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TRADUÇÃO E COMPILAÇÃO: REGINALDO ALVES CAMPOE

A TERAPÊUTICA DAS DOENÇAS ESPIRITUAIS

UMA INTRODUÇAO À TRADIÇÃO ASCÉTICA DA IGREJA ORTODOXA

APROXIMAÇÕES PSICOLÓGICAS

LIMEIRA - 2015
Reginaldo Alves Campoe

A TERAPÊUTICA DAS DOENÇAS ESPIRITUAIS1

Introdução

A finalidade do cristianismo é a deificação do homem. “Deus se fez homem afim


de que o homem pudesse tornar-se deus”: tal é a fórmula pela qual os Padres (Irineu,
Atanásio de Alexandria, Gregório Nanzianzo, Basílio de Cesaréia, Cirilo de Alexandria),
ao longo dos séculos, têm várias vezes resumido o sentido da Encarnação do Verbo.

Unindo na Sua Pessoa divina, sem confusão nem separação a natureza divina à
natureza humana, Cristo restabeleceu a natureza humana do seu estado primitivo,
aparecendo assim como o Novo Adão e a conduziu à perfeição à qual ela estava destinada:
a perfeita semelhança a Deus, a participação na natureza divina (2 P 1,4). Ele tem deste
modo dado a cada pessoa humana que, na Igreja que é o seu corpo, estar unida a Ele pelo
Espírito, de tornar-se Deus pela graça.

A compreensão da Redenção em termos de resgate, encontra certamente seu


fundamento nas Santas Escrituras e, em particular, nas Epístolas de São Paulo. Mas isto
não nos deve fazer esquecer que, como observa Vladimir Lossky, “em geral, tanto nos
Padres como nas Escrituras, nós encontramos várias imagens para exprimir o mistério de
nossa salvação realizada por Cristo. Assim, no Evangelho, o Bom Pastor é uma imagem
‘bucólica’ da obra do Cristo; o homem forte, vencido por qualquer um mais forte que ele,
levanta suas armas e destrói sua dominação, é uma imagem guerreira que volta
frequentemente nos Padres e na liturgia: o Cristo vitorioso sobre Satã quebrando as portas
do inferno, fazendo da cruz Sua bandeira. Uma imagem medical, aquela da natureza
enferma curada pelo antídoto da salvação; uma imagem que se poderia chamar de
‘diplomática’ – aquela da esperteza divina que frustra a astucia do demônio, etc.”
Certamente, “a imagem empregada o mais frequentemente, tomada por São Paulo do
Antigo Testamento, é emprestada do domínio das relações jurídicas”, mas “tomada neste
sentido particular, a redenção é uma imagem jurídica da obra de Cristo, ao lado de muitas
outras imagens possíveis”, e “em empregando a palavra redenção [...] no sentido de um
termo genérico designando a obra salutar do Cristo em toda sua amplitude, é necessário
não esquecer que esta expressão jurídica tem um caráter figurado: o Cristo é o redentor,
ao mesmo tempo que ele é um guerreiro vitorioso da morte, um sacrificador perfeito, etc.”
(LOSSKY, Vladimir, À l’image et à la ressemblance de Dieu, 1967, p.95-108). A
utilização exclusiva da imagem do resgate e sua compreensão num senso muito estreito

* Esta tradução foi se ordenando a partir de algumas necessidades e buscas de aspectos comportamentais,
psicológicos e teológicos do mundo monástico. Não se teve a intenção de copiar nem burlar os direitos do
autor Jean-Claude Larchet.
Procurou-se manter fiel ao texto, às ideias e posições do autor, o que se colocou nas notas de rodapé foi
somente no intuito de acrescentar algumas abordagens psicológicas ocidentais.
Reginaldo Alves Campoe

manifesta rápido suas insuficiências e conduz mesmo a inconsequências teológicas, como


notadamente sublinha são Gregório de Nanzianzo.

Uma das finalidades deste trabalho é mostrar toda a importância que reveste a
Tradição ortodoxa a qual Vladimir Lossky chama “imagem medical”. Se os Padres têm
feito, como nós o veremos, um uso tão frequente nos seus ensinamentos, se se o encontra
na sua quase totalidade dos textos litúrgicos em uso na Igreja Ortodoxa e assim como no
texto ritual da maior parte de seus sacramentos, se a maioria dos Concílios tem
homologado nos seus cânones, enfim, se ela é recebida por toda a Tradição, é porque ela
constitui, uma parte particularmente adequada de representar o modo de Salvação, de um
valor pelo menos equivalente àquele da Redenção. [...] O Redentor é também o Salvador;
se nós somos resgatados, nós também somos salvos; ou se esquece de muito
frequentemente que o verbo σώζω (soté - salvar), frequentemente utilizado no Novo
Testamento, significa, não somente, “resgatar” ou “tirar do perigo”, mas também “curar”
e que a palavra σωτηρία (sotería - salvação) designa não somente salvação, mas também
a cura... O Cristo médico Mt 1,21; 8,16-17; 9,12; Mc 2,17; Lc 4,18.

Os Padres quase unanimemente, e desde os primeiros séculos, Lhe aplicarão de


maneira corrente o nome de Médico, e ajuntando em seguida os qualificativos de
“grande”, “celeste”, “supremo” precisando, segundo o contexto, “dos corpos”, “das
almas”, sublinhando que é o homem inteiro que ele vem curar.

A expressão das modalidades de salvação do homem em termos de terapêutica e


cura é frequentemente considerada por certos comentadores contemporâneos como uma
simples imagem. Isto é verdadeiro em alguns casos, mas em muitos outros é um símbolo
de que é necessário falar, fundado sobre a analogia natural que existe entre as doenças
corporais ou psíquicas e as doenças espirituais. Nós nos propomos mostrar que as
categorias médicas utilizadas se aplicam diretamente ao seu objeto e se revelam
perfeitamente adequadas à sua natureza mesma: a natureza humana decaída é na verdade
doente espiritualmente, e é uma verdadeira cura esta que se realiza no Cristo pelo Espírito,
por meio da vida sacramental, e se se admitir o homem decaído é espontaneamente
inconsciente de seu estado espiritual; porque as suas doenças espirituais não são tão
aparentes quanto às doenças corporais ou mesmo as doenças mentais. E é nesta condição
que o símbolo tem um papel indispensável a ser pensado.

É necessário observar de maneira eficaz a terapêutica e obter a cura, que constitui


o fim da ascese. Nós nos propomos em mostrar que é de maneira toda sistemática e
metódica que a ascética apresenta esta terapêutica, o que a torna uma verdadeira medicina
espiritual do homem total. Nós veremos ainda que aqueles que se dedicam à ascese são
correntemente designados nos textos patrísticos como terapeutas; terapeutas deles
mesmos primeiro, e depois, logo que avançam na via da ascese e, suficientemente
experimentados, daqueles que vem pedir ajuda para curar suas próprias doenças: é deste
modo que nos textos patrísticos, os Padres são correntemente chamados de “médicos”.
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Portanto, se a definição da terapêutica espiritual pressupõe um conhecimento


preciso das doenças e suas causas, este mesmo conhecimento exige que se tenha uma
noção precisa daquilo que é a saúde do homem, pois a noção de doença não toma seu
sentido senão na relação com esta. A terapêutica, no que respeita a que ela vise o
restabelecimento ou a aquisição da saúde, supõe igualmente que esta seja claramente
definida. [...]

TERAPÊUTICA DAS DOENÇAS MENTAIS

A doença mental sempre suscitou, de uma época à outra, de uma sociedade à outra,
e frequentemente no seio de uma mesma sociedade, atitudes contraditórias, indo até
tornar-se para uns uma mensageira do além, um mediador entre os homens e a divindade,
objeto de respeito e de veneração elevando até à função de sacerdote ou à dignidade de
profeta, e para outros, mais frequentemente, um sub-homem, companheiro ou escravo de
poderes maus, objeto de deboche e de uma exclusão podendo ir até ao isolamento,
enclausuramento, e mesmo à eliminação psíquica.

Correlativamente, a natureza e a causa daquilo que nós chamamos comumente


hoje doenças mentais tem o tempo todo imposto redobráveis problemas. Não se pode
mais impedir (prevenir-se) de considerar que elas envolvem, senão nas suas origens, pelo
menos nas suas manifestações, e em todo caso nas questões que elas suscitam as três
dimensões do ser humano – psíquico / físico / espiritual - e isto de uma maneira bem mais
imediata que as doenças do corpo. Portanto, é raro que estas três dimensões tenham sido
levadas em conta juntas por aqueles que têm tentado explicá-las, e pode se constatar,
examinando a história da psiquiatria (aqui entendida no seu senso amplo), que está tem
sempre tido grandes dificuldades em integrá-las todas as três e rápido se encontra as
tendências e divisões que privilegiam uma ou outra.

A psiquiatria moderna permanece paradoxalmente, em seu próprio seio, portadora


de divisões, sendo lugar para teorias e terapêuticas heterogêneas e mesmo contraditórias.
O clássico Manual de psychiatrie de H.Ey, P.Bernard e C.Brisset constata a coexistência
atualmente de quatro grandes tipos de teorias:

1) As teorias órgano-mecanicistas, que consideram que as doenças mentais tem uma


origem orgânica;
2) As teorias psicodinâmicas do inconsciente patogênico, que concebem como efeito
de forças inconscientes (Freud e seus discípulos, Jung);
3) As teorias sócio patogênicas de fatores do meio, que consideram as doenças
mentais como reações patológicas de natureza puramente psicológica diante de
situações infelizes ou difíceis (escola anglo-saxônica, Pavlov) ou de falhas de
comunicação, notadamente no seio da família (Bateson, Watzlawick e a escola de
Palo Alto);
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4) As teorias organicogênicas dinâmicas, que consideram que as doenças mentais


são constituídas por uma desestruturação do ser psíquico, esta desorganização
estando condicionadas por fatores orgânicos (Jackson, Janet, Ey).

Estas diferentes posições são em princípio exclusivas uma à outra:

- a primeira defende uma etiologia puramente orgânica e rejeita pois, todo fator psicógeno
ou sociógeno;

- a segunda colocando anteriormente os fatores psicógenos, recusa todo fundamento


orgânico das doenças mentais e, enquanto admitem a importância de certos fatores
relacionais, considera estas como endógenas;

- a terceira, rejeitando toda etiologia e toda intervenção de um inconsciente psíquico,


atribui as doenças mentais exclusivamente a fatores exógenos;

- a quarta exclui de tais fatores, mesmo com recursos do inconsciente e, enquanto admite
um substrato orgânico das doenças mentais, de fato não se faz depender diretamente e
mecanicamente seus sintomas, mas reconhece um papel essencial à dinâmica das forças
psíquicas na estrutura e evolução destas doenças.

Por vezes, no seio de uma mesma raiz teórica e prática, podem-se encontrar variações
consideráveis, divergentes e contraditórias (esta é particularmente simples em considerar
só as psicoterapias, e mesmo as psicoterapias de um mesmo tipo, por exemplo, a
psicanálise freudiana ou junguiana).

Portanto, é verdadeiro que, concretamente, muitos psiquiatras fazem prova


(evidenciam) de ecletismo numa prática que, na impossibilidade nas suas condições
fazerem prova de uma perfeita coerência, revelam frequentemente tateamentos, e por
vezes, é necessário reconhecer, de uma forma mais ou menos elaborada de “bricolagem”.

A constatação que, quanto aos resultados, todas as terapias deixam pensar: o fato de
que métodos tão heterogêneos, fundados sobre princípios teóricos tão diferentes até
contraditórios, tenham efeitos equivalentes, contradizem o principio lógico da não
contradição e podem facilmente conduzir a pensar que sua eficiência detém outra coisa
que aquilo que faz sua especificidade, a saber, uma atenção concedida ao doente, uma
escuta e uma avaliação na escuta...

Enquanto que a psiquiatria moderna, em cada uma de suas tendências, parece de certo
modo redutora, a concepção dos Padres tem o mérito de levar em conta as três dimensões
do ser humano: corporal, psíquica e espiritual [...]

Olhando as coisas sob o ângulo negativo, poder-se-ia concluir igual ineficácia destas
diferentes terapias em face de uma natureza que nestes casos, segundo o velho princípio
hipocrático, encontraria nelas mesmas os meios de sua própria cura.
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Os Padres, em primeiro lugar, não hesitam em comparar certo número de formas de


doenças mentais a causas orgânicas e em admitir para estas as terapêuticas colocadas em
prática pela medicina da época [...]

Eles admitem uma etiologia espiritual, de modo geral definida por uma ou outra
paixão desenvolvida [...] Esta etiologia é muito importante, porque concerne à maioria
das neuroses da nosografia2 clássica atual, assim como a certas formas de psicoses. Deste
modo a atitude que a psiquiatria moderna designa como ‘supervalorização’ ou ‘hipertrofia
do eu’, que está presente no seu mais alto grau na psicose paranoica, e em menor grau na
neurose histérica3, e naquelas maiores dificuldades racionais - sintoma presente na maior
parte das neuroses, - podem estar ligadas às manifestações que correspondem à paixão do
orgulho tal como a descreve os Padres. Na mesma ordem de realidade, aquilo que é
comumente chamado depois de Freud ‘narcisismo’ parece corresponder igualmente a
esta, mas se liga mais estreitamente ainda à paixão original da filáucia, o amor passional
por si mesmo que tem por objeto primeiro o corpo. A ansiedade e a angústia, presentes
na maioria das psicoses e em todas as neuroses, podem ser facilmente ligadas às paixões
de medo e tristeza tais como as concebe a ascética cristã oriental. A agressividade que se
encontra na maior parte das neuroses e em certas psicoses, pode estar ligada à paixão da
‘cólera’ no seu senso largo como lhe dão os Padres. A astenia4 sintoma comum a muitas
das doenças mentais, corresponde muito precisamente a um dos componentes essenciais
da paixão da acédia. Pode-se igualmente perceber uma ligação direta entre as neuroses
fóbicas5, classicamente definidas como ‘medos angustiantes’, e a paixão do ‘medo’. A

2
Descrição das doenças.
- A característica essencial do Transtorno da Personalidade Paranoide é um padrão invasivo de desconfiança
e suspeita quanto aos outros, de modo que seus motivos são interpretados como malévolos. Este padrão
tem início no começo da idade adulta e está presente em uma variedade de contextos. Os indivíduos com o
transtorno supõem que as outras pessoas os exploram, prejudicam ou enganam, ainda que não exista
qualquer evidência apoiando esta ideia (Critério A1). Eles suspeitam, com base em poucas ou nenhuma
evidência, que os outros estão conspirando contra eles e que poderão atacá-los subitamente, a qualquer
momento e sem qualquer razão. Estes indivíduos costumam acreditar que foram profunda e
irreversivelmente prejudicados por outra(s) pessoa(s), mesmo que para tal não existam evidências objetivas.
Eles preocupam-se com dúvidas infundadas quanto à lealdade e confiabilidade de seus amigos ou colegas,
cujas ações são minuciosamente examinadas em busca de evidências de intenções hostis (Critério A2).
(BARLOW e DURAND, p. 509)
3
Classe de neuroses que apresentam quadros clínicos muito variados. As duas formas sintomáticas mais
bem identificadas são a histeria de conversão, em que o conflito psíquico vem simbolizarem-se nos
sintomas corporais mais diversos, paroxismos (ex. crise emocional com teatralidade) ou mais duradouros
(ex. anestesias, paralisias histéricas, sensação de ‘bola’ faríngica, etc.), e a histeria de angústia, em que a
angústia fixada de modo mais ou menos estável neste ou naquele objeto exterior (fobias). LAPLANCHE E
PONTALIS, Vocabulário da Psicanálise), p.211.
4
A Astenia Psíquica é uma fadiga que é resultante de uma atividade psicológica e intelectual, digamos que
seja um estresse psicológico, como quando não se consegue mais ir adiante seja no estudo, ou seja, por uma
angústia acumulada.
5
As neuroses fóbicas são quadros caracterizados pelo medo de determinados lugares, objetos ou situações,
que determinam uma série de condutas de evitação e outras de segurança.
Causas: Segundo a psicanálise, a constituição desse quadro deve ser considerada uma atualização de
situações de conflito profundamente relacionadas com o complexo de Édipo. O seu padrão provém dos
primeiros medos e terrores infantis, normais na infância, e, por meio de um duplo mecanismo de projeção
e deslocamento, coloca no mundo exterior a situação de conflito interno. De acordo com a visão
psicanalítica, o fator que inicia esse processo especificamente é o medo da castração. O sujeito ficaria
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neurose de angústia pode ser facilmente situada no quadro desta mesma paixão de medo
e da paixão da tristeza. A psicose melancólica a uma ligação manifesta de uma parte com
a acédia e, de outra parte, e, sobretudo como ‘desespero’, forma extrema da paixão da
tristeza.

A nosografia e a terapêutica das doenças espirituais elaboradas pelos Padres


apresentam hoje ainda um grande interesse.

Em primeiro lugar elas são fruto de uma experiência acumulada por numerosas gerações
de ascetas que, por uma parte, exploraram a alma humana no menor de seus recônditos e
são trazidas a um conhecimento desta (a alma) extremamente fino e profundo e, de outra
parte, são aplicadas durante toda a vida a dirigi-la e transformá-la, adquirindo uma
eficácia notável.

Em segundo lugar elas visam o homem em toda a complexidade de sua natureza, tomam
em conta as múltiplas dimensões de seu ser, os problemas que lhe colocam sua própria
existência (notadamente aquele de seu sentido), seu destino global e sua relação com
Deus, a importância destes fatores na etiologia e na terapêutica das doenças mentais sendo
recentemente descobertos pela corrente de psicoterapias existenciais.6

A LOUCURA DE ORIGEM ESPIRITUAL

Para os Padres, uma primeira categoria de doenças mentais ou de formas de loucura


tem uma etiologia somática, e uma segunda etiologia a etiologia demoníaca, uma terceira
categoria tem uma origem espiritual. Ao passo que a primeira categoria tem uma causa
natural (decaída) e a segunda os demônios, a terceira categoria revela o livre arbítrio do
homem.

As doenças mentais que têm uma origem espiritual não devem portanto ser
confundidas com as próprias doenças espirituais. As doenças espirituais são constituídas
por uma desordem ou uma perversão da natureza (mais precisamente de seu modo de
existência) na relação pessoal do homem a Deus. As doenças mentais correspondem no
plano psíquico às desordens análogas àqueles que constituem sobre o plano do corpo as
doenças somáticas; trata-se de perturbações do psiquismo considerado em si mesmo, de
uma disfunção de sua natureza considerada segundo sua ordem natural.

recalcado por uma ideia edipiana (a fantasia inconsciente de perder a genitália por causa da ação ativa do
pai) que foi reprimida, e que se expressa de maneira disfarçada e diferente, mas com a mesma força afetiva.
Quando as fobias não são tratadas, o temor pode se estender, ampliando a variedade dos objetos temidos.
Sintomas: Existem três características constitutivas da estrutura fóbica: as condutas de evitação, o
permanente estado de alerta e a atitude de fuga. Os mecanismos de defesa e os sintomas são os mesmos.
6
V. FRANKL, A psicoterapias e sua imagem de homem; O Deus inconsciente; W.DAIM, Transvaluation
de la psychanalyse; I.CARUSO, Psychanalyse et synthèse personnelle; Psychanalise pour la personne.
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Mas tal distinção não pode ter, do ponto de vista da antropologia patrística, senão um
valor relativo, na medida em que a natureza não pode jamais ser considerada inteiramente
nela mesma, e se define fundamentalmente por sua relação com Deus, o homem sendo,
pela vontade do Criador, naturalmente ordenado a Ele em todas as faculdades de seu ser,
bem que ele dependa de seu livre arbítrio de fazê-lo agir segundo a natureza ou contra a
natureza. O modelo patrístico de saúde e de doenças espirituais se ligam pois ao modo de
exercício das diferentes faculdades do homem.

É deste modo que para os Padres uma parte importante das desordens que nós
consideramos hoje como puramente psíquicas revela de fato que são do domínio
espiritual. Neste sentido a nosografia e a terapia das doenças espirituais englobam a
psicologia de maneira indireta. De outro modo dizem que as doenças mentais (os
sintomas) de etiologia não orgânica são para eles tributárias de um diagnóstico e de uma
terapêutica espirituais.

As concepções da saúde e da doença mental na psiquiatria atual não seriam uma


referencia absoluta, sendo tributária de uma concepção de saúde e de normalidade onde
o movimento antipsiquiátrico particularmente tem sublinhado as incertezas, e mostra que
elas tomam por normas modelos eminentemente relativos e variáveis segundo a cultura
ou os modelos sociais que tem condicionado as suas concepções.

A diferença que existe entre a nosografia patrística e a nosografia psiquiátrica atual


não permite estabelecer relações numerosas e precisas. De outra parte, hoje mesmo há
variações notáveis entre as escolas e os países quanto à maneira de classificar e definir as
doenças mentais. A possibilidade mesmo de uma classificação coloca problema.

É também mais entre os sintomas que entre as síndromes que as aproximações são
possíveis.

Um fator importante de diferença é de outra parte dado ao fato que a psiquiatria atual
está constituída sobre o modelo das ciências médicas e está deste modo situado numa
perspectiva naturalista excluindo a priori toda referencia ao domínio religioso e moral.

TERAPÊUTICA DAS DOENÇAS ESPIRITUAIS


Reginaldo Alves Campoe

1 - FILÁUCIA – ψιλαυτία7

A filáucia8 é considerada por muitos dos Padres como a fonte de todos os males
da alma, a mãe de todas as paixões9, e em primeiro lugar das três paixões genéricas da
qual todas as outras são derivadas: gastrimargia, filargiria e cenodoxia.
“Incontestavelmente é ela, escreve são Máximo, que engendra a loucura dos três
pensamentos primeiros e fundamentais.”10

Há uma forma de virtuosa (Máximo o Confessor “aquela que se opõem à filáucia


perversa, maldosa, aquela filáucia boa e espiritual”), que pertence à natureza do homem,
que o Cristo recomenda no esquema do primeiro mandamento: “Tu amarás teu próximo
como a ti mesmo” (Mt 19,19; 22,39.Lc 10,27), e amar-se a si mesmo como criatura à
imagem de Deus e, portanto, a se amar em Deus e amar Deus em si.

Encontramos em santo Agostinho o amor como amizade dirigida à própria


Trindade:

7
- amor próprio exagerado – egoísmo – vaidade – egolatria – narcisismo – dela se origina três doenças
espirituais fundamentais: gula, vanglória, avareza.

“Transtorno de Personalidade narcisista – Todos conhecemos pessoas que possuem um conceito elevado
de si mesmas – talvez exagerem suas reais capacidades. Elas se consideram diferentes das demais e
acreditam que merecem tratamento especial. No transtorno, essa tendência é elevada ao grau máximo.

1. Possui senso grandioso de auto importância (supervaloriza realizações e talentos, espera ser reconhecido
como superior sem que tenha feito ações à altura);

2. Preocupa-se com fantasias de sucesso, poder, brilho, beleza e amor;

3. Acredita que é especial e único e que só pode ser compreendido por pessoas especiais;

4. Aproveita-se de relacionamentos interpessoais; isto é, manipula os demais para atingir seus objetivos;

5. Não possui empatia; não tem disposição para reconhecer os sentimentos e as necessidades alheias ou
identificar-se com isso;

6. Demonstra comportamentos ou atitudes arrogantes e insolentes. (Barlow e Durand, p. 532).

“James Strain, em 1978, formulou sete categorias de estresse no adoecimento: (cito somente aquela que
tem importância para o texto): Ameaça básica à integridade narcísica: Essa categoria compreende a
realização onipotente do indivíduo, do conceito de integridade física e do controle sobre o próprio corpo e
destino”. (Spinelli, p.39)
8
É um termo que parece cercar-se de significação, conhecido como algo como amor próprio ou egoísmo,
algo que cheira a mofo. Contudo, é um termo antiquíssimo passando por Platão, Aristóteles e Cícero.
(Hausherr, p. 07)
9
Máximo o Confessor, Evágrio, João Damasceno, Hésychius de Batos, Nicétas Stéthatos, Isaac le Syrien,
Théodore d’Édesse, Doroteu de Gaza.
10
O que fala Máximo o Confessor - o doutor da filáucia -, doutor nos dois sentidos, na sua obra, se fundou
o cristianismo e o neoplatonismo, além disto, exerceu uma profunda influência na visão medieval de
mundo. (Hausherr, p. 10)
Reginaldo Alves Campoe

10

“E se em virtude da caridade o coração de muitos irmãos tem se tornado um e


uma tem se tornado ali suas almas, ousarei dizer que Deus Pai e o Filho são um?
Se fossem dois, poderia dizer que a caridade entre eles é imperfeita...”
(Commento al vangelo di san Giovanni XIV). 11 Hausherr, p. 12)

A filáucia-paixão é uma perversão desta filáucia virtuosa e consiste ao contrário


no amor-próprio no sentido primeiro e não no sentido ‘adocicado’ do termo, quer dizer,
no amor egoísta de si mesmo, no amor do eu decaído, desviado de Deus e tornado para o
mundo sensível, conduzido a uma vida carnal e não mais espiritual. 12 Por esta última
razão, a filáucia é geralmente definida como um amor ou uma paixão pelo corpo (Máximo
o Confessor, Théodore d’Édesse, João Damasceno, Nicétas Stéthatos) e “por seus
pecados passionais” (João Damasceno). É necessário entender aqui por corpo, menos o
próprio composto somático, tal como ele foi criado por Deus na origem, submisso à alma
e espiritualizado, onde todos os órgãos eram orientados para Deus, mas principalmente o
corpo decaído ao qual a alma se subordina e que torna por seus sentidos e seus membros
o órgão primordial do conhecimento e da alegria (gozo) do mundo considerado de um
ponto de vista exclusivamente sensível , quer dizer, independente de Deus. O corpo, ao
contrário, designa aqui aquilo que o Apóstolo e a tradição chamam geralmente de a carne
(σάρξ - sarx). Também são Teodoro de Édessa define ainda filáucia como “disposição
passional”, e como “a satisfação de acordo com as vontades carnais”. São Nicétas
Stéthatos escreve no mesmo sentido: os físicos, “dominados pela filáucia... colocam todos
os seus sonhos na saúde e na alegria da carne”. E em outros lugares ele sublinha bem qual
é o fim desta paixão: “A filáucia é o amor insensato do corpo. Ela traz dentro de si [...] o
amar a si mesmo, o amar a sua alma, o amar seu corpo”.

São Máximo explica deste modo que este processo conduz o homem da ignorância
de Deus à filáucia e da filáucia às paixões: “Esta ignorância [...] distancia completamente
o homem do conhecimento divino por não preencher sua existência senão do
conhecimento apaixonado das coisas sensíveis. Está livremente entregue a somente
aquelas emoções dos sentidos a exemplo das bestas desprovidas de inteligência, o homem
distancia-se da beleza espiritual e divina, encontra, através da experiência da parte
exterior e corporal de sua natureza, uma criação que ele eleva (coloca) ao lugar de Deus,
porque ela responde melhor às necessidades de seu corpo. Como o corpo é da mesma
natureza que a criação elevada ao lugar do Criador, o homem cobre seu corpo de amor e
sonhos múltiplos. Com efeito, não se pode adorar a criação senão cuidando do próprio
corpo [...] Dedicado à servidão corrompida de seu próprio corpo e escravizado pela
filáucia, o homem deixa desenvolver sem cessar em si mesmo as paixões do gozo (prazer)
e do sofrimento”.

11
Idem, p, 12.
12
“O ser humano tende a se dissolver na vã tentativa de se bastar a si mesmo: o narcisismo – como Freud
já o sabia – só pode ser vivido como desespero da consciência mergulhada na própria miséria.”
Reginaldo Alves Campoe

11

A filáucia aparece, com efeito, fundamentalmente ligada ao prazer: ela é a busca


do gozo sensível, carnal, busca que, como nós temos visto, é determinante no processo
da queda do homem, em relação com a ignorância de Deus que ela fortalece [...]. São
Máximo explica: “Mais o homem se porta (desgasta) com as coisas sensíveis, através de
seus sentidos, mais a ignorância de Deus se sobrecarrega; quanto mais ele se acorrenta
por causa da ignorância de Deus, mais ele se vicia (depende) do gozo das coisas materiais
conhecidas pela experiência; mais ele se impregna deste gozo, mais excita sua filáucia
em função da consequência, mais cultiva a filáucia, mais inventa meios múltiplos para
obter o prazer, fruto e fim da filáucia.”

Muito se pode estabelecer, duplicando o sentido de filáucia – dilatentur spatia


caritatis – (Agostinho Discurso) para englobar no amor que se experimenta em si mesmo
um outro de si, a filáucia procede por divisões, abstrações, por carência de amor fora de
si. O filáutico se constitui ao mesmo tempo sujeito e objeto do seu próprio afeto.

Ao mesmo tempo em que na busca incessante e multiforme do gozo, a filáucia


coloca o homem na tentativa de evitar a dor que segue inevitavelmente o prazer. É em
resposta a esta dupla tendência que, segundo são Máximo, nascem todas as paixões. Este
último ponto evocado precedentemente, nós o examinaremos nas páginas que seguem
que são Nicétas Stéthatos considera tanto em razão de suas consequências quanto de sua
natureza, como um “mal imenso”.

Porque o homem não possui a verdadeira realidade senão em Deus, em se amando


independentemente de Deus, ele não pode se amar verdadeiramente, e se ilusiona crendo
se amar. Santo Théophilacte da Bulgária escreve: “O filáutico é aquele que não ama outra
coisa senão a si mesmo, donde lhe advém de não ter amor nem mesmo por si mesmo.”13

Contudo, não somente o filáutico não se ama, mas sem o saber, se odeia. Ele é,
diz são Máximo, “amante de si, contra si mesmo”.14 Com efeito, em negando Deus por
amor exclusivo de si mesmo (Diadoque de Photicé), ele nega a si mesmo no seu ser
essencial, renuncia ao seu destino divino e corta (rompe, afasta) da fonte de sua verdadeira
vida, executando, como nós já o notamos, um suicídio espiritual. “É verdadeiramente
terrível”, escreve são Máximo evocando a filáucia, “fazer morrer voluntariamente, por
amor das coisas corruptíveis, a vida que nós recebemos de Deus pelo dom do Espírito
Santo.” Assim, o homem cessa de praticar as virtudes (que são correlativas de sua
orientação para Deus) e abre a porta às paixões, em se fazendo o maior dano, pois estas
introduzem nele, portanto doenças, dúvidas, prisões, sofrimentos de toda sorte. Vivendo
na filáucia e em seu cortejo de paixões, “os homens”, diz são Máximo, “louvam (honram)
a própria causa da negação de sua existência e seguem a si mesmos sem saber a causa de
sua corrupção. [...] Os homens destroem como feras a sua própria natureza.”

13
Hausherr, p.13
14
Encontramos em Santo Tomás (1224+1274) uma aproximação com a “philautía” – amizade, mas amizade
como caridade, mas caridade num senso estrito e porque como próxima de Deus não pode ser definida –
Charitas est quaedam amicitia (Summa Teologica, II)( Hausherr, p. 13)
Reginaldo Alves Campoe

12

“Oh filáucia, ódio universal!” - escrevem Evágrio, são Théodore d’Édesse e são
João Damasceno: ódio de Deus , de si mesmo, mas também do próximo.”

O amor de Deus e de si mesmo em Deus, implica para o homem o amor de seu


próximo (1 J 5,1), portador como ele da imagem de Deus, chamado como ele a ser filho
de Deus por adoção e deus por graça; cada homem é para ele um semelhante e um irmão
em quem ele encontra Deus e se reencontra ou pelo menos uma outra parte da única
natureza humana. Em ignorando a Deus pela filáucia, o homem não pode mais amar
verdadeiramente seu próximo, pois o que funda este amor não aparece (surge) mais e ele
não se apercebe mais do elo transcendente que une os homens entre eles e a si mesmo. O
filáutico, por seu contrassenso (άλογια - alogia, quer dizer, por sua não percepção do
Logos, princípio de unidade daquilo que é distante (são Máximo) ao mesmo tempo em
que por sua separação com Ele), provoca a divisão daquilo que está unido. É assim que a
filáucia é a origem “desta divisão que reina presentemente na natureza”. Por causa dela,
“a natureza humana se esgota em mil pedaços” diz são Máximo confessor que escreve
ainda; “é a filáucia que nos distancia traiçoeiramente [...] de Deus e dos outros; [...] é ela
que disseca a única natureza em inúmeras secções.” Se separando dos outros pela filáucia,
o homem dilacera seus próprios membros. (São João Crisóstomo). Ou, insiste são João
Cassiano, “dilacerar seus próprios membros, é a ação de um violento e louco.”

Não se apercebendo mais de seu próximo, o que constitui sua realidade profunda,
e cessando de ser unido espiritualmente, o filáutico se priva de toda relação autêntica a
ele. É então que se instauram entre os homens dissemelhanças onde reinam o
desconhecimento recíproco e até ignorância mútua, a insensibilidade do face-a-face e a
ausência de comunicação verdadeira, mesmo em situações de proximidade objetiva,
como aquelas da célula familiar. Para os filáuticos, os outros homens cessam de ser
próximos, irmãos como sendo filhos do mesmo Pai e pertencentes em Deus por natureza,
para tornar-se estrangeiros (Col 1,21) e mesmo pior: rivais e inimigos.

Mas é também porque o filáutico procura antes de todas as coisas seu próprio
prazer pelo viés das múltiplas paixões que a filáucia engendra, pois esta se opõe ao amor
do próximo e carrega o ódio. Em lugar de visar à vantagem e o bem do outro, é a
afirmação de si mesmo e seu interesse próprio que o filáutico procura. Seu próximo não
é então o mais frequente para ele que um simples meio de obter os prazeres que ele quer
obter e se encontra assim reduzido para ele no lugar de um simples objeto.

O outro pode ser igualmente para ele um concorrente, um rival na afirmação de si


mesmo e procura de prazer, e lhe dirige então para toda sua agressividade. A filáucia é,
diz são Máximo, “aquilo que, por amor ao prazer nos faz tornar uns contra os outros,
nosso poder de cólera tornando-nos ferozes.” “A filáucia, nota ainda são Máximo,
bestializa a mais humanizada das naturezas e disseca a humanidade essencialmente una
em numerosas partes e antagonistas ou – a expressão não pode ser pior – mutuamente
destrutivas.” É igualmente neste fato que reside a divisão da natureza humana evocada
mais acima; como o fato, remarca o mesmo santo: “A filáucia dos homens [...] os tem
Reginaldo Alves Campoe

13

direcionados uns contra os outros [...] donde a divisão de uma única natureza em muitas
partes.”

Lá onde está o amor de Deus, “Cristo é tudo em todos (Col 3, 11) e não há nem
grego, nem judeu, nem circunciso nem incircunciso, nem bárbaro nem Scythe nem
escravo nem homem livre”, “nem homem nem mulher” (Gl 3,28). Lá onde reina a
filáucia, não se vê a não ser oposições, divisões, rivalidades, inveja, ciúme, dissenções,
inimizades, discussões, agressividade, todas as manifestações que são frutos desta paixão,
insociabilidade (João Damasceno), a injustiça (João Damasceno), a exploração de uns
sobre os outros (Théodoret de Cyr), e mesmo homicídio (Máximo o Confessor) e as
guerras (Clemente de Alexandria).

A filáucia aparece assim profundamente patogênica em muitos planos e é


considerada pelos Padres, tanto na sua natureza como nos seus efeitos, como do homem
que se tornou insensato (Pedro Damasceno) e como sendo ela mesma insensata (Nicétas
Stéthatos), e profundamente irracional (Máximo o Confessor).

A filáucia poderia se encaixar num tipo de neurastenia em que o sujeito se vê


impotente de interessar-se a qualquer coisa de outro que seja fora de si. Seria uma doença.
Poder-se-ia antes dizer que a filáucia-neurastênica é uma doença da deificação, uma
deificação doente. Contudo, podemos nos afastar desta determinação, pois nem todos os
filáuticos são neurastênicos, mas têm uma atração que os caracteriza: o egocentrismo – o
desejo de ver tudo gravitar em torno de si. No entanto não se devem confundir os dois
termos. A filáucia se apropria do termo pela falta de inocência, de delicadeza, de medida.
Ela vai se apropriar de tudo isto, e tornar-se simpática, pois diante do arsenal de
parônimos modernos, guarda no seu nome qualquer coisa de profundo. É necessário
retirar dela a sombra que guardam os falsos sinônimos modernos. Perdemos o escrúpulo
da precisão que é necessário às coisas da alma. O socrático “conhece-te a ti mesmo”
perdeu o posto para o frenético, conhece o mundo externo e desfrute tudo o que puder.
Distanciamo-nos do homem – este desconhecido – fazendo de tudo para impedir a
reflexão, fugindo do senso platônico, uma fuga que não consiste na assimilação a Deus
quanto possível. Fuga 15 em vista a um retorno feliz, ao “salva o que puder”, desordenado,
dormir e recomeçar. É obra da filáucia - segundo Máximo – esta falsa liberdade e
autêntica escravidão à própria obra. Uma tirania interna, progenitora da paixão,
mortalmente perdidos nos escombros das coisas. Ninguém considerará egoísmo termos
consciência em paz, pois amor próprio é uma qualidade de si mesmo e infinitas
possibilidades. A partir disto, está eliminada a necessidade de desconfiar de si mesmo,

15
O místico conhece epistemologia dura, pois não reconhece a teologia de autoajuda, isto é, não se afasta
do fato de que o humano guarda em si uma disfunção degenerativa ou que na carência de sermos absolutos
de nós mesmos, ficamos nos sentidos, na tentativa de sobrevivermos à catástrofe pessoal. Ficamos na
circularidade pessoal e na melancolia do fracasso, sem avançarmos para uma “fuga mundi” visto como
descondicionamento natural ou naturalismo infeliz. Talvez pudéssemos pensar como não humano – o que
falta às práticas contemporâneas da ateologia humanista que tende a reduzir tudo ao referencial humano,
como um tipo de célula narcisista.
Reginaldo Alves Campoe

14

não há defeito a confessar, ora, esqueceu-se que o “principio de salvação é culpar-se a si


mesmo”.16

Estes efeitos patogênicos são devidos àqueles que são em si mesmos uma doença
(Macário do Egito) consistindo na inversão contra a natureza, de uma tendência natural
do homem: que o amor seja virtuoso (Máximo o Confessor) indissoluvelmente ligado ao
amor de Deus e ao amor do próximo. É assim que santo Máximo escreve: “Pela filáucia,
[...] o diabo nos separou resolutamente de Deus e dos outros: ele distorceu o que era
direito, e desta maneira dividiu a natureza.”

2 - GASTRIMARGIA (γαστριμαργια)

A gastrimargia pode ser definida como uma busca do prazer de comer, dito de
outro modo, o desejo de comer em vista do prazer, ou ainda, negativamente em

16
HausHerr, p. 14.
Reginaldo Alves Campoe

15

comparação à virtude da qual ela constitui a negação, como a intemperança da boca e do


ventre. 17

Esta paixão toma duas formas principais: ela pode trazer consigo essencialmente
sobre a qualidade dos alimentos, e ela é então a busca de comidas saborosas, finas,
delicadas, desejo de que os alimentos estejam temperados com atenção; ela pode também
trazer essencialmente atenção sobre a quantidade, e é assim o desejo de comer muito. 18
No primeiro caso, é o prazer da boca, do paladar, que é buscado antes de tudo; no segundo
caso, é o prazer do estômago ou dos órgãos digestivos em geral. Nos dois casos, há a
busca de certo tipo de prazer corporal, é por isto que a gastrimargia pode ser classificada
entre as “paixões corporais”.

Mas mesmo que o corpo seja diretamente implicado, a gastrimargia não procede
diretamente das necessidades: uma prova disto é que o desejo ultrapassa frequentemente
a necessidade, por vezes mesmo muito além, notadamente como no caso da bulimia. 19
Isto permite considerá-la também como uma paixão da alma. Evágrio chamá-la em vários
lugares de pensamento passional, e são Máximo igualmente. O corpo não intervém, com
efeito, senão como instrumento de realização do desejo da alma. Evágrio pode ainda
escrever: “Aqueles que erradamente nutrem muito bem a sua carne [...], que eles se
prendam a si mesmos e não a ela”. (Traité Pratique)

Esta não é uma ideia de que o alimento seria em si mesmo impuro e mau ou que
a própria função da nutrição comportaria algum mal que faça a gastrimargia como uma
paixão, porque como o diz o Cristo, “não é aquilo que entra pela boca que torna o homem
impuro” (Mt 15, 11), e como o ensina o Apóstolo, “tudo aquilo que Deus criou é bom, e
nenhum alimento está abolido se se o toma com ação de graças” (Tm 4, 4). Detestar os
alimentos por eles mesmos como coisa má seria “uma abominação e sortilégio puro”
precisa são Diadoque de Photicé, que acrescenta: “Comer e beber dando graças a Deus
de tudo aquilo que se serve ou mistura não se opõem de forma alguma à regra da ciência,
porque ‘tudo é bom’ (Gn 1, 31)”.

Esta paixão não consiste pois no próprio alimento, na sua qualidade, mas de um
certo modo no seu uso, como o indica santo Gégroire le Grand: “O vício não está na
nutrição, mas na maneira de comer. Porque é completamente possível tomar alimentos

17
“Ao se colocar juntos o que sabemos sobre os transtornos alimentares, é importante lembrarmos que
nenhum fator parece importante suficiente para causa-los. Os indivíduos com transtornos alimentares
podem ter alguma vulnerabilidade biológica (acontecimentos estressantes) que os indivíduos com
transtorno de ansiedade. A ansiedade e os transtornos de humor são comuns também em famílias de
indivíduos com transtornos alimentares, e as emoções negativas juntamente com a “intolerância de humor”
parecem desencadear a compulsão alimentar” (Barlow – Durand, 320)
18
Esta é uma distinção feita por Doroteu de Gaza que a chama de λαιμαργία (laimargia = glutonaria) que
seria a primeira forma e a segunda a gastrimargia. Saint Jean Cassian ajunta uma segunda forma que ele
coloca em primeiro lugar, o desejo de adiantar o momento da refeição. Saint Grégoire Le Grand distingue
cinco modos de manifestação da gastrimargia, o primeiro corresponde ao citado por Cassiano e os outros
quatro podem ser repartidos entre as duas categorias distinguidas por Doroteu.
19
Bulimia é um transtorno alimentar que leva a pessoa a exagerar na ingestão de alimentos, o mesmo que
compulsão alimentar.
Reginaldo Alves Campoe

16

finos sem nenhuma falta, assim como absorver de pratos muito mais grosseiros podem
ser manchados pela culpa.”

Não é portanto no ato mesmo do comer que se encontra a paixão, mas na intenção
que aí se tem e no objetivo que lhe é dado pelo homem. “No uso do alimento, está uma
mesma ação de comer por necessidade e de comer por prazer, mas o pecado está na
intenção”, precisa são Doroteu de Gaza. A paixão reside pois numa certa atitude do
homem diante do alimento e da nutrição, mais precisamente num desvio por ele da
finalidade deste. É em efeito num fim preciso os alimentos tem sido dado por Deus aos
homens, e eles os fazem servir para outros fins, pervertem o uso, fazem dele um mau uso.
“As coisas que nós comemos, escreve são Máximo, foram criadas para um duplo fim:
alimentar-nos e nos servir de remédio. Comer por outros motivos, é fazer um mau uso
daquilo que Deus nos deu para nossa utilidade.” O homem respeita a finalidade natural
dos alimentos e da nutrição assim que se nutrem por necessidade, para conservar ou
preservar a vida de seu corpo, para guardar ou encontrar a santidade, mas fazem da
nutrição e da função nutritiva que está neles um uso contra a natureza quando o fazem
como um meio de prazer.

A gastrimargia não consiste no próprio desejo de nutrição, mas no desejo de


prazer que se pode alcançar quando se consome. É por isto que o abuso que constitui a
paixão não consiste somente em se nutrir além daquilo que é estritamente necessário às
necessidades do corpo, mais ainda procurar o prazer no próprio necessário.

Pela paixão da gastrimargia, o homem executa o mal, porque em procurando a


volúpia na nutrição, faz passar do desejo da nutrição e ao prazer que tem ao consumir,
antes do desejo de Deus, e, em se abandonando a este prazer carnal, se desvia e se priva
da alegria dos bens espirituais que lhe são superiores.

A atitude gastrimárgica é no fundo uma idolatria: os homens que a isto se


entregam “tem o próprio ventre por deus” diz são Paulo (Fl 3,19). “É o ventre que é um
deus sensível para aqueles que são escravos do seu estômago”, remarca em seguida são
Gregório Palamas. Por causa dela, com efeito, o homem sacrifica ao seu ventre e à sua
boca no lugar de sacrificar a Deus. Ele faz do sentido do gosto e de suas funções nutritivas
o centro de seu ser, o essencial de si mesmo, e ele se reduz de alguma maneira a eles. Ele
faz da nutrição um objeto de preocupação importante e, até em certos casos quase
exclusivo, e negligencia então aquilo que deveria em primeiro lugar e mesmo
exclusivamente interessá-lo e ocupá-lo. É a ela que ele rende o culto que deveria ser dado
somente a Deus, e sobre ela que deposita e transporta seus desejos que deveria ser objeto
exclusivamente Deus. Pela paixão da gastrimargia, a nutrição por outra parte adquire um
valor por ela mesma e serve ao prazer sensível no lugar de ser considerada como um dom
de Deus e de servir à glorificação d’Aquele que a criou. E é nisto igualmente que consiste
o desvio de sua finalidade natural que é assim de dar graças a Deus. O Próprio Cristo
revela esta finalidade e nos dá o exemplo da atitude normal assim que dá graças ao Pai
antes de distribuir o alimento àqueles que O rodeiam (Mt 15,36; Mc 8,6; Jo 11; 6,23). E
Reginaldo Alves Campoe

17

são Paulo afirma claramente que Deus criou os alimentos para que eles sejam tomados
com ação de graças (1 Tm 4,3), aconselhando em consequência: “seja pois que vós
comais, seja pois que vós bebais, façais tudo pela gloria de Deus” (1 Cor 10,31). A
gastrimargia constitui uma verdadeira perversão desta finalidade essencial da nutrição
que é de ser consumida eucaristicamente, já que nesta paixão o homem, em lugar de
alegrar-se em Deus e alegrar-se de Deus através deles, quer alegrar-se pelos alimentos
neles mesmos, fora de Deus. Por eles ele coloca uma barreira entre si mesmo e Deus em
lugar de utilizá-los como um suporte para elevar-se até Ele.

Em rendendo graças a Deus, pela nutrição que Ele concede, o homem se santifica
a si mesmo e santifica particularmente as funções da nutrição que estão nele; ele se nutre,
assim Deus, ao mesmo tempo em que dá o pão, sua nutrição torna-se assim para ele
duplamente fonte de vida. Ele santifica ao mesmo tempo os alimentos que ele incorpora
(1 Tm 4,5), e através deles, o cosmos que ele une assim a Deus, segundo a vontade
manifestada pelo próprio Deus ao primeiro homem. A gastrimargia ao contrário separa o
homem de Deus e nele as criaturas. Os alimentos, no lugar de revelar a Deus (são Isaac
fala de “aquele que viu o Senhor na sua própria nutrição”), no lugar de ser transparente a
Suas energias, de servir à glorificação de Deus e à deificação do homem, tornam, pela
falta do homem, para ele mesmo e para o mundo, um obstáculo ao encontro com Deus.
Cessando de ser fonte de vida, uma vez que cessam de serem unidos à fonte da Vida pela
perda de sua finalidade espiritual pelo uso perverso que faz, eles tornam por isto princípio
de morte, neste caso mesmo que creia por eles se assegurarem a vida.

À luz destas incidências teológicas e antropológicas, a paixão da gastrimargia


aparece menos banal que teria podido parecer de à primeira vista. Certos Padres vão
adiante até ver nela uma fonte mesmo do pecado original (João Clímaco, João Cassiano,
Callinicos, Isaac, o Sírio, Nil Sorsky). Em comendo com efeito do fruto da árvore à qual
Deus lhe havia proibido de tocar, Adão quis desfrutar fora de Deus deste alimento que,
com efeito, simboliza e representa todo o mundo sensível (Máximo o Confessor). A
gastrimargia neste fundamento original, manifesta claramente que ela opera uma ruptura,
uma separação do homem com Deus, e significa a perda da comunhão divina pelo homem
e nela pelo cosmos inteiro. A gravidade desta paixão se revela ainda no fato que ela é uma
das três tentações que Satã apresenta ao Cristo no deserto (Mt 4,3). Em lhe resistindo, o
Cristo, Novo Adão, restabelece entre a humanidade e Deus e, portanto, entre o cosmos e
a divindade, a comunhão que o primeiro Adão tinha rompido. Em se opondo ao diabo que
“o homem não vive somente do pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”, o
Cristo restitui ao homem seu verdadeiro centro. Ele não diz que o homem não se nutre do
pão, mas mostra a relação necessária que este deve manter com o Verbo. Ele denuncia as
dissociações e a idolatria que o pecado havia instaurado e curando a natureza humana que
nisto é vítima. Liberta enfim a humanidade da tirania do diabo, o intermediário desta
paixão, fazendo o suportar depois a falta original.

A gastrimargia, por todos os aspectos que nós temos evocado, e em particular pela
razão de que ela constitui uma perversão do uso natural e normal da nutrição, é qualificada
Reginaldo Alves Campoe

18

pelos Padres de doença (Doroteu de Gaza– João Cassiano). São João Cassiano, por
exemplo, diz a propósito das três formas desta paixão que ele descreveu: “Há ali três
centros principais de doenças da alma tão terríveis quanto elas são numerosas”.
Compreende-se igualmente que ela possa ser considerada por eles como uma forma de
loucura (Théodoret de Cyr, Máximo o Confessor). São Doroteu de Gaza toma, aliás, como
argumento suplementar a origem mesmo das chamadas “glutonaria” e “gastrimargia”:
“Μαργαίνειν (margaínein) significa nos autores pagãos “estar fora de si” e insensato é
chamado de μάργος (márgos). Quando chega a alguém esta doença (νόσος – nósos) e esta
loucura (μανία – mania) de querer encher a barriga, chama-se gastrimargia
(γαστριμαργία), quer dizer “loucura do ventre”. Quando se trata somente do prazer da
boca chama-se “glutonaria” (λαιμαργία – laimargia), quer dizer “loucura da boca”.

Doença e loucura, a gastrimargia não o é somente pelas atitudes que ela revela
quanto aos seus fundamentos: ela o é ainda em razão de suas numerosas consequências
patológicas, e isto em muitos níveis.

Outro é que ela tiraniza o homem, aliena-o ao seu desejo e ao seu prazer de comer,
torna-o indisponível para Deus e se distancia de seu centro, a gastrimargia tem por
caminho na sua alma, numerosos efeitos indesejáveis, ao mesmo tempo em que ela coloca
em perigo a saúde do corpo (Basílio de Cesaréia).

Os santos ascetas observam primeiro que o excesso de alimentos ou bebidas


(quaisquer que elas sejam) priva o espírito de energia (Basílio de Cesaréia) e de
vivacidade (Basílio), entorpece (Doroteu de Gaza, Callinicos, Isaac, o Sírio), mergulham
num estado de obscuridade (Isaac, o Sírio), torpor e sono (Isaac, o Sírio), consequências
que repercutem sobre a alma inteira. “Entorpecido pela multitude de comida, o corpo
torna o espírito (νους - nous) fraco (δειλός - deilós – palavra que significa igualmente:
tímido, relaxado, frouxo) e preguiçoso (δυσκίνητος – duskínetos - palavra que significa
igualmente: dificuldade de mover, lento)”, nota santo Diadoque de Photicé. Tal estado
torna difícil seu voo para as realidades espirituais, impede de conduzir como seria
necessário o combate ascético, torna penosa a prece (Evágrio, Isaac, o Sírio), engendra a
negligencia (Isaac, o Sírio) e enfraquece o homem consideravelmente. Santo Isaac
escreve que então “ele perde a metade de sua força, se bem que se pode dizer [...] que
antes de iniciar o combate ele se encontra submisso sem ter lutado. Ele é vencido pela
vontade relaxada da carne, sem que seus inimigos tenham passado pela menor pena.”
(Isaac, o Sírio)

Tal disposição tem ainda por efeito de arrastar para baixo todas suas faculdades,
orientando em primeiro lugar seus desejos para as preocupações carnais. Todas as
paixões, das quais esta em particular, faz são Máximo remarcar, “acorrentam o espírito
aos objetos materiais, o depreciam para a terra como o faria uma pedra muito pesada que
pesasse sobre ele, ele mais leve por natureza e mais vivo que o fogo”. Santo Gregório de
Nissa, por sua vez, evoca “o homem num pensamento grosseiro que olha para baixo”, e
Reginaldo Alves Campoe

19

ele constata com este modelo: “não vivam pelo estômago e aqueles que vivem pelo ventre,
se encontram distantes da vida de Deus” (Isaac, o Sírio).

Nesta situação, a inteligência, entorpece e abafada, perde sua capacidade de


discernimento (João Cassiano, Isaac, o Sírio) ou em menor grau encontrar-se-á alterada e
diminuída. A necessidade de comer e a sonolência (torpor) que resulta num impedimento
principalmente do homem considerar as coisas simples da fé, como faz notar o Abba
Poemen; seus julgamentos perdem da sua fineza; tornam-se incapazes dum pensamento
perspicaz; seu espírito, nota são João Cassiano, “encontram-se como que perturbados
(embriagados), e tornam-se mutáveis e instáveis”.

O abuso de comida e de bebida provoca ainda, notam os Padres, “a dúvida dos


pensamentos” (Isaac, o Sírio), o qual enlameia a alma. Uma multidão de pensamentos
passionais (λογισμοί - logismói)20 faz sua aparição na alma e vêm manchar e obscurecer
o espírito. (João Clímaco) São Isaac diz que o efeito do abuso de alimento, “é a
inteligência desregrada que divaga por toda a terra [...], estas são as imaginações impuras
[...] manchados por fantasmas e extravagancia das imagens plenas de cobiça que
atravessam a alma aí faz o que ela quiser em toda sua impureza”. (João Clímaco) “O
ventre muito cheio, diz ele ainda, faz do coração uma quádrupla porta de fantasmas
delirantes” (João Clímaco). Aconselha também: “Não entorpeça o teu ventre para não
lançar na confusão tua inteligência, não ser atormentado pela distração [...] não lance a
tua alma nas trevas, não conturbe teus pensamentos”. E são Gregório de Nissa explica
que “os prazeres da nutrição e da bebida, que se empanzinam, produzem necessariamente
no corpo, por esta falta de medida (disciplina) males independentes de nossa vontade,
porque a saciedade engendra mais frequentemente no homem tais paixões. Afim pois de
que nosso corpo permaneça soberanamente calmo e não seja mudado por movimentos

20
“Todo el combate del hombre tiene lugar em los logismoi dice literalmente “Macário”. Y por su boca
habla toda la tradición espiritual cristiana, empezando por el Evangelio. En efecto, Orígenes había tomado
Del evangelio de San Mateo su rotunda afirmación: “La fuente y el principio de todo pecado son los malos
logismoi. Los logismoi, esto es, los “pensamientos”, los “impulsos”, las “passiones”, los “vícios”, tales son
las principales acepciones que puede revestir este término, que quantas veces aparece en la literatura
monástica antigua... Nuestros maestros no advierten que no hay que entrar en liza a tontas y a locas, sino
“com conciencia” [...]. Dada su importância, los logismoi ocuparon, más que cualquier outra cosa, a los
monjes antiguos, muy particularmente a los “psicólogos del desierto”. (Colombás, 1998, p. 154)
“...τα δε εκπορευομενα εκ του στοματος εκ της καρδιας εξερχεται, κακεινα κοινοι τον αντρωπον εκ γαρ
της καρδιας εξερχονται διαλογισμοι πονηροι... Quae autem procedunt de ore, de corde exeunt, et ea
coinquiant hominem. De corde enim exeunt cogitationes malae..”.(Mc 7,14-16) (Novum Testamentum,
1944, p.139) “Ao contrário, as coisas que saem da boca vêm do coração e essas é que tornam o homem
impuro. Pois é do coração que vêm as más intenções (pensamentos)”. (Bíblia Sagrada, 1990)
“Ce sont aussi les dons de prophétie, de cardiognosie, scrutation des coeurs et des pensées secrètes ; de
diacrisis, discernement des esprits et de clairvoyance. Les startzi lisaient les pensées sans rien demander,
savaient le contenu d’une lettre sans ouvrir, ‘decachetaient’ les coeurs. Enfin, c’est l’art de pénétrer et
d’illuminer la subconscience. L’extériorisation emmédiate des pensées ou logismoï évite leur refoulement.
En devançant les découvertes de la psychologie des profondeurs, ils disaient : ‘Beaucoup de passions sont
cachées dans notre âme, mais échappent totalement à l’attention, la tentation les révèle. Qui manifeste ses
pensées est bienntôt guéri, qui les cache se rend malade. Discerne tes pensées, interroge um père capable
de les discerner .” (EVDOKIMOV, p. 79)
Reginaldo Alves Campoe

20

passionais que nascem da saciedade, é necessário querer ao que quer que seja não o prazer
mas a utilidade que defina em cada caso a medida da conduta da temperança”.

A gastrimargia abre assim inevitavelmente a porta uma multidão de paixões e as


desenvolve (Ammonas, Isaac, o Sírio) é por isto os Padres são levados a considerá-la a
mãe de todas as paixões (Ammonas, Máximo o Confessor, João Clímaco, Basílio de
Cesaréia, Jean Crisóstomo, Gregório o Grande, Nil Sorsky) e a fonte de todos os males.
(Doroteu de Gaza, Callinicos) Assim são João Clímaco levanta uma longa lista das
rejeições a esta paixão, o que ele diz numa prosopopeia: “Meu primogênito é o servidor
da luxúria; depois dele vem o segundo, o endurecimento do coração, e o terceiro é o sono.
De mim procedem um mar de pensamentos, ondas de sujeira, um abismo de impurezas
insuspeitáveis e inomináveis. Minhas filhas são a preguiça, tagarelice, desenvoltura,
gracejo, bufonaria, espírito de contradição, rigidez, obstinação, insensibilidade,
presunção, temeridade, jactância, que arrastam consigo a impureza da prece, o turbilhão
de pensamentos, e frequentemente infelicidade súbita e inesperada, as quais estão
estreitamente ligadas ao desespero, o mais nefasto de todos os meus descendentes”.
(Doroteu de Gaza) O mesmo santo acentua adiante que esta paixão tem igualmente por
efeito de secar as lágrimas dos santos na penitência como veremos toda a importância
posteriormente. Mas a paixão que a gastrimargia introduz principalmente e mais
imediatamente, é a luxúria, como já se viu nos textos anteriores.

TERAPÊUTICA DA GASTRIMARGIA: A TEMPERANÇA.

A ação terapêutica que visa curar o homem de seus males espirituais deve atacar
em primeiro lugar à paixão da gastrimargia, por uma parte porque esta paixão é a mais
grosseira, a mais primitiva, de outra parte porque a vitória sobre ela condiciona em uma
larga medida o combate contra as outras paixões. Por isto são Gregório o Grande escreve:
“Ninguém pode se sentir vitorioso no combate espiritual se primeiro não dominou em si
mesmo o inimigo que se camufla sob seus gulosos apetites. Seria um engodo querer entrar
em combate contra potencias distantes, assim que se for abatido por aquelas que são todas
vizinhas [...]. Certos homens, que ignoram a tática a seguir no combate, negligenciam
domar seu apetite (gulodice), mas se lançam nos combates espirituais: eles não deixam
de realizar por vezes coisas importantes que necessitam muito do temperamento, mas
dominados pela gulodice, pelos atrativos da carne, fazem perder todo o proveito daquilo
que eles tinham realizado com coragem”. (João Cassiano)

1. Nós temos visto, examinando a paixão da gastrimargia, que ela consiste em primeiro
lugar no desejar alimentos não com o fim de se nutrir, mas em vista do prazer que
procuram, e que este prazer é procurado pelo viés da qualidade, seja pelo viés da
quantidade, o que constitui nos dois casos uma verdadeira perversão da função nutritiva,
um desvio de sua finalidade natural e normal. A terapêutica da gastrimargia e a aquisição
Reginaldo Alves Campoe

21

correlativa da virtude da temperança (Evágrio, Barsanuphe) que lhe é oposta, consistirão


primeiramente em operar um retorno a esta atitude, dito de outro modo, tomar o alimento
exclusivamente por necessidade, é dizer unicamente em vista de assegurar a vida e a
manter ou restabelecer a saúde do corpo, evitando por uma parte toda a procura de
voluptuosidade sensível e, de outra parte, todo o excesso em relação à estrita necessidade
(João Crisóstomo, João de Gaza, Evágrio, Gregório o Grande). Assim são Basílio escreve:
“O objetivo da temperança se realiza deste modo: de uma parte se usa segundo suas
necessidades das coisas mais simples, necessárias à vida, evitando toda saciedade, e de
outra parte, se abstendo de tudo aquilo que seja por prazer.” Ainda sobre esta questão:
“Como a temperança exterminaria a concupiscência?”, são Máximo responde desta
maneira: “Incitando se a reprimir tudo aquilo que não responde a uma necessidade, mas
procura somente o prazer. Ela não permite admitir senão daquilo que é necessário por
viver; ela procura não o agradável, mas o útil, na busca somente necessidade de se nutrir
e beber.” (Diadoque de Pothicé)

A terapêutica da gastrimargia e a prática da temperança não poderiam pois


consistir em uma abstenção pura e simples do alimento. Não se trata assim de se abster
da alimentação – são Basílio lembra sobre esta questão que “toda coisa criada por Deus
é boa” e não deveria ser rejeitadas – mas tomadas sem paixão. Não se trata mais de odiar
o alimento, mas somente os desejos passionais que lhe são relativos. Santo Diadoque de
Photicé escreve muito claramente: “Os atletas devem se exercitar muito bem em odiar
todos os desejos irracionais, que eles contraiam o hábito deste ódio; mas a propósito dos
alimentos, seria necessário guardar a temperança de modo a jamais vir a detestar algum,
o que seria uma abominação e um puro sortilégio.”

O combate contra a paixão se completa principalmente pela renúncia ao prazer


sensível que a suscita e nutre. Esta renúncia se realiza primeiro pelo evitação das ocasiões
particulares de encontrá-la e pela recusa de encontrar as iguarias agradáveis (Doroteu de
Gaza). Mas subsiste uma dificuldade no fato de que o prazer se encontra naturalmente
ligado à função nutritiva. É necessário se esforçar, como o recomenda são Gregório o
Grande, de dissociar o prazer da necessidade e não se apegar ao primeiro. São Gregório
de Nissa escreve no mesmo sentido: “O homem sóbrio deve usar desta regra para sua
própria vida: jamais aplicar sua alma a um objeto onde alguma sedução de prazer se
encontra misturada, e, sobretudo, se guardar do prazer do paladar [...]. Para que o nosso
corpo permaneça soberanamente calmo e não seja perturbado por algum dos movimentos
passionais que nascem da saciedade, é necessário vigiar àquilo que seja não o prazer, mas
a utilidade que se defini em cada caso a medida da postura temperante e o limite do prazer.
E se o próprio consentimento (gozo) se encontra intimamente ligado à utilidade [...], não
é necessário repelir a utilidade por causa do prazer que a acompanha, muito menos,
seguramente, perseguir em primeiro lugar o prazer, mas convém em tudo escolher aquilo
que há de útil em toda coisa, contudo desprezar aquilo que encanta os sentidos.”
Transparece aqui que aquilo que é mal de fato, não é nem mesmo o prazer em si, mas a
busca do prazer e o apego a ele que constitui a paixão. É deste modo que são João
Cassiano observa atentamente: “O prazer que se encontra naturalmente no comer não é
Reginaldo Alves Campoe

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um mal essencial”; “se a ele não se acompanha da intemperança [...] ou de algum outro
vício, não se pode dizer que seja mal”. A temperança consiste pois, estritamente falando,
mais que abster-se do prazer, a não procurá-lo e a não se apegar a ele, mas mais
fundamentalmente a não lhe prestar nenhum atenção. E neste sentido que o Abba Poemen
aconselha: “Comer sem comer, beber sem beber.”

Porque a gastrimargia não se atém somente sobre a qualidade dos alimentos, mas
também sobre a quantidade, os Padres recomendam ao mesmo tempo evitar todo excesso
(Basílio de Cesaréia – Doroteu de Gaza) e tendo como princípio concreto de aplicação de
não comer nem beber à saciedade (Basílio de Cesaréia– Evágrio – Barsanuphe) e
permanecer sempre com algum pouco de fome e sede (João Cassiano – Isaias o Asceta).
São João Cassiano escreve assim: “A regra geral a seguir quanto à temperança consiste
em admitir [...] aquilo que é necessário para a nutrição para o sustento do corpo, não o
bastante para satisfazê-lo.” E mais adiante: “A sentença dos Padres é profundamente
justificada e provada pela experiência: a medida [...] da temperança consiste na privação
que a pessoa se impõe a quantidade de alimento; e a perfeição desta virtude, àquela que
é necessário dirigir, é a mesma para todos: parar de comer aquilo que nós somos forçados
a tomar para sustentar nosso corpo restando ainda um pouco de fome.” São João de Gaza
ensina a mesma coisa: “Ao modelo de medida da temperança, os Padres dizem que, seja
para o comer, seja para o beber, é necessário restar um pouco nisto, quer dizer não se deve
encher o ventre nem de comida nem de bebida.” Não comer à saciedade contribui par
afastar o prazer sensível que a busca leva a ultrapassar os limites do necessário (Gregório
o Grande), mas também a evitar as repercussões indesejáveis sobre o estado da alma e os
inconvenientes para a vida espiritual de uma nutrição e de bebida muito abundantes; ter
o controle da fome e da sede permite inversamente benefícios com certos efeitos positivos
sobre o jovem, mesmo que não se trate de um jovem no senso estrito (Diadoque de
Photicé). Deste modo são João Cassiano recomenda: “Que ninguém [...] coma à
saciedade. Com efeito, não é somente a qualidade, mas também a quantidade dos
alimentos que enfraquece a vivacidade do coração, entorpece o espírito tanto quanto o
corpo e atiça o lareira brilhante dos vícios”, porque “o espírito pesado (entorpecido) pelo
alimento, não pode mais guardar a regra do discernimento [...], todos os excessos de
alimento o tornam inseguros, mutáveis e instáveis”.

Se a regra de não procurar a voluptuosidade não se põe nenhum problema, a


questão de se ater ao que é útil, de se limitar ao necessário, de guardar a justa medida, não
são óbvias, estas noções são relativas a cada um. Santo Basílio observa assim que é
impossível definir uma norma válida para todos: “Quanto aos alimentos, como as
necessidades diferem para uns e outros segundo a idade, as ocupações e a constituição
física, é necessário regimes e tratamentos diversos. Resulta que não se pode, em uma só
regra, juntar todas aquelas que se impõem ao exercício da piedade[...]”, e se lembra a este
propósito o que está escrito nos Atos: “Deve-se dar a cada um segundo suas necessidades”
(At 2,45) (João Cassiano). A questão se põe desde então em saber como definir a medida
daquilo que é útil e necessário, onde finda o necessário e onde começa o excesso. Nestas
condições, volta à consciência de cada um avaliar aquilo que convém a sua própria
Reginaldo Alves Campoe

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situação. Assim são João Cassiano nota que deve se “procurar a perfeição da temperança
[...] primeiro no testemunho da consciência”. É ela que deve fazer prova do discernimento
indispensável. Santo Doroteu de Gaza insiste sobre a importância do discernimento:
“Aquele que quer ser purificado dos pecados [...] deve pois, se guardar da falta de
discernimento no alimento, porque, segundo os Padres, a falta de discernimento na
nutrição engendra todo o mal no homem.” Trata-se com efeito de determinar se o estado
atual do corpo favorece a vida espiritual ou se, ao contrário, ele é um obstáculo. Os
obstáculos são, por um lado, uma força muito grande do corpo, e, de outra parte, uma
grande fraqueza, que constituem dois excessos a evitar. Convém pois, nutrir mais o corpo
se se parece inapto a exercer seu papel na vida espiritual e se enfraquece a alma no lugar
de sustentá-la, deprimi-a e polariza sua atenção no lugar de estimulá-la, ao contrário, de
restringir sua alimentação que pela força excessiva entorpece a alma e favorece a
emergência e desenvolve pensamentos e movimentos passionais. Santo Hypatios ensina:
“Nós ordenamos de governar o corpo, afim de que ele não seja entorpecido de alimentos
e não faça soçobrar a alma nos pecados, e, de outra parte, que não se endureça e se abata
e não impeça a alma de se consagrar às coisas espirituais. Mas a alma deve forçar o corpo,
de modo que, assim que se enfraqueça, ela ceda um pouco, e logo que retome as energias,
ela afrouxe as rédeas.” Santo Doroteu de Gaza pontua no mesmo sentido: “Coma por
necessidade aquele que, tendo fixado uma ração quotidiana, a diminua, se pelo
entorpecimento que ela lhe cause, se dá conta que é necessário suprimir alguma coisa.
Se ao contrário esta ração, longe de entorpecer, não sustenta seu corpo e deve ser
ligeiramente aumentada, ajunte-se um pequeno suplemento. Desta maneira, ele avalia
justamente suas necessidades e se conforma em seguida àquilo que tinha sido fixado, não
para o prazer, mas com o fim de manter a força do corpo.” (Callinicos)

2. Nós temos visto examinando à paixão da gastrimargia que no seu caráter patológico se
atém não somente àquilo que constitui uma perversão, um uso contra a natureza da função
nutritiva, mas também e, sobretudo, ao fato que ela afasta o homem de Deus. Nós temos
visto também como ela constitui no fundo uma atitude idolátrica, o homem fazendo de
suas funções gustativas e digestivas o centro de seu ser e de sua satisfação uma causa de
preocupação e, por vezes mesmo, um dos fins essenciais de sua existência, dando a ela o
lugar que seria naturalmente de Deus.

A terapêutica da gastrimargia não pode consistir senão numa conversão, numa


mudança de atitude que permite ao homem de devolver o primeiro lugar ao desejo de
Deus, a atenção a Deus, e considerar que Deus é por ele o único absoluto, o único fim
verdadeiro de sua existência, que é a Ele “que se deve toda gloria, honra e adoração”, e
que os bens espirituais que se recebe d’Ele são as únicas coisas que convêm
verdadeiramente à natureza do homem e que são perfeitas. É deste modo que são João
Cassiano diz que é pelo “desejo de perfeição” que o homem deve se esforçar por
“exterminar a concupiscência do comer” e que não se pode livrar da escravidão da carne
e vencer a paixão senão pela concentração de seu olhar sobre as realidades espirituais. E
ele precisa: “Com efeito, nós não poderemos jamais desprezar o prazer dos alimentos
terrestres, se nosso espírito não se ligar à contemplação divina e não encontra antes sua
Reginaldo Alves Campoe

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felicidade no amor da virtude e na beleza dos alimentos terrestres”. E santo Barsanuphe


nota que aquele que “procura as coisas do alto, pensa nas coisas do alto, medita as coisas
do alto”, estes “esquecem-se de comer seu pão” (S 101,5), dito de outro modo, não
manifestam mais o apego nem atenção ao alimento.

É também rendendo graças a Deus assim que se nutre que o homem manifesta a
atenção e adoração devida a Deus somente e pode colocar fim à paixão. Nós temos visto,
com efeito, que na paixão da gastrimargia, o homem desfruta dos alimentos fora de Deus,
considerando-os em si mesmos e fazendo-os servir exclusivamente ao seu próprio prazer.
Ora, os alimentos são uma criação (direta ou indireta) de Deus e um dom de Deus aos
homens, é por isto que eles não têm valor por si mesmos, mas por causa de Deus, e são
destinados a ser consumidos eucaristicamente. É por isto que são Paulo ensina que Deus
os “criou para que sejam tomados como ação de graças por aqueles que são fieis e
conhecem a verdade” (1 Tm 4,3). O homem curado da paixão e retoma uma atitude
virtuosa por um retorno de sua atitude que lhe faz cessar de considerar o alimento em si
mesmo e de fazê-lo servir ao seu próprio prazer, pelo contrário considera-o em Deus,
lembra a Deus e Lhe rende graças. É assim que são Paulo aconselha: “Seja comendo, seja
pois, bebendo, façam tudo pela glória de Deus” (1 Cor 10,31). (Basílio de Cesaréia,
Diadoque de Photicé, Doroteu de Gaza) Em consumindo pois os alimentos, o homem os
santifica (1 Tm 4,5) e neles todo o cosmos criado que eles representam. Ao mesmo tempo
e, sobretudo se santifica a si mesmo, e não somente suprime a barreira que a gastrimargia
colocou entre ele e Deus, mas se une a Deus a cada vez que ele Lhe rende graças.

A gastrimargia não tem sua fonte nas necessidades do corpo, mas em certos
desejos que procedem do coração, quer dizer, do homem interior. Ela consiste em uma
atitude diante dos alimentos e em certo modo de encarar a nutrição. Ela reside
essencialmente na busca do prazer ligada à qualidade ou/e à quantidade dos alimentos,
que leva frequentemente o homem a se nutrir excessivamente, quer dizer, para além das
necessidades. Por isto a luta contra esta paixão passa como nós o temos visto, pelo
discernimento, mas também pelo domínio dos pensamentos (João de Gaza) que caminha
junto com a vigilância. (João Cassiano, João de Gaza)

Mas é incontestável de outra parte que a gastrimargia seja uma das ‘paixões
corporais’, quer dizer que tem com o corpo uma relação direta e essencial, não somente
porque elas não podem se manifestar senão por seu intermediário, mas ainda porque ele
contribui a suscitá-las; ora “estas paixões”, como o diz são João Cassiano, “não curam
senão por um tratamento duplo”. Dito de outro modo, a terapêutica trabalhada no nível
da alma deve ser completada por uma terapêutica se aplicando ao próprio corpo. São João
Cassiano escreve a este propósito: “A gastrimargia e a luxúria [...] se despertam muitas
vezes sem que a vontade tenha parte nisto, pelo incitamento e pelo prurido da própria
carne, tem necessidade portanto por se consumir, de um objeto exterior, e não chegam ao
efeito senão mediante um ato do corpo [...] . Precisamente porque eles não se consomem
pelo ministério (intervenção) da carne, estes dois vícios reclamam especialmente, outra
terapêutica espiritual da alma, a prática da temperança corporal”, quer dizer, daquilo que
Reginaldo Alves Campoe

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nós chamamos precedentemente ascese corporal. É deste modo que, aos jovens e aos
velhos (João Clímaco), o trabalho corporal (João Cassiano, João Clímaco) podem
conforme os casos e as circunstâncias (João Clímaco) contribuir à cura da gastrimargia.

A leitura das Escrituras (João Cassiano), a meditação da morte (João Clímaco)


constituem preciosas terapêuticas adjuvantes. E, como na luta contra todas as outras
paixões, a compunção do coração, pela qual o homem, diante de Deus, chora sobre suas
faltas, faz cessar a dependência à paixão e manifesta a vontade de renunciá-la (João
Cassiano, João de Gaza, Barsanuphe), tem um papel fundamental; do mesmo modo que
a oração pela qual se pede a ajuda de Deus. (Jean de Gaza) Assim, são João Clímaco,
numa prosopopeia, faz dizer à gastrimargia: “Aquele que recebeu o Consolador implora
sua assistência contra mim; e Ele, assim invocado, não me permite agir de maneira
passional”, o que está de acordo com a afirmação de são Paulo de que a temperança é um
“fruto do Espírito” (Gl 5,22).

Nós temos visto, estudando a paixão da gastrimargia, que ela é, para a alma e para
o corpo do homem, a fonte de grande número de males, e que os Padres a consideram
como a “introdutora de todas as outras paixões” (João Clímaco) e como “a destruidora de
todos os frutos das virtudes” (Máximo o Confessor). É assim pois, que a virtude da
temperança permite a eliminação destes males (Callinicos) e destas paixões (Máximo o
Confessor, Gregório Nanzianzo) e se revela o princípio de uma multidão de bens
(Callinicos) e virtudes (João Crisóstomo, Gregório de Nissa).

Nós temos repetido em primeiro lugar que a gastrimargia estabelece uma série de
obstáculos à vida espiritual, pois ela tem por efeito de mergulhar a alma no torpor, de
tornar o espírito grosseiro e entorpece-lo, tornar lento os seus movimentos, impedindo de
conduzir como necessário o combate, reduzindo e alterando sua capacidade de
discernimento e tornando difícil a oração. A temperança permite erguer estes obstáculos
(Basílio de Cesaréia, Callinicos) e tem deste modo por efeito de “facilitar as funções da
alma” (Gregório de Nissa), notadamente de tornar o espírito mais vigilante, mais
dinâmico, de reforçar suas capacidades de discernimento e de compreensão (Callinicos),
de favorecer a compunção (João Clímaco) e a oração.

Nós temos visto igualmente que a gastrimargia suscita e nutre numerosas paixões
que tem como primeiro lugar a luxúria. A temperança tem por efeito “domar as paixões
do corpo” (Callinicos) e permite finalmente de suprimi-la (Evágrio), mas contribui
também para reduzir as paixões da alma, em particular a cenodoxia, o orgulho e a filáucia,
e ela favorece o restabelecimento das virtudes contrárias: continência e castidade para
aquilo que é luxúria, humildade para aquilo que é do orgulho. Assim como a gastrimargia
suscita e nutre numerosos pensamentos passionais, a temperança contribui em “guardar
o espírito livre em face dos objetos e suas representações”, instaurando na alma a calma
e a estabilidade, e em purificar o coração, o que ajuda o homem a chegar a uma oração
pura e encontrar um conhecimento verdadeiro. (Callinicos, Clemente de Alexandria,
Máximo o Confessor).
Reginaldo Alves Campoe

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3 - LUXÚRIA

A paixão da luxúria (πορνεία - pornéia) consiste em uso patológico que o homem


faz de sua sexualidade.21

21
A palavra πορνεία significa literalmente prostituição. Mas os Padres englobam neste vocábulo todas as
formas de paixões sexuais.

- O conceito “perversão sexual” foi revisto pela Classificação Internacional de Doenças – CID 10 – e
substituído pela terminologia “parafilia”, com a conotação de: maldade, malignidade e erro moral.
A perversão é também uma forma erótica do ódio, pois o que preside o ato perverso é o desejo de
ferir ou danificar o outro. O perverso não conhece outra lei que não seja a lei do seu desejo, é colocar-se no
mesmo nível de Deus. Porém, para ser Deus, é preciso situar-se além das leis, desafiá-las, transgredi-las.
O perverso domina como ninguém o discurso da razão, do contrato e do cerimonial, precisa do
espaço teatral (a cena, os gestos, o aparato), não pode cair da sua categoria de deus.
São geralmente inteligentes, espontâneos e, à primeira vista, encantadores, emocionalmente
imaturos, impulsivos e sem capacidade crítica de seus atos.
Alguns traços indicadores deste tipo de personalidade:
Reginaldo Alves Campoe

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Antes de qualquer outra consideração, convém precisar que o uso da sexualidade,


não é nada original na natureza humana, e não aparece na natureza humana senão como
consequência pecado de nossos primeiros pais. Isto se dá logo que eles se distanciam de
Deus que Adão e Eva se desejam e se unem sexualmente, ensinam os Padres em se
referindo às indicações da Escritura (Gn 3, 16; 4,1). É assim que são João Damasceno nos
(precisa): “A virgindade era (estado) original e inerente (inata) à natureza humana. No
paraíso, a virgindade era o estado normal. Logo que pela transgressão, a morte entrou no
mundo, somente então Adão conheceu sua mulher e ela engendrou (gerou)”. São João
Crisóstomo ensina da mesma maneira; “Não foi senão após sua desobediência e seu exilio
que Adão e Eva puderam trocar relações. Antes eles viviam como anjos [...] Assim, na
ordem dos tempos, a virgindade possui a palma da prioridade.” 22

No estado de humanidade consecutivo da queda original, a virgindade torna-se a


norma da perfeição. Contudo, porque ele permite a perpetuação da humanidade no estado
novo onde ela se encontra, é por esta razão abençoada por Deus (Gn 9, 7), o uso da
sexualidade no plano do casamento não é condenável, e os Padres, seguindo o exemplo
do Cristo, abençoando por sua presença as bodas de Canãa, assim como os ensinamentos
dos Apóstolos (H 13,4;1 Cor 7,28), em reconhecendo a total legitimidade e proclamando

• Desenvolvimento inadequado de consciência moral: incapacidade para compreender e aceitar


valores éticos. Frequentemente, no entanto, consegue enganar os outros com conversas fluentes a respeito
de elevados padrões de moralidade.
• Egocentrismo, impulsividade, baixa tolerância à frustração e mau julgamento. Tende a procurar
comportamentos sexuais anômalos. Mente patologicamente, com total indiferença.
• Hedonismo combinado com objetivos irrealistas. Incapacidade para adiar prazeres imediatos. A
gratificação proveniente da descarga sexual funciona para ele muito mais como alivio da angústia do que
satisfação propriamente dita. Há uma falta de vínculo entre afeto e vida sexual. Falta-lhe a capacidade de
se apaixonar.
• Ausência de angústia ou culpa. Geralmente apresenta comportamento hostil e agressivo com
relação aos outros, com pouco ou nenhum sentimento de culpa. A ausência de culpa, juntamente com
aparência de sinceridade e inocência, pode permitir que o perverso evite desconfiança em atividades ilegais.
• Incapacidade de aprender com os erros. Tende a não aprender com as experiências comuns da
vida.
• Habilidade para apresentar boa aparência, impressionar e explorar os outros. É, freqüentemente,
uma personalidade encantadora, com habilidade para conquistar a amizade e a preferência das pessoas.
Geralmente tem bom senso de humor e visão otimista da vida.
• Relações sociais deficientes. Geralmente descrente, incapaz de identificar-se com os outros, sem
capacidade para sentir remorso em suas relações. Não tem amigos íntimos, nem lealdade para com grupos
ou pessoas. Incapaz de entender o amor que alguém sinta por ele e retribuí-lo. Experimenta constantemente
um quadro aterrador de isolamento afetivo, carência de contatos significativos, solidão e enclausuramento
narcísico.
• Rejeição de autoridade constituída e disciplina. Comporta-se como se as regras sociais não se
aplicassem a ele. (CASTILHO, p. 214-215.)
22
Os Padres afirmam que se os homens permanecessem em seu estado primeiro, Deus os teria multiplicado
segundo um modo não sexual [...] Se ele os dotou de órgãos sexuais em os criando, é prevendo as
necessidades que decorreriam de sua queda que ele teve a presciência se bem que ela não foi
predeterminada; é também afim de que sua virgindade não lhe fosse imposta pela natureza, mas resultado
de uma escolha pessoal, a qual lhe daria força e valor (são Joao Crisóstomo, Tratado da virgindade e
Homilia sobre o Gêneses)
Reginaldo Alves Campoe

28

mesmo o seu valor, que ela é chamada à mesma santificação que todas as outras funções
da existência humana.

No plano do casamento, a paixão da luxúria não consiste no uso da função sexual,


mas no seu uso perverso, abusivo. A noção de abuso que se encontra frequentemente nos
ensinamentos dos Padres, não há uma significação quantitativa ou qualitativa: ela
significa aqui, como em outros lugares, um mau uso da função considerada, uma
perversão, um uso contrario à sua finalidade natural e por isto contra a natureza e anormal,
dizendo de outro modo patológico. É assim que são Máximo se exprime de maneira mais
precisa em dizendo a propósito desta paixão e de outras: “Nada disto do qual se diz é mal,
mas somente o mau uso (παράχρησις) em consequência da negligencia de nosso espírito
em se cultivar segundo a natureza”. São Isaac, o Sírio, logo que evoca a paixão da luxúria,
desenvolve uma perspectiva semelhante, e sublinha em consequência a responsabilidade
do homem no controle de seus movimentos naturais: “Logo que o homem é movido pela
cobiça [...] não é a energia natural que o força a sair dos limites de sua natureza e se
distanciar de seu dever. O que o faz sair é aquilo que nós ajuntamos à natureza para
satisfazer nossa vontade própria. Porque tudo aquilo que Deus faz, ele o faz na beleza e
na medida. Se nós guardamos corretamente a medida que nos é atribuída nas coisas que
nós carregamos (portamos) por natureza, os movimentos naturais não podem nos forçar
em sair do caminho. O corpo não age de modo verdadeiro senão dentro da boa ordem”.

Há o abuso, ou mais exatamente o mal uso, assim que o homem usa da sua
sexualidade tendo em vista somente o prazer que aí se tem, quando faz do prazer a
finalidade de sua atividade neste domínio. Tal visão é perversa e patológica por várias
razões.

Primeiro, ela nega uma de suas finalidades principais da função sexual, a mais
aparente e que está inscrita na sua própria natureza: a procriação. É assim que são Máximo
nota que, de uma maneira geral, “o vício está no julgamento falso colocado sobre as
representações e do mau uso das coisas”, e que, por exemplo, “para as relações com as
mulheres, a regra do julgamento, é que elas sejam ordenadas para a procriação. Se pois
se visa o prazer, se julga mal, instituindo em bem aquilo que não o é , e, consequência
necessária, abusa-se da mulher em se unindo a ela.”

Esta finalidade, portanto, por essencial que ela seja, não é a única nem a mais
importante. Na espécie humana, a procriação pode aparecer mais como um resultado
natural da união sexual do que como seu fim natural. A união sexual é em primeiro lugar
um dos modos de união do homem e a mulher, ela é uma das manifestações do amor
mútuo, ela traduz este amor a um plano de seu ser, aquele do corpo [...]

O caráter patológico e patogênico da luxúria nos é suficientemente mostrado, em


diferentes níveis, para que nós compreendamos bem que os Padres a qualificam
frequentemente como doença e veem nela uma forma de loucura.
Reginaldo Alves Campoe

29

“A concupiscência é uma doença da alma (έπιθυμια νόσος έστι ψυχή), escreve são
Basílio, evocando notadamente aquela que está no produto desta paixão”. “Está doente
(aegrum) e ferido (saucium) pela paixão, o coração que olha com concupiscência” diz são
João Cassiano que qualifica em vários lugares a mesma paixão de “perniciosa doença
(langor)” ou de “doença (morbus)” sem mais nada, e fala do espírito tornado doente (mens
aegra) por seu prejuízo. Para designar esta paixão, são Gregório de Nissa fala da “doença
do prazer (νόσος της ήδονης – nósos tes édonones)”. São João Crisóstomo, que a qualifica
como são João Cassiano de “doença perniciosa” diz em outra parte: “É uma oftalmia tão
má quanto à luxúria; doença não dos olhos do corpo, mas dos olhos da alma”.

A luxúria é mais frequentemente ainda considerada como uma forma de loucura.


São Basílio vê nas manifestações desta paixão “as obras de uma alma frenética e
desvairada (perdida)”, e são João Clímaco escreve: “Aquele que está atacado [...] parece
ter perdido a razão e parece fora de si, perpetuamente embriagado de desejo pelas
criaturas.” Diz ainda: “O demônio da luxúria frequentemente obscurece de tal modo nossa
razão reinando sobre nossas ações, que ele nos persuade de fazer na presença dos próprios
homens aquilo que aí somente os loucos e os insensatos podem fazer.” São João
Crisóstomo se aplica a mostrar como esta paixão desencaminha a razão do homem,
obscurece, agita, devasta e deixa a alma amortecida, anestesiada.

Os ensinamentos patrísticos sobre a luxúria fazem ressaltar [...] três efeitos


patológicos principais desta paixão:

1. Uma inquietação e uma agitação da alma que acompanham seu exercício depois
do nascimento do desejo até a saciedade deste.
2. Uma inquietude que acompanha a paixão desde o começo, na busca de seu objeto
e na elaboração dos meios que permitem de chegar (com tudo aquilo que isto
implica principalmente da incerteza, da espera ansiosa disto ou de medo da falta).
Uma inquietude igualmente que segue a satisfação do desejo. O prazer desaparece
quase no momento em que ele aparece e deixa na alma um gosto tanto mais
amargo no momento em que o homem espera uma satisfação plena e total. O
apaixonado prova desde então um sentimento de frustração acompanhado de
ansiedade e mesmo por vezes de angústia. É no renovamento do prazer que, sob
o efeito de sua paixão, ele crê poder remediar a este estado de sofrimento. Deste
modo o desejo, mal satisfeito, renasce de novo com seu quinhão de inquietude.
Esta inquietude é, portanto, tão grande que o exercício da paixão entretém e
reforça a potência do desejo que o exprime, ao mesmo tempo que ele aumenta a
importância concedida ao prazer, o que não torna mais dolorosa de uma parte as
dificuldades inevitavelmente reencontradas na renovação da satisfação do desejo
na quantidade de vezes que a paixão o exige, de outra parte, a decepção que resulta
do deslocamento entre aquilo que o apaixonado espera do prazer e aquilo que este
traz na realidade.
3. Um obscurecimento do espírito, da inteligência, da consciência e uma perda do
julgamento.
Reginaldo Alves Campoe

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Além destes três principais efeitos, esta paixão tem por consequência o adormecer
espírito e entorpecer. Ela exerce sobre aquele que ela possui uma verdadeira tirania, mais
que todas as outras paixões, em razão de seu extraordinário poder. “Entre as numerosas
paixões que assediam o coração humano, não há nenhum que tenha contra nós uma força
comparável àquela do frenesi da volúpia”, escreve são Gregório de Nissa. Ela é por esta
razão “um inimigo difícil de combater e fazer repousar”, mas também por causa da
surpreendente rapidez da ação do demônio que o inspira.

Como todas as outras paixões, ela é destruidora de virtudes. Ela engendra as outras
paixões correlativamente na alma toda sorte de atitude viciosa e notadamente a ausência
do temor de Deus, o horror à oração, o amor por si mesmo, a insensibilidade, o apego
deste mundo, o desespero.

Notemos por terminar que a paixão da luxúria é favorecida no seu nascimento, na


sua substancia ou no seu desenvolvimento principalmente por três tipos de
comportamentos passionais: o orgulho e a vangloria; o julgamento do próximo; a
abundância de alimentação e do sono.

A TERAPÊUTICA DA LUXÚRIA: A CONTINÊNCIA E A CASTIDADE

A terapêutica da luxúria segue imediatamente a terapêutica da gastrimargia na


medida em que a luxúria é, como a gastrimargia, uma “paixão corporal” e faz parte das
paixões grosseiras e primitivas às quais convêm atacar em primeiro lugar, mas também
na medida em que a luxúria está diretamente ligada à gastrimargia, à qual condiciona
frequentemente sua aparição.

A Terapêutica da luxúria se averigua particularmente difícil: ela exige muita força


e aplicação e toma muito tempo, como o nota são João Cassiano: “O segundo combate,
segundo os ensinamentos recebidos de nossos Pais, é contra o espírito de luxúria. Ele dura
mais tempo e é mais tenaz que todos os outros, e raros são aqueles que alcançam vitória
completa. É um combate terrível.”

A virtude que se opõem à luxúria é a castidade (castitas): a castidade dentro do


quadro do monarquismo.

- A castidade monástica

Convém em primeiro lugar lembrar-se que, na perspectiva cristã, a sexualidade


não pode ter um sentido e ser um exercício são e normal senão dentro da perspectiva do
amor conjugal, porque ela está a priori excluída do quadro do celibato e da vida
monástica. Também a virtude da castidade que, entendida no seu senso restrito, se opõe
Reginaldo Alves Campoe

31

à paixão da luxúria, ela pressupõe e designa, neste último plano, uma total abstinência de
todo ato e, antes de tudo, de todo desejo sexual, àqueles, qualquer que seja sua forma,
revelam senão a paixão. Esta total abstinência pressupõe ela mesma uma perfeita
continência (έγκράτεια - égkráteia), quer dizer a capacidade de dominar e reprimir
totalmente as pulsões e os desejos sexuais.

Na medida em que a sexualidade esteja ligada à reprodução da espécie, ela toma


a forma de um instinto particularmente poderoso e fortemente firmado na natureza atual
da humanidade, o que torna a abstinência total particularmente difícil de realizar e explica
a permanência e a dificuldade do combate a traçar.

Porque a luxúria é uma paixão que o corpo contribui para suscitar e realizar, sua
terapêutica “reclama especialmente outros remédios espirituais, a prática da temperança
[corporal]”. É deste modo que os jejuns, as vigílias, o trabalho fatigante, que mortificam
o corpo, são para o monge meios essenciais de se enfrentar as tentações, ser
continente/casto/sóbrio, guardar a abstinência e vencer este nível de luxúria. Estas três
práticas visam enfraquecer o corpo de maneira a privá-lo de uma energia excessiva que
poderia ser facilmente investida na sexualidade, mas cada uma dentre elas a uma
finalidade particular:

-O trabalho corporal tem por fim evitar a ociosidade que favorece o


nascimento de pensamentos passionais e fantasmas;

As vigílias têm por fim reduzir o sono que em excesso favorecem a


luxúria;

Quanto ao jejum ele ocupa um lugar essencial na medida em que o excesso


de alimentação aparece como um dos principais fatores que favorecem a luxúria.
Além de que, é por isto que a terapêutica da luxúria não pode ser empreendida
senão depois da gastrimargia, porque é impossível de se enfrentar aquela sem ter
vencido esta. É em consequência disto que são João Cassiano nota, evocando
certar manifestações de luxúria: “A ciência dos médicos espirituais se aplica
primeiro a considerar a primeira causa de semelhantes doenças, que consiste no
excesso de alimentação.”

A estas práticas ascéticas, é necessário juntar “a fuga das ocasiões” que se realiza
essencialmente pela retirada para a solidão. “É necessário desviar da concupiscência dos
objetos de natureza sedutora, de medo que eles nos precipitem na satisfação”. Escreve
são João Damasceno: “Esta doença [a luxúria], além da mortificação do corpo e da
contrição do coração, exige também a solidão e a calma para poder fazer tombar a má
febre das paixões e se curar completamente. O mesmo que, o mais frequentemente, é útil
àqueles que sofrem de uma doença determinada de nem mesmo lhe fazer ver as
colocações que lhe fazem mal para evitar fazer conceber um desejo que seria fatal, assim
como a calma e a solidão são muito úteis para combater esta doença particular, sem ser
alterado por múltiplas imagens, possa chegar a um olhar interior mais puro e desarraigado
Reginaldo Alves Campoe

32

mais facilmente da lareira pestilencial da concupiscência.” Na falta do isolamento, uma


rigorosa “guarda dos sentidos” é indispensável, particularmente a guarda do olhar que é
como o toque, aquele sentido que suscita o mais frequentemente a paixão.

Estes meios, portanto, se constituem uma ajuda preciosa e frequentemente


indispensável, não são suficientes de maneira alguma fazer chegar ao fim da paixão. A
primeira razão desta insuficiência é que a sede da função sexual não é somente o corpo,
mas também a alma, que a sexualidade humana seja psíquica, contudo mais do que física.
Também convém se combater a luxúria no plano da alma, portanto, se não mais que no
plano do corpo. O inimigo, nota soa João Cassiano, “nos ataca em duplo fronte. É
necessário pois também em dois frontes; e da mesma maneira que ele tira sua força ou
sua fraqueza e do corpo e da alma, da mesma maneira não pode ser indeferido senão por
aqueles que combatem ao mesmo tempo sobre os dois planos.” Todos os Pais insistem
sobre o fato que a castidade não consiste somente, nem principalmente, na continência
corporal e que esta é inútil, se a alma permanece habitada por desejos e por imaginações
impuras. Porque “a cobiça que se efetua pelo corpo não vem do corpo”, o principio de
castidade está essencialmente na alma, e é principalmente na “integridade do coração”
que ela consiste. Porque os desejos, os pensamentos passionais, as imaginações e
fantasmas nascem do coração (Mt 15,19), é na “guarda do coração” que consiste a
terapêutica principal da luxúria. São João Cassiano escreve assim: “É necessário em
primeiro lugar trazer o remédio a este donde se sabe provém a fonte da vida e da morte,
como diz Salomão: “Guarda teu coração com grande atenção, porque é dai que jorra a
vida” (Pr 4,23). Com efeito, a carne obedece à decisão e a ordem do coração.” Esta
prática, que supõe o discernimento e a vigilância/sobriedade espiritual, consiste, nós o
temos visto, em rejeitar os pensamentos, lembranças e imaginações más de onde quer que
elas surjam, assim elas não são senão sugestões, afim de evitar de nisto consentir e aí
desfrutar e de fazer barreira à paixão na alma e depois no corpo. No combate contra esta
paixão particularmente, em razão de sua grande força, convém preferir a rejeição imediata
das sugestões à rejeição antirrética (pensamentos que se rejeitam ou refutam) imediata,
como o ensina são João Clímaco: “Não espere o demônio da luxúria repousar pela
discussão e contradição, porque, tendo por arma a natureza, ela encontrará suas boas
razões.”

Convém naturalmente de juntar à guarda do coração à oração, particularmente a


prece monológica (prece do pensamento, monólogo) estas duas atividades sendo, nós o
temos mostrado, indissociáveis. Assim que a prece monológica não está bem estabelecida
no coração, é útil de nele juntar a “prece do corpo”, que contribui ela também a preservar
o homem desta paixão. “Aqueles que não têm ainda obtido a verdadeira prece do
coração”, escreve são João Clímaco, “encontrarão a ajuda no esforço doloroso da prece
corporal; eu quero dizer: estenda as mãos, bata no peito, eleve ao céu um olhar límpido,
gema profundamente, faça sem repetir a métanies (gesto penitencial que acompanha
frequentemente a prece, notadamente nos cristãos do oriente. O termo provém do grego
metanóia, conversão – (a pequena metania onde se inclina tocando o chão com a mão
direita ; a grande metania onde se prostra completamente tocando o chão com a testa – la
Reginaldo Alves Campoe

33

petite métanie où l’on s’incline en touchant le sol de la main droite ; la grande métanie
où l’on se prosterne complètement en touchant le sol du front. A salmodia se confirma
igualmente muito eficaz contra esta doença.

O papel da prece é sempre e, sobretudo, de pedir a Deus a graça sem a qual todos
os esforços humanos para vencer esta paixão pareceriam irrisórios e não podem chegar a
nenhum resultado conclusivo. A castidade aparece sempre como um dom de Deus. São
João Clímaco escreve: “Há alguns que se gabam em vão que resolveram o combate contra
a carne e que a venceram por si mesmos.” E ainda: “Nenhum daqueles que se exercitou
com sucesso na prática da castidade, se vangloria de tê-la conquistado por suas próprias
forças. Porque isto é coisa impossível que se vença por sua própria natureza. Quando a
natureza é vencida, deve se reconhecer a presença d’Aquele que está acima da natureza.”
E são João Cassiano aconselha: “Se nós estamos no coração [...] de combater nas regras
do combate espiritual, concentremos todo nosso esforço em dominar este espírito impuro
colocando nossa confiança não nas nossas forças – porque a atividade/comportamento
humano não seria capaz jamais -, mas na ajuda do Senhor. Porque a alma será
necessariamente atacada por este vício tão longo tempo até que ela reconheça que traça
uma guerra acima de suas forças e que sua dificuldade e sua aplicação a ela não pode
obter a vitória se o Senhor não lhe venha em ajuda e não a proteja [...] em meio ao
contínuo labor, é necessário aprender da mestra que é a experiência que [a castidade] é
um dom livre da graça divina.”

Duas outras atividades espirituais contribuem ainda a curar o homem da luxúria,


e, particularmente, a preservá-lo dos pensamentos (λογισμοί) que ela suscita, é “a
memória da morte”, que são João Clímaco considera como um dos melhores auxiliares
terapêuticos ao lado da prece monológica. Os Padres viam ainda na obediência ao Pai
espiritual e na prática regular da “manifestação dos pensamentos” meios de se chegar ao
fim da paixão e conquistar a castidade.

Porque todas as paixões são solidárias, a terapêutica luxúria não seria dissociada
das outras paixões, em particular daquelas que favorecem diretamente suas
manifestações. É deste modo que a luta contra a luxúria deve ser acompanhada em tudo
primeiramente pela gastrimargia, como nós temos visto, mas também do combate contra
o orgulho e cenodoxia (vaidade), o julgamento do próximo, a acédia, a cólera, a paresia
(familiaridade excessiva com alguém – dizer aquilo que tem de mais íntimo. Definição
linguística de paresia: repetição de argumento, ou é a disfunção ou interrupção dos
movimentos de um ou mais membros superiores, inferiores ou ambos e conforme o grau
do comprometimento) e a cenologia (paixão por palavras vãs ou a ciência do vazio), a
filargiria, às quais ela está imediatamente ligada.

As virtudes são do mesmo modo solitárias, a aquisição da castidade não pode


senão ir de par com a prática das outras virtudes, particularmente daquelas que lhe são
diretamente ligadas. “Sobretudo uma verdadeira humildade. Os Antigos declaram que
não se pode possuir a castidade se não se tem primeiro colocado no coração como um
Reginaldo Alves Campoe

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fundamento, uma sólida humildade”. Mas a paciência e a doçura são igualmente


fundamentais: “Mais se cresce na doçura e na paciência, mais se aproveita da pureza do
corpo”, escreve são João Cassiano que nota ainda: “No combate que a paixão suscita à
nossa carne, não se obtém triunfo a não ser que se revista das armas da doçura”, e mais
longe: “O remédio mais eficaz para o coração humano, é a paciência”.

A luxúria tem com efeito por característica de separar o homem de Deus. A


castidade tem ao contrário por fim e por efeito de reuni-lo a Ele. “A castidade, escreve
são João Clímaco, é união íntima com Deus.” Assim como na luxúria, o desejo se desveste
de Deus e das realidades espirituais e se reveste nas realidades carnais para procurar o
prazer sensível, um dos fins essenciais da continência e da castidade é lhe permitir
reencontrar seu investimento normal e natural em Deus [...]

Isto nos permite compreender que a terapêutica da luxúria e a aquisição da


castidade consistem do fato numa conversão do desejo, de tal maneira que o amor
espiritual tome o lugar do amor carnal. Deste modo pode se compreender a afirmação
célebre de são João Clímaco: “É casto aquele que baniu o eros sensual pelo Eros divino
e apagando o fogo da terra pelo fogo do céu.” É isto que permite o mesmo dizer: “Que o
amor carnal nos sirva de modelo para o nosso desejo de Deus. Feliz aquele que não tem
uma paixão menos violenta por Deus que aquela dos amantes por sua bem amada”. “Eu
vi, escreve ainda no mesmo sentido, as almas impuras que se entregam com furor ao amor
carnal; sua experiência deste amor os tendo levado ao arrependimento, transportam todo
seu amor ao Senhor; sobrepondo então todo medo, se estimulam insaciavelmente a amar
a Deus. É porque o Senhor, falando desta casta pecadora, não diz que ela tem medo, mas
que ela tem muito amado, e que ela tem podido facilmente trocar um amor por outro.”
(Lc 7, 47)

A castidade, seja ela monástica ou conjugal, não pode ser considerada como
conquistada senão quando ela tornou-se habitual e permanente, não exigindo mais
combate, e é acompanhada de uma tranquilidade inalterável. “Tal é, nota são João
Cassiano, a consumação da verdadeira castidade: ela não tem mais o combate dos
movimentos da concupiscência carnal, mas ela os detesta com um horror total, e ela se
conserva numa constante e inviolável pureza.”

Um dos seus sinais é a impassibilidade do olhar e do coração diante dos objetos


susceptíveis de desencadear a paixão. São João Clímaco nota que é casto “aquele que
possui permanentemente uma perfeita insensibilidade na visão dos seres sensíveis e
corporais, qualquer diferença que eles tenham de beleza ou de sexo”, e ainda que “a regra
e a característica de uma perfeita e muito pura castidade é de se ter quase nas mesmas
disposições frente a frente dos corpos animados ou inanimados, de criaturas racionais ou
daquelas que são desprovidas de razão”. E exclama: “Feliz na verdade aquele que
conseguiu uma insensibilidade perfeita diante todos os corpos, toda carnalidade e toda
beleza”. Em Cristo, “não há mais nem homem nem mulher” (Gl 3,28), quer dizer que a
diferença sexual é abolida não somente enquanto princípio de divisão, oposição,
Reginaldo Alves Campoe

35

dominação, mas ainda enquanto fonte do desejo sensual e da paixão. O outro é tomado
na sua realidade fundamental de pessoa portadora em sua natureza da imagem de Deus;
torna-se ícone de Deus, transparente diante d’Ele, sujeito a glorificá-l’O.

Um dos efeitos notáveis da castidade é estabelecer na alma a estabilidade e a paz.


Ela contribui igualmente a abolir as tensões e as divisões que se manifestam entre alma e
corpo e a restabelecer entre eles a harmonia.

A castidade é uma das portas da caridade. Ela é também uma das condições
fundamentais do conhecimento espiritual. De uma maneira geral, esta virtude aparece
como sendo para o homem uma das principais fontes de santificação; é por ela de modo
particular que o Espírito Santo e o Cristo fazem sua morada no coração do homem e que
este é assimilado não somente aos anjos, mas ao próprio Deus.

A castidade aparece então como a fonte das alegrias espirituais


incomparavelmente mais elevadas que os prazeres sensíveis àqueles que conseguiram
renunciá-los.

4 - FILARGIRIA e a PLEONEXIA

A filargiria (φιλαργυρία) designa, de maneira geral, um apego ao dinheiro e às


diversas formas de riqueza material. Este apego se manifesta no prazer (gozo)
experimentado em possui-las; na preocupação em conservá-las; na dificuldade que se
experimenta em se separar delas e no sofrimento que se sente em doar. (Máximo o
Confessor).

A pleonexia (πλεονεξία) consiste essencialmente na vontade de adquirir novos


bens, no desejo de possuir mais. Do mesmo modo que se traduz habitualmente a palavra
πλεονεξία por “avareza” (esta noção antes de tudo deve ser entendida num censo mais
amplo que aquele do uso comum), devemos entender dentro deste contexto a πλεονεξία
por “avidez”, “inveja”, “cobiça”, “ambição”.

Mesmo que representem duas atitudes passionais diferentes, a filargiria e a


pleonexia podem ser estudadas juntas na medida onde, de uma parte, elas procedem do
mesmo apego passional aos bens materiais e, de outra parte, elas vão frequentemente a
par, na realidade uma implica geralmente na outra. (Máximo – Centuries sur la charité).

Um destaque análogo àquele que fizemos em capítulo precedente se impõe aqui:


o que está em causa nestas paixões, não é o dinheiro, nem mesmo os bens materiais, mas
Reginaldo Alves Campoe

36

a atitude perversa do homem com relação a elas. A finalidade do dinheiro e dos bens
materiais é de serem utilizados pelo homem para satisfazer suas necessidades em relação
à subsistência. O cúpido e o avaro não respeitam esta finalidade e adotam por elas uma
atitude patológica em lhes conferindo um valor nelas mesmo em um valor utilitário e um
prazer não pelo seu uso, mas pela sua posse. (João Crisóstomo – Commentaire sur saint
Matthieu; Basílio de Cesaréia – Homélies sur les riches). São Máximo sublinha sobre isto
igualmente que « nada é mal entre as criaturas de Deus”, a paixão é devido ao mau uso
que nós fazemos das potências de nossa alma, na circunstância da potência desejada.
Assim, diz são Máximo, aquilo que é mal, “não é a riqueza, mas a avareza [...]”. Nada
daquilo que existe é mal, mas somente o mal uso, pela negligência do nosso espírito em
se cultivar segundo a natureza.”

É este mal uso da faculdade desejante, mas também todas as outras faculdades que
elas implicam, que constituem fundamentalmente o caráter patológico da filargiria e da
pleonexia. Mas este mal uso não se define somente em relação aos bens materiais. Ele
se define, mais fundamentalmente, na relação a Deus, e implica também nas relações do
homem consigo mesmo e com seu próximo.

Quando o homem em seu estado primeiro investia totalmente seu desejo em Deus
e se apegava em conservar as riquezas espirituais recebidas d´Ele e em conquistar novas,
em se conformando em tudo à finalidade natural de sua faculdade desejante, nas suas
paixões ele voltava seu desejo desta finalidade normal para o retorno aos seus bens
materiais, e uso contra a natureza para adquiri-las e conservá-las. O amor a Deus e o
apego aos bens materiais de uma parte, o amor do dinheiro e o apego aos bens materiais
de outra parte, se fundem na mesma faculdade desejante do homem, é porque eles são
incompatíveis, e se excluem um ao outro, como o ensina o próprio Cristo: “Ninguém pode
servir a dois senhores, ou odeia um e amará o outro, se apegará a um e desprezará o outro.
Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 15, 13; Mt 6, 24). O homem se distancia
mais de Deus portanto quando ele se apega ao dinheiro e se mostra ávido pela riquezas
materiais, “este amor, vitorioso entre todo outro amor, expulsando da alma todo outro
desejo’, como o nota são João Crisóstomo (Discursos). São Nicétas Stéthatos escreve
sobre isto: a filargiria “incita os homens a preferir o amor ao dinheiro do amor ao Cristo,
ela coloca o Criador da matéria mais baixo que a própria matéria, ela o persuade a adorá-
la antes que Deus”. “Se tu amas ser amigo do Cristo, desprezarás pois o ouro e sua cobiça,
porque ela torna sobre si mesma o pensamento daquilo que ama e se afasta do dulcíssimo
amor de Cristo”.

É deste modo que na vida do avaro e do cúpido, o ouro e as diversas formas de


riqueza ocupam o lugar dado a Deus e tornam-se para si ídolos. “A cupidez (ambição) é
uma idolatria”, “o cúpido é um idólatra”, afirma são Paulo (Col 3,5; Ep 5,5), e seguindo
isto os Padres (João Cassiano, Instituições Cenobíticas; João Clímaco, A Escada; Nicétas
Sthétatos, Centúrias). Aquele que é vítima destas paixões não se dá conta de sua atitude
idólatra, e se é verdade do ponto de vista exterior que formalmente não adora as riquezas
como os idólatras adoram seus ídolos no plano de um culto constituído, ele tem no fundo
Reginaldo Alves Campoe

37

a mesma atitude que eles, (João Crisóstomo, Comentário sobre são João): ele lhe dá de
fato a mesma importância, e até mesma sacralidade, experimenta em si mesmo da mesma
atenção, a postura do mesmo respeito, manifesta a mesma veneração, e se não lhe oferece
sacrifício materiais, lhe consagra bem mais, dispensando por elas toda sua energia, todas
as suas forças e todo seu tempo; imola-lhe sua alma. (João Crisóstomo).

A filargiria e a pleonexia, mesmo que elas não sejam suficientemente


desenvolvidas para excluir a Deus, revelam uma falta de fé e de esperança n’Ele. De uma
parte, nestas atitudes, o homem manifesta que ele espera mais no seu dinheiro que em
Deus (Máximo o Confessor) e se preocupa em adquirir bens confiando a não ser em si
mesmo, nesse caso que Deus abasteça aqueles que lhe pedem com fé (Mt 6, 31-34). De
outra parte, o homem pretende para isto prever e assegurar, e de qualquer maneira
dominar, um futuro que, de fato, não lhe pertence, e elabora vãos projetos no lugar de se
colocar em tudo à vontade Divina (Lc 12, 16-21). Assim ele cessa de ver em Deus seu
único seguro e, em consequência de não invocar sua ajuda, e se dá de outra parte uma
ilusória impressão de independência e de dirigir de modo absoluto sua existência. Deste
modo ele rompe com Deus.

O caráter patológico da filargiria e da pleonexia se manifesta igualmente e, por


via de consequência, na comparação do homem consigo mesmo. Submisso a estas duas
paixões, falta com a mais elementar caridade em relação a si mesmo. Prefere, com efeito,
o dinheiro e as riquezas materiais à sua alma. (João Crisóstomo) Preocupado em
conservar os bens que estão em sua posse ou em conseguir novos, e não fica atento a isto
e não se preocupa com sua salvação. Negligencia, diz são João Cassiano, “a figura e a
imagem de Deus que ele deveria conservar imaculada em si mesmo em rendendo culto a
Deus” (Instituições Cenobíticas). Ocupado em acrescentar e guardar uma riqueza
material, não pode desenvolver suas potencialidades espirituais e realizar o
desabrochamento de sua natureza, e se mantem assim a si mesmo encerrado nos limites
do mundo decaído. Deste modo, mesmo que ele creia se enriquecer verdadeiramente,
adquirir sua liberdade e assegurar a vida acumulando tesouros sobre a terra (Mt 6, 19),
ele se liga indissoluvelmente e se aliena neste mundo e à sua “carne” todo seu ser e sua
existência, porque lá onde está o tesouro do homem, ali está seu coração (Mt 6, 21). Torna
deste modo suas coisas não aquelas verdadeiras riquezas (Mt 6, 20) que vem de Deus,
privando-se dos tesouros e da vida do Reino, se devotando com efeito à miséria espiritual
e perdendo sua vida no lugar de ganhá-la (Mt 16, 25). Assim, mesmo que ele pense
encontrar a felicidade no prazer que experimenta no adquirir e possuir, ele se condena à
insatisfação e, finalmente, à infelicidade, porque este prazer é instável, imperfeito,
passageiro e conhece um fim, cedo ao tarde (Mt 6, 19; Lc 12, 1620), e, sobretudo, toma
o lugar dos prazeres espirituais, incomparavelmente superiores e os únicos na medida que
satisfaz plenamente o homem, e se priva em última instância da beatitude eterna.

Transparece claramente assim que pela filargiria e a pleonexia, o homem, de


muitos modos, se torna, como o diz são João Crisóstomo, “inimigo de si mesmo”. Mas, é
Reginaldo Alves Campoe

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igualmente nas relações do homem com seu próximo que se tornam gravemente
perturbadas por estas duas paixões.

Adquirir riquezas se faz sempre, segundo os Padres, em detrimento do outro.23


Aquele que possui riquezas “se apropria de bens que não lhe pertencem em nada (São
Gregório de Nissa) e priva seu próximo portanto do dinheiro ou de coisas que possui”.
Assim são João Crisóstomo pode alegar que “os ricos e os avaros são ladrões de uma
certa maneira”, e são Basílio os considera sem hesitação como espoliadores e
usurpadores. Com efeito, todos os homens são iguais: eles têm todos a mesma natureza,
eles são todos feitos à imagem de Deus, eles são todos salvos pelo Cristo (Gregório
Nanzianzo). O Criador deu os bens deste mundo em partilha a todos os homens, sem
nenhuma exceção, afim de que eles possuíssem todos de maneira igual. O fato de que
alguns adquiram e possuem mais que outros contradiz a igualdade desejada por Deus na
repartição dos bens, e instaura um estado antinatural e anormal. Tal estado não existia na
origem (Gregório Nanzianzo); ele apareceu como consequência do pecado ancestral; se
manteve e se desenvolveu graças às paixões e em particular estas, a filargiria e a
pleonexia. Em verdade, as coisas quanto ao uso e usufruto são para todos, mas “não são
para ninguém quanto à propriedade” (Simeão o Novo Teólogo).

“É administrando e não gozando que é necessário usar da riqueza” escreve são


Basílio.

A riqueza, sublinham os Pais, é destinada a ser partilhada, repartida


equitativamente.24 O avaro e o cúpido não respeitam esta finalidade, estes procurando e
acumulando os bens em vista do prazer pessoal unicamente, aqueles conservando
egoisticamente o dinheiro. Todos os dois, isto fazendo, “transgridem o limite normal
(Basílio de Cesaréia), porque eles pensam mais em si mesmos que no próximo (Marcos
o monge, Nicétas Stéthatos) e contradizem o preceito fundamental da caridade: “Tu
amarás o teu próximo como a ti mesmo.”

A filargiria e a pleonexia destroem ainda a caridade e pervertem as relações com


o outro, portanto, aquele que elas habitam não vê em seu próximo senão um obstáculo na
conservação das riquezas possuídas ou um meio de adquirir novas. Deste modo são João
Crisóstomo insiste em dizer que “a filargiria nos lança a um ódio universal” e “nos faz
detestar a todos, as vítimas da injustiça e mesmo aqueles que nossas injustiças não
esmagaram”. A filargiria suscita o ódio, mas ela mesma, sob o efeito de sua paixão, se
faz plena de ódio ao outro. Quando elas não engendram a insensibilidade diante do
próximo (Nicétas Stéthatos), a filargiria e a pleonexia produzem – no sentido de dar à luz
– uma aversão pelos outros homens e torna a quem elas possuem, impiedosos (João
Crisóstomo) e cruéis (Nicétas Sthétatos). Não existe nas riquezas, afirma são João

23
Ambrósio de Milão, Naboth le pauvre; são Gregório de Nissa, Traité de la virginité; são Basílio de
Cesaréia, Homélies contre les riches; são Gregório o Grande, Morales sur Job; são João Crisóstomo,
Commentaire sur le Psaume; Syméon le Nouveau Theologien, Catéchèses.
24
João Crisóstomo, Homélies sur la Genèse; Gregório Nanzianzo, Discours; Gregório de Nissa, De
l’amour des pauvres; Basilío de Cesaréia, Homélies contre les riches; Marcos o monge, De la pénitance.
Reginaldo Alves Campoe

39

Crisóstomo, senão sujeitos de aflição, divisões, querelas, armadilhas, ódios e medos. É a


filargiria, escreve João Clímaco, “que produz os ódios, invejas, divórcios, as inimizades
e os homicídios”... A filargiria e a pleonexia podem se desenvolver até tornar o homem
totalmente inumano (João Cassiano) e a torná-lo semelhante a um animal selvagem e
feroz (João Crisóstomo).

Por todas estas razões, os Padres afirmam que a filargiria e a pleonexia constituem
verdadeiras doenças da alma. (João Crisóstomo, Basílio de Cesaréia, João Cassiano, João
Clímaco, Nicétas Sthétatos, Nil Sorsky). Não hesitam em ver nestas duas paixões formas
de loucura.

A filargiria e a pleonexia tem por caráter ser insaciável; isto permite compreender
uma parte importante de sua patogenia. Os Padres mostram frequentemente que estas
paixões comportam em si mesmas uma tendência em se desenvolver mais e mais e tanto
que elas não conhecem jamais um fim definitivo, não são jamais dominadas ou contidas
pelos objetos aos quais se apegam. O que se subentende neste desejo, não somente se
exerce indefinidamente, mas cresce mais e mais na medida de sua realização e de sua
manifestação. (São Gregório o Grande, Basílio de Cesaréia, Ambrósio de Milão) Para são
João Crisóstomo, a filargiria e a pleonexia são uma “bulimia da alma”: “Não há doença
mais cruel que esta fome incessante que os médicos nomeiam de bulimia; o bem comer
ou comer insaciavelmente, nada a acalma. Transportar tal doença do corpo para a alma;
o que poderia haver de mais horrível? Ora a bulimia da alma é a avareza, mais ela se
empanzina dos alimentos, mais ela os deseja. Ela estende sempre para além daquilo que
possui”. Esta insaciabilidade ataca, aliás, tanto os pobres como os ricos. Submissos a esta
paixão, os pobres invejam os ricos, mas os ricos invejam aqueles que são ainda mais ricos
que eles, porque, como nota santo Ambrósio, “todo ser que possui em abundância se
estima ainda mais pobre”. (Naboth o pobre)

A filargiria e pleonexia engendram primeiro na alma um estado de temor, de


ansiedade ou mesmo de angústia. São Gregório o Grande descreve assim o estado interior
do avaro e do ávido: “Quando ele abraça um montão de coisas na sua avareza, sua
obesidade mesma o oprime. Deste modo sua própria ansiedade é de procurar como ele
guardará aquilo que adquiriu, esta saciedade o angustia. A primeira dor que ele ressente
é a confusão causada por todas as questões que se lhe impõe seu desejo imoderado: como
obter aquilo que ele deseja? [...] Pois seus desejos uma vez preenchidos, outra dor surge:
a inquietude de preservar tudo que com tanta pena ele adquiriu.25Ele é pois, exatamente
acabrunhado por toda sorte de dor que são aqui embaixo o castigo de sua cobiça e a
inquietação por conservar aquilo que possui.” À ansiedade se ajunta outro efeito
patológico fundamental: a tristeza, o estado depressivo da alma.

A filargiria, como todas as outras paixões, entenebram alma e obscurecem a


inteligência (Hésychius de Batos). “O avaro vive nas trevas e espalha uma noite espessa
sobre o mundo [que ele vê]” e para ele, “a visão da alma é desbotada” constata são João

25
“O rico, mesmo quando não provou alguma perda, tem medo de provar”. João Crisóstomo
Reginaldo Alves Campoe

40

Crisóstomo, que diz ainda “a avareza é um terrível flagelo, ela fecha os olhos, ela entope
os ouvidos daquele que é possuído”. Em consequência, o avaro tem uma visão da
realidade radicalmente falsa: “A avareza é um tipo de noite que obscurece todas as coisas,
ou mais ainda os faz ver de outro modo tanto que elas não são elas mesmas”, faz se
necessário ainda remarcar são João Crisóstomo em vários lugares que a filargiria
engendra ‘o delírio’. [...] “O homem apegado às riquezas delira igualmente naquilo que
ele dá um valor absoluto, considera os objetos como se eles fossem realmente eternos
visto que eles são todos perecíveis, destrutíveis (Mt 6, 19-20); Jo 5,3). Se deixando
enganar, obnubilados pelo prazer sensível que se apegam à sua paixão, o filargírico e o
cúpido deste modo estão cegos na ignorância dos verdadeiros bens, das riquezas
autenticamente absolutas e eternas”.

O caráter patológico da filargiria e da pleonexia se revela ainda nas múltiplas


paixões/doenças que elas engendram. Seguindo são Paulo (1 Tm 6,10), os Padres afirmam
que a filargiria é a raiz e a mãe de todos os males.26 Deste modo são Nicétas Stéthatos
pergunta: “Se esta doença é um tal mal que ela recebeu o nome de segunda idolatria, qual
vício não transbordará da alma que dela mesma se torna assim doente?”.

Filargiria e pleonexia, nós temos mostrado, destroem a caridade: elas produzem


por isso mesmo todas as paixões que são contrarias à caridade: insensibilidade, aversão,
ódio, inimizade, ressentimentos, espírito de contestação e de querelas, crimes, etc. Nós
temos visto igualmente que elas produzem o medo e a tristeza. É necessário assinalar que
elas podem igualmente engendrar na alma a cólera27 e diversas formas de violência, mas
também a preguiça, o orgulho, a vaidade e as concomitantes destas duas paixões: a
segurança (certeza), o espírito de superioridade, o desprezo do próximo, o desrespeito, a
insolência, a arrogância.

Para terminar, assinalamos aquilo que favorece o desenvolvimento da filargiria e


da pleonexia como São Máximo ensina: “A filargiria tem três causas: o prazer, a vanglória
e a falta de fé. A falta de fé é mais grave que as outras duas.” São João Crisóstomo dá
duas razões seguintes: “Querer levar a melhor sobre o outro na possessão de bens carnais,
não tem outro princípio que o esfriamento da caridade; a cupidez não tem outra fonte que
o orgulho, o ódio aos homens e o desprezo”.

TERAPÊUTICA DA FILARGIRIA E DA PLEONEXIA: o não-possuir e a esmola.

26
São João Crisóstomo, Commentaire sur saint Matthieu, Commentaire sur saint Jean; Jean Moschus, Le
pré spirituel ; Évagre, Des diverses mauvaises pensées ; Jean Cassiano, Institutions cénobitiques ; Grégoire
le Grand, Morales sur Job ; Thalassios, Centuries ; João Damasceno, Discours utile à l’âme.
27
João Cassiano, Conférences; Gregório de Nissa, Traité de la virginité; Hésychius de Batos, Chapitres
sur la vigilance; Nicétas Stéthatos, De l’âme; João Climaco, L’Échelle.
Reginaldo Alves Campoe

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A filargiria e a pleonexia, como nós vimos, tem por caráter fundamental serem
insaciáveis. Nesse caso, o corpo impõem certos limites aos desejos que subentendem a
gastrimargia e a luxúria, o desejo que é a base da filargiria e da pleonexia crescem mais
assim que são satisfeitos, e estas paixões tornam-se portanto mais difíceis de cuidar
quando deixadas crescer por mais tempo. É por isto que os Padres, antes de considerar os
remédios que possam ser aplicados, convidam a uma rigorosa profilaxia. Assim são João
Crisóstomo diz, ela causa uma febre que não se pode mais apagar, de modo que: “Eu vos
exorto a cortar este mal desde seu início. Como a febre que no começo não preocupa,
primeiro uma sede bem impetuosa, mas quando ela cresce e ilumina o fogo, a bebida mais
abundante não poderia estancar, e não faz senão atiçar a fornalha; assim chega esta
paixão: se nós não a estancamos desde o seu princípio, se nós não lhe fechamos a porta
de nossa alma, uma entrada, ela nos dará uma doença que não poderá ser mais curada [...]
Eu suplico pois, àqueles que não conhecem ainda esta doença, de se garantir”. (Homélies
sur 1 Corinthiens, XI) São João Cassiano remarca que convém proceder deste modo cara
a cara com todas as paixões, isto se impõem mais ainda com a filargiria: “Portanto nós
podemos estar em guarda contra [esta doença] e tranquilizá-la, contudo, se se, por
negligência, deu entrada no teu coração, ela se torna mais perigosa que todas as outras
doenças e mais difícil de tranquilizar”. (Instituições Cenobíticas)

1) Aqueles em quem estas paixões estão já desenvolvidas, não devem contudo se


desesperar da sua cura; este é o primeiro princípio de terapia: “Aqueles que são tomados
por ela, se eles querem tomar um remédio, eu lhes prometo grandes chances de salvação
pela graça de Deus”, valoriza são João Crisóstomo às considerações precedentemente
citadas, convidando seus ouvintes a meditar o exemplo fornecido pelas Santas Escrituras,
de todos “aqueles que caíram no mal e que foram curados”.

Mas convém que para esta esperança tenha um fim, trabalhar certo número de
meios terapêuticos precisos. É por isto que são João Crisóstomo propõe “prescrever uma
regra detalhada, seguindo as normas médicas”. ((Homélies sur 1 Corinthiens XI)

Enfim é necessário, para aquele que quer estar curado da filargiria e da pleonexia,
conhecer muito bem esta paixão e seus efeitos nefastos, este conhecimentos constitui o
primeiro elemento da terapêutica. É por isto que os Padres no seu ensinamento reportam-
se, tomando atenção de fazer proceder à prescrição dos remédios numa minuciosa
nosologia. São João Clímaco introduz assim o capítulo ‘Escada’ que lhe é consagrado:
“Diremos de início algumas palavras sobre a doença, nós trataremos em seguida dos
remédios que a curam.” São João Crisóstomo diz mais precisamente a propósito da
filargiria: “Que loucura que ela é! Que doença!” Mas, dir-se-á, não se trata somente de
acusar os doentes, mas de curá-los de sua paixão. E “como curá-los, senão em mostrando
que a sua paixão é ignóbil e entroniza males incalculáveis.” A mesma nota em outro lugar
diz que é necessário ao doente de “não somente sonhar sobre aqueles que são curados do
mal, mas ainda nos sofrimentos que aqueles perseveraram”. (Homélies) E é no capítulo
sobre as Instituições Cenobíticas consagrado à filargiria que são João Cassiano escreve:
“Se ainda não se expos as formas variadas duma doença, se ainda não se inventariou sua
Reginaldo Alves Campoe

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origem e suas causas, não se poderá aplicar aos doentes o tratamento adaptado nem
permitirá aos perseverantes de conservar a boa saúde. Os antigos, que têm uma grande
experiência neste gênero de quedas, tem o costume de expor nas suas conferências [...]
Nós ali reconhecíamos bem frequentemente os elementos em nós enquanto que os antigos
fazendo a exposição completa como se eles mesmos estivessem perturbados por estas
paixões, e, sem ter que corar de vergonha, nós estávamos curados tomando sem nada
dizer os remédios ao mesmo tempo em que as causas dos vícios nos consumiam”.
(Institutions...) Tomando a consciência da nocividade da doença, o doente é conduzida a
cessar a solidariedade asseadamente da doença e procurar ardentemente a cura; em se
adquirindo uma consciência profunda, não ignora mais nada de seus mecanismos e se
encontra melhor armado para o combate.

2) A terapêutica da filargiria e da pleonexia supõem em segundo lugar uma tomada de


consciência da vaidade dos objetos que elas perseguem. É necessário, diz são João
Crisóstomo, “compreender o nada das coisas, saber que a riqueza é servidora fugitiva e
ingrata, que mergulha seus possuidores numa multidão de males”(Homélies). É
necessário reconhecer, como remarca são Syméon le Nouveau Théologien, “que tudo é
uma sombra e que tudo passa das coisas visíveis”, e que é irrisório “se divertir com uma
sombra e entesourar aquilo que foge”, tal qual uma criança que bebe com um balde
furado. (Catequese) O caráter passageiro da existência humana, a morte que vem e aí põe
um termo, tornando finalmente vãs as possessões materiais as mais duráveis
(Commentaire sur Jean). É manifestando-se em vários lugares a fuga e a brevidade do
tempo e, em consequência o caráter impermanente de tudo aquilo que está sob sua
condição, que invoca o Apóstolo para convidar ao desapego a todos os bens deste mundo:
“Eu vos digo, irmãos, o tempo é curto: que aqueles que compram vivam como se eles não
possuíssem: que aqueles que usam deste mundo como se eles não usassem
verdadeiramente. Porque ela passa a figura deste mundo” (1Cor 7, 29-31).

3) Colocando fim à filargiria e à pleonexia, é necessário em terceiro lugar que o homem


se esforce por se contentar com aquilo que possui, esta atitude permite contrariar aquelas
duas paixões que o compelem ao contrário de possuir e adquirir para além das
necessidades. É assim que são Paulo aconselha: “Que vossa conduta seja isenta de
filargiria, contentai-vos com aquilo que tendes presentemente; porque o próprio Deus
disse: Eu não te deixarei nem abandonarei”. (He 13,5)

4) O Apóstolo indica para isto uma quarta condição da vitória sobre a filargiria e a
pleonexia: a aquisição de uma fé sólida em Deus. Isto é o que afirma explicitamente são
João Clímaco: “Uma fé inquebrantável corta toda inquietação pela raiz”.

Nós temos visto que há, na base das duas paixões, uma inquietação do homem em
face de um futuro que ele não conhece nem tem domínio, a tentativa de aquisição ou
conservação de alguma maneira de uma multidão de bens materiais, de assegurar de
alguma maneira este futuro, o homem se confiando em suas próprias riquezas no lugar de
esperar em Deus todo socorro. Para poder curar estas paixões, é indispensável então que
Reginaldo Alves Campoe

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o homem, após ter tomado consciência da impossibilidade de encontrar nos seus bens
materiais uma garantia verdadeira, remete toda sua confiança e sua esperança em Deus, e
consagra em consequência todas as suas forças em chegar ao Seu Reino, em se apropriar,
no lugar de riquezas materiais vãs e passageiras, das riquezas espirituais duráveis e
seguras que Ele dá àqueles que tendem para Ele. Aí está o ensinamento do próprio Cristo:
“Não vos inquieteis por vossa vida, daquilo que comereis, nem por vosso corpo, com o
que vestireis. [...] Quem de vós, por suas inquietações pode ajuntar um côvado à duração
de sua vida? [...] Não vos inquieteis em nada e não digam: Que comeremos? Que
beberemos? O que vestiremos? Porque todas estas coisas são os pagãos que as procuram.
Vosso Pai celeste sabe do que tendes necessidade. Procurai primeiramente o reino e a
justiça de Deus; e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo” (Mt 6, 25-33). “Não
vos acumuleis de tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e onde os
ladrões entram e roubam” (Mt 6, 19-20). É nesta perspectiva que são João Crisóstomo
aconselha: “Voltemo-nos [ao nosso Mestre] em todas as coisas e não nos deixemos de
nenhum jeito nos encastelar às inquietações desta vida”; “se nós damos a prioridade ao
bens espirituais, porque Deus no-los concedeu”; estejamos inclinados de todo nosso
espírito para o desejo dos bens espirituais e consideremos todo o resto como secundário
em comparação às alegrias dos bens futuros, afim de receber em abundancia os bens
presentes, aqueles da promessa”.

O homem pode às vezes constatar que quanto mais se apega aos bens espirituais,
mais adquire em relação dos bens sensíveis uma das virtudes opostas à da filargiria e
pleonexia: o desapego. “Aquele que adquiriu o gosto das coisas do alto, despreza
facilmente aquelas daqui de baixo”, remarca são João Clímaco que escreve ainda: “Um
pequeno fogo é suficiente para queimar muita madeira; e com a ajuda de uma só virtude,
escapamos de todas as paixões que possam nos dizer. Esta virtude se nomeia desapego;
ela é engendrada pela experiência e pelo gosto de Deus [...].”

Para se apegar aos bens espirituais, é necessário que o homem tenha desde o início
tomado consciência que existe “outra beleza, outras riquezas, outras alegrias superiores”,
“riquezas verdadeiras que procuram uma alegria imortal”, que não há nenhuma riqueza
superior à glória de Deus e que mereça ser por ele preferida. Mas esta tomada de
consciência não é realmente possível, como o indica são João Clímaco, senão por uma
experiência das realidades espirituais às quais o homem chega senão quando cessa de se
conduzir por uma vida inteiramente carnal e se una a Deus pelo amor e pela prática dos
mandamentos. Somente “o gosto de Deus”, como o diz tão concretamente são João
Clímaco, lhe permite medir, por comparação aos bens divinos, o pouco valor dos “bens”
sensíveis.

O fato de que o apego em comparação aos bens sensíveis seja correlativo do apego
aos bens espirituais, e vice-versa, se explica como nós o temos sublinhado várias vezes,
pela impossibilidade do desejo de se portar simultaneamente sobre dois objetos
antagônicos, como o ensina o próprio Cristo, justamente a propósito da filargiria:
“Ninguém pode servir a dois senhores. Porque, ou odiará um e amará o outro; ou se
Reginaldo Alves Campoe

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apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e a Mamon” (Mt 6, 24)
(mammon significa “riqueza” em aramaico). E compreende-se por isto que o homem não
pode se apegar a Deus do mesmo modo que ele se apega às riquezas materiais, o que nos
permite lembrar que a finalidade da cura da filargiria e pleonexia, é de permitir ao homem
de se unir a Deus, de amá-lO, com toda sua inteligência, com toda sua alma e com todas
as suas forças, de libertar todas suas faculdades de seu apego às riquezas sensíveis para
que elas possam se consagrar a Deus, segundo a sua finalidade natural. A situação
espiritual do homem inteiro e seu destino dependem do tipo de riqueza que ele deseja
possuir e às quais ele se apega; a questão fundamental é aqui saber se ele se acumula “dos
tesouros sobre a terra” (Mt 6, 19) ou “de tesouros no céu” (Mt 6,21), porque, diz o Cristo:
“Lá onde está teu tesouro, lá também estará o teu coração” (Mt 6,21).

A cura da filargiria e da pleonexia implica, como se vê, uma conversação sobre o


desejo, um retorno da faculdade desejante e da potencia do amor do homem pelas riquezas
deste mundo ou a volta para Deus e aos bens espirituais. Como curar-se da filargiria e da
pleonexia? “Vós o fareis, responde são João Crisóstomo, se vós substituirdes a este amor
(ao dinheiro) em outro amor, o desejo das coisas do céu”.

Para esta conversão, às paixões da filargiria e da pleonexia se substituem com as


virtudes opostas da não-possessão e da esmola.
Reginaldo Alves Campoe

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5 - A TRISTEZA

O homem, em sua condição paradisíaca, não conhecia a tristeza (λύπη -lúpe). É o


resultado da falta/queda adâmica o seu aparecimento (Macário do Egito). Ela é relativa
ao estado de decadência na qual o homem se encontra. Ela não constitui pois, uma atitude
que pertencia à natureza primeira e fundamental do homem (Máximo o Confessor).
Portanto, se bem que consecutiva da falta adâmica, a tristeza não é ipso facto uma paixão
má e não é externa à natureza do homem.

É necessário distinguir duas formas de tristeza (Máximo o Confessor). A primeira


faz parte daquilo que os Padres chamam “as paixões naturais e irrepreensíveis” (João
Damasceno), quer dizer aquelas que são integradas à natureza do homem em
consequência do pecado original, e se bem que testemunham sua queda relativamente a
seu estado de primeira perfeição, não são más (João Damasceno). A forma de tristeza que
faz parte destas paixões naturais, não somente é “irrepreensível”, mas pode e deve servir
de base a uma virtude: a “tristeza segundo Deus” (2 Cor 7, 10) que permite ao homem de
se afligir sobre o seu estado de queda, chorar seus pecados, se entristecer pela perda da
perfeição primeira, de sofrer por estar longe de Deus (Simeão) e que constitui o estado de
penitência, de luto espiritual (πένθος - péntos), de compunção (κατάνυξις – catánuxis) e
encontra seu acabamento no carisma das lágrimas. Esta virtude é indispensável ao homem
decaído para reencontrar o caminho do Reino e reintegrar Cristo no estado edênico. É
deste modo que são Máximo escreve: “Nos homens fervorosos, mesmo as paixões
tornam-se boas quando [...] nós as tomamos na condição de adquirir as coisas do céu. E
assim deste modo [...] nós fazemos da tristeza o arrependimento que nos corrige do mau
presente”.
Reginaldo Alves Campoe

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A segunda forma de tristeza, que é o objeto do presente estudo, é ao contrário uma


paixão, uma doença da alma, constituída pelo mau uso da tristeza precedentemente
evocada. No lugar de utilizar a tristeza para chorar seus pecados e se afligir de seu
distanciamento de Deus e da perda dos bens espirituais, o homem o utiliza ao contrário
para chorar a perda dos bens sensíveis (Máximo), se aflige por não ter podido satisfazer
tal desejo nem obter tal prazer esperado, ou ainda de ter experimentado tal desgosto nas
relações com seus semelhantes. Ele faz deste modo da tristeza um uso contra a natureza,
anormal (Máximo). É desta maneira que são João Crisóstomo constata: “Não é pois a
adversidade, mas o pecado somente que deve provocar a tristeza. Mas o homem perverte
esta ordem e confunde os tempos: ele multiplica pois seus pecados e não concebe
nenhuma dor, e assim ele não suporta qualquer desgosto, ele se desencoraja.” (Máximo o
Confessor - Questions à Thalassios) É deste modo que a tristeza torna-se “uma paixão
não menos grave e deplorável que a cólera e conduz aos mesmos resultados, desde que
nós não nos coloquemos segundo as regras da razão e da prudência.” (são Máximo)

O homem manifesta nesta paixão um comportamento duplamente patológico,


aquele que de uma parte ele não se aflige como deveria fazer permanecendo naquilo que
constitui em verdade uma situação desoladora – seu estado de desgraça, de pecado, de
doença -, e de outra parte, ele se entristece por causa de objetos, estados, situações, etc.
A faculdade de aflição de que dispõe o homem não somente não lhe serve como Deus o
havia querido, nele deveria tornar-se um dom, para se distanciar de seu estado de pecado,
mas se encontra, ao contrário, utilizado em contratempo, de maneira absurda e insensata
em comparação à sua finalidade natural, manifestando seu apego a este mundo e caminha
paradoxalmente ao serviço do pecado.

A tristeza aparece como um estado de alma feito - diferente daquilo que esta
palavra deveria indicar - de desencorajamento, astenia, de indisposição e dor psíquica, de
abatimento (Doroteu de Gaza), de angústia, de opressão, de depressão (João Cassiano),
acompanhada o mais frequentemente de ansiedade ou mesmo de angústia.

Este estado pode ter múltiplas causas, mas é sempre constituído por uma reação
patológica da faculdade irascível ou/e da faculdade desejante da alma, e se encontra pois
essencialmente ligado à concupiscência e/ou da cólera. “A tristeza, explica Evágrio,
sobrevém por vezes pela frustração dos desejos, por vezes também ela é uma
consequência da cólera”. (Doroteu de Gaza) Mas ela pode igualmente ser produzida na
alma por uma ação direta dos demônios, ou ainda aí nascer sem motivo aparente.

Examinemos alguns detalhes:

1) A causa mais frequente da tristeza é a frustração de um ou muitos desejos. “A tristeza


é constituída pela insatisfação de um desejo carnal”, sublinha Evágrio. São João Cassiano
nota da mesma maneira que a tristeza “provem por vezes daquilo que nós nos vimos
frustrados numa esperança que nós tínhamos”, um de seus principais tipos “segue um
desejo contrariado”. De modo que “um desejo está ligado a toda paixão” (Evágrio). Cada
paixão é constantemente susceptível de produzir a tristeza; “aquele que ama o mundo será
Reginaldo Alves Campoe

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muitas vezes entristecido”, diz ainda Evágrio. O prazer estando ligado ao desejo pode se
ainda dizer, com o mesmo autor que “a tristeza é a frustração de um prazer presente ou
previsto”. São Máximo e são Thallasios dão a mesma definição. Temos visto que são
Máximo sublinha que o prazer sensível é inevitavelmente seguido de dor, sendo este mais
frequentemente psíquico do que físico, tomando de outra maneira, a forma da tristeza. É
por isto que são Máximo diz que a tristeza “é o fim do prazer sensível”.

Enquanto que ela é o resultado da frustração de um desejo carnal e do prazer que


aí se prende, a tristeza revela um apego daquilo que afeta aos bens sensíveis, aos valores
deste mundo. São Doroteu de Gaza diz: “Aquele que não odeia as coisas materiais [...]
não pode [...] se libertar da tristeza, pois como não se entristecer se se torna privado
daquilo que ama.”

2) A segunda causa da tristeza é cólera. “A tristeza, ensina Evágrio, provem dos


pensamentos de cólera”; com efeito, explica ele, “a cólera é um desejo de vingança e a
vingança não satisfeita, produz a tristeza”. São Máximo diz no mesmo sentido: “Tristeza
e rancor vão de braços dados. Se pois o espírito prova da tristeza quando vê um irmão, é
prova que há contra ele o rancor.” São João Cassiano afirma igualmente, sem colocar
precisão: “A tristeza provem por vezes daquilo que nós nos colocamos em cólera”; uma
espécie de tristeza “segue a cólera que se solve”.

A tristeza pode estar em relação com outros sentimentos como o rancor: ela resulta
frequentemente do sentimento que a cólera possa ser excessiva ou desproporcional àquilo
que a motivou.

3) Por vezes, portanto, a tristeza parece imotivada. “Acontece que nós sejamos tomados
de uma angústia súbita e sem causa; nós nos sentimos acabrunhados duma tristeza à qual
não se encontra um ponto de motivo.” (João Cassiano) O mesmo santo diz que muitas
vezes não existe senão duas formas de tristeza: a primeira comporta todas as formas que
nós vimos precedentemente, “a outra provém de uma ansiedade ou de um desespero sem
razão”. (Barsanuphe; Doroteu de Gaza) O limite é então pouco preciso entre esta espécie
de tristeza e a paixão da acédia.

4) É necessário saber que os demônios exercem um papel importante no nascimento,


desenvolvimento e a perpetuação de todas as formas de tristeza, e particularmente de tudo
aquilo que nós vimos em último lugar. Se ela é imotivada, é porque ela não tem uma
relação com a ação precisa da pessoa que ela afeta, quando ela não é fruto da insatisfação
de um desejo ou de um movimento de cólera. Os Padres reconhecem, com efeito, que ela
é mais frequente de ser produzida por uma intervenção diabólica.

A erupção de um sentimento de tristeza na alma é quase sempre um dos efeitos


mais imediatos da ação diabólica. “Os pensamentos que vêm dos demônios são
primeiramente perturbados e misturados de tristeza”, nota são Barsanuphe.

Quaisquer dos eventos exteriores podem suscitar e motivar a tristeza, é necessário


sublinhar que na verdade não é neles que ela tem a fonte: eles são a ocasião, não a causa,
Reginaldo Alves Campoe

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que está unicamente na alma mesma do homem, mais precisamente na atitude que ele
adota diante dos acontecimentos exteriores como diante de si mesmo. O homem é pois
responsável pela tristeza que o afeta. “Nossas alegrias e nossas tristezas, vêm menos da
natureza das coisas que de nossas próprias disposições. Se elas são sabiamente regradas,
nós teremos sempre no nosso coração um grande fundo de contentamento. As doenças do
corpo têm por causa, mais que qualquer coisa a desordem interior; mas a mais forte razão
são as doenças da alma. Porque se aquelas do corpo são atributos de nossa natureza, as
outras dependem senão da nossa vontade”. (São João Crisóstomo)

Mesmo que sejam os demônios que suscitam ou introduzem estados de tristeza,


eles não podem fazê-lo senão quando encontram terreno favorável e benéfico de uma
participação (mais ou menos consciente) da vontade do homem. “O demônio não é de
modo algum em ti esta sombria tristeza, mas a própria tristeza vem em ajuda do demônio,
e ele te sugere maus pensamentos”. (São João Crisóstomo)

A paixão da tristeza pode tomar a forma extrema do desespero (άπόγνωσις). Aí


está uma das suas manifestações particularmente grave. “Uma muito grande tristeza é
perigosa, sublinha são João Crisóstomo, tão perigosa mesmo, que ela pode causar a morte;
é por isto que são Paulo dizia: “[...] a fim de que não seja absorvido por tristeza excessiva”
(2 Cor 2,7)

Sob o efeito do desespero (e por vezes mesmo da simples tristeza), o homem pode
se dar às paixões dissolutas, pensando que elas podem trazer remédio ao seu estado, não
faz outra coisa senão afastar a consciência desta. Como o Apóstolo constata: “Tendo
perdido toda esperança, eles se entregam à dissolução, abertos a todo tipo de erro,
mergulhados na impureza” (Ef 4,19).

Fonte da morte espiritual, o desespero, pode também arrastar o homem a dar fim
da sua vida: colocando-o a não esperar mais nada da sua vida, ele imprime a sua alma
ideias de suicídio.

A tristeza, por todas estas razões, é considerada pelos Padres como uma doença
da alma da qual a importância é grande e os efeitos poderosos.

Notemos ainda que, como todas as outras paixões, a tristeza enche a alma de
obscuridade, recobrindo o espírito de trevas, cegando a inteligência, e reduzindo
consideravelmente sua faculdade de discernimento. (São Gregório o Grande; Nil Sorsky)
Um de seus efeitos específicos é entorpecer a alma (Isaac, o Sírio). Ela produz no homem
inteiro um estado de astenia e de tédio, tornando-o pusilânime e paralisa sua atividade.
Este último efeito se confirma particularmente grave ao plano espiritual, privando-o de
todo seu dinamismo contraria seus esforços ascéticos, “devasta as preces” (Evágrio),
particularmente se vem em consequência de uma falta. (João Clímaco)

- A TERAPÊUTICA DA TRISTEZA: o luto, a compunção e a alegria.


Reginaldo Alves Campoe

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A terapêutica da tristeza mais que aquelas de todas outras paixões, supõem a


consciência de estar doente e a vontade de se curar. Porque não é raro, como sublinha
particularmente são João Crisóstomo, que o doente se compraza nesta doença, tirando um
“benefício secundário”, um prazer mórbido, e se abandona pois passivamente ao seu
estado, sem por vezes distinguir que ele é vítima de uma paixão particularmente grave
por seus efeitos nefastos sobre a vida espiritual como um todo. Assim são João Cassiano,
depois de lembrar estes efeitos prejudiciais, escreve: “Se quisermos combater o combate
espiritual segundo as regras, é necessário curar esta doença com a mesma precaução que
as precedentes”, e são João Crisóstomo insiste sobre a necessidade “de querer e desejar
sua cura”, e escreve especialmente “É muito útil para dissipar a tristeza de se afligir com
ela fortemente”. (Consolations à Stagire)

Na nosologia da tristeza nós vimos que ela pode ter diferentes causas. A cada uma
convém uma terapêutica especifica.

1) A primeira causa possível da tristeza é a frustração de um prazer presente ou atendido


e pois, mais fundamentalmente a perda de um bem sensível, a frustração de um desejo ou
a decepção de uma esperança carnal. No caso de tal etiologia, a terapêutica da tristeza
implica essencialmente na renúncia dos desejos e aos prazeres “carnais”, e
correlativamente, o desapego em comparação a todos os “bens” sensíveis indo até ao
desprezo deles (Doroteu de Gaza – Sentences). São Máximo observa que: “Quem escapa
a todos os convites do mundo tornar-se inacessível a toda tristeza do mundo” (Centuries
sur la charité) e pouco adiante aconselha : “Contra [...] a tristeza, despreze [...] os objetos
materiais”. São João Clímaco constata no mesmo sentido: “O homem que chegou a
detestar o mundo escapou à tristeza, mas aquele que é apegado a qualquer coisa que seja
de visível não é ainda livre da tristeza. Porque como não se entristecer se se está privado
daquilo que se ama?” (L’Échelle – a Escada) Evágrio nota que : “Aquele que foge de
todos os prazeres do mundo está numa cidadela inacessível ao demônio da tristeza. A
tristeza, com efeito, é a frustração de um prazer, presente ou esperado, e é impossível
repousar este inimigo se nós temos um apego apaixonado por tal ou tal bem terrestre:
porque ele joga sua rede e produz a tristeza lá onde vê que vai a sua inclinação.” Toda
paixão tem seu fundamento num desejo carnal à procura do prazer sensível, é por isto que
a terapêutica da tristeza é relativa à terapia das outras paixões.

2) Uma segunda causa essencial da tristeza é a cólera, como consequência de uma ofensa
súbita, tomando então frequentemente a forma de rancor.

Os Padres sublinham que a causa da tristeza não está naqueles contra os quais nós
dirigimos a nossa cólera e diante daqueles que nós experimentamos rancor, nem ao menos
naqueles que nos ofenderam, mas em nós somente. Colocar um fim na relação com as
pessoas nesta ocasião concernentes não seria, como consequência, constituir uma terapia
adequada. Assim são João Cassiano escreve: “Deus, o criador de tudo, sabendo melhor
que qualquer um como curar sua criatura e que isto não estava nas coisas, mas em nós
Reginaldo Alves Campoe

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mesmos que residem a raiz e a causa de nossas faltas, não nos ordenou de abandonar a
relação com nossos irmãos, nem de evitar abandonar aqueles pelos quais imaginamos
lesados ou por aqueles que nós nos imaginamos ofendidos.” A convivência com o outro,
neste caso, permite ao contrário uma cura mais rápida que a solidão, na medida em que
ela constitui para o homem uma prova que confronta diretamente com as dificuldades que
estão na origem da tristeza que ele experimenta, e lhe permite assim de aí remediar mais
facilmente e mais rapidamente. O risco, de outra maneira, seria que estas dificuldades
tornam-se mais ou menos inconscientes permanecendo operantes e mantendo o homem
mergulhado na tristeza; sabe-se de outra parte que a lembrança das injúrias, o
ressentimento, o rancor, e em geral todas as consequências da cólera, têm a tendência de
não se apagar espontaneamente, mas ao contrário se desenvolver silenciosamente, a se
reforçar sob a empresa da imaginação, a ser tomada como um veneno e a envenenar pouco
a pouco a alma inteira.

Se um dos teus irmãos “te injuria ou te aflige faça de outro modo”, recomenda
uma Ancião, “reze por ele como os dizem os Padres, com o pensamento de que ele te
proporcionará grandes benefícios e que ele é um remédio curador em ti do amor ao
prazer”. Outro aconselha: “Se alguém guarda a lembrança de alguma pessoa que afligiu,
lesou ou insultou, ele deve se lembrar dele como um médico enviado por Cristo e
considerá-lo como um benfeitor. Porque se tu te afliges nestas circunstancias, é porque
tua alma está doente.”

Em qualquer circunstancia, convém que perdoes ao ofensor, abandone todo rancor


quando se encontrar com ele e provar o contrário com bem-querer e caridade.

3) Nós temos visto que ao lado das formas de tristeza de que é possível determinar a causa
com precisão, existe uma tristeza “imotivada”, que pode aparecer na alma sem razão, e
que é na maioria das vezes suscitada por intervenção do demônio. Neste caso não há um
remédio específico, e é uma terapêutica de caráter geral que deve se usar e mesmo as
terapias anteriores.

Um efeito característico da tristeza segundo Deus é sua doçura consoladora, que


paradoxalmente eleva do luto e da aflição com sua característica dolorosa, e aparece como
um sinal manifesto do socorro divino e da presença na alma da graça[...] É necessário
dizer também, mais fundamentalmente, que mais o homem se entristeça de seu pecado e
se humilhe diante de Deus, mais se abre e faz lugar em si da graça divina que lhe comunica
o Espírito Santo, o Consolador (Th 2, 16), a fonte de toda alegria.
Reginaldo Alves Campoe

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6 - ACÉDIA ou acídia.28

- O demônio do meio-dia.

A acédia é vizinha da tristeza (João Cassiano), a tal ponto que a tradição ascética
da qual são Gregório o Grande é inspirador no Ocidente reuniu estas duas paixões em
uma só. A tradição ascética oriental, contudo as distingue (Athanase d’Alexandrie –
Pallade – Máximo o Confessor – João Clímaco).

O termo grego (ακηδία) tomado em latim sob a forma de acedia e em francês sob
acédie: é com efeito difícil de dar uma tradução às vezes simples e às vezes completa; as
palavras paresse (preguiça, moleza, indolência) ou ennui (tédio, aborrecimento, tristeza)
pelas quais se é frequentemente tomado, não exprimem senão uma parte da realidade
complexa que ela designa.

A acédia corresponde certamente a um estado de paresse (João Cassiano) e ao


estado de ennui, pode também se aproximar de desgosto, aversão, lassidão, e igualmente
de abatimento (Hermas Le Pasteur), de desencorajamento (Syméon Le Noveau
Théologien), langor, torpor, desleixo ou preguiça, sonolência (João Cassiano), de peso do
corpo ( Arsène, Syméon, João Clímaco) como também da alma (Issac le Syrien), a acédia

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- Tédio – apatia – negligência – indiferença – tristeza – depressão anímica- Um dos oito pecados mortais
ou vícios capitais instituídos por Evágrio e mais tarde retirado da lista por Gregório Magno.

- É uma angústia depressiva que atinge todos os graus da vida espiritual.

- Abulia (abulia espiritual): enfraquecimento grave e duradouro da vontade, segundo a psiquiatria, ela se
associa à neurose.

- Estado de torpor e de ausência de atenção e de cuidado interior e exterior, alheamento em relação a si


mesmo e ao mundo que o rodeia.
Reginaldo Alves Campoe

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pode portanto colocar o homem no sono (Symeon) sem que ele esteja cansado (João
Clímaco).

Há na acédia uma insatisfação vaga e geral. O homem no momento em que está


sob o império desta paixão não tem mais gosto por que quer que seja, acha todas as coisas
insípidas e sem graça, não espera mais nada (Diadoque de Photiqué).

A acédia torna o homem instável na sua alma e no seu corpo (Cassiano). Suas
faculdades tornam-se inconstantes; seu espírito incapaz de se fixar vai de um objeto ao
outro. Logo que fica sozinho, contudo, não suporta permanecer no lugar onde está: a
paixão põe-no a sair (Cassiano), a se deslocar de um lugar ao outro. Coloca-se às vezes a
errar e vagabundear (Cassiano). De uma maneira geral, ele procura a todo preço contato
com os outros (Cassiano). Esses contatos não são objetivamente indispensáveis, mas
transportados pela paixão, sentem a necessidade de encontrar ‘bons’ pretextos para
justificá-los (Cassiano). Ele estabelece e entretém assim relações frequentemente fúteis
que alimenta com discursos vãos ou manifesta geralmente uma vã curiosidade.

Pode acontecer que a acédia inspire àquele que está sob o seu efeito, uma aversão
intensa e permanente pelo lugar onde se reside (Evágrio – Cassiano), ela lhe dá motivos
por se sentir descontente, leva-o a acreditar que se sentirá melhor em outro lugar
(Cassiano – Arsène). “Ele é levado a desejar outros lugares onde poderá encontrar mais
facilmente aquilo que necessita” (Evágrio). A acédia pode também levar a fugir (escapar)
de suas atividades, principalmente do seu trabalho do qual se tornou insatisfeito
(Evágrio), e ela leva-o então a procurar outros, fazendo-se crer que eles serão mais
interessantes e vão torná-lo feliz [...].

Todos estes estados que se juntam à acédia acompanha-se de inquietude ou


ansiedade, que é outro desgosto, um caractere fundamental desta paixão (Cassiano).

É particularmente àqueles que se entregam à vida espiritual que o demônio da


acédia ataca: ele procura desviá-los dos caminhos do Espírito, impedindo de muitas
maneiras as atividades que tal via implica, e particularmente prejudicar à regularidade e
à constância da disciplina ascética que ela necessita (Symeon), a romper o silêncio e a
imobilidade que a favorecem (Cassiano). Assim são João Clímaco apresenta-a como
“relaxamento da alma, um deixar ir (abandono) das coisas do espírito, a negligencia da
ascese (Cassiano). Ela torna o homem espiritual “mudo e sem coragem para todos os
trabalhos que tem que se fazer em sua casa, impede-o de aí permanecer e de aí aplicar-
se” (Cassiano). Sob a influência desta paixão, seu espírito “torna-se ocioso e incapaz de
toda a atividade espiritual” (Cassiano); torna-se indiferente a toda obra de Deus (Isaac, o
Sírio), cessa de desejar os bens futuros (Diadoque de Photicé), pode mesmo até começar
a depreciar os bens espirituais (Photicé). Todos os Padres veem na acédia um dos
principais obstáculos à prece (Arsène). São João Clímaco a define como um langor na
salmodia, uma fraqueza na oração”. “O demônio da acédia ataca sobretudo os hábitos
Reginaldo Alves Campoe

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daqueles que estão adiantados na oração ou que são assíduos a ela”, nota Syméon. E
muitos observam que é, sobretudo à hora da prece, que ela engendra do torpor na alma e
no corpo e põem o homem para dormir: Quando não é a hora da salmodia, a acédia não
aparece. “E quando o ofício termina, nossos olhos se abrem”, santo João Clímaco. E
“assim que o momento do ofício e da prece chega, (este demônio) começa novamente a
nos tornar o corpo pesado. E logo nós oramos, ele nos lança no sono, e fora do momento
ela nos incita com bocejos, impede de pronunciar os versos inteiros”, constata ainda.

Se for verdade que a acédia afeta a todos especialmente aqueles que se esforçam
a se submeter a uma disciplina espiritual regular e, por causa disto, reduzem ao
estritamente necessário suas atividades exteriores e seus deslocamentos, e buscam o
máximo possível de silêncio e solidão; se é verdade que mais o homem se regra
espiritualmente e se isola para se dedicar à oração que o une a Deus, mais ele é atacado
por esta paixão particularmente temida dos ermitões, a acédia não deixa portanto em paz
aqueles que vivem sem disciplina (fora: en dehors) rígida e mesmo aqueles que deixam a
atividade espiritual. É sob outras formas que ela se prende a eles, como insiste santo Isaac,
o Sírio: “àqueles que conduzem suas vidas ao serviço do corpo”, “surge uma outra acédia
que é visível aos olhos de todos” (Discours ascétiques) . Esta acédia toma a forma
frequentemente de um sentimento obscuro e confuso de insatisfação, desgosto, angústia,
lassidão, sempre preocupados com a própria existência “Diadoque de Photicé: l’espirit
d’acédie dévalorise cette vie temporaire), com suas companhias, com o lugar onde
moram, seu trabalho, não importa qual atividade. (Santo Poemen: La acédie se presente
chaque fois que l’on commence quelque chose)”. Eles são ainda afetados de uma
inquietude sem razão, de uma ansiedade generalizada, ou de uma angústia episódica ou
contínua. Geralmente eles se encontram aprisionados, correlativo de um estado de torpor,
adormecimento psíquico e físico, de uma fadiga geral e constante, experimentada sem
uma razão particular, duma sonolência periódica ou permanente da alma e do corpo.
Frequentemente, paralelamente, e por conjurar de todas as maneiras seus estados penosos,
a acédia os coloca em múltiplas atividades e a deslocamentos inúteis e de visitas sem
utilidade, e a tudo aquilo que possa fazê-lo escapar da angústia e ao tédio, a fugir da
solidão e a se entulhar da insatisfação que eles ressentem. É assim então que eles querem
e creem repetidamente se satisfazer e se encontrar, na realidade, eles não se voltam a si
mesmos e ao seu devir espiritual, de sua natureza e de seu verdadeiro destino, e por isto
mesmo da satisfação plena e inteira.

Àqueles que se conduzem a uma vida ascética, os ataques deste demônio, as


manifestações desta paixão, atingem o seu ponto máximo de intensidade por volta do
meio dia. “É, sobretudo por volta da sexta hora, escreve são João Cassiano, que [este
adversário] confunde [os solitários] , como se fosse uma fixa invariável, como uma febre
que volta periodicamente, sua alma doente pelos ardores que ela em si mesma ilumina.
Alguns dentre os anciãos declaram que ali está o “demônio do meio-dia” do qual fala o
Salmo 90.” Dentre estes anciãos, é necessário citar Evágrio, que afirma: “O demônio da
acédia que é chamado de ‘demônio do meio-dia’, ataca o monge por volta da quarta hora
(dez horas) e acedia sua alma até a oitava hora (quatorze horas)”.
Reginaldo Alves Campoe

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Aquilo que distingue essencialmente a acédia da tristeza, é que não há nada de


preciso que a motiva, “o espírito está perturbado sem razão”, como o diz são João
Cassiano. Contudo, não tendo ela um motivo, não quer dizer que não tenha uma causa. A
etiologia demoníaca, como o indicam as anotações precedentes, é preponderante. Ela
supõe contudo, poder agir em terreno favorável. O fato de ser atacado pelo prazer e de
estar aprisionado pela tristeza se constitui uma forma que é sublinhada importância como
diz santo Thalassios. “A acédia é a negligencia da alma. É negligente a alma que está
doente pelo apego (amor) ao prazer”, nota ele ainda. São Macário incrimina a falta de fé.
E santo Isaac salienta que nas pessoas que buscam o espirito, “a acédia vem na distração
da inteligência.”

A descrição precedente das perturbações que caracterizam a acédia, nos permite


compreender que os Padres a consideram uma doença da alma. (João Cassiano – Evágrio
– Máximo o Confessor – Isaac, o Sírio – Thalassios). Seus numerosos efeitos patológicos
não fazem senão confirmar esta maneira de considerá-la.

O principal destes efeitos é um obscurecimento geral da alma: a acédia torna o


espírito (ηους) obscuro (Syméon le Noveau Théologien) e cego e cobre a alma inteira de
trevas. (João Cassiano, Syméon – Isaac, o Sírio). A alma torna-se então incapaz de
apreender as verdades essenciais. “Ela é entorpecida em relação a toda contemplação das
virtudes e de toda visão dos sentidos espirituais, a alma que foi ferida por esta
perturbação”, constata são João Cassiano. A consequência mais grave é que o homem
torna-se, por esta paixão, excluído e mantido distante do conhecimento de Deus.
(Apoftegmas)

Os Padres constatam ainda que a acédia, que constitui um relaxamento da alma


(Syméon), e um abandono do espírito (João Clímaco), engendra um vazio na alma
(Syméon), leva o homem a uma negligência generalizada (Syméon), torna-o molenga
(covarde) (Syméon). Unido à tristeza, ela engana e pode facilmente se levar ao desespero
(Syméon). Dela pode ainda proceder a pensamentos de blasfêmia (Isaac, o Sírio), e ideias
loucas contra o Criador (Isaac, o Sírio). Ela tem como outras consequências notórias de
destruir a compunção (dor), e torná-la irritável (irritante) (João Cassiano). Dela ainda diz
santo Isaac, “vem o espírito de desregramento, que é a fonte de mil tentações”.

Diferente das outras paixões principais, a acédia não engendra nenhuma paixão
particular pela razão de que é ela que anteriormente as produz. “Este demônio não é
seguido imediatamente de um outro”, afirma Evágrio que explica em outro lugar: “O
pensamento da acédia não é seguido por nenhum outro pensamento, primeiro porque ela
dura, em seguida porque ela tem em si mesma todos os pensamentos”. São Máximo o
Confessor afirma o mesmo sobre a acédia, “ela coloca em movimento todas as paixões”.
Santo Barsanuphe ensina de maneira mais geral que “o espírito de acédia engendra todo
o mal”. Santo João Clímaco nota em consequência que “a acédia, para o monge, é uma
morte que o encerra por todos os lados” e santo Syméon conclui do mesmo modo, ela “é
Reginaldo Alves Campoe

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a morte da alma e do espírito”. E conclui: “Se Deus deixasse (este demônio) empreender
toda sua força contra nós, sem dúvida nenhum asceta seria salvo”.

Assim, diante da amplidão destes efeitos, os Padres afirmam que a acédia é a mais
tirânica, a mais opressiva de todas as paixões (são Máximo), “a mais grave das oito” (João
Clímaco), que “não há paixão pior do que ela”. Santo Isaac diz que ela “faz gotejar o
inferno na alma”.

A patologia da acédia não pode ser considerada, como aquela das outras paixões,
como constituída pela perversão do uso de alguma faculdade particular. São Máximo faz
remarcar que nela implica todas: “Todas as outras paixões que afetam a alma seja a parte
irascível, seja a concupiscência, seja mesmo a parte racional [...] acédia contudo, se
prende em todas as faculdades da alma” (Evágrio). Mas, por outra parte, ela não se
constitui pelo seu uso contra a natureza, mas não tendo na natureza nenhum fundamento
positivo. Ela é uma espécie de entorpecimento, uma inércia de uma parte, e a distração
de outra, como todas as faculdades que contribuem para a vida espiritual do homem.
Santo Thalassios exprime bem este aspecto na sua dualidade quando a define como “a
negligencia da alma”. Ela poderia de certa maneira ser considerada como constituída pela
ausência do zelo espiritual dado pelo Espírito, tanto ao primeiro homem como ao homem
renovado em Cristo para que eles completassem com fervor seu papel espiritual.

- A TERAPÊUTICA DA ACÉDIA

Nós temos visto descrevendo a paixão da acédia que ela tem por particularidade
de se prender em todas as faculdades da alma e de colocar em movimento quase todas as
paixões, e que ela significa, em consequência disto, a morte de todas as virtudes. Também,
diferentemente das outras paixões, a acédia não é susceptível de ser curada ou substituída
por uma virtude que lhe seja especificamente oposta. “Cada uma das outras paixões
podem ser destruídas por uma determinada virtude, mas a acédia [...] é uma morte que
encerra [o homem] de todos os lados”, ensina são João Clímaco. Esta particularidade
necessita uma terapêutica multiforme, como sublinha são João Cassiano: aquele “que
deseja permanecer nas regras, no combate da perfeição deve [...] combater sobre todos os
frontes este pernicioso espírito de acédia”.

A terapêutica supõe que a doença seja colocada em dia e seja observada como tal,
porque esta paixão tem por característica de ser imotivada e estar por isto frequentemente
inconsciente e incompreensível, tanto assim que um de seus principais efeitos é cegar o
espírito e tornar totalmente obscura a alma. É por isto que são João Cassiano escreve
ainda que aquele que quer combater como é preciso “deve se apressar em extirpar esta
Reginaldo Alves Campoe

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doença do secreto da alma”. E Abba Poemon nota por sua vez que “se o homem a
reconhece naquilo que ela é, obtém o repouso”.

A paixão se caracteriza por uma parte, nos solitários, sobretudo, pela necessidade
de deixar a cela, de se deslocar, de entrar em contato com os outros, trata-se
primeiramente de reconhecer que as justificações desta necessidade o homem apresenta
então, não são senão vãos pretextos ditados pela própria paixão ela mesma. Isto o ajudará
a não ceder a esta necessidade. Os Padres recomendam unanimemente, assim que a paixão
se apresenta sob esta forma, combater por resisti-la, esforçando-se em primeiro lugar de
não deixar o lugar onde se encontra por qualquer pretexto que seja. “Não é necessário”,
escreve Evágrio, “deixar a cela na hora das tentações, quão plausíveis sejam os pretextos
que se forje, mas é necessário permanecer sentado no interior, ser paciente, e acolher
valentemente os assaltantes (ou assaltos), todos, mas sobretudo o demônio da acédia [...]”.
“Quando o espírito da acédia se eleva em ti, não deixe a casa e não fuja da luta [...]”,
aconselha ele ainda. São João Cassiano sublinha do mesmo modo que ele “não se deixe
ser caçado como um fugitivo fora do recinto de seu eremitério sob qualquer pretexto,
mesmo que seja piedoso”.

Logo que a acédia se manifesta na forma de uma tendência de sonolência, convém


igualmente de resisti-la em se esforçando de não ceder ao adormecimento
(entorpecimento) ou ao sono (João Cassiano). Em todos os casos, reafirma são João
Cassiano, “a experiência prova que não se escapa à tentação da acédia fugindo, mas que
é necessário superá-la resistindo”.

Ceder à acédia seria em todo o caso uma má solução que não faria senão enganar
a doença. “Assaltado pela astucia do inimigo, a infeliz alma pressionada pelo espírito de
acédia [...] e levada seja a ceder ao sono, seja a deixar os limites da cela e a procurar na
visita a um irmão um remédio a sua tentação. Mas o remédio que ela utiliza presentemente
- 635 - vai deixá-la mais doente pouco depois. Porque o adversário atacará mais
violentamente aquele que ele sabe deverá lhe dar as costas logo que se empenhe no
combate, e que espera a salvação não na vitória ou na luta, mas da fuga”, nota são João
Cassiano que diz em outras passagens sobre aqueles que a acédia ataca: “Se eles admitem
em sair muito frequentemente, eles suscitarão contra si mesmos um flagelo mais terrível,
naquilo mesmo que se imaginam encontrar um remédio. Certas doenças onde se
imaginam apagar os ardores da febre em tomando agua fresca. Mas é ali evidente o excitar
este fogo interior mais que abatê-lo; este alívio de um instante será seguido de uma dor
mais viva.”

Assim como a causa da acédia está no interior do homem e não na condição da


solidão, do mesmo modo a condição da cura desta doença na busca no intercambio do
homem com ele mesmo e não no intercambio com os outros, a impressão de poder receber
uma ajuda dos outros é, na grande maioria dos casos, falaciosa. São Isaac, o Sírio escreve
sobre esta pessoa: “A saúde e a cura do homem quando a alma se entenebra, lhe vem da
hésychia (a palavra grega ήσυχία significa às vezes silêncio, calma – exterior e interior e
Reginaldo Alves Campoe

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solidão). Aí está a consolação. Ninguém recebe a luz da consolação no comércio dos


homens, nem jamais a cura nas relações que eles entretêm. A acédia não o deixa um
momento senão para assaltar em seguida com mais violência. Bem aventurados aqueles
que suportam tais tentações e permanecem na cela (Discours ascétiques)”.

Os Padres admitem certamente que em certos casos “é inteiramente necessário se


encontrar um homem esclarecido que tem experiência de certas coisas, para receber dele
a luz e a força”. (Basílio de Cesaréia) Mas isto não pode ser senão excepcional. (Isaac, o
Sírio) Também são Nil Sorsky o aconselha com muita reserva: “Tem se às vezes
necessidade, como diz são Basílio, o Grande, de entrar em contato e em conversação com
um homem experiente e edificante, porque uma visita em tempo útil e com uma boa
intenção, uma entrevista moderada com tal homem, sem futilidade nem tagarelice, podem
não somente expulsar da alma a acédia oculta ou disfarçada dentro dela, mas também lhe
obter algum repouso e lhe restituir as forças e o zelo para o combate seguinte [...] Portanto
os Padres, após terem refletido sobre estas coisas, à luz de sua própria experiência, dizem
que no momento da tentação, é melhor permanecer na cela, sem sair da hésychia”. È no
combate solitário e na resistência às paixões que o homem encontra o melhor proveito
(Isaac, o Sírio), porque por este combate sua alma é provada e fortificada. É por isto que
Evágrio diz: “Quando o espírito de acédia chega até ti, não deixe a casa, e não se esquive,
no momento oportuno, a luta será proveitosa, porque, como se se prateasse assim teu
coração tornando-se radiante”, e ainda: “não é necessário desertar a cela nas horas das
tentações [...] mas acolher valentemente os assaltantes, todos, mas, sobretudo, o demônio
da acédia que, sendo o mais tirânico de todos, torna a alma provada no mais alto grau.”
(Isaac, o Sírio). E santo Isaac nota: “Bem-aventurado aquele que suporta tais tentações
permanecendo na cela. Porque como dizem os Padres, a permanência será grande, mas
depois disto virá o poderio àqueles que conseguirem.”

Entretanto a resistência à paixão não dá fruto imediatamente. A vitória sobre a


acédia supõe quase todos os dias um combate longo e assíduo. Também a terapêutica
exige antes de tudo que se faça uma prova de paciência e de perseverança.

A (1º) virtude da paciência aparece mesmo como um dos principais remédios


para esta paixão. (Macário do Egito, João Clímaco, Barsanuphe, Doroteu de Gaza, Nil
Sorsky)) “A acédia é reprimida pela paciência (ύπομονή)”, escreve Evágrio. E são
Máximo sublinha que esta terapêutica nos foi dada pelo próprio Cristo: “A acédia, que se
prende a todos os poderes da alma, movimenta às vezes quase todas as paixões; e é por
isto, entre todas, formidável. Preciosa pois a palavra do Mestre que lhe opõem o remédio:
“Por vossa paciência salvareis vossas almas” (Lc 21, 19).”

A (2º) esperança aparece como outro remédio fundamental que deve se juntar à
paciência. (Macário do Egito) Um homem “pleno de esperança é o assassino da acédia
rebrota armado desta espada”, ensina são João Clímaco. E Evágrio aconselha: “Logo que
nós nos chocamos com o demônio da acédia, [...] semeando em nós boas esperanças,
pronunciemos com Davi este encantamento: “Por que estás triste, oh minha alma, e
Reginaldo Alves Campoe

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porque turvas? Espera em Deus, porque eu o louvarei, Ele é a salvação de minha face e
meu Deus (Ps 41, 6)”. A esperança implementada é não somente aquela de ser mais ou
menos a longo prazo livre da paixão e de obter repouso, mas ainda aquela dos bens futuros
que, nota são João Clímaco, constitui o julgamento desta paixão e a sua “negação
completa”.

Um (3º) terceiro remédio essencial é o arrependimento, o luto e a compulsão.


Se o homem “se lembra de seus pecados, Deus é sua ajuda em tudo e ele não sofre de
acédia”, ensina um Ancião. “Que este tirano seja acorrentado pela lembrança de nossos
pecados”, aconselha por sua vez santo João Clímaco que diz ainda: “Aquele que se aflige
com ele mesmo, não conhece a acédia.” As lágrimas que acompanham o arrependimento
e o luto espiritual aparecem evidentemente como um remédio mais poderoso ainda. “A
acédia é reprimida pelas lágrimas”, nota Evágrio que escreve: “Retomar as lágrimas é um
grande remédio contra as visões da noite engendradas pela acédia. Ora este remédio, o
profeta Davi o aplica sabiamente a estas paixões dizendo: “Eu estou esgotado pelos meus
gemidos, cada noite banho minha cama e de minhas lágrimas eu inundo meu leito (Ps 6,
7).”

Outro remédio importante é a (4º) “memória da morte”, prática ascética


fundamental que consiste ao homem lembrar-se com permanência que ele é mortal e que
sua morte pode sobrevir a qualquer instante. A esta “memória da morte” se junta o
conselho, frequentemente formulado pelos Padres, de “viver cada dia como se fosse o
último”, aconselham que deva se ter em vista menos preparar o homem a bem morrer que
em ajudá-lo a bem viver. A “memória da morte” tem, com efeito, por função principal
ajudar o homem a não desperdiçar o tempo precioso para a salvação, a “redimir o tempo”
como diz o Apóstolo (Ep 5, 16), e a viver assim cada momento com o máximo de
intensidade espiritual, evitar o pecado, a praticar os mandamentos divinos e remeter-se
totalmente a Deus. A “memória da morte” é particularmente eficaz no caso da acédia, na
medida em que esta constitui um estado de não mudança, de letargia e preguiça
espirituais, torna o homem negligente diante de sua salvação, e o coloca em atividades,
deslocamentos e em relações fúteis que constituem, do ponto de vista espiritual, um
divertimento e uma perda de tempo. Um apoftegma lembra: “Perguntou-se a um Ancião:
“Por que o senhor nunca se desencoraja?” E ele respondeu: “Porque espero morrer cada
dia.” E santo Antônio, o Grande ensina: “Para não ser negligente, é bom nós meditarmos
sobre a palavra do Apóstolo: “Morro a cada dia” (1 Cor 15, 31). Com efeito, se nós
vivermos como se devêssemos morrer a cada dia, nós não pecaremos. Eis o que é
necessário entender para isto: cada dia, ao despertarmos, pensemos que nós não
subsistiremos até à tarde e, do mesmo modo, quando estamos ao ponto de dormir,
pensemos que nós não acordaremos.” Evágrio aconselha no seu Antirrhétique de opor aos
pensamentos de acédia estes versos das Escrituras: “Oh homem!... seus dias são como a
erva; como a flor do campo ele flori; roça-lhe um vento e já desaparece (não é mais), e
ninguém mais reconhece seu lugar”(Os 102, 15-16) e; “Nossa vida sobre a terra passa
como uma sombra” (Jb 8,9); “duram muito pouco os dias de minha existência!” (Jb
10,20). E lembra o ensinamento espiritual de seu Pai sobre este tema: “Eis aquilo que
Reginaldo Alves Campoe

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dizia nosso mestre muito santo e experiente: É necessário que o monge esteja sempre
pronto, como se ele fosse morrer amanhã [...]. Isto, com efeito, dizia ele, afasta os
pensamentos de acédia e torna o monge mais zeloso[...]” Isto se justifica pelas
considerações precedentes, mas também pelo fato que, como Evágrio nota em outros
lugares, o demônio da acédia “representa [ao homem] quanto é longa a duração da vida”
procurando inspirá-lo à lassitude e ao desgosto diante das dificuldades do futuro, e
notadamente diante “das fatigas da ascese”.

O (5º) medo de Deus constitui igualmente um antídoto poderoso contra esta


paixão: “nada é tão eficaz”, afirma mesmo são João Clímaco.

Entre os remédios prescritos pelos Padres, é necessário ainda citar (6º) o trabalho
manual. Ele pode, com efeito, ajudar o homem a evitar o tédio (ennui), a instabilidade, o
torpor e a sonolência que são por sua vez constitutivos desta paixão (João Cassiano). Pode
contribuir a estabilizar ou a manter a assiduidade, a continuidade da presença, do esforço
e da atenção que supõe a vida espiritual e que a acédia procura romper. Sobretudo, ele se
opõe diretamente à ociosidade que é uma das formas principais que pode se prender à
acédia e que é uma fonte de males inumeráveis. É em se referindo ao ensinamento de são
Paulo que são João Cassiano apresenta longamente o trabalho manual como um remédio
à acédia que ele considera essencialmente sob esta ultima forma. “O bem-aventurado
Apóstolo escreve ele, quer tenha visto que esta doença nasce do espírito de acédia
começava já a se insinuar, quer pela revelação do Espírito Santo que ele tenha previsto
que a acédia se manifestava, se desvela, como um autêntico médico espiritual, de
prevenir-se dela com remédio salutar em seus preceitos. Escrevendo com efeito aos
Tessalonicenses, ele apazigua por primeiro, como médico muito competente, a fraqueza
de suas doenças pela terapêutica atraente e doce de sua palavra. Começa por falar da
caridade e, sobre este ponto, faz lhe louvores, até que a ferida mortal adoçada por esta
medicação calmante possa suportar mais facilmente os remédios mais enérgicos, sendo
suprimida a irritação do tumor.” Depois de ter deste modo sublinhada a proximidade
terapêutica do Apóstolo, são João Cassiano coloca em evidência os preceitos que
constituem os remédios propostos – 1 Ts 4,11 - :

1) “Empenhai vossa a honra em levar uma vida tranquila”, quer dizer, comenta ele,
“permanecei nas vossas celas e não vos deixeis inquietar com os diversos rumores [...]”;

2) ocupar-vos dos vossos negócios, quer dizer “ não desejeis vos com inquietar com o
que acontece no mundo nem espiar ou descobrir de que modo certas pessoas vivem, ou
despender vossa inquietação (miséria) em criticar vossos irmãos mais que em se corrigir
e vos aplicar às virtudes”;

3) e “Trabalhai com vossas mãos como nós temos ordenado”. Depois são João Cassiano
relembra e comenta o exemplo que são Paulo, na 2 Ts 8, nos dá de sua própria conduta:
“Não vivemos de maneira desordenada em vosso meio, nem recebemos de graça o pão
que comemos, antes, no esforço e na fadiga, de dia e de noite, trabalhamos para não
sermos pesados a nenhum de vós”. E depois de ter citado sem interrupção esta passagem
Reginaldo Alves Campoe

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onde são Paulo evoca aqueles “que vivem em desordem, que não trabalham, mas se
ocupam com futilidades” (2 Ts 3,11). São João Cassiano reforça que o Apóstolo “se
esforça por trazer a correção que convém [...]. Ele mexe mais uma vez nas entranhas [...]
com um remédio compassivo e [...] traz a salvação com este conselho salutar:“ Aos que
levam a vida deste modo ordenamos e exortamos, por Nossos Senhor Jesus Cristo, que
trabalhem na tranquilidade, para ganhar o pão com o próprio esforço”(2 Ts 3,12). Só pelo
preceito salutar do trabalho, como um médico fortemente experimentado, ele cura a causa
de todas estas pragas que se desenvolvem na ociosidade, sabendo que todas as doenças
que pululam num mesmo cepo desaparecerão logo, uma vez suprimida a causa da doença
principal”. Ao mesmo tempo em que ele sublinha ao valor terapêutico29 dos conselhos de
são Paulo relativos ao trabalho manual, são João Cassiano indica seu valor profilático:
“Contudo, como um médico muito experiente e previdente, não contente em procurar a
curar as feridas das doenças, ele dá também recomendações adaptadas aos saudáveis, afim
de que eles possam perpetuamente conservar sua saúde.” Para fechar seu ensinamento
sobre esta questão, são João Cassiano cita o exemplo do Abba Paulo que, mesmo vivendo
em um lugar muito longe da cidade onde ele poderia vender os produtos de seu trabalho,
se impunha no entanto a cada dia uma certa quantidade de trabalho “ e logo que sua gruta
estivesse cheia do trabalho do ano todo, colocava fogo uma vez por ano ao trabalho que
lhe tinha custado tanto cuidado”; e ele conclui: “Assim, para bem provar que, sem
trabalho manual, o monge não poderia permanecer estável nem se chegar um dia ao cume
da perfeição, ele trabalhava, apesar de que não tinha tanta necessidade em se nutrir, mas
somente para purificar seu coração, impedir divagação dos pensamentos, perseverar na
cela e conseguir uma vitória completa sobre a própria acédia.”

7º A oração enfim constitui o mais fundamental de todos os remédios contra a


acédia, porque o homem não pode ficar totalmente livre desta paixão senão pela graça de
Deus, e não pode solicitar esta senão pedindo pela oração. Sem este último remédio, todos
os outros não terão senão uma eficácia parcial; é dela ao contrário que eles tiram toda sua
força. É porque o combate contra a paixão, a resistência que se lhe opõe, a paciência da
qual se faz prova, a esperança que se manifesta, o luto e as lágrimas, a memória da morte,
o trabalho manual, devem estar acompanhados da oração que os funde em Deus e faz com
que eles não sejam simplesmente meios humanos.

Uma dificuldade depende contudo pelo fato de que a acédia põe o homem a
abandonar a oração e impedi-lo de a ela recorrer. É então essencial que ele resista com
todas suas forças a esta tentação e proteja a oração se ele ainda não a abandonou, ou a
retome se já a perdeu. A prática simultânea da prosternação é particularmente
recomendada neste caso de acédia, porque ela faz imediatamente o corpo participar da

29
A terapêutica das doenças espirituais supõe, da parte daquele que está afetado, uma tomada de consciência
em ralação às próprias doenças. A descrição minuciosa das paixões às quais se entregam os Padres não tem
outro fim senão ajudar a uma tal tomada de consciência.. “Se não se tem primeiro exposto as formas
variadas de uma doença, se não se tem primeiro inventariado sua origem e suas causas, não se poderá aplicar
aos doentes o tratamento adequado”, diz são João Cassiano (Instituições Cenobíticas), que nota ainda:
“Jamais os doentes poderão estar curados nem os remédios encontrados aos que não tem saúde se antes não
se encontrou, numa investigação minuciosa, suas origens e causas”.
Reginaldo Alves Campoe

61

oração (a oração do corpo), pois a paixão entorpece ao mesmo tempo a alma e o corpo, e
contribui em tirar todos os dois da sua letargia. São Simeão, o novo teólogo, recomenda:
“Depois que você conhece a causa deste estado e de onde ele vem, torna corajosamente
ao lugar onde rezas habitualmente; prosterne-te diante do Deus da misericórdia; peça com
lágrimas e gemidos na aflição do teu coração de se livrar deste peso da acédia e dos maus
pensamentos; se tu te afligires com força e persistência, obterás dentro em pouco estar
livre.”

A salmodia aparece como uma forma de oração particularmente eficaz contra


acédia (são João Clímaco) o mesmo que a oração do coração praticada com vigilância e
atenção, como sublinha Diadoque de Photicé: “Nós escaparemos desta sensação de tédio
e de covardia se nós atribuirmos ao nosso espírito limites bem estreitos e levemos nossos
olhares somente sobre a lembrança de Deus; na verdade somente deste modo, o espírito
tornará rapidamente ao seu fervor e poderá se subtrair desta dissipação irracional.”

A vitória sobre a acédia deixa ao homem um certo repouso no combate espiritual.


Porque a acédia contem de certa forma nela todas as paixões, nenhuma paixão aparece
imediatamente depois que ela foi destruída. “Este demônio não é seguido imediatamente
de nenhum outro: um estado de paz [...] sucede na alma após a luta”, nota Evágrio.

Outra coisa toma o lugar, o efeito principal da vitória sobre esta paixão é “uma
alegria inefável” que preenche a alma.
Reginaldo Alves Campoe

62

7) A CÓLERA

A paixão da cólera (όργή) procede da potência irascível da alma (θυμός), e


compreende todas as manifestações patológicas da agressividade.

A potência irascível, como nós temos visto, foi dada por Deus ao homem no início
da sua criação, e ela faz parte da própria natureza do homem. Ela devia ter por função,
segundo o plano do Criador, de permitir ao homem lutar contra as tentações e o tentador,
e de evitar o pecado, o mal: deste modo tendo, desde a origem, definido sua finalidade
natural e seu uso normal. Mas o homem mostrou pelo pecado, o desvio desta finalidade,
e no lugar de utilizar esta faculdade para combater o Maligno, ele a desviou contra seu
próximo, fazendo dela um uso contra a natureza. É este uso contra a natureza da potencia
irascível que constitui a paixão da cólera sob todas as suas formas e que a torna uma
doença da alma.

A cólera aparece como uma paixão todas as vezes toma o próximo como objeto.
De mais, nenhum motivo existe que ela possa ser legitimada (Evágrio). É contra o
Maligno que convém se colocar em cólera não contra aquele que é a vítima, porque, diz
o Apóstolo, “nós não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas contra as
Dominações, Principados, contra os Príncipes deste mundo das trevas, contra os espíritos
maus nos lugares celestiais” (Ef 6,12). É contra o pecado que é necessário combater, não
contra aquele que o comete: “Odeie a doença, não o doente”, recomenda são Sinclético.

O que a tradição ascética coloca sob o nome de “cólera” não consiste somente
nestas manifestações violentas, exteriores, que nós colocamos ordinariamente sob este
nome e que geralmente episódicas afetam particularmente certos indivíduos de
comportamento dito colérico: os Padres a concebem como uma paixão mais desenvolvida
que as outras e elencam igualmente sob este termo todas as formas de agressividade,
exteriorizadas ou internalizadas, abertas ou fechadas, grosseiras ou sutis, das quais o
homem é capaz, e que tem de uma maneira geral o próximo como foco. Assim, ao lado
disto que nós chamamos habitualmente cólera, e que constitui a manifestação mais
exterior, visível e violenta desta, a forma aguda da paixão onde “o θυμός explode e se
desenvolve”, os Padres30distinguem principalmente: o ressentimento (μήνις) – que é uma
“cólera conservada”, que dura sob uma forma mais interiorizada e mais escondida, e que
tem por fundamento a memória duma ofensa, duma humilhação, de injustiças sofridas -,

João Damasceno; Evágrio –Traité pratique; João Clímaco – L’Échelle; João Cassiano – Conférences;
30

Doroteu de Gaza – Instructions Spirituelles; Basílio de Cesaréia – Homélies.


Reginaldo Alves Campoe

63

o rancor (μνησικακία), o ódio (μισος), e também todas as formas de rancor, a hostilidade,


a animosidade, a inimizade, breves maldades. O mau humor, amargura, as formas mais
ou menos desenvolvidas de irritação (όξυχολία) e as manifestações de impaciência, fazem
deste modo parte desta paixão (Doroteu de Gaza – Instructions spirituelles; Hermas –
Préceptes). Do mesmo modo estão aí a indignação e a zombaria, o escárnio e a ironia em
relação às pessoas. Pode-se ainda juntar aí os sentimentos grosseiros, mesmo pouco
desenvolvidos, a malevolência, desde as mais grosseiras – que se traduzem na maldade e
na vontade aberta de causar dano -, àquelas mais sutis, que podem consistir duma parte
em se alegrar (mesmo por breve instante) de um mal ou duma descoberta que afeta o
próximo, e de outra parte, a não se afligir das penas que lhe sobrevém, ou mesmo modo
não se alegrar de sua felicidade (Doroteu de Gaza). Opondo-se a estes sentimentos
frequentemente sutis, muito interiores e apercebidos mesmo daqueles que são afetados
por ela, as formas extremas de violência, tais como as diversas rivalidades (Basílio de
Cesaréia), lutas, agressões, combates e mesmo crimes (João Cassiano; João Crisóstomo)
ou guerras, podem igualmente derivar da paixão da cólera num senso mais amplo como
o entende a tradição ascética.

Os Padres notam que em toda forma de cólera, o homem experimenta certo prazer
que o faz se apegar a ela. “Pouco lhe importa o mal que a alma faz a si mesma”, remarca
são João Crisóstomo: “ela se transforma então, ela transforma numa espécie de prazer
que é necessário satisfazer a todo custo. Sim, esta perturbação do coração não existe sem
um prazer, ele exerce mesmo sobre a alma uma tirania mais imperiosa que todo outro
prazer.” (Traité du sacerdoce) São João Clímaco nota do mesmo modo a proposito da
lembrança das injúrias e do rancor: “É uma dor sensível e pungente que não se deixa de
amar por causa da doçura que se encontra na amargura mesmo da cólera.” (L’Échelle)
Mas existe aí uma relação secundária ao prazer, que permite compreender como aquele
que pode dialogar com a cólera (e singularmente o rancor), não sabe por que razão
condiciona sua aparição. É num lugar prévio e mais fundamental do prazer à cólera que
se pode compreender a origem das diversas manifestações desta paixão. Evágrio,
retomando por sua vez o proposto de outro Padre, afirma: “Eu sei que esta se debate
sempre na busca do prazer”. São Máximo e são Doroteu veem do mesmo modo no amor
ao prazer (φιληδονία) uma causa fundamental da cólera. A cólera nasce no homem assim
que ele se aflige por não poder alcançar um prazer que busca, (Máximo, o Confessor;
Atanásio d’Alexandria), mas igualmente e principalmente logo que ele se encontra, se
sente, ou crê estar privado de um prazer que o alegraria, e “assim pois que o amor por si
mesmo (φιλαυτία) se encontra contundida pelo sofrimento”. (Máximo) Ela se torna então
contra aquele que é ou parece ser a causa da frustração, ou que pelo menos possa ameaçar,
ou parece ameaçar. É por isto que Evágrio define assim a cólera: “Um movimento contra
aquele que faz um mal/injustiça ou parece em vias de fazê-lo”.

Estas não são, portanto as fontes mais importantes e mais frequentes e retomadas:
a cólera pode ter causas muito numerosas que difícil cercar de maneira simples como
assinala são João Clímaco se exprimido uma vez mais, na linguagem da medicina
espiritual: “A febre corporal é sempre do mesmo tipo, mas seu ardor, longe de ter sempre
Reginaldo Alves Campoe

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a mesma origem, pode proceder de múltiplas causas. A mesma agitação da cólera e seus
movimentos, como sem dúvida aqueles de nossas outras paixões, podem ter causas e
origens diversas. Por isto é impossível de prescrever uma regra única com relação a ela.
Eu aconselharia antes a cada um daqueles que estão doentes de procurar com o maior
desvelo o método a seguir para se cuidar. O primeiro ponto do tratamento é conhecer a
causa da doença; quando ela teria surgido, com efeito, as doenças receberão da
providencia de Deus e de seus médicos espirituais o remédio eficaz”. (L’Échelle)

Paixões que levam à cólera:

- O prazer sensível está em correlação com os desejos sensíveis;

- É por causa do amor aos bens materiais e dos prazeres que eles procuram e porque
preferem aos bens às alegrias espirituais;

- O amor às coisas sensíveis e os prazeres correlativos se manifestam de maneira


diversificada e há, segundo uma concepção ascética, três grandes categorias de paixões,
ou três gêneros principais de apego:

- apego ao alimento (paixão da gastrimargia) (Evágrio; João Clímaco;


Doroteu de Gaza);

- apego ao dinheiro, às riquezas e mais generalizado aos objetos materiais


(paixão da filargiria e da pleonexia) (Evágrio, João Clímaco; Doroteu de Gaza; Máximo
o Confessor);

- apego a si mesmo (paixão da cenodoxia e do orgulho) (João Clímaco).

Em razão dos desregramentos de que ela se constitui, ela é, sobretudo, considerada


como uma forma de loucura.31 “Entre a cólera e a loucura, não há nenhuma diferença”,
afirma são João Crisóstomo. “O homem em cólera é uma loucura, assemelha-se
totalmente a um louco”. “A cólera é uma loucura momentânea”, nota de seu lado são
Basílio.

É evidente nas suas manifestações agudas e violentas, e notadamente assim que


ela toma a forma de furor, que a cólera merece ser mais considerada como uma espécie
de loucura. São João Clímaco não hesita em qualificá-la de epilepsia espiritual. São
Gregório, o Grande, apresentando um quadro mais preciso desta paixão em suas
manifestações paradoxais, faz aparecer limpamente de assemelhá-la a uma forma de
loucura: “Picado pelo aguilhão da cólera, o coração palpita, o corpo treme, a língua
gagueja, o fogo sobe para a visão, os olhos brilham: o homem torna-se irreconhecível
mesmo aos olhos daqueles que o conhecem. A boca profere sons, mas a inteligência não
sabe mais aquilo que ela diz. Em que pois um homem que não é mais consciente daquilo
que diz, difere de um louco em transe? ... O espírito não é mais capaz de algum controle,

31
Hermas – Pasteur; Méhode d’Olympe – Le Banquet; João Crisóstomo – Commentaire sur le Psaume;
Gregório, o Grande – Morales.
Reginaldo Alves Campoe

65

porque ele tornou-se o joguete de uma potência que lhe é estranha, e se seu furor torna-
se sobre seus membros fazendo os dar golpes, é que interiormente ela mantém cativa a
alma que deveria ser sua mestra.” (Morales sur Job) Os Padres mostram frequentemente
no mesmo sentido em que aquele que é tomado por estas formas violentas de cólera
assemelham-se a um possuído (Basílio de Cesaréia – Homélies, Sur la colère; João
Crisóstomo – Commentaire sur Santo Jean; Evágrio – Lettres), e pode se lembrar, nestas
ocasiões, a ligação direta de como eles são vistos pelos outros como formas agitadas de
loucura e a possessão demoníacas.

Enfim, um último sintoma patológico essencial na cólera é a agitação psicomotora


que a caracteriza em diversos graus e a aproxima, ainda alguns manifestações de loucura
e de estados de possessão demoníaca. O comportamento do homem que é vítima dela
torna-se confuso, desordenado. “Aqueles que se deixam surpreender pela cólera são
capazes de toda espécie de desordem e desatinos”, constata são Basílio; “é impossível de
narrar todas as extravagancias que faz o homem neste estado; interrompe sem ordem e
sem propósito”, “se precipita e desobedece com impetuosidade”, “ataca todos aqueles que
encontra”.

Assim, segundo todo o contexto, que a cólera constitui um obstáculo à prece que
é precisamente, diz Evágrio, “uma descendente da doçura e da ausência da cólera”.
(Traité de l’oraison) “Desordenando o estado de oração”, a cólera destrói a santidade da
alma e impede o homem de direcionar sua vida para aquilo pelo qual foi feito.

Juntando todas estas consequências àquelas já descritas precedentemente, as


consequências são catastróficas para o homem: a cólera em definitivo o arrasta para a
morte espiritual. (Máximo o Confessor, Gregório o Grande) Visto que ela expulsa dele
todas as virtudes (Isaac, o Asceta) e destrói em tudo, em primeiro lugar a caridade.
Cessando de destruir, conforme sua finalidade normal, os pensamentos demoníacos,
“destroem da mesma maneira os pensamentos bons que estão em nós”.

Ela gera correlativamente uma multidão de paixões. Entre as principais citamos a


tristeza (Evágrio), a acédia (Evágrio, Máximo, o Confessor), a pusilanimidade (Máximo,
o Confessor) e o orgulho (Máximo, o Confessor).

- TERAPÊUTICA DA CÓLERA: a doçura e a paciência.

O amor ao prazer (φιληδονια) constituindo uma causa fundamental do uso


patológico da potencia irascível, é ela, portanto, que importa extirpar se se quiser vencer
a paixão da cólera. (Evágrio – Traité Pratique; Doroteu de Gaza – Instructions
spirituelles)
Reginaldo Alves Campoe

66

O amor ao prazer estando essencialmente ligado aos desejos sensíveis, a


terapêutica da cólera supõe uma mortificação da concupiscência. Assim, nota são
Máximo, “nós ensurdeceremos os latidos inconvenientes da agressividade que não tem
mais como exercitá-la e persuadi-la de se deixar vencer pelos prazeres familiares, a
concupiscência [...] . Com efeito, a agressividade que, por natureza, vem ao ataque com
a concupiscência, cessa naturalmente de se colocar em fúria quando ela vê a
concupiscência mortificada.”

Para que o homem seja curado da cólera, é pois necessário que ele tenha vencido
as paixões ligadas à concupiscência, em particular a gastrimargia, a luxuria e a filargiria
que são as causas frequentes desta paixão, e que pratique as virtudes que lhe são opostas.
Os Padres insistem particularmente na luta contra a filargiria, e apresentam assim
paradoxalmente a esmola como um remédio essencial para a cólera. Evágrio escreve: “É
necessário aproximar-se do Médico das almas, que cura a parte irascível pela esmola.”
São Máximo esclarece que “certos remédios [...] enfraquecem e reduzem as paixões”,
precisa que para a cólera é a esmola que convém: “A esmola é o tratamento da cólera”.

A esmola aparece sempre como uma manifestação da caridade, a qual constitui


um dos principais antídotos da cólera, pois esta ataca o próximo manifestando-se como
ódio dele. “A caridade cura a parte irascível da alma”, constata Evágrio que nota ainda:
“A parte irascível tem necessidade de mais remédios do que a parte concupiscível: por
isto a caridade é dita “grande”, porque ela é um freio à parte irascível.” ( CALLISTE e
IGNACE XANTHOPOULOI) É isto que afirma são Máximo: “O mais difícil a combater
são as paixões da parte irascível da alam [...]. É por isto também que mais energético é o
remédio que o Senhor deixou contra a cólera: o preceito da caridade.” Ele escreve ainda:
“Se a potência irascível é constantemente perturbadora [...], o remédio, é a bondade, a
beneficência, a caridade e a misericórdia.” (Centuries sur la charité) Evágrio reafirma
ainda que a compaixão diminui a irascibilidade e nota: “Quando a parte irascível é
agitada, a misericórdia a acalma.” São Doroteu de Gaza ensina que “lá onde se encontram
a compaixão e a caridade, a cólera e o rancor não podem prevalecer”. São João Clímaco,
que recomenda juntar a caridade à doçura e à paciência, afirma categoricamente a eficácia
deste remédio: “Aquele que tem um verdadeiro amor por seu próximo banirá a cólera de
sua alma”. São Máximo, evocando o rancor, escreve com o mesmo sentido: “Por meio da
caridade e da cordialidade para com o próximo, tu eliminarás de tua alma todo traço de
paixão”. E aconselha mais amplamente: “Triunfe pela caridade”.

Quando a cólera procede do orgulho e da cenodoxia é necessário enfrentá-la


odiando a glória, ora é a humildade que constitui o antídoto à cenodoxia e ao orgulho, “a
conversão necessita de muita humildade”, afirma São João Clímaco, continuando “como
as trevas se dissipam desde o aparecimento da luz, assim o perfume da humildade faz
desaparecer todo traço de amargura e irascibilidade”. São Gregório de Nissa afirma que:
“A humildade é a mãe da doçura do coração... a ignominia e a brutalidade não atacam
aquele que pratica a humildade.”
Reginaldo Alves Campoe

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Contudo, a doçura espiritual não tem nada a ver com a indolência nem com a
moleza (Gregório de Nissa – João Crisóstomo). Esta é uma atitude não passiva, mas ativa.
Ela é um estado de estabilidade da alma (Gregório de Nissa), de serenidade, próximo da
impassibilidade quando ela chega ao seu término (João Clímaco). E acrescenta: “A doçura
é um estado imóvel da alma que permanece igual a ela mesma tanto na humilhação
quando diante dos louvores.”

A paciência consiste em suportar com calma os males que nos são afligidos pelas
circunstancias ou por uma pessoa, e simplesmente, neste último caso, suportar sem se
inquietar com as críticas, ultrajes, insultos, ou palavras ofensivas. São Máximo define:
“Ela consiste em permanecer constante na adversidade, suportar os males, sustentar-se
até o fim da tentação, não ceder repentinamente à cólera, não deixar escapar uma palavra
pelo golpe da emoção, não trazer nenhuma desconfiança, nem pensamento qualquer coisa
que seja indigno de um homem que crê em Deus.” João Cassiano diz: “Ninguém ignora
que ‘paciência’ vem de ‘sofrer - pâtir’ e ‘sustentar’. É claro portanto que aquele que
merece ser chamado de paciente, suporta sem revolta os maus tratamentos que se lhe
infringi”.
Reginaldo Alves Campoe

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8 ) TEMOR32

Os Padres classificam as paixões do medo (φόϐος) e todos os estados que lhe são
próximos e constituem formas ou graus, como temor, fraqueza, pavor, terror, mas
igualmente ansiedade, angústia, aflição. (João Damasceno – Exposé exact de la foi
orthodoxe).

De uma maneira geral, o temor é provocado pelo risco de uma privação ou de um


sofrimento, pela ideia ou o sentimento que se vai perder ou que se poderia perder aquilo
que se deseja, ou aquilo ao qual se apega. (Atanásio de Alexandria)

Portanto, o temor/medo assim definido pode ser bem mais uma virtude que uma
paixão. “Se o temor é também uma paixão, nem todo temor é uma paixão”, nota Clemente
de Alexandria. É necessário pois, distinguir dois tipos de temor.

1) O primeiro tipo de temor, que Deus colocou no homem em o criando, que pertence
pois à sua natureza, tem uma dupla forma.

a. Sua primeira forma é uma força que prende o homem ao seu próprio ser e o faz
temer de perder a si mesmo, alma e corpo. (João Damasceno - Exposé) Por este temor em
suas manifestações as mais elementares, ele se apega à vida, ao ser e teme tudo aquilo
que poderia corrompê-los e arruiná-los, experimenta uma repulsa ao não-ser, como
explica são Máximo que sublinha que esta tendência pertence à sua própria natureza de
homem [...]. faz parte dos λογοι que Deus inseriu na natureza do homem pela criação.
Este medo, diz ainda João Damasceno, “é a repulsa por tudo aquilo que possa destruí-lo”;
ela corresponde, poder-se-ia se dizer, ao instinto de conservação, ao instinto da vida, à
tendência inata que nós temos a preservar o ser e perpetuar nossa existência. Ela se
manifesta em particular como temor da morte, tendência natural, pois o Criador nos deu
a vida para que nós a conservemos e que a corrupção e a morte constituem fenômenos
antinaturais.

b. A segunda forma é o “temor de Deus”, que é em seu grau elementar o temor do


castigo divino (Máximo o Confessor) e no seu grau mais elevado é o temor de ser
separado de Deus . Esta segunda forma de temor se encontra naturalmente ligada à
precedente: o homem apegado ao seu ser e à sua vida e temendo perdê-las, se ele conhece
a verdadeira natureza, não pode senão temer de estar separado de Deus que é o princípio
e o fim, a fonte e o sentido. Mais ainda que a vida biológica, é a vida em Deus que teme
perder o homem consciente de sua realidade fundamental.

32
« ...os transtornos de humor são caracterizados por desvios brutais do humor ... indicam estado de humor
bastante deprimido (menos valia e indecisão); funções físicas perturbadas (padrão de sono, mudanças
significativas no apetite ou peso ou perda perceptível de energia [...] no geral é acompanhado pela perda de
interesse nas coisas; incapacidade de experimentar qualquer prazer – anedonia. Demonstra negligência em
relação à responsabilidade e aparência; irritabilidade; reclamações sobre problemas que costumam ser
resolvidos sem dificuldades.” (Barlow e Durand, pp. 265-298)
Reginaldo Alves Campoe

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2) O segundo tipo de temor, que os Padres consideram uma paixão, é uma consequência
do pecado ancestral. Ela se manifesta sempre como uma repulsa que experimenta diante
aquilo que pode corromper e destruir eu ser, mas não se trata mais do seu ser segundo
Deus, mas de seu ser decaído ao qual é apegado pela filáucia, ao prazer, aos objetos
sensíveis.

O temor/paixão revela em todos os casos um apego a este mundo: aos bens deste
mundo, ao gozo sensível.

Do mesmo modo que o temor é “segundo a natureza”, este segundo tipo que é
uma paixão maléfica, é “contra a natureza (παρα φύσιν)” (João Damasceno) e insensatez
(παράλόγος)”. Ele provem porque o homem modificou a dupla finalidade natural e normal
do temor que o ligava ao seu verdadeiro ser e à Deus, por transformá-lo em medo de ser
decaído, de ser separado do mundo sensível, perder a vida apaixonada e o prazer ao qual
ele se apega.

Vemos ainda aqui que o temor segundo Deus e o temor “mundano” não
constituem duas atitudes diferentes por sua natureza, mas a mesma atitude fundamental
orientada para dois fins diferentes. Aqui se ressalta dois ensinamentos dos Padres onde
eles são apresentados como separados um do outro: se se teme qualquer coisa deste
mundo, é porque não se teme a Deus; inversamente, aquele que teme a Deus não tem nada
a temer: “aquele que é o servidor de Deus teme somente a Ele [...] mas aquele que não O
teme temerá porém sua própria sombra”. (João Clímaco) É por esta razão igualmente que
os Padres dizem que o temor/paixão está favorecido pela esterilidade da alma, pela perda
da presença divina nele.

Pusilanimidade

A pusilanimidade (όλιγοψυχία - δειλία) é frequentemente considerada como uma


forma de paixão do medo (João Damasceno) e partilha pois com estas, certo número de
características descritas acima. Ela possui portanto, certo número de tratos específicos e
importantes, o que obriga a consagrá-la com algumas pontuações suplementares.

A paixão da pusilanimidade é definida por são João Damasceno como “o temor


de uma ação a executar”. É uma atitude de fraqueza, de falta de coragem diante de um
dever a cumprir. Ela se distingue todavia da covardia. Ela é mais timidez.

Os Padres a consideram como uma doença: Orígenes vai figurá-la na lista das
paixões que chama de “doenças da alma”, e um apoftegma lembra: “Um irmão veio
encontrar Abba Victor, o hesicasta, no mosteiro de Élousa e lhe diz: Que devo eu fazer,
Reginaldo Alves Campoe

70

Pai, porque sou presa da paixão da pusilanimidade”? O ancião responde: “É uma doença
da alma”.

É na potência irascível da alma que a pusilanimidade é uma doença: “Se a peste


viciosa infecta a parte irascível, desenvolve [entre outras] a pusilanimidade”, ensina são
João Cassiano.

Esta paixão é igualmente assimilada pelos Padres a uma forma de loucura: é o


caso, por exemplo, de são João Crisóstomo que se refere a esta afirmação do Livro dos
Provérbios (14,29): “Aquele que é pusilânime falta completamente de senso”.

Como todas as outras paixões, a pusilanimidade revela particularmente seu caráter


patológico pelo fato de que ela é uma atitude antinatural, que não corresponde ao estado
normativo no qual o homem foi criado por Deus. Assim são Paulo ensina: “Não é um
espírito de pusilanimidade que Deus vos deu, mas um espírito de força, de amor, de
sabedoria (2 Tm 1,7)”, a força sendo particularmente a virtude que a pusilanimidade
constitui uma falta. Deste modo a força está entre os dons essenciais do Espírito que são
constitutivos da imagem de Deus chamadas a conhecer sua plena realização na aquisição
da semelhança de Cristo, a pusilanimidade sendo a negação. Ela aparece no homem como
consequência do pecado e é estranho à sua verdadeira natureza, é por isto que são
Barsanuphe aconselha a um de seus filhos espirituais: “Diga à pusilanimidade: ‘Eu sou
estrangeiro. ’”

A pusilanimidade é em todo caso, como o temor, o sinal de uma falta de fé.


Mostrar-se pusilânime, é não ter confiança na ajuda divina, na força do Espírito que
constantemente sustenta aquele que invoca Deus. Unido a Deus e recebendo Sua graça,
participando de Sua força, o homem não pode nada duvidar de completar. Com uma fé
absoluta em Deus, é capaz segundo o ensinamento do Cristo, ultrapassar montanhas.

Frequentemente dominado por sua imaginação que o homem duvida em agir. A


relação da pusilanimidade com a imaginação é, como é o caso de todo temor,
frequentemente sublinhada pelos Padres. A imaginação, ainda, deforma a realidade,
presente como difícil, duvidosa ou impossível ação de se realizar, sendo que
objetivamente ela é nada. O sujeito da pusilanimidade é vítima de uma ilusão e mesmo,
poder-se-ia dizer, um delírio. “A pusilanimidade, nota são João Clímaco, nos faz temer e
esperar males que não devem ter, temer nem esperar”. E Abba Victor, seguindo os
propósitos citados mais acima onde qualifica a pusilanimidade como doença, diz: “Do
mesmo modo acontece com aqueles que têm os olhos doentes creem ver mais luz quando
sofrem mais, assim como aqueles que têm os olhos sãos creem ver pouco, assim os
pusilânimes são rápidos em chatear-se por pequenas provas e se imaginam que são
maiores que pensam”.

A pusilanimidade pode parecer como uma atitude infantil que está fixada e
subsiste anormalmente no adulto: “Pusilanimidade, escreve são João Clímaco, é uma
disposição pueril, numa alma que não é mais jovem.”
Reginaldo Alves Campoe

71

Ela está essencialmente ligada à paixão da cenodoxia, a tal ponto que podemos
afirmar que “todos aqueles que são pusilânimes são vaidosos”.

A pusilanimidade aliena o homem, exercendo sobre ele uma dominação


poderosa. Ela é particularmente formidável porque bloqueia seu dinamismo, freia suas
relações naquilo que pode ter de melhor, retarda ou mesmo paralisa sua atividade, inibe
entre outras circunstâncias o exercício de suas faculdades. Isto se torna particularmente
grave quando se trata de atividade espiritual. É claro que o diabo tem um interesse
particular em suscitar e entreter esta paixão que confunde a alma e impede a sua
completude.

- TERAPÊUTICA DO TEMOR: o temor de Deus.

O temor e os estados que podem prender-se ao individuo, como o medo, a


inquietude, a ansiedade, a angústia, são, como temos visto, fundamentalmente, ligados ao
apego aos bens sensíveis. O homem não pode tornar-se curado senão em se desapegando
deste mundo (João Crisóstomo), e em remetendo toda sua inquietação a Deus, tendo a
firme esperança que, na Sua Providência, Ele fornecerá todas as suas necessidades. É isto
que ensina o próprio Cristo: “Não vos preocupeis pois com nada, e não digam: Que
comeremos, que beberemos? O que vestiremos? Porque todas estas coisas são
preocupações para os pagãos. Vosso Pai celeste sabe daquilo que tendes necessidade.
Procurai primeiro o Reino e a justiça de Deus ; e todas as coisas vos serão dadas por
acréscimo. Não vos preocupeis pois com o amanha” (Mt 6, 28-34). Nesta perspectiva são
Isaac aconselha: “Se tu crês que Deus te guarda em Sua providência, porque se inquietar
e te preocupares com as coisas que passam e com as necessidades da carne? [...] Coloca
no Senhor tua preocupação, e Ele te nutrirá. Nenhuma ameaça te afligirá mais”;
“aproxima-te espera em Mim, e tu te repousarás de toda obra e temor”.

A fonte primeira do temor é, como temos visto, a falta de fé. O temor encontra-se
pois, abolido no coração do homem na medida de sua fé em Deus. Uma fé inflexível, nota
Evágrio, “não admite absolutamente nenhum acesso de temor”. (Chapitres gnostiques)
Aquele que crê firmemente em Deus e em sua providência está certo de receber d’Ele em
todas as circunstâncias ajuda e proteção, e não há mais desde então temor nem
circunstâncias, nem qualquer adversário, nem a própria morte. São Paulo lembra que “o
próprio Deus disse: Eu não te abandonarei mais e Eu não te desampararei mais” e é pois,
“com segurança que nós podemos dizer: O Senhor é minha ajuda, eu não temo nada”(Hb
13, 5-6) E o salmista nota: “O Senhor é minha luz e minha salvação, de que eu poderia
pois temer? O Senhor o protetor de minha vida, diante de que eu temeria? [...] Se uma
armada acampa contra mim, meu coração não temerá”(S 26, 1-3); “Nem temor nem terror
repentino, nem um ataque da parte dos maus; porque o Senhor será tua segurança, e Ele
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preservará teu pé de toda armadilha” (S 3, 25-26); “Mesmo que eu marche nas sombras
da morte, eu não temerei mal algum, porque Tu estás comigo” (S 22, 4).

Não é a fé por ela mesma que livra o homem de seu temor, mas Deus que, em
resposta a esta fé traz a Sua ajuda e Seu socorro. (João de Gaza – Isaac, o Sírio) São Isaac,
o Sírio, escreve: “Quando seu coração temer e tremer fora de toda serenidade, que [o
homem] compreenda então e que ele tenha de fato necessidade de uma outra ajuda, [...]
É dito que só o salva a ajuda de Deus .”

Esta ajuda, na fé que Deus possa lhe conceder, e na esperança que Ele te trazer, o
homem deve pedir pela prece. Devemos notar que é a “prece de Jesus” que é contra o
medo e todas as paixões que sendo próximas (inquietude, medo, ansiedade, angústia) o
remédio mais eficaz. São João Clímaco aconselha: “Flagele teus inimigos com o nome
de Jesus, porque não há arma mais poderosa no céu e na terra. Quando tu fores curado
desta doença [e do temor], glorifica Aquele que dele te livrou. Se tu Lhe rende graças,
Ele te protegerá sempre.” E Evágrio nota: “Quem se esforça na oração pura entenderá
fama e fracassos, vozes e insultos; mas não se ofenderá, nem perderá seu sangue-frio,
dizendo a Deus: “Não temerei mal algum, porque Tu estás comigo” e outras palavras
semelhantes.” Ele constata ainda: “Aquele que a inteligência está sempre dirigida a Deus,
a parte irascível plena da lembrança de Deus, e a parte desejante toda inteira tendendo
para Ele, a este é natural não temer aqueles que rodeiam em torno dos nossos corpos, a
saber, os inimigos rebeldes.” A prece do coração permite com efeito ao homem de estar
unido a Deus permanentemente e beneficiar constantemente seu socorro; a partir de então
nenhuma causa de temor irá surpreendê-lo mais. Um ancião dizia: “Esteja tu dormindo
ou acordado, o que quer que faças, se Deus está diante de teus olhos, o inimigo não pode
mais te apavorar. Se teu pensamento habita em Deus, a força de Deus habita também em
ti.” O homem conhece portanto, menos medo se sua prece é mais pura. “O sinal que indica
uma prece perfeita é não ficar duvidoso, mesmo se o mundo inteiro nos ataca”, escreve
são Barsanuphe. O desaparecimento do temor e das paixões que lhe são próximos
decorrem aqui da presença permanente da força divina no homem, graças à prece
permanente. Mas o homem pode também livrar-se destas paixões por uma prece
específica. Assim João, o Solitário, escreve: “Pelo pedido a Cristo, nós podemos receber
força e socorro contra nossas angústias.” (Dialogue sur l’âme et les passions des hommes)
Um apoftegma lembra que “perguntaram ao Abba Théodore: Se uma catástrofe sobrevier
subitamente, o senhor teria medo, Abba? O ancião respondeu: Mesmo se o céu e a terra
entrarem em colisão, Thédore não teria medo.” Ele tinha com efeito pedido a Deus de
retirar dele o temor”.

A terapêutica do temor supõe correlativamente a renuncia do homem de sua


vontade própria e uma atitude de humildade. Assim um irmão que lhe perguntou: “Diga-
me como eu posso ser salvo neste momento, pois um pensamento de inquietude surgiu
no meu coração”, são Barsanuphe responde: “A todo o momento se o homem pode
entrincheirar-se em toda sua vontade guardando um coração humilde [...], ele poderá ser
salvo pela graça de Deus. E onde quer que ele esteja sua inquietude não se apodera dele.”
Reginaldo Alves Campoe

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O temor, como nós o temos visto, está ligado ao orgulho e, no momento em que o homem
coloca sua confiança em suas próprias forças, ele está sujeito a esta paixão. Para poder
vencê-la pela força do próprio Deus, para receber esta força e guarda-la, o homem deve
renunciar a si mesmo, reconhecer sua própria impotência, senão a energia divina não
poderá encontrar lugar nele. Também são Isaac recomenda àquele que quer ser livre do
temor, orar antes de tudo para adquirir a humildade: “Mais ele reza, mais seu coração se
faz humilda e, logo a compaixão o preenche e o coração então sente o socorro divino. Ele
descobre que sobe nele uma força, a força da confiança.”

É igualmente pelo amor que o homem pode vencer o temor: “O temor não está no
amor, mas o amor perfeito baniu o temor.” (1 Jo 14,18) Tendo constatado que “na medida
onde a caridade desaparece, o temor aparece”, são João Clímaco ensina em seguida
seguindo são João que aquele que está “cheio de caridade [...] não provou da caridade”.

É necessário portanto, sublinhar que se o homem deve tender a ser curado da


paixão do temor, ele não deve por conseguinte rejeitar todo temor da sua alma, porque
“nem todo temor é uma paixão”. É, nós o temos visto, um temor virtuoso, que Deus deu
ao homem como um meio de salvação, e que os Padres chamam de “temor salutar”,
“salutar ansiedade, e outras expressões semelhantes. Este temor constitui aquilo que a
tradição ascética chamou de “temor de Deus”. O temor-paixão deve desaparecer para dar
lugar a este temor virtuoso.

O temor de Deus pode ser considerado apesar das comparações como uma virtude
fundamental. Santo Isaac por sua vez afirma: “O começo da verdadeira vida do homem
está no temor de Deus.”

Há, portanto, duas formas de temor de Deus, correspondendo a dois graus desta
virtude:

a. A primeira forma resulta do temor do julgamento divino, atual ou futuro e das penas
que possam dai resultar e que os Padres designam frequentemente com o nome de
“castigo”. Temos mostrado que por este termo não é necessário entender a punição que
um Deus vingador e cruel infligirá àqueles que transgridem sua lei, mas os sofrimentos
interiores, ligados ao estado de separação com Deus e a privação dos bens espirituais aos
quais o próprio homem se condena por seu pecado e julgamento divino.

Esta primeira forma de temor é o “temor inicial”, aquele que acontece desde os
inícios. Vemos que logo que os Padres afirmam que esta primeira forma de temor é
próprio dos iniciantes, entendem por isto aqueles que ainda não chegaram à perfeição,
que não são santos ainda. E este medo, mesmo as pessoas com espírito avançado, podem
e até devem provar. São Doroteu de Gaza não hesita em dizer aos seus monges: “Este
temor inicial é pois o nosso”.

É assim que santo Antônio, o Grande, pode dizer: “De hoje em diante, eu não creio
mais em Deus, eu O amo; porque o amor expulsa fora o temor”.
Reginaldo Alves Campoe

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b. A segunda forma de temor é inerente à caridade perfeita. Ela provém do amor de Deus
assim que a primeira espécie de temor é afastada por esta. É o temor de estar separado de
Deus, o temor de ser privado da “familiaridade inerente ao amor”. (Máximo, o Confessor)
Como diz muito justamente Clemente de Alexandria, “aquilo que se crê, não é Deus, mas
estar separado de Deus”.

Esta segunda forma de temor aparece deste modo como “o temor perfeito”,
“aquele dos santos que chegaram à perfeição e ao cume do santo amor”. Contudo, como
diz são Doroteu de Gaza, ninguém chega a este temor perfeito sem antes ter passado pelo
primeiro, pelo inicial.

Quais são as condições de aquisição do temor de Deus?

- Ele procede da fé;

- Está diretamente ligado à pratica dos mandamentos e que aplicam toda sua vontade aos
seus preceitos;

- O desapego deste mundo, a negligência (no sentido de desinteresse) espiritual em face


das coisas terrestres, torna-se outra condição (Didoque de Photicé); a meditação da morte
(João Clímaco – Doroteu de Gaza) e dos fins últimos (Isaac, o Sírio);

- O exame de consciência regular (Doroteu de Gaza)

- O reconhecimento de seu estado de pecado (João Clímaco);

- O luto (João de Gaza);

- A s lágrimas (João Clímaco).

É necessário contudo, não esquecer que a virtude do temor de Deus é uma


manifestação da graça, e se os esforços do homem são indispensáveis para consegui-lo,
ele é, apesar disto, um dom de Deus e deve ser a Ele pedido na prece.

9 – VAIDADE
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A cenodoxia (κενοδοξία), correntemente denominado vanglória ou vaidade, é


uma paixão particularmente importante e fonte de numerosas outras doenças da alma.

São João Cassiano nota que “ela varia muito suas formas e se divide em tipos”,
mas “se reduz contudo a dois gêneros”, que são como dois graus.

1) A primeira espécie de vaidade “trata-se da auto projeção por vantagens carnais e


aparentes”. É a forma mais grosseira de cenodoxia, aquela que afeta o homem decaído
mais imediatamente, mais facilmente e mais correntemente. Ela consiste em se mostrar
confiante e a se gloriar dos bens que se possui ou crê possuir, e o desejar ser visto,
considerado, admirado (Gregório, o Grande – Morales sur Job), estimado, honrado,
louvado, querer ser lisonjeado pelos homens. (Basílio de Cesaréia – João de Gaza)

Os bens dos quais o vaidoso se mostra confiar nesta altura tem por característica
comum do ser carnal (João Cassiano), terrestres e é uma consideração e uma glória
humana exclusivamente e que atende ao desejo de posse.

O vaidoso pode assim se gloriar e desejar a admiração do outro pelos dons que a
natureza lhe concedeu (Doroteu) como a beleza real ou suposta de seu corpo (Doroteu)
ou sua voz, por exemplo, mas também por suas maneiras, sua nobreza de porte (Máximo,
o Confessor – João Clímaco) e tudo aquilo que contribui para lhe dar uma bela aparência
(vestimentas, perfumes, joias).

Pode-se também gloriar e levar em consideração por sua habilidade manual ou sua
habilidade em tal ou tal domínio (Doroteu de Gaza).

A cenodoxia leva o homem a se elevar e a se fazer admirar pelas suas riquezas e


bens materiais que ele possa adquirir. A cenodoxia, de todo tipo, pode constituir um motor
da paixão da filargiria. São Máximo escreve: “Cenodoxia e filargiria se engendram uma
à outra. O vaidoso acumula dinheiro; o rico é vaidoso.” O gosto do luxo e do fausto
aparece como ligado às duas paixões: suscitado pela cenodoxia e supondo a filargiria, ele
as aumenta novamente assim que se encontra satisfeito.

É frequentemente impulsionado pela cenodoxia que o homem igualmente quer


chegar a uma situação e posição social elevada.

Esta paixão se apega ainda ao poder sob todas suas formas, e se encontra
frequentemente ser causa de sua busca; ela está aliada e é motor de duas paixões que os
Padres nomeiam “amor ao poder” (φιλαρχία) (João, o Solitário) e “espírito de
dominação”. É claro que aquele que tem poder e que é habitado pela cenodoxia procura
ser admirado e louvado, mas também se esforçam constantemente em agradar para
entreter e fazer crer, esta admiração, não obstante para conservar seu poder, manter os
privilégios que se apegam a ele e as vantagens que tira disto.
Reginaldo Alves Campoe

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Num plano mais sutil, porque se situa menos no domínio do aparente e da


materialidade que as precedentes, se bem que ela seja quase tão difundida, é a cenodoxia
que consiste para aquele que é o sujeito dela, de se mostrar confiante em suas qualidades
intelectuais (de sua inteligência, de sua imaginação, de sua memória, mas também de seu
conhecimento ou de seu saber, de maestria na linguagem, de sua capacidade em bem
discorrer ou escrever) e procurar por isto a atenção, a admiração e os louvores do outro.
Parece que a ambição nos domínios intelectuais e culturais, assim como no domínio
politico ou financeiro, é um produto mais frequente da cenodoxia.

2. O segundo tipo de cenodoxia distinguida por são João Cassiano “se infla do desejo do
vão renome para os bens espirituais e escondidos”. Nos que estão na vida espiritual,
embora ainda submissos às paixões, ela coexiste com a primeira espécie ou toma seu lugar
assim que ultrapassou todo apego aos bens mundanos. Consiste em se gloriar em si
mesmo ou diante dos outros homens de suas virtudes ou de sua ascese e a procurar por
elas a admiração e os louvores dos outros. Assim, logo que o homem se esforça em
combater as diversas outras paixões e pratica as virtudes que são a negação, ele se
encontra particularmente sitiada por este segundo grau da cenodoxia. Também são João
Clímaco reafirma que “o demônio da vanglória sente uma alegria particular quando ele
vê multiplicar as virtudes”, e que, “do mesmo modo que a formiga espera que o tempo da
colheita chegue e que o milho esteja maduro, assim a vanglória espera todas as nossas
riquezas espirituais sejam colhidas”. Evágrio constata com o mesmo sentido que “apenas
entrando os pensamentos da cenodoxia e do orgulho, sobrevém derrota de outros
pensamentos” e que “a derrota de outros demônios faz crescer este pensamento”. São
Máximo reafirma: “Se tu tens motivo para paixões mais vergonhosas [...], imediatamente
os pensamentos da vanglória fundem em você.” A cenodoxia é então capaz de atrelar em
si mesma o lugar para todas as outras paixões juntas.

A cenodoxia possui um extraordinário poder. Seu caráter sutil (Evágrio, João


Cassiano), sua capacidade de se revestir de numerosas formas (João Cassiano, Evágrio,
João Clímaco), de inserir-se em tudo e atacar o homem por diversos lados, torná-la
particularmente difícil de perceber e de combater. Com efeito, tudo pode constituir para
o homem um objeto de vaidade, e Evágrio se mostra admirado da habilidade dos
demônios em se aproveitar desta situação da qual ele dá exemplos característicos, do
mesmo modo que são João Cassiano e são João Clímaco. “Os anciãos, escreve são João
Cassiano, descrevem bem a natureza desta doença comparando-a a uma cebola: quando
a descascamos um pouco, encontramos imediatamente uma outra, e quanto mais
retiramos, mais se encontra.” E são João Clímaco explica: “O sol brilha para todos
igualmente, e a vanglória encontra alegria em todas nossas atividades. Por exemplo, tiro
a vaidade de meu jejum, depois, quando eu o suspendo para não ser notado, eu me glorio
de minha prudência. Quando visto belas vestimentas, sou vencido pela vanglória, e
quando os pobres, átrio ainda a vaidade. Quando falo que sou vencido por ela, e quando
guardo o silencio, ela ainda me domina. Temos nela como que uma armadilha de três
pontas; de qualquer modo que tu lances, ela tem sempre direcionada uma de suas pontas.”
Portanto, constata Evágrio, “é difícil escapar da vaidade, porque aquilo mesmo que tu
Reginaldo Alves Campoe

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faças para se desembaraçar dela, torna para ti uma nova fonte de vaidade.” A sutilidade
da cenodoxia é tal que ela pode levar o homem, paradoxalmente, a se mostrar zeloso na
ascese, combatente de certas paixões e a praticar certas virtudes, como obter certos
carismas. É necessário dizer portanto que toda ascese feita sob o impulso da cenodoxia
se torna-se vã definitivamente, do mesmo que as virtudes assim praticadas são ilusórias e
somente aparentes os carismas obtidos: vê-se assim os homens chegarem a resultados
espirituais surpreendentes quando se entregam à ascese pela força da cenodoxia, mas
penar miseravelmente e murchar assim que se encontram colocados na condição onde
esta paixão que os inspirava não encontra mais possibilidade de se exercer. De mais, os
bens assim adquiridos não somente não são de nenhum valor diante de Deus, mas ainda
são “semelhantes às injustiças”, como o sublinha são Macário, que lembra esta palavra
do Salmista: “Espalha os ossos daqueles que querem orar aos homens”(S 52, 6).

Como de todas as paixões, o homem tira da cenodoxia um certo prazer que o apega
fortemente a ela e para a obtenção do qual ele está prestes a tudo fazer e paradoxalmente
a tudo sofrer (Gregório de Nissa). É por causa deste prazer normalmente poderoso que
mantém a filáucia que o homem se rende à vanglória.

A cenodoxia é considerada pelos Padres como uma doença e como uma forma de
loucura33. São João Crisóstomo, por exemplo, escreve diretamente: “A cenodoxia é uma
espécie de loucura (μανία τίς έστιν ή κενοδοξια)”. É notar que o próprio são Paulo ensina
que é uma loucura gloriar-se de si mesmo (2 Cor 12,11), e nota ainda que o demônio da
cenodoxia coloca o homem fora de si, extravia seu espírito e, depois de possuir sua alma,
“turva sua razão até o delírio”.

O caráter patológico da cenodoxia, como aquele de todas as outras paixões, possui


essencialmente àquilo de que ela é constituída pela perversão de uma atitude natural e
normal, extravia-se de seu exercício “segundo a natureza”. Ela foi dada por Deus à
natureza do homem para tender para a glória: mas é para a glória divina que ele estava
destinado a obter por sua união com Deus, não a glória que procura a paixão, e que a
tradição chama de “glória segundo a carne” (2 Cor 11,18). “Não é a glória que é um mal,
mas a vanglória”, diz são Máximo dizendo a mesma coisa aqui que para as outras paixões,
a saber, que o que é mal, “é o mau uso, seguindo da negligência de nosso espírito de se
cultivar segundo a natureza”, depois de ter afirmado que “é na medida onde nós usamos
mal as potencias de nossa alma que os vícios se instalam nela”. São João Clímaco ensina
no mesmo sentido: “Nossa alma naturalmente tem o amor pela glória, mas deve ser por
aquela do céu e não por aquela desta terra.” Esta distinção entre as duas espécies de glória,

33
(João Cassiano: Instituitions Cénobitiques; Máximo, o Confessor: Centuries sur la théologie et
l’économie, Questions à Thalassios; João Crisóstomo: Commentaire sur saint Mathieu, Consolations à
Stagire; Homélies sur l’épitrê aux Hébreus; Sur la vaine gloire; Gregório Nazianzo: Discours; João
Clímaco: L’Échelle; Orígines: Traité de la prière; Amonas: Lettre; Hermas, o pastor: Similitudes;
Gregório de Nissa: Traité de la virginité; Gregório, o Grande: Morales sur Job: Simeão, o novo teólogo:
Cathéchèses; João, o solitário: Dialogue sur l’âme et des hommes).
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aquela que vem de Deus e aquela que vem dos homens, se encontra em muitos textos
onde se explica a questão da cenodoxia. Nós a encontramos explicitada no Evangelho de
são João (Jo 12, 43); são Paulo aí se refere implicitamente assim que ele se diz gloriar em
Jesus Cristo posicionando-se contra o perigo que se possa ter em se gloriando fora de
Deus (Fl 3, 3; Gl 6, 14). São João Clímaco precisa categoricamente: “Há uma glória que
vem de Deus, segundo esta palavra da Escritura: “Eu glorificarei aqueles que glorificam”,
diz o Senhor” (1 Rs 2, 30) E há uma glória que procede senão da malicia artificial do
demônio.” “Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor” ensina o apostolo Paulo (1 Cor 1,
31; 2 Cor 10,17).

Podemos juntar a tudo isto que a cenodoxia constitui num outro sentido de uma
perversão da natureza, esta ultima palavra sendo entendida num sentido mais geral, e
designando todos os bens que o homem recebeu de Deus, trata-se de suas qualidades
naturais ou adquiridas, ou de suas virtudes ou ainda dos bens materiais que ele possui.
Em usando destes para a sua própria glória em lugar de fazê-las servir exclusivamente à
glória de Deus, o homem, diz são Máximo, “falsifica a natureza e a própria virtude”. Ele
explica simplesmente que a ostentação, composta da cenodoxia e do orgulho, “tem por
natureza a aversão alienante com aquela mania contra a natureza, pelo mal uso de todas
as coisas da natureza”.

A cenodoxia lança o homem na ilusão e no delírio: é este um dos seus efeitos


patológicos fundamentais, que justifica que ela seja frequentemente qualificada de
“loucura” pelos Padres.

Ela revela que o homem cessa de ter fé em Deus constam os Padres, seguindo
nisto o ensinamento do próprio Cristo que pergunta: “Como podeis vós crer, vós que tirais
vossa glória uns dos outros e não procurais a glória que vem somente de Deus” (Jn 5, 44).
Ela traduz um apego a este mundo: aquele que ela afeta se coloca em ter fé nos homens
de quem espera atenção, estima, admiração, louvores, e em tudo aquilo que é susceptível
de suscitar neles estas atitudes em relação a eles. É por isto que são João Clímaco qualifica
o vaidoso de idólatra, e são Macário o faz do mesmo modo: “Os homens que fazem seu
elogio, estes são aqueles que são deuses.”

Na origem da cenodoxia, diz João, o solitário, há “a ignorância desta vida”, é ela


que funda a ilusão da qual é vítima o vaidoso. Aquele que, com efeito, ignora o valor
verdadeiro das coisas das quais adquire a glória como desta glória. Ele concede uma
realidade e uma importância da qual na verdade são desprovidas (Nicétas Stéthatos).
Agem como se eles tivessem um valor absoluto e durável, nesse caso elas são
eminentemente frágeis, provisórias. Ele ignora que somente a gloria divina é perfeita e
eterna, e que os motivos espirituais de glorificação em Deus são os únicos a serem
autenticamente reais. João, o solitário escreve: “Porque os homens não compreendem a
fragilidade dos bens desta vida, nem a vaidade da glória que dela provem, e porque eles
não se apercebem a excelência das obras de Deus, nem a sabedoria de Sua Providencia,
nem a pequenez da natureza dos homens, que antes de florir se fenecem, antes de chegar
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à potencia se dissolvem e antes de se elevar são humilhadas, que a condição natural está
sujeita à total mutação, não se apegam a meditar estas coisas, estão satisfeitos pelo amor
do louvor recíproco, sobretudo sendo dado que o homem não reflete muito por muito
dizer sobre si mesmo: qual é o preço desta vaidade que me cativa, ao ponto que a visão
dos homens seja preferível à visão de Deus , e que eu seja apreciador dos seus elogios e
não dos elogios de Deus , como se a glória que vem deles me seja superior à glória que
vem do Mestre universal, como se eu tivesse a honra do homens por equivalente à honra
dos anjos.”

A cenodoxia parece deste modo incluir uma visão delirante da realidade pois que,
sob sua empreitada, o homem não acorda para a realidade, valor e importância daquilo
que está para se dar: sua visão do mundo está transtornada, invertida; seu espírito erra na
apreciação que ele faz sobre as coisas, de sorte que parece atingir à loucura: “Aquele que
está tomado por esta paixão perde por assim dizer a lucidez das percepções e consegue
menos que os loucos, constata são João Crisóstomo. Esta percepção delirante da realidade
sob o efeito da cenodoxia aparece frequentemente na realidade mais quotidiana e sob
formas frequentemente grosseiras.

Numa segunda forma de cenodoxia o homem manifesta igualmente um


conhecimento delirante de si mesmo, sobretudo. “A vanglória é uma paixão enganosa que
nos apresenta como se fossemos outro” (São João Clímaco). Por causa dela o homem se
atribui qualidade e virtudes que não possui e não vê os defeitos e as paixões que o habitam
na realidade. Mas ele se ilusiona igualmente assim que se gloria das virtudes que possui
verdadeiramente. De uma parte, com efeito, ele se considera como fonte e proprietário
destas virtudes, nesse caso o fato verdadeiro é que elas são um dom de Deus e não
pertencem fundamentalmente senão a Ele. De outra parte, como sublinha são João
Clímaco, desde que o homem se glorie de suas virtudes, ele cessa por este fato mesmo de
ser virtuoso, e se envaidece assim daquilo que não possui mais.

A cenodoxia devota àquele que ela habita toda espécie de males. Aqueles que
procuram ser glorificados pelos homens já receberam a sua recompensa, diz o Cristo (Mt
6, 2), que endereça igualmente esta preocupação: “Infeliz de vós quando todo mundo
disser bem de vós” (Lc 6, 26). “Deus dissipou os ossos daqueles que alegram aos
homens”, constata o salmista (S 52, 6). “Seja nesta vida, seja na outra, desgosto e
sofrimentos seguem a cenodoxia”, escreve são Máximo.

Esta paixão destrói a paz interior agitando a alma de varias maneiras. “Ela
entretém, nota são Isaac, a dúvida contínua e a confusão mental”. E são Marcos, o monge,
afirma: “Logo que tu percebes um pensamento te fazendo admirar a glória humana, saiba
bem que ela te prepara a confusão”.

Sob o comando da cenodoxia, o homem perde sua autonomia, e se aliena não


somente à própria paixão, mas a tudo aquilo que ela tem necessidade por se nutrir. São
João Crisóstomo sublinha o caráter particularmente tirânico desta paixão que ele
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considera como “a última e mais miserável das servidões”, e que chega a dominar as
grandes almas.
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10 – O ORGULHO

O orgulho (ύπερηφανία) é muito próximo da cenodoxia, a tal ponto que muitos


Padres não julgam útil estudar separadamente estas duas paixões; eles estudam as sete
paixões ao invés de oito. Se se considera com efeito de ordem das paixões, do ponto de
vista do combate e dos progressos ascéticos, a ordem vai das paixões mais grosseiras
àquelas mais sutis e mais difíceis de vencer, e o orgulho aparece então seguido da
vanglória. Visto sob este ângulo, ele se apresenta como o ápice da vaidade ou como o
produto desta em seu grau mais alto de desenvolvimento. São João Clímaco escreve que
“não a ponto de diferença entre estas duas paixões, senão aquela que se encontra entre
uma criança e um homem, entre o fermento e o pão. Porque a cenodoxia é o começo do
orgulho e o orgulho é o fim e a consumação da cenodoxia”. Da cenodoxia, num certo
grau, nasce inevitavelmente o orgulho: “O crescimento da primeira torna a origem da
segunda”, sublinha são João Cassiano. E são João de Gaza nota do mesmo modo que “se
a cenodoxia aumenta, o orgulho sobrevém”.

Portanto, de outro ponto de vista, menos definido pela prática ascética, e que
analisa as paixões segundo seu grau de gravidade, indo dos mais originários e
fundamentais àqueles que provêm deste, o orgulho aparece como a primeira de todas as
paixões, produzindo em primeiro lugar a cenodoxia e mantendo por esta razão com ela
laços de estreitos privilégios.

Como a cenodoxia, o orgulho comporta duas formas ou componentes. Um se


manifesta particularmente nas relações do homem com seus semelhantes: o outro
concerne mais na relação do homem e Deus.

1. A primeira forma de orgulho consiste em o homem se crer superior aos outros homens,
(Doroteu de Gaza; Máximo o Confessor; João Crisóstomo) mas também procurar esta
superioridade se ele não pensa já possui-la (Gregório de Nissa; Basílio de Cesaréia; João
Crisóstomo). Em todos os casos, o orgulho consiste em se elevar, seja sem motivo
particular, seja – e é o caso mais frequente -, pelas mesmas razões que podem servir de
pretexto à cenodoxia, e que nós temos apresentado precedentemente (qualidades
físicas, intelectuais, espirituais, posição social, riquezas, etc.). E no ato de se elevar, achar-
se melhor. O orgulhoso se estima e se admira, se felicita e se louva interiormente (Máximo
o Confessor; Gregório o Grande). Encontram-se estas atitudes na cenodoxia, mas nesta
última paixão o homem espera de preferência louvores dos outros, enquanto que no
orgulho ele atribui a si mesmo.

Em se elevando, o orgulhoso, rebaixa seu próximo. Ele o observa do alto


(Evágrio), despreza (Doroteu de Gaza; Máximo o Confessor; Thalassios; João Clímaco;
João Crisóstomo), e vai até “ao não fazer caso algum dele, como se fosse nada” (Doroteu
de Gaza), atitudes que constituem outro traço fundamental desta primeira forma de
orgulho.
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O orgulho põe o homem a se medir com o seu próximo e afirma antes sua
superioridade em comparação ao outro, afirmando o que o distingue, em se crer
fundamentalmente diferente [...] estabelece hierarquia, conclui sua superioridade.

Esta forma de orgulho se traduz em certas atitudes que contribuem em defini-la.


O orgulhoso, nota são Basílio, “faz alarde daquilo com o qual se esforça para aparecer
mais do que é na realidade”. Nestas ocasiões, como em outras, ele se mostra arrogante,
embevecido e feliz consigo mesmo, pleno de segurança e de confiança em si mesmo
(Hermas; Máximo o Confessor; Doroteu de Gaza). Juntam-se a isto a pretensão de tudo
saber (Hermas), a segurança quase constante de tudo saber e ter constantemente razão, a
mania de tudo justificar (Doroteu de Gaza; João de Gaza; João Clímaco) assim como o
espírito de contradição, a vontade de ensinar e de comandar. O orgulho torna aquele que
ele afeta cego aos seus próprios defeitos (Èlie l’Ecdicos), recusa a priori toda crítica,
odeia ser repreendido, toda reprimenda (João Clímaco), torna-se intolerante ao ser
comandado e de ter que se submeter a qualquer um que seja. Esta paixão revela também
uma certa agressividade: é por vezes irônico nas expressões, mas igualmente azedo nas
respostas às colocações dos outros (Gregório o Grande; João Cassiano), o silencio feito
em certas circunstâncias porque guarda uma animosidade geral (Gregório o
Grande,;Thalassios; João Clímaco), o desejo de ultrajar o próximo e a facilidade em fazê-
lo. Esta agressividade se manifesta regularmente em resposta nas menores críticas
endereçadas a ele pelo outro (João Cassiano, Gregório o Grande).

2. Assim como a primeira forma de orgulho eleva o homem diante de seus semelhantes,
a segunda forma o eleva diante de Deus, contudo o levanta contra Ele. (Doroteu de Gaza;
João Cassiano; João Clímaco). O orgulho surge então como uma paixão de extrema
gravidade: todos os Padres não cessam de afirmar que ela é a pior de todas (João Clímaco)
e de lembrar que é ela que provocou a queda de Satã e dos anjos tornados demônios
(Apoftegmas; João Cassiano; João Clímaco; João Crisóstomo), depois a queda do próprio
homem.

Não é somente nesta circunstância onde as paixões têm sido combatidas e negadas
que o orgulho é susceptível de substitui-las, mas também logo que por esta ou aquela
razão elas adormecem ou se escondem sem no entanto cessar de existir ou ser diminuídas
na sua aparência. São Máximo nota deste modo que “quando as paixões adormecem, o
orgulho surge, ora como causa inconsciente, ora como ataque dissimulado do demônio”
e são João Clímaco pontua, evocando a mesma paixão: “Acontece que todas as paixões
se retiram de certos fiéis, e mesmo de certos infiéis, salvo uma só: e ele é colocado como
o maior de todos os males que, somente, preenche o lugar de todas as outras”.

Vemos, pois por isto, que se a segunda forma de orgulho ameaça particularmente
os homens espirituais, não seria errado crer que ele se espalha nos outros homens [...]
Viver fora de Deus, direcionar uma existência totalmente autônoma, independente d’Ele
e se afirmar como princípio e fim de sua própria existência, é uma manifestação deste
orgulho fundamental que perpetua no pecado ancestral. Todo homem, enquanto vive fora
Reginaldo Alves Campoe

83

de Deus, ignora-O ou O esquece, mesmo que seja por pouco tempo, negando-O
implicitamente e toma o Seu lugar fazendo deste modo prova do orgulho que o habita.

As duas formas de orgulho que apresentamos aqui, mesmo sendo muito diferentes,
não são, contudo, separadas e independentes. Elas são como duas faces do orgulho e estão
sempre juntas no homem decaído, se bem que em alguns momentos uma pode parecer
tomar lugar da outra. É verdade que a primeira forma direciona o homem contra seus
semelhantes, assim como a segunda direciona contra Deus, cada uma de fato, nota são
João Cassiano, direciona o homem às vezes contra Deus e contra o seu próximo [...] Com
efeito, se o homem se eleva e se estima ou se admira, é porque ele não reconhece que as
qualidades, as virtudes e todos os bens que ele possa possuir e crê ter por ele mesmo, lhe
vem de fato de Deus. Se ele deprecia o outro, é em parte pela mesma razão: desprezar os
outros como não tendo sabido bem agir, por exemplo, vem, consta em são Máximo, em
atribuir as boas ações às suas próprias forças no lugar de se reportar a Deus. Crer-se
superior ao outro, procurar superá-lo, colocar-se no topo da perfeição ou se tomar por
centro em toda circunstância, atribuir-se todas as qualidades e virtudes ou pelo menos
algumas em grau eminente, vem por outra parte, pelo orgulhoso de se auto deificar, fazer
de si mesmo um pequeno deus, e assim toma o lugar sozinho do verdadeiro Deus que é
absoluto, o sumo e o centro, o princípio e o fim, o sentido e o valor de todas as coisas, a
fonte e o fundamento de todo bem, de toda qualidade e virtude, o princípio de toda
perfeição.

“Se o Absoluto não for incorporado como absoluto, mas como relativo, e
se, ao contrário, qualquer coisa de relativo é tomado como o absoluto, um conflito
fundamental nasce no homem. Deste modo este relativo erigido em absoluto não
é Deus, mas um ídolo. Este nasce da deificação de um relativo e caminha junto
com o destronamento de Deus que, em relação a ela, foi privado de seu caráter
divino, e, por consequência, tornou-se relativo. Deus tendo sido tornado relativo
e ídolo erigido em absoluto, um conflito com a realidade sobrevém, trazendo,
necessariamente, consequências funestas [...] Se uma porção do mundo é extraída
da realidade e elevada ao grau de ídolo, quer dizer erigida em absoluto, uma
desfiguração e desalinhamento (desenraizamento) da ótica intervêm, concernente
deste às coisas que o individualiza em si mesmo. Nas suas comparações
recíprocas, o homem e o mundo tornam-se desencaixados, a ordem estabelecida
está destruída. Fazendo-se isto, o próprio ídolo é monstruosamente
superestimado, e Deus na mesma medida, subestimado. Assim, desencaixados
geram atos desencaixados não são adequados à situação e passam perto de seus
objetos. Resulta um conflito com a realidade que constitui a verdadeira razão da
neurose e pode ser também da psicose.” 34

O orgulho passa aos olhos dos Padres por uma doença “terrível”35, “muito grande
e cruel”, uma “doença mortal”. O orgulho, escreve são Gregório o Grande, “corrompe a

34
Wilfried Daim, Transvaluation de la psychanalyse. L’Homme et l’Absolu, Paris, 1559, p.134.
35
João Cassiano – Instituitions Cénobitiques; João Crisóstomo – Commentaire sur saint Jean; Léonce de
Néapolis – Vie de Jean de Chypre; Máximo o Confessor – Questions à Thalassios; João Clímaco – L’
Échalle ; Isaac o Sírio – Lettres.
Reginaldo Alves Campoe

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alma à maneira de uma doença contagiosa que generalizada corrompe o corpo inteiro”.
São João Crisóstomo diz que do mesmo modo “que a inflamação é para o corpo o que o
orgulho é para a alma”.

Qualquer que seja o caráter patológico do orgulho pode-se ver nele o resultado de
uma perversão, uma tendência fundamental da natureza humana. O homem, como nós
temos visto, foi criado para se elevar até Deus e se unir fundamentalmente a Ele na
plenitude do amor e do conhecimento.

Esta elevação de si mesmo até Deus está destinada a se completar em Deus, pela
realização de sua semelhança a Ele, tendo como base as virtudes que foram colocadas
como gérmen na sua natureza, e por apropriação progressiva da graça dada pelo Espírito.

- A TERAPÊUTICA DA CENODOXIA E DO ORGULHO: a humildade.

1. Terapêutica da cenodoxia.

Nós temos visto, descrevendo a cenodoxia, que ela é uma paixão particularmente
sutil, difícil de reconhecer, susceptível de se revestir de formas múltiplas e atacar o
homem de diversos sentidos e maneiras, e são João Clímaco a considera como “a mais
difícil e mais perigosa de todas as pragas”.

A terapêutica desta doença espiritual se confirma pois particularmente delicada,


ainda mais que ela se alimente dela mesma, quando se a combate e se esforça na própria
defesa, como explica são João Cassiano: “Todos os vícios murcham uma vez dominados,
e assim que são vencidos enfraquecem dia a dia [...] A cenodoxia, uma vez que se a tenha
abatido, se mostra ao combate mais acaloradamente, e assim que se a crê desaparecida,
sem brilho, ela encontra na sua quase morte novas forças. Os outros vícios não atacam
aqueles que já os venceram; mas este aqui persegue mais calorosamente seus vencedores,
e mais se a tem energicamente esmagada, mais ela se aproveita do orgulho de seu
vencedor para atacá-lo mais violentamente”.

Aquele que empreende a terapêutica da cenodoxia deverá pois fazer prova do


início ao fim de um grande discernimento espiritual e de uma vigilância constante.

Um conhecimento detalhado da paixão, de suas múltiplas facetas, de suas voltas


e de suas armadilhas, mas também dos meios que permitem frustrar seus truques,
constituem assim a partida de um elemento fundamental na sua profilaxia como de sua
terapêutica, o que os Padres julgam necessário de colocar à disposição daqueles que
venham se instruir depois deles, como sublinha são João Cassiano: “Do mesmo modo
como os médicos experimentados não se contentam geralmente em curar as doenças
presentes mas, na sua sábia experiência, vão adiante nas doenças futuras e as previnem
por prescrições e remédios salutares, do mesmo modo, estes autênticos médicos das
Reginaldo Alves Campoe

85

almas, destruindo de antemão na comparação espiritual como por um celeste antídoto as


doenças do coração antes que elas apareçam e não permitindo que elas se desenvolvam
nos espíritos dos jovens, os desvendam e indicam a causa das paixões que os ameaçam e
os remédios que proporcionam a saúde.” “Enquanto que ele expõem as ilusões de todas
as paixões, aquelas que são próprias dos iniciantes e aqueles dos fervorosos, os jovens se
instruem dos segredos de seus combates que eles veem como que num espelho, aprendem
as causas e os remédios dos vícios dos quais eles são abalados e sabem antes que eles se
reproduzam , como é necessário se prevenir contra os combates do futuro e enfrentá-los
como lutadores.”

O homem será estimulado em combater esta paixão se ele toma consciência dos
riscos que ela o faz incorrer, notadamente aquele de perder totalmente o benefício das
penas que ele tem suportado assim com todas as virtudes que ele poderia adquirir, e de se
ver finalmente reduzido a si mesmo como um nada, conforme a palavra do salmista: “O
Senhor dispersa os ossos daqueles que querem agradar aos homens” (S 52,6). É deste
modo que contribuem à luta da meditação e ao medo do julgamento divino para o presente
e para o futuro (Macário do Egito), julgamento que nos revela em particular esta palavra
de Cristo: “Aquele que se eleva será humilhado” (Lc 14,11).

Porque a cenodoxia é a procura da glória humana, mundana, terrestre, o homem


que quer vencer esta paixão deve reconhecer a vaidade de tal glória, tomando
principalmente consciência da inconstância de seus fundamentos e do nada dos fins que
ela busca, somo sublinha muitas vezes os Padres.

Sendo ela a busca de consideração, de renome, de honra, de glória, convém


renunciar a tudo aquilo que possa ser fonte ou ocasião. É necessário evitar aqueles que
estão manifestadamente sob seu domínio (Isaac o Sírio) e constituem um exemplo
nefasto. É necessário recusar por si mesmo toda função honrada pelos homens, em razão
principalmente do poder ou do prestígio que ela confere e recusar toda distinção
susceptível de expor-se à admiração ou louvor. A cenodoxia constituindo desejo de ser
notado, convém mesmo evitar aquilo que possa nos singularizar, nas nossas palavras
como nos nossos atos e nos comportamentos. Aquele que quer livrar-se da cenodoxia
deve ao contrário fazer de tudo para tornar-se ou permanecer ignorado dos homens
(Macário do Egito). A escolha de uma condição obscura, mas também a busca da solidão
pode contribuir para isto.

2. Terapêutica do orgulho

Nós temos visto examinando a cenodoxia e o orgulho, que estas paixões são tão
próximas que certos Padres não julgam necessário examiná-las separadamente. A
Reginaldo Alves Campoe

86

terapêutica de ambas supõe como prévio, um conhecimento detalhado da paixão, mesmo


que o orgulho não seja tão sutil, multiforme e enganador como a cenodoxia. O
conhecimento geral da doença dá em todo caso a possibilidade ao homem de reconhecer
nele esta paixão. Tal reconhecimento é bem evidente para uma condição terapêutica,
porque aquele que não se sente doente não procura a cura. E são João Clímaco nota a este
propósito de que aqueles que são cegos ao ponto de não terem consciência do orgulho
que os habita: “não terá senão pouca esperança de salvação”.

Vigilância e discernimento permitem localizar a doença nas suas primeiras


manifestações, e evitar que ela tome uma amplitude tal que ela torne-se quase incurável
[...] Devemos saber que o orgulho, como a cenodoxia, torna vão todos os esforços
presentes e passados, e rouba todo valor das virtudes que se possa ter. Adquirir
consciência do rigor do julgamento divino em relação aos orgulhosos, da privação da
graça e das penas que resultam desta paixão podem contribuir para vencê-la. É assim que
são Basílio diz desta questão: “Como se cura os orgulhosos?” ele responde: “Cura-se pela
fé Naquele que disse: “O Senhor resiste aos orgulhosos e dá sua graça aos humildes” (Jo
4, 6), dito de outro modo, pelo medo de incorrer em orgulho.”

Será de ajuda nesta tarefa, considerar a vaidade e o nada das coisas sobre as quais
o homem, na paixão, funda sua superioridade: instabilidade de todas as coisas humanas,
a fugacidade das riquezas, do poder, fraqueza e fragilidade do próprio homem submisso
neste mundo à doença, ao envelhecimento e à morte, e que sem Deus não é senão “terra
e cinza, sombra e fumaça” (João Crisóstomo).

O orgulho se traduz por certo número de atitudes: confiança em si mesmo,


autossatisfação, arrogância, certeza, pretensão de saber, confiança em seu próprio
julgamento, certeza de ter razão, mania de se justificar, espírito de contradição, vontade
de ensinar, de comandar, recusa em se submeter. É em se esforçando em adotar atitudes
contrarias que o homem poderá, neste sentido, combater o orgulho: ódio à vontade própria
(Doroteu de Gaza), desconfiança de seu próprio julgamento, renúncia à auto justificação,
censura a si mesmo, recusa em se contradizer, recusa em ensinar e comandar, atitudes que
se encontram todas aperfeiçoadas na obediência ao Pai espiritual, e que permite ao
homem, como diz são Doroteu de Gaza: “de se recuperar e voltar ao estado de natureza”.
“O orgulho visível se cura por uma condição obscuridade, viver ignorado pelos homens”.

A prece, particularmente se ela é permanente, constitui o remédio fundamental ao


orgulho na medida em que o homem, quando reza, pede a ajuda, o socorro e a proteção
de Deus, e por consequência, não pode deixar de ter consciência daquilo que obtém em
resposta à sua oração, a ajuda de Deus como dom que não é atribuído às suas próprias
forças nem aos próprios méritos.

3. A humildade.
Reginaldo Alves Campoe

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A humildade (ταπεινοφροσύνη) se opõe sempre à cenodoxia e ao orgulho. Mesmo


que haja duas formas de orgulho, pode-se distinguir duas formas de humildade que lhes
corresponda: a humildade em relação aos homens e a humildade em relação a Deus. Se
bem que esta seja o fim da anterior, ela não pode ser dispensada. Por isto são Barsanuphe
aconselha: “Humilhe-te verdadeiramente não somente diante de Deus, mas ainda diante
dos homens.” E são João Cassiano sublinha que “ninguém pode chegar à perfeição da
pureza senão pela verdadeira humildade que ele manifesta aos seus irmãos e então a
Deus”.

Notemos que a humildade em geral consiste no homem reconhecer os seus limites


(Macário do Egito), sua fraqueza (João Clímaco; Isaac o Sírio), sua impotência (Máximo
o Confessor), sua ignorância (Isaac o Sírio). Estas são algumas das definições patrísticas
fundamentais desta virtude enumerada por são João Clímaco. “Um homem que chegou a
conhecer a medida de sua fraqueza tocou a perfeição pela humildade”, diz são Isaac o
Sírio.

A humildade, portanto, não consiste somente em reconhecer e assumir uma


fraqueza e uma mediocridade reais mais ainda, assim que se possuam certas qualidades,
abaixar-se voluntariamente: “consiste em olhar-se como um nada apesar da grandeza e o
número de seus méritos” [...] “a verdadeira humildade consiste em se humilhar quando
há ocasião de se elevar” (Máximo o Confessor). “O humildade em verdade, escreve são
Isaac o Sírio, é aquele que tem secretamente do que se orgulhar e não se orgulha, mas vê
ali em si mesmo nada mais que um pouco de terra”.36

O humilde não se estima em nada e não faz nenhum caso de si mesmo. “Ele se vê
aos seus próprios olhos como um nada.” Até mesmo se desvaloriza. “O humilde vê a si
mesmo como um homem desprezível” (Isaac o Sírio). “A humildade é um abismo de
autodepreciação” (João Clímaco). A humildade se caracteriza assim por “desapego de si
em todas as coisas” (João de Gaza); por uma renúncia à vontade própria (João Cassiano,
Barsanuphe); pela ausência de confiança em si mesmo e de desconfiança do próprio
julgamento; pelo abandono de todo espírito de contestação e de oposição (João Clímaco);
por uma atitude frequentemente silenciosa.

A humildade tem um papel considerável na cura espiritual. Sem ela, “é impossível


de se libertar do mal” (Doroteu de Gaza).

A humildade aparece como a mãe da impassibilidade - impassibilitas - (απάθεια -


apatéia) – não só como ausência de paixão, mas como a possessão de todas as virtudes;

36
Todos sabem que a vida cristã precisa de ascese, de renúncia, de mortificações etc., pelas quais os
apetites inferiores são dominados com vantagem pela vontade racional e pela vida espiritual. “A vida
espiritual de muitos neuróticos... não distingue timidez e humildade, sentimentalismo e devoção, prazer
e pecado, repúdio da sexualidade e castidade, medo e prudência, comodismo e paz, inércia e mansidão,
mediocridade e moderação.” (IONATA, p. 22 ).
Reginaldo Alves Campoe

88

“a mãe, a raiz, o alimento, o lugar e a base de todos os bens” (João Crisóstomo; Isaac o
Sírio; Barsanuphe; Doroteu de Gaza).

A aquisição da saúde, na perspectiva cristã que o autor expos, supõe uma


transformação interior que conduz o homem para além do seu estado decaído,
considerado como profundamente patológico e patogênico. Esta transformação consiste
em uma ‘re-sublimação’ da energia das diferentes faculdades humanas num sentido
espiritual (quer dizer para Deus). É este o fim que pretende a vida ascética, onde este
movimento de ‘re-sublimação’ se chama globalmente “endireitamento” (são Máximo),
“volta ao avesso”, “conversão” (metanoia), e onde sua realização perfeita, que significa
uma união total e constante do homem em Deus, se chama “santidade”. O santo constitui
um modelo de saúde espiritual, mas igualmente um modelo de saúde psíquica que deve
servir de norma ao psicoterapeuta cristão, porque é somente na santidade que a natureza
humana, em todos os seus compostos, encontra a perfeição e manifesta o exercício ideal
de suas faculdades. É porque também uma psicoterapia cristã, permanecendo distinta da
terapêutica espiritual, deve manter-se na sua continuidade e ter como referencia e como
modelo as práticas ascéticas, porque tanto a saúde psíquica como a espiritual é
indissociável de um exercício das faculdades humanas em relação à verdadeira finalidade
natural.

A terapêutica das doenças espirituais A terapêutica das doenças espirituais estão


atreladas às descrições das doenças, de modo que estas permitem ao homem se situar, de
conhecer e de compreender os movimentos da alma, de descobrir sua significação
profunda e de tomar assim sua distancia do mal que o afeta, de não ser mais determinado
cegamente pelos mecanismos que ele ignora, que o perturbam e fazem sofre. Não são
somente as doenças aparentes e facilmente reparáveis que os Padres descrevem, mas
igualmente aquelas que, se bem que presentes no coração, permanecem escondidas
àqueles que o discernimento espiritual não está afinado (purificado), do mesmo modo as
doenças que existem como gérmen mas que correm o risco de se desenvolver se não se
colocar em guarda (João Cassiano).

Esta descrição das doenças espirituais na sua natureza, suas origens, seus
mecanismos profundos e suas manifestações comuns a todos os homens deve
evidentemente ser completada por uma análise que concerne à forma, o grau e a
conjunção particulares que elas tomam em cada pessoa. Nesta comparação a confissão e
a manifestação dos pensamentos assim como os conselhos dados pelo Padre espiritual
nesta ocasião exercem um papel fundamental na tomada de consciência.

A tomada de consciência das doenças espirituais permite secundariamente a


tomada de consciência das fontes das doenças psíquicas que dai decorrem ou que lhes
estão ligadas. O papel do terapeuta é aqui ajudar o doente a ter como desordens psíquicas
se enxertam em certas doenças espirituais, e como a terapia destas permitirão cuidar
daquelas.
Reginaldo Alves Campoe

89

O papel do terapeuta é igualmente de ajudar o doente a perceber que as doenças


psíquicas e as doenças espirituais às quais elas estão ligadas são na realidade fundadas
sobre tendências da natureza que foram pervertidas, desviadas, afastadas de seu fim
original e normal, e se exercendo contra a natureza. Deve juntamente fazê-lo tomar
consciência da orientação original e normal destas tendências que continuam a marcar
sua natureza profunda e caracteriza aquilo que nós chamamos de “inconsciente teófilo”.
37

Um psicoterapeuta cristão não precisa tornar-se um pregador e deve exercer sua


função no respeito absoluto da liberdade daquele que ele cuida. Ele deve portanto relatar
aquilo que ele pensa ser a fonte de suas perturbações e o meio de curá-las. Indicar a
alguém a boa direção não seria forçá-la a tomar este caminho.

O papel do terapeuta não deve somente ser ajudar a uma tomada de consciência
do conteúdo do inconsciente. Contudo, Larchet propõe uma outra concepção de
inconsciente: o inconsciente espiritual.

A noção de inconsciente psíquico objeto, nos séculos XIX e XX, de teorias


desenvolvidas e poderosamente estruturadas (Freud, Jung, Adler...) podem deixar crer
que se trata de uma descoberta recente.

Na realidade, a existência de um inconsciente psíquico é conhecido desde a mais


alta Antiguidade. Platão, por exemplo, faz alusão sobre ela, posicionando o sonho em
relação com os desejos insatisfeitos ou a agressividade não expressada, e apresentando
uma concepção que antecipa aquele do recalque ou da repressão.38

Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal, que é constituído de


tudo aquilo que existe, trata ou se produz no nosso corpo, mas não tem intensidade
suficiente para que nós o apercebamos e que nós tenhamos uma consciência clara (Leibniz
a isto de “pequenas percepções39”).

Apesar disto não se pode dizer que isto se situe na “parte” ou na “esfera” espiritual
de nosso ser. Certamente, diz se frequentemente, no plano da antropologia cristã, e
seguindo uma passagem da primeira epístola de são Paulo aos Tessalonicenses (1 Th
5,23), que o ser humano é “tripartite”, sendo composto de três elementos: o corpo, a alma
(ou o psiquismo) e o espírito. E é verdade que o espírito (que os Padres gregos chamam
geralmente nous, palavra que se traduz habitualmente, mas impropriamente por
“intelecto”) é a mais alta faculdade do homem, a primeira a entrar em contato com Deus
na contemplação e na “visão de Deus”, aquela pela qual, em primeiro lugar, nós

37
Larchet conceitua dois tipos de inconscientes espirituais: o “Theophile” e o “déifuge”:
- Inconsciente Théophile: é a dimensão positiva do inconsciente espiritual, constituído de tudo aquilo que,
no homem, o liga, o une a Deus e o orienta para Ele sem que ele seja consciente;
- Inconsciente Déifuge: é a dimensão negativa constituído de tudo aquilo que o torna indiferente, separa,
distancia o homem de Deus e o orienta para um sentido oposto d’Ele sem que ele seja consciente.
38
Ver principalmente na República, IX, 571ª.
39
Ler Nouveaux essais sur l’entendement humain, Préface.
Reginaldo Alves Campoe

90

conhecemos de maneira geral, as realidades espirituais. Portanto não se pode considerar


que o espiritual constituiria no homem uma esfera, um domínio, ou um nível superposto
àquele do corporal e do psíquico. É porque um certo número de Padres permanecendo em
uma concepção bipartite do ser humano, consideram que ele é composto de uma alma e
um corpo, e que o espírito ( ou intelecto) não é senão uma faculdade mais elevada da
alma, ou sua “fine pointe” – ápice, cume.

O espiritual, mais que uma “parte” do homem, é uma dimensão desta.

Ele é de uma natureza radicalmente diferente do corporal e do psíquico, e deve se


precaver de confundi-lo com este ultimo.

Contudo, o espiritual não está sem ligação como corporal e o psíquico: ele os
engloba de uma certa maneira.

O espiritual pode se definir como aquilo que em nós é constitutivo de uma relação
com Deus.

Seguindo isto, todo estado ou toda atividade de nosso psiquismo ou de nosso


corpo, quando são considerados em ralação a Deus – ou do ponto de vista de nossa relação
a Deus - , adquirem uma dimensão e uma qualidade espirituais.

Notar-se-á que esta relação pode ser:

a) positiva mas também negativa (razão pela qual as paixões, disposições e estados pelos
quais nós nos separamos de Deus, são qualificados de “doenças espirituais”);

b) subjetiva (é o caso de nossa orientação consciente e voluntária em relação a Deus) mas


também objetiva (por exemplo nossa natureza nos orienta para Deus, ou o batismo nos
enxerta objetivamente no corpo de Cristo, antes mesmo que nós tenhamos tomado
consciência e que nós estejamos pessoalmente determinados em relação a este fato). Nós
chamamos aqui objetivo aquilo que não depende da pessoa e está inscrito objetivamente
na sua natureza; subjetivo aquilo que depende da pessoa e revela sua consciência e sua
vontade;

c) consciente, mas também inconsciente (é aquilo que nós estamos tentando mostrar).

O inconsciente espiritual é uma noção que foi evocada principalmente pela


psicanálise existencial, da qual os principais representantes foram Igor Caruso, Wilfried
Daim e Viktor Frankl. Victor Frankl consagra ao inconsciente espiritual um breve
capítulo no seu livro O Deus Inconsciente; mas de resto, naquilo que concerne à
espiritualidade, são generalidades, aquilo que foi sem dúvida imposto por seu projeto de
elaborar uma psicoterapia que fosse aplicável aos homens de todas as crenças. Sua tese
principal é que toda neurose resulta de uma perda do sentido existencial, e que a única
terapia adequada é a “logoterapia”, que visa reencontrar o sentido perdido, o qual reside
em Deus. Igor Caruso considera que toda neurose resulta de uma absolutização (e pois
uma deificação) de valores relativos e que a terapêutica consistirá em restituir aos valores
Reginaldo Alves Campoe

91

da existência sua justa dimensão.40 Seu discípulo Wilfried Daim retomou esta concepção.
Segundo ele, o homem constituído por uma relação vital com o Absoluto, desencadeia
em si dos conflitos psíquicos cada vez que ele confere um caráter absoluto aos seres
relativos e substitui o único absoluto que é Deus por ídolos.

Estes autores permanecem no quadro da psicopatologia, quer dizer desta parte da


psicologia que se interessa à origem, à forma, à evolução e ao tratamento das doenças
psíquicas. Sua referência a Deus, se bem que ela se reivindica judaica no caso de Frankl
e como cristã no caso de Daim e de Caruso, permanecem muito gerais.

Pode-se ainda dizer que o inconsciente espiritual é uma noção que, no quadro da
espiritualidade cristã, não se fez até hoje objeto de nenhum estudo sistemático. Portanto,
as referências ou as alusões àquilo que se possa chamar um “inconsciente espiritual” são
suficientemente numerosas nas fontes tradicionais (em particular nos escritos patrísticos)
para que se possa considerar que há, na espiritualidade cristã oriental, uma concepção
subjacente do inconsciente espiritual e que esta noção pode servir para compreender uma
grande parte não somente da vida espiritual, mas ainda, por via de consequência, da
psicologia e do comportamento humano que lhe são relativos, e aí compreender aqueles
que não entendem como posicionar seu ser e seu modo de existência em relação a Deus
ou em relação a uma espiritualidade definida.

Inconsciente da dimensão espiritual positiva de seu ser, o homem decaído ´´e do


mesmo modo inconsciente de sua queda e de suas paixões – dito de outro modo de suas
doenças espirituais – e de um bom numero de fatores ligados a ele, como as pulsões e os
pensamentos negativos.

São Macário nota o caráter inconsciente, para a maioria dos homens, dos efeitos
neles do pecado ancestral: “O pecado que se introduziu no mundo por Adão, e que
corresponde a uma certa potência espiritual de Satã e a uma realidade, semeou todos os
males. Sem ser detectada, age sobre o homem interior e sobre o espírito, e coloca os
pensamentos em conflito. Mas o homem ignora que se trata de instigação de uma força
diferente. Ele imagina que tudo isto seja natural e que se trata das próprias reflexões [...]
O mundo está doente da paixão má e não o sabe.” São Simeão o No Teólogo constata no
mesmo sentido, assinalando que as paixões são não somente o conteúdo deste
inconsciente mas sua fonte: “Tal é o império que as paixões tem sobre nós, tais são o
escurecimento e a ignorância onde nós nos encontramos, que nós não sentimos em qual
estado estamos, que nós não nos apercebemos que agimos mal”. “A luz do coração está
tão obscurecida que não se apercebe mais a que ponto a alma está ferida e dilacerada
[...]”, observa João o Solitário.

“Um homem se crê paciente e humilde tanto que não se relaciona com ninguém,
mas assim que se apresente uma ocasião de contrariedade, ele voltará à sua primeira
natureza. Os defeitos escondidos reaparecem imediatamente e, como os cavalos sem freio

40
Ler Psicanálise e síntese pessoal.
Reginaldo Alves Campoe

92

depois de um longo repouso, se precipitam por uma irresistível necessidade para fora da
baia, com uma violência e uma ferocidade que causam a perda do cocheiro. Com efeito,
todas as relações humanas cessam, nossos vícios se desenvolvem ainda em nós se não
forem purificados antes.” Este ensinamento de são João Cassiano coloca em evidência o
fato de que a paixão, enquanto não for totalmente extirpada, não somente subsiste na
alma, aí se desenvolve sem que o sujeito dela tenha consciência. Nas suas Conferências,
são João Cassiano reafirma a subsistência e o fortalecimento inconscientes das paixões
não destruídas ou pelo menos não combatidas e às quais não se deu ocasião de se
manifestar: “Saibamos que se nós nos recolhermos ao deserto ou em qualquer lugar
secreto, antes de ter curado nossos vícios, nós somente impedimos seus efeitos, mas a
paixão é em nada cessa. A raiz dos pecados permanece escondida em nosso coração.
Enquanto nós não a extirparmos”.

É necessário enfim assinalar o caráter profundamente patógeno das paixões


inconscientes. As paixões que são reconhecidas afetam gravemente a alma, mas o homem
pode pelos menos mais facilmente combate-las. As paixões escondidas (que se escondem
ou não sabemos que as escondemos ou que as escondemos) fazem portanto ainda mal
maior ao homem e tornam a alma gravemente doente, como ensinam os Padres. Elas
minam, corroem, destroem pouco a pouco, de maneira silenciosa, contudo mais eficaz e
poderosa. Os pensamentos escondidos “corroem o coração”, afirma são João Cassiano e
“a tirania dos pensamentos secretos [...] sua natureza e a cruel violência que eles exercem
tanto que os mantemos escondidos”.

CONCLUSÃO

Como conclusão e à luz das reflexões precedentes, nós gostaríamos de trazer


alguns elementos como resposta à questão de saber se a terapêutica espiritual e a
psicoterapia são exclusivas uma da outra ou complementares.
Reginaldo Alves Campoe

93

Primeiro de tudo, é necessário guardar o espírito de que os dois tipos de prática


não têm o mesmo motivo nem o mesmo fim: a terapêutica espiritual visa tratar e curar as
doenças espirituais; as psicoterapias visam tratar e curar as doenças psíquicas.

Contudo, o problema de suas relações se põe em medir onde, como nós o temos
mostrado precedentemente, a vida psíquica é amplamente tributária da vida espiritual, e
onde um grande número de doenças psíquicas estão ligadas às doenças espirituais, a cura
daquelas dependem pois da cura destas.

Um pai espiritual autêntico, experimentado, dotado de discernimento e


carismático, é em princípio capaz de curar eficazmente as doenças psíquicas que têm por
origem as doenças espirituais pelo tratamento destas últimas.

Contudo, algumas observações devem ser feitas.

1. A terapêutica das doenças espirituais tem como fim a saúde espiritual e a salvação do
homem e não pode ser utilizada como simples meio de tratar as doenças psíquicas.

2. A terapêutica das doenças espirituais não é tributária somente em relação ao pai


espiritual, mas se integra a todo o contexto da vida ascética (no senso amplo) e eclesial.

3. Esta última nota implica que, no quadro da vida espiritual, o doente deve participar na
sua própria cura com um modo de vida ascética e eclesial e por se esforçar por aplicar os
conselhos de seu pai espiritual.

A realidade nos leva a fazer algumas observações em relação a estes princípios


quanto ao papel que são susceptíveis de representar a terapêutica espiritual e o pai
espiritual para o tratamento das doenças psíquicas.

1. Os pais espirituais dotados de discernimento e carismas, dispondo de todas as


qualidades que nós temos descrito precedentemente são em nossos dias muito raros.
Considerar que eles seriam os únicos capazes de tratar as doenças psíquicas volta a limitar
as possibilidades efetivas de tratamento e cura.

2. A terapêutica espiritual supondo como condição mínima a fé e além do mais a


participação ativa do paciente no seu próprio tratamento por um modo de vida adequado,
este tratamento não é aplicável imediatamente e de facto:

a) aos doentes não cristãos;

b) aos doentes que as dúvidas psíquicas são tão graves que eles impedem o domínio de
seu comportamento.

Estas reservas legitimam, segundo o autor, o recurso a psicoterapias (estes


recursos estando evidentemente legítimas para as perturbações, menos numerosas, de
origem puramente psíquica).
Reginaldo Alves Campoe

94

Mas a utilização da psicoterapia, do nosso ponto de vista, exige certas condições


e está marcada por certos limites.

1. O recurso às psicoterapias que os fundamentos antropológicos e éticos são


incompatíveis com a antropologia e ética cristã deve ser excluído em razão de suas
incidências sobre o plano espiritual.

2. Não é somente desejável mas necessário que os psicoterapeutas reconheçam a


implicação de fatores espirituais na origem de um grande número de doenças psíquicas.

3. Este reconhecimento deve nutrir e orientar sua prática, em relação a todos os doentes
não cristãos ou não crentes.

Eles têm portanto o dever de respeitar de maneira absoluta a liberdade do doente.

Mas, têm igualmente o dever de não esconder do doente a dimensão espiritual que
lhe pareça poder explicar suas perturbações e poder contribuir na cura.

4. Em ralação aos doentes cristãos, o psicoterapeuta não deve se transformar em terapeuta


espiritual nem confundir seu papel com aquele do pai espiritual. Mas pode se inspirar até
um certo ponto nos princípios da terapêutica espiritual e em todo caso exercer seu próprio
trabalho em conformidade com aqueles.

ÍNDICE

- Introdução .................................................................................................................. 02

- A terapêutica das Doenças Mentais ......................................................................... 04

- A loucura de origem espiritual ................................................................................. 07


Reginaldo Alves Campoe

95

- A terapêutica das Doenças Espirituais

1) Filáucia ......................................................................................................... 09

2) Gastrimargia ................................................................................................ 15

Terapêutica: Temperança ................................................................... 20

3) Luxúria ......................................................................................................... 27

Terapêutica: Continência .................................................................... 30

Castidade Monástica ............................................................................ 31

4) Filargeria e Pleonexia .................................................................................. 36

Terapêutica: não-possuir e esmola ..................................................... 41

5) Tristeza ......................................................................................................... 46

Terapêutica: o luto, a compulsão e a alegria ..................................... 49

6) Acédia ou acídia ........................................................................................... 52

Terapêutica ........................................................................................... 56

7) Cólera ............................................................................................................ 63

Terapêutica da cólera: a doçura e a paciência .................................. 66

8) Temor ............................................................................................................ 69

Terapêutica: o temor de Deus ............................................................. 72

9) Vaidade ......................................................................................................... 76

10) Orgulho ....................................................................................................... 82

Terapêutica da cenodoxia e do orgulho: a humildade ...................... 85

- Conclusão ....................................................................................................................94

- Bibliografia

BIBLIOGRAFIA

- PEREIRA, William Cesar Castilho. A formação religiosa em questão, Petrópolis, RJ,


2004.
Reginaldo Alves Campoe

96

- BARLOW, David H. E Durand, V.Mark. Psicopatologia – Uma abordagem integrada.


Cengage Learning, São Paulo, 2008.

- COLOMBÁS, Maria García. El Monacato Primitivo. Madrid: Biblioteca de Autores


Cristianos, 1998.

- EVDOKIMOV, Paul. La connaissance de Dieu selon la tradition orientale, Desclée de


Brouwer, Paris, 1988.

- HAUSHERR, Irénée. Filaucia – dall’amore di sé alla carità. Edizione QIQAJON,


Comunidade di Bose, 1999.

- IONATA, Pasquale. Psicoterapia e religião: casos práticos, Paulinas, São Paulo, 1995.
- LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. Martins Fontes, São Paulo,
1991.

- LARCHET, Jean-Claude. Thérapeutique des maladies mentales. Les Éditions du Cerf,


Paris, 2008.

---------------------------- L’Inconscient Spirituel. Les Éditions du Cerf, Paris, 2011.

---------------------------- Thérapeutique des maladies spirituelles.Les Éditions du Cerf,


Paris, 2013.

- SPINELLI, Maria Rosa. (Org.). Introdução à PSICOSSOMÁTICA, São Paulo, Editora


Atheneu, 2010.

Tradução:

Reginaldo Alves Campoe

Psicopedagogo – Psicanalista – Mestre em Ciências da Religião

reginaldo.campoe@yahoo.com.br

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