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De mendigos a população: transformações nos modos de

compreender a vida nas ruas


JOSIMAR PRIORI*

Resumo:
Este artigo apresenta, a partir de uma pesquisa bibliográfica, uma análise sobre
as transformações nas maneiras de compreender a vida nas ruas. Inicialmente
examino brevemente a maneira como pessoas que vivem nas ruas foram
compreendidas ao longo do tempo e como o Estado progressivamente atrai para
si a atenção a este grupo. Na sequência analiso como a partir do final dos anos
1970, os que eram tidos como mendigos passam a progressivamente serem
compreendidos como uma população privada de direitos. Estas transformações
desembocam na criação do decreto 7.053 de 23 de dezembro de 2009, o que
institui a política nacional para a população em situação de rua.
Palavras-chave: políticas públicas; população em situação de rua; direitos.
From beggars to the population: changes in ways of understanding street life
Abstract:
This article presents, from a bibliographic research, an analysis on how to
transform the ways of understanding life on the streets. Initially, look briefly at
how street people have been understood over time and how the state is
progressively attracted to the attention of this group. Following this, from the
late 1970s onwards, those who were considered as beggars gradually came to be
understood as a population deprived of rights. These changes were made in the
creation of Decree 7,053 of December 23, 2009, which establishes a national
policy for the homeless population.
Key words: public policies; homeless population; rights.

*
JOSIMAR PRIORI é Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos.
Professor do Instituto Federal do Paraná.

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Introdução população.
O objetivo deste artigo é apresentar uma A metodologia utilizada para o
análise sobre as transformações nas desenvolvimento deste artigo foi a
maneiras de compreender a vida nas pesquisa bibliográfica. Neste texto,
ruas. Busco enfatizar que tais restrinjo-me, inicialmente, a uma breve
compreensões são acompanhadas por apresentação a respeito das maneiras
maneiras específicas por meio das quais como as sociedades lidaram com a vida
os demais grupos sociais lidam com tal nas ruas ao longo do tempo, depois dou
fenômeno. No Brasil, em meados dos destaque para as iniciativas brasileiras
anos 1970, uma série de deslocamentos anteriores aos anos 1970, as quais
propiciaram o aparecimento de novos buscam progressivamente trazer para as
atores sociais e de novas práticas a partir práticas estatais o controle sobre a
das quais a vida nas ruas passou a ser assistência aos pobres. Na sequência,
reconfigurada até ser tida como uma demonstro como a partir desse período
população em situação de pobreza inúmeras transformações discursivas e
extrema e privada de direitos, para quem práticas ocorreram, as quais mais
é preciso desenvolver políticas públicas. recentemente dão suporte para a criação
Esse processo desemboca na elaboração de um decreto do governo federal
da política nacional da população em designando uma política nacional para a
situação, por meio de decreto 7.053 de população em situação de rua e criando
23 de dezembro de 2009. uma política pública para ela.
Como parte da bibliografia especializada A vida das ruas ao longo do tempo
vem destacando1, a vida nas ruas – e O fenômeno da vida nas ruas não é algo
outras marginalidades – ocupa recente. Stoffels (1977) afirma que na
centralidade no conflito urbano Grécia antiga encontram-se os primeiros
contemporâneo e possui alta fertilidade registros de pessoas vivendo em
criativa, seja no âmbito interno à própria condições que podem ser aproximadas
vida nas ruas, seja impulsionando
ao que hoje consideramos a vida nas
práticas sociais que se constituem desde
ruas. Eram sujeitos que, em condições
esse lócus. De fato, a vida nas ruas gera
de pobreza extrema, viviam nos
ações que buscam contê-la, eliminá-la,
interstícios da cidade, sem domicílio e
apagá-la do cenário urbano ou mesmo
eram tidos como vagabundos e
efetivar direitos sociais. Em termos
mendigos. Na Idade Média também se
estatais, são constituídas políticas
encontram fartos registros a respeito. Em
públicas que buscam lidar com este
boa medida, inclusive, nesse período a
grupo2 que passou a ser visto como uma condição de vida na pobreza extrema
ganhou dimensão religiosa e
1
Ver, entre outros, Rui (2014), Rui, Martinez e salvacionista. Os tidos como mendigos
Feltran (2016), De Lucca (2007), Maximo e podiam ser vistos como sagrados e alvo
Melo (2016). de práticas de caridade (MAGNI, 2006)
2
Nos tempos atuais, oficialmente tais políticas pela Igreja Católica.
propõem proteção social e efetivação de direitos.
Todavia, sabe-se que ao lado desta versão ideal No entanto, na passagem do feudalismo
da política pública, é recorrente práticas estatais para a o capitalismo as transformações
que se erigem não pela proteção social, mas pela econômicas já não aceitam a existência
violência, pela higienização da cidade, pela
remoção forçada dos locais em que os
desabrigados se encontram e pela sua circulação sociassistencial, prisional, filantrópica e
entre os diferentes serviços que compõem a rede religiosa

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de tal condição, que passa então ser complementares entre a caridade e a
combatida e criminalizada. Embora criminalização. Por um lado, a pobreza
aquele tido como “bom mendigo” – o extrema, vivendo nas bordas sociais,
que não podia se sustentar com esforços continua atendida por uma, muitas vezes
próprios – ainda era tolerado, o visto escassa, caridade, por outro, é
como “mau mendigo”, passa a ser criminalizada a partir das categorias
combatido, pois a visão dominante da como a vadiagem e da mendicância. No
época, cuja ética capitalista do trabalho caso brasileiro, de acordo com Melo
começa a ser forjada, acreditava que ele (2017) apenas com o decreto 11.983 de
seria capaz de viver do próprio esforço. 2009 a mendicância deixa de ter tida
como atividade passível de
Com as crises medievais e com o criminalização, enquanto a vadiagem
desenvolvimento desta ética, a permanece nessa rubrica. O autor
mendicância por escolha própria começa destaca que há uma histórica
ser combatida pela Igreja Católica, que criminalização da vida nas ruas,
passa a qualificá-la como vadiagem, sustentado por elaborações jurídico-
“determinando que para receber a administrativas.
caridade seria preciso merecê-la”
(MAGNI, 2006, p. 17). A passagem para A busca do Estado pelo monopólio da
o capitalismo destituiu do “mendigo” o assistência à vida nas ruas
caráter sagrado e o transformou em um
Até meados do século XIX, a assistência
“suspeito, vadio e criminoso” (MAGNI,
aos pobres era, predominantemente, feita
2006, 18), contra quem se iniciou uma
por iniciativas individuais ou pela
cruzada:
religião. A partir desse período, no
Nos séculos XVII e XVIII, com a entanto, não apenas a vida nas ruas, mas
intensificação da exploração da a assistência social como um todo passa
força de trabalho que caracterizou o pouco a pouco a ser capturada pelas
período pré-industrial e industrial, tramas do Estado. O trabalho de Máximo
aumentaram ainda mais a repressão e Melo (2016), por exemplo, demonstra
e o castigo à mendicância- que em certo momento a assistência
transgressão. Se no final da Idade
social se torna um dispositivo do Estado.
Média a indigência passara a ser
condenada moralmente, neste Tido como um problema religioso e
período, mais do que isto, era vista moral, a pobreza foi por muito tempo
como um crime econômico: a objeto de atenção quase que exclusivo
produtividade do indivíduo tornava- do universo cristão. Tratava-se, de tal
se uma condição essencial para a maneira, não de um problema estatal,
riqueza (MAGNI, 2006, p. 20). mas da igreja, especialmente da
Católica, a qual intervinha por meio de
Pode se observar que ao mesmo tempo
irmandades, congregações e grupos
em que as sociedades geram condições
religiosos que de maneira sistematizada
favoráveis – como desemprego,
ou não exerciam a chamada caridade
expropriação dos meios de produção e
cristã, especialmente por meio de
baixos salários – para pessoas viverem
esmolas e doações.
nas ruas, surge também uma
preocupação ou incômodo com tal Máximo e Melo (2016, f. 116) afirma
situação, cada vez vista como mais que, no caso brasileiro, “até a República
problemática e com coloração negativa. a filantropia caritativa era realizada
Dessa situação, por sua vez, pode-se inteiramente pela Igreja Católica”. No
observar práticas sociais ambíguas e/ou entanto, na passagem do século XIX

111
para o XX, progressivamente a industrialização selvagem, as
filantropia vai se separando da caridade transformações rurais que tornam cada
e, ao longo deste século, gradualmente vez mais difícil a permanência da
vai sendo absorvida pelo Estado. Pouco população neste espaço, a consequente
a pouco vão surgindo instituições urbanização do país e a abertura
filantrópicas, as quais, inicialmente, democrática promovem uma
apenas recebiam apoio financeiro do pluralização política. Ocorre neste
Estado: “a assistência pública se período uma renovação teológica com a
constituiu, historicamente, como apoio e teologia da libertação, constitui-se um
subvenção às organizações filantrópicas novo sindicalismo e as esquerdas passam
que realizavam essas iniciativas de por um processo de reconfiguração, o
assistência aos pobres. Esse modelo de que faz emergir novos projetos políticos
assistência foi predominante até os anos assentados na ideia de direito a ter
1930 no Brasil” (MAXIMO E MELO, direitos (SADER, 1988).
2016, f. 117).
Neste conjunto de transformações, a
Pouco a pouco estas ações vão sendo vida nas ruas ganha novos contornos. No
incorporadas ao diagrama estatal, à plano econômico, parte da população
medida “[...] que esta microfísica de migrante não é inserida no mercado de
poderes diversos vão sendo capturados e trabalho e acaba parando nas ruas. No
enovelados na governamentalidade do plano intelectual, ela se torna
Estado” (MAXIMO E MELO, 2016, f. progressivamente objeto de análises
118). A Constituição de 1934 foi a acadêmicas. No plano político se torna
primeira a prever assistência aos objeto de contenção.
desvalidos. Em 1938 é fundado o
A primeira pesquisa sobre vida nas ruas
Conselho Nacional de Serviço Social
que se tem conhecimento no Brasil foi
(CNSS), ligado ao ministério da
realizada por Stoffels e publicada em
educação e saúde pública e tinha como
1977. Esta obra é a única pesquisa
objetivo receber, avaliar e fiscalizar o
sociológica que se tem notícia a utilizar
apoio financeiro estatal para entidades
o vocábulo mendigo, termo até então
filantrópicas. Em 1942, é criada a
utilizado amplamente para designar as
fundação Legião Brasileira de
pessoas que viviam nas ruas. Apesar de
Assistência (LBA), presidida pelas
não problematizar o termo, a autora
primeiras-damas do país até 1995, ano
realiza um importante estudo tanto por
de sua extinção. A associação entre
discorrer sobre o fenômeno ao longo dos
entidades sociais e Estado na operação
tempos, como por caracterizá-lo na
das políticas assistenciais, porém,
cidade de São Paulo dos anos 1970 em
persiste: “em muitos municípios
franco processo de urbanização,
surgiram os Serviços de Obras Sociais
industrialização e consequente
(SOS), entidades filantrópicas, muitas
constituição de um exército industrial de
vezes ligadas a alguma corrente
reserva.
religiosa” (MAXIMO E MELO, 2016, f.
120). Entre os anos 1980 e 1990 começam a
aparecer pesquisas aqui e acolá sobre a
vida nas ruas, as quais foram analisados
Surge a população de rua por Máximo e Melo (2016). Os estudos
feitos nos anos 1980 consideram a vida
Os anos 1970 e 1980 foram de intensas nas ruas sob a ótica da categoria
transformações no Brasil. A trabalho. Os que vivem nas ruas são

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identificados com o lupemproletariado, A formação dessa compreensão se
isto é, com aqueles que não foram estrutura num conjunto de práticas
absorvidos pelo mercado de trabalho. As sociais novas. Não existe estudo que
pesquisas dos anos 1990, por sua vez, trate sobre o processo de construção da
analisam a vida nas ruas a partir de uma vida nas ruas como uma população que
nova categoria de modo que ela passa a merece atenção social e estatal que não
ser vista como fruto da exclusão social. mencione o pioneirismo de um grupo
chamado Organização do Auxílio
Nota-se que tais estudos estão em Fraterno (OAF), projeto fundado pelas
sintonia com as tendências acadêmicas freiras católicas Oblatas de São Bento
brasileiras dos anos 1980 e 1990. em 1955.
Enquanto na primeira década predomina
uma análise materialista histórica e Até o final dos anos 1970, a OAF
dialética das relações sociais, a segunda desenvolvia uma série de atividades com
busca construir novas categorias, como a as pessoas que viviam nas ruas do centro
da suposta exclusão social. da cidade de São Paulo. Tal trabalho, no
entanto, restrito a práticas de caridade
Ainda segundo Máximo e Melo (2016), cristã, passa por profundo reexame, são
a partir dos anos 2000 ocorre uma interrompidos temporariamente, até que
pluralização dos estudos, os quais a OAF se reestruture a fim de levar o
buscam trazer aspectos da própria vida “programa de Puebla3” para o centro de
nas ruas. As sociabilidades, as práticas São Paulo, como lhes tinha solicitado o
cotidianas, os saberes e as políticas Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. A
criadas nesse espaço e suas relações com instituição passa a adotar uma “linha
a institucionalidade passam a ser objetos mais comunitária”, a partir da qual
de análise. Deixa-se de priorizar as pretende conviver com os atendidos de
ausências, as faltas, as privações, e maneira mais horizontal e buscar
passa-se a buscar compreender o construir com eles uma interpretação
cotidiano das ruas. para a vida nas ruas associada ao
sofrimento de cristo, mas também ao
No entanto, as novidades a respeito da questionamento da pobreza como
vida nas ruas não ocorrem apenas pelo fracasso individual.
crescente interesse acadêmico pelo tema.
Em certa medida, ao contrário, é A partir do trabalho desta organização,
possível alocar a própria formação de uma série de iniciativas se desenvolvem
um campo de estudos no interior de um e vão, progressivamente, de acordo com
processo de práticas capazes de o De Lucca (2007, p. 18-19), criando o
transformar os então mendigos em que passou a ser tido como população de
população de rua, inseri-los rua:
progressivamente na agenda pública e [...] A população de rua, tal como é
tomá-lo como um problema de gestão hoje, não existiu desde sempre,
estatal. Com efeito, desde os anos 1970, sendo invenção social recente e bem
começa-se a questionar as narrativas datada em nosso país. Uma
então predominantes sobre a vida nas reconfiguração daquele antigo
ruas. Passa-se a tratá-la não mais como
algo individual, mas como parte de 3
Conferência Episcopal dos bispos da América
dinâmicas capitalistas as quais não Latina realizada em 1979 na cidade de Puebla de
oportunizaram a tais pessoas integração Los Angeles (México) e que assume como meta
da Igreja Católica “a opção preferencial pelos
ao mercado de trabalho.
pobres”.

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mendigo – cuja imagem ligava-se catadores de material reciclável. Por
unicamente à prática circunscrita da meio da Secretaria Municipal de Bem-
mendicância nas ruas e ao fracasso Estar social (SEBES), realiza-se em
moral e individual – inicia-se na 1991 o primeiro levantamento da
passagem para a década de oitenta e
quantidade de pessoas vivendo nas ruas
consolida-se no início do novo
século. Nestes anos vimos a
do centro da cidade de São Paulo. O
experiência das ruas ganhar outros número obtido de 3.392 pessoas começa
contornos, novos indicadores e a dar forma e quantidade a uma
evoluir velozmente. Junto a isso se população que passa a sofrer intervenção
estabelece uma complexa e pública. Foi criado também o Fórum
entremeada arena de interações na Coordenador dos Trabalhos, o qual
qual uma série de discursos, práticas apoiou a organização do Primeiro Dia de
e instituições disputam e produzem Luta do Povo da Rua em 1991 e
valores específicos, mas também promoveu o Seminário Nacional da
propõem soluções para a crescente População de Rua em 1992.
população que habita o espaço
público da cidade. Ao mesmo tempo No entanto, apesar de inúmeras
em que aumenta o número de transformações, o término do mandato
pessoas vivendo nas ruas, todo um de Erundina não deixou as políticas para
conjunto de atores coletivos, ONGs, população de rua bem amarradas
entidades religiosas, organismos legalmente em razão de não ter sido feita
estatais e figuras políticas e nenhuma lei específica para tal público.
intelectuais, começam a entrar em
Em 1993, com a posse de Paulo Maluf4
conexão e concorrência pela
definição e delimitação do que é
como prefeito paulistano, a organização
população de rua, como se deve anterior enfrenta uma série de
tratá-los, quem deve tratá-los, quais dificuldades em decorrência da
técnicas adequadas de tratamento, resistência do novo prefeito à concepção
quem deve falar para eles, por eles e de atendimento em vigor. As
sobre eles, e qual o papel de cada organizações da sociedade civil iniciam
um destes agentes em tal dinâmico então a tentativa de construção de tal
contexto. marco legal, o qual só foi aprovado pelo
prefeito Celso Pitta (PPB) em 1997. A
Destaca-se a atuação do Partido dos
regulamentação da lei, no entanto, só foi
Trabalhadores da cidade de São Paulo,
feita pela prefeita seguinte, a petista
sob a liderança da vereadora e depois
Marta Suplicy, em 2001.
prefeita paulistana Luiza Erundina
(1989-1993). Durante sua gestão foram Segundo Ferro, neste período começam
criadas uma série de iniciativas cujo a surgir movimentos em outras cidades
objeto era inserir a população de rua na do país, como Belo Horizonte, local que
agenda da prefeitura. também teve atuação importante da OAF
e do Partido dos Trabalhadores,
Segundo Ferro (2011), neste governo culminando com a criação de uma lei de
surgem novas formas de relação entre a amparo à população de rua. Ainda assim,
sociedade civil e o Estado. A de acordo com a autora, a atuação estatal
prefeitura irá atuar conjuntamente com sobre a vida nas ruas é marcada por uma
entidades que trabalhavam com a vida
nas ruas, como a OAF e outras 4
Maluf foi eleito pelo Partido Progressista
instituições que progressivamente vão Reformador (PPR). Em 1995 essa sigla passou a
surgindo, como Centro Gaspar Garcia de se chamar Partido Progressista Brasileiro (PPB).
Direitos Humanos e as cooperativas de Atualmente se chama apenas Progressistas.

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[...] “esquizofrenia institucional” como assistencialismo e em seu lugar
donde “(…) sectores del Estado movimentos sociais e por
desarrollan políticas de atención y democratização exigem que o Estado
protección de las personas en assuma um papel de garantidor de
situación de calle mientras que,
direitos, entre os quais figura a
simultáneamente, otros sectores
ponen en práctica políticas de
assistência social. A constituição cidadã
represión, violencia y expulsión de de 1998 é o grande marco desse período.
estas personas del espacio público” No ambiente da assistência social, em
(Rosa y Ferro, 2011). De esta forma, 1993 é promulgada a Lei Orgânica da
la “nueva relación” del Estado con assistência social nº 8.742, a qual define
la problemática de la población en a assistência como “direito do cidadão e
situación de calle, marcada por el dever do Estado”.
reconocimiento estatal de sus
obligaciones ante esta población y la Desta maneira, a atenção aos mais
elaboración de políticas públicas de pobres vai cada mais se enraizando nas
carácter social, no ha suplantado la prática estatais, o que não significa
relación anterior de violencia y porém, ruptura como ações não estatais,
expulsión, sino que ambas conviven mas sim que o Estado busca para si
simultaneamente (FERRO, 2011, p. exclusividade não sobre as práticas em
69). si, mas o poder de definir as diretrizes
Segundo De Lucca (2007), para tais trabalhos, sejam realizados por
progressivamente vão surgindo uma ele próprio ou pela sociedade civil.
série de práticas sociais as quais passam Passam a conviver, desta maneira,
a criar uma população de rua. Neste órgãos estatais, filantrópicos, religiosos
contexto, atores sociais falam sobre a etc., os quais de um lado são fiscalizados
vida nas ruas, mas os que ali vivem e regulados pelo Estado e de outro
somente se organizam politicamente no financiados por ele. Igualmente tais
início dos anos 2000. Tidos até então órgãos privados buscam tanto por meio
como incapacitados de atuarem da eleição de candidatos próprios quanto
coletivamente por si próprios, as pessoas de aliança ou pressão sobre políticos e
que vivem nas ruas criam o Movimento gestores públicos a inserção de sua
Nacional de Defesa e Luta pelos Direitos agenda no organograma estatal. Tais
da População de Rua (MNPR) em 2001. organizações, de tal maneira, intentam
O movimento se fortalece a partir de influenciar nas tomadas de decisões
2004, depois do massacre da praça da sé, estatais de modo que sua concepção
quando 15 pessoas em situação de rua predomine sobre as demais.
foram golpeadas na cabeça, sendo que Neste contexto, a vida nas ruas se torna
sete delas morreram. Desde então o um dos objetos de atenção das tramas do
MNPR exerce papel fundamental na Estado. Práticas estatais e não estatais
defesa e na elaboração de políticas para passam a se articular para interferir e
a população de rua, termo que assumem gerar novas representações sobre a vida
para lhes designar. nas ruas, a qual ganha corpo como um
Surge a política nacional para a problema que merece intervenção do
população em situação de rua Estado.
O final dos anos 1970 e os anos 1980, A construção da vida nas ruas como um
como já visto, demarcam deslocamentos problema que requer ação estatal em
importantes, a partir dos quais passa-se a nível nacional reflete a conjunção da
questionar o que vai ser caracterizado atuação cotidiana de uma série de atores

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sociais, da constituição de novas práticas consulta pública em 2008.
e da chegada ao governo federal de uma
De acordo com Maximo e Melo (2016),
nova concepção política liderada pelo
a mobilização liderada pelo Movimento
presidente Luís Inácio Lula da Silva, que
Nacional da População de rua e a
tomou posse em 2003. Uma das
articulação de diversos atores foi
marcantes ações deste presidente é o
marcante nesse período, o que nos
“natal com o povo da rua”, realizado
permite supor que sua atuação é decisiva
anualmente enquanto Lula esteve no
para que a vida nas ruas seja reconhecida
poder5. Foi em um desses encontros que
como um problema estatal e merecedor
o presidente se comprometeu em criar
de uma política própria. Finalmente, em
uma política para tal segmento e também
2009, na data supracitada, é promulgado
em uma dessas atividades, em 23 de
o decreto criando tal política, com os
dezembro de 2009, que é assinado o
seguintes objetivos:
decreto 7.053/2009 cumprindo seu
compromisso. Art. 7o São objetivos da Política
Nacional para a População em
O processo que se deu entre 2003 e 2009 Situação de Rua:
foi marcado por uma série de atividades,
I - assegurar o acesso amplo,
encontros, reuniões, conferências e
simplificado e seguro aos serviços e
audiências. O Ministério do programas que integram as políticas
Desenvolvimento Social e do Combate à públicas de saúde, educação,
fome (MDS), criado em 2004, passa a previdência, assistência social,
articular as tratativas. Em 2005, moradia, segurança, cultura,
promoveu o Primeiro Encontro Nacional esporte, lazer, trabalho e renda;
sobre a População de Rua. Na sequência,
II - garantir a formação e
fez a alteração da Lei Orgânica de capacitação permanente de
Assistência social de modo a introduzir profissionais e gestores para atuação
o termo população em situação de rua no desenvolvimento de políticas
como público alvo de proteção social públicas intersetoriais, transversais
especial, por meio da Lei Nº 11.258, de e intergovernamentais direcionadas
30 de dezembro de 2005. Em 2006 foi às pessoas em situação de rua;
criado o Grupo de Trabalho III - instituir a contagem oficial da
Interministerial, com cinco ministérios e população em situação de rua;
atores sociais convidados, sendo três
organizações sociais e entre 3 e 5 IV - produzir, sistematizar e
disseminar dados e indicadores
representantes da população em situação
sociais, econômicos e culturais
de rua. Entre 2007 e 2008 foi realizada a sobre a rede existente de cobertura
Pesquisa Nacional sobre a população de de serviços públicos à população
rua, cobrindo 71 municípios entre os em situação de rua;
maiores do Brasil. A política em
V - desenvolver ações educativas
desenvolvimento foi submetida à
permanentes que contribuam para a
formação de cultura de respeito,
5
O primeiro encontro, realizado em 2003, ética e solidariedade entre a
segundo Ferro (2011, f. 97) “Fue un momento população em situação de rua e os
histórico, sobre todo para estos sectores sociales demais grupos sociais, de modo a
marginados donde muchos, por primera vez, resguardar a observância aos
participaban de un acto público junto a un direitos humanos;
Presidente de la República pensado
exclusivamente para recolectores y personas en VI - incentivar a pesquisa, produção
situación de calle”. e divulgação de conhecimentos

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sobre a população em situação de objetivo de propiciar o seu acesso
rua, contemplando a diversidade ao mercado de trabalho.
humana em toda a sua amplitude
étnico-racial, sexual, de gênero e Tem-se assim a consagração estatal,
geracional, nas diversas áreas do órgão detentor do monopólio do poder
conhecimento; simbólico (BOURDIEU, 2009), da
população em situação de rua, como
VII - implantar centros de defesa
resultado de uma série de
dos direitos humanos para a
transformações nas maneiras como a
população em situação de rua;
vida nas ruas passou a ser vista. A
VIII - incentivar a criação, compreensão de que as pessoas que
divulgação e disponibilização de vivem nas ruas são sujeitos de direitos é
canais de comunicação para o reconhecida oficialmente pelo Estado.
recebimento de denúncias de
No entanto, embora tal visão esteja
violência contra a população em
situação de rua, bem como de
escrita em lei e direcione políticas
sugestões para o aperfeiçoamento e públicas oficiais, essa compreensão
melhoria das políticas públicas continua convivendo conflitivamente
voltadas para este segmento; com outras realizadas informalmente por
próprios agentes estatais, quanto por
IX - proporcionar o acesso das
outros setores sociais, disputas que
pessoas em situação de rua aos
benefícios previdenciários e merecem análise em outro momento.
assistenciais e aos programas de Considerações finais
transferência de renda, na forma da
legislação específica; Busquei, ao longo deste artigo, fazer
uma análise das maneiras como a vida
X - criar meios de articulação entre
nas ruas tem sido compreendida, dando
o Sistema Único de Assistência
Social e o Sistema Único de Saúde
destaque para as transformações que
para qualificar a oferta de serviços; ocorrem a partir do final dos anos 1970 e
que desembocam na constituição da
XI - adotar padrão básico de política nacional para a população de
qualidade, segurança e conforto na rua. Pessoas em condições análogas à
estruturação e reestruturação dos
vida nas ruas atual são registradas desde
serviços de acolhimento
temporários, de acordo com o
a antiguidade. Viviam em pobreza
disposto no art. 8o; extrema, vagavam pelas cidades e eram
tidas por vagabundas. Na idade média,
XII - implementar centros de por sua vez, tais pessoas ganham um
referência especializados para certo caráter sagrado, que passa a ser
atendimento da população em
contestado à medida que a ética do
situação de rua, no âmbito da
proteção social especial do Sistema trabalho capitalista se desenvolve. De
Único de Assistência Social; objetos de caridade, passam a ser vistos
como suspeitos, vadios e criminosos,
XIII - implementar ações de pois não eram capazes e trabalhar.
segurança alimentar e nutricional
suficientes para proporcionar acesso Progressivamente atenção a tal grupo vai
permanente à alimentação pela se deslocando da religião para as tramas
população em situação de rua à estatais, o que gera uma nova
alimentação, com qualidade; e configuração no atendimento a tal
XIV - disponibilizar programas de segmento. Os religiosos não se retiram
qualificação profissional para as dessa seara, mas agora são regulados
pessoas em situação de rua, com o pelo Estado, enquanto buscam

117
influenciar na produção das políticas Monitoramento, e dá outras providências. Diário
estatais. Em certa medida, é o que se Oficial, Brasília, 2009. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007
observa a partir do inovador trabalho da -2010/2009/Decreto/D7053.htm>. Acesso em 28
Organização do Auxílio Fraterno (OAF), jul. 2016.
um grupo de religiosas que inicia um
DE LUCCA, Daniel. A Rua em Movimento:
trabalho comunitário com os que vivem experiências urbanas e jogos sociais em torno da
nas ruas, tomando-os não como população de rua. Dissertação (Mestrado em
mendigos, mas como vítimas da Antropologia social), Departamento de
urbanização, das dinâmicas capitalistas e Antropologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2007.
do desemprego, o que os jogou para a
vida nas ruas. FERRO, Maria Carolina Tiraboschi. Desafíos de
la Participación Social: Alcances y Límites de
A partir da atuação desse grupo, la Construcción de la Política Nacional para la
progressivamente tais pessoas passam a Población en Situación de Calle en Brasil.
ser compreendidas como uma Dissertação (Mestrado em Ciência Política e
Sociologia), Facultad Latinoamericana de
população, cujos direitos foram negados.
Ciencias Sociales, Buenos Aires, Argentina,
Esta visão encontra repercussão entre 2011.
agentes políticos, como o governo
MAGNI, Cláudia Turra. Nomadismo Urbano:
municipal de São Paulo na gestão da uma etnografia sobre moradores de rua em Porto
petista Luiza Erundina. Em parceria com Alegre. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2006.
instituições como OAF, este governo
MAXIMO E MELO, Natália. A Esmola e a
passa a inserir o que agora é tido como Rede de Proteção: um estudo de instituições
população de rua na agenda municipal. assistenciais para as pessoas que vivem nas ruas.
Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade
No início dos anos 2000 surge outro ator Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.
importante para essas transformações, o
Movimento Nacional da População de MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes.
Política dos “improváveis”: Percursos de
rua. Em 2003, por sua vez, o Partido dos engajamento militante no Movimento Nacional
Trabalhadores chega à presidência da da População de Rua (MNPR). Tese (Doutorado
república e o presidente Lula assume um em Antropologia) – Universidade Federal
compromisso de criar mecanismos de Fluminense, Niterói, 2017.
amparo aos que vivem nas ruas. A partir RUI, Taniele. Nas Tramas do Crack: Etnografia
de 2005 iniciam-se congressos, debates, da abjeção. São Paulo: terceiro nome, 2014.
reuniões, estudos, os quais terão o RUI, Taniele; MARTINEZ, Mariana;
MNPR como um dos principais FELTRAN, Gabriel. Novas Faces da Vida Nas
protagonistas e que vão redundar na Ruas. São Carlos/SP: EDFSCar, 2016.
publicação do decreto 7.053/2009 e a SADER, Eder. Quando novos personagens
instituição da população em situação de entraram em cena. Experiências, Falas e Lutas
rua brasileira. dos Trabalhadores da Grande São Paulo (1970-
1980). 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
STOFFELS, Marie-Ghislaine. Os mendigos na
Referências cidade de São Paulo: ensaio de interpretação
sociológica. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 12.
1977.
Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
BRASIL. DECRETO Nº 7.053 DE 23 DE
DEZEMBRO DE 2009. Institui a Política Recebido em 2019-11-22
Nacional para a População em Situação de Rua e Publicado em 2019-12-18
seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e

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