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Pedagogia da esperança revisitada:

um encontro entre Paulo Freire e o filósofo Ernst Bloch


RUI SOUSA*

Resumo: Neste artigo analisa-se e discute-se historicamente o conceito de esperança


como categoria ontológica, na filosofia de Ernst Bloch e na pedagogia de Paulo
Freire. Na atual conjuntura política, ética e cultural, falar de utopia e esperança torna-
se fundamento categórico na área da educação e do ensino. Ao articular
dialeticamente os sonhos, as utopias e as esperanças a uma práxis social, os autores
desnudam seu oposto, isto é, põem às claras os mecanismos ideológicos de uma
sociedade reificada e estratificada. Como contraponto à ideologia, as utopias abrem
as portas da educação e da história para o novo mundo, com novas possibilidades e
em eterna construção; afinal é este o lugar ideal para discutir a educação e o ensino:
o devir, o novum, a formação do ser humano ainda incompleto. A fundamentação
concreta da esperança e da utopia – relacionadas à pedagogia, à psicanálise, à
filosofia e à história – permite pensar em novas concepções de tempo e de
historicidade opostas à lógica do capital.
Palavras-chave: Educação; Esperança; Utopia Concreta; Ontologia.
Pedagogy of hope revisited: a meeting between Paulo Freire and the
philosopher Ernst Bloch
Abstract: This article analyzes and historically discusses the concept of hope with
the ontological category, in Ernst Bloch's philosophy and Paulo Freire's pedagogy.
In the current political, ethical and cultural conjuncture, talking about utopia and
hope becomes a categorical foundation in the area of education and teaching. By
dialectically articulating dreams, utopias and hopes to a social praxis, the authors
bare their opposite, that is, they make clear the ideological mechanisms of a reified
and stratified society. As a counterpoint to ideology, utopias open the doors of
education and history to the new world, with new possibilities and in eternal
construction; After all, this is the ideal place to discuss education and teaching: the
becoming, the novum, the formation of the still incomplete human being. The
concrete foundation of hope and utopia - related to pedagogy, psychoanalysis,
philosophy and history - allows us to think of new conceptions of time and historicity
opposed to the logic of capital.
Key words: Education; Hope; Concrete Utopia; Ontology.

*
RUI SOUSA é Mestre em História (UEM) e doutorando em Educação (UEM).

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“Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo
existencial e histórico” (Paulo Freire, Pedagogia da esperança).
“A filosofia terá consciência do amanhã, tomará o partido do futuro,
terá consciência da esperança. Do contrário, não terá mais saber”
(Ernst Bloch, O princípio esperança, v.1).

Introdução: educando na “jaula de Reforma Protestante e o


aço” desenvolvimento subsequente da
burguesia e do capitalismo, mas também
São inúmeros os desafios impostos à
quanto aos rumos do capitalismo em seu
Educação na atualidade. Talvez em
estágio maduro, que consistiria em uma
nenhum momento histórico ela esteve
relegada ao mero utilitarismo forma de servidão moderna. Para
desenvolver sua tese, o sociólogo de
econômico, reduzida à mercadoria,
como no atual (LAVAL, 2019). “No Heidelberg usa a expressão do capital
como uma “jaula de aço”1 ou um
reino do capital, a educação é, ela
habitáculo duro como o aço. Para Weber
mesma, uma mercadoria. Daí a crise no
sistema público de ensino, pressionado (2004, p. 165), a Reforma Protestante
pelas demandas do capital e pelo com sua ascese puritana:
esmagamento dos cortes de recursos dos Contribuiu para edificar esse
orçamentos públicos”, escreve o poderoso cosmos da ordem
sociólogo Emir Sader, no prefácio de A econômica moderna ligado aos
educação para além do capital, de pressupostos técnicos e econômicos
da produção pela máquina, que hoje
Mészáros (2008, p. 16). De fato, o
determina com pressão avassaladora
Estado decidiu lavar as mãos, o estilo de vida de todos os
desobrigar-se de “educar o povo”, de indivíduos que nascem dentro dessa
forma mais intensa nas áreas de ponta, engrenagem [...].
pesquisa ou de excelência e um pouco
menos direta, como mostra a ideia de Para Weber, o capitalismo é um sistema
substituir as escolas secundárias sem precedente, em razão da submissão
administradas pelo Estado por – impiedosa, inexorável, impessoal – do
“academias” dirigidas pelo mercado de homem aos objetos criados por ele; uma
consumo (BAUMAN, 2013, p. 53). servidão dos tempos futuros, quando os
homens voltarão a ser escravos como no
Essas questões pontuais e urgentes Antigo Egito. Nessa servidão que se
colocadas por Mészáros (2008), Bauman aproxima, porém, “o ídolo supremo não
(2013) e Laval (2019) parecem remeter será o deus egípcio Osíris, mas a
ao conceito sombrio e pessimista de máquina moderna” (LÖWY, 2014, p.
“jaula de aço”, desenvolvido pelo 65). Segundo Max Weber, a burocracia
sociólogo liberal e conservador, porém com sua impessoalidade colocaria os
não menos crítico ao desenvolvimento seres humanos em gaiolas de ferro (ou
hegemônico do capital, Max Weber. A jaulas de aço), no centro de um mundo
sociologia weberiana mostra-se administrado e desencantado. Essa
extremamente atual não apenas em previsão dura e sombria deveria ser
relação à afinidade eletiva entre a aplicada a tudo a que fosse permeado

1
A expressão em alemão é stahlhartes Gehäuse, traduzido por Michael Löwy (2014, p. 53) como “Jaula
de aço” ou um habitáculo duro como aço. A edição brasileira de “A ética protestante” retoma a tradução
do inglês iron cage, ou jaula de ferro (WEBER, 2004, p. 165).

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pela manifestação da vontade subjetiva encontrada no conceito ontológico de
do Estado, incluindo aí a Escola. esperança, na utopia do novo, no sonho
acordado.
Ao contrário de Marx, Weber parece
optar por uma aceitação resignada da Como veremos, a utopia constitui a
civilização burguesa, vista por ele como negação da ideologia mediante a sua
inevitável. Mas isso não o impede de denúncia e sua renúncia, possibilitando o
formular e destacar o verdadeiro anúncio de um mundo oposto, de uma
problema da cultura, isto é, a sua consciência do novo totalmente aberta e
racionalização rumo ao irracional. A tese em eterna (trans)formação. A categoria
central do conceito de capitalismo como de utopia perpassa praticamente toda a
uma “jaula de aço”, desenvolvido no produção intelectual de Paulo Freire
livro sobre a Ética protestante, é relacionada a uma educação
retomada também em sua obra emancipadora e humanizadora. De
Economia e sociedade, na qual ele define forma análoga, o topos utópico é o
o capitalismo como uma “escravidão fundamento do pensamento de Ernst
sem mestre”, isto é, como um sistema de Bloch. Isso justifica o trabalhado
dominação ao mesmo tempo absoluto e comparado, onde o conceito de
impessoal. Ao denunciar as formas de esperança freiriano adquire a base
dominação na sociedade capitalista epistemológica da filosofia blochiana
(carismática, tradicional e burocrática), enquanto utopia concreta, ao mesmo
Weber contribui no sentido de apontar tempo em que a episteme se constitui em
para o “diagnóstico” das atuais práxis política e educacional. Espera-se
condições do sistema educacional. Sua demonstrara a “afinidade eletiva”
isenção despretensiosa, isto é, a existente entre ambos intelectuais.
neutralidade axiológica em busca de uma Fundamentação: devir histórico da
ciência “pura” e cristalina, livre de
esperança para o porvir da educação
julgamentos de valor, não o impediu de
exercer o espírito crítico (LÖWY, 2014). Pensemos em um diálogo imaginário
entre dois grandes intelectuais ‒ Ernst
Todavia, se a educação é, conforme Bloch e Paulo Freire. Bloch talvez seja
pontua Mészáros (2008), citando um dos últimos representantes do
Gramsci, colocar fim à separação entre legítimo intelectual erudito, conhecedor
Homo faber e Homo sapiens, para dos grandes sistemas filosóficos, da
resgatar o sentido estruturante da literatura universal e da história em toda
educação e de sua relação com o a sua amplitude. Paulo Freire quiçá possa
trabalho, em todas as suas possibilidades ser descrito como personificação do
criativas, emancipatórias e utópicas, é intelectual orgânico, tal como elaborado
necessário um conceito e uma prática por Gramsci, como um legítimo
pedagógica capazes de romper com o representante das camadas “inferiores”
atual estado de reificação e fetichismo da da sociedade. Tanto Bloch como Freire
educação. “Apenas a mais ampla das diferem-se substancialmente do
concepções de educação pode nos ajudar intelectual tradicional, o qual constitui
a perseguir o objetivo de uma mudança uma classe distinta e detentora de um
verdadeiramente radical, saber específico e especializado, porém
proporcionando instrumentos de pressão “neutro”, que separa a ação intelectual
que rompam com a lógica mistificadora ou teórica da ação política e da social,
do capital” (MÉSZÁROS, 2008, p. 48). enfim, da experiência prática.
Parte dessa amplitude crítica pode ser

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A educação nos permite estabelecer A concepção de tempo de Koselleck
essas relações dialéticas entre (2006) não é cíclica ou linear, pois existe
pensadores tão distintos, mas também uma relação dialética entre passado e
complementares. O conceito de futuro; coexistem o espaço da
esperança utilizado por Paulo Freire experiência e o horizonte da espera ou da
(2011), em uma de suas obras menos expectativa. Ainda que o horizonte de
citadas, ganha fundamentação prática na experiência pareça se afastar do presente,
filosofia de Ernst Bloch. A esperança é voltado cada vez mais para a esperança
um afeto militante, prático, relacionado futura, para a utopia ou ao devir, ele
às utopias concretas, elas agem no estabelece uma articulação entre eles. “A
mundo. Nisso reside a peculiaridade em aceleração, primeiramente
relacionar esses autores, pois existe uma compreendida como uma previsão
equação ainda pouco explorada entre apocalíptica do encurtamento da
esperança e educação, como algo distância temporal que antecede a
dinâmico e voltado para o amanhã, para chegada do Juízo Final, transformou-se,
o novum, para o vir-a-ser, no sentido de a partir do século XVIII, em um conceito
construção histórica do ser-social. histórico relacionado à esperança”
Relacionam-se assim, portanto, dois (KOSELLECK, 2006, p. 58, grifo
conceitos determinantes – esperança e nosso).
educação – para a formação do homem, Na mesma perspectiva, Reis (2006, p.
este sempre inacabado. Antes de 30), afirma que o “êxtase profano
prosseguir, é importante analisar a (utopia) venceu o êxtase religioso
relevância histórica dos conceitos de (Parusia) da outra vida eterna. O futuro
esperança e de utopia. não é mais o fim do mundo. Agora, a
Koselleck (2006) analisa o momento em espera é outra: a realização da história,
que o termo História [Historie], que do progresso, como obra dos homens,
significa predominantemente relato, que se tornaram competidores de Deus
narrativa ou algo acontecido, foi sendo na criação do mundo”. Dessa maneira, a
visivelmente preterida em favor da “utopia substitui a profecia. No ‘fim da
palavra Geschichte, que remete a história’, a espera é outra: não mais o
acontecimento ou a uma série de ações. apocalipse, mas uma sociedade moral e
A nova história [Geschichte] adquiriu racional” (REIS, 1994, p. 11). Reis,
uma qualidade temporal própria. seguindo conceitos de Koselleck, reitera
Diferentes tempos e períodos de que houve uma “revolução
expectativa, passíveis de alternância, epistemológica” quanto ao conceito de
tomaram o lugar reservado ao passado tempo histórico, uma mudança
entendido como exemplo, como substancial. A primeira grande mudança
experiência. O postulado clássico de foi produzida na Antiguidade pela
Cícero, da história como mestra da vida religião ao romper com o mito – a
[magistra vitae], na modernidade, perde religião opôs a profecia ao ritual, a
seu sentido pedagógico. O momento salvação futura contra a salvação na
crucial dessa alteração temporal ocorre origem. A segunda mudança foi
no século XVIII, onde a expectativa realizada pela filosofia do século XVIII,
futura toma o lugar antes reservado ao ao romper com a religião – a filosofia
passado como experiência. opôs a utopia à escatologia, a
demonstração racional à fé em uma
profecia; opôs um futuro humano,

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temporal, histórico ao futuro divino, certamente em uma época de
meta-histórico, eterno. esclarecimento”. O esclarecimento,
escreve Adorno, não é uma forma
Os impactos dessa alteração temporal e
estática, mas “uma categoria dinâmica,
histórica que ocorre concomitantemente
como um vir-a-ser e não um ser”
à Revolução Industrial ainda não foram
(ADORNO, 2003, p. 169). Ernst Bloch
totalmente quantificados na área da
analisa esse vir-a-ser, relacionando as
Educação e seus efeitos estão longe de
potencialidades utópicas do homem à
serem compreendidos na íntegra. O
filosofia da práxis e à esperança
afastamento progressivo da experiência
concreta. Da mesma forma, Paulo Freire
foi notado por diversos pensadores na
área da Filosofia e da Sociologia como analisa o ser humano ontologicamente
como “estar sendo”, não como um
Georg Simmel (2011), Walter Benjamin
(1994) e, recentemente, por Giorgio processo concluído. É o que será
discutido a seguir.
Agamben (2005). Pouco foi dito, porém,
em termos práticos sobre a ideia da Ernst Bloch: esperança e utopia como
expectativa futura, quer seja na forma categorias ontológicas
com que ela atua no pensamento,
Ernst Bloch (1885-1977) é um pensador
comportamento e saberes; quer seja inclassificável,2 por sua formação
como meta, fim ou objetivo de vida. erudita multidisciplinar. Foi discípulo de
Mesmo Marx (2011), em O 18 Brumário Georg Simmel, amigo de Lukács na
de Luís Bonaparte, fala em “poesia do juventude e assíduo participante do ciclo
futuro”, em “deixar que os mortos Max Weber de Heidelberg, grupo de
enterrem seus mortos”. Por outro lado, intelectuais que se reunia na casa de Max
Benjamin (1994, p. 229), altera os e Marianne Weber aos domingos para
lugares comuns das lutas sociais, não discutir temas de filosofia, sociologia,
somente “dos descendentes libertados”, teologia e cultura. Desde suas primeiras
mas primordialmente da tradição “dos obras, como o Espírito da utopia (1918),
antepassados escravizados”. A tradição até Ateísmo no cristianismo (1968), o
dos oprimidos de Benjamin (2009, p. tema das utopias e das esperanças
121) diz que “[...] apenas em virtude dos relacionadas a imagens do desejo o
desesperançados nos é concedida a acompanha, passando é claro por sua
esperança”. obra magna: O princípio esperança,
Nesse sentido, é preciso dar a devida escrita em três volumes durante o exílio
atenção aos conceitos ontológicos de de Bloch nos EUA e revista em seu
esperança e expectativa e suas retorno à Alemanha Oriental ao final da
possibilidades utópicas no campo da Segunda Guerra Mundial.
educação e do ensino. Em Educação e
Todo ser humano almeja, deseja, anseia,
emancipação, Adorno retoma Kant para
vive do futuro, sonha acordado. Todavia,
explicar o conceito de esclarecimento, a
na literatura vulgar, esses temas-
saída dos homens de sua auto inculpável
conceitos quase sempre foram
menoridade. “Mas vivemos em uma
analisados de forma imprecisa, idealista
época esclarecida?” Ele questiona e
e fantasiosa. A partir de Bloch há uma
busca a resposta novamente no filósofo
articulação da utopia e da esperança com
iluminista que responde: “Não, mas

2
Um “romântico revolucionário” ou um “judeu da Utopia, de 1918 e Thomas Münzer: teólogo da
apocalíptico catolicizante” eram adjetivos Revolução, de 1921. (LÖWY, 1979).
pertinentes às suas primeiras obras como Espírito

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a filosofia da práxis de Marx e com a de uma filosofia da práxis revolucionária
psicanálise de Freud, ainda que de forma e transformadora (SOUSA, 2011).
crítica. Nas palavras de Munster (1993,
Ao abordar o tema das utopias
p. 99), Bloch desconfia de uma
concretas3, Bloch não tem interesse na
compreensão exclusivamente
valorização barata do elemento
“científica” do marxismo, como apenas
“irracional” da humanidade, mas sim na
uma ciência das contradições
superação do elemento sociológico e
econômicas: ele reivindica o marxismo
econômico vulgar e na introdução do
como uma prática humanista e como
elemento religioso e metafísico como um
ética renovadora. Por essa razão, escreve
impulso que acompanha a consciência
Bloch (2005, p. 277), “a transformação
revolucionária, rompendo assim com o
filosófica ocorre, em última análise,
conceito historicista de linearidade. Para
essencialmente no horizonte do futuro
romper com o saber puramente
totalmente incapaz de contemplar,
contemplativo e idealista das utopias,
incapaz de interpretar, mas reconhecível Bloch (2005) as articula com a filosofia
em termos marxistas”. Afinal, “[...] o que
da práxis de Marx e com a ontologia da
caracteriza o poder e a verdade do
“consciência antecipadora”, ao que
marxismo é justamente o fato de ele ter
“ainda-não-veio-a-ser”. Nesse processo,
dissipado a nuvem que envolvia os
o homem compreendido como um ser
sonhos para frente sem ter apagado as
ainda em formação é remetido em
colunas de fogo que neles ardiam,
direção ao futuro, ao novum, ao devir.
dando-lhes, ao contrário, força e
Bloch analisa o impulso ou interrupção
concretude” (BLOCH, 2005, p. 145).
que nos move necessariamente rumo ao
Em O Princípio esperança, Bloch (2005; novo de forma bastante peculiar e
2006) fundamenta sua filosofia da distinta às pulsões freudianas; a fome, as
história por meio da psicanálise e do profecias, os movimentos messiânicos e
materialismo dialético. Na primeira parte escatológicos são os motivadores das
da obra, o autor trata de conceitos irrupções históricas e cuidadosamente
ontológicos como ‘ainda-não-ser’ ou articulados às utopias.
‘ainda-não-consciente’ e ‘sonhos
Em Bloch há uma clara influência da
acordados’; enfim, das potencialidades
psicanálise freudiana. Entretanto, há
imanentes do ser humano que ainda não
uma distinção entre seu conceito de
foram exteriorizadas, mas que possuem
“ainda-não-consciente” ou “pré-
uma força dinâmica que projeta o
consciente” e o inconsciente de Freud ou
homem necessariamente para o futuro.
id. Enquanto este cerca a consciência
Ligando a dimensão de esperança ao
como se fosse um anel, fixando-a no
conceito de antecipação, de utopia e
passado, cuja função é liberar as imagens
práxis, Bloch integra perfeitamente
e os desejos comprimidos, os sonhos
temas ontológico-filosóficos ao projeto
diurnos voltam-se para o futuro. Dito de
outra forma, “o ainda-não-consciente”

3
O termo utopia, do grego u-topos, significa recebeu o seu nome em grego e no qual ela foi
originalmente “nenhum lugar”, o que ainda não percebida pela primeira vez” (BLOCH, 2005, p.
existe, uma aspiração que está em contradição 25). Para Ernst Bloch, sem a função utópica, as
com o existente, com a ordem estabelecida. ideologias de classe teriam chegado a ser
Todavia, “restringir ou até orientar o utópico ao meramente ilusão passageira, e não modelos na
modo de Tomás Morus seria como querer reduzir arte, na ciência e na filosofia.
a eletricidade ao âmbar-amarelo, do qual ela

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está para o “inconsciente” freudiano fora em toda parte (BLOCH, 2005,
assim como o “sonho diurno” está para p. 67).
os “sonhos noturnos” (MUNSTER, Bloch adverte, porém, que a apreensão
1997, p. 26). da fome como uma pulsão fundamental
Para Bloch, o inconsciente da psicanálise não restringe a expressão real da questão
nunca é um ainda-não-consciente, um ao interesse econômico, ao velho debate
elemento de progressões; ele consiste, da base e superestrutura; o fator
isto sim, de regressões. Tornar econômico não é o único, mas o
consciente esse inconsciente revela fundamental; nunca determinante,
apenas o que já foi, o que vale dizer que embora condicionante. A partir da fome
“no inconsciente de Freud não há nada e das condições materiais de existência
de novo”. Isso fica claro também em Carl formam-se os afetos expectantes
G. Jung, que reduziu a libido e seus (angústia, medo, esperança e fé) que se
conteúdos inconscientes a um fenômeno estendem através do aspecto desejante
pré-histórico, no qual residiriam até o alvo de uma vida melhor: formam-
exclusivamente memórias ou fantasias se ‘sonhos diurnos’. “Eles sempre
primordiais da história tribal, procedem de uma carência e querem se
denominadas arquétipos. Bloch é um desfazer dela. Todos são sonhos de uma
crítico ferrenho de Jung, qualificando-o vida melhor [...], o que é intuído pelo
como “o fascista psicanalítico” que impulso de auto-expansão para frente é
“menospreza a consciência como um ainda-não-consciente” (BLOCH,
alguém que desdenha a luz” (BLOCH, 2005, p. 79).
2005, p. 59). Todos os afetos expectantes indicam
Freud e Jung – de acordo com a para frente, o contexto temporal do seu
interpretação de Ernst Bloch – concebem conteúdo é o futuro, sendo que a
o inconsciente meramente como algo esperança implica o bem-supremo, a
passado na evolução histórica, como bem aventurança irrompendo o que
algo submerso no porão e existente dessa forma ainda não existiu. A
apenas ali. Um e outro conhecem, ainda esperança e a confiança (afetos
que de modo diferenciado, apenas o expectantes positivos) frustram o medo e
inconsciente voltado para trás ou situado a angústia ou desespero (afetos
abaixo da consciência já existente, “eles negativos). Bloch (2005, p. 115) cita
não conhecem uma pré-consciência do uma passagem do poeta Hölderlin que
novo”. Um agravante, para Bloch é que exemplifica o potencial utópico da
tanto em Freud, como Jung e Adler a esperança: “‘Onde há perigo, cresce
doutrina das pulsões jamais é discutida também o que salva’. Perigo e fé são a
como uma variável das condições verdade da esperança, de tal modo que
socioeconômicas. ambos estão reunidos nela e o perigo não
tem medo, nem a fé tem em si uma
Porém, se de fato se pretende
quietude indolente”. A esperança é, em
distinguir pulsões fundamentais no
homem, elas variam em função das última análise, um afeto prático,
condições materiais tais como militante:
classe e época, e consequentemente O conteúdo ativo da esperança, na
também conforme a intenção e a qualidade de conscientemente
direção da pulsão. [...] Elas não se esclarecido, cientemente explicado,
destacam de modo tão evidente é a função utópica positiva,
como, por exemplo, a fome, que enquanto o conteúdo histórico da
psicanaliticamente foi deixada de esperança, evocado primeiramente

264
em representações, investigado ideologias, negando-as e as
enciclopedicamente em juízos denunciando.
concretos, é a cultura humana na
relação com seu horizonte utópico- Em praticamente metade da Pedagogia
concreto (BLOCH, 2005, p. 146). da esperança, Freire rememora o
processo de redação de Pedagogia do
Os afetos expectantes irrompem para o oprimido (de 1968), obra em que os
porvir, para o futuro do ainda-não conceitos de esperança e de utopia já
realizado. Para Bloch, o afeto mais estão presentes, embora de forma
importante, o anseio do auto afeto por embrionária. Em Ação cultural para a
excelência é a ‘esperança’, pois os afetos liberdade (FREIRE, 1970),5 a
negativos da angústia e do medo são fundamentação sistematizada do método
totalmente passivos, oprimidos, presos, de alfabetização freiriano relaciona-se
não obstante toda a pulsão que exercem. por todas as linhas com o sonho de
Por isso a esperança é a mais humana de liberdade, com a esperança, assim como
todas as emoções e acessível apenas a ocorre posteriormente em algumas
seres humanos. Ela tem por referência ao páginas da Pedagogia da autonomia
mesmo tempo o horizonte mais amplo e (FREIRE, 1996) e da Pedagogia da
mais claro. Ela representa o bem- indignação (FREIRE, 2000).
supremo, a bem-aventurança,
irrompendo o que ainda não existiu. Freire define a pedagogia realizada no
Terceiro Mundo como uma pedagogia
Paulo Freire: educador da esperança utópica, não no sentido de que se nutre
Em 1992, com o país mergulhado em dos sonhos impossíveis ou porque se
uma aguda crise política, moral e ética, ajuste a uma perspectiva idealista e
no desemprego, na inflação, ou seja, em abstrata. Utópico porque negando o
um cenário de profundo tempo reificado, ela recusa um futuro
4
desencantamento, Paulo Freire escreveu pré-fabricado, pré-estabelecido,
a Pedagogia da esperança. Ao comentar condicionado, que se instalaria
com um amigo sobre a temática da sua independentemente da ação humana
nova obra, Freire (2011, p. 9) foi consciente. “Utópica e esperançosa
questionado não sem razão: “como é porque, pretendendo estar a serviço da
possível, Paulo, uma pedagogia da libertação das classes oprimidas, se faz e
esperança no bojo de uma tal sem- se refaz na prática social, no concreto, e
vergonhice como a que asfixia o Brasil implica a dialetização da denúncia e do
hoje?” A resposta está implícita no anúncio, que tem na práxis
próprio questionamento: em razão de revolucionária permanente o seu
uma realidade injusta, imoral e desigual momento máximo” (FREIRE, 2001, p.
é que nascem as utopias, os sonhos e a 70). Nesse sentido, o caráter utópico da
esperança. Da forma com que foram pedagogia freiriana é tão permanente
fundamentados por Ernst Bloch, as quanto a própria educação, desde que
utopias e a esperança possuem uma libertadora.
função subversiva em relação às

4
Não serão tratadas questões biográficas, não da gênese pedagógica de Freire, ver Souza
obstante sua importância para a formação dos (2001) e Saviani (2011).
5
métodos educacionais de Freire, não existe Escrito no final de 1969, em Cambridge, EUA,
separação entre teoria e prática na obra freiriana, e publicado pela primeira vez em 1970, pela
entre vivência e experiência. Para compreensão Harvard Eduational Review.

265
A dialética da denúncia e do anúncio, ao Esta práxis pedagógica ocorre em Paulo
demonstrar ao educando as reais Freire pelo fato de que ele compreende a
condições sociais e econômicas, permite condição humana como inacabamento,
pensar o futuro em termos de novas como incompletude; para ele estamos em
possibilidades, algo como um “inédito constante busca pelo “ser mais”, isto é,
possível”. Sem a abertura desse novum, somos seres “a caminho” e “em busca”
o amanhã perde sua real significação ou contínua e permanente de completude
instala-se o medo e a angústia de viver o (SOUZA et al., 2001, p. 93). “Mulheres
risco do futuro como superação do e homens se tornaram educáveis na
presente estratificado. É por isso que as medida em que se reconheceram
classes dominantes nada podem anunciar inacabados. Não foi a educação que fez
além da preservação do status-quo; “não mulheres e homens educáveis, mas a
podem ser, jamais, utópicas nem consciência de sua inconclusão é que
proféticas”, escreve Freire (2001, p. 71). gerou sua educabilidade”, anota Freire
(1996, p. 57), em Pedagogia da
Contudo, adverte Freire, em uma
autonomia. Uma educação voltada para
educação autenticamente utópica não há
a autonomia, não por acaso, é centrada
como falar de esperança se os braços se
na experiência e no vir-a-ser.
cruzam e passivamente se espera. Na
verdade, “quem espera na pura espera Da pedagogia do oprimido (denúncia), à
vive um tempo de espera vã”. A espera pedagogia da indignação (renúncia) até a
só tem sentido quando, cheios de pedagogia da autonomia (anúncio), há o
esperança, porque desesperançados, constante elo entre a esperança e o
lutamos para concretizar o futuro sonho, que afinal dão coesão a toda obra
anunciado, que nasce da denúncia do freiriana. “Não há mudança sem sonho
presente e, consequentemente, pela sua como não há sonho sem esperança”,
renúncia. Da mesma forma, não há assim ele sintetiza sua práxis social e
esperança verdadeira naqueles que educativa (FREIRE, 2011, p. 91). “A
tentam fazer do futuro a pura repetição compreensão da história como
do presente, onde o futuro já estaria possibilidade e não determinismo, a que
predeterminado. Para Freire, esta fiz referência neste ensaio” diz Freire
concepção traz consigo uma noção (2011, p. 127), “seria ininteligível sem o
“domesticada” de história. “A esperança sonho, assim como a concepção
utópica, pelo contrário, é engajamento determinista se sente incompatível com
arriscado” (FREIRE, 2001, p. 71). ele, por isso o nega”. Ao final, veremos
Portanto, na pedagogia freiriana, a de que forma a utopia se contrapõe à
esperança não se identifica com a pura ideologia, como sua antítese,
espera, mas caracteriza-se pelo fato de constituindo um pensamento e uma
que para fazer o impossível é preciso concepção de tempo e de historicidade
torná-lo possível. A esperança é diametralmente opostos ao
necessária, mas isolada não é o establishment.
suficiente, ela precisa ancorar-se na Síntese: da potência da esperança à
prática social. “Ela só não ganha a luta, educação utópica
mas sem ela a luta fraqueja e titubeia”,
resume Freire (2011, p. 15). “A esperança é a necessidade ontológica;
a desesperança torna-se distorção da
necessidade ontológica.” Esta frase
poderia ser atribuída aleatoriamente
tanto a Ernst Bloch quanto a Paulo Freire

266
e, em boa medida, sintetiza o Princípio esperança (BLOCH, 2005, p.
pensamento de ambos. A proximidade 245-278).8 Neste escrito seminal de
do pensamento de Bloch e Freire vai Marx estão os prelúdios da pedagogia de
além do superficial e do circunstancial. Paulo Freire. Na terceira Tese de Marx
Ainda que em áreas do conhecimento sobre Feuerbach pode-se ler:
distintas, em países culturalmente A teoria materialista de que os
opostos, as obras desses intelectuais homens são produtos das
completam-se mutualmente, como na circunstâncias e da educação e de
metáfora dos “vasos comunicantes”, que, portanto, homens modificados
descrita por Bloch a Michael Löwy:6 são produtos das circunstâncias
ainda que distantes eles se encontram no diferentes e de educação
mesmo eixo, consolidando assim algo modificada, esquece que as
como uma afinidade eletiva entre seus circunstâncias são modificadas
conceitos, postulados e teses. Os pontos precisamente pelos homens e que o
de convergência do pensamento próprio educador precisa ser
educado (apud MÉSZÁROS, 2008,
blochiano e freiriano baseiam-se na
p. 21, grifo nosso).
mesma raiz epistemológica: a dialética
marxista e o cristianismo. No mesmo sentido, para Paulo Freire:
Segundo a descrição de Saviani (2011), Desta maneira, o educador já não é o
as influências de Paulo Freire são muitas: que apenas educa, mas o que,
a dialética hegeliana e marxista, certo enquanto educa, é educado, em
diálogo com o educando que ao ser
existencialismo cristão e a “superação”
educado, também educa. Ambos,
ou conceito de limite máximo da assim, se tornam sujeitos do
consciência possível, de Lucien processo em que crescem juntos e
Goldmann. Em Goldmann, esse conceito em que os ‘argumentos de
de raiz lukacsiana pressupõe não apenas autoridade’ já não valem. Em que,
a superação ou a distinção entre a para ser-se, funcionalmente,
consciência real e a consciência autoridade, se necessita de estar
possível,7 mas também o antagonismo sendo com as liberdades e não
entre as classes fundamentais, contra elas (FREIRE, 1987, p. 68).
dominantes e dominados, sob o Na Pedagogia da indignação, Freire
capitalismo. É o que se observa na propõe a superação da consciência real,
dialética da denúncia (do real) e do transformando-a rumo ao horizonte
anúncio (do possível). aberto pela utopia:
A base teórica e prática para a Não estou no mundo para
transformação social é encontrada por simplesmente a ele me adaptar, mas
nossos autores, inequivocamente, nas para transformá-lo; se não é
Teses de Marx sobre Feuerbach. Este possível mudá-lo sem um certo
texto está presente na Pedagogia da sonho ou projeto de mundo, devo
esperança, na Ação cultural para usar todas as possibilidades que
liberdade (FREIRE, 2001, p. 79) e em O tenho para não apenas falar de
minha utopia, mas participar de

6
Na pesquisa de Löwy (1979, p. 282-294), de consciência possível, onde a segunda forma
intitulada Para uma sociologia dos intelectuais teria o objetivo de demonstrar com coerência a
revolucionários, há uma preciosa entrevista com incoerente multiplicidade da primeira.
8
Ernst Bloch, realizada em 1974. Com subtítulo intitulado “A transformação do
7
Em Cultura e materialismo, Raymond Williams mundo ou as Onze teses de Marx sobre
(2011) define os conceitos de consciência real e Feuerbach”.

267
práticas com ela coerentes devir, ao futuro, enfim... a esperança. O
(FREIRE, 2000, p. 33). ímpeto e o desejo irrompem através dos
Tornar consciente aquilo que ainda não sonhos diurnos e da consciência
existiu, materializar o sonho em forma antecipadora e têm como referência o
de possibilidade, é o verdadeiro sentido horizonte mais amplo e mais claro, rumo
da utopia. “O ser humano consciente é o à nova aurora (SOUSA, 2011).
animal mais difícil de saciar”, escreveu Mas para Ernst Bloch o materialismo
Ernst Bloch na introdução de O histórico, por si só, não seria capaz de
Princípio esperança. Em sentido muito despertar a consciência do novo. Nas
próximo, no segundo capítulo da obras do filósofo judeu-alemão
Pedagogia do oprimido, Freire escreve coexistem temas políticos e religiosos,
um longo subtítulo: “O homem como ser teológicos e marxistas. A filosofia da
inconcluso e consciente de sua religião de Bloch, ou dito de outra forma,
inconclusão e seu permanente sua teologia da esperança, apesar de
movimento em busca de ser mais”. E embasada no Antigo e no Novo
igualmente de forma quase idêntica, Testamentos, não tem relação com a
Bloch define a incompletude do ser hermenêutica da teologia oficial, com a
humano na seguinte fórmula: “S ainda ortodoxia católica. Com efeito, Bloch
não é P”, ou seja, sujeito ainda não é (1973) procura justificar a existência de
predicado. Ou, em termos freirianos, não uma tendência crítica ou subversiva das
somos, estamos sendo. seitas heréticas. Há na sua interpretação
No entanto, como demonstra Bloch, a um “eixo não teocrático” ou uma “Bíblia
tomada de consciência é um processo subterrânea” [Bíblia pauperorum], o que
doloroso na moderna sociedade justificaria um paraíso não transcendente
industrial, reificada, consumista. As que se identifica com o reino
ideologias ou “imagens idealizadas no escatológico. Em contrapartida ao
espelho”, um espelho embelezador que conservadorismo do clero oficial, os
reflete apenas o que a classe dominante movimentos heréticos são contestadores
quer do desejo e como ela o quer, são da ordem social e, muitas vezes,
reformuladas por Ernst Bloch de modo revolucionários, desde a tradição de
que “o espelho se origine no povo”. O Joaquim de Fiore9, albigenses, hussitas,
espírito utópico de Bloch, cujas Thomas Münzer e dos anabatistas.
categorias centrais são “possibilidade” e Em Ateísmo no Cristianismo, Bloch
“esperança”, rompem com o estado de (2009) reafirma que a Bíblia só tem
reificação do mundo burguês e seu futuro se for “transcendente e, ao mesmo
aparato ideológico. Quando Bloch tempo, sem transcendência”, ou seja,
escreve que o “não” é um “ainda-não” sem um Deus apresentado como um ser
que pode “vir-a-ser”, ele desmistifica a que está acima de nós, sentado num trono
realidade social estratificada, coisificada acima do céu, como o Zeus da
e abre uma fronteira no campo da Antiguidade. Na mesma obra, o autor
filosofia da práxis rumo ao novo, ao insiste, de forma peculiarmente ácida,

9
O criador da doutrina do Terceiro Evangelho. que está por vir, é do Espírito Santo ou da
Para Joaquim de Fiore, os três estágios da história iluminação de todos, em uma democracia
são o do Pai, do Antigo Testamento, do temor e mística, sem senhores nem Igreja. “O primeiro
da lei conhecida. O segundo é o do Filho ou do Testamento forneceu o caule, o segundo a espiga,
Novo Testamento, do amor e da Igreja que está o terceiro produzirá o trigo”. (BLOCH, 2006,
dividida em clérigos e leigos. O terceiro estágio, v.2, p. 64).

268
que a Bíblia deveria ser lida com os olhos libertação”. O fundamento científico e
do Manifesto Comunista, “sem deixar econômico do marxismo para a crítica da
que o sal do ateísmo se torne insosso”. sociedade de classes une-se aos
“Only an atheist can be a good Christian; imperativos morais do cristianismo, para
only a Christian can be a good atheist” uma educação em comunhão, para uma
(BLOCH, 2009, p. 8).10 sociedade fraterna e igualitária. Esta
aproximação lembra a alegoria do
A educação popular de Freire é
autômato de Walter Benjamin (1994),
influenciada, também, pelo cristianismo,
nas teses “Sobre o conceito de história”,
mais precisamente pelas contribuições
na qual o boneco sem vida chamado
da Teologia da Libertação, de Frei Beto
e de Leonardo Boff, que teve sua maior Materialismo Histórico precisaria da
teologia para “vencer a partida” ‒ uma
expressão nas inúmeras manifestações
sociais que levaram à conquista de síntese complexa que ainda gera muitas
direitos de base em toda a América divergências, sobretudo no meio
Latina. Tais movimentos se propuseram acadêmico. Mas, em se tratando de
pensadores dialéticos como Bloch e
a lutar por direitos que, em tese, seriam
entendidos como pertencentes às Freire (e também Benjamin), a
minorias (operários, grupos étnicos, de contradição torna-se equilíbrio. Nesse
gênero, mulheres). Porém, na verdade, sentido é que se compreende a confissão
essas minorias se constituem na maioria de Paulo Freire: “Minhas conversas com
dos trabalhadores na luta pelos processos Marx nunca me sugeriram que parasse de
democráticos, conforme destaca Freire ter reuniões com Cristo”.11
em Pedagogia da esperança: Esta síntese justifica-se como
As chamadas minorias, por instrumento para romper com a estrutura
exemplo, precisam reconhecer que, burocrática do capital (WEBER, 2004),
no fundo, elas são a maioria. O sobretudo em sua forma tardia de
caminho para assumir-se como hegemonia do capital financeiro ou
maioria está em trabalhar as “capitalismo parasitário” (BAUMAN,
semelhanças entre si e não só as 2010), com sua impessoalidade e frieza
diferenças e, assim, criar a unidade que reduzem os valores humanos a valor
na diversidade, fora da qual não vejo de mercadoria, a educação ao
como aperfeiçoar-se e até como utilitarismo econômico. Contra o
construir-se uma democracia filisteísmo12 do mundo burguês, como
substantiva, radical (FREIRE, diria Bloch, ou contra a “feiura do
2011, p. 154). capitalismo”, como escreve Freire, para
Saviani (2007, p. 333) afirma que a superação da realidade e da consciência
“poderíamos mesmo considerar que a coisificada, contra a fome13 que ainda
pedagogia libertadora de Freire é o assola o país, é que o princípio esperança
correlato, em educação, da teologia da e a utopia concreta relacionam-se com a

10
“Apenas um ateu pode ser um bom cristão; intitulado “Paulo Freire: o educador proibido de
apenas um cristão pode ser um bom ateu”. educar”.
12
Ateísmo no Cristianismo, de 1968, ainda não há Expressão que designa, na linguagem cultural
tradução em português. Utilizamos a verão em do século XIX, a estreiteza, a mesquinharia e a
inglês de 2009. vulgaridade burguesas.
11 13
Em diálogo com Myles Horton, educador Qual o objetivo da sociedade emancipada?
norte-americano, no livro O caminho se faz Adorno (2003, p. 137) responde: “A única
caminhando. Citado por Sérgio Haddad (2019, p. resposta delicada seria a mais grosseira: que
146), em Educação contra a barbárie, capítulo ninguém mais passe fome”.

269
educação. Para romper com a “jaula de Bloch (de 1918), passado por Ideologia
aço”. e Utopia, de Mannheim (1929), pela
Dialética da esperança, de Furter
Considerações finais
(1974), até os trabalhos mais recentes de
“A situação desesperadora da Löwy (2010) e Ricoeur (2015). Para
época na qual vivo me enche de Mannheim, ideologia14 é o conjunto de
esperança” (Karl Marx, Carta a concepções, ideias, representações,
Ruge).
teorias que se orienta para a
“O ponto do sonho, mais do que estabilização, legitimação ou ainda para
aquilo que ele ressuscita do a reprodução da ordem estabelecida. São
passado, é o que anuncia do aquelas doutrinas que têm certo caráter
porvir” (Michel Foucault, Ditos e conservador, no sentido amplo da
escritos).
palavra, e servem para a manutenção da
ordem estabelecida. As utopias, pelo
É tempo, talvez, para Das Prinzip contrário, são aquelas ideias,
Hoffnung [O princípio esperança], representações e teorias que aspiram
escreve Eric Hobsbawm (1982, p. 141), outra realidade, uma realidade ainda não
pois “os que realmente negam a utopia existente. Em suma, a “ideologia é aquilo
são aqueles que criam um mundo que preserva a ordem social das coisas;
medíocre e fechado, do qual as grandes as utopias, por outro lado, visam reduzir
avenidas que se abrem para a perfeição o fosso entre a ideia e a realidade
estão excluídas: a burguesia”. Em (RICOEUR, 2015, p. 322).
Revolucionários, Hobsbawm classifica Ao indicar possibilidades concretas
Ernst Bloch como um autor soberbo, que existentes no real, “a utopia é uma forma
desdenha Freud e Jung. No entanto, de ação, e não uma mera interpretação da
refere-se a ele respeitosamente como realidade”, afirma Furter (1974, p. 147)
“Professor Bloch” e surpreende-se com a em sua Dialética da esperança. Nesse
erudição do filósofo da esperança sentido, este trabalho não teve como
enfatizando que “não é todo dia que objetivo resgatar o sentido históricos das
somos lembrados, com tanta sabedoria, utopias. Isto já está posto desde
erudição, inteligência e domínio da Aristóteles quando afirma que a função
língua, de que a esperança e a construção do poeta, ao contrário do historiador, é
do paraíso terreno são o destino do indicar o que poderia ocorrer e não
homem” (HOBSBAWM, 1982, p. 145). apenas relatar o que aconteceu. A função
O espírito da utopia, cuja força motriz da arte e, particularmente, da música, era
advém da esperança e dos sonhos e ainda é apontar para essa utopia.
acordados, configura-se como oposição Apesar da importância história do
à ideologia. Isso ocorre na sociologia do renascimento das utopias com Morus,
conhecimento desde Geist der Utopie, de Bacon e Campanella, passando pelos

14
A palavra “ideologia” surge com o filósofo No século XX, Antônio Gramsci elabora uma
enciclopedista Destutt de Tracy, que a aplicou à visão mais sofisticada sobre as ideologias. Para o
teoria das ideias em geral. Para o filósofo Hegel, filósofo italiano, há ideologias orgânicas, aquelas
a ideologia é uma projeção direta do espírito, necessárias a determinada estrutura, e ideologias
como conceito universal, seria impossível não orgânicas, formas de pensamento que
considerá-la como um instrumento de classe. Já, circulam no meio do povo comum, como
para Marx, o conceito aparece como equivalente crenças, folclore, mitos e experiência popular
à ilusão, uma falsa consciência, o pensamento da (LOWY, 2010).
classe dominante que sobrepõe às demais classes.

270
socialistas utópicos do século XIX, como Referências
Saint-Simon, Fourier e Owen, neste ADORNO, Theodor. Educação e emancipação.
artigo buscou-se pensar o sentido Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
ontológico e antropológico da esperança, AGAMBEN, Giorgio. Infância e História.
relacionada também ao ser social. Destruição da experiência e origem da história.
Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2005.
Verificou-se no decorrer do estudo não
somente uma relação de analogia ou BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo parasitário: e
outros temas contemporâneos. Rio de Janeiro:
associação entre Bloch e Freire – o que Jorge Zahar Ed., 2010.
incorreria no risco de tautologia –, mas
uma proximidade em termos de simbiose BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e
juventude: conversas com Ricardo Mazzeo;
ou “afinidade eletiva” onde a base tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de
epistemológica fundamentada na Janeiro: Zahar, 2013.
psicanálise e no materialismo dialético
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
encontra o terreno fértil da práxis política: ensaios sobre literatura e história da
educacional de Paulo Freire. Se a utopia cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed.
concreta se torna um elemento da São Paulo: Brasiliense, 1994.
atividade humana orientada para o BENJAMIN, Walter. Ensaios reunidos: escritos
futuro, um topos da consciência sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34,
antecipadora e força ativa dos sonhos 2009.
diurnos, esse topos [lugar] utópico é BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Tradução
possível pelo fato de que o mundo não é Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ:
um lugar fechado, ou processo acabado, Contraponto, 2005.
porque possui horizonte aberto e cheio BLOCH. Atheism in christianity. The Religion of
de possibilidades “ainda-não” the Exodus and the Kingdom. New York,
realizadas. Este lugar é a Escola, onde a London: Verso, 2009.
“utopia” de uma sociedade, cuja ordem BLOCH. Thomaz Münzer: teólogo da revolução.
não segue mais os imperativos da Tradução Vamireh Chacon. Rio de Janeiro:
produção e da autoconservação, poderia Tempo Brasileiro, 1973.
se tornar realidade. FREIRE, Paulo: Pedagogia do oprimido. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
A educação para a mudança requer,
FREIRE. Pedagogia da autonomia: saberes
sobretudo, esperança. “Uma educação
necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
sem esperança não é educação”, pontua Terra, 1996.
Freire (2020, p. 37). Esperança esta que
FREIRE. Pedagogia da indignação: cartas
advém do verbo esperançar, que indica pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp,
ação, fazer, lutar. A utopia opõe-se, 2000.
assim, à mera adaptação e a resignação,
FREIRE. Ação cultural para a liberdade e outros
ao conformismo. Uma das tarefas do escritos. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
educador progressista consiste em
FREIRE. Pedagogia da esperança. Um
desvelar possibilidades, não importam os reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de
obstáculos, para a esperança. Esta é a Janeiro: Paz e Terra, 2011.
mensagem deixada por Paulo Freire em
FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de
sua Pedagogia da esperança. Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
FURTER, Pierre. Dialética da esperança: uma
interpretação do pensamento utópico de Ernst
Bloch. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
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proibido de educar. In: CÁSSIO, Fernando

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Recebido em 2020-09-02
Publicado em 2021-10-01

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