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02/03/2020 Franklin Ferreira – O Cristão e a Cultura

Franklin Ferreira – O Cristão e a Cultura


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February 19, 2013

Uma definição de cultura


Antes de falarmos da relação do cristão com a cultura, é necessário definirmos o que é cultura:

Em sentido amplo, refere-se ao cultivo de hábitos, interesses, língua e vida artística de


uma nação: histórias, símbolos, estruturas de poder, estruturas organizacionais, sistemas
de controle, rituais e rotinas.
Tudo o que caracteriza uma realidade social de um povo ou nação, ou então de grupos no
interior de uma sociedade: valores, atitudes, crenças e costumes.

Não raro o cristão se torna uma subcultura dentro de uma nação. Ele tem seus valores, atitudes,
crenças e costumes. Mas daí, surgem as perguntas: O cristão pode participar das festas
nacionais? O cristão pode beber? Como o cristão lida com arte, cinema, etc.? O cristão pode ser
um diretor, ator, etc.? O cristão pode ouvir música do mundo? Como o cristão lida com economia,
política, filosofia? O cristão deve impor sua cultura quando sai em missões? O que pode ser
tolerado? O que deve mudar?

Modelos de como os cristãos lidaram com a cultura ao longo da


história
Para falar sobre o cristão e a cultura, precisamos lembrar que a igreja não nasceu em nossa
geração. Temos que ser humildes e olharmos para a história da igreja para ver como os cristãos
do passado lidaram com a cultura.

H. Richard Niebuhr (1894-1962), apresentou em seu livro Cristo e cultura (download gratuito)
cinco categorias de classificação do relacionamento entre o cristão e a cultura, fornecendo,
assim, ferramentas para descrever a forma que os cristãos encaram questões sociais, éticas,
políticas e econômicas.

1. O cristão contra a cultura


Os que seguem esta corrente enfatizam que, diante da natureza decaída da criação, é
necessário que se criem estruturas alternativas, e que estas sigam mais de perto o chamado
radical do evangelho. Esta posição foi afirmada no Didaquê, na Primeira Epístola de Clemente, e
nos escritos de Tertuliano (c.160–c.225) e dos anabatistas do século xvi, como Michael Sattler
(c.1490–1527).

Resumidamente, a cultura é caída, má e demoníaca; rejeite tudo. Exemplos:

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“A filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da


ordem de Deus. De fato, é a filosofia que equipa as heresias… Ó miserável Aristóteles! Que
lhes proporcionaste a dialética, esse artífice hábil para construir e destruir, esse versátil
camaleão que se disfarça nas sentenças, se faz violento nas conjecturas, duro nos
argumentos, que fomenta contendas, molesta a si mesmo, sempre recolocando problemas
antes mesmo de nada resolver. Por ela, proliferam essas intermináveis fábulas e genealogias,
essas questões estéreis, esses discursos que se alastram, qual caranguejos, e contra os quais
o Apóstolo nos adverte na sua carta aos Colossenses: ‘Cuidado que ninguém vos venha a
enredar com suas sutilezas vazias, acordadas às tradições humanas, mas contrárias à
providência do Espírito Santo’. Este foi o mal de Atenas… Ora que há de comum entre
Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja, entre os hereges e os cristãos? Nossa
formação nos vem do pórtico de Salomão, ali nos ensinou que o Senhor deve ser buscado na
simplicidade do coração. Reflitam, pois, os que andam propalando seu cristianismo estóico
ou platônico. Que novidade mais precisamos depois de Cristo? […] Que pesquisa
necessitamos mais depois do Evangelho? Possuidores da fé, nada mais esperamos de credos
ulteriores. Pois a primeira coisa que cremos é que para a fé, não existe objeto ulterior.”
(Tertuliano, De praescr. haeret., VII)

“Quarto, unimos nossas forças no que diz respeito à separação do mal. Devemos nos afastar
do mal e da perversidade que o diabo semeou no mundo, para não termos comunhão com
isso e não nos perdermos na confusão dessas abominações. Aliás, todos que não aceitaram a
fé e não se uniram a Deus para fazer a sua vontade são uma grande abominação aos olhos
de Deus. Deles não poderão acrescentar ou surgir nada mais do que coisas abomináveis.
Não existe nada mais no mundo e em toda a criação do que o bem e o mal, crentes e
incrédulos, trevas e luz, os que estão no mundo e fora do mundo, os templos de Deus e dos
ídolos, Cristo e Belial, e nenhum deles poderá ter comunhão um com o outro. Para nós,
pois, é obvio o imperativo do Senhor, pelo qual nos ordena que nos afastemos e nos
mantenhamos longe dos maus. Assim, ele será nosso Deus e nós seremos seus filhos e
filhas. Além disso, ele nos exorta a abandonar a Babilônia e o paraíso terreno egípcio, para
não passar pelos sofrimentos e dores que o Senhor enviará sobre eles. (…) Devemos nos
afastar de tudo isso e não participar com eles. Porque tudo isso não passa de abominações,
que nos tornam odiosos diante do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos libertou da
escravidão da nossa natureza pecaminosa e nos tornou aptos para o serviço de Deus, por
meio do Espírito que nos ortogou.” (Confissão de Schleitheim, IV)

2. O cristão da cultura
Os ensinos do evangelho têm íntima relação com as estruturas culturais, num processo de
acomodação a esta. Ou seja, toda e qualquer cultura é incorporada no cristianismo.

Apesar das objeções que são lançadas a esta posição, ela tem sido influente na história da
igreja. Os ensinos de gnósticos do século III, Abelardo de Paris (1079–1142) e dos teólogos
liberais do século XIX refletem esta posição.. A igreja evangélica na Alemanha, por influência

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deste entendimento, trocou seu nome para Igreja do Reich e seus pregadores juraram
obediência a Hitler.

O fundamentalismo americano acabou espelhando esta posição, afirmando os valores básicos


da cultura dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, se por um lado rejeitamos toda cultura local (o
cristão contra a cultura), por outro acabamos abraçando a cultura americana (o cristão da
cultura), como se ela fosse uma cultura cristã e achamos que uma cultura é intrinsicamente
superior a outra.

3. O cristão acima da cultura


Este é o conceito católico, influenciado por Clemente de Alexandria (c.150–c.215) e Tomás de
Aquino (1225–1274), que busca uma unidade entre o cristão e a cultura, onde toda a sociedade
aparece hierarquizada. Na Idade Média o ensino eclesiástico alcançou quase todos os aspectos
da sociedade: suas práticas religiosas formaram o calendário; seus rituais marcaram momentos
importantes (batismo, confirmação, casamento, ordenação) e seus ensinamentos sustentavam
crenças sobre moralidade, significado da vida e a vida após a morte. A igreja e sua mensagem
são institucionalizadas e o que deveria ser condicionado culturalmente é absolutizado. Neste
terceiro modelo, o que é levado não é o evangelho, mas uma cultura.

4. O cristão e a cultura em paradoxo


Posição comumente associada a Martinho Lutero (1483-1546) e Søren Kierkegaard (1813-1855).
Esta posição mantém o entendimento bíblico da queda e da miséria do pecado, e o chamado
para se lidar com a cultura. A relação do cristão com a cultura é marcada por uma tensão
dinâmica entre a ira e a misericórdia.

Lutero enfatizou este tema com sua doutrina dos “dois reinos”: a mão esquerda, mundana,
segura a espada do poder no mundo, enquanto a mão direita, celeste, segura a espada do
Espírito, a Palavra de Deus. Não se pode tentar coagir a fé, nem se pode tentar acomodar a fé
aos modos seculares de pensamento.

Um exemplo: espancamento feminino. A mulher deve processar o marido? Nesta visão


paradoxal, como cristã, ela não deveria (pois o crente não leva outro ao tribunal secular), mas
como cidadã, sim. Então, a mulher vive um conflito paradoxal.

5. O cristão como agente transformador da cultura


A cultura deve ser levada cativa ao senhorio de Cristo. Sem desconsiderar a queda e o pecado,
mas enfatizando que, no princípio, a criação era boa, os que estão nesse grupo enfatizam que
um dos objetivos da redenção é transformar a cultura. Sendo assim, por mais iníquas que sejam
certas instituições, elas não estão fora do alcance da soberania de Deus. Ou seja, mesmo
sabendo da queda, o cristão não abandona a cultura (o cristão contra a cultura), mas busca
redimi-la, levá-la aos pés de Cristo.

Agostinho (354-430), João Calvino (1509-1564), John Wesley (1703-1791) e Abraham Kuyper
(1837-1920) são alguns dos que entenderam que os cristãos são agentes de transformação da
cultura, posição que é exposta nesta obra de Niebuhr. Em Apocalipse, vemos que Deus redime

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tanto a pessoa, como a diversidade cultural.

Nesta posição, não há divisão entre o sagrado e o profano – essa é uma dicotomia católica (a
divisão sagrado/profano afirma que na igreja fazemos atividades sagradas e, no mundo,
atividades profanas; ou seja, rezar, ser padre é algo sagrado, mas construir um prédio e ser um
engenheiro são coisas profanas). A divisão bíblica é entre o que é santo e está em pecado; e
que está em pecado deve ser santificado.

Relatório de Willowbank
A afirmação de que o cristão é um agente transformador da cultura pode ser resumida na
compreensão de que “uma vez que o homem é criado por Deus, parte de sua cultura será rica
em beleza e bondade. Por causa da queda e do pecado do homem, toda a sua cultura [usos e
costumes] está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca” (Pacto de Lausanne §10) — o
evangelho nunca é hóspede da cultura, mas sempre seu juiz e redentor.

O Grupo de Teologia e Educação de Lausanne propôs um modelo hierárquico de ação sobre a


entrada do evangelho na cultura (Relatório de Willowbank, 1978) que pode ser de auxílio em
nosso trato com a cultura ao nosso redor.

Categoria de costumes
Como um missionário deve proceder em uma cultura diferente? O Relatório de Willowbank
propõe uma relação quádrupla do cristão com a cultura:

1. Alguns costumes não podem ser tolerados, como a idolatria, infanticídio, canibalismo,
vingança, mutilação física, prostituição ritual, entre outros.
2. Alguns costumes podem ser temporariamente tolerados [por uma geração], como a
escravidão, o sistema de castas, o sistema tribal, a poligamia, entre outros.
3. Há alguns costumes cujas objeções não são relevantes para o evangelho, como o
costume de o homem e a mulher sentarem separados nos cultos, os costumes
alimentares, vestimentas, hábitos de higiene pessoal, entre outros.
4. Assuntos secundários (adiáforos) sobre os quais há controvérsias mas que pode-se ter
liberdade de análise, como escatologia, governo da igreja, ceia e batismo

Exemplo do ponto 2: quando chefes tribais polígamos se convertiam, eles eram obrigados pelos
missionários a abandonar todas suas esposas, que ou morriam de fome ou se prostituiam,
podendo morrer apedrejadas. Vendo isso, os missionários acharam uma medida sábia não exigir
desse chefe tribal o abandono da poligamia, mas exigir tal atitude da próxima geração de
cristãos.

Aplicação do ponto 3: Se você é um novo pastor, não tente mudar a cultura da igreja, se ela se
encaixa neste nível. Pregue o evangelho!

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“Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem pelos
costumes. (…) Seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à alimentação e ao
restante estilo de viver, apresentando um estado de vida admirável (…). Enquanto cidadãos,
de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. (…) Se a vida deles decorre na
terra, a cidadania, contudo está nos céus. Obedecem as leis estabelecidas, todavia superam-
nas pela vida. Amam a todos, e por todos são perseguidos (…) Para simplificar, o que é a
alma no corpo são no mundo os cristãos”. (5-6) (Epístola a Diogneto)

Bibliografia Complementar

No final da palestra, Franklin Ferreira apresentou uma bibliografia sobre o assunto:

Bruce J. Nicholls – Contextualização: uma teologia do evangelho e cultura


H. Richard Niebuhr – Cristo e cultura (download gratuito)
Comissão de Lausanne – O Evangelho e a Cultura
Michael Horton – O Cristão e a Cultura (leia um trecho)
D. A. Carson – Cristo & Cultura: Uma releitura (Ferreira indicou este livro para quem quiser
ler uma abordagem diferente sobre a questão – leia um trecho – leia uma resenha – leia
uma resposta)

Recomendo a leitura destes artigos também:

Mauro Meister – Os Filhos de Deus e a Cultura Popular


Cornelius Van Til – Cristo e Cultura
Abraham Kuyper – Existe um lugar para a Arte, no Calvinismo?
Solano Portela Neto – Cultura: A Fé Cristã é Contra ou A Favor?
Ronaldo Lidório – Teologia Bíblica da Contextualização

Não sei se vocês lembram, mas já falamos, de forma simplificada, sobre o assunto aqui no VE:
Os 3 Rs do Envolvimento do Cristão com a Cultura. Os 3R de Mark Driscoll (Rejeitar, Receber ou
Redimir) encaixam-se bem nos quatro pontos apresentados pelo Relatório de Willowbank.

Por: Franklin Ferreira. Palestrado no dia 11/02/13, na 15ª Consciência Cristã (VINACC).
Copyright © Franklin Ferreira.

Resumo por: Voltemos Ao Evangelho. Original: Franklin Ferreira – O Cristão e a Cultura

Permissões: Você está autorizado e incentivado a reproduzir e distribuir este material em


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conteúdo original e não o utilize para fins comerciais.

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