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Vidas na Comunicampo:

expressões do movimento alternativo

Maria José dos Santos


Juliana Braz Dias

Resumo:
Este trabalho visa abordar a experiência de vida em uma “comunidade alternativa”. Tem
em foco a trajetória de seis indivíduos que, durante as décadas de 1970 e 1980, viveram
na Aldeia Comunicampo, localizada em Nobres, Mato Grosso. O artigo privilegia o
estudo da memória como uma releitura do passado, capaz de revelar informações sobre
os fatos vividos, mas principalmente sobre a interpretação que os mesmos recebem a
partir do presente. A análise das narrativas de cada um dos informantes indica uma
disposição de busca contínua. A partir dos conceitos de liminaridade e communitas,
elaborados por Victor Turner, o trabalho aponta para uma interpretação possível do
significado da vida na comunidade, tomada como um momento de transição.

Palavras-chave:
Movimento alternativo; memória; indivíduo; sociedade; liminaridade.

Abstract:
This work addresses the experience of living in an “alternative community”. It is a
discussion on the trajectory of six individuals who, during the 1970s and 1980s, lived in
the village Comunicampo, located in Nobres, Mato Grosso. The article focuses on the
study of memory as a reinterpretation of the past, capable of revealing information
about actual experiences, but mainly about the interpretation that they receive in the
present. The analysis of the narratives of each of the informants indicates a disposition
for continuous search. Based on the concepts of liminality and communitas, by Victor
Turner, the article indicates a possible interpretation of the meaning of life in the
community, taken as a time of transition.

Keywords:
Counter-culture movement; memory; individual; society; liminality.
Introdução

Este trabalho é uma reflexão sobre a história de vida de seis pessoas que têm em
comum a experiência de terem vivido em uma “comunidade alternativa” que existiu em
Nobres, Mato Grosso: a Aldeia Comunicampo. Outro fator que une essas histórias é
que, com o término da comunidade na década de 1980, todos os seis passaram a residir
em Chapada dos Guimarães (município também localizado em Mato Grosso),
trabalhando com artesanato e comércio. Nosso objetivo é apresentar e analisar as
narrativas dessas pessoas sobre suas respectivas trajetórias, quando relembram e
reconstroem as situações vividas, atribuindo significados a elas.
A temática das comunidades alternativas não tem sido muito explorada nas
Ciências Sociais. Na literatura já produzida sobre o assunto, as discussões direcionam-
se quase sempre para uma análise de questões religiosas e das práticas de cura
relacionadas a essas realidades socioculturais.1
Com relação ao termo “movimento alternativo”, suas aplicações têm revelado
um campo de significados muito amplo. Magnani (1999), por exemplo, utiliza o termo
(e, mais especificamente, a expressão “neo-esotérico”) de forma a englobar todo o
universo de práticas místicas e esotéricas na região urbana de São Paulo. Outros autores,
como Amaral (1996), têm optado também pelo uso do termo “Nova Era”. Brodsky
(1974, p. 8), autor contemporâneo às pessoas entrevistadas nesta pesquisa, indica que a
Nova Era (ou Era de Aquarius), apesar de ser observada como um “modismo contra
cultural”, ganhou força como uma junção entre religiões tradicionais (incluindo práticas
de cura e de meditação) e todas as inovações tecnológicas contemporâneas. Segundo o
autor, ela favoreceu assim o aparecimento de uma cultura universal, devidamente
instrumentada para o desenvolvimento da humanidade, no sentido político, social e
cultural. Essa explicação para o movimento da Nova Era é a que mais se aproxima do
significado adotado pelos interlocutores desta pesquisa.
Ao longo do artigo, optamos por utilizar o termo “movimento alternativo”. A
palavra “movimento” aciona a ideia de transformação, ou de passagem, em oposição ao
que não se move. E esse movimento constante, fundado em um sentido de busca, está
sempre presente na fala das pessoas cuja história aqui abordamos. Quanto à
denominação “alternativo”, notamos que também é especialmente significativa, uma
vez que remete simultaneamente às ideias de “alteridade” e de “opção”, temáticas que
serão abordadas nas seções que se seguem.
Apresentando a Comunicampo

A Comunicampo era considerada um centro de vivência da “Nova Era”, local de


novas experiências e um exemplo a ser seguido pelas comunidades irmãs, precursoras
do Movimento Alternativo no Brasil. A vida na Comunicampo era apresentada como
uma eterna busca pela unidade, mesmo na diversidade. A construção dessa comunidade
utópica pressupunha o equilíbrio entre o universal e o particular. Em sua prática diária,
isso se refletia na necessidade de algumas regras pré-estabelecidas, mas com decisões
cotidianas discutidas e votadas em assembleias gerais, nem sempre sem conflitos.
O surgimento das comunidades alternativas em diversos pontos do globo esteve
relacionado a uma preocupação fundamental com os rumos que a humanidade estava
tomando, com guerras e um autoritarismo dominante em vários países, e com o
sentimento de que o mundo passava por grande transformação. Nos anos 1960 e 1970
surgiram, então, grandes movimentos sociais, como o movimento feminista e o de
conscientização ecológica. É nesse contexto que surge também o movimento hippie e as
comunidades alternativas, incluindo comunidades espiritualistas e templos, com grande
adesão dos jovens às religiões orientais.
Foi nesse período que Edgar Muller, nascido em 1952 na cidade de Novo
Hamburgo, Rio Grande do Sul, deixou a profissão de representante comercial e resolveu
viajar em uma Kombi por todo o Brasil, trabalhando como artesão. No ano seguinte,
viajou por trinta e cinco países de carona. Depois de muitas experiências pelo mundo,
com o desejo de participar da grande transformação social que observava e de viver na
prática uma experiência que acreditava possível, foi em busca do seu sonho.
Em 14 de fevereiro de 1975, fundou a comunidade rural alternativa
Comunicampo, quando adquiriu a propriedade, localizada a sete quilômetros de Nobres,
em Mato Grosso. Segundo depoimento do próprio Edgar Muller, a comunidade
começou com duas pessoas e, em julho, chegaram os primeiros moradores vindos da
Suíça e de Minas Gerais. A partir de então, a Comunicampo só cresceu, em seus nove
anos de existência.
A Comunicampo deixou de existir em 1984, principalmente por causa da
construção de uma fábrica de cimento nas proximidades da cabeceira do rio que cortava
as terras da comunidade. Tal projeto de vida comunitária foi transferido para novas
terras. Em 23 de abril de 1984, já em Pirenópolis (Goiás), Edgar Muller fundou a
Comunidade Espiritualista Frater, onde reside desde então.
Voltamo-nos agora, mais detidamente, para o vale do Rio Tombador, onde a
natureza revelava sua beleza e a Comunicampo encontrou seu chão. Durante os nove
anos de existência da comunidade, aquele era o cenário perfeito para o aprendizado a
partir da vivência em conjunto com pessoas de variadas crenças e classes sociais.
O trabalho era realizado coletivamente e a produção dividida em partes iguais. O
excedente era trocado (na cidade de Nobres) por materiais de necessidade básica, como
sabão, óleo e melado. O refeitório também era coletivo, enquanto as residências eram
separadas em casinhas de palha, além de um dormitório em comum, localizado na casa
sede, para os recém-chegados. Toda essa experiência proporcionou a intensificação de
relações e aproximou pessoas em torno de um ideal comum.
A Comunicampo representava para seus moradores o sonho de uma vida nova,
com valores como solidariedade, fraternidade, cooperação, compartilhamento, além do
respeito à natureza e a consciência de preservação. Naquele período de grandes
transformações sociais, esse conjunto de valores levou muitas pessoas, principalmente
os jovens, a buscarem um novo tipo de vida.
Muitos viajavam, sem ter um lugar definido para ir. Durante essas viagens, iam
fazendo contatos com pessoas de várias regiões do Brasil e de outros países. As
informações sobre os movimentos da Nova Era chegavam por meio das trocas entre
esses viajantes, em conversas informais, quando se encontravam em uma comunidade,
ou em uma cachoeira, como no relato de dois dos entrevistados.
A notícia da fundação de uma nova comunidade alternativa na região de Nobres,
em fevereiro de 1975, espalhou-se no meio alternativo, e muitos seguiram esse
caminho. Buscavam todos encontrar algo novo e acabaram encontrando vivências que
superaram suas expectativas, nem sempre tão prazerosas como alguns previam.
Chegando em Nobres pela primeira vez, era necessário perguntar a algum
morador da região sobre qual seria o melhor caminho para chegar à comunidade. A
resposta era sempre a mesma: “Ah! Lá onde moram os hippies... É só ir pela estrada.
Com mais ou menos uns sete quilômetros, você chega na comunidade”.
Chegando ao sítio Aldeia Comunicampo, havia uma pequena estrada que dava
acesso às casas. Nesse caminho, em meio a muito verde, podiam ser observados, de um
lado, a plantação de grãos para consumo, e de outro, a terra se refazendo para ser
cultivada no próximo ano, pois era utilizado o método de “rotação de cultura”. O arroz
colhido na comunidade era limpo em uma máquina na cidade de Nobres, sem ser
retirada a película, deixando-o integral. Uma pequena parte era utilizada como semente
para o próximo plantio, e o restante já limpo era amazenado para ser consumido durante
o ano – e normalmente não faltava arroz até a próxima colheita.
As três grandes árvores de ponkan que faziam parte do pomar localizavam-se
bem próximas à casa sede e, uma vez por ano, em maio, davam frutos em abundância.
Havia ainda um pé de flamboyant, embelezando a paisagem. A casa sede, a única em
alvenaria, dividia-se em quatro cômodos, que eram utilizados como biblioteca, farmácia
homeopática, sala de costura e artesanato, e o templo. Em cima, no mesanino, ficavam
os dormitórios, normalmente utilizados pelos recém-chegados. Os moradores mais
antigos ficavam nas casinhas de palha de babaçu, um pouco mais distante da casa sede.
Ir para a casinha de palha individual era como se a pessoa tivesse sido promovida;
deixava de ser apenas um visitante e passava a ser um morador. Essa diferenciação entre
moradores e visitantes, no entanto, não ganhava maior sentido para o conjunto das
atividades realizadas. Como veremos adiante, todos ali, indistintamente, acabavam por
caracterizar sua vida naquela comunidade como uma etapa de algo maior. Em alguma
medida, todos estavam ali “de passagem”.
A cozinha e o refeitório faziam parte de uma mesma construção. O refeitório era
uma grande varanda, onde ficavam as mesas e os bancos feitos de madeira. Na cozinha,
estavam o fogão de lenha, as pias e a dispensa, que armazenava a produção de grãos
para o ano todo. Os utensílios domésticos eram os maiores possíveis, pois o fluxo de
pessoas era inconstante, havendo, por vezes, apenas dez pessoas e, em outros
momentos, mais de cem.
Logo após o café da manhã, as pessoas permaneciam no refeitório, para fazer a
divisão do trabalho que deveria ser realizado. Cada um escolhia uma tarefa, que poderia
ser na horta, pomar, lavoura, jardim ou cozinha. Os alimentos consumidos eram todos
produzidos na Comunicampo, totalmente orgânicos, de excelente qualidade, apesar de
pouca variedade. O arroz integral, o milho, a mandioca e a abóbora nunca chegaram a
faltar, mesmo nos momentos com muitos visitantes. Houve também o plantio de feijão
azuki e varidades de sementes de milho. A horta, sempre com muitas verduras,
completava o cardápio vegetariano. No bananal, os pés de mamão intercalavam-se com
os de banana e produziam frutos em grande quantidade.
Algumas atividades – como encher as tinas de água e fazer aceiros para evitar a
propagação do fogo – eram realizadas em regime de mutirão. Nos momentos livres,
alguns decidiam descansar ou tomar banho de rio. Outros preferiam produzir artesanato
ou reciclar roupas na máquina de costura. A biblioteca era também muito procurada
nesses momentos. Rica em leituras sobre os movimentos da Nova Era, nela
encontravam-se livros de diversas filosofias e práticas alternativas, como alimentação
diferenciada, Ioga, massagens e outras terapias.
Algumas pessoas se organizaram e aproveitaram o tempo livre para dar aulas de
alfabetização para um grupo de crianças, filhos de lavradores que moravam do outro
lado do rio. Esse era um dos poucos momentos onde aparecia, de forma mais explícita, a
relação entre os moradores da Comunicampo e a população de Nobres. De maneira
geral, essa relação das pessoas da comunidade com a população local não se mostra
presente na narrativa dos nossos interlocutores.
Praticamente todos os entrevistados referem-se ao rio como sendo um lugar
especial dentro da Comunicampo. O rio Tombador proporcionava um ambiente
favorável à meditação e à contemplação. Ali, não era permitida a pesca. Na
Comunicampo, eram seguidos cinco preceitos básicos do hinduísmo: não comer carne
de espécie alguma; não participar de jogos de azar; não praticar sexo fora do casamento;
não se intoxicar com qualquer tipo de droga (incluindo os produtos industrializados); e
cantar em louvor ao criador, repetindo os mantras devocionais.
Havia, na Comunicampo, o hábito de permanecer sem roupas. Isso era
relativamente normal dentro da chamada “geração do inconformismo”, que pretendia
romper com antigos padrões e que muitas vezes demonstrava com a nudez sua
irreverência. Mas ficar nú, para aqueles jovens, era também como se despir de qualquer
status social, sem qualquer conotação sexual. Despir-se das antigas roupas e, mais do
que isso, da roupagem social, era um ato de grande conteúdo simbólico.
Outros momentos de muita alegria aconteciam na cozinha, depois do jantar,
onde todos reunidos em volta do fogão de lenha demonstravam seus talentos artísticos.
Alguns declamavam poesias, outros cantavam e dançavam. Como em laboratórios
teatrais, encenava-se utilizando os objetos mais variados possíves. “Uma vez”, conta um
entrevistado, “encenamos o ambiente interno de uma grande nave-mãe, onde os botões
da nave eram as chapas redondas do fogão de lenha, os capacetes eram os cestos de
palha e as peneiras, os grandes escudos protetores”. A noite terminava com cantos e
danças para celebrar a vida.
Havia as noites de vigília, em que todos os que queriam participar deitavam-se
na grama, em frente da casa sede, observando o céu e esperando por contatos com seres
de outros lugares, visitantes espaciais ou intraterrestres. Ficavam cantando mantras e
fazendo reflexões sobre a grandiosidade do universo.
As práticas relacionadas à saúde eram variadas. Cada um que chegava trazia
alguma terapia ou dieta nova, e todos queriam experimentar. Os banhos de vapor eram
muito utilizados, com bacias de água quente em baixo das mesas do refeitório,
recobertas por lençóis, com uma pessoa em baixo, respirando o vapor de ervas
medicinais, para purificação e limpeza. A hidroterapia, o uso da argila e as massagens
orientais estavam presentes como tratamentos preventivos ou para problemas de menor
gravidade. A farmácia homeopática também era muito procurada, mesmo sem ter um
profissional que orientasse a respeito da medicação. Quem precisasse de tratamento
médico mais específico, buscava atendimento em Nobres ou Rosário do Oeste, que
eram as cidades mais próximas da comunidade.
Pela manhã e no final da tarde, aconteciam as reuniões no templo, momento
esperado por todos. Depois da purificação no rio, vestiam suas roupas brancas,
retiravam os calçados e entravam no templo, que ficava na casa sede. Todo o ambiente
favorecia o relaxamento e a meditação. Na decoração, tecidos indianos, com muito
espaço vazio, sem móveis. Havia apenas um altar simples, com as fotos de alguns
grandes mestres, alguns incensários e uma variedade de instrumentos musicais. O rito
tinha início com o canto de mantras. Fazia-se a leitura de algum texto, depois a
explanação, mais mantras e a oração de encerramento. Muitas filosofias e religiões eram
estudadas, passando pelo movimento Hare Krishna, as terapias do Osho, Sri Aurobimdo
e a Grande Mãe, além de louvores a São Francisco de Assis, apenas para citar alguns.
A Comunicampo seguia, assim, o exemplo de outras comunidades alternativas,
como a emblemática Findhorn, na Escócia, e a norte-americana The Farm, além de
Lebensgarten (Alemanha), Crystal Waters (Austrália) e várias outras na Índia e Sri
Lanka. No Brasil, comunidades semelhantes se mantêm até hoje, como: Mato Dentro,
em São Lourenço (sul de Minas Gerais); Guaraqueçaba, no Paraná; e Vale do Moinho,
em Alto Paraíso (Goiás).

Personagens do movimento alternativo

As comunidades alternativas existiram porque algumas pessoas se mobilizaram


para isso, e a partir de um sonho, buscaram construir um novo modelo de organização
social, com o propósito de mudar velhos conceitos e valores estabelecidos. Neste
trabalho, procuramos conhecer melhor alguns personagens que participaram desse
movimento, através de suas respectivas histórias de vida. Especificamente,
apresentamos as memórias de seis pessoas que viveram na Comunicampo – quatro
homens e duas mulheres. O conteúdo das várias narrativas reflete como o passado é
sempre revisto e como é dinâmico o processo de atribuição de sentido às experiências
vividas. A Comunicampo representou para eles um momento de passagem, transitório.
Para alguns foi o ínicio da busca de algo maior, que continua ainda hoje, num
movimento constante. A ideia de busca é comum em todos os entrevistados, embora ela
receba interpretações diferenciadas. As histórias de vida aqui apresentadas carregam
essa marca: particularidades de cada informante, costuradas por alguns pontos em
comum, vividos de maneiras semelhantes por todos eles. E na análise de cada uma
dessas narrativas e do conjunto que compõem, podemos perceber aspectos da complexa
relação entre o indivíduo e a sociedade.
Para não expor os entrevistados, procuramos substituir seus nomes. Como o I
Ching é muito divulgado no meio alternativo, optamos por designar para cada
interlocutor um hexagrama. O I Ching possui, em seu conjunto de símbolos, 64
hexagramas. Em seu conteúdo, traz representações de estágios da vida e de elementos
da natureza em interação (céu, terra, vento, lago, montanha, trovão, fogo e água).
Também é utilizado como oráculo, onde as pessoas buscam respostas para suas dúvidas.
Traz mensagens sobre a constante transformação da natureza e dos seres humanos como
parte integrante do universo, e interagindo com ele (Wilhelm, 1956, p.17). Assim,
quisemos que os indivíduos entrevistados nesta pesquisa pudessem ser vistos como
provas vivas dessa interação: homem, natureza e universo em transformação.

Hexagrama 2 - K’un: O Receptivo

O Receptivo representa a natureza da terra, indica


também a natureza do homem que serve. Além do caráter
quádruplo do receptivo: maleável, dedicado, moderado e
correto (I CHING, in: WILHELM, 1956, p. 294).

K’un é uma mulher, hoje com aproximadamente sessenta anos, nascida no


estado de Minas Gerais, no seio de uma família tradicional. Ela relembra sua
experiência: quando ainda muito jovem, engravidou e teve conflitos familiares, que
terminaram levando-a a sair de casa. Mesmo em momentos difíceis como esse, K’un diz
que se apega com Deus, através de suas orações – hábito que adquiriu com seus pais e
que mantém ainda hoje. Com isso, sempre obteve as respostas (ou a direção a seguir),
mesmo que de maneira inusitada.
Seu desejo era partir para um lugar onde pudesse criar seu filho com maior
tranquilidade. Na época, já conhecia algumas pessoas que estavam vivendo em
comunidades alternativas. Foi quando conheceu a comunidade Mãe D’Água, em Minas
Gerais. Indo para lá, percebeu que não estava sozinha em sua busca. Mas as
necessidades da criança eram muito diferentes das obrigações da vida monástica,
existentes na comunidade Mãe D’Água, onde as regras e horários não eram compatíveis
com as exigências do bebê.
Já estava claro para K’un: ela queria um local onde pudesse educar seu filho
com valores como fraternidade, respeito, solidariedade, cooperação e união. Foi quando
leu o cartaz de divulgação do IV Encontro de Comunidades Alternativas, que seria
realizado na Comunicampo. Observou o desenho no cartaz, onde havia duas montanhas,
um sol e um caminho. Era a resposta que esperava. Para ela, esse foi o início da sua
caminhada em direção à grande luz. Deixou Minas Gerais e foi com seu filho para a
comunidade rural. Hoje ela afirma que a experiência que viveu na Comunicampo foi o
início de sua busca espiritual, mesmo sem perceber com essa clareza na época.
K’un considera a Comunicampo como o lugar onde ela conseguiu ter várias
experiências maravilhosas. Ela descreve: “Tinha um poço cheio de peixes, tudo muito
colorido, pulos no rio na noite de lua cheia, fogueiras, música, passeios alegres, todo
mundo buscando uma vida melhor...”. Mas a comunidade teve que se mudar para
Pirenópolis e, uma vez mais, a “vida” fez com que K’un buscasse outras alternativas.
Como já conhecia Chapada dos Guimarães e gostava muito do lugar, K’un
resolveu ir para lá. Foi, então, outro momento “mágico” para ela, pois conheceu uma
pessoa com quem constituiu família. Adquiriu um sítio, onde mora com alguns de seus
filhos, e agora também com os netos. Nesse ambiente, é impossível deixar de perceber a
semelhança com a Comunicampo. A entrevistada sente-se totalmente à vontade para dar
continuidade ao seu crescimento interior e percebe que está exatamente onde desejou
estar. Hoje, repassa aos seus filhos e netos os valores que aprendeu durante todo esse
percurso e diz saber que ainda tem muita caminhada pela frente.

Hexagrama 15 - Ch’ien: Modéstia


O bom caráter tem a modéstia como instrumento de ação,
através dela o bom caráter pode ser aprendido e assimilado.
A modéstia está pronta a honrar aos outros e por fazê-lo é
que ela própria se torna tão maravilhosamente luminosa (I
CHING, in: WILHELM, 1956, p.345).

Ch’ien é um homem, hoje com 56 anos, nascido no interior de São Paulo, mas
que passou a maior parte da sua infância e o início da adolescência morando na capital
do mesmo estado. Diferente de K’un, ele não vê na sua ida para a Comunicampo o
início de uma busca espiritual consciente. Ch’ien relata que, mesmo vivendo em um
momento mundial de transformações, com vários movimentos sociais acontecendo, não
foi essa ideia de “busca” o que o motivou na decisão de ir para a estrada e viajar pelo
Brasil, sem pensar para onde ou no que deixava para trás. Ele diz que, naquela época,
ainda não tinha muito definido. Chegou a pensar que não queria nada, que não buscava
nada. Reconhece que não queria ter nenhum rótulo ou levantar qualquer bandeira.
Simplesmente foi para a estrada.
No fim dos anos 1970, Ch’ien já conhecia o Centro-Oeste e a Amazônia, onde
visitou comunidades indígenas, além da comunidade do Santo Daime, visitada no Acre.
Frequentou o movimento Hare Krishna, por meio do qual encontrou “a certeza da
realidade espiritual”. Ficou sabendo da existência da Comunicampo em uma de suas
viagens por Mato Grosso. Lá encontrou outras pessoas que também procuravam
vivenciar as práticas alternativas e a busca pela espiritualidade, mas mesmo assim – ele
insite – não existia o sentimento de pertencimento ao local.
A vida na Comunicampo representou um momento de tranquilidade para os
familiares de Ch’ien, pois conseguiu deixar as drogas e se entregou às novas
experiências relacionadas à espiritualidade. Uma observação importante feita por ele é
que, em outras comunidades, as pessoas chegavam e já se tornavam “adeptos perfeitos”.
A Comunicampo o marcou por proporcionar um período de transição, em que existia
todo um conjunto de práticas e ambientes adequados, levando os indivíduos a se
adaptarem aos poucos aos novos hábitos.
Ch’ien destaca que a comunidade era um imenso laboratório de pesquisas com
relação às técnicas orgânicas de plantio. Trabalhando em regime de mutirão, sempre
com resultado acima das expectativas, a Comunicampo conseguia prover alimentação
suficiente para todos os seus membros, mesmo com uma população flutuante.
Com o espírito de andarilho, Ch’ien voltou para a estrada. Já fora da
Comunicampo, participou de movimentos sociais, como o MST (Movimento dos Sem
Terra), o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Chapada e a CPT (Pastoral da terra). O
entrevistado, hoje um adulto com as responsabilidades de um pai de família, diz ser um
camponês. Apesar de não viver do trabalho com a terra, Ch’ien tem esperança de algum
dia poder realizar esse desejo, pois aguarda o direito de posse de uma propriedade no
assentamento Jangada/Roncador, onde poderá plantar seu próprio alimento, orgânico.
Ch’ien vive em Chapada dos Guimarães, com sua família. Trabalha com
artesanato e preserva os valores que aprendeu durante sua caminhada. Enquanto Ch’ien
trabalha o artesanato produzido com buriti, “ecologicamente correto”, em sua oficina no
centro de Chapada dos Guimarães, não deixa de pensar que é uma centelha de algo
muito maior, onde se sente parte do todo e unido a ele. Afirma que nunca vai perder
esse hábito de estar em prece constantemente.

Hexagrama 23 – Po: Desintegração

Ainda que o sombrio desintegre o luminoso, este não se


deixa aniquilar completamente. O elemento luminoso é
apresentado como invencível, pois em sua queda ele gera
uma nova vida, assim como a semente do trigo ao cair na
terra (I CHING, in: WILHELM, 1956, p.372).

Po é um homem com 56 anos, nascido em Minas Gerais. Hoje mora em


Chapada dos Guimarães e administra uma micro-empresa com sua companheira. O
entrevistado inicia seu relato na fase anterior à Comunicampo, quando serviu ao
exército por um ano. Relembrando aquele período, observa que não tinha problemas em
seguir as regras militares, apesar do contexto político e social da época, principalmente
com relação ao autoritarismo.
Depois dessa experiência no exército, Po conheceu um jovem universitário que
estava iniciando o curso de medicina e tinha acabado de voltar de um congresso, cujo
tema principal era medicina alternativa e terapias voltadas para a saúde do corpo e da
mente. Impressionado com tantas informações novas, o jovem estudante só falava em
“cair na estrada”, e Po deixou-se influenciar pelo amigo. A ideia de sair viajando,
aprendendo com as novas experiências, o interessou muito, e juntos resolveram viajar
para Bolívia, Peru e Chile.
Todavia, com pouco recurso financeiro, Po apenas conseguiu chegar até Mato
Grosso, na Chapada dos Guimarães. Foi para a cachoeira da Andorinha, hoje Parque
Nacional, onde permaneceu por algum tempo com outras pessoas que, como ele,
procuravam viver esse tipo de experiência, em interação com a natureza. Dormia e se
alimentava com muita simplicidade. Logo em seguida, foi convidado para conhecer a
Comunicampo.
Com apenas 20 anos, Po chegou na comunidade imaginando que iria encontrar
um local onde a liberdade seria total, principalmente em relação à sexualidade. Suas
expectativas não foram correspondidas, pois os princípios adotados na Comunicampo
não permitiam esse tipo de comportamento. As pessoas dedicavam a maior parte de seu
tempo a fazer meditação e a cantar mantras, ou ainda, a tomar banho de rio e a cuidar
das tarefas domésticas e lavoura.
Ele relembra que lá havia o hábito de andar sem as roupas, mas a ausência de
roupas na comunidade não tinha uma conotação sexual e, sim, um sentido de liberdade.
E mesmo com suas expectativas iniciais frustradas, Po gostou do novo modelo de vida
simples que a Comunicampo lhe proporcionou. Foi um momento importante que
vivenciou – mas não o único. Po lembra que fez uma proposta de vida, em homenagem
a sua mãe: iria buscar sempre o melhor que a vida pode oferecer a alguém. E sentiu que
estava no caminho.
Pela sua perspectiva, o que mais prejudicou a experiência das comunidades
alternativas foi as pessoas quererem constituir família e repetir o modelo que
conhecemos. Tendo que dar prioridade a atender às necessidades de sobrevivência dos
filhos, a energia que deveria estar voltada para o crescimento individual se dispersou.
Po acredita hoje que o poder e a força de um indivíduo estão intimamente ligados ao
desenvolvimento espiritual, e este se consegue através do controle sexual e através do
ato de sonhar consciente – como leu nos livros de Carlos Castañeda.
Mas um outro tipo de sonho está presente também na narrativa de Po: os
movimentos sociais de que participou, e a experiência da Comunicampo em particular.
Po afirmar que o sonho nunca vai morrer, pois está ligado ao sentimento de liberdade.
Ressalta que, o que buscava na época da Comunicampo, busca ainda hoje. Sonha ser
possível uma sociedade melhor para se viver.
Hexagrama 37 – Chia Jen: A família

Família, a perseverança da mulher é favorável (I CHING,


in: WILHELM, 1956, p.123).

Nascida em João Pessoa (Paraíba), Chia Jen é uma mulher como muitas que, na
década de 1970, presenciaram os anos de rebeldia, quando os jovens queriam viver o
presente plenamente. Mas Chia Jen, diferente de outros jovens, já buscava viver com
qualidade de vida. Ela inicia sua narrativa lembrando do show de Caetano Veloso e Gal
Costa a que foi assistir em Recife, quando tinha 18 anos – espetáculo a ser realizado em
uma fazenda chamada Nova Jerusalém. O evento foi impedido de acontecer pela
censura da ditadura militar. Chia Jen quis ficar no local, para conhecer melhor, e foi
para uma casa localizada na praia, onde conheceu a pessoa por quem se apaixonou e
com quem está casada ainda hoje.
Moraram no Rio de Janeiro e de lá foram para a Bahia, depois para Belo
Horizonte e Ouro Preto. Foi quando engravidou pela terceira vez (após uma sequência
de abortos espontâneos). Começou a trabalhar com artesanato, fazendo bolsas e batik
em couro. Seu companheiro aprendeu a esculpir e, hoje, ele ainda trabalha com
esculturas em madeira, além de trabalhar com ouro e prata.
Buscavam morar em locais onde poderiam ter qualidade de vida, principalmente
para os filhos que estavam vindo. Em João Pessoa, sua cidade de origem, teve sua
primeira filha. Depois, voltaram a morar no Rio de Janeiro. Foi então que conheceram
um grupo de pessoas que tinha um projeto de comunidade alternativa. Foram para Alto
Paraíso, Goiás, com uma caravana de famílias, incluindo crianças. Chia jen já estava
grávida do segundo filho.
Um dos primeiros Encontros de Comunidades Alternativas acontecia nesse
lugar, na mesma época, reunindo gente de todo o Brasil. Chia Jen lembra que eram
quase 500 pessoas, que permaneceram por quinze dias naquela natureza maravilhosa.
Depois do encontro, continuaram por ali por mais um tempo, morando em uma fazenda.
Porém, previam a temporada de chuvas que se aproximava e sabiam que o local era de
difícil acesso, o que se tornaria um problema em breve quando entrasse em trabalho de
parto. Resolveram, então, seguir para a Comunicampo.
Apesar de terem aprendido muito naquela comunidade, principalmente sobre
alimentação natural, não ficaram lá por muito tempo. A criança estava para nascer e
optaram por alugar uma casa em Rosário do Oeste, também em Mato Grosso. A família
não voltou a morar na Comunicampo.
Uma nova etapa se iniciou na vida do casal, pois aconteceu uma separação.
Morando agora no Rio de Janeiro, ela ficou sozinha com os filhos, concentrando-se no
trabalho. Passou a expor sua produção de artesanato na feirinha de Cabo Frio. Depois,
foi para o nordeste com um novo casamento, quando teve seu terceiro filho.
Chia Jen afirma sempre que buscava qualidade de vida e, no naturalismo e no
vegetarianismo, ela encontrou. Diz que não tinha nenhuma pretensão de querer mudar o
mundo, mas procurou ser uma pessoa melhor e viver bem, aproveitando o que a
natureza lhe oferece. Viver nas comunidades alternativas foi muito bom, segundo Chia
Jen. Nesses períodos, aprendeu a valorizar as práticas alternativas, que usa hoje em sua
culinária e nas questões de saúde.
Mais tarde, retornou para Mato Grosso (Chapada dos Guimarães) com a família
completa, inclusive com seu companheiro do primeiro casamento. Compraram uma casa
em um lugar especial. É “sua casinha, seu cantinho”, onde ela pode ver o sol nascendo e
os pássaros cantando.
Chia Jen sempre viveu do artesanato. É uma artesã, com mais de 40 anos de
profissão, que ama o que faz. Para ela, tudo o que viveu durante sua caminhada a trouxe
até Chapada dos Guimarães, onde realizou o sonho de ter sua família formada, com os
filhos e netos, além de seu companheiro. Valoriza a tranquilidade de viver do seu
trabalho informal, mantendo os valores que aprendeu, de respeito ao ser humano e à
natureza, e passando para as novas gerações a possibilidade de viver em harmonia.

Hexagrama 51 - Chên: O incitar (comoção, trovão)

Ele tem como símbolo o trovão que irrompe da terra,


causando com seu impacto temor e tremor (I CHING, in:
WILHELM, 1956, p.159).

Chên tem hoje 60 anos e é casado com Chia Jen. Os dois estiveram na
Comunicampo, mas por pouco tempo. Pela narrativa de Chên, essa passagem
representou somente mais um lugar, dos muitos lugares por onde estiveram, mas
acrescentou boas experiências e muito aprendizado. Chên demonstra em alguns
momentos do seu relato uma interpretação diferente de Chia Jen, mesmo vivenciando
fatos em comum.
Quando ainda jovem, sentia total insatisfação com a sociedade, e isso o
impulsionou a seguir a busca espiritual. Encontrou no meio alternativo as respostas que
buscava e um aprendizado que utiliza ainda hoje em seu cotidiano.
Com 19 anos, teve contato com a Ioga e a alimentação natural, em conjunto com
práticas que trabalhavam o despertar da telepatia e da intuição. Conheceu o que ele
chamou de um “bruxo”, que morava em uma praia isolada. Começou, então, a prática de
viagens conscientes fora do corpo ou “viagens astrais”. Foi quando conheceu Chia Jen e
juntos saíram à procura de lugares pequenos, com um tipo de vida mais natural, onde
pudessem viver com tranquilidade, “batalhando só para sobrevivência, sem grandes
pretensões ou conquistas”.
Nessa época, conheceu um grupo de pessoas de quem gostou muito. Eles
estavam com uma proposta de unir todas as comunidades alternativas do Brasil e fazer
uma grande comunidade, em Alto Paraíso (Goiás). Eram por volta de trinta famílias, de
São Paulo e Rio de Janeiro, que queriam investir nesse ideal, pois tinham certa
estabilidade financeira. Mas havia algumas pessoas que estavam interessadas apenas em
lucrar, o que levou Chên a se desencantar com a proposta.
Com o início das chuvas, o pessoal se dispersou e, como já estava chegando
mais um filho, resolveu ir para a Comunicampo, no Mato Grosso. Para Chên, ele
encontrou na comunidade de Nobres um ambiente muito bom, pessoas de bom astral,
uma cozinha natural. Mas ele ainda achava pouco, pois estava com a família: “viver de
arroz integral e frutos não dava”.
Chên fez a proposta, para os membros da Comunicampo, de trabalhar meio
expediente na terra e o outro período fazer artesanato. Ele mesmo iria vender em
Cuiabá. Essa proposta foi recusada e, então, conseguiram uma casa em Rosário do
Oeste, onde nasceu o segundo filho.
Começou, então, uma nova etapa para os membros dessa família. Por questões
adversas, o casal ficou por cinco anos separado. Ele viajou para fora do Brasil e ela foi
para o Rio de Janeiro. Chên teve a oportunidade de morar com os índios em suas
viagens pelos Andes e pelo México. Conheceu um grupo que estudava quiromancia,
numerologia e o I Ching, práticas que acrescentaram no seu desenvolvimento espiritual.
Tomou o peiote (mescalina) e afirma que tem muito respeito pelas plantas de poder,
como no Santo Daime.
Depois, Chên foi para o Rio de Janeiro, onde reencontrou sua esposa e filhos.
Decidiram unir a família novamente. Chapada dos Guimarães foi escolhida como o
lugar para esse reinício. Não tinham a loja ainda, mas vendiam o artesanato na feirinha
da praça. Também plantavam algumas coisas para alimentação, trocavam por artesanato
e vice-versa.
Hoje, com os filhos crescidos, não precisa ter maiores pretenções com relação à
questão financeira. Ainda costura suas próprias roupas quando precisa e não tem
preocupação em comprar roupas novas, reproduzindo um antigo padrão da
Comunicampo. A loja que montou em conjunto com a esposa supri as necessidades
básicas de sobrevivência. Ainda pensa em viver em um monastério, com maior
desapego e silêncio interior, pois sua busca maior é pela paz, mesmo que se sinta bem
vivendo como está.

Hexagrama 24 – Fu: Retorno (o ponto de transição)

As coisas não podem ser destruídas de uma vez para


sempre. Quando o que está em cima se desintegra por
completo, ele retorna abaixo. Por isso vem o hexagrama:
retorno. Aplicado à formação do caráter. O princípio
luminoso retorna, assim, o hexagrama aconselha afastar-
se da confusão do mundo externo e retornar à natureza
luminosa da sua primordial constituição interna. (I
CHING, in: WILHELM, 1956, p.375).

Nascido em 1950 no Rio de Janeiro, Fu é um agricultor que hoje se dedica mais


especificamente ao trabalho de paisagismo. Ele inicia sua narrativa falando da
comunidade que ajudou a fundar em Piraí (Rio de Janeiro), em 1976, quando já havia
nascido seu primeiro filho. Lembra que ele e um amigo resolveram fundar a nova
comunidade após o Festival das Águas Claras, uma grande festa do rock que acontecia
no interior de São Paulo.
Permaneceu nessa comunidade por alguns anos, e conta que tomavam ácido
lisérgico em toda lua cheia para ficarem em contato direto com Deus. Segundo ele, foi
com essa energia, essa força divina, que trabalharam a agricultura na comunidade de
Piraí. Contando também com uma boa infraestrutura, como trator e outros
equipamentos, eles conseguiram “recuperar a terra que até então só dava sapê”.
Fu relata que, “nos momentos mágicos”, com a ingestão de alucinógenos,
conversava com Deus e pedia auxílio. Queria “mostrar ao mundo que podiam produzir
sem agrotóxicos e sem inseticida”. Mas diz que o bom resultado do seu trabalho levou a
uma guerra contra os supermercados. Com isso ficou perigoso permanecer no Rio de
Janeiro. Resolveu que deveriam ir para as Chapadas, onde estão as cabeceiras dos rios,
as nascentes – fazendo, com isso, uma analogia com ir da cabeça para os pés.
Durante o IV Encontro de Comunidades Alternativas em Mauá (Rio de Janeiro),
no grupo de trabalho em que participava, ele e um amigo tiveram a ideia de fechar todas
as pequenas comunidades, que consideravam ineficentes, e fundar uma grande
comunidade. Foi a partir daí que surgiu o Projeto Rumo ao Sol, fato que está preservado
em sua memória e também documentado em reportagem de jornal.
Formou-se uma equipe com vários agrônomos para procurar um lugar favorável
à fundação da grande comunidade. A área escolhida foi uma fazenda em Alto Paraíso
(Goiás). Mudaram-se para lá mais de duzentas pessoas, incluindo crianças, com todos
seus objetos. Mas não aconteceu como esperavam. Passaram um mês discutindo o que
fazer, pois tiveram muitas dificuldades por falta de estrutura para acomodar e alimentar
tantas pessoas. “Toda a responsabilidade ficou para mim”, diz Fu.
Decidiram então começar do nada. Dividiram-se em vários grupos, indo para
muitas regiões do Brasil, principalmente para as grandes Chapadas. Fu quis vir para o
Mato Grosso, pela proximidade com os índios, pois diz que “os índios, quando se
reúnem, conseguem decidir as coisas; brancos quando se reúnem, é só conflito”.
Assim, cada um pegou o que tinha e seguiu rumo às Chapadas. Um deles foi
para a Chapada Diamantina, onde hoje é vereador. Fu tinha um pouco de mel, que
rendeu um pouco de dinheiro, com o qual chegou até a Comunicampo.
Fu argumenta que, quando se vive em comunidades alternativas, pode-se
perceber que o Movimento está mudando com o passar do tempo. Por vezes se
fortalece, depois parece que acabou. Mas nunca acaba. E é necesssário que os membros
mais antigos se reorganizem, passando as informações para quem quiser dar
continuidade. Segundo Fu, os integrantes possuem a grande missão da divulgação desse
novo modelo que, conforme acreditam, deve ser implantado no mundo todo.
Ao relembrar as experiências na Comunicampo, Fu não deixa de notar alguns
problemas e conflitos ali vividos. Lembra que o filho de uma moradora da comunidade
em Nobres teve desnutrição, e um médico da cidade chegou a dizer que, se quisesse,
mandava fechar a Comunicampo. Lá tudo era muito novo, diz Fu. Alguns ouviam falar
que fazer dieta de arroz integral era bom, e já iam fazendo, sem esperar a confirmação,
se realmente era bom para a saúde. Outra pessoa ficava sete dias em jejum, e se fechava
em um ambiente escuro. Tudo muito experimental. Mas ele, Fu, estava com três
crianças pequenas. Diz que se preocupava em colher o arroz, pegar mamão e pescar –
mesmo sabendo que era proibida a pesca. Fu enfatiza que sua cultura era de comer peixe
e que a comunidade deveria respeitar as culturas diferentes. Isso, porém, não acontecia e
foi o que gerou conflitos, inclusive contribuindo para sua saída da comunidade.
Com muita experiência e muito conhecimento, Fu espera que se inicie um
trabalho de resgate de toda essa história, para que as gerações futuras percebam a
grande importância do movimento de comunidades alternativas e para que, aqueles que
queiram dar continuidade, aprendam com os erros e com os acertos dos que tiveram a
coragem de experimentar o novo.

A construção da memória entre o dito e o não-dito

Os dados apresentados permitem abordar a questão das comunidades


alternativas no Brasil a partir da perspectiva de alguns indivíduos que vivenciaram
diretamente esse movimento. Ao examinar as narrativas, torna-se evidente grande
diversidade de temas, que poderiam ser explorados em maior profundidade. Poderíamos
abordar, por exemplo, o modelo de organização social proposto pelas comunidades
alternativas, a relação com a natureza, a noção de propriedade, o domínio da
espiritualidade, a adesão às crenças orientais e o uso de substâncias alucinógenas, entre
outras temáticas profícuas.
Para os limites deste artigo, porém, concentramos o esforço analítico em duas
temáticas principais. Por um lado, procurando a linha que costura todas as narrativas
aqui apresentadas, tratamos da ideia de “busca” e da noção de movimento que aparece
no discurso dos nossos interlocutores, sendo a Comunicampo apenas uma etapa dentro
de algo maior. Por outro lado, privilegiamos a discussão em torno da construção da
memória, focalizando a maneira como os seis indivíduos aqui apresentados repensam
suas trajetórias e, em especial, suas experiências na Comunicampo. Suas narrativas,
incluindo seus silêncios, permitem desenvolvimentos analíticos que sugerem
interpretações sobre a questão mais ampla do movimento de comunidades alternativas
no Brasil.
Para a discussão proposta, é fundamental observar a diferença entre as ideias de
“passado” e de “memória”, tendo em vista que esta última diz respeito à percepção
individual subjetiva do passado. Debert (1986) argumenta que a história de vida torna-
se especialmente relevante quando se busca a produção de uma nova documentação,
objetivando um ponto de vista alternativo ao oficial. Preenchendo as lacunas deixadas
pela história oficial, o trabalho com histórias de vida auxilia na busca por um quadro o
mais completo possível. Nessa reflexão sobre o uso das técnicas de história de vida e
história oral, Debert insiste que a ideia de memória exige nossa atenção não tanto para o
passado, mas para a relação entre o passado e o presente. O evento passado só ganha
sentido através de sua relação com o momento atual.
Notamos que a preocupação com a maneira como as pessoas vivenciam o
cotidiano, atribuindo significado às atividades realizadas é fundamental também na
linha teórico-metodológica da fenomenologia. Tal perspectiva está centrada na
descrição do vivido e na atribuição de sentido às experiências, uma vez apreendidas pela
consciência. Exemplo de tal abordagem pode ser encontrado em Schutz (1979), autor
que esclarece que as pesquisas fenomenológicas não buscam produzir afirmações sobre
os fatos ocorridos, mas remetem a reflexões filosóficas.
A subjetividade e a individualidade inerentes à memória tornaram-se evidentes
ao longo de todas as narrativas apresentadas na seção anterior. Neste sentido, é
especialmente interessante comparar as narrativas de Chia Jen e Chên, pois os dois,
mesmo vivendo fatos em comum por serem um casal, relembram e ressignificam
diferentemente essas experiências. Exemplo disso é a percepção de que, para Chia Jen,
o foco sempre esteve na relação com o companheiro e com os filhos, enquanto que, para
Chên, a preocupação com a família está presente em algumas situações, mas ele reforça
em seu relato a história da sua caminhada individual.
Destacamos igualmente a narrativa de Po. Ele relembra que tinha uma
expectativa com relação à liberdade sexual quando foi para a Comunicampo. E toda
essa expectativa do passado ganha hoje um novo sentido. Ela ganha um ar de
imaturidade e vincula-se à ideia de pouco desenvolvimento espiritual quando
comparada à exposição de Po sobre suas crenças atuais, enfaticamente associadas à
necessidade de controle sexual. Inclusive, Po destaca que a falta de planejamento para a
concepção dos filhos foi um dos fatores que contribuiram para a não continuidade da
Comunicampo. Acredita que as necessidades que surgiram com o nascimento dos filhos
levaram os moradores da Comunicampo a modificar o foco, priorizando a família
nuclear, e não mais o coletivo.
Durante as narrativas dos sujeitos desta pesquisa, suas escolhas, ao longo de
suas respectivas trajetórias, foram muito salientadas. O indivíduo, nas narrativas, tem
lugar especial, aparecendo com força como aquele que opta. Isso remete ao próprio
termo “comunidade alternativa”, fundado numa ideia de opção, de uma alternativa que
se apresenta para aqueles que escolhem viver de um modo diferente.
Verificando a etmologia da palavra “alternativo”, percebemos que “alter” refere-
se ao outro, à alteridade, ao diferente, ao contrário e ao oposto, o que, por sua vez, nos
remete à questão da identidade. Tal discussão tem duas importantes implicações para a
presente análise.
O primeiro ponto a ser examinado com mais cuidado é que, se a “comunidade
alternativa” é o outro, o diferente, o oposto, a quem ela faz oposição? Quem é o “nós” e
quem é o “outro” nesse embate? A sociedade ocidental moderna e capitalista, vista de
maneira abstrata, certamente é um “outro” para nossos interlocutores. A oposição ao
que chamam de “sistema” é um pano de fundo para suas narrativas. Mas outra possível
oposição merece consideração. Observando o que está implícito nas narrativas, pode-se
notar o silêncio a respeito da população de Nobres. Igualmente, os sujeitos aqui
analisados também não falam muito sobre o lugar que ocupam na sociedade em
Chapada dos Guimarães. Frente a este silêncio, cabe aqui um questionamento. É
possível que esse sentimento relacionado à sociedade capitalista ocidental, de maneira
mais abstrata, seja também direcionado à população com quem conviveram em Nobres
e com a comunidade Chapadense? A carência de relatos sobre eventuais contatos com
essas comunidades locais poderia ser um indício que ajuda a traçar os limites um tanto
difusos do grupo aqui abordado? Em outras palavras, a separação entre o dito e o não-
dito revelaria aqui a distância entre “nós” e os “outros” para os informantes?
O segundo ponto a ser analisado é que esse indivíduo, que aparece fortemente na
pesquisa, tem opções e faz escolhas, mas nunca se isola totalmente. Não só ele sai em
busca de uma “comunidade”, do coletivo, como também mantém-se necessariamente
em relação com a sociedade que ele nega. Duas partes são necessárias para existir a
separação. Para Simmel (1964, p.118), “o isolamento não é ausência de sociedade, mas
envolve a sociedade que ele imagina e rejeita, através das recordações passadas ou
antecipação de contatos futuros ou recusa intencional da sociedade”. Até quem se isola
mantém uma relação com o que nega. Por mais que eu trate aqui de indivíduos com
escolhas próprias e trajetórias singulares, negando ou contestando sua sociedade de
origem, eles ainda buscam a convivência harmoniosa e não o isolamento. O indivíduo
sai de sua sociedade de origem, mas com o intuito de criar “outra” (alter), inclusive com
regras próprias, como os “princípios” da Comunicampo.
Essa questão pode ser analisada por um outro ângulo. Buscamos em DaMatta
(1997, p. 223) uma ideia já explorada por muitos cientistas sociais, que é a construção
do indivíduo como um valor. Trata-se da ideia do “eu individual”, capaz de desejar a
liberdade e a igualdade, onde ele tem o poder de optar e escolher, com direitos
essenciais. Na sociedade ocidental moderna firmou-se a crença em que “a parte é mais
importante que o todo” e que a sociedade deve estar a serviço do indivíduo. Podemos
observar que a ideia de indivíduo como centro, que contém a sociedade dentro de si,
está presente nos mitos da sociedade ocidental, como nas estórias em quadrinhos dos
super-heróis ou na figura de Robinson Crusoé.
Com essa reflexão, observamos um paradoxo: ao mesmo tempo em que os
sujeitos da pesquisa contrapõem-se ao “sistema”, eles ainda assim são um produto desse
sistema. Em outras palavras, o movimento alternativo aqui abordado é produto da
sociedade que contesta. Talvez por isso percebemos a dificuldade no processo da
construção de um novo modelo social, de modo que os integrantes desse novo sistema
acabam reproduzindo os mesmos valores da sua sociedade de origem. Noto, a título de
exemplo, o campo da espiritualidade, onde se percebe por vezes, nas narrativas aqui
abordadas, reproduções de antigos valores cristãos.
Outro ponto importante é que esses indivíduos não buscavam o isolamento, mas
sim a vida comunitária. Temos então a Comunicampo como um espaço coletivo, com
ideais de unidade, buscando fortalecer esse sentido de totalidade em uma nova
sociedade, mas seus integrantes traziam consigo a ideia de indivíduo que é uma
construção social e uma criação do ocidente moderno, com ideais de liberdade, escolha,
amor romântico, igualdade, direitos universais, demonstrando com isso a contradição
sempre existente nesse processo.
Outra questão relevante nessa releitura feita dos acontecimentos passados é que
os pontos positivos foram mais ressaltados pelos informantes, como se quisessem dar
maior enfase às questões sobre as quais trazem boas recordações. Fu chega a dizer que
as crises de relacionamento na Comunicampo devem ser esquecidas. Essa é uma forma
de, na atualidade, valorizar a experiência dessas pessoas enquanto integrantes do
movimento, o que também diz muito do que ainda hoje pensam a respeito dos projetos
daquela época. Mas os conflitos certamente não deixaram de existir nesse novo modelo
de organização social apresentado pela Comunicampo e aparecem, mesmo que
moderadamente, nas narrativas dos entrevistados.
A dificuldade na criação dos filhos acarretou diversos conflitos, como podemos
observar em quase todas as falas. Problemas que surgiram várias vezes relacionados às
crianças faziam parecer inviável a ideia de família na comunidade alternativa. Vemos
isso, por exemplo, no relato de Po, que coloca essa questão como uma das prováveis
causas para que esse projeto comunitário não tivesse o sucesso esperado. A família
nuclear, comum na sociedade de origem dos entrevistados, não se encaixava no novo
modelo proposto. Neste último, pregava-se a “família universal”, numa sociedade onde
todos são responsáveis por todos, o que nem sempre acontecia na prática, segundo
relato dos entrevistados. K’un diz que sentiu uma grande dificuldade em criar um bebê
na comunidade alternativa. Chia Jen descreve a situação em que sugeriu a produção de
artesanato para despesas extras, principalmente para quem tinha família com crianças
pequenas – e foi vetado em sua proposta.
A Comunicampo contrapõe-se em diversas circunstâncias ao modelo familiar
ocidental moderno, como acontece com a divisão do trabalho, por exemplo, que segue o
modelo de trabalho comunal. Contudo, vai se tornando evidente que a Comunicampo
não apresentava, ao menos não explicitamente, uma alternativa para esse modelo de
reprodução social. Pelas narrativas, principalmente das interlocutoras do sexo feminino,
havia uma expectativa de que as crianças fossem responsabilidade da comunidade como
um todo. Mas isso não acontecia de fato, ficando em suspenso a reprodução social. Em
outras palavras, não parece ter havido na Comunicampo uma preocupação maior em
passar o novo modelo de organização para os filhos dos integrantes da comunidade,
deixando em aberto a questão da reprodução nas gerações seguintes.2
A reprodução social é uma questão clássica na antropologia. A grande maioria
dos teóricos da disciplina preocupou-se em compreender a maneira como as sociedades
garantem sua continuidade ao longo do tempo. É fundamental que uma sociedade
consiga manter suas características estruturais e culturais, por um determinado período,
que normalmente é maior do que o tempo de vida dos indivíduos dessa mesma
sociedade. Para que isso aconteça, necessita de mecanismos que possam garantir sua
reprodução social, mantendo suas características de grupo, suas formas de
relacionamento, suas práticas e seus valores. Neste ponto, retomamos a questão da
Comunicampo, onde, ao que parece, não havia mecanismos que levassem à reprodução
social daquele novo modelo. Resta-nos, assim, questionarmos sobre os caminhos
encontrados pela Comunicampo para corresponder a essa exigência enfrentada por
qualquer proposta de organização social. Fu, um de nossos interlocutores, reforça a
importância da divulgação das ideias do movimento de comunidades alternativas, como
forma de dar continuidade a esse projeto. Insiste na necessidade de conseguir novos
adeptos e de transmitir essas ideias para as gerações futuras. Mas não coloca como
sendo os próprios filhos dos membros das comunidades alternativas os responsáveis em
reproduzir e dar continuidade a esse modelo.
Diante de tal discussão, podemos nos perguntar: o modelo apresentado pela
Comunicampo era de uma sociedade que estaria fadada, inevitavelmente, a deixar de
existir em um curto espaço de tempo? A presente pesquisa não permite responder a esse
dilema, mas insite na importância da discussão. Esta se torna uma questão fundamental,
que nos leva a refletir sobre a viabilidade do projeto de comunidades alternativas, que
parece ter sua continuidade ameaçada.

A transitoriedade da vida na Comunicampo

Um tema em especial mostra-se sempre presente nas narrativas descritas neste


trabalho. Trata-se da ideia de “busca”, a procura por algo que parece nunca se realizar
plenamente, mas que move esses seis indivíduos ao longo de suas trajetórias. Podemos
perceber que aquilo que motivou a decisão de sair em busca de um novo modo de vida é
muito particular a cada um deles. Mas as viagens constantes e a residência temporária
numa comunidade alternativa aparecem de maneira semelhante em todos os relatos.
Comum às narrativas também é a indicação de que, em vários momentos, deixavam a
vida nas comunidades alternativas, fixando-se por um período maior ou menor num
sítio ou área urbana e mantendo-se com o trabalho artesanal. Todos esses momentos são
relacionados uns aos outros como etapas na busca por algo.
Noto que os entrevistados demonstram nas narrativas que não sabiam
exatamente, na altura, o que buscavam. Para alguns, inclusive, essa ideia de busca não
era de fato uma questão quando partiram para uma comunidade alternativa. A “busca”
aparece muito mais como parte da interpretação feita hoje sobre esse evento do passado,
agora associado às noções de movimento e passagem.
A ênfase na busca por uma alternativa de vida faz da Comunicampo nada mais
que um momento de passagem, de transição. Para entendermos o que representa esse
momento de transição, buscamos o suporte fornecido pelos conceitos de “communitas”
e “liminaridade”, elaborados por Turner (1974). A liminaridade diz respeito às “pessoas
que estão no meio, entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, costumes,
convenções e cerimoniais”. Ela corresponde ao estado intermediário dos ritos de
passagem, vivido pelo sujeito ritual. No rito de passagem, o estado anterior e o posterior
remetem a direitos e obrigações estruturais. Já no “limiar”, o sujeito ritual tem posição
ambígua. Dessa maneira, os atributos da liminaridade (ou de pessoas liminares) são
ambíguos, pois estão no meio, exatamente na transição, e com isso estão fora das
classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num
espaço cultural. As pessoas liminares são percebidas, assim, como se estivessem fora da
estrutura.
Victor Turner explora essa condição de liminaridade estendendo-a a situações
não exclusivamente vinculadas a rituais. O autor propõe dois modelos de
correlacionamento humano, justapostos e alternantes. O primeiro deles remete à
sociedade como um sistema estruturado, com posições político-jurídico-econômicas
diferenciadas e hierarquizadas. O segundo modelo diz respeito à sociedade como uma
comunidade não-estruturada de indivíduos iguais. Esse modelo estaria relacionado ao
período liminar dos ritos de passagem, partilhando de muitos dos seus atributos.
A propriedade das situações liminares que se destaca na discussão de Turner está
associada à ideia de communitas, uma negação da estrutura imposta pelo conjunto social
de regras e padrões estabelecidos. Esta propriedade seria a não estrutura, ou a ausência
temporária da estrutura, como se tudo ficasse em suspenso.
Sugerimos que os conceitos de liminaridade e communitas permitem caracterizar
melhor a experiência de vida na Comunicampo, marcada por propriedades como a
totalidade, a igualdade, a ausência de propriedade, a continência sexual, a nudez, a
simplicidade e a referência contínua aos poderes místicos – todas elas próprias das
situações limítrofes (TURNER, 1974, p. 130). Mas, sobretudo, tais conceitos nos
permitem apontar para uma interpretação possível do significado dessa experiência.
Como um momento de passagem, de transição para algo, a vida na Comunicampo era
uma tentativa de negação da estrutura existente (o chamado “sistema”). E a dificuldade
dos integrantes do movimento de comunidades alternativas em criar uma nova estrutura,
capaz de se reproduzir, igualmente remete a algo próprio da communitas.
Avançamos, assim, a interpretação de que as inconsistências estruturais da
Comunicampo, isto é, sua dificuldade em propor um mecanismo viável de reprodução
social e continuidade no tempo, sejam mais do que mera “falha”. Elas se revelam como
algo característico dessa situação liminar em que a estrutura é colocada, ela própria, em
suspenso, por um período de tempo que se encerra necessariamente com o retorno à
estrutura, ainda que modificada.

Notas

1 - A este respeito, ver, por exemplo, Maluf (2005), Soares (1989) e Tavares (1998).
2 - Uma comparação enriquecedora pode ser feita com o caso etnográfico apresentado
no trabalho de Spiro (1973) sobre a organização familiar nos kibbutzim, em Israel. O
autor demonstra como, no kibutz, algumas funções que seriam atribuídas à família típica
de residência comum são atribuições da sociedade inteira. Spiro chama esse modelo de
“estrutura familial”.

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