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Da esperança à teologia da esperança

Uma reflexão sobre o caminhar da esperança cristã


em Jürgen Moltmann

Cesar Kuzma

Resumo

O presente artigo apresenta uma reflexão sobre o


caminhar da esperança cristã em Jürgen Moltmann.
Entendemos que, esse caminho parte, primeiramen-
te de uma experiência pessoal vivida por ele em um
campo de concentração. Um ponto marcante e central
é a questão de Auschwitz, que ele apresenta como a
raiz de seus esforços teológicos. Temos aí a chave teo-
lógica para entendermos o que aconteceu com ele em
Northon Camp, na Inglaterra e como passou a refletir
sobre a esperança em sua vida e na teologia. Esta sua
experiência vai aos poucos ganhando espaço e dando-
lhe respostas, sendo assim capaz de direcioná-lo para
um futuro, que até então, para ele, parecia incerto. Ao
mesmo tempo em que sente na própria pele os efeitos
da guerra e na medida em que toma conhecimento
das atrocidades nazistas, solidariza-se também com
aqueles que, assim como ele, são vítimas. Num am-
biente assim, a esperança foi a sua companheira e o
seu refúgio, foi o que o manteve vivo e, por esta razão,
é até hoje a sua companheira inseparável.

Palavras-chave

esperança – esperança cristã – Jüngen Moltmann –


teologia – teologia da esperança.

Doutorando em Teologia pela


PUC-Rio. Professor de Teologia
Sistemática e Pastoral na PUCPR
– Curitiba. Diretor do Curso
de Bacharelado em Teologia
da PUCPR – Curitiba. Assessor
teológico-pastoral em grupos,
movimentos e comunidades
eclesiais de base em Curitiba
e no Rio de Janeiro. Endereço
eletrônico:
cesarkuzma@yahoo.com.br;
cesar.kuzma@pucpr.br.
From hope to the theology of hope

A reflection on the walk of Christian


hope in Jürgen Moltmann

Cesar Kuzma

Abstract

This article presents a reflection on the walk of Chris-


tian hope in Jürgen Moltmann. We understand that
this way starts, firstly, from a personal experience he
had in a concentration camp. An impressive and cen-
tral point in this experience is Auschwitz, which he
presents as the root of his theological efforts. The-
re we have the theological key to understand what
happened to him in Northon Camp, in England, and
how he began to reflect upon hope in his life and
in Theology. That experience gradually gains ground,
giving him answers, thus being able to direct him to
a future which, up to that moment, looked uncertain
to him. At the same time in which he feels in his own
skin the effects of war and as he becomes aware of
the Nazis’ atrocities, he also becomes sympathetic to
those who, like him, are victims. In an environment
like that, hope was his companion and refuge, was
what kept him alive and, for that reason, is today his
inseparable companion.

Keywords

Hope – Christian hope – Jürgen Moltmann – theology


– theology of hope.

Doctor’s degree student at PUC-


Rio, César Kuzma works as a
professor of Systematic and
Pastoral Theology at PUCPR
– Curitiba and is the Director
of the Bachelor of Theology
program at PUCPR – Curitiba.
He is also a theological pastoral
advisor in groups, movements
and basic ecclesial communities
in Curitiba and Rio de Janeiro.
Electronic address:
cesarkuzma@yahoo.com.br;
cesar.kuzma@pucpr.br.
De la esperanza a la teología de la esperanza

Una reflexión sobre el caminar de la esperanza cristiana


en Jürgen Moltmann

Cesar Kuzma

Resumen

El presente artículo presenta una reflexión sobre el


caminar de la esperanza cristiana en Jürgen Molt-
mann. Entendemos que, ese camino parte, en primer
lugar de una experiencia personal vivida por él en
un campo de concentración. Un punto destacado y
central es la cuestión de Auschwitz, que él presenta
como la raíz de sus esfuerzos teológicos. Tenemos ahí
la llave teológica para entender lo que pasó con él en
Northon Camp, Inglaterra y cómo comenzó a refle-
xionar sobre la esperanza en su vida y en la teología.
Esta su experiencia poco a poco va ganando espacio
y dándole respuestas, siendo así capaz de guiarlo ha-
cia un futuro, que hasta entonces, para él, parecía
incierto. Al mismo tiempo en que siente en su propia
piel los efectos de la guerra y en la medida en que se
entera de las atrocidades nazistas, se solidariza tam-
bién con aquellos que, así como él, son víctimas. En
un ambiente así, la esperanza fue su compañera y su
refugio, fue lo que lo mantuvo vivo y, por esta razón,
es hasta hoy su compañera inseparable.

Palabras clave

Esperanza – esperanza cristiana – Jürgen Moltmann


– teología – teología de la esperanza.

Doctorando en Teología por la


PUC-Rio. Profesor de Teología
Sistemática y Pastoral en la
PUCPR – Curitiba. Director del
Curso de Bachillerato en Teología
de la PUCPR – Curitiba. Asesor
teológico-pastoral en grupos,
movimientos y comunidades
eclesiales de base en Curitiba y en
Rio de Janeiro.Correo electrónico:
cesarkuzma@yahoo.com.br;
cesar.kuzma@pucpr.br.
Introdução pergunta que se fazia, originaria de Ema-
nuel Lévinas (1906-1995), era: “Como fa-
lar de Deus depois de Auschwitz?”
Da esperança à Teologia da Esperança.
Como se pode falar de Deus depois de
Este é o percurso que, entendemos, per- Auschwitz? Este é o seu [de quem pre-
correu o teólogo Jürgen Moltmann. Sua cisou gritar por Deus] problema. Mais
reflexão teológica surgiu antes de uma ainda, porém, é seu problema como de-
pois de Auschwitz não se pode falar de
experiência pessoal que, transcendeu, Deus. De que então é para falar depois
posteriormente para toda a sua vida, seja de Auschwitz, se não de Deus?! [...] Este
ela familiar, eclesial ou acadêmica. Dessa não-mais-poder-falar-de-Deus e contu-
do-ter-que-falar-de-Deus, em face da
maneira, desenvolver uma pesquisa ten- experiência esmagante do peso da cul-
do como base o seu pensamento passa pa na minha geração, é possivelmente a
a ser uma tarefa de imensa responsabili- raiz de meus esforços teológicos, pois o
pensar sobre Deus sempre de novo me
dade, pelo peso teológico que este autor leva de volta àquela aporia.1
representa academicamente e, também,
eclesialmente. Sua teologia apresenta-se Para justificar essa dificuldade, co-
de maneira aberta e promissora, sendo de locada por ele como algo sem saída ra-
forte presença nas diversas correntes do cional, ele ainda continua parafraseando
pensamento teológico contemporâneo. As- um outro autor, Wiesel (sobrevivente de
sim sendo, para caracterizar a temática no Auschwitz III), ao dizer: “Não se pode en-
autor, decidimos por resgatar, inicialmen- tender [Auschwitz] com Deus. E não se
compreende sem Ele”.2 No fundo ele tem
te, fatos importantes de sua vida, ou seja,
razão, pois não há uma explicação plau-
como a esperança situa-se no seu contexto
sível para a crueldade exercida contra a
histórico. Logo após, evidenciaremos como
vida humana nesse campo e em outros.
o autor se encontra dentro do contexto Não há como imaginar Deus lá, mas tam-
desta esperança, o modo como ele a vê e bém não se compreende sem Ele. Molt-
a destaca. Isso nos possibilitará uma com- mann alude que sempre que tenta falar
preensão simples, mas, ao mesmo tempo, de Deus ou sobre Ele se vê novamente
significativa do autor e do tema. as voltas com a questão de Auschwitz.3
Por quê? Talvez porque ele também gri-
1 O início: Auschwitz tou por Deus como tantos outros igual-
mente gritaram e se sentiram, devido à
Este ponto em que iniciamos é extre- circunstância, abandonados por Deus, su-
mamente importante para compreender- postamente silencioso. Mas não! A com-
mos como se situa a esperança cristã em preensão que ele adquiriu com o tempo
Moltmann. Sua reflexão teológica, que foi e com a reflexão teológica proveniente
aos poucos ganhando espaço, é alicerça- desta experiência (Teologia da Esperan-
da pela sua experiência de cativeiro num ça), mostrou-lhe que não se trata de um
campo de concentração, onde pôde ver, Deus silencioso, mas solidário e, ao mes-
juntamente com seus colegas, a verdade mo tempo, sofredor.
sobre as práticas de extermínio que ocor-
riam dentro de certos campos nazistas, 1
MOLTMANN, J. Geschichte des dreieinigen Gottes. p.
como, no caso, um dos seus maiores: Aus- 222. Apud: HAMMES, E. J. A cristologia escatológica
de J. Moltmann. Teo comunicação. Porto Alegre, 2000,
chwitz. O início de sua teologia acontece, n. 130, v. 30. p. 606.
segundo ele, no fundo dessas experiên- 2
Ibid.
3
Vale ressaltar que Moltmann não passou por ele, o
cias. Naquele momento histórico, a grande que descobriu das atrocidades de Auschwitz veio do
período em que foi prisioneiro em outro campo.

14 Cesar Augusto KUZMA, Da esperança à teologia da esperança


Como ele próprio diz, essa experiên- doutrina cristã, da qual o ser humano é a
cia é a raiz de seus esforços teológicos. imagem e semelhança (Gn 1,26). Assim,
Porém, como será possível atribuir uma dirá Moltmann: “Mas um homem pode
ligação do que aconteceu neste lugar com sofrer, porque pode amar. [...] Finalmen-
uma experiência divina, capaz inclusive de te um Deus exclusivamente onipotente
suscitar esperança? Para responder a este é em si um ser imperfeito”.5 Vemos que,
questionamento, precisamos percorrer o assim, segundo a doutrina cristã e, assis-
caminho que Moltmann fez para teologizar tida aqui, pela teologia de Moltmann, a
o sofrimento divino e sua relação na am- encarnação de Jesus é algo realizado por
plitude humana. O momento que ele refle- Deus no intuito de revelar a essência de
te é a partir da morte de Cristo na cruz. seu Ser que é amor.
Vejamos isso teologicamente, a partir Este sentimento capaz de sofrer é re-
de seu pensamento. sultado de um amor que se solidariza com
Pelo ensinamento, prática, vida e obra quem é amado e pelo qual faz tudo para
de Jesus de Nazaré, sabemos que a con- libertar. Agora, em Jesus, Deus vai mais
sistência do Deus anunciado por Ele se longe nesse amor. Ele, pelo qual foi criada
concentra no amor. “Deus é amor”, dirá a a história, decide fazer-se história. Assume
primeira epistola de João (1Jo 4,16). É o a humanidade por inteira no Ser de Deus,
conteúdo da Boa Nova, como dom gratuito pois agora, Deus-Homem sente na própria
da abertura de Deus em relação à huma- carne, sarx, o que sente um ser humano,
nidade, porém, esta se recusa a aceitá- com todas as limitações provenientes des-
la, rejeitando, com isso, o amor de Deus. sa situação, até mesmo a íntima relação
Contudo, a eternidade de Deus consiste no entre o ser humano e Deus.6 Notamos
amor que é eterno, ele não muda. Por isso aqui a importância do que é apontado em
Jesus, que é a visibilidade concreta deste Fl 2,6-11, no qual se destaca a kénosis do
amor, assume a decisão de caminhar até as Filho. Essa kénosis atinge todo o mistério
últimas conseqüências, chegando inclusive trinitário e por fim, a nós, destinatários
a ser morto, morto por causa do amor. deste evento salvífico. Esta íntima ligação
divina-humana, que nos assegura a fé, é o
Para explicar este estranho amor que
que sustenta a nossa esperança.
decide sofrer, Moltmann menciona a nove-
la Demônios, de Dostoyeviski, que diz: um Portanto, para compreender um Deus
Deus que não pode sofrer é mais desgra- que seja solidário com o sofrimento hu-
çado do que qualquer homem. Um Deus mano, Moltmann nos convida a observar
incapaz de sofrimento é um ser indolen- a atitude que era depositada pelo ho-
te, pois a injustiça e o sofrimento não o mem de Nazaré. Jesus (Deus-Homem)
afetam. Seria carente de afetos, portanto não olhava o outro como outro, mas sim,
nada o pode afetar nada o comove. Não como próximo (Lc 10,25-37). Nisto con-
pode chorar porque não tem lágrimas; se siste a atitude cristã.
não pode sofrer, tampouco pode amar. Um
Deus assim poderia ser o Deus de Aristó- 5
Ibid. p. 312. Grifos nossos.
teles, mas não o Deus de Jesus Cristo.4
6
Encontramos aqui um outro relato de MOLTMANN so-
bre esta relação do Filho com aqueles que sofrem:
Portanto, essa concepção de Deus si- “O filho de Deus, abandonado por Deus, carrega em
si a eterna morte dos abandonados e condenados a
lencioso em Auschwitz mostra um Deus fim de se tornar o Deus dos abandonados, e o irmão
encurvado sobre si mesmo (Deus incur- dos condenados. Todos os condenados e abandonados
por Deus podem agora, no crucificado, experimentar a
vatus in se) e não é isto o que atesta a comunhão com Deus. O Deus encarnado faz-se agora
presente e acessível à humanidade de cada ser hu-
mano. Não é necessário transformar-se ou assumir
algum papel especial a fim de viver a humanidade, em
4
MOLTMANN, J. El Dios crucificado. Salamanca: Sígue- Cristo”. MOLTMANN, J. Paixão pela vida. São Paulo:
me, 1975. p. 311. ASTE, 1978. p. 60.

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É esta a esperança de que falamos agora retratamos aqui a experiência que
e que foi aos poucos extirpada em Aus- foi dele. Este foi um fato marcante em sua
chwitz. Deste modo, Moltmann descobre vida pessoal, vivido principalmente em
que o caráter da esperança está em se Northon Camp.8 Fato que ele sempre re-
fazer também solidário com quem está torna para legitimar suas argumentações
sofrendo, mas pelo ponto de vista do so- teológicas. É como se depois de fortes tri-
fredor, a partir dele. Ele aos poucos desco- bulações aqui fosse um marco importante,
bre esta esperança escondida dos muros, um constante retorno, um re-início vital,
mas revelada na fé do Cristo ressuscitado em que após forte sofrimento ele encon-
e crucificado. Ao ver em si mesmo e nas trou força e desejo de viver. Ele mesmo
demais vítimas traços semelhantes com assim relata:
Aquele que outrora, por nós, fora crucifi-
Na Guerra Mundial fui soldado e, ao fi-
cado e morto, a esperança passou a ter nal, estive três anos e meio como pri-
um outro significado. É por isso que, para sioneiro de guerra. Meu mundo interior,
ele, falar de Deus depois de Auschwitz é que estava formado por Goethe, Schil-
ler e Nietzsche, se quebrou. Em nosso
fundamental, pois a esperança neste Deus campo de prisioneiros nos mostraram
foi a única coisa capaz de fazer alguém so- imagens de Belsenbergen, Buchenwald
breviver a esses tormentos, ou, talvez, a e Auschwitz. Ali li a Bíblia pela primei-
ra vez. E me chegou a leitura dos sal-
única coisa que esperavam os que morre-
mos de lamentação. Li o Evangelho de
ram por causa desses. Marcos e me encontrei com o grito de
Jesus: “Deus meu, Deus meu, por que
Para Moltmann a fé cristã está ligada
me abandonaste?” Soube prontamen-
às experiências de uma situação existen- te: Aí há alguém que te compreende
cial particular que transcende para uma porque passou pela mesma situação
sua e ainda pior. E quando, lentamen-
situação social. Para ele, somente quem já
te, fui entendendo isto, pude exclamar
esteve face a face com a morte e teve de em meu coração: “Senhor meu e Deus
clamar a Deus sabe que não poderá fazer meu!” E por isso creio no Deus que
uma teologia reservada e individual. O que compartilha nossa dor e sofre por nós
e, desta maneira, nos dá nova certeza
valia, daquele momento em diante, não para viver...9
era perguntar: como falar de Deus depois
de Auschwitz, mas sim, como não falar de Com certeza, foi esta experiência pri-
Deus depois de Auschwitz?7 No fundo, esta meira de sofrimento que antecedeu o seu
angústia reproduz algo vivido interiormen- pensar teológico. Podemos dizer que o seu
te por ele ao se confrontar na mesma situ- lócus theológicus inicial foi uma experiên-
ação, quando era prisioneiro no campo de cia de fé que teve entre os prisioneiros e
concentração. que lhe causou grande inquietação, uma
busca de sentido para a própria vida e
2. A esperança no campo de uma resposta para o que acontecia ao seu
concentração

Acima reproduzimos um pensar teo-


8
Moltmann esteve primeiramente no campo 2226 em
Zedelgem, Holanda. Logo após no campo de traba-
lógico de experiência de campo de con- lhos 22 em Kilmarnock/Ayrshire, chegando a Northon
Camp somente em julho de 1946. MOLTMANN, J. A
centração com base em Moltmann, porém fonte da vida. O Espírito Santo e a experiência da vida.
São Paulo: Loyola, 2002. p. 10-11.
9
MOLTMANN, J; METZ J. B. El dolor de Dios: una dis-
7
MUELLER, E. R. Apresentação. In: MOLTMANN, J. Teo- cussion teológica. Apud: CORMENZANA, F. J. V. Jürgen
logia da Esperança. Estudos sobre os fundamentos e as Moltmann. El fin de la indiferencia. Sal terrae: revista
conseqüências de uma escatologia cristã. 3. ed. rev. e de teologia pastoral, t. 86/10, n. 1006, p. 852-853,
atual. São Paulo: Theológica, Loyola, 2005. p. 13. nov./1997.

16 Cesar Augusto KUZMA, Da esperança à teologia da esperança


redor. Numa situação como essa, qualquer que Deus esteja passivo frente ao sofri-
pessoa se sentiria também abandonada mento, ao contrário, Ele está diretamente
por Deus. Toda uma vida parece estar envolvido, pois sentiu em seu próprio ser o
desmoronada e entregue ao acaso para mesmo sofrimento. E mais. Por ser amor,
quem se encontra nesta condição. A vida vê-se impotente diante do mal. Deus so-
se encerrou no passado, o presente já não fre porque ama e ama a todos os que pa-
existe e o futuro parece incerto e perigoso. decem, da mesma forma como Deus-Pai
Alguns ideais de vida que pareciam intocá- amou Cristo em sua miséria (kénosis).10
veis e inabaláveis se demonstram frágeis É importante se ter claro uma coisa:
diante de tal fato. Sem dúvida, é um mo- a solidariedade não está com o sofrimen-
mento crucial, que nós – que felizmente to, e sim, com aqueles que sofrem. Há
nunca passamos por isso – nunca sabere- nisto uma enorme diferença. É um amor
mos e compreenderemos interiormente. O que não pode proibir a escravidão e nem
que ocorreu e o que estas pessoas senti- a inimizade, mas que sofre a causa dessa
ram são marcas indeléveis que mancham contradição, podendo carregar apenas a
e ferem a história da humanidade. dor e o protesto contra o sofrimento, re-
Ao relatar que se identificou com o velando-se nessa dor. É o que ocorre na
sofrimento de Jesus na cruz, a ponto de cruz de Jesus. Deus deixa que o despre-
poder exclamar em seu coração “Senhor zem, Deus sofre, deixa que o crucifiquem
meu e Deus meu!”, representa aspectos para dar prova do seu amor incondicional
sensíveis de uma esperança que foi se- e cheio de esperança. O Pai que ama se
meada neste campo de concentração. corresponde no Filho que ama igualmente,
Anterior a isso, este sentimento de aban- criando, no Espírito, uma correspondência
dono que ele sentiu e que é comum no de amor entre Deus e a humanidade que
ser humano, o foi, também, por vezes, recusa este amor. Isso gera uma liberta-
enfrentado pelo próprio Jesus em sua ção representando algo novo, uma novi-
vida, de sobremaneira, quando sentiu o dade que nasce do amor incondicional de
abandono na cruz, como ele o mencio- Deus no coração do homem Jesus.11
na: “Deus meu, Deus meu, por que me Portanto, ao perguntarmos onde está
abandonaste?” Há aí uma identificação Deus diante do sofrimento, ou mais pre-
dele com Cristo, que sente no crucificado cisamente, onde estava Deus nos campos
alguém que lhe é próximo. de concentração, em Auschwitz e em ou-
Notamos aqui que Moltmann reconhece tros. Onde estava Deus quando aquelas
nessa ação um ato solidário de Deus capaz pessoas foram arrancadas de suas casas,
de atingir a toda a humanidade. Toda a violentadas, acorrentadas e jogadas na-
dor, a angústia, o sofrimento e a fraqueza quele lugar, com fome, sede e frio? Esta
humana se encontram atingidos e repre- pergunta, segundo Moltmann, só pode ter
sentados na cruz de Jesus, que transfigura uma única resposta. Ele estava lá sofren-
em sua morte todos os limites humanos. do com elas. Ele era cada uma daquelas
Entende que, em seu sofrimento, Cristo pessoas que sofriam naquele campo. Para
converte todo o sofrimento para si. Sen- Moltmann, que em seu livro faz uma com-
do solidário torna-se também igual, sendo
igual torna-se caminho e, sendo caminho
torna-se esperança.
10
MOLTMANN, J. La pasión de Cristo y el dolor de Dios.
Selecciones de teologia, Barcelona, v. 33, n. 129, p.
Por conseguinte, não é correto afirmar 20-24, ene./mar. 1994.
11
Id. El Dios crucificado. Op. cit. p. 352-353.

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paração semelhante,12 qualquer outra res- riência vivida por Moltmann não se deu de
posta seria blasfêmia contra Deus. Pois, maneira isolada, mas foi percebida, com-
um Deus impassível, o converteria em um partilhada e enriquecida juntamente com
demônio. Um Deus absoluto se converte- outras pessoas que compartilhavam da
ria em nada e um Deus indiferente conde- mesma situação.
naria a humanidade à indiferença.13 Esta Era um período difícil em que todos
experiência vivida por ele o liga de ma- procuravam se libertar da sensação de
neira também solidária para com aqueles culpa que os aprisionava em seus medos.
que sofreram em Auschwitz. “É Deus em Parece-nos que, neste momento, muito
Auschiwitz e Auschiwitz em Deus crucifica- antes da esperança se manifestar, o gran-
do”,14 aludindo ao nome de sua obra. de desafio era se sentir perdoado, acolhi-
Este é o fundamento de uma esperan- do e aceito. A culpabilidade, mais que o
ça real, tanto transformadora como su- próprio muro, os aprisionava a ponto de
peradora do mundo e a base para um questionarem a própria vida e indagarem:
amor que é mais forte que a morte e
que pode sujeitar o morto. É a razão de “como pode alguém viver com isso?” Para
viver com os medos da história e de seu ele, o fato de ter sido salvo não foi uma
final e, ainda, permanecer no amor e dádiva, mas uma incumbência, que aos
contemplar o vindouro aberto ao futuro
poucos, por meio de um sentimento de
de Deus.15
esperança, começa a despontar.
Toda esta experiência, agora refletida
à luz de Cristo, leva Moltmann a questio- 3. A esperança
nar-se: “Por que não estou morto tam- atrás do arame farpado
bém? Para que vivo? O que dá sentido à
minha vida? É bom viver, porém é duro Ao retornar sempre para aquele mo-
ser um sobrevivente. É preciso suportar o mento hostil, ele consegue refletir que,
peso do luto”.16 De fato, trata-se ainda de naqueles anos, a esperança foi a sua única
uma culpa imensurável que o percorreu companheira e, também, o motivo de sua
desde o incidente em Hamburgo em que vida e de sua liberdade futura. Neste pe-
sua cidade natal foi bombardeada. Esta li- ríodo, passou a refletir sobre a condição
bertação que foi proporcionada pela espe- humana, a liberdade e a sua relação com
rança e, no caso, a esperança cristã, só foi Deus. Isto virá futuramente transpare-
sendo consolidada lentamente, como ele cer em sua teologia, destacada por todos
mesmo falou. Percebemos que esta expe- como Teologia da Esperança.17 Prova disso
é uma confissão de sua experiência – sem
liberdade – atrás do arame enfarpado,
12
Moltmann relata a história contada por E. Wiesel, já maneira como ele a relata:
citado anteriormente e que é sobrevivente de Aus-
chwitz, que oferece em seu livro Night, uma expressão Da experiência de um longo período
comovente para a teologia: “A SS enforcou a dois ho- como prisioneiro de guerra, entre 1945
mens judeus e a um jovem diante de todos os internos e 1948, menciono dois perigos da falta
no campo. Os homens morreram rapidamente, a ago-
de liberdade: A gente experimenta uma
nia do jovem durou meia hora. ‘Onde está Deus? Onde
está?’, perguntou um atrás de mim. Quando depois de
hostilidade de fora, contra a qual não
longo tempo o jovem continuava sofrendo, enforcado tem mais como se defender, e por isso
no laço, ouvi outra vez o homem dizer: ‘Onde está nos recolhemos à nossa concha inte-
Deus agora?’. E em mim mesmo escutei a resposta: rior para proteger-nos contra o mundo
Onde está? Aqui... Está ali enforcado no madeiro”.
Ibid. p. 393.
13
Ibid.
14
Ibid. p. 399. 17
Dentre as várias obras em que ele relata esta temá-
15
Ibid. tica, destacamos aqui a seguinte: MOLTMANN, J. La
16
Ibid. dignidad humana. Salamanca: Sígueme, 1983.

18 Cesar Augusto KUZMA, Da esperança à teologia da esperança


exterior hostil por meio da indiferença que chamamos de experiências de Deus,
e da passividade. Mas com isto nos- despertam em nós a esperança de viver,
sas energias vitais ficam bloqueadas. começamos a nos revoltar contra a apa-
A gente não tem mais respeito por si tia dentro de nós e contra o arame far-
mesmo. Deixamos de ter confiança pado ao redor de nós, nos arranhamos,
em nós mesmos. Além disso, a gente nos ferimos. Começamos a sofrer cons-
aprende a conviver com o arame far- cientemente e a chorar. Os gemidos e o
pado e com a vida sem liberdade. A choro dos prisioneiros sempre são os pri-
gente procura apagar-se, para não ter meiros sintomas de vida neles, não são
dificuldades. Mas isto significa que a de forma alguma sinais de morte.19
gente se submete interiormente. Esta
submissão passa a ser dependência e
esta dependência tira a capacidade de Para compreender a esperança atrás
se tomar decisões. A fraqueza de im-
pulsos evolui para uma apatia geral. A
do arame farpado ele nos lança um de-
gente não vive mais, apenas se deixa safio. Este desafio é reacender em nós
levar. Quando então tudo passou a ser
indiferente, a gente não sente mais o a chama da ressurreição e buscar nas
arame farpado.18 promessas de Deus uma justificação
para o mundo, de forma a transformá-lo
Ao relatar estes dois perigos (auto- pela força da presença de Deus em nós.
desprezo e acomodação), MOLTMANN nos “Dessa forma, a fé em Cristo transforma
faz perceber que a linha que separa a es- a esperança em confiança e certeza; e a
perança da desesperança é muito tênue. esperança torna a fé em Cristo ampla e
Isso faz com que quem esteja em cima dá-lhe vida”.20 Diante da vida que a res-
dela possa facilmente enveredar-se de surreição nos traz, calcada pela esperan-
um lado para outro. Ou nos revoltamos ça da cruz, não podemos deixar que a
com a situação e partimos para cima, su- apatia venha a tomar conta de nosso ser.
perando os obstáculos e as adversidades, Precisamos superá-la, desafiá-la, vencê-
rompendo de uma vez por todas com o la e conquistá-la. Aliás, esse é o objetivo
arame farpado, ou nos conformamos com da esperança cristã, sustentada na vida
a situação. Ao nos conformarmos nos re- que vence a morte, numa certeza pela
colhemos e perdemos a confiança em nós promessa na vinda do Senhor que vem.
mesmos. Quando a esperança dá lugar à É o que desperta em nós a esperança de
desesperança, tendemos a nos apagar e viver, que nos impulsiona para frente, a
a nos submeter à dependência alheia. O ponto de nos lançarmos definitivamente
pathos dá lugar à a-patia. É por essa razão frente ao arame farpado e rompê-lo.
que a esperança cristã alicerça-se sempre
Refletindo a partir desta confissão, o
na fé. Elas são companheiras inseparáveis
autor nos remete a algumas indagações:
em meio às turbulências decorrentes da
Estamos hoje também atrás de um arame
fraqueza humana. Sem elas ficamos vo-
farpado? Será que, como cristãos, porta-
lúveis e tudo passa a ser indiferente, não
dores da verdade da fé e da ressurreição,
se sente mais o arame farpado, como ele
não estamos encurvados numa concha,
mesmo diz.
de maneira passiva, indiferentes, prote-
Moltmann prossegue:
gidos de um mundo hostil? Será esta a
Nestes dois perigos, o do autodesprezo missio cristã? Onde está a nossa espe-
e o da acomodação, perdemos a vida e
rança? Será a esperança passiva, ou em-
nos entregamos. Mas no momento em
que nossa vontade de viver se reacen- basada numa pro-missio? Que promissio?
de e em que determinadas experiências,
Que missio?

18
MOLTMANN, J. O Espírito da vida. Uma pneumatologia
integral. Tradução Carlos Almeida Pereira. Petrópolis, 19
Ibid.
RJ: Vozes, 1999. p. 106. Grifos nossos. 20
Id. Teologia da esperança. Op. cit. p. 35.

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Responder a estas interpelações é a Conclusão
proposta que seguiu com Moltmann na Te-
ologia da Esperança. Para ele, a promissio Falar de Moltmann é falar de alguém
cristã fundamenta-se na fidelidade ao Deus que se alicerçou na esperança para se
da promessa, que por sua vez mantém-se manter vivo e para compreender a falta
fiel. Lança-se aí a uma missio. Diante da
daqueles que não estão. Em sua teolo-
miséria e da crueldade presente no mundo,
gia a esperança aparece como elemento
onde choro e gemido passam a fazer parte
que liga o presente ao futuro e traz este
de um cotidiano corrupto e injusto, é lícito
como realidade última (éschaton). Neste
descobrir nestes sentimentos sinais de vida
caso, o futuro, garantido por um passa-
em meio à morte e à destruição. São os
do de promessas, assume o presente e
sintomas de vida de que nos fala o autor,
o transforma. Não é o presente que vai
que alicerçados na esperança, procuram
ao futuro, mas o futuro que vem ao pre-
romper todos os paradigmas dominantes
sente, como advento que está alicerçado
em busca da libertação plena e final. Nes-
no Cristo ressuscitado, que é o crucifica-
sas horas o grito, os choros e os gemidos
do. Logo, compreender como a esperança
clamam por uma libertação definitiva, ca-
paz de germinar num lugar hostil fragmen- cristã passou a fazer parte de sua vida,
tos de esperança.21 Vemos assim que estas nos proporciona um caminhar seguro
situações continuam e ainda persistem no para fundamentá-la e refleti-la em sua
pensamento de Moltmann. Ao retornar a teologia. Este caminho leva da esperança
elas, ele alinha-se ao Deus solidário e pro- cristã que ele experimenta à Teologia da
mitente e se sente assegurado por isso. Esperança que ele produz.

21
Encontramos uma boa reflexão sobre estas indagações
em outra de suas obras, confrontadas evidentemente
com situações mais atuais e cotidianas. Ver: Id. A ale-
gria de ser livre. São Paulo: Paulinas. p. 113-135.

20 Cesar Augusto KUZMA, Da esperança à teologia da esperança

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