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A função terapêutica na e da comuni-

dade cristã
The therapeutic function in and of the Christian community

La función terapéutica en la y de la comunidad cristiana


Josias Pereira

RESUMO
Em preparação.
Palavras-chave: Em preparação.

ABSTRACT
In preparation.
Keywords: In preparation.

RESUMEN
En preparación.
Palabras clave: En preparación.

32 John COBB, jr. Pontos de Contacto entre a Teologia do Processo e...


conseqüente estado de equilíbrio
[Edição original página 29]
psicossomático.
Quanto à CURA DIVINA, o que podemos
Ao abordar o tema em apreço sinto-me
entender é que seria aquela cura produ-
constrangido a questionar inicialmente o
zida pela intervenção de Deus, direta ou
aspecto conceituai de CURA, CURA
através de um agente espiritual. Aqui,
DIVINA e TERAPÊUTICA.
levanta-se o seguinte questionamento:
Quanto à Cura, podemos entender que
se a comunidade é religiosa e a religião
curar significa libertar a pessoa das a-
pressupõe uma relação efetiva com
marras da doença e obter a saúde, o
Deus, toda cura nela ocorrida é DIVINA,
que nos conduz, naturalmente, a refletir
vem d e Deus pela ação do Espírito San-
sobre o que é saúde e o que é doença, e
to.
se pode haver alguém plenamente sadio
A proposta aqui é discorrermos sobre A
ou plenamente doente. Assim, pois, sa-
FUNÇÃO TERAPÊUTICA NA E DA
úde seria a ausência da doença e doença
COMUNIDADE CRISTÃ. Entendendo-se
a ausência da saúde. Entretanto, o que
que terapêutica compreende o estudo e
parece mais adequado é que o fenôme-
a prática de meios adequados para ali-
no é relativo, isto é, todos nós estamos
viar ou curar os
mais ou menos saudáveis ou relativa-
mente doentes, tanto no aspecto indivi- [Edição original página 29/30]
dual quanto no comunitário. Também,
devemos considerar que a questão não doentes, esta é, efetivamente, função
deve ser encarada no aspecto quantita- preponderante da comunidade cristã.
tivo propriamente dito, mas sim numa Aqui, porém, dois aspectos devem ser
perspectiva qualitativa, ou seja, o que encarados: de um lado é a prática co-
deve contar é a qualidade de vida das munitária de auto-cura, é o processo in-
pessoas e da comunidade. terno, é a busca da saúde daquela de-
terminada comunidade que, por sua
1. Questão Conceitual vez, é agente terapêutico de uma co-
munidade maior que extrapola o círculo
Portanto, a cura das doenças se mais restrito para um mundo mais am-
constitui numa busca constante na vida plo e mais complexo.
comunitária. É a busca da saúde, apesar Clinebell' refere-se à POIMÊNICA
da doença. É a otimização da qualidade como atividade fundamental da comuni-
de vida que se concretiza numa realida- dade, pois é o "ministério inclusivo dire-
de mais saudável. Outro aspecto é que cionado à cura de males que atingem as
na conceituação de saúde/doença esta- pessoas e ao crescimento de cada um
mos concebendo o ser humano, como numa troca mútua de experiências du-
um ser total e que a saúde só é alcan- rante a vida toda da comunidade".
çada quando todos os aspectos de sua Assim podemos entender a comu-
personalidade são atingidos, o que re- nidade cristã como uma comunidade de
dunda num estado de harmonia com o cura, portanto terapêutica. A poimênica

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compreende a ação constante do grupo Mas, ao abordarmos o tema em
numa relação de troca que proporciona questão, somos conduzidos a olhar para
crescimento constante no cotidiano, e a comunidade cristã e vê-la constituída
isto se constitui numa necessidade per- de homens e mulheres que são natural-
manente. Daí, podemos admitir com as- mente seres humanos normais, isto é,
sertividade que a igreja deve ser devi- cheios de aspectos saudáveis e doenti-
damente salugênica. Mas, não é somen- os, cheios de qualidades e defeitos.
te à cura das doenças que a terapêutica Portanto, em todo o ser humano há
deve se ater, ela é importante, necessá- aspectos patogênicos e salugênicos e,
ria e até indispensável, mas a caminha- como a igreja, enquanto Comunidade
da deve ir um tanto além, deve haver Cristã, é o somatório de todas as pesso-
preocupação profilática, deve haver uma as que a compõem, é também patogêni-
conduta que procure evitar a doença e ca e salugênica. Parece-me ingenuidade
promover a saúde. a concepção simplista de aue a comuni-
"Eu vim para que tenham vida e dade cristã é plenamente saudável e sa-
esta em abundância" (Jo. 10.10) são as lugênica. Ela é humana, portanto imper-
palavras do Cristo. E a vida em abun- feita e doente, por isso carece sempre
dância compreende a integralidade do da graça
ser, onde a pessoa inteira deve estar
[Edição original página 30/31]
bem, o que só é alcançado quando se
está em harmonia com Deus, com o
preveniente e sustentadora. "Os sãos
mundo e consigo mesmo e, neste senti-
não precisam de médico" (Mat. 9.12) já
do, somos convidados a refletir sobre as
afirmava o médico dos médicos. 1
questões espirituais. É o crescimento
Mas esta comunidade assim doente
espiritual, pois a comunidade cristã não
é aquela que, reconhecendo sua fragili-
pode conceber o mundo e as pessoas no
dade e sua dependência do poder
mundo sem visão clara do ser humano
incomensurável de seu Senhor, propõe-
como um ser espiritual, como a imagem
se a ser também salugênica.
e semelhança de Deus. Mas também
Jorge A. León, em seu livro "Psico-
não pode ter uma visão espiritualista,
logia Pastoral de la Igresia"2 faz referên-
cuja materialidade passa a ser negada.
cia interessante à Igreja como enfer-
A vida abundante é aquela que abrange
ma/enfermeira. Na verdade, a terapeuta
todos os aspectos do ser. Proporcionar
não é uma pessoa perfeita, mas sim
cura e crescimento espiritual é tarefa
uma pessoa que, conhecendo e reco-
central da comunidade cristã, mas sem
nhecendo muitos de seus aspectos do-
dicotomias; a visão precisa ser uma vi-
são holística. Portanto, quando falo em
função terapêutica, estou me referindo
aos aspectos curativos e profiláticos das 1
Clinebell, J. Howard, Aconselhamento Pasto-
doenças. ral: Modelo Centrado em libertação e Cres-
cimento, Paulinas Sinodal 1987, SP/RS.
2. A comunidade de cura 2
León, Jorge A., Psicologia Pastoral de la I-
gresia, Editorial Canbe, Miami, 1978.

34 Josias Pereira. A função terapêutica na e da comunidade cristã


entios, propõe-se desempenhar o traba- deve ser aceito de forma conformista e
lho de cura, desenvolvendo, assim, seu passiva. Todos devem ser levados a
potencial salugênico. É exatamente por compreender o sofrimento, e sua com-
reconhecer-se doente que a comunidade preensão conduz, naturalmente, ao alí-
vai desenvolver o seu potenci3al em vio da dor, à cura da ferida.
Oireção à cura, à saúde. Uma comuni-
dade de cura é aquela que reconhece Assim pois, a missão da igreja é li-
sua realidade patológica e, por isso bertar os seres humanos de suas amar-
mesmo, tem experiência suficiente para ras e as doenças são verdaOeiras amar-
caminhar em direção à saúde. Ela tem ras que escravizam e submetem as pes-
experimentado a dor da enfermidade de soas.
tal forma que pode avaliar a importância
da saúde. Saúde e doença são dois o- 3. A fé como instrumento
postos que coexistem e que só podem
terapêutico
ser entendidos, um à luz do outro.
A comunidade enferma/enfermeira
A fé por natureza é terapêutica. É
caminha em busca da cura, e tal busca
próprio da fé produzir cura, ela é tam-
redunda naturalmente numa ação cura-
bém salugênica.
tiva e preventiva, tanto dentro de si
Proponho que a fé, como instru-
mesma como na comunidade maior on-
mento terapêutico, deva ser devida-
de aquela está situada. Esta visão deve
mente cultivada na comunidade. Defen-
levar em consideração que, embora
do a tese de que a fé é um fenômeno
nosso enfoque esteja na comunidade, a
psicológico, sem contudo ser anulada a
cura se processa individualmente, são
sua transcendenta-lidade e que, por isso
os indivíduos pessoalmente que são cu-
mesmo, é atributo exclusivo de um ser
rados.
racional, mas que também transcende à
Aqui, cabe também uma reflexão
razão. A pessoa crê não porque quer,
sobre o sofrimento, pois ninguém está
mas sim por impulsos inconscientes, que
isento dele. A comunidade cristã, como
a conduzem a confiar no ser superior no
qualquer outro grupo humano, está su-
qual depõe sua fé.
jeita a sofrimentos, a dor de qualquer
espécie, a frustrações e tantos outros [Edição original página 31/32]

desencontros. Onde há vida a morte es-


tá presente e a doença é sempre sinal A transcendência e a subjetividade
de morte. de Deus não anulam, em hipótese al-
Mas, embora o sofrimento seja guma, sua realidade existencial e sua
uma realidade presente e inevitável, não concretitude na alma do crente. Pois,
embora, estando além da compreensão
racional é uma presença real e concreta
no âmago da existência do ser que crê.
³Jung, C. G., Psicologia da Religião Ocidental Assim afirma Jung (1960): "Não preciso
e Oriental, 2g Edição, Vozes, Petrópolis, 1983,
pp. 645, 646. crer em Deus; eu sei (...)""(...) é nele

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que penso, é por Ele que chamo, todas resposta seja o atendimento ao deseja-
as vezes que invoco seu nome, nos do, isto é, a entidade superior responde-
momentos de medo ou de raiva, todas rá, mas sempre de acordo com sua sa-
as vezes que digo espontaneamente: "Ó bedoria que poderá ser até contrária ao
Deus" "É sabendo da existência do con- desejo do crente. Erich Fromm (1968),
fronto com uma vontade superior em referindo-se à fé, afirma que "quando a
meu próprio sistema psíquico que eu esperança desaparece, a vida termina,
conheço a Deus(...)"3. na realidade ou potencialmente", pois, a
É por estas sendas que podemos esperança "está intimamente ligada a
palmilhar em direção à maior lucidez do outro elemento da estrutura da vida: a
fenômeno fé como instrumento terapêu- fé". Ele define a fé como "a convicção
tico. Para tanto, cabe aqui uma análise sobre o que ainda não foi provado", "é a
da fé dentro da visão da psicologia certeza do incerto". Afirma ainda que "a
hodierna. Também se faz necessário um esperança é o estado de espírito que
entendimento sobre a conexão existente acompanha a fé. A fé não poderia ser
entre a psicologia e a religião, já que a sustentada sem o estado de espírito da
fé a que nos referimos se constitui em esperança. A esperança não pode base-
conteúdo fundamental do sentimento ar-se senão na fé"4.
religioso; não é possível pensar-se em Entretanto, tal realidade não se
fé sem religião e nem tampouco em re- processa simplesmente por uma decisão
ligião sem fé. Pois a fé compreende con- consciente e espontânea do indivíduo,
teúdos conscientes e inconscientes a ní- mas sim por impulsos mais profundos
vel da relação do sujeito com o ser su- oriundos de substratos inconscientes
perior, Deus, a realidade exterior, a so- imperceptíveis a nível da razão ou da
ciedade, e a realidade interior, o "eu". realidade racional. Pois, transcende a
Assim, pois, podemos compreender vontade em favor de necessidades im-
a fé como uma atitude de confiança periosas do sujeito, que o constrange a
num ser, que embora invisível é percep- crer (ter fé), independentemente das
tível em forma de sentimento interior conseqüências de tal fé.
que transcende a razão, mas que só po- Ainda no contexto do sentimento
de ser vivenciada por um ser racional. religioso é sabido que as manifestações
A fé está intimamente relacionada religiosas estão presentes em todas as
com a esperança. Não é possível conce- culturas e desde os primórdios da exis-
ber a fé sem a esperança; quem crê, tência humana. Sempre o numinoso es-
espera. Também não é possível ter es- teve presente na humanidade como par-
perança sem fé. A esperança é o senti- te integrante de sua existência. Mesmo
mento animador de que o que se espera
pode acontecer, tal como a fé que é a
convicção de que o ser supremo res-
ponderá com certeza ao desejo do cren-
4
Fromm, Erich, A Revolução da Esperança, 4g
te, sem contudo, ser a certeza de que a
Edição, Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1981, pp.
31, 32.

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nas culturas mais evoluídas, e até na- num fenômeno essencialmente religioso.
quelas que pretendem negar a existên Mas a religião que é manifesta na religi-
osidade através de símbolos é oriunda
[Edição original página 32/33]
de substratos mais profundos do incons-
ciente e que por isso mesmo deve ser
cia da divindade, o espiritual do ser se
entendida como fenômeno psicológico.
exterioriza, esta manifestação assume
Pela fé, o ser exterioriza seus sentimen-
as mais variadas formas, não só pelos
tos mais profundos em atos e atitudes
estereótipos cristalizados ao longo do
que transcendem à própria razão. O ser
tempo, mas também por deslocamentos
crê, espera, confia, sem certeza, mas
para objetos tidos como não religiosos
com convicção na resposta inexorável do
que resultam em práticas e rituais apa-
Deus no qual ele põe sua esperança.
rentemente materialistas, porém subje-
A religiosidade, o sentimento religi-
tivamente o significado é religioso. O
oso como manifestação do numinoso
objeto e a forma podem mudar, mas o
presente no recôndito mais profundo do
conteúdo espiritual constituído de subs-
ser, é uma confirmação da responsivi-
tratos inconscientes profundos que é a
dade do inconsciente às necessidades
fonte energética proveniente do ponto
mais prementes do sujeito que crê. A
de ligação entre o divino e o humano,
psique manifesta por processos psicoló-
continuam sempre a mesma. É de lá,
gicos os anseios essenciais do indivíduo
daquele lugar, daquele mui especial re-
por meio de mecanismos apropriados,
canto de cada um, que emanam as mais
dos quais a fé é um deles, pois ela é, ao
profundas manifestações do numinoso.
mesmo tempo que busca, também exte-
Jung (1939), em seu estudo sobre
riorização do numinoso interior.
a psicologia da religião diz: "Visto que a
Assim, no que diz respeito aos as-
religião constitui, sem dúvida alguma,
pectos psicológicos da fé, não podemos
uma das expressões mais
ignorar que, no ato de crer, conteúdos
antigas e universais da alma humana,
emocionais são altamente envolvidos e
subentende-se que todo o tipo de psico-
que tais emoções estão intimamente li-
logia que se ocupa da estrutura psicoló-
gadas aos profundos sentimentos do su-
gica da personalidade humana deve pelo
jeito em decorrência de sua história de
menos constatar que a religião, além de
vida que envolve valores culturais, soci-
ser um fenômeno sociológico histórico, é
ais, pessoais e individuais. Daí, a nível
também um assunto importante para
psicológico, a fé se constituir num fator
grande número de indivíduos"5.
desencadeador de crise; é a crise da ex-
Assim, pois, ao estudar a fé como
pectativa. Alguém dirá: "Eu creio que
instrumento terapêutico o fazemos na
Deus responde, mas qual será a sua
compreensão de que ela se constitui
resposta?" "Eu quero confiar, mas a mi-
nha incerteza suscita a dúvida e, no au-
ge do conflito, eu me prostro inerte pe-
5 rante o poder inexorável do Deus onipo-
Jung, O G., Psicologia da Religião Ocidental e Orien-
tal, 2a Edição, Vozes, Petrópolis, 1983, p. 1.

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tente, e aí me entrego, e Ele me res- tua sem que um mínimo de energia
ponde. É a minha vitória porque veio de volitiva do próprio sujeito esteja atuan-
dentro de mim, mas também não é mi- do, isto é, a fé, embora seja uma mani-
nha vitória porque veio de minha fra- festação da divindade, não se processa
queza, pelo poder do Deus vitorioso, em absoluto sem que haja da parte do
mas é minha porque o Deus vitorioso crente um mínimo de vontade.
está dentro de mim". Assim, no ato de O livre arbítrio é sempre defendido
fé o divino e o humano se fundem den- pelas religiões. Nenhum indivíduo é
tro do próprio crente produzindo uma constrangido compulsoriamente a deci-
perfeita integração do que antes estava dir-se pela fé religiosa. A decisão por
cindido. O abatido e fraco se levanta vi- crer é sempre um ato espontâneo da
torioso e forte porque a centelha do di- pessoa. O grande pregador Toyohico
vino dentro de si mesmo é acesa e o ca- Kagawa orava assim: "Ó Deus, faze-me
lor da esperança toma forma, iluminan- como Cristo"6 e por um ato de profunda
do o caminho e abrindo perspectivas fé foi o verdadeiro Cristo para seu povo,
pois, esta foi sua vontade. Ele queria ser
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o Cristo de seu povo e pela fé o foi.
Ninguém pode negar que para a
para prosseguir. É um fenômeno essen-
recuperação do indivíduo decaído e do-
cialmente emocional, essencialmente
ente, indispensável será a sua vontade,
psicológico. Mas é verdadeiramente um
a sua disposição em recuperar-se. Sem
ato de fé.
tal potencial é quase impossível a cura.
Para se entender adequadamente a
Entretanto, tal potencial volitivo pode
fé sob uma visão científica não se nega,
ser desenvolvido por meio de
portanto, a atuação do numinoso e do
estimulações das camadas mais profun-
sobrenatural. Entretanto, em tal pers-
das da personalidade, cuja consciência
pectiva o sobrenatural e o numinoso não
religiosa se constitui em estímulo bas-
são vistos ou entendidos de forma espi-
tante suficiente para despertar a fé que
ritualista. Não é um poder que emana
resulta na satisfação do desejo de cura
de mundos estratosféricos invadindo a
dos conflitos.
vontade e a individualidade do sujeito,
dobrando-o de forma violenta e incon-
Também não se pode negar que a
seqüente. Não. É antes um poder sobre-
fé com muita freqüência é manifesta em
natural que está dentro do próprio sujei-
momentos de crise psicológica. É, mui-
to, fazendo parte de sua própria nature-
tas vezes, quando as tensões emocio-
za e que o move a uma crença conscien-
nais atingem o seu limiar desencadean-
te promanada do inconsciente. Tal con-
do o estado de crise, que o sujeito se
ceito não nega a possibilidade da ação
encontra em condições próprias para
sobrenatural de um Deus que é podero-
tomar uma decisão de fé. O estado de
so e opera por graça na vida da pessoa.
ansiedade decorrente do fenômeno
A graça poderosa que produz a fé não
conflitual impulsiona o sujeito à busca
violenta a vontade e nem tampouco a-
de solução para a sua problemática, cuja

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fé, então, oferece saída satisfatória, pois testável a mudança produzida no sujeito
ela não se limita aos parâmetros parcos a partir de uma experiência de fé, quan-
da condição humana, mas antes oferece to à visão de mundo, quanto à classifi-
um horizonte mais amplo e profundo cação de valores e especialmente de
onde o indivíduo vislumbra a transcen- sentimentos a nível aa afetividade, a-
dência da vida. Muitas questões ansió- gressividade, da sensibilidade e da per-
genas podem ser respondidas através cepção. Portanto, se há mudanças pro-
da fé. O mundo objetivo e concreto pode fundas no indivíduo, tudo dele e nele é
ser visto por uma perspectiva subjetiva atingiao. Não é possível, a nosso ver,
e abstrata através da fé que apresenta sob uma visão séria da psicologia, en-
respostas concretas e objetivas à tender-se um ato de fé que não envolva
subjetividade do transcendente, do nu- o ser total; não há dicotomia, o espiritu-
minoso. Pois a própria fé que nasce do al e o material fazem parte integrante
numinoso, como que numa realidade do ato de fé. Eu creio integralmente; é
misteriosa é o estímulo que impulsiona o todo o meu ser que crê.
sujeito a crer naquilo que aceita como Assim pois, a vida pode ser enten-
sua verdade. A fé que nasce da alma é a dida como o contínuo ajustamento entre
alavanca que move o indivíduo à deci- as relações internas e externas, o que
são. Ela é princípio e fim. Como antes já nos conduz a entendê-la como um pro-
afirmamos, a fé é um fenômeno trans- cesso dinâmico onde todos os aspectos
cendental, além da razão, mas só pode do ser estão num estado de completa
existir num indivíduo racional. Daí po- conexidade. Nada no indivíduo é inde-
dermos afirmar que a fé pendente; tudo funciona em relação a
todo o ser, porque o ser é um todo
[Edição original página 34/35]
completo, ainda que imperfeito e
intérmino. Mas o ser que é completo e-
transcende à razão, mas é atributo ex-
volui também em relação ao meio ex-
clusivo de um ser racional, portanto, fe-
terno, onde o sujeito busca, de alguma
nômeno psicológico.
forma, a satisfação de suas necessida-
Com freqüência quando se refere à
des em objetos que estão fora de si mas
fé o enfoque se atém ao fenômeno reli-
que, pela própria natureza de seu esta-
gioso e sobrenatural. Ela é sempre en-
do de ser, são complementos indispen-
tendida como umarealidade oriunda ou
sáveis para a plenitude de sua realiza-
dirigida de, ou para um poder divino que
ção, de sua integração, do encontro
atua sobre a pessoa produzindo alguma
consigo mesmo. A partir da fé religiosa
mudança em sua vida. Aqui, o nosso
o sujeito passa a ter um comportamento
questionamento não se constitui na ava-
religioso que compreende, a nível psico-
liação ou juízo quanto a atuação de al-
lógico, a caminhada em direção a um
gum poder superior, divino ou de qual-
ajustamento mais adequado, cujo avan-
quer forma de energia. O que se preten-
ço pretende alcançar uma integração
de é avaliar qual a influência da fé no
mais ampla com a razão de seu ser. É
psiquismo daquele que crê, pois é incon-
uma busca interior que extrapola para o

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exterior. Isto é, na reflexão sobre seu sua própria enfermidade, busca e en-
estado interior o ser descobre a sua ca- contra a cura tanto de seus males como
pacidade de crer e desta descoberta dos outros que estão fora de seus pró-
surge a fé e pela fé a descoberta da ra- prios arraiais. Pela fé, os cristãos bus-
zão de sua fé que não está em si mes- cam o Deus no qual confiam, que age
mo, mas no autor da própria fé que é o por meio da comunidade, processando a
numinoso, o Divino, Deus. terapia por meio de sua divina graça.
Entretanto, o encontro com o divi- Wrigth (1952) em seu livro "O
no processando-se através da fé não e- Deus que Age" afirma: "A ação de Deus
limina o conflito, antes, pode até au- foi sempre um desafio para a decisão e
mentar, mas as energias psíquicas ema- o cometimento, e o responso do homem
nadas do encontro ocorrido entre o hu- o retrato de sua condição íntima"6.
mano e o divino proporcionam forças Assim, pois, o dom de cura deve
suficientes para remover os efeitos da- ser entendido como um fenômeno co-
nosos do conflito, gerando conseqüen- munitário, pois o dom é manifestação
temente, um estado harmônico tal que do poder de Deus em ação na comuni-
estabeleça a paz interior, que se consti- dade, por isso não pode ser encarado
tui na verdadeira cura. como atributo individual de alguns.
Pelos estudos feitos e pela experi- É importante que a comunidade es-
ência clínica e pastoral vivenciadas, es- teja consciente de sua função terapêuti-
tamos convencidos de que a fé é, na re- ca e que é, na comunhão constante com
alidade, um poderoso instrumento tera- o seu Senhor, que é o poder propulsor
pêutico, e que como tal deve ser culti- da ação da Igreja, que ela estará reali-
vada, estimulada e orientada nesta dire- zando a sublime missão de curar as en-
ção. fermidades.
A comunidade cristã, no desempe-
nho de sua função terapêutica, há de
ser naturalmente uma comunidade de
fé, que crê no poder salvívico do Cristo
que cura os conflitos e as doenças.

[Edição original página 35/36]

Conclusão

Entendemos que a Igreja é uma


comunidade de cura e que as várias
congregações são grupos em ação tera-
pêutica, promovendo a saúde interna e
externamente. É a enferma/enfermeira 6
Wright, G. E., "O Deus que Age", ASTE, São
em ação constante que, reconhecendo Paulo, 1967, p. 99.

40 Josias Pereira. A função terapêutica na e da comunidade cristã


Como a igreja é o Cristo presente, É bom lembrar que Deus não quer
encarnado, a comunidade cristã é a pessoas sofrendo, antes Ele as quer feli-
própria terapia também encarnada; a zes e saudáveis, e a comunidade cristã
rigor, ela não está para curar, mas está deve ser promotora da saúde e da felici-
para viver abundantemente e o seu vi- dade.
ver é a cura vivenciada, apesar da do-
ença.

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