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IDÉIAS PARA ADIAR O FIM DO MUNDO DE AILTON KRENAK

Ailton Krenak nasceu em 1954, no Vale do Rio Doce, Minas Gerais.


Ainda adolescente, com 17 anos, migrou com seus parentes para o estado do Paraná.
Alfabetizou-se aos 18 anos, tornando-se, a seguir, jornalista e produtor gráfico.
Posteriormente, na década de 1980, passou a se dedicar exclusivamente à articulação do
movimento indígena. Em 1987, foi autor de um gesto marcante ao pintar seu rosto de
preto com pasta de jenipapo, em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos projetos
dos povos indígenas no Congresso Nacional, enquanto discursava no plenário da
Assembleia Constituinte, protestando em defesa dos direitos de seu povo. Convidado a
participar da comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil, negou-se, por achar
que essa era uma festa dos portugueses. Em 1988 participou da fundação da União das
Nações Indígenas (UNI), fórum intertribal interessado em estabelecer uma
representação do movimento indígena em nível nacional. Integrou em 1989 o
movimento Aliança dos Povos da Floresta, que reunia povos indígenas e seringueiros
em torno da proposta da criação das reservas extrativistas, visando a proteção da floresta
e da população nativa que nela vive. É considerado atualmente um dos pensadores
indígenas mais expressivos, um líder que nos convida a refletir mais atentamente sobre
a relação homem e natureza.

Seu livro “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, sucesso na FLIP 2019,
composto de 88 páginas editadas em formato de bolso, divide-se em três partes, as quais
consistem de duas palestras realizadas em Lisboa, nos anos 2017 e 2019 e a adaptação
de uma entrevista realizada na mesma cidade portuguesa, em 2017, e que compilam um
pensamento urgente sobre um mundo que agoniza a beira do abismo. Uma “parábola
destes tempos”, já disseram; ou, poderíamos dizer, uma virada de perspectiva para
iniciarmos, em coletividade, um processo de transformação social, cultural, ambiental –
na mais otimista das ideias.

Esta obra de Frenak, antes de ser uma síntese sobre as conferências


realizadas em Portugal, é, acima de tudo, um manifesto. O pano de fundo é a discussão
sobre a capacidade da humanidade de autodestruição, em vista da exaustão pela
exploração excessiva da natureza. O modo de vida dos povos originários é visto como
uma alternativa a essa lógica de exploração. Dito de outro modo, a obra é a entonação
da visão de mundo de nossos povos originários, que tiveram suas narrativas e
resistências apagadas e silenciadas pelo tempo histórico, mas que, no momento atual,
são relevantes diante das questões ambientais e da ameaça à sobrevivência da
Humanidade e de sua diversidade na Terra.
O autor critica as ideias de Humanidade e civilização da perspectiva
etnocêntrica, que foram a base para legitimar a conquista e a colonização dos povos
indígenas da América Portuguesa, enxergando-os como desprovidos de “Fé, Rei e Lei”,
como se fossem uma tábula rasa. Apresenta esse projeto colonial como uma descabida
pretensão de curar os povos originários da inconstância de suas almas selvagens e que
tencionava ocidentalizar sua cosmovisão.
Krenak, no contexto atual, nos evidencia como a ideia de uma
narrativa globalizante e de uma Humanidade homogênea, enraizada numa sociabilidade
mercantilizada, cinde a Natureza da Humanidade, tratando-as como esferas distintas -
Terra e Humanidade - como coisas separadas. Uma visão de mundo que abandona a
experiência de vida, pois a Terra é saturada de sentidos e é um local para a coexistência
de diferentes cosmovisões.
Permeia a História de nosso país a resistência que os povos indígenas
apresentam a esse tipo de racionalidade, como uma forma de confrontar os padrões de
comportamento de uma sociedade consumista, bem como as visões de desenvolvimento
sustentável das grandes corporações dos organismos internacionais que, a partir da
intensa demanda por bens de consumo, ameaçam os recursos naturais. Essa robustez e
veemência também reclama, junto ao Poder Público, o cumprimento da
responsabilidade constitucional do Estado Brasileiro em relação a essas demandas,
assim como o reconhecimento de seus direitos como povos originários. Uma luta pela
manutenção, perenidade e sobrevivência de sua Cultura. Reconhecimento de suas
narrativas e respeito, especialmente na forma de se relacionar com a Natureza e em sua
visão de mundo.
O autor ainda nos apresenta um lugar onde são possíveis as visões
diversas de Humanidade e de mundo. Nas palavras de Krenak “Um outro lugar que a
gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente
referenciado de quando se está cochilando, mas que é uma experiência transcendente
na qual o casulo humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada”.
Não é desarrazoado afirmar ser possível, com as palavras de Ailton
Krenak, reinventar dicionários e redirecionar a narrativa da nossa trágica história. Os
argumentos presentes em seu livro são curtos e certeiros. Quando refere que “Todos nós
sabemos que a cada ano ou a cada semestre uma dessas línguas maternas, um desses
idiomas originais de pequenos grupos que estão na periferia da humanidade, é
deletada”, o escritor não está falando apenas em salvar as populações originárias de
todo mundo, tão ameaçadas quanto as montanhas (suas avós), florestas (suas mães),
faunas (seus irmãos), rios (seus avôs) e a qualidade do ar que as cerca. Ele se refere a
todos nós, envoltos por essa magia chamada Terra.
Não obstante a acidez com a qual dita seu discurso - tão doloroso
quanto necessário nos dias de hoje -, o escritor o constrói de forma didática, sob frases
de efeito em modo alerta, a fim de que possamos, juntos em nossas diferenças, cumprir
o dever de prorrogar, quem sabe, a queda do céu. “O tipo de humanidade zumbi que
estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida.
Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos
nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é
exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos
adiando o fim”, acentua Ailton, em alusão a obra monumental de Davi Kopenawa,
liderança Yanomami. Seu livro A queda do céu, feito em parceria com o antropólogo
francês Bruce Albert, alerta sobre a destruição que anuncia o achatamento do céu, bem
como nos leva a um mergulho na cosmovisão de seu povo, guardião da floresta. E, nada
somos, sem céu.
Por fim, importa acentuar que a mensagem do autor é relevante para o
amplo espectro de movimentos sociais que abordam, de maneira crítica, o modo de
produção vigente, principalmente àqueles ligados à temática indígena e ambiental. O
texto também pode contribuir com as discussões acadêmicas em vários campos da
Ciência, especialmente no âmbito da Economia Política, Sustentabilidade,
Antropologia, dentre outros. O clamor de Ailton Krenak se junta ao de tantas outras
lideranças indígenas, bem como ao de ambientalistas, militantes, cientistas e pessoas
comuns, que lutam para que o dito “fim do mundo” se limite apenas ao campo da
retórica e não seja vivenciado na prática.

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