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F936s
Freitas, Eduardo Pacheco
Star Trek : utopia e crítica social / Eduardo Pacheco Freitas. - 1. ed. - Rio de Janeiro
: Autografia, 2019.
CDD: 302.234
19-61049
CDU: 316.774:791.242
E para o Klingon, que não sabe ler, mas é um gato de outro mundo.
A revolução social não pode tirar sua poesia do passado, e sim do
futuro.
— KARL MARX
Origens desse livro
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres
Rosa Luxemburgo
Esse livro tem dois eixos principais. O primeiro deles é Star Trek, esse
produto da indústria cultural que se tornou um notável fenômeno da cultura
pop e faz sucesso há mais de 50 anos. O segundo eixo é a relação que essa obra
coletiva e diversificada possui com a utopia e com a crítica social. Então,
embora seja um produto feito por grandes estúdios, com o objetivo primeiro
de gerar lucro, existe uma relação dialética onde ele acaba por expor ideias que
vão contra essa própria lógica. Contudo, não podemos ser ingênuos e acreditar
piamente que Star Trek se trata de um veículo que carrega mensagens
revolucionárias. Se defendêssemos isso estaríamos sendo desonestos. Star
Trek, como produto da cultura de massas dos Estados Unidos, feito para um
público, a priori, de estadunidenses, está eivado de valores, crenças e
ideologias daquela sociedade. Muitas vezes esses elementos são involuntários,
outras tantas vezes são intencionais, como acontece igualmente em
blockbusters, best-sellers, música pop e inúmeros outros produtos culturais dos
Estados Unidos. Star Trek, ao mesmo tempo ajuda a manter o status quo e o
critica.
Feitas essas ressalvas, importantes para que não se caia na admiração
acrítica costumeira do fã, é fundamental dizer que este mesmo fã, portanto,
deve ser crítico. Da mesma forma que consegue estabelecer conexões entre
algumas das histórias contadas por Star Trek com a crítica da realidade social,
deve estar atento para as ideias conservadoras que igualmente se apresentam
na série. Mas isso dá material suficiente para outro ou outros livros. Nesse
aqui vamos nos deter na utopia representada na série ao longo de suas mais de
cinco décadas e também nas suas pungentes críticas a respeito de normas,
práticas e configurações sociais. Star Trek é um rico manancial para esse tipo
de abordagem, sendo útil, inclusive, para o ensino. Eu mesmo, como professor,
utilizo diversos episódios das várias séries de Star Trek em sala de aula. O
resultado é, geralmente, bastante positivo e recompensador.
Inicialmente, para que se possa compreender melhor quais aspectos de Star
Trek esse livro se propõe explorar é preciso que façamos a definição do que é
essa tal de utopia, que é uma palavra, de certa forma, comum na linguagem
coloquial. Porém, nesse livro a concebemos de maneira um pouco diferente.
Utopia é uma palavra de origem grega, formada a partir de ou (não) e topos
(lugar). Portanto, utopia significa, literalmente, não lugar. Ou seja, um lugar
que não é esse no qual nos encontramos, é um lugar que não existe. No sentido
que trabalhamos aqui, um lugar que ainda não existe e que, tendo isso em
vista, é um lugar que deve ser construído, sob pena da própria destruição da
humanidade. Star Trek nos apresenta um mundo utópico.
Desde a aurora dos tempos o ser humano sonha com um lugar melhor, com
um futuro onde a humanidade supere seus problemas e viva em paz.
Entretanto, esse lugar parece nunca ser atingido e muitas vezes parece que
vivemos na distopia, o contrário de utopia. Mas foi em 1516 que um filósofo
inglês chamado Thomas More publicou um livro chamado A Utopia. Na
história, o autor relata a história de um país chamado Utopia onde todos os
problemas sociais contemporâneos à Inglaterra de More haviam sido
resolvidos. Na ilha de Utopia, a propriedade privada havia deixado de existir e
já não havia intolerância religiosa. Todos trabalhavam no máximo seis horas
por dia, o suficiente para manter a sociedade funcionando e assim garantidora
do bem-estar de todos. Da mesma forma, não havia perseguição religiosa, com
cada um podendo exercer livremente a sua religiosidade. O contexto histórico
nos ajuda a entender as ideias de More: a descoberta do Novo Mundo, onde
houve uma idealização da vida não capitalista dos indígenas e as tensões
religiosas que estourariam logo adiante na Reforma de Lutero.
A Federação Unida de Planetas, a organização política e social mostrada
em Star Trek possui, em geral, todas as características da ilha de Utopia de
Thomas More: ausência de propriedade privada, divisão do trabalho não
baseada na exploração de uma classe sobre a outra e tolerância, não somente
religiosa, mas em todos os aspectos da vida. O lucro e acumulação de riquezas
já não fazem parte dessa nova organização social humana, onde o bem comum
é o que guia o comportamento de todos. Assim como em Utopia, a Federação é
governada pela razão. A razão é revolucionária e utópica. É o contrário do
obscurantismo vigente nas sociedades de classes, que são distópicas. Quando
você assistir um filme distópico, como Mad Max, por exemplo, você entenderá
isso melhor, sobretudo se assistir Star Trek em seguida. Você vai perceber que
Mad Max é muito mais parecido com a gente do que Star Trek. A distopia é
real, nos resta lutar para construir a utopia.
Nesse ponto é importante esclarecer que utopia não significa um sonho
irrealizável. Esse sentido é o corrente na linguagem comum. Mas como
afirmado no início, não é com esse significado que concebemos esse livro.
Desde a filosofia da Grécia Antiga o sonho de transformação da
humanidade em uma humanidade superior está presente. Esse sonho foi
acalentado por todas as sociedades humanas, em todos os lugares, em todos os
tempos. Os indígenas brasileiros, por exemplo, perseguiam aquilo que
chamavam de “Terra Sem Males”. As religiões, como expressão da miséria da
vida, representaram a utopia como a vida após a morte. No entanto, foi a partir
do século 19, com o desenvolvimento do capitalismo industrial, que a utopia
ganhou novos contornos, que nos interessam mais especificamente aqui. Esse
novo sistema, que gerou mais riqueza que todos os anteriores, por outro lado
criou as condições para que o ser humano fosse completamente
desumanizado. Ao se tornar apenas uma coisa, através dos processos de
alienação e reificação inerentes ao capitalismo, o homem foi mais oprimido do
que em qualquer etapa anterior da história.
Foi nesse contexto que alguns pensadores surgiram e, convencidos de que
esse sistema é anti-humano, refletiram sobre a necessidade de sua superação.
Saint-Simon, François-Charles Fourier e Robert Owen foram os principais
deles. Todavia, esses filósofos não apresentaram um método para que a
opressão do capital sobre o ser humano fosse destruída. Eles se limitaram a
identificar a questão e aguardar que esse sistema deixasse de existir. É nesse
contexto que surgem Karl Marx e Friedrich Engels, com a ideia de que “Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém,
é transformá-lo”. Assim nascia o socialismo científico, o qual, além de fazer a
crítica da realidade material do ser humano, propunha formas de mudá-la,
através da revolução.
Isso não significa que Marx e Engels não fossem utópicos também. Mas há
o deslocamento da utopia enquanto termo relacionado a um sonho que
poderia vir a acontecer um dia, para a utopia que pode ser construída a partir
da luta daqueles que são oprimidos. A utopia é o que nos faz caminhar até que
ela aconteça.
Star Trek, é claro, como ressaltado no início, é uma obra produzida no
coração do capitalismo, portanto reflete seus valores. Assim, a superação do
capitalismo em sua mitologia não ocorreu a partir de uma revolução do
proletariado, mas como uma evolução indispensável para o ser humano. No
contexto da década de 1960, onde a série foi criada, era comum o pensamento
de que a tecnologia libertaria o ser humano de todos os males. A tecnologia
traria a solução para as questões sociais. Pensadores como Hannah Arendt,
por exemplo, foram responsáveis por sistematizar e difundir a ideia de que os
avanços tecnológicos contribuiriam para o fim da desigualdade. Arendt tinha
como objetivo claro liquidar ideologicamente o “pesadelo” da luta de classes.
Era como se dissesse: trabalhadores do mundo, aguardem! A tecnologia vos
libertará! Para ela, a miséria das massas não era um produto social, sendo
preciso, portanto, o avanço da ciência no domínio da natureza para superá-la.
A filósofa liberal considerava a pobreza como algo natural, dado isso, a luta
política pela emancipação da classe trabalhadora seria inútil. Era necessário
esperar pelos avanços científicos e tecnológicos que trariam igualdade para os
seres humanos. Esse pensamento tecnicista, que trata a tecnologia como um
deus benevolente que tudo resolverá é um dos pilares de Star Trek, que,
evidentemente, foi influenciada por esse contexto intelectual. No entanto,
como bem visto no Vietnã, o fator humano da pequena nação derrotou o
tecnicismo da nação mais poderosa. Vale lembrar ainda que, sob a lógica do
capital, a ciência sempre estará a seu serviço.
No entanto, é lícito pensar também que Star Trek é uma obra vinculada ao
socialismo utópico e não ao socialismo científico, já que se conecta à ideia da
necessidade de aguardar o devir histórico em benefício dos explorados. Esses
fatos, porém, não a desabonam em nenhum aspecto, já que ela apresenta
aquilo que é possível dentro do sistema no qual se encontra. Mas não
esqueçamos: sim, a utopia é importante, mas só pela revolução chegaremos
nela.
A utopia, no primeiro sentido, é idealista. A utopia, no sentido marxista é
concreta. O marxismo é a ciência do proletariado e ao mesmo tempo uma
teoria da sociedade burguesa. Foi através da obra de Marx e Engels (chamada
marxismo) que foi possível compreender a história da humanidade como a
história da luta de classes. Portanto, ao longo do desenvolvimento humano
sempre houve duas classes em luta, uma dominante e outra dominada. Essa
luta decorre da divisão do trabalho. Enquanto uma trabalha e gera riqueza, a
outra não trabalha e se apropria dessa riqueza. Portanto, todos os recursos do
planeta, humanos e naturais, estão à serviço de poucos, como meios para a
acumulação de riqueza, cada vez mais concentrada.
Em Star Trek acontece o contrário: eles estão à serviço das pessoas e não
dos interesses privados. E por que isso se tornou possível? Devido ao advento
dos aparelhos replicadores, que podem reproduzir qualquer objeto ou
alimento que você precisar (eis aí um reflexo do pensamento de Hannah
Arendt). Mas só isso não bastaria para que os recursos fossem divididos
igualmente. A diferença é que esses replicadores são bens de acesso universal.
Logo, a obrigação do trabalho por necessidades materiais desaparece. E com
ela, acaba a sociedade de classes, já que não há mais a possibilidade de um ser
humano explorar o outro com base na escassez do modo de produção
capitalista. Outro resultado: o dinheiro já não existe. Mais um: o Estado é
completamente transformado, pois já não existe uma classe que o controle.
Para Marx e para o marxismo, o Estado é sempre uma ditadura de classe. Já
no Manifesto Comunista ele e Engels revelam que o Estado é um comitê que
administra os negócios em comum da burguesia. Logo, o Estado tem como
função proteger a propriedade privada e manter as coisas como elas estão. Por
meio do seu monopólio da violência, é capaz de manter as classes subalternas
sob controle, de forma a evitar a revolução. Já se disse que na sociedade
capitalista ninguém dorme: uns de fome, outros de medo dos que têm fome.
Lênin diz que o Estado é uma organização da classe exploradora para manter
seu domínio sobre a classe explorada.
Em Star Trek, ou melhor dizendo, na Federação, o que vemos é uma
sociedade que ultrapassou o capitalismo e se tornou uma sociedade socialista.
Ou até mesmo comunista. Para que isso fique mais claro vamos definir melhor
esses conceitos.
Desde o início dos tempos, o ser humano sonha com uma sociedade
igualitária, justa e humana. No início as coisas eram assim, como demonstram
as pesquisas antropológicas e históricas. As primeiras sociedades tinham o
aspecto comunal. Todos trabalhavam para o grupo, visando que houvesse
habitação e alimento para todos. Com o surgimento da propriedade privada,
emerge o trabalho escravo. Surge igualmente a escravidão doméstica da
mulher. Nascem assim as sociedades baseadas na estratificação social.
Floresce assim o domínio de uma classe sobre a outra, de uma “raça” sobre
outra, de um sexo sobre outro.
E assim segue a história até os dias de hoje, onde houve o recrudescimento
do domínio de classe sob o capitalismo, já que a burguesia é dona da própria
vida dos trabalhadores. Esses, vivem em sua estrita dependência. Trabalham
em situação semelhante ao cárcere e se não lhes for dado trabalho morrem de
inanição. Esse é o sistema louvado por muitos e propagandeado pelas
ideologias liberais dominantes. Na Federação as coisas ocorrem de forma
muito diferente, tão diferentes que nos remetem ao comunismo.
Sabendo da situação na qual se encontram os trabalhadores devem se
revoltar e revolucionar a sociedade. A contradição existente na sociedade
capitalista hora ou outra se tornará insustentável e explodirá. Mas de acordo
com o materialismo histórico, o método do marxismo, a revolução pode
antecipar o fim dessa ordem injusta. Os trabalhadores devem tomar para si os
meios de produção e estabelecer o seu governo: a Ditadura do Proletariado. O
termo ditadura aqui não significa a ausência de democracia. Pelo contrário, a
classe majoritária, ao assumir o poder, poderá de fato instaurar a verdadeira
democracia, a democracia radical. Pois é evidente que a democracia burguesa
é uma farsa. É um sistema melhor do que outros que vieram antes, mas não
deixa de ser um engodo no qual os trabalhadores votam e acreditam que estão
mudando alguma coisa, quando na verdade o sistema que os oprime continua
o mesmo, ora nas mãos da direita, ora nas mãos da socialdemocracia.
Pois, esse período, chamado de Ditadura do Proletariado, é justamente o
socialismo. Uma etapa transitória para o comunismo. Quais as diferenças? No
socialismo ainda existe o Estado, que é, evidentemente, uma ditadura de
classe. Agora, em vez da ditadura da burguesia sobre o proletariado, é a
ditadura desse sobre a burguesia. No entanto, a emancipação final so ser
humano não pode ser atingida se esse estágio permanecer indefinidamente. O
passo seguinte é o comunismo.
O comunismo é a síntese do comunismo primitivo, aquele das primeiras
sociedades, com os avanços produtivos do capitalismo. Haverá abundância e
não haverá opressão. Os trabalhadores serão os donos de suas próprias vidas e,
organizados em associações de trabalho, não serão mais oprimidos pelo
Estado, que deixará de existir, ao menos em sua concepção atual. Lênin afirma
que o Estado não desaparece, ele definha. A partir do momento em que não
existem mais classes sociais, o Estado perde seu sentido e definha.
Na Federação vemos um Estado totalmente diverso do atual. Não se trata
mais de uma máquina com o objetivo de manter as classes trabalhadoras sob
rédeas curtas e obedientes. Pelo contrário, ele administra a exploração do
espaço, para onde o ser humano, tendo superado o capitalismo e seus
problemas aqui na Terra, volta sua atenção. O espaço é a fronteira final. Não
há como não associar à emancipação final do ser humano, buscada pelo
comunismo. Ao resolvermos nossos conflitos, que advém dos interesses
antagônicos das classes em luta, nos voltaremos às questões mais importantes
e seremos emancipados finalmente. Como Marx afirma, deixaremos nossa pré-
história e iniciaremos nossa história de fato. A humanidade tosca e primitiva
passa a fazer história com a fundação da Federação.
Quando acaba o trabalho por necessidade, finalmente surge o reino da
liberdade. O comunista sabe que igualdade e liberdade são sinônimos. Todo
trekker deveria saber disso. Alguns sabem, outros não sabem. E também
existem aqueles que sabem, mas não sabem elaborar e se tornam
anticomunistas. Anticomunismo e Star Trek são inconciliáveis.
O modo de produção capitalista é anti-humano. Ele é necrófilo, suga o
trabalho vivo para acumular trabalho morto. Esse é o pilar principal do
capitalismo. A sociedade vista em Star Trek é o oposto. Lá se ama a vida. Não é
uma das funções da Frota Estelar pesquisar novas vidas? Por isso me causa
muita estranheza um fã de Star Trek fascista.
O fascismo cria inimigos imaginários para controlar o povo. Nada mais
distante das filosofia de Star Trek. Enquanto o fascista odeia o diferente, o
outro, os vulcanos, a raça de Spock, dizem que o bom é a “infinita diversidade
em infinitas combinações”. Portanto, isso inviabiliza que um trekker seja fascista.
Infelizmente, eles existem como pingos e parecem aumentar.
O irracionalismo avança a passos largos nos dias de hoje e muitos fãs da
série são irracionalistas. “Terra plana”, “nazismo de esquerda”, “vacinas fazem
mal” e outras inúmeras barbaridades revisionistas têm sido absorvidas por
cerebrozinhos incautos, inclusive entre os trekkers. Isso tudo é um grande
contrassenso, pois as bases de Star Trek são a lógica e a razão.
Gene Roddenberry quando criou Star Trek deixou isso bem claro. É uma
série que tem a tolerância e o pensamento crítico em sua essência. Por isso é
estranho que muitos fãs sejam ferrenhos anticomunistas, sendo que sem saber,
ao compartilharem dos ideais expostos na série, eles são comunistas. A
explicação para isso é a propaganda anticomunista que, desde a época de
publicação do Manifesto Comunista, já estava a pleno vapor. Portanto, temos
mais de um século e meio de ideologia anticomunista convencendo as pessoas
de que uma coisa é ruim sem ao menos que elas saibam do que se trata. Se o
capitalismo é irracionalista e sua superação é um imperativo categórico, é
óbvio que o comunismo e a revolução são as coisas mais racionais que existem.
Uma das formas que Star Trek tem para enviar sua mensagem de um
mundo utópico, onde há justiça, igualdade, liberdade e não há opressão, é
através dos episódios que contrastam sociedades alienígenas, que representam
a humanidade atual, com o sonho da Federação. Às vezes a representação dos
nossos problemas ocorre dentro da própria Federação, o que mostra que ela
não é perfeita. Assim como não é a utopia. Mas o que é importa é que Star
Trek, ao longo da sua história, ensejou esse tipo de reflexão.
É isso que chamo de crítica social nesse livro. Desde seu início, em 1966,
Star Trek tem produzido verdadeiras joias da crítica social, abordando temas
que vão desde o racismo, passando pela sociedade de classes até o papel da
mulher na sociedade. É óbvio que Star Trek possui, ao longo dos seus 13 filmes
e quase 800 episódios, muitas histórias de qualidade duvidosa, outras médias,
outras muitas boas e algumas geniais. Em geral, é dentro dessas últimas que se
encontram as que rotulo como críticas à sociedade.
O formato dessas pequenas fábulas pode variar, mas as mais interessantes,
sem dúvida, são aquelas que apresentam uma determinada espécie alienígena
que possui características atuais da humanidade ou semelhantes a processos já
ocorridos na nossa história. Dessa forma, os roteiristas conseguem construir
uma narrativa que torna evidente os grandes contrastes existentes entre o
presente a utopia da Federação. Normalmente, são bem simples e didáticas e
auxiliam muito a um professor, por exemplo, que queira tornar o ensino mais
atraente para seus alunos. Em primeiro lugar, por ser um produto da cultura
pop. Em segundo, são fáceis de entender até para alunos pequenos.. Por isso
Star Trek, ao exibir a utopia, é uma ferramenta interessante para se pensar a
nossa própria realidade.
A série se utiliza de histórias passadas no futuro, para nos falar do presente.
Do mesmo modo, usa aliens para revelar o ser humano. E, por fim, do espaço
para falar sobre a Terra. É dessa maneira que Star Trek, a partir da sociedade
utópica que apresenta, revela como imperativo para a sobrevivência da espécie
humana a superação do capitalismo. Nesse livro busco conjugar esses dois
aspectos principais de Star Trek: a utopia e a crítica social que ajudam na
conscientização e consequente construção de um outro mundo.
Não é tarefa fácil escrever um livro com esse recorte, já que são centenas de
episódios onde a utopia e o pensamento crítico estão expostos. No entanto,
por ser um tema fascinante e de meu mais profundo interesse, decidi levar a
cabo a empreitada, mesmo que de maneira reduzida, caso contrário seriam
milhares e milhares de páginas. Portanto, você encontrará nas páginas
seguintes uma pequena seleção de episódios de cada uma das séries live action
de Star Trek que nos possibilitará refletir criticamente sobre problemas
históricos da humanidade e a necessidade de sua superação. Os capítulos não
se tratam de meras reproduções por escrito dos episódios. Busco interpretá-los
através da chave marxista, portanto, do materialismo histórico. Para isso,
sempre que necessário recorro às explicações de contextos e processos
históricos que nos ajudam a compreender os episódios em profundidade.
Espero que seja uma leitura proveitosa.
Se fosse possível resumir o significado de Star Trek em poucas palavras, eu
diria que se trata da apologia do ser humano, vitorioso sobre o capital e
construtor da utopia.
Uma vida longa e próspera à utopia e a Star Trek.
I
O espaço, a fronteira final: onde a utopia
começou
Espaço: a fronteira final. Estas são as viagens da nave estelar Enterprise. Em sua missão de cinco
anos... para explorar novos mundos... para pesquisar novas vidas... novas civilizações... audaciosamente
indo onde nenhum homem jamais esteve.
Introdução da série original, narrada por William Shatner
Eu acredito que ainda não é tarde demais para construir uma utopia que nos permita compartilhar a
terra.
Gabriel García Márquez
Khan e a Enterprise
Khan é levado a bordo da Enterprise e se recusa a dar maiores informações
sobre suas origens para o capitão e requisita estudar os manuais técnicos da
nave, alegando que era um engenheiro no século 20 e necessitava se atualizar.
Na verdade, seu intento era obter o conhecimento necessário para que pudesse
dominar a nave, resgatar seus companheiros na Botany Bay e sequestrar a
Enterprise. Assim, Khan poderia, mais do que apenas um continente,
conquistar o universo.
Ele fica fascinando com a nave e todas as possibilidades que ela oferece,
contudo se demonstra decepcionado com o fato do ser humano não ter se
aprimorado geneticamente. Afinal, Khan e seu grupo são humanos que foram
criados a partir da engenharia genética e esse fato científico e biológico está
na base da política e da luta pelo poder em fins do século 20, de acordo com a
história vista nesse episódio. Pois foi justamente por se considerarem
superiores aos outros humanos da época, que Khan e diversos outros líderes
decidiram tomar o poder.
Guerras Eugênicas
Kirk e Spock acabam descobrindo as verdadeiras identidades de Khan e de
seus tripulantes. Eles são remanescentes de um período histórico chamado de
Guerras Eugênicas, que ocorreram na Terra em meados dos anos 1990,
portanto, coincidindo com a idade da nave Botany Bay.
Mas o que foram as Guerras Eugênicas?
Durante o século 20 as ciências genéticas foram desenvolvidas, culminando
na criação de super-homens, mais fortes e mais inteligentes. Khan fala para
Kirk que possui cinco vezes a sua força, por exemplo. Assim, eles acabaram
por dominar grande parte do planeta. Em um determinado momento, eles
tomaram ao mesmo tempo o poder em 40 nações.
Kirk fica intrigado. Como poderia um homem com inteligência superior se
tornar um tirano. Spock lhe diz então que, no caso da existência de habilidades
superiores, como consequência, surgirão ambições superiores. Isso é genial,
pois demonstra claramente os riscos da manipulação genética e porque ela é
condenável. Ela pode permitir que surja uma nova raça que se considere
superior a atual e, portanto, com o dever de aniquilá-la. O filósofo reacionário
Friedrich Nietzsche já preconizava esse tipo de solução, defendendo a
existência de uma aristocracia com o direito natural de escravizar as
populações “bárbaras” e “inferiores”.
A verdade é que o episódio coloca em questão a eugenia, isto é, a
pseudociência criada por Francis Galton, no século 19, para que houvesse uma
seleção artificial na espécie humana, na qual seriam arbitrariamente
esterilizados ou exterminados todos aqueles que não correspondessem a um
ideal de perfeição: deficientes físicos e mentais, criminosos e – evidentemente
– aqueles que não pertencessem à “raça” ariana. Aliás, ficamos sabendo no
episódio que, durante as Guerras Eugênicas, “populações inteiras foram
exterminadas”, fato que corrobora plenamente a ideia de supremacia racial.
A eugenia, apesar de criada por um inglês, fez sua fortuna nos Estados
Unidos, legitimando seu Estado racial, e de lá chegou à Alemanha,
influenciando enormemente Hitler e os outros ideólogos do nazismo. Esse é
um temor ainda muito presente em 1966. Apenas duas décadas separavam a
produção do episódio Space Seed da revelação do holocausto posto em marcha
pelos nazistas. Na época mesmo em que o episódio ia ao ar, Israel (que acabou
por se tornar um Estado racial também) ainda promovia julgamentos de
líderes nazistas acusados de exterminar judeus e outras minorias. Se
pensarmos sob essa perspectiva fica bem clara a origem de um dos temas
tratados na história de Khan e da Botany Bay.
A ideia de que uma raça superior deveria se livrar de outra inferior havia
arrastado o mundo a um conflito que ceifou a vida de dezenas de milhões de
pessoas. As Guerras Eugênicas são uma representação muito inteligente a
respeito da Segunda Guerra Mundial. O episódio conseguiu, dessa forma,
capturar um dos aspectos essenciais do nazismo e da guerra surgida como sua
consequência imediata. Repetindo: tudo isso ainda estava muito fresco na
memória das pessoas que viviam na década de 60 e haviam presenciado o
nazismo duas décadas antes.
A discussão que Spock e McCoy travam na ponte sobre as Guerras
Eugênicas traz a questão da ética na ciência. Enquanto Spock acusa a
humanidade por ter feito estas guerras, McCoy se defende, dizendo que não
foi a humanidade atual. E contra-ataca afirmando que elas foram fruto da
mente de cientistas lógicos e racionais como Spock. O que aprendemos com
essa cena é que a ciência precisa de ética, pois não é porque algo pode ser feito
pela ciência (como a eugenia) que isso deve ser realizado. Por outro lado,
McCoy destaca a sociedade do século 23, incapaz, de acordo com sua visão, de
cometer tais atrocidades. É a utopia realizada.
Posteriormente, as Guerras Eugênicas entraram para o cânone de Star Trek
e serão mencionadas em outras séries. A Federação proibiu qualquer
experimento de aprimoramento genético, fato que leva o Dr. Julian Bashir, de
Deep Space Nine, esconder sua condição de “melhorado” por quase toda sua
vida. No entanto, como os anos 90 já se passaram há muito tempo, não deixa
de ser engraçado (e de dar uma sensação de alívio) que elas tenham sido
situadas nesse período e que de fato não aconteceram. Contudo, há um
problema de continuidade: em Voyager, a tripulação viaja em determinado
episódio para 1996 (Future’s End I e II). Em Deep Space Nine, a viagem acontece
para 2024 (Past Tense I e II). Em ambas não há a menor aparência de que as
Guerras Eugênicas tenham ocorrido.
Nesse meio tempo, Spock descobre que entre 80 e 90 dos super-homens das
Guerras Eugênicas haviam conseguido escapar, fato que não foi registrado nos
livros de história, pois os novos governos que conseguiram depor Khan e os
outros ditadores, esconderam, deliberadamente, a informação da população.
Bingo. Khan e sua tripulação são esses homens e mulheres que conseguiram
escapar e agora encontram nova possibilidade de conquistar e dominar o que
vier pela frente.
Uma historiadora apaixonada
A nave Enterprise é uma nave de exploração, em sua missão de cinco anos,
audaciosamente indo onde ninguém (homem, na série original) jamais esteve.
Portanto, é evidente que na sua tripulação ela também possua historiadores. A
tenente Marla McGivers é uma delas, sendo especializada em história do
século 20.
Desde o primeiro contato com Khan, quando ele ainda se encontrava
dormindo na câmara criogênica, ela se sente extremamente fascinada e atraída
por ele. É ela que revela ao capitão qual a provável origem de Khan,
determinando que ele era um sikh, do norte da Índia. Aliás, a tripulação da
Botany Bay era multiétnica. Contudo, a fixação de Marla é centrada em Khan,
fato que a fez receber uma reprimenda do capitão, preocupado que seu
envolvimento emocional atrapalhasse a objetividade da missão.
De qualquer forma, não adiantou. Ela se tornou perdidamente apaixonada
por Khan, que soube manipulá-la de forma muito hábil. Um aspecto
importante é que ela acaba sendo agredida fisicamente por Khan, porém
mesmo assim mantém sua paixão e se dispõe inclusive a auxiliá-lo na tomada
da Enterprise. Khan, além de super-homem é supermachista, e faz com que
Marla se submeta incondicionalmente a ele. Aliás, nesse episódio outra
mulher é agredida além de Marla: Uhura, quando se nega a colaborar com
Khan. Uma das respostas para esse fascínio todo por Khan é que Marla se
interessava particularmente pela história de grandes homens do passado que
haviam sido conquistadores e/ou chefes militares, exatamente o perfil de Khan.
É ela que descobre antes de todos (no mínimo sua obrigação como
historiadora) a real identidade de Khan, embora não comunique ao capitão,
cegada por sua paixão.
Em seus aposentos, Marla tinha por passatempo a pintura, tendo pintado
diversos quadros das figuras históricas que admirava. Ela gostava de Leif
Eriksson, tido como o primeiro europeu a chegar às Américas. Ou seja, um
desbravador, um conquistador. A menção a Eriksson nesse episódio se dá,
provavelmente, pelo fato de que poucos anos antes, o presidente Lyndon
Johnson havia estabelecido uma data comemorativa em memória do navegador
islandês, devido a descoberta de vestígios arqueológicos no Canadá que
comprovavam a existência de Vinlândia, o povoado que ele fundara no século
XI. Marla também admirava Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra no
século XI e que liderou a terceira Cruzada, e Napoleão Bonaparte, general
francês que derrotou praticamente todos os exércitos da Europa no século
XIX. Seguindo este padrão construído pelos roteiristas, embora as figuras
idolatradas por Marla sejam bastante distintas, possivelmente ela admirasse
Hitler também. Evidentemente, isso não foi colocado no episódio.
O que causa estranheza é a representação irreal do que é um historiador de
fato. Marla parece mais uma diletante, uma pessoa que simplesmente gosta de
história e lê livros de história como passatempo. Um historiador de verdade,
que sabe que a história é uma ciência, jamais teria as predileções absurdas que
Marla revela ter por tais figuras históricas. O fato é que esse tipo de relação
que ela possui com o objeto de estudo, acaba fazendo que ela colabore com a
tomada da Enterprise por parte de Khan e seus apoiadores.
Marla acrescentou Khan, vivo diante de si, à sua lista de grande homens da
história (sob seu ponto de vista). No entanto, ela faz uma ressalva para ele: você
não irá gostar de nosso tempo. Mas por quê? Ora, porque no século 23, a
humanidade libertou-se de todas as formas de opressão. Não existem classes
sociais, há igualdade de gênero, o ser humano foi emancipado e tornou-se
livre, portanto, é um mundo completamente estranho a Khan e refratário às
suas ideias eugenistas e ditatoriais.
Khan é um ditador
Ainda sem conhecer exatamente as intenções de Khan e justamente para
tentar perscrutá-las, Kirk consente com um jantar em sua homenagem
proposto por Marla McGivers. Durante a conversa, Kirk percebe que Khan
expressa suas ideias em termos militares. Em um deslize, Khan acaba
revelando, ao usar o pronome “nós”, que fazia parte de um grupo que tentou
dominar o planeta no século 20. Khan afirma que pretendia unir a Terra, ao
que Spock retruca: “Unir? Como um bando de animais sob o chicote?”. Perfeito. A
Federação Unida de Planetas, como o próprio nome diz, é uma união. Porém,
as mais de 150 espécies reunidas em torno dessa organização estão unidas por
laços de solidariedade e paz. Cada uma possui seu governo autônomo, porém,
ligada a uma organização maior. Não é esse um sonho dos comunistas? O
mundo unificado, com respeito às culturais locais, porém reunido em uma
grande organização... humana.
Khan é o contrário de tudo isso. É um conquistador obcecado pelo poder.
Na cena em que estão reunidos logo após descobrirem a verdadeira identidade
de Khan (o ditador, entre 1992 e 1996, da maior porção conquistada nas
Guerras Eugênicas - Ásia e o Oriente Médio), Kirk, Spock, McCoy e Scotty
conversam manifestando admiração por alguns líderes autoritários do
passado. Spock não entende, Kirk explica com bom humor que os humanos
ainda guardam traços de barbárie. Mas Spock não se convence e arremata:
ilógico. Muitas vezes, no senso comum, reproduzido nessa cena, as pessoas
acabam demonstrando certa admiração por figuras históricas horríveis.
Reconhecem seus crimes, para em seguida vir um “mas”, ressalva feita com o
objetivo de destacar alguma medida positiva que eventualmente tomaram.
Esse é um grande risco, pois pode-se incorrer em um relativismo que é
perigoso.
Com esta formação social encerra-se, por isso, a pré-história da sociedade humana.
Karl Marx
Socialismo ou barbárie.
Rosa Luxemburgo
Um reflexo assustador
Mirror, Mirror é o segundo episódio da série original a contar uma história a
partir de um problema no teletransporte. Kirk, McCoy, Scott e Uhura estão na
superfície do planeta de uma espécie chamada Halkan. O motivo do contato é
que este planeta possui grandes quantidades de cristais de dilítio, mineral
imprescindível para a propulsão das naves estelares da Frota. Contudo, a
negociação não está dando certo, pois os halkans são uma civilização
absolutamente pacifista e, devido a impossibilidade de saber se a Frota usará
os cristais para praticar violência ou destruição, o Conselho do planeta decide
por não ceder o direito de mineração para a Frota. A missão de Kirk é
conseguir o acordo, porém, não sendo possível, é vida que segue.
A grande diferença da Federação no século 23 em relação às potências da
Terra nos dias de hoje é que os seus princípios são de profundo respeito à
autonomia e às decisões tomadas pelas civilizações com as quais estabelecem
contato. Não é à toa que a principal norma para a Frota Estelar é a Primeira
Diretriz, que versa justamente sobre a não interferência nos assuntos internos
dos outros planetas. Assim, evitam-se os terríveis erros da história que
geraram guerras, genocídio e escravidão como no caso dos indígenas e dos
africanos, por exemplo.
O representante principal do Conselho dos halkans lembra a Kirk que se
ele quisesse poderia destruir o planeta e tomar o dilítio à força, o que é
verdade, devido à capacidade tecnológica e bélica da Frota Estelar. Porém Kirk
apenas sorri e diz que isso jamais acontecerá.
Uma tempestade iônica começa e se torna cada vez mais intensa fazendo
com que o capitão decida retornar com seu grupo para a Enterprise. Na sala de
transporte, a materialização demora mais do que o usual. Quando o grupo
finalmente é materializado, eles rapidamente percebem que algo de muito
estranho ocorreu: estão trajando uniformes muito diferentes, os oficiais fazem
uma saudação esquisita batendo no peito para em seguida esticar o braço
como um imperial “Ave César” (ou a saudação nazista) e, a mais insólita de
todas... Spock está usando um cavanhaque!
Logo, é preciso de adaptar rapidamente, sob o risco de serem descobertos e
penalizados de alguma forma. O temor se justifica pois o oficial que operou o
teletransporte é duramente castigado pelo Spock de cavanhaque, a partir do
“agonizador” que carrega. Aparentemente, os oficiais da nave levam junto a si
esse aparelho que, para efeito de disciplina, pode ser acionado por seus
superiores. Já fica claro que se trata de um reflexo bizarro do universo
conhecido por nossos heróis. Ao contrário da Frota e dos valores da Federação,
que pregam soluções pacíficas, nesse universo alternativo tudo é feito pelo
terror: castigos corporais, tortura, violência e conspirações.
Quando Kirk consegue ficar a sós com seus companheiros ele diz: “É a
nossa Enterprise, mas não é”, enquanto tenta descobrir onde exatamente foram
parar e como voltar para casa. A conclusão não demora: estão em uma
realidade alternativa, onde existem réplicas de objetos, pessoas, planetas do
universo inteiro. No entanto, são réplicas que atuam de maneira oposta aos
nosso heróis, possuindo valores totalmente diferentes. Mas a conclusão mais
aterradora vem a seguir: se eles foram transportados para esse universo é claro
que suas contrapartes malévolas foram parar no outro universo.
No entanto, Spock (o nosso Spock, sem cavanhaque) logo percebeu que
aqueles não eram os verdadeiros tripulantes, pois é muito mais fácil um
civilizado se passar por bárbaro do que um bárbaro se passar por civilizado,
em suas palavras. Nada como a lógica vulcana. Assim, os colocou em uma cela,
até que fosse encontrada uma maneira de mandá-los de volta.
Até mesmo os historiadores falham em aprender com a história e repetem os mesmos erros.
John Gill
A verdade é universal, não é ela que me pertence, sou eu que lhe pertenço, é ela que me possui, não sou
eu que a possuo.
Karl Marx
Nazismo no espaço
A Segunda Guerra Mundial e o nazismo são alguns dos temas históricos mais
presentes e explorados na cultura pop. Quando entramos em qualquer banca
de revistas, por exemplo, nos deparamos com uma quantidade significativa de
publicações que abordam o assunto, frequentemente trazendo a imagem de
Adolf Hitler na capa. Da mesma forma, são incontáveis as séries, minisséries,
filmes e games que usam o período da Segunda Guerra para desenvolver suas
narrativas.
Patterns of Force é um episódio que se encaixa perfeitamente nessa
descrição. Sua história trata de um planeta que seguiu os passos do nazismo,
estabelecendo um governo ditatorial, no qual a ordem é mais importante do
que tudo e onde existe a perseguição implacável não somente aos inimigos do
regime, mas, sobretudo aos indivíduos que não sejam da mesma etnia daqueles
que estão no poder.
A história parte do seguinte ponto: um historiador terrestre, chamado John
Gill, que exercia a função de observador cultural da Federação em um planeta
chamado Ekos desaparece sem deixar rastros. É a missão da Enterprise
investigar seu desaparecimento e, se for o caso, encontrá-lo com vida e
resgatá-lo. Dessa forma, a nave chega a um sistema solar que possui dois
planetas habitados: Ekos e Zeon. A partir daí, descobertas surpreendentes
guiarão Kirk e Spock na busca por John Gill.
Ao descerem no planeta, o capitão e seu primeiro-oficial vulcano se
deparam com algo que parecia impossível. Ekos apresenta uma sociedade
muito semelhante à Alemanha nazista das décadas de 30 e 40 na Terra. Os
uniforme dos oficiais, a suástica e a perseguição aos zeons, que são o povo
equivalente aos judeus na história real. Aliás, a escolha dos nomes dos dois
povos é muito significativa. Zeons, claramente, se refere ao Monte Sião, isto é,
à terra de Israel, do povo hebreu. Os nomes dos personagens zeons não deixam
a menor sombra de dúvida sobre a associação que se espera da audiência:
Abrom, Isak e Davod.
Por outro lado, Ekos vem da palavra grega oikos, que significa literalmente
casa. Porém, além desse sentido, o termo se refere também à família e à
propriedade. Portanto, é possível fazermos a associação com a ideia de pátria,
muito importante para os estados nacionais, sobretudo para os regimes
extremamente nacionalistas como o construído por nazistas e ekoseanos.
O nacionalismo, tem em sua base, a separação daquilo que é “nosso” em
relação aquilo que é estranho a uma suposta cultura nacional. Tradições,
língua, arte, história etc. são frequentemente mobilizados e manipulados de
forma a se construir uma verdadeira “alma” da nação, um povo único, com
características que a distinguiria de todas as outras. Como Eric Hobsbawm
demonstrou, essas formas de construção ideológica são absolutamente falsas,
são inventadas. É precisamente o que vemos no caso de Ekos, onde uma
espécie de cimento social foi criado para unir a população que se encontrava
fragmentada e dividida. Porém, para deixar esse cimento ainda mais forte, é
necessário que se encontre um “outro” para contrastar com os valores da
nação e do povo, provando sua superioridade. A partir desse entendimento, de
que esta nação é superior às outras, fato comprovado pela inferioridade do
“outro”, é que se podem estruturar ideologias e regimes políticos como o
nazismo e a perseguição aos zeons por Ekos.
Kirk e Spock, tidos como zeons, são presos e levados à um interrogatório,
que é realizado sob tortura, obviamente. A essa altura, para supresa de ambos,
já descobriram que John Gill é o Führer de Ekos. É algo que não faz o menor
sentido para eles, pois Gill se trata de um acadêmico, um intelectual, um
historiador, que certamente conhece os horrores e os sentidos do nazismo na
história humana. Como ele poderia implantar e se tornar o líder de um
governo nazista? É em busca dessas respostas que nossos heróis conseguem
botar para dormir alguns oficiais nazi-ekoseanos e vestem seus uniformes.
Todavia, as orelhas de Spock denunciam ambos, fazendo com que sejam
presos e torturados a chicotadas. Um dado curioso é que tanto William
Shatner (Kirk) quanto Leonard Nimoy (Spock) são judeus. Dá para imaginar
algum desconforto de ambos em vestir uniformes nazistas.
Na cadeia, conhecem Isak, um dos membros da resistência dos zeons.
Conseguem fugir e são levados por ele para o esconderijo, onde conhecem
outros membros da resistência, que ficam desconfiados. Afinal, eles lutam
contra um regime opressor e violentíssimo, que busca exterminá-los, o que é
muito mais grave do que uma simples prisão, tortura ou exílio. Portanto,
Abrom diz para Isak que não devem ajudá-los, ao mesmo tempo informa que
sua esposa foi assassinada na rua. Da mesma maneira que muitos judeus foram
massacrados pela população, ela foi linchada, em um espetáculo de horror que
durou cinco horas. Mesmo impactado pela morte da mulher, Isak reafirma sua
intenção de ajudar Kirk e Spock, argumentando para Abrom que se eles se
comportarem como nazistas se tornarão tão ruins como eles. Um último teste
ainda é realizado. Daras, uma oficial condecorada do partido nazista de Ekos
(que na verdade é uma zeon infiltrada) simula um ataque ao esconderijo, ao
que Kirk e Spock reagem salvando os zeons. Nosso intrépidos oficiais da
Enterprise passaram no teste e agora precisam usar a inteligência para
enfrentar a irracionalidade que domina os ekoseanos.
Causas e motivações
John Gill é conhecido por ser um historiador que não se atém às datas, nomes
e eventos da história. É muito mais sofisticado e procura em seu trabalho
determinar as causas e motivações da história. Na verdade, desde o século 19
que os historiadores buscam trabalhar dessa forma. É verdade que houve a
história positivista, que acreditava somente no uso de fontes escritas e oficiais
que fossem produzidas pelos governos. Mas o fato é que, na década de 1960,
quando Star Trek vai ao ar, os historiadores já trabalhavam da forma que
Spock afirma ter ficado admirado em relação a John Gill, influenciados pela
chamada Escola dos Annales. Mas ok, tudo bem. O que podemos refletir sobre
isso é: como um historiador, que, com toda a certeza, conhecia as causas e
motivações do nazismo pode ter cometido o erro de tentar reproduzi-lo em
outro planeta?
A resposta certamente passa pelo contexto onde o nazismo prospera: a
Alemanha destroçada pela Primeira Guerra Mundial, que sofre as
consequências da paz punitiva de Versailles. Portanto, Gill viu no nazismo a
possibilidade de reerguer Ekos. Outro elemento importante: o temor de que o
comunismo pudesse vencer no país, já que um percentual gigantesco de
trabalhadores estava compreendendo a importância de uma sociedade que
pudesse escapar do controle da burguesia. Gill temeu uma revolução, com
efeitos imprevisíveis. Essas são algumas das causas e motivações para que
Hitler e os fanáticos que o cercavam, procurassem chegar ao poder, para
acabar com a ameaça comunista e para lutar pela construção de um império
colonial alemão que fizesse frente principalmente à Inglaterra e à França.
Portanto, John Gill comete o terrível erro de considerar somente uma parte da
história. Aquela que diz respeito à necessidade de reerguer a Alemanha das
cinzas da Primeira Guerra Mundial e evitar algum tipo de revolução provocada
por esse estado de coisas. Situação análoga a encontrada em Ekos por ele.
Dessa forma, Gill acabou desrespeitando à Primeira Diretriz, algo que se
provou um tremendo erro. Afinal, é justamente para evitar a contaminação
cultural das sociedades com as quais a Frota estabelece contato, que a regra de
não-interferência foi criada. No entanto, é uma questão que sempre pode ser
discutida, pois ela tem implicações muito importantes. No caso de Ekos, por
exemplo, Gill encontrou uma sociedade fragmentada e dividida, em suas
palavras. Foi louvável sua intenção em ajudar aquele povo a se recuperar.
Contudo, a maneira que ele encontrou para fazer isso é que foi catastrófica.
Então, como equilibrar tudo isso? Se era um povo precisando de ajuda, me
parece admissível e até mesmo necessário que a Federação dê algum tipo de
auxílio. Porém, a forma que essa ajuda é ministrada é que deve ser discutida
amplamente, não deixando a decisão para um homem só, como foi o caso de
Gill. O resultado de sua intervenção, decidida solitariamente, serve para se
radicalizar ainda mais a Primeira Diretriz, o que é contraproducente.
Os futuros historiadores da Federação, quando estudarem o caso de Ekos,
poderão perceber claramente estas questões, chegando a conclusões
importantes. Para eles, ficarão nítidas as causas que levaram Gill a interferir
no planeta: uma sociedade passando por enormes dificuldades, que talvez a
levassem à própria extinção. Já sua motivação seria a autoconfiança excessiva
em seus conhecimentos históricos, que o permitiria reproduzir um sistema
monstruoso desde que seus elementos negativos fossem anulados. Seu
principal erro foi crer nessa possibilidade.
É claro, que ao analisarmos os erros de John Gill, não podemos simplificar a
questão e atribuir tudo a ele, como muitas vezes é feito em relação ao nazismo
e ao holocausto, que teriam sido frutos do trabalho de um único homem
portador de uma mente doentia. Aliás, o episódio incorre nesse erro, por
exemplo quando McCoy recorre ao velho adágio: “poder absoluto corrompe
absolutamente”. No caso de Hitler, suas ideias já estavam escritas e publicadas
muitos anos antes de conseguir o poder. Deste modo, simplificam-se eventos
históricos da maior complexidade, sendo desconsiderados o papel do
imperialismo, da evolução do antissemitismo ao longo dos séculos e da
ideologia. Desses três, vemos claramente os dois últimos em Patterns of Force.
Ideologia e desespecificação
Como dito antes, para que um sistema radicalmente nacionalista e baseado na
“raça” prospere é necessária a construção de um inimigo que ameace a pureza
e a união de tal povo. Para isso, é preciso que se recorra à ideologia e à
desespecificação do “inimigo”. Ambas ocorreram tanto na Alemanha nazista
quanto em Ekos.
Inicialmente, cabe a questão: o que é ideologia? De antemão aviso que é um
conceito bastante complexo, polissêmico, devido a seu uso por mais de dois
séculos nas ciências sociais e humanas. A ideologia pode ser entendida como
uma simples visão de mundo ou então como uma distorção da realidade (como
vemos em filmes como Matrix ou They Live, por exemplo) que acaba servindo
para a dominação de uma classe sobre a outra. Esses dois aspectos estão
presentes na ideologia nazista e na ekoseana.
Na modernidade, com o surgimento dos meios de comunicação de massa,
da indústria cultural e dos seus produtos é possível que a ideologia seja
sentido a serviço do poder, como afirma John B. Thompson. Vamos tentar
colocar isso de uma forma mais clara. Em uma determinada sociedade existe a
construção de sentidos, isto é, quais as formas que os integrantes dessa
sociedade se relacionam, porque se relacionam, quais os significados disso.
Para que se possa construir esse sentido, são utilizadas as formas simbólicas,
isto é, desde a fala cotidiana até a complexidade de imagens e textos, como
filmes e livros, por exemplo. Star Trek também é uma forma simbólica, e
portanto, nem ela escapa de carregar uma ideologia que pode ser contrária a
muitos elementos presentes neste livros, justamente por ser um produto da
indústria cultural dos Estados Unidos. E por que isso? Porque a ideologia é
sentido a serviço do poder, de forma que ajuda a manter e reproduzir forma de
dominação assimétricas.
Isso é amplamente percebido no nazismo: através da utilização do cinema e
do rádio, que criaram a imagem do judeu como um inseto que deveria
simplesmente ser exterminado, sob pena de conspurcar a pureza da raça
ariana, estabeleceu-se uma relação de dominação do Führer sobre o seu povo.
Ele seria a figura capaz de livrar a Alemanha da ameaça judaica.
Em Ekos esta situação é brilhantemente representada. Logo ao chegar ao
planeta, Kirk e Spock se deparam como uma tela no centro da cidade
transmitindo a informação de que um ataque dos zeons havia sido repelido
pelos militares ekoseanos. É uma mentira. Mas reforça a ideia de que os zeons
oferecem um risco real a Ekos, legitimando-se, portanto, a defesa contra eles.
Ainda na mensagem se fala na “decisão final” contra os zeons, ou seja, seu
extermínio, como a “solução final” pregada e posta em marcha pelos nazistas.
Posteriormente, haverá um pronunciamento do Führer/Gill, transmitido para
todo o planeta, no qual reforça-se a ideia de que o inimigo zeon deve ser
liquidado de uma vez por todas, livrando o planeta do que se considera uma
contaminação. Os meios de comunicação são maneiras muito efetivas de se
disseminar ideologias, como demonstra o nazismo e a sua representação no
episódio.
Qual o centro da ideologia nazista e ekoseana? O fato de que os
judeus/zeons não são humanos. Ou seja, é realizada a desespecificação destes,
de forma que seu extermínio seja aceito como algo natural, como medida
profilática. Himmler, um dos maiores ideólogos nazistas dizia que matar
judeus era como matar piolhos, portanto, não havia nada de ideologia nisso,
era apenas uma medida de higiene. Em Ekos se constrói, através da TV, o
sentido de que os zeons envenenavam o planeta, associando-se à
contaminação e doença. Logo, se algo tão pernicioso assim está presente no
“corpo” da sociedade, é preciso que medidas drásticas sejam colocadas em
prática. A metáfora do corpo é muito eficaz nesse caso, do qual é necessário
remover cirurgicamente o elemento estranho que não o permite ser totalmente
saudável.
No caso dos judeus, o antissemitismo existia desde a Antiguidade,
passando por três fases: antijudaísmo (no qual bastava ao judeu se converter
para ser aceito na comunidade); antissemitismo étnico-nacionalista (que ainda
acreditava na conversão, porém com certa desconfiança); e antissemitismo
racista (que embasa o nazismo e a solução final, pois desespecifica todos os
judeus). Esse último funciona como uma exclusão do indivíduo pertencente a
determinado povo ou etnia da categoria humanidade. Assim, como ele não
pertence a espécie humana, é lícito e até desejável que ele seja escravizado ou
então exterminado fisicamente. É exatamente essa última visão que os
ekoseanos tem dos zeons.
Ademais, os judeus foram associados com os revolucionários bolcheviques,
promovendo uma dupla desespecificação, que é muito importante. Se por um
lado os judeus não podiam ser considerados humanos pela sua inferioridade
intelectual e física, por outro eles eram considerados naturalmente
comunistas, sempre apresentado características insurrecionais contra as raças
dominantes. Esse fato faz recrudescer a ira de Ekos contra Zeon, pois este
último não aceita passivamente o destino que querem imputar ao seu povo,
promovendo a revolta contra o opressor.
Essa visão de que existem povos bárbaros, naturalmente bárbaros, que são
ressentidos e que sempre promoverão rebeliões contra os povos dominantes é
amplamente defendida por Nietzsche em sua obra. O filósofo alemão era um
radical aristocrático, que defendia a escravidão dos povos tidos como
inferiores, que logicamente seriam os povos dos países coloniais, eslavos e
judeus. Algo inaceitável para um pensador contemporâneo ao marxismo, que é
precisamente a quebra do paradigma racista do século 19. No entanto, suas
ideias foram abraçadas com entusiasmo por nazistas (como é possível vermos
na representação ekoseana). John Gill, sendo igualmente um pensador, acabou
por produzir ideias que também foram utilizadas para a discriminação e
violência contra os “diferentes”.
A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes.
Marx e Engels
Esse planeta conturbado é local dos mais violentos contrastes. Aqueles que recebem a recompensa são
totalmente separados dos que carregam o fardo. Não é uma liderança sábia.
Spock
Os que no regime burguês trabalham não lucram e os que lucram não trabalham.
Marx e Engels
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o
poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.
Marx e Engels
Acumular riqueza não é mais a força motriz de nossas vidas. Trabalhamos para melhorar a nós
mesmos e ao resto da humanidade.
Picard
Representações do capitalismo e do
socialismo
De fato, o reino da liberdade só começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e
por utilidade exteriormente impostas.
Karl Marx
A efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais.
Karl Marx
Um início complicado
A primeira e a segunda temporadas de Star Trek: The Next Generation,
claramente, não são as melhores da série. E isso se dá pois a série não
conseguiu desenvolver plenamente uma personalidade própria em seus dois
primeiros anos. Criar uma nova série de Star Trek, com toda a grandeza de
personagens, raças alienígenas, espaçonaves, valores etc. já feita até então não
foi uma tarefa fácil. Se, por um lado, havia toda essa história que servia como
referência, por outro, apresentava-se a grande dificuldade de criar algo que
trilhasse seu próprio caminho.
Portanto, foi um desafio imenso para seus produtores conseguir cortar o
cordão umbilical que ligava The Next Generation à série original, sobretudo
pelas dificuldades que Gene Roddenberry criava para os roteiristas. Por
exemplo, Roddenberry estabeleceu, como uma espécie de regra de ouro, que
não poderia existir conflitos entre os personagens principais. Isso tornava
quase impossível a escrita de boas histórias, que para isso devem possuir
conflito e drama. Gene também não queria episódios baseados em defeitos
tecnológicos. Realmente, algo bastante difícil para uma série que tem nas
tecnologias avançadas um dos seus pilares. Era um verdadeiro pesadelo para a
equipe criativa da série!
Essas limitações, que foram cedendo aos poucos, são em grande parte
responsáveis pela menor qualidade das duas primeiras temporadas, quando
comparadas às seguintes, fique claro. Pois é evidente que os personagens
sempre mostraram grande potencial, assim como a majestosíssima nova
EnterpriseD e alguns dos episódios que se tornaram clássicos instantâneos,
por contarem grandes histórias. Pois um desses episódios, o último da
primeira temporada, é The Neutral Zone, que além de trazer de volta os
perigosos romulanos, apresenta uma grande reflexão sobre a “infância” da
humanidade, através de um personagem que é um típico homem do período
capitalista.
O fetichismo de Offenhouse
Uma das características mais marcantes do modo de produção capitalista é o
fetichismo da mercadoria, como explicou Marx. O mundo social, no
capitalismo, é uma grande coleção de mercadorias e são elas que regulam as
relações sociais. No capitalismo, as pessoas se relacionam por meio de
mercadorias, tem suas vidas estruturadas e vividas em prol das mercadorias,
vivem e morrem por elas.
A mercadoria é uma criação humana. No entanto, a mercadoria controla a
vida dos seres humanos. Ao verificarmos isso, podemos entender o que Marx
quis dizer com o fetiche que se desenvolve em torno da mercadoria. Todas as
mercadorias que compramos e utilizamos não foram produzidas por nós.
Portanto, o ser humano não se reconhece nela, embora ela seja fruto do
trabalho humano. Nesse ponto ocorre também a alienação, pois ao não
controlar todo o processo de produção da mercadoria, nem o seu próprio
produtor se vê nela. A mercadoria passa a ser um ente independente do ser
humano, como se não houvesse sido criado por ele. Como se tivesse surgido
por feitiço. Assim, forma-se um culto em torno da mercadoria e esta, se por
um lado oculta as verdadeiras relações no capitalismo, por outro torna-se um
ídolo.
O ídolo de Offenhouse é o seu dinheiro. Dessa forma, para ele é algo
completamente atordoante acordar em um século onde as relações sociais já
não são mais mediadas pela mercadoria e pelo dinheiro. Quando descobre que
está em uma nave chamada USS Enterprise, obviamente, ele acredita que se
trata de um veículo dos Estados Unidos, ao que Picard rapidamente desfaz o
engano. Em segundo lugar, Offenhouse quer comprar um exemplar do “Wall
Street Journal”, para se informar a quantas andam as transações na bolsa.
Acredito que seria melhor que lhe colocassem na primeira nave rumo a
Ferenginar, onde certamente Offenhouse se sentiria em casa.
Do mundo primitivo e bárbaro do qual Offenhouse vem, é incompreensível
que as pessoas não tenham suas vidas organizadas em torno de maneiras de
ganhar dinheiro mais do os outros, em uma corrida por posses e poder. Uma
sociedade cooperativa como a vista na Federação, para ele, é um sinal de
fraqueza, já que ele se trata de um predador, que todos os dias busca atacar e
destruir quem estiver no seu caminho para o lucro. Não surpreende, que dos
três personagens, Offenhouse seja o mais refratário à ideia de novo mundo.
Afinal, ele construiu sua vida sob a estrutura mais anti-humana do
capitalismo: o sistema financeira.
Picard é marxista
Offenhouse, obviamente, tem muitas dificuldades para entender o
funcionamento de uma sociedade sem dinheiro. Afinal, o personagem é a
representação do capitalismo. Ele pensa nesses termos e para que um
pensamento tão arraigado seja transformado são necessários mais do que
alguns instantes a bordo da Enterprise. Aliás, ele estava muito preocupado em
poder contatar o banco e saber de suas contas em Genebra, que, em sua visão,
teriam rendido tantos juros em todos esses séculos, que dariam para comprar a
própria Enterprise. Se estivéssemos no filme First Contact, certamente Picard
lhe diria, como disse para Lilly: “a economia do século 24 é um pouco diferente”. É
nesse mesmo sentido que Picard, que é a representação do socialismo, terá
uma conversa muito interessante com Offenhouse.
Ele insiste em dar um telefonema ou entrar em contato com seu advogado
para saber de suas finanças. Picard lembra que seu advogado está morto há
séculos, mas Offenhouse não desiste, dizendo que ele fazia parte de um grande
e sólido escritório que ainda existira. Picard percebe então do que se trata a
ansiedade de Offenhouse: dinheiro, riqueza, posses.
É disso que se trata. Muita coisa mudou nos últimos 300 anos. As pessoas não são
mais obcecadas por acumular coisas. Nós eliminamos a fome, o desejo, a necessidade
por posses. Nós saímos de nossa infância.
É necessário a adoção absoluta do princípio de que nenhum homem, vermelho, negro ou branco que
seja, pode ser propriedade de seu semelhante.
Toussaint Louverture
A Frota Estelar foi criada para procurar novas vidas. Ali está uma.
Picard
Cláusula de exclusão
A Enterprise chega à Base Estelar 173, construída nas proximidades da Zona
Neutra, devido à ameaça romulana que vimos na seção anterior. Lá, o capitão
Picard encontra uma velha conhecida, a agora procuradora-geral da Frota
Philippa Louvois, com a qual fica implícito que Picard teve um romance. O
que fica claro é que Louvois atuou como promotora na corte marcial
enfrentada pelo capitão quando do desaparecimento da nave onde exerceu seu
primeiro comando, a USS Stargazer. Louvois voltou à Frota, depois de um
afastamento involuntário, ocorrido após a corte marcial de Picard, e agora
encontra-se no espaço profundo, buscando criar legislação, fazer boas leis, em
suas palavras. O reencontro de ambos é recheado de tensão, inclusive sexual.
Nada como a mistura explosiva de sexo e poder, que parece ser o caso aqui.
No entanto, o encontro mais importante se dá com o comandante Bruce
Maddox, especialista em cibernética que chega à Enterprise com uma proposta
muito interessante, ao menos sob sua perspectiva: desmontar Data.
Maddox é obcecado pelo trabalho do Dr. Noonien Soong, “pai” de Data,
Lore e B-4, os três androides do mesmo modelo que aparecem em Star Trek.
Data, já sabemos, é o bonzinho. Lore é o malvado. E B-4 possui pouca
inteligência. Sendo assim, Maddox tem por objetivo criar um cérebro
positrônico funcional, algo que ninguém conseguiu executar, a não ser o Dr.
Soong. Para isso, ele precisa desmontar Data e obter o conhecimento a partir
da análise dos filamentos do seu córtex frontal. Contudo, logo se percebe que o
experimento de Maddox é mal planejado e não oferece garantias de que Data
sairá ileso do procedimento. A questão então começa a ficar clara: isso não
importa, já que Data não é considerado um ser senciente por Maddox. Além
do mais, e reforçando essa hipótese, o objetivo do comandante é criar
centenas, milhares de seres como Data, o que tem graves e profundas
implicações, que estão no centro da discussão apresentada pelo episódio. Data
é visto como um ferramenta a ser replicada.
Picard, ao reafirmar a importância e o valor de Data, não somente como
tripulante, mas como seu oficial da ponte, decide não autorizar que Maddox
realize o experimento em seu subordinado. Porém, Maddox havia se precavido
e trouxera uma ordem de transferência de comando, passando Data para sua
jurisdição, na Base Estelar 173. Nesse momento, não houve mais nada a ser
discutido, pois se tratava de uma ordem expedida pela Frota Estelar. Maddox,
vencedor nesse primeiro embate, ordenou que Data se apresentasse a ele nas
primeiras horas do dia seguinte para fossem iniciados os procedimentos.
A essa altura fica evidente que existe uma verdadeira cláusula de exclusão
não escrita para Data em relação aos direitos individuais garantidos para
todos os cidadãos da Federação. Temos apresentado nesse livro as
características desse mundo utópico, especialmente em contraste com o
mundo contemporâneo, o que nos revela como somos irracionais e como a
Federação representa uma meta a ser atingida pela humanidade, sob pena de
nossa autoextinção. No entanto, a própria Federação e a Frota Estelar
cometem seus pecados no paraíso, o que nos serve para vislumbrar que,
mesmo na utopia existem contradições. Certamente não as mesmas que
vigoram sob o capitalismo, mas contradições inerente a essa nova forma de
organização social. Contudo, a questão do Data, e sua exclusão dos direitos
humanos, é uma grande alegoria sobre a condição do ser humano não
pertencente às classes dominantes, que por isso mesmo, têm o poder de
escravizá-lo e de negar-lhe os direitos básicos.
Data, de mãos atadas sobre a transferência e a experiência na qual será uma
cobaia, procura seu capitão para informar que não se submeterá ao
procedimento, saindo da Frota Estelar. Picard, ainda não tendo percebido a
gravidade do que significa permitir que Data tome parte do experimento, tenta
argumentar, dizendo que seria muito bom possibilitar a criação de novos
androides. Data, então, aborda a questão de maneira precisa e contundente,
colocando um exemplo atordoante para Picard. Geordi possui a capacidade de
enxergar mais e melhor do que qualquer outro ser humano da Frota. Então,
por que não colocar implantes semelhantes aos seus em cada um dos oficiais?
A resposta é simples: os outros oficiais são humanos e isso jamais poderia ser
feito contra a vontade de alguém que possui direitos sobre sua vida, sobre seu
próprio corpo, sobre sua vontade. Essa conclusão nos leva a outra: o
procedimento de Maddox pode ser realizado, mesmo contra a vontade de Data,
pois ele não é humano. Logo, ele não se trata de um ser senciente, com
vontade, com direitos, com autodeterminação. Novamente salta aos olhos a
cláusula de exclusão imposta a Data.
Assim, vamos percebendo a sua situação. Data é um instrumentum vocale, é
uma ferramenta bípede, está pouco acima dos animais, que ainda hoje,
utilizamos para alimentação ou trabalho. Portanto, é negada a sua
individualidade, mesmo com a alardeada liberdade e igualdade que vigem sob
a bandeira da Federação. Lembremos, que mesmo no paraíso existem
problemas, mas que essa história é uma representação para que reflitamos
sobre se essa situação não ocorre ainda no mundo atual. A palavra-chave é
cláusula de exclusão. Será que não existem bilhões de seres humanos em pleno
século 21 que ainda se encontram totalmente privados de exercer seus direitos
individuais? Embora seus países apreciem ostentar que são livres e
democráticos, milhões de seus cidadãos passam fome, são doentes e não
encontram a saúde, são ignorantes e não têm acesso à educação. Isso não tem
a ver com esse episódio? A oposição entre a farsa da liberdade sob o
capitalismo e a realidade daqueles milhões que são miseráveis para que os
donos do poder sejam ricos.
Marx e Engels já revelavam no Manifesto Comunista a profunda hipocrisia
das sociedades democráticas liberais que fazem questão de bravatear que
somente nelas é possível o indivíduo viver e prosperar. Mas quem é esse
indivíduo de que se fala? Para os dois filósofos alemães “quando falais do
indivíduo quereis referir-se unicamente ao burguês, ao proprietário burguês”. Na
situação de Data encontramos o mesmo. Enquanto a individualidade é
garantida aos membros da Frota, ela é vedada aquele que não é considerado
humano.
Na sequência, sua liberdade é totalmente negada, pois se encontra uma
antiga lei (e isso é importante, pois representa um passado primitivo, e o
objetivo de Louvois é fazer novas leis) na qual Data é enquadrado como
propriedade da Frota Estelar. Daí em diante inicia-se a reivindicação pelo
reconhecimento de Data como um ser senciente e portador de direitos.
Um pedido de reconhecimento
Picard contesta a lei e se coloca na posição de defensor radical do
reconhecimento de Data como um igual. Louvois convoca uma audiência, no
entanto, como a Base Estelar 173 foi recentemente aberta, ainda não há
pessoal especializado que possa atuar como defesa e acusação. Nesse caso, ela
se vê obrigada a determinar que Picard atue na defesa de Data e Riker como
acusação. Will se nega a cumprir o papel de acusação, sob alegação de que não
aceita que Data seja apenas uma máquina e que é seu amigo. Mas não há saída,
caso ele não aceite a incumbência, Louvois julgará sumariamente de forma
contrária aos interesses de Data.
Riker acaba por exercer de maneira brilhante seu papel de acusador. Faz
Data entortar uma barra de metal extremamente resistente; retira seu braço,
para provar que é apenas hardware e software; e finalmente o desliga. Seu ponto
foi demonstrar que Data é fruto do sonho de um homem, construído por um
homem e que pode ser desligado por um homem. Isto é, Data é apenas uma
máquina. Portanto, a questão gira em torno de se definir se Data foi ou não
alçado à categoria de humano, da qual, única e exclusivamente, poderia fluir o
seu direito a ter direitos. Após tal impressionante demonstração, Picard pede
recesso e vai se aconselhar com sua boa amiga Guinan (muito melhor
conselheira que Deanna). Até mesmo nosso capitão humanista quase sai
convencido de que Data é apenas um objeto.
Nessa conversa, Picard se dá conte do que se trata realmente a questão
envolvendo o status jurídico de Data: escravidão. Ao se confirmar que Data é
uma propriedade da Frota Estelar, automaticamente, isso irá lhe conferir
maior valor (como objeto, evidentemente). Logo, Data sendo desmontado e
pesquisado, Maddox poderá dar início à construção de centenas, milhares de
Datas, criando assim uma nova raça. Uma raça que é propriedade da Frota
Estelar. Uma raça de seres descartáveis, que servem para fazer o serviço sujo,
perigoso ou aquele que ninguém mais quer fazer. Devemos lembrar que o
trabalho na sociedade representada pela Federação é muito diferente do
trabalho atual, já que o tempo livre é praticamente total em função do advento
dos replicadores. No entanto, um exército de Datas descartáveis ensejaria
novas possibilidades, que os direitos dos seres humanos, inconveniente,
vedam. Assim, o valor desses novos seres coisificados aumentaria
exponencialmente. Mas a que custo? Como a história julgaria a espécie
humana, mais uma vez se valendo – e a palavra é precisamente essa – da
escravidão?
É esse ponto que Picard leva quando retorna à audiência. Sua defesa de
Data se torna mais do que brilhante, ela é o ponto de delimitação do que
humanos podem ou não podem fazer em relação a outros humanos, ou, no
caso, androides. Define se haverá uma fronteira que separe a expansão da
liberdade para alguns e o cerceamento brutal dela para outros.
Para atingir seus objetivos, apresenta três objetos que Data possui. Um
pequeno quadro com suas medalhas e condecorações. É um símbolo de
vaidade. Um livro de Shakespeare, presente do capitão. É uma recordação de
amizade. Finalmente, um retrato de Tasha Yar, que Data guarda devido ela ser
especial para ele. Um objeto que simboliza o afeto ou o amor que sente por ela,
mesmo após sua morte. Uma simples máquina poderia carregar tais objetos,
tais lembranças, atribuindo simbolismos a cada um deles? Pois é justamente a
capacidade de pensar abstratamente e de criar e pensar em termos simbólicos
que distingue o ser humano de outros seres que não são tão conscientes
quanto ele. Picard daria um ótimo advogado se não houvesse escolhido a
carreira de capitão.
Tendo preparado o terreno, Picard parte para seu ataque mais agressivo.
Questiona Maddox sobre quais as características para que uma forma de vida
seja considerada senciente. O comandante diz que são três: inteligência,
autoconsciência e discernimento. Maddox é desafiado a provar que Picard é
senciente, pelo próprio capitão. O oficial considera isso um absurdo, porém,
fica claro a todos na audiência de que se não é necessário provar que um ser
humano é senciente tão pouco é preciso que se faça isso em relação a Data,
que indubitavelmente possui as três características.
Maddox assume finalmente que quer construir centenas ou milhares de
novos Datas. Esse é o ponto onde Picard finalmente pode dar seu golpe fatal: e
se criarmos todos esses androides não criaremos uma raça? Ao criarmos essa
raça não seremos julgados pelo modo como a trataremos? Touché. Os planos
de Maddox, por mais bem-intencionados que fossem, teriam resultados
catastróficos, tanto para quem criasse quanto para quem fosse criado. Seria o
fim da liberdade e da igualdade, dois pilares fundamentais da Federação.
A decisão ficou com Philippa Louvois, que conduzia a audiência. Ela revela
que não sabe quem ou o que Data é exatamente. Mas decide que ele não pode
ser considerado propriedade da Frota. Ela sabe que isso abriria um precedente
trágico, que colocaria em risco a utopia vivida por ela e por seus
contemporâneos. Ela traz uma questão metafísica, um pouco sem sentido, mas
que ilustra seu pensamento e torna mais didático para o público. Ela diz que
não sabe se Data tem uma alma. Para em seguida arrematar dizendo que
sequer pode saber se ela próprio possui uma. Acaba sendo uma referência a
todos os negros escravizados durantes séculos, onde os sacerdotes negavam
que aqueles seres humanos fossem providos de alma, funcionando assim como
uma justificativa ideológica para a escravidão. As mulheres mesmo, como
Louvois, já foram consideradas seres que não tinham alma.
Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, cujos nomes por ora devem permanecer secretos,
dedicaram-lhe esta pedra tumular. Dentro de alguns anos, quando seus adeptos forem mais numerosos,
ele voltará a se erguer e reconquistará a colônia. Tende fé e esperai.
Franz Kafka (No conto “A Colônia Penal”, de 1919, antevendo o surgimento do fascismo)
Norah Satie, ou alguém como ela, sempre estará entre nós. Esperando o momento perfeito para
aparecer. Espalhando o medo em nome da justiça.
Picard
Espionagem triangular
A verdade é que existe uma complicada dinâmica nesse triângulo, nos quais os
vértices são a Federação, o Império Klingon e o Império Romulano. A disputa
por poder e por zonas de influência nos quadrantes Alfa e Beta
frequentemente provoca choques entre os três. Não é à toa, que o mais isolado
deles, o Império Romulano, tenha estabelecido uma Zona Neutra entre seu
espaço e o espaço das outras duas potências. Devido a esse estado de coisas, as
centrais de inteligência de todas as partes estão sempre em alerta, sobretudo o
temível Tal Shiar romulano, que procura estar a par do que ocorre nos centros
de poder das outras forças rivais. Essa dinâmica entre as três potências têm
como uma expressão impressionante o próprio J’Dan. Ele é klingon, mas atua
como espião dos romulanos para lutar contra a Federação.
Quando esse fato é comprovado, através de confissão do próprio espião, ele
revela para Worf (o qual considera um klingon aculturado pelos humanos) que
ele fazia isso pois os romulanos deixam os klingons fortes, ao contrário dos
humanos que os domesticariam. Apesar da argumentação de J’Dan pelo seu
ato de espionagem contra a Federação, é supreendente que um klingon se
porte dessa maneira frente aos romulanos, que são vistos pelos klingons em
geral como uma raça sem honra e traiçoeira.
O que importa é que essa descoberta implica em dois desdobramentos. A
primeira delas é o fato de que J’Dan pode ter contado com a ajuda de algum
tripulante da Enterprise, como veremos logo adiante. O segundo
desdobramento é que a investigação sobre o acidente do reator de dobra
assume um novo significado. Aparentemente, J’Dan ao mesmo tempo em que
enviava informações da Enterprise para os romulanos também agia como
sabotador, de forma a prejudicar uma nave da Frota Estelar. Ele nega ter
cometido esse ato, embora admita e inclusive argumente em defesa do fato de
ter se tornado um espião. Worf deseja que ele seja enviado a Qo’noS (mundo
natal dos klingons) para que sofra uma morte lenta e terrível. Mas a questão se
torna complexa: se J’Dan admite ter espionado por que ele negaria ter
sabotado o reator da nave?
A acurada investigação de Geordi e de Data chega à conclusão de que o que
houve no reator foi um acidente, nada mais que isso. Portanto, nada mais há
que se tratar nesse caso. J’Dan confessou e irá pagar pelo seu crime.
Suspeitas irracionais
Porém, a almirante Satie não se sente satisfeita e começa a ver cada vez mais
indícios de que existe uma conspiração a pleno vapor dentro da Enterprise.
Dessa forma, ela busca descobrir todas as pessoas que tiveram contato com o
cientista klingon, de maneira que o cerco vá se fechando e se possa chegar aos
conspiradores.
Na sua investigação, descobre que um dos assistentes da Dra. Crusher, um
jovem chamado Simon Tarses, havia aplicado algumas injeções em J’Dan
durante sua permanência a bordo, já que o klingon fazia tratamento síndrome
de Ba’ltmasor, que requer esse procedimento semanalmente. Como J’Dan
transformava os dados que obtinha em proteínas, podendo assim transportá-
los no corpo de alguém, sem deixar vestígios e sem que ao menos a pessoa
pudesse perceber, Tarses, torna-se, imediatamente um suspeito. É a senha para
que uma perseguição inquisitorial tenha início.
No primeiro interrogatório de Tarses, ficamos sabendo que ele nasceu na
colônia de Marte e que seu avô era vulcano. Genestra, o betazoide assistente
de Satie, afirma que o rapaz mentiu durante o interrogatório, que estava
nervoso e escondendo alguma coisa. Devido a isso Satie pretende restringir os
movimentos do tripulante enquanto segue a investigação. Picard se opõe
frontalmente a isso, já que considera a liberdade de Tarses, e o princípio de
presunção da inocência, mais importantes do que as desconfianças de Satie e
Genestra. Nesse ponto entra uma outra discussão bastante pertinente: é uma
atitude racional tomar decisões com base nas intuições de um betazoide?
Eu confesso que sempre me incomodou o fato de Deanna Troi ter um cargo
de conselheira, exercendo influência direta sobre o capitão. Mas não pelo fato
de ser uma conselheira, função que é, sem dúvida alguma, bastante importante
para quem precisa tomar decisões que envolvem a segurança da nave e de seus
tripulantes. Porém, não me parece algo racional que o capitão Picard – ou
qualquer outro – decidam o que fazer com base no que um betazoide sentiu ou
não sentiu em um oponente ou quem quer que seja. Esse tipo de coisa me
parece algo místico, que não tem nada a ver com as pretensões racionais e
científicas de Gene Roddenberry e Star Trek como um todo.
O fato é que exatamente essa questão é colocada no episódio de maneira
muito interessante. No diálogo onde Picard contesta Satie por ela colocar
suspeição sobre Tarses devido ao que Genestra sentiu durante o
interrogatório, o capitão percebe que ele mesmo já incorrera nesse erro e que
deveria reavaliar seu posicionamento dali por diante. Isto é, Picard percebeu
que não é algo racional confiar em algo tão extensivamente subjetivo como as
habilidades empatas dos betazoides.
É assim que notamos que as origens das crenças em ameaças mirabolantes
e conspirações estão sempre conectadas a impressões que não condizem com a
realidade. Muito pelo contrário, estão ligadas a mitos, sentimentos, sensações
etc. Usar o exemplo da intuição betazoide para ilustrar isso nesse episódio foi
genial.
Fascismo na Enterprise
Picard afirma que não irá tratar um homem como criminoso sem que haja uma
prova. Isso irrita profundamente a almirante, pois nos dá a impressão de que
para ela todo homem é culpado até se prove o contrário. Em tempos de
desespero, medidas desesperadas. Em nome da liberdade da Federação essa
mesma liberdade deve ser sacrificada momentaneamente (é o que os fascistas
sempre dizem). Dessa forma, os interrogatórios informais vão se tornando
verdadeiros julgamentos.
Picard lembra então dos julgamentos sumários ocorridos durante a
Segunda Guerra Mundial, chamados de Drumhead, palavra que servirá de
inspiração para o título do episódio. Eram cortes marciais, onde tudo se
resolvia muito rapidamente, sem o tempo necessário para se chegar a
conclusões satisfatórias sobre a culpa ou inocência do acusado. Na tradução da
Netflix o episódio recebeu o título de “Inquisição”, que eram os processos por
heresia ocorridos na Idade Média, onde pessoas eram simplesmente mortas
por não se enquadrarem nos preceitos religiosos da época. O episódio pode ser
visto também como uma alegoria ao macartismo, a perseguição tresloucada
aos comunistas nos Estados Unidos na década de 1950. No entanto, a
condução da investigação por Norah Satie vai tomando pouco a pouco
conotações de um outro fenômeno. Sua perseguição aos supostos
conspiradores vai adquirindo formas explicitamente fascistas.
Mas o que é o fascismo?
Essa palavra foi vulgarizada, usada frequentemente nos debates políticos,
onde a esquerda costuma rotular a direita de fascista. Às vezes até mesmo
políticos de centro são taxados de fascistas. Isso é muito contraproducente, e
quem é de esquerda, quem é marxista, deve saber que os conceitos devem ser
utilizados de maneira precisa.
O fascismo surge como movimento político na Itália, com o fim da
Primeira Guerra Mundial. Os italianos, que haviam mudado de lado, sob a
promessa de receber sua parte na divisão do mundo pelo imperialismo,
acabaram não recebendo o que esperavam. Por isso, sentiram-se enganados
pelas potências vencedoras da guerra. Um ex-socialista, Benito Mussolini,
pegou alguns elementos do marxismo, interpretou-os de maneira distorcida e
adaptou-os de acordo com as conveniências políticas do momento. O fascismo
é sempre pragmático. Então ele vendeu para os italianos, esfarrapados pela
guerra, a ideia de que a Itália era uma nação proletária, explorada pelas nações
burguesas. Criou uma luta de classes entre nações que na verdade são todas
exploradoras. Esse foi um primeiro passo para eliminar a diferença dentro da
Itália, fazendo o pobre acreditar que era tão vítima e explorado quanto o rico.
O segundo passo nessa astuta manipulação política foi criar o mito da
pátria. Não há nada mais importante que a pátria para o fascista. Assim,
recorreu ao antigo Império Romano, fazendo os italianos crerem que eram
seus descendentes diretos e por isso lhes cabia conquistar o poder perdido. Foi
da Roma Antiga que criou o termo fascismo. Na época dos césares, os
funcionários que precediam os magistrados carregavam machados com cabos
compridos que eram amarrados por um feixe (fascio) de varas. O machado
representava o poder de Roma, o feixe a união do povo em torno de seu líder.
Estavam dados os elementos que constituiriam um dos movimentos políticos
mais importantes do século 20 e que influenciou determinantemente o
nazismo.
Portanto, o fascismo aproveita a tendência natural do ser humano de querer
viver sob uma comunidade, que nesse caso é essa construção artificial
chamada pátria, para mobilizá-lo constantemente contra seus inimigos
externos e ocultar os conflitos internos. Para isso, utiliza a censura, a tortura,
os julgamentos sumários e os assassinatos. Em suma, espalha o medo de duas
formas: do inimigo e do regime. O fascismo é pura violência contra quem
pensa diferente. Assim, a pátria é o ente pelo qual todos devem viver e morrer.
O modo de vida da nação deve ser mantido a todo custo. A ordem é superior à
liberdade.
A Federação, que na verdade é a soma de 150 planetas, infinitamente
diversos em suas línguas, culturas e espécies, é, para Satie, a pátria. E quem
não for pertencente a ela ou se coloque contra ao que se determinou como
seus valores e princípios estará condenado como traidor. O fato é que Satie e
Genestra passam a agir de maneira fascista: agora vale usar qualquer meio
para proteger a Federação - esse ente único e homogêneo, em sua visão - de
qualquer agressão externa. Para isso não importa que a lei seja atropelada e os
devidos freios institucionais que garantem as liberdades individuais sejam
desrespeitados. É em nome deles, afinal, que todos os procedimentos de
segurança são feitos. Para a almirante, a Federação é a grande pátria, maior
que o indíviduo, maior que a sociedade. Essa é uma característica fundamental
do fascismo, a absorção do social pelo nacional.
Na sequência passa-se a atribuir condutas individuais com base em
questões de ordem familiar, genética ou até mesmo eventos traumáticos. No
fascismo o filho paga pelos pecados do pai. Worf é questionado por
supostamente seu pai ter colaborado com romulanos e por esse fato não teria
agido de maneira correta quando Picard deu abrigo a uma romulana a bordo
da Enterprise. Tarses é tido como culpado por espionagem e conspiração por
ter mentido ao entrar na Frota sobre a verdadeira origem de seu avô, que era
romulano e não vulcano. Até mesmo o fato de Picard ter sido assimilado pelos
borgs é colocado em pauta, com a almirante tentando promover sua execração
pública: “como você pode dormir à noite com tantas mortes?”, referindo-se à
Batalha de Wolf 359.
Ou seja, não há escapatória, pois, no modus operandi fascista, sempre se
poderá encontrar algo que incrimine aquele que se apresente como “desleal”
em relação à pátria e aqueles que zelam por sua grandeza. Picard, por não
acatar os métodos que ele considera antiéticos e imorais (e isso é dito sem
rodeios para Satie), é visto como mais um integrante da conspiração que
ocorre com o objetivo de acabar com a Federação.
Para Satie, todos devem pensar da mesma forma, todos devem estar
engajados na luta contra o inimigo romulano que já se encontra infiltrado
dentro da Frota, seja por ascendência familiar, seja por eventos ocorridos na
nave e totalmente descontextualizados. O fascismo, como ideologia
antidemocrática, não admite o dissenso. O menor contato com um romulano,
mesmo que de maneira indireta, serve para se constatar uma associação com
eles que tem por objetivo trair os princípios da Federação.
Picard então, durante seu interrogatório, cita o pai da almirante:
Os jovens que ainda estão incertos da sua identidade, muitas vezes experimentam uma sucessão de
máscaras na esperança de encontrar o caminho que lhes convém – aquele, na verdade, que não é uma
máscara.
W. H. Auden
De costume a crime
Enquanto escrevo chega a notícia de que o prefeito-bispo do Rio de Janeiro
mandou fiscais procurarem e recolherem na Bienal do Livro uma HQ da
Marvel que mostra, em uma única página, dois personagens do sexo masculino
se beijando. A realidade sempre supera a ficção, não adianta. Às vezes acho
muito mais fácil acreditar em um ferengi que não gosta de lucrar do que nas
coisas que acontecem no Brasil no século 21. Mas essas coisas têm causas bem
determinadas, são reflexos das condições materiais atrasadas da sociedade
brasileira. Estamos entrando em uma teocracia obscurantista e fascistóide. É
um caminho extremamente perigoso e que ainda vai durar muito tempo.
Infelizmente, essa é a verdade. Precisamos lutar, mas é uma luta de David
contra Golias.
Homofobia é crime no Brasil desde junho de 2019, quando o Supremo
Tribunal Federal determinou que a discriminação por orientação sexual ou
identidade de gênero é tão grave quanto o racismo. É um grande avanço, sem
dúvida. Mas leis não mudam comportamentos. Podem auxiliar na conduta
pública, porém, dentro de casa, é muito provável que pais continuem
ensinando seus filhos que o relacionamento amoroso entre duas pessoas do
mesmo sexo é uma abominação. Sobretudo no contexto teocrático em que
vivemos, onde as igrejas evangélicas ocuparam espaços que deveriam
pertencer aos educadores. Basta ver que um representante do povo, não
cumpre a lei, e, em nome da sua crença absurda, determina a censura e a
apreensão de uma publicação que o ofende.
A homofobia, que foi naturalizada, que sempre foi um costume, através de
piadinhas, por exemplo, que ajudaram a perpetuar o preconceito e o ódio
contra a comunidade LGBT, agora é oficialmente considerada crime. No
entanto, continua sendo estimulada por meio da utilização de textos bíblicos
escritos há milhares de anos e que não têm mais nenhum sentido no mundo
moderno. Continua sendo um tabu e condenada pela tradição. Essa é a história
que o episódio The Outcast, da quinta temporada de Star Trek: The Next
Generation, nos apresenta.
Os j’naii
Tudo começa quando uma raça andrógina chamada j’naii procura a Frota em
busca de ajuda para encontrar uma de suas naves auxiliares que foi perdida em
uma região desconhecida do espaço. Para isso, sobem a bordo da Enterprise
alguns de seus cientistas, com destaque para a personagem central do
episódio, a piloto Soren. O primeiro oficial William Riker ficará encarregado
de trabalhar junto a Soren nessa missão, fato que aproximará os dois, fazendo
surgir um interesse amoroso recíproco. Riker, que foi pensando inicialmente
como uma espécie de Kirk da Nova Geração, é um personagem conhecido por
seus galanteios e conquistas amorosas casuais. Contudo, dessa vez, Riker se
apaixonará de verdade, nessa história que é trágica.
Os j’naii são uma espécie que têm como principal característica não possuir
gênero definido. Portanto, em sua sociedade os conceitos de homem e mulher,
hétero e homossexualidade não fazem sentido algum. Porém, isso não impede
que eles possuam tabus, preconceitos e rígido controle sobre o exercício da
sexualidade. Um exemplo importante está no fato de que é inadmissível para
um j’naii manter relações sexuais com um ser que possua gênero definido.
O contato com uma espécie sem gênero se mostra complicado no início, ao
menos da questão da linguagem. Não é correto se referir a um utilizando
pronomes masculinos ou femininos, o que acaba dificultando as coisas para
quem conversa com um deles. Soren explica para Riker que eles (ops...)
utilizam um pronome neutro, mas que evidentemente não existe tradução para
o inglês. Riker, por sua vez, pergunta se deveria usar “it”, que significa “coisa”,
portanto de improvável uso, já que soaria grosseiro. Essa dificuldade se
apresenta inclusive nesse texto, já que não há alternativa entre o uso de ele ou
ela para nos referirmos aos j’naii.
Essa é uma das questões discutidas entre os ativistas da causa LGBT, na
tentativa de utilizar uma linguagem mais inclusiva. Usar o x no lugar do a ou
do o no término das palavras ou então a letra e, são algumas das formas que
foram pensadas para resolver o problema. Porém, isso acaba gerando um novo
problema, que é a exclusão das pessoas com baixa instrução, que, se já
encontram certa dificuldade no uso da norma culta, teriam mais um obstáculo
pela frente, quando confrontadas com essa nova forma de escrita. Haveria
inclusão formal por um lado e exclusão por outro. Portanto, esse é um dos
pontos que comprovam que não adianta pensar a questão de gênero como algo
isolado. É necessário que ela esteja inserida no contexto da opressão da
espécie humana como um todo, que é fruto da divisão da sociedade em classes
sociais.
Antinatural
Após cumprirem com sucesso a missão de resgate dos tripulantes da nave
auxiliar j’naii, Soren e Riker ficam juntos. No entanto, os j’naii, que desde o
início do episódio demonstram realizar estrita vigilância sobre Soren,
descobrem e a prendem. Monta-se uma espécie de tribunal, onde é exigido que
ela faça uma confissão, para que as medidas corretivas sejam aplicadas. O
tribunal se assemelha a um verdadeiro ofício da Santa Inquisição, com uma
audiência pública a qual espetaculariza o processo punitivo, a fim de que sirva
de alerta para outros na mesma situação de Soren.
Riker procura intervir e mente para a juíza que tudo era sua culpa. Ela
lamenta e argumenta para o comandante que os j’naii não são pessoas cruéis e
repressivas. Mas isso não é verdade. Crueldade e repressão são pilares daquela
sociedade, pois sem eles, a heterossexualidade não seria considerada uma
doença e assim haveria a subversão da ordem no planeta. Riker continua em
seu apelo e diz que insistiu na relação com Soren, que teria recusado em se
relacionar com ele. No entanto, sua tentativa de salvá-la se revela inútil.
Questionada se o que Riker afirma é a verdade, Soren, cansada de viver uma
vida de mentiras, revoltada com a injustiça que ela e outros como ele sofrem,
faz um discurso impressionante:
Eu sou mulher. Eu nasci assim. Eu tive esses sentimentos, esses anseios, toda a
minha vida. Isso não é antinatural. Não estou doente por me sentir assim. Eu não
preciso ser ajudada. Eu não preciso ser curada. O que eu preciso, e todos aqueles que
são como eu precisam, é a sua compreensão. E sua compaixão. Nós não os
prejudicamos de qualquer maneira. E, contudo, somos desprezados e atacados. E tudo
porque somos diferentes. O que fazemos não é diferente do que vocês fazem. Nós
falamos e rimos. Nós reclamamos do trabalho. E nos preocupamos com a velhice.
Falamos sobre nossas famílias e nos preocupamos com o futuro. E choramos com o
outro quando as coisas parecem sem esperança. Todas as coisas amáveis que vocês
fazem uns com os outros nós também fazemos. E por isso somos chamados de
desajustados, desviados e criminosos. Que direito você tem de nos punir? Que direito
você tem de nos mudar? O que faz você achar que pode ditar a forma como as pessoas
se amam?
A coisa mais importante a entender sobre os seres humanos é que o desconhecido define nossa
existência. Estamos constantemente procurando, não apenas respostas a nossas perguntas, mas novas
perguntas. Somos exploradores. Exploramos nossas vidas dia a dia, e exploramos a galáxia, tentando
descobrir as fronteiras de nosso conhecimento, e é por isso que estou aqui - não para conquistá-los com
armas ou ideias, mas para coexistir... e aprender.
Benjamin Sisko
Conclamo os cardassianos em toda parte. Resistam. Resistam hoje. Resistam amanhã. Resistam até que
o último soldado do Dominion seja expulso do nosso solo.
Damar
Personagens impressionantes
O comandante (depois capitão) Benjamin Sisko (Avery Brooks), ao assumir
como representante da Federação na estação, tornou-se peça chave na
intrincada política bajoriana, sobretudo por acumular a função de Emissário,
já que em Bajor religião e política andam juntas. Assim, Sisko atraiu a atenção
não só de aliados, mas, principalmente dos inimigos cardassianos, que
desejavam retomar o controle da estação e de Bajor.
O mais perigoso deles, Gul Dukat (Marc Alaimo), acabaria se
transformando no antagonista de Sisko, até o confronto final onde Dukat
morre e Sisko é tornado um Profeta, pelos habitantes do wormhole. Dessa
forma, passou a não ser mais um entidade corpórea e muito menos existente
no tempo linear, tornando-se um deus para os bajorianos. Sisko prometeu
voltar, porém, lamentavelmente, Deep Space Nine não foi para os cinemas e
ficamos sem a volta do Profeta Benjamin Sisko.
Sisko é um personagem apaixonante. É um pai extremamente zeloso,
mesmo com a adversidade de criar seu filho em um estação espacial não tão
segura quanto a Terra ou uma nave da Frota. É um líder inspirador, rígido
quando necessário, mas muito humano. Além disso, ele ganha vida pelo
talento de Avery Brooks, que dá uma personalidade muito especial a Sisko.
Nas três primeiras temporadas, enquanto é comandante ainda, Sisko usa
cabelo e barba feita. Algo que Ira Steven Behr queria mudar desde sempre,
pois Brooks se sentia mais à vontade careca e de cavanhaque. Porém o estúdio
achava um pouco agressivo de mais um homem negro com barba e isso faria
lembrar do personagem Hawk, que Brooks havia interpretado com grande
sucesso na TV.
Sisko é um personagem complexo, que não é aquele herói arquetípico, sem
defeitos e que não utiliza meios duvidosos para atingir determinados fins. O
episódio In the Pale Moonlight está aí para provar, como Sisko se viu obrigado a
participar de uma conspiração para que a Federação não fosse derrotada pelo
Dominion. É o caráter dual que marca todos os personagens de Deep Space
Nine. E é isso que torna a série gigante.
Seu desaparecimento, na luta final contra Gul Dukat, embora tenha salvado
Bajor e a estação, foi uma perda irreparável para o seu filho Jake Sisko. O
pequeno Jake (Cirroc Lofton), quando chega na estação, já havia perdido sua
mãe há três anos. Sisko exercia então a dura missão de criar seu filho sozinho,
a bordo de uma nave estelar e em seguida na “monstruosidade cardassiana”.
Jake sempre teve um relacionamento muito próximo com o pai, algo tornado
muito crível pela fantástica química entre os atores. Em depoimento para o
documentários What We Left Behind, Lofton conta que eles se tratavam
realmente como pai e filho, possuindo uma relação muito próximo até os dias
de hoje. Jake é o protagonista de um dos episódios mais incríveis já feitos, não
só em Deep Space Nine, nem só em Star Trek, mas em todas as séries em todos
os tempos: The Visitor. Se você nunca viu, corre lá. Jake também se tornará
muito amigo de Nog (Aron Eisenberg), que será o primeiro ferengi na Frota
Estelar. Infelizmente, enquanto escrevo essas linhas chega a notícia de que
Eisenberg faleceu. Tinha apenas 50 anos. Uma grande perda para a família
Star Trek.
O jovem Sisko sonha em ser escritor e durante e Guerra Dominion será
correspondente de guerra. O núcleo dos Sisko é sensacional por colocar quatro
atores negros em muitas e longas cenas, certamente algo que ainda é incomum
nos dias de hoje, portanto, um grande mérito de Deep Space Nine já nos anos
1990.
Kira Nerys (Nana Visitor) foi uma das líderes da resistência bajoriana
contra o invasor cardassiano. Liderava ataques às instalações do inimigo e
promovia ações terroristas. Mas em relação a isso cabe um parêntese:
terrorismo é uma palavra que faz parte do léxico estadunidense de dominação,
que se faz presente na série, que, evidentemente, não escapa à ideologia dos
Estados Unidos. Kira não era terrorista simplesmente porque ela lutava pelo
seu povo e contra a dominação genocida que um inimigo lhe impingia. Ponto.
Quando ela afirma que praticou atentados contra colaboracionistas, isso é
bastante diferente de um atentado, este sim terrorista, contra alvos civis
inocentes. Portanto, a manipulação do termo “terrorista” pelos Estados Unidos
tem por objetivo distorcer seu sentido até que se torne alguém que não aceite
passivamente sua dominação imperial. E foi exatamente esse ato de revolta
que Kira promoveu ao longo da resistência contra a União Cardassiana.
Após o fim da ocupação e à chegada da Federação, Kira irá servir na Deep
Space Nine como oficial de ligação junto ao governo provisório de Bajor. É uma
personagem com personalidade forte, que não tem medo de bater de frente
com Sisko ou com Gul Dukat. Da mesma forma, aterroriza Quark e conquista
o coração (acho que ele não possui um) do Odo, que depois terá um
relacionamento com a “major”. Kira é uma personagem absolutamente
feminista. Ela está sempre em pé de igualdade em relação a qualquer homem,
sendo melhor que muitos ao exercer papéis socialmente esperados para o sexo
masculino.
O que acho mais fascinante na Kira é que ela consegue conciliar o seu lado
revolucionário com as lentas burocracias do trabalho de ligação entre Bajor e
Federação. Tudo pelo bem do seu povo. Uma verdadeira nacionalista, sem
chauvinismos. Além disso, como quase todo bajoriano, Kira leva muito a sério
sua crença nos Profetas, aos quais sempre pede auxílio nas situações difíceis.
Kira tem suas dualidades também: é guerrilheira e burocrata; é revolucionária
e religiosa. Um fato divertido: quando Nana Visitor ficou grávida, o genial Ira
Steven Behr (produtor executivo) arrumou uma saída bastante criativa: a pobre
da Keiko O’Brien tem dificuldades na nova gravidez e o bebê precisa ser
teletransportado para o ventre de Kira, que daí em diante leva a gestação até o
final. É tosco, mas é fofo ao mesmo tempo.
Outro personagem fascinante é Odo (René Auberjonois), o metamorfo,
chefe de segurança da estação. Descoberto ainda “bebê” por um cientista
bajoriano, Odo foi criado entre os sólidos, precisando manter uma forma
humanoide durante 16 horas por dia. Após esse prazo, é necessário que ele
retorne a seu estado líquido natural, repousando dentro de um balde. Odo é
um personagem ambíguo, maleável digamos assim. É sólido e é líquido. Serviu
aos cardassianos antes de servir a Bajor e à Federação. Ele já estava na estação
há muito tempo, portanto, Odo foi colaborador dos cardassianos. No entanto,
se demonstra muito leal a Bajor e à Federação, embora tenha se sentido um
pouco tentado a colaborar com o Dominion, que afinal se trata do seu povo.
Porém, Odo terá papel fundamental no desfecho da Dominion War.
Um destaque imprescindível diz respeito à sua relação com Quark, “o mais
próximo de um amigo” que ele possui. Como Quark é um exímio pilantra,
sempre transgredindo a lei, Odo é o seu antagonista, sempre pegando no pé do
cabeçudo ferengi. Alguns dos momentos mais memoráveis de Deep Space Nine
aconteceram nos embates engraçadíssimos entre os dois. No episódio The
Ascent, os dois ficam perdidos em um planeta inóspito e precisam trabalhar
juntos para sobreviver. Um momento incrível dos dois na série. Eu tive a
satisfação de conhecer o ator que interpretou Odo em uma convenção e posso
garantir que ele é uma grande simpatia. Consegui uma foto, um autógrafo e
um “Balde do Odo” desenhado de próprio punho pelo René.
Quaaaaark! Grita o bom e velho Odo quando descobre algumas das
falcatruas do ferengi. Pois certamente esse é um dos meus personagens
favoritos em Star Trek. Em primeiro lugar eu adoro a representação do
capitalismo feita nessa caricatura grotesca que são os ferengis. E isso, através
de um personagem principal, fica ainda mais legal de acompanhar. Logo no
começo não gostei muito do Quark, achei que não tinha nada a ver um ferengi
sem escrúpulos protagonizando Star Trek. É que eu ainda não tinha captado
muito bem a proposta das dualidades dos personagens. Quark é, certamente, à
primeira vista um golpista. Uma pessoa na qual não se pode confiar de
maneira alguma, já que só tem interesse em lucrar e pode trair qualquer um
por isso. Mas com o passar do tempo vamos percebendo que Quark realmente
se conecta aos outros personagens, formando um vínculo de solidariedade e
lealdade. Embora permaneça radicalmente ferengi, ele desenvolve empatia e
nunca deixa de ajudar qualquer um dos tripulantes que esteja em dificuldades.
O ser humano não é assim também? Cheio de contradições?
Quark, assim como Julian e Worf, é apaixonado por Jadzia Dax (Terry
Farrell). Infelizmente, Jadzia não vai querer nada com ele, mas certamente se
interessará por Worf. Jadzia é uma jovem trill de menos de 30 anos que ganhou
a sorte grande, ao menos na sua sociedade: foi escolhida para se juntar a um
simbionte. A coisa funciona da seguinte forma: em Trill existem duas espécies
inteligentes muito diferentes mas que exibem uma estranha compatibilidade.
A humanoide é capaz de receber em seu ventre a verminoide, concretizando
uma união que não pode ser desfeita, a não ser com a morte do humanoide.
Portanto, quando este morre, o verme é transferido para outro e assim
sucessivamente. O simbionte de Jadzia se chama Dax e já passou por muitos
outro hospedeiros, totalizando mais ou menos 350 anos de vidas e memórias.
Olha a dualidade aí: Jadzia Dax é hospedeira e simbionte.
Além disso, por viver alternadamente vidas no gênero masculino e
feminino, é característica dos personagens trills uma sexualidade mais livre.
Porém, existe um tabu que serve como alegoria ao amor entre pessoas do
mesmo sexo naquela sociedade: um trill deve evitar manter relações com as
pessoas ligadas ao simbionte anterior. No episódio Rejoined esse tabu é
explorado, e rende o primeiro beijo entre duas mulheres em Star Trek, entre
Jadzia e a Dra. Lenara Kahn (Susanna Thompson), um relacionamento de
hospedeiro/simbionte anterior. Fazer essa cena em plena década de 90 foi um
movimento bastante ousado de Deep Space Nine, que orgulha os realizadores e
grande parte dos fãs. Mas o que importante mesmo é que Dax se casou com
Worf, e isso foi incrível!
O hospedeiro anterior do simbionte Dax havia sido Curzon, velho amigo e
mentor de Benjamin Sisko. Por isso com Jadzia chegando à estação, sob nova
aparência, para servir sob o comando de seu antigo amigo causa alguma
estranheza, que logo se desfaz. A única coisa estranha é a insistência de Sisko
em chamar Jadzia de old man... Mas, curiosamente, em outra série
protagonizada por Avery Brooks, seu personagem Hawk também tinha um
mentor ao qual chamava de old man.
Na sexta temporada, com Terry Farrell decidindo abandonar a série, os
produtores matam a personagem pelas mãos de Gul Dukat possuído por um
Pah-Wraith. Em seu lugar, surge Ezri (Nicole de Boer), uma trill muito jovem,
conselheira de nave e que não havia se preparado durante a vida toda, como
fazem os hospedeiros, para receber o simbionte. Assim, ela inicia uma jornada
bastante complicada, mas muito interessante, em como lidar com todas as
memórias que herdou a partir da união.
Com Ezri, a paixão de Julian Bashir (Alexander Siddig) por Dax foi
resolvida, pois a nova hospedeira não quis mais saber de Worf e preferiu se
relacionar com o nosso bom doutor. Finalmente, pois quando o jovem doutor
chegou à estação me pareceu que nunca tinha visto uma mulher na vida. Mas
logo será assediado por Garak, e, infelizmente, nunca saberemos se aconteceu
alguma coisa ou não. Julian se tornará um grande amigo de O’Brien, o que
sempre renderá cenas engraçadas dos dois se divertindo. Durante toda a vida
Bashir precisou esconder algo muito sério: ele foi aprimorado geneticamente
quando criança pelos seus pais, procedimento considerado ilegal desde as
Guerras Eugênicas. No entanto, isso acabou sendo revelado e felizmente não
houve maiores consequências para ele. Essa é a sua dualidade: é humano e
super-humano.
Na estação tivemos também personagens oriundos de The Next Generation.
O primeiro deles foi o glorioso, o inenarrável, o fabuloso chief Miles Edward
O’Brien (Colm Meaney). O chefe é o trabalhador, o cara que faz tudo funcionar,
tudo ficar eficiente e depois do dever cumprido vai tomar umas e jogar dardos
no Quark’s. Ele é o nosso working class hero. O chefe não tem dualidades, ele é o
que é. Um cara gente boa demais e que sempre resolve qualquer problema.
Graças aos Profetas de Bajor, O’Brien foi um personagem incrivelmente
desenvolvido ao longo da série, passando por devastadores sofrimentos. Há até
uma categoria para os episódios nos quais O’Brien passa por provações
terríveis: O’Brien Deve Sofrer! Procure por esses episódios. Satisfação
garantida ou seu dinheiro de volta.
Por fim, a partir da quarta temporada, outro remanescente da Enterprise:
Worf (Michael Dorn), que é trazido à estação para servir como ligação com o
Império Klingon, para que esse evite entrar em guerra com a União
Cardassiana, porém sem sucesso. O personagem Worf terá um papel
monumental na série por ajudar a criar tramas envolvendo os klingons, que
serão aliados de peso na guerra contra o Dominion.
E, claro, a maior personagem de todas: a estação. Gene Roddenberry dizia
que a maior heroína das histórias de Star Trek sempre seria a Enterprise. A
estação é o seu equivalente em Deep Space Nine. Afinal, foi nela (e na Defiant
também, para sermos justos) que vimos a maior parte das grandes histórias
vividas por todos aqueles fantásticos personagens.
Mas para não sermos injustos, não podemos nos esquecer dos Maquis. A
Federação, no intuito de acabar com as tensões existentes em relação à União
Cardassiana, fez um acordo no qual suas fronteiras foram reformuladas. Dessa
forma, colônias que estavam do lado de cá da Federação passaram para os
cardassianos, surgindo a necessidade de realocação dos colonos. Algo bastante
grave, já que a maior parte das pessoas, evidentemente, não quer ser removida
do seu lar. Nesse contexto, surge um grupo rebelde intitulado maquis (em
referência a um grupo francês de mesmo nome que resistiu à ocupação nazista
na Segunda Guerra Mundial). Muitos oficiais da Frota se juntam a ele,
sabedores da terrível injustiça que tal acordo promove sobre os colonos. A
Voyager se perde no Quadrante Delta em busca dos Maquis. Mas é em Deep
Space Nine que ocorre um embate memorável entre o oficial Michael
Eddington (convertido em Maqui) e Sisko, que o acaba prendendo.
Deep Space Nine é o ponto mais alto de Star Trek. Seus personagens
maravilhosos contribuíram decisivamente para isso. Não somente os
principais, mas os diversos recorrentes como Nog, Rom, Ishka, Nagus Zek
(ferengis), Garak, Gul Dukat, Ziyal, Damar (cardassianos), Gowron, Martok
(klingons), Kai Winn, Vedek Bareil (bajorianos), Weyoun (vorta), Fundadora
(transmorfa), Michael Eddington, Keiko, Kasidy Yates, Joseph Sisko (humanos),
o “verborrágico” Morn (luriano) e o fantástico holograma Vic Fontaine, o
Frank Sinatra de Deep Space Nine. Todos ele ajudaram a tornar a série o melhor
Star Trek já feito.
Nesse capítulo trato de quatro episódios que apresentam temas relacionado
à opressão, embora de naturezas diferentes. No episódio Captive Pursuit, da
primeira temporada, vemos chegar à estação o primeiro ser vivo do Quadrante
Gama, revelando como a ideologia serve para a dominação. Em Hippocratic
Oath, acompanhamos o modo de agir dos Jem’Hadar e como eles são
condicionados por uma crença religiosa que os controla e recompensa com um
tipo de droga. Já em Bar Association, vemos a boa e velha luta de classes no
mundo do trabalho, quando os funcionários do Quark entram em greve. Para
fechar, Far Beyond the Stars o meu episódio favorito de Deep Space Nine, que nos
apresenta um genial conto de ficção científica sobre o racismo.
1
I AM TOSK
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o
poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante.
Marx e Engels
I am Tosk
Odo é, tecnicamente, a primeira forma de vida do Quadrante Gama que os
tripulantes da estação encontram. Porém, isso só será revelado adiante, no
início da terceira temporada, no episódio duplo The Search. Portanto, Tosk
(Scott MacDonald) é, no contexto da primeira e da segunda temporadas, o
primeiro ser vivo a cruzar o buraco de minhoca e travar contato com a Deep
Space Nine. Esse encontro não deixa de ser um momento histórico, que
terminará de maneira bastante inusitada.
Tudo começa quando, ao cruzar o wormhole, a nave de Tosk apresenta sérias
avarias. Contudo, ele não aceita ser teletransportado para a estação e o chief
O’Brien utiliza o raio trator para estabilizar a nave e atracá-la na estação. Sisko
encarrega O’Brien de receber o visitante na comporta de ar e, se possível,
descobrir o motivo por ele aparentar nervosismo.
O’Brien entra na nave com o objetivo de iniciar os reparos, porém não
encontra o tripulante a bordo. Dax lhe informa que pelos sensores ele está em
algum lugar da nave. Logo ele se apresenta, dando um susto em Miles. Tosk
utiliza algum dispositivo de camuflagem, que o deixa completamente invisível.
Existe uma similaridade entre Tosk e os jem’hadar, soldados aliens que
aparecerão depois e terão importância gigantesca na série. Ambos utilizam
tecnologias de invisibilidade. Outra semelhança está no fato de quem ambas as
raças foram criadas com o propósito de servir uma raça dominante. Os
jem’hadar pelos Fundadores e os tosks pelos Hunters. Há uma teoria que diz
que ambas foram criadas pelos Fundadores, sendo que os Tosks foram
presenteados aos Hunters. Enfim, não é cânone e nunca saberemos e ainda por
cima estou me adiantando na história...
O’Brien e Tosk estabelecem um relacionamento amigável desde o primeiro
momento. Enquanto O’Brien lhe ensina algumas coisas do Quadrante Alfa
tenta obter mais informações sobre Tosk e seu mundo, mas este acaba se
mostrando bastante reservado, embora tenha, de fato, apreciado a companhia
de O’Brien.
A primeira questão (que normalmente seria a primeira a ser respondida)
não fica clara. Quando perguntado o seu nome e qual sua raça Tosk,
invariavelmente, responde com um I am Tosk (Eu sou Tosk). O’Brien não
consegue determinar se ele se refere a si próprio como indivíduo ou se diz o
nome de sua raça, como um humano diria eu sou humano. Porém isso nos dá
algumas pistas que serão importantes para compreendermos o papel da
ideologia na sociedade da qual ele tem origem. Por exemplo, quando O’Brien
pergunta se ele se trata de um explorador ou cientista, recebe novamente a
mesma resposta: I am Tosk!
Logo, O’Brien vai fazendo novas descobertas, por exemplo, que Tosk
precisa de apenas 17 minutos de descanso por dia. Uau! Seria muito bom, mas
na verdade tem um outro significado, No Bar do Quark, quando esse astuto
ferengi tenta descobrir quais os “vícios” do novo visitante, vendo diante de si a
possibilidade de explorar os “vícios” de um espécie inteira em seu bar, o nosso
bartender oferece uma noite de aventuras nas holosuites. Tosk quase fica
ofendido e diz “não tenho tempo para aventuras imaginárias, eu vivo a maior
aventura que alguém pode desejar”. Ele ainda menciona surpresa com o fato de
existir bastante tempo ocioso no Quadrante Alfa. Bingo. Tosk possui uma
crença bastante arraigada naquilo que considera como uma missão e que já
vamos descobrir do que se trata.
Todas essas pequenas idiossincrasias de Tosk farão sentido quando
descobrimos que ele está sendo caçado e que isso não é uma coisa ruim, de
acordo com sua perspectiva. Tosk, como forma de vida individual, faz parte de
uma raça também chamada Tosk, que existe única e exclusivamente para servir
de caça aos que se autoproclamam Hunters (caçadores, é, eu sei, os roteiristas
não foram muito criativos...). O motivo principal da sua existência, a sua
honra, a sua missão no universo é se caçado por eles e conseguir prolongar a
caça durante o maior tempo possível. Isso porque o divertimento dos Hunters
será prolongado, já que vivem para caçar e o dos Tosks também, já que vivem
para fugir. E há um fato muito importante: os Tosks não podem ser capturados
vivos, pois essa é a maior humilhação que um Tosk pode sofrer.
Por causa disso que Tosk estranhou a pergunta de O’Brien sobre ser um
cientista ou explorador. É evidente que ele não pode ser nada disso, pois ele é
Tosk, aquele que é caçado. Se pensarmos em um cidadão pobre, que não teve
acesso a estudo formal, acostumado a ver negadas diante de si todas as
benesses e privilégios que uma sociedade com alto grau de complexidade
produtiva como o capitalismo pode propiciar, que seja questionado se e um
médico ou engenheiro, é claro que ele instantaneamente considerará essa ideia
absurda. Com Tosk acontece o mesmo. Ele não pode ser nada além de Tosk.
Em relação ao tempo ocioso, outra maravilha do quadrante, que Tosk
sequer é capaz de conceber para si, está muito claro: a vida de Tosk é correr,
pois correndo ele mantem sua integridade e pode voltar a correr novamente
depois dos seus 17 minutos de descanso (o capitalismo não seria perfeito se os
trabalhadores pudessem descansar apenas 17 minutos, hã?). É claro que o
tempo ocioso não é para a sua classe, é para a classe dos Hunters, que têm
tempo de planejar as suas caçadas. Ou então para atuar como bem entenderem
na sua civilização, que, obviamente, não despende todas suas energias para a
caça, embora ela seja muito importante em seu mundo.
Pois não ocorre a mesma coisa sob o capitalismo? Cada vez mais? As
pessoas precisam trabalhar em dois ou três empregos, devido à precarização
cada vez maior do trabalho. Não é porque temos facebook e Netflix que isso
significa que temos muito tempo ocioso. Na verdade é uma rotina,
trabalhamos ao longo do dia e nos deitamos à noite para assistir vídeos no
youtube ou séries na Netflix. São os nossos “17 minutos”. Isso nada mais é do
que a televisão de antigamente. E essa distorção tem a ver com a exploração do
trabalho, já que quanto mais tempo um trabalhador estiver em seu trabalho
mais lucros ele poderá gerar. É o princípio do mais-valor absoluto, de Marx. A
vida de Tosk é engolida por esse princípio: ele, literalmente, vive para ser
caçado/trabalhar.
Na Federação o tempo ocioso é enorme pois seus cidadãos não precisam
trabalhar para sobreviver. Dado que os replicadores são bens de uso público e
poderão fornecer tudo o que se necessite, o tempo ocioso será total. Dessa
forma é possível se dedicar a qualquer atividade, arte, literatura, poesia,
holonovels, ou até tentar a sorte na Frota Estelar. É a utopia, onde o ser humano
é totalmente livre.
Assim vamos percebendo como Tosk leva a sério sua vida de caça, que serve
como objeto de desafio aos Hunters. Como é possível que um ser concorde
com isso? Podemos compreender que Tosk que ache correto ser caçado e não
possuir o direito de dizer não? Isso só se torna crível se aventarmos a hipótese
de que ele não possui consciência de sua verdadeira situação e devido a não
conseguir enxergá-la se submete sem questionamentos – pelo contrário, até
mesmo com orgulho – a algo que o prejudica.
É precisamente nesse ponto que entra a ideologia, que não é só de Tosk,
mas dos Hunters também. É aí que entra a alienação, que afeta também a
ambos. E a reificação, que transforma o sujeito Tosk em objeto. São duas
classes sociais, uma que domina e outra dominada. A sujeição da última à
primeira se dá pela suposta relação concreta entre as duas: os Tosks foram
criados para servir de caça aos Hunters. Ou seja, é algo natural. Surge uma
classe para si, que são os Hunters, que são organizados e conscientes de seu
domínio. E surge uma classe em si. Isto é, uma classe real, os Tosks, mas que
são forçosamente individualizados e por isso sem capacidade de organização.
Não conseguem, dessa forma, chegar na classe para si, conscientes de que são
uma classe e que tem por obrigação lutar pelos seus interesses. É uma curiosa
representação sobre o individualismo no mundo contemporâneo também. Ele
facilita, e muito, a dominação.
Depois de tentar acessar as armas da estação, Tosk é aprisionado por Odo.
Sem sucesso, os tripulantes procuram descobrir suas motivações para isso,
mas ele não conta nem para o seu novo amigo O’Brien. Na sequência, uma
nave atravessa o buraco de minhoca e, após escanear a estação, a ataca e um
grupo faz uma abordagem. Há um tiroteio no promenade (Sisko meio xerife,
estação meio cidade do velho oeste ainda), no qual um dos Hunters consegue
escapar a entrar na cadeia da estação. Lá, a encontra vazia, porém utiliza um
visor que consegue identificar Tosk em uma das celas, camuflado pela
tecnologia de invisibilidade.
O Hunter fica bastante frustrado, pois o surpreendeu em uma cela, sem
condições de reagir ou de fugir, fato que acaba por encerrar a caçada de
maneira vergonhosa. Ele diz para Tosk que seu destino será passar o resto da
vida em exposição em praça pública, sendo execrado inclusive pelas crianças.
Essa é o fim dos Tosks que são capturados com vida. É a sua maior
humilhação.
Sisko obriga o Hunter a acompanhá-lo e discutir a situação primeiro, porém
não ocorre nenhum acordo e Sisko se vê obrigado, pela Primeira Diretriz, a
autorizar que Tosk seja levado por ele. O’Brien tenta descobrir uma forma de
evitar isso, pois se afeiçoou por Tosk, então levanta a hipótese de pedido de
asilo. Sisko autoriza que ele converse com Tosk. No entanto, Tosk diz que seria
contraditório com o que ele acredita pedir asilo, pois sente muito orgulho do
papel na cultura de seu planeta. Ele está perversamente mergulhado na
ideologia, pois possui uma crença (ou seja, vê como verdade) e ainda se orgulha
disso (fundamental para possibilitar que alguém aja contra seus próprios
interesses). Para O’Brien, e para qualquer outro cidadão da Federação, que
vivem a utopia de uma sociedade sem classes, portanto, sem ocultamento da
realidade pela ideologia, o comportamento de Tosk é incompreensível.
Tosk, aprisionado pela falsa consciência ideológica, que o faz encarar como
natural o fato artificial de que sua espécie serve apenas para tentar superar a
astúcia de seus algozes, passa sua vida a fugir, com o objetivo de que por fim
seja caçado. É emblemático que Tosk, quando questionando sobre seu
comportamento, invariavelmente, responda: Eu SOU Tosk. Ou seja, em sua
visão, é parte de sua própria essência ser objeto de satisfação das necessidades
de uma classe dominante. E apenas isso. Contudo, embora não possa ver, ele
está enganado, pois como ser senciente que é possui direito à vida e à
liberdade, algo que não percebe por estar na prisão da ideologia, segundo sua
concepção crítica. A ideologia impede que se conheça a realidade.
O’Brien, inconformado de que Tosk seria levado para uma vida de
humilhação, decide ajudá-lo a escapar para que ao menos pudesse continuar
fugindo dos Hunters. Quando Tosk estava sendo levado por um deles, O’Brien
consegui libertar seu amigo e ainda deu um belo gancho no Hunter: queixo de
vidro!
Evidentemente, Sisko não ficou muito feliz, mas pediu para que Odo
retardasse sua operação a fim de dar tempo a Tosk. A caçada recomeçou.
A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A
religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma
situação carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião
seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua
condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões.
Karl Marx
Eu lutei contra raças que creem em seres místicos que guiam seus destinos ou os esperam após a morte.
Eles os chamam de deuses. Os Fundadores são como deuses para os jem’hadar.
Goran’Agar
A heresia de Goran’Agar
Goran’Agar havia caído em Bopak 3 e seus suprimentos de ketracel white
durariam apenas três dias. Ele os racionou e conseguiu ampliar para oito dias.
No entanto, a substância acabou e ele permaneceu 35 dias sem uma gota da
droga. Isso foi como uma libertação total, pois o fez compreender que ele só
servia ao Dominion devido ao seu vício. Logo, se ele não precisasse mas do
ketracel ele poderia fazer o que bem entendesse, livrando-se dos Vorta e dos
Fundadores.
Assim, Goran’Agar trouxe mais comandados seus para o planeta, de forma
que ele pudesse libertá-los também do ópio fornecido pelo Dominion. No
entanto, a empreitada se apresentou muito mais difícil do que imaginara e
seus homens não estavam se curando assim como ele se curou. Por isso a
necessidade de que Bashir encontre uma solução, pois ele é a sua última
esperança, antes que aconteça uma revolta entre seus homens. Quando um
deles questiona suas ordens, ele esclarece o que de fato está acontecendo ali:
“viemos para nos ver livres dos Vorta, é hora de pararmos de viver sob suas regras”.
Exato. Se houve a descoberta de que a liberdade existe, não pode mais haver
compromisso com quem criou a escravidão.
Agora é a hora de questionar tudo que lhes fora ensinado pelos Vorta,
representantes dos Fundadores, os deuses que os esqueceram. Portanto, novos
valores devem ser criados, para que substituam aqueles da época da
escravidão. Os novos jem’hadar não podem mais matar indiscriminadamente,
sem remorso algum. Para tanto, é necessário que passem a valorizar as outras
formas de vida. Inclusive a deles próprios, não executando companheiros
feridos ou então se entregando a missões suicidas. Por fim, constatar que
obedecem cegamente aos Fundadores o que os levará a questionar isso e
finalmente quebrar as correntes que os ligam a eles e que são apertadas pelos
Vorta.
Ao se libertar do ketracel, Goran’Agar conseguiu enxergar que os
Fundadores não são deuses, como se apresentam aos jem’hadar. É certo que
eles foram criados pelos Fundadores, mas isso não os dá o direito de controlar
a vida de cada um deles, como feras sempre atiçadas, prontas para atacar os
inimigos. Eles não foram criados por um ato de amor, narrativa religiosa
típica, que os jem’hadar encontraram quando tiveram contato com outras
raças, contra as quais lutaram. Os Fundadores os criaram somente para servi-
los e morrer por eles. E para manter a ilusão de que isso está correto e que
cada jem’hadar da galáxia deve estar grato por isso, criaram o ketracel, o ópio
que torna possível a vida miserável do jem’hadar. Sem a droga, Goran’Agar
nota que as máscaras que escondiam a realidade começam a cair:
Eu nunca vi um Fundador. Para nós são quase um mito. Mas todos no Dominion,
até os Vorta, servem aos Fundadores. Mas nossos deuses nunca falam conosco e não
esperam por nós após a morte. Eles só querem lutemos por eles e que morramos por
eles.
A condição essencial para a existência e supremacia da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas
mãos de particulares, a formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o
trabalho assalariado.
Marx e Engels
Capitalistas do espaço
No universo de Star Trek, os ferengis representam a selvageria e a injustiça do
capitalismo. É uma alegoria muito evidente, que não exige que se coloque uma
lupa sobre eles para perceber. Está ali, claramente. Ferengis são obcecados
pelo lucro e tanto sua vida individual quanto sua sociedade são estruturadas
sobre essa lógica, a lógica do capital. Um exemplo disso é o livro conhecido
como “Regras de Aquisição”, uma espécie de bíblia ferengi que elenca
centenas de regras que devem ser seguidas para que os lucros sejam melhores.
Vejamos algumas delas:
Acho que dá para ter uma boa base de como as coisas funcionam entre os
ferengis somente com esses poucos exemplos das Regras de Aquisição, que já
chegam a quase 300.
Alguma semelhança com um certo sistema socioeconômico que
conhecemos muito bem? Se você conseguiu fazer a associação você está indo
muito bem (apesar de não ser um grande mérito, pois, vamos combinar, essa
foi fácil). A questão é que como em todo bom Star Trek (e Deep Space Nine é
boníssimo Star Trek!) as raças alienígenas são usadas pelos roteiristas para
revelar determinadas facetas humanas. Os ferengis são, nada mais, nada
menos, do que o ser humano sob o capitalismo. Como todas as implicações
que isso possa ter. Se o lucro é o motor da sociedade capitalista, ele também o
é na sociedade ferengi. Na Federação o lucro não importa, pois nem dinheiro
existe mais.
Se, no capitalismo, todos os obstáculos devem ser removidos, não
importando o impacto negativo que isso possa ter para milhões de pessoas,
para que um indivíduo ou um pequeno grupo possa enriquecer ainda mais,
para os ferengis isso é prática cotidiana e banal. Se, para os ferengis, é
inconcebível que um deles não tenha desejo por lucro, sobretudo de maneira
individual, e busque melhorar a situação, não somente sua, mas de seus
companheiros de trabalho, no capitalismo essa luta ocorre há séculos, desde a
Revolução Industrial. É disso que Bar Association trata, da organização dos
trabalhadores em busca de direitos, que são negados pela classe patronal.
É o momento que Quark, a representação do capitalismo, é confrontado por
aqueles que geram sua riqueza. É quando Rom, seu irmão e empregado, e que
representa a tomada de consciência da classe trabalhadora como classe para si,
embora com suas limitações, como é possível perceber no episódio. Em suma,
o capitalismo não pode durar para sempre impune de seus crimes contra a
humanidade. Um hora a conta chega. Conta que, como bons capitalistas eles
não querem pagar, mas não tardará que a dívida se torne tão massiva que
acabará por esmagá-los. Bar Association representa o primeiro passo dessa
jornada de libertação dos oprimidos.
Um sindicato na estação
Marx e Engels chegaram à conclusão de que o reino da liberdade inicia quando
cessa o reino do trabalho por necessidade. Também pensaram que é o livre
desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de
todos. Ou seja, a escassez do capitalismo, que faz com que falte o básico para
milhões e sobre tudo o que você possa imaginar para poucos, faz com que a
existência do trabalhador dependa totalmente de quem o emprega, da classe
que lhe explora o trabalho. Se ela não der o trabalho, ele morre de fome.
Quando ela dá, ele se torna um escravo assalariado. A vida do trabalhador em
sua totalidade ocorre em estrita dependência da classe dominante. Por isso
não existe liberdade sob o capital. E não havendo liberdade somente uns
podem se desenvolver sua humanidade quase que plenamente (pois até mesmo
o burguês é alienado/reificado). Portanto, somente em um sistema onde o ser
humano é livre, como no comunismo, é que as pessoas poderão viver uma vida
integral. Muitos falam em meritocracia. Eu concordo com ela. Desde que ela
ocorra em um sistema onde todos são iguais em seus pontos de partida e que o
objetivo não seja acumular riqueza sobre o trabalho expropriado. No
comunismo, a meritocracia terá pleno valor, pois somente em um sistema
assim é que os talentos verdadeiros poderão se destacar. Imagine nesse
momentos quantos futuros gênios da física, da filosofia, da medicina estão na
favela mais pobre do Brasil ou no recanto mais miserável da África? Talentos
que nunca aparecerão, pois estão soterrados pela desigualdade criada
artificialmente pelo capital.
A Federação é nitidamente uma sociedade pós-capitalista, que se assemelha
enormemente ao comunismo, por alguns motivos principais:
A carne mais barata do mercado é a carne negra Que vai de graça pro presídio E para debaixo do
plástico E vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos
Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti
Eu sou um ser humano! Você pode me negar tudo o que quiser, mas não pode negar Ben Sisko. Ele
existe! Aquele futuro, aquela estação espacial, todas aquelas pessoas - elas existem aqui! Você pode
censurar uma história, mas não pode destruir uma ideia. Esse futuro - eu o criei, e é real!
Benny Russell
Um episódio singular
Far Beyond the Stars é motivo de orgulho para quem o fez acontecer e para os
fãs. Certamente é um dos episódios mais amados de toda a franquia e campeão
das reprises. Eu mesmo já perdi as contas de quantas vezes assisti. E tenho
certeza que sempre continuarei revendo. Se me perguntassem quais os meus
três episódios favoritos de Star Trek acredito que Far Beyond the Stars estaria
nessa seleta lista. Agora, por favor, não me pergunte quais seriam os outros
dois, pois minha situação ficaria bastante complicada.
Mas o que faz esse episódio tão especial?
Em primeiro lugar o fato de que ele possui uma história de ficção científica
extremamente bem construída. Um capitão de uma estação espacial situada
vários séculos no futuro passa a viver a vida de um homem da década de 50 que
está escrevendo justamente a história da estação comandada por aquele
capitão. Uau! É de tirar o fôlego. Ao mesmo tempo, o autor da história também
vive alguns momentos da vida de seu personagem, criando uma trama muito
complexa e instigante. E para completar: ambos são homens negros, com toda
a carga de significado histórico e social que isso possui. É exatamente esse fato
que estará no centro do episódio, que apresenta o nosso bom e velho contraste
da utopia (onde um homem negro é livre) com o presente, onde, se não
escravizados literalmente, os negros são marginalizados.
Em segundo lugar, a produção do episódio é simplesmente impecável. Cada
detalhe foi muito bem cuidado. Desde os cenários, passando pelos figurinos,
pelas maquiagens, pelas interpretações magistrais (ver o elenco atuando sem
as usuais maquiagens prostéticas destacou enormemente o seu talento), pelas
falas impecáveis, pela dinâmica de antagonismo mantida entre os equivalentes
de Quark e Odo, e pela trilha sonora de jazz, inusual em Deep Space Nine, o
episódio é técnica e esteticamente perfeito. Uma coisa assombrosa. Sobre a
trilha sonora, a decisão por tal estilo musical tem a ver com o diretor Avery
Brooks (Sisko), que além ator é pianista e cantor de jazz. E isso foi muito
importante, pois o jazz é uma voz negra. É uma música que surge por volta de
1900 no seio da comunidade negra, sempre desfavorecida e vítima do racismo.
Segundo Eric Hobsbawm, o jazz está sempre envolto em uma atmosfera de
emoção e ao mesmo tempo é uma música de protesto e de rebelião. Então, ao
se decidir que a trilha da história de Benny Russell seja o jazz, todos esses
elementos estão sendo mobilizados em torno do personagem, tornando sua
mensagem ainda mais dramática e eloquente.
Aliás, a escolha de Brooks para a direção também foi perfeita e com toda a
certeza ajudou a formar a grandeza de Far Beyond the Stars. É bastante
incomum que o ator que faz o papel principal no episódio seja também o
diretor, porém nesse caso era importante que o homem negro e protagonista
dessa história incisiva fosse o diretor. Deu muito certo.
Por fim, em terceiro lugar, o episódio pode ser analisado a partir de três
temporalidades, duas internas e uma interna. Vejamos primeiramente as
internas.
Enquanto o espaço é a fronteira final, o futuro é ilimitado. Na utopia do
século 24 a cor da pele já não interessa. Os problemas que discutimos hoje já
perderam o sentido. Por isso é importante o contraponto desse futuro a ser
atingido, com a década de 1950 nos Estados Unidos, onde os negros não
desfrutavam dos mesmos direito dos brancos. Como último tempo, externo ao
episódio, mas no qual ele se encontra inserido e reflete suas questões, temos a
década de 1990 nos Estados Unidos. Nesse período, com o racismo ainda não
superado (não sendo até hoje no século 21), diversas tensões sociais finalmente
explodiram, fazendo com que o debate acerca de brancos e negros entrasse na
pauta do dia. Mas antes precisamos conhecer melhor o contexto história da
opressão dos negros nos Estados Unidos.
O sonho e sonhador
O episódio deixa uma marca em quem o assiste. O sofrimento de Benny
Russell é real e nos faz sentir muita empatia. Enquanto Sisko experimenta o
passado de opressão dos negros, Russell trilha a via inversa e conhece o futuro
com o qual sonha. O sonho se mistura com a realidade, o sonhador e o sonho
se tornam a mesma coisa. Um dos Profetas de Bajor, aparecido na forma de um
pastor para Sisko/Russell, diz que ele deve escrever. Que ele deve escrever esse
sonho, pois é o seu caminho. O pastor/profeta é interpretado por Brock Peters,
que é também Joseph Sisko, pai de Benjamin. Significativamente, o ator fez o
papel de Tom Robinson, no clássico do cinema To Kill a Mockingbird (O Sol é
para Todos), um jovem negro acusado injustamente de ter estuprado uma
mulher branca, sendo assassinado pela população local antes da sentença.
Os leitores da revista estavam ansiosos para conhecer o rosto dos autores,
por isso foi programado para a próxima edição a publicação das fotos de cada
um dos colaboradores da Incredible Tales para satisfazer o público. Exceto, é
claro, a foto da única escritora da revista, Kay Heaton, personagem equivalente
à Kira Nerys. A autora assina seus contos como K.C. Hunter, pois usando
somente as iniciais não pode ser identificada como mulher. A escritora D.C.
Fontana, que escreveu alguns dos melhores episódios da série clássica também
assinava dessa forma devido ao machismo predominante entre os
consumidores de ficção científica. Evidentemente, Benny Russell também
poderá ficar em casa nesse dia, pois se uma mulher não pode levar os créditos
pelo seu trabalho, a situação é ainda pior em relação aos negros. A verdade é
que negros não são aceitos em grande parte das posições na sociedade branca.
Mais tarde, ao voltar para casa, Benny esbarra em dois policiais, que são
interpretados pelos atores que fazem Gul Dukat e Weyoun. Na cena, mais uma
representação perfeita do racismo: Benny deixa o esboço da estação que havia
pegado com o ilustrador cair no chão e os policiais imediatamente desconfiam
que ele possa tê-lo roubado. Ele explica que trabalha no prédio de onde estava
saindo, fazendo um dos policiais perguntar se ele era o zelador. Por fim,
desconfiam do seu terno, que seria muito caro para um negro possuir. Um
detalhe engraçado da cena é que Benny ao explicar que o desenho se tratava de
uma estação espacial, ambos, policial Dukat e policial Weyoun exclamam
incrédulos: estação espacial?!? Exatamente o grande sonho de consumo de Gul
Dukat e do Dominion.
Ao ser liberado, não sem antes ser avisado que na próxima vez ele seriam
mais duros, Sisko encontra no caminho o pastor/profeta/pai que está pregando
na rua. No sermão, ouve algumas coisas impressionantes. O pastor lhe diz que
ele deve escrever suas palavras, para que a glória do que está por vir seja
conhecida. Também lhe orienta a escrever a verdade do seu coração, pois
somente essa poderia libertá-los e, finalmente, lhe diz que as palavras que eles
escrever mostrarão o caminho para fora da escuridão, em direção à justiça. É
um momento bastante enigmático do episódio, mas do qual podemos extrair
algumas interpretações.
A essa altura já é notório que Sisko passa por alguma espécie de provação
ou experiência de autoconhecimento conduzida pelos Profetas. A questão é:
qual o objetivo exato disso tudo? Sisko, no início do episódio, estava em dúvida
sobre permanecer à frente da estação durante a guerra ou passar o cargo para
outra pessoa. Acredito que podemos estabelecer um ponto de contato entre
essa história e a história de Benny Russell. Ambos foram confrontados por
realidades muito duras, que fariam muitas pessoas ficarem pelo meio do
caminho. Ao fazer Sisko experimentar a vida de um homem negro como ele no
contexto primitivo do século 20 onde não havia justiça e mesmo assim
perceber que Russell lutou até o fim, certamente contribuiu para abrir novas
perspectivas para Sisko em relação ao dilema no qual se encontra. Mas vamos
seguir com a história do nosso autor de contos de ficção científica.
Benny Russell fica extremamente empolgado com a história que escreveu
sobre a estação Deep Space Nine, no entanto, como o herói da trama é o capitão
Sisko, portanto um homem negro, o editor da Incredible Tales veta a publicação.
Como alternativa, sugere que ele torne o protagonista branco, pois dessa
forma não haveria problema nenhum em publicar a história que, a propósito,
foi considerada excepcional tanto pelo editor quanto pelos seus colegas
escritores. Agora, além de não ser permitida a existência de um escritor negro
(já que sua foto não pode sair na revista), também descobrimos que
personagens negros, que não sejam meros serviçais, não são tolerados.
Herbert Rossoff (que seria Quark no século 24) fica extremamente
indignado com essa discriminação e reage dizendo que para os leitores da
revista é mais fácil acreditar em marcianos do que em um homem negro no
espaço, como acontece na história de Russell. Além disso, Pabst (o editor)
insinua que ele é comunista, o que se trata de uma ótima ironia, já que na
estação Rossoff/Quark se trata do capitalista por excelência (até o nome
escolhido se assemelha a “russo”). No subtexto dá para perceber que a cena se
refere ao sendo comum: quando alguém expressa alguma ideia de igualdade ou
direitos humanos logo é tachado de comunista. O que na verdade só comprova
o caráter desumano da direita, que considera direitos iguais uma pauta
esquerdista.
No entanto, Benny, animado pelas palavras do pastor segue escrevendo
mais histórias sobre a Deep Space Nine, em uma conduta quase irracional, pois
sabe que a primeira história não fora aceita. Todavia, leva as novas histórias
para a redação, provocando a ira de Pabst. Como solução, seus colegas
sugerem que a primeira história termine como sendo um sonho de um homem
negro, que sem esperanças, sonha com uma vida melhor no espaço. Não deixa
de ser a situação de todo e qualquer negro naquele momento. O presente não
revela indícios de que as coisas poderão melhorar a curto prazo, resta sonhar
com o futuro. Jimmy, o amigo de Benny, que representa Jake, o filho de Sisko,
nessa realidade se trata de um jovem marginalizado, que não vê futuro pois
todas as portas são fechadas aos negros e acaba praticando pequenos furtos.
Desesperançoso, ele diz para Benny que eles sempre serão vistos como
negros pelos brancos e que as suas histórias com capitães negros no espaço
não darão certo pois para os brancos os negros sempre serão empregados.
Duas coisas muito interessantes no que Jimmy fala. A primeira é que não
existem brancos ou negros ou vermelhos ou amarelos. Todas essas cores foram
criadas a partir do momento em que os europeus tomaram contato com outros
povos. Então o branco passou a ser o neutro, o normal e foram criadas outras
categorias de seres humanos: brancos, amarelos vermelhos etc. Portanto, a
partir disso, naturalizou-se que existam tarefas para uns e para outros. As
atividades intelectuais e de liderança somente são abertas aos brancos. Aos
negros sobre todo e qualquer tipo de trabalho braçal. A luta de Benny para
publicar suas histórias se torna cada vez mais necessária, pois sua ficção pode
fazer pelos leitores o que Star Trek fez na vida real pelos seus fãs: ensinar
sobre igualdade.
Por fim, Pabst concorda e a história será publicada na próxima edição.
Muito feliz, Benny procura sua namorada Cassie (que é a Kasidy Yates de
Sisko) e a convida para sair para dançar. Após se divertirem, encontram
novamente o pastor, que dessa vez fala em tons mais sombrios: “em suas
palavras, esperança e desespero andam de braços dados”. Talvez seja a definição
mais precisa do que acontecem com Benny, escritor, homem negro, sonhador.
A sua escrita é reflexo do seu sonho e da situação desesperadora na qual vive.
Uma não pode se dissociar da outra. Logo em seguida, o desespero se
manifestará da forma mais pungente. Cassie e Benny ouvem disparos e correm
para ver o que aconteceu. Jimmy está caído no meio da rua, baleado pela
política por tentar arrombar um carro. A propriedade é mais importante que a
vida. Sobretudo se for uma vida negra. Benny tenta socorrer Jimmy e é contido
pelos mesmos dois policiais que o haviam abordado antes. Como prometido,
dessa vez foram mais duros. Benny é espancado violentamente, em uma cena
onde as figuras dos policiais se alternam com as de Gul Dukat e Weyoun. Para
Benny, a violência de quem despreza o diferente. Para Sisko, a mesma coisa.
A cena é impactante. Um escritor, um homem que não é um bandido e
jamais fez mal a ninguém, brutalmente espancado no meio da rua, enquanto
outros policiais, negros também, afastam o público para que os policiais
brancos possam trabalhar à vontade. O episódio se torna mais significativo
ainda, pois poucos anos antes, em 1991, um trabalhador negro chamado
Rodney King fora espancado covardemente pela polícia de Los Angeles que o
havia parado por supostamente dirigir acima da velocidade permitida. O caso
ganhou repercussão mundial, pois os policiais, que não tinham a menor razão
para agirem como agiram – e certamente não fariam isso contra um homem
branco – foram julgados e inocentados. Um verdadeiro escândalo. Mais uma
prova de como o ser humano negro vale menos do que o branco na sociedade
estadunidense.
A situação acabou explodindo. Los Angeles entrou numa espiral de
violência como não tinha ainda visto em sua história. Foram vários dias de
confrontos da população negra contra a polícia, causando mais de 50 mortes e
quase 3 mil feridos. Em Far Beyond the Stars, o público via, novamente, um
homem negro ser espancado pela polícia quase até a morte.
Após algumas semanas de recuperação, Benny se sente novamente em
condições de sair de casa e decide ir até a revista pois é a data em que ela
chega da gráfica e passa a ser distribuída. Chegando lá, todos o recebem de
uma forma meio constrangida, sem saber muito o que diz, ou como reagir. É
evidente a separação que existe entre brancos e negros. Um branco jamais
apareceria com sequelas de um espancamento feito pela polícia. É uma cena
bastante desconfortável. Nesse meio tempo, Pabst chega, trazendo más
notícias: a revista não sairá naquele mês por decisão do proprietário. Segundo
Pabst, se considerou que a revista não estava à altura do nível habitual de
qualidade. Mas é claro que não é isso.
Benny começa a perceber e tenta indagar Pabst sobre o real motivo, já
antevendo que se trata da sua história, com um capitão negro. Tudo fica claro,
sim, é exatamente por isso e há outra notícia ruim: Benny foi demitido. Ele se
antecipa e diz: “Não, eu me demito”, e a essa altura Benny demonstra estar se
sentindo muito mal, pois ele passou por um sucessão longa de obstáculos pelo
fato de ser negro. Teve sua foto na revista proibida; sua história teve que
transformar em sonho o seu capitão negro; foi espancado na rua pela polícia. E
agora o ponto culminante: a sua história não será publicada e perderá seu
trabalho. Seria demais até para o ser humano mais resiliente. Então, nesse
ponto, Benny desaba e põe pra fora tudo o que ele sente sobre essa conexão
ficção/realidade, em um dos monólogos mais poderosos e intensos já exibidos
na televisão:
Eu sou um ser humano! Você pode me negar tudo o que quiser, mas não pode
negar Ben Sisko. Ele existe! Aquele futuro, aquela estação espacial, todas aquelas
pessoas - elas existem aqui! Você pode censurar uma história, mas não pode destruir
uma ideia. Esse futuro - eu o criei, e é real!
O sonho de Benny é real. Ele já existe 400 anos no futuro. Mas precisamos
lutar aqui e agora para que ele se concretize. Ele não virá sozinho.
Benny tem um colapso, e é levado para uma clínica psiquiátrica, que
aparecerá brevemente em outro episódio, onde ele continua escrevendo a
história da Deep Space Nine, que nada mais é do que a história da libertação
final dos negros, da emancipação final do ser humano, em uma palavra, da
utopia.
Cabe ainda um comentário sobre a cena, que se você nunca viu, recomendo
que vá lá agora e veja. E reveja. E veja mais uma vez. Não há como ficar
indiferente, não há como sentir toda a dor de Benny Russell numa atuação
sobrenatural de Avery Brooks. Mesmo escrevendo sobre ela eu fico arrepiado.
Como homem negro, músico de jazz, ator, Brooks simplesmente conseguiu
aglutinar em si toda a dor de ser negro em uma sociedade branca e a colocou
para fora naquele momento ímpar de Star Trek. Acho que não tenho dúvidas
de que se trata da maior cena já feita na franquia. É simplesmente antológica e
deveria ser emoldurada por aí. A cena foi tão intensa, por conta da conexão
pessoal do ator com o tema, que, segundo o depoimento dos atores no
documentário What We Left Behind, sobre Deep Space Nine, Avery Brooks
simplesmente não conseguia sair do personagem. Foi como se ele tivesse o
colapso nervoso juntamente com Benny Russell. Alguns minutos foram
precisos para que ele conseguisse se recompor. E é por isso também que a cena
é uma joia rara.
Dois homens na trilha dos Profetas mas em direções
opostas
Na ambulância, Benny se vê trajando o uniforme de Sisko. Ao seu lado, o
pastor/profeta/pai, essa trindade misteriosa que o acompanhou e o conduziu
na estranha jornada que acabara de viver. Confuso, Benny pergunta: “Quem
sou eu?”. O Profeta lhe responde: “Você é o sonho e o sonhador”. Benny fica
sabendo que andou pelo caminho dos Profetas e que não existe glória maior
que esta. Mas que caminho foi esse? Do que se tratou tudo isso?
É difícil responder. A história é muito clara em alguns pontos e bastante
enigmática em outros. Na estação, quando Sisko volta a si, depois de poucos
minutos (como Picard em The Inner Light), conversa com seu pai e reflete que
talvez tenha sido o contrário, não foi ele quem sonhou com Benny quando
estava desacordado. Mas é Benny, em algum lugar além das estrelas, que sonha
com a estação. Pode ser. Mas acho que é um pouco melhor que isso.
Me parece que, ao demonstrar intenção real de abandonar a estação, sendo
isto visto pelos Profetas, já que eles não possuem existência linear, Sisko teve
de ser reconduzido ao seu caminho (o caminho dos Profetas), para que tudo se
consumasse como haveria de ser no final. Sem Sisko, os Pah-Wraiths teriam
vencido e dominado o Templo Celestial. Sisko é o Emissário, portanto, ele não
pode se desviar do caminho.
A maneira que os Profetas encontraram para resolver a situação foi levar
Sisko nessa jornada através da vida de um homem chamado Benny Russell, que
teria existido na Terra no século 20 e sonhado com a estação Deep Space Nine.
Mas ele só sonhou com a estação por trilhar simultaneamente a Sisko o
caminho dos Profetas. Dois homens, na mesma trilha, mas em direções
opostas, que os fazem chegar as mesmas conclusões. Se a ilustração da estação
não tivesse surgido na vida de Benny, possivelmente ele se tornaria o dono de
restaurante, que sua namorada tanto queria. Isso teve um custo enorme para
ele mas ele lutou contra a injustiça. Se Benny não aparecesse na vida de Sisko,
ele possivelmente largaria a estação e iria trabalhar no restaurante do seu pai,
na Terra. Benny olha para o futuro e isso lhe dá esperanças, embora esteja
desesperado. Sisko olha para o passado, embora desesperado, e isso lhe dá
esperanças.
Assim é que podemos entender o que significa ser o sonho e o sonhador. As
vidas de Benny e Ben se interconectaram de uma maneira incrível. Um era o
sonho do outro. Um era o sonhador do outro. E os sonhos comuns a ambos são
a igualdade e a liberdade.
IV
Voyager: uma odisseia insossa
Star Trek: Voyager surge tão logo a extremamente bem sucedida Star Trek: The
Next Generation havia acabado de sair do ar (mas chegando ao cinema) e
enquanto Star Trek: Deep Space Nine terminava a sua segunda temporada. Foi
um momento áureo para a franquia, com mais de uma série no ar ao mesmo
tempo e produções cinematográficas. A empolgação com Star Trek era tanta
naquele momento, que a Paramount queria uma série para colocar no ar seu
novo projeto, uma rede de televisão chamada UPN (United Paramount Network).
E assim Voyager foi criada por Rick Berman, Michael Piller e Jeri Taylor.
Berman se tratava já naquela altura de um veterano de Star Trek, legatário
de Gene Roddenberry, com o qual havia trabalhado proximamente em The Next
Generation. Havia criado Deep Space Nine também, em parceria com Piller.
Este, por sua vez, considerado um gênio, era o homem por trás do ponto alto
de Star Trek atingido por Deep Space Nine, juntamente com Ira Steven Behr.
Por fim, juntando-se à dupla, Jeri Taylor, roteirista talentosa que já havia
escrito quase 20 episódios para The Next Generation, desde clássicos geniais
como The Outcast até episódios detestados pelos fãs como Sub Rosa. O que
importa é que foi reunido um time de peso para a criação da nova série.
Os preparativos começam e os roteiristas se deparam com o primeiro
problema: os personagens. Como criar uma tripulação que não se
assemelhasse à Nova Geração, muito fresca ainda na memória do público e,
muito menos, aos tripulantes da estação Deep Space Nine, que estava no ar e a
acompanharia durante seus cinco primeiros anos? Toda vez que um
personagem era criado as inevitáveis comparações surgiam tornando lento e
difícil o processo. Esse fato contribuiu para que os personagens de Voyager
sejam bem menos interessantes quando comparados aos que os antecederam.
No fim, foi praticamente impossível manter total originalidade, inclusive com
os borgs (e uma tripulante borg!) ganhando espaço cada vez mais importante
na série. A própria capitã, como Picard, também foi assimilada (embora
voluntariamente).
Porém, no âmbito dos personagens uma grande novidade apareceu. Na sua
quarta incursão televisiva live action, Star Trek teria pela primeira vez uma
capitã mulher. Kathryn Janeway seria a responsável, pelos próximos sete anos,
em trazer de volta para casa sua tripulação sã e salva. Interpretada pela atriz
Kate Mulgrew, foi encarnada por um breve período pela atriz Geneviéve
Bujold, que chegou a gravar mas acabou desistindo do papel.
Por fim, a nave. Enquanto Deep Space Nine mostrava os acontecimentos em
uma estação espacial, Voyager voltou às origens (até como forma de se
diferenciar) e apostou em uma bela e elegante nave, classe intrepid, que seria a
casa da nova tripulação pelos próximos anos. Uma nave com bom potencial
bélico e com novas tecnologias de processamento que a deixavam mais
“inteligente”. Seu nome: USS Voyager (NCC-74656).
Bom, com alguns elementos definidos, restava definir qual a trama. Seguir
explorando a galáxia? Sim, mas não apenas isso, pois já havia sido feito na
série original. Explorar novos mundos e novas civilizações, mas descobrindo
grandes inimigos, mesmo em uma galáxia em paz? Ok. Podemos ter isso, mas
é necessário um pouco mais de conflito, senão externo, que tal interno?
Patrulhar uma determinada área do espaço, em meio a disputas alienígenas.
Quem sabe. Mas não somente isso, pois é a premissa de Deep Space Nine.
Então foi pegando um pouco de cada Star Trek que já havia existido que
Voyager surgiu. A exploração está presente, as disputas alienígenas e os
conflitos internos foram jogados no cadeirão da sala de roteiristas até que de
lá saiu o episódio piloto, que estabeleceria o caminho a ser percorrido pela
nave ao longo das sete temporadas. Assim surgiu o episódio Caretaker.
A última parada da Voyager antes do início da sua missão foi justamente na
Deep Space Nine. Assim como McCoy havia passado a bola para Data em The
Next Generation, Picard para Sisko em Deep Space Nine, agora a estação
abençoava a Voyager. Uma cena muito engraçada de Quark tentando passar a
perna no ingênuo alferes Harry Kim (coitado nunca foi promovido) marca essa
transição.
Então, em 16 de janeiro de 1995 ia ao ar o episódio duplo de estreia de Star
Trek: Voyager. A premissa é bastante simples e interessante: a nave USS
Voyager vai parar do outro lado da galáxia e precisa encontrar uma maneira de
retornar, sendo que a viagem duraria mais de 70 anos. É a Odisseia de Ulisses
no espaço.
Após os famigerados acordos entre Federação e União Cardassiana, uma
série de colônias humanas passou a se situar dentro das fronteiras desta
última. Milhares de famílias que se viram em meio a decisões de gabinete que
afetaram profundamente suas vidas. É evidente que essas pessoas, grande
parte delas nascidas nas colônias (algumas estabelecidas há séculos) se viram
acometidas por uma grave injustiça. Imagine você se alguém chega na sua
cidade e arbitrariamente o faz se mudar para outra. É essa a situação dos
colonos. Obviamente, que nem todos aceitaram passivamente e muitos
organizaram uma resistência, não só contra os “cardies” (como diz O’Brien)
mas à Federação em si, já que ela se tornou opressora.
Essa organização de autodenomina Maquis, em lembrança aos franceses
que resistiram à ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, já que seu
governo era colaboracionista. A analogia é precisa: a Federação, em
colaboração com os cardassianos, oprime seu próprio povo. A saída é resistir.
Somos todos Maquis! A missão da Voyager é perseguir uma nave Maqui, onde
um dos seus oficiais (o vulcano Tuvok) está disfarçado, obtendo informações.
Portanto, para o fã de esquerda, Voyager já começa com o pé esquerdo,
executando o trabalho de polícia da galáxia e perseguindo rebeldes que lutam
por uma causa mais do que justa. É a ideologia do Império estadunidense de
combate ao terrorismo se manifestando claramente. Mas ok, vamos abstrair
isso pois a série terá ótimos episódios de crítica social (como se poderá ver
nesse capítulo), embora nenhum deles possa ser considerado um clássico como
The Outcast ou Far Beyond the Stars... Mas nem tudo é perfeito.
Na perseguição, as naves acabam caindo em uma região do espaço
conhecida como badlands, um pedaço instável da galáxia, com muitas
tempestades de plasma. Ato contínuo, as naves são tragadas pelo que parece
um buraco de minhoca e vão parar 70 mil anos-luz de distância, do lado oposto
da galáxia no Quadrante Delta. Lá encontram uma estação espacial que serve
para uma entidade, chamada de Caretaker (zelador), proteger uma raça
chamada Ocampa. Os ocampas tiveram o ecossistema de seu planeta destruído
acidentalmente pelo Caretaker milhares de anos atrás e assim este ficou
responsável por lhes fornecer energia, já que vivem nos subterrâneos e
protegê-los de raças hostis como os Kazon.
No entanto, o Caretaker está morrendo e a forma que encontrou para
continuar protegendo os ocampas foi trazer alguma forma de vida que pudesse
se responsabilizar por isso. A sorte caiu sobre a Voyager e sua tripulação. No
entanto, logo antes de morrer Janeway o fez perceber que os ocampas estavam
infantilizados, acostumados com sua proteção. Então ele compartilhou seu
conhecimento extremamente avançado de modo que a raça pude seguir seu
caminho sozinha. Para evitar que a estação do Caretaker caísse nas mãos dos
kazon (nova raça introduzida pela série), Janeway o destruiu, mesmo com o
custo de não poder voltar para casa. A nave dos Maquis, muito avariada, foi
destruída e eles salvos pela Voyager. Iniciava a jornada de volta para o
Quadrante Alfa, com duas tripulações antagonistas na mesma nave.
É nesse ponto que se pode identificar um dos problemas mais graves da
série. Aquilo que parecia se desenhar como um ótimo conflito nunca
aconteceu. Uma tripulação, que tinha como missão caçar os Maquis,
precisando conviver com eles em uma viagem de 75 anos de volta para casa.
Do outro lado, os Maquis, contestadores das ações da Federação contra os
colonos ao ponto de pegarem em armas, rapidamente domesticados e
prestativos. O natural seria, ao menos, haver uma tentativa de tomada do
controle da nave. Nunca houve. O mais natural ainda seria ocorrer todo tipo de
atrito entre Maquis e oficiais da Frota durante toda a série. Também não
aconteceu. Chakotay, capitão da nave Maqui tornou-se primeiro oficial da
capitão Janeway, sendo um personagem subaproveitado, nada mais que um
simples secretário. B’Elanna Torres, meio klingon, meio humana, apesar de
seu mau humor, colaborou divinamente sendo a engenheira-chefe da nave. Ok,
podemos considerar que a turma se uniu em prol de um objetivo maior, que
era voltar para casa. Mas me parece altamente inverossímil.
Outro ponto problemático da série diz respeito às condições da nave. A
cada semana a Voyager é quase destruída para na semana seguinte ressurgir
resplandecente e garbosa. A questão pode surgir: mas isso não acontece em
todas as séries? Sim, acontece. Porém, as naves estão no espaço da Federação,
onde sempre podem efetuar os devidos reparos. O grande roteirista de The
Next Generation e Deep Space Nine Ronald D. Moore alegou ser esse o principal
motivo para abandonar a série. Acredito que houve outros, como a percepção
de que Star Trek entrava em decadência (tendo como ponto mais baixo
Enterprise), depois de uma linha ascendente que durou três décadas. Mas dá
para entender perfeitamente suas razões. Não quis ter seu nome associado a
uma série que não parecia crível. Em termos de drama seria uma grande
sacada apresentar uma Voyager cada vez mais depreciada, como vemos em um
dos seus episódios mais importantes Year of the Hell.
Outra coisa desagradável na série é o fato de que eles estão na corrida
contra o tempo, pois em dobra máxima levariam 75 anos para retornar ao
Quadrante Alfa. Mesmo assim a tripulação insiste em parar a cara novo
planeta, nave ou raça que encontra pelo caminho. Decisão da capitã, é claro.
Mas nunca há uma contestação. Quer dizer que todos ali, com saudades dos
seus amigos e familiares, do seu mundo, concordam plenamente em fazer uma
paradinha aqui e ali enquanto o tempo voa. Esse consenso é absurdo. É óbvio
que se a nave tocasse o rumo direto para casa a série seria inviável, pois não se
criariam possibilidades para as histórias. Mas, esse é mais um ponto que
comprova como a série se estrutura sobre premissas frágeis.
É claro que a série tem muitas coisas positivas, a começar por uma capitã
mulher. Desde sempre Star Trek inovou e colocou mulheres e pessoas de
outras etnias que não a branca em posição de destaque. Cabe lembrar que
enquanto Voyager estava no ar com uma mulher no comando a série paralela
Deep Space Nine era comandada por um negro, cercado por outros personagens
negros, que estavam no centro de muitas cenas onde somente eles apareciam.
Portanto, foi um momento de muitos avanços.
De positivo, a série apresenta o caráter essencial de Star Trek que é
descobrir novas vidas e novas civilizações. Por se passar no inexplorado e
misterioso Quadrante Delta, somos apresentados a inúmeras raças e culturas
nunca antes vistas no universo da franquia. O cânone de Star Trek foi
enriquecido enormemente com Voyager. Mas não podemos deixar de
mencionar que houve algo muito irritante nesse sentido também: o contato
com os talaxianos. Neelix é o personagem mais idiota já criado em Star Trek. E
eu tenho inveja dos trekkers de um universo alternativo onde ele não existe.
Quero ir para lá.
A verdade é que Voyager, assim como Enterprise, e de maneira geral, não
possui personagens brilhantes, carismáticos e cativantes. A única exceção é o
Doutor, que aliás, protagoniza dois dos episódios que abordo nesse capítulo.
Mas vamos dar uma olhada neles.
Começamos pela capitã Kathryn Janeway (Kate Mulgrew). Filha de um
almirante da Frota, enveredou pela carreira científica, mas acabou
percorrendo também a carreira de comandante, chegando à capitã da Voyager,
uma das naves mais modernas da Frota. Nasceu em Indiana e tem aquele
sotaque característico de quem é criado em fazenda, dando uns ares de redneck.
É viciada em café. No comando da Voyager se mostrou uma grande líder,
conseguindo levar a nave de volta para a Terra. Com uma ajudinha da sua
versão do futuro.
Chakotay (Robert Beltran), ex-maqui, primeiro-oficial da Voyager tem
origens indígenas. Foi o primeiro personagem com essa ascendência a estrelar
uma série de Star Trek. No entanto, tanto esse background quanto o próprio
personagem foram pouco aproveitados. Na verdade se tornou apenas um
assistente da Janeway, sem muita personalidade. Contudo, protagonizou
excelentes episódios. A prova disso é que os outros dois abordados nesse
capítulo tem Chakotay como centro. Mas cabe uma ressalva: os episódios são
bons não por conta do personagem (poderia ser qualquer outro sem o menor
problema), mas pela qualidade dos roteiros e das reflexões que ensejam.
Depois de The Next Generation e Deep Space Nine ignorarem quase que
completamente os vulcanos, em Voyager voltamos a ver um deles na ponte de
comando. Além disso, um vulcano negro, o que mostra que em Vulcano
existem variações étnicas como na Terra. Tuvok (Tim Russ) é um personagem
esquisito. Acredito que em boa parte pelas limitações do ator que o interpreta.
É óbvio que interpretar um vulcano deve ser um saco, já que a expressão e o
tom de voz (além dos cabelos) são sempre os mesmos. Mas Tuvok participa do
episódio-homenagem aos 30 anos de Star Trek, revelando que servira a bordo
da USS Excelsior, do capitão Sulu. Porém, tem algo que me faz simpatizar com
Tuvok e ficar ao lado dele: a inconveniência de Neelix que insiste em chamá-lo
de “Mr. Vulcan”.
Tom Paris (Robert Duncan McNeill) é aquele cara desajustado mas que
pilota uma nave como ninguém. Personagem absolutamente clichê. Mas acaba
sendo divertido pois se trata de um nerd do século 24, obcecado pela cultura
do século 20. Filho de um almirante, estava na cadeia e foi resgatado por
Janeway para pilotar a sua nova nave. Então ele tem aquele arco de redenção
onde precisa mostrar a todos e a seu pai que é merecedor de confiança.
B’Elanna Torres (Roxann Dawson) é a nova klingon do pedaço. Depois de
Worf temos outra klingon em uma nave da Frota. Na verdade era Maqui, mas
rapidamente se encaixou nas normas de Janeway. Os latinos sempre morrem
em Star Trek: quantos Ramirez e Gomez genéricos fizeram o papel de red
shirts... Agora temos uma latina na nave, mas ela é meio klingon. Significativo.
Torres irá casar e ter uma filha com Tom Paris.
Harry Kim (Garret Wang) é o alferes ingênuo. É muito competente, salva a
Voyager diversas vezes. Mas nunca é promovido. A internet faz a festa com
esse fato. Kim tem o hábito de tocar clarinete, e até se apresentou com a bordo
da Voyager com sua banda Harry Kim and the Kimtones. Não fez muito sucesso.
O Doutor (Robert Picardo)! Esse sim o grande personagem de Voyager.
Logo no início da série, nos eventos que levam a Voyager para o Quadrante
Delta, o médico-chefe da nave é morto, havendo a necessidade de se ativar o
EHM (Emergency Medical Hologram), uma nova tecnologia que começa a ser
instalada nas naves da Frota. Se trata de um holograma programado com
milhares e milhares de operações médicas e fisiologias das mais diversas raças.
O Doutor acaba fazendo parte da rotina da nave em sua jornada de volta para
cara e começa a desenvolver ego e senciência. Se torna criativo, emotivo,
afetivo, enfim, passa por um fascinante processo de humanização. Criado pelo
Dr. Lewis Zimmerman, tem a sua aparência. Em geral, apresenta um leve mau
humor, mas quando fala de sua arte (holográfica, musical, literária) fica
empolgado e sorri. Gosta de fazer longas exposições sobre suas criações
artísticas e médicas, as quais os tripulantes fogem como o diabo da cruz. Com
o tempo passa a ser visto como um tripulante de carne e osso e um dispositivo
é construído permitindo que circule por qualquer lugar da nave. Um
personagem fascinante, no melhor estilo Spock, Data e Odo, seres não-
humanos que precisam lidar com sua humanidade.
Neelix (Ethan Phillips). Talaxiano. Irritante. Entediante.
Kes (Jennifer Lien) é uma ocampa, que na partida da Voyager acabou
ficando a bordo. É outra personagem desnecessária, não por acaso par
romântico do Neelix. Quando a série inicia tem dois anos apenas, mas
totalmente adulta. É a fisiologia ocampa. Posteriormente, desenvolve grandes
poderes mentais, que estavam dormentes na sua espécie e quase destrói a
Voyager. No fim se torna um ser não-corpóreo e, com seus poderes, faz a
Voyager atalhar quase 10 mil anos-luz em sua jornada.
Seven of Nine ou Annika Hansen (Jeri Ryan) é uma humana que foi
assimilada pelos borgs quando era apenas uma criança. Portanto, passou toda
sua vida adulta como borg. Seven entra na série após a saída de Kes. Janeway
fez uma inusitada aliança com os borgs e uma deles foi designiada para servir
na Voyager. No entanto, quando os borgs quebram o acordo, Seven deve
assimilar a nave, contudo é barrada pela tripulação. Na sequência, o Doutor
remove seus implantes cibernéticos devolvendo-lhe cada vez mais a aparência
humana, que não tinha desde os seis anos quando foi assimilada.
A partir de então começa um longo e penoso processo de adaptação à vida
humana, o que torna a personagem interessante, na mesma linha dos
personagens que vão se humanizando na história de Star Trek. Apesar disso, a
personagem se trata claramente de uma eye candy, isto é, uma atriz
extremamente bonita vestindo roupas justas que exibem suas curvas com o
objetivo de atrair a atenção do público masculino.
Seven voltará em Star Trek: Picard, demonstrando que quase 20 anos após os
eventos vistos em Voyager ela se encontra muito mais humanizada, embora
carregando os implantes que não foram removidos.
Nesse capítulo você verá minha interpretação sobre o episódio Distant
Origins, que mostra como a tradição cega é inimiga da ciência e do
conhecimento. Abordo também o episódio Nemesis, uma incrível
representação da propaganda de guerra. Sobre o episódio Living Witness,
destaco o revisionismo histórico e como ele pode determinar relações de
poder. Por fim, trato sobre o episódio Virtuoso, uma divertida fábula sobre a
indústria cultural.
1
DISTANT ORIGINS
Pois se vós pensardes que matando as pessoas, impedireis que vos reprovem por viverem mal, estais em
erro. Esta forma de se desembaraçarem daqueles que criticam não é nem muito eficaz nem muito
honrosa.
Sócrates
Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a aparência e a essência das
coisas.
Karl Marx
Você está enganada, ministra. Você acusa Gegen de ter sua objetividade obscurecida por uma ilusão.
Mas você não é culpada por fazer o mesmo?
Chakotay
A ciência perseguida
As grandes perguntas que acompanham a humanidade desde a aurora dos
tempos são: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? E desde que
elas foram feitas pela primeira vez pelo primeiro ser humano, filosofias,
religiões e a ciência tentaram respondê-las. Muitas vezes de forma total. Em
grande parte das vezes de forma parcial, na impossibilidade de se apreender a
realidade integralmente. As três vertentes principais do conhecimento
humano que buscaram responder quais nossas origens, porque surgimos e
qual nosso destino apresentam respostas divergentes. Em alguns casos elas se
encontram, mas na maioria das vezes se mostram incompatíveis.
A especulação filosófica, quando idealista, não se configura como
conhecimento racional e científico. Da mesma forma a religião, já que esta
trata de seres e motivações imaginados, sem correspondência com o real. São,
no máximo, expressões da realidade, formas simbólicas e ideológicas como
vimos poder acontecer nas análises de alguns episódios nos capítulos
anteriores. E a religião, tem um aspecto importante que deve ser mencionado:
mais do que uma busca pela verdade e pela salvação do ser humano, ou seja,
sua aparência imediata, ela tem em sua essência o poder. É uma forma de
controlar sociedades através de dogmas que não podem ser contestados. Nada
a ver com a ciência. A ciência, por buscar a verdade, não aprisiona, ela liberta.
Assim, é nítido que ao contrário de meras crenças, a ciência apresenta
provas, que são baseadas nas evidências descobertas pela pesquisa. Logo, um
pesquisador, um cientista, ele deve ter os olhos abertos para toda e qualquer
possibilidade, sendo seu trabalho testar cada uma delas até chegar naquela que
passa em todos os testes. O cientista, portanto, não pode ter crenças que se
tornem obstáculos à sua busca pela verdade. Se um cientista acredita em
algum deus e descobre uma forma de provar que este não existe, ele terá de
reavaliar sua própria crença ao invés de descartar a pesquisa que demonstra
que ele estava errado.
Pois isso é conhecimento. É poder superar paradigmas, que tão logo
descartados possam apresentar algum nível de trauma, lá na frente servirão
para fazer a humanidade avançar mais alguns passos em direção a um futuro
melhor. Isso não significa que a ciência possa fazer tudo. É necessário ética. A
ciência já foi usada para sustentar posições racistas (pseudociência). Ela
também ainda utiliza animais como cobaias, algo que precisa ser superado,
pois senão nos aproximamos das religiões que utilizam animais em seus
rituais. Obviamente as intenções e os resultados são distintos, porém essa é
uma reflexão que deve ser feita.
A ciência é alvo de perseguição desde o primeiro momento em que colocou
em xeque dogmas estabelecidos há muito tempo. Sobretudo dogmas religiosos.
Isso aconteceu e acontece, supreendentemente, até hoje. No universo ficcional
de Star Trek, que nos apresenta a grande e invejável utopia da Federação, a
ciência possui um aspecto central. Afinal, é por conta do pensamento, de um
verdeiro ethos científico que a galáxia é explorada pela Frota Estelar: procurar
novas vidas e novas civilizações, audaciosamente indo onde ninguém jamais
esteve. Esse o espírito dominante na utopia. Portanto, a ciência nesse contexto
não gera problemas ao poder estabelecido. Muito pelo contrário, é incentivada
por ele e sua constituinte. Todavia, ao longo da história da humanidade a
ciência e os cientistas sempre encontraram problemas ao realizaram
descobertas que contestavam crenças que ajudavam a sustentar a ordem
vigente. Portanto, o caminho da ciência é tortuoso exatamente por contestar
mitos que são estruturantes da sociedade.
Basicamente, é essa a história de Distant Origins, episódio da terceira
temporada de Star Trek Voyager. Um cientista da raça Voth chamado Forra
Gegen, paleontologista molecular e líder de um grupo de pesquisa em
arqueologia, descobre, junto a seu assistente Tova Veer, um corpo humano
enterrado em um planeta. É o corpo de um tripulante da Voyager, que morreu
há aproximadamente um ano. O que seria uma descoberta interessante acaba
se tornando um achado que pode mudar completamente a forma com que os
Voth enxergam a si mesmos e à sua história. Existe uma compatibilidade de
DNA entre os seres humanos e os Voth (que são répteis, claramente evoluídos
de dinossauros). Os Voth, que são orgulhosos de serem a primeira raça
inteligente e naturais do planeta onde vivem (esse é um dos grandes dogmas
sociais entre eles), estão na iminência de descobrir que a história é bastante
diferente. É o equivalente da descoberta de que o sol não gira em torno da
Terra, fato que penalizou quem defendeu essa ideia. Gegen trilhará o mesmo
caminho de repressão que diversos cientistas e pensadores também
percorreram ao longo da nossa história.
Às vezes pessoas dizem coisas terríveis sobre seus inimigos para fazer parecê-los ainda pior.
Chakotay
Eu gostaria que fosse tão simples deixar de odiá-los como foi começar a odiá-los.
Chakotay
Pela condição do seu hipotálamo, eu diria que eles o deixaram tão confuso que poderiam ter
convencido você de que sua mãe era um nabo.
Doutor
Nêmesis
Nemesis é um clássico episódio de combate na selva, típico da era pós-Vietnã,
onde o imperialismo estadunidense amargou severa derrota. Desde então, a
imagem da selva e dos heroicos vietnamitas entrincheirados como fantasmas
que aparecem e somem e voltam a aparecer ficou incrustrada no imaginário
dos Estados Unidos, sendo representada ad infinitum em minisséries, séries,
filmes e inúmeros produtos da indústria cultural. A derrota do tecnicismo
frente ao fator humano, praticamente desarmado, deixou marcas indeléveis no
espírito estadunidense, já que os vietnamitas, devido à sua inferioridade bélica
nem eram considerados uma nêmesis. Eis o significado ainda maior de suas
vitórias. Mas o que é uma nêmesis, palavra tão importante na história que
abordarei nessa seção?
A sua origem remonta à mitologia grega. É o nome de uma deusa, mais
precisamente a Deusa da vingança divina. Esse sentido tem certa relevância no
episódio, já que ele mostra a luta sangrenta entre duas espécies rivais, cada
uma parecendo cometer atrocidades contra a outra. Daí é que decorre,
evidentemente, um forte desejo de vingança de ambos os lados. Porém, a
palavra possui ainda outros sentidos, sendo, modernamente, entendida como
um adversário praticamente invencível, pelo fato de possuir a mesma força e
as mesmas características, o que torna a luta contra ele eterna. O filme Star
Trek: Nemesis, com o elenco da Nova Geração, explora igualmente essa
temática, ao colocar como antagonista do capitão Picard um clone seu feito
pelos romulanos.
No episódio, vemos duas raças alienígenas em conflito: os voris e os
kradins. Na maior parte do tempo acompanhamos os voris em sua luta
mortífera contra seus inimigos. Os voris têm aspecto humano, enquanto os
kradins são aliens bastante repulsivos ao olhar, tendo certa semelhança com o
Predador. Ou seja, os produtores, deliberadamente, construíram a narrativa de
forma que o espectador rapidamente desenvolvesse empatia pelos voris e
aversão em relação aos kradins. Esse fato é importantíssimo para a história e,
da mesma forma que acontece com quem assiste, Chakotay tomará o lado dos
voris, passando a odiar mortalmente os kradins.
Revisionismo histórico
Living Witness é, sem sombra de dúvida, um dos meus episódios favoritos de
Voyager. Ele trata de questões que me dizem respeito profissionalmente
enquanto historiador e, além disso, aborda de maneira muito inteligente um
dos problemas mais graves no campo da historiografia e da política nos dias
atuais: o revisionismo histórico. Portanto, ao situar-se exemplarmente dentro
da tradição de Star Trek em colocar questões contemporâneas e relevantes
para discussão e reflexão do público, esse episódio merece receber cinco
estrelas em sua avaliação. Um clássico.
Antes de adentrarmos no episódio propriamente dito é necessário tecer
algumas considerações desse fenômeno contemporâneo chamado
revisionismo histórico.
Para Domenico Losurdo, este se trata de uma tentativa deliberada por parte
de intelectuais que servem às classes dominantes de liquidar a tradição
revolucionária iniciada com a Revolução Francesa no final do século 18. O
revisionista sempre tem como objeto de sua revisão fatos e processos
históricos que serviram para contestar a ordem vigente, seja a do Antigo
Regime, em um primeiro momento, seja a do capital posteriormente. Logo,
seus dois grandes alvos são a Revolução Francesa e a Revolução Bolchevique,
que consideram frutos de um mesmo ciclo de uma grave “doença” que teria
afetados os cérebros dos homens entre 1789 e 1917. Como se vê, existe uma
disposição a se descaracterizar as reais condições históricas que engendraram
esse ciclo revolucionário, apelando para causas naturais que nada tem que ver
com o desenvolvimento histórico.
Assim, vai-se criando uma narrativa que atenda interesses que não os das
classes de baixo, que vão sendo convencidas pouco a pouco que esse é o
melhor dos mundos possíveis e que qualquer tentativa de mudança, sobretudo
por via revolucionária, está fadada ao fracasso e a piora da situação. George
Orwell, apesar de grande escritor, trabalhou incessantemente como
revisionista histórico em seus célebres 1984 e A Revolução dos Bichos, obras
nititamente de inspiração antissoviética.
Mas o revisionismo não para por aí e continua mais ativo do que nunca. E
isso devido ao trabalho de outros intelectuais de peso como Hannah Arendt,
que ao utilizar a falaciosa categoria de totalitarismo, coloca a Alemanha
nazista e a URSS no mesmo saco, como se fossem duas cabeças da mesma
cobra peçonhenta. Essa desonestidade é tão grande e grave que não é possível
examiná-la corretamente no espaço destinado a esse texto. Mas basta dizer
que, ao comparar um regime que era racista e imperialista a outro que
conclamava os povos coloniais a romperem suas correntes, Arendt provoca um
desserviço enorme ao mundo contemporâneo, gerando, por exemplo, o maior
expoente do revisionismo atual que é o famigerado nazismo de esquerda.
O revisionismo também serve para que preconceitos sejam mantidos. Por
exemplo, um muito em voga diz respeito à colonização do Brasil e à escravidão
africana. Figuras sem o menor preparo para trabalhar com história publicam
livros afirmando que a invasão portuguesa no Brasil foi benéfica aos índios.
Como poderia ter sido se eles foram exterminados? Na mesma linha, diluiu-se
a criminosa escravidão africana sob o pretexto de que os negros na África
também possuíam escravos. Mesmo que fosse verdade, isso serve como
justificativa para um comércio internacional que deslocou milhões de seres
humanos de um continente para o outro para que vivessem uma vida de
violência a humilhação? O revisionismo não se sustenta nem por um segundo
diante de um historiador profissional e ético, mas nem sempre ele pode estar
presente, sobretudo nesses tempos onde a censura volta a mostrar suas garras,
tendo como alvo prioritário os professores de história. Como visto, isso não
acontece por acaso.
Revisionismo histórico: nazismo e comunismo
Um dos alvos preferenciais do revisionismo histórico é o nazismo. E o objetivo
fica cada vez mais claro. Assim como em todo revisionismo, a intenção é criar
condições intelectuais para a manutenção do poder e do status quo. Ou seja,
aqueles que estão nas esferas dominantes, encontram na manipulação
intelectual de eventos históricos tétricos como o nazismo na Alemanha das
décadas de 1930 e 1940 uma solução adequada para combater as forças de
esquerda que se insurgem contra sua dominação.
Tenho certeza que nos últimos tempos você ouviu por aí que o nazismo é de
esquerda. Que Hitler era marxista. Que a Alemanha nazista construiu um
sistema coletivista e essa é a prova cabal de que se tratava de um regime
comunista. Todo esse tipo de afirmação é tão surreal quanto afirmar que a
Terra é plana. E, infelizmente, até isso estão afirmando e o movimento cresce
cada vez mais. São tempos surreais. Mas nada disso surge do nada, não é fruto
de uma geração espontânea, muito pelo contrário, como tenho afirmado, esse
tipo de truque intelectual tem como intento criar mantos obscuros sobre as
vistas da população, que assim, perde as esperanças na política e na ciência,
tornando-se mais dócil frente à exploração capitalista e seus lacaios.
Justamente aquele que defenderia os interesses do povo é tornado um
monstro, em uma inversão ideológica de arrepiar. Em Living Witness, por conta
do trabalho de séculos dos revisionistas dos kyrians, vemos a Voyager e sua
tripulação se tornaram grandes vilões. É um episódio didático sobre
revisionismo histórico. Mas vejamos antes o caso do nazismo, que tem por
objetivo tornar o socialismo e o comunismo em ideias inimigas da
humanidade.
Antes, começo dizendo o que a Alemanha nazista foi. A ascensão de Hitler
ao poder foi uma reação à paz punitiva de Versalhes, que impôs condições
muito duras à Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial. Perdeu suas
colônias, teve que pagar os custos da guerra, teve suas forças armadas
reduzidas a praticamente nada e ainda foi estigmatizada por ter arrastado
sozinha a Europa para a guerra. Tudo isso mexeu muito com a autoestima
alemã, que ainda por cima amargou uma devastadora crise econômica e
hiperinflação. Hitler soube explorar habilmente esses sentimentos da
população, oferecendo-se como salvador ada pátria ao indicar exatamente
quem eram os inimigos da Alemanha: os aliados e os judeus.
Para construir de maneira ainda mais convincente sua narrativa, apelou
para a ancestralidade de povo alemão, uma raça destinada a comandar. Valeu-
se da filosofia de Nietzsche que comprovaria que este “fardo” de dominar as
“raças inferiores” estava destinado aos alemães. Ao mesmo tempo, insistiu na
questão que já havia levado os alemães a guerra, que era a necessidade de
construir um império colonial, como as outras potências já haviam feito. Só
que dessa vez o império começaria pela própria Europa, dominando os
territórios eslavos, etnia considerada inferior (a própria palavra “escravo” tem
origem no termo eslavo), e também a França (“país negroide, nação africana em
solo europeu”) e, após o fim da guerra, a própria Itália, considerada um país de
sangue negro. Em suma: a “raça” foi o grande mote que Hitler utilizou para
mobilizar a Alemanha, fazendo-a crer em sua superioridade racial sobre outros
povos.
Hitler importou dos Estados Unidos a ideia de eugenia. Essa pseudociência,
criada na Inglaterra fez fortuna na América. Além disso, Hitler via no Estado
racial criado pelos estadunidenses a melhor forma de lidar com os judeus. Para
fechar, o tratamento dispensado aos ameríndios pelos colonos ingleses na
América era uma fonte inesgotável de inspiração para Hitler em como lidar
com os povos não arianos. Assim, a partir da implementação dessas ideias, o
Estado alemão se tornaria puro e poderia finalmente seguir o glorioso destino
que fora reservado a si.
É claro que isso teve um custo de dezenas de milhões de vida e a Alemanha
acabou sendo destruída pelos aliados, principalmente pela URSS de Stálin, que
arrombou as portas de Berlim e deu o golpe fatal, decapitando a serpente
nazista. No entanto, o revisionismo atual verá a questão sob uma perspectiva
bastante diversa. Para alguns teóricos lunáticos, nem o próprio holocausto
teria ocorrido. É o equivalente conspiratório da Terra plana, dos reptilianos, da
não ida do homem à Lua, dos illuminati etc. Ou seja, nem só a política é
falsificada, mas também a ciência. É a formação do império da ignorância.
Para outros, mais sofisticados, o trabalho consiste em transformar nazismo
e comunismo em irmãos gêmeos, demonstrando de uma vez por todas que o
único sistema aceitável seria o liberalismo. Dessa forma, busca-se realizar no
ocidente uma “democracia do povo dos senhores”. Mas vejamos melhor como
isso é feito.
O revisionismo histórico trabalha sobre a denúncia de uma suposta
abstração do ser humano e do fanatismo ideológico. Seus teóricos, que iniciam
em Tocqueville, chegando aos contemporâneos Ernst Nolte, baterão
insistentemente na tecla da comparação da atividade revolucionária com
doença ou intoxicação. Ou seja, é claro para esses pensadores que Robespierre,
Lênin e seus seguidores foram acometidos por uma espécie de febre que
atormentou suas mentes e os fez cometer atrocidades em nome de um ideal de
ser humano inexistente.
Os liberais não acreditam em igualdade, logo, não acreditam na ideia de um
ser humano abstrato, só creem no indivíduo. Portanto, jacobinos e
bolcheviques seriam assim duas pontas de um mesmo processo “totalitário”
que merece ser combatido duramente. Além disso, não podemos nos esquecer
de Nietzsche para o qual toda e qualquer tentativa de insurreição das classes
“barbáricas” se trata somente de “ressentimento”, isto é, de inveja que estas
possuem das classes dominantes. As condições reais de dominação, exploração
e miséria não entram no radar do “rebelde aristocrático”.
Pronto, estas são as ideias colocada inicialmente. Mas como ocorre a
aproximação atual da tradição revolucionária “de esquerda” com um
movimento de extrema-direita? Cabe de antemão esclarecer que o
malabarismo deve ser muito grande, já que se tratam de visões politicas
absolutamente distintas.
Em primeiro lugar o nazismo. É uma doutrina estruturada sobre dois
pilares: superioridade ariana em relação às outras “raças”; dominação e
escravização dos povos “inferiores”. Portanto, podemos resumir em racismo e
imperialismo.
O comunismo tem o viés oposto, antinazista, antirracista, anticapital, a
favor do trabalho. Um princípio básico do comunismo é não distinguir
ninguém, nenhum povo, por sua “raça”. E por quê? Porque o comunismo se
estrutura sobre o materialismo histórico. Isso significa que nenhum processo
humano pode ser visto por condições biológicas que seriam inatas de uma
determinada raça, de um certo país. Tudo o que uma civilização é vem de
conflitos históricos bem determinados. Se a África tem problemas com guerras
civis e pobreza, isso não se deve a fatores naturais dos africanos. Basta ver a
sua história de espoliação, dominação e violência sofrida por 500 anos por
parte dos europeus. O ser humano é um ser social e histórico. Nada que ele
faça ou lhe aconteça está fora disso.
Já para os nazistas, existem determinadas marcas genéticas em certos povos
que não pode ser apagadas e que os vedam a participação na civilização. São
como células doentes que contaminam o corpo saudável das raças superiores.
Outra grande mentira descarada que os revisionistas, geralmente os mais
rastaqueras, contam diz respeito ao suposto marxismo de Hitler. Essa não
passa nem na prova mais simples. É só baixar o pdf da bíblia do nazismo, o
livro Mein Kampf (Minha Luta), escrito por Hitler e conferir in loco. Faça uma
busca pela palavra “marxismo”. Os muitos resultados lhe mostrarão qual o
exato pensamento do autor sobre o tema. Posso adiantar que você chegará à
conclusão de que um dos objetivos do nazismo era liquidar com o comunismo.
Portanto, são diferenças colossais. Enquanto um é revolucionários, a partir
de baixo, o outro é conservador, a partir de cima. São coisas absolutamente
antagônicas, mas que no caldeirão dos feiticeiros do revisionismos,
magicamente se tornam umbilicalmente unidos. É uma forma de mandar o
seguinte recado aos trabalhadores e oprimidos: não insista, as revoluções
sempre darão errado e todas elas, de todas as vertentes, são iguais. Em resumo:
a história é revisada (de maneira pejorativa, pois é parte do verdadeiro
historiador revisar a história o tempo todo, em busca de novas perspectivas),
para a manutenção do poder e controle das massas. É exatamente esse
processo que vemos no episódio Living Witness.
Um backup do Doutor
Um novo achado arqueológico foi feito, contendo muitos dados a respeito da
Voyager. Dessa vez, o historiador poderá dar voz direta a uma fonte, ouvindo o
que ela tem para dizer. O programa do Doutor estava incluso e ao ser ativado
assustou-se com o fato de haver um kyrian bem ali na sua frente. Se trata de
um backup do seu programa, inativo por 700 anos. A história começa a ficar
interessante: os kyrians vendem sua imagem histórica como as grandes
vítimas. Portanto, é um fato a ser considerado o Doutor encarar um kyrians
como uma ameaça. Ele deixa escapar que talvez um dos soldados kyrians
tenham roubado o artefato da nave. A perspectiva começa a pender para outro
lado.
Quarren exibe outras simulações para o Doutor em busca de que este possa
ajudar corrigindo eventuais imprecisões. O Doutor entra em choque. O
modelo reconstruído da Voyager a mostra como uma nave de guerra. Quarren
sequer sabia qual seu destino final, considerando que fosse Marte. Por fim
uma reunião dos oficiais que mais parece saída de uma nave do universo
espelho, com direito a pancadaria. A tudo isso o Doutor precisa somar o fato
de que 700 anos se passaram e nem a Voyager e seus amigos existem mais. É
muito informação até mesmo para um holograma.
O Doutor admite que a Voyager, em algum momento, envolveu-se no
conflito entre os vaskans e os kyrians, mas de maneira absolutamente diversa
da entendida por Quarren e narrada pela historiografia do planeta. A
tripulação estava reunida com o embaixador Daleth quando,
surpreendentemente, fora atacada pelos kyrians. Isto é, ao contrário da
história oficial, eles é que foram os agressores. O que de forma alguma implica
a Voyager em lutar de um lado ou de outro.
As coisas começam a ser melhor esclarecidas. Tedran, o mártir dos kyrians,
que na história oficial evacuou cidades, salvando milhares de pessoas e que
fora assassinado a sangue frio por Janeway, na verdade liderou os ataques dos
kyrians à Voyager e aos vaskans. Quarren, começando a se ver confrontado
com a realidade reage desativando o Doutor. Afinal, para ele, como kyrian, é
muito mais cômodo encarar seu povo como o injustiçado, oprimido até os dias
de hoje por uma outra raça que os agrediu. Em outras palavras, o revisionismo
histórico corrente permite que kyrians tenham ídolos, heróis, mártires,
enquanto o outro lado carrega a pecha da infâmia. Mas a história é mais
complexa que isso.
Quarren passa a ser atormentado por dúvidas. Parece que há, de fato, coisas
que não se encaixam na história que aprendeu e ensinou. Ele é um pesquisador
e, por amor ao conhecimento verdadeiro, decide recorrer ao Doutor para que
esse talvez jogue alguma luz nas sombras que começam a cair sobre seus
estudos. O Doutor, orgulhoso do seu talento na “arte holográfica”, propõe
contar a versão verdadeira através de novas simulações. Uma nova perspectiva
aparecerá diante dos olhos de Quarren, com o poder de transformar toda a
história entre kyrians e vaskans.
A verdade é que Janeway estava fazendo um acordo muito simples e
inofensivo com o embaixador Daleth: fornecimento de suprimentos médicos
em troca de cristais de dilítio. Daleth a informa que estão passando por
hostilidades de uma raça belicosa, os kyrians, e que uma guerra pode começar
a qualquer momento. Logo, a Voyager é atacada por eles e um grupo aborda a
nave, matando tripulantes e sequestrando Seven of Nine. Tedran, que lidera o
ataque, considera que Daleth organiza uma aliança com a Voyager contra os
kyrians. Ao conseguir reagir, Seven of Nine desarma Tedran, que é atingido
mortalmente por um disparo de Daleth. Isto é, Tedran não foi morto pelos
humanos, mas por um vaskan, em legítima defesa.
É um golpe profundo na narrativa histórica estabelecida. A morte de
Tedran é compreendida como parte de uma conspiração entre os vaskans e a
Voyager para submeter os kyrians. Há 700 anos que essa história é contada.
Isso levou a um apartheid entre as duas espécies, fazendo com que os kyrians
não tenham os mesmos direitos que os vaskans, sendo impedidos de
frequentar as mesmas escolas por exemplo. Os vaskans sempre acharam que
os kyrians foram os agressores. O Doutor, com seu testemunho, bota tudo por
água abaixo e faz com que uma convulsão social assole o planeta. Pela
primeira vez kyrians e vaskans precisarão se confrontar com sua verdadeira
história e arcar com as consequências advindas desse ato.
Ambos os povos viviam no passado, um culpando o outro por uma guerra
que acontecera há muitos séculos. Ao compreenderem a verdade, o caminho
da reunificação se tornou mais fácil, já que a atitude mais lógica seria
aprender com os erros mas não se prender a eles. O fundamental é mirar o
futuro. Com a ajuda do backup do Doutor, as duas raças conseguiram
finalmente entrar em entendimento. E o Doutor? Depois de algum tempo,
decidiu ir embora, seguindo o caminho da Voyager até o Quadrante Alfa. Seria
interessante acompanhar essa jornada e ver o que ele encontraria. De repente
até mesmo a USS Discovery, jogada para o futuro na segunda temporada da
série.
Um artista é alguém que produz coisas que a gente não precisa ter.
Andy Warhol
A fama de um holograma
No universo de Star Trek são incontáveis às menções a estilos musicais
alienígenas, ou então a personagens que tocam instrumentos musicais.
William Riker adora tocar trombone, é um músico de jazz. Picard, a partir dos
eventos vistos em The Inner Light passa a tocar flauta. Chief O’Brien é um
grande violoncelista. Spock com sua harpa vulcana já fez um dueto com
Uhura, que além de cantar divinamente, dança muito bem, como visto em Star
Trek V. Data canta no casamento de Riker e Troi. Em Discovery, sabemos que o
Dr. Culber adora ópera kasseeliana, um estilo musical muito inusitado. Conta-
se que uma cantora desse tipo de ópera se prepara durante toda a vida para
uma única apresentação, na qual, na última nota, um Mi agudo, crava uma
adaga no próprio peito. Óperas em geral são dramáticas, mas acredito que não
tanto quanto as kasseelianas. Por falar em ópera, existem as klingons, as quais
Worf é um grande apreciador. Porém, entre os klingons também existem
“músicas de botecos”, como o Doutor faz questão de frisar para B’Elanna, que
não leva a sério seu talento.
O Doutor canta vários estilos, mas tem predileção pela ópera. E será esse
estilo que ele apresesentará para os qomarians. São dadas todas as condições e
liberdades para que o grande artista escolha seu palco. Ele pode escolher qual
o cenário será replicado e até mesmo a posição do auditório para que a vista do
público não seja prejudicada, possibilitando a melhor experiência possível. A
apresentação é um sucesso estrondoso, algo nunca visto entre os qomarians.
Todos ficam fascinados pelo artista e se tornam grande fãs.
Em um certo momento a nave, aparentemente, passa a ser sabotada pelo
qomarians. Na verdade eram apenas mensagens dos fãs, fazendo perguntas
para o novo ídolo e elogiando fervorosamente suas habilidades como cantor.
Seven of Nine, que é amiga dele, fica um pouco incomodada, enciumada
talvez. Ela não consegue aceitar muito bem que o Doutor agora tem um
planeta inteiro de fãs (palavra que ela rapidamente identifica como oriunda de
fanático).
Então monta-se uma verdadeira sessão de autógrafos dentro da Voyager,
com qomarians vindo de todos os cantos para prestar seus tributos ao Doutor
e conhecê-lo pessoalmente. Duas jovens chegam a simular um mal-estar para
poderem ser atendidas por ele e privar de um momento a sós. É uma
verdadeira beatlemania. Outros fãs imitam o corte de cabelo do Doutor, que é
calvo. Uma fila imensa se forma para pegar um autógrafo e receber uma
fotografia holográfica capaz de cantar. É a obra de arte reproduzida
tecnicamente. Se trata também de uma referência às ComicCons que os atores
de Star Trek participam. Um dos momentos altos do episódio é o dueto entre o
Doutor e sua miniatura. No entanto, Janeway preocupada com a situação
ordena que o doutor retome suas funções na enfermaria, jogando um balde
água fria em suas pretensões artísticas. A partir desse ponto um dilema se
colocará frente ao Doutor: ficar na Frota e largar a carreira ou abandonar tudo
para seguir seu sonho de ser um artista.
Amadurecemos desde a última guerra, mas ainda há denobulanos que temem os antarianos.
Dr. Phlox
Duas tramas
The Breach é um episódio que apresenta um formato clássico em Star Trek,
com duas tramas paralelas, uma principal e outra secundária. Na primeira,
acompanhamos o dilema do Dr. Phlox em tratar um paciente mesmo contra
sua vontade. Para o velho médico denobulano, ao contrário do juramento de
Hipócrates que vigora entre seus colegas humanos, a autorização do paciente,
mesmo que corra risco de morte, é fundamental para que o tratamento seja
fornecido. No caso apresentado, Phlox se depara com um paciente antariano,
raça que possui um ódio profundamente arraigado pelos denobulanos devido a
guerras entre as duas espécies ocorridas há mais de 300 anos. Logo, o
antariano se recusa a ser atendido por um médico pertencente a uma raça que
despreza, e mais que isso, que o atemoriza.
No enredo paralelo, uma entediante historinha de resgate protagonizada
pelo trio Trip, Travis e Malcolm. Em um planeta que acaba de passar por um
golpe militar que promove a expulsão de todos os alienígenas, um grupo de
pesquisadores denobulanos desaparece em uma rede de cavernas com mais de
50 quilômetros de extensão. O novo governo deu um prazo de três dias para
que todos que não sejam nativos saiam do planeta, o que torna o resgate mais
dramático, pois se trata de uma corrida contra o tempo. O que se segue são
intermináveis cenas dos personagens descendo as paredes da caverna em
busca dos cientistas, em uma história que leva de nada a lugar nenhum. A não
ser ao velho clichê do estadunidense típico como Trip falando grosso no
melhor estilo “irei salvá-lo nem que pra isso precise chutar a sua bunda”. No
fim, os cientistas são salvos e terão que compartilhar o transporte de volta
para casa com o antariano. As duas raças terão que conviver.
Enquanto Archer ajuda Phlox ao mesmo tempo descobre que os
denobulanos foram uma raça genocida no passado, capaz de exterminar 20
milhões de antarianos, fato que levou o ódio dessa espécie pela outra que
perdura há mais de três séculos.
Naturalizar o histórico
O grande erro abordado pelo episódio é tomar como natural aquilo que é fruto
de acontecimentos e processos históricos. Ao longo dos séculos houve grandes
guerras entre as duas raças, o que enseja grandes traumas de ambos os lados.
Nesses conflitos, que mataram milhões de pessoas, principalmente do lado
antariano, foram cometidos graves crimes de guerra, ao que o episódio faz
referência ao nazismo. Os cientistas e médicos denobulanos utilizaram
cobaias antarianas para todo tipo de experimento, o que sem dúvida marcou a
história desse povo, que se viu ultrajado e reduzido a mero instrumento
inanimado ao qual se poderia praticar qualquer ato.
É mais ou menos o que os judeus sentem até os dias de hoje em relação aos
nazistas, que os rebaixaram ao nível de sub-humanidade, quando não de
insetos e pragas, como discutido nos capítulos anteriores. Portanto, essas são
feridas que ficam abertas durante muito tempo e que, na verdade, nem podem
ser fechadas, para que fiquem ali sempre relembrando a história. O que não
pode acontecer é se pegar a história e torná-la uma ferramenta contra um
determinado povo que cometeu crimes no passado. Em relação aos alemães
não surgiu esse tipo de preconceito, pois as narrativas historiográficas oficiais,
eurocêntricas, não permitiram. Acertadamente, os crimes foram imputados
aos nazistas, ou seja, apenas uma parcela dos alemães. Os crimes contra os
judeus na Segunda Guerra Mundial não foram naturalizados, como se fossem
algo inerente a uma “alma alemã”, por exemplo. Eles foram e são encarados
como surgidos a partir de um determinado e específico contexto histórico.
Pois o erro dos denobulanos e antarianos é justamente ignorar isso. Eles
atribuem uns aos outros características naturais que seriam responsáveis pela
sua monstruosidade. Na verdade, tudo o que aconteceu entre ambos teve
origem na história. Teve origem em contextos políticos, sociais, ideológicos,
que determinaram a ação das duas raças uma contra a outra.
Por isso a questão dos filhos assume centralidade no episódio. O doutor
Phlox explica que possui cinco filhos. E que mesmo tendo ouvido histórias
terríveis sobre os antarianos da sua avó, que o faziam ter pesadelos à noite, ele
não as repassou para suas crianças. Dessa forma, ajudou a formar uma nova
geração de denobulanos livres dos preconceitos e ódios do passado. A
revolução deve vir do futuro e não do que já passou. A opressão exercida sobre
nossa compreensão de mundo por antigas tradições deve ser encarada
criticamente para que possamos transmitir as novas gerações não sinais do
passado mas indicações para o futuro. Phlox faz isso, e muito bem. Mesmo
assim, um dos seus filhos, Mettus, acabou sendo influenciado por denobulanos
que continuam presos ao ódio pelos antarianos e seguiu na trilha do passado.
Pai e filho acabam rompendo, deixando de se falar por pelo menos dez anos.
No entanto, a experiência de tratar o antariano e conseguir fazer esse perceber
que ambos podiam conviver e que o ódio devia ficar para trás, o faz entrar em
contato novamente com o filho, mesmo sem certeza de resposta. Esse
fenômeno, de jovens que não visam o futuro e de apegam ao passado, tem
acontecido com frequência nesses dias onde a extrema-direita avança pelo
mundo. É preciso que fiquemos atentos.
Outro acontecimento histórico humano que deixou marcas de ódio em dois
povos foi o genocídio armênio executado pelo Império Otomano no contexto
da Primeira Guerra Mundial. Foi uma tentativa de limpeza étnica na qual
milhões de indivíduos do sexo masculino foram executados. As mulheres e
crianças foram deportadas e obrigadas a viver em países que não o seu. Entre o
povo armênio essa memória ainda é muito viva. Já no país sucessor do Império
Otomano, a Turquia, o Estado não reconhece que tenha acontecido o
genocídio, fato que não contribui para a superação da animosidade entre os
dois povos.
Um outro aspecto levantado pelo episódio diz respeito aos sucessivos
golpes de Estado que ocorrem em muitos países tendo como saldo o
extermínio de minorias, como ocorreu nos anos 1990 nas Guerras da Bósnia e
da Iugoslávia.
Como conclusão, é possível destacarmos dois itens principais. O primeiro
deles diz respeito à demonização dos inimigos. É preciso sempre considerar o
contexto histórico. Em quantos momentos inimigos já foram amigos e vice-
versa? Portanto, ao se atribuir características demoníacas a um país ou
determinado grupo de pessoas, ou até mesmo a partidos políticos, movimentos
populares etc. se está entrando em uma seara muito perigosa, que já levou a
genocídios.
Em segundo lugar, devemos saber que esse risco está sempre presente. O
fascismo, que é a melhor expressão do ódio que naturaliza aspectos do seu
objeto de combate, está vivo e mostrando os dentes. O fascismo explora o
medo das pessoas pois sabe que esse é o melhor caminho para despertar o
ódio. Hoje em dia, o fascista ataca mulheres, homossexuais, negros,
imigrantes, todos aqueles que não se enquadram em sua restrita e tacanha
visão do que seria o homem.
Sabendo desses dois aspectos é que poderemos agir como o Doutor Phlox,
que conseguiu se libertar da visão naturalista do outro ao mesmo tempo em
que colocou na prática a sua visão de mundo progressista. É tarefa de cada um
de nós, sobretudo nesses tempos que parecem cada vez mais envoltos em
trevas, trabalhar ativamente por uma cultura de igualdade e de liberdade.
Afinal, nunca será livre quem oprime o outro.
2
COGENITOR
Gênero e escravidão
Um gênero oprimido
Cogenitor é um episódio que não prima pelo ineditismo temático dentro do
universo de Star Trek. Embora interessante, a história remete imediatamente a
The Outcast, episódio da Nova Geração já tratado nesse livro. Basicamente,
Cogenitor apresenta uma história de opressão de gênero, portanto, situação
semelhante à vista no caso dos j’naii de The Next Generation. A diferença está
no fato de que a opressão entre os vissianos, espécie apresentada em
Enterprise, é mais brutal do que a vista entre os j’naii e permite uma relação
com a condição da mulher sob o patriarcado.
Outra semelhança entre os episódios está na atitude de dois personagens
em relação aos indivíduos oprimidos. O papel que coube a Riker, na defesa de
Soren, aqui é exercido por Trip que ao conhecer o “Cogenitor”, que nem nome
possui, vai se tornando pouco a pouco revoltado com a injustiça pela qual esse
passa.
Entre os vissianos existem três gêneros. Os habituais masculino e feminino
e um terceiro, que serve unicamente para auxiliar na concepção dos filhos dos
casais. É a esse indivíduo que se chama Cogenitor. No primeiro contato que
Trip tem com um deles tenta cumprimentá-lo, que não retribui o
cumprimento. A mulher vissiana lhe explica que ele não tem nome e que só
está ali pois o casal pretende ter filhos. O Cogenitor fornece uma enzima que
facilita o processo de reprodução. Realmente, uma raça com três sexos não é
para principiantes.
Trip se torna bastante curioso a respeito dos três gêneros dos vissianos e do
papel do Cogenitor. Descobre que eles são tratados como animais domésticos,
sem direito a estudar, por exemplo. São apenas instrumentos utilizados no
processo de fecundação do casal e tão logo o objetivo seja atingido são
repassados para outros vissianos que estejam planejando ter filhos. Na verdade
os cogenitores recebem tratamento inferior ao dado aos animais. Porthos ao
menos tem um nome.
Trip fica ainda mais impressionado com a situação do Cogenitor ao
descobrir que ele/ela possui a mesma inteligência que o macho ou a fêmea da
raça vissiana. A opressão se torna cada vez mais evidente. Entre os vissianos,
existe uma parcela da população que não priva dos mesmos direitos dos outros
e vive uma vida de escravidão.
O Cogenitor é a mulher
A grande derrota histórica do sexo feminino, segundo Engels, ocorreu quando
o direito materno deixou de existir. Isso aconteceu no momento em que a
propriedade privada emergiu, havendo a necessidade de se determinar
claramente de qual homem os filhos eram. Assim, a mulher foi reduzida a uma
escrava doméstica, com a função estrita de fornecer sexo, parir, criar os filhos
e cuidar do lar.
Nesse episódio o Cogenitor apresenta muitas semelhanças com o papel
reservado às mulheres na história. É uma pessoa que fica restrita ao lar e,
comportando-se bem, como é dito no episódio, pode desfrutar de algumas
migalhas a mais, como ficar em outros cômodos da casa. Não tem direito nem
de cumprimentar os visitantes. Somente com a autorização do casal. Quando
Trip pede para vê-la, a mulher vissiana concorda apenas por se tratar de uma
suposta curiosidade de uma espécie que tem só dois gêneros.
Portanto, é possível ver que o casal vissiano corresponde ao homem na
sociedade patriarcal. Nessa, é o homem que determina o comportamento da
mulher, assim como os vissianos controlam rigidamente o comportamento do
Cogenitor.
Os estudos são vedados a esse. Para que estudar se sua única função na
sociedade é ajudar na reprodução dos casais? A lógica se aplica às mulheres ao
longo da história: elas não precisam conhecer o mundo nem aprender nada
que não sirva para as lides domésticas. Por que uma mulher deveria aprender a
ler? Por que uma mulher teria o direito a votar? Essas questões eram feitas
com seriedade até bem pouco tempo atrás e ainda são colocadas em diversas
sociedades. E mesmo que, aparentemente, tenham sido superadas em nosso
meio atualmente, elas estão sempre à espreita, sobretudo na esfera religiosa,
que considera os textos bíblicos como guias adequados para o mundo atual.
Embora os vissianos se apresentem como uma civilização extremamente
desenvolvida tecnologicamente, sua sociedade apresenta um nível de barbárie
social impressionante. Barbárie que foi contestada por Trip e que resultou no
trágico suicídio de Charles. Quantas mulheres ao longo da história preferiram
a morte a viver uma vida de escravidão? Essa é uma das importantes reflexões
que o episódio coloca.
3
DEMONS/TERRA PRIME
A Enterprise foi chamada para casa para o que poderá ser um momento crucial na história humana.
Archer
Se uma vulcana e um humano decidirem ter um filho, provavelmente daria certo. E isso é
reconfortante.
Tucker
União ou isolacionismo?
Demons e Terra Prime são, respectivamente, o antepenúltimo e o penúltimo
episódios de Star Trek Enterprise. O último, portanto o series finale, será o
polêmico These are the voyages..., que na verdade mostra os personagens como
parte de um programa de holodeck do comandante William Riker, que estava
acompanhando o surgimento da Federação. Como se fosse um programa
interativo de história da Terra. Por isso, muita gente acha que os dois
episódios sobre os quais trato nessa seção deveriam ter sido os últimos da
série, que teria sido encerrada com um pouco mais de dignidade. Mas se serve
de consolo, eles são, de fato, os dois últimos nos quais Archer e sua tripulação
aparecem como eles mesmos e não meras simulações holográficas.
A Enterprise do capitão Archer, em suas viagens pioneiras pela galáxia,
conquistou uma série de inimigos. Os mais perigosos deles foram os Xindi,
uma civilização composta por cinco raças diferentes, hostis aos humanos. No
contexto do 11 de setembro, conforme mencionado na introdução, os Xindi
realizam um ataque devastador à Terra, fato que desperta fortes sentimentos
xenofóbicos na população terráquea.
Dessa forma, Enterprise acaba lidando com duas perspectivas políticas
opostas e excludentes. Em uma delas, há a intenção de se estreitar os laços
com todas as raças que sejam contadas e se demonstrem abertas a tal ideia.
Para isso, é fundamental a criação de uma Federação de planetas, que possa
acolher estes povos e deliberar em harmonia. É o embrião da Federação Unida
de Planetas e da utopia que vemos em todas as séries da franquia e da qual
tratamos nesse livro.
No lado contrário, existem aqueles que, impactados pela agressão Xindi,
tendem a se fechar, considerando o espaço, em vez de uma possibilidade para a
paz, fonte de terror. Assim, se organizam grupos xenofóbicos e terroristas,
como o Terra Prime, que lutam pela implantação do isolacionismo na Terra.
Portanto, no fim da série e no início da Federação os fatos se desenrolam de
maneira muito tensa. Quem pensava que a Federação havia sido um simples
desdobramento da evolução social, econômica e, logicamente, política humana
não poderia estar mais enganado. A Federação nasce sobre um perigoso
conflito doméstico.
Terra Prime
Na Lua, onde fica a estação mineradora de Paxton, funciona o quartel general
da organização Terra Prime. Lá acontecem reuniões de doutrinação entre
membros e simpatizantes, que debatem os supostos males da chegada dos
alienígenas. O fato que fez recrudescer o ímpeto do xenófobos foi o ataque
Xindi, que matou 7 milhões de pessoas. Diversas questões são colocadas em
pauta: o risco dos seres humanos se tornarem cidadãos de segunda classe em
seu próprio planeta; a hipótese da raça humana ser extinta, devido à
miscigenação ou então ataques alienígenas; e a quantidade de alienígenas
legais e sobretudo ilegais no planeta.
São temas impressionantes dada a conexão que eles possuem com a
realidade e principalmente com os Estados Unidos naquele momento. Como
dito, o 11 de setembro era muito recente e o governo estadunidense havia
colocado em marcha a sua infame “guerra ao terror”, que lhe permitia vigiar
seus próprios cidadãos, prender e torturar indefinidamente supostos
“terroristas” e assassinar a seu bel-prazer árabes no Oriente Médio. A
mensagem de que ataques (como os do Xindi ou da Al-Qaeda) acabam sendo
considerados como ataques oriundos de todo um grupo social é eloquente. O
11 de setembro multiplicou exponencialmente a hostilidade em relação aos
muçulmanos, assim como o ataque Xindi inflamou a xenofobia entre muitos
humanos.
Outra questão muito presente é a dos imigrantes, sobretudo hispânicos, nos
Estados Unidos. Quando os personagens falam em um número inaceitável de
alienígenas no planeta a conexão que devemos fazer é essa. E o problema
maior visto, tanto pelos xenófobos da ficção quanto da realidade é que essa
“invasão” pode acarretar o fim da sua cultura. O que esquecem é que toda
cultura é híbrida, como já esclareceu o historiador Peter Burke. Toda cultura é
feita de contatos com outras culturas que tiveram outros contatos com outras
culturas e assim sucessivamente até o início dos tempos. Portanto, quem
reclama para si uma pureza tanto étnica quanto cultural está equivocado
duplamente. O processo histórico normal é esse, mistura de “raças”, mistura
de culturas. Vale destacar que a escolha do elenco de figurantes foi muito
significativa para o que estava acontecendo. São pessoas de todos os tipos,
negros, brancos, orientais. Os velhos preconceitos foram superados e
suplantados por novos. O racismo humano se tornou racismo contra aliens.
Além disso, podemos lembrar ainda da questão dos refugiados na Europa
nos dias atuais. A Europa colonizou o mundo todo. Quando havia excesso de
população e fome, despachou milhões e milhões de seus filhos para os quatro
cantos do globo terrestre. Hoje, com as crises humanitárias pelas quais
diversos povos passam (povos que foram explorados pelos europeus, países que
foram suas colônias), milhões de seres humanos buscam refúgio. Buscam o
básico: água, comida, trabalho. Eis que as portas da velha Europa se fecham,
como se não tivesse nada a ver com isso. E assim a xenofobia vai crescendo,
pois existe forte propaganda contra os imigrantes, considerados inferiores e
bárbaros, que podem destruir a cultura europeia.
Da mesma forma que muitos racistas/xenófobos, Paxton é um grande
hipócrita. T’Pol descobre que ele é portador da Síndrome de Taggart. Quem a
possui morre por volta dos 20 anos, porém Paxton tem muito mais do que isso
e continua vivo. Logo, ele só obteve essa enorme sobrevida por se tratar com
genes rigelianos. Ou seja, ele é contra os alienígenas, mas se beneficia deles,
deve sua vida a eles. “O que o mantém vivo é justamente o que você diz para os
humanos evitar”, lhe diz T’Pol.
Paxton monta um plano para eliminar aquilo que considera uma ameaça
alienígena na Terra. Ele se apodera de uma arma instalada em Marte e a
aponta para o prédio onde as conferências preparatórias para a fundação da
Federação estão ocorrendo, dando o prazo de uma hora para que todos os
alienígenas saiam do sistema solar. Vulcanos, andorianos e telaritas, os povos
fundadores da Federação junto com os humanos ficam apreensivos. Estão cara
a cara com o pior que a humanidade pode apresentar. De fato, Paxton
representa um risco real para que o sonho de união das espécies da galáxia
tenha início.
Evidentemente, nossos heróis conseguem evitar a tempo a destruição
prometida por Paxton. Mas o estrago psicológico fora feito nos aliens. Além de
terem ficado frente a frente com as intenções do grupo extremistas Terra
Prime, eles perceberam que essas ideias circulavam também entre a população
comum. Parace que uma simples faísca pode inflamar a fogueira da xenofobia.
O fascismo está sempre por aí, sobretudo nas sociedades opressoras. Devemos
lembrar que, no século 22 de Archer, a humanidade ainda é muito mais
parecida conosco do que com Picard. Até as roupas são parecidas, com os
homens usando gravata, um sinal discreto colocado pelos produtores sobre as
semelhanças ainda existentes. Portanto, não é preciso muito para que o
rastilho de pólvora do racismo corra rápido e exploda o barril da xenofobia.
Basta um animador eloquente e persuasivo como Paxton.
Archer e Elizabeth
Com as relações entre humanos e as outras espécies profundamente
estremecidas, com desconfianças justificadas por parte delas, é necessário
fazer algo, para que os trabalhos para a construção da utopia não sejam
encerrados. É preciso que as conferências sejam retomadas. O ser humano já
foi tão longe, sonhou com esse momento durante século, não é possível aceitar
passivamente que o sonho se desvaneça dessa maneira.
Os delegados são reunidos e todo o tema de que ali se estava construindo o
futuro e retomado. É importante mostrar para eles que os “demônios”
humanos existem sim, mas já não são eles que governam a história. Por isso, é
pedido um voto de confiança a vulcanos, telaritas, andorianos, denobulanos e
outras espécies participantes. “Venham, vocês não irão se arrepender” é o que
a humanidade lhes diz agora de mãos estendidas.
Nesse tentativa de formação de uma “Coalização de Planetas”, nome
primitivo da Federação, um dos líderes da Terra Unida, Nathan Samuels sabe
que somente a união faz a força, para utilizarmos a expressão popular. Ao
contrário de Paxton que viu na ameaça Xindi uma razão para se fechar,
Samuels pensa em perspectiva oposta. Para ele, esse tipo de ataque reforça a
ideia de que a humanidade deve se coligar a outras espécies, para sua própria
proteção.
Mas é Archer que fará o discurso mais convincente para os aliens. Ele dirá
que durante muito tempo a humanidade esteve sozinha sonhando com as
estrelas. Foi esse sonho que a levou a tentar conhecê-las e como consequência
descobrir que a galáxia era habitada por tantas outras espécies com interesses
em comum. Essa oportunidade não pode ser desperdiçada. É quase um
imposição histórica que essas espécies se unam e busquem o bem em comum.
O embaixador vulcano – logo ele, sempre desconfiado em relação aos humanos
– o aplaude de pé, seguido por todos os outros delegados presentes. Era o
primeiro passo de uma vida longa e próspera dessa união de planetas. Uma
história que terminava feliz e iniciava outra que poderia ser melhor ainda.
Do outro lado, Elizabeth, a filha de T’Pol e Tucker, infelizmente não
resistiu e faleceu. Houve uma falha no processo da tecnologia de engenharia
genética que a criou, tornando os genes humanos e vulcanos incompatíveis.
Uma dor incomensurável para os pais. Os dois lados da vida. De um lado uma
nova vida surgia na forma de uma organização positiva. Do outro, a vida de
uma criança deixava de existir. Na cena final do episódio, certamente uma das
mais emocionantes e doloridas de toda a série, T’Pol e Tucker ficam de mãos
dadas. Ele revela para a vulcana que ainda seria possível humanos e vulcanos
terem filhos. É claro que Spock nos vem à mente.
VI
Discovery: a Renascença de Star Trek
Não, não vamos tomar atalhos no caminho para a justiça. Não, nós não iremos
quebrar as regras que nos protegem de nossos instintos mais básicos. Não, não
permitiremos que o desespero destrua a autoridade moral. Nós temos que ser
portadores da tocha lançando a luz para que possamos ver nosso caminho para a paz
duradoura.
Que a ficção, mais uma vez, sirva de inspiração para a nossa vida, para
nossa sociedade, nesse momento onde o conhecimento é criminalizado e as
armas são cultuadas.
Na segunda temporada vemos uma intenção de agradar e atrair os antigos
fãs, que torceram o nariz para a série em sua temporada inicial. Dessa forma,
foram trazidos o capitão Christopher Pike e Spock. Pike, evidentemente, se
trata do herói arquetípico que agrada ao fã conservador. É homem, bonitão e
branco. Porém, foi um ótimo personagem, interpretado de maneira brilhante
por Anson Mount. Sobre Spock não precisamos falar muito, além de que é o
personagem mais icônico de Star Trek, logo, agrada a todas as audiências. A
trama da temporada também foi muito bem elaborada, com o surgimento de
uma entidade chamada Anjo Vermelho. Na verdade, é a mãe de Burnham,
presa no futuro, tentando salvar a vida da filha e o fim da Federação.
Um dos momentos altos da segunda temporada de Discovery foi revisitar
Talos 4, o planeta visitado por Pike no primeiro piloto de Star Trek. Voltar lá,
depois de 13 filmes e quase 800 episódios, foi uma tacada de mestre dos
roteiristas. Tenho certeza que até o maior hater de Discovery teve seu
coraçãozinho duro e gelado tocado de alguma forma.
Além disso, o grande problema de continuidade que Discovery criou foi
resolvido. A USS Discovery é uma nave experimental da Frota, com uma
tecnologia jamais vista em Star Trek. Devemos lembrar que ela se passa antes
da série clássica, portanto,qualquer coisa que apareça na série e que nunca
tenhamos visto depois é um problema. A tecnologia permite que a nave dê
“saltos” cruzando grandes distâncias instantaneamente, de forma muito mais
veloz que a nossa conhecida dobra espacial. A maneira que isso ocorre é
através do “motor de esporos” que faz com que a nave viaje através de uma
“rede micelial” que une o universo. A viagem, em última análise, se dá através
do trabalho de fungos. A ideia foi baseada no trabalho de um cientista
chamado Paul Stamets, que acaba nomeando o personagem responsável pelos
“saltos”.
No final da segunda temporada tudo voltou ao seu devido lugar, já que a
Discovery foi parar quase mil anos no futuro. Logo, a tecnologia foi perdida e
ninguém nunca mais ouviu falar dela nos séculos seguintes, onde se
desenrolam as séries de Star Trek.
Mas vamos dar uma olhada nos personagens da série.
Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), humana criada por Sarek e sua
esposa Amanda, pais de Spock. Portanto, é irmã adotiva desse. Houve muita
reclamação: Spock nunca falou sobre ela! Verdade, mas ele também nunca
falou do meio-irmão Sybok de Star Trek 5. Burnham é uma xenoantropóloga e
serviu como primeira-oficial da USS Shenzhou. Foi responsável pelo início da
guerra entre a Federação e os klingons, tendo se amotinado contra sua capitã.
Por conta disso se tornou uma renegada e foi condenada à prisão perpétua, da
qual se livraria através do capitão Lorca.
Philippa Georgiou (Michelle Yeoh). Capitã da USS Shenzhou., perdeu a vida
em luta contra os klingons. Espécie de mentora de Burnham foi vitimada pelo
motim dessa última. A personagem retornará logo adiante, porém em sua
versão do universo espelho, onde era a Imperatriz.
Saru (Doug Jones). O primeiro kelpien na Frota, raça introduzida por
Discovery. Por pertencer a uma raça dominada em seu planeta, tem um senso
de aproximação do perigo e da morte muito aguçados. É o primeiro-oficial da
USS Discovery. Eu tive a oportunidade de conhecer o ator pessoalmente,
tirando foto e pegando autógrafo com ele. É uma figura singular. Afetuoso
com todos os fãs, os quais costuma beijar e abraçar.
Gabriel Lorca (Jason Isaacs). Capitão da Discovery, na verdade se revela
como vindo do universo espelho. O verdadeiro Lorca, do nosso universo,
morreu durante a guerra.
T’Kuvma (Chris Obi). Um guerreiro klingon que tenta mobilizar as 24 casas
do Império, que estavam separadas, para uma guerra contra a Federação, a
qual considera imperialista.
Voq (Shazad Latif). Klingon albino que herda a luta de T’Kuvma após a
morte deste.
Ash Tyler (Shazad Latif). Se trata de Voq transformado em humano, para
que atacasse a Frota estelar a partir de dentro. Se une à Seção 31.
L’Rell (Mary Chieffo). Seguidora de T’Kuvma, será a responsável pela
transformação de Voq em Tyler. No contexto onde se firma a paz entre
klingons e Federação será a líder do Alto Conselho Klingon.
Paul Stamets (Anthony Rapp). Humano, astromicologista da Discovery,
responsável pelo motor de esporos.
Dr. Hugh Culber (Wilson Cruz). O médico-chefe da Discovery e marido de
Stamets. O doutor será morto por Tyler/Voq, mas continuará existindo em
forma de energia na rede micelial. Posteriormente será trazido de volta, com
seu corpo sendo reconstruído.
Sylvia Tilly (Mary Wiseman). Cadete e um pouco inconveniente. Fala sem
pensar e causa várias saias justas. É uma jovem bem atrapalhada que sonha em
ser capitã. Se torna uma boa amiga de Burnham. É aquela personagem que
serve como alívio cômico da série.
Enfim, Discovery possui bons personagens e ótimos conflitos, fatores que
contribuem enormemente para que seja uma boa série. Além disso, Discovery
apresenta uma inovação muito interessante: os Short Treks. Pequenos
episódios, de 15 minutos, que são focados em um único personagem. A
primeira temporada produziu quatro episódios e a segunda contará com seis.
Nesse capítulo, falo sobre Choose Your Pain, episódio da primeira
temporada que enseja uma boa reflexão sobre os direitos dos animais.
Também abordo o episódio The Sound of Thunder, que mostra uma história
onde a ideologia serve à dominação de uma espécie sobre outra.
1
CHOOSE YOUR PAIN
O sofrimento do Tardígrado
O Dr. Culber crê que o tardígrado tem consciência. Não somos donos da sua alma. Vá salvar sua vida,
Burnham.
Saru
Nos dias de hoje, cada vez mais se discute os limites para o uso de animais
como cobaias ou alimentação. Já se sabe que a maior parte dos animais tem
emoções, como felicidade, tristeza, medo etc. Portanto, o ser humano ao tratá-
los como objetos certamente incorre em um terrível crime. A indústria
alimentícia é a principal causa de sofrimento dos animais, devido às condições
nas quais vivem e são abatidos. Repensar nossa relação com os seres que
compartilham o planeta conosco é a pauta do dia. Qualquer pessoa com um
mínimo discernimento sobre o que é certo ou o que é errado em algum
momento deverá refletir a sério sobre como tratamos os animais.
Star Trek abordou o tema da necessidade de preservação do meio ambiente
e do respeito à vida de todos os animais no filme Star Trek 4, com história e
direção de Leonard Nimoy, um homem preocupado com essas questões. A
mensagem que o filme passa por meio da alegoria da sonda que irá destruir a
Terra é clara: se o meio ambiente e os animais não forem preservados a Terra
não tem futuro. Portanto, cuidar do bem estar dos animais é uma obrigação da
humanidade.
No episódio Choose your Pain, da primeira temporada de Discovery somos
confrontados com essa questão. A Discovery encontrou uma nova forma de
vida, que foi chamada de Tardígrado, por se assemelhar ao animal
microscópico e extremófilo natural da Terra. No entanto, as semelhanças
desaparecem quando constatamos o tamanho do animal. Ele aparenta ser
maior que um bovino e menor que um elefante. É essa mais ou menos a escala.
Ele é capturado pela Discovery e se descobre que o animal viaja entre
dimensões, utilizando a rede micelial para se deslocar. Portanto, ele possui um
sistema natural de direcionamento dentro da rede. Quase como um GPS para
viajar pelo caminho dos esporos. Assim, o Tardígrado acaba se demonstrando
bastante útil para controlar os saltos da Discovery. Mas, evidentemente, uma
questão ética se impõe, já que o animal parece sofrer terrivelmente a cada vez
que é “usado” para acionar o motor de esporos.
Burnham preocupada com essa situação chama o Dr. Culber para que ele
possa examinar o animal e determinar se ele é afetado ou não pelo motor. Ao
mesmo tempo, o almirantado da Frota corre loucamente atrás de outros
tardígrados para que cada nave possa ter um a bordo e assim otimizar o
deslocamento da frota, já que estamos em tempos de guerra contra os
klingons.
A dor da qual fala o título do episódio é refletida na captura do capitão
Lorca pelos klingons e no sofrimento pelo qual o Tardígrado passa a cada vez
que alerta escuro é ativado na Discovery. O Dr. Culber avalia que o animal
sofre danos cumulativos a cada vez que é utilizado em um salto, o que faz
Burnham procurar Stamets e argumentar que a situação é insustentável.
Stamets, Tilly e Burnham passam a trabalhar em busca de uma solução para o
motor de esporos que não envolva utilizar o DNA do tardígrado, que serve
perfeitamente para a interface com os esporos. Porém, por um lado é difícil
encontrar alguma espécie compatível e por outro fica claro que o DNA
humano serviria.
Contudo, Saru que está como capitão interino e focado no resgate de Lorca,
ordena que a pesquisa seja encerrada e que o Tardígrado seja utilizado para
acionar o motor, já que o tempo está correndo e assim as chances de se
encontrar Lorca com vida vão diminundo. Mais um salto é dado e o
Tardígrado entra em um estado letárgico, onde perde quase toda a água do seu
corpo e seus sinas vitais são praticamente indetectáveis. Portanto, a Discovery
está em espaço klingon sem ter como retornar após o resgate de Lorca que é
realizado logo em seguida.
No entanto, mesmo assim o salto é dado e os tripulantes descobrem que
Stamets injetou o DNA do Tardígrado em si mesmo, podendo atuar como a
interface do motor e permitindo o salto. É o homem se sacrificando no lugar
do animal dessa vez.
Por fim, Saru ordena que Burnham salve a vida do tardígrado. Ela o devolve
ao espaço, seu ambiente natural. O Tardígrado recupera-se e entra na rede dos
micélios. É uma cena linda, onde o ser humano liberta o animal de sua
escravidão e sofrimento. Um momento utópico e inspirador.
2
THE SOUND OF THUNDER
A verdade sobreviveu. É tempo de um equilíbrio verdadeiro ser restaurado. Vocês já não precisam ter
medo.
Siranna
Como dito no início, não é simples escrever um livro sobre Star Trek nesses
moldes. São 50 anos de série e por mais minucioso e abrangente que seja o
escrito jamais se poderá alcançar todos os aspectos dessa obra monumental.
Mesmo nos recortes específicos escolhidos para esse pequeno livro, isto é,
falar brevemente (e criticamente) sobre as principais características das séries,
abordar a utopia da sociedade apresentada por elas e perscrutar a crítica social
em alguns poucos episódios, a tarefa é inglória e sempre dá a impressão de que
faltou alguma coisa. E, é claro, faltou, fato pelo qual me desculpo junto aos
leitores.
Mas eu gostaria de ressaltar o fio condutor de toda a narrativa: a
necessidade da revolução e da destruição do capitalismo. Star Trek nos
apresenta um mundo onde o capitalismo - e com ele a opressão de uns poucos
sobre muitos – desapareceu. Contudo, na ficção (e de acordo com a ideologia
estadunidense, lembrem que falei dela no início) a chegada nesse mundo pós-
capitalista se deu de maneira tranquila, como um processo evolutivo
inexorável. Porém, não podemos esquecer que, no mundo real, a luta de classes
é um objeto concreto da realidade e ela tende a se agudizar, até que, não
havendo mais possibilidade de se manter (ou ser mantida) mascarada, ela se
escancara e incendeia a sociedade. É somente assim que passaremos para
outra etapa da nossa história, ou superação da “pré-história” da humanidade,
como afirmou Marx.
Devemos pensar em Star Trek, na sua forma utópica, apenas como uma
inspiração para que um mundo justo e livre da opressão seja atingido. Todavia,
jamais poderemos nos acomodar e esperar que esse mundo venha a existir
pacífica e naturalmente. Não. Ele deverá ser arrancado das classe dominantes,
que, obviamente, não têm o menor interesse na sua existência. A história é
parida violentamente, após as intensas dores do parto. Não há como enganar-
se: são os seres humanos que fazem sua própria história. Logo, o advento da
sociedade sem classes será obra ativa de mulheres e homens fartos da
submissão. Nossa jornada não é tranquila, ela é atribulada e está no começo.
Temos um longo caminho pela frente e, sem dúvida, a utopia nos ajuda a
trilhá-lo. Mas é somente com a revolução que um novo mundo será construído.
Uma vida longa e próspera a todos.