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I G R E J A E M I S S Ã O

R E V I S T A M I S S I O N Á R I A D E C U L T U R A E A CT U A L I D A D E

SUMÁRIO

ADELINO ASCENSO
Editorial 3

ALEXANDRE PALMA
Olhar a Trindade em chave experiencial
Modelos de uma abordagem possível 5

JORGE TEIXEIRA DA CUNHA


De Narciso a Madalena
Um sentido para a Conversão e a Penitência Hoje 27

PABLO SECO
Diálogo con La experiencia religiosa Zen de satori 39

PAULO BORGES
Vacuidade e Deus (um estudo comparado entre Nāgārjuna
e o Pseudo-Dionísio Areopagita) 65

TOMÁŠ HALÍK
New Evangelization? 125

Livros novos 133

225 JANEIRO - ABRIL 2014 ANO 67


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Adelino Ascenso

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Aires A. Nascimento
Nuno Lima

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Eduardo Daniel

PRÉ-IMPRESSÃO
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Extra-Europa - 32,5 €; Número Avulso - 10,00 €.
BENFEITOR: Portugal - 27,4 €; Europa - 42,4 €;
Extra-Europa - 62,3 €

Depósito legal nº 3726/83 ISSN: 0251-3595

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EDITORIAL

Num trabalho publicado em 1986, o japonês Masao Abe fazia uma


comparação entre o problema do mal no cristianismo e no budismo e
afirmava que, no budismo, o sagrado e o humano, o sobrenatural e o natural,
o bem e o mal, são «completamente interdependentes». Esta afirmação
leva-nos a reflectir sobre a tendência racional de separar radicalmente
ambos os atributos, criando um género de rígida e incompatível dualidade.
Sabemos, porém, que Deus age tanto nas nossas qualidades como nas nossas
fraquezas e, mesmo, através do nosso pecado.
O mal e Deus são dois temas que se encontram intrinsecamente ligados
às raízes pré-religiosas do ser humano. Deus é omnipotente; Deus é o Bem
absoluto; o mal existe. Como é possível afirmar, sem contradição, estas
três proposições? A teodiceia luta por encontrar uma solução coerente,
enquanto a lógica nos diz que apenas duas destas proposições são
compatíveis (Paul Ricoeur). Assim como não é possível encontrar uma
solução racional para a existência do sofrimento, também não é possível
justificar coerentemente a existência do mal.
O ateísmo angustiado resulta com frequência de uma reacção rebelde
perante a existência inexplicável do sofrimento do inocente, tal como no
caso de Ivan no romance Os Irmãos Karamazov de Dostoiévski. Mas
pode, igualmente, ter a sua origem na excessiva claridade de «preparadas»
explicações tradicionais quanto às perplexidades existenciais relativas ao
sofrimento, ao mal e à transcendência.
Em primeiro lugar, é importante dizer que devemos ser prudentes
quanto à questão de definirmos alguém como ateu. Michael J. Buckley

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refere que o termo «Deus» é ambíguo e o Deus de uma pessoa pode ser
o Satã de outra; a fé de uma pessoa pode ser o ateísmo de outra [Denying
and Disclosing God]. Aquele que nós definimos como ateu pode ser um
honesto buscador, alguém que simplesmente deseja saciar a sua sede do
divino com algum alimento adaptável às suas necessidades. O «ateu que
busca» encontra-se na soleira, tal como o «cristão que busca». É nesta
soleira que eles se descobrem mutuamente e dialogam.
*
Continuamos o nosso esforço em dar uma dimensão de universalidade
à revista Igreja e Missão. Os autores deste número são de três nacionalidades
diferentes: Tomáš Halík (Sacerdote jesuíta checoslovaco, Prof. na Charles
University, Praga, e Presidente da Czech Christian Academy); Pablo Seco
(Sacerdote espanhol (IEME), missionário no Japão); Paulo Borges (Prof.
na Universidade de Lisboa e Presidente da União Budista Portuguesa);
Jorge Cunha (Sacerdote da Diocese do Porto, Director da Faculdade de
Teologia da UCP-Porto); Alexandre Palma (Sacerdote do Patriarcado de
Lisboa, Prefeito do Seminário Maior de Cristo Rei dos Olivais).
Verifica-se, pelos temas apresentados, a relação com o mundo budista
e o clima do diálogo filosófico-teológico com as raízes culturais japonesas,
assim como o desafio do diálogo com o ateu buscador e preocupado.
Aproximações à dimensão trinitária de Deus e a problemática do perdão
são temas que convergem para um centro comum e nos ajudam no sentido
de uma reflexão séria sobre a nossa relação com o outro, o diferente, o
distante.

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OLHAR A TRINDADE
EM CHAVE EXPERIENCIAL
Modelos de uma abordagem possível*

Alexandre Palma

Passar do «exílio da Trindade» à «pátria trinitária»1. Talvez se pudesse


sintetizar deste modo a preocupação que moveu (e ainda move) a hodierna
reflexão cristã sobre o Mistério de Deus2. Esse novo impulso partiu, em

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* Artigo baseado em elementos da dissertação de doutoramento apresentada na


Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma) a 23/3/2012 e publicada como: A. PALMA,
L’esperienza della Trinità e la Trinità nell’esperienza. Modelli di una loro configurazione,
Gregorian & Biblical Press, Roma 2013.
1Cf. B. FORTE, Trinidad como historia, Sígueme, Salamanca 20013, 15-19.
2Para um olhar de síntese sobre a teologia trinitária contemporânea: E. DURAND – V.
HOLZER, ed., Les sources du renouveau de la théologie trinitaire au XXe siècle, Cerf, Paris
2008; ID., ed., Les réalisations du renouveau de la théologie trinitaire au XXe siècle, Cerf,
Paris 2010; W. BREUNING, ed., Trinität. Aktuelle Perspektiven der Theologie, Herder, Freiburg-
Basel-Wien 1984; M. SERENTHÀ, «La teologia trinitaria oggi», La scuola cattolica 118 (1990)
90-116; G.M. SALVATI, «La dottrina trinitaria nella teologia cattolica postconciliare. Autori
e prospettive», in A. AMATO, ed., Trinità in contesto, LAS, Roma 1994, 9-24; R. FERRARA,
«La Trinidad en el posconcilio y en el final del siglo XX: método, temas, sistema», Teología
80 (2002) 53-92; A. PALMA, «A renovação contemporânea da teologia trinitária. Contexto,
aquisições e perspectivas», Didaskalia 40 (2010) 59-75.

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ALEXANDRE PALMA

grande medida, da perceção de que imagem de Deus como Trindade não


determinava de modo consistente os restantes âmbitos da reflexão teológica
cristã, nem jogava um papel significativo no concreto da vida dos cristãos.
Desta dupla «splendid isolation» da Trindade falou K. Rahner, num diag-
nóstico do status quaestionis tão vigoroso na descrição como decisivo para
o tratamento contemporâneo do tema:

os cristãos, apesar da sua profissão de fé ortodoxa na Trindade, são pratica-


mente «monoteístas» no concreto da sua vida religiosa. Poderíamos arriscar a
afirmação de que, se o dogma trinitário tivesse de ser eliminado como falso, a
maior parte da literatura religiosa poderia, neste processo, permanecer quase
inalterada. Nem se poderá sequer objetar que o dogma da Encarnação seja
teológica e religiosamente tão central entre os cristãos que, por essa razão,
a Trindade esteja inseparavelmente presente, sempre e em toda a parte, na
vida religiosa dos cristãos. Quando hoje se fala de Encarnação, o olhar recai,
teológica e religiosamente, apenas sobre o facto de que «Deus» se tornou
homem, que «uma» pessoa divina encarnou, e não sobre o facto de que esta
pessoa seja precisamente a do Lógos. Não é infundada a suspeita de que, para
o catecismo da mente e do coração (em contraste com o catecismo impresso),
a ideia que o cristão tem de Encarnação em nada teria de se modificar caso
não houvesse Trindade. […] Como consequência de tudo isto resulta que o
tratado da Santíssima Trindade fique particularmente isolado do conjunto
de toda a dogmática.3

Admito que este diagnóstico possa ser hoje considerado datado. Aliás,
se a situação presente já não é exatamente a que aqui é descrita tal deve-
se, em boa parte, ao impacto que este mesmo texto de K. Rahner teve no

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3 K. RAHNER, «Der dreifaltige Gott als transzendenter Urgrund der Heilsgeschichte»,


in J. FEINER – M. LÖHRER, ed., Mysterium Salutis. Grundriss heilsgeschichtlicher Dogmatik,
II, Einsiedeln-Zürich-Köln 1967, 319-320.322.

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O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

mundo da teologia. Julgo que é precisamente ao nível dos estudos teoló-


gicos que a situação mais terá evoluído. Sinal disso mesmo é o crescente
interesse dos teólogos pelo tema da Trindade que podemos reconhecer
desde a década de 60 do passado século XX – interesse esse facilmente
comprovável pelo notável número de estudos históricos e monográficos,
de manuais de teologia, ou ainda de ensaios de teologia que desde então
vêm sendo publicados.
Ainda assim, poder-se-á negar em absoluto que permanece um certo
desconforto (intelectual e existencial) com a fé na Trindade? Poder-se-á
negar que subsistem entropias entre o «catecismo impresso» e o «catecismo
da mente e do coração» dos fiéis? Se, por exemplo, atendermos a alguns
estudos feitos no âmbito da catequese e do ensino da religião notamos
como essa imagem trinitária de Deus aparece «na maioria das anotações
dos alunos como uma espécie de enigma teológico, carente de qualquer
significado para a vida»4. Talvez este dado sirva para sustentar a impressão
de que, hoje e apesar de todos os esforços eclesiais, o discurso cristão acerca
da Trindade mostra ainda dificuldades em conectar-se com a vida concreta
dos próprios cristãos e, vice-versa, a existência crente dos batizados mostra
ainda dificuldades em (re)ver-se à contraluz de uma tal imagem de Deus.
É precisamente este nó problemático da questão trinitária que aqui se
pretende afrontar. Parte-se do pressuposto de que também à teologia (embora

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4G. BAUDLER, «Ideen zu einer symboltheoretischen Interpretation der


Trinitätsüberlieferung», Religionsunterricht an höheren Schulen 24 (1984), 44. Cf G.
GRESHAKE, Der dreieine Gott. Eine trinitarische Theologie, Herder, Freiburg-Basel-Wien
20075, 20; W. KASPER, Glaube und Geschichte, Matthias-Grünewald, Mainz 1970, 120:
«Uma série de estudos pastorais e sociológicos dos últimos tempos chamaram a atenção
para o facto de existir uma discrepância alarmante entre o que é oficialmente ensinado
como fé da Igreja e o que de facto é acreditado na Igreja. […] Trata-se de uma incapacida-
de não apenas no plano intelectual, mas também no plano da vida, de integrar a doutrina
oficial da fé com a realidade quotidiana da experiência humana».

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ALEXANDRE PALMA

não apenas a ela) incumbe a missão de aproximar vida e fé trinitária. Como


fazê-lo? É esta a questão que motiva a reflexão que aqui se desenvolve e
para a qual se procura ensaiar um caminho possível de resposta: pensar e
falar da Trindade em chave experiencial. A exposição de uma tal perspectiva
teológico-trinitária, com a identificação das suas potencialidades e fragili-
dades, desenvolver-se-á em três momentos: 1. Problema: um desconforto
com a Trindade; 2. Hipótese: olhar a Trindade em chave experiencial; 3.
Verificação: modelos teológicos possíveis de pensar a Trindade em chave
experiencial. Assim, este exercício quase poderia ser visto como um «la-
boratório teológico». Ele inspira-se intencionalmente no método científico
para criar um percurso que, no fundamental, parte da identificação de um
problema; que, então, levanta uma hipotética forma de o debelar; para,
enfim, observar como essa hipótese pode ser concretizada.

1. Problema: um desconforto com a Trindade

O cristianismo adota uma visão muito particular de Deus. Ele não diz
acreditar genericamente em Deus, mas sim num Deus que é Pai, Filho e
Espírito Santo; num Deus concretamente uno (segundo a essência) e trino
(segundo as pessoas). Ora o que, de forma antecipada, se foi já referindo
é que uma tal maneira de ver e entender a Deus desperta em crentes e não
crentes perplexidades não negligenciáveis. Aqui reside, portanto, o problema
essencial que aqui queremos tratar: a Trindade aparece a muitos como uma
formulação teológica que gera um certo desconforto.
Importa, contudo, caracterizar de modo mais preciso este desconfor-
to. Esta dificuldade pode ser declinada esquematicamente em dois grandes
eixos:

i. A Trindade surge como verdade abstrata


O primeiro elemento a servir de obstáculo a uma convivência tran-
quila com uma tal imagem de Deus situa-se no plano intelectual. A

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O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

afirmação de que Deus é uno e trino surge a muitos como uma pura
afirmação ilógica: um nunca é três e três nunca é um. Esta «teo-lo-
gia» torna-se, portanto, inaceitável. Poder-se-á dizer que a doutrina
cristã não estabelece uma tal identidade matemática5, mas qualquer
das formas é assim que ela continua a surgir a muitos: como uma
afirmação que violenta a razão humana. Por contraste, a intuição de
que, a haver Deus, Ele seja uno e único parece bem mais plausível
em termos racionais6. Assim sendo, a «teo-logia» cristã surge mais
convincente quando fala na unidade do Deus em quem crê, do que
quando confessa a sua tripessoalidade.
É certo que também à teologia se poderão assacar responsabilida-
des por este estado de coisas. Em certo sentido, ela própria contri-
buiu para uma desarticulação entre a unidade e a trindade de Deus.
Penso, sobretudo, na excessiva subdivisão do tratado De Deo em
De Deo uno e De Deo trino que durante muito tempo estruturou a

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5Há, objetivamente, uma diferença entre o que é dito uno em Deus (a essência ou
substância) e o que d’Ele é dito ser trino (as pessoas). Daí que na doutrina trinitária não
haja contradição lógica.
6 Como, aliás, parece ser reconhecido pela Constituição Dei Filius do Concílio

Vaticano I: «A Igreja afirma que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser co-
nhecido com certeza pela luz natural da razão humana partindo das coisas criadas»; e
mais adiante acrescenta que «quis a sua sabedoria e bondade [de Deus] revelar ao género
humano por outro caminho, e este sobrenatural, a si mesmo e aos decretos da sua vontade»
(DZ, 1785). Note-se como, contra o fideísmo, se afirma a possibilidade humana de chegar
ao conhecimento certo de Deus pelo exercício da sua razão natural; e como, contra o racio-
nalismo, se afirma a necessidade da revelação sobrenatural para o conhecimento de quem
Deus é em si mesmo. Embora o documento não o afirme expressamente, julgo ser possível
ver na primeira afirmação o reconhecimento da razoabilidade da existência de um Deus
uno (em linha com o que afirma S. Tomás de Aquino – cf. STh I, q. 11, art. 3); ao passo
que o conhecimento da Trindade (ou seja, de Deus em «si mesmo») só se torna possível
por revelação sobrenatural do próprio Deus (novamente em linha com o postulado por S.
Tomás – cf. STh I, q. 32, art. 1).

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ALEXANDRE PALMA

reflexão «teo-lógica». Não é que tal distinção seja totalmente des-


provida de razões. Contudo, ao sedimentar-se ela tornou mais difí-
cil perceber que o Deus uno e o Deus trino são, na fé cristã, um só
e o mesmo; que, além disso, a unidade de Deus não é o elemento
que venha antes da trindade em Deus, nem em termos cronológicos
nem em termos ontológicos7, porque se Deus é uno é-o como uma
unidade de pessoas. Esta maneira de pensar e de falar da Trindade
acabou por servir, mesmo que involuntariamente, de suporte teoló-
gico para essa atitude crente que condensa toda a sua fé em Deus na
unidade, desconsiderando a matriz trinitária da «teo-logia» cristã.
A primeira mostra-se plausível em termos racionais. Já a segunda
parece uma formulação que não consegue despertar o empenho da
inteligência humana.

ii. A Trindade surge como proposta não prática


Poder-se-á situar no plano da vivência concreta o segundo eixo da
resistência em acolher a Trindade como autêntica imagem «teo-ló-
gica». Com demasiada frequência não se percebe de que modo essa
imagem de Deus possa exercer um impacto efectivo sobre o normal
viver cristão e humano. O que muda em mim e no nosso comum
viver (social e eclesial) pelo facto de Deus ser especificamente uma
Trindade de pessoas? Mesmo quando uma tal forma «teo-lógica»
é acolhida com docilidade crente, ainda assim permanece esta im-
pressão de que a imagem trinitária de Deus «não parece traduzível
numa experiência viva e prática de fé»8. Em tais casos, o discurso

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7Modo de ver que instauraria em Deus uma espécie de «quaternidade» (isto é, de


fazer da una essência divina uma espécie de quarta entidade em Deus), explicitamente
recusada pela Igreja no IV Concílio de Laterão (cf. DZ, 432).
8 J. SCHULTE, «Das Geheimnis der Trinität und die christliche Glaubenserfahrung»,

Katechetische Blätter 106 (1981) 426. Cf. G. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 20.

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O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

trinitário será aceite como algo de relevante para Deus, mas pouco
ou nada para nós9.
Esta preocupação pelas consequências práticas dos postulados da
fé será também o reflexo de uma cultura que tende, precisamente, a
exaltar a prática como critério de verdade. A verdade da teoria (de
qualquer teoria) prova-se na práxis. É certo que algo disto faz parte
dos fundamentos da proposta cristã, pois a verdade da fé se joga
também numa vida consequente – como o recorda a Carta de Tiago:
«mostra-me a tua fé sem obras que eu, pelas minhas obras, te mos-
trarei a minha fé» (Tg 2, 18). Ainda assim, tal elevação da práxis
a critério supremo (em causos extremos, a critério único) merece
alguma atenção. Se por um lado, essa perspectiva tem o inegável
mérito de alimentar o pensamento teológico com a vida concreta,
minorando o perigo de intelectualismo a que ele sempre está ex-
posto; por outro lado, ela corre o risco de se fechar num entendi-
mento de práxis demasiado imediato e material. Julgo ser preciso
valorizar esta procura pelo impacto existencial da fé trinitária, sem
contudo ceder à tentação de restringir a ponderação do seu valor à
sua aplicação imediata. Com efeito, uma autêntica articulação entre
teoria e práxis, entre ortodoxia e ortopraxia, deverá predispor para
uma reelaboração dos enunciados teológicos a partir da existência
crente, mas deverá também predispor para uma revisão das práti-

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9 A reflexão trinitária contemporânea tem-se empenhado em mostrar precisamente o


inverso: «Dificilmente se pode captar o alcance da “revolução” da imagem de Deus que se
iniciou na história da humanidade através da fé no Deus trino. Esta revolução não chegou
ainda a penetrar até ao limite a nossa própria consciência cristã. Que Deus seja totalmente
comunicação, vida que se entrega, que seja beatitude em si mesmo e pura entrega recí-
proca, é algo que não apenas inverte a imagem humana de Deus, mas que toca também a
nossa compreensão de nós mesmos e do mundo» (K. HEMMERLE, Glauben – wie geht das?,
Herder, Freiburg 1978, 147).

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ALEXANDRE PALMA

cas crentes à luz da reflexão teológica. Neste círculo hermenêutico


sempre inconcluso encontramos uma forma teológica de diminuir
tanto os riscos do intelectualismo como do pragmatismo.

Entre perplexidades de ordem intelectual e dificuldades de ordem


prática ou existencial, o núcleo trinitário da fé e teologia cristãs parece des-
pertar nos crentes (e, por maioria de razão, nos descrentes) um desconforto
real, embora raramente assim verbalizado. Não quer isto dizer que os cren-
tes, mesmo quando não se mostram capazes de dar razões da sua fé trini-
tária, vivam essa fé de forma necessariamente desconfortável. Não poucas
vezes, o sensus fidei vai muito além da capacidade de dizer e, inclusive, de
compreender o que se acredita. Todavia, tal facto não deve tranquilizar o
teólogo ao ponto de ele não reconhecer nas descritas dificuldades um rep-
to a (re)pensar o modo como entendemos e falamos acerca da Trindade.

2. Hipótese: olhar a Trindade em chave experiencial

Perante o diagnosticado desconforto, levanta-se a questão: poder-se-


á encontrar um outro modo de pensar e apresentar a Trindade, mais apto a
fazer ver nela qualquer coisa de racionalmente plausível e existencialmen-
te significativo? Um outro modo de estruturar a «teo-logia» cristã capaz
de dar um contributo positivo para a almejada passagem do «exílio da
Trindade» para a «pátria trinitária»?
A via que aqui se ensaia parte da convicção que sim, que podemos
e devemos ensaiar modos distintos de abordar a questão trinitária. Desde
logo, porque é de Mistério que falamos, razão mais que suficiente para que
se confirme a convicção de que a teologia está mais próxima de cumprir
a sua missão quando é capaz de abordar o Mistério de Deus sob ângulos
diversos, com formas diversas de linguagem. A bondade da pluralidade
de abordagens teológicas legitima, portanto, a procura de modos novos
de falar de Deus. No caso da reflexão trinitária, o modo clássico de tratar

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O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

tal Mistério parte do pressuposto de que nos é possível alcançar uma per-
ceção certa de que Deus é uno, mas que só a Revelação histórica de Deus
nos desvela que Ele seja trino. Modos alternativos de tratar o tema pode-
rão assumir perspetivas diferentes. Mas a busca destes outros modos não
implica a pura e simples superação desse modo tradicional de considerar a
Trindade. Sendo assim, com a hipótese que aqui se explora apenas se pre-
tende juntar mais uma voz à pluralidade sinfónica do discurso teológico e,
consequentemente, não se pretende propô-la como fórmula única de falar
acerca do Mistério trinitário de Deus.
Na raiz da perplexidade intelectual e da dificuldade existencial com
uma tal imagem de Deus parece estar a impressão de que ela segue uma
lógica totalmente distinta da nossa, que ela é uma realidade demasiado
longínqua da nossa própria realidade. Por isso, uma teologia trinitária que
queira contrariar este desconforto deverá estruturar-se de modo a atender
a estes dois pontos. Deverá, no essencial, aproximar discurso «teo-lógico»
e experiência concreta de vida. É assim que do diagnóstico se chega à
hipótese teológica de olhar a Trindade em chave experiencial. Essa hipó-
tese tem que ver com o modo de estruturar a teologia trinitária e pode ser
assim formulada: assumir a experiência como ponto de partida e ponto
de chegada da reflexão trinitária. Trata-se de explorar a possibilidade de
estender ao campo trinitário o círculo hermenêutico entre pensamento e
vida, ancorando na vida concretamente experimentada o que acerca da
Trindade podemos dizer e reinterpretando essa mesma vida a partir do que
vamos captando do Mistério de Deus. O que se diz acerca de Deus tem na
experiência concreta de vida o seu fundamento e o seu critério10, mas tam-

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10Isto não conduz, necessariamente, a uma secundarização da Revelação histórica


de Deus como a porta que nos desvela o seu Mistério. Implica sim que essa Revelação seja
vista como autêntica experiência histórica da presença de Deus e, possivelmente, que se
valorizem também como revelação outros lugares da presença de Deus para lá da história
bíblica.

13
ALEXANDRE PALMA

bém essa experiência de vida encontra no Mistério de Deus fundamento e


critério. Assim, dada a matriz circular deste esquema, a experiência nun-
ca deixa estagnar o discurso trinitário, assim como a «teo-logia» nos faz
caminhar da experiência para a experiência, fazendo-nos reexperimentar
sempre de novo o que somos e a vida que levamos. Ainda que exposta a
limites, a circularidade desta proposta tem, em princípio, a vantagem de
respeitar o carácter mistérico de Deus e da própria vida. A dinamicidade
deste modo hipotético de estruturar a teologia trinitária, com o reconheci-
mento da provisoriedade dos seus resultados, parece respeitar o facto de
não lidarmos aqui com um objeto que possamos simplesmente manusear
e controlar. Sendo Deus o referente da reflexão trinitária, o que sobre Ele
podemos dizer será sempre uma palavra penúltima e, sob um tal olhar
experiencial, isso parece razoavelmente salvaguardado.
É esta, em síntese, a hipótese acerca do modo de olhar a Trindade que
aqui se inquire: da experiência para a reflexão acerca da Trindade e, vice-
versa, da reflexão acerca da Trindade para a experiência.

Com esta proposta visa-se, por um lado, uma consideração da


Trindade construída não tanto a partir das formalizações da Revelação di-
vina ou dos pronunciamentos eclesiais (símbolos, história do dogma, etc.),
mas baseada sobretudo na experiência de Deus, do Homem e do mundo11.
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11Não se postula aqui qualquer contradição entre a experiência de fé e a formaliza-


ção eclesial da doutrina. Trata-se, somente, de apontar para um olhar sobre o tema trinitário
construído a partir de moldes diferentes.

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O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

Assim, esboçando a imagem de Deus Trindade a partir do vivido, procura-


se responder à impressão de que o discurso trinitário é uma pura abstração
e um jogo intelectualístico de teólogos. O primeiro andamento da hipótese
aqui formulada passa, pois, por pensar a Trindade a partir da experiência
de vida12.
Por outro lado, procura-se explorar o alcance performativo da fé tri-
nitária, ou seja, indagar em que medida uma «teo-logia» especificamente
trinitária possa exercer um impacto real e transformador sobre o modo
como experimentamos a vida e a fé em Deus. Procura-se, em suma, levar
a sério a questão: o que muda pelo facto de se crer num Deus Trindade (e
não num Deus uno sem mais)? O segundo andamento da hipótese passa,
pois, por assumir a experiência humana como horizonte de toda a reflexão
acerca da Trindade.
A hipótese de uma reflexão trinitária em relação circular ou perico-
rética com a experiência aponta, portanto, seja para uma modulação expe-
riencial da nossa visão da Trindade, seja para uma modulação trinitária do
nosso próprio viver. Aponta para uma recíproca e nunca acabada sugestão
e correção, fundamentação e crítica entre experiência e reflexão trinitária.
Esta proposta debate-se, desde logo, com um problema fundamental:
o que é experiência? Este é, importa reconhecê-lo, um conceito cuja gran-
de vantagem pode ser também o seu grande limite. Fazer da experiência
o eixo da reflexão teológica terá a vantagem de permitir que ela se abra
ao todo da vida, incorporando nela realidades humanas normalmente des-
consideradas e recusando restringir a teologia a um conjunto de verdades
verticalmente comunicadas por Deus. Isto expõe-na, porém, a uma certa

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Cf. W. KASPER, Glaube und Geschichte, 121: «O verdadeiro problema é o de saber


12

de que modo, partindo da realidade da nossa experiência, possa desvelar-se, de maneira


nova, um acesso a um discurso sobre Deus humanamente realizável, compreensível e res-
ponsável».

15
ALEXANDRE PALMA

indefinição, dado que uma excessiva abrangência do conceito pode levar


a um esvaziamento do próprio discurso «teo-lógico». Se é verdade que,
em princípio, (quase) tudo nos pode falar de Deus, também é verdade que
nem tudo nos fala de Deus com a mesma verdade e clareza. Importa, por
isso, não homologar todos esses loci theologici da experiência humana,
mas antes conservar a convicção de que existem lugares especialmente
qualificados para falar sobre Deus.
A noção de experiência é complexa13. Não o digo apenas por ter sido
uma espécie de linha divisória entre mundividências filosóficas e culturais
conflituantes (entre pensamento antigo e escolástico, de um lado, e moder-
no e empirístico do outro; entre iluminismo, de um lado, e romantismo do
outro). A experiência é uma realidade complexa em si mesma, porque nela
convergem elementos de natureza vária. Ela é, antes de mais, um aconte-
cimento, qualquer coisa de vital e não tanto um conceito. Por isso, julgo
que uma redução de experiência a mero conceito conduza a uma visão
redutora do próprio fenómeno. Defini-la, isto é, delimitá-la com contornos
demasiado vincados conduzir-nos-ia, quase inevitavelmente, a desconsi-
derar certos aspetos que fazem parte da dinâmica que chamamos expe-
riência14. Via mais acertada parece ser a de descrever-la. Um belíssimo
exemplo disso mesmo pode ser encontrado na forma como R. Panikkar
equaciona a experiência: «E=e.l.m.i.r.a». Segundo ele, a experiência em

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13 No dizer de W. Kasper, trata-se de uma realidade «complexa e polivalente» (cf.


W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, Matthias-Grünewald, Mainz 1982, 109); e ainda, que «o
conceito de experiência pertence aos mais obscuros conceitos filosóficos» (cf. W. KASPER,
Glaube und Geschichte, 124).
14 Alguns autores mostram-se também céticos quanto à validade de uma definição

que reduza a experiência a conceito: J.P. JOSSUA, «Experiencia cristiana y comunicación


de la fe», Concilium (E) 85 (1973) 243; S. DE FIORES, Trinità mistero di vita, San Paolo,
Cinisello Balsamo 2001, 13; G. SALATIELLO, L’esperienza e la grazia, Chirico, Napoli
2008, 29.

16
O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

sentido total (E) é composta pela experiência pura (e) de encontro imedia-
to com aquilo do qual se faz experiência; pela linguagem (l), com a qual
a exprimimos (até para nós próprios); pela memória (m), que nos permite
revisitar a experiência tida; pela interpretação (i), que nos permite tomar
consciência do que experimentamos; pela receção (r), que introduz a vari-
ável do contexto cultural em que toda a experiência é vivida e decifrada;
e pela atualização (a), que permite que a experiência possa ser uma cons-
tante força transformadora15.
Uma forma complementar de descrever o fenómeno da experiência
pode assentar na consideração de qual é o seu objeto (i), de quem pode ser o
seu sujeito (ii) e de quais são os momentos essenciais em que se ele desen-
rola (iii). Em primeiro lugar, para que se dê uma experiência é preciso que
haja algo do qual se faz experiência. Esta supõe sempre um determinado
objeto. Um entendimento demasiado empirista, cienticista e/ou materialis-
ta da experiência tenderá a restringir este objeto às realidades tangíveis ou
aos acontecimentos que podem ser reproduzidos. Tal postura, porém, não
parece ser capaz de captar a integralidade do fenómeno, porque não valo-
riza como autêntica experiência tudo o que no mundo não é coisificável e
tudo o que na vida há de único, de irrepetível e de profundamente pessoal.
Também a respeito destas outras realidades temos a legítima presunção
de fazer autênticas experiências, pelo que a experiência é um fenómeno
global no que concerne ao seu objeto. Em segundo lugar, o conhecimento
experiencial caracteriza-se por ser um processo de aprendizagem que se
desenvolve na primeira pessoa. Um «conhecimento de experiência feito»
implica isso mesmo, que cada um contacte pessoal e imediatamente com
aquilo de que se faz experiência. Este dado faz-nos perceber como o su-
jeito da experiência é sempre um sujeito pessoal. Todavia, seria outra vez

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. R. PANIKKAR, «L’esperienza della vita. La mistica», in ID., Opera omnia. I.


15

Mistica e Spiritualità. 1. Mistica, pienezza di vita, Jaca Book, Milano 2008, 221-243.

17
ALEXANDRE PALMA

redutor excluir da dinâmica experiencial qualquer nota comunitária. Com


efeito, «além da [sua] origem subjetiva, há [na experiência também] uma
mediação social»16. Além disso, «a experiência nunca se inicia no ponto
zero, mas é sempre mediada pela história»17. Assim, sem diminuir o lado
eminentemente pessoal do sujeito da experiência, não podemos excluir
por completo a existência de uma certa coletividade no ato de experimen-
tar18. Por fim, poder-se-á dizer que a experiência se dá quando se verifi-
ca um determinado impacto do objeto experimentado sobre o sujeito que
experimenta. Mais ou menos prolongado no tempo, tal contacto ganha o
estatuto de experiência pelo processo interior que desencadeia em quem
experimenta e pela particular sensação de certeza e evidência que grava
nele. Assim, há, no fenómeno da experiência, uma passividade inicial do
sujeito. Contudo, isso não basta. Para que a experiência de facto o seja im-
põe-se também que esse mesmo sujeito ativamente explore esse processo
interior e afira da verdade dessa certeza19.
Em conclusão, importa reconhecer como o fenómeno da experiência
é particularmente paradoxal. Paradoxal no seu objeto: material e imaterial.
Paradoxal quanto ao sujeito: pessoal e coletivo. Paradoxal no modo como
se desenvolve: entre a passividade e a atividade de quem experimenta.
Por isto mesmo a experiência resiste sempre a uma sua perfeita definição.
Talvez seja também esta sua natureza paradoxal que nos permita aproxi-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

16D. MIETH, «Hacia una definición de experiencia», Concilium (E) 133 (1978) 357.
17W. KASPER, Der Gott Jesu Christi, 108.
18 Cf. B. QUELQUEJEU – J.-P. JOSSUA, «Expérience chrétienne», in P. EICHER, ed.,

Nouveau Dictionnaire de Théologie, Cerf, Paris 19962, 340: «A experiência não é somente
individual, mas também coletiva e podemos sempre evocar uma experiência ancestral da
espécie, transmitida por uma dada tradição cultural: linguagem, educação, saberes práticos
e modelos de comportamento, símbolos».
19 Entram aqui em jogo vários elementos identificados por R. Panikkar: linguagem,

memória, interpretação, receção e atualização.

18
O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

má-la no discurso trinitário, também ele condenado a caminhar pela verti-


gem do paradoxo de um Deus uno e trino.

3. Verificação: modelos teológico-experimentais

A possibilidade de uma efetiva verificação da validade e exequibi-


lidade da hipótese formulada extravasa em muito o alcance de um artigo
como este. Por isso, limito-me a indicar o que me parecem ser três formas
possíveis de integrar o tal olhar experiencial na reflexão trinitária cristã.
Essas formas desenham aquilo que se poderão considerar autênticos mo-
delos teológicos20. Com efeito, cada um deles singulariza-se pela perspe-
tiva fundamental com que se abeira do Mistério de Deus, pela lógica que
subjaz ao modo como interpreta e crê possível a Revelação divina. Assim,
sem pretensão de ser exaustivo, podemos elencar três modos possíveis de
olhar a Trindade em chave experiencial: i. modelo analógico; ii. modelo
dialético; iii. modelo transcendental.

i. Modelo analógico
A analogia poderá ser considerada uma primeira forma de pensar
a relação entre Deus e a realidade criada. Neste sentido, ela indica uma
forma como a experiência humana poderá dizer algo acerca de Deus como
Trindade e, vice-versa, como essa própria experiência se poderá ver reela-
borada à luz de uma tal imagem de Deus. Num modo analógico de pensar,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

20 Aconstrução de modelos em teologia inspira-se, nomeadamente, em contributos


das ciências sociais. Pense-se, por exemplo, como M. Weber usava a figura do «ideal-
tipo» como instrumento de análise social. Todavia, poder-se-ão reconhecer traços desta
mesma metodologia nos inícios do próprio cristianismo. Pense-se, por exemplo, como
cedo se interpretaram os debates da Antiguidade cristã como o confronto entre a escola de
Alexandria e a escola de Antioquia, representantes de duas mundividências teológicas, ou
seja, de dois modelos teológicos distintos.

19
ALEXANDRE PALMA

parte-se da admissão de uma certa relação de semelhança entre Deus e a


sua criação (sempre superada por uma dissemelhança maior). Assim, o
que se experimenta acerca da vida e do mundo, acerca de nós próprios e
dos outros, pode, mesmo se de modo confuso, estabelecer uma ponte para
aquilo que Deus é em si. A verdade que experimentamos na vida será,
pois, um eco da verdade do próprio Deus.
Alguns autores vêm explorando precisamente esta linha de racio-
cínio em terreno trinitário. Tomo, como exemplo, o pensamento de G.
Greshake21, todo ele centrado na experiência e no conceito de commu-
nio22. Sendo esta uma «experiência humana fundamental», ela é ao mes-
mo tempo uma via de acesso para a compreensão de um Deus que não é
em si uma mónada solitária, mas uma communio de Pai, Filho e Espírito
Santo. Dá-se, aqui, o tal trânsito analógico entre a experiência humana e a
realidade «teo-lógica» que permite aproximar da nossa própria condição
vital o que dizemos acerca de Deus Trindade. Mas se este trânsito permite
ao autor fundar na experiência humana o seu olhar sobre a Trindade, ele
permite muito mais percorrer o caminho inverso, ou seja, o da transfor-
mação da nossa própria experiência comunitária a partir da communio que
Deus é. É, pois, do reconhecimento trinitário de Deus que o autor extrai

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

21Cf. G. GRESHAKE, Der dreieine Gott, 28: «O exercício que propomos acerca da
relação entre a fé trinitária e a experiência da realidade pressupõe, em primeiro lugar,
que a fé, em linha de princípio, tenha que ver com a experiência e que, em segundo lugar,
também a fé no Deus trino não fica excluída desta condição, ainda que Deus trino seja
designado mysterium stricte dictum».
22 Para G. Greshake communio é mesmo o «conceito chave» do cristianismo, porque

resume o conteúdo e a prática cristãs; porque é o eixo que interseta todos os aspetos da
sua confissão de fé; e porque é o critério da compreensão crente de toda a realidade (cf.
G. GRESHAKE, «Communio – Schlüsselbegriff der Dogmatik», in G. BIEMER-B. CASPER-J.
MÜLLER, ed., Gemeinsam Kirche sein. Theorie und Praxis der Communio, Fs. O. Saier,
Herder, Freiburg-Basel-Wien 1992, 90-121.

20
O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

inumeráveis consequências, tanto para a compreensão do todo da fé cristã,


como para a nossa própria experiência eclesial, social e política.
Uma proposta como a de G. Greshake concentra-se sobre um aspeto
determinado da experiência humana: a experiência de sermos com outros.
Claro está que poder-se-á ainda apelar a outros âmbitos da experiência
humana para encontrar esse tal ponto fixo que, analogicamente, permita
erigir um discurso plausível acerca da Trindade. Desde logo, na própria
experiência cristã de Deus. Na verdade, ela assenta na experiência de um
Deus que sem cessar busca a relação. No âmago das fontes cristãs está
precisamente este dado: Ele é um Deus de Aliança e de Nova Aliança;
Ele é um Deus que cria e encarna por amor e para amar. Ora, se este é um
traço decisivo da experiência religiosa dos cristãos, então será amissível
pensar que Deus não seja apenas uma relação para connosco, mas que o
seja porque é uma relação em si mesmo. Assim, também sob este outro
ângulo experiencial, nos aproximamos da imagem de Deus Trindade pró-
pria do cristianismo.
Possibilidades experienciais desde género poder-se-iam aqui multi-
plicar. Estas, porém, deverão bastar para que esclareça como há na nossa
experiência de vida abundantes elementos que nos podem aproximar de
uma imagem trinitária de Deus. O específico de uma abordagem de tipo
analógico está precisamente em explorar «teo-logicamente» essas seme-
lhanças entre o que experimentamos na vida e o que se confessa segundo
a fé. Deste modo, a hipótese anteriormente apresentada encontra nesta
abordagem de tipo analógico uma forma concreta de estabelecer aquele
trânsito entre vida e pensamento, entre experiência e reflexão trinitária:
explorando as semelhanças, mas salvaguardando sempre a devida autono-
mia das duas esferas (a humana e a divina), porque se a analogia afirma
uma relação de semelhança, ela não deixa também de reconhecer que a
dissemelhança entre elas é sempre maior23.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

23 Assim o enuncia o IV Concílio de Laterão (cf. DZ, 432).

21
ALEXANDRE PALMA

ii. Modelo dialético


Um outro modo de tratar a questão «teo-lógica» pode ser descrito
como dialético. Com mais tradição no universo protestante, um tal tipo
de abordagem tende a sublinhar a descontinuidade entre as expectativas
humanas e a realidade divina. Deus é radicalmente um mistério, pelo que
diante dele nada poderá a razão humana. Deus é, pois, absoluta novida-
de, sempre excessivo para as capacidades da nossa compreensão. Daí que
estejamos mais perto d’Ele quando negamos os nossos «pre-supostos»
teológicos para o acolhemos tal como Ele se nos revela. Daí que a nossa
perceção de Deus seja mais exata quando Ele se nos mostra um Deus
sub contrario, isto é, um Deus ao contrário do que humanamente espe-
raríamos d’Ele. É precisamente aqui que a experiência se abre como via
possível para uma «teo-logia» mais exata, pois ela vai onde a razão não
chega. Pela experiência e pela fé (não pelo raciocínio) encontra-se auten-
ticamente Deus.
Concretamente, a «teo-logia» de tipo dialético tende a tomar a
Revelação histórica de Deus como o seu grande ponto de partida (ao limi-
te, o único). Nessa história, a humanidade faz a experiência de que Deus se
revela ao máximo precisamente quando está mais longe dos «pre-concei-
tos» humanos a seu respeito. Não por acaso, este modelo dialético toma,
com frequência, a feição de uma teologia da cruz, justamente porque aí
Deus se revela ao máximo um Deus sub contrario: sofredor, abandonado,
crucificado e, por fim, morto e ressuscitado. Tal é o caso, por exemplo,
da teologia de J. Moltmann. Particularmente sensível à história do «Deus
crucificado»24, o teólogo alemão explora esta história também em chave

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Título de uma das suas obras de referência: J. MOLTMANN, Der gekreuzigte Gott.
24

Das Kreuz Christi als Grund und Kritik christlicher Theologie, Kaiser, München 1972.
Sobre temática trinitária, impõe-se ainda referir: J. MOLTMANN, Trinität und Reich Gottes.
Zur Gotteslehre, Kaiser, München 1980.

22
O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

experiencial, interessando-se não apenas pela experiência que em Jesus


de Nazaré nós fazemos de Deus, mas também pela experiência que Deus
faz em Jesus de Nazaré. A cruz não é, pois, apenas um drama humano,
mas é também um drama em Deus. Este drama é pensado até às suas úl-
timas consequências «teo-lógicas». A cruz parece instaurar uma cisão em
Deus (a experiência de um Deus abandonado na cruz pelo próprio Deus),
mas, em simultâneo, ela mostra a sintonia extrema do agir divino (sintonia
entre o Pai que tudo entrega e o Filho que todo se entrega). Ora, a expe-
riência histórica de tais factos pede uma imagem trinitária de Deus: uma
imagem que torne possível este distanciamento no seio do próprio Deus;
uma imagem que reconheça, ao mesmo tempo, que, até no abismo mais
extremo, Deus é coerentemente uno.
Ampliando um pouco mais o espetro de análise, talvez uma aborda-
gem de tipo dialético permita incluir na reflexão teológico-trinitária outras
experiências humanas de cruz. Penso nas nossas próprias experiências de
morte, de sofrimento (de todo, mas em especial do sofrimento inocente),
no fundo, da experiência do mal. Tais experiências são muitas vezes usa-
das como argumentos contra a possibilidade de Deus. Todavia, seguindo
a pista deste modo dialético de tratar o tema, tais experiências tornam-se,
ao invés, a crítica a «teo-logias» pouco purificadas e, ao mesmo tempo, o
fundamento de uma visão de Deus bem mais próxima daquilo que o cris-
tianismo afirma com a Trindade. Com efeito, num Deus Trindade encon-
tramos um «espaço» de acolhimento para as duras experiências do mal,
como também num Deus assim encontramos a liberdade que terrivelmente
torna possíveis tais experiências. Também sob este prisma, a experiência
se mostra uma estrada possível para a reflexão trinitária.

iii. Modelo transcendental


Ao contrário dos dois modelos até agora indicados, uma abordagem
de tipo transcendental tende a situar o lugar de encontro com Deus no inte-
rior do próprio Homem. Com efeito, a experiência que o Homem faz de si

23
ALEXANDRE PALMA

próprio pode também abrir uma estrada que o orienta em direção a Deus.
Este é um tipo de abordagem que encontra inumeráveis testemunhos entre
os místicos (recorde-se, por exemplo, o tema do nascimento de Deus na
alma segundo Mestre Eckhart), mas também entre os Padres da Igreja (re-
corde-se, por exemplo, o interior intimo meo de Santo Agostinho). Mais
recentemente, porém, foi K. Rahner quem mais explorou este caminho,
fazendo da «experiência transcendental» o alicerce de todo o seu edifício
teológico25.
Preocupado com as condições que tornam possível acolher a Palavra
divina, K. Rahner reconhece que o Homem faz várias experiências (que
podemos chamar categoriais), mas que subjazendo a essas experiências
se dá uma experiência fundamental (que ele chama de «transcendental»)
pela qual, no encontro com a nossa própria finitude, nos descobrimos pre-
cedidos por uma origem e orientados para um horizonte absolutos. É a
isso que, como ele delicadamente refere, «chamamos Deus». Assim, «a
dimensão transcendental da experiência humana – no exercício do conhe-
cimento e da liberdade – é a abertura do espírito finito ao infinito»26. K.
Rahner identifica, portanto, no mais profundo do Homem uma abertura
radical ao Mistério divino. Segundo ele, esta abertura é a condição de pos-
sibilidade do encontro com Deus, do discurso sobre Deus e até das demais
experiências humanas.
Apesar das aproximações possíveis a outros autores, a proposta
rahneriana permanece bastante singular no cenário contemporâneo. Ela,
contudo, confirma esta outra possibilidade de falar de Deus em chave ex-
periencial toda focada na experiência que fazemos de nós próprios27. O

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

25Cf. K. RAHNER, Grundkurs des Glaubens. Einführung in den Begriff des


Christentums, Herder, Freiburg-Basel-Wien 1976, 31-32.
26 R. GIBELLINI, La teologia del XX secolo, Queriniana, Brescia 20076, 241.

27 Aquilo que outros autores chamam «autoexperiência» (cf. J. MOLTMANN, Der Geist

des Lebens. Eine ganzheitliche Pneumatologie, Kaiser, München 1991, 44-51).

24
O LHAR A T RINDADE EM CHAVE EXPERIENCIAL

Homem representa para si próprio um lugar de encontro com a imagem


divina que o Criador gravou nele. Em K. Rahner, porém, não é claro em
que medida esta via da interioridade remeta para uma visão propriamen-
te trinitária de Deus. Pelo contrário, o carácter absolutamente anónimo e
atemático desse Mistério que ele reconhece do outro lado da «experiência
transcendental» parece articular-se melhor com um entendimento pura-
mente unitário de Deus. Isto, porém, será bem mais uma característica
do pensamento de K. Rahner do que uma fatalidade deste tipo de aborda-
gem. Se explorarmos a «teo-logia» de Santo Agostinho, tanto nos últimos
sete livros do seu De Trinitate como em elementos disseminados nas suas
Confissiones, veremos como a alma humana pode também ser um espe-
lho da Trindade divina (a sua célebre doutrina psicológica da Trindade).
Assim sendo, e não ignorando as dificuldades de tal via de aproximação à
questão trinitária, também pela «experiência de si» poderá o Homem obter
alguma luz sobre esse Deus que o cristianismo propõe como Pai, Filho e
Espírito Santo.

Mais que para concluir, estas sumárias indicações servirão para abrir
a questão trinitária a uma leitura de tipo experiencial. Este elenco abrevia-
do de formas teológicas possíveis de tratar o tema não permite esgotar a
hipótese que aqui se aventou, extraindo todos os resultados possíveis de
uma modelação experiencial da reflexão trinitária e de uma modelação tri-
nitária da nossa experiência humana. Isso requereria uma monografia com
outro fôlego. Poder-se-á dizer que o exercício aqui empreendido pertence
mais ao âmbito do que está antes da teologia trinitária do que ao âmbito
da teologia trinitária propriamente dita. Dito de outro modo, ao dedicar-
mos toda a atenção à metodologia da consideração trinitária de Deus, esta
proposta poderá ser descrita como um exercício de «teologia fundamental
da teologia trinitária».
Esta reflexão permitiu, contudo, reforçar a intuição que subjaz a essa
mesma hipótese: que é possível aproximar a dinâmica da vida concreta

25
ALEXANDRE PALMA

da imagem de Deus confessada pelos cristãos. Seja mediante uma forma


mentis analógica, dialética, transcendental ou outra não aqui considerada,
a experiência confirma-se como um terreno sobre o qual é também pos-
sível erigir uma reflexão honesta acerca do Deus unitrino. Há nela mais
de trinitário do que vulgarmente parece ser admitido (até pelos próprios
teólogos), pelo que me inclino a concluir pela validade e exequibilidade
de olhar a Trindade a partir da experiência e em vista da experiência. Esta
parece ser, portanto e sem desmerecer de outros tipos de abordagens, uma
real hipótese para se olhar de novo a Trindade.

26
DE NARCISO A MADALENA
Um sentido para a
Conversão e a Penitência Hoje

Jorge Teixeira da Cunha

1. Explicação dos termos

O tema “reconciliação e penitência” integra uma grande variedade


de alusões. Mesmo sem pretensão de rigor, podemos identificar nas fontes
bíblicas diversos contextos que nos mostram essa variedade. No início do
seu anúncio do Reino, Jesus mostra como “a metanoia” é parte desse novo
começo. Por sua vez, no âmbito paulino, há muitos apelos à reconciliação,
seja por esforço dos crentes (“Reconciliai-vos”), como por iniciativa divina
(“Deixai-vos reconciliar com Deus”). A teologia, por sua vez, fixou diversos
conceitos ligados a este mundo da mudança de vida. Entre eles, podemos
citar a justificação, redenção, a salvação, a graça, o perdão. Além disso, a
prática penitencial da Igreja faz referência ao arrependimento, ao pecado,
à culpa, à contrição.
A existência de uma linguagem tão diversificada dá-nos a ideia da
riqueza do assunto e de como, ao longo da história, sofreu acentuações tão
diversificadas.

27
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA

Neste texto, queremos visar apenas a dupla: conversão – penitência.


Estas dimensões parecem mais próximas da origem. Com efeito, a presença
do “reino” implica uma “metanoia”, uma refontalização do ser humano.

2. A difícil conversão de Narciso

É sabido que o tema da conversão não é popular hoje. Converter-


se de quê e a quê? – perguntamos. Converter-se para quê? Converter-se
porquê? É difícil compreender a necessidade da conversão porque não se
vê a razão disso nem razão para isso. “Não tenho pecados. Não tenho de
que me converter!” Esta falsa ideia de uma existência inocente tem raízes
profundas que não podemos esclarecer aqui em definitivo. A evolução
da cultura moderna, com o seu pendor para a socialização, levou a uma
espécie de regressão da individualidade. É certo que este fenómeno não
teve como consequência a superação da angústia existencial. A nosso ver,
umas vezes acentua-a, outras ocasiona uma anestesia. O nosso tempo leva
os indivíduos em duas direcções: ou para uma inocência generalizada ou
para uma culpabilização generalizada. Talvez as duas situações correspon-
der-se e confundir-se.
E, no entanto, objectivamente, o mundo continua cheio de violência,
de injustiça e de morte culpável. Não é necessário muito para comprová-lo.
Qual a razão que levou a deixar de ligar o estado iníquo à responsabilidade
moral dos seres humanos?
Um primeiro facto salta à vista: ligou-se a conversão exclusivamente
aos pecados pessoais, vistos como transgressões de uma norma moral
heterónoma. Converter-se significa apenas lamentar actos pecaminosos e
superá-los. Neste sentido, a conversão é só penitência. Mas a conversão é
mais do que a penitência. Isto quer ainda dizer que pensamos a conversão
sem a referir ao núcleo profundo da vida do sujeito, o que vai ter consequên-
cias graves. Deixa de se entender um e o outro, tanto a conversão como a
penitência. Deixamos para já a questão do pecado. Vamos concentrar-nos
na conversão.

28
D E N ARCISO A M ADALENA

Alguns factos não deixam cair a temática.


Mesmo que não sintam necessidade de conversão, de penitência, de
reconciliação, as pessoas não têm paz psíquica. Predomina nos nossos
dias uma inquietação do espírito que as faz com que as pessoas busquem
muitos caminhos de realinhamento do seu ser. Sinal disso é o recurso a
espiritualidades alternativas, a busca de ajuda psíquica e psiquiátrica. As
substâncias psicotrópicas de que se espera uma pacificação do espírito
remontam talvez também a esse mesmo terreno de inquietação. Busca-se
de mil maneiras a forma de coincidência consigo mesmo. As ginásticas do
corpo e do espírito vão nessa direcção, bem como os encontros de medi-
tação e evasão para a natureza. Qual o sentido desta inquietação? Qual o
sentido desta procura?
Se ampliamos o ângulo de visão, verificamos que as sociedades
anseiam pela resolução dos seus conflitos internos e os povos entre si pro-
curam a pacificação. A seu modo, procuram a conversão e a reconciliação.
Mas, também neste caso, falta um padrão para dar sentido a esta ânsia. A
sociedade actual é progressivamente mais conflitual, pela existência natural
de interesses contrapostos. Dentro das sociedades há cada vez mais fundas
divisões: divisões entre possuidores e não possuidores de bens, divisões
entre zonas pobres e zonas ricas, divisões entre reconhecidos e não reco-
nhecidos ao nível do trabalho, da cultura, da visibilidade. No mundo da
comunicação globalizada, aumentam exponencialmente as mensagens,
mas a aproximação entre pessoas e povos não aumentou verdadeiramente.
Todos sabemos tudo e todos temos medo de não saber nada. As guerras
declaradas ou surdas continuam na ordem do dia. Por isso, a pergunta per-
manece: converter as sociedades a quê? Impossível propor e justificar um
rumo, no contexto da cultura liberal em que vivemos. Todos anseiam pela
conversão à paz e todos ignoram o caminho para lá chegar.
“Narciso” é a figura do indivíduo ou da cultura da autocontemplação
ou da auto-gratificação. A teologia tem por missão abrir a pessoa à sua
origem última que se situa para lá de si mesmo. Para dar eficácia ao apelo

29
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA

à conversão torna-se necessário dar a ver o rosto misterioso de Deus e dar


a ouvir a sua palavra misteriosa.

3. Raízes da cultura narcisista

O apelo à conversão foi ligado ao mundo da heteronomia. Ora o


homem moderno prezou em extremo a autonomia. Se Deus existe, o ser
humano não é livre nem é humano. Mas há aqui um grande equívoco.
Nem a autonomia humana é possível sem heteronomia, nem Deus que
ser proposto como foi. De facto, Deus foi pensado como senhor e como
garante de uma ordem moral. Havia uma garantia da ordem do mundo, que
vinha de Deus mediante as autoridades filosóficas ou políticas. Converter-
se era conformar-se. O homem moderno, pelo contrário, pensou-se como
alicerce da cultura. Sinal disso é o programa da filosofia das Luzes: “Ousa
servir-te da tua razão!” Se o fundamento do mundo é o homem, basta-lhe
ser ele mesmo, não precisa de se converter. Por sua vez, a sociedade tem a
sua justificação exclusivamente no contrato social. Não é necessário con-
verter-se. É, seguramente, necessário negociar, mas converter-se, não. A
conversão deixou de ser tarefa social e comunitária. Este mundo é a origem
do individualismo e de um certo tipo de liberalismo ingénuo.
Esta situação tem uma origem ulterior nos confins da cultura moder-
na. Desde Espinosa até António Damásio, há uma procura do segredo do
funcionamento da natureza, num contexto monista. Deus e a natureza são
a mesma coisa. Tanto faz monismo materialista (Marx), como monismo
espiritualista (Hegel). O mundo tem um dinamismo interno que dá razão
à acção humana. O mundo e o homem não têm interlocutor. A regra de
vida é imanentista. Não há necessidade de a buscar mais longe. Por isso,
converter-se é ser si mesmo, numa unidade compacta com a natureza.
Ambos estes caminhos tiveram como consequência um processo de
inocência geral. Todos somos responsáveis por tudo. Se assim é, ninguém
é responsável por nada. A ser verdade esta observação, a cultura moderna é
responsável por uma regressão, no que à consciência moral diz respeito. As

30
D E N ARCISO A M ADALENA

críticas da consciência moral visaram um progresso na sua autenticidade.


Lembremos as críticas de Nietzsche e de Freud. O resultado, porém, para o
grande público foi um crescimento de uma falsa inocência. Inocência a con-
seguir pela acção. Inocência pela diluição do mistério da individualidade.
A uma leitura teológica, estas opções culturais correspondem, se não
estamos enganados, a heresias da graça. A inocentação pela acção é uma
forma de pelagianismo. Por sua vez, a diluição é uma forma de quietismo.
O mundo chamado pós-moderno continua a jogar nestes teclados.

4. Narciso e a questão do pecado e do mal

O mundo continua cheio de mal e de pecado. Interessa-nos somente


o mal moral, ou seja, o mal de que é total ou parcialmente responsável a
liberdade humana. A cultura narcisista não gosta de falar da questão do
mal e muito menos da evidência de pecados. Esta incapacidade, uma vez
mais, dá que pensar.
Uma primeira causa é científica. O saber actual não tem utensílios
teóricos para descodificar o mal de maneira exaustiva. Cientificamente,
como demonstrou especialmente K. Lorenz, o mal é o nome da regra da
perseverança na vida, mediante os mecanismos da agressividade. Filoso-
ficamente, o mal é o preço da liberdade ou o resíduo negligenciável do
avanço da história. Culturalmente e socialmente, o mal é um odor difuso
que anestesia a consciência de todos.
O resultado está à vista: onde não há para a conversão e a penitência
não há sentido para a questão do mal. Somente quem sabe o que é a con-
versão, conhece o sentido da penitência, e tem olhos para compreender o
sentido metafísico e moral do mal. Vamos então a isso.

5. A conversão de Madalena

Para contrapor a Narciso, figura da conversão impossível, chamamos


a este texto a figura de Maria Madalena, segundo a versão muito conhecida

31
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA

de um quadro belíssimo de Caravaggio (1571-1610). É a figura de um ser


humano que se encontra com as fontes da sua verdade, mediante a luz de
uma visitação que lhe vem da transcendência.
A teologia e a pastoral da reconciliação deixaram de ter contexto
para situar profundamente o tema da conversão. Isso aconteceu por razões
diversas. Existe uma evolução histórica que levou a isso e que é necessário
ultrapassar.
De facto, no ambiente de cristandade, a conversão deixou de ser um
processo existencial, para ser um processo pontual. Dá-se por assente a per-
tença a Cristo e à Igreja e resta, como motivo de conversão, a necessidade
de se conformar com ordenamentos comunitários ou com ordenamentos
doutrinais.
Com o baptismo, o sujeito ficava membro da Igreja e, daí em diante,
tinha de se converter de algumas faltas. A conversão transferiu-se do sujeito
para os actos e isso foi uma tragédia. A tarefa da “metanoia” era apenas
converter-se de alguns actos pecaminosos, vistos em perspectiva atomista,
pontualista, extrinsecista, rigorista, separada da existencialidade. Eis o pa-
norama dos motivos da conversão. É necessário ultrapassar este ambiente
extrinsecista e buscar mais profundamente.
De facto, na perspectiva de Jesus, a conversão situa-se nos confins do
desejo humano. O que quer dizer?
O anúncio do Reino era equivalente a um realinhamento do coração
humano com Deus, origem da vida. A vida é dom e reconhecimento do
dom. A fé é essencialmente este reconhecimento da vida como dom. Nas
circunstâncias existenciais e históricas do ser humano pecador, a fé é tam-
bém sempre perdão.
Olhando para o aspecto social, a luz da fé mostra também como a
comunhão com o outro ser humano, com o semelhante, é igualmente dom
e perdão. Este caminho do dom e do perdão fazem do ser humano irmão e
irmã do outro ser humano. A construção da amizade é possível pelo cres-
cimento do dom e do perdão.

32
D E N ARCISO A M ADALENA

Este ponto de vista situa o sujeito humano na perspectiva da comunhão


com o semelhante e com Deus. O que o ser humano deseja, no fundo, não
é nem perseverar na vida, mas encontrar uma comunhão resolutiva da sua
nostalgia de amor. “Se soubesses o dom de Deus…”. A proposta de Jesus
encontra-se com a procura do fundo do coração.
A pergunta seguinte é esta: o coração humano está preparado para isto?
Convém ao coração converter-se? Analisemos alguns factos de teologia
bíblica narrativa.
Quem Jesus encontra pelo caminho são seres humanos que sofrem
no seu corpo e no seu espírito por uma deficiente comunhão com Deus e
com os outros. As suas palavras e os seus sinais e milagres manifestam a
necessidade de realinhar o coração humano com a comunhão com Deus e
com o semelhante. Os estudos bíblicos são muito interessantes se vistos a
esta luz. O sentido da acção de Jesus é dar ao ser humano a possibilidade
de se tornar um ser comunicante com Deus e com os outros. Isso torna-o
feliz.
A acção de Jesus contém implicitamente uma antropologia. O que
define o ser humano não é seguir a natureza nem perseverar na vida, mas
comunicar com o semelhante e com Deus. Nesta afirmação se supera a
tradicional discussão sobre se o ser humano foi posto no mundo para amar
e obedecer a Deus ou para ser feliz. As duas coisas não são contraditórias
nem incompatíveis.
Porque é que Jesus teve de anunciar o programa de conversão? Não
bastava anunciar a comunhão e a felicidade?
Na resposta a esta pergunta está implícita a problemática sobre o
pecado e sobre a condição humana. O que impede os seres humanos de
serem comunicantes, de expandirem o seu desejo de comunhão? Há uma
razão teológica para isso.
A esta realidade complexa, a teologia chama “pecado”. O pecado é uma
realidade complexa, feita de elementos pessoais e sociais, feita de história
da espécie e de complexidade da vida em sociedade. Tem como divisor

33
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA

comum a evidência de que o ser humano nasce privado da possibilidade de


expandir o seu desejo de comunhão. Precisa de ser libertado de um conjunto
de impedimentos para poder desejar com eficácia. O homem é criado para o
amor e só por graça pode viver no amor. Tudo se passa como nos encontros
deste mundo: não podem ser provocados, muito embora estejam prescritos.
O sentido antropológico da conversão encontra-se aqui.

6. A moral da conversão de Madalena

Estas observações permitem-nos algumas pontes com o mundo moder-


no, de que partimos nesta exposição. O mundo não compreende o sentido
da conversão porque se equivoca sobre a dinâmica do desejo de comunhão.
O desejo humano foi visto dentro do esquema desejo – necessidade – sa-
tisfação. Ora esse é um caminho completamente incapaz de compreender
o ser humano e a necessidade da conversão. Antes de ser satisfação, o
desejo é comunhão. Do que o ser humano precisa é do seu semelhante e
não apenas de alimentos. Quando vive o seu desejo na lógica do alimento
e da satisfação, falha completamente a sua vida. Esse é o grande equívoco
do mundo de hoje.
A moral antiga tinha compreendido isto muito bem ao distinguir entre
as realidades que se “fruem” (Deus e os outros) e realidades que se “usam”
(as coisas e os animais). Quando invertia esta ordem, o homem encontrava-
se no contra-senso. Lembremos que esta inversão era uma das definições
de “pecado”, segundo S. Agostinho.
O sentido antropológico da conversão e da penitência é o da libertação
do desejo do equívoco da satisfação. Isso exige esforço, coragem e causa
sofrimento. Isto é muito importante: o ser humano não precisa de se conver-
ter porque cometeu algumas transgressões pecaminosas, mas precisa de se
converter porque sem isso falha a dinâmica do seu desejo de comunhão. E,
ao falhar isso, falha a sua existência. A Deus não ofendem tanto os pecados
como assistir ao fracasso da sua criatura. Ou seja, é necessário pensar a

34
D E N ARCISO A M ADALENA

conversão com o próprio sujeito no centro da sua acção e não apenas com
uma alusão remota aos seus actos.

7. Teologia da conversão

Além do elemento bíblico da conversão, o apelo de Jesus, temos ou-


tros elementos bíblicos. Entre esses, a afirmação de que Deus reconcilia o
mundo consigo e o apelo “Deixai-vos reconciliar!”.
O primeiro põe o acento na conversão como tarefa humana. Este último
põe em evidência a dimensão gratuita, ou de acção divina, da conversão.
As duas coisas são importantes, mas a segunda é cheia de consequências
para a teologia da conversão. Como assim?
Aqui, o tema da conversão encontra-se com a teologia tradicional
da redenção e da graça. Como era a explicação teológica tradicional da
redenção, ou seja, da transformação do homem, da conversão?
A teologia raciocinava na base da metáfora do preço pago. Deus recon-
ciliou o mundo consigo, porque pagou um preço que o homem não podia
pagar. Era uma teologia feudal: havia um suserano ofendido, um vassalo
incapaz de repor a justiça e um benemérito que pagava em vez dele. Tudo
isso é muito imperfeito em relação ao que é preciso expor e compreender.
A conversão é um encontro da liberdade do homem com a liberdade
criadora de Deus. Cada um tem o seu papel. Mas Deus tem sempre a prio-
ridade e o papel mais importante. Nisto, toda a teologia está de acordo.
Mas não se trata de pagar um resgate. Deus reconcilia o mundo e converte
o homem, não porque ofereça o seu Cristo como preço de resgate. Isso
é uma maneira impessoal de ver. Cristo “morreu pelos nossos pecados e
ressuscitou para nossa justificação” (Rm 4, 25), mas a explicação é com-
pletamente outra.
O primeiro passo consiste em ver como Deus plenificou humanamente
o seu Cristo. Jesus viveu humanamente a comunicação com Deus e com
os semelhantes, numa liberdade infalível e num desejo de comunhão ple-

35
JORGE TEIXEIRA DA CUNHA

nificada no acto pascal. Na sua humanidade, Jesus viveu em perfeição o


estatuto daquilo que é humano: o desejar e o comunicar, o ter necessidade.
Na sua morte, “tudo estava consumado”.
Como é que a redenção de Cristo se faz a nossa redenção? De facto, Ele
é a porta por onde passam todos para chegar à vida. Claro que não se trata
de um perdão jurídico. Os seres humanos têm, em Cristo, a redenção porque
lhes é dado viver, por si, a vida e a morte de Cristo. Ele o precursor da vida
e não o preço do resgate. Ele é “o Primogénito de toda a criatura” (Col 1,
15). Antes dele, não havia homem sobre a terra, simplesmente. Em Adão,
apenas somos humanos por aproximação à plenitude que é sempre porvir.
Não podemos evitar a pergunta: porque foi violenta a morte de Jesus?
Foi violenta porque Jesus encontrou no seu viver o mundo distorcido e
inconvertido que todos nós somos. O mundo inconvertido levantou-se para
se opor Àquele que estava inovando o próprio estatuto da humanidade. Este
encontro de Cristo com o pecado do mundo foi terrível. Não porque Deus
o castigava, mas porque o mundo o castigava.
Como é que Deus reconcilia, então? Quando, no seu Cristo, abre o
caminho ao desejo humano de comunhão com Deus e com os outros. O
caminho não estava aberto? Não. Pelo menos, ninguém tinha transposto
esse caminho.
O cristianismo é uma religião sacrificial? Sim porque usa as mesmas
palavras. Não, porque lhes mudou completamente as referências.

Conclusão

Tem sentido falar de conversão, reconciliação e penitência, hoje? Tem


mais do que sentido. Com algumas condições.
Primeira condição. Que liguemos a penitência à conversão. A peni-
tência não pode ser só um apelo heterónomo a deixar o pecado.
Segunda condição. Que situemos a conversão na perspectiva da re-
denção do sujeito e não apenas de uma mudança de religião e de estilo de
vida moral.

36
D E N ARCISO A M ADALENA

Terceira condição. Que situemos a conversão do realinhamento do


desejo humano de comunhão.
Quarta condição. Que situemos a dor da penitência e da conversão
como sofrimento causado pelo esforço de comunhão com o outro e não
como esforço inútil de uma perfeição individualista.
Quinta condição. Que vejamos a conversão como um esforço de Deus
que bate à porta do ser humano para estabelecer uma comunhão felicitante
e não um juízo impiedoso.

Bibliografia:

J. LAFFITTE, O perdão transfigurado, Lisboa, Instituto Piaget, 1988.


F.-X. DURRWELL, L’Eucharistie sacrement pascal, Paris, Cerf, 1981.
F.-X. DURRWELL, L’Esprit Sain de Dieu, Paris, Cerf, 1983.
P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1989.
J. CUNHA, O evento do Filho – Advento do Homem. A relação do homem
a Cristo pascal fonte da ética na obra de F.-X. Durrwell, Porto, Humanística e
Teologia, 1989.

37
38
DIÁLOGO CON LA
EXPERIENCIA RELIGIOSA ZEN DE SATORI

Pablo Seco

La experiencia religiosa consiste en percibir la cercanía de Dios. Notar


la presencia de un Dios que se comunica con el ser humano, esa criatura a la
que ama de un modo especial porque fue creada a su imagen y semejanza.
Una comunicación que es constante, aunque el ser humano sólo la perciba
en contadas ocasiones y con diferente intensidad. Una comunicación que
es diálogo de amor, cuya expresión más alta la encontramos en Jesús de
Nazaret, en su amor hasta el extremo. Pero, aunque sea de amor, es un diá-
logo en el sentido más literal de la palabra, porque, como señala Marko
Rupnik, el Espíritu Santo actúa sobre el raciocinio y no sobre el sentimiento,
ya que éste está ocupado por los placeres sensuales. Los sentimientos se
hinchan con los placeres sensuales y cuando uno está satisfecho con ellos
no está disponible para considerar los placeres espirituales1. Lo racional
orienta lo afectivo.
El ser humano es racional. Todo lo interpreta a través de su lógica.
Y Dios usa la estructura racional del ser humano para darle a conocer Su
amor, por eso el Vaticano II puede decir que la Verdad “no se impone de

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1 Cf. M. RUPNIK, El Discernimiento, Madrid, PPC, 2001, 73-77.

39
PABLO SECO

otra manera, sino por la fuerza de la misma verdad, que penetra suave y
fuertemente en las almas”2.
Este diálogo es revelación del mismo Dios, que se comunica a sí mismo
como Verdad y como Vida y que se presenta a sí mismo en Jesús de Nazaret
como Camino hacia esa Verdad y hacia esa Vida. Pablo VI nos invitaba a
tomar conciencia de esto diciendo que “el diálogo debe caracterizar nuestro
oficio apostólico. El diálogo tiene un origen trascendente que está en la
intención misma de Dios. Por eso la Iglesia se hace palabra; la Iglesia se
hace mensaje; la Iglesia se hace coloquio”3.
La Revelación, al entrar por la vía de la razón, aporta conocimiento.
Y el conocimiento de la Verdad nos hace libres. Paul Tillich explicaba la
relación entre la Revelación y la libertad hablando de lo que él llamaba la
‘razón teónoma’, situando a Dios (el heteros) como fondo del propio ser (el
autos): “La teonomía no significa la aceptación de una ley divina impuesta
a la razón por una muy alta autoridad; significa la razón autónoma unida a
su propia profundidad”4.
Que la revelación preserve la justa autonomía de lo humano incluye
una referencia al ser humano como tal y, por consiguiente, cabe pensar
que está destinada, en principio, para que llegue a todos los humanos.
La obra de Rahner es un buen ejemplo del esfuerzo por mostrar esto: su
preocupación por la salvación universal – tema del ‘cristianismo anónimo’
– constituye el resorte íntimo de su concepto de ‘revelación trascendental’.
En definitiva, ésta consiste en mostrar que ‘ya dentro’ de todo ser humano
está la presencia reveladora de Dios; de suerte que cuando la revelación
aparezca en su forma histórica, ‘categorial’, ya no será percibida como
extraña o heterónoma.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

2 Declaración Dignitatis Humanae, 1, b-c.


3 PABLO VI, Encíclica Ecclesiam Suam 27 y 28.
4 P. TILLICH, Teología sistemática I, Salamanca, 1972, 116; cf. 114-118, 193-197.

40
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

La experiencia religiosa como lugar de encuentro y diálogo misionero


supone reconocer que Dios ya se está comunicando con el ser humano y
que el testigo, como mayeuta, hace que el interlocutor descubra, engendre
o dé a luz la verdad que lleva en sí mismo5.

Sobre esta base resulta obvio un primer acercamiento a la revelación. Se dan


los dos elementos básicos: la palabra externa del mediador (del mayeuta) y
la remisión del oyente a su propia realidad. El mediador con su palabra y
con su gesto ayuda a los demás a descubrir la realidad que ya viven y que ya
son, la presencia que ya los estaba acompañando, la verdad que desde Dios
ya eran, están siendo y están llamados a ser. La palabra externa es necesaria,
porque sin ella no se produciría el descubrimiento – fides ex auditu – (Rom
10,17); pero no remite el sujeto a fuera de sí mismo o de su situación, sino
a dentro, en un proceso de reconocimiento y apropiación.6

No se trata de informar, sino de performar7. Se trata de conducir a un


descubrimiento que lleve a la transformación personal. El Dios que estaba
allí desde el principio es descubierto de una manera nueva e inesperada.
Ayudada por la palabra del mediador ‘nace’ en los oyentes la nueva
conciencia de la realidad que estaba allí pugnando por hacerse sentir. Con
esto se está introduciendo una importante modificación en la categoría
socrática: no hablamos del intimismo del recuerdo, del sacar de dentro
ideas puras que estaban en la memoria, sino del descubrimiento de una
presencia real y concreta. Así introducimos la mayéutica en una perspectiva

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. J. FERRATER MORA, “Mayéutica”, en Diccionario de Filosofía 3, Madrid, 1979,


5

2158-2159.
6 A. TORRES QUEIRUGA, Repensar la revelación. La revelación divina en la realización

humana, Madrid, Trotta, 2008, 131.


7 Cf. BENEDICTO XVI, Spe Salvi, 4.

41
PABLO SECO

más abierta y dinámica, pudiendo distinguir, así, dos tipos de mayéutica:


la socrática, que busca “el descubrimiento y las propias posibilidades
cognoscitivas del alumno y otra, que se apoya en una dialéctica objetiva,
que ‘explica’ lo real, para traer a la luz lo que oculta en sí”8.

Una aproximación al budismo Zen desde una perspectiva


cristiana.

Al acercarnos al budismo descubrimos que es la forma religiosa más


difícilmente integrable en una forma teísta de comprensión de lo religioso.
Esto es debido a que el budismo supone un momento de ruptura, de reforma
e incluso una verdadera revolución religiosa que se enfrenta a la pluralidad
de las figuras divinas que pueblan el panteón védico, a la frondosidad
del culto y el sacrificio brahmánico, a la complejidad y la sutileza de las
especulaciones sobre el Brahman-Atman de las Upanishads e introduce
una simplificación, una purificación y una concentración radicales de la
vida religiosa9.
Buda quería enseñar a los hombres el camino por el cual podían
llegar a la experiencia interior de la gran iluminación. Creía en un Dios
verdadero, pero evitó hablar de esto porque pensaba que los brahmanes de
su tiempo tenían una idea equivocada de Dios y porque temía que quienes le
escucharan, al hablarles de Dios, se verían afianzados en sus concepciones
erróneas. Así pensaba Mahatma Gandhi10, quien hizo un esfuerzo en querer
demostrar que Buda no era ateo en el sentido peyorativo de la palabra. En

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8 IGNACE BERTEN, Geschichte. Offenbarung. Glaube, München, 1970, 113. Citado en


A. TORRES QUEIRUGA, Repensar la revelación, 132.
9 Cf. R. PANIKKAR, El silencio del Buddha, Madrid, Siruela, 1996, 161.

10 Cf. H. M. ENOMIYA-LASSALLE, Zen y mística cristiana, Brihuega, Zendo Betania,

2006, 14.

42
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

un artículo suyo publicado en Young India el 24 de enero de 1927, habla


del gran malentendido de pensar que el Buda no creía en Dios11.
Tras la muerte de Shiddharta Gautama (Shakyamuni), sus enseñanzas
se extendieron y multiplicaron dando lugar a muchas formas de budismo.
El más antiguo es el actualmente conocido como Theravada (la enseñanza
de los ancianos), llamado a veces Hinayana (el pequeño vehículo), sobre
todo por los miembros del budismo Mahayana (gran vehículo), debido
a que persigue la propia liberación a través de la introspección realizada
normalmente de manera individual y en monasterios. El budismo Mahayana,
por el contrario, realiza la meditación de una forma más accesible a la gente
común, busca la liberación de todos y considera la enseñanza de Shakyamuni
como un método, más que como una doctrina. Este budismo se extendió
hacia el norte llegando a China a finales de la dinastía Han (años 25-220).
Allí entró en contacto con el Taoísmo que, fundamentando su enseñanza
en el Tao Te Ching (libro del Camino y de su Virtud) atribuido a Lao Tzu
(viejo maestro), persigue la superación y el progreso personal y colectivo
a través de los cambios que trae consigo el Tao (el camino).
Cuando el Taoísmo entra en contacto con el budismo Mahayana
traduce la palabra sánscrita dhyana (meditación) con el ideograma chino
Chan (禪). Al llegar a Japón en la época Heian (794-1192), el ideograma
chino se pronuncia con el acento japonés diciéndose Zen (禅). Pero el
budismo Zen no sólo considera importante el concepto dhyana. También el
concepto prajna (iluminación, visión directa12) es necesario. No es primero
uno y después el otro. Donde está prajna está dhyana y viceversa13.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

11“He unhesitatingly said that law was God Himself. God’s laws are eternal and
not separate from God Himself. It is an indisputable condition of His very perfection. And
hence the great confusion that Buddha disbelieved in God and simply believed in the moral
law”. (Citado en: R. PANIKKAR, El silencio del Buddha, 323, nota 1).
12 Cf. A. W. WATTS, El camino del Zen, Barcelona, Edhasa, 2003, 173.

13 Cf. D. T. SUZUKI, Budismo Zen, Barcelona, Kairós, 20034, 52-53.

43
PABLO SECO

El Zen es una de las ocho escuelas antiguas del budismo Mahayana


asentado hoy en Japón, junto con Hossō, Kegon, Tendai, Shingon, Jōdo,
Jōdo Shin y el fundado por Nichiren14. Tiene dos escuelas principales: la
Rinzai y la Soto, que se caracterizan por usar en sus prácticas distintas
técnicas de meditación: La primera usa los koan, que son problemas o
‘enredos’ en los que se concentra el discípulo y que tiene que ir entendiendo
y avanzando hasta comprender el Zen y alcanzar el satori. La segunda
practica el zazen, que consiste en sentarse y concentrarse en la respiración,
dejando la mente en reposo15.

1. Experiencia de Dios en el budismo Zen

R. C. Zaehner, buscando una definición de la experiencia mística,


propone una clasificación que abarca a los fenómenos presentes en todos
los contextos y en todas las tradiciones16. Habla de tres formas de mística.
La primera es a la que llama experiencia pan-en-hénica, llamada también
mística de la naturaleza. No la identifica con el panteísmo, puesto que ni
el todo ni el uno son identificados con Dios. Se trata de una experiencia de
la expansión de la personalidad en la que la distinción entre el sujeto y el
objeto parece borrada. Para ilustrarla recurre a ejemplos de textos hindúes
y a relatos de experiencias de mística profana. La segunda es la experiencia
de unidad con el Absoluto, llamada también monista. Aquí el Absoluto,
llamado Brahman, es sustancial y esencialmente idéntico con el Atman, que
es la mismidad, el alma individual. La tercera es la experiencia de unidad

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

14 Cf. M. ELIADE, Historia de las creencias y de las ideas religiosas desde la época
de los descubrimientos hasta nuestros días, Barcelona, Herder, 1996, 409-516.
15 Cf. A. W. WATTS, El camino del Zen, 299-333.

16 Cf. R. C. ZAEHNER, Mysticism Sacred and Profane, Oxford, OUP, 1978. Citado en:

J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, Trotta, Madrid, 1999, 88-90.

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D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

del alma con Dios por el amor, llamada también experiencia teísta. En ella
el sujeto no desaparece en la unión, pero se transforma, se deifica. En el
hinduismo existe una corriente llamada devocional o de la bhakti en la que
se hace presente este tipo de experiencia.
Esta corriente devocional aparece en la Baghavad Gita, el Canto
del bienaventurado. Allí se contesta a la siguiente pregunta: en una
sociedad como la hindú, dividida en castas que llevan aparejadas unos
deberes fundamentales para cada una de ellas, ¿cómo hacer compatible la
concentración en lo absoluto que exige la búsqueda de la liberación con la
realización de los deberes propios de cada estado de vida? La Baghavad
Gita propone a un kshatriya (guerrero) cómo realizar su tarea de batallar
sin perder la orientación hacia la liberación. “La respuesta está en actuar sin
vivir pendiente del resultado de la acción, desasido de su efecto, gracias a
una actitud interna de entrega de sí mismo (bhakti) en la divinidad”17.

Es mejor el conocimiento de la verdad que la práctica, mejor que el


conocimiento de la verdad es la meditación y aún mejor que ésta es la renuncia
al fruto de las obras. Al renunciar sobreviene la paz.
El que no siente rechazo por ninguna criatura, el que es amistoso y compasivo,
aquel que no está centrado en la idea de “lo mío”, el que no es egoísta,
inalterable ante el sufrimiento y ante la felicidad, olvida las ofensas.
Siempre contento, en el camino del yoga, con autocontrol, con convicción
firme y con su pensamiento y su razón centrados en mí, el que ama así
(bhakta) es amado por mí.18

Este canto XII, llamado “disciplina de la devoción”, habla de la entrega


afectiva de sí y está basado en el movimiento que atrae recíprocamente al

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 148.


17

Bhagavad Gita, XII, 12-14. En: Edición de Consuelo Martín, Trotta, Madrid,
18

1997, 207-209.

45
PABLO SECO

Absoluto y a la persona. “Se trata de un camino que propone la experiencia


de lo divino bajo la forma de un encuentro personal y por medio del afecto,
del amor”19. No puede olvidarse, sin embargo, que el Dios en la Bhagavad
Gita no deja de pertenecer a la esfera de lo eterno, lo uno y lo universal,
idéntico a la mismidad más profunda del sujeto humano, a su Atman. “El
Dios ‘avatarizado’ en la forma humana de Krishna, conductor del carro de
Arjuna, es al mismo tiempo Brahman, única realidad absoluta, Atman como
conciencia eterna de sí mismo y como sustancia y fundamento de todo y de
todos los sujetos”20. No deja de aparecer como el Absoluto que no se deja
reducir a la condición de personaje humano. Sólo dotado de los ojos de
Dios podrá el hombre ver a Dios21. Y ni aun así puedes convertir en objeto a
Dios. Como expresa un texto de precisión insuperable, es imposible captar,
por el conocimiento o por el afecto, al ser que dice de sí: “El mundo entero
está interpenetrado por mí, en mi forma invisible. Todos los seres están en
mí, aunque yo no esté en ellos”22. Una imagen que se encuentra también
en los místicos teístas: “en él vivimos, nos movemos y existimos” (Hch 17,
28), “Alma, buscarte has en Mí / y a Mí buscarme has en ti”23.
“El camino de la devoción o de la bhakti termina en el silencio, en el
más allá de toda imagen y de todo sentimiento, que envuelve las palabras,
las imágenes […] como condición para que esas palabras y esas imágenes
puedan seguir refiriéndose a Dios”24. Es una expresión de la conciencia de la
precariedad del hombre y de la conciencia de su proximidad a la divinidad,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

19 J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 148-149.


20 J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 153.
21 Cf. Bhagavad Gita, XI, 8: “No puedes verme con tus ojos naturales. Te concederé

la visión sobrenatural”. En o.c., 194.


22 Bhagavad Gita, IX, 4. J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 175.

23 SANTA TERESA DE JESÚS, Poesías, en: Obras completas, Madrid, EDE, 1994,

1162.
24 J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 155.

46
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

de su necesidad de ayuda y, sobre todo, “de su conciencia de haber sido


amado por el Dios y de la necesidad de responder con todas las fuerzas a
ese amor. […] El ideal de la ausencia de deseos y del autocontrol absoluto
es sustituido por la nueva orientación de los mismos hacia Dios”25.
Pero es necesario añadir otra forma de mística. En relación con los tipos
de mística religiosa propuestos por Zaehner, Martín Velasco declara:

A la mística monista y a la teísta habrá que añadir [lo] que podríamos designar
como mística del vacío o del anonadamiento, que tiene su representante
prototípico en el budismo theravada, pero que no deja de tener figuras
próximas en las expresiones de determinados místicos cristianos.26

El Buda quiere liberar al hombre de todos los temores haciéndole


consciente de un hecho contundente y universal, objeto de experiencia
unánime: el dolor y la tendencia innata a liberarse de él27. Esta radicalidad,
esta concentración en lo esencial – la salvación, la liberación – lleva al
Buda a una innovación radical que comporta el silencio sobre Dios, la
eliminación del sujeto o Atman y el acallamiento de todas las preguntas en
relación con el mundo, su origen y su realidad. El silencio del Buda sobre
Dios ahuyenta el peligro de convertir a Dios en objeto de la experiencia
del hombre y caer así en la forma más peligrosa de idolatría. Buda crea
un sistema en el que desaparecen las dos orillas que la experiencia mística
pone en relación: Dios y el ser humano.
Entonces, ¿Se puede hablar de experiencia mística?
Sí, porque justamente cuando se deja de confiar en la luz que comportan
las Escrituras, en el resultado de los ritos y sacrificios, en la dependencia
de los maestros, e incluso en la ayuda que aportan los dioses, a donde el

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

25 J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 157.


26 J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 95.
27 Cf. R. PANIKKAR, El silencio del Buddha, 172.

47
PABLO SECO

hombre se encuentra remitido es precisamente a su experiencia: porque lo


que va a contar para el Budismo no es Dios, sino el camino que conduce
a la liberación, y ese camino pasa por la propia experiencia, que nada es
capaz de suplir.28
En el cristianismo, Cristo es el camino que conduce al Padre-Dios.
La experiencia del encuentro con Cristo camino, verdad y vida es la que te
pone en contacto con Dios, al que nadie ha visto jamás, sólo el Hijo y aquél
a quien el Hijo se lo quiera revelar. (cf. Mt 11, 27; Lc 10, 22). Ya no hay
sacrificios, el sacrificio es Cristo: sacerdote, víctima y altar; y la plenitud
de las Escrituras y la Ley es la Palabra hecha carne que es Cristo. Él es la
puerta a través de la cual se accede al Padre. Se trata de ‘experienciar’ a
Cristo hasta el punto de poder de decir “ya no soy yo, es Cristo quien vive
en mí”. (Gal 2, 20).
El filósofo de la escuela de Kyoto, Shizuteru Ueda, utiliza la palabra
mística en el título de su tesis doctoral de 1965 refiriéndose al budismo Zen29.
Rudolf Otto, en el prólogo al libro Zen –Living Buddhism in Japan, de S.
Ohasama, lo define como una “intuición mística de la no-dualidad”30.
D. T. Suzuki hablando sobre el Zen afirma que “más allá del mundo de
los opuestos, construido por el discernimiento intelectual… (es) un mundo
espiritual de indiscernimiento que implica un punto de vista absoluto”31. Y
sostiene que el budismo Zen es místico:

Yo dije que el Zen es místico. Esto es inevitable, viendo que el Zen es la clave
de la cultura oriental; esto es lo que hace que muchas veces Occidente no

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

28J. MARTÍN VELASCO, El fenómeno místico, 159.


29Cf. A. M. SCHLÜTER RODÉS, Mística oriental y mística cristiana. XXII Foro sobre
el Hecho Religioso, Santander, Cuadernos FyS, Sal Terrae, 1998, 7.
30 ‘mystical intuition of Not-twoness (Nichtzweiheit)’, Citado en: D. T. SUZUKI, An

Introduction to Zen Buddhism, New York, Grove Press, 1964, 11.


31 D. T. SUZUKI, The Essence of Buddhism, Londres, 1946, 9.

48
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

acierte a comprender la hondura de la mente oriental, porque el misticismo


en su naturaleza real desafía el análisis de la lógica, y la lógica es el rasgo
más característico del pensamiento occidental.32

Nishitani en su libro La Religión y la Nada nos invita bellamente a


vislumbrar la mística del Zen a través de un haiku del poeta Matsuo Bashō
(1644-1694) que dice así:

松のことは (matsu no koto wa) From the pine tree Del pino
松に習え (matsu ni narae) learn of the pine tree, Lo del pino,
竹のことは (take no koto wa) And from the bamboo Y del Bambú
竹に習え (take ni narae) of the bamboo Lo del bambú

Que lo podríamos leer diciendo: Del pino aprende el lenguaje del pino
y del bambú aprende el lenguaje del bambú33.
Sólo si haces como el bambú, que se balancea sin ejercer ninguna
resistencia al viento, harás también de ti mismo un ser real y podrás decir
con Dōgen (1200-1253), fundador de la Escuela Soto: “el pájaro vuela y
parece un pájaro”. Un corazón no ligado a nada es un corazón libre que,
como el Espíritu, sopla donde quiere (cf. Jn 3,8) y por esta razón puede
retornar a la fuente primordial. Vivir sin lugar, como las nubes que el viento
arrastra (cf. Mt 8,20: las zorras tienen madriguera…): ésta es la locura del
poeta Bashō y es la actitud ante la vida –no querer nada- que hace de su
arte un arte verdadero.
San Juan de la Cruz en Subida del monte Carmelo dice:

Para venir a gustarlo todo,


no quieras tener gusto en nada.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

32D. T. SUZUKI, An introduction to Zen Buddhism. New York, Grove Press, 1964, 35.
33Cf. K. NISHITANI, Religion and Nothingness, California, University of California
Press, 1983, 128.

49
PABLO SECO

Para venir a poseerlo todo,


no quieras poseer algo en nada.
Para venir a serlo todo,
no quieras ser algo en nada.
Para venir a saberlo todo,
no quieras saber algo en nada.34

En el Zen esto es llamado la vacuidad – el vaciamiento – [空] (ku) y la


nada [無] (mu). Vivir en el interior de la propia realidad, cuyo fundamento
está vacío, a saber: carece de lugar. Su ideal es vivir de la nada, porque
sólo así es completamente libre y no se siente agarrado a las cosas (no hay
apego, no hay deseo).
En los jardines de piedra japoneses, la contemplación de las piedras
te elevan al bambú que aparece detrás de ellas. Al contemplar el bambú,
por delante de él, se abre el jardín de piedras blancas como un abismo. Más
allá crece la naturaleza verde. La base está vacía, es vacío. Este espacio,
entre una referencia lejana y difícil, llena de formas y colores, y nosotros,
nos hace ver que para llegar a las formas es necesario atravesar el mundo
sin formas: el jardín de piedras y arena que, como un desierto del alma,
nos muestra lo que es esencial.
Deshaciendo el mundo creado de las formas hay que llegar a aquellas
formas sin forma. Como dice el Sutra del corazón35, un texto fundamental
de la tradición Mahayana: “Forma, esto es vacío; vacío, esto es forma”36.
Renunciar al lugar quiere decir ‘ejercitarse en el camino’ (行道), ir
hacia un camino. Nishitani explica que ésta es una palabra estable en el
budismo y significa ‘ejercicio’ por excelencia.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

34SAN JUAN DE LA CRUZ, 1 Subida, 13, 11. En: ID., Obras completas, Madrid, EDE,
1988, 204.
35 Editado en: J. EINARSEN, Zen and Kyoto, Kyoto, Uniplan, 2004, 19-20.

36 Cf. K. NISHITANI, Religion and Nothingness, 97.

50
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

Mirando un jardín de piedra nos preguntamos: ese lugar siempre


dinámico y siempre estático, que es principio de la vida religiosa, que es
el yo trascendente, ¿qué naturaleza tiene?
De pronto el viajero entiende que la contemplación de la naturaleza
es de lo más difícil, porque sus formas son realidades muy alejadas de la
vida de los pensamientos y de la vida del alma.

2. El satori y la Consolación sin causa precedente (CSCP) en San


Ignacio (EE 330)

Dōgen, hablando de la plenitud de la experiencia del satori, la


iluminación completa en la que se trasciende toda forma y no-forma, la
describe así:

El logro de la iluminación es como el reflejo de la luna en el agua.


Ni se humedece la luna
ni se quiebra la superficie de las aguas.
Grande es la luna y amplio es el radio de sus rayos de luz,
pero cabe toda en una gota de agua.
Toda la luna y todo el cielo están reflejados en cada gota de rocío.
No poner obstáculo a la iluminación es dejarse, sin más, ser reflejo,
del mismo modo que la gota de rocío
no impide que se reflejen en ella cielo y luna.37

Podríamos cambiar la palabra ‘iluminación’ por la de ‘consolación’ y


quedaría ésta bellamente descrita. En este mismo contexto podríamos situar
también las contemplaciones ignacianas de Cuarta Semana, en las que la
resurrección de Cristo trasciende toda forma y no-forma. (Cf. EE. 312).

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

37 Citado en: J. MASIÁ CLAVEL, Budistas y cristianos. Más allá del diálogo, Cuadernos

Fe y Secularidad 39, Santander, Sal Terrae, 1997, 29.

51
PABLO SECO

Cuando Rinzai fue preguntado cuál era la esencia de las enseñanzas del
budismo, él bajó de su tarima y agarrando por la solapa al que le había
preguntado abofeteó su cara. El que había preguntado se quedó allí
estupefacto. Los que estaban al lado le dijeron: ¿por qué no haces una
inclinación al maestro? Esto le‘despertó’y, cuando se dispuso a hacer la
inclinación al maestro, alcanzó el satori.38

Cuando uno comprende en toda su pureza el espíritu del Zen salta a la


vista lo real que es ese manotazo. No hay en él ni negación, ni afirmación,
sino un hecho simple, una experiencia pura, el mismísimo fundamento de
nuestro ser y pensar. Toda la quietud y vacío que se podría desear en la
meditación se encuentra ahí. El Zen sólo se puede agarrar con las manos
desnudas, sin guantes39. Cuando Gagliardi habla de las características de
la CSCP destaca el carácter repentino y sorpresivo de esta consolación40.
Esta experiencia de satori participaría de esa misma condición.
La palabra satori, en japonés: 悟, consta de dos partes en su ideograma
chino. La primera parte, la de la izquierda, significa 心 (kokoro), que es
traducido por alma, corazón, psique. La segunda parte, la de la derecha,
consta a su vez de dos partes, la de arriba es 五 (go), significa 5, la de abajo
es 口 (kuchi), y significa boca. Cuando el budismo propone el camino de la
iluminación (nirvana) como el medio de evitar el sufrimiento, expresa que
ese sufrimiento es debido a una serie de “agregados” (khanda) que resume
en 5, a saber: forma (que se refiere a la materia, a las cosas materiales),
sensación (sentimientos: agradables, desagradables…), percepción (vista,
oído…), impulso (avidez, odio…) y consciencia. La iluminación consiste en

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

38D. T. SUZUKI, Zen and Japanese culture, Tokyo, Tuttle Publishing, 1988, 8.
39Cf. D. T. SUZUKI, An introduction to Zen Buddhism, 51
40 Para A. Gagliardi en De discretione spirituum (1851), la CSCP es cuando ni a los

sentidos ni al intelecto se les presenta nada que pueda ser causa de esa consolación.

52
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

deshacerse de esos “agregados” y descubrir la insustancialidad del yo, hacer


de las 5 bocas (5 agregados) un solo corazón, lograr la integración consciente
entre lo que rezuma la boca y lo que rebosa el corazón (cf. Lc 6,45).
El satori se produce cuando la actividad de la fachada (el yo) y la
de la parte trasera de la mente (el yo trascendental) se unifican. Genshu
Watanabe decía que el satori era la ‘consciencia de lo inconsciente’ (la
meta-cognición, el yo trascendental). Se produce una percepción inmediata
de la mente como tal, mientras que normalmente sólo captamos nuestra
mente a través de sus actos concretos espirituales sensitivos. Suzuki decía
que el satori es la toma de posesión plena de la personalidad. El hombre
despierta a la libertad perfecta (自由自在) (jiyu jizai). Se apodera de él una
quietud tan perfecta, que ni siquiera le vienen pensamientos relacionados
con el satori. La CSCP también se experimenta como una gracia que no se
puede pretender, sino que viene dada, la descubres a posteriori. El satori es
sentirse uno con el universo entero. Parecido a la experiencia de unificación,
de simplicidad de la CSCP.
Nos señala Enomiya-Lassalle que el satori es un conocimiento
experiencial. “Con explicaciones teóricas es tan imposible definirlo como
la diferencia entre caliente y frío, tan imposible como explicarle a un ciego
lo que es un color”41. Se trata de un descubrimiento que realizar, de una
experiencia que hacer personalmente. El resultado de la misma es la toma
de conciencia de “la pura contingencia”, “la experiencia primaria de la
caducidad”42.
También la CSCP es, sobre todo, una experiencia, algo que el
ejercitante experimenta y que san Ignacio no describe, sino que tan sólo
indica el modo cómo se produce y su origen.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

41H. M. ENOMIYA-LASSALLE, Zen y mística cristiana, Brihuega, Zendo Betania,


2006, 78.
42 R. PANIKKAR, El silencio del Buddha, 87.

53
PABLO SECO

Todos los testimonios de esta experiencia se refieren a este momento


como ‘unificación’ o ‘haber comprendido’. Lo que se describe con más
detalle es el camino hacia ese momento de iluminación o lo que sucedió
enseguida después, los efectos inmediatos.
Otra palabra relacionada con satori en el budismo Zen es la palabra
見性 (kenshō)43, traducido a menudo por visión esencial. Significa mirar
el corazón del verdadero yo, ver en profundidad la parte delantera (el yo)
y la trasera (el yo trascendental). Kenshō es entrar en el estado de 無念
無想 (munen musō) sin pensamientos y sin imágenes. Es una especie de
intuición.
El maestro Harada decía que el kenshō era la esencia del ser humano
y que, por tanto, todos los seres humanos de cualquier época tienen que
poder llegar a la visión esencial. El capítulo 28 del Ejercitatorio de la vida
espiritual de García Jiménez de Cisneros (1455-1510), lleva por título:
“Cómo nuestro pensamiento se levanta a Dios por vivo y ardiente amor
sin algún conocimiento del entendimiento, ni de otra cosa alguna”44. En
él se dice lo siguiente:

la mente ya ejercitada por algún tiempo, según la forma susodicha, se levanta


a Dios, sin ninguna obra del entendimiento ni de ninguna otra cosa, y se
junta con Él […] el tal juntamiento y sentimiento es obra de sólo Dios, que
se quiere dar a sentir a la mente, sin ejercicio de nuestro entendimiento […]
porque aquí solamente obra Nuestro Señor Dios por sí mismo.45

Y termina el capítulo diciendo que “cualquier (persona), por simple


que sea, aunque sea un labrador, o una simple vejezuela, puede ser en esta

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

43Cf. H. M. ENOMIYA-LASSALLE, Zen y mística cristiana, 78-80.


44GARCÍA JIMÉNEZ DE CISNEROS, Ejercitatorio de la vida espiritual, Madrid, Rialp,
1957, 171.
45 GARCÍA JIMÉNEZ DE CISNEROS, Ejercitatorio, 171-174.

54
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

alta sabiduría prestamente levantado en gran discípulo, según que pluguiere


a Dios darle de aquella sabiduría en grande cantidad o en pequeña”46.
Los maestros Zen suelen decir que cada uno tiene su propio satori.
También se dice que todo ser humano en realidad ya posee el satori, por
tanto es una equivocación hablar del satori como de algo que tiene que
llegar de fuera. El satori no se debe buscar fuera, sino en el propio interior.
De todas formas alertan de que hay que tener cuidado porque si se acentúa
mucho que todo el mundo ya tiene la iluminación, existe el peligro de que
algunas personas saquen la conclusión de que no hace falta buscarla y de
que, por tanto, se practique con menos intensidad.
En el poema titulado Shinjinmei 信心銘 (Inscripción del corazón de
fe), que es el texto Zen más antiguo que se conoce, se dice:

No es necesario perseguir la verdad;


simplemente hay que dejar de intentar ver.47

Lo que su autor, Sōsan Daishi (siglo VI), tercer patriarca Zen de China,
afirma aquí “es sólo verdad en boca de alguien que ha llegado al despertar,
después de haberse esforzado hasta el límite de sus posibilidades”48.
Porque quienes opinan que el satori ya está presente en todos y cada uno
es muy probable que no hayan experimentado nunca una iluminación
clara, mientras que quienes han tenido esta experiencia alguna vez saben
que realmente es algo nuevo. Sin práctica no se avanza, tanto si hay satori
como si no. En esta línea se expresa Harvey D. Egan, discípulo de Rahner,
en The Spiritual Exercises and the Ignatian Mystical Horizon, diciendo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

46GARCÍA JIMÉNEZ DE CISNEROS, Ejercitatorio, 174.


47Shinjinmei, en: A. M. SCHLÜTER RODÉS, El verdadero Vacío. La maravilla de las
cosas. Brihuega, Fundación Zendo Betania, 2008, 14.
48 A. M. SCHLÜTER RODÉS, El verdadero Vacío. La maravilla de las cosas, 42.

55
PABLO SECO

que la CSCP comienza en la consolación con causa precedente, es ‘su


culminación normal’ y se experimenta solamente cuando se medita y la
consolación con causa precedente se vuelve transparente. Egan afirma que
la CSCP no tiene por qué ser más extraordinaria que otras consolaciones
durante los Ejercicios, y cree que hay que esperarla como el culmen normal
de la consolación con causa49.
Jules J. Toner, en su libro Discerning God’s Will (1991), se pregunta si
la experiencia de CSCP es infrecuente o es normal y considera que no hay
evidencia de que esa experiencia sea normal, excepto en aquellos que han
sido conducidos por Dios para pasar de la oración discursiva a los grados
superiores de contemplación infusa o pasiva, a la que Teresa de Ávila suele
llamar ‘oración de quietud’50. Rahner, sosteniendo que la experiencia de
CSCP es normal, también habla de grados en esa experiencia. Los maestros
Zen también hablan de ‘grados’ en el satori:
Está el shokenshō [小見性] (satori pequeño). No es muy profundo y
al poco palidece sin que permanezcan sus efectos. Para discernir el satori,
éste ha de abrir un camino nuevo y más eficaz de perfeccionamiento ético
al practicante. Un satori claro, aunque pequeño, es para el que lo ha vivido
una experiencia extraordinaria.
Hay también el llamado daikenshō [大見性] (gran satori), donde
todas las dudas, todo miedo e inseguridad dejan paso a una seguridad
absoluta y a una libertad que llena de felicidad. Un sentimiento de unidad
total, de integración e inmensidad acompañan a esta experiencia. Merton
hablaba de una ‘intuición metafísica del ser’. Staehlin decía que conlleva
una ‘compresión exacta de particularidades, pero se comprende de repente

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

49Cf. H. D. EGAN, The spiritual exercises and the ignatian mystical horizon, St.
Louis, The Institute of Jesuits Sources, 1976, 55-56.
50 Cf. SANTA TERESA DE JESÚS, Camino de Perfección, [Códice de Valladolid] 31, en:

ID., Obras completas, Madrid, EDE, 1994, 763-769.

56
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

todo el orden cósmico’. Los satoris muy grandes hacen saltar todo marco
de descripción. No sólo superan al pequeño satori en grados, sino que
presentan una diferencia esencial con respecto a este último.
También está el saikenshō [再見性] (el satori repetido). Se da con más
facilidad que el primer kenshō, pero exige una gran entrega de la persona.
Tal experiencia presupone que uno esté constantemente en recogimiento
profundo. Un satori repetido profundiza la impresión del primero. De una
manera parecida se explicaba Luis González Hernández cuando describía
la CSCP como una acción progresiva del Espíritu en las almas que se dejan
guiar por él, señalando que es un fenómeno raro al principio, pero que acaba
por hacerse frecuente e incluso normal en las personas que avanzan y se
perfeccionan en la vida espiritual. Luis González Hernández en El primer
tiempo de elección51, estudia la interpretación de la CSCP que hace J.
Clemence en Le discernement des esprits selon Ignace de Loyola (1952),
quien a partir de las exigencias de la psicología moderna y de acuerdo
con De Guibert52, admite sin dificultad el influjo de la inteligencia, de
la imaginación y de los sentidos externos en el conocimiento que puede
producir inmediatamente esa consolación. Más aún, cuenta con el influjo
del consciente y del subconsciente.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

51 Cf. L. GONZÁLEZ, El primer tiempo de elección según san Ignacio, Buenos Aires,
Studium, 1956.
52 A quien cita en Lecciones de teología espiritual donde dice que: “San Ignacio

asienta el principio de que ‘sólo es de Dios nuestro Señor dar consolación sin causa
precedente…, sin ningún previo sentimiento o conocimiento de algún objeto por el
cual venga la tal consolación’. Esa regla es teóricamente inatacable, en el sentido de
que sólo Dios puede obrar inmediatamente sobre nuestra voluntad e inteligencia; pero,
prácticamente, la dificultad está en darnos cuenta de semejante acción inmediata, puesto
que pueden surgir inesperadamente pensamientos, y movimientos de la voluntad en nuestra
conciencia, sin que podamos percibir la causa; en realidad, originados por una labor de la
subconsciencia.” (J. DE GUIBERT, Lecciones de teología espiritual, Madrid, Razón y Fe,
1953, 325, nota 17).

57
PABLO SECO

Ya Francisco Suárez (1548-1617), en su comentario a los Ejercicios


Espirituales, se planteaba la siguiente cuestión:

Ésta o semejante consolación no puede existir en nosotros sin causa, al menos


captada por la inteligencia, porque no se puede mover el afecto sino mediante
el entendimiento. ¿cómo, por tanto, se puede entender que no exista ninguna
causa precedente, cuando ni a los sentidos, ni a la voluntad se ha propuesto
nada, etc.? Pues si no se ha propuesto nada, ¿qué se va a amar, o de qué se
va a alegrar, y cómo podrá sentir consolación?.53

Aunque Suárez matiza diciendo que la consolación-efecto es superior


a la causa humana y al concurso divino ordinario; por consiguiente ‘no
está causada’, ‘no tiene una causa’ natural y sólo puede ser Dios quien la
produce.
Luis González afirma que el acierto de esta frase consiste en contar
con el influjo del inconsciente o subconsciente, admitido por los psicólogos,
al insistir en el efecto propio de la CSCP, como un aumento cualitativo
de la caridad, y en atribuirla a una acción progresiva del Espíritu en las
almas que se dejan guiar por él, de modo que un fenómeno que es raro al
principio en las almas que comienzan la vida espiritual, acaba por hacerse
frecuente e incluso normal en las que avanzan y se perfeccionan. Además,
san Ignacio parece más preocupado en los efectos que causan en el alma
que de investigar el origen de tales pensamientos.
Al igual que la CSCP, el satori no se debe perseguir directamente,
porque esta actitud es una actividad de la ‘fachada’ de la mente (el yo) y actúa
en el sentido opuesto a la actividad en la ‘parte trasera’ (el yo trascendental).
A pesar de existir un gran deseo del satori, lo directamente perseguido no

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Citado en: A. SAMPAIO, Los tiempos de elección en los Directorios de Ejercicios,


53

Bilbao/Santander, Mensajero/Sal Terrae, 2004, 281.

58
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

debe ser más que el 無 (mu), la nada, perder la vida, porque sólo el que
pierde su vida, el que se anonada, la encuentra (cf. Mc 8,35).
Leo Bakker, en su libro Libertad y experiencia54, dedica una buena
parte a tratar la CSCP. Para él la ‘visión de la carne’ de san Ignacio [cf.
Autob 27] es una CSCP. La primera característica de esta visión es el carácter
pasivo. Junto a la pasividad hay una inconmovible certeza.
Dōgen, al llegar a la iluminación, expresó su experiencia con las
palabras: ‘cuerpo y mente se me han caído’. En palabras de Rinzai, llegar
a ser Buda significa llegar a ser un hombre de verdad, una personalidad en
plenitud que ayuda también a otros a llegar a ser verdaderos hombres. La
conciencia en su totalidad, tanto los sentidos como el pensamiento y también
-como señala Yasutani- lo subconsciente han de quedar interrumpidos para
que pueda darse la iluminación. Aparece una sensación de desproporción, a
la que tanto vinculó Daniel Gil la CSCP. Daniel Gil, en Algunas reflexiones
sobre la consolación sin causa (Manresa 41 [1969]), dice que Dios irrumpe
en la historia sin causa precedente, porque es Señor, por pura gratuidad. La
CSCP está vinculada a esa gratuidad y a esa desproporción. La consolación
será SCP cuando en su frontera anterior no existan pensamientos propios
del ejercitante capaces de causarla. El criterio básico no es su ser repentino,
sino la desproporción entre lo anterior y lo posterior. Poco importa que
aparezca de repente o que progrese en intensidad a partir de un comienzo
menos perceptible. Cuando el ejercitante no pueda constatar la causa de la
consolación será CSCP.
Los maestros Zen insisten en que la irrupción ocurre de repente y no
se da en todos con la misma carga emotiva’. A los maestros Zen les gusta
usar la expresión ki ga tsuku [気がつく] (caer en la cuenta), para referirse

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

54L. BAKKER, Libertad y experiencia: historia de la redacción de las Reglas de


discreción de espíritus en Ignacio de Loyola, Bilbao/Santander, Mensajero/Sal Terrae,
1995

59
PABLO SECO

al satori. El paso del no satori al satori a veces resulta muy difícil. No hay
nexo lógico. De nada sirve la sugestión ni ningún otro artilugio. El satori
supone una transformación interior que no se puede aportar desde fuera.
Lo único que pueden hacer los maestros Zen es animar una y otra vez a
sus discípulos a seguir entrenándose. El satori, al igual que la CSCP, es
vivido como una gracia.
Si alguien está convencido de que ha alcanzado el satori, existe el
peligro de que se esté equivocando. ¿Cómo puede constatar el maestro
de que realmente se trata de satori? La invitación al discernimiento es
elemental en la experiencia de CSCP. Y la respuesta no puede venir más
que del fruto de la larga experiencia del maestro contrastada con la de la
persona que alcanza el satori.

3. El satori y la experiencia cristiana del amor

Termino con una observación. En la experiencia de CSCP el sujeto


se siente invadido por el amor. ¿Podemos decir lo mismo en la experiencia
de satori?
En su enseñanza impartida a los discípulos durante el zazen sobre el
Shinjinmei『信心銘』 (Inscripción del corazón de fe) Yamada Kōun Rōshi
habla del amor cristiano, de la compasión budista y de la benevolencia
confuciana. Y dice que el verdadero amor es como un gran espejo que acoge
amorosamente cualquier cosa que refleja55. En el budismo a esto se le llama
compasión de no relación. Es el amor que llena el universo entero.
En los sermones de Buda encontramos las siguientes exhortaciones:
“Todo lo espiritual que hacemos en la vida, ¡oh monjes!, no vale ni la sexta
parte del amor de los seres vivos (maitrī): ese amor que libera el espíritu,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

55 Cf. A. M. SCHLÜTER RODÉS, El verdadero Vacío. La maravilla de las cosas, 28-29.

60
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

acoge en sí mismo a las demás acciones, y luce, brilla y resplandece”56.


“Así como una madre da incluso su vida para proteger a su hijo, a su hijo
único: así también ha de haber (en el hombre) una benevolencia ilimitada
hacia todos los demás seres; ha de estar animado de un amor inextinguible
hacia el mundo entero”57.
Leyendo estos textos, ¿podemos identificar el amor cristiano con
el budista? J. A. Cuttat nos hace caer en la cuenta de que no. El amor
al prójimo es diferente de la maitrī budista, porque el primero vincula
dos individualidades creadas a imagen de Dios, mientras que la segunda
se da entre dos ‘agregados’ igualmente dolorosos, impermanentes e
inconsistentes58. Por eso la maitrī puede y debe extenderse indiferentemente
a los hombres, a los animales y a las plantas. El amor cristiano se centra en
un prójimo concreto y real. “El amor búdico pierde en intensidad lo que
gana en extensión”59.
Pero no quiero poner la fuerza en la comparación, aunque ésta pueda
ilustrar y ayudar a comprender, sino en ver cómo razona el budista a la
hora de explicar esa experiencia que percibe como gratuita, como dada por
alguien diferente a sí mismo que ha sido definido como Misterio, y que la
puede describir como experiencia de amor.
Simone Weil nos da pistas para entender el amor en la ausencia, en la
sunyata (vacío) del budismo Zen. Para ella la infinita grandeza de Dios no
reside en un supuesto poder de perpetuar su presencia, sino en ser capaz
de sacrificarse por amor. El amor es lo contrario de la fuerza que se auto-
impone para reafirmar su presencia. El amor es una entrega que implica

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

56 Itivuttaka, 27. Citado en: J. A. CUTTAT, El encuentro de las religiones, Madrid,


Ediciones FAX, 1960, 62.
57 Suttanipata, 149. Citado en: J. A. CUTTAT, El encuentro de las religiones, 63.

58 Cf. J. A. CUTTAT, El encuentro de las religiones, 62-67.

59 J. A. CUTTAT, El encuentro de las religiones, 65.

61
PABLO SECO

un no-hacer para dejar que las cosas sean libremente lo que son. Dios ha
retirado su presencia en el mundo para arrojarlo a la libertad de ser60.
En el desarrollo de sus razonamientos, dice que “Dios no puede estar
presente en la creación más que en la forma de la ausencia”61. Pero “la
ausencia de Dios es el testimonio más maravilloso del amor perfecto”62. Para
ella “este mundo, en cuanto enteramente vacío de Dios, es Dios mismo”63.
Por eso nos invita a “querer en vacío, querer el vacío, en todo, más allá del
objeto particular, cualquiera que éste sea. Porque ese bien que no podemos
ni representarnos ni definir es un vacío. Pero este vacío es más pleno que
cualquier plenitud”64.
Para el budista Zen que alcanza el satori, la sunyata es la nada absoluta
que no frustra, sino que plenifica. Sólo el que se vacía de sí mismo, el que
se desfonda para descubrir que bajando hasta el abismo allí está Dios, puede
alcanzar el satori. Porque el satori es una experiencia de gracia y “la gracia
colma, pero no puede entrar más que allí donde hay un vacío para recibirla;
y es ella la que hace ese vacío”65. Ese vacío llamado por san Juan de la Cruz
‘noche oscura’ es la ausencia de Dios ya que Dios, “por obra de la noche
oscura, se retira, para que no se le ame como un avaro ama su tesoro”66.
Weil dice que “El amor no es consuelo, es luz”67 y que esa luz se nutre
de hacer la voluntad de Dios. Por eso advierte: “No hay más que una falta:
no ser capaz de alimentarse de luz”68.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

60 Cf. S. WEIL, La gravedad y la gracia, Madrid, Caparrós editores, 1994, 50.


61 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 118.
62 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 115.

63 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 118.

64 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 34.

65 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 31.

66 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 36.

67 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 34.

68 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 25.

62
D IÁLOGO CON LA EXPERIENCIA RELIGIOSA Z EN DE SATORI

Una persona iluminada es aquella que es capaz de ver la voluntad de


Dios en su vida, es decir, aquella que se descubre mirada por Dios, que es
conocida por alguien distinto de su mismidad, por su no-yo en lenguaje de
Nishida, su yo trascendental, que se sabe existiendo en el Misterio y por
eso empeña toda su voluntad para vivir en plenitud queriendo realizar ese
plan de Dios. San Juan de la Cruz escribía: “El alma no se une con Dios en
esta vida por el entender ni por el gozar, ni por imaginar ni por cualquier
otro sentido, sino sólo por la fe en el entendimiento, y por la esperanza
según la memoria y por amor según la voluntad. […] Estas tres virtudes
ponen el alma en oscuridad y vacío de todas las cosas”69. El amor ciega
y apaga los afectos haciendo vacío en la voluntad y desnudez de lo que
no es Dios. Así el amor perfecciona la voluntad y ésta puede entregarse a
crecer en el amor.
A través de la voluntad te ejercitas en el amor meditando sobre
la Nada, sobre el Misterio como realidad última. Y esa meditación va
desapegando tu ego, vaciándolo, anonadándolo; y te libera del sufrimiento
zambulléndote en la oscuridad que el mismo sufrimiento supone “para ser
transformado por lo que el Zen denomina la Gran Muerte (y) el cristianismo
morir y elevarse con Cristo”70. Weil lo expresa así: “La destrucción
puramente exterior del yo es dolor casi infernal. La destrucción exterior a
la que el alma se asocia por amor es dolor expiatorio. Producir la ausencia
de Dios en el alma completamente vacía de sí misma por amor es dolor
redentor”71.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

69 SAN JUAN DE LA CRUZ, 2 Subida 6, 1 y 4. En: ID., Obras completas, 220-221.


70 TH. MERTON, El Zen y los pájaros del deseo, Barcelona, Kairós, 19995, 70.
71 S. WEIL, La gravedad y la gracia, 45.

63
64
VACUIDADE E DEUS
(um estudo comparado entre Nāgārjuna e o
Pseudo-Dionísio Areopagita)

Paulo Borges

Pretendemos reflectir sobre a natureza última do real e sua designação


e experiência em duas tradições, a budista e a cristã, por via do confronto
de dois autores e textos que em ambas são centrais: as Estâncias da Via
do Meio1, de Nāgārjuna (sécs I-II), e a Teologia Mística, do Pseudo-Dio-
nísio Areopagita (sécs. V-VI)2. Entre o sábio da Universidade monástica

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], traduzi-


do do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bugault, Paris, Gallimard, 2002.
Outras traduções, a partir da versão tibetana: Traité du Milieu, com um comentário se-
gundo Tsongkhapa Losang Drakpa e Choné Drakpa Chédrub, traduzido do tibetano por
Georges Driessens, sob a direcção de Yonten Gyatso, Paris, Seuil, 1995; The Root Stanzas
on the Middle Way. Mūlamadhyamaka-kārikā, traduzido do tibetano pelo Grupo de
Tradução Padmakara, Plazac, Éditions Padmakara, 2008; Les Stances Fondamentales de
la Voie Médiane. Mûlamadhyamakakârikâ, traduzidas do tibetano pelo Grupo de Tradução
Padmakara, Plazac, Éditions Padmakara, 2008.
2 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística (ed. bilingue), versão do grego

e estudo complementar de Mário Santiago de Carvalho, Mediaevalia, 10 (Porto, 1996),


pp.9-25.

65
PAULO BORGES

de Nālānda, fundador do Mādhyamika, a Escola do Meio3, e um dos


mais importantes Padres da Igreja e teólogos cristãos, existe não só o
halo lendário associado a uma historicidade indeterminada, mas também
a radicalidade do pensamento e da linguagem na tentativa de sugerir e,
sobretudo, favorecer uma experiência da realidade última mediante a mais
ousada desconstrução das representações dominantes nas suas respectivas
tradições, budista e cristã.

Com efeito, na linha da literatura da Prajñāpāramitā4, cujo tema é a


sabedoria última, transcendente de todos os conceitos, Nāgārjuna estrutura
a sua obra em 27 capítulos intitulados parīksā, “Exame crítico”, os quais
efectuam uma desconstrução analítica dos seus objectos mediante uma dia-
léctica que, “longe de ser construtiva como a de Hegel”, é antes “ablativa,
redutora, abolitiva”5. Nesse exercício, em que o conhecimento se transmuta
em sabedoria (prajñā) pela comum evanescência de si e dos objectos sobre
os quais incide6, Nāgārjuna não só não poupa as noções e teses fundamentais
das doutrinas não-budistas, como incide particularmente sobre os temas e

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

3 Cf. T. R. V. Murti, The Central Philosophy of Buddhism. A study of the Mādhyamika

system, London / Sydney, Unwin Paperbacks, 1987.


4 Cf., por exemplo, La Noble Perfection de Sagesse en Huit Mille Versets, traduzido

do tibetano por Georges Driessens, Marzens, Éditions Vajra Yogini, 2007; La Perfection
de sagesse, traduzido do tibetano por Georges Driessens sob a direcção de Yonten Gyatso,
Paris, Seuil, 1996.
5 Cf. Guy Bugault, “Introduction”, Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence

[Madhyamaka-kārikās], p.16.
6 Cf. Id., La Notion de “Prajñā” ou de sapience selon les perspectives du

“Mahāyāna”. Part de la connaissance et de l’inconnaissance dans l’anagogie bouddhi-


que, Paris, Éditions E. De Boccard, 1968, pp. 228-229.

66
V ACUIDADE E D EUS

conceitos mais veneráveis do budismo e das escolas filosóficas budistas.


Saudando o Buda como aquele que ensinou a “coprodução condicionada”
(pratītya-samutpāda)7, o sábio de Nālānda mostra como todos os fenómenos
surgem em interdependência, num processo de interconexões dinâmicas en-
tre múltiplas causas e condições, todas igualmente fenómenos em contínua
mutação interdependente, que ao limite suscita o colapso da percepção do
real como um conjunto de supostas entidades sólidas e substanciais, “seres”
e “coisas”, existentes em si e por si e captáveis nas antinomias estruturantes
das palavras/conceitos que, cristalizando o fluxo do mundo, configuram
ilusoriamente isso mesmo que aparentam representar como real e já dado.
Como diz Nāgārjuna, na estância de abertura:

Sem nada que cesse ou se produza, sem nada que seja aniquilado ou eterno,
sem unidade nem diversidade, sem chegada nem partida, tal é a coprodução
condicionada, abençoado apaziguamento das palavras e das coisas.8

Neste trecho extremamente conciso, note-se em primeiro lugar a dis-


solução da identificação de entidades na visão dessa condicionalidade de
todos os fenómenos que surge primeiro formulada nas palavras do Buda,
segundo o Cânone pāli: “Sendo isto, isso é. Aparecendo isto, isso aparece.
Não sendo isto, isso não é. Cessando isto, isso cessa”9. Nota Guy Bugault
que, ao arrepio da “ideia de substância e de causalidade transitiva”, estamos
porventura perante “a primeira formulação, na literatura universal, da ideia
de lei ou de função”10. Ao invés de uma lei de causalidade, que supõe uma

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

7 Cf. Philippe Cornu, “interdépendence”, Dictionnaire Encyclopédique du


Bouddhisme, Paris, Seuil, 2001, pp.258-261.
8 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

9 Majjhima Nikāya, III, 63.

10 Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-

kārikās], p.50.

67
PAULO BORGES

realidade anterior com o poder de gerar uma posterior, dela unilateralmente


dependente – como na ideia judaico-cristã de criação ou ainda no emanatis-
mo neoplatónico, em que se considera, tal como no Sāmkhya bramânico, o
efeito potencialmente pré-existente na causa11 –, tratar-se-ia aqui apenas de
constatar uma “conexão necessária” entre fenómenos interdependentes e
concomitantes12 ou, num outro sentido, segundo uma possível tradução de
nidāna (cada um dos elos da “coprodução condicionada”) como “ocasião”,
deparar-nos-íamos com a visão de não haver propriamente “causas” mas
antes “ocasiões”, que podem não ser efectivamente produtivas se deixarem
de ser condicionadas pela “ignorância”, avidyā, a não-visão das coisas tal
como são, a qual, mais do que primeiro elo da cadeia, é a condição sem
a qual não se manifesta nenhum deles13, ou seja, a própria sucessão dos
fenómenos interdependentes e fictícios que constitui o círculo vicioso e
doloroso do samsāra. Seja como for, nesta relatividade universal, em que
tudo interdepende de tudo e não há nenhuma causa ou condição precedente,
única e independente, jamais se encontra quer algo que possua uma natureza
substancial ou “autónoma”, um ser em si e por si (svabhāva), quer, por isso
mesmo, algo que constitua uma “natureza dependente (parabhāva)” (a qual
suporia a existência de algo independente)14. É assim que, aprofundando o
sentido da fórmula anterior e passando da “verdade convencional”, baseada
nos conceitos reguladores das trocas sociais, para a “verdade de sentido

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

11Nāgārjuna diz explicitamente que “o efeito não está de modo algum contido nas
condições” - Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 1, 11, p.51.
12 Cf. Roger-Pol Droit, Le silence du Bouddha et autres questions indiennes, Paris,

Hermann Éditeurs, 2010, pp.45-46.


13 Cf. Françoise Bonardel, Bouddhisme et Philosophie. En quête d’une sagesse com-

mune, Paris, L’Harmattan, 2008, pp.144-145. Cf. também pp.141-162.


14 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 1, 3,

p.46.

68
V ACUIDADE E D EUS

último”15, inseparável da primeira mas desvelada pelo reconhecimento da


sua ausência de fundamento16, Nāgārjuna coloca abruptamente em causa
a adequação da própria fórmula tradicional, atribuída ao Buda e prezada
pela escola filosófica do Ābidharma: “Dado que entidades desprovidas de
existência própria não têm [verdadeiramente] existência, a fórmula «sendo
isto, isso é» é inadequada”17. Ou seja, segundo o tradutor e comentador
Bugault, aprofundar a “condicionalidade” de tudo é “admitir que nada
é si-mesmo”, que não há identidade nem ipseidade e que ser é entre-ser
(“Esse = interesse”): “se as coisas já não têm ser em si, mas simplesmente
relacional, cai então toda a ideia de relação entre coisas”18. Como diz o
mesmo comentador: “Impelido pois até às suas consequências extremas, o
princípio da coprodução condicionada revira-se na ideia de uma não-produ-
ção original […]. «Nada» é produzido porque tudo é produzido. E é assim
que uma racionalidade exasperada desemboca numa vacuidade mística: já
não são somente o onde e o quando que são postos entre parênteses, mas
o quem e o quê”19. Retemos com reserva a expressão “vacuidade mística”,
pela problemática ponte que lança para a comparação com a teologia mística
do Pseudo-Dionísio.
Seja como for, por esta via se compreende que Nāgārjuna identifique
“coprodução condicionada”, “vacuidade” e “via do meio”: “É a coprodução

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

15Cf. Ibid., 24, 8.


16Cf. Ibid., 24, 9-10.
17 Ibid., 1, 10, p.49.

18 Guy Bugault, in Ibid., p.51. O mesmo autor escreve, na “Introdução”, que nesta

perspectiva “os «seres», as «coisas» são na realidade produtos, acontecimentos, mais exac-
tamente sinergias ou coproduções (no sentido fílmico da palavra)” – Ibid., p.25. Roger-Pol
Droit diz que “aquilo que tomamos, erradamente, por coisas estáveis e identificáveis”,
consiste na verdade em “encruzilhadas de relações, entrecruzamentos e interacções perpe-
tuamente móveis” - Le silence du Bouddha et autres questions indiennes, p.47.
19 Cf. Cf. Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence

[Madhyamaka-kārikās], p.110.

69
PAULO BORGES

condicionada que entendemos sob o nome de vacuidade. É uma designação


metafórica, nada é senão a via do meio”20. Se tudo o que conceptualmente
se percepciona como “seres” e “coisas” se manifesta pela interconexão de
múltiplas causas e condições igualmente interdependentes, tudo é com-posto
e nada possui uma natureza intrínseca, simples e autónoma, substancial. É
neste sentido que tudo é “vazio”, enquanto desprovido daquilo que a visão
convencional, acrítica e irreflectida, lhe confere: um “ser” em si e por si.
Como adverte Bugault, o Buda não ensinou “a inexistência das coisas,
mas a ausência de aseidade (“aséité”) nas coisas”, residindo aí “toda a
diferença entre abhāva (inexistência) e śūnyatā (vacuidade)”, irredutível
ao niilismo21.
Todavia, se um mundo de supostas entidades e id-entidades se des-
substancializa, desreifica e descongela numa miríade de fluxos fenoménicos
com-postos, impermanentes e interdependentes uns dos outros, incluindo as
próprias mentes que os apreendem, isso não o reduz a “nada”, no sentido
de um “não-ser” absoluto ou de um “vazio” que existisse em si e por si,
como uma misteriosa, mística, inefável e negativa (não-)entidade metafí-
sica (o que, como veremos, é decisivo para a comparação com o Deus do
Pseudo-Dionísio Areopagita). Assim se compreende que a célebre e tão mal
compreendida “vacuidade” seja apenas uma metáfora, que não pretende
nem pode substituir-se, como um novo princípio metafísico, às entidades
que a sua compreensão desconstrói, consistindo apenas na “via do meio”
(madhyamā pratipad) entre os extremos (anta) das visões conceptuais22,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

20 Nāgārjuna, Ibid., 24, 18, p.311. Cf. também 24, 36, p.315. Cf. Jean-Marc Vicenza,
Nâgârjuna et la doctrine de la vacuité, Paris, Albin Michel, 2009.
21 Guy Bugault, in Ibid., pp.170-171. Aseidade traduz aseitas, expressão da filosofia

escolástica para qualificar um ser que possui, em si e por si, a razão da sua existência, o
qual, neste caso, só podia ser Deus.
22 Para o ensinamento do Buda sobre a “via do meio”, cf. Samyutta-nikāya, II, 16,

34 – 17, 30; III, 134, 30 – 135, 19.

70
V ACUIDADE E D EUS

pois a esta luz de nenhum fenómeno interdependente se pode dizer que é


ou que não é, que existe ou que não existe, mostrando a igual falácia do
eternalismo/essencialismo e do niilismo23. Como argumenta Nāgārjuna, se
é contraditório que um “ser em si” seja produzido por causas e condições24,
a ausência de um “ser em si” inviabiliza a possibilidade de um “ser dife-
rente”, o que seria o “ser em si de um outro ser”25. Sem mesmidade não há
alteridade, sem identidade não há diferença. A consequência de não haver
“ser em si” nem “ser diferente” é não poder haver “ser”26, o que, por sua
vez, impossibilita o “não-ser”, enquanto mera designação da “mudança de
estado de um ser”27 (suposto), ou seja, um “não-ser” de: não em si, mas
em relação a algo28. Daí a conclusão: “Aqueles que crêem ver ser em si
/ ser diferente, ser / não-ser, não vêem a verdadeira natureza das coisas,
ensinada pelos Budas”29. Há que recusar dizer “há” ou “não há”, “tomar as
coisas como eternas” ou “não ver senão o seu aniquilamento”: “o homem
clarividente não se apegará nem à ideia de ser nem à ideia de não-ser”30,
trilhando a via do meio entre eternalismo e niilismo31 que sabemos ser a
sua superação enquanto visões igualmente falsas.
Todavia, reconhecida a impertinência dos conceitos de “ser” e de “não
ser”, e assim de tudo o que se concebe como derivado dessa ideia de haver

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23 Sobre estas questões, cf. Thich Nhat Hanh, Old Path White Clouds, 1991; Sur les
traces de Siddharta, tradução de Philippe Kerforne, Paris, Pocket, 2002, pp.374-383.
24 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 15, 1-2,

p.187.
25 Cf. Ibid., 15, 3, p.188.

26 Cf. Ibid., 15, 4, p.189.

27 Cf. Ibid., 15, 5, p.190.

28 Cf. Guy Bugault, in Ibid., p.190.

29 Nāgārjuna, Ibid., 15, 6, p.190.

30 Cf. Ibid., 15,7 e 15, 10, pp.190 e 192.

31 Cf. Ibid., 15, 11, p.192.

71
PAULO BORGES

ou não algo (ou de vir a haver e deixar de haver algo) – produção/cessação,


eternidade/aniquilamento, unidade/diversidade, origem/fim32 –, há que re-
conhecer a impertinência das duas restantes possibilidades de se enunciar
alguma coisa, positiva ou negativamente, acerca desse suposto mas não
confirmado algo: se não se pode dizer que é, nem que não é, também não
se pode dizer que é e não é ou que nem é nem não é. Ou seja, compreender
a vacuidade descarta as quatro possibilidades de predicação lógica: A, não-
A, A e não-A, nem A nem não-A.
Embora reconhecendo que os Budas, no seu ensinamento gradual e
pedagógico, adaptado às diferentes aptidões e necessidades mentais dos
seres, adoptam circunstancial e provisoriamente uma ou outra das quatro
proposições logicamente possíveis acerca de algo – é, não é, é e não é, nem
é nem não é33 –, Nāgārjuna visa a refutação absoluta de todas estas posi-
ções, o que se designará como prasajya-pratisedha, sem oferecer qualquer
contrapartida positiva. Na verdade, como já indicava o Sāmadhirāja Sutra,
a chamada “via do meio” nada tem a ver com um meio-termo, no sentido de
um ponto equidistante dos extremos, sendo antes uma via sem posição, que
nem sequer mediana se pode dizer, pois nela os extremos desaparecem34.
Recusando a lógica bivalente do dilema entre afirmar e negar algo
acerca de alguma coisa, o sábio indiano não se restringe aos princípios da
lógica aristotélica – identidade, (não-)contradição e terceiro excluído – ,
explorando as quatro possibilidades do tetralema (catuskoti) na dialéctica

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32Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.


33“Tudo é como parece, nada é como parece. Simultaneamente como parece e
não como parece. Nem um nem outro. Tal é o ensinamento progressivo (anuśāsana) dos
Budas” - Nāgārjuna, Ibid., 18, 8, p.233.
34 Cf. Sāmadhirāja Sutra, 103, 10, onde se declara: “o homem sensato já não se

mantém sequer no meio”. Bugault diz dever-se isso a que “a seus olhos os extremos (anta)
desapareceram” – in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās],
p. 191.

72
V ACUIDADE E D EUS

ablativa que a todas elas transcende nesse “abençoado apaziguamento das


palavras e das coisas”35 que reitera o “nobre silêncio” do Buda e, do ponto
de vista ocidental, indica a superação soteriológica da ilusão e inquietação
mental inerente a todo o discurso doutrinal e onto-lógico. De notar que,
como paradigma da atitude dominante na tradição ocidental, Aristóteles
reconhece o tetralema – A, não-A, A e não-A, nem A nem não-A – e a
frustrante possibilidade de um debate com alguém que o utilize para re-
cusar chegar a “alguma coisa de definido”, o que torna “manifesto que a
discussão com este adversário não tem nenhum objecto”36. Mais adiante,
Aristóteles considera que alguém que recusasse em absoluto o princípio de
(não-)contradição, sem formar “nenhum juízo” ou pensando e não pensando
em simultâneo, não seria diferente das “plantas”, o que aliás não considera
possível37. Torna-se aqui evidente todo o contraste entre uma lógica e “me-
tafísica da quididade, ela mesma expressão sábia de uma crença comum
que é a crença nas coisas”, fundadora dessa “axiomática da comunicação”
social e intelectual que preside à vida do homem enquanto “animal políti-
co”38, e a dialéctica sapiencial que visa extirpar pela raiz o fundamento de
toda a ignorância e condicionamento mental. Enquanto Aristóteles funda
uma ontologia no comum exercício da linguagem humana, numa língua

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35 Nāgārjuna, Ibid., p.35.


36 “Por outro lado, é claro que a discussão com este adversário não tem nenhum
objecto. Pois ele nada diz. Ele não diz assim nem não-assim, mas diz assim e não-assim.
E, de novo, estas duas proposições conjuntas são negadas, e ele diz nem assim nem não-
assim. Pois, de outro modo, haveria já alguma coisa de definido” – Aristóteles, Metafísica,
Γ, 4, 1008 a 30-34. Sobre a questão, cf. Guy Bugault, L’Inde pense-t-elle ?, Paris, PUF,
1994, pp. 246-248.
37 Aristóteles, Metafísica, Γ, 4, 1008 b 10-13.

38 Cf. Guy Bugault, L’Inde pense-t-elle ?, p.248. A expressão “axiomática da comu-

nicação” é de Pierre Aubenque, em Le problème de l’être chez Aristote, Paris, PUF, 1991,
p.132.

73
PAULO BORGES

particular, o grego, que já implica pensar de um determinado modo, e na


suposta adequação entre palavras e coisas, Nāgārjuna desmonta toda a
ontologia possível no silêncio emergente do reconhecimento do equívoco
inerente a todas as palavras-coisas39.
O equívoco que o sábio indiano visa desmontar parece ser o que,
nesta perspectiva, estrutura particularmente a cultura ocidental a partir da
sua matriz grega, denunciando a pretensão de universalidade que promove
a sua mundialização como exportação de um modelo afinal linguístico e
regional. Como nota François Jullien, o “principal e mais poderoso pilar”
da razão ocidental é o logos grego, no simultâneo significado de “palavra
– discurso – definição – argumentação – juízo (susceptível de verdadeiro
ou de falso) – ordem e […] «lógica»”40. Tal “pilar” funda-se, por sua vez,
numa suposta evidência inquestionada: “que «falar» seja «dizer» e que
dizer, tornando-se transitivo, seja «dizer alguma coisa», legein ti”. Essa
a herança grega e o parti pris que subordinaria o pensamento ocidental à
convicção de que falar seja, necessária e logicamente, dizer alguma coisa,
sem o qual a palavra nada diz e se anula na ausência de objecto41. Ainda
segundo Jullien, num coro unânime que reúne Sofistas, Platão e Aristóteles,
e como fica claro no Sofista de Platão, falar é sempre, em grego, dizer ti,
designando o pronome indefinido um “tal ou tal”, uma “tal ou tal coisa”,
expressões que na língua grega são sempre o “signo” de um “existente”
ou “coisa” individual. Partindo deste pressuposto, Platão não pode aceitar
que fale quem pretender não falar de uma “tal ou tal coisa” individual,
quem pretender “enunciar o não-existente”42, vertente que, como vimos,

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39 Sobre lógica e dialéctica em Aristóteles e Nāgārjuna, cf. Guy Bugault, L’Inde


pense-t-elle ?, pp.237-319.
40 Cf. François Jullien, Si parler va sans dire. Du logos et d’autres ressources, Paris,

Seuil, 2006, p.11.


41 Cf. Ibid.

42 Cf. Platão, Sofista, 237 d-e.

74
V ACUIDADE E D EUS

Aristóteles prossegue ao recusar sentido a um exercício da palavra sem


“objecto” definido43. Conforme Jullien, por mais indefinido que seja esse
ti, esse “algo” ou “alguma coisa” que se diz, pressupõe-se sempre ser um
“algo”, alg-uma coisa, ou seja, pressupõe-se sempre ser “singular” e assim
individual, isolado, separado, como unidade integral e determinada: uma
“«en»-tidade” possuidora de uma “«id»-entidade”, que só desse modo confe-
re “consistência” à palavra que a significa. Nesta perspectiva, não dizer alg-
uma coisa é nada dizer, retirando à palavra toda a “pertinência”44. O que, por
exemplo, excluiria Nāgārjuna e toda a sua obra, bem como todos os autores
e toda a literatura sobre a vacuidade, budista e não-budista, da comunidade
dos falantes e do exercício racional e sensato, com sentido, da palavra.
Este parti pris, inconscientemente veiculado pela língua grega, pela
filosofia dominante e pelo modo ocidental de pensar que a língua determi-
na, instaura o regime de discurso logocêntrico e mundializado em que a
palavra fica subjugada a ter de responder a um “o quê?”, a ter de se referir
a um “objecto” circunscrito, id-entificado e determinado, ainda que como
indeterminado e indeterminável (veremos ser porventura o caso da “Causa”
inefável na teologia mística do Pseudo-Dionísio Areopagita). “A partir do
momento em que falar é dizer e dizer é dizer alguma coisa, legein ti, num
sentido tudo já está dito”, pois doravante o pensamento e a palavra não sairão
da inesgotável “explicitação” desse “alguma coisa” e o discurso gravitará
para sempre na órbita do seu pressuposto objecto. Assim se traça o destino
conjunto da filosofia, da ciência e de uma filosofia tornada ciência, pois nisto
sophia passa a entender-se como epistemé, como se atesta já em Platão45,
e esta anexação da sabedoria à ciência, separando-a da vida, compromete

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43Cf. Aristóteles, Metafísica, Γ, 4, 1008 a 30-34.


44Cf. François Jullien, Si parler va sans dire. Du logos et d’autres ressources,
pp.11-12.
45 Cf. Platão, Teeteto, 145 e.

75
PAULO BORGES

“o destino do […] pensamento europeu”, caso único no planeta46. “Dizer


alguma coisa” será sinónimo, em Aristóteles, de “significar alguma coisa”
(semainein ti), condição de possibilidade de todo o discurso47, que passa a
obedecer à regra elementar de que a palavra signifique alguma coisa e uma
só coisa. Esta “unidade objectiva”, fundadora da “identidade da significa-
ção das palavras”, assumirá em Aristóteles o nome de “essência”, unindo
o lógico e o onto-lógico e convertendo o seu enunciado ou “definição” na
actividade própria do logos48.
À luz desta arqueologia das concepções dominantes num senso
comum filosófica e cientificamente consagrado, pode-se todavia legitima-
mente questionar se esse/este mundo de entes, coisas e objectos, que passa
irreflectida e mundialmente por ser real, não será na verdade um mundo
formatado por um determinado modo, inconsciente e longinquamente
herdado, de exercer o pensamento que há na língua, o pensamento-língua,
o qual historicamente remonta à assimilação de Parménides por Platão na
rejeição desse mobilismo universal que o filósofo ateniense vê professado
por Protágoras, Heraclito, Empédocles, Epicarmo, Orfeu, Hesíodo e Ho-
mero, os quais já ensinavam (na linha de outros, mais “Antigos” ainda) que
“todas as coisas” descendiam “do escoamento e do movimento”, figurados
em Oceano e Téthys, formas poéticas de dizer que tudo são “correntes”
e “nada está em repouso”49. Com efeito, para estes, na leitura platónica

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46 François Jullien, Si parler va sans dire. Du logos et d’autres ressources, p.15.


O autor cita Wittgenstein a este propósito: “Sentimos que, mesmo que todas as questões
científicas possíveis houvessem recebido uma resposta, os nossos problemas de vida não
teriam sido ainda abordados” - Wittgenstein, Tractatus, 6.52.
47 Cf. Aristóteles, Metafísica, 1006 a, 20-25.

48 Cf. François Jullien, Si parler va sans dire. Du logos et d’autres ressources,

pp.16-17.
49 Cf. Platão, Teeteto, 152 d, 179 e, 180 c – d; Crátilo, 402 a – c, onde se acrescen-

ta Hesíodo e Orfeu a Homero, como aqueles que mitopoeticamente “tendem ao pensa-

76
V ACUIDADE E D EUS

que os assemelha notavelmente ao Buda e a um antigo “Instrutor” por si


referido50, “nada há que seja individualmente ele mesmo e em si mesmo”,
nada há que de modo algum se possa designar e qualificar, não havendo
“existência individual, existência, nem de um ser, nem de uma qualquer
qualificação desse ser”, sendo antes “da translação, do movimento, da
mistura recíproca que resulta tudo isto do qual dizemos que «é»”, o que na
verdade “é uma designação incorrecta, pois nada jamais «é», mas sempre
devém”51. Para Platão, segundo os mobilistas “nada existe em si e por si”,
produzindo-se tudo num dinâmico “entrecruzar de relações”, não havendo
agentes e pacientes senão em correlação, interacção e permuta contínuas
e não sendo possível determinar qualidades como sendo estas ou aquelas
e pertencentes a “alguém”. Embora usada por cedência ao “hábito e à
imperícia”, a “palavra «ser» é para eliminar”, bem como todos os termos
que estabilizem, devendo antes optar-se por uma linguagem conforme à
“Natureza”, que indique processos e não entidades: “«o que está em via de
se produzir», «de se fazer», «de desaparecer», «de se alterar»”. Isto deve
referir-se tanto à “parte” como às “reuniões de numerosas partes”, “às quais

mento de Heraclito”. Sobre estas questões, Paulo Borges, “Imaginário mítico-metafísico


do Oceano e do extremo-ocidente atlântico”, in Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2001, pp.15-56.
50 Chamando a atenção para a sua evidente afinidade com a imagem de Heraclito,

Walpola Rahula cita estas palavras do Buda, por ele atribuídas a um “Instrutor” chamado
Araka, existente num “passado obscuro”: “ Ó Brahmana, é exactamente como um rio
de montanha que vai para longe e corre rápido, arrastando tudo com ele; não há um mo-
mento, um instante, um segundo em que ele pare de correr, antes vai sem cessar fluindo
e continuando. Assim, Brahmana, é a vida humana, semelhante a este rio de montanha”
– Anguttara-nikaya, edição de Devamitta Thera, Colombo, 1929, cit. in Walpola Rahula,
L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix
de textes, prefácio de P. Demiéville, Paris, Éditions du Seuil, 1978, p.46. Também, noutras
palavras do Buda, “o mundo é um fluxo contínuo”, “impermanente” – Ibid.
51 Cf. Platão, Teeteto, 152 d.

77
PAULO BORGES

se aplicam os nomes de «homem», de «pedra»”, bem como “de cada animal


ou de cada espécie de qualidade”52. Quanto àqueles que têm esta visão e
procuram conformar-se a ela, mantendo-se “em movimento”, sem permi-
tir que nada seja “estável, nem na sua linguagem, nem nas suas próprias
almas”, Platão, denunciando a mesma exasperação que Aristóteles, diz ser
impossível levar a cabo com eles um debate ordenado e conclusivo sobre um
dado “assunto” e “questão”53. Se a leitura platónica do arcaico mobilismo
helénico o aproxima intimamente da visão da vacuidade universal presente
em Nāgārjuna e seus continuadores, já o juízo sobre a instabilidade psíquica
dos seus mentores diverge todavia da serenidade que no sábio de Nālandā
é preci(o)samente inerente à compreensão dessa vacuidade e à cessação da
reificação discursiva, esse “abençoado apaziguamento das palavras e das
coisas”54 que terapêutica e libertadoramente acompanha a trans-científica
visão da realidade tal qual se processa, sem projecções interpretativas e
suas consequências emocionais.
A esquecida ou não reconhecida construção de um mundo de objectos
e significações supostamente estáveis e manipuláveis, pelo utilitarismo
antropocêntrico da razão social, política e científica, jamais deixará de ser
questionada por correntes subterrâneas do pensamento ocidental, sendo
abertamente denunciada por Nietzsche como produtora de um “mundo de
ilusão”, inerente às meras “perspectivas” interdependentes a que se reduz
toda a suposta objectividade das categorias conceptuais que fizeram fortuna
na tradição filosófica ocidental: número, tempo, espaço, alma, substância,
indivíduos, morte, vida, sujeito, objecto, activo, passivo, causa, efeito, meio,
fim. O pensador alemão afasta-se todavia do sábio indiano ao considerar

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

52 Cf. Ibid., 157 a – c.


53 Cf. Ibid., 179 e – 180 b.
54 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

78
V ACUIDADE E D EUS

que, se vivemos “graças ao erro”55, “naufragar-se-ia se se quisesse sair do


mundo das perspectivas”, pois “abolir as grandes ilusões já completamente
assimiladas destruiria a humanidade”56. Segundo ele, a “vontade de saber”
filosófica e científica volta-se contra essa mesma ilusão vital que é a con-
dição de possibilidade de todo o conhecimento, cujo “grau ínfimo” exigiu
o nascimento de “um mundo irreal e erróneo: seres que acreditassem no
durável, em indivíduos, etc.”, sem todavia poder triunfar completamente
sobre tal ilusão. É apenas sobre o ilusório “fundamento” de um “mundo
imaginário”, contrário ao “eterno escoamento”, que se pode construir qual-
quer “conhecimento” que seja, o qual pode discernir “o erro fundamental
sobre o qual tudo repousa”, mas não o pode dissipar senão arrastando nisso
a “vida”, pois “a verdade última que é a do fluxo eterno de todas as coisas
não suporta ser-nos incorporada; os nossos órgãos (que servem a vida)
estão feitos com vista ao erro”57.
Não é obviamente o que acontece em Nāgārjuna, cuja obra não tem
outro sentido senão o Despertar de toda a ilusão, isso mesmo que designa
a palavra Buda, que não é um nome pessoal, indicando antes um estado de
consciência plenamente livre de todos os véus e condicionamentos. Todavia,
se é a compreensão da vacuidade universal que promove esse Despertar,
ela não anula, e pelo contrário permite, quer o correcto entendimento do
dinamismo fenomenal do mundo, quer o bom entendimento e prática da
via budista, tradicionalmente formulada nas quatro nobres verdades (o
sofrimento, sua origem, sua cessação e a via que aí conduz), contra a acu-
sação dos Ābhidharmika de que o ensinamento da vacuidade arruinaria as

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Friedrich Nietzsche, La volonté de puissance, texto estabelecido por Friedrich


55

Würzbach e traduzido do alemão por Geneviève Bianquis, tomo II, Livro III, 584, pp.216-
217.
56 Cf. Ibid., 594, p.220.

57 Cf. Ibid., 582, p.216.

79
PAULO BORGES

bases da doutrina e a própria existência da Tripla Jóia: Buda, Dharma e


Sangha (comunidade)58. Para que isso aconteça, é contudo necessário que
a vacuidade não seja mal compreendida, o que leva à perdição “o homem
de inteligência curta, como uma serpente mal agarrada ou uma fórmula
mágica mal aplicada”59. Segundo o comentário de Candrakīrti, há dois
modos dessa fatal incompreensão da vacuidade: confundi-la com o “nada”,
identificando śūnyatā e abhāva, o que seria o extremo niilista, e hipostasiá-
la como uma quintessência do real, enquanto bhāvatva ou tathatā, o que
seria o extremo essencialista/eternalista ou ontologista60. Em ambos os
casos, estaríamos perante uma śūnyatā-drsti, a heresia de “toda a fixação,
positiva ou negativa, sobre a vacuidade”61. Segundo Nāgārjuna, seria esta
dificuldade das “pessoas de vista curta” em “penetrar” o sentido profundo
da vacuidade que teria motivado a reserva do Buda, após o Despertar, em
“ensinar a Lei”62.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

58 Para estas acusações e sua refutação, cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par
Excellence [Madhyamaka-kārikās], 24, 1-6, 14-17 e 20-40, pp. 303-305, 310-311 e 312-
316.
59 Cf. Ibid., 24, 11, p.309.

60 Cf. a exposição de Guy Bugault de Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti

(Commentaire limpide au Traité du Milieu), 495, 10, doze capítulos traduzidos do sânscrito
e do tibetano por J. May, Paris, A. Maisonneuve, 1959, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par
Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.309. Cf. também Chandrakirti, L’entrée au milieu,
segundo a versão tibetana de Patsab Nyima Dragpa e Tilakakalasha, o Auto-comentário de
Chandrakirti e a exegese de Tsongkhapa intitulada Iluminação do Pensamento, tradução
francesa estabelecida sob a direcção de Yonten Gyatso por Georges Driessens assistido por
Michel Zaregradsky para a versão definitiva, Anduze, Éditions Dharma, 1985.
61 Cf. Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-

kārikās], p.309.
62 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 24, 12,

p.310.

80
V ACUIDADE E D EUS

Com efeito, numa estância lapidar, Nāgārjuna faz-se eco da procla-


mação dos Budas, livres do perspectivismo conceptual:

Os Vitoriosos proclamaram que a vacuidade é o facto de escapar a todos os


pontos de vista. Quanto àqueles que fazem da vacuidade um ponto de vista,
eles declararam-nos incuráveis.63

Candrakīrti estabelece duas comparações com aqueles que hipostasiam


a vacuidade: assemelham-se a um homem que, após o mercador lhe haver
dito: “Não tenho absolutamente nada para vos vender”, lhe respondesse:
“Pois bem, dê-me esse «absolutamente nada»”64; assemelham-se também
a um doente que tomou um medicamento para eliminar os seus humores
malignos, mas que, obstinado em não evacuar o próprio medicamento, o
converte num veneno que o torna ainda mais doente65. É assim necessário
evacuar a vacuidade, reconhecer a “vacuidade da vacuidade”, como diz o
mesmo Candrakīrti: “Esta vacuidade do assim chamado vazio / É conhecida
como vacuidade da vacuidade. / Foi exposta para neutralizar o pensamento /
De que a vacuidade é algo real”66. O comentador tibetano, Jamgön Mipham
Rinpoche, reitera que a “vacuidade da vacuidade” foi ensinada “para supe-
rar o apego à noção de que a vacuidade existe verdadeiramente”, citando
versos tradicionais que dizem que a “ambrósia da vacuidade” foi exposta

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

63 Cf. Ibid., 13, 8, p.173.


64 Cf. Guy Bugault sobre Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire

limpide au Traité du Milieu), 247, 5-6, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence
[Madhyamaka-kārikās], p.173.
65 Cf. Guy Bugault sobre Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire

limpide au Traité du Milieu), 248, 10 – 249, 2, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excel-
lence [Madhyamaka-kārikās], p.173.
66 Cf. Id., Introduction to the Middle Way. Chandrakirti’s Madhyamakavatara with

commentary by Jamgön Mipham, 186, traduzido pelo Grupo de Tradução Padmakara,


Boston & Londres, Shambhala, 2002, p.94.

81
PAULO BORGES

“para vencer a nossa mente discursiva”, razão pela qual se reprovam os


“que se apegam à vacuidade”67, fazendo dela uma nova perspectiva e um
novo conceito, uma nova tese e doutrina sobre a natureza das coisas. Com
efeito, o próprio reconhecimento da vacuidade de tudo, enquanto tomada
de consciência de que nada existe em si e por si, implica reconhecer que
nada existe como “vazio”, que o “vazio” não é, o que só seria possível se
houvesse o “não-vazio”: “Se houvesse o quer que seja que fosse não-vazio,
poderia também haver alguma coisa de vazio. Mas não há nada que seja
não-vazio. Como poderia então haver vazio?”68. Na verdade, aqui também se
deve aplicar e rejeitar qualquer das possibilidades do tetralema: nada há que
seja “vazio, não vazio, os dois simultaneamente, nem um nem outro”69.
O objectivo desta dialéctica ablativa transcende todavia a mera
demonstração da autocontradição, ausência de fundamento e sentido de
todas as teses, perspectivas e visões acerca do mundo. O que se visa é uma
experiência vivida do tal qual que apenas acontece quando se apaziguam
“palavras” e “coisas”70, pois “quando o pensamento intencional cessa de
se mover em busca de um alimento, cessa também a coisa sobre a qual se
procura colocar um nome”. Aí se desvela a “verdadeira natureza das coi-
sas” que “é sem produção, sem destruição, como o nirvāna”71. Note-se que
esta “verdadeira natureza das coisas”, assimilada ao “nirvāna” – o qual na
tradição budista designa simultaneamente a cessação do sofrimento e das
suas causas e um estado incondicionado72 – , não consiste necessariamente

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

67 Cf. Jamgön Mipham, in Ibid., p.316.


68 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 13, 7,
p.172.
Ibid., 22, 11, p.279.
69

Cf. Ibid., p.35.


70

71 Cf. Ibid., 18, 7, p.233.

72 Cf. Philippe Cornu, “nirvāna”, Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme,

pp.392-393.

82
V ACUIDADE E D EUS

numa realidade transcendente da “produção” e “destruição” inerentes ao


devir fenomenal, o que seria uma leitura dualista e platonizante do bu-
dismo, podendo ser antes desvelada pela compreensão de que, cessando
a fome de objectivação que move o “pensamento intencional”, cessando
as palavras-conceitos que constituem os objectos de que se alimenta sem
jamais se saciar, cessam também as “coisas”, cuja “verdadeira natureza” é,
como vimos, não serem produzidas nem destruídas, não virem a ser nem
deixarem de ser. A “verdadeira natureza das coisas” é não serem “coisas”, a
não reificação, ou seja, a vacuidade, a qual não é, por sua vez, uma “coisa”,
designando antes a irrelação de todo o dinamismo fenomenal a qualquer
categoria onto-lógica, positiva ou negativa.
O que visa a dialéctica de Nāgārjuna é cumprir-se transcendendo-se
numa outra ordem de experiência que já não é a do “pensamento intencio-
nal”, que por natureza se move na esfera convencional e irreal da correlação
sujeito-objecto, mas antes a da “meditação vivida do saber” (jñānasyāsyaiva
bhāvanāt) da coprodução condicionada, ou seja, da ausência de um ser
real, produzido e destruído, em toda a produção e destruição aparente. É
essa “meditação vivida do saber ”, cuja designação sugere o converter-se
naquilo que se sabe, a experiência existencial da assimilação do/ao saber,
que suscita a extinção da “ignorância”73 e o colapso de todos os doze elos
da “coprodução condicionada” que, pela não-visão (avidyā) das coisas tal
como são, estrutura a ficção de um sujeito-agente verdadeiramente existente
que vive e reproduz como real o círculo vicioso do nascimento, da vida
e da morte74. A visão da natureza profunda da coprodução condicionada
como interdependência universal e vacuidade extingue a ficção de haver
algo ou alguém que por ela seja condicionado, dissipando a experiência

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

73 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 26, 11,


p.346.
74 Cf. Ibid., 26, 1-12, pp.341-346.

83
PAULO BORGES

da transmigração samsárica do mesmo modo que ao despertar um sonho


se desvanece. Como diz Nāgārjuna, na “vacuidade” cessa o “pensamento
discursivo” que suscita as “imaginações”, que por sua vez originam “os
actos e as paixões”. Abolidos estes, “é a libertação”75. De notar que, nas
estâncias 5 e 7 do capítulo 18, como nota Guy Bugault a respeito da última,
há um nítido “acento […] yóguico”, nem sempre manifesto nos “textos
mādhyamika”: a cessação do “pensamento discursivo” ou “intencional”
supõe a absorção meditativa (samādhi) na vacuidade, esse “abençoado
apaziguamento das palavras e das coisas”76 que é o reverso soteriológico
da análise lógica e da dialéctica desconstrutiva.
Um fruto particular da ignorância própria do pensamento discursivo
e das imaginações, actos e paixões que gera é a ideia-sentimento do “eu” e
do “meu”, objectos de “apego” que se extinguem, abolindo a experiência
do “(re)nascimento”, pelo mesmo exame lógico e pela mesma vivência
meditativa da sua composição e interdependência77. Isto não significa, to-
davia, que, conforme em geral se pensa, a última palavra do ensinamento
dos Budas seja o não-eu. Como diz o autor: “Os Budas tiveram em conta
o eu, ensinaram também o não-eu. E ensinaram também que não há eu
nem não-eu”78. Como nota Guy Bugault, estamos perante o que o próprio
Nāgārjuna designa como “o ensinamento progressivo (anuśāsana) dos Bu-
das”79, onde é de notar que, se num sentido encontramos aqui as primeira,
segunda e quarta proposições do tetralema lógico, que por sua vez devem
ser superadas no “nobre silêncio” do Buda, já num outro, e sendo mais rigo-

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

75Cf. Ibid., 18, 5, p.231.


76Ibid., p.35.
77 Cf. Ibid., 18, 1-2 e 4, pp.229-231.

78 Cf. Ibid., 18, 6. Sobre esta questão, cf. Walpola Rahula, L’enseignement du

Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.90-93.
79 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 18, 8,

p.233. Cf. Guy Bugault, Ibid., p.232.

84
V ACUIDADE E D EUS

rosos, devemos notar que o “eu” jamais é afirmado e ensinado, mas apenas
considerado e referido. É aliás isso que, conduzindo a um aprofundamento
do que é o Buda, faz com que Nāgārjuna declare: “[Todavia,] um homem
liberto do sentimento do meu e do eu também não existe. Aquele que crê
ver alguém liberto do sentimento do meu e do eu, na realidade não vê”80.
Com efeito, não pode haver um eu ou uma entidade (nem um não-eu ou
uma não-entidade) no estado de reconhecimento da impertinência de toda
a produção e destruição de um eu ou de uma entidade. É isso que leva o
sábio de Nālandā a algumas das declarações mais contundentes para o senso
comum budista, na linha contudo do ensinamento profundo do Buda:

«Um dia extinguir-me-ei livre de toda a apropriação, o nirvāna acontecer-


me-á». Considerar assim as coisas é o cúmulo da apropriação.81

A “apropriação”, ou “apego” (upādāna), designa a auto-identificação


com os cinco agregados (skhandas) impermanentes que compõem o com-
plexo psicossomático individual (forma física, sensações e sentimentos,
percepções, formações volitivas e fluxo de consciência dualista) ou com o
suposto proprietário imutável desses agregados, deles distinto82, que jamais
se encontra na experiência. O “cúmulo da apropriação” consiste aqui, por
um lado, em imaginar e esperar que essa identidade fictícia, que não existe
senão como uma construção mental resultante da própria “apropriação”,
possa um dia existir livre dessa “apropriação”, e, por outro, em imaginar e
esperar que se possa vir a extinguir aquilo que na verdade jamais existiu.
Candrakīrti nota que nesta aspiração à libertação persiste o erro do apego

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

80 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 18, 3,


p.230.
81 Ibid., 16, 9, p.202.
82 Cf. Ibid., 18, 1, p.229.

85
PAULO BORGES

à crença numa personalidade substancial (satkāyadrsti-upādāna), o que


implica repartir a experiência entre o “eu” e “o que é meu” (ahamkāra/
mamakāra)83. Guy Bugault compara este sonho de um monge com o sonho
de uma jovem como Branca de Neve – “Um dia o meu príncipe virá, um dia
ele levar-me-á” – e com os sonhos de eternidade e imortalidade pessoal da
humanidade, particularmente consagrados no pensamento ocidental84.
A compreensão disto mostra o nirvāna não como a “extinção” de
algo ou alguém realmente existente – que, de acordo com a lógica absurda
do sonho anterior, pudesse simultaneamente coincidir com a sua suprema
realização –, mas antes como a “extinção” da ideia de haver algo ou alguém
realmente existente que possa extinguir-se na obtenção do nirvāna. Como
esclarece apofaticamente Nāgārjuna: “Sem eliminação nem aquisição, sem
nada que seja destruído, nada que perdure, sem nada que cesse ou venha
a produzir-se, tal é isto a que se chama nirvāna”85. Na verdade o nirvāna
é o próprio samsāra visto de outro modo, é o próprio devir universal, “o
vai-e-vem do mundo”, onde tudo é interdependente e condicionado, consi-
derado “fora de condições, fora de dependência”86. Diríamos ser a própria
evidência da interdependência e condicionamento de tudo que, dissipando
a ficção de haver seres independentes, dissipa a não menor e gémea ficção
de haver seres condicionados. Perdem assim sentido todas as questões e

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

83 Cf. Guy Bugault sobre Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire

limpide au Traité du Milieu), 295, 7-8, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence
[Madhyamaka-kārikās], p.203.
84 Cf. Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-

kārikās], p.203.
85 Ibid., 25, 3, p.326. Cf. Soûtra du Diamant, XXVII, in Soûtra du Diamant et autres

soûtras de la Voie médiane, traduzido do tibetano por Philippe Cornu, Paris, Fayard, 2001,
p.66.
86 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 25, 9,

p.327.

86
V ACUIDADE E D EUS

especulações sobre a origem e o fim, sobre o que haverá “após a cessação


final”, sobre a “eternidade”, na medida em que “as opiniões sobre estas
questões pressupõem a ideia de um nirvāna [diferente do samsāra], de um
limite a postea, de um limite ab ante”87. Com isto se passa “da ideia de
extinção à extinção da ideia, do desejo de extinção à extinção do desejo”88
(note-se a assimilação de “ideia” e “desejo” nesse “pensamento intencional”
e “discursivo” que cessa na experiência da “vacuidade”89), mostrando o
nirvāna como a possibilidade de, em vida, se extinguir a ideia-desejo do
nirvāna pela extinção de todas as ilusões que lhe subjazem, a começar e
a terminar pela ilusão de haver ou não, de vir a ser e a deixar de ser, algo
ou alguém com existência intrínseca e real. Candrakīrti cita o Tathāgata-
vag-guhya-parivarta: “O nirvāna não é o nirvāna, ensinou o protector do
mundo. É um nó formado sobre o espaço vazio e desatado pelo mesmo
espaço”90. O nirvāna é a extinção dos conceitos de nirvāna e samsāra, bem
como do correlato complexo de apego-aversão a um e outro.
Se o nirvāna como extinção de um ser real é uma ficção correlata da
ficção de haver um ser real, a existência real de um ser nirvanado é dupla-
mente fictícia, pois implica a ficção de um ser e de um ser simultaneamente
extinto. Conforme já havíamos citado: “[Todavia,] um homem liberto do
sentimento do meu e do eu também não existe. Aquele que crê ver alguém
liberto do sentimento do meu e do eu, na realidade não vê”91. Isto conduz

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

87 Cf. Ibid., 25, 21, p.333.


88 Cf. Guy Bugault, in Ibid., p.335.
89 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 18, 5

e 7, pp.231 e 233.
90 Citado em Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire limpide au

Traité du Milieu), 540, 8-9, cf. Guy Bugault in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence
[Madhyamaka-kārikās], p.335.
91 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 18, 3,

p.230.

87
PAULO BORGES

a uma das estâncias mais iconoclastas do autor, na conclusão do capítulo


dedicado ao “Exame crítico do Tathāgata”:

O que é a natureza própria do Tathāgata é também a natureza própria deste


universo. O Tathāgata é sem natureza própria, sem natureza própria é este
universo.92

A vacuidade universal não exclui assim o próprio Buda, que, como


decorre do exame efectuado ao longo de todo o capítulo, “é por natureza
vazio” (śvabhāvatas ca śūnye)93, tendo por natureza não a ter94. O comen-
tário de Candrakīrti termina com uma longa citação do Astasāhasrikā, 39,
12, onde se diz que “absolutamente tudo, desde os budistas principiantes
até ao samyak-sambuddha [um Buda plenamente desperto] e ao nirvāna, é
semelhante a uma magia (māyopama), a um sonho (svapnopama)”95. Isto,
todavia, não quer dizer que o Buda, bem como tudo, não seja nada, mas
antes que, em termos da verdade última, não convencional nem conceptual,
o que se designa como Buda não é uma entidade à qual se possam aplicar
as quatro possibilidades de predicação lógica – nomeadamente ser “vazio
[ou “eterno”], não vazio, os dois simultaneamente, nem um nem outro”96
–, mas antes uma radical transcendência, sem transcend-ente, de todo o
discurso e de toda a inerente agitação mental:

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

92 Ibid., 22, 16, p.281.


93 Ibid., 22, 14, p.280. Cf. também 22, 10, p.278.
94 Cf. Guy Bugault, in Ibid., p.280.

95 Cf. Id., Ibid., referindo Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti

(Commentaire limpide au Traité du Milieu), 449, 13 – 450, 10).


96 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 22, 11

e 12, p.279.

88
V ACUIDADE E D EUS

Aqueles que mantêm discursos sobre o Buda, o qual transcende todo o dis-
curso, toda a modificação, todos, extraviados pelos seus próprios discursos,
não vêem o Tathāgata.97

Guy Bugault considera “notável que na mesma estância Nāgārjuna


empregue intencionalmente dois vocábulos vizinhos mas distintos: buddha,
«desperto»; tathāgata, «assim chegado»”. Interroga-se se isso significará
que “aqueles que discorrem sobre o Desperto não vêem o «assim» (tathā),
a «qualidade de ser assim» [«ainsité»] (tathatā, o facto de ser assim, such-
ness) do Tathāgata”98. Com efeito, se tathāgata, o modo impessoal como
o Buda se designa a si mesmo, na terceira pessoa, tanto se pode traduzir
por “assim ido” ou “assim chegado”, o sentido é o de haver transcendido
a ignorância por haver chegado a ver as coisas como são, tal qual, sem
qualquer “determinação existencial” ou predicativa: positiva, negativa,
positiva e negativa, nem uma nem outra99. Neste sentido, dizer do Buda
isto ou aquilo, afirmar ou negar dele isto ou aquilo, é não o ver, não ver
a vacuidade comum a si e a tudo, no sentido da irrelação do tal qual, da
talidade, a todos os “pontos de vista” conceptuais, incluindo os budistas
e o da “vacuidade”100, dos quais permanece refém a ignorância. É neste
sentido que “o Buda não é alguém e que ninguém é o Buda”101.
É também isto que dá sentido e eficácia libertadora à declaração mais
iconoclasta da tradição budista, que sem esta compreensão surge como mera

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

97 Ibid., 22, 15, p.280.


98 Guy Bugault, in Ibid., p.281.
99 Cf. Ibid., p.275.

100 “Os Vitoriosos proclamaram que a vacuidade é o facto de escapar a todos os pon-

tos de vista. Quanto àqueles que fazem da vacuidade um ponto de vista, eles declararam-
nos incuráveis” – Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās],
13, 8, p.173.
101 Guy Bugault, in Ibid., p.282.

89
PAULO BORGES

blasfémia: “Se vires o Buda, mata-o!”102. Ou, como se diz noutra fórmula
de Lin-tsi, mais completa e aparentemente mais ultrajante:

Tudo o que encontrarem, fora e (mesmo) dentro de vós mesmos, matem-no.


Se encontrarem o Buda, matem o Buda! Se encontrarem um patriarca, matem
o patriarca! Se encontrarem um Arhat, matem o Arhat! Se encontrarem os
vossos pai e mãe, matem os vossos pai e mãe! Se encontrarem os vossos
próximos, matem os vossos próximos! É este o meio de se libertarem e de
escaparem à escravatura das coisas; é aí a evasão, é aí a independência!103

Esta exortação, surgida no budismo Ch’an chinês, por via do fundador


da sua escola mais radical, Rinzai (pronúncia japonesa do nome Lin-tsi),
compreende-se como um iconoclasmo libertador a respeito das figuras
mais veneradas, quer da tradição budista, quer da tradição confucionis-
ta, onde a piedade filial é a base da ética social, questão particularmente
sensível na cultura chinesa. Após o percurso pela obra de Nāgārjuna, cujo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

102Cf. Id., Ibid.


103Lin-tsi, Instructions Collectives, 20, b, in Entretiens de Lin-tsi, traduzido do chi-
nês e comentado por Paul Demiéville, Paris, Fayard, 2010, p.117. Cf. também: “Mata
aquele que encontres no teu caminho. Se encontrares o Buda, mata o Buda; se encontrares
os Patriarcas, mata os Patriarcas; se encontrares os Arahat, mata-os também” - Taishö, 45,
500 b, citado in K. Chien, Buddhism in China: A Historical Survey, Princeton University
Press, 1964, p.358, citado in Raimon Panikkar, El silencio del Buddha. Una introducción
al ateísmo religioso, Madrid, Ediciones Siruela, 1996, p.262. Cf. ainda Bernard Faure,
“Introduction”, Le Traité de Bodhidharma, traduzido e comentado por Bernard Faure,
Éditions Le Mail, 1986, p.61. Veja-se também o reputado mestre budista contemporâneo
Thich Nhat Hanh, que estabelece uma fecunda correspondência entre este “matar o Buda”
e o tema da “morte de Deus”, que retomaremos adiante: “Nirvana não pode ser descrito
com conceitos e palavras como ser ou não-ser. Quando se fala de Deus, da morte de Deus,
isso quer dizer que é necessário que a noção de Deus seja morta para que Deus toque a
vida. A mesma coisa é verdadeira com o nirvana. Os teólogos eruditos que não se servem

90
V ACUIDADE E D EUS

contexto Mādhyamika é o mesmo de Lin-tsi, estamos habilitados para nos


preservarmos do risco de um entendimento literal desta exortação e para
compreendermos que nela decerto se não visa atentar contra quem quer
que seja – Budas, patriarcas, Arhats, pais e mães, próximos –, mas apenas
libertar da ilusão de toda a objectivação externa ou interna, de tudo o que
se en-contra, ou seja, da dualidade e sujeição de toda a relação sujeito
– ob-jecto (“objectum”, de “ob” e “jacio”, é o que se lança diante e contra
o sujeito, “subjectum”, que se lhe sub-mete104), bem como da inerente
reificação (a “escravatura das coisas”), que cristaliza conceptualmente en-
tidades fictícias e assim encobre a fluidez e vacuidade, a impermanência e
interdependência, de todos os fenómenos, incluindo o fluxo mental das suas
percepções. Matar significa aqui anular a concepção de entidades externas
ou internas, existentes em si e por si, imutáveis e permanentes. Se se dão
exemplos das figuras mais veneradas pelos budistas e pelo senso comum é
por ser precisamente o que mais se venera que gera os mais fortes apegos,
fixações e cristalizações mentais, os quais, passando por naturais, se tor-
nam mais difíceis de reconhecer e desconstruir, gerando e reproduzindo a
dependência espiritual que se visa precisamente superar no estado de Buda,
designação da natureza última, desperta e incondicionada, da mente.
No caso específico da necessidade de se matar um Buda que se veja
ou encontre, isso deve-se a que um Buda que seja objecto para um sujeito
nunca é o verdadeiro Buda, o estado incondicionado e livre de características

senão de noções, de conceitos e de palavras, e não da experiência directa, não são muito
úteis. É necessário matar a noção de Buda para que o verdadeiro Buda possa revelar-se. O
nirvana é para tocar, para viver e não para descrever. As noções, os conceitos deformam a
realidade do que é último… O Buda é uma coisa, a noção de Buda é uma outra. Um mestre
Zen disse isto: “Se encontrarem o Buda no vosso caminho, devem matá-lo…”” – “Respire,
tu es vivant”, Dharma, nº26 (Arvillard, Mai-Septembre 1996), p.19
104 Cf. Paulo Borges, Da Saudade como Via de Libertação, Lisboa, Quidnovi, 2008,

p.31.

91
PAULO BORGES

que transcende a dualidade sujeito-objecto e não pode assim jamais ver-se


ou encontrar-se aqui ou ali, como este ou aquele, isto ou aquilo. Um Buda
que se veja ou encontre, exterior ou interiormente, é uma determinação
mental, uma entificação conceptual, uma mera ilusão. Como vimos, “o Buda
não é alguém e […] ninguém é o Buda”105. Segundo a tradição, a primeira
pergunta feita ao Buda após a sua Iluminação foi precisamente “Quem és
tu?” e as suas primeiras palavras, antes do primeiro discurso sobre as quatro
nobres verdades, foram sucessivos “Não” em resposta às particularizações
da questão de Upaka, negando sucessivamente identificar-se com qualquer
categoria de existentes da tradição indiana: yaksha (espírito da natureza),
gandharva (mensageiro celeste), deva (deus) e homem106. Segundo o
Sutra do Diamante, os Bodhisattvas transcendem todos os conceitos de
“eu”, “ser animado”, “vida” e “indivíduo”107 e, sendo o “insuperável Des-
pertar” “desprovido de si-mesmo, de qualidade de ser sensível, de vida,
de individualidade”108, é natural que o Buda, livre de qualquer “estado
particular”, não se veja como um Buda109. Daí a sua declaração: “Aqueles
que me vêem na minha forma / Ou crêem escutar-me no som da minha voz
/ envolvem-se no erro: / esses não me vêem”110. A mesma visão reencon-
tra-se em Lin-tsi: “Este objecto que é o Buda não diria dele mesmo: «Eu
sou o objecto Buda»”111. Sendo “o verdadeiro Buda […] sem figura”112 e

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

105Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-


kārikās], p.282.
106 Cf. Sangharakshita, Quem é o Buda?, Lisboa, Editorial Presença, 1997, pp.142-

144.
107 Cf. Soûtra du Diamant, VI, in Soûtra du Diamant et autres soûtras de la Voie

médiane, p.27.
108 Cf. Ibid., XXXIII, in Ibid., p.61.

109 Cf. Ibid., IX, in Ibid., pp.32-33.

110 Ibid., XXVI, in Ibid., p.65.

111 Lin-tsi, Instructions Collectives, 15, a, in Entretiens de Lin-tsi, p.87.

112 Cf. Ibid., 18, c, in Ibid., p.109.

92
V ACUIDADE E D EUS

não havendo Buda “que possa ser encontrado”, pois em última instância
“não há nem Buda nem ser vivo”113, apegar-se ao Buda114 e “procurar o
Buda é perder o Buda”115 e fabricar “actos” e “inferno”116, permanecendo,
por dúvida e falta de confiança, ignorante da Budeidade desde sempre e a
cada instante presente mas velada pelo “espírito de pesquisa” discursiva e
pela “perseguição dos objectos agradáveis” dos quais se liberta o “homem
sem assuntos/questões/negócios [affaires]”117 (wu-che, próximo do wu-
wei, não-agir, taoista). Neste sentido, a própria busca espiritual revela-se
como ilusão que ainda há que dissipar para plenamente se cumprir nesse
“abençoado apaziguamento das palavras e das coisas”118 que, pela cessação
da fome/sede id-entificativa da mente intencional e dualista, é o reverso
desconstrutivo do Despertar silencioso e inefável nessa sempre presente
ausência de entidades externas ou internas: “Nada há fora da mente; nada
também a encontrar na mente. Que procurais vós pois?”119.
O reconhecimento da vacuidade de tudo, incluindo o Buda120, enquanto
ausência de “natureza intrínseca” que inclui a própria vacuidade121, liberta
de “todos os pontos de vista”, sem excluir o da “vacuidade”122, e é essa

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

113 Cf. Ibid., 13, b, in Ibid., p.74.


114 Cf. Ibid., 18, c, in Ibid., p.109.
115 Cf. Ibid., 39, in Ibid., p.163.

116 Cf. Ibid., 16, a, in Ibid., p.93.

117 Cf. Ibid., 11, a, in Ibid., pp.55-56.

118 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

119 Lin-tsi, Instructions Collectives, 15, c, in Entretiens de Lin-tsi, p.91.

120 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 22, 16,

p.281.
“[…] um ser sem natureza intrínseca não é um ser. É nisso que há vacuidade”
121

– Ibid., 13, 3, p.171. Guy Bugault comenta subtilmente: “há vacuidade dos seres, mas a
vacuidade não existe. Constata-se a vacuidade dos seres, mas há que não fazer da vacui-
dade um ser” – Ibid.
122 Nāgārjuna, Ibid., 13, 8, p.173.

93
PAULO BORGES

mesma libertação que, na óptica, sempre externa e dualista, do pensamento


discursivo, se designa como a própria natureza de Buda, a verdadeira natu-
reza de todas as coisas. Natureza que, transcendendo todas as perspectivas
conceptuais, só pode ser apofaticamente indicada:

Intransmissível por e a outrem, pacífico, fora de discurso, fora de conceito,


sem diversidade: outros tantos modos de indicar o que verdadeiramente
é.123

Bugault expõe o comentário de Candrakīrti a esta intransmissibilidade


do real, que só pode ser acedido no íntimo de si mesmo, dizendo que “se
trata de ver cessando de ver o que não é”. Segundo o comentador indiano, o
acesso à natureza última das coisas é semelhante ao estado de homens que,
afectados por perturbações visuais, vejam cabelos, moscas e mosquitos que
na verdade não existem. Outros homens, com a vista sã, podem conven-
cê-los de que tudo isso é falso, mas eles continuam a ver objectos irreais.
Apenas quando os olhos saram é que descobrem “a verdadeira natureza
dos cabelos não os vendo”. Do mesmo modo, “trata-se de ver a verdadeira
natureza dos seres não os vendo. Vê-se não se vendo (adarśana-yogena
darśanam)124. Como diz ainda Candrakīrti: “é não se vendo que se acede
ao olhar dos santos”125.
Tudo isto é, conforme veremos, decisivo para a comparação com
o acesso trans-discursivo a Deus no Pseudo-Dionísio. Antes disso, esta
questão conduz directamente ao último tema a explorar em Nāgārjuna,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

123Ibid., 18, 9, p.234.


124 Cf. Guy Bugault, in Ibid., p.235, expondo o comentário de Candrakīrti, em
Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire limpide au Traité du Milieu), 373, 1-7.
125 Cf. Candrakīrti, Ibid., 265, 4, citado por Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du

Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.235.

94
V ACUIDADE E D EUS

lapidar e radicalmente exposto na estância final do capítulo dedicado ao


exame crítico do nirvāna:

Abençoado é o apaziguamento de todo o gesto de apreensão [apropriação], o


apaziguamento da proliferação das palavras e das coisas. Jamais um qualquer
ponto de doutrina foi ensinado a quem quer que seja pelo Buda.126

Começamos por notar, nesta declaração apenas surpreendente para


quem não conheça a sua tradição na literatura budista127, a grande proxi-
midade com a estância inicial, que apresenta e celebra a “coprodução con-
dicionada” como “abençoado apaziguamento das palavras e das coisas”128.
Recordando que noutro lugar se identifica “coprodução condicionada” e
“vacuidade”129 – pois num universo onde tudo é coproduzido nada há que
seja efectivamente produzido e exista, em si e por si, com(o) uma entidade
intrínseca –, compreende-se que na compreensão disso se estanque essa
sede de conhecer objectos, que na verdade é uma sede de os possuir, de os
apreender (no duplo sentido, cognitivo e apropriativo), pela qual proliferam
“palavras” mentais e verbais e as “coisas” que elas ficticiamente constroem,
mas que, umas e outras, são interdependentes e desprovidas de existência
inerente. Compreendendo que não há ob-jectos nem su-jeitos independentes

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

126 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 25, 24,


p.334.
Cf., por exemplo, o diálogo com o próprio Buda no Sutra do Diamante:
127

“O Bem-aventurado perguntou:
Diz-me, Subhūti, o Tathāgata pensa que ensinou o Dharma?
- Não, Bem-aventurado, ele não vê as coisas assim, pois o Tathāgata jamais ensinou
qualquer Dharma” - Soûtra du Diamant, XXI, in Soûtra du Diamant et autres soûtras de
la Voie médiane, p. 58.
128 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

129 Cf. Ibid., 24, 18, p.311; cf. também 24, 36, p.315.

95
PAULO BORGES

e permanentes, existentes em si e por si fora da sua coprodução relativa130,


extingue-se a voragem conceptual, manifestação da ignorância dualista e
da decorrente insegurança e vontade de poder que visa captar/capturar o
conhecido, assimilando-o ao que conhece (como se sugere na etimologia
de com-preender, de conceito e do Begriff alemão). A extinção desta vo-
ragem, pelo fim da ignorância enquanto não-visão (avidyā) da vacuidade,
é no fundo a extinção de um dos aspectos mais subtis dessa sede, ânsia ou
desejo insaciável (tanhā) que o Buda apontou, no seu primeiro discurso,
como a “origem do sofrimento”. Promotora da continuidade e renovação
da existência condicionada pela dualidade, enquanto desejo ávido de pra-
zeres sensuais, existência ou extermínio, a sua “cessação” é aí sinónimo
de nirvāna131.
Pacificada a avidez mental e verbal que entifica e reifica, que produz
entes e coisas, pacificada, como diz Candrakīrti, a paixão de conhecer
(objectos)132, compreende-se que o Buda jamais haja ensinado qualquer
doutrina. Com efeito, uma doutrina, consistente em dizer algo sobre al-
guma coisa, não pode fugir às quatro possibilidades do tetralema – é, não
é, é e não é, nem é nem não é –, ou seja, às quatro possibilidades da avi-
dez discursiva e predicativa que se extingue no estado de Buda porque
jamais tem lugar na natureza primordial da mente. Se bem que os Budas
– no plano relativo e convencional de um “ensinamento progressivo
(anuśāsana)”, pedagógica e compassivamente adequado às capacidades

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

130 “[…] o objecto apropriado e o sujeito apropriador são completamente vazios”


– Ibid., 22, 10, p.278.
131 Cf. “Setting in Motion the Wheel of the Dhamma”, in The Connected Discourses

of the Buddha. A new translation of the Samyutta Nikāya, tradução do pāli para inglês por
Bhikku Bodhi, II, 56, 11, Boston, Wisdom Publications, 2000, p.1844.
132 Cf. Candrakīrti, Prasannapada Madhyamakavrtti (Commentaire limpide au

Traité du Milieu), 495, 10, citado por Guy Bugault in Nāgārjuna, Stances du Milieu par
Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.335.

96
V ACUIDADE E D EUS

e necessidades de auditores condicionados pela não-visão da vacuidade


universal e pela decorrente conceptualização – recorram, como vimos, às
várias possibilidades da estratégia discursiva133, fazendo do Dharma uma
via que conduz ao “abandono de todas as opiniões”134, isso não significa
que mentes despertas incorram na ignorância e atormentada inquietação
(o contrário do “abençoado […] apaziguamento”) de onde decorrem todos
os sempre frustrados discursos sobre a natureza das coisas que pretendem
captá-la e formulá-la nos limites do conceito e da palavra. É neste sentido
que, apesar dos 45 anos de pregação do Buda Shakyamuni e pese todo o
imenso património de ensinamentos orais e textuais budistas, com textos-
raiz e comentários que se multiplicam por muitos milhares de páginas,
Nāgārjuna pode afirmar que o Buda jamais ensinou alguma coisa a al-
guém. Candrakīrti oferece-nos a explicação mais ousada e profunda disto,
dizendo, na exposição de Guy Bugault, que “cada um dos auditores, em
função da sua capacidade de adesão, das suas tendências, dos seus resídu-
os inconscientes, projecta as suas respostas sobre o silêncio do Tathāgata
e crê escutá-las da sua boca”135.
Nesta perspectiva, a referida pedagogia compassiva e pragmática,
que dispensa a cada um apenas o que lhe é, a cada momento, mais útil
e eficaz para a libertação espiritual, não funciona unilateralmente, sendo

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

133“Tudo é realmente como parece, nada como parece. Simultaneamente como


parece e não como parece. Nem um nem o outro. Tal é o “ensinamento progressivo
(anuśāsana)” dos Budas” - Nāgārjuna, Ibid., 18, 8, p.233.
134 Veja-se a estância final da obra em apreço: “Àquele que, movido pela compaixão,

nos ensinou a Lei autêntica que leva ao abandono de todas as opiniões, a ele, Gautama,
presto homenagem” – Ibid., 27, 30, p.364.
135 Cf. Guy Bugault, in Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-

kārikās], p.335, expressando a visão de Candrakīrti em Prasannapada Madhyamakavrtti


(Commentaire limpide au Traité du Milieu), 539, 3-16. Guy Bugault recorda com per-
tinência o provérbio hassídico: “O mestre mantêm o silêncio e os discípulos escutam-no”.

97
PAULO BORGES

também ou fundamentalmente os auditores e discípulos que convertem o


silêncio a-conceptual do mestre na palavra que podem escutar e no sentido
que podem compreender. Seja como for, é a esta luz que se devem enten-
der os vários silêncios do Buda, as questões deixadas sem resposta, tam-
bém por serem “inúteis”136, bem como as respostas relativas e graduais,
aparentemente contraditórias137. Recordemos que, em última instância,
todo o Dharma ensinado pelo Buda, ou de “transmissão”138, apenas indica
a inexprimível natureza última das coisas em função dos obscurecimentos
mentais dos seres não despertos. Assim se compreende que, no Sutra do
Diamante, o próprio Buda declare que no Dharma por si ensinado “não se
encontra mais verdade do que mentira”139 e que já no Majjhima-Nikāya
compare o seu ensinamento a uma jangada, feita para atravessar um rio e

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

136 Cf. Cūlamālunkya-sutta, in Môhan Wijayaratna, Sermons du Bouddha, Paris,


Cerf, 1988, p. 57. Sobre a recusa do Buda responder a “questões metafísicas inúteis”, cf.
Walpola Rahula, L’Enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens, pp. 30-
34.
137 Como exemplo das respostas relativas, graduais e aparentemente antagónicas, cf.

Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 18, 6 e 18, 8, pp.232


e 233: “Os Budas consideraram o eu, ensinaram também o não-eu. E ensinaram também
que não há nem eu nem não-eu”; “Tudo é realmente como parece, nada é como parece. Ao
mesmo tempo como parece e não como parece. Nem um nem o outro. Tal é o ensinamento
progressivo (anuśāsana) dos Budas”. Veja-se também o enunciado das quatro nobres ver-
dades no Sermão de Benares, que expõe a verdade relativa, e a sua aparente negação no
Sutra do Coração da Sabedoria Transcendente, que as aborda à luz da verdade absoluta.
138 Distingue-se entre o “Dharma de transmissão”, os ensinamentos dos Budas,

adaptados aos limites dos seres, e o “Dharma de realização”, os frutos espirituais da apli-
cação de tais ensinamentos. Cf. “Glossário” in Patrul Rinpoche, O Caminho da Grande
Perfeição, prefácios de S. S. o Dalai Lama e de Dilgo Khyentse Rinpoche, tradução de
Paulo Borges (texto) e Rui Lopo (prefácios, introduções, glossário e bibliografia) (Grupo
de Tradução Padmakara), Lisboa, Ésquilo, 2007, p.451.
139 Cf. Cf. Soûtra du Diamant, XIV e XVII, in Soûtra du Diamant et autres soûtras

de la Voie médiane, pp. 45 e 52.

98
V ACUIDADE E D EUS

passar para a outra margem (do sofrimento), devendo então ser abandona-
da, sem apego140. Como diz um mestre budista contemporâneo: “Por fim,
temos de abandonar a via para o despertar. Quem se define como budista,
é porque ainda não é o Buda”141.
A obra de Nāgārjuna, iniciada pela homenagem a quem ensinou a
“coprodução condicionada, abençoado apaziguamento das palavras e das
coisas”142, e concluída reiterando a homenagem a quem ensinou “a Lei
autêntica que leva ao abandono de todas as opiniões”143, constitui-se como
um comentário ao silêncio do Buda que dele procede e nele desemboca, sem
jamais dele se haver separado, pois o exercício magistral e pedagógico do
pensamento e da palavra implica a sua permanência no que os transcende.
Pode assim considerar-se que o “nobre silêncio” (āryas tusnībhāvah) do
Buda, celebrado pela iconografia144, é o centro integrador de todo o discur-
so nagarjuniano, que, tal como as palavras do Buda (a tradição considera
Nāgārjuna um Buda), é como o eco do silêncio na mente dos leitores, con-
duzindo-os ao mesmo silêncio e bem-aventurado apaziguamento.

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

140 Cf. Walpola Rahula, L’Enseignement du Bouddha d’après les textes les plus an-
ciens, pp.29-30.
141 Cf. Dzongsar Jamyang Khyentse, O que não faz de ti um budista, tradução de

Paulo Borges, Alfragide, Lua de Papel, 2009, p.131.


142 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

143 Cf. Ibid., 27, 30, p.364. Seria interessante comparar com o não ter “ideia” de

Confúcio, cf. Analecta, IX, 4, onde se inspira o título da obra de François Jullien, Un sage
est sans idée ou l’autre de la philosophie, Paris, Seuil, 1998.
144 Sobre o silêncio do Buda, não só mas também “acerca de Deus”, tentando conciliá-

lo com “o silêncio de Deus”, cf. Raimon Panikkar, El silencio del Buddha. Una introducción
al ateísmo religioso, Madrid, Siruela, 1996, em especial pp.255-293. Cf. também Paulo
Borges, “O Silêncio do Despertar”, Cais, nº100 (Julho-Agosto de 2005), pp.90-91.

99
PAULO BORGES

II

Na Teologia Mística do Pseudo-Dionísio Areopagita encontramos um


discurso sobre o “ápice dos escritos místicos”, considerado “mais que ignoto
e mais que luminoso e o supremo”, “treva de silêncio”145, mas também
transcendente e inefável “causa (aitía) de todas as coisas”146. Sendo um
discurso sobre Deus, como o indica o próprio título da obra, escasseia nele
todavia – como na própria Bíblia 147 – o uso da palavra “Deus”, preferindo-
se os pronomes “ele”, “aquele” ou expressões conceptuais e metafóricas
que indicam a sua absoluta transcendência e inefabilidade, conjugando o
neoplatonismo e a tradição judaico-cristã (o autor terá colhido sobretudo
de Proclo, Orígenes e São Gregório de Nissa148).
Dedicada a um aparente discípulo, Timóteo, a obra começa por uma
invocação à “Trindade, mais que substancial, mais que divina e mais que
boa”, que detém “a sabedoria divina (teosofía) dos Cristãos”, rogando-
lhe que guie até ao referido “ápice”, onde os “mistérios da teologia” se
ocultam “numa treva de silêncio, mais que luminosa”, designada como
“arcano de quem se inicia” que, totalmente “intangível e invisível”, faz
“transbordar dos esplendores mais belos as inteligências desprovidas de
olhos”149. Aquilo que o autor para si suplica e implicitamente pratica e
experimenta é o mesmo em direcção ao qual orienta o seu discípulo, em
concisas instruções para um itinerário místico que se assume iniciático e
destinado apenas a um ou a poucos, devendo o seu conhecimento ser vedado

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

145 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 1, p.11.


146 Cf. Ibid., IV, V, pp.pp.23 e 25.
147 “Em lugar algum na Bíblia se fala de Deus” – Jean-Yves Leloup, “Notre Père”,

Paris, Albin Michel, 2007, p.19.


148 Cf. Mário Santiago de Carvalho, “Estudo complementar”, in Pseudo-Dionísio

Areopagita, Teologia Mística, pp.33 e 45.


149 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 1, p.11.

100
V ACUIDADE E D EUS

aos “não iniciados”150 (note-se que o destino da obra contraria a intenção


do autor, que não visava torná-la pública). Comentaremos adiante estas
instruções, retendo para já a exortação à renúncia a todas as “percepções
sensoriais” e “actividades intelectivas”, a “tudo o que pertence ao sensível
e ao inteligível”, mediante o “distanciamento irresistível e absoluto de ti
mesmo e de tudo” que permita a elevação “até ao brilho, que é mais que
substancial, da obscuridade divina”151.
Notamos que a “teologia mística” é um discurso sobre Deus que
indica a transcendência do que assim se designa relativamente a tudo o
que o próprio discurso lhe confere: imagens e conceitos, procedentes da
experiência sensível e inteligível. Se a mística só se substantiva no século
XVII152, o adjectivo “mística”, que advém do vocabulário grego referente
à iniciação nos mistérios, como os de Elêusis, procede do verbo múo, que
significa “cerrar-se, estar cerrado; estar com a boca ou os olhos cerrados;
estar silencioso”153. Aristóteles esclarece não se requerer “dos iniciados que
apreendam alguma coisa com o entendimento [mathein], mas que tenham
uma certa experiência interna [pathein], e sejam assim postos numa par-
ticular disposição de ânimo, presumindo que de tal sejam capazes”154. O
próprio Pseudo-Dionísio, falando do “seu ilustre preceptor” Hieroteu, põe

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

150Cf. Ibid., I, 2, p.13.


151Cf. Ibid., I, 1, pp.11 e 13.
152 Cf. Michel de Certeau, La Fable Mystique, 1. XVIe-XVIIe siècle, Paris Gallimard,

1987, pp.148-149.
153 Cf. Isidro Pereira, S. J., Dicionário Grego-Português e Português-Grego, Porto,

Livraria Apostolado da Imprensa, s. d., 5ª edição, p.382. Cf. também Juan Martín Velasco,
El fenómeno místico. Estúdio comparado, Madrid, Editorial Trotta, 2003, 2ª edição, pp.19-
20; Raimon Panikkar, De la Mística. Experiencia plena de la vida, Barcelona, Herder,
2005, p.45.
154 Aristóteles, De philosophia, 15, in W. D. Ross, Aristotelis fragmenta selecta, The

Works of Aristotle, vol.12, ed. W. D. Ross, Oxford, Clarendon, 1908-1931, p.84.

101
PAULO BORGES

a hipótese de o seu saber provir de não ter “somente de Deus uma ciência
teórica, mas uma experiência vivida” (literalmente, segundo Gandillac,
“não ser somente teomata, mas ainda teopata”155). Uma “teologia mística”
é assim um discurso autosacrificial, que se abole na mesma medida em que
se exerce, nada dizendo senão a própria incapacidade para dizer/conceber
isso de que fala (o que manifesta uma forte afinidade com a dialéctica
(auto)ablativa de Nāgārjuna). A “teologia mística” é um discurso sobre
Deus que, paradoxalmente, conduz à e/ou procede da experiência do si-
lêncio, mental e verbal, inerente à cessação de toda a visão e descrição de
Deus como um objecto, o que, como veremos, inclui o objecto intelectual
e discursivo configurado pela palavra “Deus”. Discurso sobre o “ápice”
“supremo” que é simultaneamente a “causa” de onde tudo procede, é um
discurso sobre o primeiro e último, sobre o fim-origem experimentado por
“união” com ele156. Um discurso que se autosilencia no cumprimento disso
a que exorta, uma via de despojamento radical de si e de tudo, de todas
as formas habituais e supostamente normais, sensoriais e intelectuais, de
configurar a experiência da realidade e do mundo.
Designando Deus como “treva de silêncio, mais que luminosa”, o
autor recorre, na linha de Fílon de Alexandria e São Gregório de Nissa,
ao imaginário da ascensão de Moisés ao Sinai157, onde Deus se manifesta

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

155 Cf. Pseudo-Dionísio o Areopagita, Os Nomes Divinos, II, 9, in Oeuvres Complètes

du Pseudo-Denys l’aréopagite, tradução, comentários e notas de Maurice de Gandillac,


nova edição com apêndice, Paris, Aubier-Montaigne, 1980, p.86.
156 Carl-A. Keller considera que a “mística” designa o “esforço” do adepto de uma

dada religião para “interiorizar totalmente”, mediante uma transformação da “consciên-


cia” e da “personalidade”, “a (ou as) grandeza(s) superior(es) ou suprema(s) – última(s)”,
cuja existência aí se afirma – Approche de la mystique dans les religions occidentales et
orientales, Paris, Albin Michel, 1996, p.24. É problemático que esta interiorização total se
aplique à mística do Pseudo-Dionísio.
157 Ysabel de Andia diz que “a Teologia Mística se inscreve nos comentários do

Livro do Êxodo”, sendo seu protagonista um “intelecto-Moisés” – “Le statut de l’intellect

102
V ACUIDADE E D EUS

ocultando-se na “escuridão de uma nuvem” (Êxodo, 19, 9; 20, 21; 24, 15-18;
33, 9-10; 34, 5; 40, 34-38). É curioso como este Deus que não só se re-vela
na treva, mas que é uma “treva de silêncio, mais que luminosa”, num sentido
contraria a etimologia da palavra “Deus” – procedente da raiz indo-euro-
peia dei, que designa “tudo o que brilha”, remete para a luminosidade do
céu aberto e origina o português “dia” (do latino dies)158 –, embora numa
outra perspectiva integre e exceda essa mesma luminosidade, podendo-se
pensar numa pura luz que, sendo invisível, permite ver. Um Deus “visto” e
experimentado como “treva de silêncio, mais que luminosa”, sugere a total
ausência de determinações e a suspensão das faculdades humanas que as
produzem como condição de possibilidade de uma plena visão, não de si,
mas de tudo o que em si e a partir de si emerge159. O Pseudo-Dionísio vai
neste sentido, ao derivar a palavra theos de theasthai (ver, contemplar)160,
de onde procede a theoria.

dans l’union mystique”, in AAVV, Mystique: la passion de l’Un, de l’Antiquité à nos jours,
editado por Alain Dierkens e Benoit Beyer de Ryke, Bruxelas, Editions de l’Université de
Bruxelles, 2005, pp.73-96, pp.81-82.
158 Cf. Odon Vallet, Petit lexique des mots essentiels, Paris, Albin Michel, 2007,

pp.63-64. Veja-se uma exposição condensada das mais importantes referências e obras
sobre esta questão em Carlos H. do Carmo Silva, “Divina perfeição na sabedoria pré-so-
crática – da teogonia mítica a uma dramática ideal do theós”, in AAVV, A Questão de Deus
na História da Filosofia, I, coordenação de Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro,
2008, p.33, nota 68.
159 “A palavra “Deus” vem do latino dies que quer dizer “dia”. Quando digo “Deus”,

falo do dia, do dia luminoso, digo que o fundo do ser é luz, “clara luz”, encarecerão os
budistas.
A luz é o que não se vê e o que nos permite ver. Quanto mais a luz é pura, quanto
mais ela é transparente, menos se a vê. Assim como não se vê a luz senão em tempo de
obscuridade, não se “vê” Deus senão em tempo de confusão mental e de idolatria” - Jean-
Yves Leloup, “Notre Père”, p.20.
160 Cf. Os Nomes Divinos, XII, 2, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys

l’aréopagite, pp.170-171.

103
PAULO BORGES

Em termos teológico-filosóficos, a visão dionisiana é afim à primeira


hipótese do Parménides platónico, onde se postula que, se o “Uno” é, não
pode senão transcender todas as oposições lógicas e escapar assim ao ser, à
nomeação e ao conhecimento: daí que a consequência lógica do postulado
inicial seja a sua própria anulação, concluindo-se que “o Uno nem é uno
nem é”, o que leva a designá-lo como “não-ser”161. Esta primeira hipótese
platónica converte-se na primeira hipóstase neoplatónica, sendo o Uno em
Plotino experimentado e pensado como não-determinação absoluta, pois
isso que se designa como Uno e Bem “não é nada para si mesmo” e “na
realidade nenhum nome lhe convém”, sendo apenas “para os outros” e em
função da necessidade de nomear que como tal se concebe e se designa162.
“Anterior ao alguma coisa”, não pode senão ser “inefável”, pois, seja o
que for que se diga, dir-se-á sempre “alguma coisa”, o que não convém a
isso que não é “sujeito” de nenhuma predicação163. É pois “também falso”
designá-lo como “Uno”, em conformidade com o Parménides platónico,
onde “não é objecto de discurso nem de ciência”, e com a República, onde
se diz estar “além da essência”164. Na verdade o “Uno” nada assinala senão,
nos limites do pensar e do dizer, a transcendência do “princípio” (arche)
em relação às determinações do que dele procede, enquanto “fonte de
onde o ser, ou a geração, ou o conhecimento deriva”, segundo a definição
aristotélica165. Nesta perspectiva, o Uno convoca uma radical transcensão

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

161Cf. Platão, Parménides, 137 c – 142 a.


162Cf. Plotino, Enéadas, VI ², 7, 41, ed. bilingue grego-francês, texto estabelecido e
traduzido por Émile Bréhier, Paris, Belles Lettres, 1989, p.117; 9, 5, p. 178; 9, 6, p.180.
163 Cf. Ibid., V, 3, 12 e 13, ed. bilingue grego-francês, texto estabelecido e traduzido

por Émile Bréhier, Paris, Belles Lettres, 1967, pp.66-67.


164 Cf. Plotino, Enéadas, V, 4, 1, p.79. Cf. Platão, Parménides, 142 a; República,

509 b. Cf. Paulo Borges, “O desejo e a experiência do Uno em Plotino”, Philosophica, 26


(Lisboa, Novembro de 2005), pp.175-214.
165 Cf. Aristóteles, Metafísica, Δ, 1, 1013 a. Como escreve Stanislas Breton, tal

implica que o “princípio”, enquanto isso “donde qualquer coisa procede de qualquer modo

104
V ACUIDADE E D EUS

de tudo o que se possa pensar e dizer, no sentido de um “absolutamente


inefável” de “tal modo <inefável> que não se possa mesmo dele enunciar
que é inefável”166, o que leva Damáscio, derradeiro mestre da escola neo-
platónica de Atenas, a recorrer à expressão-limite de um “nada” (ouden)
“melhor do que o uno”167. Na verdade, toda a de-finição, por fidelidade à
experiência do que se busca expressar, deve ser superada numa recusa a
designá-lo como “princípio”, “causa”, transcendência ou o quer que seja,
exigindo-se “nem o proclamar, nem o conceber, nem o conjecturar”, na
radicalidade dialéctico-mística do mesmo autor168.
Na mesma linha, incorporada pela tradição cristã onde bebeu o
Pseudo-Dionísio, Gregório de Nissa considera “o conhecimento de Deus
(teologia) uma montanha escarpada e de acesso verdadeiramente difícil”,
que só “algum Moisés” pode subir. É nessa ascensão, deixando para trás
todas as aparências sensíveis e inteligíveis, que penetra cada vez mais, pelo
“esforço” espiritual, no “interior”, onde “vê Deus” no “invisível” e “in-
cognoscível”. O verdadeiro conhecimento, gnose e visão de Deus consiste
assim “no facto de não ver, porque aquele que ele procura transcende todo

que seja”, não se identifique nem se reduza “nem a qualquer coisa, nem à maneira de
ser qualquer coisa” - Du Principe. L’organisation contemporaine du pensable, Aubier
Montaigne/Éditions du Cerf/Delachaux & Niestlé/Desclée de Brouwer, 1971, pp.9, 18,
29 e 33. Se “o princípio não é nada disso do qual é princípio”, ser, devir ou conheci-
mento, convergem nele “uma positividade que faz ser e […] um negativo que o exclui
disso mesmo que faz advir” – Id., Rien ou Quelque Chose. Roman de métaphysique, s.l.,
Flammarion, 1987, pp.143-146.
166 Cf. Damáscio, Traité des Premiers Principes. De l’Ineffable et de l’Un, ed. bilin-

gue grego-francês, texto estabelecido por Leendert Gerrit Westerink e traduzido por Joseph
Combès, Paris, Belles Lettres, 1986, p.10. Do mesmo modo, a indeterminação do Uno é tal
que não lhe convém mesmo a designação de “indeterminado [como] oposto do determina-
do” – cf. Ibid., p. 126. Ou seja, a sua indeterminação não pode contradizer-se e anular-se
como negação da determinação, o que seria uma determinação ainda.
167 Cf. Ibid., pp.7-8.

168 Cf. Ibid., p.4.

105
PAULO BORGES

o conhecimento, separado por toda a parte pela sua incompreensibilidade,


como por uma treva”. Acrescenta ser por isso que “João, o místico, que
penetrou nessa treva luminosa, diz que «ninguém jamais viu Deus»” (João,
1, 18). Progredindo na “gnose”, Moisés “declara que vê Deus na treva, ou
seja, que conhece então que a divindade é essencialmente o que transcende
toda a gnose e toda a apreensão do espírito”. O Deus que se encontra na
treva é o mesmo que “fez da obscuridade o seu retiro” (Salmos, 18, 12),
segundo David, considerado “também iniciado nos mistérios divinos neste
mesmo santuário secreto (adyton)”169.
Após este percurso pela tradição onde se inscreve o Pseudo-Dionísio,
regressemos às instruções já referidas:

[…] dedica-te à contínua exercitação nas maravilhas místicas e renuncia às


percepções sensoriais e às actividades intelectivas, deixa tudo o que pertence
ao sensível e ao inteligível e todas as coisas que não são e as que são; despo-
jado de conhecimento, avança, na medida do possível, até à união com aquele
que está acima de toda a substância e de todo o conhecer. No distanciamento
irresistível e absoluto de ti mesmo e de tudo, uma vez arredado e liberto de
todas as coisas, elevar-te-ás em plena pureza até ao brilho, que é mais que
substancial, da obscuridade divina.170

Notamos que o aspecto negativo ou desconstrutivo da experiência


habitual do mundo, patente na renúncia ao sensível, ao inteligível e às
antinomias onto-lógicas, é solidário de uma prática positiva, um contínuo
exercício nas “contemplações místicas” (conforme outra tradução171), do
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

169 Cf. Gregório de Nissa, Vida de Moisés, in Vie de Moïse de Grégoire de Nysse ou
l’être de désir, traduzido por Jean Daniélou e apresentado por Jean-Yves Leloup, Paris,
Albin Michel/Cerf, 1993, pp.110-113.
170 Cf. Ibid., I, 1, pp.11 e 13.

171 Cf. La Théologie Mystique, I, 1, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys

l’aréopagite, p.177.

106
V ACUIDADE E D EUS

mesmo modo que do despojamento do “conhecimento”, enquanto ignorân-


cia activa da divisão e dualidade inerentes ao mesmo – ou seja, enquanto
ignorância da ignorância inerente ao suposto conhecer na dualidade su-
jeito-objecto, enquanto des-encobrimento do que está velado pelo que se
conhece172 –, parece depender todo o progresso possível rumo à união com
o supremo alvo trans-substancial e trans-cognoscível. Por fim, é-nos dito
que essa transcensão e libertação de tudo é uma transcensão e libertação de
si mesmo, cujo impulso “irresistível” parece ser a própria elevação extática
(Gandillac traduz, aparentemente mais próximo do texto, “elevar-te-ás num
puro êxtase”173) até à divina coincidência dos contrários: o brilho obscuro
ou o “raio tenebroso da divina Sobre-essência”174.
Estas instruções para um efectivo e eficaz exercício místico, no sentido
de uma ascese enquanto treino espiritual autosuperativo, à semelhança do
treino físico do atleta olímpico (askesis significa originalmente “exercício
prático” ou “exercício físico” atlético175), devem ser mantidas secretas e
inacessíveis aos “não iniciados”, precisamente os que se apegam às “realida-
des existentes”/aos “seres” (ta onta), imaginam que nada supra-substancial
as transcende e se crêem capazes de aceder pelo “conhecimento” Àquele
que se oculta na “obscuridade”/”Treva”176. Abaixo destes estão ainda os
“demasiado profanos”, que “imaginam” a causa transcendente “de todas

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

172 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, II, p.17; La Théologie


Mystique, II, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, pp.180-181.
173 Cf. Ibid., pp.177-178.

174 Cf. Ibid., p.178.

175 Sobre a importância dos “exercícios espirituais”, inseparáveis da filosofia, na

Antiguidade e no cristianismo, cf. Pierre Hadot, Exercices spirituels et philosophie an-


tique, prefácio de Arnold I. Davidson, Paris, Albin Michel, 2002, nova edição revista e
aumentada, pp.19-98.
176 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 2, p.13; La Théologie

Mystique, I, 2, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, p.178.

107
PAULO BORGES

as coisas com base nas mais ínfimas”, não a considerando superior à “mul-
tiplicidade de formas”177.
O Pseudo-Dionísio mostra aqui a existência de uma iniciação cristã a
uma experiência extática e mística, própria dos que se exercitam em cerrar
olhos e boca a todo o sensível e inteligível, a todo o exterior e interior,
enquanto os amuéton, os “não iniciados”, são os que não operam isso,
permanecendo apegados ao domínio da entificação e objectivação sensorial
e intelectiva, julgando compreender pelo conhecimento entificante e objec-
tivante o que transcende a dimensão ôntica e objectual e reduzindo assim
a um ente/objecto supremo a “causa” transcendente de tudo (note-se que
apenas a estes “não iniciados” se aplica a crítica heideggeriana da história
da filosofia como onto-teo-logia que não pensa a diferença ontológica e
reduz o ser a um ente supremo (Deus), manifestamente injusta ao esquecer
o neoplatonismo grego e cristão178). Se estes já são “profanos”, no sentido
etimológico daqueles que permanecem diante do, ou seja, fora do templo
onde se manifesta o sagrado, mais o são os que concebem essa “causa” à
imagem dos entes mais baixos na suposta hierarquia do existente e não a
distinguem do múltiplo. Julgamos provável que os primeiros sejam, para
o autor, os próprios cristãos que não acedem a experimentar Deus por
“união” com ele, ficando reféns dos limites do intelecto e da teologia con-
ceptual, e os segundos os pagãos, que supostamente o identificariam com
a multiplicidade das formas sensíveis. Em qualquer dos casos, uns e outros
não perfazem as condições que os tornariam aptos à experiência transfor-
mativa dos “iniciados”, que, segundo Aristóteles, não passa por “qualquer
ensinamento”179, mas antes pela mutação de regime de consciência que o
Pseudo-Dionísio assinala na figura das “inteligências desprovidas de olhos”

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 2, p.13.


177

Cf. W. Beierwaltes, Platonismo nel Cristianesimo, tradução de Mauro Falconi,


178

Milano, Vita e Pensiero, 2000, p.162.


179 Aristóteles, De philosophia, 15, ed. Ross.

108
V ACUIDADE E D EUS

ou, noutra tradução, “que sabem fechar os olhos”180. Figura, a nosso ver,
de um estado não subjectivo-objectivante, não-dual e não-intencional de
consciência, onde se vê sem ver e, melhor, se experimenta unitivamente
isso que se designa como “treva de silêncio, mais que luminosa”181.
É essa experiência que o Pseudo-Dionísio enfatiza como o fim últi-
mo da teologia discursiva, nas suas duas possibilidades (além da Teologia
Simbólica, obra perdida), positiva e negativa, catafática e apofática, em que
a última suplanta a primeira, pois promove esse silenciamento autosacrifi-
cial do intelecto discursivo sem o qual não é possível a união com a fonte
suprema182. Se, em termos teo-lógicos, a uma “causa” transcendente de
tudo convém “referir e dela […] afirmar todos os atributos do que existe”,
com maior razão se lhe devem negar, pois a tudo supera. Supondo uma
hierarquia do existente, se na primeira se começam por afirmar do trans-
cendente as qualidades das coisas “primeiras”, depois das “medianas” e por
fim das “mais ínfimas”, já na segunda se negam em sentido inverso183. O
que importa, todavia, é que isso que se designa como “causa” transcende
toda a afirmação e toda a negação184, sendo “indizível” (alogos), irrelativo
à palavra/razão e ao entendimento/intelecção185. Só se desvela assim, “na

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

180Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 1, p.11; La Théologie


Mystique, I, 2, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, p.177.
181 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 1, p.11.

182 Sobre o apofatismo do Pseudo-Dionísio, cf. Vladimir Lossky, Essai sur la théo-

logie mystique de l’Église d’Orient, prefácio de Saulius Rumsas, Paris, Cerf, 2006, pp.21-
30; Bento Silva Santos, “A lógica do inefável. Do apofatismo à divinização do homem
no Corpus Dionysiacum”, in AAVV, A Questão de Deus na História da Filosofia, I, org.
Maria Leonor L. O. Xavier, Sintra, Zéfiro, 2008, pp.547-557.
183 Cf. Ibid., I, 2, p.13 e II, p.17. Sobre a teologia positiva e negativa, cf. ainda III,

pp. 19 e 21.
184 Cf. Ibid., I, 2, p.13;

185 Cf. Ibid., I, 3, pp.13 e 15; La Théologie Mystique, I, 3, in Oeuvres Complètes du

Pseudo-Denys l’aréopagite, p.178.

109
PAULO BORGES

sua verdade plena”, “aos que transpõem tudo o que é impuro e […] puro”,
“todos os cumes santos”, “todas as luzes divinas, todos os sons e palavras
do céu”, penetrando na “treva” transcendente186. É essa a via do “divino
Moisés” que, no cume da sua ascensão espiritual, metaforizada na subida do
Sinai, “liberto de tudo o que é visto e de tudo o que vê, penetra na treva do
não-conhecimento”. Superando toda a reflexão”/”apreensão mental”, acede
à “total intangibilidade e invisibilidade”, onde se entrega “inteiramente ao
que está acima de tudo e de nada (e não é ele próprio nem outro)”, numa
união perfeita com o “que é completamente incognoscível mediante a total
inactividade do conhecimento, conhecendo além do espírito graças ao acto
de nada conhecer”187.
Note-se a ousadia do exortar à superação de todas as dicotomias da
consciência moral e religiosa e, mais ainda, de todas as próprias epifanias
e revelações divinas para aceder apenas, por esse mesmo impulso de
excedência, à “treva” onde reside esse que tudo excede188. Irredutível à
identificação com a totalidade e a sua negação (“tudo” e “nada”), “não é ele
próprio nem outro”, o que se pode entender como referente quer à “causa”
transcendente, que seria irredutível às categorias humanas de mesmidade
e alteridade, identidade e diferença, quer ao próprio Moisés, que na sua
entrega extática e união perfeita com ela transcenderia as mesmas catego-
rias, não podendo dizer-se o mesmo nem outro, quer no sentido em que,
enquanto homem Moisés, não poderia ser nem absolutamente idêntico ao
que era nem absolutamente diferente, quer no sentido em que não poderia
ser nem absolutamente humano nem absolutamente divino, pelo próprio
paradoxo de uma união perfeita com o absolutamente transcendente que

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 3, p.15.


186

Cf. Ibid., I, 3, p.15; La Théologie Mystique, I, 3, in Oeuvres Complètes du


187

Pseudo-Denys l’aréopagite, pp.179-180.


188 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 3, p.15.

110
V ACUIDADE E D EUS

transcende absolutamente todos os opostos, como mesmo e outro, idên-


tico e diferente (a tradução de Mário Santiago de Carvalho permite as
duas leituras, enquanto a de Maurice de Gandillac convida à segunda189).
Do ponto de vista da razão dualista é todo o paradoxo não-dual da expe-
riência mística, que vivencia o imanente no íntimo do transcendente e o
transcendente no íntimo do imanente, o mesmo no seio do outro e o outro
no seio do mesmo. É ainda essa transcensão das antinomias discursivas
que se opera no outro aspecto da mesma experiência, em que a união ao
“incognoscível” é simultaneamente um conhecer não se conhecendo e por
nada se conhecer, ou seja, um conhecer por união, uma gnose agnóstica
(semelhante aqui e até certo ponto à gnose budista, nomeadamente em
Nāgārjuna190) que transcende a dualidade sujeito-objecto em que opera
ainda o “espírito”/”inteligência” (nous)191. Isso se confirma a seguir, quando
o autor, reiterando a súplica de “ver e conhecer Aquele que está acima da
contemplação e do conhecimento, precisamente pelo acto de não ver nem
conhecer”, acrescenta o “celebrar Aquele que é mais que substancial de um
modo mais que substancial”192. Se o verbo “celebrar” (hymneo) assinala “a
necessidade de a linguagem (se) outrar”193, já não dizendo mas louvando
o que transcende toda a determinação essencial ou substancial, como esse

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189“[… ] entrega-se inteiramente ao que está acima de tudo e de nada (e não é ele
próprio nem outro)” - Ibid.; “[…] pois pertence inteiramente Àquele que está além de tudo,
pois ele mesmo não se pertence mais nem pertence a nada de estranho” - La Théologie
Mystique, I, 3, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, p.179.
190 Cf. Guy Bugault, La Notion de “Prajñā” ou de sapience selon les perspectives

du “Mahāyāna”. Part de la connaissance et de l’inconnaissance dans l’anagogie bou-


ddhique.
191 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 3, p.15; La Théologie

Mystique, I, 3, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, p.180.


192 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, II, p.17.

193 Cf. Mário Santiago de Carvalho, “Estudo complementar”, in Pseudo-Dionísio

Areopagita, Teologia Mística, pp. 92-93.

111
PAULO BORGES

Outro de tudo o que se pode apreender intelectualmente, cremos que isso


procede da festa, “exultação” e júbilo espiritual inerente a esta experiência
que culmina o impulso extático para além de todas as coisas e onde já se
vive no eterno194 ou, melhor, já se é vivido e transfigurado pelo eterno,
como no arrebatamento de São Paulo, que o Pseudo-Dionísio vê possuído
pelo eros extático que procede de Deus e é o próprio Deus195.
Confirma-se que a experiência da “treva de silêncio, mais que lumino-
sa” , não se reduz ao abandono de toda a afirmação e negação acerca de
196

Deus, ou seja, de toda a teologia discursiva, sendo solidária do já referido


exercício nas “maravilhas”/“contemplações [theamata] místicas”197 e desta
transfiguração extática, unitiva e deificante198 do sujeito que não deixa
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

194 Como escreve São Tomás de Aquino, na “Introdução” à Exposição dos Salmos
de David: "Um hino é o louvor de Deus cantado; uma canção é a exultação do espírito
residindo nas coisas eternas e irrompendo na voz”.
195 “Pareceu mesmo a alguns dos nossos autores sagrados que “desejo amoroso”

[eros] é um termo mais digno de Deus do que “amor caridoso” [agapé]; “Mas em Deus o
desejo amoroso é extático. Graças a ele, os amorosos já não se pertencem; pertencem aos
que amam”. […] E é assim que o grande Paulo, possuído pelo amor divino e participando
na sua potência extática, diz com uma boca inspirada: “Já não vivo, é o Cristo que vive
em mim” [Gálatas, 2, 20], o que é bem o caso de um homem que o desejo fez, como ele
diz, sair de si para penetrar em Deus e que já não vive da sua própria vida, mas da vida de
Deus” - Pseudo-Dionísio Areopagita, Les noms divins, 12 e 13, in Oeuvres Complètes du
Pseudo-Denys l’aréopagite, pp.106-107. Cf. Ysabel de Andia, “Le statut de l’intellect dans
l’union mystique”, in AAVV, Mystique. La passion de l’Un, de l’Antiquité à nos jours,
pp.73-96, p.82.
196 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, I, 1, p.11.

197 Cf. Ibid.; La Théologie Mystique, I, 1, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys

l’aréopagite, p.177.
198 Sobre estas questões, cf. Bernard McGinn, The Foundations of Mysticism. Origins

to the Fifth Century, The Presence of God: A History of Western Christian Mysticism,
vol. I, Nova Iorque, The Crossroad Publishing Company, 2005, pp.177-180. Ysabel de
Andia sustenta que no Pseudo-Dionísio “A união mística não se acompanha de nenhuma
representação nem experiência, pois ela é um ingresso no mistério de Deus, um ocultar-se

112
V ACUIDADE E D EUS

de ser um “conhecer sem véus” esse “não-saber que em todos os seres se


encontra velado por tudo o que conhecemos”, uma visão da própria “treva
mais que substancial, que toda a luminosidade que os seres comportam
obscurece”199. Estes passos parecem-nos extremamente importantes,
sobretudo se lidos à luz do exemplarismo neoplatónico claramente profes-
sado pelo autor, uma vez que na “Unidade divina […] tudo é concentrado
sinteticamente numa unificação que transcende toda a unidade, numa pré-
existência supra-essencial”200. A tão enfatizada transcendência de Deus
pode ser afinal, no Pseudo-Dionísio, uma imanência transcendente, pois,
apesar da ênfase colocada na transcendência da “causa” suprema de tudo,
esta transcendência não está propriamente separada dos seres e do mundo,
sendo antes essa não-determinação e não-diferenciação ontognosiológica
que, presente em tudo, é todavia velada, obscurecida ou dissimulada pela
suposta mas falsa evidência do que é enquanto é conhecido como sendo
isto ou aquilo, assumindo a determinação e diferenciação que em Deus não
tem. A transcendência de Deus pode ser assim também a transcendência de
todos os seres em relação à sua determinação pelo conhecimento, sendo-lhes
pré-existencialmente imanente essa transcendente “treva” que, como diz
São Gregório de Nissa, significa “incognoscibilidade e invisibilidade”201.

naquele que é oculto. Absconditus in Abscondito” – “Union mystique et théologie mysti-


que. À propos de Denys l’Aréopagite”, in AAVV, Expérience philosophique et expérience
mystique, edição de Philippe Capelle, Paris, Cerf, 2005, p.166.
199 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, II, p.17. Veja-se a tradução de

Maurice de Gandillac: “[…] a fim de conhecer sem véus este desconhecimento que dissi-
mula em todo o ser o conhecimento que se pode ter deste ser, a fim de ver assim esta Treva
supra-essencial que dissimula toda a luz contida nos seres” - La Théologie Mystique, II, in
Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, pp.180-181.
200 Cf. Les Noms Divins, XIII, 3, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys

l’aréopagite, p.174. Cf. também V, 4-10, pp.130-137; XII, 2, p.173.


201 Cf. Gregório de Nissa, Vida de Moisés, in Vie de Moïse de Grégoire de Nysse ou

l’être de désir, p.115.

113
PAULO BORGES

Como dirá mais tarde Mestre Eckhart, a “diferenciação” e a “unidade”


identificam-se em Deus, que é “a diferenciação sem diferença”202: por isso
“a distinção de Deus (aquilo que o separa de todas as outras coisas) é ser
totalmente sem numeração ou qualquer tipo de distinção – isto é, somente
ele é indistinto”203. O que distingue Deus é de nada se distinguir, embora
esta não seja de modo algum a tónica do discurso dionisiano.
Para concluir, colocamos a hipótese de que os dois capítulos finais
da Teologia Mística, que reiteram a transcendência da “causa de todas as
coisas” em relação a todo o sensível e inteligível, não constituam apenas
preâmbulos ao silenciamento extático, unitivo e deificante, mas decorram
também dessa paradoxal experiência de ver sendo e não vendo o que trans-
cende todo o ser, ver e ser visto. Supra-sensível204, a “causa” é também
supra-inteligível, sendo na negação de todas as instâncias do inteligível
que surgem as mais decisivas indicações. Destacamos que, transcendendo
“imaginação”, “opinião”, “palavra” e “pensamento”, não seja “nem […]
um, nem unidade, […] divindade ou bondade” e “tão pouco” seja “espírito
– tal como o conhecemos – ou filiação ou paternidade”. Transcendendo o
que existe e não existe, não sendo “obscuridade nem luz, nem erro nem
verdade”, “nem os seres a conhecem tal como ela é, nem ela mesma co-
nhece os seres assim como eles são” (na versão de Gandillac, “ninguém a
conhece tal qual ela é, mas […] ela mesma não conhece ninguém enquanto

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

202“Die Einheit ist die Unterschiedenheit, und die Unterschiedenheit ist die Einheit.
Je gröβer die Unterchiedenheit ist, um so gröβer ist die Einheit, denn das <eben> ist
Unterchiedenheit ohne Unterchied” – Mestre Eckhart, Predigten, Werke, I, Pr.10, textos
e versões de Josef Quint, editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt am Main,
Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.131.
203 Cf. Bernard McGinn, The Harvest of Mysticism in Medieval Germany (1300-

1500). The Presence of God: A History of Western Christian Mysticism, vol. IV, Nova
Iorque, The Crossroad Publishing Company, 2005, p.130.
204 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Teologia Mística, IV, p.23.

114
V ACUIDADE E D EUS

ser”). Em última instância, nada dela se afirma ou nega, mas apenas “das
realidades que vêm na sua sequência”, pois “a causa, soberana e unitiva, de
todas as coisas, está acima de toda a afirmação e acima de toda a negação,
identificando-se na sublimidade d’Aquele que, simplesmente liberto de
tudo, está além do universo das coisas” (“além de tudo”)205.
Aquilo de que experiencialmente se fala é afinal irredutível a noções tão
caras ao discurso metafísico neoplatónico como “um”, “unidade” e mesmo,
note-se, “divindade”. Se o suposto Deus afinal não é “Deus”, também é
alheio à sua suposta determinação trinitária, onde curiosamente só a figura
do “espírito” mantém uma relativa pertinência, quando as figuras do Pai e
do Filho a perdem em absoluto. Neste sentido, pode-se aliás questionar se
a suposta “causa” verdadeiramente o é, pois nenhum dos “seres” de que
supostamente é “causa” – e que constituem os efeitos que a constituem
como “causa” – a conhece “tal como ela é”. E no mesmo sentido pode-se
questionar se os supostos “seres” realmente o são, pois a sua suposta “cau-
sa” não os conhece tal como são ou como seres. O que é conforme com o
unificá-los “numa pré-existência supra-essencial”206 e não os conhecer a
partir deles, mas em si207 (o que teria como consequência não os conhecer
senão como Deus…). Por fim, não sendo “obscuridade nem luz”, também
não pode ser a tão repetida “treva mais que luminosa”.
O que é então? Cremos que a pergunta deixa de fazer sentido, pois
pressupõe que isso de que se fala se integre na categoria do ser/não ser isto
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

205 Cf. Ibid., V, p.25; La Théologie Mystique, V, in Oeuvres Complètes du Pseudo-


Denys l’aréopagite, pp.183-184.
206 Cf. Les Noms Divins, XIII, 3, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys

l’aréopagite, p.174. Cf. também V, 4-10, pp.130-137; XII, 2, p.173.


207 Cf. Ibid., 7, 2, pp.143-144, onde destacamos: “Não é de modo algum, com efeito,

a partir dos seres que a inteligência divina conhece os seres, mas a partir de si, em si, a
título de causa, ele possui à partida e e reúne por anticipação a noção, o conhecimento e a
essência de todas as coisas”; “Deus não conhece de modo algum os seres conhecendo-os,
mas conhecendo-se”.

115
PAULO BORGES

ou aquilo, ou seja, nessa esfera da ontognosiologia da qual, precisamente,


o discurso anterior o excluiu. Todavia, o autor insiste em afirmar – trans-
gredindo e limitando a sua própria dialéctica ablativa? – que a “causa”
está “acima de toda a afirmação e negação” e se identifica com “Aquele”
que é “livre de tudo” e transcende o “universo das coisas” ou está “além
de tudo”. Parece assim que o autor hipostasia, numa última instância para
lá de toda a instância, um algo ou alguém inefável, que fosse sem ser
coisa alguma. Um Deus absolutamente abscôndito, um Deus “absolutus”
(no sentido de separado ou desligado de tudo, como diz o comentário de
Pedro Hispano208) e, nesse sentido, irredutível mesmo a ser (conhecido e
compreendido como) “Deus”. Como escreve o Pseudo-Dionísio, na carta
a Gaios: “Se acontece que, vendo Deus, se compreende o que se vê, é que
não se viu Deus ele mesmo, mas alguma destas coisas cognoscíveis que
lhe devem o ser. Pois em si ele excede toda a inteligência e toda a essência;
ele não existe, de modo supra-essencial, e não é conhecido, além de toda a
intelecção, senão enquanto é totalmente desconhecido e não existe de modo
algum. E é este perfeito desconhecimento, tomado no melhor sentido da
palavra, que constitui o conhecimento verdadeiro Daquele que excede todo
o conhecimento”209. Noutra carta ao mesmo destinatário, confirma-se que
se fala Daquele “que é mais que Deus” e, enquanto “o próprio Princípio
de todo o princípio”, “transcende a Deidade”210.
Duas observações finais. Este sentido da transcendência de um Ine-
fável supremo não se pode divorciar da experiência extática de união com
ele, onde implicitamente se assume a fonte da autenticidade de todo o
discurso, que desde o início vimos ser inseparável da prática e instrução de

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

208Cf. Teologia Mística. Textos de Pedro Hispano e Tomás Galo, edição bilingue la-
tim-português, tradução de Maria Leonor L. O. Xavier, Lisboa, Ésquilo, 2008, pp.90-91.
209 Lettres, I, in Oeuvres Complètes du Pseudo-Denys l’aréopagite, pp.327-328.

210 Ibid., II, p.328.

116
V ACUIDADE E D EUS

um exercício espiritual concreto. Da existência ou não dessa experiência


dependerá naturalmente uma compreensão mais imanente ou mais trans-
cendente e, também e correlativamente, mais vivida ou mais conceptual e
objectivada, dessa transcendência, que pode dar-se enquanto transcensão
de toda a configuração habitual do sujeito e do mundo, bem como de todos
os conceitos teológico-filosóficos e plena integração na fonte primordial de
tudo ou cristalizar-se numa mera entificação e/ou reificação de um supremo
Objecto inefável infinitamente desligado do sujeito que o pensa e até venera
como um ídolo não reconhecido como tal. Tudo depende, como sempre, da
profundidade e maturidade da vida espiritual que haja, inconfundível com
o mero rigor intelectual do pensar.
Seja como for, a transcendência vivida deste Inefável em relação
a todas as determinações ontoteológicas e a sua designação como um
“Princípio” excedente mesmo de Deus e de todo o princípio metafísico,
prolongam a vertente desconstrutiva que assinalámos já em Plotino e
Damáscio e anunciam a transcensão e morte mística de Deus que advirá
nas fórmulas mais ousadas de Mestre Eckhart e Angelus Silesius, entre
outros. É assim que, no equivalente cristão do “Se vires o Buda, mata-o”,
Eckhart roga a Deus que de “Deus” o livre, reassumindo-se nesse “abismo
eterno do ser divino” (ewigen Abgrund göttlichen Seins), “onde os anjos
mais elevados, a mosca e a alma são iguais”211, ou seja, nessa primordial
e pré-existencial imanência indiferenciada, onde ele próprio vivia “livre
de Deus e de todas as coisas”, antes de se existenciar diferenciando-se e
determinando-se como indivíduo humano e configurando assim “Deus” e
o mundo212 (como objectos para um sujeito). É assim que Angelus Silesius
escreve no aforismo poético com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”:

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Cf. Mestre Eckhart, Predigten, Werke, I, Pr. 52, p.555.


211

Cf. Mestre Eckhart, Ibid., pp.555, 561 e 563. “Und hier stand ich Gottes und aller
212

Dinge ledig” – p.555.

117
PAULO BORGES

“Onde é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim


último, para o qual devo ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei
então? / Devo ir ainda além de Deus, para um deserto”213.
É precisamente esta desertificação e evanescência do objecto “Deus”,
correlata da do sujeito que se concebe concebendo-o, a par do apofatismo
radicalizado até à transcensão de toda a discursividade, que permite com-
parar e colocar em diálogo a experiência búdica de Nāgārjuna e a cristã do
Pseudo-Dionísio, enriquecendo a compreensão de ambas na mesma medida
da irredutibilidade das suas diferenças matriciais.

III

Dos aspectos referidos que permitem uma mais fecunda comparação


entre Nāgārjuna e o Pseudo-Dionísio destacamos o radical apofatismo que
em ambos conduz a superar toda a predicação como forma de acesso ao, ou
desvelamento do, fundo último de tudo. Se o autor cristão parece promover
uma menos completa e estruturada lógica autosuperativa, limitando-se a
formular mais explicitamente a primeira e segunda possibilidades do te-
tralema, mediante a teologia positiva, que diz que Deus é X, e a teologia
negativa, que diz que Deus não é X, a metafórica designação de Deus como
“treva mais que luminosa” pode todavia implicar a terceira possibilidade,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

213“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein Aufenthalt? Wo ich und du nicht ste-
hen. / Wo ist mein letztes End, in welches ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo
soll ich denn nun hin? / Ich muβ noch über Gott in eine Wüste ziehn”. Em nota ao último
verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de Deus ou dele se pode
pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de tal, procurar nos Místicos”
– Angelus Silesius, Cherubinischer Wandersmann, I, 289, in Sämtliche Poetische Werke,
III, Munique, Carl Hanser Verlag, 1949, pp.7-8 e 219. Sobre esta questão, cf. Paulo Borges,
“Transcender Deus: de Eckhart a Silesius”, Philosophica, 34 (Lisboa, 2009), pp.439-457.

118
V ACUIDADE E D EUS

dizer que Deus é e não é X (treva ou luz), e o silenciamento unitivo da


teologia mística pode integrar a quarta, que Deus nem é nem não é X e
que portanto nada dele se pode pensar e dizer214. Se em ambos o discurso
só vale pelo silêncio a que conduz, seja o da deificante “treva” do ver sem
ver e conhecer sem conhecer, seja o do iluminativo e “abençoado apazi-
guamento das palavras e das coisas”215, na suspensão de toda a apreensão
mental e elaboração doutrinal216, a diferença é que no Pseudo-Dionísio
a necessidade de transcender todo o pensar e dizer se refere sobretudo a
Deus, que todavia tende a permanecer suposto, pensado e dito como “causa”
inefável e transcendente de tudo, enquanto em Nāgārjuna a inefabilidade
decorre da própria “vacuidade” ou ausência de existência intrínseca de to-
dos os supostos entes e fenómenos, samsáricos ou nirvânicos, incluindo o
próprio Buda. Em termos budistas, esta permanência de uma “causa” única
de todas as coisas, que no fundo nada é do que elas são enquanto criadas
– e daí a sua designação, por exemplo em Escoto Eriúgena217 e Eckhart218,

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

214 Cf., para um contraste com a nossa leitura, Bernard McGinn, The Foundations
of Mysticism. Origins to the Fifth Century, The Presence of God: A History of Western
Christian Mysticism, vol. I, p.177.
215 Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], p.35.

216 Ibid., 25, 24, p.334.

217 Sobre Deus, em João Escoto Erígena, como um supra-ser (superesse), um não-ser

por excesso ou um nada por eminência ou “por infinidade”, cf. De la division de la Nature.
Periphyseon, I e II, introdução, tradução e notas de Francis Bertin, Paris, PUF, 1995, I,
482 a-b, pp.126-127, II, 589 b-c, pp.375-376, 590 c-d, p.378; De la division de la Nature.
Periphyseon, III, introdução, tradução e notas de Francis Bertin, Paris, PUF, 1995, 680
d-681 a, pp.170-171.
218 Cf. a leitura de um dos sentidos do êxtase de São Paulo, que, ao levantar-se da

terra e “nada vendo com os olhos abertos”, “viu Deus”: “Als er aufstand von der Erde, sah
er mit offenen Augen nichts, und dieses Nichts war Gott; denn, als er Gott sah, das nennt er
ein Nichts” - Mestre Eckhart, Predigten. Traktate, Werke, II, 71, textos e versões de Ernst
Benz, Karl Christ, Bruno Decker, Heribert Fischer, Bernhard Geyer, Joseph Koch, Josef

119
PAULO BORGES

como nada219 –, é naturalmente suspeita de incorrer num misto ilógico de


eternalismo/essencialismo criacionista e niilismo que erigiria uma instân-
cia mística e mistérica, uma suprema não-Entidade – um X inefável que,
não sendo coisa alguma, é ainda a não-Coisa suprema – , como princípio
absoluto de entidades a seu modo reais, embora criadas e contingentes. O
que claramente difere do sentido da “coprodução condicionada” enquanto
emergência de todos os fenómenos em interdependência de múltiplas causas
e condições, igualmente fenomenais e interdependentes, o que em última
instância dissolve todas as supostas entidades e toda a suposta causalida-
de na impossibilidade de se id-entificar algo como realmente produtor e
produzido, causa e efeito, mesmo e outro, em si e por si mesmo existente.
Em termos budistas, a posição do Pseudo-Dionísio poderia ser considerada
semelhante à conversão da “vacuidade” numa hipóstase e “ponto de vista”
metafísico explicativo da existência do mundo, precisamente o oposto do
uso depurativo de “todos os pontos de vista” que Nāgārjuna dela faz220.
Dito isto, não sabemos se, no ápice da união silenciosa e da gnose agnóstica
de que fala o Pseudo-Dionísio, não se transcenderia ou cessaria a própria
designação da realidade última como “causa”, sendo a manutenção de
uma etiologia/arqueologia monista uma fidelidade ou concessão à matriz
religiosa e cultural do autor e/ou uma insuficiente depuração da linguagem
que, distante já da imediatez não-discursiva da experiência221, pretenderia

Quint, Konrad Weiss e Albert Zimmermann, editados e comentados por Niklaus Largier,
Frankfurt no Meno, Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p.65.
219 Cícero Cunha Bezerra encontra já esse “nada” divino no Pseudo-Dionísio: “Deus

como o nada em Dionísio Pseudo Areopagita”, in AAVV, A Questão de Deus na História


da Filosofia, I, pp.559-566.
220 “Os Vitoriosos proclamaram que a vacuidade é o facto de escapar a todos os pon-

tos de vista. Quanto àqueles que fazem da vacuidade um ponto de vista, eles declararam-
nos incuráveis” - Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās],
13, 8, p.173.
221 Sobre a linguagem entre os diferentes factores da experiência mística, cf. Raimon

Panikkar, De la Mística. Experiencia plena de la vida, pp.131 e 146-150.

120
V ACUIDADE E D EUS

paradoxalmente dizer e definir ainda isso que simultaneamente diz trans-


cender toda a afirmação e negação. O próprio Pseudo-Dionísio insiste ser
apenas a “união” extática “que nos abre a intelecção dos mistérios divinos,
não segundo os nossos modos humanos, mas saindo completamente de nós
mesmos para pertencer inteiramente a Deus”222. Como nota Peter Sloterdijk,
sem esse “arrebatamento” “não há filosofia primeira nenhuma”, pois “o
cume da compreensão filosófica, a apex theoriae, como ascensão ao Uno
correspondente, não pode ser atingido sem a remoção do sujeito para uma
situação excepcional iluminada”223. A filo-sofia primeira seria assim essa
mesma experiência pré e trans-discursiva, verdadeira e entusiasta “hora da
verdade” que só depois encontra na “metafísica como ontologia teológica” a
sobriedade conceptualmente autocompreensiva, enquanto “filosofia segunda
que fala da primeira”224 e que apenas passa por primeira para quem não
logre ou esqueça aquele arrebatamento ou visão originários e fundadores.
Quanto ao segundo aspecto da comparação, se a vacuidade do Buda,
idêntica à do “universo” na sua ausência de “natureza própria”225, conduz,
com Lin-chi e o budismo zen, ao “Se vires o Buda, mata-o !”, pois um
Buda visto como objecto não pode ser o verdadeiro Buda, ou seja, a própria
ausência de dualidade sujeito-objecto, também a transcendência do que se
pensa e designa como “Deus” relativamente a ser concebido e objectivado
como tal, leva, com Eckhart e Silesius, à necessidade de se transcender

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

222 Cf. Pseudo-Dionísio Areopagita, Os Nomes Divinos, VII, 1, in Oeuvres Complètes

du Pseudo-Denys l’aréopagite, p.141. Sobre esta questão, cf. Ysabel de Andia, “Union
mystique et théologie mystique. À propos de Denys l’Aréopagite”, in AAVV, Expérience
philosophique et expérience mystique, p.153.
223 Cf. Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo [Weltfremdheit], tradução de

Ana Nolasco, Lisboa, Relógio d’Água, 2008, p.77.


224 Cf. Ibid., pp.77-78.

225 Cf. Nāgārjuna, Stances du Milieu par Excellence [Madhyamaka-kārikās], 22,

16, p.281.

121
PAULO BORGES

“Deus”, pelo regresso de quem o concebe ao “abismo” ou “deserto” que


metaforizam a indistinção primordial, anterior a todo o logos. Neste lance,
contudo, já inequivocamente se transcendem os fortes resíduos de pensa-
mento e linguagem metafísicos resistentes no Pseudo-Dionísio, embora se
mantenha uma assunção desse primordial fundo sem fundo abissal (Grund,
Ungrund, Abgrund) como matriz de toda a manifestação. Se isto não acon-
tece em Nāgārjuna, onde a “vacuidade” se auto-dissolve na dissolução de
todos os pontos de vista, algo semelhante parece curiosamente surgir nos
desenvolvimentos posteriores do budismo tântrico e particularmente no
sistema tibetano da Grande Perfeição (rDzogs Chen), todavia baseado na
visão Madhyamaka do sábio de Nālandā. Em Longchenpa, por exemplo,
esse fundo primordial (kun-gzhi), inseparável da natureza incondicionada
da própria mente, assume-se como matriz da fenomenalidade universal. O
“fundo de tudo o que surge”, “vazio em essência”, jamais havendo “existido
como o quer que seja, emerge todavia como absolutamente tudo”226, numa
maior afinidade – exceptuada a ênfase na insubstancialidade e aparência
ilusória de toda a manifestação e sua matriz – com essa articulação entre
nada, algo e tudo, onde a indeterminação absoluta é por isso fonte de to-
das as possibilidades manifestativas, que, desde Plotino, atravessa toda a
vertente neoplatónica da metafísica ocidental227.
Deste modo, se por um lado a visão da vacuidade apaga a pertinência
da questão de Deus – não o afirmando nem negando pois nada há a afirmar,
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

226Cf. Longchen Rabjam, The Precious Treasury of the Basic Space of Phenomena,
traduzido sob a direcção de Sua Eminência Chagdud Tulku Rinpoche por Richard Barron
(Lama Chökyi Nyima), editado por membros da Comissão de Tradução Padma: Susanne
Fairclough, Jeff Miller, Mary Racine e Robert Racine, edição bilíngue tibetano-inglês,
Junction City, Padma Publishing, 2001, pp. 3 e 5.
227 Cf. Stanislas Breton, Rien ou Quelque Chose. Roman de métaphysique, Paris,

Flammarion, 1987, pp.8-17. Cf. Paulo Borges, “Mestre Eckhart e Longchenpa: do fundo
sem fundo primordial como nada e vacuidade”, in AAVV, A Questão de Deus na História
da Filosofia, I, pp. 567-579.

122
V ACUIDADE E D EUS

negar, afirmar e negar e nem uma coisa nem outra – e se o pragmatismo


dos ensinamentos do Buda descarta as conexas questões metafísico-cos-
mológicas sobre a eternidade e infinitude ou não do mundo, consideradas
como algo que “não é salutar” e não conduz ao “sereno desengano”, ao
“desapego”, à “paz”, ao “despertar” e ao “nirvana”228, não deixa de haver
afinidades implícitas entre budismo e teísmo na possibilidade de experiência
do incondicionado229 como inseparável de todas as coisas. Sem que a budo-
logia e a teologia possam coincidir, a superação de ambas na supressão da
dualidade entre o sujeito e Buda, por compreensão da comum vacuidade,
e entre o sujeito e Deus – por união amorosa, como na mística “ortodoxa”,
ou por reconhecimento de um fundo sem fundo comum, como em Mestre
Eckhart – , apontam o rumo de uma convergência aí onde a morte do Buda e
a morte de Deus230 assinalam, com o imprescindível apagamento do sujeito

––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

228 Cf. Majjhima Nikāya, 63; Cūlamālunkya-sutta, in Môhan Wijarayatna, Sermons du

Bouddha, Paris, Cerf, 1988, pp. 109-117. Cf. Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha
d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.31-34; Giangiorgio
Pasqualotto, Dez lições sobre o budismo, tradução de Maria das Mercês Peixoto, Lisboa,
Editorial Presença, 2010, p.99; Françoise Bonardel, “Deus, os deuses e o divino sob o olhar
do monoteísmo e do budismo”, Cultura ENTRE Culturas (Lisboa, 2010), nº 2. No mesmo
discurso, o Buda compara quem se ocupa com questões metafísicas inúteis a um homem
que, ferido por uma flecha envenenada, não a deixasse retirar enquanto não soubesse quem
o feriu e qual a sua casta, nome, família, estatura, origem, que tipo de arco usou, o tipo da
sua corda, da pluma da flecha e da sua ponta…
229 Cf. o estudo de Giangiorgio Pasqualotto, “Existe uma mística budista?”, in Dez

lições sobre o budismo, pp.107-114.


230 Recorde-se o já citado Thich Nhat Hanh: “Nirvana não pode ser descrito com

conceitos e palavras como ser ou não-ser. Quando se fala de Deus, da morte de Deus, isso
quer dizer que é necessário que a noção de Deus seja morta para que Deus toque a vida. A
mesma coisa é verdadeira com o nirvana. Os teólogos eruditos que não se servem senão
de noções, de conceitos e de palavras, e não da experiência directa, não são muito úteis. É
necessário matar a noção de Buda para que o verdadeiro Buda possa revelar-se. O nirvana

123
PAULO BORGES

e do mundo por e para ele configurado, uma aventura para além de todos
os conceitos, palavras, vias, horizontes e referências.

é para tocar, para viver e não para descrever. As noções, os conceitos deformam a realidade
do que é último… O Buda é uma coisa, a noção de Buda é uma outra. Um mestre Zen disse
isto: “Se encontrarem o Buda no vosso caminho, devem matá-lo…”” – Thich Nhat Hanh,
“Respire, tu es vivant”, Dharma, nº26 (Arvillard, Mai-Septembre 1996), p.19. Raimon
Panikkar aponta o equivalente cristão desta necessidade de matar o Buda - “se encontras
Cristo, come-o !” - , no Evangelho segundo São João – “Se não comerdes a carne do Filho
do Homem / e não beberdes o seu sangue, / não tereis a vida em vós” (6, 53; cf. também
51-58), relacionando-o com o passo subtil do mesmo Evangelho em que o mestre nazareno
indica ser do interesse dos discípulos que ele parta porque, não o fazendo, o Paracleto,
“o Espírito que actua interiormente”, não poderia manifestar-se-lhes (João, 16, 7) - Cf.
Raimon Panikkar, El silencio del Buddha. Una introducción al ateísmo religioso, p.262.

124
NEW EVANGELIZATION?

Tomáš Halík

The history of evangelization starts with the apostle Paul’s


revolutionary tidings: a new reality is coming that will overcome all
previous barriers between people and unite all. It is no longer of importance
whether someone is a Jew or a pagan, male or female, rich or poor, a slave
or a free man: in Christ we are one, we are a new creation. All previous
identities and certainties based on those barriers are relativised. There came
one who broke down all dividing walls and reconciled everything within
himself. Let us bring this liberating and unifying force to life and into the
world! Something of the experience of Pentecost was burning within that
challenge: a new language that all could understand despite barriers of
culture, nation or religion. At Pentecost, the Church was born as an anti-
Babel, as a sacrament of mutual understanding, as a potent sign that all
people are called to unity in Christ.
It is obvious to us now that this unity is an eschatological goal
requiring great patience of faith. The Church is “communio viatorum”, a
pilgrim community. Patience and endurance enable pilgrims to overcome
the illusion that the goal is within easy reach. The Church’s great attributes
– unity, holiness, universality and apostolicity – are also and above all the
eschatological goal of its journey through history. They will only become
fully apparent beyond the horizon of history. Here they are the subject of

125
TOMÁŠ HALÍK

faith, hope and longing love. Eschatological patience is a great Christian


virtue that prevents us from saying to any existing form of the church or
society “stay a while, you are so beautiful”. One manifestation of impatience
is triumphalism, which confuses the earthly “ecclesia militans” with
the eschatological “ecclesia triumfans”, and does so in two possible ways:
either by holding up a certain condition of the church at the present time
or in the past as a state of perfection, or, with the equally naïve fervour of
reformers and revolutionaries, demanding this perfection from the present
condition of the church. “Ecclesia militans” (the church militant), the church
here on earth, must fight above all against the temptation of triumphalism.
If triumphalism prevails in it, the “ecclesia militans” becomes a source of
militant religion.
In my book “Patience with God”, I expressed the view that the three
“divine virtues”, faith, hope and love, are three ways of confirming our
patience in the face of God’s hiddenness and God’s silence. I am convinced
that everyone who has a living faith and not a dead ideology, occasionally
experiences crises, passes through the valley of darkness, or experiences
the silence of God. Maybe this experience of God’s radical hiddenness and
remoteness (what Jewish mysticism calls “hester panim”, hiding the face)
connects us with many people who regard themselves as atheists. We have
the same experience, but we interpret it differently. I say to atheists of a
certain type, not that they are wrong but they do not have patience, when they
interpret too quickly God’s silence as proof of the death or non-existence of
God. But equally impatient are those religious enthusiasts who drown out
God’s silence with their ardent “alleluias”, or the religious traditionalists,
who do not hear God’s silence because they go on repeating non-stop the
phrases they have learned. Mature faith is capable of waiting patiently; its
waiting is not idle passivity, however, but the expression of hope and faith
in what we cannot see, and in particular, an expression of love – because
mature love, as we know from the great hymn of St Paul, is patient and
“bears all things”.

126
N EW E VANGELIZATION ?

Contemplative listening to God’s silence can certainly be a useful


exercise for our life with others – above all with those who are “different”,
of whom there are more and more in the world. Moreover, these days the
church’s garden bears no resemblance to the parks of French chateaux with
their carefully cultivated borders and harmonious colour schemes. Many
new forms and unfamiliar plants provoke the gardeners to take radical
measures. But Jesus warned his disciples against the temptation of playing
angels at the Last Judgement. In their passion for fields of purity, zealots
– inquisitors and revolutionaries alike – often mistake useful plants for
weeds.
I recall a scene from a play by the Czech writer Karel Čapek. Two
brothers are quarrelling about what constitutes order in the home. “Making
order is putting things where they belong,” says Peter, a left-wing radical.
“Making order means putting things where they used to be,” comments
Kornel, a right-wing conservative. “Order”, says their mother, “means
putting things where they feel right.” Often in today’s controversies in the
church my own wish is that kind and patient wisdom, such as that mother’s,
would prevail. But in order to recognise when people and things feel right
one has to know how to listen and have empathy – and that is one feature
of patience. The angry Peters and Kornels, who already know (the first
knows where things ought to be while the other knows where they used to
be) lack a sense of humour and self-irony.
We never know in advance where things feel right. That is something
that requires experiment and searching. First of all it requires the culture
of dialogue.

* * *

If we wish to engage in dialogue, it means not only that we no longer


wish to fight each other, but also that we want to maintain our own tradition
and our own identity, while respecting others’ difference, that we are not in

127
TOMÁŠ HALÍK

favour of uniformity but at the same time we do not wish to live alongside
each other in mere polite indifference. We are interested in each other – and
that interest does not stem from an attempt to tailor others to our own image,
but from an endeavour to understand them.
In doing so, we express our conviction that it is possible for both sides
to accept and understand our mutual difference as something that need
not threaten us but on the contrary, something that can actually enrich us
mutually. We can learn a great deal from each other without ceasing to be
ourselves. We wish to demonstrate and offer others what we find valuable
without forcing anything on them. We wish respectfully to understand
their attributes without having to abandon our own – but we are willing to
accept the risk of the changes that might stem from it, that as a result of
dialogue we shall look at ourselves as if through others’ eyes, and with a
certain detachment from ourselves.
Partners to genuine dialogue do not trivialise the question of truth,
precisely because they regard truth as a value that is so fundamental and
profound that they feel bound to allow everybody to seek it according to
their conscience and reason. There is a difference between asserting “we
have the truth” and “we alone have the truth”. The truth is a book that none
of us has read from cover to cover.
Jesus said: I am the truth. A contemporary theologian has added that to
believe in Jesus Christ who embodies truth in its entirety, means precisely to
admit that we are not Jesus Christ, that we are not self-denying witnesses to
the truth, and hence we are also not “its owners”. Nevertheless, we cannot
abandon truth, because otherwise we would be agreeing with a world in
which only the stronger have the right to decide. “Truth is a shield against
the violence perpetrated by the strong against the weak,” wrote Miroslav
Volf, and he added: “but if this shield is not to be transformed into a lethal
weapon, it must be held by those who reject violence. Devotion to the truth
must go hand in hand with devotion to non-violence, or that very devotion
to the truth will become a source of violence.” (Cf. Exclusion and Embrace.

128
N EW E VANGELIZATION ?

A Theological Exploration of Identity, Otherness, and Reconciliation


Nashville: Abingdon, 1996)
John Paul II wrote – and Benedict XVI stresses it constantly – that
we must never desire to spread the truth by violence. And I add: Nor must
service to unity be linked to any pressure. At the time of the totalitarian
regimes, Teilhard de Chardin declared that the only force that unites without
destroying is love.

* * *

At the beginning I spoke about the evangelization of the world as


represented by the apostle Paul’s appeal for the unity of humankind in
Christ.
In the name of that appeal, early Christianity stepped beyond the
borders of Judaism and entered a world shaped by Hellenic philosophy
and Roman politics. Christianity gradually created a grandiose culture.
However, did it not become so settled in the borders and language of that
culture that it ceased to be a force that would break down all barriers and
speak to people of all tongues?
Christianity gradually became a religion alongside other religions, one
language alongside many other. Evangelization gave way to Christianisation
– an effort to incorporate further territories into the existing cultural and
political empire of Christendom (not only in a cultural and spiritual sense,
but also in geographical and political terms – sometimes even “with fire
and a sword”).
Fortunately, throughout the history of Christianity there were always
attempts to find alternatives to that static form of Christianity and to reform
it from within – evangelization. (To put it simply, I regard Christianisation as
an attempt at the expansion of Christianity, the “conversion of pagans”, while
evangelization I see as an attempt to “convert Christians”, conversion from
a self-assured “being a Christian” to the humble “becoming a Christian”.) I

129
TOMÁŠ HALÍK

believe that the exodus of many Christians in the 4th century and later into
the deserts of Palestine, Syria and Egypt was a kind of protest against and
dissent from majority Christianity, which all too quickly installed itself in
the Roman Empire with privileged status – it was actually an attempt by
Christian radicals to create a sort of alternative Christianity in the desert.
From the desert experience there grew monasticism.
One of the most remarkable achievements of the ancient church is
that it forestalled an open schism by integrating this radical alternative
to Christianity and institutionalising it in the form of the religious orders.
However, throughout history, monasticism and the religious orders have
been a source not only of spiritual renewal but also often of concomitant
reforms of church and society.

* * *

It is possible that in reflecting on the character of “new evangelization”


– and its implementation – the religious orders are to play an important role
once more. Will we understand the “new evangelization” as reconquest, as
re-Christianisation, as “religious mobilisation”, carried along by nostalgia
for an extinct civilisation – Christendom? I hope not.
I once commented ironically on the famous legend that aptly
symbolises the beginnings of “imperial Christianity” (Christendom), the
story of the Emperor Constantine’s dream. In his dream Constantine saw
a cross and heard the words: “Conquer with this”. Next morning he fixed
crosses to the standards of his troops and won the battle. I wondered how
the history of Europe and the history of the church would have turned out
if the emperor had interpreted his dream rather more intelligently.
Today we all stand before the cross as before a dilemma. Will the cross
be for us a battle standard, a nostalgic memorial to the time when it was a
sign of triumphalism and power? Or will we grasp the kenotic message of
the cross: the man Jesus, although he was God’s equal, emptied himself and
became as one of the people and took upon himself the form of a servant.

130
N EW E VANGELIZATION ?

If we wish to follow Christ, we must abandon any yearning after a


privileged place in this world. Each of us must become “one of the people”,
and take seriously that solidarity with the people of our time, to which
the church committed itself in the beautiful words at the beginning of the
pastoral constitution “Gaudium et spes”. Let us not fear that we would
thereby lose ourselves in the crowd and lose our Christian identity. What
will distinguish us from the mass of people around us (but what will unite
us at the same time with those with whom we ourselves would not seek an
alliance), will not be the crosses on our banners, but instead the willingness
to “take upon ourselves the form of a servant.” This life orientation of
kenosis, self-surrender, means, within a civilisation oriented mainly towards
material success, a conspicuously non-conformist attitude. Those who live
this way can be a hidden “salt of the earth” and also a highly visible “light
of the world”. Only then will the “new evangelization” be truly new.

131
132
LIVROS NOVOS

BIOGRAFIA....................................................................................... 135

ECLESIOLOGIA ................................................................................. 135

ESPIRITUALIDADE............................................................................. 137

ESTUDOS BÍBLICOS .......................................................................... 139

EVANGELIZAÇÃO .............................................................................. 142

HISTÓRIA DA IGREJA ....................................................................... 142

ORAÇÃO E PREGAÇÃO...................................................................... 143

SAGRADA ESCRITURA ....................................................................... 144

TEOLOGIA ....................................................................................... 147

VÁRIOS ............................................................................................ 148

133

10
134
L IVROS N OVOS

BIOGRAFIA
AGUILAR, Luís Noguero – Teresa de Li- Este volume documenta a evolução do
sieux. San Pablo, Madrid 2009, 134 pp. pensamento político e teológico de Dietri-
ch Bonhoeffer, num período decisivo da
Santa Teresa do Menino Jesus, mais história europeia. Esse período envolve as
conhecida como Santa Teresinha, represen- perseguições e os massacres de Judeus, em
ta um dos maiores modelos de vida cristã, Novembro de 1938, a invasão da Polónia
reconhecidos pela Igreja Católica. Tendo que deu início à segunda guerra mundial,
sido educada numa família profundamente entre outros acontecimentos históricos.
religiosa, Teresa ingressou na ordem carme- Nesta obra, os leitores são convidados a
lita, com apenas 15 anos de idade. ver o desenvolvimento dos acontecimentos
Pronta a partir sempre em busca de com os olhos de Bonhoeffer, na medida em
Deus, centrada no rigor da vida espiritual, que este volume começa com o encerra-
Santa Teresa é o exemplo do esforço no mento do Seminário de Fikenwalde, pela
caminho da santidade, pela aceitação da sua Gestapo, e conclui com os dias finais das
pequenez e imperfeição. Esta obra mostra, perseguições aos cristãos, nos primeiros
de modo simples e sintetizado, a construção meses da Segunda Guerra Mundial.
desse caminho espiritual, que levou esta jo- Esta obra retrata, ainda, dezoito meses
vem a ser uma das grandes místicas de todos fundamentais na vida de Bonhoeffer, cujos
os tempos e, simultaneamente, modelo de textos são importantes para entender as
espiritualidade para todos os cristãos. suas subsequentes decisões, bem como a
Ricardo Marques sua teologia. Trata-se, portanto, de uma
excelente obra, composta em 725 páginas,
que oferecem ao leitor uma parte crucial da
BONHOEFFER, Dietrich – Theological Edu- vida de Dietrich Bonhoeffer.
cation Underground: 1937-1940. For-
tress Press, Minneapolis 2005, 725 pp. Ricardo Marques

ECLESIOLOGIA
JENSEN, David H. – Living Hope: The publicado pela prestigiada editora dos Mis-
Future and Christian Faith. Westmins- sionários de Maryknoll, e o segundo dum
ter John Press 2010, 138 PP. professor de seminário teológico do campo
da Reforma, saído de edições presbiteria-
ROBERTS, Tom – The Emerging Catho- nas. Ambos os autores, Roberts, jornalista
lic Church: A Community's Search for profissional e Jensen, teólogo e professor,
itself. Orbis Books, Maryknoll, New analisam o Cristianismo do presente e que-
York 2011, 204 pp. rem abrir pistas para avançar para o futuro
com visão de Fé e de Esperança e com
Dois pequenos livros valiosos, o pri- determinação séria. Tom Roberts, jornalista
meiro dum jornalista do campo católico, profissional por muitos anos a trabalhar para

135
LIVROS NOVOS

publicações católicas, tem sido nos últimos sobre todo o ritual baptismal a começar pela
sete anos director do National Catholic Re- imposição do nome.
port, jornal de prestígio entre o pandemónio Contra todo o pessimismo e desânimo,
dos media norte-americanos. Neste volume, o Autor afirma que o cristianismo se revigo-
em 11 capítulos, partindo das informações rará quando todos os baptizados foram fiéis
provenientes da sua profissão e cargo, antevê à sua vocação e lembra que nenhum dos
uma nova maneira de ser Igreja a emergir grandes padroeiros da Europa – São Bento,
das crises, dos abusos sexuais, da cultura Santa Catarina de Sena, Santa Brígida da
e formação desfasadas do clero, duma Suécia e Santa Teresa Benedita da Cruz
autoridade à procura da autenticidade, das (Edith Stein) – foi sacerdote. Todos foram
marginalidades, e acentua que é necessário baptizados e isso os levou a contribuir para
uma análise séria dos problemas, coragem, a renovação da Igreja no seu tempo.
transparência, coerência, posicionamento
dos valores cristãos de forma humilde, clara Januário dos Santos
e vivencial. David Jensen, teólogo, empe-
nhado na criação duma teologia construtiva
que vá para além de encadeamento de frases WEEMS JR., Lovett H. – Church Leader-
bíblicas, em quatro capítulos, esclarece e ship. Abingdon Press, Nashville 2010,
responde a muitas situações que obscurecem 146 pp.
a Esperança: Escritura e Esperança cristã,
fundamentos da Esperança cristã, questões Weems é um professor distinto de lide-
não respondidas, a Esperança vivida. Só com rança na Igreja e director do Lewis Center
a esperança se poderá reconstruir o presente for Church Leadership of Wesley Theolo-
e construir o futuro. gical Seminary, em Washington. Weems é
C.A. autor de obras como Take the Next Step:
Leading Lasting Change in the Church e The
Crisis of Younger Clergy, tendo estas obras
RADCLIFFE, Timothy – Faites le plonge- sido publicadas pela Abingdon Press.
on. Cerf 2012, 324 pp. Nesta edição renovada, Weems traça as
novas ideias e os estudos mais recentes so-
O cristianismo está hoje confrontado bre liderança organizacional, com um pano
com grandes desafios: indiferença, secula- teológico de fundo. Por outro lado, o autor
rismo agressivo, fundamentalismo religioso, procura adequar as novas ideias e os novos
perseguição em diversas partes do mundo. métodos à própria organização da Igreja,
Como fazer face a tantos desafios? assim como às suas lideranças.
Timothy Radcliffe responde neste livro Trata-se de um livro bem escrito, orga-
com muita serenidade e persuasão: vivendo nizado em quatro capítulos, centrados em
uma autêntica vida de fé. Para isso é preciso quatro variáveis comuns às organizações
redescobrir o valor da graça do baptismo e empresariais: Visão; Equipa; Cultura; In-
os compromissos tomados. Torna-se, pois tegridade.
necessário mergulhar nas águas baptis- Ricardo Marques
mais para descobrir a grandeza da nossa
vocação.
Em 17 capítulos o autor esclarece-nos

136
L IVROS N OVOS

ESPIRITUALIDADE
BUENAFUENTE, Ángel Moreno – Habita- Pedro Casaldáliga é uma das figuras
dos por la Palabra, Ediciones Narcea, maiores do episcopado brasileiro e das re-
Madrid 2008,132 pp. ferências incontornáveis na abordagem de
vários temas quer de dimensão religiosa e
O Autor oferece aos seus companheiros cristã quer no campo dos direitos do homem.
de viagem este interessante livro de medi- O seu nome estará associado, como mentor,
tações com o sugestivo título Habitados às comunidades de base, à pastoral social,
por la Palavra. Trata-se, como o próprio opção pelos pobres, etc… Mas, como ele
Autor refere na Introdução, de uma oferta a diz, se este quadro de degradação dos povos
todas as pessoas que desejam ler a Palavra lhe provocava indignação, a sua postura foi
em chave existencial e ler a vida a partir sempre de compromisso e esperança.
da Palavra. São dois polos que se cruzam e É nesta moldura que deve ser lida a obra
interseccionam, numa verdadeira explosão Antologia personal, como forma singela de
de busca de sentido para a vida. Buenafuente comunicar-se e expressar-se, englobando
recorre ao belíssimo método da lectio divina, vários poemas, desde 1955, com Palavra
consolidado com o método da cartuxa de ler, Ungida, ainda escritos em Salamanca. Tra-
meditar, orar e contemplar. ta-se, como o próprio Autor refere, de uma
Os nove capítulos do livro, apresen- forma de revisitar vários poemas avulsos e
tado como uma verdadeira escala ritmada que, reagrupados, adquirem uma nova luz.
por passos significativos, são introduzidos Lendo cada poema no seu contexto histórico
por um capítulo dedicado à preparação e e social, compreenderemos bem o compro-
encerrados com o capítulo dedicado à mis- misso de Pedro Casaldáliga. Lidos hoje, le-
são. Trata-se efetivamente de uma correta mos a esperança de um homem. Interessante
perceção gradativa do individuo que se põe e histórico, pela palavra e pela pessoa.
à escuta da Palavra e lê a sua vida a partir Albino dos Anjos
dela. A novidade deste livro reside no rol
de abundantes sugestões bíblicas que enri-
quecem a descoberta do amor de Deus em EIZAGUIRRE, José – Una vida sobria,
cada homem. honrada y religiosa. Propuesta para
Com a publicação desta obra, Ediciones vivir en comunidad. Narcea, Madrid
Narcea contribui para valorização da sua 2010, 161 pp.
vastíssima biblioteca de coleções dedicados
a temas espirituais, oferecendo aos leitores, O autor é um religioso marianista, que
por intermédio de Ángel Moreno Buena- estudou arquitectura e administração de
fuente uma verdadeira “escada do paraíso” a empresas, tendo sido promotor de algumas
fim de tornar consolador a voz do Mestre. campanhas de solidariedade. Por outro
Albino dos Anjos lado, Eizaguirre é também autor de diver-
sos artigos sobre ecologia, consumo e vida
religiosa.
CASALDÁLIGA, Pedro – Antologia per- Neste livro, o autor critica uma das
sonal, editorial Tratta, Madrid 2006, principais causas do abismo humano, fruto
134 pp. de uma vida insensatamente consumista,

137
LIVROS NOVOS

predominante, sobretudo, nas sociedades Escrituras para ajudar os leitores a com-


mais desenvolvidas. Neste sentido, o autor preender o perdão, recomendando a oração
propõe uma alternativa, com os seus respec- contemplativa.
tivos meios, para o estilo de vida ocidental: Ricardo Marques
comunidades de pessoas consagradas a
explorar, a colocar em prática e a estender
um estilo de vida desenvolvido, sustentável M ETROPOLITAN A NTHONY OF S OUROZH .
e solidário. Porém, o autor propõe, ainda, ESSENTIAL WRITINGS. Orbis Books, Ma-
que seja um estilo de vida mais saudável ryknoll 2010, 189 pp.
e espiritual, baseado numa paixão comum
pelo Criador, pelas suas criaturas e pela Esta obra reproduz alguns dos princi-
própria criação. pais textos e pensamentos de Anthony of
Trata-se de uma obra simples, de leitura Sourozh, considerado como um dos mais
agradável, que apresenta ao leitor uma nova respeitados homens da Igreja, escritores
proposta de vida, baseada numa vida comu- espirituais e comunicadores das últimas
nitária e espiritual saudável. décadas, na Bretanha e na Rússia. Além
Ricardo Marques disso, trata-se, também, de umas das figuras
mais proeminentes do mundo Ortodoxo, no
cenário mundial.
MENNINGER, William – El processo del O livro retrata alguém que não falava
Perdón. Desclée de Brower, Bilbao apenas como um perito em Cristo, mas co-
2009, 213 pp. nhecia-O pessoalmente e vivia-O como se
tivesse sido uma das primeiras testemunhas
O movimento da oração centrante é um da sua ressurreição. Com efeito, Anthony
movimento dedicado a levar o poder da tinha um raro dom de palavra, sobretudo
oração ao coração mesmo da experiência no que se refere a questões fundamentais
da oração, tendo como principal finalidade a da fé.
recondução de cada ser humano ao centro do Inserida numa vasta colecção de escritos
seu próprio ser. Neste contexto, Menninger, fundamentais de várias personalidades, esta
monge trapista e professor de teologia e de obra reproduz os pensamentos essenciais
Sagrada Escritura, é uma das principais desta grande figura do mundo Ortodoxo e
figuras desse mesmo movimento. convida o leitor a viver, de modo mais pro-
Neste livro, o Padre Menninger explora fundo, a sua relação pessoal com Cristo.
uma faceta complexíssima, porém, necessá- Ricardo Marques
ria para a vida espiritual: o perdão. O autor
mostra como podemos exercitar constante-
mente este acto, de tal modo que ele se torne P RIETO , Pablo Domínguez – Hasta
habitual na nossa prática espiritual. O livro la Cumbre. San Pablo: Madrid 2009,
introduz a problemática sensível daqueles 190 pp.
que se sentem ofendidos. Recorrendo à base
dos três centros de conhecimento espiritual Pouco antes da sua morte, Pablo Domín-
(cérebro, coração e corpo), bem como aos guez Prieto dirigiu alguns exercícios espi-
perfis de personalidade postulados pelo rituais às monjas cistercienses de Tulebras,
Eneagrama, o autor faz uso abundante das em Navarra. Esta obra recolhe esses mesmos

138
L IVROS N OVOS

exercícios espirituais, os quais, de viva BURROWS, Mark – Moments of Wonder:


voz, puderam ser escutadas pelas referidas 52 Engaging Children's Moments.
religiosas. A leitura, dos textos que integram Abingdon Press, Nashville 2011, 112 pp.
este livro, proporciona ao leitor a escuta de
uma espécie de testamento espiritual. Nos INDERMARK, John – WayWords: A Daily
diversos textos reflecte-se, essencialmente, Itinerary for Lent. Abingdon Press,
sobre a Palavra de Deus, a vida e a morte, Nashville 2011, 108 pp.
bem como outros temas espirituais dirigidos,
expressamente, à vida em comunidade. Seis pequenos volumes de grandes edi-
Não obstante, estes exercícios reflectem, toras que prezam estes pequenos volumes
também, as dificuldades concretas da vida, ao lado de obras grandes e especializadas.
com as quais se deparam, muitas vezes, os No primeiro, um catedrático, psicólogo
cristãos na sua vida quotidiana. especializado que acompanhou voluntários
Ricardo Marques da assistência nas guerras civis do Ruanda,
do Camboja e do Iraque, conta a influência
que tiveram na sua espiritualidade as férias
WICKS, Robert J. – Streams of Content- na quinta dos tios no interland americano
ment: Lessons I Learned on My Uncle's como refúgio do caos noviorquino. O
Farm. Sorin Books, Notre Dame, India- segundo é um livro de pequenos poemas
na 2011, 214 pp. espirituais interessantes dum bispo católico
norte-americano. No terceiro um pastor
MORNEAU, Robert – A Splash of Sunshine metodista, autor de numerosas obras, explica
And Other Glimpses of Grace. Orbis que só com fé e oração a comunidade cristã
Books, Maryknoll, New York 2011, se compromete com o ministério da carida-
131 pp. de. No quarto, Larry, pastor especializado
e com muita prática, traça um guia prático
LAMPE, Karen – The Caring Congre- para o aconselhamento pastoral. No quinto
gation: How to become one and why um compositor e escritor, comprometido na
it matters. Abingdon Press, Nashville pastoral das crianças numa igreja metodista
2011, 114 pp. do Texas, apresenta esquemas encantadores
para 52 reuniões. No último, John Inderma-
WEBB, Larry E. – Crisis Counseling rk, pastor da Igreja unida de Cristo, traça um
in the Congregation. Abingdon Press, ideário com comentário bíblico cativante
Nashville 2011, 152 pp. para cada dia da quaresma.
C.A.

ESTUDOS BÍBLICOS
ALVES, Herculano – Documentos da interessam pela Bíblia. Doutorado em Te-
Igreja sobre a BÍBLIA. Difusora Bíblica ologia Bíblica pela Universidade Pontifícia
2011, 2.240 pp. de Salamanca, Director da revista Bíblica,
Presidente do Movimento de Dinamização
Herculano Alves é sobejamente co- Bíblica dos Franciscanos Capuchinhos,
nhecido em Portugal por todos os que se durante vinte anos, apresenta-nos agora, em

139
LIVROS NOVOS

2.ª edição corrigida e aumentada, esta obra Testamento, entre outras.


fundamental para todos quantos estudam a Tendo sido publicada em 1995, esta obra
Bíblia e a querem conhecer à luz dos ensi- é uma nova revisão e actualização da versão
namentos da Igreja. já publicada, o que envolveu a modificação
Como disse o Patriarca de Lisboa, D. de diversos capítulos e novas sugestões, para
Manuel Clemente, “a presente obra é de leituras posteriores. Trata-se de um livro
uma actualidade evidente, pois todos sabe- bem escrito, de agradável leitura e muito
mos que, desde o Vaticano II, a Igreja, no rica, que ajuda o leitor a aprofundar os seus
seu magistério oficial, tem apelado a todos conhecimentos sobre interpretação bíblica.
os católicos para que façam da Bíblia o
seu livro”. Ricardo Marques
Ninguém melhor que a Igreja nos pode
ensinar a ler a Bíblia. Os 352 documentos
arquivados neste livro (de 160 a 2010), LEUCHTER, Mark; ADAM, Klaus–Peter
apresentam-nos 2000 anos de história da (ed.) – Soundings in Kings: Perspectives
Bíblia na Igreja. and Methods in Contemporary Scho-
Esta obra está enriquecida com uma larship. Fortress Press, Minneapolis
Introdução sobre a Bíblia Palavra de Deus, 2010, 219 pp.
um Breve percurso histórico sobre a Bíblia
na História da Igreja e cinco índices para Os pressupostos que dominavam, no
consulta. final do século XX, no que se refere aos dois
Uma obra imprescindível na biblioteca Livros dos Reis, bem como todos os rela-
e nas mãos de todos os católicos conscientes cionados com a história deuteronomista, têm
e comprometidos. sido colocados em questão. Neste sentido,
Januário dos Santos algumas questões se colocam: Quando e em
que mãos tomaram forma os dois Livros dos
Reis? Que fontes estavam acessíveis para
GREEN, Joel B. (ed.) – Hearing the New os seus autores? Como é que os dois livros
Testament: Strategies for Interpreta- se encaixam na história da qual eles fazem
tion. Eerdmans, Grand Rapids 2010, parte? O que é, no fim de contas, a história
432 pp. deuteronomista?
Em Soundings in Kings, os seus editores
Joel Green, editor desta obra, é professor congregaram as opiniões de diversos espe-
de interpretação do Novo Testamento no cialistas, os quais trataram de fazer diversas
Center of Advanced Theological Studies. aproximações a estas questões, identificando
Em Hearing the New Testament, um distinto novos métodos e modelos para reconhecer a
grupo de investigadores introduz e ilustra localização social dos autores (ou redacto-
um conjunto de vários métodos e estratégias res) dos Livros dos Reis. Por outro lado, os
utilizados, actualmente, no estudo do Novo referidos autores apontam caminhos para a
Testamento: crítica textual, métodos histó- investigação acerca dos textos que compõem
ricos, entre outros. Porém, à metodologia estes Livros.
clássica, podemos ver as abordagens mais Ricardo Marques
recentes neste tipo de estudos: hermenêuti-
ca latina, interpretação teológica do Novo

140
L IVROS N OVOS

RITO DIAS, Frei Manuel – Cânticos da do projecto de publicação dos manuscritos


Mãe Terra: as 159 cores dos Salmos. do Mar Morto. É autor de The Greek and
Difusora Bíblica 2011, 208 pp. Hebrew Bible – Collected Essays on the
Septuagint. Tem diversas obras e colabora-
Este livro, como explica o Autor, nasceu ção especializada nestas matérias em muitas
da “Palavra de Deus, semeada, vivida e publicações. Este volume teve a primeira
novamente semeada com e nas pessoas que edição em 1992 e nesta terceira edição
me acompanharam nos últimos tempos de incorpora todo o progresso dos estudos dos
missão na mãe Terra de Timor-Leste”. últimos 20 anos. Obra de catedrático para
É uma reflexão-oração dos 150 salmos especialistas e académicos, a obra consta de
bíblicos que nos faz descobrir algumas das tem 9 capítulos: 1-Introdução, 2-Testemu-
suas maravilhosas cores e nos abre o cami- nhas textuais, 3-História do Texto Bíblico,
nho para outras descobertas. 4-Copiar e Transmitir o Texto Bíblico,
Com um estilo próprio, salmódico, o 5-Teoria e prática do criticismo do Texto,
Autor transporta sentimentos dos salmos 6-Avaliação das Leituras, 7-Criticismo
para o nosso tempo e reflecte à sua luz os textual e literário, 8-Emendas conjecturais,
problemas hodiernos. Um belo livro para 9-Edições académicas e não académicas,
reflectir e rezar em Grupos Bíblicos, em 10 Ferramentas de computadores para o
família ou até individualmente. Quanto criticismo textual. Basta o nome de Em-
mais lidos e saboreados mais os salmos se manuel Tov para recomendar qualquer dos
nos apresentam como uma fonte de vida em seus escritos.
todas as dimensões. Os livros de Taylor e Chamberlain são
Januário dos Santos mais duas obras de muito valor da Hendrick-
son, benemérita de edições de Bíblias e estu-
dos bíblicos, ambas sobre a SEPTUAGINTA,
TOV, Emmanuel – TEXTUAL CRITI- a tradução da Bíblia Hebraica para Grego,
CISM of the HEBREW BIBLE. Third atribuída pela tradição a 70 tradutores, e que
Edition Revised & Expanded, Fortress ficou conhecida ao longo dos séculos como
Press, Minneapolis USA 2012, 481 pp. Bíblia dos Setenta ou Septuaginta, do nome
latino. São duas obras de especialistas para
TAYLOR, Bernard A. – ANALYTICAL LE- estudiosos. A de Taylor tem ligação com a
XICON to the SEPTUAGINT. Expanded de Emmanuel Tov acima referida. Os autores
edition with Word Definitions by J. Lust, do Novo Testamento usam a tradução da
E. Eynikel and K. Hauspie, Hendrick- Septuaginta em situações e contextos em que
son, Peabody, USA 2010, 592 pp. na linguagem grega popular da koiné (co-
mum à Septuaginta e ao Novo Testamento)
CHAMBERLAIN, Gary Alan – THE GRE- bastantes termos da Septuaginta já haviam
EK of the SEPTUAGINT: An Essential adquirido significado um tanto diferente. Daí
Addition to any Greek New Testament a necessidade de obras deste género para
Lexicon. Hendrickson, Peabody, USA, uso de estudiosos, tanto doutorandos como
2011,256 p. outros interessados.
Taylor é académico e investigador numa
Emmanuel Tov é Professor na Univer- universidade da Califórnia. Esta obra é parte
sidade Hebraica de Jerusalém e director dum amplo projecto sobre a linguagem da

141
LIVROS NOVOS

Septuaginta, sob a direcção de Emmanuel melhores elogios de especialistas na matéria.


Tov. Analisa todas as palavras que aparecem Tem escrito em obras da especialidade sobre
na Septuaginta: todas as formas e os tempos o grego da Septuaginta, e bastante sobre a
de cada verbo, formas de substantivos, no- Bíblia na vida pastoral, como o livro “Os
mes, prenomes e partículas. Nesta terceira Salmos: uma nova tradução para a Oração
edição inclui, tirado de dicionário recente, o e Celebração”. Começa por dizer, no pre-
significado das palavras-mães de que apare- fácio, que a sua obra é complementar dos
cem as diferentes formas de tempos verbais bons dicionários. As primeiras 185 páginas
ou género e número dos nomes. são de Léxico e seguem-se 80 páginas com
Chamberlain, laureado pela universi- listagens de termos paralelos. Faz um duo de
dade de Boston, tem experiência de pastor, valor com a obra de Taylor que por seu lado
de académico e de homem de finanças e está dentro de estudos dirigidos por Tov.
negócios. Esta sua obra tem recebido os C.A.

EVANGELIZAÇÃO
CIPOLLONE, Giulio – ORLANDI, Clara de uma manifestação de vitalidade da Igreja
– Aborigeno com gli aborigeni: Per na Europa e, mais tarde, dos Estados Unidos
l’evangelizzazione in Australia. Libreria mas de uma dinâmica que engloba tanto os
Editrice Vaticana 2011, 498 pp. países de partida como os países onde se
desenvolve a actividade evangelizadora.
Este belo volume cartonado de 17,5 x 25 “A edição é precedida de uma longa
cm faz parte da colecção “Atti e Documenti” introdução que constitui um verdadeiro
do “Pontifício Comitato di Scienze Stori- modelo quanto aos critérios a respeitar
che” que, desde o início da sua actividade em para a recolha da documentação, o firmar o
1986 já publicou mais de 30 títulos. texto, o tomar em consideração a historio-
Este livro é uma edição crítica da “par- grafia recente, a identificação do autor e a
ticolarizzata Relazione” redigida em 1883, contextualização”.
para a Congregação de Propaganda Fide por Surpreende-nos nesta pormenorizada
Mons. Rudesindo Salvado, abade nullius da relação não só a imensa dedicação de Mons.
missão beneditina de Nova Norcia, Austrália Salvado e dos seus missionários que, imitan-
Ocidental. do S. Paulo, se fizeram tudo para todos para
Esta publicação representa o reconheci- ganhar o maior número para Cristo, mas os
mento do esforço missionário para levar a problemas que já nesse tempo levantavam e
mensagem de Cristo a todos os povos. Não de que a história lhes veio a dar razão.
se trata de um apêndice do cristianismo ou Januário dos Santos

HISTÓRIA DA IGREJA
TABBERNEE, William – Prophets and William Tabbernee é um prestigiado
Gravestones: An Imaginative History of autor e especialista em História do Cristia-
Montanists and Other Early Christians. nismo, sendo, também, autor de obras como
Hendrickson Publishers, Peabody 2009, Montanist Inscriptions and Testimonia:
338 pp. Epigraphic Sources Illustrating the History

142
L IVROS N OVOS

of Montanism e Fake Prophecy and Polluted bem como as suas experiências quotidianas.
Sacraments: Ecclesiastical and Imperial Deste modo, Tabbernee procurou desvelar
Reactions to Montanism. as razões pelas quais a mensagem cristã
Neste livro, Tabbernee trouxe consigo era considerada tão perigosa, ao longo de
as suas imensas décadas de estudo sobre tantos séculos.
personalidades cristãs, como Priscilla, Ma- Trata-se de uma obra bem escrita, com-
ximmilla e Montanus, bem como os seus posta por trinta e oito capítulos, que ilustra
seguidores, mostrando a sua relação e a sua as principais dificuldades vividas pelas
vivência na época do Império Romano. Po- comunidades cristãs primitivas, no contexto
rém, o autor procurou recrear para o leitor o do Império Romano.
mundo em que viviam aquelas personagens, Ricardo Marques

ORAÇÃO E PREGAÇÃO
SPROUL, R.C. – The Holiness of God + como vocação à filiação e santidade em que
Chosen by God + Pleasing God. Three o homem pode entrar, potenciado por essa
volumes in one: Classic Teachings on escolha filial divina, embora sendo incapaz
the Nature of God. Hendrickson, Pea- de lá chegar pelos seus próprios esforços.
body 2010, 400 pp. Karen Moore, de formação metodista, é
leiga activista, empenhada na formação de
MOORE, Karen – Wellspring: 365 Medi- grupos, e tem mais de meia centena de obras
tations to Refresh your Soul. Abingdon com essa finalidade. Este volume intitulado
Press, Nasshville, USA 2011, 365 pp. Wellspring tem uma página de meditação
para cada dia dos 365 do ano, sobre textos
TROEGER,Thomas H. – Sermons Sparks: da Bíblia, apresentados em estilo agradável.
122 Ideas to Ignite your Preaching. Troeger é catedrático de comunicação cristã
Abingdon Press, Nashville, USA 2011, na faculdade de Teologia da universidade de
148 p. Yale. Bastaria isso para o recomendar, mas
é também pastor e pregador, nas Igrejas
Três obras que abordam a animação da presbiteriana e episcopaliana, tem duas de-
vivência cristã nos dias de hoje na América, zenas de volumes sobre pregação, é músico,
em que a religião tenta acompanhar o desen- cantor, regente, organista. Presidiu a várias
volvimento humano, científico e tecnológi- academias e sociedades de homilética. Neste
co. Sproul é pastor, pregador, e fundador volume inclui 152 breves sermões, concisos
e animador dum dos novos movimentos e incisivos, um para cada domingo do ano,
evangélicos (ministérios), na Flórida, com seguindo o Leccionário comum das igrejas
emissões radiofónicas para todo o mundo, reformadas para os três ciclos A, B, C, se-
às quais se dedica juntamente com a sua melhante aos da Igreja Católica.
esposa. Junta aqui três temas. Desenvolve C.A.
com agudez o tema da santidade de Deus e
o apelo divino à santificação do homem que
Deus escolhe, vocaciona, predestina e salva.
Consegue explicar bem a predestinação

143
LIVROS NOVOS

SAGRADA ESCRITURA
BRINTON, Henry G.; YIEH, Jonhy Y. H. Ao longo de oito capítulos, Evans apre-
– Revelation. Abingdon Press, Nashville sentou um texto sintético, que ajuda o leitor
2011, 112 pp. a compreender um pouco melhor a teologia
paulina e a reflectir sobre as principais ques-
Este livro é o resultado de uma obra tões presentes nos referidos documentos do
dedicada ao livro do Apocalipse, tendo sido Novo Testamento.
composta por dois autores, especialistas na Ricardo Marques
área bíblica. A obra está dividida em oito
capítulos e aborda algumas das principais
temáticas incluídas no último livro do câ- I NDERMARK , Jonh – Luke. Abingdon
none bíblico. Press, Nashville 2011, 103 pp.
Henry Brinton é pastor da igreja pres-
biteriana em Fairfax, situada no estado da Jonh Indermark é um escritor e pastor
Virginia, e, simultaneamente, colunista ordenado na Igreja Unida de Cristo e, simul-
regular no jornal Homiletics. Ele é, também, taneamente, autor dos livros Turn Toward
autor do livro Balancing Acts: Obligation, Promise, Traveling the Prayer Paths of
Liberation, and Contemporary Christian Jesus, Genesis of Grace, entre outros.
Conflicts. Por sua vez, Jonh Yeh é professor Nesta obra, o Autor dedica a sua atenção
do Novo Testamento no Virginia Theologi- ao evangelho de Lucas, procurando sinteti-
cal Seminary, em Alexandria. zar as suas principais mensagens. O livro
Este livro é uma obra sintética, mas está dividido em oito capítulos, que vão
interessante e uma boa introdução ao livro desde a infância de Jesus até à sua Paixão,
do Apocalipse. passando pelo chamamento dos discípulos,
Ricardo Marques entre outros aspectos.
Trata-se de uma boa reflexão sobre o
evangelho de Lucas, apesar de escrita em
EVANS, James L. – 1 Corinthians, 2 apenas 103 páginas.
Corinthians. Abingdon Press, Nashville Ricardo Marques
2011, 95 pp.

James Evans é um pastor da igreja KALAS, J. Ellsworth – Matthew. Abing-


Baptista, na região do Alabama, situada don Press, Nashville 2010, 111 pp.
nos Estados Unidos da América. Embora
não seja ainda um autor muito conhecido J. Ellsworth Kalas é professor de ho-
no mundo científico e académico, Evans milética no Asbury Theological Seminary
tem escrito, regularmente, algumas colunas e, simultaneamente, pastor metodista, há
nos jornais. Por outro lado, Evans é co-autor mais de trinta anos. Sendo autor de vários
de uma colecção de Homilias baseadas nos estudos, esta obra é uma pequena síntese
salmos, intitulada Hear My Voice. sobre o evangelho de Mateus.
Neste livro, o autor reflectiu sobre as O livro é constituído por oito capítulos,
duas Cartas aos Coríntios, ao longo de 95 os quais percorrem toda a vida de Jesus, no
páginas. evangelho de Mateus. O primeiro capítulo

144
L IVROS N OVOS

é dedicado ao nascimento de Jesus. Por sua contribuído com as suas investigações para
vez, os capítulos seguintes dedicam-se aos a Wesley Study Bible. Autor de diversas
episódios mais significativos da vida de obras, entre as quais se encontra o livro
Jesus, com particular relevo para o sermão Jesus Reads Scripture (2003), Powery viu,
da montanha e o anúncio da vinda do Reino recentemente, o seu trabalho ser reconhecido
de Deus. Por fim, como não poderia deixar pelo Princeton Theological Seminary e pela
de ser, o livro dedica o seu último capítulo Duke University.
à morte e ressurreição de Jesus. Nesta obra, o autor escreveu um pequeno
Trata-se de um bom livro, no qual estão comentário acerca do evangelho de Marcos,
sintetizados e comentados os principais tendo-a estruturado em oito capítulos, dos
trechos do evangelho de Mateus. quais se destacam os dois últimos, dedica-
Ricardo Marques dos à Paixão de Jesus, à sua Crucificação e,
posteriormente, à sua Ressurreição.
Trata-se de um curto comentário, escrito
MCANN JR., J. Clinton – Psalms. Abing- em 101 páginas, que se lê com relativa faci-
don Press, Nashville 2011, 111 pp. lidade. Por outro lado, estamos na presença
de uma boa obra, na qual se encontram sin-
J. Mcann é professor de interpretação tetizados os principais trechos do evangelho
bíblica no Eden Theological Seminary, de Marcos.
sendo internacionalmente reconhecido pelos Ricardo Marques
estudos que desenvolveu sobre os salmos.
Mcann é, também, autor de numerosas pu-
blicações, incluindo a obra A Theological 1 – STAMPS, Donald (Editor) FIRE BIBLE:
Introduction to the Book of Psalms: The Global Study Edition – New Interna-
Psalms as Torah. tional Version, hardcover, Hendrickson
Como ministro ordenado na igreja Bibles, Peabody USA+Life Publishers,
presbiteriana, Mcann tem servido como Springfield USA 2010, 2784 pp.
consultor e tradutor dos salmos na Common
English Bible. 2 – STAMPS, Donald (Editor) FIRE BIBLE:
Neste livro, o autor elaborou, de modo Student Edition – New International
sucinto, um texto sobre a teologia e interpre- Version, gray/pink flexisoft, Hendrickson
tação dos salmos. Ao longo de oito capítulos, Bibles, Peabody USA+Life Publishers,
o autor sintetizou alguns dos principais te- Springfield USA 2010, 2294 pp.
mas reflectidos nos salmos. Trata-se de uma
introdução simples e acessível ao saltério.
3 – STAMPS, Donald (Editor) FIRE BIBLE:
Student Edition – New International
Ricardo Marques
Version, paperback, Life Publishers
International, Springfield USA, 2010,
2294 pp.
POWERY, Emerson B. – Mark. Abingdon
Press, Nashville 2011, 101 pp.
4 – HOLY BIBLE – New Revised Standard
Emerson Powery é professor de estu- Version, paperback, Hendrickson Bibles,
dos bíblicos no Messiah College, tendo Peabody USA 2011, 897 pp.

145
LIVROS NOVOS

5 – KJV DEVOTIONAL BIBLE – King James as Igrejas incluindo católicos. Apresenta-se


Version, Hendrickson Bibles, Peabody como a melhor tradução em Inglês actual
USA 2011, 1653 pp. elaborada por autores especializados de
todas as Confissões.
6 – CEB, HOLY BIBLE – Reference Bible, Para os Ingleses, depois da separação de
Common English Bible, bonded leather Roma e da proclamação da independência
black, 2011,1476 pp. da Igreja Anglicana, a Bíblia clássica du-
rante séculos é a BIBLIA KJV (King James
7 – CEB, HOLY BIBLE – Reference Bible, Version). Publicada em 1611, tornou-se a
Common English Bible, paperback, vulgata da Igreja Anglicana até ao presente.
2011, 1197 pp. O seu texto é um dos textos clássicos da
língua inglesa e teve influência nos maiores
São sete edições da Bíblia na América, escritores das Ilhas britânicas. Encontra-se
as cinco primeiras da grande editora Hen- profusamente nos templos, nas livrarias, nas
drickson que, nos últimos 20 anos, pelo seu casas, nos bancos das escolas, nos quiosques
departamento de Bíblias, tem publicado das ruas, nos lugares públicos, a começar
dezenas de Bíblias e dezenas de séries de pelo parlamento. Foi publicada em 1611
comentários e estudos bíblicos, de que temos por ordem do rei James I que lhe conferiu a
apresentado um bom número nesta revista. sua autoridade, como os Papas e Concílios
O Cristianismo nos USA, desde as formas haviam conferido a sua autoridade à Vulga-
mais antigas e tradicionais até às formas ta. É ainda hoje bastante usada, com muita
mais recentes, evangélicas e pentecostais, veneração, em todas as partes do globo
tem raízes bíblicas que lhe dão dinamismo. aonde chegou a língua inglesa. Teve algumas
O autor/editor da FIRE BIBLE, Stamps, foi revisões autorizadas e aprovadas pela Igreja
missionário pentecostal no Brasil. Não será de Inglaterra, presidida pela autoridade do
arriscado dizer que o segredo da difusão do rei. O contexto dum novo mundo na América
evangelismo e pentecostalismo na América fez surgir novas revisões de linguagem e em
do Sul e noutras partes do mundo brota 1901 surgiu a American Standard Version.
muito da profusão e explicação de textos Em 1952 foi publicada em Inglaterra, com
bíblicos com aplicação à vida concreta, revisão mais profunda, a Revised Standard
método seguido pelo evangelismo das Igre- Version. Os estudos bíblicos levaram a
jas reformadas de inspiração calvinista por ulteriores revisões aprovadas: International
todas as partes do globo, fácil de observar Version, New International Version, New
por católicos que convivem ou missionam Standard Version, etc. Todas estas versões
ao seu lado. correm no mercado e nas mãos dos cristãos
As edições acima listadas procedem das diversas confissões, tal como acontece
todas das igrejas reformadas. A Bíblia dos com as diferentes versões aprovadas pela
n.ºs 6 e 7 (é o mesmo texto bíblico, em for- Igreja Católica. Daí que seja importante que
ma luxuosa e vulgar), é tradução em Inglês cada edição do Bíblia em Inglês indique bem
actual para ser entendido pelas gerações de claro de que versão se trata. Os cristãos e
hoje no seu contexto cultural. A sua ela- os leitores em geral exigem essa indicação.
boração esteve a cargo de uma Comissão As Bíblias dos n.ºs 1, 2 e 3, listadas acima,
patrocinada por seis Igrejas reformadas. especificam a versão que usam. Da mesma
Nas traduções trabalharam peritos de todas forma as dos n.ºs 4 e 5. A dos n.ºs 6 e 7 é

146
L IVROS N OVOS

novidade na língua inglesa afastando-se do notas muito claras e elucidativas em cada


paradigma clássico e criando nova classe página e abundante indicação de lugares
de Bíblias. paralelos numa coluna ao alto no meio da
Os estudos bíblicos têm tido enorme página. A sua finalidade é preparar evan-
desenvolvimento em Inglaterra e sobre- gelizadores.
tudo na América e, por contágio, também As Bíblias dos n.ºs 4 e 5 são edições
nos outros países de língua inglesa, como da Bíblia de leitura agradável, apenas com
Canadá, Austrália ou África do Sul. A Bí- uma ou outra nota de rodapé sobre o texto,
blia faz parte dos programas de estudos em tal como as edições clássicas. A do n.º 5 é
todas as escolas públicas ou privadas. Todas o texto clássico e genuíno da King James
as universidades estatais ou privadas têm Version. O adjectivo “devotional” significa
faculdades de Teologia e de Bíblia. Todos que a Bíblia é o caminho de encontro do
os anos as grandes editoras, umas con- ser humano para Deus e conduz à genuína
fessionais e outras puramente comerciais, devoção a Deus.
publicam centenas de obras sobre a Bíblia. Nota curiosa é que as edições luxuosas,
As edições científicas de Estudos Bíblicos e n.ºs 2 e 6, com luxuosa encadernação e
respectivas Bíblias têm grande procura em douradas, bem manejáveis, a revelar tecno-
todas as confissões das igrejas reformadas, logia apurada, são impressas na China, tal
tanto clássicas como actuais, sucedendo o como outras edições já apresentadas nesta
mesmo com os católicos. revista. É de augurar que por lá fiquem
A FIRE BÍBLE dos n.ºs 1, 2 e 3 é es- algumas cópias estragadas que os operários
plêndida edição de estudo, como indica o vão lendo.
título. Destina-se a todos os que queiram C.A.
aprofundar o conhecimento da Bíblia com

TEOLOGIA
HECKEL, Johannes – LEX CHARITATIS: te. Em 1973 fez-se uma segunda edição,
A Juristic Disquisition on Law in the incorporando mais estudos. Esta tradução
Theology of Martin Luther. Translated inglesa, a cargo de catedráticos, é tradução
and edited by Gottfried G. Krodel, dessa segunda edição. São 132 páginas do
William B. Eedermans, Grand Rapids, texto original de Heckel, em 3 partes e 14
Michigan, USA/Cambridge, UK 2010, capítulos, a que ele próprio juntou dois
566 pp. apêndices de 11 páginas. O organizador da
segunda edição, Martin Heckel, juntou-lhe
Para apresentar uma obra tão densa de mais cinco apêndices, com 90 páginas, que
Johannes Heckel, basta dizer que ela existe desenvolvem a teoria de Lutero sobre os
agora também em tradução inglesa recente. Dois Reinos. O volume termina com 230
Heckel (1889-1963), catedrático de Direito páginas de notas e índices.
Público na universidade de Munique, na C.A.
Alemanha, escreveu esta obra em 1953,
continuando a desenvolver o estudo deste
assunto por mais dez anos até à sua mor-

147
L IVROS N OVOS

VÁRIOS
BERCIANO, Ignacio – Aprendiendo a Beatriz Garrido é doutorada em ciências
Morir. Desclée de Brower, Bilbao 2009, da educação e especialista em desenvolvi-
119 pp. mento de habilidades emocionais, no âmbito
da inteligência emocional. Garrido é autora
Berciano é médico, perito em criminolo- de diversos artigos, dos quais se destacam:
gia. No seu currículo conta-se mais de vinte “Autocontrol e su influencia en el rendi-
anos de experiência profissional, compagi- miento académico”; “Amor, respeto y dis-
nando a medicina pública e a medicina pri- ciplina: três herramientas para el desarrollo
vada. Berciano é, também, autor de diversas de la empatia”; “Inteligencia emocional y
obras, das quais se destaca o livro Atrapando educácion”.
la felicidad com redes pequeñas. Neste livro, a autora aborda diversas
A morte sempre foi um drama para a perspectivas, fundamentais para o desenvol-
humanidade, sobretudo, talvez, para aque- vimento integral da pessoa humana: o conhe-
les que não têm fé. Todavia, a morte é algo cimento próprio; o autocontrolo e o equilíbrio
tão natural como o nascimento para a vida. emocional; a capacidade de auto-motivação;
Nesta obra, de um modo simples, o autor a constância; a capacidade para reconhecer e
procura reflectir sobre a morte. compreender os sentimentos dos demais.
O livro encontra-se dividido em doze A obra dirige-se, especificamente, às
capítulos, abordando algumas temáticas famílias, sobretudo as que não conseguem
fundamentais: morte e religião; morte e desfrutar da companhia dos seus diversos
sociedade; morte, rito e cerimónia; o sui- membros, e famílias que se encontram a
cídio; experiências extrassensoriais; morte passar por situações difíceis, cuja solução
e medicina. parece estar longínqua. Trata-se, por isso,
Ricardo Marques de uma ferramenta que ajuda a educar a
inteligência emocional, numa espécie de
manual de sentido comum.
GARRIDO, Beatriz Serrano – Inteligencia
emocional. Una herramienta para la Ricardo Marques
educación familiar. San Pablo, Madrid
2009, 245 pp.

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