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BRASÍLIA
2021
ADAIL PEREIRA DAVID
BRASÍLIA
2021
Dedico este trabalho à minha esposa, pelo
incansável apoio nesta caminhada; aos pacientes,
especialmente àqueles com dores crônicas, pela
confiança; enfim, a todos aqueles que foram vítimas
da Pandemia da Covid-19 para que suas dores e
perdas não sejam em vão, mas tragam uma nova
consciência ao mundo.
AGRADECIMENTOS
A Deus pelas luzes e graças recebidas durante todo esse curso, pois sem essa
conexão muito do que aprendi seria apenas informação, sem alcançar a sabedoria que
transforma.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7
CAPÍTULO 1..........................................................................................................................12
A MISSA COMO SÍMBOLO DO SAGRADO....................................................................12
CAPÍTULO 2..........................................................................................................................19
A MISSA COMO SÍMBOLO SAGRADO DE TRANSFORMAÇÃO..............................19
CAPÍTULO 3..........................................................................................................................25
A MISSA COMO SÍMBOLO PSICOLÓGICO DE SUPERAÇÃO DA DOR.................25
CONCLUSÃO.........................................................................................................................32
REFERÊNCIAS......................................................................................................................36
8
INTRODUÇÃO
A dor e o sofrimento são realidades que, em maior ou menor medida, tocam a vida de
todo ser humano, mais ainda quando se tornam crônicos e passam a fazer parte do cotidiano
da pessoa, eles exigem do indivíduo uma resposta, um motivo, um significado para continuar
vivendo apesar dos sofrimentos. A dor, quando perde o sentido, se torna uma tortura
existencial capaz de atentar contra a própria existência e culminar no suicídio físico, espiritual
ou psíquico.
Ao trabalhar com pacientes com dor crônica, faz-se importante refletir sobre o tema da
superação da dor em suas diversas manifestações. Uma constatação clínica muito frequente
tem sido a reiterada conexão entre o sofrimento e os temas religiosos, ora como causa, ora
como tentativa de aliviar a dor. A religião e o sagrado estão intimamente ligados ao tema da
dor e do sofrimento, a tal ponto que vários autores como Feuerbach (cf. 2007) e C. S. Lewis
(cf. 2006) indicaram o sofrimento como essenciais ao fenômeno religioso. Também do ponto
de vista social, o tema do sofrimento e da religião caminham juntos. Para Marx (1960, p.42),
“a angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e o grito contra
essa angústia verdadeira”.
Em todas as culturas, o tema do sofrimento está muito unido ao tema da religião e, em
cada uma delas, há uma forma simbólica de representação da dor como caminho de superação
e de transformação. O próprio Jung (2016b, 265) afirma que “em nossa época há muitas
9
pessoas que perderam sua fé [...] sobrevindo, porém, o sofrimento, a situação muda às vezes
drasticamente” o que realça essa conexão profunda entre o sofrimento e a fé religiosa.
Da angústia social ao sofrimento pessoal e intrasferível de cada indivíduo, o tema da
dor cruza invariavelmente o tema da religião. De forma muito especial, na cultura brasileira
atual, ainda majoritariamente católica de rito romano 1, o cristianismo oferece uma visão muito
peculiar de simbolização e transcendência da dor em sua principal figura prototípica: Cristo, o
“servo sofredor” (Isaías, 50). A Paixão de Cristo encontra-se no âmago da narrativa cristã,
especialmente na católica, cujos modelos arquetípicos de santidade passam invariavelmente
pela dor e pelo abandono. A Cruz tornou-se o símbolo ocidental mais relevante da dor e do
sofrimento. O cristianismo nasce da dor de um crucificado e revive essa realidade em cada
missa, que é o ritual sagrado de Imolação mais profundo e simbólico no imaginário cristão,
onde a Vítima Imolada é o próprio Deus feito homem.
De Agostinho de Hipona às mais recentes autoridades do cristianismo, sempre houve
uma estreita união da questão da dor à do sacrifício de Cristo. João Paulo II em sua carta
Salvifici Doloris (1984) faz uma extensa analogia do sofrimento pessoal e do sacrifício de
Cristo em sua Paixão. Já o atual pontífice, Francisco, frequentemente recorre ao tema do
sofrimento daqueles que vivem nas periferias existencias (cf. 2013) unindo-o ao sacrifício do
crucificado.
Para Jung, o tema das religiões também era muito caro e muito presente em seu
pensamento, o qual dedica inúmeras e preciosas páginas a esse assunto, tanto do ponto de
vista fenomenológico e psicológico, como simbólico e transcendente. Obras como Psicologia
e religião, Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, A resposta a Jó, Psicologia e
religião oriental e O símbolo da transformação na missa são alguns exemplos da importância
desse tema nos escritos junguianos. Jung nunca se furtou ao vasto potencial simbólico das
religiões, e nenhum autor moderno tem trabalhado tanto o tema do simbólico como Jung. É
justamente nesta abertura e compreensão do simbólico que ele aponta um caminho para a
transformação e alívio dos sofrimentos.
Por outro lado, a literalização e a perda do simbólico na cultura moderna têm sido
fontes de inúmeras psicopatologias e dores espirituais e emocionais. Daí a necessidade de
reafirma o valor profundo do simbólico. Jung se apresenta contra uma sociedade e uma visão
psicológica cada vez mais literalizada, cartesiana e cientificista, fechada ao transcendente,
presa na concretude da vida material, e que clama, em nome da ciência, a morte dos deuses
1
Segundo dados do IBGE de 2010: 65% da população brasileira era católica de rito romano e 22,4% eram
cristãos evangélicos. (IBGE, 2010)
10
(cf. NIETZSCHE, 2001, pg. 108), e para a qual “os deuses se tornaram doenças” (JUNG,
2003, p. 43).
Por isso, entre as propostas deste trabalho está a de reacender a discussão sobre o valor
simbólico da religiosidade no alívio dos sofrimentos, e traçar um paralelo entre as fases do
ritualismo sagrado da missa descrito por Jung, e o processo de simbolização como superação
da dor em pacientes com dores crônicas, especialmente aqueles influenciados pelos arquétipos
religiosos. Na sua obra O símbolo da transformação na missa, Carl Gustav Jung traz uma
ampla base de análise sobre esse ritual milenar dos cristãos no qual se encontram vários
elementos simbólicos sobre o valor transformante e transformador da dor e do sacrifício.
O tema da dor tem sido relegado quase que exclusivamente às farmácias e aos
consultórios médicos e psiquiátricos, cujo uso farmacológico para tratar os sintomas da dor
tem se tornado, em muitos casos, a única resposta conhecida e validada por alguns
profissionais. Da mesma forma, verifica-se também uma negação sistemática da possibilidade
simbólica e transcendente da psique por parte das várias correntes psicológicas materialistas e
positivista. Tudo isso abre espaço para a discussão da possibilidade e da eficácia de uma
abordagem psicoterapêutica simbólica capaz de auxiliar eficazmente os pacientes em
sofrimento.
É importante destacar que, apesar da missa ser um rito essencialmente cristão, seu
simbolismo transcende as religiões e encontra eco em muitas culturas e civilizações distantes
do cristianismo até mesmo no tempo e toca algo profundo e inegável na própria natureza
humana: o sacrifício, a dor e o sofrimento inocente. É interessante pensar que Jung, mesmo
não sendo católico, se esforça por penetrar e analisar esse ritual e encontra nele um valor
inestimável também do ponto de vista meramente psicodinâmico e simbólico. Por isso, neste
trabalho, a missa tem sido abordada em sua forma mais ampla e abrangente como ritual
sagrado e não essencialmente desde a teologia, nem dogmática católica, limitando-se assim à
análise feita por Carl Gustav Jung na obra O símbolo da transformação na missa (2016a).
A redenção por meio da dor e do sacrifício de Cristo são os temas centrais desse rito
sagrado e serão eles também o centro dessa pesquisa, uma vez que, na prática clínica em
pacientes com dores crônicas, sejam elas físicas ou psíquicas, há uma necessidade de maior
reflexão sobre o tema do sofrimento. Muitos desse pacientes aqui no Brasil são fortemente
imbuídos da cultura cristã com um duplo efeito: por um lado, procuram na religião um alívio
para suas dores; e, por outro, usam a religião como justificativa de permanência no
sofrimento, uma espécie de martírio necessário para a redenção. Em muitos casos, não há o
11
2
Nota do tradutor: A palavra Wandlung que foi usada por Jung permite ambas as traduções, seja como
Transformação ou Transubstanciação.
3
Do latim: “E morte de cruz”.
13
CAPÍTULO 1
A MISSA COMO SÍMBOLO DO SAGRADO
Para iniciar este estudo, é necessário fazer de uma breve diferenciação histórica do rito
da missa descrito por Jung na sua obra, conhecida hoje como missa tridentina que remonta ao
Concílio de Trento, 1563, e que foi substituído pelo novo rito da missa de 1967, no Concílio
Vaticano II, posterior, portanto, àquele analisado por Jung. Há uma mudança significativa
entre os dois ritos. Em seguida, é importante elucidar alguns pressupostos da psicologia
junguiana que servirão de base para este trabalho.
Coincidentemente Jung falece no mesmo ano em que o Papa João XXIII convocou
solenemente o Concílio Vaticano II (1961-1965) que daria início a uma profunda reforma no
seio da Igreja Católica e de onde viria também uma renovação do rito da missa, aprovada pelo
Papa Paulo VI. Dentre as mudanças, aquela que mais se popularizou foi a possibilidade de
celebrar o rito da missa em línguas vernáculas, derrubando assim a obrigatoriedade do latim.
Apesar da popularidade desta decisão, não foi essa a principal mudança na forma do
rito, pelo contrário, as mudanças foram tão significativas que geraram na Igreja Católica uma
divisão onde teólogos e liturgistas conservadores viram uma certa protestantização do rito
novo e consequente simplificação de vários ritos e gestos dentro da celebração eucarística.
Por esse motivo, é importante ressaltar aqui essa diferença entre a missa descrita por
Jung em seu livro e a missa do rito novo mais popularmente conhecida e vivida nas
comunidades católicas de hoje em dia. Como a obra se trata sobre O simbolismo da
transformação na missa, é claro que a simplificação do rito tem uma consequente perda de
vários aspectos simbólicos de grande importância para o autor, em especial, a mudança das
palavras nas diversas traduções e nas novas orações eucarísticas que foram introduzidas
necessitariam novas reflexões do ponto de vista simbólico e psicológico, os quais não serão
objeto deste trabalho.
Desta forma, o símbolo não é uma mera comparação, mas uma imagem visível cujo
significado transcende a materialidade da imagem e expressa “um aspecto abrangente
inconsciente que nunca se deixa exaurir ou definir com exatidão” (JUNG, 2016b, p. 202).
Portanto, quando Jung escolhe as palavras ‘símbolo da transformação’ como título, o faz
consciente de valor profundo desse ritual no processo de individuação.
Já na introdução, Jung fala sobre a importância psicológica deste estudo ao dizer que
“a missa é um mistério ainda bastante vivo” e “essa vitalidade se deve a um dinamismo
psicológico indubitável, e isso implica que a Psicologia deve estudá-la” (JUNG, 2016a, p. 11).
Quando Jung diz que “a psicologia deve estudá-la” aponta para um grande valor escondido
neste mistério. Mesmo que este não seja um estudo do mistério eucarístico em si, que é
próprio da teologia, ainda assim, sempre que os sujeitos são confrontados com ele, não podem
deixar de encontrar aqui uma centelha daquele mysterium tremendum et fascinans4 próprio da
religião e da “imagem do sagrado imanente em todos os indivíduos” (MAGALDI FILHO,
2009) como a Imago Dei.
A própria Individuação, neste sentido, é um processo de transformação. Cabe aqui
explicar o termo Wandlung que foi usado por Jung e que permite duas traduções
teologicamente diferentes, seja como Transformação ou Transubstanciação, a primeira se
refere aos aspectos mais acidentais, enquanto a última refere-se aos aspectos substanciais, e é
muito mais adequada quando se trata do que ocorre na Santa Missa. De forma análoga, não
estaria longe do que ocorre também no processo de Individuação tal como entendido por
Jung, isto é, como “um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato
é” (JUNG, 2017b, p. 64), desta forma, não se trata de uma mera mudança acidental, mas
transformação substancial que se aprofunda no mistério da psique humana.
Mysterium (μῠστήρῐον) tem sua origem na mistes grega, ou seja, nos iniciados em uma
alguma doutrina, demarcando assim o caráter peculiar do que ali se celebra. Quem não está
disposto a deixar-se conduzir, dificilmente irá vivenciar o mistério. Depois da Oração
Eucarística, o sacerdote, reconhecendo o que ali aconteceu, clama em alta voz para os fiéis:
misterium fidei. Eis o mistério da fé. De forma análoga, o que acontece durante o processo
analítico é um ritual de transformação profunda, quase que substancial, onde o sujeito é
iniciado no mistério da sua própria vida, de suas dores e sacrifícios.
4
Do latim: Mistério tremendo e fascinante.
16
uma de suas várias partes, um símbolo”, mas o símbolo, completa ele, “está muito abaixo do
nível do mistério que ele significa” (JUNG, 2016a, p. 16).
A missa é um ato sacrificial, portanto, está diretamente unido à dor e à oblação a Deus.
“O sinal da cruz coloca o pão em relação com o Cristo e sua morte na cruz, como sacrificium
(sacrifício). Isto lhe confere a qualidade de coisa sagrada” (JUNG 2016a, p. 17). Segundo
Jung, “no sacrifício misturam-se duas representações distintas: a de deipnon (δεῖπνον) e a de
thysia (θυσία). Thysia vem de thyein, que significa oferecer, imolar e também inflamar-se”
(2016a, p. 13), note-se aqui que o sacrifício não exige, de forma intrínseca, a dor de quem
sacrifica em nenhum dos dois significados propostos aqui por Jung, uma vez que deipnon
significa apenas ceia e não remete à ideia de autoimolação ou de dor. O sacrifício,
anteriormente entendido como sacrificar algo, traz a ideia da impessoalidade daquilo que é
sacrificado, o que contrasta com a visão do monoteísmo abraâmico, cuja prova de fé é o
autossacrifício. Abraão ao sacrificar o seu filho único, Isaac (cf. Gn 22, 1), oferece carne da
sua carne e, em Cristo, a autoimolação alcança seu ápice na cruz: “ninguém tira a minha vida,
mas eu a dou por mim mesmo” (Jo, 10, 18).
Em Cristo, o sacrifício simbólico atinge o máximo do seu significado, alcançando
assim o sentido de mysterium ineffabile5, no qual o Filho de Deus se oferece em Sacrifício
verdadeiro. Quando se compreende esta realidade, a missa deixa de ser apenas um “símbolo
antropomórfico de algo sobrenatural” (JUNG, 2016a, p. 16) e “ultrapassa a capacidade de
compreensão do homem” (2016a, p. 16) tornando-se um sublime mistério. Do ponto de vista
simbólico, o sofrimento vivido pelo paciente exige também uma análise que ultrapasse a mera
compreensão do analista-paciente e se abre à compreensão do Todo e à atuação do Self como
fonte de significado último, para o qual o analisando se permite ser canal de expressão desse
mistério. O paciente é também padecente e se sente vítima sacrificada, cuja dor é um mistério
intransferível e, muitas vezes, incomunicável – inefável.
Nos atendimentos a pacientes com dores crônicas, mesmo com descrições e relatos
repetitivos de suas dores, o terapeuta permanece distante, ele não pode compreender a dor do
outro, mesmo que se mova em compaixão. Como diz Jung (2016a, p. 100), “ninguém poderia
entender aquele que sofre se não lhe fosse dado, fora de si, aquele ponto de apoio de
Arquimedes, o ponto de referência do si-mesmo”. A dor do paciente é um mistério vivo
inenarrável. Mas o trabalho do analista não é a compaixão, nem mesmo o de dar sentido à dor
e ao sofrimento do paciente, exatamente porque não há um sentido racional na dor do
5
Nota do autor: Mysterium Ineffabile - Jean Baptiste François Lallouette 1651 -1728.
18
inocente, nem no sofrimento gratuito, pelo contrário, muitas vezes essas realidades são fonte
de revolta e de desespero.
“É justamente nos conflitos mais extremos e ameaçadores que o cristão sente o
processo de libertação que o conduz à divindade”, diz Jung (2018c, p. 73). O trabalho do
analista, assim como o do sacerdote que celebra a missa, é participar desse ritual de
transformação com grande reverência e dignidade, consciente de que o mistério que ali se
realiza é muito maior do que ele. Analista e sacerdote são apenas instrumentos do mistério
que se configura.
O sacerdote não dá sentido ao mysterium, ele se limita a seguir o ritual com atenção,
devoção e respeito. Para isso se prepara, busca ele mesmo adentrar-se no mistério, assume a
responsabilidade de viver cada gesto daquele ritual no seu sentido e significado profundo, em
outras palavras, o sacerdote se presta como canal para que o mistério aconteça, não é ele que
faz o mistério, mas sem ele a transubstanciação também não acontece.
O paciente, ao buscar ajuda, acredita no poder que reveste a figura do analista, uma
espécie de misticismo que o envolve e lhe confere a chave para a cura. Não é incomum que
ele veja o analista como um ser místico, revestido de poderes mágicos, quase um sacerdote ou
sacerdotisa capaz de desvendar os mistérios de sua psicopatologia, e isso não é, em si, algo
ruim, pois todo processo terapêutico envolve um ato de fé, que é a porta de entrar para o
mistério que ali se realizará.
O analista, ao contrário, deve ser plenamente consciente de que não é ele o sacerdote
desse sacrifício. Deve compreender seu papel de guia e de iniciador do paciente nessa arte de
autotransformação e levar o paciente à compreensão de que é ele, ao mesmo tempo, sacerdote
e vítima, na qual se realizará a transformação sacrificial. É o paciente que se entrega ao
processo, é ele, corpus imperfectum6, o único capaz de transformar-se em corpus perfectum7,
guiado pelo Si-mesmo.
Dessa forma, o diálogo com o analista se torna apenas uma formalidade ritual e perde
espaço para o mistério sublime que ocorre no interior do paciente quando este se consagra
verdadeiramente ao processo. Agora, a morte se torna iminente, e a batalha contra ela uma
verdadeira agonia. A transformação do corpus imperfectum em corpus glorificationis8 exige a
morte, e sem ela não há vida. O pão e o vinho oferecidos devem se tornam Corpo e Sangue
por meio da imolação sacrificial de Cristo.
6
Do latim: Corpo imperfeito (JUNG, 2016a, 19).
7
Do latim: Corpo perfeito (JUNG, 2016a, 19).
8
Do latim: Corpo ressuscitado (JUNG, 2016a, 19).
19
CAPÍTULO 2
A MISSA COMO SÍMBOLO SAGRADO DE TRANSFORMAÇÃO
daquilo que a razão não controla, do que daquilo que é controlado por ela. O papel do
inconsciente no processo analítico, assim como na vivência do mistério, é de fundamental
importância. Enquanto o processo analítico permanecer preso à racionalidade, não se chegou
ainda ao ponto de catarse necessária para a transformação do paciente, como ocorre também
com as oferendas.
É muito importante perceber que o paralelo feito entre a Missa como Símbolo sagrado
de transformação e o Processo analítico encontra-se sobretudo no Simbolismo. O então
Cardeal Ratzinger (2015, p. 144) lembra, em seu livro sobre a Liturgia, que na missa cristã
“se realiza o culto divino feito por meio da palavra; não são mais sacrificados bodes e
bezerros, mas a palavra é dirigia a Deus como Àquele que sustenta nossa existência, e essa
palavra se une à Palavra por excelência, ao Logos de Deus”. Nesta afirmação, fica evidente o
importantíssimo papel da palavra no culto sagrado, como também o é no processo analítico.
Neste sentido, a palavra, o logos, não é um mero instrumentum. As palavras que formam o
diálogo analista-paciente possuem uma ação transformadora, como as palavras que o
sacerdote pronuncia sobre as oferendas que têm o poder de evocar a ação de Deus sobre o pão
e o vinho, transformando-os em Corpo e Sangue de Cristo. É por meio da palavra que toda a
ação terapêutica e transformadora toma lugar dentro do processo analítico. Por isso, o analista
deve estar religiosamente atento às palavras do paciente, pois é através delas que todo o
mundo simbólico do paciente se revela.
Muitas vezes, os pacientes querem uma ação de cura por parte do analista, como se
este tivesse poderes sobrenaturais, querem uma resposta quase que divina para seus problemas
e suas dificuldades, em especial, para aliviá-los de suas dores. Muitos chegam a desistir do
processo quando percebem que o analista não é um curandeiro, nem um mágico apto a
realizar por eles mesmo a alquimia da transformação da dor em conforto, do problema em
solução.
O abandono do processo terapêutico não é apenas abandono das sessões de terapias, é
algo ainda mais íntimo, é uma atitude quase que de ateísmo, pois é a perda da fé no processo
que deve acontecer em seu interior, não como um ato de poder curativo, mas como um ato de
devoção ao ato sagrado. A obediência ao poder sagrado envolve todo processo religioso, a
divindade exige submissão e respeito. Da mesma forma, no analítico a obediência faz-se
necessária para a atuação do sagrado que se expressa de forma multifacetária, seja através dos
sonhos, dos atos de sincronicidade, das palavras e gestos dentro do processo analítico ou das
intuições em forma de pensamentos que cruzam a consciência do paciente.
O materialismo científico não é ateu porque nega a possibilidade da existência de
Deus, mas por negar possibilidade de qualquer existência que não seja materialmente
dominada pelo poder da razão. Por isso, não raro os pacientes desejam que o analista ofereça
fórmulas de controle de seus estados patológicos, que lhes ensine como dominar suas
emoções, sentimentos e comportamentos, ou querem o poder alquímico da transformação,
mas não estão dispostos a passarem pela autoconsagração nem pela necessária imolação de si
para que ocorra o verdadeiro milagre da transubstanciação. Um ateu não suporta a ideia de
inconsciente nem de milagre, só reconhece a ciência e o que é consciente pela razão.
Jung (2016a, p. 24) segue dizendo: “na missa romana a consagração constitui o ponto
culminante, o momento em que se dá a transubstanciação ou transformação da substância do
pão e do vinho no corpo e sangue do Senhor”. Mais uma vez o poder das Palavras se revela
no ato de consagração da missa, palavras que são ritualmente lidas pelo sacerdote para evitar
qualquer erro ou troca das palavras sagradas, e Jung ainda ressalta essa importância ao afirmar
que “não se pode traduzir as palavras da consagração em língua profana, por causa da sua
santidade” (2016a, p. 24, nota 18). Como em um processo alquímico, cada gesto, cada palavra
é sumamente importante.
Também os gestos e as palavras do paciente devem ser tomados em sua originalidade,
como os sonhos que, ao serem narrados pelos pacientes, ganham forma e força em cada
palavra escolhida por ele para descrever as cenas oníricas. O papel do terapeuta em relação às
palavras do paciente deve ser no sentido primário de acolhimento, pois cada palavra é
23
importante, para só depois ampliar e oferecer conteúdo, como os fiéis oferecem o fruto da
terra e do trabalho para serem dispostos no altar, e não para interpretar o paciente, ou pior,
quando o terapeuta cai no erro de doutrinar o paciente com suas próprias ideias. É por esse
motivo que o latim foi, por muitos anos, a única língua permitida no ritual da consagração,
para que não houvesse a profanação deste mistério nem a interpretação circunstancial de
forma equivocada ou manipuladora.
A linguagem simbólica do inconsciente e dos sonhos não deve ser tomada com
leviandade, pois faz parte do mistério que, desde o Self, se revela na consciência do indivíduo.
Alguns pacientes se resistem à linguagem simbólica e aos sonhos, consciente ou
inconscientemente, muitos dizem não se lembrarem dos sonhos ou não vêm a importância
deles no processo, mas para Jung (2017a, p. 54) “os sonhos são uma fonte importante de
conteúdo do inconsciente”. O respeito à linguagem do sagrado não é uma mera imposição
ritualista, mas uma ampliação da consciência que se abre ao inconsciente, àquilo que num
primeiro momento parece incompreensível, mas logo se revela cheio de significado.
9
Tradução: Na pessoa de Cristo. Na doutrina católica durante a consagração não é mais o sacerdote quem atua,
mas é o próprio Cristo que revive sua Última Ceia.
10
“Este é o meu corpo”.
11
“Este é o cálice do meu sangue”.
24
deve levar os fiéis ao arrependimento cada vez maior de seus pecados, para que alcancem,
pelos méritos da paixão e morte de Cristo, a salvação eterna. Desta forma, o confronto com a
dor não deixa de ser um confronto com as nossas sombras, condição necessária para um
autêntico processo que visa à Individuação. Assim, pode-se dizer que há um paralelo
simbólico muito importante entre o processo analítico e o ritual litúrgico da missa como
símbolo de superação da dor.
26
CAPÍTULO 3
A MISSA COMO SÍMBOLO PSICOLÓGICO DE SUPERAÇÃO DA DOR
12
É o próprio cristo que está contido e é imolado incruentamente. Sessão XXII. H. DENZINGER. Enchiridion,
1921, p. 312
27
14
Do latim: “Da profundeza clamei a Ti, Senhor”.
15
Do latim: “Ó culpa feliz, que nos mereceu tão grande Redentor” (Exsultet do Pregão Pascal)
29
Como no processo analítico, tudo é material psíquico e pode ser trabalhado e desenvolvido
dentro do processo terapêutico, “aquilo que se sacrifica sob as figuras do pão e do vinho é, em
poucas palavras, a natureza, o homem e Deus, reunidos na unidade do dom simbólico” (idem,
p. 71).
No sofrimento, o ser humano é capaz de oferecer tudo, inclusive a própria vida. Uma
das justificativas da eutanásia e do suicídio é justamente o sofrimento, diante do qual tudo
perde o valor, até mesmo a vida, mas a vida humana já não é um sacrifício aceitável pelo
ritual da missa. Uma e única foi a Vida oferecida de uma vez por todas no sacrifício
eucarístico e nenhuma mais será aceita como oferenda perfeita. Somente Cristo, num ato
supremo, pôde entregar sua vida, e com ela toda a humanidade e a divindade, para a redenção
da primeira e a glorificação da segunda.
Jung (2016a, p. 72) compreende a dificuldade desta realidade e adverte: “encontramos
também da parte do sacrificante uma realidade psicológica complexa: o símbolo é Cristo, que
é ao mesmo tempo sacrificador e sacrificante”. No início dos processos analíticos,
frequentemente os pacientes se sentem simbolicamente sacrificados e martirizados em sua
inocência e, à medida em que o processo avança, eles se descobrem também como
sacrificadores de si, culpados por seu próprio processo de adoecimento, mesmo quando, em
realidade, não existam culpados pelos sofrimentos. O processo de Individuação, como o
mistério da cruz, não admite culpados. O pecado que levou Cristo ao sacrifício de si mesmo
não é um único ato individual, mas o coletivo dos pecados de toda humanidade. Assim, no
processo de Individuação não está presente apenas a inconsciência do sujeito, mas todo o
inconsciente coletivo. Não se trilha o caminho da individuação apenas para integrar a sombra,
nem mesmo para vencer o próprio pecado. A individuação é sempre um processo cósmico que
transcende o sujeito, afeta gerações e lança luz em toda sociedade.
Não há, portanto, um culpado, mas deve sim haver um sujeito disposto a aceitar esse
sofrimento que recai sobre si com a heroica missão de trazer à Consciência os conteúdos
simbólicos escondidos no seu sofrimento. Quando isso acontece, acontece também o milagre
da redenção. A Consciência daquele que sofre se ilumina, e com ela toda humanidade recebe
dessa luz, assim como toda humanidade partilha, consciente ou inconscientemente, dos
sofrimentos alheios. Não há sofrimento que seja tão particular que não se torne herança para a
humanidade, nem há redenção particular que não redima também o coletivo. “Nossa psique se
estende além dos limites de nossa consciência”, diz Jung (2016a, p. 73) e tudo o que em nós é
inconsciente se estende de forma inconsciente também para o mundo, inclusive nossas dores e
sofrimentos.
30
Quando o paciente se permitir entrar em sua dor, dentro de um ritual terapêutico, não
mais é a cura o que importa. Normalmente há um desejo de fugir da dor, eliminá-la o quanto
antes, mas esse gesto se assemelha a um ato profano de negação do mistério numinoso que
envolve a dor. Do ponto de vista teológico, não há redenção sem sofrimento; poder-se-ia
dizer, também, que do ponto de vista psicológico não há individuação sem dor.
A dor aponta para o caminho, é um componente de sublimação do ser humano, e
“assume até mesmo um aspecto de cura” (JUNG, 2016a, p. 90), mas a cura não é o objetivo
principal do processo, o objetivo é a transcendência do individualismo e a abertura para a
Individuação. A dor, mesmo a dor física, constitui uma participação mística nos mistérios que
identificam a alma do fiel com o Cristo místico e sofredor. Esta identificação conduz a alma
para sua realização na sublime Transformação, a qual “transcende o plano da consciência” e
alcança o Si-mesmo, ou seja, a totalidade. “Por isso, a missa pode ser classificada como um
rito de processo de individuação”, segundo Jung (2016a, p. 92). Ou ainda:
31
Portanto, a dor deve ser superada, mas isso não significa ser eliminada. Ela é superada
como no rito da missa, onde o processo não visa à cura do sofrimento, pelo contrário, por
meio da dor, se chega à transcendência. Da mesma forma no processo analítico, “para o
iniciando, seria um verdadeiro pecado se ele se subtraísse às dores da iniciação” (JUNG,
2016a, p. 90), é necessário superar o sofrimento adentrando nele, não fugindo dele. Isso não
significa intensificar a dor, mas simbolicamente penetrar e ampliar o sentido dele na vida do
paciente. Como diz João Paulo II (1984, n. 27): “mais do que qualquer outra coisa, o
sofrimento é aquilo que abre caminho à graça que transforma as almas humanas. Mais do que
qualquer outra coisa, é ele que torna presente na história da humanidade as forças da
Redenção”.
Parece paradoxal que a totalidade se expresse na fraqueza humana, mas o paradoxo é
apresentado por Jung (2016a, p. 94) como uma das características do mistério onde “há mais
preocupação com o incognoscível do que com a clareza, a qual retiraria ao mistério seu
aspecto obscuro, tornando-o assim conhecido” o que seria “uma usurpação que leva o
intelecto humano ao orgulho”. Esta mesma realidade paradoxal é muito conhecida pelos
cristãos que vêm na loucura da Cruz o caminho da Redenção.
Querer eliminar o sofrimento sem adentrar em seu mistério é uma tentação do orgulho,
tanto do analista, quanto do paciente, mas "Deus resiste aos orgulhosos, e dá sua graça aos
humildes" (Tg 4, 6). A humildade é fundamental no processo analítico. Sem humildade diante
dos movimentos do Inconsciente e do Si-mesmo, não é possível levar o processo a seu fim
último, à Comunhão plena com a Imago Dei no indivíduo. Só na humildade e na sua fraqueza
o paciente pode alcançar a Imitatio Christi17, segundo Jung. Ou, como diz São Paulo: “já não
sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 19).
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Participation mystique. Termo que provém de Lévy-Bruhl, significa uma espécie singular de vinculação
psicológica com o objeto. Consiste em que o sujeito não consegue distinguir-se claramente do objeto, mas com
ele está ligado por relação direta que poderíamos chamar identidade parcial. Esta identidade se baseia numa
unicidade apriorística de objeto e sujeito. A participação mística é, portanto, um resíduo desse estado primitivo.
Não atinge o todo da relação sujeito-objeto, mas apenas certos casos em que se manifesta o fenômeno dessa
relação peculiar. A participação mística é naturalmente um fenômeno que melhor se pode observar nos
primitivos; mas também é encontrável com frequência entre os civilizados, ainda que não com a mesma extensão
e intensidade. (JUNG, 2015, nota 856)
17
Do latim: Imitação de Cristo. (JUNG, 2016a, 113)
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CONCLUSÃO
que Cristo como Homem verdadeiro padeceu no seu corpo, mas também do sofrimento
espiritual e psíquico, porque também Cristo, Filho de Deus, sofreu pelos pecados de toda
humanidade.
No rito da missa estão simbolicamente presentes diversos elementos que fazem parte
do processo analítico, a começar pela figura central da missa: Cristo. Jung (cf. 2016a, p. 100)
mais de uma vez retrata o Cristo como símbolo da Totalidade, do si-mesmo, do centro e da
transcendência. Portanto, mesmo fora da fé cristã, Cristo também toma uma dimensão muito
importante dentro do processo analítico e do simbolismo psicológico. Na missa, Ele é, ao
mesmo tempo, Sacerdote e Vítima, ou seja, Cristo é a Vítima que se sacrifica porque também
é o Sumo Sacerdote. Também o paciente se percebe nesta árdua tarefa de ser ele o único sumo
sacerdote capaz de realizar o sacrifício verdadeiro de si mesmo. Por melhor que seja o
analista, apenas o paciente tem o poder de realizar sua transformação.
E como foi amplamente demonstrado, durante a missa não ocorre uma simples
transformação do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Cristo. O processo de
transubstanciação é um ato divino que necessita da colaboração humana. Do mesmo modo, o
que ocorre no interior do paciente durante o processo analítico não é mérito da sabedoria ou
do trabalho humano, estes atuam apenas como causas instrumentais, mas o verdadeiro agente
dessa transformação supera em muito as capacidades do analista e do paciente. É somente na
abertura para a Totalidade que a transformação pode acontecer e a Individuação se torna
possível.
Por outro lado, foi demonstrado que a missa, enquanto símbolo, é também
possibilidade de transcendência, e abre o caminho para a redenção da dor humana.
Lembrando sempre que a missa é um ritual sagrado, portanto, essencialmente aberto à
Totalidade. A dor não tem significado se estiver fechada em si mesma. Isolada dentro da
consciência egóica do indivíduo, a dor está fadada a se tornar um sofrimento cada vez maior e
mais incompreensível. Ao contrário, quando o indivíduo se abre para a totalidade de si-
mesmo e decide percorrer sua própria jornada interior na dialética analista, se abre também
para a possibilidade de transformação e de superação da dor. Mas não basta a decisão, da
mesma forma como ocorre em todos os processos alquímicos de transformação, também o
processo analítico tem seu ritual, sua dinâmica simbólica, que deve ser seguida
religiosamente, por isso, para Jung, era importante até mesmo manter as palavras da
consagração em sua língua original, o latim.
Quanto ao sofrimento, ele transcende a própria humanidade e revela um aspecto de
divino, ou demoníaco, que força o indivíduo a deter-se em sua jornada, força-o a prestar
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atenção a si mesmo e a dar uma resposta ao seu sofrimento. Diante do seu próprio sofrimento,
ninguém pode ser indiferente. Dessa mesma forma, o ritual sagrado da missa força o
indivíduo a uma pausa contemplativa diante do Sacrifício de Deus feito homem. Só um
sacrifício supremo pode se comparar ao sofrimento pessoal. Ninguém pode compreender a
totalidade do sofrimento do outro. Ele permanece sempre um mistério diante dos olhos
alheios, da mesma forma como o sacrifício eucarístico é, e será sempre, um mistério diante
dos olhos atentos dos fiéis.
Muitas vezes, diante do sofrimento apresentado pelo paciente, a única resposta válida
que sai do interior do mais experiente analista é um silêncio contemplativo e reverente. Às
vezes, o silêncio é o mais digno gesto para acompanhar a dor e o sofrimento alheio. Não raro
o analista se vê limitado em suas capacidades, não tem respostas aos clamores e anseios dos
pacientes, e reconhecer-se limitado é justamente o maior tributo que se pode fazer diante do
mistério sagrado do sofrimento. O que está para acontecer ali é algo divino e, portanto, supera
paciente e analista em suas capacidades. Como na missa, durante a consagração das
oferendas, o sacerdote já não atua segundo as suas potencialidades, mas atua in Persona
Christi. Cristo toma a ação santificadora das oferendas. Somente quando o processo analítico
se abre para a ação da Totalidade, também do que é inconsciente, é quando ocorre a
possibilidade da verdadeira transformação, da transcendência da dor no processo de
Individuação.
O analista não é a causa dessa transformação, é mero instrumento nas mãos do
verdadeiro Artífice da transformação. O paciente, iniciado nos mistérios sagrados pelo
analista, deve celebrar sua própria missa, viver seu próprio calvário, aceitar sua cruz e encarar
valentemente sua própria sombra. A cruz se torna o Nous, o Logos, o Caminho, a Porta de
passagem para a Totalidade (cf. JUNG, 2021a, p. 101). Não há missa sem aceitação voluntária
da cruz e, com ela, dos pecados de toda a humanidade que deverão ser superados no ato
supremo da Redenção. Também no processo analítico, o paciente sente o peso da cruz, às
vezes insuportável. Frequentemente, ele gostaria de dividir ou até mesmo entregar ao analista
a responsabilidade por sua cruz, mas a cruz é intransferível. Cada um é sacerdote de sua
própria transformação, e sua cruz é portal para a redenção e para a cura.
Cada parte do rito da missa revela o mistério escondido atrás do sofrimento humano,
não daquele sofrimento abstrato e metafísico, mas do sofrimento encarnado na vida de cada
paciente que se apresenta no consultório necessitado de ajuda. Portanto, a pergunta inicial
deste trabalho encontra uma resposta afirmativa dentro do processo de análise proposto por
Jung. Não apenas é possível, como se abre uma grande oportunidade de trabalhar com
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eficácia a superação da dor e dos sofrimentos físico e psíquico a partir do simbolismo do rito
sagrado da missa dentro do processo analítico.
Certamente não é a única via de acesso ao simbolismo sagrado do sofrimento, mas,
sem nenhuma dúvida, devo concordar com o próprio Jung (cf. 2016a, p. 116) ao dizer que “a
missa é a soma e a quintessência de uma evolução que durou milhares de anos”, por isso, é
importante não privar o paciente, quando a fé deste o permite e, por vezes até exige, de que
ele seja guiado pela Via Dolorosa que conduz à Imitatio Cristi19 e à superação do sofrimen
to; não pela negação, nem pela fuga da dor, mas pela aceitação, pelo confronto e pela
sublimação da dor como um processo redentor de encontro com a própria sombra e de
abertura à Totalidade.
A fuga desesperada da dor e o silenciamento medicamentoso imposto aos sintomas
têm privado a humanidade de uma bela jornada de crescimento psíquico e espiritual. Não que
a dor não deva ser aliviada sempre que possível, mas o que se apaga com o uso
indiscriminado de medicamentos não é apenas a dor, e sim o sentido dela na vida humana.
Qualquer ser humano entende, no mais íntimo do seu interior, que somos capazes de conviver
com a dor, mas nunca com a falta de sentido. Uma vida sem transcendência e sem sentido não
é vida humana, é apenas sobrevivência. Todavia, o processo analítico não se trata de
proporcionar uma sobrevivência, mais ou menos confortável, para seu paciente. Pelo
contrário, trata-se de conduzi-lo ao encontro de sua real essência. É um processo doloroso,
mas também glorioso. Uma transformação substancial que passa paradoxalmente pela morte
para que possa encontrar a verdadeira vida.
"Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica
só; se morrer, produz muito fruto" (Jo 12, 24).
19
Do latim: Imitação de Cristo.
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REFERÊNCIAS
______ Aion. Estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2016c.
MARX K., ENGELS, F. Sur la religion (SR), Paris: Éditions Sociales, 1960.
RATZINGER, Joseph, Introdução ao Espírito da Liturgia. 4 ed. São Paulo: Edições Loyola,
2015.