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Identidade e território: Cultura da resistência ou resistência da cultura1?

Um estudo inicial
das comunidades quilombolas de Barrinha, Carombinho e Quilombo de Conselheiro Josino.

Contemporaneamente, as chamadas terras de preto ou comunidades remanescentes de quilombo


constituem uma especificidade dentro do campesinato brasileiro e conjugam três elementos: terra,
etnia e território. Entende-se que, além do uso da terra para subsistência, existe uma apropriação
simbólica da mesma, constituindo, assim, os territórios negros no Brasil, marcados por histórias e
ocupações singulares (Trindade,2004).

INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado do curso “Realidade Brasileira 2”, ocorrido no ano de 2007,
organizado pelo MST e de minhas andanças em Comunidades Quilombolas no norte do estado do
RJ. As ações têm se materializado no processo de organização e formação socio-cultural e política,
desenvolvido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
O presente ensaio foca sua atenção nas Comunidades Quilombolas de Barrinha, localizada
no município de São Francisco de Itabapoana, Quilombo de Conselheiro Josino e Carombinho,
ambas localizadas no município de Campos dos Goytacazes/RJ.
O objetivo central deste trabalho visa compreender as relações sociais construídas no interior
dessas comunidades Quilombolas, considerando suas práticas de resistência que se manifestam
através da cultura, como por exemplo, uso de plantas medicinais, jongo, versos, práticas artesanais
e extrativistas.
O que nos levou, inicialmente, a refletir sobre o assunto foi o relato, por parte dos moradores,
de práticas tradicionais como o jongo, o uso do pilão para preparação de colorau e a utilização de
ervas nos cuidados de saúde. Apesar de muitas dessas práticas encontrar-se como que guardadas
em velhos e grandes baús, emerge o desejo de convidar a comunidade pra abrir o baú e ver o que
de lá poderá sair. A experiência mais significativa tem sido em relação ao jongo. Abrir o baú nos
levou a ouvir o som de tambores que encontravam-se há 30 anos silenciados. A primeira roda de
jongo e as demais foram suficientes para despertar um olhar investigativo sobre as práticas culturais
que se manifestam nas comunidades, tanto como resistência da cultura, quanto cultura da
resistência.
Nesse sentido, esta pesquisa propõe analisar as formas de resistência através da cultura e
dos saberes, partindo da auto-representação das Comunidades Quilombolas em foco,
contextualizada, historicamente, na formação de sua identidade sócio-política e na construção de
sua organização social.
Temos observado que as comunidades negras do norte do estado do RJ, em pleno século
XXI - virgens de trabalho de base de quaisquer instituições, sejam elas: igreja, movimento social,
ong’s - se reconhecem como comunidades de trabalhadores, pequenos agricultores, pobres rurais
ou urbanos e não como comunidade Quilombola. Este debate tem início na região norte do estado a
partir do trabalho da CPT em 2006.
Alguns lugares do Brasil como o Maranhão, por exemplo, existe uma trajetória dos
movimentos sociais e da igreja na organização/formação das comunidades negras que contribuiu
pra que as mesmas se auto-reconheçam como comunidades quilombolas.
Para que possamos entender a ausência deste debate no interior das comunidades e o
velamento desta identidade, fazendo com que ela seja muito mais atribuída do que assumida,
consideramos importante contextualizá-lo nos centenários de aristocracia rural, do chicote, do
feudalismo e posteriormente da ofensiva do capitalismo e, portanto, da hegemonia do projeto de
sociedade burguesa em nossa região. Não pretendemos aprofundar esse debate aqui, mas
gostaríamos de registrá-lo, pois conhecemos as implicações que envolvem a questão
conceitual-política sobre as comunidades “remanescentes de quilombo”.

1
O Curso Realidade Brasileira está formando, em agosto de 2007, sua segunda turma. O curso nasce em 2001, a partir de proposta da via
Campesina e do movimento Consulta Popular, objetivando garantir a formação de militantes das organizações de trabalhadores e trabalhadoras do
campo e da cidade, de forma a assegurar uma reflexão sobre a necessidade de formar quadros para a luta política. A coordenação político
pedagógica do curso é composta pelas seguintes organizações: FLP. MST, Marcha Mundial de Mulheres, Grupo de Saúde do RJ, MIRE e docentes da
UFF.
1
O que percebemos nessas comunidades são formas de organização próprias que
demonstram certa resistência sócio-cultural, seja através dos tambores que insistem em bater, no
pilão ora utilizado, ora abandonado e que em alguns casos, já virou cinza; nos remédios de plantas e
na decisão de permanecerem em seus territórios, mesmo diante de adversidades e falta de acesso
às políticas sociais básicas. Podemos afirmar que a identidade coletiva auto-atribuída passa sempre
pelo trabalho. “Somos trabalhador da roça!”.
Em relação à utilização dos recursos naturais como a água, a pesca e o extrativismo
identificamos que os mesmos não se tornam propriedade, pertencem a todos, tem um uso comum.
Existem áreas que são coletivas e muitas vezes o território como um todo, como é o caso de
Carombinho, apesar das roças serem cultivadas no campo do privado, pois as famílias não dividem
o produto da colheita de forma coletiva/comunitária. Ao que parece cada um tem sua roça, porém a
área pertence à família dos Alonso, tem um único documento.
A Comunidade de Barrinha, por exemplo, tem uma forma comunitária de extração de ostras,
as mulheres se ajudam no carregamento, várias vão a pé, empurrando a bicicleta por que uma delas
não sabe andar de bicicleta, porém o resultado da extração está no campo do privado. Apresentam
um desprendimento em relação à propriedade, pois quando não vendem as ostras, doam para os
vizinhos.
A negritude como identidade e a luta pela terra não fazem parte do discurso presente nas
comunidades negras do norte do estado. A luta tem se materializado pela sobrevivência e
enfrentamento de adversidades, principalmente no que tange a dificuldade de acesso às políticas
sociais básicas.
Em sua pesquisa Wagner ratifica essa confirmação e destaca algo importante:

“não se pode impor o desígnio do partido, da ONG ou da utopia do


mediador a uma situação real: ao contrário, há que partir das condições
concretas e das próprias representações, das relações com a natureza e
demais práticas dos agentes sociais diretamente envolvidos para se
construir os novos significados.” (68)

Assim, nossa proposta inicial é buscar compreender como essas comunidades vêm
construindo práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida, em seu
território de origem, como se identificam e representam. A pesquisa sobre o reconhecimento das
comunidades remanescentes de São Paulo as pesquisadoras afirmam que “a identidade desse
grupo se funde com o território por meio de experiências vividas e compartilhadas de trajetórias
históricas comuns, as quais possibilitará a continuidade do grupo”. (Santos; Giacomini, s/d).
Assim, a nossa prática tem se referenciado na identidade das comunidades quilombolas,
respeitando sua trajetória organizativa e contextualizada em seus territórios.

Orientação teórico-metodológica
O caminho escolhido para este trabalho tem se pautado nas aproximações com os moradores
das comunidades de Barrinha, Quilombo de Conselheiro Josino e Carombinho. Cerca de um ano
atrás iniciamos atividades em duas dessas comunidades (Barrinha e Quilombo de Conselheiro
Josino), fato este que tem nos possibilitado conhecer as questões que perpassam a organização
sócio- política e cultural das mesmas. A compreensão das revelações tem se dado em movimento
espiral, o que contribui para que nos posicionemos na condição de eternos aprendizes. Temos
exercitado um esforço de ampliarmos a compreensão de contextos culturais com significações que
ultrapassam o nível espontâneo das mensagens, como nos alerta Minayo e rompendo com a “ilusão
da transparência” como denomina Bourdieu quando se refere à compreensão espontânea do real.
(Minayo, 1998: 198).
O método sustentado nos argumentos do materialismo histórico e dialético orienta nossa
ação-reflexão e nos fornece subsídios para análises críticas e reflexivas da realidade e de nossa
prática social. Segundo a metodologia marxista, apresentada na Introdução de 1857, as relações
entre os níveis abstrato e concreto se passam da seguinte forma: o ponto de partida é o teórico, que,
por sua vez, tem o concreto como pressuposição ao espírito; o ponto de chegada é o resultado das
2
relações entre o concreto e abstrato. Logo, o ponto de partida não coincide com o ponto de chegada,
ou seja, nas palavras de Marx, se o abstrato fosse igual ao concreto não haveria a necessidade da
pesquisa. O resultado final é o concreto pensado. Desse modo nossa caminhada tem se dado; em
espiral vamos nos aproximando do real que se revela e desvela em cada encontro, nos
surpreendendo sempre.
Escolhemos fazer um registro da memória, do silêncio e do esquecimento, pois,
consideramos que estes elementos fundamentam nossa compreensão e orientam nossas ações.
Esses registros são alimentados através de conversas, de entrevistas semi estruturadas, de
observação participante e de reuniões2.
As prosas que acontecem durante o trabalho nas comunidades quilombolas revelam
elementos que emergem de uma memória afetiva e espontânea. A visão bergsoniana e proustiana3
de memória remete a ideia de uma memória “mais elevada”, “verdadeira memória”, ou seja, “ela é
feita de imagens que aparecem e desaparecem independentemente de nossa vontade, revela-se por
‘lampejos bruscos, mas se afasta ao mínimo movimento da memória voluntária”. (Seixas, s/d. p. 46).
Essa análise conceitual possibilita nossa compreensão do real quando confirmamos, nas falas
dos quilombolas, especialmente dos mais antigos, a referência afetiva que fazem ao passado, seja
através dos olhares, dos silêncios, do esquecimento e das expressões faciais, pois, “não há
memória involuntária que não venha carregada de afetividade e, ainda que a integralidade do
passado esteja irremediavelmente perdida, aquilo que retorna vem inteiro, íntegro porque com suas
tonalidades emocionais e ‘charme’ afetivo”. (idem, p.47).
Várias entrevistas são reveladoras dessa memória:

“é como se eu tivesse vendo ela aqui, agora, na boca do tambor”... (Fala do Sr.
Carlinhos, Quilombo de Barrinha, referindo-se a sua avó quando dançava
jongo)
“Quando me entendi conheci Gargaú... Era assim: Gargaú... (Sr. Ademar, com
95 anos de idade, inicia a entrevista sobre sua história referindo-se aos
tempos áureos de Barrinha - as condições materiais eram melhores -, quando
tinham muita produção que era escoada através do porto de Gargaú. É como
se ali começasse sua história).

Em relação às memórias das antigas rodas de jongo o que se revela nas falas “são memórias
que parecem emergir, irromper de um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente
concebido, contra todas as evidências, segundo os cânones da ideologia do progresso.” (id. p. 48).
As entrevistas verbalizam a catarse de uma memória, uma memória inscrita na existência dos
que já viveram a experiência de roda de jongo e que a cada fala faz emergir a emoção de re-viver o
inesperado. A dança, os versos, os sorrisos esperançam a comunidade. As gerações mais novas se
surpreendem com a reação dos pais e avós. Um outro lugar está sendo re-construído.
A lembrança começa a agir, cumprindo seu “compromisso ético, utópico e mítico identitário”.
(id, p. 52, 53, 56). A espontaneidade com que re-cantam os versos e dançam não poderia jamais ser
produzido em laboratório, não poderia se induzido. Tem sido uma memória que aflora de forma
espontânea e com muita ansiedade pois todos e todas querem viver aquilo que se re-apresentava. É
como se quisessem segurar aquele momento pra sempre, para que não o “percam” novamente.

“Bergson (...) afirmando que a memória tem um destino prático, realiza a


síntese do passado e do presente visando ao futuro, contrai os momentos
passados para deles ‘se servir’ e para que isso se manifeste em ações
interessadas.” (Seixas, 53).

2
“As entrevistas semi-estruturadas entre as quais incluímos a história de vida e as discussões de grupo. Ambas podem ser feitas verbalmente ou
por escrito, mas tradicionalmente incluem a presença ou interação direta entre o pesquisador e os atores sociais e são complementadas por uma
prática de observação participante.” (Minayo, 1992: 120).
3
Vide textos de Jacy Alves de Seixas. A pesquisadora vem desenvolvendo amplo estudo das obres de Bérgson e Proust sobre a questão da
memória e história.
3
As entrevistas são centradas na história de vida individual, familiar e coletiva com foco na
questão do trabalho e da cultura. A observação participante ocorre durante as reuniões, rodas de
jongo, visita/reunião dos quilombolas ao Ministério Público e secretaria municipal de educação,
enterro, nascimento de criança e encontros de jongo. As reuniões ocorrem centradas nas questões
de saúde comunitária (preparação de remédios fitoterápicos) e demanda por acesso às políticas
sócias básicas. Outro elemento que contribuiu para o maior conhecimento da comunidade de
Barrinha foi o curso de formação política realizado no mês de janeiro/2007 que contou com 04
encontros, bem como as pescarias realizadas no mar e no brejo, pós as aulas. Todos esses recursos
têm contribuído para facilitar a compreensão da estrutura autônoma que caracteriza a organização
dessas comunidades.

A observação etnográfica aqui permite romper com o positivismo da definição


jurídica e chama atenção para os instrumentos epistemológicos tão odiados
pelos empiristas e positivistas. É com base nesses instrumentos que se pode
reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo
existe onde há autonomia, onde há uma produção autônoma que não passa
pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo,
embora simbolicamente possa ser estrategicamente mantida numa
reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como se destaca hoje em certas
condições de aforamento. (Wagner, 2006: 60-1).
Além da autonomia que assumem, na condição de camponeses (especialmente na
Comunidade Barrinha e Carombinho) outra questão que tem sido central para compreensão das
relações sociais que perpassam as comunidades é a cultura. Segundo Adriana Facina “a cultura
implica um processo de aprendizado, assim como a capacidade das coletividades humanas de
elaborarem e, portanto, transformarem sua própria história”. (Facina, p. 16-7).
O que estamos compreendendo quando participamos das reuniões preparatórias das rodas de jongo
e das rodas propriamente dita é que o jongo é um produto histórico que expressa a realidade
histórica afro descendente. O que nos cabe refletir é se ele, como uma expressão cultural, pode
contribuir para desvendar a opacidade da realidade e, assim, assumir a qualidade de elemento
potencialmente transformador, inserido no processo histórico contemporâneo.
Partindo do pressuposto que “a cultura é constitutiva da prática social e não o reino de idéias
e valores abstratos. (...) não é uma totalidade harmônica, mas sim palco de disputas, conflitos e lutas
de classe que caracterizam a sociedade como um todo.” (Facina, p. 24-25) nos dispusemos centrar
nossa análise nas questões que perpassam as atividades de jongo, uso de plantas medicinais e
organização sócio-cultural a fim de “confirmamos” a potencialidade transformadora da cultura.
Acreditamos que
“é no campo político ideológico que as classes sociais consolidam a divisão
que se materializa no terreno econômico, pelo lugar que os homens ocupam
no processo produtivo e pelas relações de propriedade que estabelecem com
os meios de produção. A tradição marxista distingue, então, duas modalidades
de existência das classes: uma objetivamente dada correspondente às
condições materiais de existência, criando a classe em si; outra
subjetivamente construída, dependendo da elaboração intelectual da
organização dos sujeitos implicados produzindo a classe para si.” (Abreu,
1996. p. 65).

I - RE-CONHECENDO E RE-CONCEITUANDO TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS


“As chamadas terras de preto compreendem os domínios que, a partir da desagregação de grandes
proprietários monoculturalistas, foram doadas às famílias de ex-escravos ou por elas adquiridas,
com ou sem formalização jurídica. Seus descendentes permanecem nessas terras há várias
gerações, sem proceder ao formal de partilha e sem delas se apoderar individualmente, gerando
assim um sistema fundado por laços de consangüinidade em que sobressaem o compadrio, e as
formalidades não recaem necessariamente sobre os indivíduos, pondo as famílias acima de muitas
das exigências sociais. Isso leva à indivisibilidade do patrimônio dessas unidades sociais
4
circunscritas numa base fixa, considerada comum, essencial e inalienável. (O”Dwyer; Carvalho,
2002: 207-8).

O município de Campos dos Goytacazes teve, historicamente, seu desenvolvimento econômico


sustentado em bases escravistas. Caracterizado pela economia voltada para os engenhos de açúcar
o município chegou a ter, no ano de 1799, 234 engenhos de açúcar e 04 de aguardente. (Pinto,
1990).
A população escrava no município em 1.850 totalizava 37.747 negros/as, ou seja, maior do que a
população livre que era de 31.475 habitantes. A mão de obra escrava trazida diretamente da África
desde 1.700 era responsável pela produção do açúcar entre tantas outras tarefas, como o
desmatamento das florestas a fim de obter lenha para as fornalhas dos engenhos, quando por volta
de 1.840 começaram a ser movidos a vapor, diferenciando-se de outrora que funcionava à base de
tração animal e escrava. (Pinto, 1990).
A existência de Quilombos na região norte do estado pode ser amplamente constatada nos
jornais do meado do século XIX:
Captura de Criminozos
Reunio e armou 24 homens para coadjuvar as autoridades policiaes na
captura de criminosos, e para destruir quilombos. Confiou o commando desta
força a um inspetor de quarteirão apresentado pelo respectivo juiz de paz
como muito apto, que começou a praticar desvarios, e imprudências: pelo que
fez dispersar os homens, alem de que as chuvas servirao de obstáculo ao
resultado feliz de tal empresa. Convidou a trez pessoas, que já em outro
tempo servirão nessas diligencias, porem não quiserão tomar a si tal tarefa,
está portanto S. Ex. embaraçado na falta de um homem hábil, e capaz.
(Monitor Campista, nº 11 – 5 de maio de 1840).

Segundo Almeida “em termos históricos, o objetivo das tropas de linha ao combater os quilombos
era tentar trazer a força de trabalho, que idealmente estaria fora dos limites físicos das grandes
plantações, para dentro de seus domínios e mantê-las sob o controle dos fazendeiros. Fazer os
quilombolas retornarem à disciplina do trabalho nas plantações constituía a finalidade precípua da
ação militar.” (2002: 58).
Nos jornais da época encontramos também reclames em relação aos batuques no quilombo do
Travessão. Assim aparece a referência da cultura afro, das rodas de jongo, da capoeira, das
celebrações. As manifestações culturais dos negros aparecem como denúncia da aristocracia. A
cultura trazida pelos escravos ficava restrita às senzalas. Lá aconteciam as conversas, as danças, a
capoeira e a organização dos escravos, porém, os meios de comunicação, durante séculos,
mantiveram visíveis somente os fatos que contavam a história das elites, da aristocracia rural e seus
herdeiros socioculturais, conforme afirma Soares, trazendo como consequência a tentativa de tornar
invisível a cultura popular e em especial as histórias dos negros.

No Século XIX, pelo já exposto, não existe nenhum tipo de registro, pela
imprensa, de atividades culturais – danças, cânticos, artesanatos, culinária,
religiosidade – a partir dos mais baixos extratos sociais: escravos e homens livres
mas dominados pelas questões dos interesses capitalistas. Por isso, muita coisa
se perdeu em termos da produção da cultura... (Soares, 2004: 41).

Hoje, a perspectiva da invisibilidade começa a ser desconstruída e, novas formas de


organização e definição dessas comunidades começam a aparecer, como por exemplo, o conceito
de remanescentes dos quilombos.

Conforme determina o Decreto N 4.887, de 20 de novembro de 2003


consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria,

5
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade
negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

Existem posições críticas com relação a este conceito. Almeida, quando analisa os Quilombos
e as novas etnias, afirma que o reconhecimento das comunidades quilombolas não está restrito ao
passado, ao remanescente, resíduo, ao que sobrou, ao que sobreviveu, mas sim ao futuro, a casos
concretos, de grupos sustentados em critérios político-organizativos próprios. “É o que logrou uma
reprodução, é o que manteve mais preservado, é o que manteve o quadro natural em melhores
condições de uso e é o que garantiu a esses grupos sociais condições para viver
independentemente dos favores e benefícios do Estado.” (Almeida, 2002: 77-78).
“A palavra quilombo origina-se etimologicamente da língua africana quimbundo, em que a
palavra kilombo tem, entre outros significados, de povoação, união. Na acepção dada ao termo
quilombo pelos próprios negros, os sentidos de povoação negra e de união são culturalmente
significativos.” (Bandeira; Dantas, 2002: 217).
Diante do debate em torno das questões que envolvem os quilombos, as universidades,
instituições de pesquisa e extensão comunitária e diversos movimentos sociais têm trabalhado no
intuito de valorizar os saberes e cultura popular, especialmente das comunidades remanescentes de
quilombo, contribuindo para emergência da memória coletiva e “re-construção” da identidade,
também coletiva. A valorização destes saberes encontra-se diretamente relacionada à questão das
terras ocupadas pelos remanescentes quilombolas visto que esses territórios físicos “constituem-se
em espaços simbólicos de identidade, de produção, de reprodução cultural, não sendo, portanto,
algo exterior à identidade, mas sim a ela imanente.” (Pereira, 2002).
Wagner destaca a importância de relativizar o conceito de comunidades remanescentes
restrita à questão jurídica, que interpreta o quilombo como algo que está fora, descontextualizado da
civilização e da cultura. (Wagner, 2006: 49)
Outras comunidades espalhadas pelo Brasil começam a estabelecer o debate de identidade e
território conforme exemplifica Arruti no que tange o art. 68 ADTC/CF88:

"Tanto em casos mais conhecidos, como das comunidades de Kalunga (GO), Rio
das Rãs (BA), Oriximiná (PA) e Vale da Ribeira (SP), quanto em situações ainda
muito pouco estudadas, como as de Mocambo (SE) e Sacotiaba (BA), o processo
de assunção da identidade de "remanescentes" teve início com a disputa por
recursos (normalmente traduzidos em termos territoriais) e, só então, quando o
instrumento de luta privilegiado passa a ser o Artigo 68, as questões de cultura e
origem comum emergem, passando a ser plenamente tematizadas pela
comunidade e tornando-se objeto de reflexão para o próprio grupo. A mobilização
desses elementos de identidade leva à reconstrução de uma continuidade na
maioria das vezes perdida, levando ao que Hobsbawn e Ranger chamaram de
"invenção de tradição", isto é, uma reapropriação de velhos modelos ou antigos
elementos de cultura e de memória para novos fins, em que o passado serve
como repertório de símbolos, rituais e personagens exemplares que até então
poderiam ser desconhecidos pela maior parte da comunidade." (1997, p. 27-28).

Se por um lado o artigo 68 se constitui em um marco no debate sobre as questões da


ancestralidade, origem e cultura das comunidades negras, por outro é preciso refletir sobre o
conceito de remanescente, não como “sobra ou resíduo” que necessita de comprovações
arqueológicas. Segundo Almeida a comunidade quilombola é considerada “o que logrou uma
reprodução, é o que se manteve mais preservado, é o que manteve o quadro natural em melhores
condições de uso e é o que garantiu a esses grupos sociais condições para viver
independentemente dos favores e benefícios do Estado.“(2002:77).
O que percebemos nas três comunidades, de modo particular e singular, são formas de reprodução
social de existência que “enfrentaram” a ausência do Estado, contribuindo para o fortalecimento de
uma organização social de resistência, construída historicamente frente às adversidades, calculada
em bases solidárias que, se por um lado as fortalece e empodera, em seus valores e modos de vida
6
firmados em sua unidade social, por outro, mantêm essas comunidades alheias ao processo de
organização política, portanto, subalternos diante do poder econômico e político, principalmente de
fazendeiros. “Não queremos mexer com eles” [fazendeiros]. (Moradores das três comunidades).
Essas questões que emergem na análise conceitual vão possibilitando compreendermos a
complexidade que esse tema assume no mundo contemporâneo e nos posiciona diante de uma rede
de indefinições diante do “novo”, que se revela na ancestralidade e memória das comunidades
quilombolas. O que fazer, por exemplo, na comunidade de Carombinho que se localiza em local de
difícil acesso, no alto da serra do Imbé, local de esconderijo dos índios e dos escravos e que se
revela, nas faces marcadas por uma miscigenação esquecida pelo Estado durante todo o tempo?
Como contribuir para sua organização política respeitando seus valores, medos, crenças e a
identidade construída numa relação restrita à natureza e ao trabalho?
Contextualizados num tempo histórico, a memória oral tem nos possibilitado analisar a história
das comunidades a partir de suas singularidades, ou seja, de seus próprios códigos, de sua cultura,
de suas crenças e de sua constituição na espacialidade de seus territórios numa sociedade de
classes, em que assumem a condição de trabalhadores, porém de forma diferenciada.
Registramos que a tentativa de caracterizar as comunidades encontra-se num primeiro
movimento de aproximação e que nossa condição de militante compromete a compreensão da
realidade, principalmente na comunidade de Carombinho onde só realizamos duas visitas. O
objetivo de registrar, mesmo que de modo incipiente, as primeiras observações, consiste na forma
que encontramos de não perdemos a preciosidade das informações visto que uma das lacunas de
nossa prática consiste na não sistematização das experiências. Portanto, essas reflexões não são
conclusivas, ao contrário, indicam a necessidade de uma pesquisa sócio-histórico-antropológica e
territorial utilizando, de preferência, as histórias de vida como recurso metodológico que correlacione
a trajetória dos sujeitos, o tempo biográfico e o tempo histórico. O recurso antropológico de
mapeamento de genealogias tem demonstrado um caminho de aproximações da compreensão
desses saberes. Infelizmente as pesquisas neste campo têm sido poucas pelos lados de cá.
Podemos afirmar que as três comunidades, historicamente, foram formadas por grupos
domésticos ligados entre si pelo parentesco e até hoje conservam essa particularidade,
especialmente Carombinho e Barrinha
Era noite de lua cheia nas terras de Barrinha..
.Os tambores tocavam a liberdade...
“Nesse terreiro ninguém manda”...
Celebrando a ancestralidade da negritude
a roda girava...
Saias de chita, floridas,prenunciavam a primavera...
movimento de mãos e pés calejados... libertos...
Sorrisos de contentamento.
Entre versos, prosas e desafios...
A madrugada de inverno permanecia aquecida pela fogueira,
brisa do mar soprando, poeira levantada no passo gingado
Africanidade, brasilidade...
raízes do jongo...
Negras e negros retintos não cabiam em si...
A surpresa das crianças.
O adolescer da meninada se aproximava da roda...
ensaiavam passos...
O coração acelerava na força e energia dos quilombolas...
Renascendo após 30 anos
rompendo o silêncio dos tambores.
Tentaram calá-los...
Resistência no afeto dos ancestrais
Eles insistem em cantar, gritar, vibrar...
vibração que ecoa pelo São Francisco
São Francisco do Itabapoana...
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Sem calar partilharam frutos da terra e do mar:
bobó de camarão da tia Ivani,
pimenta malagueta da tia Zéze,
doce de laranja da tia Nevinha,
moqueca de ostras da tia Alceni.
Tinha até paçoca de amendoim e,
raízes de Travessão...
Enraizando em terras de liberdade
fomos nos esperançando no aquilombamento
sem cercamento
utopizando versos re-criados,
momentos passados e presentes
ao som de tambores encantados,
sob a luz do luar Loca insistia em cantar:
“vai buscar quem mora longe”...
(Carolina Abreu 01/07/07)
1.1- Comunidade de Barrinha
A comunidade de Barrinha dista aproximadamente 10 km do centro da cidade de São
Francisco de Itabapoana que, até receber sua emancipação pertencia ao município de São João da
Barra. O município de São João da Barra era considerado um celeiro de Campos que no século
XVIII e especialmente no século XIX representava um centro nevrálgico da produção de açúcar. São
João da Barra passou a ser fundamental para sobrevivência de diversos centros produtores de
açúcar em função de ter o porto da região, próximo à foz do rio Paraíba do Sul.
A comunidade de Barrinha fica próxima à região de Buena, onde servia de guarda e refúgio
temporário para quem, no período da escravidão, buscava a liberdade devido a sua geografia:
alagados, brejos, riachos, matas virgens e o mar que se apresentava como o grande sonho de
retorno à terra mãe, à mãe África. Próximo à 2 km fica a praia de Manguinhos onde havia um porto
por onde chegavam os navios negreiros, tanto no período da escravidão como no período do tráfico.
Recentemente foram encontradas ossadas humanas nessa praia e que têm sido estudadas pela
UFRJ, confirmando a presença de africanos naquelas terras.
Esses dados iniciais indicam uma ocupação desde os tempos do cativeiro. Uma comunidade
de negros retintos que revela uma forma de resistência à miscigenação. Laços consangüíneos
marcam todas as famílias.
Uma das características que encontramos nesta comunidade é a inexistência de cercas.
Existe uma simbiose de quintais que propicia uma sociabilidade e o fortalecimento dos laços
ancestrais. A comunidade não se dá conta da questão. Quando perguntamos porque não têm cercas
eles dizem que tem cerca sim. Não conseguem compreender a pergunta sobre a relação entre os
terrenos.O que percebemos é que as cercas são em algumas plantações, mas como forma de
proteção de criações/animais. Os quintais, em sua maioria, perpassam uns dentro dos outros sem
que eles se deem conta. A terra é de herança e o documento está em nome dos mais velhos e não
houve divisão. A partilha das terras foi consensuada e cada um “toca o que é seu”.
As famílias mais antigas são numerosas, tendo em torno de 08 a 10 filhos. O Sr. Ademar,
morador vivo mais antigo, com 96 anos de idade pode ilustrar esse fato com sua família constituída
de 13 filhos, 27 netos, 40 bisnetos e 8 tataranetos. É comum encontrarmos em cada família alguns
que migraram para grandes centros como RJ e SP. Os que partiram sempre retornam para visitas ou
mesmo para refazer morada.
Podemos constatar a afirmação da genealogia presente, passada e imemorial, de cada
família na qual emergem relações de parentesco que articula, não apenas cada grupo familiar, mas
uma rede de vínculos que une o grupo familiar no interior da comunidade. A comunidade diante de
outras na sua circunvizinhança e, também, por todo o território negro dos distritos e comunidades
dos arredores.4 Em Barrinha identificamos uma tradição histórica e cultural partilhada por grupos de

4
Várias são as comunidades circunvizinhas: Amontado, Santa Terrinha, Praça Quente, Samambaia, Coréia, Buena, Lagoa Feia.
8
descendência comum, centrada no parentesco. “Aqui todo mundo é parente”. (Angélica, setembro
de 2007).
A Comunidade possui aproximadamente 250 habitantes distribuídos em 50 grupos
domésticos. É constituída por negros que fazem referência à ascendência de escravos que
trabalhavam nas fazendas da região. Contam várias histórias que data da escravidão como a de um
negro curador/rezador que trabalhava na Fazenda São Pedro e tinha por hábito buscar milho na
fazenda e levar para os escravos. Com a chegada de um novo feitor (“um puxa-saco”) que denuncia
o negro, o Senhor mandou colocá-lo no tronco e depois vendeu por preço de banana porque disse
não querer escravo ladrão. Quando o escravo saiu na porteira ele abaixou pegou um punhado de
areia, jogou três vezes pra trás e disse:
_ “Fazenda S. Pedro pra trás, pra trás. Fazenda São Pedro nunca mais, nunca
mais. A partir deste dia tudo que tinha lá se acabou, até o alambique e as
árvores antigas”. Relata uma das moradoras:
_ “Eu ainda alcancei passar pela porteira que dividia a Fazenda e minha mãe
falava pra gente fazer silêncio porque ali tinha tido muito sofrimento dos
escravos e quando a porteira abria era um barulho terrível, como de gente
gemendo”. (Entrevista com Tia Zezé, outubro de 2006).

As pessoas relatam que as terras eram de seus antepassados e que os fazendeiros foram
chegando, trazendo boi, tombando árvores e expulsando os negros. Visitamos o casarão da fazenda
S. Pedro, onde reside um caseiro de nome Luis. Encontramos dentro da sede um quadro que
registra uma foto aérea do antigo engenho, sede e casas dos trabalhadores. A filha do caseiro nos
informou que os objetos que datam o período da escravidão, muitos deles utilizados pra tortura,
antes, guardados no sótão, foram levados para a sede do engenho. A fazenda hoje é de herdeiros
do Sr. Simão Mansur e quem responde por ela e é o Sr. Fahid Mansur, residente no RJ.
Próximo ao engenho vive várias famílias que chegaram a trabalhar para o último dono.
Relatam casos que datam da década de 30 a 60 e como eram explorados no trabalho na cana.
Tanto os moradores que residem nas proximidades do engenho da Fazenda São Pedro como os
quilombolas de Barrinha relatam que a Fazenda era um lugar muito próspero, como uma cidade,
havia armazém, festas, atividades na igreja que tem como padroeiro São Pedro de Alcântara, e
rodas de jongo, onde os tambores quando começavam a tocar aparecia gente de dentro dos
canaviais onde tinham casas de estuque. ”Era muita gente, uma cidade.” (Marilza, janeiro de 2007).
Os moradores de Barrinha não gostam de se referir à Fazenda São Pedro. Sempre resistiram
em trabalhar para os proprietários de lá. Na fala e no evitar o assunto transparece uma forma de
resistência. Não querem pisar na propriedade que escravizou seus ancestrais, não querem falar
sobre o assunto. Evitam as lembranças do cativeiro que recordam uma opressão e violência para
com os negros. Quando chegam falar da fazenda S. Pedro o fazem com indiferença ou desprezo.
Retornando à comunidade quilombola de Barrinha podemos afirmar que as famílias vivem,
em sua maioria, da pequena, criação de animais de pequeno porte, da extração de ostras e pesca
artesanal. Existem trabalhadores domésticos e em serviços gerais. Os jovens buscam emprego na
sede do município, praias nos arredores e outras cidades.
Uma das narrativas revela características da região no inicio do século XX.
“Aquilo tudo [Barrinha] era dele (Gregório) e do falecido Libório. A Barrinha era
tudo deles dois. Fazia rumo lá pra Samambaia”. (Entrevista com Tio Carlinhos)
Gregório era o pai de tio Carlinhos, Tio Ademar e Dona Cotinha (os moradores vivos mais
antigos de Barrinha). Libório era considerado o escravo “reprodutor” da fazenda São Pedro.
Ainda sobre a região:
- “Tinha um corredor de casa na beira da praia para os veranistas, os donos de
usina vinham tomar banho nessa praia.
- Esse corredor de casa era da Faz. São Pedro? O sobrado também?
- Era. Era do morador antigo do tempo de cativeiro. Era casa boa. Tinha um
canhão de ferro que ficava encostado na parede. Não sei que fim deram
naquilo. Aqui vinha navio pegar madeira.” (Tio Carlinhos)

9
Segunda Narrativa
Entrevista com Tia Zezé, nasceu em 11/05/1935, de parteira. O pai era Francisco Alves. Filha de Tia
Cotinha. Neta de Pastora que morreu em 1987. Bisneta de Virginia Maria da Conceição.

- “Eu conheci o meu avô. Gregório. Morreu muito velho. Ele era tão velho que
as mão dele não fechava. Ele cortava fumo de rolo e a mão era assim,
carancada. Abria mas não tinha... de tão velho que ele era. Quando ele
morreu eu já tinha 15 anos . (Gregório morreu em 1950).
(...)
- “A gente foi morar na fazenda são Pedro num lugar chamado de Cobiça. Lá
tinha muitos bichos e meu pai não deixava a gente sair...o telhado era de
coqueiro, ou de tabúa que era do brejo ou de sapê. Fui criada nessas casas
assim.
Como seu avô conseguiu essa terra em Barrinha?
_ Essa terra pertencia a Fazenda. Então eles vieram para aqui. Depois cada
um, essa terra pertencia ao meu bisavô: Álvaro Gregório da Penha, mas só
que eu acho que não tinha nome em cartório, ai morreu o velho e ai o cartório
mandou o papel que eles tinham que pagar os impostos. Na época era muito
dinheiro, três contos, três mil réis...o meu pai trabalhava pra um fazendeiro em
Buena e eles não recebiam em dinheiro, recebiam um papel com os dias que
eles tinham trabalhado e o valor que eles tinham o direito de gastar, então eles
iam naquele estabelecimento pra comprar, mas dinheiro na mão eles não
recebiam. Eles começaram a ter dinheiro quando começaram a plantar e a
colher aí vendiam e recebiam aquelas pataca grande, amarela, as moedas de
vintém, depois era réis. Antigamente dava o centavo e tinha troco, então foi ai
que eles passaram a receber e ter dinheiro pra pagar. Ele (meu bisavô) tinha
muito herdeiro, mas na hora de dividir a herança ele não dividiu nem fez
inventário então cada filho, aqueles que puderam pagar, foi como se tivesse
comprado, em vez de fazer o inventário de ter aquele direito que eles tinham,
eles compraram um pedacinho da terra. Então ficou meu pai, a mãe de Magali
que era irmã do pai de meu pai, a mãe e o pai de José Maria, cada um tinha
direito a um pedaço.
A questão da legalização das terras pode estar relacionada ao modelo desenvolvimentista no
Brasil que data das décadas de 50/60, com a chegada da cana nas proximidades de suas terras que
tinham uma cultura de subsistência diversificada. O medo de perder as terras associado ao que
acabara de acontecer na Fazenda do Largo, próxima a Buena, quando em 1959, os negros
(Quilombo datado do período da escravidão e que pós 13/05/1888 recebeu um expressivo número
de ex-escravo, chegando o total a cerca de 600 pessoas que lá moravam foram afugentados pelo
fazendeiro Joça Sá com consentimento do cartório de São João da Barra para favorecer um
deputado conforme testemunhou o historiador João Oscar, que, no momento era escrivão de polícia
no município. Depoimento do historiador João Oscar na revista Piracema, nº 5, ano 3, 1995,
Funarte/Ministério da Cultura)
Sobre o despejo dos moradores segue depoimento:

“Tenho na base de 80, setenta e tantos anos. Tinha muita gente morando lá.
Sou nascido e criado aqui em Barrinha. Lá tinha um bocado de gente.
Plantavam milho, feijão, farinha. Cada um tinha sua roça e vendia em Gargaú.
Levava no cavalo, boi, burro. Eles faziam queles queriam. Fazia de contra que
o dono do município de São João da Barra era ele, Joça Sá... Eles pegavam
boi e botava dentro da roça.o que botava a mandioca pra fora era o boi
lavrador e o que comia era o tarefeiro. Expulsaram muita gente. Eles já
chegavam feitos, chegavam na casa e dizia que estava na terra dele. Houve
um assassinado. Mataram o João Maruí.” (Francisco Alves. Fonte: Piracema,
1995:16).
10
Em outro depoimento podemos constatar a perversão com que os quilombolas foram expulsos e daí
compreendermos bem quando falam que “não queremos mexer com fazendeiro”.

“Meu tio vivia naquela fazenda; existia lá abandonada... eles chegaram como
dono e não se aproximaram ao pessoal com papo agradável. Chegaram e
quer tirar na marra de qualquer maneira... o pessoal se revoltaram. Criado na
roça, pouco argumento, se revoltaram com aquilo. O que fizeram eles? Foram
lá pegaram policiamento e trouxeram para aí. A cavalo, bem armado, e foi
aquela ignorância. Várias vezes eu vi o pessoal, casa pegando fogo ali do lado
e o dono da casa debaixo do pé de árvore, chovendo, com a família debaixo
do pé de árvore. Tremenda covardia, que aquilo não se faz com animal que
não raciocina, imagina com quem raciocina? ... Chegavam naquelas casas....
entravam pra dentro dos quartos e tiravam gente total mente despida. Não
existia o menor respeito com os moradores. Alem de arrasarem com a roça,
botavam fogo nas casas.” (Osíris Neves da Penha, 1995, em entrevista para
revista Piracema sobre a fazenda do Largo).

Este fato nos remete a perspectiva de classe que ilumina nossa análise. Apesar de
compreendermos as singularidades que envolvem as comunidades remanescentes de quilombo
como o aspecto étnico, por exemplo, a ocupação do território e o processo de trabalho, através da
opressão e exploração dos quilombolas, é determinante para compreendermos o real. Os moradores
se vêem como trabalhadores, como àqueles que precisam lutar contra os fazendeiros que chegam e
querem tomar tudo, utilizam o poder econômico para influenciar o poder político e assegurar suas
propriedades. O caso da Fazenda do Largo é exemplar: “Acompanhei, não com esperança de
ganhá, porque eu tenho muito pouca fé de questão de pobre com rico.” (Manuel das Neves,
entrevista à revista Piracema, 1995). Essa fala expressa a consciência de classe.
Na década de 60, com o processo de modernização e o início da expansão do capitalismo
urbano-industrial, as mudanças estruturais que se operam na sociedade regional alcançaram a
comunidade de Barrinha num momento que a mesma estava “fragilizada” pelo que aconteceu em
Fazenda do Largo, suas roças destruídas, as casas queimadas... “eu era menina mas lembro de
minha mãe colocando a gente pra dentro e o boi querendo entrar dentro de casa.” (tia Alcenir,
Barrinha, 2006).
Data desse mesmo período a chegada da cana em Barrinha.

Terceira Narrativa: “Essa plantação de cana veio pra aqui agora (Barrinha).
Aqui era lavoura de mandioca, milho, essas coisas. Aqui não tinha nada disso
não. De travessão de Campos pra cá você não via essa cana não. Era só
pomar de laranja, banana. De 60 pra cá é que veio um homem com nome de
Manoel Rangel foi que plantou cana aqui. Aí atiçou o povo a plantar cana.
Acabaram com a lavoura, acabaram com tudo.
_ O Sr. acha que a cana acabou com tudo?
Isso é uma epidemia danada. Lavoura de mandioca, de milho fica terra pura,
você colhe, você come... feijão, milho. A cana não deixa sair mais nada. Se
você planta um milho no meio dela, não sai nada, nada, nada sai”...
(entrevista, janeiro 2007).

Nesse período Sr. Ademar foi ao cartório de São João da Barra buscar acertar a
documentação de suas terras. Apesar da dificuldade com a burocracia e com a falta de escrita e
leitura conseguiu legalizá-las.
As questões relativas à cultura serão analisadas no capítulo II quando falaremos das formas
de resistência. Muitas das questões apreendidas através das entrevistas e observações não
puderam ser relatadas e transcritas por falta de tempo. Assim, esses apontamentos podem ser
considerados um passo inicial no sentido de assumir o compromisso com o registro da memória
11
desta comunidade. Muita coisa tem acontecido por lá e que merece um estudo pormenorizado
como: a organização das catadeiras de ostras e aroeira; das famílias que mantêm a tradição da
pesca artesanal nos brejos e pesca de batida e arrastão, no mar; da produção de farinha nas antigas
bolandeiras de estuque; na cultura do abacaxi e mandioca; na re-descoberta do fuxico como
atividade artesanal, na confecção de cestos... Que esses escritos possam despertar os
pesquisadores para iniciar um trabalho de investigação nessa comunidade rica de tradição, cultura e
costumes.
Carombandeando nas águas do Imbé
(Dedicado ao povo da Serra do Imbé 06/11/2006)
Parada final: Carombinho!?
Onde estás?
Como serás?
Essa gente coboclada
escondida pelas águas que insistem
em rolar
corredeiras impedem a chegada
corredeiras nos levam a caminhos desconhecidos
“de novo” presos nessa terra! Serra do Imbé
o socorro chega
não nos permitimos sair
ali escolhemos ficar...
o mocambo construído
no afeto das condições...
forçado pelas forças da natureza
não há controle
somente o aguardar da água secar...
Antes do adormecer
imagens fugitivas
do inconsciente me perseguem
descubro modestamente que fui escolhida.
Amanhece milagrosamente!!!
Sem vestígios
tudo parece um sonho diluído no nada
Re-utopizo
A liberdade traz o gosto da chegada
Parada inicial: Carombinho!!!

1.2- Comunidade de Carombinho/Serra do Imbé


A Comunidade Quilombola de Carombinho fica situada aproximadamente 70 km de Campos.
Encontra-se na região da Serra do Imbé, próxima a Cachoeira de Mocotó.
A região do Imbé vem sendo alvo de disputas econômicas e políticas devido ao seu potencial
turístico. Por um lado os fazendeiros solicitam incentivos para que possam abrir as porteiras das
fazendas ao turismo, de outro o poder público, sem uma política ambiental estruturada não oferece
possibilidades de acesso e de proteção da Mata Atlântica.
Somente em novembro de 2006 tomamos conhecimento da comunidade através de um livro
da Fundação Palmares/Ministério da Cultura, que cita as comunidades quilombolas do Brasil,
fazendo referência a Carombinho.
Fizemos uma tentativa de conhecê-la em novembro, porém, as fortes chuvas que caíram nos
detiveram no meio do caminho só podendo retornar este ano.
A chegada na comunidade se deu através do maior conhecedor da Serra: Calomeni Índio do
Brasil. Alguns anos atrás tivemos a oportunidade de conhecê-lo durante uma excursão turística ao
local. Logo identificamos sua sabedoria. Quando identificamos a comunidade logo associamos
Calomeni como nosso guia orientador. Ao localizarmos trabalhando num dos sítios da serra
dissemos de nosso propósito de conhecer a referida comunidade. Ele contou historias dos antigos,
12
dos índios que moravam por lá e que viviam fugindo e se escondendo quando viam alguém, da gruta
da onça onde ficou escondida uma negra que fugia e ao abrigar-se da chuva foi atacada por um
onça, das rezas, das “macumbas”, das plantas medicinais, cipós e lendas de curandeiros como o
seu avô. Que curava mordedura de cobra. As fortes chuvas que caíram durante os dias que
estávamos lá nos fez retornar sem conhecer a comunidade.
Este ano, ao procurarmos Calomeni ele nos levou até lá. Na estrada ia caminhando um dos
Alonso. Paramos e demos carona. Calomeni foi para o sítio no qual trabalha e nós seguimos com
Luis Alonso, o filho mais velho dos Alonso. Indescritível o nível de “desconfiança” da comunidade.
Quando chegamos, a tarde findava, sendo assim, só uma família foi visitada. Na saída encontrei o
filho mais novo: Almir Alonso. Ele estava chegando da cidade com as compras. Era aguardado, na
porteira, pela Natalina (esposa) e filho. Conversamos bastante e nos foi revelado que um dos
problemas que existe na comunidade é em relação ao dono da fazenda Grandeza. O atual
proprietário fechou a porteira que dá acesso `a comunidade com cadeado e isso tem propiciado a
perda da produção de banana que não pode ser retirada por veículo. Expliquei que o acesso a uma
comunidade não pode ser impedido e que as questões que se referem a Comunidades
remanescentes de quilombo, como a deles, devem ser resolvidas através do Ministério Público
Federal.
O caminho da porteira até a comunidade dista aproximadamente 2 km. As crianças precisam
ir a pé e para terem acesso à escola precisam caminhar mais 4 km. Ambulância não pode prestar
socorro e os parentes não podem entrar nem com carroça, nem com carro.
A chegada na comunidade trouxe um impacto muito forte, pois, cercados pela imponente
serra do Imbé fomos adentrando trilhas que davam acesso às casas. As trilhas se misturavam com a
mata e as plantações de banana, feijão, batatas e milho. A experiência agroecológica tão profetizada
por nós estava diante de nossos olhos. Era visível o contraste entre a fazenda que ficava na
chegada, onde a mata dava lugar a um pasto empobrecido, a uma terra árida e a comunidade
quilombola que convivia com o sistema de agro floresta, naturalmente.

“o que passa pelo dado da auto definição desses grupos e de suas práticas na
relação com os poderes e com a natureza? A indagação remete a outras,
porque não é por acaso que, quando se visita essas áreas designadas terras
de preto, se percebe um grau de preservação da natureza maior do que nas
fazendas lindeiras ou nos projetos agropecuários que desmatam tudo para
formar pastagens artificiais... qual a regra de manejo dos recursos? Qual o
substrato desse tipo de preservação?... curiosamente, é nesses lugares que
as mina, os olhos-d’água e as fontes não secaram... do reconhecimento dessa
consciência ecológica pode-se retirar uma lição para a sociedade nacional: a
forma de manejo de que estamos falando não é do passado ou do
“remanescente” ou do que sobrou. Em verdade estamos falando é do futuro,
projetando-o a partir desses casos concretos de uso comum conjugado com
preservação. Desse ponto de vista, essa noção de quilombo não é do passado
nem é uma figura para escavação arqueológica.” (Almeida, 2002:76-7).

Durante a nossa primeira visita escolhemos o caminho de visitar as 11 famílias5 e convidá-las


para um encontro durante à tarde. As casas são distantes uma das outras e o acesso se dá por
subidas íngremes. Todos os moradores são da família dos Alonso. Nove filhos, sendo um adotivo.
Durante as conversas podemos perceber que a comunidade tem o usufruto comum da terra.
“Tal sistema de uso comum não recebe tratamento jurídico formal nas disposições constitucionais
vigentes, estando assim constantemente ameaçado por grupos sociais dominantes que procuram
subtrair-lhes as terras para aumentar seus domínios particulares.” (O’Dwyer; Carvalho, 2002: 206).

5
As famílias são as seguintes. 1) Dioclécio Alonso - filho mais velho, trabalha para fazendeiros, casado com Alzira uqe é irmã de Natalina; 2)
Armindo e Aldelira; 3) Antenor; 4) Jorge - pedreiro e Alfredina – costureira; 5) Mariana – viúva; 6) Mariquinha e Janair; 7) Neco – mora sozinho na
casa que foi dos pais; 8) Almir – aposentado por invalidez, filho mais novo dos Alonso, Natalina – esposa, do lar , 3 filhos; 9) Amaro, filho adotivo,
mora em santa rosa mas tem casa lá; 10) Leninha , filha de Dioclécio; 11) Janilsa, filha de Dioclécio.
13
Essa análise que Eliane Cantarino e José Paulo fazem sobre a identificação e
reconhecimento das chamadas “terras de preto” no Maranhão nos faz refletir sobre a Comunidade
Carombinho. Essa desconfiança deles conosco, o não querer “mexer” com o fazendeiro para abrir a
porteira sinaliza um medo constante de perderem suas terras e a própria vida, visto que a fazenda
Grandeza sempre foi de pequenos produtores e aos poucos apropriada por fazendeiros. As terras do
Imbé são devolutas, estão dentro da Mata Atlântica, é considerada área de preservação ambiental e,
historicamente habitadas por comunidades tradicionais: indígenas e quilombolas. A especulação
imobiliária devido ao potencial turístico fortalece a ameaça do interesse de grandes grupos se
apropriarem dos pequenos.
A geografia da comunidade indica o local como apropriado para a constituição de quilombos
de refugiados no período da escravidão, pois, “era evidente a resistência a embrenhar-se por
aqueles lugares coletivamente representados como interditos pela natureza à ação cultural do
homem”, (Bandeira; Dantas, 2002: 219).
Percebemos nas falas uma narrativa mítica que identifica os moradores da comunidade como
os Alonso, “aquele ali é dos Alonso, é um deles!” Poderíamos consideram uma ancestralidade
mítica? “A mãe era a parteira e macumbava... graças a Deus morreu cristã.” (07/07/07. Carombinho.
Almir Alonso). Os moradores trazem uma aparência “caboclada” e uma afetividade/tensão
característica entre irmandade. Se referem aos pais, que morreram recentemente com uma
admiração: “meu pai morreu de amor... 7 dias depois que minha mãe morreu ele não resistiu, se
foi...” (Mariana Alonso, 07/07/07).
Destacamos algumas narrativas que sinalizam para uma caminhada longa de investiga-ação
a ser trilhada por nós.
- Aqui tinha tambor?
- Não tinha essas coisas não, tinha uns pandeiro.
(Após falarmos de outras comunidades que tocam tambor em suas festas eles
resolveram falar)
- Pegava o pau oco, serrava, cortava couro de boi, colocava ali, no fogo. Eu
era pequena, eu vi batendo isso.” (Natalina, 07/07/07).
- Era muito ranchinho de sapê ou palha de pindoba...
- Os fazendeiro trazia os mineiro pra trabalhar na fazenda Grandeza, fazer
carvão.
- Aqui fazia quadrilha. O povo de primeiro fazia macumba, mas a turma nova
ninguém macumbou não...
- O meu pai era muito trabalhador. Gostava muito de trabalhar! (Referência
ao velho Alonso).

A perspectiva de classe re-aparece durante a reunião na fala de uma moradora:

- Eu vou falar a verdade: fica todo mundo quieto mas a verdade eu vou falar. O
pessoal (Fazendeiros, sitiantes) tem birra de nós porque nós temos um
pedacinho de terra, porque somos pobre. Nós somos os único pobre aqui
dentro...” (Natalina, 07/07/07).
Sabiamente a Natalina “mata a charada”. A beleza da região atraiu fazendeiros. Grandes latifúndios
e, alguns sítios adquiridos por moradores que representam a burguesia compõem o cenário.
Caminhonetes, carros importados de tração circulam nas estradas. No meio da expressão da
concentração de riquezas, pequenos camponeses resistem em seus territórios. De forma coletiva
permanecem, enfrentam a adversidade da falta de acesso às políticas sociais básicas e garantem a
sobrevivência com dignidade e ecologicamente protegem a mata. Percebem o “incômodo” que
causam; a burguesia tem que conviver com os trabalhadores numa outra condição: a condição de
trabalhadores livres. Não são obrigados a vender a força de trabalho para sobreviver. Sobretudo,
têm poder de “negociação” do valor de sua força de trabalho com os fazendeiros quando decidem
realizar um trabalho assalariado. Não são miseráveis, portanto, não se colocam na condição de
subalternos.

14
A comunidade mantém um modo de produção à base do trabalho familiar, de trabalho coletivo
e cooperado. As roças são plantadas individualmente, como família nuclear.
O trabalho nessa comunidade encontra-se muito no inicio, assim, não temos elementos para
uma analise aprofundada. A decisão de socializar esses registros consiste na valorização da história
dessa comunidade para compreensão da organização dos quilombos na região, especialmente na
Serra do Imbé que foi palco de outros quilombos importantes para a história como o de Kurucango
em Conceição de Macabu6. Cabe relembrar que os camponeses de Carombinho dizem nunca ter
recebido visita, ou seja, virgem de um processo de investigação tem sua historia oral ameaçada,
pois, os mais antigos morreram há alguns anos atrás.

Quilombandeando por “terras de preto”


(Dedicada ao povo de Quilombo de Conselheiro Josino)
Encantamento...
Lá estava o seu Joaquim que atende pelo chamado de Manel Rocha,
Emoldurado à janela a nos espiar
anuns branco zombavam do quadro póstumo, porém vivo,
encarnado nas memórias de tempos remotos.
Um dia de arrepios!
O terreiro que nasceu na/da Luz Azul
Terreiro de 50 anos da rezadeira Erculana
da família do jongueiro Ciruta: filho de Outeiro.
As lembranças do eterno cativeiro rememoradas na trilha musicada pelo
ranger da velha charrete, do relinchar do cavalo faminto de liberdade
do odor de estrume presenteado a mãe terra...
O fazendeiro aparece a especular... Re- encontro de olhar lá nas terras do Quilombo
Ah! Aquele círculo a girar de gente.
De gente a girar me movimenta
Crianças cabocladas, miscigenadas exalam afeto,
chameguentas se enroscam nas minhas pernas, se encostam desejando afago...
A cabocla Gracinha a macegar ervas medicinais. Identidade dos ancestrais!
Me percebo sentindo. Vou me aquietando por lá, desapressando o olhar
Vou fotografando a vida
No jogo de dominó embaixo da mangueira florida
Em meio a jovens rapazes, sedentos de paixão...
Me permito jogar e ganhar por duas vezes
Ainda com medo de arrisca. O dominó da vida saiu da caixa
_ Você sabia que a pedra estava marcada, foi certo nela!
_ Sigo minha intuição, respondi, nas escolhas!!!
Descubro a “verdade”: Existe pedra marcada...
Me preparo para o desencantamento (com o cercamento)...
(Carolina Abreu 21/09/2006)
1.3 - Comunidade Quilombo de Conselheiro Josino
A Comunidade dista 26 km de Campos, é composta por 07 famílias na área central de
Quilombo, 05 famílias na estrada interna de Quilombo, 07 famílias em Duas Barras e
aproximadamente 30 famílias na Entrada da Estrada de Quilombo. A região é cercada por fazendas
de gado e cana de açúcar. Os canaviais têm seus limites no quintal das casas e no período das
queimadas os moradores sofrem com a poluição e intoxicação tornando-se vítimas de infecções
respiratórias agudas (IRA’s).
Os remanescentes de quilombo sobrevivem da agricultura de subsistência e do trabalho rural
assalariado, na maioria das vezes trabalhando sem carteira assinada. Algumas famílias têm um
pequeno lote, porém, não cultivam hortaliças e grãos para subsistência. A maioria planta cana.

6
Cf. Livro Curunkango: saga de um herói negro. Rei. OSCAR, João. Niterói: Cromos, 1988.
15
Existia uma escola estadual na área central, hoje servindo de curral e sem condições de
reforma. As crianças necessitam percorrer uma média de 14 km/dia para ter acesso a escola. Diante
das dificuldades, da exposição a intempéries, a evasão e a freqüência irregular tornam-se uma
constante. As mães, necessitando trabalhar, deixam as crianças menores com as maiores.
O mesmo problema refere-se à questão da saúde. O difícil acesso ao posto mais próximo
(6km) inviabiliza tratamentos das doenças crônicas que necessitam de acompanhamento
continuado.
Em 26/10/06 a comunidade solicitou audiência com o Prefeito e a Secretária de Educação. A
audiência ocorreu somente com a sub-secretária de educação onde a comunidade apresentou a
listagem de 50 (cinqüenta alunos/as) demandando escola. A sub-secretária disse que seria
impossível a construção de uma escola em 2007 pois precisaria, no mínimo, de 01 ano para realizar
a obra. Destacou ainda que existem outras comunidades que já apresentaram demanda
anteriormente e que teriam prioridade. A mesma assumiu o compromisso de enviar a equipe de
supervisão ao local para confirmar a demanda e disponibilizar transporte escolar em 2007 a fim de
que o acesso às escolas de Conselheiro Josino seja facilitado.
Durante a audiência foi ressaltada a importância de prioridade da construção de uma escola
do campo nesta comunidade tradicional objetivando “saldar” a dívida social que o Estado tem com
as populações negras e o abandono sócio-político, em especial, que os moradores de Quilombo de
Conselheiro Josino estão sendo submetidos durante anos por parte do poder público.
Apesar da permanência no território desde os tempos do cativeiro as memórias coletivas têm
revelado um processo de expulsão do território ancestralmente ocupado. A expulsão vem ocorrendo
por parte de fazendeiros que, na maioria das vezes, foram chegando, colocando gado, fazendo
cercamento e dizendo para os moradores: “Vocês não têm como produzir grande” e, valendo-se
desse argumento ora expulsava de fato, ora comprava as terras “a preço de banana” ou deixava-os
morando nas imediações. O “produzir grande” significava dizer para os moradores que eles não
tinham recursos para investimento na terra como compra, por exemplo, de insumos, compra de
mudas, gado, irrigação, ou seja, não tinham como produzir em grande escala. Atribuíam aos antigos
moradores uma marca de inferioridade e incompetência para “negócios da terra”.
Dessa forma é necessário registrar a trajetória histórica da comunidade para reafirmar a
anterioridade de posse do território perdido, mas reconhecido como próprio, apesar de encontrar-se,
grande parte, em mãos alheias.
“Aquilo tudo era de meu avô, aqui era uma cidade, tinha muito morador, tinha
quadrilha, baile, morava muita gente mesmo... (Maria das Graças, Setembro
de 2006).
“Aqui era tudo mata, até na estrada que vai sair lá em Travessão. Os
fazendeiro foram chegando, derrubando a mata pra tirar lenha pros alambique
e chegando pra perto da gente”... (Sr. Orbilio, outubro de 2007).
Outro aspecto a ser considerado e que se aproxima das comunidades analisadas
anteriormente é a relação de parentesco entre as famílias. Algumas são de negros retintos. A
maioria desconhece a origem e a definição da palavra quilombo. Encontramos a referência indígena
na seguinte narrativa:
“Minha mãe contava que a mãe dela foi pega a laço na mata. Eu conheci ela,
ela não falava muito e a gente tinha dificuldade de entender o que ela dizia.
Ela tinha o cabelo escorrido, pretinho...” (Maria da Graças, setembro de 2007).
Se referem às relações de troca que havia na comunidade com saudosismo:
“De primeiro era assim: A gente matava um porco e não vendia, trocava.
Feijão, era tudo assim.” (Maria Casimiro, novembro de 2007).
II - CULTURA DE RESISTÊNCIA OU RESISTÊNCIA DA CULTURA?
“A cultura em Gramsci é, pois, plenamente política, é ato vital, é uma necessidade histórica na
perspectiva da transformação da práxis”. (Abreu, 1996, 67)

A cultura é arena de luta. O capitalismo vem fazendo um exercício constante de estabelecer


uma cultura dominante e hegemônica. A mercantilização da cultura nas novas gerações encontra-se
16
situada no projeto da indústria cultural, que busca massificar valores e crenças, reduzindo as
práticas e expressões de resistência cultural em perfumarias e penduricalhos, como se fossem
mercadorias a serem adquiridas na indústria da cultura, em “shoppings culturais”, padronizando
gostos e, muitas vezes caricaturando, saberes populares.
Refletindo a cultura em sua totalidade podemos considerá-la como “mediação produzida pelo
trabalho na relação entre os homens e os meios de vida. (Lima; Neves. 2006: 242).
Percebemos diferentes manifestações da cultura nas comunidades estudadas. A pesca
artesanal, o colorau preparado no pilão antigo de madeira, a extração de ostras, as bolandeiras de
farinha, o jongo, as rezadeiras, as histórias das parteiras (não encontramos mais nenhuma viva), os
jacás e cestos de cipó e bambu, a moenda artesanal e o uso das plantas medicinais e outras
práticas tradicionais como por exemplo, a utilização da gordura de traíra para cicatrizar rachadura
nos seios de mulher amamentando e a celebração ao nascer de uma criança em que os
vizinhos/parentes são convidados pra comer pirão de galinha e beber cachaça curtida na arruda
(vide fotos acima por conta do nascimento de Mayra Vitória, na comunidade de Barrinha).
As narrativas que se seguem expressam um pouco das questões relativas à cultura de
trabalho e educação na comunidade de Barrinha:
“- Eu nunca tive carteira assinada. Eles davam serviço mas não tinha carteira
não. Eles (fazendeiros) não se acostumavam com isso não.” (...)
“- Eu tive oportunidade de estudo, fui pra Campos estudar. Quando meu pai
morreu eu tive que voltar. Parei de estudar. Eu era o mais velho, eu dissimulei.
- Dissimulou?
- Faltava o colégio
- O Sr. Acha que o estudo ajuda?
- Ajuda muito. Se eu tivesse outro conhecimento... faz muita falta uma leitura
na vida. Faz muita falta.
- Fez falta pro senhor?
- Pra mim fez. Um dia eu fui agir um negócio, uns papel no cartório em S. J da Barra.
Procura um, procura outro. Aí eu encabulei. Eu encabulei com aquilo lá e comprei um
caderno. Cheguei aqui e um rapaz me ensinou. Aprendi a assinar meu nome, aprendi
direitinho a assinar e aí soltou minha vida. Só em saber assinar soltou minha vida. Se
não sabe assinar precisa correr aqui e ali, precisa de testemunha, aí eu disse: larga
isso, não! Eu tava sempre agindo e precisava assinar, aí perguntavam: você assina?
Não. Pronto. Ai ficava eu preso. Ia aqui e ia ali. Depois que eu aprendi a assinar... a
leitura faz muita falta, meu Deus! (silêncio) a leitura faz muita falta! É muito ruim a
pessoa não saber ler, meu Deus do céu. Atrasou muito a minha vida por eu não saber
leitura.” (Sr. Ademar Ferreira nasceu em 1914. entrevista realizada em 08/01/2007).
- “Eu trabalhei no Rio de Janeiro em casa de família. Eu saí porque não aceitava
humilhação. Naquele tempo a gente era muito humilhada. Só podia comer depois que
todo mundo tinha comido e tinha que fica na cozinha. Uma vez eu viajei com os patroa
pra São Paulo e tive que ficar dentro do carro por causa de minha cor.” (Tia Zezé,
entrevista em janeiro de 2007).
A narrativa de Quilombo de Conselheiro Josino revela a tradição da preparação do colorau de forma
artesanal:
“ Eu aprendi com minha mãe. Ainda tenho o pilão que é um toco que vaza, faz um
buraco e a gente soca o urucum com um pouco de óleo e pouco de fubá”.
A comunidade de Carombinho revela as questões da religiosidade afro afirmando que antes havia
muita magia por ali, muita gente que “macumbava”, viam muita assombração, tinha muito curandeiro
e rezador. Hoje a comunidade é quase toda neo pentecostal e não gosta de falar do assunto.
Essas questões que estamos nos aproximando nos revelam que a cultura dessas comunidades
tradicionais resiste por séculos. O que nos cabe refletir é como ela se materializa, tanto como
resistência da cultura, quanto cultura da resistência.

2.1 - RESISTÊNCIA DA CULTURA DA RESISTÊNCIA: O JONGO COMO PRÁTICA


SÓCIO-CULTURAL.
17
A escolha de determos nossa análise no jongo como prática sócio-cultural se deve ao fato da
surpresa que ele tem revelado a cada encontro que antecede a roda, as noites de jongo
propriamente dita e as repercussões pós roda.
Seixas nos leva a crer que a memória, quando reconhecida em seu próprio movimento,
“espontâneo e interessado, sempre descontínuo e atual”, pode nos levar a outros lugares. (p 52). As
rodas de jongo que têm sido realizadas na comunidade de Barrinha ilustram bem essa análise. Após
identificarmos a relação deles com o jongo até a década de 70 e que as rodas acabaram depois do
adoecimento e posterior falecimento de Orlando - o tocador de tambor e jongueiro que animava a
comunidade -, avaliamos com a comunidade se eles gostariam de fazer uma roda. De imediato
aceitaram, porém, - os tambores que pertenciam à família de Orlando e que todos se referem como
“Serra Grande” foi emprestado a uma senhora que tem um “terreiro espiritual” (não sabemos se
umbandista ou candombledista) e nunca mais tiveram acesso ao mesmo. Sem tambor não poderiam
realizar o jongo. Na última roda de jongo, realizada em 11 de agosto de 2007 para celebrarmos o 96º
aniversário do Sr. Ademar o mesmo, durante uma das conversas, revelou que o jongo acabou por
causa da polícia:
“A polícia, sabe como é, né, chegou aqui e espantou o jongo, aí nunca mais
teve.”
O momento não era propicio para continuar a prosa sobre o assunto, assim não temos elementos para tal
análise. Até o momento relacionávamos a interrupção das rodas devido ao adoecimento de Orlando e depois
perda dos tambores. Nunca ninguém havia revelado a questão da policia. Essa descoberta nos faz pensar sobre
o processo de pesquisa e os risco s de permanecermos na aparência dos fenômenos. Após um ano de trabalho na
comunidade e essa informação não tinha se revelado. Será porque estariam expondo o que a policia deve ter
feito para reprimir os tambores, as festas das comunidades pobres, e assim assumindo a identidade que tentaram
lhe atribuir: baderneiros?! O momento de interrupção do jongo está contextualizado no período da ditadura
militar e próximo ao fato que aconteceu na Fazenda do Largo, onde toda uma comunidade foi expulsa de suas
casas e territórios embaixo de bala e fogo. Esse assunto será abordado com mais zelo nas próximas visitas à
comunidade de Barrinha.
Partindo das narrativas que expressavam uma relação afetiva e saudosa com o jongo a
Comissão Pastoral da Terra decidiu contribuir com o processo de retomada dessa prática
sócio-cultural. Assim, identificou uma pessoa que acabara de construir dois tambores objetivando
re-animar e formar uma rede de jongueiros no município de Campos dois Goytacazes. Os tambores
foram levados em 28 de outubro de 2006. Incomensurável o que aconteceu. As pessoas surgiam
como por encanto. Cerca de 200 pessoas participaram da noite de jongo. Três mulheres se
destacavam na dança e dois filhos de Orlando (Loca e Buzo) assumiram os tambores. Os tocadores
se revezavam com o Seu Francisco que os confeccionou. Aquecidos na fogueira os tambores foram
batizados e desvirginaram a noite entoando versos, desafios e, poetizaram de afro-descendência
aquele lugar, aquelas terras que, fertilizadas de gargalhadas e passos (quebra milho e umbigadas)
anunciavam a chegada de um verão, próspero de frutos do mar, da terra e marcado de
ancestralidade.
Assim que as rodas de jongo têm se materializado. A memória, carregada de um atributo
ético, revela uma resistência da cultura que indica como a comunidade tem sua historia marcada
pela cultura da resistência. A dimensão ético-politica na qual se movimenta a memória tem
fortalecido a organização da comunidade. As próximas rodas de jongo foram organizadas por eles,
já convidaram parentes de outros lugares, preparam comidas, cumprindo seu grande “dever”:
inscrever as novas gerações em valores de pertença aquele território. Na última roda de jongo que
aconteceu na lua cheia de junho de 2007 as crianças surpreenderam a todos quando começaram a
dançar como se fizessem isso durante toda a vida.
A cultura - materializada nas noites de jongo, aquecidas pela fogueira, saboreadas nas
comidas típicas, coloridas nas saias de chita e entoadas em versos e desafios, - tem sido um
elemento potencializador da organização socio-política da comunidade. A questão da identidade e
do território se inscreve na cultura embutida de “componente político organizativo que demanda
condições para a reprodução econômica e cultural do grupo, funciona como aglutinador e explica a
capacidade mobilizatória” (Almeida, 2002, p: 75-6).

18
A presença do jongo, em Barrinha, é uma particularidade cultural da comunidade que
expressa o lugar da memória afetiva e artística. Essa análise é facilmente comprovada nas noites de
jongo. Em todo momento aparecem moradores/as antigos que se contagiavam com o jongo e
começam a dançar e entoar versos. Os jovens que ouviram falar da dança, mas que nunca puderam
ver seus pais e avós expressando sua cultura podem participar da roda e começam a se mobilizar
para retomar sua herança cultural. A mobilização e organização para organizar a roda do mês de
julho de 2007 foi totalmente autônoma. Os moradores ligaram para dizer que queriam a roda e que
assumiriam as tarefas para que a mesma acontecesse. Ao chegarmos com os tambores
encontramos a mesa farta, as mulheres com saia de chita, a fogueira em chamas e a lua cheia nos
presenteando com sua luz. Neste momento foi possível avaliar que o trabalho realizado durante um
ano já começa a ter “efeitos”. A mobilização em torno da preparação da roda de jongo sinalizou para
um movimento político-cultural que começa a re-nascer, supondo uma “elevação intectual das
massas pela participação ativa na elaboração e difusão de uma concepção de mundo superior e sua
materialização em transformações substanciais na vida prática, atingindo toda a sociedade,
instaurando-se, então, uma nova civilização.” (Abreu, 1996: 74).
A expressão das mulheres que participaram dessa roda resume o sentimento de alegria e de
revisitação ao passado.

- “O jongo pra mim é uma alegria só. Eu gosto de dançar.”


- “Eu me sinto muito feliz do jongo voltar. Eu dançava quando menina.”
A narrativa dos irmãos e moradores mais antigos de Barrinha (Sr. Ademar e Sr. Carlinhos) expressa a
ancestralidade do jongo desde os tempos do cativeiro, quando rememora e silencia as lembranças de como sua
bisavó encarnava o jongo:
- “A minha avó (D. Virginia) nasceu no recente cativeiro mas não chegou a ser
escrava não.
- ela contava alguma coisa do cativeiro? Dos pais dela?
- ela contava alguma coisa do cativeiro mas eu não me lembro, não ficou
essas coisas em mim não pra eu falar.
- O sr sabe em que fazenda trabalhava os trabalhadores do cativeiro?
- Nessa tal fazenda S. Pedro tinha escravo. Só lá que plantava cana. A gente
trabalhava pra eles.
- Quem gostava de jongo eram os mais antigos?
- O pessoal do tempo do cativeiro. Depois que o Orlando fracassou acabou. Quando
levantar o tambor de novo você vai ver. O pessoal cai em cima de novo. Porque essa
influência de tambor acabou, se voltar a tocar, o pessoal cai em cima de novo, veja só!
Naquele tempo, menina, mulher deixava de ir pro forró pra vir brincar no tambor.
Gostava mais de ta ali do que ta lá no baile e hoje é a mesma coisa. Se começar a ter
tambor todo mundo volta. Vê só se o povo brinca, brinca e muito, né! Volta de novo
aquela influência do povo. (Tio Ademar)

Em outra entrevista:
- Conheci. D. Virginia.
- E ela, contava algo sobre o cativeiro?
- Não (longo silêncio)
- Ela gostava muito de um jongo. Nossa senhora da Penha! - Era uma
jongueira de mão cheia. Dançava muito.
- Era uma avó boa?
- Era, era, era muito impertinente porque tava velha mas era boa a velha!
- Quando tava na boca do tambor virava uma menina de 12 anos.
- Pq o sr acha que ela virava uma menina de 12 anos?
- Ela ficava alegre, muito mesmo. Dançava, a velhice dela desaparecia, sumia a
velhice dela. Gostava de fumar um cachimbo, tanto ela como minha mãe.
- (...)

19
- Se eu ouvir o tambor eu vou me remorsear [emocionar] muito, vou lembrar do
falecido Orlando”. (Carlinhos Ferreira nascido em 1933, irmão de Ademar)

As narrativas trazem à tona uma memória que nos leva a crer na resistência da cultura. Uma
cultura que resiste por séculos. O retorno dos tambores aquecidos na fogueira ecoa em antigos
versos, ressoa pelas comunidades chamando quem mora longe como se jamais tivessem sido
silenciados. A madeira apodrece, o fogo fica brando, pede mais lenha, mas os versos, os risos, os
gingados “quebra milho” resistem ao tempo, não podem ser arrancados da cultura, permanece
enraizados na negritude afro descendente. Incomensurável o efeito do jongo nos rostos. Só um povo
que resiste, que luta pra conservar suas tradições, assumindo sua identidade pode afirmar que
existe uma cultura da resistência, própria aos que permanecem em seus territórios durante séculos.
O sentimento de pertença faz com que as rodas sejam entoadas em versos, rituais, energia, magia,
mística, encantamento... Não sucumbiram às promessas do modelo desenvolvimentista urbano.
Fizeram a escolha por uma cultura da resistência que possibilita a resistência da cultura em que os
tambores não se calam, os pilões insistem em produzir e o campo permanece dando frutos.
Existe um encantamento no som que ecoa dos tambores que os tornam sagrados. Cada
comunidade tem que ter o seu e só pode toca-lo os que são iniciados. Assim acontece também com
os que dançam. Não são todos que participam da dança. Quando querem trocar o verso tocam no
tambor e assim podem tirar seu verso. Quando a euforia aproxima muitos que não são “iniciados”
começam a cantar:
- “Ô abre a roda deixa a ema aproximar...”
Os moradores contam que no “tempo antigo”, se referindo às décadas de 30 a 50, quando se
tocava o tambor ouvia-se em comunidades distantes como em Buena, Lagoa Feia e até mesmo na
Fazenda São Pedro. De repente iam chegando e virava uma grande festa. Vinha gente à cavalo, a
pé. Eles avaliam que como era tudo mata e não havia barulho urbano, de veículos e televisão
podia-se ouvir o tambor ressoando em terras distantes.
Podemos considerar que o jongo como “um movimento político-cultural adquire importância
quando as descobertas são ‘socializadas’, quando passam a constituir patrimônio intelectual dos
grupos aliados na conformação de novas maneiras de sentir e de agir, ou seja, a ‘filosofia se torna
histórica’, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em ‘vida”.
(Abreu, 1996, p. 67. Apud Gramsci, 1978, p.18).
Destacamos que outra expressão cultural também citada na fala do morador mais antigo, o
fado de viola:
- Antigamente baile era o divertimento do povo. O fado de viola era isso.
- Fado de viola?
Igual a violão, o jeito de tocar que era diferente. Saía rodando, Fado, Gambá.
Disseram que tem um Gambá na casa de fulano, aí o povo ia pra lá. A noite
inteira rolando. Dançava atracado com a dona igual baile.
- E o jongo?
- O jongo era bom, muito bom. O pessoal antigo gostava muito, he, he…

Percebemos que uma riqueza cultural encontra-se escondida e que é de fundamental importância
que seja des-velada. Descortinar essas expressões culturais é uma dívida social que o Estado tem
para com as comunidades tradicionais como forma de valorizar os saberes populares e contribuir
para que sejam socializados.

APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS
As questões que surgem no decorrer desse trabalho nos levam a interrogar nossa prática
sócio-política e a ratificar a necessidade de estudos histórico-antropológicos que possam contribuir
para registrar e compreender a pluralidade presente nas comunidades quilombolas.
As reflexões que esse trabalho nos levou a fazer trouxe algumas questões de caráter
investigativo e que merecem um estudo mais aprofundado.
Poderíamos afirmar que a forma como as comunidades quilombolas resistem representa uma
ação pedagógica desenvolvida na luta pela hegemonia?
20
Seu cotidiano de resistência faz parte do processo educativo de permanência em seus
territórios, incentivando os mais jovens a permanecer no campo?
Esse seria um processo revolucionário que vem somado cotidianamente no campo da
superestrutura político-ideologica? Permanecer em seus territórios diante de condições adversas?
A resistência da cultura materializada nas práticas tradicionais como o jongo, as rezas, os
chás, pode estar sustentada na cultura de um povo que resiste historicamente? Representa uma
forma de enfrentamento à dominação ideológica?
Os encontros de saúde (uso de plantas medicinais) podem se tornar um instrumento de
libertação político-cultural? Podem se transformar numa prática cuidadora com base no processo
formativo-educativo?
Em relação a nossa prática as principais questões dizem respeito ao trabalho de
organização/formação. Será que ele pode contribuir para romper com a influência ideológica da
classe dominante, como por exemplo, perder o “medo de mexer com o fazendeiro”, de reivindicar o
direito de ter a porteira aberta, de recuperar seus territórios e assim construir uma consciência de
classe para si e conseqüentemente “diferenciando-se e contrapondo-se, como visão de mundo, às
demais classes.” ??? (Abreu, 1996: 65)
Percebemos nas narrativas a existência de duas classes distintas e o que elas representam: a
discriminação de classe, o monocultivo e o latifúndio.
- Eles têm birra de nós porque somos os únicos pobres daqui e temos
nossa terra.” (Natalina, Carombinho”).
- “Essa plantação de cana veio pra aqui agora (Barrinha). Aqui era lavoura de
mandioca, milho, essas coisas. Aqui não tinha nada disso não. De travessão
de Campos pra cá você não via essa cana não. Era só pomar de laranja,
banana. De 60 pra cá é que veio um homem com nome de Manoel Rangel foi
que plantou cana aqui. Aí atiçou o povo a plantar cana. Acabaram com a
lavoura, acabaram com tudo.
- O Sr. acha que a cana acabou com tudo?
- Isso é uma epidemia danada”... (Ademar, Barrinha).
- Aqui era tudo mata, até na estrada que vai sair lá em Travessão. Os fazendeiro foram
chegando, derrubando a mata pra tirar lenha pros alambique e chegando pra perto da
gente”... (Maria das Graças, Quilombo).

Podemos fazer algumas avaliações do trabalho que estamos desenvolvendo e que nos anima
a permanecer trilhando por esses caminhos, como o incentivo as rodas de jongo, por exemplo. O
jongo era um querer que se encontrava desagregado, guardado no baú afetivo e cultural e a
possibilidade de tocar os tambores, fazer a poeira levantar tem sido um caminho de movimentar a
comunidade no sentido de politizar sua organização social.
O nosso desafio é contribuir no processo de criticidade do Jongo (tornar crítica uma atividade já existente), dos
encontros preparatórios e assim propiciar o empoderamento e autonomia das comunidades. Estamos
introduzindo o “ex-velho” e tornando crítica uma atividade já existente, que tem valor de pertença à
comunidade, porém, que estava guardado.
Nossa tarefa é ser minhoca, mover a terra, aduba-la, para que as Raízes quilombolas possam se espalhar
fartamente, sem amarras, livremente. Protagonistas de sua história fortaleçam sua identidade e escolha de
organização e que "em sua resistência cotidiana à razão econômica, fazem surgir questões e respostas, intenções
e projetos, e desenvolvem de fato uma política da vida cotidiana que se funda sobre a liberdade de agir e a
possibilidade de criar uma organização para si e os outros que favoreça a autonomia".

Finalmente a questão que nos inquieta: Será que nossa prática sócio-política está
contribuindo para a construção de uma nova cultura política?

“para Gramsci, a criação de uma nova cultura política “não significa fazer
individualmente descobertas originais, significa também, e especialmente, difundir
criticamente verdades já descobertas, socializa-las, por assim dizer, e fazer com que se
tornem bases de ações vitais, elementos de coordenação e de ordem intelectual e moral.
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O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de
maneira unitária a realidade presente é um fato ‘filosófico’ bem mais importante e
‘original’ do que a descoberta por parte de um gênio ‘filosófico’ de uma nova verdade
que permaneça como patrimônio de pequenos grupos de intelectuais” (Abreu, 1996, p.
67. apud. Gramsci, 1978, p. 18).

Com base no pensamento Gramsciano acreditamos que estamos realizando um trabalho educativo no qual o
novo e o velho se misturam e desencadeia uma nova força hegemônica, uma consciência política, calcada na
vontade coletiva que fundamenta e concretiza a prática organizativa de classe.

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ABREU, M. M. a questão pedagógica e a hegemonia das classes subalternas: aportes da análise


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