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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

F936s
Freitas, Eduardo Pacheco
Star Trek : utopia e crítica social / Eduardo Pacheco Freitas. - 1. ed. - Rio de Janeiro
: Autografia, 2019.

ISBN: 978-85-518-2632-4 (recurso eletrônico) 1. Star Trek (Programa de televisão). 2.


Filmes de Jornada nas Estrelas - História e crítica. 3. Cinema - Aspectos sociais. I.
Título.

CDD: 302.234
19-61049
CDU: 316.774:791.242

Star Trek: utopia e crítica social


FREITAS, Eduardo Pacheco ISBN: 978-85-518-2632-4
1ª edição, fevereiro de 2020.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Buenos Aires, 168 – 4º andar, Centro RIO DE JANEIRO, RJ – CEP: 20070-022
www.autografia.com.br

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É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da
Editora Autografia.
Para os meus pais, que me deram os primeiros livros e que me
deixavam assistir a Sessão Espacial mesmo tendo só uma TV em casa.

Para a Lívia, meu amor.

E para o Klingon, que não sabe ler, mas é um gato de outro mundo.
A revolução social não pode tirar sua poesia do passado, e sim do
futuro.
— KARL MARX
Origens desse livro

Eu me tornei um trekker, isto é, um fã de Star Trek, quando tinha apenas 12


anos. Naquela época apareceu um programa na já extinta TV Manchete que se
chamava Sessão Espacial. Todas as segundas, quartas e sextas, por volta das
seis da tarde, passava um episódio da série original de Jornada nas Estrelas.
Nos sábados passava a Nova Geração. Foi amor à primeira vista. Era um
universo fascinante, o qual eu podia desbravar a bordo da Enterprise e ao lado
daquela tripulação carismática. Logo em seguida tive uma tartaruga, que botei
o nome de Spock. Como toda tartaruga ela era verde e já que o sangue do
Spock era verde também... O sexto filme da franquia estava estreando por
aquela época, então consegui ir assistir e até improvisei um uniforme da Frota.
Eu nem imaginava que existia um negócio chamado cosplay. Foi uma noite
memorável e, mesmo com 12 anos, consegui entender a piada sobre Nixon que
o Spock fez. Inesquecível.
Na época eu estava mais interessado no teletransporte e na dobra espacial,
mas logo percebi que a série transmitia algumas mensagens bem
interessantes. Era proibido, pela Primeira Diretriz, interferir no
desenvolvimento de uma sociedade alienígena. Na ponte de comando havia
mulheres (uma negra, inclusive) e pessoas das mais variadas etnias. A violência
nunca era uma opção. A humanidade mostrada na série era muito mais
evoluída do que a de hoje. Com o tempo fui entendendo que Star Trek não se
tratava unicamente de um programa sobre viagens interestelares, mesmo
possuindo uma identidade única e uma qualidade nunca alcançada por outros
programas do mesmo gênero. Star Trek se tratava de igualdade e liberdade.
Acredito que esses valores tenham me influenciado e ajudado a me tornar
quem sou hoje em dia. Sua mensagem, obviamente de esquerda (chamada
liberal nos Estados Unidos), ecoou e me fez prestar atenção nas injustiças que
via ao redor. Portanto, a Enterprise e sua missão duraram muito mais na
minha vida do que a sua missão original de cinco anos. Inclusive, depois de me
tornar professor, passei a utilizar a série nas minhas aulas. É uma ótima
ferramenta pedagógica para o ensino de História. Da mesma forma, criei um
blog e fiz um canal no YouTube para analisar e divulgar Star Trek.
Por essas e outras tantas razões que apresento esse livro, onde procuro
desenvolver interpretações originais sobre as diversas séries da franquia
produzidas nos mais de cinquenta anos de sua história.
Bem-vindo a bordo.
Criticar a sociedade, construir a utopia

Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres
Rosa Luxemburgo

Esse livro tem dois eixos principais. O primeiro deles é Star Trek, esse
produto da indústria cultural que se tornou um notável fenômeno da cultura
pop e faz sucesso há mais de 50 anos. O segundo eixo é a relação que essa obra
coletiva e diversificada possui com a utopia e com a crítica social. Então,
embora seja um produto feito por grandes estúdios, com o objetivo primeiro
de gerar lucro, existe uma relação dialética onde ele acaba por expor ideias que
vão contra essa própria lógica. Contudo, não podemos ser ingênuos e acreditar
piamente que Star Trek se trata de um veículo que carrega mensagens
revolucionárias. Se defendêssemos isso estaríamos sendo desonestos. Star
Trek, como produto da cultura de massas dos Estados Unidos, feito para um
público, a priori, de estadunidenses, está eivado de valores, crenças e
ideologias daquela sociedade. Muitas vezes esses elementos são involuntários,
outras tantas vezes são intencionais, como acontece igualmente em
blockbusters, best-sellers, música pop e inúmeros outros produtos culturais dos
Estados Unidos. Star Trek, ao mesmo tempo ajuda a manter o status quo e o
critica.
Feitas essas ressalvas, importantes para que não se caia na admiração
acrítica costumeira do fã, é fundamental dizer que este mesmo fã, portanto,
deve ser crítico. Da mesma forma que consegue estabelecer conexões entre
algumas das histórias contadas por Star Trek com a crítica da realidade social,
deve estar atento para as ideias conservadoras que igualmente se apresentam
na série. Mas isso dá material suficiente para outro ou outros livros. Nesse
aqui vamos nos deter na utopia representada na série ao longo de suas mais de
cinco décadas e também nas suas pungentes críticas a respeito de normas,
práticas e configurações sociais. Star Trek é um rico manancial para esse tipo
de abordagem, sendo útil, inclusive, para o ensino. Eu mesmo, como professor,
utilizo diversos episódios das várias séries de Star Trek em sala de aula. O
resultado é, geralmente, bastante positivo e recompensador.
Inicialmente, para que se possa compreender melhor quais aspectos de Star
Trek esse livro se propõe explorar é preciso que façamos a definição do que é
essa tal de utopia, que é uma palavra, de certa forma, comum na linguagem
coloquial. Porém, nesse livro a concebemos de maneira um pouco diferente.
Utopia é uma palavra de origem grega, formada a partir de ou (não) e topos
(lugar). Portanto, utopia significa, literalmente, não lugar. Ou seja, um lugar
que não é esse no qual nos encontramos, é um lugar que não existe. No sentido
que trabalhamos aqui, um lugar que ainda não existe e que, tendo isso em
vista, é um lugar que deve ser construído, sob pena da própria destruição da
humanidade. Star Trek nos apresenta um mundo utópico.
Desde a aurora dos tempos o ser humano sonha com um lugar melhor, com
um futuro onde a humanidade supere seus problemas e viva em paz.
Entretanto, esse lugar parece nunca ser atingido e muitas vezes parece que
vivemos na distopia, o contrário de utopia. Mas foi em 1516 que um filósofo
inglês chamado Thomas More publicou um livro chamado A Utopia. Na
história, o autor relata a história de um país chamado Utopia onde todos os
problemas sociais contemporâneos à Inglaterra de More haviam sido
resolvidos. Na ilha de Utopia, a propriedade privada havia deixado de existir e
já não havia intolerância religiosa. Todos trabalhavam no máximo seis horas
por dia, o suficiente para manter a sociedade funcionando e assim garantidora
do bem-estar de todos. Da mesma forma, não havia perseguição religiosa, com
cada um podendo exercer livremente a sua religiosidade. O contexto histórico
nos ajuda a entender as ideias de More: a descoberta do Novo Mundo, onde
houve uma idealização da vida não capitalista dos indígenas e as tensões
religiosas que estourariam logo adiante na Reforma de Lutero.
A Federação Unida de Planetas, a organização política e social mostrada
em Star Trek possui, em geral, todas as características da ilha de Utopia de
Thomas More: ausência de propriedade privada, divisão do trabalho não
baseada na exploração de uma classe sobre a outra e tolerância, não somente
religiosa, mas em todos os aspectos da vida. O lucro e acumulação de riquezas
já não fazem parte dessa nova organização social humana, onde o bem comum
é o que guia o comportamento de todos. Assim como em Utopia, a Federação é
governada pela razão. A razão é revolucionária e utópica. É o contrário do
obscurantismo vigente nas sociedades de classes, que são distópicas. Quando
você assistir um filme distópico, como Mad Max, por exemplo, você entenderá
isso melhor, sobretudo se assistir Star Trek em seguida. Você vai perceber que
Mad Max é muito mais parecido com a gente do que Star Trek. A distopia é
real, nos resta lutar para construir a utopia.
Nesse ponto é importante esclarecer que utopia não significa um sonho
irrealizável. Esse sentido é o corrente na linguagem comum. Mas como
afirmado no início, não é com esse significado que concebemos esse livro.
Desde a filosofia da Grécia Antiga o sonho de transformação da
humanidade em uma humanidade superior está presente. Esse sonho foi
acalentado por todas as sociedades humanas, em todos os lugares, em todos os
tempos. Os indígenas brasileiros, por exemplo, perseguiam aquilo que
chamavam de “Terra Sem Males”. As religiões, como expressão da miséria da
vida, representaram a utopia como a vida após a morte. No entanto, foi a partir
do século 19, com o desenvolvimento do capitalismo industrial, que a utopia
ganhou novos contornos, que nos interessam mais especificamente aqui. Esse
novo sistema, que gerou mais riqueza que todos os anteriores, por outro lado
criou as condições para que o ser humano fosse completamente
desumanizado. Ao se tornar apenas uma coisa, através dos processos de
alienação e reificação inerentes ao capitalismo, o homem foi mais oprimido do
que em qualquer etapa anterior da história.
Foi nesse contexto que alguns pensadores surgiram e, convencidos de que
esse sistema é anti-humano, refletiram sobre a necessidade de sua superação.
Saint-Simon, François-Charles Fourier e Robert Owen foram os principais
deles. Todavia, esses filósofos não apresentaram um método para que a
opressão do capital sobre o ser humano fosse destruída. Eles se limitaram a
identificar a questão e aguardar que esse sistema deixasse de existir. É nesse
contexto que surgem Karl Marx e Friedrich Engels, com a ideia de que “Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém,
é transformá-lo”. Assim nascia o socialismo científico, o qual, além de fazer a
crítica da realidade material do ser humano, propunha formas de mudá-la,
através da revolução.
Isso não significa que Marx e Engels não fossem utópicos também. Mas há
o deslocamento da utopia enquanto termo relacionado a um sonho que
poderia vir a acontecer um dia, para a utopia que pode ser construída a partir
da luta daqueles que são oprimidos. A utopia é o que nos faz caminhar até que
ela aconteça.
Star Trek, é claro, como ressaltado no início, é uma obra produzida no
coração do capitalismo, portanto reflete seus valores. Assim, a superação do
capitalismo em sua mitologia não ocorreu a partir de uma revolução do
proletariado, mas como uma evolução indispensável para o ser humano. No
contexto da década de 1960, onde a série foi criada, era comum o pensamento
de que a tecnologia libertaria o ser humano de todos os males. A tecnologia
traria a solução para as questões sociais. Pensadores como Hannah Arendt,
por exemplo, foram responsáveis por sistematizar e difundir a ideia de que os
avanços tecnológicos contribuiriam para o fim da desigualdade. Arendt tinha
como objetivo claro liquidar ideologicamente o “pesadelo” da luta de classes.
Era como se dissesse: trabalhadores do mundo, aguardem! A tecnologia vos
libertará! Para ela, a miséria das massas não era um produto social, sendo
preciso, portanto, o avanço da ciência no domínio da natureza para superá-la.
A filósofa liberal considerava a pobreza como algo natural, dado isso, a luta
política pela emancipação da classe trabalhadora seria inútil. Era necessário
esperar pelos avanços científicos e tecnológicos que trariam igualdade para os
seres humanos. Esse pensamento tecnicista, que trata a tecnologia como um
deus benevolente que tudo resolverá é um dos pilares de Star Trek, que,
evidentemente, foi influenciada por esse contexto intelectual. No entanto,
como bem visto no Vietnã, o fator humano da pequena nação derrotou o
tecnicismo da nação mais poderosa. Vale lembrar ainda que, sob a lógica do
capital, a ciência sempre estará a seu serviço.
No entanto, é lícito pensar também que Star Trek é uma obra vinculada ao
socialismo utópico e não ao socialismo científico, já que se conecta à ideia da
necessidade de aguardar o devir histórico em benefício dos explorados. Esses
fatos, porém, não a desabonam em nenhum aspecto, já que ela apresenta
aquilo que é possível dentro do sistema no qual se encontra. Mas não
esqueçamos: sim, a utopia é importante, mas só pela revolução chegaremos
nela.
A utopia, no primeiro sentido, é idealista. A utopia, no sentido marxista é
concreta. O marxismo é a ciência do proletariado e ao mesmo tempo uma
teoria da sociedade burguesa. Foi através da obra de Marx e Engels (chamada
marxismo) que foi possível compreender a história da humanidade como a
história da luta de classes. Portanto, ao longo do desenvolvimento humano
sempre houve duas classes em luta, uma dominante e outra dominada. Essa
luta decorre da divisão do trabalho. Enquanto uma trabalha e gera riqueza, a
outra não trabalha e se apropria dessa riqueza. Portanto, todos os recursos do
planeta, humanos e naturais, estão à serviço de poucos, como meios para a
acumulação de riqueza, cada vez mais concentrada.
Em Star Trek acontece o contrário: eles estão à serviço das pessoas e não
dos interesses privados. E por que isso se tornou possível? Devido ao advento
dos aparelhos replicadores, que podem reproduzir qualquer objeto ou
alimento que você precisar (eis aí um reflexo do pensamento de Hannah
Arendt). Mas só isso não bastaria para que os recursos fossem divididos
igualmente. A diferença é que esses replicadores são bens de acesso universal.
Logo, a obrigação do trabalho por necessidades materiais desaparece. E com
ela, acaba a sociedade de classes, já que não há mais a possibilidade de um ser
humano explorar o outro com base na escassez do modo de produção
capitalista. Outro resultado: o dinheiro já não existe. Mais um: o Estado é
completamente transformado, pois já não existe uma classe que o controle.
Para Marx e para o marxismo, o Estado é sempre uma ditadura de classe. Já
no Manifesto Comunista ele e Engels revelam que o Estado é um comitê que
administra os negócios em comum da burguesia. Logo, o Estado tem como
função proteger a propriedade privada e manter as coisas como elas estão. Por
meio do seu monopólio da violência, é capaz de manter as classes subalternas
sob controle, de forma a evitar a revolução. Já se disse que na sociedade
capitalista ninguém dorme: uns de fome, outros de medo dos que têm fome.
Lênin diz que o Estado é uma organização da classe exploradora para manter
seu domínio sobre a classe explorada.
Em Star Trek, ou melhor dizendo, na Federação, o que vemos é uma
sociedade que ultrapassou o capitalismo e se tornou uma sociedade socialista.
Ou até mesmo comunista. Para que isso fique mais claro vamos definir melhor
esses conceitos.
Desde o início dos tempos, o ser humano sonha com uma sociedade
igualitária, justa e humana. No início as coisas eram assim, como demonstram
as pesquisas antropológicas e históricas. As primeiras sociedades tinham o
aspecto comunal. Todos trabalhavam para o grupo, visando que houvesse
habitação e alimento para todos. Com o surgimento da propriedade privada,
emerge o trabalho escravo. Surge igualmente a escravidão doméstica da
mulher. Nascem assim as sociedades baseadas na estratificação social.
Floresce assim o domínio de uma classe sobre a outra, de uma “raça” sobre
outra, de um sexo sobre outro.
E assim segue a história até os dias de hoje, onde houve o recrudescimento
do domínio de classe sob o capitalismo, já que a burguesia é dona da própria
vida dos trabalhadores. Esses, vivem em sua estrita dependência. Trabalham
em situação semelhante ao cárcere e se não lhes for dado trabalho morrem de
inanição. Esse é o sistema louvado por muitos e propagandeado pelas
ideologias liberais dominantes. Na Federação as coisas ocorrem de forma
muito diferente, tão diferentes que nos remetem ao comunismo.
Sabendo da situação na qual se encontram os trabalhadores devem se
revoltar e revolucionar a sociedade. A contradição existente na sociedade
capitalista hora ou outra se tornará insustentável e explodirá. Mas de acordo
com o materialismo histórico, o método do marxismo, a revolução pode
antecipar o fim dessa ordem injusta. Os trabalhadores devem tomar para si os
meios de produção e estabelecer o seu governo: a Ditadura do Proletariado. O
termo ditadura aqui não significa a ausência de democracia. Pelo contrário, a
classe majoritária, ao assumir o poder, poderá de fato instaurar a verdadeira
democracia, a democracia radical. Pois é evidente que a democracia burguesa
é uma farsa. É um sistema melhor do que outros que vieram antes, mas não
deixa de ser um engodo no qual os trabalhadores votam e acreditam que estão
mudando alguma coisa, quando na verdade o sistema que os oprime continua
o mesmo, ora nas mãos da direita, ora nas mãos da socialdemocracia.
Pois, esse período, chamado de Ditadura do Proletariado, é justamente o
socialismo. Uma etapa transitória para o comunismo. Quais as diferenças? No
socialismo ainda existe o Estado, que é, evidentemente, uma ditadura de
classe. Agora, em vez da ditadura da burguesia sobre o proletariado, é a
ditadura desse sobre a burguesia. No entanto, a emancipação final so ser
humano não pode ser atingida se esse estágio permanecer indefinidamente. O
passo seguinte é o comunismo.
O comunismo é a síntese do comunismo primitivo, aquele das primeiras
sociedades, com os avanços produtivos do capitalismo. Haverá abundância e
não haverá opressão. Os trabalhadores serão os donos de suas próprias vidas e,
organizados em associações de trabalho, não serão mais oprimidos pelo
Estado, que deixará de existir, ao menos em sua concepção atual. Lênin afirma
que o Estado não desaparece, ele definha. A partir do momento em que não
existem mais classes sociais, o Estado perde seu sentido e definha.
Na Federação vemos um Estado totalmente diverso do atual. Não se trata
mais de uma máquina com o objetivo de manter as classes trabalhadoras sob
rédeas curtas e obedientes. Pelo contrário, ele administra a exploração do
espaço, para onde o ser humano, tendo superado o capitalismo e seus
problemas aqui na Terra, volta sua atenção. O espaço é a fronteira final. Não
há como não associar à emancipação final do ser humano, buscada pelo
comunismo. Ao resolvermos nossos conflitos, que advém dos interesses
antagônicos das classes em luta, nos voltaremos às questões mais importantes
e seremos emancipados finalmente. Como Marx afirma, deixaremos nossa pré-
história e iniciaremos nossa história de fato. A humanidade tosca e primitiva
passa a fazer história com a fundação da Federação.
Quando acaba o trabalho por necessidade, finalmente surge o reino da
liberdade. O comunista sabe que igualdade e liberdade são sinônimos. Todo
trekker deveria saber disso. Alguns sabem, outros não sabem. E também
existem aqueles que sabem, mas não sabem elaborar e se tornam
anticomunistas. Anticomunismo e Star Trek são inconciliáveis.
O modo de produção capitalista é anti-humano. Ele é necrófilo, suga o
trabalho vivo para acumular trabalho morto. Esse é o pilar principal do
capitalismo. A sociedade vista em Star Trek é o oposto. Lá se ama a vida. Não é
uma das funções da Frota Estelar pesquisar novas vidas? Por isso me causa
muita estranheza um fã de Star Trek fascista.
O fascismo cria inimigos imaginários para controlar o povo. Nada mais
distante das filosofia de Star Trek. Enquanto o fascista odeia o diferente, o
outro, os vulcanos, a raça de Spock, dizem que o bom é a “infinita diversidade
em infinitas combinações”. Portanto, isso inviabiliza que um trekker seja fascista.
Infelizmente, eles existem como pingos e parecem aumentar.
O irracionalismo avança a passos largos nos dias de hoje e muitos fãs da
série são irracionalistas. “Terra plana”, “nazismo de esquerda”, “vacinas fazem
mal” e outras inúmeras barbaridades revisionistas têm sido absorvidas por
cerebrozinhos incautos, inclusive entre os trekkers. Isso tudo é um grande
contrassenso, pois as bases de Star Trek são a lógica e a razão.
Gene Roddenberry quando criou Star Trek deixou isso bem claro. É uma
série que tem a tolerância e o pensamento crítico em sua essência. Por isso é
estranho que muitos fãs sejam ferrenhos anticomunistas, sendo que sem saber,
ao compartilharem dos ideais expostos na série, eles são comunistas. A
explicação para isso é a propaganda anticomunista que, desde a época de
publicação do Manifesto Comunista, já estava a pleno vapor. Portanto, temos
mais de um século e meio de ideologia anticomunista convencendo as pessoas
de que uma coisa é ruim sem ao menos que elas saibam do que se trata. Se o
capitalismo é irracionalista e sua superação é um imperativo categórico, é
óbvio que o comunismo e a revolução são as coisas mais racionais que existem.
Uma das formas que Star Trek tem para enviar sua mensagem de um
mundo utópico, onde há justiça, igualdade, liberdade e não há opressão, é
através dos episódios que contrastam sociedades alienígenas, que representam
a humanidade atual, com o sonho da Federação. Às vezes a representação dos
nossos problemas ocorre dentro da própria Federação, o que mostra que ela
não é perfeita. Assim como não é a utopia. Mas o que é importa é que Star
Trek, ao longo da sua história, ensejou esse tipo de reflexão.
É isso que chamo de crítica social nesse livro. Desde seu início, em 1966,
Star Trek tem produzido verdadeiras joias da crítica social, abordando temas
que vão desde o racismo, passando pela sociedade de classes até o papel da
mulher na sociedade. É óbvio que Star Trek possui, ao longo dos seus 13 filmes
e quase 800 episódios, muitas histórias de qualidade duvidosa, outras médias,
outras muitas boas e algumas geniais. Em geral, é dentro dessas últimas que se
encontram as que rotulo como críticas à sociedade.
O formato dessas pequenas fábulas pode variar, mas as mais interessantes,
sem dúvida, são aquelas que apresentam uma determinada espécie alienígena
que possui características atuais da humanidade ou semelhantes a processos já
ocorridos na nossa história. Dessa forma, os roteiristas conseguem construir
uma narrativa que torna evidente os grandes contrastes existentes entre o
presente a utopia da Federação. Normalmente, são bem simples e didáticas e
auxiliam muito a um professor, por exemplo, que queira tornar o ensino mais
atraente para seus alunos. Em primeiro lugar, por ser um produto da cultura
pop. Em segundo, são fáceis de entender até para alunos pequenos.. Por isso
Star Trek, ao exibir a utopia, é uma ferramenta interessante para se pensar a
nossa própria realidade.
A série se utiliza de histórias passadas no futuro, para nos falar do presente.
Do mesmo modo, usa aliens para revelar o ser humano. E, por fim, do espaço
para falar sobre a Terra. É dessa maneira que Star Trek, a partir da sociedade
utópica que apresenta, revela como imperativo para a sobrevivência da espécie
humana a superação do capitalismo. Nesse livro busco conjugar esses dois
aspectos principais de Star Trek: a utopia e a crítica social que ajudam na
conscientização e consequente construção de um outro mundo.
Não é tarefa fácil escrever um livro com esse recorte, já que são centenas de
episódios onde a utopia e o pensamento crítico estão expostos. No entanto,
por ser um tema fascinante e de meu mais profundo interesse, decidi levar a
cabo a empreitada, mesmo que de maneira reduzida, caso contrário seriam
milhares e milhares de páginas. Portanto, você encontrará nas páginas
seguintes uma pequena seleção de episódios de cada uma das séries live action
de Star Trek que nos possibilitará refletir criticamente sobre problemas
históricos da humanidade e a necessidade de sua superação. Os capítulos não
se tratam de meras reproduções por escrito dos episódios. Busco interpretá-los
através da chave marxista, portanto, do materialismo histórico. Para isso,
sempre que necessário recorro às explicações de contextos e processos
históricos que nos ajudam a compreender os episódios em profundidade.
Espero que seja uma leitura proveitosa.
Se fosse possível resumir o significado de Star Trek em poucas palavras, eu
diria que se trata da apologia do ser humano, vitorioso sobre o capital e
construtor da utopia.
Uma vida longa e próspera à utopia e a Star Trek.
I
O espaço, a fronteira final: onde a utopia
começou

Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco
anos... para explorar novos mundos... para pesquisar novas vidas... novas civilizações... audaciosamente
indo onde nenhum homem jamais esteve.
Introdução da série original, narrada por William Shatner

As necessidades de muitos se sobrepõem às de poucos ou de um só.


Spock

Eugene Wesley Roddenberry nasceu no Texas, na cidade de El Paso em 1921.


Filho de um policial e de uma dona de casa, cresceu em Los Angeles. Durante
a Segunda Guerra Mundial foi piloto, participando de quase 100 missões. Após
o término da guerra, passou a atuar como piloto comercial. Posteriormente,
entrou para a polícia de Los Angeles, seguindo os passos do pai. Nesse
trabalho, passou a redigir discursos para o chefe da polícia, ao mesmo tempo
em que escrevia roteiros para a televisão. Gene, como ficou conhecido, era um
entusiasta da ciência e acreditava que ela salvaria a humanidade. Mas também
era um humanista e pensava que não havia sentido na ciência se não estivesse
o ser humano em primeiro lugar. Acreditava que a aventura da humanidade
estava apenas começando. E foi elaborando essa visão de mundo, essa incrível
utopia, que Gene foi capaz de criar a obra que o imortalizaria: Star Trek.
Quando alguém menciona Star Trek, a primeira coisa que vem à mente é
aquele personagem sisudo e de orelhas pontudas, chamado Spock, com sua
saudação característica. Ou então pode ser a majestosa nave USS Enterprise,
em sua missão de cinco anos. Muitos também lembrarão imediatamente do
capitão Kirk, o típico galã dos seriados dos anos 60, que arrasa o coração das
mocinhas, desta vez não só das humanas, mas das alienígenas também. Porém,
Star Trek é mais do que isso. Muito mais. Você verá nesse livro.
A história de Star Trek (ou sua pré-história) começou de uma forma
diferente, na qual somente o Spock, embora sorridente, estava lá. Ah, a
Enterprise também. Gene Roddenberry, após submeter um roteiro chamado
The Cage para a NBC, que contava a história do capitão Christopher Pike
(capturado por seres com mentes extremamente poderosas, que podiam criar
um mundo de fantasia em torno de qualquer um), viu seu original ser aceito e o
piloto produzido. No entanto, no dia da exibição para os executivos, o episódio
foi considerado muito “cerebral” para ir ao ar. Contudo, o pessoal viu forte
potencial na série, já chamada Star Trek, e, pela primeira vez na história da
TV, um segundo piloto foi encomendado. Foi assim que se produziu o episódio
Where No Man Has Gone Before, agradando muito mais aos executivos, que o
aprovaram. Começava aí uma longa jornada de sucesso, que já dura mais de 50
anos. E o capitão Pike, do primeiro piloto, que cedeu o lugar para o capitão
Kirk no segundo, voltou com força total na segunda temporada de Star Trek:
Discovery.
Finalmente, em 8 de setembro de 1966 estreava Star Trek, uma série de
ficção científica que iria transformar para sempre o gênero. Até então, as
produções deste nicho da indústria cultural (livros, histórias em quadrinhos,
filmes e séries) apresentavam visões distópicas do futuro da humanidade, onde
guerras, pestes e fome compunham um quadro aterrador do devir histórico.
Roddenberry pegava o caminho oposto e mostrava um futuro utópico onde a
humanidade havia superado o capitalismo e, consequentemente, a pobreza, a
desigualdade, a injustiça e a opressão. Era o momento da conquista espacial
pelos Estados Unidos e pela União Soviética, logo, a esperança de que a
humanidade pudesse transcender seu confinamento em um único planeta,
enchia de expectativas – mesmo que ingênuas – milhões de pessoas ao redor
do globo.
Para expressar claramente sua utopia, Gene Roddenberry criou a
espaçonave Enterprise, que realizava uma missão de cinco anos pelo espaço
profundo, indo onde audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve.
Esse era o mote para a série: o alargamento do conhecimento humano, tido
como a coisa mais importante que existe. É o triunfo da curiosidade e da razão.
Por outro lado, para representar corretamente esta mesma utopia, a ponte
da nave foi recheada de oficiais das mais diversas origens, formando uma
tripulação multiétnica. Além do capitão James Tiberius Kirk (William Shatner)
e do médico Leonard McCoy (DeForest Kelley) - os únicos estadunidenses
entre os personagens principais -, havia o primeiro oficial Spock (Leonard
Nimoy), um personagem que não é totalmente humano, possuindo metade do
seu sangue vulcano, isto é, da espécie mais racional do universo de Star Trek.
Além desse trio, que corresponde a uma verdadeira “santíssima trindade”
na série original, a Enterprise contava com um típico escocês, o chefe de
engenharia, Montgomery Scotty (James Doohan), carinhosamente chamado de
“Scotty” e apreciador de um bom uísque.
Na ponte, havia ainda o asiático Hikaru Kato Sulu (George Takei). Cabe
lembrar que a série foi ao ar no auge da guerra imperialista dos Estados
Unidos contra o Vietnã. Colocar um asiático na ponte de comando não deixava
de ser um ato político. Ademais, na vida real, o ator George Takei, foi uma das
milhares de pessoas de ascendência japonesa internadas em um dos campos de
concentração montados pelo governo estadunidense após o ataque a Pearl
Harbor. Takei, que era apenas uma criança, foi aprisionado junto com sua
família, somente pelo fato de se parecerem com os inimigos japoneses. Não
foram somente os nazistas que montaram campos de concentração.
Como oficial de comunicações, uma mulher negra e africana, a tenente
Nyota Uhura (Nichelle Nichols). Era algo jamais visto na televisão até aquele
momento: Uma mulher negra em posição de comando, estrelando cenas onde
dava ordens para homens brancos. A famosa atriz Whoopi Goldberg, ao
assistir Nichols interpretando uma personagem negra que não era a serviçal de
uma família, chamou, em êxtase, todos que estavam em casa para assistir
também. A atriz, que se tornou trekker, posteriormente teve um personagem
criado para si em Star Trek: The Next Generation, a el-aurian Guinan,
administradora do bar da EnterpriseD e fiel amiga e conselheira do capitão
Picard.
Para fechar, na segunda temporada surge Pavel Chekov (Walter Koenig), um
personagem criado para atrair o público mais jovem. Utilizava um corte de
cabelo no melhor estilo das bandas famosa da época, como The Beatles e The
Monkeys. No entanto, o que chama a atenção mesmo é que Chekov é um
tripulante russo, em meio a Guerra Fria e à corrida espacial. Reza a lenda, que
o personagem foi criado após a reclamação dos soviéticos sobre a ausência de
um russo na nave, já que a URSS andava palmo a palmo com os Estados
Unidos no desbravamento do espaço. Gene Roddenberry criou o personagem e
enviou uma carta para o Kremlin, embora nunca tenha recebido uma resposta,
fato que o teria deixando muito chateado.
A verdade é que Star Trek se tornou um fenômeno tão importante, que sua
esfera de influência extrapolou os mundos nerd, das séries de TV e do cinema.
Como uma série que utiliza recursos narrativos baseados na ciência, Star Trek
ganhou fãs cientistas e, certamente, influenciou jovens sonhadores a se
tornaram cientistas também. Os primeiros celulares tiveram seu design
baseado nos comunicadores da tripulação da série clássica. Um ônibus
espacial foi batizado com o nome de Enterprise. Cientistas renomados como
Stephen Hawking e Neil deGrasse Tyson sempre manifestaram seu amor por
Star Trek. Hawking, inclusive, participou do episódio Descent, de The Next
Generation, em 1993. Ou seja, de série influenciada pela ciência Star Trek
passou a influenciar cientistas.
Desde então, do distante ano de 1966, quando a série finalmente foi
lançada, muita coisa já aconteceu. Nos seus primórdios ela não obteve grande
sucesso, fazia vibrar apenas um parcela menor da audiência, que pouco a
pouco foi se tornando fascinada por viajar a bordo da Enterprise pela galáxia,
constituindo aquele que seria o primeiro fandom de Star Trek. Esses fãs
ficariam conhecidos como trekkers ou trekkies, sendo que, assim como Gene
Roddenberry, eu prefiro o primeiro termo. Mas a questão é que a série teve um
desempenho péssimo de audiência a partir de sua segunda temporada – muito
em conta pela troca de horário de exibição – o que forçou a NBC anunciar seu
cancelamento. Se não fosse pela trekker de primeira hora Bjo Trimble (a maior
heroína do universo de Star Trek em todos os tempos!) e a campanha de cartas
que organizou e as mobilizações defronte o prédio da TV, a história teria sido
completamente diferente e provavelmente nem você nem eu conheceríamos a
série e este livro não estaria nas suas mãos...
O fato é que a terceira temporada foi produzida, embora com poucos
recursos, o que causou sérios problemas de qualidade nos roteiros. Mesmo
assim ela tem alguns episódios geniais, sendo que falarei sobre um deles nesse
capítulo. Mas a questão mais relevante que envolve a existência de uma
terceira temporada está no número de episódios que foram produzidos. Por
quê? Porque se Star Trek tivesse encerrado suas atividades com apenas duas
temporadas, teríamos menos de 60 episódios. As televisões compravam
somente pacotes de séries contendo mais de 70 episódios, o que possibilitou
que Star Trek fosse comercializada para diversas redes de televisão, entrando
nas suas programações e sendo reprisada eternamente. Isso salvou Star Trek!
Assim, milhões de pessoas foram conhecendo a série e sendo
teletransportadas para dentro da Enterprise, fato que tornou a franquia
altamente rentável, atraindo investimentos para sua expansão, ao mesmo
tempo em que os fãs organizavam as primeiras convenções, fazendo com que
emergisse uma cultura trekker, com cosplays, fanfics, fanzines, livros etc. etc. etc.
O primeiro filho da série original nasceu poucos anos depois da série
terminar (ela foi ar entre 1966 e 1969). Em 1973, estreou uma versão animada
dos nossos intrépidos tripulantes da Enterprise. Star Trek: The Animated Series,
foi pensada para o público infantil, mas é claro que fez o maior sucesso entre
os trekkers de longa data. Durou apenas duas temporadas, e apesar de ter sido
feita de maneira meio tosca às vezes (por exemplo, os olhos dos personagens
não foram pintados), é muito divertido ver Kirk, Spock e companhia em versão
cartoon.
Seis anos depois, surfando na onda do estrondoso sucesso de Star Wars no
cinema, Roddenberry conduziu a Enterprise para a telona, produzindo o filme
Star Trek: The Motion Picture. Podemos dizer que é o único, dos 13 filmes da
franquia, a apresentar de fato uma história de ficção científica. Nela, nossos
heróis precisam enfrentar uma gigantesca ameaça (literalmente): a forma de
vida artificial V’Ger. Assista o filme para conhecer a origem desse ser. The
Motion Picture, marca o reencontro dos trekkers com a sua tripulação amada,
com longos takes sobre a Enterprise para matar a saudade dos fãs.
O filme não foi um grande sucesso, mas rendeu o suficiente para iniciar
uma série de filmes ao longo dos anos 80. O primeiro deles foi Star Trek 2: The
Wrath of Khan, que traz de volta nada mais nada menos do que Khan Noonien
Singh, o megavilão da série original. Nesse capítulo dedico uma seção para
falar dele e do episódio Space Seed. Na sequência, formando uma trilogia com
The Wrath of Khan, vieram Star Trek 3: The Search for Spock e Star Trek 4: The
Voyage Home, ambos dirigidos por Leonard Nimoy (Spock). The Voyage Home é
um clássico delicioso, pois se trata de uma comédia onde é abordada uma
questão importantíssima de preservação da natureza.
Em 1989, William Shatner (Kirk) que há tempos queria dirigir um filme de
Star Trek, consegue realizar Star Trek 5: The Final Frontier, que é
frequentemente ridicularizado pelos fãs, que em geral o consideram o pior
filme da franquia. Vejo isso como um exagero. O filme tem uma história bem
interessante sobre um ser que se passa por Deus, sobre um vulcano renegado
meio-irmão do Spock e, o melhor de tudo, possui um enfoque muito bonito e
humano da amizade entre Kirk, Spock e McCoy. Não deixe de ver esse filme! E
não se deixe contaminar por preconceitos contra ele.
Para fechar, Star Trek 6: The Undiscovered Country, lançado em 1991, o último
filme com o elenco da série original. Sempre fico em dúvida sobre qual dos
filmes eu gosto mais, mas esse, certamente, ocupa um lugar especial no meu
coração pois foi o primeiro que vi no cinema, quando era apenas um guri. The
Undiscovered Country nos apresenta o Império Klingon enfrentando graves
problemas e precisando recorrer à ajuda da Federação, o que gera muitos
descontentamentos e conspirações em ambos os lados. O filme traz ainda
algumas representações interessantes: acidente nuclear em Chernobyl, queda
do Muro de Berlim e fim da Guerra Fria, temas candentes na passagem da
década de 80 para 90. Vale registrar que o filme mostra uma das falas mais
legais de Star Trek de todos os tempos, dita pelo personagem klingon
chanceler Gorkon: “Você não terá experimentado Shakeaspeare até tê-lo lido no
original klingon”. Uau! É quase um Chekov, para quem tudo tinha origem na
mãe Rússia.
Como visto, aquela sementinha plantada lá atrás por Gene Roddenberry
rendeu frutos inimagináveis. É claro que não mencionei todas as séries
surgidas a partir da série original: The Next Generation (e seus quatro filmes),
Deep Space Nine, Voyager, Enterprise e Discovery. No momento em que escrevo
estão sendo produzidas Star Trek: Picard e a animação Lower Decks. De fato,
como diria nosso amigo vulcano Spock, Star Trek teve e tem uma vida longa e
próspera.
Mas isso não surgiu do nada. Não apenas por ser uma série que mostra
naves e planetas. Ou então teletransporte e dobra espacial. Sim, todos esses
elementos são importantíssimos e Star Trek não seria Star Trek se eles não
existissem. Contudo, existem coisas a mais, que não aparecem à primeira vista
na superfície.
Star Trek é o que é por causa da sua utopia. A utopia que move um homem
como Gene Roddenberry, que estava fora dos padrões de um estadunidense
mediano. Obviamente, ele não era um comunista, mas era um sonhador.
Talvez nunca tenha percebido que seu sonho era exatamente o comunismo.
Assim como grande parte dos trekkers também não percebe. Efeitos de séculos
de propaganda anticomunista. Mais ainda: Gene era do Texas, estado com
raízes profundamente escravistas e que se orgulha de ter lutado no passado
pela escravidão negra. Mesmo assim, ele foi capaz de se libertar dessa
influência, criando um universo onde todos são iguais. Há uma história muito
interessante que ilustra bem o espírito crítico e irreverente do criador de Star
Trek, ou Grande Pássaro da Galáxia, para os íntimos.
Quando Leonard Nimoy, um homem notável, genial, sensível, um
“renascentista”, como já foi dito, quis contribuir com o desenvolvimento do
personagem Spock, o qual encarnava, ele procurou Gene e fez uma sugestão
que marcaria Star Trek para sempre. Nimoy era judeu, e quando pequeno, seu
pai o levava na sinagoga. Numa dessas vezes, num momento em que o rabino
pedia que todos ficassem de olhos fechados e cabeça baixa, o menino levado
resolveu olhar o que estava acontecendo. O rabino fazia um gesto com ambas
as mãos, em formato de V, com os dedos separados. Era a representação da
letra Shin do alfabeto hebraico, que é a inicial da palavra Shadai, um dos nomes
de Deus para o judaísmo.
Nimoy sugeriu então a Roddenberry que o gesto fosse incorporado ao
personagem e explicou a sua origem. Roddenberry era ateu, mas o simples fato
de imaginar a população puritana do seu estado natal reproduzindo um gesto
do judaísmo o divertiu enormemente. Rir da religião é um primeiro passo para
se atingir a utopia de um mundo sem ela. A autorização foi dada
imediatamente, e o resto é história, tendo a saudação de Spock se tornando um
dos símbolos mais conhecidos no mundo todo, inclusive com emojis no
facebook, twitter, whatsapp etc.
A utopia de Star Trek, vai muito além do que essas anedotas. Ela tem sua
expressão mais forte na instituição que vemos pela primeira vez na série
original: a Federação Unida de Planetas. Uma reunião de planetas que visa a
paz e a cooperação mútua. Uma instituição que se torna possível somente
quando os problemas internos do planeta o permitem sonhar mais alto e olhar
para as estrelas. Portanto, a Federação só pode existir quando houver a
superação das contradições que têm atravessado a história humana.
Essa é uma grande utopia. É caminhar em direção à superação do sistema
anti-humano e predatório que ainda no século 21 vigora. É impossível
conceber a Federação se houver a opressão, a ganância e a violência, não só
características do capitalismo, mas suas forças motrizes. A Federação é feita
de igualdade e liberdade.
Você consegue imaginar a Enterprise vagando pelo espaço em busca de
recursos e tomando-os à força das civilizações que encontra pelo caminho?
Você consegue imaginar Kirk e Spock descendo em um planeta para
comprar matéria-prima barata, para que seja processada na Federação, para
em seguida retornar e vender a altos preços os produtos industrializados feitos
com ela?
Você consegue imaginar a Enterprise como um grande navio negreiro
transportando escravos de um planeta para o outro?
Eu tenho certeza que você respondeu negativamente a todas as perguntas.
Existem somente duas maneiras de imaginarmos tais situações: 1) se a história
estiver se passando na ISS Enterprise, em um episódio situado no universo
espelho, sobre o qual falarei no capítulo; 2) se a Federação existisse no sistema
capitalista.
É assim, através desses contrastes, que nós percebemos claramente que a
Federação, que as histórias do universo de Star Trek, se passam em um
contexto pós-capitalista. A oposição se dá simplesmente entre razão e
irracionalismo. Spock, que parece representar a utopia particular de Gene
Roddenberry, aparece na série como uma referência ideal para a humanidade.
Pois todas as tragédias pelas quais o mundo passa até hoje são frutos do
irracionalismo e não da razão.
Sob o capitalismo vivemos sob a irracionalidade. É o mais cruel e desumano
sistema socioeconômico já criado pela humanidade, mas, na relação dialética
que rege a história, é ele que prepara a revolução que o colocará por terra para
sempre, salvando o ser humano e a sua humanidade. Quando em Star Trek
percebemos que acumular riqueza não é mais aquilo que move o ser humano e
a sociedade, aprendemos que o que importa é o conhecimento e a convivência
em harmonia com o que se apresenta como diferente para nós.
É impossível imaginar a Federação como um sistema que utiliza os recursos
naturais do planeta de forma absolutamente predatória, como se eles fossem
infinitos. É, da mesma forma, absurdo pensar na Federação como uma
sociedade edificada sobre classes sociais, onde uma delas domina brutalmente
a outra e ainda esconde a dominação por trás de aparências enganadoras, de
ideologias, que nos convencem de que somos livres. Não existe nem nunca
existirá liberdade na sociedade de classes. Dessa forma, os cidadãos da
Federação são livres.
É por isso que fico muito impressionado quando vejo fãs de Star Trek que
estão totalmente imersos na lógica do capital. Para não falar daqueles que são
abertamente fascistas, já que o capitalismo é um gênero e o fascismo uma de
suas espécies. Isso se configura como uma contradição incompreensível.
Como pode alguém vislumbrar o mundo socialista da Federação, onde as
classes sociais foram abolidas, onde já não existe mais a opressão e onde
vigora a total liberdade do ser humano, e continuar sendo fascista? Na verdade
o problema é duplo: continua fascista e continua fã. Pois não vejo conciliação
possível. Um dos dois esse tipo de indivíduo deveria largar. Espero que
abandone o fascismo.
A utopia que vemos em Star Trek original, já deixa muito claro qual o
caminho a humanidade deve seguir para sobreviver. Da maneira que as coisas
andam nos tempos atuais, a humanidade não possui futuro. Portanto, é nossa
missão histórica lutar pela superação do capitalismo, responsável pela
destruição do planeta e do ser humano.
Em Star Trek, não houve revolução. Houve uma transição da barbárie para
o socialismo. Contudo, isso é utópico, num sentido diferente. No sentido de
que é um sonho irrealizável. Já a utopia do socialista científico e do comunista
é construída sobre a ideia de revolução. É baseada na razão, na mesma razão
de Spock. Mas é evidente que a utopia está presente. Sempre. Ela é uma
bússola que nos indica exatamente os lugares onde queremos ir. É o norte da
revolução que devemos fazer para um dia chegarmos naquilo que representa a
Federação.
Nesse capítulo, mostrarei quatro exemplos da série original que nos ajudam
a compreender como é a utopia de Star Trek, que tem a ver com alcançarmos
uma sociedade pós-capitalista. O primeiro episódio que abordarei será Space
Seed, onde vemos com clareza a oposição entre a paz e a igualdade da
Federação com as guerras e o racismo atuais. Em Mirror, Mirror, veremos como
é a razão revolucionária que liquidará a barbárie capitalista, imperialista e
fascista. No episódio Patterns of Force, fica evidente a importância da correta
compreensão histórica e como isso ajuda no fim das opressões. Finalmente,
partindo do episódio The Cloud Minders, veremos como a destruição da
sociedade de classes é uma imposição da história.
1
SPACE SEED

A lembrança de um mundo racista e belicoso

Eu acredito que ainda não é tarde demais para construir uma utopia que nos permita compartilhar a
terra.
Gabriel García Márquez

Meu nome é Khan...


Sem dúvida alguma, o episódio Space Seed é um dos mais importantes da
história de Star Trek. Isso porque, além de contar uma grande história, ele
acabou servindo de base para dois filmes da franquia. O primeiro deles foi Star
Trek 2: The Wrath of Khan, lançado em 1982, três anos após a estreia da
franquia na telona com Star Trek: The Motion Picture. Pois foi precisamente o
segundo filme com o elenco da série original que trouxe de volta o vilão do
episódio Space Seed, o tirano do século 20 Khan Noonien Singh, interpretado
mais uma vez por Ricardo Montalban.
Mais de duas décadas depois, no chamado reboot de Star Trek, com novos
atores e que posteriormente se convencionou chamar de Kelvin timeline, o vilão
aprimorado geneticamente voltou a dar as caras, dessa vez encarnado pelo ator
Benedict Cumberbatch. Montalban, o Khan original, que morreu em 2009,
mesmo ano de estreia do Star Trek dirigido por J.J. Abrams, era mexicano,
portanto, latino. Cumberbatch, o novo Khan, é um inglês típico. A troca de
etnia do personagem causou muita polêmica entre os trekkers, sendo acusada
de whitewashing (branqueamento). Mas o que importa destacar é que devido a
isso tudo, Khan se tornou um dos antagonistas mais icônicos de Star Trek,
presente no imaginário da cultura pop há mais de 50 anos. Vamos falar da
história contada em Space Seed e de sua mensagem.
SS Botany Bay
A história de Space Seed é simples. A Enterprise se depara com uma nave
abandonada no espaço chamada SS Botany Bay (guarde esse nome, ele é
importante para a compreensão da história). A bordo, mais de 70 pessoas em
animação suspensa, ou seja, em câmaras criogênicas, utilizadas para
hibernação em longas viagens espaciais. O capitão Kirk prepara um grupo
para entrar na nave, chamando o bom doutor McCoy, Scotty e uma tripulante
que aparece pela primeira e única vez, a minha colega historiadora Marla
McGivers, especializada em história do século 20.
Kirk chama McGivers para o grupo de abordagem pois a nave se trata de
um modelo DY-100, construído em meados dos anos 90. Devemos lembrar que
a primeira temporada de Star Trek foi ao ar em 1966, portanto, a visão que se
tinha do futuro dali a 30 anos está expressa nesse episódio. E ela não era muito
boa.
Na nave, o grupo acorda de sua longa hibernação um homem chamado
Khan, que McGivers identifica como sendo da etnia sikh, do norte da Índia.
Essa escolha não foi inocente, pois, a religião dos sikhs possui gurus. Khan é
uma espécie de guru, pois é o líder da tripulação e mais que isso, é um líder
carismático. Contudo, Khan não manifesta nenhum tipo de credo religioso, na
verdade, ele se demonstra como um líder unicamente obcecado pela conquista
e pelo poder.

Khan e a Enterprise
Khan é levado a bordo da Enterprise e se recusa a dar maiores informações
sobre suas origens para o capitão e requisita estudar os manuais técnicos da
nave, alegando que era um engenheiro no século 20 e necessitava se atualizar.
Na verdade, seu intento era obter o conhecimento necessário para que pudesse
dominar a nave, resgatar seus companheiros na Botany Bay e sequestrar a
Enterprise. Assim, Khan poderia, mais do que apenas um continente,
conquistar o universo.
Ele fica fascinando com a nave e todas as possibilidades que ela oferece,
contudo se demonstra decepcionado com o fato do ser humano não ter se
aprimorado geneticamente. Afinal, Khan e seu grupo são humanos que foram
criados a partir da engenharia genética e esse fato científico e biológico está
na base da política e da luta pelo poder em fins do século 20, de acordo com a
história vista nesse episódio. Pois foi justamente por se considerarem
superiores aos outros humanos da época, que Khan e diversos outros líderes
decidiram tomar o poder.
Guerras Eugênicas
Kirk e Spock acabam descobrindo as verdadeiras identidades de Khan e de
seus tripulantes. Eles são remanescentes de um período histórico chamado de
Guerras Eugênicas, que ocorreram na Terra em meados dos anos 1990,
portanto, coincidindo com a idade da nave Botany Bay.
Mas o que foram as Guerras Eugênicas?
Durante o século 20 as ciências genéticas foram desenvolvidas, culminando
na criação de super-homens, mais fortes e mais inteligentes. Khan fala para
Kirk que possui cinco vezes a sua força, por exemplo. Assim, eles acabaram
por dominar grande parte do planeta. Em um determinado momento, eles
tomaram ao mesmo tempo o poder em 40 nações.
Kirk fica intrigado. Como poderia um homem com inteligência superior se
tornar um tirano. Spock lhe diz então que, no caso da existência de habilidades
superiores, como consequência, surgirão ambições superiores. Isso é genial,
pois demonstra claramente os riscos da manipulação genética e porque ela é
condenável. Ela pode permitir que surja uma nova raça que se considere
superior a atual e, portanto, com o dever de aniquilá-la. O filósofo reacionário
Friedrich Nietzsche já preconizava esse tipo de solução, defendendo a
existência de uma aristocracia com o direito natural de escravizar as
populações “bárbaras” e “inferiores”.
A verdade é que o episódio coloca em questão a eugenia, isto é, a
pseudociência criada por Francis Galton, no século 19, para que houvesse uma
seleção artificial na espécie humana, na qual seriam arbitrariamente
esterilizados ou exterminados todos aqueles que não correspondessem a um
ideal de perfeição: deficientes físicos e mentais, criminosos e – evidentemente
– aqueles que não pertencessem à “raça” ariana. Aliás, ficamos sabendo no
episódio que, durante as Guerras Eugênicas, “populações inteiras foram
exterminadas”, fato que corrobora plenamente a ideia de supremacia racial.
A eugenia, apesar de criada por um inglês, fez sua fortuna nos Estados
Unidos, legitimando seu Estado racial, e de lá chegou à Alemanha,
influenciando enormemente Hitler e os outros ideólogos do nazismo. Esse é
um temor ainda muito presente em 1966. Apenas duas décadas separavam a
produção do episódio Space Seed da revelação do holocausto posto em marcha
pelos nazistas. Na época mesmo em que o episódio ia ao ar, Israel (que acabou
por se tornar um Estado racial também) ainda promovia julgamentos de
líderes nazistas acusados de exterminar judeus e outras minorias. Se
pensarmos sob essa perspectiva fica bem clara a origem de um dos temas
tratados na história de Khan e da Botany Bay.
A ideia de que uma raça superior deveria se livrar de outra inferior havia
arrastado o mundo a um conflito que ceifou a vida de dezenas de milhões de
pessoas. As Guerras Eugênicas são uma representação muito inteligente a
respeito da Segunda Guerra Mundial. O episódio conseguiu, dessa forma,
capturar um dos aspectos essenciais do nazismo e da guerra surgida como sua
consequência imediata. Repetindo: tudo isso ainda estava muito fresco na
memória das pessoas que viviam na década de 60 e haviam presenciado o
nazismo duas décadas antes.
A discussão que Spock e McCoy travam na ponte sobre as Guerras
Eugênicas traz a questão da ética na ciência. Enquanto Spock acusa a
humanidade por ter feito estas guerras, McCoy se defende, dizendo que não
foi a humanidade atual. E contra-ataca afirmando que elas foram fruto da
mente de cientistas lógicos e racionais como Spock. O que aprendemos com
essa cena é que a ciência precisa de ética, pois não é porque algo pode ser feito
pela ciência (como a eugenia) que isso deve ser realizado. Por outro lado,
McCoy destaca a sociedade do século 23, incapaz, de acordo com sua visão, de
cometer tais atrocidades. É a utopia realizada.
Posteriormente, as Guerras Eugênicas entraram para o cânone de Star Trek
e serão mencionadas em outras séries. A Federação proibiu qualquer
experimento de aprimoramento genético, fato que leva o Dr. Julian Bashir, de
Deep Space Nine, esconder sua condição de “melhorado” por quase toda sua
vida. No entanto, como os anos 90 já se passaram há muito tempo, não deixa
de ser engraçado (e de dar uma sensação de alívio) que elas tenham sido
situadas nesse período e que de fato não aconteceram. Contudo, há um
problema de continuidade: em Voyager, a tripulação viaja em determinado
episódio para 1996 (Future’s End I e II). Em Deep Space Nine, a viagem acontece
para 2024 (Past Tense I e II). Em ambas não há a menor aparência de que as
Guerras Eugênicas tenham ocorrido.
Nesse meio tempo, Spock descobre que entre 80 e 90 dos super-homens das
Guerras Eugênicas haviam conseguido escapar, fato que não foi registrado nos
livros de história, pois os novos governos que conseguiram depor Khan e os
outros ditadores, esconderam, deliberadamente, a informação da população.
Bingo. Khan e sua tripulação são esses homens e mulheres que conseguiram
escapar e agora encontram nova possibilidade de conquistar e dominar o que
vier pela frente.
Uma historiadora apaixonada
A nave Enterprise é uma nave de exploração, em sua missão de cinco anos,
audaciosamente indo onde ninguém (homem, na série original) jamais esteve.
Portanto, é evidente que na sua tripulação ela também possua historiadores. A
tenente Marla McGivers é uma delas, sendo especializada em história do
século 20.
Desde o primeiro contato com Khan, quando ele ainda se encontrava
dormindo na câmara criogênica, ela se sente extremamente fascinada e atraída
por ele. É ela que revela ao capitão qual a provável origem de Khan,
determinando que ele era um sikh, do norte da Índia. Aliás, a tripulação da
Botany Bay era multiétnica. Contudo, a fixação de Marla é centrada em Khan,
fato que a fez receber uma reprimenda do capitão, preocupado que seu
envolvimento emocional atrapalhasse a objetividade da missão.
De qualquer forma, não adiantou. Ela se tornou perdidamente apaixonada
por Khan, que soube manipulá-la de forma muito hábil. Um aspecto
importante é que ela acaba sendo agredida fisicamente por Khan, porém
mesmo assim mantém sua paixão e se dispõe inclusive a auxiliá-lo na tomada
da Enterprise. Khan, além de super-homem é supermachista, e faz com que
Marla se submeta incondicionalmente a ele. Aliás, nesse episódio outra
mulher é agredida além de Marla: Uhura, quando se nega a colaborar com
Khan. Uma das respostas para esse fascínio todo por Khan é que Marla se
interessava particularmente pela história de grandes homens do passado que
haviam sido conquistadores e/ou chefes militares, exatamente o perfil de Khan.
É ela que descobre antes de todos (no mínimo sua obrigação como
historiadora) a real identidade de Khan, embora não comunique ao capitão,
cegada por sua paixão.
Em seus aposentos, Marla tinha por passatempo a pintura, tendo pintado
diversos quadros das figuras históricas que admirava. Ela gostava de Leif
Eriksson, tido como o primeiro europeu a chegar às Américas. Ou seja, um
desbravador, um conquistador. A menção a Eriksson nesse episódio se dá,
provavelmente, pelo fato de que poucos anos antes, o presidente Lyndon
Johnson havia estabelecido uma data comemorativa em memória do navegador
islandês, devido a descoberta de vestígios arqueológicos no Canadá que
comprovavam a existência de Vinlândia, o povoado que ele fundara no século
XI. Marla também admirava Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra no
século XI e que liderou a terceira Cruzada, e Napoleão Bonaparte, general
francês que derrotou praticamente todos os exércitos da Europa no século
XIX. Seguindo este padrão construído pelos roteiristas, embora as figuras
idolatradas por Marla sejam bastante distintas, possivelmente ela admirasse
Hitler também. Evidentemente, isso não foi colocado no episódio.
O que causa estranheza é a representação irreal do que é um historiador de
fato. Marla parece mais uma diletante, uma pessoa que simplesmente gosta de
história e lê livros de história como passatempo. Um historiador de verdade,
que sabe que a história é uma ciência, jamais teria as predileções absurdas que
Marla revela ter por tais figuras históricas. O fato é que esse tipo de relação
que ela possui com o objeto de estudo, acaba fazendo que ela colabore com a
tomada da Enterprise por parte de Khan e seus apoiadores.
Marla acrescentou Khan, vivo diante de si, à sua lista de grande homens da
história (sob seu ponto de vista). No entanto, ela faz uma ressalva para ele: você
não irá gostar de nosso tempo. Mas por quê? Ora, porque no século 23, a
humanidade libertou-se de todas as formas de opressão. Não existem classes
sociais, há igualdade de gênero, o ser humano foi emancipado e tornou-se
livre, portanto, é um mundo completamente estranho a Khan e refratário às
suas ideias eugenistas e ditatoriais.

Khan é um ditador
Ainda sem conhecer exatamente as intenções de Khan e justamente para
tentar perscrutá-las, Kirk consente com um jantar em sua homenagem
proposto por Marla McGivers. Durante a conversa, Kirk percebe que Khan
expressa suas ideias em termos militares. Em um deslize, Khan acaba
revelando, ao usar o pronome “nós”, que fazia parte de um grupo que tentou
dominar o planeta no século 20. Khan afirma que pretendia unir a Terra, ao
que Spock retruca: “Unir? Como um bando de animais sob o chicote?”. Perfeito. A
Federação Unida de Planetas, como o próprio nome diz, é uma união. Porém,
as mais de 150 espécies reunidas em torno dessa organização estão unidas por
laços de solidariedade e paz. Cada uma possui seu governo autônomo, porém,
ligada a uma organização maior. Não é esse um sonho dos comunistas? O
mundo unificado, com respeito às culturais locais, porém reunido em uma
grande organização... humana.
Khan é o contrário de tudo isso. É um conquistador obcecado pelo poder.
Na cena em que estão reunidos logo após descobrirem a verdadeira identidade
de Khan (o ditador, entre 1992 e 1996, da maior porção conquistada nas
Guerras Eugênicas - Ásia e o Oriente Médio), Kirk, Spock, McCoy e Scotty
conversam manifestando admiração por alguns líderes autoritários do
passado. Spock não entende, Kirk explica com bom humor que os humanos
ainda guardam traços de barbárie. Mas Spock não se convence e arremata:
ilógico. Muitas vezes, no senso comum, reproduzido nessa cena, as pessoas
acabam demonstrando certa admiração por figuras históricas horríveis.
Reconhecem seus crimes, para em seguida vir um “mas”, ressalva feita com o
objetivo de destacar alguma medida positiva que eventualmente tomaram.
Esse é um grande risco, pois pode-se incorrer em um relativismo que é
perigoso.

Uma Botany Bay, duas colônias penais


Khan fracassa em seu intento de tomar a Enterprise e iniciar a conquista da
galáxia. Aprisionado, passa por uma audiência, na qual o capitão, de maneira
benevolente, decide exilar o grupo no planeta Ceti Alpha 5. Marla McGivers
opta por se juntar a eles, como companheira de Khan. Portanto, o grupo de
apenados terá a sua chance de construir uma civilização longe do local onde
cometeram seus crimes.
Isso também aconteceu no processo de colonização da Austrália, e é essa a
referência que o episódio faz, desde o nome da nave de Khan. Botany Bay foi o
primeiro local onde os europeus desembarcaram na nova porção de terra
descoberta. Para lá foram mandados centenas de milhares de apenados, já que,
com a independência dos Estados Unidos, a Inglaterra não podia mais enviá-
los para lá. Depois de cumprida a pena, o ex-detento recebia um lote de terra e
podia ganhar sua vida produzindo nela.
É a mesma história que acontece com Khan e seus companheiros.
Estiveram, de certa forma, exilados na Botany Bay e, depois de muito tempo,
como se a pena houvesse sido cumprida, podem se estabelecer em um novo
planeta, e a partir daí garantir sua nova vida. Uma semente plantada pela
tripulação da Enterprise. Spock fica curioso e manifesta a ideia de que seria
interessante voltar 100 anos depois para ver o que eles teriam construído.
Infelizmente não foi necessário tanto tempo e a surpresa foi negativa.
Em Star Trek 2: The Wrath of Khan, o ponto de partida é esse: outro planeta
do sistema, Ceti Alpha 6, explodiu seis meses após a chegada do grupo,
tornando o clima em Ceti Alpha 5 absolutamente inóspito. Marla McGivers
morre nesse meio tempo. Khan passa a ter somente uma ideia: vingança. Mas
aí, já é outra história.

Um mundo sem guerras e racismo


Space Seed é um episódio que nos apresenta informações importantes sobre a
utopia de Star Trek e sobre o mundo que lutamos para superar. Khan Noonien
Singh representa um mundo racista e belicoso. Khan é um homem obcecado
pela conquista, pelo domínio territorial, pela violência. No século 23, explorar
cientificamente é mais importante que conquistar e dominar; aprender e
dialogar tomam o lugar da violência e do ódio. As diferenças entre as variadas
etnias humanas já não é um problema, pelo contrário, é algo a ser celebrado.
Essa metáfora é evidente nas diversas espécies alienígenas que compõem a
Federação. Afinal, a filosofia vulcana valoriza a infinita diversidade em
infinitas combinações e a Federação se trata disso: unidade na diversidade.
Portanto, as ideias racistas e eugenistas de Khan já não fazem sentido, são
como um pesadelo já esquecido do passado.
Ainda estamos longe da superação desses graves problemas, que têm sua
origem no capitalismo. Afinal, foi ele quem criou a escravidão africana e o
Estado racial e a eugenia para manter os negros apartados da sociedade
branca. Foi ele quem criou a luta imperialista, e o seu filho o nazismo, que
promoveu a morte de dezenas de milhões de seres humanos. A Federação
superou o capitalismo e com seu fim os mais graves problemas da humanidade
acabaram. Essa é a utopia que devemos perseguir.
2
MIRROR, MIRROR

A razão é revolucionária e porá fim à barbárie

Eles eram brutais, selvagens, sem princípios, primitivos, traidores.


Spock

Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.
Karl Marx

Socialismo ou barbárie.
Rosa Luxemburgo

Problemas no teletransporte e o universo espelho


Quando conheci Star Trek eu tinha 12 anos. Todo um mundo novo (ou
universo?) foi revelado para mim, algo fascinante, que me fazia sonhar e sentir
alegria por poder viajar pela galáxia a bordo da Enterprise, ao lado de Kirk,
Spock, McCoy, Uhura, Sulu e Chekov. Os diferentes planetas, a capacidade de
viajar mais rápido que a luz, a ponte de comando, a tela na ponte de comando,
a possibilidade de se comunicar por vídeo, os comunicadores, os turbolifts, os
phasers... Tudo isso me enchia os olhos e me fazia desejar ardentemente viver
naquele futuro maravilhoso. No entanto, acho que a tecnologia que mais me
impressionava e que mais me excitava a imaginação, me deixando ansioso para
que ela logo fosse criada de verdade, era o teletransporte.
Imagine poder se deslocar instantaneamente para um ponto muito distante.
Pois era exatamente isso que nossos heróis faziam a cada episódio, descendo e
subindo dos planetas nos quais realizavam suas missões. É claro que, como
qualquer tecnologia, o teletransporte estava sujeito a falhas. Já na primeira
temporada, no episódio The Enemy Within, somos apresentados a uma história
onde um erro no teletransporte criou um doppelgänger do capitão Kirk,
gerando um problema grave para a tripulação da Enterprise.
Pois é exatamente a partir de um mal funcionamento do teletransporte,
afetado por uma tempestade iônica, que a história de Mirror, Mirror começa,
revelando dessa forma, um universo alternativo que será muito influente na
história da franquia. Portanto, são dois aspectos que farão sucesso dali para a
frente, não só na série original, mas em praticamente todas as séries
vindouras.
O teletransporte apresentando defeito proporcionou aos trekkers alguns dos
episódios mais legais de toda a franquia. Vamos dar uma olhada em alguns
deles.
Em The Next Generation, conhecemos a réplica de William Riker, Thomas
Riker, que foi criada durante a missão de evacuação de um planeta oito anos
antes (Second Chances). Na mesma série, descobrimos que o nosso bom e velho
Scotty ficou preso no buffer do teletransporte durante 75 anos, até ser
materializado pela tripulação da Enterprise (Relics).
Em Deep Space Nine, temos o episódio duplo Past Tense, onde um problema
no transporte leva Sisko, Dax e Bashir até o século 21, mais precisamente ao
ano de 2024. No episódio Our Man Bashir, o runabout em que Sisko, Kira, Worf,
Dax e O’Brien estavam foi sabotado e explode. No entanto, eles são
teletransportados no último momento, porém, com um problema no
transportador, eles ficam armazenados no buffer sem possibilidade de serem
materializados. A solução é colocar seus padrões numa holosuite, até que tudo
seja resolvido. Nesse meio tempo, é claro, acontece uma deliciosa aventura em
um programa de espionagem de Bashir.
Em Voyager, vimos o episódio Tuvix, que mostra a história de um ser que
ganha vida após o teletransporte “misturar” os tripulantes Tuvok e Neelix. É
um episódio que apresenta um dilema ético impressionante, no qual a capitã
Janeway toma a decisão errada. Mas assista o episódio e tire suas próprias
conclusões.
Na série Enterprise, que se passa antes dos eventos da Enterprise de Kirk, o
teletransporte ainda é experimental, utilizado basicamente para o transporte
de cargas. Certa vez um tripulante ao ser transportado teve partes do seu
corpo misturada a destroços e pedras (Strange New World, T1E04). No primeiro
filme de Star Trek, ocorre um acidente fatal envolvendo o novo primeiro-
oficial da Enterprise, o vulcano Sonak.
Uma informação interessante é que nos primórdios do teletransporte,
graves patologias poderiam aparecer após seu uso, como a chamada “psicose
do teletransporte”. No entanto, nos séculos 23 e 24 esse problema já havia sido
resolvido.
Com tudo isso, dá para perceber que acidentes com o teletransporte
possuem uma longa história dentro do universo de Star Trek. Em geral, os
episódios que têm no seu centro essa situação são muito bons. Mirror, Mirror
não foge à regra.
Ok. Mirror, Mirror não foi o primeiro episódio a contar uma história sobre
defeitos no teletransporte. Mas foi o primeiro episódio a mostrar o universo
espelho. Uma realidade alternativa onde réplicas de todos os seres humanos do
nosso universo são conquistadores bárbaros e cruéis organizados em torno de
um Império (depois será chamado de Terran Empire, porém esse nome não é
usado no episódio). Pois essa ideia, acabou fazendo muito sucesso entre os
roteiristas, e somente Star Trek: The Next Generation e Voyager não tiveram
episódios que se passam no universo espelho. O que é uma pena, eu adoraria
ver o capitão Picard malvadão.
Já que a Nova Geração passou batida pelo universo espelho, somente em
Deep Space Nine é que vamos ter histórias que se passam por lá.
Particularmente acho os episódios do universo espelho bem ruinzinhos,
mesmo Deep Space Nine sendo a minha séria favorita de Star Trek. Um ponto a
favor é que houve um beijo entre a Kira e Ezri em dos episódios, o que é
bastante importante para deixar de cabelo em pé o público conservador.
Voyager também saltou o universo espelho, o que nos faz chegar em Enterprise.
Confesso que também não gosto muito desses episódios, mas temos que levar
em conta que Enterprise é a série que menos gosto em toda a franquia.
Porém, a grande sacada com o universo espelho, depois do episódio original
da série clássica, é mérito dos roteiristas e produtores da primeira temporada
de Star Trek: Discovery, sem a menor sombra de dúvida. Nessa série, o universo
espelho tem papel central (ao menos nessa temporada), pois marca o seu
grande plot twist: o capitão Lorca veio de lá e tudo que fez durante a temporada
teve como objetivo voltar para casa e levar a Burnham junto, já que a de lá, que
ele amava, tinha morrido. E temos consequências da entrada do universo
espelho na série, pois a imperatriz Georgiou foi trazida de lá para cá pela
Burnham e tomou o lugar da capitã Georgiou que morrera no início da
temporada.

Um reflexo assustador
Mirror, Mirror é o segundo episódio da série original a contar uma história a
partir de um problema no teletransporte. Kirk, McCoy, Scott e Uhura estão na
superfície do planeta de uma espécie chamada Halkan. O motivo do contato é
que este planeta possui grandes quantidades de cristais de dilítio, mineral
imprescindível para a propulsão das naves estelares da Frota. Contudo, a
negociação não está dando certo, pois os halkans são uma civilização
absolutamente pacifista e, devido a impossibilidade de saber se a Frota usará
os cristais para praticar violência ou destruição, o Conselho do planeta decide
por não ceder o direito de mineração para a Frota. A missão de Kirk é
conseguir o acordo, porém, não sendo possível, é vida que segue.
A grande diferença da Federação no século 23 em relação às potências da
Terra nos dias de hoje é que os seus princípios são de profundo respeito à
autonomia e às decisões tomadas pelas civilizações com as quais estabelecem
contato. Não é à toa que a principal norma para a Frota Estelar é a Primeira
Diretriz, que versa justamente sobre a não interferência nos assuntos internos
dos outros planetas. Assim, evitam-se os terríveis erros da história que
geraram guerras, genocídio e escravidão como no caso dos indígenas e dos
africanos, por exemplo.
O representante principal do Conselho dos halkans lembra a Kirk que se
ele quisesse poderia destruir o planeta e tomar o dilítio à força, o que é
verdade, devido à capacidade tecnológica e bélica da Frota Estelar. Porém Kirk
apenas sorri e diz que isso jamais acontecerá.
Uma tempestade iônica começa e se torna cada vez mais intensa fazendo
com que o capitão decida retornar com seu grupo para a Enterprise. Na sala de
transporte, a materialização demora mais do que o usual. Quando o grupo
finalmente é materializado, eles rapidamente percebem que algo de muito
estranho ocorreu: estão trajando uniformes muito diferentes, os oficiais fazem
uma saudação esquisita batendo no peito para em seguida esticar o braço
como um imperial “Ave César” (ou a saudação nazista) e, a mais insólita de
todas... Spock está usando um cavanhaque!
Logo, é preciso de adaptar rapidamente, sob o risco de serem descobertos e
penalizados de alguma forma. O temor se justifica pois o oficial que operou o
teletransporte é duramente castigado pelo Spock de cavanhaque, a partir do
“agonizador” que carrega. Aparentemente, os oficiais da nave levam junto a si
esse aparelho que, para efeito de disciplina, pode ser acionado por seus
superiores. Já fica claro que se trata de um reflexo bizarro do universo
conhecido por nossos heróis. Ao contrário da Frota e dos valores da Federação,
que pregam soluções pacíficas, nesse universo alternativo tudo é feito pelo
terror: castigos corporais, tortura, violência e conspirações.
Quando Kirk consegue ficar a sós com seus companheiros ele diz: “É a
nossa Enterprise, mas não é”, enquanto tenta descobrir onde exatamente foram
parar e como voltar para casa. A conclusão não demora: estão em uma
realidade alternativa, onde existem réplicas de objetos, pessoas, planetas do
universo inteiro. No entanto, são réplicas que atuam de maneira oposta aos
nosso heróis, possuindo valores totalmente diferentes. Mas a conclusão mais
aterradora vem a seguir: se eles foram transportados para esse universo é claro
que suas contrapartes malévolas foram parar no outro universo.
No entanto, Spock (o nosso Spock, sem cavanhaque) logo percebeu que
aqueles não eram os verdadeiros tripulantes, pois é muito mais fácil um
civilizado se passar por bárbaro do que um bárbaro se passar por civilizado,
em suas palavras. Nada como a lógica vulcana. Assim, os colocou em uma cela,
até que fosse encontrada uma maneira de mandá-los de volta.

“Que tipo de pessoas somos nesse universo?”


O episódio trabalha com contrastes. E essa é uma das coisas que mais me
impressiona em Star Trek. É através da comparação entre os valores da
Federação e do ser humano do futuro com os inimigos e ameaças que os
personagens enfrentam, que constatamos com nitidez absoluta como somos
primitivos, como ainda nos encontramos na nossa pré-história. E essa
consciência nos faz não somente refletir, mas buscar transformar o mundo no
qual vivemos, tendo como referência o mundo do futuro. É assim que pensa e
age um revolucionário, pois a revolução não vem do passado ela vem do futuro.
As diferenças entre a Frota Estelar e a Federação que conhecemos em
relação à Frota e ao Império são brutais. A própria questão do nome de como
essa civilização espelhada se autodenomina é fundamental para pensarmos a
respeito: Império. É uma grande alegoria para o fenômeno do imperialismo.
Enquanto a Federação é uma união de planetas com os mesmos ideais de
igualdade e liberdade, construídos sobre a eliminação das classes sociais e da
busca predatória por riquezas, um Império se trata precisamente do oposto.
Sua intenção é conquistar e ampliar seu território e suas zonas de influência,
explorando e destruindo planetas e raças por onde passa. Exatamente como os
impérios coloniais no século 19 e 20 na Terra. Exatamente como agem os
Estados Unidos, o grande império contemporâneo. Quando não atendidos em
suas demandas de recursos naturais (nomeadamente o petróleo), levam a
instabilidade, a destruição e a desgraça para os povos que não se vergam.
É numa situação similar a esta que Kirk, no universo espelho, se encontra,
para seu horror. Spock determina a destruição dos halkans (a negociação
também estava ocorrendo no universo alternativo), de modo que uma raça
inteira será exterminada por não ter cedido aos interesses do Império. Kirk,
protela a destruição dando 12 horas para os halkans reconsiderarem, algo que
não irão fazer, pois preferem a morte a contrariar seus princípios. A decisão de
Kirk leva a suspeitas e é vista como uma fraqueza oportuna para seu
assassinato, já que os oficiais, nessa Frota Estelar grotesca, sobem de posição
se utilizando deste expediente. Chekov vê na situação uma brecha e tenta
assassinar Kirk, sem sucesso. Acaba indo parar na “Cabine da agonia”, método
terrível de tortura utilizado nas naves da Frota. Inspirada no Império Romano,
a prática de assassinar superiores, na verdade funciona como uma metáfora
para os dias atuais que vivemos sob o sistema capitalista: tudo é válido para
acumulação de riqueza e poder. Inclusive matar.
A visão do que significa o Império se torna muito clara para Kirk, McCoy,
Scott e Uhura. Nosso doutor questiona: que tipo de pessoas somos nesse
universo? A resposta, de certa forma é fácil. Os humanos do Império são os
humanos do capitalismo. São as pessoas que pensam única exclusivamente em
obter vantagens e lucros. São as pessoas que constroem nações sobre o
sofrimento de outras. Como Marx afirmou, o capital nasceu “vertendo sangue e
lama, de todos os poros, da cabeça aos pés”. É o que o Império faz em sua jornada
louca de acumulação e dominação dos povos, distribuindo o terror, a dor e a
tragédia por onde passa. O próprio Kirk do universo espelho é um assassino e
um genocida, tendo matado o capitão Christopher Pike para assumir seu
comando na Enterprise e aniquilado diversas civilizações.
Spock, ao elogiar o capitão, em uma tentativa de protegê-lo da morte certa
por algum oficial caso mantenha sua posição de não destruir os halkans, diz
que sob seu comando as missões sempre foram muito “lucrativas”. Enquanto
isso, no outro universo (o nosso), Kirk espelhado, que fora preso por Spock,
tenta suborná-lo: “Você quer créditos? Poder? Posso lhe tornar um homem rico!”.
Spock, muito surpreso, já que na utopia essa cena jamais poderia ocorrer,
responde com o seu tradicional “fascinante”. Novamente uma prática comum
às sociedades que se estruturam sobre classes e acumulação.
Olhamos no espelho e não gostamos nem um pouco do que vimos. Para as
pessoas do mundo utópico da Federação, olhar essas pessoas obcecadas por
conquista, violência e lucro é um lembrete de um passado terrível, que não
deve voltar nunca mais. Para nós, fãs da série, olhar essas pessoas olhando
para aquelas pessoas causa constrangimento, pois em boa medida nós ainda
somos elas. Essa é a poderosa mensagem de Mirror, Mirror, que nos convida a
lutar e derrubar essa ordem tétrica e injusta.

As revoluções são lógicas e vêm do futuro


A razão, representada em Star Trek através dos vulcanos, transcende as
barreiras entre universos. O Spock de cavanhaque demonstra-se ao longo do
episódio não ser um radical da barbárie, assim como são seus colegas
tripulantes humanos. Ele é um sobrevivente. Não concorda necessariamente
com a barbárie, porém, por uma questão lógica, sabe que dificilmente poderá
fazer algo contra ela sozinho. Assim, Spock se adapta às normas vigentes
naquela sociedade. Contudo, evita a violência sempre que possível e, mesmo
percebendo que existe algo de muito estranho naquele capitão que retornou do
encontro com os halkans o alerta sobre os riscos que corre. Chekov e Sulu, por
outro lado, não hesitaram em tentar acabar com a vida do capitão assim que
identificaram nele aquilo que avaliaram como uma fraqueza. Ou seja: os
bárbaros humanos do Império ficam ainda mais expostos em sua barbárie
quando confrontados com os vulcanos, que são lógicos mesmo naquele
universo.
Kirk percebe isso. Percebe que, em meio ao caos do Império, existe um
ponto que destoa daquilo tudo, mesmo que ainda não esteja pronto para
revolucionar aquela ordem. Mas há um gérmen ali. Um início de consciência.
Ele identifica em Spock uma esperança para aquela civilização, que, a
continuar naquele rumo, será fatalmente conduzida à autodestruição. Da
mesma forma que o irracionalismo do imperialismo e do capitalismo também
nos levará à extinção. Processo que, interrompido, possibilita a utopia que
vemos em Star Trek. Por isso a revolução é o que de mais racional existe.
Revolucionar é amar a vida; compactuar com o irracionalismo é atitude
necrófila, assim como são necrófilos o capitalismo na realidade e o Império na
ficção.
Kirk descobre que a irracionalidade é a maior característica do Império e vê
em Spock, o representante da lógica, o homem capaz de iniciar a implosão
daquela ordem ilógica. Instiga Spock, o chama de ilógico por fazer parte
daquilo e conclama que ele se subleve contra o Império. Mas como? Como um
homem sozinho poderia fazer isso? É impossível, mas alguém precisa começar.
E nada mais lógico que seja o lógico Spock. Kirk é um gênio político. O papel
de Kirk nesses acontecimentos será destacado depois no universo espelho que
vemos em Deep Space Nine.
Marlena Moreu, a oficial que era amante de Kirk no universo espelho,
conhece um dos segredos mais importantes do capitão: o Campo Tântalus. Um
dispositivo capaz de eliminar seus oponentes à distância. Marlena o utilizou
para ajudar Kirk e seu grupo a fugir, pois ela pretendia se juntar a eles. Kirk
revela o segredo a Spock, e oferece Tântalus como arma para sua revolução.
Utilizando-o, Spock teria total controle sobre seus comandados e seria temido
por seus inimigos. Sim, para iniciar a revolução é necessário utilizar os meios
da ordem a ser quebrada até que eles não sejam mais necessários. Spock faz
uma objeção: um homem só não pode mudar o futuro. Kirk rebate: mas pode
mudar o presente! Kirk quer que Spock (ele confia até mesmo no Spock de
cavanhaque!) assuma o papel de vanguarda revolucionária. Caberá a Spock
iniciar um processo histórico de quebra da barbárie e construção da utopia.
Equivaleria, fora da ficção, à superação do modo de produção capitalista, ao
fim do imperialismo – que são anti-humanos - e ao advento do socialismo
mirando o comunismo – que são humanismos.
Passado ou futuro? Tirania ou liberdade? Essas são as questões que Kirk
atira para Spock, esperando que ele as responda algum dia e com as respostas
ele poderá escolher qual o mundo que quer construir e viver. Kirk diz que toda
revolução precisa de um homem de visão. Esse homem é Spock e a lógica lhe
dirá que é um mundo do futuro e da liberdade, assim como a utópica
Federação. Como bem disse Marx, a revolução não pode tirar sua poesia do
passado, mas sim do futuro. A revolução deve deixar que os mortos enterrem
seus mortos. São essas ideias que Kirk, por acreditar na racionalidade de
Spock, tenta transmitir ao vulcano do universo espelho. Evidentemente, elas
não serão capazes de promover uma rápida transformação naquela realidade.
Será um processo de longa duração. Porém, o primeiro passo foi dado.
3
PATTERNS OF FORCE

Quando os olhos se fecham para a história e


para a razão

Até mesmo os historiadores falham em aprender com a história e repetem os mesmos erros.
John Gill

A verdade é universal, não é ela que me pertence, sou eu que lhe pertenço, é ela que me possui, não sou
eu que a possuo.
Karl Marx

Nazismo no espaço
A Segunda Guerra Mundial e o nazismo são alguns dos temas históricos mais
presentes e explorados na cultura pop. Quando entramos em qualquer banca
de revistas, por exemplo, nos deparamos com uma quantidade significativa de
publicações que abordam o assunto, frequentemente trazendo a imagem de
Adolf Hitler na capa. Da mesma forma, são incontáveis as séries, minisséries,
filmes e games que usam o período da Segunda Guerra para desenvolver suas
narrativas.
Patterns of Force é um episódio que se encaixa perfeitamente nessa
descrição. Sua história trata de um planeta que seguiu os passos do nazismo,
estabelecendo um governo ditatorial, no qual a ordem é mais importante do
que tudo e onde existe a perseguição implacável não somente aos inimigos do
regime, mas, sobretudo aos indivíduos que não sejam da mesma etnia daqueles
que estão no poder.
A história parte do seguinte ponto: um historiador terrestre, chamado John
Gill, que exercia a função de observador cultural da Federação em um planeta
chamado Ekos desaparece sem deixar rastros. É a missão da Enterprise
investigar seu desaparecimento e, se for o caso, encontrá-lo com vida e
resgatá-lo. Dessa forma, a nave chega a um sistema solar que possui dois
planetas habitados: Ekos e Zeon. A partir daí, descobertas surpreendentes
guiarão Kirk e Spock na busca por John Gill.
Ao descerem no planeta, o capitão e seu primeiro-oficial vulcano se
deparam com algo que parecia impossível. Ekos apresenta uma sociedade
muito semelhante à Alemanha nazista das décadas de 30 e 40 na Terra. Os
uniforme dos oficiais, a suástica e a perseguição aos zeons, que são o povo
equivalente aos judeus na história real. Aliás, a escolha dos nomes dos dois
povos é muito significativa. Zeons, claramente, se refere ao Monte Sião, isto é,
à terra de Israel, do povo hebreu. Os nomes dos personagens zeons não deixam
a menor sombra de dúvida sobre a associação que se espera da audiência:
Abrom, Isak e Davod.
Por outro lado, Ekos vem da palavra grega oikos, que significa literalmente
casa. Porém, além desse sentido, o termo se refere também à família e à
propriedade. Portanto, é possível fazermos a associação com a ideia de pátria,
muito importante para os estados nacionais, sobretudo para os regimes
extremamente nacionalistas como o construído por nazistas e ekoseanos.
O nacionalismo, tem em sua base, a separação daquilo que é “nosso” em
relação aquilo que é estranho a uma suposta cultura nacional. Tradições,
língua, arte, história etc. são frequentemente mobilizados e manipulados de
forma a se construir uma verdadeira “alma” da nação, um povo único, com
características que a distinguiria de todas as outras. Como Eric Hobsbawm
demonstrou, essas formas de construção ideológica são absolutamente falsas,
são inventadas. É precisamente o que vemos no caso de Ekos, onde uma
espécie de cimento social foi criado para unir a população que se encontrava
fragmentada e dividida. Porém, para deixar esse cimento ainda mais forte, é
necessário que se encontre um “outro” para contrastar com os valores da
nação e do povo, provando sua superioridade. A partir desse entendimento, de
que esta nação é superior às outras, fato comprovado pela inferioridade do
“outro”, é que se podem estruturar ideologias e regimes políticos como o
nazismo e a perseguição aos zeons por Ekos.
Kirk e Spock, tidos como zeons, são presos e levados à um interrogatório,
que é realizado sob tortura, obviamente. A essa altura, para supresa de ambos,
já descobriram que John Gill é o Führer de Ekos. É algo que não faz o menor
sentido para eles, pois Gill se trata de um acadêmico, um intelectual, um
historiador, que certamente conhece os horrores e os sentidos do nazismo na
história humana. Como ele poderia implantar e se tornar o líder de um
governo nazista? É em busca dessas respostas que nossos heróis conseguem
botar para dormir alguns oficiais nazi-ekoseanos e vestem seus uniformes.
Todavia, as orelhas de Spock denunciam ambos, fazendo com que sejam
presos e torturados a chicotadas. Um dado curioso é que tanto William
Shatner (Kirk) quanto Leonard Nimoy (Spock) são judeus. Dá para imaginar
algum desconforto de ambos em vestir uniformes nazistas.
Na cadeia, conhecem Isak, um dos membros da resistência dos zeons.
Conseguem fugir e são levados por ele para o esconderijo, onde conhecem
outros membros da resistência, que ficam desconfiados. Afinal, eles lutam
contra um regime opressor e violentíssimo, que busca exterminá-los, o que é
muito mais grave do que uma simples prisão, tortura ou exílio. Portanto,
Abrom diz para Isak que não devem ajudá-los, ao mesmo tempo informa que
sua esposa foi assassinada na rua. Da mesma maneira que muitos judeus foram
massacrados pela população, ela foi linchada, em um espetáculo de horror que
durou cinco horas. Mesmo impactado pela morte da mulher, Isak reafirma sua
intenção de ajudar Kirk e Spock, argumentando para Abrom que se eles se
comportarem como nazistas se tornarão tão ruins como eles. Um último teste
ainda é realizado. Daras, uma oficial condecorada do partido nazista de Ekos
(que na verdade é uma zeon infiltrada) simula um ataque ao esconderijo, ao
que Kirk e Spock reagem salvando os zeons. Nosso intrépidos oficiais da
Enterprise passaram no teste e agora precisam usar a inteligência para
enfrentar a irracionalidade que domina os ekoseanos.

Causas e motivações
John Gill é conhecido por ser um historiador que não se atém às datas, nomes
e eventos da história. É muito mais sofisticado e procura em seu trabalho
determinar as causas e motivações da história. Na verdade, desde o século 19
que os historiadores buscam trabalhar dessa forma. É verdade que houve a
história positivista, que acreditava somente no uso de fontes escritas e oficiais
que fossem produzidas pelos governos. Mas o fato é que, na década de 1960,
quando Star Trek vai ao ar, os historiadores já trabalhavam da forma que
Spock afirma ter ficado admirado em relação a John Gill, influenciados pela
chamada Escola dos Annales. Mas ok, tudo bem. O que podemos refletir sobre
isso é: como um historiador, que, com toda a certeza, conhecia as causas e
motivações do nazismo pode ter cometido o erro de tentar reproduzi-lo em
outro planeta?
A resposta certamente passa pelo contexto onde o nazismo prospera: a
Alemanha destroçada pela Primeira Guerra Mundial, que sofre as
consequências da paz punitiva de Versailles. Portanto, Gill viu no nazismo a
possibilidade de reerguer Ekos. Outro elemento importante: o temor de que o
comunismo pudesse vencer no país, já que um percentual gigantesco de
trabalhadores estava compreendendo a importância de uma sociedade que
pudesse escapar do controle da burguesia. Gill temeu uma revolução, com
efeitos imprevisíveis. Essas são algumas das causas e motivações para que
Hitler e os fanáticos que o cercavam, procurassem chegar ao poder, para
acabar com a ameaça comunista e para lutar pela construção de um império
colonial alemão que fizesse frente principalmente à Inglaterra e à França.
Portanto, John Gill comete o terrível erro de considerar somente uma parte da
história. Aquela que diz respeito à necessidade de reerguer a Alemanha das
cinzas da Primeira Guerra Mundial e evitar algum tipo de revolução provocada
por esse estado de coisas. Situação análoga a encontrada em Ekos por ele.
Dessa forma, Gill acabou desrespeitando à Primeira Diretriz, algo que se
provou um tremendo erro. Afinal, é justamente para evitar a contaminação
cultural das sociedades com as quais a Frota estabelece contato, que a regra de
não-interferência foi criada. No entanto, é uma questão que sempre pode ser
discutida, pois ela tem implicações muito importantes. No caso de Ekos, por
exemplo, Gill encontrou uma sociedade fragmentada e dividida, em suas
palavras. Foi louvável sua intenção em ajudar aquele povo a se recuperar.
Contudo, a maneira que ele encontrou para fazer isso é que foi catastrófica.
Então, como equilibrar tudo isso? Se era um povo precisando de ajuda, me
parece admissível e até mesmo necessário que a Federação dê algum tipo de
auxílio. Porém, a forma que essa ajuda é ministrada é que deve ser discutida
amplamente, não deixando a decisão para um homem só, como foi o caso de
Gill. O resultado de sua intervenção, decidida solitariamente, serve para se
radicalizar ainda mais a Primeira Diretriz, o que é contraproducente.
Os futuros historiadores da Federação, quando estudarem o caso de Ekos,
poderão perceber claramente estas questões, chegando a conclusões
importantes. Para eles, ficarão nítidas as causas que levaram Gill a interferir
no planeta: uma sociedade passando por enormes dificuldades, que talvez a
levassem à própria extinção. Já sua motivação seria a autoconfiança excessiva
em seus conhecimentos históricos, que o permitiria reproduzir um sistema
monstruoso desde que seus elementos negativos fossem anulados. Seu
principal erro foi crer nessa possibilidade.
É claro, que ao analisarmos os erros de John Gill, não podemos simplificar a
questão e atribuir tudo a ele, como muitas vezes é feito em relação ao nazismo
e ao holocausto, que teriam sido frutos do trabalho de um único homem
portador de uma mente doentia. Aliás, o episódio incorre nesse erro, por
exemplo quando McCoy recorre ao velho adágio: “poder absoluto corrompe
absolutamente”. No caso de Hitler, suas ideias já estavam escritas e publicadas
muitos anos antes de conseguir o poder. Deste modo, simplificam-se eventos
históricos da maior complexidade, sendo desconsiderados o papel do
imperialismo, da evolução do antissemitismo ao longo dos séculos e da
ideologia. Desses três, vemos claramente os dois últimos em Patterns of Force.

Ideologia e desespecificação
Como dito antes, para que um sistema radicalmente nacionalista e baseado na
“raça” prospere é necessária a construção de um inimigo que ameace a pureza
e a união de tal povo. Para isso, é preciso que se recorra à ideologia e à
desespecificação do “inimigo”. Ambas ocorreram tanto na Alemanha nazista
quanto em Ekos.
Inicialmente, cabe a questão: o que é ideologia? De antemão aviso que é um
conceito bastante complexo, polissêmico, devido a seu uso por mais de dois
séculos nas ciências sociais e humanas. A ideologia pode ser entendida como
uma simples visão de mundo ou então como uma distorção da realidade (como
vemos em filmes como Matrix ou They Live, por exemplo) que acaba servindo
para a dominação de uma classe sobre a outra. Esses dois aspectos estão
presentes na ideologia nazista e na ekoseana.
Na modernidade, com o surgimento dos meios de comunicação de massa,
da indústria cultural e dos seus produtos é possível que a ideologia seja
sentido a serviço do poder, como afirma John B. Thompson. Vamos tentar
colocar isso de uma forma mais clara. Em uma determinada sociedade existe a
construção de sentidos, isto é, quais as formas que os integrantes dessa
sociedade se relacionam, porque se relacionam, quais os significados disso.
Para que se possa construir esse sentido, são utilizadas as formas simbólicas,
isto é, desde a fala cotidiana até a complexidade de imagens e textos, como
filmes e livros, por exemplo. Star Trek também é uma forma simbólica, e
portanto, nem ela escapa de carregar uma ideologia que pode ser contrária a
muitos elementos presentes neste livros, justamente por ser um produto da
indústria cultural dos Estados Unidos. E por que isso? Porque a ideologia é
sentido a serviço do poder, de forma que ajuda a manter e reproduzir forma de
dominação assimétricas.
Isso é amplamente percebido no nazismo: através da utilização do cinema e
do rádio, que criaram a imagem do judeu como um inseto que deveria
simplesmente ser exterminado, sob pena de conspurcar a pureza da raça
ariana, estabeleceu-se uma relação de dominação do Führer sobre o seu povo.
Ele seria a figura capaz de livrar a Alemanha da ameaça judaica.
Em Ekos esta situação é brilhantemente representada. Logo ao chegar ao
planeta, Kirk e Spock se deparam como uma tela no centro da cidade
transmitindo a informação de que um ataque dos zeons havia sido repelido
pelos militares ekoseanos. É uma mentira. Mas reforça a ideia de que os zeons
oferecem um risco real a Ekos, legitimando-se, portanto, a defesa contra eles.
Ainda na mensagem se fala na “decisão final” contra os zeons, ou seja, seu
extermínio, como a “solução final” pregada e posta em marcha pelos nazistas.
Posteriormente, haverá um pronunciamento do Führer/Gill, transmitido para
todo o planeta, no qual reforça-se a ideia de que o inimigo zeon deve ser
liquidado de uma vez por todas, livrando o planeta do que se considera uma
contaminação. Os meios de comunicação são maneiras muito efetivas de se
disseminar ideologias, como demonstra o nazismo e a sua representação no
episódio.
Qual o centro da ideologia nazista e ekoseana? O fato de que os
judeus/zeons não são humanos. Ou seja, é realizada a desespecificação destes,
de forma que seu extermínio seja aceito como algo natural, como medida
profilática. Himmler, um dos maiores ideólogos nazistas dizia que matar
judeus era como matar piolhos, portanto, não havia nada de ideologia nisso,
era apenas uma medida de higiene. Em Ekos se constrói, através da TV, o
sentido de que os zeons envenenavam o planeta, associando-se à
contaminação e doença. Logo, se algo tão pernicioso assim está presente no
“corpo” da sociedade, é preciso que medidas drásticas sejam colocadas em
prática. A metáfora do corpo é muito eficaz nesse caso, do qual é necessário
remover cirurgicamente o elemento estranho que não o permite ser totalmente
saudável.
No caso dos judeus, o antissemitismo existia desde a Antiguidade,
passando por três fases: antijudaísmo (no qual bastava ao judeu se converter
para ser aceito na comunidade); antissemitismo étnico-nacionalista (que ainda
acreditava na conversão, porém com certa desconfiança); e antissemitismo
racista (que embasa o nazismo e a solução final, pois desespecifica todos os
judeus). Esse último funciona como uma exclusão do indivíduo pertencente a
determinado povo ou etnia da categoria humanidade. Assim, como ele não
pertence a espécie humana, é lícito e até desejável que ele seja escravizado ou
então exterminado fisicamente. É exatamente essa última visão que os
ekoseanos tem dos zeons.
Ademais, os judeus foram associados com os revolucionários bolcheviques,
promovendo uma dupla desespecificação, que é muito importante. Se por um
lado os judeus não podiam ser considerados humanos pela sua inferioridade
intelectual e física, por outro eles eram considerados naturalmente
comunistas, sempre apresentado características insurrecionais contra as raças
dominantes. Esse fato faz recrudescer a ira de Ekos contra Zeon, pois este
último não aceita passivamente o destino que querem imputar ao seu povo,
promovendo a revolta contra o opressor.
Essa visão de que existem povos bárbaros, naturalmente bárbaros, que são
ressentidos e que sempre promoverão rebeliões contra os povos dominantes é
amplamente defendida por Nietzsche em sua obra. O filósofo alemão era um
radical aristocrático, que defendia a escravidão dos povos tidos como
inferiores, que logicamente seriam os povos dos países coloniais, eslavos e
judeus. Algo inaceitável para um pensador contemporâneo ao marxismo, que é
precisamente a quebra do paradigma racista do século 19. No entanto, suas
ideias foram abraçadas com entusiasmo por nazistas (como é possível vermos
na representação ekoseana). John Gill, sendo igualmente um pensador, acabou
por produzir ideias que também foram utilizadas para a discriminação e
violência contra os “diferentes”.

Há algo de positivo no nazismo?


Mais tarde ficamos sabendo que John Gill na verdade foi dominado por
Melakon, seu primeiro-ministro, e especialista em genética e pureza racial. A
cena em que ele analisa as características físicas de Spock é repugnante e
muito representativa da pseudociência eugênica usada pelos nazistas.
Gill havia lançado as bases para a união do povo ekoseano, que encontrara
dividido e fragmentado (numa alusão direta à Alemanha pós Primeira Guerra).
No entanto, embora com boas intenções (das quais o inferno está cheio), seu
plano de implantar medidas positivas da Alemanha nazista deu errado, pois
acabou sendo dominado por Melakon, que o manteve vivo, porém drogado,
para que servisse como um símbolo da nova ordem.
É de certa forma curiosa a forma com que o episódio trata essa questão das
supostas características positivas do nazismo. Em primeiro lugar, vemos um
historiador reconhecido acreditando nessa farsa. Depois, Spock e Kirk
concordarão que houve algo de bom (como o desenvolvimento econômico),
mas que seus líderes era psicopatas. Temos dois problemas aqui: relativização
do nazismo, a partir de uma ideia enviesada de que o crescimento econômico
alemão poderia ser considerado como algo positivo. Ora, um regime que
matava seus oponentes e que instalou uma ditadura terrível, antes mesmo da
guerra e do holocausto, não pode ter um suposto êxito econômico celebrado. A
que custo isso ocorreu? Os judeus, antes mesmo da guerra, já se viam
perseguidos e confinados a guetos. Será que para eles a economia também ia
bem?
Outro problema é a ideia de que os líderes nazistas eram malvados e por
isso que aconteceu o que aconteceu. É outro engano. O nazismo foi composto,
em boa parte, por pessoas “normais”, como atesta Hannah Arendt quando
escreve sobre o julgamento de Eichmann, que era apenas um burocrata do
sistema, cumprindo seu trabalho da melhor maneira possível ao administrar a
logística dos campos de concentração. É igualmente temerária essa visão, pois
ao se considerar um líder nazista como um doente mental, de certa forma ele
se torna inimputável, pois não é um indivíduo que possui as capacidades
mentais e emocionais em estado de normalidade. Portanto, destacar a próspera
economia alemã durante os anos nazistas e simplificar a emergência do
nazismo a mentes doentias é, de alguma forma, uma maneira de conduzir a
uma admiração acrítica, que deve ser devidamente combatida.

Onde fica a utopia?


Se o episódio mostra algumas conclusões erradas, como Spock faz, por
exemplo, ao colocar no mesmo saco Ramsés, Alexandre, César, Napoleão,
Hitler e Lee Kuan (esse último, desconhecido hoje em dia, foi um governante
de direita e conservador extremamente autoritário em Singapura), por outro
lado, torna evidente a diferença entre o que é a Federação e o que se tornou o
planeta Ekos após a interferência de John Gill.
Em primeiro lugar, a Federação representa a união de todas as “raças”. É
como se na Terra hoje em dia desaparecessem o racismo e as lutas religiosas.
A Federação nasce justamente pelo sonho de que todas as diferenças entre os
diversos grupos sejam superadas para que a harmonia e a paz possam
prevalecer. Não confundir, é claro, com o fim da identidade desses grupos e
com sua maneira de ser (que foi construída sobre aspectos objetivos, que os
tornaram assim). Esse seria o ideal nazista e do mundo construído em Ekos.
Enquanto os nazistas pregavam a homogeneidade de sua civilização, onde
quem não fosse ariano não seria admitido, pelo contrário, seria exterminado, a
Federação inclui os planetas mais diversos, embora os klingons a considerem
um “clube do Homo sapiens”... Mas isso são intrigas da oposição. A verdade é
que a utopia de Star Trek mostra um mundo onde a diversidade é celebrada e a
integração um valor.
Portanto, é imperdoável o erro de John Gill, pois ele foi incapaz de perceber
o que a sua decisão de interferência poderia causar. Imperdoável duplamente,
pois é um cidadão da Federação. Assim, mais do que ninguém, ele deveria
saber que buscar a união de um povo - como ele tentou fazer e conseguiu, da
forma mais errada possível – deve-se em primeiríssimo lugar levar em
consideração e respeitar as diferenças culturais. Gill fechou os olhos para a
verdade e para a razão, permitindo que o irracionalismo cobrisse Ekos com um
manto de escuridão. Ele não se utilizou do pensamento científico, como,
obrigatoriamente, deve ocorrer no trabalho de um historiador. Afinal, nosso
trabalho é a busca da verdade. Assim, a mentira pode prevalecer durante muito
tempo em Ekos.
Por fim, resta ainda uma comparação de Ekos com o mundo
contemporâneo e a sociedade burguesa, que é estruturada sobre a dominação
de classe. Essa dominação opera em três níveis: internacional, nacional e
doméstico. No nazismo ela se dá, além dessas três, também em nível étnico
(que é uma mistura dos dois primeiros). Não que na sociedade burguesa, que é
branca, não ocorra o extermínio dos negros, sobretudo da juventude negra,
como acontece no Brasil há séculos. No entanto, esse extermínio é camuflado.
No nazismo escancara-se: matemos todos judeus! Portanto, a Alemanha
nazista foi, evidentemente, uma ditadura de classe. Foi a ditadura de um
partido detentor de uma ideologia inusitada, porém, antes de tudo, foi a
ditadura de classe, como ocorre como toda e qualquer forma de Estado.
Tendo isso exposto, fica ainda mais nítida a diferença entre Federação e
Ekos/Alemanha nazista. Por não ser uma sociedade dividida em classes, não
existe opressão de um certo segmento social sobre outro e por ser uma
sociedade que vê a igualdade entre os mais diversos seres que a compõem, a
Federação é livre. O ser humano foi emancipado finalmente, abandonando os
horrores que assolam mundo contemporâneo.
4
THE CLOUD MINDERS

Porque é necessário destruir a sociedade de


classes

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.
Marx e Engels

Esse planeta conturbado é local dos mais violentos contrastes. Aqueles que recebem a recompensa são
totalmente separados dos que carregam o fardo. Não é uma liderança sábia.
Spock

Os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham.
Marx e Engels

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o
poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.
Marx e Engels

Um episódio comunista e genial


The Cloud Minders talvez seja o episódio mais significativo a respeito da total
irracionalidade que é uma sociedade que se edifica sobre as classes sociais.
Acho que só encontra paralelo em Captive Pursuit da primeira temporada de
Deep Space Nine e que falaremos no capítulo dedicado à série.
A terceira temporada da série original de Star Trek é a mais fraca, tendo
cometido um crime chamado O Cérebro de Spock (Spock’s Brain), por exemplo.
Isso se dá em boa medida porque a série seria cancelada na segunda
temporada e só não foi pois uma fã chamada Bjo Trimble liderou uma massiva
campanha de cartas enviadas para a NBC, que se deu por vencida e produziu a
fatídica terceira temporada. Então, houve má-vontade e recursos escassos para
a produção. Isso teve reflexo nos roteiros, que são, em grande maioria,
ridículos. Contudo, mesmo assim, existem verdadeiras pérolas da franquia
nesse terceiro ano de produção. Podemos citar como exemplo os episódios All
Our Yesterdays e The Incident Enterprise. No entanto, é The Cloud Minders que
ganha a medalha de ouro nessa disputa fácil - mas que não tira seu mérito -
sendo uma das histórias mais incríveis contadas por Star Trek em seus mais de
50 anos.
E isso acontece porque o episódio nos apresenta uma metáfora incrível
sobre a divisão do trabalho na sociedade de classes, sobre a ideologia e sobre
como ela tem um papel fundamental na dominação de classe, já que permite a
eterna reprodução da opressão de uma classe sobre a outra.
O contexto do episódio, como a série inteira, é o da Guerra do Vietnã (e da
corrida espacial), o que acaba sempre surpreendendo pelos temas abordados,
que poderiam ser considerados “antiamericanos”. Nesse episódio em
particular, a mensagem é bastante alinhada à esquerda, contendo uma
denúncia e um chamamento à derrubada das classes dominantes. O episódio
foi roteirizado por Margaret Armen, que escreveu outros episódios, inclusive
da série animada, como exemplo aquele em que Spock e Kirk se transformam
em seres aquáticos. Mas a história é de David Gerrold, que escreveu o episódio
dos Tribbles (Pingos) e de um camarada chamado Oliver Crawford, que foi
colocado na lista de supostos comunistas durante o macartismo. É óbvio que
isso não garante em hipótese alguma que Crawford fosse comunista ou sequer
de esquerda, mas a informação não deixa de ter alguma relevância já que a
história tem, claramente, um viés comunista.

As lutas entre Stratos e troglitas


O enredo de The Cloud Minders é muito simples. Um planeta chamado Merak 2
passa por uma grave que precisa ser resolvida urgentemente: uma praga está
destruindo com rapidez toda a vegetação do planeta. Sem plantas, sem
oxigênio. A população de Merak 2 corre um risco real de extinção. Portanto, a
Enterprise tem como missão ir até Ardana, planeta onde existe um mineral
chamado zenite que é a única forma de combater a praga em Merak 2.
No entanto, logo após chegaram ao planeta, Kirk e Spock são atacados por
um grupo de mineiros, que haviam prometido, através do líder do planeta,
Plasus, entregar o minério. Dessa maneira, as coisas se tornaram mais
complicadas, pois o tempo estava passando para Merak 2 e sem o zenite nada
poderia ser feito. Mas por que os mineiros se recusariam a entregá-lo? É a
partir desse questionamento que as peças começam a se encaixar e
mergulhamos fundo na estrutura social de Ardana, descobrindo sua
contundente luta de classes.
O planeta se orgulha de sua opulenta cidade chamada Stratos. São vários os
motivos de orgulho. Seus habitantes são pensadores e artistas. Não trabalham
por obrigação, aproveitam o ócio para exercer tarefas “superiores” e realizar
atividades relacionadas à criatividade e à filosofia. Esse é a grande vaidade de
seus habitantes. Eles são livres, podem fazer o que bem quiserem de suas
vidas, do seu tempo, que também é livre. Enfim, uma sociedade sofisticada e
ideal.
O segundo motivo que enche os habitantes de vaidade é o fato de que
Stratos é uma cidade suspensa, conhecida em toda a galáxia. Devido a um
sistema de elevação gravitacional, a cidade se situa, literalmente, nas nuvens,
alheia ao que acontece na superfície. Ou melhor: nas cavernas.
Pois é justamente nas cavernas que vivem os troglitas, a outra parte dos
habitantes do planeta Ardana. Não é necessário ser muito esperto para
associar imediatamente a palavra troglita com a palavra troglodita, que tem
como sentido original alguém que mora nas cavernas e como sentido mais
comum alguém rude, pouco sensível etc. Portanto, naquela sociedade, que
apresenta um lado perfeito e intelectualmente superior, é reservado aos
troglitas habitar as minas, inferiores que são aos olhos de Stratos.
Por isso, existem duas classes sociais no planeta, calcadas na divisão do
trabalho: uma que vive nas nuvens, ou seja, em Stratos; outra que vive na terra,
ou seja, nas minas. Uma que trabalha, ou seja, os troglitas, e outra que não
trabalha, mas tem sua existência garantida pelo trabalho dos troglitas. E aí
está estabelecida a contradição fundamental e a luta de classes, pois ambas
têm interesses antagônicos. Os troglitas lutam para deixarem de ser
explorados e o habitantes de Stratos lutam para continuar explorando os
troglitas e assim manter seus privilégios.
A divisão do trabalho emerge historicamente quando surge a propriedade
privada e a família. De um lado o proprietário, do outro os que trabalham para
ele; de um lado o homem, de outro a sua mulher, uma escrava doméstica. No
surgimento do capitalismo, ainda no processo de sua acumulação primitiva,
surge a divisão do trabalho entre os países, processo que é intensificado na
revolução industrial. As colônias trabalham, produzem as matérias-primas e
quem enriquece são os países metropolitanos. Ao mesmo tempo, a nascente
indústria simplifica as classes sociais dentro das nações, de um lado os grande
industriais, os grandes burgueses, do outro os famintos proletários, que mal
recebem para sobreviver até o próximo dia de trabalho. Vemos esse processo
na história de The Cloud Minders.
Em Ardana a questão toda gira em torno da produção do zenite. Como foi
possível a formação dessas duas classes sociais tão assimétricas, uma que
trabalha nas minas e outras que vive da exploração desse trabalho?
Provavelmente, a classe dos troglitas é muito mais numerosa que a dos
habitantes de Stratos, apesar disso não ficar claro no episódio, e mesmo assim
é dominada. Mas o fato é que se estabeleceu no planeta uma bem definida
divisão do trabalho, na qual os troglitas ficaram com a pior parte. Mas
respondendo à pergunta: a formação das duas classes só foi possível por um
elemento físico. Os troglitas, ao serem expostos ao gás expelido pelo zenite
durante sua mineração, tiveram sua capacidade cognitiva reduzida em 20%. Os
habitantes de Ardana que conseguiram escapar da exposição ao gás
prosseguiram seu desenvolvimento normal, de forma que se aproveitaram
disso para dominar os troglitas, criando uma cidade luxuosa a qual eles não
possuem acesso. Aliás, possuem, única e exclusivamente para servir a classe
privilegiada.
Mas aí pode aparecer a questão: então quer dizer que os troglitas são
realmente inferiores? A resposta é não. Os efeitos da exposição do gás zenite
são completamente reversíveis, basta o indivíduo deixar de ter contato com
ele. Por isso, a classe dominante faz questão de mantê-los trabalhando nas
minas. Eventualmente, é necessário que alguém sirva em Stratos e aí, com o
efeito do gás desaparecendo, o troglita toma consciência da situação de
opressão e exploração que seu povo vive, passando a se organizar para
derrubar a ordem vigente, através de ações armadas, como a tentativa de
sequestrar Kirk e Spock no início do episódio. Ou seja, o efeito “cegante” do
gás zenite sobre os troglitas é uma genial metáfora para a ideologia.

Ideologia e Estado em Ardana


Spock, em uma cena muito interessante, que mostra um monólogo interior,
artifício utilizado para a audiência entender melhor a trama, medita sobre as
grandes contradições em Ardana. Ele acaba por concluir que a divisão do
trabalho existente no planeta, onde uns carregam o pesado fardo e outros
recebem as benesses, é completamente ilógica. Spock é um vulcano comunista!
Apesar de que isso é uma redundância. Ele constata a completa
irracionalidade representada pelas sociedades de classes, o que conduz o
telespectador à conclusão de que a sociedade sem classes é que pode ser
identificada com a razão e com a lógica. Afinal, os troglitas são expropriados
em seu trabalho pelos expropriadores de Stratos, que não lhes dão nada em
troca enquanto vivem no luxo.
Para que esse estado de coisas seja mantido, já que é óbvio que a maior
parte da população dominaria a minoria, são necessários alguns instrumentos.
Como não é possível manter a violência contra as classes subalternas o tempo
todo, é preciso que exista uma ideologia que a mantenha conformada em seu
lugar. Quando, eventualmente, esta falha, existe o Estado, isto é, o monopólio
da força, à serviço da classe detentora dos meios de produção, no caso em
questão a população de Stratos, que exerce o controle sobre as minas.
Mas vejamos primeiramente a ideologia. Esta se trata de uma inversão da
realidade. É o trabalhador acreditar que trabalhando muito ele poderá ficar
rico, quando na verdade o que acontece é que quanto mais ele trabalha quem
mais enriquece é o patrão. A metáfora maravilhosa do gás zenite corresponde
ao que é a ideologia na verdade. A ideologia funciona como uma máscara, que
oculta aos olhos de quem é vitimado por ela, como a realidade é de fato. E ela
tem um propósito claro, que é perpetuar as relações de dominação na
sociedade. Em Ardana é isso que acontece. Os troglitas são emburrecidos pela
exposição ao gás, de forma que aceitem passivamente seu duro destino. Afinal,
como seres inferiores, não possuiriam o direito de usufruir a bela e confortável
cidade de Stratos, que foi construída a partir da expropriação de seu árduo
trabalho. Assim, as coisas continuam sem grandes mudanças através dos
séculos.
Para superar a ideologia é preciso desenvolver o senso crítico. É necessário
estudar e procurar descobrir a essência por trás das aparências. Afinal, se a
essência fosse visível a olho nu toda a ciência seria supérflua, já disse um
filósofo. Portanto, o que decorre desse fato é que a superação (ou melhor,
derrubada) da sociedade de classes (e a que vivemos nesse instante é a
capitalista) é algo racional. A lógica dirá que não é viável uma sociedade onde
uma minoria explore uma maioria. Onde essa minoria fique com quase tudo e
a minoria com quase nada. Spock já avisou: não é algo inteligente.
Contudo, mesmo saindo da ideologia dominante ainda se carregará os
traços dela, restando somente para as próximas gerações libertarem-se
completamente dela. Por isso, o processo revolucionário acontece em etapas.
Sim, é possível derrubar a ordem vigente, quebrar o Estado burguês. No
entanto, o comunismo de fato só será possível nas próximas gerações,
totalmente livres da ideologia burguesa. Em Ardana é a mesma coisa, embora
nem ao ponto revolucionário os troglitas tenham chegado no final, ficando
mais como uma conciliação de classes. No entanto, a semente revolucionária
foi plantada por Spock.
O diálogo de Kirk com Vanna (a troglita que conseguiu escapar do
gás/ideologia e se tornar a vanguarda revolucionária) quando ele oferece uma
máscara que vai permitir que os troglitas respirem sem serem afetados pelo
gás é muito claro nesse sentido da ideologia inverter a realidade sem que seja
percebida. Vanna diz que é difícil acreditar que algo que nunca foi visto ou
sentido possa trazer tantos danos. Kirk responde: É verdade, mas uma ideia
também é assim e o que manteve os troglitas todos esses séculos nas minas foi
uma ideia errada. É uma imagem perfeita sobre a ideologia: ela não é vista,
mas causa muitos estragos.
As ideias da classe dominante são as ideias dominantes. Ou seja, a classe
que possui a força material da sociedade é a classe que possui a sua força
espiritual dominante, nas palavras de Marx e Engels, espiritual no sentido de
ideias. Precisamente o que ocorre em Ardana. Como Stratos tem o controle
das minas, logo, é ela que produz as ideias da sociedade. Inclusive, isso está
representado na questão dos habitantes da cidade serem os trabalhadores
intelectuais e estarem no céu, sendo o contraponto do chão, reduto dos
trabalhadores braçais. O próprio nome do episódio revela isso: Os Guardiões
das Nuvens. A burguesia faz o mundo a sua imagem e semelhança, como se ela
fosse a humanidade, como se fosse o parâmetro, a régua com a qual se mede
todas as coisas. Stratos faz o mesmo, precisamente por dominar a produção
material é que domina a produção intelectual e ideológica.
Em troca do trabalho dos troglitas, Stratos oferece apenas duas coisas:
miséria e repressão. Os troglitas vivem em condições sub-humanas, no fundo
das cavernas, fazendo um trabalho custoso e quando saem à luz do dia quase
não conseguem enxergar acostumados à escuridão. Além disso, como dito, eles
apresentam menos inteligência que os habitantes de Stratos, enquanto geram
a riqueza destes para que possam, ironicamente, se dedicar com exclusividade
às atividades intelectuais. Engels traça um panorama muito semelhante
quando descreve o proletariado industrial inglês que gerava a riqueza da
nação, mas vivia como uma subespécie. É evidente que para manter tal
situação, na qual uns poucos dominam muitos, é necessário a criação de um
órgão que sirva para manter a ordem dominante. Esse ente se chama Estado.
Plasus está sempre acompanhado de guardas, de modo que não seja
importunado pelos troglitas. São esses guardas que mantém a segurança na
cidade, não que isso seja necessário entre seus habitantes intelectualizados,
mas ela é fundamental para manter os troglitas acuados.
Por exemplo, na cena em que um dos troglitas é preso, conseguindo escapar
e se suicidar, logo em seguida, atirando-se de Stratos, é possível ver com
clareza a ordem que o Estado cria, de maneira a não permitir que ninguém
nem nada interfira em seu funcionamento normal e mantendo a dominação da
classe dominante.
A justificativa ideológica para Stratos é a de que os troglitas são uma
espécie inferior e que os conceitos abstratos de uma sociedade intelectual
estão além de sua compreensão. Isto é, naturaliza-se, ao atribuir aos troglitas
características naturais que os impedem de desfrutar Stratos, quando isso
advém de conflitos historicamente determinados. Assim, é criada a ideia de
aristocracia. O filósofo Domenico Losurdo critica os paradigmas do século 19,
quando, por exemplo, Tocqueville atribuía a um “vírus de uma espécie nova e
desconhecida” havia afetado a mente dos franceses durante o ciclo
revolucionário. Isto é, não foram as condições terríveis que o Antigo Regime
impingia aos pobres e aos burgueses que deflagraram a revolução. Pois foi
justamente contra esses paradigmas que Marx e Engels elaboraram a teoria da
luta de classes, que está incrivelmente representada nesse episódio.
Em uma sociedade de classes como Ardana, o Estado é indispensável, para
que mantenha a classe dominada em seu lugar. Mesmo uma sociedade
ilustrada, intelectualizada e esplendorosa como esta vai se utilizar da
repressão violenta contra aqueles que ousam se rebelar, da mesma forma que
ocorreu, por exemplo, no trágico desfecho da Comuna de Paris, quando o
Estado burguês da França massacrou dezenas de milhares de homens,
mulheres e crianças que ousaram sonhar com um nova forma de sociedade.
Sempre que os “escravos e párias” da ordem vigente ensaiam rebelar-se toda a
fúria do Estado (que sempre é uma ditadura de classe) cai sobre os revoltosos,
seja através da prisão, da tortura (como Vanna é torturada por Plasus), do
exílio ou do assassinato.

Uma esperança baseada na razão


Ao deixar Ardana, finalmente com o zenite, me parece que Kirk e Spock,
sobretudo esse último, plantaram algo no planeta que pode florescer com o
passar do tempo. Pois a cena mais importante do episódio é aquela em que
Spock chega à conclusão de que a sociedade de classes é ilógica. Mais uma vez,
Star Trek mostra como nosso mundo é irracional e como somente a razão
poderá salvar o ser humano.
No final, não temos uma revolução. Não acontece a derrubada de Stratos
pela força, com um exército de troglitas tomando o lugar. Na verdade, acontece
uma primeira tomada de consciência, por parte dos troglitas sobre o fato de
que eles devem participar daquilo que é fruto de seu próprio suor. Plasus,
temendo uma revolta de grandes proporções, na qual sua vida e o modo de
viver dos habitantes de Stratos seriam colocados em risco, parece acenar com
uma abertura para os troglitas. Evidentemente, que na primeira oportunidade
ele irá massacrá-los, mas o mais importante é que os troglitas se tornaram
conscientes como classe. De classe em si tornaram-se classe para si.
A Federação é uma sociedade sem classes, onde não há nada que lembre a
opressão de Stratos sobre os troglitas. É essa a situação que ainda vivemos no
atrasado século 21, embora há um século e meio os trabalhadores estejam se
organizando para uma vitória que é uma imposição histórica e mais cedo ou
mais tarde irá acontecer. O processo é longo. Mas por fim atingiremos nosso
objetivo.
Contudo, há que se lembrar que, como um produto da indústria cultural
estadunidense, Star Trek tem seus limites, embora seja, frequentemente,
muito progressista e apresente temas revolucionários, como em The Cloud
Minders. Isso fica evidente no fato de que a sociedade mostrada nas séries e
nos filmes não é fruto de um processo revolucionário, mas de um processo
gradual de tomada de consciência do ser humano (pior: contato com aliens!).
Em Star Trek podemos enxergar o socialismo utópico e não o socialismo
científico de Marx e Engels. Embora seja sempre importante destacar que o
marxismo, enquanto ciência, é também humanista e utópico. Pois a utopia é o
sonho que nos faz caminhar, que nos inspira para a luta revolucionária, que
tem por objetivo e emancipação humana. A utopia de Star Trek é basicamente
o fim de sociedades como Ardana, que nada mais é do que uma representação
da sociedade irracional em que vivemos atualmente.
II
A nova geração de Star Trek: uma recriação
com personalidade própria

Acumular riqueza não é mais a força motriz de nossas vidas. Trabalhamos para melhorar a nós
mesmos e ao resto da humanidade.
Picard

Vamos nos certificar de que a história nunca se esqueça do nome... Enterprise.


Picard

Em 28 de setembro de 1987 estreava na televisão estadunidense a sucessora da


série original de Star Trek, acompanhada agora do subtítulo The Next
Generation. Uma nova geração de tripulantes, a bordo de uma nova Enterprise
(EnterpriseD), se apresentava diante dos olhos curiosos de uns, desconfiados
de outros e injetados de sangue pelo “sacrilégio” cometido contra Kirk, Spock
e companhia. Essa última, é claro, naquela fatia trekker que detesta novidades.
Coisas de fãs. E fãs são chatos e os trekkers são muito chatos, frequentemente
insuportáveis. E toda vez que um novo projeto envolvendo Star Trek desponta
no horizonte, boa parte delas passa a rasgar as vestes, chorar e ranger os
dentes. Sempre acham que será uma profanação ao seu objeto de adoração.
Bom, a palavra fã vem de fanático...
A questão é que mesmo com a choradeira, a série foi ar, durou sete
temporadas e hoje em dia é a preferida de grande parcela dos trekkers. Do
mesmo modo, The Next Generation criou alguns dos mais icônicos
personagens, vilões e tecnologias de Star Trek. Afinal, é nela que surgem o
capitão Picard e Data; os borgs e Q; e, principalmente, o holodeck, para mim a
invenção mais maravilhosa da Nova Geração. Os replicadores já existiam na
série clássica, mas não eram de uso universal como visto em The Next
Generation.
O holodeck usa a mesma tecnologia do teletransporte, sendo capaz de
transformar matéria em energia e depois em matéria novamente. Porém, no
holodeck, os átomos são transformados em objetos holográficos sólidos, que
podem ser tocados e manuseados e que podem falar com você também, pois
são hologramas programados com inteligência artificial. Portanto, é possível
realizar todo tipo de programa: uma batalha klingon, aventuras de Sherlock
Holmes e até uma metrópole noir da década de 40 onde é possível interpretar
um detetive. Assim, surgem os “episódios de holodeck”, onde algum problema
acontece e nossos personagens ficam presos lá dentro correndo sérios riscos.
O holodeck acabou influenciando totalmente Star Trek dali por diante, seja nas
holosuites do Quark ou o Doutor de Voyager.
Da mesma maneira, a série proporcionou aos fãs alguns dos episódios mais
fantásticos produzidos na história das séries de TV, como The Best of Both
Worlds, Darmok, The Inner Light e All Good Things..., que considero o melhor
series finale já feito até hoje.
Em 1986 a Paramount estava muito animada com o sucesso que os filmes da
franquia vinham alcançado. Naquele mesmo ano, Star Trek 4: The Voyage Home,
dirigido por Leonard Nimoy, havia atingido o maior volume de bilheteria da
franquia até então, arrecadando quase 110 milhões de dólares. Além disso, o
filme fora indicado em quatro categorias para o Oscar, superando as três de
The Motion Picture, o único que já havia conseguido indicações. Star Trek
estava mais viva do que nunca e melhor que isso, sob o ponto de vista da
Paramount, é claro: garantindo excelentes lucros. Portanto, para os seus
executivos seria um passo natural desenvolver mais atrações envolvendo o
universo criado por Gene Roddenberry, visto que o público respondia de
maneira muito satisfatória.
Foi assim que as primeiras ideias para um novo programa começaram a
aparecer e Gene Roddenberry foi chamado pela Paramount para conceitualizar
o show. Contudo, apesar do sucesso de sua criação no cinema, Roddenberry
não passava por um bom momento. Após o primeiro longa e com uma série de
pilotos não aceitos por emissoras, Gene se encontrava de certa forma isolado,
quase em um deserto. Sozinho e esquecido, precisava vender itens
relacionados a Star Trek nas convenções para sobreviver. Além disso, nesse
período, Roddenberry estava com problemas devido ao uso de álcool e drogas.
Houve muitos atritos entre Gene e os executivos do estúdio, já que
inevitáveis visões sobre o formato surgiram. Mas no fim Gene conseguiu uma
vitória e o novo programa, já chamado de Star Trek: The Next Generation,
começou a sair do papel. Ou melhor, da máquina de escrever do próprio
Roddenberry, que atuava como um deus sobre o processo criativo da nova
série.
Um dos homens que se tornariam fundamentais para Star Trek nas duas
décadas seguintes entrou a bordo da Enterprise nessa época: Rick Berman.
Berman era um executivo da Paramount, mas caiu nas graças de Roddenberry
e se tornou seu braço direito. Anos depois, no documentário What We Left
Behind, sobre Star Trek: Deep Space Nine, Berman daria uma declaração muito
reveladora sobre que tipo de relação se estabeleceu entre ele e Gene. Berman
disse que em Deep Space Nine (série totalmente concebida após a morte de
Gene e que foi em uma direção a qual certamente ele não concordaria) ele
tinha Roddenberry dentro de si como ocorre com um hospedeiro trill. Ele era o
Curzon Dax da série, sempre relembrando os mandamentos do Grande
Pássaro da Galáxia (apelido de Roddenberry que se refere a um episódio da
série original). Ou seja, Gene era o Deus e Berman seu profeta. Após a morte
de Roddenberry, em 1991, Rick Berman assume seu lugar e torna-se o produtor
executivo da série até o final, promovendo modificações que a libertaram de
algumas amarras impostas por seu criador. É a partir daí que The Next
Generation passa a andar com suas próprias pernas, conseguindo se libertar da
influência da série original.
A série iniciou com um telefilme (ou episódio em duas partes) intitulado
Encounter at Farpoint, escrito por Roddenberry e D.C. Fontana, que sempre
colaborou com a série original e também com a série animada da década de 70.
Na trama, duas histórias paralelas. Em uma, a Enterprise ruma para um dos
locais mais distantes conhecidos na galáxia, para tentar utilizar uma base
construída por uma raça alienígena. Na outra, um ser onipotente, chamado Q,
surge na ponte da Enterprise para ordenar que os seres humanos deixem de
explorar o universo e se recolham à Terra. O motivo: somos uma raça selvagem
e infantil. O capitão Picard então tem de fazer as vezes de advogado da
humanidade, reconhecendo que fomos selvagens sim, mas que no século 24 a
maior parte de nossos problemas fora resolvida, o que daria aos seres humanos
o direito de explorar o espaço. É preciso destacar que o bom e velho doutor
McCoy aparece no episódio, conversando com o androide Data. Bones agora é
almirante, com 137 anos, mas continua com seu senso de humor rabugento.
Foi uma ótima sacada para fazer a ponte entre a velha e nova geração.
O fato é que esse episódio apresenta uma ótima história, mas ainda
percebemos alguns resquícios da série clássica, como as minissaias ultracurtas
das mulheres, mas que dessa vez são utilizadas pelos homens também.
Sabiamente, essa ideia não durou muito tempo. No entanto, os fãs ficam
embasbacados com a nova Enterprise, que agora é capaz de levar mais de mil
tripulantes, inclusive crianças (com as quais Picard não sabe lidar muito bem)
e com o aspecto mais amigável e confortável da nave, totalmente diferente do
estilo submarino da Enterprise de Kirk. Evidentemente, teve gente reclamando
que a nave agora parecia um hotel...
Outra novidade é que dessa vez não temos vulcanos. Somente vez que outra
eles aparecerão e geralmente em situações não muito relevantes. No entanto,
na quinta temporada, Leonard Nimoy fará uma participação mais do que
especial, em um episódio duplo (Unification I e II) que trata de uma suposta
deserção do nosso amigo de orelhas pontudas em prol dos romulanos. Se você
ama a série original e ainda não viu The Next Generation, comece por esse
episódio. Outro que você também irá gostar é Relics, que mostra nosso bom e
velho Scotty usando o holodeck da EnterpriseD para recriar a ponte da sua
Enterprise original.
Porém, o primeiro ano certamente foi o mais problemático. A grande
rotatividade de roteiristas, que eram demitidos sumariamente por Gene e a
falta de estrutura para os atores marcaram a primeira temporada. Por outro
lado, havia a dificuldade em se criar boas histórias, devido a determinação
dada por Roddenberry de que os roteiros não poderiam conter conflitos entre
os personagens principais. Algo que só irá se resolver quando o poder de
Roddenberry começa a diminuir, na passagem da segunda para a terceira
temporada. Devido ao cada vez menor envolvimento de Gene, que se
encontrava com a saúde deteriorada, Rick Berman e Michael Piller (que viria a
criar Deep Space Nine) passaram a focar grande parte das histórias sobre os
personagens. Este fato redirecionou The Next Generation e trouxe mais
qualidade às histórias.
Assim, Rick Berman foi ocupando seu lugar e conseguindo, finalmente,
fazer com que a recriação de Gene Roddenberry se tornasse de fato uma
criação original. O sucesso estrondoso de The Next Generation garantiu que o
poder de Berman se consolidasse sobre Star Trek, fazendo com que em seu
reinado fossem produzidas Deep Space Nine (ponto alto da franquia), Voyager
(início da decadência) e Enterprise (sua morte horrível). Além disso, Berman
esteve por trás de todos os quatro filmes da Nova Geração também.
The Next Generation tem com uma de suas principais distinções em relação
a série original o perfil do capitão da Enterprise. Enquanto Kirk era um típico
herói/galã da década de 60, Jean-Luc Picard é francês, amante da arqueologia,
e profundamente racional. Como dito na época, Picard era o exato oposto de
um herói de Hollywood. Dessa vez a Enterprise tinha um intelectual no
comando. Um homem iluminista. Interpretado por um grande ator de escola
shakespeariana, o inglês Patrick Stewart, calvo (testes com uma peruca
chegaram a ser feitos) e com uma voz tonitruante, se mostrou com o passar do
tempo um dos personagens mais interessantes da franquia, frequentemente
sendo o preferido dos trekkers. O personagem cresceu tanto e se tornou tão
cheio de camadas e complexidade que 20 anos após o último filme com o
elenco da Nova Geração, foi produzida uma nova série, centrada no
personagem e em suas experiências, chamada Star Trek: Picard. Seus bordões
Make it so., Tea. Earl Grey. Hot. e Engage! são um verdadeiro patrimônio de Star
Trek. Assim como o There are four lights! gritado por Picard ao seu torturador
cardassiano, como expressão máxima da resistência ao arbítrio.
Na ponte de comando temos o primeiro-oficial William Riker (Jonathan
Frakes), chamado pelo capitão de Number One. Riker, a princípio, foi uma cópia
de Kirk, um homem bonito e sedutor, que “pega” todas as mulheres. A partir
da segunda temporada Riker passou a usar barba, numa tentativa de se afastar
do personagem que o inspirou. O Number One também irá protagonizar ótimos
episódios, como The Outcast, sobre o qual falarei mais adiante nesse capítulo.
Dessa vez, a ponte da Enterprise conta com uma forma de vida artificial, o
androide Data (Brent Spiner). Sem saber ao certo a real história de sua criação,
Data foi encontrado por uma missão da Frota e a partir de então, quis fazer
parte dela. Entrou na Academia e acabou se tornando tenente-comandante,
com muitas condecorações. Um dos episódios mais importantes de The Next
Generation é The Measure of a Man, no qual Data passa por um julgamento
sobre qual a sua natureza: vida inteligente ou apenas uma máquina? Você verá
uma discussão sobre esse episódio nesse capítulos também.
A oficial de segurança, tenente Tasha Yar (Denise Crosby), é uma
personagem com uma história inusitada dentro da série. Ela exercia um papel
importante em termos de representatividade, pois ela atuava em uma posição
que normalmente não são executadas por mulheres em programas de televisão.
Tasha nasceu em uma colônia da Federação que não deu certo e que acabou
por se tornar um local extremamente hostil e violento. Crescer nesse ambiente
forjou seu caráter, o que a tornou uma mulher forte e resiliente. No entanto, a
personagem acaba morrendo na primeira temporada, no episódio Skin of Evil,
no qual a tripulação enfrenta uma forma de vida diabólica, que mata por
prazer. A morte de Tasha foi uma solução encontrada para resolver o problema
de saída da atriz da série, devido a divergências com os produtores. Tasha
aparece em diversos episódios nas temporadas seguintes, seja como ela mesma
ou então como sua filha Sela, que vive entre os romulanos. Tasha teve uma
relação sexual com Data sob a influência de uma intoxicação que acometeu os
tripulantes no episódio “The Naked Now”.
A outra personagem feminina na ponte é a conselheira Deanna Troi
(Marina Sirtis). Nos anos 80 as terapias psicológicas entram na moda, o que
influenciou a criação da personagem. Troi é meio humana e meio betazoide,
raça que possui habilidades empáticas. Portanto, Troi, ao exercer sua função
de conselheira do capitão, utiliza sua sensibilidade para sondar possíveis
antagonistas. A esposa de Gene Roddenberry, interpretou a mãe de Deanna,
Lwaxanna Troi, uma mulher extravagante que tem uma certa atração pelo
capitão Picard. Lwaxanna aparecerá também em Deep Space Nine.
Um personagem surpreendente e impensável na série original é o klingon
Worf (Michael Dorn). Isso mesmo: um klingon na ponte da Enterprise. No
século 24, o Império Klingon e a Federação assinaram acordos de paz, fato que
possibilitou a existência de Worf como oficial tático e, após a morte de Tasha,
oficial de segurança. Worf protagonizará excelentes episódios que exploram a
cultura klingon, geralmente escritos por Ronald D. Moore, o grande
responsável por desenvolver o universo klingon em Star Trek. Mas meu
episódio favorito com ele é Parallels, uma história genial envolvendo universos
alternativos. Após o fim de The Next Generation, Worf irá se apresentar ao
capitão Sisko da estação Deep Space Nine, tornando-se personagem regular da
quarta até a sétima e última temporada. Dessa forma, Michael Dorn se tornou
o ator regular a ter participado de mais temporadas em Star Trek. Foram sete
em The Next Generation e quatro em Deep Space Nine. Já Colm Meaney, que fez
Miles O’Brien, participou de todas as temporadas das duas séries, totalizando
14, porém, em The Next Generation ele não era regular.
Geordi LaForge (LeVar Burton) começou no posto de leme, o que é
extremamente interessante pois o personagem é cego de nascença. No
entanto, ele utiliza um dispositivo chamado Visual Instrument and Sensory Organ
Replacement (VISOR) que lhe garante uma visão melhor que a dos humanos,
mas somente nos espectros magnéticos e radioativos etc. Portanto, Geordi é
incapaz de admirar a beleza de uma obra de arte, por exemplo. A partir da
segunda temporada ele se torna o engenheiro-chefe da Enterprise. Geordi é o
melhor amigo de Data e ambos adoram se aventurar no holodeck como
Sherlock Holmes e Dr. Watson.
Por fim a médica-chefe, Doutora Beverly Crusher (Gates MacFadden).
Beverly e mãe de Wesley Crusher (Wil Wheaton), um menino prodígio que
acaba irritando o capitão Picard algumas vezes, já que este não tem uma ótima
relação com as crianças, digamos assim. No entanto, com o passar do tempo
Picard e Wesley irão estabelecer uma boa amizade. Beverly foi casada com
Jack Crusher, um oficial da Frota que morreu em serviço sob o comando de seu
amigo Jean-Luc Picard, quando este era capitão da USS Stargazer. Desde o
início da série é possível perceber que existe uma certa atração entre Beverly e
Picard, antecipando um romance que irá ocorrer mais tarde.
Uma última personagem relevante: Guinan (Whoopi Goldberg). Guinan é a
bartender do Ten Forward, o bar da EnterpriseD. Ela pertence a uma raça
chamada el-aurian, considerada uma espécie de bons ouvintes e de grande
longevidade. Por exemplo, ao longo de sua enorme vida, Guinan foi casada 23
vezes. Sem dúvida, uma marca para Elizabeth Taylor nenhuma botar defeito.
Guinan é uma conselheira informal da nave e uma amiga muito próxima do
capitão. Na verdade, os conselhos de Guinan costumam ser muito mais
relevantes do que os da conselheira oficial, Deanna Troi. Um fato interessante
sobre a personagem é que ela foi criada para Whoopi a seu pedido, já que ela
se trata de uma trekker de carteirinha. Sua paixão por Star Trek começou
quando era pequena e viu Uhura, uma mulher negra em posição de comando
na TV. Coisas que nos fazem ter orgulho de Star Trek.
O grande sucesso de The Next Generation acabou levando a série para o
cinema ainda durante a última temporada. As filmagens dos últimos episódios
coincidiram com as filmagens de Star Trek: Generations. Um filme que também
faz a ponte entre os filmes da série original e os filmes da Nova Geração, com
a participação de Kirk (William Shatner), Scotty (James Doohan) e Chekov
(Walter Koenig). Os fãs, em geral, não gostaram muito, principalmente pela
morte idiota do capitão Kirk, esmagado por uma ponte. Não deixa de ser
justiça poética: viveu na ponte, morreu esmagado pela ponte.
Na sequência veio Star Trek: First Contact, dirigido por Jonathan Frakes, o
nosso glorioso William Riker. Esse filme encabeça as listas de melhores filmes
de Star Trek e realmente ele merece essa posição. Na história são trazidos de
volta os borgs, que dessa vez enfrentam a Enterprise-E, já que a D fora
destruída em Generations. Além disso, o filme conta com viagem no tempo e
com a nossa tripulação dando uma mãozinha a Zefram Cochrane em seu
primeiro voo em dobra, fato que possibilitou o primeiro contato com os
vulcanos e a construção da Federação.
Depois, com Frakes na direção novamente, um filme que acho injustiçado:
Star Trek: Insurrection. Os trekkers acusam o filme de ser um episódio estendido,
o que é uma bobagem. É um filme que conta, visivelmente, com um orçamento
menor, mas possui uma ótima história, dentro do espírito de Star Trek criticar
a realidade. É descoberto um planeta que possui propriedades regenerativas,
porém existe uma população local que, evidentemente, não quer abandonar
seu lar. Mas os almirantes (sempre eles) se aliam a uma raça sinistra que está
morrendo e quer usar os recursos do planeta a todo custo. Isto é, uma grande
metáfora do capitalismo, onde os recursos não são utilizados para o bem de
todos, mas para a apropriação de alguns. Picard e a tripulação abandonam a
Frota e ficam do lado dos habitantes do planeta, é claro. Afinal, as necessidade
de muitos...
Por fim, Star Trek: Nemesis, um filme que traz os romulanos de volta e abre
uma via de negociação pacífica com eles. Mas isso teve um custo enorme: a
violação de Deanna, a quase morte de Picard por seu clone do mal Shinzon
(nêmesis, hã...) e a morte de Data. Isso sim me deixa revoltado. A jornada da
Nova Geração não podia terminar de pior maneira. Contudo, os eventos do
filme terão muita importância em Star Trek: Picard. Ao menos isso.
Star Trek: The Next Generation radicaliza ainda mais a utopia que já
havíamos conhecido na série original. A Federação se tornou maior, mais
diversa e por isso mesmo mais complexa. Portanto, é de se supor que o
conhecimento humano, nesses quase 100 anos que se passaram entre uma
Enterprise e a outra, cresceu enormemente, com o acréscimo das culturas de
dezenas de novas espécies contatadas nesse tempo. A Federação nasceu como
um ideal incrível e nesse período a experiência da utopia foi ampliada. Um
período de paz, que ajudou nas intenções de tornar o mundo um lugar melhor.
Uma prova cabal desse processo evolutivo é que até um klingon pode servir na
antes inimiga Frota Estelar. Esse é um primeiro ponto.
Se a série original permitia alguma dúvida sobre o caráter militar ou não da
Frota Estelar, na Nova Geração essa dúvida caminha para ser dirimida. É
evidente que a Frota, além de braço científico e diplomático da Federação,
também pode ser entendida como organização militar. Mas é diferente das que
conhecemos no primitivo século 21, pois não vê ao outro como um inimigo
iminente que deve ser neutralizado. Isso não ocorre pois a Frota possui junto à
força, as outras duas dimensões mencionadas acima. Portanto, dois terços da
Frota estão voltados para o conhecimento e diplomacia, somente uma parte
menor tem a capacidade de utilizar a violência, embora esta seja sempre a
última e mais dramática opção. Em resumo, é lícito imaginar que cada oficial
da Frota pense nesses termos tripartidos. Uma evidência disso tudo é que
saltam aos nossos olhos que as naves da Frota não se tratam de veículos
militares. A EnterpriseD é tão confortável que faz qualquer um se sentir no lar.
É bem diferente da Enterprise submarino inicial e dos filmes de Nicholas
Meyer. Portanto, há um novo sentido na experiência de servir a bordo de uma
nave estelar. Elas inclusive levam crianças, que vivem junto aos seus familiares
que estão designados para aquela nave. Os uniformes merecem um destaque.
São totalmente diferentes dos militarescos casacões utilizados nos filmes.
Aliás, na “bíblia” da Nova Geração, o próprio Gene Roddenberry menciona
isso, ao afirmar a contraposição dos novos uniformes em relação aos antigos.
Aliás, esse foi um grande erro cometido nos filmes, pois os uniformes da série
tinham esse mesmo espírito visto em The Next Generation. Esse é um segundo
ponto.
O terceiro ponto diz respeito à economia do século 24, que é um pouco
diferente da do século 23 e absolutamente diversa da que vigora sob o
capitalismo. Star Trek mostra um mundo pós-capitalista, isso é inegável. No
século 23 ainda existe dinheiro, ao menos no período da série original. O
indício de que o dinheiro desapareceu por completo só surge no filme 4,
quando Kirk revela isso para a Dra. Taylor. E o dinheiro desaparece pois a
relação do ser humano com o trabalho e com suas necessidades materiais foi
completamente transformada com a invenção dos replicadores. Já não é
preciso trabalhar para viver, logo, não há exploração do trabalho nem classes
sociais. No século 24, de Picard, essa realidade já está estabelecida há décadas,
de forma que os homens e mulheres dessa época já pensam de forma ainda
mais avançada que as gerações que os precederam.
Nesse capítulo vou tratar de mais quatro episódios que nos fazem entender
a utopia de Star Trek e nos ajudam a criticar a realidade atual para que um dia
possamos superá-la. O primeiro episódio, da primeira temporada da Nova
Geração é The Neutral Zone, onde é possível visualizar o contraste entre o
mundo capitalista e uma sociedade socialista como a Federação. Em The
Measure of a Man, vemos Picard lutar bravamente pelos direitos de Data, em
uma alegoria magistral sobre o que é a escravidão – todos os tipos de
escravidão – e como é uma obrigação moral destruí-la. Já em The Drumhead,
acompanhamos uma escalada fascista dentro da Enterprise que serve como
alerta aos tempos obscuros nos quais vivemos. Por fim, trato de The Outcast,
uma fábula impressionante sobre o preconceito e como esse está sempre a
serviço da ordem vigente.
1
THE NEUTRAL ZONE

Representações do capitalismo e do
socialismo

De fato, o reino da liberdade só começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e
por utilidade exteriormente impostas.
Karl Marx

A efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais.
Karl Marx

Um início complicado
A primeira e a segunda temporadas de Star Trek: The Next Generation,
claramente, não são as melhores da série. E isso se dá pois a série não
conseguiu desenvolver plenamente uma personalidade própria em seus dois
primeiros anos. Criar uma nova série de Star Trek, com toda a grandeza de
personagens, raças alienígenas, espaçonaves, valores etc. já feita até então não
foi uma tarefa fácil. Se, por um lado, havia toda essa história que servia como
referência, por outro, apresentava-se a grande dificuldade de criar algo que
trilhasse seu próprio caminho.
Portanto, foi um desafio imenso para seus produtores conseguir cortar o
cordão umbilical que ligava The Next Generation à série original, sobretudo
pelas dificuldades que Gene Roddenberry criava para os roteiristas. Por
exemplo, Roddenberry estabeleceu, como uma espécie de regra de ouro, que
não poderia existir conflitos entre os personagens principais. Isso tornava
quase impossível a escrita de boas histórias, que para isso devem possuir
conflito e drama. Gene também não queria episódios baseados em defeitos
tecnológicos. Realmente, algo bastante difícil para uma série que tem nas
tecnologias avançadas um dos seus pilares. Era um verdadeiro pesadelo para a
equipe criativa da série!
Essas limitações, que foram cedendo aos poucos, são em grande parte
responsáveis pela menor qualidade das duas primeiras temporadas, quando
comparadas às seguintes, fique claro. Pois é evidente que os personagens
sempre mostraram grande potencial, assim como a majestosíssima nova
EnterpriseD e alguns dos episódios que se tornaram clássicos instantâneos,
por contarem grandes histórias. Pois um desses episódios, o último da
primeira temporada, é The Neutral Zone, que além de trazer de volta os
perigosos romulanos, apresenta uma grande reflexão sobre a “infância” da
humanidade, através de um personagem que é um típico homem do período
capitalista.

O ressurgimento dos romulanos (e de alguns humanos)


The Neutral Zone encerra a primeira temporada de The Next Generation com
uma importante missão: reintroduzir os romulanos no universo de Star Trek.
Os romulanos são uma espécie belicosa, fechada, em constante situação de
tensão com a Federação. Apresentam uma sociedade rígida e hierarquizada,
tendo como governo um senado nos moldes do Senado romano. Daí o nome de
seu planeta, Rômulus, em alusão ao fundador mítico de Roma. No episódio
Balance of Terror, da série clássica, o capitão Kirk trava um embate com um
capitão romulano. Nesse episódio, um dos oficiais da ponte manifesta
preconceito sobre a presença de Spock numa batalha contra uma raça irmã dos
vulcanos. Kirk então lhe diz: “guarde sua intolerância para o seu alojamento, ela
não tem lugar na ponte”. Touché.
Em The Next Generation¸ portanto, o objetivo dos produtores era tornar os
romulanos os grandes antagonistas de Picard e cia. Depois isso acaba por não
se concretizar, com o personagem Q se tornando recorrente e o aparecimentos
dos, estes sim assustadores, borgs, que acabariam inclusive assimilando o
capitão Picard, gerando um filme (Star Trek: First Contact) e reaparecendo em
Star Trek: Picard. Ou seja, os borgs deram muito certo na franquia. Um sucesso
absoluto, uma das grandes criações de The Next Generation, que também
marcaram profundamente o personagem Picard.
O episódio, como de costume, apresenta duas narrativas paralelas, sendo os
romulanos centrais na primeira. Depois de 50 anos sem contato, que na última
vez deixou milhares de mortos, os romulanos voltam a dar sinal de vida.
Alguns postos da Federação na região da Zona Neutra (território intermediário
entre Império Romulano e Federação) foram destruídos, fato que faz a
Enterprise receber a missão de se deslocar até lá e descobrir quem foram os
responsáveis pelo ataque. Chegando na Zona Neutra, nossos heróis se
deparam com um gigantesca nave romulana, que no entanto não dispara
contra a Enterprise. O contato é estabelecido, e o capitão romulano
(interpretado por Marc Alaimo, que depois será Gul Dukat, o grande
antagonista de Deep Space Nine), revela que postos romulanos também foram
destruídos e que eles não sabem que realizou tal ato. Picard então consegue
uma cooperação entre ambos, momentânea, somente para esse caso, conforme
destaca o capitão romulano, que ameaça no final: estamos de volta. É a deixa
para que os fãs entendam que os romulanos serão os grandes vilões da série, o
que não ocorreu.
Mas o que importa para nós é a outra história do episódio, que mostra três
seres humanos do século 20, resgatados pela tripulação da Enterprise,
entrando em contato com um mundo absolutamente diferente daquele que
conheciam e que estavam acostumados. É um verdadeiro choque. A barbárie
dos tempos atuais quando contrastada com a utopia do século 24 que vemos
em Star Trek fica ainda mais clara e assume contornos mais terríveis.
Portanto, o episódio conduz habilmente a audiência nesse sentido, de forma
que se entenda como o sistema sob o qual vivemos atualmente é irracional e
precisa ser superado. Ao conhecer aquelas pessoas, tão diferentes das do
século 24, Riker pergunta: como a nossa espécie conseguiu sobreviver ao
século 21? A pergunta continua em aberto, Number One! As condições não são
favoráveis, mas a utopia faz parte da minha vida e acredito que sobreviveremos
sim.
Tudo começa quando a Enterprise se depara com uma antiga nave da Terra,
bastante avariada. Worf sugere usar o raio trator para rebocá-la, ao que Riker
não (pobre Worf, sempre ouvindo não). No entanto, Data pede para ir a bordo
da nave pesquisá-la, ao que recebe autorização, e leva junto Worf. No interior
da nave eles descobrem que ela carrega diversas câmaras criogênicas, das
quais a maioria das pessoas, devido a falhas no equipamento, morreu. Porém,
três pessoas ainda estão vivas, dois homens e uma mulher, sendo levados a
bordo da Enterprise.
A Dra. Crusher explica que era uma moda em meados do século 20 a
utilização dessas câmaras por pessoas que possuíssem doenças sem cura, que
se congelavam na esperança de serem curadas no futuro (isso é verdade, na
década de 80 se falava muito nisso, por isso o tema apareceu na série). As três
pessoas foram congeladas após a morte, todas elas vítimas de doenças graves
na nossa época, mas simplesmente tratáveis no século 24. Logo em seguida, a
doutora desperta os três, que ficam bastante impressionados com o que veem.
A mulher, Clare Raymond, ao enxergar o Worf, teve um desmaio. Imagine
você se deparar com um klingon na rua? (Se os de The Next Generation já
assustam, imagine os de Discovery). Clare foi identificada como “dona de casa”,
ao que Data interpretou como uma possível trabalhadora da área de
construção. Esse Data... sempre fazendo humor involuntário.
O outro resgatado, com o pomposo nome de L. Q. Sonny Clemonds, era um
músico, que morreu por estar com vários órgãos comprometidos pelo uso de
drogas. Crusher e Picard fazem alguns comentários moralizantes sobre o fato
dele ter desperdiçado a vida com drogas e agora ganhar nova chance. É uma
cena que claramente se insere no contexto da “Guerra às Drogas” do
presidente Ronald Reagan e da campanha “Just Say No”, de sua primeira-dama
Nancy Reagan. Aliás, Reagan era fã de Star Trek, e depois de sair da
presidência visitou o set de Next Generation, em 1991. O típico caso de trekker
de direita que não percebe a filosofia socialista da série. Talvez tenha
confundido “Jornada nas Estrelas” com o programa de defesa militar “Guerra
nas Estrelas”, lançado em seu mandato como modo de intimidar a União
Soviética.
Por fim, o personagem mais importante desses três: Ralph Offenhouse, um
financista do século 20, que não aceita muito bem o fato de ter acordado no
século 24 e não ter acesso aos seus bens. Enquanto Clare ficou triste por
constatar que seus filhos e marido já haviam morrido há séculos e Clemonds
rapidamente se adaptou à nova realidade, Offenhouse não se conformou e
passou a ter atitudes mais assertivas, de forma que o capitão e a tripulação o
ajudassem a contatar seus advogados e seu banco.

O fetichismo de Offenhouse
Uma das características mais marcantes do modo de produção capitalista é o
fetichismo da mercadoria, como explicou Marx. O mundo social, no
capitalismo, é uma grande coleção de mercadorias e são elas que regulam as
relações sociais. No capitalismo, as pessoas se relacionam por meio de
mercadorias, tem suas vidas estruturadas e vividas em prol das mercadorias,
vivem e morrem por elas.
A mercadoria é uma criação humana. No entanto, a mercadoria controla a
vida dos seres humanos. Ao verificarmos isso, podemos entender o que Marx
quis dizer com o fetiche que se desenvolve em torno da mercadoria. Todas as
mercadorias que compramos e utilizamos não foram produzidas por nós.
Portanto, o ser humano não se reconhece nela, embora ela seja fruto do
trabalho humano. Nesse ponto ocorre também a alienação, pois ao não
controlar todo o processo de produção da mercadoria, nem o seu próprio
produtor se vê nela. A mercadoria passa a ser um ente independente do ser
humano, como se não houvesse sido criado por ele. Como se tivesse surgido
por feitiço. Assim, forma-se um culto em torno da mercadoria e esta, se por
um lado oculta as verdadeiras relações no capitalismo, por outro torna-se um
ídolo.
O ídolo de Offenhouse é o seu dinheiro. Dessa forma, para ele é algo
completamente atordoante acordar em um século onde as relações sociais já
não são mais mediadas pela mercadoria e pelo dinheiro. Quando descobre que
está em uma nave chamada USS Enterprise, obviamente, ele acredita que se
trata de um veículo dos Estados Unidos, ao que Picard rapidamente desfaz o
engano. Em segundo lugar, Offenhouse quer comprar um exemplar do “Wall
Street Journal”, para se informar a quantas andam as transações na bolsa.
Acredito que seria melhor que lhe colocassem na primeira nave rumo a
Ferenginar, onde certamente Offenhouse se sentiria em casa.
Do mundo primitivo e bárbaro do qual Offenhouse vem, é incompreensível
que as pessoas não tenham suas vidas organizadas em torno de maneiras de
ganhar dinheiro mais do os outros, em uma corrida por posses e poder. Uma
sociedade cooperativa como a vista na Federação, para ele, é um sinal de
fraqueza, já que ele se trata de um predador, que todos os dias busca atacar e
destruir quem estiver no seu caminho para o lucro. Não surpreende, que dos
três personagens, Offenhouse seja o mais refratário à ideia de novo mundo.
Afinal, ele construiu sua vida sob a estrutura mais anti-humana do
capitalismo: o sistema financeira.

Ética capitalista x ética socialista


O modo em que uma sociedade produz seus meios de reprodução da vida, suas
formas de garantir a existência, são determinantes para os seus valores, suas
crenças, suas ideias. Em outras palavras, a base econômica de uma
determinada sociedade forma a sua estrutura. Esta, por sua vez, é que vai
formar e segurar a sua superestrutura, ou seja, a sua ideologia, a sua política, o
seu sistema jurídico etc. Portanto, se numa sociedade capitalista existe um tipo
de ética, que é relacionada à forma com que o trabalho se organiza nessa
sociedade, é evidente que numa sociedade socialista ou comunista outro tipo
de ética haverá.
É esse um dos primeiros choques que Offenhouse tem a bordo da
Enterprise com o capitão Picard. Cansado de esperar e sem saber o que viria a
acontecer com ele e seu grupo em seguida e ainda extremamente ansioso para
saber da situação de suas riquezas, Offenhouse decidiu agir. Antes, ele havia
observado Riker se comunicar com Picard por um dos painéis de comunicação
na sala onde estava, então chamou o capitão por ali, interrompendo a
importante reunião onde estava sendo decidido pelos oficiais superiores como
agir em relação aos romulanos.
Offenhouse fala incessantemente, Picard então vai até a sala na qual se
encontrava e diz que os painéis de comunicação são somente para oficiais. Ele
pergunta: então por que eles não são protegidos por senha? Picard lhe dá uma
aula de ética socialista, da utopia do século 24: aqui todos são capazes de
exercer a autodisciplina, não há a necessidade de senhas nos painéis.
É claro que Offenhouse fica atônito com essa nova realidade, onde existe
confiança mútua, algo completamente impensável no chamado “capitalismo
selvagem” (o que é um pleonasmo, certamente), no qual predomina uma visão
binária, na qual só existem caças e caçadores. Não é preciso pensar muito para
inferir que este simples exemplo de algo prático, do dia a dia da Enterprise,
corresponde a uma prática geral dentro da Federação, onde os interesses de
muitos se sobrepõem aos de poucos. Isto é, qualquer pessoa pensa duas vezes
antes de agir de alguma forma que possa prejudicar o coletivo, o que,
evidentemente, não é o caso de Offenhouse que, devido ao tempo de onde veio,
só pensa em si.

Picard é marxista
Offenhouse, obviamente, tem muitas dificuldades para entender o
funcionamento de uma sociedade sem dinheiro. Afinal, o personagem é a
representação do capitalismo. Ele pensa nesses termos e para que um
pensamento tão arraigado seja transformado são necessários mais do que
alguns instantes a bordo da Enterprise. Aliás, ele estava muito preocupado em
poder contatar o banco e saber de suas contas em Genebra, que, em sua visão,
teriam rendido tantos juros em todos esses séculos, que dariam para comprar a
própria Enterprise. Se estivéssemos no filme First Contact, certamente Picard
lhe diria, como disse para Lilly: “a economia do século 24 é um pouco diferente”. É
nesse mesmo sentido que Picard, que é a representação do socialismo, terá
uma conversa muito interessante com Offenhouse.
Ele insiste em dar um telefonema ou entrar em contato com seu advogado
para saber de suas finanças. Picard lembra que seu advogado está morto há
séculos, mas Offenhouse não desiste, dizendo que ele fazia parte de um grande
e sólido escritório que ainda existira. Picard percebe então do que se trata a
ansiedade de Offenhouse: dinheiro, riqueza, posses.

É disso que se trata. Muita coisa mudou nos últimos 300 anos. As pessoas não são
mais obcecadas por acumular coisas. Nós eliminamos a fome, o desejo, a necessidade
por posses. Nós saímos de nossa infância.

Essa fala é simplesmente genial, pois ela é totalmente marxista. Ronald


Reagan, um dos mais fanáticos neoliberais do século 20 era fã de uma série que
tem em sua filosofia o pensamento marxista. Contradições. Contradições.
Como em toda boa relação dialética.
Offenhouse ainda contribui um pouco mais para a clara compreensão do
que se trata a luta por riqueza dentro do capitalismo. Ele diz que Picard está
equivocado, que na verdade não se trata de dinheiro, mas sim de poder.
Offenhouse não entendeu. O poder é buscado justamente para que se possa
acumular riqueza e assim ter mais poder para acumular mais riqueza... é um
ciclo infinito. Contudo, podemos lembrar, de acordo com Pierre Bourdieu, que
existem diversos tipos de capital, não restringindo-se ao financeiro. Existe o
capital cultural, o capital simbólico, a distinção social etc. Porém, como um
personagem típico do mercado financeiro do século 20 (que vale para o 21
também, pois ainda vivemos sob o capitalismo) o interesse de Offenhouse é o
dinheiro, é multiplicar o seu dinheiro, é transformá-lo em capital, não importa
como.
Picard e o ser humano na utopia de Star Trek já romperam com essa lógica
há muito tempo. Desde que as forças produtivas alcançaram tamanho
desenvolvimento com o advento dos replicadores, a maneira que a sociedade
se organiza em torno do trabalho mudou radicalmente. A revolução, na utopia
de Star Trek, não ocorreu a partir da tomada do poder pelos trabalhadores. Ela
foi uma revolução feita pelos cientistas, que desenvolveram um equipamento
capaz de criar qualquer coisa, desde a xícara de chá Earl Grey do capitão
Picard até o violão personalizado que Data providenciou para Clemonds.
Portanto, o fetiche pelo dinheiro de Offenhouse, que o faz perambular pela
nave em busca de uma maneira de poder voltar a tê-lo, como um profeta no
deserto à procura de um encontro místico com o seu deus, já não existe mais.
Essa obsessão infantil do ser humano foi completamente neutralizada, desde
que não existem mais necessidades materiais em função dos replicadores. Não
existindo essa, não existe mais a necessidade do trabalho para não morrer de
fome. O trabalho na Frota, por exemplo, é feito de maneira voluntária. Pois o
capital que tem importância no século 24 é o simbólico, é aquele que traz
prestígio por ter realizado algo importante para a humanidade e para si
mesmo.
É por isso que a meritocracia só faz sentido em uma sociedade como a
apresentada por Star Trek. Todos são iguais e possuem as mesmas chances.
Existe a liberdade total, exceto a liberdade para explorar ou oprimir outro ser
humano. Assim, e somente assim, surgem as condições para que uma pessoa
se destaque verdadeiramente entre as outras, já que houve igualdade e
liberdade para isso.
Disso tudo, podemos afirmar com certeza que saem extintos o fetiche pelas
mercadorias, a busca por acumulação e a competição predatória típica do
mundo que ainda vivemos. A fala de Picard é um dos momentos altos de Star
Trek em todos os tempos e traduz perfeitamente a utopia que o ser humano
deve lutar para construir.

O futuro para além do capital


Fica a pergunta: como Offenhouse e seus companheiros se adaptarão nesse
admirável mundo novo? Será possível a um ser humano criado dentro da
lógica do capital conseguir pensar, viver e trabalhar em um ambiente para
além do capital?
Eu acredito que sim, embora seja um processo difícil. Para Clare e
Clemonds será muito mais fácil. Eles têm outros interesses além do dinheiro.
Clare pensava na família; Clemonds em arte e diversão. E como fica o nosso
amigo Offenhouse, que perdeu tudo que ele mais amava, a sua fortuna?
Podemos recorrer a um exemplo cotidiano. Muitas pessoas, mesmo aquelas
pobres, se posicionam raivosamente contra o comunismo. Muitas delas, ao
mesmo tempo, sofrem terrivelmente, no corpo e na mente, toda a violência que
o capitalismo pratica contra o ser humano, sistema anti-humano que é. Muitas
delas sequer sabem o que é o tal do comunismo que tanto odeiam.
Eu vejo Offenhouse como a soma dessas características. Ele odeia qualquer
ideia que signifique dividir os seus bens (essa é a ideia que ele possivelmente
tem sobre o comunismo). Ao mesmo tempo, ele sofre de ansiedade, como fica
evidente no episódio, quando afastado do seu dinheiro. Isso é terrível, não é à
toa que ele morreu de um problema no coração. E isso também mostra
claramente que quem parece estar vivo é o objeto inanimado (dinheiro), que
suga sua vida ao dominá-lo como um escravo (Offenhouse).
E aí? Como ele se adaptará à nova situação? Ele não terá escolha, a não ser
que seja acolhido pelos ferengis. A única saída é que ele deixe o ódio e o
fetichismo de lado e se abra para o novo. Ele precisará ser educado, precisará
aprender sobre a superioridade da sociedade socialista sobre o capitalismo. Da
superioridade do bem coletivo sobre o individualismo egocêntrico. Da
superioridade da humanidade sobre o capital. Da superioridade de relações
humanas sobre as relações mediadas por coisas. Afinal, os próprios nomes dos
sistemas deixam claro em qual deles o ser humano é o fator principal.
Eu acredito fielmente que Offenhouse pode e será educado.
2
THE MEASURE OF A MAN

A reivindicação do reconhecimento de quem


está sob cláusulas de exclusão

É necessário a adoção absoluta do princípio de que nenhum homem, vermelho, negro ou branco que
seja, pode ser propriedade de seu semelhante.
Toussaint Louverture

Os homens nascem e são livres e iguais em direitos.


Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)

A Frota Estelar foi criada para procurar novas vidas. Ali está uma.
Picard

O valor de um homem diferente


The Measure of a Man é outro exemplo de ótimo episódio das temporadas
iniciais de Star Trek: The Next Generation. O episódio foi ao ar na segunda
temporada, que se caracteriza pela ausência da Dra. Beverly Crusher, devido a
problemas internos que fizeram a atriz Gates McFadden abandonar a série.
Durante a segunda temporada, a médica chefe da EnterpriseD foi a Dra.
Katherine Pulaski, interpretada por Diana Muldaur. A personagem foi uma
tentativa de imitar o Dr. McCoy da série clássica que acabou não dando muito
certo, facilitando o retorno de Crusher para a temporada seguinte. Todavia,
Pulaski tem algo a ver com o episódio sobre o qual tratarei nessa seção. A
nobre doutora sempre apresentou um viés preconceituoso com o que não fosse
humano, atingindo, portanto, o klingon Worf e, principalmente, o androide
Data, para o qual Pulaski negava a humanidade, enxergando-o apenas como
uma coisa.
Dessa forma, já é possível percebermos que Data não é visto como um
igual, em termos de direitos, todo o tempo ou por todo mundo. Muitas vezes,
até mesmo o capitão Picard, que depois se tornará um grande amigo de Data,
tem suas dúvidas sobre qual a verdadeira natureza daquele androide, com uma
certa síndrome de Pinóquio, que serve valorosamente na ponte da Enterprise.
No episódio piloto de The Next Generation, quando o primeiro oficial William
Riker encontra Data pela primeira vez, não deixa de demonstrar certo
desconforto pelo fato dele não ser humano. Porém, rapidamente essa
impressão é desfeita e ambos passam a formar uma ótima dupla nas missões
externas da tripulação.
Data também estabelecerá uma grande amizade com o engenheiro-chefe da
Enterprise Geordi La Forge. Talvez de todos os tripulantes que se tornam
próximos a Data, La Forge seja o que melhor o consegue compreender, pois,
apesar de ser humano, Geordi é cego de nascença e utiliza um dispositivo
chamado VISOR, para que possa enxergar. No entanto, o aparelho lhe
possibilita uma visão muito superior a proporcionada pelos olhos biológicos
dos seres humanos, sendo capaz de ver espectros eletromagnéticos e todo tipo
de radiação. Assim, Geordi também aparece como alguém diferente dos
outros, que tem na tecnologia, em seu próprio corpo, algo fundamental para
que possa viver e levar uma vida normal. Enquanto Data é um androide, La
Forge é quase um ciborgue.
Wesley Crusher, o menino-prodígio da nave, filho da Dra. Crusher, é outro
que se torna muito amigo de Data. Por sua grande inteligência, Wesley
também se sente, de alguma forma, diferente dos outros, condição que o torna
semelhante a Data, que pode executar incríveis 60 trilhões de operações por
segundo, utilizando sua memória de 800 quatrilhões de bits.
Data também acabou se envolvendo amorosamente ao longo de sua jornada
a bordo da Enterprise. Teve um romance que não deu certo com a tenente
Jenna D’Sora e uma relação sexual com a Rainha Borg, a qual afirmou ser
plenamente funcional e programado em dezenas de técnicas sexuais. Porém foi
somente com a tenente Tasha Yar, ainda na primeira temporada, que Data
encontrou um relacionamento mais importante para si. Não é à toa, que após a
morte de Yar, Data guardou com muito zelo um retrato da amiga que
considerava “íntima”.
Além disso, Data desenvolveu um grande amor por sua gata Spot (no início
era um gato, mas isso foi mudado para que ela pudesse dar cria em um
episódio). Em uma das cenas que mais me emocionam (pois assim como Data
sou apaixonado por gatos), Data, procurando Spot nos escombros da
EnterpriseD, destruída no filme Star Trek: Generations, ao encontrá-la a pega no
colo e chora feito um menino. Quase chorei só de lembrar e escrever essas
linhas.
Data ainda testará um chip de emoções, o que vai lhe causar sérios
problemas. Sabem por quê? Porque ele não precisa de um chip. Data, como
visto acima, possui muitas características humanas, características tais que
muitos humanos, de carne e osso não possuem. Data é um homem de muito
valor, melhor do que muita gente por aí

Cláusula de exclusão
A Enterprise chega à Base Estelar 173, construída nas proximidades da Zona
Neutra, devido à ameaça romulana que vimos na seção anterior. Lá, o capitão
Picard encontra uma velha conhecida, a agora procuradora-geral da Frota
Philippa Louvois, com a qual fica implícito que Picard teve um romance. O
que fica claro é que Louvois atuou como promotora na corte marcial
enfrentada pelo capitão quando do desaparecimento da nave onde exerceu seu
primeiro comando, a USS Stargazer. Louvois voltou à Frota, depois de um
afastamento involuntário, ocorrido após a corte marcial de Picard, e agora
encontra-se no espaço profundo, buscando criar legislação, fazer boas leis, em
suas palavras. O reencontro de ambos é recheado de tensão, inclusive sexual.
Nada como a mistura explosiva de sexo e poder, que parece ser o caso aqui.
No entanto, o encontro mais importante se dá com o comandante Bruce
Maddox, especialista em cibernética que chega à Enterprise com uma proposta
muito interessante, ao menos sob sua perspectiva: desmontar Data.
Maddox é obcecado pelo trabalho do Dr. Noonien Soong, “pai” de Data,
Lore e B-4, os três androides do mesmo modelo que aparecem em Star Trek.
Data, já sabemos, é o bonzinho. Lore é o malvado. E B-4 possui pouca
inteligência. Sendo assim, Maddox tem por objetivo criar um cérebro
positrônico funcional, algo que ninguém conseguiu executar, a não ser o Dr.
Soong. Para isso, ele precisa desmontar Data e obter o conhecimento a partir
da análise dos filamentos do seu córtex frontal. Contudo, logo se percebe que o
experimento de Maddox é mal planejado e não oferece garantias de que Data
sairá ileso do procedimento. A questão então começa a ficar clara: isso não
importa, já que Data não é considerado um ser senciente por Maddox. Além
do mais, e reforçando essa hipótese, o objetivo do comandante é criar
centenas, milhares de seres como Data, o que tem graves e profundas
implicações, que estão no centro da discussão apresentada pelo episódio. Data
é visto como um ferramenta a ser replicada.
Picard, ao reafirmar a importância e o valor de Data, não somente como
tripulante, mas como seu oficial da ponte, decide não autorizar que Maddox
realize o experimento em seu subordinado. Porém, Maddox havia se precavido
e trouxera uma ordem de transferência de comando, passando Data para sua
jurisdição, na Base Estelar 173. Nesse momento, não houve mais nada a ser
discutido, pois se tratava de uma ordem expedida pela Frota Estelar. Maddox,
vencedor nesse primeiro embate, ordenou que Data se apresentasse a ele nas
primeiras horas do dia seguinte para fossem iniciados os procedimentos.
A essa altura fica evidente que existe uma verdadeira cláusula de exclusão
não escrita para Data em relação aos direitos individuais garantidos para
todos os cidadãos da Federação. Temos apresentado nesse livro as
características desse mundo utópico, especialmente em contraste com o
mundo contemporâneo, o que nos revela como somos irracionais e como a
Federação representa uma meta a ser atingida pela humanidade, sob pena de
nossa autoextinção. No entanto, a própria Federação e a Frota Estelar
cometem seus pecados no paraíso, o que nos serve para vislumbrar que,
mesmo na utopia existem contradições. Certamente não as mesmas que
vigoram sob o capitalismo, mas contradições inerente a essa nova forma de
organização social. Contudo, a questão do Data, e sua exclusão dos direitos
humanos, é uma grande alegoria sobre a condição do ser humano não
pertencente às classes dominantes, que por isso mesmo, têm o poder de
escravizá-lo e de negar-lhe os direitos básicos.
Data, de mãos atadas sobre a transferência e a experiência na qual será uma
cobaia, procura seu capitão para informar que não se submeterá ao
procedimento, saindo da Frota Estelar. Picard, ainda não tendo percebido a
gravidade do que significa permitir que Data tome parte do experimento, tenta
argumentar, dizendo que seria muito bom possibilitar a criação de novos
androides. Data, então, aborda a questão de maneira precisa e contundente,
colocando um exemplo atordoante para Picard. Geordi possui a capacidade de
enxergar mais e melhor do que qualquer outro ser humano da Frota. Então,
por que não colocar implantes semelhantes aos seus em cada um dos oficiais?
A resposta é simples: os outros oficiais são humanos e isso jamais poderia ser
feito contra a vontade de alguém que possui direitos sobre sua vida, sobre seu
próprio corpo, sobre sua vontade. Essa conclusão nos leva a outra: o
procedimento de Maddox pode ser realizado, mesmo contra a vontade de Data,
pois ele não é humano. Logo, ele não se trata de um ser senciente, com
vontade, com direitos, com autodeterminação. Novamente salta aos olhos a
cláusula de exclusão imposta a Data.
Assim, vamos percebendo a sua situação. Data é um instrumentum vocale, é
uma ferramenta bípede, está pouco acima dos animais, que ainda hoje,
utilizamos para alimentação ou trabalho. Portanto, é negada a sua
individualidade, mesmo com a alardeada liberdade e igualdade que vigem sob
a bandeira da Federação. Lembremos, que mesmo no paraíso existem
problemas, mas que essa história é uma representação para que reflitamos
sobre se essa situação não ocorre ainda no mundo atual. A palavra-chave é
cláusula de exclusão. Será que não existem bilhões de seres humanos em pleno
século 21 que ainda se encontram totalmente privados de exercer seus direitos
individuais? Embora seus países apreciem ostentar que são livres e
democráticos, milhões de seus cidadãos passam fome, são doentes e não
encontram a saúde, são ignorantes e não têm acesso à educação. Isso não tem
a ver com esse episódio? A oposição entre a farsa da liberdade sob o
capitalismo e a realidade daqueles milhões que são miseráveis para que os
donos do poder sejam ricos.
Marx e Engels já revelavam no Manifesto Comunista a profunda hipocrisia
das sociedades democráticas liberais que fazem questão de bravatear que
somente nelas é possível o indivíduo viver e prosperar. Mas quem é esse
indivíduo de que se fala? Para os dois filósofos alemães “quando falais do
indivíduo quereis referir-se unicamente ao burguês, ao proprietário burguês”. Na
situação de Data encontramos o mesmo. Enquanto a individualidade é
garantida aos membros da Frota, ela é vedada aquele que não é considerado
humano.
Na sequência, sua liberdade é totalmente negada, pois se encontra uma
antiga lei (e isso é importante, pois representa um passado primitivo, e o
objetivo de Louvois é fazer novas leis) na qual Data é enquadrado como
propriedade da Frota Estelar. Daí em diante inicia-se a reivindicação pelo
reconhecimento de Data como um ser senciente e portador de direitos.

Um pedido de reconhecimento
Picard contesta a lei e se coloca na posição de defensor radical do
reconhecimento de Data como um igual. Louvois convoca uma audiência, no
entanto, como a Base Estelar 173 foi recentemente aberta, ainda não há
pessoal especializado que possa atuar como defesa e acusação. Nesse caso, ela
se vê obrigada a determinar que Picard atue na defesa de Data e Riker como
acusação. Will se nega a cumprir o papel de acusação, sob alegação de que não
aceita que Data seja apenas uma máquina e que é seu amigo. Mas não há saída,
caso ele não aceite a incumbência, Louvois julgará sumariamente de forma
contrária aos interesses de Data.
Riker acaba por exercer de maneira brilhante seu papel de acusador. Faz
Data entortar uma barra de metal extremamente resistente; retira seu braço,
para provar que é apenas hardware e software; e finalmente o desliga. Seu ponto
foi demonstrar que Data é fruto do sonho de um homem, construído por um
homem e que pode ser desligado por um homem. Isto é, Data é apenas uma
máquina. Portanto, a questão gira em torno de se definir se Data foi ou não
alçado à categoria de humano, da qual, única e exclusivamente, poderia fluir o
seu direito a ter direitos. Após tal impressionante demonstração, Picard pede
recesso e vai se aconselhar com sua boa amiga Guinan (muito melhor
conselheira que Deanna). Até mesmo nosso capitão humanista quase sai
convencido de que Data é apenas um objeto.
Nessa conversa, Picard se dá conte do que se trata realmente a questão
envolvendo o status jurídico de Data: escravidão. Ao se confirmar que Data é
uma propriedade da Frota Estelar, automaticamente, isso irá lhe conferir
maior valor (como objeto, evidentemente). Logo, Data sendo desmontado e
pesquisado, Maddox poderá dar início à construção de centenas, milhares de
Datas, criando assim uma nova raça. Uma raça que é propriedade da Frota
Estelar. Uma raça de seres descartáveis, que servem para fazer o serviço sujo,
perigoso ou aquele que ninguém mais quer fazer. Devemos lembrar que o
trabalho na sociedade representada pela Federação é muito diferente do
trabalho atual, já que o tempo livre é praticamente total em função do advento
dos replicadores. No entanto, um exército de Datas descartáveis ensejaria
novas possibilidades, que os direitos dos seres humanos, inconveniente,
vedam. Assim, o valor desses novos seres coisificados aumentaria
exponencialmente. Mas a que custo? Como a história julgaria a espécie
humana, mais uma vez se valendo – e a palavra é precisamente essa – da
escravidão?
É esse ponto que Picard leva quando retorna à audiência. Sua defesa de
Data se torna mais do que brilhante, ela é o ponto de delimitação do que
humanos podem ou não podem fazer em relação a outros humanos, ou, no
caso, androides. Define se haverá uma fronteira que separe a expansão da
liberdade para alguns e o cerceamento brutal dela para outros.
Para atingir seus objetivos, apresenta três objetos que Data possui. Um
pequeno quadro com suas medalhas e condecorações. É um símbolo de
vaidade. Um livro de Shakespeare, presente do capitão. É uma recordação de
amizade. Finalmente, um retrato de Tasha Yar, que Data guarda devido ela ser
especial para ele. Um objeto que simboliza o afeto ou o amor que sente por ela,
mesmo após sua morte. Uma simples máquina poderia carregar tais objetos,
tais lembranças, atribuindo simbolismos a cada um deles? Pois é justamente a
capacidade de pensar abstratamente e de criar e pensar em termos simbólicos
que distingue o ser humano de outros seres que não são tão conscientes
quanto ele. Picard daria um ótimo advogado se não houvesse escolhido a
carreira de capitão.
Tendo preparado o terreno, Picard parte para seu ataque mais agressivo.
Questiona Maddox sobre quais as características para que uma forma de vida
seja considerada senciente. O comandante diz que são três: inteligência,
autoconsciência e discernimento. Maddox é desafiado a provar que Picard é
senciente, pelo próprio capitão. O oficial considera isso um absurdo, porém,
fica claro a todos na audiência de que se não é necessário provar que um ser
humano é senciente tão pouco é preciso que se faça isso em relação a Data,
que indubitavelmente possui as três características.
Maddox assume finalmente que quer construir centenas ou milhares de
novos Datas. Esse é o ponto onde Picard finalmente pode dar seu golpe fatal: e
se criarmos todos esses androides não criaremos uma raça? Ao criarmos essa
raça não seremos julgados pelo modo como a trataremos? Touché. Os planos
de Maddox, por mais bem-intencionados que fossem, teriam resultados
catastróficos, tanto para quem criasse quanto para quem fosse criado. Seria o
fim da liberdade e da igualdade, dois pilares fundamentais da Federação.
A decisão ficou com Philippa Louvois, que conduzia a audiência. Ela revela
que não sabe quem ou o que Data é exatamente. Mas decide que ele não pode
ser considerado propriedade da Frota. Ela sabe que isso abriria um precedente
trágico, que colocaria em risco a utopia vivida por ela e por seus
contemporâneos. Ela traz uma questão metafísica, um pouco sem sentido, mas
que ilustra seu pensamento e torna mais didático para o público. Ela diz que
não sabe se Data tem uma alma. Para em seguida arrematar dizendo que
sequer pode saber se ela próprio possui uma. Acaba sendo uma referência a
todos os negros escravizados durantes séculos, onde os sacerdotes negavam
que aqueles seres humanos fossem providos de alma, funcionando assim como
uma justificativa ideológica para a escravidão. As mulheres mesmo, como
Louvois, já foram consideradas seres que não tinham alma.

“Não sou eu também um homem e um irmão?”


Esse é o título de um manifesto publicado em 1844 na Inglaterra em defesa dos
negros, que a essa altura tocavam o trabalho nas Américas, sobretudo nos
Estados Unidos e no Brasil, ambos responsáveis pela maior parte do tráfico
negreiro que vigorou durante vários séculos. A escravidão é uma prática que
existe deste a Antiguidade e ela surge paralelamente ao nascimento da
propriedade privada e ao surgimento da família nuclear e monogâmica.
Até então, os seres humanos viviam em comunidades onde as relações
sexuais eram realizadas de maneira poligâmica, de forma que a paternidade
das crianças era desconhecida, havendo, dessa forma, um direito materno
muito forte, que tornava o papel da mulher tão (às vezes até mais) importante
que o homem. A linhagem era matrilinear.
Com o surgimento da propriedade privada, isto é, terras, criações etc. é
necessário que o homem saiba quem são seus filhos, de modo que possa ter
certeza de que sua herança será administrada pela família e não pelos filhos de
outros homens. Como Engels afirmou, essa foi a grande derrota histórica do
sexo feminino, pois a mulher se tornou uma escrava doméstica, com a função
de cuidar do lar, parir e criar os filhos dos homens. Ao mesmo tempo, com o
surgimento da propriedade privada, um homem passou a ter mais terras e
animais do que podia controlar sozinho ou com a ajuda da família. Dessa
forma, surge a necessidade de mão de obra, que foi obtida através da
escravização de membros de outras tribos ou de prisioneiros de guerra.
Assim, foram estabelecidas as bases para a sociedade ocidental que
vigoram, em maior ou menor grau, até os dias de hoje. A utopia de Star Trek é
a superação final desse estado de coisas. Embora, como visto no episódio The
Measure of a Man, até mesmo no paraíso é preciso estar vigilante.
A escravidão existiu com força na Antiguidade, sobretudo entre os Gregos e
posteriormente em Roma. No entanto, era um modelo diferente do que
emergiu na modernidade, pois os escravos tinham uma liberdade relativa
muito maior, podendo inclusive se tornarem figuras de expressão na
sociedade. Muitos escravos eram artistas e até mesmo professores. Na Idade
Média, a escravidão desapareceu, dando lugar à servidão, que em última
análise não deixa de ser uma forma de escravidão. O cristianismo ajudou a
consolidar essa ordem estratificada, onde existiam nobres e clero no topo da
pirâmide e os pobres camponeses e artesãos na base. Para Deus, estes
deveriam se conformar com a má-sorte na Terra, não pecar e assim teriam um
paraíso pela frente por toda a eternidade. Imaginem essas pobres criaturas,
que durante séculos acreditaram nisso.
Na Modernidade, no momento de criação do capitalismo, ressurge a
escravidão, dessa vez muito mais virulenta do que aquela da Antiguidade.
Portanto, capitalismo e a escravidão negra são duas faces da mesma moeda,
nascem ao mesmo, da mesma barriga. Isso ocorre pois na expansão colonial
das grandes navegações, o ser humano habitante das Américas e da África foi
visto como um ser inferior, que poderia se tornar por isso, uma mercadoria e
em seguida um instrumento falante. Data foi visto de forma semelhante por
Maddox: uma máquina que poderia gerar outras milhares de máquinas úteis
para a Frota. O sentido é claro: as pessoas, na escravidão, são transformadas
em coisas.
No capitalismo, Marx chamou o trabalho de escravidão assalariada, pois o
trabalhador não tem alternativa a não ser se submeter a qualquer condição de
trabalho. Ou é isso ou é a morte por fome. Portanto, no capitalismo é possível
que os novos senhores tenham tanto poder sobre a vida e a morte dos
trabalhadores quanto os antigos senhores sobre seus escravos. Domenico
Losurdo, recorda brilhantemente, que nesse sistema se configura uma
totalidade social, que faz com o que o trabalhador viva sob “estrita
dependência” da burguesia, por não possuir outra forma de ganhar a vida,
trabalhando em instituições que se assemelham ao cárcere e vendendo sua
força de trabalho a compradores que se tornam, em última análise, “donos da
sua existência”.
Quando Marx faz a crítica dos processos de reificação (o humano tornado
coisa), ele se pronuncia sobre fenômenos correlatos ao contado nesse episódio,
já que na escravidão o ser humano é uma coisa e sob o capital há o predomínio
da coisa sobre o ser humano. Portanto, são sistemas que guardam muitas
semelhanças e que devem ser derrotados para sempre, pois, caso contrário, o
ser humano nunca será totalmente livre para viver em sua integralidade.
Os elementos desumanos (anti-humanos), os quais o episódio denuncia, são
a expressão exata das sociedades divididas em classes, onde uma classe tem
tudo e a outra nada possui. Onde uma parcela é livre e a outra é escrava. Por
isso, citando mais uma vez Marx, é “um imperativo categórico derrubar todas as
relações nas quais o homem é um ser degradado, sujeitado, abandonado, desprezível”.
Pois é exatamente isso que a luta por reconhecimento de Data – e a
consequente admissão de que ele também deve usufruir dos direitos de todos –
acaba por nos ensinar nesse episódio.
3
THE DRUMHEAD

O fascismo nunca morre, nem mesmo na


Federação

Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos,
dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos,
ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperai.
Franz Kafka (No conto “A Colônia Penal”, de 1919, antevendo o surgimento do fascismo)

A cadela do fascismo está sempre no cio.


Bertolt Brecht

Norah Satie, ou alguém como ela, sempre estará entre nós. Esperando o momento perfeito para
aparecer. Espalhando o medo em nome da justiça.
Picard

A Federação e seus oponentes


À altura da quarta temporada de Star Trek: The Next Generation, a Federação já
colecionou em sua história alguns grandes antagonistas como o Império
Klingon, o Império Romulano e a Coletividade Borg. O primeiro, após oferecer
grandes ameaças na era de Kirk e Spock, finalmente se tornou um aliado da
Federação, através dos Acordos de Khitomer, assinados na sequência dos
eventos mostrados no filme Star Trek 6: The Undiscovered Country. Nesse filme,
houve uma conspiração, de ambos os lados, com o objetivo de evitar a
aproximação entre as duas grandes potências. No entanto, os planos foram
frustrados pela tripulação da Enterprise original, na sua última aventura nas
telas do cinema. Na era de Picard, embora sempre com um mínimo de tensão
entre as partes, os klingons são amigos e não oferecem maiores preocupações.
Como exemplo claro disso, a EnterpriseD conta com um oficial de segurança
klingon.
Os borgs, inimigos criados pelos roteiristas de The Next Generation,
trouxeram verdadeiro horror para a Federação, não somente pelo seu potencial
bélico devastador, mas principalmente por suas intenções: acabar com o modo
de vida como conhecido pelos seus cidadãos. Os borgs são criaturas que
mesclam corpos orgânicos com implantes cibernéticos e por onde passam vão
assimilando todas as espécies que encontram, transformando-as em
integrantes do seu coletivo, sendo anulada qualquer forma de individualidade.
Para demonstrar de forma clara o tamanho dessa ameaça, foi escrito um
episódio em duas partes (The Best of Both Worlds), onde o capitão Picard em
pessoa foi assimilado, tornando-se um borg e conduzindo um ataque
devastador à Federação. Nessa batalha, conhecida como Batalha de Wolf 359,
quase 40 naves da Frota foram destruídas com um custo total de 11 mil vidas.
Jennifer Sisko, mulher do então comandante Benjamin Sisko, foi uma das
vítimas de Wolf 359, fato que posteriormente causaria atrito entre ele e Picard.
Aliás, é em Deep Space Nine que surgirá talvez a maior ameaça à Federação, o
Dominion, um poderoso império do Quadrante Gama.
No entanto, no episódio The Drumhead, são os romulanos que estão no
centro, servindo de pretexto para um verdadeiro Tribunal do Santo Ofício a
bordo da Enterprise. Vale lembrar que o Império Romulano havia sido
programado inicialmente em Next Generation como o grande vilão. No final do
episódio The Neutral Zone, por exemplo, que tratei no início do capítulo, é
criado um cliffhanger envolvendo a expectativa de conflitos com os romulanos
para a segunda temporada que no fim se tornaram esparsos fazendo com que a
série não seja lembrada por guerras épicas contra o Império Romulano,
digamos assim. No último filme da Nova Geração para o cinema, Star Trek:
Nemesis, Picard finalmente abre uma brecha importante de diálogo com eles,
fato que será explorado em Star Trek: Picard.
Mas o ponto de partida do episódio está na suspeita de que um cientista
klingon, chamado J’Dan, que se encontra fazendo intercâmbio na Enterprise,
tenha sabotado o reator de dobra da nave e transmitido informações sobre o
funcionamento desta para os romulanos. A partir de então, havendo indícios
que pode existir uma conspiração em curso, chega à Enterprise à almirante
Norah Satie, que já se encontra aposentada, no entanto é reconhecida por ter
ajudado a liquidar com a tentativa de invasão da Frota pelos alienígenas que
vemos no episódio Conspiracy, mencionado acima. Contudo, a almirante, que é
filha de um grande jurista, estudado na Academia e admirado por Picard, entra
numa espiral paranoica e persecutória que parece não ter fim. Auxiliada pelo
betazoide Sabin Genestra, Satie conduz uma verdadeira caça às bruxas dentro
da Enterprise, explicitando seu preconceito e sua tendência a condenar sem
provas. Tudo em nome da manutenção dos princípios da Federação.
O ponto que quero levantar é que, embora seja vista como o paraíso pelos
seus cidadãos, e que seja, no mundo real uma inspiração para a utopia que
buscamos concretizar, a Federação é ameaçada externamente e isso é
extremamente relevante para entendermos suas configurações políticas e
sociais. Se a base da realidade social atual é a contradição, é o conflito, na
utopia estes não desaparecem completamente. Eles são substituídos por novos
conflitos, novas contradições. A questão fundamental é sabermos lidar com os
novos conflitos utilizando novas soluções e não recorrendo a erros do passado
que levaram à Inquisição, ao macartismo, ao anticomunismo, ao fascismo e ao
nazismo.
Em primeiro lugar, devemos levar em consideração que uma organização
pacifista e interessada no aprimoramento social e individual de seus
habitantes, como a Federação, pode não ser a única a exercer influência na
região e pode sofrer pressão externa de outras organizações políticas que não
compartilham do mesmo amor pela paz ou pelos seus valores. É como
imaginarmos um país socialista em meio à grande maioria de países
capitalistas. Isso ocorreu com a União Soviética, por exemplo, e que no fim
soçobrou perante o Ocidente capitalista. Cuba é um outro grande exemplo, ao
fazer uma revolução de baixo para cima, que incluiu toda sua população, com
educação, saúde e moradia, mas não pode se desenvolver ainda mais devido às
eternas sanções do chamado “mundo livre”. Ambos os países precisaram
desenvolver estratégias para garantir sua sobrevivência, rodeados por países
hostis. Portanto, não podemos nos iludir e imaginar que a Federação pode
sobreviver se não houver um mínimo de vigilância sobre o que ocorre ao redor.
Identificar as ameaças é uma questão de sobrevivência. Mas isso não significa
que se pode utilizar todo e qualquer meio, sob pena de se cair no fascismo. É
basicamente esse o problema que o episódio The Drumhead nos apresenta.
Em segundo lugar, essa dinâmica política certamente encontra seu espelho
na população da Federação Unida de Planetas. Evidentemente não em toda
ela, talvez nem na maioria, mas uma parte sempre tenderá a apoiar medidas
mais duras contra supostas invasões, ataques ou interferências no andamento
normal das coisas. Alguns episódios mostram esse tipo de situação, como
Homefront e Paradise Lost, de Star Trek: Deep Space Nine, quando a Terra sofre
uma tentativa de invasão dos metamorfos do Quadrante Gama, e essa situação
enseja até mesmo a tentativa de um golpe militar por parte de oficiais da
Frota. O episódio Conspiracy, da primeira temporada de Next Generation tem
uma premissa semelhante, trazendo o tema de tomada do poder na Frota
Estelar a partir de dentro. Porém, Gene Roddenberry vetou que a situação
fosse mostrada como um golpe militar, assim, o roteiro foi modificado para
uma invasão alienígena. Já em Deep Space Nine, como Gene já havia falecido,
finalmente o plot foi desenvolvido, mostrando que até mesmo no paraíso
existem problemas.
Como visto, a Federação não é um sonho hippie de paz e amor universais. A
galáxia é grande e frequentemente perigosa, existindo as mais variadas
formações sociais e políticas. Portanto, vez que outra, a Federação será
ameaçada e terá de tomar medidas necessárias. Contudo, essa é uma questão
muito delicada, pois uma medida dura facilmente se torna uma medida
autoritária. Uma medida autoritária abre o caminho para medidas
discricionárias e fascistas. Aquilo que era apenas um meio de garantir a
segurança, se torna uma paranoia. Passa-se da simples precaução para a
certeza da conspiração. Então, em nome de se resguardar a liberdade e
proteger o paraíso, acaba-se cerceando a primeira e destruindo o segundo.

Espionagem triangular
A verdade é que existe uma complicada dinâmica nesse triângulo, nos quais os
vértices são a Federação, o Império Klingon e o Império Romulano. A disputa
por poder e por zonas de influência nos quadrantes Alfa e Beta
frequentemente provoca choques entre os três. Não é à toa, que o mais isolado
deles, o Império Romulano, tenha estabelecido uma Zona Neutra entre seu
espaço e o espaço das outras duas potências. Devido a esse estado de coisas, as
centrais de inteligência de todas as partes estão sempre em alerta, sobretudo o
temível Tal Shiar romulano, que procura estar a par do que ocorre nos centros
de poder das outras forças rivais. Essa dinâmica entre as três potências têm
como uma expressão impressionante o próprio J’Dan. Ele é klingon, mas atua
como espião dos romulanos para lutar contra a Federação.
Quando esse fato é comprovado, através de confissão do próprio espião, ele
revela para Worf (o qual considera um klingon aculturado pelos humanos) que
ele fazia isso pois os romulanos deixam os klingons fortes, ao contrário dos
humanos que os domesticariam. Apesar da argumentação de J’Dan pelo seu
ato de espionagem contra a Federação, é supreendente que um klingon se
porte dessa maneira frente aos romulanos, que são vistos pelos klingons em
geral como uma raça sem honra e traiçoeira.
O que importa é que essa descoberta implica em dois desdobramentos. A
primeira delas é o fato de que J’Dan pode ter contado com a ajuda de algum
tripulante da Enterprise, como veremos logo adiante. O segundo
desdobramento é que a investigação sobre o acidente do reator de dobra
assume um novo significado. Aparentemente, J’Dan ao mesmo tempo em que
enviava informações da Enterprise para os romulanos também agia como
sabotador, de forma a prejudicar uma nave da Frota Estelar. Ele nega ter
cometido esse ato, embora admita e inclusive argumente em defesa do fato de
ter se tornado um espião. Worf deseja que ele seja enviado a Qo’noS (mundo
natal dos klingons) para que sofra uma morte lenta e terrível. Mas a questão se
torna complexa: se J’Dan admite ter espionado por que ele negaria ter
sabotado o reator da nave?
A acurada investigação de Geordi e de Data chega à conclusão de que o que
houve no reator foi um acidente, nada mais que isso. Portanto, nada mais há
que se tratar nesse caso. J’Dan confessou e irá pagar pelo seu crime.

Suspeitas irracionais
Porém, a almirante Satie não se sente satisfeita e começa a ver cada vez mais
indícios de que existe uma conspiração a pleno vapor dentro da Enterprise.
Dessa forma, ela busca descobrir todas as pessoas que tiveram contato com o
cientista klingon, de maneira que o cerco vá se fechando e se possa chegar aos
conspiradores.
Na sua investigação, descobre que um dos assistentes da Dra. Crusher, um
jovem chamado Simon Tarses, havia aplicado algumas injeções em J’Dan
durante sua permanência a bordo, já que o klingon fazia tratamento síndrome
de Ba’ltmasor, que requer esse procedimento semanalmente. Como J’Dan
transformava os dados que obtinha em proteínas, podendo assim transportá-
los no corpo de alguém, sem deixar vestígios e sem que ao menos a pessoa
pudesse perceber, Tarses, torna-se, imediatamente um suspeito. É a senha para
que uma perseguição inquisitorial tenha início.
No primeiro interrogatório de Tarses, ficamos sabendo que ele nasceu na
colônia de Marte e que seu avô era vulcano. Genestra, o betazoide assistente
de Satie, afirma que o rapaz mentiu durante o interrogatório, que estava
nervoso e escondendo alguma coisa. Devido a isso Satie pretende restringir os
movimentos do tripulante enquanto segue a investigação. Picard se opõe
frontalmente a isso, já que considera a liberdade de Tarses, e o princípio de
presunção da inocência, mais importantes do que as desconfianças de Satie e
Genestra. Nesse ponto entra uma outra discussão bastante pertinente: é uma
atitude racional tomar decisões com base nas intuições de um betazoide?
Eu confesso que sempre me incomodou o fato de Deanna Troi ter um cargo
de conselheira, exercendo influência direta sobre o capitão. Mas não pelo fato
de ser uma conselheira, função que é, sem dúvida alguma, bastante importante
para quem precisa tomar decisões que envolvem a segurança da nave e de seus
tripulantes. Porém, não me parece algo racional que o capitão Picard – ou
qualquer outro – decidam o que fazer com base no que um betazoide sentiu ou
não sentiu em um oponente ou quem quer que seja. Esse tipo de coisa me
parece algo místico, que não tem nada a ver com as pretensões racionais e
científicas de Gene Roddenberry e Star Trek como um todo.
O fato é que exatamente essa questão é colocada no episódio de maneira
muito interessante. No diálogo onde Picard contesta Satie por ela colocar
suspeição sobre Tarses devido ao que Genestra sentiu durante o
interrogatório, o capitão percebe que ele mesmo já incorrera nesse erro e que
deveria reavaliar seu posicionamento dali por diante. Isto é, Picard percebeu
que não é algo racional confiar em algo tão extensivamente subjetivo como as
habilidades empatas dos betazoides.
É assim que notamos que as origens das crenças em ameaças mirabolantes
e conspirações estão sempre conectadas a impressões que não condizem com a
realidade. Muito pelo contrário, estão ligadas a mitos, sentimentos, sensações
etc. Usar o exemplo da intuição betazoide para ilustrar isso nesse episódio foi
genial.

Fascismo na Enterprise
Picard afirma que não irá tratar um homem como criminoso sem que haja uma
prova. Isso irrita profundamente a almirante, pois nos dá a impressão de que
para ela todo homem é culpado até se prove o contrário. Em tempos de
desespero, medidas desesperadas. Em nome da liberdade da Federação essa
mesma liberdade deve ser sacrificada momentaneamente (é o que os fascistas
sempre dizem). Dessa forma, os interrogatórios informais vão se tornando
verdadeiros julgamentos.
Picard lembra então dos julgamentos sumários ocorridos durante a
Segunda Guerra Mundial, chamados de Drumhead, palavra que servirá de
inspiração para o título do episódio. Eram cortes marciais, onde tudo se
resolvia muito rapidamente, sem o tempo necessário para se chegar a
conclusões satisfatórias sobre a culpa ou inocência do acusado. Na tradução da
Netflix o episódio recebeu o título de “Inquisição”, que eram os processos por
heresia ocorridos na Idade Média, onde pessoas eram simplesmente mortas
por não se enquadrarem nos preceitos religiosos da época. O episódio pode ser
visto também como uma alegoria ao macartismo, a perseguição tresloucada
aos comunistas nos Estados Unidos na década de 1950. No entanto, a
condução da investigação por Norah Satie vai tomando pouco a pouco
conotações de um outro fenômeno. Sua perseguição aos supostos
conspiradores vai adquirindo formas explicitamente fascistas.
Mas o que é o fascismo?
Essa palavra foi vulgarizada, usada frequentemente nos debates políticos,
onde a esquerda costuma rotular a direita de fascista. Às vezes até mesmo
políticos de centro são taxados de fascistas. Isso é muito contraproducente, e
quem é de esquerda, quem é marxista, deve saber que os conceitos devem ser
utilizados de maneira precisa.
O fascismo surge como movimento político na Itália, com o fim da
Primeira Guerra Mundial. Os italianos, que haviam mudado de lado, sob a
promessa de receber sua parte na divisão do mundo pelo imperialismo,
acabaram não recebendo o que esperavam. Por isso, sentiram-se enganados
pelas potências vencedoras da guerra. Um ex-socialista, Benito Mussolini,
pegou alguns elementos do marxismo, interpretou-os de maneira distorcida e
adaptou-os de acordo com as conveniências políticas do momento. O fascismo
é sempre pragmático. Então ele vendeu para os italianos, esfarrapados pela
guerra, a ideia de que a Itália era uma nação proletária, explorada pelas nações
burguesas. Criou uma luta de classes entre nações que na verdade são todas
exploradoras. Esse foi um primeiro passo para eliminar a diferença dentro da
Itália, fazendo o pobre acreditar que era tão vítima e explorado quanto o rico.
O segundo passo nessa astuta manipulação política foi criar o mito da
pátria. Não há nada mais importante que a pátria para o fascista. Assim,
recorreu ao antigo Império Romano, fazendo os italianos crerem que eram
seus descendentes diretos e por isso lhes cabia conquistar o poder perdido. Foi
da Roma Antiga que criou o termo fascismo. Na época dos césares, os
funcionários que precediam os magistrados carregavam machados com cabos
compridos que eram amarrados por um feixe (fascio) de varas. O machado
representava o poder de Roma, o feixe a união do povo em torno de seu líder.
Estavam dados os elementos que constituiriam um dos movimentos políticos
mais importantes do século 20 e que influenciou determinantemente o
nazismo.
Portanto, o fascismo aproveita a tendência natural do ser humano de querer
viver sob uma comunidade, que nesse caso é essa construção artificial
chamada pátria, para mobilizá-lo constantemente contra seus inimigos
externos e ocultar os conflitos internos. Para isso, utiliza a censura, a tortura,
os julgamentos sumários e os assassinatos. Em suma, espalha o medo de duas
formas: do inimigo e do regime. O fascismo é pura violência contra quem
pensa diferente. Assim, a pátria é o ente pelo qual todos devem viver e morrer.
O modo de vida da nação deve ser mantido a todo custo. A ordem é superior à
liberdade.
A Federação, que na verdade é a soma de 150 planetas, infinitamente
diversos em suas línguas, culturas e espécies, é, para Satie, a pátria. E quem
não for pertencente a ela ou se coloque contra ao que se determinou como
seus valores e princípios estará condenado como traidor. O fato é que Satie e
Genestra passam a agir de maneira fascista: agora vale usar qualquer meio
para proteger a Federação - esse ente único e homogêneo, em sua visão - de
qualquer agressão externa. Para isso não importa que a lei seja atropelada e os
devidos freios institucionais que garantem as liberdades individuais sejam
desrespeitados. É em nome deles, afinal, que todos os procedimentos de
segurança são feitos. Para a almirante, a Federação é a grande pátria, maior
que o indíviduo, maior que a sociedade. Essa é uma característica fundamental
do fascismo, a absorção do social pelo nacional.
Na sequência passa-se a atribuir condutas individuais com base em
questões de ordem familiar, genética ou até mesmo eventos traumáticos. No
fascismo o filho paga pelos pecados do pai. Worf é questionado por
supostamente seu pai ter colaborado com romulanos e por esse fato não teria
agido de maneira correta quando Picard deu abrigo a uma romulana a bordo
da Enterprise. Tarses é tido como culpado por espionagem e conspiração por
ter mentido ao entrar na Frota sobre a verdadeira origem de seu avô, que era
romulano e não vulcano. Até mesmo o fato de Picard ter sido assimilado pelos
borgs é colocado em pauta, com a almirante tentando promover sua execração
pública: “como você pode dormir à noite com tantas mortes?”, referindo-se à
Batalha de Wolf 359.
Ou seja, não há escapatória, pois, no modus operandi fascista, sempre se
poderá encontrar algo que incrimine aquele que se apresente como “desleal”
em relação à pátria e aqueles que zelam por sua grandeza. Picard, por não
acatar os métodos que ele considera antiéticos e imorais (e isso é dito sem
rodeios para Satie), é visto como mais um integrante da conspiração que
ocorre com o objetivo de acabar com a Federação.
Para Satie, todos devem pensar da mesma forma, todos devem estar
engajados na luta contra o inimigo romulano que já se encontra infiltrado
dentro da Frota, seja por ascendência familiar, seja por eventos ocorridos na
nave e totalmente descontextualizados. O fascismo, como ideologia
antidemocrática, não admite o dissenso. O menor contato com um romulano,
mesmo que de maneira indireta, serve para se constatar uma associação com
eles que tem por objetivo trair os princípios da Federação.
Picard então, durante seu interrogatório, cita o pai da almirante:

Com o primeiro elo, uma cadeia é forjada. O primeiro discurso censurado, o


primeiro pensamento proibido, a primeira liberdade negada, prende a todos nós de
forma irrevogável.
O próprio pai condena a filha. Não é possível garantir a liberdade se ela for
cerceada para isso. É um paradoxo que Satie não percebe, fanatizada pelo
desmascaramento de uma conspiração inexistente. Picard arremata dizendo
que no primeiro dia que a liberdade de alguém é pisada todos correm perigo.
Satie é confrontada com a razão e exposta em sua irracionalidade.
Satie perde completamente o discernimento da realidade e, ultrajada pela
menção ao seu pai, faz um discurso totalmente fascista, no qual revela que se
tratava de destruir Picard por acreditar que ele tentava destruir a Federação.
Pouco a pouco todos abandonam a sala de audiências e Satie termina sozinha.
Dessa vez o fascismo não avançou.

O fascismo está sempre à espreita


Mesmo no paraíso existem perigos. Mesmo na utopia existem contradições e
conflitos que podem nos levar a situações trágicas. O fascismo está sempre sob
a superfície, esperando o momento perfeito para voltar a atacar. Não importa
como ele se apresente, seja com a cara de Mussolini, Hitler, Franco, Salazar, ou
em sua versão tupiniquim, na figura grotesca e vulgar de Bolsonaro, o
fascismo sempre explorará o medo das pessoas para que possa acabar com a
liberdade. Construirá a imagem de que o povo sobre o qual coloca suas garras
é um só e que deve estar preparado para reagir aos seus inimigos, também
elaborados artificialmente. Para isso não pode haver contestação ao líder ou
líderes. Tudo que contrariar as suas vontades deve ser eliminado sob pena de
comprometer a nação.
Até mesmo Worf havia acreditado inicialmente em Satie, chegando a
conduzir uma entusiasmada investigação sobre Simon Tarses. No término da
história ele percebe atônito o erro que cometera. O fascismo só pode prosperar
em determinadas condições históricas. A principal delas é o medo. O medo
daquilo que é diferente. O medo de que as coisas possam mudar para pior. O
fascismo, apesar de apresentar-se como moderno, é eminentemente
conservador, pois é fruto do capital e portanto desejoso de manter os
privilégios das classes dominantes. Worf, como klingon típico, odeia os
romulanos. Logo, para ele foi fácil aceitar a tese de que estes estavam
conspirando contra a Federação. É desse forma que o fascismo opera: busca
sua força em nossos ódios e medos.
Quando o capital não consegue resolver por si só os seus problemas,
quando seus ganhos, mesmo que minimamente, são ameaçados, quando surge
a possibilidade da esquerda manter-se no poder mais do que o admissível, o
fascismo entra no seu horizonte de soluções. Foi assim na Itália para combater
os comunistas e da mesma forma na Alemanha, que radicalizou ainda mais os
ensinamentos de Mussolini, incluindo, além da pátria, a questão racial.
No Brasil de hoje o fascismo vem sendo construído lentamente. Cada vez
mais se recorre ao mito da pátria. Cada vez mais se tenta silenciar
agressivamente quem o denuncia ou quem se situa na esquerda. E cada vez
mais a justiça é usada para espalhar o medo. Muitas vezes nem é preciso ser de
esquerda ou militante, o fascismo brasileiro vem conduzindo a sua guerra
santa, a sua cruzada, contra a ciência, contra o conhecimento. Eles pretendem
declarar a vitória do obscurantismo.
Por isso é que precisamos estar sempre vigilantes, como Picard ensina para
Worf no final do episódio. Se até na utopia da Federação o fascismo voltou a
dar as caras, imagine no mundo real e atual, num país, infelizmente, ainda tão
atrasado como o Brasil. Aqui temos um terreno fértil para que essa praga
prospere. É por isso que precisamos nos manter de olhos bem abertos. Esse
livro é uma forma de lutar, não somente contra o capitalismo, mas contra o
fascismo, que terrivelmente volta a mostrar os dentes.
4
THE OUTCAST

A exclusão das minorias serve à manutenção


da ordem

Os jovens que ainda estão incertos da sua identidade, muitas vezes experimentam uma sucessão de
máscaras na esperança de encontrar o caminho que lhes convém – aquele, na verdade, que não é uma
máscara.
W. H. Auden

De costume a crime
Enquanto escrevo chega a notícia de que o prefeito-bispo do Rio de Janeiro
mandou fiscais procurarem e recolherem na Bienal do Livro uma HQ da
Marvel que mostra, em uma única página, dois personagens do sexo masculino
se beijando. A realidade sempre supera a ficção, não adianta. Às vezes acho
muito mais fácil acreditar em um ferengi que não gosta de lucrar do que nas
coisas que acontecem no Brasil no século 21. Mas essas coisas têm causas bem
determinadas, são reflexos das condições materiais atrasadas da sociedade
brasileira. Estamos entrando em uma teocracia obscurantista e fascistóide. É
um caminho extremamente perigoso e que ainda vai durar muito tempo.
Infelizmente, essa é a verdade. Precisamos lutar, mas é uma luta de David
contra Golias.
Homofobia é crime no Brasil desde junho de 2019, quando o Supremo
Tribunal Federal determinou que a discriminação por orientação sexual ou
identidade de gênero é tão grave quanto o racismo. É um grande avanço, sem
dúvida. Mas leis não mudam comportamentos. Podem auxiliar na conduta
pública, porém, dentro de casa, é muito provável que pais continuem
ensinando seus filhos que o relacionamento amoroso entre duas pessoas do
mesmo sexo é uma abominação. Sobretudo no contexto teocrático em que
vivemos, onde as igrejas evangélicas ocuparam espaços que deveriam
pertencer aos educadores. Basta ver que um representante do povo, não
cumpre a lei, e, em nome da sua crença absurda, determina a censura e a
apreensão de uma publicação que o ofende.
A homofobia, que foi naturalizada, que sempre foi um costume, através de
piadinhas, por exemplo, que ajudaram a perpetuar o preconceito e o ódio
contra a comunidade LGBT, agora é oficialmente considerada crime. No
entanto, continua sendo estimulada por meio da utilização de textos bíblicos
escritos há milhares de anos e que não têm mais nenhum sentido no mundo
moderno. Continua sendo um tabu e condenada pela tradição. Essa é a história
que o episódio The Outcast, da quinta temporada de Star Trek: The Next
Generation, nos apresenta.

Os j’naii
Tudo começa quando uma raça andrógina chamada j’naii procura a Frota em
busca de ajuda para encontrar uma de suas naves auxiliares que foi perdida em
uma região desconhecida do espaço. Para isso, sobem a bordo da Enterprise
alguns de seus cientistas, com destaque para a personagem central do
episódio, a piloto Soren. O primeiro oficial William Riker ficará encarregado
de trabalhar junto a Soren nessa missão, fato que aproximará os dois, fazendo
surgir um interesse amoroso recíproco. Riker, que foi pensando inicialmente
como uma espécie de Kirk da Nova Geração, é um personagem conhecido por
seus galanteios e conquistas amorosas casuais. Contudo, dessa vez, Riker se
apaixonará de verdade, nessa história que é trágica.
Os j’naii são uma espécie que têm como principal característica não possuir
gênero definido. Portanto, em sua sociedade os conceitos de homem e mulher,
hétero e homossexualidade não fazem sentido algum. Porém, isso não impede
que eles possuam tabus, preconceitos e rígido controle sobre o exercício da
sexualidade. Um exemplo importante está no fato de que é inadmissível para
um j’naii manter relações sexuais com um ser que possua gênero definido.
O contato com uma espécie sem gênero se mostra complicado no início, ao
menos da questão da linguagem. Não é correto se referir a um utilizando
pronomes masculinos ou femininos, o que acaba dificultando as coisas para
quem conversa com um deles. Soren explica para Riker que eles (ops...)
utilizam um pronome neutro, mas que evidentemente não existe tradução para
o inglês. Riker, por sua vez, pergunta se deveria usar “it”, que significa “coisa”,
portanto de improvável uso, já que soaria grosseiro. Essa dificuldade se
apresenta inclusive nesse texto, já que não há alternativa entre o uso de ele ou
ela para nos referirmos aos j’naii.
Essa é uma das questões discutidas entre os ativistas da causa LGBT, na
tentativa de utilizar uma linguagem mais inclusiva. Usar o x no lugar do a ou
do o no término das palavras ou então a letra e, são algumas das formas que
foram pensadas para resolver o problema. Porém, isso acaba gerando um novo
problema, que é a exclusão das pessoas com baixa instrução, que, se já
encontram certa dificuldade no uso da norma culta, teriam mais um obstáculo
pela frente, quando confrontadas com essa nova forma de escrita. Haveria
inclusão formal por um lado e exclusão por outro. Portanto, esse é um dos
pontos que comprovam que não adianta pensar a questão de gênero como algo
isolado. É necessário que ela esteja inserida no contexto da opressão da
espécie humana como um todo, que é fruto da divisão da sociedade em classes
sociais.

A ideia de gênero e da falta de gênero


Acho que é importante mencionar o fato de que Soren é interpretada por uma
atriz. Anos depois, Jonathan Frakes, que interpreta William Riker, afirmou que
um dos erros do episódio foi não ter escalado um ator para o papel de Soren, já
que a metáfora contida em The Outcast diz respeito ao relacionamento entre
duas pessoas do mesmo sexo. Riker não perde tempo e convida Soren para
jantar, onde irá ocorrer uma conversa muito interessante sobre as diferenças
entre uma sociedade sem gênero, como a dos j’naii, e uma dividida entre
homens e mulheres como a humana.
Riker e Soren tentam ensinar um para o outro como é o seu próprio mundo
e chegam à conclusão de que não existem tantas diferenças assim. Existem os
mesmos conflitos e outros aspectos culturais que comprovam isso. Riker fala
em “guerra dos sexos”. Soren diz que os j’naii são muito autoconfiantes,
portanto adoram uma boa briga. Falam sobre o ato de dançar. Segundo Riker
quem conduz a dança e o homem. Entre os j’naii quem conduz é o mais alto. A
ideia de falta de gênero começa a se tornar menos misteriosa para Riker, que
representa nessa cena o humano sem preconceitos, aberto ao conhecimento e
à diversidade.
Soren apresenta curiosidade sobre os órgãos sexuais humanos, pois para os
j’naii o acasalamento, embora seja prazeroso também, é bastante diferente. A
questão mais importante do episódio vai sendo apresentada pouco a pouco.
Para os j’naii a divisão em gêneros é algo extremamente primitivo, que foi
superada por eles há muito tempo. A simples ideia de uma sociedade baseada
nisso lhes é completamente ofensiva e repulsiva. Estamos nos reconhecendo
agora nos j’naii, já que para muitos humanos do presente a ideia de alguém
sem gênero definido, ou de alguém que manifeste interesse pelo mesmo sexo, é
absurda e deve ser combatida por ser considerada imoralidade e perversão.
Há outra cena fantástica, que busca retratar o pensamento típico de um
preconceituoso. Worf é escolhido para representar esse papel. Sobre os j’naii,
diz que o deixam perturbado, por serem todos iguais, sem gênero definido.
Troi, corretamente, lembra que para eles os humanos e os klingons certamente
parecem muito estranhos. É uma questão de perspectiva e também de falta de
tolerância com o diferente. Além disso, Worf ainda expressa alguns
comentários machistas. É o pacote completo, pois o racismo também está
implícito em seu comentário sobre os j’naii. Para fechar, quando Dra. Beverly
Crusher, em uma pequena inconfidência, comenta que Soren aparentemente
está interessada por Riker, Worf rebate: “Um humano e um j’naii? Impossível!”
Quando perguntado qual o motivo para isso, desconversa e não responde.
Ou seja, sua posição é absolutamente irracional, assim como a de todo
preconceituoso, não podendo ser expressa em termos racionais. Uma cena
antológica.

Soren tem gênero


Soren finalmente revela a Riker que tem interesse por ele. Explica que entre os
j’naii existe um percentual de pessoas que apresentam inclinações masculinas
ou femininas, sendo ela situada nesta última. No entanto, fala sobre seu temor
de ser punida, já que os j’naii que apresentam esta orientação devem viver
escondidos (em termos coloquiais: dentro do armário) para não serem
humilhados e ridicularizados. E ainda mais grave: para não sofrerem terapias
psicológicas compulsórias que busquem reverter sua tendência natural. Se
você pensou na famigerada “cura gay” propalada por inúmeros obscurantistas,
você fez a associação correta.
O episódio nos mostra uma incrível inversão para que possamos constatar,
de maneira mais clara, nossos preconceitos e como eles são cruéis. Enquanto
na Terra, onde existem dois gêneros, o absurdo é não ter um ou, mais
específico na mensagem do episódio, optar por se relacionar com alguém do
mesmo sexo, no planeta de Soren, onde todos são do mesmo gênero, o
chocante é possuir um e se relacionar com o gênero oposto.
Quando Soren fala que sua raça superou a divisão de gêneros, claramente
percebemos que se trata de uma construção social. Entre os humanos, é
evidente que existe a diferença biológica, mas em grande medida os gêneros
são construídos pela tradição. Um exemplo: meninos brincam de carrinhos,
meninas brincam de bonecas. Isso é uma maneira de perpetuar a divisão
sexual, divisão do trabalho por gênero inclusive, onde o homem sai às ruas em
busca de sustento para a família e a mulher fica em casa cuidando dos filhos.
Carrinhos e bonecas são o treinamento desde tenra idade para isso.
Portanto, grande parcela da identificação como mulher ou como homem
vem de fatores externos, que transcendem a questão biológica. Como
construção histórica e social, existem regras baseadas na tradição. Dessa
forma, aqueles que ousam transgredir as normas sociais estabelecidas devem
ser punidos. Ou devem se manter nas sombras, sob pena de serem castigados
moral e fisicamente. É uma forma de controle do corpo.
Nas sociedades divididas por classes isso sempre existirá, pois o corpo,
como propriedade daqueles que detêm os modos do produção materiais e
espirituais, deve ser controlado rigidamente. Pois é justamente essa lógica do
controle sobre os indivíduos que atinge com mais força os considerados mais
fracos. As mulheres, por serem propriedades do pai, do marido e depois dos
filhos. E os homossexuais, por sua simples existência, que caracteriza uma
ofensa imperdoável contra a moralidade vigente. Moralidade que advém da
necessidade de controle das instituições dominantes como a família e a igreja
para que a estabilidade seja mantida. E a chave é isso, a manutenção do status
quo, que é defendido com unhas e dentes pelos conservadores. Entre os j’naii
ocorre exatamente esse processo de vigilância social sobre aqueles que se
demonstram diferentes do esperado pela sociedade. Soren, ao manifestar o
gênero feminino, coloca em risco a ordem vigente dos j’naii.

Antinatural
Após cumprirem com sucesso a missão de resgate dos tripulantes da nave
auxiliar j’naii, Soren e Riker ficam juntos. No entanto, os j’naii, que desde o
início do episódio demonstram realizar estrita vigilância sobre Soren,
descobrem e a prendem. Monta-se uma espécie de tribunal, onde é exigido que
ela faça uma confissão, para que as medidas corretivas sejam aplicadas. O
tribunal se assemelha a um verdadeiro ofício da Santa Inquisição, com uma
audiência pública a qual espetaculariza o processo punitivo, a fim de que sirva
de alerta para outros na mesma situação de Soren.
Riker procura intervir e mente para a juíza que tudo era sua culpa. Ela
lamenta e argumenta para o comandante que os j’naii não são pessoas cruéis e
repressivas. Mas isso não é verdade. Crueldade e repressão são pilares daquela
sociedade, pois sem eles, a heterossexualidade não seria considerada uma
doença e assim haveria a subversão da ordem no planeta. Riker continua em
seu apelo e diz que insistiu na relação com Soren, que teria recusado em se
relacionar com ele. No entanto, sua tentativa de salvá-la se revela inútil.
Questionada se o que Riker afirma é a verdade, Soren, cansada de viver uma
vida de mentiras, revoltada com a injustiça que ela e outros como ele sofrem,
faz um discurso impressionante:

Eu sou mulher. Eu nasci assim. Eu tive esses sentimentos, esses anseios, toda a
minha vida. Isso não é antinatural. Não estou doente por me sentir assim. Eu não
preciso ser ajudada. Eu não preciso ser curada. O que eu preciso, e todos aqueles que
são como eu precisam, é a sua compreensão. E sua compaixão. Nós não os
prejudicamos de qualquer maneira. E, contudo, somos desprezados e atacados. E tudo
porque somos diferentes. O que fazemos não é diferente do que vocês fazem. Nós
falamos e rimos. Nós reclamamos do trabalho. E nos preocupamos com a velhice.
Falamos sobre nossas famílias e nos preocupamos com o futuro. E choramos com o
outro quando as coisas parecem sem esperança. Todas as coisas amáveis que vocês
fazem uns com os outros nós também fazemos. E por isso somos chamados de
desajustados, desviados e criminosos. Que direito você tem de nos punir? Que direito
você tem de nos mudar? O que faz você achar que pode ditar a forma como as pessoas
se amam?

Soren joga a luz de uma supernova sobre a questão. É um dos discursos


mais fortes e importantes da história de Star Trek. Uma fala poderosa sobre os
direitos fundamentais que qualquer ser humano tem. Se algum trekker ainda
mantiver um comportamento homofóbico após essa cena pungente é porque é
muito burro e insensível.
A grande sacada do seu discurso é que Soren reverte a ideia de que a sua
heterossexualidade (a metáfora para a homossexualidade no mundo real) é
antinatural, demonstrando que, pelo contrário, é algo natural, com o qual ela
nasceu. Sentir atração por um determinado sexo é, comprovadamente, um
instinto natural, mesmo com toda a questão sobre o fator social na construção
dos gêneros. Gênero tem muito mais a ver com conduta social do que com
tesão, por exemplo. Tem a ver com roupas diferentes para homens e mulheres
e papéis sociais distintos. O fato é que Soren, desde muito jovem, se reconhece
como do sexo feminino, sentindo atração pelos j’naii que se manifestaram
como indivíduos masculinos. Isso não é algo a ser escondido ou depreciado. É
uma condição objetiva, que não causa mal a ninguém. Mas essa é um problema
que enseja outra discussão.
Soren afirma em seu discurso que aqueles j’naii que apresentam uma
sexualidade diferente não prejudicam os outros de maneira alguma. Isso é
verdade. Mas não se trata disso. O racismo, o machismo e a homofobia não se
tratam disso. Não têm relação com fazer mal a alguém. O grande prejuízo que
o negro, a mulher e homossexual podem causar é à sociedade que conhecemos
e que devemos lutar por sua superação. Mais precisamente à estrutura social
artificial que vigora onde negros são inferiores a brancos, mulheres
submetidas aos homens e homossexuais aberrações antinaturais. Essa
estrutura deve ser mantida a todo custo por aqueles que estão no seu topo.
Aqueles que oprimem e não são oprimidos. Por isso todo movimento de
direita, que sempre está ligado ao poder, é conservador e sempre recorre à
pátria, à religião, à moral, aos bons costumes, esses grandes aparatos
ideológicos que perpetuam a dominação e o preconceito. Entre os j’naii ocorre
o mesmo. A ordem estabelecida há séculos determina que não existem
gêneros. O que não é errado a priori, pois cada sociedade pode optar pela
melhor forma de viver. Portanto, a simples existência de alguém como Soren é
um grande perigo. É subversivo. Pode fazer ruir a sociedade calcada sobre a
opressão.
Dessa forma, é absolutamente necessário que essa ameaça seja
neutralizada, em primeiro lugar para que o indivíduo abandone a prática
considerada imoral. Em segundo lugar para que sirva de exemplo, coagindo os
outros que são iguais e estimulando a sua confissão e consequente cura. A
ideia é que a pessoa seja normal. Pois ao exercitar tal tipo de sexualidade ela se
torna anormal. Mas quem decide o que é normal? Aqueles que lutam para
manter a estrutura social excludente e conservadora. O homossexual é
excluído, assim como Soren também é. Ela precisou esconder durante a vida
inteira sua verdadeira natureza. Não podia correr o risco de ser estigmatizada
como depravada.
Porém, Soren é presa e encaminhada para o tratamento de sua “doença”. A
juíza afirma que todos que passam pelo procedimento se tornam muito felizes
por finalmente serem normais. Contudo, Riker não se conforma e decide agir,
planejando resgatar Soren e lhe dar asilo na Enterprise. Ele realmente a amou.
De maneira surpreendente, Worf o procura e oferece ajuda. Lembremos que o
personagem representava o preconceito, mas ao procurar Riker e, como seu
amigo, colocar em risco sua carreira na Frota para o ajudar, ele passa a
representar a superação do preconceito. Todavia, ao chegar ao planeta e
contatar Soren, Riker descobre que ela mudou. Ela afirma que estava errada e
pede desculpas por tê-lo envolvido na história. Soren havia passado pelo
procedimento e se tornara uma j’naii sem gênero definido, como exigido por
sua sociedade.
Passado, presente, utopia e lutas
Essa pequena e genial fábula sobre o preconceito contra os homossexuais e sua
consequente exclusão da sociedade é um dos momentos altos de Star Trek.
Como de hábito, um raça alienígena é usada como espelho da humanidade e
coloca em evidência os grandes contrastes entre a utopia que representa a
Federação e o nosso presente. Nos j’naii vimos como as estruturas sociais
herdadas do passado agem como um pesadelo sobre os que vivem no presente.
Portanto, é fundamental que deixemos de olhar para o passado como modelo a
ser seguido cegamente e olhemos para o futuro, para a utopia a ser alcançada.
Certamente, nos últimos 50 anos a questão dos direitos dos homossexuais
foi colocada em pauta e, por conta disso, muitos avanços foram obtidos. Não
somente nos aspectos legais, mas na sociedade como um todo, que passou a
ser mais tolerante. Mas ainda há muito o que trilhar. A homofobia, assim
como a transfobia, são dados concretos da realidade brasileira. O Brasil é o
país que mais mata transexuais no mundo. Esse é um dado estarrecedor e que
deve nos encher de vergonha.
Hoje em dia vemos a todo momento grandes empresas, bancos, canais de
televisão, redes sociais etc. estamparem a bandeira colorida do movimento
LGBT. Ao mesmo tempo, também os vemos lançar hashtags e slogans
promovendo loas à diversidade e à igualdade. Não podemos nos deixar
enganar. Os grandes conglomerados capitalistas não têm interesse algum na
igualdade, que é a bandeira máxima dos comunistas. Seus objetivos são cínicos
e situacionais: faturar em cima de algo que está na moda, isto é, que tem sido
discutido pela sociedade e assim arrecadar o chamado pink money. No
capitalismo tudo é comercializável, qualquer coisa pode virar mercadoria,
inclusive a luta por direitos. Igualmente, essa publicidade, nem um pouco
desinteressada, contribui para esvaziar e exercer controle sobre as
reivindicações. Para que elas se tornem pautas individuais e não sociais.
Se a luta por direitos dos homossexuais, e em um grau muito menor, das
mulheres e dos negros aparece nas propagandas, é porque elas foram
institucionalizadas, pela própria estrutura que criou a opressão. Acaba
contentando o público, que esquece os números da violência contra as
minorias sociais, as suas dificuldades no mundo do trabalho etc. Vale destacar
que essas grandes empresas só apoiam a luta contra a discriminação dos
homossexuais pois esse tipo de opressão não surgiu a partir da divisão do
trabalho, como ocorre com os negros (escravidão) e mulheres (escravidão
doméstica). Simone de Beauvoir, muito acertadamente, disse que basta uma
crise para que as mulheres sejam as primeiras a perder seus direitos. Serve
para negros e homossexuais.
Devemos ficar alertas e não esquecer que essas lutas não são individuais,
elas são uma luta de grupos sociais, que devem se organizar e ter em seu
horizonte, sem perder sua importância como grupo, a luta de classes, o motor
da história. Com a derrubada do capitalismo todas as outras opressões caem
junto. Soren, lutando individualmente, foi esmagada e se tornou apenas mais
uma vítima de um sistema excludente e opressor.
III
Deep Space Nine: Star Trek com guerra e
religião

A coisa mais importante a entender sobre os seres humanos é que o desconhecido define nossa
existência. Estamos constantemente procurando, não apenas respostas a nossas perguntas, mas novas
perguntas. Somos exploradores. Exploramos nossas vidas dia a dia, e exploramos a galáxia, tentando
descobrir as fronteiras de nosso conhecimento, e é por isso que estou aqui - não para conquistá-los com
armas ou ideias, mas para coexistir... e aprender.
Benjamin Sisko

Nossa religião é a única coisa capaz de manter meu povo unido.


Kira Nerys

Conclamo os cardassianos em toda parte. Resistam. Resistam hoje. Resistam amanhã. Resistam até que
o último soldado do Dominion seja expulso do nosso solo.
Damar

Deep Space Nine foi a síntese das suas antecessoras


Quando Star Trek: Deep Space Nine foi ao ar pela primeira vez, em 3 de janeiro
de 1993, com o episódio duplo intitulado Emissary, houve um choque
generalizado entre os trekkers. Como de costume, as reclamações foram
enormes. Se mesmo em relação à espetacular The Next Generation muitos fãs
puristas haviam ficado incomodados com as novidades, imagine com uma
nova série que desde o início mostrou que viera para quebrar diversos
paradigmas da franquia.
Em primeiro lugar, a série não se passava em uma nave da Frota Estelar.
Dessa vez, os personagens estavam “parados”, em uma estação espacial de
origem alienígena, em órbita de um planeta não pertencente a Federação. Opa!
Vamos com calma, só nessa frase já temos informação suficiente para explodir
um reator de dobra espacial ou fazer um trekker gritar KHAAAN mais alto que
Kirk. Além do mais, pela primeira vez, não tínhamos um capitão no comando.
Benjamin Sisko era comandante e, viúvo, criava seu filho sozinho. Pela
primeira vez também tínhamos como personagem principal um homem negro.
O que deve ter enfurecido os trekkers racistas. Sim, esse tipo de aberração
espacial existe.
Deep Space Nine apresentava em seu elenco principal, composto por oito
atores na primeira temporada, quatro personagens alienígenas. As coisas
dessas vez estavam mais equilibradas. Apesar de não se tratarem todos de
membros da Frota (na verdade somente uma, a Dax) os outros aliens deixavam
tudo mais interessante. Sempre me entediou um pouco o fato de que, mesmo
com 150 planetas membros na Federação, as espaçonaves da Frota são
constituídas basicamente por tripulantes humanos. Portanto, com mais
espécies aliens e suas próprias perspectivas, as coisas tendiam a ficar mais
diversificadas e divertidas na estação. Aliás, a própria estação não havia sido
construída por humanos, mas por trabalhadores escravos de Bajor para seus
algozes cardassianos. É uma loucura.
No ano de estreia de Deep Space Nine, Star Trek já havia passado dos seus 25
anos. O último filme com o elenco original tinha sido exibido dois anos antes e
o primeiro filme da Nova Geração já estava sendo planejado e estrearia no ano
seguinte. Portanto, Deep Space Nine surge em um momento de transição: a
série clássica encerrava de vez suas atividades e a Nova Geração chegava aos
cinemas. Isso significou um grande desafio para a consolidação da nova série,
sobretudo por ela ser ocasionalmente descrita como uma versão mais sombria
do universo criado por Gene Roddenberry. O fato de Gene ter morrido dois
anos antes e, pela primeira vez, não ter participado em nenhum momento da
criação de Deep Space Nine, é muito importante para que se possa
compreender a nova cara de Jornada nas Estrelas.
Mas quais as maiores diferenças entre Deep Space Nine e as duas séries, uma
animação e seis filmes que a precederam? Inicialmente, acho que é possível
colocar as coisas do seguinte modo: Deep Space Nine é uma síntese do que Star
Trek havia produzido até então. Estou falando no sentido realmente dialético.
A série original foi a tese; a Nova Geração a antítese; e à Deep Space Nine
coube o papel de, ao confrontar ambas, extrair aquilo que lhes existia de
melhor e descartar o que já não era mais possível continuar utilizando,
tornando-se a síntese e, por isso mesmo, uma forma superior.
Na série de Kirk e Spock a paz estava sendo construída, alcançada no
último filme, com o início dos acordos de paz com os klingons. Por outro lado,
a série demonstrava um grande senso de humor e aventura. Na época de
Picard, a paz já é uma realidade. Não é à toa que a Enterprise parece um
grande e acolhedor hotel, que transporta famílias e crianças. Por outro lado, é
uma série mais sisuda. Apresenta humor, logicamente, pois está no DNA da
franquia, mas a própria figura do capitão Picard é a de um homem “sério”. A
principal semelhança entres as duas: a exploração da galáxia. A principal
diferença: o nível de militarismo.
Deep Space Nine vai metabolizar algumas características e dispensar outras.
Por se passar em uma estação espacial, renega as antecessoras. Por ter a tensão
bélica como pano de fundo o tempo todo, recupera alguns traços da série
original. Por ter muito humor, sobretudo nas interações entre Quark e Odo, ou
nas pérolas do cinismo de Garak, se mostra mais parecida com a série clássica
também. Mas, por outro lado, não apresenta nem por um segundo a
ingenuidade que muitas vezes víamos na Enterprise original, sobretudo em
Spock.
Da Nova Geração, Sisko e companhia vão rechaçar qualquer conforto que a
EnterpriseD pode proporcionar. Afinal, nas palavras do próprio, eles tiveram
que transformar em lar uma “monstruosidade cardassiana”, referindo-se ao
fato de que a estação foi projetada para outra espécie e, além disso, são
acomodações de uma instalação mineradora. Não há a menor semelhança com
os vastos e iluminados espaços da Enterprise de Picard. No bar do Quark não
há a elegância do Ten Forward de Guinan... Nem os holodecks para passar o
tempo estão presentes, substituídos pelas holosuites pagas de Quark.
Há outros fatores absolutamente distintivos entre uma e outra. Enquanto
na Nova Geração praticamente não há conflito entre os personagens
principais, Deep Space Nine tem suas narrativas construídas em grande parte
sobre o fato de que alguns personagens se confrontam o tempo todo.
Na série clássica havia Spock e McCoy, em The Next Generation foi tentado
algo similar na segunda temporada entre a Dra. Pulaski e Data, mas que falhou
miseravelmente. Já na estação, vemos diferentes pessoas de diferentes origens,
que acabam refletindo interesses antagônicos, ou no mínimo, conflituosos.
Como Sisko (Federação) x Kira (Bajor) e Odo (segurança) x Quark
(contraventor). Sisko se opõe ainda a Gul Dukat e a Kai Winn, líder religiosa do
bajorianos. São dinâmicas nunca vistas antes dentro do elenco principal ou
recorrente de uma série de Star Trek.
Mas Deep Space Nine retira da Nova Geração um traço muito importante
que é a necessidade frequente de usar os dotes diplomáticos da tripulação.
Picard é conhecido por ter estabelecido contato com mais espécies do que
qualquer outro capitão, geralmente de forma pacífica, com tudo dando certo
no final. Sisko a todo momento precisa encarnar o diplomata (embora também
seja um incrível líder militar), pois, seu comando está situado no exato ponto
para todos os olhos da galáxia de voltam naquele momento: o wormhole
bajoriano.
Portanto, Deep Space Nine pegou o melhor das séries anteriores
reformulando esses elementos e acrescentando suas próprias criações. Em
relação a Star Trek original e à Nova Geração, Deep Space Nine se notabilizou
por três diferenças colossais.

Serialização, guerras e religião


Em primeiro lugar, a série apostou na serialização. Isso nunca tinha
acontecido em Star Trek. No novo formato, grandes histórias eram contadas
em sequências de até dez episódios. Sem a menor sombra de dúvida, isso deu
uma qualidade fora do comum ao programa, pois além de poder contar
histórias mais densas, possibilitou um desenvolvimento de personagens
inédito nas séries anteriores. Acho que é basicamente isso que me faz amar
Deep Space Nine: os personagens são absolutamente verossímeis, mesmo sob
aparências muitas vezes esquisitas. Vale a pena conhecermos melhor como
isso aconteceu.
Em Deep Space Nine apreciamos melhor os trills, espécie da personagem
Dax. Eles são uma espécie simbionte, onde existe um hospedeiro humanoide
que carrega na barriga um simbionte que se assemelha um verme gigante,
fazendo com que suas consciências sejam fundidas. Rick Berman, que co-criou
a série com Michael Piller, costuma dizer que após a morte de Roddenbery ele
o carregava como um simbionte trill, o qual lhe guiava sobre o que fazer e o
que não fazer em Deep Space Nine. Isso foi dito pelo próprio em depoimento
para o produtor executivo Ira Steven Behr! Em Deep Space Nine, contudo, ele
teve Behr ao seu lado, que conseguiu convencê-lo de executar tudo aquilo que
no fim faria a série ser o que é. Vale lembrar que Berman conduziu The Next
Generation nos seus melhores anos, que foram as temporadas finais. Depois,
com Michael Piller criou Deep Space Nine. Depois criaria ainda Voyager e
Enterprise, séries que já indicam um nível decadente de qualidade em relação
às três primeiras.
De qualquer forma, se não fosse por Behr talvez a decadência houvesse
começado antes. Foi ele quem convenceu Berman, após uma ideia de Piller, a
dar um formato mais serializado ao programa. Berman dizia que isso não devia
ser feito, pois Star Trek não era assim. Os executivos da Paramount tampouco
queriam saber de ouvir falar nisso. Contudo, Behr conseguiu fazer valer a ideia
e essa se tornou uma das características mais marcantes de Deep Space Nine,
abrindo o caminho para o formato que a maior parte das séries de sucesso
adota. Shows como The Walking Dead, Game of Thrones e Breaking Bad seguiram
essa linha e se tornaram clássicos. No próprio universo de Star Trek o modelo
voltou a ser usado, com as temporadas contando praticamente uma única
história.
Outro elemento fundamental da série colocado por Behr foi a guerra. Gene
Roddenberry tinha muito claro para si que Star Trek não lidava com guerras.
Mas a questão é que o drama, o bom e velho drama, precisa de conflito. E nada
maior nesse sentido do que uma guerra. Não foi algo gratuito, enxertado de
qualquer maneira dentro da série. A guerra era a consequência natural no
contexto onde Sisko operava. Em primeiro lugar, há um líder belicista como
Gul Dukat, desocupando Bajor e a estação contra sua vontade. É evidente que
ele se esforçaria para recuperar o que considerava espaço cardassiano perdido.
Na medida em que a Federação foi inserida entre eles e os bajorianos, não
demoraria para que a tensão descambasse para conflito aberto. O elemento
deflagrador para a guerra total foi a entrada do Dominion no tabuleiro. Um
Estado centralizador e que governa por meio da violência e do terror não
admitiria uma situação de coexistência com a Federação. Alguém poderá
argumentar: isso é muito vazio, eles parecem maus simplesmente por serem
maus. Aí que está o engano. O Dominion tem justificativas para si muito
contundentes para não aceitar viver em paz com a Federação. Seus líderes, os
Fundadores, seres que são líquidos em sua forma natural, têm como a sua
primeira diretriz dominar os “sólidos”. Essa é a medida número um de
segurança do Dominion. Em um passado muito distante eles foram
perseguidos e agredidos por humanoides e desde então, tendo conseguido
sobreviver, construíram um Estado poderoso e violento capaz de submeter
qualquer raça “sólida”.
Por fim o imenso papel que a religião ocupa na narrativa como um todo.
Sisko passa a ser reverenciado pelos bajorianos, tão logo chega à estação,
como uma figura religiosa. Sisko é visto como alguém capaz de contatar as
divindades adoradas em Bajor. E esse papel será importantíssimo ao longo das
sete temporadas, possuindo centralidade no desfecho da série. A religião em
Bajor é um fator de união do povo e quase todo bajoriano demonstra com
orgulho sua fé, externalizada por um grande brinco utilizado na orelha direita.
Portanto, Sisko, vindo para ajudar na reestruturação política bajoriana
também passa a tratar dos assuntos religiosos de Bajor. No planeta religião e
política são indistinguíveis e Sisko se tornará dual por conta disso, afinal, a
dualidade é a forma padrão dos personagens que vemos em Deep Space Nine:
Odo (sólido e líquido), Quark (pilantra e leal), Dax (humanoide e simbionte) etc.
etc. etc. O que importa, é que a religião desempenha um papel na série que
certamente não aconteceria sob Gene Roddenberry. Mas dessa vez ele erraria.
Essas três contribuições que foram “impostas” para Rick Berman já nos
mostram um panorama excepcional de como Deep Space Nine se tornou o
patrimônio de Star Trek que é. Vida longa e próspera ao grande Ira Steven e
Behr e todas as homenagens e honras ao precocemente falecido Michel Piller.
Do Promenade ao wormhole
Tudo começa quando Sisko é designado para assumir uma estação espacial em
um ponto bastante obscuro da galáxia. O planeta Bajor, no qual orbita a
estação, foi desocupado recentemente, depois de 50 anos de brutal ocupação
pelos cardassianos, sociedade militarizada e expansionista.
O governo provisório bajoriano solicitou admissão na Federação e
requisitou ajuda no difícil processo de reconstrução da sua sociedade, agora
livre. Dessa forma, a Federação, através da Frota Estelar, deve assumir a
estação Deep Space Nine, construída pelos cardassianos no período em que
exploravam o mineral uridium, extraído de Bajor e processado na estação com a
utilização do trabalho escravo dos bajorianos. O mineral serve para a
construção de naves cardassianas e a estação nessa época se chamava Terok
Nor, administrada pelo grande antagonista da série, o cardassiano Gul Dukat,
que era responsável nos últimos anos pela ocupação de Bajor.
No início do episódio já vemos os primeiros conflitos. Sisko, ao chegar na
estação, descobre que ela foi sabotada pelos cardassianos antes de a
abandonarem. Seu filho, Jake, não se encontra muito animado, pois irá viver
em um local afastado, sem crianças de sua idade. Mas o momento mais tenso
de todos se dá quando Picard, que está com a Enterprise vistoriando a situação
e entregando o chief O’Brien que agora servirá na Deep Space Nine, chama
Sisko para conversar. A mulher de Sisko, Jennifer, morreu durante a Batalha de
Wolf 359, fato que Sisko faz questão de informar ao capitão, que liderou o
confronto contra a Federação ao lado dos borgs, que o haviam assimilado.
Na estação, nos causa estranheza os sistemas utilizados pelos oficiais. Não
é mais o tradicional LCARS, da Nova Geração. Agora temos que nos
acostumar com os painéis cardassianos e com a arquitetura típica da espécie
visível externa e internamente na estação, sempre a nos remeter às suas formas
reptilianas. No entanto, além do Ops, equivalente à ponte em uma nave, temos
o espaço de convivência da estação onde muitas e boas histórias se
desenvolverão: o Promenade.
Nele ficam a enfermaria, o posto de segurança, o replimat e os restaurantes
e outros estabelecimentos como o Quark’s e a alfaiataria do único cardassiano
que permaneceu a bordo, o potencial espião mas que se apresenta como um
simples alfaiate, Garak. Um dos personagens recorrentes mais deliciosos de
Deep Space Nine. Já o ferengi Quark só ficou a bordo por uma permuta
efetuada com o capitão. Sisko aliviou a barra de Nog, que estava envolvido em
uma situação sem muita gravidade de furto, desde que o ferengi mantivesse
seu negócio aberto (ele queria ir embora pois a Federação não usa dinheiro), de
forma que servisse como um ponto de encontro e socialização para oficiais da
Frota e bajorianos. Sem dúvida, um bar como o de Quark tem uma importante
função social.
Contudo, as coisas começam a se tornar interessantes quando Sisko e Dax
descobrem um buraco de minhoca estável, nas proximidades de Bajor e da
estação. A sua outra ponta sai a 70 mil anos-luz, no Quadrante Gama. É uma
das maiores descobertas de todos os tempos. E que terá grandes e graves
implicações ao longo das sete temporadas. Lá dentro, Sisko fará contato com
seres não corpóreos e que não vivem uma existência linear do tempo. São os
aliens da fenda espacial. Mas, para os bajorianos, esses seres se tratam dos
Profetas da sua religião e o buraco de minhoca o Templo Celestial. Então, pelo
fato de Sisko ter conseguido falar com eles, nosso comandante passa a ser
encarado como o Emissário pelos bajorianos. A princípio não se sentiu muito
confortável com o novo título, mas gradualmente Sisko irá se tornar mais e
mais próximo aos bajorianos e aceitando atuar como o Emissário. Ao longo da
série, Sisko será contatado pelos Profetas/Aliens do wormhole muitas vezes, até
sua missão final como Emissário que será evitar que Gul Dukat, possuído
pelos Pah-Wraiths (“demônios” bajorianos, aprisionados nas Cavernas de Fogo,
no planeta), tome o Templo Celestial. Sisko acaba por ser o balando entre a fé e
a razão, entre a crença e o conhecimento.
Mas o grande perigo em Deep Space Nine virá mesmo do Quadrante Gama,
pois é de lá que vem o Dominion, que tentará controlar o Quadrante Alfa
unindo-se aos cardassianos inicialmente, o que acarretará a grande guerra que
percorrerá os episódios das últimas temporadas da série: a Dominion War. Sem
dúvida o maior oponente já enfrentado pela Federação. Sisko, já tendo sido
promovido a capitão, liderará as maiores frotas da Federação já vistas contra
esse inimigo poderoso, que se mostra como uma sociedade dividida de em três
partes.
Os Jem´Hadar (soldados violentíssimos, que adoram os líderes do
Dominion como deuses e são controlados através de uma droga chamada
ketracel white);
Os Vorta (camada intermediária, responsável por controlar os Jem’Hadar e
estabelecer contatos diplomáticos);
E, por fim, os Fundadores (formas de vida transmorfas, que controlam na
base do terror um vasto império no Quadrante Gama. Além disso, são o povo
de Odo, que até seu aparecimento, desconhecia suas origens).
Para evitar a invasão do Quadrante Alfa, Sisko será o capitão da USS
Defiant, uma nave da guerra da Frota Estelar. Os tempos de naves mais
amigáveis como a EnterpriseD estão chegando ao fim, sendo necessário o uso
de naves com maior poder bélico. Além disso tudo, o que torna Deep Space
Nine tão saborosa, sem dúvida alguma, são os seus maravilhosos personagens.
No início, seu elenco regular era composto por oito personagens. A partir
da quarta temporada chegará mais um reforço vindo da Enterprise: Worf.
Contudo, algo que se destaca sobremaneira em Deep Space Nine é que em
determinado momento da série, havia em torno de 30 personagens recorrentes.
Nenhuma das séries anteriores ou posteriores de Star Trek atingiu tal marca.
Isso ocorreu devido à própria dinâmica da história, pois eram muitos
interesses e raças interagindo o tempo topo. Então sempre houve a aparição de
novos bajorianos, cardassianos, ferengis e klingons, por exemplo.

Personagens impressionantes
O comandante (depois capitão) Benjamin Sisko (Avery Brooks), ao assumir
como representante da Federação na estação, tornou-se peça chave na
intrincada política bajoriana, sobretudo por acumular a função de Emissário,
já que em Bajor religião e política andam juntas. Assim, Sisko atraiu a atenção
não só de aliados, mas, principalmente dos inimigos cardassianos, que
desejavam retomar o controle da estação e de Bajor.
O mais perigoso deles, Gul Dukat (Marc Alaimo), acabaria se
transformando no antagonista de Sisko, até o confronto final onde Dukat
morre e Sisko é tornado um Profeta, pelos habitantes do wormhole. Dessa
forma, passou a não ser mais um entidade corpórea e muito menos existente
no tempo linear, tornando-se um deus para os bajorianos. Sisko prometeu
voltar, porém, lamentavelmente, Deep Space Nine não foi para os cinemas e
ficamos sem a volta do Profeta Benjamin Sisko.
Sisko é um personagem apaixonante. É um pai extremamente zeloso,
mesmo com a adversidade de criar seu filho em um estação espacial não tão
segura quanto a Terra ou uma nave da Frota. É um líder inspirador, rígido
quando necessário, mas muito humano. Além disso, ele ganha vida pelo
talento de Avery Brooks, que dá uma personalidade muito especial a Sisko.
Nas três primeiras temporadas, enquanto é comandante ainda, Sisko usa
cabelo e barba feita. Algo que Ira Steven Behr queria mudar desde sempre,
pois Brooks se sentia mais à vontade careca e de cavanhaque. Porém o estúdio
achava um pouco agressivo de mais um homem negro com barba e isso faria
lembrar do personagem Hawk, que Brooks havia interpretado com grande
sucesso na TV.
Sisko é um personagem complexo, que não é aquele herói arquetípico, sem
defeitos e que não utiliza meios duvidosos para atingir determinados fins. O
episódio In the Pale Moonlight está aí para provar, como Sisko se viu obrigado a
participar de uma conspiração para que a Federação não fosse derrotada pelo
Dominion. É o caráter dual que marca todos os personagens de Deep Space
Nine. E é isso que torna a série gigante.
Seu desaparecimento, na luta final contra Gul Dukat, embora tenha salvado
Bajor e a estação, foi uma perda irreparável para o seu filho Jake Sisko. O
pequeno Jake (Cirroc Lofton), quando chega na estação, já havia perdido sua
mãe há três anos. Sisko exercia então a dura missão de criar seu filho sozinho,
a bordo de uma nave estelar e em seguida na “monstruosidade cardassiana”.
Jake sempre teve um relacionamento muito próximo com o pai, algo tornado
muito crível pela fantástica química entre os atores. Em depoimento para o
documentários What We Left Behind, Lofton conta que eles se tratavam
realmente como pai e filho, possuindo uma relação muito próximo até os dias
de hoje. Jake é o protagonista de um dos episódios mais incríveis já feitos, não
só em Deep Space Nine, nem só em Star Trek, mas em todas as séries em todos
os tempos: The Visitor. Se você nunca viu, corre lá. Jake também se tornará
muito amigo de Nog (Aron Eisenberg), que será o primeiro ferengi na Frota
Estelar. Infelizmente, enquanto escrevo essas linhas chega a notícia de que
Eisenberg faleceu. Tinha apenas 50 anos. Uma grande perda para a família
Star Trek.
O jovem Sisko sonha em ser escritor e durante e Guerra Dominion será
correspondente de guerra. O núcleo dos Sisko é sensacional por colocar quatro
atores negros em muitas e longas cenas, certamente algo que ainda é incomum
nos dias de hoje, portanto, um grande mérito de Deep Space Nine já nos anos
1990.
Kira Nerys (Nana Visitor) foi uma das líderes da resistência bajoriana
contra o invasor cardassiano. Liderava ataques às instalações do inimigo e
promovia ações terroristas. Mas em relação a isso cabe um parêntese:
terrorismo é uma palavra que faz parte do léxico estadunidense de dominação,
que se faz presente na série, que, evidentemente, não escapa à ideologia dos
Estados Unidos. Kira não era terrorista simplesmente porque ela lutava pelo
seu povo e contra a dominação genocida que um inimigo lhe impingia. Ponto.
Quando ela afirma que praticou atentados contra colaboracionistas, isso é
bastante diferente de um atentado, este sim terrorista, contra alvos civis
inocentes. Portanto, a manipulação do termo “terrorista” pelos Estados Unidos
tem por objetivo distorcer seu sentido até que se torne alguém que não aceite
passivamente sua dominação imperial. E foi exatamente esse ato de revolta
que Kira promoveu ao longo da resistência contra a União Cardassiana.
Após o fim da ocupação e à chegada da Federação, Kira irá servir na Deep
Space Nine como oficial de ligação junto ao governo provisório de Bajor. É uma
personagem com personalidade forte, que não tem medo de bater de frente
com Sisko ou com Gul Dukat. Da mesma forma, aterroriza Quark e conquista
o coração (acho que ele não possui um) do Odo, que depois terá um
relacionamento com a “major”. Kira é uma personagem absolutamente
feminista. Ela está sempre em pé de igualdade em relação a qualquer homem,
sendo melhor que muitos ao exercer papéis socialmente esperados para o sexo
masculino.
O que acho mais fascinante na Kira é que ela consegue conciliar o seu lado
revolucionário com as lentas burocracias do trabalho de ligação entre Bajor e
Federação. Tudo pelo bem do seu povo. Uma verdadeira nacionalista, sem
chauvinismos. Além disso, como quase todo bajoriano, Kira leva muito a sério
sua crença nos Profetas, aos quais sempre pede auxílio nas situações difíceis.
Kira tem suas dualidades também: é guerrilheira e burocrata; é revolucionária
e religiosa. Um fato divertido: quando Nana Visitor ficou grávida, o genial Ira
Steven Behr (produtor executivo) arrumou uma saída bastante criativa: a pobre
da Keiko O’Brien tem dificuldades na nova gravidez e o bebê precisa ser
teletransportado para o ventre de Kira, que daí em diante leva a gestação até o
final. É tosco, mas é fofo ao mesmo tempo.
Outro personagem fascinante é Odo (René Auberjonois), o metamorfo,
chefe de segurança da estação. Descoberto ainda “bebê” por um cientista
bajoriano, Odo foi criado entre os sólidos, precisando manter uma forma
humanoide durante 16 horas por dia. Após esse prazo, é necessário que ele
retorne a seu estado líquido natural, repousando dentro de um balde. Odo é
um personagem ambíguo, maleável digamos assim. É sólido e é líquido. Serviu
aos cardassianos antes de servir a Bajor e à Federação. Ele já estava na estação
há muito tempo, portanto, Odo foi colaborador dos cardassianos. No entanto,
se demonstra muito leal a Bajor e à Federação, embora tenha se sentido um
pouco tentado a colaborar com o Dominion, que afinal se trata do seu povo.
Porém, Odo terá papel fundamental no desfecho da Dominion War.
Um destaque imprescindível diz respeito à sua relação com Quark, “o mais
próximo de um amigo” que ele possui. Como Quark é um exímio pilantra,
sempre transgredindo a lei, Odo é o seu antagonista, sempre pegando no pé do
cabeçudo ferengi. Alguns dos momentos mais memoráveis de Deep Space Nine
aconteceram nos embates engraçadíssimos entre os dois. No episódio The
Ascent, os dois ficam perdidos em um planeta inóspito e precisam trabalhar
juntos para sobreviver. Um momento incrível dos dois na série. Eu tive a
satisfação de conhecer o ator que interpretou Odo em uma convenção e posso
garantir que ele é uma grande simpatia. Consegui uma foto, um autógrafo e
um “Balde do Odo” desenhado de próprio punho pelo René.
Quaaaaark! Grita o bom e velho Odo quando descobre algumas das
falcatruas do ferengi. Pois certamente esse é um dos meus personagens
favoritos em Star Trek. Em primeiro lugar eu adoro a representação do
capitalismo feita nessa caricatura grotesca que são os ferengis. E isso, através
de um personagem principal, fica ainda mais legal de acompanhar. Logo no
começo não gostei muito do Quark, achei que não tinha nada a ver um ferengi
sem escrúpulos protagonizando Star Trek. É que eu ainda não tinha captado
muito bem a proposta das dualidades dos personagens. Quark é, certamente, à
primeira vista um golpista. Uma pessoa na qual não se pode confiar de
maneira alguma, já que só tem interesse em lucrar e pode trair qualquer um
por isso. Mas com o passar do tempo vamos percebendo que Quark realmente
se conecta aos outros personagens, formando um vínculo de solidariedade e
lealdade. Embora permaneça radicalmente ferengi, ele desenvolve empatia e
nunca deixa de ajudar qualquer um dos tripulantes que esteja em dificuldades.
O ser humano não é assim também? Cheio de contradições?
Quark, assim como Julian e Worf, é apaixonado por Jadzia Dax (Terry
Farrell). Infelizmente, Jadzia não vai querer nada com ele, mas certamente se
interessará por Worf. Jadzia é uma jovem trill de menos de 30 anos que ganhou
a sorte grande, ao menos na sua sociedade: foi escolhida para se juntar a um
simbionte. A coisa funciona da seguinte forma: em Trill existem duas espécies
inteligentes muito diferentes mas que exibem uma estranha compatibilidade.
A humanoide é capaz de receber em seu ventre a verminoide, concretizando
uma união que não pode ser desfeita, a não ser com a morte do humanoide.
Portanto, quando este morre, o verme é transferido para outro e assim
sucessivamente. O simbionte de Jadzia se chama Dax e já passou por muitos
outro hospedeiros, totalizando mais ou menos 350 anos de vidas e memórias.
Olha a dualidade aí: Jadzia Dax é hospedeira e simbionte.
Além disso, por viver alternadamente vidas no gênero masculino e
feminino, é característica dos personagens trills uma sexualidade mais livre.
Porém, existe um tabu que serve como alegoria ao amor entre pessoas do
mesmo sexo naquela sociedade: um trill deve evitar manter relações com as
pessoas ligadas ao simbionte anterior. No episódio Rejoined esse tabu é
explorado, e rende o primeiro beijo entre duas mulheres em Star Trek, entre
Jadzia e a Dra. Lenara Kahn (Susanna Thompson), um relacionamento de
hospedeiro/simbionte anterior. Fazer essa cena em plena década de 90 foi um
movimento bastante ousado de Deep Space Nine, que orgulha os realizadores e
grande parte dos fãs. Mas o que importante mesmo é que Dax se casou com
Worf, e isso foi incrível!
O hospedeiro anterior do simbionte Dax havia sido Curzon, velho amigo e
mentor de Benjamin Sisko. Por isso com Jadzia chegando à estação, sob nova
aparência, para servir sob o comando de seu antigo amigo causa alguma
estranheza, que logo se desfaz. A única coisa estranha é a insistência de Sisko
em chamar Jadzia de old man... Mas, curiosamente, em outra série
protagonizada por Avery Brooks, seu personagem Hawk também tinha um
mentor ao qual chamava de old man.
Na sexta temporada, com Terry Farrell decidindo abandonar a série, os
produtores matam a personagem pelas mãos de Gul Dukat possuído por um
Pah-Wraith. Em seu lugar, surge Ezri (Nicole de Boer), uma trill muito jovem,
conselheira de nave e que não havia se preparado durante a vida toda, como
fazem os hospedeiros, para receber o simbionte. Assim, ela inicia uma jornada
bastante complicada, mas muito interessante, em como lidar com todas as
memórias que herdou a partir da união.
Com Ezri, a paixão de Julian Bashir (Alexander Siddig) por Dax foi
resolvida, pois a nova hospedeira não quis mais saber de Worf e preferiu se
relacionar com o nosso bom doutor. Finalmente, pois quando o jovem doutor
chegou à estação me pareceu que nunca tinha visto uma mulher na vida. Mas
logo será assediado por Garak, e, infelizmente, nunca saberemos se aconteceu
alguma coisa ou não. Julian se tornará um grande amigo de O’Brien, o que
sempre renderá cenas engraçadas dos dois se divertindo. Durante toda a vida
Bashir precisou esconder algo muito sério: ele foi aprimorado geneticamente
quando criança pelos seus pais, procedimento considerado ilegal desde as
Guerras Eugênicas. No entanto, isso acabou sendo revelado e felizmente não
houve maiores consequências para ele. Essa é a sua dualidade: é humano e
super-humano.
Na estação tivemos também personagens oriundos de The Next Generation.
O primeiro deles foi o glorioso, o inenarrável, o fabuloso chief Miles Edward
O’Brien (Colm Meaney). O chefe é o trabalhador, o cara que faz tudo funcionar,
tudo ficar eficiente e depois do dever cumprido vai tomar umas e jogar dardos
no Quark’s. Ele é o nosso working class hero. O chefe não tem dualidades, ele é o
que é. Um cara gente boa demais e que sempre resolve qualquer problema.
Graças aos Profetas de Bajor, O’Brien foi um personagem incrivelmente
desenvolvido ao longo da série, passando por devastadores sofrimentos. Há até
uma categoria para os episódios nos quais O’Brien passa por provações
terríveis: O’Brien Deve Sofrer! Procure por esses episódios. Satisfação
garantida ou seu dinheiro de volta.
Por fim, a partir da quarta temporada, outro remanescente da Enterprise:
Worf (Michael Dorn), que é trazido à estação para servir como ligação com o
Império Klingon, para que esse evite entrar em guerra com a União
Cardassiana, porém sem sucesso. O personagem Worf terá um papel
monumental na série por ajudar a criar tramas envolvendo os klingons, que
serão aliados de peso na guerra contra o Dominion.
E, claro, a maior personagem de todas: a estação. Gene Roddenberry dizia
que a maior heroína das histórias de Star Trek sempre seria a Enterprise. A
estação é o seu equivalente em Deep Space Nine. Afinal, foi nela (e na Defiant
também, para sermos justos) que vimos a maior parte das grandes histórias
vividas por todos aqueles fantásticos personagens.
Mas para não sermos injustos, não podemos nos esquecer dos Maquis. A
Federação, no intuito de acabar com as tensões existentes em relação à União
Cardassiana, fez um acordo no qual suas fronteiras foram reformuladas. Dessa
forma, colônias que estavam do lado de cá da Federação passaram para os
cardassianos, surgindo a necessidade de realocação dos colonos. Algo bastante
grave, já que a maior parte das pessoas, evidentemente, não quer ser removida
do seu lar. Nesse contexto, surge um grupo rebelde intitulado maquis (em
referência a um grupo francês de mesmo nome que resistiu à ocupação nazista
na Segunda Guerra Mundial). Muitos oficiais da Frota se juntam a ele,
sabedores da terrível injustiça que tal acordo promove sobre os colonos. A
Voyager se perde no Quadrante Delta em busca dos Maquis. Mas é em Deep
Space Nine que ocorre um embate memorável entre o oficial Michael
Eddington (convertido em Maqui) e Sisko, que o acaba prendendo.
Deep Space Nine é o ponto mais alto de Star Trek. Seus personagens
maravilhosos contribuíram decisivamente para isso. Não somente os
principais, mas os diversos recorrentes como Nog, Rom, Ishka, Nagus Zek
(ferengis), Garak, Gul Dukat, Ziyal, Damar (cardassianos), Gowron, Martok
(klingons), Kai Winn, Vedek Bareil (bajorianos), Weyoun (vorta), Fundadora
(transmorfa), Michael Eddington, Keiko, Kasidy Yates, Joseph Sisko (humanos),
o “verborrágico” Morn (luriano) e o fantástico holograma Vic Fontaine, o
Frank Sinatra de Deep Space Nine. Todos ele ajudaram a tornar a série o melhor
Star Trek já feito.
Nesse capítulo trato de quatro episódios que apresentam temas relacionado
à opressão, embora de naturezas diferentes. No episódio Captive Pursuit, da
primeira temporada, vemos chegar à estação o primeiro ser vivo do Quadrante
Gama, revelando como a ideologia serve para a dominação. Em Hippocratic
Oath, acompanhamos o modo de agir dos Jem’Hadar e como eles são
condicionados por uma crença religiosa que os controla e recompensa com um
tipo de droga. Já em Bar Association, vemos a boa e velha luta de classes no
mundo do trabalho, quando os funcionários do Quark entram em greve. Para
fechar, Far Beyond the Stars o meu episódio favorito de Deep Space Nine, que nos
apresenta um genial conto de ficção científica sobre o racismo.
1
I AM TOSK

A ideologia esconde a dominação

As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o
poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.
Marx e Engels

O que chamais de espírito da época é simplesmente o espírito dos senhores da época.


Goethe

Um episódio marcante da primeira temporada


Como dito na introdução do capítulo, Deep Space Nine apresentou uma jornada
diferente de tudo que havia sido feito em Star Trek até então. Além do fato de
não mostrar uma tripulação a bordo de uma nave da Frota, os personagens
revelaram uma complexidade maior do que os trekkers estavam acostumados a
ver. Isso não desmerece em nada as séries que a antecederam, mas certamente
torna Deep Space Nine muito singular dentro do universo de Jornada nas
Estrelas.
Outro fator que a diferencia, e muito, em relação à série original e à Nova
Geração é que Deep Space Nine foi sendo pouco a pouco serializada,
desenvolvendo arcos enormes, que precisavam ser acompanhados fielmente
pelos fãs, pois caso um episódio fosse perdido, a compreensão da trama seria
prejudicada.
O episódio que vou tratar nessa seção é da primeira temporada, portanto,
ainda não se trata de uma história situada em algo maior (como a Dominion
War), apenas pelo fato de que mostra o primeiro contato com um forma de vida
do Quadrante Gama, que chega à estação através do buraco de minhoca. Mas o
episódio Captive Pursuit também pode ser entendido como parte integrante do
desenvolvimento do personagem Miles O’Brien, responsável pela parte técnica
de manutenção da estação. O’Brien, que tinha um papel secundário em The
Next Generation, protagonizou em Deep Space Nine alguns dos melhores
episódios de toda a série e muitos deles pode ser elencados como alguns dos
melhores de toda a história de Star Trek. Até mesmo uma categoria específica
para esses episódios foi criada: O’Brien must suffer (O’Brien deve sofrer), devido
à intensidade emocional e dramática das histórias pelas quais o nosso Chief
passou. Em Captive Pursuit, focar em O’Brien foi uma decisão de Michael Piller
para desenvolver mais o personagem, mostrar seu senso de humor e como ele
consegue abordar e conectar pessoas.
Outro fato importante é que, costumeiramente, as duas temporadas iniciais
de Deep Space Nine, são vistas como inferiores em relação às cinco finais. A
terceira é vista como uma transição e um sinal de amadurecimento que depois
fará a série ir melhorando rapidamente. Isso é verdade, a série apresenta um
processo evolutivo (e isso foi ótimo), com cada temporada sendo melhor que a
anterior. Portanto, quando termina, em sua sétima temporada, podemos dizer
que Deep Space Nine estava no seu auge. Lamentavelmente, não houve a sua
transposição para o cinema como ocorrera com suas predecessoras. Mas estou
focando nesse ponto para dizer que, mesmo sendo um episódio da primeira
temporada, Captive Pursuit é um momento glorioso da série e que traz três
elementos que a caracterizam perfeitamente: 1) um conflito que ocorre a partir
do wormhole; 2) uma história inteligente centrada em O’Brien; 3) reflexão
genial sobre a sociedade. Pois essa reflexão diz respeito à ideologia e
dominação de classe.

Ideologia e classes sociais


Cada época histórica tem suas próprias ideias, certo? Sim, isso é uma
obviedade. Pois, cada época também possui a sua própria maneira de garantir
a existência das pessoas e reproduzir a vida, correto? Sim, pois se pensarmos
nas tradicionais subdivisões da historiografia (Pré-história, Antiguidade,
Idades Média, Moderna e Contemporânea), vamos perceber que em cada uma
delas as pessoas trabalhavam de um jeito diferente. Então, acho que é lícito
pensarmos que, já que cada época possui suas ideias características e se
organiza para o trabalho de maneira diversa de outra, existe alguma conexão
entre o que se produz no mundo material e o que se produz no mundo das
ideias.
É exatamente essa discussão que nos leva a descobrir o que é a ideologia,
quais suas origens e como ela atua sobre as relações sociais. Mas para isso é
necessário deixar bem claro como as ideias surgem e quais suas ligações com o
mundo real.
Antes de Marx, Hegel imaginou que a realidade só existe a partir daquilo
que chamou de “espírito”, ou pensamento humano. É como aquela questão: a
queda da folha de uma árvore causa algum som se não houver alguém por
perto que possa ouvir? Se você for um idealista, a reposta será não. Se for um
materialista será sim. E por quê? Porque para o idealismo toda a realidade
existente só existe em função de ter sido pensada. Portanto, como Hegel
afirmou “todo real é racional e todo racional é real”. No entanto, para Marx,
criador do materialismo dialético, a perspectiva é outra. E ele comprova seu
pensamento de maneira indubitável.
De acordo com o marxismo, a folha fará seu ruído característico ao cair no
solo, pois esse som é produto de um fenômeno físico, material, que acontecerá
independentemente da presença de um ser humano. No entanto, isso é algo da
natureza. O marxismo determinará com nitidez o que é natural e o que é
histórico. Dessa forma, começamos a perceber que a concepção materialista é
muito superior à idealista, embora Marx tenha aprendido muito com Hegel,
sobretudo a sua dialética. Marx inverteu o pensamento de Hegel, fazendo com
que se deixasse de compreender o ser humano a partir de suas ideias, mas, a
partir de sua atividade material. O materialismo fez com que se passasse dos
céus à terra, ou do sótão ao porão. Isto é, as ideias de uma sociedade são
criadas a partir da sua materialidade. Foi, literalmente, uma revolução na
forma de pensar que nos faz chegar ao conceito de ideologia.
Retomando as eras históricas mencionadas acima, vamos perceber que em
cada uma delas havia uma classe dominante e uma classe dominada,
frequentemente havendo gradações internas a cada uma delas. Essas divisões
em classes, invariavelmente, se dão em relação ao trabalho, que pode ser
facilmente resumida: os que trabalham e os que vivem às expensas do trabalho
destes.
Na utopia da Federação isso já não existe, pois houve a superação das
necessidades materiais, logo, da exploração do trabalho e do domínio de
classe. No entanto, em diversas outras raças encontradas pela Frota Estelar
ainda existem classes que estão submetidas a outras mais fortes. Convém
lembrar que essa força pode não ser material. Uma classe com menor número
de pessoas pode dominar outra sem armas, basta existir uma ideia forte o
suficiente a protegê-la. As igrejas dominam seus fiéis dessa forma. Porém, em
grande parte dos casos há uma mescla de ideologia e armamentos, como se vê
no episódio Captive Pursuit.
A grande questão está no fato de que se existe uma classe que domina
outra, as ideias dominantes de uma tal sociedade, evidentemente, não virão da
classe dominada. A produção das ideias está ligada às condições sociais e
históricas nas quais são produzidas., portanto, a classe dominante, ao pegar
um aspecto singular da realidade humana e o transforma em uma ideia
universal. Esse é o processo de produção da ideologia.
Como afirmou Louis Althusser, a ideologia é um sistema de ideias e
representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social.
Ou seja, a ideologia perpassa todos os estratos sociais de uma sociedade, desde
o âmbito individual até o social, fazendo com que todos afetados apresentem
certos conjuntos mínimos de crenças afins. Mas vai além disso, pois ela surge
nas classes dominantes e funciona como ocultamento da realidade para as
classes dominadas.
Como um camponês medieval pôde acreditar que, pela vontade de Deus, ele
deveria sofrer enquanto a nobreza e o clero se refestelavam?
Como um escravo negro pôde acreditar que este era seu destino e os
brancos estavam destinados a comandar?
Como um habitante de um país colonial pôde aceitar que os europeus
governassem seu país?
Como um trabalhador assalariado pode ter a esperança de um dia ser tão
rico quanto o seu patrão? Ou acreditar que se não tiver direitos trabalhistas
seu empregador vai lhe pagar um salário melhor?
Como Tosk aceita servir apenas como uma caça para os hunters?
A resposta para todas essas perguntas é uma só: ideologia.

A ideologia impede que se conheça o real


A classe dominante erige suas representações particulares em valores
universais (ideologia é concepção errônea, uma ilusão). Em outras palavras,
usando o exemplo atual, a burguesia, que é a classe dominante no capitalismo
(seja ela financeira, comercial, industrial etc.), impõe a todos os seu próprios
valores, sobretudo os que dizem respeito ao trabalho, através do mito de
qualquer um trabalhando muito pode se tornar rico.
A legislação também é criada pela burguesia, que coloca assim suas normas
para toda a sociedade, sobretudo no que concerne à propriedade privada. E
esta, só existe para a burguesia porque a grande maioria da população não a
possui e que mesmo assim aplaude as leis que precisamente a protegem dela.
Pura ideologia operando. O Estado, que cria as leis, é a forma pela qual os
interesses da parte mais forte da sociedade (a classe proprietária) ganham a
aparência de interesses de toda a sociedade. Expressão da sociedade civil
enquanto dividida em classes.
A ideologia cria a alienação, que é uma palavra muitas vezes utilizada
incorretamente. As ideias, que formam a superestrutura de uma sociedade têm
sua origem na estrutura, ou seja, nas condições materiais. O trabalho, sob o
capitalismo, em sua grande maioria está relacionado à produção de
mercadorias. Como o trabalhador não produz de maneira solitária uma
mercadoria podemos dizer que ela é produzida socialmente. Esse livro mesmo
que você tem em mãos. Quantas pessoas estiveram envolvidas em sua
produção? Vamos pensar em somente um dos itens: a tinta. Quem extraiu os
minérios? Quem os transportou? Quem o transformou em tinta? Quem
produziu os outros elementos? Quem os transportou? E assim a gente pode
seguir perguntando indefinidamente. E somente sobre um dos itens. Portanto,
qualquer elemento produzido na nossa sociedade é fruto do trabalho de
milhares, até milhões de pessoas, que compõem uma vasta rede de produções
que gera muita riqueza que é apropriada por alguns poucos.
Esse modelo complexo de produção permite com que o trabalhador se
aliene, ou seja, ele não veja sua humanidade representada no produto que
criou. E de acordo com o marxismo não existe característica mais humana do
que o trabalho. Isso acaba gerando uma inversão: em vez do ser humano
controlar a mercadoria é esta que o controla. Isso que Marx também chama de
fetichismo. Dessa forma a verdadeira natureza das relações sociais é ocultada,
nas quais o ser humano também se torna uma mercadoria, uma coisa, ele se
reifica. Assim como Tosk é apenas uma coisa, como veremos adiante, senão
por um processo idêntico ao menos muito semelhante. Por que as pessoas não
percebem essa reificação? De onde vem o véu que oculta a realidade?
A alienação significa realizar atividades como se elas fossem autônomas ou
independentes do ser humano e por isso mesmo passam a controlá-lo,
dirigindo e comandando sua vida e suas atitudes. De sujeito, o homem torna-
se objeto. As relações reais são escondidas. A realidade é que as relações
sociais são mediadas por coisas e a ideologia é uma representação da relação
imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência. Por outro
lado, é um sistema ordenado de ideias ou representações e de normas e regras
separado das condições materiais, já que os ideólogos não estão vinculados
diretamente à produção.
Acontece muito com a religião, que é ensinada pelos sacerdotes. Ao criar
uma ligação do homem com algo transcendental ou místico, invisível, a
religião não permite enxergar as relações racionais e transparentes entre os
homens. É algo irracional. E a razão é transparente. Portanto é somente por
meio da razão que estas relações fantasmagóricas promovidas pela ideologia
podem ser desmascaradas. Por isso a revolução é um ato racional. É uma luta
do conhecimento versus o desconhecimento. Na Federação as relações sociais
são humanas e não determinadas pela troca de mercadorias, por isso
transparente e racionais.
Ideologia é um conceito antigo, criado pelo filósofo francês Destutt de
Tracy há mais de 200 anos. Inicialmente, a palavra tinha o sentido de “ciência
das ideias”, porém com o passar do tempo o conceito foi se tornando mais
complexo, tendo importância, como visto, nos escritos de Karl Marx.
Conforme o que foi discutido acima, a ideologia é fundamental para que
possamos entender quem é e o que representa o personagem Tosk em Captive
Pursuit.

I am Tosk
Odo é, tecnicamente, a primeira forma de vida do Quadrante Gama que os
tripulantes da estação encontram. Porém, isso só será revelado adiante, no
início da terceira temporada, no episódio duplo The Search. Portanto, Tosk
(Scott MacDonald) é, no contexto da primeira e da segunda temporadas, o
primeiro ser vivo a cruzar o buraco de minhoca e travar contato com a Deep
Space Nine. Esse encontro não deixa de ser um momento histórico, que
terminará de maneira bastante inusitada.
Tudo começa quando, ao cruzar o wormhole, a nave de Tosk apresenta sérias
avarias. Contudo, ele não aceita ser teletransportado para a estação e o chief
O’Brien utiliza o raio trator para estabilizar a nave e atracá-la na estação. Sisko
encarrega O’Brien de receber o visitante na comporta de ar e, se possível,
descobrir o motivo por ele aparentar nervosismo.
O’Brien entra na nave com o objetivo de iniciar os reparos, porém não
encontra o tripulante a bordo. Dax lhe informa que pelos sensores ele está em
algum lugar da nave. Logo ele se apresenta, dando um susto em Miles. Tosk
utiliza algum dispositivo de camuflagem, que o deixa completamente invisível.
Existe uma similaridade entre Tosk e os jem’hadar, soldados aliens que
aparecerão depois e terão importância gigantesca na série. Ambos utilizam
tecnologias de invisibilidade. Outra semelhança está no fato de quem ambas as
raças foram criadas com o propósito de servir uma raça dominante. Os
jem’hadar pelos Fundadores e os tosks pelos Hunters. Há uma teoria que diz
que ambas foram criadas pelos Fundadores, sendo que os Tosks foram
presenteados aos Hunters. Enfim, não é cânone e nunca saberemos e ainda por
cima estou me adiantando na história...
O’Brien e Tosk estabelecem um relacionamento amigável desde o primeiro
momento. Enquanto O’Brien lhe ensina algumas coisas do Quadrante Alfa
tenta obter mais informações sobre Tosk e seu mundo, mas este acaba se
mostrando bastante reservado, embora tenha, de fato, apreciado a companhia
de O’Brien.
A primeira questão (que normalmente seria a primeira a ser respondida)
não fica clara. Quando perguntado o seu nome e qual sua raça Tosk,
invariavelmente, responde com um I am Tosk (Eu sou Tosk). O’Brien não
consegue determinar se ele se refere a si próprio como indivíduo ou se diz o
nome de sua raça, como um humano diria eu sou humano. Porém isso nos dá
algumas pistas que serão importantes para compreendermos o papel da
ideologia na sociedade da qual ele tem origem. Por exemplo, quando O’Brien
pergunta se ele se trata de um explorador ou cientista, recebe novamente a
mesma resposta: I am Tosk!
Logo, O’Brien vai fazendo novas descobertas, por exemplo, que Tosk
precisa de apenas 17 minutos de descanso por dia. Uau! Seria muito bom, mas
na verdade tem um outro significado, No Bar do Quark, quando esse astuto
ferengi tenta descobrir quais os “vícios” do novo visitante, vendo diante de si a
possibilidade de explorar os “vícios” de um espécie inteira em seu bar, o nosso
bartender oferece uma noite de aventuras nas holosuites. Tosk quase fica
ofendido e diz “não tenho tempo para aventuras imaginárias, eu vivo a maior
aventura que alguém pode desejar”. Ele ainda menciona surpresa com o fato de
existir bastante tempo ocioso no Quadrante Alfa. Bingo. Tosk possui uma
crença bastante arraigada naquilo que considera como uma missão e que já
vamos descobrir do que se trata.
Todas essas pequenas idiossincrasias de Tosk farão sentido quando
descobrimos que ele está sendo caçado e que isso não é uma coisa ruim, de
acordo com sua perspectiva. Tosk, como forma de vida individual, faz parte de
uma raça também chamada Tosk, que existe única e exclusivamente para servir
de caça aos que se autoproclamam Hunters (caçadores, é, eu sei, os roteiristas
não foram muito criativos...). O motivo principal da sua existência, a sua
honra, a sua missão no universo é se caçado por eles e conseguir prolongar a
caça durante o maior tempo possível. Isso porque o divertimento dos Hunters
será prolongado, já que vivem para caçar e o dos Tosks também, já que vivem
para fugir. E há um fato muito importante: os Tosks não podem ser capturados
vivos, pois essa é a maior humilhação que um Tosk pode sofrer.
Por causa disso que Tosk estranhou a pergunta de O’Brien sobre ser um
cientista ou explorador. É evidente que ele não pode ser nada disso, pois ele é
Tosk, aquele que é caçado. Se pensarmos em um cidadão pobre, que não teve
acesso a estudo formal, acostumado a ver negadas diante de si todas as
benesses e privilégios que uma sociedade com alto grau de complexidade
produtiva como o capitalismo pode propiciar, que seja questionado se e um
médico ou engenheiro, é claro que ele instantaneamente considerará essa ideia
absurda. Com Tosk acontece o mesmo. Ele não pode ser nada além de Tosk.
Em relação ao tempo ocioso, outra maravilha do quadrante, que Tosk
sequer é capaz de conceber para si, está muito claro: a vida de Tosk é correr,
pois correndo ele mantem sua integridade e pode voltar a correr novamente
depois dos seus 17 minutos de descanso (o capitalismo não seria perfeito se os
trabalhadores pudessem descansar apenas 17 minutos, hã?). É claro que o
tempo ocioso não é para a sua classe, é para a classe dos Hunters, que têm
tempo de planejar as suas caçadas. Ou então para atuar como bem entenderem
na sua civilização, que, obviamente, não despende todas suas energias para a
caça, embora ela seja muito importante em seu mundo.
Pois não ocorre a mesma coisa sob o capitalismo? Cada vez mais? As
pessoas precisam trabalhar em dois ou três empregos, devido à precarização
cada vez maior do trabalho. Não é porque temos facebook e Netflix que isso
significa que temos muito tempo ocioso. Na verdade é uma rotina,
trabalhamos ao longo do dia e nos deitamos à noite para assistir vídeos no
youtube ou séries na Netflix. São os nossos “17 minutos”. Isso nada mais é do
que a televisão de antigamente. E essa distorção tem a ver com a exploração do
trabalho, já que quanto mais tempo um trabalhador estiver em seu trabalho
mais lucros ele poderá gerar. É o princípio do mais-valor absoluto, de Marx. A
vida de Tosk é engolida por esse princípio: ele, literalmente, vive para ser
caçado/trabalhar.
Na Federação o tempo ocioso é enorme pois seus cidadãos não precisam
trabalhar para sobreviver. Dado que os replicadores são bens de uso público e
poderão fornecer tudo o que se necessite, o tempo ocioso será total. Dessa
forma é possível se dedicar a qualquer atividade, arte, literatura, poesia,
holonovels, ou até tentar a sorte na Frota Estelar. É a utopia, onde o ser humano
é totalmente livre.
Assim vamos percebendo como Tosk leva a sério sua vida de caça, que serve
como objeto de desafio aos Hunters. Como é possível que um ser concorde
com isso? Podemos compreender que Tosk que ache correto ser caçado e não
possuir o direito de dizer não? Isso só se torna crível se aventarmos a hipótese
de que ele não possui consciência de sua verdadeira situação e devido a não
conseguir enxergá-la se submete sem questionamentos – pelo contrário, até
mesmo com orgulho – a algo que o prejudica.
É precisamente nesse ponto que entra a ideologia, que não é só de Tosk,
mas dos Hunters também. É aí que entra a alienação, que afeta também a
ambos. E a reificação, que transforma o sujeito Tosk em objeto. São duas
classes sociais, uma que domina e outra dominada. A sujeição da última à
primeira se dá pela suposta relação concreta entre as duas: os Tosks foram
criados para servir de caça aos Hunters. Ou seja, é algo natural. Surge uma
classe para si, que são os Hunters, que são organizados e conscientes de seu
domínio. E surge uma classe em si. Isto é, uma classe real, os Tosks, mas que
são forçosamente individualizados e por isso sem capacidade de organização.
Não conseguem, dessa forma, chegar na classe para si, conscientes de que são
uma classe e que tem por obrigação lutar pelos seus interesses. É uma curiosa
representação sobre o individualismo no mundo contemporâneo também. Ele
facilita, e muito, a dominação.
Depois de tentar acessar as armas da estação, Tosk é aprisionado por Odo.
Sem sucesso, os tripulantes procuram descobrir suas motivações para isso,
mas ele não conta nem para o seu novo amigo O’Brien. Na sequência, uma
nave atravessa o buraco de minhoca e, após escanear a estação, a ataca e um
grupo faz uma abordagem. Há um tiroteio no promenade (Sisko meio xerife,
estação meio cidade do velho oeste ainda), no qual um dos Hunters consegue
escapar a entrar na cadeia da estação. Lá, a encontra vazia, porém utiliza um
visor que consegue identificar Tosk em uma das celas, camuflado pela
tecnologia de invisibilidade.
O Hunter fica bastante frustrado, pois o surpreendeu em uma cela, sem
condições de reagir ou de fugir, fato que acaba por encerrar a caçada de
maneira vergonhosa. Ele diz para Tosk que seu destino será passar o resto da
vida em exposição em praça pública, sendo execrado inclusive pelas crianças.
Essa é o fim dos Tosks que são capturados com vida. É a sua maior
humilhação.
Sisko obriga o Hunter a acompanhá-lo e discutir a situação primeiro, porém
não ocorre nenhum acordo e Sisko se vê obrigado, pela Primeira Diretriz, a
autorizar que Tosk seja levado por ele. O’Brien tenta descobrir uma forma de
evitar isso, pois se afeiçoou por Tosk, então levanta a hipótese de pedido de
asilo. Sisko autoriza que ele converse com Tosk. No entanto, Tosk diz que seria
contraditório com o que ele acredita pedir asilo, pois sente muito orgulho do
papel na cultura de seu planeta. Ele está perversamente mergulhado na
ideologia, pois possui uma crença (ou seja, vê como verdade) e ainda se orgulha
disso (fundamental para possibilitar que alguém aja contra seus próprios
interesses). Para O’Brien, e para qualquer outro cidadão da Federação, que
vivem a utopia de uma sociedade sem classes, portanto, sem ocultamento da
realidade pela ideologia, o comportamento de Tosk é incompreensível.
Tosk, aprisionado pela falsa consciência ideológica, que o faz encarar como
natural o fato artificial de que sua espécie serve apenas para tentar superar a
astúcia de seus algozes, passa sua vida a fugir, com o objetivo de que por fim
seja caçado. É emblemático que Tosk, quando questionando sobre seu
comportamento, invariavelmente, responda: Eu SOU Tosk. Ou seja, em sua
visão, é parte de sua própria essência ser objeto de satisfação das necessidades
de uma classe dominante. E apenas isso. Contudo, embora não possa ver, ele
está enganado, pois como ser senciente que é possui direito à vida e à
liberdade, algo que não percebe por estar na prisão da ideologia, segundo sua
concepção crítica. A ideologia impede que se conheça a realidade.
O’Brien, inconformado de que Tosk seria levado para uma vida de
humilhação, decide ajudá-lo a escapar para que ao menos pudesse continuar
fugindo dos Hunters. Quando Tosk estava sendo levado por um deles, O’Brien
consegui libertar seu amigo e ainda deu um belo gancho no Hunter: queixo de
vidro!
Evidentemente, Sisko não ficou muito feliz, mas pediu para que Odo
retardasse sua operação a fim de dar tempo a Tosk. A caçada recomeçou.

Um clássico de Star Trek


Captive Pursuit é um clássico episódio de Star Trek. Possui aliens, ação, dilemas
morais, problemas com a Primeira Diretriz e, sobretudo, possibilita uma
análise que relacione a ficção com a vida real. Como Star Trek acaba lidando
com muitas sociedades alienígenas ao longo de sua história sempre podemos
encontrar episódios que falam de temas muito presentes na vida humana em
sociedade. É claro, devemos isso aos grandes roteiristas, que há mais de 50
anos fizeram e fazem essa grande história.
É um dos episódios favoritos de Michael Piller, Rick Berman, René
Auberjonois e do chief O’Brien em pessoa, Colm Meaney. Certamente é um
dos melhores episódios da primeira temporada, o que também mostra que as
temporadas iniciais têm ótimos episódios. E sempre me dá aquela sensação
quando revejo: cara, daqui a cem anos as pessoas ainda vão ver esse episódio e
adorar!
E espero que daqui um século as coisas estejam muito diferentes e que o
mundo seja mais parecido com a Federação do que com a divisão Hunters e
Tosks que vigora nos dias atuais.
2
HIPPOCRATIC OATH

O Ketracel White é o ópio dos Jem’hadar

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A
religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma
situação carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião
seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua
condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões.
Karl Marx

Eu lutei contra raças que creem em seres místicos que guiam seus destinos ou os esperam após a morte.
Eles os chamam de deuses. Os Fundadores são como deuses para os jem’hadar.
Goran’Agar

O ketracel white é a força do Dominion


O episódio Hippocratic Oath conta a história de Goran’Agar, um jem’hadar que
rompe a barreira de dominação dos Fundadores e passa a contestar diversas
questões sobre essa situação. Ele passa a pensar de maneira independente,
escapando dos preceitos determinados pela raça que o criou e domina.
Os jem’hadar são o braço armado do Dominion. São soldados
extremamente eficientes na arte de matar, resistentes e obstinados pela sua
causa. Acreditam que a “obediência traz a vitória”, o que é deveras importante
para o funcionamento de suas unidades, que a toda hora repetem o slogan
“Vitória é vida”. Para eles, a única coisa que importa é vencer e obter
conquistas para o Dominion. Afinal, eles foram criados geneticamente pelos
Fundadores, sendo produzidos em escala industrial (tornam-se adultos em três
dias) e imediatamente viciados em uma substância chamada ketracel white. Pois
é essa enzima isogênica que garante a estrita e incondicional obediência dos
jem’hadar aos Fundadores e aos seus prepostos diplomáticos chamados de
Vorta.
A estrutura do Dominion, portanto, se divide em três camadas. No topo,
inalcançáveis, os todo-poderosos Fundadores. Como seus representantes junto
às raças que dominam, os Vorta (Iggy Pop fez um cameo como Vorta!), que são
clones que funcionam como uma mescla de diplomata e liderança civil dos
jem’hadar. Esses últimos são os soldados desse poderoso império que domina
grande parte do Quadrante Gama e que se tornará um dos maiores inimigos da
Federação em todos os tempos, provocando uma guerra sem precedentes.
Os jem’hadar apresentam uma configuração social curiosa. São máquinas
orgânicas de matar, são “sólidos” que têm como único propósito na vida
proteger os metamorfos, que para eles são como deuses. Por isso mesmo são
violentíssimos e não pestanejam em entregar a própria vida em batalha (em
ataques suicidas, por exemplo), desde que isso ajude a liquidar os inimigos dos
Fundadores. Mas como uma lealdade tão impressionante pode ser obtida?
Através da droga a qual todos os jem’hadar são viciados: o ketracel.
Seus corpos, aparentemente, foram projetados geneticamente para
funcionar com o uso dessa substância. É como se fosse uma espécie de
segundo sangue, de origem externa, sem o qual não é possível viver. Como os
Fundadores são misteriosos e não possuem contato direto com os jem’hadar,
cabe aos Vorta distribuir periodicamente a substância para os soldados sob
seu comando. A crise de abstinência é terrível, então, mesmo sendo essas
criaturas extremamente agressivas contra os inimigos do Dominion, os
jem’hadar precisam se humilhar seguidamente em virtude da necessidade do
ketracel, fato que os mantém domesticados e prontos para viver e morrer pela
glória dos Fundadores. Portanto, é um mecanismo que funciona perfeitamente
no controle desses verdadeiros “cães de guerra”. Basta cortar o fornecimento
da droga que os jem’hadar ficam sem ação, assim não podem nem se rebelar
individualmente nem se organizar para atacar os Vorta ou os Fundadores.
Em resumo: o poderoso Dominion tem em sua base soldados viciados em
drogas. É uma verdadeira escravidão exercida sobre os jem’hadar, que não
conseguem imaginar a vida que existe para além disso. Muito pelo contrário,
eles desejam o momento em que uma nova dose seja fornecida, não só pela dor
que a abstinência provoca, mas por ser o que mais se aproxima de um prazer
que possa experimentar um jem’hadar. É um alívio momentâneo para alguém
que vive uma vida de obediência e violência. Por outro lado, o ketracel é um
elemento estruturante do Dominion, já que os permite contar com uma
extraordinária força de combate. Portanto, se esse vício for interrompido de
alguma maneira, os Fundadores terão sérios problemas.
Liberdade para discordar
Julian e Miles são grandes amigos. A amizade deles nos proporciona grandes
momentos em Deep Space Nine, sejam eles cômicos ou dramáticos. Ela é um
exemplo típico de como duas pessoas podem se conectar de maneira tão
singela e intensa ao mesmo tempo, nos fazendo crer na verdadeira e
desinteressada amizade. Em Hippocratic Oath vemos essa ligação entre os dois
chegar ao seu limite, quando as perspectivas de ambos sobre um grave e
urgente problema os faz pensar de maneira oposta e irreconciliável. A
resolução das dificuldades pelas quais eles passaram nessa história só poderia
ser encontrada na abordagem de Julian ou na de Miles, mas mesmo assim eles
conseguiram manter a sua conexão.
Tudo começa quando os dois estão retornando a bordo de um runabout de
uma pesquisa biológica desenvolvida em um planeta chamado Merik 3. No
retorno, Miles está desabafando com seu bom amigo Julian sobre o fato de sua
mulher Keiko não permitir que ele deixe sua oficina montada nos aposentos da
família. Julian acha a história engraçada mas compreende Miles, levando-o a
confessar que gostaria que ela fosse mais como um... homem. Não no sentido
sexual, é claro. Mas que pensasse de forma parecida a ele e, evidentemente,
Julian. No fim dessa conversa a nave capta um pulso magneton, que tem origem
na explosão de energia magnética polarizada de um núcleo danificado e motor
de dobra (sim, sim, technobabble...). Ou seja, pode haver uma nave precisando
de ajuda. Nosso bons garotos da Frota Estelar decidem ajudar, obviamente, e
aí acabam sendo pegos por uma forte descarga de energia vinda de um campo
de plasma (technobabble ataca novamente...)
Miles O’Brien, com toda sua perícia de piloto, consegue aterrissar a nave
em segurança, no planeta Bopak 3, que além de desabitado, fica fora das rotas
comerciais e, por sorte, distante 6 semanas do próximo posto do Domínio. A
princípio estão em segurança e poderão ser resgatados em breve. Porém, não é
isso que ocorre. No planeta estão escondidos diversos solados jem’hadar, que
os aprisionam enquanto decidem o que fazer.
É a partir desse momento que a amizade dos dois começará a ser posta à
prova, situação que permeará todo o episódio. Os jem’hadar, melhor dizendo,
um deles, Goran’Agar, pede ajuda para o Dr. Bashir. O’Brien se manifesta de
maneira contrária, pois acredita que não se deve fornecer qualquer tipo de
ajuda ao inimigo, mesmo ajuda médica. Bashir discorda, afinal, é um médico e
como tal fez o Juramento de Hipócrates, que dá nome ao episódio. Hipócrates
é considerado o pai da medicina ocidental e seu juramento em resumo diz que
o médico deve ajudar a qualquer um que precisar de ajuda médica. Portanto,
mesmo sendo um jem’hadar, Bashir, por conta da obrigação moral que tem
como médico, deve prestar auxílio.
O problema é que Goran’Agar incrivelmente conseguiu se livrar do ketracel
white, fato que abriu seus olhos para o domínio que os Fundadores exercem
sobre os jem’hadar. Agora ele se tornou uma espécie de vanguarda entre os
seus homens, mostrando a eles que é possível uma outra vida, livre do ketracel
e, consequentemente, livre dos Vorta e dos Fundadores. Para isso, ele reuniu
vários jem’hadar no planeta e está tentando fazer com que eles sejam curados,
sem sucesso, porém. Portanto, a chegada de um médico veio a calhar, pois ele
terá as condições de descobrir a verdadeira cura para o vício dos jem’hadar.
Goran’Agar diz para Julian que agora consegue perceber que quer algo mais
da vida além de ser um escravo. E ao usar essa palavra ele realmente está
demonstrando um nível de consciência impossível para um jem’hadar. Além
do fato de se sentir obrigado a ajudar qualquer forma de vida inteligente,
Bashir vê uma oportunidade de libertar os jem’hadar de sua submissão aos
Fundadores, dando um golpe mortal nas suas atividades bélicas. O’Brien, por
outro lado, aventa a hipótese de que eles poderão se tornar ainda mais
perigosos sem o “freio” exercido pelo Dominion sobre eles. E mais: O’Brien
crê que Julian está sendo manipulado por Goran’Agar, justamente pelo fato
dele saber que o doutor é “obrigado” a lhe tratar. A contradição entre os dois
amigos só aumenta. No fim, quando Bashir está avançando na sua pesquisa,
O’Brien consegue escapar e destrói a sua pesquisa, para que Bashir aceite
escapar com ele.
A amizade foi estremecida, porém logo voltaria ao normal. Diferentemente
dos jem’hadar, que não podem discordar do Dominion, por causa da prisão do
ketracel white na qual se encontram, Bashir e O’Brien, como cidadãos da
Federação, tem todo o direito de não concordarem um com o outro e ainda
assim continuarem amigos. Na utopia da liberdade, não existem amarras que
prendam as consciências e as obriguem a pensar de maneira única, sempre no
mesmo sentido. O ketracel funciona como uma ideologia. Cria uma falsa
consciência nos jem’hadar, os deixa cegos para a vida real. Funciona também
como a crença religiosa, que ameniza o sofrimento de uma vida de dor e
sofrimento e ao mesmo tempo controla o corpo e o espírito.

Religião, luta e miséria


Com o desenrolar da história vai ficando clara a grande metáfora que é o
ketracel. Como dominar uma classe inteira se não pela ideologia ou pela
religião? Ambas andam palmo a palmo, sendo a religião também uma forma
de ideologia, já que joga para os céus aquilo que poderia ser resolvido aqui na
Terra. A ideologia e a religião são como drogas que obscurecem o
discernimento, turvam a visão e embotam a razão. Portanto, o ketracel tem um
pouco das duas, já que mantém os jem’hadar na ignorância e suscetíveis ao
comando de quem está no topo do Dominion, os Fundadores.
Star Trek se caracteriza por mostrar uma sociedade na qual a religião ocupa
um lugar mínimo. Isso acontece porque além da religião não ser algo racional,
pois apela para seres invisíveis, sobre os quais não se podem comprovar a
existência, ela também facilita o controle de uma parcela da sociedade sobre a
outra. A Federação é uma sociedade sem classe sociais, logo, é uma sociedade
sem clero também. A religião fica resumida a uma crença muito privada, sem
que exerça maiores influências sobre a sociedade.
Já em Deep Space Nine, que foi concebida após a morte de Gene
Roddenberry, ferrenho crítico das religiões, a religião toma um papel
importante, inclusive com personagem principal da série, o capitão Sisko,
sendo considerado uma figura importante para a religião de Bajor, o
Emissário. Obviamente, nenhum dos elementos religiosos, que são essenciais
na série, tratou de seres divinos, mas sim de alienígenas com outra forma de
experimentar o tempo, sem forma corpórea e habitantes da fenda espacial.
Kira Nerys, que foi uma das figuras mais importantes da resistência
bajoriana aos invasores cardassiano, é uma devota fiel da religião do seu povo.
Assim como a maior parte dos bajorianos. A religião, para eles, é uma forma
de identidade “nacional”, sendo assim um referencial valioso da sua própria
identidade no motor de resistência à ocupação. A religião ocupa espaço
importante na luta de classes quando tratamos da chamada questão nacional.
Para os irlandeses, por exemplo, dominados brutalmente pelos ingleses
durante vários séculos, o catolicismo representou um modelo distintivo muito
relevante em oposição ao anglicanismo do opressor. Não estou dizendo que se
deve valer da religião para se opor a quem tem uma religião diferente, não se
trata disso. Mas quando um povo é dominado, ele tem todo o direito de
construir a sua nacionalidade e lutar contra o opressor utilizando sua própria
religião também. Foi uma das formas de luta encontrada pelos bajorianos.
Para os jem’hadar as coisas funcionam de maneira oposta. A “religião” que
são obrigados a seguir só os humilha e neutraliza como seres portadores de
inteligência que são. Seus deuses, que prometem tudo, nada lhes dão, a não ser
migalhas, na forma de uma droga que não serve para nada, a não ser para
mantê-los vivos e dóceis, prontos a fazer as guerras que o Dominion precisar.
A vida miserável que levam é atenuada pela miserável droga que são obrigados
a usar. Por isso, jamais encontram a possibilidade de sair desse círculo vicioso,
pois sequer cogitam que exista essa possibilidade. Esse é ciclo é quebrado por
Goran’Agar, que, livre do ketracel, começa a forma sua própria estrutura moral.

A heresia de Goran’Agar
Goran’Agar havia caído em Bopak 3 e seus suprimentos de ketracel white
durariam apenas três dias. Ele os racionou e conseguiu ampliar para oito dias.
No entanto, a substância acabou e ele permaneceu 35 dias sem uma gota da
droga. Isso foi como uma libertação total, pois o fez compreender que ele só
servia ao Dominion devido ao seu vício. Logo, se ele não precisasse mas do
ketracel ele poderia fazer o que bem entendesse, livrando-se dos Vorta e dos
Fundadores.
Assim, Goran’Agar trouxe mais comandados seus para o planeta, de forma
que ele pudesse libertá-los também do ópio fornecido pelo Dominion. No
entanto, a empreitada se apresentou muito mais difícil do que imaginara e
seus homens não estavam se curando assim como ele se curou. Por isso a
necessidade de que Bashir encontre uma solução, pois ele é a sua última
esperança, antes que aconteça uma revolta entre seus homens. Quando um
deles questiona suas ordens, ele esclarece o que de fato está acontecendo ali:
“viemos para nos ver livres dos Vorta, é hora de pararmos de viver sob suas regras”.
Exato. Se houve a descoberta de que a liberdade existe, não pode mais haver
compromisso com quem criou a escravidão.
Agora é a hora de questionar tudo que lhes fora ensinado pelos Vorta,
representantes dos Fundadores, os deuses que os esqueceram. Portanto, novos
valores devem ser criados, para que substituam aqueles da época da
escravidão. Os novos jem’hadar não podem mais matar indiscriminadamente,
sem remorso algum. Para tanto, é necessário que passem a valorizar as outras
formas de vida. Inclusive a deles próprios, não executando companheiros
feridos ou então se entregando a missões suicidas. Por fim, constatar que
obedecem cegamente aos Fundadores o que os levará a questionar isso e
finalmente quebrar as correntes que os ligam a eles e que são apertadas pelos
Vorta.
Ao se libertar do ketracel, Goran’Agar conseguiu enxergar que os
Fundadores não são deuses, como se apresentam aos jem’hadar. É certo que
eles foram criados pelos Fundadores, mas isso não os dá o direito de controlar
a vida de cada um deles, como feras sempre atiçadas, prontas para atacar os
inimigos. Eles não foram criados por um ato de amor, narrativa religiosa
típica, que os jem’hadar encontraram quando tiveram contato com outras
raças, contra as quais lutaram. Os Fundadores os criaram somente para servi-
los e morrer por eles. E para manter a ilusão de que isso está correto e que
cada jem’hadar da galáxia deve estar grato por isso, criaram o ketracel, o ópio
que torna possível a vida miserável do jem’hadar. Sem a droga, Goran’Agar
nota que as máscaras que escondiam a realidade começam a cair:

Eu nunca vi um Fundador. Para nós são quase um mito. Mas todos no Dominion,
até os Vorta, servem aos Fundadores. Mas nossos deuses nunca falam conosco e não
esperam por nós após a morte. Eles só querem lutemos por eles e que morramos por
eles.

As coisas começam a se tornar muito interessantes! Goran’Agar é um


visionário, é o primeiro da sua espécie a descobrir que os deuses não existem.
É o primeiro herege dos jem’hadar. Goran’Agar descobriu que ele e os como
ele nada mais são do que seres descartáveis, que tem como única serventia
serem usados da maneira que for mais conveniente por aqueles que se passam
por deuses. A farsa religiosa imposta pelos Fundadores, com o objetivo de
garantir seus próprios interesses despóticos, começa a ruir na perigosa
libertação pela qual Goran’Agar passou. Ele é como Domenico Scandella, um
moleiro italiano do século 16 que começou a perceber as mentiras da Igreja:
“os padres nos querem debaixo de seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos,
mas eles ficam sempre bem”. Evidentemente, Scandella foi executado pela
Inquisição pouco tempo depois que suas heresias foram descobertas. Que fim
terá levado Goran’Agar?

O ketracel white é a miséria dos jem’hadar


O ser humano precisa de motivações para agir. Algumas pessoas são
motivadas pela razão, outras pela paixão, outras pelos instintos, outras pela
religião. A religião é uma expressão da realidade, que acaba sendo utilizada
habilmente por aqueles que exploram a fé. Estes exploradores da fé, da
mistificação e do obscurantismo, existem há milhares de anos. Quando alguém
mais esperto percebeu que plantando trigo em determinada época do ano era
melhor do que plantar em outra, rapidamente atribuiu isso a um deus e se
colocou como aquele que tinha acesso a este. Nascia o primeiro sacerdote e
uma das primeira formas de divisão da sociedade em classes. Estavam
separados o trabalho braçal e o intelectual. Surge uma vida de luxo para uns e
a vida miserável para outros.
Pois então, a religião entra em um loop infinito: ao mesmo tempo em que
ela contribui para a miséria da vida ela se torna o suspiro da criatura
miserável. A religião é uma expressão miserável da realidade. É pobre,
distorcida e, ao mesmo tempo, a reflete bem, pois a realidade é miserável
também. Portanto, ao aderir à religião, o ser humano busca refúgio de um
mundo que o destrata, de uma realidade que o humilha e o faz sofrer. No
entanto, seu esconderijo também é miserável, já que se trata de um reflexo
irracional da realidade, que jamais irá ajudá-lo a superar sua condição. Pelo
contrário, o manterá lá eternamente, prometendo que um dia o paraíso
chegará.
Essas sãos as misérias pelas quais passam os jem’hadar. Eles foram criados
para serem usados. Seus criadores se apresentam como deuses, que nunca são
vistos, mas que lhes garantem que o Dominion é grande e eles devem se sentir
gratos por fazerem parte. Mais do que gratos, devem se sacrificar por ele. Mas
a realidade é outra, e, de certa forma, é simples de enxergar. Para evitar isso
existe o ópio, algo a que as criaturas miseráveis se apegam, pois sem ela não
podem viver. E assim vivem sem conhecer o real.
O contraste com a Federação é imenso. A vida não é miserável, não existe a
opressão. Por isso, não surgem reflexos miseráveis da realidade, aos quais as
pessoas precisariam se agarrar para fugir dessa mesma dura realidade. A
utopia é racional e livre.
3
BAR ASSOCIATION

Ferengis de toda a galáxia, uni-vos!

A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas
mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o
trabalho assalariado.
Marx e Engels

Proletários de todos os países, uni-vos!


Marx e Engels

Episódios de ferengis dão muito lucro


Em Deep Space Nine existem quatro raças que considero principais, além de
nós humanos. Em primeiro lugar os bajorianos, pois a história só existe devido
ao fato de Bajor estar saindo de um longo período de ocupação. Além disso,
Sisko é o emissário da religião bajoriana. Em segundo lugar temos os
cardassianos, responsáveis por ocupar e praticar genocídio em Bajor durante
décadas. Cardássia terá um papel central no desenrolar da série, com seu ápice
na Dominion War. Não podemos nos esquecer também do ardiloso Gul Dukat,
o grande antagonista do emissário. A terceira raça fundamental são os
klingons, com ótimos episódios que trazem personagens do passado (mais
precisamente da série clássica) e que desenvolvem o personagem Worf
maravilhosamente. Na guerra, serão aliados da Federação, com o incrível
general Martok. Mas é na quarta raça desse recorte que faço que se encontra o
objeto dessa seção: os ferengis.
Inicialmente, o ferengis foram criados como os grandes vilões de The Next
Generation. Contudo, logo se percebeu que eles eram caricatos demais, que
inspiravam mais risadas do que medo. Portanto a ideia não deu muito certo.
Eles aparecem em alguns episódios da série, mas ainda de uma maneira tosca,
pouco desenvolvida. Usavam trajes de peles e uma espécie de tatuagem tribal
na cabeça. Isto é, eram representados como seres primitivos (que na verdade
são, já veremos o porquê), mas que posteriormente se revelarão um pouco mais
complexos, e isso será expresso em suas vestimentas. É somente em Deep Space
Nine que os ferengis conseguirão atingir o status de protagonistas,
representados, sobretudo, pelo dono do bar da estação, o inenarrável Quark.
O espertíssimo baixinho Quark está na estação desde que ela se chamava
Terok Nor, ou seja, desde a época em que Bajor ainda era dominada pelos
cardassianos e a estação se tratava de uma instalação para processamento de
minérios, a partir do trabalho escravo dos bajorianos. Portanto, Quark é quase
um patrimônio da Deep Space Nine, explorando os vícios dos humanoides há
muito tempo. Na série, se formará um núcleo muito importante de ferengis em
torno de Quark, tendo no seu irmão Rom, na sua mãe Ishka (moogie), em seu
sobrinho Nog e no Grande Nagus Zek (líder dos ferengis) os seus principais
integrantes. Não podemos esquecer de Leeta, uma bajoriana que trabalha no
bar na mesa de dabo (um dos jogos explorados por Quark) e casa-se com Rom.
Há um fato muito interessante que mostra como Deep Space Nine é uma
série diferenciada em relação às outras em termos de elenco, havendo um
clima mais familiar entre os seus atores. Quando os atores recebiam o roteiro
de um dos chamados “episódios de ferengis”, ou seja, um episódio centrado
nas estripulias desses baixinhos cabeçudos obcecados por latinum Armin
Shimerman, o ator que interpreta Quark, reunia em sua casa esse núcleo para
ensaiar. Passavam a noite falando sobre o tema, fazendo a leitura do roteiro e
ensaiando as falas. Certamente, esses foram momentos inesquecíveis para os
ferengis de Deep Space Nine.
O fato é que os episódios de ferengis se tornaram clássicos da série, sendo,
em geral, muito divertidos e sempre com alguma crítica social importante. Por
exemplo, em Family Business, quando Quark e Rom são chamados a Ferenginar
para resolver um problema com a sua moogie (mãe), há toda uma discussão a
respeito do papel da mulher em uma sociedade patriarcal, como a dos ferengis
(e a nossa). Em Little Green Men, Quark, Rom e Nog voltam no tempo e acabam
parando na Terra em meados do século 20, mostrando como somos atrasados
ainda em comparação à Federação (às vezes até mesmo em relação aos
ferengis). E assim por diante, em muitos outros episódios como The
Magnificent Ferengi, House of Quark e Rules of Acquisition.
Logo que comecei a assistir Deep Space Nine não gostei nem um pouco do
Quark. Eu pensava “nossa, que absurdo, um personagem mau caráter desses
protagonizando a minha série do coração!”. Exatamente como muitos ainda
hoje em dia pensam. Mas, eu fui conhecendo-o melhor e hoje em dia não só
Deep Space Nine é a minha série favorita de Star Trek, como Quark é um dos
meus personagens favoritos, sem a menor sombra de dúvida. Esse mimimi
todo que eu fazia e que continua existindo entre aqueles trekkers que, por
serem tão puristas, devem considerar Star Trek apenas o primeiro piloto The
Cage, é o mesmo que Worf sente logo que chega à estação. Ele não consegue
compreender como um dono de bar sempre envolvido em transações obscuras
não é preso por Odo e que possui a tolerância do próprio capitão da estação.
Pois é justamente Sisko que dá a resposta para Worf (não somente para ele,
mas principalmente para os fãs, uma sacada e tanto dos roteiristas), explicando
que ali na estação as coisas operam de forma diferente do que ocorre em uma
nave estelar. Enquanto nas naves da Frota (na Enterprise, por exemplo, onde
Worf passou sete anos), as coisas são preto no branco, na Deep Space Nine
existem tons de cinza e Quark se encontra justamente em um desses tons. Pois
esse é um dos elementos que fazem Deep Space Nine a melhor série Trek de
todos os temos. Os personagens parecem reais, pois têm divergências entre si,
precisam improvisar e agir da melhor maneira possível em situações
imprevistas e, principalmente, apresentam uma carga dramática permanente
não vista na franquia até então.
Ademais, Quark apresenta um arco de redenção ao longo da série. Do
negociante que não se importa com nada além do lucro, desenvolve relações de
amizade e confiança com os outros personagens, ajudando a salvar a vida de
muitos deles mais de uma vez. Nem tudo está perdido. Se Quark é capaz de
evoluir, nós também somos e poderemos construir a utopia. É por essas e
outras que, com os episódios de ferengis, os trekkers sempre têm a ganhar.

Capitalistas do espaço
No universo de Star Trek, os ferengis representam a selvageria e a injustiça do
capitalismo. É uma alegoria muito evidente, que não exige que se coloque uma
lupa sobre eles para perceber. Está ali, claramente. Ferengis são obcecados
pelo lucro e tanto sua vida individual quanto sua sociedade são estruturadas
sobre essa lógica, a lógica do capital. Um exemplo disso é o livro conhecido
como “Regras de Aquisição”, uma espécie de bíblia ferengi que elenca
centenas de regras que devem ser seguidas para que os lucros sejam melhores.
Vejamos algumas delas:

1ª regra: Assim que tiver o dinheiro deles, nunca o devolva.


Isto é, nada vale mais do que obter o dinheiro, mesmo que ocorra algum
problema no produto vendido ou no serviço prestado, azar o do comprador,
pois o dinheiro nunca será devolvido. Esse é o desejo de qualquer capitalista.

6ª regra: Nunca permita que sua família fique no caminho da oportunidade.


O dinheiro é o valor supremo entre os ferengis. Nem mesmo a família é tão
valiosa para eles quanto uma boa quantidade de latinum.

17ª regra: Um ferengi sem lucro não é um ferengi.


O lucro é o que dá a identidade dos ferengis. Um ferengi não lucrar é como um
peixe que pudesse viver fora d’água. Aliás, essa é a regra 17: Você não pode livrar
um peixe da água.

74ª regra: Conhecimento é igual a lucro.


Toda a ciência, todo o conhecimento produzido pelos ferengis não tem a ver
com o seu aprimoramento como espécie. Tem a ver com obter lucro (que para
eles é aprimorar a espécie).

94ª regra: Mulheres e finanças não se misturam.


A sociedade ferengi é radicalmente patriarcal. Suas mulheres não podem em
hipótese alguma exercer qualquer atividade comercial ou financeira e sequer
podem usar roupas.

Acho que dá para ter uma boa base de como as coisas funcionam entre os
ferengis somente com esses poucos exemplos das Regras de Aquisição, que já
chegam a quase 300.
Alguma semelhança com um certo sistema socioeconômico que
conhecemos muito bem? Se você conseguiu fazer a associação você está indo
muito bem (apesar de não ser um grande mérito, pois, vamos combinar, essa
foi fácil). A questão é que como em todo bom Star Trek (e Deep Space Nine é
boníssimo Star Trek!) as raças alienígenas são usadas pelos roteiristas para
revelar determinadas facetas humanas. Os ferengis são, nada mais, nada
menos, do que o ser humano sob o capitalismo. Como todas as implicações
que isso possa ter. Se o lucro é o motor da sociedade capitalista, ele também o
é na sociedade ferengi. Na Federação o lucro não importa, pois nem dinheiro
existe mais.
Se, no capitalismo, todos os obstáculos devem ser removidos, não
importando o impacto negativo que isso possa ter para milhões de pessoas,
para que um indivíduo ou um pequeno grupo possa enriquecer ainda mais,
para os ferengis isso é prática cotidiana e banal. Se, para os ferengis, é
inconcebível que um deles não tenha desejo por lucro, sobretudo de maneira
individual, e busque melhorar a situação, não somente sua, mas de seus
companheiros de trabalho, no capitalismo essa luta ocorre há séculos, desde a
Revolução Industrial. É disso que Bar Association trata, da organização dos
trabalhadores em busca de direitos, que são negados pela classe patronal.
É o momento que Quark, a representação do capitalismo, é confrontado por
aqueles que geram sua riqueza. É quando Rom, seu irmão e empregado, e que
representa a tomada de consciência da classe trabalhadora como classe para si,
embora com suas limitações, como é possível perceber no episódio. Em suma,
o capitalismo não pode durar para sempre impune de seus crimes contra a
humanidade. Um hora a conta chega. Conta que, como bons capitalistas eles
não querem pagar, mas não tardará que a dívida se torne tão massiva que
acabará por esmagá-los. Bar Association representa o primeiro passo dessa
jornada de libertação dos oprimidos.

Capitalismo, genocídio e exploração do trabalho


A história do capitalismo começa com as grandes navegações, no século 16. É
o que Marx chama de acumulação primitiva do capital, feita através do espólio
e genocídio dos indígenas nas Américas e da escravidão africana. Como o
grande filósofo alemão nos ensina, o capitalismo nasce “vertendo lama e sangue
por todos os poros”. De capitalismo comercial, passa para industrial, onde a
exploração e a opressão adquirem novas formas. As terras comunais são
expropriadas dos camponeses ao mesmo tempo que a indústria surge nas
cidades. Não resta alternativa a essa pobre gente, a não ser migrar para as
metrópoles em busca de trabalho, sujeitando-se a qualquer trocado, já que o
excesso de pessoas fazia com que o valor pago pelos burgueses
tendencialmente caísse. É o chamado “exército industrial de reserva”. Quanto
mais gente desempregada melhor, pois reprime a organização sindical e achata
os salários. O ser humano, agora possuidor (em termos) somente de sua
própria força de trabalho, não pode se dar ao luxo de escolher no que trabalhar
e quanto receber. Assim se forma uma classe inteira de pessoas despossuídas,
que formam aqui e ali alguma consciência de sua situação enquanto classe.
Mas a falta dessa consciência existe até hoje, fato que explica, por exemplo,
porque trabalhadores votam em figuras grotescas e vulgares como Bolsonaro,
que evidentemente é inimigo mortal dos trabalhadores.
No final do século 19 e início do século 20, o capitalismo se torna financeiro
e imperialista. O capital industrial se mistura com o dos bancos e as potências
europeias decidem partilhar o mundo, negando a autodeterminação aos
chamados “povos de cor” e impondo, pela violência, genocida como sempre,
seus interesses na África e na Ásia. Só no Congo, que era propriedade
particular do rei Leopoldo 2º, a Bélgica exterminou 10 milhões de pessoas. O
holocausto dos judeus eu tenho certeza que você conhece, mas as chances de
desconhecer o que os europeus fizeram na África são grandes. O imperialismo,
que Lênin chama de fase superior do capitalismo, além da violência brutal,
ainda promoveu as duas grandes guerras mundiais, que provocaram a
destruição da Europa e a morte de quase de mais de 50 milhões de pessoas. A
corrida das nações que saltaram na frente na dominação imperial, com aqueles
que ficaram para trás (Alemanha e Itália), provocou o maior conflito armado da
história, formando aquilo que Losurdo chama de Segunda Guerra dos 30 anos
e Hobsbawm de Guerra de 31 anos, já que a Primeira Guerra Mundial e a
Segunda se tratam de uma mesma guerra interimperialista.
Somente na segunda metade do século 20 é que os povos coloniais
começaram a se libertar das garras inescrupulosas e insaciáveis do capital
europeu. Mas as sequelas ficaram e os países africanos ainda lutam para a
construção de suas nações soberanas. Eis a importância da Primeira Diretriz,
que impede a Frota Estelar de interferir no desenvolvimento histórico de
outros povos. Se ela fosse colocada em prática, aqui na contemporaneidade,
todo o terror aplicado pelo capitalismo sobre a humanidade não teria
acontecido.
Com esse histórico de horror, fica evidente que o capitalismo é necrófilo.
Ele ama a morte e não pode existir sem ela. Para o capital não existem seres
humanos, existem ferramentas utilizadas para dar lucro. Portanto, a sua lógica
deve ser quebrada e ele deve ser destruído. Nunca haverá capitalismo
“humano”, pois ele é essencialmente anti-humano. Se qualquer fã parar um
minuto para pensar a razão da sociedade vista em Star Trek ser praticamente
perfeita, ele rapidamente descobrirá que é porque ela não é capitalista.
Todavia, nunca houve um sistema que criasse tanta riqueza e tanto
desenvolvimento. Mas essa sentença não está correta. Não foi o capitalismo
que criou nada, foram os trabalhadores. A riqueza não surge do nada, a única
coisa que a cria é o trabalho. Sob o capital o trabalho é expropriado e a maior
parte dele fica concentrada nas mãos de um punhado de burgueses. Por isso o
capitalismo, com toda a tecnologia e riqueza criada pelos seus trabalhadores,
deve ser derrotado finalmente de forma que a quem tudo produziu tudo
pertença. Em Bar Association Rom começa a pensar um pouco mais nessas
questões e vai perceber que não precisa ser eternamente explorado por seu
irmão Quark.

Um sindicato na estação
Marx e Engels chegaram à conclusão de que o reino da liberdade inicia quando
cessa o reino do trabalho por necessidade. Também pensaram que é o livre
desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de
todos. Ou seja, a escassez do capitalismo, que faz com que falte o básico para
milhões e sobre tudo o que você possa imaginar para poucos, faz com que a
existência do trabalhador dependa totalmente de quem o emprega, da classe
que lhe explora o trabalho. Se ela não der o trabalho, ele morre de fome.
Quando ela dá, ele se torna um escravo assalariado. A vida do trabalhador em
sua totalidade ocorre em estrita dependência da classe dominante. Por isso
não existe liberdade sob o capital. E não havendo liberdade somente uns
podem se desenvolver sua humanidade quase que plenamente (pois até mesmo
o burguês é alienado/reificado). Portanto, somente em um sistema onde o ser
humano é livre, como no comunismo, é que as pessoas poderão viver uma vida
integral. Muitos falam em meritocracia. Eu concordo com ela. Desde que ela
ocorra em um sistema onde todos são iguais em seus pontos de partida e que o
objetivo não seja acumular riqueza sobre o trabalho expropriado. No
comunismo, a meritocracia terá pleno valor, pois somente em um sistema
assim é que os talentos verdadeiros poderão se destacar. Imagine nesse
momentos quantos futuros gênios da física, da filosofia, da medicina estão na
favela mais pobre do Brasil ou no recanto mais miserável da África? Talentos
que nunca aparecerão, pois estão soterrados pela desigualdade criada
artificialmente pelo capital.
A Federação é nitidamente uma sociedade pós-capitalista, que se assemelha
enormemente ao comunismo, por alguns motivos principais:

1. Ausência de dinheiro, as forças produtivas tão desenvolvidas (leia-se


replicadores) que permitem que todo e qualquer tipo de bens e mercadorias
sejam de acesso universal, logo não existe escassez e as mercadorias perdem
seu valor de troca, mantendo apenas seu valor de uso.
2. Com isso as relações de produção se transformaram completamente, isto
é, não existe mais a relação do capital explorador e do trabalho explorado, logo
deixa de existir a exploração do homem pelo homem e o antagonismo de
classes.
3. Na prática isso significa a emancipação final da humanidade.

Mas entre os ferengis as coisas se dão de forma bastante diferente e muito


mais familiares para nós. Enquanto a Federação representa a utopia, os
ferengis representam nós como somos hoje. É o bom e velho contraste
mostrado por Star Trek que nos faz enxergar melhor a realidade. Quark
representa o que é o ser humano no sistema capitalista: um acumulador e
trocador de mercadorias e valores. Indo além: representa o capitalista por
excelência, um explorador obcecado pelo lucro. Em seu bar ele emprega Rom,
seu irmão, bem mais ingênuo que ele, que é obrigado a trabalhar sem folga e
mesmo quando se encontra doente. Esse é o sonho de todo patrão, nunca mais
na vida enxergar um atestado médico...
Rom, devido à exploração excessiva que sofre por parte do seu chefe/irmão,
está há semanas trabalhando doente. Quando finalmente desmaia e vai para a
enfermaria, o Dr. Bashir, chocado com a situação, sugere que Rom deveria
montar um sindicato, de modo a se proteger da ganância de Quark, já que não
possui nem direito a férias nem a plano de saúde. Retornando ao bar, após o
atendimento, se depara com Quark informando a todos que o salário será
reduzido a 1/3, devido à queda no faturamento pela ausência dos bajorianos,
que se encontram no período de “limpeza”, no qual devem se abster de
qualquer atividade de recreação. É como se fosse uma Sexta-Feira Santa para
os católicos, com a diferença que esta, hoje em dia, já caiu em desuso.
Quark, tipicamente capitalista, não cogita a hipótese de compartilhar a
queda no faturamento: ele joga o prejuízo todo para os trabalhadores.
Revoltado com a situação, Rom reúne os funcionários do bar e propõe a
fundação de um sindicato. A ideia soa absurda e chocante para os empregados
ferengis, que, evidentemente, vivem sob a lógica do capital característica da
sua raça. Todo ferengi é condicionado a se tornar um explorador, não existindo
entre eles qualquer tipo de solidariedade de classe. No individualismo ferengi,
que é o individualismo burguês, eles só pensam em um dia deixarem de ser
explorados para se tornarem exploradores. Como dizia o imprescindível Paulo
Freire: “se a educação não for libertadora o sonho do oprimido é se tornar opressor”.
Por isso eles se apresentam tão refratários à ideia de contestar o patrão.
Além disso, existe um órgão chamado Autoridade Comercial Ferengi (ACF),
que é uma espécie de Estado para os ferengis, mesclado com entidade de
defesa dos interesses dos patrões. Nada surpreendente nisso, pois como Marx
e Engels já apontavam, o Estado nada mais é que um comitê para gerir os
negócios comuns da burguesia.
As coisas vão se tornando mais tensas, pois no fim das contas o sindicato é
formado, fortalecendo os empregados do bar do Quark na defesa de seus
interesses e voz para suas reivindicações. Assim, logo em seguida Quark é
procurado pelo sindicado que colocas suas demandas. Quark as rejeita
imediatamente, rindo da audácia daqueles empregados em contestar um
proprietário. Provavelmente, essa foi a primeira vez que isso aconteceu na
sociedade ferengi que, na sua longa tradição capitalista de 10 mil anos,
funciona como o nosso presente que é dominado pelo passado.
Não havendo outras alternativas aos trabalhadores, resta deflagar aquele
que é o maior instrumento de pressão sobre o patronato: a greve. Mesmo assim
Quark não se dá por vencido e tenta implementar garçons holográficos,
artimanha que acaba não funcionando. Quark, ao tentar implantar a
automatização do trabalho em seu estabelecimento, reflete um expediente
utilizado pelo capitalismo que é transformar o atendimento a clientes cada vez
mais virtual, com chats que utilizam inteligência artificial, por exemplo. É uma
forma de economia, já que dispensa um trabalhador. Porém, nas infinitas
contradições do capitalismo, se não há trabalhadores, não há consumidores, o
que inviabiliza o sistema. Outra prova sobre a inadiável transitoriedade do
capitalismo.
Rapidamente, a Associação Comercial Ferengi fica sabendo da “agitação”
no bar do Quark e manda o detestável Brunt acompanhado de seus capangas
nausicaanos para pressionar o Quark, exigindo que ele resolva logo a questão.
Não encontrando uma saída para a situação que se torna mais e mais grave,
Quark procura Rom, em uma tentativa de abrir negociações. No entanto,
Quark subestima a dignidade e a consciência de classe de seu irmão e tenta
suborná-lo esperando que assim a greve possa ser encerrada. Rom, que ouve a
proposta de Quark enquanto manuseia um padd, promove a grande cena do
episódio, citando um trecho do Manifesto do Partido Comunista:
“Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossos
grilhões”. Genial! Rom se tornou um trabalhador consciente! Sem dúvida
alguma, Rom percebeu que Quark não pode sobreviver sem o trabalho de seus
empregados e que isto concede enorme força à classe. É a tomada de
consciência do proletariado.
Como Quark não consegue terminar a greve, Brunt ordena que seus
capangas lhe deem uma lição, traduzindo: Quark é brutalmente espancado e
vai parar na enfermaria. Rom vai visitar o irmão, mas não arreda pé da questão
e mantém a greve até que as reivindicação do sindicato sejam aceita. Quark
insiste que não pode dar o que eles pedem porque quebraria a já mencionada
tradição ferengi de 10 mil anos. Para resolver a situação eles fazem um acordo
extraoficial, encerrando a greve, para alegria da ACF, que viu a ordem ser
restabelecida, e dos trabalhadores, que tiveram todas suas reivindicações
atendidas.

Luta sindical e luta de classes


Como o desfecho desse episódio, diversas questões podem ser levantadas. A
primeira delas diz respeito ao modo como Rom adquiriu a consciência de que
fazia parte de uma classe oposta à do seu empregador. Uma coisa é saber que
você trabalha mas quem lucra é o seu patrão. Outra é entender que existe um
antagonismo concreto nessa relação, que é uma relação que divide o mundo
entre seres humanos (no caso ferengis) e coisas. O empregado é apenas um
objeto para o seu patrão e no mundo. Ele não é sujeito da sua própria vida,
muito pelo contrário, ele é sujeitado a uma classe dominante para que essa
possa ser protagonista e não objeto. Rom, mesmo explorado, não tinha a
capacidade de desenvolver essa consciência, fato que vai acontecer somente
quando o Dr. Bashir, de brincadeira, sugere que ele deveria formar um
sindicato.
Mas será que ele criou consciência de classe mesmo? Até que ponto? Sim,
obviamente, ele desenvolveu uma consciência que o faz ver de forma cristalina
que há uma divisão na sociedade e quem sem dúvida alguma os que estão do
mesmo lado da linha que ele são os que se dão mal. Então algo precisa ser
feito, pois essa não é uma situação justa. Ele percebeu que existe uma divisão
do trabalho: uns trabalham, outros exploram o trabalho. Mas Rom para nesse
ponto.
A consciência de classe de Rom não é revolucionária. Ela se encontra
dentro da mesma lógica do capital que o explora. Ele não pretende subverter
completamente essa ordem injusta que já começa a perceber, mas amenizar,
atenuar, a situação dos trabalhadores como ele. Porém, o regime de
exploração, onde pouquíssimos tem quase tudo e a maioria não tem quase
nada permanecerá como tem sido nos últimos 10 mil anos em Ferenginar.
Falta alguma coisa aí.
A luta de Rom estancou no limite entre a luta por melhores salários e
condições de trabalho e a derrubada da ordem vigente que sempre será
exploradora e predatória. E esse é um erro que os trabalhadores têm cometido
desde que surgiram as primeiras associações lá na época do cartismo, no início
da Revolução Industrial, por exemplo. É a consciência trade-unionista para a
qual Lênin já nos alertava. O capitalismo tem usado essa falta de percepção de
muitos trabalhadores como uma forma de se perpetuar. Foram concedidas
folgas, férias, diminuição de carga horária e diversos outros benefícios, que
acabaram contentando a classe e congelando seu potencial revolucionário.
É evidente que os benefícios são importantes e devem ser expandidos
continuamente, mas a questão não é essa. A questão é que o capitalismo, como
a ordem necrófila e inimiga da humanidade, deve ser derrubado, de forma que
o trabalho pertença aos trabalhadores, onde não existam “benefícios” mas
aquilo que de fato o trabalhador produziu e retorna a si.
Essas são as diferenças entre a luta sindical e a luta de classes. Ambas
devem andar juntas, uma não pode esquecer da outra, sobretudo a segunda,
que é a fundamental. Assim, o chamamento de Rom para que os trabalhadores
do mundo todo se unam terá um significado muito mais poderoso.
4
FAR BEYOND THE STARS

O doloroso sonho de um mundo sem racismo

A carne mais barata do mercado é a carne negra Que vai de graça pro presídio E para debaixo do
plástico E vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos
Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti

Eu sou um ser humano! Você pode me negar tudo o que quiser, mas não pode negar Ben Sisko. Ele
existe! Aquele futuro, aquela estação espacial, todas aquelas pessoas - elas existem aqui! Você pode
censurar uma história, mas não pode destruir uma ideia. Esse futuro - eu o criei, e é real!
Benny Russell

É uma obrigação destruir o racismo


A luta de classes é um genus do qual se ramificam algumas species. A luta dos
trabalhadores contra a exploração é uma delas. Outra é a luta das mulheres
contra a sociedade patriarcal. A última é o conflito dos países coloniais contra
os seus colonizadores e dentro dessa inclui-se a luta contra o racismo. Afinal, a
origem do preconceito e do ódio contra os negros remonta ao processo de
colonização da África e a subsequente escravidão de seus habitantes, que
vieram para as Américas exercer o trabalho que a edificou. As justificativas
ideológicas para que um ser humano possa escravizar outro passam
inevitavelmente pelo racismo, que se estrutura sobre determinadas
interpretações bíblicas e, sobretudo, sobre o chamado “fardo do homem
branco”, responsável por levar a civilização aos povos bárbaros.
Segundo Marx, “Os povos modernos não souberam senão mascarar a escravidão
em seu próprio país e impuseram-na sem máscara no Novo Mundo”. Isso significa
que, embora as classes proprietárias tenham impingido uma dura dominação
sobre os trabalhadores das metrópoles, essa ainda carregava em si um
elemento “humano”. Uma ligação espiritual entre expropriadores e
expropriados, que, afinal das contas, faziam parte do mesmo povo, da mesma
nação. O operário inglês, mesmo sendo considerado bruto e sem condições de
compartilhar as benesses da vida burguesa, ainda assim era visto como um ser
do mesmo gênero. Em contrapartida, o africano, considerado
irremediavelmente inferior ao europeu, não só poderia como deveria ser
escravo. Mesmo o bandido, desde que branco - em outras palavras: o pior dos
homens - , era tido como superior aos negros.
Uma injustiça dessa monta certamente engendraria uma rebelião
proporcionalmente equivalente. Nesse sentido, lutar permanentemente contra
a inevitável revolta dos escravos diretos fazia parte da rotina da classe dos
proprietários. A civilização, que em seu ponto de vista era representada pelos
ricos, tinha todo o direito de escravizar direta e indiretamente pobres e negros.
Obviamente, não se reprime o escravo somente pela espada, sendo tão
fundamental quanto ela a pena. Por isso diversos intelectuais e filósofos se
posicionaram claramente ao lado das aristocracias, criando discursos que
legitimavam sua ação e auxiliavam na inferiorização daqueles que eram objeto
da escravidão. Esses filósofos iam totalmente na contramão do que de mais
racional e moderno se fazia no âmbito da filosofia, representada em seu ponto
alto por Marx e Engels. Um desses filósofos, entusiastas da escravidão, foi
Nietzsche, frequentemente citado por uma determinada esquerda que o
considera revolucionário somente por ser ateu. A história é bem diferente.
Nietzsche era um aristocrata. E quando afirmo isso não estou me referindo
exclusivamente à sua posição social. Engels era burguês, filho de dono e
depois proprietário de indústrias têxteis. Isso não o impediu de se tornar um
dos criadores, juntamente com Marx, da ciência do proletariado. Portanto, não
se pode isentar Nietzsche por sua posição, que teria influenciado sua obra.
Nietzsche, portanto, era um radical da aristocracia, e se tornaria muito
influente para os nazistas algumas décadas depois. No que consistia seu
aristocratismo? Nietzsche considerava que existiam, naturalmente senhores e
escravos. Que uma determinada parte da humanidade estava predestinada a
governar outra. E que se a parte a ser governada fosse exterminada até seria
melhor. Nietzsche falava claramente na aniquilação das raças inferiores. Ele
tinha medo que “uma camada barbárica de escravos” pudesse pôr fim à
civilização, já que, para ele, existiam diferenças naturais insuperáveis entre os
homens. Pois se você associou esse pensamento como um elemento
estruturante do racismo, parabéns, você está no caminho correto. E essa
filosofia colide frontalmente com o que Marx e Engels faziam.
Enquanto para o teórico do “radicalismo aristocrático” a exploração de um
ser humano pelo outro é um dado da realidade que não pode ser suprimido,
Marx e Engels se posicionam de modo contrário, afirmando que toda forma de
escravidão é superável. Os criadores do materialismo histórico não podiam
pensar de forma diferente. Para a sua teoria, todas as sociedades, que são
sempre fundadas sobre os conflitos de classes, são determinadas
historicamente e possuem caráter transitório. Ou seja, toda criação humana
será destruída e dará lugar a outra criação. É a dialética. Se pensarmos como
Nietzsche, o racismo se justifica, pois nada há que se fazer a respeito da
inferioridade de uma “raça” em relação a outra. Agora, se optarmos por Marx e
Engels, descortinaremos essa visão errônea e saberemos que a escravidão e o
racismo podem ser destruídos, como imposição histórica. De um lado, um
pesadelo. Do outro, o sonho de Benny Russell no episódio Far Beyond the Stars.

Um sonho para o futuro


Far Beyond the Stars, episódio da sexta temporada de Deep Space Nine é um
daqueles momentos raros da produção para a TV. É de uma genialidade ímpar.
Escrito por Ira Steven Behr e Hans Beimler, com base em uma história de
Marc Scott Zicree, foi ao ar em fevereiro de 1998 e apresentou uma pungente
denúncia sobre o racismo, através de uma história que se passa no passado e
no futuro, porém falando com grande eloquência sobre o presente. O racismo
ainda não foi destruído, mas não podemos esperar 400 anos, como o sonho de
Benny Russel, para que ele seja superado de uma vez por todas.
A história se passa em meio à guerra contra o Dominion, que formou uma
aliança dentro do Quadrante Alfa com os belicosos cardassianos. Sisko está
recebendo a notícia de que a USS Cortez fora destruída enquanto patrulhava a
fronteira cardassiana, atividade cada vez mais perigosa. O capitão da nave,
Quentin Swofford, era amigo de Sisko, fato que o deixa muito entristecido e
com um sentimento de fracasso, já que não consegue impedir as mortes que só
aumentam. A partir dessa situação, cogita inclusive renunciar de seu cargo,
pensamento que é contestado pelo seu pai Joseph, que se encontra na estação
em visita ao filho e ao neto.
É nesse momento que Sisko tem uma visão. Ele vê passar diante da porta de
seu escritório um homem trajado com um terno e um chapéu típicos da década
de 1950. A audiência reconhece na hora que se trata de René Auberjonois, ator
que interpreta Odo, porém sem a sua tradicional maquiagem prostética.
Ninguém além de Sisko vê o homem. Mais tarde, quando leva sua namorada
Kasidy Yates pelos corredores da estação, vê se aproximar um jogador de
baseball. Mais uma vez reconhecemos o ator. É Michael Dorn (Worf), pela
primeira vez nos quase 300 episódios que fez em Star Trek aparecendo como
um humano (no episódio Homeward de The Next Generation Dorn também
aparece sem a maquiagem klingon, mas dessa como um boraalan). O homem
entra em um dos alojamentos e Sisko o segue, porém, quando passa pela porta
não está mais na estação e sim em uma avenida movimentada da cidade de
Nova York no ano de 1953.
Sisko é atropelado por um táxi e acorda na enfermaria, com Bashir não
sabendo explicar ainda exatamente o que aconteceu com o capitão. Porém, há
indícios na sua atividade cerebral que remetem aos momentos em que Sisko
tem visões dos Profetas. Quando o capitão pega o padd para verificar os dados
ele é transportado imediatamente para a outra realidade, estando com um
exemplar da revista Galaxy, de histórias de ficção científica em mãos. O
jornaleiro é interpretado por Aron Eisenberg (Nog), também mostrando seu
rosto, sem a maquiagem de ferengi. No entanto, Sisko não é mais Sisko, é
outro homem, um escritor de histórias de ficção científica chamado Benny
Russell. Na saída da banca de revistas, Benny encontra um colega de trabalho,
que é O’Brien, mas que assim como os outros, não é a mesma pessoa da
estação. Ambos se dirigem até a redação da revista Incredible Tales, para a qual
escrevem regularmente.
Na redação estão todos lá: Kira, Odo, Quark, Bashir, Dax e até mesmo
Martok, que é o ilustrador da revista. São eles, mas não são eles. São pessoas
do século 20, mais precisamente do início da década de 1950. Martok (ou então
Roy) logo traz as ilustrações que servirão de inspiração para os escritores.
Russell rapidamente escolhe uma que se parece muito com a estação, porém
com o design característico de estações espaciais do imaginário dos anos 50,
com linhas arredondadas. É a partir desse esboço que Benny Russell irá
escrever uma história que se tornará o ponto de conflito no episódio. Ela
lembra em tudo o que já conhecemos: se chama Deep Space Nine, se passa
quase 400 anos no futuro, existe uma oficial que carrega um simbionte na
barriga e a estação é comandada por um homem negro. Tudo certo, exceto
nesse último aspecto que irá se tornar o grande problema da história de Benny
Russell, já que naquela época, na qual o racismo ainda era institucionalizado
nos Estados Unidos, era completamente impensável um negro em posição de
comando, sobretudo no espaço. No entanto, esse é o sonho de Benny, um
sonho que se concretizará em Ben.

Um episódio singular
Far Beyond the Stars é motivo de orgulho para quem o fez acontecer e para os
fãs. Certamente é um dos episódios mais amados de toda a franquia e campeão
das reprises. Eu mesmo já perdi as contas de quantas vezes assisti. E tenho
certeza que sempre continuarei revendo. Se me perguntassem quais os meus
três episódios favoritos de Star Trek acredito que Far Beyond the Stars estaria
nessa seleta lista. Agora, por favor, não me pergunte quais seriam os outros
dois, pois minha situação ficaria bastante complicada.
Mas o que faz esse episódio tão especial?
Em primeiro lugar o fato de que ele possui uma história de ficção científica
extremamente bem construída. Um capitão de uma estação espacial situada
vários séculos no futuro passa a viver a vida de um homem da década de 50 que
está escrevendo justamente a história da estação comandada por aquele
capitão. Uau! É de tirar o fôlego. Ao mesmo tempo, o autor da história também
vive alguns momentos da vida de seu personagem, criando uma trama muito
complexa e instigante. E para completar: ambos são homens negros, com toda
a carga de significado histórico e social que isso possui. É exatamente esse fato
que estará no centro do episódio, que apresenta o nosso bom e velho contraste
da utopia (onde um homem negro é livre) com o presente, onde, se não
escravizados literalmente, os negros são marginalizados.
Em segundo lugar, a produção do episódio é simplesmente impecável. Cada
detalhe foi muito bem cuidado. Desde os cenários, passando pelos figurinos,
pelas maquiagens, pelas interpretações magistrais (ver o elenco atuando sem
as usuais maquiagens prostéticas destacou enormemente o seu talento), pelas
falas impecáveis, pela dinâmica de antagonismo mantida entre os equivalentes
de Quark e Odo, e pela trilha sonora de jazz, inusual em Deep Space Nine, o
episódio é técnica e esteticamente perfeito. Uma coisa assombrosa. Sobre a
trilha sonora, a decisão por tal estilo musical tem a ver com o diretor Avery
Brooks (Sisko), que além ator é pianista e cantor de jazz. E isso foi muito
importante, pois o jazz é uma voz negra. É uma música que surge por volta de
1900 no seio da comunidade negra, sempre desfavorecida e vítima do racismo.
Segundo Eric Hobsbawm, o jazz está sempre envolto em uma atmosfera de
emoção e ao mesmo tempo é uma música de protesto e de rebelião. Então, ao
se decidir que a trilha da história de Benny Russell seja o jazz, todos esses
elementos estão sendo mobilizados em torno do personagem, tornando sua
mensagem ainda mais dramática e eloquente.
Aliás, a escolha de Brooks para a direção também foi perfeita e com toda a
certeza ajudou a formar a grandeza de Far Beyond the Stars. É bastante
incomum que o ator que faz o papel principal no episódio seja também o
diretor, porém nesse caso era importante que o homem negro e protagonista
dessa história incisiva fosse o diretor. Deu muito certo.
Por fim, em terceiro lugar, o episódio pode ser analisado a partir de três
temporalidades, duas internas e uma interna. Vejamos primeiramente as
internas.
Enquanto o espaço é a fronteira final, o futuro é ilimitado. Na utopia do
século 24 a cor da pele já não interessa. Os problemas que discutimos hoje já
perderam o sentido. Por isso é importante o contraponto desse futuro a ser
atingido, com a década de 1950 nos Estados Unidos, onde os negros não
desfrutavam dos mesmos direito dos brancos. Como último tempo, externo ao
episódio, mas no qual ele se encontra inserido e reflete suas questões, temos a
década de 1990 nos Estados Unidos. Nesse período, com o racismo ainda não
superado (não sendo até hoje no século 21), diversas tensões sociais finalmente
explodiram, fazendo com que o debate acerca de brancos e negros entrasse na
pauta do dia. Mas antes precisamos conhecer melhor o contexto história da
opressão dos negros nos Estados Unidos.

A longa luta contra a escravidão e o racismo nos Estados


Unidos
Os primeiros africanos escravizados começaram a chegar aos Estados Unidos
antes mesmo que esse fosse um país independente, no século 17. O trabalho
negro foi utilizado em todas as regiões habitadas e com economia ativa, porém
foi no sul que a produção econômica se tornou dependente do trabalho
escravo de maneira mais expressiva. Dessa forma, criou-se uma cultura
extremamente racista no sul do país, herança do modo de produção que aquela
sociedade mantinha até a segunda metade do século 19.
Para se ter uma ideia, quando os Estados Unidos fizeram a sua revolução e
se libertaram do domínio dos ingleses, e estabelecido um regime republicano,
com uma carta que afirmava a igualdade dos homens, sendo inspiradora até
para a Revolução Francesa, mesmo assim a escravidão foi mantida. Dos 36
primeiros anos do novo país, 32 foram governados por presidentes
proprietários de escravos. Portanto, o exemplo de liberdade para o mundo, na
verdade se assentava sobre a exploração do trabalho de negros escravizados.
Com o avanço do capitalismo e o surgimento das indústrias no norte do
país é evidente que a ascendente burguesia industrial decidiu pôr um ponto
final a escravidão, por dois motivos principais: é mais barato pagar um salário
para um operário que manter um escravo, com a vantagem adicional que
existem muitos desempregados, então basta substituir um operário ineficiente
por outro. Em relação aos escravos esse processo era inviável, pois se tratava
de uma mercadoria cara. Segundo motivo: a indústria precisa vender seus
produtos e escravos não têm renda, logo, todo o novo sistema não teria
chances de se expandir, o que diminuiria os lucros. Pois essa burguesia viu em
Abraham Lincoln o homem que estava procurando e o ajudou a acabar com a
escravidão e travar a guerra contra o sul, que se rebelou e decidiu formar um
novo país. Esse é um exemplo impressionante das formas que o racismo tomou
nos Estados Unidos. Houve uma guerra civil (a guerra até hoje que mais
estadunidenses morreram) onde um dos lados lutava para manter a escravidão
negra. É evidente que tal processo histórico influenciou sobremaneira a
sociedade dos Estados Unidos e continua se desenrolando até os dias atuais.
Após o fim da escravidão o que se podia esperar como a grande
emancipação dos negros não aconteceu dessa forma. Os negros foram
marginalizados e todo tipo de legislação apareceu para mantê-los em seus
devidos lugares, isto é, apartados dos brancos. E mais que isso: atemorizados.
As leis mais conhecidas sãos as chamadas “Leis Jim Crow”, que passaram a
poucos anos após o término da guerra. Elas tinham o objetivo de separar
brancos e negros em locais públicos, como escolas, restaurantes, trens etc.
Essas leis estiveram em vigor até a década de 1960, portanto, muito tempo
depois da história que vimos em Far Beyond the Stars, que se passa em 1953.
Somente em 1964 que é assinada a Lei dos Direitos Civis, que acabou de vez
com as leis estaduais que ainda promoviam a segregação racial. No entanto, é
óbvio que, mesmo sendo contra a lei, o racismo existe como prática, sobretudo
entre a polícia, que prende, agride e mata muito mais negros do que brancos,
não somente nos Estados Unidos, mas também no Brasil, outro país com uma
grande herança maldita da escravidão. No episódio, vemos Benny Russell
brutalmente espancado por dois policiais, pelo simples fato de querer se
aproximar de seu amigo que acaba de ser baleado por um deles.
O fato é que uma instituição como a escravatura deixa marca profundas nas
sociedades onde existiu. Cria-se uma mentalidade, uma cultura escravocrata,
que tem muita dificuldade em aceitar a igualdade. Seus reflexos mais diretos
são a exclusão social dos negros, que tem menos acesso à saúde, à educação e a
bons empregos, e a violência direta, através do encarceramento em massa da
população negra e do genocídio dos jovens negros atualmente em marcha no
Brasil. Aliás, a desigualdade brasileira assenta-se, além da divisão de classes
sobre a herança escravocrata.
Um exemplo trágico da total falta de respeito pelos negros, que são vistos
nesse caso como animais irracionais, foram os verdadeiros massacres
promovidos pelos brancos (muitas vezes organizados em seitas como a Ku
Klux Klan), que ocorreram entre o século 19 e 20. Qualquer ato, por mais banal
que fosse, como cumprimentar uma mulher branca, por exemplo, era passível
de linchamento. E esses linchamentos se tornavam espetáculos públicos
grotescos, nos quais até as escolas fechavam liberando as crianças para que
elas pudessem participar. Os negros eram trucidados. Espancados cruelmente,
queimados, tendo partes dos seus corpos mutiladas. Pedaços de dedos, dentes
ou da corda da forca eram vendidos como souvenirs no fim do show.
Muitas vezes, após a sua morte, o corpo era queimado, dependurado ou
cravejado de balas. Não bastava matar, era preciso desfigurar e vandalizar o
corpo negro, um ultraje para os cidadãos brancos e de bem. Por isso causa
estranheza que Michel Foucault, ao escrever sua história da vigilância e da
punição, afirme que no início do século 18 a espetacularização da violência já
estava desaparecendo. Como assim? Ali é que ela estava começando. Mas,
evidentemente, o autor pensou somente em termos de Europa e, curiosamente,
esqueceu dos negros do outro lado do Atlântico.
Nas décadas de 1950 e 1960 diversos movimentos negros surgiram na
tentativa de encerrar a segregação dos negros nos Estados Unidos e em busca
de sua efetiva inclusão a sociedade. Malcolm X foi um dos nomes mais
importantes do período, sendo um dos maiores ativistas políticos da causa
negra em todos os tempos. Malcom X, que depois se converteria ao islã e
passaria a se chamar Al Hajj Malik Al-Shabazz, defendeu métodos violentos
como forma de autodefesa para os negros. Ou seja, se os negros são vitimados
pela violência estatal e da sociedade branca todos os dias é importante se
posicionar de forma dura e retribuir na mesma intensidade das agressões.
Também defendeu o islamismo como uma religião que pudesse agregar os
negros dos Estados Unidos para que esses formassem sua própria nação.
Posteriormente é que as ideias de Malcolm X tomaram o caminho do
socialismo. Dessa forma, o ativista percebeu que é impossível lutar pela
emancipação dos negros sem levar em conta que essa forma de opressão opera
dentro da estrutura do capitalismo. Foi assassinado em 1965, aos 39 anos, por
uma organização supremacista negra de inspiração islâmica.
Outro nome bastante conhecido e de atuação quase oposta a de Malcolm X
é do de Martin Luther King Jr, pastor protestante e ativista político. Sua
abordagem do problema dos negros era menos radical que a de Malcolm X, já
que pregava a não-violência e o amor ao próximo. Tornou-se um dos maiores
líderes da campanha pelos direitos civis, que conseguiria a provação da Lei dos
Direitos Civis, igualando negros e brancos em todos os estados dos Estados
Unidos. Foi frequentemente intimidado pelo FBI que inclusive chegou a
sugerir, em carta, que ele deveria se suicidar. Contudo, manteve a luta e
organizou a Marcha Sobre Washington, onde fez o famoso discurso “I Have a
Dream”. Assim como Malcolm X, também foi assassinado, em 1968,
possivelmente por supremacistas brancos do sul do país.
Houve também o Partido dos Panteras Negras, que foi uma organização
comunista criada para a defesa dos negros. Com a grande violência contra os
negros e sem que nada se pudesse fazer, o partido organizou uma espécie de
milícia armada que fazia a segurança em comunidades negras. Por outro lado,
também organizava ações sociais, com refeições e outros tipos de apoios às
pessoas mais carentes. Suas reivindicações estavam centradas na inclusão dos
negros na sociedade estadunidense, com emprego, educação e justiça.
Mantiveram contato com outras organizações revolucionárias internacionais e
foram constantemente monitorados pelos FBI, já que eram considerados uma
ameaça à segurança nacional.
Contudo, mesmo com concessões, a luta ainda está longe de acabar. Por
isso episódios como Far Beyond the Stars são muito relevantes para manter a
discussão sempre acesa. Eles nos fazem dar um mergulho profundo nos
sentidos da escravização e inferiorização de um ser humano por outro. É isso
que Bem Sisko experimentará sob a pele de Benny Russell.

O sonho e sonhador
O episódio deixa uma marca em quem o assiste. O sofrimento de Benny
Russell é real e nos faz sentir muita empatia. Enquanto Sisko experimenta o
passado de opressão dos negros, Russell trilha a via inversa e conhece o futuro
com o qual sonha. O sonho se mistura com a realidade, o sonhador e o sonho
se tornam a mesma coisa. Um dos Profetas de Bajor, aparecido na forma de um
pastor para Sisko/Russell, diz que ele deve escrever. Que ele deve escrever esse
sonho, pois é o seu caminho. O pastor/profeta é interpretado por Brock Peters,
que é também Joseph Sisko, pai de Benjamin. Significativamente, o ator fez o
papel de Tom Robinson, no clássico do cinema To Kill a Mockingbird (O Sol é
para Todos), um jovem negro acusado injustamente de ter estuprado uma
mulher branca, sendo assassinado pela população local antes da sentença.
Os leitores da revista estavam ansiosos para conhecer o rosto dos autores,
por isso foi programado para a próxima edição a publicação das fotos de cada
um dos colaboradores da Incredible Tales para satisfazer o público. Exceto, é
claro, a foto da única escritora da revista, Kay Heaton, personagem equivalente
à Kira Nerys. A autora assina seus contos como K.C. Hunter, pois usando
somente as iniciais não pode ser identificada como mulher. A escritora D.C.
Fontana, que escreveu alguns dos melhores episódios da série clássica também
assinava dessa forma devido ao machismo predominante entre os
consumidores de ficção científica. Evidentemente, Benny Russell também
poderá ficar em casa nesse dia, pois se uma mulher não pode levar os créditos
pelo seu trabalho, a situação é ainda pior em relação aos negros. A verdade é
que negros não são aceitos em grande parte das posições na sociedade branca.
Mais tarde, ao voltar para casa, Benny esbarra em dois policiais, que são
interpretados pelos atores que fazem Gul Dukat e Weyoun. Na cena, mais uma
representação perfeita do racismo: Benny deixa o esboço da estação que havia
pegado com o ilustrador cair no chão e os policiais imediatamente desconfiam
que ele possa tê-lo roubado. Ele explica que trabalha no prédio de onde estava
saindo, fazendo um dos policiais perguntar se ele era o zelador. Por fim,
desconfiam do seu terno, que seria muito caro para um negro possuir. Um
detalhe engraçado da cena é que Benny ao explicar que o desenho se tratava de
uma estação espacial, ambos, policial Dukat e policial Weyoun exclamam
incrédulos: estação espacial?!? Exatamente o grande sonho de consumo de Gul
Dukat e do Dominion.
Ao ser liberado, não sem antes ser avisado que na próxima vez ele seriam
mais duros, Sisko encontra no caminho o pastor/profeta/pai que está pregando
na rua. No sermão, ouve algumas coisas impressionantes. O pastor lhe diz que
ele deve escrever suas palavras, para que a glória do que está por vir seja
conhecida. Também lhe orienta a escrever a verdade do seu coração, pois
somente essa poderia libertá-los e, finalmente, lhe diz que as palavras que eles
escrever mostrarão o caminho para fora da escuridão, em direção à justiça. É
um momento bastante enigmático do episódio, mas do qual podemos extrair
algumas interpretações.
A essa altura já é notório que Sisko passa por alguma espécie de provação
ou experiência de autoconhecimento conduzida pelos Profetas. A questão é:
qual o objetivo exato disso tudo? Sisko, no início do episódio, estava em dúvida
sobre permanecer à frente da estação durante a guerra ou passar o cargo para
outra pessoa. Acredito que podemos estabelecer um ponto de contato entre
essa história e a história de Benny Russell. Ambos foram confrontados por
realidades muito duras, que fariam muitas pessoas ficarem pelo meio do
caminho. Ao fazer Sisko experimentar a vida de um homem negro como ele no
contexto primitivo do século 20 onde não havia justiça e mesmo assim
perceber que Russell lutou até o fim, certamente contribuiu para abrir novas
perspectivas para Sisko em relação ao dilema no qual se encontra. Mas vamos
seguir com a história do nosso autor de contos de ficção científica.
Benny Russell fica extremamente empolgado com a história que escreveu
sobre a estação Deep Space Nine, no entanto, como o herói da trama é o capitão
Sisko, portanto um homem negro, o editor da Incredible Tales veta a publicação.
Como alternativa, sugere que ele torne o protagonista branco, pois dessa
forma não haveria problema nenhum em publicar a história que, a propósito,
foi considerada excepcional tanto pelo editor quanto pelos seus colegas
escritores. Agora, além de não ser permitida a existência de um escritor negro
(já que sua foto não pode sair na revista), também descobrimos que
personagens negros, que não sejam meros serviçais, não são tolerados.
Herbert Rossoff (que seria Quark no século 24) fica extremamente
indignado com essa discriminação e reage dizendo que para os leitores da
revista é mais fácil acreditar em marcianos do que em um homem negro no
espaço, como acontece na história de Russell. Além disso, Pabst (o editor)
insinua que ele é comunista, o que se trata de uma ótima ironia, já que na
estação Rossoff/Quark se trata do capitalista por excelência (até o nome
escolhido se assemelha a “russo”). No subtexto dá para perceber que a cena se
refere ao sendo comum: quando alguém expressa alguma ideia de igualdade ou
direitos humanos logo é tachado de comunista. O que na verdade só comprova
o caráter desumano da direita, que considera direitos iguais uma pauta
esquerdista.
No entanto, Benny, animado pelas palavras do pastor segue escrevendo
mais histórias sobre a Deep Space Nine, em uma conduta quase irracional, pois
sabe que a primeira história não fora aceita. Todavia, leva as novas histórias
para a redação, provocando a ira de Pabst. Como solução, seus colegas
sugerem que a primeira história termine como sendo um sonho de um homem
negro, que sem esperanças, sonha com uma vida melhor no espaço. Não deixa
de ser a situação de todo e qualquer negro naquele momento. O presente não
revela indícios de que as coisas poderão melhorar a curto prazo, resta sonhar
com o futuro. Jimmy, o amigo de Benny, que representa Jake, o filho de Sisko,
nessa realidade se trata de um jovem marginalizado, que não vê futuro pois
todas as portas são fechadas aos negros e acaba praticando pequenos furtos.
Desesperançoso, ele diz para Benny que eles sempre serão vistos como
negros pelos brancos e que as suas histórias com capitães negros no espaço
não darão certo pois para os brancos os negros sempre serão empregados.
Duas coisas muito interessantes no que Jimmy fala. A primeira é que não
existem brancos ou negros ou vermelhos ou amarelos. Todas essas cores foram
criadas a partir do momento em que os europeus tomaram contato com outros
povos. Então o branco passou a ser o neutro, o normal e foram criadas outras
categorias de seres humanos: brancos, amarelos vermelhos etc. Portanto, a
partir disso, naturalizou-se que existam tarefas para uns e para outros. As
atividades intelectuais e de liderança somente são abertas aos brancos. Aos
negros sobre todo e qualquer tipo de trabalho braçal. A luta de Benny para
publicar suas histórias se torna cada vez mais necessária, pois sua ficção pode
fazer pelos leitores o que Star Trek fez na vida real pelos seus fãs: ensinar
sobre igualdade.
Por fim, Pabst concorda e a história será publicada na próxima edição.
Muito feliz, Benny procura sua namorada Cassie (que é a Kasidy Yates de
Sisko) e a convida para sair para dançar. Após se divertirem, encontram
novamente o pastor, que dessa vez fala em tons mais sombrios: “em suas
palavras, esperança e desespero andam de braços dados”. Talvez seja a definição
mais precisa do que acontecem com Benny, escritor, homem negro, sonhador.
A sua escrita é reflexo do seu sonho e da situação desesperadora na qual vive.
Uma não pode se dissociar da outra. Logo em seguida, o desespero se
manifestará da forma mais pungente. Cassie e Benny ouvem disparos e correm
para ver o que aconteceu. Jimmy está caído no meio da rua, baleado pela
política por tentar arrombar um carro. A propriedade é mais importante que a
vida. Sobretudo se for uma vida negra. Benny tenta socorrer Jimmy e é contido
pelos mesmos dois policiais que o haviam abordado antes. Como prometido,
dessa vez foram mais duros. Benny é espancado violentamente, em uma cena
onde as figuras dos policiais se alternam com as de Gul Dukat e Weyoun. Para
Benny, a violência de quem despreza o diferente. Para Sisko, a mesma coisa.
A cena é impactante. Um escritor, um homem que não é um bandido e
jamais fez mal a ninguém, brutalmente espancado no meio da rua, enquanto
outros policiais, negros também, afastam o público para que os policiais
brancos possam trabalhar à vontade. O episódio se torna mais significativo
ainda, pois poucos anos antes, em 1991, um trabalhador negro chamado
Rodney King fora espancado covardemente pela polícia de Los Angeles que o
havia parado por supostamente dirigir acima da velocidade permitida. O caso
ganhou repercussão mundial, pois os policiais, que não tinham a menor razão
para agirem como agiram – e certamente não fariam isso contra um homem
branco – foram julgados e inocentados. Um verdadeiro escândalo. Mais uma
prova de como o ser humano negro vale menos do que o branco na sociedade
estadunidense.
A situação acabou explodindo. Los Angeles entrou numa espiral de
violência como não tinha ainda visto em sua história. Foram vários dias de
confrontos da população negra contra a polícia, causando mais de 50 mortes e
quase 3 mil feridos. Em Far Beyond the Stars, o público via, novamente, um
homem negro ser espancado pela polícia quase até a morte.
Após algumas semanas de recuperação, Benny se sente novamente em
condições de sair de casa e decide ir até a revista pois é a data em que ela
chega da gráfica e passa a ser distribuída. Chegando lá, todos o recebem de
uma forma meio constrangida, sem saber muito o que diz, ou como reagir. É
evidente a separação que existe entre brancos e negros. Um branco jamais
apareceria com sequelas de um espancamento feito pela polícia. É uma cena
bastante desconfortável. Nesse meio tempo, Pabst chega, trazendo más
notícias: a revista não sairá naquele mês por decisão do proprietário. Segundo
Pabst, se considerou que a revista não estava à altura do nível habitual de
qualidade. Mas é claro que não é isso.
Benny começa a perceber e tenta indagar Pabst sobre o real motivo, já
antevendo que se trata da sua história, com um capitão negro. Tudo fica claro,
sim, é exatamente por isso e há outra notícia ruim: Benny foi demitido. Ele se
antecipa e diz: “Não, eu me demito”, e a essa altura Benny demonstra estar se
sentindo muito mal, pois ele passou por um sucessão longa de obstáculos pelo
fato de ser negro. Teve sua foto na revista proibida; sua história teve que
transformar em sonho o seu capitão negro; foi espancado na rua pela polícia. E
agora o ponto culminante: a sua história não será publicada e perderá seu
trabalho. Seria demais até para o ser humano mais resiliente. Então, nesse
ponto, Benny desaba e põe pra fora tudo o que ele sente sobre essa conexão
ficção/realidade, em um dos monólogos mais poderosos e intensos já exibidos
na televisão:

Eu sou um ser humano! Você pode me negar tudo o que quiser, mas não pode
negar Ben Sisko. Ele existe! Aquele futuro, aquela estação espacial, todas aquelas
pessoas - elas existem aqui! Você pode censurar uma história, mas não pode destruir
uma ideia. Esse futuro - eu o criei, e é real!

O sonho de Benny é real. Ele já existe 400 anos no futuro. Mas precisamos
lutar aqui e agora para que ele se concretize. Ele não virá sozinho.
Benny tem um colapso, e é levado para uma clínica psiquiátrica, que
aparecerá brevemente em outro episódio, onde ele continua escrevendo a
história da Deep Space Nine, que nada mais é do que a história da libertação
final dos negros, da emancipação final do ser humano, em uma palavra, da
utopia.
Cabe ainda um comentário sobre a cena, que se você nunca viu, recomendo
que vá lá agora e veja. E reveja. E veja mais uma vez. Não há como ficar
indiferente, não há como sentir toda a dor de Benny Russell numa atuação
sobrenatural de Avery Brooks. Mesmo escrevendo sobre ela eu fico arrepiado.
Como homem negro, músico de jazz, ator, Brooks simplesmente conseguiu
aglutinar em si toda a dor de ser negro em uma sociedade branca e a colocou
para fora naquele momento ímpar de Star Trek. Acho que não tenho dúvidas
de que se trata da maior cena já feita na franquia. É simplesmente antológica e
deveria ser emoldurada por aí. A cena foi tão intensa, por conta da conexão
pessoal do ator com o tema, que, segundo o depoimento dos atores no
documentário What We Left Behind, sobre Deep Space Nine, Avery Brooks
simplesmente não conseguia sair do personagem. Foi como se ele tivesse o
colapso nervoso juntamente com Benny Russell. Alguns minutos foram
precisos para que ele conseguisse se recompor. E é por isso também que a cena
é uma joia rara.
Dois homens na trilha dos Profetas mas em direções
opostas
Na ambulância, Benny se vê trajando o uniforme de Sisko. Ao seu lado, o
pastor/profeta/pai, essa trindade misteriosa que o acompanhou e o conduziu
na estranha jornada que acabara de viver. Confuso, Benny pergunta: “Quem
sou eu?”. O Profeta lhe responde: “Você é o sonho e o sonhador”. Benny fica
sabendo que andou pelo caminho dos Profetas e que não existe glória maior
que esta. Mas que caminho foi esse? Do que se tratou tudo isso?
É difícil responder. A história é muito clara em alguns pontos e bastante
enigmática em outros. Na estação, quando Sisko volta a si, depois de poucos
minutos (como Picard em The Inner Light), conversa com seu pai e reflete que
talvez tenha sido o contrário, não foi ele quem sonhou com Benny quando
estava desacordado. Mas é Benny, em algum lugar além das estrelas, que sonha
com a estação. Pode ser. Mas acho que é um pouco melhor que isso.
Me parece que, ao demonstrar intenção real de abandonar a estação, sendo
isto visto pelos Profetas, já que eles não possuem existência linear, Sisko teve
de ser reconduzido ao seu caminho (o caminho dos Profetas), para que tudo se
consumasse como haveria de ser no final. Sem Sisko, os Pah-Wraiths teriam
vencido e dominado o Templo Celestial. Sisko é o Emissário, portanto, ele não
pode se desviar do caminho.
A maneira que os Profetas encontraram para resolver a situação foi levar
Sisko nessa jornada através da vida de um homem chamado Benny Russell, que
teria existido na Terra no século 20 e sonhado com a estação Deep Space Nine.
Mas ele só sonhou com a estação por trilhar simultaneamente a Sisko o
caminho dos Profetas. Dois homens, na mesma trilha, mas em direções
opostas, que os fazem chegar as mesmas conclusões. Se a ilustração da estação
não tivesse surgido na vida de Benny, possivelmente ele se tornaria o dono de
restaurante, que sua namorada tanto queria. Isso teve um custo enorme para
ele mas ele lutou contra a injustiça. Se Benny não aparecesse na vida de Sisko,
ele possivelmente largaria a estação e iria trabalhar no restaurante do seu pai,
na Terra. Benny olha para o futuro e isso lhe dá esperanças, embora esteja
desesperado. Sisko olha para o passado, embora desesperado, e isso lhe dá
esperanças.
Assim é que podemos entender o que significa ser o sonho e o sonhador. As
vidas de Benny e Ben se interconectaram de uma maneira incrível. Um era o
sonho do outro. Um era o sonhador do outro. E os sonhos comuns a ambos são
a igualdade e a liberdade.
IV
Voyager: uma odisseia insossa

Frequentemente enfrentamos o desconhecido. Nossa melhor defesa é o conhecimento.


Tuvok

Star Trek: Voyager surge tão logo a extremamente bem sucedida Star Trek: The
Next Generation havia acabado de sair do ar (mas chegando ao cinema) e
enquanto Star Trek: Deep Space Nine terminava a sua segunda temporada. Foi
um momento áureo para a franquia, com mais de uma série no ar ao mesmo
tempo e produções cinematográficas. A empolgação com Star Trek era tanta
naquele momento, que a Paramount queria uma série para colocar no ar seu
novo projeto, uma rede de televisão chamada UPN (United Paramount Network).
E assim Voyager foi criada por Rick Berman, Michael Piller e Jeri Taylor.
Berman se tratava já naquela altura de um veterano de Star Trek, legatário
de Gene Roddenberry, com o qual havia trabalhado proximamente em ­The Next
Generation. Havia criado ­Deep Space Nine também, em parceria com Piller.
Este, por sua vez, considerado um gênio, era o homem por trás do ponto alto
de Star Trek atingido por Deep Space Nine, juntamente com Ira Steven Behr.
Por fim, juntando-se à dupla, Jeri Taylor, roteirista talentosa que já havia
escrito quase 20 episódios para The Next Generation, desde clássicos geniais
como The Outcast até episódios detestados pelos fãs como Sub Rosa. O que
importa é que foi reunido um time de peso para a criação da nova série.
Os preparativos começam e os roteiristas se deparam com o primeiro
problema: os personagens. Como criar uma tripulação que não se
assemelhasse à Nova Geração, muito fresca ainda na memória do público e,
muito menos, aos tripulantes da estação Deep Space Nine, que estava no ar e a
acompanharia durante seus cinco primeiros anos? Toda vez que um
personagem era criado as inevitáveis comparações surgiam tornando lento e
difícil o processo. Esse fato contribuiu para que os personagens de Voyager
sejam bem menos interessantes quando comparados aos que os antecederam.
No fim, foi praticamente impossível manter total originalidade, inclusive com
os borgs (e uma tripulante borg!) ganhando espaço cada vez mais importante
na série. A própria capitã, como Picard, também foi assimilada (embora
voluntariamente).
Porém, no âmbito dos personagens uma grande novidade apareceu. Na sua
quarta incursão televisiva ­live action, Star Trek teria pela primeira vez uma
capitã mulher. Kathryn Janeway seria a responsável, pelos próximos sete anos,
em trazer de volta para casa sua tripulação sã e salva. Interpretada pela atriz
Kate Mulgrew, foi encarnada por um breve período pela atriz Geneviéve
Bujold, que chegou a gravar mas acabou desistindo do papel.
Por fim, a nave. Enquanto Deep Space Nine mostrava os acontecimentos em
uma estação espacial, Voyager voltou às origens (até como forma de se
diferenciar) e apostou em uma bela e elegante nave, classe intrepid, que seria a
casa da nova tripulação pelos próximos anos. Uma nave com bom potencial
bélico e com novas tecnologias de processamento que a deixavam mais
“inteligente”. Seu nome: USS Voyager (NCC-74656).
Bom, com alguns elementos definidos, restava definir qual a trama. Seguir
explorando a galáxia? Sim, mas não apenas isso, pois já havia sido feito na
série original. Explorar novos mundos e novas civilizações, mas descobrindo
grandes inimigos, mesmo em uma galáxia em paz? Ok. Podemos ter isso, mas
é necessário um pouco mais de conflito, senão externo, que tal interno?
Patrulhar uma determinada área do espaço, em meio a disputas alienígenas.
Quem sabe. Mas não somente isso, pois é a premissa de Deep Space Nine.
Então foi pegando um pouco de cada Star Trek que já havia existido que
Voyager surgiu. A exploração está presente, as disputas alienígenas e os
conflitos internos foram jogados no cadeirão da sala de roteiristas até que de
lá saiu o episódio piloto, que estabeleceria o caminho a ser percorrido pela
nave ao longo das sete temporadas. Assim surgiu o episódio Caretaker.
A última parada da Voyager antes do início da sua missão foi justamente na
Deep Space Nine. Assim como McCoy havia passado a bola para Data em The
Next Generation, Picard para Sisko em Deep Space Nine, agora a estação
abençoava a Voyager. Uma cena muito engraçada de Quark tentando passar a
perna no ingênuo alferes Harry Kim (coitado nunca foi promovido) marca essa
transição.
Então, em 16 de janeiro de 1995 ia ao ar o episódio duplo de estreia de Star
Trek: Voyager. A premissa é bastante simples e interessante: a nave USS
Voyager vai parar do outro lado da galáxia e precisa encontrar uma maneira de
retornar, sendo que a viagem duraria mais de 70 anos. É a Odisseia de Ulisses
no espaço.
Após os famigerados acordos entre Federação e União Cardassiana, uma
série de colônias humanas passou a se situar dentro das fronteiras desta
última. Milhares de famílias que se viram em meio a decisões de gabinete que
afetaram profundamente suas vidas. É evidente que essas pessoas, grande
parte delas nascidas nas colônias (algumas estabelecidas há séculos) se viram
acometidas por uma grave injustiça. Imagine você se alguém chega na sua
cidade e arbitrariamente o faz se mudar para outra. É essa a situação dos
colonos. Obviamente, que nem todos aceitaram passivamente e muitos
organizaram uma resistência, não só contra os “cardies” (como diz O’Brien)
mas à Federação em si, já que ela se tornou opressora.
Essa organização de autodenomina Maquis, em lembrança aos franceses
que resistiram à ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, já que seu
governo era colaboracionista. A analogia é precisa: a Federação, em
colaboração com os cardassianos, oprime seu próprio povo. A saída é resistir.
Somos todos Maquis! A missão da Voyager é perseguir uma nave Maqui, onde
um dos seus oficiais (o vulcano Tuvok) está disfarçado, obtendo informações.
Portanto, para o fã de esquerda, Voyager já começa com o pé esquerdo,
executando o trabalho de polícia da galáxia e perseguindo rebeldes que lutam
por uma causa mais do que justa. É a ideologia do Império estadunidense de
combate ao terrorismo se manifestando claramente. Mas ok, vamos abstrair
isso pois a série terá ótimos episódios de crítica social (como se poderá ver
nesse capítulo), embora nenhum deles possa ser considerado um clássico como
The Outcast ou Far Beyond the Stars... Mas nem tudo é perfeito.
Na perseguição, as naves acabam caindo em uma região do espaço
conhecida como badlands, um pedaço instável da galáxia, com muitas
tempestades de plasma. Ato contínuo, as naves são tragadas pelo que parece
um buraco de minhoca e vão parar 70 mil anos-luz de distância, do lado oposto
da galáxia no Quadrante Delta. Lá encontram uma estação espacial que serve
para uma entidade, chamada de Caretaker (zelador), proteger uma raça
chamada Ocampa. Os ocampas tiveram o ecossistema de seu planeta destruído
acidentalmente pelo Caretaker milhares de anos atrás e assim este ficou
responsável por lhes fornecer energia, já que vivem nos subterrâneos e
protegê-los de raças hostis como os Kazon.
No entanto, o Caretaker está morrendo e a forma que encontrou para
continuar protegendo os ocampas foi trazer alguma forma de vida que pudesse
se responsabilizar por isso. A sorte caiu sobre a Voyager e sua tripulação. No
entanto, logo antes de morrer Janeway o fez perceber que os ocampas estavam
infantilizados, acostumados com sua proteção. Então ele compartilhou seu
conhecimento extremamente avançado de modo que a raça pude seguir seu
caminho sozinha. Para evitar que a estação do Caretaker caísse nas mãos dos
kazon (nova raça introduzida pela série), Janeway o destruiu, mesmo com o
custo de não poder voltar para casa. A nave dos Maquis, muito avariada, foi
destruída e eles salvos pela Voyager. Iniciava a jornada de volta para o
Quadrante Alfa, com duas tripulações antagonistas na mesma nave.
É nesse ponto que se pode identificar um dos problemas mais graves da
série. Aquilo que parecia se desenhar como um ótimo conflito nunca
aconteceu. Uma tripulação, que tinha como missão caçar os Maquis,
precisando conviver com eles em uma viagem de 75 anos de volta para casa.
Do outro lado, os Maquis, contestadores das ações da Federação contra os
colonos ao ponto de pegarem em armas, rapidamente domesticados e
prestativos. O natural seria, ao menos, haver uma tentativa de tomada do
controle da nave. Nunca houve. O mais natural ainda seria ocorrer todo tipo de
atrito entre Maquis e oficiais da Frota durante toda a série. Também não
aconteceu. Chakotay, capitão da nave Maqui tornou-se primeiro oficial da
capitão Janeway, sendo um personagem subaproveitado, nada mais que um
simples secretário. B’Elanna Torres, meio klingon, meio humana, apesar de
seu mau humor, colaborou divinamente sendo a engenheira-chefe da nave. Ok,
podemos considerar que a turma se uniu em prol de um objetivo maior, que
era voltar para casa. Mas me parece altamente inverossímil.
Outro ponto problemático da série diz respeito às condições da nave. A
cada semana a Voyager é quase destruída para na semana seguinte ressurgir
resplandecente e garbosa. A questão pode surgir: mas isso não acontece em
todas as séries? Sim, acontece. Porém, as naves estão no espaço da Federação,
onde sempre podem efetuar os devidos reparos. O grande roteirista de The
Next Generation e Deep Space Nine Ronald D. Moore alegou ser esse o principal
motivo para abandonar a série. Acredito que houve outros, como a percepção
de que Star Trek entrava em decadência (tendo como ponto mais baixo
Enterprise), depois de uma linha ascendente que durou três décadas. Mas dá
para entender perfeitamente suas razões. Não quis ter seu nome associado a
uma série que não parecia crível. Em termos de drama seria uma grande
sacada apresentar uma Voyager cada vez mais depreciada, como vemos em um
dos seus episódios mais importantes Year of the Hell.
Outra coisa desagradável na série é o fato de que eles estão na corrida
contra o tempo, pois em dobra máxima levariam 75 anos para retornar ao
Quadrante Alfa. Mesmo assim a tripulação insiste em parar a cara novo
planeta, nave ou raça que encontra pelo caminho. Decisão da capitã, é claro.
Mas nunca há uma contestação. Quer dizer que todos ali, com saudades dos
seus amigos e familiares, do seu mundo, concordam plenamente em fazer uma
paradinha aqui e ali enquanto o tempo voa. Esse consenso é absurdo. É óbvio
que se a nave tocasse o rumo direto para casa a série seria inviável, pois não se
criariam possibilidades para as histórias. Mas, esse é mais um ponto que
comprova como a série se estrutura sobre premissas frágeis.
É claro que a série tem muitas coisas positivas, a começar por uma capitã
mulher. Desde sempre Star Trek inovou e colocou mulheres e pessoas de
outras etnias que não a branca em posição de destaque. Cabe lembrar que
enquanto Voyager estava no ar com uma mulher no comando a série paralela
Deep Space Nine era comandada por um negro, cercado por outros personagens
negros, que estavam no centro de muitas cenas onde somente eles apareciam.
Portanto, foi um momento de muitos avanços.
De positivo, a série apresenta o caráter essencial de Star Trek que é
descobrir novas vidas e novas civilizações. Por se passar no inexplorado e
misterioso Quadrante Delta, somos apresentados a inúmeras raças e culturas
nunca antes vistas no universo da franquia. O cânone de Star Trek foi
enriquecido enormemente com Voyager. Mas não podemos deixar de
mencionar que houve algo muito irritante nesse sentido também: o contato
com os talaxianos. Neelix é o personagem mais idiota já criado em Star Trek. E
eu tenho inveja dos trekkers de um universo alternativo onde ele não existe.
Quero ir para lá.
A verdade é que Voyager, assim como Enterprise, e de maneira geral, não
possui personagens brilhantes, carismáticos e cativantes. A única exceção é o
Doutor, que aliás, protagoniza dois dos episódios que abordo nesse capítulo.
Mas vamos dar uma olhada neles.
Começamos pela capitã Kathryn Janeway (Kate Mulgrew). Filha de um
almirante da Frota, enveredou pela carreira científica, mas acabou
percorrendo também a carreira de comandante, chegando à capitã da Voyager,
uma das naves mais modernas da Frota. Nasceu em Indiana e tem aquele
sotaque característico de quem é criado em fazenda, dando uns ares de redneck.
É viciada em café. No comando da Voyager se mostrou uma grande líder,
conseguindo levar a nave de volta para a Terra. Com uma ajudinha da sua
versão do futuro.
Chakotay (Robert Beltran), ex-maqui, primeiro-oficial da Voyager tem
origens indígenas. Foi o primeiro personagem com essa ascendência a estrelar
uma série de Star Trek. No entanto, tanto esse background quanto o próprio
personagem foram pouco aproveitados. Na verdade se tornou apenas um
assistente da Janeway, sem muita personalidade. Contudo, protagonizou
excelentes episódios. A prova disso é que os outros dois abordados nesse
capítulo tem Chakotay como centro. Mas cabe uma ressalva: os episódios são
bons não por conta do personagem (poderia ser qualquer outro sem o menor
problema), mas pela qualidade dos roteiros e das reflexões que ensejam.
Depois de The Next Generation e Deep Space Nine ignorarem quase que
completamente os vulcanos, em Voyager voltamos a ver um deles na ponte de
comando. Além disso, um vulcano negro, o que mostra que em Vulcano
existem variações étnicas como na Terra. Tuvok (Tim Russ) é um personagem
esquisito. Acredito que em boa parte pelas limitações do ator que o interpreta.
É óbvio que interpretar um vulcano deve ser um saco, já que a expressão e o
tom de voz (além dos cabelos) são sempre os mesmos. Mas Tuvok participa do
episódio-homenagem aos 30 anos de Star Trek, revelando que servira a bordo
da USS Excelsior, do capitão Sulu. Porém, tem algo que me faz simpatizar com
Tuvok e ficar ao lado dele: a inconveniência de Neelix que insiste em chamá-lo
de “Mr. Vulcan”.
Tom Paris (Robert Duncan McNeill) é aquele cara desajustado mas que
pilota uma nave como ninguém. Personagem absolutamente clichê. Mas acaba
sendo divertido pois se trata de um nerd do século 24, obcecado pela cultura
do século 20. Filho de um almirante, estava na cadeia e foi resgatado por
Janeway para pilotar a sua nova nave. Então ele tem aquele arco de redenção
onde precisa mostrar a todos e a seu pai que é merecedor de confiança.
B’Elanna Torres (Roxann Dawson) é a nova klingon do pedaço. Depois de
Worf temos outra klingon em uma nave da Frota. Na verdade era Maqui, mas
rapidamente se encaixou nas normas de Janeway. Os latinos sempre morrem
em Star Trek: quantos Ramirez e Gomez genéricos fizeram o papel de red
shirts... Agora temos uma latina na nave, mas ela é meio klingon. Significativo.
Torres irá casar e ter uma filha com Tom Paris.
Harry Kim (Garret Wang) é o alferes ingênuo. É muito competente, salva a
Voyager diversas vezes. Mas nunca é promovido. A internet faz a festa com
esse fato. Kim tem o hábito de tocar clarinete, e até se apresentou com a bordo
da Voyager com sua banda Harry Kim and the Kimtones. Não fez muito sucesso.
O Doutor (Robert Picardo)! Esse sim o grande personagem de Voyager.
Logo no início da série, nos eventos que levam a Voyager para o Quadrante
Delta, o médico-chefe da nave é morto, havendo a necessidade de se ativar o
EHM (Emergency Medical Hologram), uma nova tecnologia que começa a ser
instalada nas naves da Frota. Se trata de um holograma programado com
milhares e milhares de operações médicas e fisiologias das mais diversas raças.
O Doutor acaba fazendo parte da rotina da nave em sua jornada de volta para
cara e começa a desenvolver ego e senciência. Se torna criativo, emotivo,
afetivo, enfim, passa por um fascinante processo de humanização. Criado pelo
Dr. Lewis Zimmerman, tem a sua aparência. Em geral, apresenta um leve mau
humor, mas quando fala de sua arte (holográfica, musical, literária) fica
empolgado e sorri. Gosta de fazer longas exposições sobre suas criações
artísticas e médicas, as quais os tripulantes fogem como o diabo da cruz. Com
o tempo passa a ser visto como um tripulante de carne e osso e um dispositivo
é construído permitindo que circule por qualquer lugar da nave. Um
personagem fascinante, no melhor estilo Spock, Data e Odo, seres não-
humanos que precisam lidar com sua humanidade.
Neelix (Ethan Phillips). Talaxiano. Irritante. Entediante.
Kes (Jennifer Lien) é uma ocampa, que na partida da Voyager acabou
ficando a bordo. É outra personagem desnecessária, não por acaso par
romântico do Neelix. Quando a série inicia tem dois anos apenas, mas
totalmente adulta. É a fisiologia ocampa. Posteriormente, desenvolve grandes
poderes mentais, que estavam dormentes na sua espécie e quase destrói a
Voyager. No fim se torna um ser não-corpóreo e, com seus poderes, faz a
Voyager atalhar quase 10 mil anos-luz em sua jornada.
Seven of Nine ou Annika Hansen (Jeri Ryan) é uma humana que foi
assimilada pelos borgs quando era apenas uma criança. Portanto, passou toda
sua vida adulta como borg. Seven entra na série após a saída de Kes. Janeway
fez uma inusitada aliança com os borgs e uma deles foi designiada para servir
na Voyager. No entanto, quando os borgs quebram o acordo, Seven deve
assimilar a nave, contudo é barrada pela tripulação. Na sequência, o Doutor
remove seus implantes cibernéticos devolvendo-lhe cada vez mais a aparência
humana, que não tinha desde os seis anos quando foi assimilada.
A partir de então começa um longo e penoso processo de adaptação à vida
humana, o que torna a personagem interessante, na mesma linha dos
personagens que vão se humanizando na história de Star Trek. Apesar disso, a
personagem se trata claramente de uma eye candy, isto é, uma atriz
extremamente bonita vestindo roupas justas que exibem suas curvas com o
objetivo de atrair a atenção do público masculino.
Seven voltará em Star Trek: Picard, demonstrando que quase 20 anos após os
eventos vistos em Voyager ela se encontra muito mais humanizada, embora
carregando os implantes que não foram removidos.
Nesse capítulo você verá minha interpretação sobre o episódio Distant
Origins, que mostra como a tradição cega é inimiga da ciência e do
conhecimento. Abordo também o episódio Nemesis, uma incrível
representação da propaganda de guerra. Sobre o episódio Living Witness,
destaco o revisionismo histórico e como ele pode determinar relações de
poder. Por fim, trato sobre o episódio Virtuoso, uma divertida fábula sobre a
indústria cultural.
1
DISTANT ORIGINS

A ciência contra os dogmas e a dominação

Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais em
erro. Esta forma de se desembaraçarem daqueles que criticam não é nem muito eficaz nem muito
honrosa.
Sócrates

Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das
coisas.
Karl Marx

Você está enganada, ministra. Você acusa Gegen de ter sua objetividade obscurecida por uma ilusão.
Mas você não é culpada por fazer o mesmo?
Chakotay

A ciência perseguida
As grandes perguntas que acompanham a humanidade desde a aurora dos
tempos são: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? E desde que
elas foram feitas pela primeira vez pelo primeiro ser humano, filosofias,
religiões e a ciência tentaram respondê-las. Muitas vezes de forma total. Em
grande parte das vezes de forma parcial, na impossibilidade de se apreender a
realidade integralmente. As três vertentes principais do conhecimento
humano que buscaram responder quais nossas origens, porque surgimos e
qual nosso destino apresentam respostas divergentes. Em alguns casos elas se
encontram, mas na maioria das vezes se mostram incompatíveis.
A especulação filosófica, quando idealista, não se configura como
conhecimento racional e científico. Da mesma forma a religião, já que esta
trata de seres e motivações imaginados, sem correspondência com o real. São,
no máximo, expressões da realidade, formas simbólicas e ideológicas como
vimos poder acontecer nas análises de alguns episódios nos capítulos
anteriores. E a religião, tem um aspecto importante que deve ser mencionado:
mais do que uma busca pela verdade e pela salvação do ser humano, ou seja,
sua aparência imediata, ela tem em sua essência o poder. É uma forma de
controlar sociedades através de dogmas que não podem ser contestados. Nada
a ver com a ciência. A ciência, por buscar a verdade, não aprisiona, ela liberta.
Assim, é nítido que ao contrário de meras crenças, a ciência apresenta
provas, que são baseadas nas evidências descobertas pela pesquisa. Logo, um
pesquisador, um cientista, ele deve ter os olhos abertos para toda e qualquer
possibilidade, sendo seu trabalho testar cada uma delas até chegar naquela que
passa em todos os testes. O cientista, portanto, não pode ter crenças que se
tornem obstáculos à sua busca pela verdade. Se um cientista acredita em
algum deus e descobre uma forma de provar que este não existe, ele terá de
reavaliar sua própria crença ao invés de descartar a pesquisa que demonstra
que ele estava errado.
Pois isso é conhecimento. É poder superar paradigmas, que tão logo
descartados possam apresentar algum nível de trauma, lá na frente servirão
para fazer a humanidade avançar mais alguns passos em direção a um futuro
melhor. Isso não significa que a ciência possa fazer tudo. É necessário ética. A
ciência já foi usada para sustentar posições racistas (pseudociência). Ela
também ainda utiliza animais como cobaias, algo que precisa ser superado,
pois senão nos aproximamos das religiões que utilizam animais em seus
rituais. Obviamente as intenções e os resultados são distintos, porém essa é
uma reflexão que deve ser feita.
A ciência é alvo de perseguição desde o primeiro momento em que colocou
em xeque dogmas estabelecidos há muito tempo. Sobretudo dogmas religiosos.
Isso aconteceu e acontece, supreendentemente, até hoje. No universo ficcional
de Star Trek, que nos apresenta a grande e invejável utopia da Federação, a
ciência possui um aspecto central. Afinal, é por conta do pensamento, de um
verdeiro ethos científico que a galáxia é explorada pela Frota Estelar: procurar
novas vidas e novas civilizações, audaciosamente indo onde ninguém jamais
esteve. Esse o espírito dominante na utopia. Portanto, a ciência nesse contexto
não gera problemas ao poder estabelecido. Muito pelo contrário, é incentivada
por ele e sua constituinte. Todavia, ao longo da história da humanidade a
ciência e os cientistas sempre encontraram problemas ao realizaram
descobertas que contestavam crenças que ajudavam a sustentar a ordem
vigente. Portanto, o caminho da ciência é tortuoso exatamente por contestar
mitos que são estruturantes da sociedade.
Basicamente, é essa a história de Distant Origins, episódio da terceira
temporada de Star Trek Voyager. Um cientista da raça Voth chamado Forra
Gegen, paleontologista molecular e líder de um grupo de pesquisa em
arqueologia, descobre, junto a seu assistente Tova Veer, um corpo humano
enterrado em um planeta. É o corpo de um tripulante da Voyager, que morreu
há aproximadamente um ano. O que seria uma descoberta interessante acaba
se tornando um achado que pode mudar completamente a forma com que os
Voth enxergam a si mesmos e à sua história. Existe uma compatibilidade de
DNA entre os seres humanos e os Voth (que são répteis, claramente evoluídos
de dinossauros). Os Voth, que são orgulhosos de serem a primeira raça
inteligente e naturais do planeta onde vivem (esse é um dos grandes dogmas
sociais entre eles), estão na iminência de descobrir que a história é bastante
diferente. É o equivalente da descoberta de que o sol não gira em torno da
Terra, fato que penalizou quem defendeu essa ideia. Gegen trilhará o mesmo
caminho de repressão que diversos cientistas e pensadores também
percorreram ao longo da nossa história.

Ciência x dogma / Conhecimento x crença


A história de perseguição aos que desafiam o pensamento dominante,
comprovando que suas ideias estão erradas e apresentando novas perspectivas
é tão antiga quanto a própria humanidade. Não raro, esses homens e mulheres
que são duramente combatidos em suas épocas, passam a ser considerados
gênios e são redimidos posteriormente, quando a humanidade – muito por
conta das ideias deles – já se encontra em um nível de conhecimento mais
avançado.
Sócrates foi um importante filósofo da antiga Grécia que viveu entre 499 a
399 a.C. É considerado, não sem razão, como um dos pais da filosofia
ocidental, sendo influente no campo da ética, da epistemologia, da lógica e da
pedagogia, através do chamado método socrático. Contudo, esse filósofo que
vem sendo estudado ininterruptamente há milhares de anos, não foi bem
aceito em sua época, pagando um preço alto por isso. Inicialmente, Sócrates
sofreu um processo, pois ensinava de graça no meio da rua. Isso não era
tolerado pelo sábios da época. Conseguiu escapar de uma condenação, pois
logo começou a Guerra do Peloponeso, e como Sócrates tinha excelente
capacidade de arregimentar seguidores, foi convocado para atuar como
general no conflito. Passadas três décadas, Sócrates finalmente teve de
enfrentar o tribunal, acusado agora de afrontar a religião e os costumes gregos,
adorar a outros deuses que não faziam parte do panteão religioso grego e,
talvez a mais relevante: corromper a juventude.
Dentro dessa última acusação, ao mesmo tempo em que cabem muitas
coisas, é revelado qual o crime mais grave de Sócrates: atentar contra a
tradição ao abrir os olhos de seus alunos sobre como ela estava errada e
prejudicava o desenvolvimento da humanidade. Imperdoável. Além disso, ao
não corroborar a religião (que sempre é um instrumento de dominação da
classe que detém o poder), Sócrates acrescentava um potencial ainda mais
explosivo a sua conduta. Além de ensinar novas perspectivas aos jovens,
minava as bases da religião, fator que servia para aglutinar os cidadãos gregos
em torno do poder estabelecido. Assim, foi julgado e, ao recusar renegar seus
ensinamentos, foi obrigado e beber cicuta (um tipo de veneno) e acabou
morrendo. A Gegen também será dada a opção de renegar suas descobertas.
Galileu Galilei foi outro grande gênio da humanidade a enfrentar a ira
daqueles que encontram no combate à ciência uma maneira de se perpetuar no
poder. Galilei foi responsável por uma revolução científica, fazendo grandes
descobertas a respeito dos movimentos dos corpos celestes. Para uma
sociedade dominada por uma Igreja que tem seus entes de adoração situações
nos céus, certamente Galilei se tornava cada vez mais uma figura incômoda.
Seu trabalho demonstrava, afinal, que no céu não está o Éden, mas sim,
estruturas físicas semelhantes às que encontramos na Terra. Isso era muito
perigoso, pois podia botar por terra (literalmente) todos os mitos que eram
sustentados pela religião há muitos séculos. A Igreja, perdendo o domínio do
céu, perdia o domínio da terra.
Apesar de não ter inventado o telescópio, Galilei foi o primeiro a utilizá-lo
sistematicamente para investigar os corpos celestes e daí saíram suas
brilhantes descobertas. Quase cem anos antes Copérnico havia descoberto que
é a Terra que gira em torno do sol e não o contrário como se pensava até então.
Na época a Inquisição estava em baixa e Copérnico não teve muitos
problemas. Porém, logo depois, ela será restaurada com força e é a partir desse
fato que Galilei passará e ter problemas. Como o seu livro sobre o movimento
dos corpos celestes apresentava essa ideia, Galilei foi censurado e perseguido,
com sua obra entrando no chamado Index librorum prohibitorum, uma espécie
de lista de obras proibidas por conterem conteúdo herético. Contudo, ainda
fora dada uma última chance a Galilei: que ele escrevesse um livro onde
colocasse as duas hipóteses em pé de igualdade. Isto é, que geocentrismo e
heliocentrismo fossem descritas como possibilidades equivalente para a
explicação da realidade dos movimentos do sol e da Terra. É basicamente o
que movimentos como o Escola Sem Partido têm por objetivo fazer com os
professores. Por exemplo, em uma aula sobre nazismo o professor de história
teria de apresentar como válida uma interpretação de que o holocausto não
ocorreu. Ou então que existe a possibilidade da Terra ser pana. Isso em pleno
século 21. O obscurantismo sempre está entre nós.
Galileu Galilei, a fim de preservar sua vida, escreveu o livro e assim se
livrou da execução. Porém dali por diante sempre seria censurado e julgado
por outras obras. Porém, mesmo condenado algumas vezes não foi executado
pelo Santo Ofício. No final do século 20 o papa João Paulo 2º pediu desculpas
oficiais a Galilei em nome da Igreja Católica.
Outro caso exemplo é o do teólogo e filósofo Giordano Bruno, que também
viveu no século 16. Em resumo, Bruno colocava a doutrina da Igreja em xeque,
ao contestar diversos de seus dogmas. Além de contestar a virgindade
perpétua de Maria, por exemplo, algo que no contexto da contrarreforma era
bastante grave, Bruno tinha concepções a respeito do universo que colidiam
com o catecismo da Igreja ou descrições do mundo na Bíblia. Para Bruno, o
universo era infinito, repleto de estrelas e outros corpos celestes nos quais,
inclusive, poderia haver vida. É uma ideia absolutamente banal nos dias de
hoje, mas que causou forte repercussão entre o clero, que decidiu então
processá-lo por heresia.
Mesmo sendo religioso e acreditando em Deus, Bruno teve que enfrentar o
Tribunal do Santo Ofício. Aliás, ele utilizava uma argumentação religiosa para
sustentar sua argumentação filosófico/científica: como um Deus infinito em
sabedoria e bondade poderia estar confinado em um universo finito?
Realmente, perguntas bastante constrangedoras.
Decidindo não abjurar de suas afirmações, foi condenado à morte em 1600 e
queimado na fogueira.
Já no século 19, surge uma figura que transforma completamente nossa
maneira de pensar nossas origens: Charles Darwin. O famoso naturalista
inglês fez uma descoberta que arrasou definitivamente com a ideia de que
Deus em pessoa teria criado o ser humano, Adão a partir do barro e Eva de sua
costela. Darwin percebeu que toda a natureza, todas as formas biológicas que
já existiram e que existem tem sua própria história, na qual evoluem
constantemente de uma forma inferior para uma forma superior. Portanto,
naquilo que se convencionou chamar de evolucionismo, não sobra espaço para
a ideia de que os seres vivos são criaturas que surgiram na forma que possuem
atualmente. Pelo contrário, cada ser vivo sobre o planeta passou e continua em
um longo processo evolucionário, que se desenrola por milhões de anos.
Em seu clássico livro A Origem das Espécies, Darwin demonstra que a
natureza opera através de um método chamado seleção natural. Nesse
processo, as formas de vida mais adaptadas ao ambiente tem mais chances de
sobreviver e, portanto, de ter mais descendentes. Logo, aqueles determinados
seres, dessa mesma espécie, que morrem antes e deixam menos descendentes,
acabam não passando para a frente suas características genéticas, fator que
ajuda a moldar a espécie com novas características, que a levam a se tornar
uma espécie nova após milhares ou milhões de anos. Com os seres humanos
aconteceu a mesma coisa. Das suas origens na África, a partir de espécies
primatas, houve um longo caminho de adaptação ao meio ambiente, que foi
forjando a espécie até chegar na que somos hoje, o Homo sapiens sapiens.
Para a religião isso caiu como uma bomba. No primeiro livro da Bíblia,
chamado Gênesis, que conta justamente a origem do universo e so der
humano, está bem claro que foi Deus que agiu deliberada e diretamente na
criação de um ser “à sua imagem e semelhança”. No imaginário cristão, Deus
não é um primata, tem a imagem de um homem como os de hoje. Logo, é
impossível, nessa perspectiva, considerar a hipótese de que o ser humano tem
origens primatas. Se Darwin tivesse chegado a essas conclusões alguns séculos
antes, certamente teria sido executado pela Igreja. No entanto, sua teoria é
amplamente aceita e está na base das ciências biológicas e paleontológicas dos
dias atuais. Uma verdadeira revolução cientifica, que ajudou um pouco mais
em nossa visão sobre o que somos, de onde viemos e para onde vamos. A
descoberta de Gegen é muito semelhante à de Darwin e, por isso mesmo,
muito perigosa ao status quo dos Voth.
Por fim, outra descoberta radical, agora no âmbito da história. Karl Marx,
filósofo alemão, e inspirador do movimento comunista e das lutas contra a
opressão, descobriu que a história é a história das lutas de classes. Logo, ele
demonstrou que, havendo uma classe dominante que oprime outra dominada,
essa situação é transitória, historicamente determinada e que pode – e deve –
ser superada, por meio da consciência da classe explorada que assim se
organiza para a revolução. Até então, a história era vista somente como uma
linha reta contínua que terminaria no fim dos tempos, na volta de Jesus Cristo
e o apocalipse. Marx demonstra que a história nada mais é do que as condições
objetivas e concretas na qual uma sociedade vive e que, em uma relação
dialética, quando ocorrem transformações nos modos de produção, toda a
sociedade se revoluciona a partir das lutas das classes que foram formadas pela
divisão do trabalho. Não é preciso pensar muito porque Marx e o marxismo
são demonizados até os dias de hoje.
Mais do que um choque religioso, o materialismo histórico-dialético de
Marx, colocou em xeque toda a ordem burguesa surgida com o capitalismo e
apresentada, ideologicamente, como o fim da história, como o ponto alto da
humanidade, a última razão. Além disso, esclarecia a condição dos deserdados
da Terra, revelando como a situação deles era fabricada por um sistema que
necessita da sua miséria para existir. Assim, Marx desnudava as verdadeiras
relações sociais, indicando um outro mundo possível, contribuindo para o
desenvolvimento humano sob um sistema que desumaniza. Esse é o papel da
ciência: mostrar a essência por trás das aparências. Como o próprio Marx
afirmou, se essência e aparência coincidissem, toda a ciência seria supérflua. É
por não acreditarem nesse supérfluo – que é defendido pelos seguidores de
dogmas – que esses homens enfrentarão a perseguição, a censura e até mesmo
a morte. É assim que Gegen, o Voth que não se contenta com as histórias
oficiais geração após geração contadas entre seu povo, sai em busca da
essência de sua espécie, e acaba atraindo para si a ira dos conservadores.

Uma descoberta desconcertante


Quando Gegen se depara com aquele corpo decomposto de um humanoide,
trajando um uniforme da Frota, ele passa a fazer várias descobertas. Em
primeiro lugar, que se tratava de uma espécie de sangue quente, ao contrários
da sua. Logo, ele percebe que existem coincidências impressionantes em
termos de DNA, o que leva a hipótese de que aquele ser que jaz na sua mesa de
laboratório tem origens em comum com os Voth. Gegen é um paleontologista,
logo, ele busca a verdade através dos fósseis, assim como faz com os ossos que
encontrou e que estão prestes a lhe revelar coisas impressionantes.
Os vestígios apontam para um não-sáurio, ou seja, aquele fóssil não se trata
de um elemento pertencente à espécie de Gegen. Assim, munido da
informação de que há compatibilidade genética entre ambos, a conclusão de
que existem origens afins se torna revolucionária. Devido a importância da
descoberta, Gegen decide levar o achado até o Ministério dos Anciãos, que
parece se tratar da instância mais importante do planeta, e, por isso mesmo,
aquela que resguarda a tradição de 20 milhões de anos da espécie. E um tempo
como esse exerce um tremendo peso sobre como aquela sociedade se
movimenta. É com base na tradição que as decisões são tomadas e qualquer
ameaça a ela deve ser reprimida energicamente, sob pena de fazer ruir esse
imenso edifício social. Assim, Gegen se inscreve na longa lista de cientistas
que fizeram descobertas desconcertantes do ponto de vista da ordem e da
tradição.
Para formatar de vez a sua Teoria da Origem Distante, Gegen e seu
assistente Veer conseguem descobrir a origem daquele corpo e em seguida
localizam a Voyager. Como os Voth têm uma tecnologia muito superior à da
Frota, conseguem alcançar a nave em pouco tempo, através de transdobra, e se
transportam a bordo, utilizando tecnologia que os mantém invisíveis. No fim,
acabam sendo descobertos. Veer é atingido por um disparo de phaser, mas
Gegen consegue escapar levando um “espécime”: Chakotay. Um detalhe
interessante sobre a narrativa é que a Voyager e a tripulação aparecem
somente após 20 minutos do episódio, quase na metade, o que não o prejudica
de forma alguma.
Chakotay é apresentado à ministra principal dos anciões. Gegen continua
em sua busca pela verdade científica, que acaba se chocando contra as crenças
e as doutrinas do seu povo. Mesmo extremamente avançado tecnologicamente,
os Voth possuem um apego muito grande à tradição e não conseguem
conceber a ideia de que não são a primeira raça do planeta e a primeira a se
tornar inteligente. Além disso, em seus contatos com outras espécies, que não
são muitos, costumam considerá-las inferiores, sobretudo os mamíferos.
Eis que Gegen surge com um mamífero, afirmando que este se trata de um
primo distante. Portanto, ele choca a ministra de duas formas. A primeira em
defender que sua raça não surgiu no planeta, tendo fugido da Terra e vagado
pela galáxia até encontrar um novo lar. Em segundo lugar, apresenta um ser
considerado inferior que teria relações genéticas com os Voth. É a mesma
coisa que Darwin apresento o fato de que os primatas e os seres humanos têm
ancestrais em comum. Evidentemente, Gegen se torna um herege.
Na Voyager, Janeway e o Doutor descobrem os ancestrais dos Voth, uma
espécie chamada Hadrossauro, da Era Cretácea. Os Voth, de alguma forma,
escaparam à grande extinção e evoluindo, saíram da Terra. Seus vestígios,
possivelmente, encontram-se em algum continente submerso.
Para a ministra, orgulhosa da tradição e força dos Voth, é inaceitável
aceitar o fato de que eles não surgiram em seu próprio planeta. Fica evidente
que ela tem uma vaga ideia a respeito, possivelmente é um fato discutido na
cultura Voth há muito tempo, embora de maneira camuflada. Ela deixa isso
transparecer quando faz um monólogo, afirmando que seriam patéticos esses
primeiros sáurios, em fuga pelo espaço, humilhados chegando ao planeta.
Chakotay, por sua vez, rebate a ministra, afirmando que é justamente o
contrário. Para ele, Voth são filhos de corajosos pioneiros que, necessitando
fugir de catástrofes naturais na Terra, foram capazes de desenvolver uma
língua, uma cultura, uma sociedade e, por fim, uma tecnologia tão sofisticada
que os permitiu salvar a espécie.
Duas perspectivas. Uma diz que a origem Voth é a fraqueza; outra que sua
origem, ao contrário, é a força. Essas duas visões são a arena onde a crença e o
conhecimento travam uma batalha épica, que diz respeito ao futuro dos Voth
em geral e, especificamente, do paleontologista Voth, que busca a verdade. Se
por um momento pudermos imaginar como essa revelação transformaria
aquela sociedade, é só nos reportarmos aos autores e cientistas que elenquei
logo acima. Nossa visão de mundo é, em boa parte, determinada pelo que eles
descobriram. E não somente isso, mas determinada também pelos embates que
suas ideias precisaram travar com o obscurantismo. Gegen entrou no conflito
mais grave de sua vida, ao contrariar as crenças milenares dos Voth, aquele
que coloca no ringue a ciência e o dogma.
Gegen acredita que é melhor que a verdade seja conhecida, não importa
qual seja, do que viver na ignorância, mesmo que esta seja um dos pilares da
sociedade. O que ele não percebe ainda é que são esses mitos que mantém o
poder, mantém quem está no poder em uma posição confortável, que é a de
simplesmente administrar crenças que tornam o mundo menos instável.
Portanto, ao apresentar evidência cientifícas que abalam as estruturas dos
Voth, muito mais do que fazer ciência, ele está interferindo na ordem
estabelecida. E isso, como nos casos dos cientistas mencionados
anteriormente, não pode ser tolerado pela representante da ordem, a ministra
dos Anciões. Nome, aliás, escolhido de maneira perfeita, por retratar o apreço
pela tradição.
Duas escolhas são dadas a Gegen: admitir que sua pesquisa pode não estar
correta, não sendo possível afirmar que os Voth tem uma origem distante; ou
manter sua palavra e sofrer as consequências disso, que é sofrer a condenação
de não poder mais pesquisar ou ensinar. A princípio Gegen se recusa a renegar
suas descobertas, então é informado pela ministra que nunca mais poderá
trabalhar como pesquisador. Porém, acaba mudando de ideia e assim como
Galileu Galilei, recua. É transferido da área de arqueologia e deslocada para as
pesquisas na área de metalurgia. Sem dúvida, do ponto de vista dos Anciões,
uma área da ciência que não causará nenhum tipo de incômodo para a longa
tradição dos Voth.

A mudança de paradigmas traz avanços


Chakotay, que na verdade é um personagem entediante, dessa vez tem uma
participação essencial no episódio com algumas falas brilhantes.
Ele tenta abrir os olhos da ministra, falando um pouco da história dos Voth.
De acordo com Chakotay, ao longo da sua história de 20 milhões de anos
sempre existiram os guardiões das tradições, dos dogmas e das crenças. E em
algum momento eles foram confrontados com descobertas científicas, ou
novos paradigmas, que contestavam tudo aquilo no qual acreditavam. Porém,
isso não tem nada de mau. Pelo contrário, se trata de evolução. E evoluir e é
fundamental para qualquer espécie. Os Voth, por exemplo, são tão avançados
justamente por terem passado por um processo de evolução, que inclusive os
permitiu escapar da extinção saindo da Terra.
Homens e mulheres como Gegen são como alavancas que fazem a história
andar alguns passos. Sem eles, devido ao trabalho zeloso da manutenção da
ordem e da tradição, a evolução, mesmo que ocorresse, se dá de maneira muito
lenta. Portanto, é certo que ao longo da história dos Voth esse embate sempre
ocorreu, mas, mais cedo ou mais tarde, os avanços científicos alargaram sua
compreensão de si próprios e do universo, fazendo com que se tornassem
melhores. Esse é o fim último da ciência, o aprimoramento. Chakotay lembra
que a defesa cega da tradição atrasou esses avanços e agora, na figura da
ministra, mais uma vez alguém, em nome de uma instituição, atrasa a chegada
do conhecimento e da verdade,
É a mesma coisa entre nós, na nossa história. Quantos homens e mulheres
foram intimidados ou punidos por simplesmente descobrirem verdades
ocultas? Verdades que fariam a humanidade avançar, mas por afrontarem
“verdades” estabelecidas, seja pela religião, seja por sistemas econômicos,
foram atrasadas, combatidas ou aniquiladas. Uma ideia, quando serve para
aprimorar a humanidade, não pode ser bloqueada. Na utopia da Federação, a
liberdade de pensar e de pesquisar são pilares daquela sociedade, que serve de
exemplo para o que podemos e não podemos aceitar hoje em dia. À verdade
sim, à censura, que é burra e atende a interesses de dominação, não.
2
NEMESIS

Propaganda de guerra e ódio

Às vezes pessoas dizem coisas terríveis sobre seus inimigos para fazer parecê-los ainda pior.
Chakotay

Eu gostaria que fosse tão simples deixar de odiá-los como foi começar a odiá-los.
Chakotay

Pela condição do seu hipotálamo, eu diria que eles o deixaram tão confuso que poderiam ter
convencido você de que sua mãe era um nabo.
Doutor

Nêmesis
Nemesis é um clássico episódio de combate na selva, típico da era pós-Vietnã,
onde o imperialismo estadunidense amargou severa derrota. Desde então, a
imagem da selva e dos heroicos vietnamitas entrincheirados como fantasmas
que aparecem e somem e voltam a aparecer ficou incrustrada no imaginário
dos Estados Unidos, sendo representada ad infinitum em minisséries, séries,
filmes e inúmeros produtos da indústria cultural. A derrota do tecnicismo
frente ao fator humano, praticamente desarmado, deixou marcas indeléveis no
espírito estadunidense, já que os vietnamitas, devido à sua inferioridade bélica
nem eram considerados uma nêmesis. Eis o significado ainda maior de suas
vitórias. Mas o que é uma nêmesis, palavra tão importante na história que
abordarei nessa seção?
A sua origem remonta à mitologia grega. É o nome de uma deusa, mais
precisamente a Deusa da vingança divina. Esse sentido tem certa relevância no
episódio, já que ele mostra a luta sangrenta entre duas espécies rivais, cada
uma parecendo cometer atrocidades contra a outra. Daí é que decorre,
evidentemente, um forte desejo de vingança de ambos os lados. Porém, a
palavra possui ainda outros sentidos, sendo, modernamente, entendida como
um adversário praticamente invencível, pelo fato de possuir a mesma força e
as mesmas características, o que torna a luta contra ele eterna. O filme Star
Trek: Nemesis, com o elenco da Nova Geração, explora igualmente essa
temática, ao colocar como antagonista do capitão Picard um clone seu feito
pelos romulanos.
No episódio, vemos duas raças alienígenas em conflito: os voris e os
kradins. Na maior parte do tempo acompanhamos os voris em sua luta
mortífera contra seus inimigos. Os voris têm aspecto humano, enquanto os
kradins são aliens bastante repulsivos ao olhar, tendo certa semelhança com o
Predador. Ou seja, os produtores, deliberadamente, construíram a narrativa de
forma que o espectador rapidamente desenvolvesse empatia pelos voris e
aversão em relação aos kradins. Esse fato é importantíssimo para a história e,
da mesma forma que acontece com quem assiste, Chakotay tomará o lado dos
voris, passando a odiar mortalmente os kradins.

Chakotay em meio ao conflito


Tudo inicia quando Chakotay cai no planeta e é capturado pelos voris. Logo
fica sabendo que estes lutam contra um inimigo terrível que não têm a menor
consideração pela sua dignidade. Os kradins profanam os corpos dos soldados
voris, impedindo que eles cheguem ao além (segundo a crença vori); eles
utilizam campos de extermínio, para os quais são encaminhados os velhos e
inválidos; além disso, usam os voris com boa saúde e aptos para o trabalho
escravo. Portanto, os kradins tratam-se de “bestas” como os voris os
qualificam. Além disso, eles são constantemente chamados de nêmesis pelos
voris, revelando todos os sentidos da palavra como vimos acima.
Chakotay passa a ser constantemente bombardeado por informações
desabonadoras sobre os kradins e, mais do que isso, constata in loco o que eles
são capazes de fazer: corpos de voris mortos amarrados para torrar no sol e
morte de civis. Pouco a pouco, Chakotay vai se tornando simpático a causa dos
voris.
No entanto, ele ainda não está convencido e tenta fazer com que o conflito
seja encarado de forma racional. Tenta argumentar que os kradins não podem
ser tão terríveis assim e que muitas vezes a propaganda faz com que a imagem
de um inimigo se torne ainda pior do que ela é na realidade. Evidentemente,
nenhum dos soldados do esquadrão que o capturou aceita seu posicionamento,
totalmente condicionados pelo ódio que são.
Mas o ponto de virada para Chakotay ocorrerá quando ele acaba se
perdendo do grupo e indo parar no vilarejo de Larhana, onde vivem homens,
mulheres, crianças e idosos voris. Ele é bem recebido, a princípio visto como
um dos “defensores” (como os soldados voris são chamados pelo povo), já que
devido ao uniforme da Frota chamar muita atenção na mata, foi orientado a
usar um uniforme militar vori. No vilarejo conhece o velho Penno, avô da
menina Karya, os quais o tratam muito bem, demonstrando toda a docilidade
dos voris. Logo, Chakotay se afeiçoa ainda mais aos voris. Depois de ter se
tornado brother in arms durante a missão na mata com eles, agora conhece suas
famílias e passa sentir ainda mais empatia por aquele povo, que sob seu ponto
de vista, é oprimido e massacrado pelos kradins.
Então acontece um ataque kradins ao vilarejo o qual é rapidamente
dominado com brutal violência. Penno é encaminhado para um campo de
extermínio e sua neta Karya, desesperada, tenta evitar o trágico destino que
espera seu avô. É detida pelos kradins, que decidem encaminhá-la também ao
campo. É deixado amarrado ao sol para morrer, mas acaba sendo salvo pelos
honrados voris, que mesmo eternamente vitimados pela brutalidade kradin,
voltaram para salvá-lo arriscando suas próprias vidas. Desse momento em
diante, Chakotay já não tem a menor dúvida sobre qual lado tomar. A
diferença de atitude entre as duas facções é inequívoca e ele precisa, chutando
a Primeira Diretriz para o espaço, lutar ao lado dos voris. Já não há mais
dúvidas: para Chakotay os kradins são bestas.

Propaganda é a alma (e a arma) do negócio


Há uma frase, atribuída a um político estadunidense, que diz o seguinte: “Em
uma guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”. Interessante ela ter sido
proferida por um representante do país que mais guerras promoveu em toda a
história. É sintomático. Porém, é um fato. A propaganda é um dos elementos
fundamentais para qualquer conflito armado, pois é através dela que se
convence a opinião pública sobre a sua validade e inevitabilidade. A
propaganda serve para conquistar corações e mentes em prol de uma causa a
ser defendida a custos muito altos, financeiros e humanos. Mas nem só isso:
ela serve para inspirar os combatentes no campo de batalha.
Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os Estados Unidos
investiram fortemente em produções cinematográficas para construir uma
imagem negativa dos inimigos do Eixo. Os filmes foram amplamente vistos
pelos soldados no fronte e por aqueles que se preparavam para ir. É evidente
que os agressores haviam sido Alemanha, Itália e Japão, mas para os soldados
é importante conhecer ainda outros motivos que facilitem matar. É necessário
desumanizar o inimigo, de forma que se torne absolutamente lícita a sua
eliminação física. O cinema então, como algo extremamente popular e barato,
foi largamente utilizado para esse fim, com a cooptação de grandes cineastas,
que acabaram por produzir excelentes obras de propaganda anti-Eixo.
Há graus diferentes nessas produções. As que tratavam dos inimigos
europeus não costumavam desespecificá-los, isto é, extirpá-los do gênero
humano. Os Estados Unidos foram um país amplamente colonizado por
italianos e, sobretudo, por alemães. Portanto, o inimigo que enfrentavam
naquele momento tinha o mesmo sangue da sua gente. Ao contrário, os
japoneses foram retratados, sem exceção, como sub-humanos. Foram
ridicularizados e associados a formigas por exemplo. Em muitos casos, o
narrador do filme afirmava para a audiência que eles eram praticamente iguais
uns aos outros, não sendo possível distingui-los com clareza. Evidentemente,
uma estratégia de retirar a identidade humana do inimigo, facilitando sua total
aniquilação. Não é por acaso que as duas bombas atômicas utilizadas ao final
da guerra pelos Estados Unidos foram jogadas no Japão e não na Europa.
Do lado inverso a mesma coisa. Os alemães foram extremamente
competentes em utilizar o rádio e o cinema como fonte de propaganda para a
criação de inimigos. Os judeus foram exterminados em massa graças a total
desespecificação pela qual passaram através de filmes documentários. Nessas
obras, inicialmente, se fazia a apologia da profilaxia. As medidas de higiene
contra insetos e ratos deveriam ser postas em prática por todo o povo alemão.
Um veneno útil para isso seria o Zyklon-B.
Em uma segunda fase, os filmes passaram a associar os judeus a pragas.
Eles eram abominações, que não podiam ser consideradas parte da espécie
humana. Eram como insetos. Enquanto estes contaminavam a água e os
alimentos, os judeus contaminavam o sadio corpo social alemão. Logo, se eram
fonte de contágio, deveriam passar por medidas profiláticas. Após esse passo a
passo, que transformou seres humanos em animais indesejáveis, o Zyklon-B
tornou-se uma solução muito útil para seu extermínio. Em Nemesis, o inimigo é
tachado como besta, é animalizado, portanto, não possuindo os mesmos
direitos a que um ser “evoluído” possui. Esse é um passo bastante importante
na conversão pela qual Chakotay irá passar durante o episódio.
Durante a guerra fria, a propaganda parece ter atingido o seu ápice. Após
1947, quando entra em vigor a chamada Doutrina Truman, os Estados Unidos
passam a liderar e financiar o chamado “mundo livre” no sentido de destruir o
inimigo comunista soviético. Todo tipo de expediente foi utilizado: TV, rádio,
cinema, jornais, livros, palestras, institutos, ensino regular. Na década de 1950
a maior parte dos filmes que retratavam invasões alienígenas eram
representações do que supostamente seria o domínio dos comunistas em
escala global. Um mundo aterrorizante para o público, que fazia associações
habilmente conduzidas pelos roteiros. É assim que surge, por exemplo, o mito
do comunista que come criancinhas. No próprio Manifesto Comunista, de
Marx e Engels, publicado em 1848, os autores já debocham dos críticos do
comunismo que alertavam que as mulheres seriam públicas sob esse sistema.
1848! A propaganda anticomunista nasce junto com o socialismo científico. É
como no conflito entre kradins e voris. Parece não haver um motivo muito
claro pelo qual lutam uns contra os outros, porém a propaganda indica ter
nascido junto com a animosidade.
O revisionismo histórico, que será abordado por meio do episódio da
próxima seção, também é uma forma clássica de se fazer propaganda contra o
inimigo. Fatos e processos históricos são distorcidos de maneira que atendam
interesses políticos e econômicos. A tradição revolucionária de Robespierre e
Lênin é o maior alvo do revisionismo, que procura determinar a inutilidade
das revoluções e assim desmobilizar as classes oprimidas. É uma forma muito
intelectualizada de propaganda. Uma guerra de ideias. Essa guerra é
apresentada no episódio através de uma forma elaborada de lavagem cerebral,
na qual simulações holográficas servem para convencer os recrutas e Chakotay
da perversidade dos kradins, que devem ser liquidados por conta disso. A
alegoria da propaganda de guerra, que ensina um povo a odiar o outro é muito
clara na história.
Existe ainda algo chamado de guerra civil internacional. Quando grandes
Estados estão em guerra, como na Primeira e Segunda Guerras Mundiais, a
propaganda também apresenta um outro papel que não o de convencer a
opinião pública do próprio país. Ela se volta, igualmente, para os soldados e o
povo adversários. Por exemplo, a Alemanha guilhermina da Primeira Guerra
Mundial, claramente um Estado expansionista e imperialista, fará, mesmo
assim, propaganda voltada aos povos coloniais com ideias contrárias aos seus
próprios interesses. Vejamos isso melhor.
Os inimigos da Alemanha eram principalmente a Inglaterra e a Rússia,
ambos países com territórios coloniais dominados. Portanto, uma maneira de
enfraquecê-los é insuflar esses povos contra seus colonizadores. O alvo da
propaganda elaborada pela Alemanha era claro: irlandeses (dominados pelos
ingleses) e poloneses e judeus russos (dominados pela Rússia). Não é uma
estratégia inusitada e brilhante? Do lado oposto, a Entente, mesmo
imperialista e colonialista, apelava aos armênios (Império Otomano) e
minorias dominadas pelos Habsburgo. No episódio isso não é visto. Não
interessa aos voris que haja deserções entre os kradins. Eles devem
simplesmente serem mortos.
Como se vê, a propaganda é parte constituinte de qualquer guerra,
assumindo frequentemente formas bastante sofisticadas. Se as empresas
torram milhões em publicidade é porque ela apresenta um retorno
extremamente favorável. Nas guerras ocorre a mesma coisa. Os Estados
beligerantes, em vez de vender produtos com sua propaganda, vendem ideias,
com o objetivo de derrotar clamorosamente seus inimigos.

Chakotay se torna vítima da propaganda


Inicialmente, ao cair no planeta e tomar contato com os voris, Chakotay não
manifestou interesse em participar da luta, nem de um lado nem de outro.
Porém, uma sucessão de acontecimentos vão fazendo com que ele mude de
opinião e se torne mais um obstinado defensor dos voris. Os acontecimentos
em sequência mostraram a profanação dos mortos, os ataques a civis, os
campos de extermínio, a escravização e a violência contra crianças inclusive. É
evidente que ninguém em estado normal poderia ficar indiferente a esse
verdadeiro combo de horror. Chakotay é convencido que, de fato, os kradins
são bestas imparáveis e somente a violência poderá detê-los.
Quem assiste o episódio tem a mesma a impressão, até que acontece o plot
twist e ficamos sabendo que na verdade os “malvados” são os voris. E
duplamente maus, pois além de atacarem os kradins, eles se utilizam de
métodos de propaganda para perpetuar o conflito até que seja atingida a
solução final contra o inimigo. Sua intenção é vencer a qualquer custo, e para
isso é necessário mobilizar e inspirar seus soldados.
A Voyager consegue estabelecer contato com os habitantes do planeta e
eles são convidados a vir a bordo para ajudarem a encontrar Chakotay. É dito
somente um nome Embaixador Treen. Até então, evidentemente, todos acham
que ele se trata de um vori. Nossa empatia foi toda deslocada para os que se
assemelham aos seres humanos. Para a supresa do público, Treen é um kradin.
Portanto, os civilizados do planeta eram os “monstrengos” parecidos com o
Predador. E eles revelam que há muito tempo o conflito se desenrola com os
vori espalhando o ódio sobre sua raça através de propaganda de guerra.
Chakotay se tornou mais um atingido por ela.
A propaganda funcionava através de situações extremas as quais os novos
soldados eram expostos, fazendo-os crer que os kradins são verdadeiros
monstros, capazes de cometer as maiores atrocidades contra os voris. Rafin,
um personagem que recentemente se tornara um dos defensores, jamais havia
visto um kradin, embora já fosse capaz de demonstrar um profundo ódio por
essa raça. Uma clara alusão à força da propaganda a Chakotay fora submetido.
Nesse ponto do episódio ocorre uma interessante bifurcação. Enquanto
Janeway e a Voyager alinham-se ao embaixador Treen e aos kradins,
conhecendo melhor a história, Chakotay na superfície entrega-se de corpo e
alma à causa dos voris. Duas perspectivas opostas, causadas pela propaganda.
É claro que não sabemos se as coisas são exatamente como os kradins as
colocam, no entanto, é evidente que eles não se tratam das bestas pintadas
pela propaganda vori.
Todos os momentos que Chakotay passou no planeta se trataram de uma
simulação. Todos os homens que conheceu e que acabou lutando lado a lado
não existiam. Eram somente parte de uma simulação que servia como
treinamento para mais um soldado. Tampouco o vilarejo era de verdade. Tudo
que Chakotay experimentou fazia parte de uma sofisticada e impressionante
máquina de propaganda. Eram projeções holográficas, os estímulos
emocionais em si de participar de combates e ver gente morrendo e,
finalmente, manipulação mental através de drogas (Chakotay é visto comendo
e bebendo diversas vezes no episódio, possivelmente a forma em que foi
drogado).
O resgate de Chakotay é feito por Tuvok e quase acaba em tragédia.
Profundamente afetado pelo ódio aos kradins e ainda vítima das projeções
holográficas, ele enxerga Tuvok como um kradin e quase atira. Tuvok,
calmamente, explica a situação até que consegue fazer Chakotay enxergar a
realidade por trás da propaganda, retornando são e salvo para a Voyager. Mas
as marcas foram profundas e ainda permanecerão por algum tempo. Quando o
embaixador Treen comparece à enfermaria para conhecer Chakotay, este mal
consegue o olhar, devido ao desprezo que sente por sua espécie,
profundamente incutido em si pela propaganda dos voris. Chakotay fora
altamente doutrinado.
3
LIVING WITNESS

O revisionismo histórico serve para a


dominação

Eu sou um tipo de fóssil?


Doutor

Em algum lugar da galáxia a capitã Janeway está se revirando no túmulo.


Doutor

Revisionismo histórico
Living Witness é, sem sombra de dúvida, um dos meus episódios favoritos de
Voyager. Ele trata de questões que me dizem respeito profissionalmente
enquanto historiador e, além disso, aborda de maneira muito inteligente um
dos problemas mais graves no campo da historiografia e da política nos dias
atuais: o revisionismo histórico. Portanto, ao situar-se exemplarmente dentro
da tradição de Star Trek em colocar questões contemporâneas e relevantes
para discussão e reflexão do público, esse episódio merece receber cinco
estrelas em sua avaliação. Um clássico.
Antes de adentrarmos no episódio propriamente dito é necessário tecer
algumas considerações desse fenômeno contemporâneo chamado
revisionismo histórico.
Para Domenico Losurdo, este se trata de uma tentativa deliberada por parte
de intelectuais que servem às classes dominantes de liquidar a tradição
revolucionária iniciada com a Revolução Francesa no final do século 18. O
revisionista sempre tem como objeto de sua revisão fatos e processos
históricos que serviram para contestar a ordem vigente, seja a do Antigo
Regime, em um primeiro momento, seja a do capital posteriormente. Logo,
seus dois grandes alvos são a Revolução Francesa e a Revolução Bolchevique,
que consideram frutos de um mesmo ciclo de uma grave “doença” que teria
afetados os cérebros dos homens entre 1789 e 1917. Como se vê, existe uma
disposição a se descaracterizar as reais condições históricas que engendraram
esse ciclo revolucionário, apelando para causas naturais que nada tem que ver
com o desenvolvimento histórico.
Assim, vai-se criando uma narrativa que atenda interesses que não os das
classes de baixo, que vão sendo convencidas pouco a pouco que esse é o
melhor dos mundos possíveis e que qualquer tentativa de mudança, sobretudo
por via revolucionária, está fadada ao fracasso e a piora da situação. George
Orwell, apesar de grande escritor, trabalhou incessantemente como
revisionista histórico em seus célebres 1984 e A Revolução dos Bichos, obras
nititamente de inspiração antissoviética.
Mas o revisionismo não para por aí e continua mais ativo do que nunca. E
isso devido ao trabalho de outros intelectuais de peso como Hannah Arendt,
que ao utilizar a falaciosa categoria de totalitarismo, coloca a Alemanha
nazista e a URSS no mesmo saco, como se fossem duas cabeças da mesma
cobra peçonhenta. Essa desonestidade é tão grande e grave que não é possível
examiná-la corretamente no espaço destinado a esse texto. Mas basta dizer
que, ao comparar um regime que era racista e imperialista a outro que
conclamava os povos coloniais a romperem suas correntes, Arendt provoca um
desserviço enorme ao mundo contemporâneo, gerando, por exemplo, o maior
expoente do revisionismo atual que é o famigerado nazismo de esquerda.
O revisionismo também serve para que preconceitos sejam mantidos. Por
exemplo, um muito em voga diz respeito à colonização do Brasil e à escravidão
africana. Figuras sem o menor preparo para trabalhar com história publicam
livros afirmando que a invasão portuguesa no Brasil foi benéfica aos índios.
Como poderia ter sido se eles foram exterminados? Na mesma linha, diluiu-se
a criminosa escravidão africana sob o pretexto de que os negros na África
também possuíam escravos. Mesmo que fosse verdade, isso serve como
justificativa para um comércio internacional que deslocou milhões de seres
humanos de um continente para o outro para que vivessem uma vida de
violência a humilhação? O revisionismo não se sustenta nem por um segundo
diante de um historiador profissional e ético, mas nem sempre ele pode estar
presente, sobretudo nesses tempos onde a censura volta a mostrar suas garras,
tendo como alvo prioritário os professores de história. Como visto, isso não
acontece por acaso.
Revisionismo histórico: nazismo e comunismo
Um dos alvos preferenciais do revisionismo histórico é o nazismo. E o objetivo
fica cada vez mais claro. Assim como em todo revisionismo, a intenção é criar
condições intelectuais para a manutenção do poder e do status quo. Ou seja,
aqueles que estão nas esferas dominantes, encontram na manipulação
intelectual de eventos históricos tétricos como o nazismo na Alemanha das
décadas de 1930 e 1940 uma solução adequada para combater as forças de
esquerda que se insurgem contra sua dominação.
Tenho certeza que nos últimos tempos você ouviu por aí que o nazismo é de
esquerda. Que Hitler era marxista. Que a Alemanha nazista construiu um
sistema coletivista e essa é a prova cabal de que se tratava de um regime
comunista. Todo esse tipo de afirmação é tão surreal quanto afirmar que a
Terra é plana. E, infelizmente, até isso estão afirmando e o movimento cresce
cada vez mais. São tempos surreais. Mas nada disso surge do nada, não é fruto
de uma geração espontânea, muito pelo contrário, como tenho afirmado, esse
tipo de truque intelectual tem como intento criar mantos obscuros sobre as
vistas da população, que assim, perde as esperanças na política e na ciência,
tornando-se mais dócil frente à exploração capitalista e seus lacaios.
Justamente aquele que defenderia os interesses do povo é tornado um
monstro, em uma inversão ideológica de arrepiar. Em Living Witness, por conta
do trabalho de séculos dos revisionistas dos kyrians, vemos a Voyager e sua
tripulação se tornaram grandes vilões. É um episódio didático sobre
revisionismo histórico. Mas vejamos antes o caso do nazismo, que tem por
objetivo tornar o socialismo e o comunismo em ideias inimigas da
humanidade.
Antes, começo dizendo o que a Alemanha nazista foi. A ascensão de Hitler
ao poder foi uma reação à paz punitiva de Versalhes, que impôs condições
muito duras à Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial. Perdeu suas
colônias, teve que pagar os custos da guerra, teve suas forças armadas
reduzidas a praticamente nada e ainda foi estigmatizada por ter arrastado
sozinha a Europa para a guerra. Tudo isso mexeu muito com a autoestima
alemã, que ainda por cima amargou uma devastadora crise econômica e
hiperinflação. Hitler soube explorar habilmente esses sentimentos da
população, oferecendo-se como salvador ada pátria ao indicar exatamente
quem eram os inimigos da Alemanha: os aliados e os judeus.
Para construir de maneira ainda mais convincente sua narrativa, apelou
para a ancestralidade de povo alemão, uma raça destinada a comandar. Valeu-
se da filosofia de Nietzsche que comprovaria que este “fardo” de dominar as
“raças inferiores” estava destinado aos alemães. Ao mesmo tempo, insistiu na
questão que já havia levado os alemães a guerra, que era a necessidade de
construir um império colonial, como as outras potências já haviam feito. Só
que dessa vez o império começaria pela própria Europa, dominando os
territórios eslavos, etnia considerada inferior (a própria palavra “escravo” tem
origem no termo eslavo), e também a França (“país negroide, nação africana em
solo europeu”) e, após o fim da guerra, a própria Itália, considerada um país de
sangue negro. Em suma: a “raça” foi o grande mote que Hitler utilizou para
mobilizar a Alemanha, fazendo-a crer em sua superioridade racial sobre outros
povos.
Hitler importou dos Estados Unidos a ideia de eugenia. Essa pseudociência,
criada na Inglaterra fez fortuna na América. Além disso, Hitler via no Estado
racial criado pelos estadunidenses a melhor forma de lidar com os judeus. Para
fechar, o tratamento dispensado aos ameríndios pelos colonos ingleses na
América era uma fonte inesgotável de inspiração para Hitler em como lidar
com os povos não arianos. Assim, a partir da implementação dessas ideias, o
Estado alemão se tornaria puro e poderia finalmente seguir o glorioso destino
que fora reservado a si.
É claro que isso teve um custo de dezenas de milhões de vida e a Alemanha
acabou sendo destruída pelos aliados, principalmente pela URSS de Stálin, que
arrombou as portas de Berlim e deu o golpe fatal, decapitando a serpente
nazista. No entanto, o revisionismo atual verá a questão sob uma perspectiva
bastante diversa. Para alguns teóricos lunáticos, nem o próprio holocausto
teria ocorrido. É o equivalente conspiratório da Terra plana, dos reptilianos, da
não ida do homem à Lua, dos illuminati etc. Ou seja, nem só a política é
falsificada, mas também a ciência. É a formação do império da ignorância.
Para outros, mais sofisticados, o trabalho consiste em transformar nazismo
e comunismo em irmãos gêmeos, demonstrando de uma vez por todas que o
único sistema aceitável seria o liberalismo. Dessa forma, busca-se realizar no
ocidente uma “democracia do povo dos senhores”. Mas vejamos melhor como
isso é feito.
O revisionismo histórico trabalha sobre a denúncia de uma suposta
abstração do ser humano e do fanatismo ideológico. Seus teóricos, que iniciam
em Tocqueville, chegando aos contemporâneos Ernst Nolte, baterão
insistentemente na tecla da comparação da atividade revolucionária com
doença ou intoxicação. Ou seja, é claro para esses pensadores que Robespierre,
Lênin e seus seguidores foram acometidos por uma espécie de febre que
atormentou suas mentes e os fez cometer atrocidades em nome de um ideal de
ser humano inexistente.
Os liberais não acreditam em igualdade, logo, não acreditam na ideia de um
ser humano abstrato, só creem no indivíduo. Portanto, jacobinos e
bolcheviques seriam assim duas pontas de um mesmo processo “totalitário”
que merece ser combatido duramente. Além disso, não podemos nos esquecer
de Nietzsche para o qual toda e qualquer tentativa de insurreição das classes
“barbáricas” se trata somente de “ressentimento”, isto é, de inveja que estas
possuem das classes dominantes. As condições reais de dominação, exploração
e miséria não entram no radar do “rebelde aristocrático”.
Pronto, estas são as ideias colocada inicialmente. Mas como ocorre a
aproximação atual da tradição revolucionária “de esquerda” com um
movimento de extrema-direita? Cabe de antemão esclarecer que o
malabarismo deve ser muito grande, já que se tratam de visões politicas
absolutamente distintas.
Em primeiro lugar o nazismo. É uma doutrina estruturada sobre dois
pilares: superioridade ariana em relação às outras “raças”; dominação e
escravização dos povos “inferiores”. Portanto, podemos resumir em racismo e
imperialismo.
O comunismo tem o viés oposto, antinazista, antirracista, anticapital, a
favor do trabalho. Um princípio básico do comunismo é não distinguir
ninguém, nenhum povo, por sua “raça”. E por quê? Porque o comunismo se
estrutura sobre o materialismo histórico. Isso significa que nenhum processo
humano pode ser visto por condições biológicas que seriam inatas de uma
determinada raça, de um certo país. Tudo o que uma civilização é vem de
conflitos históricos bem determinados. Se a África tem problemas com guerras
civis e pobreza, isso não se deve a fatores naturais dos africanos. Basta ver a
sua história de espoliação, dominação e violência sofrida por 500 anos por
parte dos europeus. O ser humano é um ser social e histórico. Nada que ele
faça ou lhe aconteça está fora disso.
Já para os nazistas, existem determinadas marcas genéticas em certos povos
que não pode ser apagadas e que os vedam a participação na civilização. São
como células doentes que contaminam o corpo saudável das raças superiores.
Outra grande mentira descarada que os revisionistas, geralmente os mais
rastaqueras, contam diz respeito ao suposto marxismo de Hitler. Essa não
passa nem na prova mais simples. É só baixar o pdf da bíblia do nazismo, o
livro Mein Kampf (Minha Luta), escrito por Hitler e conferir in loco. Faça uma
busca pela palavra “marxismo”. Os muitos resultados lhe mostrarão qual o
exato pensamento do autor sobre o tema. Posso adiantar que você chegará à
conclusão de que um dos objetivos do nazismo era liquidar com o comunismo.
Portanto, são diferenças colossais. Enquanto um é revolucionários, a partir
de baixo, o outro é conservador, a partir de cima. São coisas absolutamente
antagônicas, mas que no caldeirão dos feiticeiros do revisionismos,
magicamente se tornam umbilicalmente unidos. É uma forma de mandar o
seguinte recado aos trabalhadores e oprimidos: não insista, as revoluções
sempre darão errado e todas elas, de todas as vertentes, são iguais. Em resumo:
a história é revisada (de maneira pejorativa, pois é parte do verdadeiro
historiador revisar a história o tempo todo, em busca de novas perspectivas),
para a manutenção do poder e controle das massas. É exatamente esse
processo que vemos no episódio Living Witness.

Uma história diferente da Voyager


Meu personagem favorito de Voyager é o Doutor, o programa médico
holográfico de emergência da nave. No piloto, o médico-chefe morre e aí pelos
sete anos seguintes na jornada de retorno da Voyager através do Quadrante
Delta, rimos e sofremos com esse holograma que se tornou senciente. Mais um
personagem que coloca na mesa um dos temas caros da ficção científica: os
robôs têm direitos? Os androides sonham com ovelhas elétricas? Alguns
episódios de The Next Generation exploram muito bem essas questões com o
Data. O Doutor também, ao longo da série, irá nos fazer confrontar essa
problemática. Mas eu gosto mesmo do personagem é porque ele se enquadra
em uma linhagem de personagens de Star Trek que não são humanos e
precisam lidar com sua humanidade florescente e, é claro, com as interações
com os seres humanos: Spock, Data, Odo, Doutor... E o Doutor, ou melhor o
seu backup, reativado 700 anos depois, terá uma participação muito
importante nessa história.
O episódio começa de maneira inusitada. Janeway está negociando com
Daleth, embaixador da espécie vaskan, originária do Quadrante Delta, a
participação da Voyager em um conflito em troca de uma maneira de voltar
para casa. Como se somente esse fato não fosse o suficiente para revelar que
algo estranho está acontecendo, Janeway está diferente e em sua aparência,
apresentando um corte de cabelo mais austero e usando luvas negras, no
melhor estilo vilã nazi.
A negociação é concluída com sucesso. Janeway ajudará na guerra dos
vaskans contra os kyrians, a espécie rival. No entanto, o interesse de Daleth é
atingir somente um dos líderes dos kyrians, chamado Tedran, porém Janeway
está prestes a cometer genocídio, atacando o planeta com armas biogênicas
(armas de destruição em massa que atingem somente formas biológicas), fato
que deixa Daleth horrorizado. O Doutor, que nessa realidade aparenta ser um
androide, é o responsável por executar o ataque. A essa altura todos perguntas:
mas o que aconteceu com a Voyager? A Frota Estelar não age dessa maneira. A
resposta vem em seguida.
Tudo se tratava de um simulação, exibida por um historiador kyrian
chamado Quarren aos seus alunos. É uma história que aconteceu 700 anos
antes, quando a temível nave de guerra Voyager tentou destruir o planeta,
salvo pelo heroico líder Tedran. Menos mal. Mas uma questão é lançada: já
que o contato da Voyager com essas espécies sete séculos atrás não pode ter
ocorrido de forma alguma como a história está sendo contada, ela surgiu entre
os kyrians, por que adquiriu status de história oficial e com quais objetivos?
As respostas vem ao longo do episódio.
É engraçado ver o professor ensinar seus alunos que a Voyager assimilava
espécies durante sua jornada pelo Quadrante Delta: talaxianos, kazons e borgs.
A Voyager é uma nave com uma divisão borg prestes a atacar e assimilar os
inimigos da capitã! Janeway é retratada como uma assassina a sangue frio, que
capturou e matou Tedran pessoalmente (se bem que a Janeway “real” matou o
Tuvix...). Além disso, é conhecida por ter matado 2 milhões de kyrians durante
o ataque. Como resultado, de acordo com a historiografia oficial, os kyrians
ficaram em ruínas, sendo dominados em seguida pelos vaskans. Alguns
séculos seriam necessários para que os estragos fossem desfeitos e mesmo
assim os kyrians ainda lutam pelo reconhecimento a igualdade perante os
vaskans. Uau! Segundo a historiografia oficial dos kyrians, Janeway e Voyager
provocaram uma alteração catastrófica em sua história. É evidente que isso
não ocorreu. É claro que se trata de revisionismo histórico. Mas qual o
objetivo? Veremos.
No planeta, kyrians e vaskans convivem. Porém, os kyrians se encontram
em posição social inferiorizada, resquício histórico da dominação vaskan.
Portanto, esses últimos nutrem certo preconceito contra os primeiros,
costumando usar frases do tipo “até tenho amigos kyrians” e tal, para
complementar em seguida: “mas não gosto dessa visão da história que nos
torna vilões”. É um fato, a história, ao menos a oficial, conta que os vaskans
não agiram nada bem em relação aos kyrians. Isso não dá direito de haver
racismo de parte a parte, mas a questão ainda nebulosa é: qual a verdadeira
história?

Um backup do Doutor
Um novo achado arqueológico foi feito, contendo muitos dados a respeito da
Voyager. Dessa vez, o historiador poderá dar voz direta a uma fonte, ouvindo o
que ela tem para dizer. O programa do Doutor estava incluso e ao ser ativado
assustou-se com o fato de haver um kyrian bem ali na sua frente. Se trata de
um backup do seu programa, inativo por 700 anos. A história começa a ficar
interessante: os kyrians vendem sua imagem histórica como as grandes
vítimas. Portanto, é um fato a ser considerado o Doutor encarar um kyrians
como uma ameaça. Ele deixa escapar que talvez um dos soldados kyrians
tenham roubado o artefato da nave. A perspectiva começa a pender para outro
lado.
Quarren exibe outras simulações para o Doutor em busca de que este possa
ajudar corrigindo eventuais imprecisões. O Doutor entra em choque. O
modelo reconstruído da Voyager a mostra como uma nave de guerra. Quarren
sequer sabia qual seu destino final, considerando que fosse Marte. Por fim
uma reunião dos oficiais que mais parece saída de uma nave do universo
espelho, com direito a pancadaria. A tudo isso o Doutor precisa somar o fato
de que 700 anos se passaram e nem a Voyager e seus amigos existem mais. É
muito informação até mesmo para um holograma.
O Doutor admite que a Voyager, em algum momento, envolveu-se no
conflito entre os vaskans e os kyrians, mas de maneira absolutamente diversa
da entendida por Quarren e narrada pela historiografia do planeta. A
tripulação estava reunida com o embaixador Daleth quando,
surpreendentemente, fora atacada pelos kyrians. Isto é, ao contrário da
história oficial, eles é que foram os agressores. O que de forma alguma implica
a Voyager em lutar de um lado ou de outro.
As coisas começam a ser melhor esclarecidas. Tedran, o mártir dos kyrians,
que na história oficial evacuou cidades, salvando milhares de pessoas e que
fora assassinado a sangue frio por Janeway, na verdade liderou os ataques dos
kyrians à Voyager e aos vaskans. Quarren, começando a se ver confrontado
com a realidade reage desativando o Doutor. Afinal, para ele, como kyrian, é
muito mais cômodo encarar seu povo como o injustiçado, oprimido até os dias
de hoje por uma outra raça que os agrediu. Em outras palavras, o revisionismo
histórico corrente permite que kyrians tenham ídolos, heróis, mártires,
enquanto o outro lado carrega a pecha da infâmia. Mas a história é mais
complexa que isso.
Quarren passa a ser atormentado por dúvidas. Parece que há, de fato, coisas
que não se encaixam na história que aprendeu e ensinou. Ele é um pesquisador
e, por amor ao conhecimento verdadeiro, decide recorrer ao Doutor para que
esse talvez jogue alguma luz nas sombras que começam a cair sobre seus
estudos. O Doutor, orgulhoso do seu talento na “arte holográfica”, propõe
contar a versão verdadeira através de novas simulações. Uma nova perspectiva
aparecerá diante dos olhos de Quarren, com o poder de transformar toda a
história entre kyrians e vaskans.
A verdade é que Janeway estava fazendo um acordo muito simples e
inofensivo com o embaixador Daleth: fornecimento de suprimentos médicos
em troca de cristais de dilítio. Daleth a informa que estão passando por
hostilidades de uma raça belicosa, os kyrians, e que uma guerra pode começar
a qualquer momento. Logo, a Voyager é atacada por eles e um grupo aborda a
nave, matando tripulantes e sequestrando Seven of Nine. Tedran, que lidera o
ataque, considera que Daleth organiza uma aliança com a Voyager contra os
kyrians. Ao conseguir reagir, Seven of Nine desarma Tedran, que é atingido
mortalmente por um disparo de Daleth. Isto é, Tedran não foi morto pelos
humanos, mas por um vaskan, em legítima defesa.
É um golpe profundo na narrativa histórica estabelecida. A morte de
Tedran é compreendida como parte de uma conspiração entre os vaskans e a
Voyager para submeter os kyrians. Há 700 anos que essa história é contada.
Isso levou a um apartheid entre as duas espécies, fazendo com que os kyrians
não tenham os mesmos direitos que os vaskans, sendo impedidos de
frequentar as mesmas escolas por exemplo. Os vaskans sempre acharam que
os kyrians foram os agressores. O Doutor, com seu testemunho, bota tudo por
água abaixo e faz com que uma convulsão social assole o planeta. Pela
primeira vez kyrians e vaskans precisarão se confrontar com sua verdadeira
história e arcar com as consequências advindas desse ato.
Ambos os povos viviam no passado, um culpando o outro por uma guerra
que acontecera há muitos séculos. Ao compreenderem a verdade, o caminho
da reunificação se tornou mais fácil, já que a atitude mais lógica seria
aprender com os erros mas não se prender a eles. O fundamental é mirar o
futuro. Com a ajuda do backup do Doutor, as duas raças conseguiram
finalmente entrar em entendimento. E o Doutor? Depois de algum tempo,
decidiu ir embora, seguindo o caminho da Voyager até o Quadrante Alfa. Seria
interessante acompanhar essa jornada e ver o que ele encontraria. De repente
até mesmo a USS Discovery, jogada para o futuro na segunda temporada da
série.

Uma questão da história


O revisionismo histórico em Living Witness na verdade se trata mais de um erro
de interpretação do que ações deliberadas objetivando mudar o sentido
histórico. Vejamos. Os kyrians foram os agressores reais, mas se tornaram a
classe dominada. Já os vaskans, que eram pacíficos e não tiveram nada a ver
com o começo da guerra, se tornaram a classe dominante, que mantém os
kyrians apartados socialmente. Portanto, a história contada não auxilia aqueles
que a estão contando estabelecer sistemas de dominação. Pelo contrário,
continuam dominados. Porém, ela acaba ferindo os interesses dos vaskans,
como visto na cena em que Quarren é interpelado por um visitante no museu
que lhe ofende, dizendo que não quer que suas crianças aprendam aquela
história.
Um dos juízes, ao qual foi levado o caso do Doutor, que mostrou a verdade
histórica, diz significativamente: isso é história, não tem nada a ver com o
presente. Nada mais errado. A história é o que determina a forma que as
sociedades são no presente. A compreensão da história também. A identidade,
as instituições, as crenças e os valores de um povo são todos construídos ao
longo da sua história. Portanto, a animosidade entre kyrians e vaskans que
existia há séculos também era alimentada por duas visões distintas da história.
Ao se agarrarem ao culto de Tedran, que não fora um herói, mas sim um
criminoso de guerra, os kyrians não conseguiam ultrapassar determinados
limites, ficavam presos a um passado mítico e totalmente equivocado. Viviam
um mentira que acaba por prendê-los, não somente ideologicamente, mas na
prática social, a qual eram rebaixados a um segundo nível.
Fica claro que os autores do episódio não entendem muito bem o que é a
História e, logo, o que é revisionismo histórico. No entanto, mesmo
intuitivamente, eles acabam criando uma história divertida e que toca meio
sem querer nas questões que levanto nessa seção do livro. Eles vulgarizam ao
máximo o problema a que se propuseram colocar, sem saber exatamente como
concluir a trama. O enredo teria muito mais sentido se ao fim e ao cabo, a
história de quem iniciou a guerra, que serviu pra marginalizar os kyrians,
tivesse sido elaborada pelos vaskans, justamente para implantar sua
dominação, mesmo que a pretexto de autodefesa. Aí sim os autores teriam, de
fato, tratado de revisionismo histórico. Um “labirinto de releituras, revisitações e
reinterpretações” da história, segundo Domenico Losurdo, que tem por objetivo
manter uma classe subalterna a outra.
E é justamente esse o ponto chave do revisionismo e dos intelectuais que se
inscrevem em suas fileiras, como cães de guarda das elites. Eles promovem o
obscurantismo e acabam prejudicando, senão toda a sociedade, ao menos um
dos lados dela, invariavelmente aquele que se torna dominado. Os kyrians
foram dominados pela sua própria visão distorcida da história. E aí entra o
papel da verdadeira ciência histórica, que se vale de fontes as quais são
interpretadas de maneira rigorosa. Assim, ganham todos e o mundo se torna
um lugar livre. O historiador não pode distorcer processos históricos de
maneira que eles se encaixem em narrativas que visam atingir objetivos
políticos. Isso pode ter qualquer nome, menos história.
4
VIRTUOSO

O Doutor produzido, consumido e descartado


pela indústria cultural

Um artista é alguém que produz coisas que a gente não precisa ter.
Andy Warhol

No futuro, todo mundo será famoso por quinze minutos.


Andy Warhol

Música é mais do que matemática.


Doutor

A arte é que ficou pequena


Quando a personagem Norma Desmond diz em Crepúsculo dos Deuses que ela
continuava grande e que eram os filmes que haviam se tornado pequenos
temos uma dica preciosa de como funciona a indústria cinematográfica.
Norma era uma atriz do cinema mudo, que arrebatou durante décadas os
corações de milhões de fãs. Com a chegada dos filmes falados foi relegada ao
esquecimento. Um produto novo substituindo um produto velho, arrastando
para o ostracismo a maior parte dos que já não se enquadravam no novo
padrão. Mesmo assim ela estava consciente do seu talento, que, infelizmente,
não interessava mais a indústria. Norma é como um produto, que tornado
obsoleto é descartado e substituído por outro mais moderno.
A cultura, desde o advento da Revolução Industrial, também se tornou uma
indústria. Cultura industrial, indústria da cultura. Desde o momento em que
textos, imagens e sons puderam ser reproduzidos aos milhões, atingindo
públicos os mais diversos possíveis e separados geograficamente, a lógica da
produção e consumo de mercadorias se tornou a lógica da cultura de massas
também. Até meados do século 19 não existia isso que hoje em dia chamamos
de massas. Existiam o público e a audiência. Tomemos o exemplo de uma peça
de teatro. Era necessário que o grupo se deslocasse de cidade e cidade e
montasse o espetáculo, exibindo-o para um número limitado de pessoas. Com
a chegada do cinema, os filmes eram lançados em quantas cópias fossem
necessárias, atingindo, dessa vez, as massas.
A mesma coisa com a música: os recitais, experiência limitadas e únicas, se
tornaram gravações, que atingiam milhões de pessoas e podiam ser
reproduzidas infinitamente. Essa é indústria cultural que produz uma cultura
de massas. Afinal, não se poderia esperar algo diferente de uma cultura
industrial. Ela geraria, também, uma indústria cultural.
A cultura de massas está estreitamente relacionada à sociedade de consumo
de massas. Apesar da indústria cultural apresentar suas idiossincrasias, de
certa forma muitos dos seus produtos são consumidos como os outros
produtos industrializados. Não é à toa que no Brasil os seriados muitas vezes
são chamados de “enlatados dos Estados Unidos”, em uma clara referência a
produtos feitos em série para consumo massivo. É emblemático que
programas como Star Trek sejam chamados de série, que remete a algo
fabricado um atrás do outro.
Dessa forma, para que exista a tal cultura de massas e a indústria cultural é
necessário existir uma sociedade de consumo de massas. Isso só passa a existir
com o advento do capitalismo liberal em meados do século 19 e se consolida a
partir do estágio monopolista do capitalismo, na virada do 19 para o 20. Ao
longo desse último século adquire uma complexidade ímpar, gerando todo tipo
de produto cultural para o consumo das massas: filmes, programas de TV,
rádio, fotografia, livros, revistas, quadrinhos e, finalmente, um novo leque se
abriu, com infinitas possibilidades: a internet.
Nesse universo de produtos culturais, características antes impensáveis
começam a surgir. Na era pré indústria cultural se um pintor pintasse um
quadro ele seria único. Já um quadrinista ao desenhar a sua história em
quadrinhos perderá totalmente o controle dela, que será impressa e reimpressa
milhões de vezes caso se torne um produto lucrável. Quando o autor dessa
suposta história em quadrinhos a realizou ele já tinha em mente isso, portanto,
na era da indústria cultural, chegamos naquilo que Walter Benjamin
caracterizou como “a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Ou
seja, nenhuma produção artística, que se torne um produto da indústria
cultural está fechada em si mesma, como obra de arte singular. Ela é criada
justamente para ser copiada e copiada infinitamente, atingindo o maior
número possível de “clientes”.
Do outro lado dessa mesma situação, temos a reificação e a alienação do
artista. Como qualquer outro trabalhador da indústria, o produtor de arte
perde o controle de sua obra assim que a finaliza. Van Gogh pintava seus
quadros e tentava vendê-los (infelizmente vendeu somente um em vida). Era
uma relação direta do produtor com o seu agente ou até mesmo com o público
que queria comprar o quadro para colocar na parede. O artista que compõe
uma música e a grava em um disco que vende milhões de cópias perdeu o
vínculo com sua produção, já que ele executou somente uma parte do trabalho.
Houve o técnico de som, quem gravou, quem fez a capa, quem obteve o
minério que serviu para a fabricação do CD, quem transportou as caixas até as
lojas etc. E muitas vezes ele se torna escravo dessa canção, que pode ter se
tornando o único hit de sua carreira, sendo obrigado a cantá-la a cada
apresentação. Tornou-se controlado pela mercadoria que produziu.
Isso quando não surge uma nova moda, um nosso estilo musical. Cada novo
estilo musical é quase como um novo modelo de carro ou de celular. Embora o
produto ainda sirva adequadamente às funções as quais se presta, de repente,
ele começa a parecer antiquado e o dono sente um certo desconforto social, já
que seu vizinho ostenta o novo modelo. Imagine você colocar uma música da
década de 20 na festa de aniversário do seu irmão mais novo em vez dos
sucessos do momento. A indústria cultural, portanto, determina quais
artefatos culturais devemos consumir. Não é a demanda por determinado tipo
de música que faz com que a indústria a produza. Pelo contrário, é a indústria
que inventa produtos que geram demandas. No caso do episódio Virtuoso
vemos isso de maneira bastante clara. O Doutor, visto como novidade e aceito
o fato de que isso agradaria enormemente o público qomarian, foi alçado à
condição de pop star.
Norma Desmond, ao contrário, quando se tornou antiquada para as novas
tecnologias que a indústria cinematográfica desenvolveu, foi descartada, como
um sapato velho que não serve mais. Mas isso também acontecerá com o
Doutor, pois raros são aquele que conseguem escapar da máquina de moer
gente da indústria cultural.

Alma fotônica de artista


Eu acho Virtuoso um dos episódios mais incríveis de Voyager. Ele é
extremamente divertido e leve, ao mesmo tempo em que apresenta uma
discussão sobre a indústria cultural e sobre a natureza do Doutor. Nele,
fazemos o primeiro contato com os qomarians, uma civilização
superdesenvolvida, que acaba nos remetendo à uma sociedade industrial.
Logo, se há uma cultura industrial, há uma indústria cultural. Esse aspecto é
fundamental para entendermos no que o Doutor acaba se metendo.
O nosso bom e velho holograma médico de emergência é um personagem
que busca, ao longo de sete temporadas, desenvolver a sua humanidade. Diga-
se de passagem que ele obtém mais êxito nessa empreitada do que muita gente
que conheço. A questão é que ele tenta se tornar humano, procurando evoluir
no âmbito de suas habilidades sociais (ao ponto de poder dar aulas para a
Seven of Nine), mas, principalmente, em sua sensibilidade artística. Nessa,
envereda por duas searas, a ficção literária (as holonovels) e, aquela explorada
nesse episódio, a música.
A tripulação está ajudando um grupo de qomarians, que teve sua nave
danificada por emissões da Voyager. Na enfermaria, eles se demonstram
impacientes, revelando uma certa arrogância e orgulho da sua “superioridade”.
O Doutor os incomoda particularmente, pois não confiam no tratamento
médico fornecido por um holograma. De repente, o Doutor começa a
cantarolar, algo que deixa os qomarians completamente embevecidos e
curiosos, já que não existe música em sua cultura.
É preparada, então, uma apresentação dentro da Voyager para que a nova
espécie amiga possa desfrutar do talento do Doutor. Eles simplesmente
adoram. No meio da apresentação, entra uma banda de jazz liderada por Harry
Kim, fato que desagrada os qomarians que exigem a volta do Doutor ao palco.
É a sua consagração. Pela primeira vez ele encontra um público que valoriza
sua arte, já que seus amigos na Voyager não possuem o mesmo entusiasmo por
sua música como demonstram ter os qomarians.
Assim, o Doutor é convidado para fazer uma apresentação no planeta, que
será transmitida para todos os habitantes. É tudo o que a sua alma de artista
sonhou: cantar e encantar as massas com sua música.

A fama de um holograma
No universo de Star Trek são incontáveis às menções a estilos musicais
alienígenas, ou então a personagens que tocam instrumentos musicais.
William Riker adora tocar trombone, é um músico de jazz. Picard, a partir dos
eventos vistos em The Inner Light passa a tocar flauta. Chief O’Brien é um
grande violoncelista. Spock com sua harpa vulcana já fez um dueto com
Uhura, que além de cantar divinamente, dança muito bem, como visto em Star
Trek V. Data canta no casamento de Riker e Troi. Em Discovery, sabemos que o
Dr. Culber adora ópera kasseeliana, um estilo musical muito inusitado. Conta-
se que uma cantora desse tipo de ópera se prepara durante toda a vida para
uma única apresentação, na qual, na última nota, um Mi agudo, crava uma
adaga no próprio peito. Óperas em geral são dramáticas, mas acredito que não
tanto quanto as kasseelianas. Por falar em ópera, existem as klingons, as quais
Worf é um grande apreciador. Porém, entre os klingons também existem
“músicas de botecos”, como o Doutor faz questão de frisar para B’Elanna, que
não leva a sério seu talento.
O Doutor canta vários estilos, mas tem predileção pela ópera. E será esse
estilo que ele apresesentará para os qomarians. São dadas todas as condições e
liberdades para que o grande artista escolha seu palco. Ele pode escolher qual
o cenário será replicado e até mesmo a posição do auditório para que a vista do
público não seja prejudicada, possibilitando a melhor experiência possível. A
apresentação é um sucesso estrondoso, algo nunca visto entre os qomarians.
Todos ficam fascinados pelo artista e se tornam grande fãs.
Em um certo momento a nave, aparentemente, passa a ser sabotada pelo
qomarians. Na verdade eram apenas mensagens dos fãs, fazendo perguntas
para o novo ídolo e elogiando fervorosamente suas habilidades como cantor.
Seven of Nine, que é amiga dele, fica um pouco incomodada, enciumada
talvez. Ela não consegue aceitar muito bem que o Doutor agora tem um
planeta inteiro de fãs (palavra que ela rapidamente identifica como oriunda de
fanático).
Então monta-se uma verdadeira sessão de autógrafos dentro da Voyager,
com qomarians vindo de todos os cantos para prestar seus tributos ao Doutor
e conhecê-lo pessoalmente. Duas jovens chegam a simular um mal-estar para
poderem ser atendidas por ele e privar de um momento a sós. É uma
verdadeira beatlemania. Outros fãs imitam o corte de cabelo do Doutor, que é
calvo. Uma fila imensa se forma para pegar um autógrafo e receber uma
fotografia holográfica capaz de cantar. É a obra de arte reproduzida
tecnicamente. Se trata também de uma referência às ComicCons que os atores
de Star Trek participam. Um dos momentos altos do episódio é o dueto entre o
Doutor e sua miniatura. No entanto, Janeway preocupada com a situação
ordena que o doutor retome suas funções na enfermaria, jogando um balde
água fria em suas pretensões artísticas. A partir desse ponto um dilema se
colocará frente ao Doutor: ficar na Frota e largar a carreira ou abandonar tudo
para seguir seu sonho de ser um artista.

The rise and fall of EHM


Uma questão que permeia todo o episódio é se o Doutor é uma coisa ou uma
pessoa. E essa dualidade é importante pois se relaciona ao que estamos
discutindo aqui: a arte como mercadoria, o artista como coisa (e mercadoria
também). Portanto, é muito interessante que aquele ser que, sob uma
perspectiva é uma coisa, acabe por ser coisificado em sua produção artística
que atinge milhões de consumidores.
Depois de refletir, a arte falou mais alto sobre o “coraçãozinho” do Doutor.
Ele decide ficar no planeta, a convite de Ticoon, a jovem que esteve mais
próxima dele e que organizou suas apresentações. Mas, após sua decisão, o
Doutor faz uma descoberta desoladora. Ticoon, mesmo sem conhecer música
até poucos dias atrás, compôs uma ópera. Porém, ela atingia tons impossíveis
para que um ser humano pudesse cantá-la, objeção feita pelo Doutor. Ela
rebate dizendo que ele não é humano e que simplesmente poderia alterar sua
matriz, tornando possível executar com maestria a peça musical. Porém, é aí
que reside um problema importante: o Doutor se assemelha aos humanos e
que ter características humanas. Ele não pretende ser um super-humano, pelo
contrário, que experimentar a humanidade em sua plenitude e uma das formas
de se fazer é isso é, justamente, a arte. Ticoon, evidentemente, não
compreende isso. Ela vê o Doutor como uma coisa, duplamente: um holograma
e um produto daquilo que seria uma nascente indústria cultural entre os
qomarians. Assim, chegamos a um problema que pode ser insolúvel, já que
demanda ao Doutor a renúncia à sua busca pela humanidade e sensibilidade.
Assim, ele titubeia e não aceita imediatamente os termos de Ticoon.
No entanto, ele ainda não está certo, pois a busca pelo reconhecimento e
pelo sucesso (característica humanas, note bem) são elementos importantes e o
Doutor cogita mudar sua própria natureza para que possa ficar entre os
qomarians e ser seu grande artista. Mesmo sendo alertado de que os gostos
mudam. Na indústria cultural, como vimos, eles mudam rapidamente e mais
do que mudam eles são mudados com a introdução de novo produtos, que é
exatamente o que vai acontecer.
Impaciente com a indecisão do Doutor sobre ficar no planeta/cantar ou não
cantar a música sobre-humana, Ticoon cria um holograma à semelhança do
Doutor, porém, com a capacidade de cantar perfeitamente a ópera que ela
havia composto. O Doutor sente-se traído, com razão, e acaba por perceber
que se tornara um mero produto da indústria cultural qomariana, descartado
tão logo não pôde mais cumprir os novos padrões determinados por essa
indústria. Ele havia decidido ficar e encarar o desafio, mesmo que precisasse
atropelar alguns de seus princípios pessoas. Assim como muitos artistas,
extremamente talentosos, acabam se sujeitando a pegar papéis ou gravar
músicas que não estão à altura de sua criatividade e talento. De coisa a coisa.
De holograma com aspirações humanas a produto descartável. Embora
apresente uma história divertida, Virtuoso é um episódio trágico para o Doutor.
Assim como o artista que deixa de fazer sucesso, ele foi golpeado em seu
ego, foi atingido em sua arte. Enquanto entreteve os qomarians dentro do
padrão estabelecido no momento teve utilidade. Tão logo as coisas mudaram e
ele fora incapaz de acompanhar os novos ventos da indústria perdeu seu valor.

Uma lição que vem da utopia


Como mencionado antes, diversos tipos de música são apreciados pelos
personagens de Star Trek. Afinal, a Federação é grande e existem ainda
inúmeros outros povos fora dela que produzem arte. Nunca fica claro como
funciona exatamente a produção e distribuição de romances, filmes e música
nesse universo. Não se sabe nem se o cinema continua existindo. Trip Tucker,
de Enterprise, por exemplo, costuma organizar movies night para a tripulação,
onde todos assistem filmes do século 20 e comem pipoca. Uma explicação
possível para essa transformação na forma em que os humanos da utopia
consomem cultura está na estrutura econômica do século 24, que é pós-
capitalista.
O sistema econômico determina, em última instância, a maneira com que
uma sociedade vê a si mesma, como pensa, como se relaciona e, logicamente,
como consome os produtos culturais. Já não se trata de uma sociedade de
consumo de massa. Já não é uma sociedade onde as relações humanas são
mediadas por coisas, onde as mercadorias são a medida de tudo. Logo, se a TV,
o cinema e a música de uma cultura industrial/capitalista apresentam
determinadas formas, na sociedade pós-capitalista de Star Trek elas
obrigatoriamente devem apresentar outras. Portanto, não é possível
afirmarmos que formas estes bens culturais assumiriam em uma sociedade
comunista. Mas creio que é lícito imaginar que, por não existir mais a
exploração do homem pelo homem em busca de acumulação privada de
riqueza, tudo seria muito diferente.
Em primeiro lugar, o artista não seria sugado por uma indústria que o vê
apenas como uma fonte de lucro e relega sua sensibilidade e talento a segundo
plano. Assim como um operário não seria massacrado em sua saúde física e
mental para produzir o máximo de um produto que ele sequer pode usufruir.
Disso, decorre que o artista seria livre para criar, não lhe sendo imposta, como
foi ao Doutor, a violência de fazer um tipo de arte que lhe parece
completamente estranha.
Em segundo lugar, na sociedade capitalista a produção de cultura para as
massas obedece à mesma dialética da produção de qualquer outra coisa. O
objetivo é que o consumidor use, aproveite e descarte. Um ciclo infinito.
Evidentemente, que os produtos da indústria cultural apresentam
particularidades, mas é inegável que eles obedecem a esse ciclo também. O
próprio objeto desse livro é um produto da indústria cultural que embora
estimule a reflexão, também estimula o consumo, fazendo com que os fãs
vejam avidamente um episódio atrás do outro. Na época em que as séries
foram ao ar, o processo ainda era lento. Agora, em tempos de Netflix e outros
serviços de streaming, a engenharia dessas plataformas é pensada para que o
usuário consuma um episódio atrás do outro, terminando uma série
rapidamente e mais rapidamente ainda iniciando outra. Vivemos uma
extrapolação da indústria cultural, capaz de tornar consumidores em viciados.
Os qomarians se tornaram fanáticos pela novidade e a partir dela se abriu
uma Caixa de Pandora, de onde poderão sair quantos Doutores forem
necessários para aplacar a ânsia por coisas novas. É uma representação
perfeita da indústria cultural. Isso que o episódio é dos anos 1990 onde não
havia ainda todas as mídias sociais existentes hoje, muito menos a produção
em uma escala nunca vista de produtos culturais.
A carreira do Doutor foi meteórica. Assim que um novo produto apareceu,
ele precisou se retirar de cena. Os qomarians gostam da novidade. Nós
também. E nesse processo, artistas foram e continuam sendo engolidos e
desaparecendo no buraco negro de uma indústria que tem por objetivo
apresentar novidades rentáveis 24 horas por dia.
V
Enterprise: a série esquecível que sepultou
uma era

O fim melancólico de um ciclo


Star Trek: Enterprise foi a série que encerrou um ciclo de 18 anos ininterruptos
de produções da franquia no ar. Não foi pouca coisa. Entre o final dos anos 80
e o início do século 21 Star Trek esteve no ar. Na maior parte das vezes com
duas séries ao mesmo. Foi a era de ouro da franquia, que teria um final
melancólico em 2005. Coube a Enterprise finalizar esse período e, infelizmente,
não se pode dizer que ele foi fechado com chave de ouro. Pelo contrário,
Enterprise, por sua baixa qualidade, acabou inviabilizando Star Trek na TV
durante 12 anos, pois somente em 2017 voltaríamos a acompanhar uma série
baseada no universo criado por Gene Roddenberry.
Aliás, Enterprise parece ter sido criada para destruir a obra de Roddenberry.
Com todo o respeito aos fãs da série, isso precisa ser dito. Rick Berman e
Brannon Braga, seus criadores, parecem ter sido acometidos por algum tipo de
febre – ou quem sabe possuídos por alienígenas hostis a Star Trek – que os fez
cometer erros que qualquer pessoa com o mínimo de bom senso não
cometeria. Como se estivessem inconscientemente envergonhados, nem o
nome Star Trek e série carregava de início. Na primeira temporada se chamou
apenas Enterprise. Houve uma intenção de se criar alguns elementos que
aparentemente teriam impacto positivo sobre os fãs mas que se revelaram
absurdos sem sentido. O mais grave deles: uma Enterprise antes da Enterprise.
Qualquer pessoa um pouco mais informada e que conheça cinema, TV,
cultura pop em geral, ao ser questionada sobre Star Trek irá imediatamente
lembrar da nave estelar USS Enterprise. Isso é um fato. Faça o teste e você
verá. Portanto, a Enterprise é um dos grandes símbolos de Star Trek, ela
antecede a série. Ela chega antes (será por ter capacidade de dobra?). É um
ícone, que representa esse universo de maneira inequívoca. Gene Roddenberry
dizia que a heroína de toda e qualquer história de Jornada nas Estrelas sempre
seria a Enterprise. Eu não sou nenhum tipo trekker purista ou fundamentalista.
Sempre serei a favor da criatividade. Não considero Star Trek religião, com
dogmas absolutos. Porém, criar-se uma série centrada em uma nave Enterprise
que teria existido antes da Enterprise original? É uma ideia completamente
absurda, vinda de algum universo paralelo bizarro.
Vamos supor que a série fosse criada, com os mesmos personagens, com a
mesma premissa de primórdios da exploração espacial que acabou por dar
origem à Federação. Tudo bem, é uma ideia plenamente aceitável. Apesar de
que prequels sempre são problemáticas, pois criam planetas, raças e eventos
jamais mencionados nas outras séries. Estabelecidas as diretrizes da série
como as coloquei, existe realmente a necessidade de se nomear a nave como
Enterprise? É claro que não. Talvez a ideia da dupla Berman/Braga tenha sido
capturar os fãs mais saudosistas, colocando o nome da sua nave amada no
novo show. A nave poderia se chamar Faith of the Heart (entraremos nessa
questão da música também), poderia ter qualquer nome do universo, exceto
um. E foi justamente a exceção que foi escolhida.
Rick Berman é um homem importantíssimo na história de Star Trek e
muitos fãs esquecem isso às vezes. Frequentemente é tachado de machista e
homofóbico, por vulgarizar personagens femininas e desviar das questões de
gênero nas produções que tocou. Porém, ele esteve por trás de simplesmente
todas as séries de Star Trek ao longo dos 18 anos que mencionei. Goste-se ou
não dele, ele foi o homem no centro da era dourada de Star Trek. Berman foi o
braço direito de Roddenberry em The Next Generation. Com a morte desse,
assumiu o comando total. Foi o criador, juntamente com outro campeão de
Star Trek, Michael Piller, de Deep Space Nine, o ponto alto da franquia. Esteve
em Voyager também, como co-criador ao lado de Piller e Jeri Taylor.
Por fim, criou junto a Braga Enterprise. É totalmente perceptível que suas
forças criativas e executivas foram se exaurindo ao longo do ciclo, assim como
ocorre com qualquer processo, que tem seu início, seu auge e seu fim. The Next
Generation e Deep Space Nine foram os pontos altos do ciclo Berman. Voyager
iniciou a decadência, ainda discreta, que se tornaria altissonante como um
alerta vermelho em Enterprise.
Então, o currículo do homem é único, ninguém pode se equiparar. Porém,
carregará para sempre a memória da infâmia por ter criado esse monstrengo
chamado Enterprise. Se Q o colocasse em julgamento creio que seria absolvido.
O que não deve ocorrer com seu parceiro de crime.
Apesar disso, Brannon Braga é outro homem que prestou serviços
relevantes ao universo que amamos. Escreveu, entre mais de 20 roteiros para
The Next Generation o seu series finale All Good Things... em parceria com
Ronald D. Moore. Um dos momentos mais deliciosos de Star Trek. Mas
também escreveu episódios sofríveis como Sub Rosa (Nova Geração) e Threshold
(Voyager), aquele em que Janeway e Tom Paris se transformam em salamandras
do espaço e têm filhotinhos... Mas seu grande crime mesmo foi criar Enterprise,
pelo qual será julgado (e condenado, espero) eternamente.

Por que Enterprise é tão ruim?


Produzir uma série de televisão é algo extremamente complexo. Ponto. E mais
complexo ainda quando se trata de produzir um série de Star Trek, pois seus
fãs são extremamente chatos. Mas isso até certo ponto é bom, pois ao
consumirmos um produto da indústria cultural é salutar algum percentual de
crítica. As coisas ficam mais interessantes. Então, é evidente que respeito o
trabalho de quem faz a série, produtores, diretores, atores e todos os centenas
de profissionais envolvidos. Por outro lado, faz parte da fruição do produto
criticá-lo. E Star Trek: Enterprise, por ser a pior série de Star Trek já feita,
permite críticas para todos os lados.
A série é ruim em todos os quesitos. A única coisa legal é Porthos, o beagle
fofo do capitão Archer. Mas para ficar mais sucinto, vou me resumir a falar
sobre os mais graves.
Em primeiro lugar é preciso entendermos o contexto histórico no qual a
série surge. Ela estreia duas semanas depois dos atentados de 11 de setembro.
Toda a cultura estadunidense foi impactada por esses eventos. Não somente a
cultura, como a política, a economia e a sociedade. Se o império podia ser
atingido em seu coração isso significava que qualquer coisa podia acontecer. A
sensação de segurança, de um país que esteve envolvido em mais conflitos que
qualquer outro, mas que nunca sentiu o peso das bombas caindo sobre o seu
próprio território, se esvanecia completamente. O mundo mudou.
Principalmente para os ianques.
Em tempos como esses as vozes progressistas são silenciadas e entra em
vigor uma nova diretriz a ser seguida sem contestação: a doutrina da
segurança. Nos Estados Unidos, naquele momento, a opinião pública,
aterrorizada, passou a aceitar que até mesmo sua privacidade fosse violada em
nome da segurança nacional. Novos tempos, novas atitudes. Foi o que
aconteceu lá. O governo ridículo do republicano George Bush, com poucas
chances de reeleição, se tornou o líder do mundo civilizado contra os bárbaros
terroristas islâmicos. O conservadorismo cresceu exponencialmente. Para
manter a segurança, os falcões da Casa Branca se tornaram indispensáveis,
promovendo a guerra lá fora e aumentando o controle por dentro. É claro que
a indústria cultural estadunidense refletiu ideologicamente o processo em
curso.
Star Trek: Enterprise tornou-se assim uma série mais conservadora, exalando
essa ideologia que ganhava força. Não apresentou a coragem de suas
antecessoras, que haviam mostrado uma negra beijando um homem branco na
racista década de 60 nos Estados Unidos; não foi capaz de realizar a mais
tímida crítica ao capitalismo, como The Next Generation fez em mais de uma
ocasião; não teve forças para representar a defesa dos direitos dos
homossexuais, como Deep Space Nine fez. Mesmo Voyager, uma série que
apresenta menos crítica social que as outras foi muito mais competente nesse
sentido do que Enterprise. O conservadorismo, o reacionarismo e o capitalismo,
mais fortes que nunca no pós 11 de setembro, não encontraram sua crítica em
Enterprise.
É por isso que ela se trata da mais “americana” de todas as séries de Star
Trek. Não podemos ser ingênuos e pensar que as outras também não o são.
Isso é um truísmo, afinal elas são produzidas nos Estados Unidos, para um
público estadunidense. Porém, em todas as outras (Voyager menos),
percebemos a intenção de universalidade. Há, deliberadamente, a tentativa de
se fazer da Enterprise ou da estação lugares cosmopolitas, que representam os
interesses do ser humano, não de uma nação ou de um sistema econômico.
Enterprise falha miseravelmente nesse aspecto. Ela reflete valores médios
estadunidenses o tempo todo. Seja no boné do Archer, seja no caipira Trip.
Seja nos uniformes que bem poderiam ser da Nasa, seja na postura arrogante
do capitão, que lembra, como uma caricatura mal feita, o comandante de um
submarino dos Estados Unidos em um filme B qualquer.
Assim, a série se torna, sem concorrente no universo de Star Trek, a que
menos faz crítica social. A crítica, em tempos de 11 de setembro, não era bem
vista. Era preciso concordar. E mostrar os Estados Unidos no espaço, como
Enterprise faz, disfarçadamente, é a melhor maneira de concordar e celebrar a
nação do destiny manifest. O ataque dos Xindi à Terra foi a expressão exata do
11 de setembro, servindo para que os estadunidenses revivessem o terror de
serem golpeados em seu próprio território.
Descartando esses elementos que fizeram e fazem Star Trek grande e
assumindo o mais puro espírito estadunidense, Enterprise se torna vazia por
um lado e brega por outro. Essa breguice é eloquentemente representada na
série em sua abertura. Star Trek Enterprise foi a primeira série da franquia – e
única até agora ­– a apresentar um tema musical cantado em sua abertura. A
música, que tem na sua letra uma compilação de frases de autoajuda, fala na
“fé do coração”. Agrada o típico fã reaça, que, invariavelmente, gosta desse
tipo de música. Eu consigo imaginar a canção sendo tocada nas festas de ação
de graças dos ianques, que emocionados batem no peito, abraçam uns aos
outros, se enrolam na bandeira e choram. Choram bastante. A tripulação da
Enterprise certamente devia fazer isso às vezes. Eles tinham muita fé do
coração. Portanto, além de brega a série é piegas. Nada mais estiloso e
divertido que a série clássica, com suas cores heráldicas. Nada mais agradável
que os corredores da EnterpriseD e o seu holodeck. Não existe happy hour
melhor do que o do bar do Quark. Nada disso existe em Enterprise. Ela é brega,
piegas e entediante.
O último item importante a se mencionar diz respeito aos personagens da
série. São todos sem carisma e alguns até hoje estão tentando entender o que
estavam fazendo ali. O capitão Jonathan Archer (Scott Bakula) é filho de Henry
Archer, um dos engenheiros que trabalhou com Zefram Cochrane para
desenvolver um motor de dobra 5. Archer foi escoteiro na infância, não é
preciso dizer mais nada. Mas em sua defesa cabe lembrar que ele conseguiu a
paz entre andorianos e telaritas, espécies fundadoras da Federação. Portanto
Berman/Braga criaram essa fantasia, de que Archer foi um dos arquitetos da
Federação, alçando um personagem medíocre e unidimensional, que jamais
havia sido mencionado em quatro séries e dez filmes de Star Trek, à condição
de um símbolo como Zefram Cochrane.
Os vulcanos são amplamente descaracterizados em Enterprise. São exibidos
como manipuladores e mentirosos, crápulas que atrasam a vida dos humanos.
A personagem vulcana T’Pol (Jolene Blalock) é colocada na Enterprise para
fiscalizar a primeira missão humana em espaço profundo. Totalmente eye
candy, usa roupas justíssimas e aparece seminua com frequência, nas
masturbatórias sessões de descontaminação ao retornar para a nave.
Charles “Trip” Tucker (Connor Trinneer) é o caipira, o personagem que
agrada o sul dos Estados Unidos. Muito afável, muito simples, muito honesto
etc. e tal. É o engenheiro chefe da nave. Morre heroicamente no humilhante
series finale dado para a série.
Malcolm Reed (Dominic Keating), o cara das armas, com ligações com a
Seção 31, britânico, de família da marinha real... Meio fascista e sem
relevância.
Travis Mayweather (Anthony Montgomery). Tirando o fato de que nasceu
em um cargueiro espacial e passou a vida no espaço não há nada mais
interessante para falar do personagem.
Hoshi Sato (Linda Park). Oriental, mas estava no Brasil dando aulas quando
foi recrutada por Archer. Chora o tempo todo, tem medo, mulher frágil para
agradar os senhores de meia idade que assistem a série: oriental e delicada.
Um fetiche e tanto. Berman é um verme. Ah, é a especialista em línguas da
nave (opa).
Doutor Phlox (John Billingsley), o outro alienígena. É um denobulano.
Nunca ouvimos falar deles, mas Enterprise nos garante que estavam ali
fundando a Federação. É o médico da nave e gosta muito de aprender novas
fisiologias. É um personagem que se destaca mais que os outros, certamente.
E, claro, o cachorrinho Porthos, o melhor personagem de Star Trek:
Enterprise.
Enfim, em termos de personagens, a série é um fracasso e isso a torna um
fracasso total, pois como Michael Piller dizia, tudo gira em torno do
personagem. A trama é secundária. O que é importa é revelar o personagem.
Isso é impossível em Enterprise. Isso sem mencionarmos que é absolutamente
machista. T’Pol é a gostosa. Hoshi é o sexo frágil.
A série sepultou Star Trek, que renasceria quatro anos depois no cinema
com os filmes da Kelvin timeline e somente 12 anos depois em formato de série
com Discovery. Foi o fim da presença de Rick Berman e Brannon Braga em Star
Trek e algumas lições ficaram a partir desse fracasso. É uma série esquecível,
com personagens esquecíveis. Seus eventos, infelizmente considerados
cânones, deveriam ser esquecidos também. Tem como dar certo uma série de
Star Trek onde os personagens não usam teletransporte?
Esse capítulo é menor, pois existe menos material a ser analisado dentro da
perspectiva desse livro em Enterprise. Trato sobre o episódio The Breach, que
mostra uma situação de ódio secular entre povos. Abordo o episódio duplo
Demons/Terra Prime, que discute o problema da xenofobia. Por fim, trato do
episódio Cogenitor, uma curiosa metáfora sobre gênero e escravidão.
1
THE BREACH

A naturalização do que é histórico gera o ódio

Amadurecemos desde a última guerra, mas ainda há denobulanos que temem os antarianos.
Dr. Phlox

Duas tramas
The Breach é um episódio que apresenta um formato clássico em Star Trek,
com duas tramas paralelas, uma principal e outra secundária. Na primeira,
acompanhamos o dilema do Dr. Phlox em tratar um paciente mesmo contra
sua vontade. Para o velho médico denobulano, ao contrário do juramento de
Hipócrates que vigora entre seus colegas humanos, a autorização do paciente,
mesmo que corra risco de morte, é fundamental para que o tratamento seja
fornecido. No caso apresentado, Phlox se depara com um paciente antariano,
raça que possui um ódio profundamente arraigado pelos denobulanos devido a
guerras entre as duas espécies ocorridas há mais de 300 anos. Logo, o
antariano se recusa a ser atendido por um médico pertencente a uma raça que
despreza, e mais que isso, que o atemoriza.
No enredo paralelo, uma entediante historinha de resgate protagonizada
pelo trio Trip, Travis e Malcolm. Em um planeta que acaba de passar por um
golpe militar que promove a expulsão de todos os alienígenas, um grupo de
pesquisadores denobulanos desaparece em uma rede de cavernas com mais de
50 quilômetros de extensão. O novo governo deu um prazo de três dias para
que todos que não sejam nativos saiam do planeta, o que torna o resgate mais
dramático, pois se trata de uma corrida contra o tempo. O que se segue são
intermináveis cenas dos personagens descendo as paredes da caverna em
busca dos cientistas, em uma história que leva de nada a lugar nenhum. A não
ser ao velho clichê do estadunidense típico como Trip falando grosso no
melhor estilo “irei salvá-lo nem que pra isso precise chutar a sua bunda”. No
fim, os cientistas são salvos e terão que compartilhar o transporte de volta
para casa com o antariano. As duas raças terão que conviver.
Enquanto Archer ajuda Phlox ao mesmo tempo descobre que os
denobulanos foram uma raça genocida no passado, capaz de exterminar 20
milhões de antarianos, fato que levou o ódio dessa espécie pela outra que
perdura há mais de três séculos.

Ódio de geração em geração


Para conseguir tratar seu paciente, Phlox tem que passar por cima de seus
preconceitos. Embora o doutor já faça parte de uma geração que abandonou
em certa medida o ódio pelos antarianos, é evidente que alguns traços de
preconceito ainda persistem em sua mente. No entanto, ele se demonstra
muito mais aberto a tratar o paciente do que este a receber o tratamento. Fica
claro que o antariano sente mais ódio que o doutor.
Em um diálogo importante, o antariano pergunta se o doutor tem filhos.
Quer saber se ele continuou reproduzindo a dinâmica ancestral denobulana de
ensinar às crianças a odiar os antarianos. Diga-se de passagem que a prática
ocorre entre esses da mesma forma. Portanto, assim conseguimos
compreender as razões que permitem o ódio continuar vivo mesmo tantos
séculos depois de terminado o último conflito. Antarianos temem os
denobulanos pelas atrocidades que estes cometeram durante a guerra.
Denobulanos sentem medo dos antarianos pois estes os odeiam. É um círculo
vicioso onde é possível determinar que ódio e medo possuem uma relação
íntima. Uma das reações possíveis, e comuns, ao medo é o ódio. E ele funciona
como o motor para mais medo que gera mais ódio. O ciclo precisa ser
rompido. Mas como?
A única forma de acabar com essa linha infinita onde medo e ódio se
sucedem e se inter-relacionam é quebrar a transmissão da ideia que sustenta o
conflito. É necessário ensinar às crianças, denobulanas e antarianas, que
embora diferentes, as duas espécies não precisam ser inimigas. Muito pelo
contrário, é com a diferença que se pode enriquecer, que se pode aprender e
evoluir. É curioso que mesmo sendo uma raça com muitos cientistas, que se
orgulha da sua Academia de Ciências, os denobulanos possam apresentar esse
comportamento que condena a priori. No entanto, na história terrestre
existem antecedentes, como os oficiais nazistas, que em grande parte eram
amantes da arte e doutores. É uma prova de que a irracionalidade pode atuar
até mesmo em mentes supostamente racionais.
A única forma para que os dois povos possam coexistir sem medo, sem
ódio, é através de uma nova educação, formal e familiar, que esclareça as
principais questões entre eles: a guerra; os crimes de guerra; a não
naturalização do que é histórico.

Naturalizar o histórico
O grande erro abordado pelo episódio é tomar como natural aquilo que é fruto
de acontecimentos e processos históricos. Ao longo dos séculos houve grandes
guerras entre as duas raças, o que enseja grandes traumas de ambos os lados.
Nesses conflitos, que mataram milhões de pessoas, principalmente do lado
antariano, foram cometidos graves crimes de guerra, ao que o episódio faz
referência ao nazismo. Os cientistas e médicos denobulanos utilizaram
cobaias antarianas para todo tipo de experimento, o que sem dúvida marcou a
história desse povo, que se viu ultrajado e reduzido a mero instrumento
inanimado ao qual se poderia praticar qualquer ato.
É mais ou menos o que os judeus sentem até os dias de hoje em relação aos
nazistas, que os rebaixaram ao nível de sub-humanidade, quando não de
insetos e pragas, como discutido nos capítulos anteriores. Portanto, essas são
feridas que ficam abertas durante muito tempo e que, na verdade, nem podem
ser fechadas, para que fiquem ali sempre relembrando a história. O que não
pode acontecer é se pegar a história e torná-la uma ferramenta contra um
determinado povo que cometeu crimes no passado. Em relação aos alemães
não surgiu esse tipo de preconceito, pois as narrativas historiográficas oficiais,
eurocêntricas, não permitiram. Acertadamente, os crimes foram imputados
aos nazistas, ou seja, apenas uma parcela dos alemães. Os crimes contra os
judeus na Segunda Guerra Mundial não foram naturalizados, como se fossem
algo inerente a uma “alma alemã”, por exemplo. Eles foram e são encarados
como surgidos a partir de um determinado e específico contexto histórico.
Pois o erro dos denobulanos e antarianos é justamente ignorar isso. Eles
atribuem uns aos outros características naturais que seriam responsáveis pela
sua monstruosidade. Na verdade, tudo o que aconteceu entre ambos teve
origem na história. Teve origem em contextos políticos, sociais, ideológicos,
que determinaram a ação das duas raças uma contra a outra.
Por isso a questão dos filhos assume centralidade no episódio. O doutor
Phlox explica que possui cinco filhos. E que mesmo tendo ouvido histórias
terríveis sobre os antarianos da sua avó, que o faziam ter pesadelos à noite, ele
não as repassou para suas crianças. Dessa forma, ajudou a formar uma nova
geração de denobulanos livres dos preconceitos e ódios do passado. A
revolução deve vir do futuro e não do que já passou. A opressão exercida sobre
nossa compreensão de mundo por antigas tradições deve ser encarada
criticamente para que possamos transmitir as novas gerações não sinais do
passado mas indicações para o futuro. Phlox faz isso, e muito bem. Mesmo
assim, um dos seus filhos, Mettus, acabou sendo influenciado por denobulanos
que continuam presos ao ódio pelos antarianos e seguiu na trilha do passado.
Pai e filho acabam rompendo, deixando de se falar por pelo menos dez anos.
No entanto, a experiência de tratar o antariano e conseguir fazer esse perceber
que ambos podiam conviver e que o ódio devia ficar para trás, o faz entrar em
contato novamente com o filho, mesmo sem certeza de resposta. Esse
fenômeno, de jovens que não visam o futuro e de apegam ao passado, tem
acontecido com frequência nesses dias onde a extrema-direita avança pelo
mundo. É preciso que fiquemos atentos.
Outro acontecimento histórico humano que deixou marcas de ódio em dois
povos foi o genocídio armênio executado pelo Império Otomano no contexto
da Primeira Guerra Mundial. Foi uma tentativa de limpeza étnica na qual
milhões de indivíduos do sexo masculino foram executados. As mulheres e
crianças foram deportadas e obrigadas a viver em países que não o seu. Entre o
povo armênio essa memória ainda é muito viva. Já no país sucessor do Império
Otomano, a Turquia, o Estado não reconhece que tenha acontecido o
genocídio, fato que não contribui para a superação da animosidade entre os
dois povos.
Um outro aspecto levantado pelo episódio diz respeito aos sucessivos
golpes de Estado que ocorrem em muitos países tendo como saldo o
extermínio de minorias, como ocorreu nos anos 1990 nas Guerras da Bósnia e
da Iugoslávia.
Como conclusão, é possível destacarmos dois itens principais. O primeiro
deles diz respeito à demonização dos inimigos. É preciso sempre considerar o
contexto histórico. Em quantos momentos inimigos já foram amigos e vice-
versa? Portanto, ao se atribuir características demoníacas a um país ou
determinado grupo de pessoas, ou até mesmo a partidos políticos, movimentos
populares etc. se está entrando em uma seara muito perigosa, que já levou a
genocídios.
Em segundo lugar, devemos saber que esse risco está sempre presente. O
fascismo, que é a melhor expressão do ódio que naturaliza aspectos do seu
objeto de combate, está vivo e mostrando os dentes. O fascismo explora o
medo das pessoas pois sabe que esse é o melhor caminho para despertar o
ódio. Hoje em dia, o fascista ataca mulheres, homossexuais, negros,
imigrantes, todos aqueles que não se enquadram em sua restrita e tacanha
visão do que seria o homem.
Sabendo desses dois aspectos é que poderemos agir como o Doutor Phlox,
que conseguiu se libertar da visão naturalista do outro ao mesmo tempo em
que colocou na prática a sua visão de mundo progressista. É tarefa de cada um
de nós, sobretudo nesses tempos que parecem cada vez mais envoltos em
trevas, trabalhar ativamente por uma cultura de igualdade e de liberdade.
Afinal, nunca será livre quem oprime o outro.
2
COGENITOR

Gênero e escravidão

A mulher se viu degradada, transformada em serviçal, em escrava da luxúria do homem, em um


simples instrumento de reprodução.
Friedrich Engels

Um gênero oprimido
Cogenitor é um episódio que não prima pelo ineditismo temático dentro do
universo de Star Trek. Embora interessante, a história remete imediatamente a
The Outcast, episódio da Nova Geração já tratado nesse livro. Basicamente,
Cogenitor apresenta uma história de opressão de gênero, portanto, situação
semelhante à vista no caso dos j’naii de The Next Generation. A diferença está
no fato de que a opressão entre os vissianos, espécie apresentada em
Enterprise, é mais brutal do que a vista entre os j’naii e permite uma relação
com a condição da mulher sob o patriarcado.
Outra semelhança entre os episódios está na atitude de dois personagens
em relação aos indivíduos oprimidos. O papel que coube a Riker, na defesa de
Soren, aqui é exercido por Trip que ao conhecer o “Cogenitor”, que nem nome
possui, vai se tornando pouco a pouco revoltado com a injustiça pela qual esse
passa.
Entre os vissianos existem três gêneros. Os habituais masculino e feminino
e um terceiro, que serve unicamente para auxiliar na concepção dos filhos dos
casais. É a esse indivíduo que se chama Cogenitor. No primeiro contato que
Trip tem com um deles tenta cumprimentá-lo, que não retribui o
cumprimento. A mulher vissiana lhe explica que ele não tem nome e que só
está ali pois o casal pretende ter filhos. O Cogenitor fornece uma enzima que
facilita o processo de reprodução. Realmente, uma raça com três sexos não é
para principiantes.
Trip se torna bastante curioso a respeito dos três gêneros dos vissianos e do
papel do Cogenitor. Descobre que eles são tratados como animais domésticos,
sem direito a estudar, por exemplo. São apenas instrumentos utilizados no
processo de fecundação do casal e tão logo o objetivo seja atingido são
repassados para outros vissianos que estejam planejando ter filhos. Na verdade
os cogenitores recebem tratamento inferior ao dado aos animais. Porthos ao
menos tem um nome.
Trip fica ainda mais impressionado com a situação do Cogenitor ao
descobrir que ele/ela possui a mesma inteligência que o macho ou a fêmea da
raça vissiana. A opressão se torna cada vez mais evidente. Entre os vissianos,
existe uma parcela da população que não priva dos mesmos direitos dos outros
e vive uma vida de escravidão.

Trip entra em ação


Decidido a fazer algo pelo Cogenitor, Trip encontra uma forma de visitar os
aposentos do casal e contatá-lo. Leva um padd a tiracolo para que possa
ensiná-lo a ler. A cena é absolutamente falsa e não convence ninguém, mas o
que importa é que em meio à opressão alguém resolveu agir e levar cultura
para o escravo. É semelhante aos voluntários que atuavam como professores
para os negros que conseguiam fugir da escravidão no século 19. A princípio o
Cogenitor sente medo, condicionado por uma tradição que o transforma em
mero objeto. No entanto, consegue perceber as motivações de Trip
(lembremos que é um ser bastante inteligente) e permite que esse o ensine a
ler.
O Cogenitor evolui rapidamente na leitura e Trip passa a agir como um
coach, o motivando, dizendo que pode estudar o que quiser, nadar no oceano,
escalar montanhas etc. Ou seja, tudo que os vissianos “normais” podem fazer
seriam direitos garantidos aos cogenitores. Trip está prestes a iniciar uma
revolução entre os cogenitores.
Como um bom professor, Trip leva o Cogenitor para conhecer a Enterprise,
mostrando o teletransporte, o motor de dobra, os corredores. Mas o ponto alto
é quando Trip faz o Cogenitor, que agora se autodenominou Charles, em
homenagem aos seu novo “tutor”, assistir ao filme “O Dia em que a Terra
Parou”, clássico da ficção científica dos anos 1950. Charles fica fascinado e
questiona Trip sobre as razões pelas quais os humanos temiam Klaatu. Trip
explica que no passado a humanidade era violenta e temia o desconhecido. Ah,
a utopia...
Ao desenvolver-se culturalmente, Charles se torna consciente da situação
de escravidão na qual se encontra e pede asilo. O conflito está formado. O
casal não abre mão de seu Cogenitor, o qual esperou muito tempo. O capitão
vissiano, que formou uma ótima amizade com Archer oferece tempo para que
a questão seja resolvida. Porém, Archer não concorda com a interferência de
Trip naquela cultura e devolve Charles aos vissianos. Após a partida desses
chega a notícia de que Charles se suicidou. Conhecendo o conceito de
liberdade preferiu a morte do que se submeter aos desejos dos machos e
fêmeas vissianos.

O Cogenitor é a mulher
A grande derrota histórica do sexo feminino, segundo Engels, ocorreu quando
o direito materno deixou de existir. Isso aconteceu no momento em que a
propriedade privada emergiu, havendo a necessidade de se determinar
claramente de qual homem os filhos eram. Assim, a mulher foi reduzida a uma
escrava doméstica, com a função estrita de fornecer sexo, parir, criar os filhos
e cuidar do lar.
Nesse episódio o Cogenitor apresenta muitas semelhanças com o papel
reservado às mulheres na história. É uma pessoa que fica restrita ao lar e,
comportando-se bem, como é dito no episódio, pode desfrutar de algumas
migalhas a mais, como ficar em outros cômodos da casa. Não tem direito nem
de cumprimentar os visitantes. Somente com a autorização do casal. Quando
Trip pede para vê-la, a mulher vissiana concorda apenas por se tratar de uma
suposta curiosidade de uma espécie que tem só dois gêneros.
Portanto, é possível ver que o casal vissiano corresponde ao homem na
sociedade patriarcal. Nessa, é o homem que determina o comportamento da
mulher, assim como os vissianos controlam rigidamente o comportamento do
Cogenitor.
Os estudos são vedados a esse. Para que estudar se sua única função na
sociedade é ajudar na reprodução dos casais? A lógica se aplica às mulheres ao
longo da história: elas não precisam conhecer o mundo nem aprender nada
que não sirva para as lides domésticas. Por que uma mulher deveria aprender a
ler? Por que uma mulher teria o direito a votar? Essas questões eram feitas
com seriedade até bem pouco tempo atrás e ainda são colocadas em diversas
sociedades. E mesmo que, aparentemente, tenham sido superadas em nosso
meio atualmente, elas estão sempre à espreita, sobretudo na esfera religiosa,
que considera os textos bíblicos como guias adequados para o mundo atual.
Embora os vissianos se apresentem como uma civilização extremamente
desenvolvida tecnologicamente, sua sociedade apresenta um nível de barbárie
social impressionante. Barbárie que foi contestada por Trip e que resultou no
trágico suicídio de Charles. Quantas mulheres ao longo da história preferiram
a morte a viver uma vida de escravidão? Essa é uma das importantes reflexões
que o episódio coloca.
3
DEMONS/TERRA PRIME

Xenofobia na pré-história da Federação

A Enterprise foi chamada para casa para o que poderá ser um momento crucial na história humana.
Archer

Se uma vulcana e um humano decidirem ter um filho, provavelmente daria certo. E isso é
reconfortante.
Tucker

União ou isolacionismo?
Demons e Terra Prime são, respectivamente, o antepenúltimo e o penúltimo
episódios de Star Trek Enterprise. O último, portanto o series finale, será o
polêmico These are the voyages..., que na verdade mostra os personagens como
parte de um programa de holodeck do comandante William Riker, que estava
acompanhando o surgimento da Federação. Como se fosse um programa
interativo de história da Terra. Por isso, muita gente acha que os dois
episódios sobre os quais trato nessa seção deveriam ter sido os últimos da
série, que teria sido encerrada com um pouco mais de dignidade. Mas se serve
de consolo, eles são, de fato, os dois últimos nos quais Archer e sua tripulação
aparecem como eles mesmos e não meras simulações holográficas.
A Enterprise do capitão Archer, em suas viagens pioneiras pela galáxia,
conquistou uma série de inimigos. Os mais perigosos deles foram os Xindi,
uma civilização composta por cinco raças diferentes, hostis aos humanos. No
contexto do 11 de setembro, conforme mencionado na introdução, os Xindi
realizam um ataque devastador à Terra, fato que desperta fortes sentimentos
xenofóbicos na população terráquea.
Dessa forma, Enterprise acaba lidando com duas perspectivas políticas
opostas e excludentes. Em uma delas, há a intenção de se estreitar os laços
com todas as raças que sejam contadas e se demonstrem abertas a tal ideia.
Para isso, é fundamental a criação de uma Federação de planetas, que possa
acolher estes povos e deliberar em harmonia. É o embrião da Federação Unida
de Planetas e da utopia que vemos em todas as séries da franquia e da qual
tratamos nesse livro.
No lado contrário, existem aqueles que, impactados pela agressão Xindi,
tendem a se fechar, considerando o espaço, em vez de uma possibilidade para a
paz, fonte de terror. Assim, se organizam grupos xenofóbicos e terroristas,
como o Terra Prime, que lutam pela implantação do isolacionismo na Terra.
Portanto, no fim da série e no início da Federação os fatos se desenrolam de
maneira muito tensa. Quem pensava que a Federação havia sido um simples
desdobramento da evolução social, econômica e, logicamente, política humana
não poderia estar mais enganado. A Federação nasce sobre um perigoso
conflito doméstico.

Spock não foi o primeiro vulcano-humano?


Não, Spock não foi o primeiro a nascer fruto de uma união entre vulcanos e
humanos. Antes de entrarmos na questão vale fazer a crítica desse fato.
Berman e Braga, não satisfeitos em inventar uma Enterprise antes da
Enterprise (o maior sacrilégio já cometido contra Star Trek) precisavam
destruir ainda um pouco mais a criação de Gene Roddenberry. Se Gene criou a
Enterprise, criaremos uma anterior. Se Gene criou Spock, faremos um
vulcano-humano que o precedeu. Parece um tipo de vingança. Mas a história
julgará (e já julgou creio eu) ambos por promoveram o sepultamento de Star
Trek a partir de suas ideias estapafúrdias.
Dito isso, sigamos. No episódio vem à tona que T’Pol e Tucker tiveram uma
filha. Mas como T’Pol nunca esteve grávida o mistério perturba todos a bordo
a Enterprise. A verdade é que o líder do grupo Terra Prime, John Frederick
Paxton (Peter Weller, o RoboCop original), proprietário de um campo de
mineração lunar, conseguiu criar a partir do DNA de Tucker e T’Pol uma
criança. Seu objetivo é apresentá-la como uma monstruosidade resultante do
contato entre espécies. Assim, Paxton apela para sentimentos e ideais racistas,
que ainda nos dias de hoje combatem a ideia de que pessoas de etnias
diferentes possam se relacionar ou devam ter filhos. É uma ideia que remete à
eugenia, que considerava aqueles que não fossem “puros” como uma
degeneração da espécie humana. Na verdade isso é um mito, que atende a
interesses políticos de dominação, pois cada ser humano carrega traços
genéticos de diferentes etnias.
A questão é que Paxton se autoproclama humanocêntrico. Com isso, quer
dizer que a Terra deve ser para os humanos (algo como América para os
americanos), sendo preciso repelir toda e qualquer forma de vida alienígena
que venha viver entre nós. Para atingir seu objetivo é capaz de tomar as
medidas mais radicais e violentas. Da mesma forma que ocorre com grupos
supremacistas e xenofóbicos, que não hesitam em recorrer ao terrorismo e à
morte de inocentes em defesa de suas causas alucinadas.

Terra Prime
Na Lua, onde fica a estação mineradora de Paxton, funciona o quartel general
da organização Terra Prime. Lá acontecem reuniões de doutrinação entre
membros e simpatizantes, que debatem os supostos males da chegada dos
alienígenas. O fato que fez recrudescer o ímpeto do xenófobos foi o ataque
Xindi, que matou 7 milhões de pessoas. Diversas questões são colocadas em
pauta: o risco dos seres humanos se tornarem cidadãos de segunda classe em
seu próprio planeta; a hipótese da raça humana ser extinta, devido à
miscigenação ou então ataques alienígenas; e a quantidade de alienígenas
legais e sobretudo ilegais no planeta.
São temas impressionantes dada a conexão que eles possuem com a
realidade e principalmente com os Estados Unidos naquele momento. Como
dito, o 11 de setembro era muito recente e o governo estadunidense havia
colocado em marcha a sua infame “guerra ao terror”, que lhe permitia vigiar
seus próprios cidadãos, prender e torturar indefinidamente supostos
“terroristas” e assassinar a seu bel-prazer árabes no Oriente Médio. A
mensagem de que ataques (como os do Xindi ou da Al-Qaeda) acabam sendo
considerados como ataques oriundos de todo um grupo social é eloquente. O
11 de setembro multiplicou exponencialmente a hostilidade em relação aos
muçulmanos, assim como o ataque Xindi inflamou a xenofobia entre muitos
humanos.
Outra questão muito presente é a dos imigrantes, sobretudo hispânicos, nos
Estados Unidos. Quando os personagens falam em um número inaceitável de
alienígenas no planeta a conexão que devemos fazer é essa. E o problema
maior visto, tanto pelos xenófobos da ficção quanto da realidade é que essa
“invasão” pode acarretar o fim da sua cultura. O que esquecem é que toda
cultura é híbrida, como já esclareceu o historiador Peter Burke. Toda cultura é
feita de contatos com outras culturas que tiveram outros contatos com outras
culturas e assim sucessivamente até o início dos tempos. Portanto, quem
reclama para si uma pureza tanto étnica quanto cultural está equivocado
duplamente. O processo histórico normal é esse, mistura de “raças”, mistura
de culturas. Vale destacar que a escolha do elenco de figurantes foi muito
significativa para o que estava acontecendo. São pessoas de todos os tipos,
negros, brancos, orientais. Os velhos preconceitos foram superados e
suplantados por novos. O racismo humano se tornou racismo contra aliens.
Além disso, podemos lembrar ainda da questão dos refugiados na Europa
nos dias atuais. A Europa colonizou o mundo todo. Quando havia excesso de
população e fome, despachou milhões e milhões de seus filhos para os quatro
cantos do globo terrestre. Hoje, com as crises humanitárias pelas quais
diversos povos passam (povos que foram explorados pelos europeus, países que
foram suas colônias), milhões de seres humanos buscam refúgio. Buscam o
básico: água, comida, trabalho. Eis que as portas da velha Europa se fecham,
como se não tivesse nada a ver com isso. E assim a xenofobia vai crescendo,
pois existe forte propaganda contra os imigrantes, considerados inferiores e
bárbaros, que podem destruir a cultura europeia.
Da mesma forma que muitos racistas/xenófobos, Paxton é um grande
hipócrita. T’Pol descobre que ele é portador da Síndrome de Taggart. Quem a
possui morre por volta dos 20 anos, porém Paxton tem muito mais do que isso
e continua vivo. Logo, ele só obteve essa enorme sobrevida por se tratar com
genes rigelianos. Ou seja, ele é contra os alienígenas, mas se beneficia deles,
deve sua vida a eles. “O que o mantém vivo é justamente o que você diz para os
humanos evitar”, lhe diz T’Pol.
Paxton monta um plano para eliminar aquilo que considera uma ameaça
alienígena na Terra. Ele se apodera de uma arma instalada em Marte e a
aponta para o prédio onde as conferências preparatórias para a fundação da
Federação estão ocorrendo, dando o prazo de uma hora para que todos os
alienígenas saiam do sistema solar. Vulcanos, andorianos e telaritas, os povos
fundadores da Federação junto com os humanos ficam apreensivos. Estão cara
a cara com o pior que a humanidade pode apresentar. De fato, Paxton
representa um risco real para que o sonho de união das espécies da galáxia
tenha início.
Evidentemente, nossos heróis conseguem evitar a tempo a destruição
prometida por Paxton. Mas o estrago psicológico fora feito nos aliens. Além de
terem ficado frente a frente com as intenções do grupo extremistas Terra
Prime, eles perceberam que essas ideias circulavam também entre a população
comum. Parace que uma simples faísca pode inflamar a fogueira da xenofobia.
O fascismo está sempre por aí, sobretudo nas sociedades opressoras. Devemos
lembrar que, no século 22 de Archer, a humanidade ainda é muito mais
parecida conosco do que com Picard. Até as roupas são parecidas, com os
homens usando gravata, um sinal discreto colocado pelos produtores sobre as
semelhanças ainda existentes. Portanto, não é preciso muito para que o
rastilho de pólvora do racismo corra rápido e exploda o barril da xenofobia.
Basta um animador eloquente e persuasivo como Paxton.

Archer e Elizabeth
Com as relações entre humanos e as outras espécies profundamente
estremecidas, com desconfianças justificadas por parte delas, é necessário
fazer algo, para que os trabalhos para a construção da utopia não sejam
encerrados. É preciso que as conferências sejam retomadas. O ser humano já
foi tão longe, sonhou com esse momento durante século, não é possível aceitar
passivamente que o sonho se desvaneça dessa maneira.
Os delegados são reunidos e todo o tema de que ali se estava construindo o
futuro e retomado. É importante mostrar para eles que os “demônios”
humanos existem sim, mas já não são eles que governam a história. Por isso, é
pedido um voto de confiança a vulcanos, telaritas, andorianos, denobulanos e
outras espécies participantes. “Venham, vocês não irão se arrepender” é o que
a humanidade lhes diz agora de mãos estendidas.
Nesse tentativa de formação de uma “Coalização de Planetas”, nome
primitivo da Federação, um dos líderes da Terra Unida, Nathan Samuels sabe
que somente a união faz a força, para utilizarmos a expressão popular. Ao
contrário de Paxton que viu na ameaça Xindi uma razão para se fechar,
Samuels pensa em perspectiva oposta. Para ele, esse tipo de ataque reforça a
ideia de que a humanidade deve se coligar a outras espécies, para sua própria
proteção.
Mas é Archer que fará o discurso mais convincente para os aliens. Ele dirá
que durante muito tempo a humanidade esteve sozinha sonhando com as
estrelas. Foi esse sonho que a levou a tentar conhecê-las e como consequência
descobrir que a galáxia era habitada por tantas outras espécies com interesses
em comum. Essa oportunidade não pode ser desperdiçada. É quase um
imposição histórica que essas espécies se unam e busquem o bem em comum.
O embaixador vulcano – logo ele, sempre desconfiado em relação aos humanos
– o aplaude de pé, seguido por todos os outros delegados presentes. Era o
primeiro passo de uma vida longa e próspera dessa união de planetas. Uma
história que terminava feliz e iniciava outra que poderia ser melhor ainda.
Do outro lado, Elizabeth, a filha de T’Pol e Tucker, infelizmente não
resistiu e faleceu. Houve uma falha no processo da tecnologia de engenharia
genética que a criou, tornando os genes humanos e vulcanos incompatíveis.
Uma dor incomensurável para os pais. Os dois lados da vida. De um lado uma
nova vida surgia na forma de uma organização positiva. Do outro, a vida de
uma criança deixava de existir. Na cena final do episódio, certamente uma das
mais emocionantes e doloridas de toda a série, T’Pol e Tucker ficam de mãos
dadas. Ele revela para a vulcana que ainda seria possível humanos e vulcanos
terem filhos. É claro que Spock nos vem à mente.
VI
Discovery: a Renascença de Star Trek

Ainda é cedo para falarmos de maneira mais aprofundada em relação à Star


Trek: Discovery como busquei fazer ao longo desse livro ao tratar das séries que
a precederam. Há uma completa assimetria que inviabiliza dar à Discovery o
mesmo tratamento dado às outras. Enquanto, em média, cada uma das séries
de Star Trek entre a original e Enterprise possui 25 episódios por temporada,
Discovery tem 15 na primeira e 14 na segunda. Portanto, em duas temporadas a
série equivale a uma das outras. Também é preciso considerar que a série
clássica teve três temporadas e seis filmes; The Next Generation, sete
temporada e quatro filmes; Deep Space Nine e Voyager sete temporadas cada
uma; por fim Enterprise, com quatro temporadas. Dessa forma, nesse capítulo
final abordarei a série de maneira geral, embora com destaque para dois
episódios, um de cada temporada.
Star Trek: Discovery é fruto direto do renascimento de Star Trek iniciado a
partir de 2009. Depois da quase morte da franquia com o cancelamento de Star
Trek: Enterprise, os fãs passaram quatro anos sem nenhuma novidade. Em 2009,
entretanto, foi lançado o filme Star Trek, contendo o universo reimaginado da
franquia pelas mãos do diretor J.J. Abrams. Polêmicas à parte, que dividem os
trekkers até hoje sobre a qualidade do chamado reboot de Star Trek, a verdade é
que os novos filmes (são três até agora) possibilitaram o ressurgimento de Star
Trek como um produto da indústria cultural altamente rentável e, ao mesmo
tempo, o aumento da base de fãs, sobretudo entre os mais jovens.
Pois então precisamos reconhecer que devemos muito à chamada Kelvin
timeline, a linha de tempo alternativa na qual se passam as histórias do
chamado jjverse de Star Trek. Foi devido ao sucesso desses filmes que os
executivos da Paramount e da CBS despertaram para a joia que possuem em
suas mãos e que se encontrava subaproveitada. Star Trek é uma franquia que
pode ser tão grande quanto a Marvel, por exemplo. O fato é que Discovery não
existiria se a partir de 2009 Star Trek não tivesse voltado à vida. Portanto,
Michael Burnham e a USS Discovery fazem parte de uma segunda fase dessa
verdadeira renascença na qual Star Trek se encontra nesse momento. Novos
produtos vêm aí, com destaque para Star Trek: Picard, que trará de volta um dos
personagens mais amados de Jornada nas Estrelas. É ou não é uma nova e
fascinante era para os trekkers?
Criada por Bryan Fuller, um roteirista veterano de Deep Space Nine e
Voyager, Star Trek: Discovery é uma série com características contemporâneas,
possuindo uma estrutura narrativa semelhante à dos grandes sucessos da
nossa época, como The Walking Dead, Game of Thrones e Breaking Bad. Não
podemos afirmar que a série faz a boa e velha crítica social que é essencial em
Star Trek. Porém não podemos dizer também que se trate de uma série ruim
como Enterprise. Pelo contrário, Discovery é uma excelente série. Combina
magistralmente ótimas histórias, ótimos personagens, drama, ação, humor e
efeitos especiais de tirar o fôlego. Um dos aspectos que a notabilizam é o fato
de que cada temporada conta uma única história, como se fosse um livro
dividido em vários capítulos. É um formato que radicaliza a serialização de
Deep Space Nine, por exemplo, e que torna Discovery bastante diferente do que
estávamos acostumados a ver no universo de Star Trek. E isso é muito legal.
É claro que a série também atraiu muito ódio. Infelizmente, o fandom de
Star Trek está repleto de fascistas. O fato da protagonista ser uma mulher
negra incomodou essa parcela de imbecis. Existir um casal de homossexuais e
ter exibido dois beijos entre os dois também atiçou o ódio dos homofóbicos.
Mesmo que não possuísse outras qualidades, o simples fato de detonar o
racismo, a misoginia e a homofobia de idiotas que se dizem trekkers já teria
valido a pena.
A primeira temporada de Discovery, em última análise, se trata de uma
jornada de redenção de uma personagem. Mas se trata também de um sinal de
alerta sobre a escalada do fascismo nos tempos correntes.
Na história, a primeira oficial da USS Shenzou Michael Burnham (Sonequa
Martin-Green) se amotina e acaba contribuindo para o início de uma
sangrenta guerra entre a Federação e os klingons. Com isso, ela perde tudo.
Seu posto, sua capitã e amiga, o respeito de seus colegas. Por outro lado,
carrega a culpa da morte de milhares de pessoas no conflito e resigna-se com a
pena de prisão perpétua imposta a si. Ao término da jornada, não sem passar
por momentos graves e delicados, Burnham reconquista o respeito dos
cidadãos da Federação ao conseguir, de maneira brilhante, o término da
guerra.
Nesse meio tempo, a Federação, em desespero, em busca de resguardar sua
própria existência, colocada em risco pela chegada iminente dos klingons ao
planeta Terra, passa a cogitar soluções que contrariam os princípios que a
tornaram grande.
Sabemos que os preceitos básicos da Federação são o respeito a todas as
formas de vida, a política de não-interferência em outras culturas, a solução
pacífica e diplomática de conflitos, a busca pelo conhecimento.
Parece que naquele momento em especial esses valores pétreos foram
diluídos, em função do medo. Assim, a Federação abraça soluções fascistas em
busca de um retorno aos tempos de segurança. É como Brecht falava: não
existe nada mais parecido com um fascista que um burguês assustado. Essa
máxima aplica-se perfeitamente ao caso. Em nome da preservação de um
modo de vida, aqueles que o ameaçam podem ser, inclusive, vítimas de
genocídio, como a Federação chegou a preparar em relação aos klingons.
Por sorte, Burnham consegue fazer com que os tomadores de decisão sejam
chamados à razão, que possam perceber que sempre haverá uma saída que não
envolva o extermínio total de um adversário. E assim Burnham, ao conseguir
fazer com que a Federação retomasse os trilhos dos valores que a fazem uma
sociedade tão evoluída, chega à sua própria redenção pessoal.
Seu discurso, na sede da Federação ao término do último episódio da
temporada (Will you take my hand?), é um alerta precioso para os tempos que
vivemos no Brasil, onde, nas palavras de Ernst Toller são celebradas “a perda
da liberdade e a condenação do intelecto”.

Não, não vamos tomar atalhos no caminho para a justiça. Não, nós não iremos
quebrar as regras que nos protegem de nossos instintos mais básicos. Não, não
permitiremos que o desespero destrua a autoridade moral. Nós temos que ser
portadores da tocha lançando a luz para que possamos ver nosso caminho para a paz
duradoura.

Que a ficção, mais uma vez, sirva de inspiração para a nossa vida, para
nossa sociedade, nesse momento onde o conhecimento é criminalizado e as
armas são cultuadas.
Na segunda temporada vemos uma intenção de agradar e atrair os antigos
fãs, que torceram o nariz para a série em sua temporada inicial. Dessa forma,
foram trazidos o capitão Christopher Pike e Spock. Pike, evidentemente, se
trata do herói arquetípico que agrada ao fã conservador. É homem, bonitão e
branco. Porém, foi um ótimo personagem, interpretado de maneira brilhante
por Anson Mount. Sobre Spock não precisamos falar muito, além de que é o
personagem mais icônico de Star Trek, logo, agrada a todas as audiências. A
trama da temporada também foi muito bem elaborada, com o surgimento de
uma entidade chamada Anjo Vermelho. Na verdade, é a mãe de Burnham,
presa no futuro, tentando salvar a vida da filha e o fim da Federação.
Um dos momentos altos da segunda temporada de Discovery foi revisitar
Talos 4, o planeta visitado por Pike no primeiro piloto de Star Trek. Voltar lá,
depois de 13 filmes e quase 800 episódios, foi uma tacada de mestre dos
roteiristas. Tenho certeza que até o maior hater de Discovery teve seu
coraçãozinho duro e gelado tocado de alguma forma.
Além disso, o grande problema de continuidade que Discovery criou foi
resolvido. A USS Discovery é uma nave experimental da Frota, com uma
tecnologia jamais vista em Star Trek. Devemos lembrar que ela se passa antes
da série clássica, portanto,qualquer coisa que apareça na série e que nunca
tenhamos visto depois é um problema. A tecnologia permite que a nave dê
“saltos” cruzando grandes distâncias instantaneamente, de forma muito mais
veloz que a nossa conhecida dobra espacial. A maneira que isso ocorre é
através do “motor de esporos” que faz com que a nave viaje através de uma
“rede micelial” que une o universo. A viagem, em última análise, se dá através
do trabalho de fungos. A ideia foi baseada no trabalho de um cientista
chamado Paul Stamets, que acaba nomeando o personagem responsável pelos
“saltos”.
No final da segunda temporada tudo voltou ao seu devido lugar, já que a
Discovery foi parar quase mil anos no futuro. Logo, a tecnologia foi perdida e
ninguém nunca mais ouviu falar dela nos séculos seguintes, onde se
desenrolam as séries de Star Trek.
Mas vamos dar uma olhada nos personagens da série.
Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), humana criada por Sarek e sua
esposa Amanda, pais de Spock. Portanto, é irmã adotiva desse. Houve muita
reclamação: Spock nunca falou sobre ela! Verdade, mas ele também nunca
falou do meio-irmão Sybok de Star Trek 5. Burnham é uma xenoantropóloga e
serviu como primeira-oficial da USS Shenzhou. Foi responsável pelo início da
guerra entre a Federação e os klingons, tendo se amotinado contra sua capitã.
Por conta disso se tornou uma renegada e foi condenada à prisão perpétua, da
qual se livraria através do capitão Lorca.
Philippa Georgiou (Michelle Yeoh). Capitã da USS Shenzhou., perdeu a vida
em luta contra os klingons. Espécie de mentora de Burnham foi vitimada pelo
motim dessa última. A personagem retornará logo adiante, porém em sua
versão do universo espelho, onde era a Imperatriz.
Saru (Doug Jones). O primeiro kelpien na Frota, raça introduzida por
Discovery. Por pertencer a uma raça dominada em seu planeta, tem um senso
de aproximação do perigo e da morte muito aguçados. É o primeiro-oficial da
USS Discovery. Eu tive a oportunidade de conhecer o ator pessoalmente,
tirando foto e pegando autógrafo com ele. É uma figura singular. Afetuoso
com todos os fãs, os quais costuma beijar e abraçar.
Gabriel Lorca (Jason Isaacs). Capitão da Discovery, na verdade se revela
como vindo do universo espelho. O verdadeiro Lorca, do nosso universo,
morreu durante a guerra.
T’Kuvma (Chris Obi). Um guerreiro klingon que tenta mobilizar as 24 casas
do Império, que estavam separadas, para uma guerra contra a Federação, a
qual considera imperialista.
Voq (Shazad Latif). Klingon albino que herda a luta de T’Kuvma após a
morte deste.
Ash Tyler (Shazad Latif). Se trata de Voq transformado em humano, para
que atacasse a Frota estelar a partir de dentro. Se une à Seção 31.
L’Rell (Mary Chieffo). Seguidora de T’Kuvma, será a responsável pela
transformação de Voq em Tyler. No contexto onde se firma a paz entre
klingons e Federação será a líder do Alto Conselho Klingon.
Paul Stamets (Anthony Rapp). Humano, astromicologista da Discovery,
responsável pelo motor de esporos.
Dr. Hugh Culber (Wilson Cruz). O médico-chefe da Discovery e marido de
Stamets. O doutor será morto por Tyler/Voq, mas continuará existindo em
forma de energia na rede micelial. Posteriormente será trazido de volta, com
seu corpo sendo reconstruído.
Sylvia Tilly (Mary Wiseman). Cadete e um pouco inconveniente. Fala sem
pensar e causa várias saias justas. É uma jovem bem atrapalhada que sonha em
ser capitã. Se torna uma boa amiga de Burnham. É aquela personagem que
serve como alívio cômico da série.
Enfim, Discovery possui bons personagens e ótimos conflitos, fatores que
contribuem enormemente para que seja uma boa série. Além disso, Discovery
apresenta uma inovação muito interessante: os Short Treks. Pequenos
episódios, de 15 minutos, que são focados em um único personagem. A
primeira temporada produziu quatro episódios e a segunda contará com seis.
Nesse capítulo, falo sobre Choose Your Pain, episódio da primeira
temporada que enseja uma boa reflexão sobre os direitos dos animais.
Também abordo o episódio The Sound of Thunder, que mostra uma história
onde a ideologia serve à dominação de uma espécie sobre outra.
1
CHOOSE YOUR PAIN

O sofrimento do Tardígrado

O Dr. Culber crê que o tardígrado tem consciência. Não somos donos da sua alma. Vá salvar sua vida,
Burnham.
Saru

Nos dias de hoje, cada vez mais se discute os limites para o uso de animais
como cobaias ou alimentação. Já se sabe que a maior parte dos animais tem
emoções, como felicidade, tristeza, medo etc. Portanto, o ser humano ao tratá-
los como objetos certamente incorre em um terrível crime. A indústria
alimentícia é a principal causa de sofrimento dos animais, devido às condições
nas quais vivem e são abatidos. Repensar nossa relação com os seres que
compartilham o planeta conosco é a pauta do dia. Qualquer pessoa com um
mínimo discernimento sobre o que é certo ou o que é errado em algum
momento deverá refletir a sério sobre como tratamos os animais.
Star Trek abordou o tema da necessidade de preservação do meio ambiente
e do respeito à vida de todos os animais no filme Star Trek 4, com história e
direção de Leonard Nimoy, um homem preocupado com essas questões. A
mensagem que o filme passa por meio da alegoria da sonda que irá destruir a
Terra é clara: se o meio ambiente e os animais não forem preservados a Terra
não tem futuro. Portanto, cuidar do bem estar dos animais é uma obrigação da
humanidade.
No episódio Choose your Pain, da primeira temporada de Discovery somos
confrontados com essa questão. A Discovery encontrou uma nova forma de
vida, que foi chamada de Tardígrado, por se assemelhar ao animal
microscópico e extremófilo natural da Terra. No entanto, as semelhanças
desaparecem quando constatamos o tamanho do animal. Ele aparenta ser
maior que um bovino e menor que um elefante. É essa mais ou menos a escala.
Ele é capturado pela Discovery e se descobre que o animal viaja entre
dimensões, utilizando a rede micelial para se deslocar. Portanto, ele possui um
sistema natural de direcionamento dentro da rede. Quase como um GPS para
viajar pelo caminho dos esporos. Assim, o Tardígrado acaba se demonstrando
bastante útil para controlar os saltos da Discovery. Mas, evidentemente, uma
questão ética se impõe, já que o animal parece sofrer terrivelmente a cada vez
que é “usado” para acionar o motor de esporos.
Burnham preocupada com essa situação chama o Dr. Culber para que ele
possa examinar o animal e determinar se ele é afetado ou não pelo motor. Ao
mesmo tempo, o almirantado da Frota corre loucamente atrás de outros
tardígrados para que cada nave possa ter um a bordo e assim otimizar o
deslocamento da frota, já que estamos em tempos de guerra contra os
klingons.
A dor da qual fala o título do episódio é refletida na captura do capitão
Lorca pelos klingons e no sofrimento pelo qual o Tardígrado passa a cada vez
que alerta escuro é ativado na Discovery. O Dr. Culber avalia que o animal
sofre danos cumulativos a cada vez que é utilizado em um salto, o que faz
Burnham procurar Stamets e argumentar que a situação é insustentável.
Stamets, Tilly e Burnham passam a trabalhar em busca de uma solução para o
motor de esporos que não envolva utilizar o DNA do tardígrado, que serve
perfeitamente para a interface com os esporos. Porém, por um lado é difícil
encontrar alguma espécie compatível e por outro fica claro que o DNA
humano serviria.
Contudo, Saru que está como capitão interino e focado no resgate de Lorca,
ordena que a pesquisa seja encerrada e que o Tardígrado seja utilizado para
acionar o motor, já que o tempo está correndo e assim as chances de se
encontrar Lorca com vida vão diminundo. Mais um salto é dado e o
Tardígrado entra em um estado letárgico, onde perde quase toda a água do seu
corpo e seus sinas vitais são praticamente indetectáveis. Portanto, a Discovery
está em espaço klingon sem ter como retornar após o resgate de Lorca que é
realizado logo em seguida.
No entanto, mesmo assim o salto é dado e os tripulantes descobrem que
Stamets injetou o DNA do Tardígrado em si mesmo, podendo atuar como a
interface do motor e permitindo o salto. É o homem se sacrificando no lugar
do animal dessa vez.
Por fim, Saru ordena que Burnham salve a vida do tardígrado. Ela o devolve
ao espaço, seu ambiente natural. O Tardígrado recupera-se e entra na rede dos
micélios. É uma cena linda, onde o ser humano liberta o animal de sua
escravidão e sofrimento. Um momento utópico e inspirador.
2
THE SOUND OF THUNDER

A ideologia de kelpiens e ba’uls

A verdade sobreviveu. É tempo de um equilíbrio verdadeiro ser restaurado. Vocês já não precisam ter
medo.
Siranna

Os kelpiens são uma das grandes contribuições de Discovery ao cânone de Star


Trek. A raça de Saru, originária do planeta Kaminar, é uma espécie pré-dobra,
portanto não qualificada para ser contatada pela Frota Estelar de acordo com a
Primeira Diretriz. É um povo que vive uma vida simples, basicamente vivendo
da pesca em pequenas aldeias. Contudo, foi entre essas pessoas que surgiu um
indivíduo bastante curioso, com o olhar voltado às estrelas. Saru, através de
suas especulações científicas, de suas indagações, conseguiu estabelecer
contato com a Frota e assim foi pela então tenente Philippa Georgiou. Se
tornou o primeiro kelpien na Academia da Frota e um oficial muito
competente. Saru representa o amor pelo conhecimento, logo, a sua origem é
muito interessante. Assim como desperta o interesse o seu povo, que está no
centro do episódio The Sound of Thunder.
Os kelpiens são a segunda espécie em seu planeta. Isso no sentido de que
existe uma espécie dominante que simplesmente os “colhe” e os consome.
Como o próprio Saru diz, os kelpiens são como o gado na Terra. São criados
para servir de alimento para outra espécie. Os kelpiens possui uma glândula
que lhes faz sentir medo. Algo bastante útil para uma espécie dominada. No
entanto, existe um certo momento da vida de um kelpien que a glândula cai,
fazendo com que o medo desapareça. É um processo biológico chamado
Vahar’ai. Esse processo é explorado pelos ba’uls, a espécie dominante no
planeta, para manter os kelpiens sob controle.
Os kelpiens vivem na mais profunda ignorância a respeito da verdadeira
condição deles. Eles imaginam que sua vida termina no Vahar’ai e que não
podem mudar o destino de serem oferecidos em sacrifício aos ba’uls. Isso afeta
totalmente a sua cultura e evita que eles possam evoluir, assim como os ba’uls
evoluíram, chegando no ponto inclusive de desenvolver a dobra espacial. Ou
seja, o verdadeiro conhecimento é vedado a eles, fazendo com que
permaneçam nas trevas. Saru, ao descobrir que existe vida após o Vahar’ai, se
sente responsável por quebrar esse círculo vicioso que mantém os kelpiens
atrasados e oprimidos. Ele precisa levar o conhecimento para o seu povo.
É através da ideologia que os ba’uls mantém historicamente a dominação
dos kelpiens. Ideologia é uma visão falseada da realidade que é justamente o
que acontece em Kaminar e que é a grande revelação desse episódio. Os
kelpiens aprendem desde muito tempo atrás, 2 mil anos, que eles são presas
naturais dos predadores ba’uls. É bom destacar esse “naturalmente”, que de
natural não tem nada, apesar de ser essa a mentira que os ba’uls contam para
os kelpiens. Na verdade, os predadores de Kaminar são os kelpiens, que quase
levaram os ba’uls à extinção. Estes, por sua vez, conseguiram desenvolver uma
tecnologia de forma a subjugar seus predadores e aparecer diante deles no
papel invertido. Isso é ideologia, as coisas não são como elas aparentam. Em
Kaminar, a aparência mostra que os kelpiens são fracos e os ba’uls fortes,
quando na essência o oposto que é a verdade. Na verdade o que se passa por
algo natural entre duas espécies do mesmo planeta é algo histórico, criado
socialmente, da mesma forma que existe a dominação de burgueses sobre
trabalhadores, homens sobre mulheres e brancos sobre negros.
Por fim, o episódio também trata da relação entre irmãos. Saru reencontra
após 18 anos sua irmã Siranna e consegue libertá-la da ideologia imposta pelos
ba’uls, assim como a todos os kelpiens. O nosso bravo kelpien abre os olhos de
uma sociedade inteira para o conhecimento, algo que é bom, mas doloroso,
sem dúvida.
A jornada prossegue: utopia e revolução

Como dito no início, não é simples escrever um livro sobre Star Trek nesses
moldes. São 50 anos de série e por mais minucioso e abrangente que seja o
escrito jamais se poderá alcançar todos os aspectos dessa obra monumental.
Mesmo nos recortes específicos escolhidos para esse pequeno livro, isto é,
falar brevemente (e criticamente) sobre as principais características das séries,
abordar a utopia da sociedade apresentada por elas e perscrutar a crítica social
em alguns poucos episódios, a tarefa é inglória e sempre dá a impressão de que
faltou alguma coisa. E, é claro, faltou, fato pelo qual me desculpo junto aos
leitores.
Mas eu gostaria de ressaltar o fio condutor de toda a narrativa: a
necessidade da revolução e da destruição do capitalismo. Star Trek nos
apresenta um mundo onde o capitalismo - e com ele a opressão de uns poucos
sobre muitos – desapareceu. Contudo, na ficção (e de acordo com a ideologia
estadunidense, lembrem que falei dela no início) a chegada nesse mundo pós-
capitalista se deu de maneira tranquila, como um processo evolutivo
inexorável. Porém, não podemos esquecer que, no mundo real, a luta de classes
é um objeto concreto da realidade e ela tende a se agudizar, até que, não
havendo mais possibilidade de se manter (ou ser mantida) mascarada, ela se
escancara e incendeia a sociedade. É somente assim que passaremos para
outra etapa da nossa história, ou superação da “pré-história” da humanidade,
como afirmou Marx.
Devemos pensar em Star Trek, na sua forma utópica, apenas como uma
inspiração para que um mundo justo e livre da opressão seja atingido. Todavia,
jamais poderemos nos acomodar e esperar que esse mundo venha a existir
pacífica e naturalmente. Não. Ele deverá ser arrancado das classe dominantes,
que, obviamente, não têm o menor interesse na sua existência. A história é
parida violentamente, após as intensas dores do parto. Não há como enganar-
se: são os seres humanos que fazem sua própria história. Logo, o advento da
sociedade sem classes será obra ativa de mulheres e homens fartos da
submissão. Nossa jornada não é tranquila, ela é atribulada e está no começo.
Temos um longo caminho pela frente e, sem dúvida, a utopia nos ajuda a
trilhá-lo. Mas é somente com a revolução que um novo mundo será construído.
Uma vida longa e próspera a todos.

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