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Resumo:
Este trabalho visa abordar a experiência de vida em uma “comunidade alternativa”. Tem
em foco a trajetória de seis indivíduos que, durante as décadas de 1970 e 1980, viveram
na Aldeia Comunicampo, localizada em Nobres, Mato Grosso. O artigo privilegia o
estudo da memória como uma releitura do passado, capaz de revelar informações sobre
os fatos vividos, mas principalmente sobre a interpretação que os mesmos recebem a
partir do presente. A análise das narrativas de cada um dos informantes indica uma
disposição de busca contínua. A partir dos conceitos de liminaridade e communitas,
elaborados por Victor Turner, o trabalho aponta para uma interpretação possível do
significado da vida na comunidade, tomada como um momento de transição.
Palavras-chave:
Movimento alternativo; memória; indivíduo; sociedade; liminaridade.
Abstract:
This work addresses the experience of living in an “alternative community”. It is a
discussion on the trajectory of six individuals who, during the 1970s and 1980s, lived in
the village Comunicampo, located in Nobres, Mato Grosso. The article focuses on the
study of memory as a reinterpretation of the past, capable of revealing information
about actual experiences, but mainly about the interpretation that they receive in the
present. The analysis of the narratives of each of the informants indicates a disposition
for continuous search. Based on the concepts of liminality and communitas, by Victor
Turner, the article indicates a possible interpretation of the meaning of life in the
community, taken as a time of transition.
Keywords:
Counter-culture movement; memory; individual; society; liminality.
Introdução
Este trabalho é uma reflexão sobre a história de vida de seis pessoas que têm em
comum a experiência de terem vivido em uma “comunidade alternativa” que existiu em
Nobres, Mato Grosso: a Aldeia Comunicampo. Outro fator que une essas histórias é
que, com o término da comunidade na década de 1980, todos os seis passaram a residir
em Chapada dos Guimarães (município também localizado em Mato Grosso),
trabalhando com artesanato e comércio. Nosso objetivo é apresentar e analisar as
narrativas dessas pessoas sobre suas respectivas trajetórias, quando relembram e
reconstroem as situações vividas, atribuindo significados a elas.
A temática das comunidades alternativas não tem sido muito explorada nas
Ciências Sociais. Na literatura já produzida sobre o assunto, as discussões direcionam-
se quase sempre para uma análise de questões religiosas e das práticas de cura
relacionadas a essas realidades socioculturais.1
Com relação ao termo “movimento alternativo”, suas aplicações têm revelado
um campo de significados muito amplo. Magnani (1999), por exemplo, utiliza o termo
(e, mais especificamente, a expressão “neo-esotérico”) de forma a englobar todo o
universo de práticas místicas e esotéricas na região urbana de São Paulo. Outros autores,
como Amaral (1996), têm optado também pelo uso do termo “Nova Era”. Brodsky
(1974, p. 8), autor contemporâneo às pessoas entrevistadas nesta pesquisa, indica que a
Nova Era (ou Era de Aquarius), apesar de ser observada como um “modismo contra
cultural”, ganhou força como uma junção entre religiões tradicionais (incluindo práticas
de cura e de meditação) e todas as inovações tecnológicas contemporâneas. Segundo o
autor, ela favoreceu assim o aparecimento de uma cultura universal, devidamente
instrumentada para o desenvolvimento da humanidade, no sentido político, social e
cultural. Essa explicação para o movimento da Nova Era é a que mais se aproxima do
significado adotado pelos interlocutores desta pesquisa.
Ao longo do artigo, optamos por utilizar o termo “movimento alternativo”. A
palavra “movimento” aciona a ideia de transformação, ou de passagem, em oposição ao
que não se move. E esse movimento constante, fundado em um sentido de busca, está
sempre presente na fala das pessoas cuja história aqui abordamos. Quanto à
denominação “alternativo”, notamos que também é especialmente significativa, uma
vez que remete simultaneamente às ideias de “alteridade” e de “opção”, temáticas que
serão abordadas nas seções que se seguem.
Apresentando a Comunicampo
Ch’ien é um homem, hoje com 56 anos, nascido no interior de São Paulo, mas
que passou a maior parte da sua infância e o início da adolescência morando na capital
do mesmo estado. Diferente de K’un, ele não vê na sua ida para a Comunicampo o
início de uma busca espiritual consciente. Ch’ien relata que, mesmo vivendo em um
momento mundial de transformações, com vários movimentos sociais acontecendo, não
foi essa ideia de “busca” o que o motivou na decisão de ir para a estrada e viajar pelo
Brasil, sem pensar para onde ou no que deixava para trás. Ele diz que, naquela época,
ainda não tinha muito definido. Chegou a pensar que não queria nada, que não buscava
nada. Reconhece que não queria ter nenhum rótulo ou levantar qualquer bandeira.
Simplesmente foi para a estrada.
No fim dos anos 1970, Ch’ien já conhecia o Centro-Oeste e a Amazônia, onde
visitou comunidades indígenas, além da comunidade do Santo Daime, visitada no Acre.
Frequentou o movimento Hare Krishna, por meio do qual encontrou “a certeza da
realidade espiritual”. Ficou sabendo da existência da Comunicampo em uma de suas
viagens por Mato Grosso. Lá encontrou outras pessoas que também procuravam
vivenciar as práticas alternativas e a busca pela espiritualidade, mas mesmo assim – ele
insite – não existia o sentimento de pertencimento ao local.
A vida na Comunicampo representou um momento de tranquilidade para os
familiares de Ch’ien, pois conseguiu deixar as drogas e se entregou às novas
experiências relacionadas à espiritualidade. Uma observação importante feita por ele é
que, em outras comunidades, as pessoas chegavam e já se tornavam “adeptos perfeitos”.
A Comunicampo o marcou por proporcionar um período de transição, em que existia
todo um conjunto de práticas e ambientes adequados, levando os indivíduos a se
adaptarem aos poucos aos novos hábitos.
Ch’ien destaca que a comunidade era um imenso laboratório de pesquisas com
relação às técnicas orgânicas de plantio. Trabalhando em regime de mutirão, sempre
com resultado acima das expectativas, a Comunicampo conseguia prover alimentação
suficiente para todos os seus membros, mesmo com uma população flutuante.
Com o espírito de andarilho, Ch’ien voltou para a estrada. Já fora da
Comunicampo, participou de movimentos sociais, como o MST (Movimento dos Sem
Terra), o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Chapada e a CPT (Pastoral da terra). O
entrevistado, hoje um adulto com as responsabilidades de um pai de família, diz ser um
camponês. Apesar de não viver do trabalho com a terra, Ch’ien tem esperança de algum
dia poder realizar esse desejo, pois aguarda o direito de posse de uma propriedade no
assentamento Jangada/Roncador, onde poderá plantar seu próprio alimento, orgânico.
Ch’ien vive em Chapada dos Guimarães, com sua família. Trabalha com
artesanato e preserva os valores que aprendeu durante sua caminhada. Enquanto Ch’ien
trabalha o artesanato produzido com buriti, “ecologicamente correto”, em sua oficina no
centro de Chapada dos Guimarães, não deixa de pensar que é uma centelha de algo
muito maior, onde se sente parte do todo e unido a ele. Afirma que nunca vai perder
esse hábito de estar em prece constantemente.
Nascida em João Pessoa (Paraíba), Chia Jen é uma mulher como muitas que, na
década de 1970, presenciaram os anos de rebeldia, quando os jovens queriam viver o
presente plenamente. Mas Chia Jen, diferente de outros jovens, já buscava viver com
qualidade de vida. Ela inicia sua narrativa lembrando do show de Caetano Veloso e Gal
Costa a que foi assistir em Recife, quando tinha 18 anos – espetáculo a ser realizado em
uma fazenda chamada Nova Jerusalém. O evento foi impedido de acontecer pela
censura da ditadura militar. Chia Jen quis ficar no local, para conhecer melhor, e foi
para uma casa localizada na praia, onde conheceu a pessoa por quem se apaixonou e
com quem está casada ainda hoje.
Moraram no Rio de Janeiro e de lá foram para a Bahia, depois para Belo
Horizonte e Ouro Preto. Foi quando engravidou pela terceira vez (após uma sequência
de abortos espontâneos). Começou a trabalhar com artesanato, fazendo bolsas e batik
em couro. Seu companheiro aprendeu a esculpir e, hoje, ele ainda trabalha com
esculturas em madeira, além de trabalhar com ouro e prata.
Buscavam morar em locais onde poderiam ter qualidade de vida, principalmente
para os filhos que estavam vindo. Em João Pessoa, sua cidade de origem, teve sua
primeira filha. Depois, voltaram a morar no Rio de Janeiro. Foi então que conheceram
um grupo de pessoas que tinha um projeto de comunidade alternativa. Foram para Alto
Paraíso, Goiás, com uma caravana de famílias, incluindo crianças. Chia jen já estava
grávida do segundo filho.
Um dos primeiros Encontros de Comunidades Alternativas acontecia nesse
lugar, na mesma época, reunindo gente de todo o Brasil. Chia Jen lembra que eram
quase 500 pessoas, que permaneceram por quinze dias naquela natureza maravilhosa.
Depois do encontro, continuaram por ali por mais um tempo, morando em uma fazenda.
Porém, previam a temporada de chuvas que se aproximava e sabiam que o local era de
difícil acesso, o que se tornaria um problema em breve quando entrasse em trabalho de
parto. Resolveram, então, seguir para a Comunicampo.
Apesar de terem aprendido muito naquela comunidade, principalmente sobre
alimentação natural, não ficaram lá por muito tempo. A criança estava para nascer e
optaram por alugar uma casa em Rosário do Oeste, também em Mato Grosso. A família
não voltou a morar na Comunicampo.
Uma nova etapa se iniciou na vida do casal, pois aconteceu uma separação.
Morando agora no Rio de Janeiro, ela ficou sozinha com os filhos, concentrando-se no
trabalho. Passou a expor sua produção de artesanato na feirinha de Cabo Frio. Depois,
foi para o nordeste com um novo casamento, quando teve seu terceiro filho.
Chia Jen afirma sempre que buscava qualidade de vida e, no naturalismo e no
vegetarianismo, ela encontrou. Diz que não tinha nenhuma pretensão de querer mudar o
mundo, mas procurou ser uma pessoa melhor e viver bem, aproveitando o que a
natureza lhe oferece. Viver nas comunidades alternativas foi muito bom, segundo Chia
Jen. Nesses períodos, aprendeu a valorizar as práticas alternativas, que usa hoje em sua
culinária e nas questões de saúde.
Mais tarde, retornou para Mato Grosso (Chapada dos Guimarães) com a família
completa, inclusive com seu companheiro do primeiro casamento. Compraram uma casa
em um lugar especial. É “sua casinha, seu cantinho”, onde ela pode ver o sol nascendo e
os pássaros cantando.
Chia Jen sempre viveu do artesanato. É uma artesã, com mais de 40 anos de
profissão, que ama o que faz. Para ela, tudo o que viveu durante sua caminhada a trouxe
até Chapada dos Guimarães, onde realizou o sonho de ter sua família formada, com os
filhos e netos, além de seu companheiro. Valoriza a tranquilidade de viver do seu
trabalho informal, mantendo os valores que aprendeu, de respeito ao ser humano e à
natureza, e passando para as novas gerações a possibilidade de viver em harmonia.
Chên tem hoje 60 anos e é casado com Chia Jen. Os dois estiveram na
Comunicampo, mas por pouco tempo. Pela narrativa de Chên, essa passagem
representou somente mais um lugar, dos muitos lugares por onde estiveram, mas
acrescentou boas experiências e muito aprendizado. Chên demonstra em alguns
momentos do seu relato uma interpretação diferente de Chia Jen, mesmo vivenciando
fatos em comum.
Quando ainda jovem, sentia total insatisfação com a sociedade, e isso o
impulsionou a seguir a busca espiritual. Encontrou no meio alternativo as respostas que
buscava e um aprendizado que utiliza ainda hoje em seu cotidiano.
Com 19 anos, teve contato com a Ioga e a alimentação natural, em conjunto com
práticas que trabalhavam o despertar da telepatia e da intuição. Conheceu o que ele
chamou de um “bruxo”, que morava em uma praia isolada. Começou, então, a prática de
viagens conscientes fora do corpo ou “viagens astrais”. Foi quando conheceu Chia Jen e
juntos saíram à procura de lugares pequenos, com um tipo de vida mais natural, onde
pudessem viver com tranquilidade, “batalhando só para sobrevivência, sem grandes
pretensões ou conquistas”.
Nessa época, conheceu um grupo de pessoas de quem gostou muito. Eles
estavam com uma proposta de unir todas as comunidades alternativas do Brasil e fazer
uma grande comunidade, em Alto Paraíso (Goiás). Eram por volta de trinta famílias, de
São Paulo e Rio de Janeiro, que queriam investir nesse ideal, pois tinham certa
estabilidade financeira. Mas havia algumas pessoas que estavam interessadas apenas em
lucrar, o que levou Chên a se desencantar com a proposta.
Com o início das chuvas, o pessoal se dispersou e, como já estava chegando
mais um filho, resolveu ir para a Comunicampo, no Mato Grosso. Para Chên, ele
encontrou na comunidade de Nobres um ambiente muito bom, pessoas de bom astral,
uma cozinha natural. Mas ele ainda achava pouco, pois estava com a família: “viver de
arroz integral e frutos não dava”.
Chên fez a proposta, para os membros da Comunicampo, de trabalhar meio
expediente na terra e o outro período fazer artesanato. Ele mesmo iria vender em
Cuiabá. Essa proposta foi recusada e, então, conseguiram uma casa em Rosário do
Oeste, onde nasceu o segundo filho.
Começou, então, uma nova etapa para os membros dessa família. Por questões
adversas, o casal ficou por cinco anos separado. Ele viajou para fora do Brasil e ela foi
para o Rio de Janeiro. Chên teve a oportunidade de morar com os índios em suas
viagens pelos Andes e pelo México. Conheceu um grupo que estudava quiromancia,
numerologia e o I Ching, práticas que acrescentaram no seu desenvolvimento espiritual.
Tomou o peiote (mescalina) e afirma que tem muito respeito pelas plantas de poder,
como no Santo Daime.
Depois, Chên foi para o Rio de Janeiro, onde reencontrou sua esposa e filhos.
Decidiram unir a família novamente. Chapada dos Guimarães foi escolhida como o
lugar para esse reinício. Não tinham a loja ainda, mas vendiam o artesanato na feirinha
da praça. Também plantavam algumas coisas para alimentação, trocavam por artesanato
e vice-versa.
Hoje, com os filhos crescidos, não precisa ter maiores pretenções com relação à
questão financeira. Ainda costura suas próprias roupas quando precisa e não tem
preocupação em comprar roupas novas, reproduzindo um antigo padrão da
Comunicampo. A loja que montou em conjunto com a esposa supri as necessidades
básicas de sobrevivência. Ainda pensa em viver em um monastério, com maior
desapego e silêncio interior, pois sua busca maior é pela paz, mesmo que se sinta bem
vivendo como está.
Notas
1 - A este respeito, ver, por exemplo, Maluf (2005), Soares (1989) e Tavares (1998).
2 - Uma comparação enriquecedora pode ser feita com o caso etnográfico apresentado
no trabalho de Spiro (1973) sobre a organização familiar nos kibbutzim, em Israel. O
autor demonstra como, no kibutz, algumas funções que seriam atribuídas à família típica
de residência comum são atribuições da sociedade inteira. Spiro chama esse modelo de
“estrutura familial”.
Referências bibliográficas
MALUF, Sônia W. Mitos coletivos, narrativas pessoais: cura ritual, trabalho terapêutico
e emergência do sujeito nas culturas da “Nova Era”. Mana, v. 11, n. 2, p. 499-528,
2005.
SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e Relações Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
SIMMEL, Georg. The Isolated Individual and the Dyad. In: WOLFF, Kurt H. (org.).
The Sociology of Georg Simmel. New York: The Free Press, 1964.
WILHELM, Richard (org.). I CHING. O Livro das Mutações. Traduzido do chinês para
o alemão, acrescido de introdução e comentários. Prefácio de C. G. Jung. Tradução para
o português: Alayde Mutzenbercher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto. São Paulo: Editora
Pensamento, 1956.