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Jennette McCurdy

Ainda Bem
Que a Minha
Mãe Morreu
I'm Glad My Mom Died
Traduzido do inglês por
Mariana Vieira
Ficha Técnica
Título: Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu
Título original: I’m Glad My Mom Died
Autor: Jennette McCurdy
Adaptação da capa: Rui Rosa
ISBN: 9789892356785

Lua de Papel
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Índice
Capa
Ficha Técnica
Prólogo
antes
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
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depois
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90.
91.
Agradecimentos
Para o Marcus, Dustin
e Scottie
Prólogo
É estranho como nos pomos a contar as grandes novidades aos nossos entes
queridos que estão em coma, como se o coma fosse uma coisa que só
acontece porque as pessoas não têm nada que as excite.
A minha Mãe está na UCI, no hospital. O médico disse-nos que ela tem
quarenta e oito horas de vida. A Avó, o Avô e o Pai estão na sala de espera, a
telefonar aos familiares e a comer umas coisas compradas nas máquinas de
venda automática. A Avó diz que os biscoitos Nutter Butters lhe acalmam os
nervos.
Eu estou junto do corpo pequenino e comatoso da Mãe, com os meus três
irmãos mais velhos: Marcus (o Composto), Dustin (o Esperto) e Scott (o
Sensível). Limpo com um pano o canto dos olhos dela, fechados e
remelosos, e é então que começa.
– Mãe – o Composto inclina-se sobre ela e sussurra-lhe ao ouvido –, vou
voltar para a Califórnia, em breve.
Arrebitamos todos, na expetativa de ver a Mãe acordar de um salto. Nada.
Então, o Esperto avança.
– Mamã… Mamã, a Kate e eu vamos casar.
Mais uma vez, arrebitamos todos. Mas nada.
O Sensível avança.
– Mãezinha...
Não ouço o que diz o Sensível para tentar tirar a Mãe deste sono, porque
estou demasiado ocupada a compor o meu próprio discurso para a acordar.
E agora, é a minha vez. Espero que toda a gente desça para ir comer
qualquer coisa, para poder ficar a sós com ela. Chego a cadeira instável para
mais perto da cama dela e sento-me. Sorrio. Estou prestes a largar a bomba.
Esqueçam os casamentos, esqueçam as mudanças de casa. Tenho uma coisa
muito mais importante a oferecer. Uma coisa com que a Mãe se rala acima
de tudo o resto.
– Mãezinha. Emagreci!... Consegui chegar aos quarenta quilos.
Estou na UCI com a minha mãe moribunda e tenho a certeza de que a
única coisa que a vai fazer acordar é o facto de, desde que foi hospitalizada,
o meu medo e tristeza se terem transformado no cocktail perfeito para uma
anorexia e de eu ter, finalmente, atingido o peso que a Mãe estabeleceu para
mim. Quarenta quilos. Estou tão certa de que este facto vai funcionar que
me reclino na cadeira e cruzo as pernas pomposamente. Espero que ela
recupere os sentidos. E espero. E continuo à espera.
Mas nada. Não recupera os sentidos. E eu não consigo perceber. Se o meu
peso não a faz acordar, nada o fará. E se não há nada que a faça acordar,
isso quer dizer que ela vai mesmo morrer. E se ela morrer mesmo, o que hei
de eu fazer? O meu propósito na vida sempre foi fazer a Mãe feliz, ser quem
ela queria que eu fosse. Sem a Mãe, o que é que vou ser agora?
antes
1.
O presente diante de mim está embrulhado em papel de Natal, ainda que
estejamos no fim de junho. Temos este papel todo de sobra desde as festas,
porque o Avô comprou o conjunto de doze rolos no Sam’s Club, mesmo
depois de a Mãe lhe dizer um milhão de vezes que nem sequer era um bom
preço.
Eu abro com cuidado, sem rasgar, porque sei que a Mãe gosta de guardar
os restos de papel de embrulho de todos os presentes e, se eu rasgar em vez
de abrir com cuidado, o papel não ficará tão intacto quanto ela gostaria. O
Dustin diz que a Mãe acumula tralha, mas a Mãe diz que gosta é de
preservar as memórias das coisas. Portanto, abro com cuidado.
Ergo os olhos para toda a gente que me observa. A Avó está ali, com a sua
permanente tufada, o nariz redondo e todo aquele fervor, o mesmo fervor
que se revela sempre que ela observa alguém a abrir um presente. Fica
sempre muito interessada na origem das prendas, no preço, em saber se
estavam em saldo ou não. Ela tem, absolutamente, de saber essas coisas.
O Avô também está a olhar e vai tirando fotografias. Odeio que me tirem
fotografias, mas o Avô adora fotografar. E ninguém para um avô quando
está a fazer o que adora. Como quando a Mãe lhe diz que tem de parar de
comer aquela enorme taça de gelado de baunilha da Tillamook, todas as
noites antes de dormir, porque aquilo não faz bem nenhum ao seu já
precário coração, mas ele não liga. Não vai deixar de comer o seu gelado e
não vai parar de tirar fotografias. Eu até me zangava, se não gostasse tanto
dele.
O Pai está para ali, meio a dormir, como sempre. A Mãe não para de lhe
dar cotoveladas e de lhe sussurrar que acha mesmo que a tiroide dele não
está normal, ao que o Pai responde, com irritação, “a minha tiroide está
ótima”, e volta a cabecear cinco segundos depois. Esta é a dinâmica habitual
entre eles. Isto ou uma gritaria desenfreada. Prefiro isto.
O Marcus, o Dustin e o Scottie também cá estão. Gosto deles todos por
razões diferentes. O Marcus é muito responsável, muito fiável. Suponho que
isso faça sentido, já que ele é praticamente um adulto (tem quinze anos),
mas, ainda assim, parece ter uma solidez que não reconheço em muitos
outros adultos à minha volta.
Adoro o Dustin, ainda que ele pareça irritado comigo a maior parte do
tempo. Adoro que ele tenha jeito para o desenho e seja bom a História e
Geografia, três coisas em que sou péssima. Tento elogiá-lo muitas vezes nas
coisas em que ele é bom, mas ele chama-me graxista. Não sei exatamente o
que isso quer dizer, mas percebo pelo tom dele que é um insulto. Ainda
assim, tenho quase a certeza de que, no fundo, ele até aprecia os meus
elogios.
Adoro o Scottie porque ele é um nostálgico. Aprendi essa palavra no livro
Vocabulary Cartoons1 que a minha mãe nos lê todos os dias, isto porque ela
nos dá aulas em casa, e agora tento usá-la pelo menos uma vez por dia, não
vá eu esquecê-la. Assenta mesmo bem ao Scottie. “Um sentimentalismo
pelo passado.” Isso é coisa que ele tem certamente, ainda que só tenha nove
anos e, portanto, não tenha grande passado. O Scottie chora no fim do
Natal, no fim dos aniversários, no fim do Dia das Bruxas e, por vezes, no
fim de um dia normal. Chora porque fica triste que o dia tenha acabado; e
mesmo que tenha acabado de acabar, ele fica logo com saudades. “Saudade”
é outra palavra que aprendi com o Vocabulary Cartoons.
A Mãe também está a olhar para mim. Oh, Mãe. Ela é tão bonita. Ela não
concorda, e deve ser por isso que passa uma hora a pentear-se e a pintar-se
todos os dias, mesmo que saia só para ir à mercearia. Para mim, isso não faz
sentido nenhum. Juro que ela fica melhor sem nada daquilo. Mais natural.
Dá para ver a pele dela. Os olhos. A ela. Mas não, cobre-se toda. Espalha
creme bronzeador na cara, põe lápis ao longo do canal lacrimal, espalha
carradas de creme nas bochechas e põe imenso pó por cima. Usa o cabelo
todo armado. Usa sapatos de salto, para poder ter um metro e cinquenta e
sete, porque acha que um metro e quarenta e nove, a altura dela, não chega.
Há tanta coisa de que ela não precisa e quem me dera que não usasse, mas
eu consigo ver o que está por baixo de tudo aquilo. E é a pessoa que ela é
por baixo daquilo tudo que é linda.
A Mãe observa-me e eu observo-a a ela e é sempre assim. Estamos
sempre ligadas. Entrelaçadas. Fundidas. Ela sorri-me em jeito de “despacha-
te lá” e eu acelero. Acelero e acabo de desembrulhar o meu presente.
Fico logo desiludida, para não dizer horrorizada, quando vejo o que recebi
como prenda pelo meu sexto aniversário. Sim, está bem, gosto dos Rugrats,
mas este conjunto (t-shirt e calções) tem a Angelica (a personagem de que
gosto menos) rodeada de margaridas (odeio flores na roupa). E tem folhos
nas mangas e à volta das pernas. Se há uma coisa que posso identificar
como diretamente oposta à minha essência são os folhos.
– Adoro! – grito com entusiasmo. – É o melhor presente de sempre!
Ponho o meu melhor sorriso falso. A Mãe não repara que o sorriso é falso.
Acha que gostei genuinamente da prenda. Diz-me para vestir o conjunto
para usar na minha festa e começa a tirar-me o pijama. A forma como me
despe parece mais um rasgar do que um desembrulhar com cuidado.
Passaram duas horas. Cá estou eu, com o meu uniforme de Angelica, no
Eastgate Park, rodeada pelos meus amigos, ou antes pelas únicas pessoas na
minha vida que têm a mesma idade que eu. São todos da minha turma da
primária na igreja. Veio a Carly Reitzel, com a sua bandolete aos
ziguezagues. Veio a Madison Thomer, com o seu defeito da fala que quem
me dera ter também, porque é tão bestialmente fixe. Veio o Trent Paige, está
ali a falar sobre cor-de-rosa, coisa que faz excessiva e exclusivamente, para
consternação dos adultos à volta dele. (De início, não percebi porque é que
os adultos se ralavam tanto com a obsessão do Trent pelo cor-de-rosa, mas
depois juntei dois mais dois. Eles acham que ele é gay. E nós somos
mórmones. E, por uma qualquer razão, não se pode ser gay e mórmon ao
mesmo tempo.)
Trazem o bolo e o gelado e eu fico encantada. Há duas semanas
inteirinhas que espero por este momento, desde que decidi o que queria
pedir como desejo. O desejo de aniversário é o maior poder que tenho na
minha vida, neste momento. É a minha grande oportunidade de ter o
controlo nas mãos. Não a menosprezo. Quero que toda a gente repare nisso.
Todos cantam os “Parabéns a Você”, desafinados, e a Madison, o Trent e a
Carly acrescentam uns “chá-chá-chás” a seguir a cada verso, o que me irrita
imenso. Eles acham que é muito fixe, eu percebo, mas eu acho que
conspurca a pureza da canção de aniversário. Não podem deixar uma coisa
boa em paz?
Olho a Mãe nos olhos para que ela saiba que me importo com ela e que
ela é a minha prioridade. Ela não alinha nos chá-chá-chás. Respeito-a por
isso. Ela dirige-me um grande sorriso, daqueles que lhe enrugam o nariz, e
isso deixa-me bem, sinto que vai correr tudo bem. Retribuo o sorriso,
tentando absorver o momento tanto quanto possível. Sinto os meus olhos
encherem-se de lágrimas.
A Mãe foi diagnosticada com um cancro da mama de estádio IV quando
eu tinha dois anos. Mal me lembro, mas tenho umas imagens.
Recordo a imagem da Mãe a tricotar-me um grande cobertor verde e
branco e a dizer que era uma coisa que eu podia guardar comigo enquanto
ela estivesse no hospital. Eu detestei-o, detestei a forma como ela mo deu,
ou detestei o que senti quando ela mo deu – não me lembro exatamente do
que detestei, mas houve qualquer coisa naquele momento que detestei em
absoluto.
Recordo a imagem de estar a atravessar o que devia ser um relvado de
hospital, de mão dada com o Avô. Era suposto irmos apanhar dentes-de-leão
para dar à Mãe, mas, afinal, apanhámos umas ervas daninhas pardas,
parecidas com paus, porque eu gostei mais delas. A Mãe guardou-as num
daqueles copos de plástico de lápis de cera da Crayola, na estante da
televisão, durante anos. Para preservar a memória. (Talvez seja aqui que o
Scott foi buscar os seus instintos nostálgicos?)
Recordo a imagem de estar sentada numa alcatifa azul cheia de altos,
numa sala de canto do edifício da igreja, a observar dois jovens e bonitos
missionários a pousarem as mãos na cabeça careca da Mãe para lhe dar uma
bênção, enquanto o resto da família se sentava nas frias cadeiras
desdobráveis ao longo do perímetro da sala. Um missionário consagrou o
azeite, para que ficasse todo santo ou lá o que era, e depois deitou-o na
cabeça da Mãe, que ficou ainda mais brilhante. O outro missionário proferiu
a bênção, pedindo que a vida da Mãe fosse prolongada, se fosse essa a
vontade de Deus. A Avô saltou da cadeira e disse “Mesmo que não seja a
vontade de Deus, caraças!”, o que perturbou o Espírito Santo, pelo que o
missionário teve de recomeçar a prece.
Lembro-me muito mal dessa altura da minha vida, mas também não
preciso de me lembrar. Estes episódios são tão comentados em casa dos
McCurdy, que nem era preciso lá ter estado para que a experiência nos fique
gravada na memória.
A Mãe adora contar a história do cancro dela – a quimioterapia, a
radiação, o transplante de medula, a mastectomia, o implante da mama, o
facto de ser tudo no estádio IV e de como ela só tinha trinta e cinco anos – a
todos os que encontrar pelo caminho, na igreja, no supermercado, aos
vizinhos, seja a quem for que esteja disposto a ouvi-la. Ainda que os factos
sejam tão tristes, vejo que a história em si dá à Mãe um profundo
sentimento de orgulho. E de propósito de vida. Como se ela, Debra
McCurdy, tivesse sido posta nesta terra para ser uma sobrevivente do cancro
e viver para contar a história a toda e qualquer pessoa… pelo menos umas
cinco a dez vezes.
A Mãe recorda o cancro da mesma forma que a maior parte das pessoas
recorda as férias. Ela chega ao ponto de organizar projeções semanais de
um vídeo caseiro que fez pouco depois de saber o diagnóstico. Todos os
domingos, depois da igreja, ela pede a um dos rapazes que ponha a cassete
VHS, já que ela não sabe mexer no leitor.
– Muito bem, pessoal, chhhhhiu! Vamos lá ficar caladinhos. Vamos ver o
filme e ficar gratos por a Mamã estar aqui agora – diz a Mãe.
Ainda que a Mãe diga que estamos a ver o vídeo para ficarmos gratos por
ela agora estar bem, há qualquer coisa que não me cai bem. Vejo como
deixa os meus irmãos pouco à vontade, e a mim deixa-me igualmente
desconfortável. Não me parece que algum de nós queira revisitar as
memórias da nossa mãe careca, triste e, na altura, a morrer, mas ninguém o
diz em voz alta.
O vídeo começa a rodar. A Mãe canta canções de embalar a nós os quatro,
miúdos, sentados à volta dela no sofá. E tal como o vídeo permanece o
mesmo de cada vez que o revemos, também os comentários da Mãe são os
mesmos. Cada vez que revemos o filme, a Mãe comenta como a situação
era “demasiado grave para o Marcus aguentar” e que ele tinha de sair
repetidas vezes para o corredor, para se recompor e voltar a entrar. Ela diz-
nos isto de uma forma que nos dá a entender que é o maior dos elogios. O
Marcus estar abalado pela doença terminal da Mãe é um testemunho do
quão incrível ele é como pessoa. Depois, comenta como eu era uma
“bandalha”, mas diz a palavra “bandalha” com um pico de veneno tal que
dir-se-ia que me está a chamar nomes. E continua a dizer que não acredita
como era possível que eu cantasse o “Jingle Bells” sem parar, alto e bom
som, quando a atmosfera era, claramente, muito triste. Ela nem acredita que
eu não tenha percebido isso. Como podia estar tão bem disposta, se o
ambiente em volta era obviamente tão pesado? Eu tinha dois anos.
A idade não é desculpa. Eu sinto uma culpa tremenda cada vez que
revemos o filme caseiro. Como é possível que eu não tenha percebido? Mas
que grande parvalhona. Como é possível que eu não tenha pressentido o que
a Mãe precisava? Que ela precisava que estivéssemos todos sérios, a encarar
a situação da forma mais pesada possível, que estivéssemos devastados. Ela
precisava que não fossemos nada sem ela.
Ainda que eu saiba que os pormenores técnicos da história do cancro da
Mãe (a químio, o transplante de medula, a radiação) são tudo termos que
provocam uma reação de choque nas pessoas quando os ouvem – e que não
podem acreditar e o duro que deve ter sido –, para mim não passam de
termos técnicas. Não significam nada.
Mas o que realmente significa qualquer coisa para mim é o ar que se
respira em casa dos McCurdy. A melhor forma que encontro para o
descrever é que, desde que me consigo lembrar, o ar lá em casa era como
uma respiração sustida. Como se estivéssemos todos sempre em modo
expectante, à espera de que o cancro da Mãe voltasse. Entre as recriações
constantes do primeiro episódio de cancro da Mãe e as consultas de
acompanhamento com os médicos, o ambiente implícito lá em casa era
pesado. A fragilidade da vida da Mãe era o centro da minha.
E penso que posso fazer alguma coisa quanto a essa fragilidade com o
meu desejo de aniversário.
Finalmente, acabam de cantar os parabéns. Chegou a hora. O meu grande
momento. Fecho os olhos e respiro fundo, enquanto formulo o desejo na
minha cabeça.
Desejo que a Mãe viva mais um ano.
1
Livro de aprendizagem vocabular para crianças, em que os novos
vocábulos são apresentados com uma banda desenhada que os
contextualiza. (N. da T.)
2.
– Mais uma fileira de ganchos e já está – diz a Mãe, referindo-se aos
ganchos em forma de borboleta que vai espetando cuidadosamente na
minha cabeça. Detesto este penteado, são carreiras de mechas enroladas,
muito apertadas, que ficam no sítio graças a uns ganchinhos dolorosos e que
arrancam o escalpe. Eu preferia usar um boné de basebol, mas a Mãe adora
este penteado e diz-me que fico bonita, portanto, venham daí os ganchos-
borboleta.
– Está bem, Mamã – digo eu, a abanar as pernas para trás e para a frente,
sentada no tampo fechado da retrete. O abanar das pernas é um toque
simpático. Estou a convencê-la.
O telefone lá de casa começa a tocar.
– Bolas!
A Mãe abre a porta da casa de banho e inclina-se lá para fora, esticando-
se o mais possível para agarrar o telefone pendurado na parede da cozinha.
Faz isso tudo sem largar a mecha do meu cabelo que estava a enrolar, pelo
que todo o meu corpo vai atrás, na mesma direção da minha mãe.
– Estou? – diz ela para o telefone, ao atender. – Hã-hã. Hã-hã. O QUÊ?
Nove da noite? É o mais cedo? Tanto pior, os miúdos lá terão de aguentar
OUTRA NOITE sem o PAI. A culpa é tua, Mark. A culpa é tua.
A Mãe desliga o telefone com violência.
– Era o teu pai.
– Eu percebi.
– Aquele homem, Net. Nem te digo. Às vezes, só queria…
Ela respira fundo, ansiosa.
– Às vezes, só querias o quê?
– Bem, eu podia ter-me casado com um médico, com um advogado, ou
com um…
– Chefe índio – acabo a frase, já que conheço muito bem esta tirada
habitual dela. Perguntei-lhe uma vez que chefe índio namorara ela, mas ela
respondeu que não falava literalmente, que era uma figura de retórica, uma
forma de dizer que podia ter tido o homem que quisesse, em tempos, antes
de ter tido filhos, facto que a deixou menos atraente. Eu disse-lhe que
lamentava e ela disse que não fazia mal, que preferia ter-me a mim do que a
um homem. Então, disse-me que eu era a melhor amiga dela e beijou-me na
testa. Mas depois, pensou melhor e acrescentou que até tinha chegado a sair
umas vezes com um médico “alto, ruivo e muito estável do ponto de vista
financeiro”.
A Mãe continua a prender-me o cabelo.
– E com produtores também. Produtores de cinema, produtores de
música. O Quincy Jones, uma vez, olhou duas vezes quando passou por
mim numa esquina. Sinceramente, Net, não só me podia ter casado com
qualquer um desses homens, como devia tê-lo feito. Eu estava destinada a
ter uma boa vida. A ter fama e fortuna. Sabes bem como queria ter sido
atriz.
– Mas a Avó e o Avô não te deixaram – digo eu.
– Mas a Avó e o Avô não me deixaram, isso mesmo.
Fico a matutar sobre porque é que a Avó e o Avô não a deixaram, mas não
lhe pergunto. Sei que é melhor não fazer um certo tipo de perguntas, aquelas
que entram em demasiados pormenores. Em vez disso, deixo a Mãe
fornecer a informação que ela decidir fornecer, enquanto a ouço com
atenção e tento absorver o que diz, exatamente na medida em que ela quer
que o faça.
– Ui!
– Desculpa. Apertei-te a orelha?
– Sim. Mas não faz mal.
– É difícil ver deste ângulo.
A Mãe começa a esfregar-me a orelha. Fico logo melhor.
– Eu sei.
– Quero dar-te a vida que nunca tive, Net. Quero dar-te a vida que eu
merecia. A vida que os meus pais não me deixaram ter.
– Está bem.
Estou nervosa e temo o que aí vem.
– Acho que devias representar. Acho que darias uma bela atriz. Loira.
Olhos azuis. É o que eles adoram naquela terra.
– Qual terra?
– Em Hollywood.
– Hollywood não é longe?
– Fica a uma hora e meia daqui. Com autoestradas à mistura, é certo.
Teria de aprender a guiar nas autoestradas. Mas é um sacrifício que estou
disposta a fazer por ti, Net. Porque eu não sou como os meus pais. Eu quero
o melhor para ti. Sempre. Sabes isso, não sabes?
– Sim.
A Mãe faz uma pausa, como faz sempre antes de dizer qualquer coisa que
pensa ser parte de um grande momento. Curva-se para a frente para me
olhar nos olhos, sem largar a madeixa por enrolar.
– Então, o que dizes? Queres representar? Queres ser a pequena atriz da
Mamã?
Só há uma resposta certa.
3.
Não me sinto preparada. Sei que não estou preparada. O miúdo à minha
frente desce os degraus do palco aos saltos, de uma forma que me deixa
baralhada. Ele não parece nada nervoso. Isto é só mais um dia para ele.
Senta-se ao lado da dúzia, ou coisa assim, de outras crianças que já estão
sentadas porque já apresentaram os seus monólogos.
Eu olho em volta daquela sala aborrecida, de paredes brancas e nuas, e
para a fileira de miúdos em cadeiras empilháveis de metal. Brinco
nervosamente com o polegar no canto do papel que tenho na mão. Sou a
seguir. Pus-me no fim da fila para ter mais tempo para treinar, uma decisão
que agora lamento, porque os meus nervos tiveram mais tempo para se pôr
em franja. Nunca me senti assim. Enjoada de nervos.
– Podes avançar, Jennette – diz-me o homem de rabo de cavalo preto e
barbicha que vai decidir o meu destino.
Eu aceno que sim com a cabeça e subo para o palco. Pouso a folha de
papel no chão, para ter mais liberdade para usar as mãos nos gestos largos
que a Mãe me mandou fazer, e começo o meu monólogo sobre as gomas
Jell-O Jigglers.
Começo com a voz trémula. Consigo ouvi-la muito alta na minha cabeça.
Tento abafá-la, mas soa cada vez mais alta. Faço um grande sorriso e espero
que o Barbichas não tenha reparado. Finalmente, chego ao remate.
– … porque com as gomas de pacote, é um fartote!
Faço um risinho a seguir a esta frase, tal como a mãe me mandara: “agudo
e fofinho, com uma ruguinha no nariz lá para o fim”. Espero que o risinho
não revele nem metade do desconforto que sinto ao ouvi-lo sair de dentro de
mim.
O Barbichas pigarreia – nunca é bom sinal. Diz-me para tentar fazer o
monólogo outra vez, mas “solta-te um pouco, fá-lo com mais simplicidade,
como se falasses com uma amiga… Oh, e não faças aqueles gestos com a
mão”.
Fico dividida. Os gestos com a mão são exatamente o que a Mãe me
mandou fazer. Se chegar à sala de espera e lhe disser que não os fiz, ela vai
ficar desiludida. Mas se chegar à sala de espera e lhe disser que não tenho
um agente, ela vai ficar ainda mais desiludida.
Repito o monólogo, desta feita sem gestos com a mão, e parece-me
ligeiramente melhor, mas vejo que o Barbichas não obteve exatamente o
que queria. Desiludi-o. Sinto-me péssima.
Depois de eu acabar, o Barbichas chama nove nomes, incluindo o meu, e
diz que os outros cinco miúdos se podem ir embora. Reparo que só uma das
raparigas percebe que acaba de ser rejeitada. Os outros quatro saem da sala
nas calmas, como se fossem comer um gelado. Sinto-me mal por ela, mas
bem por mim. Sou uma das Escolhidas.
O Barbichas diz-nos que a Academy Kids gostaria de nos representar para
trabalhos de figurante, o que quer dizer que aparecemos em segundo plano
em cenas de séries e filmes. Pelas caras demasiado animadas que faz,
percebo logo que o Barbichas está a tentar fazer com que más notícias
passem por boas.
Depois de nos mandar ir contar às nossas mães na sala de espera, o
Barbichas chama pelo nome de outros três miúdos e pede-lhes que fiquem.
Eu arrasto-me, a tentar ser a última a sair da sala, para poder ouvir o que se
passa com aquelas três crianças especiais, aquelas três Ainda Mais
Escolhidas. O Barbichas diz-lhes que foram selecionadas para serem
representadas como “atores de pequenos papéis”, o que quer dizer
figurantes especiais, com falas. Saíram-se tão bem nos monólogos que vão
ser representadas por esta agência não para servirem de adereços humanos,
mas sim para serem ATORES genuínos, certificados e merecedores de falas.
Sinto algo desagradável a borbulhar dentro de mim. Inveja misturada com
rejeição e autocomiseração. Porque é que não me acharam boa que chegue
para falar?
Vou para a sala de espera e corro até à Mãe, que confere o seu livro de
cheques pela quarta vez esta semana. Digo-lhe que fui escolhida como
figurante, e ela parece genuinamente feliz. Sei que isto é só porque ela não
sabe que há uma categoria superior, para a qual eu podia ter sido escolhida.
Preocupa-me que ela venha a descobrir.
A Mãe começa a preencher a papelada da agência. Aponta a caneta à linha
tracejada onde é suposto que eu assine o meu nome. Vem a seguir à linha
tracejada onde ela já assinou – ela tem de assinar também porque é minha
encarregada de educação.
– Para que são as assinaturas?
– O contrato só diz que o agente recebe vinte por cento e que nós
recebemos oitenta por cento. Quinze por cento desses oitenta por cento vão
para uma conta chamada “conta Coogan”2, a que terás acesso quando
fizeres dezoito anos. Essa é a soma que a maioria dos pais deixa que caiba
aos filhos. Mas tens sorte. A Mamã não te vai tirar dinheiro nenhum, a não
ser para o salário dela e para as coisas essenciais.
– O que são as coisas essenciais?
– Para quê este interrogatório, assim de repente? Não confias em mim?
Assino logo.
O Barbichas vem cá fora para fazer os seus comentários a cada um dos
pais. Vem ter com a Mãe primeiro e diz-lhe que eu tenho o potencial para
trabalhar como atriz de pequenos papéis.
– Potencial? – pergunta a mãe, criticamente.
– Sim, sobretudo porque ainda só tem seis anos, portanto, está a começar
cedo.
– Mas porquê só potencial? Porque não pode fazer já esses pequenos
papéis?
– Bem, pude ver, durante o monólogo dela, que estava muito nervosa. Ela
parece muito tímida.
– Ela é tímida, mas está a ultrapassar isso. Ela vai ultrapassar isso.
O Barbichas coça o braço onde tem uma tatuagem de uma árvore. Respira
fundo, como se estivesse a preparar-se para dizer qualquer coisa que o deixa
nervoso.
– É importante que a Jennette queira representar, para se sair bem – diz
ele.
– Oh, é o que ela mais quer na vida – diz a Mãe, enquanto assina sobre a
linha tracejada da página seguinte.
É a Mãe quem mais quer isto na vida, não eu. Este dia foi extenuante e
nada divertido e, se eu pudesse escolher, escolheria nunca mais fazer tal
coisa. Por outro lado, é verdade que eu quero o que a Mãe quer, portanto,
ela até tem razão.
O Barbichas sorri-me de uma forma que eu gostaria de poder perceber.
Não gosto quando os crescidos fazem caras ou sons que eu não percebo. É
frustrante. Faz-me sentir que me está a escapar alguma coisa.
– Boa sorte – diz-me ele com uma certa solenidade. E depois, vai-se
embora.
2
Conta prevista pela lei californiana para proteção dos atores
infantis, para salvaguardar que o dinheiro que ganham não possa
ser gasto na totalidade pelos pais. (N. da T.)
4.
São três da manhã da sexta-feira seguinte ao contrato com a Academy Kids,
quando a Mãe me acorda para o meu primeiro dia como figurante numa
série chamada Os Ficheiros Secretos. Só tenho de estar no estúdio às cinco
da manhã, mas, como a Mãe tem medo de conduzir na autoestrada pela
primeira vez, quer começar com avanço e sair muito mais cedo.
– Ó para mim! Estou a ultrapassar o meu medo por ti – diz a Mãe ao
entrarmos para a carrinha Ford Windstar de 1999.
Chegamos aos estúdios da 20th Century Fox com uma hora de
antecedência, pelo que vamos dar um pequeno passeio no escuro. Quando
passo pelo mural gigante com o Luke Skywalker contra o Darth Vader,
numa das paredes exteriores de um dos estúdios, a Mãe solta um
guinchinho, encantada, saca da máquina fotográfica descartável e tira uma
fotografia de mim diante daquilo. Sinto-me envergonhada, como se não
pertencêssemos ali.
Pelas 4h45, a Mãe decide que já estamos perto o suficiente da hora para
que fui chamada e que podemos aparecer; então, vamos dar o nome, mesmo
à entrada do estúdio, a um assistente de produção baixo e careca. Ele diz-
nos que viemos cedo, mas que podemos passar pelo espaço do catering dos
figurantes antes de ser hora de seguir para o plateau.
O espaço do catering dos figurantes é um sítio porreiro. É uma tenda à
beira do estúdio com comida por toda a parte. Cereais, doces, jarros de café
e de sumo de laranja, e bandejas prateadas com comida de pequeno-almoço:
panquecas, waffles, ovos mexidos e bacon.
– E é à borla – diz a Mãe, toda contente, enquanto embrulha queques e
croissants variados em guardanapos de papel, que enfia na sua bolsa
Payless grandalhona para oferecer, mais tarde, aos meus irmãos. Há uma
série de ovos inteiros num tabuleiro. A mãe diz que estão cozidos. Eu agarro
num para provar. A Mãe ensina-me a rolar o ovo numa superfície dura para
quebrar a casca e a descascá-lo depois para revelar a clara. Salpico o ovo
com sal e pimenta e dou uma grande dentada. Adoro. Pego também num
pacote de minissanduíches de queijo e bolacha da Ritz Bits. Podia habituar-
me a isto.
Quando como a última dentada do ovo, chegaram já todos os outros
miúdos figurantes (somos trinta), e somos chamados para o plateau de
imediato.
Vamos atrás do assistente de produção careca, que nos guia para o estúdio
onde vamos filmar. Assim que atravessamos para o estúdio, eu fico
deslumbrada. O teto é tão alto e está coberto de centenas de luzes e varas.
Há um cheiro a madeira fresca e um som de martelos e berbequins. Muita
gente passa por nós, vestida com as calças cheias de bolsos, alguns com
pranchetas na mão, outros a sussurrar insistentemente para os walkie-
talkies. Há qualquer coisa de mágico aqui. Dá a sensação de que há muita
coisa a acontecer.
Chegamos ao plateau e o realizador – um homenzinho de cabelo
castanho-claro, suficientemente longo para o prender atrás da orelha – leva-
nos para dentro, falando rápida e freneticamente. Ele olha para mim e para
as outras vinte e nove crianças e diz-nos, entusiasmado, que vamos todos
fazer de crianças presas numa câmara de gás, a sufocar até à morte. Eu vou
acenando com a cabeça, enquanto tento decorar cada palavra, para que as
possa depois repetir à Mãe, no caminho para casa, quando ela perguntar.
Sufocar até à morte. Entendido.
O realizador diz-nos onde nos devemos pôr. Eu estou quase no fundo
daquela massa de crianças, até que ele pede aos miúdos mais pequenos para
virem para a frente, e é o que faço. Ele aponta então para cada um de nós,
rapidamente, uns atrás dos outros, e pede para lhe darmos a nossa melhor
cara de “mortos de susto”. Sou a nona ou a décima criança a ser indicada e,
depois de lhe fazer a minha careta, ele diz ao cameraman que está ao meu
lado para fazer um grande plano sobre mim. Não faço ideia do que isto
significa, mas presumo que seja bom, porque o realizador me pisca o olho
quando acaba de falar.
– Mais uma, ainda mais assustada! – grita-me o realizador.
Esbugalho um pouco mais os olhos, esperando que funcione. E funciona,
acho eu, já que ele diz “Apanhei! Siga!” e dá-me uma palmadinha nas
costas.
O resto do dia consiste em segmentos de trabalho de estúdio e trabalho de
escola, que temos de fazer no estúdio, para podermos alternar entre uma
coisa e outra. Como é a minha mãe quem me educa em casa, ela pegou no
meu programa escolar para hoje e fez um pequeno pacote com todas as
fichas de trabalho presas por um clipe. A rapariga de doze anos sentada ao
meu lado na sala de aulas não para de me dar cotoveladas para dizer que, se
não quisermos, não temos de fazer trabalho escolar algum, porque somos
figurantes, e os professores do estúdio atribuídos aos figurantes querem lá
saber o que fazemos, porque só querem ensinar os atores com pequenos
papéis. Faço o possível por ignorá-la e preencher a minha folha sobre as
capitais de Estado. Passada cerca de meia hora deste segmento de trabalho
escolar, somos levados da sala pelo assistente de produção para repetir a
cena. A mesma cena. Todo o dia, a mesma cena.
Não faço ideia de porque é que temos de continuar a fazer a mesma cena
tantas vezes e percebo que é melhor não fazer perguntas, mas reparo que,
cada vez que volto ao plateau, a câmara está numa posição diferente, pelo
que fico com a sensação de que terá alguma coisa que ver com isso. Bom…
pelo menos, cada vez que me trazem para o plateau, posso ver a Mãe.
Cada vez que o assistente de produção nos leva outra vez para o plateau,
passamos pela “sala de detenção dos pais dos figurantes”, um pequeno
bungalow onde os pais estão todos apinhados. Aceno à Mãe, que repara
sempre em mim. Pouco importa o quão mergulhada esteja na sua revista
Woman’s World, dobra o canto da página, ergue os olhos para mim e mostra-
me o polegar num gesto de aprovação. Estamos tão ligadas.
Ao fim do dia, estou exausta. Foram oito horas e meia entre o plateau e os
deveres escolares, a transitar do palco para a sala de aula, a receber
indicações, a ouvir berbequins e a cheirar o fumo (havia uma máquina de
nevoeiro na câmara de gás para criar atmosfera). Foi um longo dia e não me
diverti particularmente, mas gostei do ovo cozido.
– Sufocar até à morte – diz a Mãe com fervor, no caminho para casa,
enquanto repete tudo o que eu lhe contei sobre o dia. – E num GRANDE
PLANO. Isso vai mesmo mostrar que és boa. Aposto que, logo que isto vá
para o ar, a Academy Kids vai suplicar para seres figurante especial.
SUPLICAR!
A Mãe abana a cabeça incrédula enquanto dá pancadinhas de
contentamento no volante. Ela parece tão livre e despreocupada neste
momento. Tento absorver a expressão dela tão profundamente quanto
possível. Quem me dera que ela estivesse assim mais vezes.
– Vais ser uma estrela, Nettie. Tenho a certeza. Vais ser uma estrela.
5.
– Temos de sair para a igreja daqui a quinze minutos! – grita a Mãe do outro
quarto, antes de eu ouvir a pancada característica de um pincel de
maquilhagem a ser atirado contra o espelho. O eyeliner dever ter-lhe saído
torto outra vez.
A igreja a que a minha família vai é a Garden Grove Sixth Ward da Igreja
de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. A Avó foi batizada como
mórmon quando tinha oito anos; depois, a minha mãe foi batizada como
mórmon quando tinha oito anos, tal como eu serei batizada como mórmon
quando tiver oito anos, porque é quando Joseph Smith disse que nos
tornamos responsáveis pelos nossos pecados (até lá, podemos pecar
impunemente). Ainda que tanto a Avó como a Mãe fossem batizadas, não
costumavam ir à igreja. Achavam que podiam ter a regalia de ir para o Céu
sem terem de se esfalfar por isso.
Mas logo a seguir à Mãe ser diagnosticada com cancro, começámos a ir à
igreja.
– Eu sabia que o Senhor me ajudaria a melhorar se eu fosse Sua fiel e leal
servidora – explicou-me a Mãe.
– Oh. Então, começámos a ir à igreja porque queríamos um favor de
Deus? – perguntei eu.
– Não.
Ainda que a Mãe se tivesse rido quando o disse, soava meio nervosa,
talvez até um pouco irritada. Então, mudou de assunto para como o Tom
Cruise estava lindo no novo trailer da Missão Impossível 2.
Eu nunca mais perguntei quando ou por que razão tínhamos começado a
ir à igreja. Não preciso de saber os pormenores de porque é que vamos à
igreja para saber que adoro lá ir.
Adoro o cheiro da capela – o detergente dos ladrilhos com perfume de
pinho e um toque de estopa. Adoro as minhas aulas da primária e todas as
canções sobre a fé e sobre Jesus, como “I Hope They Call me on a
Mission”, “Book of Mormon Stories” e a minha preferida, “Popcorn
Popping”, que, pensando bem, não sei se tem alguma coisa que ver com a fé
ou com Jesus (é sobre pipocas a estalar num alperceiro).
Mas, mais do que tudo, adoro a escapadela. A igreja é linda, tranquila e
representa uma pausa de três horas do sítio que mais detesto: a nossa casa.
A nossa casa, tal como a igreja, fica em Garden Grove, na Califórnia, uma
terra referida sem grande dose de carinho pelos seus habitantes como
“Garbage Grove”, porque, como Dustin explica sempre antes que a Mãe o
mande calar: “Há aqui muito lixo branco.”3
Arrendámos a casa por um preço simpático, já que ela pertence aos pais
do Pai, mas, ao que parece, não simpático o suficiente, porque a Mãe está
sempre a queixar-se.
– Não devíamos pagar nada. É para isso que serve a família – resmunga
ela para mim, enquanto lava a louça ou lima as unhas. – Se eles não
deixarem a casa ao teu pai em testamento, juro que…
Temos a renda atrasada quase todos os meses – a Mãe está sempre a
chorar por causa disso. Os pagamentos são frequentemente incompletos – a
Mãe também está sempre a chorar por isso. Às vezes, não chega, mesmo
que a Mãe, o Pai, o Avô e a Avó contribuam todos. O Avô e a Avó vieram
viver connosco “temporariamente”, quando a Mãe se batia contra o cancro,
mas acabaram por ficar mesmo depois de ela entrar em remissão porque era
melhor para todos.
A Mãe chama-lhe “a maldição do salário mínimo”. O Avô trabalha como
cobrador de bilhetes na Disneylândia, a Avó é rececionista num lar de
idosos, o Pai faz bonecos de cartão em tamanho real para a Hollywood
Video e trabalha no departamento de projetos de cozinhas do Home Depot,
e a Mãe fez o curso de cabeleireira, mas diz que ter bebés a desviou da
carreira – “além disso, os vapores da oxigenação do cabelo são tóxicos” –,
por isso, faz uns turnos no Target na altura dos feriados, mas diz que o seu
emprego principal é garantir que eu vingue em Hollywood.
Ainda que os pagamentos da renda sejam frequentemente incompletos e
quase sempre atrasados, nunca fomos despejados. E sinto que se os donos
da casa fossem outras pessoas, que não os pais do Pai, já teríamos sido
corridos por esta altura do campeonato. Parte de mim sonha com isso.
Se fôssemos corridos, quereria dizer que teríamos de ir viver para outro
sítio qualquer. E se tivéssemos de ir viver para outro sítio qualquer, isso
significa que teríamos de embalar as coisas que quiséssemos levar connosco
dentro de caixotes de mudanças. E se tivéssemos de embalar coisas dentro
de caixotes de mudanças, isso significa que teríamos de fazer a triagem de
tudo o que está nesta casa e deitar fora parte das coisas. E isso parece-me
maravilhoso.
A nossa casa não foi sempre assim. Vi fotografias de antes de eu nascer
em que até era bastante normal – uma casa humilde com um pouco de tralha
a mais, mas nada de extraordinário.
Os meus irmãos dizem que começou quando a Mãe ficou doente, que foi
aí que ela começou a deixar de ser capaz de se ver livre de coisas. Isso quer
dizer que terá começado quando eu tinha dois anos. Desde então, o
problema só se agravou.
A nossa garagem está cheia de coisas até ao teto. Pilhas de caixas de
plástico cheias de papéis velhos, receitas, roupas de bebé, brinquedos, joias
emaranhadas, jornais, decorações de Natal, invólucros velhos de chocolates,
maquilhagem fora do prazo, garrafas vazias de champô e pedaços de
canecas partidas em sacos de plástico com fecho de correr.
A garagem tem duas entradas – a porta de trás e o portão principal. É
quase impossível entrar ali, se se for pela porta de trás, porque quase não há
espaço para abrir um percurso por onde se possa passar, mas, na hipótese
remota de que possamos abrir caminho às cotoveladas, não é coisa que se
queira fazer. Temos um problema de ratazanas e gambás, pelo que a única
coisa que veríamos nessa nesga de chão, seriam ratazanas mortas e gambás
presos nas armadilhas que o Pai coloca uma ou duas vezes por mês. As
ratazanas mortas e os gambás têm um cheiro horrível.
Como não é possível atravessar aquele espaço, o nosso segundo
frigorífico está instalado estrategicamente logo à entrada da garagem, para
que possamos abrir o portão principal e chegar-lhe facilmente.
Facilmente é exagero.
O nosso é o único portão manual do bairro e é tão pesado que as
dobradiças se quebraram. A porta costumava fazer um clique bem sonoro
quando o Pai ou o Marcus (as únicas duas pessoas lá de casa com força para
a levantar) a içavam suficientemente alto. E, uma vez ouvido o clique, o
portão da garagem lá se aguentava levantado sozinho.
Pois, mas já não é assim. Há uns anos, depois de ter feito o clique, o
portão da garagem voltou a cair com um estrondo e nunca mais voltou a
conseguir aguentar-se sozinho.
Então, agora, ir à garagem tornou-se uma tarefa para duas pessoas. Quem
quer que abra o pesado portão (normalmente é o Marcus) tem de segurá-lo
com todo o seu corpo para evitar que aquilo lhe resvale para cima, enquanto
a outra pessoa (normalmente sou eu) vai buscar o que for preciso dentro da
garagem.
As vezes em que nos pedem, a mim e ao Marcus, para irmos à garagem
buscar alguma coisa são assustadoras. Quando o Marcus segura o portão e a
cara dele se crispa sob o peso, e eu corro para abrir o frigorífico demasiado
cheio, tão depressa quanto possível, e localizo o alimento necessário num
mar de comida, sinto-me como o Indiana Jones, com o pedregulho a rebolar
na minha direção, e eu a ter de lançar a mão ao tesouro escondido antes que
o pedregulho me esmague.
Os quartos também são maus. Lembro-me de uma altura em que o
Marcus, o Dustin e o Scott dormiam no seu beliche com uma cama de
gaveta e eu dormia no quarto dos bebés, mas agora os nossos quartos estão
tão cheios de tralha que nem dá para perceber onde estão as camas, muito
menos dormir nelas. Já não dormimos nos quartos. Foram comprados uns
colchões com três dobras no Costco para dormirmos na sala. Tenho quase a
certeza de que estes colchões desdobráveis foram feitos para as aulas de
ginástica dos miúdos. Não gosto de dormir no meu.
Esta casa é uma humilhação. Esta casa é uma vergonha. Detesto esta casa.
Detesto como estar lá dentro me deixa tensa e ansiosa e como, durante a
semana inteira, anseio pela minha escapadela de três horas na terra das
Escrituras, com o seu detergente de ladrilhos com perfume de pinho.
É por isso que me chateia tanto que a minha família nunca consiga sair
porta fora a horas, por mais esforços que eu faça.
– Vamos lá, toda a gente! Toca a mexer, toca a mexer! – grito eu,
enquanto aperto a fivela do sapato esquerdo.
O Dustin e o Scottie só estão a acordar agora. Esfregam as remelas dos
olhos enquanto o Avô tropeça, desastrado, nos colchões das “camas” deles.
A Avó e o Avô dormem no sofá do que costumava ser o meu quarto de bebé,
que foi, entretanto, transformado no quarto deles-barra-armazém para mais
tralha.
– Cada um de vocês tem dez minutos para tomar o pequeno-almoço,
vestir-se e escovar os dentes – digo eu ao Dustin e ao Scott, enquanto eles
vão para a cozinha e se servem de cereais ao acaso; Lucky Charms, para o
Dustin, e Count Chocula, para o Scott. Vejo pela forma como reviram os
olhos que eles acham que estou a ser mandona, mas a mim não me parece
que seja isso. Parece-me desespero. Quero ordem. Quero paz. Quero a
minha escapadela de três horas deste sítio.
– Ouviram? – pergunto, sem obter resposta.
O Avô está de pé a um canto da cozinha a pôr manteiga numa torrada, e a
quantidade de manteiga que ele usa deixa-me nervosa; uma camada
daquelas é cara! A Mãe está sempre a dizer-me que ele usa “meia barra de
manteiga por dia e o nosso bolso não aguenta. A diabetes dele também não
aguenta”.
– Avô, podes usar menos manteiga? Vais chatear a Mãe.
– Hã? – grita o Avô.
Juro por Deus que ele se põe com “hãs” sempre que lhe pergunto
qualquer coisa a que ele não quer responder.
Exasperada, saio porta fora e estendo A Coisa Branca na alcatifa cinzenta
da sala de estar. “A Coisa Branca” é o nome infeliz de um quadrado fino,
branco e com um motivo floral que se desdobra em três segmentos de
25x25 cm cada. Este quadrado com três dobras serve-nos de “mesa”. Dir-
se-ia que, cá em casa, gostamos de coisas com três dobras.
Então, eu abro A Coisa Branca e o Dustin e o Scottie entram em fila na
sala. Andam como se estivessem numa corda bamba, com a concentração
dos funambulistas, porque encheram os dois as tijelas com demasiado leite
e cereais, de tal forma que o leite transborda e aterra na alcatifa cinzenta. A
Mãe repete-lhes todos os dias como detesta que o leite caia na alcatifa, e
como acaba sempre a cheirar a azedo, mas, por mais vezes que ela lhes
diga, eles continuam a fazer transbordar o leite e os cereais. Ninguém ouve
nada por aqui.
A Mãe ainda não calçou os sapatos de igreja porque deixa isso para o
último minuto, já que lhe fazem latejar os joanetes, por isso, eu sei que,
assim que ela pisar a alcatifa ensopada de leite, vai rasgar os collants, entrar
em parafuso e exigir que passemos pela Rite Aid pelo caminho, para que
possa comprar um novo par de meias. Se passarmos na Rite Aid, isso
encurtará a minha escapadela de três horas. Não podemos passar na Rite
Aid.
Corro ao armário das toalhas. Pelo caminho, passo pela casa de banho.
Encosto a orelha contra a porta fechada e ouço a Avó a queixar-se ao
telefone com uma amiga.
– A Jean deixou a etiqueta com o preço na camisola que me ofereceu. Ela
faz isso sempre que compra qualquer coisa em saldo, mas quer fingir que
pagou o preço original. É bem matreira, a fulana. Seja como for, fui à
Mervyn’s e vi lá a camisola com setenta por cento de desconto. Ela nem
gastou quinze dólares comigo…
– Avó, sai daí! Os rapazes têm de entrar! – grito, enquanto bato à porta
com força.
– Porque me odeias? – grita a Avó.
Ela faz sempre isso quando está ao telefone com alguém. Tenta fazer-se
passar por vítima.
Chego ao armário das toalhas e pego num pequeno pano da louça
vermelho com luzes de Natal desenhadas. Molho a ponta debaixo da
torneira da cozinha e pressiono o lado molhado contra a alcatifa encharcada
de leite. Ergo os olhos e vejo o Dustin e o Scottie a comer em cima d’A
Coisa Branca. O Scott mastiga em silêncio, com uma lentidão regular e
ponderada, quase como se estivesse em câmara lenta. Qual é a urgência?
Qual é o propósito? O Dustin mastiga de boca aberta, ruidosa e vorazmente.
Urgente, mas não eficiente.
Olho para o relógio. 11h12. Dê por onde der, temos de sair porta fora e
entrar na carrinha nos próximos oito minutos, para que possamos chegar à
igreja para o ofício das onze e meia.
– Despachem-se lá, suas lesmas! – ladro eu aos meus irmãos, enquanto
pressiono com todo o meu peso o pano da louça natalício já molhado em
cima do leite da alcatifa.
– Cala-te, cagalhona – riposta o Scottie.
O Avô pisa-me e chovem migalhas vindas da sua torrada embrulhada em
papel de cozinha. A Avó entra pela outra ponta da sala, embrulhada numa
toalha tão surrada que dá para ver à transparência – que nojo! A permanente
dela está presa no sítio graças a um lenço de cabeça improvisado, feito com
papel higiénico e ganchos de cabelo.
– Estás contente, menina? Já saí da casa de banho – diz ela, a caminho da
cozinha.
Eu ignoro a Avó e digo aos meus irmãos que a casa de banho está livre e
que podem ir lavar os dentes enquanto eu ponho as tijelas deles no lava-
louça. Com uma ajudinha de Deus, talvez ainda consigamos chegar a horas
à igreja.
Estou eufórica. Levanto o pano da louça natalício molhado de cima da
nódoa de leite. Vou à cozinha para o humedecer outra vez para uma segunda
volta, quando a Mãe atravessa a caminho da sala de estar. O meu corpo
enche-se de ansiedade. Estou prestes a avisar a Mãe, mas, quando ela sai da
cozinha, sei que é tarde demais.
– O que é isto? – pergunta a Mãe num tom que me informa que ela sabe
exatamente o que acaba de pisar.
Digo à Mãe que já comecei a limpar e que, por isso, a humidade é
sobretudo água, mas não importa. Já lhe deu cabo do humor. Já está a rasgar
os collants e a chamar o Pai, a dizer que vamos ter de passar na Rite Aid
para que ela compre um novo par.
Pergunto-me se poderia ter feito qualquer coisa diferente para nos fazer
sair dali mais depressa. Pergunto-me se haverá qualquer coisa que possa
fazer no futuro. Amontoamo-nos na carrinha e dirigimo-nos à Rite Aid.
Talvez ainda consigamos chegar à igreja a tempo da “Popcorn Popping”.
3
“Garbage Grove”, no original; “Pinhal de Lixo”, numa tradução livre.
Já Dustin refere-se à expressão white trash, “lixo branco”, uma
expressão pejorativa relativa à população branca de classe baixa
nos Estados Unidos. (N. da T.)
6.
– Paizinho! – grito eu, assim que ele entra pela porta. Arremeto-me à
barriga dele com a cabeça, como faço sempre que ele chega a casa do
trabalho. Chega-me um cheirinho da camisa de flanela dele… humm!
Madeira acabadinha de cortar e um toque de tinta fresca, o perfume
característico dele.
– Olá, Net – diz ele, mais insipidamente do que eu gostaria. Faço sempre
figas por um riso, uma festa no cabelo ou um abraço, mas nunca os recebo,
pelo menos até agora. Mas tenho esperança.
– Como foi o trabalho?
– Ok.
Estou desesperada por um qualquer tema de conversa com ele. Por uma
qualquer ligação. Com a minha Mãe, tudo flui sem esforço. Porque parece
tudo tão enguiçado com ele?
– Divertiste-te? – pergunto eu, enquanto passamos da entrada para a sala
de estar.
Ele não responde. Os seus olhos lampejam de inquietação por um
instante, até que ele os fixa em qualquer coisa. Viro a cabeça para ver para
onde olha ele.
Para a Mãe. E percebo imediatamente pela linguagem corporal dela e pela
sua expressão facial – costas direitas, queixo erguido, dentes cerrados, olhos
muito abertos – que ela não está só chateada, não está só zangada, está fula.
Está prestes a rebentar. Oh, não! Tem de haver alguma coisa que eu possa
fazer.
– Mark – diz ela, a estalar os lábios para bem marcar a sua raiva. É agora
ou nunca. É o momento de intervir.
– Adoro-te, Mamã! – grito eu. Corro para ela. Abraço-a.
Eu vou conseguir, eu vou mantê-la calma. Mas antes que eu possa pensar
no que dizer a seguir…
– Mark Eugene McCurdy – diz a Mãe, com a voz a subir.
Oh, não! Quando ela saca do “Eugene” é porque estamos perto da
explosão.
– Tive de ficar até tarde porque estava a ajudar um cliente. Não consegui
escapar… – tenta explicar o Pai. Ele parece assustado.
– Três horas de atraso, Mark…
Eu olho para o Dustin e para o Scottie em busca de auxílio. Estão a jogar
GoldenEye 007 para a Nintendo 64. Se há altura em que eles ficam
inacessíveis, é quando jogam GoldenEye 007 para a Nintendo 64. A Avó e o
Avô estão no trabalho. Estou por minha conta.
– Mamã, podíamos ver o Jay Leno. Queres ver o Jay Leno? Hoje dá o
Headlines.
– Cala-te, Net.
E estou fora. Ela falou. Fui silenciada. Tinha a certeza de que o Jay ia
funcionar. É certo que gosto mais do Conan, mas ver o Jay é uma atividade
de família em nossa casa. (Quando falei nisso na igreja, a Irmã Huffmire
disse que o Jay era um pouco indecoroso e que eu não devia deitar-me às
onze e meia da noite, mas a Mãe disse-me que a Irmã Huffmire era uma
moralista e que eu podia ignorar tudo o que ela diz.)
Observo a Mãe com mais atenção. O peito dela começa a ficar agitado. É
a fúria a crescer. As orelhas ficam vermelhas. Ela atira-se ao Pai. O Pai
recua uns passos, o que faz com que a Mãe aterre nos joelhos. Ela começa
aos gritos.
– Maus-tratos! Maus-tratos!
O Pai agarra-a pelos pulsos e tenta acalmá-la. A Mãe cospe-lhe na cara.
Alguém ganha a partida de 007. Dois punhos voam pelo ar num “toca aqui”
comemorativo.
– Deb, cheguei a casa um par de horas atrasado. Não é grave! – tenta o
Pai gritar entre os guinchos dela.
– Tu não me lixes! TU NÃO ME LIXES!
A Mãe liberta os pulsos e começa a bater nele.
– Dá-lhe, Mãe! Tu consegues! – Eu torço por ela, como faço sempre,
assim que ultrapasso o medo.
– Deb, isto é descabido. Precisas de ajuda! – suplica o Pai.
Oh, não! Ele não sabe que essa frase é um estímulo para ela? Sempre que
ele ou o Avô disseram à Mãe “precisas de ajuda” durante uma discussão, só
pioraram as coisas.
– NÃO PRECISO NADA DE AJUDA, TU É QUE PRECISAS! – grita a
Mãe.
Ela corre para a cozinha. O Pai começa a descalçar os sapatos, a pensar,
ingenuamente, que talvez isto tenha acabado, que talvez a Mãe já tenha
mudado de humor e voltado ao normal. Como pode ele não saber? Como
pode ele nunca saber?
Um, dois, três, conto na cabeça. Menos de dez segundos até ela voltar.
Quatro, cinco, seis, sete. Ela volta com um facalhão da cozinha na mão,
aquele grande que o Avô usa para cortar os legumes para ela todas as noites.
– SAI DA MINHA CASA! – grita ela. – PÕE-TE NA RUA!
– Deb, por favor, não podes continuar a fazer esta…
A última vez que a Mãe obrigou o Pai a dormir no carro foi há poucos
meses. Entretanto, passou mais tempo do que é habitual… Normalmente,
ele é corrido uma vez por semana, ou coisa assim. E com boas razões! A
Mãe diz que ele não ajuda a família o suficiente, que chega sempre tarde do
trabalho, que deve andar a enganá-la, que não se interessa pelos filhos, que
é um pai ausente, etc. O facto de ele ter passado tanto tempo sem ser corrido
é um milagre. Ele devia estar grato, mas é.
– PÕE-TE NA RUA, MARK!
– Pousa a faca, Deb. Isto não é seguro. É um perigo para os teus filhos.
– NÃO É NADA. NUNCA FARIA MAL AOS MEUS MENINOS.
NUNCA FARIA MAL AOS MEUS MENINOS. COMO TE ATREVES A
ACUSAR-ME DE TAL COISA?
Correm lágrimas pelas bochechas da Mãe. Os olhos dela estão
esbugalhados, trémulos e assustadores.
– PÕE-TE NA RUA!
Ela volta a atirar-se a ele. Ele recua.
– Pronto, pronto. Eu saio. Vou-me embora.
Ele volta a calçar-se e apressa-se porta fora. A Mãe volta à cozinha e põe
a faca numa gaveta. Cai de joelhos e começa a soluçar, num pranto cheio de
dor e angústia. Eu agacho-me ao pé dela e abraço-a. Alguém ganha a nova
partida de 007.
7.
Estou de pé neste monte de terra desde a hora para que me chamaram, às
seis da manhã. É agora meio-dia e o Sol vai alto, e estou a levar com o auge
do calor em cima. Os atores com pequenos papéis à minha volta têm a
sombra de guarda-sóis entre os takes, podem sentar-se em cadeiras
desdobráveis para descansar os pés e bebericar garrafas de água fria
acabadas de sair de uma arca cheia de gelo. Mas eu não. Não tenho nenhum
desses luxos, porque sou só uma figurante.
Eu e os outros figurantes estamos de pé nos nossos montes de terra, aqui
no deserto escaldante, nos arredores de Lancaster, sem guarda-sol nem
garrafa de água, a suar em bica através de todas as camadas das nossas
roupas ásperas e com cheiro a mofo da era da Grande Depressão. Usamos
estas roupas porque estamos a fazer de pessoas pobres durante a Grande
Depressão, para uma curta-metragem chamada Golden Dreams. O filme
mostra vários episódios da história da Califórnia e deverá ser exibido no
novo parque temático parceiro da Disneylândia, o California Adventure. A
Mãe passou-me esta informação cheia de entusiasmo, durante a nossa
viagem até aqui, às quatro e meia da manhã, mas a única parte que me
pareceu entusiasmante foi estarem a prever um novo parque temático para a
Disneylândia.
A parte pior é esta coisa nos meus dentes. Esta manhã, quando me
tratavam do cabelo e da maquilhagem, eles fizeram-me duas tranças e
disseram-me para abrir bem a boca. Eu fiz o que me mandavam, e a pessoa
da maquilhagem deitou-me na boca umas gotas de uma porcaria castanha
com a consistência de sumo, explicando que o fazia para que os meus
dentes parecessem podres. Aquela porcaria secou depressa e deixou um
sabor nojento, como imagino que a minha boca saberia se não escovasse os
dentes durante um mês. A sensação desagradável manteve-se o dia todo e eu
estou a detestar. Não consigo parar de passar a língua naquele horror, de
tanto que aquilo me incomoda e distrai.
– Não pareces feliz por estar aqui. Tenta parecer feliz por estar aqui – diz
a Mãe quando entramos as duas na rulote da casa de banho destinada aos
figurantes. Eu estava há uma hora a segurar o cocó e não aguentava mais,
portanto, pedi finalmente a uma pessoa com um walkie-talkie se me deixava
ir, ainda que a Mãe me diga que eu posso ter ganhado fama de pessoa difícil
por causa disso.
– Desculpa – digo eu, enquanto faço cocó e a Mãe humedece papel
higiénico com água. Envergonha-me que ela insista em limpar-me o rabo.
Tentei dizer-lhe recentemente que, agora que tenho oito anos, acho que
posso tratar disso, mas ela olhou para mim como se fosse desatar a chorar e
disse que tinha de o fazer até eu ter pelo menos dez anos, porque não quer
traços castanhos nas minhas cuecas da Pocahontas. Eu sei que, se eu o
fizesse, não haveria traços castanhos, mas é a Mãe em lágrimas que me
preocupa.
– Para de fazer caretas, sim? – pede a Mãe, para garantir que eu ouvi o
pedido dela. – Tens as sobrancelhas todas franzidas e pareces zangada.
Limpa. Limpa. Limpa.
– Pronto.
Volto para o meu monte de terra e tento parecer o oposto do que me sinto,
mas é difícil, com o sol tão brilhante. Não consigo não franzir os olhos.
– Onde está aquela miúda com a cara triste que indiquei há bocado?
Vamos usá-la e pronto – grita o realizador para o assistente de realização.
O assistente de realização aponta para várias crianças, e o realizador
abana a cabeça até que o assistente aponta para mim.
– Sim, ela – confirma o realizador com um aceno.
– Anda, vem comigo – diz o assistente de realização, pegando-me na mão
e levando-me até ao realizador.
O realizador manda-me sentar num carro antigo, olhar ligeiramente para a
direita e “não fazer nada”. Eu aceno com a cabeça. Passados uns quantos
takes, ele diz que conseguiu o plano.
O assistente de realização leva-me à Mãe, que espera perto da mesa do
catering dos figurantes. Ele diz-lhe que, por hoje, já estou despachada,
porque me usaram num plano-chave e, portanto, não posso continuar a
aparecer entre os figurantes.
– Um plano-chave? – pergunta a Mãe, visivelmente entusiasmada.
– Sim. Na verdade, tenho de trazer-lhe um novo formulário, porque é,
tecnicamente, um pequeno papel.
A Mãe quase treme de alegria.
– Como aconteceu isso?
– Bem, a menina que tínhamos contratado não aceitava as indicações,
continuava a sorrir, por muito que lhe disséssemos para fazer uma cara
triste. Não é o caso da sua filha. Ela tem uma ótima cara triste.
Ele ri-se.
– Pois tem. Ela tem mesmo uma ótima cara triste – diz a Mãe, acenando
com a cabeça e a rebentar de alegria, esquecendo-se, aparentemente, de que
a cara triste era exatamente aquilo de que ela queria que eu me livrasse meia
hora antes.
– Seja como for, usámos a sua filha para o papel, pelo que agora,
tecnicamente, ela é uma figurante especial.
O assistente de realização desaparece para ir buscar a nova papelada, e a
Mãe vira-se para mim e pega-me nas mãos.
– Eles usaram-te, Net! Eles usaram-te!
A Mãe chega a casa e liga imediatamente à Academy Kids para se gabar
do meu contrato de figurante especial. Eles dizem à Mãe que são ótimas
notícias, que significa que estou a criar uma reputação de rapariga que
colabora e aceita as indicações, duas das mais vantajosas características de
uma atriz criança. Dizem à Mãe que vão procurar trabalhos de figurante de
maior duração para mim, trabalhos de “figurante central”. Este é o tipo de
trabalho que não se consegue quando se é novo nas lides de um figurante,
porque os diretores de casting não conhecem ainda a nossa reputação. A
Mãe parece perturbada pelas notícias.
– Figurante central? Isso parece um nome fino para um figurante normal.
E que tal pequenos papéis? Eles contrataram-na como figurante especial
para o Golden Dreams, portanto, não pode ela começar a fazer audições
para pequenos papéis?
– Bem, não para já. Queremos que ela tenha um pouco mais de
experiência e, depois, podemos reavaliar.
A Mãe diz que está bem, mas vejo logo que ela não gosta da resposta.
– Reavaliar, o caraças! – diz a Mãe ao desligar o telefone.
Preocupa-me sempre que a pessoa do outro lado da linha ainda não tenha
desligado quando a Mãe se põe a dizer mal, mas por sorte, até agora, isso
parece ainda não ter acontecido.
A Mãe fica um pouco tensa o resto da noite, mas, na manhã seguinte, fica
logo bem-disposta quando a Academy Kids telefona a dizer que me
arranjaram um papel como “figurante central” num episódio-piloto que aí
vem. Oito dias de trabalho.
– Até podes passar a ser uma figurante com um nome mais fino por agora,
meu amor – diz-me a Mãe enquanto lava os dentes. – Mas, se continuares,
serás uma atriz de pequenos papéis, bona fide, muito em breve.
Ela cospe para o lavatório.
– Acho que é assim que se usa bona fide, mas não tenho a certeza.
8.
A rodagem do piloto corre bem e, embora eu não seja promovida de
figurante com nome fino, há um acontecimento nas filmagens que me
aproxima do objetivo da Mãe de que eu venha a fazer pequenos papéis.
Há uma dessas figurantes especiais da minha idade com uma mãe que
engraça com a minha. Essa mãe dá à Mãe o número de telefone da agente
da filha, Barbara Cameron.
– A Barbara Cameron, Net! A Barbara Cameron, caramba!
– Iupi!
– Sabes quem é?
– Não.
– É a mãe de várias crianças famosas. Várias. O Kirk Cameron do
Growing Pains, a Candace Cameron do Que Família! Ela é a mãe deles. E
foi agente deles. Então, começou a ser agente de crianças que não as dela.
Agora, é uma das melhores representantes de jovens que para aí anda. Uma
senhora cheia de pinta.
A Mãe liga à Barbara imediatamente para marcar uma audição para mim
e para o meu irmão mais velho, o Marcus, a quem ela convenceu
recentemente a tentar ser ator, apesar da resistência inicial dele.
– Vá lá! Tens um lindo sorriso, com dentes grandes – disse ela. – E muitos
sinais. Um jovem Matt Damon.
Eu invejava em segredo o Dustin e o Scottie. Não percebo porque é que a
Mãe tinha para com eles expetativas diferentes das que tinha para mim e
para o Marcus. Quem me dera saber a resposta para isto, mas parece ser
uma daquelas coisas de que não se pode falar em família. Parece uma
daquelas coisas que são aceites tacitamente e pronto.
A Barbara trabalha em casa. A audição tem lugar em casa dela. Quando
chegamos, eu e o Marcus recebemos os monólogos que temos de trabalhar
durante meia hora, antes de voltar para os representar. Eu não conheço os
filmes de onde vêm os monólogos, mas o Marcus vai fazer de estudante do
liceu cuja namorada se suicidou, e eu vou fazer de menina pequenina que
tenta convencer os pais a não se divorciarem.
A Mãe revê os monólogos connosco no carro e, depois, voltamos para
dentro, um a um, para as nossas audições.
O Marcus vai primeiro. Ele passa uma meia hora lá dentro. Quando volta
a sair, está bem disposto. Diz que a Barbara e a outra mulher na sala eram
muito faladoras e riam-se muito.
Vou para dentro. Estou a tremer. Faço o monólogo uma vez. A Barbara e a
outra mulher trocam um olhar e pedem-me que repita, mas que “deite tudo
fora”. Fico baralhada.
– Sê mais descontraída – esclarece a Barbara.
Tento outra vez. A outra mulher encolhe os ombros para a Barbara. A
Barbara faz uma cara de bah.
– Obrigada – dizem elas em simultâneo.
Saio muito lentamente, esperando atrasar a minha saída, porque sei que a
Mãe vai ficar desiludida se eu demorar tão pouco tempo. Mesmo a passo de
lesma, só acrescento um minuto. Chego ao carro e a Mãe parece
preocupada.
– Então?
– Não correu mal.
– Elas falaram muito?
– Nem por isso…
– Riram-se das coisas que disseste?
– Nem por isso…
– Ah…
No caminho para casa, vejo que a Mãe está desiludida. Parece orgulhosa e
entusiasmada pelo Marcus, mas sei decifrá-la e sei ver que está a forçar. O
orgulho e entusiasmo pelo Marcus é ensombrado pela desilusão comigo.
***
– Gostámos muito do Marcus, queremos que seja nosso cliente. Mas a
Jennette… falta-lhe… carisma.
A pessoa que dá a notícia é a Laura, a mulher que estava na sala com a
Barbara. A Laura é o braço direito da Barbara e a única outra agente que
trabalha para a empresa. É arguta e despachada, do tipo que não está para
engonhar, com uma voz suficientemente alta que eu consigo ouvi-la através
do telefone ao falar com a Mãe, que está a mexer o nosso ramen para o
jantar.
– São grandes notícias quanto ao Marcus, mas podiam fazer um contrato
com a Jennette e, se ela não for escolhida para nada nos próximos seis
meses, largavam-na? – suplica a Mãe, e faz-me um sinal positivo com o
polegar, como se estivesse entusiasmada com a sua própria ideia.
– Já temos muitas raparigas novas na carteira… – vai dizendo a Laura.
– Ela aprende depressa e aceita bem as indicações – diz a Mãe, numa voz
cantada, como se quisesse tentar a Laura. É um tom muito desadequado
para quem está a mendigar.
A Laura diz que vai ver com a Barbara e já volta a ligar com uma
resposta. A Mãe vira-se para mim.
– Net, diz uma oração, depressa, para que a Barbara te aceite. E cruza os
braços pelas duas, que eu preciso dos meus para mexer a panela – diz ela.
Eu adoto a pose adequada para uma prece mórmon. Fechamos as duas os
olhos.
– Querido Pai nos Céus – começo eu. – Obrigada por este lindo dia e por
todas as tuas bênçãos…
– Merda! – diz a Mãe.
Os meus olhos abrem-se logo. A Mãe larga a colher com que mexia e
começa a chupar um dedo. Abre a torneira e põe o dedo debaixo de água
fria.
– Queimei o dedo – explica-me ela. – Vá, querida, continua.
Eu anuo e volto à oração.
– Por favor, abençoa-me para que a Barbara Cameron me aceite. Por
favor, abençoa-nos para que possamos ter um bom resto de noite. Por favor,
abençoa a Mamã, para que ela durma bem, já que às vezes tem dificuldades.
Obrigada, Pai dos Céus. Em nome de Jesus Cristo, amém.
– Amém, querida. Muito bem.
A mãe começa a deitar o ramen em tijelas quando o telefone volta a tocar.
Ela atira a panela para o lava-louça. Aquilo faz um grande baque e o caldo
da massa pinga para o balcão, mas a Mãe nem repara. Está demasiado
concentrada.
– Ahã – diz ela, com um tom otimista.
Desta feita, não consigo ouvir a Laura do outro lado da linha, porque a
Mãe não para de andar de trás para a frente, de tão ansiosa que está.
– Ahã – repete ela, a olhar para mim.
Tudo isto me está a deixar muito pouco à vontade.
– Ótimo! Não se vão arrepender – diz a Mãe e desliga o telefone. Olha
para mim durante muito tempo, com os olhos a encher-se de alegria pura.
– Então? – pergunto eu.
– A Barbara Cameron aceitou-te. Quer que tenhas aulas de teatro
semanais para ficares mais à vontade contigo mesma, ou coisa assim, mas
aceitou-te.
A Mãe abana a cabeça com reverência e orgulho. Solta um suspiro de
alívio e puxa-me para ela, para me dar um abraço.
– Agora, és uma atriz de pequenos papéis, minha querida. Acabou a
figuração para a minha menina.
9.
Odeio as aulas de teatro. Já há duas semanas que frequento aquelas em que
a Barbara Cameron insistiu que tinha de me inscrever, se queria ser
representada por ela. Vou todos os sábados, das onze da manhã às duas e
meia da tarde. Ainda que seja um bom bocado de tempo longe de casa, não
anseio por esta aula como anseio pela igreja, porque, para mim, representar
é ainda mais desconfortável do que ficar presa em casa.
Cada aula começa connosco a “soltarmo-nos um pouco”. Somos uma
dúzia a dar voltas à sala a imitar a Mna. Lasky. É esse o apelido da Laura.
Não só é o braço direito da Barbara, é também a nossa professora de teatro.
Ela estica a cara em contorções estranhas, abrindo a boca de forma
assustadoramente grande, ou a esbugalhar os olhos. Não faço ideia de como
nos ajudará isso a representar melhor, mas tenho juízo suficiente para não
ser a miúda chata que se põe com perguntas.
– Tens de estar sempre “lá” durante a aula – lembra-me a Mãe, no carro,
em cada um dos nossos regressos a casa. – A Mna. Lasky está a ver. E os
miúdos chatos, que não aceitam indicações e fazem perguntas, são os
miúdos que não são enviados às audições. Os miúdos que conseguem
audições são os que calam o bico e fazem o que lhes mandam.
Depois da ginástica de cara, fingimos ser animais variados. Alguns dos
outros miúdos parecem divertir-se com isso, mas faz-me sentir-me uma
idiota. Não sei como fazer trombetas de elefante, ronrons de gato ou
grunhidos de macaco e, francamente, nem quero saber. Deixemos os sons
dos animais para os animais.
Por vezes, a Mna. Lasky manda toda a gente ficar imóvel no seu lugar.
Depois, aponta para um miúdo, para que faça um som de animal a solo. É
suposto ajudar-nos a ultrapassar as nossas inibições, ou assim.
– Faz a trombeta, Jennette! Faz a trombeta com convicção!
Não tenho convicção, mas faço o que posso. Sinto-me humilhada.
Passados os temíveis sons de animais, passamos às técnicas de
memorização. Dão-nos uma cena e temos trinta minutos para decorar as
falas da nossa personagem. Depois, um de cada vez, temos de debitar as
falas “a frio”, o termo da indústria para “rapidamente e sem emoção”.
Dizem-nos que esta técnica é importante, sobretudo para as crianças, para
não trabalharmos demasiado o material e não parecermos demasiado
ensaiados nas audições. Ao que parece, memorizar uma coisa “a frio” e
aprendê-la sem mais e, só depois, acrescentar as emoções, é a melhor forma
de manter a cena natural.
Decorar é a parte da aula que eu detesto menos, talvez por ser a melhor
nisso. Normalmente, memorizo as minhas falas em quinze minutos e passo
os quinze minutos seguintes a revê-las, para consolidar. Também não me
importo de dizer as palavras sem emoções. As emoções são o problema, não
as palavras. Forçar emoções numa coisa é penoso para começar, mas fingir
essas emoções para outras pessoas verem parece-me nojento. Sinto-me
fraca, vulnerável e nua. Não quero que as pessoas me vejam assim.
Depois da memorização, começa o trabalho nas cenas, a parte da aula de
que gosto menos, porque é a parte em que tenho de atuar. Todas as semanas,
para nos prepararmos para esta etapa, atribuem-nos uma cena que temos de
memorizar e analisar. Analisar uma cena é um processo em que temos de
fazer perguntas sobre a nossa personagem e a situação, e o que está
realmente a ser dito para lá das palavras impressas. O que quer mesmo a
minha personagem? O que quer mesmo a personagem com a qual estou a
interagir? Porque são essas coisas incompatíveis? O que sente a minha
personagem em relação à personagem com a qual estou a interagir? Depois
de analisar a cena, temos de ensaiá-la o suficiente para estar pronta a
apresentar ao resto da turma, no sábado seguinte.
Cada um de nós levanta-se, à vez, representa a sua cena, e explica a
análise que fez à Mna. Lasky. Quem me dera não ter de fazer esta parte.
Não gosto de subir para o pequeno palco do estúdio e desempenhar uma
cena diante de toda a gente. Não gosto de ser observada. Gosto de ser eu a
observar.
A Mna. Lasky disse, na nossa primeira aula, que os pais não podiam
assistir à parte do trabalho de cenas, mas a Mãe insistiu.
– Tive um carcinoma ductal de estádio IV metastatizado, um cancro da
mama, e os meus ossos estão fracos da quimioterapia. Sentar-me no carro
demasiado tempo é um suplício e não devo andar por aí a apanhar sol tão
forte.
– Há uma pastelaria mesmo no cimo da rua – disse a Mna. Lasky com um
sorriso tenso.
– Não acredito em gastar dois dólares e meio por uma chávena de café –
disse a Mãe, com um sorriso ainda mais tenso.
E ficaram-se por ali. A Mãe tem sido o único familiar a assistir à parte do
trabalho de cena desde o início da aula. Fico feliz por a minha Mãe
conseguir o que quer, ver-me representar. Mas é verdade que me deixa mais
stressada. Sinto as apreciações dela e vejo as suas reações pelo canto do
olho. Ela move os lábios, a acompanhar em silêncio as minhas falas
enquanto eu as pronuncio e faz expressões faciais exageradamente
animadas quando quer que eu a imite. É difícil representar e gerir a Mãe a
fazer de treinadora de bancada ao mesmo tempo.
Quando a aula acaba, sinto-me banhada por uma enorme onda de alívio,
porque a Mãe me dá o resto do dia de folga. Só amanhã é que tenho de olhar
para a cena da semana que vem. Esta noite, estou livre.
10.
– Não quero dizer essa palavra – digo à Mãe, enquanto estudamos as
minhas falas para uma audição agendada para a Mad TV. O sketch é uma
paródia sobre a Kathie Lee Gifford e os dois filhos dela. Candidato-me a
uma versão paródica da filha da Kathie.
– Tem imensos sentidos diferentes. Às vezes, só quer dizer “feliz”.
Aparece em canções de Natal, pelo amor de Deus! “Don we now our gay
apparel”4 – diz a Mãe, meio a falar, meio a cantar.
Sei que a Mãe até simpatiza com o meu ponto de vista, ou não estaria a
explicar-se em demasia como faz agora.
– Tenho de a dizer?
– Sim, Net, é uma das tuas primeiras audições para um papel com falas.
Temos de ir a todas estas audições, para que a Barbara saiba que não és
difícil. Além disso, temos de te marcar qualquer coisa, para que ela continue
a enviar-te.
Brinco com os cantos das páginas à minha frente com o polegar.
– Ouve, se te portares bem, a seguir podemos ir comer um gelado, sim?
Temos aquele cupão que a Irmã Johnson ofereceu na aula de primária.
– Okay.
***
É o dia seguinte e estou à espera de entrar na audição. A sala é pequena. As
paredes são brancas e sem decoração. As minhas colegas de audição e as
suas mães sentam-se em cadeiras desdobráveis ou ficam de pé, com as
costas contra a parede. Todas as raparigas são loiras. Todas as mães estão
ansiosas.
A pessoa do casting vem cá fora para me chamar. A minha boca está seca,
como fica sempre antes das audições, e tenho de fazer chichi, ainda que já
tenha feito quatro vezes. Acho que são os Red Bulls sem açúcar que a Mãe
me faz beber antes das audições, porque diz que não tenho energia cómica
de outra forma.
– Jennette McCurdy – chama a pessoa do casting. Eu engulo em seco.
– Estou aqui! – digo com entusiasmo, como a Mãe me mandou.
– Vamos lá – diz a pessoa do casting com um gesto.
A Mãe dá-me uma palmada encorajadora no rabo.
– Tu consegues, Net. És melhor do que todas estas raparigas!
Vejo uma das minhas concorrentes baixar os olhos, toda triste. A mãe dela
consola-a. Sigo a diretora de casting para a sala de casting, onde estão
sentados dois homens.
– Quando estiveres pronta – diz um deles.
A diretora de casting diz a fala dela, e eu digo a primeira das minhas duas
falas.
– És velha.
Os homens rebentam a rir. Devo ter-me saído bem. A minha boca
continua seca. Estou nervosa por ter de dizer aquela palavra. Cá vem a
minha fala seguinte, a fala que tem a tal palavra.

– Gelman, és tão gay.5


Mais risos. Estou despachada. Saio para ir ter com a Mãe na sala de
espera.
– O que disseram eles? – pergunta a Mãe, enquanto esperamos na fila da
Baskin-Robbins.
– Disseram que eu era engraçada.
– Têm razão, a minha menina é engraçada. E também é séria, quando é
preciso. Tu tens tudo. Queres de coco e frutos secos?
– Hum, não, acho que quero cookies n´cream.
A Mãe vira-se para mim, alarmada.
– Não queres coco e frutos secos?
Estou paralisada. Não sei o que dizer. A Mãe parece triste por eu não ter
escolhido o de coco. Aguardo, à espera de ver como ela reage, antes de dar
o próximo passo. Por um momento, ficamos as duas para ali especadas ao
balcão da gelataria, a olhar uma para a outra em vez de olhar para os
gelados. Então, a postura da Mãe perde a rigidez e os olhos dela enchem-se
de lágrimas.
– Há oito meses que o de coco tem sido o teu preferido. Estás a mudar.
Estás a crescer.
Pego na mão dela.
– Esquece. Quero o de coco e frutos secos.
– Tens a certeza?
– Absoluta – aceno.
A Mãe pede um copo infantil para partilharmos e entrega o cupão à
empregada adolescente, que usa tanta maquilhagem à volta dos olhos que
parece um guaxinim. Sentamo-nos numa das mesas com divisórias para
desfrutarmos juntas do nosso gelado. Estou secretamente enjoada do sabor a
coco, mas trato de fazer muitos “hums” para a Mãe pensar que estou a
adorar. Passadas algumas colheradas, o pequeno pager cinzento da Mãe
começa a vibrar. O pager foi a prenda que ofereceu a si própria no Natal,
para poder receber os alertas sempre que a Barbara precisasse de falar com
ela. Como neste momento.
– É a Barbara! Tenho uma mensagem da Barbara!
A Mãe levanta-se de um pulo e corre para o balcão dos gelados. Eu paro
de comer, já que ela não está a olhar para mim.
– Vocês têm aí um telefone? – pergunta a Mãe à empregada.
– Sim, mas é só para os empregados – diz a Olhos de Guaxinim, num tom
monocórdico.
– A minha filha é atriz e pode ter acabado de conseguir o primeiro papel
com falas, num programa chamado Mad TV. Já ouviu falar no Mad TV? É
suposto ser muito engraçado. Um SNL mais alternativo. Será possível usar
o vosso…
– Pronto, força, use lá o telefone – diz a empregada, entediada.
A Mãe estica-se por cima do balcão e começa a marcar o número da
Barbara, que sabe de cor. A Mãe espreita na minha direção, com os dedos a
fazer figas. Eu como uma colher do gelado.
– Ahhhhh!! – grita a Mãe. A empregada tapa os ouvidos. – Net, foste
escolhida! Foste escolhida para o Mad TV!
A Mãe desliga a chamada com a Barbara e corre para mim. Espreme-me
num abraço apertado. Adoro o cheiro da pele quente dela misturado com o
perfume Wings que usa. Fico tão feliz por ela estar feliz.
– Isto é fantástico, Net. O teu primeiro papel com falas. Isto é importante
a valer. Mesmo importante a valer.
A Mãe beija-me na testa entusiasmadíssima e enfia a colher no copo de
gelado, acabando o coco e frutos secos. Fico feliz por não ter de o fazer.
4
Debra cita uma canção de Natal, cujo verso significa “vistamos as
nossas roupas alegres”. (N. da T.)
5
Ou “Gelman, estás tão alegre”. (N. da. T.)
11.
– Estás tão bonita – digo à Mãe.
Ela está diante do espelho da casa de banho a maquilhar-se enquanto eu
lhe escovo o cabelo. Ela gosta quando faço isto. Diz que é reconfortante.
Calmante.
– Obrigada, meu anjo. Mas a Karen é linda. Parece uma miss.
A Mãe põe a tampa no batom e comprime os lábios para espalhar a cor de
ameixa pelos dois. Penso que a cor natural dela é muito mais bonita.
– Também pareces uma miss – digo eu, em parte por ser o que acredito,
em parte para tranquilizar a Mãe. Ela não tem muitas amigas da idade dela,
e as poucas que tem raramente vê. Portanto, o facto de que se vai encontrar
como uma delas hoje para almoçar é muito importante.
A Karen é a melhor amiga da Mãe do liceu e, depois de se formarem,
tiraram juntas o curso de cabeleireiras. A relação da Mãe com ela parece
complicada. Tanto diz que a Karen é uma pessoa fantástica, maravilhosa e
amorosa, como, no instante seguinte, diz que a Karen, afinal, é uma bela C-
A-B-R-A.
– Não devemos dizer essa palavra.
– Estou só a soletrar, Net, além disso, Deus perceberia, se conhecesse a
Karen. Alguma vez te contei como ela roubou o nome do meu bebé? –
pergunta a Mãe, enquanto se borrifa de perfume.
– Ahã – digo eu, continuando a escovar.
A Mãe olha para baixo. Percebo que feri os sentimentos dela. Ela contou-
me esta história tantas vezes, mas cá está ela a querer contar-ma outra vez.
E tudo bem. Ela só quer ser ouvida.
– Mas posso ouvir outra vez.
– Então, eu já tinha escolhido o nome – lança-se a Mãe imediatamente. –
Jason. Pensei que era um bom nome. Forte. Não demasiado comum, mas
que também não era estranho como alguns desses novos nomes dos miúdos.
Lagoon ou coisa que o valha. E não é suposto contarmos o nome a ninguém
porque dá azar, estás a ver? Não é suposto contarmos a ninguém o nome de
bebé que escolhemos.
– Ahã.
– Estás a ouvir, Net? Pareces nas nuvens.
– Estou a ouvir.
– Então, não é suposto contares a ninguém, mas eu contei. Contei à
Karen, porque achei que, sendo ela a minha melhor amiga, ia querer saber.
Além disso, estávamos grávidas ao mesmo tempo, pelo que passávamos por
aquilo tudo juntas. Pois, eis senão quando ela pare primeiro do que eu e que
nome vai escolher? Jason. Roubou-me o nome.
– Gosto mais de Marcus, seja como for – digo-lhe eu. – É mais original.
– Oh, eu sei que sim, mas é pelo princípio.
– Oh, eu sei – concordo eu.
A Mãe respira fundo e escova as pestanas com uma terceira camada de
rímel.
– Dê por onde der, não confio nela nem um pinguinho, mas, ainda assim,
é uma boa amiga.
Esta lógica confunde-me, pelo que digo apenas “ahã”.
– Mas não é a minha melhor amiga – continua a Mãe. – A minha melhor
amiga és tu, Net. Tu és a melhor amiga da Mamã.
Eu fico a rebentar de alegria. Ser a melhor amiga dela deixa-me tão
contente! Ser a pessoa mais próxima dela no mundo inteiro! É este o meu
propósito. Sinto-me realizada.
– Porque paraste de escovar?
Volto à tarefa.
12.
– Bem, esta manhã está a ser um perfeito desastre! – grita a Mãe, enquanto
atira um prato para o lava-louça. Eu encolho-me com o barulho, mas vou à
cozinha na mesma. Alguém tem de ajudar a Mãe e ainda está quase toda a
gente a dormir.
– Talvez se alguém lavasse o raio dos pratos, por uma vez! – grita ela
outra vez, pousando uma caneca com um estrondo. A pega parte-se. Ela
atira os cacos para um saco de plástico com fecho de correr, para preservar a
memória.
– Eu lavo, Mamã – digo eu, com cautela, sem querer agravar a fúria dela.
– Oh, não, tu não, minha querida – diz a Mãe, estendendo o braço para me
fazer uma festa no cabelo com as suas mãos cheias de detergente. – Não
quero que fiques com os dedos engelhados. Não te faria bem nenhum.
Quem vai contratar uma menina com os dedos engelhados?
– Está bem.
– Mark! Podes levar a Jennette à dança? Tenho de acabar a louça para
poder levá-la à aula de teatro!
O Pai vem ter connosco, vindo da sala. Tropeça no Dustin e no Scottie, a
dormir nos seus colchões Costco.
– Hein? – pergunta, quando chega, por fim, à cozinha.
– A aula de dança da Jennette. Podes levá-la?
– Claro – diz ele, simplesmente.
– Tenta não te entusiasmar demais – diz a Mãe.
– Desculpa.
– Não peças desculpa por tudo. Despacha-te, mas é. Têm de sair daqui a
vinte minutos para que ela chegue a tempo.
A Mãe inscreveu-me num horário rigoroso de aulas de dança, depois de
eu me ter saído muito mal numa audição para um especial de dança da
Paula Abdul. Todas as outras raparigas da audição faziam a espargata,
rodopiavam três e quatro vezes de enfiada, mas eu não sabia fazer nada
disso. Ensinaram-nos um minuto da coreografia e, ainda que eu seja boa a
decorar falas, os dois tipos de memorização estão claramente desligados,
porque eu não me conseguia lembrar de um só passo. A Mãe disse-me que
nunca mais me queria ver a ser assim humilhada e, por isso, inscreveu-me
em catorze aulas de dança por semana – duas de cada das de jazz, ballet,
lírica, teatro musical, hip-hop, mais uma de alongamentos e três de
sapateado – e disse-me que dois trabalhos de figurante por mês cobririam os
custos.
Eu até gosto de dançar. Gosto muito. Gosto de mexer o corpo, faz-me sair
da minha cabeça. E gosto da maioria das raparigas com quem danço – elas
foram simpáticas e receberam-me bem. Também gosto, secretamente, de
estar longe da Mãe. Ela não fica a ver-me dançar como me fica a ver
representar. Talvez seja por não ter querido ser bailarina em miúda, queria
ter sido atriz, e talvez a Mãe só venha assistir quando estou a ser a coisa que
queria ter sido. Não sei. Seja como for, e ainda que eu nunca lhe diga tal
coisa, sinto-me bem quando ela não está por perto. É um alívio. Não tenho
de me preocupar por estar a ser monitorizada constantemente.
O Pai já me levou umas vezes à aula de dança. Fico contente porque
quando é a Mãe que me leva, nunca sei se ela vai gritar com alguém ou
fazer queixa à dona do estúdio de dança de que o meu papel no ballet é
pequeno demais, ou coisa assim. O Pai não faz coisas dessas. Ele nem
parece ter qualquer noção dessas coisas. Ele só… existe.
– Queres ir de bicicleta para a aula de dança? – pergunta-me o Pai.
– Sim! – respondo, sinceramente entusiasmada. Penso em perguntar à
Mãe, mas depois não o faço porque não lhe quero dar a ocasião de dizer
não.
O Pai e eu não passamos muito tempo juntos desde que ele tem dois
empregos, no Home Depot e na Hollywood Video. Ele costuma chegar a
casa tarde e vai direito ao quarto para dormir. Ainda que o quarto esteja
cheio de tralha, há uma língua da cama suficientemente desimpedida para
uma pessoa se deitar, e é aí que o Pai se estende. Ele também vai para lá
porque a Mãe diz que nem pensar que ela vai dormir na mesma cama –
muito menos no mesmo quarto – que alguém que a enoja tanto. Então,
como a Mãe fica na sala de estar, no sofá ou connosco num dos colchões
Costco, faz sentido que o Pai vá para o quarto mais distante possível.
Para além disso, ando ocupada com a minha carreira de atriz e com o
trabalho escolar (ainda que seja a Mãe quem nos educa em casa,
continuamos a ter de entregar trabalhos uma vez por mês para provar que
estamos a aprender alguma coisa) e agora também com as aulas de dança.
As poucas vezes que estamos juntos destacam-se por serem tão raras.
Como quando o meu Pai conseguiu vir à festa do meu oitavo aniversário na
piscina municipal – a primeira das minhas festas de aniversário a que ele
conseguiu vir em anos, por causa do horário de trabalho dele. E deu-me um
postal de aniversário, coisa que nunca tinha feito. Enganou-se a escrever o
meu nome no envelope. As pessoas enganam-se sempre a escrever o meu
nome e, geralmente, isso não me incomoda muito, mas dessa vez fiquei
triste. Abri o postal para ver o que ele tinha escrito lá dentro. É a parte mais
importante, seja como for. “Com amor, do Pai” era tudo o que ele tinha
escrito por baixo do poema impresso no postal. Eu fiquei ainda mais triste,
mas é a intenção que conta, e o facto de que ele a tinha tido era importante
para mim. Até que, no caminho de regresso a casa, ouvi a Mãe dizer:
– Arranjaste-lhe um postal de aniversário como te mandei? Devias
cultivar a tua relação com ela, como fazem os PAIS. – Então, tinha sido
tudo uma intenção da Mãe, afinal.
As outras vezes que estamos juntos são um pouco mais rotineiras, como
quando o Pai sai do trabalho um pouco mais cedo e vê connosco uma
reposição do MacGyver ou do Gilligan’s Island, ou quando faz um guisado
aos domingos, depois da igreja. Ao que parece, ele faz sempre um guisado
diferente (vaca, sopa de milho, pimentão, ervilhas), mas posso jurar que
sabem todos a lentilhas. Estes momentos com o Pai não são maus, mas
nunca são nada de especial. Eu gostava de me sentir ligada ao Pai da forma
como me sinto ligada à Mãe. Estar com a Mãe pode ser estafante, sem
dúvida, mas, pelo menos, sei o que fazer para a deixar feliz. Com o Pai,
nunca sei bem. Dá menos trabalho, mas também é menos gratificante.
Mas hoje estou entusiasmada porque ele propôs esta ideia de ir de
bicicleta. Eu sei que ele adora andar na bicicleta dele, que herdou do pai
quando ele morreu.
– Uma bicicleta não é uma casa – queixou-se a Mãe. – Imagino que
tenhamos de esperar que a Avó Faye morra também, ainda que ela não
pareça estar para breve. Oitenta e dois anos e com uma saúde melhor do que
nunca. – Dito isto, estalou a língua, como faz quando está irritada.
Eu também gosto de andar na minha bicicleta, que me foi enviada pela tia
Linda, no meu sétimo aniversário, mas que ainda dá para mim, se me
encolher um pouco. Talvez hoje eu e o Pai possamos criar uma boa
memória juntos. Talvez hoje nos possamos divertir.
Então, montamos as bicicletas e pedalamos até à Dance Factory, em Los
Alamitos, a localidade a seguir à nossa. Paramos no parque em Orangewood
e damos uma volta rápida pelos ferros do parque infantil. O Pai sorri como
se se estivesse a divertir. Eu cá sei que estou. Isto é bom.
Chegamos à Dance Factory com dez minutos de atraso para a minha aula.
Não deixam entrar passado um quarto de hora, mas deixam-me passar sem
mais do que um olhar zangado da professora. Aceito.
A aula passa depressa e somos libertadas na sala de espera para irmos ter
com os nossos pais. O Pai está sentado no banco, com as pernas cruzadas da
forma que a Mãe não gosta, a comer uma barrinha energética.
– Onde arranjaste isso? – pergunto-lhe, com medo de já saber a resposta.
– Na mesa com comida à entrada do estúdio.
– A Mãe diz para não comer nada dali, porque é demasiado caro.
– Custou um dólar.
– Exato.
– Recebi ontem – disse o Pai, com um gesto displicente da mão. Depois,
leva-me lá fora, até às nossas bicicletas.
Montamos e rumamos para casa, passando ao longo do liceu de Los
Alamitos e pela Polly’s Pies. O Pai vira à direita, para um centro comercial
ao ar livre, e pedala até uma loja de batidos.
– Aonde vamos?
– ‘Bora beber um batido.
– Os batidos são car…
– Recebi ontem – lembra-me o Pai.
Algures no meio do processo da máquina que mistura a banana com o
morango do batido que eu e o Pai vamos partilhar, o meu estômago aperta-
se com uma constatação. Com toda a excitação e a camaradagem com o Pai,
esqueci-me. Esqueci-me de que tinha aula de teatro. Esqueci-me de que
nunca chegaríamos a horas de bicicleta.
Mas agora lembro-me. No meio do ruído dolorosamente forte de uma
misturadora a misturar frutas várias, eu lembro-me. Olho para o Pai.
– Com um pouco mais de sumo de limão, se possível – diz ele para o
balcão, olhando para o limão na mão do fazedor de batidos.
Pergunto-me se o Pai sabe. Se nos fez trazer as bicicletas de propósito e
parar para os batidos porque sabe que eu detesto as aulas de teatro. Talvez
ele queira ajudar-me. Talvez ele queira salvar-me.
– Aaaaaaainda mais limão – repete ele.
Eu decido que sou doida por pensar assim. O Pai está claramente mais
concentrado na quantidade de limão no batido dele do que no meu bem-
estar.
Hesito em lembrar-lhe da aula de teatro, que temos de nos despachar e
que, ainda assim, vou chegar atrasada. Mas decido não o fazer. Porque o
faria? Estou a gostar do meu momento com o Pai, apesar da falta de ligação.
Estou a gostar desta ligeireza, portanto, não digo nada.
Acabamos o batido e pedalamos de volta, devagar. Paramos no parque
outra vez e andamos de balouço. Quando chegamos a casa, já são onze e
cinco. A Mãe está a andar para frente e para trás no jardim da entrada, a
abanar as chaves em forma de ameaça.
– ONDE É QUE ANDARAM? – grita ela.
Bud, o nosso vizinho coscuvilheiro, espreita por cima da vedação.
Pergunto-me se ele vai ameaçar chamar os serviços sociais outra vez, como
da última vez que a Mãe andou aos gritos no relvado da frente. Rezo para
que a Mãe não levante a voz, e para que ele não o faça.
– Paramos para beber um batido – diz o Pai, encolhendo os ombros, sem
perceber logo onde isto vai dar.
– PARARAM PARA BEBER UM BATIDO??
A Mãe está furiosa.
Eu aceno ao Bud para que ele saiba que pelo menos uma pessoa sabe que
ele está a ver. Ele encolhe-se por trás da cerca.
– Pois… – diz o Pai, ainda a tentar perceber porque é que a Mãe está
chateada.
A Mãe dispara para dentro de casa e bate com a porta com toda a força. O
Pai vai atrás dela, eu arrasto-me atrás dele.
– Deb, vá lá…
A Mãe já vai na cozinha, onde abre e fecha as portas dos
eletrodomésticos: primeiro, o frigorífico; depois, o forno; a seguir, o micro-
ondas. Não sei porque faz ela isto, o que procura ela, mas há um furor nos
gestos dela que me assusta.
– Eu disse-te que a Jennette tinha aula de teatro. Mas ela AGORA
FALTOU. Eles iam fazer uma cena do I Am Sam esta semana. Do I AM
SAM, Mark. A Jennette ia ARRASAR.
A Mãe dá um pontapé na porta do armário. O pé dela fica preso na
madeira. Ela solta o pé com uma sacudidela. A madeira fica toda partida e
cheia de farpas.
– Desculpa – diz o Pai.
– Suponho que ela não tenha de representar nessa cena, já que é a VIDA
REAL dela. UMA MENINA ESPERTA com um PAI ATRASADO
MENTAL!
13.
Fala-se muito sobre as grandes oportunidades em Hollywood, mas, até
agora, ainda não vi nada disso. Por outro lado, conheci pequenas
oportunidades, que pingam quando já tenho quase a certeza de que não me
vai calhar mais nada. A Mãe diz que Hollywood é como um mau namorado.
– Vão-te levando na conversa, sem qualquer tipo de compromisso formal.
Não sei bem o que isto significa, mas parece-me acertado.
Até agora, as minhas pequenas oportunidades desde o Mad TV foram as
seguintes:
:: Um anúncio para a Dental Land. O gabinete do dentista onde
filmámos o anúncio era no centro comercial de Westfield, pelo
que pudemos passar o intervalo do almoço a passear pelas lojas.
A Mãe comprou-me um saco da Sanrio Surprises por eu ser, “de
longe, a melhor atriz do grupo”. Tudo o que fizemos no anúncio
foi estar para ali sentados, não sei bem onde foi a Mãe buscar
que eu era melhor do que os outros, mas aceito o elogio, se isso
vem com o saco Sanrio atrás.
:: Um filme independente de baixo orçamento, chamado Shadow
Fury. A Mãe queixou-se porque eu nem sequer recebi o salário
de figurante especial. “A minha menina merece um salário
decente quando passa o Halloween de cócoras por cima de um
falso moribundo com sangue feito de açúcar a escorrer-lhe pelos
braços.” Na cena, o meu pai a fingir leva um tiro, e eu ouço o
estrondo no andar de cima, desço as escadas e amparo-lhe a
cabeça, enquanto ele morre nos meus braços. O sangue feito de
açúcar não foi o pior, apesar de ser muito pegajoso e
desagradável. O pior, sem sombra de dúvida, foi o suporte do
microfone. O orçamento era tão baixo, que não tinham dinheiro
para uma faixa decente para instalar o microfone; então,
colaram-no com fita-cola ao meu corpo e pronto. À noite, chorei
enquanto me arrancavam a fita-cola, mas chegámos a casa a
tempo de apanhar a retransmissão das duas e meia da manhã
do Conan O’Brien, e a Mãe espalhou gel de aloé vera no meu
corpo enquanto assistíamos, por isso nem tudo foi mau.
:: Um papel num episódio de A Vida É Injusta. Este foi
particularmente entusiasmante porque foi o meu primeiro papel
como atriz convidada, em vez de coadjuvante. Os papéis dos
atores coadjuvantes consistem geralmente em quinze falas ou
menos e são creditados no fim do episódio; os papéis de atores
convidados são, geralmente, mais substanciais e são creditados
no início. O episódio era sobre a personagem de uma mãe que
sonhava ter raparigas em vez de rapazes. Eu fazia a versão
feminina do Dewey, chamada Daisy. Eles puseram cera dura por
trás das minhas orelhas para as fazerem sobressair mais, porque
disseram que a imagem de marca do Dewey era ter orelhas
grandes e salientes, enquanto as minhas são pequenas. A cera
era volumosa e deixou-me com a parte de trás das orelhas muito
dorida, mas eu gostei do estúdio em que o episódio foi filmado e
o produtor foi muito simpático comigo. Achei que o Frankie Muniz
era agradável à vista e gostei quando ele me disse olá no
corredor. Senti que estava a ser muito discreta em relação aos
meus sentimentos, até que a Mãe me disse à bruta: “Nem
penses nisso. Ele é demasiado velho para ti. E, mais importante,
não é mórmon.”
:: Um anúncio para a Sprint PCS – o meu primeiro anúncio
nacional, o que significa... compensações financeiras!
Compensações financeiras suficientes para pagar o beliche de
carvalho que comprei para mim própria. A Mãe fez o que
prometeu e libertou o espaço no quarto da Avó e do Avô para a
minha cama. Mas acabou por encher a cama de cima com pilhas
de papel, brinquedos velhos, livros e tralhas, o que foi um pouco
frustrante para mim, já que, inicialmente, tinha querido dormir na
cama de cima. A Mãe disse que era demasiado perigoso, fosse
como fosse, e que nunca mo permitiria. “Não podemos correr o
risco de que caias e partas a cabeça, como quando o Dustin caiu
do carrinho de bebé, na Knott’s Berry Farm! Nunca me perdoei
por isso e nunca me perdoaria por isto. Ainda que eles nos
tenham dado um pouco do ponche de amora, o que foi
simpático.”
Para além destas pequenas oportunidades, houve muitas pequenas
suboportunidades, ou indícios de pequenas oportunidades. Voltam a ligar-
me em cerca de setenta e cinco por cento dos papéis para que faço audições,
o que a Barbara diz ser bom sinal, ainda que não me escolham.
– Ela está claramente a fazer qualquer coisa bem – diz a Barbara à Mãe,
ao telefone. (A Barbara começou a atender as chamadas da Mãe, em vez da
Laura. Isto é que é subir na vida!)
– Só não é bem que chegue – acrescenta sempre a Mãe.
– Ela lá chegará. Digo-lhe, ela lá chegará – diz a Barbara. – Tem de ter
mais paciência.
A Mãe desliga, exasperada.
– Pai do Céu, concede-me a paciência. E depressa.
14.
– Pronto, Jennette, vamos ter uma conversa rápida com o realizador e,
depois, vimos buscar-te – diz-me o diretor de casting. Eu aceno que sim. A
minha perna começa a saltar de nervosismo. Não consigo fazê-la parar.
Estou sentada numa sala à espera da minha quarta audição para Princess
Paradise Park, o filme dramático do momento para as famílias, e para o
qual todas as atrizes entre os sete e os dez anos andam a fazer audições. Ao
que parece, já receberam milhares de raparigas, mas o papel disputa-se
agora entre mim e uma outra menina. É o mais perto que já estive de um
projeto tão importante.
Tenho as minhas dezassete páginas de falas bem aprendidas, graças à
ajuda da Mãe. Às vezes, quando andamos a tratar de pequenas tarefas
quotidianas juntas, ela diz só “Vá!”, e eu sei o que isso quer dizer, porque,
ainda que eu tenha tido algumas outras audições ao longo deste processo
para a Princess, que já dura há um mês, esta é a audição mais exigente, e o
papel que estou mais perto de obter. Esta é aquela com que a Mãe mais se
importa.
– A Barbara diz que, como é um estúdio de cinema, este papel faria de ti
uma estrela – diz-me a Mãe, cada vez que me voltam a chamar. – A partir
daí, passas a receber propostas e pronto. Acabaram as audições.
O fim das audições parece-me bem. Enquanto estou aqui sentada à espera
de entrar, começo a imaginar como seria bom não ter de fazer esta coisa que
me tolhe de nervos. Não ter sempre a pressão chata de ser escolhida e a
tristeza que advém de não o ser. Estou perdida nos meus devaneios quando
O ouço, alto e bom som, na minha cabeça.
– Jennette, eu, a voz do Espírito Santo, ordeno-te que risques o teu nome
desta folha de presenças, vás à casa de banho, toques o elástico das tuas
cuecas cinco vezes de seguida, rodopies num só pé, destranques e voltes a
trancar a porta da casa de banho cinco vezes, e que voltes e assines outra
vez a folha de presenças.
Estou exultante. Ele falou. O Espírito Santo, ou seja, a Minha Voz Mansa
e Delicada6, falou finalmente comigo. Esperava que Ele me falasse desde o
meu oitavo aniversário, quando fui batizada.
O Dom do Espírito Santo era, sem dúvida, a dádiva que mais me
entusiasmava. Uma amiga da igreja deu-me uma pasta viscosa para brincar,
o que não lhe ficava longe.
O Espírito Santo é um fulano bestial lá em cima, que ajuda o Pai Celestial
e Jesus. Ele é meio como eles, em espírito e atitude, mas também é
diferente, porque vive em cada um de nós, mórmones. E todos os dias,
podemos falar com ele, sempre que quisermos. E ele pode falar connosco,
guiando-nos para fazer a coisa certa, que é o que quer que ele nos mande
fazer. Temos tanta sorte!
As minhas primeiras semanas com o Dom do Espírito Santo ficaram
muito aquém. Talvez tenham sido até uma desilusão, mas nunca disse isso a
ninguém na igreja. Sempre que alguém me perguntava se eu andava a
comunicar com a Minha Voz Mansa e Delicada, o Espírito Santo em mim,
eu dizia que sim, que andávamos a ter toda a espécie de belas conversas. E
quando me perguntavam como eram as conversas e o que tinha eu
aprendido, eu respondia que não podia contar, porque eram conversas
íntimas.
Mas isso não é verdade. A verdade é que teria contado de bom grado a
qualquer pessoa como eram as minhas conversas com o Espírito Santo,
tivesse-as eu tido. Mas não tinha tido nenhuma. E não sabia porquê. Rezava
sozinha, todas as manhãs, tardes e noites, de joelhos até, para ouvir o
Espírito Santo. Ainda que os mórmones não sejam responsabilizados pelos
seus pecados até aos oito anos e, portanto, eu soubesse que não tinha tido lá
muito tempo para fazer asneira da grossa, ainda assim, perguntava-me se a
teria feito.
Porque não ouvi ainda o Espírito Santo?, perguntava eu nas minhas
preces. Fiz alguma asneira que tenha feito com que não o merecesse? É por
causa dos meus pensamentos impuros sobre o Frankie Muniz? Por favor,
perdoa-me e envia-me o Dom do Espírito Santo, quando tiveres ocasião. Sei
que estás ocupado, mas estou desesperada. Quero ouvir a voz dele e o que
tiver a dizer-me. Obrigada.
As minhas preces não foram acudidas durante muito tempo. Meses. Mas
agora, hoje, na minha última audição para o Princess Paradise Park, lá está
Ele.
Pronto, Espírito Santo, e porque queres tu que eu faça essas coisas?,
pergunto na minha cabeça.
– Para garantir que a tua audição para o Princess Paradise Park corre
bem. Se fizeres o que te digo, vais acabar por ficar com o papel. Quando
isso acontecer, a tua mãe ficará feliz, e todos os problemas da tua família
ficarão resolvidos.
Uau! Adoro como ele é direto. Salto da minha cadeira para cumprir a lista
de tarefas que ele me deu.
– Aonde vais? – pergunta a Mãe.
– Tenho de fazer chichi – digo-lhe eu, enquanto risco o meu nome na
folha de presenças. Ela segue-me até à casa de banho e entra no cubículo
comigo. Toco no elástico das minhas cuecas cinco vezes.
– O que estás a fazer, Net? – pergunta-me a Mãe com um ar preocupado.
– O Espírito Santo falou comigo! – digo-lhe, toda entusiasmada, certa de
que isso a descansará. Rodopio no pé esquerdo.
– Ahã – diz a Mãe.
– Ele falou comigo! – digo-lhe novamente. Ela não deve ter ouvido, ou
estaria tão entusiasmada como eu. Destranco e volto a trancar a porta da
casa de banho cinco vezes, sob o olhar dela.
– Porque olhas para mim assim? – pergunto-lhe.
Ela para e parece um pouco triste.
– Não é nada.
Voltamos para a sala de espera e eu volto a assinar a folha.
Obrigada, Espírito Santo. Obrigada.
6
Expressão extraída da Bíblia (cf. I Reis, 19:12), a “Voz Mansa e
Delicada” será a voz com que o Espírito Santo comunica com os
crentes já batizados. (N. da T.)
15.
– Não vês que as tuas pestanas são invisíveis? Achas que a Dakota Fanning
não pinta as dela?
A Mãe está a tingir-me as pestanas com a tintura castanha barata que
compra na Rite Aid uma vez por mês ou assim, na mesma excursão em que
compra os reflexos loiros da L’Oréal, o rímel transparente por três dólares e
a versão de supermercado das Crest Whistestrips7. É a “ronda de
manutenção”, chama-lhe ela – uma ida às compras dedicada exclusivamente
ao realce da minha “beleza natural”.
A Mãe chama-lhe “beleza natural”, isto que eu tenho. Ela diz que as
minhas pestanas são compridas, mas tão claras que parecem não estar lá.
Diz que o meu cabelo tem reflexos dourados, mas só perto das pontas, e que
é importante também ter alguns reflexos dourados à volta da cara, para a
enquadrar. Diz que o meu cabelo é muito grosso, o que é bom, mas que tem
vontade própria, o que é mau e tem de ser domado. Diz que tenho um bom
sorriso, mas que os meus dentes não são suficientemente brancos. A cada
coisa “boa” que a Mãe diz da minha “beleza natural”, segue-se um defeito
que serve de justificação para esta necessidade de vê-lo realçado com um
bocadinho da velha beleza comprada no supermercado. Começo a
perguntar-me se sou mesmo naturalmente bonita ou se a mãe usa o termo
“naturalmente bonita” da mesma forma que outras pessoas dizem
simplesmente “feia”.
– Ai!
– Ai o quê? – pergunta a Mãe, porque há uma série de coisas que me
podiam pôr aos ais neste momento.
Os pequenos bocados de papel colados por baixo dos meus olhos, mesmo
encostados à linha das pestanas, a ponto de me arriscar a que me furem os
olhos, podiam ser dignos de um ai. (A Mãe cola-os bem e mantém-nos no
sítio com Vaselina, porque não quer que a tintura castanha para pestanas me
pingue na saia e a tinja.)
Depois, há o que me parecem ser mil folhas de papel de alumínio
dobradas ao longo de todas as camadas do meu cabelo. Há tantas camadas e
tanto papel de alumínio que o meu cabelo se estende para os lados, quase na
horizontal, à minha volta. Há dois ais potenciais nisto: o alumínio pode
estar a puxar-me as raízes e a magoar-me, ou os vapores da lixívia podem
estar a fazer-me arder os olhos.
As Crest Whitestrips da tanga envolvem-me os dentes e, ainda que seja
suposto ficarem só por quinze minutos, a Mãe deixa ficar quarenta e cinco,
pelo sim, pelo não.
Ainda que eu tente cuspir aquele horrível sumo branqueador
periodicamente, às vezes aquilo escorre dos meus dentes para as gengivas, o
que não só as deixa brancas, como arde muito, o que podia também ser um
ai.
– A hinta sstá ne elhe – digo eu, o melhor que posso, com as bandas nos
dentes.
– Cospe e repete – incita-me a Mãe.
Faço o que ela diz.
– A tinta está no olho!
– Merda! Merda, merda, merda! Porque não disseste? Esta coisa pode
fazer-te cegar. Deita-te para trás!
Atiro a cabeça para trás. Bate nas costas da tábua da retrete. Volto a dizer
ai. A Mãe começa a espremer gotas de colírio nos meus olhos. Um cocktail
de lágrimas e colírio escorre-me pelas bochechas. Tento voltar a sentar-me,
mas o cabelo fica preso no autoclismo. A Mão começa a soltá-lo. Sinto-me
encurralada.
A minha aparência sempre foi muito importante para a Mãe. Ainda antes
de eu começar a representar.
Uma das minhas memórias mais antigas é de mim vestida com vestidos
gigantes e tufados. Esses vestidos faziam comichão e irritavam-me a pele,
para além de me parecerem ridículos e extravagantes. A Mãe dizia-me
sempre que eu estava tão bonita, ainda que, a cada vez que me dizia que eu
estava bonita, eu gritasse tão alto quanto podia que não era bonita, que era
“bem-tarcida”. Eu era demasiado pequena para conseguir pronunciar “bem-
parecida”, mas crescida o suficiente para saber que queria ser chamada a
mesma coisa que os meus irmãos, e não por um estúpido termo menor
destinado às raparigas.
Tornar-me atriz só piorou a obsessão da Mãe com a minha aparência,
sobretudo depois de eu não conseguir ter uma audição para o papel principal
no filme Por Causa de Winn-Dixie.
– Passe-me à Meredith Fine! Passe-me à Meredith Fine! – gritou a Mãe
ao telefone à jovem rececionista assustada da Coast to Coast Talent Group.
Tínhamos passado para a Meredith uns meses antes, depois de a Mãe dizer
que a Barbara Cameron estava ultrapassada e que esta nova agência, a Coast
to Coast, representava a nata do jovem talento. A Meredith é a diretora de
talentos da agência.
– Sim, Meredith, é a Debra McCurdy. Como pôde não propor a Jennette
para o Por Causa de Winn-Dixie? Como? Ela é perfeita para o papel. Você é
que nem se rala com ela e não lhe dá prioridade, é o que é – gritou a Mãe.
– Debra. Deb...
– Aposto que propôs a Taylor Dooley!
– Debra, tem de se acalmar e parar com estas acusações estapafúrdias.
Propus a Jennette para o papel, mas eles não a quiseram porque procuram
uma beleza etérea e a Jennette tem um ar mais grosseiro.
A Mãe fez uma cara de choque. Depois, desligou o telefone e começou a
lamentar-se como se alguém tivesse morrido. Foi a primeira vez que eu
desejei ser mais bonita e não quis saber de ser bem-tarcida.
7
Tiras branqueadoras dentárias. (N. da T.)
16.
– De certeza que eu tenho de vestir isto?
Estou a olhar para baixo, para o conjunto que está espalhado para mim no
nosso sofá coçado, o mesmo conjunto que usei em todas as audições desde
o caso Winn-Dixie: uma camisa frisada cor-de-rosa com um coração de
brilhantes no meio, uma saia-calção preta de napa, e botas go-go pretas.
– Sim, de certeza.
– Mas sinto-me como uma mulher da rua com isto – digo à Mãe,
enquanto os meus rolos quentes chocalham. Estes rolos também são um
desenvolvimento pós-Winn-Dixie.
A Mãe dá uma grande gargalhada.
– Como sabes tu o que isso é?
– Daquela vez em que me fizeste ver o Taxi Driver.
– Oh, pois foi – lembra-se a Mãe. – A Jodie Foster é…
– Uma atriz infantil sem igual. – Eu acabo a frase por ela, já que ela diz a
mesma coisa sempre que se fala na Jodie Foster.
– Isso mesmo, meu amor. Sem igual. Sem igual, exceto tu.
Eu aceno com a cabeça e volto a olhar para o conjunto. Vesti-lo horripila-
me. Faz-me sentir envergonhada e não me reconheço.
– De certeza que é isto que devo usar?
– Sim, ficas muito bonita com esse conjunto. Não bonita como uma
mulher da rua, mas muito bonita.
– Mas estar bonita…
– BRAÇOS – ordena a Mãe, interrompendo-me. Eu levanto os braços.
Ela despe-me a camisa e começa a trocar-me a roupa.
Eu ia perguntar se o objetivo devia mesmo ser estar bonita. Vou fazer a
audição para um hermafrodita na Anatomia de Grey. Não sabia o que isso
era, até ter perguntado à Mãe e ela ter dito que é quando uma pessoa é
rapariga e rapaz ao mesmo tempo. Se é suposto ser meio-rapaz, não sei se
uma camisa de brilhantes é o melhor artigo de indumentária para comunicar
isso.
Apesar da roupa, sou chamada para uma segunda audição no próprio dia.
Depois, a diretora de casting vem cá fora e pede para falar com a Mãe.
– Gostávamos de trazer a Jennette para uma última audição. Só ela e outra
rapariga.
A Mãe vai acenando que sim, violentamente entusiasmada.
– Mas pode vesti-la com outra roupa? Algo um pouco mais… andrógino?
– Bem, nós vivemos muito longe… Garden Grove. Sabe onde fica?
Ninguém sabe onde fica. É longe. Teríamos de apanhar a 101 para a 110, e
depois a 405. Podíamos apanhar a 5, e pronto, mas o trânsito é todo um
para-arranca nessa autoestrada. Não há faixas que cheguem...
– Greg? – a diretora de casting chama o seu assistente, interrompendo a
Mãe. O Greg vem a correr. – Importas-te de emprestar a tua camisa de
flanela à Jennette para a próxima audição?
O Greg despe a camisa de flanela. Por baixo, tem uma t-shirt lisa. A
diretora de casting pega nela e passa-a à Mãe.
– Aqui tem. Problema resolvido.
– Oh, muito obrigada. Ainda bem que não temos de apanhar a 5!
A Mãe dá-me a mão e vamos juntas à casa de banho. Ela veste-me a
camisa de flanela. Fica uma combinação estranha, porque ainda tenho a
saia-calção e as botas go-go por baixo. Suponho que, de certa forma, seja
meio-rapariga, meio-rapaz. Talvez seja perfeito?
A audição final corre bem – não me parece que pudesse ter dito melhor as
minhas falas –, mas estamos na carrinha, a caminho de casa, quando a
Meredith liga à Mãe e diz-lhe que não fiquei com o papel.
– O quê? Porque não? – A Mãe dá uma guinada agressiva.
– Disseram que ela é demasiado bonita.
A Mãe desliga o telefone. Não há insultos, não há gritos, não há prantos.
Há quase uma alegria nela. Estou chocada. Nunca vi a Mãe ficar feliz por eu
não ter um papel, jamais… Mas também nunca tinha sido bonita demais
para um papel, jamais. E agora sou. Sou bonita demais para fazer de
hermafrodita andrógino de dez anos.
17.
– Deb, acho que a Jennette é obsessiva-compulsiva – diz o Avô
solenemente. Ele não sabe que o posso ouvir, acha que estou a dormir no
meu colchão Costco enquanto ele e a Mãe veem o Jay Leno. Mas não estou
a dormir. Só não gosto muito do Jay Leno, portanto, deixo os meus olhos
descansarem enquanto espero que dê o Conan.
– Oh, poupa-me!
Adivinho pelo tom da Mãe que ela faz um aceno displicente com a mão
enquanto o diz.
– Tens de levá-la a um psicólogo – diz o Avô.
– Vá lá! A Jennette não é uma miúda perturbada e cheia de tiques.
– Não sei. Vejo-a a fazer os seus pequenos rituais constantemente. E
parece tão descontrolada quando os faz. Dá-me pena.
– Pai, por favor, ela está ótima. Tens a mania de te preocupar. Vamos lá
ver isto. O Kevin Eubanks tem tanto charme. Olha só para aquele sorriso.
O Avô faz uma pausa para ver televisão. Ouço o público a rir duas vezes
diferentes. Então, ele volta a falar.
– Talvez a devêssemos levar a um médico, só para ver. Ela pode precisar
de ajuda profissional.
– Não precisa – diz a Mãe, firmemente. – A Jennette é perfeita, sim? Ela
não precisa de ajuda.
Voltam a virar-se para o Jay. Eu continuo com os olhos fechados e penso
no que disse a Mãe. Que sou perfeita. Sei que é importante para ela
acreditar nisso, ainda que eu não saiba bem porquê. Não tenho licença para
ter problemas.
Então, penso no que disse o Avô. Que ele pensa que sou obsessiva-
compulsiva por causa dos meus rituais. Francamente, quem me dera que o
Avô me tivesse perguntado a mim sobre os meus rituais, porque eu poderia
ter-lhe explicado que não era uma perturbação, só o Espírito Santo.
Pergunto-me se ele teria acreditado em mim. Depois, pergunto-me se eu
própria acredito.
Virão os meus rituais do Espírito Santo? Se vierem do Espírito Santo, não
teria eu sido contratada para o Princess Paradise Park, como Ele disse que
seria, há dois anos, quando O ouvi pela primeira vez? Em vez disso, o filme
perdeu o financiamento. Deixaria o Espírito Santo que o filme perdesse o
financiamento? Será possível que esta voz na minha cabeça não seja o
Espírito Santo, mas sim uma perturbação obsessiva-compulsiva? Saberia a
Mãe lidar com isso? Aceitaria ela que eu não fosse perfeita?
Começa o intervalo para os anúncios. O Avô levanta-se para ir buscar
uma taça de gelado e a Mãe levanta-se para fazer chichi.
Espírito Santo, pergunto internamente. És o Espírito Santo ou uma
perturbação obsessiva-compulsiva?
– Claro que sou o Espírito Santo – responde a Minha Voz Mansa e
Delicada do fundo da minha consciência.
Assunto arrumado. Eu perguntei-Lhe diretamente e Ele respondeu-me
logo. Aí têm. A voz na minha cabeça sempre é o Espírito Santo.
– Agora, estreita os olhos cinco vezes muito depressa, dobra a língua, e
aperta as nádegas durante cinquenta e cinto segundos – diz-me a Minha Voz
Mansa e Delicada. Obedeço.
Sei que me quer bem, mas, por vezes, a Minha Voz Mansa e Delicada fala
um pouco alto demais. E, por vezes, por muito que me custe dizê-lo, queria
que a Minha Voz Mansa e Delicada se calasse.
18.
Estou a gritar em plenos pulmões. Histérica. Estou a gritar que os meus
bichos de peluche me vão matar, que sei que me vão matar. Estou a rebolar
no chão, a encher-me de nódoas negras ao ir de encontro às coisas, a bater
nas pernas do sofá, nas esquinas das cómodas. Grito, grito, grito, até que…
– E corta! – diz a Mãe intensamente, como faz sempre que acabamos de
ensaiar as partes do guião escolhidas pela direção de casting para uma
audição.
– Uau, Net! – diz a Mãe, olhando-me com um fervor que quase me
assusta. – Onde aprendeste a representar assim?
– Não sei – digo eu, ainda que saiba. Sei exatamente onde aprendi a
representar assim.
Mas sei ainda melhor que é má ideia contar à minha mãe que a minha
personagem é inspirada no comportamento errático e violento dela. Isso
implicaria mais comportamento errático e violento. Quero-a calma. Quero-a
estável. Quero-a feliz.
– Bem, onde quer que tenhas ido aprender isso, seja de que programa de
televisão ou de que filme, está a funcionar. Esse foi o desempenho de uma
vida – diz a Mãe, abanando a cabeça incrédula. – Não quero esgotar-te,
quero que guardes essa magia, que a poupes bem, por isso, é melhor não
repetirmos isto.
Anuo. Vou poupar esta magia.
A minha audição para a menina com uma perturbação bipolar num
episódio de Strong Medicine é já no dia seguinte.
A Mãe dirige-se ao parque oriental, embora eu lhe diga gentilmente três
vezes que, segundo as instruções agrafadas aos excertos do guião, tenho
quase a certeza de que é para ir para o ocidental.
– Vá lá, não demoramos nada – diz a Mãe ao segurança impávido do
parque oriental. – Ela tem uma audição às duas e dez e não queremos
chegar atrasadas. Dá uma má primeira impressão.
– O parque oriental é só para os atores habituais das séries e para os
produtores, gente que vem todos os dias.
– Não é possível abrir uma exceção? Sou uma sobrevivente de cancro,
estádio IV, e às vezes os meus ossos…
– Pronto – o guarda interrompe a Mãe.
Tenho vergonha quando a Mãe se põe a debitar a história do cancro a
pessoas que não conhecemos e que não parecem querer saber, mas, devo
dizê-lo, por vezes é muito eficaz.
Estacionamos e corremos para o bungalow certo, e a Mãe dá o meu nome
à entrada, enquanto eu ando para trás e para a frente no corredor, toda
nervosa.
– Não estejas nervosa, Net – diz a Mãe, vindo ter comigo. – Tu
consegues.
Acredito nela. Acredito sempre nela. A minha linguagem corporal
transforma-se imediatamente. A Mãe tem esse efeito em mim. Tal como
consegue empurrar o meu corpo para o limite e fazer-me rígida de medo ou
ansiedade, também sabe acalmar-me. Ela tem esse tipo de poder. Quem me
dera que ela o usasse desta forma mais vezes.
A audição corre bem e voltam a chamar-me para o mesmo dia. A Mãe e
eu vamos ao centro comercial local, para passear e fazer horas, e depois
voltamos para a segunda audição, por volta das seis horas. Sou a única aqui
presente para o meu papel. Todos os outros são adultos a candidatar-se a
outros papéis convidados e coadjuvantes no mesmo episódio.
O meu nome é chamado rapidamente, por isso, vou para a sala e digo as
minhas falas. Grito, esperneio, rebolo-me violentamente pelo chão. Perco-
me nisso. Há uma parte de mim a quem fazer aquilo quase que sabe bem.
Como se isto se preparasse para vir à tona há muito tempo. Como se eu
tivesse andado a abafar, a engolir, mas, finalmente, cá está. Isto é como me
sinto de facto. Com vontade de gritar.
O realizador olha-me fixamente e diz que está impressionadíssimo, que
não sabe o que dizer. Eu fico orgulhosa. Saí-me bem aos gritos e pontapés.
Saio da sala de casting. Os crescidos sentados ao longo das duas paredes
do corredor começam todos a aplaudir. Pergunto-me o que se passa; então,
percebo que me devem ter ouvido através das paredes. Estão a bater palmas
para mim. A Mãe está sentada no fundo do corredor. Tem os olhos cheios de
lágrimas. Está tão feliz. E, neste momento, eu também estou. Sim, é bom
fazer a Mãe sentir-se bem, mas também é bom sentir-me bem com qualquer
coisa. Ainda que essa coisa me deixe, por vezes, muito pouco à vontade.
Ainda que essa coisa me ponha imensa pressão em cima. Ainda que essa
coisa seja muito stressante. Às vezes, é bom sentir-me bem com qualquer
coisa. Só isso.
19.
– Use esse clip, aquele ali, onde ela tem fogo nos olhos – diz a Mãe, a
apontar para o grande monitor diante do montador.
Estamos de pé numa pequena sala escura com paredes almofadadas, à
prova de som. Sou só eu, a Mãe, e um montador-desesperadamente-a-
precisar-de-fazer-a-barba. Fazemos juntos a montagem do meu showreel.
Um showreel é uma coisa que os atores fazem para mostrar o seu trabalho
filmado. Normalmente, o objetivo é mostrar alguma variedade, bons
momentos de representação e todas as vezes que se partilhou o ecrã com um
ator importante. O showreel é, então, usado para múltiplas coisas: pode ser
enviado a diretores de casting para tentar arranjar boas audições, pode ser
enviado a produtores ou realizadores para tentar obter propostas de trabalho
sem passar pela audição, ou, no meu caso, pode ser enviado aos agentes
para tentar que me representem.
A Mãe quer que eu arranje um agente porque acha que isso levará a
minha carreira a um outro patamar.
– Estamos tão perto de te arranjar uma grande oportunidade, só
precisamos de mais um apoiozinho – diz a Mãe regularmente. – Precisamos
de um showreel que impressione a Susan Curtis.
A Susan Curtis é a agente que a Mãe meteu na cabeça que tem de me
representar. A Mãe ouviu dizer que ela é a melhor cá do sítio para jovens
artistas.
Portanto, cá estamos hoje, num edifício que pertence a uma companhia
que faz showreels, a escolher clips das minhas atuações, incluindo Strong
Medicine. (Fiquei com o papel. A Mãe diz que não me saí tão bem no
plateau como na audição final.)
O showreel fica pronto uns dias depois e é, depois, enviado à Susan.
Recebemos uma chamada dois dias mais tarde e ela pretende representar-
me.
– Boa, meu amor, boa! – grita a Mãe, toda entusiasmada. – Até com o teu
desempenho piorzito a conseguiste impressionar. Imagina como a
impressionarias se ela tivesse estado na audição!
É o que faço. Imagino. E sinto-me mal. Saí-me melhor na audição do que
no dia das filmagens. Falhei. Gostava que a Mãe parasse de falar nisso, mas
sei que ela só quer que eu melhore. Sei que ela quer o meu bem. Ela só quer
que eu pare de fazer disparates e de ficar aquém do que podia ser. Ela só
quer que eu seja tão impressionante quanto possível. Ela está só a ser uma
boa mãe.
20.
– Bebe lá o Gatorade, golos grandes! – grita-me a Mãe, como um treinador
de boxe ao seu pugilista.
Eu bebo depressa. O Gatorade vermelho escorre de ambos os cantos da
minha boca.
– Mas não sujes a camisa!
Inclino-me para a frente para evitar entornar na camisa.
– Grandes goladas, vá!
Assim faço.
– Pronto, deve bastar, meu amor.
Pouso a bebida no suporte de copos do carro e respiro fundo um par de
vezes. Emborcar Gatorade é extenuante.
– Isso deve ajudar a manter a tua febre baixa. Linda menina, Net. Linda
menina.
Passou uma semana desde que fui aceite pela Susan. Estou com 39,5º de
febre e uma constipação tão grande que parece que estou a apertar o nariz
quando falo, mas a Mãe diz que vai parecer que não estou empenhada se
cancelarmos a primeira audição que consegui desde que assinámos o
contrato, portanto, cá estamos.
Pelo menos, a audição é na Universal Studios, o meu estúdio preferido
para audições. Há algo de muito romântico em caminhar para o bungalow
da audição e passar pelo bungalow do Steven Spielberg, ou ver passar o
elétrico da Universal Studios. É a sensação de oportunidade.
Vou fazer a audição para uma nova série de televisão policial chamada
Karen Sisco, para o papel de uma rapariga de onze anos, sem-abrigo,
chamada Josie Boyle. A Mãe ponderou passar-me lama pelas bochechas
para a audição, mas lá decidiu não o fazer porque “era um bocado
exagerado”. Fico aliviada com a decisão dela.
A sala de espera do bungalow está tão atulhada de raparigas para a
audição que a porta está aberta e há meninas sentadas nos degraus exteriores
a rever as falas. A diretora de casting de Karen Sisco deve mesmo estar
apostada em escolher a criança sem-abrigo certa.
Durante a hora e picos que espero para ser chamada, a Mãe dá-me
incessantemente pastilhas da tosse Ricola e empurra-me para a casa de
banho para rever as falas ou emborcar Gatorade e paracetamol. Os meus
olhos estão agora a arder de febre, e o meu corpo sente-se sonolento e
pesado. Só me quero enrolar numa bola. Mas não posso. Tenho muito que
fazer.
Por fim, o meu nome é chamado e vou para a sala de casting atulhada
para fazer a audição. Há uma parte, nesta seleção de cenas, em que a minha
personagem tem de fungar, e eu tenho tanto ranho acumulado no nariz que
vem arrastado, fazendo um fungar longo e nojento de infeção nasal. A
diretora de casting não parece reparar. Diz que me saí muito bem.
Volto para uma segunda audição no dia seguinte, ainda doente. Desta
feita, em vez do bungalow, a audição é numa sala mais espaçosas, num dos
edifícios bonitos perto dos estúdios. É outra vez só com a diretora de
casting e ela não me filma em vídeo, o que significa que haverá outra
chamada. Os diretores de casting raramente escolhem um ator, a não ser que
seja um papel muito pequeno. Normalmente, fazem uma triagem e, depois,
os produtores e o realizador escolhem a pessoa para o papel.
Chamam-me outra vez, uns dias depois, na sexta-feira. Felizmente, a
minha febre já quase passou. São só 37,5º, eu aguento. O realizador, um
britânico de boné de basebol e camisa, está a observar-me. A fungadela
passa sem demasiado ranho e o resto das falas corre bem. Ele diz-me que fiz
um bom trabalho, dá-me umas indicações sobre algumas das falas e pede-
me para repetir. Diz-me que aceito bem as indicações. Eu saio e relato tudo
isto à Mãe.
A terceira chamada, quarta audição no total, chega na terça-feira seguinte.
Nunca tive tantas audições para um papel de um só episódio numa série
televisiva, mas, ao que parece, este papel tem sido muito difícil de atribuir e
eles querem garantir que o entregam à menina certa, já que é um exigente
papel principal convidado (um grau acima de artista convidado),
contracenando com a Carla Gugino e o Robert Forster. A Mãe descobriu
esta informação pela Susan, o que pôs a Mãe a repetir vezes sem conta
como foi uma ótima decisão assinar o contrato com ela.
– Ela sabe coisas. Ela sabe coisas, ponto final.
Estou nervosa nesta quarta audição. Quase gostaria de continuar doente,
porque tinha menos vagar para nervos quando estava doente. A doença
alivia a tensão. Sobro eu e duas outras raparigas. Ambas têm mais currículo
do que eu, coisa que a Mãe me sussurra ansiosamente a cada trinta
segundos, como se eu pudesse fazer alguma coisa quanto a isso.
– A Andrea Bowen, nas Donas de Casa Desesperadas. Essa série está a
correr muito bem. Mas não sei bem porquê. É uma piroseira pegada, digo
eu.
Sou a última rapariga a ser chamada. Volto a ver o realizador e, desta vez,
há uma câmara na sala. Ele diz que vão filmar a audição para os produtores.
Eu anuo.
– És calada, hein? – pergunta ele.
Não me consigo obrigar a responder. Estou petrificada.
– Suponho que sim – diz ele, com um riso bem-intencionado. – Não te
preocupes. Tenta divertir-te.
Estou um pouco confusa pelas indicações, já que as cenas selecionadas
são (1) a minha personagem a testemunhar o sem-abrigo que cuida dela a
ser baleado; (2) a minha personagem com a personagem do Robert Foster, a
dizer-lhe como ela não quer ter nada que ver com o pai que a abandonou em
bebé; e (3) a minha personagem sentada com o seu pai, a dizer-lhe que não
quer ter nada a ver com ele, já que ele a abandonou em bebé.
Onde está a diversão? Não vejo aqui diversão nenhuma.
A audição de seis minutos acaba num piscar de olhos. O realizador diz-me
que sou boa e que acha que vingarei neste ramo. Agradeço-lhe e deixo a
audição. Nessa noite, telefonam-nos a dizer que fui escolhida. A Mãe põe-se
aos saltos. Eu também.
– A minha menina é uma sem-abrigo! A minha menina é a maior! A
minha menina é uma sem-abrigo!
21.
– Põe isso em negrito – diz a Mãe por cima do meu ombro, enquanto seca
um prato com um pano da louça e me vê escrever.
Arrasto o rato por cima das três palavras e carrego no botão “N” no topo
da página para as pôr em negrito, depois viro a cabeça para avaliar a reação
da Mãe.
– Sim, está bom – diz a Mãe, acenando com a cabeça para concordar
consigo mesma. – Vou fazer SpaghettiOs para o Scottie. Imprime isso
quando acabares, para eu poder dar uma olhadela.
A Mãe vai para a cozinha e eu volto a concentrar-me no documento do
Microsoft Word que tenho no ecrã de computador à minha frente. Ambas as
coisas – o ecrã de computador e o Microsoft Word – são inovações
relativamente recentes em casa dos McCurdy. O Marcus montou o
computador na sua aula de montagem de computadores no liceu, e eu
comprei todos os acessórios com o pagamento pela minha participação
como atriz secundária no CSI, onde fiz de irmã de uma assassina. O papel
era emocionalmente extenuante, mas, depois de a Mãe dizer que eu podia
comprar o Microsoft Word e The Sims com a parte do salário que ela não ia
gastar nas contas, valeu a pena.
Estou a passar a computador o meu próprio CV. Isto deixa-me orgulhosa.
Faz-me sentir capaz. Competente. Quantas miúdas de onze anos escrevem o
próprio CV? Sinto-me muito à frente.
No entanto, essas três palavras que a Mãe acaba de sugerir que ponha em
negrito causam-me um enorme aperto no estômago. Olho para elas um bom
bocado.
Essas três palavras têm grande relevo na parte “Talentos Especiais” do
meu CV. Vêm a seguir aos saltos com o saltitão, ao hula-hoop, ao saltar à
corda (incluindo cordas duplas), ao piano, à dança (jazz, sapateado, lírica,
hip-hop), à flexibilidade e ao nível de leitura de 12.º ano – tudo talentos
especiais que a Mãe acha que me deixam em vantagem se os tiver, ou que
me levarão a perder uma oportunidade se não os tiver, como da vez em que
perdi um anúncio do Chef Boyardee por não saber usar um saltitão. A Mãe
comprou imediatamente um saltitão no Pic’N’Save e fez-me treinar uma
hora por dia, durante duas semanas, até que eu conseguisse fazer mil saltos
de seguida com o bastão. Sim, sou muito boa com o saltitão.
Mas nenhum desses talentos especiais é tão importante como este com
três palavras. Aquele que a Mãe escolheu para destacar, o que ela queria em
negrito…
Chora a pedido.
Chorar a pedido é “o” talento que se quer entre os atores infantis. Tudo o
resto se torna insignificante em comparação. Se conseguires chorar quando
te mandam, estás nisto a valer. Estás nisto a sério. E, num dia bom, eu
consigo puxar pelas lágrimas quando me mandam.
– És como uma versão feminina do Haley Joel Osment – diz-me a Mãe
regularmente. – Ele é o único outro miúdo, hoje em dia, que consegue puxar
pelas lágrimas. Bem, suponho que a Dakota Fanning, mas ela é mais do
género de ficar marejada. As lágrimas não chegam a cair. O que se quer é as
lágrimas a escorrer pelas bochechas diante da câmara.
A primeira vez que chorei a pedido foi na aula de teatro. A Mna. Lasky
disse-nos para pegarmos num objeto de casa e pensarmos numa história
triste que acompanhasse esse objeto. Depois, tínhamos de trazer o objeto
para a aula na semana seguinte e contar a história em palco.
Eu levei um agrafador. O Dustin e o Scottie desenham muito e agrafam os
desenhos em pequenos maços organizados. Então, inventei uma história
sobre a nossa casa arder e os meus irmãos morrerem no incêndio, e a única
coisa que sobrava era o agrafador deles. Se eu quisesse mesmo provocar
uma choradeira, teria pensado na Mãe a morrer, mas pensar na Mãe a
morrer é proibido. Ainda que ela esteja em remissão há anos, a saúde dela
continua suficientemente frágil para que eu não queira trazer má sorte, já
que a vida dela está nas minhas mãos, graças ao meu desejo anual do dia de
aniversário. É uma responsabilidade que levo a peito e que não quero
sabotar só por causa de um monólogo choroso. As vidas dos meus irmãos,
por outro lado, já são perfeitamente legítimas para explorar em nome do
desenvolvimento artístico.
Estava eu no pequeno palco a contar a história e os meus olhos encheram-
se de lágrimas, a ponto de eu ficar a ver tudo turvo. Mas as lágrimas não
caíam. Eu até sentia a tristeza do monólogo, mas também sentia a frustração
de as lágrimas não caírem. A Mna. Lasky subiu ao palco com passos
estrondosos e inclinou-se a um palmo da minha cara, com os nossos narizes
quase a tocar-se. Eu fiquei assustada. Não sabia o que vinha a seguir. Então,
ela levantou a mão e estalou os dedos mesmo à frente dos meus olhos. A
brusquidão do gesto fez o meu corpo saltar de susto, e, com o salto, as
lágrimas caíram. A Mna. Lasky ficou radiante. Eu também. Por trás das
lágrimas, estava radiante.
A partir de então, se uma audição exigisse chorar a pedido, eu tinha quase
a certeza de que seria capaz. A notícia correu de boca em boca. Chegou a
um ponto em que a Susan ligava à Mãe para anunciar, cheia de orgulho,
“recebi outra chamada de um diretor de casting a dizer ‘fala-me lá dessa
miúda que chora’”.
Certo, chorar a pedido não era divertido para mim. Era das experiências
mais miseráveis da minha vida, estar sentada numa sala de casting fria, a
imaginar tragédias a afetarem a minha adorada família. Cada tragédia podia
durar-me para as lágrimas de entre quatro e seis audições, mas lá acabava
por me tornar imune a cada desaire – a Mãe referia-se a isto como estando
“toda chorada” –, por isso, tinha de mudar para uma nova narrativa. A
história do agrafador transformou-se no Dustin a morrer de meningite; ele
tinha mesmo tido um caso grave da doença uns anos antes, por isso, a Mãe
dizia “imagina que a punção lombar tinha corrido mal!” O Dustin a morrer
de meningite transformou-se no Marcus a morrer de apendicite, depois no
Scott a morrer de pneumonia, e depois no Avô a morrer de velho. (“Imagina
que ele está na cama do hospital, agarrado à boneca de meias que lhe fizeste
quando tinhas seis anos.”)
A vez que consegui mais lágrimas numa audição foi para um pequeno
papel em Homicídio em Hollywood, uma longa-metragem com o Harrison
Ford e o Josh Hartnett. O papel era o de uma rapariguinha sentada no banco
de trás de uma carrinha, com a sua família de turistas, a descer pelo
Hollywood Boulevard, quando o Josh Hartnett assalta o carro e toma o
volante, deixando a família numa crise histérica.
Não sei o que se passava nesse dia em especial, mas os meus canais
lacrimais estavam particularmente cheios. Só de me sentar na sala de
casting e pensar no Avô agarrado à boneca de meias, PÁS!, as lágrimas
brotaram. Numa quantidade absurda. Isto não era chorar, era soluçar. O meu
corpo tinha convulsões. Eu estava histérica.
– Uau! – disse a diretora de casting assim que eu acabei. Ela tinha
caracóis castanhos arruivados e uma voz doce como o mel. Ela era muito
simpática.
– Quer dizer, o papel é teu, mas gostava de te ver repetir, só para ver isso
outra vez – disse o tipo com o cabelo branco e o blusão de cabedal castanho
sentado ao lado da diretora de casting.
E eu repeti. Tinha-me tornado na artista do Cirque du Soleil do choro a
pedido. As pessoas queriam ver-me fazer aquilo vezes sem conta, como se
eu estivesse a trepar a panos ou a contorcer-me em arcos suspensos. Chorar
a pedido era verdadeiramente o meu Talento Especial.
22.
O pai da Emily acabou de ser assassinado e a mãe dela é suspeita. Acaba de
chegar um convite para mais uma audição de choro a pedido, para mais um
policial televisivo, Sem Rasto. O excerto escolhido para a audição é uma
cena em que a Emily é chamada para um interrogatório e começa a sentir-se
profundamente angustiada e as lágrimas começam a rolar.
Estou sentada na sala de espera a convocar toda a minha tristeza, quando
alguma coisa se transforma em mim. É um sentimento estranho. Não sei
como descrever, mas sei, as minhas entranhas sabem, que as lágrimas não
virão. Sinto-me desligada, distante e, depois, irritada.
Puxo a Mãe pelo braço. Ela dobra o canto da página de dietas do número
da Woman’s World. A rubrica de dietas é a preferida dela, ainda que eu não
perceba bem porquê. A Mãe é muito franzina, com o seu metro e quarenta e
nove e uns “impressionantes quarenta e um quilos!” como ela anuncia
frequentemente com uma ironia orgulhosa, sabendo que os seus quilos estão
longe de ser impressionantes. Ela pousa a revista no colo e inclina-se mais
para mim, para eu poder falar-lhe à orelha.
– Mamã, acho que não vou conseguir chorar.
A Mãe olha para mim, primeiro baralhada, depois, a confusão dela
transforma-se em veemência. Vejo logo que passou ao modo “conversa de
encorajamento”, um papel que assume mais vezes do que é necessário
porque a faz sentir-se necessária. Franze o sobrolho e aperta os lábios. Há
qualquer coisa de infantil nesta expressão, é como se ela fosse uma criança
a fingir ser adulta.
– Claro que consegues. Tu és a Emily. Tu és a Emily.
A Mãe diz-me isto muitas vezes quando está a fazer-me “entrar na
personagem”. Ela diz: “Tu ÉS a Emily.” Ou a Kelli. Ou a Sadie. Ou quem
quer que eu seja suposta ser nesse dia.
Mas hoje, neste momento, não me apetece ser a Emily. Não quero ser a
Emily. Isto nunca aconteceu, mas está a acontecer agora e está a assustar-
me. Uma parte de mim está a resistir à minha mente a forçar este trauma
emocional nela própria. Uma parte de mim está a dizer: “Não, isto é
demasiado doloroso. Não vou fazer isto.”
Essa parte de mim é tola. Essa parte de mim não percebe que este é o meu
Talento Especial, que é bom para mim, para a minha família, para a Mãe.
Quanto mais choro a pedido, mais trabalho arranjo; quanto mais trabalho
arranjo, mais feliz ficará a Mãe. Respiro fundo e sorrio para a Mãe.
– Tens razão. Sou a Emily – digo eu, tanto para convencer a Mãe, como
para me convencer a mim.
A parte de mim que não quer chorar a pedido não está convencida. Essa
parte de mim grita-me que não sou a Emily, que sou a Jennette, e que eu, a
Jennette, mereço ser ouvida. O que eu quero e o que eu preciso são coisas
que merecem ser ouvidas.
A Mãe encontra a dobra na revista, mas, mesmo antes de a voltar a abrir,
debruça-se novamente para mim.
– Vais ficar com este papel, Emily.
Mas não fico. A audição não corre bem. O meu coração não está lá. Não
“sinto as minhas palavras”. E, pior que tudo, não choro a pedido. Falho
redondamente.
Estamos a caminho de casa, no para-arranca do trânsito da 101 Sul. Estou
sentada no meu assento elevatório para crianças, já que ainda sou
suficientemente pequena para que seja obrigatório. Tento fazer os meus
trabalhos de casa de História, mas não me consigo concentrar porque estou
demasiado zangada comigo mesma por causa da audição.
Fiquei perdida na minha cabeça o tempo todo, porque essa parte
assustadora de mim decidiu tentar intervir. Essa parte de mim que não gosta
de fazer isto.
– Não quero continuar a representar – digo, ainda antes de me aperceber
de que o disse.
A Mãe olha para mim pelo retrovisor. Uma mistura de choque e desilusão
enche-lhe os olhos. Arrependo-me imediatamente de ter falado.
– Não sejas pateta, adoras representar. É o que mais gostas de fazer no
mundo. – A Mãe diz isso de uma forma que faz com que soe a ameaça.
Olho pela janela. A parte de mim que lhe quer agradar pensa que talvez
ela tenha razão, que talvez seja a minha coisa preferida e eu não saiba, não
dê por isso. Mas a parte de mim que não quer chorar a pedido, que não quer
representar, que se está nas tintas quanto a agradar à Mãe e que só me quer
agradar a mim, essa parte de mim berra comigo que tenho de me manifestar
A minha cara fica quente, incitando-me a dizer alguma coisa.
– Não, não quero mesmo. Não gosto. Deixa-me pouco à vontade.
A Mãe fica com cara de quem acabou de comer um limão. Contorce-se
numa forma que me deixa aterrada. Sei o que vem aí.
– Não podes desistir! – soluça ela. – Esta era a nossa oportunidade! Esta
era a noooooossa oportunidaaaade!
Ela bate no volante, acertando acidentalmente na buzina. O rímel escorre-
lhe pelas bochechas. Está histérica, como eu estava na audição do
Homocídio em Hollywood. A histeria dela assusta-me e tem de ser acudida.
– Esquece – digo muito alto, para que a Mãe ouça entre os soluços.
O choro para imediatamente, exceto uma fungadelazinha excedente, mas,
assim que essa fungadela esmorece, o silêncio é completo. Não sou a única
que sabe chorar a pedido.
– Esquece – repito eu. – Vamos esquecer o que eu disse. Desculpa.
Sugiro ouvirmos o álbum preferido dela do momento, … But Seriously,
do Phil Collins. Ela sorri com a sugestão e põe o CD no leitor. Avança até à
“Another Day in Paradise”, e a canção começa a berrar pelas colunas. A
Mãe canta por cima. Olha-me pelo retrovisor.
– Vá lá! Porque não acompanhas, Net? – pergunta, toda contente, outra
vez de bom humor.
Então, começo a cantar também. E ponho o melhor sorriso falso que
consigo para acompanhar. Posso não ter sido capaz de convocar as lágrimas
para o Sem Rasto, mas consegui convocar um sorriso para a Mãe no
regresso a casa. Seja como for, é representar.
23.
– Uma menina pequena não devia ter de se preocupar com a família inteira
– diz-me o Avô, uma tarde.
Ele consegue perceber que estou stressada. Estou há meia hora a andar de
um lado para o outro no jardim da frente, enquanto tento decorar as falas
para uma audição que aí vem, para um filme de baixo orçamento chamado
My Daughter’s Tears [“As Lágrimas da Minha Filha”]. Podia lá haver nome
de filme mais perfeito para o meu Talento Especial? A Mãe não me deixa ler
o guião porque diz que há demasiado “material para adultos”, o que,
sinceramente, é um alívio, porque já estou a ter problemas que cheguem a
tentar decorar estas catorze páginas até à audição de amanhã, e com um
sotaque russo, para ajudar à festa. A personagem a que me candidato, a filha
cujas lágrimas estão na origem do título, é russa. A Mãe marcou-me uma
sessão com um especialista em sotaques, mas ainda não atinei bem nos
erres.
Não tenho licença para ir lá fora sozinha. A Mãe diz que posso ser
raptada, violada e assassinada como a Samantha Runnion – a rapariga que
foi raptada três semanas antes do seu sexto aniversário e que vivia a cinco
minutos de nós –, portanto, sempre que vou lá fora, alguém tem de ir
comigo. Hoje, é o Avô. Ele tem estado a regar a relva, enquanto eu decoro o
texto.
– O quê? – pergunto, não por não ter ouvido o que ele disse, mas porque
estou confusa. Claro que uma menina pequena se deve preocupar com a
família inteira. É isso que as meninas pequenas fazem.
– Eu só… – Ele aproxima-se. – Eu só acho que… mereces ser uma
criança.
Os meus olhos enchem-se de lágrimas, e não é por eu as forçar. É um
marejar natural. Não me lembro da última vez que chorei naturalmente. Sou
apanhada desprevenida. Arrasto os pés.
– Anda cá, dá um abraço ao Avozinho.
Avanço para enlaçar os braços à volta da grande barriga dele. Ele dá-me
palmadinhas nas costas com a mão livre.

– Adoro-te, Poppy Seed8 – digo-lhe eu.


– Também te adoro, minha querida.
O Avô tenta pôr o outro braço sobre mim, para me dar um abraço como
deve ser, mas esquece-se de que segura a mangueira e a água espirra em
cima.
– Uuups!
Ele pousa a mangueira no chão e deixa a água correr para a relva, depois,
envolve-me no seu grande abraço de avozinho. Sabe tão bem, é tão
confortável, mesmo que ele cheire um pouco a carne fumada.
– Sabes, ia dar-te um presentinho quando acabasses de decorar as falas,
mas parece que tenho mas é de to dar já.
– Está bem!
Estou entusiasmada. Quem não adora presentes?
O Avô põe a mão no bolso de trás e procura bem. Caem na relva recibos
amarfanhados. Finalmente, saca de um pequeno boneco para pôr na antena
do carro. É o Mike Wazowski, o monstro principal dos Monstros e
Companhia. Receber este género de merchandise gratuito é uma das
benesses de se ser empregado da Disneylândia.
Ponho o Mike na palma da minha mão. Ele é mole e feito de esferovite.
– Adoro como ele é engraçado – diz o Avô. – Não o achas engraçado?
– Sim.
– Ele faz-me rir. Esperava que te fizesse rir também.
– Obrigada, Poppy Seed.
– Ora essa – diz ele com um aceno. – Sabes, espero que te lembres de te
divertir. A vida devia ser divertida para uma criança.
O Avô dobra-se, apanha a mangueira e começa a regar outra vez a relva.
Olho para baixo, para o Mike, e passo o polegar pela sua pele de borracha
enquanto penso no que disse o Avô.
A diversão não é coisa que me seja particularmente familiar. A vida é
coisa séria.
Há muita coisa a acontecer por aqui. Estar preparada, trabalhar muito e
sair-me bem são coisas muito mais importantes do que a diversão.
Enfio o Mike Wazowski no bolso e volto ao meu sotaque russo.
8
Poppy seed, como Jennette chama o avô, significa “semente de
papoila”. É possível que seja pela proximidade sonora com o termo
Pops, usado para figuras masculinas mais velhas, como Pop é
usado para pai. (N. da T.)
24.
Estou a olhar para os papéis à minha frente. O molho de cento e dez folhas
acabadas de imprimir com uma fonte Courier New, corpo 12. Isto é Henry
Road, o meu primeiro guião.
Imprimi o guião porque mal posso esperar por mostrá-lo à Mãe. Sei que
ela precisa de alguma coisa que a arrebite, já que está, neste momento, no
hospital. Não pode ser fácil para a Mãe estar no hospital assim tantas vezes,
tipicamente várias vezes por ano. Ainda que, por vezes, a razão que a leva
ao hospital não tenha nada que ver com o cancro (como da vez que lá esteve
por causa da diverticulite, ou diverticulose, nunca sei como se diz), o medo
está sempre lá… O medo de que, quando ela estiver a fazer um exame, uma
análise ou uma cirurgia, o médico encontre uma recidiva do cancro.
O Avô leva-me ao hospital no seu velho Buick azul-escuro, com o
autocolante Bush/Cheney. Sento-me no banco de trás, a percorrer as minhas
folhas.
– Cuidado, não te cortes com o papel, minha querida – diz-me o Avô,
enquanto passa um semáforo que está a ficar vermelho.
Chegamos ao hospital. Estive em muitos hospitais por causa dos
problemas de saúde variados da Mãe, mas nunca estive neste. Este é
pequeno, parece um hospital boutique. É menos intimidante do que o
habitual e menos labiríntico, por isso encontramos facilmente o caminho
para o quarto da Mãe.
Ela está a descansar, mas, quando ouve os meus passos, os olhos abrem-
se, pestanejantes, e ela fica radiante.
– Olá, Net!
O sorriso dela faz-me sorrir.
– Olá, Nonny Mommy!
Sento-me na cadeira ao pé da cama e seguro na mão dela. Reparo que os
nossos pulsos estão da mesma largura.
– O que trouxeste contigo? – pergunta a Mãe, a gesticular para o molho
de papéis que trago debaixo do outro braço.
Mal consigo conter o meu entusiasmo. Há uma mesa de rodas, para as
refeições, que está disposta sobre a cama da Mãe – muito mais luxuosa do
que o tapete desdobrável branco em que comemos em casa. O tabuleiro de
comida está em cima, com o peru, o feijão verde, o puré de batata, uma
canja de galinha a acompanhar e bolachas de água e sal – tudo intacto. Eu
empurro o tabuleiro para o lado para ganhar espaço e espeto as páginas em
cima da mesa, cheia de orgulho.
– É o meu guião. Henry Road.
– Escreveste um guião? – pergunta a Mãe.
Tenho a certeza de que está impressionada. Mas, depois, um ar de
preocupação tolda-lhe a cara.
– Tens saído todos os dias durante vinte minutos para apanhares a tua
vitamina D?
– Claro – digo eu para a descansar.
– E tens ido às aulas de dança?
– Sim.
Ela passa a mão pela capa, mas não com o orgulho com que eu o faço. O
passar da mão dela tem um toque de tristeza.
– O que foi? – pergunto eu.
– É só que…
A Mãe olha para baixo e sorri melancolicamente. É uma das expressões
dela que me parecem mais ensaiadas. Nunca a vi fazer esta expressão
sentindo que viesse mesmo dela, no momento em causa. Parece sempre
forçada.
– É só que o quê? – pergunto eu.
– É só que… espero que não gostes mais de escrever do que de
representar. És tão boa atriz. Tão, tão boa.
De repente, fico embaraçada por ter dado o guião à Mãe. Que vergonha.
Como pude ser tão estúpida? Ela nunca apoiaria isto.
– Claro que não gosto mais de escrever do que representar. Como seria
possível?
Ao ouvir estas palavras sair da minha boca, penso que soam a falso, com
a inocência fingida das personagens das reposições do Leave It to Beaver
que a Avó insiste em ver na televisão, ainda que eu deteste tanto aquilo.
A Mãe não repara que estou a mentir, ainda que eu sinta até aos ossos que
é óbvio que estou. Prefiro, sem sombra de dúvida, escrever a representar.
Através da escrita, sinto poder, talvez pela primeira vez na vida. Não tenho
de dizer as palavras de outras pessoas, posso escrever as minhas. Posso ser
eu própria, por uma vez. Gosto da privacidade do ato. Ninguém está a olhar.
Ninguém está a avaliar. Ninguém se está a intrometer. Não há diretores de
casting, nem agentes, nem gestores, nem realizadores, nem a Mãe. Só eu e a
página. Escrever, para mim, é o oposto de representar. Representar parece-
me intrinsecamente falso. Escrever parece-me intrinsecamente genuíno.
– Ainda bem – diz a Mãe, olhando-me, como se decidisse se pode ou não
confiar na minha resposta. – As escritoras andam todas desmazeladas e
engordam, sabias? Não quereria ver o teu rabinho de pêssego de atriz a
transformar-se no enorme e gigante rabão de melancia de uma escritora.
Entendido. Se eu escrever, deixo a Mãe infeliz. Se eu representar, deixo a
Mãe feliz. Pego nas páginas em cima da mesa auxiliar e enfio-as outra vez
debaixo do braço.
Posto isto, a Mãe lembra-se de perguntar qual é o tema do guião.
– É a história de um rapaz de dez anos e do amigo dele a tentarem juntar
os pais solteiros dos dois.
– Hum – diz a Mãe, olhando longamente pela janela. – Já fizeram isso no
Pai para Mim... Mãe para Ti.
25.
Acordo às oito da manhã no meu colchão Costco. O meu beliche está agora
atolado de tralha, por isso, voltei a dormir no chão. Tenho vestida a minha t-
shirt da corrida Revlon Run/Walk 2002. Gosto do estampado. Tem muito
roxo e ando numa de roxo.
Não posso dizer à Mãe que ando numa de roxo, porque ela prefere cor-de-
rosa. Ficaria destroçada, se lhe anunciasse, assim de repente, que mudei de
cor favorita para uma que não é também a dela. É uma honra que a Mãe se
rale tanto comigo a ponto de uma coisa como eu ter a minha própria cor
favorita a deixar arrasada. É amor de verdade.
A t-shirt do ano passado da Revlon Run/Walk era quase toda prateada e,
no ano anterior, quase toda azul. Sei as cores das t-shirts de todas as
corridas dos últimos sete anos porque é desde então que a minha família
participa no evento. Começámos a participar nas Revlon Run/Walks depois
de a Mãe entrar em remissão do seu carcinoma ductal metastático de estádio
IV, uma expressão que me é muito familiar porque, para além do nosso
visionamento semanal da cassete VHS, a Mãe faz-me recitá-la
frequentemente aos diretores de casting.
– Toda a gente adora a história de alguém a bater-se com a adversidade.
Se falares no meu carcinoma ductal, terás o voto da compaixão.
O cancro da Mãe raramente parece vir à baila organicamente nas minhas
audições para Hotel, Doce Hotel: As Aventuras de Zack e Cody ou Eu, Ela e
o Pai, mas, em séries como Serviço de Urgências, posso enfiá-lo um pouco
mais naturalmente, sobretudo se houver uma personagem com cancro no
episódio em questão.
– Sabe, a minha mãe teve um carcinoma ductal de estádio IV, por isso
sinto-me muito próxima do material.
A Mãe diz sempre que vamos às corridas Revlon Run/Walks para apoiar
as mulheres com cancro, o que é muito nobre da parte dela. O Dustin disse
uma vez, às escondidas, que achava que a Mãe ia lá mais pelo merchandise
gratuito sobre o cancro do que pela causa em si, mas o Dustin é um
“desordeiro” e o filho de que a Mãe gosta menos, coisa que ela própria lhe
disse na cara, portanto, é óbvio que o Dustin não percebe nada sobre a Mãe
e as intenções dela.
Eu passeio-me com a minha t-shirt do cancro largueirona enquanto penso
em que poema escreverei para a Mãe neste fim de semana. Como a Mãe não
gosta muito que eu escreva guiões, fiz uma pausa por tempo indeterminado
dessa atividade, mas ela já acha muito bem que eu escreva pequenos
poeminhas rápidos sobre como gosto tanto dela, por isso, agora ando a
escrever coisas assim.
Tento lembrar-me do que possa rimar com a palavra “mamã”, quando
sinto que o meu peito está dorido. Mais especificamente, a zona do mamilo
do lado direito do meu peito. Toco na parte dorida com a minha mão direita
e sinto-o... UM ALTO! O meu corpo enche-se imediatamente de terror. Isto
não pode estar a acontecer. Primeiro, a Mãe, agora eu? A sala começa a
andar à volta. Pondero as minhas alternativas: posso ir acordar a Mãe e
contar-lhe agora, mas isso parece-me penoso. Ou posso deixá-la dormir até
às onze, hora a que a costumo acordar com uma chávena de chá matinal.
“Eu até acordaria mais cedo, se não me deitasse tão tarde a stressar com o
dinheiro”, diz sempre a Mãe. “Talvez se o teu pai arranjasse um emprego
que PAGASSE AS CONTAS, por uma vez, para eu não ter de depender de
uma CRIANÇA…”
Não sei que escolha faça, portanto, faço o que faria qualquer pré-
adolescente assolada pelo cancro que tivesse de decidir quando contar à
mãe: um-dó-li-tá.
– Oh, minha querida!
A Mãe está meio a rir, enquanto passa os dedos para a frente e para trás, à
volta do meu mamilo inchado e com um alto do lado direito, e depois sobre
o meu mamilo liso e uniforme do lado esquerdo para comparar.
– Isso não é cancro.
– Então, o que é?
– Estás só a ficar com maminhas.
Oh. Não. A única coisa pior do que um diagnóstico de cancro é um
diagnóstico de estar a crescer. Tenho um medo terrível de crescer. Para já,
sou pequena para a minha idade, o que é uma vantagem no mundo do
espetáculo, porque posso ficar com papéis para personagens mais novas do
que eu. Consigo trabalhar mais horas no plateau e a lei não me obriga a
fazer tantos intervalos. Para além da logística, colaboro melhor e aceito
melhor as indicações do que todos esses palermas de sete anos.
A Mãe está constantemente a lembrar-me de como é bom que eu pareça
mais nova do que sou. “Vais conseguir mais papéis, meu amor. Vais
conseguir muito mais papéis.”
Se eu começar a crescer, a Mãe não vai gostar tanto de mim. Ela põe-se a
chorar muitas vezes, a apertar-me muito apertadinha, e a dizer que só quer
que eu continue pequenina e nova. Parte-me o coração, quando ela faz isto.
Quem me dera poder parar o tempo. Quem me dera poder ser criança para
sempre. Sinto-me culpada por não poder. Sinto-me culpada por cada
centímetro que cresço. Sinto-me culpada sempre que vemos uma das
minhas tias ou dos meus tios e eles comentam como estou crescida. Vejo a
sobrancelha da Mãe levantar-se sempre que eles dizem isso. Vejo como a
faz sofrer.
Estou determinada a não crescer. Farei tudo para impedir que isso
aconteça.
– Bem, há alguma coisa que eu possa fazer para impedir as maminhas de
crescer? – pergunto à Mãe, muito nervosa.
A Mãe começa com aquele seu riso-exalado, aquele que lhe faz rugas nos
olhos. Conheço bem esta expressão, tal como conheço bem todas as
expressões da Mãe. Aprendi-as de trás para a frente, para poder comportar-
me em concordância em todas as ocasiões.
Mais ninguém na família parece perceber os sentimentos da Mãe. Toda a
gente se põe a falar sem fazer a menor ideia, sem nunca perceberem que
versão da Mãe lhes vai calhar. Mas eu sei sempre. Passei a vida a estudá-la,
para que possa saber sempre, porque quero sempre fazer o que estiver ao
meu alcance, em todas as ocasiões, para manter ou fazer a Mãe feliz. Sei a
diferença entre a Mãe irritada e a Mãe ultrajada. Sei a diferença entre a Mãe
zangada com o Pai ou a Mãe zangada com a Avó (dentes cerrados quer dizer
Pai, sobrolho franzido quer dizer Avó). Sei a diferença entre quando ela está
um pouco feliz (beija-me na testa), ou muito feliz (canta Phil Collins). E
agora, neste preciso momento em que ela faz o seu riso-exalado e os olhos
se enrugam, sei que ela não está só muito feliz, mas que é uma felicidade
especial e particular.
A Mãe está gratamente-feliz.
É a forma como mais gosto de a ver, porque sou a fonte direta disso. Já vi
a Mãe ficar gratamente-feliz quando consigo papéis e quando fico do lado
dela, se ela estiver a meio de uma discussão com outra pessoa qualquer lá
de casa. A Mãe fica gratamente-feliz quando se sente vista, valorizada e
cultivada.
– O que posso fazer para impedir as maminhas de crescer? – repito,
insistindo mais na pergunta, agora que sei que deixa a Mãe tão satisfeita.
A Mãe olha para baixo, como faz sempre que está prestes a contar-me um
segredo, como quando me contou que a Avó tem dentes falsos ou daquela
vez em que me disse que acha o Pai um chato. Sei que vem aí alguma coisa
sumarenta. Alguma coisa especial, alguma coisa que só nós as duas
saberemos. Alguma coisa que cimentará e validará a nossa melhor amizade,
da maneira que só os segredos fazem.
– Bem, minha querida, se queres mesmo saber como ficar pequena, há
uma coisa secreta que podes fazer… chama-se restrição de calorias.
***
Meto-me depressa na restrição de calorias e até tenho bastante jeito para
isso. Quero desesperadamente impressionar a Mãe. Ela é uma ótima
professora, porque já anda na restrição calórica há muitos anos, diz-me ela.
– Uma vez, quando era miúda, estava a adormecer e ouvi os meus pais a
falar no quarto ao lado. Diziam que o meu irmão podia comer tudo, que o
metabolismo dele processava logo, mas que tudo o que eu comia se
transformava em gordura. Essas palavras afetaram-me, Net, afetaram-me
mesmo. Ando a restringir desde então.
Agora que penso nisso, parece-me fazer sentido que a Mãe andasse a
restringir. Ela só bebe chá quente, todas as manhãs, ao pequeno-almoço,
sem nada lá dentro, e um prato de legumes cozidos a vapor todas as noites
ao jantar, sem mais nada. Raramente a vejo comer ao almoço e, se o faz,
come uma salada sem temperos ou meia barra de granola com pepitas de
chocolate. Estou em boas mãos.
Começo a encolher a olhos vistos todas as semanas, comigo e com a Mãe
a trabalharmos juntas para contar as nossas calorias todas as noites e
programarmos as refeições do dia seguinte. Vamos manter-me numa dieta
de mil calorias, mas eu tenho a ideia inteligente de que, se só comer metade
da minha comida, só receberei metade das calorias, o que significa que
encolherei duas vezes mais depressa. Cheia de orgulho, mostro as minhas
porções comidas pela metade à Mãe após cada refeição. Ela fica encantada.
Todos os domingos, ela pesa-me e mede-me as coxas com um metro.
Passadas umas semanas desta rotina, ela passa-me uma pilha de livros sobre
dietas, que eu devoro num instante. Aprendo a importância de comer fruta e
legumes ricos em água, como a jicama ou a melancia. Aprendo que a
pimenta-de-caiena e as malaguetas ajudam muito a acelerar o metabolismo.
Aprendo que o café suprime o apetite, portanto, começo a beber
descafeinado – sem leite – com a Mãe. Beber café, seja qual for a sua
forma, é tecnicamente contra as regras da igreja.
– Bem, é descafeinado, de certeza que Deus abriria uma exceção – diz a
Mãe, e eu aceno como se concordasse, ainda que tenha quase a certeza de
que o Deus sobre o qual aprendi não abre exceções.
Quanto mais magra fico, mais rígida me torno quanto ao que ingiro,
porque parece que o meu corpo está a tentar segurar tudo o que eu como.
Reparo que a maior parte dos alimentos acrescenta um bocadinho de peso
ao meu corpo, 180 gramas ou coisa assim. Sei isto porque me peso cinco
vezes ao dia. Cinco é o meu número da sorte, portanto, esta frequência de
pesagem parece-me adequada. Também quero garantir que acompanho toda
e qualquer transformação no meu corpo, para que possa fazer os ajustes
necessários e estar no bom caminho para as minhas sessões de pesagem
semanais com a Mãe.
As minhas comidas preferidas são os gelados de gelo sem açúcar, puré de
maçã e chá gelado sem açúcar, porque são as comidas que parecem não
acrescentar peso. Os gelados e o puré de maçã não acrescentam nada, e o
chá gelado sai no chichi. Para mim, são comidas sem stress. Comidas
seguras. Comidas reconfortantes. Quem quer que tenha dito que massa com
queijo e galinha frita era comidas reconfortantes não estava bom da cabeça.
Estas é que são as comidas reconfortantes a sério.
A Mamã e eu continuamos a nossa missão e eu estou encantada. Cada dia
me lembra a montagem dos gémeos em Pai para Mim... Mãe para Ti, onde
eu e a Mãe damos beijinhos à esquimó e fazemos danças tolas com as mãos
entre as nossas pesagens semanais e contagens calóricas diárias. (Vi o filme
depois de a Mãe ter sugerido que o meu guião, Henry Road, era uma cópia.
Ela tinha razão.) A restrição calórica aproximou-me ainda mais da Mãe do
que antes, o que é dizer muito, porque já éramos muito próximas. A
restrição calórica é maravilhosa!
Estamos há seis meses no nosso plano de restrição calórica e já se nota
uma diferença clara. Passei a usar três números abaixo; uso agora um
tamanho infantil. . O Espírito Santo diz-me para tocar a palavra “slim” na
etiqueta cinco vezes, todos os dias, porque esse ritual, acompanhado da
restrição calórica, me manterá pequena. Obrigada, Espírito Santo!
No geral, as coisas correm bem. Mas hoje é uma exceção.
Hoje estou cheia de ansiedade, porque estou sentada na sala de espera do
gabinete do meu médico à espera de que me chamem. E esperar que me
chamem significa esperar para ser pesada. Estou aterrada por ter de me
pesar numa balança que não a minha. E se os números estiverem errados? E
se pesar mais nesta?
A Mãe parece pressentir que estou nervosa e, por isso, dá-me a mão
enquanto esperamos. E esperamos. E esperamos. Até que, finalmente…
“McCurdy, Jennette,” chama a assistente do médico. O meu coração
começa aos saltos retumbantes e tenho a certeza de que toda a gente na sala
consegue ouvir. Sinto a cara quente. O tempo esbate-se enquanto atravesso
a porta da sala de espera para o vestíbulo. A Mãe começa a tirar-me o
casaco de bombazina da Children’s Place, sabendo que ele acrescenta peso.
Estamos nisto juntas. A enfermeira diz-me que posso ficar de sapatos, mas a
Mãe manda-me tirá-los. Sempre atenta! Atiro com os sapatos e subo para a
balança. A Mãe e eu cruzamos o olhar.
– Vinte e sete quilos e seiscentas – diz a enfermeira enquanto escrevinha
na folha na prancheta.
Quando ouço as palavras saírem-lhe da boca, parecem-me deformadas e
distorcidas. Estou arrasada. A balança de casa dizia vinte e seis vírgula sete.
Tento logo ler a expressão na cara da Mãe. Está impávida, o que significa
desilusão. Fico ainda mais arrasada. Somos escoltadas até ao gabinete 5,
com o meu número da sorte a parecer dar-me algum azar, neste momento.
Arrasto o pequeno banco-degrau e sento-me no papel com ursinhos da
marquesa dos pacientes. É áspera e estreita. A assistente faz mais umas
perguntas, depois sai e fecha a porta. Abro a boca para dizer qualquer coisa,
mas a Mãe fala antes de mim.
– Depois falamos sobre isso.
Passam uns minutos e entra a Dra. Tran. Fico triste que seja a Dra. Tran
em vez do Dr. Pelman, porque a mãe parece muito mais bem-disposta
quando é o Dr. Pelman. (Se não fosse contra as Escrituras, pensaria que a
Mãe tinha um fraquinho por ele, mas sei que não, porque a luxúria é pecado
e a Mãe nunca pecaria). A Dra. Tran não levanta os olhos da prancheta.
– Debbie, posso falar consigo em privado por um minuto?
A Mãe vai lá fora com a Dra. Tran. As portas são suficientemente finas e a
Mãe fala suficientemente alto para que eu as ouça perfeitamente.
– Então… Queria falar consigo sobre o peso da Jennette – começa a Dra.
Tran. – Está significativamente abaixo do que é normal para a idade dela.
– Hã? – diz a Mãe, com uma voz um pouco ansiosa. – Ela está a comer
normalmente. Não dei por mudança nenhuma.
Não é verdade. A Mãe reparou nas mudanças porque foi ela que as
desejou para começar.
– Bem… – a Dra. Tran inspira fundo. – Às vezes, quando as raparigas
pequenas têm anorexia, são muito reservadas quanto aos seus hábitos
alimentares.
É a primeira vez que ouço a palavra “anorexia”. Parece um nome de
dinossauro. A Dra. Tran continua.
– Sugiro que fique de olho no comportamento alimentar da Jennette.
– Oh, ficarei, Dra. Tran. Ficarei de certeza – garante-lhe a Mãe.
Estou confusa. A Mãe já anda de olho no meu comportamento alimentar.
Está tão envolvida nele quanto eu, se não mais. A Mãe não só sabe tudo
sobre quando e o que eu como, mas encoraja e apoia os meus hábitos. O que
se passa? O que significa isto?
Uns meses depois, volto a ouvir a palavra “anorexia” no parque de
estacionamento do meu estúdio de dança, depois das aulas. Estou no banco
da frente, à espera de que a Mãe chegue, enquanto decoro umas cenas para
uma audição para fazer de filha do Val Kilmer num filme que aí vem.
A Mãe vem buscar-me sempre com vinte a quarenta e cinco minutos de
atraso, o que faz sentido, porque ela está tão ocupada com outras coisas,
como ligar aos cobradores de dívidas a pedir extensões do prazo, ou a
passar pelo Westminster Mall para comprar postais da Hallmark para
agradecer a todos os diretores de casting para quem representei nos últimos
seis meses. (“Eles podem não se lembrar do que representaste, mas vão
lembrar-se de um postal a agradecer, com uma letra cursiva toda catita na
parte da frente!”)
Reparo que a mãe da Anjelica Gutierrez anda a vaguear à volta da
carrinha dela, ainda que a última aula da Anjelica tenha sido a mesma que a
minha e as Gutierrez costumem sair a horas. Depois, vejo a carrinha Ford
Windstar acobreada da Mãe a virar à esquerda para a rua do estúdio e a
estacionar no parque. Pego no meu saco da dança e começo a dirigir-me ao
carro, mas a Sra. Gutierrez chega lá primeiro. Aproxima-se da janela do
passageiro da Mãe e pede-lhe que a desça.
– Olá, Deb, só queria falar contigo num instantinho sobre a Jennette.
Reparei que ela está a perder muito peso. Dir-se-ia que pode ter uma
anorexia. Queria saber se lhe andas a procurar ajuda. Outra rapariga da
turma teve o mesmo problema, e a mãe dela deu-me o nome de um
especialista…
– Falemos sobre isto noutra altura.
A Mãe interrompe a Sra. Gutierrez de uma forma que me diz que essa
“outra altura” nunca chegará. Abro a porta do carro e salto lá para dentro. E,
com isso, pomo-nos a caminho de casa.
– Mãe? – pergunto quando paramos num semáforo.
– Sim, minha querida?
– O que é anorexia?
– Oh, não te preocupes, meu anjo. As pessoas gostam de ser dramáticas.
A luz fica verde. Ela carrega no acelerador.
– Decoraste as tuas falas?
– Sim.
– Ótimo. Ótimo. Tens boas hipóteses com este filme, Net. Sinto-o. O Val
é loiro, tu és loira, já é meio caminho andado.
– Ahã.
– É mesmo meio caminho andado.
Olho pela janela, depois volto à tarefa de decorar as falas. Estou
entusiasmada com o gelado sem açúcar que comerei quando chegar a casa.
26.
Hoje é o dia em que entro nas Colmeias, o programa da igreja para
raparigas dos doze aos treze anos. Quando se entra no programa, atribuem-
nos um “papel” e o papel que acabam de me atribuir é de secretária
assistente, um cargo que nem sequer existe.
– Mas a Madison já é secretária – digo à Irmã Smith, a minha professora.
– O que devo eu fazer?
– Bem, podes ajudá-la.
Desvio o olhar para as minhas unhas para esconder a desilusão. A
Makaylah Lindsey inclina-se para falar comigo.
– As raparigas que recebem bons cargos são aquelas que vão, de certeza,
ser sempre ativas.
Odeio a Makaylah. Sei que ela foi adotada e que eu devia ter pena dela e
tal, mas não tenho. Odeio-a, pura e simplesmente. E ela continua.
– Deram-te esse cargo porque acham que acabarás por ficar inativa.
“Inativo” é quase um palavão na igreja mórmon. Os membros ativos são
aqueles que assistem regularmente ao serviço. Os inativos são os que
“ficaram para trás” ou deixaram de aparecer, ainda que continuem nos
registos da igreja. Sempre que um membro inativo é mencionado numa
conversa na igreja, o nome do membro é dito com um franzir de nariz e um
tom sussurrado, como se fosse algo vergonhoso e patético.
– Não vamos ficar inativos.
– É o que veremos – diz a Makaylah, encolhendo os ombros.
Ainda que eu deteste a Makaylah e queira desesperadamente que ela
esteja errada, temo que possa estar certa. Se eu pensar bem, já há alguns
sinais.
Desde que me lembro que a minha família não corresponde à imagem de
“Mórmones de Primeira”. Em cada ala de Santos do Último dia, há tipos de
mórmones que têm uma assiduidade perfeita nos seminários e sabem de cor
e salteado os versos do Terceiro Néfi9. É o tipo de mórmones em quem se
confia que tragam a tarte de frango para os encontros, que são claramente
capazes desse nível de responsabilidade. Esses são os Mórmones de
Primeira.
E depois há o tipo de mórmones que se baldam à dízima e chegam sempre
vinte minutos atrasados ao serviço. O tipo de mórmones a quem se diz “vá,
traz mas é a salada”, em quem não se pode confiar mais responsabilidade
para lá de umas alfaces de saco com croutons velhos pré-misturados. Esses
são os Mórmones de Segunda.
Nós, os McCurdy, somos Mórmones de Segunda. Já há uns tempos que o
sabia. Os de Primeira olham os de Segunda com um certo dó, e eu já
pressenti esse dó nos cantos dos olhos da Irmã Huffmire e da Irmã Meeks,
ambas de Primeira.
Toda a gente sabe que os de Segunda são muito mais propensos a ficarem
inativos do que os de Primeira, mas, ainda assim, não pensava que o nosso
destino estivesse assim tão traçado. Tinha a certeza de que podíamos
reverter o nosso estatuto de Segunda com um qualquer acontecimento
importante para os mórmones, como o Marcus servir numa missão ou nós
nunca mais faltarmos ao serviço.
Mas agora que a Makaylah falou nisso e eu fiquei a matutar, começo a
aceitar o facto de que esses acontecimentos importantes para os mórmons
talvez não venham a acontecer.
O Marcus já tem idade para ir em missão há vários anos, mas nunca foi.
E, ainda que não haja um limite de idade para o fazer, os homens têm
setenta por cento menos probabilidade de ir, se não forem durante o
primeiro ano em que têm essa capacidade, segundo a revista mórmon
Ensign (a única revista, para além da Woman’s World, que a Mãe costuma
ler). A Mãe diz que a culpa é da namorada do Marcus, a Elizabeth, e que ela
tem o diabo no corpo, mas eu não tenho a certeza. A Elizabeth parece-me
porreira.
Também começámos a faltar ao serviço em algumas semanas, geralmente
por volta do lançamento dos episódios de séries em que eu sou artista
convidada. Começou com a Lei e Ordem: Unidade de Vítimas Especiais,
quando a Irmã Salazar perguntou à Mãe se ela achava que estava “em
conformidade com o Evangelho” que eu retratasse uma vítima de violação
de nove anos. A Mãe fez uma defesa brilhante sobre como pensava que o
valor de haver uma estrela da TV mórmon era mais importante do que os
papéis que essa estrela desempenhasse. A Irmã Salazar largou o assunto por
uns tempos, até que eu apareci num episódio de uma série onde fazia de
uma criança que assassinava outra. Desde então, sempre que passa na
televisão um episódio de uma série em que eu entre, faltamos à igreja uma
semana ou duas, para “evitar os moralistas”, como diz a Mãe.
Independentemente das razões, andamos a faltar ao serviço. E faltar ao
serviço é o oposto do acontecimento importante para os mórmones
necessário para fazer de nós mórmones de Primeira.
– Mãe? – pergunto, quando estamos de novo em casa, a dobrar juntas a
roupa lavada.
– Sim, minha querida?
– Vamos tonar-nos mórmones inativos?
– Claro que não. Porque perguntas isso, sequer, Net?
– A Makaylah disse que a razão para eu ter sido nomeada secretária
assistente é porque eles pensam que é provável que nos tornemos inativos.
– Oh, vá lá! O que sabe a Makaylah Lindsey? Ela foi adotada.
9
O Livro de Mórmon divide-se em quinze livros menores. O Terceiro
Néfi corresponde ao 11.º e é visto como o mais importante,
respeitando à visita do Salvador às antigas Américas. (N. da T.)
27.
– Net! Hora do duche! – grita a Mãe de outro quarto.
Todo o meu corpo fica paralisado. Oh, não! Hora do duche.
Há uns tempos que abomino o duche; há coisa de cinco anos. Ou seja,
desde que me comecei a sentir pouco à vontade por a Mãe ainda me dar
banho.
Não é intenção dela fazer-me sentir pouco à vontade, acho eu. Ela diz
sempre que tem de me dar duche porque eu não sei usar o champô nem pôr
o amaciador no cabelo. Ela diz que, se não fosse tão comprido ou com uma
textura tão específica, talvez ela não tivesse de o fazer, mas como é todas
essas coisas e como ela foi uma cabeleireira profissional, faz sentido que o
faça.
A Mãe dá-me duche comigo e com o Scottie, por vezes. Ele tem quase
dezasseis anos, por esta altura. Eu fico muito envergonhada quando ela nos
põe juntos no chuveiro. Vejo que ele também fica. Geralmente, olhamos
cada um para seu lado, e o Scott distrai-se a desenhar Pokémons no vidro
embaciado. Ele faz um Charizard bem fixe. Quando ela nos faz tomar banho
juntos, a Mãe diz que é porque tem demasiadas coisas para fazer. Uma vez,
o Scott perguntou se podia tomar duche sozinho. A Mãe soluçou e disse que
não queria que ele crescesse, portanto, ele não voltou a perguntar.
Esteja lá o Scott connosco ou não, a Mãe faz-me sempre um exame ao
peito e ao “rabo da frente”, que é como chama às minhas partes íntimas. Ela
diz que é para garantir que não tenho altos nem caroços misteriosos, porque
esses podem ser cancro. Eu digo que está bem, porque de certeza que não
quero ter cancro e, já que a Mãe teve e tal, ela saberá ver se eu tiver.
Normalmente, tento pensar na Disneylândia enquanto a Mãe me faz os
exames. Penso na próxima vez que o Avô nos inscreverá para lá ir. Penso no
desfile, nos fogos de artifício, nas personagens todas felizes e por aí fora.
Quando os exames acabam, sinto uma enorme onda de alívio a percorrer-
me o corpo e, normalmente, apercebo-me de que me esqueço que ele existe.
É estranho… enquanto os exames decorrem, sinto-me fora de mim mesma.
Como se o meu corpo fosse uma concha da qual estou desligada, e vivo
inteiramente nos meus pensamentos. Os meus pensamentos da Main Street,
da Fantasyland, da Mr. Toad’s Wild Ride. (Na verdade, não costumo pensar
na Mr. Toad’s Wild Ride, porque, por muito que as pessoas adorem, acho
essa atração medíocre.)
– Net? – volta a chamar a Mãe.
O meu corpo continua paralisado. Engulo em seco e obrigo uma resposta
a sair da garganta.
– Estou pronta!
Hoje, ela vai dar-me banho sozinha. Sei isso porque tenho uma audição
para o House amanhã e reparei neste padrão em que, sempre que tenho uma
audição, a Mãe dá-me banho sozinha. Penso que é porque quer garantir que
me põe o champô e o amaciador exatamente como deve ser, para que o meu
cabelo fique perfeitamente brilhante para o diretor de casting. A Mãe diz
que este é um ramo de frivolidades e que um cabelo brilhante pode ser
decisivo quando se trata de ser chamada para uma segunda audição.
É com uma respiração trémula que pouso o trabalho escolar e me levanto
do sofá. Tenho as mãos suadas. Tento concentrar-me no alívio que sentirei
assim que os exames tiverem acabado e eu saiba que o duche está quase no
fim. Tento concentrar-me nessa leveza. Nessa sensação de que tudo está
melhor e mais agradável para o resto da noite. Eu tento. Tento. Tento.
Chego à casa de banho. A Mãe não me deixa abrir a torneira porque diz
que é complicado girar as pegas e conseguir a temperatura certa, portanto,
espero por ela. Enquanto espero, tiro as calças, depois as cuecas, depois a t-
shirt. Entro no duche e ouço o pingar da torneira que tem uma fuga.
Examino o bolor à volta dela. É branco, azul e faz uma crosta. Ouço os
passos da Mãe a aproximar-se da casa de banho. Lá vou eu para a Terra da
Fantasia.
28.
Estou sentada no banco de trás do Ford Windstar. Vamos à loja da Art
Supply Warehouse, visitar o Dustin, no turno dele. O Dustin parece detestar
que o façamos, mas a Mãe adora. Acho que ela gosta de conhecer pessoas
que trabalham nos sítios que ela visita. Acho que a faz sentir-se mesmo VIP.
A pose e a energia dela transformam-se completamente quando entra na
Best Buy para visitar o Marcus ou no guiché dos bilhetes da Disneylândia
para visitar o Avô. Ela fica com uma espécie de aura, como se fosse dona
daquilo. Adoro ver a Mãe tão confiante.
Durante o percurso, a Mãe está ao telefone com um cobrador, a pedir um
prolongamento do prazo, quando se vira para mim toda entusiasmada.
– A Susan está a ligar!
Sei porque é que a Susan está a ligar. Ontem, fiz um screen test para uma
série chamada iCarly, um novo programa da Nickelodeon sobre jovens
adolescentes que criam juntas uma série na internet. E, na semana que vem,
é suposto fazer um screen test para uma série chamada Californication, um
novo programa da Showtime sobre um homem que maltrata mulheres.
Quando se chega ao momento de fazer um screen test para um programa de
televisão, eles já têm todos os contratos escritos e, ao que parece, é bom que
se façam testes para mais de uma série ao mesmo tempo, porque o nosso
agente pode usar isso como “margem de manobra” para conseguir o melhor
negócio possível. (A Mãe adora usar a expressão “margem de manobra” nos
telefonemas com a Susan. Fá-lo para parecer que “está por dentro”.) Há
também uma regra estranha em que a série que testar primeiro, seja ela qual
for, tem prioridade a decidir se fica connosco ou não. Ficam com um
intervalo determinado de tempo para decidir se nos querem de certeza;
depois, se não tiverem decidido até ao fim do prazo, a prioridade passa para
o outro canal.
Eu fiz o teste para o iCarly ontem, portanto, eles têm prioridade para
decidir se me querem. A Susan a ligar agora significa que a Nickelodeon se
decidiu.
Por entusiasmada que esteja para falar com a Susan, a Mãe termina
primeiro a chamada com o cobrador, como faz sempre.
– Não vou interromper a chamada depois de ter ficado uma hora em
espera.
A Mãe choraminga até conseguir um prolongamento, mas, quando desliga
a chamada com o Brandon da Sprint PCS, as lágrimas já secaram. Enquanto
marca o número da Susan, estica a mão para trás, na minha direção. Estou
sentada na minha cadeirinha para crianças. (Tenho catorze anos e continuo
na cadeirinha.) Tenho de me atirar para a frente o mais que consigo para lhe
agarrar a mão, já que o cinto de segurança atravessa o assento infantil, o que
lhe encurta a extensão e o faz bloquear mais cedo. Assim que me inclino
para agarrar a mão da Mãe, o cinto faz um clique e bloqueia. Tento alcançar
a mão dela, mas não consigo. Clic, clic, clic.
– Estou, posso falar com a Susan? Fala a Debbie McCurdy.
Clic, clic. A mão da Mãe agita-se a tentar encontrar a minha. Os nossos
dedos quase roçam.
– Sim, está bem, acho que consigo deslindar como pôr isto em alta-voz.
A Mãe carrega em botões à-toa no telefone até que qualquer coisa
funciona e a voz da Susan começa a sair aos berros dos altifalantes do
telemóvel.
– Ela conseguiu o iCarly! Ela conseguiu o iCarly!
A mão da Mãe voa para a frente para acompanhar o “uhu!” dela numa
coisa que só pode ser descrita como um soco no ar duvidoso. O que quer
que seja, leva a mão dela para longe da minha e todo o meu corpo o sente.
Mas só por um segundo. Então, cai-me a ficha. Consegui o meu primeiro
papel residente numa série.
Quando a Mãe estaciona no parque da Art Supply Warehouse, estamos as
duas a berrar em plenos pulmões. Ela estaciona num lugar reservado para
deficientes – está radiante por ter um cartão para deficientes desde o
diagnóstico da diverticulite. Eu desaperto o cinto de segurança o mais
depressa que consigo.
Salto para os braços da Mãe. Ela aperta-me. Estou exultante. Tudo será
diferente, doravante. Tudo será melhor. A Mãe andará finalmente feliz. O
sonho dela concretizou-se.
29.
– Oooh, um cesto de fruta!
A Mãe desata o atilho e começa a retirar o embrulho de celofane.
– O ananás tem muito açúcar, mas podes comer um pouco da meloa e do
melão.
– Está bem!
A Mãe tira duas espetadas de meloa do cesto. Quando está prestes a
passar-me a minha, muda de ideias e volta a pô-la no sítio.
– Podemos partilhar uma – diz ela.
Começamos a mordiscar os nossos bocados de meloa cortados em forma
de flor enquanto olhamos em volta, para os outros cestos no meu camarim.
Há um cesto de chás da Coast to Coast, um cesto “spa em casa” da Susan, e
um cesto de carnes e queijos da Nickelodeon.
– Podemos levar um para casa, para o Avô e para os rapazes – diz-me a
Mãe.
Esta é a primeira diferença em que reparo de ser parte do elenco principal
de uma série. Recebe-se muitos cestos. Nunca recebi um único cesto em
todos os meus anos como atriz convidada. (Ainda que, quando fiz a minha
aparição especial em Karen Sisco, o Robert Forster me tenha oferecido uma
caneta de prata com o meu nome gravado e tenha oferecido à Mãe uma
ferradura de prata. Que tipo fixe!)
Hoje é o nosso primeiro dia de volta ao trabalho, depois de ter sido
escolhida oficialmente para uma primeira temporada encomendada. Depois
de se filmar o piloto de uma série de televisão, os administradores do canal
veem todos os pilotos e escolhem cerca de um terço para serem
desenvolvidos numa série. Fizemos parte do terço com sorte e, coisa ainda
mais fixe, conseguimos a encomenda com o maior número de episódios de
todas as séries escolhidas. A maioria teve encomendas de dez a treze
episódios. Nós tivemos vinte. A Mãe diz que isto se deve, provavelmente,
ao meu desempenho fenomenal como Sam Puckett, uma maria-rapaz de
língua afiada e indisciplinada, mas com um coração de ouro, que,
ironicamente, dada a minha experiência com o assunto, adora comida.
– Estás pronta para rever as falas, meu anjo? – pergunta a Mãe.
– Claro – digo eu, ainda que nunca esteja pronta.
Ainda fico nervosa ao ensaiar as falas com a Mãe. A ideia de eu ser
escolhida como elenco principal de uma série podia tê-la feito descontrair
um pouco, mas não. Continua sempre tão crítica! É stressante.
Respiro fundo e preparo-me para a primeira fala, quando se ouve uma
pancada forte na porta do meu camarim.
– Vai abrir – diz a Mãe, dando-me uma palmada na coxa, exasperada por
ser interrompida uma segunda vez.
Eu abro a porta roxa e, na alcatifa à minha frente, está mais um cesto.
Este está cheio de guloseimas de sala de cinema: chocolates e gomas, e uns
pacotes de pipocas. No meio do cesto, está um vale de cem dólares para o
ArcLight, o cinema mais chique que já vi, apenas a uma rua de distância dos
Nickelodeon Studios, onde estamos a filmar a série. A Mãe e eu quase
vimos um filme no ArcLight na semana em que filmámos o piloto, mas a
Mãe disse que nem pensar que pagaria 13,75 dólares por um bilhete de
cinema. “Quero lá saber quão envolvente é o som deles.”
Este vale é o vale com mais dólares que alguma vez vi. Quase nem
acredito.
– Vem da Miranda – digo à Mãe, chocada. – Cem dólares para o
ArcLight.
A Miranda é a minha parceira no elenco do iCarly. Ela faz o papel que dá
o nome à série, o de Carly Shay – uma adolescente doce e feminina que,
com os melhores amigos Sam e Freddie (desempenhado pelo meu outro
parceiro, Nathan), cria uma série na internet. A Mãe diz que eles não
desenvolveram bem a personagem da Miranda. “Coitada da rapariga, é a
que tem mais exposição. É uma miúda bonita, mas é uma pena que a
personagem dela não tenha personalidade.”
Eu olho outra vez para o cesto. Estou muito surpreendida por outra atriz
criança ser tão simpática comigo. Geralmente, há um sentimento de
competição. Este gesto é o oposto disso. Estou comovida. Deito a mão na
direção do cesto.
– Nem penses que te vais chegar perto desses Milk Duds, mas ela foi
muito simpática. Agora, vamos ensaiar as falas.
30.
– Então, e isto? – pergunta a Mãe levantando no ar um panda de peluche
com um “obrigado”. Estamos na Hallmark Greeting Cards, no Westminster
Mall. Como a Miranda me deu um presente para comemorar o início da
temporada, estamos a escolher um para ela também. A Mãe agita o panda.
– É um pandinha bem giro. Além disso, rima com o nome dela. Miranda.
Panda. É fofinho, não é?
– Sim, muito fofinho. Mas, se calhar, devíamos procurar mais um bocado,
para garantir que lhe arranjamos mesmo a melhor das prendas.
– Bem, diria que isto e o diário felpudo e já chega, não é? – pergunta a
Mãe.
– Sim. É.
Engulo. Não, não chega. A Miranda deu-me um vale muito caro para um
cinema muito chique. Essa, sim, é uma prenda fixe. Um peluche com
“obrigado” e um diário felpudo não é, notoriamente, uma prenda fixe.
Eu costumava pensar que estas coisas eram prendas fixes até há uns
meses. Até há uns meses, pensava que as minhas bocas-de-sino com o arco-
íris da Children’s Place e os meus livros de passatempos da Limited Too
eram fixes. Mas, desde que conheci a Miranda, o meu radar para o fixe
transformou-se.
A primeira vez que a vi foi no screen test para o iCarly. Ela estava
encostada a uma parede, a beber Coca-Cola de uma garrafa de vidro e a
escrever mensagens no seu telemóvel Sidekick. Ena! Coca-cola e um
Sidekick. Esta miúda sabe o que está a dar.
Falámos brevemente durante o screen test, mas não muito além das
apresentações, porque fomos apressadas a entrar na sala para fazermos as
nossas cenas juntas, diante de uma longa mesa de administradores.
Também não falámos muito durante as filmagens do piloto. Eu senti-me
tímida e pareceu-me que ela também. Ensaiámos as nossas falas entre takes
e trocámos um entusiástico “Adeus! Até amanhã!” no fim de cada dia, mas
não houve muito mais pelo meio.
Mas eu estudava-a à distância. A Miranda parecia ter uma independência
que eu não tinha, e isso fascinava-me. Ela ia sozinha buscar comida a um
restaurante próximo, diferente todos os dias. Sozinha! Como seria? Depois,
eu ouvia sempre quando ela voltava a pé para o estúdio, porque vinha a
tocar Gwen Stefani ou Avril Lavigne no Sidekick. Já tinha ouvido falar
destas novas artistas, mas a Mãe não me deixava ouvi-las porque dizia que a
música delas podia dar-me vontade de “fazer coisas más”.
No plateau, a Miranda dizia palavrões como “merda” e “cu”, e invocava
o nome do Senhor em vão pelo menos quinze vezes por dia. A Mãe avisou-
me de que não me aproximasse demasiado da Miranda porque ela não
acredita em Deus. (Mas posso aproximar-me do Nathan, diz a Mãe, porque
ele acredita. “Os batistas do sul não são mórmones, mas, pelo menos, temos
Jesus em comum.”)
Ainda que a Mãe tenha dito para não me aproximar da Miranda, eu queria
mesmo fazê-lo. Queria que alguma da pinta dela me contagiasse. Eu fazia
figas para que, de uma qualquer forma, apesar da nossa timidez mútua, se
desenvolvesse uma amizade entre nós.
Mas, infelizmente, parecia pouco provável. A cada dia que passava em
que não trocávamos números de telefone, eu sentia que nos afastávamos
cada vez mais de uma potencial amizade. Até que, no último dia das
filmagens do piloto, estava a Miranda a ir-se embora do estúdio, quando se
virou e disse:
– Ei, Jennette, tens AIM?
– Nem por isso – disse eu, a pensar que ela falava em atirar coisas. Nunca
tive boa pontaria10.
– Não tens o AOL Instant Messenger? – Ela parecia chocada.
– Oooooh, AIM – disse eu, esperando soar convincente, como se soubesse
o que era, embora não fizesse ideia. – Sim, tenho.
– Fixe. Adiciona-me.
– Fixe.
E foi sentido.
Assim que cheguei a casa nesse dia, pus o Marcus a criar-me uma conta.
Pelo AIM, a nossa amizade floresceu. Eu e a Miranda passámos horas a
trocar mensagens todos os dias. Às vezes, a Mãe passava por mim e
perguntava-me o que estava a fazer e eu dizia-lhe que estava a conversar
com a Miranda, mas, na maioria das vezes, encolhia a janela da conversa no
AIM e mentia, dizia que estava a fazer os trabalhos da escola. Ela não me
fazia mais perguntas. Saía do quarto e eu voltava a aumentar a janela e
desatava a rir.
Ainda que, em pessoa, a Miranda parecesse tímida e calada, tinha uma
personalidade distinta e hilariante através das palavras escritas. Tantas das
coisas que ela dizia me faziam rir! A forma como ela observava as coisas –
as pessoas, os costumes, a natureza humana… Eu adorava-a. E estava
entusiasmadíssima por nos estarmos a tornar amigas.
Mas agora as prendas foleiras da Mãe iam estragar tudo.
De volta ao trabalho, pousei o saco dos presentes no chão e bati três vezes
à porta do camarim da Miranda. Depois, corri para o meu. Não queria ver a
cara dela quando abrisse o peluche e o diário felpudo. Estava demasiado
envergonhada.
A Miranda, a princípio, não fala nos presentes, e não o faz durante quase
todo o dia de trabalho. Temo que a nossa amizade tenha acabado.
Mas, a caminho do estacionamento com as nossas mães, ao fim do dia,
ela vira-se para mim e, com um riso nervoso, diz:
– Obrigada pelo peluche. É muito fofinho.
– De nada.
– E também pelo diário. Estou entusiasmada para voltar a escrever um
diário.
– Que bom!
Ela sorri-me. Não sei se está só a ser simpática. Mas agradeço a gentileza.
– Depois vemo-nos no AIM – diz ela, a acenar.
– Está bem – digo eu, entusiasmada. Um pouco entusiasmada demais.
Mesmo que ela não tenha gostado do panda e do diário felpudo, mesmo que
ela estivesse só a ser simpática quando me agradeceu, ela ainda quer ser
minha amiga. Estou muito feliz por ter AIM.
10
“Aim”, em inglês, quer dizer “pontaria”. AIM era um sistema de
troca de mensagens em tempo real, popular no fim dos anos 1990 e
descontinuado em 2017. (N. da T.)
31.
Estou de pé por trás da cortina no camarim do estúdio onde filmamos a
série. Tenho os braços cruzados à volta do meu corpo. O meu pé bate
ansiosamente. Não quero sair de trás da cortina.
– Sai lá daí, Net, eles vão só tirar uma fotografia e ficas despachada.
– Está bem.
Saio cá para fora. Sinto as bochechas a corar de vergonha. Odeio esta
sensação, a sensação de que uma grande parte do meu corpo está exposta.
Parece-me sexual. Estou envergonhada.
– Estás ótima – grita a assistente de guarda-roupa que está sempre a coser
do outro lado da sala, sem levantar os olhos da máquina de costura.
Preocupa-me que “ótima” queira dizer “sexual”. Cruzo os braços à volta
do corpo para tentar tapá-lo ainda mais. Arqueio os ombros, como que para
formar uma pequena gruta que me proteja. Não quero parecer demasiado
sexual. Quero parecer uma criança.
– Vou insistir no fato de banho completo, sem dúvida, mas obrigada por
me fazeres a vontade e provares o biquíni – diz a chefe de guarda-roupa
enquanto apanha o cabelo num carrapito, que prende com pauzinhos
chineses.
– De nada – digo eu, incapaz de olhar para ela ou para a Mãe, que está
sentada nas escadas no canto oposto da sala.
– Baixa os braços, meu anjo, tenta parecer mais à vontade – diz-me a
Mãe.
Baixo os braços. Não fico mais à vontade.
– Ombros para trás.
A Mãe aponta para os seus ombros, para dar o exemplo.
Ponho os ombros para trás da forma que ela adora e eu detesto. Não gosto
de espetar o peito. Não tenho orgulho no meu peito nem nos seus pequenos
mamilos florescentes, e a única razão para alguém espetar o que quer que
seja é ter orgulho nisso. Eu odeio isto. Quero acabar com esta prova de
guarda-roupa. Perguntei se podia provar só fatos de banho completos com
calções largos, que é como me sinto mais confortável. Com o corpo coberto.
Mas a figurinista disse que O Criador tinha pedido especificamente
biquínis, por isso, ela tinha de me dar a provar um ou dois, pelo menos, para
ele poder escolher.
– Pronto, dá uns passos na minha direção para eu poder tirar uma
fotografia – diz-me a figurinista, aproximando a Polaroid dos olhos.
Avanço uns passos. Ela tira a fotografia.
– O que dizes? Queres provar o último biquíni? – pergunta-me ela, como
se fosse tentador. Fico confusa quando as pessoas dão uma volta a uma
frase, para tentar compensar o facto de que o que estão a dizer é
desagradável.
– Posso só… hum… posso passar? – pergunto. – Posso ficar-me pelo que
acabei de provar?
– Bem, ele quer alternativas – diz a figurinista, sacando de um
exageradíssimo “já o conheces”, que comigo não colhe. Porque não o
conheço. Nem por isso. Só o vi umas vezes. Ele parece-me efusivo e
exuberante, mas a Mãe diz que ouviu rumores de elementos da equipa de
que ele “ferve em pouca água” e que é bom “que não embirre connosco”.
Roo as unhas.
– Vá lá, Net, só mais um – incita-me a Mãe.
– Está bem – digo eu.
Provo um último biquíni. É azul, com uma risca verde nas bordas. Há uns
laços nos botões. Odeio a forma como os laços me caem para as pernas.
Sinto-me enjoadíssima. Olho para mim no espelho do camarim.
Sou pequena. Sei que sou pequena. Mas preocupa-me que o meu corpo
esteja a lutar contra a pequenez. Está a tentar desenvolver-se. Crescer. Sinto
que já mal seguro o meu corpo de criança e a inocência que este acarreta.
Aterroriza-me ser vista como um ser sexual. É nojento. Não sou isso. Sou
isto. Sou uma criança.
Saio do camarim. A figurinista tira uma fotografia.
– Estás ótima – diz outra vez a costureira-sempre-a-costurar, sem olhar
para cima.
32.
Os nossos lábios tocam-se. Ele move um pouco a boca, mas eu não consigo
mover a minha. Estou paralisada. Os olhos dele estão fechados. Os meus,
não. Os meus estão abertos, a olhá-lo fixamente. É tão estranho fitar alguém
enquanto as caras se tocam. Não gosto. Posso cheirar-lhe o gel do cabelo.
– Mexe um pouco mais a cabeça, Jennette! – grita O Criador, fora de
campo.
Às vezes, mesmo com a câmara a rodar, os produtores e realizadores
gritam coisas fora de campo. Desde que não se sobreponham a um diálogo,
o montador pode simplesmente remover os gritos na pós-produção.
Tento fazer o que O Criador me manda, tento sinceramente, mas não
consigo obrigar-me a mexer-me. O meu corpo está hirto. Impávido. O meu
corpo está a rejeitar a minha mente. A minha mente diz: “Mas quem é se
rala que isto seja o teu primeiro beijo, que o teu primeiro beijo seja à frente
da câmara. Acaba lá com isso. Faz o que te mandam!” O meu corpo diz:
“Não, não quero isto. Não quero que o meu primeiro beijo seja assim.
Quero que o meu primeiro beijo seja um primeiro beijo a sério, não um
beijo para uma série de televisão.”
Desprezo a parte de mim que é romântica. Envergonha-me. A Mãe foi
muito clara: os rapazes são uma perda de tempo, só me vão desiludir, e eu
devia concentrar-me apenas na minha carreira, o que eu percebo. Então,
tento correr com esta minha parte à força. Mas, por mais que tente, a minha
parte romântica continua cá. E já cá anda há uns tempos.
Por vezes, penso nos rapazes. Como seria amar um deles. Pergunto-me se
um deles me amará alguma vez. Imagino-nos a assistir juntos ao fogo de
artifício da Disneylândia, a dar a mão, imagino-me a pousar a cabeça contra
o peito dele, a rirmo-nos juntos. Costumava perguntar-me como seria um
beijo. Como funcionaria. É coisa que não se pode treinar antes do tempo.
Acontece e pronto, a certa altura. Deixamo-nos ir e pronto? É difícil? A que
sabem os lábios? Estas são perguntas para as quais agora, neste preciso
momento, já tenho resposta.
Podes tentar deixar-te andar, e se fores como o Nathan, o ator que
contracena comigo, parece possível. Mas, se fores como eu, não dá. Se fores
como eu, pensas em cada pormenorzinho do que se está a passar e tens a
cabeça a mil, e só queres que aquilo cabe. É difícil. Os lábios sabem a
batom do cieiro Blistex.
Começo a perguntar-me se tudo isto seria diferente se eu amasse a pessoa.
Talvez seja esse o ingrediente secreto. A peça que falta. Talvez, se eu
estivesse a beijar alguém que amasse, isto fosse mágico e incrível e não um
terrível pico de ansiedade.
– Corta! – grita o Criador fora de campo, com a boca cheia de qualquer
coisa. Ouço os passos dele a aproximarem-se de nós; vem nas calmas,
trazendo uma bandeja de papel com uma pilha de fatias de queijo e de
minichocolates sem embalagem. A equipa afasta-se como as águas do Mar
Vermelho, para deixar O Criador passar entre eles e dirigir-se a nós.
O Criador olha-me nos olhos, mas não diz nada durante quatro ou cinco
segundos. Quase começo a rir, a pensar que ele possa estar a meter-se
comigo na brincadeira, como faz às vezes, mas depois percebo que ele
carrega em si uma fúria profunda. Não é altura para risos. Por fim, ele fala.
– Jennette. Mais. Movimento. De cabeça.
Ele vira-se e vai-se embora.
– PORQUE NÃO ESTAMOS A FILMAR? – grita.
As câmaras começam a rodar. Começamos a cena. Nem sei que palavras
me estão a sair da boca, mas quero crer que são as palavras que estavam
escritas no papel, porque ninguém me está a interromper para dizer que
estou a dizer disparates. É uma experiência fora do corpo, fazer a cena que
culminará no beijo. Tenho o coração aos saltos. Tenho as mãos suadas. Cá
vem ele, cá vem ele, cá vem ele.
Aproximamo-nos. Os nossos lábios tocam-se. Os lábios sabem mal. São
como pequenos montes carnudos de carne nojenta. É nojento ser-se pessoa.
Bolas! Eu devia estar a mexer a cabeça. Começo a mexê-la. Para a frente
e para trás. Para a frente e para trás. Balanço-a de um lado para o outro. Não
me parece natural, pelo que tenho a certeza de que não parecerá natural
visto de fora. O Nathan e a sua personagem, o Freddie, afastam-se
finalmente.
– Corta! – grita O Criador. Percebo pelo tom dele que não está contente.
Ele olha para o assistente de realização.
– Temos tempo para mais um?
– Nem por isso, temos de passar à cena J, se o senhor quiser acabar a
horas.
– Seja! – diz ele zangado. – Não ficou ideal, mas PRONTO, avancemos.
Vou comer!
O Criador sai porta fora, a caminho da sala do catering para as suas
batatas fritas, o seu bagel, ou sopa minestrone. Fico a vê-lo afastar-se. Estou
triste por não lhe ter agradado.
– Ei, acabámos – diz o Nathan delicadamente, sabendo como eu estava
nervosa por dar o meu primeiro beijo filmado com ele.
– Pois – digo eu, com um meio sorriso nervoso. – Acabámos.
E assim, sem mais, o meu primeiro beijo está dado. E o meu segundo
beijo, o meu terceiro beijo, o quarto, o quinto, o sexto e o sétimo, já que,
tecnicamente, fizemos sete takes.
33.
– Vê lá se sorris muito. Com os dentes. Quando fazes o teu sorriso sem
dentes, ficas com um ar meio desamparado – diz a Mãe, ao mudar de faixa
para a 405.
Estamos a caminho de um almoço de trabalho com O Criador. Estou
nervosa porque a Mãe diz que está muita coisa em jogo. Ela diz que isto
pode ser um almoço do género “Estou a pensar dar-te um spin-off”, já que é
muito comum que ele escreva séries paralelas para as personagens das
séries que tem em mãos. Pensei dizer à Mãe que acho que vamos ter uma
desilusão, se formos com essa expectativa, mas não abro a boca. Ela sente-
se bem quando tem alguma coisa na minha vida pela qual ansiar.
– E não te esqueças de te mostrar muito interessada em tudo o que ele diz.
Muito empenhada na conversa – diz a Mãe. – E tenta abrir mais os olhos, se
fores capaz. Isso ajuda a realçá-los.
Eu vou acenando que sim.
– E uma de nós devia mencionar o meu cancro, para o termos mesmo do
nosso lado. Posso tratar disso, se quiseres…
– Pode ser.
– Boa. Boa, boa, boa! – diz a Mãe, entusiasmada.
Chegamos a horas ao almoço. O Criador já lá está, de óculos de sol,
mesmo que esteja no interior. Levanta-os quando nos vê. Põe-se de pé à
beira da mesa, começa por abraçar a Mãe e depois dá-me um abraço
apertado, levantando-me do chão.
– McCurdy Curds – diz ele, por fim, voltando a pousar-me e recolocando
os óculos de sol. – A minha atrizinha preferida.
A Mãe fica radiante.
– Sabes, trabalho com muitas atrizes jovens. Muitas delas são bonitas,
algumas são engraçadas, mas nenhuma tem tanto talento como tu.
A cara da Mãe parece que se vai rasgar se ela fizer um sorriso maior. Eu
também sorrio, com os dentes, como a Mãe me mandou.
– Obrigada.
– É a sério – continua O Criador, tirando umas colheres do tártaro de
atum que já tinha mandado vir para o seu prato. – És mil vezes melhor atriz.
Podes vir a ganhar um Óscar, um dia destes.
– Obrigada.
É assim que começam geralmente as conversas com O Criador. Ele cobre-
te de elogios, enquanto diz mal dos outros artistas com quem trabalha.
Agradeço os elogios. O aplauso d’O Criador é importante para mim. É
graças a ele que pertenço ao elenco principal de uma série de televisão. É
graças a ele que eu e a minha família já não temos de nos preocupar com
dinheiro. Mas, ao mesmo tempo, pergunto-me se ele está a tentar virar-me a
mim e aos outros atores uns contra os outros. Pergunto-me se ele diz o
mesmo género de coisas a cada um dos seus atores, para nos mantermos na
linha e pensemos que estamos nas boas graças dele.
Pergunto-me isto porque, agora que trabalhámos juntos numa temporada
de televisão inteira, tive tempo de sobra para me familiarizar com os
métodos d’O Criador. Para o entender.
Sinto que O Criador tem dois lados distintos. Um é generoso e tece
elogios exagerados. Sabe como nos fazer sentir a pessoa mais importante do
mundo. Vi-o fazer isso quando obrigou a equipa toda aplaudir de pé,
durante cinco minutos, o designer de produção pelo cenário de uma cadeia
que ele construíra em dois dias, ou quando fez todo um discurso para
agradecer ao coordenador de duplos. O coordenador chorou de gratidão. O
Criador sabe como fazer as pessoas sentirem-se importantes.
O outro lado é mesquinho, controlador e assustador. O Criador pode dar
cabo de ti e humilhar-te. Vi-lo fazer isso quando despediu uma criança de
seis anos, sem hesitar, por ela se ter enganado numas frases em dia de
ensaio. Ou quando um assistente de som deixou cair acidentalmente a girafa
durante uma filmagem, e O Criador carregou contra ele para lhe gritar na
cara que ele era o responsável por ter arruinado um take mágico e que
esperava que se arrependesse disso para o resto da vida. Vi O Criador pôr
homens e mulheres adultos a chorar com os seus insultos e baixezas; tratar
as pessoas por idiotas, palhaços, estúpidos, tolos, desleixados, desastrados,
atrasados mentais e gente sem espinha. O Criador sabe como fazer alguém
sentir-se um inútil.
Daí eu ter aprendido com o tempo que, por muito que eu queira que os
elogios me saibam bem, não posso deixar que me iludam, porque amanhã
ele pode estar a berrar-me insultos na cara, que me vão magoar tanto quanto
os elogios me podem agora animar. Sinto que tenho de estar sempre em
guarda ao pé dele. Satisfazer os seus humores. Quando estou com O
Criador, sinto-me como quando estou com a Mãe – nervosa, desesperada
por agradar, cheia de medo de fazer uma grande asneira. Ponha-se os dois
no mesmo espaço, e fico soterrada de ansiedade.
O Criador manda vir uns pratos principais para partilharmos – não sei o
quê com lagosta, uma massa com carne e um pão achatado. Sei que a Mãe
não aprova que eu coma coisas destas, mas sei que O Criador ficará
ofendido se eu não as comer, e que vai comentar que não confio nele, ou
que acho que ele tem mau gosto, portanto, vou mordiscando tão
convincentemente quanto sou capaz, na esperança de que O Criador
acredite que estou a comer e de que a Mãe saiba que não estou.
– Então, a razão para vos ter convidado para almoçar… – começa O
Criador.
Ele bebe uma golada do seu Old Fashioned enquanto a Mãe o observa,
ansiosa que ele acabe a frase da forma que ela quer.
– Bem, primeiro – diz O Criador, quase como se arrastasse,
intencionalmente, a tensão tanto quanto possível –, deixa-me fazer-te uma
pergunta. Gostas de ser reconhecida? De ser famosa?
– Ela adora – responde a Mãe por mim. – Ela adora, em absoluto. E os fãs
também a adoram. Dizem quase sempre que ela é a personagem preferida
deles.
Eu brinco com a massa.
– Ora, ainda bem – diz O Criador. – Porque vais ter muito mais disso.
A respiração da Mãe acelera com a expectativa.
– … quero dar à Jennette a sua própria série.
A Mãe até deixa cair o garfo, com a excitação. O garfo faz um tinido ao
chocar com o prato.
– Até já escolhi o nome. Just Puckett [“Só a Puckett”]. Não é um nome
divertido para a tua série? – pergunta o Dan com um sorrisinho.
– Sim, é mesmo! É um nome muito divertido – intromete-se a Mãe.
– Não será para já, porque o iCarly está a correr muito bem – diz O
Criador, a tentar moderar o entusiasmo da Mãe. Ela acena que sim.
– Teremos de esperar um par de anos – reitera O Criador. – Mas, se
continuares a fazer o que fazes agora e me deres ouvidos, seguires os meus
conselhos e me deixares orientar-te, prometo que te dou a tua série.
– Oh, obrigada – diz a Mãe, com os olhos marejados de lágrimas. – O
meu amor merece. O meu amor merece.
A Mãe olha para mim e acena, para que eu me apresse a sorrir com os
dentes. É o que faço. Ainda que esteja preocupada. O Criador deixou muito
claro que esta proposta tinha condições: ouvi-lo, seguir os conselhos dele e
deixá-lo orientar-me. Ainda que parte de mim goste d’O Criador, outra parte
tem medo dele, e a ideia de que terei de fazer tudo o que ele diz intimida-
me.
– Porque não estás mais contente? Vais ter uma série só tua – diz a Mãe,
na viagem de regresso.
– Estou contente – minto. – Muito contente.
– Boa – diz a Mãe, espreitando-me pelo retrovisor. – Porque deves estar.
Toda a gente gostaria de ter o que tu tens.
34.
Estou agora há quase três anos no iCarly e, de certa forma, as coisas andam
mais fáceis. A minha amizade com a Miranda tem sido fonte de
camaradagem e apoio emocional. Também sou amiga do resto do elenco,
mas a minha ligação à Miranda é diferente e especial. Falamos por Skype ao
fim de semana e vamos ao cinema ao ArcLight depois do trabalho. Agora,
vou lá duas vezes por semana sem pestanejar. A Mãe junta-se sempre. Ela
inclina-se sempre para mim a meio do filme, com a cabeça baixa de
resignação:
– O som deles é mesmo muito envolvente.
Mais importante do que a minha amizade com a Miranda é que a Mãe já
não anda tão angustiada pelas duas coisas que, tipicamente, mais a
angustiam: as contas e o meu corpo.
Ainda que a consistência do meu salário tenha ajudado a trazer à Mãe
alguma estabilidade e conforto financeiro, ela faz questão de que se saiba a
opinião dela sobre a dimensão desse salário.
– Eles deviam ter vergonha do salário que te dão. Comparado com os
canais de televisão aberta, são só trocos. SÓ TROCOS! – diz-me ela, todos
os dias, no meu camarim, enquanto me troca a roupa por mim. – E nem
sequer pagam compensações na Nickelodeon… ou devo dizer Ninhari-
odeon?
Apesar das queixas, sei que está grata, porque a nossa vida está bem
melhor agora. Os pagamentos da casa são feitos a tempo e por inteiro, pelo
que ela já não tem de ligar aos cobradores a suplicar por prolongamentos do
prazo.
Ela ainda monitoriza os meus almoços, mas, às vezes, deixa-me comer a
comida do estúdio. Os meus jantares continuam a ser, sobretudo, folhas de
alface com um mínimo de tempero e tiras de mortadela light, mas ela agora
dá-me duas bolachas Smart Ones para a sobremesa. E os meus pequenos-
almoços transformaram-se completamente. Agora, faz-me o pequeno-
almoço, coisa que nunca imaginei! Leite meio-gordo com cereais
Honeycomb – meio-gordo, não é magro! Com certeza, os cereais
Honeycomb continuam a ser “os cereais de pequeno-almoço com menos
calorias por grama”, como diz a Mãe (160 calorias por 219 gramas), mas
isto é uma loucura. Nunca vi a Mãe defender tanto que eu coma.
Parte de mim pergunta-se se a Mãe agora apoia um pouco mais as minhas
refeições porque a Miranda e o Nathan tomam o pequeno-almoço e
almoçam na nossa sala de aula comum, e pode parecer estranho que eu não
o faça, ou que coma muito menos do que eles ou assim. Mas não lhe
pergunto. Deixo andar.
O meu corpo está a transformar-se um pouco. Os meus mamilos
incipientes tornaram-se seios muito pequeninos e é cada vez mais difícil
escondê-los com a minha técnica de puxar a camisola interior pelas pernas
das cuecas. A minha pele também está a rebentar um pouco, o que é uma
novidade, e é estranho e embaraçoso. No último ano, comecei a usar
maquilhagem no plateau, mesmo nos dias de folga. Dantes, detestava
maquilhagem, agora quero usar. Para me esconder por trás dela.
Comecei também, recentemente, a rapar os pelos das pernas – bem, a Mãe
faz isso por mim, porque ainda me dá duche, apesar dos meus dezasseis
anos. Nem sabia que rapar as pernas era uma atividade até ter ouvido a mãe
de uma outra atriz troçar das minhas “pernas peludas” com a filha, e depois
rir-se de uma forma que me atormenta desde então, sempre que rapo as
pernas.
Então, agora, ainda que a Mãe já não ande tão angustiada com as contas
ou com o meu corpo, as minhas pernas andam lisinhas e os meus mamilos
estão para lá da fase incipiente, e a minha pele anda vermelha e irregular
aqui e ali, e tudo isso me deixa muito pouco à vontade.
A popularidade do programa tem crescido progressivamente. A Susan está
sempre a atirar expressões como “fenómeno cultural” e “sensação global”.
Quanto mais aumenta o sucesso da série, mais a minha fama tem de o
acompanhar. Pisei inúmeros tapetes vermelhos de festas chiques, entregas
de prémios e estreias de filmes. Estive em talk shows como o Good
Morning America e The Today Show, e no programa novo do Craig
Ferguson e da Bonnie Hunt.
Já não posso ir a lado nenhum sem ser reconhecida. Já não posso ir à
Disneylândia, o meu sítio preferido, porque, da última vez que tentei, estava
a descer a rua principal e veio tanta gente ter comigo que tiveram de
interromper o desfile de Natal. O Pateta parecia furioso.
O tipo de fama de que gozo agora está a causar-me um nível de stress que
nem sabia ser possível. Sei que toda a gente quer isto e toda a gente me diz
como tenho sorte, mas detesto esta situação. Sinto-me constantemente com
os nervos à flor da pele, sempre que saio de casa para ir aonde quer que
seja. Temo ser abordada por estranhos e fico muito ansiosa quando tenho de
interagir com eles.
Eles gritam-me coisas como “SAM! Onde tens o frango frito?” ou “Bates-
me com a tua meia-de-manteiga?” Uma meia-de-manteiga é um adereço
que a minha personagem usa frequentemente e é exatamente o que o nome
indica: uma meia cheia de manteiga. A minha personagem anda com aquilo
atrás para “dar sovas às pessoas”.
Sempre que alguém me grita sobre o frango ou as meias, eu rio-me, como
quem diz “essa é boa”, mesmo que não seja. Já ouvi esta boa piada mil
vezes, e já era má para começar, mas torna-se ainda pior cada vez que a
ouço. Choca-me o número de pessoas que se julga original ao dizer a
mesma coisa que todas as outras.
As pessoas impressionam-me pouco. Irritam-me, até. Às vezes, até me
enojam. Não sei exatamente quando começou isto, mas sei que é uma
reação recente e sei que a fama teve algo que ver com isso. Estou farta de
que as pessoas me abordem como se fossem as minhas donas. Como se eu
lhes devesse alguma coisa. Não escolhi esta vida. Foi a minha mãe.
A minha ansiedade faz com que tente agradar a toda a gente. A minha
ansiedade faz com que tire a fotografia, dê o autógrafo e diga que essa é
boa. Mas, por baixo desta ansiedade, corre uma combinação de sentimentos
profunda e insurgente, que eu tenho medo de enfrentar. Temo ser amarga.
Sou demasiado nova para ser amarga. Sobretudo como resultado de uma
vida que é suposto ser invejável. E temo ter ressentimentos em relação à
minha mãe. A pessoa para quem tenho vivido. O meu ídolo. O meu modelo.
O meu amor verdadeiro.
Este sentimento complexo vem à tona quando tiro uma fotografia com um
estranho e vejo a minha Mãe especada ao lado, a espelhar o sorriso que quer
que eu faça.
Vem à tona quando ela diz à pessoa a tirar a fotografia para “tirar mais
uma! Ou mais duas, pelo sim, pelo não!” quando sabe perfeitamente como
eu detesto tudo isto.
Vem à tona quando ela me faz treinar os meus autógrafos e me diz: “Estás
a ficar desleixada. C pequeno, C grande, U-R-D-Y. Eles têm de conseguir
ler todas as letras.”
Vem à tona quando ela me sugere um slogan para acompanhar os meus
autógrafos. “Vemo-nos no cinema!” é o favorito do momento, Deus sabe
porquê. Nem sequer entro em filmes, entro em séries de televisão. E em
séries para crianças, já agora, o que, se é garantia de alguma coisa, é de que
nunca entrarei em filme algum. A transição do estrelato em criança para
uma carreira legítima na idade adulta na indústria do entretenimento é
notoriamente difícil, mesmo para jovens atores com a sorte de terem tido
papéis em filmes credíveis com realizadores credíveis. Mas para os miúdos
que começam na televisão para crianças, é uma carreira condenada à morte.
Há algo nessa imagem unidimensional e excessivamente lustrosa, que,
combinado com a dimensão do reconhecimento público dessa imagem, é
praticamente impossível ultrapassar. No segundo em que a vedeta infantil
tenta evoluir e libertar-se dessa imagem, torna-se um isco para os média,
passa a ser publicitada desenfreadamente como rebelde, atormentada,
torturada, quando só estava a tentar crescer. Crescer é coisa instável e cheia
de asneiras, sobretudo na adolescência; asneiras que não se quer
necessariamente fazer à vista do público, ainda menos ser-se conhecido por
elas para o resto da vida. Mas é o que acontece quando se é uma vedeta
infantil. A fama em criança é uma armadilha. Um beco sem saída. E eu sei
ver isso, mesmo que a Mãe não o veja.
A fama cria um fosso entre mim e a Mãe que eu não sabia ser possível.
Ela queria isto. E eu queria que ela o tivesse. Eu queria que ela fosse feliz.
Mas, agora que o tenho, percebo que ela é feliz e eu não. A felicidade dela
custou-me a minha. Sinto-me roubada e explorada.
Às vezes, olho para ela e odeio-a. E depois odeio-me a mim por sentir
isso. Digo-me que sou ingrata. Que não valho nada sem ela. Ela é tudo para
mim. Então, engulo o sentimento que desejo nunca ter tido, digo-lhe “gosto
tanto de ti, Nonny Mommy” e sigo em frente, fazendo de conta que nada se
passou. Já fiz de conta na minha profissão durante tanto tempo, e para com
a minha mãe durante tanto tempo, que começo a pensar que também faço de
conta para mim mesma.
35.
É domingo de manhã e todas as outras pessoas cá de casa estão a dormir.
Reaqueço a caneca do chá preto com aroma de framboesa preferido da Mãe,
que preparei pela primeira vez há uma hora, e acordo-a com isso.
– Mamã – digo suavemente. – Toma o teu chá.
– Nnnnnh – geme a Mãe no seu sono, virando-se para o outro lado.
Olho nervosamente para o relógio, sem saber se devo continuar a tentar
acordá-la. É a terceira vez que tento e, tecnicamente, a última hora possível
em que a posso acordar sem que nos atrasemos.
– Mamã – digo num tom mais insistente. – Temos de sair para a igreja
daqui a vinte minutos ou não chegamos a tempo.
– NNNNNH – geme a Mãe, mais agressiva.
– Não queres ir? – pergunto.
– ‘tou muit’cansaaada – murmura a Mãe. Então, engole e as palavras
saem um pouco mais claras. – Ando a trabalhar demais. Estou muito
cansada.
Ela enterra a cara mais a fundo na almofada e a respiração torna-se mais
pesada. Eu observo-a.
Também estou cansada. Também trabalhei demasiado ultimamente. Na
verdade, acho mesmo que trabalhei muito mais do que a Mãe. E depois
sinto-me culpada por pensar isto.
Ela leva-me e traz-me do trabalho, o que deve ser cansativo, pensa uma
parte de mim. Sim, mas eu faço os trabalhos de casa durante a viagem,
decoro as falas e ainda passo dez horas no estúdio a ensaiar, a representar
e a “estar lá” sob luzes fortes e uma pressão intensa, enquanto ela está
sentada no meu camarim a folhear a Woman’s World e na má-língua com
as mães dos meus colegas, pensa outra parte.
Tento engolir estas partes de mim conflituosas. Elas não ajudam e
distraem-me do problema que tem de ser resolvido neste preciso momento:
se vamos ou não à igreja.
Não vamos à igreja há seis meses, a nossa ausência mais longa de sempre.
Isso preocupa-me, mas já referi o assunto à Mãe tanto quanto possível sem
que a coisa se torne melindrosa, e ela põe-se sempre a garantir-me que
“voltaremos certamente um dia, quando as coisas acalmarem um pouco”.
Acho estranho termos deixado de ir à igreja desde que a minha carreira
começou a ter sucesso e a saúde da Mãe normalizou. Tentei abordar o
assunto gentilmente, uma noite, quando voltávamos de carro para casa,
vindas do trabalho, mas a Mãe começou a gritar e a dizer que estava a
perder o controlo do volante e que eu lhe estava a causar um stress imenso,
que nos punha as duas em perigo, pelo que aprendi depressa a não voltar a
tocar neste assunto.
Mas agora, neste momento, enquanto olho para ela a dormir, começo a
aceitar, pela primeira vez, que os nossos dias de idas à igreja podem
pertencer ao passado. Se calhar, a Makaylah tinha razão, afinal.
Eu costumava pensar que ficar inativa era uma coisa terrível, um pecado
vergonhoso. Mas talvez não seja. Talvez seja um sinal de que as coisas estão
a correr bem.
Talvez as pessoas vão à igreja porque querem coisas de Deus. E
continuam a ir enquanto desejam, anseiam, sentem a falta dessas coisas.
Mas é possível que, uma vez que as alcançam, percebam que já não
precisam da igreja. Quem precisa de Deus quando tem mamografias
impecáveis e um papel no elenco principal de uma série da Nickelodeon?
Deixo-a dormir e começo a decorar as minhas falas para segunda-feira.
36.
– Dói-me o estômago – digo à Mãe, quando voltamos do ArcLight Café,
onde fomos ter com a minha agente Susan para um almoço rápido.
– Talvez o frango da salada estivesse estragado – sugere a Mãe, de entre
os ingredientes da salada Cobb sem queijo azul, sem ovo, sem croutons,
sem tempero e sem bacon, ou seja, da alface e do frango grelhado que
dividimos ao almoço.
– Talvez.
Estamos a correr pelo Sunset Boulevard abaixo para chegar ao estúdio a
horas. Meia hora quase não chega para um intervalo do almoço, sobretudo
se se tentar comer fora do estúdio.
– Sorri para os paparazzi – ordena-me a Mãe.
Sem sequer os ver, um sorriso vazio de fantoche surge-me
automaticamente na cara. Os meus olhos estão mortos, a minha alma
desapareceu, mas tenho um sorriso na cara e só isso é que conta.
FLASH, FLASH, FLASH. A luz fere-me os olhos.
– Olá, Glen! – grita a Mãe ao paparazzo, como se fosse vizinho dela.
– Olá, Deb! – diz o Glen a andar às arrecuas, enquanto dispara mais
fotografias. Choca-me que a Mãe não perceba como toda esta interação é
estranha.
Aproximamo-nos dos Nickelodeon Studios e atravessamos para o parque
de estacionamento. O sorriso cai-me imediatamente da cara. Corremos para
o meu camarim, para que eu possa trocar de roupa para a próxima cena, e
vou à casa de banho para um chichi rápido antes disso. É então que o vejo.
Sangue. Nas minhas cuecas. Fico logo zonza. Não sei exatamente o que é,
mas acho que é capaz de ser o meu período.
Ouvi falar no período, por assim dizer, há coisa de seis anos. Eu tinha dez
anos, e a minha vizinha Teresa tinha dez anos e onze meses. Ela nunca me
deixava esquecer o nosso intervalo de onze meses, fosse pela atitude, fosse
por advertências explicitas.
– Sabes o que é um período ou não? Sinto que talvez não saibas, já que eu
sou mais velha e sei mais coisas.
– Claro – disse eu, presumindo que ela falava do período das frases com
ponto final.
– Não, não é esse período. O outro período.
– Sim – disse eu outra vez, pensando que ela falava num período
temporal.
– Não, também não é esse. O outro período.
Dei voltas ao cérebro a tentar perceber do que falaria a Teresa e lá
adivinhei.
– Oh, sim.
Estou contente comigo mesma. “Dã! Um período de aulas, como no
liceu.
– Sabes mesmo?
A Teresa estava claramente desconfiada.
– Sim.
– Pois o meu chegou. Eu estava assustada, no início, quando vi o sangue,
mas a minha mãe ensinou-me a usar os pensos e tal. Depois, fui ao
HomeTown Buffet com todas as mulheres da minha família para
comemorar.
– Comemorar o quê? – perguntei com toda a inocência, enquanto tentava
desesperadamente extrair pistas do contexto para perceber de que tipo de
período falaria a Teresa. Não era um período de aulas, definitivamente.
Ninguém comemoraria tal coisa.
– Para comemorar tornar-me uma delas. Tornar-me uma mulher.
A Teresa disse-o como se fosse uma coisa que ela desejara a vida toda,
como se fosse uma coisa romântica, incrível e atraente. Tornar-se mulher.
Eu fiquei confusa. Invejava muitas coisas na vida da Teresa: a máquina de
flippers dela, a coleção de Barbies (sobretudo aquelas com o cabelo curto,
que a Mãe nunca me deixaria comprar porque pensava que isso me faria
querer cortar o meu) e, sim, até a ida dela ao HomeTown Buffet, um
restaurante que a minha família achava demasiado caro. Mas não a invejava
por se tornar uma mulher. Tornar-me mulher era a última coisa que eu
queria.
Agora, comigo aqui sentada na retrete, com a roupa interior manchada de
sangue caída pelos joelhos, tenho a certeza de que é isto. Era disto que
falava a Teresa.
– Hum, Mamã – chamo.
A Mãe pergunta-me o que se passa e eu engulo o quão mortificada estou
para poder pronunciar a frase seguinte.
– Estou a sangrar.
A porta abre-se de rompante, antes mesmo de eu poder chegar ao “grar”
de “sangrar”, e a Mãe aperta-me num grande abração. Comigo na retrete.
– Oh, minha querida – diz ela, com a gravidade de alguém que consola
um amigo que acabou de perder o seu bicho de estimação adorado. – Oh,
minha querida. Lamento imenso!
A Mãe enrola uma longa faixa de papel higiénico na mão e diz-me para a
enfiar na roupa interior, enquanto ela vai buscar a Patti, a minha afável
professora.
Vejo os ponteiros do relógio a avançar ao longo de dez minutos de um
inferno a fogo lento, até que a Mãe volta com a Patti. A Patti vai ao bolso de
trás e saca de um quadrado embrulhado em cor-de-rosa-bebé, com uma
fitinha branca colada no meio. Ela abana-o à frente do meu nariz como se
fosse uma nota de cem dólares. Está radiante e abraça-me ternamente,
enquanto a Mãe desaparece para dizer ao assistente de realização a que se
deve o meu atraso.
– Parabéns, Jennette – sussurra-me a Patti ao ouvido. – Parabéns por te
tornares uma mulher.
Eu arrasto-me até ao cenário de corredor de uma escola, onde a nossa
próxima cena terá lugar. Vejo pela forma como os assistentes de produção e
realização me tratam que já sabem todos das notícias. Sinto-me humilhada.
E envergonhada. Como pude deixar que isto acontecesse? Como me tornei
mulher? Não sei a resposta, mas sei a solução. Sei o que farei para resolver
isto.
Amanhã, não haverá leite meio-gordo, nem cereais nem bolachinhas.
Tenho andado a desleixar-me e isso tem de acabar. Tenho de voltar à
anorexia. Tenho de voltar a ser criança.
37.
Mama I promise I’ll be all right
I’ll cal to say I love you every night

I’m just trying to write the story of my liiiiiife11

A Mãe e eu estamos sentadas no nosso quarto na Hampton Inn & Suits, no


centro de Nashville, Tennessee, onde temos vivido nos últimos três meses,
enquanto eu trabalho na minha carreira na música country. Estamos a
partilhar uma lasanha congelada da Nutrisystem para o jantar
(encomendámos o programa mensal, para nos mantermos uma à outra na
linha, já que Nashville tem “muito mais banha do que LA”, diz a Mãe),
enquanto ouvimos a mistura final do meu primeiro single, “Not That Far
Away”, uma canção escrita do “meu” ponto de vista (por um par de letristas
com quem me sentei por umas horas) para a minha mãe, sobre andar na
estrada sem ela e como tenho saudades dela, ainda que, na realidade, nunca
tenha passado mais do que umas horas longe dela em todos os meus dezoito
anos.
Não sei muito de música, mas sei que, ao ouvir esta canção, acho o ritmo
pouco ritmado, a melodia monocórdica e a produção datada. Não exprimo
nenhuma destas opiniões porque a Mãe adora tudo. Rolam-lhe lágrimas
pelas bochechas. Pronto, não acho que sejam só lágrimas de alegria.
Também têm um peso, um significado, e eu acho que sei porquê. A vida
imitou a arte, se é que se pode chamar tal coisa àquela canção. (Não pode.)
A minha carreira musical começou como resultado da greve dos
guionistas em 2007, quando o iCarly foi interrompido por tempo
indeterminado, até que as coisas se resolvessem. Durante esse hiato, a
Susan sugeriu que eu começasse a trabalhar com letristas para fazer umas
demos para um contrato musical, porque “isso é o que todos os atores
adolescentes fazem hoje em dia”. A Susan representa a Hilary Duff, que já
viu vários álbuns chegar à platina.
– E ouvi dizer que nem é ela a cantar as canções todas, que a irmã canta
metade! – mete-se a Mãe, toda excitada. – Não peço que confirme ou negue.
A minha Netty vai cantar todas as canções dela.
A Mãe pôs-me a publicar covers no YouTube. As editoras viram as covers
e duas delas, a Big Machine Records e a Capitol Records Nashville,
quiseram contratar-me. A Mãe decidiu-se pela Capitol Records porque “o
Scott Borschetta vai estar demasiado ocupado com aquela tal de Taylor, não
terá tempo para ti”.
Então, assinei o contrato com a Capitol Records e vivi aqui em Nashville
durante três meses, no verão passado, para trabalhar nas canções. Depois, o
iCarly recomeçou, portanto, comecei a trabalhar na série de segunda a sexta
e a voar para Nashville nos voos noturnos de sexta; aqui tinha sessões de
composição de canções, preparava as demos, ia a reuniões e fazia sessões de
fotografia para a capa do álbum, bem como várias conferências de
imprensa; depois, voava de volta para a Califórnia no domingo à noite, para
estar pronta para os ensaios da série na segunda. De momento, a série está
entre temporadas, portanto, eu e a Mãe estamos a viver aqui por uns meses,
enquanto eu preparo a minha primeira digressão.
Desconfio que esta digressão será a minha primeira vez longe da Mãe. E
não é porque ela mo tenha dito diretamente, mas porque partilhamos uma
conta de email e eu vi uma mensagem que ela enviou ao Marcus, onde lhe
dizia exatamente aquilo que eu temi toda a minha vida.
– Porque choras, Mamã? – pergunto, ao ver as lágrimas a transbordarem
dos seus olhos.
A Mãe empilha um pouco de lasanha no garfo; depois, volta a pousar o
garfo cheio de lasanha no tabuleiro da refeição congelada, como se comer a
garfada fosse demasiado para ela neste momento, dado o seu estado
emocional.
– É só que cantas tão bem – diz ela, mas eu sei que está a mentir. A
alegria da Mãe do tipo “acho que te saíste bem” não é, de todo, uma alegria
chorosa. É mais uma alegria eufórica e exagerada. Isto aqui, o que quer que
seja que eu esteja a testemunhar, é algo mais, algo mais profundo. Gostava
que ela me contasse. Gostava que ela admitisse o que eu já sei.
– Mamã… – balbucio, cheia de medo do que estou prestes a perguntar.
Ainda que eu já saiba o que se está a passar, quero acreditar que não pode
ser verdade. Tenho de ouvir isto da Mãe. Tenho de confirmar.
– A tua voz tem tanta força. O refrão está mesmo… uau!
A Mãe enxuga as lágrimas com um lenço de papel.
– Mamã – repito, desta vez ligeiramente mais alto. Estou cheia de medo
de saber, mas ainda mais cheia de medo de não saber.
– … e depois, quando voltas às estrofes e desces ao teu registo mais
grave. Adoro o teu registo mais grave – diz a Mãe, entre lágrimas. – Tem
um toque sedutor.
– Mamã, tens cancro outra vez?
Sinto a cor esvair-se da minha cara logo a seguir à pergunta. Choquei-me
a mim própria com estas palavras que saem da minha boca. Sinto-me
gelada. A Mãe está tão chocada como eu. As lágrimas cessam.
– O quê? Não. – Ela tenta afastar a ideia com troça. – Porque pensarias
isso?
Eu respiro fundo, porque sei que ela me está a mentir descaradamente e
que o faz para tentar que eu fique menos assustada, mas deixa-me ainda
mais assustada. Porque me mente ela sobre uma coisa tão relevante?
– Vi o teu email para o Marcus. Onde dizias que o cancro tinha voltado.
A Mãe olha para baixo e as lágrimas voltam, semelhantes àquelas de há
meio minuto. Sinto o coração pesado ao ver o corpo pequeno dela a sacudir-
se de tristeza. Levanto-me do meu lugar à secretária e sento-me ao pé dela,
na beira da cama. Abraço-a. Ela parece tão pequenina nos meus braços.
– Não quero que deixes de fazer a tua digressão – soluça ela, como se
estivesse mesmo convencida disso. Estou perplexa. Como pode ela ralar-se,
numa altura destas, com a maldita digressão?
– Não vou fazer a digressão – digo eu, como se a decisão fosse tão óbvia
como me parece.
A Mãe quebra o nosso abraço e levanta a cabeça, com a tristeza a
transformar-se em raiva.
– Net, tens de fazer esta digressão. Não digas disparates, está bem?
Assustas-me quando falas assim. Tens de fazer esta digressão, dê por onde
der, está bem? Vais ser uma estrela da música country.
– Está bem.
A Mãe recomeça a chorar. Eu volto a abraçá-la.
11
Mamã, prometo que vou ficar bem/Vou ligar-te todas as noites a
dizer que gosto de ti/Só tento escrever a história da minha vida. (N.
da T.)
38.
A Generation Love Tour é uma missão para lançar o meu single
“Generation Love” na rádio. Os representantes da Capitol marcaram-me
uma série de atuações para umas quantas estações de rádio pelo país,
naquilo que consideram ser “uma digressão de rádio pouco convencional”.
A maior parte dos artistas atua nas digressões de rádio dentro das caixas
insonorizadas que são as estações de rádio, com a esperança de
impressionar suficientemente uns quantos locutores das emissoras para que
esses locutores juntem a canção do dito artista ao seu alinhamento, mas a
minha editora sugeriu que aproveitássemos a minha base de fãs do iCarly
para mostrar aos radialistas o “valor” que eu represento. Então, em vez de
atuar em caixas insonorizadas para dois ou três representantes das estações,
terei de atuar no centro comercial local da região de cada emissora para
milhares de pré-adolescentes aos gritos.
A nossa primeira paragem é em Hartford, no Connecticut, ou talvez seja
em Filadélfia, na Pensilvânia. É difícil lembrar-me do calendário.
Independentemente disso, habituo-me com alguma facilidade.
Acordo às oito, estremunhada. Normalmente, temos umas horas de
viagem no autocarro, depois, o Stewy, o nosso motorista, estaciona num
motel que a editora marcou para metade do dia, o tempo suficiente para
cada um de nós poder tomar duche. Eu vou primeiro, e depois vai o Paul, o
guitarrista simpático com uma voz muito fanhosa. Tenho um fraquinho por
ele. O Josh, o outro guitarrista, que é uma versão mais baixa e encorpada do
Conan O’Brien, vai a seguir. Depois vai o Dave, o videógrafo de brinco na
orelha que anda a gravar a digressão. A seguir, vai quem quer que seja o
representante regional da editora nessa semana, e, por fim, o delegado de
imprensa da editora.
Enquanto o resto do grupo toma banho, eu trato da imprensa no autocarro.
Encontramos um sítio para almoçar, depois, fazemos os testes de som, e
ficamos com umas duas horas para queimar até ao espetáculo. Depois do
espetáculo, dou autógrafos durante três horas, volto para o autocarro, e o
Stewy conduz-nos até ao local seguinte.
A experiência em si é esgotante, atuar em centros comerciais para
milhares de miúdos. Fico tão nervosa que ensaio as canções vinte ou trinta
vezes antes do início do nosso concerto e, às vezes, dou cabo da voz antes
de chegar ao palco. A imprensa e as sessões de autógrafos a seguir são
emocionalmente extenuantes. Há umas poucas interações que parecem valer
a pena, que fazem com que esta experiência pareça valer alguma coisa para
os miúdos e para as famílias deles, mas, para mim, o resto da multidão é
como ovelhas.
– Ei, Samantha Puckett! Como saíste do reformatório?
– Ah, essa é boa.
– Onde está o teu frango frito?
– Ah, essa é boa.
– Dás mesmo sovas às pessoas na vida real?
– Ah, essa é boa.
O meu sorriso de alma morta espalha-se-me pela cara e eu olho para as
máquinas fotográficas deles, enquanto as mães pedem desculpa quinze
vezes por não saberem como fazê-las funcionar.
Mas, para além do trabalho em si, há duas coisas em que ando a reparar
nesta digressão.
A primeira coisa em que reparo é que parte de mim se está a divertir. A
parte de mim que não se sente culpada por se divertir no meio de
circunstâncias tão infaustas: o cancro da Mãe e o facto de estar longe dela
enquanto ela enfrenta aquilo com ciclos frequentes de tratamentos de
quimio e radioterapia. Esta parte de mim que se está a divertir sente-se
viçosa, nova e eufórica. Sinto-me livre. Até sou capaz de tomar duche
sozinha.
Percebo, pela primeira vez, como é extenuante adequar constantemente as
minhas tendências, reações, pensamentos e gestos naturais a seja qual for a
versão que a Mãe preferirá. Sem ela por perto, não tenho de o fazer. Sinto
imensas saudades dela e tenho o coração pesado ao pensar naquilo por que
ela está a passar e, sem dúvida, que me sinto muito culpada pela
descontração destes dias, mas essa descontração é inegável. Sem ela a
monitorizar e a influenciar cada um dos meus atos, a vida parece muito mais
fácil.
A segunda coisa em que reparo é que ando a comer. E muito. Como cinco
Pop-Tarts de canela pela manhã, depois, almoço e janto com a banda, ambas
as refeições em restaurantes. E peço coisas do menu dos adultos. E
raramente são saladas. E raramente peço substituições. É mesmo
hambúrgueres e batatas fritas.
Sem ser monitorizada pela Mãe, cada dentada sabe a rebeldia. Ouço a voz
dela em cada refeição a dizer-me: “Pede o tempero à parte. Não comas
mais. Isso é lixo. Não queres um rabo de melancia. A mente controla a
matéria.” Mas a voz dela não me pode impedir de comer. Estou horrorizada
com esta nova realidade, mas sinto-me simultaneamente atraída pelo que
está no meu prato, com uma atração que só pode ser descrita como luxúria.
O enfartamento que sinto depois das refeições sabe bem. E é uma
novidade para mim. Mas é imediatamente usurpado por um profundo
sentimento de culpa. Uma culpa de que isto não seja o que a Mãe desejaria.
Que a Mãe ficaria desiludida comigo. Essa culpa faz-me comer mais –
caixas de Cheez-Its e bolachas de supermercado, e rebuçados ou Fruit Roll-
Ups ou quaisquer que sejam as guloseimas a bordo da camioneta –, às
vezes, até me doer o estômago, como se estivesse prestes a rebentar. Vou
para a cama e não consigo dormir de barriga para baixo, de tão cheia que
estou. Peso-me nos quartos de hotel que têm balança, e o número no
mostrador sobe, sobe, sobe. Cada quilo que ganho horroriza-me, mas
também me sinto incapaz de parar. Obriguei-me a passar fome durante anos,
e agora o meu corpo suplica-me que me empanturre.
Esta nova relação com a comida confunde-me profundamente. Durante
anos, detive o controlo da minha dieta, do meu corpo, de mim mesma.
Consegui manter-me pele e osso, com um corpo de criança, e tinha
encontrado a combinação perfeita de poder e consolo ao fazê-lo. Mas agora
sinto-me descontrolada. Irresponsável. Desesperada. A velha combinação de
poder e consolo foi substituída por uma nova combinação de vergonha e
caos. Não percebo o que me está a acontecer. Estou aterrada com o que
acontecerá quando a Mãe me vir.
39.
Não esperava que uma Hampton Inn & Suites viesse a ser o sítio do meu
verdadeiro primeiro beijo, mas cá estamos. Quarto 223. Estou de pé diante
da kitchenette e os meus lábios tocam os do Lucas. Ele segura o meu queixo
delicadamente. Não sei dizer se gosto dessa parte ou não, mas gosto do
beijo. É mais natural quando se gosta da pessoa do que quando se faz para a
câmara.
Ele afasta-se.
– Gosto mesmo de ti. Tem uma boa noite – diz ele, ou eu imagino que ele
o diz.
Não sei bem o que ele está a dizer. Não me interessa lá muito. Estou
demasiado absorta na minha cabeça, a pensar no facto de que tenho dezoito
anos e, finalmente, dei o meu primeiro beijo. Finalmente.
Observo-o a afastar-se pelo corredor. Não gosto do corte das jeans dele
nem do cabelo comprido, mas gosto da t-shirt dos Queen e da forma dos
ténis. Não gosto de que ele fale tanto de música, mas gosto de que goste
tanto de mim. Não gosto de como ele é estranho, mas gosto de como ele é
simpático. Fecho a porta. Tenho uma sensação estranha na vagina, mas
decido que me preocuparei com isso mais tarde.
Fecho a porta e sento-me no sofá. Não sei porque é que, nos filmes, as
mulheres fecham a porta e depois se encostam sempre a ela quando o tipo se
vai embora. Sentar-se no sofá é mais natural.
Estou para aqui sentada a recapitular tudo na cabeça. O Lucas e eu
conhecemo-nos há uns meses, quando dei um concerto aqui em Nashville.
Ele foi contratado pelo líder da banda para tocar guitarra elétrica no
concerto. Os outros elementos da banda disseram que ele era muito bom. O
melhor da cidade.
Passámos muito tempo juntos nessa primeira semana, enquanto
ensaiávamos todos. Ele era muito simpático comigo e, a princípio, não dei
muita importância, já que ele tem vinte e sete anos e eu dezoito, mas depois
reparei nele a olhar muito para mim e comecei a perguntar-me se gostaria de
mim.
Ao terceiro dia de ensaios, ele começou a oferecer-me boleia para casa, o
que eu aceitei porque começava a gostar dele. Sentia-me estranha ao pé
dele, de uma forma desconfortável, mas agradável. No último dia de
ensaios, ele convidou-me a ir a casa dele para ouvirmos um álbum dos
Queen juntos. Eu fiquei em pulgas.
Ouvimos o News of the World de uma ponta à outra, sentados no chão de
madeira dele. Ele estava sempre a chegar-se mais perto de mim e a prender
o cabelo dele atrás da orelha, o que me pareceu um gesto vagamente
repugnante num homem. Essa repulsa baralhou-me, porque, ao mesmo
tempo, eu queria imenso que ele me beijasse. Ou talvez não quisesse
exatamente que ele me beijasse, talvez eu só quisesse ser beijada na vida
real. De qualquer forma, ele não o fez. Levou-me de carro de volta à
Hampton Inn e deixou-me à porta. E, no dia seguinte, eu fui-me embora,
para a digressão da rádio.
Não o vi muito durante a digressão porque ele não estava na estrada
connosco o tempo todo, mas apanhava o avião para alguns concertos,
aqueles que não eram em centros comerciais, mas sim em grandes palcos de
festivais, onde fazíamos sets com a banda completa, e não versões acústicas.
Entre as vezes que nos víamos, trocávamos mensagens todos os dias e
falávamos ao telefone sempre que eu conseguia alguma privacidade, o que é
difícil numa digressão de autocarro. Ele dizia coisas como “tenho tantas
saudades tuas” e “gosto mesmo, mesmo, mesmo de ti”, e ambas me
deixavam pouco à vontade, mas eu não sabia porquê. Por um lado, gostava
que ele me dissesse essas coisas. Por outro, sentia-me fisicamente incapaz
de lhes corresponder, como se não conseguisse arrancar as palavras da boca.
Ficava entusiasmada por falar com ele, mas o entusiasmo esvanecia-se
quando falávamos de facto. Ele falava de música e mencionava toda uma
série de canções que eu não conhecia, o que não faria mal, se falássemos
também de outras coisas. Mas não havia outras coisas. Era ou música ou ele
a bombardear-me com elogios genéricos, do género “o Sol nasce e põe-se
nos teus olhos” ou “és a minha pessoa preferida, de toda a minha vida”.
As poucas vezes que ele se juntou a nós para concertos em festivais
correram bem, mas foram um pouco estranhas, já que o resto da banda
também estava ali connosco. Não havia espaço para conversas privadas e,
ainda assim, isso não me incomodava. Quando o Lucas tentava puxar-me à
parte para falarmos, eu inventava desculpas para não poder. Que estava
cansada, que tinha de me preparar para a imprensa, ensaiar as canções,
responder a emails dos meus agentes ou da Mãe ou da Miranda. Tenho tido
tão poucas certezas quanto a ele neste último mês.
Mas, agora, a digressão acabou e estou de volta a Nashville por uma
semana para gravar algumas canções novas. E estou alojada na Hampton
Inn, quarto 223. E estou sentada no sofá do 223, a digerir o facto de que
acabei de trocar o meu primeiro beijo com ele. E, por muito que esteja
aliviada por ter arrumado o primeiro beijo, estou ainda mais aliviada por
saber que, agora, tenho a certeza sobre o que penso dele. Tenho a certeza de
que tenho de acabar com isto, o que quer que isto seja.
Pego no telefone para lhe enviar uma mensagem, mas, quando estou
prestes a fazê-lo, sinto uma pulsação estranha na vagina. Está quente. Enfio
a mão pelas cuecas e volto a tirar. Os meus dedos estão molhados. Isto é
nojento. Tenho de tomar banho. Mando-lhe a mensagem depois.
40.
Estou a sair do avião e a entalar a camisa, para que fique direita. Encolho a
barriga e tento parecer tão magra quanto possível. “Talvez a Mãe não
repare. Talvez, se eu voltar a entalar a camisa, ela não repare; talvez, se eu
sustiver a respiração durante dez segundos, ela não repare”, diz a minha voz
obsessiva-compulsiva, anteriormente conhecida como A Minha Voz Mansa
e Delicada, mas que, entretanto, aceitei como a voz pulsante da doença
mental. É mais esporádica do que antes e quase exclusivamente ligada à
comida e ao meu corpo, mas ainda cá está.
Respiro fundo e tomo as escadas rolantes em direção à zona de recolha de
bagagem. Um jovem pai com um riso nervoso pede-me uma fotografia para
as filhas.
– Claro, assim que sairmos das…
Ele começa a alinhar as filhas à minha frente antes de eu poder acabar a
frase. Dispara a fotografia e quase tropeça no fim das escadas rolantes.
Volta a rir-se nervosamente.
Quando saio das escadas rolantes, olho para as pessoas à espera e lá a
vejo. A visão dela choca-me e, por um momento, concentro-me mais no
aspeto dela do que no meu.
Ela perdeu uns cinco quilos, o que se nota muito em alguém com uma
estrutura tão pequena quanto a dela. A cara está esquelética e doente. Os
ossos sobressaem debaixo da pele. Já não tem sobrancelhas nem pestanas.
Traz o chapéu Ugg azul-turquesa que lhe dei no Natal a cobrir a cabeça
careca. Fico chocada ao vê-la. Não sei o que dizer.
O Pai está ao lado dela, mas bem podia não estar. Não consigo
concentrar-me em mais nada senão ela. Não acredito que ela não me
preveniu disto em nenhuma das nossas cinco chamadas diárias.
Quando chegamos ao momento de trocar abraços e “adoro-tes”, já me
acalmei um pouco. Acalmei-me o mínimo necessário para poder avaliar a
reação da Mãe, que é a mesma que a minha em relação a ela: uma
combinação de choque e horror com um sorriso vago em cima.
Sinto uma náusea profunda enquanto espero que ela me diga como estou
feia. Como engordei. Como fiz asneiras horríveis. Como sou incapaz de
gerir a minha vida sozinha. De me manter na ordem. Preparo-me como
posso enquanto entramos no carro (um Kia Sorento veio substituir o nosso
antigo Ford Windstar).
– Net, o que te aconteceu? – Ela não se vira para mim ao fazer a pergunta.
Continua a olhar pela janela para o engarrafamento da 5. – Estás a ficar
pesada.
– Eu sei. Desculpa.
– Temos de te pôr a fazer dieta. Isto está a ficar descontrolado.
– Eu sei.
Estou cheia de remorsos, claro. Mas também há um bocadinho de mim
que se entusiasma um tudo-nada, que se anima ligeiramente, porque esta é a
mãe que eu conheço. Ela não é fraca, frágil, mole ou abatida pelo cancro
como quem quer que fosse aquela pessoa que eu vi quando cheguei à
recolha de bagagem. Seja quem for essa criatura murcha, recuso-me a
acreditar que fosse a minha mãe. A mãe que eu conheço é a pessoa sentada à
minha frente, a pessoa teimosa, voluntariosa e, por vezes, maldosa. Esta é a
mãe que conheço.
41.
– Vá, bebe um gole.
– Não, obrigada.
– Vá lá!
– Nunca bebi álcool. E só tenho dezoito anos. Não me arrisco a meter-me
em sarilhos?
– Ninguém está a ver, Jennetter. Estás na boa.
– Não sei.
– Os putos do Victorious vão juntos para os copos o tempo todo. Os putos
do iCarly são tão certinhos. Temos de vos desviar um bocadinho.
O Criador compara-nos sempre, a nós, miúdos do iCarly com os miúdos
da outra série dele, Victorious. Acho que ele acha que isso nos fará
esforçarmo-nos mais.
– Não sei se o álcool será o desvio ideal.
Olho para o copo d’O Criador. Ele pega nele e agita a bebida. É uma
espécie de uísque misturado com café e natas. Eu até gosto de café.
– Um golo.
– Está bem.
O Criador passa-me o copo e eu bebo um golo. Detesto.
– É ótimo.
– Não me mintas. Não gosto quando me mentes.
– Detesto.
– Muito melhor, Jennetter.
O Criador ri-se. Portei-me bem. Agradei-lhe. Missão cumprida. É a
mesma missão que tenho sempre que janto com ele, o que se tem tornado
frequente ultimamente, enquanto o meu novo contrato para a série paralela
que ele me prometeu está a ser negociado. O Criador está a fazer aquilo que,
segundo os meus colegas, faz sempre com as novas estrelas de uma série:
põe-te debaixo da asa dele. És a favorita dele. Por enquanto. Eu gosto de ser
a favorita dele por enquanto. Sinto que estou a fazer alguma coisa bem.
– Estás entusiasmada por ter uma série só tua? – pergunta O Criador.
– Sim.
– Sim? Só isso?
– Não, claro que estou entusiasmada. Estou tão entusiasmada!
– Boa. Porque podia ter dado esta nova série a qualquer pessoa, sabes?
Mas não escolhi qualquer pessoa. Escolhi-te a ti.
– Obrigada.
– Não me agradeças. Escolhi-te porque tens talento.
Estou confusa. Ele acabou de dizer que podia ter escolhido qualquer
pessoa, o que me fez sentir que não era especial, e agora diz-me que me
escolheu porque tenho talento, o que me faz sentir outra vez especial. Este
género de confusão é normal com ele. Bebo um golo de água enquanto
tento decidir o que dizer a seguir. Felizmente, não tenho de dizer nada.
– O que achaste do bife?
– Era bom.
Era horrível, na verdade. Bem, ótimo e horrível. Ótimo em termos de
sabor, terrível em termos de até que ponto vou ficar obcecada com isto o
resto da noite. Comi demasiado bife, demasiadas batatas assadas,
demasiadas couves-de-bruxelas, e ainda um pão, e cenouras salteadas. Não
conseguia parar. Comi tudo. Sinto-me tão cheia. Estou enojada comigo
mesma.
A Mãe voltou a pôr-me na dieta da Nutrisystem, como fizemos quando
estávamos em Nashville. Fazemo-la juntas, quando estamos juntas. Mas a
cena é essa, não estamos juntas assim tantas vezes, nos dias que correm. Ela
está consumida pelas coisas do cancro e eu estou consumida pelas coisas da
televisão.
Quando a Mãe não está por perto para me motivar e me dar instruções, ao
que parece, eu não consigo forçar-me a comer caracóis de canela rijos, que
sabem mais a barras de proteína enroladas. Ao que parece, não consigo
mandar vir uma salada sem temperos. Não consigo seguir a minha dieta sem
a Mãe. Sou um fracasso sem ela.
– Estás bem? – pergunta O Criador.
– Claro.
– Boa, porque é bom que estejas bem – diz ele, gentilmente. – Estás
prestes a brilhar na tua própria série de televisão, pelo amor de santa! Sabes
quantos miúdos matariam para ter esta oportunidade? Todinhos.
Eu vou acenando com a cabeça. Ele estica o braço e pousa a mão no meu
joelho. Eu fico arrepiada.
– Estás fria – diz ele preocupado.
Não me parece que seja por isso que tenha ficado arrepiada, mas
concordo. É sempre melhor concordar com O Criador.
– Toma o meu casaco.
Ele tira o casaco e envolve-me com ele. Dá-me palmadinhas nos ombros,
e depois as palmadinhas transformam-se numa massagem.
– Ufa! Estás tão tensa!
– Sim...
– Seja como for, o que dizia eu? – pergunta ele, continuando a massajar-
me.
Os meus ombros têm muitos nós, mas não quero que seja O Criador a
desfazê-los. Quero dizer qualquer coisa, quero dizer-lhe para parar, mas
tenho demasiado medo de ofendê-lo.
– Oh, já sei – diz ele, retomando o fio à meada sem a minha ajuda. –
Todos os miúdos que para aí andam matariam por uma oportunidade como a
que te dei. Tens muita sorte, Jennetter.
– Eu sei – digo, enquanto ele continua a massajar-me.
E tenho. Eu bem o sei. Tenho tanta sorte.
42.
– Não acredito que a minha menina vai sair de casa – diz a Mãe de uma
forma diferente da que seria a da Avó. A Avó estaria a choramingar e a falar
suficientemente alto para que os vizinhos ouvissem. A Mãe diz isto
baixinho e mal consigo apanhar-lhe o olhar. Ao contrário dos telefonemas
dela para a Sprint PCS a pedir prolongamentos dos prazos, isto não é uma
exibição. Gosto dos aspetos em que a Mãe é diferente da mãe dela.
– É só nos dias úteis. Venho a casa aos fins de semana, se não tiver de ir a
Nashville.
A Mãe suspira.
– Esse “se” é pesado. Quase não vou ver a minha menina. Quem vai
tomar conta do que comes? Como vais lavar o cabelo?
– Bem, fi-lo sozinha na digressão.
– Sim, mas vi as fotografias. Parecia oleoso – funga ela.
– É a melhor opção, já que não tenho carta e tu já não podes conduzir.
Ainda que seja apenas um facto, a Mãe olha para o chão. Vejo que a
magoei.
– Um dia, talvez possa voltar a guiar – diz ela timidamente, como uma
criança que procura o encorajamento de um adulto.
– Eu sei que sim – digo eu, com um otimismo exagerado, como o de um
adulto a encorajar uma criança.
Olhamos ambas para a cadeira de rodas, a cadeira de rodas que ela
começou recentemente a usar “quando precisa”, coisa que se torna mais
frequente a cada dia que passa. A partir do momento em que o médico dela
lhe disse que achava que uma cadeira de rodas lhe daria jeito, fingimos que
ia ser divertido. Ela disse que eu podia conduzi-la pela Disneylândia e eu
disse “viva!” Depois, fui para a casa de banho do hospital e solucei, mas
como o papel higiénico tinha acabado, usei a cobertura do assento da retrete
para secar os olhos. Depois, voltei a sair e disse “viva!” outra vez.
Esta maldita cadeira de rodas é o oposto da porra de um viva. É uma
sentença de morte. Nenhuma de nós o quer admitir, mas é o que é. Uma vez
tornada uma doente de cancro com uma cadeira de rodas, nunca mais te
livras dela. Vais ser uma doente de cancro de cadeira de rodas até morrer.
Que se foda esta merda!
– Muito bem, desculpem lá isto – diz o Avô ao sair de casa, para se juntar
a nós na rua. – Estou pronto a seguir. Calças lavadas.
Ele aponta para as calças que acabou de trocar depois de ter entornado
uma chávena de café inteira no par que trazia vestido.
Eu sento-me no banco de trás, rodeada dos caixotes que já empilhei no
Kia. Observo o Avô a içar a Mãe para o banco da frente, a dobrar a cadeira
de rodas e a enfiá-la no porta-bagagens. E com isso lá vamos até ao meu
novo apartamento. O meu primeiro apartamento só para mim.
Estacionamos no complexo de Burbank passado pouco mais de uma hora.
O complexo não é mau. Não teria sido a minha primeira escolha, mas faz
sentido, do ponto de vista logístico. Os meus novos agentes (troquei durante
a terceira temporada de iCarly) combinaram com a Nickelodeon que eles
financiariam o meu alojamento aqui e que um assistente de produção me
daria boleia à ida e vinda do trabalho. (Eu não conduzo, já que a Mãe diz
que é provavelmente difícil demais para mim e que a minha energia podia
ser mais bem empregada noutra coisa do que nos carros, como por exemplo,
“a decorar falas ou programar tweets”.)
Nunca admitiria isto à Mãe, só lhe disse que estava devastada por estar
longe dela, mas também estou entusiasmada. Sinto-me culpada por esse
entusiasmo, tendo em conta a fragilidade da saúde dela, mas o sentimento é
inegável. Vou poder estar sozinha. Terei um espaço só para mim. Uma vida
só para mim.
O Avô carrega a Mãe para o apartamento enquanto eu carrego os
primeiros caixotes.
– Tenho um presente para ti, Net – diz a Mãe, quando o Avô a pousa no
sofá. Como é a Nickelodeon a pagar, a Mãe insistiu num apartamento
mobilado. Ela pega num presente embrulhado que traz debaixo do braço.
– Não era preciso.
– Até encaracolei a fita do laço – diz ela, entregando-me um presente do
tamanho de um DVD. A Mãe tem andado mais desesperada nestes últimos
meses. Ela tem andado mais desesperada, e eu mais zangada. Não sei se a
minha raiva é um resultado direto do desespero dela, mas sê-lo-á em parte,
pelo menos. Não consigo lidar com o desespero dela, caraças! Quanto mais
doente fica, mais queridinha fica a entoação dela, mais inocente se torna,
mais se põe a fazer-me súplicas. É como se me implorasse que não
desapareça aos poucos, e eu quero gritar: ÉS TU QUEM ESTÁ A
DESAPARECER AOS POUCOS! Posso jurar que ela nota que eu quero
gritar, porque se põe duas vezes mais queridinha. O que me faz querer gritar
duas vezes mais. Mas não o faço. Guardo cá dentro. E quando ela me olha
com os seus grandes olhos, eu sei que não é o caso, que não poderia ser,
mas quase que sinto que ela está a gostar disto. Quase que sinto que ela está
a gostar do sofrimento. Como se fosse uma representação do quanto gosto
dela.
– Não vais abrir? – pergunta a Mãe.
– Oh. Claro.
Desembrulho o presente. É um DVD de A Golpada. A Mãe adora o
Robert Redford. Eu também, mas ela gosta ainda mais.
– Pensei que podíamos ver isso esta noite, depois de te instalares.
– Oh, está bem. Seria porreiro.
– Sim, sim – diz a Mãe, retirando o chapéu para coçar a cabeça careca. –
E depois, hum… Estava a pensar... Não tenho quimio amanhã, por isso
podia passar cá a noite. Estás a ver… só se tu quiseres.
Ela olha para mim, olhos de carneiro mal morto, a entrelaçar as mãos toda
nervosa. Eu sei imediatamente o que isto significa. Não é que a Mãe vai
passar aqui a noite. É que a Mãe vai passar aqui todas as noites de um
futuro próximo. É a Mãe a mudar-se para cá. Não quero que ela passe cá a
noite.
– Claro que podes passar cá a noite – digo eu.
E continuo a dizê-lo todas as noites nos três meses seguintes, até que, por
fim, ela já nem pergunta. Já o presume e pronto. Este não é o meu primeiro
apartamento sozinha. É o nosso apartamento. Somos colegas de casa.
43.
Estou sentada dentro de um tronco no escorrega aquático do Six Flags,
enfiada no lugar da frente, com cinco elementos da equipa do iCarly
metidos nos lugares atrás. O meu colega Joe, que está sentado
imediatamente atrás de mim, não para de me tocar. A princípio, não
percebia bem se era acidental, já que sei que ele está na casa dos trinta e tem
namorada, mas agora já se repetiu tantas vezes que tenho a certeza de que é
de propósito. Não digo nada porque a verdade é que sabe bem. A verdade é
que quero que ele me toque assim.
A nossa amizade tem sido mais apimentada nos últimos meses, desde que
fomos os dois primeiros a chegar à sala antes de uma leitura do guião à
volta da mesa. O Joe e eu começámos a conversar e ele mencionou que o
filme preferido dele era o Juventude Inconsciente, e eu fui para casa e vi-o
logo nessa noite, para termos motivo de conversa para o dia seguinte. Eu
queria tanto impressioná-lo, já que ele era mais velho e mais sábio do que
eu. Trocámos nomes de utilizadores no Words with Friends, e o Joe
começou a dar-me boleia do trabalho, onde punha a tocar os álbuns dos Daft
Punk de uma ponta a outra e a explicar-me o que tornava a música deles tão
genial. Eu não gostava lá muito do som da eletrónica, mas adorava que o
Joe tentasse explicar-me porque devia eu gostar.
Agora, ele está a tocar-me. Da forma como me está a tocar. Isto é outro
nível. Ou presumo eu que seja. Nunca fui tocada assim, pelo que não sei
exatamente. Claro que houve o beijo com o Lucas na Hampton Inn, mas,
desde então, o romance tem sido coisa inexistente na minha vida. Só sei que
isto parece mais do que um toque amigável. Um formigueiro percorre-me o
corpo quando a mão dele pousa nas minhas costas. É uma sensação
estimulante, irresistível e assustadora. Neste momento, sei que, de uma
forma ou de outra, vamos estar juntos.
44.
– A Miranda e eu temos uma festa do pijama – minto eu, enquanto preparo
um prato de legumes cozidos a vapor para o “jantar”, para mim e para a
Mãe. Já jantei antes, no estúdio, e senti-me péssima por isso. Tenho
vergonha de contar à Mãe.
– O que farei eu sozinha, sem ti? – pergunta a Mãe genuinamente, lutando
contra as lágrimas. – Vou ter imensas saudades tuas. Gosto tanto de ti, Net.
– Também vou ter saudades tuas, Mamã. Mas isto é uma coisa que eu e a
Miranda andamos a planear há muito tempo. – Desta feita, minto duas
vezes.
A primeira mentira é que vou ter saudades dela. Não vou. Vou estar feliz
por ter um espaço sem ela. Ela dormiu na minha cama todas as noites desde
que nos mudámos para o meu apartamento (que-não-é) só para mim, e é
difícil dormir porque ela se agarra a mim a noite toda.
A segunda mentira é que a Miranda e eu vamos fazer uma festa do
pijama. Fazemos festas do pijama a cada quinze dias, ou coisa assim, mas
não esta noite. Esta noite, o Joe vai ficar comigo. Mas a Mãe não pode saber
do Joe, porque a Mãe nunca aprovaria. A Mãe só aprova dois tipos de
rapazes: mórmones e gays. E mesmo assim, fica a vigiar. “Lá porque um
rapaz lê o Terceiro Nefi…”
Ponho o prato de legumes cozidos a vapor diante da Mãe. Ela brinca com
o garfo com um cubo de abóbora antes de o meter na boca.
– Sim, mas eu preciso de ti neste momento, Net – diz a Mãe, olhando para
baixo.
– Volto amanhã – digo eu, gentilmente, na esperança de que isto a console
o suficiente para podermos mudar de assunto. Segue-se uma longa pausa,
em que espero que a Mãe diga alguma coisa. Ela desvia o olhar, os olhos
brilham com uma intensidade que parece dissociativa. Isso assusta-me.
Quando estou prestes a perguntar-lhe o que se passa, ela vira a cabeça de
repente na minha direção, pega no comando da televisão que está na
mesinha e atira-mo à cabeça. Eu encolho-me para me desviar.
– Estás a MENTIR, sua MENTIROSA – diz a Mãe, cuspindo, com a cara
a contorcer-se. – Vou descobrir o que se passa. Escreve o que te digo, sua
PUTAZINHA NOJENTA E MENTIROSA.
A Mãe já foi bruta comigo noutras alturas, mas nunca me tratou assim.
– E bem podes apostar que vou cheirar esse teu rasto de mentiras, quando
voltares amanhã – diz a Mãe dramaticamente. É óbvio para mim o quanto a
Mãe queria ter sido atriz. – Não é verdade, Mark?
A Mãe vira a cabeça bruscamente para o outro lado, para fitar o meu pai,
que esteve ali o tempo todo sem dizer uma palavra, como de costume. Ele
acena rapidamente com a cabeça, temendo a ira dela. Farta, eu pego na
mochila e ponho-me a andar.
– Vou descobrir o que andas a fazer, sua MENTIROSA! – grita a Mãe. O
meu sistema nervoso dá um salto, mas finjo ignorá-la. Saio pela porta da
frente, que deixo bater com um estrondo.
***
O Joe apanha-me na esquina do Sunset Boulevard com a Vine Street. A
porta do lado do passageiro do Ford Taurus dele foi abalroada e não abre
desde o acidente há uns anos, pelo que me arrasto por cima dele no lugar do
condutor para chegar ao lugar do morto. Ainda estou a tremer da interação
com a Mãe. Olho para o Joe.
Tem os olhos vidrados. Há um cheiro doce/pútrido que emana dele. Estou
desiludida. Esta noite era suposta ser a nossa primeira noite juntos como um
casal oficial. Eu queria que fosse romântica, mágica e importante. Em vez
disso, o Joe está triste e bêbado, e eu estou a bater-me para resistir à
desilusão.
– Está feito? – pergunto ansiosamente.
– Sim, acabei com ela. Não estaria aqui se não o tivesse feito – diz ele,
com as palavras entarameladas.
– Pois… como estás?
Ele ri-se e resfolga.
– Como achas que estou?
O Joe olha para baixo, como se se sentisse mal por ter sido bruto. Este
lado dele vem à tona quando está bêbado. Ele começa a guiar para o
Sheraton Universal, onde nos reservei um quarto. Preocupa-me que ele guie
embriagado, mas temo falar nisso porque sei que o deixará ainda mais
imprevisível.
Quando o Joe lá chega ao hotel e vamos para o nosso quarto, já passa da
meia-noite. O Joe tenta pôr a chave na fechadura, mas está demasiado
vacilante, pelo que eu pego na chave e enfio-a no buraco.
– Eu era capaz – diz ele.
O Joe tropeça para dentro do quarto atrás de mim e cai imediatamente na
cama. A princípio, penso que ele deve estar muito cansado, até que ele rola,
ficando estendido de barriga para cima, e vejo que lhe escorrem lágrimas
pelas bochechas. Respira com dificuldade e faz aquele som nojento, entre
um soluço e um grito.
– O que se passa? O que se passa?
– O que fui fazer? O que fui faaaaaaazer? – soluça ele. – Estávamos
juntos há cinco anos. Cinco anos! Vivíamos juntos, íamos casar.
Estendo-me ao pé dele e abraço-o. Sou a conchinha exterior. Ele continua
a matracar sobre os seus remorsos e arrependimentos. Se eu fosse
suficientemente boa, ele não se sentiria assim. Ele não estaria triste.
– Pensei que querias isto – digo eu, em busca de uma confirmação.
– Tu nem sequer queres ter sexo comigo! – geme ele.
É verdade. Não quero ter relações sexuais com ele. Ainda que a minha
família tenha deixado de ir à igreja, ainda há algumas regras da religião que,
por uma qualquer razão, não sou capaz de quebrar. Uma delas é a proibição
do sexo antes do casamento.
Andamos a sair juntos há três meses. Mantivemos as coisas em segredo
no trabalho, o que causa muita tensão. Depois do trabalho, na maior parte
das noites, estamos juntos umas horas, seja em casa dele, se a namorada não
estiver lá, seja em casa do amigo dele, se ela estiver. Já nos beijámos e
demos uns amassos, mas nunca tivemos relações sexuais e eu nunca lhe
toquei no pénis, sequer.
– Desculpa. Não estou pronta – digo-lhe eu, com uma firmeza que me
deixa orgulhosa.
– Bem, não podes, ao menos, fazer-me um broche?
O Joe levanta a cabeça da cama, como um cachorrinho desesperado e
carente.
– Hum. Não quero fazer isso.
O Joe volta a deitar a cabeça na almofada e as lágrimas dão lugar a uma
raiva aguda.
– Isto é ridículo. As minhas necessidades não estão a ser satisfeitas.
– Podemos beijar-nos – proponho.
– Não quero dar beijinhos. Tenho trinta e dois anos!
Sinto-me estúpida pela minha sugestão e envergonhada por não ser
suficientemente avançada sexualmente para satisfazer as necessidades do
Joe. Ainda que já tenha dezoito anos, sinto-me uma criança.
– És demasiado nova para mim. Isto não vai dar nunca.
O Joe começa a levantar-se da cama.
– Pronto, pronto, eu faço – digo eu, imediatamente desapontada comigo
mesma.
O Joe volta a estender-se e fica esparramado e moroso, como se já tivesse
esquecido a ideia, mas que, já agora, porque não? Já que estamos aqui os
dois. Ele abre a breguilha e puxa o pénis para fora. Eu fito-o durante muito
tempo.
– O que devo fazer? Nunca fiz isto.
– Pois, não é muito excitante quando te pões a dizer merdas dessas.
Já vi o Joe ser um bocado rude de vez em quando, mas isto é diferente.
Podia justificar o comportamento dele como estando mais bêbado do que o
habitual; como nunca bebi álcool (para lá do golo do café com cheirinho
d’O Criador), é difícil para mim avaliar, pelo que, geralmente, tento
adivinhar quanto bebeu ele pela forma desengonçada como anda ou pelo
quão entarameladas estão as palavras dele. Também podia justificar o
comportamento dele como estando a rebentar de desgosto pela separação,
mas, francamente, nem preciso de justificar o que quer que seja, porque
estou desesperadíssima por estar com ele. Ele é muito mais velho do que eu,
tem muito mais estilo do que eu, e eu nunca me senti assim em relação a
ninguém, por isso, sei que devemos ter qualquer coisa especial entre nós.
Mergulho para a frente. E então, começo. Ponho-me a lamber, a chupar, a
esperar que seja isso que seja suposto fazer e a esperar que o esteja a fazer
de uma forma que lhe dê prazer. Mas não faço ideia. Sou atriz há uma dúzia
de anos. Não sou ninguém sem que me deem indicações.
– Estou quase a vir-me – diz o Joe ofegante.
Parece que é uma coisa boa. Não sei o que está prestes a acontecer.
– Acelera um bocado.
– Obrigada – digo eu. Indicações!
E depois, de repente, uma coisa com sabor a plástico quente e líquido
dispara para a minha boca. Cuspo para cima da colcha.
– Saiu qualquer coisa! Ó meu Deus! Saiu qualquer coisa!
– Sim. É nhanha.
O Joe olha para mim com um ar entorpecido e aborrecido.
– O que é nhanha?
O Joe vira-se de lado, de costas para mim, e agarra a almofada com força
contra o peito. Respira fundo.
– O que é que eu fui fazer? – pergunta ele.
45.
– Aloha.
A bonita empregada na entrada do Four Seasons Resort Maui recebe-nos,
adornando o meu pescoço com uma grinalda floral e o do Joe com uma
grinalda de frutos secos. Os olhos do Joe demoram-se na empregada mais
0,2 segundos do que o razoável. Odeio esta cabra. Faço uma nota mental
para trabalhar nos meus ciúmes, um dia, quando tiver tempo.
Fazemos o check-in no hotel, reiterando inúmeras vezes que a reserva está
em meu nome e não no do Joe. Seja pela nossa diferença de idades ou só
por sexismo, ninguém parece acreditar que uma viagem ao Four Seasons
possa ser uma ideia minha e não dele.
Pronto, também não foi exatamente uma ideia minha. É uma ideia da
Nickelodeon. Isto foi o presente de fim da quinta temporada para cada
elemento do elenco: quatro noites e cinco dias no Four Seasons Resort
Maui, em Wailea, para o elemento do elenco e um convidado.
Claro que o Joe é o meu convidado. Nesta altura, estamos juntos há um
ano e a nossa relação segue agora um ritmo agradável. É claro que, metade
do tempo, as coisas são caóticas e tumultuosas: o Joe está bêbado e eu estou
histérica; o Joe está chateado por eu seu demasiado possessiva e eu estou
chateada porque o Joe voltou a meter-se em dívidas três semanas depois de
eu pagar as últimas. Mas, na outra metade do tempo, as coisas são bestiais.
Vemos reposições do Survivor. Temos piadas só nossas, daquelas
estúpidas, mas engraçadas. Rimo-nos muito. Ainda não tivemos relações
sexuais, mas os meus broches já são melhores.
Esta relação parece-me um enorme progresso em comparação com a dos
meus pais; eles tinham a parte tumultuosa, da gritaria e das discussões, mas
nenhuma diversão. O único problema é que a Mãe ainda não sabe da nossa
relação.
A Mãe teve de sair do meu apartamento há uns meses para estar mais
perto do oncologista, em Orange County, agora que as consultas são quase
diárias. Agora que não estamos fisicamente juntas no mesmo espaço, a Mãe
telefona-me dez vezes ou mais para se manter a par da minha vida – se o
papel da minha personagem num determinado episódio da série é grande, se
tenho feito audições para outras coisas, exposições sobre porque devo eu
voltar para a música country (desisti do meu contrato discográfico depois de
o cancro da Mãe piorar). Preocupa-me pensar em como vou aguentar uma
estadia de quatro noites e cinco dias no Four Seasons sem que a Mãe saiba
com quem estou.
Decidimos que direi à Mãe que estou com o Colton, o meu amigo gay que
ela aprova, porque nem pensar que o pénis dele vai entrar em mim, e que se
juntará a nós em chamadas a três para me ajudar a disfarçar, para que a Mãe
não descubra que estou a mentir.
Mentir à Mãe é difícil para mim. Sempre que lhe minto para proteger a
minha relação com o Joe, desligo o telefone e choro nos braços dele de tanta
culpa que sinto. Digo ao Joe que gostava de poder ser sincera com ela, que
gostava que ela o conhecesse, que gostava de não ter medo dela. O Joe
passa-me a mão pelo cabelo e consola-me.
Sinto que a distância entre mim e a Mãe aumenta de dia para dia. A cada
mentira que conto, sinto-me a afastar-me cada vez mais dela. A cada quilo
que engordo, a cada patuscada em que participo, sinto-me a desligar-me
dela.
Sinto-me confusa e perturbada com a situação. Quero desesperadamente
sentir-me próxima dela, mas também quero desesperadamente que essa
proximidade seja nos meus moldes, não nos dela. Quero que ela conheça a
pessoa em que me estou a tornar. Quero que ela me autorize a crescer.
Quero que ela me veja ser eu.
Mas isso parece mais uma fantasia do que uma possibilidade, pelo menos
por enquanto. Então, por enquanto, eu minto.
Já passaram três dias de férias e o plano corre sem percalços. Todos os
dias, o Colton e eu temos uma chamada a três com a Mãe para lhe contar as
nossas aventuras de mergulho, os passeios de Jeep fora da estrada, e as
caminhadas pelas praias de areia branca. Ela ri-se quando o Colton lhe
conta pormenores que gritam “não-estou-nada-a-passear-pelo-Target-de-
Burbank-neste-momento”.
Mas, ao fim da tarde do terceiro dia, eu e o Joe estamos a fazer paddle na
praia diante do hotel, quando ele repara numa coisa e diz-me para me
baixar. Tento ver do que fala ele, e lá ao longe, ao pé de uma das cabanas
amarelo-banana, vejo um pequeno paparazzo agachado a tirar-nos
fotografias.
“Merda! Merda, merda, merda!” Isto é um desastre. Nadamos para a
costa, largamos as pranchas, enrolamos umas toalhas chiques à volta do
corpo e corremos para a entrada traseira do hotel. O paparazzo tira-nos
fotografias o tempo todo.
Quando chegamos ao quarto, eu estou em pânico, a desbobinar a lista de
maneiras que a Mãe terá para me castigar, renegar ou ameaçar. O Joe tenta
acalmar-me em vão.
A certa altura, esta histeria já dura há tempo suficiente para que eu me
sinta completamente esgotada emocionalmente. Adormeço em cima da
cama às seis da tarde.
A visão com que acordo na manhã seguinte não é a das belas palmeiras do
outro lado da janela, nem a da água turquesa resplandecente, nem sequer do
casal de felizes recém-casados a namorar numa rede à distância. É o ecrã
duro e frio do meu iPhone, com uma notificação ofuscante que me deixa
aterrada.
Trinta e sete chamadas perdidas da Mamã, dezasseis mensagens de voz e
quatro emails por ler (já não partilhamos uma conta, criei uma para mim
recentemente, graças ao encorajamento do Joe). Abro o primeiro email.
Querida Net,

Estou tão desiludida contigo. Costumavas ser o meu anjinho perfeito,


mas agora não passas de uma PEGA, uma FLAUSINA, TODA GASTA. E
pensar que desperdiçaste isso tudo por esse OGRE horrendo. Vi as
fotografias num site chamado TMZ. Vi-te no Havai com ele. Vi-te a
fazer-lhe festas na barriga peluda e nojenta dele. Eu SABIA que estavas
a mentir sobre o Colton. Junta isto à lista de coisas que tu és:
MENTIROSA, INTRIGUISTA, MÁ. Também estás mais balofa. É óbvio
que estás a COMER, TANTA É A CULPA.
Imaginar-te com o badalo dele dentro de ti faz-me vomitar. VOMITAR.
Eduquei-te melhor do que isto. O que aconteceu à minha menina boa?
Para onde foi ela? E quem é este MONSTRO que a substituiu? Agora, és
um MONSTRO FEIO. Contei a história aos teus irmãos e eles disseram
todos que te vão renegar, tal como eu. Não queremos ter mais nada que
ver contigo.

Com amor,
Mãe (ou devo dizer DEB, visto que já não sou a tua mãe)

P.S. – Envia dinheiro para um frigorífico novo. O nosso estragou-se.


Eu dobro-me em dois e enterro a cabeça nas mãos, rebentando em
soluços. O Joe faz-me festas nas costas e assegura-me de que a minha mãe
não está bem, mas eu garanto-lhe que é o oposto. Eu não estou bem. Talvez
ela tenha razão. Talvez eu me tenha caído em perdição. Talvez eu seja um
mostro malvado.
– Não podes deixar que ela te afete assim – diz ele.
Pego no telefone e escrevo rapidamente “TMZ” na barra de pesquisa. O
Joe lembra-me de que concordamos em não olhar para as fotografias – ele
sabe que a perceção que tenho do meu corpo não é boa –, mas eu não quero
saber. Tenho de vê-las. Tenho de ver se a Mãe tem razão.
Tem. Estou horrível. O meu corpo e a minha cara repugnam-me. Pareço
balofa, de facto. Já não uso fatos de banho inteiros, mas ainda uso calções
largos para esconder o meu rabo, que é curvilíneo e feminino e me enoja
por ser essas coisas. O Joe diz-me que as minhas mamas ficam ótimas na
parte de cima do meu biquíni, mas eu não vejo como. Acho que as minhas
mamas são medonhas. Odeio-as. Quem me dera ter o peito liso e não ter
curvas. Quem me dera que não houvesse nada de sexual ou sugestivo no
meu corpo.
As lágrimas dão lugar ao meu venenoso desprezo por mim mesma. O Joe,
reparando numa mudança na minha disposição, arranca-me o telefone das
mãos e diz-me que vai pô-lo no cofre do hotel. Eu não me oponho.
Durante os dois dias seguintes, o telemóvel fica no cofre e o meu fato de
banho fica pendurado na pega da porta da casa de banho, onde o deixei da
última vez. O Joe e eu estamos a tentar aproveitar o melhor possível o
tempo que nos resta no Havai fazendo grandes passeios a pé e de carro, e
outras atividades que não impliquem que eu me dispa em público. Quando
chega a manhã do último dia de viagem, já me distraí o suficiente e o
telemóvel esteve longe de mim tempo de sobra para que eu quase tenha
esquecido o incidente com o paparazzo e o email malicioso da minha Mãe.
Mas quando o Joe e eu estamos a fazer as malas, vejo pelo canto do olho
que ele está, discretamente, a introduzir o código no cofre. Ele retira o
telefone e prepara-se para o pôr no bolso. Peço-lhe que me deixe ver
primeiro. Ele lembra-me de que é má ideia e que só me vai fazer mal olhar
para aquilo, mas não consigo deixar de o fazer. Quero ver. Tenho de ver.
Assim que tenho o telemóvel nas mãos, sei que fiz uma asneira, mas
agora é tarde. Quarenta e cinco chamadas perdidas da Mãe. Vinte e dois
emails dela por ler. Começo a ler as mensagens freneticamente, e cada uma
é mais agressiva do que a anterior. Ela chama-me bronca, falhada, velhaca,
diabólica. O Joe diz que estamos atrasados para o aeroporto. Eu não quero
saber.
Leio outro email. Este chama-se “Carta aos teus fãs”. Abro e vejo um
comentário mordaz em anexo, um comentário que a Mãe diz que publicou
num clube de fãs da Jennette McCurdy online, numa tentativa de convencer
os meus fãs a desertar-me. Ela diz que me vai roubar todos os fãs, que os
merece mais do que eu, que jura por Deus que vai inscrever-se no Vine12 e
que toda a gente vai adorar os vídeos de comédia dela.
Pergunto-me se a Mãe está a fazer bluff, pelo que vou ver o clube de fãs
de que ela fala. Não é bluff. Lá está a mensagem da Mãe, mesmo na página
de entrada do dito site. Quase não quero acreditar.
Volto ao meu email, onde apareceu, entretanto, uma nova mensagem da
Mãe. Abro-a.
FOSTE TU que fizeste o meu cancro voltar. Espero que fiques feliz em
sabê-lo. TU terás de viver com este facto. TU deste-me o cancro.
Esboço uma resposta para ela, a pedir-lhe se podemos sentar-nos e
conversar sobre isto cara a cara. Tenho a certeza de que, se ela me conceder
isso, posso explicar-me o suficiente para conquistar o aval dela. Estou
desesperada, suplico-lhe.
Minha querida Nonny Mommy,

Peço-te, podemos, pelo menos, encontrar-nos em pessoa e falar sobre


isto? Por favor. Só nós as duas. Podemos sentar-nos e conversar. Posso
responder a todas as perguntas que tenhas. Por favor, Mamã. Odeio
desiludir-te. Faria tudo para não te desapontar. Estou confiante de que,
se soubesses a história toda, não pensarias estas coisas sobre mim.
Gosto tanto de ti. Quero voltar a estar perto de ti. Tenho saudades tuas.

Com amor, Nettie


Bloqueio o ecrã e enfio o telefone no bolso do Joe, que me pergunta o que
disse ela. Não lhe conto nada. Estou embrutecida. Catatónica. Durante todo
o voo de regresso, não digo uma palavra.
Ao longo dos últimos anos, a Mãe e eu tornámo-nos mais distantes, a um
ponto que nunca pensei ser possível. Entre a fama e o Joe, a tensão entre
mim e a Mãe tornou-se quase intolerável. Além disso, há o desgaste devido
ao cancro dela. Talvez isto tudo seja causado por esse desgaste devido ao
cancro dela.
Porque não pode ela admitir que está a morrer? Porque não posso eu
admitir que ela está a morrer? Eu odeio-a por se preocupar tanto com a fama
e ela odeia-me por me preocupar tanto com o Joe. Parece que, neste
momento, nutrimos mais ódio do que amor uma pela outra, mas talvez seja
por estarmos as duas assustadas. Talvez estejamos a deixar este fosso entre
nós aprofundar-se porque, no fundo, sabemos as duas que, em breve,
controlar este fosso deixará de estar nas nossas mãos.
O avião aterra. Enquanto damos voltas pela pista, abro o rascunho do meu
email para a Mãe. Carrego no “enviar”. Segundos depois, o meu telefone
apita com uma resposta da Mãe.
Claro, podemos encontrar-nos. P.S. – Recordo-te do dinheiro para o
frigorífico. O nosso iogurte azedou.
12
Plataforma para partilha de vídeos com seis segundos de
duração, em funcionamento até 2017. (N. da T.)
46.
– Jennette? Podes cantar a “Wind Beneath My Wings” no meu funeral?
A Mãe e eu estamos sentadas no Panda Express do Cahuenga Boulevard
para o jantar de aniversário da Mãe. A Mãe mastiga os seus brócolos
cozidos a vapor e eu mastigo a minha couve cozida a vapor, e estamos as
duas a fazer o frete de manter a nossa relação, sem grande entusiasmo,
porque é isso que fazemos hoje em dia.
Isto começou na primeira vez que nos vimos depois da viagem ao Havai.
O Pai trouxe-a de carro a minha casa, levantou-a da cadeira de rodas e pô-la
no sofá. Enquanto esperávamos que o chá abrisse, eu esperava que ela
mencionasse a história do Joe, já que pensava que era essa a razão do nosso
encontro: falarmos sobre isso. Mas ela não tocou no assunto. Só me fez
perguntas triviais sobre o trabalho, e eu respondi às perguntas triviais dela
sobre o último episódio de Investigação Criminal. A Mãe gosta muito do
Mark Harmon.
Quando vai ela falar naquilo?, perguntava-me eu. E continuei a
perguntar-me até que, sem que eu desse por isso, as nossas duas horas juntas
acabaram e o Pai voltou para a vir buscar e levá-la para casa.
No momento em que nos encontramos, para aqui sentadas no Panda
Express do Cahuenga Boulevard, esta forma de comunicação – converseta
bem-educada com um fundo latente de dor e ressentimento – é a nossa
realidade há muitos meses, há tempo suficiente para já não ser novidade. É
por isso que me choca que a Mãe me peça para cantar a “Wind Beneath My
Wings” no funeral dela.
O cancro da Mãe entra na categoria de coisas que fingimos que não
existem porque é desagradável falar nelas. A Mãe, ao fazer este pedido, está
a quebrar a nossa regra tácita. Não sei como digerir isto nem como
prosseguir.
– Hum…
– Mas tens de cantar com emoção. Tens de acreditar nas palavras. Não vai
resultar, se só estiveres a dar cinquenta por cento.
Ainda nem aceitei cantar e a Mãe já me está a dar indicações.
– Ahhh…
– Tenta lá, para eu ouvir.
– Mãe, estamos no Panda Express. Não me vou pôr a…
– Tenta lá.
– It must have been cold there in my shadooooow… – involuntariamente,
a minha voz começa a sair da minha boca. O meu corpo está programado
para obedecer à Mãe-a-pedido. Uma empregada observa-me do canto do
olho enquanto lava o chão.
– To never have…
– Mais emoção, mais tristeza. Tens de sentir, meu anjo.
– To never have sunlight on your faaace…
Um pouco exagerado, este vibrato, mas a Mãe gosta desse género de
coisa.
– Boa, para. Não quero esgotar-te já. Tu chegas depressa ao pico do teu
desempenho e depois perde-se. Então, vais fazê-lo?
Sinto-me obrigada. É o último desejo da Mãe. O único problema é que
acho que não tenho a amplitude vocal para cantar isto. Nas estrofes, safo-
me, porque posso usar o meu registo mais grave. Mas quando a canção
chega ao refrão cada vez mais agudo, eu já não chego nem perto.
De volta ao meu apartamento, a Mãe pede-me para procurar a canção no
YouTube, para poder treinar e dar-lhe um cheirinho de como será a atuação
final.
– Pensei que não me querias esgotar.
– Bem, estamos a treinar com tanta antecedência, esperemos, que não
importa.
A escolha cuidada de palavras (ou de palavra) da Mãe bate-me com força.
Esperemos. Sinto-me furiosa com ela e, imediatamente a seguir, sinto-me
culpada por ficar furiosa. Devo ser uma pessoa horrível por sentir fúria
contra a minha mãe enquanto ela morre lentamente.
Concentro a energia da minha culpa no cumprimento do desejo da Mãe.
Talvez isso me aligeire a consciência. Procuro a canção no YouTube e abro
outro separador com a letra. Então, começo. Nas estrofes, como esperava,
tudo bem. Mas assim que chego à parte “Did you ever...” confirma-se. Está
fora do meu alcance.
– Bem, é porque não fizeste nenhum aquecimento vocal – garante-me a
Mãe. – Faz um aquecimento e volta a tentar.
Faço dez minutos de mi-mó-mus antes de voltar a tentar. Mas, quando
repito, o mesmo problema. Tento mais uma vez, só para tirar teimas.
– Está fora do meu alcance – admito finalmente.
– Não digas isso – diz a Mãe com aspereza.
– Desculpa.
– Vais chegar lá. Sei que vais chegar lá. Tens imenso tempo para treinar…
esperemos.
Não quero treinar a canção que a minha mãe que está para morrer me
mandou cantar no funeral dela. Não quero pensar no funeral da minha mãe.
Quero voltar a ignorar estas coisas, que são temas de conversa
desagradáveis. Por muito que eu achasse que odiava fazê-lo, quero voltar a
fingir.
– Porque não tentas mais umas vezes esta noite, minha querida? – incita-
me a Mãe, tirando o chapéu da Ugg para coçar a cabeça careca. À
superfície, parece um gesto triste, mas podia jurar que ela o está a fazer de
forma manipulatória.
Volto a tocar a canção do início. Começa a introdução cintilante dos anos
80. Eu tento outra vez.
47.
– Vais na direção errada – digo ao Avô pelo intercomunicador, enquanto o
observo da minha janela.
– Ups.
Ele dá meia-volta com a cadeira de rodas da Mãe e começa a andar na
direção oposta. Olho para eles lá em baixo, da janela do meu apartamento
que dá para o pátio. Escolhi este apartamento por causa desta vista, ou
antes, pelo que esta vista não é. Os apartamentos mais cobiçados neste
complexo são os virados para o Sunset Boulevard, com vista direta para a
animação da cidade. Mas nem pensar que eu teria escolhido um desses,
porque esses edifícios estão virados para os Nickelodeon Studios e, a
revestir a fachada dos Nickelodeon Studios está um enorme painel
publicitário roxo e amarelo-vivo do iCarly, completo com o meu sorriso
falso e com o penteado piroso e aerografado. Nem pensar que acordaria
todas as manhãs disposta a encarar-me.
– Aonde queres ir? – pergunto. Não digas, por favor. Por favor, não digas.
Não, por favor…
– Ao Wendy’s? – sugere a Mãe, inocentemente.
– Está bem – digo eu, com um sorriso apertado. Não há nada de
fundamentalmente errado com o Wendy’s. Na verdade, diria mesmo que há
imensas coisas fundamentalmente boas. Já provámos todos os Frosty13.
A minha tensão não advém do Wendy’s, mas do que leva a Mãe a sugeri-
lo. Ela sabe que eu tenho dinheiro e que podia levá-la aonde ela quisesse,
mas escolhe o Wendy’s, não por gostar, mas para poder ir dizer às amigas
ou outros frequentadores da igreja o quão humilde ela é, o quão terra-a-
terra, que, até num dia especial como o aniversário dela, tudo o que fez foi
comer uma salada simples num restaurante de fast-food.
Este lado da Mãe dá comigo em doida. Este lado dela que quer que
tenham pena dela. Ela tem um cancro de estádio IV, já toda a gente tem
pena dela de sobra. Não precisa de juntar o Wendy’s à lista de desgraças.
O Avô sai do parque e chega ao primeiro semáforo. É o semáforo situado
diretamente em frente do gigante e assustador cartaz do iCarly. Começo a
organizar os compartimentos desarrumados do banco de trás por ansiedade.
Tiro de lá papéis, recibos amarfanhados, guardanapos sujos e um exemplar
do Conservative Victory, do Sean Hanity. O Avô espreita por cima do olho
para ver o que estou a fazer.
– Queres que te empreste? Já acabei. É um ótimo livro. É mesmo um
grande livro. – Ele bate no volante para pontuar as palavras.
– Talvez. – (Não.)
– Cá está ela! – diz a Mãe, enquanto tira uma fotografia ao cartaz gigante
com a máquina Kodak descartável. Ela tem, no mínimo, uma centena de
fotografias deste mesmo painel.
Está ela a tirar a fotografia, quando a máquina lhe cai da mão e vai parar
ao chão. Eu estico-me para a apanhar e, quando me endireito outra vez, a
Mãe está a ter convulsões. As mãos dela fecham-se em duas pequenas bolas
apertadas e a cara dela está contorcida, com um olho fechado e a boca toda
franzida para um dos cantos. As convulsões dela lembram uma pessoa a
sacudir-se num hospital psiquiátrico. Estou aterrorizada.
Digo ao Avô que algo está mal. Ele invoca o nome de Deus em vão. A
Mãe não diz nada porque não pode. O Avô olha para os dois lados para
garantir que o caminho está livre e, depois, atravessa a rua na diagonal,
passando um vermelho para entrar no estacionamento dos Nickelodeon
Studios. O Carl, o segurança simpático, reconhece-o, já que o Avô vem cá
visitar-me muitas vezes. O Avô pede ao Carl para chamar uma ambulância.
Neste momento, a Mãe está a espumar da boca. Eu estou convencida de
que ela está a morrer. O Avô diz-me para a fazer deitar-se. Desaperto-lhe o
cinto de segurança e puxo-a para o meu colo. Este é o momento mais
assustador da minha vida.
A ambulância chega com uma rapidez impressionante. Deitam a Mãe
numa maca e prendem as cintas. Ela ainda continua a ter convulsões. Eles
conduzem-na para dentro da ambulância. Um dos socorristas reconhece-me,
pelo que me deixa acompanhar a Mãe. É uma das raras vezes em que fico
grata por ter sido reconhecida.
Pego na mão da Mãe e aperto-a. Digo-lhe que vai correr tudo bem, ainda
que tenha a certeza do contrário. A sirene da ambulância começa a bradar. O
som parece distorcido, ouvido dentro do veículo que o produz. O condutor
vira à direita para sair do parque de estacionamento. Enquanto aperto a mão
da minha mãe moribunda e vejo a espuma sair-lhe da boca, voltamos a
passar pelo painel publicitário. Vejo o meu sorriso sem alma e a porra do
meu penteado estúpido e fora de moda. A minha vida está a troçar de mim.
13
Produto característico da cadeia de restaurantes Wendy’s, entre o
batido e o gelado de colher. (N. da T.)
48.
É a antevéspera de Natal. A Mãe passou a última semana na UCI,
inconsciente. Teve um ataque por causa do tumor que tem no cérebro, o
que, ao que parece, “acontece muito frequentemente”, diz-nos o médico,
como se a frequência tornasse a coisa menos horrível.
O Marcus, o Dustin, o Scottie e eu estamos sentados numa fila de cadeiras
da sala de espera enquanto a Avó e o Avô visitam a Mãe na UCI. Estamos
todos calados.
Por fim, ofereço-me para ir ao Burger King buscar coisas para todos,
porque estou desesperada por uma distração. E a comida é a distração
perfeita. Nenhum dos rapazes quer nada. Dizem que “não conseguem
comer” neste momento. Invejo-os. Invejo-os, porque a tristeza e o stress
neles se traduzem em falta de apetite.
Vou ao Burger King do outro lado da rua. Peço um Whopper, batatas
fritas e um granizado de Coca-Cola, e ainda uns tacos e palitos de galinha
para acompanhar. O pedido e o consumo da comida dão-se numa sucessão
rápida, e ambos parecem fora do meu controlo. Depois, sinto o estômago
dilatado.
Pondero obrigar-me a vomitar. Já ouvi falar nisso, mas nunca tentei.
Agora parece um momento tão bom como qualquer outro para
experimentar. Enfio o meu saco do Burger King num caixote de lixo a
rebentar pelas costuras e volto para o hospital. Corro pela porta principal,
atravesso a entrada e salto para um elevador, entusiasmada com o meu novo
plano. Desço do elevador na UCI. Os meus irmãos já não estão na sala de
espera. Devem estar a visitar a Mãe. Vou até à casa de banho com dois
cubículos e certifico-me de que mais ninguém está ali. Depois, ajoelho-me
nos ladrilhos frios e duros do chão do hospital e espeto os dedos pela
garganta abaixo. Au! Toco no fundo da garganta. Dói, mas não sai nada.
Tento outra vez. Nada. Mais uma vez. Nada ainda.
Que se lixe esta merda! Desisto. Lavo as mãos. Sou uma falhada no que
diz respeito a não comer, e sou uma falhada no que ao tentar livrar-me da
comida que como diz respeito.
Corro pelo corredor e empurro a porta pesada que dá para o quarto da
UCI da Mãe. O Marcus, o Dustin e o Scottie estão de pé à volta dela. Mal se
distingue a forma do corpo pequeno dela por baixo dos lençóis e cobertores
do hospital.
– Ela está acordada – diz-me o Dustin.
Corro para o pé da cama e pego na mão dela. Adoro o toque das mãos
dela. São pequenas e os dedos são curtos. A pele dela é brilhante e quente.
– Net – diz ela, virando a cabeça para me olhar com os seus olhos frágeis.
Os meus olhos enchem-se de lágrimas. Talvez ela vá ficar bem, afinal.
Nem acredito. Estou exultante.
– Os rapazes disseram que foste ao Burger King. Não precisas de comer
essas coisas. Há imensos gramas de gordura num Whopper.
Fico radiante. Uma lágrima escorre pela minha bochecha. A Mãe vai
sobreviver. Por agora, vai sobreviver.
– Eu sei, Mamã. Eu sei. Mas pedi sem maionese…
Ela suspira.
– Mesmo assim…
49.
A Miranda está a chorar. Eu estou a chorar. Estamos as duas a chorar. Não
conseguimos parar de chorar. Para mim, não é pelo fim do iCarly. Não é por
hoje ser o nosso último dia, para todo o sempre, nas gravações do iCarly.
Isso para mim é na boa, até me entusiasma, estou preparada, sem dúvida.
Ainda que esteja com receio de começar a minha série paralela, estou
contente por, pelo menos, dizer adeus a este projeto que me faz sentir como
se vivesse diariamente no filme O Feitiço do Tempo, a fazer a mesma coisa
vezes sem conta.
A razão para o meu choro é que não sei o que acontecerá à minha amizade
com a Miranda. Tornámo-nos tão chegadas. Como irmãs, mas sem o lado
passivo-agressivo nem as tensões estranhas da sororidade. Eu tenho os meus
preconceitos sobre as amizades femininas serem maliciosas, mesquinhas ou
traiçoeiras, mas não há nem um pingo disso com a Miranda.
Com a Miranda, as coisas são sempre muito fáceis. A nossa amizade é
pura.
Um assistente de realização estende-nos uns lenços de papel. Eu e a
Miranda assoamo-nos de forma grotesca e voltamos às nossas marcações
para fazer um último take da última cena que vamos filmar juntas. A tristeza
apodera-se de ambas. Abraçamo-nos e choramos.
Esta sensação de tristeza e de fim é muito comum num plateau. Ficamos
a conhecer as pessoas à nossa volta muito intimamente, porque passamos
mais tempo com elas do que com a nossa família. Durante um determinado
período de tempo, claro está. E depois, deixamos de passar. E, pouco a
pouco, começamos a perceber que falamos cada vez menos com as pessoas
com quem fomos tão íntimas. Até que não falamos com elas de todo. E faz-
nos ponderar se alguma vez teremos sido mesmo íntimas ou se era só uma
fachada. Se as ligações seriam, afinal, tão temporárias como os cenários
onde foram criadas.
Não gosto de conhecer pessoas pelo contexto. Oh, aquela é a pessoa com
quem trabalho. Aquela é a pessoa do meu clube de leitura. Aquela é a
pessoa com quem fiz aquela série. Porque, acabado o contexto, acaba a
amizade.
Anseio por conhecer as pessoas que amo profunda e intimamente – sem
contexto, sem compartimentos –, e anseio por que elas me conheçam assim
também. Por muito que eu pense que conheço a Miranda profunda e
intimamente, não gosto de conhecê-la no contexto do iCarly, porque o
iCarly está no fim e eu não quero que a nossa amizade acabe também.
50.
– Tens a certeza?
– Absoluta.
– Não é o momento de acabares connosco. Logo agora, quando mais
precisas da nossa ligação.
– Não me parece. Acho que… se eu passar estes próximos meses contigo,
vou ficar demasiado afeiçoada.
– E porque não queres tu ficar afeiçoada? Não é bom ficares afeiçoada a
alguém? Não é isso o amor?
– É só que tenho medo de me afeiçoar enquanto a minha mãe está… estás
a ver…
Não consigo dizê-lo em voz alta. Quanto mais real se torna, menos
consigo falar disso em voz alta. Os médicos andam a dizer há uns tempos
que a saúde da Mãe está a decair rapidamente; dizem-no há tempo
suficiente para que eu ponha em causa a utilização deles da palavra
“rapidamente”. Seja como for, está a decair. Está presa à cadeira de rodas.
Está mais fraca do que alguma vez a vi. O cancro espalhou-se mais ou
menos por todo o lado. O fim está próximo. Roo a unha.
– É que… como estou mais ligada a ela do que a qualquer outra pessoa,
temo que todo esse sentimento para com ela se transponha numa carga para
quem quer que esteja comigo – digo eu.
– Por mim, tudo bem. Quero essa carga. Venha ela!
Não era a resposta que eu esperava. Começo às arrecuas.
– Talvez tenha dito mal. Acho só que é uma distração daquilo em que
tenho de me concentrar agora. A família.
– Sou uma distração?
– Não. Sim. Não sei.
Coço a cabeça. Quero acabar com esta situação, esta situação no Tony’s
Darts Away, o restaurante vegano favorito do Joe, em Burbank.
– Olha, se já não me amas, podes dizer e pronto. Eu aguento – diz ele,
com a voz a falhar na última parte, traindo as suas palavras.
Nesse instante, chega a salsicha vegana e a cerveja que ele pediu. O
timing da comida nos restaurantes está sempre impecavelmente alinhado
com a frase que menos queremos que seja ouvida por terceiros. Quase dá
para apreciar este talento, é como se os empregados trabalhassem para o
aperfeiçoar.
– Amo-te, sim.
– Então, porque estás a acabar comigo?
O Joe come uma grande garfada de salsicha. Uma garfada absurdamente
grande. Fica com maionese vegana espalhada pela cara. É nojento.
Talvez seja por isto. Talvez não tenha nada que ver com as coisas da Mãe.
Talvez eu esteja noutra e pronto. Ouvi-lo mastigar incomoda-me quase
sempre. A vozinha de bebé de que ele usa e abusa arrepia-me. As piadas
dele não têm graça. Ele não tem ambição. Bebe demasiado. Tem problemas
de temperamento. A nossa diferença de idades já não me parece fixe, e
envergonha-nos um pouco aos dois.
Pergunto-me que rol de defeitos terá ele guardado sobre mim, nesta altura
do campeonato. O que poderá ele dizer? Que sou egoísta. Que sou
possessiva. Que não sou suficientemente sociável. Que não gosto dos
amigos dele. Que sou demasiado moralista. Que não lhe presto atenção
suficiente.
O Joe continua a mastigar a mesma garfada. Já mastiga esta mesma
garfada há um malfadado minuto. E se comesses bocados mais pequenos?
Há uma forma simples de resolver isto, Joe.
– Ouviste? – pergunta ele. – Se ainda me amas, porque é que estás a
acabar comigo?
Algo muda dentro de mim, neste momento coberto de maionese vegana.
A minha paciência esgotou-se. Estou numa tasca vegana, a tresandar a
cerveja que não me interessa beber, com jogos de basquete e futebol que
não me interessa ver aos berros na quantidade excessiva de televisões à
minha volta. Estou sentada num banco de bar com pernas irregulares, diante
de um homem que já não amo. Estou entorpecida. Estou farta.
– Ouve, é o que é.
51.
A Miranda está a guiar e eu estou no lugar do morto do Porsche Cayenne
dela, onde passamos metade do nosso tempo juntas, nos dias que correm. E
passamos muito tempo juntas nos dias que correm. Não era preciso
preocupar-me com o contexto, a nossa amizade fortaleceu-se desde que o
iCarly acabou.
Vemo-nos três ou quatro vezes por semana. Geralmente, numa dessas
noites fazemos uma festa do pijama, como ontem. Normalmente, fazemos
isso em casa da Miranda, mas ontem ficámos no St. Regis Laguna Beach,
porque a prenda de fim de série era uma noite lá.
A festa do pijama bem podia ter sido em casa da Miranda, porque não
fizemos nada de especial, mais na onda do St. Regis, do que nas outras
noites. Sentámo-nos no quarto e vimos um filme qualquer sobre a indústria
pornográfica com a Amanda Seyfried e decidimos que, ainda que o filme
fosse medíocre e nós não soubéssemos pronunciar o apelido dela, a Amanda
Seyfried era um anjo de beleza ambulante. Conversámos sobre como nos
sentimos tristes e infelizes, e sobre como isso nos deixa a sentir culpadas
por termos tantas coisas pelas quais estar gratas. Vimos o Dance Moms até
adormecermos – entre as táticas abusivas da Abby Lee Miller e o fervor dos
pais, revimo-nos profundamente.
Deixámos o hotel há relativamente pouco tempo. A Miranda avança para
o ramal de acesso à autoestrada mais próximo. Queixamo-nos, entre risos,
sobre qualquer coisa, com a “Roar” da Katy Perry a tocar no fundo (uma
vez, vimos juntas os Rolling Stones, mas estamos a gozar com quem?
Somos raparigas de vinte e um anos e a Katy Perry entusiasma-nos muito
mais do que o Mick Jagger). O meu telefone toca. Mamã.
– Estou?
– Net! Net! Ajuda-me!
– Ei, ei, calma, o que se passa?
– Ajuda-me! Tenho medo.
– Tens medo de quê?
– Estão a levar-me para a minha operação.
A Mãe já tem uma operação marcada há uns tempos. O implante mamário
da mastectomia dela começou a vazar recentemente, pelo que o médico tem
de mexer lá, limpar o vazamento e reparar o implante – ao que parece, um
procedimento relativamente simples.
– Vai correr tudo bem. É uma pequena cirurgia.
– Alguma coisa não está bem, Net. Alguma coisa não está bem.
Ouço a enfermeira no fundo.
– Não são permitidos telefones aqui dentro, minha senhora.
– Por favor, Net! Faz qualquer coisa!
– O que queres que faça?
– Não sei! Preciso de ti!
A Mãe parece estar em pânico. Está com uma voz trémula que nunca lhe
ouvi. Isso aterroriza-me. O Pai pega no telefone.
– Estou, Jennette?
– Sim?
– Ela está só emotiva. Está na cama do hospital. Estão a levá-la para a
sala para ser operada. Estou com ela. Está tudo bem.
– Devo ir aí ter?
A Mãe grita “sim!”, o Pai diz “não”.
Volto a perguntar.
– Devo ir aí ter?
– Não, está tudo bem – diz o Pai. – Quando chegasses, já eles teriam
acabado. Vai ser rápido, é inofensivo. Os médicos são ótimos. Ligo-te
quando acabar.
Fixe. Ponho a “Roar” mais alto. A Miranda continua a conduzir.
– Está tudo bem?
– Sim, não era nada.
Ela não insiste. Avançamos em silêncio durante uns minutos e, depois,
retomamos a conversa, sobre uma coisa qualquer. Há algo errado, sinto-o
nas entranhas. Paramos para pôr gasolina, depois continuamos. O meu
telemóvel volta a tocar. Pai.
– Como correu?
– Olá. A Mãe não está bem.
– O quê?
– Parece que o corpo dela não aguentou a cirurgia.
– Espera, o quê? Pensei que era inofensivo…
– Ela está em coma.
– Mas disseste que os médicos eram ótimos...
– Ela não está bem. Tens de vir já para o hospital.
Desligo o telefone, entorpecida. Conto à Miranda o que aconteceu. Ela
oferece-se para me levar ao hospital. Eu aceito. Olho fixamente pela janela.
A Miranda para num sinal vermelho.
– Diz-se “Sáifred” – diz a Miranda simplesmente. – Fui ver.
52.
– Mamã. Ouviste-me? Disse que estou muito magrinha. Estou, finalmente, a
pesar quarenta quilos.
Descruzo as pernas. Inclino-me para a frente, desesperada.
– Quarenta!
Estou grata porque, desde que a Mãe está em coma, deixei de comer
compulsivamente. Na verdade, não comi quase nada. Ando a perder peso
depressa.
Bip. Bip. Bip.
Com o apitar das máquinas do hospital, começo a aceitar o facto de que a
minha grande notícia é que a Mãe não vai acordar. Seco as lágrimas dos
olhos no momento em que os rapazes voltam da cafetaria. Não dizemos
nada uns aos outros. Não é preciso. Sentamo-nos à volta do corpo da Mãe e
ficamos ali a olhar para ela.
Espreito o relógio. São duas e meia, duas horas passaram desde que nos
disseram que a Mãe viveria menos de quarenta e oito horas. Pergunto-me
quanto tempo lhe resta. Onde calhará o tempo de vida dela, dentro dessas
quarenta e oito horas. Será que lhe restam quarenta e quatro horas? Dez?
Duas? Cada momento parece tão lento e tão pesado! Estou a tentar segurar-
me a cada momento, mas eles insistem em passar. Nunca me senti pior.
– Cam ooda dieeee.
Viramos todos a cabeça para a Mãe. Mas que raio? Ela falou. Levezinho,
poucochinho, quase inaudível, mas falou.

– Cam ooooooda dieeeee – repete ela14.


O Marcus inclina-se para a frente.
– Não, Mãe, não digas isso. Não vais morrer.
– CAM OODA DIE – diz ela, com um toque de raiva. Cá está ela.
O Dustin estala os dedos.
– Canada Dry!
Os olhos da Mãe abrem-se numa confirmação. Rebentamos todos a rir,
com mais força do que riríamos se ela não estivesse a morrer. Há qualquer
coisa nestes momentos entre a vida e a morte que exige um pouco de
ligeireza. Senão, são demasiado difíceis. Demasiado excruciantes.
O Marcus corre pelo corredor para ir buscar uma Canada Dry de uma
máquina. Quando volta, abre-a e inclina-a para a boca da Mãe. Sorrimos
todos. Isto é bom, certo? É um bom sinal. A Mãe está a pronunciar uma
coisa próxima de palavras e a emborcar Canada Dry. Quer dizer que vai
ficar bem. Quer dizer que se safa. Não é?
Estou desesperada, eu sei. Estou a agarrar-me ao que posso, eu sei. Mas
agarro-me ao que for preciso. Não a posso deixar partir.
***
A Mãe foi tirada da ala da UCI há semana e meia e está, desde então, na ala
normal. Quarenta e oito horas, o tanas! Embrulha, Dr. Wiessman! É o que
eu penso de vez em quando. A não ser que ele reafirme, a mim e aos
rapazes, como faz tantas vezes, que isto não significa que ela terá uma cura
milagrosa. Ele não quer alimentar-nos as esperanças. Por muito que eu
gostasse de poder discutir com ele, sei que não posso. Posso ver. Ela caga
num saco e respira por uma máquina. Isto não vai dar a volta.
Durante a primeira semana da hospitalização dela, eu e os rapazes
ficámos num hotel próximo enquanto esperávamos que ela morresse. Mas
ela não morreu. Então, passada uma semana, deixámos o hotel. A vida
voltou ao normal, ou tão normal quanto possível. O Dustin deixou de meter
baixa e voltou ao trabalho. O Marcus apanhou o avião para casa, para
Jersey. O Avô e o Pai alternavam turnos, para que alguém pudesse ficar com
a Mãe quase todas as noites, enquanto o Scott passava os dias com ela. Eu
visitava-a todos os dias depois do trabalho no meu spin-off, que tinha
começado a filmar, entretanto. Eu passava de agitar uma meia-de-manteiga
e gritar falas pirosas no estúdio de cores berrantes e excessivamente
iluminado de Sam & Cat, para a cadeira ao lado de uma cama de hospital
com um forro datado, rodeada pelo cheiro a desinfetante e o sentimento de
morte.
Hoje não é diferente. Acabei de filmar uma cena em que confronto uns
rufias da escola e bato em alguém com uma sanduíche de fiambre. E cá
estou eu. A observar a enfermeira a mudar o saco de merda da minha mãe
enquanto me olha pelo canto do olho. Eu sei o que aí vem, e é o inferno
puro.
– Você é…? – pergunta a enfermeira.
Se isto não tivesse já acontecido vinte e cinco vezes neste hospital, eu
ficaria chocada por alguém ter a ousadia de me perguntar se sou a Sam
Puckett quando estou sentada perante a minha mãe moribunda.
Não respondo. Estreito os olhos e espero que a enfermeira se aperceba da
falta de chá desta pergunta neste momento. Ela não percebe.
– Você parece-se com a Samantha Puckett. Sam. É ela?
Deixo-me ficar sentada nesta sensação de impotência absoluta face ao
estado da humanidade, enquanto a enfermeira despeja as fezes da minha
mãe.
– Não – digo eu. Com brusquidão.
– É igualzinha a ela. A cara chapada. Importa-se que tire uma fotografia
para mostrar à minha sobrinha? Ela nem vai acreditar em como são
parecidas.
Eu encosto-me para trás na cadeira. Ela range.
– Não. Não me vai tirar uma fotografia.
Olho para a Mãe. A maneira como o cancro mudou as formas dela é
brutal. Ela costumava ter curvas, em todo o seu metro e meio de altura.
Tinha coxas, um pouco de rabo, mamas também (bem, mama, se só
contarmos com as reais, a outra era um implante pós-mastectomia). Ela
tinha a cintura fina e ombros estreitos. Era equilibrada. Agora, tem o
estômago distendido, as mamas murcharam, as pernas são espetos. Os
braços parecem mais compridos, quase como os de um macaco, pendurados
dos lados. Ela parece-me menos humana.
– Auouote! – lança a Mãe para o abismo.
Esta é uma das únicas frases que lhe resta. Ela tem tantos tumores no
cérebro, tão grandes, que está quase em morte cerebral. Ainda assim,
lembra-se mais ou menos de como dizer “adoro-te”. Faz-me doer,
fisicamente, o coração.
– Auoute! – diz ela outra vez, com a cabeça a balouçar de um lado para o
outro e sem ligação por trás dos olhos. Eu mordo o lábio até sangrar.
Tento olhar para a Mãe enquanto estou aqui no hospital com ela – para a
saborear, para a recordar. Mas, ao mesmo tempo, não quero recordá-la
assim. Então, sempre que olho para ela, passado uns segundos, desvio o
olhar. Às vezes, obrigo-me a agarrar-lhe as mãos e a dizer-lhe que a adoro e
que estou aqui para ela, mas, na maior parte do tempo, não sou forte que
chegue para o fazer. Então, em vez disso, sento-me na cadeira do canto e
olho para ela ocasionalmente, mas olho sobretudo pela janela e tento não
me ir abaixo.
O meu telefone apita com uma mensagem do Colton. Ele pergunta se
quero fugir por uns dias, fazer uma viagem de carro a São Francisco. Ele
sabe que estou a sofrer e acha que isto me ajudará a pensar noutras coisas.
Confirmo com o Avô se a Mãe está num ponto “estável” durante os
próximos dias, pelo menos, e o Avô diz que sim.
Olho rapidamente para a Mãe, que balbucia uns disparates. Mal posso
esperar por sair deste hospital. Levanto-me, beijo-lhe a testa e vou-me
embora.
14
Em inglês, as sílabas balbuciadas soam vagamente como “come
on, die”, “morre lá!”. (N. da T.)
53.
Estou no lugar do morto, no Dodge Charger do Colton. Ele conduz.
Estamos a recordar a primeira vez que nos vimos, nas filmagens de um
filme no Utah, há quase dez anos. Estamos a 25 quilómetros de São
Francisco, quando ele sugere que vamos comprar um pouco de álcool para
beber no hotel. Nunca bebi álcool, mais porque tinha medo, depois de ver a
relação do Joe com a bebida, do que por estar a segurar-me a algum dos
meus valores mórmones ou coisa que o valha.
Mas, se há alguém com quem experimentaria beber, é o Colton. Ele é
caloroso e enérgico, e tem jeito para fazer toda a gente à volta dele sentir-se
aceite. Além disso, ele é gay, pelo que não tenho de me preocupar com uma
possível tensão sexual.
Abrimos a garrafa assim que entramos no quarto de hotel e servimos um
shot para cada nos copos de plástico de cortesia da casa de banho. Abrimos
um pacote de gomas amargas, para podermos chupar assim que bebermos
os shots.
– Pronta? – pergunta o Colton entusiasmado. Aceno que sim. Ele conta. –
Um, dois, três.
Apertamos o nariz, engolimos as bebidas, chupamos as gomas.
– Não sinto nada – digo eu, confusa.
O Colton concorda, pelo que bebemos um novo shot.
– Ooh, acho que começo a sentir.
O Colton concorda, pelo que bebemos mais um, pelo sim, pelo não.
Antes de podemos determinar o que sentimos com o quarto shot, já
saltámos nas camas, brincámos às escondidas no corredor do hotel e
esgueirámo-nos até à piscina, mesmo que esteja fechada. Planeámos uma
curta-metragem que faremos juntos, onde passaremos uma semana
algemados um ao outro. Tentámos encontrar algemas. Felizmente, não
conseguimos.
Na manhã seguinte, acordo cheia de energia, com o rímel borrado por
baixo dos olhos, qual guaxinim, ainda com a roupa da véspera.
– Foi das melhores noites da minha vida – declaro.
O Colton concorda e consideramos beber mais um shot. Por fim,
decidimos esperar até ser noite, para termos alguma coisa pela qual ansiar.
E, meu Deus, estou ansiosa por isso. Nem acredito que esperei tanto
tempo para me embebedar. É uma sensação incrível e única. Quando estou
bêbeda, todas as preocupações desaparecem: o ódio pelo meu corpo, a
vergonha que sinto pelos meus hábitos alimentares, lidar com a morte
iminente da minha mãe, entrar numa série da qual fazer parte me humilha;
tudo isso vai embora. Quando estou bêbeda, estou menos ansiosa, menos
inibida, menos preocupada com o que a Mãe pensaria de mim. Na verdade,
quando estou bêbeda, a voz da Mãe a censurar-me evapora-se
completamente. Mal posso esperar por logo à noite.
54.
PUM-PUM-PUM.
Acordo de um salto, assustada com o barulho. Ui! Tenho a cabeça a
pulsar. Esfrego as têmporas. Deve ser a isto que chamam estar com uma
ressaca. Só ouvi falar sobre qual é, supostamente, a sensação, mas nunca a
senti na pele, apesar do facto de me ter embebedado quase todas as noites
das últimas três semanas, desde o meu primeiro golo de Tennessee Honey
Jack com o Colton, em São Francisco. Até este momento, sempre que me
embebedei, consegui acordar na manhã seguinte ilesa, independentemente
de quanto bebi. Mas hoje, por uma qualquer razão, é diferente. Terá sido a
tequila? Ou o uísque? Ou o rum? Ou o vinho? A mistura dos quatro? Vá-se
lá saber.
PUM-PUM-PUM.
Merda! Que horas são? Vejo no telefone: 8h05. Foda-se! Esqueci-me de
pôr o despertador. Devia ter saído para apanhar um avião há cinco minutos.
Isto deve ser o motorista enviado pela Nickelodeon a bater à porta.
– Vou já! – grito eu, a tentar (mas a falhar redondamente) pôr a minha
melhor voz de é-evidente-que-não-acabei-de-acordar.
Abro a porta da frente de rompante. Não vejo o motorista de fato e
gravata em lado nenhum. Em vez disso, está aqui o Billy, o meu jovial
empreiteiro, a chupar uma pastilha para a tosse, acompanhado por três
elementos da sua equipa.
– Olaré! – diz o Billy todo animado, enquanto vai entrando pela casa
adentro, sem esperar que eu o convide. Os outros homens seguem-lhe o
rasto.
Esqueci-me completamente de que o Billy vinha hoje. Não me devia ter
esquecido, já que ele vem quase todos os dias.
Comprei uma casa há três meses. Toda a gente me dizia que era um bom
investimento. Além disso, a ideia entusiasmava-me. A minha primeira casa.
E não teria nem mofo, nem humidade, nem tralha acumulada. Seria a
representação do quão longe cheguei.
Encontrei uma linda casa de três andares numa encosta, tão pronta a
habitar que podia mudar-me para lá imediatamente, sem me preocupar com
obras. Até comprei a mobília em exposição, para não ter de pensar em
decorar o espaço. O meu sonho para esta casa era não ter sonho nenhum –
deixar outra pessoa ter um sonho que eu pudesse aproveitar.
Umas semanas depois da mudança, fiquei a saber que toda a
infraestrutura tinha de ser descoberta e substituída. Rebentou um cano e o
duche transbordou para a sala, dando cabo da mobília de exposição. O lava-
louça e uma das casas de banho entupiram. O patamar esboroava-se e as
escadas partiram-se. Esta coisa não estava pronta a habitar. Esta coisa
parecia bem à superfície, mas, na verdade, estava a cair aos bocados.
Enquanto o Billy e os seus homens barricam as escadas, eu vou até à
varanda e deito a cabeça de fora para ver se o motorista está lá em baixo.
Está. Claro que está, caraças! E não só está, mas tem os braços cruzados,
luvas postas, e o carro ligado com o porta-bagagens aberto. O nível de
preparação e pontualidade dos motoristas sempre me irritou.
– Levo só uns minutos! – grito lá para baixo.
– Muito bem, minha senhora! Mas devíamos mesmo partir daqui a um
min…
Bato com a porta a meio da frase dele. Estou a tornar-me uma pessoa
zangada e sem tolerância para ninguém. Tenho consciência desta
transformação, mas, ainda assim, não faço tenções de evitá-la. Quando
muito, desejo-a. É uma armadura. É mais fácil estar zangada do que sentir a
dor que a zanga esconde.
Corro ao andar de cima, arrasto uma mala do armário, abro-a sobre o chão
de madeira. Os tipos começam a bater e a martelar na casa de banho para
arranjar o chuveiro, e eu estou agachada a enfiar meias ao acaso, roupa
interior, pijamas, jeans e camisas dentro da mala.
Seguro num casaco, perguntando-me se vou precisar dele ou não nesta
viagem. Estará frio, neste momento, em Nova Iorque? Atiro o casaco para o
lado e escolho, em vez disso, uma camisola de carapuço. Enfio-a na mala,
fecho a tampa e sento-me em cima dela, para tentar fechar. Merda! Esqueci-
me dos produtos de higiene.
Salto freneticamente para agarrar cada objeto que me vem à cabeça. É o
caos. Reviro o armário da casa de banho do avesso e pego em alguns artigos
de maquilhagem, uma escova de dentes de viagem, um mini fio dental e
elixir bucal. Atiro-os para a aba da frente da mala, quando o telemóvel
começa a vibrar. Deslizo o dedo para atender.
– Sim, Pai?
Martelo-martelo-martelo. Broca-broca-broca.
– Devias vir aqui ter.
– A sério?
Martelo-martelo-martelo. Broca-broca-broca.
– Sim…
Atiro, outra vez, o corpo para cima da mala. Esta coisa não se fecha?
Puxo com mais força pelo fecho éclair. A parte por onde puxei parte-se na
minha mão. Deito-a fora.
– Tens a certeza? Porque devia sair para apanhar um avião agora mesmo,
tenho o carro à minha espera lá em baixo.
Ouço o Pai respirar fundo do outro lado da linha. Parece stressado.
– Aonde vais?
– A Nova Iorque, lembras-te?
– Para quê?
Broca-broca-A PORRA DA BROCA MAIS ALTA QUE JÁ OUVI.
– A Nickelodeon tem o Dia Mundial do… – Paro ao aperceber-me de
como esta frase soa ridícula. – Não sei, uma coisa qualquer de que sou
suposta ser a anfitriã. Por isso, devia mesmo ir.
– Eles dizem que vai ser hoje.
Eu fico paralisada, chocada por um instante, mas não por muito tempo. Já
passei por este momento muitas vezes. Alguém diz que a Mãe vai morrer e
depois ela não morre. Volto a puxar o fecho éclair.
– Sim, mas… – começo, sabendo que o Pai perceberá o que quero dizer.
– Mas o quê?
Deixa lá. Esqueço-me sempre de que o Pai nunca percebe o que quero
dizer.
– Mas as pessoas já disseram isso tantas vezes. Se for mais um falso
alarme, não devia ir para aí. A Nickelodeon vai ficar lixada se eu me baldar
a esta coisa.
Uma pausa. Recomeçam as pancadas na minha porta da frente. O
motorista deve estar à minha procura. O Pai engole em seco.
– Devias mesmo vir para cá.
– Pronto, está bem.
Desligo no momento em que consigo, finalmente, correr o fecho. Por esta
altura, já estou a suar. Levanto-me, atravesso o quarto até à cama, e sento-
me nos pés dela só por um momento, para tentar recompor-me antes de me
pôr a caminho para ir ver a minha mãe, possivelmente pela última vez.
Estou a tentar digerir esta realidade intensa, mas está a custar-me muito, por
causa do martelo-martelo-martelo. Broca-broca-broca. Pum-pum-pum.
55.
Estou sentada no sofá a olhar para a Mãe, que está estendida na cama de
hospital que lhe instalaram na sala de estar da velha casa cheia de tralha de
Garbage Grove. O sofá foi afastado para fazer espaço para a cama. A Mãe
tem estado em casa com cuidados paliativos nas últimas três semanas, pelo
que esta não é uma visão inédita, ainda que, geralmente, ela esteja sentada e
não estendida como agora, e a respiração dela é mais rarefeita do que
alguma vez a ouvi.
O Scottie e o Dustin estão sentados por ali próximo. Estamos todos em
silêncio, consequência de anos de exaustão emocional. Surpreende-me que
nenhum de nós chore, mas é como se não nos sobrassem lágrimas. Já
passámos por, no mínimo, uma dúzia de ensaios da morte da nossa mãe.
Lembramo-nos da cassete VHS.
O meu telefone apita com uma mensagem. A Nickleodeon diz-me que não
me preocupe por ter de faltar ao Dia Mundial de Não-Sei-Das-Quantas.
Respondo com um “obrigada”.
Chega outra mensagem, desta feita do tipo que a quem ando
presentemente a dar falsas esperanças. Eu e o Namorado Atual
“conhecemo-nos” pelo Twitter. Combinámos encontrarmo-nos em pessoa.
Convidei uns amigos, para não ser assassinada. Uma vez sabido que ele não
era perigoso, fomos jantar a restaurantes chiques e jogar lasertag e
minigolfe. Até fomos juntos à Disneylândia ver o fogo de artifício. (Eu
gastei uma pipa de massa num guia VIP para não interrompermos nenhum
desfile e não chatearmos o Pateta.)
O Namorado Atual é maravilhosamente doce, atencioso e romântico. Mas
eu não o amo. Talvez seja por não ter espaço no coração para amar quem
quer que seja neste momento, com a Mãe a morrer, ou talvez esteja a usar o
meu pesar para desculpar a minha genuína falta de ligação. O luto é um
ótimo bode expiatório. Seja como for, ando a descobrir como não amar
alguém é uma ferramenta poderosa.
Amar alguém é vulnerável. É sensível. É terno. E eu perco-me nessas
coisas. Se eu amar alguém, começo a desaparecer. É tão mais fácil limitar-
me a arregalar os olhos, a criar umas quantas memórias agradáveis e umas
piadas a dois durante uns meses, fugir assim que as coisas começam a
tornar-se sérias, e depois repetir este ciclo com uma pessoa nova.
É nesse ponto que estou com o Namorado Atual. A distração foi
simpática, mas estou pronta para uma substituição.
Procuro o telefone para ler a mensagem dele.
À novidades?
Não sou uma fanática da ortografia, mas, Deus do Céu, atina lá com os
“hás”! Pronto. Estou pronta a acabar com isto. Escrevo uma mensagem.
Olá. Peço muita desculpa, mas, agora, não posso fazer isto. A minha
mãe vai morrer e preciso mesmo de algum tempo para estar sozinha.
Espero que percebas.
Enviado. Pronto. Tão simples quanto isso. Volto a olhar para a minha mãe
moribunda. Apita uma nova mensagem.
Não digas isso, amor. A tua mãe não vai morrer.
Ele ignora o resto da minha mensagem. Reviro os olhos. Já lhe disse uma
dúzia de vezes que a Mãe está a morrer de cancro, mas ele porta-se como se
ela tivesse torcido um pé. Ele não tem noção de perda. Sinto que o mundo
está dividido entre dois tipos de pessoas: as pessoas que viveram uma perda
e as que não sabem o que é. E sempre que encontro uma pessoa que não
conhece a perda, descarto-a.
Ando, nestes dias, num estado constante de irritação. Não tenho pachorra
para aturar pessoas. Pouso o telefone com o ecrã para baixo no braço do
sofá. Olho para o Dustin, depois para o Scott, depois para a Mãe. A
respiração dela parece tão extenuante. Ela está a lutar para se aguentar.
Odeio isto.
A Mãe inspira profundamente, e expira. A enfermeira dos cuidados
paliativos olha o Pai nos olhos, acenando ligeiramente com a cabeça. O Pai
olha para nós. A Mãe morreu.
Ficamos todos entorpecidos. Não choramos. Ficamos para ali sentados.
Em silêncio. Por fim, pego no telemóvel. Chegaram centenas de mensagens.
Já toda a gente soube. A E! News deu a notícia. Como raios já sabem eles,
não faço ideia.
Vou à caixa de mensagens e abro a troca com o Namorado Atual. Ponho-
me a olhar para a última mensagem dele: Não digas isso, amor. A tua mãe
não vai morrer.
Respondo-lhe: Acaba de o fazer.
depois
56.
Fazemos todos as nossas despedidas, o que implica apenas ficarmos a olhar,
como que anestesiados, para o corpo morto da Mãe. A enfermeira empurra a
cama de rodas do hospital para a rua e depois para uma carrinha hospitalar.
O Pai pergunta o que devemos fazer e sugere que saiamos de casa para ir
a qualquer lado. Ninguém responde. Ele sugere o South Coast Plaza, um
centro comercial de luxo a vinte minutos de distância. Entramos todos no
carro.
Eu preciso de uma capa para o iPhone, pelo que vamos até à loja da
Apple. Um empregado baixo e animado, com os dentes brancos e grandes
entradas no cabelo, vem ter connosco.
– Ora viva, como estão todos?
Ele exibe um sorriso. Respondemos-lhe com olhares fixos e vazios.
Percebendo o ambiente geral, o tipo da Apple esquece o sorriso e muda de
estratégia. Admiro-o por isso.
– Em que posso ajudar?
Compro a minha capa para o telemóvel e saímos passados cinco minutos.
Vamos até ao pequeno café no mesmo andar para almoçar. Peço uma salada
com os temperos à parte, para deixar a Mãe orgulhosa. Não como nem uma
garfada. Sinto-me sortuda, grata até, por o trauma se ter finalmente
transformado em falta de apetite. Pronto, a Mãe morreu, mas, pelo menos,
não estou a comer. Pelo menos, sinto-me magra, com valor e bem no meu
corpo, na minha pequenez. Pareço-me outra vez com uma criança. Estou
determinada a que assim continue. Faço-o em honra da Mãe.
Nessa noite, volto para a minha casa grande e solitária. O Billy e os
homens dele deixaram todas as ferramentas de fora, já que voltam amanhã.
Os móveis da sala estão tapados com lonas. Sento-me numa das lonas e
olho em volta. Acho que sou capaz de odiar esta casa.
Remexo-me. A lona engelha-se e faz um barulho alto e irritante. Não sei o
que fazer de mim. Abro uma garrafa de uísque e bebo uns golos diretamente
do gargalo, depois, mando uma mensagem ao Colton e a alguns outros
amigos para ver se me podem fazer companhia.
Vamos todos até Little Tokyo e sentamo-nos num restaurante de sushi
para jantar. Eu emborco uma garrafa de saqué. Os menus são rodados pela
mesa. Quero tudo. Quero comer tudo.
Estou muito confusa. No último mês, não conseguia sequer pensar em
comida. Tenho vivido todos os dias à base de uísque, Coca-Cola Zero e dois
pacotes individuais de batatas-fritas Baked Lay’s com sabor a barbecue. O
que raio se passa? Estou esfomeada. Esganada.
Não estive envolvida num segundo sequer da conversa que dura há dez
minutos. Tenho a certeza de que toda a gente toma, erroneamente, o meu
silêncio por pesar. Mas isto não é do luto. Isto é a minha obsessão secreta
com a comida.
Quando chega a empregada, não consigo decidir o que quero pedir, mas
estou suficientemente bêbeda para escolher a primeira coisa que vejo: o
prato de teriyaki. Digo a mim mesma que vou comer só a couve a vapor que
vem a acompanhar, talvez umas poucas garfadas de arroz a vapor, mas,
assim que me põem à frente a tijela fumegante, não me controlo. Devoro
tudo até ao fim, o mais depressa possível. Peço outra garrafa de saqué, outra
dose de arroz, uns crepes de ovo e uma taça de gelado para a sobremesa.
Bebo a garrafa inteira e como a comida até à última migalha.
Voltamos para minha casa e tenho a cabeça a andar à roda, do álcool.
Jogamos um jogo de tabuleiro e ouvimos música, mas eu estou só a fazer o
frete. Na minha cabeça, só importa uma coisa: a quantidade de comida que
ingeri e o que vou fazer quanto a isso.
Tento despachar toda a gente para fora de minha casa quanto antes, o que
é difícil de fazer quando fomos nós a pedir-lhes para nos fazerem
companhia no dia da morte da nossa mãe. Cada pessoa que se vai embora
pergunta se eu não preciso que fique alguém a passar a noite cá em casa.
Assim que se vão todos, corro escadas acima para a casa de banho
principal. O equipamento do Billy está espalhado por toda a parte, pelo que
avanço com cuidado até à casa de banho. Levanto a tampa da retrete,
ponho-me de joelhos e enfio os dedos pela goela.
Nada. Foda-se! Tento outra vez, com mais afinco. Ui! Espeto a garganta e
sinto o sabor de um pouco de sangue. Devo tê-la arranhado até fazer ferida.
Paciência. Vou conseguir levar isto a cabo. Respiro fundo, enfio os dedos
até tão longe quanto possível, com tanta força quanto possível, e,
finalmente, espirra-me o vómito da boca, aterrando na retrete. Contemplo-o
lá no fundo, os pequenos blocos de arroz e galinha, a espuma do gelado
derretido. Sinto-me vitoriosa.
Fiz merda e comi, e depois? Falhei, e depois? E depois, caraças? Só tenho
de enfiar os dedos pelas goelas e ver a minha asneira a ser reparada. Isto é o
início de uma coisa muito boa.
57.
Olho-me ao espelho enquanto arranjo o cabelo e me maquilho para a
cerimónia fúnebre da Mãe. Estou a fazer tudo aquilo de que ela gostava
mais, que, por acaso, são todas as coisas de que gosto menos: encaracolar o
cabelo com o ferro, delinear a lápis uns lábios muito vermelhos e espalhar
eyeliner ao longo dos meus sensíveis ductos lacrimais. O resultado é um
pouco mais severo do que o que eu esperava, mas não tenho tempo para
refazer, pelo que isto terá de bastar.
Visto o meu vestido preto mecanicamente, como um robô, puxo o fecho
éclair e enfio os pés nuns sapatos de salto. O Marcus, que passou esta
semana em minha casa, vai a guiar. A mulher dele, a Elizabeth, vai no lugar
do morto. Eu sento-me atrás. Aproveito a viagem de hora e meia para me
decidir. É uma grande decisão, merece que uma certa porção de tempo lhe
seja dedicada.
A viagem é um inferno. Há um enorme engarrafamento, e o grande
sucesso da rádio neste momento é a “Brave”, da Sara Bareilles, que berra
pelas colunas a cada três canções. Num dia normal, não há problema
nenhum com a Sara, mas a última coisa que quero ouvir no dia do funeral
da minha mãe é o quanto a Sara Bareilles quer ver-me a ser corajosa. Tento
ignorar. Fecho os olhos para me concentrar, esforçando-me por encontrar
uma resposta.
Vou ou não cantar a “Wind Beneath My Wings” no funeral da Mãe?
Durante estes últimos meses de vida da Mãe, o pedido dela atormentou-
me. Pensei nisso constantemente. Até andei a ensaiar a canção todas as
noites, no último mês, até que o meu vizinho colou um bocado de papel na
minha porta a dizer: JÁ CHEGA DE BETTE MIDLER.
Graças a umas crenças mórmones que persistem em mim, acho que isto
significa que, hoje, a Mãe vai olhar para mim, cá em baixo, e ficar
desiludida, lá do alto do seu trono no Reino Celestial – o reino mais alto nos
Céus na fé mórmon. Nem pensar que a mãe vai acabar nos reles reinos
Terrestre ou Telestial15. Que nojo!
Sou arrancada aos meus pensamentos quando a Sara começa a dar tudo
naquele refrão final. Sabem que mais? Talvez ela tenha razão. Talvez eu
deva ter coragem. Talvez deva cantar a “Wind Beneath My Wings” no
funeral da Mãe. Por amor de Deus, literalmente. A minha vida eterna
depende disso.
O Marcus entra no parque de estacionamento da Sexta Ala de Garden
Grove da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a igreja onde
crescemos. Subimos os degraus da frente e entramos pela porta de trás. Não
venho aqui há anos, mas está com o mesmo aspeto e o cheiro é exatamente
como me recordo. Detergente para alcatifas e estopa, amor. Ladrilhos
brancos à entrada, tapetes azuis nos corredores, imagens de Cristo em várias
situações com os discípulos pespegadas por todo o lado. (Homens de cabelo
comprido não me aquecem nem arrefecem, mas este aqui tem mesmo uma
bela queixada.)
O Marcus e a Elizabeth afastam-se para cumprimentar pessoas e deixam-
me sozinha. Vou para a sala de espera da família e sento-me ao lado de um
Dustin de olhos turvos, do Scottie e da Avó. Abro a minha bolsa e tiro a
pauta da “Wind Beneath My Wings” que imprimi ontem à noite, pelo sim,
pelo não. Corro o dedo pelo papel e revejo a letra, para garantir que a sei de
cor. Estou a cantar a música mentalmente, aterrada com o momento em que
chegar ao refrão. Merda! Sei, no fundo do coração, que sou incapaz de
cantar esta canção, mas sinto que lá terá de ser. Não posso quebrar a última
promessa que fiz à minha mãe quando estava para morrer.
Vejo a pianista passar e estou prestes a passar-lhe a pauta, mas, nesse
exato momento, chegam os homens que carregam o caixão da Mãe para a
sala. Eles estão a aproveitar o momento. Os transportadores de caixões
adoram estar no centro das atenções. Os meus irmãos choram. A Avó está
num pranto.
– A comida não vai chegar! Calculámos mal quantas pessoas viriam!
Sou a cabeça de cartaz do alinhamento de elogios fúnebres, pelo que
tenho de aturar todos os elogios, enquanto tento decidir se há hipótese de vir
a cantar a canção. Diria que sim, se conseguisse descer a canção toda um ou
dois tons, mas depois as estrofes seriam demasiado graves. Diria que podia
“ajustar” a melodia do coro, mas vamos lá ter juízo, não se “ajusta” uma
melodia da Bette Midler. A Bette sabia o que estava a fazer.
É a minha vez.
Avanço para o pódio. Estou a tremer. Como não dei a pauta à pianista, a
minha última hipótese de cantar a “Wind Beneath My Wings” no funeral da
Mãe é lançar-me a capella. Pigarreio, respiro fundo e… desato a chorar. É
um choro gutural que faz corar de vergonha a minha audição para o
Homicídio em Hollywood. Choro mais. E choro mais ainda. Até que o bispo
me dá uma palmadinha no ombro.
– Só temos a capela por mais quinze minutos. Temos de preparar para o
batismo do John Trader.
Saio do palco. Sem Bette Midler.
15
Esses reinos são, por ordem hierárquica do mais elevado ao
menor, o Celestial (na presença do Pai e do Filho), os reinos
Terrestre (na presença do Filho, mas não do Pai) e o Telestial, uma
redenção possível após uma penitência numa “prisão espiritual”,
vulgo Inferno. Aos que não merecerem viver num reino de glória,
cabe a perdição. (N. da T.)
58.
– Obrigado por seres tão boa onda – diz o nosso assistente de realização,
num relance de dó e apreço.
– Ahã – digo eu, monocordicamente, enquanto duas crianças saltam em
cima de mim e nos preparamos para ensaiar esta cena pela sétima vez, para
que os miúdos consigam atinar com as marcações deles. Já vi O Criador
despedir crianças por motivos menores, por se esquecerem de uma fala ou
não acertarem na marcação, pelo que, nos dias de ensaios como o de hoje,
os realizadores gostam de garantir que os miúdos sabem o que estão a fazer,
para não perderem o emprego.
Hoje em dia, ouço essa frase muitas vezes. “Obrigado por seres tão boa
onda.” Ouço-a todos os dias: não só do assistente de realização, mas
também dos meus agentes sempre que falamos ao telefone, de um guionista
ou de um produtor pelo menos uma vez por semana, até de um
administrador do canal, que me enviou um vale de quinhentos dólares para
a Barneys, com essa mesma frase escrita no bilhete a acompanhar.
Sei porque ando a ouvir esta frase tantas vezes. É porque a minha
coprotagonista, a Ariana Grande, é uma estrela pop em ascensão, que falta
ao trabalho regularmente para ir cantar a festas de entregas de prémios,
gravar novas canções e dar conferências de imprensa para o novo álbum,
enquanto eu fico para trás e, cheia de rancor, vou aguentando o barco.
Percebo, a um nível superficial, porque tem ela de faltar ao trabalho. Mas,
ao mesmo tempo, não percebo porque lho permitem. Eu fui escolhida para
dois filmes durante o iCarly e tive de recusá-los porque a equipa do iCarly
se recusou a tirar-me do guião dos episódios nos dias necessários para eu
poder ir filmar.
Tentei acalmar-me, pensado melhor em toda esta situação. Pronto, está
bem. Talvez eles não me pudessem deixar filmar porque teriam de me tirar
dos episódios por completo, enquanto, com a minha coprotagonista, eles
deixam-na cumprir as suas obrigações musicais porque ela está só a faltar
aos dias de ensaios e uma parte dos dias de filmagens, mas não durante
semanas inteiras.
Depois, chegou esta semana. A semana em que me disseram que a Ariana
não viria de todo e que eles dariam a volta à ausência dela neste episódio
escrevendo no guião que a personagem dela estava trancada numa caixa.
Estão a gozar comigo. Só podem.
Então, eu tenho de recusar filmes, mas a Ariana já pode ir uivar os seus
agudos para os Billboard Music Awards?
Vão-se lixar.
Houve tempos em que ouvia o comentário “obrigado por seres tão boa
onda” como um elogio sincero. Orgulhava-me disso. A Mãe sempre me
ensinou a ser assim, desde miúda, e eu sempre quis ser assim para conseguir
ter mais papéis e construir uma boa reputação que ajudasse a minha carreira
de atriz a desenvolver-se. Então, quando me diziam isso, eu sabia que
estava a fazer alguma coisa bem. Sim. Sou muito boa onda. Sou boa moça.
Sou a boazinha, a que não é difícil, a preferida do professor.
Mas isso agora acabou. Tornei-me uma pessoa amarga e resignei-me a
esse facto. Não posso mudar as minhas circunstâncias, porque tentaria
mudar no que me tornei na consequência delas? Estou farta de ser boa onda.
Ressinto-me de ser boa onda. Se não tivesse sido tão boa onda para
começar, não estaria agora nesta embrulhada. Não estaria nesta série
merdosa, a dizer estas falas merdosas, neste cenário merdoso, com este
penteado merdoso. Talvez a minha vida fosse agora completamente
diferente. Ponho-me a imaginar o quão diferente seria.
Mas não é diferente. É isto. É o que é. A Ariana falta ao trabalho em prol
da sua carreira musical, e eu contraceno com uma caixa. Estou lixada com
isto. E estou lixada com ela. Tenho inveja dela. Por umas quantas razões.
A primeira é que ela teve uma infância muito mais fácil do que a minha.
Eu cresci em Garbage Grove, na maldita casa de uma acumuladora de
tralha, com uma mãe cancerosa que choramingava o tempo todo por não
poder pagar a renda e as contas. A Ariana cresceu em Boca Raton, na
Florida, uma cidade imensamente rica e idílica, com uma mãe saudável que
podia comprar tudo o que quisesse, quando quisesse – sacos Gucci, férias
finas, roupas da Chanel. Eu nem sequer quero roupas da Chanel (não gosto
do aspeto do tecido) e, ainda assim, tenho ciúmes de que ela as tenha tido.
A segunda razão é que, inicialmente, quando recebi o contrato do projeto
da Nickelodeon para a minha própria série, aqui há uns anos, pensei que
seria isso mesmo… a minha própria série. Isto era suposto chamar-se Just
Puckett, a história pungente de uma extravagante delinquente juvenil
tornada psicóloga escolar. Agora, é uma coisa a duas mal-amanhada, Sam &
Cat, sobre uma extravagante delinquente juvenil que, com a sua “melhor
amiga desmiolada” abre uma companhia de babysitting chamada “Sam &
Cat’s Super Rockin’ Fun-Time Babysitting Service”. Isto de pungente não
tem nada.
A terceira razão é que a Ariana está numa fase da carreira dela em que
aparece em todas as listas de 30 Under 30 que existem16. E eu estou numa
fase da minha carreira em que a minha equipa fica toda entusiasmada por eu
ser a nova cara da Rebecca Bonbon, uma linha de moda para pré-
adolescentes, que exibe como imagem de marca uma gata com a língua de
fora. Vendida exclusivamente na Walmart. E cometo, frequentemente, o erro
de comparar a minha carreira com a da Ariana. Não me posso impedir.
Estou constantemente no mesmo ambiente que ela, e ela não faz muito por
esconder os seus sucessos.
A princípio, geri bem a inveja. Quando ela chegou aos saltinhos ao
estúdio, a dizer que tinha atuado nos Billboard Awards, eu não liguei. E
então? Ela está a ir atrás da carreira musical dela, coisa que eu larguei
porque odiava aquilo. E, ao ir atrás dessa carreira, ela vai cantar uma
qualquer canção pop pirosa num palco, tarefa que me parece
verdadeiramente abominável. Não me impressionou.
Depois, ela chegou a trotar pelo estúdio, a dizer que ia aparecer na capa
da revista Elle. Essa bateu-me, mas só por causa da minha própria
insegurança. Não sou bonita que chegue para vir nas capas das revistas?
Seria eu a aparecer nas capas, se esta série não fosse a quatro mãos? Estará
ela a roubar-me oportunidades que teriam sido minhas? Engoli a minha
inveja e segui em frente.
Mas o que, finalmente, me arrasou foi quando a Ariana chegou aos
guinchinhos de excitação porque tinha passado a noite anterior a jogar às
charadas em casa do Tom Hanks. Nesse momento, eu quebrei. Não
aguentava mais. Atuações musicais, capas de revistas… quero lá saber, eu
posso esquecê-lo. Mas jogar um jogo de família em casa do Tesouro
Nacional, vencedor de dois Óscares e nomeado para seis, Tom Hanks?
Estou farta.
A partir desse momento, deixei de gostar dela. Não podia gostar dela.
Podia aguentar o sucesso de estrela pop, mas conviver com o Xerife
Woody? Com a porra do Forrest Gump? Isto foi longe demais.
Então, agora, sempre que ela falta ao trabalho, eu sinto-o como um ataque
pessoal. Sempre que alguma coisa entusiasmante lhe acontece, eu sinto que
ela me roubou a possibilidade de ser eu a ter essa experiência. E sempre que
alguém me chama “boa onda”, tudo o que sinto é que não me apetece nada
sê-lo. Que se foda ser-se boa onda, preferia jogar às charadas com o Tom
Hanks.
16
Conjunto de listas publicadas anualmente pela revista Forbes com
trinta personalidades com menos de trinta anos. (N. da T.)
59.
O Colton e eu estamos a emborcar Pocket Shots de tequila no banco de trás
do Toyota Corolla de 2009 do Liam, enquanto ele conduz. Os Pocket Shots
são nojentos. Quase nos engasgamos a cada um que bebemos de um trago,
mas continuamos a emborcar. Queremos estar felizes e apagados quando
chegarmos.
– Como estão? – pergunta o Liam timidamente, virando-se para trás
enquanto está parado num sinal de stop. É a quinta ou sexta vez que ele
pergunta e, a cada uma delas, olha direitamente para mim, como se só se
ralasse com a minha resposta.
O Liam e eu conhecemo-nos em casa de um amigo do Colton, numa festa
de Cinco de Mayo, aqui há uns meses. Ele estava a preparar-se umas fajitas
da mesa do bufete. Com o seu metro e oitenta e oito e o cabelo
desgrenhado, eu fui direita a ele. Juntaram-nos as margaritas e a nossa
atração mútua. Que coisa tão substancial!
– Não podíamos estar melhor – balbucio, dividindo outro Pocket Shot
com o Colton. Meu Deus! Sou tão engraçada.
– Boa, boa – diz o Liam, piscando-me o olho. Um homem capaz de piscar
o olho sem parecer um tarado sempre me impressionou. Ele continua a
guiar.
Ainda não tivemos relações sexuais, mas começo a achar que se aproxima
o momento apropriado. Já não me assusta. Já nada me assusta, porque não
me ralo com nada desde que a Mãe morreu.
O Liam parece-me um bom candidato a pessoa com quem perder a
virgindade. Gosto dele o suficiente, mas não de uma forma profunda, pelo
não tenho de temer ficar demasiado presa a ele no segundo a seguir a termos
feito sexo, o que é um medo genuíno que acalento, já que ouvi falar nesta
fraqueza feminina centenas de vezes. Quero fazer tudo para evitá-lo. Não
quero ser uma mulher fraca e apaixonada, que fica caidinha por um homem
só porque ele esteve dentro dela. Quero ser mais forte do que isso.
O Liam e eu vamos fazê-lo em breve. Sei que sim. Talvez esta noite nos
beijemos pela primeira vez, e talvez daqui a uma semana ou duas, por fim,
tenhamos relações sexuais, quando se tiver acumulado uma tensão
suficiente a que tenhamos de ceder. Fico excitada ao pensar nisso. Emborco
mais um Pocket Shot.
Vinte minutos depois, chegamos à discoteca onde a nossa amiga Emmy
está a dar a uma festa pelo seu vigésimo primeiro aniversário.
O Colton e o Liam ajudam-me a cambalear até lá, já que estou tão
entornada e com uns sapatos com uns saltos tão altos que nem consigo
andar a direito. Entramos e vamos até ao bar. Pedimos três bebidas, que
bebemos de um trago.
A festa em si não tem nada de mal, é só um pouco aborrecida, mesmo
com os copos. Vejo a Emmy a olhar para o Liam do canto do olho. Odeio
quando as mulheres são tão óbvias em relação às suas atrações. Se fores
assim tão óbvia, outra cabra qualquer pode vir e explorar essa atração, usá-
la contra ti e trair-te com ela. Aprendi isso com os longos discursos da Mãe
sobre como devemos confiar ainda menos nas mulheres do que nos homens.
“Os homens vão magoar-te sem sequer te conhecerem”, disse-me ela muitas
vezes. “Mas as mulheres… as mulheres vão conhecer-te profundamente,
intimamente, e é então que te magoam. Diz-me o que é pior.”
Portanto, não confio nas mulheres. Limito-me a observá-las. Vejo-as a
portarem-se de forma desesperada, fraca e patética. É tão embaraçoso ser-se
mulher! Estudo as mulheres como a Emmy, para poder ser diferente delas.
Melhor do que elas.
Beberico uma nova bebida enquanto observo a Emmy a meter conversa
com o Liam de uma forma demasiado animada. E durante demasiado
tempo. E com demasiados pestanejares dos olhinhos, enquanto vai
prendendo o cabelo atrás da orelha demasiadas vezes e, “sem querer”, toca
no braço dele. Ela está a fazer tudo mal. Coitadita. Eu faço o oposto da
Emmy e ignoro o Liam por completo até ao fim da festa. É quase fácil
demais.
Duas horas depois, estamos de volta a minha casa. O Liam deixou o
Colton em casa dele pelo caminho, por isso agora somos só nós os dois. O
Liam atira-me para a cama e despe-me o vestido cor de cobre. Estou tonta.
O quarto está às voltas. Estou bêbeda. Estou confusa. Onde raios estou?
– O que se passa? – pergunto, finalmente.
– Vou fazer sexo contigo – diz o Liam num tom que me provoca náuseas.
Está a meio caminho de uma voz de bebé, com a mesma entoação que faria
uma voz de bebé, mas sem subir uma oitava.
Até preferia que ele parasse. Não foi nada assim que planeei perder a
virgindade. Nunca esperei que acontecesse esta noite. Pensei que esta noite
se concentrasse no primeiro beijo mágico, e que esta cena da virgindade
pudesse ser tratada daqui a uma semana ou duas. Pensei que teria tempo
para me preparar mental e emocionalmente.
Mas também até quero que continue. Que importam os rituais e a
preparação? Quando muito, estou aliviada por acabar com esta história da
virgindade.
Que se foda. Não digo nada. Estreito os olhos e tento estabilizar-me de
uma qualquer maneira, para conseguir ver bem. Finalmente, lá consigo. O
Liam segura-me pelas ancas e entra e sai de dentro de mim repetidamente.
Uma gota de suor escorre-lhe pela testa. Que nojo!
O Liam lá interrompe. Vem-se cá fora. Eu não.
Na manhã seguinte, acordo numa poça de suor. Sinto-me sufocada.
Encurralada. Como se estivesse num colete de forças. Os meus olhos
abrem-se de repente. O Liam está a dormir agarrado a mim. Deve ter estado
a fazer conchinha a noite toda, a avaliar pela quantidade de suor. Tento
libertar-me, mas não consigo. Tenho a porra de um gigante a embrulhar-me.
É disso que não gosto em ser uma mulher pequena: todos os homens
parecem gigantes. Contorço-me. Também não funciona. Finalmente,
começo a dar-lhe cotoveladas até ele acordar e depois finjo que não lhe
estava a dar cotoveladas e que ele deve ter sentido alguma coisa.
Ele fita-me nos olhos e sorri-me. Diz que a noite passada foi fantástica.
Eu minto-lhe ao concordar. Imagino que pensarei num plano para me ver
livre dele mais tarde, quando estiver sozinha.
Ele tenta abraçar-me mais, mas eu digo-lhe que tenho mesmo de fazer
chichi. Salto para ir à casa de banho e percebo, de repente, que estou
bestialmente dorida. Andar dói, pelo que avanço a bambolear. Chego à casa
de banho e baixo as cuecas para fazer chichi. Têm um pouco de sangue. Sei
que não é o período, há anos que não o tenho por causa dos meus variados
distúrbios alimentares. Deve ser por ter tido relações sexuais pela primeira
vez.
O chichi pica e queima, por isso, vou soltando aos bocadinhos, como se
prolongar a dor fizesse doer menos. Não faz. Lá acabo.
Passo dez minutos a lavar as mãos, a ensaboá-las e a passá-las por água
uma vez e depois outra. Estou a ganhar tempo. Não quero voltar para o pé
do Liam. Algo na presença dele me deixa desconfortável.
Truz-truz-truz.
– Estás bem aí dentro?
Digo-lhe que não me sinto bem. Ele vai-se embora.
Encomendo o pequeno-almoço pela Postmates. Ovos e bacon com
torradas e batatas, e um latte com chantilly. Como rapidamente,
desesperadamente, até chegar a meio. Posso parar aqui. Estou cheia, não
tenho de continuar. Posso quebrar o ciclo. Atiro a caixa de comida para o
lixo. O meu corpo está a rebentar pelo excesso. Corro para a casa de banho,
levanto a tampa da retrete, e vomito o pequeno-almoço. Depois, lavo-me.
Geralmente, fico esgotada, por esta altura, mas hoje não. Ainda estou
cheia de ansiedades acumuladas. Tenho de me libertar destes sentimentos de
merda.
Corro para o caixote do lixo e tiro de lá a caixa de comida. Encho a boca
de ovos e mastigo rapidamente. Foda-se, o que é que estou a fazer? Tenho
de parar, tenho de parar. Cuspo os ovos meio mastigados para o caixote do
lixo. Pego num frasco de perfume da casa de banho e borrifo o resto da
comida, para garantir que não como mais. Mas depois como. O perfume
faz-me engasgar. Vomito.
60.
“Estás com ótima cara.”
“Começas mesmo a florescer.”
“Nunca tiveste melhor cara, mas eu cá parava assim como estás. Mais um
pouco e ficas magra demais.”
“O teu corpo está fantástico.”
Estes são todos elogios que me foram ditos nas últimas semanas por
produtores, agentes e elementos das equipas com que trabalho. Ouvi mais
comentários positivos (e repelentes) sobre o meu corpo nas últimas semanas
do que na vida toda.
Por esta altura, já tenho mais de uma década de experiência com
distúrbios alimentares. Houve os anos de anorexia, os anos a comer
compulsivamente e os anos bulímicos em que me encontro. Quanto mais
experiência tenho, mais percebo que o meu corpo é um reflexo muito pouco
fiável do que vai lá dentro. O meu corpo flutuou frequente e drasticamente
ao longo desta década, e, por muito que tenha flutuado, quer seja um corpo
de tamanho 5, 110 cm, slim, para crianças ou um tamanho 36 adulto, sempre
tive um problema subjacente.
As pessoas não parecem perceber, a não ser que tenham também um
historial de distúrbios alimentares. As pessoas parecem achar que magro é
“bom”, gordo é “mau”, e que magro demais também é “mau”. O intervalo
para o “bom” é tão pequeno! É o intervalo em que estou neste momento,
ainda que os meus hábitos estejam longe de ser bons. Ando a abusar do
corpo todos os dias. Ando infelicíssima. Ando esgotada. Ainda assim,
chovem elogios.
“Devo dizer que, quando estamos a ensaiar e tu sais porta fora numa cena,
é muito difícil para mim não olhar para o teu rabo. Espero que não seja
foleiro dizer isto. Pensa nisto como um elogio.”
61.
É segunda-feira, o meu dia favorito da semana de trabalho, por duas razões.
A primeira é que é o dia de ensaios mais curto. A segunda é que, todas as
segundas, quando chegamos à mesa para a leitura coletiva, põe-nos à frente
um calendário atualizado, para podermos ver os títulos, os realizadores e as
datas de filmagem dos episódios que aí vêm. E cada vez que me põem um
calendário à frente, posso ver o meu nome num dos episódios como
realizadora.
Aceitei fazer este spin-off sobretudo para apaziguar a Mãe. Mas também o
fiz porque O Criador me prometeu isto mesmo – um lugar como realizadora
num dos episódios. Claro está que realizar um episódio numa série d’O
Criador não é exatamente a melhor forma para exercitar os meus músculos
criativos, já que O Criador é omnipresente durante as filmagens, inflexível
quanto às suas próprias ideias e não muito aberto às ideias dos outros. Mas
poder realizar um episódio para a televisão é uma oportunidade para fazer a
indústria ver-me finalmente como qualquer coisa mais do que só uma atriz
de programas para crianças. É uma forma de mostrar que tenho valor fora
da caixa em que me meteram. Quero mesmo fazer isto.
As datas do meu trabalho de realização já foram adiadas umas quantas
vezes, mas garantiram-me repetidamente que isso se deve ao calendário
entrar em conflito com o dos outros realizadores já alinhavados. Também
me garantiram que as datas mais recentes que me deram (datas para um dos
episódios finais) estão fechadas. Estou prestes a realizar.
Pego no café, sento-me na minha cadeira e observo o assistente de
produção a distribuir os calendários atualizados diante de cada pessoa à
mesa. Vá lá, Bradley, vamos lá acelerar um bocado.
– Aqui tens – diz ele, pousando a folha cor de salmão à minha frente.
Eu pego nela e olho para o fundo da página, onde está a lista dos
episódios finais. O sítio onde devia ver o meu nome numa daquelas
caixinhas a dizer “realizado por”.
Mas, em vez disso, vejo duas letras: N/A (por determinar). Deve ser uma
gralha. Olho em volta para tentar cruzar o olhar com alguém, mas ainda só
cá estão uns poucos elementos da equipa, e a nossa costureira-sempre-a-
costurar não saberá nada sobre isto.
A minha respiração fica estranha e acelerada. Olho em volta à procura de
qualquer um dos nossos produtores que possa saber alguma coisa sobre isto,
mas nenhum deles chegou ainda à sala. Não posso acreditar. Sinto que
acabaram de me cortar a respiração com um golpe.
Os administradores e os produtores começam a chegar. Cruzo os olhos
com um deles, aquele em quem mais confio de entre estas pessoas em quem
não confio.
Depois falamos sobre isso, articula ele, sem som.
Não. Não quero falar sobre isto depois. Quero resolver isto agora. O que
raio se passa? Não podem esperar que me sente aqui e seja profissional e
participe numa leitura coletiva à mesa quando acabaram de me tirar a única
coisa que eu queria em toda esta história.
Reprimo as lágrimas e percebo que fui tola. Acreditei que estas pessoas
fariam o que diziam que iam fazer. Que me dariam o que tinham prometido.
Agora que vim trabalhar todos os dias, que fui profissional, que engoli a
minha raiva, e que aguentei uma série ao longo de quase quarenta episódios,
agora que conseguiram o que queriam de mim… estão a tirar-me a razão
pela qual eu estava a fazer todas essas coisas, para começar. Sinto-me
traída.
Depois da leitura à mesa, ligo aos meus agentes e gestores e eles
aconselham-me a cooperar, a ser a pessoa “boa onda” que sempre fui. Mas
estou tão cansada dessa merda de ser boa onda. Não sei quanto mais tempo
conseguirei sê-lo.
***
É sexta-feira dessa mesma semana. Um dia de filmagens. A Patti (a minha
maquilhadora, mas também uma das minhas amigas mais queridas nesta
equipa) levou uma hora e meia a maquilhar-me porque eu não consigo parar
de chorar. Estou um caco. Estou desesperada. Sinto-me enganada, magoada
e zangada. Contei à Patti o que se passava, por isso ela até me acompanhou
umas quantas vezes aos gabinetes dos vários produtores quando eu tentava
marcar uma conversa com eles, mas, uma e outra vez, fui rejeitada.
Ninguém quer falar comigo. Ninguém me diz nada. É óbvio que estão todos
nisto juntos, e não no sentido do espírito de equipa divertido e animado, dá
cá mais cinco, como no High School Musical.
Visto o meu fato vagarosamente e vou para o plateau. Não decorei as
minhas falas porque já não quero saber. Quero que me despeçam e pronto.
Este sítio é tóxico e prejudicial para a minha já débil saúde mental. Quero
sair daqui.
Chego ao plateau para uma cena num ringue de boxe. (Um dos outros
atores faz a personagem de um pugilista que tem um agente de dez anos de
idade.) Folheio as minhas falas em silêncio.
Começa a rodar. Primeiro take, eu safo-me… por pouco. Segundo take, eu
safo-me… por pouco. Terceiro take… não me safo, de todo. No meio da
minha segunda fala, a respiração foge-me e começa a acelerar, como ocorre
quando vem aí um ataque de pânico. Merda! Vejo estrelas. Tenho medo de
desmaiar. Então, caio ao chão. Tenho o peito a arfar. Começa a sair-me baba
da boca, enquanto o grito mais horrendo e intenso da minha vida se solta de
dentro de mim. Diante de toda a gente: do elenco, da equipa, dos figurantes.
Por fim, um dos outros atores, o que faz de pugilista, pega-me ao colo e
tira-me do plateau. Leva-me para o meu camarim e senta-se comigo. A Patti
junta-se. Eles consolam-me e dizem-me que percebem. Eles estão aqui para
mim.
Então, alguém bate à porta. Fico imediatamente gelada de medo. A Patti
grita que já saímos. Uma voz tonitruante do outro lado exige entrar. Sei que
é de um dos nossos produtores.
– Pois, agora não – diz a Patti mal-educadamente ao produtor do outro
lado da porta. Adoro-a. Agradeço-lhe. Ela tem tomates para fazer frente a
esta gente.
– Posso só falar com a Jennette um minuto? Percebo o que ela está a
sentir – diz o produtor.
Parte de mim acredita nele. Ou, pelo menos, quer acreditar nele. Outra
parte está desconfiada. Escolho acreditar nele. Deixo-o entrar. Ele pergunta
se pode falar em privado. Os outros vão-se embora.
Ele senta-se no sofá diante de mim.
– Gosto de como decoraste este espaço – brinca ele, já que não
acrescentei nada a esta caixa fria que é o meu camarim.
Não me rio. Ele pigarreia.
– Presumo que isto seja por teres sido tirada da lista dos realizadores.
– É por muitas coisas.
Uma pausa. Ele continua.
– Quero que saibas que te defendi. Queria que realizasses. E há aqui outra
pessoa que não quer que realizes. Que, muito veementemente, se opõe a que
realizes. Tão veementemente, que essa pessoa diz que abandona a série se
realizares. E não nos podemos dar a esse luxo. Então, tivemos de te tirar da
lista. Só quero que saibas que a culpa não é tua.
Estou em choque. Não tenho palavras. O produtor levanta-se e sai,
fechando a porta cuidadosamente atrás dele.
Alguém não quer que eu realize? Tanto que ameaçou sair da série se eu o
fizesse? Nem percebo como uma coisa destas é possível. Forço o vómito
uma e outra vez. Não sei outra forma para lidar com tudo o que se passa à
minha volta. Não sei outra forma de aguentar tantas coisas que, na minha
vida, têm andado tão descontroladas. Olho em volta, fito as paredes brancas.
Devia decorar este espaço. O aderecista bate à porta para me entregar a
meia-de-manteiga para a minha próxima cena.
62.
Ando de um lado para o outro no Whole Foods a fazer as compras da
semana. Estou a esbanjar uma fortuna pelos meus legumes e refeições
congeladas na esperança de que, se gastar uma quantia obscena por um saco
de comida, será menos provável vomitá-la a seguir.
Por esta altura, começo a perceber que a bulimia não é sustentável para
mim. A minha garganta sangra diariamente e apareceu-me uma mão cheia
de cáries desde que isto começou. Acho que quero mudar de vida, mas, até
agora, a força de vontade não me levou a lado nenhum. Todas as manhãs,
digo a mim mesma “hoje não vou vomitar” e, todas as manhãs, antes das
dez horas, já o fiz. Como a força de vontade, claramente, não funcionou até
agora, isto do Whole Foods sou eu a tentar uma estratégia diferente.
Pego num rolo de carne pré-congelado da prateleira e inspeciono o rótulo
da informação nutricional para ver as calorias e as gorduras: 440 calorias,
15 gramas de gordura. Nem pensar. Volto a pôr aquela merda onde estava.
Outra das minhas novíssimas estratégias é diminuir o meu consumo de
calorias, como fazia em miúda. Presumo que, se consumir um número baixo
de calorias, talvez a vontade de vomitar passe e eu consiga manter a comida
no estômago. Pelo menos, é o que me digo à superfície. Mas, no fundo, sei
a verdade.
A verdade é que gostava de ter anorexia, não bulimia. Morro de saudades
da anorexia. Ando a ser humilhada pela bulimia, que eu costumava achar
que era o melhor de dois mundos – comes o que queres, vomitas tudo,
continuas magra. Mas agora já não parece o melhor de dois mundos. É
horrível.
Fico tão cheia de vergonha e ansiedade cada vez que como, que não sei,
literalmente, o que fazer para me sentir melhor, para além de vomitar. E,
quando acabo, sei pela metade. Metade de mim sente-se esgotada, exausta,
como se não sobrasse nada, o que ajuda. A outra metade tem agora uma
enxaqueca valente, dores de garganta, vómito a escorrer-lhe pelo braço e
entaramelado no cabelo, e ainda mais vergonha a acumular-se à vergonha
inicial, agora que não só comi como também vomitei. A bulimia não é
solução.
A anorexia é que é.
A anorexia é majestosa, é ela que manda, é todo-poderosa. Por outro lado,
a bulimia é descontrolada, caótica, patética. É a anorexia dos pobres. Tenho
amigas com anorexia e vejo como elas têm pena de mim. Sei que elas
sabem, porque toda a gente que tem distúrbios alimentares consegue
perceber quando outra pessoa também os tem. É como um código secreto
que é impossível não decifrar.
Agora que tenho o meu plano do Whole Foods e a minha missão pela
anorexia, sinto uma motivação que não sentia desde que a Mãe morreu.
Claro que a maioria das coisas está para lá do meu controlo. Perder pessoas
que amo, entrar numa série de que tenho vergonha, ver os trabalhos de
realização serem-me tirados… mas isto? Isto posso controlar.
Empurro o meu carrinho um pouco mais para a frente no corredor e pego
nuns hambúrgueres de feijão preto: 180 calorias por hambúrguer e 5 gramas
de gordura. Ponho esta delicada comida de anjo no meu carrinho com
grande reverência, já que ela está do meu lado. Está a ajudar a minha
missão.
Empurro o carrinho. O meu telemóvel começa a tocar. É a Avó.
Nunca gostei muito da minha avó. Quando era muito pequenina, ainda
mal andava, já detestava a forma como ela me afagava as costas e passava
as mãos pelo cabelo. Era como se não soubesse tocar nas pessoas de uma
forma terna e reconfortante, só sabia tocar de uma forma sedutora. Isso
enojava-me.
Ao crescer, os passatempos favoritos da Avó eram coscuvilhar ao
telefone, fazer permanentes no cabelo e queixar-se. Doíam-lhe os pés, a
camisa dela era apertada demais, a permanente não tinha a cor certa, a
Louise não voltou a ligar, o Avó não voltou do trabalho suficientemente
cedo, a gasolina é demasiado cara, o Souplantation tirou o pão de milho da
ementa.
O problema não é só ela ser uma velha amarga a dar largas aos seus
queixumes com um cigarro pendurado do canto da boca; isso seria
divertido, pelo menos. O problema é que ela está sempre de lágrimas nos
olhos, sempre num pranto, o que faz com que as mágoas dela se tornem as
mágoas de todos.
Por todas estas razões, não gosto dela nem a respeito. E não me parece
que ela goste muito de mim, ainda que ela nunca o admitisse, porque está
sempre demasiado ocupada a choramingar que eu não gosto dela.
Desde que a Mãe morreu, tenho tentado esforçar-me um pouco pela nossa
relação. Tento responder-lhe às mensagens quando posso, ligo-lhe com
frequência e mando-lhe um email uma vez por semana. Esta relação exige
muito mais manutenção do que eu gostaria, mas, ainda assim, é óbvio que
não lhe basta, coisa que ela me diz sempre que falamos.
Estou emocionalmente esgotada, mas continuo a contribuir para esta
relação porque não quero ser uma cabra e cortar com a minha avó que
perdeu a filha.
Volto a enfiar o telemóvel no bolso. Avanço pelo corredor e encontro os
legumes congelados. Pego num saco e ponho-o no carrinho. O telemóvel
volta a tocar.
É a Avó.
Mando-lhe uma mensagem: Já te ligo.
Volto a enfiar o telemóvel no bolso, desta feita com alguma irritação, e
dirijo-me à secção da fruta e legumes frescos. Pego num saco de maçãs Pink
Lady, nuns palitos de cenoura e num coco. Não sei bem o que fazer com ele,
mas tem tão bom aspeto, porque não?
Ela volta a ligar. Quero atirar com o telemóvel. Em vez disso, atendo,
deixando escapar uma nota de irritação na voz, para que a Avó perceba que
estou chateada.
– Avó, posso ligar-te quando chegar a casa? Estou a fazer compras.
Ela está num pranto. Diz qualquer coisa, mas é impossível de perceber
pelo meio do choro. Estou preocupada. Pergunto se está tudo bem. Ela
continua a chorar. Pergunto outra vez.
– Tu… tu… tu nunca me liiiiiiiigas! – lança ela, finalmente.
Sempre que ela me liga num pranto, eu penso que é porque o Avô morreu.
A saúde dele está em declínio rápido. Sei que ela sabe que eu penso logo
isto, porque já lho disse. Perguntei-lhe se podia moderar os gritos e os
choros. Sempre que lhe digo isso, ela garante-me que não volta a fazê-lo.
Faz sempre.
Digo-lhe firmemente que lhe volto a ligar quando chegar a casa; depois,
desligo o telefone. Começa outra vez a tocar. Por esta altura, já não sou a
única a estar stressada, mas também a iogue sem maquilhagem, com a sua
túnica de cânhamo, que está às compras à minha frente. Invejo-lhe a pele
perfeita. Ela olha-me de lado. Fico envergonhada.
A Avó volta a ligar. Desisto. Deixo o meu carrinho de compras onde está
e saio da loja. A Pele Perfeita parece agradada. Pergunto-me se devia
experimentar as micro-agulhas.
Atravesso o parque de estacionamento. Enquanto estava na loja, começou
a trovejar. Uma das raras trovoadas anuais de LA. Geralmente, evito guiar
com chuva, porque já não gosto de guiar, ainda menos quando há chuva
pelo meio. Entro no meu Mini Cooper e, mal ligo o motor e os limpa-para-
brisas, ela recomeça a ligar. O telefone está ligado ao Bluetooth, pelo que a
voz dela sai estridente pelas colunas. Ela continua num pranto.
– Avó – digo-lhe eu num tom equilibrado, a tentar acalmá-la. Ela está
histérica. Balbucia um discurso qualquer sobre eu lhe ter desligado o
telefone na cara. Eu saio do parque de estacionamento e viro à direita,
descendo a rua principal que leva a minha casa.
– Avó – digo outra vez, num tom tão equilibrado quanto possível, ainda
que a minha cara comece a aquecer de raiva. – Estava a fazer compras.
Agora, estamos ao telefone. Porque ligaste?
As lágrimas dela transformam-se imediatamente em veneno.
– Não é preciso seres antipática comigo, sua cabra.
A minha avó refere-se a mim frequentemente como “cabra”. Ela
acrescenta sempre uma pitada de sal à palavra, para ter mais efeito.
– Avó, como já te disse, se continuares a chamar-me nomes e a tentar que
eu tenha sentimentos de culpa cada vez que falamos ao telefone, vou
bloquear-te.
– Não me ameaces, menininha.
– Não te estou a ameaçar, estou a informar-te de um facto.
– Estou a informar-te de um facto – repete a Avó, a fazer troça da minha
voz. – Todos os meus outros netos me ligam muito mais vezes do que tu –
queixa-se ela.
– Como estás?
– Como achas que estou, hein? Ouviste alguma coisa do que acabei de
dizer? Não me tratas bem. A tua mãe deve estar às voltas no túmulo.
Gostava de poder apenas revirar os olhos em resposta a esta última coisa
que ela disse, descartá-la como uma velha marada dos cornos. Mas não
posso. O tema da Mãe é o meu ponto fraco, um ponto que não pode ser
tocado. Não permitirei que a Mãe seja usada contra mim. E, mesmo que o
seja, tomo medidas desesperadas.
– Pronto, Avó. Vou desligar e vou bloquear-te.
– Tu não te atrevas! A tua mãe vai chorar lágrimas amargas, lá no Céu.
Ela faz sempre esta merda. Se ela sabe que alguma coisa me afeta
profundamente, se sabe que me magoa, enfia a faca mais fundo e dá-lhe
uma volta. Como pode uma avó causar sofrimento a uma neta de propósito?
Sei que ela teve uma vida difícil, sei que ela anda triste e desesperada por
atenção, e sei que fica magoada com a minha frieza para com ela, mas ainda
assim. Não me parece que haja desculpas para o comportamento dela.
– Adeus! – desligo o telefone. Ela liga sem parar. Encosto o carro, pego
no telemóvel e carrego em “bloquear”. Sabe bem. Parece-me a coisa certa.
É todo o peso do stress acumulado que me sai dos ombros. Posso voltar a
respirar normalmente.
Chego a casa e subo os degraus da frente devagar, por causa da chuva.
Entro com as mãos a abanar, já que saí do supermercado a correr.
Tencionava começar esta noite o meu plano de refeições de poucas calorias,
mas estou demasiado cansada. O plano terá de esperar. Encomendo pela
Postmates: bacon, couves-de-bruxelas, batatas fritas e espetadas de carne de
um restaurante de que gosto, no cimo da rua. Sirvo-me um copo cheio até à
borda de tequila para acompanhar.
Engulo a tequila antes mesmo de a Postmates chegar. Quando chega,
estou esfomeada. Devoro a comida tão depressa quanto possível. Assim que
acabo, vomito tudo.
Que se foda. Isto funciona comigo. A bulimia ajuda-me. A minha avó está
bloqueada e o meu corpo está vazio, e eu preciso dessas coisas.
63.
Há semanas que ando a arrastar-me no trabalho. Espreito as minhas falas de
manhã, sem fazer qualquer esforço para as decorar a tempo dos ensaios.
Desligo completamente entre os takes e nas conferências de imprensa (a
segunda metade da pausa do almoço é, geralmente, atulhada de entrevistas
para todas as revistas de adolescentes na moda. Desde o episódio de não me
deixarem realizar que conto os dias até ao fim desta série.
Restam vinte dias, para além de hoje. São só mais quatro episódios. Ainda
assim, não tenho a certeza de ser capaz de aguentar até lá.
Começo a temer vir a ter um ataque cardíaco causado pela bulimia. Custa
a admiti-lo, mas parte de mim até gostava que isso acontecesse. Se assim
fosse, já não teria de estar aqui. Os meus pensamentos tornaram-se assim
mais sombrios e dramáticos nas últimas semanas. No início, tive
consciência desta transformação, que me preocupou, mas agora já não
parece uma transformação. Parece que sou mesmo assim.
As desilusões da minha vida acumulam-se e, a cada nova desilusão,
aumenta o meu suplício. Só a morte da Mãe teria chegado para me levar
tudo, mas, desde então, esta pilha não para de aumentar.
Não consigo controlar a minha bulimia. Tomou conta de mim e eu parei
de lutar. Para quê? É mais forte do que eu alguma vez serei. É mais fácil não
combater. É mais fácil aceitá-la, assumi-la plenamente, até.
Já aceitei o facto de que não gosto de representar. Fui capaz de aguentar
toda uma temporada com a promessa de vir a realizar, mas agora que essa
oportunidade me foi retirada, sinto que tudo o que sempre fui e sempre serei
é uma atriz. Uma atriz ultrapassada, porque quem vai querer contratar-me,
depois de passar quase dez anos na Nickelodeon? Como terei alguma vez
um papel “a sério”, longe desta esfera pirosa e bizarra? Não andei na
faculdade e não tenho competências práticas para a vida real, pelo que,
mesmo que quisesse uma profissão fora da indústria do entretenimento, isso
estaria a anos-luz de se tornar uma possibilidade realista.
Os homens também não andam a ajudar. Sabem-me todos a distrações. E
para isso, prefiro distrair-me com uma garrafa de vinho à noite, ou com um
copo cheio de uísque puro, o que estiver à mão. Até bebo vodca, ainda que
o meu corpo tenha começado a rejeitá-la, com a minha pele a encher-se de
vergões vermelhos sempre que a bebo. Quero lá saber. O pifo compensa a
reação alérgica.
Estou desesperada. E nada a fazer, senão carregar esse desespero comigo.
Caminho devagar, com as costas curvadas. As minhas pálpebras estão
constantemente caídas. Não me lembro da última vez que sorri, sem ser para
uma cena.
Se não tivesse juízo, diria que a minha energia negativa anda a afetar toda
a gente à minha volta e a arrastar para o fundo a atmosfera miserável em
que temos andado. Mas não sou assim tão tola. Sei qual é a verdadeira
razão.
O Criador teve sarilhos com o canal por causa de umas denúncias sobre o
seu comportamento emocionalmente abusivo. Sinto que isto já seria de
prever há muito tempo, e que devia ter acontecido mais cedo.
Percebo a dimensão do problema em que ele se meteu. Não levou só um
ralhete, ou coisa pouca. Chegou ao ponto de já não lhe ser permitido estar
no plateau com os atores, o que torna a comunicação entre takes
complicada.
O Criador está sentado numa pequena sala, como uma toca, ao lado do
estúdio, rodeado de montanhas de carnes frias, o petisco preferido dele, e os
dirigíveis do Kids’ Choice Awards, o momento de glória mais caro da sua
vida. Ele segue os nossos takes em quatro monitores diferentes, um para
cada câmara instalada no seu covil. Sempre que nos quer dar uma indicação,
diz o que quer ao assistente de realização, que tem de atravessar o estúdio a
correr para chegar a nós. Os nossos dias de filmagens passaram de cerca de
catorze horas a durar cerca de dezassete. O ambiente generalizado no
plateau nestes dias pode ser descrito como “ao mal-estar junta-se um ai,
meu Deus, por favor, vamos lá acabar com isto”.
Estamos na última cena do dia, que tem lugar num dos nossos plateaus
principais – um restaurante com robôs como tema, em que todos os
empregados são, como já adivinharam… robôs. A minha personagem é
suposto saltar para uma mesa e atirar-se a alguém… ou coisa do género.
Não sei, nem quero saber. As cenas, os takes, as falas… tudo se confunde já.
Fiz esta proeza umas quantas vezes. Entre a proeza, as horas
extraordinárias e a bulimia, fico esgotada. Só quero voltar para casa, para o
uísque.
Finalmente, pouco depois da uma da manhã, lá acabamos. Chego a casa,
sirvo-me um copo cheio, bebo metade antes de lavar no duche as minhas
pestanas falsas, a minha camada de base seca e o meu cabelo duro de laca.
Já tenho os olhos turvos quando abro o email. As mensagens acumulam-se –
nem olharei para metade delas, porque tenho a mesma abordagem caótica
em relação à minha caixa de email do que ao resto da vida, nos dias que
correm. Estou prestes a carregar no X da janela quando vejo um título de
mensagem de mau-prenúncio a pairar perto do fundo da cadeia de emails
por ler. É da minha agência, a dizer que temos de conversar logo de manhã.
Fecho o email, volto a encher o copo e tento adormecer.
64.
Na manhã seguinte, estou ao telefone com os Agentes N.º 1 a 3, com os
Gestores N.º 1 e 2, e com os Advogados N.º 1 e 2. Não me lembro de
quando, exatamente, se tornou a equipa tão grande, nem sei bem porquê –
também não me lembro da última vez que alguém nesta equipa teve uma
ideia empolgante e, metade do tempo, limitam-se a repetir o que outra
pessoa qualquer na teleconferência já disse, seguido de um riso demasiado
longo –, mas, ao que parece, é isto que se faz quando se tem sucesso no
mundo do espetáculo.
– Espera, eles vão cancelar a série? – digo eu, incapaz de esconder o meu
regozijo.
– Pois, sabíamos que ias ficar entusiasmada – diz o Agente N.º 1.
– A melhor parte é que… – começa o Agente N.º 2, com uma pausa para
efeito dramático (juro que os agentes são os melhores artistas) – …
oferecem-te trezentos mil dólares.
Eu pondero um segundo. Isto não me soa bem.
– Porquê?
O Gestor N.º 2 intervém. Consigo ver que ele se sente intimidado pelos
outros homens presentes, pelo que, quando finalmente intervém, o que quer
que ele diz sai disparado, como se ele tivesse estado a ensaiar o que ia dizer
e a ganhar coragem enquanto os outros falavam.
– Pensa-nisso-como-um-presente-de-agradecimento – lança ele, numa
frase toda, as sílabas todas encavalitadas. No fim, suspira de alívio, como se
tivesse cumprido o seu papel e não tenha de voltar a falar até ao fim da
reunião.
Um presente de agradecimento? Fico desconfiada.
– Sim, um presente de agradecimento – repete o Gestor N.º 1. – Eles vão
dar-te trezentos mil dólares e a única coisa que te pedem é que nunca fales
em público sobre a tua experiência na Nickelodeon.
Especificamente no que ao Criador diz respeito.
– Não – digo eu de imediato, instintivamente.
Uma longa pausa.
– N-não? – pergunta, por fim, o Agente N.º 3.
– Nem pensar.
– É dinheiro grátis – sugere o Gestor N.º 1.
– Não, não é. Isto não é dinheiro grátis. Parece-me mais um suborno para
me calar.
Silêncio de cortar à faca. Um deles pigarreia.
Ao longo dos anos, fui aprendendo, aos poucos, que a indústria do
entretenimento é daquelas em que o que foi dito corresponde raramente
àquilo de que se está a falar. Esta conduta não só é o oposto da minha
personalidade, mas sou genuinamente incapaz de me adaptar. Toda a gente
parece capaz de dispor as coisas discretamente e coreografar os enunciados,
para que o cerne do que está a ser dito seja delicadamente evitado, como
numa dança, mas o que acaba por acontecer é que eu geralmente não
percebo o tema da conversa e tenho de perguntar diretamente.
Numa ou outra ocasião, no entanto, consigo perceber exatamente o que se
está a passar, como desta vez. E, nessas ocasiões, em vez de perguntar
diretamente o que se está a passar, declaro-o. Os resultados variam. Às
vezes, é uma risota. Outras vezes, é desconfortável. Desta vez, é
desconfortável.
– Bem, eu… eu… não pensaria nisso assim, se fosse a ti – diz o Gestor
N.º 1 com um risinho nervoso.
– Mas é o que é. Não vou aceitar um suborno.
– Pronto, hum, está bem. Se tens a certeza… – diz o Agente N.º 1 ou 2 (as
vozes deles são indiscerníveis).
E com isso, desligam todos. Clic. Clic. Clic. Até que só sobro eu na
chamada. Também desligo e sento-me à beira da cama.
Mas que raio? A Nickelodeon está a oferecer-me trezentos mil dólares
para que eu não divulgue a minha experiência na série? A minha experiência
com as atitudes abusivas d’O Criador? Este é um canal de séries feitas para
crianças. Não deviam reger-se por uns certos padrões morais? Não deviam
pelo menos tentar corresponder a uns mínimos éticos?
Reclino-me contra a cabeceira da cama e cruzo as pernas esticadas.
Estendo os braços atrás da cabeça e deixo-me ficar assim, numa pose de
orgulho. Quem mais teria tido esta força moral? Acabo de recusar trezentos
mil dólares.
Espera…
Acabo de recusar trezentos mil dólares. Isso é muito dinheiro. Fiz uma
maquia decente com este spin-off do Sam & Cat, mas não tanto que
trezentos mil dólares não me façam diferença. Merda! Se calhar devia ter
aceitado.
65.
A série já acabou há três semanas e meia e a história que tem corrido na
imprensa é a de que eu acabei com aquilo porque estava chateada por a
minha coprotagonista receber mais do que eu, o que me irrita porque não é
verdade. O meu agente disse-me que a série tinha sido cancelada por causa
de uma alegação de assédio sexual contra um dos nossos produtores.
Como queiram. Têm de culpar alguém, por isso, escolheram-me a mim e
não posso fazer nada.
Exceto contar a verdade. Coisa que pondero fazer em várias ocasiões, mas
não consigo, porque falar sobre a série e sobre o tempo que passei na
Nickelodeon vai só manter fresca na memória das pessoas a minha ligação à
série e à Nickelodeon. Quando muito, vai fixar para sempre a minha posição
como “miúda da Nickelodeon”. Como “Sam”.
Odeio ser conhecida como Sam. Odeio em absoluto. Tentei apaziguar-me
com isso, mas não consigo. Quando as pessoas dizem “pareces mesmo
aquela rapariga do iCarly”, eu respondo apenas “não, não sou eu”. Todos os
dias, várias vezes ao dia, há gente a gritar-me coisas como “Sam!”, “Frango
frito!” ou “miúda do iCarly” e a pedir uma fotografia a seguir. Eu digo que
não e vou-me embora. Às vezes, vão a berrar atrás de mim a dizer que sou
malcriada. Continuo a andar.
No entanto, aceito tirar fotografias com quem quer que saiba o meu nome
verdadeiro, porque aprecio genuinamente a cortesia. Mas todos os outros…
népia.
Sei que me tornei amarga. E sei que me tornei ressentida. Mas,
simplesmente, estou-me a cagar. Sinto que a série me roubou a juventude, a
adolescência normal, onde teria podido viver a vida sem que a menor coisa
fosse criticada, comentada ou ridicularizada.
Comecei a detestar profundamente a fama por volta dos dezasseis anos,
mas agora, aos vinte e um, desprezo-a.
Não ajuda que seja famosa por uma coisa que comecei em miúda. Penso
no que seria se toda a gente fosse famosa por uma coisa que fizeram aos
treze anos: a banda da preparatória, o projeto de Ciências no sétimo ano, a
peça de teatro do oitavo. Os anos do ensino básico são para dar
trambolhões, cair e esconder debaixo do tapete assim que acabam, porque já
os ultrapassámos e crescemos quando chegamos aos quinze.
Mas não para mim. Estou fixa para sempre nas cabeças de toda a gente
como a pessoa que era em miúda. A pessoa que sinto que já ultrapassei há
muito tempo. Mas o mundo não me deixa crescer. O mundo não me deixa
ser mais ninguém. O mundo só quer que eu seja a Sam Puckett.
Tenho noção de como tudo isto soa estupidamente irritante e queixoso.
Há milhões de pessoas a sonhar serem famosas, e cá estou eu, cheia de fama
e a odiá-la. De certa forma, sinto que tenho direito ao meu ódio, já que não
era eu quem sonhava ser famosa. Era a Mãe. A Mãe obrigou-me a isto.
Tenho licença para odiar o sonho de outra pessoa, mesmo que seja a minha
realidade.
66.
Estou no banco de trás de um Uber com o Colton. Trago um vestido preto
muito curto e uns saltos demasiado altos. Suponho que, quanto mais altos os
saltos, maior as hipóteses de aliviarem as minhas inseguranças. Até agora,
não tive sorte.
A bulimia impediu-me de engordar durante os primeiros meses. Mas,
passados esses meses iniciais, a bulimia traiu-me. O meu corpo parece estar
a reter toda a comida possível. Recusa-se a diminuir e, diria mesmo, está a
aumentar.
Engordei quatro quilos e meio desde esses primeiros meses de bulimia,
quando tive o peso que a Mãe achava ideal para mim. Estes quatro quilos e
meio são a primeira coisa em que reparo quando acordo de manhã, a última
coisa em que reparo quando a cabeça toca na almofada à noite, a coisa em
que mais reparo ao longo de todo e qualquer dia. Estou obcecada com estes
quatro quilos e meio. Torturada por eles.
Não percebo. Porque se recusa o meu corpo a fazer o que eu quero?
Porque deixou a bulimia de jogar a meu favor? Pensei que éramos amigas.
Pensei que a bulimia me queria ajudar. É evidente que não. É evidente que
me enganei completamente sobre a nossa relação. Ainda assim, não pareço
conseguir pôr-lhe um fim. Sinto-me prisioneira, escravizada, codependente
da minha bulimia.
O motorista encosta ao pé do bar e nós saímos para a rua. O Colton e eu
corremos para o bar onde já estão alguns amigos de copo na mão.
– Parabéns! – gritam-me todos em simultâneo. Um deles passa-me um
shot de tequila. Bebo-o de um trago, depois bebo outro. E mais um.
Passada uma hora, estou embriagada. Por essa altura, já apareceram uns
cinquenta e tal amigos e estamos todos a divertir-nos quanto baste, quando
fico paralisada, de repente, ao ver a minha amiga Bethany a avançar em
direção a mim. Ela traz um bolo com velas.
Merda! Um bolo com velas, não! Tudo menos um bolo com velas!
A Bethany estica o braço livre e dá-me um abraço apertado unilateral.
Mesmo só com um braço, aquilo magoa-me. A Bethany é uma mulher forte.
– Tu não tens mesmo jeitinho nenhum para abraços – diz ela no seu
crescendo característico. A entoação cantada das betinhas do Valley.
– Pois é, bem…
– Trouxe um bolo. É de baunilha, como tu gostas. E tem uma cobertura
muito fixe de creme de manteiga e baunilha que é suposta ser maravilhosa!
– Fixe – minto eu.
– Não é? Queres cortar agora o bolo? Vamos cortar o bolo. Ei! – grita ela
para o maralhal, a estalar os dedos. Toda a gente começa a cantar.
Estou demasiado bêbeda para distinguir perfeitamente o enevoado de
figuras diante de mim a cantar numa série de tons díspares. Porque serão os
“Parabéns” a canção mais difícil de cantar À FACE DA TERRA, quando é
também a canção mais popular à face da terra? Que piada de mau gosto é
esta?
Pelo menos, os chá-chá-chás já não estão na moda. Aceito essa
consolação. A cantoria termina e toda a gente fica especada a olhar para
mim, à espera que eu sopre aquelas pequenas chamas dos pequenos
pauzinhos de cera.
Cá estamos. É por isto que não queria um bolo com velas, para começar.
Não queria ter de lidar com o meu desejo de aniversário. Aos vinte e dois
anos, esta será a primeira vez em que não saberei o que desejar, porque
aquilo que desejei a vida toda acabou. Fim. Caso encerrado. A coisa que eu
desejei secretamente poder controlar de alguma forma, ao longo de todos
estes anos, sei agora que não controlo nem nunca controlei.
O propósito de toda a minha vida, manter a Mãe viva e feliz, foi em vão.
Todos os anos que desperdicei a focar-me nela, todo o tempo que perdi a
orientar cada um dos meus pensamentos e ações segundo o que achava que
lhe agradaria mais foram fúteis. Porque agora ela foi-se embora.
Tentei desesperadamente entender e conhecer a minha mãe – o que a
deixava triste, o que a deixava feliz, etecetera e tal –, com o sacrifício de
nunca me ter chegado a conhecer a mim mesma. Sem a Mãe por perto, não
sei o que quero. Não sei do que preciso. Não sei quem sou. E certamente,
não sei o que desejar.
Inclino-me para a frente para soprar as velas, sem desejos.
– Têm de provar o bolo! A cobertura de creme de manteiga! – grita a
Bethany, já a cortar o bolo em partes iguais. Passa-me a primeira fatia.
Dou uma grande dentada e faço uns olhos muito grandes, como quem diz
“Oooh! Que bom!” esperando que isto satisfaça a Bethany. Parece que sim.
Ela bate palmas sem parar e põe-se aos saltinhos. Eu vou para a casa de
banho e vomito.
67.
Tenho esperança. Pela primeira vez nos últimos anos, tenho esperança.
Propuseram-me o papel principal numa nova série da Neftlix – da
NETFLIX <lançar confetti> –, e este não é um trabalho a duas, baby. Esta é
só sobre mim. Bem, é para todo um elenco, mas eu sou a protagonista e,
tendo em conta que é um canal melhor, aceito.
É claro que aceitar não foi assim tão simples. Eu tinha manifestado
algumas preocupações quanto ao guião do piloto. A forma bem-educada de
dizer isto no mundo da representação é dizer “não respondo bem ao
material”, ainda que, em termos mais exatos, isto corresponda mais a “temo
que isto seja lixo”. Mas os meus agentes incitaram-me a aceitar o projeto
porque o pagamento era bastante bom, tendo em conta que os únicos outros
projetos que me andavam a propor eram papéis em sitcoms pirosas ou
reality shows, e eles argumentaram que valia a pena tentar estabelecer uma
ligação com uma companhia respeitável e a crescer como a Netflix.
Pareceu-me um bom raciocínio, pelo que assinei o contrato.
É dia 1 de outubro quando aterro em Toronto, esta espécie de Nova Iorque
mais limpa e amigável, que será a minha casa nos próximos três meses da
minha vida. Chego ao meu aparthotel toda entusiasmada, inspirada, até.
Estou convencida de que a minha vida está a dar uma volta, de que este
novo emprego é exatamente a motivação de que preciso para me incentivar
a retomar as rédeas da minha vida.
Vou entrar num programa a sério. Acabaram os programas para miúdos.
As estrelas dos programas de miúdos podem ter a vida num caco, com o seu
alcoolismo e bulimia. Mas as estrelas a sério, as estrelas da Netflix, não
andam num caco. As estrelas a sério têm juízo nos cornos.
Portanto, logo no dia em que chego a Yorkville, o bairro de Toronto onde
me alojo, começo o meu esforço de estrela a sério com uma visita à livraria
para comprar uma pilha de livros de autoajuda. Devoro-os numa semana e
acabo com um plano sólido para uma declaração de intenções de cariz
afirmativo, uma declaração de intenções que, penso eu, resume bem todo o
saber de autoajuda que acumulei na última semana.
Vou concentrar-me em mim mesma. Escrevo a frase na minha agenda e
toco-lhe cinco vezes. (Este é um dos meus tiques obsessivo-compulsivos
que perdura. Também faço uma pirueta cada vez que entro na minha casa de
banho, mas esse, pelo menos, até é divertido.)
Sei que concentrar-me em mim mesma não será fácil. Requer esforço,
tempo e atenção constantes. Implicará trabalhar nos meus problemas,
enfrentá-los sem rodeios, em vez de os deixar servir de distrações ou tentar
fingir que são menores do que o que realmente são. Isto vai exigir
DEDICAÇÃO. Só de pensar no esforço aturado de introspeção necessário
para perceber de onde vêm, e porquê, os maus hábitos, as inseguranças, e os
padrões de autossabotagem, e ainda a motivação necessária para pôr em
causa e transformar esses maus hábitos, inseguranças e padrões de
autossabotagem, que continuam a ser ativados vezes sem conta pelas
ocasiões variadas da vida!
Estou pronta para afastar tudo e todos da minha vida, se necessário. Estou
pronta para me concentrar apenas em mim.
Até conhecer o Steven.
***
É o primeiro dia das filmagens. Estou sentada na minha rulote, a folhear os
guiões dos episódios dois a seis, quando me apercebo de uma coisa terrível.
Talvez faça parte do primeiríssimo fracasso da Netflix. Não “respondo ao
material” destes guiões mais do que ao do piloto. O orçamento é mais baixo
do que o esperado – não que tenha algum mal fazer-se um projeto de baixo
orçamento, é só que não é o tipo de orçamento desejável para uma vasta
narrativa pós-apocalíptica sobre uma pequena cidade onde um vírus se
propaga e toda a gente com mais de vinte e um anos começa a morrer. Não
houve nenhum representante da Netflix em nenhuma das festas de boas-
vindas ao programa para o elenco e para a equipa, o que não me parece
fazer sentido. Há sempre um representante dos canais nessas coisas.
Pego no telefone e ligo aos meus agentes. Um deles atende e, depois de
eu apresentar as minhas preocupações, explica-me que há uma razão para
que nenhum representante da Netflix tenha aparecido no estúdio: é que este
programa é uma parceria entre a Netflix e um canal canadiano chamado
CityTV. A CityTV é a produtora, a Netflix é só a distribuidora.
Oooohhhhh. Oh oooohhhh.
Então, esta não é uma série da Netflix <lançar confetti>. Esta é uma série
da CityTV (lançar… outra coisa qualquer).
Parte de mim deseja nunca ter perguntado, ter continuado aqui sentada a
pensar, ingenuamente, que estava num programa da Netflix. E a outra parte
deseja ter perguntado mais cedo, para poder ter fugido deste programa que
não é da Netflix.
Desligo o telefone e sento-me aqui, na minha rulote, a olhar para o meu
reflexo no espelho. Tenho tanta vergonha de mim. Da minha carreira. Tenho
noção de que há coisas piores do que entrar em séries de televisão de que
não se tem orgulho, no entanto, essa noção não muda nada. Esta é a verdade
para mim. Estou envergonhada.
Quero fazer um bom trabalho. Quero fazer um trabalho de que me
orgulhe. Isto é importante para mim, a um nível profundo e inerente. Quero
fazer a diferença, ou pelo menos pensar que faço a diferença com o meu
trabalho. Sem esse sentimento, sem essa ligação, o meu trabalho parece
inútil e desenxabido. Eu sinto-me inútil e desenxabida.
Sei que, se me obrigar a vomitar agora, as minhas bochechas vão inchar e
os meus olhos vão ficar lacrimejantes, o que se nota na câmara. Mas não
posso evitar. Tem de ser. A vergonha que sinto é intolerável. Preciso do meu
mecanismo de defesa. Preciso da sensação de esvaziamento que obtenho
depois de uma boa purga. Salto do sofá, mas, nesse instante, batem-me à
porta. É o nosso assistente de produção que está pronto a levar-me ao
plateau. Merda, não dá tempo para vomitar! Desço os degraus da rulote e
vou atrás do assistente de produção, a caminho da primeira filmagem do
dia, que terá lugar no exterior, no meio de uma tempestade de neve.
E é lá, entre o redemoinho dos flocos de neve e dos ventos violentos, que
o vejo: cabelo castanho-avermelhado, olhos verdes emotivos e uma má
postura encantadora, vestido de calças de sarja, com um casaco acolchoado
e um barrete com um pompom na ponta. Está encostado contra uma rulote
Star Wagon, com um pé pousado num pneu, a fumar um cigarro – com
tanta, mas tanta pinta! Fala ao seu iPhone, numa combinação de mau
italiano e inglês.
– Aaiiiiii. Aaaaiiiii. Muito bem. Ti amo. Ciao, Ma.
Ele liga à mãe nos intervalos? Este miúdo é bom demais para ser verdade.
Ele desliga o telefone e enfia-o no bolso do casaco. Saca de um novo
cigarro, que acende.
– Steven! Estamos a montar – grita o assistente de produção ao meu novo
amor. O Steven é, portanto, um assistente de realização nas nossas
gravações. O meu coração dá um salto. Isto significa que vou poder vê-lo
todos os dias da semana, durante os próximos três meses.
– ‘Tá – diz o Steven simplesmente e vai para o plateau.
Já estou a fantasiar sobre como vou acabar enrolada com o Steven. Os
livros de autoajuda diziam para ser flexível quando estabelecesse objetivos,
para estar disposta a adaptar-me e fazer ajustes necessários e, Deus do Céu,
se estou disposta a adaptar-me e a fazer ajustes! Estou pronta a abandonar o
meu objetivo de me concentrar em mim mesma. Não quero trabalhar na
minha vergonha, nem na humilhação, nem no sofrimento, nem na bulimia,
nem nos problemas de álcool.
Talvez não seja assim tão mau estar nesta série da CityTV. Talvez isto,
afinal, até mereça uns quantos confetti.
68.
Passadas duas semanas e meia longas e duras, de encontros
engenhosamente “por acaso”, o Steven lá me convida para sair.
Vamos beber um copo num bar chamado Sassafraz, no cimo da rua do
hotel onde estou alojada. O Steven pede um rye and ginger. Eu peço um gin
tónico.
Há uma doçura no Steven completamente distinta da típica doçura de um
“bom tipo”, que é, há que dizê-lo, uma bela seca. A doçura dele consegue
ter pinta. Talvez seja por causa da voz. Meu Deus! A voz dele! É a coisa de
que mais gosto nele – calma e grave, provavelmente por causa dos dois
maços que fuma por dia, mas tudo bem, podemos preocupar-nos com o
cancro do pulmão mais tarde.
O Steven tem uma certa rebeldia que é, de uma certa forma, equilibrada
perfeitamente pela sua falta de pretensão. Nunca vi ninguém tão rebelde
parecer tão humilde e vice-versa. Ele é uma anomalia ambulante. Estou
completamente apanhada.
Da segunda vez que saímos juntos, vamos ao Jack Astor, uma cadeia de
restaurantes no Canadá, do género da TGI Fridays, e partilhamos nachos e
sopa. Vomito as duas coisas na casa de banho, refresco-me com uma tira de
Listerine, volto para a sala, com o Steven a guiar-me com um aceno. Nem
acredito que, há apenas umas semanas, estava prestes a esforçar-me para me
livrar da bulimia. Parece uma parte integrante de mim, como um hábito de
marca. Estou aliviada por ainda a ter aqui para me apoiar.
Bebemos um par de bebidas, depois, voltamos para minha casa para mais
umas quantas enquanto vemos especiais de stand-up no meu portátil. Há um
à-vontade e uma facilidade na nossa dinâmica. Falamos sobre o que
queremos da vida e o que não queremos. O que é estranho, dados os nossos
vinte e poucos anos. Relações passadas. Mágoas passadas. Esperanças.
Sonhos. As cenas importantes! Falamos até à uma da manhã, pomo-nos na
marmelada no sofá durante uma hora, depois continuamos a conversar até
às quatro.
Na terceira vez que saímos, vamos dançar (a ideia é do Steven). Eu
embebedo-me o suficiente para perder toda a inibição. Eu e o Steven
dançamos juntos. O que me pareceria irremediavelmente foleiro, parece-me
irremediavelmente mágico, tudo por causa do Steven. Nunca me senti assim
em relação a um gajo. Mesmo o que sentia pelo Joe – que, até aqui, teria
considerado o meu primeiro amor – me parece imaturo e infantil,
comparado com o que quer que isto seja. Isto é genuíno. Isto é puro. Isto é
profundo. Sinto-me inteiramente compreendida pelo Steven, sinto que ele
me vê, e ele parece sentir o mesmo.
Na nossa quarta saída, vemos o The Voice em casa do Steven. O gosto
dele em programas de televisão é… duvidoso, mas fico feliz por ver a
Christina Aguilera lançar elogios pré-formatados aos concorrentes, se isso
significar que passo tempo com o Steven. Bebemos uma garrafa inteira de
tequila entre os dois e, ao chegarmos às últimas gotas, enrolamo-nos no
sofá. Ele despe-me a camisa, depois, tira as próprias calças. Põe um
preservativo. Ainda por cima é responsável?
Temos relações sexuais pela primeira vez e é incrível. O relato que
normalmente decorre na minha cabeça durante o sexo nem dá sinal.
Das vezes em que tive relações sexuais, sempre senti que aquilo era uma
coisa que se estava a passar em segundo plano em relação ao que me ia na
cabeça. Gemia aqui e ali, para disfarçar. Mas não desta vez. Desta vez,
entrego-me ao momento. O Steven faz-me esquecer-me de mim. Adoro
isso.
Começo a chorar. O Steven pergunta-me se estou bem. Digo-lhe a
verdade. Choro porque percebo agora como é suposto sentir-me durante o
sexo. Ele beija-me com mais intensidade. Fazemos sexo mais umas quantas
vezes. Ele pede-me para dormir lá. Diz que não quer, nunca mais,
adormecer sem me ter ao lado. A Christina elogia uma jovem mulher que
mia uma canção da Whitney Houston. Tudo está bem.
69.
Estou na minha sala, sentada no meu sofá demasiado cheio. O Billy está a
dar-lhe com a broca lá longe, no andar de cima. Já voltei a casa, à
Califórnia, há três longas semanas e os pozinhos de perlimpimpim de
Toronto já pousaram.
A minha obsessão pelo Steven acalmou as minhas ansiedades sobre a
qualidade da série que-não-é-da-Netflix e a minha condição geral, mas
agora, sem o Steven por perto, as minhas ansiedades voltaram.
Irá esta série ser o fim da minha carreira? Ou, pior ainda, irá rebentar e
tornar-se mais um fenómeno embaraçoso que eclipsará a minha identidade?
Qual é, sequer, a minha identidade? O que raio é isso? Como saberia eu?
Fingi ser outras pessoas a vida toda, a infância toda, a adolescência toda e
também nos primeiros anos da idade adulta. Os anos que somos supostos
passar a encontrar-nos, eu passei a fingir ser outras pessoas. Os anos que
somos supostos passar a formar a personalidade, eu passei a criar
personagens.
Estou mais convencida do que nunca de que tenho de desistir de ser atriz.
Que isto não faz bem à minha saúde mental ou emocional. Que tem sido
nocivo para as duas. Penso no que mais tem sido nocivo para a minha saúde
mental e emocional… os distúrbios alimentares, claro, e os problemas com
o álcool.
Percebo, então, que, por muito que esteja convencida de que tenho de
largar estas coisas – a carreira de atriz, a bulimia, o álcool –, não me parece
que o consiga. Por muito que me ressinta delas, são, de uma forma estranha,
o que me define. São a minha identidade. Talvez seja por isso que me
ressinta delas.
O stress causado por esta perceção faz-me correr para a retrete, como
todo e qualquer stress. Vomito. Quando volto ao meu lugar no sofá, vejo
que perdi uma chamada do Steven.
O Steven e eu passámos a ser namorados oficiais no dia em que eu saí de
Toronto e, meu Deus, como isso me aliviou! Aterrava-me a ideia de que a
nossa relação não passasse de uma diversão. De um engate. Um namorico
para passar o tempo que, de outra forma, teria sido passado num local de
trabalho. Isso significaria que tinha lido mal, que tinha interpretado mal.
Que eu era tola. Estava convencida de que havia algo genuíno entre nós,
mas precisava de pôr-lhe uma etiqueta para sustentar a minha impressão,
para garantir a minha realidade.
Na manhã em que o avião devia descolar, o Steven acordou-me com uma
carta de amor a pedir que eu fosse “a mulher da vida dele”. Deixá-lo foi
agonia pura. O momento de entrar no táxi e dizer-lhe adeus foi das emoções
mais intensas que senti na vida, eu estava abalada, assustada, apaixonada e
impotente. Não fazia ideia do que o futuro nos traria, sobretudo connosco à
distância. É possível que os últimos meses tenham sido só uma fantasia,
uma ilusão. Talvez o Steven vá voltar à sua vida, talvez eu volte à minha, e
voltaremos os dois aos nossos velhos padrões habituais, esquecendo-nos
lentamente um do outro, apesar da etiqueta.
É porque isso que agora, quando o Steven me liga, fico aliviada. Sei o que
significa esta chamada. Ontem à noite, quando estávamos nas nossas três
horas de FaceTime de todas as noites, ele referiu que ia procurar voos para
LA e que me ligaria de manhã, se conseguisse apanhar um de última hora,
porque não aguentava passar mais tempo separado de mim. Esta chamada
significa que ele arranjou voo. Esta chamada significa que o Steven vem
visitar-me… hoje. Esta chamada significa que a nossa relação não é só um
engate.
***
O avião do Steven aterra. Ele só trouxe uma bagagem de mão, porque só vai
ficar uns dias. Apanha logo um Uber e passamos todo o percurso a trocar
mensagens. Mal posso esperar. Corro com o Billy, que deixa as ferramentas
espalhadas por toda a parte. (QUANDO é que este gajo vai acabar as obras?
Já duram há mais de um ano.)
Batem-me à porta. Deixo o Steven entrar. É estranho vê-lo em pessoa,
passadas três semanas a vê-lo num ecrã de telemóvel. Começamos com
timidez. A conversa é lenta. Eu estou aterrada. Será esta a versão de LA da
nossa relação? A nossa versão mágica seria a de Toronto, e a de LA é lá o
que quer que isto seja?
Por fim, após os mais longos três minutos da minha vida, o Steven puxa-
me para um abraço e começamos aos beijos. Ele tira-me a roupa e eu tiro a
dele. Ele tira um preservativo do bolso (claro que tira) e enfia-o,
empunhando o pénis coberto de latex na minha direção. Eu fico encantada.
Fodemos três vezes no sofá e depois começamos a conversar, e tudo parece
voltar ao normal. À vontade. Confortável. Afinal, a estranheza era só da
tensão sexual. Viva!
Passada uma hora de mimos e conversas, o Steven vai à casa de banho
fazer chichi. Volta com um passo lento e um ar preocupado. Para à porta da
sala, mantendo-se à distância em relação a mim. Parece circunspecto. Não
diz nada.
– O que foi? – pergunto eu, finalmente.
– Jenny… – diz o Steven, preocupado.
– O que foi? – pergunto outra vez, mais inquieta do que antes. – Estás a
assustar-me. O que se passa?
– É só que… – O Steven olha para baixo e esfrega as meias contra o chão
duro de madeira de cerejeira.
Não faço ideia do que vai ele dizer e a hesitação dá-me cabo dos nervos.
Só quero que desembuche.
– Tens um problema? – pergunta ele, por fim.
– Um problema? – pergunto eu.
– Sim. Um problema.
– Não percebo bem o que queres dizer…
– Há restos de vomitado no assento da retrete.
– Ooooh! Isso? – pergunto, tentando parecer que não é nada de especial. –
Bem, não chamaria a isso um problema, é mais… uma coisa que eu faço.
Ele não engole.
– Estás a ver, como tu e o tabaco – tento argumentar com ele. – Tu fumas
cigarros, eu forço-me a vomitar. São só hábitos nossos.
– Não, são coisas diferentes – garante-me o Steven. – A bulimia pode
matar-te.
– Os cigarros também.
– Sim, mas eu vou parar.
– Pois. Também eu.
O Steven suspira.
– Só quero mesmo que estejas bem e saudável, Jenny.
– E estou, praticamente.
– Não estás nada.
– Estou sim, praticamente.
Ele fita-me com dureza. Nunca olhou para mim assim. Tem dó e
condescendência nos olhos. Não gosto, mas há algo nesta profundidade que
me indica que ele não vai ceder. Não vou conseguir convencê-lo.
– Olha, Jenny, tens de procurar ajuda em relação a isto, ou eu… eu não
posso continuar contigo. Não posso ficar a ver-te fazer isto a ti mesma.
Estou estarrecida. A sério?
Os olhos dele respondem. A sério.
Bem, olha que porra!
70.
Estou sentada no gabinete da Laura, na Century City. É a minha primeira
vez numa sala de espera de uma psicóloga e não é nada como imaginava.
Não devem estes sítios parecer-se com clínicas? Esta sala não é nada disto.
É acolhedora e confortável. Está bem que a Laura é uma psicóloga-barra-
life coach, talvez os psicólogos com muitos hífenes se preocupem mais com
a decoração. Estou de pé atrás.
Há um pufe de crochet azul-turquesa num canto, ao lado de uma estante
com prateleiras inteiras cheias de livros de autoajuda. Estou sentada numa
cadeira cor de laranja com um cobertor de tricot bege dobrado nas costas.
Boho-chic. Talvez eu tivesse sabido isto antes, se tivesse lido as críticas no
Yelp, mas, assim que vi aquelas cinco estrelas, marquei uma consulta e
nunca mais olhei para trás. Além disso, quem quer ler uma crítica de alguém
que perde tempo a escrever uma crítica? Não se pode confiar nessa gente,
têm demasiado tempo livre.
Faço festas ao cobertor suave que tenho aos ombros enquanto preparo a
minha abertura. Quero começar isto num tom ligeiro. Não quero ser outra
daquelas miseráveis que caem na cadeira da psicóloga e desatam em
queixumes sobre os seus problemas, enquanto a pobre psicóloga lamenta ter
escolhido tirar o curso. Estou eu nisto, quando a Laura vem cá fora
cumprimentar-me.
– Jennette? – pergunta ela, ainda que eu seja a única pessoa sentada nesta
sala de espera e a única pessoa com uma consulta marcada para esta hora.
Entro no jogo dela:
– Laura?
Ela faz um grande sorriso, que se revela ser um dos sorrisos mais bonitos
que já vi. A Laura também deve usar Whitestrips.
– Olá! – Ela aproxima-se de mim de uma forma que pode ser descrita
como “a flutuar”. Não sei bem se ela flutua graças à sua saia rodada que voa
acima do chão a cada passo que dá na minha direção, se flutua porque é
mesmo assim que ela é. Ela intriga-me.
Puxa-me para um abraço. Geralmente, não sou de abraços, mas há algo no
calor humano da Laura que me inspira imediatamente confiança e que me
faz ceder ao gesto. Ela cheira a roupa acabada de lavar. Inspiro o cheiro,
esperando ser discreta. Dá cá esse cheirinho a lençóis lavados, Laura!
A Laura afasta-se, mas continua a segurar-me os dois braços, enquanto
me olha nos olhos, intimamente. Tudo nesta interação com a Laura, até
agora, me poria normalmente na defensiva, se ela fosse qualquer outra
pessoa. Mas a Laura é a Laura. As regras habituais não se aplicam.
– Vamos começando, sim? – pergunta ela com, juro, um brilhozinho nos
olhos. Sim, Laura, vamos começando. Vamos a isso.
Sento-me diante da Laura no pequeno gabinete dela que, esteticamente, se
parece com a sala de espera. A minha abertura já foi ao ar, depois de ter sido
de tal maneira desarmada por ela.
Ela pergunta o que me traz aqui, e eu conto-lhe o ultimato do Steven, e
como eu gosto dele e quero que as coisas entre nós corram bem, e que por
isso aceitei vir aqui.
– Pronto, tudo muito bem. Mas a terapia é uma coisa que nós temos de
decidir fazer por nós próprios. Nós é que temos de querer mudar, não pelas
outras pessoas, mas por nós.
A Laura bebe um golo demorado de chá.
– Então, Jennette, queres mudar?
– Sim – digo eu, sabendo que, ainda que seja mais complicado do que
isso, é isto que devo dizer. É quase como se a Laura fosse a diretora de
casting e eu a atriz criança a tentar dizer exatamente a coisa que fará com
que me voltem a chamar. Sim, sei nadar. Sim, sei saltar num saltitão. Sim,
quero mudar.
– Muito bem – diz a Laura.
A Laura pergunta-me quais são as dificuldades presentes da minha vida e
porquê, exatamente, sugeriu o Steven que eu viesse aqui, e eu vou direita ao
assunto: a morte da Mãe, a bulimia, os problemas com o álcool e isso tudo.
Tento contar-lhe uma versão breve, como num resumo para um discurso de
elevador. Presumo que teremos mais sessões para discutir os pormenores.
Na sua voz suave, a Laura descreve-me como vamos trabalhar.
– Tenho uma abordagem holística da reabilitação, pelo que as nossas
sessões vão incorporar muita variedade. Hoje, vamos concentrar-nos na
roda da vida, para podermos avaliar onde vai começar e usar isso como
marco, para medir o seu progresso ao longo do tempo.
Vou acenando que sim. Não faço ideia do que é a roda da vida, Laura,
mas vamos já pô-la a girar!
– Nos próximos quatro meses, vamos fazer compras de mercearia,
cozinhar juntas, descobrir os teus passatempos e paixões através da
experimentação, ler uma pilha de livros especificamente sobre distúrbios
alimentares e tomar notas sobre o que te diz alguma coisa ou não, e vamos
também explorar juntas algumas opções de atividade física equilibradas e
não obsessivas. – (O meu distúrbio alimentar também se transpõe para o
exercício físico. Corro meia-maratona duas vezes por semana e dez a quinze
quilómetros, dia sim, dia não.)
Tudo isto me parece muito bem, sobretudo porque a Laura vai estar ao
meu lado o tempo todo, e porque perco o Steven se não o fizer. Onde está a
linha tracejada, amor? Inscreve-me já. Estou pronta para a mudança.
71.
Chega-me ao nariz um cheiro a torradas queimadas e mijo de cão – o cheiro
inconfundível do meu spray bronzeador. Pergunto-me se o Dwayne “The
Rock” Johnson também conseguiu cheirar. Se cheirou, não se acusa.
Bendito seja.
Estou nos bastidores de uma festa de entrega de prémios de um tal Teen
Choice People’s Choice Fan Favorite (já os confundo todos), à espera de
que acabe o intervalo dos anúncios e comece o meu segmento. Tenho
calçados uns sapatos de salto alto excessivamente caros, com umas tiras que
me apertam os tornozelos e visto um fato floral de duas peças azul-turquesa,
ainda que eu não goste de padrões florais. Este é o visual aprovado pelo
canal, pelo que é o que trago vestido.
A série da Netflix ainda não estreou, pelo que ainda só sou conhecida
pelas coisas da Nickelodeon. Ainda estão a lançar episódios novos da Sam
& Cat, portanto, ainda apareço nas capas de todas as revistas com uma mão
atrevida na anca e um sorriso enorme na cara, representando a imagem de
uma vedeta despreocupada e com o mundo a seus pés. Aha!
Ainda que eu ande a ver a Laura há um mês, sinto-me pior do que quando
me sentei pela primeira vez naquela cadeira adornada. Primeiro, porque o
Steven, que é a razão para eu me ter ido sentar na cadeira adornada da Laura
para começar, está fora, a trabalhar numa série filmada em Atlanta, pelo que
não posso contar com ele para me apoiar. Em segundo lugar, porque agora
tenho consciência de quão desoladoras são as coisas. Não posso continuar
em negação sobre a dimensão do meu problema com o consumo de álcool
(é enorme) e da bulimia (é ainda maior). Já não estou em negação sobre a
dimensão da minha dor pela morte da Mãe (é inultrapassável).
As primeiras três semanas do meu programa com a Laura foram todas
para avaliar exatamente em que ponto estou, recolhendo informações. E, até
agora, não gosto das informações que recolhemos.
Ando a enfardar e a vomitar cinco a dez vezes por dia e a beber pelo
menos oito ou nove shots de álcool forte todas as noites. As primeiras três
semanas com a Laura mostraram-me o quão sombria é a minha situação e
até que ponto me tornei um fracasso.
Mas, agora, estamos na quarta semana do nosso calendário de cinco
sessões por semana. E a quarta semana é aquela em que, em vez de
avaliarmos simplesmente o quão patética é, na verdade, a minha vida
quotidiana, a Laura me começa a ajudar a mudar. Já identificámos os
estímulos principais que desencadeiam a ingestão compulsiva de comida, o
vomitar e o álcool, e as CERIMÓNIAS DE GALA estão quase no topo da
lista, em letras garrafais… não só por causa do stress e da natureza dos
eventos em si, mas porque as cerimónias com um tapete vermelho vêm
acompanhadas de, inevitavelmente, muita… e muita… comida. E muita,
muita comida significa muitas, muitas oportunidades para enfardar e/ou
vomitar. Por causa disso, a Laura e eu decidimos que, durante os próximos
meses, a Laura será a minha acompanhante em todos esses eventos, para
que possa monitorizar o meu comportamento e ser o meu apoio
emocional/mental.
As luzes baixaram. Vejo a multidão. A Laura está sentada na fila da frente.
Troco olhares com ela. A Laura sorri e começa a articular, em silêncio, “tu
consegues”, mas quando chegar ao “-egues”, uma mãe a tentar ter mão no
seu rebanho de crianças pequenas passa apressadamente à frente dela. A
Laura faz uma cara de “esta aqui nem pede desculpa”, até que percebe que a
mãe em causa é Angelina Jolie. A cara de “esta aqui nem pede desculpa”
transforma-se numa cara de “oh, passa, passa, meu anjo glorioso”.
Tento voltar a apanhar o olhar da Laura, ainda que por um instante, antes
de as luzes voltarem a acender. Estou desesperada pelo apoio dela. Tenho a
certeza de que estou a penetrar a alma dela com o meu desespero, mas não
importa. Perdi-a para a Angelina. Não posso censurar a Laura. Eu entendo.
O operador de câmara, o Chip (não sei o nome dele, mas há noventa por
cento de probabilidade de que o nome de um qualquer operador de câmara
seja Chip), começa a fazer-me a contagem decrescente de cinco dedos.
Engulo os nervos.
As luzes ofuscam-me quando se voltam a ligar. Não importa em quantas
entregas de prémios de pré-adolescentes/adolescentes/miúdos participe,
nunca me habituarei às luzes. Cegam-me, e fascina-me como não há mais
gente no palco a receber prémios para coisas que não interessam a
semicerrar os olhos uma vez lá em cima.
Começo a falar, a dizer o que quer que esteja escrito no teleponto, com
um grande sorriso e a minha “voz divertida”. Reparo que as minhas mãos
estão a fazer muitos gestos largos, mas não pareço capaz de as controlar.
Tudo isto é uma experiência fora do corpo.
O Nick Jonas chega, todo calmeirão, e aceita um prémio. As luzes
apagam-se outra vez. Respiro às golfadas, como alguém que susteve a
respiração debaixo de água demasiado tempo. Olho para baixo, para as
minhas mãos. Não as consigo ver porque os meus olhos ainda não se
adaptaram às luzes apagadas, mas não preciso de vê-las para saber que estão
a tremer.
Sou abordada por um segurança que se pavoneia como um homem que
come as suas asas de frango com picante extra, só para provar que é macho.
Sou escoltada para os bastidores. Sinto pequenos rios quentes a correr-me
pelas bochechas. Merda! São lágrimas.
Por fim, quando chegamos ao túnel lúgubre dos bastidores, com as suas
luzes fluorescentes, consigo olhar bem para as minhas mãos. Estão a tremer
e cerradas em duas pequenas bolas rijas. Não preciso de mais provas do que
isto. Estou a ter um ataque de pânico. E sei exatamente porquê.
Não vomitei o dia todo. A Laura só aceitou ser a minha acompanhante se
eu aceitasse encontrar-me com ela antes do evento, para podermos almoçar
juntas. A Laura sabia que o meu instinto seria passar fome antes da
cerimónia, o que depois poderia levar-me a comer compulsivamente e
vomitar mais tarde.
Ela pediu um almoço saudável para nós e ficou para ali sentada, cheia de
paciência, enquanto eu me armava em esquisitinha com a comida, como
uma menina de três anos a fazer uma birra.
– Sei que não queres, mas tens de comer. Não podes fazer uma coisa
destas sem comida no estômago.
Ficámos ali sentadas quase uma hora, com a minha comida intocada, até
que chegou o carro que nos levaria ao evento. Eu afastei a cadeira e
levantei-me, mas a Laura olhou para mim com um ar de “nem penses
nisso”. Eu sabia que ela não me deixaria entrar naquele Cadillac Escalade
sem que eu cumprisse a minha parte do acordo. Forcei umas garfadas pela
boca abaixo, a Laura encorajou-me a comer mais umas quantas, e lá fomos
nós.
O percurso até ao pavilhão foi infernal. Eu não me conseguia concentrar
em nada, exceto na vergonha que sentia pela quantidade de comida que
tinha consumido, as calorias presentes na dita, e no facto de que não me
podia ver livre dela. Tudo eu queria era uma casa de banho e tudo o que tive
foram quarenta e cinco minutos no trânsito de LA, com algumas canções
lentas para adultos contemporâneos na rádio. (O gosto musical da Laura é
duvidoso.)
– Hum, a senhora sente-se bem?
Agora não, Asas Picantes. Estou a meio de um esgotamento discreto.
Murmuro uma resposta de meia palavra, seco os olhos e empurro a porta
para os bastidores. A primeira coisa que vejo é, claro está, a mesa do bufete.
A inevitável mesa do bufete dos bastidores, cheia de palitos de vegetais
crus, azeitonas, mini-salsichas, cocktails de camarão, mini-tostas de queijo,
pipocas de galinha e cheeseburgers no pão em miniatura.
FOOOOODA-SE! Cheeseburgers em miniatura, caraças! Estou a morrer
por enfiar umas miniaturas cheias de carne e de queijo pela boca abaixo,
para depois as vomitar na casa de banho. O ato de vomitar dá-me um pico
de adrenalina e é tão extenuante fisicamente que mal tenho tempo para a
ansiedade quando acabo. Preciso da minha dose.
Mas sei que não devo. É por isso que a Laura está aqui. A Laura! É disso
que preciso. Preciso da Laura. Onde está a Laura?
Percorro, freneticamente, a sala com os olhos. O Manny, de Uma Família
Muito Moderna, conversa com o Sheldon da The Big Bang Theory. A Fergie
fala com a Kristen Stewart, que está a um canto a roer as unhas. Do outro
lado da sala, avisto a Laura, que está radiante, a elogiar o Adam Sandler. É
óbvio que ela tem uma paixoneta por ele. Quem não tem? O Adam Sandler
sem camisa, na cena de “o champô é melhor” de Um Milionário na Escola,
era verdadeira pornografia para mim, em miúda.
Estou dividida. Interrompo a conversa acalorada da Laura com o
Patetinha Favorito da América-barra-Ocasionalmente Coqueluche
Independente para lhe dizer que estou a meio de um ataque de pânico? Ou
corro para a mesa do bufete e encho a pança com uma catrefada de petiscos,
que depois irei vomitar na casa de banho? Tenho direito à minha dose?
Vou direita à mesa do bufete e nem sequer pego num prato. Pego em dois
mini-hambúrgueres, um em cada mão, e começo a enfiá-los goela abaixo.
Viro-me de costas, para que ninguém veja o que faço. Dou dentadas umas
atrás das outras. Já acabei o primeiro hambúrguer e vou a meio do segundo
quando ouço…
– Acho ótimo que estejas a comer. Mas gostava muito que abrandasses
um bocado. Quero garantir que, depois, vamos até um sítio mais privado
para poderes processar as tuas emoções sem vomitar. O que te parece?
O meu coração afunda-se. O cheseburguer em miniatura também. Sinto-o
como uma pedra no estômago. Sei que a Laura quer o meu bem, mas, neste
momento, odeio-a. Odeio que ela esteja a interromper a minha capacidade
de vomitar.
– Sabes que mais? E se saíssemos daqui agora mesmo? – sugere a Laura.
Ela deve ter visto os riscos secos das lágrimas nas minhas bochechas, ou
os meus punhos fechados, ou pode ser que seja só boa a analisar-me e que
saiba como ficarei destroçada por ter de guardar os hambúrgueres no
estômago.
Entramos no carro e eu desato logo a soluçar. O ataque de pânico está no
auge. Parece que estou a morrer.
– NÃÃÃÃO! A PORRA DOS HAMBÚRGUERES!! POR QUE RAIO
FUI COMER A PORRA DOS HAMBÚÚÚÚRGUERES!!! – berro eu.
– Eu sei, minha querida – diz a Laura, afetuosamente. Ela faz-me festas
no cabelo. – Estás a portar-te muito bem. Estás a portar-te muito bem.
A sério? Não parece nada que me esteja a portar “muito bem”. Parece que
estou no meio de um esgotamento declarado, depois de percorrer, lívida de
pânico, três linhas de teleponto e de não ser capaz de lidar com o facto de
ter comido dois hambúrgueres White Castles Para Ricos. A Laura garante-
me que é normal ter este tipo de reação depois de não vomitar, já que o meu
corpo está, há tanto tempo, habituado a isso, e que o hábito tem sido uma
fonte de supressão emocional para mim. Mas não me parece normal. A
minha reação parece-me humilhante e impossível de abreviar.
Continuo num pranto. O motorista olha em frente, impávido. Se este tipo
não está a reagir a uma bulímica histérica a manchar de spray bronzeador
laranja os seus bancos de couro recém-encerados, nem quero pensar no que
mais assistiu ele no banco de trás do seu Cadillac.
– Pode mudar a rádio para a KOST 103.5? – pergunta a Laura, bem-
educadamente.
O motorista troca de rádio. A Gloria Estefan começa a cantar a “Rhythm
is Gonna Get You”.
– A Mãe adoraaaaaaava a Gloria Estefaaaaaaaan! – soluço eu, caindo no
colo da Laura. Reparo que ela está a bater o dedo grande do pé. O ritmo
apanhou-a mesmo.
– Jennette… – diz a Laura, fazendo uma pausa para apertar os lábios,
coisa que ela faz sempre que está prestes a dizer qualquer coisa que acha
importante. – A reabilitação é assim mesmo.
Um dos momentos mais excruciantes de desconexão emocional para mim
é quando alguém diz alguma coisa que acha profundo, e a mim parece uma
treta completa. Eis uma dessas desconexões. Para piorar a situação, a Laura
FECHA OS OLHOS e repete.
– A reabilitação…
NÃO, Laura, por favor, não me faças essa pausa dramática para enfatizar.
NÃO ME FAÇAS essa pausa dramáti…
– … é assim mesmo.
72.
Sento-me na cadeira adornada diante da Laura e solto um suspiro. Mas não
é um suspiro profundo, é mais como aqueles suspiros que se soltam quando
acabas uma tarefa e em que ficas contente por ter chegado ao fim, mas
também te queres desesperadamente gabar por teres levado a cabo.
Finalmente, consegui. Passei vinte e quatro horas inteirinhas sem me
obrigar a vomitar. Talvez não soe assim tão impressionante, mas, para mim,
é. Há três anos que como compulsivamente e vomito todos os dias, várias
vezes por dia. Sentia-me controlada por este distúrbio alimentar. Mesmo
depois de ter começado a trabalhar com a Laura, não tinha passado um dia
inteiro sem me fazer vomitar. Esforço-me durante as sessões, mas, assim
que volto a casa, vomito até me ter libertado do tumulto emotivo acumulado
desde a última vez. Visito a Laura no dia seguinte para a informar dos meus
lamentáveis fracassos. Então, recomeçamos e voltamos a tentar. Este padrão
tem-se demonstrado extenuante, e a minha desilusão comigo mesma tem-se
demonstrado insuportável. Mas agora, finalmente, consegui.
Desde a nossa sessão de ontem de manhã, ainda não vomitei uma única
vez. O meu suspiro é um suspiro de campeã, caraças!, e a Laura topa-o
logo. Com um ligeiro sorriso, pergunta-me se tenho alguma coisa a contar-
lhe. Eu dou-lhe as boas notícias. Ela bate palmas e depois pergunta como
fui capaz, como consegui.
É aí que o meu orgulho começa a desvanecer-se. Foi muito difícil e não
estou certa de conseguir repetir a proeza. Para não vomitar durante vinte e
quatro horas, passei o tempo quase todo a escrever um diário para transpor
os sentimentos para o papel, o que é uma tarefa complicada, porque tenho
dificuldade em identificar as minhas emoções. É possível escrever “todas as
coisas desconfortáveis” e ficar-me por aí? Tive umas crises de choro e liguei
à Laura três vezes ontem à noite, já que ela abriu essa linha de comunicação
numa tentativa de me ajudar a fazer progressos tangíveis.
A tarefa de SENTIR esta confusa e esmagadora massa de emoções em
vez de me distrair com a bulimia é assustadora. A bulimia ajuda-me a
libertar-me destas emoções, ainda que seja uma solução temporária e
insustentável. Encarar estas emoções parece-me impossível. Se nem as
consigo identificar claramente, como posso eu vir a tolerá-las?
Conto os meus medos à Laura, e ela garante-me que será um processo de
um passo de cada vez. Levará tempo. Mas vamos lá chegar, juntas. Sinto-
me reconfortada. Então, ela explica-me que agora que experimentei o que é
não me obrigar a vomitar durante um dia inteiro, agora que sei que sou
capaz, temos de aprofundar as coisas. Apesar de esta experiência ter sido
pensada para me motivar, não podemos só tratar do problema e não da
causa. Para chegar ao que está por trás da bulimia, o que a origina, tenho de
analisar a minha vida de uma forma mais exaustiva.
– Está bem…
Estou hesitante. O que implica isto? Odeio incertezas.
– Quero perceber melhor a Pequena Jennette – diz Laura com ternura. –
Pelo que percebo, sentiu muita pressão, tinha muitas responsabilidades
desde muito pequena. Mas quero discutir alguns pormenores.
É sempre a infância, com estes terapeutas. Vi filmes e séries de televisão
suficientes para saber que este é o clássico bode-expiatório terapêutico.
Aconteceu uma merda qualquer na tua infância, deixou-te toda lixada, é por
isso que és como és.
Mas eu não. Eu não tive um pai alcoólico nem irmãos que me torturavam
quando os nossos pais não estavam em casa. Éramos pobres, é certo, e
vivíamos na casa de uma acumuladora de tralha, sim, e a Mãe teve cancro
quando eu era muito pequena, o que foi muito assustador. Mas, para lá
disso, as coisas eram normais. Informo disto a Laura, sugerindo gentilmente
pelo meu tom de voz que me recuso a jogar ao jogo do buáááá-a-minha-
infância-foi-snif-snif.
– Pronto – diz a Laura, com um ligeiro sorriso de entendida que, por uma
qualquer razão, me irrita profundamente.
Esta irritação confunde-me. Geralmente, gosto tanto da Laura.
– Fala-me da tua mãe. Fala-me da tua relação com ela, quando era
criança.
Fico imediatamente na defensiva. Para que quer ela que eu fale da Mãe?
Qual é o mal da Mãe? A Mãe não tem nada de mal. A Mãe era perfeita. Sei,
lá bem no fundo, que não acredito nisto, que as coisas são muito mais
complicadas, mas por que diabos contaria eu os pormenores à Laura? Nunca
contei os pormenores a ninguém e nunca contarei. Nem eu os percebo
completamente. Nem quero. Nem preciso.
– A Mãe era fantástica. Ela era, francamente, a mãe perfeita.
– Ai, sim? O que a tornava tão perfeita?
Ponho um dos meus melhores sorrisos falsos. A Laura é esperta. Tenho a
certeza de que consegue desmascarar a maior parte dos seus clientes. Mas
não a mim. Não entrei em sitcoms de merda durante uma década para não
ser capaz de vender um paleio em que não acredito.
– Tudo, para ser franca. Ela cuidou de mim e dos meus irmãos, de certeza
que foi muito difícil para ela.
– Era a função dela.
Sinto-me interrogada, como se não conseguisse dizer a coisa certa.
Acelero, tentando explicar-me.
– Bem, mas quero dizer que era diferente da maioria dos pais. – Merda!
Odeio como isto saiu.
– Como assim?
Faço uma pausa para me recompor. A Laura não me vai desconcentrar.
Falo num tom equilibrado e medido.
– Ela sacrificou tudo por mim. Privava-se constantemente, para poder
tomar conta de mim. Punha-me em primeiro lugar, à frente dela própria.
– Hmm. E achas isso saudável?
Mas que pesadelo é este, que vai de mal a pior? O que é este questionário
impossível de acertar? Não faço ideia do que devo responder para fazer a
Mãe sair bem.
– Bem, quer dizer, eu também a punha primeiro, por isso, as coisas até se
equilibravam. Equilibrávamo-nos uma à outra… a pôr uma… à frente… da
outra.
A Laura olha-me nos olhos. Um olhar imperscrutável. Ela não diz nada. O
silêncio é ensurdecedor.
– Éramos melhores amigas – esclareço.
– Oh? A tua mãe também tinha amigas da idade dela, ou a amizade
principal que tinha era contigo?
O que queres de mim, Laura? Contorço-me na cadeira.
– Estás confortá…
– Estou extremamente confortável.
– A tua mãe tinha amigas próprias…
– Sim, não, eu ouvi a pergunta – digo eu, com uma voz ofendida.
A Laura parece vagamente chocada. Sinto pena dela. O tom dela, todo
este tempo, tem sido gentilmente curioso, ainda que eu tenha estado a
recebê-lo como um ataque pessoal. Talvez ela não queira insinuar nada com
as perguntas dela. Talvez isto seja tudo inofensivo.
– Peço desculpa.
– Não há problema absolutamente nenhum.
Não podia ser só “problema nenhum”, Laura? Tinha de ser
“absolutamente nenhum”? Porque é que está ela a chagar-me desta
maneira?, pergunto-me. Sorrio-lhe de uma forma mais tensa do que
gostaria. Ela sorri-me também, de uma forma mais doce do que eu gostaria.
– Então… – começa ela.
– Ela tinha conhecidas, sim. Ela sempre disse que não tinha tempo para
ter amigas – antecipo-me, antes que a Laura possa fintar-me com outra
pergunta. – O que faz sentido para mim, já que ela andava muito ocupada a
levar-me às audições e ao estúdio e isso tudo.
– Ah, sim – A Laura acena, pensativa. – Então, quando é que começaste a
querer ser atriz?
Sei reconhecer uma pergunta com rasteira.
– Na verdade, a Mãe queria que eu fosse atriz porque queria que eu
tivesse uma vida melhor do que a que ela teve.
– Oh, então, não foste tu a querer ser atriz? Foi a tua mãe que quis que
fosses?
– Sim – digo eu, de uma forma um pouco mais abrasadora do que
gostaria. – Porque ela queria que eu tivesse uma vida melhor do que a que
ela teve. Foi muito simpático e generoso da parte dela.
– Está bem.
– Foi mesmo.
– Eu percebo.
Pausa.
– Sabes dizer-me quando foi a primeira vez que tiveste consciência do teu
peso ou do teu corpo de uma forma… – a Laura pausa para encontrar a
palavra certa – … significativa?
Não quero responder a esta, mas sinto que, se me tentar desviar, a Laura
virá direita à jugular com a pergunta seguinte. Avanço com cautela.
– Bem… quando eu tinha onze anos, estava preocupada com o
crescimento dos meus seios, por isso a Mãe ensinou-me o que era a
restrição calórica para me ajudar.
– Para te ajudar?
– Sim.
– Em que é que isso ajudaria?
– Bem, eu estava preocupada com o crescimento dos seios.
– Certo. Mas em que é que a tua mãe te falar na restrição calórica te
poderia ajudar?
– Como eu controlava as calorias, podia adiar ser adulta.
A Laura fita-me novamente com um dos seus olhares imperscrutáveis
característicos. Ainda que eu não consiga avaliar ao pormenor, posso ver
que vai para ali muita especulação. Sinto que tenho de acrescentar mais
coisas.
– Além disso, para a carreira de atriz. Sempre representei personagens
mais novas do que eu, portanto, se queria continuar a ter trabalho, parecer
mais nova era importante. Ao ensinar-me sobre a restrição calórica, estava a
ajudar-me a garantir o meu sucesso.
Faço um pequeno aceno com a cabeça para pontuar a minha declaração.
Espero que isso tenha alterado a agulha do juízo da Laura, mas, passados
uns segundos, vejo que não.
– Jennette, o que estás a descrever não é… mesmo nada saudável. A tua
mãe, essencialmente, apoiou a tua anorexia, encorajou-a. Ela… ensinou-ta.
Isso é abuso.
A minha mente dá um salto até à primeira vez que ouvi a palavra
“anorexia”, quando estava sentada na marquesa coberta de papel da sala 5
da clínica da Dra. Tran. De repente, sinto-me como essa miudinha de onze
anos, confusa, assustada e indecisa. A miudinha de onze anos que tinha
dúvidas sobre se sabia toda a verdade da sua situação, que não tinha a
certeza de que a mãe fosse a heroína que fingia ser, mas que engoliu todas
essas dúvidas.
Sinto os olhos encherem-se de lágrimas. Estou envergonhada. Estou bem
treinada para chorar e não chorar a pedido, pelo que recorro aos meus
truques habituais: ranger os dentes para distrair das lágrimas e piscar os
olhos muito depressa para as tentar mandar embora.
– Não faz mal deitar tudo cá para fora.
A Laura inclina-se para a frente.
CALA-ME ESSA BOCA, LAURA! Não aguento mais isto. Consigo
passar um dia sem vomitar e já estamos a tentar destronar a minha mãe e
demolir o discurso sobre ela a que me agarrei toda a minha vida?
– Tenho de ir – digo eu rapidamente, levantando-me para me ir embora.
– Espera, Jennette. Isto é um bom trabalho. Um trabalho importante.
– Tenho de ir – repito por cima do ombro, abrindo a porta e apressando-
me a sair o quanto antes.
As lágrimas correm-me pela cara enquanto conduzo até casa e tento,
desesperadamente, processar aquilo tudo. A Laura sugeriu que a Mãe
abusava de mim. A minha vida inteira, toda a minha existência foi orientada
pelo discurso de que a Mãe quer o que é melhor para mim, que a Mãe faz o
que é melhor para mim. Que a Mãe sabe o que é melhor para mim. Mesmo
no passado, quando os ressentimentos começaram a insinuar-se ou começou
a haver um fosso entre nós, eu controlei os ressentimentos e o fosso,
dominei-os, para que pudesse seguir em frente com este discurso intacto,
pois este discurso parece-me essencial para a minha sobrevivência.
Se a Mãe não queria mesmo o que era melhor para mim, ou não fazia
mesmo o que era melhor para mim, ou não sabia mesmo o que era melhor
para mim, isso significa que toda a minha vida, toda a minha perspetiva e
toda a minha identidade foram construídas numa base falsa. E, se toda a
minha vida, perspetiva e identidade tiverem sido construídas numa base
falsa, confrontar essa base falsa implicaria destruí-la e construir uma nova
base de raiz. Não faço a menor ideia de como fazer tal coisa. Não faço a
menor ideia de como viver a vida sem ser na sombra da minha mãe, sem
que todos os meus gestos sejam ditados pelo que ela quer, pelo que ela
precisa, pelo que ela aprova.
Estaciono ao pé da minha casa vazia e fico sentada no carro com o motor
ligado. Pego no telemóvel e escrevo um email à Laura.
Laura, obrigada por toda a tua ajuda neste último mês, mas vou deixar
de fazer terapia. Obrigada, Jennette.
O meu dedo paira por cima do botão “enviar” por uns segundos, até que
carrego nele abruptamente e desligo o telefone. Subo os degraus da frente a
correr e, uma vez em casa, precipito-me para a casa de banho. Obrigo-me a
vomitar repetidas vezes. Enfio os dedos pela garganta, com mais força, e
mais, e mais, até tossir. Cuspo um pouco de sangue. Continuo. Escorre-me
da boca, para a retrete, um rio de vomitado raiado de sangue. Escorre-me
pelo braço. Fico com bocados presos no cabelo. Continuo. Preciso disto.
Tomo um banho, para tentar relaxar. Quando saio, o meu corpo sente-se
dorido e febril, como se sente a seguir a cada purga.
Arrasto-me para a cama com o meu corpo cansado e magoado e enrolo-
me numa bola. Deslizo o dedo para abrir o telefone. Três chamadas perdidas
da Laura e uma mensagem de voz. Apago o número da Laura. Suponho que
não terei acompanhante para o próximo evento social.
73.
Estou de pé, à porta, a esfregar as mãos nas calças de ansiedade, quando o
táxi do Steven encosta diante de minha casa. O Steven arranjou um projeto
aqui em LA – um projeto de seis meses – e vai ficar todo esse tempo a
morar comigo. Vamos viver juntos. É um grande passo. E essa parte é
mesmo bestial.
A parte que não é bestial, no entanto, é a parte em que terei de contar ao
Steven que desisti da terapia. Não faço ideia de como será a reação dele,
mas tenho a certeza de que não será boa, já que foi ele quem me instigou a
fazê-la para começar.
Ele abre a porta do táxi e sai cá para fora, com a sua camisola de gola
redonda e calças de sarja. O táxi afasta-se enquanto o Steven pula pelos
degraus acima, com o seu saco de lona e a mala de cabine com rodas. Ele
tem mais energia do que é habitual. O Steven não é dado a pulinhos,
normalmente. Normalmente passeia, vagueia, esgueira-se. Suponho que esta
energia suplementar advenha da excitação que sente ao ver-me, o que
aumenta o sentimento de culpa que já tenho por ter de lhe dar as notícias.
Quando ele chega à porta da frente, pega em mim para um grande abraço.
– Jenny, Jenny bo Benny Banana fanna fo Fenny Fee fy mo Menny
Jenny!17
Ele canta e faz-me girar no ar.
Começo a juntar-me à cantoria, mas corto-me a meio porque… é
demasiado. O Steven pousa-me no chão e eu preparo-me para o que estou
prestes a fazer. Vou contar-lhe. É agora.
– Steven…
Antes que as palavras possam sair-me da boca, o Steven começa a falar a
quinhentos à hora sobre como está entusiasmado… mas não por estar em
LA, não pelo projeto em que vai trabalhar, não por irmos viver juntos.
Nenhuma das coisas com as quais espero que esteja entusiasmado. O Steven
diz que está entusiasmado… por me levar à igreja.
À igreja? Não vou à igreja desde o funeral da Mãe e não tencionava voltar
tão cedo (leia-se nunca). Sei que o Steven foi educado como católico, mas,
segundo consta, a família dele nunca ia à missa. Não pensei que a religião
tivesse qualquer peso sobre ele, nem sequer na sua juventude, muito menos
agora. Estou baralhada. O Steven explica.
– Não sei, sinto só que há mais na vida. Mais profundidade, mais sentido.
Não percebo a ligação. Como espera o Steven alcançar mais profundidade
através do catolicismo? Não quero deitá-lo abaixo quando está tão
entusiasmado, pelo que ponho o meu tom mais suave para o recordar das
nossas conversas no início do namoro, onde ele parecia concordar comigo
que a religião é uma coisa que tolhe o crescimento, não que o promove.
– Certo – acena ele com a cabeça. – Mas agora discordo em absoluto
disso.
Okaaaaay. Peço-lhe que elabore.
– Bem, vi o God’s Not Dead na Netflix e tocou-me muito. Acho que há ali
muita verdade, Jenny. Mesmo muita verdade. E quero que tentemos ir à
igreja. Quero que tentemos encontrar uma espécie de religião.
– Espera aí. Viste um filme cristão merdoso na Netflix e agora queres
abandonar toda a tua filosofia de vida para ir atrás de Jesus?
O meu tom magoa o Steven. Vejo-o nos olhos dele. Há um momento de
silêncio. Começo a perguntar-me se o Steven está bem. Ele não parece ele
mesmo. Por outro lado, ainda só passaram uns meses da nossa ainda-muito-
recente relação. Talvez esta mudança seja a mudança natural que ocorre
quando acaba o período de lua-de-mel. Talvez ele seja verdadeiramente
assim.
– Steven, eu… desisti da terapia.
Nem acredito que as palavras tenham saído assim disparadas da minha
boca, as palavras que eu estava tão nervosa por ter de dizer ainda há dez
minutos. Talvez eu só as tenha dito para dizer alguma coisa, para preencher
o silêncio. Ou talvez as tenha dito para desviar o foco da igreja.
Independentemente da razão, eu disse-as, e agora elas estão cá fora. Espero
pela reação do Steven. Ele para de vasculhar no saco para olhar para mim.
– Tudo bem.
A sério? Está tudo bem? Não posso acreditar. Parece-me demasiado bom
para ser verdade. Ele abre a boca para dizer mais uma coisa.
– Não precisas de terapia. Se tiveres Jesus.
17
“The Name Game” [“O jogo dos nomes”] é uma canção de Shirley
Ellis e Lincoln Chase, editada em 1964, que consiste num jogo de
palavras a partir de vários nomes de pessoas e convida os ouvintes
a fazer o mesmo. Aqui, é adaptada a “Jenny”. (N. da T.)
74.
O Steven e eu estamos sentados num dos bancos do fundo de uma igreja
Batista do Sul, em Glendale, enquanto um coro choraminga um hino. O
hino em si não é grande coisa, mas algumas destas mulheres são verdadeiras
estrelas.
Apesar do talento do coro, estou aqui sentada com os olhos a meia-haste.
Este é o quarto serviço religioso a que eu e o Steven assistimos esta semana.
Eu nem tentei resistir. Já fico feliz por ele não me estar a forçar a fazer
terapia. Alinhar no que imagino que seja uma muito breve fase para o
Steven parece-me um preço baixo a pagar em troca de nunca mais ter de ver
a Laura ou qualquer outra psicóloga apostada em reduzir a cinzas o meu
discurso sobre a Mãe.
Primeiro, fomos a uma missa católica, que o Steven disse que não lhe
parecia ideal para ele. Então, fomos a uma cerimónia não confessional em
Hollywood, que o Steven achou demasiado hollywoodesca. Depois, fomos
a um centro de Cientologia, do qual o Steven estava desconfiado logo à
partida, mas queria experimentar, pelo sim, pelo não. Faz lembrar a história
da Caracóis Dourados e os Três Ursos, só que o nosso Dourado Steven não
encontrou nenhuma igreja que fosse “exactameeeeente à sua medida” nos
três primeiros casos, pelo que agora estamos na igreja número quatro.
O Steven parece genuinamente empenhado. Vai acenando a cabeça ao
longo do sermão. Abre as notas do iPhone para anotar versos das Escrituras.
Levanta os braços em veneração durante os hinos. Finalmente, a cerimónia
acaba. Aleluia. Isto foi o mais perto que estive de acreditar em Deus o dia
todo.
Quando chegamos a casa, estou pronta para um copo de vinho cortado
com vodca, coisa que ando a beber regularmente nos últimos meses. O
Steven não se cala sobre a cerimónia. Eu desligo, até que ele diz…
– E, Jenny… Rezei sobre este assunto e acho que não devemos continuar
a ter relações sexuais. Vou fazer um voto de castidade.
– Hum… desculpa. Repete lá?
– Pois, é que… não me parece que devamos continuar a pecar desta
maneira.
Os meus dedos fecham-se numa pega mortal à volta do meu copo de
vinho. O Steven continua.
– Rezei sobre isto e acho mesmo que não devíamos continuar a ter
relações sexuais. É pecado. Espero que não te importes.
Eu… importo-me. O sexo com ele é o melhor que alguma vez tive. Não
abriria mão dele nem que a minha vida corresse às mil maravilhas em todas
as outras áreas. Mas não corre. A minha vida é uma desgraça, neste
momento. O sexo é um alívio. É onde me liberto. Não quero desistir deste
raiozinho de esperança na minha vida.
– E se me importar? – digo finalmente.
Engulo o resto do meu vinhodca e pouso o copo na mesa tão
sedutoramente quanto consigo, deixando os dedos demorarem-se um pouco
mais na borda do copo. Como a porra da Marion Cotillard, se não se
importam! Debruço-me e começo a beijar o Steven. Ele retribui os beijos,
primeiro com hesitação, depois, com paixão. Apanhei-o.
Pouco depois, pouso a mão na pila dele. Está tesa. Mesmo tesa.
– Olha como estás teso por mim – sussurro-lhe à orelha.
– Jenn, para– diz o Steven, com a cara corada.
– Queres que pare? – digo eu, na minha melhor voz de cama, o que é
qualquer coisa entre uma criança de dois anos curiosa e uma pré-
adolescente queixosa, mas, ainda assim, parece funcionar. Fico fascinada
pelas coisas que perdoamos por um pouco de tusa. Começo a afastar a mão.
– Não… não. Não pares.
O Steven pega na minha mão e volta a pousá-la na pila. Abro-lhe a
breguilha das calças, inclino-me para a frente e começo a fazer-lhe o broche
do século. Estou a dar tudo. Estou a vivê-lo, estou a dar-me, estou a dedicar-
me. Ele há broches e broches, e depois há este broche. Eu chupo, eu afago,
eu murmuro, eu lambo, eu acaricio, eu dou-lhe 150 mil por cento. Ele vem-
se na minha boca.
Volto a sentar-me, orgulhosa e expectante, certa de que o Steven me vai
anunciar que será impossível abandonar o sexo comigo. Que isto é o que ele
quer, que é o que ele PRECISA, comigo, em todos os segundos de todos os
dias. Estou prestes a engolir com toda a sedução de eu sou capaz, quando o
Steven se põe a cofiar o queixo.
– Pois, isto não me pareceu correto, Jenny. Não podemos voltar a fazer
isto. Não podemos mesmo repetir.
Há tanta perentoriedade nos olhos do Steven que sei que não vou chegar
nem de perto daquela pila num futuro próximo. O sémen escorre-me pela
boca, desce até ao queixo. Pinga-me no colo. Com os olhos mortos, fico a
olhar para ele. O que fiz eu?
75.
– Então, alguma vez houve uma fase boa na tua relação com a Mãe ou foi
sempre… como eu me lembro?
Conheço bem o lado da Mãe desta história, de que o Pai andava
“provavelmente a enganá-la” ou “não fazia o suficiente pela família” ou o
que quer que fosse a queixa do dia. “O teu pai é preguiçoso e incompetente,
não há outra forma de dizê-lo. Ele é um homem distante, com a amplitude
emocional de uma batata.”
Tanto quanto me lembro, recordo-me de umas quantas coisas boas.
Lembro-me de adorar o cheiro das camisas de flanela do pai – pinho com
um toque de tinta fresca. Às vezes, dormia com elas, para me reconfortar.
Lembro-me de ele me ensinar a atar os meus sapatos Winnie the Pooh rosa-
bebé, com a técnica das orelhas de coelho, enquanto eu estava sentada no
carrinho de compras no Sam’s Club e a Mãe se queixava de como o papel
higiénico tinha aumentado. Lembro-me de ele me convidar para a festa de
Natal do trabalho, no Home Depot. Eu nem podia acreditar que ele me tinha
escolhido para ir à festa com ele. A mim! Não tive de acreditar por muito
tempo, porque depressa descobri que era a Mãe quem queria que eu fosse
com ele, para recolher informações sobre com qual das colegas poderia ele
estar a ter um caso. “Não descartes o Don. Sempre me perguntei se o teu pai
seria gay, às escondidas. Há qualquer coisa na forma como se senta, como
cruza as pernas.” Independentemente disso, diverti-me na festa. Havia
cortinas de chiffon vermelhas e verdes penduradas nas paredes. As árvores
de Natal que não tinham sido vendidas forravam a sala. Aprendi a jogar ao
vinte-e-um. Nesse dia, senti-me mesmo amada pelo Pai.
Mas, fora isso, as memórias não eram particularmente fantásticas.
Lembro-me, sobretudo, de o Pai não estar presente. De parecer
desinteressado. Lembro-me de ele tentar ler para mim e para o Scottie o
Stan the Hot Dog Man todas as noites, no que se deve ter arrastado durante
três ou quatro semanas, até lá acabarmos por desistir da leitura, porque ele
não aguentava um livro para crianças inteiro sem adormecer. Lembro-me de
ele se esquecer de recitais de dança e de adormecer durante as festas de
visionamento para a família que a Mãe dava com as minhas aparições na
TV. Lembro-me da Grande Bronca da Pornografia de 2003. A Mãe apanhou
o Pai a ver pornografia (um enorme pecado no mormonismo) e expulsou-o
de casa novamente, dessa feita durante um mês. Ela insistiu que eu devia
chamá-lo pelo nome próprio, “Mark”, desde então. Foi o que fiz, até à
morte dela.
Agora, aqui sentada diante do Pai e da sua nova namorada, não procuro o
lado da Mãe nem procuro a forma como me lembro das coisas. Procuro o
lado do Pai.
– Sabes, foi há tanto tempo, mal me lembro – responde finalmente o Pai,
após uma pausa de dez segundos.
Olha para a namorada em busca de aprovação.
A namorada do Pai é a Karen, a melhor amiga da Mãe no liceu, que lhe
roubou o nome do bebé. Ao examinar a Karen do outro lado da sala,
percebo que a Mãe tentava maquilhar-se da mesma forma que ela. Ou talvez
a Karen tente maquilhar-se da mesma forma que a Mãe. Não sei dizer, mas,
seja como for, deixa-me pouco à vontade.
Quero que o Pai seja feliz, mas ele está um pouco… feliz de mais. Passou
um ano desde a morte da Mãe, e ele anda com a Karen desde a semana a
seguir a ela ter morrido. O Pai parecia mais empenhado em conseguir o
número de telefone da Karen do que em fazer o luto da sua mulher de mais
de trinta anos, na after-party a seguir ao funeral. (É assim que se chama
aquela parte a seguir ao funeral em que toda a gente come canapés e te diz
como compreendem a tua perda porque perderam um gato, uns anos antes?)
O Pai seguiu em frente mais depressa do que os meus irmãos e eu
esperávamos, e isso não tem sido fácil para nenhum de nós. Apesar das
nossas dificuldades, esforçamo-nos para nos mantermos ligados a ele. Já
perdemos a nossa mãe, não queremos perder também o nosso pai.
A bem dizer, o Pai também se tem esforçado, muito mais do que se
esforçava quando a Mãe era viva. Tem-nos ligado com frequência para
saber como estamos, e pediu-nos para fazermos listas de desejos na Amazon
para o Natal, para que ele soubesse o que nos oferecer.
Foi por isso que quando o Pai me ligou, na semana passada, a dizer que
me queria ver em pessoa para “conversarmos sobre umas coisas”, apesar de
a formulação me ter surpreendido ligeiramente, presumi que esta sessão de
conversa marcada para hoje fosse só mais um desses esforços.
Mas, aqui sentada diante do Pai e da Karen, a absorver esta falta de
química, depressa percebo que não é de todo um desses esforços do Pai. Há
algo mais rígido na linguagem corporal dele. Deduzo que deve vir aí um
anúncio qualquer.
Agora, é o meu corpo que enrijece. Merda! O Pai e a Karen vão casar-se.
Ó meu Deus! Vou ter de fingir que acho muito bem, que a ideia me
entusiasma até? Brinco com as unhas, para não ter de cruzar o olhar com o
dele, enquanto me preparo para o que estou prestes a perguntar.
– Então… Porque é que me querias ver?
– Oh, bem, ah…
O Pai olha para a Karen. Ela lança-lhe um olhar de “vá, diz-lhe”. Deus do
Céu, cá vamos nós!
Cá vamos nós…
– O Dustin, o Scottie e tu… não são… meus filhos biológicos.



Hein?
Estou chocada. Sinto as cores esvaírem-se da minha cara. Tenho a certeza
de que vou desmaiar.
– O qu…? – lá sai da minha boca seca.
O Pai só acena com a cabeça. Os olhos da Karen enchem-se de lágrimas.
– Mas ele é o vosso pai – diz ela, com a voz a falhar dada a angústia
emocional. – Este homem é o vosso pai.
As tonturas começam a estabilizar, mas ainda não consigo ver direito. As
lágrimas correm-me pelas bochechas, ainda que eu me sinta completamente
embrutecida.
– Achei só que devias saber – diz o pai, a olhar para baixo, para as mãos,
que esfrega uma na outra.
A Mãe odiava sempre que o Pai esfregava as mãos. “Arranja um creme,
Mark.”
Inclino-me para ele e dou-lhe um abraço. Ele abraça-me também. A Karen
fica a ver.
– Obrigada por me contares – digo.
A minha cabeça está encostada à camisa de flanela dele. Cheiro o pinho e
a tinta familiares. Só vejo o padrão quadriculado do bolso do peito, mesmo
à frente dos meus olhos. Sinto o tecido a humedecer-se com as minhas
lágrimas.
A Karen debruça-se para o meu corpo torcido e põe o braço direito por
cima de mim, numa espécie de meio abraço. Porque é que sempre que há
duas pessoas a abraçar-se numa sala com três, a terceira pessoa se sente
obrigada a entrar no abraço? Os abraços foram feitos como uma atividade
para duas pessoas, não para três. Não precisamos de ti, Número 3.
Obrigada.
– Ele contou-me e eu disse-lhe que ele tinha de te contar – sussurra-me a
Karen perto do cabelo. – Disse-lhe que ele tinha mesmo de te contar. Tu
mereces saber.
Quebro por fim o abraço e olho pela janela, para não ter de encarar o Pai
nem a Karen. Há qualquer coisa sobre os momentos inerentemente
dramáticos que faz com que as trocas de olhares durante esses momentos
pareçam ainda mais carregadas e dramáticas. É um exagero! Já há carga
dramática que chegue. Não é preciso mais.
Estou a olhar pela janela quando começo a pensar em perguntar ao Pai
quem é o meu pai biológico. Quero desesperadamente perguntar. Estou
morta por saber. Quem é ele? Tenho alguma coisa em comum com ele? Será
que eu e ele nos daríamos melhor do que eu e o Mark? Haveria uma outra
naturalidade na nossa dinâmica? Estou prestes a perguntar, mas aguento-me.
Não quero ofender o Pai. Ou antes, o “Pai”. Por esta noite, fiquemo-nos por
aqui. Terei tempo para fazer todas as minhas perguntas mais tarde.
– Então, vamos ao cinema ou… – pergunta o Pai.
Merda.
76.
Contar as novidades ao Steven deixa-me tão nervosa que adiei o máximo de
tempo possível: até este momento exato. Tenho de me ir embora para uma
conferência de imprensa na Austrália, daqui a uma hora. A Netflix vai ser
lançada lá, pelo que vão enviar alguns elementos dos elencos das suas
várias séries para promover o lançamento. Serei eu, a Daryl Hannah, a Ellie
Kemper, o Aziz Ansari, e ouvi rumores de que viria também a deusa em
pessoa, a Robin Wright. Façamos figas.
– Tenho uma coisa importante a contar-te – digo ao Steven, quando
estamos sentados frente a frente, à minha mesa de jantar.
Já passou uma semana desde que o Mark me disse que não é o meu pai, e
eu estou longe de ter acabado de digerir a informação. Todos os dias desde
então têm parecido uma espécie de névoa. Tenho-me apoiado grandemente
no vómito e no álcool para aguentar a semana.
Tive ocasião de fazer ao Mark algumas das minhas muitas perguntas.
Sabia ele que a Mãe tinha um caso na altura em que isso estava a acontecer?
(Ele diz que sim.) Sabem os meus irmãos de todo este fiasco? (Ele diz que
não.) Tem ele a certeza absoluta, a mil por cento, de que esta é a verdade?
(Ele diz que sim.) Sabe ele quem é o meu pai? (Sim.) Mas, para além destas
respostas básicas e concretas que obtive, todas as outras perguntas que fiz
são afastadas com um “não sei” ou uma qualquer variante do género.
Como ficou ele com a Mãe todos aqueles anos, se sabia que ela tinha um
caso do qual resultaram três crianças? (“Não sei…”) O meu pai biológico
sabe que eu existo? (“Não tenho a certeza…”) Como acabou finalmente o
caso? (“Huuuum… não faço ideia.”)
A pergunta para que quero mais desesperadamente uma resposta, de
longe, é: porque é que a Mãe não nos contou? Porque é que a Mãe não nos
contou quando teve ocasião? Como pode a Mãe não nos contar?
Tentei justificar a decisão dela, ver-lhe um sentido. Mas, quanto mais
remoo, quanto mais tento desculpar a decisão dela ou até percebê-la, mais
zangada fico.
Independentemente do porquê, o que é certo é que ela não nos contou. E
isso, só por si, magoa-me.
Falamos da pessoa que era mais importante para mim do que tudo e todos
neste mundo. Falamos da pessoa que estava no cerne da minha existência.
Os sonhos dela eram os meus sonhos, a felicidade dela era a minha. Como
pôde a pessoa por quem eu vivia e respirava esconder-me uma peça tão
fundamental da minha identidade?
Podia fingir que ela nunca teve a ocasião de nos contar, que ela queria
desesperadamente contar-nos, mas nunca era o momento certo… mas isso,
simplesmente, não é verdade. Ela teve ocasiões, alturas em que ela pensou
que estava a morrer, em que ela estava consciente da própria mortalidade.
Acho que os dias que antecedem a morte de alguém propiciam a
oportunidade perfeita para resolver as pontas soltas, pôr em ordem as
coisas, contar aos filhos quem são os seus pais verdadeiros. Porque não o
fez a Mãe com os filhos dela? Porque continuou a fintar a verdade?
A falta de respostas ou de qualquer coisa que se aproxime de uma
resolução enfurece-me. Quanto mais perguntas ficam por responder, mais
perguntas me surgem. Quanto mais perguntas me surgem, mais perguntas
ficam por responder, e estou a dar em doida neste processo de tentar
encontrar respostas. Tenho de desabafar com alguém, preciso de uma caixa
de ressonância, de uma voz da razão.
Não contei ao Steven, intencionalmente, toda a história do pai-bio durante
a semana passada porque estava à espera que toda a história da religião se
acalmasse. Achei que só nos podíamos dedicar à história do pai-bio ou à
história da religião, mas não às duas ao mesmo tempo. Mas agora que tenho
de ir apanhar o avião, não tenho escolha. Seria estranho esperar pelo meu
regresso para contar à pessoa mais relevante da minha vida.
– Está bem… – diz o Steven, ao ouvir a introdução ao meu anúncio. – Por
acaso, eu também tenho uma coisa importante para te contar…
– Está bem… – digo eu, meio baralhada. – Pronto, diz tu primeiro, que a
minha é bastante importante.
– Não, diz tu primeiro, que a minha é mesmo, mesmo importante – diz o
Steven, cheio de confiança.
– Diz lá, mas é. Faz-me esse favor.
– Muito bem – diz o Steven com uma expiração ponderada. – Sou…
Jesus Cristo reincarnado.



Hein?
O meu primeiro instinto é rebentar a rir, daqueles risos desconfortáveis,
resultado automático do choque, da tristeza, da fúria e da incredulidade,
tudo misturado. O Steven acha que é Jesus Cristo Nosso Senhor e Salvador?
Poupem-me! Ele deve estar a gozar. No instante em que percebo que não
está, bate-me o meu segundo instinto. Quero chorar. Só me quero enrolar
numa bola e deitar tudo cá para fora.
– Tens de acreditar em mim, Jenny – diz o Steven com solenidade. – Sei
que parece loucura, mas tens de acreditar em mim.
Dou-me uma sacudidela e vou vomitar à casa de banho, enquanto penso
numa estratégia de resposta. Quando volto, venho a pensar se haverá
alguma coisa que eu possa fazer quanto ao meu namorado pensar que é
Jesus Cristo durante os poucos minutos que me restam antes de ter de me ir
embora.
É óbvio que o Steven não está bem, mas não tenho ninguém a quem dar
essa informação e que possa vir a ser útil de uma qualquer forma. Não tenho
o número de telefone de nenhum dos familiares nem dos amigos dele – a
nossa relação é demasiado recente para isso. Tento, discretamente, pedir-lhe
o número de telefone de um dos amigos dele que vive aqui perto, mas o
Steven desata a chorar e a suplicar-me que não conte a ninguém o segredo
que acaba de me revelar.
– Fica só entre nós, Jenny – chora ele.
– Acho que devias contar à tua família – incito-o eu, sabendo que, se ele o
fizer, eles vão perceber que há um problema qualquer e é provável que
apanhem um avião para virem tratar dele.
– Não posso – diz ele, a abanar a cabeça. – Não posso mesmo. Eles não
acreditariam. Só tu acreditas em mim, Jenny.
Não respondo. Não me sobra nada com que lhe responder. Estou
impotente. E desesperada. O Steven é o meu primeiro verdadeiro amor. Até
há dez minutos, a alegria que obtinha desta relação era a única coisa
positiva da minha vida recente. Não estou pronta a abrir mão disso. Seco
uma lágrima com a manga, e o meu olhar repara no relógio da parede. Vou
chegar atrasada. Tenho de me ir embora.
Abraço o Steven. Ele abraça-me. Recebo uma mensagem do meu agente a
caminho do aeroporto. A Robin Wright confirmou.
77.
O voo para Sidney são catorze horas de inferno, a vomitar na casa de banho
do avião. Como duas refeições de bordo inteiras e vomito as duas, além do
quase constante fluxo de petiscos e guloseimas oferecidos pelos
hospedeiros: gomas de ursinhos, bolachas Graham, Doritos. Cada um deles
desce, sobe e sai de mim. É o caos. Não há um único momento do voo em
que não esteja a comer ou a vomitar ou, no tempo entre comer e vomitar, a
planear como me levantar pela décima quarta vez, evitando o olhar de
soslaio do empresário de capachinho sentado ao meu lado.
A última vez que vomito, sinto que vou desmaiar. Tenho a boca azeda do
vómito e dorida do ato de vomitar. Enfio os dedos pela goela abaixo, os
meus olhos esbugalham-se como um efeito secundário e, no meio do fluído
castanho e grumoso que escorre da minha boca para a retrete numa cascata
feia, vejo uma coisa pequena, branca e dura. Passo a língua ao longo dos
dentes e percebo que me falta um deles. A acidez dos meus fluídos
estomacais desgastou o esmalte ao ponto de me fazer perder, agora mesmo,
o meu molar inferior esquerdo.
Sinto a boca a saber a metal e cuspo para o lavatório. Um rio de sangue.
Relutantemente, faço uma concha com a mão por baixo da torneira da casa
de banho do avião e lavo a boca com aquela água duvidosa. Faço isto quatro
ou cinco vezes, antes de apanhar o meu reflexo no espelho. Tento evitá-lo,
mas não consigo. Não num espaço tão pequeno com um espelho tão grande.
Olho para mim durante um bom bocado. Não gosto do que vejo.
Aterramos em Sidney. Ao avançar para o Nissan Sentra que me espera,
vejo que tenho uma mensagem de voz no telemóvel de um número
desconhecido. Passo o dedo para desbloquear e ouvi-la. É dos pais do
Steven. Dizem-me que o Steven lhes ligou, fora de si, e que eles ficaram tão
preocupados que apanharam o avião para o visitar. Estão agora com ele
numa clínica de saúde mental para fazer uns testes, porque um psiquiatra de
lá pensa que o Steven talvez tenha uma esquizofrenia. Acabo de ouvir a
mensagem e entro no banco de trás do carro.
– Olá, tudo bem? – pergunta o animado motorista do Uber.
Olho a direito, sem lhe responder. Tudo bem? Tudo péssimo! A minha
Mãe mentiu-me a vida inteira sobre quem era o meu pai biológico, estou
presa nas correntes da bulimia, vou ter de fazer toda uma conferência de
imprensa sem o meu molar inferior esquerdo e o meu namorado é
esquizofrénico. Não podia estar pior.
– Oooh, adoro esta canção. Importa-se que ponha mais alto?
O motorista do Uber roda o botão do volume sem esperar a minha
resposta. É o sucesso da Ariana Grande, “Focus on Me”.
– Ainda é melhor do que o último single dela, hein? – pergunta o
motorista.
Ele abana a cabeça e trauteia a acompanhar. Bate o ritmo com entusiasmo
no tablier.
Eu olho pela janela e vejo a Ópera de Sidney ao longe. Toco no meu
molar ausente com a língua, perdida em pensamentos. Talvez a Ariana tenha
razão. Talvez seja tempo de me concentrar em mim.
78.
– Olá, Jennette.
– Olá, Jeff.
– Não quer subir para a balança?
Hein? Desculpa? Não vi nenhuma cláusula na papelada desta consulta a
dizer que teria de me pesar na primeira sessão com este especialista em
distúrbios alimentares que encontrei na net. Se eu tivesse lido isso, não sei
se teria marcado a consulta. E, mesmo que tivesse, sabe-se lá como,
marcado a consulta à mesma, teria vestido a minha roupa especial para “ser
pesada em público”, que é o que visto para todas as outras consultas
médicas, independentemente do tempo lá fora: uma saia de popelina e o
meu top de alças mais diminuto. (Quero que a minha roupa acrescente o
menor peso possível.) Nunca teria usado jeans. A porra de umas jeans
grossas e pesadas. E uma camisola volumosa, pesada, com tranças de tricô.
– Tem mesmo de ser?
– Sim. Mas não tem de olhar para o número lá em baixo, e eu não lho
direi. É só para o meu trabalho clínico. Tenho de documentar o seu peso no
início de cada sessão.
Torço as mãos de nervosismo.
– Parece aflita.
– Não quero ser pesada.
– É só uma parte do procedimento, e percebo perfeitamente que a deixe
aflita. Para ser franco, a sua reação até é ligeira, comparada com as coisas
que vejo por aqui.
– O que vê?
– As pessoas começam a soluçar, às vezes gritam. Uma vez, uma senhora
atirou a carteira pela sala. Essa foi divertida.
Rio-me.
– Enfrentar a sua experiência emocional será a parte mais transformadora
da sua reabilitação. Isso começa com enfrentar a sua experiência emocional
em torno da comida, do ato de comer, do seu corpo e, sim, de ser pesada.
Estou aqui para a ajudar ao longo do processo todo, mas, se quer ficar
melhor, terá de encarar tudo isto.
– Não me parece que me esteja a dar muitas alternativas, Jeff.
Ele dá uma gargalhada, mas para de rir abruptamente e não diz mais nada.
Continua só a olhar para mim.
O Jeff é alto (um metro e noventa, talvez), e tem uns olhos azuis gentis e
uma barba loira perfeitamente aparada, para condizer com o seu cabelo loiro
perfeitamente penteado, com um risco ao lado bem definido. Veste umas
calças largas, uma camisa axadrezada com uma gravata, e um cinto preto
com uma fivela prateada. Os gestos dele são exatamente como a sua
articulação: sem aahs ou huums, nem no discurso, nem nos trejeitos. Este é
um homem sem huums. Respeito-o. Não é nada fácil, ser-se um homem
sem huums.
Levanto-me e vou até à balança. Fecho os olhos e inspiro profundamente.
Então, subo. Ouço-o tomar uma nota na prancheta.
– Pode voltar a descer.
É o que faço. Volto para o sofá e sento-me. O Jeff sorri-me – há pouco
calor no seu sorriso, é mais um sorriso de alguém que não está para
brincadeiras.
– Vamos lá trabalhar.
79.
– Nem acredito que pensei que era Jesus – diz o Steven a rir, enquanto come
uma batata frita.
Estamos sentados frente a frente a uma mesa na Laurel Tavern, um bar em
Studio City. Eu beberico um mezcal mule e absorvo o que o Steven me diz
da mesma forma que absorvia o que dizia a minha mãe depois de todos
encontros com a morte a que ela sobreviveu. É uma forma pura de absorver
o que diz alguém. É um espanto agradecido. Esta pessoa está aqui. Esta
pessoa ainda está aqui.
Pensei que a estadia do Steven na ala psiquiátrica seria a última notícia
que teria dele. Mas, assim que voltou a ter acesso ao telemóvel, ligou-me.
Chorámos os dois. Ele estava mais parecido com o habitual, mais ou menos.
O tom dele estava mais letárgico, com um torpor que não costumava ter.
Disse-me que era por causa do lítio que andava a tomar e que, com o tempo,
havia de voltar a como era antes do diagnóstico. Eu queria
desesperadamente que assim fosse.
E agora, sentada em frente dele, dois meses mais tarde, começo a achar
que é possível. Estamos outra vez a viver juntos, e ele parece andar bem.
Anda ativamente a ver um terapeuta e um psiquiatra. Está medicamentado.
O voto de castidade acabou e o sexo entre nós é bestial. Ele faz pouco do
seu episódio esquizofrénico, da forma como fazemos pouco de uma coisa
que pertence verdadeiramente ao passado.
– Também nem acredito – concordo eu.
O Steven pega nas minhas mãos, do outro lado da mesa. Os dedos dele
estão gordurosos por causa das batatas fritas. Não me importo.
– Deve ter sido tão assustador – diz ele.
– E foi.
– Desculpa não ter estado lá para te apoiar.
– Tudo bem. Eu também não pude estar lá para ti, a bem dizer. Com tudo
o que estava a acontecer.
– Eu sei. Mas agora estamos os dois a tratar das nossas cenas. Vamos ser
capazes de nos apoiar um ao outro. Vai ser tão bom.
Eu aceno que sim. Acredito nele.
80.
Estou a olhar para o prato de esparguete diante de mim. Estou a olhar para
ele há pelo menos dez minutos, enquanto digiro todos os pensamentos e
emoções que me surgem antes de o comer.
Pego no meu lápis e começo a preencher a minha ficha de trabalho.
Pensamentos: quero este esparguete, mas não quero este esparguete.
Aterra-me pensar que isto me vai engordar. Não me quero sentir atolada.
Não quero sentir-me pesada. Estou farta de me sentir tão pesada. Tenho
medo de comer. Não quero vomitar isto.
Sentimentos: Pavor – 8/10. Ansiedade – 8/10. Medo – 7/10. Luxúria –
6/10.
Respiro fundo e como uma dentada. Mais pensamentos. Mais
sentimentos. Sempre mais pensamentos e mais sentimentos. É extenuante,
pensamentos e sentimentos constantes. Volto à minha ficha de trabalho e
começo a tomar nota.
Pensamentos que surgem enquanto como: a Mãe dizia sempre que o sódio
me fazia a cara inchada. Tenho medo de que a minha cara esteja inchada
amanhã. A Mãe ficaria zangada se me visse comer isto. A Mãe ficaria
desiludida. Sou um fracasso.
Sentimentos: Tristeza – 8/10. Desilusão – 8/10.
Começo a chorar. Pouso o lápis e deixo as lágrimas tombar, como o Jeff
me disse para fazer.
Por esta altura, já ando a ver o Jeff há três meses, e o progresso é lento,
mas constante. Fizemos tantos progressos que se vai tornando difícil de
contabilizar.
Este trabalho começou comigo a deitar fora todas as comidas de dieta (os
congelados da Lean Cuisine, o sumo de arandos de dieta, os chás de dieta,
etc.), bem como todas as roupas de ginástica. Nada de exercício durante esta
fase da reabilitação. Alongamentos e caminhadas razoáveis, tudo bem, mas
acabaram-se as meias-maratonas. Todos os indicadores de dieta têm de
acabar.
Depois, mandaram-me anotar as vezes em que comia compulsivamente e
vomitava ao longo de duas semanas, bem como tudo o que comia e a que
horas. Tomar nota das vezes que vomitava até fazia sentido para mim, é
uma coisa que a Laura também me pedia, pelo que já estava à espera, mas
tomar nota da comida consumida deixou-me baralhada. Tomar nota da
comida não faz parte dos distúrbios alimentares? Não é um hábito
compulsivo e pouco saudável?
– Sim, controlar tudo o que come será um comportamento que
quereremos largar com o tempo. Na verdade, a certa altura, terei de
contabilizar quantas vezes a Jennette anota o que come, para podermos
trabalhar para que esse número desça ao zero.
– Portanto, tomar nota… das notas que tomo.
Um risinho ligeiro. Um fim abrupto.
– Está correto.
– Muito bem. Então, porque estou eu a anotar a comida, se devo trabalhar
para deixar de a anotar?
– Tenho de ter uma noção dos seus comportamentos em relação à comida.
Saber o que entra no seu corpo e quando vai ajudar-me a perceber isso.
Passadas duas semanas a anotar tudo, o Jeff lê as minhas fichas de
trabalho enquanto cofia a barba.
– Huum. Sim. Interessante. Hum. Sim.
O quê? O quê, Jeff? O quê?
– Que interessante…
– O que é interessante? – pergunto finalmente, quando já não me
contenho.
– Então, salta o pequeno-almoço quase todas as manhãs e, depois, almoça
tarde, pelas duas e meia ou três da tarde. Mas não é bem um almoço. Não é
uma refeição completa. Vejo aqui oito garfadas de salmão na terça… é
muito específico… uma barra de proteína na quarta, dois ovos na quinta.
Porque vomitou os ovos?
Encolho os ombros.
– Lá chegaremos. Portanto, anda a comer estes almoços muito tardios e
incompletos e, pelas oito da noite, dir-se-ia que janta, um jantar que também
é incompleto todas as noites. Então, quando as coisas começam a agitar-se,
lá pelas onze da noite, faz o que descreve como “enfardar”. Um prato
inteiro de Pad Thai com arroz frito, mais um burrito do Del Taco. E depois
dir-se-ia que vomita o que quer que coma a essa hora, todas as noites.
Sim, eu sei, Jeff. Fui eu que escrevi a lista.
– Isso – digo eu, a fingir que estou a ouvir uma novidade.
– Então, o problema é este, Jennette. Anda a passar fome durante a
primeira parte do dia. Não toma o pequeno-almoço, come almoços e
jantares tardios e incompletos, por isso, fica tão esfomeada às onze da noite,
e come porque o seu corpo está a suplicar-lhe que o faça. E a comida que
escolhe ingerir a esta hora faz todo o sentido. Está tão esfomeada, que quer
qualquer coisa consistente, que a sacie. Mas depois, claro, por causa dos
seus juízos em relação a essas comidas e por causa dos seus pensamentos
destrutivos profundamente entranhados, vomita tudo. E depois repete o
ciclo no dia seguinte.
– Até foi uma boa semana, francamente – explico eu. – Acho que é
porque quero “portar-me bem” na terapia ou coisa assim.
– Faz sentido – garante-me o Jeff. – Não é preciso analisar demasiado.
Continue assim. Um passo em frente.
Ele acena delicadamente com a cabeça, depois baixa o queixo e olha para
mim com determinação.
– Mas acho que podemos fazer mais.
Eu acredito nele. Ele tem tanta certeza. E um homem sem hums não tem
certezas assim por dá cá aquela palha. Um homem sem hums tem a certeza
das coisas de que tem a certeza.
– Eis o que faremos. Vamos normalizar a forma como come. Três
refeições completas por dia e dois lanches, a horas determinadas. Sem
negociações. Antes de começarmos o processo de normalização da forma
como come, temos de identificar os seus alimentos de risco. Alimentos de
risco são comidas sobre as quais tem mais opiniões, são as comidas que a
fazem sentir-se mais compelida a vomitar.
Não é preciso dizer duas vezes. Começo a debitar uma lista.
– Bolos, tartes, gelado, sanduíches, batatas fritas, pão, queijo, manteiga,
chips, bolachas, massa…
– Ótimo, ótimo – diz o Jeff, enquanto toma notas rigorosas, mas recusa-se
a pedir-me para abrandar. É o vencedor nele, sei ver. A caneta voa. Ele está
a correr para a medalha de ouro. Acaba o “a” de “massa” e levanta os olhos
para mim.
– Então, um dos nossos objetivos últimos, aqui na terapia, é reduzir os
preconceitos à volta da comida. Todos os preconceitos. Queremos que
neutralize a comida. É só uma coisa que se ingere, nem boa nem má. Seja
ananás ou panquecas, não importa.
– Esses dois parecem-me maus, porque têm ambos muito açúcar.
O Jeff pisca os olhos uma vez.
– Certo, portanto, é nisso que trabalharemos.
– Está bem.
– E vou avisá-la, Jennette, normalizar os seus padrões alimentares e
neutralizar mentalmente a comida não será fácil. Nada fácil. Vai ser um
processo emocionalmente duro. Os seus hábitos alimentares foram, durante
muito tempo, tão… completamente fodidos.
Não esperava esse palavrão, Jeff, mas aprecio o fervor.
– Vai ser intenso. Mas vou ajudá-la a ultrapassar isto.
***
Estou aqui sentada com as minhas lágrimas salgadas a cair no meu prato de
esparguete, a aguar o molho marinara. O Jeff tinha razão. Normalizar a
forma como como e neutralizar a comida é uma tarefa emocionalmente
dura.
O choro adensa-se a ponto de o meu peito começar a arfar. Fico zangada
comigo por estar a chorar. Faz-me sentir dramática. Descontrolada.
As lágrimas caem na minha ficha de trabalho e borram a tinta. Foda-se!
Tento soprar na mancha molhada para a secar, mas cai-me ranho do nariz
em cima da página, tornando as coisas piores. Amasso a folha numa bola e
atiro-a para o outro lado da sala, na direção do caixote do lixo. Não cai nem
lá perto. Deus do Céu!
Que se foda. Levanto-me, corro para a casa de banho e vomito.
81.
– Os deslizes são perfeitamente normais. Quando tem um deslize, não passa
disso, de um deslize. Não a define. Não a transforma num fracasso. A coisa
mais importante é não deixar que esse deslize se transforme num
descarrilamento – diz-me o Jeff. Depois, estende-me um pacote intitulado
Não deixe que os deslizes se transformem em descarrilamentos. (Tenho a
sensação de que ele ensaiou este momento. “Diz-lhes e, depois passa-lhes o
pacote. Sim, isso vai funcionar.”)
Estes pacotes são uma ocorrência semanal com o Jeff. No fim de cada
sessão, ele dá-me um novo. Geralmente, incluem um artigo, talvez um
questionário ou dois, e umas quantas fichas de trabalho. Os tópicos são
variados, entra tudo, desde Como estabelecer relações saudáveis (e
reavaliar as que já tem) a Construir uma identidade sem o seu distúrbio
alimentar ou O que é cuidar de si, na verdade?
Gosto de trabalhar com estes pacotes. Gosto de ser capaz de me explicar
no papel. Simplifica as coisas para mim. Quando está tudo na minha cabeça,
parece caótico e baralhado. Mas quando posso olhar para uma folha de
papel e ver-me refletida nas palavras, nas contagens e nos gráficos, fica tudo
esclarecido.
O pacote reitera sempre o tema da sessão, portanto, sei que a sessão de
hoje será sobre os deslizes.
– Jennette, esta será uma das partes mais importantes da reabilitação.
Aceitar os deslizes e seguir em frente.
Aceno que sim com a cabeça.
– As pessoas propensas a distúrbios alimentares tendem a ser o tipo de
pessoas que ficam muito presas aos seus erros e têm dificuldades em
libertar-se e seguir em frente. Perfeccionistas. Parece-lhe familiar?
– Sim… – (O rótulo é um pouco irritante, mas parece-me familiar.)
– O problema com isto é que, se nos martirizarmos depois de cada
asneira, vamos aumentar a vergonha, a culpa e a frustração que já sentimos
sobre o nosso erro. Essa culpa e frustração podem ser úteis para nos fazer
avançar, mas a vergonha… A vergonha faz-nos encalhar. É uma emoção
paralisante. Quando ficamos presos numa espiral de vergonha, tendemos a
fazer mais erros da mesma espécie que causou essa vergonha, para começar.
Aceno que sim, estou a acompanhar.
– Então, os deslizes transformam-se em descarrilamentos.
O Jeff aponta para mim cheio de orgulho.
– Bingo!
Não precisava deste “bingo”, mas a ideia toca-me de uma forma profunda
e com muita força. Percebo agora como as espirais de vergonha
contribuíram para os meus problemas. Estou tão cansada de jurar vezes sem
conta que “desta vez acabou mesmo”. Talvez esta aceitação dos deslizes
seja a peça que falta. Talvez, quando tiver um deslize, possa reconhecer
como é dececionante e frustrante sem ser apanhada numa espiral de
vergonha. Sem deixar que essa espiral leve a novos deslizes, e a outros
deslizes depois desses, e outros ainda, até que se tornem um
descarrilamento. Talvez agora um deslize possa ser, como diz o Jeff, só isso.
Um deslize.
82.
Merda! Estou atrasada para uma reunião. Pego no meu saco e corro escadas
abaixo, quando o vejo ali sentado, a olhar pela janela e a torcer o cabelo
com o dedo indicador. E expressão dele é catatónica, como tem sido muitas
vezes ultimamente. Assusta-me quando o vejo assim. A primeira vez que
isto aconteceu, pensei que fosse porque ele estivesse numa dose demasiado
elevada de lítio. Mas a dose de lítio foi reajustada dúzias de vezes e a
catatonia não passou. Foi então que percebi que se tratava de outra coisa
qualquer.
– Então, rapaz – digo eu, a tentar soar o mais normal possível. – Como
vai isso?
Ele não parece ouvir-me.
– Steven?
Nada. Mordo o lábio.
– Hum. Tenho de ir a uma reunião. Queres vir comigo, para dar um
passeio? Podias dar uma volta enquanto eu lá estivesse. Não deve durar
mais do que uma hora.
Comecei a convidar o Steven a vir comigo sempre que tenho consultas,
trabalho ou reuniões. Temo que ele não saia de casa de outra forma.
O Steven parou completamente de trabalhar e parece contra a ideia de
alguma vez voltar a fazê-lo. Declara que “o trabalho é um desperdício de
vida”. Não tem passatempos e não está interessado em passar tempo com os
amigos. A única coisa que o Steven faz, hoje em dia, é fumar ganzas.
Acorda de manhã e fuma imediatamente… depois, fuma sem interrupção o
dia todo. Está pedrado a cada minuto em que está acordado. Tão pedrado.
Nunca vi ninguém tão pedrado. Pedrado até à catatonia.
Ao princípio, tudo bem. Parecia que o aliviava de toda a história do
diagnóstico de esquizofrenia e do lado insuportável disso tudo. Tentei dar-
lhe apoio. Até o ajudei a encontrar um dealer que lhe arranjasse a
quantidade que ele queria, que parecia ser grande.
Mas depois, passou a isto. E não é que eu não perceba isto. Percebo.
Percebo muito bem a necessidade de se anestesiar em relação a tudo na
vida. Mas eu já não me anestesio. E talvez seja esse o problema aqui, entre
nós, pelo menos. Estou a avançar a passos largos na minha reabilitação da
bulimia. Já não trato mal o meu corpo, pelo menos, nada comparado com o
que costumava fazer. Tento enfrentar-me a mim mesma todos os dias. Os
resultados podem variar, mas as tentativas são consistentes.
Quanto mais avanço na minha reabilitação, mais o Steven se entrega à sua
droga de eleição. E mais nos afastamos um do outro.
Há umas semanas, decidi que nos voltaria a aproximar, custasse o que
custasse. O Steven tentou ajudar-me com a bulimia, e eu tentaria ajudá-lo
com a sua dependência de marijuana.
Imprimi uma série de artigos sobre como deixar de fumar erva. Procurei
grupos de apoio. Sugeri que ele fosse ver um novo terapeuta, especialista
em toxicodependências. Programei atividades para nós, para andarmos por
aí e fosse menos provável que ele fumasse. Convidei-o para me acompanhar
a todos os sítios aonde ia, para o poder monitorizar. Propus-lhe uma série de
passatempos a que se poderia dedicar. Deitei fora a erva dele.
Nada funcionou. Não lê os artigos. Não vai aos grupos de apoio. Não vai
tentar um novo terapeuta e deixou até de ir às consultas com o atual. Não
quer um passatempo. Comprou mais erva.
Estou desesperada. Não tenho qualquer poder sobre ele. Mas amo-o. E
quero que estejamos juntos. Por isso, continuo a tentar.
– Então, queres vir? – pergunto outra vez.
– Oh, uh… naaah, Jenny. Vou ficar por aqui. Mas obrigado por me
convidares – diz ele, continuando a enrolar o cabelo no dedo.
83.
– Bob, ouviste o que ela disse? Ela gastou o dinheiro todo! – geme a Avó.
Depois, atira a cabeça para o ombro do Avô e chora um choro seco. A Avó
nunca foi de muitas lágrimas.
– Ela não disse nada disso, querida – garante-lhe o Avô, com mais
paciência do que eu consigo entender.
Estou sentada com os meus avós na sala de minha casa de Studio City.
Ainda tenho a Avó bloqueada, mas ela não deixa o Avô visitar-me se não
puder vir também. Acabei de lhes dar a notícia de que vou vender a minha
casa. A notícia não está a ser muito bem recebida.
– O que direi à Linda? E à Joanie? E à Louise? – grita a Avó, com os
braços a agitar-se de confusão.
– Acho que lhes podes contar a verdade e pronto – sugiro eu.
– Que a minha neta, que eu amo mais do que tudo neste planeta inteiro,
decidiu, do pé para a mão, sair da sua linda casa e mudar-se para um mísero
e minúsculo T1?
– Sim.
– Não!
– Vai correr tudo bem, querida – diz o Avô à Avó, dando-lhe uma
palmadinha na mão.
As áreas da minha vida que me causam stress são um tema de conversa
frequente na minha terapia com o Jeff. A minha casa foi referida vezes
suficientes para o Jeff me perguntar porque não a vendia.
– Bem, já há uns tempos que a quero vender, mas não sou capaz.
– Porquê? – pergunta o Jeff.
– Porque… não é inteligente.
– Como assim, não é inteligente?
– Porque uma casa é um bom investimento.
– Hum. Diga-me porque é que a sua casa é stressante.
– Bem, está sempre a cair aos bocados. Há sempre qualquer coisa a
precisar de conserto, há um empreiteiro que vem quase todos os dias. Não
tinha percebido que ser proprietária de uma casa seria mais um emprego,
um emprego que não me interessa e para o qual não tenho tempo.
– Mais alguma coisa?
– Parece-me desolada. E meio assustadora. É grande de mais para mim. E
não gosto da vizinhança. Alguém revelou a minha morada online e, por isso,
tenho uns quantos stalkers que aparecem de vez em quando e deixam
recados sinistros. Uma vez, um deles deixou-me um ramo de rosas a pingar
sangue…
– Isso são muitas coisas stressantes.
– Sim.
– Ainda assim, não vende porque é um bom investimento?
– Sim.
– O que a torna um bom investimento?
– Não sei bem. É uma coisa que ouvi, está a ver? Toda a gente diz que
uma casa é um bom investimento.
– Um bom investimento para uma pessoa pode ser um mau investimento
para outra.
– Está bem.
– E em que fica o seu investimento na sua saúde mental? Sentir-se segura
é importante para a sua saúde mental, e referiu que não se sente segura.
– Não sinto, mas… Não sei. Não me parece que possa vendê-la.
O Jeff fita-me sem pestanejar.
– Podia comprar umas plantas – sugiro, a encolher os ombros. É
impressionante a quantidade de vezes em que pensei que comprar plantas
podia fazer a diferença na minha vida.
– Mais alguma ideia? – pergunta o Jeff.
– Podia ir de férias mais vezes.
– Mas isso não afeta diretamente o seu ambiente principal, a sua casa.
Que é o ambiente principal que influencia a sua saúde mental. Porque não
nos concentramos na casa?
– Mas sem plantas?
– É mais do que plantas – assegura-me o Jeff.
– Podia… contratar um decorador de interiores.
– Está bem, mas em que reduziria isso o seu stress?
– Bem, a casa parece meio vazia. E é como faz sentir. Faz-me sentir
sozinha.
– E uns tapetes vão melhorar isso?
– É possível – digo eu, com um pouco de atrevimento. Não gosto muito
do tom moralista dessa pergunta, Jeff.
– Muito bem – responde o Jeff simplesmente. – Então, porque não
começamos por aí?
Chego a casa e ligo ao meu agente imobiliário para lhe perguntar se
conhece algum decorador de interiores competente. Ele diz que conhece a
pessoa perfeita.
***
A Liz aparece em minha casa com um top preto esvoaçante e umas leggings
com um estampado de leopardo. Eu devia ter percebido logo. A Shania
Twain é a única pessoa à face da terra a quem devia ser permitido
aproximar-se de um estampado de leopardo.
– Então, como descreve o seu estilo para uma casa? – pergunta a Liz,
sentando-se à mesa de jantar. Espeta a sua enorme mala em cima do tampo
e começa a tirar lá de dentro bocados de tecido, dossiers de materiais e
revistas grossas sobre casas.
– Huum… – Olho em volta do quarto vazio. – Não faço ideia. Estava a
pensar que aceitaria o que quer que me propusesse.
– Ooooh, fantástico! – diz a Liz toda entusiasmada. – Tenho imensas
ideias. Acho que a principal é… glamour chic, com pormenores de
estampados de animais a realçar.
Faço o que posso para evitar olhar para as leggings dela.
– Não sou grande fã dos estampados de animais.
– Oh – diz ela, ligeiramente ofendida. – Bem, seriam só uns realces
subtis. Podíamos usar um pouco de um padrão de leopardo, ou um padrão
de vaca, ou de zebra, que está muito na moda.
Porque me queres impingir zebras, Liz? Não quero um estampado de
zebra nas minhas almofadas, cobertores ou cortinas. Se há coisa que nunca
percebi é porque é que temos de tentar fazer almofadas, cobertores e
cortinas “divertidos” com estampados. Estas coisas não são divertidas, são
funcionais. Dêem-me umas cores uniformes e simples, móveis a condizer e
está a andar.
– Não é preciso – digo eu, tão delicadamente quanto consigo. – Só quero
coisas simples. Não tenho olho para isto, mas sei que quero coisas simples.
– Mas é tão nova! E divertida! Não quer que o seu espaço reflita isso?
Não.
– Hum…
– E se experimentássemos? E se começássemos com este plano e depois,
tudo o que não gostar, eu posso devolver, exceto as coisas não
reembolsáveis.
Ser-se lorpa já é mau, ser-se lorpa e obstinada é do piorio. Uma pessoa
lorpa é simpática e alinha com tudo, o que quer que seja. Uma lorpa
obstinada finge-se simpática e alinha com tudo, enquanto faz uma birra
silenciosa, toda ressentida. Eu sou uma lorpa obstinada.
– Está bem – digo eu bem-educadamente, começando uma birra
silenciosa.
Três dias depois, aparecem-me à porta umas cortinas com um padrão de
leopardo em tons de menta e um recibo: 14 742 dólares. A Liz está
claramente habituada a trabalhar com clientes que não se importam de
esbanjar 15 mil mocas para tapar o sol, mas eu não sou uma delas.
Para além do estampado e do preço, começo a aceitar que não importa
que género de cortinas ou almofadas tenha, não serão elas a compensar as
obras constantes, a solidão e os stalkers com rosas sangrentas. Não posso
viver nesta casa.
Ligo à Liz para lhe dizer que não vou precisar mais dos serviços dela.
– Bem, fico desiludida – diz-me ela. – Mas percebo perfeitamente e
desejo-lhe muito boa sorte a decorar a sua casa.
– Obrigada, mas vou vendê-la, na verdade.
– Oh?
– Pois.
– Está bem…
– Pois. Bem, seja como for… diga-me onde quer que deixe as cortinas de
leopardo, para que as possa devolver.
– Oh, essas não são reembolsáveis.
***
Agora, uns dias depois, tento chamar a Avó à razão.
– Não percebo porque é que eu vender esta casa te afeta tanto.
– Porque sim! – grita a Avó.
Esqueço-me sempre de que tentar chamar à razão quem não é razoável
não é… razoável.
– Isto é o que é melhor para mim. E agradecia que apoiasses a minha
decisão.
– Pois, mas não apoio. Não apoio e pronto!
A Avó enterra a cabeça no sovaco do Avô.
– Tudo bem, querida. Vai correr tudo bem – diz-lhe o Avô.
– E para onde te vais mudar, meu amor? – pergunta a Avó com uma
fungadela.
– Vou mudar-me para um apartamento por cima do The Americana.
– The Americana? – A Avó vira-se para me encarar, sem fungar. – Aquele
centro comercial todo fino, com uma fonte no meio e música do Frank
Sinatra?
– Esse mesmo.
Ela hesita.
– Suponho que não seja assim tão mau. Eles têm lá uma loja da Ann
Taylor Loft…
84.
– Isto parece muito desesperado? – pergunto ao Colton e à Miranda. Eles
estão a ajudar-me a escolher a roupa que vou levar para o grande
acontecimento.
– Eu tirava a saia. É um pouco… de mais – diz-me o Colton.
Agradeço a honestidade dele e pego numas jeans.
– Está melhor – acena ele.
– E se ele não gostar de mim? – grito-lhes eu, enquanto me dirijo à casa
de banho para trocar de roupa.
– Ele vai gostar de ti – grita a Miranda, para me descansar.
Eu tremo toda. Estou muito mais nervosa do que alguma vez estive num
primeiro encontro. Talvez seja porque haja mais em jogo. Isto não é só um
primeiro encontro. É o meu primeiro encontro com o meu pai biológico.
Seguimos pela 405 no Porsche da Miranda, rumo a Newport Beach, ao
hotel onde o concerto terá lugar.
– Então, o teu pai-bio toca trompete? – pergunta o Colton quando nos
aproximamos do destino.
– Trombone – corrijo eu.
– Vai dar ao mesmo – diz o Colton com um encolher de ombros.
Sei que ele está a tentar fazer conversa porque o ambiente se está a tornar
mais pesado quanto mais nos aproximamos do hotel. E com razão! Vou
aparecer de surpresa no concerto de jazz do meu pai biológico, que nem sei
bem se sabe que eu existo.
Ainda que eu não tenha conseguido saber muito sobre esta situação
através do Pai-Mark, consegui sacar-lhe o nome completo e a profissão do
pai-bio, o que me chegou para uma pesquisa rápida online, que me levou à
página oficial dele. Ele tinha uma lista de créditos de participação em
bandas sonoras (vários filmes da Guerra das Estrelas, Mundo Jurássico,
Lost, entre inúmeras outras), e uma lista de datas de concerto próximas com
seu projeto do coração, onde toca por prazer, uma banda de jazz. Escolhi
aparecer na última data em LA, porque queria o máximo de tempo possível
para me preparar emocionalmente.
E agora, cá estou, a minutos de distância deste concerto a que decidi vir
há meses e ainda não me sinto emocionalmente preparada.
Saberá o Andrew que é meu pai? Saberá ele que é o pai do Dustin e do
Scott? Andava ele por perto quando eu era pequena? Quando é que ele e a
Mãe se afastaram? Continuou ele em contacto com ela? Saberá ele que ela
morreu? Será que tem uma família? Saberão eles desta história?
São muitas as perguntas que tenho para fazer e o leque de possibilidades
das respostas transtorna-me. Considerei a hipótese de ele ter uma família, de
os filhos dele estarem neste espetáculo e de que possam não saber. E não
quero ser eu a introduzir esta novidade na vida deles. Portanto, decidi que o
abordaria no fim do concerto, assim que ele descesse do palco, e só se ele
estivesse sozinho.
Também considerei a hipótese de que ele negue tudo. Talvez ele diga
“vai-te foder”. Talvez ele não saiba. Não faço ideia do que me espera.
A Miranda encosta ao pé do valet e saltamos todos do carro. O Colton dá-
me o braço para me reconfortar – a Miranda, não. Há muitas amizades
femininas que parecem muito enraizadas no contacto físico, em dar as
mãos, em abraços constantes, em tocar no cabelo, seja no que for. A
Miranda e eu temos uma amizade que não é totalmente desprovida de
contacto físico, mas quase. Os abraços entre nós são raros, e isso parece-me
bem.
Avançamos pelos corredores do hotel, e eu paro numa das casas de banho
para fazer chichi. A Miranda vem comigo, acho que para garantir que não
vou vomitar. Ela nunca mo disse diretamente, mas eu reparo. Ela não vem
sempre comigo. Não é das óbvias.
Geralmente, sentir-me-ia ansiosa, da forma como me sentia quando o
Steven me tentava intercetar quando ia vomitar. Mas não desta vez, porque,
desta vez, nem tenciono fazê-lo. Não há nada para vomitar no meu corpo.
Senti-me enjoada o dia todo e incapaz de comer. Tomei uma nota mental
para abordar isto na terapia amanhã, mas, por hoje, só quero sobreviver a
isto.
Passo muito tempo a lavar as mãos, na esperança de que isso acabe com
os suores. Ponho mais rímel e retoco o blush. Porque me importo tanto com
o meu aspeto para ir ver o meu pai-bio? Reparei nisso o dia todo. Enfio
outra vez o rímel na carteira e atravessamos o hotel, saindo para o pátio,
onde decorre a atuação. Odeio o termo “atuação”, mas quase de certeza que
é o termo adequado para isto.
O Colton, a Miranda e eu sentamo-nos numa mesa perto do fundo, uns
minutos antes de começar o espetáculo. O público é quase todo pessoal nos
seus quarenta e cinquenta anos, com ar rico. Muito Gucci.
– O que traz aqui estes meninos? – pergunta a mulher sentada ao meu
lado, enfrascada em vinho e coberta de pérolas.
Penso dizer: “Bem, o meu pai biológico, que eu nunca conheci, toca
trombone nesta banda, por isso vou abordá-lo depois do concerto para tentar
encontrar respostas para o caos disfuncional da minha infância”, mas não o
faço.
– Gostamos de jazz, é tudo –diz o Colton, depois de perceber que, da
minha parte, não vem mais nada senão um olhar vazio.
– Oh, isso é bom. Precisamos de mais jovens como vocês. Com cultura.
De que bandas de jazz gostam?
– Gostamos de todas. Tipo… de todas – diz o Colton, a acenar com a
cabeça.
– Ótimo, ótimo – responde a Pérolas com um sorriso, parecendo satisfeita
com esta não-resposta. – Ooh, cá estão eles!
A Pérolas bate palmas em êxtase, e nós os três viramo-nos para ver a
banda subir ao palco. Eu foco-me no meu pai, que carrega o seu trombone.
Não posso dizer que veja uma parecença. Talvez esteja sentada demasiado
atrás. Ou talvez os genes da Mãe fossem mais fortes.
A banda começa a tocar. O Colton dá-me a mão umas quantas vezes. A
Miranda observa-me do canto do olho. Eu sinto que estou num transe
durante toda a atuação.
Uma hora depois, o saxofonista anuncia que vão tocar a última canção. A
minha boca seca. As minhas mãos estão encharcadas em suor. O meu
coração está aos saltos.
– Muito bem, vamos lá – diz o Colton, pegando-me na mão. Levantamo-
nos os três da mesa e dirigimo-nos à saída do palco.
– Aonde vão vocês?
Agora não, Pérolas.
A canção final aproxima-se dos compassos finais e ainda nem estamos
perto da saída do palco. Aceleramos o passo.
– Não podem entrar aí – diz-nos um segurança.
– Desculpe, ela tem de fazer uma coisa num instante – diz o Colton com a
confiança de alguém que está a fornecer uma informação legítima.
O segurança fica suficientemente confuso para me deixar passar. Eu olho
para cima e vejo-o a atravessar o palco – o meu pai biológico.
– Despacha-te! – diz a Miranda.
Eu corro os últimos trinta metros ou coisa que o valha até chegar a ele, no
momento exato em que ele desce os degraus do palco. Ele pressente-me.
Trocamos olhares. Ele parece baralhado, talvez um pouco alarmado.
– Acho que temos uma coisa em comum – é o que me sai da boca.
Os olhos dele enchem-se de lágrimas. Os meus também.
Os dez minutos seguintes parecem-me uma névoa confusa de troca de
informações. Eu pergunto-lhe se ele sabia de mim, que eu existia. Ele diz
que sim. E dos meus irmãos. Ele diz que esperava que nós o
contactássemos, porque não tinha a certeza de sabermos. Ele pergunta como
descobri. Eu conto-lhe. Ele diz que as coisas acabaram mal com a Mãe e
que houve uma enorme batalha pela nossa custódia quando éramos
pequenos; que a Mãe tinha dito que ele a maltratara fisicamente (ele
garante-me que não foi o caso). Ela ganhou. Pergunto-lhe se ele sabia que a
Mãe tinha morrido. Ele diz que sim, que viu na E! News. Penso em como
essa frase é estranha.
O pessoal técnico começa a dizer-nos que temos de sair dali. O pai-bio
dá-me o seu número de telefone e diz-me para lhe enviar uma mensagem.
Abraçamo-nos e despedimo-nos. A Miranda e o Colton vêm ter comigo.
Estou a sentir muitas emoções e consigo identificar quais são. Parece-me
um progresso.
Estou feliz por ele saber que existimos. Estou aliviada por este encontro
ter passado. Estou desiludida com a sua brevidade. Estou baralhada e triste
por ele não ter tentado falar comigo primeiro. Nunca saberei de certeza se
ele me queria conhecer, ou se só o disse por ser isso que é suposto dizer-se.
Quanto a primeiros encontros, este foi certamente o mais interessante que
já tive. Não sei bem se haverá um segundo.
85.
É fria e pesa-me nas mãos. Avanço com ela lentamente, porque estou a
empatar. Já me vi livre dela antes, umas sete ou oito vezes. Mas, de cada
vez, saio a correr no dia seguinte e trago uma nova. Até agora, ainda não
conseguir aguentar vinte e quatro horas sem arranjar uma nova, mas tenho
esperança de que, desta vez, seja diferente. Talvez desta vez seja capaz de
me ver livre dela para sempre, já que estou a transformar isto numa ocasião
mais formal, porque deitá-la fora é o meu presente para mim mesma pelo
meu vigésimo quarto aniversário.
A minha balança definiu-me durante tanto tempo. O número que me
mostrava dizia-me se estava a ter sucesso ou a falhar, se estava a esforçar-
me o suficiente ou não, se estava bem ou mal. Sei que não é saudável ter
deixado que esta coisa tivesse tanta autoridade na minha autoestima, mas,
por mais que tenha tentado lutar contra isso, de certa forma, assim até foi
mais fácil. Definirmo-nos a nós mesmos é difícil. Complicado. Confuso.
Deixar o número indicado por uma balança fazer isso por nós é simples.
Direto. Fácil.
Peso quarenta e três quilos. Ou quarenta e sete e meio. Ou cinquenta e
dois. Ou cinquenta e seis e meio. O que quer que diga a balança, eu sou isso
e só isso. É quem sou.
Ou melhor, quem era. Já não quero que esse número seja a totalidade de
quem sou. Que me defina. Estou pronta para experimentar a vida para lá da
balança.
Soa ridículo, “a vida para lá da balança”. É tão dramático, mas,
infelizmente, verdadeiro para mim. Tenho vergonha de que seja esta a
minha realidade. Talvez seja coisa boa. Talvez isso de ter vergonha reflita
um crescimento.
Entro na divisão do lixo e abro a conduta. Deito a balança na conduta.
Ouço a balança descer pelo cano, batendo nos lados à medida que vai
caindo. A balança aterra. Eu vou-me embora.
O dia seguinte chega e passa. Ainda não arranjei uma balança nova.
86.
Estamos sentados num barco a pedais, em forma de cisne, no lago de Echo
Park. Um barco em forma de cisne medonho. Nenhum de nós disse uma
palavra nos últimos cinco minutos, que parecem muito mais do que cinco
minutos quando se está sentado na porra de um barco em forma de cisne.
Fito o Steven. Ele não sente o meu olhar fixo. Olha para longe, meio
melancólico, meio deprimido. Ele anda tão contemplativo, nos dias que
correm, mas de uma forma que não leva a lado nenhum. Daquela forma que
faz rodar as engrenagens, e onde os pensamentos continuam a girar em
círculos, mas não há qualquer movimento para a frente.
Tentei, durante tanto tempo, ajudar o Steven. Ou controlá-lo. Não sei bem
qual das duas coisas, já que são tão próximas. Mas, há uns meses, desisti.
Começou com o Jeff a dar-me uns materiais para ler sobre a
codependência. Tudo o que li me pareceu um pouco familiar demais e
forçou-me a aceitar que o Steven e eu estávamos numa relação
profundamente codependente. O Jeff sugeriu que eu devia concentrar-me
em tentar resolver os meus próprios problemas.
– Mas eu estou aqui. Estou a tentar resolver os meus problemas.
– E está a sair-se lindamente – acenou o Jeff, afirmativamente. – Mas eu
tenho um pressentimento de que a Jennette faria ainda mais progressos se
usasse toda essa energia que anda a gastar a tentar gerir a vida do Steven,
em vez de a canalizar para gerir a sua.
A mudança deu-se rapidamente. Por sugestão do Jeff, acrescentei a terapia
de grupo ao meu regime semanal de melhoramento pessoal. Li mais livros
sobre como ultrapassar distúrbios alimentares. Quanto mais tempo passava
concentrada nos meus problemas, menos tempo tinha para me concentrar
nos do Steven. E quando menos me eu me concentrava nos do Steven, mais
nos íamos afastando.
Tem sido triste reconhecer até que ponto remendar as coisas tem sido a
espinha dorsal da nossa relação. Ora era o Steven a tentar reparar a minha
bulimia, ou eu a tentar reparar a dependência dele da marijuana ou a tentar
convencê-lo a encontrar o cocktail medicamentoso adequado; tem sido essa
a cola da nossa relação. Sem esse aspeto de nos consertarmos um ao outro,
não temos muitos temas de conversa. Como agora.
– Steven – digo eu, por fim. Isso tira-o do seu transe. Ele olha para mim.
Eu não tenho de dizer uma só palavra. Ele sabe o que aí vem. Começa a
chorar. Eu choro também. Choramos e abraçamo-nos, enquanto pedalamos
neste maldito barco-pássaro gigante.
87.
– Jennette, tenho a equipa inteira para ti – diz-me ao telefone um assistente
do meu agente.
Sempre que “a equipa inteira” está numa chamada, é por uma de duas
coisas: notícias muito boas ou notícias muito más. “A equipa inteira” só se
junta numa chamada para comemorar ou dar a mão, não há meio termo. Um
a um, os elementos “da equipa inteira” entram na teleconferência. Espero
para descobrir que tipo de notícias trazem.
– Estão todos? – pergunta uma voz.
– Sim, estamos todos – diz outra voz.
– Então, Jennette…
Más notícias. Uma pausa significa sempre más notícias.
– … a tua série na Netflix foi cancelada.
Silêncio. Pode parecer más notícias nas cabeças dos meus agentes, mas
não me parece mau. Até parece... porreiro.
– Está bem.
– Está bem? – pergunta uma das vozes, confusa.
– Está bem – repito eu. – Obrigada por me avisarem.
– Está bem – diz outra voz, que parece aliviada. – Bom, muito bem,
então. Hum, sim, pois… a boa notícia é que podemos começar a apresentar-
te para outros papéis, já que não estás reservada pela Netflix.
– Na verdade…
Uma pausa tensa, enquanto eles esperam todos para ouvir o que aí vem.
Quase sinto os medos deles através do telefone. Ela vai desatar a chorar?
Por favor, não deixem a atriz chorar. Deus nos acuda!
– Na verdade, ando a pensar nisto há algum tempo, já que estávamos à
espera de saber se a série tinha sido escolhida para uma terceira temporada.
E decidi que, se fôssemos escolhidos, eu fá-lo-ia. Mas que, se não fôssemos,
faria uma pausa no trabalho de atriz.
Silêncio.
– Oh – solta por fim uma voz. – Muito bem, então… hum… hum. Tens a
certeza?
– Sim, tenho a certeza.
– Assim, a certeza absoluta? – pergunta um deles.
– Sim, absoluta e a dobrar.
– Muito bem. Então… diz-nos, se mudares de ideias. Gostaríamos muito
de continuar a propor-te para papéis.
– Eu digo-vos.
Trocam-se uns quantos adeuses estranhos e a chamada acaba. É tão
simples quanto isso. Uma carreira de dezoito anos acabada numa chamada
de dois minutos.
Sinto-me em paz com a decisão. Finalmente! A princípio, não sentia.
Levei mais de um ano a matutar e a discutir com o Jeff para poder chegar
aqui. Já sei há muito tempo que a minha relação com a carreira de atriz é
complicada. Não é muito diferente da minha relação com a comida e com o
meu corpo.
Ambas me parecem estar constantemente a empurrar, a ansiar, a suplicar,
a lutar. Tento desesperadamente obter a aprovação delas, o seu afeto, e
nunca pareço conseguir. Nunca sou boa que chegue.
Estou ressentida com esta luta, deixa-me exausta.
Comecei finalmente a tomar o controlo da minha relação com a comida e,
quanto mais saudável se torna esta relação, mais insalubre me parece a
carreira de atriz. Percebo que muitos aspetos de qualquer profissão escapem
ao controlo da pessoa que os executa, mas, no mundo do espetáculo, isso
acontece de forma muito evidente.
Um ator não pode controlar os agentes que quer que o representem, os
papéis para os quais o agente o candidata, as audições que consegue, as
vezes que volta a ser chamado, os papéis que lhe atribuem, as falas de cada
papel, o visual para o papel, a forma como o realizador dirige a
representação, como o montador monta essa atuação, se a série vai ser
escolhida ou se o filme se sai bem, se os críticos gostam do desempenho, se
se torna famoso, como os média o retratarão e assim por diante. Deus
abençoe as almas capazes de tolerar tanta incerteza na sua vida, mas eu não
aguento mais.
Uma parte tão grande da minha vida pareceu-me tão fora do meu controlo
durante tanto tempo. E já estou farta de que seja essa a minha realidade.
Quero a minha vida nas minhas mãos. Não nas mãos de um distúrbio
alimentar, de um diretor de casting, de um agente, ou da minha mãe. Nas
minhas.
88.
– Adoro – digo eu e não estou a mentir como quando fiz seis anos e abri o
meu pijama dos Rugrats. Adoro mesmo.
Tinha a mesma mochila há três anos e estava bastante surrada. Queixei-
me disso durante meses, mas não fui capaz de encontrar uma substituta
decente. Mas a Miranda encontrou. Ela encontrou uma linda mochila Tumi
preta com pormenores dourados. É perfeita.
A única coisa que bate os presentes da Miranda são os postais dela. Pego
neste e leio-o. A letra dela é meticulosa. As frases são delicadas e simples.
Ela inclui sempre uma ou duas piadas no sítio certo. E assina sempre os
postais para mim como “Alec Baldwin”. Já nem me lembro de como
começou esta brincadeira, mas ainda me faz rir sempre que a leio.
– Entramos já na Disneylândia ou jantamos primeiro? – pergunta a
Miranda.
É o meu vigésimo sexto aniversário. Ainda que o Avô já não trabalhe para
a Disney, como trabalhou lá durante quinze anos, tem direito a um
fornecimento vitalício e honorário de passes para entrar no parque e
descontos de empregado. Aproveitou o desconto dele para me conseguir
uma redução de quarenta por cento neste quarto com vista para o pátio em
que estamos alojadas, no Grand Californian Hotel. Obrigada, Avô.
– Vamos já para a Disneylândia.
Claro que escolho ir direta para a Disneylândia. E não é só por ser a
Disneylândia. Se alguma vez tiver escolha entre jantar e outra coisa
qualquer, escolherei sempre a outra coisa qualquer.
Já estou há alguns anos neste caminho de reabilitação do meu distúrbio
alimentar, mas a estrada ainda é atribulada. Há semanas em que não vomito.
Noutras, sim. Os critérios de diagnóstico da bulimia estipulam que tem de
haver pelo menos uma sequência de ingestão compulsiva e vómito uma vez
por semana, durante três meses. Portanto, ainda que eu às vezes exceda o
critério semanal, as vezes em que vomito são suficientemente inconsistentes
para que eu já não seja considerada bulímica, segundo o Jeff. Sou só “uma
pessoa que exibe, ocasionalmente, um comportamento bulímico”. O que
ainda não me soa assim tão bem.
Fico feliz que, pelo menos, quando tenho um deslize, esse deslize já não
se transforme num descarrilamento. Já é um enorme progresso, eu sei. Mas
estou sempre a dizer ao Jeff que não quero ser “uma pessoa que exibe,
ocasionalmente, um comportamento bulímico”. Quero ser melhor. Mais
resistente. Mais confiante na minha reabilitação. Quero sentir que
ultrapassei os meus distúrbios alimentares e que eles pertencem ao passado.
Até agora, ainda não cheguei aí.
A comida – a falta dela, a vontade dela, o desejo desenfreado por ela, o
medo dela – ainda requer muita da minha energia. Todas as menções, todas
as referências a uma refeição ainda desencadeiam um acesso de ansiedade
por todo o meu corpo.
É por isso que, se tiver escolha entre o jantar e outra coisa qualquer,
escolho sempre a outra coisa qualquer. Quero adiar o caos que gera uma
refeição pelo maior tempo possível.
Trago da mesa de cabeceira a minha cabeleira desgrenhada castanho-
avermelhada e os óculos de sol. Comecei a usar este disfarce quando vou a
qualquer lado para evitar ser reconhecida. A Miranda e eu entramos na
Disneylândia e subimos para a Space Mountain. Depois, andamos na
Matterhorn, já que fica perto, ainda que nenhuma de nós goste muito dessa
atração. Caminhamos até ao parque temático parceiro, o California
Adventure. Damos uma volta nos Guardians of the Galaxy e atravessamos o
prédio da Animation Academy, onde aprendemos a desenhar o Simba.
Estamos a dobrar os nossos desenhos quando o inevitável acontece. O meu
estômago ronca. Rimo-nos as duas e concordamos que é hora de jantar.
A Miranda sabe tudo sobre os meus problemas com a comida. Já o sabe
há algum tempo, desde uma fase inicial da minha reabilitação, quando me
foi sugerido que contasse a alguns amigos de confiança. Desde então, a
Miranda tem-me dado um grande apoio.
Agradeço o apoio dela, mas, por vezes, também dificulta. Antes de a
Miranda saber destas coisas, quando a bulimia era o meu segredo, eu podia
atravessar os altos e baixos sozinha. Eu era a única pessoa a quem tinha de
responder por isto, a única pessoa que ficaria desiludida. Mas agora que ela
sabe do segredo, vejo que está superconsciente das minhas tendências
alimentares. Está constantemente a observar-me. Não me estou a desiludir
só a mim com os meus deslizes, mas a ela também.
– Aonde queres ir? – pergunta a Miranda.
– Onde quer que não haja fila.
Só quero despachar esta coisa de comer, para me poder preparar para uma
investida das emoções e tentar bater a intensidade delas com força de
vontade, até que passem sem eu vomitar. Assim esperemos.
Descemos até Downtown Disney, o bairro de lojas contíguo aos parques
temáticos, e vamos ao Tortilla Joe, já que costuma ter a fila mais pequena.
Sentam-nos na mesa do canto e fazemos logo o pedido: nachos e guacamole
para dividir, a Miranda pede uns tacos, eu peço salmão com salada. Penso
sempre que, se pedir comida saudável, tenho mais hipóteses de não vomitar
a seguir. Há menos vergonha no salmão do que num hambúrguer, presumo.
Ou presumiria, se funcionasse sempre. Não é o caso.
Por esta altura, tenho tanta fome que não consigo parar de comer os
nachos com guacamole. Digo-me a mim mesma que é só um, só dois, só
quatro, só seis, mas não paro depois de comer só um, nem dois, nem quatro,
nem seis. Continuo a comer. Acho que estou a fazer passar um ar
descontraído, apesar do que me vai na cabeça.
É tão chato, este cérebro de distúrbio alimentar. Sempre que estou a
conversar com alguém à mesa, há outra conversa em curso internamente –
juízos, críticas, nojo de mim mesma, que se me impõem com uma
severidade enorme. São uma distração brutal. Nem posso estar presente
com quem quer que esteja. O meu foco está sempre mais na comida do que
na companhia.
Dizem-me que este discurso, este modo de pensar, este “cérebro de
distúrbio alimentar” se vai atenuar com o tempo. Veremos, suponho.
Chegam os pratos principais. Percebo pela forma como a Miranda olha
para mim que ela sabe que estou nervosa. Repito para mim mesma que
tenho de mastigar devagar, parecer calma, ter um comportamento normal.
Depois, peço licença e digo que tenho de ir fazer chichi.
Chego à casa de banho e espreito por baixo das portas para garantir que
todos os cubículos estão vazios. Comecei a fazer isto depois de uma visita à
Disneylândia, há três anos, quando desci do Jungle Cruise e fui direita aos
lavabos de Adventureland para vomitar o ensopado de marisco. Estava eu
em plena regurgitação, quando uma mãozinha surgiu por baixo do separador
do cubículo ao lado a pedir-me para assinar o seu livro de autógrafos
Mickey & Friends. Eu não podia, porque sou destra e, como tinha acabado
de vomitar, escorriam-me pelo braço bocados bolsados de ensopado de
marisco. Se esses bocados tocassem no caderninho de autógrafos, a
Pequena Bailey ficaria traumatizada para sempre.
Felizmente, desta vez os cubículos estão todos vazios. Tenho de ser
rápida, para ninguém me apanhar. Despacho-me para dentro do maior. Enfio
os dedos pela garganta e vomito repetidamente, até não sair mais nada.
Limpo o vomitado do braço com papel higiénico. Detesto o papel higiénico
das instalações da Disney porque é tão fino que se desfaz sempre com o
vomitado e eu tenho de esfregar as bolinhas de papel-higiénico-empapado-
em-vomitado do braço com mais papel higiénico demasiado fino, o que cria
mais bolinhas de papel-higiénico-empapado-em-vomitado e depois é
preciso esfregar mais, e assim por diante.
Estou debruçada sobre a retrete quando me lembro de uma coisa que o
Jeff me disse.
“Não queres ter quarenta e cinco anos, numa festa de Natal do escritório,
com três filhos e uma hipoteca, e esgueirar-te para a casa de banho para
vomitar a pasta de alcachofra”, disse ele.
Pronto, não tenho quarenta e cinco anos. E nem sequer gosto de pasta de
alcachofra. Mas hoje é o meu vigésimo sexto aniversário. Estou a ficar mais
velha.
Penso na Mãe. Não quero tornar-me como ela. Não quero viver à custa de
barras de granola da Chewy e legumes cozidos a vapor. Não quero passar a
vida com restrições e a dobrar o cantinho das páginas da Woman’s World
com as dietas da moda. A Mãe não melhorou. Mas eu vou melhorar.
89.
Estou de pé na rampa relvada de um proprietário excruciantemente rico de
Brentwood. Os meus saltos agulha estão enterrados na relva. Não devia ter
vindo de saltos agulha para uma festa num relvado, mas não me sei vestir
sozinha e já não tenho os estilistas da Nickelodeon a preparar-me para os
eventos sociais.
Está escuro cá fora e estou rodeada de luzinhas tremeluzentes e
celebridades. Estou numa espécie de encontro da indústria do turismo para
o qual o meu novo agente me convidou, o agente que me representa como
escritora. (Os meus agentes largaram-me depois de terem percebido que a
minha pausa na carreira de atriz não seria de curta duração.)
Dou um puxão para soltar os saltos da relva, dirijo-me à mesa do bufete, e
eis que me surgem diante dos olhos uns cheeseburgers em miniatura… Mas
não me apetece uma coisa com carne e queijo, neste momento. Apetece-me
qualquer coisa doce. E, nos dias que correm, presto atenção ao que me
apetece. Vejo uma bolacha com pepitas de chocolate densa e quente.
Perfeito.
Ao mastigar, percebo que esta é uma bolacha com pepitas de chocolate
que eu nunca me teria permitido comer nos meus dias de anorexia, e que
nunca me teria permitido guardar no estômago nos meus dias de bulimia.
Uma bolacha com pepitas de chocolate cujas calorias não contei e por causa
da qual não senti ansiedade ao comê-la. Penso em como passou mais de um
ano desde que me forcei a vomitar e muitos meses desde que consegui ter
um prazer real com a comida que como.
A reabilitação, até agora, tem sido, de certa forma, tão dura quanto os
anos dedicados à bulimia e ao álcool, mas é um tipo de dificuldade
diferente, porque estou a enfrentar os meus problemas pela primeira vez, em
vez de os enterrar entre distúrbios alimentares e substâncias. Estou a
processar não só o meu luto pela morte da minha mãe, mas o luto por uma
infância, adolescência e início da idade adulta que sinto que nunca tive a
liberdade de viver verdadeiramente. É difícil, mas é o tipo de dificuldade
em que posso ter orgulho.
Ouço atrás de mim uma voz tonitruante que me parece familiar. Viro-me e
vejo o Dwayne “The Rock” Johnson. Ele está com tão bom ar, e tão fiel a si
mesmo, com o seu grande sorriso. Este homem transpira carisma.
Penso ir ter com ele e apresentar-me, lembrar-lhe daquela cerimónia de
prémios de há uns anos. Teria o Dwayne Johnson percebido como eu me
sentia destroçada da última vez que nos vimos? Notaria ele uma diferença
agora? Perceberá ele os obstáculos e vitórias que esta bolacha representa?
Será que o Dwayne Johnson é Deus?
Tento pensar em qualquer coisa engraçada, perspicaz ou encantadora para
lhe dizer, mas não consigo. A minha cabeça bloqueia nos contextos sociais,
sobretudo quando esses contextos incluem o The Rock/Deus. Perco a minha
ocasião. Ele perde-se na multidão. Volto à minha atividade de comer a
bolacha. De apreciar a bolacha que como.
90.
Estou a jantar no meu apartamento quando toca o telefone. É a Miranda.
Regra geral, hoje em dia, não espero uma chamada dela. Afastámo-nos. É a
triste realidade da minha vida aos vinte e muitos. No início da década, as
pessoas de quem era próxima pareciam-me amigos para toda a vida, pessoas
que não podia imaginar não ver todos os dias. Mas a vida acontece. O amor
acontece. A perda acontece. A mudança e o crescimento dão-se a ritmos
diferentes para pessoas diferentes e, por vezes, esses ritmos não se alinham.
É devastador, se pensar muito sobre isso, mas geralmente não penso.
Mas sei porque está ela a telefonar-me hoje. Esperava esta chamada, só
não sabia exatamente quando chegaria.
– Estou? – digo eu, enquanto me levanto da mesa e calço uns ténis.
– Olá!
Começamos as duas a rir. Não me lembro da última vez que falámos,
ainda assim, no instante em que nos pomos ao telefone uma com a outra,
desatamos a rir.
Saio pela porta principal, para poder passear-me pelo bairro enquanto
conversamos. Pomo-nos mutuamente a par das novidades das nossas
famílias disfuncionais e acontecimentos importantes da vida e, depois, há
uma pausa, uma pequena acalmia antes que seja referido o assunto que
motivou esta conversa.
– Miranda, não vou fazer a nova série. Não há nada que possas dizer para
me convencer.
– Ainda assim, vou tentar!
Ela ri-se. Eu também.
Ela diz-me que acha que a nova série pode ser uma oportunidade para
todos nós, no elenco, “voltarmos à cena”, talvez para conseguirmos outras
oportunidades a partir daí. É a mesma cantiga que já ouvir de um
administrador do canal há uns meses, quando soube pela primeira vez que
queriam retomar o iCarly.
Eu sei que tanto o administrador como a Miranda têm boas intenções ao
dizer estas coisas. Mas eu discordo. Não me parece que retomar o iCarly
possa, realisticamente, levar a novas oportunidades, porque, se o artista
desta nova série não tiver feito qualquer trabalho relevante entretanto, a
nova série só servirá para lembrar a toda a gente esse facto. Vai enterrar o
dito artista ainda mais num papel pelo qual ficou conhecido pelo menos
uma década antes, um papel que é o responsável provável por lhe encalhar a
carreira, não por fazê-la florescer.
Este ramo é duro. E este ramo não vê um papel numa nova iteração de
uma série velha como um reavivar da carreira, mas sim como um enterrar
da mesma.
– Mas pagam muito bem – diz-me a Miranda. – Perguntei-lhes se te
pagavam o mesmo que a mim, e eles disseram que sim.
A Miranda tem razão – o canal fez uma proposta generosa – e é simpático
que ela tenha encorajado essa proposta generosa.
– Eu sei – digo eu à Miranda. – Mas há coisas mais importantes do que o
dinheiro. E a minha saúde mental e felicidade entram nessa categoria.
Ficamos um instante em silêncio. É um dos raros momentos em que sinto
que não falei nem de mais nem de menos. Sinto que representei com
precisão o que sinto que não mudaria nada na forma como o disse. Fico
orgulhosa. Acabamos a conversa com promessas de irmos falando e
desligamos. Volto para casa para acabar de jantar.
91.
“Olá, Mãe”, estou prestes a dizer em voz alta, mas travo-me porque não
quero que os outros enlutados à minha volta achem que sou doida.
Enlutado, singular, a bem dizer. Só aqui está um e é o mesmo tipo que vejo
sempre que cá venho. Senta-se numa cadeira desdobrável com um chapéu
de sol a tapá-lo, toca uma música rock suave de um rádio, e fica a olhar para
a lápide da pessoa que presumo ser a sua antiga mulher.
Eu olho para a lápide da Mãe. Tem uns vinte adjetivos gravados, porque
toda a gente na família tinha sugestões de adjetivos e ninguém estava
disposto a abdicar delas.
– Temos de incluir “brincalhona” – insistia o Avô.
– Ninguém gosta de “corajosa”? “Corajosa” é uma boa palavra – gemia a
Avó.
Então, decidimos amontoar como possível as palavras todas. Até a última
morada da Mãe está atulhada.
Esta é a minha primeira visita à campa da Mãe desde o aniversário dela,
em julho passado. As minhas visitas têm-se tornado menos frequentes ao
longo dos anos, ainda que eu tenha prometido à Mãe, a pedido dela, que
visitaria a campa dela todos os dias. No início, visitava-a uma vez por
semana e sentia-me culpada por isso, como se não chegasse. Mas, com o
avançar do tempo e da realidade, a frequência das visitas foi diminuindo e,
com ela, a culpa.
Sento-me de pernas cruzadas diante da campa. Olho mais demoradamente
para as palavras na lápide.
Corajosa, simpática, leal, doce, ternurenta, delicada, forte, atenciosa,
engraçada, genuína, esperançosa, brincalhona, perspicaz, e assim por
diante…
Mas seria? Seria ela alguma dessas coisas? Estas palavras deixam-me
zangada. Não consigo continuar a olhar para elas.
Porque romantizamos os mortos? Porque não podemos ser sinceros sobre
eles? Sobretudo as mães. São as mais romantizadas de todas.
As mães são santas. São anjos, só pela sua existência. NINGUÉM pode
compreender o que é ser-se mãe. Os homens nunca compreenderão. As
mulheres sem filhos nunca compreenderão. Ninguém, exceto as mães,
conhece as agruras da maternidade, e nós, as não-mães temos mas é de as
cobrir de louvores, porque nós, reles e deploráveis não-mães, somos mera
ralé, comparadas com as deusas a que chamamos mães.
Talvez eu pense isto agora porque foi assim que vi a minha mãe durante
muito tempo. Eu tinha-a num pedestal, e bem sei o quão prejudicial foi esse
pedestal para a minha vida e para o meu bem-estar. Esse pedestal deixou-me
presa, atordoada emocionalmente, a viver com medo, dependente, num
estado quase constante de sofrimento emocional, e sem as ferramentas para
identificar sequer esse sofrimento, muito menos para lidar com ele.
A minha mãe não merecia esse pedestal. Era uma narcisista. Recusava-se
a admitir que tinha problemas, por muito que esses problemas fossem
prejudiciais para toda a família. A minha mãe maltratou-me
emocionalmente, mentalmente e fisicamente de formas que me afetarão
para sempre.
Ela fez-me exames mamários e vaginais até eu ter dezassete anos. Esses
“exames” deixavam o meu corpo rígido, tal era o desconforto. Sentia-me
violada e, ainda assim, não tinha a voz nem a capacidade para o exprimir.
Eu estava condicionada para acreditar que qualquer limite que eu desejasse
estabelecer seria uma traição contra ela, pelo que permanecia em silêncio.
Colaborava.
Quando eu tinha seis anos, a minha mãe empurrou-me para uma carreira
que eu não queria. Estou grata pela estabilidade financeira que essa carreira
me providenciou, mas pouco mais. Eu não estava equipada para lidar com a
indústria do entretenimento em toda a sua competitividade, rejeição, riscos,
duras realidades, ou com a fama. Eu precisava desse tempo, desses anos,
para me desenvolver como criança. Para formar a minha identidade. Para
crescer. Nunca poderei reaver esses anos.
Ela ensinou-me um distúrbio alimentar quando eu tinha onze anos; um
distúrbio alimentar que me privou da minha alegria e de qualquer liberdade
de espírito que eu ainda pudesse ter.
Ela nunca me disse que o meu pai não era meu pai.
A morte dela deixou-me com mais perguntas do que respostas, mais
sofrimento do que reconciliação, e muitas camadas de pesar – a dor inicial
da morte dela, depois, a dor de ter de aceitar que ela me maltratou e
explorou, e, finalmente, a dor que vem agora à superfície quando tenho
saudades dela e desato a chorar – porque tenho saudades dela e desato a
chorar.
Tenho saudades das conversas motivadoras dela. A Mãe tinha jeito para
encontrar o pormenor exato sobre as pessoas que as fazia sentirem-se
melhor e acreditar em si mesmas.
Tenho saudades do espírito infantil dela. A Mãe tinha uma energia que
podia ser, às vezes, muito enternecedora. Cativante, até.
E tenho saudades de quando ela estava feliz. Não acontecia tão
frequentemente como eu desejaria, e não acontecia tão frequentemente
como eu tentava forçar que acontecesse, mas, quando ela estava feliz, era
contagioso.
Às vezes, quando tenho saudades dela, começo a imaginar como seria a
vida se ela ainda cá estivesse, e imagino que talvez ela tivesse pedido
desculpas, e teríamos chorado nos braços uma da outra e prometido
começar de novo. Talvez ela apoiasse que eu tivesse a minha própria
identidade, as minhas esperanças, sonhos e planos.
Mas depois percebo que estou à mesma a romantizar os mortos. Quem me
dera que as outras pessoas não o fizessem.
A Mãe deixou muito claro que não tinha qualquer interesse em mudar. Se
ela ainda fosse viva, estaria ainda a fazer o possível por me manipular para
que eu fosse como ela queria. Eu estaria ainda a vomitar, a restringir
calorias ou a comer sem parar, ou numa combinação qualquer dessas três
coisas, e ela estaria ainda a encorajar-me a fazê-lo. Eu estaria ainda a forçar-
me a representar, a arrastar-me miseravelmente pelo dia a dia da
representação em sitcoms cor-de-rosa. Quantas vezes se pode dar um
trambolhão num tapete ou vender uma frase em que não se acredita até nos
morrer a alma? É muito provável que eu já tivesse tido um esgotamento
mental absoluto e público por esta altura. E continuaria profundamente
infeliz e severamente doente da cabeça.
Olho novamente para as palavras. Corajosa, simpática, leal, doce,
ternurenta, delicada…
Abano a cabeça. Não choro. Começa a tocar a “What a Fool Believes”
[“No que acredita um tolo”], dos Doobie Brothers, no rádio do homem
triste. Levanto-me, sacudo a terra das jeans e vou-me embora. Sei que não
vou voltar.
Agradecimentos
Agradeço ao meu editor, Sean Manning, pelo seu impacto neste livro. Por
entender a minha voz e torná-la muito mais forte.
Ao meu agente, Norm Aladjem, agradeço o apoio inicial e o seu
encorajamento, tão importante para mim. Agradeço a sabedoria, a
estratégia, a consideração e a calma inabalável.
Ao Peter McGuigan e ao Mahdi Salehi, agradeço o talento e o humor,
bem como ajudarem-me a tornar isto possível.
À Jill Fritzo e a toda a gente na Jill Fritzo PR, agradeço a excelência e a
competência.
À Erin Mason e ao Jamie C. Farquhar, pelo aconselhamento
transformador e pelas ferramentas que me forneceram.
E, por fim, obrigada, Ari, pelo teu amor infinito, apoio e encorajamento.
Amo-te tanto. És o meu melhor amigo. Fico muito feliz por sermos uma
equipa. <em harmonia> We are here for uuusss.

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