não se importa, daremos uma volta
andando.

— Está bem — concordou ela, olhando para o ombro dele, em vez de fitar-lhe diretamente os
olhos.
— Escute — murmurou o capitão, sério. — Você está linda!
— Não é verdade! — protestou ela, erguendo os olhos e encarando-o.
— É, sim — confirmou ele, com certa irritação. — Se não fosse verdade eu não diria. Acontece
que você ignora isso. Prefere agir como uma moleca, mas hoje parece uma princesa.
O vestido cor de marfim era lindo, realçava a tez delicada, os olhos azuis. Os cabelos castanhos
exibiam um penteado de bom gosto, em que as madeixas, entrelaçadas com fios de pérolas, desciam do
alto da cabeça como uma cascata escura, emoldurando o rosto, até abaixo dos ombros. Ele podia
perceber uma artéria palpitando no pescoço esguio, e sentiu vontade de beijar aquele sinal vibrante de
vida.
— Acha que alguém se chocaria se eu a beijasse agora? — perguntou, sorrindo, enquanto
volteavam ao som da valsa.
— Pode beijar minha mão — respondeu ela, nervosa.
O capitão Harcourt ergueu-lhe a mão onde brilhava a aliança, levando-a aos lábios. Algo nos
olhos escuros, nos cabelos negros, suavemente ondulados, nas pequeninas rugas ao redor dos olhos e da
boca firme, provocou uma ansiedade incontrolável que a fez dizer, para disfarçar:
— Você não me disse a verdade! — exclamou ela, só então notando que valsavam há algum
tempo, em vez de caminhar.
— Sobre o quê?
— Disse que não sabia dançar e dança muito bem? Por que mentiu para mim e para

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Kit?
— Será que pelo menos hoje não poderíamos conversar sem falar em Cristopher
Godfrey?
— Como queira — respondeu ela, surpresa. Depois de alguns volteios, indagou: — E de
George, posso falar?
— Se não houver outro jeito.
— Acho que ele vai passar mal, comeu demais. Está quase roxo, o rosto suado.
O noivo volteou de maneira a ficar de frente para George, que parecia esforçar-se muito,
dançando com Hester.
— Parece um peixe agonizante! — comentou. — É por causa da cinta emagrecedora que usa.
Não pode respirar direito.
— Nem eu! — riu Emily.
— Já percebi — comentou ele, dando-lhe uma palmadinha discreta na cintura. — Não vou
precisar puxar os cordões dessa coisa todas as manhãs, vou?
— De modo algum!
Então Emily ficou chocada ao pensar nessa cena de intimidade doméstica e perdeu toda a
naturalidade. O sr. Harcourt ficou triste ao ver o brilho sumir dos olhos azuis. Então, a valsa terminou e
Kit apareceu junto deles.
— É a minha vez de dançar com a noiva! Eu a devolvo daqui a pouco, Adam!
O noivo afastou-se sem um sorriso, indo conversar com o capitão da milícia. Enquanto
dançavam, toda vez que passavam por perto do sr. Adam, ele se encontrava de costas. Terminada a
música, outro cavalheiro tirou a noiva, depois outro e mais outro.
Um pouco mais tarde, Kit encontrou o capitão num canto, com um copo de vinho na mão.
Perguntou, rindo: — O que faz aqui, todo amuado? Algo errado?
— Nada, tudo ótimo.
— Entendo. — falou o rapaz, com ar compreensivo.
— Entende o quê? — indagou o sr. Adam.
— Claro! Tudo isso é um tédio! Gente aborrecida. Se Bonaparte realmente conseguisse escapar.
— Cale a boca! O que lhe disse é confidencial!
— Não se preocupe, ninguém nos ouve. Se "ele" quiser chegar à glória, vai voltar para o
continente, nem que tenha de fazê-lo num barquinho, ele mesmo remando. E eu, meu caro, daria
qualquer coisa para voltar à ativa, para lutar numa campanha.
— Talvez consiga o que quer.
— Mas você não gostaria, não é? Afinal, acaba de se casar — e Kit apertou os olhos, para
observar Emily que, naquele momento, começava a dançar com George, no outro extremo da sala. —
Ela está muito bonita! Uma beleza! Estou começando a achar que fui um pouco apressado ao desistir
de Emi em seu favor.
Naquele instante, Emily olhou para ele e teve a impressão de que o capitão dizia algo
desagradável a Kit, antes de virar-lhe as costas. Certamente, o rapaz tinha feito algum de seus
costumeiros comentários inoportunos.
Durante o resto do dia Emily não teve chance de ficar a sós com o noivo. Quando muito, tinham
trocado uma dúzia de palavras e o que Kit dissera permaneceu um mistério. Precisou retribuir os
cumprimentos de uma multidão que lhe desejava felicidade. O burburinho de vozes e risos, o tilintar
dos copos e o turbilhão das danças não lhe permitiam pensar.
Somente à noite, sentada na beira da cama, de camisola, pôde, afinal, analisar com clareza a
situação. Alisou a colcha com gestos nervosos e olhou seu quarto, tão familiar, que iria partilhar com
um homem pela primeira vez. No consolo da lareira, um par de velas

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proporcionava uma suave iluminação dourada. Os móveis eram simples, não se tratava de um quarto
elegante. Nele viviam as lembranças da infância e da adolescência: flores secas, uma boneca de
madeira, meio chamuscada, alguns potinhos de cerâmica colorida, que Kit ganhara num tiro ao alvo,
distribuindo-os por igual entre Hester e ela.
O quarto estava enfeitado com flores, mas isso não fazia diferença. Continuava sendo seu quarto,
seu pequeno santuário, que depois dessa noite nunca mais seria o mesmo. Outra pessoa teria o direito
de entrar ali, sentar-se nas cadeiras, olhar-se no espelho, mexer nos enfeites e até dormir naquela cama.
Ela também ficaria diferente. Ia entregar-se a outro ser através daquela inacreditável invasão de sua
intimidade, que era o ato do enlace matrimonial, uma rendição que, na sua opinião, nenhum homem
poderia entender em toda sua significação.
A porta estalou de leve atrás dela e Emily não se voltou. Apenas entrelaçou nervosamente as
mãos e esperou que seu marido entrasse no quarto, se aproximasse. Ele sentou-se na beira da cama, ao
lado dela, fazendo o colchão ceder com seu peso. Sabia que Adam vestia roupas de dormir, então achou
embaraçoso fitá-lo e voltou os olhos para o chão, o que foi quase tão ruim, pois viu os enormes pés
morenos, descalços, e uma parte das pernas musculosas, cobertas por sedosos pêlos escuros.
De repente, ficou evidente demais que estava prestes a deitar-se com um homem nu, ou quase,
e que fariam amor. Além das implicações físicas do amor, ela sabia que palavras carinhosas deviam
acompanhar normalmente esse processo amoroso e tinha certeza de que não conseguiria pronunciá-las,
como também não queria ouvi-las dele, pois sabia que não seriam sinceras.
— Não quero que você me diga bobagens românticas! — ouviu a si mesma dizendo, sem saber
como aquelas palavras lhe saíam da garganta apertada.
— Veja só — respondeu ele, calmo. — E eu que ensaiei tanto, pensando na nossa noite de
núpcias!
Emily fitou-o, então, e viu que ele se apoiava na guarda da cama de latão e sorria.
— Não ria de mim! — a voz de Emily soou rouca, tensa. — Não agora. Não é justo. Não
precisaria ensaiar, se sentisse o que quer dizer. Mas como não sente essas coisas, prefiro que não as
diga.
Adam estendeu o braço e segurou uma das mãos de Emily, que estava muito fria e um tanto
trêmula. Colocou-a sobre seu próprio joelho.
— Por favor, madame, permita que eu julgue o que sinto.
— Para você isso tudo é fácil. Já fez tudo antes. Ele
desatou a rir.
Perdoe-me, Emily, mas você diz coisas inesperadas! — explicou. Depois, sério, continuou: —
Claro que fiz, não posso negar. Mas nunca me casei e, por isso, hoje é diferente. É uma situação nova
para mim e para você. Não pretendo mais repetir as aventuras de solteiro e espero que você saiba
perdoá-las.
— Não posso censurá-lo por essas coisas.
— Está com medo de mim, Emily? — indagou ele, depois de um breve silêncio.
— Ah, não — Emily respondeu com voz fraca. — Não é propriamente de você.
— Entendo — ele hesitou, então disse: — Não vou machucá-la, Emily. Ou melhor, espero não
machucá-la. Não sou um monstro, na cama ou fora dela.
— Não é isso — ela sacudiu a cabeça, aflita. — Preciso lhe dizer uma coisa. Por favor, ouça, e se
achar esquisita tenha paciência. Principalmente não ria, porque é muito importante para mim.
O tom de Emily parecia decidido, mas ele percebeu que a moça reunia toda a sua coragem, que
estava desesperada. Ficou triste, pensando que ela ia confessar que amava

PROJETO 4
Sissi 17 – Uma esposa comprada – Ann Hulme

Kit e o capitão não queria ouvir isso. Se algum demônio da honestidade a impelisse a dizê-lo, ele
ficaria numa situação impossível: em nome de sua própria dignidade, teria que sair daquele quarto e
daquela casa, teria que ir embora sem olhar para trás.
No entanto, ali estava porque numa noite, nos Pireneus, apertara a mão de Christopher Godfrey
selando um trato sórdido, que ardia em sua consciência como se gravado com letras de fogo. Se ela
quisesse confessar, ele não teria meios de fazê-la calar-se. Mas podia tornar as coisas mais fáceis para
ela: devia-lhe isso.
— Não vou rir, é claro — prometeu. — O que quer dizer? Ela
engoliu em seco, desviou o olhar.
— Quero lhe dizer que vou tentar, com todas as minhas forças, ser uma boa esposa — começou
Emily, com voz trêmula. — Espero poder lhe dar o herdeiro que deseja e acho também que seremos
razoavelmente felizes. Não quero que pense que fez um péssimo negócio, mas sim que suas dez mil
libras foram bem gastas ou que, pelo menos, seu dinheiro lhe dê uma satisfação, por menor que seja.
— É só isso? — indagou ele, depois de aguardar um pouco.
— Sim — respondeu a moça, parecendo surpresa.
O sr. Adam fitou a mão pequena, delicada e branca, contrastando com suas mãos morenas.
— Está querendo destruir minha auto-estima — comentou, pesaroso. — Gostaria que não tivesse
mencionado aquele trato imbecil. Pensei que tivesse esquecido ou, pelo menos, concluído que foi
absurdo, que houvesse decidido perdoá-lo. Mas você não perdoou. Ela perdoara a Kit, mas não ao
capitão. Ele sentia isso. No entanto, Emily não dissera que gostava de Kit, portanto estavam como que
numa trégua.
— Estou contente com nosso acordo e também acho que seremos razoavelmente felizes, como
você disse. Agora que terminou o sermão e se eu me demonstrar arrependido, será que podemos
esquecer aquele episódio estúpido?
Ela fez que sim com a cabeça e o sr. Adam levantou-se, foi até a lareira e apagou as velas. Na
escuridão, Emily enfiou-se sob as cobertas e ouviu o marido se aproximando. Ele não conhecia o
quarto, tropeçou em alguma coisa e praguejou. Afinal, a cama rangeu sob o peso dele e a colcha
escapou dos dedos crispados dela.
— Afaste-se um pouco, Flor.
Ela achou que ele falara como se ela fosse, de fato, uma égua. Chegou até a esperar um tapinha
no lombo, mas isso não aconteceu. Lembrou-se, então, do encontro junto ao córrego, como ele
aumentara a oferta de meia coroa para um guinéu, se ela estivesse disposta.
Recuou na cama até a outra beirada, porém ele a envolveu nos braços e beijou-a sob uma orelha.
Foi quando Emily percebeu que, por algum motivo desconhecido, lágrimas começavam a descer-lhe
pelo rosto.
— O que foi? — perguntou ele, tocando-lhe as faces com os dedos.
— Nada. — murmurou Emily.
Mas sabia o que era: ele não dissera que a amava e nunca o diria. Estava ali porque precisava de
uma esposa. Sem dúvida, gostava dela, porque era um homem bom e isso Emily já sabia. Talvez, com
o tempo, o capitão chegaria a sentir carinho por ela. No entanto, e a paixão? O amor, que era a união
dos corpos, mentes e espíritos? Descobrira, agora, que queria o amor daquele homem, de verdade,
porque o amava. E a dor que devastava seu coração era tanta que ameaçava destruí-la.
— Sinto muito. — sussurrou ele ao seu ouvido, a respiração quente arrepiando-lhe a espinha.
— Você não tem culpa — ciciou ela, zangada consigo mesma. — É bobagem minha.

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Adam Harcourt puxou-a com delicadeza e Emily rolou entre seus braços, indo aninhar- se sobre o
peito largo, quente, procurando conforto. Sentia que ele se preocupava, de fato. Fungou, enxugando as
lágrimas no camisolão do marido, que estava desabotoado e os pêlos sedosos fizeram-lhe cócegas no
nariz. Imaginou que ele não soubesse o que fazer com uma chorona como ela, tão diferente das "moças
naturais, alegres" que ele dissera preferir. Percebeu, então, que ele lhe alisava as costas, com suavidade.
— Já estou bem — murmurou, a cabeça, em silêncio e só falou depois de algum tempo: —
Sinto por não ser Kit — e a voz dele soou estranha, densa.
— Kit? — perguntou ela, erguendo a cabeça tão depressa que sua testa bateu no queixo do
marido.
— Sim. Fique quieta e ouça. Não diga nada. Sinto por não ser Kit, pelo estúpido acordo que fiz
com ele. Não posso ser quem não sou e não posso apagar os erros que cometi. Estou aqui como
sou e prometo fazer tudo para cuidar de você, para que seja feliz, Emily. É isso.
Ela sussurrou "sim" e, num gesto espontâneo, ergueu os braços e passou-os pelo pescoço dele,
tendo a sensação que seu marido era muito infeliz, coisa que não conseguia compreender. Mas faria
tudo para confortá-lo.
— Oh, Flor. — murmurou ele, abraçando-a com força.
O vento murmurava nas árvores lá fora, derrubando as primeiras folhas secas do outono. A lua
apareceu por entre as nuvens e colocou uma luz de prata nas vidraças. Então Emily teve impressão que
naquela casa, no mundo inteiro, não existia ninguém a não ser ela e Adam, que não eram dois, porém
um só e que nada mais importava.
— Aqui estamos! Tudo pronto! — declarou Kit, depois de ver que a última caixa fora bem
amarrada no teto da caleça em que o capitão ia levar a esposa para Essex.
Emily, parada na alameda, com capa e touca de veludo, para viagem, olhou desconfiada para o
veículo.
— Não vamos conseguir chegar, nessas condições — comentou. — Está pesada demais.
— Pois é, aí está tudo que uma recém-casada precisa e muito mais. Você achou que devia
comprar tudo em Oxford — ironizou Kit. — Talvez pensando que em Essex não existem lojas!
— Não percebi que tinha comprado tanta coisa!
— Emily — interferiu a sra. Godfrey, saindo da casa. — Escreva logo, pois quero saber se vocês
chegaram bem. Eu detesto viajar, é tão desconfortável!
— E conte tudo sobre sua nova casa! — pediu Hester.
— Sim, eu prometo — Emily beijou-as. — E viremos para o seu casamento, Hester.
— O Natal vai ser esquisito sem você! — lamentou-se a sra. Godfrey. — Oh, aí está o capitão
Harcourt! Pretende fazer a viagem toda montado?
— Sim, madame, Não posso viajar numa carruagem onde não há lugar para minhas pernas. Está
tudo cheio de caixas de vestidos e de serviços para chá.
— Por falar nisso, querida, se, Deus não queira, alguma coisa quebrar, não jogue fora. Traga,
quando vier, que em Oxford há um perfeito restaurador de porcelana. Já consertou três xícaras minhas.
Depois das muitas recomendações da sra. Godfrey, dos beijos e lágrimas, Emily acomodou-se na
carruagem, com Betsy, a sobrinha da cozinheira, contratada como criada da sra. Harcourt. Andrew
Morris, que viera para o casamento, sentou-se na boleia com o cocheiro e o capitão Adam montou no
baio.
Tudo estava pronto e pouco depois, eles transpunham os portões de Leigholm House, em direção
a Essex.

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CAPÍTULO VII

Emily sabia que seu novo lar era maior do que Leigholm, mas não esperava aquela vasta mansão
estilo paladino que seu marido, virando-se na sela e esticando um braço indicou-lhe como "a casa".
Não esperava, também, pela criadagem enfileirada diante do pórtico, semelhante a um pequeno
exército encabeçado pela governanta, prontos todos para saudar a patroa com sorrisos e mesuras.
Atravessou muda, o enorme hall de mármore, imponente, com o teto abobadado pintado com
afrescos, e a ampla, imensa, escadaria. Só recobrou a voz na sala pequena, no entanto bem maior do
que a sala de visitas principal de seu antigo lar, onde sentaram-se para tomar uma xícara de chá.
— Santo Deus! — exclamou ela, ainda abafada. — Que casa enorme, maravilhosa!
Sinto-me perdida.
— Concordo. Parece um pouco com um quartel, mas você logo vai conhecê-la inteirinha —
tranquilizou-a o marido, sentando-se no sofá estofado em gobelim. — E é antiga. Não sei há quantos
anos aqui não entram móveis novos. Tudo isto — mostrou a decoração da sala, com um gesto — é
Hepplewhite, se não me engano. Em algum lugar há um livro com os desenhos originais, caso você
queira mandar fazer outros.
— Santo Deus. — repetiu Emily.
Sentia-se alarmada com a ideia de precisar escolher móveis para aqueles magníficos aposentos,
só então compreendendo o que significava um poder aquisitivo de quinze mil libras por ano.
O mordomo entrou naquele instante, carregando com esforço a enorme bandeja de chá, parte da
prataria da família, posta em uso para dar boas-vindas à sra. Harcourt.
— Adam, você pretende receber muito? — indagou ela, apreensiva, quando tornaram a ficar sós.
Ele encolheu os ombros.
— Imagino que os importantes locais virão nos visitar. E vamos ter que fazer um sarau, um baile
ou algo assim.
As dúvidas de Emily sobre a própria capacidade para dirigir aquela casa logo se desfizeram. Os
ambientes assustadores no início tornaram-se familiares e depois de algum tempo ela passou a ter ideias
pessoais sobre a disposição dos móveis e a acalantar o sonho de reformar a sala de jantar, que tinha
uma mesa enorme, com lugar para vinte e quatro convivas. O ambiente nela era meio sombrio devido
aos muitos retratos de antepassados da família, que cobriam as paredes.
Quando expunha suas ideias, o capitão concordava, respondendo quase sempre "Faça como
quiser" e Emily não sabia se isso era para agradá-la ou porque ele não se importava. The Hall era o lar
dele, mas não no verdadeiro sentido da palavra. Voltara para aquela mansão depois da guerra porque
ela lhe pertencia, porque sempre vivera nela e porque estava sob sua responsabilidade. Mas sua esposa
sabia que, no fundo do coração, ele desejava viver longe dali.
Então, sua finalidade tornou-se transformar The Hall num verdadeiro lar e os dias

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pareciam poucos e curtos para seus esforços. O Natal aproximava-se e, afinal, chegou o dia em que ela
se sentiu recompensada. Seu marido chegou depois de uma cavalgada pela propriedade, deixando um
rastro de pegadas lamacentas no mármore e no soalho, empurrou a lenha na lareira, com as botas
molhadas, e aproximou as mãos enregeladas do fogo.
— Ah, isto sim é que é bom! — exclamou, suspirando. — Fico feliz por ter chegado.
Pelo jeito vai nevar. Ainda há um pouco de chá?
Eram palavras simples, porém muito importantes para Emily, um sinal que The Hall se
transformava num lar. No entanto, estava sendo otimista demais.
Depois de uma semana, ela arrumava um centro de mesa com folhas e frutas da estação, na sala
de jantar, quando Andrew Morris chegou com uma braçada de galhos de azevinho, repletos de
frutinhas vermelhas.
— Achei-os perto do velho cercado, madame.
Colocou-os sobre a mesa, com cuidado para não arranhar a superfície polida. Emily agradeceu e
pegou alguns galhos para o seu arranjo. Então, quis satisfazer uma curiosidade.
— Pode me dizer, Andrew, se entre esses retratos há algum do tio do capitão?
— Não, madame — e ele reforçou com a cabeça.
— Esquisito! Todo mundo parece ter seu retrato aqui, até cães!
— Havia um retrato do sr. James Harcourt, madame, mas o patrão mandou tirá-lo e queimar.
Embora soubesse que não havia qualquer afeto entre tio e sobrinho, ela ficou surpresa. Quando
lhe falara da infância infeliz, o marido lhe parecera conformado, desejoso apenas de esquecê-la.
Parecera até compreensivo com a atitude do tio. Mas a remoção e a queima do retraio dele indicava
uma faceta diferente, assustadora, na personalidade de Adam Harcourt, um ódio alimentado durante
muito tempo. Ele, então, era rancoroso, implacável e paciente na espera da vingança.
— Entendi, Andrew, obrigada — disse, com calma.
Mas o homem parecia sem jeito, querendo dizer algo mais.
— Não quero parecer atrevido, madame, mas o tempo de criança do patrão não foi feliz. Só
os criados cuidavam dele. Minha mãe era quem tratava de seus machucados, ouvia- lhe as queixas,
consolava-o quando ele sentia medo. Por isso, o patrão não gosta muito desta casa. Quando foi
para a guerra, todos pensavam que nunca mais voltaria e ficaram felizes quando ele retornou casado
com a senhora. Isso quer dizer que pretende ficar aqui e todos desejam isso.
O que todos desejavam, o que ela desejava, mas seria o que o capitão desejava? A pergunta do
administrador das propriedades do marido a surpreendeu:
— E a madame, gosta desta casa?
— Sim, gosto.
Ele fitou-a por instantes, em silêncio, depois desviou o olhar, enquanto dizia: — O patrão jamais
esquece uma traição, senhora, mas é leal para com os amigos. Sempre foi assim.
Parecia uma declaração esquisita, sem ligação com o assunto, e antes que ela lhe pedisse para
explicar, Andrew disse que tinha um serviço urgente e retirou-se.
A temperatura caía sensivelmente e o céu permanecia cinzento. Apesar do fogo aceso em todos
os aposentos, a casa continuava fria, cheia de correntes de ar. Foi preciso armar biombos na sala para se
estar confortável. Entre a correspondência havia uma carta de Hester, o que alegrou Emily, porque
sentia saudade de Leigholm. Durante as últimas três semanas não se sentia muito bem, sem qualquer
motivo específico. Imaginava que devia ser cansaço.
— Hester está se preparando para o casamento — disse, enquanto voltava a folha. —

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Espero que possamos ir, que em fevereiro não haja nevascas.


O capitão Harcourt murmurou um "sim" sem tirar os olhos de uma carta em papel que trazia o
emblema da Câmara dos Lordes. Já recebera duas dessas, ultimamente, ambas destruídas depois de ler.
Emily ficava inquieta, com a sensação de que não traziam boas notícias.
— Kit está bem — continuou.
— Ótimo — disse o marido, distante.
Ela parou de ler e fitou as chamas, exclamando de repente e chamando a atenção do marido: —
Pobre Kit!
— Por quê? — indagou, seco. — O que aconteceu?
— Nada de especial. Deve estar entediado em Leigholm. Como sabe, ele não simpatiza com
George e não há nada lá para distraí-lo. Não poderíamos convidá-lo para ficar aqui por algum tempo,
depois do casamento de Hester? Claro, a sra. Godffrey não iria gostar, pois ficaria muito só. Hester diz
que ele anda muito triste, que atrapalha todo mundo.
— Vai ver que sente saudade de seu par de valsa — disse o sr. Harcourt, dobrando a carta com
cuidado.
— Deve ter arranjado outra e talvez seja isso: pode estar apaixonado!
— É como querer trancar a cocheira depois que o cavalo fugiu — disse ele, enigmático.
— Kit devia casar.
— Não consigo imaginá-lo casado! Dificilmente se acharia uma moça adequada para ele nos
arredores de Leigholm.
— Por quê? Não estão à altura dele? — indagou o sr. Adam, com certa ironia.
— Pode ser. O fato é que sinto saudade de todos e só percebi agora, que estou menos ocupada.
Pena a distância ser tão grande; se fosse mais perto, poderíamos nos ver sempre.
O capitão colocou a carta numa pequena pasta, fechou a gaveta à chave, enfiou-a no bolso e
virou-se: — Você disse que quer ir a Leigholm para o casamento de Hester. Não será para consolar
Kit?
A agressividade na voz dele surpreendeu Emily.
— É claro que desejo animar Kit! — exclamou.
O sr. Adam enfiou as mãos nos bolsos, deu uns passos pela sala e, de repente, disse que ia sair.
Só voltou na hora do jantar, durante o qual não disse uma palavra. Emily achou melhor não forçá-lo a
conversar. Talvez estivesse preocupado com as notícias trazidas pela carta do primo. Mais tarde, foram
para a sala pequena.
—Você está muito calado — comentou ela, depois que o chá foi servido. — Teve más notícias
hoje?
— Pode ser. Apenas ouvi o que esperava há tempo.
— O que quer dizer? — indagou ela, notando que um sorriso amargo entreabria os lábios do
marido.
— Pensei que você gostasse daqui — disse ele.
— E gosto. Quer dizer que ficou emburrado só porque eu falei em irmos a Leigholm?
— Não estou emburrado! — rebelou-se, zangado.
— Está, sim, e não é a primeira vez. Ficou emburrado naquela primeira noite, em Leigholm,
quando descobriu que eu era a moça que encontrara junto ao córrego. Quase não falou durante o jantar.
— Claro, Kit não parava de falar! — fez uma pausa e depois continuou: — Deixei que você
mudasse as coisas como bem quis, aqui.
— Eu sei — ela começava a perder a paciência. — O que está havendo, Adam?
— Nada. Parece que você prefere Leigholm.
— Não diga tolices! Desde o começo combinamos ir para lá no casamento de Hester.

PROJETO 5
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Ele soltou uma espécie de rosnado e não disse nada.


— Não admito isso! — declarou Emily. — Fale, Adam. Se existe algo errado, vamos
conversar. Por que resolveu, de repente, que não quer ir para Leigholm no Ano Novo?
— Talvez não seja possível — ele se remexeu, sem jeito. — Se Bonaparte fizer o que todos
temem, não poderei ir.
— Pois acho que não é isso. Sempre percebia quando Kit queria me enganar e você agora faz
o mesmo. Há outra coisa, diga a verdade!
— Talvez você já saiba o que é! — explodiu ele, furioso.
Emily percebeu que a discussão ia se tornar uma briga e que um deles tinha que evitá- lo. Mas
seu sangue também já fervia. Desde que chegara ali trabalhara muito, por ele, para fazê-lo feliz e,
agora, aquele homem lhe dizia que estava entediada.
— Como posso saber, se você não fala? Que infantilidade, Adam!
— É mesmo? Eu não acho infantil cuidar de minha honra pessoal e da honra da minha família,
madame! Sei que nunca me teria escolhido para marido, mas concordamos que viveríamos o melhor
possível, apesar de tudo. Mas é só Kit isto, Kit aquilo. O que estará fazendo o pobre Kit? Desde nossa
chegada fiquei em casa, não fui a Londres, não visitei amigos, só recebi os que nos vieram visitar. Não
lembro mais qual foi a última vez que peguei um baralho! Mas cansei! Cansei de esperar que
Bonaparte se mexa, cansei, principalmente, de saber que a senhora só se interessa pelo que acontece
com Christopher Godfrey!
Emily reteve o fôlego. Adam mostrava-se tão zangado que quase sentia medo dele. De repente, a
verdade surgiu, ofuscando-a como um raio de luz incandescente. Entendeu o que deveria ter entendido
há tempo, viu o que corroía a paz de seu marido: ele acreditava que ela amava Kit, que sempre o amara
e que se casara com ele para salvá-lo. E apesar dos primeiros meses de casamento, tão felizes, ele ainda
pensava assim. Por instantes, não conseguiu encontrar palavras. Até respirar era difícil. Por fim,
ergueu-se, mas teve que segurar-se no encosto da cadeira, para não cair.
— Você não tem o direito de dizer isso, principalmente porque está errado.
— Por favor, não minta, Emily! Quando cheguei a Leigholm percebi logo o que havia. E sei que
não se pode comprar o amor, o verdadeiro amor!
O capitão não era um tolo, mas se enganara. Jamais vivera num círculo familiar e não podia
entender que o carinho dela por Kit era o de uma irmã.
— Você está errado, Adam — balbuciou desesperada.
— Nunca mais falaremos nisto, entendeu? Uma vez você afirmou que devíamos ser honestos. O
que sente por Kit não é sua culpa, mas por favor, não finja que isso não existe. Vamos deixar esse
assunto de lado e nunca mais falar nele!
Emily fitava o marido com os olhos azuis repletos de lágrimas e, de repente, sentiu-se mal,
profundamente enjoada. Colocou a mão na boca e saiu correndo. O grande hall de mármore
encontrava-se gelado, mas apesar do frio sua impressão era de que o corpo ardia. Precisava sair,
escapar daquela casa. Esforçou-se por abrir o grande ferrolho de bronze e afinal conseguiu, quebrando
várias unhas. Saiu pela fresta que entreabriu e parou no pórtico. O vento gelado investiu e ela viu que
começara a nevar.
Desceu a escada e saiu correndo pelo jardim, escorregando na neve fresca. Os sapatinhos de
cetim logo ficaram encharcados e seus pés insensíveis por causa do frio. Parou junto de uma árvore,
ouviu algumas vezes a voz do marido, chamando-a, mas não respondeu. Viu uma construção de
madeira, a pouca distância: era o depósito de ferramentas do jardineiro. Foi até ele, abriu a porta,
sentindo-se atordoada e sonolenta. Viu sacos amontoados a um canto, pegou um e colocou-o sobre os
ombros.
Não queria voltar, não podia continuar vivendo com aquele homem, sabendo que ele se

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agarrava a um mal-entendido que não queria esclarecer. Sabia que os Harcourt não eram de mudar de
opinião. Sentou-se sobre o monte de sacos e, com as costas apoiadas na parede fria, de madeira, foi
entrando num estranho estado de semiconsciência, cheio de tormento.
Não teve a menor ideia do tempo que passava, nem que todos os criados a procuravam, ansiosos,
no imenso jardim.
Durante alguns minutos, o capitão não percebera que Emily saíra de casa. Pensara que ela tivesse
subido para o quarto e censurara-se por ter iniciado uma discussão inútil a respeito de algo que não
tinha solução. De repente, parecera-lhe que sentia mais frio e atribuíra isso a seu estado emocional.
Fora injusto acusando-a de desonestidade. Desde que chegara ali, Emily fizera tudo para tornar The
Hall mais acolhedora e confortável. Apesar de apreciar essa atitude, ele jamais dissera algo e deveria
ter dito. Não havia nada de extraordinário no fato de ela ter saudade de Leigholm, afinal vivera lá desde
que tinha nove anos até se casar e, agora, devia estar pensando que ele não a levaria ao casamento de
Hester. Chamara-se, mentalmente, de estúpido e começara a pensar em subir para pedir perdão.
Então, reparara que havia uma forte corrente de ar gelado na sala. Fora até a porta para
fechá-la e, ao olhar para a entrada, percebera que a enorme porta de carvalho maciço encontrava-se
aberta. Mesmo assim não lhe passara pela cabeça que Emily poderia ter saído. Só quando fora fechá-la
e dera uma olhada distraído para fora, levara um choque: à luz bruxuleante do candelabro com quatro
velas que carregava, percebera na neve fofa a marca dos pequenos pés.
Horrorizado, descera os degraus e chamara a esposa, aos gritos. O vento arrastara o nome dela e o
levara, rodopiando entre a nevasca. Gritara, então, por Andrew, que atendera de imediato.
— Chame todos os criados, a sra. Harcourt está em algum lugar do jardim e precisamos encontrá-
la — ordenara.
O administrador nem sequer pensara em esclarecer a estranha situação, apressando- se a executar
a ordem. O vento apagara as velas e ele entrara a fim de pegar uma lanterna, atormentando-se: Emily
estava exposta ao frio, com um vestido leve, um xale de seda e sapatinhos de cetim. Sabia que ela não
conseguiria encontrar o caminho de volta para casa, na densa nevasca. Mas tinha que se manter calmo,
pensara: a vida de sua esposa dependia dele.
Caminhava pela alameda principal do jardim, com a mansão atrás de si, quando colidiu com
alguém. Andrew Morris.
— Vá pela direita, eu irei pela esquerda e preste atenção no que eu gritar — disse, quase
berrando, a fim de ser ouvido. — Andaremos em círculos e se encontrar algo, grite.
E continuou andando, procurando as pequenas pegadas na neve. Encontrou algumas, quase
encobertas, que logo desapareceram. Estava a ponto de se desesperar quando lembrou do depósito de
ferramentas. Usara-o muito, quando criança, para esconder-se do tio. Conseguiu localizá-lo. A porta
encontrava-se apenas encostada.
Ele entrou, o coração saltando de ansiedade. No primeiro momento viu só o carrinho de mão,
ferramentas e sacos amontoados. Ia sair quando percebeu um pé sobressaindo entre os sacos. Largou a
lanterna no chão, ergueu alguns sacos e deixou-se cair de joelhos.
— Flor. — murmurou, com voz rouca.
Emily não percebia as coisas direito. De maneira nebulosa alguém se debruçava sobre ela, soava
uma voz masculina, porém não entendeu o que dizia. Não sabia se era levada ou se se movimentava por
si mesma. Não tinha consciência dos braços poderosos que a levavam de volta a casa.
Os flocos de neve que lhe caíram no rosto fizeram com que voltasse a si o suficiente

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para murmurar:
— Não é assim. Não.
Mas não conseguiu lembrar o que não era assim.
—Sra. Harcourt — disse o médico, fechando a maleta —, felizmente a senhora é muito forte!
Teve muita febre, mas, graças Deus, não contraiu pneumonia, como era de se esperar. Espero que não
faça mais audaciosas expedições na neve.
Emily achava a situação embaraçosa e evitou encarar o doutor, que era homem discreto,
educado, e não perguntara o motivo daquela loucura. Ela também não sabia por que fizera aquilo:
deixara-se levar, num momento de pânico, e a consequência fora uma semana de febre e delírio.
Felizmente o marido a encontrara a tempo.
O médico abotoava os punhos das mangas lentamente, como se procurasse a melhor maneira de
dizer alguma coisa.
— Fico contente ao ver que se recuperou depressa, senhora. Há algo que... hum... não foi
mencionado e que provavelmente...hum... a senhora desconheça.
— O que é? — indagou ela, preocupada.
— Querida madame, não se impressione. É coisa comum, que acontece com frequência. — Era
um senhor idoso, com ar paternal e sorriso cheio de bondade. — A senhora é jovem, saudável, e terá
outras oportunidades. — Vendo a perplexidade e a apreensão nos lindos olhos azuis, ele
acrescentou, com voz suave: — Não consegui salvar o bebê, sua condição era muito recente e isso
acontece. Não houve qualquer prejuízo ao seu organismo e da próxima vez tenho certeza de que a
senhora terá uma gravidez saudável e feliz.
— Eu... eu não sabia. — murmurou Emily, soerguendo-se dos travesseiros. — Sentia- me um
pouco cansada, nervosa e enjoada.
— Cobriu os olhos com as mãos. — Adam. Meu marido sabe?
— Sim, madame. Falei com ele e pedi que não mencionasse o assunto com a senhora, até que
ficasse boa. Ele ficou triste, claro, mas é um homem sensato e aceitou a situação.
— Ele queria tanto! — exclamou ela, contendo as lágrimas a custo. — A culpa foi minha! Que
estupidez ter ido lá para fora!
— Não, senhora! — a voz do médico era firme, positiva. — Ninguém pode saber qual foi a
causa. Eu já disse, sra. Harcourt, que é comum isso acontecer no início de uma gravidez. A senhora
deveria usar um calendário, para marcar determinados dias, assim, poderá cuidar- se no começo da
gravidez e calcular a chegada do bebê. Agora descanse, por favor. Voltarei a vê-la amanhã.
O capitão Harcourt entrou logo depois da saída do médico, que certamente falara com ele, pois se
sentou na beira da cama e pegou as mãos de Emily.
— Anime-se! O médico disse que tudo está bem, que essas coisas acontecem.
— A culpa foi minha! — ela não conseguia conter o desespero. — Adam, não imagina o quanto
eu sinto!
— Não, você não teve culpa — apertou as mãos dela e suspirou. — Se alguém é culpado, sou eu.
Naquela noite, estava muito mal-humorado por causa de notícias vindas de Londres. Não queria
alarmá-la e, desastrado, acabei por brigar com você, dizendo coisas que não tinha o direito de dizer.
Só me resta pedir perdão — fitou-a, a ansiedade brilhando nos olhos quase negros. — Será que poderá
me perdoar?
— Sim. — murmurou ela.
Ela perdoava, mas ambos sabiam que isso não mudava um fato: o sr. Harcourt dissera o que
pensava, por mais que não devesse dizê-lo.

— Não precisamos ir para Leigholm em fevereiro, se você não quiser — acrescentou

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Emily. — Porque...
— Claro que iremos — interrompeu-a ele. — Combinamos com a sra. Godfrey que iríamos e
Hester ficará desapontada se não formos. Iremos, se você estiver em condições de viajar.
— Em fevereiro? Estarei perfeitamente bem até lá. O médico disse que já estou bem. — Voltou o
rosto para a janela, por onde via a fronde das árvores, cobertas pela neve. — Não sabia que esperava
um filho, Adam, ou não teria feito o que fiz. Acho que uma mulher deveria "sentir" isso, mas
pensei que estivesse apenas cansada. Fiquei muito ocupada, perdi a noção do tempo e...
Era embaraçoso falar com ele sobre assuntos tão femininos. Em geral, os cavalheiros toleravam
que as damas ficassem de cama três ou quatro dias por mês e quando isso acontecia não faziam
perguntas indiscretas.
— O doutor disse-me que marcasse certos dias num calendário — continuou ela. — Para ter
certeza e saber se quando estiver esperando outro neném, mais ou menos a época em que ele irá nascer.
Não sei muito sobre essas coisas — concluiu, corada.
— Nem eu! — exclamou o sr. Adam, pesaroso. — Você está muito sozinha aqui, Emily. Precisa
de alguém, de uma amiga, uma pessoa como a sra. Godfrey, talvez, para lhe dar conselhos.
— Não me sinto solitária, Adam. Mas deve ser tedioso para você ficar sempre em casa. Talvez
devesse ir de vez em quando a Londres. Eu não me importarei se quiser rever amigos.
— Não quero ir a lugar algum — respondeu ele, seco. Depois, mudando de tom: — Estamos na
véspera do Natal.
— Já? — ela perdera a noção do tempo. — Nesse caso, vou me levantar amanhã, para ir à igreja.
— Não. Está frio demais e você deve ficar abrigada. Falei com o pastor, ele virá visitá- la, depois
do culto. Não quero que pegue outra friagem.
— Isso não causaria boa impressão aos meeiros e criados, Adam. É meu primeiro Natal aqui,
como dona de The Hall e pretendo ir ao culto. Irei bem agasalhada, não se preocupe.
— Não quero que adoeça de novo, Emily! — exclamou ele, com uma ponta de exasperação na
voz. — Afinal, você é minha única esposa — acrescentou, tentando brincar.
— Uma esposa tola e confusa — completou ela. Ele
inclinou-se e beijou-lhe a testa.
— E com um marido que é um burro teimoso. Mas logo virá o Ano Novo, faremos nossos bons
propósitos, entre eles o de sermos mais compreensivos e tolerantes um com o outro.
Fitaram-se, sorrindo, e Emily acariciou-lhe o rosto.
Haviam superado uma crise. A primeira. E Emily imaginou quantas outras viriam no futuro, se
teriam forças para superar juntos todas as dificuldades e manter seu casamento.

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CAPÍTULO VIII

A viagem a Leigholm foi um tanto acidentada, porque as estradas encontravam-se em péssimas


condições. Quando, afinal, chegaram, Kit desceu a escadaria do pórtico aos pulos, agitando os braços.
— Entrem! Devem estar gelados! — Beijou Emily ruidosamente. — Querida, você está uma
beleza! — Estendeu a mão a Adam: — Bem-vindo, velho amigo! Vai me salvar de enlouquecer na
companhia de George! — Continuou falando, enquanto não largava a mão do amigo e a sacudia. —
Jamais consegui que apostasse dinheiro no bilhar e só consegui ganhar o cavalo ruão dele porque
naquela noite bebeu um pouco a mais.
Emily, então, chegou à conclusão de que Kit não exercia boa influência em ninguém, muito
menos em George, mas todos estavam tão felizes que achou melhor não dizer nada nesse momento.
O casamento de Hester celebrou-se duas semanas depois. A igreja estava linda, cheia de flores
brancas e velas. Emily emocionou-se com a cerimônia. George tinha um colorido normal no rosto e
Adam insinuou, baixinho, que era porque a palidez do medo se misturara com o roxo, tornando-o
rosado. Depois, perguntou à esposa por que Hester usava o vestido de noiva que havia sido dela.
— Ela me pediu para usá-lo e eu o trouxe. Talvez você ache isso piegas, mas...
— Não ficou bem nela — interrompeu o sr. Adam. — Hester é baixa e redondinha demais. Além
disso, o cor-de-rosa da pele dela não combina com o marfim do vestido.
— Psiu, quieto! — ralhou ela, com medo que ouvissem.
O sr. Harcourt franziu as grossas sobrancelhas e Emily concluiu que, na verdade, ele não gostava
de ver outra com seu vestido de noiva.
— Não pensei que você se importasse — murmurou. — Caso contrário, não o teria emprestado.
— Isso é com vocês, mulheres. Que palpite um homem pode dar nisso — retrucou ele, mal-
humorado.
Os recém-casados almoçaram em Leigholm, depois viajaram para Bath, na nova caleça que o sr.
George comprara para corroborar seu status de homem casado.
— Por que Bath, em fevereiro? — admirou-se Emily. — Deve estar deserta!
— Porque agora deve ser muito mais barato! — exclamou Kit, rudemente. — Isso é importante
para o George. Aliás, ninguém iria a Bath em qualquer mês do ano: essa cidade vive cheia de velhos
reumáticos. O chique é ir para Brighton.
— Pois eu não iria a nenhuma das duas — afirmou o capitão.
— Leigholm vai ficar muito vazia sem Hester — lamentou-se a sra. Godfrey.
— Vocês ficarão alguns dias aqui, não é Adam e Emi? Mamãe gostaria muito e eu também. —
disse o rapaz.

Decidiram ficar até fim de março, porém isso não aconteceu porque no continente as coisas
aceleraram-se. Entretanto, Emily voltara à velha rotina, enquanto os dois homens dedicavam-se aos
vários esportes que podiam ser praticados por lá. Infelizmente, um dia Kit caiu do cavalo e chegou em
casa carregado sobre uma tábua.

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— O que houve? Ele quebrou uma perna? — indagou Emily ao marido, que vinha atrás do grupo,
zangado e sujo de lama.
— Não me olhe como se eu tivesse culpa! — exclamou o capitão.
— É apenas uma contusão em local que não convém mencionar!
— Como você é cruel! — indignou-se Emily. — Podia, ao menos, ter mandado chamar um
médico.
— Ele não precisa de médico! — foi a resposta exasperada. — Quis obrigar o ruão a saltar uma
barreira que o melhor cavalo do mundo superaria só se tivesse asas. Caíram os dois. Se tiver que
chamar alguém, será o ferreiro, pois o ruão está mancando e pode ser grave. Kit ganhou o ruão de
Arbuthnot, no jogo. Tenho certeza de que ele gosta muito desse cavalo e vai ficar triste quando souber
que o cunhado está tentando acabar com ele!
Mais tarde, a pedido da sra. Godfrey, o capitão foi buscar um médico que confirmou seu
diagnóstico e recomendou alguns dias de repouso.
Nos dois dias seguintes o rapaz permaneceu em um sofá da sala, com Emily e a mãe cobrindo-o
de mimos. O sr. Harcourt mal falava com eles e ia constantemente à estrebaria para ver como ia indo o
ruão, no qual o cavalariço aplicava cataplasmas quentes. Emily achava o comportamento do marido
execrável. Ao vê-lo voltar da cocheira, na terceira manhã depois do incidente, interpelou-o: —
Creio que gostará de saber que Kit está bem melhor.
— Quer dizer que ele não vai precisar mais que você segure a mãozinha dele e o alimente com
geléia de mocotó?
— Sua ironia não tem graça, Adam Harcourt! Sabe que não dou comida ao Kit e que ele não
está comendo geléia de mocotó. Só fico ao lado dele e leio para distraí-lo, coisa que você se recusa a
fazer!
— O "menino" tem vinte e quatro anos, sabe ler há muito tempo e é um oficial britânico!
— Como vai o cavalo? — perguntou Emily, rápida, vendo a cara feia do marido e o rumo da
discussão. — Não quer ir ver Kit? Ele tem perguntado por você.
— Ah, o cavalo! Enquanto você punha compressas na testa daquele vadio, eu cuidava do pobre
cavalo. Está melhor. Christopher Godfrey quer me ver? Oh! Irei já beijar a mão dele.
Minutos mais tarde o jovem Godfrey cochilava, tranquilo, quando a porta abriu-se com estrondo.
Ele abriu os olhos e viu o capitão de pé a seu lado, com expressão nada amistosa.
— Espera aí! — exclamou, sentando-se. — Sei o que vai dizer.
— Sabe, hein? Escute, seu vagabundo: caso não se levante neste minuto vou arrancá- lo desse
sofá!
— Mas eu me machuquei de verdade! Ei!
Nem bem acabara de exclamar, o jovem viu-se erguido e colocado de pé.
— Seu preguiçoso! Você está bem e só explora a bondade daquelas duas mulheres. Se não
cavalgar comigo hoje, irei embora amanhã. Naquele mesmo dia, levei um tombo, tornei a montar e
ninguém ficou sabendo disso!
— Ora, Adam! Eu só estava me divertindo, vendo Emily preocupada comigo. Agora não tenho
mais essa chance, então tratei de aproveitar ao máximo — sorriu desavergonhadamente, sem notar a
expressão feroz do amigo. — Vamos pegar duas espingardas, dois cães e caçar patos selvagens no
pântano!

Apesar desse incidente, anos depois Emily se lembraria daqueles dias em Leigholm como um
tempo feliz. Sentia-se muito bem e achava que engravidara de novo. Conversou a respeito com a sra.
Godfrey.
— Não quero contar a Adam, sem ter certeza, para não desapontá-lo outra vez. Deve

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ser o comecinho, mas tenho quase certeza de que estou grávida, entende?
— Entendo sim, minha filha. As mulheres sempre sabem.
— Da outra vez eu não sabia.
— É que se encontrava preocupada com muitas coisas — e a boa senhora afagou-lhe a mão. —
Além de não conhecer os sinais. Talvez deva consultar um médico.
— Vou esperar mais um pouco. Se eu chamar o médico, Adam vai perceber. Daqui a um mês, eu
trato disso.
Ela não podia saber, mas a tempestade avolumava-se no céu de sua vida e estava prestes a
desabar.
O dia fatídico começou de maneira normal, quase tediosa. Kit saiu cedo, para Oxford, a fim de
tratar de uns negócios e avisou que voltaria ao anoitecer. George e Hester haviam regressado e,
finalmente, o capitão aceitara o insistente convite do sr. Arbuthnot para conhecer as criações de gado e
de porcos. Emily saíra para visitar os Honeyburge, sendo recebida com demonstrações de carinho por
adultos e crianças. Ao entrar na cozinha, ela vira imediatamente o novo bebê, e rostinho vermelho,
que dormia placidamente enfaixado e enrolado no cueiro de flanela.
— É o décimo sétimo! — disse a sra. Honeyburge, orgulhosa.
Seguiu-se uma animada discussão sobre as vantagens e desvantagens de enfaixar e imobilizar
crianças em cueiros. A sra. Honeyburge ganhou, exibindo sua produção.
— Dezessete filhos, todos vivos, saudáveis, e todos foram enfaixados!
Emily achava, mas não disse, que isso se devia mais ao ar puro e à boa alimentação do que ao
enfaixamento. Enquanto voltava para casa, considerou que dezessete filhos era muita coisa. Queria
filhos, mas não tantos e achava que o marido concordaria com ela.
O som de cascos de cavalos interrompeu-lhe os pensamentos. Ela olhou para trás. Era o jovem
Godfrey, que se aproximava o galope. Quando a viu, ele puxou as rédeas e o cavalo deteve-se perto
dela, empinando espetacularmente. Achava-se coberto de espuma, suor, e ela compreendeu que ele
vinha fazendo o animal correr daquele jeito desde Oxford. Se o capitão visse isso, diria mais uma vez
que Kit só sabia destruir os cavalos. Ia censurá-lo, mas não teve tempo. Coberto de lama espirrada
pelas patas da montaria, o rapaz agitou um jornal diante dela e exclamou, ofegando: — The Times,
Emi! Na primeira página!
— Sim, Kit! O que há? Olhe, o seu cavalo. Não entendo por que tem que correr desse jeito por
estradas tão ruins!
— Bonaparte fugiu de Elba, Emi, e está a caminho de Paris! — berrou ele, interrompendo-a. —
É a melhor coisa que podia acontecer! — desceu do cavalo, pulando de alegria. — Terei que ir para lá!
— Adam também — murmurou ela, pálida.
— Vai ser uma campanha curta: vamos acabar com Napoleão Bonaparte num instante. Sei que
não vai gostar de ficar sem seu marido, mas ele estará de volta até o fim do ano.
— Espero que não haja guerra, Kit! Sei que você tem saudade da luta, provavelmente Adam
também. Mas vou fazer de conta que isso não me desespera.
— Calma, calma. Não chore, Emi! — Passou um braço pelos ombros dela. — Quem sabe
Bonaparte vai ser preso antes de chegar a Paris.

Dois dias depois chegou uma carta do primo do sr. Harcourt. Hester e o marido foram jantar com
eles naquela noite e quando, mais tarde, reuniram-se na saleta, o capitão leu trechos da carta. Era
verdade: Napoleão dirigia-se a Paris e o povo o aclamava como herói. Ninguém sabia onde se
encontrava Luís XVIII de Bourbon, o legítimo rei de França. Todos

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queriam o imperador.
— Tudo depende do que farão os militares franceses — comentou o sr. Adam. — Os velhos
marechais serviam o rei, mas parece que uma parte apoia o imperador. Acho que haverá guerra.
— Isso é péssimo! — exclamou o sr. George Arbuthnot, preocupado com seus investimentos. —
Guerra não faz bem a ninguém.
— Para mim, faz! — interferiu o jovem Godfrey.
— Ah, meu menino — protestou a mãe dele. — Como pode pensar assim? Ficamos tão
preocupadas enquanto você lutava na Espanha e agora vai começar tudo de novo!
— Acalme-se, mamãe — e ele abraçou a senhora. — Sou um soldado e para que servem
soldados se não lutarem? Não é, Adam?
— Mais ou menos. — respondeu ele, dobrando a carta.
Emily nada disse, Hester levantou-se, também sem falar, indo abraçá-la e beijá-la.
Mais tarde, quando Betsy escovava os cabelos de Emily, a porta do quarto abriu-se e o capitão
entrou. A criada depositou a escova na penteadeira, fez uma mesura e saiu. Ele sentou-se numa cadeira,
perto da esposa, suspirou e disse: — Kit tem razão. Para que serve um soldado se não para lutar?
— Quer dizer que está decidido a ir?
— Preciso e ele também precisa ir. Não demos baixa ao voltar para casa, então continuamos no
Exército. Precisamos voltar para casa amanhã, onde aguardarei ordens. Imagino que iremos
diretamente para os Países Baixos, pois não há tempo a perder. Graças a Deus ainda temos muitas
tropas no continente. Bonaparte não vai escapar, eu garanto!
— E para isso você tem que ir lutar contra ele.
— Lembre-se de que eu sempre disse que ele não se conformaria em permanecer na ilha de Elba.
E a fuga dele foi muito bem planejada. Agora temos que lidar com essa situação.
Emily decidiu que não era o momento de falar de sua gravidez: não adiantaria nada, ele iria para
a guerra do mesmo jeito. Fitou-o intensamente: — Adam, leve-me com você.
— Comigo? Como? Que absurdo!
— Não é absurdo — rebatou ela, animada. — Outras esposas acompanham os maridos, até
mesmo de soldados rasos. Por que não posso ir com você?
— Porque... — calou-se, procurando motivos para convencê-la. — Porque não é um piquenique!
Porque você não imagina o que é. Porque será difícil arranjar onde morar, haverá escassez de
alimentos. Porque é uma vida de cigano, um dia aqui, outro lá. E se houver luta vão acontecer coisas
que você não gostará de ver e eu não quero que veja!
— Não pretendo ficar em casa, morrendo de aflição, imaginando que pode estar ferido, sem
ninguém para cuidar de você. Não vou atrapalhar, Adam! Por favor, leve-me!
Pegou a mão dele, implorante, e o capitão franziu a testa, preocupado.
— Não gosto dessa ideia, Emily. Sei que há esposas que acompanham os maridos, mas nunca
aprovei isso, guerra não é coisa para mulheres.
— Não é coisa para qualquer criatura humana, seja mulher ou homem! — afirmou ela, convicta.
— E marido e esposa devem permanecer sempre juntos!
— Depois discutiremos isso, Emily. Pense bem.

Mas ela já pensara. Não ia contar sobre a gravidez, senão ele não a levaria, mesmo, talvez com
razão. Já abortara uma vez e poderia pôr em risco a nova esperança. Mas não queria ficar em casa, sem
notícias. Iria, de qualquer jeito.
O capitão se erguera e encontrava-se perto da porta. Ela também ergueu-se e fitaram-

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se por cima da cama.


—Há muito a fazer. Preciso ir para meu quarto, escrever umas cartas — explicou ele.
— Cartas são mais importantes do que nós? — ele não respondeu e ela sussurrou: — Por favor,
fique comigo.
Os longos cabelos castanhos caíam por sobre os ombros, os grandes olhos azuis brilhavam no
rostinho pálido, de expressão desamparada. Emily jamais tomara aquela atitude. Muitas vezes ele
desejara que ela o procurasse, que tomasse a iniciativa, mas não tinha esperanças que acontecesse.
Estava certo de que a esposa não tinha muito entusiasmo em fazer amor com ele, além das convenções
proibirem que as mulheres dessem o primeiro passo para tal coisa. Imaginou que Emily devia estar
assustada, mas não sabia se ela temia por ele ou por Kit.
— Sim, claro. — murmurou ele, por fim.
Aproximou-se da cama e despiu o robe. Deitaram-se em silêncio, ele apagou a vela e puxou o
cortinado do leito antigo. Então, colocou uma das mãos num ombro da esposa.
— Não se preocupe demais. Kit e eu temos experiência e sairemos dessa campanha sem um
arranhão. Não se aflija.
— Eu também vou — murmurou ela. — Já decidi.
— Se quiser, mesmo — disse ele, na escuridão, depois de instantes de silêncio. — Irá comigo.
Mais tarde, entre os braços do marido, ouvindo sua respiração profunda, regular, ela pensou: Eu o
amo tanto, querido! Queria saber dizer isso de um modo que o convencesse!
Sabia que o capitão não acreditava em seu amor por ele, mas se lhe desse provas suficientes de
fidelidade e constância, talvez acabasse por compreender.
Chegaram a Essex quatro dias depois, onde ele encontrou as instruções. Teriam que estar nos
Países Baixos na primeira semana de abril. Os Exércitos europeus reuniam-se na Bélgica a fim de se
opor, pela última vez, ao avanço do homem que fizera a história da Europa nos últimos vinte anos.
Em Harwich, embarcaram para Ostend. Além do casal, iam Andrew Morris, Betsy, um
cavalariço, cinco cavalos e volumosa bagagem. O pequeno porto encontrava-se apinhado de militares e
muitos deles estavam com a família, inclusive crianças. A confusão era enorme e o embarque foi
vagaroso. Quando tudo ficou pronto, o vento parou e desceu denso nevoeiro. Afinal, soprou o vento e o
barco zarpou. A travessia foi boa; chegaram a Ostend antes de escurecer. Descobriram, então, que não
havia barcaças para levar os cavalos a terra.
O jeito foi simplesmente lançá-los ao mar, para que nadassem até a praia. Os homens,
principalmente os da artilharia, que eram encarregados de cuidar dos animais, despiram-se e também
pularam na água, a fim de guiar os animais. A população de Ostend deliciava-se com o espetáculo
de cavalos e homens emergindo das ondas, como num baixo-relevo antigo. A cidade encontrava-
se quase lotada e Andrew Morris descobriu, com dificuldade, um quartinho numa modesta estalagem.
Emily e Betsy passaram a noite lá, procurando secar as roupas molhadas por respingos do mar, diante
de uma pequena lareira.

O duque de Wellington encontrava-se em Bruxelas e para lá se dirigiram no dia seguinte, muitas


vezes errando o caminho, pois ninguém tinha mapa do lugar. Depois de vagar uma semana pelos
campos belgas, as forças inglesas começaram a se organizar. Os Harcourt acomodaram-se em uma
cidadezinha a poucos quilômetros de Bruxelas e Emily

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descobriu, com surpresa, que a vida social começava a surgir na pequena comunidade. Kit hospedara-se
a pouca distância deles e divertia todo mundo com engraçadas descrições da filha de sua senhoria, que
pelo jeito se apaixonara por ele.
O capitão clamava contra as dificuldades de alimentar as tropas, pois os camponeses, querendo
tirar lucro maior na situação propícia, criavam dificuldades de abastecimento para encarecer os
gêneros. Apesar disso, ele e o jovem Godfrey pareciam radiantes. Emily, por sua vez, ia se
acostumando àquela vida agitada e quando escreveu para a sra. Godfrey e Hester encerrou a carta com
otimismo:
"Moramos numa estranha casa antiga, que eu pintaria de uma cor clara, se o soubesse fazer. O
andar superior projeta-se por cima da rua, sustentado por muitas vigas entalhadas. Estamos bem
instalados e nossos senhorios são amáveis. Os oficiais queixam-se da impossibilidade de conseguir
uma só garrafa de vinho do Porto e contentam-se com o branco."
Parou de escrever e foi até a janela. Viu homens fardados movimentando-se em várias direções.
Um cabriole aproximava-se e viu-o parar diante da casa deles. Logo a senhoria subiu, pois morava no
térreo, para anunciar a visita de uma senhora.
Emily ajeitou o vestido: ia receber ali a primeira visita, como a esposa do capitão Harcourt. Visita
essa que a admitiria no círculo de esposas destemidas que acompanhavam o regimento.

CAPÍTULO IX

A senhora aparentava uns quarenta anos. Era simpática, vestia-se com discreta elegância.
Apresentou-se como esposa do major Sheridan. Estabeleceu-se imediata simpatia entre ela e Emily.
Trazia um convite para aquela noite, uma reunião em sua casa, da parte do regimento Brunswick que
ficaria lá, por vinte e quatro horas.
— Naturalmente, haverá mesas — disse e, ao ver a expressão intrigada de Emily, explicou: —
Para os homens jogarem. A maioria deles adora jogar e não adianta convidá-los se não houver jogo.
Vocês irão?
Emily prometeu que iriam e agradeceu. Tinha vontade de conhecer os "Brunswick pretos", cujo
apelido devia-se à cor da farda e que tinham fama de muito corajosos.
Como ao fazer as malas ela não pensara em festas, tratou de enfeitar um vestido simples, com a
ajuda de Betsy.
— Não se preocupe — disse o marido, quando chegou e as encontrou atarefadas com agulhas,
linhas, rendas. — Minha esposa será a mais elegante de todas e os Brunswick irão cortejá-la, com seu
forte sotaque alemão.
— Eles falam inglês? — quis saber ela.
— Mais ou menos e às vezes é difícil entendê-los. Uma vez tentei conversar com um deles
durante uma hora até que descobrimos que era melhor falarmos em francês.
A sra. Sheridan dissera que muita gente iria, mas Emily não esperara encontrar a casa apinhada
daquele jeito. Havia convidados vindos de Bruxelas e essas senhoras eram elegantíssimas. Ela sentiu-
se meio campônia no vestido azul-claro, enfeitado com renda de

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Flandres. Enquanto entravam, com dificuldade, no burburinho ouviu uma voz feminina chamando seu
marido. Uma mulher aproximou-se deles e era daquelas que chamaria a atenção em qualquer lugar:
alta, bastos e longos cabelos muito pretos, vestido cor de violeta, na última moda. Ela fechou o leque e
bateu com ele no peito do capitão, com familiaridade.
— Então, aqui está?! Quando nos despedimos, não imaginei que iríamos nos reencontrar tão
depressa.
— Anabella! — exclamou ele e beijou a mão dela. — É um prazer revê-la é tão bonita!
— Ah, não tente me amaciar com elogios! Já soube que me abandonou, casando-se. É esta é a
sua esposa? — Observou Emily com ar superior.
— Emily, quero lhe apresentar a sra. Morton. O marido dela, Bob, é um dos nossos e estivemos
juntos na Península. Anabella percorreu o caminho de Portugal aos Pireneus montando uma mula.
— Ah, meu caro, mas eu sabia que iríamos a Paris e agora tenho minha carruagem. Bob ganhou-
a no carteado. Ele está ali — e apontou para uma mesa onde um grupo de oficiais jogava.
— Vou até lá, dar uma olhada — disse o sr. Harcourt.
— E me abandona de novo! Logo quando estou sendo perseguida por um Brunswick com
cicatrizes no rosto! E vou fugir, pois ali vem ele! — com uma gargalhada, ela sumiu entre os
demais convidados.
— Que mulher bonita! — observou Emily, com uma pontinha de inveja. — Realmente, ela
atravessou a Espanha no lombo de uma mula?
— Sim — respondeu o sr. Adam, rindo. — Não subestime Anabella, jamais!
— E é muito elegante.
Sentia-se triste com seu simples vestido azul, tinha medo que as rendas se soltassem, pois tinham
sido alinhavadas.
— Morton tem sorte no jogo, senão estaria arruinado.
O comentário do capitão indicava que ele não desaprovava o fato e Emily teve impressão que ele
aprovaria também qualquer coisa que a sra. Morton fizesse. Ficou surpreendida ao descobrir que sentia
ciúme. Foi, então, envolvida pela sra. Sheridan que levou-a para conhecer outras convidadas. Quando
conseguiu livrar-se delas, procurou pelo marido, mas não o encontrou. Foi às mesas de jogo, ele não
estava. Mas viu Kit jogando e ele parecia um tanto embriagado. Notou, assustada, que o cacife era
bastante alto e notou que seu irmão de criação perdia o dinheiro que não tinha.
Sentiu necessidade de respirar ar puro: tomara duas taças de ponche e sua cabeça doía; como o
jovem Godfrey fingiu não vê-la, afastou-se. Precisava encontrar o marido e ele tiraria o rapaz da mesa
de jogo.
Deu uma volta na sala sem encontrar o capitão, então desceu a escada, a fim de respirar ar fresco,
na rua. Era noite e a praça diante da casa encontrava-se iluminada por muitos lampiões. Criados iam e
vinham, ocupados com as montarias e caleças dos oficiais, senhoras desciam de carruagens. Com o ar
friozinho, logo ela passou a sentir-se melhor. Deu uns passos pela calçada e chegou à entrada de uma
viela e parou, surpresa, ao ouvir a voz do marido.
— Precisamos voltar, Anabella. Vão notar nossa ausência.
— Bobagem — respondeu a sra. Morton. — Bob não está preocupado comigo. E você,
preocupado com sua mulherzinha? Adam, jamais imaginei que você seria tiranizado por uma mulher!
— E não sou — a voz dele indicava que se zangara, mas a mulher riu.
— Sei. Casou-se há pouco tempo e ainda está deslumbrado com a lua-de-mel, não? — provocou-
o Anabella, maliciosa.

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— Preciso voltar, pense o que você quiser.


Ouviu-se sons de passos e Emily escondeu-se no vão de uma porta.
— Visite-me, quando puder escapar! — insistiu a mulher. — Bob nunca está e não liga para
minhas companhias. Vá me ver, por favor — e continuou, num sussurro: — Éramos tão "amigos" na
Espanha.
— Isso passou, Anabella — respondeu o capitão.
— Mesmo? Olhe, decidi recuperá-lo para seus velhos amigos e me considero o mais importante
deles.
Emily espremeu-se contra a porta e os viu passar: Anabella segurava o braço do sr. Harcourt com
ar de dona. Entraram na casa. Ela esperou alguns instantes, depois entrou e quando se misturava aos
convidados, o marido aproximou-se.
— Onde você esteve?!
Ao ouvir o tom dessa pergunta, ninguém imaginaria que ele estivera ausente por mais de meia
hora.
— Sentada por aí. Estou cansada, Adam. Precisamos ficar até o fim?
— Não, se você não quiser — respondeu ele, seco.
— Kit está jogando e perdendo. Fiquei observando, à espera que ele olhasse para mim, porém fez
de conta que não me viu. Não pode fazê-lo parar?

— Pelo amor de Deus, Emily! Não sou tutor dele! Além disso, o rapaz tem idade bastante para
saber o que faz. Se perder muito hoje, talvez amanhã não jogue. Vamos nos despedir da sra. Sheridan,
então.
— Se você quer ficar mais um pouco. — começou ela, porém seu marido já estava a caminho.
Viram Anabella Morton flertando descaradamente com um jovem oficial dos Brunswick e o
capitão sorriu. Era evidente que perdoava qualquer coisa àquela mulher.
Na tarde seguinte o jovem Godfrey chegou à casa deles, todo sem jeito. Sabia que Emily o
vira jogando.
— Não vai escrever para mamãe e Hester, contando que eu joguei, não? Sei que
desaprova, mas nada há de mal.
— O cacife era altíssimo, Kit! Quanto você perdeu?
— Pouco. E preciso fazer algo para passar o tempo.
— Não posso dizer o que deve fazer, mas você sabe o que aconteceu da outra vez. Não
espere que Adam o ajude de novo.
— Só não quero deixar mamãe preocupada.
— Sabe, Kit? Ontem conheci a sra. Morton. Linda!
— É bonita, mas muito interesseira. O marido está apaixonadíssimo e faz tudo que ela
quer.
— Pareceu-me muito íntima de Adam.
— Escute, Emi, sei o que está pensando e não me peça para contar mexericos, que
talvez nem existam. Precisamos respeitar a reputação daquela senhora e do marido.
— Ela não parece ter boa reputação — rebateu Emily.
— Hum, acho que está com ciúme — exclamou o rapaz, atônito.
— E por que não deveria estar?
Ela sentou-se numa poltrona, não tentando esconder a tristeza. Ele observou-a por instantes,
depois se aproximou, abaixou-se ao lado dela e pegou-lhe as mãos.
— Não fique assim, Emi. Você tem razão: aquela mulher não inspira respeito, todos os homens
flertam com ela. Isso não quer dizer nada!
— Mas ela combinou um encontro com Adam, na ausência do marido. Eu ouvi. Acho

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que ele cansou de mim.


— Não entendo por quê! — o jovem a observou durante alguns instantes. Depois: — Você nunca
me cansou.
— Porque não está casado comigo.
— Não. — ele hesitou, depois continuou: — e às vezes penso que seria bom se estivesse.
Emily empertigou-se e desvencilhou as mãos, dizendo:
— Não. Não seria e nunca mais diga isso. Adam ficaria furioso. Mas é verdade! Sabe, quando
voltei da Espanha, você me pareceu diferente. Foi um choque. Não sei por que não pensei nisso antes,
Emily. Acho que é porque éramos crianças e me arrependi por fazer Adam casar com você.
— É, mesmo? — indagou o capitão, sarcástico, parado à porta.
Os dois fitaram-no, paralisados. Não podiam saber há quanto tempo ele se encontrava ali,
ouvindo-os.
— Levante-se, Kit. Parece um idiota, aí de joelhos. É uma pose ridícula e sentimental. Pode
agradar minha mulher, mas me dá vontade de rir.
— Não admito que me chamem de idiota — respondeu o rapaz, vermelho, levantando- se. — Na
frente de Emily, nem que seja você!

— Se não é um idiota, lembre-se que também não sou! — explodiu o sr. Harcourt, rude.
— Vá beijar sua égua flamenga, que minha esposa dispensa as suas atenções!
— Kit não tinha qualquer intenção maldosa — protestou Emily, por fim. — Conversávamos,
apenas. Céus, Adam, nós nos conhecemos desde pequeninos!
— Estou saindo — avisou Kit, percebendo que ia haver um vendaval no qual não queria ser
envolvido. — Eu não estava namorando Emi, portanto não precisa se zangar. Falo com você quando
estiver menos nervoso.— saiu e desceu a escada assobiando.
— Vai descobrir que Christopher Godfrey é um admirador volúvel, minha cara — advertiu o
capitão, irônico. — A constância não é o forte dele. Abandonou-a uma vez e irá abandoná-la outras.
Não se esqueça disto.
— Talvez ele não seja a única pessoa volúvel que conheço — retrucou ela, zangada. — Adam,
não entende que Kit agiu como o tolinho que é? Acha, talvez, que ele está apaixonado por mim ou eu
por ele? Conheço-o deste que nasci e para mim é um irmão!
— Mas não se comportava como irmão! — o queixo do capitão estava saliente e seus olhos
soltavam fogo. — E o que você quis dizer com isso de outra pessoa volúvel?
— Pare de se fingir de santo! — exclamou ela, já de mau humor. — Esse papel não lhe fica bem.
O que me diz da sua amiga, a sra. Morton?
— Eu já esperava uma insinuação dessas. Vi como você a olhava. Se Kit é seu amigo, Anabella é
minha amiga. O marido dela é meu companheiro de regimento. Só.
— Só, mesmo? — controlou-se para não revelar o que sabia sobre o encontro marcado.
— Só, mesmo! — berrou ele, fora de si. — E acho que a senhora não tem direito de criticar. Há
muito aguento Christopher sempre ao seu redor, entrei aqui e ele estava de joelhos aos seus pés.
Portanto, é a última a poder se queixar!
Ela quis se defender, mas foi impedida por um mal-estar violento, por uma ânsia quase
incontrolável. Empalideceu e foi para a janela, em busca de ar, enquanto o marido a observava, sem
qualquer simpatia.
— E não me impressiona com essa cenazinha, minha senhora! E vá se deitar. Avisei que a vida
não seria fácil. Caso não consiga aguentá-la, volte para a Inglaterra.
Os olhos de Emily encheram-se de lágrimas, mas controlou-se. Era o resultado de não ter contado
a ele sobre a gravidez.

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A discussão ou algum outro motivo fez o humor do capitão permanecer sombrio nos dias
seguintes. Quase não falou com ela, saía muito, alegando motivos militares. Uma tarde, Emily separava
roupas para a lavadeira quando um lenço de mulher, bordado e com renda, caiu do bolso de uma calça
dele. Percebeu logo a quem pertencia pelo "A" bordado num canto. Era a confirmação para suas
suspeitas. Sentou-se no chão, entre a roupa suja, e começou a chorar. Enxugava as lágrimas, tentando
se recompor, quando a sra. Sheridan chegou.
— O que foi, minha querida? — perguntou, aflita.
— Nada, obrigada.
— Venha, sente-se aqui e coloque os pés sobre o tamborete. Assim. Nas suas condições, não
deve se cansar. Mande a Betsy preparar um chá. — ao ver que ela arregalava os olhos, a boa senhora
riu. — Querida Emily, desconfiei desde o momento em que a vi. A mulher grávida tem expressão mais
suave, um brilho diferente no olhar.
— Não conte a ninguém, por favor! Adam não sabe e não quero que saiba, ele me mandaria de
volta à Inglaterra. Não queria me trazer e eu perdi um neném antes do Natal. Vai ficar zangado
comigo, por eu ter vindo assim.
— Fique sossegada, não direi nada. Mas acho que você devia dizer. Seu marido não a mandará
de volta, acredito. Temos ótimos médicos e a viagem de volta seria pior do que ficar.
— Mas não quero que ele saiba — teimou Emily.
— Querida, desculpe insistir, mas acho que está preocupada com alguma coisa.
Emily enrubesceu, abriu a boca para negar, mas a sra. Sheridan, que estivera na Espanha e devia
saber do relacionamento anterior entre o capitão e a sra. Morton, continuou, suave: — Adam não é tolo,
meu bem. Não vai arriscar seu casamento pelos caprichos de uma mulher cujo nome não vou dizer e
que tem uma reputação que não é das melhores. Um flerte superficial e um galanteio nada significam.
Todo mundo sabe que a senhora em questão gosta disso, mas é considerada uma pessoa sem juízo, que
não merece atenção.
— Adam acha que é divertida e espirituosa — murmurou Emily — e eu não sou.
— Outra tolice! Você é linda! Não precisa passar nada nas faces e nos lábios para dar- lhes cor.
Aqueles cabelos negros também não são naturais, pelo menos, a tonalidade varia muito.
A moça, afinal, desatou a rir e a sra. Sheridan também.
— Viu? Você estava sofrendo, remoendo essas coisas sozinha. Falou comigo e viu que não é o
drama que pensava.
— Há outra coisa, sra. Sheridan. Como sabe, fui criada pela família Godfrey e sempre considerei
Christopher meu irmão. Adam não entende isso e também não tenho coragem de magoar Kit.
— Kit Godfrey é maluco — riu a boa senhora. — Tem excelentes qualidades, muito apreciadas
por todos do regimento, mas duvido que alguém possa magoar os sentimentos dele. Afinal, quem é
mais importante para você: Adam ou Kit? Diga a ele que não apareça quando seu marido não estiver
em casa.
Quando o marido chegou, nesse dia, ela estava animada, costurando umas fitas em seu
chapéu e cantarolando. Ele mantinha-se emburrado há dias, sem arranjar o jeito de pedir desculpa pelo
seu comportamento. Como ela também se mantinha séria, fechada, era pior ainda. Ao vê-la alegre,
sentiu uma possibilidade e perguntou: — O que é isso? Chapéu novo?
— Você sabe que é velho, mas coloquei umas fitas, como se costuma fazer por aqui. Colocou
o chapéu e esperou o comentário.
— Muito bonito! — disse ele e, curvando-se, beijou-a.

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— Adam, detesto brigar com você. — murmurou ela, passando os braços pelo pescoço
dele.
Beijaram-se e nessa noite ele ficou em casa.

CAPÍTULO X

Abril e maio passaram: junho chegou com o calor do começo do verão. A gravidez de Emily já
aparecia, embora disfarçada pela moda da época. Era o momento de contar ao marido.
A Bélgica encontrava-se repleta de militares ingleses, prussianos, franceses monarquistas,
holandeses, e belgas. Todos os dias prendiam-se espiões, declarados ou suspeitos. E onde estaria
Bonaparte? Corriam mil boatos, mas ninguém sabia ao certo. Enquanto isso, os militares iam a festas,
dançavam, jogavam.
Christopher Godfrey jogava e perdia. Emily não mais mencionara sua preocupação, porém o sr.
Harcourt notava o que acontecia. Certa manhã, perdeu a paciência e foi ao alojamento do rapaz. Era
cedo, porém encontrou-o acordado, sentado numa tina de madeira e sendo lavado por Marie, a filha da
senhoria do prédio onde Kit morava.
— O que está acontecendo aqui? — indagou o capitão.
— Marie, pode deixar. Pode ir, merci.
A moça sorriu, colocou o pano úmido sobre o lavatório e saiu do quarto, obediente. O capitão riu
e comentou: — Não entendo por que as mulheres, todas elas, gostam de mimar você! Parece que o
consideram um menininho, que nem se lavar sabe.
— É. E Marie fica feliz fazendo isso.
— E você, importa-se com elas, Kit? Aceita seus carinhos e atenções como se lhe fossem
devidos, abusa da boa vontade delas e acaba sempre por traí-las, de um modo ou outro.
— Isso está me cheirando a sermão — observou o rapaz, desconfiado. — Veio tomar o café da
manhã comigo?
— Não, obrigado, já tomei. Vim porque, acho eu, sou tão tolo quanto essas mulheres. Quero
evitar que Emily se preocupe e que sua família vá à falência.
— Emi o mandou? — perguntou o jovem Godfrey, com expressão de teimosia.
— Não, ela não sabe que vim aqui. Quanto deve, desta vez?
— Não é da sua conta. Arranjo o dinheiro em algum lugar.
— Está nesse ponto? Precisa "arranjar" dinheiro?
— Deixe-me em paz, Adam! Somos velhos amigos, estimo sua amizade, mas não tolero
sermões.
— Pelo menos, fique longe do jogo por algum tempo.
— Está bem, se isso o deixa tranquilo. Mas não conte nada a Emi — levantou-se e pôs- se a
pentear os cabelos. — E ela, está bem?
— Claro que sim — respondeu o capitão. — Por quê?
— Bem, não sei. — Achei-a diferente. Vamos, coma um pouco, Adam. Meio quilo de

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presunto e meia dúzia de ovos só poderão melhorar seu humor!


— Obrigado. Quero sua palavra de que não vai jogar.
— Juro — disse o rapaz, com tanta indiferença que até a pessoa mais ingênua duvidaria dele.
— Precisa falar com Adam, Emily, querida — insistiu a sra. Sheridan. — Já deve ter completado
quatro meses e mesmo com esse vestido parece redondinha. Tenho certeza de que não a mandará para
casa.
— Sei que preciso falar que ele vai ficar contente, mas também contrariado por eu ter vindo.
— Por quê? Todas as esposas que vieram fizeram isso porque se ficassem em casa não estariam
com seus maridos e é o que mais querem. Temos excelentes médicos, não há motivo para temer dar à
luz aqui. Será ruim se ele descobrir sozinho.
Uma porta bateu lá embaixo e a boa senhora ergueu-se.
— Não esqueça o que eu disse, Emily. Prometa que vai contar a ele.
— Prometo — respondeu ela, mas não parecia convencida.
Assim que a sra. Sheridan cumprimentou o capitão e foi embora, ela comentou: — Saiu cedo,
hoje.
— Fui tentar conseguir notícias. Prenderam mais um espião.
Enquanto respondia, ele observava a esposa. Kit tinha razão. Ela estava linda como sempre,
vestida de azul, mas era evidente que engordara um pouco. Falta de exercício e comida flamenga,
pensou.
— E era, mesmo, um espião? — quis saber Emily.
— Era e dos mais audaciosos, usando a farda de monarquista francês. Foi preso por franceses,
aliás.
— Meu Deus! Quem lhe contou?
Havia sido o jovem Godfrey, mas ele não quis dizer''
— Um soldado.
Lembrou-se, então, de que os Morton receberiam nessa noite e que as festas lá sempre incluíam
mesas de jogo, com cacife alto. Com certeza Kit iria e não resistiria à tentação. Precisarei ir também,
pensou o capitão Harcourt, para vigiá-lo, como prometi à Emily.
— Adam — começou ela, hesitante. — Também tenho uma notícia para você.
— Tem, mesmo? Incrível como correm boatos por aqui. Ah! Escute, hoje há uma festa na casa
dos Morton e devemos ir, por cortesia. Você não se importa, não é?
— Os Morton? Claro que me importo! — rebateu ela, já se sentindo irritada. — Não quero ir.
— Pelo amor de Deus, Emily! Não vamos começar de novo com aquela besteira sobre
Anabella!
— Eu não quero brigar com você, Adam, mas tenho sentimentos e não quero ir à casa daquela
mulher!
— Muito bem! Então, irei sozinho.
— Faça como quiser!
Houve um pesado silêncio, quebrado pelo sr. Adam: — Que notícia você queria me
dar?
— Não tem importância — os olhos azuis faiscavam. — Eu conto o que ia contar
quando você não estiver preocupado com os Morton!
— Você é uma mulher irritante! — exclamou ele, erguendo-se e empurrando a cadeira,
dominado pela cólera. — Faço tudo que posso mas, que Deus me ajude, começo a me arrepender por
ter me envolvido com os Godfrey e com você! Talvez tenha sido um bom negócio, reconheço que
ganhei mais do que esperava, mas como você é difícil! Não me

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espere. Se eu ficar até muito tarde na casa dos Morton, dormirei em qualquer lugar para não vir
incomodá-la!
E saiu furioso, pisando duro, deixando-a zangada e aflita. Nada dava certo! Claro, se tivesse
contado logo do bebê. Mas não o fizera e parecia que jamais teria chance de falar.
Antes de chegar ao térreo o capitão Adam já se arrependera. Teve o impulso de subir e pedir
desculpas à esposa, mas hesitou. A irritação contra o jovem Godfrey, que era a verdadeira causa de seu
mau humor, aumentara devido à insensatez de Emily, que se recusava a ir à casa dos Morton.
Não vou pedir desculpa de novo, pensou. Passo o tempo todo tentando ajudar o queridinho dela e
é assim que Emily me agradece!
Nem sequer lembrou que ela não sabia que a intenção dele era ir à festa para ajudar Kit, pois
ele nada dissera. Sentia-se injustiçado e só.
Chegou à casa dos Morton mais tarde do que previra e encontrou uma porção de gente. Mal
parou à porta sentiu um perfume penetrante: Anabella aproximou-se, abanando- se com o leque.
— Cheguei a pensar que você não viria! Então, traidor, resolveu nos dar a honra de sua
presença?!
— Está sendo injusta, Anabella — respondeu ele e beijou-lhe a mão. — Não pode querer
que eu permaneça a seu lado, como fazia quando solteiro.
— Claro! A adorável mulherzinha! Onde ela está? Não veio? Não me diga que fugiu! — e
olhou-o com malícia.
— Está indisposta — respondeu ele, brusco.
— Que pena, sinto muito! — enfiou um braço no dele. — Então, vai ser meu acompanhante.
Ele olhou ao redor e notou que várias pessoas tinham visto sua chegada e o ar
possessivo da anfitriã.
— Não, querida — respondeu, desvencilhando-se dela. — Não é de bom gosto essa exibição.
Os olhos verdes relampejaram.
— Quer dizer que tem medo que alguém conte à pobre Emily que escapou e ela puxe as
rédeas?
— Já lhe disse — respondeu ele, por entre os dentes cerrados. — Que não é isso. E, se fosse,
só interessaria a minha mulher e mim. E não admito que fale de minha esposa nesse tom!
Anabella abaixou os olhos e quando os ergueu estavam cheios de rancor. Sibilou, venenosa: —
Como um marido tão fiel vem a uma festa sozinho?
— Para ser franco, quero saber se Kit está aqui.
— O jovem Godfrey? — ela franziu a testa. — Sim, está lá, jogando. Quer dizer que veio
aqui para ver esse rapaz? Vocês se vêem todos os dias, tenho certeza!
Ele estava jogando, pensou o capitão. Não perdeu tempo em quebrar a promessa feita pela
manhã.
— Escute, Anabella — disse, apertando a mão da anfitriã. — Voltaremos a falar, mas agora
preciso ter uma palavrinha com Kit. É importante.
Ela desvencilhou a mão, sem esconder a raiva que sentia.
— Não quero ser usada por você, nem por ninguém! Acha que quando está entediado ou sua
mulher indisposta, pode vir aqui, divertir-se e depois me abandonar quando ela o exige? Vá falar com
Kit ou jogar, pouco me importa! Não preciso da sua companhia!
— Virou as costas e foi embora.
— Ah, as mulheres! — resmungou o capitão. — Parece impossível raciocinar com

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qualquer uma delas.


Foi para a mesa onde o jovem Godfrey jogava e colocou a mão no ombro dele.
— Preciso falar com você — disse. — Em particular.
— Tire a mão de mim e vá embora! — rosnou o rapaz.
— Levante-se agora mesmo, Kit! — e apertou-lhe o ombro.
Kit ficou vermelho de raiva, jogou as cartas na mesa, desculpou-se com os parceiros e ergueu-se.
Os dois atravessaram o salão e desceram a escada.
— Por aqui — disse o sr. Harcourt, empurrando-o para uma porta estreita que ia dar no pátio da
casa. — É um bom lugar para conversarmos sem que nos escutem. Não vou falar muito, mas é bom que
preste atenção, se não quiser que eu rebente sua cabeça oca na parede!
— Pois tente! — desafiou o rapaz, belicoso. — Eu disse que não tolero sermões. Você nada tem
a ver com minha vida!
— Você jurou, hoje de manhã, que não ia jogar.
— Eu sei, mas não posso ser anti-social. Convidaram-me, não pude recusar. Mas de amanhã em
diante vou parar. Tem minha palavra, Adam!
— Acha que eu sou um idiota? — o capitão se enfurecera. — Você nem sabe o que diz, bêbado
como já se encontra. Pode se arruinar, arruinar sua pobre mãe, não me importa. Mas não vou deixar que
destrua a estima que Emily tem por você. Ela pensa que é melhor do que é e não quero que a magoe.
— Como ousa me criticar, seu hipócrita? — rugiu o rapaz. — Caso se importasse com os
sentimentos de Emily não estaria o tempo todo flertando Anabella Morton!
— Não flerto com ela — berrou o capitão, de volta. — Admito que a visitei algumas vezes e
talvez não devesse ter ido, mas não a vi nestas duas últimas semanas.
— Mas veio hoje, não? E onde está Emi? Não a trouxe. Olhe, deixei que ficasse com Emily
porque achei que iria cuidar dela e não que iria partir-lhe o coração.
— Eu? Partir o coração dela? — explodiu o oficial, agarrando Kit pelas lapelas da túnica. —
Seu calhorda barato! Ela o adora e o que acha que sentiria se soubesse como você está agindo aqui,
hoje?
— Largue-me! — o jovem Godfrey deu um inútil soco no peito amplo do capitão. — Vou lá para
cima e você não vai me impedir!
— Não vai, não, senhor. Garanto! Nem que isso me leve à corte marcial.
Atingiu Kit com um soco no queixo e o rapaz caiu, ficando imóvel.
— Provavelmente isto é o fim para minha carreira militar — disse então, curvando-se sobre o
amigo. Então, ouviu passos, olhou e viu Andrew Morris.
— Esse cavalheiro parece ter bebido demais — disse ele, calmo.
— Deixe que eu o levo de volta ao alojamento, senhor.
— Deixe-me ajudá-lo a colocá-lo no seu ombro. Assim. Mas espere um pouco, Andrew: vou
subir e dar uma desculpa para nossa partida — suspirou, triste. — Agredir um oficial a que ponto
cheguei!
E, pensou, aos olhos de Emily seria ainda pior: batera no adorado menino dela! .
— Não se preocupe, senhor — disse Andrew. — Amanhã cedo, quando acordar, o cavalheiro
terá bom senso. Não irá contar o que aconteceu e compreenderá que o senhor agiu com a melhor das
intenções.
Mas Christopher Godfrey não encarou as coisas dessa maneira. Quando acordou, na manhã
seguinte, com o queixo machucado e a cabeça dolorida, procurou um jeito de se vingar.
— Diabo! — resmungou, zangado. — Não admito ser tratado como um garoto, ouvir o que devo
ou não fazer, ser tirado à força de uma mesa de jogo e depois surrado!

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O rapaz nem sequer sonhava reconhecer que chegara àquela situação humilhante por sua causa,
mesmo. Só conseguia ver que fora injustiçado e seu único desejo era desferir um golpe que magoasse
Adam profundamente. Enquanto tomava o café da manhã teve ideia de como conseguir isso. Não
adiantaria brigar com o capitão, nem desafiá-lo para um duelo: era bom demais com pistola ou espada.
Mas todos têm seu calcanhar de Aquiles e o capitão Harcourt poderia ser atingido em sua reputação.
Terminou de comer, animado, despediu-se de Marie, prometendo que lhe compraria mais fitas, e
foi para a casa dos Morton.
Não pensou, nem por um segundo, que o capitão pudesse estar interessado em Anabella Morton.
Podiam ter flertado, mas era coisa sem importância, como a orgulhosa mulher também sabia. Pensou,
satisfeito, que não existe fúria pior do que a de uma mulher desprezada. Queria vingar-se e tinha
certeza de que a sra. Morton também o queria.
E também não pensou, sequer por um segundo, que atingindo Adam Harcourt atingiria também
Emily.
No começo da tarde, enquanto costurava, Emily surpreendeu-se ao ver a sra. Morton entrar em
sua sala. Esperava pela sra. Sheridan e quando a senhoria anunciara uma visita, imaginara ser a amiga.
Largou a costura e levantou-se.
— Sra. Morton, que surpresa! — disse, quando conseguiu recuperar a voz.
A visitante ofertou-lhe um sorriso encantador. Vestia-se na última moda, como sempre. O chapéu
de aba larga ostentava preciosas penas de avestruz, que ondulavam. Tudo, chapéu, vestido, xale, luvas,
sapatos, pareciam novíssimos e ela lamentou não ter trocado de vestido, arrumando-se melhor, ao
mesmo tempo em que tentava adivinhar o motivo da visita. Convidou-a sentar-se.
— Soube que estava indisposta — explicou a sra. Morton, ajeitando o xale sobre os ombros bem-
feitos. — Adam foi à nossa festa, ontem, e me disse. Não fiquei surpresa, pois o dia ontem foi muito
quente. Claro, nós que acompanhamos a campanha na península não achamos este verão muito quente,
mas você, recém-chegada da Inglaterra, deve sofrer.
— Sim, de fato faz calor, mas não o acho desagradável — certamente fora a desculpa que o
marido dera para sua ausência, imaginou. — Mas, de vez em quando...
— Oh, sim! E os homens nunca entendem — disse a sra. Morton, inclinando-se para frente com
ar confidencial. — Homem nenhum pode avaliar o sofrimento de nós, mulheres. É uma triste realidade,
querida, e precisamos nos conformar. Claro que como Adam foi um homem livre por tanto tempo. Não
há nada pior do que um solteirão, para se preocupar consigo mesmo. Eles não pensam em mais
ninguém!
— Não acho que isso se aplique ao Adam — protestou Emily, com segurança.
— Você é muito leal, meu bem — observou a visitante, com ar indulgente. — Acho isso
comovente, considerando que seu casamento foi realizado de maneira tão incomum.
— O que quer dizer? — ela sentiu-se gelar.
— Ora, meu benzinho! Não se zangue, mas seu segredo foi revelado. Todo mundo sabe que
Adam comprou você, de Kit, por dez mil libras. E é incrível que mesmo assim você seja tão dedicada a
ele!
— Adam. Adam lhe contou?
Emily ficara muito pálida. Jamais imaginara que ele iria contar a alguém o escandaloso acordo
que os havia levado a se casarem, muito menos que ele contaria àquela mulher. Na noite anterior, ele
saíra de casa muito zangado, mas como supor que chegaria a ponto de

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revelar aquele vergonha?


— Adam? — Anabella fingiu uma leve hesitação. — Claro, Adam.

— Essas coisas sempre acabam sendo descobertas, cedo ou tarde, meu bem. Neste regimento não
existem segredos. Tudo que se faz é do conhecimento de todos. Até mesmo nossos pequenos pecados.
— Sra. Morton — conseguiu dizer Emily, com calma sobrehumana. — Não sei se veio me visitar
apenas para me contar isso e não entendo sua finalidade, mas peço-lhe que se retire.
A senhora não se abalou: — Claro, meu bem! Espero que logo se recupere. E saiu
flutuando, muito satisfeita com o sucesso de sua missão.
Quando o capitão chegou, naquela tarde, percebeu que algo muito grave havia acontecido. Sua
esposa encontrava-se sentada junto da janela, imóvel, as mãos esquecidas no colo, o rosto como que
esculpido em mármore. A primeira coisa que lhe ocorreu é que Kit havia estado ali e contara que ele o
agredira. Preparou, portanto, para ouvir as acusações de ter tratado o rapaz de maneira injusta.
— Imagino que alguém tenha estado aqui contando boatos — disse, com ar de desafio.
— Sim — respondeu ela, com voz abafada.
Vou torcer o pescoço dele!, pensou o sr. Harcourt, furioso. Pena não ter batido mais
forte.
— Não havia qualquer necessidade de envolvê-la — comentou, frio.
Ao ouvir aquilo ela pôs-se de pé, os cabelos agitando-se ao redor do rosto, os olhos
azuis flamejantes.
— Não me envolver? De que jeito? Não sou eu a pessoa em questão?
— Não! É um assunto entre Kit e eu!
— Entre você e... E não fui eu o objeto do acordo? Como não me envolver, se essa história
sórdida é do conhecimento de todos?
Ele dominou-se e procurou um modo de acalmar a esposa.
— Emily, por favor, não fique assim. Sinto se a história se espalhou. Eu esperava que. Bem, é
melhor esquecer! Aconteceu e não há jeito. Ele não quis me ouvir e não tive escolha.
— Não teve escolha? — gritou ela, mais zangada ainda. — Oh, Adam! Como pôde contar aquilo
a alguém.justamente àquela mulher horrível?
O capitão sentiu-se perdido, não entendendo mais o que acontecia.
— Eu não contei a ninguém. Que mulher?
— A sra. Morton!
— Anabella esteve aqui? — começou a perceber que alguma trama traiçoeira fora tecida e teve
mau pressentimento. — Ela lhe disse que bati em Christopher?
— Você bateu nele? — por um instante, ela esqueceu das acusações. — Você bateu no pobre
Kit? Eu não sabia. Isso é mau, mas o que ela disse que você fez é mil vezes pior. Disse que você lhe
contou que me comprou de Kit por dez mil libras e que todo mundo aqui já sabe. Como pôde contar a
ela, Adam?
Ele não se conteve e soltou um palavrão, fazendo-a enrubescer. Então, caiu em si.
— Desculpe. Quem disse que eu contei a ela?
— Ela mesma e não negue! — ela inspirou o ar profundamente. — Errei em querer vir com você.
Devia ter ficado em casa. Gostaria de voltar para lá agora, Adam. Não posso ficar aqui, sabendo que
eles todos conhecem a história do meu casamento, isso me humilha demais. Acho que nunca mais
poderei encarar ninguém. Você me comprou, como se eu fosse um par de botas, um cavalo. Não sou
sua esposa, mas sim sua propriedade.

PROJETO 7
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— Emily! — ele segurou-lhe as mãos trêmulas. — Você tem que acreditar em mim: juro que não
disse nada àquela mulher. Tem que me acreditar! Acha que sou do tipo de sair contando meus assuntos
íntimos para todo mundo?

— Nunca pensei nisso. — respondeu ela, amargurada. — Não quero ouvir negações, desculpas
ou justificativas. O que está feito, está feito. A sra. Morton disse que cedo ou tarde os segredos vêm à
tona e acho que tem razão, que com o tempo a verdade aparece. Só que agora não posso mais ficar
aqui. Por favor, entenda isso, Adam!
— Sim, entendo — murmurou ele, soltou-lhe as mãos e virou-se de lado, enxugando o suor frio
que lhe cobria a testa. — Cuidarei disso. Andrew irá com você se estiver mesmo decidida. Vejo que
está. Compreendo. Como disse, a esta hora a história do acordo deve ter se espalhado.
Desta vez, pensou ele, você foi longe demais, Kit. Vou desafiá-lo a um duelo por isso, meu rapaz.
Só que depois, quando ela já estiver a caminho da Inglaterra e não puder saber. É mesmo melhor que
Emily vá para casa, consolou-se.
— Então, vou tratar de tudo — começou, em tom forçadamente calmo.
Mas não pôde terminar. Alguém começou a bater, repetida e violentamente na porta lá embaixo,
depois passos pesados subiram a escada, correndo. A porta escancarou-se e o jovem Godfrey entrou,
ofegando.
— Adam!
— Seu canalha, maldito! — exclamou o capitão e saltou sobre ele, o rosto congestionado, as
feições alteradas. — Como ousa aparecer aqui? Saia, antes que eu o mate! Terá notícias minhas, mais
tarde, mas agora saia!
— Escute! — pediu o rapaz, com voz rouca, defendendo-se dos safanões como podia.
— Não há tempo para isto, Adam! Olhe, pare, por favor! Pare e me escute! Ele está aqui. Bonaparte!
Por instantes, tudo pareceu congelar e fez-se silêncio.
— O quê? — perguntou o capitão, por fim. — Não pode ser! Ele está a quilômetros daqui.
— Está aqui, sim! Um grupo foi a um baile em Bruxelas, ontem, e ao sair chegou um mensageiro
anunciando que Napoleão atacara os prussianos. Precisamos ir, já! Afinal chegou a hora da batalha
decisiva! — ele ergueu os braços, agitando-os. — Chega de esperar sem fazer nada, vamos lutar!
Viemos aqui para isso, não é?
— Meu Deus, ele nos enganou! Bonaparte nos enganou! Está bem, irei já! Vá indo, Kit, que logo
o alcanço.
Emily deu um passo à frente e segurou-o pela manga: — Batalha. Vai haver uma batalha?
— Sim. Agora, ouça com atenção — a voz dele tornara-se calma, persuasiva. — Você precisa
ficar aqui. Andrew lhe fará companhia e a protegerá. Lembre-se, sempre, que durante uma batalha os
boatos voam, são desencontrados, e ninguém pode ter certeza de nada até tudo acabar. Por isso, não
saia daqui e não se alarme se ouvir falar em fracasso, mortandade, derrota. Entendeu o que eu disse?
— Sim, entendi! Mas onde vai e quando voltará? Por favor, tome cuidado!
Ela já não se importava.com o que a mulher dissera que ele fizera ou que todos soubessem como
se haviam casado. Só sabia que o homem que amava ia para a guerra e que poderia não voltar.
— Mando recados ou virei pessoalmente, se puder. Não se preocupe — beijou as mãos
pequeninas, entrelaçadas de angústia. — Se ficar muito nervosa, vá para junto da sra. Sheridan.
Fitou-a intensamente, abriu os lábios para dizer mais alguma coisa, mas seus olhos

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velaram-se de dor e ele sacudiu a cabeça. Então, voltou-lhe as costas, saiu e desceu a escada
ruidosamente.

Nesse momento, como que para marcar a mudança em suas vidas, gotas grossas, começaram a
bater nas vidraças, indicando o fim da violenta onda de calor. A chuva foi molhando as estradas,
caminhos e ruas empoeirados, formando grandes poças escuras, que pouco depois foram pisadas por
patas de cavalos, respingadas pelas rodas de canhões e espalhadas pelas botas dos soldados que
marchavam para a frente de batalha.

CAPÍTULO XI

Você ficará aqui, com a sra. Harcourt, Andrew — ordenou o capitão, ao sair para a rua.
— Cuide bem dela e. se algo sair errado, leve-a de volta à Inglaterra, em segurança.
— Não quer que eu o acompanhe, senhor — perguntou o empregado, sem esconder a decepção.
— Se for ferido, que Deus não o permita, quem irá cuidar do senhor e levá-lo até um médico? Minha
obrigação é estar ao seu lado!
Andrew Morris tinha razão. Todos os oficiais, normalmente, levavam criados consigo, a fim de
ter certeza de que alguém os socorreria se fossem feridos, pois ninguém podia preocupar-se com isso,
até a luta terminar. Os que podiam, arrastavam-se para fora do campo de combate. Os que não podiam
e não tinham quem os atendesse, ficavam por lá.
— Faça o que mandei — respondeu o sr. Harcourt, nervoso. — Não há tempo para discussões.
Higgins irá comigo, para qualquer eventualidade.
Higgins era o cavalariço, que cuidava dos cavalos e que no momento, com ar assustado, segurava
as rédeas do baio do patrão. Andrew Morris, aborrecido e preocupado, ficou olhando o capitão montar
o cavalo que, parecendo saber que iam para a batalha, agitava-se, batendo os cascos no chão.
— Faça o que eu disse, Andrew. Cuide bem dela. — repetiu o capitão, enquanto fazia a montaria
voltar-se e erguia o braço a fim de acenar um adeus à esposa, que olhava para ele através da vidraça.
Higgins montou seu cavalo e saiu atrás do patrão, quando ele pôs o baio a galope.
Emily só saiu da janela quando o marido desapareceu, ao longe. Fora um adeus apressado, sem
abraços, beijos, palavras bonitas. E talvez fosse um adeus final.
Durante o resto do dia, homens, cavalos e canhões passaram pelas ruas da pequena cidade,
dirigindo-se para a linha de fogo, mas o local da batalha permanecia um segredo para os que ali
ficavam. Poucos mensageiros regressavam com informações confiáveis, porém, afinal, soube-se que
a ação desenrolava-se nas proximidades do cruzamento de duas estradas cujo nome em francês
Quatre Brás significava Quatro Braços, ou seja, uma encruzilhada.
Cerca de uma hora depois da partida do capitão Harcourt alguém bateu à porta da casa dela e deu
a Emily uma notícia diferente. Tratava-se de Marie, a namorada belga de Kit. Ela entrou fazendo
reverências, muito corada, depois entregou-lhe um papel dobrado.

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— Obrigada, Marie — disse Emily. — O que é isso?


— É de Godfrii. — explicou a moça, tentando alisar a saia do vestido, meio amarrotada.
— Para a senhora, madame. Godfrii quer que a senhora leia.
— Quando será que Kit arranjou tempo para me escrever este bilhete? — perguntou-se ela,
porém em voz alta, enquanto desdobrava o papel.

Era uma folha arrancada de um livro. O bilhete denotava pressa, todo manchado de tinta e com
manchas de gotas de chuva. Algumas palavras estavam meio apagadas e a assinatura era apenas um
"K". Ela foi decifrando como podia: "Querida Emi. Estamos saindo e eu precisava lhe dizer que sinto
muito ter contado a A.M. o trato que Adam e eu fizemos na Espanha. Eu fiquei furioso com ele e quis
me vingar. Agora, A. M. vai contar a todo mundo e não quero que você pense que foi seu marido que
contou a ela. A culpa é toda minha. Não fique triste e deprimida! K."
Então, era isso! Kit tentara vingar-se de Adam contando tudo para Anabella Morton!, pensou ela.
Ficara furioso por ter levado um soco do amigo, que devia ter tido bons motivos para dá-lo, e escolhera
aquele modo para dar o troco.
Pensando friamente em tudo, ela chegou à conclusão de que seu marido não bateria em Kit
sem um sério motivo. O culpado era o rapaz e ela acusara Adam, como viera fazendo desde que o
conhecera.
— Obrigada, Marie — disse, sorrindo.
A moça fez outra mesura e foi embora, deixando no chão um rastro da água que pingava de seu
guarda-chuva.
— Adam, Adam. — murmurou Emily, com profunda tristeza. — Eu o acusei e mais uma vez foi
Kit, como quase sempre aconteceu, que fez a trapalhada toda. Por que ele vive provocando confusões?
Não adiantava mais se recriminar. Antes que o dia terminasse Adam ou Kit, até mesmo ambos
poderiam perder a vida. Por isso o jovem mandara o recado: quisera que ela soubesse a verdade, caso
ele não pudesse voltar. Teve que admitir que seu irmão de criação era mais um rapaz estouvado, tolo,
do que mau.
Ouviu passos e, pouco depois, Andrew Morris bateu à porta. Quando ela lhe disse que entrasse,
viu que o rapaz ficara frustrado e triste por não ter ido com o patrão. Seu coração confrangeu-se mais
ainda e ela tentou disfarçar, pois não queria demonstrar o quanto se sentia desesperada.
— Sinto, Andrew, que tenha precisado ficar aqui. Sei que gostaria de estar ao lado do capitão
Harcourt e confesso que eu também preferia isso. Estou em segurança, aqui, e sentiria um grande
conforto sabendo que alguém dedicado e capaz encontrava-se com meu marido.
— Sem querer ofendê-la, madame — resmungou o rapaz, vermelho. — Aqui nada poderia
acontecer à senhora. O que posso fazer pelo capitão, ficando três quilômetros longe do campo de
batalha?
— Compreendo. Mas precisamos fazer o que o capitão mandou — respondeu ela, com mais
energia. — Por favor, saia e veja se consegue alguma notícia.
O rapaz reanimou-se diante da possibilidade de uma opção prática e sumiu.
Com a saída de todos os soldados, a cidadezinha se tornara silenciosa. Agora era possível
perceber ao longe o pipocar da fuzilaria e, à medida que anoitecia, o lampejo das explosões da
artilharia.

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Já noite mais entrada começaram a chegar os primeiros feridos em condições de andar.


Pertenciam às Terras Altas da Escócia. Emily desceu, correndo, com a senhoria e levou três ou quatro
deles para a cozinha, a fim de tratar-lhes os ferimentos e dar-lhes um pouco de aguardente que os
ajudasse a suportar melhor a dor. Os homens agradeceram num linguajar ininteligível e pareciam estar
conformados com suas condições precárias. Nenhum deles se queixou dos ferimentos nem da pouca
sorte que haviam tido na batalha.
Um dos feridos, que caminhara quase todos os três quilômetros sem ajuda, tendo levado um tiro
na barriga de uma perna, explicou: — Estão lutando ferozmente. Quando vim embora a situação para
nós havia piorado bastante.
Essa notícia foi confirmada por Andrew, que falara, na estrada, com outros feridos que
chegavam. O general Wellington ordenara às divisões britânicas que recuassem e se reagrupassem ao
redor da aldeia de Waterloo. A noite descera completamente e a batalha teria uma trégua até o dia
seguinte. Quatre Brás fora uma luta indecisa, sem vencedores.
A chuva caía sem parar. As ruas, antes cobertas de poeiras, agora recobriam-se de lama pegajosa.
Pouco depois, não chegaram mais feridos.
— Madame deveria ir descansar — aconselhou Andrew. — Nada mais há para se fazer, por
enquanto. Teremos que esperar até amanhã.
Exausta, Emily foi para seu quarto, deitou-se, porém não conseguia conciliar o sono. A fuzilaria
terminara, mas em seu lugar entrara o estrondo de um violento temporal, com raios, chuva grossa e
trovões.
Ela não podia deixar de pensar no marido, se estaria a salvo, se encontrara um abrigo.
Recriminou-se por não ter pensado em preparar um lanche para ele levar. Onde quer que o capitão
Harcourt estivesse, devia estar molhado, com frio e com fome. Mas, se ele estivesse vivo e são, isso
não tinha mais importância.
No dia seguinte o tempo continuou feio, com vento, chuva e trovoadas. Emily estremecia cada
vez que ouvia um trovão, imaginando que fossem explosões da artilharia.
Andrew fora, a cavalo, até Bruxelas, à cata de informações e voltou dizendo que chegavam
reforços britânicos. Os prussianos e demais aliados que ajudavam o general Wellington tinham sofrido
grandes baixas e não se sabia se resistiriam a um novo ataque.
Mais um dia angustiante passou e à noite Emily tornou a deitar-se, semivestida, pronta para
qualquer eventualidade, como fizera na noite anterior. Mergulhou num sono negro, sem sonhos, e
acordou por volta das onze horas da manhã seguinte. Betsy e Andrew haviam discutido a respeito e
decidido que era melhor deixá-la descansar bem.
Sentou-se na cama, pensando que trovões ribombavam, porém logo percebeu que ouvia a
artilharia, distante, porém intensa. Lutava-se acirradamente nos arredores de Waterloo.
Saltou da cama, pôs um vestido, pegou um xale e foi para a rua. Havia pessoas passando, gente
ávida de notícias. Ela decidiu ir até a praça, a fim de falar com a sra. Sheridan, que também nada sabia,
mas insistiu para que Emily ficasse e almoçasse com ela.
— Não posso! — recusou ela, alterada pelo nervosismo.
— Você precisa comer alguma coisa, querida, nem que seja um chá com torradas. Lembre-se do
seu estado, tem que se alimentar por causa de seu filhinho! Talvez só consigamos notícias à noite. Se
ficar sem comer, irá enfraquecendo e poderá adoecer, o que será péssimo para a criança.
— E Adam, o que ele tem para comer? — indagou ela, sentindo-se uma traidora por ter comida à
disposição.
— Emily, querida, se ele não tem comida, você nada pode fazer e não o ajudará passando fome!
Não a deixarei sair daqui se não comer, menina!
Por fim, ela concordou em tomar uma xícara de chá e comer uma torrada, antes de ir à

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praça para ver se havia informações.


Por volta do meio-dia e meia chegou uma carruagem com um cavalheiro e duas damas, que havia
saído cedinho de Bruxelas a fim de ver a batalha, mas que, horrorizados com o que tinham visto,
estavam agora retirando-se apressadamente para uma pequena propriedade campestre, bem longe de
qualquer agitação bélica. Disseram que a situação encontrava-se tão indefinida que preferiam ir para
longe, para o caso do imperador vencer a luta.
Emily voltou para casa e lá ficou, silenciosa e infeliz, na companhia de Betsy e Andrew.
À tarde as notícias pioraram. A sra. Sheridan procurou por Emily, muito aflita.
— Os nossos entraram em ação — contou, nervosa. — Pois ouvi dizer, agora mesmo, que Bob
Morton foi gravemente ferido e nem sequer pode ser transportado para cá. Teve um braço praticamente
decepado por tiros e tem outros ferimentos. Foi levado para trás da linha de frente, onde um cirurgião
amputou-lhe o braço e besuntou o ferimento com alcatrão, para estancar o sangue. Não se sabe se ele
sobreviverá, pois entrou em estado de choque e sofreu uma hemorragia muito séria.
A sra. Sheridan não quis ficar com Emily, quando esta a convidou, pois poderiam levar notícias
do marido à casa dela e queria estar lá para recebê-las. Enquanto se despediam, na porta que dava para
a rua, uma caleça passou rapidamente e perceberam que no interior ia Anabella Morton. Apesar do que
ela lhe fizera, Emily só conseguiu sentir compaixão pela mulher que ia ao encontro do marido
agonizante.
Vieram notícias de outras baixas. O regimento de Brunswick, cujos oficiais haviam sido
admirados por muitas jovens românticas, resistira bravamente a um ataque de uma tropa napoleônica,
mas fora quase destruído, restando poucos sobreviventes, pouquíssimos deles sem ferimentos.
Assim continuou até o anoitecer, quando finalmente a fuzilaria terminou e um pesado silêncio
pareceu envolver o mundo. Ninguém falava, a não ser aos sussurros, e todos esperavam.
A notícia chegou com um belga a cavalo, rapaz muito jovem, a farda suja de lama e enegrecida
pela fumaça, que vinha sem escolta e a galope. Sua montaria estava suada e espumando. Ainda ao
longe, ele ergueu o chapéu, agitou-o e gritou: — Eles estão se retirando! Estão se retirando!
Ao chegar, puxou as rédeas do cavalo que se deteve empinando e depois permaneceu meio
saltitante sobre as patas nervosas. Repetiu a informação: — Quem está se retirando? Os ingleses? —
perguntou Emily, gritando.
Ela ia ver a sra. Sheridan naquele momento e parara ao ver o cavaleiro surgir lá longe. Com medo
que o cavaleiro fosse embora sem lhe responder, ela correu para ele e segurou uma das rédeas.
— Wellington? Não, madame! — gritou o soldado quase menino e tornou a agitar os braços. —
Napoleão está batendo em retirada! Napoleão!
— Será verdade, mesmo? — duvidou ela, aflita.
— Claro que é! — garantiu o jovem a ela e aos que o rodeavam, ansiosos. — Até a Guarda
Imperial, fugiram todos!
Essa notícia parecia mais inacreditável ainda. A tropa de elite de Napoleão, contou então o
soldado, juntara-se a um outro agrupamento, mas ao ver a fuga da Guarda Imperial, a infantaria
francesa perdera o ânimo. A retirada se transformara em fuga e os soldados distanciavam-se do campo
de batalha largando os mosquetes pelo caminho, enquanto o marechal Ney, de pé na beira da estrada,
com o sabre desembainhado e lágrimas nos olhos pedia inutilmente aos desertores em pânico que
voltassem à luta, porque ainda poderiam ganhar. O imperador também fugira e acreditava-se que
cavalgava em direção a Paris.

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— É uma vitória! Uma grande vitória! Viva Wellington! — gritou o jovem soldado e todos
começaram a gritar vivas e a bater palmas.
Emily atravessou a multidão a muito custo até conseguir ver Andrew Morris, que sobressaía dos
demais pela alta estatura.
— Andrew, você ouviu? — gritou para ele, arfante. — Agora, podemos ir procurar o capitão
Harcourt. Ele disse que devíamos ficar aqui durante a batalha e ela já terminou. Vá selar dois cavalos!

O sol descia para o horizonte, num céu muito vermelho, estriado pela fumaça. Enquanto
cavalgavam em direção a Waterloo podiam calcular o elevado preço daquela vitória pelos corpos
caídos à beira do caminho e no meio dele. Eram os soldados que tinham tentado voltar, mas não
haviam resistido aos ferimentos.
As tropas, esgotadas, que retiravam-se do campo de batalha passavam pelos cadáveres como se
fossem bonecos ou homens sem alma, os olhos ausentes que não viam os mortos, os rostos marcados,
enegrecidos pela fumaça.
O campo de batalha propriamente dito era um verdadeiro pesadelo, repleto de homens e cavalos
mortos. Cavalos soltos, alguns deles feridos, vagavam sem rumo entre os corpos caídos. Canhões
atingidos pareciam estranhas esculturas metálicas. Por todo lado ouvia-se gritos e lamentos dos
feridos. Havia homens imóveis, sentados na lama, que não haviam sido atingidos, mas que estavam
exaustos demais para se erguer e andar. Havia de todas as fardas, vencedores e vencidos unidos na
mesma triste sensação de angústia e de vazio, depois da luta. Começava a movimentar-se por ali um
tipo de ave de rapina horrível, que sempre aparece nos locais de tragédias: os ladrões dos mortos, que
despojavam os cadáveres de seus haveres mais valiosos.
O ar era quase irrespirável, carregado de fumaça e do cheiro acre da pólvora, misturado ao odor
adocicado e nauseante do sangue. Os olhos de Emily lacrimejavam por isso e pelo horror que viam.
Afinal, chegaram ao local onde o regimento do capitão Harcourt havia lutado e resistido. Ela viu
sobreviventes que conhecia. Desmontou e pôs-se a procurar pelo marido, desesperada. Por entre os
rolos de espessa fumaça negra divisou um vulto muito alto, forte, que desapareceu em seguida. Seu
coração disparou e ela correu na direção em que vira o vulto, rezando para que não fosse impressão.
E Adam Harcourt apareceu entre a fumaça, com o rosto e a farda enegrecidos. Ela parou, trêmula,
e estendeu-lhe as mãos.
— Olá, Flor — disse ele, a voz quebrada pelo cansaço. — O que está fazendo aqui?
— Adam! — soluçou ela, correndo a se aninhar nos braços dele.
O capitão não falou, apenas abraçou-a, enquanto ela apoiava a cabeça em seu peito. Afinal, ele
beijou-lhe os cabelos e murmurou: — Isto não é lugar para você, Flor. Deixe que Andrew a leve de
volta.
— Tive tanto medo! — balbuciou ela, entre as lágrimas. — Não conseguíamos notícias
confirmadas, mas assim que um soldado chegou, anunciando a vitória, viemos depressa. Oh, Adam, eu
o amo tanto! Queria que você acreditasse. Senti tanto medo ao pensar que poderia morrer!
— Sim, sim. — sussurrou ele, afagando-lhe os cabelos com as mãos feridas e sujas de lama. —
Mas não é assim tão fácil livrar-se de um soldado experiente como eu — segurou-a pelos ombros e
afastou-a, com suavidade. — Vá, agora. Irei mais tarde, assim que puder. Ainda tenho muito a fazer
por aqui.
Olhou para um ponto mais adiante, onde um homem à paisana, com roupas velhas,

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surradas, atravessava o campo de batalha, observando os cadáveres. De repente, ele se apressou,


abaixou-se, e tirou algo de um soldado francês, morto.
— Chacais! — indignou-se Adam. — Roubando os mortos!
Empunhou o sabre, num gesto violento, e avançou para o homem, tropeçando, a arma
ameaçadoramente erguida. O ladrão ergueu-se e começou a recuar, arreganhando os dentes podres,
escuros, lembrando o repelente animal que Adam mencionara. Então, voltou- se de repente e saiu
correndo, curvado, arrastando um saco, procurando um ponto mais sossegado onde pudesse continuar
seu nojento trabalho sem ser perturbado. O capitão voltou para junto da esposa, embainhando o
sabre com ar desanimado.
— Andrew! — chamou, elevando a voz que pareceu arranhar dolorosamente a garganta seca. —
Leve a sra. Harcourt de volta. Leve-a embora deste lugar horrível!
A volta foi mais demorada porque as estradas achavam-se tomadas pelas tropas que se afastavam
do campo de batalha. Bandos de prisioneiros de guerra franceses mais pareciam arrastar-se do que
andar, sem ânimo para nada.
Andrew fazia perguntas a todos que encontravam e ficaram sabendo que a sorte mudara coma
chegada, atrasada porém no momento certo, das forças prussianas comandadas pelo excêntrico e idoso
marechal Blucher. Alguns feridos tinham sido recolhidos em carroças que os levavam para os médicos.
Quando chegaram, Emily encontrou o major Sheridan na praça. Uma de suas mãos encontrava-se
enfaixada e manchada de sangue. Ficou encantada ao vê-lo, sabendo que a sua velha amiga ficaria tão
feliz quanto ela e apressou-se a ir contar-lhe que o capitão Harcourt estava bem.
— Nem sei como — riu o major, apesar do cansaço e tristeza que havia em seus olhos.
— Pois é muito mais alto do que todos e, por isso, um bom alvo para os inimigos. Deve ter muita sorte
ou um anjo da guarda muito atento ou, ainda, São Pedro não deve estar com pressa de recrutá-lo.
Nesse momento, uma carruagem passou por eles e o major Sheridan fitou-a, pensativo, depois
comentou: — A viúva de Morton. Ele só deve ter deixado dívidas.
— O que ela vai fazer? — perguntou Emily, os olhos no veículo que se afastava.
— O regimento fará uma coleta, no entanto, por mais que arrecademos mal dará para pagar a
metade do que ele deve. A sra. Anabella não vai poder continuar vivendo do modo que está
acostumada. Mas é uma mulher bonita, tem iniciativa e duvido que use roupa de luto por muito
tempo — cumprimentou Emily e foi embora.
Apesar da promessa de voltar logo, o capitão chegou à noite. A cidadezinha estava toda
iluminada com lanternas e tochas, havia muito movimento. Os regimentos passavam e repassavam
revista para a verificação dos que não tinham voltado, soldados procuravam suas unidades, amigos
procuravam amigos, irmãos procuravam irmãos e todos estavam ansiosos por saber quem sobrevivera.
As mulheres procuravam seus maridos entre toda aquela confusão, oficiais de almoxarifado
procuravam avaliar o que sobrara e o que precisava ser substituído, enquanto que dos hospitais
improvisados vinham gritos e gemidos dos que estavam sob os cuidados dos médicos. Muitos que não
gozavam desse duvidoso privilégio, por terem sido encontrados ao cair da noite, teriam que permanecer
ao relento, deitados no chão, até o raiar do dia, quando seria possível providenciar socorro e
acomodação para eles. Poucos, provavelmente, sobreviveriam àquelas horas.
O capitão Harcourt entrou em casa quando a água da banheira, laboriosamente carregada para o
primeiro piso por Andrew e Betsy, esfriara pela segunda vez. Entrou com passo incerto, pesado, quase
cambaleante, parecendo em pior estado do que quando a esposa o vira no campo de batalha. Tropeçou e
foi amparado por Andrew, que o ajudou a chegar e sentar na poltrona mais próxima. Ele esticou as
longas pernas, suspirando. Emily

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imediatamente foi para junto dele.


— Desculpe chegar tão tarde. Estive procurando Kit. Prometia você que cuidaria dele.
— Adam — segurando a mão do marido, ela notou que se esquecera do irmão de criação.
— Você entende que nunca amei Kit do modo que você pensava, não é?

— Sim, sim — os dedos morenos, longos e fortes, envolveram a mão de Emily. — Sei disto,
agora. Mas fui procurá-lo e o encontrei. Ele está bem. Um tiro atingiu-lhe uma orelha, de raspão.
Sangrou muito, mas não é grave. Tive que levá-lo ao atendimento médico do campo, depois trazê-lo
para cá. Está exibindo a cabeça enfaixada, como um grande herói da batalha. Marie ficou cuidando dele
e acho que não está com muita dor — tentou sorrir e acrescentou: — Tenho impressão que não vou
conseguir tirar as roupas. Andrew precisará cortá-las.
Foi o que precisaram fazer. Ele ficara com a farda por três dias e duas noites, ao relento, e o
tecido encontrava-se rígido devido ao suor, lama e sangue alheio. Por um verdadeiro milagre, ele não
sofrera sequer um arranhão. Estava fraco, pois ficara dois dias sem comer; Emily providenciou sopa,
pão e carne assada, fria, que ele devorou como um lobo esfomeado. Afinal, depois de livrar-se da
sujeira com um bom banho, e acalmar a fome, o sr. Adam deixou-se cair na cama e adormeceu
profundamente.
O capitão Harcourt dera ordens para ser acordado às oito horas do dia seguinte e assim o
fizeram, senão teria dormido por vinte e quatro horas seguidas. Embora achasse uma crueldade
acordá-lo, Emily abriu as cortinas e sacudiu o marido por um ombro. Levou uns cinco minutos
tentando, até que ele abriu os olhos. Em seguida, ele sentou-se na cama, recostou-se nos travesseiros e
passou as mãos no rosto e cabelos. Tomou o café que a esposa lhe trouxera. Sorria, fitando-a por cima
da xícara fumegante.
Ela sentou-se na beira da cama e ficou a observá-lo. O rosto e o pescoço dele estavam
avermelhados, queimados pela exposição à fumaça e à intempérie. Ficara sem se barbear durante os
últimos dois dias e duas noites. Rindo, disse a ele que mais parecia um bandido do que um soldado
britânico.
— Você já viu Kit? — indagou ele, depois de acabar o café.
— Sim. Você não vai acreditar! Fui visitá-lo, às seis da manhã, pensando que ainda estivesse
dormindo, mas encontrei-o sentado na cama, comendo galinha ensopada, escandalosamente mimado
por Marie. Ainda bem que me preveniu, senão teria me impressionado com o tamanho das ataduras que
lhe envolvem a cabeça. Ele parecia muito contente e não parava de repetir "Nós os pusemos a correr!",
enquanto me contava a grande vitória.
Adam soltou uma gargalhada rouca. Sua garganta ainda se ressentia da fumaça que aspirara.
— Deus abençoe aquele rapaz! — exclamou, ainda rindo. — Ele é impossível. Mas vale a pena
aguentar as trapalhadas que arma.
Emily levantou-se e foi abrir uma gaveta da cômoda, voltando para perto do marido em seguida.
— Kit mandou-me isto no dia em que vocês foram para Quatre Brás.
Entregou-lhe o papel amassado, borrado; o capitão abriu-o com cuidado, alisou-o e leu.
Franziu a testa.
— Eu estava disposto a desafiá-lo para um duelo por causa disto — disse, baixinho. —

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Agora já não me parece tão importante, perto de tudo que vi no horror da batalha.
— Sim — concordou ela. — Não tem importância. Ele
fitou-a com intensidade e Emily enrubesceu.
— Kit me disse, também, que você se destacou pela coragem, sob o fogo inimigo, que com
certeza será promovido a major.
— Pode ser, caso Wellington seja da mesma opinião que ele. Mas, lembra-se, eu tinha decidido
pedir baixa.
— Acho que você jamais pedirá baixa do Exército — retrucou ela, calma. — Esta é a vida da
qual gosta e jamais escolherá outra, pela própria vontade.
O sr. Harcourt pegou a mão da esposa, que estava sob as cobertas.
— Está enganada. Chega de ser militar: passei tempo demais lutando. Estou disposto a deixar as
honras e glórias para Kit e desejo que ele chegue a general. Minha ideia é ficar em casa, com você.
— Para criar cavalos de corrida? — perguntou Emily, com um suave sorriso.
— Mais ou menos. — respondeu ele e piscou-lhe, malicioso.
— Então, devo avisá-lo que não vamos ficar sozinhos em casa — começou ela, tranquila. —
Espero que não se importe com a presença de mais uma pessoa.
— Desde que não se trate de Christopher Godfrey, eu concordo — disse ele, com ar aflito. —
Perdoei aquele patife, mas minha paciência acabou.
— Não. Eu não me refiro a Kit.
Emily hesitou, depois aproximou-se dele e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido.
Uma expressão indefinível passou pelos olhos dele, enquanto apertava com força a mão da
esposa. Ficou em silêncio, por alguns momentos, depois sua voz soou num leve murmúrio emocionado:
— Você devia ter me contado.
— Eu quis contar mas, primeiro, tive medo que você não quisesse me trazer, depois, que me
mandasse de volta para casa.
— Eu não ia me separar de você tão facilmente! — exclamou ele, beijando-lhe os dedos. — Eu a
amei desde o primeiro momento que a vi, Flor, dentro daquele córrego. Desde então, soube que era
tudo para mim e que não conseguiria amar outra mulher.
— Oh, Adam! — ela escondeu o rostinho corado no peito dele e abraçou-lhe o pescoço. O
capitão puxou-a para cima da cama, acomodando-a nos travesseiros, a seu lado.
— Senti tanto ciúme daquele rapaz idiota que quase enlouqueci! Pode dizer que eu também sou
um idiota, mas o fato é que não podia acreditar que você me amava, que minha sorte era tanta. E tinha
medo de que você jamais perdoasse o trato que Kit e eu fizemos na Espanha.
Ela ergueu a mão esquerda, na qual brilhava a aliança de ouro, símbolo da união com aquele
homem tão amado.
— Você e eu fizemos nosso próprio trato, Adam e ele é o único que importa.
Ia dizer mais alguma coisa, porém os lábios do marido a impediram, colando-se aos dela, num
beijo que era uma promessa de felicidade eterna.

FIM

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